Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BATALHA DAS RAINHAS / Jean Plaidy
A BATALHA DAS RAINHAS / Jean Plaidy

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O LONGO VERÃO terminara. Da janela da torrinha, a rainha lançava o olhar desconsolado para além do fosso, para a floresta onde as bronzeadas folhas dos gigantescos carvalhos e o cobre das faias espadanavam suas cores outonais pela paisagem. O nevoeiro pairava por sobre o charco onde a junca nascia espessa; apática, ela observou um casal de pegas, de um preto e branco vívidos contra o céu de outubro.

E pensou em Angouleme, onde, pelo que se lembrava, os dias haviam sempre parecido cheios de sol e os salões do castelo de seu pai habitados por belos trovadores cujo deleite era cantar os incomparáveis encanto e beleza de Lady Isabella. E aquilo era compreensível, pois não poderia ter havido nas cortes dos reis da Inglaterra e da França uma mulher cuja beleza pudesse se comparar à dela. Existem muitas mulheres bonitas, mas de vez em quando surge uma que possui não apenas encantos físicos evidentes, mas uma qualidade indefinível, que parece indestrutível. Helena de Tróia era uma delas, e Isabella de Angouleme era outra.

Ela sorriu, pensando nisso. Era um pensamento reconfortante para uma prisioneira - e prisioneira ela era. O rei, seu marido, a odiava, e no entanto não podia resistir a ela, porque, uma vez dominado pelos seus encantos, jamais poderia escapar deles. Tampouco queria ela que o marido escapasse.

 

 

 

 

Onde estava ele, agora? Em dificuldades, em dificuldades muitíssimo sérias. Aquilo era inevitável. Nunca poderia ter havido um monarca tão tolo quanto o rei João. Muitos de seus súditos estavam revoltados contra ele, e tão odiado era ele, que os ingleses haviam convidado o filho do rei francês para que fosse usurpar a coroa. Em consequência, os franceses agora se achavam em solo inglês, e João estava perdendo a Inglaterra como perdera todas as possessões da coroa na França. Seus antepassados - o poderoso Guilherme, o Conquistador, e o primeiro Henrique, aquele Leão da Justiça, iriam amaldiçoá-lo; e o pai dele, o grande Henrique II, e sua mãe, Eleanor da Aquitânia, estariam de acordo pelo menos uma vez e teriam declarado que teria sido melhor se tivessem morrido antes de trazerem ao mundo uma criatura daquelas.

João era libidinoso, cruel, fútil e insensato. Não possuía uma só qualidade que pudesse ser chamada de boa, e a partir do momento em que assumira a coroa caminhara diretamente para o desastre.

Talvez, pensou ela, eu devesse ter-me casado com Hugo. Não! O que quer que ele fosse, João era um rei, e Hugo jamais poderia ter feito dela uma rainha.

Ela sempre quisera poder e grandes honrarias, e parecera perfeitamente natural que a sua beleza lhe proporcionasse isso.

Como estava pensativa, hoje! Parecia haver algo de pressagioso no ar. Ela sentia. Mas seria fora do comum? Todos os dias, quando olhava de sua janela da torrinha, ficava com os olhos fixos no horizonte, à espera de ver um homem a cavalo. Poderia ser João, lembrando-se de sua existência e, talvez, dos primeiros anos de seu casamento, quando estivera tão enamorado dela que não saía da cama - não apenas durante a noite, mas também durante o dia -, para desprezo de seus barões, pois, embora soubessem que ele era um homem vigoroso e conhecessem sua trama depois de se ter encontrado por acaso com Isabella na floresta, a fim de levá-la para a cama, acreditavam que, na qualidade de rei, ele deveria ter-se lembrado de que tinha outros deveres que não o de engravidar a esposa e satisfazer seus vorazes apetites sexuais.

Ela sabia que aquelas recordações chegavam a João de repente e ele cavalgava até Gloucester, entrava como um furacão no quarto dela e a fazia lembrar que embora fosse sua prisioneira era sua esposa. Ele poderia tê-la amaldiçoado pelas suas infidelidades - embora esperasse que Isabella aceitasse as dele - e podia ter enforcado o amante dela no dossel de sua cama, de modo que ao acordar ela descobrira o corpo ali pendurado, mas sentia um forte desejo pela esposa, e ela não ficava contrariada de todo, porque seus apetites eram tão aguçados quanto os de João a esse respeito, e aquela paixão de ódio e desejo a divertia e intrigava.

Sua filha caçula, Eleanor, tinha sido concebida naquela prisão e nascera um ano atrás. Sentia-se grata por ter os filhos ao seu lado, mas nunca deveria deixar que ele soubesse disso, porque então poderia tentar privá-la da companhia deles. Nunca fora uma mãe dedicada, e talvez tivesse sido por isso que João não tivera a ideia de tirá-los dela. Acreditava que ela fosse tão indiferente para com os filhos quanto ele.

O jovem Henrique, agora com nove anos, seria o próximo rei, desde que os franceses não conquistassem o país, o que, segundo uma notícia que lhe fora levada, estavam a ponto de fazer. O que aconteceria em seguida?, perguntava-se ela. Quem poderia dizer? Parecia provável que haveria uma pessoa entre os invasores – talvez o próprio Luís - que não ficaria insensível aos encantos da rainha. Ela teria de esperar para ver o que iria acontecer; e considerando-se a crise a que João os levara, talvez tivesse sido melhor, no final das contas, se ela tivesse se casado com Hugo de Lusignan. Estava apenas com doze anos de idade, mas já madura, quando ao ficar noiva se apaixonara por Hugo. Sua natureza ardente a fizera sonhar com o ato amoroso com aquele belo homem, mas ele - embora a desejasse - se mantivera indiferente, com receio de que ela fosse criança demais e alimentando ideias românticas de aguardar o casamento. Querido Hugo, durante aquelas orgias loucas com João, ela muitas vezes se lembrava dele, e durante os momentos mais tranquilos em seus pensamentos colocara o belo e delicado Hugo no lugar de seu violento marido e sentira prazer nisso, ainda que apenas para pensar em como João teria ficado furioso se tivesse lido seus pensamentos.

Isabella sempre se consolara: mas ele é um rei e fez de mim uma rainha, o que estava muito longe de ser apenas a filha do conde de Angoulême, muito embora tivesse sido filha única e uma herdeira de vulto. Uma coisa que podia dizer era que João não levara em consideração a sua herança. Seu desejo de se casar com ela fora pura concupiscência. E esta continuara mesmo enquanto se divertia com outras mulheres - com quem arranjara vários filhos -, e mesmo durante as aventuras dela, pelas quais a fizera pagar com aquele terrível ato. E ela pagara, pois mesmo agora acordava de um pesadelo no qual voltava àquela terrível madrugada abrindo os olhos para ver aquele pavoroso espetáculo. Mas durante tudo aquilo, o desejo de João por ela continuara vivo.

Vira-o jogar fora sua herança, reduzido ao máximo de humilhação pelos barões que o tinham obrigado a assinar a Magna Carta em Runnymede. Aqueles mesmos barões estavam, agora, cansados de suas loucuras, de sua aspereza, sua inépcia e sua crueldade para com tanta gente. O rei tinha inimigos por toda parte.

E agora, os franceses. Eles haviam reclamado o trono inglês para Luís, filho de Filipe da França, porque Luís se casara com Blanche, que era filha da irmã de João, Eleanor, com Alfonso de Castela. Eleanor era filha de Henrique II - e com um monarca como João no trono, seus inimigos estavam prontos a se agarrar a qualquer coisa.

Guilherme Marechal, o grande conde de Pembroke, um dos poucos homens leais do país, mostrara-se desgostoso com tudo o que acontecera, e por ser um homem sensato, sabia de quem era a culpa. Mas ele sempre estivera do lado do rei, da aplicação da lei e da preservação da ordem. Servira bem a Henrique II e ficara ao lado dele quando todos os filhos tinham-se colocado contra; lutara cara a cara com Ricardo; mas quando Ricardo fora para o trono, tivera o bom senso de fazer de Guilherme Marechal o primeiro de seus conselheiros. Ate mesmo João percebera a necessidade de ouvilo. Se ao menos ele sempre tivesse ouvido os conselhos do Marechal, não se encontraria, agora, naquela situação.

De modo que os franceses estavam invadindo o país, e João se achava em retirada. Até o filho mais velho do Marechal passara para o lado dos franceses.

O que viria a seguir?, perguntava-se Isabella enquanto ficava sentada junto à janela da torrinha, esperando ver um cavaleiro que pudesse lhe levar notícias.

Foi nada menos do que Guilherme Marechal em pessoa que as trouxe.

Ela o viu cavalgando em direção ao castelo à frente de um pequeno grupo.

Estava muito velho - devia estar com quase oitenta anos -, mas visto ao longe parecia um jovem. Durante algum tempo, ficou observando a aproximação dele, e depois desceu até o pátio, para saudá-lo.

Com que dignidade ele montava seu cavalo! Era muito alto, e as feições tinham traços precisos; a boa aparência era do tipo que a idade não consegue destruir. Sua dignidade era grande, e dizia-se que ele tinha o porte de um imperador romano. Na juventude, fora um dos melhores cavaleiros de sua época, e conseguira grandes honrarias na justa. Os cabelos encaracolados continuavam castanhos, e o porte era o de um soldado.

Ele saltou do cavalo e beijou a mão da rainha.

- Más notícias, meu senhor? - disse ela.

E quando ele respondeu com franqueza "O rei está morto", o coração dela saltou com emoções mistas. Ficou surpresa com um senso de desolação; mas isso passou logo, e a excitação tomou conta dela.

- E agora? - perguntou num sussurro.

- Ação imediata.

- Então, entre no castelo.

- Há muita coisa que tem de ser feita logo - respondeu o Marechal.

Foi uma história de terror. Ele não lhe contou imediatamente, mas Isabella ficou sabendo depois. O tirano, o insensato, irresponsável rei que levara a desgraça para milhares de pessoas, que colocara seu país em perigo, já não vivia mais.

Ela sentiu o alívio no Marechal; era como se estivesse dizendo: "Agora, podemos começar a fazer planos."

- Onde está o rei? - perguntou o Marechal.

Ela levou um susto. Então, a verdade chegou como um rio que corresse por cima dela, tirando-lhe a respiração. Respondeu com voz firme:

- Está com o irmão e as irmãs na sala de aula.

O Marechal hesitou. Era um homem adepto do protocolo. O instinto insistia que fosse procurar o menino, ajoelhar-se dramaticamente diante dele e jurar vassalagem.

A rainha colocou-lhe a mão no braço.

- Mais tarde, bom Marechal.

O conde hesitou; depois, curvou a cabeça, concordando.

- Ele sabe pouco sobre o que está acontecendo - disse a rainha. - Eu queria que, por enquanto, ele não desprezasse o pai. Tenho de falar com o senhor. Será trazido um refresco. O senhor veio de longe e precisa disso.

- Como eu disse, senhora, é necessário agir de imediato.

- Sei muito bem disso.

O rei deve ser coroado o mais rápido possível.

Vamos conversar sobre essas coisas... mas em segredo, pois quem sabe quais as histórias que são espalhadas? Seu próprio filho... O Marechal concordou.

- Ele não gostava do rei. Acreditava que era melhor ser contra ele. Eu não queria, mas entendi o motivo.

Isabella bateu as mãos e quase que imediatamente trouxeram refresco. Ela mandou que trouxessem carne, mas o Marechal não estava com disposição para comer, embora admitisse a necessidade de matar a sede.

- Deixem-nos - ordenou a rainha a suas criadas que aguardavam novas ordens, e quando ficaram a sós, disse: - Como foi que ele morreu? De maneira ignóbil, não duvido, tal como viveu.

Guilherme Marechal não a olhou de frente.

- Não se sabe ao certo, mas fala-se em veneno.

- Ah! com que então alguém foi suficientemente ousado. O senhor deve me contar, meu senhor, pois esteja certo de que irei descobrir e preferiria ouvir a verdade de seus lábios do que as histórias truncadas de terceiros.

- Só posso dizer, senhora, que ele fez uma parada com suas tropas num convento a caminho da abadia de Swinstead e lá pediu um refresco. Dizem que viu, lá, uma freira cuja beleza era evidente, apesar do hábito que usava.

- Oh, querido Deus, não. Então! Até o fim...

- Ouvi dizer que ela possuía uma semelhança com a senhora que ele achou interessante.

- E não duvido de que declarou que só na aparência é que podia haver uma semelhança.

- Não ouvi falar nisso, majestade. Mas ele tentou molestá-la e ela fugiu. O rei não a perseguiu. Não parecia estar com disposição.

- E ela escapou dele. Fico contente.

- A notícia do que aconteceu pode ter chegado antes dele à abadia, se o rumor for verdade, pois os homens que o acompanhavam declararam que foram os pêssegos que lhe foram dados que fizeram com que sentisse dores violentas. Ele ficou em agonia até Newark, e quando chegou ao castelo do bispo de lá, deitou-se na cama e morreu.

Os dois ficaram calados por um momento. Então, o Marechal se levantou e disse:

- Agora, majestade, preciso ver o rei.

- Ele é apenas uma criança, senhor conde. Ele é o rei da Inglaterra, majestade.

- Conceda-me este favor. Deixe que eu vá falar com eles. Deixe que eu dê a notícia. Preciso prepará-lo. Ele é um menino sério e vai aprender logo.

Guilherme Marechal percebeu o objetivo do que a rainha pedia. Nunca tivera uma grande admiração por ela. Sabia que era uma mulher excepcionalmente atraente, e apesar de velho e de rigoroso em sua moral, não podia deixar de se sentir agitado pela inquestionável atração dela.

Pensara muitas vezes, na primeira fase do casamento de Isabella com João, que ela era adequada ao rei. Sua sensualidade tornava-se aparente de imediato. Ela a usava como um ornamento vistoso, e todos os homens deviam estar cientes dela. João ficara completamente seduzido naquele primeiro encontro na floresta, quando, ela não passava de uma criança. Hugo de Lusignan ficara solteiro porque, segundo se dizia, depois de ter sido noivo dela, não podia aceitar outra mulher. Que ela era astuta, ele sabia. Certa vez, ele comentara com sua mulher - uma outra Isabella - que a rainha merecia o rei e o rei merecia a rainha, mas às vezes pensava que fora rigoroso demais com ela. Era difícil haver uma mulher no mundo que merecesse João.

Agora se sentia preocupado. O novo rei um menor de idade, e uma mãe voluntariosa nos bastidores. Guilherme via problemas pela frente.

Por isso, hesitou.

- A situação é muitíssimo perigosa, majestade.

- Sei muito bem disso. Os franceses estão aqui. Há muitos traidores neste país que gostariam de colocar Luís no trono. Ele trouxe soldados estrangeiros para o nosso solo.

- O falecido rei também fez isso, majestade. O exército dele era constituído, em sua maioria, de mercenários vindos do continente.

Ela ficou calada por um momento e depois disse:

- Eu lhe imploro, senhor conde, dê-me um pouquinho de tempo para falar com o meu filho, para que possa conversar sobre esse ónus que caiu sobre seus ombros.

- Vá falar com ele, senhora - disse Guilherme Marechal. E depois irei prestar minhas homenagens ao rei.

Isabella foi logo à sala de aula, onde sabia que iria encontrar os três filhos mais velhos. Isabella, com dois anos, e Eleanor, com um, estariam na ala das crianças.

Os dois meninos e a menina estavam sentados a uma mesa comprida, desenhando juntos, as cabeças inclinadas sobre o trabalho.

Ao verem a mãe, as crianças se levantaram, a garotinha fazendo uma linda mesura e os meninos se curvando. A rainha sempre insistia naquela homenagem; muitas vezes

ficava imaginando se os filhos sabiam que todos estavam presos por ordens do pai. Eles sabiam que ele ia lá, é claro. Henrique, o mais velho, tinha mais medo das visitas do pai do que os outros, pois Henrique era um menino que queria viver em paz; seu irmão Ricardo era justamente o oposto. Às vezes Isabella pensava que teria sido mais apropriado se Ricardo tivesse sido o mais velho dos dois.

Pegou Henrique pela mão e conduziu-o ao banco junto à janela, com os outros seguindo atrás.

- Há visitas no castelo, majestade - disse Ricardo.

Ela franziu ligeiramente as sobrancelhas. Era sempre Ricardo quem falava. Por que Henrique se continha? O menino, agora, parecia diferente aos olhos de Isabella. Ele era um rei, mesmo se os súditos não o aceitassem. Ela tornou a pensar: devia ter sido o Ricardo. Logo ela se lembrou do dia em que o segundo filho nascera, em Winchester, e o jovem Henrique só tinha quinze meses de idade na época. Houvera um longo período antes de ela conceber o primeiro filho, e chegara a pensar se não seria estéril - porque João já havia proclamado a sua fertilidade ao espalhar bastardos pelo país inteiro. Então o nascimento de Henrique fora logo seguido pelo de Ricardo; e Joana não estava muito atrás.

Isabella não precisava ter-se preocupado com a possibilidade de ser estéril. Os filhos eram uma bênção, especialmente quando podiam usar coroas.

Atraiu Henrique para perto e ele disse:

- Não foi meu pai que chegou, majestade.

Havia um tom de alívio em sua voz. Ela sabia que as crianças se encolhiam de medo em seus quartos quando o pai chegava. Henrique temia que ele a maltratasse. Nada disso, meu filho, queria ela explicar. Eu posso dar a ele o mesmo que ele me der.

E agora o rei tinha morrido, e o mundo se tornara um lugar emocionante.

- Notícias graves, meus filhos. Então vocês viram a chegada do conde de Pembroke?

- Da janela - respondeu Ricardo. - E vimos a senhora descer para recebê-lo.

- Ele é um homem velho, muito velho - disse Joana.

- Reze para que você esteja em tão perfeitas condições de saúde quanto ele quando chegar à idade dele, minha filha - disse a rainha, em tom ríspido.

Joana pareceu fascinada pela ideia de ficar tão velha quanto Guilherme Marechal.

- Ele trouxe notícias de seu pai.

- Ele está vindo para cá? - Foi Henrique quem falou. A preocupação se mostrava em sua fisionomia sensível.

- Não. Ele nunca mais virá aqui. Ele morreu.

Houve um silêncio de espanto. Isabella tomou a mão de Henrique e a beijou.

- E agora você, meu filho, é o rei da Inglaterra.

O rosto de Henrique enrugou-se numa expressão de horror. Ricardo bradou:

- Ele é Henrique III, não é, majestade, porque nosso avô foi Henrique II.

Henrique puxava a manga do vestido da mãe.

- Diga, mamãe, o que preciso fazer.

- Só o que lhe mandarem - respondeu, tranquila. - Ora, não precisa se preocupar. Estarei aqui para ajudá-lo, e o conde de Pembroke está esperando, agora, para beijar-lhe a mão e jurar-lhe vassalagem.

Joana se aproximou do irmão e tocou-lhe o braço com uma expressão de espanto e admiração no belo rostinho.

- Nunca mais devemos fazer Henrique ficar zangado, não é?

- disse. - Senão, ele pode nos cortar a cabeça fora.

- Antes disso, eu cortaria a cabeça dele - bradou Ricardo.

- Isso não é maneira de se falar do seu rei - disse Isabella com severidade. - E você nunca devia ter feito com que o Henrique ficasse zangado, Joana. Isso foi errado. Claro que agora é bom se lembrar de que ele é o seu rei. - Isabella olhou para a filha com uma certa antipatia. Seus sentimentos para com Joana se haviam alterado desde que João, com uma astúcia desonesta, decidira que seria uma excelente ideia prometê-la a Hugo de Lusignan.

Os olhos de Isabella semicerraram-se; podia ouvir aquela voz zombeteira: "Ele não conseguiu a mãe, de modo que talvez a filha lhe dê algum consolo." "Você deve estar louco", respondera ela. "Hugo é um homem adulto, e Joana não passa de uma criança." "Ele que espere", fora a resposta. "Ele sabe esperar."

Hugo... o homem com quem ela deveria ter-se casado, o que muitas vezes lamentava não ter feito, iria ser o marido de sua jovem filha! João sabia que ela guardava um certo sentimento para com Hugo, e tinha sido por isso que fizera tudo ao seu alcance para humilhá-lo sempre que possível. Mas não era fácil humilhar Hugo, pois ele tinha aquela dignidade inata a que um homem como João

- apesar do berço real - jamais poderia aspirar. João sabia que a rainha odiaria ver a filha seguir para Lusignan, a fim de ser criada pela família do homem que ela havia amado. Porque Isabella amara Hugo, embora de uma maneira egoísta, que era tudo que sabia ser capaz de fazer. Hugo era, no entanto, a única pessoa pela

qual ela poderia ter feito um pequeno sacrifício. E João fizera da filha a noiva dele! Isabella não podia evitar, mas a menina a deixava irritada, e vê-la ficar

mais bonita a cada dia que passava não lhe dava consolo.

Ela se voltou de Joana para Henrique.

- Agora, meu filho, vou levá-lo ao conde de Pembroke. Afaste esse ar de medo. Será que você é uma criança que precisa ter medo de sua coroa? Devia estar feliz. Algumas pessoas têm de esperar anos por aquilo que é seu na sua juventude. Vamos, assuma ares de rei. Aja como tal. - Isabella agarrou o ombro dele com firmeza e o conduziu para fora do aposento.

Ricardo o acompanhou com os olhos, invejoso, Joana, com assombro; e Henrique estava desejando que tivesse sido quinze meses mais moço do que Ricardo, em vez de ser mais velho.

Foi uma visão estranha, a do nobre conde ajoelhando-se diante do menino pálido. No entanto, naqueles momentos Henrique parecia adquirir nova dignidade; e enquanto Guilherme Marechal olhava para aquele menino franzino, teve uma nova esperança de que talvez a ascensão dele pudesse pôr um fim ao tormento da guerra civil no país e, até, resultar na expulsão do invasor estrangeiro.

O jovem rei havia-se retirado para o seu quarto, pois a mãe dissera que ainda era filho da rainha e devia fazer o que ela achasse melhor para ele.

Henrique, raramente sendo outra coisa que não dócil, obedeceu-a.

Ficou contente por ficar sozinho, a fim de que pudesse analisar a enormidade do que lhe acontecera.

Enquanto isso, Isabella e Guilherme Marechal conversavam, animados.

- O rei precisa ser coroado sem demora - declarou Guilherme. - O povo deve ver que uma nova era está prestes a começar.

- com um rei menor de idade!

- com um rei, senhora, que terá bons assessores.

- O senhor - disse ela com toque de desagrado.

- Penso que muita gente me consideraria indicado para a tarefa. Enviei uma mensagem a Hubert de Burgh e não tenho dúvida de que ele estará aqui dentro em breve.

Isabella se animou. com dois homens como aqueles para apoiarem o filho, as chances dele eram boas.

- Não creio que o povo da Inglaterra queira entregar o país aos franceses - prosseguiu Guilherme Marechal.

- Parece que muitos deles estavam tentando fazer exatamente isso - retrucou ela.

- Por desespero, majestade, achando que qualquer coisa era preferível ao governo de João.

Isabella não teve resposta para aquilo, pois sabia que ele dizia a verdade.

- Mas agora que temos um novo rei, um menino que pode ser orientado, isso poderia significar uma guinada para essa terrível situação.

- Espero e rezo por isso, meu senhor.

- Um rei se torna rei quando é coroado. Devemos, portanto, realizar logo a coroação.

- com o que ele seria coroado? João perdeu as jóias da coroa no Wash.

- A coroa em si não é tão importante quanto a cerimónia de coroação e a aceitação do rei por parte do povo.

- Mas um rei precisa de uma coroa real. E a coroa de Eduardo, o Confessor, está em Londres. É verdade que Londres está dominada pelos franceses?

- Para vergonha dos ingleses... é. Mas não será por muito tempo. Faça com que o povo da Inglaterra saiba que o tirano está morto e que temos um novo rei jovem e inocente no trono, com homens fortes a apoiá-lo, e verá que o povo irá aderir a ele. Não tenho dúvidas de que daqui a um ano, se agirmos com inteligência, não haverá um só francês neste país.

Isabella não podia deixar de ficar convencida, pois Guilherme Marechal era conhecido no país inteiro, não apenas pela bravura e lealdade, mas pelo firme bom senso.

- Meu senhor - disse Isabella -, o arcebispo de Canterbury deverá realizar a cerimónia.

- Impossível. Estêvão Langton está em Roma... para onde foi, a fim de escapar à perseguição de seu falecido marido.

- E o arcebispo de York, e o bispo de Londres...

- Majestade, uma coroação não depende de um bispo, tampouco de um arcebispo. Vamos encontrar alguém para realizar a cerimónia. Já mandei um mensageiro procurar o bispo de Winchester. Ele, por ser o único disponível, deverá coroar o rei.

- E o povo...

- Ah, aí o problema é mais sério. O seu desgosto com relação à tirania de João era tão sincero que ele talvez fique contra o filho dele. Temos de conquistar o povo, majestade, e esta é a nossa maior tarefa.

Isabella deu de ombros.

- Um povo hostil, ausentes os arcebispos de Canterbury e York e também o bispo de Londres, não existe a coroa real... e o senhor quer uma coroação.

- Sim, majestade, quero, pois acredito que ela será a única maneira de guardar a Inglaterra para o rei que é seu por direito.

Os olhos dele estavam fixos na gargantilha de ouro que Isabella estava usando. Percebendo isso, ela levou a mão à gargantilha, raciocinando.

- Posso ver o ornamento, majestade?

Ela o tirou e o entregou a ele. Guilherme o examinou e sorriu.

- Isso poderia ser a coroa de Henrique IIIda Inglaterra disse ele. - Acho que vai caber direitinho naquela jovem cabeça.

Antes do fim do dia, Hubert de Burgh havia chegado ao castelo.

Ele estava muito animado com os acontecimentos. Era um homem leal; fizera o possível para deter os franceses; defendera o castelo de Windsor contra eles até que não lhe fora mais possível continuar. Lamentava o fato de estrangeiros estarem em solo inglês, mas ficara contente com a morte de João.

Talvez ele, como ninguém, tivesse ciência da vilania daquela natureza distorcida. Ele havia visto a Inglaterra perder a grandeza que governantes como o Conquistador, Henrique I e Henrique II haviam trazido, mas nenhum país poderia prosperar quando seu rei estivesse tão apaixonado pela glória militar a ponto de raramente estar no país que deveria governar como rei. Ricardo - a quem chamavam de Coração de Leão - tinha sido assim; e quando um reinado daqueles era seguido pelo de um homem depravado, cruel, inescrupuloso - cuja loucura era ainda maior do que todos os seus defeitos -, a Inglaterra estava condenada.

E agora, o tirano estava morto, e o Marechal mandara chamálo. O rei era menor de idade. Poderiam eles tirar a Inglaterra da terrível humilhação em que havia caído? Se Guilherme Marechal acreditava que aquilo era possível, Hubert de Burgh estava pronto a concordar com ele.

Tinha havido encontros com João que Hubert jamais esqueceria. Todos estavam cientes, agora, de suas vilanias, mas o que acontecera entre ele e Hubert havia treze anos seria uma lembrança horrível para sempre. Hubert pensava muito no garoto que gostara dele e confiara nele e cuja vida ele tentara salvar. Pobre Artur, tão jovem, tão inocente, cujo único pecado fora uma reivindicação do trono da Inglaterra que poderia ser considerada por alguns como maior do que a de João.

Hubert seria sempre perseguido por aquelas cenas representadas no castelo de Falaise, onde ele tinha sido o guardião do sobrinho do rei, filho de Geofredo, irmão de João, o pobre e trágico príncipe Artur. Um belo garoto - arrogante, talvez, devido às homenagens que os homens lhe haviam prestado, mas como aquela arrogância fora lamentavelmente quebrada e revelado que ele não passava de uma criança amedrontada a quem Hubert passara a amar como Artur amara Hubert. Às vezes, em seus sonhos, Hubert ouvia aqueles terríveis gritos de socorro; sentia uma mão puxando-lhe as túnicas. "Hubert, Hubert, salve-me, Hubert. Meus olhos, não... Deixe-me os olhos, Hubert."

Em seus sonhos ele sentia o cheiro dos braseiros e via os homens, as fisionomias duras de tanta brutalidade, os ferros prontos nas mãos.

E por Artur ele havia arriscado a vida - pois Hubert sabia quais eram as recompensas que seu senhor reservava para os que o desobedeciam; arriscara os próprios olhos pelos de Artur, dispensara os homens, escondera o menino e fingira que ele havia morrido durante a horripilante operação que o teria privado dos olhos e da masculinidade.

Fora como se o destino estivesse do seu lado, pois não poderia ter mantido o menino escondido para sempre. Fora uma ironia o fato de o tolo do João ter ficado com medo de uma revolta dos homens da Bretanha e dos constantes sussurros postos em circulação pelos seus inimigos - o principal dos quais era o rei da França de que o rei da Inglaterra assassinara o sobrinho. Então Hubert confessara e fora recompensado com a aprovação do rei, pois João, cujo mau génio sempre o fizera agir primeiro e pensar nas consequências depois, percebera que Hubert lhe prestara um favor ao salvar os olhos de Artur. Mas não demorara muito e Artur fora tirado dos cuidados de Hubert e assassinado no castelo de Rouen. Pelo menos, pensava Hubert, poupei os olhos dele, e a morte é preferível para quem já soube como são os campos verdes, e então é cruelmente privado da bênção de vê-los.

Mas muitas vezes ele percebera os olhos de João em sua direção e ficara pensando se o rei não estaria se lembrando de que Hubert de Burgh era o homem que desobedecera suas ordens e se recusara a mutilar Artur.

Hubert fora útil. Talvez por isso tivesse vivido mais do que o rei.

E agora, a alegria. João havia morrido e Guilherme Marechal se achava com o novo rei.

Uma nova era estaria chegando para homens como ele?

Estava a uma distância que dava para ver o castelo quando percebeu uma figura solitária cavalgando em sua direção. Quando o cavaleiro chegou mais perto, ele percebeu, com grande prazer, que não era outro que não o próprio Guilherme Marechal, conde de Pembroke.

Os cavalos dos dois pararam frente a frente, e os dois homens ergueram as mãos num gesto de saudação.

- É uma boa notícia, Guilherme - disse Hubert, e Guilherme confirmou. - Ele morreu como viveu - prosseguiu Hubert. Violentamente. Era inevitável que a morte o alcançasse. Acha que foi veneno?

- Sempre que um homem ou uma mulher morre de repente, dizem que foi veneno.

- Nenhum homem poderia ter sido mais odiado.

- Ele se foi - disse Guilherme. - Não precisamos pensar mais nele. Viva o rei Henrique

 

- E o senhor pensa, senhor conde, que o rei será Henrique, e não Luís?

- Se agirmos com inteligência.

- Luís tem o domínio de grande parte do país.

- Dê-lhe um rei, um rei coroado, e o povo irá se revoltar contra o estrangeiro. Dentro de poucos meses teremos os franceses fora do país. Ninguém poderá saber melhor do que você, Hubert, como é difícil invadir um país que esteja protegido pela água.

- Luís está instalado aqui em segurança...

- Mas em situação incerta. Que se espalhe pelo país a notícia de que João está morto e que temos um novo rei.

- Um menino de nove anos.

- com excelentes conselheiros, meu caro Hubert.

- O senhor?

- E o juiz.

.- Eu vou ocupar esse cargo?

- Sem dúvida. Hubert, vamos fazer da Inglaterra um grande país e uma pátria para os ingleses.

- Deus queira que sim.

- Vamos entrar no castelo. Precisamos fazer planos. Henrique vai ser coroado, ainda que seja apenas com a gargantilha de sua mãe.

Antes do fim do mês, o jovem rei foi coroado. A cerimónia foi realizada por Peter dês Roches, o bispo de Winchester, e a coroa usada com aquela finalidade foi a gargantilha de ouro que pertencera a sua mãe.

Depois que o rei foi coroado, os bispos e barões deviam prestar vassalagem ao novo rei.

Ansioso por entrar em ação, Guilherme Marechal, apoiado por Hubert de Burgh, convocou todos os barões leais para que fossem a Bristol, onde seriam apresentados ao novo rei.

Foi reconfortante, para o conde, descobrir que o número das pessoas reunidas foi maior do que ele ousara esperar. Parecia que, agora que o rei João tinha morrido, elas não faziam restrição alguma à coroa. Um jovem monarca era sempre atraente, embora fosse motivo de apreensão, pois em torno do imaturo havia, em geral, muitos homens ambiciosos. Naquele caso, porém, havia uma diferença. A Providência os livrara do mais odiado, mais insensato rei que já se conhecera - e que talvez jamais se viesse a conhecer outro igual - e se o filho dele era menor de idade, estava apoiado por um dos melhores e mais nobres homens que a Inglaterra jamais conhecera - um servo leal de Henrique II e Ricardo, e que tentara até levar João ao bom senso. Aquele homem era Guilherme Marechal.

Assim, foram a Bristol, e quando viram o menino pálido, que não poderia parecer menos com o pai, de tão delicado que era, tão ansioso pela aprovação deles, ficaram prontos a jurar vassalagem à coroa. Não havia um só homem entre eles que não lamentasse o fato de haver invasores franceses na Inglaterra; e queriam expulsá-los.

Por isso, juraram fidelidade ao novo rei.

Henrique, com a mãe, os irmãos e as irmãs, passou o Natal em Bristol. Guilherme Marechal ficou com eles, e Henrique se viu no centro de uma controvérsia. Todos os homens importantes que iam ao castelo tinham de ser recebidos por ele, e nunca lhe permitiam esquecer por um momento sequer as terríveis responsabilidades que haviam caído sobre ele.

Ricardo o invejava, enquanto Joana o observava com uma espécie de espanto respeitoso. Passou a chamá-lo de rei, do que ele, de certo modo, gostava, porque agora que o primeiro choque amainara, e tudo que ele tinha a fazer, em princípio, era ouvir o que o conde dizia e fazer o que ele mandasse, não era difícil.

A mãe deles estava com os filhos com uma frequência maior do que antes, e isso os agradava. Todos estavam cônscios da beleza dela e sentiam prazer em simplesmente olhar para ela, como tanta gente fazia. Além do mais, ela mostrava um pouco mais de respeito por Henrique do que antes, e ele gostava disso. Ele chegara a pensar que gostavam mais de Ricardo do que dele, o que fazia com que ele se refugiasse atrás do irmão mais moço, mas agora que era rei e Ricardo estava com uma inveja tão evidente, tudo aquilo mudara.

Isabella sempre gostava de dar a notícia a eles antes dela ser formalmente anunciada pelo conselho que se reunia no castelo de Bristol, a cujas reuniões Henrique tinha de comparecer sempre. A princípio, aquilo o amedrontara, depois o enfadara, e mais adiante ele começara a se interessar, porque estavam discutindo os assuntos que diziam respeito ao reino... seu reino.

Isabella convocou os três filhos mais velhos porque tinha notícias para eles.

Você conhece suas novas responsabilidades, Henrique - disse ela. - Você foi coroado rei.

com a sua gargantilha - disse Joana, com muxoxo.

Isabella deu-lhe um tapinha no braço. A frivolidade de Joana era irritante, e ela estava muito bonita, com os olhos violeta e os cabelos escuros - crescendo como a mãe, embora, claro, nunca pudesse ser tão bonita quanto ela.

- Preste atenção a mim - disse Isabella, com severidade. Os lordes vão escolher Guilherme Marechal para regente, e vão colocar você aos cuidados dele.

Ricardo fez uma careta, e Joana olhou para ele, encolhendo os ombros.

- Ora, Henrique - disse Isabella -, não vamos prestar atenção a estas crianças bobas. Isso é um assunto do rei. Você terá um tutor, que será Filipe de Albini. Ele é um bom homem, eu sei, e um grande erudito. Você vai gostar de aprender com ele.

Henrique não ficou alarmado. Ele era dedicado aos estudos. Às vezes desejava que a condição de rei se resumisse naquilo.

- Você terá de estudar e tornar-se digno de sua coroa. Quanto a você, Ricardo, vai partir imediatamente para o castelo de Corfe.

O rosto de Joana se enrugou.

- Não quero que eles se vão.

- Cale a boca, sua tola. Ricardo precisa estudar, mesmo que não seja um rei. Ele ficará sob os cuidados de Peter de Mauley, em Corfe, e seu tutor será Sir Roger d Acastre. O conde de Pembroke escolheu os homens que ele considera os melhores para essas importantes tarefas.

Os garotos ficaram um tanto desanimados, mas os lábios de Joana começavam a tremer.

- Eu gosto das coisas como eram quando nosso pai era rei... em vez de Henrique.

Isabella lançou-lhe um olhar frio.

- Não pense que você vai ficar aqui para sempre.

- O que vai acontecer comigo, majestade?

A rainha teve um sorriso que se abriu lentamente.

- Você está noiva, como sabe.

Joana confirmou com um gesto da cabeça.

- De um homem velho.

- Ora vamos, ele não é tão velho assim. Eu o conheci... bem, muito bem.

- Então ele tem a idade da senhora, majestade.

- É mais velho - disse ela, ríspida. - Mas ele era, então, um homem muito bonito. Nunca vi um homem mais bonito em toda a minha vida.

- As pessoas não ficam bonitas para sempre - disse Ricardo.

- Algumas ficam - retrucou Isabella

- Ele ainda é um homem bonito? - perguntou Joana, ansiosa.

- Isso você vai descobrir... em breve, acho eu.

- Oh, eu também vou embora? - Joana correu os olhos pela sala como se estivesse à procura de algo em que se agarrar.

- Vai, sim. - Isabella sorriu no íntimo. - Vai ter uma governanta para levá-la ao seu noivo. Não ficará sozinha de todo, sabe? Quem sabe... eu mesma poderia decidir levá-la até ele - disse ela.

A rainha começou a rir, e os filhos fizeram o mesmo, sem saber bem por quê.

Por todo o país houve alegria porque o tirano estava morto, mas todos precisavam entender que o fato de se livrarem de João não resolvia suas dificuldades. Muitos deles haviam recebido bem Luís na Inglaterra, certos de que qualquer governante era melhor do que João; mas agora que havia um novo rei apoiado por homens como Guilherme Marechal e Hubert de Burgh, estavam ansiosos por expulsar os estranhos. Era mais fácil dizer do que fazer. Luís era jovem; estava ansioso por provar sua bravura e suas habilidades ao pai, e estava tão decidido a vencer quanto muitos dos ingleses estavam por expulsá-lo. Além do mais, ele já fizera uma cabeça-de-ponte na Inglaterra, e seus homens já estavam em Londres.

Para Luís, foi perturbador verificar que desde que o jovem Henrique tinha sido coroado, os ingleses que o haviam apoiado estavam, agora, passando para o outro lado. Luís entendia aquilo. O mundo todo estivera ciente da infelicidade que dominara a Inglaterra na pessoa de um rei como João e, perturbados pelas suas injustiças, os ingleses estavam decididos a se livrar dele; agora, um poder mais alto interviera e, felizmente para a Inglaterra, o tirano havia morrido. Era, naturalmente, a hora em que os ingleses se perguntavam: o que estamos fazendo com estrangeiros em nosso solo? Por que estamos dando boas-vindas ao inimigo da Inglaterra? A necessidade disso foi milagrosamente eliminada. Temos um rei jovem, apoiado por grandes homens. Vamos expulsar o invasor... não, eles não podiam chamá-lo assim. Ele era o hóspede convidado por muitos deles. Venha livrar-nos desse João e, em troca, você terá a coroa da Inglaterra. Como eles odiavam João! Mas ele estava morto, e isso alterava tudo.

Sim, Luís estava muito apreensivo.

Voltou à França para passar o Natal com a esposa, Blanche. Devido ao profundo amor e confiança entre os dois - coisa rara em casamentos reais -, ela era uma esposa com quem ele podia discutir questões de Estado. De que ela estava aflita com relação à expedição inglesa, Luís não tinha dúvidas; e havia concordado com ela que, agora que um novo rei tinha sido coroado, estava na hora de liquidar a questão. Eles precisavam reunir um novo exército, uma força à qual os ingleses não pudessem resistir. Luís precisava capturar o jovem rei e mante-lo como prisioneiro-refém, enquanto ele, Luís, era reconhecido como rei da Inglaterra.

Só em abril Luís havia concluído os planos, e voltou à Inglaterra cheio de confiança de que aquela seria a fase final e que a Inglaterra estava pronta para cair-lhe nas mãos. Ele e Blanche tinham até feito planos para a coroação dos dois na Inglaterra, mas Luís não sabia que durante a sua ausência na França a lealdade à coroa da Inglaterra estivera crescendo com rapidez. Os homens estavam falando, agora, com desprezo, do estrangeiro em solo inglês, esquecendo-se de que muitos deles o haviam convidado para que foSse para lá. Havia alguns que se perguntavam como a Inglaterra chegara a uma situação daquelas e estavam decididos a expulsar os franceses do país.

O primeiro revés de Luís foi em Lincoln, onde o castelo estava em mãos de Nicole de Ia Haie, uma normanda de caráter decidido, que se dizia ser tão boa ou melhor do que qualquer homem em sua determinação de proteger a Inglaterra para os ingleses. Ela já expedira uma proclamação, segundo a qual quaisquer dos barões que se haviam rebelado contra João estavam convidados a ir ao seu castelo, se agora estivessem ansiosos por ser leais ao filho de João, a fim de que pudessem discutir planos para devolver a Inglaterra ao seu rei de direito. O menino não era responsável pelos pecados do pai, declarara ela; e os espíritos do grande Conquistador e dos dois Henriques iriam persegui-los pelo resto da vida se eles deixassem que o país passasse para as mãos dos franceses. Nicole foi eloquente. Sob o governo de João, o país tinha sido humilhado a um nível insuportável, mas aquela fase acabara, e eles precisavam começar a reconstruir uma Inglaterra que ficasse tão grande quanto no passado.

Que derrota indigna fora aquela. Começara bem, com os franceses prestes a forçar uma entrada, quando tinham sido quase que dizimados pelos besteiros de Guilherme Marechal, comandados pelo próprio Marechal, que, apesar da idade, esteve no meio do combate. Havia, com relação a Guilherme Marechal, aquela aura que certos homens têm. O Conquistador a tivera; o mesmo acontecera com Ricardo Coração de Leão; homens que se colocavam em ordem de batalha contra ele perdiam o ânimo pelo combate porque ele estava lá. Eles tinham conseguido tantas vitórias que entre os exércitos inimigos surgira a teoria de que estavam lutando contra uma força irresistível. Quando o Marechal enfrentou o conde de Ia Perche - que estava chefiando uma seção dos franceses - e os seguidores do conde viram a flor-de-lis cair das mãos do porta-bandeira e o conde derrubado de seu cavalo, mortalmente ferido, tiveram certeza de que havia, naquele tal de Marechal, uma qualidade mágica que era invencível.

Daquele momento em diante, parecia que a batalha estava perdida e que Deus decidira embaraçar os franceses, pois na fase crítica da batalha uma vaca ficara entalada numa passagem estreita com uma pequena abertura que levava aos pátios e não pôde ser retirada, de modo que os soldados não podiam passar; assim, os homens ficaram encurralados e foram feitos quatrocentos prisioneiros, que era quase o número daqueles que se haviam reunido para defender o castelo.

Assim, os franceses sofreram uma derrota completa em Lincoln, porque aqueles que haviam vacilado e se perguntado o que se podia esperar de um rei menino viam, agora, que com homens como Guilherme Marechal o apoiando, ele poderia aprender a governar bem.

Quando soube da derrota em Lincoln, Luís ficou muito melancólico. Podia ver a campanha terminando em desastre para ele se não agisse logo. Sabia que podia confiar em Blanche. Ela tinha o sangue do Conquistador nas veias, e não iria abandoná-lo. E não o abandonou. Dentro de pouco tempo ele recebeu notícias dela. Ela percorrera o país reunindo homens e arrecadando dinheiro para ele, e seu entusiasmo, sua energia e sua determinação de servir ao marido deram excelentes resultados. Na Inglaterra, disseminou-se uma grande consternação no exército reunido para enfrentá-los, e até mesmo o coração de Hubert de Burgh fraquejou quando percebeu a quantidade de homens e munições que os franceses estavam levando em sua frota.

Procurou imediatamente Guilherme Marechal para discutir com ele o que fazer. Guilherme estava com o bispo de Winchester quando Hubert chegou, e ouviu tudo com consternação.

- Preciso de sua ajuda - disse Hubert. - Temos de atacar a frota. Se desembarcarem, estamos perdidos.

Guilherme Marechal assinalou que ele era um soldado e que o bispo era um clérigo, e que achava não ser prudente tomarem parte em um empreendimento em relação ao qual eram totalmente ignorantes; mas imploravam a Hubert que partisse já e fizesse tudo a seu alcance para afastar a frota francesa. Na época, eles eram homens muito preocupados; teria sido um consolo se tivessem sabido que Luís, em Londres, com forças insuficientes, também estava preocupado.

Tudo dependia do desembarque da frota. Hubert sabia disso e também que precisava enfrentar imediatamente o poderio dos franceses com uma estratégia astuta à altura.

A toda velocidade, ele se dirigiu a Dover e, lá, reuniu os navios dos Cinco Portos, que não formavam, em absoluto, uma grande frota. Providenciou a defesa do castelo e escolheu os guardas mais corajosos para defendê-lo. Disse-lhes que precisavam defender o castelo com a própria vida. Quanto a ele mesmo, se caísse em mãos do inimigo e este tentasse trocá-lo pelo castelo, eles deveriam deixar que o enforcassem e defender o castelo até que não restasse um só homem.

- Não tenham dúvidas - bradou ele -, o castelo de Dover é a chave para a Inglaterra. Eles podem ter Londres, mas enquanto dominarmos Dover comandaremos o mar.

A frota francesa estava sob o comando de Eustáquio, o Monge, o que por si só era motivo de alarme para os corações dos ingleses leais; porque Eustáquio era um daqueles homens do mar em torno do qual crescera uma lenda. Ele, na verdade, ordenara-se no mosteiro de Saint-Wulmar, perto de Boulogne, mas em pouco tempo descobrira que a vida monástica não era para ele e abandonara o mosteiro para se fazer ao mar, que era muito mais adequado ao seu temperamento; e o fato de ter sido abençoado com o sucesso, aliado à sua piedade anterior, significara que em torno dele se formara a lenda de que era um mago dotado de poderes sobrenaturais. Homens apresentavam-se em quantidade para servir sob suas ordens, por acreditarem que os céus lhe haviam concedido uma dispensa especial em relação ao mal que se refletiria naqueles à sua volta. Quanto a isso, João também mostrara a sua insensatez, pois houvera época em que Eustáquio trabalhara para o rei da Inglaterra, mas ao ser tratado por ele de maneira injusta, havia retaliado, abandonando-o e oferecendo seus serviços ao rei da França.

Um trovador fizera dele o herói de uma canção que narrava suas proezas brilhantes e sempre vitoriosas, e por toda Inglaterra, Normandia e Aquitânia e na corte da França homens cantavam Roman d'Eus tache lê Moine.

E aquele homem, que muitos acreditavam que não podia fracassar, fora escolhido por Luís para levar a frota francesa à Inglaterra.

Não era de admirar que Hubert se sentisse inquieto.

Falou a seus homens sobre o grande Conquistador, que naquele dia estaria encarando-os. Eles descendiam dele e de seus normandos, que tinham chegado legitimamente à Inglaterra e vencido. Se fossem bravos e ousados, se estivessem decididos a vencer como ele sempre estivera, ele os apoiaria naquele dia. Se pensassem nele, se seguissem o seu exemplo e rezassem a Deus, deveriam vencer. Precisavam se lembrar de que Deus não estaria satisfeito com um homem que abandonara seu mosteiro para se tornar um pirata.

Sem dúvida que Deus estava com Hubert naquele dia. Ou talvez o Conquistador estivesse mesmo ali para levá-los à vitória contra os franceses. De qualquer maneira, Hubert parecia possuir uma sabedoria que sobrepujava os poderes sobrenaturais de Eustáquio. Sua frota era pequena, e aquela que Blanche da França havia reunido, grande e poderosa.

Eustáquio deve ter exultado muito ao pensar na tarefa que tinha pela frente. Tão poucos ingleses; tantos franceses; os navios franceses eram grandes e poderosos; os ingleses, menos. Hubert contava com dezesseis navios; os franceses tinham oitenta; Hubert sabia que estaria em minoria, mas não pensara que seria naquela proporção.

Uma estratégia astuta era a sua única esperança. A frota francesa estava, como se esperava, seguindo em linha reta em direção a Dover. Hubert mandou que seus capitães seguissem um curso diagonal, mantendo o leme a barlavento, dando assim a impressão de que Calais era o seu destino. Não passou pela cabeça de Eustáquio que uma força tão pequena fosse atacar, e ele não percebeu que aquela estratégia possibilitava aos ingleses - bem a barlavento, enquanto os franceses seguiam a sotavento - atacarem os poucos navios e estavam na retaguarda e, assim, enfrentarem uma força menor do que a deles. Ao fazer isso, Hubert conseguiu dominar os franceses por pequenas partes, e Eustáquio, no navio capitânia, só percebeu o que estava acontecendo quando já era tarde demais.

Eustáquio morreu afogado, mas seu corpo foi retirado do mar e sua cabeça foi decepada, a fim de que se mostrasse ao povo que o monge mago era inferior a Hubert de Burgh, que o derrotara e destruíra a lenda de seu poder sobrenatural para sempre.

Foram grandes as comemorações quando Hubert desembarcou em Dover, pois a notícia de sua vitória já chegara até lá, e uma grande recepção o aguardava.

Cinco bispos estavam à frente da procissão que seguiu serpenteando até o castelo - o mesmo castelo que, não fazia muito tempo, Hubert estava dizendo a seus leais comandados que devia ser defendido a todo custo.

Já-não havia motivo para inquietação. Luís estava derrotado. Perdera seus navios e tudo o que eles continham, e muitos dos espólios estavam, agora, em mãos dos ingleses. Hubert ficou orgulhoso ao saber que só quinze tinham escapado e voltado à França, e como dez tinham sido afundados, isso significava que mais de cinquenta haviam caído em poder dos ingleses com todo o tesouro reunido por Blanche para o exército do marido.

Uma vitória de verdade!

Aquilo seria o fim das esperanças de Luís. O Conquistador devia estar sorrindo bastante de satisfação com aquele dia. Ele diria que Hubert de Burgh, que com uma estratégia simples havia salvado o trono para Henrique, era um homem que se orgulhava em proclamar normando, um homem que tinha a sua aprovação.

João estava morto. Um novo rei estava no trono. Haveria paz com a França. Era um novo começo.

As amas de Isabella a estavam vestindo de vermelho; aquele era um momento triunfante, pois depois da magistral derrota da frota francesa por Hubert de Burgh, o trono estava a salvo para Henrique; e grande parte daquele desastre que acontecera pela inépcia do rei João poderia, agora, ser reparada, e homens de boa vontade, nobreza e inteligência poderiam começar a tarefa de reconstruir um reino.

Guilherme Marechal foi procurá-la. Estava pronto para conduzi-la à cerimónia.

Enquanto se curvava e tomava-lhe a mão, não pôde deixar de notar a beleza dela; parecia estar possuída de uma nova vitalidade que devia ser atribuída ao fato de haver escapado de João. Mas parecia mais uma mulher que se atirava numa aventura do que uma mulher que acabara de perder o marido.

Os olhos dela o fitaram com uma leve expressão de escárnio.

- O senhor acha que estou vestida de maneira espalhafatosa para uma mulher que enviuvou há tão pouco tempo? Não, meu senhor, a última coisa de que o público quer ser lembrado é de João. Tenho de pensar no meu filho. Não quero que pensem nele como o filho de João. É melhor que esqueçam que ele é.

Havia uma certa lógica naquilo, admitiu o Marechal. Mas ao mesmo tempo achou que poderia ter sido mais apropriado uma viúva mostrar uma certa discrição.

- Vamos, meu senhor - prosseguiu ela. - Hoje é um dia feliz. Nosso bom Hubert de Burgh obteve uma vitória maravilhosa. Estamos mandando Luís tratar da própria vida. A Inglaterra ficará em paz, e meu filho aprenderá a ser um rei, quando tem a guiá-lo dois dos maiores homens que este país... ou qualquer país... já teve. Não é uma ocasião para luto.

- Tem razão, majestade - disse Guilherme Marechal.

- Vamos, então?

Os dois saíram para a barcaça que os levaria ao local perto de Staines, onde a cerimónia seria realizada.

Lá, Isabella tomou o seu lugar de um lado do rio, com Guilherme Marechal de um lado e o núncio papal do outro. Do outro lado do rio estavam Luís e seus assessores. Isabella percebeu, com satisfação, que Luís estava cabisbaixo, como devia estar. Ficou imaginando a volta dele para junto do pai, o espertalhão Filipe, o rei, que desejara a conquista da Inglaterra mas sem querer participar dela por temer uma derrota; e Luís também voltaria para a mulher, Blanche. Isabella ouvira falar do paraíso conjugal dos dois. O mesmo poderia ter acontecido se ela tivesse se casado com Hugo.

Luís era magro e tinha uma aparência frágil, que Isabella achou enganadora. Suas feições eram finas e os espessos cabelos louros lhe davam uma aparência jovem que não era desprovida de atrativos, mas lhe faltava a virilidade de Hugo de Lusignan, da qual até mesmo agora ela se lembrava.

Mas como estaria Hugo depois de todos aqueles anos? Desde quando ele saíra de sua vida ela percebia que estivera comparando todos os homens com Hugo. Os amantes que arranjara haviam tido alguma semelhança com ele, e João soubera disso. Talvez tenha sido essa uma das razões pelas quais ele assassinara com tanta selvageria um deles e o pendurara no dossel de sua cama.

Como gostaria de tornar a ver o Hugo! Talvez, quando ele fosse seu genro, o visse. A ideia a deixava histérica de contentamento ou raiva... Qual dos dois sentimentos? Uma mistura deles, é claro.

Mas devia estar se concentrando naquela cerimónia que iria tornar a Inglaterra segura para seu filho.

Os compromissos solenes foram anunciados e expressos de viva voz de um lado para outro de uma estreita faixa d água. Nos campos estavam sendo erguidas tendas, e numa delas foi montada uma capela na qual seria necessário fazer votos perante o altar, e Luís iria jurar que voltaria para a França e manteria a paz pela qual Guilherme Marechal iria prometer que ele receberia uma indenização.

No dia seguinte, os franceses atravessaram o rio e, na capela armada na tenda, chegou-se a um acordo sobre a paz e concordouse que Luís deveria voltar para a França com uma indenização, a ser paga pelos ingleses, de seis mil marcos, o que o ajudaria a recompor os altos gastos com a empreitada.

O núncio papal e homens influentes de Londres foram com o filho do rei da França e sua comitiva até Dover, de onde Luís partiu.

Enquanto o navio desaparecia na linha do horizonte, houve gritos de "A Inglaterra está salva. Esta é a Paz do Rei. Vida longa para Henrique III, rei da Inglaterra para os ingleses."

A rainha sentia-se desapontada. Nem Guilherme Marechal nem Hubert de Burgh haviam-se comportado como ela esperara. Sabia que o Marechal era um homem velho e nunca fora uma pessoa que se aventurasse muito no campo das paixões eróticas. Casara-se com a sua Isabella já maduro e fora fiel a ela os anos todos em que estavam juntos; eles haviam tido cinco filhos e quatro filhas; e ele fora o marido-modelo, ela a esposa-modelo... tudo o que seria de se esperar de Guilherme Marechal. Assim, era pouco provável que agora que ele estava numa idade avançada fosse ficar muito cativado pelos encantos da rainha Isabella - não fisicamente, claro, mas o suficiente para deixá-lo pronto a fazer o que ela quisesse.

Hubert de Burgh - ora, ele era de outro tipo. Sua vida de casado tinha sido muito variada. Isabella ficara interessada nele na época da prisão do príncipe Artur; lembrava-se de que João mandará chamá-lo e lhe dera instruções secretas para que arrancasse os olhos do menino e o castrasse - um destino que a enchera de consternação, pois Artur era um menino bem-apessoado, e era horrível, para uma pessoa tão cônscia da perfeição masculina, pensar na sua mutilação. Ela ficara satisfeita quando soubera que Hubert havia desobedecido a João - um ato nobre -, e desprezando o marido, ela havia admirado Hubert e o vira com olhos favoráveis, pois ele era atraente; mas percebera logo que embora ele estivesse pronto a arriscar a vida ou, pior ainda, uma horrível mutilação, por um rapaz pelo qual sentia afeição, não estaria pronto a satisfazer qualquer apetite sexual que pudesse ter sentido pela rainha. Na ocasião, ela o tirara do pensamento. Agora, pensava nele. Hubert tivera três esposas... até ali, pois não estava velho e bem poderia tornar a se casar se a terceira mulher morresse. Primeiro fora Joana, filha do conde de Devon; ela morrera, e ele se casara com Beatrice, que era viúva de Lorde Bardulf; agora, estava casado com Hadwisa, o que era uma coincidência extraordinária, porque Hadwisa fora a primeira mulher de João. Aquilo era muito divertido. Hadwisa nada tinha de bonita, mas fora a maior herdeira do país; por isso que João se casara com ela, e isso ocorrera antes de ele parecer ter alguma esperança de usar a coroa. Ele atormentara Hadwisa e se livrara dela para se casar com Isabella. E agora Hadwisa estava casada com Hubert de Burgh! Hadwisa tivera outro marido depois de João - Geofredo Mandeville, o quinto conde de Essex. Ele havia morrido, mas não demorara muito e ela encontrara outro marido em Hubert de Burgh - entrando os dois no terceiro casamento.

Muito bem, ali estava Hubert - um homem várias vezes casado, inteligente e astuto e sem disposição para se tornar escravo de uma rainha viúva. Era irritante, mas se ela quisesse, poderia arranjar amantes em quantidade. Aquele potente poder sexual que existia nela não diminuíra desde que João a vira na floresta e fora levado a usar meios alucinados para possuí-la, embora ela já estivesse noiva de Hugo de Lusignan.

Aquele pensamento a levou de volta a Hugo. Seu primeiro amor. Para ela, jamais haveria outro igual. Como iria gostar de vê-lo outra vez, para testar se o encanto dele havia diminuído.

Mas ali estava ela - haveria quem dissesse que numa posição invejável -, a mãe de um rei que era menor de idade, com dez anos. Era evidente que o lugar dela seria o de orientá-lo, de governar por intermédio dele. Aquilo seria revigorante. As pessoas iriam procurá-la para pedir-lhe favores. Diriam: "Oh, é necessário aproximar-se do rei através de sua mãe, a rainha."

Era verdade que ela estivera presente à celebração do tratado com Luís perto de Staines, mas de certo modo sentira que tinha sido por mera formalidade. Ela não dera

opinião alguma sobre qualquer um dos itens sobre os quais se chegara a um acordo no conselho, cuja chefia era formada pelo Marechal e por Burgh. Eles é que tinham tomado as decisões; ela estivera ali apenas para representar o rei.

Assim não serviria. Ela não tinha intenção de ser forçada a ir para os bastidores. Acreditou que o melhor método seria aproximarse do filho, e sabendo que ele estava em Windsor com o tutor, Filipe de Albini, foi procurá-lo lá.

Ficou ligeiramente perturbada ao ver uma mudança no comportamento de Henrique; depois, riu intimamente e disse para si mesma que era natural num menino que de repente percebera que era rei e que agora que os franceses estavam expulsos do país era claro que sua posição estava bem segura.

Ela o abraçou com entusiasmo e dispensou o tutor Filipe de Albini, que pareceu relutante em deixar o menino a sós com a mãe.

- Ah - disse ela -, eles o estão transformando num rei, meu filho.

Ele respondeu de forma um tanto desafiadora:

- Eu sou um rei, majestade.

- Graças a Deus os franceses foram embora. Você deve estar muito agradecido a Guilherme Marechal e, talvez acima de todos, a Hubert de Burgh. A estratégia dele foi magistral.

- Ele é um bom servidor - disse Henrique, calmo.

Isabella estourou numa gargalhada, e tomando o filho nos braços, apertou-o contra o peito. Percebendo o ressentimento dele enquanto ficava rígido no abraço que lhe dava, ela achou que governá-lo não seria tão fácil quanto imaginara.

Ele se afastou dela, e por alguns segundos os dois se olharam; o olhar de Isabella era esperto; o dele, desconfiado.

- Espero, Henrique - disse Isabella em tom de reprovação depois de um certo tempo -, que você não se esqueça de que, embora seja rei, é meu filho.

- Seria impossível esquecer um fato desses. Todo mundo sabe que a senhora foi a esposa de meu pai e eu o filho mais velho do casamento.

Ela tornou a rir, mas contrafeita.

- Você continua o mesmo. Sempre foi muito sério. Diga-me, sente saudades de seu irmão Ricardo e da pequena Joana... e dos bebés?

- Não, majestade. Tenho assuntos de grande importância com que me ocupar.

- Eu poderia jurar que eles sentem a sua falta.

- Acho que não, majestade.

- Ora, Joana estava falando em você há poucos dias.

- Joana... Joana é pouco mais do que uma criança.

- Não jovem demais para ficar noiva. Não tenho dúvidas de que dentro em pouco estaremos procurando uma esposa para você.

- Isso eu é que vou decidir.

- Não, meu filho. Isso será um assunto de tamanha importância, que você terá de ouvir o conselho de terceiros.

- Meu casamento terá mais importância para mim do que para qualquer outra pessoa, e portanto estou decidido a fazer com que seja o que eu quero.

- Ora, Henrique, o que foi que aconteceu a você?

- Eu me tornei um rei, senhora.

Ocorreu a Isabella, então, que havia um tom de hostilidade nos modos do filho em relação a ela. Os dois nunca tinham sido muito chegados; ela nunca experimentara aquela obsessão com os filhos que algumas mães sentiam, mas talvez tivesse aceitado como ponto pacífico o fato de que eles deveriam admirá-la pela sua beleza e por aquele dom inerente de atrair.

- Querido Henrique, não vamos nos esquecer de que você tem dez anos de idade.

- É uma coisa que Filipe me lembra sempre. Por isso, preciso aprender depressa. Preciso desconfiar dos que procuram me influenciar. Preciso aprender a formar opiniões, e elas devem ser sábias. Guilherme Marechal vem aqui com frequência. É provável que venha hoje. Ele insiste que eu participe do conselho com ele e os outros ministros, para que eu possa aprender depressa; e na verdade, senhora, estou decidido a fazer isso.

- Espero que possa dedicar um pouco de atenção para sua mãe - retrucou ela com uma certa aspereza.

- Como vê, estou fazendo isso agora.

- com resultados não muito satisfatórios. E também vejo, Henrique, que você se afastou de mim.

- Alguma vez estive perto da senhora?

Meu querido filho, você sabe que estávamos no cativeiro.

Sei quais foram os motivos.

A crueldade de seu pai.

- A senhora o havia traído.

- Meu querido Henrique... embora seja o rei... rogo-lhe que se lembre de que sou sua mãe. Você não sabe que tipo de homem era seu pai.

- Estou aprendendo, e sei que preciso ser tão diferente dele quanto é possível um homem ser diferente do outro.

- Bem, é uma boa lição para se aprender. Um dia você irá compreender a devastação que assolou este reino.

- Já compreendi. Meus tutores insistem para que eu saiba o que aconteceu neste reino desde a época do Conquistador, para que eu possa tirar vantagem dos erros de meus antecessores. Sei de uma coisa: preciso reinar bem, para que não aleguem que sou filho de João e...

- E Isabella de Angoulême - ajudou ela.

- Eu disse de João, majestade.

- E parou a tempo. Você não parece ter um conceito muito bom de sua mãe.

Ele ficou calado.

- Como acha que foi ser casada com um homem daqueles?

- disse ela com veemência. - Você sabe que ele perdeu as possessões da coroa na França e quase perdeu este reino. Mas isso não é tudo. Há assuntos sobre os quais os seus inteligentes tutores nada sabem. Eu poderia lhe contar...

- Peço-lhe que me poupe - disse Henrique, com frieza. Será este o meu filho, meu filho de dez anos que fala como um velho? Como foi que tivemos um filho desses, João e eu? Nele não há riso, não há alegria de viver. Ele é um rei - o poder se estende à sua frente para quando tiver idade suficiente para desfrutá-lo, e já parece um velho, refletiu a rainha. Percebeu que não havia esperança de que ele a ouvisse.

Deu de ombros e se retirou.

Mais tarde, conversou com Filipe de Albini - homem muito sério que lhe garantiu que ele, agindo segundo instruções de Guilherme Marechal e Hubert de Burgh, estava decidido a ensinar ao rei todos os assuntos pertinentes ao seu papel na vida, enquanto não negligenciava sua educação em geral. Tinha também o prazer de informar que o jovem rei aprendia com rapidez; na verdade, gostava de estudar e era especialmente interessado por literatura e pelas outras artes. Tratava-se de um aluno a quem era um prazer ensinar. Filipe de Albini podia garantir à rainha que o conde de Pembroke estava encantado e chegara até a dizer que poderia ser uma vantagem o rei ter ficado sob os cuidados deles enquanto ainda havia tempo de moldar-lhe a mente.

Que tolo!, pensou Isabella. Achava que a estava agradando com aquele elogio ao filho, quando o que dizia era o mesmo que salientar que era uma felicidade ele ter escapado dos cuidados dela.

Sendo informada de que o conde de Pembroke faria uma visita ao castelo no dia seguinte, ela decidiu ficar para vê-lo; passou uma noite sem dormir, tentando enfrentar aquela reviravolta nos acontecimentos. Não seria como planejara. Ela não estaria lá - o poder por trás do trono, a quem todos achavam que precisavam agradar se quisessem obter algum favor junto ao filho. Ela iria ser a figura nos bastidores, sem importância alguma, a velha rainha-mãe a cujo posto aqueles homens poderosos iriam prestar uma certa homenagem, e aquilo seria tudo. Não havia um só entre eles que teria abandonado tudo para se tornar seu amante. Formavam um grupo enfadonho, preocupados apenas em moldar o jovem rei no caminho que queriam que ele seguisse. Pelo visto, o futuro seria triste para Isabella.

Isso foi confirmado com a chegada do conde em companhia de Hubert de Burgh. Os dois estavam encantados com a aplicação e o progresso do rei; a mãe tinha razão para se orgulhar dele; mas os dois cavalheiros lhe deixaram muito claro que a sua mão orientadora não deveria representar papel algum no progresso do jovem rei.

Enfurecida no quarto, mais tarde, ela se perguntava se iria aceitar aquele papel de isolamento. Estava com 31 anos, e numa mulher que cuidara da aparência como ela, aquilo não era muito. Sua beleza era perene; embora pudesse ter-se tornado um pouco madura, estava certa de que isso não lhe prejudicara os encantos.

Hugo jamais a teria tratado daquela maneira.

Hugo! Que vontade tinha de tornar a vê-lo! Ficaria desapontada com ele? Que homem destemido ele fora! Que beleza! Ele e a grande altura dele o tinham transformado em um deus. Como era diferente de João, cuja depravação fizera com que ele se tornasse cada vez mais horrível. João odiara Hugo - principalmente porque sabia que ela o amara, mas em parte porque Hugo era bonito possuía uma nobreza de caráter que fazia com que os homens o respeitassem. A última vez em que Isabella vira Hugo fora quando ele estivera com as mãos e os pés acorrentados numa carroça que parecia uma carreta para levar prisioneiros para a execução, e puxada por bois. Na ocasião, ele fora prisioneiro de João - porque Hugo estivera lutando ao lado do príncipe Artur - e a única ideia de João tinha sido a humilhação. Como João era tolo; não percebera que não era Hugo que ela desprezava na época, mas ele próprio. João nunca soubera de coisa alguma sobre as outras pessoas, porque estivera muito preocupado consigo mesmo como sendo a única pessoa que pudesse ter qualquer importância. Ela ficara muito contente quando Hugo fora libertado - porque João achava que era vantajoso fazer aquilo. Como aquele homem era tolo. Talvez ele não percebesse que Hugo pudesse odiá-lo tanto quanto ele odiava Hugo. Muitas vezes ela ficava imaginando o quanto Hugo havia contribuído para a derrota total de João e para a perda, por ele, das possessões francesas.

E como Isabella ansiava por tornar a ver Hugo.

De repente, seu estado de depressão passou, e ela sentiu um ânimo muito grande.

Por que não? Era possível. Era o certo.

Ela deu graças a Deus por Guilherme Marechal estar no castelo. Iria abordar o assunto a título de experiência logo no dia seguinte. Passou uma noite inquieta e mal podia esperar para falar com o conde.

- É com grande alívio e prazer - disse-lhe Isabella - que vejo o progresso do rei. Agradeço a Deus por ele estar em tão boas mãos. Ele é tão diferente de João quanto seria possível alguém ser.

O conde pareceu satisfeito.

- Hubert de Burgh e eu temos o máximo de confiança em Filipe de Albini.

- E eu também. A mim parece que não há nada em que eu possa ser útil neste país.

- Espero que o rei jamais se esqueça de que a senhora é mãe dele.

- Ele nunca fará isso. Mas posso deixar em segurança a sua educação em mãos capazes e voltar minha atenção para outros membros de minha família que precisam mais de mim. Ricardo está sendo bem cuidado por Peter de Mauley em Corfe, e pelo que sei Roger

d'Acastre é excelente. Minhas filhas mais novas ainda são pouco mais do que bebés, mas minha filha Joana está noiva e creio que já é hora de ir para a casa do noivo, onde será criada com a família dele, como é o costume.

O conde concordou com um gesto lento de cabeça. O costume, é claro, era as meninas serem criadas no país da família à qual passariam a pertencer pelo casamento.

- Acredito - prosseguiu Isabella - que ela deva partir logo. Ela está com sete anos... uma idade em que a mente de uma criança começa a tomar forma. Concorda comigo, meu senhor?

- Concordo, sim.

- Será necessário ela fazer essa viagem aos cuidados de alguém em quem se possa confiar.

Houve um breve silêncio. O conde estava tentando não revelar a esperança que tivera. Ele conversara com Hubert de Burgh e os dois haviam concordado que a rainha teria de ser vigiada. As mães de reis menores de idade podiam ser maçantes; e não havia indícios de que Isabella fosse uma mulher dócil, que desse ouvidos a conselhos.

O conde pigarreou como se fosse falar, mas Isabella falou primeiro.

- Meus dois filhos estão em boas mãos; minhas duas filhas mais moças estão sendo bem cuidadas. Parece, meu senhor, que desde que praticamente não precisam de mim aqui, eu deveria acompanhar minha filha.

Guilherme Marechal tentou não parecer satisfeito demais.

- Majestade - disse ele, de forma pausada -, a princesa Joana é realmente afortunada por ter uma mãe que se importa tanto com o seu bem-estar...

- Então o senhor concorda que eu seja a acompanhante dela.

- Deveríamos, primeiro, perguntar ao rei se ele estaria disposto a deixá-la ir.

Ela sacudiu a cabeça, séria.

- Acho que meu filho vai querer fazer o que for melhor para a irmã - disse ela.

O ânimo estava aumentando, e ela se sentia mais agitada do que ficara quando soubera da morte de João.

Despediu-se do conde e foi para o quarto. Precisava ficar sozinha.

- Hugo - murmurou para si mesma. - O que você vai pensar de mim? O que vou pensar de você?

E a ideia de retornar às cenas de sua infância, de voltar a ficar junto ao velho amante - que agora iria ser o marido de sua filha, lhe dava um grande entusiasmo.

 

A Noiva Escolhida

QUE PRAZER ela sentia em cavalgar em direção sul pelo belo território da França, e quanto mais se aproximava de Angoumois - a terra de seus antepassados -, mais

feliz ficava. Já se haviam passado dezessete anos desde que ela cavalgara por aquelas vias e florestas - uma filha única e a herdeira de Angoumois, a queridinha mimada da casa dos pais. Hugo, o filho mais velho do conde de Ia Marche, que governava a região, parecera um noivo digno dela; e quando ela fora levada para morar na casa do pai dele, também pensara assim.

O cheiro dos bosques - diferentes dos da Inglaterra, confirmou para si mesma, a luz dourada no ar, o calor do sol... tudo aquilo trazia recordações daquela época de despertar físico, em que ela ansiara pelo casamento com Hugo e depois se encontrara com João na floresta e tivera a sensação de uma curiosa mistura de desejo e repulsa, enquanto que misturada a essas duas havia a ambição de usar uma coroa.

A filha cavalgava a seu lado. A jovem Joana estava apreensiva, o que era compreensível. Uma criança de sete anos de idade indo conhecer o noivo.

- O país não é bonito, minha filha? - perguntou Isabella.

Pense! Quando eu tinha a sua idade, costumava cavalgar por esses bosques. Você vai passar a sua juventude onde passei a minha.

- Mas a senhora não ficou aqui.

- Não, mas é um prazer estar de volta.

Joana parecia tristonha. Estava claro que a pobre menina desejava estar em Gloucester. Muita coisa acontecera com tamanha rapidez para que a sua mente infantil pudesse se adaptar.

Isabella enterneceu-se um pouco.

- Você está ansiosa, menina. Não precisa ficar assim. Vai ser feliz aqui, como eu fui. Não tenha medo de Hugo. Eu o conheci bem quando tinha a sua idade, e posso lhe dizer que não existe no mundo um homem mais bonito ou delicado.

- Quanto tempo a senhora vai ficar comigo? Isabella suspirou e sorriu.

- Isso, minha filha, não sei dizer. Mas posso prometer uma coisa: não precisa ter medo de coisa alguma.

E assim seguiram as duas para Angoulême, no ducado de Aquitânia, outrora governado com tanto orgulho pelo pai de Eleanor, mãe de João, uma terra rica e fértil, banhada pelo reluzente Charente, estendendo-se de Poitou, ao norte, a Périgord, ao sul, leste, até La Limousin, e oeste, até Saintonge.

Isabella falava com a filha enquanto seguiam a cavalo.

- Como a vida era diferente daquela na corte de seu pai. Aqui, nos reuníamos à noite, quando as lareiras eram acesas, as velas queimavam até se derreter, e os trovadores pegavam seus alaúdes e cantavam sobre a beleza das damas e a valentia de seus senhores. Era encantador. Os homens eram galantes. As damas eram tratadas com respeito. Ah, minha filha, você vai abençoar o dia em que eu a trouxe para cá.

Joana estava ficando influenciada pelo entusiasmo da mãe. O país era lindo; o sol, mais quente do que na Inglaterra; e enquanto elas viajavam pela França, eram bem recebidas nas aldeias pelas quais passavam e pernoitavam em estalagens e castelos, e quando chegaram ao sul, Joana descobriu que a descrição que a mãe fizera do canto dos trovadores era realmente verdade. Ela ficava sentada, os olhos pesados de sono, ouvindo o dedilhar dos alaúdes e as canções que tanto encantavam Isabella.

Em especial, ela se lembrava de sua estada em Fontevrault, que era de importância particular para sua família, segundo lhe disseram. O pregador bretão Robert d Arbrissel a fundara havia quase duzentos anos, e havia quatro conventos - dois para homens, dois para mulheres, mas uma abadessa controlava tudo e precisava sempre pertencer a uma das mais nobres famílias. A realeza sempre dedicara um interesse muito especial à cidade.

com grande ar solene, Joana foi conduzida pela igreja da abadia para caminhar sob a cúpula, que era sustentada por altos pilares, até os túmulos da família. Ali estavam as sepulturas e as efígies de seu avô e de sua avó - Henrique Plantageneta e sua esposa Eleanor de Aquitânia, de quem ouvira falar muito, o que a fazia pensar neles com reverência e um certo alívio por não estarem vivos para exigir grandes coisas dela. Seu tio - aquele em homenagem ao qual seu irmão tinha recebido o nome - estava ali com eles. Ricardo Coração de Leão era como o chamavam, porque fora um guerreiro muito valente. Parecia lógico a sua vida ter sido interrompida pela flecha de um inimigo.

- Estes são seus ancestrais - lembrou-lhe Isabella. - Nunca se esqueça de que é filha de um rei.

- Talvez meu pai tivesse gostado de ser sepultado aqui com o meu avô?

A rainha riu.

- De onde você tirou essa ideia, minha filha? Seu pai estava lutando contra seu avô, no final. Pelo menos seu avô não iria querer seu pai lá.

- Onde meu pai está sepultado?

- Na catedral de Worcester. Antes de morrer, ele pediu que fosse enterrado lá, perto do túmulo de São Wulstan.

- Quem foi ele?

Isabella olhou atentamente para a filha. Pobre menina, teria de amadurecer depressa. Isabella tentou imaginar-se aos sete anos de idade. Quanto das tristes realidades da vida ela pudera absorver então? No devido tempo, Joana ficaria sabendo que era filha de um dos homens mais perversos que jamais existira.

- São Wulstan foi um bispo saxão muitíssimo piedoso. Seu pai achava que os ossos do santo poderiam defendê-lo contra o demónio... quando este o viesse buscar.

Joana teve um tremor e Isabella riu. Envolveu a filha num dos braços.

- Seu pai não foi um homem bom. Como sabe, os barões se revoltaram contra ele. Tudo estará bem, agora, pois seu irmão vai aprender a governar bem, e o reino ficará rico e poderoso outra vez.

Quanto a você, minha filha, vai ter uma grande felicidade. Vai se tornar esposa do melhor homem do mundo.

Joana sentiu-se aliviada, mas feliz quando saíram de Fontevrault, que para ela guardava os fantasmas de seus apavoradores ancestrais.

E assim chegaram a Valence, que era a principal cidade de La Marche; e ficava na fronteira com Angoumois, terra de Isabella.

Durante todo aquele dia, à medida que se aproximavam de seu destino, Isabella falara à filha sobre a fase feliz de sua juventude e, embora Joana acreditasse que muito em breve iria ver seu idoso noivo, a conversa da mãe exerceu seu efeito sobre ela, que começou a acreditar estar indo para um paraíso. Além do mais, não haveria casamento algum, por enquanto. Moraria no castelo onde durante algum tempo a mãe vivera, porque cerca de vinte anos antes, quando a mãe era uma menina de onze anos, ela também fora para aquele castelo e olhara com respeito e assombro aquilo que seria o seu lar. Aquilo era reconfortante. Sua mãe havia adorado Valence, e ela também iria adorar.

E ali estava o castelo de muros de pedra cinzentos. Criados e criadas vieram correndo atendê-las, prestando grandes homenagens a Isabella, que se tornara rainha e de quem alguns se lembravam como a garotinha mais bonita que já tinham visto.

No grande salão, um homem esperava por elas. Quando sua mãe segurou-lhe a mão, Joana percebeu a grande excitação de Isabella.

O homem era um velho... muito velho... com toda certeza não podia ser aquele que tinham escolhido para ser seu marido. Parecia mais próximo de um funeral do que de um casamento - e casamento dele próprio.

Ele segurara a mão de Isabella; estava fazendo uma acentuada mesura; os olhos brilhavam muito, e parecia que ele iria chorar a qualquer momento.

- Isabella - disse ele. - Isabella.

- Meu senhor - começou ela, e Joana percebeu que ela procurava, no salão, por alguém de quem dava por falta.

- Bonita como sempre - murmurou ele. - Oh, faz muito tempo.

- Permita-me apresentar-lhe minha filha.

- Então esta é a menina.

Os velhos olhos a examinavam. Joana tentou não parecer alarmada.

Ele era muito velho. Sua mãe lhe falara sobre seu futuro marido como se parecesse um deus, e agora a estava apresentando àquele ancião.

Então, o velho disse:

- Vejo que você não sabe. Meu filho não está aqui em Valence, nem nesta região. Já faz um ano que ele nos deixou. Está com os cruzados na Terra Santa.

Joana ficou ciente de ondas de alívio. Então, aquele velho não ia ser o seu marido. Claro que não. Mas ela tivera medo, porque tinha idade suficiente para saber que às vezes meninas se casavam com homens muito velhos.

Então, percebeu o que se passava com sua mãe. Isabella ficara pálida. Seu corpo balançou um pouco antes de ela se equilibrar. Então, disse:

- Na Terra Santa... e já faz um ano que ele partiu... Apesar de muito jovem, Joana ouviu a amarga decepção e o desespero na voz da mãe.

Naquela noite, Isabella ficou muito calada. Joana jamais se esqueceria disso. De repente, ela pareceu amadurecer. Ele fora embora, e ninguém sabia onde se encontrava. Nem o pai sabia, exceto que ele estava em algum lugar da Terra Santa. Joana pensou nas histórias que ouvira sobre o tio Ricardo, cujas proezas por lá tinham sido cantadas em maravilhosos lais. Ricardo, segundo se dizia, era um cavaleiro com uma armadura brilhante com uma cruz vermelha no peito, que significava que ele jurara combater o Infiel. Eles haviam fugido diante dele, mas por algum motivo ele não capturara Jerusalém para os cristãos - embora isso fosse uma coisa que os compositores preferiam não mencionar. Houvera um sarraceno chamado Saladino, e ele e Ricardo haviam lutado um contra o outro, embora Joana nunca tivesse ouvido dizer quem tinha ganhado. Bastava dizer que Ricardo surgia das canções como o maior herói de sua época - um homem que abrira mão de tudo para levar a cruz.

Era perfeitamente natural, portanto, que aquele homem maravilhoso com quem ela iria se casar seguisse as pegadas de Ricardo. Ele era um cavalheiro nobre. Não apenas o mais bonito e melhor homem do mundo, mas também devoto.

Se Joana fosse sincera, iria admitir que não estava contrariada. Independente do que ele fosse, iria estar velho. Sua mãe estava velha, e Hugo era mais velho do que ela. Por isso, ficou aliviada e esperava que a mãe não se sentisse muito infeliz. Joana supunha que fosse porque já que Hugo não estava lá e ela não podia deixar a filha, teria de ficar ali até que ele voltasse, antes de poder regressar à Inglaterra.

Durante alguns dias, Isabella esteve com o velho que as recebera ao chegarem, e os dois fizeram planos sobre o que deveria ser feito. Acabou ficando decidido que Isabella deveria ir para sua propriedade em Angoulême e sua filha deveria ficar em Valence, onde poderia aprender os costumes da terra e ser educada de modo a ficar preparada para ser a castelã do castelo quando chegasse a hora.

Angoulême e Valence eram tão próximas uma da outra que Isabella podia visitar a filha com frequência, mas seria melhor se ela a deixasse, a fim de que a menina pudesse aprender a ter uma certa autoconfiança, e ela estaria segura com a família do futuro marido.

Joana ficou menos perturbada do que pensara sentir-se enquanto via a mãe se afastar a cavalo. Isabella nunca fora exatamente uma mãe dedicada; Joana não a compreendia e não acreditava que mesmo Henrique e Ricardo compreendessem. Talvez todos os filhos tivessem tido um pouco de medo dos pais - não havia dúvida de que haviam tido naquelas ocasiões em que o pai visitava o castelo. Por isso, embora fosse deixada com estranhos, não se sentia muito solitária. Amadurecera bastante desde que deixara a Inglaterra.

A vida se tornou interessante. Tinha aula todos os dias, e havia tutores especiais para ela. Precisava aprender a falar fluentemente a língua do futuro marido; e precisava entender alguma coisa de história e literatura; tinha de saber fazer cálculos, desenhar e ser eficiente com a agulha. Este último item era muito importante, pois todas as damas bem educadas deviam dominar a arte do bordado. Ela precisava dançar com agilidade e graça; precisava tocar alaúde e cantar bem e jogar xadrez com perícia, pois o marido esperava que ela fosse uma boa companheira.

Ela se dedicava de corpo e alma a essas tarefas. Aquilo ajudava a fazer com que esquecesse sua casa na Inglaterra e os irmãos e irmãs e, também, o fato de que um dia o seu noivo iria voltar para Valence. Ela esperava que ele demorasse bastante para voltar; e todas as noites, ao ir para a cama, rezava: "Por favor, meu Deus, que não seja hoje."

Estava cercada de criadas. Elas passaram a gostar dela. Joana era uma coisinha linda. Algumas se lembravam de sua mãe quando menina. "Você é quase o retrato vivo", disse uma delas. Era sempre "quase", e ela sabia que elas queriam dizer que embora fosse atraente, nunca poderia ser a beleza que a mãe era. Certa vez, ouviu uma criada dizer para outra:

- Eu quase seria capaz de acreditar que era Lady Isabella. Mas é claro que nunca haverá outra igual.

E uma outra disse:

- Não. Diziam que ela possuía algo que nenhuma outra tinha. E ainda possui. Não, você tem razão. Nunca haverá uma outra igual. Bem, isso a transformou numa rainha, não?

- Nunca me esquecerei daquele dia. Pensei que meu patrão iria ficar louco de raiva e de dor.

- Bem, ele agora vai ganhar uma noiva jovem... e tão parecida...

- Não creio que algum dia ele tenha se esquecido dela.

- Oh, sua velha romântica!

- Mas ele nunca se casou, certo?

- Ora, vai se casar agora... quando voltar... quando ela crescer.

- Para quando será isso?

- Quando ela fizer quatorze... talvez antes. Ele perdeu Lady Isabella por esperar demais. Pode estar certa de que não vai fazer isso de novo.

E as duas riram juntas e sussurraram alguma coisa que Joana não conseguiu ouvir. Quatorze, estava ela pensando. Estava com oito, agora. Faltavam muitos e muitos anos.

Joana gostava de fazer com que as criadas falassem de Hugo, e elas não se faziam de rogadas.

- O conde Hugo, senhora? Oh, ele é o homem mais bonito que a senhora já viu. Não há um homem, por aqui, que não perca ao ser comparado a ele. Bravo, nobre, bom para todos os que são de classe inferior à dele e respeitado pelos seus pares. Na justa, quem é sempre o vencedor? O conde Hugo. E se alguém precisa de ajuda, quem é sempre o primeiro a dá-la? O conde Hugo, claro. Se houver injustiça, é ele que irá corrigir a situação. Nós, de Lusignan, somos felizes com o nosso duque.

- Mas o pai dele é o duque.

- O conde Hugo é o herdeiro, e agora que o velho conde está muito velho, é Hugo que irá governar quando voltar da cruzada.

- Talvez ele volte para casa em breve.

- Se ele soubesse que a sua noivinha está aqui, estaria de volta, isso eu posso garantir.

- Mesmo que não tenha derrotado o sarraceno?

Era muito agradável falar sobre Hugo. Ela descobriu, agora, que gostava, acima de todas as coisas, de ouvir histórias sobre as proezas dele. Ele era sempre o herói de uma aventura nobre. As criadas estavam sempre dizendo: "Quando o conde Hugo voltar da Guerra Santa...", como se tudo fosse se transformar com a sua chegada.

E Joana começou a dizer aquilo, também, e a procurar por ele, e em vez de rezar para que não voltasse, dizia ao acordar: "Será que ele chega hoje?"

As semanas começaram a se transformar em meses. Isabella ia com frequência a Valence ver a filha, mas Joana desconfiava de que havia outra pessoa que ela procurava.

Ela sempre perguntava, ansiosa, se havia notícias da Terra Santa, e mostrava uma grande decepção por não haver.

Ela quer voltar para a Inglaterra, pensava Joana. Talvez em breve ela vá... mesmo sem ele ter voltado.

Joana agora estava crescendo, e ele não chegava. Dois anos se haviam passado desde a morte de seu pai, e ela estava com nove anos. Já não era tão criança assim. Estava começando a compreender um pouco do significado do casamento, pois algumas de suas criadas achavam que era injusto mandar uma jovem para o marido sem ter ideia do que se esperaria dela.

A princípio, Joana sentira uma certa repugnância, depois ficara impressionada e por fim passara a acreditar que, no final das contas, aquilo talvez não fosse tão ruim. Ouvira rumores sobre os hábitos do pai, e eles sempre a faziam ser tomada por um vago temor, mas haviam insistido com ela que o homem com quem iria se casar seria uma espécie de deus, não apenas bonito, mas benevolente.

Às vezes, Joana ficava sentada ao sol com o velho, perto de um antigo relógio de sol - um local que ela adorava. Ele estava todo agasalhado, apesar do calor, porque estava ficando muito fraco, e lhe contava histórias de aventuras passadas, de batalhas que o filho havia lutado, e sempre seu filho Hugo era o herói das histórias.

- Ah - dizia o velho em sua voz trémula -, você vai passar a se achar afortunada por ser a noiva escolhida de Hugo, o More no, conde de Lusignan.

E assim o tempo passava.

Então um dia, enquanto Joana conversava com o velho, ele caiu para a frente em sua cadeira, e ela correu até o castelo para chamar suas criadas. Ele foi carregado para a cama e enviou-se uma mensagem ao castelo de Angoulême, para dar a Isabella ciência do que se passava.

Em pouco tempo Isabella estava com eles, e concordou ansiosa com a família que de alguma maneira se deveria avisar ao conde Hugo que o pai estava muito doente e que a sua presença em Valence tornava-se necessária com a maior urgência possível.

Seguiu-se uma fase de espera enquanto o velho conde arrastava sua existência. As visitas de Isabella passaram a tornar-se mais frequentes, e a primeira pergunta que ela fazia ao chegar era: "Alguma notícia?"

Havia uma tensão por todo o castelo, e todos ficavam imaginando se os mensageiros tinham encontrado o conde Hugo; todos estavam certos de que quando soubesse que o pai estava morrendo, ele voltaria para assumir a herança.

Então, o velho morreu, e Hugo ainda não tinha chegado.

Havia um grande temor de que tivesse sido morto em combate, porque eram muitos os que partiam para a Guerra Santa e nunca mais voltavam.

Joana estava com dez anos. Às vezes ficava imaginando quando se daria a mudança. Se Hugo não voltasse, não haveria razão para que ficassem ali. Um novo marido seria encontrado para ela. Estava muito apreensiva e percebia, então, que passara a aceitar Hugo como seu futuro marido e que já estava meio apaixonada pela imagem que lhe haviam passado. Muitas vezes sentava-se junto à janela da torrinha e ficava à espera de ver um cavaleiro, e quando via, ficava animada, mas ao verificar que não era Hugo, seguia-se uma grande decepção.

E assim se passavam os dias.

Então, um dia Hugo chegou. Ela estava nos jardins, de modo que não viu a sua chegada. Houve um tropel de patas de cavalos e uma grande agitação em todo o castelo; os sinos começaram a tocar; Joana ouviu o grito de muitas vozes.

Correu para dentro do castelo e lá estava ele, de pé no salão - alto, bronzeado pelo sol, numa armadura brilhante com uma cruz vermelha no peito. Ela o reconheceu logo, porque estava certa de que ninguém mais poderia ter uma aparência tão nobre.

Por alguns instantes, os dois ficaram ali olhando um para o outro; depois, ela viu o sangue subir às faces de Hugo, e ele deu vários passos em sua direção, tomando-lhe ambas as mãos, e ela percebeu que os olhos dele tinham uma expressão de assombro.

Ela ouviu alguém dizer:

- Lady Joana, meu senhor.

Ele continuou a olhar para ela. Depois, disse:

- Por um momento pensei que estivesse sonhando. Você se parece tanto...

Ela própria respondeu:

- Todos dizem que me pareço com minha mãe.

Joana percebeu que os olhos dele estavam embaçados. Ele beijoulhe a mão e disse:

- É um prazer ver você aqui. - E então pediu que o levassem a seu pai.

Ficou triste quando soube da morte do pai; e depois de tirar a armadura, dirigiu-se ao local, no terreno da capela, onde o velho estava enterrado e ajoelhou-se durante um longo tempo ao lado da sepultura.

Sem a armadura, ele parecia menos um deus, mas não ficava menos bonito; e Joana percebeu logo a bondade de sua fisionomia.

Ela sentou-se ao lado de Hugo à mesa, e ele lhe serviu a melhor carne. Ele se dirigia a Joana com delicadeza, e ela viu que tudo o que ouvira a respeito dele era verdade.

- Eu sou muitos anos mais velho do que você, minha Lady Joana, e você vai ter de crescer depressa. Que idade tem agora?

- Tenho dez anos, meu senhor.

- É um pouco cedo para ser uma esposa. Temos de esperar alguns anos.

- Dizem que três ou quatro - respondeu ela.

- Ora, isso não é tanto assim. Acha que estará pronta, então? Ela olhou para os escuros cabelos encaracolados que nasciam da alta e nobre testa, para a agradável curva dos lábios, e respondeu:

- Oh, sim, meu senhor. Talvez antes.

- Veremos - respondeu Hugo, sorrindo. Perguntou como ela havia chegado, e ela lhe disse que a mãe a levara até ali.

Hugo então ficou pensativo e perguntou como estava Isabella.

- Vai bem, meu senhor.

Ele balançou a cabeça devagar.

- Fiquei sabendo da viuvez dela - disse ele, e se calou. Não passou pela cabeça dela, então, dizer que a mãe estava ali perto, em Angoulême.

Hugo ficou pensativo depois disso e quando a refeição terminou retirou-se com seus intendentes e se dedicou a saber o que acontecera no castelo durante a sua ausência.

Joana foi para o quarto, mas não para dormir.

Aquele era o dia mais importante de sua vida. Ela ficara conhecendo o seu futuro marido.

