Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BATALHA DE ELIZABETH / Dama Beltrán
A BATALHA DE ELIZABETH / Dama Beltrán

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

Londres, residência Moore, abril de 1880.
Elizabeth desceu as escadas de sua casa prendendo a respiração. Precisava fazer o mínimo de barulho possível para não alertar sua família sobre a pequena fuga que estava prestes a fazer. Se fosse descoberta, sua mãe a puniria e seu pai faria um sermão sobre moralidade e honra. Pegou a maçaneta e olhou para dentro de sua casa. Quando partisse, ansiaria o alvoroço que suas irmãs provocavam, inclusive a companhia delas. Mas chegara a hora de encerrar uma etapa de sua vida e começar outra. Como seus pais aceitariam a proposta? Sem dúvida bem, porque o sonho deles era casar as cinco filhas com bons maridos. Archie seria. Disso não tinha dúvidas. Era o homem perfeito para ela. Além de atencioso, carinhoso e romântico, levaria à família um bom posicionamento social. Não o amava por isso. Claro que não! Seu amor não tinha nada a ver com o título que já possuía, mas com a atitude que lhe havia mostrado desde que se conheceram, um ano atrás. Cada vez que se lembrava daquele dia, seu coração tremia de excitação. Ela nunca imaginou que um homem como Archie a notaria. Até então, seus pais sempre insistiram em fazê-las entender que encontrar um marido aristocrático era impossível. No entanto, estava prestes a conseguir. Em suma, se tornaria uma condessa e a esposa mais feliz do mundo.

 


 


Fechando a porta ao sair, levantou delicadamente a saia do vestido e correu pelo jardim até chegar aos Bohman. Era o local de encontro que lhe indicou na carta. Foi tão maravilhoso que se propôs a falar sobre o futuro deles no mesmo lugar onde se beijaram pela primeira vez, não conseguiu conter as lágrimas. Emocionada e exultante, andou lentamente pelo caminho até que encontrou uma figura masculina familiar à sua frente: Archie, o amor de sua vida. O homem que lhe proporcionaria o futuro ao qual jamais imaginou estava esperando sua chegada para lhe dar a notícia que tanto desejava. Ele pediu que tivesse paciência durante os cinco meses de sua viagem. Também lhe disse para não o esquecer e continuar a amá-lo. Elizabeth atendeu a todos os seus pedidos sem esforço.

—Archie? —perguntou ao se aproximar, mesmo sabendo que não poderia ser outra pessoa.

—Eli! —respondeu virando-se para ela—. Como vai?

Elizabeth ficou imóvel, esperando que estendesse os braços para recebê-la tal como havia feito cada vez que se encontravam em segredo, mas não aconteceu. Suas mãos continuaram pregadas nas costas.

—Bem e você? —continuou falando, embora um nó se formou de repente em sua garganta.

—Não tão bem quanto você —respondeu com um leve sorriso.

—Obrigada —disse corando.

—E seus pais? Como estão suas irmãs? Anne se recuperou da morte de Dick?

O nó ficou maior. Naquele momento, quase a impedia de respirar. Algo dentro dela a advertiu de que sua vida estava prestes a ser perturbada, embora não fosse do jeito que ela esperava. No entanto, permaneceu calma. Não queria mostrar impaciência.

—Está na mesma. Não é fácil perder a pessoa que se ama —apontou olhando em seus olhos para tentar descobrir seus pensamentos.

—Eu sei —murmurou olhando para baixo.

—Como tem passado? Alcançou seu propósito? —insistiu em descobrir sem sair do lugar. Rezou para que essa mudança de tema na conversa o relaxasse e o incentivasse a pedir-lhe aquilo que ansiava ouvir.

—Sim. como bem sabe, mamãe é capaz de conseguir tudo o que se propõe —assinalou com certo halo de tristeza.

Sim, sabia. A atual condessa de Gharster conseguia tudo aquilo que se dispunha. A única coisa que ainda não tinha alcançado era separá-los, apesar de suas milhões de tentativas.

—O que está acontecendo, Archie? Por que está tão frio comigo? Por que queria me encontrar às escondidas? Eu pensei que apareceria na minha casa quando chegou. No entanto, já passaram dois dias desde que fui informada do teu regresso —finalmente deixou escapar.

—Queria falar contigo e demorei muito para encontrar as palavras certas. Eli, é imperativo que ouça a verdade da minha boca antes que a notícia se espalhe por Londres —falou com o tom de voz usado por um nobre com mais de duas décadas portando um título carregado de poder e julgamento.

Suas pernas começaram a tremer, assim como suas mãos e o queixo. O nó na garganta desapareceu porque os batimentos cardíacos eram tão fortes que o eliminaram sem dificuldade. Apesar dessa preocupação, continuou serena. Muitos casais, na hora de se comprometer, tiveram dúvidas. No entanto, precisava lhe mostrar, com sua calma, que tudo ficaria bem, que nada de ruim aconteceria com eles enquanto estivessem juntos e se amassem. Seus pais, por exemplo, foram capazes de enfrentar milhares de infortúnios com seu amor e respeito. Ela mesma os definiu como um casamento perfeito.

—Que notícia? —disse esfregando as mãos devido ao desespero.

—Isso não é fácil para mim. Eu a amo e garanto que nenhuma mulher ocupará meu coração. Mas...

—Mas? —o interrompeu levantando o queixo e segurando as lágrimas que queriam brotar.

—Minha mãe decidiu que eu deveria me casar com Lady Ripher, a filha do Barão Wesberny —explicou depois de olhar nos olhos dela.

—Bem, ambos sabemos que nunca gostou da nossa relação. Minha família sempre foi muito pouco para ela —comentou com irritação—. Mas imagino que tenha recusado, certo?

Archie deu um passo para Elizabeth e segurou-lhe as mãos. O silêncio que se formou enquanto isso acontecia lhe pareceu eterno.

—Não posso contradizê-la. Está muito doente e o médico que a visitou insistiu em que não se alterasse. Ao que parece, qualquer sobressalto causaria uma morte rápida —respondeu com tristeza.

—Meu pai pode confirmar esse diagnóstico —ofereceu rapidamente—. Sabe que é um dos melhores médicos da cidade. Suponho que o senhor Flatman poderia acompanhá-lo. Estou segura de que entre os dois buscarão o remédio adequado para eliminar essa estranha e terrível enfermidade. Não há nada melhor que ter um médico na família para lutar contra a morte—comentou, acalmando a vontade de gritar com ele que era um idiota se acreditava que sua mãe morreria por contrariá-la. Não estava ciente de que era um estratagema para conseguir o que queria?

—É tão boa —disse Archie beijando-lhe as mãos—. Sei que não mereço nem sua amizade nem sua compaixão depois de tudo.

—Depois de que? —insistiu em saber—. Os cinco meses passaram e cumpri tudo o que me pediu. Finalmente voltou como um conde e podemos ter a vida que ambos sonhamos desde que nos conhecemos.

—Eli... não torne isso mais difícil para mim, eu imploro—pediu.

—Não é difícil, é apenas determinação. Se decidir me converter em sua esposa, nada nem ninguém deve interferir na decisão que tomar —afirmou com exigência.

—Mas não tem como voltar atrás —suspirou. Logo, retirou-se de seu lado e olhou para o céu—. Antes de retornar a Londres, propus casamento a Penélope e ela aceitou. Em vinte dias, se celebrará o casamento. Essa é a notícia que eu precisava te dar.

—Archie! —exclamou assombrada—. Como foi capaz de fazer isso comigo? Esqueceu-se de seus juramentos de amor? O que acontecerá com nossos sonhos? O que acontecerá comigo?

—Eu sei, Eli. E te prometo que se pudesse voltar no tempo, jamais a teria tocado —apontou tristemente.

A teria tocado? Assim ele resumia todas as vezes que fizeram amor? Onde estavam suas ternas palavras? Em que lugar de seu coração encerrou as promessas que lhe fez cada vez que estiveram juntos? Elizabeth sentiu como perdia a energia. Se não procurasse logo um lugar para se apoiar, cairia no chão e sua humilhação aumentaria.

—Mas eu te amo, Eli. Te prometo que... —insistiu em esclarecer-lhe ao olhá-la de novo. Entretanto, não continuou falando ao ver que ela levantou uma mão para fazê-lo calar-se e se apoiava no tronco de uma árvore com a outra.

—Se realmente me ama, vamos embora. Não seríamos o primeiro casal que, depois da decisão de seus pais, fogem para Gretna Green para se casar em segredo.

—Dei-lhe a minha palavra —comentou Archie endireitando as costas e levantando peito.

—Deu a mim também —lhe recordou olhando-o com os olhos estreitados.

—Mas não é o mesmo. Se for contigo, humilharei a filha de um barão e me tornarei um pária —expos com solenidade.

—O que disse? —perguntou arregalando os olhos enquanto se voltava para ele—. Se preocupa com sua humilhação e não faz referência à minha? —gritou.

—Eli, me entenda. Você... sua família não é nobre e tenho certeza de que...

—Minha família? Acredita que vão receber a notícia com prazer? Vou envergonhá-los, Archie! Vou levá-los à ruína! —prosseguiu alterada.

—Mas eles não têm por que sabê-lo. Tenho certeza que se o mantiver em segredo ninguém o descobrirá e poderá conseguir um bom marido. Sua beleza te fará superar esse ligeiro contratempo —insistiu.

—Ligeiro contratempo? É assim que resume a minha falta de virtude? —gritou enlouquecida.

—Não se altere. Deve relaxar e assumir a notícia com estoicismo. Desde que nos conhecemos, sabíamos que isto podia ocorrer.

—Mas nunca pensei que desistiria sem lutar —asseverou olhando-o com ferocidade.

—Lutei, mas não saí vitorioso —explicou.

—Se me amasse de verdade, não estaria me dizendo essas tolices.

—Eu disse que te amo e que meu coração sempre será seu. Isso não lhe indica nada?

—Não.

Por alguns instantes, ficaram se encarando em silêncio. Elizabeth ficou triste e irritada ao encontrar em seus olhos não coragem, mas resignação. Archie aceitou o destino que sua mãe lhe propôs sem lutar por seu amor. Ou talvez não a amasse, porque se o fizesse, naquele momento partiriam numa viagem para Gretna Green para se casar. Seus pais fizeram algo semelhante quando Jovenka se opôs à união de sua neta com um gajo. No entanto, seu pai não desistiu e nem sua mãe. Esse pensamento a deixou ainda mais irritada. Tanto tempo pensando que ele era o homem de sua vida, que seria capaz de enfrentar qualquer problema para tê-la ao seu lado e descobria a terrível verdade. Uma horrível e desagradável.