Uma felicidade terna tomou conta de Joana. Já não tinha medo. Na verdade, esperava ansiosa pelo dia em que iria se tornar a condessa de Lusignan. Às vezes pensava em seu horrível pai e lhe passara pela cabeça, muito tempo atrás, antes de ir para a França, que um dia poderia ser o seu destino ter um marido igual. Não poderia haver um homem menos parecido com o rei João do que Hugo, o Moreno, conde de Lusignan, e aquilo era motivo de regozijo.

Os dois andavam a cavalo juntos; ela queria mostrar-lhe que conhecia bem suas florestas, que sabia controlar um cavalo. Queria agradá-lo de todas as maneiras.

Os dois conversavam em francês, pois Joana se tornara fluente naquela língua; Hugo foi à sala de aula e examinou o trabalho dela. Ela lhe disse que agora que ele havia voltado iria trabalhar mais, porque estava ansiosa por crescer depressa.

Ele sorriu com delicadeza e acariciou-lhe os cabelos quando Joana lhe disse isso, e ela sentiu lágrimas nos olhos, mas não estava certa quanto ao motivo.

Jogaram xadrez juntos, e embora ela não conseguisse lhe dar o xeque-mate, chegava muito perto disso.

- Posso ver que tenho sorte com a minha noiva - disse-lhe ele. As damas e os cavalheiros do castelo os contemplavam com prazer.

- Este será um casamento por amor - diziam todos.

Isabella entrou no castelo a cavalo.

- Então é verdade? - bradou ela. - O conde voltou? Garantiram-lhe que era verdade.

- Digam a ele que cheguei.

Mas o conde fora caçar com um grupo na floresta, e com ele estava Lady Joana.

Impaciente, Isabella andou de um lado para o outro no grande salão.

Suas faces estavam rubras; havia soltado os cabelos escuros. Seria verdade que parecia uma jovem? Tivera cinco filhos; tivera muitos amantes; vivera vinte anos de devassidão com o insaciável João. Poderia ainda se parecer com aquela jovenzinha que tanto encantara Hugo que quando ele a perdera ficara disposto a ir para a guerra e nunca mais arranjara outra noiva?

Ela acreditava que estava atraente como sempre - mais ainda, devido à experiência. E Hugo já não era mais o jovem idealista de antes. Agora conhecia mais o mundo. Iria querer uma mulher experiente, e não uma jovem inocente.

E o que estava ela pensando? Ele estava noivo de sua filha. Isabella soltou uma gargalhada ao pensar nisso. Era uma jogada de João para perturbá-la. Não era característico dele pensar em prometer a filha em casamento ao homem no qual ele sabia que a rainha ainda pensava?

Por que ele não vinha? O que estava esperando?

Uma das criadas foi falar com ela.

- A senhora vai ficar contente. O conde está muito encantado com sua filha. Os dois estão juntos com frequência, e ficamos todos muito felizes ao vê-los.

Boba!, pensou Isabella, e teve dificuldade para se conter e não esbofetear a mulher.

- É mesmo? - respondeu, com voz pausada. - O conde deve continuar tão galante e cortês com as damas quanto sempre foi.

- Oh, continua sim, majestade; e a pequena Lady Joana se parece com Vossa Majestade quando tinha a idade dela.

O que essa mulher está dando a entender?, perguntou-se Isabella. Que estou velha e decrépita!

- Retire-se - disse Isabella, com frieza.

Havia uma forte determinação em seu coração. Hugo ficaria tão enamorado por ela agora como ficara quando era a sua noivacriança, antes de ela ser roubada pelo voraz João, que lhe dera uma coroa.

Pareceu ter-se passado muito tempo até a chegada do grupo.

Isabella ficou no centro do salão, esperando.

E lá estava ele - com Joana a seu lado.

Hugo caminhou até ela e disse:

- Isabella.

Ela riu e estendeu-lhe a mão.

- Então se lembra de mim?

- Se me lembro de você...! - A interrupção a excitou.

- Faz muito tempo. Você mudou pouco, Hugo... desde que...

- Você ficou ainda mais bonita.

Ela ficou exultante, triunfante. Hugo não mudara nada. Ele lhe pertencia, disso tinha certeza. Sua viagem não fora em vão.

- E aqui está minha filhinha. O que acha dela, Hugo?

- Ela tem uma certa semelhança com você, e por isso me encanta.

Isabella estendeu a mão para a filha e puxou-a para o seu lado.

- Fico contente. Esperamos muito, Hugo, pela sua vinda.

- Eu devia ter vindo para cá há mais tempo, se soubesse respondeu ele.

Isabella estava ciente dos olhos observadores das pessoas que se encontravam no salão, muitas das quais com idade suficiente para se lembrarem. Hugo também parecia ter percebido de repente a presença delas.

- Sinto o cheiro de uma boa carne de veado - disse ele. Você vai ficar conosco... por algum tempo.

Ela curvou a cabeça.

Então Hugo se afastou e se dirigiu ao quarto para lavar a lama deixada pela caçada e mudar de roupa.

Joana foi para o quarto dela, ligeiramente aturdida.

- O conde está feliz porque a rainha Isabella está aqui - comentou a criada.

- Eu sempre soube que os dois gostavam um do outro.

À mesa, sua mãe sentou-se a um lado dele, com Joana em seu lugar de costume, do outro. Os dois conversaram o tempo todo. Havia uma agitação entre eles.

Os dois estão tão contentes por se verem, pensou Joana, que quase se esqueceram de que estou aqui É bom, pensou ela, quando duas famílias, que estão para se unir, são ótimos amigos.

Houve um arranhar na porta do quarto de Hugo. Ele calculara que Isabella poderia ir até lá. Ela dera a entender que faria isso.

- Há tanta coisa que precisamos dizer um ao outro, Hugo. Não é fácil conversar com tantos espectadores.

Ela dissera isso enquanto ceavam. E havia uma sugestão nas suas palavras. Então Hugo dispensara todos os que normalmente teriam ficado à sua disposição em seu quarto.

Ele abriu a porta e recuou enquanto Isabella entrava. Os belos cabelos caíam-lhe nos ombros, e ela vestia uma túnica solta do tom de azul que, segundo Hugo se lembrava dos velhos tempos, era a cor favorita dela. Fora a sua favorita pelo mesmo motivo. Ele segurou-lhe as mãos e disse:

- Oh, Deus, Isabella... você está realmente aqui.

- Não sou nenhum fantasma. Pode estar certo disso, Hugo. Ele recuou um pouco. Era um homem honrado e lembrou-se da atraente juventude da noiva.

- com que então agora ele está morto... - disse ele, numa vã tentativa de lançar uma ducha fria de ódio na fogueira que nascia dentro dele.

- João. O bruto. O devasso. Você não sabe o quanto sofri com ele.

- No entanto... foi com ele.

- Você sabe que não tive opção. Eu era apenas uma criança. Meus pais me obrigaram, e obedeci.

- Você estava lá quando...

- Quando ele o acorrentou e você foi levado no carro de bois. Sentiu o meu ódio por ele, Hugo, quando você passou... e meu amor por você?

- Sei que você ficou triste por me ver daquela maneira. Por causa de sua compaixão, quase gostei da humilhação.

- Você deve ter me amado muito naquela época, Hugo.

- Alguma vez você duvidou disso?

- Nunca. E agora gosta de minha filha como gostou de mim.

- Esperou que ele negasse.

- Ela é uma menina encantadora - retrucou Hugo.

- Dizem que se parece um pouco comigo.

- Ninguém poderia ser como você, Isabella.

- Hugo, você está sendo sincero? - Agarrou-o pelos braços e ergueu o rosto para olhá-lo.

- Não - disse ele, evitando deliberadamente o olhar dela.

- Agora você tem de ir embora, Isabella. Você partirá em breve, e quando Joana ficar um pouco mais velha, então nos casaremos.

- Havia uma coisa que eu queria saber, Hugo. Prometa que vai me responder... com toda sinceridade.

- Prometo. O que é?

- Abrace-me bem apertado, Hugo. Me beije. E depois diga com sinceridade se ainda sente o mesmo por mim.

- Isabella, você precisa ir. Nunca deveria ter vindo aqui. Se a vissem...

- Oh, você tem medo de seus criados?

- Tenho medo de sua boa reputação.

- Minha boa reputação! Casada com aquele monstro aqueles anos todos... todas as calúnias que ele espalhou sobre mim para encobrir suas maldades! Acha que tenho uma boa reputação a proteger?

- Eu a protegerei com a minha espada. Se alguém sussurrar maldades a seu respeito...

- Ah, Hugo, meu adorado, você não mudou. Eu receava que não fosse mais o mesmo. Deixe-me dizer-lhe uma coisa: nunca me esqueci de você. Quando estava com ele... só conseguia suportar os abraços de João porque eu mesma me fazia fingir que era você, e não ele... o homem que eu amava, não o desprezível devasso que me tirara de você e fizera a coisa de tal maneira que eu me tornara uma prisioneira e não podia fazer outra coisa a não ser me submeter.

- É verdade?

- Juro que é. Quando vim para cá foi para vê-lo, Hugo...

- Foi para trazer sua filha para ser minha esposa.

- Eu precisava vê-lo. Tinha de saber por mim mesma que você já não me amava. E se me disser que não me ama, irei para Fontevrault, onde minha sogra passou seus últimos dias, e me tornarei uma freira e nunca mais olharei para homem algum... embora, sem dúvida, vá continuar sonhando com você dentro dos muros do meu convento.

- Você... uma freira. Isabella! - Hugo riu. Isabella riu com ele. A tensão se descarregara.

- Eu me lembro de que você sempre me fazia rir, Isabella.

- A situação é a mesma de sempre. Nunca fomos amantes de verdade. Isso parecia ser a tragédia de minha vida. Eu o desejava mesmo quando era criança... e você me desejava. Mas você se continha. Tinha medo. Se tivesse me levado para a floresta e me seduzido... como eu sempre quis que fizesse... não creio que em algum momento eu teria deixado que me casassem com o João. Eu sonhava com a maravilha que isso teria sido.

- Não devemos falar assim, Isabella. Agora sou responsável pela pequena Joana. Estou tentando não assustá-la e deixar que ela se acostume à ideia do casamento.

- Como fez comigo. E tudo o que conseguiu fazer foi despertar meu desejo por você... minha necessidade por você... e sem satisfazê-la. Então, ele veio... Oh, meu Deus, como o odeio; que coisas horríveis ele fez comigo. Não me deixava em paz...

- Eu sei. Ouvi dizer. Isso foi espalhado por toda a Europa.

- Como você deve ter me odiado.

- Eu nunca poderia fazer outra coisa que não amar você, mas o meu ódio por ele não tinha limites.

- E por isso você lutou pelo pobre do Artur e foi capturado e levado à presença dele acorrentado. Como ele se vangloriou! Mas libertou você. Sabe por quê, Hugo? Porque o convenci que era melhor para ele. Eu disse que você iria lutar em favor dele se o libertasse. Como João foi bobo! Acreditou em mim. Mas ele está morto, Hugo... e eu estou aqui, e você também...

- Isabella, eu estou noivo.

- Há uma coisa que preciso saber. A vida toda, eu quis estar com você. Eu seria sua amante... qualquer coisa... Eu, uma rainha, senhor conde, ainda amo você. Eu tinha de vê-lo. Tinha de saber se eu ainda amava você... queria que fosse meu amante. Hugo, você me deve isso. Hoje à noite... esta noite... e se verificar que não me ama, se os anos o tiverem modificado, eu irei embora.

- Estou noivo de sua filha - disse ele, com voz enrouquecida. Ela riu baixinho e tirou a túnica dos ombros. Estendeu uma das mãos para ele.

- Venha, Hugo. Eu te ordeno. Amanhã, poderá me dizer que vá embora... mas esta noite seremos amantes como deveríamos ter sido há muitos anos.

Hugo se voltou e, sentando-se num banco, cobriu os olhos com as mãos. Mas ela estava ao seu lado, empregando todas as artes que a vida com o maior libertino de sua época lhe ensinara.

Hugo - que sonhara com ela durante anos -, apaixonado por ela como sempre, não teve como resistir.

Depois que Isabella o deixou - e o dia amanhecia quando isso aconteceu -, ele ficou na cama pensando no que acontecera. Nunca pensara que pudesse haver tamanho êxtase, mesmo com Isabella; sonhara com ela durante vinte anos; ela fora um ideal em sua vida; nunca se sentira disposto a se casar com qualquer outra mulher. Aquilo perturbara sua família, já que era seu dever se casar, para dar aos Lusignan um herdeiro. Ele se desculpara dizendo que tinha irmãos homens. Era quase como que se alguma coisa lhe dissesse que um dia ela voltaria.

E então, quando fora sugerido que se casasse com a filha dela, ele concordara com o noivado. O casamento parecia estar a anos de distância, e como tantos outros, compromissos como aquele poderiam jamais ser cumpridos. Além do mais, tratava-se da filha dela; e isso, de certo modo, o atraíra. Quando vira a menina - um pouco parecida com Isabella -, e ela provocara a sua piedade porque estava um pouco amedrontada, ele se decidira a ser bondoso e delicado com ela e, no devido tempo, fazer o possível para torná-la feliz.

Agora Isabella voltara, e tudo mudara para Hugo.

Precisava explicar a ela que tinha de se casar com a filha dela. Como a menina havia sido levada para lá com aquela finalidade, era uma questão de honra, e Isabella precisava voltar para a Inglaterra. Estava decidido a fazer com que o que acontecera à noite anterior não se repetisse.

Isabella fazia parte do grupo que saiu para a caçada. A pequena Joana também lá estava, muito bonitinha com sua manta de caça feita com tecido irlandês vermelho, mechas de cabelo saindo por baixo do capuz que combinava com a manta. Joana cavalgava ao lado dele, como estava acostumada, muito orgulhosa por sentar-se no cavalo e cavalgar, como certa vez ele lhe dissera, como se tivesse nascido numa sela. Isabella havia surgido. Bela no seu azul favorito. Pobrezinha da Joana, como se tornara insignificante ao lado de sua incomparável mãe!

- Pensei que fosse fugir de mim - disse ela em tom de reprovação. - E você sabe como gosto de caçar.

- Não, majestade - disse ele. - Seja muito bem-vinda.

- Meu encantador Hugo - respondeu ela, com voz suave. Pensei que não o tivesse agradado.

- A senhora sabe o quanto me agrada.

Joana prestava atenção à conversa dos dois. Havia um tom na voz da mãe que dizia à garotinha que ela estava contente. De fato, Joana nunca a vira tão contente antes. Talvez fosse porque Hugo estava ali, e muito em breve ela poderia ir para a Inglaterra.

Como era bonito na floresta de pinheiros - o adorável aroma pungente, o verde brilhante e a excitação da caçada. Joana avançava, ansiosa por mostrar a Hugo que podia acompanhar o melhor dentre os cavaleiros. Ela estava um pouco à frente de Hugo; lá se foi ela, e o som das patas dos cavalos a acompanhou.

Joana percebeu o cervo de relance; sempre sentia pena deles e não se importava muito em participar da matança, embora não falasse com ninguém sobre isso, com medo de que a considerassem uma boba. Certa vez, ela achou que Hugo adivinhara, porque ficou com ela e os dois voltaram para o castelo enquanto os carregadores levavam o cervo. Hugo sorrira para ela com muita ternura, e Joana o amara mais do que nunca, porque de repente lhe ocorrera que ele entendia seus pensamentos sem que tivesse de expressá-los, e que ele guardaria seus segredos, pois iria protegê-la do mundo inteiro. Joana correu os olhos à sua volta à procura de Hugo, mas ele não estava por ali. E também não viu a mãe.

- Hugo, preciso falar com você - sussurrou Isabella.

Ela fez o cavalo girar e se afastou enquanto ele a seguia. Ao longe, os dois ouviam o latir dos cachorros, e ela seguia em disparada; Hugo a seguiu de perto.

Ela parou e lançou-lhe o seu brilhante sorriso, estendendo a mão. Ele a segurou e a beijou com ânsia.

- Vamos desmontar e prender os cavalos; é mais fácil conversar assim.

- ísabella, acho que devíamos retornar ao grupo... ou ao castelo.

Ela riu - da mesma maneira que rira na escuridão do quarto dele. Ela já desmontara.

- Venha, Hugo, ou será que tem medo de mim?

Ele saltou do cavalo e, amarrando-o ao lado do dela, voltou-se para ela com impetuosidade. Apertou-a com força.

- Há alguma dúvida? Dúvida nenhuma. Você e eu fomos feitos um para o outro, Hugo.

- Não há dúvida de que deveríamos ter nos casado há muitos anos.

- O que está feito está feito. Agora, estamos juntos. Ela o tomou pela mão e os dois entraram no matagal.

- Você nunca deve deixar que eu vá embora de novo, Hugo. Se deixasse, nunca mais teria um outro momento de paz. Isso eu lhe prometo.

- Eu sei.

Isabella enfiou o braço pelo dele e Hugo segurou-lhe a mão com força.

- Vamos andar por entre as árvores e conversar, Hugo . Temos muita coisa a dizer.

- Há apenas isso, Isabella: estou noivo de sua filha.

- Uma criança... pouco mais do que um bebé. E, ainda por cima, minha filha. Foi uma triste piada perversa de João tê-lo feito ficar comprometido. Isso era o tipo da coisa que ele gostava de fazer. João queria me amargurar... porque sabia que eu amava você. Ele sempre soube disso. E era a maior emoção de minha vida, e eu não podia escondê-la. Não pense que vou deixar que me escape, Hugo. Você não me conhece, se pensar.

- Minha adorada Isabella, não podemos seguir nossos impulsos.

- Está enganado. De que outra maneira as pessoas poderiam viver? O amor não deve ser negado. Por que seria? Se você tivesse uma esposa e eu um marido, ainda assim eu deveria ficar com você. Eu desafiaria o mundo para fazer isso. Mas você não tem esposa. Eu não tenho marido. Você está noivo de uma criança que nada sabe do mundo... nada sabe sobre o casamento... nada sabe sobre o amor...

- Ela já aprendeu muito. Já viveu dez invernos e está madura para a idade que tem. E não pode ser mandada embora.

- Então, ficará aqui. Ela é minha filha. Oh, Hugo, tenho pensado na noite passada. Estar assim com você... foi um sonho maravilhoso que se tornou realidade, e assim deverá ser por toda a nossa vida, porque jamais abrirei mão de você. Só temos uma coisa a fazer.

- Não...

- Sim, meu senhor. Você vai ter a sua esposa. Não se trata de uma criança pela qual tenha de esperar; trata-se de sua amante ansiosa, que se recusa a esperar mais por você. Durante todos esses anos cansativos, ansiei por você. Eu agora o peguei, Hugo, e você é meu. - Ela parou de falar, e forçando o rosto dele para que se curvasse até o dela, beijou-o com paixão. - Você nunca vai fugir de mim. Nunca. Nunca - disse ela.

Isabella o observava. Ele a desejava. Ele jamais conhecera um ato amoroso como aquele. Ela sorriu no íntimo. O cruel, mau, impiedoso, insaciável João fora um bom

tutor. Não que ela precisasse de lições. Mulheres iguais a ela nasciam sabendo aquilo. Podia reduzi-lo a um desejo tal que ele estaria disposto a prometer qualquer coisa. Havia em Hugo uma inocência que faltara por completo a João; por isso, o amava. Porque se ela era capaz de amar, amava Hugo, o Moreno. No seu tipo de amor não havia o auto-sacrifício; um pouco de ternura de vez em quando, um desejo de dar prazer mas talvez fosse porque quisesse ser considerada o máximo; havia uma necessidade de satisfazer seus próprios desejos, uma necessidade de ser amada e admirada como nenhuma outra mulher fora amada e admirada antes. Nos primeiros meses do casamento com João, ela acreditara tê-lo levado à condição de escravo, porque ele lhe dera tudo o que pedira naquela época em que chocara seus ministros porque ficava o dia todo com ela na cama. Como estivera errada! joão não podia amar ninguém, a não ser a si mesmo, e ela aprendera logo que era uma dominadora sensualidade nela que se igualava a algo semelhante que havia nele que a fizera imaginar que podia mandar nele. Aquilo arrefecera como arrefecem os sentimentos desse tipo - embora ele jamais tenha escapado por completo. Hugo era diferente. Havia inocência e idealismo nele. Hugo seria seu escravo agora e sempre.

Não havia dúvida de que não o deixaria escapar.

- Não é possível - disse ele, desesperado.

Meu caro Hugo, é possível, se quisermos que seja. Se me recusar, ficarei sabendo que estava enganada. Todos esses anos em que pensei em você foram em vão. Afinal, você não me amava. Talvez tenha sido melhor eu ter ido ficar com João.

- Sabe que não é verdade.

- Eu esperava que não fosse, mas agora você me rejeita...

- Rejeito! - Ele a tomou nos braços.

E ela pensou: sim, aqui na floresta... onde alguns cavaleiros podem nos pegar de surpresa a qualquer momento. Isso vai mostrar-lhe o quanto precisa de mim, que sua necessidade e seu desejo tiram delç a inerente inclinação a uma conduta convencional.

- Não, você não me rejeita - sussurrou ela. - Você precisa de mim, Hugo... assim como preciso de você. Jamais poderia deixar que eu fosse embora...

Ele deu um grito de desespero e pensou nos olhos inocentes de sua jovem noiva antes de se esquecer de tudo, menos de Isabella.

Ele dissera que primeiro devia dar a notícia a ela.

- Meu adorado - bradara Isabella -, mas por quê? Ela vai acabar sabendo.

- Não, eu quero fazer isso.

Isabella ficou um pouco aborrecida, mas pareceu aconselhável ceder naquele momento.

Hugo disse que iria para a floresta a cavalo, com sua noivinha, porque achava que seria mais fácil assim.

Joana estava séria, aquela manhã; parecia pressentir algum desastre. Hugo encontrou dificuldade em dizer-lhe; queria escolher as palavras certas, explicar que não se tratava de deficiência dela.

Ela própria começou, dizendo:

- Meu senhor, está contrariado comigo?

- Minha querida Joaninha, como poderia estar?

- Se eu tivesse feito alguma coisa que o senhor achasse errado.

- Você não fez nada de errado.

- É alguma coisa com relação a minha mãe?

- Sua... mãe? - repetiu ele, arrasado.

- É, parece que desde que ela chegou... Ele aproveitou a deixa.

- Sabe que Isabella e eu estivemos noivos há muito tempo?

- Eu sabia disso, sim.

- Então seu pai veio e a levou embora.

- Ela me contou isso várias vezes.

- Bem, agora ela está aqui outra vez, e seu pai morreu... a verdade é que nós vamos nos casar.

- O senhor... casar com minha mãe. Mas como pode ser isso? Eu sou sua noiva.

- Minha querida menina, você é muito criança, e será arranjado para você um marido muito mais adequado do que eu jamais poderia ser.

- Acho que o senhor é adequado. O senhor é bom, e pensei que gostasse de mim e que estivesse feliz com o nosso noivado.

- Eu estava, e é claro que gosto de você... mas como filha. Compreende?

- Não - gritou ela. - Não!

- Escute, Joaninha. Você tem de crescer. Há muito a aprender. Seu irmão é o rei da Inglaterra.

- O jovem Henrique - disse ela, em tom de zombaria. - Ele não passa de um menino.

- Ele é o rei da Inglaterra, e você, como sua irmã, merece um grande casamento.

- Eu tenho um grande casamento.

Hugo tomou-lhe a mão e a beijou.

- O senhor não estava falando sério - disse Joana, ansiosa.

Minha mãe vai voltar para a Inglaterra, agora que o senhor está aqui, e tudo será como planejamos.

Ele balançou a cabeça, triste:

- Não, minha filha. Sua mãe e eu vamos nos casar. Era o que se pretendia fazer há anos. O destino nos uniu novamente, mas é isso o que tinha de ser. Vamos, vamos

cavalgar de volta para o castelo. Eu queria lhe dizer isso... explicar.

- Vejo que o senhor gosta de minha mãe. Ele confirmou com a cabeça.

- Muito mais do que jamais poderia gostar de mim - disse ela, judiciosamente.

E então ela esporeou o cavalo e seguiu em frente. Ele manteve uma certa distância. Não queria ver o rosto triste dela.

E assim os dois se casaram, e Joana viu a mãe assumir o lugar que pensara pertencer-lhe.

Joana os observava, mas os dois não tomaram conhecimento dela; só tinham olhos um para o outro.

Houve festividades no castelo para comemorar o casamento. Houve dança e cantaram-se lais. Menestréis cantavam suas músicas com sentimento, num estilo romântico, e eram todas sobre amantes.

Isabella estava bonita como sempre, e Hugo atraente como sempre. A vida no castelo parecia girar em torno dos dois; os criados sussurravam, e a conversa deles era sobre o romance dos dois amantes, há muito separados e que tinham voltado a se unir.

Joana ficava imaginando o que seria dela. Supunha que quando os dois saíssem daquele ditoso encanto de estarem casados talvez se lembrassem dela. Alguma coisa teria de ser feita, porque ela não tinha lugar no castelo agora. Até mesmo as criadas a olhavam como se ela fosse algo que um convidado tivesse esquecido e que devia ser guardado até que pudessem vir apanhá-lo.

Até o recém-casado, o bondoso Hugo, quando os dois se encontravam, o que Joana achava que ele procurava evitar, parecia estar tentando não se lembrar de quem era ela.

Ela chorava durante a noite, quando ninguém pudesse ver; e de dia perambulava pelo castelo, perdida e perplexa, mas esperando com a certeza de que alguma coisa teria de acontecer muito em breve.

 

GUILHERME MARECHAL FORA para o seu castelo em Caversham, perto de Reading, com a convicção de que jamais sairia de lá. Sentiase velho - eram poucos os homens que passavam do octagésimo aniversário - e devia estar grato por uma vida longa, durante a qual pudera - e não teria sido o homem honesto que era se tivesse negado isso - servir a seu país de modo a preservá-lo de uma desgraça.

Podia fazer o pensamento recuar os quatro últimos anos desde que o jovem rei subira ao trono e congratular-se consigo mesmo pelo fato de a Inglaterra estar no caminho da recuperação daquela terrível doença que quase a matara e entregara seu corpo inútil aos franceses.

Havia ordem no país. Como o povo respondera a uma mão forte! Sempre fora assim. Lei e ordem sob pena de morte ou de mutilação sempre tinham sido a resposta; e se fossem aplicadas com justiça, o povo ficava agradecido. Era isso que João não conseguira ver, pois ele aplicara as punições sem considerar se eram ou não merecidas. Graças a Deus, a Inglaterra estava dedicada à paz; houvera uma trégua de quatro anos com os franceses, e ele e o juiz, Hubert de Burgh, providenciariam para que fosse renovada. A Inglaterra recuperando a grandeza, e ele podia dizer Nunc dimittis.

Isabella, sua esposa, estava preocupada com ele. Os dois haviam envelhecido juntos; a união deles fora boa e fértil. Tinham tido cinco filhos e cinco filhas, e os casamentos deles tinham sido, muitas vezes, benéficos para a família, ao ampliar-lhe a influência; e embora a primeira preocupação dele fosse com a sua honra e com o direito, e colocasse os interesses do país acima dos seus, não podia deixar de ficar contente com o fato de sua família ser uma das mais ricas e mais influentes do país.

Mas ele soubera, havia algum tempo, que sua hora chegaria em breve; e preferia partir antes de perder seus poderes. Quem - se tivesse sido um homem de ação e de raciocínio rápido e arguto iria querer tornar-se um pobre inválido sentado em sua cadeira à espera do fim?

Sua mulher, Isabella, olhou da porta para ele enquanto ele se sentava, pensativo, à sua mesa. Guilherme então a chamou.

- Você está bem, marido?

- Entre e sente-se um pouco comigo, Isabella. Ela entrou, olhando-o, apreensiva.

- Não devemos nos enganar - disse ele. - Creio que vou morrer em breve.

- Está sentindo alguma dor?

- Ela vem e vai. Mas depois que passa há uma espécie de lassidão, e há vezes em que percebo minha mente voltando ao passado e o meu rei é um outro Henrique, ameaçador, visitando prostitutas, portando-se como um general inteligente, usando a estratégia e não o derramamento de sangue. Ele sempre me dizia: "Uma batalha que pode ser vencida com palavras numa conferência vale o triplo daquela em que é derramado o sangue de bons soldados." Eu me esqueço, Isabella, de que é o pálido menino que agora é o nosso rei, e não o avô dele que nos governa.

- Já houve dois reis desde então, Guilherme.

- Ricardo... que desprezou o país para que pudesse obter glória e honrarias com os sarracenos... e João...

- Meu querido Guilherme, você fica perturbado ao pensar nisso. Já passou. João está morto.

- Isso temos que agradecer a Deus - disse Guilherme. - Ele nos deixou esse rei menino.

- E você, Guilherme, tornou a Inglaterra segura para ele. Guilherme Marechal balançou a cabeça lentamente.

- Estamos numa paz que há muitos anos não temos, mas precisamos mante-la assim.

- Hubert de Burgh é da mesma opinião, e com dois homens como vocês para guiar nossos negócios...

- Ah, querida esposa, por quanto tempo acha que vou estar por aqui? É isso que me preocupa.

- Vamos providenciar para que continue conosco por muito tempo.

- Quem são esses todo-poderosos "nós" que se colocam contra os desejos do Todo-Poderoso? Não, mulher, quando minha hora chegar, não há como protelar. E quero ter a certeza de que a Inglaterra continuará firme e que continuamos dando em direção à paz e à prosperidade os passos que vimos dando nos últimos quatro anos. vou enviar uma mensagem ao nosso filho Guilherme. Quero que ele venha até aqui a toda velocidade, pois tenho muita coisa para lhe dizer.

Isabella Marechal ficou alarmada. com aquela visão quase sobrenatural, Guilherme parecia sentir que seu fim não estava muito longe. Mas o conhecia o suficiente para não tentar dissuadi-lo de uma ação daquelas. Guilherme sempre soubera qual o caminho a seguir.

Depois que a esposa se retirou, ele foi até um armário e, abrindo-o, tirou um manto de templário. Despindo-se de seu manto, de sua túnica e de sua macia camisa branca, vestiu o traje grosseiro.

Teve um sorriso irónico. É para onde todos vamos no fim da vida, pensou ele. Quando o fim está próximo, voltamo-nos para o arrependimento.

Ajoelhou-se e rezou pedindo perdão dos pecados, e que quando morresse pudesse haver homens fortes para manter o país em paz e orientar o jovem Henrique pelo caminho que levava a um grande governo monárquico.

Depois, levantou-se e escreveu uma carta para a esposa, na qual pedia que quando morresse fosse enterrado na Temple Church em Londres, pois se o seu dever não o tivesse levado para outro destino, ele teria optado por ser um cavaleiro daquela ordem religiosa, mas militar.

Quando Guilherme Marechal, filho, chegou a Caversham, ficou chocado ao ver a deterioração das condições do pai. Nunca vira o velho em outro estado que não o de boa saúde, e nunca lhe passara pela cabeça que alguma vez ele pudesse estar em condições diferentes. O pai sempre fora a maior influência em sua vida - embora nos últimos anos os dois nem sempre tivessem estado em comum acordo -, e ficou chocado ao perceber o motivo pelo qual tinha sido chamado. Como filho mais velho, fora criado para estar cônscio de suas responsabilidades.

O pai o abraçou, e o jovem Guilherme olhou para ele com um olhar inquiridor.

- Sim, meu filho - disse o Marechal mais velho -, minha hora chegou. Sei disso tanto quanto sei que estou aqui. Meu espírito está tão bem quanto sempre esteve, mas meu corpo me trai. Não fique triste; de bom grado eu partiria um pouco mais cedo, antes de os meus sentidos me abandonarem. Sou um homem velho, muito velho, mas sou mortal, e os mortais não podem viver para sempre. Tive uma vida boa... uma vida longa... e sinto que ela está coroada de sucesso, porque agora vejo que o rei está firme no trono e com um bom governo ficará lá em segurança. O país está livre dos franceses, e Hubert de Burgh é um homem forte. Pedi a ele que viesse aqui, pois quero vê-lo antes de partir.

O jovem Guilherme sacudiu a cabeça:

- O senhor fala como se fosse fazer uma viagem à Irlanda... ou à França...

- Não é diferente disso, Guilherme.

- Então mandou me chamar para se despedir.

- Cuide bem de sua mãe. Como acontece com a minha, a juventude dela já ficou para trás há muito tempo. Foi um bom casamento, e me sinto feliz com a minha família. Embora... - teve um sorriso irónico -, em certas ocasiões você e eu tenhamos ficado em lados opostos.

- Papai, houve uma fase em que muitos ingleses acreditavam que nada de bom aconteceria à Inglaterra enquanto João estivesse no trono.

- É isso, e quem poderia contestá-los? Meu filho, as diferenças todas acabaram agora. Sirva o rei. Honre o seu país.

- Farei isso, papai, quando puder fazê-lo com honra.

O Guilherme mais moço estava se referindo ao período em que Luís desembarcara na Inglaterra e ele fora um dos que lhe haviam rendido homenagens. Era compreensível. Ele estivera entre os barões que tinham estado presentes a Runnymede, e sabia que seria uma desgraça para a Inglaterra se João continuasse a governar. Seu pai também sabia disso, mas não conseguira convencer a si mesmo a abandonar a lealdade à coroa. Fora o jovem Guilherme Marechal que tomara Worcester para Luís. Mas um ano depois, ele se afastara do príncipe francês, porque não podia suportar ver nobres franceses andando todo empertigados pela Inglaterra. Quando João morrera, parecera natural que ele trocasse de compromisso, de modo que se unira ao pai e se tornara um resoluto

partidário do jovem Henrique.

Ele se casara muito criança com uma menina chamada Alice, que era filha de Baldwin de Béthune; mas o casamento jamais se consumara, pois eles eram muito crianças e Alice havia morrido antes de crescerem.

Não havia dúvida de que o jovem Guilherme Marechal era considerado um homem de grande influência, não apenas por intermédio do pai, mas devido a sua capacidade própria. Apesar de jovem, já causara uma certa consternação ao passar para o lado de Luís. Depois, lutara ao lado do pai e se apossara de vários castelos que tinham estado em mãos francesas; mas talvez por causa do apoio que dera a Luís, era observado muito de perto por alguns dos cavaleiros mais velhos, principalmente por Hubert de Burgh.

Pouco tempo atrás, tinham-lhe prometido a mão da princesa Eleanor - a filha caçula do rei João, e na época com cerca de três anos de idade - porque ele pretendia se casar com uma filha de Robert de Bruce, uma família de destaque do sul da Escócia, que se dizia com um certo direito ao trono. A ideia de um homem se casar com alguém do norte, que era uma ameaça perpétua para a Inglaterra, era alarmante - em especial quando ele havia mostrado que podia transferir sua lealdade para os franceses. E por isso lhe fora oferecida a aliança maior com a menininha Eleanor.

O jovem Guilherme podia se orgulhar, porque estava claro que era considerado um homem que devia ser aplacado.

Quando o pai morresse, ele herdaria grandes possessões; mas a ideia de um mundo sem o pai o enchia de presságios.

O velho percebeu isso e agarrou as mãos do filho.

- Você vai me suceder, meu filho. Será o segundo conde de Pembroke depois que eu partir. Quero que mantenha sempre o nosso nome tão honrado quanto é hoje.

Guilherme prometeu, mas garantiu ao pai que este ainda iria viver alguns anos.

O pai deu de ombros como que achando aquilo bobagem e disse que queria que o filho mandasse chamar Hubert de Burgh, pois havia muita coisa que precisava dizer a ele.

No devido tempo Hubert chegou ao castelo e ficou algumas horas com o Marechal, quando conversaram sobre as dificuldades que o país enfrentara e sobre as que ainda restavam.

- Não há um homem vivo - disse-lhe Hubert, com certa emoção - que tenha transformado a causa da Inglaterra em causa própria com a mesma modéstia que o senhor meu senhor.

- Sei que você levará isso adiante replicou Guilherme.

Hubert curvou a cabeça e declarou que faria o possível, embora no íntimo duvidasse que pudesse chegar ao mesmo nível de Guilherme Marechal. Hubert era um homem cujas emoções sempre representavam algum papel em seus atos; pensava com frequência em sua conduta com relação a Artur, em cujo benefício ele desobedecera, correndo um grande risco, o rei; e ficava imaginando qual seria a ação de Guilherme Marechal em circunstâncias semelhantes. A honra era um fetiche para Guilherme Marechal. Ele era o homem que havia desafiado Ricardo, quando estava claro que o pai dele estava à beira da derrota e Ricardo seria rei em breve. Destemido na honra - este era Guilherme Marechal, e havia poucos iguais a ele.

Hubert disse, de repente:

- Senhor conde, não deve esperar de outros homens o mesmo grau de serviço abnegado que o senhor prestou à coroa. Muitas vezes o espírito tem disposição, mas o interesse próprio se intromete... e também a necessidade de preservar a própria vida. O serviço aos reis é perigoso.

- Sei disso muito bem. Sei que você desafiou João quando salvou Artur da mutilação. Na ocasião, você não estava servindo ao rei, independente do seu motivo. Mas isso lhe dá uma qualidade que os homens percebem. Não acho que eles o apreciem menos por causa disso. Já percebeu como o nosso jovem rei se dirige primeiro a você, e com afeição? Ele me ouve, mas gosta de você, Hubert.

Hubert sabia que era verdade. O jovem rei gostava dele... como acontecera com Artur.

- Sirva-o bem, Hubert, e isso será bom para a Inglaterra. Hubert disse que faria o possível.

- Existe um forte interesse estrangeiro pelo país. Proteja-se contra ele. O núncio Pandulf tem poderes demais. Era necessário termos o apoio dele quando o país estava

dominado pelos franceses, mas agora a Inglaterra deve ser governada pelos ingleses. Lamento ter de deixar-lhe esta tarefa. Mas Você é um homem forte, Hubert, e tem a confiança do rei.

Os dois conversaram algum tempo sobre os problemas do país. O rei estava tomando consciência de suas responsabilidade e aprendendo depressa. Ricardo estava em boas rnãos em Corfe, e por algum tempo não era preciso se preocupar com o seu futuro. A princesa Joana estava em segurança em Lusignan, noiva de Hugo, o Moreno, o que era um bom casamento, pois manteria Hugo como aliado da coroa da Inglaterra, já que sua esposa seria um membro da família real inglesa. A mãe dela, a rainha Isabella, estava bem em Angoulême, e esperava-se que ficasse muito tempo por lá. Era bom tê-la fora do caminho, declarou Guilherme, pois ela era criadora de casos, e ele não queria que ela ficasse perto demais do rei. Assim que Hugo de Lusignan voltasse de sua cruzada, o casamento seria realizado; e a rainha devia, é claro, ficar com a filha até depois da cerimónia. As demais crianças ainda eram muito novas e poderiam representar seus papéis mais tarde. Era sempre bom ter uma ou duas princesas prontas para se contratar um casamento que poderia ser valioso ou vantajoso. Ocorrera assim com a pequena Eleanor, agora noiva do Marechal mais moço. Sua lealdade estaria assegurada se ele. se casasse com a irmã do rei. Quanto à irmã ligeiramente mais velha de Eleanor, Isabella, agora com cinco anos de idade, ela teria sua utilidade no devido tempo.

Ao velho parecia que a situação do país se estabilizara a um nível acima de suas mais absurdas expectativas; e, depois de fazer os preparativos para a partida e as pazes com Deus... e, acima de tudo, salvaguardar o futuro do país da maneira que estava em seu alcance, ele se foi com tranquilidade.

Tão logo Guilherme Marechal morreu, pareceu que o pacífico progresso dos negócios do país chegara ao fim. Hubert de Burgh, em seu papel de juiz, assumiu o controle

do país; mas sentia falta da mão firme de Guilherme Marechal. O grupo estrangeiro - que havia sido dominado enquanto Guilherme era vivo - tornou-se mais vociferante. Ele era chefiado por Peter dês Roches, o bispo poituense de Winchester, cujo objetivo era tirar ingleses dos principais cargos de poder e substituí-los por estrangeiros.

Estêvão Langton, o arcebispo de Canterbury, felizmente para Hubert, estava do lado deste; e quando Peter dês Roches, apoiado pelo núncio Pandulf, quis nomear um poituense como senescal de Poitou, Hubert e o arcebispo ficaram firmes contra eles, em favor de que um inglês assumisse o cargo.

A controvérsia sobre esse caso foi importante, pois Hubert, com o país a apoiá-lo e o povo começando a sentir orgulho de seu nacionalismo - e talvez sentindo-se envergonhado por ter convidado estrangeiros para governá-lo -, foi violento em sua denúncia de Pandulf, a ponto de provocar a renúncia dele.

Enquanto isso acontecia, Hubert recebeu a notícia do casamento de Isabella com Hugo de Lusignan, e se apressou a consultar o arcebispo.

- Mas isso é monstruoso! - bradou Estêvão Langton. - E só somos informados depois que o casamento se realizou.

- Parece incrível - replicou Hubert. - A rainha foi noiva dele há muitos anos... e parece que basta os dois se encontrarem para se tornarem amantes outra vez. Tenho informações sobre o comportamento de um com o outro, e tem sido assim desde que Hugo de Lusignan voltou da Terra Santa. Como se isso não bastasse, Lusignan está pedindo o dote dela.

- Ele será avisado de que não haverá dote. A princesa Joana foi mandada para lá, e ele se comprometera a se casar com ela. Isso é muito diferente.

- Foi o que achei. vou enviar mensageiros com instruções para que a princesa Joana volte imediatamente para a Inglaterra e informando que não haverá dote para a rainha.

Imediatamente, despacharam-se mensageiros para Lusignan.

Pouco depois, Hubert começou a imaginar se o casamento de Hugo e Isabella não seria, afinal, uma felicidade.

Alexandre II da Escócia - um rei jovem e guerreiro de cerca de vinte anos - aproveitara a oportunidade, logo depois da morte de João, para invadir a Inglaterra; mas com a derrota de Luís, fora feita a paz com a Escócia. Os termos do tratado estavam, agora, sendo examinados; o rei da Escócia estava ansioso por se casar com uma das princesas inglesas. Esperar pela jovem Isabella, que estava apenas com seis anos, não era tão conveniente, enquanto que Joana, que estava com dez anos, era muito mais adequada. Dentro de dois anos - talvez um - estaria em condições de se casar.

Hubert, com a concordância de Langton, decidiu pedir o retorno da princesa Joana sem demora, enquanto dava a entender aos recém-casados que não haveria dote algum.

Joana estava ansiosa por sair do castelo. Não havia ninguém a quem pudesse explicar sua melancolia. Ficara muito amedrontada quando recebera a notícia de que iria se casar, mas Hugo a desarmara e depois a cativara, fazendo com que se resignasse com o destino a ponto de passar a ansiar por ele.

E aquilo não iria acontecer. Ela foi deixada andando pelo castelo, sozinha. Era verdade que precisava ter suas aulas, e suas governantas a acompanhavam quando ela saía a cavalo. Mas sempre tentava despistá-las. Queria ir para longe, ficar sozinha, pensar no que lhe acontecera.

Supunha que passara a amar Hugo.

Ele era delicado sempre que os dois se encontravam; olhava para ela com um jeito que era um meio pedido de desculpas, se Isabella não estivesse ao lado dele; uma vez, Hugo tentara explicar que a maneira dele se portar não tinha absolutamente nada a ver com ela. Quando sua mãe estava com Hugo, ele pouco dava atenção a Joana... e o mesmo fazia sua mãe.

Joana achava que se tornara uma pessoa da qual era preciso tomar conta, mas que de algum modo não tinha direito de estar ali, e que estavam todos esperando por um momento adequado para mandá-la embora.

Hugo estava obcecado pela mãe dela. Seus olhos nunca se desviavam dela quando os dois estavam juntos; o timbre da voz se alterava quando Hugo se dirigia a ela; suas mãos a acariciavam quando falava com ela.

- A rainha enfeitiçou o meu senhor - Joana ouviu uma das criadas dizer.

Era verdade que parecia um homem enfeitiçado. Eu vim para cá para me casar com ele, pensou Joana, e agora minha mãe se casou com ele. O que vou fazer? Tentou perguntar à mãe.

- Oh, não me incomode, menina - foi a resposta. - Quando chegar a hora, se arranjará alguma coisa.

- vou voltar para a Inglaterra?

- Não sei. Dê graças a Deus por me ter aqui para tomar conta de você.

- Mas a senhora não toma conta de mim. E tudo mudou, agora que a senhora se tornou esposa de Hugo.

- Foi tudo muito natural - disse ela. - Lembre-se de que fomos noivos no passado. Ora, por que você não está na aula?

- Não está na hora, majestade.

- Então, deveria cavalgar com suas criadas... ou talvez devesse ter aulas de dança.

Ela se afastara. Estava claro que a mãe não queria ser incomodada por ela.

Joana sabia que a consciência de Hugo o preocupava. Talvez ele soubesse que a sua gentileza e sua ânsia por facilitar a vida para ela tinham conquistado o seu amor. Uma expressão de tristeza tomava conta dele quando a via, tentando sobrepujar a expressão feliz que se achava ali na presença de sua mãe. Isso não adiantava muito, porque Joana sabia que Hugo só pensava nela quando a via e então fazia o possível para esquecer que fora sua noiva.

- Você irá embora daqui um dia, Joana - disse-lhe Hugo, certa vez. - Seu irmão e seus conselheiros providenciarão isso. Irão encontrar um marido jovem para você. É melhor para você.

- Não! - bradara ela, zangada. - Não será melhor para mim. Por favor, não vamos fingir.

- Ah, mas será, sim - insistiu ele. - Você vai ver... daqui a alguns anos.

Joana sabia que era aquilo que Hugo queria. Ele precisava salvar sua consciência, e a melhor maneira de fazer isso era prometerlhe um belo marido jovem... o que faria com que tudo acabasse bem.

Mas não acabaria bem. Joana sabia disso. Pela vida toda, iria se lembrar de Hugo.

Isabella andava de um lado para o outro do quarto, os olhos brilhando de raiva. Estava esplêndida, é claro, e Hugo tentou acalmá-la.

- Então não vou ter um dote! E um tratamento desses partindo do meu próprio filho! Claro que ele não é responsável, eu sei. Ele está nas mãos de Hubert de Burgh e outros conselheiros. Ele jamais trataria a mãe dessa maneira. Sem dote! A senhora se casou sem o meu consentimento, diz ele. Seu consentimento! Um menino de quatorze anos, e eu tenho de pedir o seu consentimento.

- Ele é o rei - disse Hugo, delicado.

- Claro que é o rei, e bem poderia não ter sido se eu não tivesse tido a visão de seguir em frente com a coroação. Ele foi até coroado com a minha gargantilha. E me diz que desaprova o meu casamento e, portanto, não haverá dote.

- Temos de ir com cuidado, Isabella.

- Oh, Hugo, você é conciliatório demais. Deixa sempre que as pessoas tirem de você o que você quer... quando quiserem. Sem dote! Claro que vai haver um dote. E o que ele diz em seguida: a princesa Joana precisa voltar imediatamente para a Inglaterra. Está vendo, eles me dão ordens! Eu, a rainha, sou informada do que devo fazer por Hubert de Burgh, porque o bobo do meu filhinho é incapaz de dar ordens.

- Se eles não mandarem o dote, o que podemos fazer? Ela o olhou com ar desesperador.

- O que faremos? - imitou ela. - Para início de conversa, vou lhe dizer o que vamos fazer. "Mandem a princesa Joana", dizem eles. Muito bem, vou responder o seguinte: "Mandem o meu dote. E se um não for mandado, o outro também não o será."

- Não podemos manter Joana aqui se pedem o retorno dela.

- Joana é minha filha. Se eu decidir que vai ficar comigo, ela fica.

Havia, nos olhos de Isabella, um brilho que Hugo vira de vez em quando. Ela o deixava muito apreensivo, mas por ser um escravo dela, fazia todos os esforços para acalmá-la.

Então Joana, agora, era uma refém. Ela ficara sabendo - não pela mãe, nem por Hugo, mas ouvindo os mexericos das mulheres e as conversas dos criados.

O irmão queria que ela voltasse para a Inglaterra, mas sua mãe e seu padrasto não a deixariam ir enquanto não mandassem o dote solicitado pela mãe.

- Jamais mandarão o dote - era o que se comentava. Joana imaginava-se perambulando pelo castelo de Lusignan a

vida toda, com os ardentes amantes nunca muito longe dela; a mãe indiferente para com ela, o padrasto tentando ser, porque vê-la fazia com que se sentisse infeliz, enquanto ela sabia que continuando ali Hugo jamais se sentiria perfeitamente à vontade.

Ela fingia estar desatenta, mas mantinha os ouvidos abertos para os sussurros. Os dois nunca lhe diziam nada. Ela ficava magoada com isso. Era com a sua vida que estavam brincando, e no entanto se esperava que fosse mantida na ignorância.

Ela ouvira falar no rei da Escócia. Seu irmão estava fazendo um tratado com ele. Era difícil pensar em Henrique fazendo um tratado com alguém. Mas quatro anos já se haviam passado desde que ela saíra da Inglaterra, e na época Henrique tinha apenas dez anos

- a mesma idade com que ela estava agora. O irmão devia estar com quatorze. Não era muito velho para um rei; mas com essa idade uma princesa era considerada casadoura. Agora, Henrique era o rei e estava fazendo tratados.

Foi um choque descobrir que ela estava envolvida no tratado.

- Agora, a princesa Joana vai embora - ouviu um dos criados dizer. - Ela tem de ir, porque vai ser a esposa do rei escocês.

Hugo não a queria, de modo que ela deveria se casar com Alexandre.

- Não vou - disse para si mesma, entre soluços, quando estava na cama à noite. No entanto, será que queria ficar ali?

Sua mãe vociferava contra Henrique e seus conselheiros ingleses. Todos tinham de tomar muito cuidado com o modo de tratála... inclusive Hugo; porque todos deviam se lembrar de que ela não era apenas a condessa de Lusignan, mas uma rainha. Uma vez coroada, a rainha permanecia nessa posição até a morte, e Isabella fora coroada rainha da Inglaterra.

- Paguei um alto preço pela minha coroa - disse ela aos brados, certa vez, e Joana ouviu. - Todos aqueles anos com aquele louco. E ninguém vai se esquecer da minha posição.

Os dias se passavam, e Joana continuou levando a estranha vida nas sombras, sabendo que não a queriam ali e teriam ficado contentes ao vê-la ir embora, só que era a refém a ser trocada pelo dote que os conselheiros de seu irmão não queriam mandar.

Mas Estêvão Langton e Hubert de Burgh tinham o poder de Roma por trás deles, e um dia houve uma grande consternação no castelo, pois haviam chegado mensageiros do próprio papa levando cartas para o conde de Lusignan.

Um silêncio terrível caiu sobre o castelo, porque uma coisa que todos temiam era aquela sentença de Roma, e era com ela que Hugo estava sendo ameaçado. Se não devolvesse a princesa Joana ao rei da Inglaterra, ele seria excomungado.

Isabella soltou uma gargalhada quando soube, mas a reação foi muito insensata, porque até ela sentia medo do fogo do inferno. Claro que era jovem e, se tudo corresse como podia ser razoavelmente esperado, teria anos de vida saudável pela frente, possibilitando sua entrada para um convento nos últimos anos de vida, a fim de provocar o arrependimento necessário. Mas nada na vida era absolutamente certo, e se ela morresse enquanto sujeita ao interdito de excomunhão, podia esperar que fosse diretamente para o inferno.

Mas Isabella era impudente. Vociferou contra o filho, que chamara Roma para participar da disputa. Declarou que poria a língua de fora para Henrique e seus ministros, e para Roma também. Ficariam com Joana até que o dote fosse enviado. Não teria ela direito a dote?

Hugo argumentava com Isabella. Ela declarou que estava disposta a enfrentar a excomunhão. Ele explicou que não era assim tão simples, pois quando um homem era banido pela Igreja não se tratava apenas de que não poderia esperar a extrema-unção e os serviços de um padre e, assim, morreria levando consigo todos os seus pecados, mas na verdade aqueles que o servissem perderiam a confiança nele. Se fosse necessário Hugo entrar em combate, teria perdido a batalha antes de pegar em armas, porque todos acreditavam que nenhum homem poderia prosperar quando a boa vontade de Deus se voltava contra ele.

Isabella se lembrou de que João havia sofrido retrição semelhante e que até ele, sem religião e desafiador, acabara percebendo que devia fugir dela.

Os dois perderiam o dote, então; mas pelo menos iriam livrarse de Joana.

Isabella ouviu o que Hugo tinha a dizer. Depois, dirigiu-se ao quarto da filha, onde Joana parecia passar grande parte do tempo. Encontrou-a olhando indiferente pela janela.

Joana se levantou e fez uma mesura quando Isabella entrou.

- Sente-se - disse a rainha. Joana obedeceu, tensa e ansiosa.

- Você tem de se preparar para uma viagem a toda pressa. Vai sair daqui amanhã.

- Amanhã! - bradou Joana.

- Amanhã, sim. Vai para casa. Não me diga que isso não lhe agrada, porque tenho visto como anda desanimada por aqui e fica na esperança de ir embora. Seu irmão insiste para que você vá, e o mais rápido possível.

- Mas pensei que a senhora quisesse que eu ficasse.

- Já não quero mais.

- Então, recebeu o seu dote.

- Os bandidos ainda se recusam a dá-lo, mas você tem de ir. O papa entrou na luta, e se seu irmão estivesse aqui eu daria uns tabefes no ouvido dele pela sua desfaçatez. Pedir a ajuda de Roma... contra a mãe, aquele ingrato miserável!

- A senhora está falando do rei, majestade.

- Estou falando de uma criança. Muito bem, você precisa ir embora. Eles têm uma surpresa para você. Nada menos que um marido. Você sorri. Isso a diverte.

- Eu estava imaginando se ele não vai ser dado a uma outra antes que eu tenha tempo de reivindicá-lo.

- Pode ser. Estão falando em fazê-lo noivo de sua irmã.

- Isabella! Ela não passa de uma criança.

- Alexandre quer uma irmã do rei da Inglaterra. Eleanor já foi prometida ao Marechal... de modo que assim restam você e Isabella. É você que eles querem, porque haveria uma demora demasiado longa com Isabella.

Joana começou a rir com indícios de muita incerteza.

- É bom ver que você acha engraçado - disse a rainha.

- Não é engraçado, majestade, ser jogada de um lado para o outro como uma bola, pouco se importando com a sua tendência.

- Princesas não têm tendências. Elas obedecem o que lhes mandam fazer.

- Nem sempre. A senhora não fez.

- Eu estava noiva de Hugo e João me levou.

- A senhora queria ir, majestade, creio eu, caso contrário não teria ido.

Isabella teve um sorriso lento, como se estivesse se lembrando. Depois, olhou para a filha e disse:

- Não. Fui obrigada por seu pai. Meus pais nunca teriam ousado contrariá-lo.

- Mas a senhora, sim, majestade.

- Bem, ele me deu uma coroa, não deu? Eu não sabia, então, que ele era um louco... o louco mais cruel do mundo. E no fim ele morreu, e eu voltei para o Hugo. - Ela se tornou mais delicada de repente. - Seja inteligente, minha filha. Sim, seja inteligente, e um dia talvez consiga o que quer. - De repente, ela ficou animada. - Agora, prepare-se. Amanhã, você vai embora. Tem de ser assim, porque se não for, seremos excomungados, e isso é uma coisa de que seu padrasto tem horror. Isso nos traria um grande prejuízo. Por isso, você precisa ir.

- vou me preparar - disse Joana, impassível.

A fisionomia da rainha abrandou-se enquanto ela colocava as mãos nos ombros da filha.

- Não tenha medo. Aproveite a vida ao máximo. Seja inteligente e deverá conseguir uma parte do que deseja. Ouvi dizer que Alexandre da Escócia é um jovem distinto e bonito. - Deu um beijo rápido na filha. - Você deve descansar e estar pronta para partir ao amanhecer.

No dia seguinte a princesa Joana partiu para a Inglaterra.

O jovem rei Henrique começava a gostar de sua posição. A apreensão que sentira a princípio, quando soubera da morte do pai e percebera o que, como filho mais velho, aquilo significava para ele, desaparecera e a situação estava se mostrando muito mais agradável do que ele teria acreditado ser possível. Não podia deixar de sentir um certo orgulho diante do respeito demonstrado por ele por pessoas como o arcebispo de Canterbury e Hubert de Burgh. Era verdade que eles esperavam que ele fizesse o que queriam, mas possuindo uma inteligência acima do normal para sua idade, ele estava pronto a seguir a orientação deles até o momento em que pudesse agir com confiança sem eles. Henrique percebera imediatamente que o que precisava fazer era aprender depressa, pois quanto mais cedo tivesse competência para tomar suas próprias decisões, mais cedo se libertaria do jugo. Por enquanto, continuaria dócil, ouviria com avidez e concordaria com os conselhos deles.

Os dias eram interessantíssimos. Quando estava vivo, Guilherme Marechal insistira para que o jovem rei comparecesse às reuniões de seus ministros. "Vossa Majestade poderá não entender o discurso deles", dissera ele, "mas assimile o que puder, e com o tempo aprenderá como essas questões devem ser conduzidas."

Agora Guilherme Marechal estava morto, e seu conselheiro principal era Hubert de Burgh. Ele gostava de Hubert. Não era tão sério quanto fora o Marechal. Era caloroso, mais emocional, muito menos rigoroso do que Guilherme Marechal, que dera a impressão de ser um homem tão honrado que todos os pecadilhos das pessoas normais pareciam ser considerados por ele como pecados mortais.

Henrique tinha muito mais respeito por Estêvão Langton, o arcebispo de Canterbury - um homem cujas qualidades espirituais o destacavam dos demais. Era intelectual, um homem com um rigoroso senso do dever, o que fizera com que entrasse em conflito tanto com o rei João como com Roma. Como havia sido suspenso do cargo, passara muito tempo escrevendo sermões e comentários sobre a Bíblia; contava com muitos detratores, naturalmente, mas Hubert dissera a Henrique que ele era um homem forte e era bom ter um homem assim à frente da Igreja na Inglaterra.

Um bom homem, sem dúvida, pensou Henrique, mas incomodativo.

Ele voltara havia pouco tempo para a Inglaterra, a fim de assumir o cargo em Canterbury, e Hubert explicara a Henrique que isso trouxera pelo menos uma vantagem para a Inglaterra, pois Estêvão havia solicitado ao papa que o núncio Pandulf fosse exonerado e que enquanto ele vivesse nenhum núncio deveria residir na Inglaterra.

Para grande surpresa de Hubert, o papa Honório atendera àquele pedido.

- O que significa, majestade - explicara Hubert -, que enquanto Estêvão Langton viver e reinar como arcebispo de Canterbury, a Inglaterra estará livre de qualquer supervisor romano que o papa possa pensar em mandar.

Agora, haveria uma coroação. Hubert explicara a razão disso.

- É verdade que vossa majestade foi coroado logo depois da morte de seu pai. Aquilo era necessário. Mas vossa majestade deve lembrar-se de que realizaram uma cerimónia às pressas e não foi celebrada pelo arcebispo de Canterbury. Além do mais, sua coroa foi a gargantilha de sua mãe. Agora, sugerimos que seja coroado de maneira adequada. A coroação de um rei é importante. Só quando o povo o tiver visto ungido, com a coroa sendo colocada em sua cabeça e os barões e prelados tiverem jurado vassalagem a ele é que, aí sim, na verdade, ele será considerado seu soberano. Vossa majestade está, agora, com uma idade mais madura. - Hubert fizera um trejeito. Quatorze anos não era uma idade madura, mas já era um avanço sobre dez. - E, posso acrescentar, muito sensato para a sua idade. Por isso haverá outra coroação, e desta vez ela acontecerá quando o país está livre dos invasores estrangeiros.

Assim, num dia de maio do ano anterior de 1220, ele fora solenemente coroado em Westminster por Estêvão Langton. Acontecera num domingo de Pentecostes - uma cerimónia impressionante, quando todos os principais barões do país e todos os dignitários da Igreja haviam beijado sua mão e feito o juramento da coroação.

Ele gostara daquele dia, e quando finalmente se deitara na cama, fisicamente cansado mas mentalmente exaltado, olhara para o futuro com ansiedade; daquele dia em diante, começara a sentir que era um rei de verdade.

Parecia que aqueles que o cercavam acreditavam que a coroação havia provocado uma certa alteração mágica e que o rapaz que se levantara da cama na manhã daquele domingo de Pentecostes sofrera uma grande metamorfose espiritual e mental durante o dia. Falavam com ele com uma seriedade maior do que antes. Sem contar as aulas, que nunca lhe haviam causado grande dificuldade, ele precisava aprender o que acontecia no mundo.

Havia um espantalho que sempre surgia nas conversas com Hubert, com o arcebispo e outros ministros: os franceses.

- Não vamos imaginar - dissera Hubert - que, porque Luís percebeu que não podia manter o controle deste país depois que seu pai morreu e vossa majestade foi proclamado rei, isso significa que as ambições dele com relação à Inglaterra sofreram alguma diminuição. Precisamos ficar atentos a Luís, e em especial ao seu ardiloso pai. Nenhum país sofreu mais por causa de seu rei do que a Inglaterra por causa de João. Vossa majestade terá de enfrentar a realidade, pois sua tarefa é demasiado importante para ser ofuscada pelos sentimentos. João era seu pai, e eu agradeço a Deus todas as noites por não ver em vossa majestade sinal algum da natureza dele. Vossa majestade será como o seu avô, o rei Henrique II, um dos maiores reis que a Inglaterra já conheceu. Nosso país precisa de um governante assim, agora mais do que nunca.

Assim Henrique ficara sabendo sobre a vida de seu avô e de sua avó, Eleanor de Aquitânia.

- Não é com frequência que se vê pessoas iguais a eles - disse Hubert.

- Meu avô passou a maior parte da vida em guerra - disse Henrique. - Isso foi sensato?

- Seu avô só lutava quando não podia resolver seus casos com palavras. Foi um dos maiores soldados que já conhecemos. Tinha vastos territórios a proteger, e quando tudo estava bem na Inglaterra, havia problemas na Normandia. Agora suas possessões na França estão lamentavelmente reduzidas. Seu pai as perdeu.

- Nós vamos recuperá-las.

- Esperemos que sim.

- Então serei como meu avô . utando o tempo todo. Hubert sacudiu a cabeça.

- Vamos tentar fazer a paz no pais. Luís não é astuto como o pai dele, e Filipe... embora não esteja numa idade muito avançada, não se encontra com boa saúde. Se Filipe morresse e Luís fosse o rei, poderia haver uma chance de recuperar nossas possessões perdidas. Embora o rei da França tenha uma esposa muito decidida, que é descendente do Conquistador.

- Sim, eu sei. É a Blanche. Foi por causa dela que Luís reivindicou a Inglaterra.

- É verdade. Filipe nunca mais foi o mesmo depois que o papa o excomungou. É estranho, majestade, que um homem de grande argúcia como o rei da França esqueça o seu bom senso quando suas emoções são provocadas. Vossa majestade já ouviu falar, é claro, nos albigenses, a estranha seita da cidade de Albi, no sul da França, cujas doutrinas conflitam com Roma e com a qual Roma decidiu acabar.

Henrique confirmou com um gesto da cabeça.

- Em sua atitude para com eles, Filipe Augusto tem-se comportado com uma sabedoria que deve ser admirada, aplaudida e imitada por todo estadista. Ele nunca se submeteu a Roma, nunca foi subserviente, e no entanto conseguiu manter boas relações com o Vaticano sem perder uma parte infinitesimal de sua independência. Aos olhos de um estadista, foi um desempenho magistral, mas Filipe Augusto é um grande governante. Por isso é que o que aconteceu é tão impressionante. Chegará uma hora, meu rei, em que será necessário vossa majestade se casar. Por enquanto, ainda não, pois está muito moço. Mas quando essa hora chegar, teremos de escolher sua esposa com o maior cuidado. Um rei precisa se casar do modo mais interessante para o país - e nem sempre acontece que o seu dever e sua inclinação combinem.

- Sei muito bem disso, Hubert.

- Claro que sabe. Todos os príncipes reais sabem. Mas voltemos a Filipe Augusto. Ele foi casado com Isabel de Hainault, que lhe deu o filho Luís. Isabel morreu, e depois de três anos de viuvez Filipe Augusto decidiu que precisava se casar outra vez. A princesa escolhida foi Ingeburga da Dinamarca. Ele só a viu quando a cerimónia estava para ser celebrada, mas os ministros lhe haviam garantido que a aliança com a Dinamarca era necessária. A cerimónia foi realizada como as demais desse tipo, e o casal real foi deixado no leito de luxo. Ninguém sabe o que aconteceu durante aquela noite, ou o que Filipe descobriu a respeito da esposa, mas pela manhã ele estava branco e abalado, e declarou que não queria mais saber dela, que devia ser devolvida à Dinamarca, que o casamento devia ser dissolvido, e que ele arranjaria uma nova esposa... e que esta seria uma mulher que ele conhecesse e amasse antes da cerimónia se realizar.

- E sendo um rei, ele podia fazer isso?

- Não, majestade, não podia. Apesar de suas boas relações com o papa, ele não podia desafiar as leis da Igreja de forma tão espalhafatosa. Há uma lição a ser aprendida com isso. O papa tinha o poder de aplicar a sentença de interdito, e isso deve ser temido por todos... rei ou homem do povo. Se um rei é excomungado, todas as cerimónias religiosas e formas de práticas da Igreja são proibidas. No caso de um rei, ele e seu país ficam impedidos de receber todos os benefícios da Igreja. Vossa majestade pode imaginar o sentimento do povo quanto a isso.

Henrique concordou, sério, com um gesto da cabeça.

- E ele se livrou dela?

- Ele levantou a desculpa tradicional: consanguinidade. Seu sangue e o de sua rainha Ingeburga eram demasiado próximos, e é contra as leis da Igreja pessoas de laços

sanguíneos próximos se casarem, de modo que o casamento era irrito e nulo.

- E isso ficou provado?

- Filipe Augusto era um rei temido pelo povo. Se dissesse ao conselho que o casamento era irrito e nulo, seria preciso haver um homem valente entre eles para dizer o contrário.

- Então concordaram.

- Na França, mas é claro que havia Roma, e a própria Ingeburga apelara ao papa. Filipe tentou mandá-la de volta para a Dinamarca, que se recusou a recebê-la, e a pobre rainha foi retirada do palácio aos gritos de: "Oh, França malvada! França malvada! Ajude-me, Roma, contra a malvada França." O que mostrava, claro, que ela não ia ceder com facilidade. Enquanto se esperava pela decisão, ela foi levada de castelo em castelo, até que Filipe teve a ideia de que ela poderia ficar mais feliz em conventos, e ela foilhes enviada com a esperança de que pudesse passar a gostar daquela vida, caso em que estaria pronta a abrir mão de seus direitos como esposa do rei da França.

- E abriu?

Hubert abanou a cabeça.

- Nesse ínterim, o papa Celestino, que reinava na época, es tudou o parentesco de Filipe e Ingeburga e, em parte porque poderse-ia dizer que havia um elo muito próximo, mas mais porque ele não quisesse antagonizar o poderoso rei com quem Roma tinha mantido relações tão boas, decidiu anular o casamento, mas acrescentou uma injunção segundo a qual Filipe não devia tornar a se casar. Isso não agradou a Filipe, que imediatamente a ignorou e procurou uma esposa, acabando por escolher Agnes de Morávia, por quem se apaixonou.

- E o papa disse que ele não devia se casar de novo... mas ele se casou!

- Ah, é por isso que lhe digo, majestade. Reis e papas têm estado em conflito há séculos. É sempre bom viver em paz com Roma. Filipe compreendia isso, mas no que se referia ao seu casamento estava decidido a fazer o que quisesse, independente do custo.

- E isso foi insensato.

- Não há dúvida de que Filipe pensava poder aplacar Celestino, que estava ansioso por manter boas relações com a França, e poder chegar a algum tipo de acordo com ele. Mas isso é uma questão à qual os reis precisam ficar atentos. Os papas mudam, e aquilo que pode ser feito com um não pode ser feito com o outro. Inocêncio III havia tomado o lugar de Celestino, e Inocêncio escreveu imediatamente ao bispo de Paris, dizendo que embora Celestino não tivesse conseguido pôr um fim ao escândalo,

estava decidido a obter o cumprimento da lei de Deus.

- E com isso o rei teve de ceder.

- Filipe Augusto não era homem de ceder sem lutar. Não queria que seus súditos testemunhassem tamanha fraqueza. Além do mais, estava ficando cada vez mais enamorado de Agnes, e declarou que preferia perder metade de seus domínios a se separar dela. O papa então lhe disse que se não desistisse da pretendente, ele daria a temida sentença do Interdito, que deveria ser pronunciada em todo o reino da França.

- E então? - bradou Henrique, que, como um rei analisando outro, se viu no papel de Filipe Augusto e estava nitidamente esperando a vitória real.

- Filipe se manteve firme, embora o Interdito fosse pronunciado nas igrejas em toda a França. Filipe declarou que preferia tornar-se muçulmano a concordar com as ordens do papa. Acrescentou, ominosamente, que Saladino era um homem feliz e se saíra muito bem sem um papa. Expulsou, então, todos os prelados de suas sés, por terem concordado com o papa e proclamado o Interdito.

- Então o rei venceu - bradou Henrique, satisfeito.

- Não, majestade. O país mergulhou na depressão. Quando qualquer coisa dava errado... como estava sempre acontecendo... dizia-se que Deus havia virado o rosto para o rei da França por causa de seus insultos à Igreja. Durante quatro anos, Filipe resistiu e então percebeu o que se passava no país e que seus súditos acreditavam que ele estava arruinando a França. Se ele entrasse em combate, seus exércitos sabiam que seriam derrotados, por acreditar que a mão de Deus estava contra eles. Agnes, que realmente amava o rei, disse que iria para um convento e que Ingeburga devia voltar.

- Então o rei perdeu a batalha.

- Como devem perder todos os que se voltam contra Deus. Seu pai percebeu isso quando sofreu o Interdito. Por isso, faça o possível para continuar com as boas relações com Roma enquanto preserva sua independência, que é o que todos os reis devem aprender.

- Pobre Agnes - disse Henrique. - Então ela amava realmente o rei.

- O papa ficou impressionado com a virtude dela, e embora ela devesse deixar a corte, sua santidade declarou que os dois filhos que dera a Filipe deviam ser considerados legítimos. Assim, ela se retirou para um convento em Poissy e pouco depois morreu lá.

- E Ingeburga?

- O rei continuou a odiá-la e baniu-a para Etampes. E lá ela ficou onze anos. Mas enquanto ele não a queria na corte, o papa continuou a mostrar seu desagrado, e por fim Filipe decidiu que a paz com Roma era mais importante do que seus preconceitos, de modo que Ingeburga foi levada de volta à corte e recebeu todas as honras de uma rainha.

- Mas Filipe não a ama.

- Ele agora está mais velho, e sem dúvida acha que a paz com Roma é mais importante para ele do que a vingança contra uma esposa que o desagrada. Eu lhe conto isso, majestade, porque é preciso que fique sabendo dessas coisas. Precisa vigiar, acima de tudo, suas relações com Roma. Têm havido constantes conflitos entre os chefes de Estado e o chefe da Igreja. Vossa majestade sabe da história de seu avô e Thomas Becket, que acabou no assassinato de Thomas e com ele se tornando um mártir. Sabe que seu avô fez penitência por esse crime, embora não tivesse sido cometido por suas próprias mãos, mas pelos cavaleiros que, mal orientados, interpretaram mal suas palavras. Nunca se esqueça. Mantenha a paz com a Igreja. Temos sorte de termos Estêvão Langton. E uma outra razão pela qual vimos conversando tanto é que vossa majestade precisa sempre saber e compreender o que se passa na corte da França, pois desde que Guilherme, o Conquistador, veio para a Inglaterra e ocupou a terra, ele uniu essas duas comunidades; e desde que sua avó trouxe a Aquitânia para a coroa, a França tem sido importante para nós. Vamos falar com frequência sobre o que estiver acontecendo na França.

Henrique desejou que todas as aulas fossem tão interessantes quanto mostraram ser os casamentos e a excomunhão do rei da França.

Houvera uma grande consternação com a chegada da notícia do casamento da rainha Isabella com Hugo de Lusignan. Tanto o arcebispo como Hubert ficaram com raiva. O fato de o casamento entre Joana e Hugo ter sido rapidamente posto de lado poderia, naquelas circunstâncias, não ter sido um mal tão grande assim, porque agora que o país se estabilizara, ela poderia vir a ser um bom artigo de barganha, arranjando-se para ela um casamento melhor do que com um conde francês.

Quanto a Isabella, não era de grande interesse para eles; e no íntimo, estavam contentes por não contar com a presença dela.

- Uma criadora de caso, sem dúvida alguma - confidenciara Hubert ao arcebispo. - E se ela prefere voltar à sua terra natal, melhor. Mas a exigência de seu dote foi pura insolência, e algo que ela devia compreender logo que seria considerado assim na Inglaterra.

Henrique foi chamado e informado dos acontecimentos.

- Então minha mãe tem um novo marido. Desejo que seja feliz com ele. Receio que ela tenha sido pouco feliz com meu pai.

- É indecoroso - replicou o arcebispo - a rainha, ao levar a filha para o marido escolhido para ela, casar-se ela mesma com o pretendente da filha.

- Penso que muitas vezes minha mãe e meu pai agiram de maneira indecorosa - observou Henrique, sério -, e por isso não devemos nos surpreender se ela continuar a fazer isso.

- Quando o seu comportamento indecoroso tem relação com este país - disse o arcebispo -, devemos expressar não apenas surpresa, mas nossas objeções.

Fazer com que ele se sentisse uma criança era característico do arcebispo, pensou Henrique. Hubert teria dito aquilo de outra maneira.

- Vamos enviar imediatamente um pedido de retorno da princesa - disse Estêvão Langton - e talvez vossa majestade deva informar a sua mãe que ela não receberá, em absoluto, um dote de vossa majestade.

Henrique ficou triste. Ele gostaria de desejar felicidades à mãe, e teria de bom grado enviado um dote se lhe tivessem permitido fazê-lo.

Suspirou. Era, é claro, muito criança e não era um rei de verdade, já que sempre tinha de fazer o que mandavam. Mas um dia seria diferente.

O arcebispo explicou-lhe que o país estava se normalizando e, graças à Igreja e à boa vontade do papa Honório (um outro papa desde que Celestino e Inocêncio tinham representado seus papéis no drama do rei da França e seus casamentos), os altos cargos na Inglaterra estavam, agora, sendo tirados dos estrangeiros aos quais João os havia concedido e sendo devolvidos a ingleses. Todos os castelos que anteriormente haviam pertencido ao rei e lhe tinham sido tirados por barões rebeldes estavam agora sendo devolvidos à coroa.

- É necessário - disse o arcebispo - que vossa majestade visite esses castelos por todo o reino e tome posse deles. Será uma boa oportunidade para conhecer seus súditos e receber o juramento de vassalagem daqueles que não estiveram presentes à época da coroação. Hubert de Burgh discutirá isso com vossa majestade e lhe dirá o que se espera que vossa majestade faça. Vossa majestade deve ser firme, resoluto, e nunca se esquecer de sua dignidade real. Não se esqueça de que está prejudicado por sua pouca idade. - O arcebispo estava severo, como se aquilo fosse devido a falta de zelo por parte de Henrique. - Mas isso é um defeito que pode ser remediado. Mas se lembre de que não deve mostrar inconstância. Os barões precisam sentir que, apesar de jovem, pretende governar.

- Farei o possível - respondeu Henrique.

- Hubert de Burgh vai conversar com vossa majestade sobre a viagem; e seria bom que ela não demorasse muito a se realizar.

Assim, depois da coroação, Henrique partiu em sua viagem ao norte.

As cerimónias foram realizadas - cada qual muito parecida com a outra. O jovem rei, com Hubert de Burgh ao lado, cavalgou de castelo em castelo, aceitando as chaves e os juramentos de vassalagem.

- Quando chegarmos a York - disse-lhe Hubert -, será realizada a reunião mais importante de todas.

Henrique sabia que ele se referia ao encontro com Alexandre da Escócia. Hubert havia explicado: "É muito importante acabarmos com essas guerras perpétuas com a Escócia, e tenho a esperança de que possamos fazer algum tipo de paz."

Henrique estava gostando da viagem. Nunca se sentira tão rei, e supunha que fosse devido ao fato de estar crescendo. Quanto mais velho ficasse, maiores as homenagens que poderia esperar; e estava esperando o dia em que não precisasse aceitar ordens dos homens que o cercavam. Seria interessante, também, conhecer outro rei jovem, embora tivesse descoberto que Alexandre era velho segundo os seus padrões, estando com 22 anos de idade e já vir reinando havia vários anos.

O encontro iria ter lugar em York, cidade de que qualquer rei podia se orgulhar com justiça. Henrique foi recebido no Micklegate pelo arcebispo de York e pelos principais dignitários da cidade, e passando sob o arco romano que sustentava as torrinhas, foi escoltado para o interior do castelo que se dizia ter sido construído pelo seu famoso antepassado, Guilherme, o Conquistador.

A reunião dos dois reis aconteceu no grande salão do castelo em que Henrique se sentia um tanto perdido devido à sua pouca idade; Alexandre parecia muito maduro, já sendo rei da Escócia havia sete anos; era arguto, dissera Hubert, e como todos os bons governantes, estava sempre alerta a fim de conseguir uma vantagem para o seu país. De pequena estatura, com cabelos avermelhados e olhos claros, tinha um aspecto de homem astuto, o que indicava uma certa manha.

Henrique sabia que quando a Inglaterra estivera figurativamente de joelhos por causa do péssimo governo de seu pai e os franceses tinham invadido o solo inglês, Alexandre se aproveitara da situação atacando no norte e, devido às circunstâncias, conseguindo algum sucesso.

- Para ele foi uma boa oportunidade - assinalara Hubert -, e uma oportunidade que um governante astuto como ele devia aproveitar.

No entanto, após a derrota e expulsão dos franceses, Alexandre fora obrigado a recuar para o outro lado da fronteira; e era na esperança de fazer uma paz permanente que aquela reunião estava sendo realizada.

Hubert, com outros barões importantes, sentava-se com o rei escocês e alguns dos partidários deste. Henrique lá estava numa cadeira especial, mas fora levado a compreender que, apesar de ser o chefe nominal, na verdade não passava de um simples observador.

- É importante - havia-lhe dito Hubert - que vossa majestade aprenda como essas conferências são realizadas. Preste atenção na discussão, observe as defesas e os ataques, e veja como os dois lados fazem malabarismos para obter vantagem.

Por isso, Henrique prestava atenção, pensando no longo tempo que ainda faltava para completar 22 anos e expressar seus pontos de vista a homens como Hubert de Burgh e ser ouvido com respeito.

Hubert salientou que uma trégua seria vantajosa para os dois lados, pois os ingleses estavam ansiosos por preservar a ordem que começavam a experimentar depois da indisciplina legal do reinado de João. Alexandre admitiu que seria ótimo ter paz na fronteira, para que pudesse desviar suas energias para resolver querelas entre seus próprios chefes. Mas esperava receber concessões.

Hubert concordou, sério, com um gesto de cabeça, e disse que os ingleses estariam dispostos a examiná-las, ao que Alexandre replicou que precisava de uma esposa e ficaria feliz com uma das princesas inglesas.

-" A princesa Eleanor está noiva de Guilherme Marechal disse Hubert. - com isso, restam Joana e Isabella, esta última com apenas sete anos.

- Eu soube que Joana estava noiva de Hugo de Lusignan e que ele se casou com a mãe dela - disse Alexandre. - Portanto, já que agora ela está livre, eu aceito Joana.

- O rei lhe dirá que teria um grande prazer com o casamento de sua irmã Joana com vossa majestade.

Hubert estava olhando para Henrique, que se apressou a dizer:

- Sim, sim. Seria um prazer, para mim, ver o senhor e minha irmã casados.

- Creio que sua irmã se encontra, neste momento, em Lusignan - disse Alexandre, olhando de frente para Henrique, que respondeu:

- É verdade, mas ela vai voltar.

- É que existe algum problema com relação a essa volta prosseguiu o esperto rei da Escócia.

Henrique olhou para Hubert, que respondeu:

- Majestade, o rei já ordenou o retorno de sua irmã e o papa ameaçou Hugo de Lusignan com o Interdito se ela não for mandada de volta de imediato. Acho que pode

estar certo de que dentro em pouco ela será sua esposa.

O rei da Escócia pareceu ligeiramente cético.

- Estou decidido a ficar com uma das princesas - disse ele.

- Não quero uma simples criança como Isabella, mas juro que me casarei com ela se a outra não for devolvida em breve. vou me casar... até mesmo com Isabella.

- Haverá um casamento - replicou Hubert -, com Joana ou Isabella. Assinaremos um compromisso nesse sentido, majestade.

- Eu tenho duas irmãs, Margaret e Isabella, e quero maridos para elas - prosseguiu Alexandre.

Henrique sabia que Hubert estava um pouco perturbado porque o rei João havia prometido ao pai deles, Guilherme, o Leão, que as duas meninas ficariam com os filhos dele: Henrique, que era ele, e Ricardo. Mas Henrique sabia que os barões não iriam considerar um casamento com a Escócia à altura dele, agora que ele era o rei. Sua esposa teria de lhe dar um pouco mais do que paz com a Escócia.

- Vamos encontrar barões ricos e poderosos para suas irmãs, majestade - disse Hubert.

Por um instante Alexandre hesitou e então, evidentemente muito satisfeito por ter uma irmã do rei como esposa, decidiu aceitar dois nobres para suas irmãs.

E assim a conferência acabou num tom feliz, e para Henrique ficou claro que ambos os lados estavam contentes.

Mais tarde houve uma festa no salão. Henrique sentou-se ao lado do rei e os dois conversaram de maneira agradável e amistosa. Ele percebeu que Hubert dedicava muita atenção às duas princesas escocesas, e a Margaret em particular.

Tinha sido uma longa e perigosa viagem através da França, e o mar estivera tão agitado que Joana não ligara muito se ia chegar ou não do outro lado do canal. Mas finalmente estava em casa, e ficava sempre pensando em como ficara apreensiva ao partir dali com a mãe e se lembrava das histórias que Isabella lhe contara sobre sua infância em Angoulême. Ela devia ter sabido que sua mãe amava Hugo; devia ter sabido, também, que bastaria ele olhar para ela para ficar tão apaixonado como estivera quando os dois eram jovens.

Mas tudo isso acabara. De nada adiantaria lamentar o passado. Ela estava com uma nova vida pela frente, e como não conseguira se tornar esposa de Hugo, tinham outro noivo para ela.

Um ressentimento faiscou dentro dela. Não consultavam seus desejos com relação a quaisquer daqueles assuntos que afetavam o seu futuro. As princesas precisavam ficar sabendo que suas vidas eram governadas por terceiros e que elas se casavam com homens não porque eles dariam bons maridos ou porque as princesas os amassem... não, era só porque era bom para o país fazer uma aliança com outro. Mulheres como sua mãe, no entanto, conseguiam fazer as coisas a seu modo; e às vezes Joana ficava imaginando se a mãe tivesse gostado de Hugo teria se deixado levar por João.

Ela não era igual à mãe; portanto, tinha de aceitar o que lhe fosse preparado.

Chegou ao palácio de Westminster e teve o prazer de ser recebida pelo irmão. Ele aumentara em tamanho e em dignidade desde a última vez em que o vira. Estava quase um homem, com quatorze anos de idade; e não havia dúvida de que estava cônscio de sua condição de rei.

Ele lhe deu uma recepção calorosa e disse o quanto lamentava o que ela havia sofrido. Não mencionou a mãe deles enquanto não ficaram sozinhos, e então quis saber como estava ela.

Joana lhe disse que Isabella estava bem e feliz com o casamento. Hugo de Lusignan a mimava, e as pessoas diziam que ele era escravo dela. Joana não acrescentou que ouvira sussurros de que a dedicação de Hugo por Isabella seria a sua desgraça, porque ele parecia não ter vontade própria, apenas a dela.

Henrique disse à irmã que havia visto Ricardo na sua coroação, que o irmão deles estava bem satisfeito com a vida em Corfe e que tão logo atingisse uma idade em que pudesse deixar os tutores, iria levá-lo para a corte.

- O nosso problema - disse Joana - é que somos todos muito jovens.

Henrique admitiu que era uma pena não terem nascido alguns anos mais cedo.

- Ou que nosso pai tivesse vivido mais.

Henrique sacudiu a cabeça. Em sua sabedoria recém-adquirida, sabia que se aquilo tivesse acontecido não teria havido herança para ele.

Joana pôde ver as irmãs, e ficou impressionada com o quanto haviam crescido. Quanto a elas, não a reconheceram; quatro anos era muito tempo no pouco de vida que haviam tido.

Quatro anos, pensou Joana. Quando ela partira, era uma criança, e na verdade conhecer Hugo e aprender a amá-lo lhe dera uma maturidade acima do normal para a sua idade.

Ela precisava crescer; precisava aprender a isolar o passado e enfrentar o futuro, pois iria se casar tão logo as providências pudessem ser tomadas, e em vez de morar, como acreditara que moraria, no quente e luxuriante sul da França, iria para o gelado norte da Inglaterra, a fim de se casar com um homem que nunca vira. Henrique havia dito:

- Ele será melhor para você do que Hugo de Lusignan. Não é um velho. Está com 22 anos, de modo que será mais adequado.

Ela se afastara. Como poderia explicar a Henrique que passara a aceitar Hugo como o homem mais adequado do mundo?

A cavalgada estava a caminho de York, e ao lado do jovem rei seguia a irmã. Por fora, parecia serena, e ficou surpresa por poder parecer tão indiferente assim quanto ao seu destino. Desde que perdera Hugo, parecia não se importar com o que seria dela. Henrique estava contente com ela.

- Tive medo de que você fosse chorar, irmã, porque é jovem para se casar. Mas ficará mais perto de casa do que teria ficado se tivesse se casado na França. Poderemos nos encontrar de vez em quando. Eu lhe prometo que você se juntará a nós quando viajarmos pelo norte. Será fácil você atravessar a fronteira. E seu marido ficará satisfeito com você, pois é muito bonita. Eu lhe digo uma coisa: você tem um certo ar de nossa mãe, e já ouvi dizer que não havia uma mulher nas cortes da França ou da Inglaterra que se comparasse a ela.

- Também já ouvi dizer isso - replicou Joana.

- E você terá a satisfação de saber que seu casamento trouxe a paz à Inglaterra e à Escócia. Não há nada que leve a paz aos países como um casamento entre as famílias governantes.

- Eu poderia acreditar que sim.

- É verdade, Joana; e como deveríamos nos sentir felizes por estar em nossas mãos levar a paz a tanta gente.

- Espero que se sinta contente quando chegar a sua vez, irmão - retorquiu ela. - Mas com você vai ser diferente. Você é o rei, e não duvido que poderá opinar mais sobre com quem vai se casar do que uma simples princesa.

- É o que pretendo - disse Henrique, com um sorriso de complacência.

Joana olhou para os pinheiros no horizonte e pensou em cavalgar na floresta de Lusignan com Hugo, antes de saber que ele estava apaixonado por sua mãe.

Acabaram chegando a York, onde as pessoas saíam correndo de suas casas para poder dar uma olhadela na noiva. Ela agradecia calada e com graça; ouviu uma senhora de idade avançada murmurar: "Pobre criancinha. Está jovem demais para o casamento."

Dessa vez não haveria cancelamento. Ela desconfiava de que aquele casamento seria realizado.

Ficou de pé na catedral, que se dizia ser a mais bonita da Inglaterra, só vagamente ciente da grandiosidade dos maciços botaréus decorados com arabescos ornamentais, seus elegantes nichos e seus pilares agrupados, e ao seu lado estava o estranho - aquela raposa ruiva, como Joana o ouvira sendo chamado - jovem, ansioso por agradá-la, sem ser indelicado; seu marido, e ela devia estar contente com aquele casamento, já que por causa dele seria levada a paz aos países fronteiriços da Inglaterra e da Escócia.

A cerimónia terminou. Joana era rainha - rainha da Escócia. Alexandre tomou-lhe a mão e conduziu-a da abadia para o castelo, e os sinos soaram em toques longos e altos na cidade de York, pois aquele era um dia de júbilo.

Os dois se sentaram lado a lado no banquete, e ele escolheu os melhores pedaços de carne e a serviu. A mão dele fechou-se sobre a de Joana e ele disse:

- Não precisa ter medo de mim, minha pequena esposa.

Joana olhou para ele atentamente e tentou ler no seu rosto o tipo de homem que ele era, e por ele ter-lhe dado um sorriso tranquilizador, seu medo foi embora.

Enquanto as celebrações da união entre a Inglaterra e a Escócia e da paz que aquilo traria aconteciam, realizava-se outro casamento em York. Hubert de Burgh se casou com a irmã de Alexandre, Margaret.

Alexandre estava nitidamente encantado com o fato de a irmã se casar com o homem mais importante da Inglaterra; quanto a Henrique, gostava tanto de seu juiz, a quem também considerava seu melhor amigo, que ficara contentíssimo ao dar o consentimento.

Hubert não era exatamente um homem moço, mas sua calorosa e sincera maneira de ser sempre lhe granjeara adeptos entre os jovens. Era astuto e ambicioso, mas havia aquele toque de emocionalismo em sua natureza que lhe trazia amizades, como acontecera no caso do jovem príncipe Artur e, agora, Henrique.

Alexandre tinha outros motivos para ficar satisfeito, pois a irmã mais moça, Isabella, iria se casar com Roger, filho de Hugo Bigod, conde de Norfolk; e isso significava que as irmãs teriam como maridos dois dos nobres mais

influentes da Inglaterra. Era verdade que João prometera as duas meninas a Henrique, o rei, e seu irmão Ricardo, mas ainda faltavam muitos anos para que os casamentos com eles pudessem ser celebrados, e casamentos tão demorados significavam, muitas vezes, que não seriam realizados.

Por isso, Alexandre estava encantado. Tinha a princesa Joana para ele e suas duas irmãs iriam representar sua causa na Inglaterra e criar os filhos para que tivessem sentimentos muito especiais pela Escócia.

Agora, ele podia retirar-se para trás da fronteira e lidar com os chefes briguemos que viviam prontos para se revoltar e perseguilo sempre que ele se via em dificuldades.

Joana e Alexandre seguiram para o norte, enquanto Hubert, com a nova esposa e seu rei, foram para o sul.

Hubert podia ser perdoado por uma certa complacência. Houvera aqueles que previram uma desgraça quando Guilherme Marechal morrera, mas isso não acontecera. Ele podia dizer que a Inglaterra fora governada com o máximo de habilidade nos últimos dois anos; e à medida que o rei deixava a infância para trás, desde que estivesse pronto a dar atenção aos conselhos, o país iria ficando mais forte, e à medida que o país ficasse mais forte, seu juiz seria cada vez mais apreciado e ficaria cada vez mais poderoso.

Agora cavalgando ao lado do rei, com a jovem esposa do outro lado, ele podia demonstrar uma certa exuberância, embora fosse demasiado experiente para não saber que um homem na sua posição devia estar sempre vigilante.

Ele talvez fosse o homem mais rico do reino. Margaret levara um bom dote, e era claro que ele agora teria uma influência especial junto à Escócia. Lembrava-se de que certa vez Guilherme Marechal dissera que quando um homem estivesse no ápice do poder era o momento em que precisava ficar mais vigilante.

Henrique sorria, feliz.

- Acho que Alexandre vai ser bom para minha irmã, e que ela será boa para ele.

- Tenho certeza disso, majestade - replicou Hubert. - Ele não ousaria ser outra coisa que não bom para a irmã do rei da Inglaterra.

- Meu irmão não é homem de ser influenciado pelo medo - disse Margaret, séria. - Ele será bom para a esposa dele porque é seu dever e sua inclinação amar e venerá-la.

- Isso mesmo, meu amor - bradou Hubert. - Não é, majestade?

- Realmente - respondeu Henrique. - Fico satisfeito por termos levado a harmonia aos dois reinos. Isso vai mostrar às pessoas como pretendo governar.

Ele está crescendo, mesmo, pensou Hubert. Assume o crédito por esses casamentos como se tivessem sido imaginados por ele. Bem, os reis são assim mesmo, e será bom quando ele puder ser visto como o governante - desde que se lembre de seguir o conselho daqueles que o servem bem.

Assim, foi um grupo feliz que entrou em Westminster; até mesmo o astuto e experiente Hubert se esquecera de que o sucesso que o destino lhe concedera com tanta abundância - invariavelmente provoca a inveja dos menos dotados.

 

QUASE QUE DE IMEDIATO começaram rumores sobre o juiz em toda a corte. Seus inimigos perguntavam uns aos outros: quem é este homem? É ele o rei? Ele é o homem que decide quem vai casar com quem e providencia para que seus bolsos não fiquem vazios enquanto mexe nos principais cordões do rei. Não estará na hora de se fazer com que o juiz perceba que não é o rei da Inglaterra?

João plantara muitas e muitas sementes de discórdia quando a fim de atender a suas necessidades do momento - dera terra e castelos a estrangeiros em troca de dinheiro ou de certas concessões, e isso significava que, apesar dos esforços de Guilherme Marechal e Hubert para eliminar a influência estrangeira, restava um certo elemento.

Esse grupo era liderado pelo conde de Chester, aquele tal de Randulph de Blundervill, que se casara com Constance, viúva de Geofredo (irmão do rei João) e, portanto, se tornara padrasto do príncipe Artur, que fora assassinado pelo tio João. Chester tivera a esperança, certa vez, de colocar Artur no trono quando ele, Chester, teria passado a governar por intermédio do menino. Constance, porém, o odiara e fugira dele levando Artur e, declarando que o casamento deles jamais se consumara e portanto não era casamento coisa nenhuma, casara-se com Guy de Thouars. Constance não vivera muito mais depois disso, e quando João assassinara Artur, isso colocara um fim nas esperanças de Chester de governar por intermédio do garoto, de modo que ele voltara sua atenção para outros planos ambiciosos. Agora que o poder de Hubert de Burgh aumentava cada vez mais, Chester estava decidido a tirar o objeto de sua inimizade de seu alto posto; por isso, reuniu à sua volta aqueles que estavam tão descontentes quanto ele.

O principal dentre eles talvez fosse Falkes de Breauté, um aventureiro rebelde capaz de qualquer ato violento para conseguir seus objetivos. Era um normando de origem obscura e ilegítimo, que chamara a atenção do rei João e, por ter uma natureza semelhante à dele - irreligioso, inescrupuloso, pronto a cometer qualquer ato cruel e, de fato, gostar disso -, o rei o achara divertido, um bom servidor, e como gozasse de sua companhia, estava pronto a recompensá-lo. Assim o normando, que era pouco mais do que um camponês, passara de um salto a ser uma figura proeminente.

Quando os barões se haviam revoltado contra o rei, Falkes ficara do lado de João, e como general no exército do rei conseguira algum sucesso. Como recompensa, João prometera encontrar uma esposa rica para ele e decretara que ele deveria se casar com Margaret, a viúva de Baldwin, conde de Albemarle. Margaret ficara horrorizada por lhe darem aquele homem rude, simplesmente para que a sua fortuna passasse para as mãos dele, mas o rei dissera que o casamento tinha de se realizar, e Margaret, conhecendo o tipo de homem com quem teria de lidar, submetera-se, embora com o máximo de relutância. Além de ser viúva de um homem rico, Margaret era herdeira, pelo seu lado da família, sendo filha única de pais ricos, Falkes estava indo bem, pois João lhe havia concedido não apenas Margaret, mas a custódia dos castelos de Windsor, Cambridge, Oxford, Northampton e Bedford.

com Chester, ele capturara a cidade de Worcester para o rei, mas o tratamento que dera aos prisioneiros pouco serviu para ajudar a causa do rei, porque Falkes tinha um prazer especial na tortura e considerava uma grande diversão capturar os ricos e torturá-los com todo tipo de métodos que era um de seus prazeres inventar, até terem dado tudo o que possuíssem para serem salvos de maiores tormentos.

Ele tinha um ódio especial pelas ordens religiosas - ou talvez ambicionasse demais os tesouros delas; mas parecia que se chegasse a uma abadia ou a um convento tinha de profaná-lo. Partilhando de desejos semelhantes, o rei não fizera esforço algum para impedilo, e na verdade gostava de ouvir relatos das aventuras de Falkes entremos padres.

Mas até mesmo ele podia ficar alarmado pelo que fizera, e era frequente contar-se a história dos temores que sentira depois de ter saqueado a abadia de St. Alban. Ele saqueara a cidade, mutilara e torturara os habitantes, mas a abadia era o verdadeiro objetivo. Invadindo o edifício sagrado, derrubando peças raras enquanto avançava, ele exigira que o abade fosse levado à sua presença.

O abade fora, perguntando em altos brados se Falkes de Breauté sabia que estava na casa de Deus. A resposta de Falkes fora soltar uma gargalhada e dizer ao abade que queria cinquenta quilos de prata, e se não lhe fossem entregues logo, ele se serviria dos tesouros da abadia e atearia fogo nela.

Conhecendo bem o homem com quem tinha de lidar e que ele era capaz de um ato de sacrilégio daqueles, o abade lhe dera a prata.

Falkes se retirara, lançando olhares dissimulados pelo ambiente, observando os tesouros para sua atenção futura. Naquela noite, acordara de um terrível pesadelo. Sentara-se na cama gritando que estava morrendo.

Margaret, que deve ter-se sentido aliviada com a ideia de ter o monstro tirado de sua vida, dissera:

- Você teve um sonho... um pesadelo. Mas os pesadelos podem ter um significado. Qual foi o sonho?

Não era sempre que de Breauté se permitia uma conversa civilizada, mas tremendo na cama, com um medo terrível, ele não era o mesmo homem arruaceiro que andava pelas cidades com arrogância, aterrorizando todos os que se aproximavam dele.

- Eu sonhei - dissera ele - que estava parado embaixo da torre principal da abadia, na igreja de St. Alban, quando ela desabou em cima de mim, e onde eu estava não ficou nada, a não ser poeira... não sobrou nada de mim.

- Um sonho cheio de presságio - replicara Margaret. - Você profanou a santa abadia. Isso significa que desagradou a Deus.

De Breauté teria rido de desprezo dela em qualquer outra hora, mas daquela vez estava realmente abalado.

- Você precisa voltar à abadia - aconselhara ela - e pedir perdão ao abade e aos monges.

- Você quer dizer me penitenciar...

- O pai do rei se penitenciou pelo assassinato de Thomas Becket.

- E você me pede que faça o mesmo?

- Não lhe peço coisa alguma - replicara ela. - A experiência me ensinou que isso seria inútil. Eu simplesmente aconselho. Você profanou um lugar sagrado... muitos lugares sagrados... mas St. Alban deve ter um favor especial no céu. Você foi avisado pelo céu. O significado de seu sonho está claro. A menos que faça uma restituição, terá um destino horrível.

Ela ficara obviamente satisfeita ao ver o marido tão amedrontado a ponto de tremer de medo diante da perspectiva de um destino que ele administrara com tanto prazer aos outros. Mas ela o aterrorizara tanto, enquanto fingia temer por ele, contando-lhe histórias que ouvira sobre o fim horrível que tinham aqueles que ignoravam os avisos do céu, que decidira ir a toda pressa a St. Alban, insistindo para que os cavaleiros que tivessem participado do ataque-relâmpago à abadia o acompanhassem. Lá, mandara chamar o abade, que, imaginando que nova violência estaria prestes a ocorrer, atendeu, temeroso, mas quando vira o temível Falkes de Breauté desnudando as costas e declarando que tinha ido penitenciar-se - como o rei Henrique II fizera com relação a Becket -, chamara seus monges, e não é difícil imaginar com que prazer atacaram as costas daqueles homens que havia tão pouco tempo os haviam ameaçado.

Quando o castigo terminara, Falkes de Breauté colocara seu gibão e gritara que só tinha feito aquilo porque sua mulher pedira, e se os monges achavam que o que ele tirara deles seria devolvido, estavam muito enganados.

No entanto, ele deixara a abadia e não praticara mais nenhum outro sacrilégio. Voltara suas atenções para os franceses, que àquela época mantinham posições firmes na Inglaterra. A morte de João, a ascensão do jovem Henrique e a derrota dos franceses não tinham agradado de todo de Breauté, porque significaram a ascensão ao poder de Hubert de Burgh, que exigira a devolução à coroa de muitos dos castelos que João dera a homens como de Breauté. Ele ficara perturbado, como acontecera com o conde de Chester e o bispo de Winchester, com o crescente poder de Hubert. O rei menor de idade era uma oportunidade caída dos céus para homens ambiciosos, e todos aqueles homens eram ambiciosos, de modo que a visão de Hubert assumindo a posição mais poderosa do reino os incomodava, e eles decidiram que alguma coisa precisava ser feita para cerceá-la.

Os três homens se encontraram em Winchester: Peter dês Roches o bispo de Winchester, Randulph de Blundervill, conde de Chester, e Falkes de Breauté; e o tema da discussão foi Hubert de Burgh e a maneira de conter o seu crescente poder.

- Ele acha que agora não haverá nada que possa detê-lo observou Peter dês Roches. - A cada dia que passa, ele cai mais nas graças do rei.

- O rei é uma criança - resmungou Chester. - É uma questão de em que mãos ele cai. O senhor, bispo, é que deveria ser o governador e controlador dele.

- De Burgh sempre trabalhou contra mim - murmurou o bispo.

- Não se pode deixar que isso continue - replicou Chester.

- Talvez pudéssemos fazer do rei nosso prisioneiro - sugeriu Falkes. - Poderíamos pegá-lo quando estivesse cavalgando... cercá-lo com os nossos homens... e então... ele ficaria à nossa disposição para receber ordens.

O bispo abanou a cabeça.

- Se isso fosse possível, não duvido de que seria uma excelente maneira de resolver a situação, mas pegar o rei à força seria considerado traição... rebelião... ou coisa parecida. O povo não admitiria. Iria querer as nossas cabeças em postes sobre a ponte. Precisamos trabalhar de uma forma mais disfarçada.

Falkes de Breauté pareceu desapontado. Era fascinado pela violência e já se via enfiando a espada nos corpos dos guardas enquanto dizia ao jovem rei que tudo correria bem se ele se entregasse sem reagir.

Parece - prosseguiu o bispo - que de Burgh é o homem mais rico do reino. Ele se saiu bem com os casamentos.

- Uma coisa eu digo em favor dele - acrescentou de Breauté com um trejeito. - As mulheres gostam dele.

- Ele tem modos insinuantes - murmurou o bispo -, e conquistou o coração do rei.

- E o coração de suas esposas! - acrescentou Chester. - A princesa escocesa é a quarta... a única virgem que ele conquistou. As demais eram viúvas.

- Ele tem preferência pelas viúvas - disse de Breauté.

- Uma preferência inteligente - acrescentou Chester -, porque muitas vezes uma viúva tem a fortuna do marido e aquela que pode lhe chegar às mãos através da própria família.

- Foi o que aconteceu - disse o bispo. - A filha do conde de Devon, e viúva de Guilherme Brewer, lhe trouxe riqueza; depois veio Beatrice, viúva de Lorde Bardulf, e depois ele teve a temeridade de se casar com a esposa desprezada de João, Hadwisa de Gloucester, que na época era viúva do conde de Essex.

- João tirou boa parte da fortuna dela, mas ainda lhe restava muito para ajudar a encher os cofres do astuto Hubert - comentou Chester.

- Fico imaginando o que ela achou de Hubert depois de João - perguntou de Breauté, com um sorriso irónico.

- Por todos os ângulos, achou a troca agradável - disse o bispo. - Mas morreu como o fazem todas as viúvas dele, e o que quero salientar é que não houve um só casamento que não lhe trouxesse benefícios. Agora ele fez o melhor de todos os casamentos é irmão do rei da Escócia, por ser marido da irmã dele.

- Pode-se julgar um homem pelos seus casamentos - disse Chester. - Os de de Burgh têm mostrado que ele é um homem inteligente que gosta de riqueza.

- Seria bom se o povo percebesse isso - disse o bispo. - Neste momento, o povo está satisfeito com o seu jovem rei e com o governo do juiz. Ele dominou os assaltantes, e se seus castigos são severos, ele diria... e muitos concordariam com ele... que esta é a única maneira de manter a lei eficiente. Mas não será difícil levantar o povo contra ele. O povo poderá dizer que ele serviu ao país, mas deve ser esclarecido a ele que ao fazer isso Hubert se tornou muito rico. Todos vocês sabem que a melhor maneira de levantar a turba contra qualquer homem é dizer a ela que ele tem muito mais do que ela. As pessoas aceitam a devassidão, a crueldade de um homem... seus atos de oportunismo... mas provoque a inveja delas e estarão prontas a derrubá-lo. O povo quer justiça no país; quer lei e ordem; quer livrar o país daqueles que chamam de estrangeiros, e eu acho, cavalheiros, que todos nós devemos nos encaixar nessa categoria. O povo odeia isso tudo, mas a inveja será maior do que o seu amor pelo país. Por isso, vamos provocar o povo contra de Burgh. Vamos dizer-lhes que ele é o homem mais rico da Inglaterra. Ele acaba de obter mais vantagem ao se casar com a princesa da Escócia. Provoque a inveja do povo, e ele acabará por derrubá-lo.

Os três se entreolharam e assentiram com um gesto da cabeça.

Sabiam que havia verdade nas palavras do bispo.

Nas tabernas de Londres, as pessoas trocavam sussurros; caminhavam pela margem do rio e conversavam sobre a influência que o juiz exercia sobre o jovem rei. O juiz era o homem mais rico da Inglaterra. Governava o rei e enchia os bolsos. Os criados de Falkes de Breauté e do conde de Chester se misturavam aos mercadores e aprendizes e perguntavam a eles e uns aos outros por que o povo suportava aquela situação.

Eles salientavam que era sempre a mesma coisa quando havia um jovem rei no trono. Homens ambiciosos procuravam governar através deles; e a regra deles era encher os próprios cofres e mandar o homem e a mulher das ruas para o diabo que os levasse.

Assim, cresceu o ressentimento contra Hubert de Burgh, e quando ele saía com o rei havia hostilidade no silêncio que os recebia; houve uma ocasião em que alguém atirou uma pedra no juiz. Um dos criados de Hubert pegou o homem e o castigo que ele levou foi severo - a perda da mão direita que atirara a pedra.

Uma amarga recompensa, disseram muitos, por aquilo que outros teriam vontade de fazer se tivessem estado no local.

Um dos principais cidadãos, Constantine FitzAthulf, convocou reuniões em sua casa, e lá, junto com outros homens, tramou a derrubada do rei e planejou enviar uma mensagem ao príncipe Luís, na corte francesa, pedindo-lhe que voltasse para a Inglaterra, onde encontraria o povo de Londres pronto para lhe dar as boas-vindas.

Em consequência disso, houve arruaças nas ruas de Londres, e Constantine marchou à frente de um bando de homens gritando "Montjoie. Deus e nosso senhor Luís venham nos salvar."

Mas a maioria, embora quisesse derrubar o juiz, não desejava trazer os franceses de volta à Inglaterra. Não fora essa a intenção de Falkes de Breauté e seus amigos. Tudo o que queriam era manter o rei no seu lugar, mas mudar seus conselheiros, a fim de que pudessem ocupar o lugar de Hubert de Burgh e, ao fazê-lo, tirar-lhe o poder e a riqueza. Por esse motivo, foi pequeno o apoio aos agitadores de Londres, e em pouco tempo eles foram desbaratados, e Constantine FitzAthulf e os líderes foram capturados e metidos na prisão.

Hubert ficou bastante perturbado. Precisava se livrar de Constantine, e achava que deveria ter condenado à morte os traidores, pois se algum dia um homem traíra o seu rei, esse homem era Constantine. Mas Hubert fez uma pausa, pois sabia o quanto seria imprudente irritar o povo de Londres ainda mais do que já estava naquele momento.

Manteve os homens na prisão enquanto enfrentava o problema; e no fim foi Falkes - justamente o homem que provocara a rebelião - que procurou Hubert e se ofereceu para enforcar Constantine, garantindo a todos os que quisessem ouvi-lo que a última coisa que ele queria era depor o rei. Levou Constantine e seus amigos para o outro lado do rio e, num lugar tranquilo, enforcou-os.

Isso não significou que Falkes e seus amigos haviam encerrado seus ataques ao juiz. Não tinham intenção de fazê-lo enquanto não tivessem livrado o país dele.

Tornaram a se reunir, e Falkes apresentou um plano para tomar a Torre de Londres. O bispo de Winchester salientou as dificuldades de se fazer aquilo; e sugeriu que seria melhor se formassem uma delegação e fossem procurar o rei quando o juiz estivesse ausente e fazer notar a verdadeira natureza de Hubert de Burgh e a necessidade de o rei livrar-se dele.

O bispo achou o plano excelente. Iriam a Westminster, e Henrique os receberia lá. Ele estaria despreparado para o que iriam dizerlhe e não tinham dúvida de que, já que o rei era pouco mais do que uma criança, poderiam fazer com que aceitasse o seu ponto de vista e obter dele uma promessa de exonerar Hubert de Burgh do cargo.

Escolheram o momento, e a presença do bispo garantiu-lhes uma audiência imediata com o rei.

Foi a primeira vez que Henrique recebeu uma delegação sem ter Guilherme Marechal, Estêvão Langton ou Hubert de Burgh a seu lado para lhe dizer o que fazer.

Foi o bispo de Winchester quem se dirigiu a ele e apresentoulhe Falkes de Breauté e o conde de Chester.

- Seus humildes servos, meu bondoso senhor – murmurou o bispo.

Henrique IIIclinou a cabeça e pediu-lhes que se levantassem, pois estavam ajoelhados à sua frente, o que, embora o agradasse, fazia com que se sentisse um pouco constrangido. Disse-lhes que deviam se sentar. Eram tão mais altos do que ele quando ficavam de pé que ele achava embaraçoso.

- Os senhores não vão poder ver o juiz - disse Henrique. Ele não está em Londres hoje.

- Foi nossa intenção não nos encontrarmos com ele, majestade - respondeu o bispo. - Era com o nosso rei que queríamos falar.

- Pois falem - disse Henrique, começando a se sentir mais importante a cada segundo, sendo essa exatamente a intenção deles.

- Há muito tempo que para nós é evidente - disse o bispo

- que vossa majestade, o nosso rei, foi dotado de um bom senso acima do normal para a sua idade, e achamos que chegou a hora de vossa majestade assumir um papel mais ativo nos negócios de Estado. Não precisa estar sempre aos cuidados de sua ama-de-leite.

- Minha... ama-de-leite... O senhor se refere a Hubert...

- Somos de opinião de que o juiz ainda acredita que vossa majestade está de cueiros. Ele orienta seus cambaleantes passos de bebé, não é, majestade?

Henrique ficou ruborizado.

- Os senhores estão enganados - disse, irritado.

- Não pense que achamos que precise desse tipo de apoio, majestade. Foi por isso que viemos aqui.

- Devem dizer o que pretendem - disse Henrique, com dignidade.

- Vossa majestade sabe que temos problemas em Londres.

- Sei que traidores foram enforcados por se declararem partidários dos franceses.

- É do juiz que o povo não gosta - disse o conde de Chester.

- É o ódio que o povo tem dele que o faz revoltar-se.

- Acho que não - retorquiu Henrique. - Eles estavam gritando em favor dos franceses.

- Têm havido muitos comentários velados contra Hubert de Burgh - tentou explicar o bispo. - Se ele fosse exonerado, vossa majestade veria o país num estado de espírito muito diferente.

- Exonerar Hubert? Ele é um amigo muito bom que tenho.

- Ele é muito bom amigo dele mesmo, majestade. Sabe o quanto ele ficou rico?

- Sei perfeitamente que ele tem sido recompensado, e com justiça. Eu mesmo lhe dei alguns castelos.

- E ele tem se saído muito bem com suas esposas - acrescentou de Breauté com ironia.

Henrique deu a entender, de certo modo digno de um rei, que a rispidez daquele homem o ofendia; e o bispo fez um sinal para de Breauté a fim de que deixasse que ele falasse.

- Majestade - disse dês Roches, insinuante -, foi por respeito a vossa majestade e à coroa que viemos procurá-lo dessa maneira. Temos visto, com admiração, como vossa majestade adquiriu estatura desde que a coroa foi colocada em sua cabeça. Vossa majestade não precisa de um conselheiro assim. Está em perfeitas condições para dirigir seus negócios.

- Os senhores devem saber que não sou obrigado a obedecer ao juiz - retorquiu Henrique. - Uso meu próprio critério... com frequência.

- O que é justamente a razão pela qual vossa majestade pode dispensar esse homem.

- Dispensá-lo! Está falando em mandá-lo embora, ou gostaria que eu lhe tirasse suas propriedades? Mandá-lo para a torre, talvez? Castigá-lo de alguma maneira... arrancar-lhe os olhos... cortar-lhe um membro ou dois. - Henrique estava olhando de frente para de Breauté. - Creio que você, Falkes de Breauté, emprega muitas vezes esses métodos. vou lhes dizer uma coisa, meus senhores, podem se retirar. Não gosto de suas palavras. Não gosto de seus modos nem dos senhores.

Eles ficaram surpresos. Esperaram enfrentar um garoto de quatorze anos e haviam encontrado um rei, e além do mais um rei que era leal aos amigos e não queria saber da traição deles.

A reação do rei obrigou os conspiradores a abandonarem a esperança de uma vitória rápida. Peter dês Roches estava começando a achar que era hora de arquivarem seus planos por enquanto, mas raciocinara sem a participação de Falkes de Breauté, que já convocara descontentes a Northampton, com planos de marchar sobre Londres.

Henrique chamara logo Hubert, que expôs o assunto a Estêvão Langton e, em consequência, os arcebispos e os bispos – com a exceção de Peter dês Roches - ficaram firmes ao lado do rei e ameaçaram os rebeldes com a excomunhão.

Até mesmo Falkes teve de perceber que sua pequena tropa de descontentes não teria chance alguma contra o exército do rei e que se aqueles que se rebelaram fossem

excomungados, jamais poderiam reunir os homens necessários para trabalhar junto a eles.

Foi a derrota. E também não iriam se sair daquela sem punição. Os líderes foram convocados a Westminster, onde os arcebispos e bispos os convidaram a expor suas reclamações perante o rei.

Eles se reuniram no grande salão do palácio, o rei com uma dignidade muito maior do que aquela que exibira no encontro com os três rebeldes. Hubert dissera-lhe que ele se conduzira como um rei e que ele, Hubert, teria dito a mesma coisa, ainda que não tivesse sido tão completamente leal a si mesmo.

Henrique estava sentado na cadeira real, e Hubert se achava à sua direita. Estêvão Langton, do outro lado do rei, convidou o bispo de Winchester a apresentar sua queixa.

Peter dês Roches, dirigindo-se à assembleia, declarou não ser traidor, como também não o eram os que o apoiavam. Haviam lamentado a revolta dos cidadãos de Londres, que tinham estado prontos a convidar os franceses a entrarem no país. Um dos membros de seu grupo, Falkes de Breauté, chegara mesmo a executar o enforcamento de Constantine FitzAthulf. A queixa deles era a seguinte: nunca se deixava o rei agir, a menos que houvesse sempre um homem ao seu lado. Não era Henrique III que reinava, e sim Hubert de Burgh. Tudo o que ele e seus seguidores queriam era ver aquele homem exonerado e que o rei nomeasse um novo ministro em lugar de de Burgh.

- Já lhe falei sobre isso antes, senhor bispo - retrucou o rei.

- Não gosto do seu tom de voz. Estou, no momento, muito bem servido, e tem sido assim desde que assumi a coroa.

- Senhor meu rei, Hubert de Burgh ficou rico. A política dele é despejar ouro em seus cofres, não se importando se ao fazer isso a coroa venha a ser prejudicada.

Hubert se levantou e pediu ao rei permissão para falar.

- Fale, por favor - disse Henrique. - Una sua voz à minha, e faremos com que estes traidores saibam que pensamos da mesma maneira.

- Eu lhe agradeço, majestade - disse Hubert. - O senhor, bispo, está no centro dessa confusão. Foi o senhor quem insuflou esses homens, pois quer a minha posição para o senhor mesmo. compreendo bem isso, mas o nosso rei não é um fantoche para ser sacudido de um lado para outro. Ele escolherá seus ministros onde quiser, e duvido muito que se eu fosse dispensado de seus serviços - que Deus me livre -, o senhor viesse a ser escolhido para tomar o meu lugar.

Peter dês Roches ficou branco de raiva. Gritou:

- Eu lhe digo uma coisa, Hubert de Burgh: vou gastar cada centavo que possuo para provar que você não é digno do cargo e conseguir a sua exoneração.

Então, voltou-se e saiu do salão esbravejando. Fez-se silêncio. Então, Henrique disse:

- Estamos vendo que homem maldoso temos no bispo de Winchester. Saibam os senhores que não vou mais tolerar esses súditos rebeldes.

- Majestade, se me disser o que deseja com relação a eles, cumprirei sua vontade - disse Hubert.

- Isso eu vou decidir logo - retrucou o rei.

- Enquanto isso, majestade, vamos providenciar para que não tenham oportunidade de fugir - disse Hubert.

Estêvão Langton disse que as dissensões eram prejudiciais ao país, e que acreditava que os agitadores deveriam ser colocados num lugar em que não pudessem criar mais confusão alguma.

A assembleia pareceu estar de acordo, e todos, exceto os rebeldes, ficaram encantados com a mostra de força por parte do rei.

O resultado foi que pouco depois se realizou um inquérito judicial em Dunstable, e os castelos dos homens acusados de traição foram confiscados. De Breauté não quis desistir facilmente e se fortificou no castelo de Bedford, e quando os oficiais de justiça seguiam para tratar com ele, souberam que ele estava à espera deles com homens, a fim de capturá-los, e lembrando-se da reputação dele de torturar suas vítimas, decidiram fugir. Houve um que não conseguiu fugir, Henrique de Brayboc, que era auxiliar do xerife de Rutlandshire, Buckinghamshire e Northamptonshire, e a princípio apoiara João contra os barões, mas depois entendera o ponto de vista dos barões e mudara de lado. Quando Luís fora derrotado, jurara lealdade a Henrique - como tantos haviam feito - e, em consequência, suas terras foram devolvidas.

Brayboc foi agarrado pelos homens de de Breauté e arrastado para o castelo, onde foi tratado com brutalidade. Ficou horrorizado, pois conhecia a reputação de de Breauté, mas felizmente para ele um de seus criados pôde levar a notícia de sua captura a sua mulher, e ela não perdeu tempo e enviou uma mensagem ao rei, que no momento estava com o parlamento em Northampton. Ela assinalava que o marido, em seu papel de oficial de justiça, fora preso por um rebelde quando a serviço do rei.

Henrique percebia, agora, que precisava agir com firmeza e o quanto era prudente não deixar que ninguém dissesse que ele tinha medo de seus súditos.

Deu a entender que marcharia até Bedford e lá ele mesmo prenderia de Breauté.

Falkes de Breauté não era homem de se desesperar em circunstâncias como aquela. Na verdade, gostava delas. Seus colegas haviam-se dispersado, e ele ficou para lutar sozinho. Muito bem, declarou, o castelo poderia resistir ao exército do rei. Se o negócio era lutar, que houvesse o combate; e assim começou o cerco.

O cerco continuou durante os meses de junho e julho, e entrou em agosto. Falkes foi excomungado; e quando sua mulher declarou que fora forçada a se casar com ele e implorou ao rei que lhe concedesse o divórcio e a livrasse do monstro que ela abominava, o divórcio foi concedido; mas Falkes continuou a resistir ao exército do rei. Randulf de Blundevill, conde de Chester, começara a deplorar os métodos de Falkes. Falkes era muito primário; devia ter percebido que estava derrotado temporariamente e ter-se retirado como fizera Chester, para lutar em outra ocasião. Aqueles atrevidos gestos desafiadores não lhe trariam bons resultados, e ele não devia ter sido tolo a ponto de imaginar o contrário.

Chester se uniu ao rei, e Falkes percebeu que seria o único a arcar com a responsabilidade dos rebeldes, pois Peter dês Roches ficara muito calado e também se contentava em aguardar uma oportunidade posterior para derrubar Hubert de Burgh do cargo.

O castelo não poderia resistir indefinidamente, e num calorento dia de agosto Falkes foi obrigado a se render. Oitenta membros da guarnição foram enforcados, mas Falkes ficou detido para ser submetido a julgamento.

Ele pediu uma audiência com o rei, que Hubert concedeu. Então, Falkes se lançou aos pés de Henrique.

- Eu agi mal - disse ele. - Mas vossa majestade é um rei justo, e deve se lembrar de que houve época em que lutei lado a lado com seu pai. Eu o servi bem, e por ser um rei sensato, vossa majestade irá se lembrar de que as boas ações de um indivíduo devem ser levadas em consideração quando ele está sendo julgado pelas más.

Aquilo agradou a Henrique, que enviou Falkes ao bispo de Londres, onde ele deveria ficar até que se decidisse o que fazer com ele.

Falkes ficou preso durante algum tempo, até que ficou decidido que devia ser exilado. Então, foi mandado para a França.

- Esperemos - disse Hubert - que isso represente o fim desse agitador.

Depois, Hubert disse ao rei que este se mostrara apto a governar sem um regente; e com a permissão de Henrique ele iria escrever ao papa e pedir-lhe a bênção, o apoio e a permissão para que dali em diante o rei fosse o governante de seu país.

O rei saboreava o seu triunfo - pois todos concordavam que ele mostrara ter os requisitos de um governante forte, pela maneira pela qual lidara com o rebelde Falkes de Breauté e seus amigos - quando Hubert de Burgh o procurou com uma notícia que considerava da máxima importância para a Inglaterra e para o rei.

- Chegaram mensageiros da França, majestade - anunciou ele. - O rei da França morreu.

- Então, agora Luís é o rei. - A fisionomia de Henrique ficou séria. Jamais esqueceria que por um curto período Luís estivera na Inglaterra e prestes a ser proclamado governante de seu país. Se João não tivesse morrido em ocasião tão oportuna, quem poderia dizer o que teria acontecido? Henrique prosseguiu: - Talvez agora ele tenha o suficiente para ocupá-lo na França e não olhe mais para a Inglaterra... pois creio que nunca deixou de fazer isso desde que o pusemos para fora daqui.

- Sempre houve conflito entre a França e a Inglaterra, majestade. É quase impossível que a morte de Filipe mude isso.

- Estou ciente de que meus ancestrais tiveram pouca paz, e também poucas oportunidades de governar aqui, porque sempre havia problemas na Normandia. Isso quase foi a ruína de meu pai.

- Seu pai provocou a própria ruína - disse Hubert, sério. Vossa majestade, disso eu não duvido, irá recuperar grande parte do que ele perdeu, e não apenas suas possessões além-mar, mas a dignidade da coroa, através da honra e da justiça.

- Rogo a Deus que assim seja.

- Isso é bom, majestade. Examinemos, agora, esse assunto ultramarino e vejamos o que ele pode significar para a Inglaterra.

- Só vejo coisas boas nisso. Não tenho Luís em boa conta.

- Luís é um homem honrado... bom marido e bom pai. Homens assim nem sempre dão os melhores reis.

- Ele desistiu depressa de seu domínio da Inglaterra e escapuliu de volta para casa.

- Luís sabia que o país estava contra ele, e fez o que era prudente, embora não o que era ousado.

- Eu acho, Hubert, que ele vai querer ficar nos limites de seu reino.

Hubert estava pensativo.

- Eu não estava pensando tanto no rei quanto na rainha. Acredito que Blanche, agora rainha da França, é que teremos pela frente.

- Uma mulher!

- Vossa majestade é suficientemente inteligente para saber que não se deve fazer pouco caso delas. Existem algumas... e muitas, graças-a Deus... que se contentam em atender as necessidades do marido, fazer belos bordados e decorar a casa deles com a sua presença. Mas algumas não têm se contentado em ficar assim. Creio que uma delas é a rainha da França.

- Ela é minha parenta. Foi por causa dela que Luís reivindicou o trono.

- Ela é sua prima em primeiro grau, sendo filha de sua tia Eleanor, que se casou com Alfonso de Castela; os avós dela eram, portanto, seus avós. É difícil imaginar uma neta de Henrique II e Eleanor de Aquitânia sem fibra.

- Então você acha que precisamos vigiar Blanche, embora ela esteja casada com um marido fraco.

- Estou certo de que sabe, majestade, que é um erro confundir um comportamento tranquilo com falta de energia. Luís não é um guerreiro. Não quer lutar quando não for necessário, e isso pode ser chamado de sabedoria.

Henrique sorriu para consigo mesmo. Percebia como agora Hubert sempre prefaciava suas homilias com "Estou certo de que sabe". Antes da defesa que fizera dele ao ser enfrentado pelos barões rebeldes e pelo bispo de Winchester, ele as fazia sob a forma de lições.

- Então acha que devemos vigiar Blanche? - indagou Henrique.

- Vossa majestade deve concordar que os ingleses devem sempre vigiar os franceses, e o que está acontecendo na França será sempre da máxima importância para nós aqui. Nunca devemos nos esquecer disso. Assim, agora Filipe Augusto está morto e Luís e Blanche estão no trono. Vamos pensar no que isso significará para nós.

- O que significará, Hubert?

- Precisamos esperar para ver como as coisas acontecem.

- E nesse interregno - acrescentou Henrique -, lembrarmonos de que eles são inimigos, pois é o que devem ser. Luís e Blanche... e especialmente Blanche.

 

FRANÇA / 1200 -1223

ERA o PRIMEIRO dia do novo século; o rei João já estava no trono da Inglaterra havia um ano, e Filipe Augusto reinava na França. Os afazeres daqueles reis pareciam pouco interessar às três meninas que conversavam na corte do pai em Castela, onde o sol brilhava durante todos os longos dias de verão, e a maior agitação era a chegada de um trovador que as encantasse com novas canções que em pouco tempo todos estariam cantando.

O pai delas, o rei Alfonso VIII, e a mãe Eleanor, filha de Henrique II da Inglaterra, formavam um casal que combinava bem. Adoravam o sol e a música, e gostavam de sua corte, que sob a influência deles estava se tornando uma das mais cultas da Europa. Gostavam da companhia das filhas, Berengária, Urraca e Blanca, e se interessavam muito pela educação das três. As meninas eram bonitas e inteligentes; e também graciosas, elegantes, e como a música era da maior importância na corte de Castela, eram todas bem versadas naquela arte.

Ao contrário do costume na época, Alfonso e Eleanor passavam todo o tempo possível com as filhas; e gostavam de passar os dias se divertindo e cantando, dançando e contando histórias.

Eleanor tinha muita coisa a contar, e estava decidida a que suas filhas não deveriam ser criadas da mesma maneira que ela. A vida na ala infantil de Westminster, Winchester e Windsor fora muito tensa, e não tinha sido diferente na Normandia ou em Poitiers. Onde quer que ela estivera, sua vida tinha sido ofuscada pelo conflito entre seus pais, e ela aprendera logo que aquilo se devia às infidelidades do pai e à natureza enérgica da mãe, que não a deixava aceitálas com serenidade. Quando o pai levara seu bastardo para a ala infantil, isso significara realmente o fim da harmonia entre ele e a mãe.

Eleanor se lembrava dos dois gritando um com o outro e a culminância das brigas, quando a mãe provocara os filhos contra o rei, pai deles, e em consequência ficara presa por muitos anos.

Ela estava disposta a fazer com que as filhas conhecessem um lar feliz e que a corte de Castela ficasse bem longe - e não apenas em quilómetros - daquelas em que ela passara a infância.

As meninas sempre queriam ouvir histórias de sua infância, e ela achara isso bom, para que pudessem apreciar a felicidade de Castela e seus bondosos pais.

Alfonso sentia orgulho delas, eram poucas as coisas de que gostasse mais do que de estar com as filhas. Seu olhar afetuoso as seguia, admirando-as, adorando-as, e ele sorria com afeição para a mulher e dizia que Deus fora bom para eles.

Dificilmente seria possível que um paraíso daqueles não tivesse a sua serpente. Quando era muito criança, Blanca pensava que essa serpente fossem os sarracenos, porque se falava muito sobre eles, e o nome era dito com respeito e medo. O pai tinha de estar sempre saindo para lutar contra os sarracenos - e, infelizmente, nem sempre se saía bem. Nessas ocasiões, havia tristeza no palácio, e as irmãs falavam sobre os perversos sarracenos e ficavam imaginando se algum dia eles não iriam invadir o palácio e levá-las para serem escravas.

Nada disso aconteceu, e quando estava com nove anos, Blanca percebeu que podia haver uma ameaça tão grande para os dias pacíficos quanto a da chegada dos sarracenos.

Ela estava com nove anos quando, um dia, enquanto as meninas estavam na aula, chegou uma mensagem para Berengária, a mais velha, mandando que ela fosse falar com os pais, que tinham uma coisa importante para lhe dizer.

Urraca e Blanca ficaram um pouco desconcertadas, pois em geral as meninas compartilhavam tudo. Elas sabiam que haviam chegado visitantes ao castelo e que os pais lhes deram uma recepção muito calorosa, e Blanca disse logo que a convocação de Berengária devia estar ligada, de alguma maneira, aos visitantes.

Não podiam imaginar o que fosse, mas não ficaram em dúvida por muito tempo.

Berengária entrou na sala de aula. o rosto pálido, como se alguma coisa desnorteante tivesse acontecido e ela não pudesse compreender-lhe o significado.

As irmãs quiseram saber imediatamente com quem ela falara e o que havia visto, e por que elas não tinham sido convidadas.

Berengária se sentou e deixou escapar o segredo:

- Estive falando com os emissários.

- Que emissários?

- Do rei de Léon.

- Mas por que você fala com eles, e nós não?

- Porque sou a mais velha.

- Mas por quê... por quê? - perguntou Blanca que, embora mais nova do que Urraca, em geral tomava a frente.

- Aconteceu uma coisa terrível. Eu... vou me casar com Alforiso de Léon.

- Casar! - bradou Blanca. - Você. Como é possível? Ainda não tem idade para isso.

- Eles acham que tenho. - Berengária se atirou para as irmãs, abraçando-as com força. - Oh, vou ter de ir embora daqui... imediatamente. Nunca mais vou tornar a ver vocês.

- Léon não fica assim tão longe daqui - disse Blanca.

- Nós todos iremos visitá-la, e você deve vir nos visitar - disse Urraca, em tom consolador.

- Vocês não vão estar aqui. Isso vai acontecer com vocês. As duas terão de se casar, também.

Urraca e Blanca se entreolharam, consternadas. Claro que aconteceria. Acontecia com todas. Seus longos dias despreocupados acabariam, e a infância encantada deixaria de existir.

- Pelo menos seu marido tem o mesmo nome de nosso pai

- disse Blanca, em tom consolador -, de modo que não pode ser tão mau assim.

- Como serão os nomes dos nossos maridos? - perguntou Urraca.

Ao que Berengária bradou:

- Vocês são tão crianças... crianças demais para compreender. O que importam os nomes? Eu vou embora... agora mesmo... Nunca mais vai ser a mesma coisa.

E não foi, mesmo, pois elas já entendiam. Tal como Adão e Eva, já haviam comido da árvore da sabedoria, e agora sabiam que a vida podia mudar.

Berengária acabou partindo e se casou com o rei de Léon. Os pais tranquilizaram-na e disseram-lhe que tudo correria bem. Ela ia ser uma rainha, e isso era muito agradável. Iria ajudar a governar com o seu Alfonso. Devia pensar como isso seria emocionante. E poderia haver ocasiões em que o rei e a rainha de Léon visitassem o rei e a rainha de Castela.

Mas não foi fácil acalmar Berengária. Ela estava indo para uma terra estranha e deixando o lar feliz de sua infância.

Suas palavras de despedida foram ominosas.

- A vez de vocês chegará.

Elas sentiram falta de Berengária, mas depois de um certo tempo se acostumaram a ficar sem ela, e durante três anos nada se falou sobre casamento, mas era inevitável que mais cedo ou mais tarde ele viesse.

Dessa vez, as duas foram chamadas pelos pais. Eleanor parecia um pouco triste, e ao atraí-las para ela e abraçá-las com força, elas tiveram um presságio, porque o que acontecera com Berengária as deixara prevenidas.

Cada qual tinha um medo - Urraca, por achar que o próximo marido fora arranjado para ela, e Blanca por acreditar que seria ela a ficar sozinha. As duas haviam sentido saudades da irmã mais velha, mas pelo menos tinham ficado duas... e agora ela ficaria sozinha.

- É uma notícia realmente muito boa - disse Eleanor. - Para você, não poderia haver um casamento de nível maior.

Ela estava olhando para Urraca, que começou a tremer.

- Não tenha medo, filha - prosseguiu Eleanor. - Seu pai e eu lhe garantimos que se isso não fosse o melhor para você, jamais teríamos examinado a proposta. Mas teríamos sido realmente tolos se recusássemos uma honra dessas. Poucas princesas poderiam receber honra maior. Urraca, minha queridíssima, o rei da França enviou mensageiros a seu pai. Ele a quer como esposa do filho dele, Luís. Vamos dizer a ele que estamos cônscios desta grande honra, e que quando o acordo for feito não precisará haver demora para que nossas famílias se unam.

Urraca parecia que ia se derramar em lágrimas, e a mãe seguroulhe as mãos e bradou:

- Ora, minha filha, você devia estar muito contente. Já percebeu o que isso significa? Berengária é a rainha de Léon, e isso é muito bom, mas você será a rainha da França. Eu não poderia lhe desejar coisa melhor.

- Mas terei de ir embora e deixar vocês todos...

Minha adorada Urraca, este é o destino de todas as princesas. Você foi feliz. Aprendeu a fazer um lar feliz para a família que vai ter. Eu sei, minha querida filha, que você vai ser muito feliz.

- Não vou, não vou - soluçou Urraca. - Quero ficar com a senhora, com papai e Blanca.

- Não quero que ela vá - bradou Blanca. - vou ficar sozinha.

- Não vai ser por muito tempo, querida. Logo se arranjará um marido para você, e se ele for tão adequado quanto os de suas irmãs, seu pai e eu ficaremos orgulhosos e felizes. Agora, escute. Sua avó está tão feliz com o casamento que virá até aqui. Ela levará você, Urraca, à corte da França e ficará com você até que esteja casada... tamanha é a ansiedade dela por esse casamento e a importância que sua avó dá a ele.

- Minha avó! - exclamou Urraca ainda mais consternada. Já era ruim ter de enfrentar um marido, mas na companhia daquela temível senhora seria um sacrifício ainda maior.

A temível Eleanor de Aquitânia - embora estivesse com oitenta anos - fez a longa viagem a partir de Fontevrault, onde esperara passar seus últimos dias em paz e, segundo os sussurros, em penitência por uma vida nada imaculada.

Eram grandes os preparativos no castelo de Castela, porque Eleanor de Castela mantinha pela mãe o medo respeitoso de sempre; e Urraca e Blanca queriam ouvir tudo que a mãe lhes tinha a dizer sobre a avó.

Já sabiam que ela havia ido à Terra Santa com o primeiro marido - um outro Luís, que tinha sido rei da França -, e que quase morrera em meio às batalhas entre cristãos e sarracenos. Ela se divorciara de Luís e se casara com Henrique, rei da Inglaterra, e então vivera uma vida de aventuras com ele, que havia culminado em ter sido presa por ele.

A mãe das meninas avisou-as.

- Vocês devem ter o máximo de cuidado com a maneira de tratá-la. Se a ofenderem, ela dirá. O génio dela muitas vezes era um pouco incerto e agora ela está sofrendo uma grande tragédia. Seu tio Ricardo morreu há muito pouco tempo, e posso imaginar a grande tristeza que isso causou a ela. - Os olhos da mãe delas ficaram turvos enquanto ela voltava ao passado. - Ricardo sempre foi o favorito dela. Mimava-o muito. Ele era muito bonito. Ela o ensinou a odiar nosso pai e ele aprendeu bem a lição.

- Isso não foi correto, certo, majestade? - perguntou Blanca. - Um filho deve ser ensinado a odiar o pai?

- Minha mãe fazia o que achava certo para ela. Nunca obedecia regras. Não, minha filha, teria sido melhor para todos se ela tivesse ensinado a ele a tolerância. Mas ela é uma mulher orgulhosa, a mais orgulhosa que já vi. Agora está muito velha. No entanto, vem até aqui. Eu tremo de medo de que ela não sobreviva à viagem. Mas quando a família precisa dela, ela vai.

- Por que precisamos dela? - perguntou Urraca. - O casamento não pode ser feito sem ela?

- É um casamento muito importante. - A mãe das duas abaixou a voz. - Muito, muito mais importante do que o de sua irmã. Sua avó está ansiosa por que nada saia errado, de modo que ela mesma levará você à corte da França, e verá você casada.

- Ela acha que o rei não me deixaria casar com o filho dele se ela não insistisse?

- Nessas questões, certos detalhes podem sair errado e isso pode prejudicar os preparativos. Sua avó não quer que nada saia errado. Está muito ansiosa por esse casamento.

Portanto, irá levála à corte da França e talvez assistir à cerimónia... ou pelo menos se certificar de que será realizada.

- Então vou viajar com ela - murmurou Urraca.

- Anime-se, minha filha. A vida se tornará maravilhosa para você. Está indo para um grande país. Tem um destino maravilhoso à sua frente.

- Eu também vou ter um grande destino, majestade? - quis saber Blanca.

- Não tenho dúvidas, meu amor - respondeu Eleanor. - Mas o marido de Urraca será o rei da França, e há poucos destinos mais altos do que este.

Todos os dias, elas ficavam nas torrinhas do castelo olhando, à espera da chegada da avó.

Quando ela chegou, estava tão imponente quanto elas haviam imaginado.

Veio cavalgando à frente da comitiva, e perguntou em voz alta, assim que entrou no pátio:

- Onde está minha filha?

A Eleanor mais moça lá estava. A velha rainha desceu do cavalo e abraçou a filha. Abraçou-a com força e não a soltou durante um certo tempo. Depois, recuou e, voltando-se para Alfonso, disse numa voz alta e sonora:

- E eu ia querer uma explicação sua, majestade, se minha filha não estivesse bem cuidada.

- A senhora minha mãe não mudou - disse Eleanor; e ficou com a mão da velha rainha nas suas enquanto entravam no castelo.

Que comemorações! Todo dia, os caçadores haviam levado belos cervos que ficavam cozinhando, prontos para a chegada da velha rainha. A filha queria que a mãe descansasse um pouco, mas ela não quis saber disso; e sentou-se à mesa enquanto os trovadores tocavam e entoavam suas canções, e também pegou um alaúde e, com os menestréis, entoou as canções que cantara quando menina; e parecia que se sentia muito feliz por estar com a filha.

As meninas ficaram impressionadas por ela ser tão terna; haviam pensado que uma mulher idosa tão temível jamais olharia com tanta ternura para alguém como olhava para a mãe delas.

Ela lançara um olhar muito severo para as meninas, e depois de beijarem sua mão as duas se sentiram contrafeitas diante de seu olhar perscrutador. Ela perguntara à mãe delas:

- Você as criou bem, não é? Os modos delas devem ser graciosos. Você conhece os franceses.

- Minha mãe dizia que achava que nem mesmo os franceses tinham alguma coisa de que reclamar.

A avó desviou então a atenção das netas e se pusera a contemplar a filha.

Naquela noite, as duas meninas se deitaram em seus catres e conversaram sobre o futuro. Estavam tristes, mas agitadas. Era difícil imaginar a vida de uma sem a outra - no entanto, Berengária fora embora e agora elas praticamente não sentiam falta.

- Eu gostaria que não tivéssemos de crescer - disse Blanca.

- E temos anos e anos pela frente - suspirou Urraca - se formos ficar tão velhas quanto a vovó.

Então, conversaram sobre o que achavam que seria a vida na corte da França, e Blanca ficou triste, porque disse que todas as emoções caberiam a Urraca, e era mais fácil aceitar a mudança quando ela era emocionante.

- Mas a sua vez chegará, Blanca. Quem será que vão arranjar para você?

- De uma coisa estamos certas: não poderá ser um casamento tão importante quanto o seu.

Nos dias que se seguiram as duas viram muito a avó, que fazia questão de estar com as netas e puxar por elas. Blanca sempre fora mais rápida do que as irmãs ao perceber um detalhe; a mãe dissera ao pai que aquilo se devia a sua pouca idade e por ela sentir necessidade de acompanhar o nível das irmãs. No entanto, muitas vezes ela as sobrepujava, e aquela perspicácia logo se tornou evidente para Eleanor de Aquitânia.

Quando ela andava pelos jardins, escolhia Blanca para o braço em que se apoiar.

- Venha passear comigo, menina - dizia ela. - Preciso de um braço para me apoiar.

Então, fazia perguntas sobre a vida em Castela e sobre o que os tutores ensinavam a elas; fazia perguntas inesperadas a Blanca, e às vezes se divertia com as respostas que recebia. Depois do jantar, quando as velas com pavios de algodão bruxuleavam nos candelabros, ela pedia a Blanca que cantasse para ela; às vezes cantava junto. Tinha uma voz firme que não condizia com a sua idade.

- Sua mãe gostou muito de Blanca - disse Alfonso à esposa.

À medida que os dias se passavam, ficava claro que a velha rainha mostrava-se muito preocupada. Ficava sentada observando as meninas, o cenho franzido, uma expressão estranha no rosto, como se estivesse tentando resolver um problema.

Foi tarde numa certa noite, depois que todos tinham-se recolhido, que ela se dirigiu aos aposentos ocupados pela sua filha e o marido e disse a um dos guardas no corredor do lado de fora que queria falar com o rei e a rainha de Castela. Ela iria ter com eles; tudo o que precisava era de que estivessem preparados para recebê-la.

A filha não se mostrou tão impressionada quanto deveria ter ficado.

- Minha mãe nunca agiu como outras pessoas antes - explicou ela a Alfonso. - Muita gente achava a sua maneira de agir estranha. Mas isso deve significar que ela tem algo importante para nos dizer, já que vem assim durante a noite.

Ordenou, então, que os criados acendessem mais velas, e ela e Alfonso, enrolados em túnicas, esperaram a chegada da rainha. Ela entrou, como se nada houvesse de extraordinário naquele encontro noturno.

- Tenho a solução - disse ela enquanto se sentava num banco.

Isso vem me intrigando desde o dia em que cheguei aqui, porque para mim estava claro que a futura rainha da França devia ser Blanca.

- Mas como é que pode... - começou Alfonso. A velha rainha ergueu a mão e disse:

- Pode ser, perfeitamente. Em vez de levar Urraca para a França, levarei Blanca.

- Mas é Urraca...

- O rei francês vai receber muito bem minha neta na França, para se casar com o filho dele. Não há uma estipulação quanto a qual das netas. O nome da menina não tem importância... no entanto, de certo modo é da máxima importância. É isso que quero dizer. Os franceses jamais aceitarão Urraca. Como poderão chamála? com um nome como esse, ela está condenada a permanecer uma estrangeira a vida toda. Blanca. Isso é diferente. Eles a chamarão de Blanche e irão torná-la uma conterrânea deles... e com o espírito e a energia dela, será uma digna rainha da França. Foi isso o que vim dizer a vocês, meu filho e minha filha. Blanca irá para a França. Precisamos achar outro candidato para Urraca.

- Majestade, compreendemos perfeitamente seu raciocínio e suas intenções, mas vamos precisar de tempo para pensar neste assunto - disse Alfonso.

- Não há muito tempo - retrucou a velha senhora, bruscamente. - Mas vocês podem ter dois dias para decidir, e agora vou fazer meus preparativos para partir com Blanca. Acho que daqui por diante devíamos começar a chamá-la de Blanche.

As semanas que se seguiram foram muito confusas para Blanca ou Blanche, como agora devia pensar que se chamava.

Ela fora chamada à presença dos pais e da avó e informada, em poucas palavras, que os planos tinham sido alterados. Ela, e não Urraca, iria para a França aos cuidados da avó, para que pudesse se casar com o filho do rei da França.

A pobre Urraca ficara muito chocada; e embora tivesse chorado ao pensar em sair de casa, agora chorara porque iria continuar nela um pouco mais. Blanche compreendeu seus sentimentos e tentou consolá-la.

- Foi minha avó que fez isso - bradou Urraca. - Ela não gostou de mim desde o início. Você era a favorita.

Blanche abanou a cabeça.

- Como poderia alguém saber de quem uma pessoa dessas iria gostar? Oh, Urraca, eu não quero ir. Isso é tão... baixo... faz a gente não valer nada... não percebe? Como artigos num mercado. Pode levar um deles... este ou aquele... não importa qual.

- Se você pode mudar o seu nome, por que eu não poderia ter mudado o meu?

- O meu não é realmente uma mudança. É sempre uma tradução. Não se pode traduzir Urraca.

- Eu gostaria que nossa avó nunca tivesse vindo aqui. Não me surpreendo com o fato de o marido tê-la colocado na prisão.

- Pobre Urraca. Não se queixe tanto. Pode muito bem acontecer que chegue uma hora em que considere isso um golpe de grande sorte para você.

Urraca olhou para a irmã com ar solene e então atirou-se nos braços dela.

- Não quero que nada de mal aconteça a você, irmã.

- Talvez não aconteça. Seja como for, farei o possível para evitá-lo.

Urraca olhou atentamente para a irmã.

- Creio que agora compreendo por que nossa avó a escolheu para ir para a França.

A velha rainha andou grande parte do tempo na liteira, pois a viagem era longa e árdua, e até mesmo a sua indómita vontade não podia ordenar aos ossos que não doessem

ou à exaustão que não a dominasse. Blanche cavalgava junto à liteira, em seu palafrém branco; e eram frequentes as paradas para descanso. Elas ficavam em estalagens

e castelos, e a rainha se deitava no seu catre e mandava a neta sentar-se a seu lado, para que as duas pudessem conversar.

Aquilo foi uma educação para Blanche, e ela estava certa de que aprendeu mais sobre o mundo naquelas semanas do que em toda a sua infância. A rainha Eleanor a despertou para um novo mundo, um mundo de emoções, aventuras e perigos; longe, muito longe, estava a feliz corte de Castela, onde seus ternos pais haviam protegido ela e as irmãs contra o mundo.

Eleanor falou sobre a sua infância, quando enfeitara a corte do pai junto com a irmã Petronilla. Que corte, aquela! A paixão dominante tinha sido a música, e os maiores poetas da época e os melhores compositores e cantores iam todos até lá, para encantar o grupo. Eleanor se lembrava de noites de verão nos jardins perfumados, enquanto os acordes da música enchiam o ar e todos ouviam, fascinados, narrativas de amores não correspondidos ou realizados - dependendo da imaginação do poeta. E naquela corte, Eleanor fora a rainha absoluta. Lá, ela fora a mais bonita das mulheres - e isto era crível, pois, apesar dos estragos dos anos, ela mantinha aquela primorosa estrutura óssea que nem o tempo conseguia mudar; e enquanto falava, brilhava com um fogo interno, de modo que não era difícil imaginar que o quadro que pintava de si mesma não era de todo destituído de fundamento.

- Há mulheres neste mundo - disse ela - que foram feitas para governar. Você é uma delas, Blanche. Vi isso em você desde o primeiro dia. Urraca! Uma criatura agradável... tem uma certa beleza, graça, charme... sim. Mas não o poder de governar. Como eu ficava com raiva, como me sentia frustrada por ter nascido mulher! Quando eu era jovem, tinha medo de que meu pai tornasse a se casar. Se ele tivesse tido um filho homem, aquele menino choraminguento teria ficado na minha frente na lista. Na minha frente! Eu, que governava aquela corte. E reinava mesmo, Blanche, eu lhe garanto. Eu reinava naquela corte, e por ser mulher, se meu pai tivesse tido um filho homem... que teria sido anos mais moço do que eu... ele teria ficado na minha frente. Meu pai não teve esse filho, mas isso não impediu que eu ficasse magoada. Por que deveria uma mulher ser impedida de governar, quando possui todas as qualidades que fazem um governante?

Blanche concordou que aquilo não parecia um motivo lógico.

- Tomei a iniciativa de saber algo sobre o seu futuro marido. Tenho a impressão de que ele não é diferente do avô, e se for assim poderei lhe dizer muita coisa sobre o menino que vai ser o seu marido, porque o avô dele já foi meu marido. Sim, fui rainha da França, e meu marido era Luís VII. O seu será Luís VIII. O meu Luís... oh, eu gostava dele, no início. Era um homem bom, mas homens bons podem deixar a gente desesperada, minha neta. Ele devia ter sido um religioso. Foi feito para ser um religioso; estudou para isso, e teria sido se o irmão não tivesse sido morto por um porco. Sim, um porco, que correu para baixo do cavalo dele e derrubou o animal, de modo que o irmão morreu... e com isso sobrou Luís para ser o rei. Como coisas sem importância afetam o destino de nações.

Nunca se esqueça disso, minha filha. Um porco mudou o destino da França! Pobre Luís, Deus foi injusto para com ele... Deu-lhe a França e eu.

- Mas a senhora o amava no início, majestade.

- Oh, sim. Eu o amava porque podia fazer o que quisesse com ele. Depois, pegamos a cruz e fomos à Terra Santa... pois, como disse, Luís era um homem muito religioso.

- E a senhora também era, majestade, pois foi com ele... sendo mulher.

- Eu já lhe disse, menina, que uma mulher é capaz de fazer a maior parte do que um homem pode, e não fui por causa da religião, mas pela aventura. E tive uma aventura. Oh, eu poderia lhe contar... mas não vou... agora, não. Há coisas mais importantes a discutir. E agora estou cansada e gostaria de dormir.

Blanche ficou desapontada. Teria gostado de ouvir a narrativa da avó sobre aquelas fantásticas aventuras na Terra Santa.

Numa outra ocasião, Eleanor lhe falou sobre seu casamento com o rei da Inglaterra.

- Ele era mais moço do que eu... fato que ele nunca me deixou esquecer quando havia um conflito entre nós. Mas no princípio, foi bom. Ele era tão moço... diferente do pai. Geofredo de Anjou foi um dos homens mais bonitos que já vi. Henrique não se saiu ao pai... em coisa alguma. Tudo que recebeu dele foi o sobrenome, Plantageneta. Ele tinha muito de seu bisavô, Guilherme, o Conquistador, e também um pouco do avô... talvez uma pitada da mãe Matilda, pois de vez em quando tinha os mesmos acessos de raiva. Mas ele era um rei... As pessoas percebiam isso assim que o viam. Na época, parecia que ele era o parceiro certo para mim... e era, mesmo... de certo modo. Se ao menos não tivesse sido tão devasso... Ora, minha menina, você precisa crescer depressa. Há um sentimento no mundo de que é normal o homem afastar-se do leito

conjugal e arranjar quantas amantes quiser, mas se a mulher fizer o mesmo será uma criminosa. Jamais aceitei essas diferenças. Rezo para que você tenha um marido

fiel. Pode ser que isso aconteça. O meu primeiro, Luís, foi um marido fiel. O meu segundo, Henrique, foi o maior devasso de sua época. Estranho que eu gostasse mais de Henrique. Você vai ser casar com Luís ainda um menino, pois ele não é mais velho do que você... talvez um ou dois meses, mas isso não é nada... e se puder fazer com que ele seja um marido fiel, terá conseguido muita coisa, pois é na cama, à noite, que as promessas são feitas e, às vezes, cumpridas. Procure ter a certeza de que essas promessas lhe sejam feitas. Talvez eu esteja falando de coisas acima de sua compreensão, mas com o tempo vai aprender.

- Vossa majestade está me ensinando muita coisa.

- A experiência é a melhor professora - replicou a rainha -, mas pode ser cruel. No entanto, é muito mais fácil aprender por experiência própria do que pelas experiências dos outros.

Lá seguiram elas atravessando Castela em direção à barreira de montanhas dos Pireneus. Lá, os passos eram estreitos, e o frio intenso. Blanche ficou preocupada com a avó, pois a velha estava nitidamente sentindo os rigores da viagem.

Blanche já estava gostando dela e aguardava com imenso prazer as conversas das duas. Ela estava amadurecendo depressa; já não era uma criança; e percebeu que o que a avó estava fazendo era prepará-la para a nova vida.

Numa determinada ocasião, elas ficaram numa casa pequena nas montanhas; a neve caía e foi necessário ficarem ali durante vários dias. Lá, Blanche percebeu que o frio exauria sua avó e que era muito difícil ela respirar.

Eleanor não parecia se perturbar, desde que Blanche estivesse a seu lado.

- Não precisa ficar preocupada comigo, menina - disse ela.

- Meu fim não está muito longe. Sei muito bem disso. Ora vejam só, tenho estado perto do fim, segundo disseram, nos últimos dez anos, e à medida que sigo em frente, ele recua e não me deixa atingilo. vou chegar ao fim desta viagem. vou voltar para Fontevrault. Lá, tenho de rezar e ser piedosa, pois tenho de pagar muitos pecados. Nada teria feito com que eu deixasse o meu refúgio, exceto a necessidade de minha família. Fico preocupada com a minha família, Blanche, muitíssimo preocupada. Mas desde que perdi meu filho... meu filho adorado... não há muito motivo para viver.

- Eu lhe peço, vovó, que não fale assim.

- Ah, existe algo entre nós duas, não existe? É pena eu ser tão velha e você tão jovem. A diferença é grande demais para essa compreensão entre nós aumentar. Ainda assim, é uma planta resistente, e sinto prazer em contemplá-la. Blanche... você tem mesmo o meu sangue. Mas Ricardo se foi para sempre. Meu filho... o filho que eu mais amava no mundo. Quem dera que você tivesse conhecido Ricardo, Blanche. Ele era tão bonito. Eles o chamavam de Coração de Leão. Não tinha medo de ninguém... nem do pai. Henrique sabia disso. Mas sempre o odiou. Não era apenas porque eu gostasse mais dele do que de ninguém mais no mundo. Henrique também não perdoava isso. Ninguém podia estar

antes dele. Mas ele havia conquistado a princesa Alice... filha do meu primeiro marido, Luís... Luís a havia enviado para lá quando ela era pouco mais do que um

bebé, a fim de ser educada na corte e ser a esposa de Ricardo. Mas aquele devasso... meu marido, o rei, Henrique Plantageneta, levou aquela criança para a cama,

deflorou-a e não queria abrir mão dela. Mantevea... sua amante secreta, enquanto ela era noiva de Ricardo, e ele odiava Ricardo, e o enganava de todas as maneiras... por querer ficar com Alice só para ele. Pronto, eu a deixei chocada, agora. Mas com o tempo você vai ficar sabendo dessas coisas. Meu marido era assim. O homem que odiei... e amei... e que sentia o mesmo por mim. O homem que me capturou quando eu teria liderado meus filhos contra ele e me fez sua prisioneira... durante muitos e muitos anos.

- Pobrezinha da minha avó.

- Pobrezinha! Não use essa palavra para me descrever, menina, senão vou dizer que você não aprendeu nada. Diga pobre Henrique! Pobre Luís! Mas não pobre Eleanor. Sempre levei a melhor com eles... como deve fazer uma mulher... pois como vê, estou viva para contar a história... e eles estão mortos... frios e mortos em seus túmulos. Henrique está em Fontevrault... e Ricardo está com ele... a seus pés. E um dia vou me deitar lá com eles. E quando voltar à abadia, o que farei depois de me despedir de você, irei aos túmulos deles, olharei para as efígies deles e vou falar baixinho com os dois, e vai parecer que eles me respondem.

Blanche pegou a mão da avó e a beijou.

- E talvez - prosseguiu Eleanor - haja tempo suficiente para que eu a veja ser coroada rainha da França. Disso é que eu gostaria. Embora Filipe Augusto não seja um velho... ele está em ótimas condições de saúde, creio eu, e poderá viver muitos anos. Mas não se afobe. Vai acontecer, eu lhe prometo. E por ter o meu sangue, quando chegar a hora você será uma grande rainha.

O tempo melhorou, e as duas puderam deixar as montanhas e pegar a estrada para o norte, em direção ao Loire.

Houve muitas conversas entre as duas, e quando Eleanor falava e Blanche ouvia, a menina sentia que o objetivo da avó era prepará-la para o grande papel que teria de representar; e o fato de ter sido escolhida em vez de Urraca fazia com que ela ficasse decidida a não desapontar a velha rainha.

Às vezes Eleanor ficava muito triste.

- Tenho medo - dizia ela -, tenho muito medo do que possa acontecer à minha família. Há conflitos demais. Meu neto Artur... meu filho João... os dois reivindicam o trono da Inglaterra.

- Quem deveria ficar com ele, majestade? - perguntou Blanche.

- João está nele e deverá mante-lo. Como poderia o jovem Artur ser o rei da Inglaterra? Ele não passa de um menino... não fala inglês e para os ingleses é um desconhecido. Eles jamais o aceitariam. No entanto... alguns dizem que ele tem mais direito.

- Mas a senhora diz que é João, majestade.

- João é meu filho. Foi criado na Inglaterra. Eu tremo ao pensar nos conflitos que surgiriam se Artur ocupasse o trono. Metade do povo não o aceitaria... um menino e um estrangeiro. Nunca suportei a mãe dele... e iríamos tê-la se instalando como rainha. Não, tinha de ser o João.

- E é, majestade.

- Sim, é. Mas o povo da Bretanha não aceita isso. Vai haver guerra... quando é que não houve guerra?... e eu temo que o rei da França possa apoiar Artur. Neste caso, você e eu ficaríamos em lados diferentes, minha querida.

- Eu jamais ficaria contra a senhora, majestade.

- Não, menina, você vai ficar do lado de seu marido, e ele, por ser apenas um menino, deverá apoiar o pai, e o pai sempre esteve de olho na Normandia, como tem estado todo rei da França desde que um deles foi obrigado a entregá-la a Rollo, o normando invasor. Pode estar certa, menina, de que enquanto a Normandia pertencer ao rei da Inglaterra nenhum rei da França estará contente. Isso é uma coisa que precisamos aceitar. Vamos esperar que João possa manter o controle de seus territórios continentais, como conseguiram os seus antecessores. Se ao menos Ricardo tivesse vivido, ele teria mantido tudo junto.

- A senhora me disse que ele praticamente nunca estava no reino.

- Isso mesmo. Ele tinha uma ânsia por conquistar Jerusalém para os cristãos. Jamais conseguiu, mas chegou quase. Mesmo assim, adquiriu a reputação de o soldado mais valoroso do mundo... o maior guerreiro que já existiu. O Conquistador teria ficado muito orgulhoso dele, mas o teria repreendido por não ficar no seu país, disso eu não duvido, a fim de tomar conta do reino. E então houve a época em que ele esteve preso na Áustria e não sabíamos onde estava, até que Blondel de Ia Neslé o descobriu graças a uma canção que os dois cantavam juntos... e nós pagamos o resgate, e ele voltou para casa. Oh, essa época passou, e agora aí está o João, e tenho muito medo do que poderá acontecer à Inglaterra... e de não viver para ver. Por isso, vou voltar para Fontevrault e, lá, ter uma conversa íntima com o meu falecido marido, a quem passei a desprezar, e com o meu falecido filho, a quem sempre amarei mais do que a ninguém; e esperarei lá pelo fim...

- A menos que... - começou Blanche. Eleanor riu.

- A menos que alguma coisa aconteça para me tirar do meu refúgio. A menos que minha família precise de mim.

- Então, queridíssima vovó, a senhora estaria lá.

- Desde que essas pobres pernas pudessem me carregar. Elas prosseguiram em direção norte, e a primavera começava a dar sinais de presença. Os botões nas cercas e as flores agrupadas dos olmos, as pequenas pétalas vermelhas dos gerânios e as caltas às margens dos córregos mostravam que a primavera estava chegando e que o inverno rigoroso ia sendo deixado para trás. Mas a luz clara mostrava as rugas na testa da velha rainha, e sua pele parecia amarelada à luz do sol. Estava claro que a rigorosa viagem tivera seus efeitos sobre ela, e enquanto a mudança de estação revigorava Blanche, deixava Eleanor cansada.

E assim elas chegaram ao Loire, e ali a estrada se dividia uma seguia para Fontevrault, a outra para Paris.

Descansaram num castelo perto do rio, onde o castelão ficou encantado por receber hóspedes tão honradas, sabendo que a menina era a futura rainha da França e a senhora era a temível Eleanor, rainha da Inglaterra.

Foi ali que Eleanor chegou a uma decisão. Ela ouvira dizer que o arcebispo de Bordeaux estava nas vizinhanças do castelo e pediu a ele que fosse até lá, pois queria muito vê-lo. Enquanto esperava a chegada dele, mandou chamar Blanche.

Blanche chegou, e, ajoelhando-se a seus pés, tomou-lhe as mãos e as beijou. A afeição entre as duas aumentara a cada dia que passara, e agora Blanche achava que conhecia a avó melhor do que jamais conhecera alguém - até mesmo seus pais e irmãs. Na corte de Castela, a vida tinha sido fácil e confortável, com apenas o ousado sarraceno para assustá-los de vez em quando, e ele era como um fantasma na escada, comentado mas nunca visto e, portanto, sem realidade. Fora uma infância feliz; ela se sentia grata pelo amor e pelos cuidados dos pais, pelo companheirismo das irmãs. Mas tinha sido como olhar para um quadro com a parte desagradável encoberta e o resto colorido com cores vivas, de modo a torná-lo mais bonito do que era na realidade. com a avó, ela vira a vida real... uma vida tal como seria vivida por pessoas iguais a ela. Haveria ocasiões em que teria de enfrentar a verdade, e isso poderia ser desagradável.

A avó a preparara para isso. Era como se ela lhe tivesse dado uma armadura completa - como as que os cavaleiros usavam -, para que quando saísse para enfrentar o mundo a sua armadura protetora fosse o conhecimento que adquirira com uma senhora que tivera uma vida mais aventurosa do que a maioria.

- Minha querida - disse Eleanor -, tenho muita coisa a lhe dizer, pois vamos nos separar em breve.

- Ainda não chegamos lá, majestade.

- Não, mas eu vou deixá-la aqui.

O desalento na fisionomia da menina magoou e ao mesmo tempo agradou a velha rainha. Ela estava ciente do quanto Eleanor passara a depender dela. Mal para a menina, mas agradável para a velha, pensou ela, mas mesmo assim fico contente, porque essa menina iluminou meus últimos dias.

- Você me vê assim - disse Eleanor. - Estou muito velha para essas viagens. Já vi quase oitenta invernos, menina. Pode imaginar uma idade dessas? Estou cansada. Meus velhos ossos exigem descanso. Não posso viajar com você para Paris, pois se viajasse iria morrer no caminho... de volta. Preciso ir agora para Fontevrault, que não fica longe daqui, e quando chegar naquele local de refúgio, vou para a cama descansar até me recuperar ou deixar este mundo de uma vez.

- Por favor, não fale assim, majestade.

- Precisamos sempre enfrentar a verdade, menina. Fui visitar vocês porque queria ver a noiva que seria rainha da França. Estou satisfeita por ter feito isso. Porque se não tivesse visto, seria sua irmã que estaria a caminho de Paris... e assim que a vi, eu sabia que tinha de ser você. Mas agora está tudo bem. Você está quase chegando. Mandei chamar o arcebispo de Bordeaux e vou colocá-la sob os cuidados dele. Ele irá levá-la a Paris e cuidar de seus interesses. E eu direi adeus, minha queridíssima neta, e irei para Fontevrault.

Blanche curvou a cabeça e chorou; e também havia lágrimas nos olhos da velha rainha.

- Não fique triste - disse ela -, o que se passou entre nós foi bom. vou pensar em você enquanto estiver na Terra, e quando eu morrer... se eu for para o céu, o que é duvidoso, admito... vou olhar por você e orientá-la, se for possível, pois de uma coisa eu sei: a rainha Blanche vai deixar a-sua marca na história da França e será lembrada como uma grande e boa rainha.

- Se for, será devido aos sábios ensinamentos de sua avó.

- Não, ela tem muito que aprender. Vai adquirir mais bom senso, isso eu prometo. Tudo o que fiz foi colocar os pés dela no caminho que deve seguir. Lembre-se de mim por causa disso. Ouço, agora, alguém chegando. Talvez o bom arcebispo de Bordeaux esteja aqui.

No dia seguinte, Eleanor se despediu da neta, e a velha rainha e sua comitiva seguiram para Fontevrault enquanto Blanche, aos cuidados do arcebispo de Bordeaux, seguiu para o norte, rumo a Paris.

 

BLANCHE ESTAVA, agora, desolada. Sentia uma falta da avó maior ainda do que acreditara possível, e o arcebispo de Bordeaux não era í substituto para ela. Seus sermões e seus conselhos muito sérios eram muito diferentes das pitorescas homilias sobre a vida apresentadas pela avó.

Agora começava a pensar com muita apreensão no que tinha pela frente. Muito em breve iria conhecer o noivo... aquele com quem iria passar o resto da vida. Ele era seis meses mais velho do que ela, segundo soubera, tendo nascido em setembro de 1187, enquanto que ela nascera em março de 1188. Assim, os dois tinham doze anos. Pensar na idade de Luís a consolava um pouco, pois parecia possível que ele estivesse com medo de conhecê-la, tanto quanto ela estava com medo de conhecê-lo. Blanche se lembrava das palavras da avó sobre o fato de as mulheres serem tão importantes quanto os homens no mundo, pois, afinal de contas, se fora escolhida para Luís, ele fora escolhido para ela e não tivera mais opinião do que ela sobre o assunto.

Assim, talvez Blanche não devesse ter medo. Os dois teriam de obedecer ao rei da França, e talvez ele fosse bom como seu pai. Ela se sairia bem de sua provação e talvez estivesse apreensiva sem motivo.

Tinham-se passado alguns dias desde que haviam-se separado da velha rainha, quando o bispo lhe dissera que não iriam primeiro a Paris. Estavam seguindo para a Normandia, onde Blanche seria recebida pelo noivo.

- Mas isso, sem dúvida, vai prolongar a nossa viagem - bradou Blanche.

- São ordens do rei da França - retrucou o arcebispo.

- Isso é muito estranho - disse ela, com franqueza. - Achei que devia ir para a França... para Paris, e me casar lá. com toda a certeza os futuros reis da França se casam em Paris.

- O rei quer que a cerimónia seja realizada na Normandia. Blanche ficou confusa e apreensiva. Como desejava que a avó estivesse com ela! Havia algo de estranho com relação àqueles planos, e começou a imaginar se o rei podia não estar querendo que ela se casasse com o filho dele.

O arcebispo ficou algum tempo calado. Depois disse:

- Não precisa ter medo. A rainha, sua avó, colocou-a aos meus cuidados, e pode estar certa de que tendo dado a ela a minha palavra, cuidarei de seu bem-estar exatamente como ela o teria feito.

Blanche fez um gesto afirmativo com a cabeça, mas continuou inquieta, e por fim o arcebispo pareceu ter chegado a uma conclusão.

- Parece não haver mal em contar, pois a senhora vai ficar sabendo logo. O casamento não pode ser realizado na França porque o país está sob um Interdito de Roma, o que significa que não pode haver cerimónias religiosas enquanto durar essa situação.

- O senhor quer dizer que ele desagradou o papa. O arcebispo confirmou com a cabeça.

- Ele mandou embora a mulher com quem se casou e levou outra para a cama, e o papa afirma que essa mulher não é a verdadeira esposa. O rei o desobedece, declarando que é e que seu casamento com Ingeburga da Dinamarca não foi um casamento de verdade.

Blanche sabia o que podia significar o Interdito de Roma. Ouvira comentários sobre ele em Castela, classificando-o como uma das piores calamidades que poderiam se abater sobre um homem ou uma mulher; mas no caso de um rei, ele se estendia ao reino todo.

- Por que o rei mandou a esposa embora?

- A Igreja diz que foi porque o rei não gosta dela. Ele diz que foi porque ela era parenta muito próxima de sua primeira mulher e, portanto, o casamento é irrito e nulo devido à consanguinidade.

- E onde está ela, agora?

- Ela vai de castelo em castelo, e de convento em convento, enquanto o rei vive com Agnes, a mulher que chama de esposa, e está tão apaixonado por ela que não dá ouvidos ao papa, e assim o país continua a sofrer sob o Interdito.

Blanche ficou calada. Era desconcertante ficar sabendo que se um rei não gostasse da esposa escolhida para ele podia mandá-la embora sob a alegação de consanguinidade.

As famílias reais casavam entre si havia séculos, e parecia não ser uma tarefa impossível descobrir laços de sangue entre eles. Blanche estava pensativa enquanto a cavalgada entrava na Normandia.

Finalmente, os dois ficaram frente a frente. Ele fora ao encontro de Blanche e, ansiosos, os dois haviam-se analisado.

Luís não era alto nem baixo; os traços eram bons, e sua expressão era de bondade. Tinha pele clara, e havia nele um ar de delicadeza que imediatamente conquistou o coração de Blanche e encheu-a de determinação de protegê-lo.

Ela era mais ou menos da sua altura, loura e forte, com um toque de sua ascendência normanda na aparência, o que sem dúvida fora observado pela avó ao ter a certeza de que Blanche devia ser a futura rainha da França. Aquela força que havia nela atraiu Luís; era tranquilizadora para a sua fraqueza; e a partir do momento em que se conheceram houve uma harmonia entre os dois que era um bom agouro para o futuro.

Os dois cavalgaram lado a lado para Port-Mort, e ele disse-lhe que ficara ansioso pela sua chegada e que o casamento seria celebrado logo, a fim de que pudessem voltar para Paris juntos.

Era fácil conversar com Luís, e no castelo perto da abadia os dois se sentaram lado a lado à cabeceira da mesa, e enquanto a comitiva festejava, ele lhe falou um pouco sobre o que Blanche devia esperar.

- Sabe que eu tenho doze anos, como você. Ainda temos de estudar; e para mim, a vida vai continuar em grande parte como antes... só que vou ter uma esposa. - Deu um sorriso encantador, dando a entender que aquilo era de seu agrado; e Blanche sentiu um prazer enorme, que em parte era alívio. Ele lhe disse que vivia nos castelos e palácios do pai; que tinha de estudar um certo número de horas por dia e que seus tutores lhe haviam dito que quando se casasse sua esposa iria participar das aulas. Estava curioso por saber quais as matérias que Blanche estudara em Castela. As que ia estudar na França talvez fossem as mesmas. Os dois iriam passear muito a cavalo. Ela gostava de andar a cavalo? Luís se referia a gostar, mesmo, sem contar com o fato de que aquilo era uma parte necessária da vida de uma pessoa. Ele adorava cavalos. Vibrava de entusiasmo enquanto falava de seus estábulos e discutia seus cavalos favoritos como se fossem seres humanos. Blanche não ligara tanto assim para os animais, mas decidiu se interessar dali por diante.

Luís lhe disse que não ficaria solitária na corte francesa, sem contar com o fato de que estaria sempre com ele depois de se casarem, pois havia muita gente lá. Havia seu pequeno meio-irmão e meio-irmã e os filhos e filhas dos nobres, dos quais seu pai era o guardião.

- Não precisa ter medo de meu pai. - Ele franziu ligeiramente as sobrancelhas. - Nem sempre as pessoas o compreendem. Mas papai gosta realmente de gente moça... em especial de sua família. Irá amá-la como ama os outros, pois está muito ansioso por me ver casado.

Luís ficou um pouco embaraçado, e a conversa com a avó permitiu que Blanche percebesse o motivo, que lhe teria passado despercebido antes de seus encontros com a velha senhora. Agora ela sabia que Luís queria dizer que o rei da França queria que eles fizessem um herdeiro do trono.

A ideia a teria deixado alarmada, mas havia algo de totalmente tranquilizador com relação a Luís, e ela não deu importância ao caso.

Fez a Luís perguntas sobre o pequeno Filipe e Marie, seu meioirmão e meio-irmã, e descobriu que eram filhos de Agnes, a mulher por causa de quem o rei fora excomungado.

Blanche falou com ele sobre Castela e suas irmãs, e contou que acreditara, quase até a hora de a viagem começar, que a irmã é que iria para a França.

Luís tocou-lhe de leve a mão.

- Fico satisfeito por ter sido você que veio.

Poucos dias depois, realizou-se a cerimónia do casamento na abadia de Port-Mort. Foi uma ocasião tão imponente quanto possível, considerando-se que o rei da França não esteve presente para ver o filho casado. Muita gente lotou a abadia, e embora muitos balançassem a cabeça lamentando a briga entre o rei da França e o papa, todos concordaram que os nubentes pareciam combinar bem

- um casal jovem e bonito, com uma expressão de felicidade no rosto, o que indicava que, apesar de moços, sentiam-se felizes por estar unidos.

Não haveria a consumação do ato. O rei da França dera a entender que isso deveria acontecer naturalmente, como de fato aconteceria se os jovens estivessem sempre juntos.

Assim, Blanche de Castela se casou com Luís da França e, juntos, os dois deixaram a Normandia e seguiram para Paris.

Enquanto cavalgavam ao longo do Sena, Blanche percebeu um silêncio nas aldeias e nas pequenas cidades. Teria sido natural supor que quando o herdeiro do trono passasse com a esposa houvesse algum sinal de júbilo; sem dúvida que era costume tocar os sinos da igreja para anunciar uma ocasião tão alegre assim.

- É o Interdito - disse Luís. - O povo sente muito isso. Todos os serviços e benefícios nas igrejas estão proibidos pelo papa. O povo está ansioso para que isso acabe, mas só pode acabar quando meu pai desistir de Agnes, e isso é coisa que ele não vai fazer.

- Então isso vai continuar para sempre e deixará de existir uma igreja na França.

- Dizem que não pode continuar, que ninguém pode resistir ao papa por muito tempo. O povo acha que Deus se voltará contra ele. Como pode ver, há uma certa casmurrice no modo de as pessoas agirem. Elas põem a culpa de todos os seus males no Interdito e dizem que foi o desejo de meu pai por Agnes que as levou a essa condição.

- E ele a ama muito.

- Ele a ama muito - repetiu Luís. - Como você vai ver.

- A posição dele é terrível.

- Dizem que ele nunca deveria ter-se desfeito de Ingeburga, pois ele fez isso antes de conhecer Agnes. Nenhum de nós sabe por que ele ficou com tanta raiva assim de Ingeburga. Casara-se com ela e dizem que parecera bem contente, e então na manhã seguinte estava pálido e tremendo... foi o que ouvi dizer... e declarou que não queria mais saber dela.

Blanche sentiu um leve toque de temor. Filipe gostara da esposa antes dos misteriosos acontecimentos no quarto. Luís gostava dela agora, mas e se mais tarde sentisse por ela o mesmo que o pai sentira por Ingeburga?

Ela teve uma visão momentânea de estar sendo enviada de convento a convento, de castelo a castelo, sem nunca saber que ofensa cometera; e de Luís arranjando outra mulher e sua família apelando para o papa e o papa dizendo: "vou impor o Interdito ao seu reino até você aceitar Blanche de volta."

Aquilo era uma loucura. Luís gostava dela. Blanche gostava de Luís. Não sabia como se sairia da experiência no quarto, mas quando esta chegasse ela faria tudo o que estivesse ao seu alcance para que fosse um sucesso. Sentiu-se aliviada por ter tido tempo de descobrir alguma coisa sobre aquilo. Enquanto isso, seguiu por uma França que, ressentida, sofria sob o Interdito do papa.

Por fim, atravessaram o Sena e chegaram à lie de Ia Cite, que César chamara de Lutetia - a Cidade de Lama - porque declarara que havia nela mais lama do que em qualquer outra cidade que ele conhecera.

Luís ficou mais loquaz enquanto contemplava a cidade. Estava claro que gostava muito dela, e admirava muito o pai.

- Meu pai tem feito muito por Paris. Ela mudou mais nos anos do reinado dele do que mudou durante séculos. Certa vez ele me disse que quando ficava na janela do palácio olhando para a cidade lá embaixo - o que ele adorava fazer -, via alguns camponeses passando em suas carroças, e quando as rodas chafurdavam na lama subia um cheiro tão fétido que meu pai se sentia enjoado. Ele teve a ideia de que se as ruas fossem pavimentadas com pedras não haveria lama, de modo que convocou os burgueses da cidade e lhes disse que iria procurar - e nisso eles deveriam juntar-se a ele livrar Paris do nome de Cidade de Lama, calçando as ruas para que a lama desaparecesse, e que para isso precisava da ajuda deles. Eles viram que ele estava cheio de razão, pois havia muita doença na cidade, e o povo começara a perceber que poderia ser devida à irritante lama, cujo cheiro atraía moscas e outros insetos nocivos. Houve um comerciante rico... já ouvi meu pai falar nele muitas vezes... era Gerard de Poissy e fez uma contribuição de 1.100 marcos de prata para o calçamento, e agora, como você vai ver, Paris é uma cidade agradabilíssima.

- O povo deve estar agradecido a seu pai. Luís sorriu.

- Ah, sabe como é. Logo que se acaba de fazer, eles não falam em outra coisa a não ser na mudança que houve na cidade, e depois de um certo tempo se esquecem da lama fétida e deixam de ser gratos pelos calçamentos de pedra. Meu pai se importa muito com o seu reino. Seu único sonho era enriquecê-lo e levá-lo ao ponto em que

estava na época de Carlos Magno. Por isso, você calcula o quanto ele gosta de Agnes quando diz que prefere perder metade de seus domínios a perdê-la.

- Eu o admiro mais por amá-la tanto - disse Blanche.

- Quando o conhecer, vai ver que não percebe o tipo de homem que ele é. Não mostra seus sentimentos, mas eles lá estão... pela família toda. Sempre foi um bom pai para mim. Perde a paciência com rapidez, mas com a mesma rapidez esquece a raiva. E é um grande rei, isso eu lhe digo. Ele esteve na Terra Santa.

- Eu sei. Esteve lá com o meu tio Ricardo - respondeu Blanche. - Minha avó me disse que em determinada época houve uma grande amizade entre os dois.

- Isso é verdade. Ele sempre teve afeição por Ricardo, embora os dois fossem inimigos naturais... como devem ser todos os reis da França e da Inglaterra... enquanto a Inglaterra possuir territórios que outrora pertenciam à França.

- Talvez eles nem sempre sejam inimigos.

- Serão, até que todas essas possessões tenham voltado para a coroa francesa. Isso é uma coisa que temos de aceitar, Blanche. Veja o muro da cidade. Meu pai mandou construí-lo antes de partir na cruzada. Queria fortificar todas as cidades, e em especial Paris. Quando dermos os nossos passeios, vou lhe mostrar o que ele fez pela cidade.

Chegaram ao Palace de Ia Cite, e Blanche viu pela primeira vez o seu respeitável sogro.

Era alto, uma bela figura e um ar de grande dignidade, de modo que ela o teria reconhecido imediatamente como sendo o rei. Havia um tom castanho-avermelhado nos cabelos e na barba; o mesmo tom aparecia nos olhos e indicava um mau génio muito sensível. Havia em torno dele um ar de resistência que, pelo que Blanche imaginava, teria feito com que todos pensassem duas vezes antes de contrariá-lo.

O rei olhou-a de frente e pareceu gostar do que viu. Depois, abraçou-a e, chamando-a de filha, disse que lhe dava as boas-vindas à corte da França. Disse acreditar que ela seria uma boa esposa para o filho e que se fosse, ela não teria do que se lamentar.

Ao lado estava a sua rainha - Agnes, a delicada e bonita jovem por quem ele colocara a si mesmo e seu país em situação precária. Ela saudou Blanche calorosamente, mas Blanche pôde perceber que embora adorasse o marido, Agnes era sensível demais para não concluir que estava no cerne daquela incómoda situação.

Por não haver cerimónias religiosas, aquilo pareceu uma estranha apresentação ao seu novo lar; mas o rei estava decidido a fazer com que ela tivesse uma boa recepção secular.

No grande salão, fez com que Blanche se sentasse ao lado dele, com Agnes do outro, com Luís sentado ao lado da esposa, e mostrando, pelos seus modos, que estava ansioso por tomar conta dela.

A mesa estava cheia de variados pratos de comida, alguns dos quais Blanche nunca tinha visto; os homens e mulheres que serviam andavam depressa de um lado para o outro; enquanto menestréis tocavam música suave durante a festa toda.

Entre os pratos estava aquela rica iguaria, lampreia, com a qual seu antepassado Henrique I se regalara e que lhe fora fatal; ali, era servida de maneira diferente da de Castela. Os franceses usavam molhos condimentados contendo ervas que Blanche desconhecia; havia também salmão, carne de carneiro, carne de boi, de veado e grandes tortas cujo conteúdo ela apenas imaginava o que pudesse ser. O tempero com cebola e alho era muito usado nas comidas que eram novidade para Blanche. Ela gostou dos queijos e dos doces, e todos eram acompanhados com vinhos - algumas pessoas bebiam vinho doce, outras, seco.

- Ninguém faz vinho como os franceses - disse-lhe Luís.

O rei Filipe lhe dava muita atenção, e estava sempre lhe falando sobre os costumes de seus país, e deixava claro para todos os presentes que estava muitíssimo feliz com a nova filha.

Blanche se adaptou rapidamente à vida na corte da França, onde Luís era seu companheiro constante. Estavam na aula juntos, pois Filipe acreditava firmemente na educação e estava sempre lembrando ao filho que um rei precisava estudar história acima de todas as outras matérias, porque no devido tempo iria representar um papel nela; a geografia também devia ser dominada, pois um dia ele bem poderia se preocupar com acontecimentos em várias partes do mundo. Literatura e música também não deviam ser negligenciadas, porque um rei devia poder se expressar não apenas com habilidade, mas com graça.

Por estudarem juntos, os dois aprendiam depressa. Eram duas crianças que cresciam lado a lado, e Luís proporcionava o companheirismo de que Blanche desfrutara com as irmãs. Ela recebia notícias de casa com frequência, pois seus pais estavam ansiosos por que soubesse que eles estavam sempre pensando nela; Berengária também escrevia; e ficou contente ao saber que Urraca iria se casar com um membro de uma família de Portugal, onde um dia se tornaria uma rainha.

"Estou orgulhosa de minhas três filhas", escreveu a mãe dela, "e um dia sei que ficarei ainda mais."

Havia muitas crianças no palácio. Filipe gostava de crianças, e os filhos e filhas de muitos nobres eram criados lá, porque o rei os chamava de afilhados, e eles viviam sob o seu teto. Não havia um nobre na França que não considerasse o máximo de honraria os filhos serem criados na corte, e além dos dois filhos de Filipe com Agnes havia um ou dois filhos homens dele que eram ilegítimos. O rei gostava de todas as crianças e tinha uma predileção especial pelas suas. Era fácil perceber que idolatrava Luís, e certa vez, quando se encontrava a sós com Blanche, ele lhe disse:

- Você vai ter de cuidar de Luís. Ele nunca foi muito forte. Quando tinha dois anos, quase o perdemos. Deixei as cruzadas antes do que pretendia porque tive medo de que ele morresse. Desde então, tenho feito com que a saúde dele seja vigiada.

Blanche lhe garantiu que cuidaria bem de Luís.

Os dois andavam muito a cavalo juntos; Blanche se deixou tomar pelo entusiasmo dele pelos cavalos, e o rei disse a Agnes que sempre era prudente deixar as crianças crescerem juntas, em vez de atirá-las na cama quando fossem estranhos.

O método parecia estar funcionando bem com Blanche e Luís, pois a cada dia que passava os dois gostavam mais um do outro.

Luís gostava de mostrar Paris a ela. Levava-a por aquelas ruas - calçadas por ordem de seu pai -, passando pelas igrejas silenciosas, seguindo pelos becos estreitos onde os tintureiros e os curtidores trabalhavam. As pessoas observavam-nos veladamente e aplaudiam-nos de vez em quando. Não podiam castigar os filhos pelos pecados dos pais, diziam elas. Não era por culpa daqueles inocentes que o país estava sob o Interdito, e não havia consolo religioso para ser dado por amor ou por dinheiro.

Luís a levou ao cemitério de Paris, perto da igreja dos Santos Inocentes e da rua de St. Denis. O local estava cercado por um muro alto e havia portas que eram fechadas todas as noites.

- Isto é obra de meu pai - assinalou Luís. - Ele viu que a área onde se enterravam os mortos era tratada sem respeito. Houve época em que isto era uma zona livre, e os comerciantes vinham até aqui e armavam seus tabuleiros entre os túmulos. Papai considerou isso um sacrilégio, e mandou construir o muro com os portões, que eram fechados todas as noites. Pôde, então, haver uma certa privacidade e um certo respeito para com os mortos.

- Seu pai é um rei muito bom - disse Blanche.

- Rogo a Deus que eu seja tão bom quanto ele quando chegar a minha vez, mas acho que não vou conseguir.

- Por que não, Luís? Você é bom, cordial e mais meigo do que seu pai.

- Faltam-me as suas qualidades características de um rei. Luís parecia muito triste, mas depois se animou de repente. - Mas vou ter você para me ajudar.

- E vou ajudar, mesmo. - Blanche ficou de pé ali no cemitério entre os túmulos dos mortos, e ergueu a mão. - Eu juro, Luís. Ficarei ao seu lado, e quando chegar a hora nós dois vamos governar a França juntos.

Luís a olhou com muito amor e disse:

- A ideia de reinar sempre me causou medo, até você chegar. Não havia nada que Luís pudesse ter dito que daria a Blanche maior prazer.

Os dois seguiram a cavalo pela cidade, e Luís mostrou-lhe Lês Halles, o grande mercado cercado de muros e também com portões que se fechavam à noite.

- Meu pai, embora seja um grande comandante de exércitos e vença muitas batalhas com uma diplomacia inteligente, está muito atento à vida das pessoas comuns. Está sempre pensando na melhor maneira de tornar a vida mais fácil para todos. Ele agora permitiu que os padeiros tenham seus próprios fornos, pois antes de criar essa lei, os fornos usados pelo setor pertenciam a certos grandes estabelecimentos, muitos deles religiosos. O povo não tem uma percepção plena do grande rei que ele é.

- O povo só reconhece um grande rei quando ele está morto e o povo tem um rei mau - disse Blanche. - E lhe digo, Luís, que o povo terá mais um rei bom depois de Filipe.

- Rezo para que seja assim, e para que leve muitos anos a fim de que ele tenha um novo rei. Meu pai não está velho. Talvez ainda lhe restem trinta anos.