—É a sua última palavra? —perguntou depois de respirar fundo.

—É o único que posso lhe dar, porque não me parece correto oferecer-lhe a posição de amante. Não acho apropriado. Eu te amo demais para te humilhar assim —disse para agradá-la.

Tudo ao seu redor ficou vermelho devido a raiva. Amante? Nisso havia se tornado? Algo estranho aconteceu em Elizabeth, algo que ela não soube definir. Sentiu uma força imensa percorrer seu corpo e sua temperatura aumentar, como se estivesse dentro de uma fogueira. Até viu as chamas subindo do chão! Era como se a terra se abrisse sob seus pés e o fogo do inferno a envolvesse e a protegesse.

—É o homem mais detestável que encontrei em minha vida. Jamais pensei que meu amor por você pudesse transformar-se em ódio em um só segundo —comentou tão enfurecida, que sua voz soou fantasmal, aterradora—. Pode ir. Recebi a notícia. Só espero que o sangue que corre em minhas veias destrua tudo o que te faz feliz. —Amaldiçoou-o no meio de um turbilhão de sentimentos esmagadores—. Virá até mim. Tenho certeza disso, mas a cada dia que implorar meu perdão, tirará um ano da sua própria vida. Ver-se-á sozinho, Archie Whatson, conde de Gharster, solitário e amargo —acrescentou antes de virar e voltar para casa.

Nunca sentiu tanto ódio por uma pessoa. Nunca usou o poder maligno de seu sangue cigano para usá-lo contra ninguém. Nunca pensou que ela era uma verdadeira Arany até que percebeu como brotava em seu interior a maldade que Jovenka tinha contra sua própria família. Mas ele e sua mãe mereciam toda a crueldade do mundo...

Elizabeth ficou parada no meio do jardim, enxugou as lágrimas do rosto com as palmas das mãos e olhou para o céu.

—Sei que está me observando e que me pede para me render ao óbvio. Bem, aqui me tem! —grito. Ajoelhou-se e colocou as mãos molhadas de lágrimas no chão. Então desenhou um círculo com as palmas das mãos abertas no chão e continuou falando—: Eu cuidarei de suas filhas e das filhas delas. Vou encher o mundo de cor enquanto meu coração e minha alma permanecerão tão escuros como esta noite. —Respirou fundo e deixou as lágrimas rolarem pelo seu rosto—. Invoco o meu sangue, aquele que sinto correr nas minhas veias. Preciso dele para destruir quem me destruiu, para matar quem me matou, para dar trevas a quem me colocou nela. Lutarei para alcançar um propósito, pisarei em todas as pessoas que se colocarem em meu caminho e irei saborear as minhas vitórias. Que viva em mim o sangue que sempre rejeitei e o único que realmente necessito. Faça fluir em meu interior, te dou meu corpo e minha alma porque nunca me pertenceram. —Pegou dois punhados de terra e jogou-os no ar—. Sua vontade é a minha.

Elizabeth permaneceu de joelhos até terminar sua oração. Então se levantou, enxugou as lágrimas do rosto com os punhos do vestido e voltou para casa com uma força sobrenatural. Quando a porta se fechou, um trovão soou e imediatamente começou a chover. Por sete dias, os habitantes de Londres não viram a luz do sol.


I


Londres, 2 de janeiro de 1884


—Chegaram? —Josh perguntou do topo da escada.

—Não—Madeleine disse depois de olhar pela janela novamente.

Estavam tão ansiosos pela visita de Mary que cada vez que se encontravam de frente, gritavam. A segunda das irmãs Moore partiu no início de abril do ano anterior para a Alemanha e voltou para apresentá-las a Kerstin, a filha do casal, que nasceu no final de junho. Não é surpreendente que todos quisessem conhecê-la e confirmar as explicações de Mary. Esta, em uma das cartas que lhes enviou, explicou que a menina tinha o físico de Philip, mas que não havia dúvida de que seu caráter era Moore. Randall chorou depois de lê-la e Sophia sentou-se em sua poltrona favorita orando à Mãe Criadora para agradecer-lhe pelo feliz nascimento.

—A espera está me matando! —Josephine bufou esfregando o rosto—. Terei tempo para pegar uma arma? Tenho certeza que vou me acalmar se sair no jardim e atirar em tudo que encontrar.

—Está de castigo —Madeleine respondeu arregalando os olhos—. Caso não se lembre, nossos pais ainda não se recuperaram de seu último incidente.

O rosto de Josh mostrou diversão quando se lembrou daquele dia. Não teria atirado na árvore para assustá-lo, se não tivesse ousado vigiar a casa como um ladrão. Todos acreditaram que se salvou graças à proteção de Morgana, mas estavam errados. Se ela quisesse matá-lo, o teria feito. Porém, após mirar em sua cabeça, virou o cano da arma em direção ao tronco e disparou. A única coisa que não sabia, até que acontecesse, era que a crosta onde a bala atingiu se dividiria e uma dúzia de pequenos estilhaços cravariam em sua bochecha direita. Ao ouvirem um grito tremendo, ao reclamar dos ferimentos, seus pais correram até o local para saber o que havia acontecido. Sophia ficou tão surpresa que seus joelhos tremeram e seu pai, depois de se desculpar um milhão de vezes, o levou até a residência para fazer um curativo. Enquanto as farpas eram removidas, ela ficou parada na porta, observando a cena e esperando encontrar uma reação furiosa. Isso não aconteceu. Seus olhos não mostravam ódio ou ressentimento, mas sim prazer por ter acessado sua casa e ouvir como seu pai lhe pedia para visitá-lo todos os dias, para verificar o estado das feridas. Isso a irritou, pois deduziu que ele havia alcançado seu propósito: chegar mais perto dela. No entanto, toda vez que ele aparecia, ela saía de casa.

—Não foi minha culpa —se defendeu—. Ele estava escondido.

—Pelo amor de Morgana, Josh! Quase deixou cego o filho do Barão de Sheiton! Sabe quais consequências teria que enfrentar?

—Pelo que sei, papai fez curativo e seus dois olhos veem perfeitamente —respondeu com desdém.

—Claro...—Madeleine suspirou cansada—. Mas se tivesse atirado na cabeça, o teria matado e papai não conhece uma medicina que possa ressuscitar os mortos —insistiu.

—Da próxima vez, ele que bata na porta, como todo mundo faz —afirmou com raiva.

—Só passeava pela rua! —ela exclamou horrorizada.

Josephine não respondeu. Ficou em silêncio para não continuar discutindo com sua irmã gêmea. Também não queria lhe explicar que Eric a espiava desde que se conheceram em Brighton. Faria centenas de perguntas que não lhe responderia. Só esperava que seu interesse por ela desaparecesse. Se não o fizesse, deduziria que o bom senso e a severa prudência de que todos falavam, eram falsos.

—Onde está Eli? —Josh perguntou para que ambas se concentrassem em outro assunto.

—Ainda não saiu de seu quarto —Madeleine respondeu triste—. Parece que as dores de cabeça perduram.

—Para o inferno! —exclamou a gêmea virando-se para o corredor—. Não vou permitir que estrague também este momento! —adicionou correndo em direção à porta do quarto.

Madeleine olhou horrorizada para a irmã. Se a tirasse de lá à força, o dia pioraria. A mãe as avisou que deveriam deixar Elizabeth em paz, que se tornara uma crisálida e que, quando decidisse sair, o faria em forma de borboleta. No entanto, Josephine insistiu em dividir esse pequeno casulo e forçá-la a metamorfose total.

—Não! —gritou subindo as escadas o mais rápido que podia—. Não lhe faça nada! —acrescentou.


Elizabeth tinha acabado de arrumar o cabelo quando ouviu os passos de alguém se aproximando de seu quarto. Soube rapidamente que era Josh, pois era a única irmã que não caminhava pela casa, mas corria. Foi até a porta, colocou a mão na maçaneta e quando a abriu, encontrou-a cara a cara.

—Vinha busca-la —disse ao vê-la.

Depois de verificar o vestido discreto, franziu a testa. Não entendia como podia usar roupas tão simples. Ela pelo menos ostentava cores bonitas em suas roupas masculinas. Mas Eli, por dois anos, exibia a aparência de uma governanta rígida e séria que contemplava o transcurso de sua juventude afogada em uma depressão sem fim.

—Já terminei —respondeu fechando a porta.

Isso foi tudo. Não acrescentou nenhuma frase para explicar seu atraso. Sua irmã teria que se conformar com essas duas palavras. Adotou uma atitude tão concisa desde o que aconteceu na residência do Conde de Burkes. Talvez porque Lorde Nordfolk tirou não apenas a pouca dignidade que lhe restara depois de Archie, mas também o vocabulário que aprendera quando criança. Engoliu em seco e caminhou pelo corredor ao lado de Josh em silêncio. De repente, Madeleine apareceu. Seu rosto mostrava medo e incerteza. Parecia tão ruim? A resposta veio olhando em um espelho no meio do corredor. Sob seus olhos, encontrou duas sombras escuras. Seu cabelo loiro mal brilhava e o vestido marrom que escolheu não era ideal para uma mulher de pele tão clara. No entanto, não se importou de parecer tão hedionda. Na verdade, estava novamente confortada. Vestir-se dessa maneira enfatizava sua rejeição à sociedade que odiava, sem usar palavras.

—Acho que acabaram de chegar —Madeleine anunciou depois de olhar para o andar baixo—. Shira está na porta e eu posso ouvir a voz do nosso pai —esclareceu.

—Finalmente! —exclamou Josephine descendo as escadas tão rápido como costumava.

—Continua com dor de cabeça? —Madeleine perguntou ao ficar sozinha.

—Sim.

—Quer me dar a mão? Posso ajudá-la a descer —ofereceu-se a pequena.

—Não! —respondeu apressadamente Elizabeth. Se a tocasse, podia transmitir-lhe a escuridão que ela escondia em seu interior e isso a danificaria.

A mais nova das Moore nasceu com duas habilidades Arany: visões e descobrir a cor da alma das pessoas. A primeira era muito divertida para todos, pois ficavam perguntando o que aconteceria no futuro. Porém, a segunda não era tão agradável, pois lhe causava uma timidez excessiva. Por isso, sempre usava luvas quando saía de casa ou se mantinha longe das pessoas. Se tocasse em uma pessoa tão sombria quanto ela, a saúde de Madeleine estaria em perigo.

—Está bem—Madeleine murmurou. Mas não saiu do seu lado. Ambas desceram lentamente, em silencio e sem desviar os olhos da entrada de sua casa.