- Trinta anos! - bradou Blanche. - É uma vida toda. Pense em nós dois daqui a trinta anos.

- Isso a deixa assustada?

- Agora que estou casada com você, não.

Os dois voltavam repetidas vezes àquela situação satisfatória. As pessoas que os cercavam perceberam que eles estavam ficando apaixonados. Em breve, diziam, serão amantes de verdade.

O rei percebeu. Alguns membros de sua corte achavam que os dois deviam ser amantes de fato. Treze anos de idade. Por que não? E ambos maduros para a idade que tinham.

- Não - dizia o rei. - Quando estiverem prontos, a coisa virá. Não vamos perturbar o prazer inocente que sentem um pelo outro.

E assim as semanas se passavam - aulas, caçando a cavalo nas florestas, cavalgando tranquilamente pelas ruas de Paris, observando o progresso da imponente igreja que Filipe estava construindo e que seria a Notre Dame de Paris, e depois indo ao Louvre, para ver como os construtores estavam indo com os melhoramentos daquele palácio, onde estava sendo acrescentada uma forte torre.

- Meu pai está alterando a fisionomia de Paris - disse Luís -, e quem pode dizer que não é para melhor?

Blanche, que amava os pais com muita dedicação, aceitava como natural a afeição de Luís pelo pai, sem perceber como aquilo era raro. Era verdade que sua avó lhe falara sobre o terrível conflito que imperara entre seu avô, Henrique II da Inglaterra, e os filhos, mas Blanche achara que se tratasse de um caso lamentável, mas infreqíiente.

Ela estava aprendendo bem rápido, mas ainda se encontrava curiosa por saber por que um rei como Filipe Augusto, que se preocupava tanto com o povo que construíra muros em torno de seus mercados e estudava as necessidades desse povo, deixava que ele sofresse daquela maneira com o Interdito do papa, que tinha de suportar por causa dos seus atos.

Dois jovens tinham ido para a corte. Eram o muito interessante e bonito jovem príncipe Artur, com a mesma idade de Luís, e a irmã de Artur, Eleanor, poucos anos mais velha.

Artur era o conde da Bretanha, filho de Geofredo, irmão mais velho de João, e em torno do qual havia uma grande controvérsia, porque muita gente achava que ele, e não João, devia ser o rei da Inglaterra. Filipe estivera muito ansioso por tê-lo na corte, e Luís disse a Blanche que a visita dele era, de certo modo, política e muito mais importante do que a dos protegidos do rei, que brincavam e aprendiam a participar de justas e a andar a cavalo nos pátios e nos jardins.

- .Meu pai não confia em João - disse Luís a Blanche. Talvez ele decida ajudar Artur a chegar ao trono. Depende muito do que for acontecer.

Blanche gostava de ouvir tudo o que se passava, e raramente esquecia de alguma coisa. Ela disse à sua pequena criada Amincia, que fora com ela de Castela e aluava como sua criada pessoal, que ela também devia ficar de ouvidos e olhos abertos e contar-lhe tudo o que se dissesse na corte. Se ela ia ajudar o marido, precisava saber de tudo o que acontecesse.

Por isso, vigiou em especial o príncipe Artur e o comparava com Luis - com vantagem para Luís. Podia-se dizer que Artur era mais bonito; tinha, realmente, um porte de príncipe; mas era um pouco arrogante, defeito de que ninguém podia acusar Luís. Podia participar das justas de maneira mais vistosa, mas a rainha não achava que ele fosse tão inteligente quanto Luís.

Artur era um tanto fanfarrão, certo de que ia ser o rei da Inglaterra dentro em pouco. Falava com Luís e Blanche sobre suas perspectivas e acreditava ter mais direito, por ser filho de um irmão mais velho de João, que assumira a coroa.

- Isso tudo se deve a certos homens na Inglaterra, que o apoiaram - disse Artur a eles. - Mas o povo detesta-o e gostaria de se ver livre dele.

Blanche não tinha tanta certeza. A avó dela fora a favor de João. Para Blanche, era muito desconcertante saber que Filipe apoiava a causa de Artur, enquanto sua avó ficava do lado de João.

Ela pôde abordar o seu dilema com Luís, que era sempre justo e estava sempre pronto a ouvir outro ponto de vista.

- Não é um caso fácil de resolver - admitiu ele. - João é filho do falecido rei da Inglaterra, e Artur é neto. Claro que se Geofredo tivesse sido o rei não haveria dúvida de que Artur era o seguinte. Mas Geofredo nunca foi rei e morreu antes que seu irmão mais velho, Ricardo, chegasse ao trono. Portanto, é difícil fazer um julgamento. Mas papai não tem dificuldade. Ele gostaria de trazer a Normandia de volta à coroa da França, e Poitou também. Portanto, não pensa no que é certo, mas no que for melhor.

- E você, Luís?

- Tenho de pensar o mesmo que meu pai, se quiser ser um bom rei da França.

- E se quiser ser uma boa rainha da França, eu devo concordar com você.

Era óbvio que os motivos de Filipe e os da avó eram diretamente opostos, pois Eleanor estava ansiosa por manter tudo o que passara para os Plantagenetas através de conquistas e alianças, enquanto que Filipe queria levar tudo de volta para a França.

Era difícil, a princípio, saber o que devia fazer; mas era claro que agora ela estava casada e que aquilo que fosse vantajoso para a França era vantajoso para ela.

Mas ficou apreensiva quando Filipe se apossou de vários castelos que pertenciam a Artur com a finalidade, segundo ele, de tomar conta deles para o seu jovem protegido; e isso não foi tudo. Filipe declarou que Artur estava pronto para receber dele o grau de cavaleiro, e por acreditar que Artur era o verdadeiro herdeiro da coroa de Ricardo, iria dar-lhe não só a Bretanha, mas Anjou, Poitou, Maine, Touraine e Normandia.

Como seria de esperar, Hugo de Lusignan, cuja noiva João havia roubado, uniu-se imediatamente à campanha contra o rei da Inglaterra.

- Receio que vai haver guerra - disse Luís a Blanche.

- E se houver, você vai?

- Meu pai sempre se preocupou com que eu não me envolvesse em guerras, em parte devido à sua preocupação comigo, em parte por ter medo de que eu seja abatido em combate e morra sem deixar herdeiro.

Os dois se entreolharam discretamente. O momento em que deveriam consumar o casamento estava se aproximando.

Foi devido a esse conflito que Blanche e Isabella perceberam a existência uma da outra. Filipe convidara o rei João a Paris, a fim de que os dois pudessem conversar, e por isso ele foi e levou a esposa.

Blanche iria sempre se lembrar daquele primeiro encontro com a jovem rainha da Inglaterra e do efeito que ela exercera sobre todos os presentes. Quando ela entrou no grande salão ao lado do marido, não foi para João que todos os olhares se voltaram. Ela estava suntuosamente vestida; brilhava de tantas jóias; mas não era só isso. Havia algo nos audazes olhos grandes guarnecidos por grossas pestanas pretas, o porte lânguido, os graciosos movimentos de gata, que colocavam Isabella à parte em relação às outras mulheres. Bastava olhar para ela, a fim de compreender por que João, ao vêla, ficara pronto a se descartar da pobre Hadwisa de Gloucester, sua sofredora mulher de muitos anos, a abandonar sua honra e não descansar enquanto não tivesse raptado Isabella e ela tivesse se tornado sua mulher.

Ela demonstrava um grande orgulho, uma certa arrogância que exigia homenagens a suas raras qualidades. Blanche nunca vira alguém do seu sexo parecido com ela.

Durante a estada deles no palácio, o rei festejou o casal da Inglaterra com grande pompa e cerimónia, porque estava ansioso por tranquilizar João e aplacar suas suspeitas de que um dia Filipe fosse lhe roubar as possessões.

Isabella mostrou interesse por Blanche, e isso significou que de vez em quando procurava a companhia da menina que um dia seria rainha da França.

Isabella não se esforçava por esconder o fato de que sentia um certo desprezo por Blanche, que era bonita o bastante para chamarlhe a atenção, mas Isabella demonstrava claramente que sabia da virgindade dela e desdenhava disso.

Comentava-se que João não conseguia se arrastar para fora da cama de Isabella e que ficava sempre inquieto e de mau humor quando não podia estar com ela nem por um curto espaço de tempo.

Parecia incrível que Isabella fosse apenas cerca de um ano mais velha do que Blanche, porque parecia ter experiência mundana, e Blanche percebeu, de repente, que não queria entender aquilo que Isabella conseguia transmitir.

- Você é muito, muito criança - disse Isabella a Blanche. No entanto, já tem um marido. - Aquele agitar de pálpebras, aquele irónico sorriso secreto, o que significava? - Como vai o Luís?

- Ele vai bem, obrigada, e já não está mais fraco. Ao que Isabella riu.

- Não me referi à saúde dele. Claro que ele não passa de um menino. João é muito... experiente, muito habilidoso. Muito mais do que Hugo teria sido, disso estou certa.

- Habilidoso... em governar. Ora, e é assim que deve ser. Ele é rei.

- Você não está me entendendo. Você ainda é uma criança, Blanche.

- Luís não pensa assim. Nós dois discutimos vários assuntos, e até o rei às vezes conversa comigo sobre negócios do Estado.

Isabella balançou a cabeça, com ar de deboche.

- É mesmo? Então sem dúvida estou enganada, e você já não é mais uma criança... em todos os assuntos. - Voltou-se para Luís. Deixava-o sem jeito com seus olhares lânguidos e suas belas mãos brancas que apoiava no braço dele, enquanto o acariciava com delicadeza.

- Ora, Luís - dizia ela -, como você é bonito! Aposto que um dia vão chamá-lo de Luís, o Belo.

- Acho que não - respondia Luís, contrafeito. - Não iriam me chamar assim porque eu não mereceria. Prefiro ser o Bravo... ou o bom.

- Talvez seja os três. Quem sabe?

Ela ria bastante e fazia alusões a assuntos que os dois não compreendiam muito bem. Falava no marido e dizia que naquele momento ele devia estar à sua procura.

- Se ele me visse tocando no seu braço dessa maneira, meu senhor... sim, mesmo no braço... ficaria com vontade de matá-lo,

- Neste caso, estaria louco - retrucou Blanche -, e devia poupar a raiva para os inimigos.

- Ele consideraria seu marido como inimigo, se visse meu interesse por ele.

Os dois percebiam que ela os estava espicaçando de algum modo. Blanche achava que ela estava tentando conquistar Luís e queria que ele a admirasse.

Quando ficaram a sós, disse a Luís:

- Acho que ela queria que você dissesse que ela era bonita... mais bonita do que eu.

- Isso eu jamais diria.

- Pois bem, ela queria que pensasse.

- Eu não podia pensar, Blanche, porque você é minha esposa. Ela sorriu com ternura.

- Vai pensar sempre assim, Luís?

- vou, sempre - jurou ele.

De repente, segurou-lhe as mãos e beijou-a de um modo que não ousara antes. Aquilo a assustou e, no entanto, de certa maneira já era esperado por ela.

A presença de Isabella, as insinuações dela e suas irónicas alusões os haviam modificado de algum modo, despertando algo neles.

Foi enquanto Isabella e João estavam de visita à corte que eles se tornaram amantes.

Agora, já não eram mais crianças. A magnitude de seu novo relacionamento os absorvia. Filipe e Agnes os observavam com condescendência.

- Eles se apaixonaram - disse Agnes.

- Talvez seja prematuro demais esperar um herdeiro para o trono - disse Filipe.

- E talvez sejam crianças demais para já serem pais - replicou Agnes.

- Minha querida Agnes - disse o rei. - As princesas têm idade suficiente assim que ficam aptas.

Quanto a Agnes, ela vivia triste. Quando saía a cavalo, via os olhares silenciosos das pessoas e sabia que a culpavam por provocar aquela situação terrível em que se encontrava o país. Ter negada a Igreja era uma grande provação para elas; e se houvesse uma guerra, ela gostaria de saber como se sairiam os exércitos de Filipe.

E haveria guerra. Como ela detestava o rei da Inglaterra e sua precoce mulherzinha! Sentia que João era um homem mau; era capaz de qualquer tipo de crueldade, de qualquer tipo de traição. A maneira dele se portar com relação a Hugo de Lusignan era imperdoável, e quanto à mulher... estava pronta a se entregar sempre que houvesse a maior vantagem.

Hugo iria levantar os amigos contra João, e Filipe sempre fora homem de aproveitar suas oportunidades. Ela via a guerra se aproximando. Filipe lhe dissera não respeitar João.

- Ele é um homem que vai encontrar dificuldades para segurar uma coroa escorregadia - disse ele - O pai dele não achou fácil, e era um grande soldado e um governante inteligente. Tinha seus defeitos, e eles o traíram. A família ficou contra ele, em especial a mulher... e na maior parte foram essas relações pessoais que o solaparam. Se tivesse tido o bom senso de continuar amigo da mulher e dos filhos, sua história teria sido diferente. Mas eles eram um bando traiçoeiro... exceto Ricardo. - A expressão de Filipe sempre se enternecia quando ele falava em Ricardo. - Ricardo nunca foi falso. Sim e Não, é como nós o chamávamos, porque se ele queria dizer sim, era sim, e se queria não, era não, e dizia na cara. Ricardo era um tolo sob muitos aspectos, mas nunca houve homem mais valente. Lembro-me dele quando éramos jovens. Por Deus, aquilo, sim, era um homem bonito! Nunca vi outro mais elegante. Mas isso tudo já foi há muito tempo, e agora temos apenas esse irmão dele... esse homem mau que não era digno de desafivelar o sapato dele. Se Ricardo tivesse vivido... Ricardo devia ter vivido... Mas agora temos de lidar com João.

- Acha que ele vai declarar guerra?

- Ele vai ter de defender sua reivindicação ao trono, porque Artur irá encontrar homens adeptos de sua causa, e Hugo de Lusignan ficará do lado de Artur, isso eu lhe prometo.

- E você, Filipe...?

- Quando chegar a hora, não vou ficar de lado. Você sabe que sempre foi meu sonho trazer a Normandia de volta à França, que é o lugar dela. Isso tornaria o meu país tão grande quanto foi sob o reinado de Carlos Magno.

- Eu sei - disse Agnes.

Ele segurou-lhe a mão e sorriu.

- E falar de guerra a perturba, e não a quero assim. Vamos, nós seremos felizes. vou fazê-la feliz como você me fez.

E ela pensou: mas não a França. A felicidade entre nós não alegrou a França.

Ela se perdia muito em pensamentos, e sem dizer ao rei enviou uma mensagem ao papa, na qual implorava que ele retirasse o Interdito. "Eu amo meu marido", escreveu ela, "e meu amor por ele é um amor puro. Quando me casei, ignorava as leis da Igreja. Acreditava que era realmente esposa de Filipe. Eu lhe peço, santíssimo padre, que suspenda o Interdito e me dê permissão para continuar ao lado do homem que chamo de meu marido."

Inocêncio respondeu dizendo que acreditava na sua inocência e que se solidarizava com ela, mas a verdade era que Filipe estava, de fato, casado com Ingeburga, e por isso enquanto vivesse com Agnes o Interdito não poderia ser suspenso.

Agnes ficou em desespero. Tornou a escrever ao papa dizendo que tinha dois filhos, os pequenos Filipe e Marie, e que se deixasse Filipe estaria reconhecendo aqueles filhos como ilegítimos. Aquilo ela não podia fazer. Preferia morrer com todos os seus pecados a causar mal aos filhos.

A resposta do papa foi pronta. Acreditava que ela fosse uma mulher boa e piedosa, que se envolvera naquele negócio com toda a inocência. Compreendia sua lealdade para com os filhos e se ela abandonasse o rei e entrasse para um convento, ele declararia seus filhos legítimos, já que ela acreditava que eles o fossem quando nasceram.

Mas suspender o Interdito, isso não, enquanto Agnes e Filipe não se separassem.

O palácio mergulhou na tristeza. O rei se trancou em seus aposentos e não quis falar com ninguém. Agnes deixara Paris.

Ela chegara à conclusão de que precisava salvar a França do desastre a que estava certa de que o prolongamento do Interdito iria levá-la. A guerra era iminente. Nenhum exército poderia acreditar na vitória quando a aprovação dos céus se voltava contra ele.

Agnes fizera o grande sacrifício.

Filipe, andando de um lado para o outro no seu quarto, sabia que ela fizera o melhor para a França. Ele tivera medo de entrar em combate com um exército que teria decidido, antes da luta começar, que estava derrotado. No entanto... ele havia perdido Agnes.

Amaldiçoou o destino. Estava condenado a perder aqueles que amava. Teria ele amado Isabella de Hainault, a mãe de Luís? Não muito, mas ela fora uma esposa agradável - uma criatura adorável; às vezes Luís se parecia muito com ela. Ela estava com dezesseis anos quando ele nasceu - não muito mais velha do que ele, Luís, era agora, e morrera quando o menino tinha dois anos. Assim, a vida de casado dos dois fora curta; e ele lamentara a morte dela. Havia perdido Ricardo Coração de Leão, a quem amara com uma intensidade maior do que amara Isabella. Ele agora pensava muito em Ricardo... momentos de ternura, momentos de raiva. Amor e ódio tinham representado papéis fortes entre eles. E o perdera... Mas talvez quando tivesse quase perdido o filho ele tivesse sofrido mais. Fora logo depois da morte de Isabella, quando o menino quase morrera também e ele voltara da Terra Santa, deixando Ricardo por causa do filho. Luís fora poupado, e ele adorara o menino.

Ainda adorava. Não tinha palavras para explicar a alegria que era, para ele, estar perto daquele filho. O fato de Luís ser delicado o deixava encantado e desanimado ao mesmo tempo. Muitas vezes se perguntava que tipo de rei ele seria. Na verdade, se parecia com o avô, sensível demais para a função de rei. Mas era um menino adorável, e Filipe dava graças a Deus por Blanche mostrar sinais de força. Um dia ele iria conversar com Blanche. Faria com que ela compreendesse que precisava ficar ainda mais forte e apoiar Luís, porque Luís iria precisar dela. Graças a Demus os dois tinham gostado um do outro. Ele não quisera estragar aquilo. Fora este o motivo pelo qual os deixara viver juntos na inocência até o momento de se acasalarem naturalmente. Se, como parecia, aquele momento tivesse chegado, ele se alegrava. Aquilo iria fazer os dois amadurecerem, e então ele poderia conversar com Blanche e fazê-la compreender.

Mas agora, perdera Agnes.

O Interdito seria suspenso e haveria regozijo por todo o país, mas a conquista da alegria da França lhe custara Agnes.

Ele supunha que poderia ter ido até Poissy, para onde ela fora, poderia ter implorado para que ela voltasse, e sabia que ela não teria conseguido resistir.

Mas rei é rei, pensou ele.

Não havia pensado nisso no calor de sua paixão por ela. Não soubera que estava, na verdade, casado com Ingeburga e que por ela ser uma princesa o papa não permitiria que fosse abandonada?

Ingeburga. Filipe sentiu um calafrio. Nunca, nunca mais...

Então, pensou em Agnes e chorou. Mas haveria guerra.

Ele iria acabar com João... aquele fanfarrão tolo e irresponsável. Irmão de Ricardo... filho do grande Henrique! Deus do céu, como foi que Eleanor de Aquitânia e Henrique Plantageneta tiveram uma criatura daquelas?

Mas obrigado, meu Deus, por trazê-lo a este mundo. Obrigado por fazer dele um rei. Esta é a minha chance. vou trazer de volta tudo o que a França perdeu. Serei um rei tão importante quanto Carlos Magno. E Agnes, queridíssima Agnes, eu não poderia ter feito isso com você ao meu lado.

Enquanto o rei da França fazia planos para a guerra, no convento de Poissy Agnes chorava e tentava esquecer o passado. Era melhor... para o rei, seu adorado, e para os filhos deles. Era esse o sacrifício exigido dela.

Ela ficou apática. Não conseguia comer coisa alguma. Passava horas rezando.

Na vida não havia mais felicidade. Ela ansiava pela paz do céu. Rezava por ela.

"Oh, Santa Mãe de Deus, minha vida se acabou. Agora, nada mais me resta. Em sua misericórdia, deixe meus sofrimentos acabarem. Na morte eu encontrarei a paz."

Suas orações foram atendidas. Poucos meses depois de ter entrado no convento de Poissy, Agnes morreu.

O Interdito foi suspenso, mas Filipe se recusou a receber Ingeburga de volta. Isso foi uma coisa a que resistia com firmeza. O papa podia tê-lo separado da mulher que ele amava, mas não podia fazer com que ele vivesse com aquela que abominava. Por isso, Ingeburga continuou na sua peregrinação de castelo em castelo, convento em convento; ela poderia ir para onde quisesse, desde que não fosse para onde Filipe estivesse.

A fim de amenizar a sua infelicidade, ele mergulhou nos preparativos contra João, pois João estava angariando inimigos com rapidez, o que era motivo de júbilo; e as perspectivas para a França nunca pareceram tão brilhantes. Filipe não era um velho... ainda não completara quarenta anos. Tinha tempo pela frente, e queria deixar um país progressista para Luís.

Gostava de conversar com o filho, treiná-lo, como dizia, para a futura condição de rei, e na época da morte de Agnes ele se aproximara cada vez mais do filho.

Caminhava com ele nos jardins, e lá falava com ele, como dizia, em segredo, o que criava uma agradável intimidade entre os dois.

Ele estudava Luís, preocupado. Desde aquela terrível doença ele ficara preocupado com a saúde do filho. Mandava seus médicos vigiarem o filho sem que Luís soubesse.

"Porque", dizia ele, "não quero que Luís imagine que está doente, o que não ocorre. Mas como ele tem uma constituição delicada, quero estar absolutamente certo de que se precisar de atenção esta lhe será dada prontamente."

Para a França, era importante que o herdeiro fosse forte, pensava Filipe. E se alguma coisa acontecesse a Luís, ele previa um grande conflito, pois o filho de Agnes não seria aceito por algumas pessoas, mesmo apesar de o papa tê-lo tornado legítimo. Filipe sabia, no íntimo, que um dos fatores do caso, sob o ponto de vista de Agnes, fora a legitimização do jovem Filipe, pois se ela continuasse a viver com ele, era certo que a Igreja teria mantido o ponto de vista de que o menino era um bastardo.

Filipe estava zangado com o destino, com o papa e com as circunstâncias que o haviam levado a se casar com Ingeburga antes de ter descoberto Agnes. Mas não adiantava. Restava-lhe Luís, e ele precisava orientá-lo em seu papel; e Filipe esperava ardentemente que dentro em pouco Luís lhe desse netos homens e que ele pudesse saber, agradecido, que a linha estava garantida.

Agora, nos jardins, ele conversava com o filho sobre a necessidade de recapturar tudo o que a França havia perdido ao longo dos séculos.

- Nunca estaremos realmente em paz - disse ele - enquanto a Normandia não for nossa. Guilherme, o Conquistador, levoua para a Inglaterra... ou levou a Inglaterra para a Normandia, como quiser. Mas antes da época dele, já havia atrito entre nós. Os francos nunca deveriam ter dado aquela parte da França aos escandinavos. Isso aconteceu há séculos, e quem sabe se não será a nossa glória trazê-la de volta? Temos uma oportunidade em João caída dos céus. Pense nele. Você já o viu. Qual é a sua opinião sobre ele, Luís? Será que algum dia haveria homens que seguissem um homem desses? Só os que procurassem tirar vantagem disso... ou uns poucos para os quais a lealdade à coroa é uma maneira de viver. Não, meu filho, nunca houve uma oportunidade como a que agora temos nas mãos, e vamos aproveitá-la.

Luís ouvia com atenção, mas não era um guerreiro; isso era evidente. Ele fazia Filipe se lembrar muito de seu pai... um outro Luís, e um homem bom, um homem que era importunado por sua capacidade de ver dois lados de toda questão, um homem perseguido pelos gritos de homens e mulheres inocentes mortos durante uma batalha. Filipe respeitava homens assim, mas seriam eles bons reis?

- A hora chegou - prosseguiu Filipe. - Os Lusignan estão prontos para se levantar contra ele, que roubou a noiva de Hugo.

- Filipe soltou uma gargalhada. - Aí está uma mulher pela qual homens são capazes de entrar em guerra. Dou graças a Deus pela nossa Blanche não ser igual a ela. Isabella levará João à ruína, não tenho dúvidas. Embora a própria natureza dele vá fazer isso e basta apenas que ela ajude o processo. Os Lusignan são um clã poderoso. Estão esperando para cair em cima dele. E depois, há a Bretanha. Artur e seus adeptos acreditam que ele devia estar no trono.

- O senhor acredita nisso, papai?

- vou apoiar Artur, meu filho, porque ele está contra João, e eu estou de olho na Normandia. Sua esposa. Blanche, é forte candidata à coroa inglesa, sabe, Luís?

Luís sorriu.

- Mas João é o rei, e ele vai ter filhos.

- Pelo que sabemos, ele está fazendo tudo para consegui-los

- retrucou Filipe. - Os reis levam uma vida precária, Luís. Se João morresse em combate e Artur também, ora, quem seria o próximo na linha de sucessão? É Blanche,

filha de Eleanor, irmã de João e Ricardo... os reis da Inglaterra?

- Existe a conexão, claro, mas não é provável que João morra antes de conseguir um herdeiro, e depois há o Artur. O senhor acha que o povo aceitaria Blanche?

- com a França a apoiá-la... acho. Pense nisso, Luís. A França toda em nossas mãos... e ainda por cima a coroa da Inglaterra.

- Como iríamos controlar um território assim tão vasto?

- É nisso que iríamos pensar quando chegasse a hora. É dever de um rei enfrentar os acontecimentos à medida que surjam, mas se possível estar preparado para eles e agir um passo à frente dos inimigos. Você vai trabalhar intimamente ligado a mim nessa campanha.

- O senhor está dizendo que vou entrar em combate.

- Deus nos livre. Você é muito moço. Eu nem sonharia em permitir isso. Mas essa guerra será feita de estratégia... como são todas; e o que for mais esperto nesse jogo ardiloso é que terá mais probabilidade de derrotar o oponente, embora este conte com o exército maior. Isso é uma coisa que Ricardo Coração de Leão nunca percebeu. Ele foi o maior, o mais valente guerreiro do mundo, mas não era um estrategista. Se tivesse sido, com a sua coragem e sua capacidade de comando ele teria trazido Jerusalém de volta à cristandade e, se tivesse tido tempo, conquistado o mundo. Ora, nunca liguei para um combate como liguei para a estratégia. Ela é uma política sensata, porque os países que estão sempre em guerra ficam pobres, o povo fica insatisfeito, e a prosperidade ilusória. Por isso, devemos tentar deixar que outros lutem as nossas guerras.

- É isso o que o senhor se propõe a fazer? Filipe confirmou com a cabeça.

- Tanto quanto for possível. Quero João humilhado, e por ele ser quem é não pense que será uma impossibilidade. Seus inimigos são numerosos. Os Lusignan estão muito ansiosos por atacá-lo. Artur acredita ser ele, por direito, o rei da Inglaterra. Darei a eles o meu apoio... o meu apoio

moral. Embora, é claro, se for necessário, eu tenha de prestar uma ajuda prática. Mas primeiro, vamos deixar que trabalhem para nós. vou oferecer sua meio-irmã como noiva de Artur.

- Marie. Ela não passa de uma criança.

- É verdade. Mas é filha legítima. O papa concordou com isso. Marie não está pronta para o casamento. Quanto a Artur, é um menino... da sua idade, Luís. Ele pode esperar por Marie... e se estiver com a coroa da Inglaterra quando chegar a hora, ficarei feliz ao ver minha filha tornando-se uma rainha.

- Artur sabe disso?

- Já cochichei para ele que pretendo oferecer-lhe minha filha. Ele não cabe em si de alegria. Isso significa que dou meu apoio às reivindicações dele.

- Ele vai partir em breve.

- Qualquer dia desses. A hora de atacar é esta, Luís. Converse sobre isso com Blanche. É bom que ela aprenda com você como são conduzidos os negócios de Estado.

- vou falar com ela - disse Luís.

Artur e a irmã Eleanor estavam de luto, pois a mãe deles havia morrido. Eleanor se trancou para meditar sozinha, mas Artur vivia conversando com o rei; mensageiros chegavam e saíam de Paris, e sempre havia alguma coisa a discutir, alguns preparativos a fazer, de modo que era pouco o tempo que sobrava para lamentações.

Blanche, ciente do que se passava, viu que a excitação dos eventos que estavam para acontecer ajudavam Artur a vencer a dor, assim como o mergulho nos assuntos de seu país havia ajudado Filipe em sua angústia pela perda de Agnes. Foi uma boa lição.

com os governantes, deduziu ela, o bem do país devia estar em primeiro lugar, e a dor pessoal podia e devia ser posta de lado pelo bem do país. Ficava curiosa por saber como se portaria se perdesse Luís, a quem amava mais a cada dia que passava; e pensava na profunda afeição que tinha sido tão óbvia entre seus pais e que, tinha certeza, significava mais para eles do que qualquer outra coisa sobre a Terra... e fizera realmente um lar feliz para as filhas deles. Sua mãe lhe escrevia regularmente, contando-lhe o que se passava em Castela, e falava muitas vezes sobre a saúde de seu pai. O elo entre todos eles nunca seria rompido, mas ela agora tinha uma nova vida. Luís era mais importante, para ela, do que ninguém, e a França era o seu lar.

Artur partiu para se colocar à frente de um exército, e foi com desânimo que Blanche ficou sabendo que sua avó tinha saído de Fontevrault para ajudar João.

Luís tentou consolá-la.

- Mas seu pai, você, e portanto eu também, estamos apoiando Artur - bradou ela -, e minha avó é contra Artur e a favor de João.

- Às vezes isso acontece nas famílias - respondeu Luís.

- Mas isso é diferente. Entende? Nós viajamos juntas. Tornamo-nos muito íntimas... nós nos compreendíamos.

- Então ela agora irá compreender que você tem de estar de um lado diferente.

Blanche balançou a cabeça, angustiada.

E essa angústia foi intensificada quando chegou à corte a notícia de que Artur e seus adeptos tinham atacado o castelo no qual a velha rainha estava e chegara mesmo à ousadia de prendê-la; mas João havia chegado, salvara a mãe e capturara Artur e também Hugo de Lusignan.

- Foi uma derrota amarga para Artur e uma vitória para João

- declarou Filipe, e não duvidava de que o resultado fora provocado pela velha rainha, porque de João praticamente não se podia esperar sucesso.

Mas era um revés temporário. Além do mais, Artur estava em poder de João, e ninguém podia dizer o que resultaria disso.

João deu vazão ao seu rancor e teve um grande prazer em humilhar Hugo de Lusignan, obrigando-o a andar acorrentado num carro de boi enquanto Isabella, seu amor perdido, presenciava o espetáculo; mas depois o libertara, para assombro de todos. Aquilo era apenas um sinal da imprevisibilidade de João; e como todas as suas emoções naquela época eram governadas pelos seus sentimentos pela sua rainha, parecia que ao soltar Hugo o rei estava mostrando a ela seu desprezo por ele como inimigo.

Mas não foi tão bobo a ponto de soltar Artur, e isso foi o fim do jovem príncipe. Não havia certeza quanto ao que lhe aconteceu exatamente, mas uns meses depois ele iria desaparecer do mundo, deixando atrás de si um mistério que aumentou a má reputação de seu tio, que crescia com rapidez.

Blanche pensou muito na avó nos dois anos seguintes. Sabia o quanto ela devia estar se sentindo ao viver os últimos meses de sua vida numa sombria especulação.

Blanche teria adorado ir visitá-la, para dizer-lhe que embora estivessem em lados opostos a afeição entre elas não diminuíra de forma alguma, e ela jamais se esqueceria da viagem delas de Castela ao Loire, quando as duas haviam forjado o elo entre elas que nada podia romper.

Eleanor transmitira a Blanche o quanto se orgulhava da linhagem dos Plantagenetas, a profundeza de seu amor por Ricardo e como era grande a sua preocupação com João. E com razão, pois se alguma vez um rei provocou sua própria ruína, esse rei era João. Agora, ele estava perdendo as possessões que haviam pertencido à sua família desde a época do grande Rollo. Um a um, os castelos estavam caindo em poder dos inimigos. Havia constantes murmúrios que perguntavam "Onde está Artur?", e contavam-se histórias horrendas sobre o fim do rapaz. Parecia evidente que ele fora assassinado pelo tio malvado, e os inimigos deste - dos quais o principal era Filipe da França - não iriam permitir que aquilo fosse esquecido.

Quando o castelo Gaillard foi perdido, isso lhe pareceu o fim de suas esperanças de defender a Normandia, pois o castelo era a porta para Rouen e fora conhecido como a mais poderosa fortaleza da época.

Se ele podia perder aquilo, poderia perder tudo.

Enquanto a corte se rejubilava, Blanche não podia fazer isso de todo o coração, pois precisava pensar na triste senhora em Fontevrault.

Pelo menos, ela podia enviar mensageiros à abadia para saber de sua avó, e foi assim que soube do declínio de Eleanor.

Parecia que ela se tornara indiferente quando soubera das contínuas derrotas do filho caçula e que quando Gaillard caíra tentarase evitar que ela soubesse. Mas ela fora dominadora até o fim e percebera que uma grande catástrofe tinha acontecido, e por isso insistira para que lhe contassem. Quando lhe contaram, cobrira o rosto com as mãos para que ninguém visse a sua tristeza.

- Isso é o fim - dissera ela.

As pessoas não sabiam se ela se referira às esperanças de João ou à sua vida.

Ela fora para a cama, e quando uma febre a atacara não parecera se importar se sairia da cama ou não.

Ficara de cama, às vezes murmurando sobre o passado, e percebera-se que o nome de Ricardo aparecia com muita frequência.

Ela morreu tranquilamente na cama e, de acordo com suas intruções, foi enterrada em Fontevrault, ao lado do marido que ela odiara e do filho que adorara.

A dor de Blanche foi enorme; não se esquecia da avó; e embora as pessoas à sua volta se rejubilassem com a maneira pela qual o rei da Inglaterra estava perdendo seus domínios e se vangloriassem da importância daquilo para a França, ela se sentia melancólica, sabendo muito bem que aquilo que deleitava os que a cercavam havia causado uma grande tristeza à velha senhora que ela aprendera a amar.

Então aconteceu uma coisa para distrair seus pensamentos da morte da avó.

Ela descobriu que estava grávida.

O rei ficou encantado. Blanche ainda não estava com dezessete anos e tinha muitos anos pela frente para ter filhos. Filipe congratulouse consigo mesmo pelo bom

senso de não apressá-los. Os dois estavam apaixonados, e era encantador vê-los juntos; Blanche estava se transformando numa beleza e numa mulher de bom senso, e o fato de que também ia ser mãe era motivo para a maior das comemorações.

Tudo deveria ser feito para o bem-estar dela. Os pais e as irmãs escreveram para expressar o encanto e a satisfação que sentiam, e de sua mãe chegavam conselhos sobre como cuidar de si mesma.

Fizeram-se grandes preparativos por toda a corte, e quando chegou a hora do nascimento da criança, parecia que, como disse Blanche, ninguém tivera um filho antes.

Mas aquela criança era a herdeira da França.

Houve uma certa decepção pelo fato de ser uma menina, e uma menina fraca, e quando todos os preparativos, todos os cuidados e todos os conselhos se mostraram inúteis, poucos dias depois a criança morreu, e Blanche ficou desolada. Luís a consolou.

- Nós somos jovens - lembrou ele. - Haverá outros.

- Tem de haver - declarou Blanche. - Receio que a decepção do rei será grande.

Estava certa; mas Filipe não permitiu que ela visse o grau da decepção. Consolou-a e disse que aquilo acontecia muito, em especial em famílias reais.

- Eu acredito - disse ele - que nós desejamos tanto ter herdeiros que o destino perverso se recusa a dá-los. Mas esse foi apenas o primeiro. Talvez você seja jovem demais, minha filha, porque você é jovem, sabe? Sempre me impressionou o fato de que um encontro casual com uma mulher que tenha proporcionado prazer por um ou dois dias resulta numa criança saudável. Há o meu Peter Charles, cuja mãe foi uma bela jovem que encontrei em Arras, e há o Filipe, que chamei de Hurepel por causa do jeito de seu cabelo ficar em pé. Onde se encontrariam dois meninos mais robustos? E ambos bastardos! Mas você terá filhos sadios... grandes filhos. Eu sei. Você foi feita para ser mãe de reis.

Blanche agradeceu ao rei e lhe disse que ele fizera bastante para atenuar sua melancolia; mas na sua tristeza voltaram as lembranças da avó... aquela que vivera mais do que todos os filhos, à exceção de João, e este praticamente não lhe proporcionara alegria alguma.

Teria outro filho em breve, e quando isso ocorresse, aquilo iria se tornar apenas uma triste lembrança.

Nos jardins, Filipe caminhava com o filho. Queria que ele lhe prometesse uma coisa.

Luís ficou um tanto intrigado até que o pai prosseguiu:

- Não quero que você tome parte ativa numa justa, e quero que prometa que quando comparecer a esses torneios irá como espectador.

- Mas, majestade, como posso fazer isso?

- Pode fazer isso se não comparecer usando uma armadura. Se estiver simplesmente presente com uma leve cota de malhas sem elmo, todos irão saber que não tem intenção de participar dos torneios.

- Se eu não entrar, isso será notado, meu pai. Vão dizer que sou covarde.

- Eles que venham dizer isso a mim! Ninguém irá repeti-lo, isso eu prometo. E nós dois sabemos que você não é covarde, pois pode muito bem acontecer que seja preciso mais coragem para se abster de participar dos torneios do que para entrar neles.

- O senhor quer dizer que não devo nunca mais participar das justas...

- Quero dizer que por enquanto não quero que participe. Luís compreendeu. Ele e Blanche tinham tido uma filha que

não vivera. Ele era o herdeiro do trono... o único sobre cujos direitos de herdar a coroa ninguém poderia lançar dúvida; e até que tivesse tido um filho, ele precisava viver.

A justa podia ser perigosa, porque embora um torneio devesse ser uma batalha simulada, muitas vezes se tornava de verdade. O pai do pobre e triste Artur fora participar de uma dessas batalhas, mas quando ficara cercado pelos oponentes caíra do cavalo e fora pisoteado, morrendo. No entanto, tratava-se apenas de um combate de mentira.

Luís sempre estivera cônscio das responsabilidades de um rei, mas nunca as compreendera de forma tão completa quanto naquele momento.

Quatro anos se passaram antes que Blanche pudesse dar à França a esperança de outro herdeiro. Nesse ínterim, João perdia o controle até mesmo de suas possessões inglesas. Seus barões perdiam as esperanças que tinham nele, e havia um crescente conflito entre eles; João ainda estava escravizado pela mulher Isabella, mas isso não evitava suas infidelidades. Ele se tornava cada vez mais cruel, à medida que esse poder lhe era tirado; seus inimigos constituíam um número muito grande, e irresponsavelmente ele fazia com que aquele número aumentasse a cada ano.

Filipe sonhara com a recuperação de todo o território francês. Aquilo estava quase realizado, e agora ele voltava olhares cobiçosos para a própria Inglaterra. Por que não? Sua nora tinha direitos, por intermédio da mãe. Na Inglaterra não havia lei sálica; ele não via por que Blanche não poderia, um dia, ser rainha da Inglaterra, e Luís, o rei. A França e a Inglaterra sob uma só coroa. Nem mesmo Carlos Magno fora rei da Inglaterra.

E agora, Blanche estava grávida.

Se essa criança for um menino saudável, isso será um presságio, dizia Filipe.

- Oh, Deus, dê-me um neto e estarei pronto para partir com o coração em paz e muita disposição quando o Senhor resolver me chamar.

Foi grande a alegria quando a criança nasceu - um menino, um saudável herdeiro da coroa da França.

Os olhos do rei brilharam de afeição pela nora e orgulho do neto.

- Na minha vida houve poucos dias mais felizes do que este

- declarou ele.

Enquanto ele lhe beijava a mão, Blanche disse:

- Se vossa majestade permitir, eu gostaria de chamá-lo de Filipe.

Aqueles foram os anos de triunfo para a França. Filipe tinha espiões por toda parte, e em lugar nenhum eles eram mais importantes do que na Inglaterra. Que João era um governante medíocre, um homem destinado ao fracasso, tornava-se cada vez mais óbvio para todos, exceto para João, que se vangloriava dizendo que iria recuperar tudo o que havia perdido.

Quando João entrou em conflito com a Igreja, foi excomungado; e o papa deu a entender que as reivindicações da França não o desagradavam.

Chamando o filho e a nora à sua presença, Filipe lhes disse que chegara a hora de se prepararem para a invasão. Ele acreditava que dentro em pouco Blanche receberia sua herança.

Quatro anos antes, quando Blanche estava esperando seu filho Filipe, Luís havia recebido as esporas dadas por seu pai em compiègne. Essa cerimónia, que era sempre realizada com o máximo de pompa, fora presenciada por um número de pessoas maior do que de costume, porque naquela ocasião o herdeiro do trono mostraria aos presentes o seu direito à honra, e depois disso Filipe não impediria mais que o filho tomasse parte nos torneios de justas. Além do mais, agora ele tinha seu xará e neto, que parecia estar crescendo para se transformar num homem saudável; e embora Blanche fosse um pouco lenta em gerar mais netos, o rei sempre se consolava com a observação de que ela ainda era jovem.

Nessa época, com o Filipe de quatro anos um encanto na ala infantil real, e com o rei João excomungado e nitidamente ficando cada vez menos capaz de defender o reino, Blanche ficou grávida uma vez mais.

Ela ficou maior do que de costume, e Filipe ficou convencido de que ela teria um belo menino.

Blanche estava com 25 anos - já não tão jovem, mas a sua inteligência o encantava; e o mais prazeroso era que a afeição entre ela e Luís não arrefecia à medida que amadurecia. Luís saíra ao avô, aquele outro Luís, e nunca olhava para outras mulheres, o que era muito raro. O próprio Filipe tivera muitos amores na vida - nem todos mulheres, mas Luís era um rapaz sério; ansioso por governar bem, e com a ajuda de Blanche obter glórias para o seu país, nunca lhe ocorrera ser outra coisa que não um marido fiel.

Quando os gémeos de Blanche nasceram mortos, a euforia da corte ficou em certo período encoberta. Não era o primeiro infortúnio que caíra sobre Blanche. Era verdade que o jovem Filipe progredia bem na ala infantil, mas ao se lembrar de como era fácil criancinhas serem levadas pela morte, a inquietação do rei voltou.

Mas pouco depois ela tornou a ficar grávida e as esperanças cresceram muito.

Filipe ouvia comentários velados de que não poderia haver uma boa sorte verdadeira na corte enquanto a sua rainha, reconhecida como tal pela Igreja, ficasse isolada e privada de toda a sua dignidade real.

Filipe retirou-se para seus aposentos e meditou numa conversa íntima com Deus. Ninguém sabia o que ele tanto abominava na mulher com que se casara e por que ainda tremia de horror ao pensar em tê-la junto dele. Aquilo era um segredo que não iria contar a ninguém. Mas era evidente que em seus aposentos privados ele lutava consigo mesmo. Ele era rei da França, e talvez mais do que qualquer coisa, preocupava-se com a França. Seu maior desejo era tornar a França grande novamente. Parecia-lhe que Deus atendera a suas orações ao colocar um irresponsável como João no trono da Inglaterra. Toda semana chegavam notícias da Inglaterra, e ele via, talvez com uma nitidez maior do que João, as tempestades que se formavam sobre a cabeça dele. Os barões haviam-se revoltado contra ele, que perdera terras muito valiosas além-mar. Restava-lhe muito pouco da Normandia; e nunca a França estivera numa situação tão vantajosa.

Deus havia escolhido Filipe para ser o salvador de seu país, mas estava lhe negando aquilo que ele mais queria: uma ala infantil garantida. Ele tinha o jovem Filipe - e seu coração se enchia de alegria ao pensar no menino -, mas vivia com o terror de que alguma doença fatal pudesse atacá-lo. Tinha medo com relação a Filipe como tivera com relação a Luís. Não queria que o menino montasse um pónei que saltasse muito; ficava horrorizado quando ele participava de brincadeiras brutas que podiam resultar em acidentes. Filipe seria o primeiro a admitir que aquilo não era maneira de criar um menino.

Mas se houvesse três, quatro ou cinco meninos na ala infantil real, não seria tão imperativo proteger um deles.

Blanche havia perdido os gémeos. Pobrezinha, ela estava muito triste. Precisava ter meninos. Era a única saída.

E se Deus o estava punindo, só havia uma coisa a fazer: trazer Ingeburga de volta.

Ela voltou, ansiosa. Seus dias peripatéticos tinham acabado, e ela foi recebida na corte com toda a cerimónia de uma rainha.

Filipe a observava com olhos em que havia uma emoção reprimida; a repugnância era a mesma de sempre. Ela sabia disso, e em vez de ficar magoada como ocorrera todos aqueles anos, havia um certo desafio em soa atitude.

Ela vencera a batalha entre eles, já que ele fora forçado, depois de todos aqueles anos, a aceitá-la de volta, e ela iria desfrutar plenamente o seu triunfo.

Em toda parte a que iam, ela estava ao lado dele. O povo se alegrava, pois acreditava que os céus iriam sorrir de satisfação com a França, agora que o seu rei já não cometia a ofensa de exilar a sua rainha. Ele mostrava o máximo de preocupação com ela em público, mas fora disso raramente lhe dirigia a palavra; nem suportava tê-la por perto.

Para ele foi uma época triste, pois ela o fazia lembrar-se - justamente pela diferença - da doce Agnes, e Filipe voltou a lamentar tê-la perdido.

Seus filhos com Agnes iam bem, o mesmo acontecendo com os seus dois bastardos que ele mantinha na corte - Peter Charles e Filipe Hurepel. Ele estava sempre vigiando aquele outro Filipe e rezava para que o próximo filho de Blanche fosse um menino.

Aquele ano foi um misto de alegria e tristeza para Blanche. Em abril, seu filho nasceu e, para grande encanto de todos, foi menino. Eles o chamaram de Luís, em homenagem ao pai, e ele se desenvolveu bem.

- Eu sabia que viria - bradou o rei. - Agora, temos dois meninos, e que Deus os conserve. Haverá alegria em toda a França. Te Deums serão cantados em todas as igrejas. Minha queridíssima filha, hoje você me tornou um homem muito feliz.

Ele acreditava, e o mesmo acontecia com a maioria de seus súditos, que tendo levado Ingeburga de volta e colocado-a no lugar que era dela por direito, Deus o estava recompensando com o neto que ele desejava tão desesperadamente.

- São dois, agora - exultava Filipe. - Filipe... Luís... Nomes de reis para dois reizinhos.

Não achava que eles precisassem ser vigiados tão de perto. Que participassem de suas brincadeiras, andassem a cavalo, se transformassem em homens fortes.

Blanche estivera recebendo notícias de Castela que a deixavam muito apreensiva. Sua mãe escreveu dizendo que o pai tivera uma febre que o deixara fraco e que estava sempre voltando. Aquilo a deixava muito apreensiva, porque quando ele tinha aquela febre, ela ficava com muito medo de que ele morresse.

Amamentando seu filhinho, Blanche se perdia em pensamentos sobre o que acontecia em Castela e estava sempre à espera de notícias.

Ela ficava sentada com Amincia, o bebé no berço ao lado delas, enquanto as duas bordavam belas roupas para ele. Amincia sabia fazer o mais belo bordado espanhol, e ela adornava muitas das roupas do bebé. Juntas, as duas recordavam longos dias de verão em Castela, onde os trovadores haviam tocado seus alaúdes e cantado suas canções de amor. Amincia tinha uma bela voz e cantava algumas delas, transportando Blanche de volta àquela época. Às vezes Amincia a chamava de Blanca, o que era outro motivo de recordação.

O canto de trovadores era algo de que ela sentia muita falta na França, pois embora houvesse muita música na corte, não era como tinha sido nas cortes do sul da França e da Espanha. Falava-se mais em guerra e no que estava acontecendo na Inglaterra, no que estava para acontecer lá e no papel que a França teria nisso.

Ela teve a atenção voltada para um menino que devia ser uns dez anos mais moço do que ela. Era bonito, um poeta com uma bela voz. Ele tinha orgulho de seu sangue real, pois era neto de Marie, uma das filhas de Eleanor de Aquitânia e Luís VII. Fora uma daquelas crianças que haviam brincado nos jardins do palácio e se achava sob a tutelagem da família do rei. Considerava-se, portanto, membro da família real e, como tal, gozava de certas concessões que significavam uma falta de cerimónia.

Sentia-se muito atraído por Blanche, e muita gente achava divertida a dedicação do menino. Ele começara a se referir a ela nas canções que compunha. Era tudo muito encantador, pois ele era um menino bonito, gracioso.

Por isso, muitas vezes ele se sentava aos pés de Blanche enquanto ela, com Amincia e outras das mulheres que a serviam, bordava as roupas que adorava fazer para o pequenino Luís. O jovem Filipe, muitas vezes, juntava-se a eles; estava com cinco anos, era saudável e robusto, o deleite do avô, de quem levava o nome; e era uma ala infantil muito feliz aquela que Blanche chefiava.

Os filhos, a satisfação do rei, o harmonioso relacionamento com Luís, formavam a felicidade daquele ano. Mas a tristeza viria, e lhe foi levada por mensageiros vindos de Castela.

Seu pai piorara. Daquela vez, não conseguira se livrar da febre. Morrera em agosto, quando o pequenino Luís estava com quatro meses.

Blanche se isolou; não queria ver ninguém. Voltara ao passado, àquela mais feliz das famílias onde havia apenas o sarraceno para ameaçá-los. Lembrava-se das ocasiões em que o pai voltara das guerras e da alegria que houvera no castelo. Lembrava-se da alegria na fisionomia de sua mãe e do brilho caloroso que envolvera a todos. Ela, com as duas irmãs mais velhas e a mãe, ficava no pátio para recebê-lo, e ele abraçava primeiro sua mãe e se agarrava nela como se nunca mais fosse soltá-la. A vez delas vinha em seguida. Dias felizes, felizes - muito distantes, mas para nunca serem esquecidos e para serem rememorados repetidas vezes por toda a vida.

- Minha mãe vai ficar triste - disse ela. - O amor entre os dois era a vida deles. Mamãe ficará desolada. Todas as filhas saíram de casa e não há ninguém. Luís, preciso ir visitá-la.

O querido e compreensivo Luís, que sempre queria fazê-la feliz, concordou que ela devia ir logo. Perguntou se queria que ele fosse junto. Ele entendia o relacionamento entre as duas, pois não tinha ele um igual com a sua querida esposa?

Fizeram os preparativos para partir, mas infelizmente a viagem não foi necessária. Dois meses depois de Alfonso de Castela ter morrido, Eleanor também morreu. Diziam que ela morrera de tristeza, porque não podia continuar vivendo sem ele.

Descobriu-se que eles tinham deixado instruções no sentido de que fossem enterrados lado a lado, e escolheram o mosteiro de Lãs Huelgas, ao qual dedicavam um carinho especial, por tê-lo fundado juntos.

Assim, disse Blanche, aqueles que eram tão próximos em vida não ficarão separados na morte.

A lembrança dos dois a perseguia, e nem mesmo a feliz ala infantil com seus dois belos meninos e a devoção de Luís, tão parecida com a que seu pai sentia por sua mãe, podiam consolá-la de todo.

 

Rei e Rainha da França

EMBORA A SITUAÇÃO no outro lado do canal estivesse ficando cada vez mais dilacerante, havia problemas suficientes na França. O sonho de Filipe, de invadir a Inglaterra, foi frustrado por um encontro em Boulogne, onde a frota inglesa, que era superior à dele, afundou e capturou mais da metade de seus navios. Isso fora tão dispendioso que Filipe se vira obrigado a adiar a ideia de outro ataque por enquanto. Não que o campo estivesse livre. Havia outros compromissos em Flanders e em Poitou.

Ele estivera inclinado a se imaginar enfrentando o insensato e irresponsável João; mas havia homens na Inglaterra que continuariam leais à coroa, por mais indigno que fosse aquele que a usasse. Dois daqueles homens eram Guilherme Marechal e Hubert de Burgh, e enquanto homens assim trabalhassem para João, a sua derrota não seria uma coisa fácil.

Mas não demorou muito para que a situação mudasse.

Os barões da Inglaterra tinham-se rebelado contra João e o tinham obrigado a assinar a Carta em Runnymede, que devolvia direitos ao povo e atenuava as perniciosas leis das florestas. Havia 63 cláusulas, todas destinadas a cercear o poder do rei e a respeitar os direitos do povo da Inglaterra.

Não era difícil imaginar com que relutância João havia assinado uma carta daquelas e o quanto a sua posição devia estar insegura para que ele concordasse em assiná-la; mas praticamente não se esperava que ele não fosse tentar descumprir a palavra, pois seria necessário mais do que uma carta para fazer com que modificasse seu modo de agir e se portasse com bom senso e justiça. Mesmo assim, Filipe não esperara que os barões ingleses fizessem o seu jogo de forma tão completa. Quando os mensageiros foram procurá-lo e lhe disseram o que pretendiam, Filipe nem pôde acreditar.

Mandou chamar imediatamente Luís e Blanche, pois aquilo iria ser de seu máximo interesse.

Quando os dois chegaram, Filipe dispensou todo mundo para que pudesse conversar com os dois com o máximo de discrição.

- Houve uma reviravolta muitíssimo inesperada. Vocês sabem como está a situação na Inglaterra. João não poderá manter a coroa por muito mais tempo.

- Mas agora que ele assinou a Carta - começou Luís -, os barões vão mante-lo na linha.

- Não é possível manter um homem desses na linha. Ele é ganancioso, sonso, indigno de confiança e irresponsável. Tem todas as qualidades para torná-lo um governante mau e nocivo, e nada irá erradicar uma delas. Os barões sabem disso. É por isso que fizeram esta sugestão extraordinária. - Filipe olhou para Blanche. Você tem direito ao trono, minha querida, e Luís também o tem por seu intermédio. Os barões ingleses estão lhe oferecendo a coroa da Inglaterra se você for assumi-la.

- Impossível! - bradou Filipe.

- Não, meu filho, quando você for, será calorosamente recebido. Os barões querem você lá... desejam um governante forte que os livre de João.

- Luís ir para a Inglaterra! - bradou Blanche, perplexa.

- É o Luís que tem de ir - disse Filipe com firmeza. - Ele reivindicará a sua herança e, com você, governará a Inglaterra. Quem teria acreditado ser possível haver um forte contingente de homens na Inglaterra que chegariam mesmo a recebê-los de braços abertos na terra deles?

- Isso não podia ser uma armadilha? - perguntou Blanche, apreensiva.

- Estou certo de que não é. Esses homens estão em guerra contra o próprio rei deles. Não querem mais saber dele. Acreditam que a única maneira de tornar o país forte e provocar um retorno à lei e à ordem é oferecer a coroa ao próximo da linha de sucessão.

- Mas existe um filho - disse Luís.

- Uma criança! - retrucou Filipe. - Imaginem. João deposto. Um menor no trono. Isso resolveria alguma coisa? Não, a maioria dos barões ingleses quer João fora do caminho e foi esta a maneira que escolheram para fazer isso. Não fiquem tão intrigados assim. £ uma decisão sensata. A quase totalidade das possessões deles na França foi perdida, e muitos desses barões vêem a possibilidade da devolução de seus castelos e terras. Isso pode muito bem ser uma concessão que vão pedir, e a faremos. Queremos paz entre nossos dois países... um só governante para ambos. O que poderia ser melhor? E conseguiremos pouca coisa com um tratamento duro daqueles que facilitaram o caminho para nós. Eles sabem disso. Conhecem o meu governo. Conhecem você, Luís. Fazem uma comparação entre nós e João, e estão nos convidando para governá-los.

Depois de deixarem o rei, Luís e Blanche discutiram o assunto. Aquilo deixava Blanche apreensiva.

- Não gosto de que você é quem tenha de ir. Não seria mais sensato seu pai liderar as forças?

Luís balançou a cabeça.

- Não. Essa coroa chega até nós por seu intermédio. Eu sou seu marido. Serei o rei da Inglaterra, e você a rainha. Meu pai está certo quando decide que quem vai sou eu.

Em princípios do ano de 1216, Luís atravessou o canal e marchou sobre Londres, cidade em que recebeu a homenagem dos barões que estavam ansiosos por derrubar João.

Como era natural que João, com alguns homens que permaneciam fiéis a ele - entre os quais os dignos Guilherme Marechal e Hubert de Burgh -, não fosse ceder com docilidade, Luís tinha de esperar resistência, e esta veio. Mas quanto mais cidades ele tomava, maior o número de pessoas que o aceitavam. João estava antagonizando o país inteiro com o seu modo cruel de tirar o que quisesse das cidades pelas quais passava e de não mostrar respeito algum pelas casas religiosas. O infortúnio o perseguia. Ao atravessar o Wash, sua bagagem, incluindo as jóias, se perdeu; chegando a Sleaford ele morreu em circunstâncias um tanto misteriosas. Alguns diziam que fora envenenado por um monge da abadia de Swineshead, onde passara algumas noites e onde vira uma freira que tentara violentar. Doença, lassidão e a engenhosidade dos monges haviam salvo a freira, mas depois João havia morrido por comer uma fruta que, segundo se suspeitava, estava envenenada.

Assim, ele morrera de forma violenta, como havia vivido, e o pesadelo que criara morrera com ele.

Quando Filipe levou a notícia a Blanche, os dois comemoraram juntos.

- Agora, as coisas vão ficar fáceis - disse o rei. - Luís será coroado, e nós iremos ficar em paz.

- Mas, e os filhos dele? Creio que são dois.

- Meninos... nada mais.

Blanche ficou pensativa, imaginando se, por um acaso, Filipe e Luís morressem e o seu Filipe, com sete anos, de repente fosse o rei, ela ficaria de lado e deixaria um estrangeiro ficar com a coroa. Claro que não. Faria com que ele fosse coroado de imediato.

Então, pensou em Isabella, com quem estivera durante pouco tempo, logo depois de seu casamento. Na época, ela era lânguida, sensual e muito bonita. Continuaria ela assim? Casara-se com João e parecia lamentar pouco a perda de Hugo, e quando se pensava no belo e íntegro senhor de Lusignan e João, por certo qualquer mulher teria preferido Hugo.

A verdade era que, embora João tivesse morrido, restava Isabella. Não iria ela se meter e deixaria que Luís fosse coroado em lugar do seu filho?

Blanche falou nisso com Filipe, que deu de ombros.

- Isabella! - Filipe soltou uma gargalhada. - Se as histórias que se ouve sobre ela forem verdadeiras, parece que ficaria mais preocupada com os amantes do que com a herança do filho. Você sabe que ela era mais ou menos uma prisioneira de João. Dizem que ele enforcava os amantes dela por cima da cama, o que é um gesto característico dele. Não acho que devemos nos preocupar com Isabella.

- Tenho um estranho pressentimento de que teremos sempre de nos preocupar com Isabella - disse Blanche.

- Não... Deus está nitidamente conosco. - Filipe estava sério, pensando no preço que Deus havia pedido pela ajuda. Aceitar Ingeburga de volta. Ora, ele merecia a sorte de ser convidado a ir à Inglaterra e de João morrer precisamente no momento oportuno. Filipe estava certo de que Deus colocara a bela freira no caminho de João e colocara na cabeça do monge a ideia de envenená-lo.

Mas era a dedução de Blanche que estava certa.

Isabella estava, mesmo, preocupada com o filho. Era uma mulher muito ambiciosa e não ia deixar que seus direitos fossem usurpados por um estrangeiro.

Além disso, contava com dois homens fortes a seu lado, Guilherme Marechal e Hubert de Burgh.

Pouco depois da morte de João, o jovem Henrique foi coroado, e ficou claro que aqueles barões que haviam convidado Filipe para ir governá-los pretenderam apenas livrar-se de João. Deus o havia destituído, e agora eles teriam o seu rei de direito no trono, e se ele era apenas um menino de nove anos, contava com fortes homens leais ao seu lado.

Era óbvio que Luís já não era bem-vindo na Inglaterra. Ele tinha uma opção. Poderia ficar e lutar uma guerra sangrenta, e uma guerra dessas longe da pátria e em solo estrangeiro seria um fracasso quase certo - ou poderia voltar para casa.

Escolheu a última.

E assim, a aventura inglesa terminou. Havia um rei jovem no trono, e como lá estavam homens fortes para apoiá-lo, a lei e a ordem foram restauradas na Inglaterra. Era verdade que João havia perdido a maioria de suas possessões no continente ("E precisamos manter essa posição", dizia Filipe), mas naquele momento nada havia a fazer.

Enquanto Luís estivera fora, Blanche dera à luz uma outra criança - outro menino, para o deleite do avô.

Ele se chamou Robert.

Três meninos na ala infantil. Era um número para deixar um rei feliz.

Enquanto Filipe exultava com a posse de seus três netos, a tragédia atacou a ala infantil. O mais velho, e aquele que tinha o mesmo nome do rei, que um dia estivera caçando com a melhor das saúdes, no dia seguinte estava doente demais para sair da cama.

A princípio parecera alguma doença infantil indefinível, mas quando se passaram dois dias e o menino teve febre, veio a preocupação com a sua saúde e chamaram-se médicos de todas as partes do reino.

O rei ficava sentado ao lado da cama dele com Blanche e Luís e, aflitos, mantinham uma vigília, mas o menino que parecera ser muito saudável e animado não melhorava.

- O que mais eu poderia ter feito? - perguntou Filipe. - Abri mão de Agnes, recebi Ingeburga de volta. - Um medo gelado tomou conta dele. Estaria Deus pedindo-lhe que vivesse com ela como marido? Oh, não! Isso era pedir demais. Deus não podia ser tão cruel. Enquanto se atormentava, viu o seu adorado xará morrer.

Houve um luto profundo na corte. O jovem Luís era, agora, o importante. Ele era um garotinho íntegro, um menino de quem qualquer pessoa podia se orgulhar - mas Filipe também fora assim. Vivo e bem uma semana, e morto na semana seguinte! Parecia a mão de um Deus vingador, pois ninguém poderia sugerir por um instante que o menino tivesse sido envenenado.

Como que para compensar, Blanche quase que imediatamente ficou grávida e no devido tempo deu à luz outro menino. Queria chamá-lo de Alfonso, em homenagem ao pai, mas aquele nome não era francês. No entanto, Filipe ficou tão encantado por haver mais um menino na ala infantil que concordou, desde que fosse usada a forma francesa do nome - Alphonse. Ele estava encantado, disse ele, por ela mostrar o quanto gostava do pai, a ponto de querer que o filho tivesse o nome dele.

Filipe admitiu para si mesmo que poucos reis podiam estar tão contentes com seus herdeiros quanto ele. Pensou em seu adorado Ricardo Coração de Leão - que não tivera nenhum - e em Henrique, pai de Ricardo, que vira os filhos, um a um, voltarem-se contra ele.

Luís jamais faria isso. Podia dizer sem reservas que em Luís ele tinha o melhor dos filhos. Lembrava-se de que, muito tempo atrás, ele o proibira de participar dos torneios e que Luís não o desobedecera uma única vez, embora a ordem o tivesse colocado numa situação difícil e pudesse ter-lhe granjeado, veladamente, o título de covarde em alguns setores.

Luís, Robert, Alphonse e depois João, todos vindo em seguida e demorando o mínimo possível para chegar. Quatro netos saudáveis. Como Filipe se vangloriava! Afinal, Deus não podia ter ficado contrariado.

Chegou uma notícia à corte da França, que deixou assombrados todos os que a ouviram. A rainha Isabella, viúva do rei João, chegara a Lusignan com a filha Joana, que estava noiva de Hugo de Lusignan, mas este, ao ver Isabella, decidira que era com ela que queria se casar.

Filipe soltou uma sonora gargalhada.

- Eu me lembro bem dela. Quando João fugiu com ela, disseram que era a Helena do século XIII. Bastava vê-la para compreender por quê. Acredito que muitos homens ficaram inteiramente enfeitiçados por ela. João sem dúvida ficou. Quanto a Hugo de Luienan, esperara por ela aqueles anos todos. Mas não tenho dúvidas de que ele se casou com um problema.

- Eu também não - disse Blanche.

Filipe olhou de esguelha para a nora. Ela devia estar se lembrando de seu encontro com Isabella; e iria sentir por ela aquela antipatia natural que ele supunha que a maioria das mulheres sentia por uma mulher que devia ofuscar todas elas.

Estava curioso por saber se Isabella perdera alguma coisa daquele fascínio. Duvidava. As mulheres assim o mantinham até o fim da vida, e o fato de Hugo tê-la preferido à filha jovem dava a entender que ela ainda mantinha aquela potente força para atrair homens.

Blanche estava inquieta, e no entanto não compreendia por que a ideia de Isabella estar por perto a deixava assim. Sentira uma inexplicável repugnância quando as duas se conheceram, e, apesar do que a maioria das pessoas poderia pensar, aquilo nada tivera a ver com ciúme de uma espalhafatosa capacidade de atrair os homens.

- Espero que Hugo seja feliz com ela - disse ela a Luís.

- Ele nunca se casou, e é como se tivesse esperado por ela, de modo que deve ter certeza de seus sentimentos.

- Desconfio que ela levou a filha para Lusignan com a ideia de ela mesma se casar com o noivo.

Luís não acreditava, mesmo, que isso fosse possível, mas era um homem muito inocente.

Quando chegou à corte a notícia de que Hugo se recusava a mandar a filha dela de volta para a Inglaterra enquanto o dote de Isabella não fosse enviado, o que se comentou foi que aquilo era coisa de Isabella. Apesar de toda a sua coragem, Hugo era um homem tranquilo.

- Pode estar certa de que ela irá dominá-lo por completo disse Filipe.

- Eu gostaria de saber o que ela acha de ser esposa de um conde depois de ter sido rainha - murmurou Blanche.

- Posso apostar que não gosta nem um pouco - disse Filipe.

- Então - replicou Blanche -, o provável é que ela tente fazer alguma coisa quanto a isso.

- O que é que ela pode fazer? - perguntou Filipe. - Ela se casou com Hugo por livre e espontânea vontade. Voltou ao que teria sido se João não a tivesse visto cavalgando na floresta. Pelo menos Hugo não vai enforcar seus amantes sobre a cama dela.

- Esperemos que ela não arranje nenhum e fique satisfeita com o marido.

Filipe deu de ombros, e a inquietação de Blanche continuou.

Durante algum tempo, Filipe estivera perseguido pelos albigenses, contra os quais, por se encontrarem no sul da França, o papa lhe ordenara que fizesse uma campanha. Lutar contra eles era lutar em favor da Igreja, e uma oportunidade para um homem receber a remissão dos pecados quando, antes daquela seita se revoltar, ele teria de fazer a longa, enfadonha e perigosa viagem à Terra Santa para conseguir o mesmo objetivo.

Os albigenses, assim chamados porque viviam na diocese de Albi, eram um povo que adorava o prazer, música e literatura; não eram, em absoluto, sem religião, mas gostavam da liberdade de pensamento. Seu grande prazer era discutir ideias e examinar doutrinas, e o papa, reconhecendo um perigo nisso, enviara homens da Igreja para pregar para aquela gente e salientar a insensatez e o perigo de seu discurso. O resultado foi o que se poderia ter esperado. Os pregadores foram ouvidos no início, e depois que se descobriu que não tinham sido enviados para desenvolver ideias mas evitar a discussão delas, foram ignorados.

A Igreja estava vigilante, pois temia que contra ela pudessem ser apresentados argumentos irrefutáveis. Setenta ou oitenta anos antes, Peter Abelard fora um perigo semelhante. Sua interpretação racionalista das doutrinas cristãs havia feito com que ele fosse rotulado de herege, e S. Bernardo, o abade de Clairvaux, havia proferido

ameaças contra ele. Seu caso de amor com Heloísa, que se tornou prioresa de Argenteuil e abadessa de Paraclete, fora útil a Bernardo, e Abelardo tinha sido derrotado.

  1. Bernardo tinha visitado Toulouse, que era o centro daquela agitação que fora provocada pela interferência da Igreja. O povo de Albi não desejava interferir na tradição da Igreja que já existia, mas simplesmente ter liberdade de debater e venerar à sua maneira.

Houvera tentativas de fazer perseguições, mas estas pouco conseguiram. Raymond, conde de Toulouse, era um homem condescendente. Não queria problemas com Roma, tampouco queria antagonizar seus súditos. Quando ele morreu, seu filho Raymond, o sexto conde, reinou em seu lugar. Revelou-se um homem amante do prazer, musical e culto, e era ainda mais condescendente do que o pai. Na sua corte, a religião era discutida livremente, e ele mesmo passou a se interessar pelas novas ideias.

com a chegada de Inocêncio IIIao trono papal, a perseguição aos albigenses transformou-se numa guerra cruel, da qual nasceu o que era conhecido como Santo Ofício, ou a Inquisição. A Igreja estava decidida a esmagar os hereges, e se dispunha a fazer qualquer coisa para isso. Aqueles que discordavam das doutrinas estabelecidas

pela Igreja eram torturados de várias maneiras bárbaras, e se se recusassem a modificar seus pontos de vista - e às vezes, mesmo que modificassem -, eram queimados vivos na estaca.

Inocêncio encontrara um homem útil em Simon, conde de Montfort-PAmaury. Esse homem pertencera a uma família que, de um princípio modesto, enriquecera em poucas gerações. O primeiro lorde Montfort adotara o nome e o título só porque possuía um pequeno castelo entre Paris e Chartres. O casamento trouxera-lhe riqueza e posição, e o condado de Leicester, mas o conde percebera logo que as chances de progredir com João não eram boas e que ele ficaria em situação melhor sob Filipe da França, de modo que se mudara para as suas propriedades normandas e vivia lá.

Ele vira uma chance de fazer nome e fortuna na guerra contra os albigenses, e como possuía qualidades de liderança e também era um católico ferrenho, em pouco tempo ficou conhecido como líder da cruzada.

Em pouco tempo se tornou comandante-em-chefe e se fez notar pela violência em combate, pelo génio para liderança e pela crueldade fanática.

Filipe não gostava de de Montfort e lamentava a campanha contra os albigenses. Ele não se achava profundamente envolvido com religião e a praticava por querer aplacar os poderes celestiais, e não por devoção. Ele tinha um forte senso de justiça, e herdara do pai uma crença na moderação; e como os condes de Toulouse eram seus vassalos, opunha-se aos exércitos do papa que ali lutavam.

Inocêncio mandara lhe dizer que, como verdadeiro cristão, ele tinha o dever de consciência e para com o seu Deus de lutar ao lado do exército dos justos.

- O exército dos justos! - bradou Filipe. - Quem pode dizer o que é o justo? Que mal os albigenses fizeram a alguém, a não ser a si mesmos, se forem realmente hereges? E não há dúvida que Deus é capaz de lidar com aqueles que desrespeitem Suas leis... se forem realmente Suas. Mas talvez sua santidade tenha cometido um erro ao interpretá-las.

Escreveu ao papa.

"Tenho nos meus flancos dois terríveis leões - o imperador Oto e o rei João da Inglaterra - que estão agindo com toda a força para criar problemas para o reino da França." Disse não ter, naquele momento, disposição para marchar contra os albigenses nem enviar seu filho, mas que insinuara a seus barões da província de Narbonne que poderiam marchar contra os perturbadores da paz.

Aquilo era uma ordem bem evasiva, porque quem iria dizer quem estava perturbando a paz? Era mais provável que fossem os exércitos estrangeiros do que o povo de Albi, cuja simples determinação de manter a liberdade era responsável pelo contratempo.

No ano de 1213, Simon de Montfort venceu a batalha de Muret, e Filipe mandou Luís para ver os cruzados tomarem Toulouse.

Luís voltou horrorizado com o que viu. A cidade devastada era o menos importante. Todos os refinamentos de crueldade tinham sido perpetrados contra os habitantes da cidade.

Filipe levou Luís para seu aposento privado e os dois conversaram. Luís estava, na época, com 26 anos - era sensível, bem valente, mas gostava ainda menos da guerra do que o pai. Disse que nunca esqueceria as terríveis atrocidades que vira naquele dia.

Filipe cerrou os punhos e disse:

- Espero que dentro em pouco Simon de Montfort e seus homens morram em ação, pois Deus é justo e a queixa deles é injusta.

No entanto, quando as vitórias de Montfort foram decisivas, ele foi obrigado a aceitá-lo como seu vassalo em lugar de Raymond, mas quando ele morreu, Filipe se recusou a reconhecer o filho. Mas àquela altura Raymond e o filho haviam recapturado grande parte do território perdido para eles e no ano de 1218 (dois anos depois da morte do próprio Inocêncio) uma chuva de pedras caindo dos parapeitos esmagou de Montfort, matando-o, quando tentava retomar o castelo de Toulouse.

De modo que Filipe era perseguido pela questão albigense, pois como todos os reis ele vivia com um medo respeitoso em relação ao papa e sabia, graças à experiência recente com o problema de Agnes e Ingeburga, o quanto os papas podiam tornar incómoda a vida de um rei.

Ele agora meditava sobre o assunto. Não que estivesse disposto a colocar a si mesmo ou seu país em perigo por um senso de justiça - sempre fora guiado pela prudência, e seu discernimento sempre fora um forte ponto a seu favor. Ele governara bem, disso podia estar certo; havia provas em toda parte; era um rei que merecia respeito e isso se devia à sua conduta ao longo dos anos de reinado.

Ele chegara ao trono jovem - um garoto de quinze anos. Reinara quase quarenta anos, e durante esse tempo aprendera principalmente quando agir e, o que era mais importante, quando não agir. Era essa uma das razões pelas quais conseguira manter-se moderadamente indiferente ao que considerava uma guerra bárbara de justiça duvidosa, e na época não ofender o papa o suficiente para provocar represálias.

Ele começara a ser afetado por uma febre intermitente, e seus médicos não sabiam a causa. Quando ela o atacava, ele precisava ficar de cama.

Lá, meditava sobre a situação do país, e muitas vezes mandava chamar Blanche para que pudesse conversar com ela. Descobriu que podia fazer isso com absoluta franqueza. Estava preocupado com Luís.

Ele adorava o filho.

- Luís nunca me causou, de propósito, um só momento de apreensão - disse ele. - Ele é um bom homem, mas os homens bons podem tornar-se facilmente vítimas de homens maus, como você bem sabe. Minha filha, eu me sinto feliz com o dia em que sua avó nos trouxe você. Pode muito bem acontecer que um dia você fique ao lado de meu filho e governe este país.

- Esse dia, espero em Deus, está muito longe - disse Blanche com fervor.

- Oh, ainda estou moço - replicou Filipe. - Talvez viva mais uns quinze anos... e alguns anos mais... o que é isso? O jovem Luís está crescendo bem. E há os outros meninos. O jovem Roberto gosta muito do irmão Luís. Espero que essa afeição continue a vida toda dos dois. Quanto aos outros, ainda são muito crianças para nos mostrarem o que vão ser. Mas me alegra o fato de você ter enchido a nossa ala infantil com meninos bons e fortes. Assim como eu não poderia querer um filho melhor, também não poderia ter desejado uma filha melhor.

Blanche estava profundamente emocionada. Ela disse:

- Tenho uma sensação de que vou ficar enceinte mais uma vez.

- Louvado seja Deus - disse Filipe. - E se desta vez for uma menina, iremos abençoar a nossa boa fortuna.

No prazo devido, a criança nasceu. Recebeu o nome de Filipe, mas como os país se lembravam daquele belo menino que morrera com nove anos, eles quiseram distinguir o recém-chegado do irmão falecido e acrescentaram Dagoberto ao nome, de modo que ele ficou sempre conhecido como Filipe Dagoberto - na época, considerado um nome fora do comum, embora muitos reis o tivessem tido no século VII. Blanche chamou a atenção para isso, de modo que foi uma ideia agradável revivê-lo enquanto dava ao menino o mesmo nome do avô.

O rei se sentia mal e sem disposição para sair da cama, quando lhe levaram a notícia de que o papa convocara um concílio que teria lugar em Paris.

Filipe, que estava repousando em seu palácio em Pacy-sur-Eure, fez uma careta quando soube. O fato de que a reunião seria realizada em Paris queria dizer, é claro, que se esperava que ele estivesse presente. Ele gostaria de ver toda a questão de seu problema esclarecida, mas se sentia apreensivo porque a Igreja, decidindo com grande determinação esmagar a heresia, estava instituindo aquele Santo Ofício, que Filipe considerava uma invenção perigosa. Ele previa que ninguém estaria a salvo dele, e tendo em mente a constante necessidade de dinheiro por parte da Igreja, ficava imaginando se os que o possuíssem não poderiam ser escolhidos como vítimas, já que, além de torturarem os chamados hereges, confiscavam-lhes a riqueza que, naturalmente, ia para os cofres da Igreja.

Tentando pensar num futuro que começava a achar que não estaria ali para ver, Filipe visualizava perigos naquele Santo Ofício ou Inquisição. Chegava até a querer saber se aquilo seria bom ainda que desse lucro - para a Igreja. Via homens de recursos mudando-se para países em que não existia o Santo Ofício. Talvez ele fosse expor aquelas ideias na conferência. Talvez não. Não cabia a ele preocupar-se com o que acontecia fora da França. Era por ter sempre seguido essa opinião que a França estava, agora, numa situação muito melhor do que quando subira ao trono.

Por isso, iria à conferência, falaria de maneira discreta, sem apoiar ou condenar. Era partidário desse tipo de manobra.

Sentia-se fraco, mas mesmo assim estava decidido a comparecer. Era tão comum alguém fingir uma doença e apresentá-la como desculpa, que quando se ficava realmente doente, ninguém acreditava.

Ele seguiu a cavalo, mas o calor foi demais para ele, pois estava em julho, e o tempo abafado não lhe fazia bem.

Quando chegaram a Mantes, ele disse que iria descansar um pouco. Foi para a cama e passou-lhe pela cabeça, enquanto era ajudado pelos criados, a ideia de que talvez nunca mais se levantaria.

Durante a noite, acordou e sentiu que a febre aumentava. Ela fazia o efeito de deixar sua mente confusa, e no entanto, enquanto tentava manter o controle de sua consciência, esteve o tempo todo cônscio de que aquilo era o fim.

Sua mente recuou para os dias que se seguiram à captura de Acre, quando ele tomara a decisão de abandonar Ricardo e voltar para a França. Fora uma grande decisão... a decisão certa. Ele a tomara pelo bem de seu país. Lembrava-se vivamente do calor excessivo... das terríveis pragas, da lama, dos escorpiões, de todos os desconfortos nos quais Ricardo parecia vicejar.

A França em primeiro lugar... aquele fora o seu lema. E trouxera recompensas. Estava deixando para Luís uma terra bem governada; grande parte daquilo que a França havia perdido durante anos tinha voltado. Um dia, a Inglaterra não teria direito algum na França. Ainda não era assim, mas seria.

Um governo sensato... era o que era necessário. Guerra, só quando não houver outro jeito. Justiça para o povo, a fim de que ele aceite as agruras quando necessário.

Oh, Luís, pensou ele, você terá Blanche para ajudá-lo. Deposito minhas esperanças em Blanche, meu filho, pois embora você seja o melhor dos filhos, tenho dúvidas de que será o mais forte dos reis.

Ingeburga não sentiria muito. Seria uma tola se sentisse. Agora, Ingeburga ficaria independente. Não haveria lugar em que não fosse recebida com honrarias. A rainha viúva da França. Filipe tremeu ao se lembrar daquela primeira e única noite que passaram juntos. Ela esperara o momento oportuno. De certo modo, seus métodos eram iguais aos dele. Ingeburga se recusara a abrir mão de sua posição e se submetera a humilhações sem reclamar. Ele pagara caro por aquele casamento apressado. Aquilo lhe custara Agnes... a querida, doce e resignada Agnes. E no fim, quem ganhara fora Ingeburga.

Luís o rei, e Blanche a rainha. Eles estavam com 35 anos de idade, maduros e com uma bela ala infantil de filhos homens. O jovem Luís estava com nove. Ora, era uma idade boa, com um pai que tinha apenas 35 anos. Luís ainda tinha uma vida longa pela frente, e Blanche iria treinar o jovem Luís pelo caminho que ele deveria seguir.

Filipe podia fechar os olhos e dizer:

- Senhor, deixai que vosso servo parta em paz. Ele providenciara tudo, e as perspectivas eram boas.

Luís ficou desnorteado. O pai doente... possivelmente morrendo. Não podia acreditar naquilo.

Entrou no quarto da morte e se pôs de joelhos. Segurou as mãos do pai e olhou para ele com ar de súplica, como se implorando para que não morresse.

- Tudo vai ficar bem, meu filho. Blanche está aí? - disse Filipe.

Ela veio se ajoelhar ao lado do marido.

- Blanche, querida filha, agradeço a Deus por ter você. Cuide de Luís, o rei da França... agora, muito em breve. Nas suas mãos eu o entrego... e entrego o jovem Luís... meu neto. E Luís, não chore, meu filho. Minha hora chegou, como tem de chegar para todos nós. Filho adorado, você nunca me causou desgostos. Eu ficava impressionado com isso. Deus o abençoe. Blanche, Luís... meus filhos adorados... Graças a Deus eu os deixo um ao outro. Coloquei a França antes de tudo o mais na vida. Talvez estivesse errado. Mas servi bem ao meu país e foi Deus que me deu a tarefa quando me fez ser filho de um rei... tal como Ele agora coloca o ónus sobre seus ombros, meu querido Luís.

Os dois se sentaram ao lado da cama, e isso o deixou contente. Ele sorria ao morrer.

Blanche sentiu profundamente a morte do rei. Amava o marido; ele nunca fora outra coisa se não fiel a ela, e lhe dedicara toda bondade e consideração, mas uma mulher tão vigorosa quanto ela devia saber que ele nunca poderia ser um grande rei como o pai. Como príncipe da França, com o pai a orientá-lo, ele fora admirável. Ela sabia que seria diferente quando ele ficasse agindo por conta própria. Blanche estava decidida a educar os filhos, a fim de que quando chegasse a hora de eles assumirem o trono, estivessem preparados. Teria Filipe falhado com Luís? Talvez. Aquela obsessão com a saúde e a segurança dele era compreensível, pois era o único filho legítimo, mas aquele paparico tinha de ter seus efeitos. Luís não era um covarde, mas também não era um estrategista. Havia uma fraqueza nele, uma falta de crueldade que, por mais que fosse agradável no caráter pessoal, não era bom para um governante.

Durante aquela esplêndida cerimónia em Rheims, Blanche esteve inquieta, embora houvesse um grande regozijo em todo o país e se profetizasse um reinado próspero. Quando o pai dele se casara com Isabel de Hainault, que descendia em linha direta de Hermengarda, filha de Carlos de Lorraine, o último dos carlovíngios, as reivindicações rivais das dinastias de Carlos Magno e Hugo Capelo tinham-se unido; e Luís era o fruto dessa união. Agora, ninguém poderia contestar o seu direito absoluto ao trono.

Estava tudo bem, dizia o povo. Havia muito tempo que a França não era tão próspera. Os ingleses tinham sido derrotados como nunca antes. Filipe, aquele mestre em estratégia, mantivera-se indiferente em relação à guerra albigense. Vivera em termos carinhosos com o filho, e os dois jamais tinham sido outra coisa que não os melhores dos amigos.

- Oh, França afortunada! - dizia o povo.

Ingeburga assumira uma nova importância. Era afável e delicada, e passou a se interessar muito pelas crianças reais. A morte de Filipe a levara naturalmente mais para perto do círculo familiar, e ninguém entendia qual teria sido a causa da aversão de Filipe por ela, que vivia com pompa e dignidade, e as crianças gostavam dela.

Durante alguns meses depois da coroação houve comemorações, mas se Luís acreditava que aquilo iria continuar, Blanche não acreditava.

A primeira interferência na paz deles veio de Lusignan.

Blanche se lembrou logo da Isabella de olhar astuto, que lhe causara má impressão quando as duas se viram pela primeira vez, impressão essa que fora relembrada quando ela se casara com o homem escolhido para a filha poucos anos antes.

Quando os mensageiros chegaram de Lusignan com cartas de Hugo, Blanche imaginou que haveria problemas, e quando leram as cartas não ficaram surpresos.

Hugo, que, Blanche estava certa, tinha escrito por instruções da mulher, assinalava que o rei João destinara certas terras a Isabella e que ela tinha direito de reivindicá-las.

- Tenho certeza - disse Blanche - de que aquela mulher vai dominar Hugo, e para que você o tenha como aliado terá de acalmá-la.

- Não - disse Luís -, ele é um homem ambicioso. Ele quer a terra da esposa. Ouvi dizer que Isabella tem um filho, agora... Hugo, em homenagem ao pai.

- Esperemos que ela seja para ele uma mãe melhor do que foi para os filhos que teve com João - retrucou Blanche.

- Ela foi bem inteligente ao conseguir que o jovem Henrique fosse coroado com a máxima urgência.

, - Porque para ela era vantajoso fazer isso. com a mesma velocidade ela tirou o noivo da filha e se casou com ele. Luís, precisamos ficar de olho em Isabella de Angoulême.

- Minha adorada, temos de ficar de olho em todos.

- Nisso nós estamos de acordo, mas com uma mulher dessas vamos precisar ter um cuidado maior do que o de costume.

Luís teve um sorriso bondoso, mas Blanche sabia que ele não entendia.

Era necessário sair em excursão por algumas cidades, e Luís iria visitar, com o seu exército, aquelas nas quais podia esperar algum problema. Blanche concordara com ele que seria bom mostrar que embora ele estivesse disposto a ser razoável, o povo não devia pensar que fosse ser menos forte do que o pai.

Eles viajaram primeiro para Lusignan, porque Hugo era um homem poderoso demais para ser ignorado quer como aliado, quer como inimigo, e com toda a agitação que invariavelmente se seguia a um novo reinado, Luís precisaria estar alerta. Ele estava esperando que os ingleses fizessem uma tentativa de recuperar suas perdas na Normandia.

Com eles seguiram, entre outros vassalos da coroa, Thíbaud, o quarto conde de Champagne, o muito bonito mas um tanto corpulento trovador que se considerava de sangue real porque a avó era filha de Luís VII, o pai do rei Filipe Augusto, o que o tornava parente do rei.

Ele nunca deixara de cantar sua admiração por Blanche e se tornara conhecido como Thibaud Lê Chansonnier; e aquela arrogância real que assumia às vezes a perturbava. Muitas vezes havia uma sugestão no seu olhar que Blanche se recusava a aceitar pelo que de fato era. Ninguém teria a ousadia de insultar a rainha, que se sabia ser tão leal ao rei quanto ele lhe era leal; mas havia algumas pessoas que percebiam que o conde de Champagne estava obviamente apaixonado por Blanche e daria muito para ser seu amante. Esperança vã, dizia a maioria; mas havia quem gostasse de parecer sabido e murmurar que as mulheres eram inexplicáveis, que Blanche era uma mulher forte e saudável e Luís nada tinha de vigoroso. Havia quem achasse que o homem que devia se afastar da mulher com a frequência com que Luís se afastava e era tão fiel quanto ele tinha alguma deficiência.

Quanto a Blanche, transmitia a impressão de que o conde de Champagne nada representava para ela a não ser um vassalo e um parente de seu marido por parte de avô.

O rei e a rainha e alguns de seus seguidores escolhidos tiveram uma recepção leal no castelo de Lusignan, e os homens do rei ficaram na cidade ou acampados nas redondezas.

Parecia correto ter ido daquela maneira, pois aquilo mostraria a Hugo de Lusignan - se ele estivesse decidido a se manter intransigente - que o rei estava pronto a fazer cumprir suas ordens.

Hugo não mostrou sinal algum de falta de lealdade, e Isabella não fez uma mesura mas abriu os belos olhos violeta emoldurados por pestanas pretas e sorriu para o

rei ao curvar a cabeça. Blanche estava vigilante, embora esperando que ninguém visse com que intensidade. Os belos olhos não exerceram efeito algum sobre Luís. Agora era a vez de Blanche. Isabella se curvou, com todos os seus gestos dando a entender o seguinte: se você é rainha, eu também sou, pois uma vez rainha, sempre rainha, e fui rainha da Inglaterra por mais tempo do que você é rainha da França.

- Estamos muitíssimo honrados em recebê-los - disse Isabella, e ela e Hugo os conduziram ao interior do castelo.

Hugo caminhou ao lado do rei, Isabella ao lado de Blanche.

- Você deve estar muito triste - disse Isabella. - Sei muito bem como gostava do falecido rei. E suas responsabilidades ficaram enormes.

Seus olhos estavam fitos na túnica de Blanche, de veludo azul, que caía muito bem nela; chegava até o chão, e as mangas eram compridas e justas, de acordo com a moda da época, e por cima Blanche usava uma sobretúnica e uma manta; a touca era feita de seda fina, azul para combinar com a túnica. Ela era bonita. Mas Isabella era complacente. Sem esforço nenhum, podia eclipsar qualquer outra mulher que já conhecera.

A sua túnica, longa e com mangas justas parecidas, era escarlate - resplandecentemente rica e chamando atenção; os cabelos caíam-lhe pelos ombros, e na testa estava um círculo de ouro que brilhava com um rubi isolado.

Blanche pensou: ela mudou muito pouco. Quando nada, está mais astuta, porque está mais velha.

Depois que a comitiva real se retemperou, houve uma festa no grande salão. No tablado havia uma mesa menor do que a do salão principal, e a essa mesa pequena sentaram-se Hugo com Isabella, Luís e Blanche. À grande mesa no centro do salão sentavam-se os mais nobres dos seguidores do rei e os de Hugo, e abaixo do grande saleiro, os de menor categoria.

Blanche estava ciente que Isabella ansiava por que eles percebessem que, embora fossem vassalos do rei da França ali em Lusignan, na Inglaterra ela fora rainha, e se voltasse àquele país seria recebida como a mãe do rei atual.

A mesa estava repleta de boa comida - carne de veado, de boi, de carneiro, e tortas de todos os tipos, e o vinho que era produzido nos vinhedos próximos era da melhor qualidade.

Quando os convivas estavam sonolentos devido à boa comida e ao vinho, chegaram os jongleurs, ou menestréis. Eles eram aqueles homens que percorriam o país e saíam à procura de castelos e grandes casas onde suas apresentações fossem recompensadas com comida e abrigo por uma noite.

Os convidados estavam sempre ansiosos por vê-los e ouvi-los representar, e julgavam as canções, que alguns dos menestréis tinham composto, pagando segundo esse julgamento. Formavam um grupo triste, porque eram desprezados por serem atores itinerantes, e não era incomum que os donos das grandes casas, depois de ouvir suas apresentações, regateassem ao fazer o pagamento.

Mas não seria esse o caso daquela noite, pois eles iriam cantar perante o rei, e em grandes castelos como aquele podia-se contar com o pagamento.

Por isso, foi um feliz grupo de menestréis que representou para todos.

Cantaram sobre suas viagens e salientaram que eram pobres menestréis para uma grande plateia.

Mas sei como servir a um cavalheiro E de todos os belos contos Sei o enredo; conheço fábulas, Posso contar belas histórias novas.

Os convidados ouviam os contos e fábulas - a maioria relativa aos lamentos do amante desesperado em relação à amada; e o aplauso era liderado por Isabella, cujos belos olhos brilhavam enquanto ela prestava atenção.

 

Sou um menestrel da viola,

Conheço a museta e a flauta,

E a harpa e a viela,

A giga e a harmonia,

E o saltério e a rota,

Sei bem cantar uma canção.

 

Conheço muitos truques de mesa ótimos E com prestidigitação e mágica Sei bem como encantar.

Isabella bateu palmas, e Hugo olhou para ela, indulgente.

- Bom menestrel - bradou ela -, diga-me como você encanta.

- com a minha canção, majestade. Mas não com a mesma certeza com que a senhora pode encantar com seus belos olhos foi a resposta.

Então, ele fez uma canção de improviso - foi o que deu a entender, e bem poderia ter sido uma canção que tivesse já pronta para as damas que ele sabia que iriam gostar - que falava da beleza fatal de uma dama que ultrapassava a de todas as outras do mundo.

Blanche olhava com um certo cinismo e pensou que ali estava um menestrel que não iria embora sem ser recompensado.

Então, Isabella declarou que já chegava de menestréis e que eles deviam ser levados à cozinha e alimentados, pois haviam feito bem o seu trabalho. Os presentes iriam participar do jogo das perguntas e respostas, e ela pedia o privilégio de, como senhora do castelo, fazer a primeira pergunta.

Dirigiu-se ao centro do salão e pediu a uma de suas aias que amarrasse um lenço de seda sobre seus olhos. Depois, ficou ali de braços estendidos, tão bonita que nenhum dos homens - pelo que Blanche percebeu - conseguia desviar os olhos dela. Até mesmo Luís a observava com prazer.

Ela levou uma das mãos cheia de jóias aos lábios, como se estivesse raciocinando, e então disse:

- Infelizmente, senhoras, nossos senhores muitas vezes precisam se ausentar, e quando se ausentam, será que nos são fiéis? Conhecemos a natureza deles, senhoras. Será que deveríamos ser condenadas se, muito tentadas e sozinhas, caíssemos na tentação que eles acham irresistível?

Houve um silêncio abafado no salão quando Isabella começou a avançar, com os braços estendidos, tateando em direção às mesas. As senhoras prendiam a respiração quando Isabella passava por elas, e Blanche viu logo que seria ela aquela em que Isabella tocaria e que, de acordo com as regras do jogo, deveria responder.

Aquilo não era um jogo. Significava alguma coisa. Independente da paz que pudesse ser feita entre os maridos, entre Isabella e Blanche o que havia era uma guerra.

Isabella se aproximou mais de Blanche, e as mãos brancas estendidas pousaram nos ombros da rainha da França.

- Esta é a pessoa que vai me responder - disse Isabella. Se for uma dama, estou certa de que será sensata, pois dependemos de suas palavras.

Blanche sabia que, evidentemente, ela estava enxergando. Devia ter combinado aquilo com a criada. Sabia em quem havia tocado.

- Se a pessoa em quem toquei não quiser responder - disse Isabella -, este cavalheiro ou esta dama deverá pagar uma multa.

Blanche se levantou e disse, com frieza:

- Há uma resposta óbvia para uma pergunta tão franca assim. Isabella arrancou o lenço dos olhos e fingiu-se de constrangida.

- É a rainha! - gaguejou ela. - Majestade... peço-lhe com o máximo de humildade...

- Não é necessário pedir com humildade ou de outra maneira - disse Blanche com rispidez. - A resposta é que se o marido for insensato a ponto de ignorar os juramentos que fez ao casar, de nada adiantará a esposa repetir a insensatez.

Houve aplausos por todo o salão. Blanche sentiu a sua calma habitual abandoná-la. Não sabia o que havia com relação a Isabella que a afetava daquela maneira. Era como se todos os seus sentidos a alertassem contra aquela mulher. A pergunta tivera a intenção de dar a entender que Luís ficava, muitas vezes e por necessidade, longe dela, e que não se poderia esperar que ele fosse fiel, e era uma maneira irónica de perguntar se ela, Blanche, a rainha, arranjava um amante ocasional. Nós sabemos, pensou Blanche, furiosa, que Isabella, rainha da Inglaterra, não era avessa à prática, já que se sabia que o seu primeiro marido enforcara pelo menos um de seus amantes no dossel de sua cama.

- Creio que a regra do jogo manda que eu seja a próxima a ter os olhos vendados. Por favor, coloque a venda em meus olhos - pediu Blanche.

E assim ela se dirigiu ao centro do salão e seus olhos foram vendados como tinham sido os de Isabella, e Blanche providenciou para que o lenço ficasse folgado o suficiente para lhe permitir enxergar por baixo, e decidiu ir avançando às apalpadelas até chegar perto de uma rica saia escarlate, e então colocar as mãos na dona da saia e fazer a pergunta.

Falou claramente:

- Será que um pai ou uma mãe deve colocar o bem-estar de um filho acima de seu desejo e de sua satisfação pessoal?

Sentiu a profundeza do silêncio. Todos saberiam que aquilo era uma crítica à conduta de Isabella ao tirar o homem com quem sua filha tinha ido se casar e mandar a filha de volta para um destino desconhecido.

Todos os presentes se encolheram em suas cadeiras, temendo ser escolhidos para responder àquela pergunta, pois a resposta óbvia de que o sacrifício pessoal devia ser feito seria uma desconsideração proposital para com Isabella, que havia pensado de maneira diferente.

Mas Blanche escolheu o caminho com cuidado, e houve um profundo suspiro quando suas mãos pousaram nos ombros de Isabella.

Isabella estourou numa gargalhada.

- Ora, majestade, veja quem escolheu. Que coisa estranha, pois a escolhi e vossa majestade me escolheu. Não vou pagar a multa, porque vou responder à pergunta. Majestade, só há uma resposta. Todos nós devemos fazer o que for melhor para nossos filhos, não importa o quanto isso nos custe, sob o ponto de vista pessoal.

Todos aplaudiram aliviados, e ninguém ousou abafar um sorriso com as mãos, porque Isabella tinha olhos atentos e era vingativa.

- Não vou fazer mais perguntas - declarou ela -, de modo que passarei o lenço para outra pessoa. Ah, Hugo, meu marido, deixe-me vendar seus olhos.

O jogo prosseguiu... perguntas foram feitas e respondidas. Isabella sorriu para Blanche.

- Um jogo pueril, não acha? - disse ela. - Mas parece que algumas pessoas se divertem com ele. Eu gostaria de mais canções, e depois chamaremos osjongleurs de volta para fazerem truques para nós. É isso o que deseja, majestade?

Blanche disse que achava o jogo um tanto pueril e que as mais divertidas eram, em geral, as primeiras perguntas; depois disso, o jogo decaía.

Por isso, Isabella bateu palmas e declarou que citaria alguns dos cavalheiros que iriam tocar para eles e talvez cantar, e que soubera que o conde de Champagne era um bardo muito talentoso. Poderia ele encantá-los com a sua música?

O conde levantou-se da mesa e, fazendo uma acentuada mesura, disse que faria aquilo com prazer.

Cantou, então, sobre a beleza de alguém que ele sempre admirara de longe. Ela estava fora de seu alcance, mas era tão bonita, que não conseguia prazer com nenhuma outra.

Tratava-se de uma canção, segundo se comentava aos sussurros, que compusera para a rainha; mas ela, de tão virtuosa que era, não percebera que a canção tinha sido composta falando dela.

Todo mundo aplaudiu quando o conde terminou, e ninguém com maior entusiasmo do que Isabella.

- Bela canção, meu senhor - bradou ela -, e bem cantada. Estou certa de que se a sua dama o ouvisse cantar com tamanho sentimento, seria incapaz de rejeitá-lo.

- Ah, minha senhora - replicou Thibaud -, se ela não me rejeitasse, minha canção não teria significado.

- Então o senhor poderia compor uma outra, e eu seria capaz de jurar que seria ainda mais bonita - retrucou Isabella.

Ela chamou, então, osjongleurs de volta, e eles realizaram acrobacias de grande destreza, para encanto de todos; e assim se passou a noite.

No quarto, Isabella, os cabelos soltos caindo pelos ombros, os olhos brilhando de excitação, ria com Hugo.

- Meu querido, querido Hugo, creio que choquei você muito esta noite.

- Meu amor - respondeu ele, em tom de reprovação -, a rainha ficou aborrecida.

- A rainha. Eu odeio aquela mulher. Arrogante, fria, lembrando a todos que é rainha.

- Mas ela é realmente a rainha, querida.

- Ela é rainha só há alguns meses. Eu sou rainha há anos. Quero ser tratada como tal. Ao me casar com você, sou apenas a esposa de um conde, mas apesar disso sou uma rainha.

- Blanche é a rainha que reina.

- Pobre Luís! Tem de fazer o que mandam. E pobre do pequeno Luís, o filho... e dos demais. Eu lhe digo que ela é uma mulher que gosta de ser obedecida.

Certas mulheres são assim - replicou Hugo.

Isabella riu, e correndo para ele passou-lhe os braços pelo pescoço. Puxou-o para a cama e se deitou com ele. Sempre podia fazer com que Hugo pensasse o mesmo que ela a qualquer momento... mas daquele jeito era mais fácil.

- Elas têm métodos diferentes. Já imaginou Blanche e Luís assim?

- Nunca. Ela riu.

- Meu belo Hugo, você não sabe quantas vezes pensei em você quando estava com aquele homem odioso. E você me ama, ou não? Faria qualquer coisa para me agradar. O que devo obrigá-lo a fazer, Hugo? Ir ao quarto real levando uma almofada e pressioná-la sobre aquele rosto arrogante até que ele fique imóvel e frio...

- Isabella, o que está dizendo?

- Nada de importante. Como poderia você fazer isso? E com que finalidade? Mas eles precisam fazer o que nós queremos, Hugo. Eles têm medo da gente.

- Acho que não, meu amor. Luís é o rei. Blanche, a rainha. Você viu o exército que eles acamparam nos arredores.

- Mas por que virem aqui dessa maneira, se não estiverem aqui para fazer com que você se acalme? Por que iriam vir aqui... para visitá-lo em primeiro lugar? Luís é rei há pouco tempo e diz: "Preciso ir falar com Hugo de Lusignan." Eles têm medo da gente, Hugo. Precisamos mante-los com medo.

- Não, eu sou apenas um vassalo de Luís.

- Vassalo! Não me diga essa palavra. Eu a odeio. Não vou ficar casada com um vassalo. Escute aqui, Hugo, talvez tenhamos de fingir jurar vassalagem. Você poderá jurar... eu, nunca. Mas meu filho é o rei da Inglaterra. Não percebe o que isso significa? Estamos numa situação poderosa. Henrique não abandonará sua mãe. Ele é um menino bom e dócil... e muito jovem. Luís tem medo de você. Não, Hugo, vamos trocar ideias e usar nossa cabeça juntos. Entendeu?

- Minha querida, poderia haver uma guerra...

- Ora, vai haver guerra, e se isso ocorrer, Luís terá mais medo dos Lusignan do que nunca. Henrique vai querer, também, que fiquemos do lado dele. Está vendo como você lucrou quando se casou com a rainha da Inglaterra? Hugo, quer deixar isso comigo?

- Como não houve resposta, ela fez um beicinho. - vou ficar um pouco zangada... mesmo com você, Hugo, se não deixar.

Hugo sorriu e tocou-lhe os cabelos com os lábios.

- Você está linda esta noite, Isabella.

- Não estou sempre?

- Sempre, mas esta noite havia algo de selvagem em você... algo...

- Irresistível?

- Sempre irresistível.

- Exceto para dois homens... Luís e o conde de Champagne.

- Luís não liga para outra mulher que não a esposa.

- O marido virtuoso! Você me é sempre fiel?

- Sempre, mas por motivos diferentes daqueles pelos quais Luís é fiel à mulher dele.

- Que motivos?

- Depois de você, nenhuma outra me serviria. Luís não tem impulsos fortes.

Isabella soltou uma gargalhada.

- E Champagne?

- Ele está fixado na rainha. Pobrezinho, isso de nada lhe adiantará.

- Ela é um pingente de gelo, aquela mulher. - Isabella suspirou e abriu os braços. - Muito diferente da sua Isabella.

A rainha andava de um lado para o outro nos aposentos que tinham sido preparados para ela e Luís.

- Não confio naquela mulher - disse Blanche. - E também não confio em Hugo de Lusignan... agora que está casado com ela.

- Você deixou que ela a perturbasse - disse Luís. - A pergunta que você fez...

- Fiz a minha pergunta pensando nela. Espero que ela tenha se lembrado da maneira desumana com que tratou a pobre filha. Ouvi dizer que a menina amava Hugo, que teria sido bom e delicado, sem dúvida, não fosse aquela mulher que parece tê-lo enfeitiçado.

- Foi estranho você tê-la escolhido depois que ela a escolheu. Blanche olhou para ele com um desespero carinhoso. Luís era

um homem muito inocente.

- Precisamos tomar cuidado com eles, é claro - prosseguiu Luís. - Eles vão pedir concessões. Precisamos ser muito cautelosos quanto a concedê-las.

- Os Lusignan sempre foram uma família que se deve levar em consideração. Não se esqueça de que Hugo é o chefe de uma casa que reina sobre uma grande parte da França, dos vales do Creuse e do Vienne a leste a Lusignan, a oeste. Eles têm vários castelos em Poitou. Podem ser um perigo...

- Para nós ou para Henrique, se ele decidir vir recuperar o que o pai perdeu. E Isabella é mãe dele.

- Essa mulher não teria sentimento algum para com o filho

- disse Blanche com firmeza. - Imagino que iria usá-lo, como fez com a filha, para atingir seus fins.

- Não estou tão certo assim. Isabella está evidentemente apaixonada por Hugo, e sem dúvida ele está apaixonado por ela. Talvez os sentimentos dos dois anulem o seu senso do dever.

- Como faria o oportunismo com a mesma facilidade que o amor - replicou Blanche, com um tom de cinismo. - Por isso, precisamos ter cuidado.

- Não se preocupe, vamos ter. Eles estão pedindo Saintes e Oleron, que Isabella declara que foram prometidas como sendo as terras que ela teve como dote.

- E você vai conceder-lhes a posse dessas terras, Luís?

- Não podemos ter os Lusignan contra nós. Não se esqueça, Hugo comanda um grande exército. Se estivesse do nosso lado, se fosse nosso aliado, poderíamos deixar o sul em suas mãos e voltar para o norte, onde talvez precisem de nós.

Blanche viu a sensatez daquele raciocínio.

- Se Hugo não tivesse se casado com aquela mulher, eu confiaria nele.

- Ele sempre foi um homem honrado.

- Agora que está casado com Isabella, você vai ver uma mudança nele.

- Não, Blanche. Você está obcecada por aquela mulher. Ela é uma criatura muito fascinante, é óbvio que Hugo está enfeitiçado por ela, mas ele é um soldado e um homem honrado, e nada pode mudar isso.

- Isabella poderia.

- Você atribui poderes demais a ela.

- Você diz que estou obcecada por Isabella. Ela está obcecada pelo poder. E se Henrique da Inglaterra vier contra nós... e com ela sendo mãe dele...

- Henrique ainda é um menino. Precisamos estar preparados para agir, sim. E por isso que estamos aqui em Lusignan. Se eu puder ter certeza quanto a Hugo, poderei sentir-me razoavelmente confiante.

- Ter certeza quanto a Hugo, sim...

- Ele é um homem em quem confio.

Blanche suspirou, cansada. Do que adiantava tentar explicar a Luís? Quando ele olhava para Isabella, só via a mais fascinante das mulheres. Não via a calculista fria que não teria escrúpulos para conseguir o que quisesse.

Os dois partiram durante o dia seguinte. Luís prometera a Hugo a posse de Saintes e Oleron, discutira com ele planos para a captura da Gasconha e de toda a Poitou, e prometera-lhe a cidade de Bordeaux quando ela estivesse em poder deles.

Hugo e Isabella ficaram vendo a cavalgada real partir. Hugo iria se preparar para a guerra, a fim de cumprir a sua parte do trato. Sentia-se satisfeito com o fato de o rei ter percebido a sensatez de fortalecer a amizade entre eles. Luís também se sentia contente. Estava certo de que aquela era uma jogada que seu pai teria aprovado.

Só Blanche estava inquieta enquanto eles se afastavam.

 

INGLATERRA

1223-1226

Irmãos e Irmãs Reais

ERA RARO HENRIQUE, o irmão e as irmãs se reunirem, e aquela lhe parecia uma ocasião muito especial. Ricardo, que não chegava a ser dois anos mais jovem do que ele, fora à corte vindo do castelo de Corfe, onde estava sendo educado sob a rigorosa tutelagem de Peter de Mauley, porque Hubert de Burgh dissera: "Está se aproximando a hora em que alguma coisa deverá ser feita com relação ao seu irmão." Ricardo estava, na época, com quatorze anos. "Porque", continuara Hubert, "se não se faz alguma coisa com relação aos príncipes, eles costumam tentar fazer para si."

Henrique, que se apoiava nas palavras de Hubert, concordara imediatamente que precisavam mandar chamar Ricardo, e ele chegara à corte, onde os dois irmãos se confrontaram com uma certa admiração e desconfiança. Henrique adquirira ares de realeza desde que subira ao trono; quanto a Ricardo, sempre estivera ciente de que recebera o nome em homenagem ao tio, Coração de Leão, e como estava sempre sendo lembrado disso, adquirira uma determinação de ficar igual àquele herói guerreiro. Muito naturalmente, achava uma pena o destino ter sido tão indelicado para com ele a ponto de torná-lo o segundo filho, em vez do primeiro, mas o segundo filho homem de um rei tinha grande importância, e por isso esperava pôr de lado as chatices da infância e sair para o mundo a fim de fazer o seu nome.

Hubert dissera a Henrique:

- Daqui a mais ou menos um ano, quando seu irmão fizer dezesseis anos, será necessário torná-lo um cavalheiro e dar-lhe terra e títulos. É importante que haja uma amizade total entre os dois. Um bom irmão pode ter um valor inestimável; um irmão mau, a maior ameaça que um rei pode ter.

Henrique refletia sobre isso enquanto recebia Ricardo, e foi mais fácil do que pensara, pois Ricardo se mostrava encantado por estar na corte. Os irmãos só tinham se visto uma vez desde a morte do pai, e isso se dera quando da coroação de Henrique, três anos antes. Um menino cresce bastante em três anos, e em especial era esse o caso de Henrique.

Os dois cavalgavam juntos e conversavam sobre o passado, do qual Ricardo não se lembrava bem, mas Henrique o fazia lembrarse de como a mãe se apressara a fazer com que Henrique fosse coroado com a gargantilha dela porque não havia coroa. Fora por isso que tudo precisara ser feito outra vez, da maneira adequada, quatro anos depois.

- Que estranho - disse Ricardo -, nossa mãe ter levado Joana para Lusignan e depois se casado com o homem de quem Joana estava noiva.

- Nós não gostamos disso - disse Henrique, com ares de importância. - Sabe, Hubert e muitos outros acham que se o rei da França convencer Hugo de Lusignan a lutar do lado dele, nossa mãe ficará do lado do marido, não do nosso.

- Lusignan tem tanta importância assim? Ele é apenas um conde. Podemos lutar contra ele.

- Ele possui muitas terras e é o senhor feudal de muita gente. Nosso pai, como você se lembra, achava sensato fazer Joana se casar com ele a fim de garantir a vassalagem dele.

- Ora, se nós a garantimos por intermédio de nossa mãe, qual é a diferença? Pobre da Joana. Perdeu o marido.

- Arranjei outro para ela, e por isso, qual o problema? Ricardo olhou para o irmão, achando graça. Ele encontrara um marido para ela. Aposto, pensou Ricardo, que disseram a ele com quem Joana devia se casar.

- O que é que Joana acha do novo marido?

- Pode perguntar a ela.

- Ela vem para cá?

- Está a caminho, com o marido, vindo da Escócia, por isso você poderá fazer a pergunta diretamente a ela. Deve estar satisfeita pois fez com que houvesse uma aliança entre nós e os escoceses. E como Hubert se casou com a irmã de Alexandre, Margaret, temos muito boas relações com aquele país.

- Dizem que Hubert de Burgh sabe providenciar o bem-estar dele.

- Quem diz isso? - perguntou Henrique, ríspido.

- Oh, ouvi dizer. E você tem de admitir que aquele casamento com a irmã do rei da Escócia é um nível um tanto mais elevado do que um... plebeu deve visar.

- Peço-lhe que não fale assim de Hubert. Ele é um grande homem. Para mim, não há ninguém mais importante em todo o reino.

- Sim - disse Ricardo -, foi o que ouvi dizer. O rei está preso aos cordões manejados pelo seu juiz.

Henrique ficou rubro.

- Já chega! - berrou ele. - Não quero ouvir acusações desse tipo.

Oh, pensou Ricardo, um rei de verdade! Ele é que deveria ter sido o primogénito. Era óbvio.

- Se eu fosse rei - disse ele -, iria preferir que essas coisas fossem ditas onde eu pudesse ouvi-las, e não ao contrário.

Henrique hesitou. Havia bom senso naquelas palavras. Mas era irritante que o irmão mais moço tivesse de fazer com que ele visse isso.

Mudou de assunto.

- Cheguei à conclusão - disse ele - que seria bom você fazer uma peregrinação. Há pouco tempo não esteve bem de saúde, e talvez precise de um pouco de humildade e perdão para seus pecados.

- Minha doença se deveu ao frio de Corfe... não aos meus pecados.

- Então você é muito puro, irmão? Quero lhe dizer o seguinte: Alexandre, seu cunhado, vai a Canterbury rezar no santuário de S. Thomas, e eu acho que seria uma ideia excelente se você o acompanhasse.

Você acha, foi o comentário que Ricardo fez consigo mesmo. Você quer dizer que Hubert de Burgh acha.

Mas a ideia não lhe era desagradável.

Ele passara muito tempo longe dos acontecimentos, e seria interessante conhecer o cunhado.

Para Joana, foi estranho voltar à sala de aula no palácio de Westminster. Dois anos haviam-se passado desde seu casamento com Alexandre. Ela estava, na ocasião, com nove anos de idade - uma criança no que dizia respeito à idade, mas a sua estada no castelo de Lusignan a tirara abruptamente da infância e lhe ensinara as emoções de um adulto.

Sentia-se muito experiente em comparação com as irmãs: Isabella, que agora estava com quase dez anos, e Eleanor, que tinha nove.

As duas a haviam recebido com desconfiança. Pobrezinhas, pensou a experiente Joana. O que sabiam da vida?

Ela já tinha um marido havia dois anos. Alexandre. Ele não era indelicado e a tornara uma rainha. Era doze anos mais velho do que ela, um guerreiro experiente à época do casamento; a princípio, lhe causara um pouco de medo, com seus traços muito definidos e o tom trigueiro dos olhos e dos cabelos. Mas Joana sabia que era bonita; e parecia ficar mais bonita quando a mãe estava bem longe. Todos comentavam o seu charme, e isso deixava Alexandre contente. Ele gostava, também, da aliança com a Inglaterra que ela representava.

Quando descobriu que Joana era inteligente, passou a conversar com ela sobre questões de Estado. Era um homem que, embora se destacasse num combate, era amante da paz, e disse a ela que queria uma Escócia próspera e nenhum país era prospero na guerra, e que, embora fosse capaz de defender suas fronteiras com a própria vida, preferia torná-las seguras através de casamentos como o deles do que através de batalhas.

Joana concordava com ele nesse ponto, e como havia aprendido a ser dócil em Lusignan, aceitava o seu destino.

Ele não era o Hugo, claro; e Joana achava que continuaria pensando em Hugo a vida inteira. Ele estaria sempre vivo, como às vezes vivia um ideal daquilo que não se conseguia obter.

Não queria pensar na mãe com Hugo. Agora ficara sabendo o que significava um relacionamento daqueles, pois em breve se esperava que desse um herdeiro à Escócia. Não era criança demais para isso; sentira náuseas ao saber que a mãe já dera dois filhos a Hugo. Achava que com o tempo iria se acostumar com aquela ideia. Muitas vezes, imaginava os dois juntos. Claro que sabia, no subconsciente, que havia algo diferente na mãe quando comparada com outras mulheres. Nunca se esqueceria da maneira com que os olhos de Hugo a seguiam enquanto ela se deslocava de um lado para o outro, e agora que sabia o significado daqueles olhares ardentes trocados entre os dois, compreendia muita coisa. Ficaria ali enquanto Alexandre viajava para Canterbury em companhia de seu irmão Ricardo. Joana tinha apenas uma vaga lembrança de Ricardo. Ele fora mais vigoroso do que Henrique, sempre tentando se projetar e alegando que, embora fosse o mais moço, era o mais importante.

As irmãs de Joana, Isabella e Eleanor, queriam que ela lhes falasse sobre a Escócia. Olhavam para ela com admiração - a irmã mais velha que era muito viajada. Primeiro, viajara quilómetros até Lusignan, e depois voltara e se casara. Aquilo a tornava uma pessoa muito importante.

Mas Eleanor, a mais jovem das irmãs, tinha perguntas muito especiais a fazer.

- Conte-nos como é ser casada - disse Eleanor. Joana ficou embaraçada.

-- Querida irmã, você vai descobrir muito em breve

- Muito em breve - disse Eleanor. - Você sabia, Joana, que vou me casar?

- Quando? - exclamou Joana. - Você é muito criança.

- É verdade, não é, Isabella? Isabella confirmou com a cabeça, séria.

- Ouvi Margaret Biset falar nisso.

- Margaret Biset não tem o direito de falar na sua frente disse Joana.

Isabella apressou-se a defender a governanta.

- Mas ela não sabia que estava falando na minha frente, porque eu estava escondida num lugar em que ela não pensou em procurar por mim.

- Ouvindo às escondidas. Oh, Isabella!

- Isso deve ser perdoado - retrucou Eleanor - quando fazem planos para nós e ficamos muito tempo sem saber.

- E o que você ouviu? - perguntou Joana.

- Que alguém chamado Guilherme Marechal está me pedindo - disse Eleanor.

- Eleanor quer dizer que ele vai se casar com ela - disse Isabella.

- Ora, você ainda não tem nove anos!

- Margaret disse que ele teve outra esposa criança - interpôs Isabella. - Ela disse que Guilherme deve gostar delas

As duas meninas deram risadinhas, mas Joana as fez pararem.

- Vocês estão bancando as bobinhas. Digam-me tudo o que sabem sobre isso.

- Só que prometeram Eleanor a Guilherme Marechal e agora ele está reivindicando o seu direito. Eleanor irá embora para viver com ele, tal como você foi para Lusignan. Mas você voltou, não voltou, Joana?

- Mas não por muito tempo. Depois, fui para a Escócia.

- O seu Hugo se casou com a nossa mãe em vez de com você. Ele não poderia ter feito isso se nosso pai estivesse vivo - disse Eleanor.

- Claro que não, sua boba - interpôs Isabella. - Você se lembra dele?

Eleanor confirmou com a cabeça.

- Ele costumava gritar - disse ela - e guinchar.

- Margaret disse que às vezes ele caía no chão e mordia os juncos. Fazer isso o deixava menos zangado. Tentei isso quando ficava zangada. Mas não me deixou menos zangada e os juncos eram horríveis.

- Vocês falam demais - disse Joana, séria -, e precisam parar de se esconder para ouvir o que as pessoas dizem. Isso é falta de educação.

- É interessante - observou Isabella.

- Um dia você vai ouvir o que preferiria não ouvir.

- Eu preferia não ter ouvido que tenho de me casar com Guilherme Marechal - admitiu Eleanor, com medo.

- Ora, se ela tem de ir, é melhor ficar sabendo, não é, Joana?

- perguntou Isabella.

- Talvez - disse Joana.

Então se voltou para Eleanor e viu a si mesma como fora o que parecia um século atrás, quando soubera que devia ir para Lusignan. Será que parecera tão jovem e indefesa quanto Eleanor parecia agora? E Lusignan... com o pensamento recuando até lá, agora, como era bonita! Odiava o rigoroso inverno escocês, quando a neve chegava depressa e ficava. Pensou nas luxuriantes florestas de pinheiros e nos passeios a cavalo com Hugo. Sua mãe lhe tirara tudo aquilo porque era, de certa forma, uma feiticeira e fazia feitiços, de modo que era a mulher mais bonita do mundo e todos os homens - mesmo os comprometidos com outras - queriam casar-se com ela.

Afastou aqueles pensamentos da cabeça e voltou a atenção para Eleanor.

A pobrezinha parecia mais amedrontada do que queria dizer.

Não era fácil ficar a sós com Henrique. Ele agora era muito importante. Era difícil entender que ele era um daqueles irmãos com quem ela brincara naquela época que agora parecia ter sido havia tanto tempo.

Ele fora o favorito da mãe deles - se é que se podia dizer que ela tivesse tido um favorito, porque não ligava muito para nenhum deles, pelo que Joana agora sabia. A vida que tinham levado no castelo de Gloucester fora muito estranha. Agora parecia tão indistinta quanto um sonho. Lembrava-se vagamente do apavorante pai; só ele era suficiente para fazer com que qualquer moça tivesse medo do casamento. Felizmente a mãe nunca tivera medo dele, embora Joana, de lá para cá, tivesse ouvido histórias horríveis da vida conjugal deles.

Henrique, que agora era o rei, parecia muito diferente. Talvez porque fosse muito jovem. Era três anos mais velho do que ela, e na idade deles isso era muito.

Joana precisava falar com ele sobre Eleanor, porque tinha de tentar tranquilizar a jovem irmã. Não demoraria muito para que Alexandre e Ricardo voltassem de Canterbury, e então ela teria de voltar para a Escócia com o marido.

Encontrou uma oportunidade quando Henrique voltou de um passeio a cavalo, e o abordou de surpresa no salão e perguntou se poderia falar com ele em particular.

Ele fez um sinal para que seus acompanhantes se retirassem e levou a irmã para uma pequena antecâmara, onde lhe pediu que se sentasse num dos bancos enquanto ele se sentava na cadeira. Era quase como se estivesse fazendo com que a irmã se lembrasse de que ele era o rei. Joana percebera que ele fazia muito isso. Mas ele vai mudar, garantiu ela a si mesma. Só que agora tem de estar sempre lembrando às pessoas, para que não esqueçam.

- Tenho pouco tempo, irmã - disse ele, com ar importante.

- Prometi falar com Hubert de Burgh daqui a pouco. Peter dês Roches me causa muitos problemas. Está sempre tentando me colocar contra Hubert.

- Nisso há muita inveja, sem dúvida - respondeu Joana.

- Há, sim. Peter quer ser o juiz - disse Henrique, rindo.

- E governar a Inglaterra... como faz o Hubert.

- Só existe uma pessoa que governa a Inglaterra, irmã, e esta pessoa é o rei.

- Eu sei, mas não tenho dúvidas de que você ouve Hubert de Burgh e Estêvão Langton de vez em quando.

- Um rei não pode estar em todos os cantos de seu reino ao mesmo tempo. Precisa de quem trabalhe com ele.

- E segundo ouço dizer, você é admirado por seus súditos. Aquilo o acalmou e diminuiu-lhe a irritação.

- Eu queria falar com você sobre Eleanor.

- O que há com sua irmã?

- Ela ouviu dizer que foi dada em casamento a Guilherme Marechal, e isso a deixa perturbada.

- Onde foi que ela ouviu essas coisas?

- Sabe como é. As pessoas são indiscretas. Os jovens são curiosos... em especial quando o que ouvem lhes diz respeito.

- Indiscretas, mesmo...

- Mas esse casamento não é do conhecimento geral, menos da menina a quem ele mais interessa?

- Menina! Você diz isso como se se proponha alguma crueldade. Nossa irmã está em idade casadoura.

- Ela ainda não tem nove anos.

- Bem, é claro que o casamento não seria consumado por enquanto.

- Isso ficaria a critério do marido, se me permite falar assim.

- Como deve ser. Joana sacudiu a cabeça.

- Você não sabe nada sobre essas coisas, irmã.

- Pedindo o seu perdão real, sei muita coisa. Você se esquece que isso aconteceu comigo.

- Mas nossa mãe lhe foi de grande valia, ou não? Ela tomou o seu lugar. - O rei soltou uma gargalhada.

- Então acha isso divertido, Henrique?

- Longe disso. Eles estão nos causando muita preocupação com os pedidos de dote. Mas Hubert diz que isso não é tão ruim assim porque minha mãe vai poder convencer os Lusignan a ficarem do meu lado contra a França, com muito mais facilidade do que você poderia ter convencido.

- Então, foi bom ter sido assim - disse Joana, com ironia.

- E por que Eleanor vai ser entregue tão cedo?

- Porque, minha querida irmã, ela foi prometida a Guilherme Marechal. Você sabe da importância dessa família. O pai dele me ajudou a subir ao trono. Ele e Hubert me apoiaram e Guilherme lá estaria agora se não tivesse morrido.

- O filho dele nem sempre foi tão fiel assim, certo?

- Não. É por isso que lhe prometemos Eleanor.

- Uma recompensa por traição.

- Ora vamos, querida irmã. Você é uma princesa. Sabe como temos de trabalhar pelo nosso país. Se um casamento for vantajoso, deverá ser feito.

- Não há dúvidas de que dentro em pouco você estará fazendo um casamento vantajoso.

- Sem dúvida - disse Henrique.

- Mas sou capaz de jurar que vai poder se manifestar mais sobre com quem vai se casar do que Eleanor.

- Eleanor é apenas uma criança.

- É isso o que quero dizer. Esse casamento precisa ser feito?

- Precisa. Guilherme Marechal diz que chegou a hora de honrarmos a promessa.

- Ele não foi casado antes?

- Foi, com Alice, filha de Baldwin de Bethune. Ela era uma criança.

- Parece que ele tem preferência por crianças.

- Entenda, Joana, que esses casamentos são feitos por bons motivos.

- Bons motivos não sendo o afeto dos parceiros, mas as vantagens que terão os soberanos deles.

- Você aprende a ter essas ideias na Escócia? Estou surpreso com Alexandre.

- Eu tenho liberdade de pensamento. Eu raciocino.

- Então, seja sensata. Eleanor será bem tratada. E irá garantir a lealdade de Guilherme Marechal.

- Por que Eleanor ficou noiva desse homem?

- Por uma razão muito boa. Marechal estava disposto a se casar com uma filha de Robert de Bruce. Não era bom para a Inglaterra que um homem que havia mostrado ser amigo da França se colocasse numa posição de ter influência na Escócia.

- Compreendo. Por isso, Eleanor tem de se casar com ele.

- Tem. Alegre-se, irmã. Você não vai ficar conosco por muito tempo. Sejamos alegres enquanto está aqui. As previsões são boas.

Nossa mãe casada em Lusignan, você na Escócia, e Eleanor, dentro em pouco, com o Marechal.

- Você ainda tem Ricardo e Isabella para negociar.

- A hora deles chegará - disse Henrique, sorrindo.

- E a sua, irmão?

- E a minha - repetiu ele. - Agora preciso me retirar. Questões de Estado me chamam, irmã.

Joana o seguiu com o olhar enquanto ele se retirava e depois seu pensamento voltou para Hugo e o medo que ela sentira dele quando os dois se viram pela primeira vez e que rapidamente se transformara numa emoção na qual ela não devia pensar.

 

As Aventuras de Guilherme Longsword

HUBERT DE BURGH estava esperando por uma audiência com o rei. Sentia-se contente com o caminho que os acontecimentos estavam tomando, mas não teria sido o estadista experiente que era se não tivesse sabido que não havia motivo para complacência. Já que ele chegara a um cargo tão alto assim, jamais haveria.

Sabia que havia mexericos contra ele. Seu velho amigo, Peter dês Roches, bispo de Winchester, mantinha os boatos vivos. Era uma batalha entre os dois e só podia acabar com a eliminação de um deles.

Hubert achava que tinha maior chance de vencer, porque contava com a afeição do rei. Ele não era um homem do calibre de Guilherme Marechal, primeiro conde de Pembroke, que em mais de uma ocasião arriscara a vida para defender aquilo que achava ser a verdade.

O caráter do segundo conde ainda precisava ser provado, mas ele já mostrara que podia trocar de lado se achasse isso prudente. O Marechal mais moço alegava que quando se passara para os franceses fora por acreditar que a Inglaterra precisava se livrar de João a qualquer preço, e talvez tivesse havido bom senso numa conclusão dessas, mas a verdade era que ele abandonara o soberano a quem jurara vassalagem - coisa que seu pai jamais teria feito. Ele praticamente não tinha sido prejudicado por aquela deslealdade e agora, como castigo, ganharia a irmã do rei.

Bem, Marechal era um nome que merecia respeito, e o casamento significaria que sua lealdade estava firme. Seria cunhado do rei; e havia um certo charme em Guilherme Marechal que já exercera o seu efeito sobre o jovem rei, que era um tanto impressionável.

Assim, depois da realização do casamento, Guilherme Marechal entraria para o círculo real. Não que Hubert pudesse reclamar. Sua mulher, Margaret, trouxera-lhe a sua aura de realeza; ele era o marido da irmã do rei da Escócia, e isso lhe dava um parentesco com o rei da Inglaterra.

Ele fora longe desde a época em que o rei João o enviara numa missão em Falaise para arrancar os olhos do príncipe Artur e castrálo. Naquela ocasião, era um homem diferente. Agira com ousadia e levado pela emoção - arriscando imprudentemente a vida. No entanto, fora um ato que, como o cínico estadista em que se transformara, jamais lamentara. Se tivesse executado as ordens de João, dissera ele na época, nunca mais teria dormido em paz. O mesmo acontecia agora.

Hubert sabia que os cochichos à sua volta estavam aumentando. Dizia-se que embora tivesse sido um assessor sensato para o rei, ao fazê-lo se aproveitara para enriquecer. E por que não? Poderia alguém condenar os pássaros por prepararem bons ninhos para os filhotes?

Havia pouco tempo tinham ocorrido dois fatos que fizeram com que a língua das pessoas trabalhassem. Guilherme, conde de Arundel, havia morrido e Hubert fora nomeado guardião de seu jovem herdeiro. A morte de Arundel tinha sido seguida, logo depois, da de Hugo Bigod, conde de Norfolk, e seu filho e herdeiro fora colocado sob a proteção de Hubert.

Como aqueles dois jovens eram herdeiros de grandes fortunas e pertenciam a famílias consideradas como das mais importantes do país, a riqueza de Hubert e, acima de tudo, seu poder aumentaram muito devido ao controle dos negócios deles; além do mais, ele poderia exercer grande influência sobre o futuro deles, ao levá-los na direção que quisesse.

Não admirava que estivessem dizendo: "Hubert de Burgh é, de fato, o governante da Inglaterra."

Precisava estar vigilante, e teria um cuidado especial com Peter dês Roches. Estêvão Langton provocara uma reconciliação entre eles, mas era uma situação incómoda.

Quando se achou na presença do rei, foi logo dizendo que o rei da França estava ignorando a sua exigência de devolução da Normandia e que, além do mais, conseguira que o conde de Lusignan e a mãe de Henrique ficassem do lado dele.

Henrique ficou assombrado.

- Minha mãe! - bradou ele. - Como ela pode ficar contra mim?

- Parece que o rei da França fez concessões especiais e que o conde, sem dúvida, achou que seria mais lucrativo trabalhar para Luís. E há, é claro, a maçante questão do dote da mãe de vossa majestade.

- Talvez devêssemos mandá-lo - sugeriu Henrique.

- Majestade, não podemos dar sinal de fraqueza. Só há uma coisa que podemos fazer. Temos de nos preparar para a guerra.

Henrique franziu o cenho.

- Eu quero, acima de tudo, manter o país em paz.

- Este é o desejo de todos aqueles que lhe querem bem, majestade, mas há momentos em que uma demonstração de força é necessária, e a menos que vossa majestade vá permitir que os franceses tomem tudo... e Deus sabe que nos resta pouca coisa... não podemos ficar indiferentes. Se vossa majestade ficar, vão dizer que é mais um parecido com seu pai.

- Vamos nos preparar para a guerra - disse Henrique, decidido.

Era fácil planejar, mas não tão fácil executar o plano. Era preciso cobrar impostos extras. Hubert sugeriu que se cobrasse 1.15 de todos os bens móveis do clero e da laicidade, e como era de se esperar isso provocou resmungos pelo país inteiro e foi responsável por uma onda de impopularidade para o rei. Foi exigido que Henrique confirmasse a carta que seu pai fora obrigado a assinar em Runnymede. Ele a confirmou, como salientou, por sua livre e espontânea vontade.

Enquanto os preparativos aconteciam, Eleanor se casou com Guilherme Marechal, que foi imediatamente nomeado juiz daquele turbulento país, a Irlanda, o que significava que sua permanência lá poderia ser demorada. O casal se separou feliz, Guilherme partindo para cumprir com os seus deveres, e Eleanor deixada para se dedicar à tarefa de crescer.

Assim, lá estava ela de volta à ala infantil com Isabella, e o fato de estar casada não representou diferença alguma para a sua maneira de viver.

Joana ficou encantada por ela ter-se casado e disse que ouvira dizer que Guilherme Marechal era um homem bom, e quando ele voltasse da Irlanda talvez Eleanor estivesse pronta para viver com ele.

Joana voltou muito triste para a Escócia, e seu irmão Ricardo continuou na corte, pois, como Hubert salientara, agora estava chegando a uma idade em que já não podia ser ignorado.

Como ele completara dezesseis anos, Henrique lhe deu a espada de cavalheiro e concedeu-lhe o condado da Cornualha, e como o plano era enviá-lo para a França, a fim de chefiar a expedição sob os cuidados do velho conde de Salisbury, ele também recebeu o título de conde de Poitou.

O jovem conde, ansioso por mostrar seu valor, partiu com grande entusiasmo. Seu co-líder, Guilherme Longespée ou Longsword, como era mais conhecido, era tio de Ricardo, pois Longsword era filho natural de Henrique II com Rosamund Clifford. Ele conseguira grandes honrarias - pois Henrique II amara realmente Rosamund Clifford e fizera o possível pelos filhos dela - e Longsword se casara com a condessa de Salisbury, conseguindo, com o casamento, o título de conde. Sua carreira não fora gloriosa na expressão da palavra, pois havia sido companheiro íntimo de seu meioirmão João e, reconhecido como um de seus mais perversos conselheiros, estivera envolvido em muitos atos de crueldade, pelos quais mostrava um certo prazer. Um dos principais desses atos fora o caso de Geofredo de Norwich, um clérigo muito competente que se exonerara do cargo quando João fora excomungado. A reação de João fora mandar Salisbury prender Geofredo. Era verdade que Longsword fizera aquilo por ordem de João, mas na época todo mundo dissera que aquilo era uma ordem da qual qualquer ser humano teria tirado o corpo fora. O infeliz Geofredo fora colocado na prisão em Bristol, onde lhe puseram uma pesada manta de chumbo por cima e ele fora deixado para morrer em agonia.

Longsword, no entanto, fora adquirindo cada vez mais poder e apoiara João contra os barões, mas trocara de lado quando parecia que Luís da França chegara de vez. Quando João morrera, Luís - de quem ele então era aliado - enviara Longsword para falar com Hubert de Burgh, na tentativa de convencê-lo a abrir mão do castelo de Dover. Hubert, desprezando-o pela sua falta de lealdade para com o sobrinho, o jovem rei, repreendera-o com veemência algo de que Longsword não iria esquecer. No entanto, tão logo os franceses haviam deixado o país, Longsword se unira ao rei, declarando que conseguiria o perdão pela deserção, indo numa cruzada para o lugar que o núncio achasse por bem mandá-lo.

Ele já mostrara ser um bom soldado - embora um homem implacável, capaz de muita crueldade -, e Hubert concluíra que era uma boa escolha para acompanhar o inexperiente e jovem conde da Cornualha em sua primeira aventura militar.

Ricardo mostrou os requisistos de um bom comandante, e com seu entusiasmo, aliado à experiência do velho conde, mostrou-se um adversário à altura de Luís, cujos sonhos de conquistar a Gasconha tiveram de ser temporariamente abandonados porque Bordeaux se recusou a se render aos franceses e, como resultado, a Gasconha foi salva para os ingleses e Luís teve de pensar em outra coisa.

Deixando Ricardo, Longsword fez-se ao mar para voltar para casa. Era outono, agora, e o mar estava muito agitado. Houve um momento em que a morte parecia inevitável. O navio era sacudido pelos mares violentos, como se fosse feito de pergaminho, e depois que todos os bens foram atirados nágua, cada homem pensou que seus últimos momentos haviam chegado.

Longsword, agarrado ao gradil, viu-se perseguido por todos os atos perversos de uma vida inteira e rezou em voz alta à Virgem para que o salvasse, lembrando-a de que desde o dia em que recebera o grau de cavaleiro ele nunca deixara de acender uma vela diante de seu altar.

Então, aconteceu o que Longsword acreditou ser um milagre. Ele e os marinheiros juraram ter visto um vulto no topo do mastro. Era uma linda mulher, que eles ficaram convencidos de que se tratava da Virgem Maria. Ela chegara na sua hora de crise, pensou Longsword, para agradecer-lhe todas aquelas velas acesas.

A partir daquele momento, o navio, embora adernando muito e à mercê do vento, começou a derivar. Eles chegaram a uma ilha e, cambaleando, desembarcaram em terra firme.

- Salvos - bradou Guilherme Longsword - pela Santa Virgem.

Hubert disse ao rei que a notícia era boa. Eles haviam mostrado ao rei da França que iriam defender os seus direitos. A época de João acabara. Um novo rei estava no trono e - que Luís se lembrasse - contava com homens experientes para assessorá-lo.

- Qual é a próxima? - perguntou Henrique, entusiasmado.

- Temos de continuar. Tudo que meu pai perdeu deve ser recuperado.

- Uma campanha precisará de um planejamento cuidadoso - lembrou-lhe Hubert. - Vamos esperar pela volta de Guilherme Longsword e ouvir o que ele tem a nos dizer sobre as defesas de Luís.

- O exército de Luís não pode ter sido muito bom, porque nós o derrotamos.

- Não basta uma vitória para se ganhar uma guerra, majesta de - avisou Hubert. - Usemos um pouco de cautela. Vamos esperar pelo relatório de Salisbury.

Poucos dias depois, Henrique caiu doente e Hubert teve medo de que pudesse morrer. E agora? - perguntou ele a Langton. Poderia haver problemas. Tinham de trazer Ricardo de volta imediatamente. O país desfrutava apenas de uma paz superficial, e Peter dês Roches estaria à espera dessa oportunidade.

Estêvão Langton declarou que eles precisavam ter paciência. O rei era jovem; não era um homem fraco. Eles fariam tudo a seu alcance para fazer com que ele ficasse bom, e não deviam deixar que ninguém soubesse o quanto estavam preocupados.

Ricardo, o novo conde da Cornualha, tinha certas qualidades de liderança que talvez faltassem ao irmão, mas seria difícil lidar com ele. Felizmente ele estava ali para ser o próximo, se fosse preciso, mas eles iriam ter a esperança e rezar para que Henrique se recuperasse.

Ele se recuperou, e assim que ficou bom de novo começou a falar em fazer os preparativos para a campanha pela França. Se iam recuperar suas possessões, Henrique queria a glória. Ele não iria deixar que Ricardo a reivindicasse com base apenas numa única campanha.

Luís tomou, então, uma estranha decisão. Se teve medo das forÇas que o haviam atacado, ou se tivera alguma premonição, ninguém sabia; mas de repente decidiu unir-se às forças da Igreja contra os albigenses. Isso significava que ele havia realizado um feito que se comparava a uma cruzada. Aquilo teve o efeito que Luís desejara. O papa enviou uma ordem ao rei inglês no sentido de que não devia pegar em armas contra o rei da França, que no momento estava participando de uma guerra santa.

Henrique ficou furioso, mas como assinalou Hubert, não podia agir contra Roma, pois isso poderia resultar no temível Interdito, e todos sabiam a desgraça que o ato provocaria.

Portanto, Henrique precisava aguardar o momento propício. Haveria oportunidades no futuro.

Enquanto isso, nada se soubera do conde de Salisbury, exceto que algum tempo atrás ele partira da França.

Quando Hubert pensou nas ricas propriedades de Salisbury e que Guilherme Longsword tivera uma condessa que não poderia ter mais de 38 anos e que agora estaria viúva, decidiu que seria uma boa ideia levar a fortuna dos Salisbury para a sua família.

Ele tinha um sobrinho, Reimund, que estava à procura de uma esposa adequada. O que podia haver de melhor, pensou Hubert, do que Reimund se casar com Ela, a condessa de Salisbury? Ela levara ricas propriedades para Guilherme Longsword. Por que não leválas para o sobrinho de Hubert? A família saberia tomar conta delas.

Aproximou-se do rei com cautela.

- É lamentável o que aconteceu com Longsword, pois agora ele deve ser dado como morto. Coitado, ele era cruel e seus pecados devem ser grandes, mas era um grande soldado e um homem valente.

- É verdade - disse Henrique -, mas como todos os bastardos ele estava condenado a precisar sempre proclamar sua realeza.

- Bem, agora ele morreu. Deixou uma viúva.

- É verdade - disse Henrique -, e uma viúva que lhe trouxe uma grande riqueza.

- E que não é uma mulher idosa, em absoluto. Não deve ter mais de 38 anos, e ainda é capaz de ter filhos. Ela devia ter um marido.

Henrique confirmou com a cabeça.

- Ahn... meu sobrinho, Reimund, está à procura de uma esposa. Ele é um rapaz ajuizado e bom, sempre leal ao seu rei. Ele tomaria conta da condessa e cuidaria das propriedades dela. O que vossa majestade acharia, se ele conseguisse conquistá-la, de dar o seu consentimento à união?

- Se ela consentisse, eu estaria pronto - disse Henrique.

Aquilo era tudo de que Hubert precisava. Não perdeu tempo e chamou o sobrinho e o despachou para que começasse a fazer a corte.

Se a Virgem Maria tinha salvado o conde de Salisbury do mar, isso assinalara o fim de sua ajuda, pois embora ele e alguns dos sobreviventes do navio despedaçado tivessem sido jogados na praia, o local de refúgio era a ilha de Ré, que pertencia a Luís.

Mas eles conseguiram encontrar abrigo na abadia da ilha, e como se achavam em estado lamentável, não foram reconhecidos de pronto. Quase tinham morrido e precisavam urgentemente de descanso e alimentação, e isso lhes foi proporcionado.

Mas o conde não podia esperar continuar sem ser reconhecido por muito tempo, e em dado momento um dos monges percebeu quem era ele.

Por ser um homem religioso, o monge não o delatou, porque sabia que o conde ainda não estava em condições de fazer outra viagem. Assim, o segredo foi mantido enquanto Salisbury fazia planos para fugir.

Mais de três meses tinham-se passado desde que ele deixara a costa da França, de modo que era lógico acreditar-se que ele estivesse morto; e quando Salisbury conseguiu um barco e voltou para a Inglaterra, um grande choque aguardava Hubert.

O conde descobriu logo o que se passava. Sua mulher sendo cortejada, acreditando estar viúva. E quem a cortejava não era outro que não um sobrinho de Hubert de Burgh!

Enfurecido, o conde foi falar direto com o rei.

Henrique declarou-se encantado ao ver o tio ressuscitar dos mortos.

- Porque - disse ele - era isso que temíamos que tivesse acontecido. Já faz muito tempo que partiu.

- É um choque, majestade, voltar e encontrar minha mulher quase casada com outro homem.

- Meu caro Longsword - replicou Henrique -, ela não é velha, e devido à minha afinidade com você, eu quis vê-la em boas mãos.

- E minhas propriedades? - bradou o conde. - Não tenho dúvidas de que aquelas boas mãos estavam estendidas com ganância, para recebê-las.

- Meu caro tio, nós tínhamos todos os motivos para acreditar que estivesse morto. O fato de não estar é motivo de regozijo. vou mandar chamar Hubert e seu sobrinho, e eles irão dar-lhe as boas vindas e se desculpar, se achar que devem. Mas eu lhe asseguro de que agimos pelo bom interesse de sua condessa.

- Neste caso, majestade, agradeço a Deus... e à Virgem Santíssima... por ter sido trazido de volta a tempo.

O rei cumpriu a promessa de mandar chamar Hubert e o sobrinho, e poucas semanas depois houve um encontro deles com Longsword, presidido pelo rei.

Longsword lançou um olhar feroz a Hubert e declarou:

- Eu compreendo perfeitamente os seus motivos, meu senhor.

- Eles nasceram de nossa preocupação com a sua condessa, senhor conde - disse Hubert, tentando tranquilizá-lo.

- E com as propriedades dela, sem dúvida.

- Meu senhor, eu lhe asseguro de que meu sobrinho tinha uma afeição sincera pela senhora. Não é, Reimund?

- Exatamente, meu senhor. Longsword ficou rubro de raiva.

- O senhor tem a ousadia de ficar aí e me dizer que sente afeição por minha mulher e gostaria de se casar com ela.

- Meu senhor... - começou Reimund, mas Hubert o interrompeu:

- Meu senhor de Salisbury - disse ele, em tom apaziguador -, meu sobrinho tinha, mesmo, afeição por uma dama que ele acreditava ser uma viúva desamparada. Agora que sabe que ela é casada, seus sentimentos mudaram.

- Ele muda de sentimentos como um homem muda de cota de malhas - o tom de Longsword era ríspido.

O rei interveio.

- Tio, eu gostaria que fizesse as pazes com Hubert. Creio que os motivos dele foram os que ele citou, e acho essas discussões incómodas. O senhor escapou por milagre. Penso que devia estar agradecendo a Deus por ter ressurgido desse desastre no mar e chegado em casa a tempo de salvar sua esposa de um casamento que não seria casamento.

Salisbury curvou a cabeça.

- O que está feito está feito - murmurou ele -, mas não vou me esquecer...

- Agora, Hubert - disse Henrique -, você irá convidá-lo para um banquete, e lá todos verão que você se arrepende realmente do seu erro e que meu tio compreende perfeitamente como isso aconteceu.

- com o máximo de prazer - disse Hubert, e um tanto indelicadamente o conde de Salisbury aceitou o convite.

Foi um banquete muito suntuoso. O rei estava presente e o conde de Salisbury sentava-se à esquerda de Hubert de Burgh. Os dois conversavam amigavelmente e todos diziam que o infeliz incidente terminara e parecia ter unido aqueles dois homens - que não eram amigos por natureza.

Salisbury era um grande soldado. com o jovem conde da Cornualha, obtivera vitórias na França e mostrara ao povo que os dias humilhantes do reinado de João eram coisa do passado. Antigamente, o povo tivera medo dele; ele se destacara pelas crueldades que cometia em nome de João; mas um país bem governado significava o retorno da lei e da ordem, e com uma situação daquelas Salisbury abriria mão de sua crueldade e se tornaria um bom soldado, pronto para levar seu país a mais vitórias.

Mas quando chegou ao castelo, de Salisbury foi acometido de dores violentas que foram seguidas de febre alta, e foi obrigado a se recolher ao leito, onde seu estado não melhorou.

Em poucos dias ficou tão fraco, que receou que o fim estava próximo.

- Tragam o bispo Poore até aqui - disse ele - porque tenho de confessar meus pecados e receber os últimos sacramentos.

Enquanto jazia na cama à espera da chegada do bispo, as lembranças voltaram. Ele gostaria de saber quantos homens havia assassinado em nome do rei João... e não apenas em nome dele. Lembrava-se da emoção de saquear uma cidade e do desnecessário sofrimento que infligira a seus habitantes... não porque uma conduta daquelas ajudasse o progresso da guerra, mas porque ele considerava aquilo uma boa diversão e gostava de agir assim.

Rostos agonizantes o perseguiam de todos os cantos do quarto. Ele ouvia os gritos das pessoas mutiladas enquanto ficavam sem pés, mãos, narizes, orelhas, e seus olhos eram arrancados.

Nenhuma quantidade de velas à Santa Virgem poderia salválo. Ele tinha de enfrentar a realidade de que levara uma vida de perversidades.

Merecia ser enforcado... a morte de um delinquente comum não era o bastante para ele.

Ele deveria ter sido avisado quando naufragara. A Virgem lhe dera uma outra chance, mas ele não a aproveitara. Devia ter passado as últimas semanas preparando-se para uma cruzada, e não aumentar a sua desavença com Hubert de Burgh por causa da condessa.

Levantou-se da cama e, tirando a roupa toda, exceto uma tanga, pediu uma corda, que colocou em torno do pescoço, de modo que quando Ricardo lê Poore, bispo de Salisbury, chegou, encontrou-o daquela maneira.

- Meu senhor - exclamou o bispo -, o que aconteceu?

- Eu sou o pior dos pecadores. Tenho medo da danação eterna.

- Oh, talvez não seja tão ruim assim - replicou o bispo, tranquilo. - Há tempo para o senhor se arrepender.

- Não vou me levantar do chão enquanto não tiver confessado meus pecados ao senhor... todos de que puder me lembrar. Fui um traidor de Deus. Preciso receber logo o sacramento.

Antes do conde morrer, o bispo fez tudo o que ele lhe pediu e tranquilizou bastante a sua consciência.

Veneno, foi o veredito. Claro que Hubert de Burgh o envenenara. Foi no banquete, pois não iria ele saber que a sua conduta no caso da condessa e seu sobrinho seria lembrada para sempre? O conde seria inimigo de Hubert enquanto vivesse... e Hubert era um homem que não podia se dar ao luxo de ter inimigos poderosos.

Essa suspeita foi arquivada na memória das pessoas, para ser retirada quando necessário. Não havia o perigo de ser esquecida. Homens como Peter dês Roches jamais deixariam que isso acontecesse.

Quanto a Hubert, percebeu que Reimund não poderia cortejar a condessa de Salisbury depois do que acontecera. Ela devia ser deixada em paz.

Mas os seus incansáveis esforços para o bem da família conseguiram uma outra viúva rica para o sobrinho, e pouco depois da morte do conde de Salisbury, Reimund se casou com a viúva de Guilherme Mandeville, o conde de Essex, que levou para a família tanto quanto a condessa de Salisbury teria levado. Um outro sobrinho tornou-se bispo de Norwich; e como seu irmão já era bispo de Ely, Hubert podia se congratular consigo mesmo por estar com a família bem e estrategicamente colocada, o que era aquilo que todos os homens ambiciosos achavam que deviam fazer.

Os inimigos continuavam vigilantes, mas Hubert se sentia forte bastante para desafiá-los.

 

FRANÇA

1223-1227

O Trovador Amoroso

BLANCHE ESTAVA PREOCUPADA. Sentia muito as responsabilidades que lhe haviam sido atribuídas desde a morte de Filipe Augusto. Havia uma angústia secreta que era algo que ela não teria discutido com ninguém e praticamente não gostava de admitir a si mesma. Luís não era um grande soldado; no fundo do coração, ela tinha dúvidas sobre se ele era um grande rei. Ela fora dotada das qualidades de liderança, mas Luís não tinha sido tão afortunado. Luís era um homem bom e - uma qualidade muito rara - um marido fiel e um pai carinhoso. Seus filhos o adoravam, como ele os adorava. Se tivesse sido um nobre menor, com seu castelo situado numa parte tranquila do país em que ele não precisasse ter o problema de se defender, com a família ao seu redor e aqueles que dependiam dele trabalhando para ele, poderia ter sido um homem feliz.

O avô dele tinha sido assim. A tragédia da vida deles era que aquela função de rei - que tantos homens teriam arriscado a vida para possuir - não era desejada por eles, pelo simples motivo de que, por serem homens de profunda inteligência, conheciam sua inadequabilidade para atender às exigências dela.

Mas Luís tinha uma esposa.

- Oh, Deus - implorava Blanche -, ajude-me a agir por nós dois.

Ela estava supervisionando a criação dos filhos com o máximo de cuidado, especialmente a do jovem Luís. Como amava o filho mais velho! Ela gostava dos outros, sem dúvida, mas sentia no jovem Luís os predicados de um grande rei. Quando a vez dele chegasse - e ela esperava que não chegasse por muitos anos -, ela precisava providenciar para que ele estivesse pronto.

Ela o estava preparando; mas a sua soberania era inata. Além do mais, ele era de uma beleza que chamava a atenção. As feições eram nitidamente esculpidas; a pele

boa e fina, brilhando de saúde; ele tinha uma massa de brilhantes cabelos louros, que herdara da bela Isabel de Hainault, sua avó paterna. Era delicado como o pai, mas a semelhança parava por aí. Luís era bom na sala de aula, pois tinha um interesse vivo por todas as matérias, mas também gostava da vida ao ar livre; gostava de todos os esportes, e em especial da caçada, e adorava seus cães, seus cavalos e seus falcões. Era tudo o que um menino saudável devia ser - mas havia mais do que isso. Era cuidadoso no vestir, mostrando elegância já naquela idade.

Se algum dia um menino nascera para ser rei, esse menino era Luís.

E no entanto, Blanche tinha medo. Não iria mimá-lo como Henrique Augusto tentara mimar o filho Luís. Ela ficava imaginando qual seria a reação do jovem Luís se ela tentasse. Ela duvidava que ele aceitasse aquilo sem um protesto, como o pai aceitara. Mas era um filho bom e cumpridor de seus deveres. Ela não conseguia esquecer a perda de seu filho Filipe com nove anos de idade, quando a morte surgira de repente, rancorosa, para golpeá-lo, como que para se vingar dos pais do menino.

Mas Filipe não tivera as qualidades do irmão mais moço, Luís, de modo que talvez o destino o tivesse abatido porque Luís estivesse destinado a ser rei.

Aquele tipo de pensamento de nada adiantava. Filipe estava morto e Luís era o filho mais velho. Eles eram mesmo afortunados por terem uma família como aquela. Ela devia estar agradecida e não se queixar pois se preocupava com a saúde e a força do marido como governante. Devia dar graças a Deus por lhe dar um filho tão maravilhoso; e por tê-la dotado de qualidades - que teria sido tolice e falsa modéstia negar - que a tornavam competente para orientálo e assumir as responsabilidades dele.

Luís estava lutando com um sucesso maior do que ela ousara esperar. com um Hugo de Lusignan satisfeito do lado deles, eles estavam conseguindo vitórias para a França. Em várias cidades, os cidadãos tinham-se rendido a ele sem lutar, acreditando que não poderiam resistir aos franceses.

No entanto, Bordeaux se mantivera firme em favor dos ingleses, e desde que o recém-criado conde da Cornualha chegara com o veterano conde de Salisbury as notícias eram poucas, o que Blanche sentia que indicava que não havia mais vitórias fáceis; e talvez isso estivesse na raiz de suas angústias.

Enquanto ela esperava uma descrição das atividades de Luís, Joana, a condessa de Flanders, chegou à corte. Disse que fora pedir a ajuda da rainha.

Blanche ficou desconfiada. Luís não mantinha boas relações com Flanders, e àquela altura o marido de Joana, Ferdinand, estava preso no Louvre, para onde tinha sido mandado há mais de dez anos por Filipe Augusto. O problema entre eles estourara no ano de 1213. Foi na época da excomunhão do rei João, quando Filipe Augusto achara oportuno fazer uma tentativa de tomar a coroa da Inglaterra, à qual afirmava que Blanche tinha direito. Filipe convocara seus vassalos para um encontro com ele em Soissons, a fim de que pudessem se preparar para ajudá-lo naquela aventura, mas Ferdinand não tinha ido.

Filipe Augusto levou adiante seu projeto que estava condenado ao fracasso, porque antes que pudesse fazer-se ao mar, João astutamente - pediu a ajuda do papa. Em vez de ser um país sob o Interdito, que teria sido muito fácil de atacar, a Inglaterra estava sob a proteção do papa, e Filipe percebeu que teria sido loucura pegar em armas contra Roma.

Furioso, Filipe declarou que agora o ataque não poderia ser efetuado porque Roma, e não ele, havia dominado a Inglaterra.

Durante a fase de raiva, ele soube que Ferdinand de Flanders estava tentando fazer uma aliança com João, e se ele não podia declarar guerra a João, podia declará-la contra Ferdinand. Ferdinand se tornara afoito devido a uma profecia que um adivinho fizera na presença de sua sogra, a rainha de Portugal, e esta não perdera tempo e lhe escrevera contando. O vidente havia dito que o rei da França seria derrotado por Ferdinand em combate, e num sonho ela o vira entrando em Paris, onde o povo o recebia com grande satisfação.

O pobre Ferdinand devia ser extremamente ingénuo para acreditar numa profecia dessas, pois mesmo que o rei da França tivesse morrido, ele tinha um filho que, segundo parecia, o povo da França iria receber com um entusiasmo maior do que receberia o conde de Flanders.

Para azar de Ferdinand, a profecia estava muito longe da verdade. Foi o rei da França o vitorioso e ele, Ferdinand, quem foi preso. Filipe sabia que um homem com

ideias tão grandiosas representava uma ameaça, e não demorou muito para Ferdinand descobrir que estava realmente em Paris, mas que seus aposentos eram um pequeno quarto, na Torre do Louvre, onde ficara desde aquela época.

Agora, sua mulher Joana fora à corte e estava implorando uma audiência com a rainha. Blanche calculou que a condessa de Flanders iria pedir uma vez mais a libertação do marido, e ficou imaginando se não poderia ser interessante pensar na soltura de Ferdinand. Talvez ele ficasse grato ao rei - afinal, não tinha sido Luís que o mandara prender. E ele ficaria sabendo que se traísse a Coroa outra vez, seria o seu fim.

Ficou surpresa por não ser sobre o marido que Joana queria falar.

Joana era uma mulher forte e dominadora. Fora por intermédio dela que Ferdinand herdara Flanders, e ela não era de esquecer uma coisa dessas. Durante a permanência do marido no Louvre, ela governara Flanders e mostrara ser uma governante competente.

Agora, Blanche reconheceu-a imediatamente como outra mulher igual a ela, e sentiu um grande respeito por ela.

Joana disse:

- A senhora pensa que vim pedir pelo meu marido. Eu bem que poderia fazer isso, pois já se passaram muitos anos desde que o rei anterior o prendeu, e ele já pagou pelas suas loucuras.

- vou falar com o rei sobre isso - disse Blanche. - Estou certa de que ele estará pronto a examinar o seu pedido.

- Eu lhe agradeço, majestade. O que me preocupa, agora, é Flanders. Um trapaceiro e impostor está tentando tirá-la de mim, e vim pedir o seu conselho e sua ajuda.

- Por favor, diga-me o significado disso - disse Blanche.

- Vossa majestade deve se lembrar de que meu pai, o conde Baldwin, participou de uma cruzada à Terra Santa há uns vinte anos. Ele não voltou.

- Eu tinha ouvido falar nisso - disse Blanche.

- Ele chefiou a Quarta Cruzada e foi feito imperador de Constantinopla. Depois... desapareceu.

- Como assim?

- Foi capturado pelos sarracenos e dizem que foi posto numa das prisões deles.

- Tantos foram os cristãos que nunca mais viram a luz do dia depois de serem capturados por aquele inimigo.

- Acredito que meu pai tenha morrido na prisão, mas agora esse impostor de quem falei apareceu. Ele se parece um pouco com meu pai e alega que é ele.

- Mas não pode provar.

Joana ergueu as mãos num gesto de desespero.

- Ele conta muitas histórias da Cidade Santa e de suas aventuras por lá. Ele jura que é o conde de Flanders.

- Mas a senhora, a filha dele, deve saber.

- Eu sei, mesmo. Ele não é meu pai.

- E então?

- Majestade, há muita gente que acredita nisso, e algumas pessoas aceitam porque não gostam de mim e ficam melindradas por serem governadas por uma mulher. Há muita gente aderindo a ele. Eles o estão aceitando e me rejeitando.

Blanche pensou: sim, eu compreendo que você deve ser uma governante rigorosa. Só talvez, mas talvez, um tanto severa. E o povo de Flanders não gosta de você, e por isso estaria disposto a trocá-la por esse homem, mesmo que ele seja um impostor.

- Bem? - disse Blanche.

- Eu quero a sua ajuda, majestade, e do rei também.

- A que ponto chegou a situação? - perguntou Blanche.

- Muito longe, infelizmente. Sabe, majestade, há homens inescrupulosos em Flanders.

- Não é só em Flanders - retrucou Blanche, séria.

- Esses homens estão vendo uma chance de ficar ricos - prosseguiu Joana -, porque, para conseguir o apoio deles, esse homem está dando terras e títulos e prometendo-lhes uma vida tranquila.

- A senhora acha que ele realmente os enganou?

- Não tenho certeza. Ele tem uns certos traços de meu pai, mas é quase cinco centímetros mais baixo e repetidas vezes mostra claramente que é um trapaceiro.

- O que é que eu ou o rei podemos fazer pela senhora?

- Poderia chamá-lo à corte e interrogá-lo. Creio que ele seria menos arrogante em sua presença. Se lhe fossem feitas certas perguntas, é praticamente certo que ele daria as respostas erradas.

- A senhora lhe fez essas perguntas?

- Fiz, e ele não me satisfez, mas se acredita que eu gosto tanto de governar Flanders que seria capaz de tudo para evitar que ele me tirasse a autoridade.

Blanche raciocinou. Ferdinand era, de fato, tio de Luís, pois era irmão de Isabel de Hainault, e Blanche sabia que Luís gostava muito da família de sua mãe. Falava muito em Isabel - com quem se dizia que o jovem Luís se parecia -, embora nunca a tivesse conhecido. Ele ouvira dizer que ela era bonita e delicada, e lamentava muito ela ter morrido dois anos depois de ele nascer, e não se lembrava dela. Ele iria querer ajudar, se pudesse; e ela estava certa de que agora que a difícil situação de Ferdinand seria levada à sua atenção, ele iria querer pô-lo em liberdade.

Blanche disse que enviaria uma mensagem a Luís contando-lhe o que se passava em Flanders, e enquanto isso ela e Joana tentariam, juntas, armar um plano para submeter o impostor ao teste.

Blanche sugeriu que elas mandassem chamar Sybil de Beaujeu, a irmã do verdadeiro conde de Flanders; estava claro que ela, que havia sido criada com o irmão, saberia se aquele homem era realmente o conde Baldwin ou um impostor.

Pareceu uma ideia excelente.

- Eu gostaria que a revelação fosse feita na presença de vossa majestade e do rei - disse Joana.

- Vamos ver se isso é possível - replicou Blanche.

Luís não ficou triste ao receber o recado. Ele não gostava de guerra. Fora diferente quando as cidades tinham caído com facilidade em seu poder, mas agora que Henrique enviara o jovem irmão e o conde de Salisbury contra ele, era um prazer uma trégua.

Mandou de volta uma mensagem dizendo que estaria em Péronne e que Blanche e Joana poderiam encontrar-se com ele lá. Já havia enviado uma mensagem a Sybil, pedindo que fosse encontrar-se com ele lá, outra igual ao homem que dizia ser o conde de Flanders.

Este chegou a toda pressa, pois acreditava que a convocação do rei era para que jurasse vassalagem a ele como seu senhor feudal, o que o rei só pediria se acreditasse que ele era o verdadeiro conde.

Blanche ficou encantada por ter Luís a seu lado outra vez. Desconfiava que estava grávida, e quando contou a Luís, ele ficou muito contente.

Luís lhe confessou que sempre fora simpático à erradicação da heresia e que havia tempo considerava que o movimento albigense era perigoso.

- Além do mais - acrescentou -, ouvi dizer que o rei da Inglaterra está planejando enviar um grande exército para cá, o que eu esperava que fizesse. Ele vai tentar recuperar o que perdeu. Receio que vai haver uma guerra longa e terrível, Blanche.

- Ainda assim, você faria a guerra contra os albigenses.

- Essa é uma guerra santa. Os albigenses não são um exército bem equipado. Pode estar certa de que essa guerra não será tão mortífera nem tão dispendiosa quanto a guerra contra a Inglaterra.

- Os albigenses são um povo que luta pelas suas crenças, Luís. Gente assim pode ser muito violenta.

- Eu sei, mas se eu aderir à cruz e combater os albigenses, o papa irá proibir os ingleses de guerrearem contra mim.

- Você quer dizer que a guerra contra os albigenses é mais para o seu gosto do que a guerra contra os ingleses.

- Não quero guerra nenhuma, mas se for necessária, prefiro que seja uma guerra santa.

Blanche não tentou dissuadi-lo, mas ficou profundamente preocupada, porque achou que ele envelhecera muito durante a última campanha e, na verdade, parecia exausto.

Ela quase que podia se alegrar com aquela controvérsia sobre o conde de Flanders para dar a Luís um descanso, e com Sybil de Beaujeu os dois discutiram sobre a melhor maneira de resolver a questão.

- Deixem por minha conta - disse Sybil. - vou fazer a ele umas perguntas que só meu irmão saberia a resposta.

Quando o homem que se dizia conde chegou a Péronne, Sybil admitiu que ele se parecia muito com o seu irmão, embora Baldwin nunca tivesse sido tão arrogante. Seus modos exageradamente nobres, disse ela a Blanche, o traíam; estava quase certa de que se tratava de um impostor.

Ela não demorou muito para descobrir a verdade. Pois quando o homem soube que seria colocado frente a frente com Sybil, ficou nitidamente perturbado. Achou as perguntas que ela lhe fazia muito desconcertantes e declarou que não estava disposto a ser tratado com tamanha descortesia pela irmã, e que não iria responder pergunta alguma aquela noite, mas que pela manhã responderia a todas as que quisesse lhe fazer, e gostaria, antes de tudo, de merecer a cortesia de uma cama e de um jantar.

O fim estava à vista para o falso conde. Na manhã seguinte, descobriu-se que ele havia fugido durante a noite. Embora pudesse fingir ser o Baldwin adulto, provavelmente tendo participado de uma cruzada à Terra Santa e possivelmente em companhia de Baldwin, porque tinha cicatrizes pelo corpo para mostrar às pessoas, e essas cicatrizes poderiam, claro, ter sido provocadas por uma espada sarracena, ele nada sabia sobre a infância de Baldwin.

Joana ficou encantada. O impostor ficou ansioso por ir para o mais longe possível de Flanders. Mais tarde, foi descoberto e levado à presença da condessa Joana, que não teve compunção por mandá-lo enforcar em público.

Assim, o caso foi satisfatoriamente resolvido do ponto de vista da condessa, e pelo menos proporcionou a Luís um curto descanso das guerras.

Blanche, que estivera esperando um filho, deu à luz uma menina. Depois de cinco meninos, era agradável ter uma menina, mas quando Luís sugeriu que ela recebesse o nome de Isabella, Blanche teve uma reação desagradável, porque se lembrou de Isabella de Lusignan, a mulher que ela odiava mais do que qualquer outra.

Isabella era um nome digno de uma rainha. Luís o quisera, e quando ela dissera que não gostava, ele observara logo que era porque o nome a fazia lembrar-se da rainha-mãe da Inglaterra.

Luís sorriu com ar quase provocante.

- Você a odeia, não é? Por quê? Ela é uma mulher muito atraente.

Como poderia Blanche explicar que não era por causa dos atrativos que odiava Isabella. Sim, odiava, pois ódio não era uma palavra forte demais para descrever seus sentimentos. Como poderia explicar que uma certa premonição a avisava e que não gostava de que a fizessem lembrar-se de Isabella?

Uma mulher sensata como Blanche de Castela, rainha da França, não devia ter pensamentos estranhos.

- Que absurdo - disse ela, mostrando despreocupação. Não tenho tanta aversão assim a esse nome. Isabella. É, é um nome bonitinho... um nome de classe. Vamos chamá-la de Isabella, se é isso que você quer.

- Era o nome de minha mãe - disse Luís, calmo.

- Então, você o quer, e assim será. Então a menina recebeu o nome de Isabella.

Antes de Luís partir, Blanche estava grávida mais uma vez.

Thibaud de Champagne suspirava pelo nome que estava escrevendo Estava disposto a passar a vida suspirando, porque a dama que amava era inatingível, e seu coração de poeta lhe dizia que o desejo aue ela provocava era, até certo ponto, aumentado pelo fato de estar fora do seu alcance.

Ali estava ele... não desgracioso, apesar de gordo demais, detalhe sobre o qual vinham brincando com ele a vida toda. Talvez tivesse sido por isso que se dedicara à pena. Sabia escrever versos brilhantes sobre suas ânsias, sua aspiração no campo do amor, e encontrava uma grande satisfação nisso, pois começava a ser reconhecido como um dos melhores poetas de sua época.

Não havia dúvida de que aquilo devia causar uma boa impressão à rainha, que fora criada numa corte culta. Os pais dela haviam gostado muito dos trovadores e sempre os encorajaram. E ele era um trovador real, Thibaud lê Chansonnier. Ficava aflito para que isso não fosse esquecido. Seu bisavô, Luís VII, era avô do rei. Bastaria um pequeno capricho do destino para que ele pudesse ter sido rei. Se a sua bisavó Eleanor de Aquitânia tivesse tido um filho... em vez de uma filha... bem, não seria Luís que estaria no trono, mas Thibaud, e Blanche de Castela poderia ter sido sua mulher, e não de Luís.

Que maravilha teria sido. E porque o destino não fora bom, Luís era o marido dela; eram os filhos de Luís que ela gerava, os filhos da França - ele era apenas Thibaud, o trovador conde de Champagne.

Por isso, precisava entoar suas canções, e fizera de Blanche um ideal e, por ser a mulher que era, ela lhe demonstrara claramente que não haveria esperança de se tornar sua amante. Mas gostava de suas canções. Qual a mulher que não gostaria de ouvir-se tão reverenciada assim?

Por adorar Blanche, ele passara a desprezar Luís, por consiUeráIo totalmente indigno dela. Luís sempre fora um fraco, fisicamente falando. O pai temera pela sua saúde. Claro que ele era justo e não tinha a crueldade de tantos homens; não havia dúvida de que possuía certas qualidades, mas mesmo que pudesse ser um rei aceitável, não merecia ser marido de Blanche.

E enquanto ele se achava sentado à sua mesa, murmurando para consigo mesmo as palavras que revirava na mente, chegou um mensageiro com uma ordem do rei.

Luís o lembrava de que ele era seu vassalo e que como tal podia ser convocado para servir ao rei em combate durante quarenta dias e quarenta noites. Portanto, tinha ordens para se unir ao exército do rei de imediato, levando consigo seus soldados, porque o rei estava armando o cerco à cidade de Avignon na luta contra os albigenses.

Thibaud ficou muitíssimo contrariado. Não tinha vontade alguma de ir para a guerra. Não desgostava dos albigenses. Talvez eles tivessem sido tolos ao tentar se colocar contra Roma, mas Thibaud estava plenamente a favor da vida simples e confortável de que tanto desfrutavam. Raymond de Toulouse era um homem de cultura, e seu amigo. Raymond estava mais interessado em música, literatura e debates do que na guerra.

E ele, Thibaud, o Trovador, estava sendo solicitado - não, estava recebendo ordens - a deixar o conforto de seu castelo e partir para a guerra.

E tinha de fazer isso... porque era vassalo do rei, e o rei estava mandando.

Sem vontade alguma, Thibaud partiu para Avignon, mas enquanto cavalgava cantava uma de suas mais recentes composições, cujo tema era a beleza de uma dama que não conseguia tirar da cabeça... e todos sabiam que aquela dama era Blanche, a rainha.

Ele gostaria de ter cantado uma paixão fora do comum entre os dois, que ambos admitiam existir em segredo, mas isso não era verdade, e poderia, até, ser considerado traição. Ele imaginava aqueles frios olhos azuis dirigidos para ele se insinuasse um relacionamento daqueles entre os dois. Blanche iria bani-lo da corte, e nunca mais tornaria a vê-la. Por isso, precisava ter cuidado.

Por isso, para Avignon - aquela rica e bela cidade que devia a prosperidade ao seu comércio inteligente e à paz de que gozava com os vizinhos condes de Toulouse. O povo de Avignon compartilhava, com o de Toulouse, do desejo de viver em paz e com conforto, adorava música e recebia com prazer os trovadores de Toulouse e com eles partilhava as novas ideias e tinha um grande prazer em debatê-las. Avignon não ia se entregar com facilidade.

Thibaud chegou contrariado, estado de espírito que certamente não foi desfeito pela visão dos muros cinzentos da cidade, que parecia inexpugnável, e dos soldados acampados do lado de fora, cansados e desiludidos porque tinham chegado esperando uma vitória rápida.

Quando Thibaud foi procurar o rei para informá-lo de sua chegada e prestar seus respeitos, ficou chocado ao ver Luís, cuja pele estava amarelada e cujos olhos estavam injetados; Thibaud concluiu que ele era um homem doente.

Perguntou pela saúde do rei e recebeu uma curta resposta dizendo que nada havia de errado com ela.

Uma opinião da qual não partilho, majestade, foi o comentário que Thibaud fez no íntimo, mas curvou a cabeça e disse que ficava contente por ouvir aquilo.

- A cidade tem algumas defesas inexpugnáveis - arriscou Thibaud.

- É verdade - respondeu Luís. - Mas vou toma-la... não importa quanto tempo tenhamos de ficar aqui.

Thibaud pensou: um vassalo só deve ao seu senhor quarenta dias e quarenta noites. Não estou disposto a ficar aqui por mais tempo.

Os dois se estudaram - o marido da rainha e o poeta que declarava em seus versos seu amor por ela. Meus versos terão vida mais longa do que a sua, majestade, pensou Thibaud.

- Foi muito bom você ter vindo - disse Luís. - Chegou ao meu conhecimento que você estava relutante em vir, e se tivesse me desobedecido, eu teria sido obrigado a tomar medidas contra você.

- Majestade, vim atendendo às suas ordens. Jurei vassalagem, e quando vossa majestade me convoca para entrar em combate, devo-lhe quarenta dias e noites de meus serviços.

- Eu teria sido obrigado a fazer com que você servisse de exemplo, Thibaud - admoestou-lhe o rei -, arrasando as terras de Champagne.

Thibaud pensou: você teria encontrado uma forte resistência, e não está em condições de fazer guerra contra aqueles que não lhe causariam mal algum se os deixasse

em paz. Você tem inimigos poderosos. Daqui a pouco os ingleses o estarão pegando pela garganta. Você precisa de amigos, Luís, não de inimigos. Pobre coitado. Marido dela. Sei que sou gordo demais, que gosto demais da boa comida e de um bom vinho; mas, apesar de tudo, sou mais homem do que você.

- Não é bom, majestade, haver dissensão em suas próprias fileiras. Por isso, aqui estou para lutar do seu lado por uma causa que para mim não tem grande importância.

O rei dispensou-o, e Thibaud deixou o acampamento dele para se juntar a outros de sua classe que tinham sido chamados a honrar seus votos. Não ficou surpreso com o fato de muitos deles expressarem um descontentamento semelhante. Eles estavam prontos a lutar pelas suas terras; teriam entrado em combate contra os ingleses; mas muito embora aquela guerra tivesse o apoio de Roma e dissessem que conseguiriam o perdão de Deus por participarem dela, eles não se sentiam motivados.

- Quarenta dias e quarenta noites... ora, chego até a jurar que é possível aguentar - disse Thibaud.

- Você acha que o cerco já terá acabado até lá? - foi a resposta. - Eles têm comida e munição dentro daqueles muros para aguentar um ano.

Thibaud deu de ombros.

- Mas eu, meu amigo, fiz um juramento de servir só quarenta dias e noites.

O cansativo cerco continuava. O povo de Avignon era feroz, acreditando que a qualquer momento seus amigos de Toulouse chegariam para salvá-lo.

O calor era intenso; homens morriam de doenças, e Luís mandava que se desfizessem dos corpos, atirando-os no rio. Não era o melhor dos cemitérios, mas pelo menos era melhor do que ficar com corpos apodrecendo por todos os lados.

A saúde dele, que se deteriorava, chamava a atenção.

- Meu Deus - disse Filipe Hurepel -, parece que o rei está com uma doença fatal.

Filipe Hurepel ficou transtornado. Gostava do rei e era um fiel servidor. Os dois tinham o mesmo pai, pois Filipe Hurepel era filho de Filipe Augusto com Agnes, a esposa que arranjara depois de se declarar divorciado de Ingeburga. O papa declarara Filipe Hurepel legítimo como uma concessão à mãe dele, mas nem todos o aceitavam como tal. No entanto, Filipe Hurepel nunca mostrara vontade de fazer valer o seu direito. Era um príncipe da França e amado por Luís; em troca, oferecia sua afeição e sua lealdade.

Discutiu com um grupo de amigos, entre os quais Thibaud, a situação do rei.

- O rei tem ataques de calafrios que não me agradam - disse ele. - Temo que sejam um sintoma de algo pior. Tem dificuldade de se manter aquecido. Mandei colocarem peles de animais na cama. Mas, apesar de ficar embaixo de um monte de peles, ele ainda continua frio.

- o que ele quer - disse Thibaud - é uma mulher na cama para aquecê-lo.

Filipe Hurepel olhou com repugnância para o trovador.

- Como poeta - retrucou ele -, seus pensamentos são claros quanto a esses casos. O rei sempre se recusou a aceitar esse tipo de distração.

- Isso é um velho costume - disse Thibaud. - Apenas o mencionei. Quando um velho não consegue se manter aquecido durante a noite, só há um remédio. Já vi ele dar resultado muitas vezes.

- Esse tipo de conversa é uma deslealdade para com o rei disse Filipe em tom áspero.

- Thibaud tem razão - disse o conde de Blois. - Uma garota nua de dezesseis anos... é disso que ele precisa.

Filipe passou a mão pela espessa cabeleira que seu pai havia notado e devido à qual ele adquirira seu apelido.

- Luís ficaria furioso - disse ele.

- Ele teria de admitir que o remédio deu resultado.

- Tenho estado junto ao rei há muitos anos - disse Filipe -, e nunca soube que ele tenha levado uma mulher estranha para a cama.

Thibaud juntou as palmas das mãos e ergueu os olhos.

- Nosso rei é um santo - disse ele, com um tom de zombaria na voz. Thibaud era muito maldoso. O rei estava doente... com febre. Bem poderia acontecer que estivesse delirando um pouco. O que faria ele se acordasse durante a noite e encontrasse uma jovem nua na cama? Iria pensar que se tratava da incomparável Blanche?

Luís sempre fora fiel à sua rainha. Ele a amava; mas Thibaud também a amava. Talvez tivessem maneiras de amar diferentes. Thibaud era romântico; tinha de admitir que gostava da sua saga de amor não correspondido. Luís nunca se entregaria a uma fantasia daquelas. Para quê? Ele tinha a realidade.

De nada adiantava tentar combinar alguma coisa com Hurepel. Ele só fazia puxar os cabelos eriçados e dizer que o rei ficaria horrorizado.

Mas por que não? Aquilo era um hábito cujos benefícios já estavam comprovados.

Thibaud falou com Blois e o conde Archibald de Bourbon, que era um grande amigo do rei e estava muito preocupado com a saúde dele.

Era uma oportunidade, salientou Thibaud. Não poderia causar nenhum mal.

Foi impressionante a facilidade com que ele os convenceu. Eram homens que aceitavam as aventuras amorosas como parte da vidaa abstenção do rei sempre o fizera parecer um pouco estranho, e Thibaud sabia que os homens que se dedicavam ao que poderia ser chamado de vício inofensivo gostavam que outros também o fizessem. Nada poderia ser mais deprimente para um homem que gostasse de um pecado venial ocasional do que estar ao lado de outro que jamais gostara, mas continuava a levar uma vida virtuosa, e era um padrão de moralidade.

Mesmo os melhores amigos do rei gostariam de vê-lo cometer um pequeno ato de indiscrição; e a coisa sempre poderia ser disfarçada com a afirmativa de que a jovem fora colocada ali só para aquecê-lo.

Thibaud encontrou a jovem. Tinha dezesseis anos, se tanto, rechonchuda, de pele macia e com experiência.

Tudo o que ela precisava fazer era se meter numa cama e aquecer o pobre homem que estava lá deitado, muito doente, na verdade, e ela poderia usar o método que achasse melhor. Precisava entender que tudo o que queriam era aquecer o homem, pois ele tremia de frio, e não havia outra coisa que pudesse mante-lo aquecido.

Luís estava ora dormindo, ora acordado... com os terríveis acessos de calafrios tomando conta dele de vez em quando.

- Estou com muito frio - reclamara ele, e arranjaram-se mais cobertores grossos; o peso deles era grande, mas não conseguiam esquentá-lo.

Ele gostaria de estar no seu castelo, com Blanche. Dava graças a Deus por ter Blanche e o jovem Luís e o resto da família.

Haviam-se passado apenas três anos desde que fora coroado rei... e, desconfiava ele, um rei não muito bom. Odiava a guerra e vivia rezando para que pudesse levar a paz à França, mas parecia que Deus havia decidido outra coisa. Filipe estivera muito confiante, quando João subira ao trono, que em pouco tempo os ingleses seriam expulsos da França e que os motivos para aquela luta perpétua iriam acabar. Mas a tarefa não fora completada. O problema era esse. Se João tivesse vivido um pouco mais, Luís poderia ter-se tornado rei da Inglaterra...

Mas não adiantava. Isso não acontecera.

Ele percebeu vozes sussurrantes no quarto e fechou os olhos, pois não queria conversar com ninguém. Queria apenas ficar deitado, quieto.

Eles estavam ao lado da cama.

Alguém estava na sua cama. Ele se ergueu. Estava olhando para uma jovem nua.

Devia estar delirando. Mas por que iria sonhar com uma jovem nua? Jamais desejara jovens nuas. Não era homem de ter sonhos eróticos.

- O que é isso? - exclamou.

O choque de ver a jovem sacudira a lassidão provocada pelo seu estado. De pé ao lado da cama, olhando para ele, estavam vários de seus comandantes. Ele reconheceu o conde de Blois e Thibaud de Champagne.

- Majestade - disse uma voz tranquilizadora, e ele a reconheceu como sendo a de Archibald de Bourbon. - Só pensamos em trazer um pouco de calor para sua cama.

- Quem é esta mulher?

A pobre jovem estava cabisbaixa.

- É a mulher que saberá mante-lo aquecido, majestade - disse Thibaud, em voz baixa.

Luís sentiu nascer uma antipatia por ele. O rei se ergueu.

- Quem teve a ousadia de trazer esta mulher aqui?

- Majestade - começou Thibaud.

- O sennor - disse Luís, com firmeza. - Leve-a daqui. Ainda não maculei o meu leito nupcial, e não vou fazer isso agora. Todos estão muito enganados se pensam que sou igual aos senhores. vou me lembrar disso.

A jovem olhava de Luís para os homens em volta da cama, perplexa.

Archibald fez um sinal para que se retirasse. Depois que ela saiu, ele começou a explicar:

- Temíamos pelo que pudesse acontecer com vossa majestade. Seu corpo estava muito frio, e não conseguíamos pensar numa maneira de aliviá-lo.

- Deixem-me - disse Luís -, e se alguma vez um dos senhores tentar me desmoralizar, lembre-se de uma coisa: provocará a minha mais profunda indignação.

Eles se retiraram, envergonhados. Thibaud, no íntimo, retorcendo-se de tanto rir, mas os outros, muitíssimo perturbados.

O caso pareceu ter um certo efeito sobre Luís, pois se recuperou da doença, e no dia seguinte saiu da cama.

Mas parecia muito doente e ficou gravemente deprimido pelo que encontrou no acampamento. O calor era exasperante; as moscas e os insetos, mais uma aflição; nada parecia dar certo para o seu exército, e era difícil acreditar que Deus estivesse do lado deles. Tinham feito uma tentativa de escalar os muros no ponto mais vulnerável; tinham conseguido lançar uma ponte por cima do rio, até os muros do castelo, mas ela desabara e várias centenas de homens tinham sido atirados no rio. Muitos se afogaram, e muitos mais tinham ficado feridos. Era uma história infeliz.

Enquanto inspecionava o seu acampamento, Luís se encontrou com Thibaud de Champagne e se sentiu extremamente constrangido, lembrando-se daquela cena no quarto, quando acordara com o que pensara ser um delírio para encontrar uma jovem nua na sua cama e o conde de Champagne olhando para ele de um jeito que só podia descrever como sardónico.

Aquele era o poeta que tinha a ousadia de compor versos falando de Blanche. Nas suas canções, ele dizia ao mundo o quanto ansiava por torná-la sua amante. Aquilo era demais, mesmo para o rei mais tolerante e amante da paz aceitar. Blanche, graças a Deus, era uma mulher virtuosa. Correspondia a sua fidelidade. Ela não dera importância à impertinência de Thibaud, mas qual seria a reação dela se Luís contasse que o sujeito tentara colocar uma jovem nua na sua cama?

A antipatia por aquele homem o dominou e transpareceu nos seus modos.

Thibaud tinha a tendência de ser truculento. Já estava saturado quanto a Avignon. O cerco não estava nem um pouco perto de acabar. Ele gostaria de lembrar a Luís que também tinha sangue real, que era descendente de Luís, avô do rei, e da famosa Eleanor de Aquitânia. Por que pessoas como ele tinham de receber ordens de um primo - pois o parentesco deles era parecido com isso?

- Eles continuam a resistir, majestade - disse Thibaud, que devia ter esperado que o rei se dirigisse a ele. - Se quiser minha opinião, ainda vão resistir por muitas semanas mais.

- Não pedi a sua opinião - replicou Luís, com frieza.

- Ah, então, a retiro, majestade. - A mesura irónica. O brilho nos olhos, a malícia. Ele estava pensando naquela garota nua.

O que poderia ter acontecido com Blois e Bourbon para fazerem uma coisa daquelas? Eles deveriam ter sabido qual teria sido a sua reação. Tinham sido instigados por aquele homem que se dava ares de muita importância e que tinha a ousadia de ter pretensões quanto a Blanche.

- Vamos ficar aqui - prosseguiu Luís -, não importa por quanto tempo o povo de Avignon vá resistir.

- Seus vassalos, majestade, só lhe devem quarenta dias e quarenta noites.

- Meus vassalos, meu senhor, me devem uma lealdade total.

- Eles só se comprometeram por quarenta dias e quarenta noites. Isso constou do nosso juramento. Já estou aqui há 36 dias, e o meu tempo de serviço está chegando ao fim.

- Mas o senhor vai ficar aqui até tomarmos a cidade.

- Prometi quarenta dias e as noites que os seguem, majestade.

- Mesmo assim, o senhor não vai nos deixar. Se deixar, eu arraso Champagne.

- Vossa majestade encontraria uma forte resistência, se o fizesse.

- No entanto, não vou admitir traidores à minha volta. Thibaud teve aquele sorriso insolente que enfurecia muito mais o rei do que suas palavras.

- Estou certo de que irá pensar bem nesse ato antes de cometêlo - disse Luís. - Ele poderia ser uma grande desgraça para o senhor. - E seguiu em frente.

A notícia se espalhou pelo acampamento. Thibaud está se preparando para ir embora.

Filipe Hurepel o admoestou.

- Você não deve partir agora - protestou. - Eles não podem resistir por muito mais tempo. O rei se tornará seu inimigo para o resto da vida, se o abandonar agora.

- Já servi meus quarenta dias. Por que iria ficar mais?

- Porque se todos o abandonassem agora, isso significaria a derrota dele.

- Haveria um grande regozijo em Avignon.

- Seja sensato, Thibaud.

- Estou cansado deste cerco. Prometi ao rei quarenta dias e noites, e já os dei a ele.