Assim que seu pai apareceu, Philip chegou. Ao entrar no hall, olhou para cima e sorriu. Elizabeth sabia que estava se lembrando do momento em que conheceu Mary. Sua aparência surpreendente causou comoção entre as irmãs. Até Josephine lhe apontou uma arma! Mas ele não se preocupou com seu desejo de atirar nele, mas sim com os tubos de metal que Mary lhe atirou enquanto o insultava em alemão. Não presenciou a cena, pois estava arrumando as novas flores, embora tenham lhe explicado que os olhos do homem não se afastavam da segunda irmã. E assim foi. Philip se apaixonou por Mary enquanto evitava os impactos daqueles tubos.

—Bom dia senhoritas —Giesler disse a modo de saudação—. Como estão? —perguntou ao se aproximar de Madeleine, que desceu primeiro.

—Afaste-se! Deixe-me vê-las! —exclamou Mary murmurando para seu marido—. Eli! Madeleine!

Madeleine se lançou sobre ela e a abraçou com força. Emocionadas após o reencontro, não paravam de soluçar. A menina disse-lhe que havia aprendido a preparar novos pratos, que havia avançado nas aulas de piano e que muitas vezes saía de casa acompanhada por Shira. Depois de algumas palavras de encorajamento, Mary se afastou dela e olhou para as escadas. Seus olhos procuraram ansiosamente por Elizabeth, precisava descobrir como ela estava. Embora pela cara que fez quando a viu, Eli deduziu que não gostou de encontrá-la com um dos seus velhos vestidos.

—Elizabeth ? —perguntou estendendo os braços para ela. Quando se aproximou, a abraçou tão forte que não lhe permitiu respirar—. Como está se sentindo?

—Sobrevivendo —respondeu.

—É idêntica ao pai! —disse Randall ao virar-se para sua esposa e olhar de novo a sua segunda neta—. Embora pela forma de chorar, não me cabe a menor dúvida de que é uma autêntica Moore. —Depois disto, tirou os óculos e limpou as lágrimas com um lenço que tirou do bolso do seu casaco.

—Venha, Eli. Quero que conheça minha filha —comentou Mary agarrando-a pela mão e levando-a até a pequena.

Quando parou na frente da menina, a encarou por alguns segundos. Observou o contorno de seu rosto, a cor de seus olhos, a tonalidade de seu cabelo e o formato de coração de seus lábios. Na verdade, se parecia muito com o pai.

—É linda—murmurou.

De repente, descobriu que todos a olhavam com expectativa e inquietação. Como se pensassem que em algum momento lhe machucaria. Deu dois passos para trás e encontrou aqueles olhares que lhe pareceram estranhos, apesar de serem familiares. Por que a olhavam daquele jeito? Sentiam tristeza ou temor?

—Vamos para o salão diurno —Sophia disse quebrando o silêncio—. Lá estaremos mais tranquilos.

Fizeram o que sua mãe pediu. Como um grupo, entraram na sala de estar. Ao entrar, descobriram que Shira havia acendido a lareira. Um por um, se acomodaram e começaram a conversar sobre o nascimento da criança e sobre Edgar, o avô de Philip. Enquanto isso, Elizabeth decidiu se sentar na cadeira perto da janela para que pudesse lidar com o tumulto que devia enfrentar. Até aquele dia, ela era só uma agitação desordenada. No entanto, agora se definia como a sombra que oferecia uma de suas flores em um dia nublado.

—O lobo se transformou em um cordeiro manso —disse Mary referindo-se ao velho barão—. Não podem imaginar quantas promessas tivemos que fazer para voltar.

—Ainda assim, não me surpreenderia se aparecesse em Londres a qualquer momento —apontou Philip com diversão—. Desde que Kerstin nasceu, ele usa as horas do dia para vigiá-la. Por sua causa, três babás foram embora. Repreendia a todas e lhes dizia que não eram apropriadas para cuidar corretamente de sua bisneta —adicionou antes de soltar uma gargalhada.

—Sim. A última nos disse que preferia comer esterco a ficar uma hora mais em nossa casa —Mary disse sorrindo.

Naquele momento, Shira bateu na porta e todos os olhos se voltaram para aquele local da sala. Randall se levantou de seu assento, assim como o marido de Mary fez.

—Sim? —perguntou Sophia quando a governanta abriu a porta.

—Têm uma visita, senhora —disse.

—De quem se trata? —perguntou Randall.

—É o senhor Giesler —anunciou.

—Meu irmão? —Philip deixou escapar com uma mistura de surpresa e emoção.

—O senhor Martin Giesler —Shira esclareceu.

—Faça-o entrar —indicou Sophia.

A governanta se virou e voltou para o corredor. Enquanto todos esperavam com entusiasmo a chegada de Martin, Elizabeth olhou para o exterior lembrando a informação que tinha sobre ele. Não apareceu no casamento. Segundo argumentou Philip, este teve que ausentar-se de Londres duas semanas antes da cerimônia porque seu novo trabalho o reclamava. Mary acrescentou que, até a doença do marido, Martin era um famoso professor de matemática na Universidade de Oxford. Insistiu em esclarecer que, apesar de ser muito jovem, era toda uma celebridade na matéria e que não entendia o motivo pelo qual decidiu abandonar uma carreira tão próspera. Para terminar essa conversa, apontou que procurava uma residência em Londres, mas que ainda não a tinha encontrado porque era uma pessoa muito solitária e andava buscando uma casa afastada do bulício social. Apenas elogios. Isso foi o que ouviu sobre o irmão mais novo de Philip. Nem este nem sua irmã expressaram ressentimento por sua ausência durante um dia tão especial para eles. Pelo contrário. O desculparam em todo momento. No entanto, sua mãe não teve piedade dela e a obrigou a ir à igreja. Felizmente, ela pôde voltar ao seu quarto antes da festa começar. Mary entendeu, os outros... não.

—Bom dia, espero não interromper —Martin disse ao entrar na sala.

Sua voz...

Tinha ouvido mais de cem vozes masculinas, mas nenhuma delas tinha lhe causado uma sensação tão estranha. Eli ergueu as mãos até que estivessem na frente de seus olhos. Observou-as confusa ao notar um leve tremor. O medo voltava? Teria que correr para seu quarto e se proteger do mundo novamente? Seu coração começou a bater forte. Podia ouvir e sentir a pulsação latejante dentro de sua cabeça. O pânico voltou. Levantou-se muito devagar e se virou para a porta para descobrir como era o homem que a assustara. Não poderia saber. Sua família o cercou. Ouviu as exclamações entusiasmadas de Philip, as palavras amorosas de Mary, as apresentações educadas e a voz falando afetuosamente com as gêmeas. Ela olhou para a mãe em busca de ajuda. Era a única que ainda estava sentada em frente à lareira porque Kerstin ainda estava em seus braços.

—Não se atreva —Sophia murmurou, adivinhando o que pretendia fazer.

Levantou-se, pensando em mil maneiras de lidar com aquela chegada, aquela voz, aquele homem. No entanto, sua mente ficou em branco quando seus olhares se encontraram.

—Martin, quero apresentá-lo à minha irmã Elizabeth. É a terceira das Moore —comentou Mary enquanto o conduzia até ela com visível inquietude.

O céu caiu a seus pés quando o teve próximo. Era tão alto como Philip, mas não possuía sua corpulência. Seu cabelo parecia um pouco despenteado, não tinha arrumado corretamente a gravata, nem abotoado bem os botões do colete. Talvez a pressa o tenha feito esquecer o terceiro botão deste. Umas lentes redondas tentavam esconder a cor azul de seus olhos. E a barba crescendo, consequência de não ter visitado um barbeiro há várias semanas, escondia o formato de sua mandíbula. De repente, um sorriso se espalhou por seu rosto. Um tão infantil e terno que Elizabeth perdeu o fôlego.

—Elizabeth , este é Martin, o irmão mais novo de Philip —Mary comentou, estando tão perto dela que podia ouvi-la inspirar.

—Prazer em conhecê-la, Srta. Moore —disse ele—. Sua irmã me falou muito a seu respeito —acrescentou sem olhá-la, da forma como os homens sempre faziam quando a conheciam.

—Eli... Eliza... Elizabeth —respondeu levantando a mão direita muito lentamente, como se tivesse ficado dormente em algum momento de sua vida.

—Elizabeth —Martin comentou depois de pegar aquela mão e beijar nos nós dos dedos—. E você é a encarregada de cuidar do jardim, certo?

Não pode lhe responder. Havia ficado sem palavras.

—Sim —Mary rapidamente afirmou, acreditando que, a qualquer momento, sua irmã correria para seu quarto assustada—. Ama flores, certo?

—Sim —ela disse finalmente.

—Eu também, mas não sei cuidar delas —apontou esboçando outro enorme sorriso—. Embora possa ajudá-la se precisar de alguns cálculos para descobrir quais plantas ficarão mais bonitas do que outras. —Continuou divertido.

—Pedirei —ela respondeu.

Todos ficaram boquiabertos quando ela não voltou ao seu quarto, mas decidiu ficar para almoçar. Essa surpresa aumentou com o passar do tempo ao não ouvirem os passos de Elizabeth afastando-se para algum canto da casa. Até os acompanhou no chá servido no jardim. A família Moore estava tão perplexa por sua atitude que houve momentos em que o bebê chorou e não a atenderam com rapidez. Apesar de permanecer em um tímido segundo plano, seguia-os como um marinheiro avança mar adentro buscando o canto de uma sereia. Todos acreditaram que as conversas de Martin sobre as novas teorias aritméticas lhe interessaram. No entanto, Eli não prestou atenção a todas as exposições que provocaram mais de um bocejo em Josh. Ela só queria ouvir a voz doce. Porque o tom que Martin usou para falar lhe pareceu tão relaxante e prazeroso, que desejou ouvi-lo o resto de sua vida.


II


Londres, 15 de março de 1884.


Abriu os olhos e se espreguiçou lentamente. Felizmente, os pesadelos se foram e em seus sonhos só encontrou paz. Jogou o lençol de lado, sentou-se e sentiu a tranquilidade que emanava do interior da casa. Sua mãe e as gêmeas haviam partido cedo naquela manhã para a residência de Anne. Segundo seu pai, o parto estava se aproximando e nenhum dos dois estava disposto a perder o nascimento do segundo Bennett Moore.