- Se for, vai se arrepender.

- Você só pensa em seu irmão, Filipe.

- Ele também não é seu parente?

- Isso é um fato de que ele raramente se lembra.

Outros se dirigiram a ele e salientaram a loucura que seria partir. Alguns o reprovaram por sugerir um procedimento daqueles. Thibaud ficou surpreso com o número dos que apoiavam o rei quando todos estavam cansados do cerco e tinham certeza de que os sitiantes estavam num estado pior do que os sitiados.

Thibaud percebeu que a opinião era contrária a ele. Sabia que o rei acabaria dominando a cidade; se partisse agora, aquilo seria lembrado contra ele e poderia causar-lhe prejuízo. Mesmo assim, não conseguia resistir ao impulso.

Luís não era digno de Blanche, e Thibaud ansiava por ser amante dela, e nunca se sentina inteiramente feliz com outra mulher qualquer porque estabelecera para ele aquele ideal inatingível. E Luís se casara com ela sem fazer esforço algum... simplesmente por ter sido herdeiro do trono.

Precisava lutar contra Luís. Caso contrário, aquilo iria contra a sua natureza impulsiva, imprudente e nem sempre lógica.

Estava escuro quando ele reuniu seus cavaleiros e se preparou para sair às escondidas.

- Você vai se arrepender - disse-lhe Filipe Hurepel, irritado.

- Já cumpri com as minhas obrigações. Não vou dar nada a Luís.

- Seu tolo - disse Filipe.

- Seu irmão leal - zombou Thibaud. - Quem é que pode dizer quanto a minha deserção vai custar e quais serão as recompensas da sua lealdade? Adieu, Hurepel. Estou certo de que tornaremos a nos encontrar em breve.

E então Thibaud e sua companhia voltaram para Champagne.

- Traidor! - bradou Luís. - Sempre achei difícil aturar aquele gordo. Embora deva admitir que é um bom poeta e que gostei de alguns de seus trabalhos. O que acham vocês, Blois, Bourbon, Hurepel.. será que outros também irão embora?

Filipe Hurepel, intrépido, disse que o rei contava com bons amigos em número suficiente para permitir-lhe a tomada de Avignon.

- Disso eu não duvido - replicou Luís. - Mas não gosto quando traidores desertam.

- Thibaud é gordo demais para ser um bom soldado - disse Bourbon. - Ele é mais competente com a pena.

- A pena pode ser uma arma poderosa - disse Luís, e ficou imaginando se os poemas sobre Blanche não teriam provocado aquele ódio que sentia pelo homem.

Tal como Luís temia, a partida de Thibaud aumentou a insatisfação dos soldados. O povo de Avignon fora bem preparado. Para os que estavam do lado de fora dos muros, nunca houvera uma cidade tão bem equipada para resistir a um exército. A saúde de Luís estava se deteriorando outra vez, e os amigos que o observavam angustiados ficavam pensando se não seria sensato levantar o cerco e abandonar Avignon.

Agosto chegara - um calor escaldante. Nunca, declararam os soldados, o sol brilhara com tamanha intensidade; a disenteria aumentou. Homens morriam por toda parte em volta deles.

- Parece que Luís será um deles, se não sairmos daqui - comentou Filipe Hurepel.

Bourbon era de opinião de que o rei jamais desistiria.

- Talvez, apesar de tudo, Thibaud tenha sido o único sensato - sugeriu o conde de Blois. - Pelo menos escapou disso.

- Ele vai se arrepender da sua loucura - disse o leal Filipe. Apenas se haviam passado poucos dias quando o governador da cidade enviou um mensageiro para falar com o rei. A cidade estava disposta a fazer a paz, pois não podia aguentar mais.

Aquilo foi a vitória, mas uma vitória que saíra cara.

Luís não queria, em absoluto, mandar seus soldados estuprar, assassinar e saquear. Era avesso àquilo. Não podia fazer outra coisa a não ser respeitar aqueles homens valentes. Determinou, portanto, que o povo deveria ser poupado, mas que seria considerado uma fraqueza se não se aplicasse um castigo a uma cidade que lhe custara tanto em homens, armas e dinheiro.

Mandou que os muros da cidade fossem demolidos, mas que se mantivessem ilesos seus habitantes.

Seu trabalho em Avignon terminara. Aquilo poderia ser executado por outros que ele nomeou. Luís iria voltar para Paris.

Blanche estaria à sua espera, e lá ele poderia passar uma fase de recuperação na tranquilizadora companhia dela.

Ele estava precisando.

Assim, iniciou a viagem.

O cerco terminara no final de agosto, mas houvera muitas providências a tomar e só no fim de outubro Luís conseguiu iniciar a viagem de volta.

Sentia-se muito cansado, e um dia passado na sela muitas vezes o deixava tão exausto que era preciso descansar no dia seguinte.

Quando chegou ao castelo de Montpensier e foi para a cama descobriu, ao tentar levantar-se no dia seguinte, que não conseguia.

- Infelizmente, meus amigos, receio que serei obrigado a descansar aqui por alguns dias.

Blanche chamou os filhos... o seu adorado Luís, que ficava mais bonito a cada dia, Robert, João, Alphonse e Filipe Dagoberto. Isabella era muito nova, é claro; precisava

ficar na ala infantil, onde outro bebezinho iria se juntar a ela em breve.

- Seu pai está voltando para casa - disse-lhes a rainha -, e vamos recebê-lo e dar-lhe as boas-vindas. Isso dará a ele tanto prazer quanto a vitória que obteve.

- O que vai acontecer com o povo de Avignon, majestade? - quis saber o jovem Luís.

Blanche lhe lançou um olhar penetrante. Havia compaixão na voz dele, e ela ficou querendo saber por que lhe teria passado pela cabeça perguntar primeiro pelos derrotados.

- Seu pai saberá qual a melhor maneira de tratar deles.

- Talvez o rei corte as mãos deles - disse Robert -, ou os pés. Talvez arranque os olhos.

- Nosso pai não vai fazer uma coisa dessas - declarou Luís.

- Ele vai puni-los por terem ficado sitiados, não é? - perguntou Robert.

- Os líderes deles foram os únicos culpados - assinalou Luís.

- O povo não deve ser castigado por isso, deve, majestade?

- Quando seu pai voltar - disse Blanche -, você poderá perguntar a ele o que aconteceu ao povo de Avignon. Então, vai ficar sabendo que se fez justiça.

- Nosso pai tem sempre razão? - perguntou Robert.

- Seu pai sempre fez o que Deus lhe diz que é o certo - respondeu Blanche.

- Nem sempre Deus responde - assinalou Luís.

- Mas orienta, meu filho - replicou Blanche. - Você vai compreender um dia, quando for o rei. Isso ainda vai demorar muitos e muitos anos. Primeiro, vai ter de aprender com seu pai a melhor maneira de reinar.

Blanche se sentia muito orgulhosa dos filhos enquanto saíram juntos a cavalo. Era justo eles estarem lá para recebê-lo depois da vitória em Avignon. Ela estava muito contente por aquilo ter terminado, pois houvera um momento em que tivera medo de que o cerco tivesse de ser abandonado, e isso teria sido prejudicial para a França e para Luís.

Ao se aproximarem do castelo de Montpensier, Blanche sugeriu que Luís e sua comitiva se adiantassem, para que ele fosse o primeiro a saudar o pai.

O garoto estava ansioso por isso. Aos doze anos de idade, já ostentava o porte de um herói. Sua bela aparência loura e seu porte digno de um rei atraíam as pessoas, pois a sua postura era ampliada por uma certa delicadeza. Blanche não considerava uma deslealdade para com Luís observar que o filho dele era, dos dois, o que mais se parecia com um rei. O próprio Luís já comentara isso.

O garoto seguiu um pouco à frente de seus subalternos, na ânsia por ver o pai, e não se adiantara muito quando viu um grupo de homens a cavalo vindo do castelo.

Ele se deteve e bradou:

- Onde está meu pai? Eu vim saudá-lo.

- Meu senhor, onde está a rainha? - perguntou o líder do grupo.

- Está um pouco para trás. Eu vim na frente. Foi ela quem quis.

- Pode fazer o favor de voltar para sua mãe e pedir-lhe que venha o mais rápido possível ao castelo?

- Mas meu pai...

- Seria melhor, meu senhor, que o senhor viesse com sua mãe.

Luís fez meia-volta e retornou.

Quando viu o filho, um medo terrível tomou conta de Blanche. Esporeou o cavalo e galopou em direção ao castelo.

Filipe Hurepel estava esperando por ela. Havia lágrimas em seus olhos, e Blanche soube antes que ele dissesse:

- Majestade, o rei está morto. Viva Luís IX.

Blanche estava no comando, agora. O novo rei era um menino de doze anos, e, embora tivesse muitos dons, ainda era um menino.

Ela precisava pôr de lado o seu sofrimento pessoal. Não havia tempo para isso. Mais tarde iria pensar em Luís, na compreensão que havia entre os dois, na afeição, no respeito que sempre tinham tido um pelo outro, na feliz vida de casados - quase tão feliz quanto a dos pais dela; mas no momento, precisava pensar no futuro.

Quando um rei morria e deixava um herdeiro que ainda não estava em idade de governar, sempre existia um perigo.

"O rei morreu. Longa vida ao rei!" Era uma expressão antiga; mas aquele rei não seria reconhecido como tal enquanto não fosse coroado.

Por isso, antes de parar para se mortificar, ela precisava fazer com que Luís fosse coroado. E então sabia que haveria pouco tempo para lamentações. Luís era muito criança; iria precisar de orientação. Blanche contava com bons amigos, e Luís teria súditos leais, mas a ela caberia o ónus principal.

De Filipe Hurepel, dos condes de Bourbon e Blois, ela ouviu a história dos últimos dias de Luís. Ele se esgotara diante de Avignon; todos sabiam que ele estava doente, mas não da gravidade da doença... e podia-se dizer que ele morrera lutando por uma causa santa, de modo que não era preciso preocupar-se quanto à sua alma.

- Nunca estive preocupada com a alma dele - bradou Blanche. - Era um homem bom. Existem poucos tão bons quanto ele neste mundo ou no próximo, isso eu lhes garanto.

Os homens curvaram a cabeça e disseram: "Amém."

- Realmente, não precisamos preocupar-nos com o que possa acontecer a ele - disse Blanche. - Luís está em paz. Temos de pensar, agora, no que ele gostaria que fizéssemos. Temos um novo rei, Luís IX. É um menino promissor... mas um menino. Meus senhores, o falecido rei iria querer que providenciássemos para que ele seja logo coroado.

Todos concordaram.

- Então, meus senhores, vamos providenciar isso.

Filipe Hurepel sugeriu que Blanche descansasse um dia no castelo.

- Vossa majestade precisa de suas forças para apoiá-lo. A senhora não pode ficar doente.

Ela concordou em descansar ali, e no seu quarto a dor e a desolação a dominaram.

O querido, bom e delicado Luís... morto! Ela não acreditava. Nunca mais voltaria a falar com ele. Precisava dele agora... precisava muito dele.

Suas aias foram procurá-la e a encontraram sentada na cama, o olhar fixo à sua frente, as lágrimas correndo lentamente pelas faces.

- Majestade - disse uma delas -, deseja alguma coisa? Ela sacudiu a cabeça.

- Há uma coisa que eu gostaria que fizessem, e é que trouxessem uma espada e a enfiassem no meu coração.

- Majestade!

- Oh, isso é uma tolice, não é? Mas se eu pudesse fazer um pedido, seria o de estar enterrada num túmulo ao lado de Luís. Ele foi a minha vida. Estivemos juntos no amor e na compreensão. Vocês sabem o que significa isso?

- Quem viu o rei e vossa majestade juntos, majestade, compreende.

- Não tenho vontade de viver sem ele.

- Há o jovem rei, majestade.

- É, o jovem rei. Será que outras pessoas poderiam orientálo melhor do que eu?

- Ninguém poderá orientá-lo como vossa majestade.

- Sei que isso é verdade, e só por isso quero viver.

- Vossa majestade precisa viver. Não deve se prejudicar com lamentações. Deve lembrar-se de que o jovem rei precisa de vossa majestade.

- É verdade. Mandem o rei vir falar comigo.

Luís foi, e, atirando-se aos pés da mãe, começou a chorar.

- Meu filho adorado - disse Blanche, acariciando aqueles brilhantes cachos de cabelos louros -, você perdeu o melhor dos pais, e eu o mais querido dos maridos. Mas temos um trabalho a fazer. Não podemos nos esquecer.

- Não, majestade. Eu não me esqueço.

- A morte dele, que me deixou uma viúva desolada, fez de você um rei. Ele iria querer que você fosse digno dele, meu filho.

- Vou ser. Eu lhe prometo, majestade. Jamais farei qualquer coisa que fizesse com que ele tivesse vergonha de mim.

- Que Deus o abençoe sempre.

Os dois ficaram em silêncio, chorando juntos.

Só esta noite, pensou Blanche. Só esse pouquinho de tempo para chorá-lo. Depois, haverá trabalho a fazer. Meu querido jovem rei, tão belo, tão vulnerável, não vai ser fácil para você.

Mas Luís a teria a seu lado - e Blanche sabia que teria forças.

 

SEIS ANOS de casamento não haviam diminuído a paixão de Hugo de Lusignan pela mulher - ao contrário, aumentara. Excessivamente carinhoso, venerador, ele deixara que aos poucos ela assumisse o controle de sua vida: Hugo raramente tomava a mais insignificante das decisões sem consultá-la, e se ela não a aprovasse, não se falava mais nisso.

Sua recompensa era uma vida de um erotismo no qual ele jamais acreditaria se não a conhecesse e não soubesse que - tanto quanto era possível Isabella amar alguém - ela o amava.

Sob muitos aspectos, ela não estava descontente com a vida que levava. Estava perto de sua Angoulême natal, e na verdade passava grande parte do tempo lá; tinha filhos sem grande dificuldade, embora lamentasse o pequeno desconforto que tinha de ser suportado antes da chegada deles. Era muito fértil, o que parecia natural em vista de sua insaciável sexualidade, e aceitava os filhos com uma certa dose de prazer. Os filhos podiam ser muito úteis. Em seis anos de casamento, ela tivera cinco; e acreditava que haveria mais. Hugo, o mais velho, era um belo menino que se parecia muito com o pai na aparência e nos modos - ainda uma criança, mas que prometia muito. Depois vinha o Guy, só um ano mais moço, e Isabella, Guilherme e Geofredo. Quatro meninos - todos fortes, todos saudáveis. E uma menina era útil. A jovem Isabella era uma criatura encantadora, mas Hugo dizia que jamais teria a beleza da mãe. Mas quem mais tinha essa beleza, e quem mais a teria?

Mas havia uma coisa da qual Isabella jamais se esquecia, e era que era uma rainha. Estava tudo muito bem ao ser o centro da vida e do domínio de Hugo, ser admirada aonde quer que fosse, ter cada capricho seu respeitado, mas em Lusignan, ela era apenas a condessa de La Marche. com João, fora rainha da Inglaterra, e mesmo quando se encontrava presa por ele, aquela realidade continuara. Na Inglaterra, ainda seria a rainha - embora a rainha-mãe. Ela fez uma careta ao pensar naquilo mas mesmo assim, com um filho que era jovem e ainda não encontrara uma rainha, ela teria tido uma situação muito importante.

Assim, sempre era necessário lembrar a todos que ela era uma rainha, provocar Hugo a fazer coisas que fizessem com que todos soubessem o quanto ele era importante.

Claro que Hugo era o senhor de um vasto território. Eram muitos os que lhe deviam vassalagem; mas restava uma coisa que a irritava mais do que qualquer outra que já conhecera: o fato de Hugo ter de jurar vassalagem ao rei da França.

Como Isabella odiava aquela rainha de olhar frio que a olhara com tanta repugnância! Gostaria de vê-la humilhada, ela e o seu boboca do Luís, que a mimava. Ele era inteiramente fiel a ela. As pessoas viviam comentando isso. Ora, ele nada tinha de homem... e ela? Será que tinha amantes? Embora nenhum escândalo a atingisse, todos sabiam que o trovador gordo compunha canções falando nela. Isabella desprezava todos eles - Luís, Blanche e Thibaud de Champagne.

Chegaram mensageiros ao castelo, com cartas para o conde. Isabella descera com Hugo para o salão, para recebê-los, e quando viu que vinham a mando da rainha, não conseguiu esconder a irritação.

Dispensou o mensageiro, mandando-o para a cozinha, onde lhe seriam servidos refrescos, e disse:

- Vamos para o quarto, onde poderemos ficar a sós para ler o que significa isso. É importante. Pode estar certo.

Tirou o pacote de Hugo, que humildemente permitiu que ela fizesse isso, e quando chegaram ao quarto, foi ela que rompeu os lacres.

Hugo se aproximou e olhou por cima do ombro dela.

- Meu Deus! - exclamou ele. - Luís... morto.

- Sempre um fraco - disse ela. - Você sabe o que isso significa. Ela agora será a soberana.

- É o jovem Luís...

- O jovem Luís! Um menino de doze anos. Era isso que madame Blanche estava esperando.

Hugo sabia perfeitamente que Blanche estaria desolada com a morte do marido, e nenhuma mulher tão sensata quanto evidentemente ela era iria querer ver o filho de doze anos no trono, mas Hugo aprendera a não contradizer Isabella.

- Blanche agora é a soberana. - Voltou-se para Hugo. - É para essa mulher que você terá de dobrar o joelho.

Aquele era um tema conhecido, e Hugo gostaria de ignorá-lo.

- Ora, veja - disse ele. - Estamos convocados para a coroação.

Os olhos de Isabella estavam apertados. Estava recuando o pensamento vinte anos, quando lhe haviam trazido a notícia da morte de João e ela ficara numa situação semelhante àquela em que Blanche se encontrava agora. O que fizera? Percebera instintivamente que o seu jovem filho tinha de ser coroado logo. Blanche estava percebendo a mesma coisa, agora.

- Temos de nos preparar logo - disse Hugo. - O tempo é curto.

- Espere! - disse Isabella. - Não estou certa de que iremos a essa coroação.

- Isabella, minha querida, isso é uma ordem.

- Hugo, meu querido, você se casou com uma rainha. Ela não recebe ordens daquela mulher... apesar de ela também ser uma rainha. Somos do mesmo nível, e ela não manda em mim.

- Ela manda em nós como conde e condessa de La Marche, e como tais somos vassalos da França.

- Oh, Hugo, às vezes você me enfurece. Ainda bem que o amo. Caso contrário, não havia dúvida de que brigaria com você e abandonaria isto aqui e voltaria para a Inglaterra.

Hugo empalideceu ao pensar numa desgraça daquelas.

- Agora, meu amor, o que vamos fazer? - perguntou ela.

- Prepararmo-nos para partir. Se quisermos estar em Rheims...

- Nós não vamos estar em Rheims.

- Isabella, o que você quer dizer?

- Vamos partir imediatamente para uma visita ao nosso vizinho de Thouars.

- Ele também será chamado a Rheims.

- Então, temos de alcançá-lo antes que ele cometa a loucura de ir até lá.

Hugo a olhou, perplexo. Ela passou-lhe os braços pelo pescoço e encostou o rosto no dele.

- Meu adorado marido, o que seria de você sem mim? vou fazer de você o homem mais poderoso da França.

- Isabella, o rei...

- Aquele bebé inexpressivo. Não me fale nele. O meu Henrique é um homem, comparado a ele. Meu amor, você está numa situação muito boa. É o marido da mãe do rei da Inglaterra. Já há algum tempo que venho pensando que poderíamos ser mais felizes apoiando ele, e não essa mulher que agora se instala como nossa governante.

- Mas eu jurei vassalagem...

- Juramentos! O que são juramentos? Os juramentos são para os vassalos... Não devíamos nos deixar restringir por gente assim.

- Isabella, por mais que você seja importante para mim, eu tenho minha honra, meu dever...

Ela riu baixinho.

- E eu não ia querer você diferente do que é. Mas antes de irmos a Rheims, quero que vá comigo visitar os nossos vizinhos. vou mandar uma mensagem imediatamente a Thouars e Parthenay para avisá-los de que estamos indo.

- Essa é a coroação do nosso rei...

- Ora, vamos, Hugo! Não há tempo a perder. Aquela criança não está pronta para ser coroada. Ele será simplesmente um portavoz da mãe.

Hugo fez uma leve tentativa de detê-la; mas Isabella, rindo, empurrou-o para o lado e no dia seguinte os dois partiram para o norte de Poitou.

Guy de Thouars, Hugo e o lorde de Parthenay eram os mais poderosos senhores daquela parte do país, e tinham começado a perceber que, juntos, formavam uma força respeitável.

Guy os recebeu com entusiasmo. Hugo, àquela altura, já deixara que Isabella anulasse suas dúvidas e se convencera de que o que ela sugerira era a verdade.

Luís não fora amigo deles; agora, havia um rei menor de idade; e Isabella estava convencida de que Blanche agia contra eles por meios indiretos.

Hugo começou as explicações. Isabella o instruíra sobre o que tinha a dizer, e sabia que Guy e Parthenay precisavam ficar convencidos de que Hugo não estava apenas defendendo os pontos de vista dela.

Hugo salientou que o falecido rei não os servira bem. Decidira, de repente, lutar na guerra albigense, em vez de continuar a guerra contra os ingleses. Assim que os condes de Salisbury e Cornualha mostraram que tinham capacidade militar, ele trocara de guerra.

- Agora - disse Hugo-, temos uma criança como nosso rei, e sabemos perfeitamente que o nosso verdadeiro governante será a rainha.

- É provável - concordou Guy.

- Ela contará com assessores competentes - acrescentou Parthenay.

- Nós conhecemos a rainha, meus senhores - interrompeu Isabella -; ela não tem o temperamento de quem aceita conselhos. Vai dar palpites e esperar que todos façam o que ela quer.

- Parece - disse Hugo, olhando para Isabella - que devíamos oferecer nossa vassalagem em outro lugar.

Os dois homens ficaram perplexos, e Isabella se apressou a dizer:

- Eu tenho influência em outros setores. Sou a mãe do rei da Inglaterra.

- Majestade... meu senhor... - começou Guy.

- Sim - disse Isabella. - posso lhes prometer terras e riquezas. Quando meu filho vier aqui e recuperar o que foi perdido para , a França, ele não será mal-agradecido para com os que o tiverem ajudado. Isso eu lhes prometo.

- Fizemos um juramento de vassalagem...

- Ao rei Luís VIII - bradou Isabella. - Ele morreu.

- O filho deles agora é o nosso rei.

- A mãe dele se apressa a coroá-lo, para que todos os senhores tenham de se ajoelhar diante dele e jurar vassalagem, mas ainda não fizeram isso, meus senhores. Será que vão ser tão tolos a ponto de irem a Rheims e humildemente se ajoelharem para a espanhola?

- A coroação do nosso rei será no dia 29 deste mês.

- Apenas três curtas semanas depois da morte do antigo rei! Bem, uma coisa temos de reconhecer nessa senhora. Ela sabe andar depressa.

- Eu diria - interpôs o lorde de Parthenay - que a rainha será uma regente capaz, com homens competentes a ajudá-la. Não a teremos despreparada para essa tarefa.

Isabella teve um súbito acesso de raiva. Poucas coisas a enfureciam mais do que ouvir elogios a Blanche.

- Preparada! Claro que está preparada. Sou capaz de jurar que estava esperando, muitíssimo impaciente, por esse dia. Ela... e seu amante gorducho.

- Isabella! - bradou Hugo. Os outros a olharam assombrados.

- Ora vamos - exclamou Isabella. - Sabemos dessas coisas, não é? Ela é mulher... por mais que exiba ao mundo uma fisionomia fria. Já ouviram aqueles versos escritos para ela pelo seu gordo conde? São palavras de um amante, meus amigos, de um amante satisfeito. Será que devemos condená-la? Luís pouco tinha de homem. Ela tem suas necessidades, como todos nós. Se ela o aceitasse abertamente, eu poderia gostar mais dela. Essa falsa pureza é que me enfurece.

- Minha senhora - disse Guy -, não se esqueça de que está falando da rainha.

- Eu falo como uma rainha falando de outra.

- Isso não pode sair dessas quatro paredes - disse Hugo, contrafeito.

Isabella soltou uma gargalhada esganiçada.

- Meu querido marido, meus queridos amigos, isso já correu pelos quatro cantos da França. Os senhores serão tão inocentes a ponto de não saberem que há comentários sobre a nossa imaculada rainha? Ele não fica tão calado assim. Seria o mesmo que ficar na torrinha de seu castelo e anunciar a amante para o mundo. Ele faz mais do que isso. Escreve tudo em canções que são entoadas por toda a França. Quem não sabe da paixão criminosa desses amantes?

- Champagne escreve sobre ela como sendo a inatingível disse Guy.

- O senhor é um soldado. Não percebe naqueles poemas aquilo que está à mostra. O gorducho está loucamente apaixonado por ela. Luís morre de repente. Os senhores esperavam que ele morresse? Vamos, confessem. Não foi um choque saber que o rei tinha morrido? Mas uma coisa eu lhes digo: o conde de Champagne discutiu com Luís. Ele foi embora quando estavam diante dos muros de Avignon... e logo depois ficamos sabendo que o rei está morto. De febre, segundo nos informam. De beber um vinho que não estava bom. Quem deu esse vinho para Luís beber? O amante da rainha estava lá, não estava...? e Luís morreu!

- Mas Luís morreu semanas depois de ele ter ido embora -. salientou Parthenay.

- Quem é perito em venenos pode escolher o momento em que eles atuam. Meus senhores, acho estranho que Thibaud de Charnpagne escreva dessa maneira sobre o seu amor e que tenha estado com o rei antes deste morrer. E a rainha... o que ela faz? O que ela diz: "Tenho de fazer com que meu filho seja coroado logo." Na verdade, a demora foi tão pouca que é perdoável pensar-se que fora planejada com antecedência.

Houve um silêncio profundo. Com os olhos brilhando e as faces coradas, Isabella proporcionava uma visão de tal beleza que nenhum deles conseguia tirar os olhos dela. Se havia algo de mau na sua inegável beleza, isso não a tornava menos fascinante.

Não havia dúvida de que Hugo estava contrafeito.

- Não existe prova disso... - começou ele - mas...

- É melhor não falar nisso - interpôs Guy, rápido.

- Mas precisamos pensar no futuro - disse Hugo. Os dois homens concordaram com um gesto da cabeça.

- Não se deve fazer nada precipitado - continuou Hugo.

- O senhor quer dizer que não devemos fazer o juramento perante o rei? - perguntou Parthenay.

- Se não estivermos em Rheims, não poderemos fazê-lo - disse Hugo. - Enquanto isso, vamos examinar a amizade que deve existir entre a minha casa e a do rei inglês. Ele está mostrando, agora, que é rei de verdade... Não acho que vá querer agir contra a mãe dele e os amigos dela.

Fez-se um profundo silêncio no salão. Um jovem rei; uma mulher para governar. Não era uma boa perspectiva. E não era aquele o momento exato para que o rei da Inglaterra tentasse recuperar as terras perdidas pelo pai?

Ele iria precisar de ajuda. E quem melhor para ajudá-lo do que os senhores de Poitou e Lusignan?

Hugo sorria discretamente. Isabella está certa, pensou ele. Os dois estão começando a perceber. Há mais a lucrar com a Inglaterra do que com a França. Fora uma imprudência, é claro, falar daquela maneira de Blanche. Talvez seja verdade. Por que não?

Como sempre, ele começava a acreditar naquilo que Isabella pretendia que acreditasse.

Então, de repente pensou: meu Deus, como ela odeia Blanche!

Thibaud de Champagne cantava, alegre, enquanto seguia em direção a Rheims.

O rei morrera, e Blanche estava viúva. Ele vivia pensando nela, e agora que estava viúva ela parecia se aproximar um pouco mais dele.

Enquanto seguia, compunha novas canções para Blanche. Ela agora era a Rainha Branca, pois, de acordo com o costume, devia ficar de luto pelo marido, e a cor do luto era branca.

A rainha com um nome tão bonito quanto seus belos cabelos e os trajes brancos do luto de uma viúva. Até o nome dela era adequado: Blanche, a Rainha Branca.

Ele cantou um pouco e ficou encantado com os versos que fizera para encaixar na melodia.

E agora, para a coroação em Rheims.

Ele havia mandado o seu ajudante-de-ordens na frente, a fim de conseguir um alojamento adequado para ele. Tinha de ser à altura de seu posto e de sua lealdade. Uma coroação era um momento em que se devia fazer com que o novo rei se lembrasse de seus parentes consanguíneos.

Rheims! Que bela cidade, situada corajosamente ali, às margens do rio Vesle. Estava se tornando uma das importantes cidades da França, já que Filipe Augusto fora coroado lá, e Luís depois dele... e agora o jovem Luís, o novo rei, também passaria por aquela experiência. Parecia estar sendo criado um precedente para a coroação de reis.

Thibaud estava pensando se poderia se apresentar à rainha imediatamente após a cerimónia, ou se deveria esperar um pouco.

Ele deixaria claro a Blanche que colocaria o coração e tudo o que possuía a seus pés.

- Basta mandar, rainha do meu coração...

Thibaud imaginou a gratidão no olhar dela. Agora, ela ficaria contente por ter um protetor. Blanche devia ter seus inimigos, pois sempre havia os interesseiros à procura de vantagens, agora que ficara viúva. Ele faria com que Blanche compreendesse que poderia ter absoluta confiança nele.

Ele viu as torres da catedral. Muita gente estava indo para a cidade. Cavalheiros com seguidores, todos os mais destacados do país.

Enquanto seguia pelas ruas em direção aos aposentos que acreditava estarem à sua espera, foi reconhecido por várias pessoas.

Elas o saudavam com um ar um tanto zombeteiro. Era devido ao seu tamanho. Ele era conhecido, e reconhecido logo, como sendo o Trovador Gordo.

Respondeu às saudações e começou a cantar. Aquilo calou a zombaria. As pessoas deviam conhecer a beleza de sua voz e o mérito das canções que cantava, que eram de sua autoria.

Aquilo o deixou de bom humor, e ele seguiu feliz, ensaiando o que iria dizer à rainha.

Mas onde ficava seu alojamento? Onde estavam os estandartes tremulando à brisa para dizer aos cidadãos que aquela era a residência temporária de Thibaud, conde de Champagne - parente do jovem rei, e de sangue real?

Seu ajudante-de-ordens estava à sua espera na casa que seria honrada ao ser ocupada por ele, com a fisionomia triste, enquanto gesticulava agitado, ao explicar ao seu senhor o que acontecera.

- Meu senhor, eu cheguei aqui. Assumi a residência. Mandei hastear seus estandartes e o prefeito e alguns de seus homens vieram até aqui e mandaram que os estandartes fossem retirados... oh, e que eu me retirasse, com todos os nossos criados, desta casa.

- Deus do céu! - bradou Thibaud. - vou tirar o sangue dele.

- Meu senhor, ele alegou que estava cumprindo ordens.

- Cumprindo ordens! Quem teria a ousadia de dar uma ordem dessas?

- A rainha, meu senhor.

- Não pode ser. Será que ela sabe...? Ora, eu sou o mais fiel de seus servidores.

- As ordens dela eram para que o senhor não se instalasse em Rheims, e que fossem jogados na rua os criados que viessem preparar uma morada para o senhor.

- Mas eu vou comparecer à coroação.

- O enviado da rainha disse que a presença de quem abandonara o pai do rei quando ele estava muito necessitado não seria aceita na coroação.

Thibaud ficou calado.

Depois, cerrou os punhos. Percebeu que se deixara sonhar demais. Blanche estava distante como sempre. Uma grande raiva tomou conta dele.

- Vamos embora, então - disse ele afinal. - Não há dúvida de que haverá quem nos receba bem, já que o rei não recebe.

Foi uma visão emocionante quando o menino rei se dirigiu à catedral montado num grande cavalo branco. As mulheres que se achavam entre os espectadores choravam por ele. Parecia tão jovem, tão indefeso com seus espessos cabelos louros que não tinham proteção alguma, e eram muito bonitos seus traços perfeitamente esculpidos e sua macia pele clara.

Um dos monges o ajudou a descer do cavalo e o conduziu até o interior da catedral. O menino tinha um ar de grande dignidade que foi imediatamente notado e comentado. Blanche, observando o filho, sentiu-se orgulhosa dele. O filho parecia muito vulnerável; ia precisar da orientação dela.

Será que ela fora prudente, imaginava, ao se recusar a permitir que Thibaud de Champagne comparecesse? Agora não tinha certeza. Chegara aos seus ouvidos um rumor de que algumas pessoas diziam que ele era seu amante, e a ideia a deixara com tanta raiva que ela deixara que seus ressentimentos pessoais sobrepujassem o seu bom senso.

A perspectiva de ver aquele homem gordo naquele momento, quando sentia de forma tão aguda a perda de Luís, era mais do que podia suportar. Mas compreendia que a última coisa que devia fazer era antagonizar qualquer um dos poderosos senhores que poderia tornar sua posição - mas principalmente a de seu filho insustentável.

Um jovem rei, uma rainha regente... aquela situação estava repleta de perigos. Teria de agir com cuidado e dominar seus sentimentos pessoais no futuro. Só porque o tolo trovador a mencionara em suas canções de maneira tal que ela era imediatamente identificável, tinha-se começado a fazer circular aquela calúnia. Se pudesse descobrir a fonte, faria com que alguém conhecesse o peso de sua ira.

Enquanto isso, precisava controlar os sentimentos. Era desconcertante descobrir que já agira de modo impensado.

Voltou a atenção para a cerimónia. O abade de Saint Remi estava se aproximando da plataforma sobre a qual o jovem Luís estava sentado, e levava o óleo sagrado com o qual o rei seria ungido antes de ser coroado.

- Oh, que Deus o proteja - rezou a rainha. - Que reine por muito tempo e bem.

Luís estava sentado ali na plataforma de frente para a parte reservada ao clero, onde todos podiam vê-lo, e reunidos à sua volta estavam os nobres mais importantes da França, que tinham vindo de longe para assistirem à coroação e, depois, fazerem o voto de vassalagem.

Eles o estavam vestindo, agora, com compridos calções púrpura decorados com a flor-de-lis, e depois com a túnica e o manto que também levavam as flores-de-lis douradas da França.

Como estava lindo! Todos deviam achar isso. Não era apenas porque ela o via com olhos de mãe. Luís seria um grande rei - mais do que o pai, um rei superior a Luís ou Filipe. O povo iria citar seu nome junto com o de Carlos Magno.

Seria isso uma premonição, uma esperança, um pedido a Deus? Blanche não tinha certeza. Só podia dizer com fervor: "Deus salve o rei."

O bispo colocara-lhe a coroa na cabeça, e Luís agora subia os degraus para o trono; sentou-se sobre a forração de seda que estava bordada com a flor-de-lis.

Poderiam ser poucos os que não ficaram emocionados ao verem o seu jovem rei.

O bispo foi o primeiro a ir beijá-lo, e depois vieram os nobres em ordem de precedência... para beijar o rei e fazer-lhe o juramento de vassalagem.

Faltava Thibaud de Champagne. Também faltavam outros.

Onde estavam Hugo e Isabella de Lusignan e seus vizinhos?

De repente, Blanche teve a ideia de que a fonte dos boatos sobre ela e Thibaud de Champagne poderia ter sido em Lusignan.

Imaginou nitidamente os maldosos olhos zombeteiros de Isabella.

Enquanto ouvia os gritos de aclamação à medida que o pequeno rei passava a cavalo pelas ruas de Rheims, Blanche percebeu que, embora houvesse muitos homens leais para apoiá-lo, o rei teria inimigos poderosos.

Assim que a coroação terminou, a rainha precisou dirigir os pensamentos ao iminente nascimento de mais uma criança. Essa criança foi Carlos.

Blanche pensara que seria um parto difícil, pois tivera um choque muito grande durante a gravidez, mas a criança chegou logo e com boa saúde, e ela mesma, sabendo que uma recuperação rápida era essencial, em pouco tempo sentia-se restabelecida.

Na coroação, muita gente se emocionara com a aparência do belo jovem rei, mas quantos imaginava ela, continuariam fiéis a ele se achassem que poderiam atender melhor a seus interesses agindo ao contrário?

Isso era uma coisa que ela iria descobrir em breve.

Blanche ainda estava um pouco fraca por causa do parto, quando o irmão Guérin foi procurá-la. A seriedade dele e alarmou, pois sabia que Guérin era um homem de uma lealdade inabalável. Ele prestara um longo e fiel serviço não apenas ao seu marido, mas a Filipe Augusto, antes dele, e ambos haviam reconhecido o seu valor. Aquele homem, um monge, que vivia de forma humilde, embora pela sua posição na corte pudesse ter acumulado uma grande riqueza, tivera apenas um desejo: servir bem à França. Filipe Augusto o destacara para fazer suas confidências e apreciara sua competência. Luís VIII fizera dele seu chanceler, e a única preocupação de Blanche a respeito dele era que sua saúde falhasse, pois era um homem idoso.

Por isso, quando ele a foi procurar e sua preocupação era evidente, Blanche viu que não levava boas notícias.

Recebeu-o num aposento privado, e lá se foi direto ao motivo de sua visita.

- Não há dúvida de que há homens ambiciosos que procuram lucrar com uma situação como esta em que agora nos encontramos: um rei jovem que não tem idade para governar, e haverá quem queira tomar as rédeas do governo nas mãos.

- Como eu? - perguntou ela.

- Vossa majestade é a rainha e a mãe do rei. É normal que se coloque à frente dos negócios. Há muitos homens e mulheres leais que reconhecem o seu valor.

- E o senhor é um deles, irmão Guérin?

- Sou, senhora.

- Então, sinto-me muito aliviada - disse a rainha.

- Mas vossa majestade está cercada de inimigos. Alguns são fortes e muito poderosos...

- Sei que Hugo de Lusignan é meu inimigo.

- Lamento - disse o irmão Guérin. - Isso não aconteceria, se não fosse a mulher dele.

- Ah, Isabella. Ela tem sido responsável por muita maldade. Quem dera que ela nunca tivesse decidido levar a filha para Hugo. Se tivesse ficado na Inglaterra, penso que teríamos sido poupados de muitos problemas.

- Vossa majestade deve saber que vem sendo provocado um grande descontentamento.

- E que ela está por trás disso. Não precisa me dizer.

- Lusignan e Thouars receberam a adesão de Pierre Mauclerc - disse o irmão Guérin, em voz baixa.

Blanche levou a mão à cabeça e gemeu. Pierre Mauclerc era um criador de casos. Era uma grande infelicidade o fato de ele ser aparentado com a casa real e ser descendente do conde de Dreux, um dos filhos de Luís VI. Por ser um filho mais moço, não tinha sido tão bem dotado quanto os irmãos. Quantos problemas eram causados por filhos pobres cujos pais os tiveram em maior quantidade do que a dos bens a dividir! Isso sempre parecia ter um efeito maléfico sobre a pessoa interessada. João Sem Terra, rei da Inglaterra, era um exemplo - e mesmo quando aquelas pessoas recebiam possessões parecia que seu caráter continuava pervertido e eternamente ganancioso.

Pierre Mauclerc adquirira seu apelido porque em certo momento participara de ordens sacras. Deixara isso para trás havia muito tempo, mas as pessoas não esqueciam, e como era conhecido pelas más ações que cometia, tornara-se conhecido como Pierre Mauclerc (Pedro Mauclérigo).

Desde que se conseguira o casamento dele com a herdeira da Bretanha, houvera um aumento de sua fortuna. Sua condessa morrera, deixando-lhe três filhos - João, Artur e uma menina, lolanda.

Assim que assumira a Bretanha, ele começara a fazer a reputação pela qual recebera o nome; e todo mundo sabia que era um homem que precisava ser vigiado, pois era capaz de trapaças, autopromoção, e de qualquer vilania que pudesse imaginar para favorecer seus objetivos.

Por isso, quando o nome de Pierre Mauclerc foi mencionado, Blanche se preparou para enfrentar problemas.

E era bom se preparar, mesmo.

- A primeira reivindicação dele é o trono - disse o irmão Guérin.

- O trono. Ele deve estar louco.

- Talvez apenas inflado de orgulho - admitiu Guérin. - Diz que o primeiro conde de Dreux não foi o segundo filho de Luís VI, mas o primeiro.

- Que absurdo. Se tivesse sido o primeiro, teria sido rei!

- A teoria dele é que Robert de Dreux foi preterido porque o pai o considerava menos inteligente e capaz de governar do que o irmão Luís, que, embora mais moço, fingiu-se ser o mais velho e, como Luís VII, herdou a coroa. Motivo pelo qual ele, como um dos descendentes, alega ter direito ao trono.

- Mas isso é absurdo. Mesmo se fosse verdade, ele tem irmãos mais velhos que estariam colocados na frente.

- Pierre imagina que se lutar pela coroa ela será dele. Está fazendo declarações alegando que nada de bom pode acontecer a um país governado por um menino e... vossa majestade me perdoe, mas vou repetir o que ele diz... um menino e uma mulher.

Blanche deu uma risada zombeteira.

- Quando um menor sobe ao trono, sempre há desses absurdos. Poderíamos mandar soldados prenderem esse homem. O que ele diz é traição. Ele devia estar na cadeia.

- Eu também acho - disse Guérin. - Mas ele agiu de imediato.

- De que maneira?

- Aliou-se a homens poderosos. Thouars, Lusignan, e eu soube que Thibaud de Champagne se uniu aos descontentes.

Blanche cobriu os olhos com as mãos. Que erro, expulsar Thibaud da casa! Esperara que ele lhe fosse fiel. Que tola tinha sido! Ele era um poeta. O que escrevia em seus versos nada significava para ele. Escolhia palavras mais pela beleza do que pelo significado.

Ela percebeu que o irmão Guérin a olhava atentamente. Oh, Deus, pensou, será que até ele acredita nesses boatos?

- É de Hugo de Lusignan que precisamos ter mais medo - disse Blanche.

- Hugo já foi um homem tolerante.

- Oh, mas ele se casou - bradou Blanche -, e desde então não tem vontade própria. É um homem que faz o que mandam. Não é com Hugo que devemos nos preocupar, mas com aquela que o orienta em tudo. Aquela mulher! Ela vai acabar levando-o à desgraça. Eu sei.

- No momento - disse Guérin, delicado -, devemos ter medo deles. Não lhe contei tudo. Mauclerc prometeu fazê-lo rei da Inglaterra.

- Irmão Guérin - exclamou ela -, por favor, conte-me tudo, rápido. A situação vai ficando cada vez mais desanimadora à medida que o senhor vai me contando as desgraças aos poucos.

- Isso é tudo o que tenho a dizer a vossa majestade. Creio que irá concordar que se trata de uma situação cheia de maus presságios,

- Eu acho. Barões poderosos revoltando-se contra o rei. E um deles se aliando, através do casamento, à Inglaterra.

- Não se esqueça de que Isabella é mãe do rei da Inglaterra. A solidariedade dela será para com ele.

- E para onde for a dela, irá a do marido.

- É verdade. Se o rei inglês escolhesse este momento para nos atacar, encontraria um forte apoio aqui.

- E estes são os traidores que conhecemos. Quantos haverá que guardam segredo, irmão?

- Um dia vamos descobrir, a menos que possamos acabar com isso.

- A última coisa que desejo é que meu filho seja levado à guerra logo no início do seu reinado.

- A situação é perigosa, majestade, como sempre acontece quando um rei jovem sobe ao trono. Ele ainda não mostrou o que é. Não passa de uma criança. Homens ambiciosos estão à espera para tomar o poder.

- Não quero entrar em guerra - disse Blanche.

- Só há uma outra alternativa. Ela concordou com a cabeça.

- Negociações. É esta a alternativa que pretendo usar.

- A reivindicação de Mauclerc...?

Blanche soltou uma exclamação de impaciência.

- Isso é o menos importante. Quem levará isso a sério? São os Lusignan que estão criando problemas. Desde o dia em que Isabella de Angoulême se casou com Hugo de Lusignan que eu esperava por isso. Ela solapa o espírito dele. Induz Hugo a seguir pelo caminho que ela quer.

- Talvez seja natural que ela deva apoiar o filho.

- Não há nada de natural com relação àquela mulher. Ela é obcecada por si própria.

- Como vossa majestade conseguirá vencer a obsessão dela?

- Talvez oferecendo algo melhor do que aquilo que ela poderia conseguir com o filho.

- Vossa majestade vai comprar a lealdade dela?

- Isabella não tem lealdade para oferecer a ninguém, a não ser a si própria. Talvez eu possa comprar a retirada dela. Porque, se aquilo que se precisa ter para a segurança do reino não pode ser dado, só há uma alternativa, que é comprá-lo.

- E o que vossa majestade vai usar como moeda?

- Vou pensar, irmão, e informá-lo de minha decisão. Há uma grande esperança neste lamentável negócio: aqueles com quem temos de negociar darão vassalagem a quem pagar mais... enquanto estiver sendo bom para eles, é claro - comentou Blanche.

Disse ao irmão Guérin que falaria com ele outra vez mais tarde. Depois, preparou-se para encerrar a convalescença. Havia trabalho a fazer.

Blanche não podia perder tempo. Os rebeldes estavam se reunindo contra Luís. Estavam perguntando por que a França devia ser governada por uma mulher... e ainda mais uma estrangeira. Mesmo os desejosos de continuar leais a Luís não queriam uma pessoa estrangeira a governá-los - e ainda mais uma mulher.

Forças estavam sendo reunidas em Thouars; iriam atacar na primavera. Mas Blanche precisava impedir a luta. Não devia haver guerra civil na França.

- Já não temos bastante o que fazer para nos defendermos dos ingleses? Daqui a quanto tempo eles vão nos atacar? - perguntou Blanche.

O irmão Guérin disse acreditar que Hubert de Burgh estava insistindo com o rei para que não pensasse, por enquanto, em recuperar as possessões francesas. Não contavam com homens e munição suficientes para saírem vencedores. Era verdade que o irmão do rei, o conde da Cornualha, ainda estava na Inglaterra, e deviam rezar para que ele não se unisse aos rebeldes.

Blanche fez planos e partiu para o sul, em direção a Thouars, onde instalou seu acampamento entre aquela cidade e Loudun. Depois, mandou mensageiros a Thouars e pediu que um dos membros daquele grupo fosse falar com ela, a fim de que pudessem debater suas diferenças.

Depois, esperou ansiosa. Tanta coisa dependia daquele encontro! Iriam levá-la a sério? Eles deviam saber que o marido debatia com ela assuntos de interesse do Estado, que ela era uma estadista como o rei havia sido, e que muitas vezes ele se beneficiara com a opinião dela. Deviam saber que - embora a chamassem de estrangeira - seu único desejo era o bem-estar da França, o país do qual seu filho agora era o rei.

Quem viria?, pensou ela. Seria Hugo de Lusignan? A mulher dele, é claro, não viria com ele. Como poderia ela estar no acampamento?

Mas Hugo devia saber o que ela queria e ter medo de contrariar os seus desejos.

Não foi Hugo que compareceu como embaixador do inimigo.

Blanche sentiu uma onda de excitação misturada com um pouco de apreensão, e uma certa contrariedade quando ele foi levado à sua presença, pois o homem que se curvava à sua frente era Thibaud de Champagne.

com que então os dois estavam cara a cara - a heroína das fantasias dele e o homem que dissera ao mundo que o que queria acima de tudo era ser seu amante.

Ele estava preparado, pois devia ter implorado para realizar aquela missão, enquanto que Blanche foi apanhada totalmente de surpresa; mas era ela que estava com o controle perfeito.

- Com que então o senhor vem aqui como meu inimigo, conde - disse com rispidez.

Ele baixou os olhos e murmurou:

- Majestade, isso é uma coisa que eu jamais poderia ser.

- Vamos falar a verdade. De nada nos adiantará rejeitá-la. O senhor se uniu àqueles que estão contra o rei, e eles o enviaram para discutir comigo.

- Majestade, eu implorei pela oportunidade de fazer isso.

- Para que pudesse receber meu desprezo em pessoa.

- Não, para que eu pudesse ter o prazer de vê-la. Blanche se agitou, impaciente.

- Meu senhor, pare com isso. Sejamos sensatos. O senhor veio negociar, ou não? Entrar num acordo comigo para que o senhor e seus companheiros rebeldes não prejudiquem o rei e suas terras.

- Prometo a vossa majestade dar a vida para servi-la. Aquilo a fez soltar uma gargalhada.

- Assim parece, meu senhor! Por favor, guarde suas frases floreadas para seus versos.

- Vossa majestade tem lido os meus versos?

- Alguns. Quando são trazidos à minha atenção.

- vou lhe dizer a verdade, porque na sua presença não poderia fazer outra coisa. Quando fui expulso de Rheims, voltei-me para os inimigos de vossa majestade.

- Antes disso. Eu me lembrei de que o senhor havia abandonado o rei, e por isso não o queria na coroação do filho dele.

- Eu o avisei. Eu havia cumprido o meu prazo. Eu era um leal servidor do rei, mas não gostava dele. Isso era impossível.

Blanche ignorou a insinuação.

- E agora, o que tem a dizer? Quais as ameaças que veio fazer ao rei?

- Agora que a vi, majestade, não poderia fazer outra coisa senão servi-la com a própria vida.

- Mesmo que isso signifique servir ao seu rei, a quem deve vassalagem? - perguntou ela com um tom de cinismo na voz.

- Se fossem ordens suas.

- São.

- Então, assim será feito.

- O senhor muda de lado depressa.

- Nunca estive de qualquer lado, a não ser o seu, majestade. Tive um ressentimento momentâneo. Havia planejado oferecer-me a vossa majestade por completo. Ser o seu humilde escravo, se vossa majestade assim o quisesse. E então, fui recusado...

- Compreendo que agi de maneira insensata naquele caso. Peço-lhe perdão por isso.

A fisionomia dele brilhou com uma alegria que quase o tornou bonito.

- Majestade, juro que irei servi-la, mesmo que tenha de morrer por isso.

- No momento, tudo o que peço é que façamos algum acordo com os inimigos do rei.

- Eles são poderosos, majestade. Pierre Mauclerc está decidido a fomentar discórdia. Hugo de Lusignan está sendo controlado pela mulher. O filho dela, Ricardo da Cornualha, está agora na França; esses rebeldes estão com planos de unirem-se a ele.

- Eu sei disso. E o senhor é um deles?

- Já não sou mais, majestade - respondeu ele, rápido.

- Eles estão decididos a fazer a guerra?

- É possível que sim. A filha de Mauclerc está noiva do rei da Inglaterra. O rei deve estar muito necessitado de apoio aqui, para ter concordado com isso. Mas acredito que antes desse casamento tornar-se realidade o rei da Inglaterra encontrará motivos para que ele não se realize.

- Mas no momento Mauclerc acredita que vai.

- Mauclerc não está no nosso acampamento em Thouars no momento. Seria bom fazer um tratado antes dele chegar.

- Isso seria possível?

- Majestade, nós poderíamos torná-lo possível.

- De que maneira?

- Vossa majestade tem bons artigos para fazer a barganha Ah, perdão. Não se deve falar assim dos filhos da França. Não há nada como um noivado, uma aliança, entre famílias, para aproximá-las.

- O senhor acha que isso seria aceitável?

- Se a minha senhora tentasse, veria. E ninguém sairia prejudicado se não desse certo. Se desse, também se ganharia tempo... tempo para deixar que o jovem rei se tornasse não tão jovem... tempo para se preparar para qualquer conflito que possa vir mais tarde...

- O senhor é bom conselheiro, senhor conde.

- Eu daria tudo o que possuísse a vossa majestade, e não pediria nada mais do que ter permissão para vir à presença de vossa majestade.

- Obrigada.

- Agora vou voltar para o meu lado. E vossa majestade verá que a sirvo de todo o coração.

Depois que o conde saiu, Blanche ficou meditando durante algum tempo. Seus pensamentos eram um torvelinho. Ele a perturbava. Estava realmente apaixonado por ela... aquele estranho e gordo poeta que nada tinha de romântico na aparência, mas que, no entanto, compunha versos muito bonitos.

De certa maneira, odiava usá-lo. Sua vontade era dispensá-lo, dizer-lhe que não queria saber dele de forma alguma.

Mas isso seria loucura. Vira como os seus atos em Rheims tinham sido desastrosos.

Precisava usar a devoção do conde de Champagne da melhor maneira possível. Era importantíssimo fazer um armistício com os barões rebeldes, a fim de fortalecer o domínio da coroa por parte de seu filho.

Isabella foi para Thouars, onde Hugo lhe pedira que se juntasse a ele. Sabia que algo de importante havia acontecido, e que o marido estava com medo de tomar uma decisão sozinho.

Os rebeldes estavam confabulando com a rainha da França e seus assessores. Blanche devia estar alarmada, para se rebaixar a ponto de fazer aquilo. Devia estar aprendendo que não podia escarnecer dos poderosos cavaleiros e barões da França, embora fosse a rainha.

- Quais são as novas? - perguntou Isabella, em tom arrogante, quando ficou a sós com Hugo.

Hugo olhou para ela, saudoso e assombrado. - Você é ainda mais bonita do que andei me lembrando. Ela riu, satisfeita, mas impaciente.

- É bom ouvir isso - replicou -, mas eu gostaria ainda mais de ouvir que levamos a melhor sobre o inimigo.

- Estamos em negociações.

- Ah, e com certeza em boas condições. Você deve ter percebido a força de sua posição, já que a poderosa Blanche em pessoa veio procurá-lo.

- Acho que as condições são excelentes... para nós. Blanche propôs o filho dela, Alphonse, para a nossa Isabella, e o nosso Hugo para a Isabella filha dela.

- Nossa filha ainda é uma criança!

- Mas vai crescer. O irmão do rei para a nossa pequena Isabella, e Hugo para a irmã do rei. O que acha disso?

Isabella fez um lento gesto de afirmação com a cabeça.

- É razoável - disse ela.

- A filha de Mauclerc, lolanda, vai para o irmão do rei, João.

- Ela era para ficar noiva do meu filho Henrique da Inglaterra.

- Blanche tem medo da gente. Isso está claro, já que está disposta a aceitar lolanda para o filho, a fim de evitar que ela faça uma aliança inglesa.

- E são essas as condições do tratado?

- São, minha querida, e acho que nos saímos bem.

- É um bom casamento para o nosso Hugo - admitiu ela.

- E para Isabella.

- Esses casamentos têm o hábito de nunca se realizarem.

- Vamos fazer com que se realizem.

- Você fará isso, meu forte guerreiro?

- Juro.

- Você percebe o que ela fez, não? Blanche está tornando impossível nós nos unirmos ao meu filho. Está nos conquistando para o lado dela com essas alianças.

- Minha querida, o nosso lar é aqui. Henrique está muito longe. Você não acha que temos mais a ganhar da França do que da Inglaterra?

- Isso nós vamos descobrir. Por enquanto, acho interessante ver a rainha da França implorando nossos favores. Como estava Blanche quando você falou com ela?

- Eu não falei. Não fui o mediador.

Ela se voltou para Hugo, ameaçadora.

- Devia ter sido você.

- Achamos melhor que fosse o conde de Champagne. Isabella o encarou e depois rompeu numa gargalhada.

- O trovador gordo! O amante da rainha!

- Isso não é verdadeiro, Isabella. Blanche é uma mulher séria. Sempre foi.

- Você acredita nisso... tal como os outros. E o mandou falar com ela.

- Foi bom. Ele conseguiu boas condições.

- Como eu teria adorado vê-los juntos. Blanche deve ter caído na gargalhada quando ele chegou. Talvez tenha sido um estratagema que eles usaram... para estar juntos. Talvez tenham temperado a negociação deles com outros assuntos.

- Você está completamente enganada a respeito da rainha. Isabella dirigiu a ele um olhar frio e malicioso.

- Então você acha que sou uma tola.

- Isso nunca... mas... a rainha, sabe, é...

- Deixe eu lhe dizer uma coisa, Hugo. Eu conheço as pessoas do tipo da rainha. Não são diferentes de nós. Thibaud de Champagne nos falou sobre o caso de amor dos dois, não falou? E se ele tiver assassinado Luís para livrá-la dele?

Hugo estava nitidamente perplexo.

- Oh, ela não podia estar envolvida nisso, não é? - prosseguiu Isabella. - Ela é boa demais... essa brancura imaculada de rainha.

Hugo não conseguiu responder, como também não ocultou por completo o seu horror; mas não devia haver discordância com Isabella. Não queria que o tempo que podiam estar juntos fosse gasto com discussões.

Blanche pensou no que fizera. O problema tinha sido afastado, e existia uma paz temporária.

Fora isso que ela procurara. Só uma curta pausa, enquanto Luís crescia um pouco e passava a compreender o que significava ser rei.

Uma aliança por meio de casamento com a família que ela odiava desde que Isabella de Angoulême se tornara a líder. Noivados assim, consolou-se, com muita frequência não davam em nada.

Meus filhos se casando com os dela! Sentia repugnância ao pensar nisso. E se eles tivessem herdado os modos da mãe?

Mas não podia haver meios de esses casamentos se realizarem antes de se passarem muitos anos. Ela estava em segurança. Antes arranjaria motivos para que nunca se realizassem.

Precisava de todas as faculdades mentais para manter a paz; manter o reino intacto até quando Luís tivesse idade suficiente Para a assumir o comando, e ela faria o que fosse necessário, ainda que aquilo significasse fingir amizade para com os inimigos.

Blanche soube que quando contaram a Pierre Mauclerc os termos do tratado, ele praguejara. Aquele homem queria a guerra, porque iria tentar apossar-se da coroa.

Não tinham dito a Blanche exatamente o que ele dissera, mas quando soube que Pierre jurara vingança contra Thibaud de Champagne por tê-los traído, viu também que ele unira o nome dela ao do trovador.

Era gente como Pierre Mauclerc que semeava escândalo por toda a França. Homens iguais a ele; mulheres como Isabella. Aqueles eram os verdadeiros inimigos de Blanche. Não homens como Hugo, que era levado de um lado para o outro por uma esposa que o enfeitiçara.

Mas por enquanto havia paz. Blanche não se devia dominar por uma sensação de segurança. Precisava estar preparada. Sabia que mais cedo ou mais tarde a ameaça chegaria... se não dos inimigos ali, dos inimigos do outro lado do canal. Henrique devia estar furioso. Sua mãe estava disposta a apoiar os franceses! lolanda, sua prometida, iria se casar com um príncipe da França!

Não devia demorar muito para que o inimigo do outro lado do canal decidisse declarar guerra. Quando o fizesse, poderia ela contar com os homens com os quais acabara de fazer o seu tratado?

Quem poderia dizer? Tudo o que Blanche podia fazer era ficar preparada.

 

INGLATERRA

1226-1242

RICARDO, CONDE DA CORNUALHA, foi direto falar com o irmão em Westminster ao voltar da França. Os dois abraçaram-se com uma afeição sincera. Ricardo se mostrara um general competente, e foi logo dizendo a Henrinque que aquilo era apenas o começo. Ele obtivera algum sucesso, e agora tinha experiência para saber que nem tudo podia ser recuperado numa única campanha de pouca duração.

Ele estudou o irmão com cuidado. Henrique estava, agora, com quase vinte anos - muito cônscio de sua posição e decidido a que todos soubessem que ele era o rei. Ricardo não podia deixar de pensar que ele é que teria sido mais indicado para o cargo. Henrique era muito fácil de ser convencido, e se os rumores não mentissem, estava inteiramente nas mãos de Hubert de Burgh, o juiz.

Os dois conversaram sobre os problemas na França e da família. Joana parecia contente na Escócia com Alexandre. Houvera um ou dois casos de disputa na fronteira, mas graças à aliança não surgira nada sério.

- Não há herdeiro, então? - perguntou Ricardo.

- Nenhum.

- A essa altura, já devia haver.

- Ela ainda é jovem... nem chegou aos dezessete. Ela reclama bastante do clima escocês. É uma pena um dia ela ter ido a Lusignan. Ela parecia ansiar pelo calor, depois disso.

- Uma pena ela não ter ficado lá e se casado com Hugo.

- Oh, nossa mãe vai cuidar dos nossos interesses melhor do que Joana jamais poderia cuidar.

- Não tenho certeza quanto a isso - disse Ricardo. - Ela agora tem outra família.

- De Hugo. Mas isso não quer dizer que vai se esquecer de nós. Eu sou o rei, lembre-se.

- Ouvi dizer que Hugo a mima e que é ela que toma as decisões.

- Tanto melhor, pois podemos estar certos de que temos uma boa amiga por lá. Estou muito ansioso para ir até lá, e farei isso assim que estivermos prontos.

Ricardo ficou ligeiramente contrariado. Estaria o irmão dando a entender que ele só precisava atravessar o canal para a França, a fim de conseguir uma vitória imediata?

Se fosse isso, ele poderia ter um despertar violento.

- E Isabella e Eleanor?

- Isabella está na corte. Eleanor está com o marido.

- Guilherme Marechal é um bom marido para nossa irmã?

- Não tenho ouvido reclamações. Mas duvido que ela já seja uma esposa de verdade para ele. Ela só tem doze anos de idade.

- Suponho que daqui a pouco se encontrará um marido para Isabella.

- As negociações com o rei dos romanos fracassaram. Eu preferiria um casamento entre ela e o jovem rei da França.

- Uma bela união. Isso poria um fim nas nossa guerras. Porque se o filho de nossa irmã herdasse a Normandia, como iria você lutar contra ele para toma-la?

- Antes de nossa irmã atingir a idade de ter filhos, eu pretendo que toda a Normandia esteja de volta para a coroa inglesa.

Ricardo assumiu um ar zombeteiro. Aquele seu irmão não fazia ideia da dificuldade daquela tarefa. O pai deles fizera tamanho desserviço para com a coroa da Inglaterra, que era duvidoso que um dia a situação pudesse ser corrigida.

Não adiantava tentar explicar a Henrique como era a coisa lá. Ele teria de descobrir pessoalmente.

Ricardo iria ver a irmã Isabella e contar-lhe suas maravilhosas proezas em combate. Ele iria aterrorizar a velha Margaret Biset com suas histórias horrendas. Ela sempre tentara proteger do mundo a menina de quem se encarregava de criar. Aquilo não era bom, quando a pobre da Isabella seria despachada muito em breve para algum lugar, a fim de ser a esposa de um homem que praticamente não conhecia.

Isso acontecera com Joana, e também com Eleanor. Era só por acaso que a jovem Isabella continuava na ala infantil, com Biset chocando-a.

Hubert de Burgh, juiz da Inglaterra, que gozava da inteira confiança do rei, foi procurá-lo um tanto aflito. Já se haviam passado alguns meses depois da volta de Ricardo da França, e depois de uma curta permanência na corte, ele fora para suas propriedades na Cornualha, das quais muito se orgulhava, porque o estanho que fora encontrado nas minas de lá tinha feito dele um homem rico.

Hubert de Burgh também não estava descontente com a sua sorte. Conseguira persuadir o rei a banir seu grande inimigo, Peter dês Roches, do país, e Peter se unira a Frederico II, imperador da Alemanha, numa cruzada à Terra Santa, de modo que ele estava bem longe de seu caminho. Desde então, Hubert havia consolidado sua posição, e embora Henrique estivesse lutando para ficar mais independente, não podia governar sem Hubert, e assim Hubert ia ficando mais rico e mais influente a cada dia. Sabia que aumentava o ressentimento contra ele entre aqueles que pretendiam tomar-lhe o lugar; mas isso ele reconhecia como o inevitável resultado do poder. Tinha de aceitá-lo, enquanto ficava vigilante. Mas com Peter dês Roches despachado com tanta facilidade, ele começara a se sentir muito confiante.

Agora, ele foi procurar o rei com uma reclamação contra Ricardo da Cornualha, e não tinha dúvidas de que seu conselho seria atendido.

Ricardo estava ficando truculento e demasiado seguro de si mesmo, desde que chefiara um exército. Hubert não duvidava que, na verdade, fora o seu inimigo, o já falecido conde de Salisbury, o génio por trás daquela campanha.

- Majestade - disse Hubert -, devo trazer ao seu conhecimento a conduta de seu irmão, que agiu de uma maneira que sei que não será de seu agrado. Vossa majestade talvez não se lembre de que seu pai deu a Waleran lê Tyes, o alemão, uma herdade nobre em retribuição aos serviços por ele prestados. Waleran lutou bem do lado de seu pai, e, apesar de ser um mero mercenário, o rei quis recompensá-lo. Agora, Ricardo tomou essa propriedade.

- Qual foi o motivo? - perguntou o rei.

- Diz ele que antigamente ela pertencia ao condado da Cornualha, e como ele era o conde daquele condado, na realidade lhe pertencia.

- vou mandar que ele a devolva imediatamente. Mande chamá-lo, por favor, Hubert.

Hubert disse que já previra a reação do rei naquele caso e já mandara um mensageiro a Ricardo, ordenando, em nome do rei, que se apresentasse já.

Henrique franziu ligeiramente o cenho. De vez em quando as pessoas lhe davam a entender que Hubert de Burgh tomava muitas decisões por conta própria. Uma delas chegara mesmo a dizer: "Será que ele pensa que é o rei?" Mas ele queria, mesmo, que Ricardo fosse falar com ele, e assim, como é que iria reclamar?

Hubert foi rápido ao perceber a expressão que passou pela fisionomia do rei, e disse:

- Estou certo de que vossa majestade vai resolver esse caso da maneira correta.

- É o que pretendo fazer - replicou Henrique.

- Não sei, majestade, se pensa que talvez seu irmão se tenha tornado demasiado cônscio de sua importância e ache que o parentesco com vossa majestade deva dar a

ele privilégios especiais.

- Acho que é possível que isso aconteça.

- Ah, vossa majestade vai saber cuidar disso - disse Hubert. Quando Ricardo chegou à corte, Hubert estava com o rei, e quando perguntou se o rei queria que se retirasse, Henrique respondeu:

- Não, pode ficar.

Ricardo lançou um olhar arrogante ao irmão e quis saber o motivo de todo aquele importúnio.

- Essa propriedade que você tirou do alemão... - começou Henrique.

- Ela pertence à Cornualha - retorquiu Ricardo -, e portanto me pertence.

- Eu lhe ordeno que a devolva - disse Henrique, no seu estilo mais digno de um rei.

Ricardo hesitou um pouco enquanto olhava para o irmão com os olhos semicerrados. Henrique, pensou Ricardo, nem dois anos mais velho do que ele, e imaginando que tinha o direito de mandar nele! Que tragédia não ter sido o primogénito! E o que é que Hubert de Burgh estava fazendo ali? Será que Henrique tinha medo de agir sem a sua ama-de-leite?

Ricardo falou fria e calmamente:

- Isso eu não faço. A propriedade me pertence por direito.

- Mas eu estou mandando - bradou Henrique.

- Neste caso, só tenho uma coisa a fazer. vou submeter o caso ao tribunal do rei e aos magnatas, cuja decisão deverá ser a meu favor. Só se decidirem contra mim é que vou examinar a possibilidade de abrir mão dela.

Henrique considerou aquilo um insulto direto ao que ele estava ansioso por afirmar, a sua dignidade real.

Cerrou os punhos e se aproximou do irmão. Estava começando a dar sinais de um génio violento, percebeu Hubert, que podia surgir de repente e resultar em atos impulsivos.

- Ou você devolve o castelo, ou sai do país - disse ele.

- com que então você seria capaz de me exilar! Você se dá ares de importância, Henrique.

- Ares. Eu, que sou o rei!

- Houve uma carta, já se esqueceu? Nosso pai foi obrigado a apor sua assinatura a ela. Em consequência, há alguma justiça neste país. vou agora mesmo procurar os barões e insistir para que se faça justiça, e agirei de acordo com o julgamento de meus pares avisou.

Com isso, ele se voltou e se retirou do aposento.

Henrique estava muito perplexo para falar, durante algum tempo. A raiva o estrangulava.

Hubert o observava e esperou que ele falasse. Percebia agora que Henrique já não era tão fácil de controlar quanto antigamente, e o próprio Hubert teria de andar com cuidado. Aqueles súbitos acessos de raiva eram alarmantes, e se podia ficar daquela maneira com o irmão, pelo qual se esperava que tivesse uma certa afeição, seria muito mais fácil com o seu juiz.

Finalmente, Henrique falou.

- Bem, Hubert de Burgh, o que acha disso?

- Acho que vossa majestade decidiu que o conde da CornuaIha deve ser tratado de um modo do qual pode não gostar.

Henrique sentiu-se aliviado. Por um momento, pensara que Hubert pudesse achar que Ricardo estava com a razão.

- Você acha que fui ríspido demais?

- Acho que vossa majestade foi justo, que é o que um rei deve ser.

Henrique olhou para Hubert com afeto.

- Bem - disse ele -, e agora? E se ele submeter esse assunto ao tribunal? E se ficar decidido que ele está com a razão?

- Em um caso ele não tem razão alguma. Ele se portou, com o rei dele, de uma maneira que nenhum súdito leal deve se portar e embora seja irmão de vossa majestade, é seu súdito. Por isso, merece uma lição.

- Que lição?

- Ele devia ser preso e encarcerado. Talvez isso mostre a qualquer tribunal que vossa majestade não irá tolerar insultos.

- Tem razão, Hubert.

- Devo mandar uma tropa prendê-lo?

- Mande, por favor. Quando ele for meu prisioneiro, terá tempo de esfriar a raiva.

A ordem foi dada, mas quando a guarda saiu atrás dele, Ricardo já havia escapado.

Ele estava indo à procura de Guilherme Marechal, marido de sua irmã Eleanor e o homem para o qual começavam a se voltar aqueles que achavam que o poder de Hubert de Burgh era grande demais.

Ricardo cavalgou a toda velocidade para Marlborough, onde esperava encontrar Guilherme Marechal. Não tinha certeza quanto à reação de Henrique quando este se recuperasse. Henrique era muito inseguro - quanto a isso não havia dúvida, mas depois que Hubert lhe tivesse dito o que fazer, ele poderia tramar alguma vingança.

Foi uma boa ideia ir procurar o Marechal, porque Ricardo sabia que havia um crescente descontentamento no país - não tanto quanto a Henrique, que todos consideravam como pouco mais que uma criança, mas quanto a Hubert de Burgh. Hubert era demasiado rico e poderoso - e cada vez ficava mais; e era óbvio, naquele caso da propriedade da Cornualha, Hubert estava do lado do rei. Portanto, estaria contra Ricardo.

Para azar dele, quando chegou ao castelo Guilherme não estava. Mas encontrou Eleanor, sua irmã, que ficou muito contente ao vê-lo.

Atirou-se sobre ele e abraçou-o com força. Estava com treze anos de idade e era uma mulher casada; mas ainda era virgem, pelo que Ricardo presumia.

Era interessante vê-la como a castelã, e ficou ligeiramente emocionado por ela ser tão jovem.

Eleanor lhe disse que o marido estaria de volta ao castelo dentro em pouco. Talvez naquele dia mesmo. A irmã dele, Isabella, e o marido, Gilbert de Clare, estavam hospedados por eles, e embora Gilbert estivesse com Guilherme, Isabella se achava no castelo.

As duas ficariam encantadas com a companhia dele.

Eleanor mandou que se preparasse um quarto para o irmão, e ele sentou-se ao lado dela e os dois conversaram enquanto o aposento era preparado.

Ele estivera havia pouco tempo na corte. Como estava a irmã deles, Isabella? E devia ter estado com Henrique.

Ricardo disse que Isabella estava bem e que a velha Margaret Biset continuava a mesma de sempre.

- Já encontraram um marido para Isabella?

Ele respondeu que não, mas que o rei estava fazendo sondagens a esse respeito.

- Espero que ela arranje um bom marido e não precise ir para o exterior.

- Não podemos todos ter a sua sorte, irmãzinha.

- Você terá. Os homens sempre têm. Eles não precisam ir embora... e têm mais escolha no que se refere ao casamento.

- Mas você teve sorte, irmãzinha?

- Eu passei muito tempo sem ver meu marido. Ele estava na Irlanda, sabe? Agora, está aqui...

Parecia um pouco desnorteada, mas não, pelo que Ricardo observou com satisfação, alarmada de todo.

Ele queria que Guilherme voltasse. Tinha tanta coisa a dizerlhe, e se não voltasse logo, teria de seguir em frente e procurar alguém mais que o apoiasse.

Mas havia algo de sólido com relação ao Marechal que vinha do Marechal pai do atual, o primeiro conde de Pembroke, que servira Henrique II, Ricardo e João e, antes de morrer cerca de oito anos atrás, fora responsável por ajudar o jovem Henrique a subir ao trono. Ele tinha sido reconhecido pelo reino inteiro como um homem honradíssimo e uma pessoa em quem aqueles que trabalhassem pelo direito podiam ter plena confiança. O Guilherme marido da jovem Eleanor, o segundo conde, ainda não fora posto à prova, mas se achava banhado pelo brilhante facho de correção que era projetado pela reputação do pai.

Enquanto falava com Eleanor, Ricardo percebeu que alguém descia a escada. Voltou-se e estava olhando para uma mulher de grande beleza. Não era jovem, mas isso não diminuía em nada o seu encanto. Os grossos cabelos pretos pendiam numa trança, e usava um vestido longo bordado com seda branca.

- Meu irmão chegou, Isabella - disse Eleanor.

Ricardo se levantou e, adiantando-se, fez uma mesura acentuada.

Isabella de Clare estendeu a mão, que ele segurou e beijou.

- Este encontro é um prazer. Ela sorriu e disse:

- Meu marido vai ficar satisfeito por estarmos aqui quando o senhor chegou.

- Não mais satisfeito do que eu.

Ela se aproximou e sentou-se à mesa de Eleanor e Ricardo e ele lhes falou sobre suas aventuras na França, e disse que achava que um dia iria voltar lá.

Enquanto falava, Ricardo observava Isabella. Achou-a a mulher mais bonita que já vira.

Um criado entrou no salão, e Eleanor se levantou, exercendo com prazer o papel de castelã.

- Isso quer dizer que o seu quarto está pronto, irmão. Quer que o leve até lá?

- Mais tarde - disse Ricardo, e continuou conversando com Isabella.

Poucas horas depois de Ricardo ter chegado ao castelo, um de seus criados chegou. O homem viajara a grande velocidade.

- Preciso falar com o conde da Cornualha imediatamente bradou ele, e quando foi levado à presença de Ricardo, disse: Vim avisá-lo, meu senhor. O juiz está à sua procura. Ele havia aconselhado ao rei que o senhor devia ser detido e mantido na prisão até que volte ao seu juízo.

- Esse homem tem a ousadia de dizer isso? - bradou Ricardo.

- Isso mesmo, meu senhor. Eu soube por duas pessoas que o ouviram dizer isso. E é verdade que os homens do juiz estão à sua procura.

- Você fez bem em vir aqui.

- Oh, eu sabia, que o senhor viria primeiro procurar o conde de Pembroke.

- Esperemos que outros não tenham pensado a mesma coisa.

- Era o que eu temia, meu senhor, e foi por isso que vim até aqui a toda velocidade, para que o senhor pudesse ser prevenido.

- Estou prevenido e saberei o que fazer se alguém tiver a ousadia de tentar me pegar. Tenho uma boa espada, e também bons servidores. Você vai ficar até que eu decida o que fazer.

A raiva dele era enorme. Prendê-lo! O irmão do rei. Era inadmissível.

Guilherme Marechal voltou ao castelo no início da noite. Não ficou de todo surpreso ao encontrar lá o cunhado.

Ele ouvira um boato de que houvera uma discussão entre o rei e o irmão, e comentara com o outro cunhado, Gilbert de Clare, que mais cedo ou mais tarde era inevitável um problema entre o rei e o conde da Cornualha.

Ricardo explicou-lhe o que acontecera e disse estar disposto a submeter o seu caso a julgamento, que certamente era um ato de justiça. E por isso Hubert de Burgh queria prendê-lo.

- Hubert de Burgh é um homem que ficou insensato devido ao poder - declarou o Marechal. - Parece um homem que bebe demais uma bebida forte. Ele se dá ares de muita importância. Já está na hora de pôr um fim nas suas atitudes.

Ricardo ficou aliviado. Guilherme Marechal estava do seu lado. O mesmo acontecia com Gilbert de Clare, marido da mulher mais bonita que ele já vira. Ricardo era um tanto suscetível a mulheres bonitas, e gostava das que eram um pouco maduras. A briga de Ricardo fora com o irmão, mas de algum modo se transformara numa condenação de Hubert de Burgh. Afinal de contas, fora ideia de Hubert de Burgh ele ser posto na prisão.

- Chega uma hora - disse Guilherme Marechal - em que a injustiça precisa ser enfrentada e liquidada. Penso que este pode muito bem ser o momento de lidar com Hubert de Burgh.

De Clare salientou que o rei o tinha em alta conta, gostava dele e mais ou menos exilara Peter dês Roches, bispo de Winchester, por causa dele.

- E isso tudo - disse Guilherme Marechal - inflou tanto o orgulho do nosso juiz que ele se tornou intolerável. Ele decide quando o conde da Cornualha, que é tanto uma realeza quanto o rei, deve ser preso.

- O que sugere que façamos? - perguntou Ricardo.

- Que partamos imediatamente para Chester. Lá, falaremos com o conde que sei que será muito nosso amigo. vou chamar todos os outros condes, que já não suportam mais esse seu juiz.

Warwick, Hereford, Ferrers, Warenne e Gloucester.

- Pode ter certeza quanto ao apoio desses homens? - perguntou Ricardo, incrédulo.

Guilherme garantiu que podia.

Há realmente uma conspiração contra Hubert de Burgh, pensou Ricardo. Eu gostaria de saber até que ponto vai a lealdade desses homens para com o rei, já que odeiam tanto uma pessoa que o rei alçou a um alto cargo e na qual, sem dúvida alguma, tinha tanta confiança.

Partiram para Chester, e quando chegaram viram que os cinco condes estavam à sua espera.

O rei estava profundamente perturbado. Depois de seu primeiro acesso de raiva contra Ricardo, começara a pensar que devia ter agido de forma um pouco precipitada ao permitir que Hubert ameaçasse o irmão de prisão. Afinal de contas, fora apenas uma discussão, e ele e Ricardo tinham discutido muitas vezes quando crianças.

Enquanto raciocinava assim, recebeu um ultimato de um setor inesperado. Quando o leu, não pôde acreditar. Em Stamford estavase reunindo uma grande força, composta de condes descontentes e seus adeptos. Quando viu os nomes dos condes, ficou alarmado: Marechal, Gloucester, Ferrers, Hereford, Warenne, Clare, Warwick e Chester. Alguns dois mais respeitados do país. Ricardo acrescentara o seu nome ao deles.

Então aquilo se devia a uma discussão boba sobre uma propriedade. Não precisava existir mais, se Hubert não o tivesse ameaçado absurdamente com a prisão.

Os condes lembravam ao rei que ele anulara, havia pouco tempo, a Carta da Floresta, ato extremamente impopular. Ele devia se lembrar do conflito de seu pai com os barões e a luta destes contra repressões como a revogação da Carta da Floresta. Se o rei não quisesse ver o país mergulhado numa convulsão semelhante, seria bom ter um encontro com os condes - sem a presença de Hubert de Burgh

- e então talvez aqueles lamentáveis problemas pudessem ser resolvidos de modo satisfatório para todos os lados. Eles achavam que Hubert de Burgh estava na raiz do problema e não se encontrariam com o rei se ele estivesse presente. A alternativa seria a guerra civil.

Henrique estava num dilema. Embora se consolasse pondo a culpa em Hubert, ao mesmo tempo ficava pensando como enfrentar aquele desafio sem ele.

Tomou uma decisão. Iria encontrar-se com os condes; iria estudar as exigências; iria mostrar a eles - e a Hubert - quê era capaz de assumir o comando sem a ajuda de seu juiz.

Eles se encontraram em Northampton. Foi um Henrique moderado que enfrentou aqueles rebeldes; mas ficou satisfeito ao ver que Ricardo estava um pouco envergonhado por estar do lado de seus inimigos.

Marechal foi o porta-voz. Salientou que estava ciente de que Hubert de Burgh desencaminhara o rei, e de que toda a culpa deveria recair sobre o juiz. Henrique foi inflexível quanto a exonerar Hubert, e os barões não insistiram nisso, pois o Marechal havia concordado que levaria algum tempo para tirá-lo de um cargo no qual se plantara com tal firmeza. Hubert podia esperar um pouco. A finalidade daquele encontro era fazer com que o rei sentisse que os barões eram, agora, tão poderosos quanto tinham sido no reino do pai dele; e o fato de que, por causa do juiz, seu irmão estava afastado dele e ao lado dos barões, era um detalhe importante que o rei precisava reconhecer.

Ele devia estar alerta quanto ao juiz, devia tornar a promulgar a Carta da Floresta, e se quisesse tirar a herdade cómica de Ricardo, devia recompensá-lo com algo mais valioso do que aquilo que tirara.

Henrique ficou apavorado. Sem Hubert, não conseguia barganhar. Estava prevendo grandes dificuldades com a discórdia na Inglaterra, quando o seu grande desejo era recuperar as possessões perdidas na França.

Assumiu compromissos e disse que daria a Ricardo o dote de sua mãe, que incluía as terras na Inglaterra que tinham sido propriedade dos condes da Bretanha e de Boulogne.

Ricardo saiu bem do caso, e ficou contente por isso, pois detestava brigar com o irmão.

Gostava de Henrique, e a única coisa que tinha realmente contra o irmão era o fato de Henrique ter nascido antes dele.

Os dois se abraçaram.

- Entre nós está tudo como era antes? - perguntou Henrique. Ricardo concordou.

- Foi Hubert de Burgh que provocou a confusão - disse Ricardo.

Henrique não disse nada. Sabia que... por enquanto... não podia abrir mão de Hubert.

O Natal foi passado em York. Joana, rainha da Escócia, ficou encantada como sempre por estar com a família. Sentia um grande prazer em estar de novo na Inglaterra; confidenciou a Isabella e à velha Margaret Biset que jamais poderia se sentir em casa na Escócia.

- Ela parece sempre fria - disse a elas -, mesmo no verão. As correntes de ar não me deixam ficar boa da tosse.

- Aqui em York elas também existem - resmungou Margaret - e estou sempre ralhando com a minha senhora porque ela não se agasalha o suficiente contra esses ventos gelados.

- Oh, Margaret, você me trata como uma inválida - disse Isabella.

- E olhe só o resultado - bradou Margaret, orgulhosa. Ela não é a pura expressão de saúde?

Joana concordou e Margaret pensou: isso é mais do que posso dizer da senhora, senhora rainha da Escócia.

Margaret teve um arrepio. Não acreditava naqueles casamentos reais. Teria gostado que suas filhas tivessem se casado com nobres senhores da corte, para que ela pudesse correr de um lado para o outro entre elas e cuidar dos bebés quando chegassem. Vivia com um medo terrível de que em breve arranjassem um marido para a sua última tutelada. Dizia para si mesma, cheia de coragem, que se tentassem casar a sua menininha com algum velho - rei de um país longínquo -, ela iria dizer ao rei que não concordava. Pura basófia, é claro. Como poderia ela evitar uma coisa dessas?

Joana quis saber se Isabella tinha visto a irmã delas, Eleanor, recentemente.

- Vi - disse Isabella. - Ela veio à corte com o conde de Pembroke.

- Ela é... feliz?

- Coitadinha - disse Margaret Biset. - Pouco mais do que um bebé... e já casada.

- Isso acontece com todas nós, Meg - disse Joana.

- Mas a minha Eleanorzinha... ela não fazia ideia nenhuma... e lá estava ela, casada com aquele homem. Já vossa majestade foi para terras estrangeiras primeiro e morou naquele lugar estranho.

- É - disse Joana, pensativa.

- Poder-se-ia dizer que isso lhe deu a possibilidade de ter uma amostra.

- É, Meg, você tem razão.

- E sua mãe tomou o seu lugar. - Os lábios de Margaret se apertaram com força. Que se dane, pensava ela. - Ouvi dizer que ela está formando uma grande família.

- Sim, nossa mãe teve muitos filhos - disse Isabella. - Gostaria de saber como é ter duas famílias.

Margaret fez um muxoxo que podia ter indicado desprezo ou indiferença. Adorava aquelas que chamava de suas crianças, ainda mais por terem pais assim tão fora do comum.

Iria preparar uma bebida feita com leite quente, cerveja e vinho para Joana e ver o que podia fazer a respeito daquela tosse antes da menina voltar para aquele lugar anormal acima da fronteira.

As duas, juntas - Isabella e Joana -, pareciam crianças. Margaret estava contente por Joana ter podido ir às festividades. Fazia companhia a Isabella, e isso dava a Margaret uma oportunidade de cuidar de Joana. Era uma pena Eleanor não ter podido juntar-se a elas, mas houvera algum problema entre o marido de Eleanor e o rei, e embora a discussão tivesse sido apaziguada, havia uma diferença que fermentava.

Espero que não tenhamos aquele tipo de confusão, pensou Margaret. Por que as pessoas não podiam viver em paz, e por que era preciso fazer todo aquele jogo com os jovens para fazer esta ou aquela aliança?

As meninas dela tinham o direito de ser felizes... tão felizes quanto ela sempre fizera com que fossem nas alas infantis de que tomava conta.

Elas agora pareciam realmente duas crianças discutindo os vestidos para as celebrações natalinas: Isabella esquecendo a sempre presente ameaça de um casamento no exterior, e Joana se recusando a se lembrar de que em breve teria de voltar para as intempéries da Escócia. Margaret, feliz, ouvia o tagarelar das duas.

Joana iria usar uma touca de tecido dourado, e Isabella uma de seda bordada. Talvez deixassem os cabelos soltos, ou talvez os usassem presos por uma argola de fios dourados. Joana, por ser rainha, iria trajada com uma suntuosidade maior do que a de Isabella. Usaria um diadema de jóias douradas na cabeça. Ela mostrou a Isabella, que o experimentou, e enquanto experimentava disse:

- Será que eu também vou ser uma rainha?

Margaret, que estava assistindo, ficou triste, pois achava muito provável que em breve sua última tutelada lhe seria arrancada das mãos.

Houve as costumeiras celebrações do Natal com danças, canto e jogos que incluíam o roy-qui-ne-ment, no qual um rei que não mentisse era escolhido para fazer perguntas e comentar as respostas - fossem elas verdadeiras ou falsas. O jogo era um grande favorito, porque todo mundo ficava preocupado, com medo de ser chamado a responder com sinceridade uma pergunta, quando isso poderia ser embaraçoso. Qual a penalidade quando se dizia uma mentira, ninguém sabia ao certo; nunca se mencionava isso; mas a maioria das pessoas que participavam do jogo acreditava que seria rápida e terrível. O prazer daquele jogo parecia ser o terror que fazia tremerem os jogadores o tempo todo e o alívio quando ele acabava.

Depois, houve os costumeiros malabaristas e dançarinos com espadas, dançarinos de morris com seus sinos, varas e cavalinhos de pau; saltos, acrobacias e até luta livre.

Ao lado do rei sentavam-se o irmão, Ricardo da Cornualha, e Hubert de Burgh. Houvera uma certa frieza entre o rei e Hubert, e entre Hubert e Ricardo depois da reunião com os barões, mas ela parecia ter passado, e eles conversavam em tom amigável.

O rei assistia à exibição com prazer, obviamente gostando da maneira pela qual todos se submetiam à sua opinião.

Os prazeres da função de rei eram grandes em momentos como aquele, quando não se tinha de pensar em coisa alguma a não ser em se divertir, e todos esperavam por ele para começar a dança, dispensar os dançarinos, escolher o rei ou a rainha que não mentisse.

Henrique pensava no poder que deveria ter tido se o pai não tivesse mergulhado o país na guerra civil e se todas aquelas ricas terras na França lhe pertencessem. Mas não deveria ser uma tarefa insuperável recuperá-las. Um jovem rei no trono, orientado pela mãe, segundo diziam; e lá também houvera problemas com os barões, tal como acontecera na Inglaterra. Espiões infiltrados lá informavam que Hugo de Lusignan, Guy de Thouars e o conde de Champagne haviam unido forças contra o jovem rei e sua mãe. Era natural que Hugo fosse contra ele. Ora, Hugo era padrasto dele, Henrique, e sua mãe seria realmente desnaturada se se aliasse aos franceses contra o próprio filho.

- Por que aquela demora, então? Ele pensara que àquela altura as possessões francesas já estariam em suas mãos.

Henrique se voltou para Hubert e disse:

- No ano que vem, pretendo levar um exército para a França. Hubert pareceu levar um susto.

- Majestade - disse ele -, isso seria um grande empreendimento.

- Um grande empreendimento. O que quer dizer com isso? Meus antepassados não levaram exércitos à França desde que ela ficou em nosso poder?

- Seria preciso fazer os preparativos...

- Ora, vamos nos preparar.

Ricardo ouvia com muita atenção. Por ter estado na França, achava-se mais capacitado do que o rei ou Hubert de Burgh.

- A hora é essa - disse ele. - Luís é jovem... completamente preso ao avental da mãe. Ela não é popular entre os franceses. É estrangeira, e os franceses não gostam de ser governados por estrangeiros. E ela governa. Luís faz tudo o que ela manda.

- Pronto, está vendo? - disse Henrique.

- Pode haver dissensão no país - disse Hubert -, mas vossa majestade verá que se os ingleses os atacassem, eles se dariam as mãos e ficariam contra nós.

- Hubert está decidido a abafar a campanha antes de ela começar - disse Ricardo.

- Não, majestade - protestou Hubert -, estou tão ansioso quanto vossa majestade por recuperar o que é nosso por direito. Estou apenas dizendo que ainda não é hora.

Henrique olhou carrancudo para o seu juiz, e muita gente percebeu.

- A hora será quando eu disser - disse Henrique. Hubert ficou calado. Não queria uma discussão à mesa. Mais tarde, deu um jeito de ficar a sós com o rei e tornou no assunto de levar a guerra para a França no ano que estava prestes a começar.

- Eu lhe peço que pense, majestade, no estado precário do tesouro, que é a principal razão pela qual uma expedição à França não seria prudente.

- Levantarei o dinheiro - declarou Henrique.

- Mais impostos! Isso não agradaria ao povo.

- Não vou esperar que o povo fique satisfeito.

- Seria sensato esperar.

- Escute aqui, Hubert. Quando digo que vou entrar em guerra, é porque vou entrar, mesmo.

Hubert curvou a cabeça.

De nada adiantaria uma discussão. Teria de tentar encontrar outros meios de evitar que o rei tentasse ir à guerra enquanto não estivessem bem equipados para isso.

Foi impossível. Henrique estava decidido.

Levaria uma expedição à França, entrando por Michaelmas, e por mais que Hubert tentasse dissuadi-lo, ele não lhe dava ouvidos.

Hubert estava desesperado. Vivia sempre perguntando a si mesmo como poderia equipar um exército sem dinheiro; como poderiam até mesmo conseguir os navios para transportar aquele exército. Henrique era infantil, inteiramente incapaz de perceber detalhes práticos. Quando Hubert tentava explicar e Henrique mostrava sinais de perder a paciência, Hubert se lembrava, muito preocupado, do pai do rei.

Nada lhe restava fazer senão parar de mostrar a inoportunidade de continuar com os preparativos, e eles continuavam em ritmo acelerado.

Hubert percebeu que Henrique teria de aprender por uma amarga experiência própria, e aquilo ia sair muito caro.

Por fim, ficaram prontos para partir para a França, e Henrique, à frente de um grande exército, foi até Portsmouth, com Hubert ao lado, e aquele calejado guerreiro, o conde de Chester, estava ao outro lado do rei.

Henrique vibrava de orgulho. Era assim que um rei devia estar, à frente de suas tropas, indo para o combate. Sentia-se nobre e valente. Queria impressionar o irmão, que já participara de uma batalha e que achava ter herdado uma qualidade especial do tio, Coração de Leão, e também o nome.

Mas quando chegaram a Portsmouth, verifícou-se que não havia navios em número suficiente para levar os soldados para o outro lado, e Henrique teve um violento acesso de raiva.

- Por que isso? Por que isso? - berrava ele. - Onde estão os navios? Por que só há metade do que precisamos?

- Majestade - começou Hubert -, eu o avisei de que iríamos precisar de muitos navios. O custo para fornecê-los era tão grande que o nosso tesouro não pôde arcar com ele.

Henrique ficou branco de raiva.

- Então foi você que fez isso. Queria me dar uma lição, não é? Quis deixar que eu trouxesse minhas tropas até aqui para descobrir que não há transporte suficiente para elas. Seu traidor... seu velho e manhoso traidor. Acredito que esteja a soldo da rainha da França. É isso?

Houve um silêncio provocado pelo choque dos presentes. De repente, Hubert sentiu medo. O conde de Chester estava pensando que o fim do domínio do juiz devia estar próximo.

- Vossa majestade está brincando - começou Hubert. - Vossa majestade nunca teve um súdito mais leal do que eu. E deve se lembrar de que persuadi vossa majestade a esperar até que estivéssemos adequadamente equipados...

Aquilo foi o mesmo que atirar combustível na fogueira da raiva.

Com um gesto digno do pai, Henrique desembainhou a espada e a teria enfiado no seu juiz se o conde de Chester não tivesse agarrado Hubert e o arrastado para longe.

- Majestade - disse Chester, colocando-se entre Hubert e Henrique -, vossa majestade não está querendo matar o juiz.

Henrique lançou um olhar carrancudo para todos, e Chester pensou: será que ele vai ser igual ao pai?

Chester queria ver o declínio de Hubert, mas não daquele jeito. Se não tivesse cuidado, aquele Henrique estaria, em pouco tempo, imitando aquele outro com o mesmo nome que fizera penitência em Canterbury pelo assassinato de Thomas Becket. Eles não queriam que Hubert fosse transformado em mártir.

- Ele fez isso de propósito - disse Henrique, com veemência.

- Não, majestade - disse Chester. - Ele apenas o avisou de que o empreendimento seria dispendioso, e vai ser, mesmo. Precisamos de mais navios, mas a maneira de consegui-los não é enfiando a espada no coração de seu juiz.

Henrique olhou firme para Chester. Não estava certo quanto ao que devia fazer. Sua raiva esfriara. Sabia que fizera uma bobagem, porque Hubert realmente o avisara de que seria caro demais conseguir todos os navios de que precisavam; e estava realmente zangado com Hubert porque este provara que estava certo.

Chester continuou:

- Será que não devíamos usar os navios que existem, e, depois de termos transportado tudo o que puderem carregar, mandálos voltar para buscar o resto?

- Parece que não há outra coisa a fazer - disse Henrique, carrancudo.

Ele não procurou Hubert. Este saíra despercebido; diplomaticamente, manter-se-ia longe dos olhos do rei durante algum tempo, e quando se reencontrassem o incidente talvez estivesse esquecido.

Mas o incidente jamais seria esquecido. Tinham sido muitos os que o presenciaram; e na cabeça de muitos estava o pensamento de que aquilo era o começo do fim de Hubert de Burgh.

Foi como Hubert achara que seria. Os dois tornaram a se encontrar na França, e lá o rei se portou como se aquela cena jamais tivesse ocorrido.

Hubert pensou: a ideia de uma guerra subiu-lhe à cabeça como um vinho forte demais. Ele é mesmo uma criança. Mas devo ser mais cauteloso no futuro.

No fundo, Henrique sabia que se portara como um tolo, e que mostrara ingratidão. Se o conde de Chester não o tivesse detido a tempo, ele teria matado Hubert. Aquilo fora uma tolice extrema e estava arrependido; mas o fato abrira uma fenda entre ele e Hubert; não poderia voltar a ser o mesmo para com o seu juiz, pois não podia perdoá-lo por tê-lo feito cometer uma tolice daquelas.

Os muitos inimigos de Hubert haviam exultado com aquela demonstração de raiva e ingratidão reais. Aquilo era o começo do fim de Hubert de Burgh, pensavam eles. Metaforicamente, começaram a afiar as facas.

E também Hubert não se beneficiou do fato de ficar provado que seu aviso estava certo.

A expedição à França mostrou logo ser um fracasso, e um fracasso muito caro.

Os ingleses voltaram, castigados pelo reconhecimento de que a conquista não ia ser fácil.

Hubert estivera com a razão. A expedição acontecera antes do tempo.

O rei estava plenamente ciente de que recusara a ponderação de Hubert, mas isso não fez com que ele gostasse mais de Hubert.

 

ENTRE os QUE perderam a vida na mal projetada campanha estava Gilbert, o sétimo conde de Clare e marido da irmã de Guilherme Marechal, Isabella, que tanto impressionara o irmão do rei, Ricardo da Cornualha, quando ele a conhecera em Marlborough.

Isabella estava no castelo perto de Gloucester quando recebeu a notícia da morte dele. Gilbert fora um bom marido, e ela uma mulher digna, levando para ele ricas propriedades e, durante os anos em que estiveram casados, seis filhos - três filhos e três filhas.

O pai dela, o grande Guilherme Marechal, que tinha sido responsável por colocar o jovem rei no trono e até morrer em 1219 havia, com Hubert de Burgh, o juiz, governado o reino, arranjara o casamento dela com Gilbert quando o fizera prisioneiro na batalha de Lincoln, com Gilbert, na época, tendo lutado do lado dos franceses. Como prisioneiro, Gilbert nem tinha como recusar-se a aceitar as condições do pai dela, entre as quais estava a de se casar com a filha dele.

Isabella concordara docilmente. Como todas as moças, fora criada para acreditar que lhe arranjariam um casamento e que não tinha outra alternativa que não aceitar o homem que o pai escolhera para ela.

E assim os dois se casaram, e o casamento fora toleravelmente feliz e, sem dúvida, fértil. Amicia, a mais velha, estava noiva de Baldwin de Redvers, embora só tivesse dez anos de idade; e bons casamentos seriam arranjados para Agnes e Isabel. O filho mais velho, Ricardo, estava com oito anos e tinha dois irmãos, Guilherme e Gilbert.

Eles estavam com Isabella quando transmitiram a ela a notícia da morte do pai e, séria, ela se dirigiu à sala de aula para dizer-lhes.

Os Filhos ouviram em silêncio, mas é claro que tinham visto pouco Gilbert e era evidente que a morte dele não os tocara muito fundo. Foi diferente quando o corpo foi levado para Tewkesbury, e eles compareceram à cerimónia do enterro. Houve uma tristeza sincera entre as pessoas ligadas à abadia, pois ele fora um de seus maiores benfeitores.

Após a cerimónia, voltaram para o castelo, e Ricardo perguntou a Isabella o que seria deles agora. Ela lhe disse não ter dúvidas de que continuariam como antes. As providências tomadas em favor deles pelo pai seriam executadas, e Ricardo precisava trabalhar mais do que vinha fazendo, porque agora era o chefe da família.

Não demorou muito e o irmão foi visitá-la.

Ele tomou-lhe a mão e a beijou com fervor, pois havia afeição entre os dois.

- Bem, Isabella - disse ele -, como estão as crianças e você, depois deste choque?

- Continuamos como antes - respondeu ela, com calma.

- Minha querida Isabella, você sempre se destacou pelo seu bom senso. Até o nosso pai comentava isso.

- Pode estar certo de que saberei como administrar minha casa.

Guilherme viu as crianças durante o jantar e conversou com elas em tom animador, como se tivesse tomado o lugar do pai delas, ao que elas responderam com polidez. Depois, conversou a sós com Isabella, e quando salientou que a irmã ainda estava jovem e era muito bonita, ela percebeu o que lhe ia pela cabeça.

O pai deles fora um dos homens mais ricos do reino, e eles tinham sido bem dotados; por isso, o que ele estava dizendo era que Isabella, a viúva, estava em condições de fazer um casamento muito bom.

- Ah - disse Isabella -, eu sabia que você ia acabar tocando nesse assunto. Sempre achei que uma mulher que já se casara uma vez para atender aos interesses da família deveria, na segunda vez, casar-se de acordo com seu próprio interesse.

- Minha querida irmã, você é uma mulher de grande fortuna. Poderia ser enganada por um homem que visasse compartilhar dessa fortuna.

- Não sou uma mocinha, Guilherme. Crei que reconheceria um caçador de dotes.

- Existem alguns vigaristas espertos à solta. Se um deles conquistasse a sua preferência, eu não poderia aprovar o casamento.

- Guilherme, meu bom irmão, meu marido morreu há pouco tempo. Dê-me tempo para me recuperar disso antes de falar em substituí-lo.

- Claro. Mas muito embora não falemos sobre esse assunto, ele pode ficar na nossa cabeça.

- Confesso que não tinha pensado nisso.

- Então, não se fala mais nisso... por enquanto. Voltaremos a falar sobre isso mais tarde.

- Vamos dizer que se eu resolver me casar de novo, voltarei a tocar nesse assunto.

Guilherme teve um sorriso carinhoso. Aquela sua irmã era voluntariosa. Bem, era o que se devia esperar da filha de Guilherme Marechal.

Ele havia cumprido com o seu dever e partiu, e depois que se foi, Isabella começou a se lembrar de um dia, em Marlborough, em que Gilbert estivera visitando o irmão dela e havia chegado ao castelo um corajoso jovem, de porte digno de um rei, que mostrara um acentuado interesse por ela.

Isabella devia ser uma louca, ao ter lembranças ternas naquele momento. Ele era o irmão do rei, e vários anos mais jovem do que ela. Mas ele a admirara. Mostrara ter prazer de conversar com ela e procurara fazer com que ela parasse para conversar e passear com ela no jardim, muito embora, na época, o jovem estivesse profundamente preocupado com a sua desavença com o irmão.

Que pensamentos tolos! Ela, mãe de seis filhos... e um rapaz! Porque Ricardo, conde da Cornualha, era pouco mais do que isso.

Aquilo era muitíssimo indecoroso. Mas Guilherme estivera certo quando dera a entender que, por mais impróprio que fosse, não era possível evitar os pensamentos.

O ano velho estava acabando. Haviam-se passado três meses desde a morte àe Gilbert. Então chegou o Ano-Novo, e Isabella se dedicava às providências para instalar uma lápide em memória do marido na catedral de Tewkesbury.

Foi na primavera que o irmão dela mandou um recado para Tewkesbury, dizendo que iria visitá-la levando um amigo. Ela desceu para recebê-los e levou um susto ao ver que o amigo que chegou com o irmão era Ricardo da Cornualha.

Ele segurou-lhe a mão e a olhou de frente.

- Eu juro, senhora, que está mais bonita do que nunca.

Guilherme ficou nitidamente satisfeito, e enquanto Isabella os conduzia para dentro do castelo, uma ideia maluca lhe passou pela cabeça, mas ela a afastou logo por considerá-la impossível.

Jamais se esqueceria daquela breve permanência dos visitantes no castelo. Desempenhou seus deveres de castelã num estado de excitação pelo qual só podia recriminar a si mesma. Estava se portando como uma moça boba e frívola, em vez de como uma viúva séria.

Saía a cavalo com eles, e Ricardo muitas vezes dava um jeito de ficar a sós com ela - e nisso ela sabia que seu irmão era um prazeroso aliado. Será que Guilherme estava mesmo pensando... Sabia que o irmão era ambicioso e estava casado com a irmã de Ricardo, Eleanor.

Ricardo era cortês, encantador e sempre dava sinais de admirá-la.

Falou-lhe sobre a sua vida em Corfe sob a rigorosa tutela de Peter de Mauley e o igualmente severo Roger d'Acastre. Fê-la sorrir ao contar as travessuras que fizera com os tutores. Depois contoulhe suas aventuras como se estivesse tentando dar a impressão de que, embora estivesse com 21 anos, a vida que levara fizera com que ele amadurecesse.

Isabella achava que devia lembrá-lo da diferença entre as idades deles, e estava sempre se referindo aos seus seis filhos. A resposta dele era que ela devia ter uma força secreta, porque parecia uma jovem.

- Talvez você não tenha conhecido mulheres jovens - retrucou ela. - É o que parece, já que confunde uma matrona como eu com elas.

Ricardo lhe disse que riada tinha de inexperiente e que era por isso que podia analisá-la.

- Eu fico surpresa - replicou Isabella - pelo fato de, por ser um homem de tanta experiência, você ainda não tenha se casado.

- A resposta é fácil. Meu irmão também não se casou... porque estamos decididos a fazer a nossa própria escolha.

Aquilo pareceu importante, mas Isabella continuou a se recusar a acreditar que fosse possível.

Quando eles foram embora, ela ficou melancólica. A curta permanência fora um dos mais felizes períodos de sua vida, o que era uma lamentável confissão para uma viúva fazer. Mas, do que adiantava mentir para si mesma? Nunca estivera apaixonada por Gilbert, e se a escolha fosse deixada a seu cargo, não teria se casado com ele. Como ele era diferente desse príncipe real!

E ela? Uma matrona, sim, mãe de seis filhos, mas ainda bonita. Não fora conhecida como uma das moças mais bonitas do país antes de se casar? Ainda era bonita, e sua boa aparência tinha-se tornado acentuada por um esplendor íntimo que, pelo que ela ouvira dizer, era devido ao fato de estar apaixonada.

Pronto! Ela confessara. Estava apaixonada pelo irmão do rei.

Ricardo era o mais impaciente dos jovens. Sabia o que queria e estava decidido a consegui-lo. Disse a Henrique:

- vou me casar com a irmã do Marechal.

- O quê! A viúva de Gilbert de Clare? - bradou Henrique.

- Ela mesma.

- Você deve estar brincando. Ela é uma velha.

- Não é, não.

- O quê? Mãe de quantos filhos?

- Ela é bonita. Você jamais adivinharia que gerou seis filhos. É mais uma virtude. Ela vai me dar filhos homens.

Henrique ficou pensativo. Sabia que se levantasse objeções, Ricardo não ligaria para elas. Não queria brigar com o irmão outra vez.

- E então? - disse Ricardo.

Henrique deu de ombros. Casamento era um ponto sensível no que se referia a ele. Já estava na hora dele ter uma mulher, mas parecia amaldiçoado quanto a isso, porque toda vez que se fazia uma susgestão para ele, havia alguma razão que a tornava impraticável. As negociações relativas a casamentos costumavam murchar. Um casamento com a filha de Leopoldo da Áustria, outro com a filha do rei da Boémia; depois, casamento com lolanda, filha de Peter da Bretanha... nenhum deles dera resultado. Em determinado momento, ele estivera disposto a pensar na filha do rei da Escócia, mas o arcebispo lhe mostrara que, como o juiz já havia se casado com a filha mais velha, o rei não poderia se casar com a mais moça. Hubert outra vez! Henrique começava a ficar cada vez mais ressentido em relação a ele.

E agora, Ricardo queria se casar com aquela mãe de seis filhos. Ora, que se casasse. Ricardo era um tolo, e em pouco tempo perceberia isso. Seria bom para ele; iria mostrar que nem sempre era mais inteligente do que o irmão... que era do que Henrique começava a desconfiar que ele realmente pensava.

- O interesse é seu, irmão - disse ele. - Se me pedisse o meu conselho, eu diria que é uma loucura, mas se quiser agir assim, esteja à vontade. Ela é rica e bonita, pelo que você me diz, e é irmã do Marechal, e ele já está casado com a nossa irmã. Pelo menos numa coisa, isso deverá garantir a lealdade do Marechal para conosco, coisa da qual às vezes sou levado a duvidar.

- Vai garantir, mesmo - concordou Ricardo. - Na verdade, irmão, é uma aliança muito vantajosa para nós.

- E você está vendo a vantagem que isso trará para você. Pois então case-se com a sua viúva.

Ricardo ficou satisfeito, embora se Henrique tivesse sido contra o casamento, teria se casado de qualquer maneira.

Foi imediatamente falar com Guilherme Marechal, que concordou prazerosamente em ir com ele até Tewkesbury.

Isabella estava muito agitada ao recebê-los. Ricardo não perdeu tempo e foi direto ao assunto. Guilherme os deixou juntos, e Ricardo pediu logo que ela se casasse com ele.

Aquela era uma situação fora do comum. Quantas mulheres nas condições dela teriam recebido uma proposta de casamento? A regra geral era que a família dissesse que ela iria fazer esse ou aquele casamento, e a mulher fizesse o que quisessem. Aquilo era muitíssimo romântico, mas desejou ser mais moça, pelo menos um pouco mais perto da idade dele.

Ricardo lhe disse que se apaixonara por ela na primeira vez que a vira. Na ocasião, claro, ela tinha um marido, e ele não podia se declarar, mas agora que aquele obstáculo fora removido, não havia impedimento para a felicidade dos dois.

Ela tentou protestar.

- Sou muito mais velha do que você.

- Não parece. E eu também não ia querer uma mulher jovem e inexperiente. Você é do tipo que eu gosto... e o que mais eu poderia querer?

Ainda assim, ela hesitava.

- Eu sou mãe de seis...

- Mais uma de suas virtudes. Você foi muito generosa para com de Clare, e também será para comigo. Vamos ter uma ala infantil cheia de meninos.

Ela ainda sacudiu a cabeça.

- Agora talvez você pense que vai ser bom. Mas daqui a alguns anos, a diferença das nossas idades ficará mais aparente.

Ricardo a beijou, e no mesmo instante ela se dispôs a afastar todas as objeções. Mesmo que com o tempo ele se cansasse dela, por que não ser feliz durante algum tempo?

Os dois se casaram em abril - um belo mês - pensou Isabella, com as árvores cheias de botões e o alegre canto dos pássaros no ar.

A jovem Eleanor, sua cunhada, irmã de Ricardo, estava com ela, e as duas estavam contentes juntas.

Eleanor estava com dezesseis anos, e sem dúvida não parecia apaixonada pelo marido maduro, mas estava ciente da felicidade que Isabella sentia e talvez estivesse um pouco pensativa. Escolher o marido! Aquilo devia ser maravilhoso, e Ricardo era um amante tão atraente e dedicado que era uma experiência gratifícante observar os dois juntos.

- Eu gostaria de saber - disse Eleanor - se um dia vai acontecer comigo. - Então, percebeu que para que acontecesse Guilherme teria de morrer, e sentiu vergonha de ter falado. Mas a vergonha toda não poderia evitar os pensamentos que ocupavam sua cabeça. Aquilo era uma injustiça para com Guilherme, que vinha sendo um bom marido e se sentia feliz por estar casado com ela - embora ela fosse inteligente bastante para perceber que em grande parte isso se devia ao fato de ser irmã do rei.

Isabella se preparou para o casamento, discutindo com a jovem cunhada os vestidos que iria usar. As douradas redes para os cabelos, as toucas de seda, as túnicas bordadas, tudo era um prazer de se ver. Isabella parecia uma garota, e até mesmo os filhos praticamente não reconheciam a mãe naquela alegre noiva.

Era uma maravilha, pensava Eleanor, que enquanto a noiva e o noivo estavam tão felizes um com o outro, todo mundo comentava como era bom aquele casamento; e ninguém poderia estar mais contente do que Guilherme.

O casamento foi celebrado. Guilherme entregou a noiva; e Ricardo e Isabella foram deixados a sós enquanto Eleanor e Guilherme voltaram para Marlborough.

Guilherme ficou um tanto esgotado pela viagem, e ela gostou quando tudo acabou. Ele foi direto para a cama, pois disse que estava muito cansado.

Como a boa esposa que lhe haviam ensinado a ser, Eleanor cuidou do conforto do marido. Ela mesma preparou as bebidas feitas com leite quente, cerveja e vinho. Sentou-se ao lado da cama, e ele lhe disse estar muito satisfeito com aquele casamento, porque unia ainda mais as famílias deles. Eleanor concordou, e disse que se Henrique não tivesse filhos, Ricardo seria o rei e o filho que ele pudesse ter com Isabella iria sucedê-lo no trono.

Guilherme sorriu para ela.

- É isso mesmo, querida esposa. Meu pai teria gostado desse casamento.

- É um casamento raro - disse Eleanor -, porque não só todos estão contentes, como o noivo e a noiva também estão.

Guilherme dirigiu-lhe um olhar um tanto triste. Era uma jovem tão requintada... e bonita, também. Todas as filhas de Isabella de Angoulême tinham nascido com um certo grau de beleza... embora nenhuma pudesse se comparar à mãe. Quando ele ficasse bom, os dois deviam se dedicar à tarefa de ter filhos.

Eleanor lhe parecera tão criança, que seus esforços naquele sentido não tinham sido muitos. Prometera a si mesmo que ainda havia tempo.

Estava enganado, pois poucos dias depois morreu, e Eleanor, com dezesseis anos, ficou viúva.

Perseguição

As RELAÇÕES entre Hubert de Burgh e o rei jamais javiam retornado ao nível de antes desde aquele infeliz episódio em Portsmouth. Aquilo continuava a amargurar Henrique, que mostrara uma violência em sua natureza que o deixara envergonhado, e não conseguia esquecer que Hubert mostrara que ele estava errado quando a expedição fracassara. Em vez de ficar agradecido a um homem inteligente que fora franco com ele, sentia-se tão inseguro que ficava irritado ao perceber que não usara o bom senso; e imaginava que Hubert também devia estar se lembrando disso.

Os inimigos de Hubert estavam cientes do que se passava e enviaram uma mensagem ao seu velho inimigo, Peter dês Roches, bispo de Winchester, dizendo-lhe que já estava na hora de voltar para a Inglaterra.

Enquanto isso, estourou um problema entre o arcebispo de Canterbury e Hubert por causa da cidade e do castelo de Tonbridge, que Hubert vinha guardando para o jovem conde de Gloucester, já que o conde fora colocado sob sua tutela. O arcebispo declarou que eles não pertenciam ao conde, mas deviam estar em poder da sé de Canterbury. O arcebispo, Ricardo Grant, levou o caso ao rei, que decidiu que eles eram controlados através da coroa e que a sé de Canterbury não tinha direitos sobre eles.

Enfurecido por esse veredicto, Ricardo Grant partiu para Roma, a fim de submeter o caso ao papa, e como o arcebispo era um dos maiores inimigos de Hubert, decidiu aproveitar ao máximo a ocasião, levando mais reclamações contra o juiz.

Hubert de Burgh, disse ele ao papa, governava o país e tentava colocar o rei acima de Roma. Isso era óbvio, porque ele havia usurpado os direitos de Canterbury. Além do mais, casara-se com a filha do rei da Escócia, que era parente muito próximo de sua mulher anterior, Hadwisa, que fora a primeira esposa do rei João e fora repudiada por ele a fim de que ele pudesse se casar com Isabella de Angoulême. Hubert era um homem que se casara muitas vezes, salientou o arcebispo. Escolhia esposas nos setores que maior proveito lhe pudessem oferecer. A primeira tinha sido Joana, filha do conde de Devon e viúva de Guilherme Brewer; a segunda, Beatrice, filha de Guilherme de Warenne e viúva de lorde Bardulf; a terceira, Hadwisa, divorciada de João. Assim, era possível ver que ele sentia atração por aquelas que já tinham sido casadas, desde que também fossem ricas. Depois, voltara a atenção para a filha do rei da Escócia, cuja realeza compensou, sem dúvida, a falta de um marido anterior. Mas sua santidade veria que se tratava de um homem que aproveitava todas as oportunidades. A proximidade dos laços entre Hadwisa e Margaret da Escócia, portanto, invalidava o seu último casamento.

O papa atendeu a Ricardo, e o rei foi obrigado a enviar seus advogados a Roma para defenderem sua causa. O papa, apesar disso, ficou do lado do arcebispo, o que para Henrique foi desconcertante. Não gostava de antagonismo com a Igreja.

Depois de dizer o que queria, o arcebispo decidiu voltar para a Inglaterra, a fim de discutir com o rei e seu juiz, mas no caminho pela Itália ele ficou doente em Umbria, onde fizera uma pausa para descansar uma noite no convento de franciscanos.

Poucos dias depois de chegar ao convento, ele morreu.

Foi enterrado em seus trajes de arcebispo, usando jóias, e depois do enterro ladrões saquearam o túmulo durante a noite. Deve ter sido uma cena horripilante, mas, sem se perturbarem, os ladrões foram despojando o cadáver; mas quando tentaram tirar o anel do dedo, não conseguiram, apesar de ele parecer estar bem frouxo. Convencidos de que aquilo era um sinal de desagrado divino, ficaram com medo e fugiram, deixando o túmulo aberto e as jóias que haviam tirado do morto espalhadas à volta do arcebispo.

No dia seguinte, ele tornou a ser enterrado e a notícia de sua morte foi enviada ao rei Henrique.

Não demorou muito e já se dizia que o arcebispo fora envenenado. E quem era o mais provável responsável por aquele feito terrível? Ora, Hubert de Burgh, o juiz, claro - reconhecidamente inimigo dele. Não importava se Hubert estava na Inglaterra e longe do arcebispo quando este morrera. Ele estivera perto do conde de Salisbury quando este morrera? Não, mas o velho Longsword havia morrido pouco depois de ter discutido com Hubert de Burgh, e um homem daqueles tinha espiões e criados por toda parte.

Peter dês Roches estava recepcionando o rei em Winchester, e Henrique nunca tinha sido tratado com tanta prodigalidade. O bispo que, quando Henrique não passava de uma criança, se dispusera a instruílo e a adotar ares de tutor que o fizeram passar de Peter para Hubert, agora se portava como se Henrique fosse a fonte da sabedoria.

Henrique gostava disso.

O Natal estava próximo, e o bispo decidira fazer com que aquelas fossem festividades das quais o rei jamais se esqueceria. Os presentes com que inundava o rei recebiam a admiração de todos. Ele havia trazido jóias da Terra Santa e sedas e vinhos do exterior, e implorava ao rei para que escolhesse os que quisesse.

Peter havia mudado. Deixara de ser o sarcedote severo e era uma companhia divertida. Claro que tivera muitas aventuras, que descrevia vívida e espirituosamente, a ponto de Henrique acreditar que estava presente a elas. Ele conhecera o rei da França e sua mãe ao passar pela França, e conseguira fazer um trato de paz entre a Inglaterra e a França que iria durar três anos.

Mostrara ser um bom servidor do rei. Além do mais, obtivera a aprovação do papa e fora para a Inglaterra com as bênçãos dele para mostrar ao rei da Inglaterra o quanto ele tinha sido desencaminhado por conselheiros criminosos.

Não era difícil perceber a quem ele se referia. Durante aquelas festividades de Natal, segundo se dizia, o rei era todo ouvidos para ele. Ele então despejou o seu veneno, e tudo dizia respeito às más ações de Hubert, o juiz.

O seu tesouro estava sempre vazio, reclamou o rei.

Mas claro que estava, retrucou Peter com a mesma rapidez com que seus súditos o enchiam com os impostos, Hubert o dirigia para seus cofres. Teria o rei percebido como todos os amigos e parentes dele tinham se infiltrado nos cargos mais importantes do país? Hubert tivera a temeridade de penetrar, pelo casamento, na casa real da Escócia. Será que o rei sabia que ele seduzira a pobre Margaret da Escócia - e de tal maneira que alguns poderiam chamar de estupro -, de modo que a pobrezinha não pudera fazer outra coisa senão implorar ao irmão para que a deixasse casar-se com o homem que tornara impossível que ela se casasse com qualquer outro?

Aquilo era assombroso. O rei não soubera. Mas sabia que o seu tesouro nunca parecia conter aquilo que pensava que devia conter.

Começou a pensar que seria bom livrar-se de Hubert. Sempre que surgia qualquer controvérsia entre os dois, o rei imaginava ver nos olhos de Hubert que ele estava se lembrando daquela desastrosa expedição à França.

Assim que o Natal passou, Henrique exonerou Hubert do cargo e disse que ele não o teria de volta enquanto não apresentasse um comprovante de todos os pagamentos que fizera com verbas do tesouro durante o reinado de Henrique e o de seu pai.

Aquilo era uma tarefa impossível. Henrique sabia disso, e Hubert também. Era o mesmo que dizer a ele que já não gozava das boas graças e que já não havia serviço para ele no antigo cargo.

Peter dês Roches ficou encantado. Foi procurar o rei e o congratulou pela sabedoria que demonstrara.

- Mas vossa majestade vai ver logo que isso só não basta disse ele. - Há certas acusações que todos os homens de bem querem ver apresentadas contra Hubert de Burgh, pois é muito justo que responda por elas.

- Que acusações? - perguntou Henrique.

- Foi ele que impediu uma aliança entre vossa majestade e Margaret da Áustria.

Henrique ficou perplexo, e Peter continuou:

- Sua expedição à França teria sido vitoriosa, não fosse Hubert. Foi ele que retardou os preparativos, de modo que não havia navios em número suficiente para levar seus soldados à França. E mais tarde, segundo eu soube, quando vossa majestade estava lá, ele tinha amigos na França que providenciaram para que a expedição não desse certo porque ele dissera que não daria... era do interesse dos amigos dele, os inimigos franceses da Inglaterra, que não desse. Hubert é apoiado, nisso, pelo tesoureiro Ranulf Brito... homem escolhido por ele. Demita-o do cargo e nomeie Peter de Rievaulx para substituí-lo.

O rei prometeu pensar nisso e concordou logo com a substituição, afastando da mente o fato de que Peter de Rievaulx era sobrinho de Peter dês Roches.

Quando Hubert soube disso, viu que a batalha começara para valer. Foi imediatamente solicitado a abrir mão do castelo de Dover e de outras propriedades, e ao mesmo tempo foi informado de que a guarda do jovem conde de Gloucester, cujas propriedades tinham sido a causa da controvérsia com o arcebispo, passaria para Peter dês Roches.

Os londrinos jamais haviam perdoado Hubert pela morte de Constantine FitzAthulf, e estavam prontos a apoiar qualquer movimento contra ele.

Peter dês Roches foi procurar o rei, satisfeito, e disse que agora que denunciara as vilanias de Hubert de Burgh, outros estavam se unindo a ele e havia uma exigência, em todo o país, de que ele fosse levado a julgamento.

Henrique estava indeciso, mas não queria demonstrá-lo. Só quisera exonerar Hubert e não tivera a intenção de que a coisa fosse tão longe assim. Mas era difícil recuar agora que Peter dês Roches pusera em andamento o caso contra Hubert, de modo que concordou que se deveria fixar uma data para que Hubert fosse levado a julgamento, a fim de responder às acusações contra ele.

Hubert não podia acreditar no que estava acontecendo. Muitas vezes soubera da existência de inimigos, mas até então conseguira levar a melhor sobre todos.

Sua esposa ficou muito aflita, e ele tentou acalmá-la.

- Ora - disse ele -, eu sabia que assim que o bispo de Winchester voltasse para o país haveria problemas. É ele que está fazendo força para me destruir.

- Ele está mais poderoso desde que voltou - replicou Margaret. - E agora está sempre com o rei.

- Henrique vai se cansar dele.

- Espero que sim, antes que seja tarde demais.

- Eu nunca deveria tê-lo aconselhado a não ir até a França

- disse Hubert, triste. - Devia tê-lo bajulado e dito que a decisão dele era sábia. O rei me culpa pelo fracasso daquela expedição. Como é possível lidar com um homem que é teimoso, age de maneira insensata e depois põe a culpa naqueles que tentaram aconselhá-lo a não fazer aquilo?

- No íntimo, o rei culpa a si mesmo, Hubert - disse Margarete mas se recusa a reconhecer isso. E está zangado com você porque você sabe disso.

- O rei ainda não amadureceu.

- Já devia ter amadurecido. Agora está na idade de governar, e como pode governar um reino se não consegue governar a si mesmo? O que temos de pensar é na sua posição.

Demitido do cargo, terras e castelos tirados de você, essas acusações ridículas... Qual será o resultado disso?

Enquanto os dois conversavam, seu amigo Ranulf de Brito chegou muito apressado e lhe disse que seria levado a julgamento, e que estavam sendo feitos os preparativos para prendê-lo.

- Você sabe qual será o veredicto - disse Ranulf.

- Já está decidido que sou culpado - respondeu Hubert.

- Deus sabe o que vão fazer. Hubert, vão acusá-lo de traidor.

- Não posso acreditar que o rei permita isso.

- O rei balança de um lado para o outro. Está muito preocupado com que ninguém perceba que ele está indeciso. Eu não confiaria no rei.

- Você deve ir embora daqui - disse Margaret. - Não deve estar aqui quando vierem buscá-lo.

- Para onde? - perguntou Hubert. - Começo a pensar que não há saída.

- Tem de haver uma saída - disse Margaret. - Pense nos perigos que você enfrentou a vida toda... você sempre derrotou seus inimigos.

- É - disse Hubert. Pensou, então, em como desafiara o rei João no caso do príncipe Artur. Naquela ocasião, teria sido compreensível se João o tivesse destruído; mas ele se saíra bem daquela perigosa situação. Mas agora estava lutando uma batalha diferente. Não fizera coisa alguma a não ser servir ao seu rei, e os inimigos estavam clamando pelo seu sangue, enquanto o jovem rei, que se mantivera amigavelmente do seu lado, mudara repentinamente.

- Você não deve ficar aqui - insistiu Margaret. - Daqui a pouco virão buscá-lo.

- Não há para onde ir, a não ser que se trate de pedir asilo.

- Asilo! A solução é esta - bradou Margaret. - Você precisa pedir asilo. Ninguém ousaria importuná-lo onde você estivesse, e com o tempo o rei cairá em si e verá que traidores são aqueles que agora clamam pelo seu sangue.

- A solução é mesmo esta, meu senhor - concordou Ranulf.

- O senhor deve partir imediatamente. Qualquer demora pode ser perigosa.

- Vejo que tem razão - disse Hubert.

- O priorado de Merton é o mais perto - acrescentou Margaret. - Você deve ir lá.

Dali a meia hora, Hubert estava a caminho.

Quando disseram ao rei que Hubert se encontrava asilado no priorado de Merton, ele ficou com raiva. Hubert soubera, então, que estava para ser preso e ou era culpado ou não confiava na justiça do rei - Henrique preferia acreditar que ele era culpado.

- Hubert vai ver que não adianta tentar se esconder da justiça - declarou o rei; e ficou pensando no que seria a melhor coisa a fazer.

Os londrinos tinham passado a odiar Hubert desde as arruaças, quando ele havia ordenado que o líder deles e seu sobrinho fossem enforcados e fizera com que fossem mutilados os que tinham sido presos. O mortos podiam ter sido esquecidos, mas havia tantos homens vivendo sem um membro ou sem as orelhas, que aquela queixa era mantida viva.

Henrique expediu uma proclamação.

Hubert de Burgh, traidor do país, estava escondido no priorado de Merton. Os londrinos que havia muito tempo tinham ciência de sua perfídia e tinham bons motivos para se lembrar de sua vilania, deviam tirá-lo de seu refúgio e levá-lo aos tribunais.

Os londrinos marcharam em direção a Merton.

Houve um dentre eles - um mercador profundamente religioso - que levantou a voz contra aquela ordem e perguntou se era correto violar um santuário. A lei da Igreja dizia que todos - por mais perversos que fossem - podiam encontrar refúgio, ainda que temporário, num lugar santo. Ele sabia que o rei havia ordenado aquilo, mas o rei e a Igreja nem sempre estavam de acordo, e precisavam se lembrar de que o rei era jovem e a Igreja era antiga.

- O que fazer, então? - bradou a multidão. - Diga-nos o que fazer, então.

O mercador era um homem respeitado por todos, conhecido por seus modos piedosos e seus negócios sérios, e levando isso em consideração a multidão foi contida na sua loucura de pegar Hubert.

- O bispo de Winchester está hospedado perto daqui - disse o mercador. - Poderíamos perguntar a ele se é correto tirarmos o juiz de um santuário, quando se trata de ordens do rei.

- Para o bispo - bradou a multidão; e em vez de ir para Merton, dirigiu-se à casa onde estava o bispo.

Peter dês Roches ficou assombrado ao vê-los reunidos em frente ao seu portão.

Dirigiu-se a eles de uma janela.

- O que desejam de mim, minha boa gente? - perguntou. O mercador foi o porta-voz.

- Senhor bispo, temos ordem do rei para ir até Merton e pegar Hubert de Burgh, para que possa ser levado a julgamento. Devemos obedecer o rei?

- Vocês são bons súditos? - replicou Peter. - Se forem, sabem muito bem que devem obedecer o seu rei.

- Senhor bispo, ele está asilado em local sagrado.

Peter dês Roches hesitou. O mercador era um homem moderado, disso ele estava certo. O mesmo não acontecia com os que se reuniam à volta dele. Havia sede de sangue no olhar de todos. Eles odiavam Hubert. Estavam dispostos a se vingar. Culpavam Hubert pelo enforcamento de Constantine e pela mutilação de muitos cidadãos, e queriam um bode expiatório, Hubert era conhecido como um homem severo, por acreditar que aquela era a única maneira de manter a lei e o ordem no país.

O destino de Hubert, na opinião de Peter, podia depender dos próximos segundos. Se fosse levado aos tribunais, bem poderia provar ser inocente. Afinal de contas, governara bem o país. Peter dês Roches sabia disso. Mas se aquela turba o pegasse, nunca teria chance de fazer alguma coisa com a disposição em que se encontravam, o fariam em pedaços.

- Nós gostaríamos de pedir uma orientação sua, como homem da Santa Igreja - prosseguiu o mercador.

Peter tomou sua decisão. Era uma maneira fácil de se livrar de Hubert... de uma vez por todas.

- O rei lhes deu uma ordem. Vocês devem obedecer o rei. Houve um grito partindo da turba.

- Para Merton - gritaram. - O sangue de Hubert de Burgh.

O conde de Chester havia visto a turba marchando para a casa do bispo e ouvido os gritos sanguinários.

Ele acreditara que o bispo fosse aconselhá-los a se dispersarem, e ficou perplexo quando vieram da casa dele gritante "Para Merton!"

Imediatamente, foi procurar o rei.

- Majestade - disse ele -, a turba está em marcha.

- Para Merton - replicou Henrique. - Pedi a eles que me trouxessem Hubert de Burgh.

- Trazê-los à presença de vossa majestade! Antes disso, eles o matarão.

Henrique não respondeu, e Chester continuou:

- Majestade, é perigoso provocar a multidão. Vão assassinar Hubert... de forma horrível, sem dúvida. Já vi esses homens. É uma imagem terrível ver uma turba em marcha. Eu lhe imploro que disperse a turba enquanto ainda há tempo. Não é bom que o povo veja que é possível conseguir pela força o que quiser. Eu imploro, majestade. Mande-os debandar enquanto vossa majestade ainda tem o poder de fazê-lo.

Henrique hesitou. Sabia que Chester era inimigo de Hubert. Era por isso que acreditava nele. De repente, teve medo. Sabia o que havia acontecido quando os barões se rebelaram contra seu pai. A manutenção da coroa dependia, em grande parte, da boa vontade do povo. A terrível história do reinado de seu pai era uma lição para ele.

- O que devo fazer?

- Pegue seu cavalo e venha comigo. Poderemos alcançar a turba. Vossa majestade tem de mandar que se dispersem.

E assim o rei partiu com Chester, e quando alcançaram os exaltados, Henrique se dirigiu a eles.

O rei não tivera a intenção de que se dirigissem a Merton daquela maneira. Todos sabiam que Hubert estava asilado num santuário. Era contra as leis da Igreja tirar um homem de um refúgio desses Ele falara com veemência, e eles não tinham culpa nenhuma ou não teriam se se dispersassem em ordem e voltassem para suas casas.

O mercador que duvidara do bom senso de invadir um santuário ficou nitidamente aliviado. Falou em nome da turba e disse que voltariam para suas casas. Todos sabiam que o rei faria o necessário, e que no devido tempo Hubert de Burgh seria levado à justiça.

Quando Peter dês Roches soube do que acontecera, ficou furioso. Não apenas Hubert ainda estava vivo, mas ele, Peter, tinha se exposto ao dar um conselho que era contrário às normas da Igreja.

Apresentou-se ao rei e disse que ele agira com grande sabedoria. Explicou que se vira diante da turba e dissera que todos deviam, a todo custo, obedecer o rei, que era o que ele acreditava que os bons súditos deviam fazer; e Henrique, que percebera o tolo que fora ao dar a ordem, para início de conversa, ficou muito aliviado ao aceitar aquela explicação.

- O que pretende fazer agora sobre esse assunto, majestade?

- perguntou Peter.

- É um caso para se estudar - murmurou o rei.

- Sem dúvida, vossa majestade irá decidir que ele deve receber uma lista das acusações que pesam contra ele e ser informado de que deve preparar as respostas.

- Estive pensando nisso - disse Henrique, olhando ansioso para o bispo, à espera de mais sugestões.

- Talvez um salvo-conduto do santuário até um lugar da escolha dele. Então, apanhá-lo não apresentaria as mesmas dificuldades.

- Era nisso que eu estava pensando.

O bispo retirou-se satisfeito. Fazia bem à sua auto-estima poder orientar o rei com tanta facilidade.

Quando Hubert recebeu o salvo-conduto do rei, ele e Margaret foram para Brentwood - uma casa que pertencia ao sobrinho de Hubert, o bispo de Norwich. Podia contar com a ajuda do bispo, que lhe devia o cargo atual. Mas achando que não seria prudente ficar na casa, refugiou-se na capela Boisars, que ficava perto, a fim de que pudesse uma vez mais encontrar asilo em lugar santo.

Assim que Henrique soube onde ele estava, enviou guardas para buscá-lo e levá-lo para Londres.

Quando Hubert percebeu a perfídia do rei, que lhe prometera tempo para preparar as respostas às acusações, tentou se defender, mas logo o número de adversários ficou demais para ele.

Seus captores, porém, ficaram com medo de que ele fugisse e mandaram chamar o ferreiro local a fim de que fizesse correntes para prendê-lo. Mas o ferreiro sabia quem ele era e declarou que não queria ter nada a ver com o caso. Se os soldados quisessem acorrentar o tio do bispo, deviam procurar outro. Hubert decidiu que se algum dia voltasse ao poder iria se lembrar daquele ferreiro. Mas seus captores não queriam ser derrotados; dispensariam as correntes e o amarrariam com cordas.

E assim ele foi amarrado e colocado em cima de um cavalo e levado para a Torre de Londres, e lá ficou à espera do julgamento.

O bispo de Londres, ao ficar sabendo que ele fora tirado da capela Boisars, onde estava asilado, e levado amarrado para Londres, foi procurar o rei e salientou que era contra a lei da Igreja um homem ser tirado de um asilo em lugar santo. Não importava o crime, o homem estava imune.

O bispo foi um pouco severo, dando a entender que o rei se esquecera da lei do direito ao asilo, que mandava que qualquer homem, fosse o mais cruel dos criminosos, tinha direito a asilo sob o teto da Igreja. Durante quarenta dias e quarenta noites, ele deveria estar a salvo ali, e quem tivesse a ousadia de tocar nele profanaria a Igreja. Ao fim daquele prazo, ele devia deixar o país e ter a garantia de não ser molestado enquanto se dirigia até a costa.

Essa lei, salientou o bispo, fora ignorada no caso de Hubert de Burgh e pelos homens que o arrastaram para fora da capela Boisars.

Uma vez mais, Henrique ficou num dilema. O bispo de Londres era muito rigoroso, e embora se referisse aos soldados que haviam prendido Hubert como tendo sido os ofensores, estava claro que se referia ao rei. Henrique, que gostava de se considerar um homem profundamente religioso, tinha horror à ideia de um conflito com a Igreja; por isso, concordou de imediato que Hubert devia ser levado de volta à capela, onde ficaria vigiado por dois xerifes. Seus criados poderiam ficar com ele, para fornecer-lhe alimentação e prestar-lhe quaisquer serviços para o seu conforto.

Depois disso, ele poderia deixar a Inglaterra, de acordo com as leis de asilo, ou se não deixasse iria para a prisão, como merecia quem fora comprovadamente um traidor de seu rei e de seu país.

Hubert decidiu que sairia da Inglaterra por um curto período, durante o qual iria provar sua inocência, mas se descobriu que ele tinha uma grande quantidade de jóias e ouro, e quando estes foram encontrados, seus inimigos declararam que pertenciam, na verdade, ao rei, e ali estava a prova de que precisavam de que ele enriquecera à custa do rei.

De nada adiantou Hubert protestar, dizendo que os bens tinham sido conseguidos honestamente durante uma vida inteira de serviços. Seus inimigos, liderados por Peter dês Roches, disseram ao rei que Hubert merecia morrer.

Henrique concordou, e parecia que o fim estava próximo. Mas não foi bem assim, porque a consciência de Henrique começou a preocupá-lo. Ele se lembrava de cenas do passado e de que Hubert estivera ali durante muitas crises, e que quando os franceses estavam dominando o país à época da morte de seu pai, fora Hubert, junto com Guilherme Marechal, que providenciara a sua coroação e fizera com que o povo visse que com dois homens assim ao seu lado, apoiando-o, era possível expulsar os franceses do país.

Peter dês Roches foi procurá-lo e não conseguia esconder o quanto estava exultante. Henrique sentiu uma súbita antipatia por ele e começou a se perguntar por que se deixara levar por ele.

- Encurralamos o lobo - disse Peter dês Roches. - Os dias dele estão contados. Nada poderá salvá-lo, agora.

Seria aquele um homem piedoso, que esfregava as mãos de satisfação, que lambia os lábios de expectativa porque o sangue de um homem estava para ser derramado?

- Eu posso salvá-lo - disse Henrique.

- Majestade, o que quer dizer com isso? - bradou o bispo.

- Quero dizer que não tenho certeza quanto ao que vai acontecer com Hubert. Eu sempre ouvi dizer que desde muito jovem ele serviu muito bem a meu tio Ricardo e meu pai. Eu costumava pensar que ele também me servia bem.

- Majestade, ele é um homem astuto.

Aquilo foi uma abordagem errónea. Estava sugerindo que a astúcia de Hubert havia enganado Henrique por ele ser menos inteligente.

- Já decidi o que será feito - disse ele, olhando o bispo de Winchester com uma certa frieza de expressão. - vou devolver alguns de seus castelos e ele será instalado em Devizes. Nomearei certos lordes para vigiá-lo e seus grilhões serão retirados.

Peter viu que seria imprudente insistir num favor que estava decidido a pedir. Esse favor era o de ser nomeado guardião do castelo de Devizes; e se fosse, não demoraria muito e Hubert iria morrer de uma doença indefinida que talvez os ingénuos pudessem acreditar ter sido provocada por tudo aquilo que ele sofrera.

A vida se tornara um pesadelo para o outrora poderoso juiz. Pelo menos, ele tinha alguma fé no rei que ia de um lado para o outro e parecia não conseguir tomar uma decisão.

Hubert compreendia. Henrique era jovem; inseguro; não conseguia formar uma opinião própria e ficava muito aflito, com medo de que alguém descobrisse que mudava de

ponto de vista segundo a pessoa que o influenciasse mais num determinado momento.

Talvez viesse a ser um rei forte, pensava Hubert, mas duvidava. Talvez Ricardo da Cornualha tivesse sido melhor.

O fato de o rei tê-lo posto em liberdade e colocado ali naquele castelo mostrava que ele não estava dando ouvidos de todo àqueles que pretendiam destruí-lo. Havia

uma centelha de honradez no rei. Se ao menos ele, Hubert, pudesse se aproximar o suficiente para esbraseá-la, poderia voltar a cair nas boas graças de Henrique.

Enquanto isso não acontecia, precisava ficar calmo em Devizes e esperar que aquilo contentasse seus inimigos; e talvez em um dado momento o rei o recebesse, e Hubert pudesse fazê-lo cair em si.

Ficou aturdido quando um de seus criados - um homem fiel em quem podia confiar - foi procurá-lo um tanto agitado.

- Um dos criados do bispo de Winchester chegou ao castelo. Não nos disse logo com que finalidade, mas um pouco de um bom vinho soltou a língua dele. Veio na frente para preparar as coisas para o seu patrão. O bispo de Winchester convenceu o rei a dar a ele a custódia do castelo de Devizes.

- Que Deus me ajude - bradou Hubert -, isto é o fim. Você sabe o que ele pretende.

- Assassiná-lo, meu senhor, na minha opinião. Devíamos pedir asilo uma vez mais.

- Tem razão, meu caro.

- Já fizemos os preparativos. Dois de nós seguiremos com o senhor. Levaremos comida e roupas quentes, e estaremos lá quando o bispo de Winchester chegar a Devizes.

Era noite quando eles fugiram do castelo, Hubert se esgueirando disfarçado em um de seus criados.

Passaram a noite na igreja, mas quando os que tinham sido designados para vigiá-lo descobriram o desaparecimento de Hubert, ficaram tão alarmados por ter deixado que ele escapasse que decidiram que preferiam enfrentar a ira de Deus do que a do bispo de Winchester, de modo que foram até a igreja e levaram Hubert e os criados de volta para o castelo.

Foi a velha história. Dessa vez, o bispo de Londres protestou contra a violação do direito de asilo, e Hubert voltou para a igreja.

Henrique, àquela altura, voltara a recuar e dava ouvidos ao bispo de Winchester.

- O que posso fazer? - bradou Henrique. - Independente do que acontecer, ele nos escapa por entre os dedos. Está asilado uma vez mais. Nada há a fazer, a não ser deixá-lo por lá.

- Há uma coisa - disse o bispo. - Se não se permitir a entrada de alimentos no local de asilo, como poderá ele ficar ali quarenta dias? Vossa majestade poderá dominá-lo fazendo com que passe fome.

- É o que vou fazer - exclamou Henrique. - Posso perceber que para mim não haverá paz enquanto esse homem viver.

Deu a ordem, e a Hubert pareceu que o fim realmente chegara. Não havia lei eclesiástica nenhuma relativa à recusa a permitir a entrada de alimentos no local de asilo, e para Hubert havia uma triste opção. Ficar ali morrendo de fome ou sair e enfrentar as acusações.

Hubert sabia que com o tempo teria de ceder. Teria de sair e deixar que o levassem de volta para a Torre de Londres. Talvez ainda pudesse frustrar os planos de seus inimigos. Aqueles que queriam consolá-lo diziam que o bispo de Winchester estava perdendo o controle sobre o rei. Aquilo era um sinal reconfortante, mas Peter dês Roches não era o seu único inimigo.

Foi numa noite em que a decisão parecia iminente. Hubert sentia frio e fome. Podia demorar um pouco mais, e talvez no dia seguinte iria sair e entregar-se aos homens do rei.

A escuridão caíra. A porta da igreja se abriu em silêncio. Sabia que um homem estava ali, procurando por ele. Hubert o estava vendo, mas ele ainda não o vira.

Hubert perguntou em voz alta:

- Quem é você?

O homem se aproximou dele e mais dois se materializaram na penumbra.

- Quer a sua liberdade, Hubert de Burgh? - disse uma voz.

- Quero.

- Então, venha conosco.

- Quem são vocês?

- Inimigos do bispo de Winchester. Hubert hesitou, e o homem disse:

- Fique aqui e morra, ou venha conosco. Faça a sua escolha... só que poderíamos resolver levá-lo, quer você queira, ou não.

Hubert havia passado uma vida inteira tomando decisões rápidas, mas nunca tomara uma tão rápida quanto aquela.

- Eu vou.

- Isso é bom. Existem guardas lá fora, e se você não viesse por sua livre e espontânea vontade, poderia haver luta.

- Para onde vão me levar?

- Você vai ver.

Fraco de tanta fome, Hubert se levantou sem firmeza. Saiu furtivamente da capela e montou num cavalo que estava à sua espera.

- Vamos - disse o homem. - Pararemos daqui a pouco para alimentá-lo, pois vejo que está quase morrendo de fome. Pode cavalgar um pouco?

- Já que a minha vida parece depender disso, creio que posso.

- Sujeito inteligente. Siga... e daqui a pouco irá comer. Eles voltaram os cavalos na direção do País de Gales.

O novo arcebispo de Canterbury, Edmund Rich, andara observando a ascensão ao poder do bispo de Winchester e seu protegido, Peter de Rievaulx, com apreensão; e decidiu que devia avisar ao rei que a violação do direito de asilo que ocorrera mais de uma vez indicara falta de respeito pela Igreja e era preciso acabar com aquilo imediatamente.

Ele reuniu certos barões - muitos dos quais tinham-se rebelado contra João e o obrigado a assinar a Carta, e com eles os principais bispos que partilhavam de suas preocupações.

O rei os recebeu com muita cortesia, pois Edmund era um homem que começava a ser chamado de santo. Era conhecido pela sua piedade e por sua vida austera. Dizia-se que havia muito tempo não se deitava numa cama, mas descansava um pouco de vez em quando, sentado ou de joelhos. Seus trajes eram grossos, de lã penteada, e se submetia a uma tortura que ele mesmo se auto-aplicava com cordas atadas com nós. Dava dinheiro aos pobres, de modo que tinha muito pouco, poupando apenas o suficiente para comprar a pouca quantidade de alimento que se permitia comer entre os religiosos que andavam em busca de terras e favores e tinham por hábito promover amigos e parentes para cargos em que melhor pudessem beneficiar seu benfeitor, Edmund era uma raridade.

Mas os seus hábitos significavam realmente que ele era olhado com reverência, e Henrique, que tinha pela Igreja um respeito maior do que o de qualquer um de seus antecessores desde Eduardo, o Confessor, nem em sonho pensaria em tratá-lo de outra maneira senão com o máximo de respeito.

Por isso, quando ele pediu um encontro, Henrique respondeu com entusiasmo.

- Majestade - disse Edmund -, há muita apreensão no país. Hubert de Burgh fugiu e está em companhia dos inimigos do bispo de Winchester, Ricardo Siward e Gilbert Basset. Eles estão arrasando as terras do bispo e salvaram Hubert das intenções funestas dele. Por duas vezes, o bispo e seus seguidores violaram as leis da Igreja, e no entanto ele continua nas graças de vossa majestade.

- Senhor arcebispo - protestou Henrique -, a violação da lei de asilo não foi feita por ordem minha.

- Vossa majestade mandou que o povo de Londres fosse até Merton - retrucou o arcebispo, em tom áspero.

Henrique se acovardou. Os santos eram pessoas incomodativas, pois, por mais que fossem ameaçados, não demostravam ter medo. Como era possível ameaçar um homem que torturava a si mesmo e não dava a mínima para os confortos da vida?

- Depois mandei que não fossem.

- É verdade. Quando o conde de Chester o fez perceber a loucura que seria isso, vossa majestade percebeu o que fizera. Mas o mesmo erro foi cometido outra vez. Senhor meu rei, se vossa majestade não exonerar o bispo de Winchester e Peter de Rievaulx e seus adeptos estrangeiros, não terei outra saída a não ser excomungar vossa majestade.

Henrique ficou pálido diante daquela perspectiva.

- Senhor arcebispo - balbuciou ele. - Eu... eu farei o que me pede, mas...

- Então está bem. Não deve haver delongas. É bom que vossa majestade se lembre do que aconteceu com seu pai.

- Sim - disse Henrique -, eu sei muito bem.

- Nunca se esqueça. Isso deve servir de lição para vossa majestade e todos os reis que o sucederem. Os reis governam através da justiça, tendo em mente o bem do povo e seu compromisso para com Deus.

- Sei muito bem disso - disse Henrique. - vou exonerar o bispo e aqueles que o apoiam.

- Vossa majestade deve chamar Hubert de Burgh e fazer as pazes com ele.

- vou fazer isso, senhor arcebispo.

Quando Henrique ficou sozinho, tremeu de medo ao pensar no que poderia ter acontecido se o arcebispo tivesse provocado a sua excomunhão.

Em pouco tempo Hubert estava de volta ao poder. Ele envelhecera muito; e também ficara mais esperto, pois nunca mais se sentiria à vontade com o rei, pois não confiaria mais nele.

 

A Princesa e o Imperador

ISABELLA, ESPOSA DE Ricardo da Cornualha, estava grávida, e sua cunhada Eleanor, que ficara viúva com a morte de Guilherme Marechal, estava lhe fazendo companhia.

Eleanor sabia que nem tudo ia bem com Isabella. E já há algum tempo. Pobre Isabella, tinha sido muito feliz no primeiro ano de casamento, muito embora de vez em quando falasse na disparidade entre a sua idade e a do marido.

Tinha sido muito agradável em Berkhamstead, onde moravam na época. Eleanor se consolara de um modo inesperado. Talvez fosse porque Isabella, tal como acontecera com ela, casara-se ainda menina, ficara viúva e encontrara aquela grande felicidade. Isabella dissera: "A mulher deve se casar primeiro para satisfazer as famílias; depois, deve ter uma chance de satisfazer a si mesma." Fora esse o caso de Isabella. Será que aconteceria o mesmo com Eleanor?

As duas se haviam tornado boas amigas. Ricardo ficava longe de casa muito tempo, o que era necessário, claro. Ele estava ficando cada vez mais importante, e grandes homenagens lhe eram prestadas por ser irmão do rei; e quanto menos popular o rei se tornava, mais aumentava o prestígio de Ricardo. Sua desavença com o irmão e sua amizade com os barões o haviam tornado um dos homens mais importantes do país.

Isabella costumava comentar com Eleanor a importância dele e admitia, com o máximo de discrição, naturalmente, e por trás de portas fechadas, acreditar que ele fosse mais indicado para ser o rei do que Henrique. Eleanor tendia a concordar com ela.

Mas havia uma coisa que Eleanor percebera e que durante muito tempo não comentou com Isabella. Era um assunto que, se Isabella quisesse discutir, ela mesma é que teria de abordá-lo.

As visitas de Ricardo tinham-se tornado menos frequentes. Quando ia visitá-las, ele parecia menos exuberante do que antes. Isabella estava constrangida e já não era a mesma, e ficava cada vez mais preocupada com a sua aparência, de modo que demonstrava um certo medo.

Aquilo era ridículo, pois Isabella era uma mulher muito bonita.

Naquele momento, suas esperanças estavam concentradas na criança que iria ter, e Eleanor sabia que ela rezava para que fosse menino, por acreditar que o seu mau relacionamento com o marido era devido à sua incapacidade de ter um filho homem.

No início daquele ano, Ricardo havia ido a. Berkhamstead e ficara com as duas. Estava evidente que ele tinha algo na cabeça. Isabella não comentou, mas Eleanor estava certa de que ela sabia disso.

Durante aquela visita, Ricardo, para grande surpresa de Eleanor, falara com ela sobre a mulher e tentara explicar por que se mostrava apreensivo.

Eleanor passeara com Ricardo pelo jardim, pois ele pedira, e ela depois imaginara que ele tivesse sugerido aquilo para evitar que alguém pudesse ouvi-los.

- Eleanor, você está sempre com Isabella.

- Estou sim, irmão. Nós temos tido prazer em estarmos juntas.

- Para você é bom estar aqui, pois vocês são irmãs duas vezes. Por intermédio de seu falecido marido e de mim, você tem laços de parentesco com Isabella. Não tenho dúvidas de que conversam sobre os bordados que fazem e ocupações semelhantes a que as duas se dedicam.

Eleanor admitira que era aquilo mesmo.

- Isabella diz que eu sou companhia para ela durante suas ausências, que são frequentes.

- Porque são necessárias - apressara-se ele a dizer.

- É, e nós não pensamos de outra maneira.

- Nós? - dissera ele. - Você se refere a você e Isabella. Eleanor... o que eu queria dizer é o seguinte: Você acha que Isabella ficaria muito triste se... se...?

O coração de Eleanor começara a bater muito depressa. Não era mais criança e compreendia alguma coisa do relacionamento entre aqueles dois. No começo, fora tudo uma paixão romântica. Que agora não era tanto assim, ela bem sabia... não do lado de Isabella, mas do de Ricardo. Agora começara a desconfiar de que a maneira enfática com que o irmão afirmara que suas ausências eram frequentes por necessidade significava que não eram, e o motivo pelo qual não aparecia muito era porque não queria.

- O que está querendo me dizer, Ricardo? - perguntara ela.

- Bem, irmã, você precisa entender que meu casamento não foi o que eu esperava que fosse.

- Isabella o adora.

- Entenda, eu preciso de um filho homem. Tenho de ter um filho homem.

- Vocês tiveram filhos...

- Nenhum dos quais sobreviveu... o Joãozinho morreu logo depois de nascer, e a nossa Isabella viveu exatamente um ano. Parece que estamos condenados a não termos filhos. Isabella não é uma mulher jovem.

- Oh, mas não é velha, ainda não passou da idade de ter filhos. Você ainda vai ter filhos, Ricardo.

- Não tenho certeza. Estou apreensivo. Você sabe que Gilbert de Clare tem um parentesco sanguíneo comigo.

- Ah, mas não é muito próximo, Ricardo.

- De quarto grau.

- Mas quase todo mundo tem algum grau de ligação conosco.

- Deus não gosta desses laços muito próximos.

- Oh, não posso achar que Deus não fosse gostar de seu casamento com Isabella. Ela é uma pessoa muito boa.

- Eleanor, você fala como uma criança.

- Que providência você vai tomar... quanto a isso?

- Se você me prometer que não vai contar a Isabella... por enquanto... eu lhe digo.

- Prometo, sim.

- Mandei perguntar ao papa se devo tentar o divórcio.

- Oh, Ricardo... isso vai deixá-la de coração partido.

- É melhor isso do que ofender o Todo-Poderoso. Ele não está satisfeito. Isso é óbvio. Caso contrário, por que os nossos filhos iriam morrer?

- Muitas crianças morrem, Ricardo.

- Mas um homem da minha posição tem de ter filhos homens.

- Muitos não os têm.

- Dizem que é por causa de algum erro cometido no passado. Se a pessoa pecou de alguma maneira ou incorreu na ira de Deus, a única coisa a fazer é corrigir esse pecado.

- Então você ainda não contou a Isabella o que fez?

- Não. vou esperar pelo veredicto do papa.

- E se ele concordar com o divórcio?

- Você irá consolar Isabella, Eleanor.

Ela ficara perturbada demais para falar. Quisera ficar sozinha para pensar.

Dirigira-se ao seu quarto e se deitara no seu catre. O belo romance, pelo qual ela tivera inveja de Isabella, acabara. Era como um castelo construído na areia, que os primeiros ventos fortes haviam varrido para longe.

Isabella estivera certa. Era velha demais para ele. Ricardo agora percebia isso, embora na época tivesse sido o único a ter certeza de que não era.

Agora estava arranjando para se livrar dela. Quando dissera que tinha um parentesco de quarto grau com o falecido marido dela, na verdade estivera dizendo que estava cansado dela.

Era nisso que dava o amor! Era nisso que dava escolher o marido na segunda vez!

Ninguém achara que seria um casamento perfeito, exceto Ricardo e Isabella. Ele iria abandoná-la dentro em pouco e casar-se com outra. Talvez já soubesse com quem.

Pobre, triste Isabella! Iria precisar de consolo.

Ricardo partira no dia seguinte, e certo dia, e antes de Ricardo receber notícias de Roma, Isabella descobrira que estava grávida.

Quando soube da notícia, Ricardo correu para Berkhamstead.

Eleanor ficou surpresa com a satisfação que ele tivera com a notícia. Foi delicado e terno com Isabella, mas foi logo dizendo que não podia se demorar muito.

Eleanor teve oportunidade de falar com o irmão a sós, e perguntou se tinha recebido notícias de Roma.

Ele admitiu que sim, e que o papa era contra o divórcio. Ele achava que deveria continuar casado, mas que se Isabella não lhe desse um filho homem, acrescentou Ricardo, ele não deixaria o caso ficar naquilo.

Estavam todos muito alegres durante aquela visita.

- Oh, que ela tenha um filho homem - rezava Eleanor. Estava contente com o fato de Isabella não saber quanta coisa dependia dela ter um menino saudável que ficasse vivo. Mas Isabella percebeu que a amiga mudara.

- O que é, Eleanor? Você está diferente.

- Como assim?

- Você está menos... tranquila... menos inocente... talvez. Há momentos em que chega até a ser um pouco cínica.

- Acho que estou amadurecendo - disse Eleanor.

- Um dia vão encontrar um marido para você. A fisionomia de Eleanor se fechou.

- Não tenho vontade alguma de me casar - disse ela, com firmeza.

Isabella sorriu.

- Oh, é a mais feliz das situações. Há decepções, naturalmente. Pensei que meu coração fosse estourar quando meus bebés morreram. Mas agora você vê que estou grávida outra vez, e vai tudo bem.

Vai mesmo? pensou Eleanor com tristeza.

Em uma de suas viagens, Edmund Rich, arcebispo de Canterbury, fez uma parada em Berkhamstead.

Isabella ficou encantada ao vê-lo; quis oferecer-lhe um banquete, mas o arcebispo não gostava dessas coisas; como também não quis que lhe fosse preparado o melhor quarto do castelo.

O arcebispo disse a ela que ficaria de joelhos a maior parte da noite, e talvez se sentasse num banco e ficasse meditando o resto do tempo. Por isso, não precisava de quarto, apenas de um aposento simples e tranquilo.

Isabella lhe pediu que abençoasse a ela e ao bebé, e ele atendeu prontamente, acrescentando que era da bênção de Deus que ela precisava, não da do servidor Dele.

A humildade do arcebispo deixava todos maravilhados, e Isabella disse a Eleanor que ter aquele homem santo sob o seu teto num momento daqueles era um sinal de boa sorte. Ela sabia que o filho seria homem - e iria viver.

O arcebispo deu a entender a Eleanor que queria falar com ela, e ela se dirigiu ao aposento em que ele havia dormido. O cómodo estava quase despojado, à exceção do crucifixo na parede, que fora colocado pelos criados dele.

Eleanor se ajoelhou com ele e os dois rezaram, e ele lhe perguntou sobre a saúde de Isabella.

Eleanor lhe disse que às vezes a saúde dela a deixava aflita.

- Cuide bem dela. É importante que a criança que está gestando sobreviva.

Claro que o arcebispo sabia do pedido de Ricardo ao papa, que sem dúvida devia ter seguido por seu intermédio; e Eleanor sabia que ele estava ansioso pelo bem-estar de Isabella por causa disso.

- Senhor arcebispo, prometo que cuidarei dela de todas as maneiras.

- Fique com ela até a criança nascer... e depois. Ela irá precisar de você para alegrá-la... ou para ajudá-la se alguma coisa sair errada.

- A minha intenção era essa.

O arcebispo não a encarou; as palmas de suas mãos estavam unidas, e ele estava olhando para o crucifixo. Eleanor também se concentrava no crucifixo, e o olhava incapaz de fazer qualquer outra coisa.

- Minha filha, talvez dentro de pouco tempo seu irmão, o rei, encontre um marido para você.

Ela pensou em Isabella e Ricardo e exclamou:

- Não!

- Não gosta de estar casada? Ela sacudiu a cabeça.

- Você já foi uma jovem esposa. Teria isso feito com que achasse que não iria querer tornar a se casar?

- Talvez, meu senhor, o que vi do casamento me faça pensar que deverei ser mais feliz sozinha.

Pareceu haver um entendimento entre os dois, pois o arcebispo sabia que ela estava pensando na paixão romântica de Isabella e Ricardo e na rapidez com que mudara.

- Pode ser, minha filha, que você vá querer tomar os seus votos de castidade.

- Sim, senhor.

- Ah. Então, no devido momento, deve fazer isso. Tem certeza de que é isso que deseja?

Ela olhou para o crucifixo, que parecia brilhar com um fogo interno, e foi como se um estranho falasse por ela.

- É o que desejo - ouviu Eleanor a sua voz dizer. O arcebispo tomou-lhe a mão.

- Você se entregou a Deus. Você me prometeu. Ainda não está preparada, mas a hora chegará. Agora, precisa ficar aqui com Isabella, cuidar dela. Ela precisa de você, e a melhor maneira de servir a Deus é tomar conta dela no momento. Mas chegará a hora...

- Sim, meu senhor.

Edmund Rich partiu naquele dia. Depois que se foi, Eleanor começou a se sentir inquieta. Havia algo de mesmérico na presença do arcebispo. Ele a fizera achar que queria isolar-se do mundo, mas agora não estava tão certa assim.

Em novembro nasceu o filho de Isabella e, para alegria de todos, foi um saudável menino.

Todos, no castelo, exultaram e estavam sorrindo e felizes. Puseram no bebé o nome de Henrique.

Ricardo chegou. Estava felicíssimo. Seu filho era saudável sob todos os aspectos. Chorava com força, sorria, era esperto e feliz mesmo nos primeiros meses de vida.

Ricardo parecia ter-se apaixonado novamente por Isabella, e estavam todos felizes.

Eleanor pensou: casar, ter filhos. Que felicidade!

Margaret Biset ficou alarmada. Sabia que aquilo não podia continuar. Chegaria o dia em que seria encontrado um marido para a sua tutelada, e então haveria a separação. Margaret não podia imaginar-se longe da princesa Isabella. Fora o mesmo que arrancarlhe o coração quando as outras tinham ido embora, mas parece que o destino estava do lado delas, porque os casamentos arranjados para Isabella - como os arranjados para o próprio rei - sempre davam em nada.

Às vezes, Margaret ficava ilogicameníe indignada. O que pensavam que estavam fazendo, barganhando a sua queridinha... e depois aqueles finos cavalheiros tendo a ousadia de mudar de ideia.

Mas Isabella estava, agora, com vinte anos. A menos que tivessem decidido não casá-la de forma alguma, teriam de fazer alguma coisa em breve.

Portanto, não ficou de todo surpresa quando Isabella foi chamada pelo irmão, o rei.

Isabella partilhava da preocupação de Margaret, e foi com desconfiança que se curvou para os irmãos - primeiro para Henrique, depois para Ricardo -, porque Ricardo estava na corte na época. Henrique já não era tão moço assim, estando com 27 anos e ainda sem ter arranjado uma esposa. Ricardo e Joana eram os membros da família que estavam casados... e Eleanor, claro, agora viúva.

- Boas notícias, irmã. Vamos rezar para que desta vez nossas esperanças não sejam em vão - disse Henrique.

Ela percebeu, então, que a coisa temida acontecera e tinham arranjado um marido para ela. Esperou.

- Um casamento realmente excelente para você - disse Henrique. - O imperador dos alemães, Frederico II, está pedindo sua mão em casamento.

- O imperador da Alemanha! Henrique sorriu.

- Está vendo, Ricardo, nossa irmã ficou perplexa com a honra. Ora, é um bom casamento para você, Isabella, embora sem dúvida os alemães vão achar que o imperador fez muito bem ao agarrar a irmã do rei da Inglaterra.

- Ele fez muito bem, mesmo - disse Ricardo. - Ouvi isso dito por ele próprio. Está ansioso por que não haja demora.

Isabella ficou tonta. Claro que ele estava com pressa. Era um velho. Havia quase dez anos, ela estivera noiva do filho dele.

- Ele será bom para você - disse Ricardo. - Tem experiência no que se refere a casamento. Não precisa ter medo, Isabella.

- Você quer dizer que ele já se casou mais de uma vez.

- Ele já enviuvou duas vezes, e está tão encantado com a ideia de mais um casamento que não quer saber de demora.

- Quando é que... eu devo ir?

Ricardo se aproximou e colocou uma das mãos no ombro dela.

- Ah, a sua ansiedade é igual à do seu noivo. Há certos assuntos que precisam ser resolvidos. O imperador diz que vai mandar o arcebispo de Colónia e o duque de Brabant para escoltá-la até a Alemanha. E já estão a caminho.

- Você não parece tão satisfeita quanto pensei que fosse se sentir - disse Henrique.

- É um ato complicado ir embora da terra natal.

- Sei muito bem disso - disse Henrique. - Mas é este o destino das princesas. Você gostaria de passar a vida em companhia de Margaret Biset?

- Majestade - bradou Isabella -, posso pedir um favor? Eu só poderia ir se Margaret fosse comigo.

Os irmãos trocaram olhares, e Ricardo fez um gesto afirmativo com a cabeça

- Por que não? - disse ele. - Você levará algumas amas. Se decidisse levar a sua velha governanta, por que não seria ela uma delas?

Henrique começava a aparentar contrariedade, e conhecendoo bem, Isabella apressou-se a dizer:

- O rei é quem vai decidir. Henrique, eu lhe imploro. Sei que tem um bom coração. Sair sem Margaret me deixaria com o coração partido.

com um apelo daqueles, o bom humor de Henrique foi recuperado.

- Minha querida Isabella, é claro que Margaret Biset pode ir com você.

- Ela terá de ter o cuidado de não ofender o imperador, senão, ele poderá mandá-la de volta - avisou Ricardo.

- Ela não irá ofendê-lo, sabendo o que está em jogo.

- Agora, há muita coisa a fazer - disse Henrique. - Volte para o lado de Biset e diga-lhe que dentro em breve vocês estarão de partida.

Isabella os deixou e correu para a velha ala infantil, onde se jogou nos braços de Margaret.

- Pronto - exclamou Margaret. - O que foi, meu amor? O que foi que lhe disseram?

- Você vai comigo - disse Isabella. - Meu irmão prometeu.

- Então, poderemos enfrentar o resto. Para onde?

- Alemanha... para o imperador.

- Um velho! Bem, não é tão ruim como eu receava. Os velhos podem ser mais delicados do que os moços... e nós estaremos juntas.

- Se eles tentassem nos separar, Margaret, eu teria recusado esse casamento.

Pobrezinha, pensou Margaret. E de que teria adiantado? Mas ainda bem que ela recebera o consentimento real para acompanhar sua tutelada.

Depois que Isabella partiu, Henrique comentou:

- Vamos esperar que finalmente eu tenha arranjado um marido para ela.

- Pobre Isabella. Para ela, tem sido uma cadeia de desilusões... embora eu duvide que ela pense assim. Se Joana não tivesse voltado para casa a tempo, poderia ter sido a esposa de Alexandre. Como vai Joana?

- Não anda bem. Diz que nunca esteve bem desde que foi para a Escócia. O rigor do clima não é bom para ela. Todo inverno, ela fica doente.

- Pobre Joana! Teria ficado melhor em Lusignan.

- Mas a nossa mãe resolveu o contrário.

- Nossa mãe! Ela fez pouco por nós. Ela é mais leal aos filhos que teve com o Hugo do que aos que teve com o nosso pai.

- Ora, ela odiava o nosso pai, não odiava? E quem poderia condená-la? Ela parece sentir alguma afeição por Hugo... porque ele lhe permite levá-lo para onde quiser. Nosso pai jamais teria aceitado isso.

- Um dia desses, Henrique, vamos pegar aquilo tudo de volta.

- Eu jurei que faria isso - concordou Henrique.

- As alianças ajudam.

- Foi uma pena você ter preferido se casar como se casou.

- Concordo com você que foi um erro.

- Uma mulher muito mais velha do que você.

- Isabella é uma das belezas da época.

- Foi, irmão. Agora, está uma velha.

- Uma mulher ainda atraente... e não tão velha. Nós não parecemos muito felizes em nossas aventuras matrimoniais, Henrique. Joana na Escócia... não é mau, só que a saúde dela sofre. Eleanor, viúva...

- E você casado com uma velha!

- E você, solteiro.

Os lábios de Henrique se comprimiram. Ele queria se casar. Já estava na hora de fazer um herdeiro do trono. O que haveria de errado para que todas as suas tentativas dessem em nada? Não era ele o rei da Inglaterra? Seria de se imaginar que todo governante com uma filha casadoura fosse ficar ansioso por apresentá-la ao rei. No entanto, todas as tentativas tinham dado em nada. Dali a pouco, iam começar a dizer que havia alguma coisa errada com o rei da Inglaterra.

- Eleanor devia ser trazida de volta para a corte - disse Henrique. - Precisamos arranjar um marido para ela.

- Isabella e ela são boas amigas.

- Eleanor tem um papel a representar na vida que não o de fazer companhia à sua mulher enquanto você se ausenta para se meter em outras aventuras.

- Se são essas as suas ordens... - disse Ricardo com uma mesura.

- Que ela volte, então. vou mandar buscá-la. E há outra coisa. Pretendo me casar em breve.

- É a melhor coisa que poderia fazer. Você deve isso ao país.

- Sei muito bem disso. Conversei com o arcebispo.

- E a dama?

- A filha do conde de Provence. A filha dele, Marguerite, como você sabe, já está casada com o rei da França.

- Ora, irmão, isso é uma jogada brilhante. Estou certo de que sua escolha será aprovada. O conde vai ficar em palpos de aranha quanto a dar sua vassalagem à França quando uma de suas filhas for a rainha da Inglaterra.

- Uma situação semelhante ocorreria se ele pensasse em dá-la à Inglaterra.

- Isso vai deixá-lo neutro, irmão. E pense no mal que ele poderia fazer à nossa causa.

- Parece ser uma escolha inteligente, e pretendo dar um herdeiro ao país tão logo seja possível.

- Vamos rezar para que dê.

- A primeira coisa é casar. O que vou fazer assim que tratados satisfatórios sejam redigidos.

- Que tenha sorte em seu casamento, Henrique - disse Ricardo.

- Espero que seja melhor do que a que você teve com o seu - retrucou Henrique, não sem uma certa satisfação.

Fazia um belo dia de maio quando a princesa Isabella viajou com os irmãos e a irmã Eleanor para Sandwich.

Passaram por Canterbury, fazendo uma parada na catedral, para pedir a bênção de S. Thomas, e depois seguindo para Sandwich, de onde Isabella, em companhia do arcebispo de Colónia e do duque de Brabant, iria partir.

Margaret estava ao seu lado, de modo que ela não se sentia infeliz. Margaret fingia-se de muito animada, mas Isabella sabia que aquilo era um pouco falso. Margaret imaginava o tipo de homem para o qual a sua querida estava indo e se ele daria um bom marido. Elas viam borboletas de asas cor de laranja brincando por entre cardaminas e flores-de-cuco ao longo das margens; sentiam o cheiro dos botões de pilriteiros no ar, e Isabella disse, com tristeza na voz:

- Estamos indo embora de um belo país.

- Pode ser, minha querida, que estejamos indo para um outro mais bonito.

- Mais bonito do que este! Impossível!

- A terra natal da gente é sempre mais bonita. Mas a Alemanha será a nossa pátria, meu anjinho; e vamos aprender a amá-la.

- Eu tenho agradecido a Deus todas as manhãs, ao acordar, desde que soube que você viria comigo.

- Sua gratidão não é mais fervorosa do que a minha. Elas estavam juntas, e por isso a ocasião não era triste demais. Eleanor cavalgava lado a lado com um rapaz que parecia ser uns seis anos mais velho do que ela. Era simpático, charmoso e animado na conversa, e ela raramente gostara mais da companhia de alguém. Começava a achar que estava isolada dos prazeres da vida na corte com a cunhada e que havia muita coisa que estava perdendo.

O rapaz lhe disse que se chamava Simon de Montfort e que seu pai era Simon de Montfort PAmaury, que havia adquirido fama na guerra contra os albigenses.

O rei tinha sido bom para Simon e lhe devolvera todas as terras que haviam pertencido ao pai, e ele possuía aquilo que procurara durante muito tempo, uma posição segura na Inglaterra e as boas graças do rei.

Eleanor ficou encantada ao saber que Henrique era amigo dele, e contou com toda liberdade seu casamento com Guilherme Marechal e lhe revelou sua situação de viúva já havia alguns anos.

Ele lhe disse estar surpreso por terem deixado que ela ficasse viúva tanto tempo.

- Oh, eu não tinha vontade de tornar a me casar. Não que a decisão coubesse a mim.

Simon de Montfort olhou para ela muito intrigado e disse:

- Sabe, acredito que se a senhora estivesse disposta, pela sua natureza iria insistir para que a decisão fosse sua.

Aquela observação a deixou muito impressionada.

Seria mesmo? Sempre fora muito dócil para com Guilherme Marechal. Mas acontece que tinha apenas dezesseis anos quando ele morreu.

Simon de Montfort a fizera perceber uma coisa. Ela estava amadurecendo; seu caráter estava em formação e seria o de uma mulher resoluta.

Isabella e Margaret Biset se despediram daqueles que as escoltaram até Sandwich e partiram para Antuérpia.

Os quatro dias no mar não foram nada agradáveis, e neles Isabella pouco pensou no que a aguardava. De uma coisa estava certa: nada poderia ser pior do que viajar por mar.

Quando finalmente desembarcaram, foi para encontrarem amigos à espera para dizer-lhes que havia uma trama francesa para capturar Isabella e impedir o casamento dela com o imperador. Ficaram numa estalagem, onde disseram que Isabella era uma jovem nobre que estava viajando com a governanta, e aproveitando-se da escuridão da noite, as duas saíram da cidade. Levaram vários dias até certificarem-se de ter ludibriado os pretensos

sequestradores, e àquela altura Frederico já enviara uma forte guarda para protegê-la e levála para Colónia.

Houve uma parada naquela cidade. Era perigoso seguir adiante, porque o imperador estava em guerra - por estranho que parecesse, com o próprio filho, que em determinada ocasião fora oferecido como marido para Isabella -, de modo que ela e Margaret tiveram seis semanas de descanso, durante as quais começaram a aprender os hábitos do país.

Um certo dia o imperador chegou para saudar sua jovem noiva, com grande alegria. Teceu loas ao charme e à beleza dela e se declarou absolutamente encantado.

Abraçou-a com entusiasmo e disse-lhe estar decidido a cuidar dela e fazê-la feliz. Margaret exultava de prazer. Sentia-se satisfeita por não terem dado sua tutelada a um jovem desavergonhado. Do imperador, ela iria receber ternura e consideração.

As comemorações do casamento foram magníficas, e continuaram por quatro dias, pois o imperador queria que seus súditos soubessem o quanto estava encantado com a esposa.

Isabella descobriu que o casamento não era tão desagradável quanto receara. O imperador, encantado com a sua juventude e seu frescor, estava ansioso por não amedrontá-la. Disse que passara a amá-la desde o instante em que a vira, e que a sua beleza excedia todas as informações sobre ela. Isabella era o seu tesouro, sua doce e jovem esposa; e o seu grande desejo era agradá-la.

No entanto, ele sugeriu que se mandasse de volta todas as criadas inglesas, e quando Isabella soube disso ficou apavorada.

Atirou-se aos pés dele e chorou de amargura, e quando o imperador a ergueu e perguntou o que havia de errado, ela se abriu:

- Margaret Biset e eu estamos juntas desde que eu nasci. Não posso deixar que ela se vá. Se o senhor mandá-la embora, nunca mais serei feliz!

Então ele a beijou e disse que embora tivesse tido vontade de que todas as suas criadas inglesas fossem embora, para que ela se tornasse sua jovem mulher alemã, iria mostrar-lhe o seu amor permitindo que Margaret continuasse ali enquanto Isabella precisasse dela.

Diante disso, Isabella pôs de lado toda a cerimónia, passou-lhe os braços pelo pescoço e o beijou com ardor.

- Então parece que você gosta do velho imperador? - perguntou ele.

- Gosto, sim - respondeu ela, com fervor. - Vossa majestade é muito bom para mim.

- E você pode ser feliz aqui?

- Posso ser feliz se não mandar Margaret para longe de mim.

- Então, Margaret fica.

O imperador ficou tão encantado com a esposa que não queria nada, a não ser ficar ao lado dela o tempo todo. Levou-a para o seu palácio em Hagenau e cercou-a de todo o luxo de que tinha conhecimento. A mobília dos aposentos dela era de uma riqueza nunca vista por ela. Dava-lhe mais jóias do que ela teria possibilidade de usar. Havia tecidos de seda e finos para que as criadas os transformassem nos trajes que ele desejasse, e havia carne suculenta e vinhos de acordo com o seu paladar. Mas ele não suportava que alguém a visse, com medo de que a tirassem dele.

Ela e Margaret continuavam juntas como haviam estado na corte do irmão; e a afeição do imperador por ela era comentada por todo o país.

Em dado momento, ela ficou grávida, e eram-lhe enviadas mercadorias para que escolhesse o que achasse melhor para a criança. Margaret gostava de fazer a maioria das roupas, e as duas gostavam de coser e conversar sobre o bebé.

Era agradável ser assim tão mimada pelo marido apaixonado; e naquele momento, Isabella se sentia contente por ficar isolada do mundo em sua caverna de seda. Margaret ficava com ela, e as duas brincavam de adivinhações, como haviam brincado quando ela era menina. Era tudo tão parecido com a sua infância - exceto as visitas do imperador - que ela não se sentia, em absoluto, uma prisioneira.

Quando a criança nasceu, foi uma menina. Se o imperador ficou desapontado, ele não disse, mas Isabella sabia que ele teria preferido um menino. Quando, a título de brincadeira, ela disse a Margaret que iria dar o nome dela à menina e mencionou o fato a Frederico, ele não protestou. Se era aquilo que sua queridinha queria, assim deveria ser.

E assim a menina se tornou Margaret, e a governanta se dedicava tanto à criança, que Isabella disse que o bebé estava lhe tirando a velha ama.

- Que absurdo! - bradou Margaret. - Neste velho corpo existe amor suficiente para vocês duas.

E assim continuou a vida agradável - só que uma gaiola foi trocada por outra. O imperador precisou visitar seus súditos italianos, de modo que a transferiu para a Lombardia e lá ela, com Margaret, a filhinha e as poucas criadas que atendiam às suas necessidades, viveram uma vez mais num palácio de luxo, com seus belos jardins... cercados por muros altos onde não entrava ninguém, a não ser o imperador.

Raramente ele deixava que alguém visse sua esposa.

E ali nasceu o filho homem de Isabella. Ela lhe deu o nome de Henrique, em homenagem ao irmão. E o imperador disse que jamais sentira tamanha alegria.

Era uma vida estranha, mas Isabella não se sentia infeliz.

O imperador que envelhecia e sua bela e jovem esposa tinham-se tornado uma espécie de lenda no país.

 

Eleanor e Simon de Montfort

ELEANOR estava apaixonada.

O homem mais interessante, mais empolgante da corte de seu irmão era Simon de Montfort. Ela observava, com prazer, que Enrique gostava dele; mas ele tinha muitos inimigos. Ela vivia aterrorizada, com medo de que um dia lhe causassem algum mal. Certa vez, ele lhe dissera:

- Sou considerado francês pelos ingleses e inglês pelos franceses. Isso não faz com que nenhum dos dois lados goste muito de mim.

Quando ela saía a cavalo com um grupo, invariavelmente o via a seu lado; e em uma ou duas ocasiões, muitíssimo ousados, os dois se afastavam, sem ser percebidos. Eleanor gostava muito daqueles passeios, galopando pelos gramados com Simon um pouco atrás, deixando que ele a alcançasse, quando então ele dizia:

- Pare um pouco, princesa. Gostaria de falar com você. Então, os dois colocavam os cavalos a passo e conversavam.

A maior parte do tempo o assunto referia-se aos dois.

Simon era um aventureiro, disse ele. Eleanor era irmã do rei. Não era estranho os dois terem tanta coisa a dizer um ao outro, com aquele entendimento todo?

- Às vezes eu penso que também sou uma aventureira - disse Eleanor.

- Você... uma princesa!

- Por que deveria uma princesa ser condenada a uma vida insípida?

- Nem todas as princesas o são - lembrou ele.

- Estou decidida a viver como eu quiser.

- Eu sabia que havia algo de incomum em relação a você, desde o momento em que a vi.

Os dois falaram sobre suas vidas.

Se o avô dele, senhor de Montfort e Evreux, não tivesse se casado com a irmã e co-herdeira do conde de Leicester, ele nunca teria ido para a Inglaterra.

- Pense nisso. Não fosse aquele casamento, você e eu não estaríamos cavalgando juntos aqui, agora.

- Dou graças àquele casamento - disse Eleanor.

Ele riu; os olhos brilharam de satisfação. A ela parecia haver um profundo significado por trás de tudo o que diziam um ao outro.

- O segundo filho deles, Simon, chefiou a cruzada contra os albigenses, e a ele couberam o título de conde de Leicester e metade da propriedade.

- E você é filho do cruzado.

- Sou. Meu irmão Amaury abriu mão de seus direitos na propriedade em meu favor, e vim à Inglaterra para reclamá-los.

- Parece que aqui você não foi malsucedido.

- Seu irmão foi bom para mim.

- Ele gostou de você. Creio que compreendo o motivo.

- O fato de a irmã dele compreender significa mais para mim do que as boas graças do rei.

- Então, devo mudar de opinião a seu respeito. Você não é tão inteligente quanto eu pensava.

- Isso, minha cara senhora, é o que se vai ver.

- Quanto tempo temos de esperar por essa revelação?

- Espero que não seja muito.

Eleanor estava exultante. O que poderia Simon estar querendo dizer? Ela sabia quais eram os sentimentos dela. Quais seriam os dele?

- Seu irmão me deu uma pensão de quatrocentos marcos. Quando eu recuperar minhas propriedades, ficarei rico. Mas não me esquecerei da ajuda recebida.

- A pensão de meu irmão deve ser de grande importância para você.

- Não tão importante quanto a afinidade que vejo nos olhos da irmã dele.

- Sem dúvida que para um homem de bom senso uma pensão deve ser mais útil do que uma afinidade.

- Não, nada disso - retrucou ele.

Em momentos como esse, ela esporeava o cavalo e saía a galope, porque nunca se sentira tão feliz na vida, e sabia que aquilo significava que estava apaixonada.

Tentou explicar a Simon o que tinha sido a sua vida.

- Quando eu era criança, me casaram com o velho Guilherme Marechal. Isso era preciso, porque tinham medo de que ele se passasse para o lado dos franceses. Eu era apenas uma criança. Depois da cerimónia, ele partiu para a Irlanda.

- Pobrezinha!

- Fiquei no palácio com a minha irmã Isabella e a nossa velha governanta, Margaret Biset. Isabella é imperatriz, agora, e Margaret está com ela.

- Eles vão arranjar um marido para você.

- Não vou aceitá-lo... a não ser que tenha sido escolhido por mim.

- Ah, e quando esse momento chegar você acredita que vai ter força suficiente?

- Sei que vou ter o suficiente.

- Reis, arcebispos, barões, lordes... eles podem ser muito fortes.

- Eu também. A princesa que se casar uma vez por interesse do Estado tem o direito de arranjar o segundo marido quando e onde quiser.

- Acha que vão permitir isso?

- Eu é que irei decidir.

- Oh, você é uma princesa ousada e também bonita. Tem as qualidades que mais admiro nas mulheres... beleza e independência.

- É um prazer saber que sou de seu agrado, meu senhor.

- Espero que o prazer que encontro em sua companhia jamais lhe dê motivos para arrependimento.

Ninguém lhe falara daquela maneira, antes. Eleanor sabia que ele estava lhe dizendo que a amava. Seria possível se casar com um homem sem fortuna? Porque ele não tinha fortuna e ainda precisava reaver suas propriedades. Tudo o que possuía, no momento, era um direito a elas. O que mais? A amizade do rei; o amor da irmã do rei.

E no entanto, por ser Simon de Montfort, parecia que ele tinha uma força interior para realizar o que em outro homem teria sido impossível.

Eleanor ficou imaginando o que Henrique diria se ela lhe dissesse que queria se casar com Simon de Montfort.

Henrique estaria mais inclinado a ser tolerante, agora, porque também tinha uma esposa. Dessa vez, ele se casara mesmo, e havia uma rainha na corte. Eleanor - esse era o nome dela - era muito jovem e muito bonita, e viera de Provence para ser a rainha de Henrique. Era um pouco mimada e petulante, exigindo as coisas à sua maneira, mas Henrique estava tão encantado por ter uma esposa e tão fascinado pela beleza dela que ficara muito mais tolerante, e por causa disso teria uma certa compreensão e simpatia para com a irmã.

Foi quando os dois se achavam na floresta e tinham escapado do resto do grupo - um hábito que se tornava frequente demais para passar despercebido - que Simon abordou o assunto.

Não poderia haver muitos homens, na corte, que teriam a ousadia de sugerir casamento a uma princesa, mas Simon não era um homem comum. Tinha inteira confiança em si mesmo. Iria deixar a sua marca no mundo. Era muito distino. Isso era claro tanto para ele quanto para Eleanor. Por isso, podia fazer o que outros homens jamais ousariam fazer.

- Você sabe que eu a amo - disse Simon. Eleanor era sincera demais para fingir.

- Eu sei, sim.

- E você me ama - declarou ele; e tampouco ela negou.

- Quando se ama como nós nos amamos, só há uma coisa a fazer, e é casar. Concorda comigo?

- Concordo, Simon.

- E então?

- Devemos nos casar.

- Você estaria disposta, Eleanor?

Ela estendeu-lhe a mão, e ele a segurou. Os olhos de Simon brilhavam. Ele olhava para o futuro.

- Então, uma coisa é certa, Eleanor. Nós vamos nos casar, mesmo.

- Isso é certo - concordou ela.

- Como eu a amo! Você e eu fomos feitos um para o outro. Nós somos ousados, não somos? Prontos para tirar da vida o que quisermos?

- É a única maneira de se viver, Simon.

- Bem, e agora?

- Nós nos casamos.

- Em segredo.

- Eu poderia sondar o rei.

- Será que ele concordaria?

- Acho que poderia... se formos cautelosos. Não devemos deixar que outros saibam. Haveria objeções.

- Simon de Montfort e a princesa - disse ele. - Iriam me dizer que não estou à altura.

- Nós sabemos que é o contrário. vou descobrir junto ao meu irmão o que ele pensa sobre isso. No momento, ele tende a ser tolerante para com aqueles que se amam.

- O marido baboso ama a sua Eleanor... mas não como eu adoro a minha.

- Como pode saber disso?

- Aquela criança! O que ela sabe da vida?

- Ela sabe como conseguir o que quer de Henrique. Só que não seria difícil uma mulher conseguir o que quer de Henrique.

- Nem mesmo a irmã dele?

- vou sondá-lo.

Era época do Natal, e eles estavam em Westminster. O rei estava muito ocupado com os preparativos, ansioso por mostrar à rainha o quanto eles podiam ser pródigos.

Eleanor hesitava em abordá-lo, porque se Henrique não quisesse ajudar, poderia tornar impossível o casamento dela com Simon. Certas possibilidades passaram-lhe pela cabeça. O rei podia até prender Simon, mandar mutilá-lo, assassiná-lo... Não que Henrique alguma vez tivesse mostrado quaisquer sinais de se comportar com tal crueldade. Não era como o pai deles. Henrique era mais um homem de paz. E mesmo assim, Eleanor estava correndo um risco. Conversando com Simon, sentia-se muito ousada e valente; quando não estava com ele, sentia-se enfrentando realidades.

Chegou à conclusão de que havia uma pessoa que poderia consultar em segurança, e essa pessoa era sua irmã Joana, que estava na corte desde setembro, quando fora em peregrinação até Canterbury com o rei e com o marido Alexandre. Ele já retornara à Escócia, mas Joana arranjara uma desculpa para continuar na Inglaterra por mais algumas semanas. Aquele prazo se prorrogara.