Elizabeth colocou os pés no chão e se levantou. Antes de se encontrar com elas, precisava preparar os crisântemos para levar à floricultura. Duas semanas atrás, fez um acordo com a Sra. Spelman para vender todas as suas flores. Seu pai chamava de entretenimento e ela chamava de esperança. Enquanto caminhava até a janela para abrir as cortinas e observar o novo amanhecer, ponderou sobre a mudança em sua vida desde o retorno de Mary. Além de não ter aqueles sonhos repulsivos, recuperou forças para sair de seu quarto, de sua casa e andar pelas ruas de cabeça erguida. Não entendia, nem conseguia explicar, o motivo dessa transformação. Parecia que seu lado cigano havia ressuscitado das cinzas para encorajá-la a continuar vivendo. Seja qual fosse o motivo, se sentia feliz consigo mesma.

Pegou as cortinas com as duas mãos, puxou-as para o lado direito e olhou pela janela. Amanheceu nublado e, pelo alvoroço que observou nos galhos das árvores, ventava muito. Como se sentisse o frio lá fora, ergueu a gola da camisola. Não estava com frio. Na verdade, seu corpo havia atingido uma temperatura muito alta, como se estivesse com febre. Mas não estava doente. Era a primeira vez em sua vida que se encontrava radiante de saúde. Confusa com aquela sensação estranha, começou a se mover em direção à casa de banho. No entanto, parou quando observou um movimento fora de sua casa com o canto do olho.

Alguém, aproveitando o vento, empinava uma pipa vermelha. Mas lhe deu a impressão de que estava fora de controle, movendo-se de um lugar para outro à mercê da brisa. De repente, começou a girar em círculos e então veio em sua direção como um projétil de bala. Elizabeth fechou os olhos, com medo de imaginar o impacto que isso teria no vidro, mas os abriu quando não ouviu nada. Apoiou as mãos no parapeito da janela e a testa no vidro, tentando descobrir para onde tinha ido e a quem pertencia. Então a pipa reapareceu diante de seus olhos; desta vez, sobrevoava um pouco mais calma. Seu olhar não deixou aquele brinquedo infantil e continuou a observá-la até que se enredou no galho de uma das árvores que circundavam a antiga residência dos Bohman.

Sua curiosidade cresceu quando descobriu uma figura alta caminhando em direção a essa árvore. Era uma criança ou o pai de uma? Seriam os novos proprietários? Todos falavam sobre a venda da casa e quem seria a pessoa que a comprou. Durante os dois meses anteriores, observaram meia dúzia de homens trabalhando dentro, mas até agora não haviam descoberto a identidade de seu comprador. As costas da pessoa ficaram mais clara. Era um homem com cabelos dourados e usava a camisa com as mangas dobradas. Também descobriu que seu cabelo estava desgrenhado, como se tivesse esquecido de penteá-lo antes de sair de casa. A necessidade de saber quem era aumentou. Removeu a trava e abriu a janela. Seu cabelo loiro solto balançava com o vento. Elizabeth se inclinou até que pudesse ver o rosto de quem estava rondando o jardim. Seus olhos azuis se arregalaram para encontrar o homem tentando escalar o tronco da árvore, aquele a quem conheceu na última visita de Mary, o irmão mais novo de Philip: Martin Giesler.

Seus lábios esboçaram um grande sorriso, pois percebeu que o jovem matemático não era tão adepto subindo em árvores quanto Josephine. Martin, antes de colocar o pé na casca, fechou os olhos, como se calculasse a distância exata para não cair. Em seguida, os abria e segurava a ponta do sapato na área que achava apropriada. Demorou mais de dez minutos para se sentar no galho grosso sob a pipa. Confirmando que estava seguro, estendeu a mão, tentando tocar a linha com a ponta dos dedos. Em um piscar de olhos, Eli testemunhou o galho quebrar onde ele estava. Rapidamente, Martin se levantou, segurando o galho acima de sua cabeça enquanto suas pernas continuavam se movendo ao perderem o chão sólido. O pobrezinho parecia um macaco fazendo um show de circo. Assim que saltou para o chão, Elizabeth voltou para dentro, fechou a janela e riu alto. Ao ouvir a si mesmo, levou as mãos à boca e ficou em silêncio. Não se ouvia rir desde que aquele homem tentou fazer-lhe mal...

—Senhorita Elizabeth? —Shira perguntou atrás da porta—. Está acordada?

—Sim, pode entrar —disse enquanto se dirigia à casa de banho.

—Sua mãe e irmãs não estão em casa. Saíram algumas horas atrás —explicou enquanto esticava os lençóis.

—Eu sei —respondeu jogando água em seu rosto.

Apoiou as mãos em ambos os lados da penteadeira de cerâmica e se olhou no espelho. O brilho em seus olhos não tinha sumido. Também não encontrou as sombras escuras que os rodeavam e sua pele exalavam seu antigo brilho. Parecia que a velha Elizabeth havia voltado de um passado em que deveria ser feliz. Embora fosse apenas uma felicidade fingida, porque desde o que aconteceu com Archie, não sabia em que consistia aquela palavra.

—Sua mãe me disse que você também se reunirá com elas —a governanta continuou falando dentro do quarto.

—Mas antes tenho que arrumar os crisântemos —expôs afastando-se do toucador. Pegou um pano, secou o rosto e logo se dirigiu para Shira.

—Faz uma manhã espantosa. O vento não para e lhe será muito difícil levar um chapéu.

Estava preocupada, assim como sua família. Desde que começou a sair de casa, todos a observavam inquietos. Talvez porque se perguntassem quando voltaria a depressão em que havia permanecido durante dois anos. No entanto, isso não aconteceria. Não queria mais abraçar a escuridão, mas a luz.

—Não o levarei —respondeu ao comentário sobre o chapéu com um pequeno sorriso.

—Que vestido deseja usar?

—Um de dia. —declarou caminhando até a janela. Olhou ao redor do jardim novamente. Seus olhos procuraram a silhueta do homem que havia reconhecido, mas havia sumido. Ele e sua pipa vermelha tinham desaparecido.

—Algum em especial? —insistiu Shira.

Embora a pergunta parecesse simples, não era. Foi uma tortura tirar todos os vestidos que usou durante sua tristeza. No entanto, quando recuperou as energias, revirou o antigo guarda-roupa e descartou a ideia de usar as roupas que usava na época. Já não era mais a mulher do passado, mas outra pessoa, aquela que queria ser no futuro. Por isso, visitou a costureira que cuidava de sua família há uma década e adquiriu vários vestidos novos. Não tão austeros como os que Mary tinha, mas não eram tão antipáticos quanto os que deu às prostitutas que encontrou em Whitechapel. A nova Elizabeth mostrava uma imagem diferente onde a elegância não estava em conflito com discrição e moralidade.

—Que tal roxo? Combinará com a cor dos crisântemos que levarei para a Sra. Spelman —decidiu.

—Parece perfeito —respondeu feliz—. Não demorarei em voltar com ele —acrescentou antes de sair.

Assim que Shira saiu do quarto, olhou para fora novamente. Seus pais saberiam que Martin era o novo proprietário? E se sim, por que não lhe contaram nada? Intrigada, se afastou e foi para a casa de banho novamente. Havia se esquecido de pegar o pente e precisava pentear os cabelos antes que sua amada governanta começasse a desfazer os nós causados durante a noite. Enquanto penteava seus longos cabelos, lembrou-se do que vira no jardim. Por que Martin empinava uma pipa? Talvez sentisse falta de sua juventude. De acordo com Philip, eram muito pobres e não aproveitaram da vida que uma família aparentada com um lorde alemão deveria levar.

—Vejo que desembaraçou o cabelo —Shira comentou quando a encontrou no meio do quarto com o olhar fixo na janela.

—Sim. —Foi a única coisa que disse antes de se virar para ela e começar a se vestir.

Uma hora depois, Elizabeth saía da estufa, segurando dez enormes buquês de crisântemos. Levou muito tempo para selecionar flores com o mesmo número de pétalas e o comprimento de seus caules. Os clientes, segundo lhe disse a senhora Spelman, olhavam para esses tipos de detalhes antes de comprar. Se observassem que dentro do buquê havia um caule menor que os demais ou uma flor com menos pétalas, descartavam imediatamente ou tentavam acordar um custo menor.

Com as flores nas mãos e incapaz de ver o que estava à sua frente, ela caminhou lentamente até ficar no meio do jardim. Naquele momento ouviu passos se aproximando. Ficou nervosa e suas mãos tremiam tanto que os buquês começaram a se mover perigosamente. Ela respirou fundo para se acalmar, afastou-os um pouco do rosto e o tremor desapareceu quando descobriu quem havia entrado no seu jardim. Ele havia penteado o cabelo, colocado um colete azul claro com botões bem abotoados, uma gravata preta e uma jaqueta da mesma cor. Embora ela não tenha notado sua aparência física, mas o rosto angelical que lhe mostrava.

—Bom dia, Elizabeth. Posso ajudá-la? —perguntou Martin estendendo as mãos em sua direção.

Para ela não havia mais vento, nem nuvens cinzentas. Onde estavam?

—Senhor Giesler —disse acompanhando suas palavras um longo suspiro de alívio.

—Martin, por favor. Eu gostaria que ambos nos tratássemos pelo nome ou, pelo menos, entre nós dois usássemos nossos primeiros nomes. Lembre-se que sua segunda irmã e meu irmão estão casados —pediu esboçando um leve sorriso.

—Martin —comentou através de um sussurro.

—Posso ajudá-la? —insistiu.

—Não quero incomodar —declarou rapidamente.

—Não é nenhum incômodo —alegou enquanto pegava a metade dos ramos—. Estou feliz em ajudá-la. O que pretende fazer com tantas flores? Vai colocá-las em algum túmulo? —perguntou olhando-as intrigado.

—Eu tenho que levá-las para a floricultura da Sra. Spelman —explicou sem ser capaz de tirar os olhos dele.

—Estava carregando-os para lá? Por que não pediu uma carruagem? —ele disse olhando ao redor.

—Não é longe. Posso andar sem me cansar —Eli explicou com uma calma improvável.

—Eu a acompanho então —Martin determinou sem esperar uma recusa.

—Não vou roubar seu tempo? Com certeza tem mil coisas para fazer.

—Garanto que não tenho nada urgente e adoraria tirar meus pensamentos do trabalho por um tempo —declarou acrescentando outro sorriso ao tempo que iniciava a caminhada—. Sabia que os crisântemos são chamados em latim Chysanthemum? —perguntou ao atravessar o portão do jardim.

Sem ouvir uma resposta, se virou para a moça e a olhou estranho quando descobriu que permanecia a dois passos dele. Não disse nada sobre isso, apenas ficou ali parado até que Elizabeth percebeu que deveria estar ao seu lado.

—Não —ela respondeu finalmente.

As palavras não lhe saíam ao ficar tão desconcertada. Dois meses atrás, teria jogado as flores no chão e teria corrido para o seu quarto para se proteger. No entanto, naquele momento, não sentia a necessidade de fugir. Sua voz e a ternura que expressava ao falar a acalmavam tanto que parecia ter tomado uma taça de láudano. A esse bem-estar devia acrescentar a cortesia que lhe mostrou, pois muito poucos cavalheiros aceitavam que as mulheres caminhassem a seu mesmo nível salvo que estivessem em pleno cortejo.

—Seu gênero tem cerca de trinta espécies —prosseguiu Martin—. A família dessas flores é as Asteraceae e são nativas da Ásia e do Nordeste da Europa. Mas quando um comerciante, no ano de 1600, trouxe as sementes para Londres, eles povoaram os jardins das residências mais importantes. Esta classe é precisamente um símbolo de riqueza, paz e felicidade —continuou com a explicação. —Por quanto você planeja vendê-las?

Elizabeth piscou várias vezes, confusa pela atitude do homem e pela conversa que mantinham. Continuava sem observá-la como mulher. Todo o seu interesse se concentrava em explicar-lhe a história dessas flores e a possível venda destas. Esse comportamento tão inocente a fez sorrir e lembrou que aquele homem, visto que não tinha nada de rapaz, esteve brincando com uma pipa.

—Foi uma indelicadeza perguntar-lhe o preço? —comentou Martin ao não ouvir uma resposta.

—Não —Eli disse sem tirar o sorriso dos lábios—. Não foi. Mas é a Sra. Spelman quem os vende.

—Não perguntou qual será o seu lucro? —ele estalou em espanto—. Tem que calcular a porcentagem desses retornos. Lembre-se de que deve exceder as despesas de criá-los. O tempo que gastou com eles é precioso, Elizabeth. Se o investimento for maior que o lucro, seria aconselhável trocar de florista—, disse ele em tom professoral, como se a repreendesse.

Naquele momento, ela deu uma gargalhada. Era o homem mais estranho de toda a Inglaterra! Pensou, antes de conhecê-lo, que sua irmã Mary era a única pessoa estranha no mundo. No entanto, havia encontrado outro ser assim. Talvez fosse por isso que se sentia tão calma. Sua falta de interesse por ela a relaxou.

—Se a aborreço, podemos mudar o assunto da nossa conversa —comentou Martin corando.

Apoiou as flores no peito e ergueu os óculos com a mão direita para vê-la melhor. Estava sorrindo e, naquele momento, a beleza de seu rosto aumentou. Qualquer homem que a observasse ficaria apaixonado pela jovem. Por esse motivo, não entendia os comentários que seu irmão fez sobre a terceira das irmãs Moore. Ela vinha sofrendo de uma depressão terrível, segundo lhe explicou, desde que voltou da residência de Logan em Brighton. A teoria que sua família estava considerando era que a jovem sempre quis se casar com um aristocrata e ao ver suas irmãs mais velhas conseguirem o que ela não conseguiu, a entristeceu a ponto de ansiar pela própria morte. Mas para ele não parecia uma moça triste, mas tímida. Quantos anos tinha? Talvez o motivo de sua preocupação fosse se tornar uma solteirona. Se essa era a razão pela qual agia dessa forma, deveria tirá-la da cabeça. Qualquer homem estaria mais do que disposto a se casar com uma mulher bonita e inteligente. Porque, em seu entendimento, um dos requisitos para o cultivo de todos os tipos de plantas era ser muito perspicaz.

—Por quanto acha que deveriam ser vendidos? —Elizabeth acabou perguntando após um longo silêncio.

—Quantas hastes tem cada buquê? —Martin respondeu com entusiasmo.

—Doze.

—Quanto tempo leva para crescer?

—Plantei em novembro e brotam agora, em março —Eli respondeu sem tirar os olhos do rosto de Martin.

Pela forma como fixava os olhos num ponto fixo e movia os lábios sem dizer nada, deduziu que estava avaliando os resultados. Essa abstração do mundo que o rodeava, a despreocupação e o fato de que não fosse capaz de prestar atenção às jovens que passavam pela calçada oposta e o olhavam contrariadas, a fez sorrir de novo.

—Examinando as inflorescências de sua forma, flores tubulares concêntricas alongadas, noto que são anêmonas. Difícil de crescer na umidade de Londres. Embora estejam bem protegidas na estufa. O vidro, se for de espessura normal, manterá o...

—Martín! —exclamou segurando outra gargalhada —Desculpe, não consigo parar minha mente quando começa a calcular —comentou corando novamente—. Embora eu ache que cinco xelins por buquê é uma quantia adequada—concluiu olhando para frente.

—Que lucro terei com esses cinco xelins se me der apenas dez por cento da venda? —Sabia que a resposta seria extensa, mas no fundo estava se divertindo com ele. Tinha dito que era um homem estranho? Pois devia acrescentar a essa descrição o adjetivo de encantador.

—Pagam-lhe os ramalhetes por semana ou por mês? Quantos lhes entregou? —Martin continuou procurando a solução.

Elizabeth observou-o por alguns segundos e, por alguma estranha razão, sentiu-se feliz e calma enquanto se encontrava não apenas na rua, mas caminhando ao lado de um homem. Há algum tempo, teria chorado se não tivesse tido sucesso. Atualmente, pedia apenas para caminhar com alguém tão adorável como Martin. Porque não era um perigo para ela. Porque a fazia rir. Porque não havia notado sua beleza. Porque não prestava atenção a coisas irrelevantes. Essas conclusões a deixaram perplexa e a assustaram na mesma proporção.

—Chegamos —disse enquanto os dois pararam na frente da floricultura. Como imaginou, a solução sobre seus ganhos ainda estava em sua cabeça.

—Certo —Martin respondeu, afastando rapidamente seus pensamentos—. Mas eu não te dei a resposta.

—Talvez porque as quantidades que lhe passei não eram as certas—considerou olhando as lentes, que tinham ficado embaçadas pela umidade das plantas. Como tinha sido capaz de andar sem ver o que estava à sua frente? Outra questão que, se formulada, temia não encontrar uma resposta imediata.

—Se desejar, anote em um caderno os buquês que entrega, o custo final destes e envie para mim. Esta semana não poderei deixar minha nova casa porque terão que entregar os móveis que comprei. Portanto, posso ajudá-la com esses cálculos—expôs Martin entregando-lhe os buquês.

—Quando comprou a residência dos Bohman? —Instantaneamente, se arrependeu de fazer a pergunta. Não era apropriado falar com ele com tanta confiança, embora, como havia dito, fossem quase uma família.

—Faz dois meses. Mas até ontem não pude sair da pensão onde me hospedava porque as obras não haviam terminado. De qualquer forma, também não teria aparecido antes. O dono da hospedaria não quis devolver a caução que me pediu quando cheguei e tive que usar e usufruir daquele quarto até sábado —ele disse com bastante raiva.

Elizabeth riu de novo, embora desta vez as flores escondessem o riso.

—Está bem, os levarei —declarou sem pensar.

—Perfeito. Nos vemos esta tarde. Estarei esperando por volta das cinco para o chá —alegou dando um passo para trás—. Se não se importa, peça à sua irmã Madeleine que envie os bolos de chocolate que me prometeu. Estou sonhando com eles há dias.

Eli arregalou os olhos. Não se surpreendeu com o fato de ele ter pedido os doces, pois ela mesma ouviu Maddy prometer-lhe uma bandeja quando o viu a apreciá-los. O que realmente a deixou atordoada foi a facilidade com que ele lhe propunha um encontro a sós sem lhe chamar assim. Mas estaria ela preparada para ficar com um homem sem ninguém que os vigiasse? Olhou-o intrigada, e seu coração continuou a bater em um ritmo lento. Não precisa temê-lo. Era Martin, o matemático, que falou o tempo todo sobre cálculos e frações de uma libra. Certamente o resto da tarde seria tão entretido com os dados que esqueceria que ela estava presente.

—Feito —afirmou Eli finalmente.

—Então a esperarei. Embora deva avisar que já estou impaciente por sua chegada. —Observando a moça piscar, ele rapidamente esclareceu—. Estava me referindo aos bolos. Como te disse, fico com água na boca quando me lembro deles.

Naquele momento, Elizabeth pensou se deveria se ofender por ser substituída por alguns doces, mas parou de pensar nisso quando seus olhos traiçoeiros fixaram a boca de Martin.

—Às cinco —apontou, virando-se rapidamente para não notar mais características de seu rosto.

—Às cinco —Martin repetiu antes de voltar para casa pensando sobre a probabilidade do lucro e lembrando a doçura dos bolinhos.


III


Depois que Elizabeth entregou as flores a Sra. Spelman, e de anotar em uma página as vendas feitas desde que começaram a trabalhar, caminhou em direção à casa de Anne. Durante o longo trajeto, só pensou em Martin e no estranho passeio. Concluiu que estava confortável, que gostou da conversa e que ficou surpresa ao ouvi-lo falar sobre flores. Isso seria importante para um matemático? Pelo que se lembrava, durante as intermináveis horas que passou com o professor que seus pais contrataram quando eram crianças, encontrou apenas números e cálculos enfadonhos. Talvez Martin os tenha estudado porque os achou interessantes. Seja qual for o motivo, ficou surpresa com seu conhecimento e presumiu que tinha se divertido com um homem muito inteligente. «Aqueles de nós que usam a cabeça para algo mais do que para usar chapéus bonitos, não prestam atenção a detalhes absurdos. Nós nos concentramos nas coisas importantes da vida e esquecemos o que não é», se lembrou das palavras de Mary. E estava certa. Martin, em nenhum momento, a olhou com expectativa ou desejo, como os homens faziam no passado, ele estava absorto nos crisântemos e nos benefícios que poderiam lhe trazer.

Quando chegou à residência de sua irmã mais velha, as encontrou na sala da manhã. Conversaram sobre o crescimento do pequeno Roger e como a chegada de um irmão o afetaria. Em nenhum momento lhe perguntaram por que decidiu usar o vestido lilás ou por que sorria constantemente. Embora tenha notado que sua mãe a olhava com desconfiança. Nada escapava à astuta Sophia Arany...

—Quantos buquês entregou à Sra. Spelman hoje? —Anne perguntou depois de resolver a questão sobre as terríveis dores que sofria com a gravidez.

—Dez com doze hastes cada —Elizabeth respondeu virando-se para ela.

—Todos os que levou na semana passada foram vendidos? —disse Anne surpresa.

—Sim. Este tempo é muito apropriado para a venda dos crisântemos. Embora me entristece saber que esses bonitos ramos terminarão sobre várias lápides. Não merecem um final tão triste —garantiu.

—Tudo tem uma função nesta vida e os teus crisântemos são as flores mais adequadas para embelezar os túmulos dos nossos entes queridos —expressou Sophia levantando-se para depositar a xícara de chá sobre a mesinha baixa. Logo, sem desviar o olhar de sua terceira filha, voltou à poltrona.

Elizabeth não disse nada, porque no momento não estava interessada em falar sobre onde suas flores iriam parar, mas em descobrir quando poderia pedir a Madeleine para fazer os bolinhos que prometeu a Martin. Por alguma razão estranha, não queria aparecer sem eles. Lembrando-se dos gestos que fazia ao mencioná-los, voltou a sorrir. Estava tão absorta nessa imagem mental engraçada que não percebeu que todos estavam olhando-a perplexos. No entanto, ninguém disse nada sobre isso. Foi ela quem finalmente falou.

—Maddy, como se chamam os bolos de chocolate que fez para a Mary? —perguntou para romper o silêncio que se produziu depois de seu inesperado riso.

—Bolinhos —respondeu a menina—. Por que diz isso?

—Terá tempo para preparar alguns? Preciso para esta tarde —explicou.

—Sim. Só preciso de algumas horas e os terá na mesa.

—Um par horas? —repetiu Eli preocupada.

—Uma para prepará-los e outra para que esfriem. Se a capa de chocolate range ao mordê-la ficarão mais saborosos —a menina explicou.

—Agora deu para comer doces? —perguntou Anne zombeteiramente—. Lembre-se que se comer demais perderá sua bela silhueta—acrescentou.

—Não são para mim —declarou olhando para a irmã mais velha.

—Não? Então, para quem são? —sua mãe interveio.

Elizabeth se mexeu desconfortavelmente na cadeira. Estava hesitante sobre o que dizer sobre isso. Se dissesse que havia falado com Martin e que se encontraria com naquela tarde, iniciariam um interrogatório implacável. Mas também não queria mentir, já que acabariam sabendo a verdade quando deixasse sua casa e fosse para a de Martin.

—Como bem sabe, por alguns meses vimos trabalhadores na residência dos Bohman —decidiu começar o assunto desde o início.

—Sim, seu pai me disse que o novo proprietário decidiu modernizar aquela residência, incluindo eletricidade e banheiros com água quente —expressou sua mãe—. Mas ainda não sabemos quem a comprou —acrescentou olhando para sua filha mais nova, que observava Eli sem piscar os olhos.

—Quando saí de casa descobri quem o fez —ela disse alisando as dobras da saia do vestido.

—Quem é? —Josh interveio com expectativa—. Alguém que conhecemos?

—Sim —respondeu abaixando a cabeça—. É Martin Giesler, irmão de Philip.

Eli não notou a surpresa que os rostos de sua família expressavam, pois ficava olhando para o tecido do seu vestido. Se o tivesse, teria ficado nervosa. Esses quatro pares de olhos de diferentes cores e formas expressavam não só espanto, mas também esperança. Porque naquele momento, todos se lembraram da previsão que Madeleine fez anos atrás. Até a menina ouviu suas palavras dentro de sua cabeça novamente: «Só pude ver que o homem que espera aparecerá pelo caminho que une nossa casa à dos Bohman. Não posso te confirmar se é um familiar por casamento ou parente de alguém que logo conheceremos, mas estou segura de que será a pessoa com quem se casará».

—Quem lhe deu a notícia? —perguntou Sophia intrigada.

—ele mesmo —revelou levantando lentamente o rosto—. Eu o encontrei em nosso jardim ao sair da estufa com os buquês.

—Isso é bom, certo? —Apontou Josh—. Quer dizer, é uma boa notícia para a família. Nenhum de nós gostaria de ter um velho mesquinho como nosso vizinho.

—Especialmente se perfurar os troncos de suas árvores com balas—Anne comentou tentando não expressar a emoção que sentiu após a informação.

—Sempre acerto em meus tiros! —se defendeu Josh.

—Felizmente, Lorde Sheiton não pode dizer o mesmo —continuou a mais velha.

De repente, a conversa sobre Martin foi esquecida. Todos começaram um acalorado debate sobre o que aconteceu ao jovem Cooper e o infeliz incidente. Sophia lembrou à filha que ainda estava de castigo e que seu pai ordenou que ficasse em casa sempre que o menino aparecesse. Anne não parou de rir e Madeleine ficou quieta, observando Elizabeth com carinho. Se sua visão fosse verdadeira, a linda borboleta que sua mãe mencionou meses atrás finalmente apareceria.

—Nós devemos ir —disse a menor—. Se tenho que preparar esses bolos, não devo demorar.

—Estou de acordo —Sophia apoiou-a levantando-se.

—Para quem são os doces? —Anne perguntou enquanto tentava se levantar do dela.

—Para Martin —respondeu Elizabeth alisando as rugas que tinha seu vestido na parte de trás—. Prometi visitá-lo esta tarde por volta das cinco. Ele quer revisar as vendas dos buquês e calcular os lucros que vou obter.

—O que bolos têm a ver com números? —Josh deixou escapar, ainda zangada com a nova repreensão de sua mãe.

—ele me pediu para lembrar Madeleine de sua promessa e, como há tempo, parece uma boa ideia lhe oferecer como um presente de boas-vindas. —Esclareceu Eli.

—Pode levá-los outro dia se hoje não for possível —continuou Josh. Comentário que causou uma leve dor em seu braço quando Sophia o beliscou—. Monstra! Porque me machucou? Estava dando outra alternativa! Ouviram Madeleine e ela disse que... Aí! —ela exclamou enquanto era beliscada novamente.

—Vamos embora antes que arranque um braço desta inconsciente —Sophia disse olhando para sua quarta filha como se quisesse matá-la—. Se Elizabeth precisa desses bolinhos, ela os terá.

—Posso ajudá-la se quiser —Eli ofereceu a Madeleine—. Embora não seja tão especialista quanto você, poderia me explicar como são feitos.

A oferta deixou todos sem palavras. Desde quando a terceira Moore entrava na cozinha? Desde quando decidiu manchar as mãos e roupas com farinha?

A nova vida de Elizabeth estava ficando cada vez mais interessante...


—Acha que meia dúzia será o suficiente? —Madeleine perguntou a sua irmã enquanto ela misturava a farinha com os ovos.

—Se fizer mais alguns, poderá salvá-los para outra hora. Embora tenha muito medo de que coma todos em menos de uma hora e amanhã venha para nossa casa para que papai possa aliviar suas dores de estômago —respondeu esboçando um sorriso enquanto contava as colheres de pó de cacau que sua irmã tinha pedido.

—Poderia adicionar menos melaço. Assim não sofrerá uma indigestão —Madeleine disse antes de dar uma risada.

Nunca pensou que fazer doces seria tão divertido. Além de passar um tempo maravilhoso com sua irmãzinha e ouvi-la falar sobre os ingredientes e como são feitos, ficou emocionada ao saber que o que estava preparando deixaria uma pessoa feliz. Estava tão envolvida no preparo que não percebeu as manchas em seu vestido, ou como havia enchido o rosto e os cabelos de farinha, ou a dor que sentia nas mãos ao amassar a massa com uma enorme colher de pau. Só pensava na cara que Martin faria quando comesse. Logicamente, evitaria falar sobre sua participação neles. Não queria fazê-lo pensar em nada que pudesse deixá-lo desconfortável. Embora receasse que muito poucas coisas pudessem incomodar Martin, já que não era um homem que reparasse em detalhes tão simples. Se ela o fizesse carinhosamente, poderia acontecer.

—Pode me dizer como uma conversa sobre a compra de sua casa terminou em meus bolos? —perguntou Madeleine uma vez que colocou a forma sobre a armação do fogo.

—Não sei —Eli comentou sentado em uma cadeira perto do forno para vigiar os doces—. Sua mente é tão imprevisível quanto a de Mary —continuou esboçando um breve sorriso. —Só posso dizer que a conversa começou com os benefícios nas vendas das minhas flores. Que durante o caminho não parou de falar sobre os crisântemos e que, ao ficar em frente à floricultura da senhora Spelman, me pediu que fosse a sua casa com os números exatos das compras. Em seguida, me disse para lembrá-la que tinha lhe prometido alguns doces e se eu poderia levá-los.

—Se sentiu tranquila ao seu lado? —soltou sem pensar a mais nova das Moore.

A pergunta a fez desviar o olhar dos bolos e fixá-lo em sua irmã. Não lhe pareceu estranho que a fizesse, pois nem ela mesma entendia o motivo pelo qual não queria afastar-se dele inclusive antes que lhe falasse. Mas a verdade é que estava tão confortável que esqueceu tudo o que lhe aconteceu no passado.

—Sim —respondeu depois de pensar—. Por estranho que pareça, Martin me traz uma paz que nunca tive —acrescentou olhando de novo para os doces—. Talvez seja o fato de que não me olhe como mulher, mas como a irmã da esposa de Philip.

—Compreendo —comentou Madeleine.

E era verdade que a entendia. Embora Eli não se lembrasse do que previu, sabia que quando o homem que Morgana tinha escolhido para ela chegasse, a sua vida mudaria para melhor. No entanto, não era o momento certo para lembrá-la de sua previsão. O mais sensato seria que Eli fosse descobrindo-o pouco a pouco para que não se assustasse.

—Quando estarão prontos? —Elizabeth perguntou quando os bolinhos começaram a crescer.

—Vamos dar-lhes mais alguns minutos. A massa do interior deve ser assada, caso contrário, só comerá uma massa crua —explicou Maddy.

O tempo que lhe pediu foi eterno. Talvez porque não deixava de pensar em como enfrentar a situação que havia criado com Martin. Por um lado, estava ansiosa por vê-lo. Por outro, começava a notar certa angústia inquietante em seu estômago. Olhou de lado a sua irmã e se surpreendeu ao observar em seu rosto tranquilidade. Não havia censura ou confusão nos olhos de Madeleine, mas algo que ainda não sabia decifrar. Esfregou as mãos, como se estivesse com frio, mas nada mais longe da realidade. Desde o regresso de Mary, seu sangue fervia, provocando-lhe uns calores inexplicáveis.

—Pode cuidar deles? —disse se levantando. —Preciso descansar um pouco.

—Claro. Não tenho nada para fazer até que Shira esteja pronta para fazer o jantar. —Madeleine comentou com aparente calma.

—Obrigada —sussurrou Elizabeth antes de sair.

Precisava de um tempo a sós para pensar no que estava prestes a fazer. A confusão se apossava dela de novo. Talvez tivesse aceitado muito rápido a proposta de Martin. Mas parecia tão inocente que não percebeu as consequências disso. Se aparecesse em sua casa, sua família poderia especular sobre as razões de sua amizade. Não havia nenhuma razão senão a de averiguar quanto ganharia. Ele poderia ajudá-la com o projeto que ela idealizou semanas atrás. Isso consistia em economizar o suficiente para sair de casa e começar uma nova vida. Alcançou uma idade em que devia assumir sua solteirice, mas nunca aceitaria a bondade de seus pais.

Ao chegar ao quarto, caminhou diretamente para a janela. Sentou-se no peitoril e olhou para a nova casa de Martin. A dúvida sobre o que devia fazer persistia. Sua cabeça lhe indicava que não devia ir, mas seu coração opinava de maneira diferente. Dobrou os joelhos e abraçou-os. A visão de Madeleine sobre seu futuro falava do caminho dos Bohman. Segundo a pequena, nele apareceria o homem de sua vida. No entanto, sua irmã não calculou bem o tempo. Era certo que ali estaria um cavalheiro esperando-a, mas não se tratava de Martin, mas de Archie. Pois naquele lugar se encontravam escondidos. Foi também lá que ele anunciou que a abandonava para se casar com outra mulher. Pela primeira vez, Madeleine estava errada em suas previsões...

—Entre —respondeu quando ouviu alguém bater à porta.

—Posso entrar? —lhe perguntou sua mãe.

—Claro —respondeu afastando-se da janela—. O que está acontecendo?

—Nada. Fui procurá-la na cozinha e Madeleine me disse que subiu para o quarto para descansar. Queria confirmar que estava bem e que as dores de cabeça não voltaram —explicou caminhando em direção a ela.

—Estou bem —lhe garantiu.

—Fico feliz —disse sentando-se aos pés da cama sem deixar de olhá-la.

Por alguns segundos, Elizabeth pensou em conversar com a mãe sobre a polêmica que a estava incomodando. Talvez porque fosse a única pessoa que poderia entendê-la. Apesar de sua insistência em negar o sangue Arany, havia concluído que ela e Madeleine eram as mais ciganas de todas.

—Podemos conversar um pouco? —pediu Sophia.

—Sobre o quê? —Eli soltou dando vários passos para trás até que suas nádegas tocaram o parapeito da janela. Em seguida, sentou-se sobre esta e estendeu as mãos pela saia de seu vestido.

—Sobre suas flores —a mãe apontou desconfiada.

—Minhas flores? —ela estalou em espanto.

—O que planeja fazer com elas? —insistiu.

—Vendê-las —Eli comentou sem diminuir seu espanto.

—E o que pretende fazer com os lucros delas? —Olhando para o rosto de sua filha, ela acrescentou—. Não entenda mal minhas perguntas, Elizabeth. Quero que entenda que não me importo com o que fará com o dinheiro que receberá, tem idade suficiente para administrar seus bens.

—Então, por que me faz essas perguntas? —retrucou defensivamente.

—Quero dizer que acho uma ótima ideia que peça ao Martin para informá-la sobre os lucros e o investimento disso. Segundo Mary, ele é um homem muito inteligente e de bom coração.

Isso sim que era uma surpresa! Tinha ponderado mil respostas diferentes sobre a venda de suas flores como, por exemplo, que não devia continuar com esse projeto porque as pessoas pensariam que os Moore tinham que recorrer à ajuda de sua filha para aumentar a economia familiar. Entretanto, não considerou essa. Sua mãe estava orgulhosa dela? Isso sim que seria um milagre. Pois mereceu todas as reprovações e punições passadas. Mas desde o que aconteceu com Archie, ficou tão obcecada em se casar com um aristocrata que se esqueceu do mais importante: sua família. Não pensou sobre a repercussão social que teriam seus atos nem as fofocas que causariam. Por isso sua mãe ter se comportado como uma tirana. Tentava fazê-la entender com as repreensões, que sua atitude não era a correta. Antes não o via daquela maneira. Agora, não só a compreendia, mas sentia-se uma miserável por não lhe ter dado atenção quando lhe falou do que poderia lhe acontecer se perdurasse essa atitude libertina. Dois anos. Sua penitência por não a ter escutado durou dois malditos anos. Mas a antiga Elizabeth não voltaria mais. Aquela que agora acordava todas as manhãs e se deitava todas as noites era muito diferente. Entendia suas limitações e também suas habilidades. Essa consciência a ajudaria a superar o novo futuro escrito para ela.

—Não lhe parece ruim que me reúna com Martin em sua casa sem companhia? —perguntou estreitando os olhos.

—Devo me preocupar? —respondeu levantando-se.

—Não, na verdade não —assegurou esboçando um pequeno sorriso.

—Caso ainda não tenha descoberto, Martin só é capaz de observar o mundo por meio de milhões de cálculos aritméticos. —Expôs enquanto se dirigia para a porta—. Pode ter a mulher mais bonita de Londres à sua frente e não ver além da determinação mental de descobrir quantas palavras se pode expressar em um minuto.

Essa descrição perfeita sobre ele a fez rir. Sua mãe estava absolutamente certa e isso que não o tinha visto ao amanhecer tentando empinar pipa. Martin Giesler não era um homem perigoso para ela nem para ninguém.

—Estará preparada para as cinco? —Sophia queria saber antes de deixar o quarto.

—Sim —respondeu Elizabeth.

—Bem. Se precisar de algo, me encontrará na sala de costura. comecei a bordar o enxoval de Josephine —explicou.

—De Josephine? Por acaso tem esperança de que encontrará um marido? —soltou divertida.

—Tenho esperança que todas as minhas filhas encontrem —garantiu antes de fechar a porta.


IV


Com a bandeja de doces em uma mão e a pasta na outra, Elizabeth saiu de sua casa e se dirigiu para o caminho. Tinham passado algo mais de quatro anos desde a última vez que andou por ele. Naquele tempo, percorreu-o com a esperança de encontrar o homem que amava e voltou não só odiando-o, mas invocando o seu sangue cigano para que todos os que lhe causaram dor padecessem com a mesma intensidade. Foi uma tolice fazer aquele juramento, pois só produziu mais escuridão a sua alma abatida.

Tal como Archie havia lhe dito, a notícia sobre o seu futuro casamento espalhou-se rapidamente pela cidade. Todas as pessoas falavam do novo casal e das vantagens que o barão teria ao transformar a sua única filha numa condessa. Apesar de tudo, teve a ilusão de que no último momento ele mudaria de opinião. Por esse motivo, fugiu de sua casa e se apresentou na igreja onde se celebrava o enlace. Se durante os dias anteriores acreditou que já não lhe restavam lágrimas, ali descobriu que não era verdade. Tinha tantas que molhou as lapelas de seu casaco ao observar como Archie tomava a mão de Penélope para lhe pôr o anel e lhe dava um beijo na bochecha ao convertê-la em sua esposa. Foi a primeira grande tragédia que sofreu na vida. Voltou tão desanimada que passou dois dias em seu quarto fingindo uma doença que não tinha. Como pôde ser tão tola? Como não foi capaz de entender que Archie não a amava de verdade? Porque se o tivesse feito, seria ela quem estaria usando a aliança.

Cheia de ódio por ter passado quase toda a sua juventude procurando algo que não lhe trouxe felicidade, mas uma grande desgraça, bateu à porta com tanta força que os golpes ressoaram no interior desta. Recuou dois passos e olhou para a entrada exibindo em seu rosto o terror que lhe produziu escutar aquele horrível ruído.

—Elizabeth ? —Martin perguntou ao abrir a porta e encontrá-la com o rosto tão branco como o cal.

—Desculpe por ter batido assim. Não pensei que a aldrava fosse tão barulhenta —disse a modo de desculpa.

—Não se preocupe. Não foi a causa dessa barbaridade, mas o eco —comentou afastando-se para deixá-la passar. Ao advertir que tinha ido desacompanhada, surpreendeu-se, mas não disse nada ao ver os bolos.

—Eco? —Elizabeth perguntou, de pé na porta e olhando ao redor. Onde estavam os pertences de Martin? Ele não disse que iriam levá-los pela manhã? Bem, não havia nada lá, exceto um cabide vertical em que não caberia mais um casaco.

—É um fenômeno acústico produzido pela repetição de um som ao bater em um obstáculo. Como pode ver, dentro da minha casa não há muitos itens e o som circula livremente —comentou divertido.

Elizabeth se virou para ele rapidamente. Seus olhos se arregalaram com seu esclarecimento. Presumiu que ele entenderia que o barulho era causado por seu mau humor. Mas não foi assim. Martin ofereceu uma razão lógica para esse temperamento impetuoso.

—Deixe-me ajudá-la com seu casaco —pediu estendendo as mãos para ela—. Posso fazer um buraco lá —acrescentou apontando para o cabide.

—Não se preocupe, colocarei em alguma cadeira —Elizabeth apontou, duvidando encontrar alguma onde quer que fosse.

—Como quiser—, disse ele, oferecendo-lhe o braço para conduzi-la até a biblioteca. Assim que aceitou, caminharam pela galeria à esquerda—. Vejo que se lembrou de me trazer as contas. Estava esperando ansioso por isso...

—Imagino que também esperava me ver com os bolos —disse Eli.

—Certo, mas me parecia muito grosseiro começar a conversa lhe agradecendo por lembrar-se deles —respondeu esboçando um enorme sorriso.

Elizabeth respondeu com outro sorriso. Como imaginou, não fez nenhuma menção à sua presença. Não lhe disse: «que gostou de encontrá-la novamente ou que agradecia sua visita». Martin se concentrou na única coisa que era importante para ele: os documentos e os doces. Então aproveitou e continuou observando descaradamente tudo o que encontrou em seu caminho.

—Onde estão seus móveis? Ainda não os trouxeram? —perguntou curiosa ao passar por um corredor no qual não encontrou nem um pequeno quadro, mesinha, vaso ou candelabro.

Dentro da casa estava limpo e havia muita luz graças às janelas sem cortinas, mas não estava mobiliado. Para onde quer que olhasse, encontrava um espaço livre onde os antigos proprietários colocavam seus ostentosos pertences. Elizabeth prestou atenção ao silêncio. Salvo os sons que faziam seus sapatos ao caminhar, não ouviu mais nada. Onde estavam os servos? Teria contratado alguns? Temia que não. Talvez não tivesse tempo para entrevistá-los ou talvez esperasse fazê-lo em breve. Embora eu suspeitasse que ele havia negligenciado tais necessidades. Então pensou em algo que a preocupou muitíssimo. Se Martin não tinha empregados para ajudá-lo, quem cozinhava? Olhou para a bandeja de bolos e suspirou ao entender o motivo pelo qual foram solicitados. Talvez não coma um prato quente há dias —Chegaram os poucos que adquiri. Mas não tive tempo para elaborar uma lista com tudo o que esta casa precisa. Como penso viver aqui até que morra, tenho anos suficientes para comprar aquilo que me pareça imprescindível —disse antes de fazê-la passar a uma sala.

Quando Elizabeth desviou o olhar do corredor para fixá-lo no interior da biblioteca, voltou a ficar petrificada. Não havia dúvida de que se contentava com muito pouco. Embora dentro dessa quantidade mínima, tinha que incluir a dezena de estantes de que precisava para colocar todos os livros que havia empilhado no chão. Se Mary tivesse aparecido em seu lugar, sua opinião sobre Martin teria mudado em décimos de segundo.

Enquanto ele tentava limpar a poltrona onde ela se sentaria, olhou ao seu redor e quase gritou ao encontrar uma poltrona velha com um cobertor dobrado em um canto. Temia que o usasse como cama. Observou-o de lado e pensou nas condições em que vivia. Não era pobre, disso tinha certeza. Philip contou-lhes que o seu avô dividiu entre os três irmãos as riquezas que pertenciam ao seu pai. Além dessa fortuna, tinha um bom salário como professor universitário, portanto não tinha desculpa para a falta de solvência, mas sim de vontade. Naquele momento, lembrou-se dos suspiros de sua mãe. Por alguma estranha razão começava a entendê-la. Martin e seu pai eram muito parecidos. Possuíam uma mente prodigiosa, mas viviam num caos infinito se não tinham uma mulher que os atendesse corretamente. Quantas vezes sua mãe lhe arrumou o nó da gravata, lhe deu os óculos e lhe abotoou os botões de sua jaqueta? Todas as vezes que o chamaram durante as urgências noturnas. Se ela não tivesse saltado da cama mais rápido do que o marido, ele teria aparecido na casa de quem o tivesse chamado naquela noite meio nu e com a pasta na mão.

—Já está limpo —ele comentou depois de colocar o lenço com o qual espanou a poeira no bolso da calça.

Elizabeth ficou sem palavras e seu assombro aumentou. No entanto, agiu com recato e caminhou até o assento. Tirou o casaco, colocou-o no encosto da cadeira, pôs a pasta e os doces sobre uma mesa coberta de papéis e sentou-se.

—Bem. Comecemos com esses cálculos —Martin disse enquanto se sentava ao lado dela. Ele abriu a pasta, tirou a página e, enquanto examinava as vendas, engoliu os bolos um por um.

Enquanto isso, Elizabeth não deixou de observá-lo. Sua perplexidade crescia a cada segundo. Não tinha reparado no seu traje, e ao fazê-lo descobriu que tinha voltado a abotoar errado não só o colete, mas também a camisa. Apertou os lábios para não lhe perguntar o motivo de sua negligência, ainda que em sua mente surgiam milhares de suposições sobre isso. Continuou em silêncio e fixou o olhar em suas mãos quando estas se afastaram do papel para pegar uma pena. Seus dedos eram longos, como os que devia possuir um famoso pianista. No entanto, os do músico sempre estariam limpos, os de Martin estavam manchados de tinta.

—Estas foram as vendas de duas únicas semanas, certo? —lhe perguntou sem desviar os olhos do papel.

—Sim —respondeu olhando-o com expectativa.

—O que pretende fazer com esses lucros? Comprar um vestido? —ele deixou escapar sem pensar. Então se recostou, observou-a e esperou sua resposta.

—Não —respondeu atordoada—. Meu objetivo é me tornar uma mulher independente. Porque diz isso?

—Porque a quantia que está ganhando é ridícula —expos sem cerimônia—. Ninguém pode sobreviver com duas libras por mês.

—Mas tenho mais flores para vender —declarou um tanto acalorada.

—Mesmo assim, o projeto não é viável —insistiu na sua conclusão—. Para obter a independência económica que pretende, teria de ter pelo menos três estufas e distribuir vinte ramos por dia em sete floristas diferentes. Isso faria um total de cento e quarenta compras e obteria um lucro de cinco libras por dia. Se não houver nenhum imprevisto, o resultado será cerca de 150 libras por mês. Uma quantidade modesta que lhe facilitaria a vida que deseja, desde que mantivesse esse número de vendas, é claro. Porque suspeito que durante o outono e o inverno seus rendimentos se reduziriam pela metade —acrescentou.

Elizabeth ficou congelada após a firme exposição. Num piscar de olhos seu sonho havia se tornado algo absurdo. Parecia que o destino se voltava contra ela. O que havia com ela? Por que não era capaz de conseguir aquilo que se propunha? Segurando a vontade de chorar, devido à desilusão, se levantou da cadeira e sacudiu lentamente a parte traseira de seu vestido.

—Acho que é hora de voltar —comentou sem olhá-lo.

—Elizabeth —Martin disse, levantando-se rapidamente—. Desculpe ser tão cruel, não tive a intenção de ferir seus sentimentos.

—Não é crueldade, mas sinceridade —ela respondeu—. Deu-me os dados que me prometeu e chegou a uma conclusão franca. Não esperava menos de você.

—Talvez haja uma solução —ele comentou, agarrando seu pulso para que não saísse. Assim que viu como fixou os olhos na mão que a segurava, rapidamente a afastou—. Se me explicar o que quer, eu poderia ajudá-la.

—Eu o incomodei o suficiente—expôs sacudindo o casaco—. Não me parece justo que continue perdendo tempo com minhas tolices.

—Não são tolices, Elizabeth, mas algo muito digno. Quer sua independência e isso diz muito sua pessoa. Qualquer mulher na sua idade estaria na rua procurando um marido que a mantivesse.

—Da minha idade? —perguntou tentando não rir. Pois ela não era uma jovenzinha. Estava a ponto de completar vinte e seis anos e isso significava que há vários anos tinha ultrapassado o limite dessa juventude—. Quantos anos acha que tenho? —Acrescentou sem deixar de olhá-lo.

Martin coçou sua cabeleira loura. A pergunta poderia levá-lo até o inferno se este existisse. Sua irmã Valeria insistiu em fazê-lo entender que as mulheres não tinham idade e se cometesse o erro de acrescentar mais anos dos que de verdade tinham, se encontraria em um grave problema.

—Para a maturidade não há longevidade —respondeu de forma evasiva.

Essa resposta a divertiu tanto que soltou uma gargalhada. O matemático que tinha resolvido sua vida em menos de dez minutos, era incapaz de fazer referência a um tema tão simples como a idade que aparentava. Isso não só lhe indicou o respeito que lhe mostrava, mas também consolidou a opinião que ela tinha dele sobre sua inteligência.

—Quase vinte e seis—confessou quando parou de rir—. Minha juventude foi deixada para trás —alegou.

—É por isso que deseja emancipar-se? —continuou a perguntar sem se afastar dela.

—Não. A verdadeira razão é que eu não quero ser um fardo para os meus pais —manifestou com decisão—. Pensei que graças à minha destreza com as flores poderia converter-me em uma mulher autossuficiente.

—Pode fazê-lo —Martin disse depois de pensar rapidamente em outra alternativa mais benéfica.

—Como? —perguntou atenta—. Você mesmo me explicou que...

—Poderia pedir à senhora Spelman que a recomendasse como floricultora. Tenho certeza que haverá muitas esposas que desejam ter um jardim bonito e cuidados ao redor de suas casas —explicou.

—Quer que eu me torne uma jardineira? —soltou arregalando os olhos.

—Sim. Tenho certeza que os ganhos aumentariam em sessenta por cento —respondeu depois de calcular o salário mínimo que devia pedir por três horas de trabalho diário.

Sem dúvida, aquele homem não era do mesmo mundo em que ela vivia. Como lhe havia ocorrido àquela insensatez? Pretendia que trabalhasse nas residências dos condes, barões, marqueses ou viscondes com quem havia flertado anos atrás? Isso a humilharia ainda mais! Desesperada para sair, pôs as mãos nos botões de seu casaco e os abotoou em silêncio.

—Não lhe parece uma boa ideia? —perguntou Martin ao vê-la agir daquela maneira.

—Me parece uma ideia horrível —resmungou—. Meu pai se oporá veementemente a esse trabalho e minha mãe gritará para o céu quando me ouvir.

—Entendo... —ele disse acariciando seu queixo.

—O que entende? —Elizabeth deixou escapar com mais raiva do que devia mostrar.

—Compreendo que essa forma de viver não lhes agradaria. Os pais sempre buscam o melhor para seus descendentes e estou seguro de que os seus não gostariam de vê-la sujar suas mãos cuidando dos jardins de pessoas tão arrogante —respondeu.

—Exato —respondeu simplesmente—. Muito obrigada por tudo, Martin. Desejo-lhe uma boa tarde—, acrescentou antes de dar vários passos em direção à saída.

—Espere! Tenho outra solução! —ele exclamou caminhando em direção a ela—. Sei como pode ganhar algum dinheiro. Certamente seus pais acharão uma excelente ideia, afinal somos quase uma família.

—Quer que eu arrume seu jardim? —perguntou sem sair da porta. Enquanto esperava a resposta, observou o tremor de suas mãos e notou no peito os fortes batimentos de seu coração. O que lhe acontecia? Por que tinha a certeza de que sua decisão mudaria sua vida?

—Pode começar por ele, se quiser. Embora a minha proposta vá muito mais longe —comentou com calma—. Não sei se ao entrar em minha casa se deu conta, mas preciso urgente encontrar ajuda feminina. Até hoje, não tinha pensado nisso. Talvez porque nunca tive uma pessoa de confiança ao meu lado. Sabe que...

—Que tipo de ajuda? —soltou, interrompendo o que seria outro discurso sem fim enquanto se voltava para ele.

—Não me interprete mal, Elizabeth. Não vou propor casamento —comentou como forma de graça. Embora apenas ele sorrisse porque Elizabeth havia parado de respirar e de sentir os batimentos cardíacos—. Quero oferecer-lhe um trabalho. Ocupará tanto tempo que terá que me pedir um salário exorbitante. Logicamente, estarei disposto a pagá-lo —continuou entusiasmado—. Quer ouvir minha oferta?

—Sim, quero ouvi-la —Elizabeth respondeu antes de retornar ao assento.


V


O papel que guardava no bolso do casaco era um contrato. Parecia loucura, mas era verdade. Martin escreveu em menos de 20 minutos um contrato de trabalho entre