E assim, Eleanor foi procurar Joana e deu um jeito de as duas ficarem a sós.

Embora estivesse preocupada com seus problemas, Eleanor não pôde deixar de perceber o quanto a irmã estava abatida. A pobre Joana parecia estar definhando. Arranjava uma desculpa atrás da outra para ficar na Inglaterra, e até então tinha ficado. Passara várias semanas no quarto quando fizera frio, e parecia ter melhorado com aquilo, mas tinha um medo terrível de voltar para a Escócia.

Ao lado dela, Eleanor parecia desabrochar, sabia disso, e se sentia um tanto envergonhada.

Perguntou, com carinho, pela saúde da irmã.

- Estou melhor - disse-lhe Joana. - Sempre estou, na Inglaterra.

- Pobre Joana. - Eleanor estava pensativa. Não importava para onde Simon fosse, ela iria com ele com prazer. Era evidente que Joana não pensava o mesmo a respeito de Alexandre.

- Quero falar com você, Joana. É segredo... um grande segredo. Quero o seu conselho.

Joana sorriu para a irmã.

- Sabe que terei prazer em ajudar, se puder. Eleanor confirmou com a cabeça.

- Estou apaixonada e quero me casar. Joana pareceu preocupada.

- Depende muito de com quem. Ele é o que seria considerado adequado?

- Para mim, é o único que poderia ser considerado adequado.

- Não me refiro a isso, Eleanor.

- Eu sei, e acho que ele é o que seria chamado de totalmente inadequado.

- Oh, minha pobre irmã.

- Nem tanto, Joana. Eu me recuso a ser chamada de pobre quando Simon me ama.

- Simon?

- Simon de Montfort. Joana franziu as sobrancelhas.

- Não é o filho do general que lutou contra os albigenses?

- Ele mesmo. Nós vamos nos casar... não importa o que digam. Se tivermos de ir para a França, se tivermos de fugir... faremos isso para ficarmos juntos. - Eleanor encarou a irmã e viu que os olhos de Joana brilhavam de admiração.

- Tem razão, Eleanor. Se você o ama... e ele a ama... então não deixe que nada se meta no seu caminho. Você já se casou uma vez por questões de Estado. Agora, deve ter a liberdade de escolha.

Eleanor se aproximou da irmã e tomou-a nos braços. Sentiu-se apreensiva pela fragilidade de Joana.

- Não pensei que você fosse compreender.

- Eu compreendo, Eleanor. Já amei uma vez... e fico contente por isso ter acontecido, embora não me tenha trazido felicidade.

- Você, Joana...!

- Isso foi há muito tempo, oh, parece que há muito, muito tempo.

- Você foi mandada embora quando era criança. Mandada para Lusignan.

- Para o homem que seria meu marido - disse Joana. - Eu estava com medo e aprendi a não ter medo. Passei a conhecê-lo. Ele era tão bom... tão delicado...

- Você o amou! - bradou Eleanor. - E ele se casou com a nossa mãe.

- Você se lembra dela, Eleanor?

- Só um pouco.

- Mamãe possuía um fascínio. Não sei como explicá-lo. Nunca vi isso em nenhuma outra mulher. Era uma espécie de magia. Não era boa, não era delicada, mas mamãe enfeitiçava as pessoas com ela. Enfeitiçou Hugo. Por isso, voltei e me casei com Alexandre.

- Minha pobre Joana!

- Oh, já faz muito tempo para se falar nisso, e eis-me aqui, rainha da Escócia.

- Pelo que está me dizendo, uma pobre compensação, Joana. Joana estendeu as magras mãos em que dolorosamente se viam veias azuis.

- Estou lhe dizendo que se tiver uma chance de felicidade, deve aproveitá-la. Não vai querer passar o resto da vida se lamentando.

- Então é este o seu conselho, Joana?

A resposta de Joana foi abraçar a irmã e dar-lhe um beijo delicado na testa.

- Sonde o seu irmão. Mas com cuidado. Talvez agora ele sinta ternura pelos amantes.

Henrique olhou a irmã com um pouco de afeição. Ele estava muito contente com o seu casamento. Sua mulher era muito jovem, a segunda filha do conde de Provence; e a irmã mais velha já era esposa de Luís IX da França. Ela não só era bonita, como prendada, também. Era conhecida pelos versos que escrevia, e cantava e dançava que era um encanto.

Henrique sentia um prazer especial porque seu irmão Ricardo ficara conhecendo a princesa de Provence em suas viagens e gostava muito da inteligência e da beleza dela; Henrique sabia que Ricardo teria gostado de ter-se casado com ela. Não havia esperança quanto a isso. Ele tinha a sua Isabella, que estava envelhecendo, e com quem insistira em se casar. De modo que aquela era uma das ocasiões em que Henrique conseguia ganhar do irmão.

Quando Eleanor foi falar com Henrique, ele estava um tanto eufórico, e ela, em sua prudência recém-adquirida e sua percepção aguçada pela necessidade desesperada, começou dizendo que estava muito satisfeita com a felicidade dele e que a nova rainha era encantadora, e como ele tivera sorte ao esperar um pouco antes de fazer um casamento apressado. Depois do quê, Henrique começou a se estender sobre as perfeições de sua rainha e sobre os prazeres da vida de casado, o que facilitou mais as coisas para Eleanor.

- Ah, quem dera que eu tivesse a boa fortuna de conhecer tanta felicidade! - suspirou ela.

- Pobre irmã, você esteve casada com o velho Guilherme Marechal. Como deve ter sido diferente da situação em que me encontro!

- Meu afortunado irmão! Ninguém poderia desejar-lhe maior felicidade do que eu. Sei que, compreendendo tanto assim, você me ajudaria, se estivesse ao seu alcance, a alcançar um prazer igual.

Henrique teve um sorriso largo.

- Querida Eleanor, quem dera que o mundo todo pudesse ser tão feliz quanto eu.

- Eu poderia ser... ou quase, acho eu, se ao menos fosse possível...

Henrique estava olhando para a irmã com ar de interrogação, e ela prosseguiu:

- Henrique, eu estou apaixonada. Quero me casar e lhe imploro... a você, que compreende tão bem... para que me ajude.

- Minha querida irmã, o que posso fazer? Quem é esse homem?

- Ele é Simon de Montfort.

Henrique ficou calado por alguns segundos, enquanto Eleanor sofria agonias de dúvida e planos de uma fuga imediata da Inglaterra começavam a se formar em sua mente.

Então, Henrique se abriu lentamente num sorriso.

- Ele é um sujeito atrevido. Eu sempre soube. Mas não sabia até que ponto.

Eleanor agarrou-lhe as mãos e bradou:

- Henrique, você, que atingiu essa felicidade... será que pode negá-la a mim, sua irmã, que só sofreu com um casamento indesejado e passou anos isolada de sua corte?

Henrique a abraçou.

- Eu vou ajudar você. Isso terá de ser segredo por enquanto... Ninguém pode saber.

- Meu queridíssimo irmão, se você consente, isso é tudo o que peço!

Henrique, sorrindo com benevolência, disse que ela devia ter o seu desejo atendido. Ele tomaria as providências. Mas por enquanto, ela precisava se lembrar... segredo.

Eleanor mal podia esperar para falar com Simon. Só haveria oportunidade quando os dois saíssem a cavalo com um grupo na floresta, pois ela percebia a necessidade de manter em segredo o seu futuro casamento. Ainda não estavam seguros. Henrique podia mudar de ideia, se insistissem com ele, e era certo o rei ser pressionado se Os planos deles fossem descobertos. Muitos dos barões tinham inveja de Simon, e iriam achar que o casamento com a irmã do rei era uma jogada que ele fizera levado pela ambição. Iriam fazer de tudo para que ele não progredisse.

Os dois fugiram do grupo. Pronto... aquilo seria percebido se o repetissem muito mais vezes.

- Conversei com Henrique. Ele vai nos ajudar - disse Eleanor.

Simon ficou perplexo.

- É verdade, mesmo?

- Escolhi o momento. Ele está muito contente com o casamento dele, eu o bajulei. Henrique é sempre sensivel a isso.

- Meu Deus! - exclamou Simon. - Quer dizer que em breve você será minha mulher.

- Isso não deve ser muito adiado. Ele pode mudar de ideia.

- É verdade. Assim que o Natal acabar... Oh, sua princesa esperta!

- Você vai ver que serei sempre esperta quando se tratar de conseguir o que quero.

- Vejo que terei uma esposa muito decidida.

Os dois ficaram muito emocionados para falar nisso, e cavalgaram em silêncio pela floresta.

Chegaram a uma capela, e foi Eleanor quem disse que deveriam desmontar, prender os cavalos e entrar para rezar juntos ao altar para agradecer a Deus pela Sua bondade para com eles e pedir a Ele que continuasse a ajudá-los.

- Bem que talvez precisemos disso - comentou Simon. Assim, entraram na capela e junto ao altar se ajoelharam um ao lado do outro. E quando Eleanor ergueu os olhos, eles pousaram no crucifixo e ela foi levada de volta a um momento em que se ajoelhara num quarto ao lado de Edmund, o arcebispo de Canterbury.

Não conseguiu controlar o tremor que tomou conta dela. Naquela ocasião, ela dissera que faria um voto de castidade. Oh, mas falara por falar. Achara que aquilo era o que ela pretendia, então, mas na época ainda não tinha conhecido Simon.

Aquilo não era um compromisso. Não representava coisa alguma. Não devia pensar naquilo.

Os dois se puseram de pé, e quando Simon segurou-lhe o braço para conduzi-la para fora da capela, ele disse:

- Ora, você está tremendo.

- Estava frio na capela. E aquilo foi tudo.

Foi num dia frio de janeiro que Eleanor ficou ao lado do irmão que a deu em casamento, depois de mandar o sacerdote jurar segredo, e ela se casou com Simon de Montfort.

Não podia acreditar na felicidade que sentia, mas mesmo assim queria se livrar daquele temor incómodo que tomara conta dela na capela.

Repetidas vezes lembrava-se que as palavras que dissera a Edmund não tinham sido ditas a sério. Ele não poderia considerá-las como um voto... ou poderia?

Ela pensava naquele sério rosto hierático. As pessoas que se sujeitavam a um grande auto-sacrifício costumavam ser muito severas com os outros.

Era tolice sua deixar que a felicidade fosse estragada, quando Henrique dera o seu consentimento e chegara mesmo a dá-la em casamento. Mas ele não sabia daquela

cena entre ela e Edmund. E quando Edmund soubesse...

Eleanor se recusava a pensar nisso.

Ao saírem da capela, Henrique parecia muito preocupado.

Ele começara a pensar que agira com muita impetuosidade. Estivera ansioso para que a irmã fosse feliz, e sentira uma grande satisfação por poder proporcionar aquela felicidade; mas agora que a cerimónia terminara, ele se perguntava se agira com bom senso,

- Ninguém pode saber. Vocês têm de manter o seu segredo por uns tempos - disse ele em tom ríspido.

Eleanor pegou-lhe a mão e a beijou com fervor.

- Queridíssimo irmão, nobilíssimo rei, jamais esquecerei o que fez por mim.

Aquilo satisfez Henrique. Até começar a ficar preocupado de novo.

À medida que as semanas se passavam, o frio era intenso. O vento assobiava pelos cómodos do castelo e nem mesmo grandes fogueiras conseguiam manter aquecidos os seus habitantes.

A tosse de Joana piorou, e quando Alexandre mandou mensagens a Westminster para saber por que ela não voltava, ela estava muito deprimida, mas fez os preparativos.

Eleanor passava muito tempo com ela. Joana era uma das pessoas que sabiam a respeito de seu casamento. Era agradável, como explicou Joana a Simon, poder falar com alguém; e Joana estava muito satisfeita por eles se sentirem felizes.

Pobre Joana! Se ao menos pudesse ter conhecido aquela ventura! Claro que Alexandre não era igual a Simon. Eleanor achava engraçado pensar que o casamento de Joana podia ser classificado de bom, ao passo que o dela... bem, o dela era muitíssimo inadequado. Oh, mas feliz, pensava Eleanor. Como era maravilhosa a vida!

As duas estavam conversando no quarto frio, Eleanor sentada num banco e Joana deitada num catre coberta por um cobertor de peles, porque não conseguia se aquecer.

- Você ainda não pode ir - disse Eleanor. - Vai ter de esperar o tempo melhorar.

- Alexandre está ficando muito impaciente. Eu devia ter ido antes do inverno começar.

- Bobagem. Por que não deveria visitar a sua família?

- Foi uma visita maravilhosa. Fiquei muito feliz ao ver Henrique e você contentes com o casamento.

- Apesar de o meu ter de ser mantido em segredo por enquanto.

- Você gosta disso. Confesse! Isso não dá um certo sabor?

- Não era preciso - replicou Eleanor, - Que você seja sempre tão feliz quanto agora, querida irmã.

- Pretendo ser - replicou Eleanor. - Quando tivermos os nossos castelos, você irá ficar conosco muitas vezes.

- Eu gostaria.

Joana começou a tossir e não conseguia parar, e Eleanor ficou aflita e com medo. Quando um daqueles paroxismos atacava a irmã, Eleanor ficava com medo de que ela morresse engasgada.

Joana se recostou nas almofadas. Eleanor viu o sangue e sentiu um calafrio.

- Querida Joana, há alguma coisa que eu possa ir buscar para você?

- Sente-se ao meu lado - disse Joana.

Eleanor sentou-se até escurecer. E estava pensando na pobre Joana indo para bem longe, para Lusignan, para um marido que nunca vira, apaixonando-se por ele e o perdendo.

Joana disse, de repente:

- Eleanor, você está aí?

- Estou, irmã. O que quer que eu faça?

- Vá buscar Henrique, sim?

- Henrique!

- Por favor... eu acho que ele devia vir aqui.

Eleanor saiu. Levou meia hora para encontrar o irmão e leválo até o quarto.

Eles chegaram portando velas acesas; e a visão da irmã deitada nas almofadas deixou-os muitíssimo apreensivos.

Henrique ajoelhou-se ao lado da cama e segurou-lhe a mão.

- Querido irmão - disse Joana. - Eu sei que isso é o fim, você não acha?

- Nada disso - declarou Henrique. - Vamos ficar com você aqui. Você não vai para a Escócia. Meus médicos irão curá-la.

Joana sacudiu a cabeça e disse:

- Eleanor... irmã.

- Estou aqui, Joana. Segurou a mão da irmã.

- Deus abençoe vocês dois. Sejam felizes.

- Seremos todos felizes - assegurou-lhe Henrique.

- Me ajudem a levantar um pouco - disse Joana. Henrique passou o braço em torno dela e a manteve assim.

- Eu... me sinto feliz por estar com vocês... aqui na Inglaterra. Estou feliz... por ter voltado para casa para morrer.

Henrique e Eleanor não conseguiam falar; desviaram os olhos da irmã moribunda.

- Henrique, eu gostaria de ser enterrada em Dorset... no convento de freiras de Tarent...

- Quando chegar a hora, será - disse Henrique, com um soluço na garganta. - Mas essa hora ainda está muito longe, irmã.

Ela sacudiu a cabeça e sorriu.

Durante algum tempo, fez-se silêncio; depois, Henrique olhou para o rosto dela e a soltou.

- Ela se foi - disse Eleanor, e levou uma das mãos aos olhos para esconder as lágrimas.

Foi impossível manter o casamento de Eleanor e Simon de Montfort em segredo por muito tempo.

Quando Ricardo da Cornualha soube - e de que ele acontecera com o consentimento do rei -, ficou furioso.

Ele mesmo estava ficando cada vez mais contrariado com o seu casamento. Cada vez que via Isabella, ela parecia ter envelhecido alguns anos. Não percebia que a esposa compreendia que ele já não ligava para ela e que isso lhe provocava noites sem dormir e dias de angústia.

Simon de Montfort era um dos homens mais impopulares nos círculos da corte. Era um estrangeiro, e Henrique sempre tivera uma tendência a favorecer estrangeiros, ainda mais agora que sua esposa estava levando para a corte os amigos e parentes, e favores que deveriam ter sido dirigidos a ingleses estavam sendo concedidos a eles.

Os barões começavam a se aglutinar em torno de Ricardo. Ele tinha um belo filho, o jovem Henrique, e o rei, até então, não tinha filho algum. Henrique não tinha o poder de atrair homens para o seu lado. Havia, nele, uma certa fraqueza que eles detectavam e que o fazia agir, às vezes, de uma maneira muito injusta, quando em outras se excedia no desejo de agradar.

Ricardo procurou o rei e externou uma enorme indignação.

Ele gostaria de saber por que Henrique teria dado o seu consentimento a um casamento que era claramente desagradável para muitas das mais importantes pessoas do país, que deveriam ter tido o direito a uma opinião sobre a escolha de um marido para a irmã do rei.

- Não foi necessário que outros escolhessem - disse Henrique. - Eu dei a permissão. Isso foi o suficiente.

- Claro que não foi! Era importante que você divulgasse o caso. Em vez disso, aderiu ao segredo.

- Saiba de uma coisa, irmão - bradou Henrique. - Eu faço o que quero.

- Era isso que o nosso pai dizia.

Aquele era o tipo de observação que fora dirigida a Henrique desde que chegara ao trono. Aquilo sempre o deixava com raiva, porque lhe causava medo.

- Cuidado, Ricardo - avisou Henrique.

- É você que tem de tomar cuidado. Há murmúrios de insatisfação por todo o reino.

- Sempre houve, e sempre haverá. Há homens demais que buscam a riqueza para si mesmos e provocam confusão na esperança de consegui-la.

- Agir assim não ajuda, em absoluto, a sua causa. Nossa irmã é uma tutelada real. Você sabe o que isso significa.

Henrique explodiu:

- Eu tive meus motivos.

- Que motivos poderiam existir para dar nossa irmã a um... aventureiro?

- vou lhe dizer. Ele havia seduzido a nossa irmã. Achei melhor consertar a situação dando Eleanor a ele em casamento. - Henrique empalidecera. Aquilo era mentira. Mas se fosse verdade... e quem sabe que poderia ser?... ninguém poderia condená-lo por fazer com que os dois se casassem.

- Que canalha! - exclamou Ricardo, que havia seduzido muitas mulheres em sua não muito longa mas um tanto plena vida erótica.

- Ela queria o casamento - continuou Henrique. - Vamos esperar que Simon seja um bom marido para ela.

- vou procurar Simon de Montfort - bradou Ricardo.

- Vá. Eleanor não irá aprovar. Ela está extremamente feliz com esse sujeito.

- Um aventureiro... e uma tutelada real! Nossa irmã.

- Ora vamos, Ricardo. Eles gostam um do outro. Você se casou por sua livre e espontânea vontade, e eu o perdoei. Eleanor se casou com Marechal numa época em que era necessário evitar que ele se passasse para o lado do inimigo. Deixe que ela viva em paz com o homem que escolheu.

- Que a seduziu antes do casamento!

- Foi o que pensei - disse Henrique, cauteloso. Ricardo se retirou bruscamente, deixando Henrique zangado e ao mesmo tempo envergonhado.

Parecia que ele era o rei, e não eu, pensou Henrique; e depois riu consigo mesmo ao pensar em Ricardo com sua mulher que envelhecia, da qual era evidente que gostaria de se livrar, e na sua doce rainha que continuava a deliciá-lo.

Edmund, arcebispo de Canterbury, foi procurar o rei para dizer-lhe que ficara muito preocupado ao saber do casamento da irmã do rei. Tinha uma razão muito boa para isso...

- Foi um casamento legítimo - disse o rei. - Eu mesmo estive presente.

- Tenho algo de muito grave para lhe dizer, majestade – explicou o arcebispo. - Sua irmã, viúva de Guilherme Marechal, me fez um voto de castidade. Parece que ela violou esse voto. Aos olhos de Deus, isso é um pecado grave.

Henrique ficou desconfiado. Por que não deixavam Eleanor e Simon de Montfort viver em paz? Será que aquela gente toda tinha tanto ódio assim de ver um casal feliz? Estariam tão invejosos assim que precisavam tentar destruir aquela felicidade?

Claro que Edmund era um santo. Camisas de pêlo atormentavam a sua pele; ele se flagelava com cordas com nós; mal ingeria alimentos suficientes para mante-lo vivo, nunca se deitava para dormir e passava metade da noite de joelhos. Não se podia esperar que um homem daqueles ficasse exultante com a felicidade carnal de Eleanor e Simon.

Mas se fosse realmente verdade que Eleanor fizera um voto, o que teria dado nela para rompê-lo?

- Não tenho conhecimento desse voto, senhor arcebispo disse ele.

- Mesmo assim, ele foi feito na minha presença. Eleanor colocou sua alma imortal em perigo.

- Não creio que Deus e seus santos venham a ser tão rigorosos para com minha irmã. Ela se casou com o velho Marechal, como sabe, quando ainda era uma criança, e gosta realmente do marido.

- Majestade, eu não o compreendo. Será que esqueceu o seu dever para com a Igreja? Não é de admirar que o seu reino esteja em desordem.

Que a praga pegue esses religiosos piedosos, pensou Henrique. Depois, teve medo desses pensamentos contrários à religião e desejou ardentemente que o anjo que fazia as anotações não tivesse registrado aquele.

- vou falar com a minha irmã - disse Henrique.

- Isso não será suficiente, majestade. Ela vai precisar de uma dispensa especial do papa.

Henrique suspirou e mandou chamar a irmã.

Eleanor chegou um tanto apreensiva. Estivera num estado de grande angústia desde que soubera que a notícia se espalhara.

Simon dissera que os dois precisavam estar sempre prontos para fugir do país. Ele mesmo tinha ido falar com Ricardo e pedir-lhe perdão. Levara presentes e tentara explicar ao cunhado que se deixara empolgar pelo amor pela irmã dele.

Ricardo ouvira, aceitara os presentes e dissera que Simon estava em dificuldades junto ao arcebispo por causa de um voto que Eleanor fizera... e que aquilo poderia causar dificuldades ainda maiores para os dois.

Houve um certo entendimento entre os dois homens, e durante a entrevista Ricardo cedera um pouco. Começava a pensar que se os barões se unissem a ele e fosse necessário rebelar-se contra Henrique, Simon seria um bom aliado.

Ele disse compreender os sentimentos de Simon e que sabia que Eleanor se tornara uma mulher muito voluntariosa. Se a irmã se decidira a se casar com ele, Simon pouco poderia fazer, a não ser obedecê-la. Os dois riram juntos, e Ricardo ficou calmo.

A coisa não seria tão fácil assim com o santo arcebispo. Os joelhos de Eleanor tremiam enquanto ela se postava diante do velho. Os olhos chamejantes pareciam penetrar-lhe a mente, e se lembrou vivamente de ter-se ajoelhado com ele diante do crucifixo.

- O arcebispo me traz graves notícias - disse Henrique.

- Parece - disse Edmund - que a senhora esqueceu o voto que fez a Deus.

- Não considerei aquilo como um voto, meu senhor.

- Com que então a senhora fez um voto que não era voto disse Edmund. - Peço-lhe que não acrescente petulância aos seus pecados.

- Eu era muito jovem e sem experiência do mundo. E disse que poderia estudar a possibilidade de entrar para um convento.

- Tome cuidado. Suas palavras serão registradas no céu.

- Eu tenho um marido a quem amo. Não acho que Deus vá considerar isso um pecado.

- A senhora violou o voto que fez a Ele. Toda vez que se deitar com esse homem, estará cometendo um pecado contra a Santa Igreja.

- Eu acho que não.

- A senhora... uma jovem tola!

- Não - disse Eleanor, com espírito -, uma esposa orgulhosa e feliz.

Henrique não podia deixar de admirá-la. Claro que ele devia respeitar um santo daqueles, mas Eleanor não parecia ligar para se estava, ou não, ofendendo a Deus. Ele quase esperava que o TodoPoderoso mostrasse o Seu desagrado fazendo com que a irmã ficasse muda ou cega... ou talvez estéril. O rei não podia dizer nada sobre a última possibilidade, mas ficou claro que ela escapou das duas primeiras.

- A senhora dá a Deus... e a nós... um grande motivo para nos lamentarmos.

- Existe um número muito grande de freiras - disse Eleanor -, e as esposas felizes não são tantas assim.

- A senhora não tem vergonha - bradou o arcebispo.

- Não? - disse Eleanor.

- Precisa ter cuidado, irmã - preveniu-a Henrique com timidez. Ele queria que aquela cena terminasse, e por isso prosseguiu antes que o arcebispo pudesse falar outra vez. - O que minha irmã deve fazer, meu senhor? Ela está casada. Não podemos descasá-la. Por favor, dê-me o seu conselho.

- Deve ser enviado ao papa, com toda urgência, um pedido de dispensa.

- Isso será feito - disse Henrique.

O arcebispo olhou para Eleanor com uma expressão fria no olhar.

- Só há uma pessoa que deve ser enviada para falar com sua santidade, a fim de fazer o pedido. Essa pessoa, se vossa majestade concordar, é Simon de Montfort.

Que ódio ela sentiu do velho santo! Ele não podia descasá-los, mas podia separá-los... por uns tempos.

A solução não foi má, concluiu Henrique, pois com o marido longe, os barões poderiam esquecer-se da sua contrariedade com o casamento. Eleanor ficou zangada. Isso não podia ser evitado. Ela devia esperar pagar um certo preço pelo seu comportamento informal. Tinha o marido que escolhera, e ele iria voltar tão logo quanto possível.

A tristeza de Eleanor com a perda temporária do marido foi um tanto atenuada pela descoberta de que estava grávida. Além do mais, o papa, vendo que o casamento já fora celebrado, achou que não havia alternativa senão conceder a dispensa.

No prazo devido, Simon voltou, e o filho homem de Eleanor nasceu no castelo de Kenilworth. Eleanor resolveu chamá-lo de Henrique, em homenagem ao irmão, o que deixou o rei encantado.

Na verdade, o próprio Henrique estava em estado de excitação por causa da gravidez de sua mulher, e quando seu filho - a quem chamou de Eduardo - nasceu, ficou contentíssimo.

Para mostrar que Eleanor estava inteiramente perdoada, o rei concedeu a Simon o condado de Leicester.

Infelizmente, houve um problema de uma dívida que Simon fizera durante sua estada no exterior, e como Simon não pudera fazer o pagamento, a conta foi enviada ao rei.

Aí, Henrique ficou furioso. Achou que a irmã estava abusando dele. Ela o bajulava quando queria alguma coisa - isso Ricardo já dera a entender. O marido dela se aproveitava tanto de sua alçada à família real que fazia dívidas que não tinha condições de pagar. Henrique iria mostrar-lhes que estava a par da chicana deles.

Atacou Simon na presença de vários dignitários que se haviam reunido para a cerimónia de recepção à rainha na igreja, depois do nascimento do filho, acusando-o de seduzir Eleanor antes do casamento e de subornar o papa para obter a dispensa e depois não pagar as contas.

- Se o senhor não sair da minha frente agora, estará na torre antes do fim da noite - declarou o rei.

Simon ficou perplexo. Pareceu-lhe que Henrique estava se portando como o pai dele se portava com frequência. Mas ele e Eleanor deixaram a corte depressa.

- Pela manhã ele já terá se recuperado do acesso de mau humor - disse Eleanor.

- E se não se recuperar? - perguntou Simon. - Não gostei da expressão do olhar dele.

- E então? - perguntou Eleanor.

- Apanhe o menino. Vamos sair do país por uns tempos. É mais seguro assim. Vejo que ele irá sempre se lembrar dessa acusação contra mim e usá-la quando melhor lhe aprouver.

Eleanor suspirou; mas sabia que ele tinha razão, e desde que não se separassem, estava resignada a aceitar qualquer coisa que tivesse de acontecer. Uma semana depois, os dois chegavam à França.

Isabella, condessa da Cornualha, era uma mulher infeliz. Sabia que Ricardo estava à procura de uma desculpa para se livrar dela. O marido deveria tê-la ouvido quando lhe dissera que era velha demais para ser do seu agrado. Ela sentia falta de Eleanor e estava sempre invejando a felicidade dela com Simon de Montfort. Querida Eleanor, ela merecia ser feliz, afinal; e seria, pois havia uma certa força nela que Isabella admirava, ainda mais porque sabia que ela mesma não a possuía.

Ricardo, agora, raramente ia visitá-la. Esforçava-se para ser carinhoso, mas aquilo não a enganava, pois sabia que ele estava procurando meios de se livrar dela, e embora o papa decidira contra aquela dispensa havia cinco anos, Ricardo não perdera as esperanças.

Às vezes ela se sentia muito só no mundo. Seu pai, um grande homem, já havia morrido havia muito tempo; o irmão dela, em que se apoiara, agora se fora. Tudo o que lhe restava era seu filho Henrique - e ele era o encanto de qualquer mãe -, mas dentro de quanto tempo iriam tirar-lhe o menino? Os meninos nascidos em famílias nobres jamais eram deixados para crescer em suas casas. O filho seria enviado para longe, a fim de ser educado de modo a se tornar o que chamariam de homem - com o carinho de mãe sendo considerado uma desvantagem nesse tipo de treinamento.

Mas Isabella estava grávida outra vez - seu único consolo, embora durante essa gravidez ficasse exausta com facilidade, e muitas vezes se sentia mal.

Tinfia a sorte de estar cercada de boas criadas. Aquelas que lhe eram mais chegadas sabiam da tristeza que o desprezo do marido lhe provocava. Era emocionante ver como elas tentavam compensar aquela falta de carinho desfazendo-se em atenções para com ela, com algo mais do que se poderia esperar dos melhores criados.

No momento devido, a hora dela chegou e, para seu encanto, deu à luz um filho homem.

Ricardo chegou a Berkhamstead poucos dias depois do nascimento.

Tinha um aspecto jovem e vigoroso ao se sentar ao lado da cama dela, que se sentia velha e cansada, e sabia que aparentava tudo isso.

- Foi bondade sua vir ver o nosso filho, Ricardo.

- Claro que eu viria ver o menino... e você.

- Maior bondade ainda ter vindo me ver... quando isso é contra a sua vontade.

Ricardo se mexeu, contrafeito, no banco em que estava sentado.

- Você não parece bem, Isabella. Estão cuidando de você? Preciso falar com as criadas.

- Elas me tratam com muito carinho, Ricardo. Você pode imaginar o quanto fico agradecida por isso.

- É bom saber disso.

Ficou sentado em silêncio, e Isabella ficou imaginando se estaria pensando que ela parecia estar tão mal que talvez nunca mais se levantasse daquela cama.

Aquilo iria poupá-lo de um grande trabalho, pensou, e a mim de muito sofrimento.

Diziam as criadas de Isabella que era como se ela estivesse querendo morrer.

Ricardo falou com a mais dedicada daquelas que ficavam com ela dia e noite.

- Sua ama parece exangue - disse Ricardo. - Ela está muito doente?

A velha mulher empertigou-se um pouco e o encarou com frieza. Aquele tipo de mulher, ele sabia, não ligava para ninguém, por mais alto que fosse o posto, e enfrentaria um exército de reis para defender suas adoradas tuteladas.

- Tem sido uma fase infeliz para ela, meu senhor - foi a resposta brusca, - Uma gravidez difícil, pelo que sei.

- O senhor sabia? O senhor viu pouco essa gravidez.

- Mas sei que essas coisas são difíceis.

- Isso foi agravado pelo estado de melancolia da minha senhora. - A velha mulher fez uma inclinação rápida da cabeça e se afastou, resmungando: - Preciso ver minha senhora.

Ricardo foi ver a criança, que estava sossegada no berço. Branco e imóvel, os olhos fechados, o filho lembrava Isabella. Ricardo chamou a ama-de-leite.

- Como vai a criança? - perguntou.

- Oh, meu senhor, um bom menino. Nunca chora...

Ele se dirigiu para o seu quarto, pensando na pobre e melancólica Isabella e na criança que nunca chorava.

O médico disse que a criança devia ser batizada imediatamente, e recebeu o nome de Nicholas pouco antes de morrer.

Ricardo não contou a Isabella, mas ela sabia. Ficou na cama, imóvel.

Ricardo sentou-se a seu lado.

- Ricardo, eu gostaria de ser enterrada em Tewkesbury, ao lado de meu primeiro marido - disse Isabella.

- Ora, ora, você não vai morrer ainda, Isabella - retrucou Ricardo.

Ela virou o rosto para o outro lado, e ele se ajoelhou ao lado da cama, tomando-lhe uma das mãos. Sabia que fora um mau marido. Sabia que lhe causara um grande sofrimento.

O casamento dos dois fora impulsivo - por parte dele. Mas Isabella o amara. Ricardo desejou ter sido melhor para ela. Se tivesse sabido que o fim da mulher estava próximo, teria ido visitá-la mais vezes naquele último ano. Mas como poderia ter sabido? E a verdade era que ela estava envelhecendo; não era alegre como Ricardo gostava que as mulheres fossem; era virtuosa demais e demasiado séria para satisfazê-lo.

O casamento deles fora um fracasso, como Isabella dissera que seria. Ricardo podia ouvir a voz dela chegando até ele através do tempo: "Eu estou muito velha, Ricardo."

E estivera muito certa.

Mas agora devia consolá-la. Não iria permitir que fosse enterrada em Tewkesbury, ao lado do primeiro marido. Isso seria considerado um desprezo para com ele. Ricardo sabia o que faria, pois era um erro ignorar por completo a vontade dos mortos. O coração dela seria colocado num cofre de prata e enterrado ao lado do primeiro marido, e o corpo ficaria num lugar da escolha de Ricardo.

A pressão dos dedos frios e úmidos nos seus fizeram com que ele se lembrasse de que estava desfazendo-se dela antes dela morrer, e num súbito acesso de vergonha, ele disse:

- Isabella, você tem que ficar boa. - E prometeu a si mesmo que se ela ficasse boa, ele seria um marido melhor.

- Ricardo, não se recrimine. A culpa foi minha. Eu sabia desde o início...

- Eu amava você...

- Você ama com facilidade, Ricardo. Agora eu sei disso. Tome conta do pequeno Henrique.

Ele lhe beijou a mão.

- Prometo que amarei esse menino como a nenhum outro.

- Acredito em você. Acho que está na hora de chamar o padre.

E assim o padre foi, e Ricardo ficou sentado ao lado de Isabella enquanto ela morria. Ele chorou um pouco e tentou evitar que ficasse contente por não haver mais necessidade de negociações com um papa que levantava objecoes. Pensou nas belas filhas do conde de Provence.

Livre. Estava livre.

No salão de Westminster, Henrique convocara todos os nobres para uma reunião do conselho. Ricardo estava presente e sentou-se ao lado dele na plataforma.

Henrique se dirigiu à assembleia:

- Recebi uma mensagem de meu padrasto, o conde de La Marche. Ele prometeu que, se levarmos um exército para o outro lado do canal, nos ajudará contra o rei da França. Meus senhores, esta é a oportunidade que esperávamos. Finalmente, temos uma chance de recuperar tudo o que perdemos. Os poitevinos, os gascões, o rei de Navarra e o conde de Toulouse estão com ele. A desavença deles com Luís aumentou, e estão prontos para marcharem contra o rei da França.

Houve um murmurar entre os presentes. Se aquilo fosse verdade, poderia ser mesmo a chance que esperavam, mas até que ponto poderiam confiar no conde de La Marche?

Henrique respondeu à pergunta.

- O conde, pelo seu casamento com minha mãe, tornou-se meu padrasto. Eu sempre soube que quando chegasse o momento ele viria em meu auxílio.

Parecia razoável. Aquela bem poderia ser a hora. Muitos olhos brilhavam diante da ideia de recapturar aqueles castelos perdidos.

- Então, meus senhores - disse Henrique -, temos todos o mesmo pensamento. Vamos começar, agora, a nos preparar para a guerra contra o rei da França.

 

FRANÇA

1238-1246

O Espião de Rochelle

ISABELLA DE ANGOULÊME, rainha-mãe da Inglaterra e condessa de La Marche, mudara pouco com o passar dos anos, embora fosse, agora, mãe de muitos filhos. Tinha havido um para quase cada ano de seu casamento com Hugo. Dizia-se que ela devia ter algum poder especial - e muitos acreditavam que esse poder lhe fora dado pelo diabo -, pois, apesar do avançar dos anos e das exigências da gestação, continuara bonita e a maturidade não provocara uma diminuição de sua atração.

Era arrogante, exigente e sabia ser vingativa. O marido e os filhos tinham por ela um grande temor respeitoso; e no entanto, eram dedicados a ela. Apesar de seus modos dominadores e de seu extremo egoísmo, eles estavam cônscios daquele encanto que a acompanhava desde criança; e se tivessem como dar-lhe o que queria, davam.

Hugo, o filho mais velho, que se parecia muito com o pai, era seu escravo dedicado; um dia, ele seria o conde de Lusignan; Guy, o segundo, era o senhor de Cognac; Guilherme ficaria com Valence, e Geofredo com Châteauneuf, enquanto que Aymer entraria para a Igreja. E havia as meninas, Isabella, Margaret e Alicia.

Desde que se casara com Hugo, ela estava obcecada pelo ódio a uma única mulher; e aquele ódio talvez fosse a maior emoção de sua vida.

Não se passava um dia em que ela não pensasse em Blanche, a rainha-mãe da França, e em que não perguntasse a si mesma o que poderia fazer para perturbar a vida daquela mulher. Odiava Blanche por várias razões, e sabia que Blanche a odiava. Achava engraçado pensar que Blanche pensava tanto nela quanto ela pensava em Blanche, e que a boa e virtuosa mulher estaria pronta a colocar sorrateiramente uma dose de veneno em seu vinho, e que ela faria o mesmo com o vinho de Blanche.

Havia uma antipatia natural que as duas sentiam, de tão forte que era, sempre que estavam perto uma da outra.

Isabella vibrava com os problemas da rainha-mãe da França - e eles eram enormes. Para uma mulher tão enérgica quanto ela, não era fácil recuar e ocupar um segundo lugar depois de ter governado. Ela fora regente da França enquanto Luís era menor de idade, e agora o pequeno santo atingira uma idade em que podia governar sozinho; estava mostrando ter capacidade para a função. Ele se casara com Marguerite de Provence - uma figura bonitinha por quem estava enamorado -, para um certo desgosto de sua mãe, que sem dúvida imaginara que manteria sua influência sobre o filho. Uma situação que Isabella achava divertida, em especial quando ouvia dizer que a pobre rainhazinha vivia tremendo de medo da sogra.

Isabella espalhara muitas notícias escandalosas sobre a sua inimiga com relação a Thibaud de Champagne, e eram muitas as pessoas que acreditavam que Blanche e Thibaud tinham realmente sido amantes - e só umas poucas aumentavam o escândalo e davam a entender que Thibaud havia assassinado Luís para poder gozar mais da companhia da rainha.

Aquilo era um absurdo. Nem mesmo o maluco, romântico e insensato Thibaud seria tão louco assim. Isso, Isabella tinha de admitir. Blanche era uma mulher fria, muito cônscia de sua condição de rainha; e jamais arranjaria um amante, muito menos Thibaud de Champagne, o gordo trovador que, apesar de sua poesia - que quem conhecia dizia ter uma grande qualidade -, tinha um pouco de bufão.

Isabella rira com satisfação quando ficara sabendo que quan do Thibaud estava se apresentando na corte esmeradamente trajado, ao subir a escada para chegar à presença da rainha, ficara coberto de leite coalhado que fora lançado sobre ele de uma sacada por Robert de Artois, irmão mais moço de Luís que, indignado com o escândalo que cercava aquele homem e sua mãe, decidira fazer com que Thibaud caísse no ridículo.

A rainha ficara furiosa ao ver o seu admirador naquele estado e teria sido criado um problema sério se o seu travesso filho de quatorze anos não tivesse confessado ter provocado o incidente.

O filho fora repreendido e perdoado; mas aquilo mostrara que o escândalo estava bem espalhado e até as crianças da família real tinham conhecimento dele.

Isabella fizera bem o serviço.

Ela ansiava pelo dia em que as promessas feitas num tratado entre Hugo e Blanche assinado logo depois da morte de Luís VIII fossem cumpridas. Então, sua filha Isabella iria se casar com o filho de Blanche, Alphonse, e Hugo, o filho e herdeiro dos Lusignan, se casaria com Isabella, filha de Blanche.

Então, haveria um vínculo entre as famílias deles. Blanche seria sogra de seu filho e de sua filha, e ela seria sogra dos de Blanche.

Aquele pensamento a sustentara ao longo dos anos, e agora o momento Se aproximava.

Fora por isso que ela insistira com Hugo para que ele se aliasse ao rei da França, o que não parecia normal, já que o filho dela era o rei da Inglaterra. Mas, alegava ela, Henrique nunca deveria ter deixado que a mãe se voltasse para o lado do inimigo dele. Deveria ter sido um filho melhor, e não ter-lhe negado o dote que ela pedira.

O rei e a rainha da França, com seu filho e sua filha, tinham oferecido aos Lusignan mais do que Henrique, do outro lado do canal, jamais oferecera. Portanto, Henrique perdera a mãe - e merecera perdê-la, como Isabella gostava de dizer a Hugo.

Enquanto isso, ela aguardava aqueles casamentos reais que levariam para a sua família tanto poder e satisfação.

- Não há dúvida - dissera ela a Hugo - que já estava na hora de nosso filho estar casado. Ele já tem idade para isso. E a princesa já não é mais uma criança.

- Ouvi uns boatos a respeito de Lady Isabella - dissera Hugo. - Ela vem se revelando uma pessoa muito piedosa e expressou o desejo de entrar para um convento.

- Absurdo - bradou Isabella. - Como é que ela pode entrar para um convento, quando está noiva do nosso Hugo?

- Isso seria possível - replicou Hugo. - Não houve um noivado formal. Eu soube que a rainha Blanche está ansiosa para que a filha possa fazer o que deseja, já que não poderia ser feliz de outra maneira.

- Devemos procurar fazer com que ela seja obrigada a cumprir a sua promessa - retrucou Isabella.

- Ela mesma não fez promessa alguma, querida - lembroulhe Hugo, com humildade.

- Você me aborrece. Você não tem espírito. Aquela menina foi prometida ao nosso filho. Foi o preço que pedimos pela paz. As promessas foram feitas para ser cumpridas...

Hugo sorriu, delicado. Isabella cumpria suas promessas? Teve vontade de lembrar-lhe quantas vezes ela quebrara a palavra quando era conveniente, mas não iria fazer isso, porque se fizesse ela teria um acesso de fúria e ficaria amuada durante dias - coisa de que Hugo tinha medo, porque naquelas ocasiões ela trancava a porta do quarto para ele não entrar; e mesmo depois de todos aqueles anos, era uma situação que Hugo achava insuportável.

- Blanche vai decidir - disse ele, delicado.

Mas a ideia daquela mulher decidindo o destino deles a deixava mais zangada do que nunca.

Isabella insistiu para que Hugo mandasse emissários à corte da França para perguntar quando seria realizado o casamento entre o filho deles e a filha da França. Hugo ficou relutante. Jamais se esquecia de que era um vassalo do rei da França. Ela precisava lembrá-lo sempre de que ele poderia ser, mas ela era uma rainha, e rainha da Inglaterra, e portanto estava em pé de igualdade com a rainha da França.

Mas Hugo acabou cedendo, e seu emissário partiu.

A resposta voltou rápido. A princesa Isabella não tinha vontade de se casar. Estava pensando seriamente numa vida de retiro.

Hugo deu de ombros, num gesto de que não havia nada a fazer. O que poderia ele fazer? E tinha a certeza de que se o papa fosse chamado a opinar, sua santidade iria, muito certamente, aprovar a piedosa decisão da princesa Isabella.

- Isso é uma trama - gritou a Isabella de Hugo. - Uma trama para zombar de nós! Sou capaz de jurar que daqui a pouco vamos receber a notícia de que ela se casou com outra pessoa.

- Nada disso - disse Hugo, em tom apaziguador. - Ela sempre foi uma menina que passava longas horas em oração e meditação. Há muito tempo que se vem dizendo que ela tinha tendências para a vida religiosa.

- Você fala como se ela não tivesse sido prometida ao nosso filho.

- Não, meu amor, ela foi realmente prometida, mas se não se sente nem um pouco atraída pela vida de casada e se tiver a permissão do papa para ser dispensada do casamento, não há nada que possamos fazer.

- Nada que você possa fazer, talvez! - bradou Isabella. Não tem sido sempre assim? Você sempre não cedeu àqueles que quiseram obrigá-lo a fazer-lhes a vontade? Eu não tenho tido sempre que obrigar você a agir? Não é de admirar que Blanche pense que pode fazer o que quiser com você. Você é um molenga, Hugo de Lusignan!

Ele deu uma rara demonstração de espírito.

- Então, eu me admiro por você ter-se deixado casar comigo.

- Porque eu achava que poderia incutir algum espírito em você... o que realmente fiz. Onde estaríamos nós, se não fosse eu?

Hugo soltou um suspiro. Poderia ter dito: "Vivendo em paz, com menos inimigos à nossa volta!" Mas se conteve. Isabella estava tão magnífica na sua raiva, e Hugo sabia que sem ela a sua vida seria realmente triste.

- Nunca perdoarei Blanche e seu santo Luís por isso - murmurou ela.

Hugo não ficou demasiado perturbado, porque ao longo dos anos Isabella expressara com frequência o seu ódio pela rainha, e sabia que aquele ódio sempre fora tão intenso que nada poderia torná-lo maior do que já era.

O pior estava por vir.

Alphonse, terceiro filho de Blanche, que fora prometido a Isabella, filha de Hugo e Isabella, casou-se com Joana de Toulouse.

Aquilo era realmente zombar dos Lusignan. O tratado fora esquecido. Todos aqueles anos em que Isabella e Hugo tinham sido fiéis à corte da França - mesmo apesar de o filho de Isabella ser o rei da Inglaterra - de nada lhes valeram. Aquilo era um insulto.

Isabella esbravejava e xingava com tanta violência que a família pensou que ela fosse se machucar. Vociferava contra a espanhola Blanche e berrava que iria se vingar. Hugo tinha medo de que as invectivas dela pudessem ser divulgadas e chegar aos ouvidos da rainha.

Isabella não se importava. Nunca ficara com tanta raiva na vida. A rainha da França e seu filho se portavam como se os Lusignan fossem os mais humildes dos vassalos, sem valor algum.

- Ela vai ver - bradava Isabella. - Ela vai ver!

Quis que Hugo reunisse os nobres das vizinhanças para marcharem contra o rei, e quando ele salientou a impossibilidade disso, chamou-o de covarde.

Hugo tentou argumentar, mas Isabella não quis ouvir. Ela era uma rainha, bradava. Para aqueles que tinham uma nobreza inferior à dela, aquilo era difícil de entender. Talvez o marido estivesse disposto a ficar de lado e vê-la sendo insultada; mas ela agradecia a Deus por ter coragem suficiente para lutar pelos seus direitos.

Durante vários dias, Isabella se recusara a falar com Hugo. O filho implorava-lhe para que esquecesse a raiva. Ela vociferava contra todos. Eles não se importavam com os insultos lançados sobre ela por aquela espanhola. Será que não percebiam que o único motivo dela era envergonhar a mulher que odiava?

- vou me vingar dela! - bradou Isabella. - Um dia desses não será Blanche que estará sentada rindo de Isabella, rainha da Inglaterra, condessa de Lusignan. Isso eu lhes prometo.

Á família não queria que ela lhe prometesse coisa alguma, mas apenas que esquecesse o rancor.

Quando ela soube que Alphonse recebera o título de conde de Poitiers e se apossara de Poitou, sua fúria irrompeu com violência ainda maior.

Estava certa, agora, de que o motivo de Blanche era humilhála, pois Poitou fora território de sua família havia muitos anos. Ricardo Coração de Leão tinha sido o conde, e naquele momento, Ricardo da Cornualha, seu segundo filho, se considerava como dono dele.

- Um insulto deliberado à minha família - bradou Isabella. E se trancou no quarto, tramando vingança.

Blanche tinha todos os motivos para sentir orgulho do filho.

Depois da morte do marido, ela trabalhara unicamente para proteger o jovem Luís de seus inimigos e mante-lo no trono, mas quando Luís atingira a maioridade, ela pudera passar o poder para o filho, com plena confiança.

Blanche tinha motivos para agradecer a Deus ter tido o Luís. O filho era extremamente atraente e de aparência distinta, com a sua espessa cabeleira loura e sua excelente pele jovem, mas o que era mais encantador era aquela inerente bondade. Havia, em relação a Luís, uma crescente santidade, algo sensato e delicado. Não que ele estivesse, de forma alguma, indiferente aos prazeres mundanos.

Era elegante, orgulhava-se de usar roupas vistosas quando as ocasiões oficiais assim o exigiam; e se destacava nos jogos e gostava de distrações como a caça.

Não, Luís nada tinha de recluso. Interessava-se muito pela maneira de viver do povo e ficava muito angustiado com as condições dos pobres. Disse à mãe que estava decidido a fazer alguma coisa para melhorar aquelas condições; e gostava de entrar pela floresta com frequência, depois da missa, e levava alguns amigos com ele, mas deixava claro que qualquer pessoa, até mesmo um viajante que estivesse de passagem, poderia juntar-se ao grupo. Então, Luís lhes pedia que falassem... sobre qualquer assunto que os interessasse. Queria saber a opinião deles, e não apenas dos que frequentavam a corte.

A princípio, Blanche o recriminava. Ela se perguntava se aquilo era o comportamento de um rei. Não estaria o filho manchando a sua realeza ao se tornar tão acessível assim?

Luís sacudia a cabeça ao ouvir isso e respondia:

- É dever do rei governar o seu povo, e como poderá fazer isso com sensatez se não compreender os problemas do seu povo?

Blanche retirou sua reprovação. Muito tempo antes, soubera que aquele seu filho era um rei que exerceria um grande efeito sobre o seu país.

Luís tinha algumas das fraquezas dos moços - inclusive uma inclinação pelo sexo oposto - e ela decidiu que seria uma boa ideia casá-lo cedo, e quando lhe apresentou

essa sugestão, ele não fez objeção alguma.

Não foi difícil encontrar uma esposa para o rei da França; e quando Blanche escolheu uma princesa que se dizia ter recebido a melhor das educações e também se destacar pela beleza, Luís concordou em se casar imediatamente.

Assim, Marguerite de Provence se tornou a rainha da França, e os dois jovens se afeiçoaram um pelo outro, e quando Luís arranjou uma esposa, dedicou-se logo a uma séria vida doméstica. Nada de aventuras amorosas. Nada de roupas extravagantes; começou a se vestir com o máximo de simplicidade; tornou-se mais ponderado. Confessou à mãe que tinha duas grandes missões na vida: governar bem a França e, numa determinada época, quando não houvesse perigo em sair do país, seguir numa cruzada à Terra Santa.

Blanche replicou, dizendo que governar o país era o seu primeiro dever, e que ela acreditava que a maioiria dos reis descobria que aquilo representava um trabalho para a vida toda.

Luís concordou, mas Blanche viu os sonhos em seus olhos e ficou imaginando se o filho não seria um pouco sério demais. Ficava imaginando, também, se ele não estaria se afastando dela.

Luís se sentia inteiramente satisfeito com o casamento, e Blanche, que acreditara que o bem-estar do filho era o que ela mais queria, surprendeu-se com o próprio ressentimento. Talvez gostasse demais daquele filho. Claro que queria a felicidade dele, mas

não podia suportar perdê-lo. No entanto, à medida que sua mulher deixava

a infância para trás, Luís mais a colocava a par dos problemas; e a Blanche parecia que, mesmo tirando-se isso, eles tinham segredinhos domésticos dos quais a mãe

não participava.

Pela primeira vez na vida, Blanche se sentia só. O marido a amara muito, e a respeitara bastante. Ela o ajudara a tomar decisões; governara com ele; e quando o marido morrera, governara por Luís e, depois, com ele; agora, aquela garotinha de Provence, aos poucos mas inabalavelmente, estava tirando-a de sua posição. A situação estava se transformando em Luís e sua esposa Marguerite, e não Luís e Blanche, sua mãe.

Por ser fundamentalmente sensata, Blanche argumentava consigo mesma. Não era uma situação fora do comum. As mães que tinham amado muito os filhos homens ficavam, com frequência, magoadas com as esposas deles. O fato de, no caso deles, isso significar uma transferência de poder tornava a situação ainda mais difícil de ser suportada.

Marguerite ficou grávida, e houve grande júbilo em toda a corte. Blanche assumiu o controle e não deixava que ela acompanhasse o rei em algumas de suas viagens.

- Irei com ele, minha filha - dizia Blanche a Marguerite. Você precisa descansar. Deve cuidar muito de si mesma.

Luís sabia o que se passava. Ele e Blanche tinham sido tão chegados, que compreendia por completo os pensamentos da mãe. Ele a adorava; era grato por tudo que Blanche fizera por ele; mas a mãe precisava compreender que sua mulher tinha de estar em primeiro lugar para ele. Era uma coisa que com o tempo Luís teria de fazer com que ela compreendesse, mas iria fazer aquilo com calma, pois não queria magoar Blanche, por quem nutria muito amor e respeito.

Além do mais, Marguerite sofria muito com o tratamento que Blanche lhe dispensava. Como a maioria das pessoas, tinha por Blanche um medo respeitoso, e no princípio tentara conquistar sua aprovação. Percebia que era inútil, pois a rainha-mãe não tinha intenção de concordar com intromissões e não suportava dividir o filho com ninguém.

Marguerite ficava tão alarmada com a sua respeitável sogra, que instruiu os criados para que a avisassem quando Blanche estivesse chegando, para que tivesse tempo de fugir. Até Luís apelava para esse subterfúgio; e as coisas pioraram, pois quando Blanche ficava sob o mesmo teto, tornava difícil o casal real ficar a sós.

Blanche tinha consciência de seu egoísmo e se condenava por isso, mas não podia suportar a ideia de abrir mão do controle sobre o filho. Compreendia que amava aquele filho acima de qualquer outra pessoa; e nunca se preocupara com niguém como se preocupava com ele. Sua obsessão chegara a tal ponto que não suportava quando a atenção dele se desviava dela; queria-o só para ela; e aos poucos começou a considerar o amor dele pela esposa como a maior ameaça à sua felicidade.

Muitas vezes Blanche se perguntava se iria querer que o filho tivesse tido um casamento infeliz. Claro que não. O que queria era que ele tivesse se casado com uma mulher inexpressiva, uma muIherzinha fútil que não servisse para nada, a não ser ter filhos. Fora um erro escolher uma das princesas mais instruídas da Europa.

No devido tempo, Marguerite deu à luz um filho doentio que morreu logo depois, e a própria rainha quase morreu. Luís ficou à cabeceira da cama, a ponto de a mãe ficar tão contrariada que entrou no quarto da doente e disse-lhe que se mortificava ao vê-lo ficar ali.

- Não adianta nada, meu filho, você ficar aqui - insistiu ela. Luís se levantou e, enquanto isso, Marguerite abriu os olhos e, olhando fixamente para Blanche, disse com um espírito fora do comum:

- Infelizmente, nem morta nem viva a senhora me deixa ficar com o meu senhor.

Ela se erguera um pouco da cama, e ao pronunciar aquelas palavras caiu para trás, o rosto com uma palidez cinza, os olhos fechados, e parecia ter parado de respirar.

Houve um terror intenso naquele quarto. Luís caiu de joelhos ao lado da cama e disse baixinho:

- Marguerite, volte para mim... eu juro que vamos ficar juntos... é só você voltar.

Naqueles momentos, quando parecia que a rainha da França estava morta, Blanche sentiu um remorso esmagador.

Não suportou a visão do filho chorando ajoelhado ao lado da cama da mulher; não suportou pensar em como seria o futuro se Marguerite morresse.

Aproximou-se da cama.

- Glória a Deus - sussurrou ela, pois Marguerite ainda respirava. - Ela só teve um desmaio - bradou. - Vá procurar os médicos, Luís. Traga-os depressa. Ainda vamos salvá-la.

E salvaram. Durante a convalescença de Marguerite, era Blanche que insistia para que o filho ficasse com ela.

- Dê-me netos - disse ela a Marguerite -, e ficarei contente. Aquilo foi o mais perto que Blanche conseguiu chegar de uma expressão de contrição.

Blanche aprendera uma dura lição, pois sabia que se Marguerite tivesse morrido, Luís jamais teria voltado para o seu lado.

Ela aceitava o seu egoísmo. Enfrentou a realidade; ela o transformara no centro de sua vida; mas percebia, agora, que seu amor fora egoísta. A felicidade dele, suas vitórias, eram dela, e Blanche precisava aprender a gostar do filho estar casado com uma mulher que amava.

Liberada de sua determinação de manter o filho só para si, ela se sentia feliz como nunca estivera desde o casamento dele. Marguerite ficou logo grávida outra vez e aceitou o novo relacionamento entre as duas com uma doçura que lhe era característica.

Eram muitas as provas de que Marguerite amava Luís, e como uma boa mãe Blanche começou a exultar com a felicidade deles juntos.

Os rumores estavam sempre chegando à corte. Sempre havia inimigos, e Blanche jamais confiara nos Lusignan. Conversou sobre eles com Luís e Marguerite.

- Hugo seria um vassalo bom e leal - disse ela -, mas eu jamais confiaria em Isabella de Angoulême. É uma mulher muito má.

- Hugo é poderoso demais para não se dar importância - disse Luís. - Se quisesse, poderia causar sérios problemas.

- Hugo não tem opinião própria. É com isso que devemos nos preocupar. Temos de lidar com Isabella, podem acreditar, eu sei, pelo que aconteceu no passado, que ela é capaz de qualquer maldade.

Blanche sempre teve amigos que viajavam pelo país e lhe comunicavam o que estava acontecendo. Luís sabia disso, e ficou interessado ao saber que em Lusignan Isabella não fazia segredo de sua determinação de se vingar do rei da França e da mãe dele. Ficara muito indignada com o desejo da princesa Isabella de entrar para um convento, e o casamento de Alphonse a enfurecera ainda mais.

- Eu soube que ela está provocando agitação - disse Blanche.

- Isso não é uma situação permanente? - perguntou Luís.

- Nunca foi como agora. Creio que a situação, lá, está ficando mais perigosa. É por isso que pretendo mandar um homem até lá... Ele é de Rochelle. Não tem motivo algum para gostar deles, e creio que é leal a você. Seu dever será ouvir e comunicar o que ouvir.

- Mais um espião - disse Luís.

- É - replicou Blanche -, mais um espião.

A corte francesa deslocara-se para Saumur, em Anjou. Ali, o rei pretendia fazer uma grande exibição. Seria cara e luxuosa, embora aquele tipo de extravagância fosse estranho à sua natureza, pois a mãe dele o convencera da necessidade de fazer aquilo. Segundo ela explicara, serviria para mostrar não apenas a riqueza do rei da França, mas o seu poder.

Blanche admitia ter ficado muito perturbada pelas informações que lhe tinham sido enviadas pelo homem de Rochelle. Não podia haver dúvida de que Isabella de Angoulême estava fomentando uma agitação. Estava incutindo em Hugo a necessidade de mostrar à corte da França que eles não podiam ser humilhados. Ela estava em contato com os poderosos senhores de Saintonge e de Angoumois, e incutindo neles a necessidade de ficarem preparados para pegar em armas contra o rei, porque em breve isso seria necessário.

Luís percebeu isso e concordou com a mãe.

- Durante as cerimónias - disse ela -, seria bom Alphonse receber as homenagens dos condes dos quais ele é o suserano.

- O que vai abranger os que não sentirão o menor prazer em fazer isso - disse Luís.

- Mais uma razão para que o façam.

- A senhora acha que Isabella vai permitir que Hugo preste essa vassalagem?

- Se ficarmos vigilantes, vai - disse Blanche.

Luís olhou para a mãe com uma expressão curiosa, e ela disse:

- O nosso homem de Rochelle é um bom servidor.

 

A Vingança de Isabella

Foi ENQUANTO ISABELLA tinha ido ao seu castelo de Angoulême que surgiu a convocação para que Hugo comparecesse à corte em Saumur, a fim de prestar a vassalagem exigida dele pelo seu suserano Alphonse.

Hugo só podia se sentir aliviado por Isabella estar fora. Sabia que ela teria ficado furiosa com a convocação, mas como homem cumpridor da lei e um indivíduo que cresceu aprendendo a avaliar seus compromissos de honra e fazer sem discutir o que lhe fosse exigido quanto a isso, concluiu que devia, por uma questão de honra, obedecer à convocação.

Quando Isabella não estava, Hugo podia argumentar consigo mesmo. Isabella estava errada, mas ele compreendia a raiva dela. Era a rainha-mãe da Inglaterra e, como tal, tinha o mesmo nível da rainha-mãe da França, e para ela era humilhante exercer um papel inferior na França. Hugo não podia imaginar a vida sem Isabella. Antes de se casar com ela, sua vida não tivera emoção alguma. E jamais lamentara, por um momento sequer, aquele casamento. Havia cenas violentas, mas isso sempre haveria onde Isabella estivesse. Hugo era um homem de paz, mas se sentia apenas meio-vivo sem ela; e a verdade era que não podia viver sem ela. Uma virago ela podia ser, mas para Hugo era a mulher mais atraente do mundo.

E agora, aquela convocação. Ele sabia que tinha de obedecê-la. Era seu dever. Isabella iria ficar furiosa. Hugo teria de tentar explicar a ela que era seu dever prestar vassalagem ao seu senhor feudal, e mesmo que achasse que o título não devia ter sido dado a Alphonse, seria o mesmo que um ato de guerra recusar-se a prestar vassalagem.

Durante anos de vida com Isabella, ele aprendera que se alguma coisa tivesse de ser feita era melhor fazê-la primeiro e sofrer por isso depois, pois não fazê-la iria significar que estaria convencido a agir contra uma decisão sua; e naquele caso, um ato desses poderia lançá-lo numa guerra para a qual não estava preparado.

Depois de muita reflexão, Hugo foi até Saumur e, lá, prestou vassalagem a Alphonse.

Não havia dúvidas de que Luís e sua mãe ficaram contentes ao vê-lo. Os dois tinham temido que ele não fosse, mas graças ao homem de Rochelle, a convocação fora enviada na ausência de Isabella, o que significava que o criterioso Hugo tinha tomado uma decisão própria que, claro, era a certa.

Huga participou das justas e dos torneios, e muito embora já não fosse um jovem, portou-se o tempo todo com habilidade e dignidade.

Se nunca tivesse se casado com Isabella, pensou Blanche, todos nós deveríamos ter sido muito mais felizes. Isabella teria ficado na Inglaterra para apoquentar o filho - o que teria sido bom para nós. Era uma pena! Mas pelo menos desta vez passamos a perna nela.

Quando a comitiva real partiu, Hugo foi com ela, e como passassem por Lusignan, era natural que ficassem no castelo com grande receio, Hugo os conduziu pela entrada.

Blanche vira o homem de Rochelle entre as pessoas que foram apresentar seus respeitos ao rei.

Lady Isabella não se achava no castelo, pois ainda não voltara de Angoulême.

Blanche achava divertido. Estava realmente marcando pontos sobre a sua inimiga. E estava mostrando a Hugo como a vida seria muito mais fácil para ele sem a mulher dele.

Houve festividades no castelo. Os menestréis cantaram, e houve comemorações; e no dia seguinte, quando a comitiva real partiu, Hugo cavalgou um pouco com eles para desejar-lhes boa viagem.

Quando voltou ao castelo, ficou aflito, pois Isabella já retornara e descobrira que não apenas Hugo tinha ido a Saumur para prestar vassalagem a Alphonse, mas que a comitiva real tinha pernoitado no castelo.

A fúria tomou conta dela, e Hugo teve medo de que ela se machucasse.

Ela - uma rainha - fora insultada. Seu marido prestara vassalagem a um mero conde, e isso significava que ela ficaria em segundo lugar em relação à mulher dele... uma condessa, quando ela era uma rainha. Aquilo era insuportável. Preferia morrer.

Entrou esbaforida pelo castelo, chamando os criados para fazerem o que queria. Os móveis e a decoração dos quartos que tinham sido postos à disposição da comitiva real deveriam ser derrubados e jogados fora. Tudo o que tivessem usado deveria ter o mesmo destino. Ficou em meio ao torvelinho, os cabelos soltos - pois haviam escapado da touca - e caindo sobre os ombros numa gloriosa confusão. A cor flamejava em suas faces, parecendo aumentar a profundidade e a beleza de seus olhos violeta. Mesmo o mais humilde dos criados ficou impressionado, embora cônscio de que a fascinação que Isabella exercia brotava de algo maligno.

- Meu amor - bradou Hugo -, o que pretende fazer com essas coisas? Se precisar delas em Angoulême, eu posso comprar mais...

- Saia da frente - bradou ela. - Não quero nada de um homem que se humilha tanto e me humilha também.

- Me diga - implorou Hugo. - Diga o que quer.

- O que eu queria - berrou ela - era nunca ter vindo aqui para ser insultada dessa maneira. - Pulou para cima do cavalo, e lançando um olhar de repugnância para as coisas que tinham sido jogadas fora, saiu a galope.

Hugo ficou perplexo. Dois de seus filhos, Hugo e Guy, foram juntar-se a ele.

- Mamãe deve ter voltado para Angoulême - disse o Hugo mais moço.

- Eu não entendo... - começou o pai.

- Ela ficou furiosa quando soube o que aconteceu. Disse que iria voltar para Angoulême.

Hugo suspirou e mandou que os criados levassem os móveis de volta para o castelo e os colocassem nos antigos lugares. Depois, triste, tornou a entrar no castelo. Tentou explicar aos filhos.

- Eu não tinha outra coisa a fazer. Era meu dever prestar vassalagem ao conde de Poitiers. A honra exige que eu faça isso.

Os filhos concordaram com ele.

Mas aquilo pouco servia de consolo. O silêncio no castelo era insuportável para todos.

- Tenho de trazê-la de volta - disse Hugo. E partiu para o castelo de Angoulême.

O castelo estava fechado para ele.

- Meu senhor - disse o guarda armado -, a minha senhora deu ordens para que ninguém entre... especialmente o senhor.

Alguns homens poderiam ter entrado à força e dominado Isabella. Hugo, não. Estava muito triste. Desejou sinceramente ter-se negado a prestar vassalagem a Alphonse. Teria sido um ato de guerra, mas qualquer coisa era melhor do que Isabella abandoná-lo.

Pediu a um dos criados dela que dissesse a Isabella que seu marido estava nos porões do castelo pedindo humildemente para vê-la.

A resposta voltou:

- Minha senhora não irá recebê-lo, meu senhor. Desconsolado, Hugo esperou do lado de fora do castelo até cair a noite, e então não teve outro recurso que não se hospedar no Albergue dos Templários, que ficava perto.

No dia seguinte, voltou ao castelo. Mais recados foram enviados e mais recusas trazidas.

Três dias se passaram até que Isabella consentiu em recebê-lo.

Ela estava de pé no salão, os cabelos soltos; sua túnica de um macio veludo azul, aberta no pescoço para mostrar o magnífico colo, sobre o qual as mãos brancas estavam cruzadas quase que simbolicamente, como se estivesse se resguardando contra ele.

- Bem, meu senhor - bradou ela.

- Queridíssima esposa...

- Nada disso - interrompeu ela. - Sua queridíssima esposa, não. Você não pode me considerar dessa maneira. Não lhe sou cara. Você não deixou que eu fosse humilhada... insultada...?

- Não, não foi assim. Eu jamais permitiria isso.

- Mas permitiu. Dobrou os joelhos para os meus inimigos.

- Farei tudo o que me pedir. Escute aqui, Isabella. Volte para mim...

Ela olhou para Hugo por baixo das espessas pestanas negras.

- Bem... então você vai escutar a voz da razão? E deixe eu lhe dizer uma coisa, Hugo: se não fizer o que quero, nunca mais vou me deitar com você. Não vou querer nem vê-lo.

- Não diga essas coisas. Você é minha mulher. Sabe o que sinto por você.

- No momento, sei que você me traiu. Vai ter de me mostrar que tem alguma consideração por mim.

- Você é a única coisa pela qual tenho consideração... você é a minha vida...

Ela colocou a mão no braço de Hugo, a expressão desanuviada.

- Era o que eu pensava. Mas aquela mulher chegou... aquela espanhola. Eu gostaria que ela voltasse ao meu castelo. Eu daria um jeito dela nunca sair de lá. Daria a ela uma bebida que a faria contorcer-se em agonia... e esta agonia iria demorar bastante, para que ela não morresse sem sofrer.

- Isabella, tome cuidado... Ela soltou uma gargalhada.

- Pobre Hugo, que medo! Você não precisa ter medo se fizer o que eu digo. Vamos recuperar o que nos foi tirado. Vamos ter a espanhola Blanche de joelhos, à nossa frente, implorando...

- Isabella, vamos planejar com cuidado... com calma... Ela olhou para Hugo com os olhos brilhando.

- Então vai fazer o que quero, Hugo?

- Farei qualquer coisa por você. A única coisa que não posso suportar é nós dois nos separarmos.

Ela o tocou no rosto, delicada.

- Eu sabia que você viria me procurar, Hugo. Sabia que você iria me ajudar a me vingar.

Juntos, voltaram para Lusignan. O primeiro plano era reunir todos os barões que fossem hostis à França.

Eles os convidariam para irem ao castelo e exporiam os planos.

Isabella tinha uma ideia que decidiu não expor a eles. com o tempo eles iriam perceber que ela era mais capaz de provocar a derrota dos franceses do que qualquer um deles. Aquela briga era dela. Isso era óbvio quando se levava em consideração a humilhante subserviência de Hugo. Segundo Isabella, duas mulheres seguiam à frente de suas forças - uma delas era a rainha viúva da França, e a outra, a da Inglaterra. Blanche era sua inimiga. Era Blanche que ela queria que fosse humilhada. Blanche, que a odiara, mas não tanto quanto ela a odiara. Blanche, que conseguira fazer com que Hugo se ajoelhasse diante de seu filho... e que nem ao menos era o primogénito... ao dar a ele o título de Poitiers e, com isso, colocando-o acima do conde e da condessa de La Marche.

Ia ser uma guerra plena. Nada de escaramuças entre barões. E Isabella sabia como transformá-la nessa escala.

Aquilo era o seu segredo.

Por que não escrever ao filho? Henrique ficaria ansioso por ir em auxílio da mãe... especialmente quando ao fazê-lo poderia satisfazer uma ambição que o dominara a vida inteira.

Os barões do sul se rebelariam contra o rei e a mãe... e enquanto isso os ingleses desembarcariam e marchariam para o sul.

Luís e suas forças seriam apanhados numa manobra em forma de torquês. Derrota para a França. Triunfo para a Inglaterra, e o rei da Inglaterra teria de agradecer à mãe. Não deixaria que o filho se esquecesse disso.

Isabella escreveria a Henrique em segredo. Diria a ele quantos homens ela poderia levantar. E quando Hugo e seus amigos do sul percebessem que os ingleses iriam juntar-se a eles, Isabella iria admitir que àquela feliz situação fora provocada pela sua generosidade.

Mandou mensageiros à Inglaterra, em segredo.

O homem de Rochelle era cumpridor de seus deveres. Blanche foi informada sobre as reuniões dos barões em Lusignan e sobre os pontos essenciais das conversações que ali se realizavam.

Chegou um mensageiro ao castelo de Lusignan.

O novo conde de Poitiers estava reunindo a corte em Poitiers e mandava que todos os seus vassalos comparecessem.

Hugo ficou abalado ao receber a ordem, pois podia adivinhar qual seria a reação de Isabella.

Ela riu quando soube.

- E agora? - perguntou Hugo, temeroso.

- Vamos a Poitiers - disse Isabella.

Durante a viagem, Isabella contou a Hugo o que planejara para os dois. Foi inútil ele argumentar que aquilo seria um ato de guerra. Ela estava inflexível.

- Uma coisa eu jamais permitirei, e é que você se ajoelhe para esse homem, Hugo.

- Mas ele é meu suserano... tal como sou o suserano de tanta gente...

- Se você prestar vassalagem, isso será o equivalente a eu também prestar - declarou Isabella. - Jamais farei isso, Hugo. Se você fizer, será o fim de tudo entre nós. Irei para Angoulême, e você nunca poderá entrar no meu castelo.

- Queridíssima esposa, nós estamos juntos - respondeu Hugo.

Na cidade de Poitiers, uma residência de certa imponência, adequada ao nível deles, fora preparada. Isabella sorriu enquanto a examinava.

- O novo conde de Poitiers tem medo de nós, Hugo - disse ela. - Não quer nos ofender. Bem, vamos mostrar a ele nossos verdadeiros sentimentos...

- Tendo em vista os nossos planos, será prudente fazer isso, Isabella?

- Não vamos prestar vassalagem a ele, Hugo. Eu já disse que se você fizer isso, será o fim para nós dois.

- Eu sei, eu sei - disse Hugo, desanimado.

- Bem, você sabe o que temos de fazer. Hugo confirmou com a cabeça.

Chegou o momento em que eles deviam apresentar seus respeitos ao conde.

O cavalo de batalha de Hugo estava pronto para ele. Vestia-se como se fosse guerrear. Na garupa estava Isabella, num rico traje de veludo azul com orla de arminho, os belos cabelos soltos.

Assim, cercados pelos seus soldados armados, todos os quais levavam suas bestas como se estivessem prontos para o combate, dirigiram-se à presença do conde do Poitiers.

Houve um silêncio tenso por todos os lados. O conde olhava, pasmo. Todos os olhares estavam dirigidos para o belicoso Hugo e sua bela mulher.

Então, Hugo disse em voz alta para que todos pudessem ouvir:

- Eu poderia ter pensado, num momento de esquecimento e fraqueza, em lhe prestar vassalagem. Agora, juro que jamais serei seu vassalo. O senhor se nomeou injustamente conde de Poitiers, um título que pertence a meu enteado, conde Ricardo da Cornualha.

O conde de Poitiers lançou um grito de protesto, mas àquela altura, tendo feito a sua declaração, Hugo e Isabella e seus homens armados empurraram quem impedisse o avanço deles e voltaram a galope para o alojamento.

Lá, mandaram que seus homens tocassem fogo nas instalações num ato de desafio e para mostrar ao conde de Poitiers o desprezo que tinham por ele.

Isabella ria freneticamente enquanto eles saíam de Poitiers.

- Foi magnífico. Viu a cara daquele bobão? Ele nunca ficou tão surpreso na vida. Viu como ficou pálido quando você mencionou meu filho Ricardo?

- Isso significa guerra - disse Hugo, sério.

- O que importa? - perguntou Isabella. - Não estamos preparados? - Pensou nas mensagens que enviara à Inglaterra e a resposta que havia recebido.

Seu filho Henrique estava se preparando para atacar os franceses.

Com que então era guerra.

Os franceses estavam cientes dos preparativos que aconteciam em Lusignan e não se mostravam, em absoluto, tão despreparados quanto seus inimigos tinham acreditado.

Os barões, reunidos por Hugo e Isabella, não sabiam que Isabella dissera ao filho Henrique que eles estavam ansiosos por se colocarem sob a coroa inglesa. Eles não tinham intenção alguma de fazer isso, pensando apenas em conseguir a independência.

Isabella não ligou para isso. Cuidaria daquelas discussões quando surgissem. Tudo que importava, agora, era que Henrique viesse com os seus exércitos, e eles com os barões, levar os franceses a uma derrota ignominiosa. com isso, Blanche seria humilhada. E teria então de prestar vassalagem a Isabella.

Isabella estava na costa para receber o filho quando ele chegou.

Foi um momento emocionante para os dois. Havia anos que não se viam. O garotinho que ela deixara na Inglaterra depois de mandar coroá-lo com a sua gargantilha tornara-se um homem.

O filho ficou assombrado - Isabella percebeu logo - com a aparência de juventude da mãe. Ela sacudiu seus compridos cabelos e soltou uma gargalhada.

- Será possível? A senhora... minha mãe.

- Isso mesmo, meu belo filho, e é um prazer você ter vindo ajudar sua mãe, que a espanhola Blanche e seus filhos teriam prazer em pisotear. Agora, graças a Deus, não vai ser como eles querem... Muito pelo contrário.

Henrique declarou que iria recuperar para a Inglaterra tudo que tinha sido perdido. Que seria território Plantageneta da costa aos Pireneus.

- Assim seja - declarou Isabella.

Mas não seria.

Luís era um general brilhante, e por intermédio de seus espiões, Blanche o mantivera perfeitamente informado, de modo que estava bem preparado.

Começou se apossando de vários castelos pertencentes àqueles de cuja lealdade não tinha certeza. Os donos decidiram logo que seria mais sensato apoiar o rei da França.

Luís já estava angariando o apoio de seus súditos. Sua mãe podia ser uma estrangeira, mas era uma mulher forte. Mantivera a regência enquanto esperava com bom senso pela maioridade do filho. Muitos deles se lembravam do rei João.

Em pouco tempo ficou claro que a vitória fácil planejada por Isabella não iria acontecer.

Os franceses estavam vencendo. Os ingleses estavam com o mar às suas costas e não era fácil trazer suprimentos de além-mar.

Henrique ficou desapontado. Não encontrara o que esperara.

Chamou a atenção de Hugo para isso. Disse que fora enganado.

- Você me prometeu tantos soldados quantos eu quisesse. Você me disse que centenas de cavaleiros estavam aguardando a minha chegada para livrá-los da tirania de Luís.

- Eu não lhe disse nada disso - bradou Hugo.

- Disse, sim. Tenho suas cartas nas minhas sacolas de viagem e posso confirmar isso.

- Não pode, porque não mandei carta nenhuma. Não teria lhe dito nada mais do que a verdade.

Henrique semicerrou os olhos.

- Essas cartas foram recebidas por mim. Elas davam um retrato inteiramente falso. Eu lhe digo uma coisa: você me trouxe aqui com base em promessas falsas.

- Vossa majestade diz que recebeu mesmo essas cartas...

- Digo e provo. vou mandar buscá-las e vou mostrá-las a você.

- E assinadas com o meu nome?

- com o seu nome e o seu sinete.

- Que Deus me ajude - bradou Hugo. - Agora eu compreendo. Foi sua mãe que escreveu essas cartas. Ela usou meu nome e meu sinete.

Henrique se afastou com ar de desprezo.

- Você devia cuidar mais de sua mulher - vociferou Henrique.

Ele estava zangado e humilhado. Via a derrota à sua frente.

Tinham-lhe prometido homens, armas e apoio no país inteiro e um inimigo fraco e ineficiente. E o que foi que encontrara? Pouco apoio, poucos homens e um forte exército francês que o interceptara.

Em toda parte os franceses foram vitoriosos e, Henrique, aceitando a derrota, voltou para a Inglaterra. Blanche ficou exultante.

- O conde de La Marche está à nossa mercê - disse ao filho.

- Devemos muito ao seu espião, que nos apresentou relatórios muito claros sobre as tramas deles - respondeu Luís.

- E agora o nosso conde fanfarrão está pedindo a paz? E quanto às terras dele? - perguntou Blanche. - Pertencerão ao conde de Poitiers, sob a suserania da coroa.

- Isabella vai gostar disso! - disse Blanche, com ironia. Eu daria muito para vê-la quando receber a notícia.

Seu desejo foi satisfeito.

Despojado de suas terras, nada mais restava senão procurar o rei e pedir perdão. Havia muita coisa em jogo para que o orgulho interviesse. Luís confiscara a maior parte de suas terras, mas havia algumas sobre as quais Hugo podia ter a esperança de uma concessão, mas isso só poderia ser conseguido por uma intercessão especial do rei.

Por isso, foi necessário apresentar-se em pessoa, acompanhado da mulher e dos filhos.

Luís já era conhecido pela sua magnanimidade. Havia uma chance, disso Hugo sabia, de que se fosse suficientemente humilde e se mostrasse contrito, de Luís agir com clemência.

Isabella entendeu isso, e por mais que aquilo fosse contra a sua índole, sabia que precisava acompanhar Hugo.

Foi um momento do qual ela jamais se esqueceria.

Luís estava sentado em sua poltrona e, como Isabella receara, ao lado dele estava sua mãe. Todos poderiam ter a certeza de que Blanche seria uma espectadora da humilhação de sua inimiga.

Eles se ajoelharam diante do rei; Hugo, Isabella, e todos os membros da família. Choraram e continuaram de joelhos enquanto Hugo declarava ter sido mal assessorado.

Se Isabella sentiu uma pontada de remorso, não demonstrou. Na verdade, não estava pensando no papel que representara naquele drama miserável como pensava no ódio que sentia por aquela mulher complacente de cabelos claros.

Tal como Isabella, Blanche mantivera a aparência e ainda era bonita... tranquilamente bonita, com aquela pureza de traços e aqueles frios olhos azuis.

Ela é tudo o que não sou, pensou Isabella. A única coisa que temos em comum é o ódio.

O rei estava representando o seu papel de santo, percebeu Isabella. Ele disse que não gostava de ver grandes soldados tão humilhados, e pediu que se levantassem. Disse não guardar nenhum rancor para com Hugo; e o perdoava. Se voltasse para Lusignan e continuasse um fiel vassalo do rei, aquela revolta não ficaria registrada contra ele. O rei iria pedir que ele abrisse mão de três castelos, em garantia de sua fidelidade; uma guarnição do rei ficaria naqueles castelos, e deveria ser mantida por conta de Hugo. Mais tarde, iriam re-examinar a situação, e se o rei não tivesse motivos de reclamação, a posição poderia ser revista uma vez mais.

Hugo beijou a mão do rei e com lágrimas sinceras nos olhos agradeceu-lhe a clemência.

As duas mulheres se olharam. Blanche não podia disfarçar o triunfo que lhe ia no coração. Apesar de estar com raiva, Isabella sabia que Blanche não devia ter noção alguma de que o assassinato ia no dela.

Em silêncio, eles voltaram para Lusignan.

Lá estava o castelo, suas torres estendendo-se para o céu, os muros cinzentos sólidos como sempre.

- Teria sido tão fácil ele ter sido tirado de nós - disse Hugo, com tristeza. - O rei é generoso.

- Eles estavam preparados - bradou Isabella. - Todos os nossos planos eram do conhecimento deles. Alguém deve ter contado.

- Eles tinham espiões por todos os cantos...

- .De modo que se não fossem os espiões...

Todos os sonhos dela, todas as suas esperanças, tinham-se acabado. Mas não desistiria. Pouco lhe importava Luís com seu jeito piedoso. O inimigo dela era aquela mulher que ficou lá vendo-a se humilhar... observando-a com aqueles olhos gelados.

Ela tirara de Isabella aquilo que ela mais cobiçara: o poder.

Agora estamos reduzidos a isso, pensou ela. Meu marido me traiu. Primeiro João, e agora Hugo. Todos dois uns fracos.

Mas não faz mal. Eu não sou fraca. vou conseguir o que quero. Ela me reduziu a isto. Como poderei magoá-la tanto quanto ela me magoou? O que é que ela ama acima de tudo na Terra? A resposta irrompeu na sua cabeça: Luís.

Espiões tinham arruinado seus planos. Espiões deveriam trabalhar para ela.

Mandou chamar dois homens - ambos vilões, mas para aquela missão precisava de vilões.

- O que quero de vocês é uma tarefa delicada - disse ela.

- Uma vez cumprida, vocês vão sair às escondidas e voltar à minha presença. Depois que eu receber a notícia de que preciso, serão tão recompensados que cada um poderá construir o seu castelo e subir muito acima de sua humilde condição.

- É uma missão perigosa - disse um dos homens.

- Só se forem apanhados. Se forem espertos, será fácil. Primeiro, vão conseguir emprego nas cozinhas reais. Isso não deve ser difícil. Vão ficar sabendo, então, quais os pratos que são preparados e para quem, e quando virem um prato que seja especialmente preparado para uma certa pessoa... isso será tudo o que precisarão saber.

- Depende da pessoa.

- Vocês imaginam que eu fosse lhes oferecer uma recompensa dessas se se tratasse de um humilde cavalheiro? Se comentarem isso com qualquer pessoa... e me refiro a qualquer pessoa... vou mandar cortar-lhes a língua. Entenderam?

Os homens empalideceram. Isabella tinha uma reputação de mulher má. Acreditava-se que fosse uma feiticeira, pois uma mulher com a idade dela só podia manter a beleza se fosse uma feiticeira; e o poder que exercia sobre Hugo de Lusignan deixava todos impressionados.

- Nós entendemos, majestade - responderam eles.

- Então, segurem este pó. Ele não tem gosto e se dissolve depressa. Quando souberem que um prato especial será enviado ao rei, coloquem isto nele.

- O rei!

- Eu disse o rei. Não falem nisso com ninguém, tanto antes como depois de fazerem isso.

- Minha senhora, a senhora está pedindo muito.

- Eu sei, vou dar muitas coisas quando a notícia de que o rei morreu me for trazida.

Dispensou-os e se pôs a esperar.

Estava satisfeita com a sua vingança.

A princípio, pensara em envenenar Blanche, mas de que adiantaria? Quando muito, algumas horas de tormento antes de morrer. Não, ela queria uma vingança maior para sua inimiga. Queria privála daquilo que mais amava na Terra: seu adorado e santo Luís.

Quando Luís estivesse morto, todo o significado da vida estaria perdido para Blanche. Seu castigo seria ter de continuar vivendo sem ele.

Como era longa a demora! Como ela estava quieta! Hugo pensou: os acontecimentos a modificaram. E ele ansiava por uma vida tranquila. Será que ela realmente aprendera uma lição, que pelo menos percebera que dobrar o joelho para um homem como Luís não era humilhação?

Toda vez que chegava um mensageiro ao castelo, Isabella estava esperando por ele.

Quais as novidades? Notícias da corte?

Mas nada havia de importante.

Muitas vezes, ela ficava pensando naqueles dois vilões. Teriam ficado com medo? Teriam ido para o mais longe dela possível?

Até que ponto poderia confiar neles? E se comentassem o que ela os mandara fazer?

O que aconteceria, então? Para ela, seria o fim de tudo.

Devia ter mandado cortar-lhes a língua antes de partirem. Mas então eles jamais teriam trabalhado para ela. Poderiam ter-se vingado.

Ela se metera num plano ousado. Mas era ousada. Não era por isso que ficava tão impaciente com Hugo e todos aqueles que a cercavam?

Um dia haveria notícias.

A notícia chegou. Um mensageiro da corte. Mas não os vilões que ela enviara.

Isabella viu o mensageiro chegando. Desceu para o salão do castelo. Hugo o vira e também estava lá.

- É alguém vindo da corte - disse Hugo.

- Meu senhor, minha senhora. - O homem ficou ali com olhos arregalados e olhar fixo. Estava olhando para Isabella e havia horror e medo em seus olhos.

- Sim - disse Hugo, impaciente. - Quais as notícias da corte?

- Dois homens foram presos nas cozinhas. Isabella segurou-se na mesa para se apoiar.

- Foram descobertos colocando veneno no prato do rei.

- E então? - bradou ela.

- Foram enforcados.

Isabella sentiu ondas de alívio tomando conta dela. Então tinha fracassado, mas ninguém sabia. Mas não iria haver consolo.

- Primeiro, os dois foram torturados... foram interrogados...

- O homem olhava fixo para Isabella. - Eles citaram o seu nome, minha senhora.

O silêncio no salão pareceu durar muito tempo. Então estava acabado. Era o fim. A inimiga espanhola vencera.

Agora, nada poderia protegê-la.

Isabella arrancou a espada de Hugo e tentou se matar, mas Hugo ali estava e a espada caiu estrondosamente nas lajes de pedra.

- Isabella! - exclamou ele.

- Me larga. Isso não é da sua conta! - gritou ela.

E então ela saiu correndo do salão para os estábulos, apanhou um cavalo e foi embora.

Fontevrault

É o FIM. pensou ela. Acabou. Aqueles idiotas... serem agarrados! Se não tivessem sido agarrados... tudo estaria bem. Mas, o que fazer? Para onde ir?

Asilo. Fontevrault. Ninguém poderia apanhá-la na abadia. Nem mesmo a espanhola Blanche poderia quebrar as normas da Santa Igreja.

Era a sua única esperança, conseguir o asilo antes de a pegarem.

Continuou a cavalgar, pensando em Hugo. Ele iria buscá-la, lutar por ela, defendê-la. Será? Será que até ele iria se esquivar da pessoa que planejara o diabólico assassinato do rei que havia tão pouco tempo mostrara para com eles tanta bondade?

Estava tudo acabado. Finalmente, ela percebia isso.

Sua única esperança, agora, era Fontevrault.

Ela chegou à abadia. As freiras a receberam.

Elas iriam socorrê-la. Ali havia refúgio para todos.

Colocaram-na num quarto secreto, onde ninguém poderia alcançá-la.

- Estou fugindo - disse ela. - Cometi muitos pecados graves e quero passar meus dias em contrição.

Elas acreditaram nela. Sabiam que era a bela Isabella que tinha sido responsável por muita discórdia pelo país inteiro. Ainda não tinham sabido de sua tentativa de envenenar o rei da França.

Deixaram-na para descansar e rezar.

E ela pensou: com que então acabou dando nisso. Quando uma mulher tem de passar o resto da vida em contrição, é realmente o fim.

Sozinha, em seu quarto secreto, Isabella meditava sobre o passado. O que lhe restava, a não ser oração e contrição? Recordou a vida que tivera e ficou com medo por causa de seus pecados. Era como se a juventude cuidadosamente guardada a abandonasse e os anos que pusera de lado estivessem finalmente a alcançando.

Não havia loções para preservar sua pele macia; nenhum óleo para os cabelos; nenhuma fragrância para o corpo.

Se estivesse realmente em busca de contrição, não deveria precisar daquelas coisas.

O estranho era ela, a orgulhosa Isabella, ter chegado a esse ponto.

Para ela, não havia segurança lá fora. Se saísse dali, iriam acusála de tentar assassinar o rei. Sua inimiga espanhola não teria piedade dela.

Isabella praticamente não falava com ninguém, e tão grande era a sua melancolia, que as freiras achavam que ela ia morrer disso.

Elas lhe levavam notícias do mundo fora do convento. Isabella ficou sabendo que seu marido e seu filho mais velho tinham sido presos sob a acusação de estarem envolvidos numa tentativa de envenenar o rei.

- Oh, não, não! - exclamou ela, em voz alta. - Eles nada sabiam.

Hugo a defendera, como ela sabia que defenderia.

- Eles mentiram - bradou ele. Não houvera tentativa alguma de envenenamento em que sua mulher ou qualquer membro de sua família estivesse envolvido. Os vilões tinham mencionado o nome de sua mulher devido a acontecimentos recentes e por pensarem que sua história perversa mereceria crédito. Hugo desafiara Alphonse para um duelo, a fim de que pudesse defender a honra da esposa.

Querido e ingénuo Hugo!

Alphonse não quis lutar. Declarou que Hugo de Lusignan estava tão marcado pela traição que não iria se rebaixar ao enfrenta-lo. O Hugo mais moço se ofereceu, então, para lutar, mas sua oferta foi recusada porque, segundo se dizia, com pais daquele tipo, ele não era uma pessoa digna.

Assim, foram todos humilhados, e como Luís e Blanche acreditassem que Isabella fosse a única culpada, Hugo foi libertado e voltou para Lusignan, a fim de lamentar o seu triste destino.

Isabella não queria ver ninguém. Nada fazia com que ela saísse da solidão que escolhera.

Iria tornar-se freira e viver o resto da vida em busca de perdão para seus pecados.

Com o passar dos dias, a vontade de viver a abandonou. Não procurava outra coisa, agora, a não ser a morte.

Disse às freiras que quando acreditasse que seus pecados estivessem perdoados, se deitaria no seu catre e não se levantaria mais.

Nada lhe restava no mundo exterior. Tudo o que buscava, agora, era a morte.

Procurou-a com tanta insistência que dentro de dois anos de sua fuga de Lusignan, ela chegou.

Enterraram-na, tal como ela desejara, não na igreja, mas no cemitério comum, pois ela dissera: "Fui orgulhosa em vida, mas humilde na morte."

Assim morreu a turbulenta Isabella de Angoulême, e com sua morte Luís não viu motivos para que ele e Hugo fossem inimigos.

Ele sabia - e Blanche também - que só o excessivo amor de Hugo pela mulher fizera dele um traidor. Os dois se tornaram tão bons amigos que Hugo acompanhou Luís quando este realizou uma de suas maiores ambições: participar de uma cruzada à Terra Santa. Foi nessa cruzada que Hugo foi ferido de morte

Seis anos depois da morte de Isabella, Henrique, rei da Inglaterra, numa visita a Fontevrault, ficou chocado ao descobrir que a mãe jazia numa cova comum.

Ordenou que o corpo fosse tirado de lá e enterrado ao lado de seu avô e de sua avó, Henrique II e Eleanor de Aquitânia. Depois, mandou construir uma campa e erguer uma estátua dela numa túnica esvoaçante, presa por um cinto e com uma touca e um véu emoldurando-lhe o rosto.

- Eu me lembro da beleza dela quando eu era criança - disse ele -, e quando a vi mais tarde, mamãe estava bela como sempre. Nunca vi uma mulher tão bonita quanto minha mãe, Isabella de Angoulême.

 

 

                                                                                                    Jean Plaidy

 

 

 

                                          Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades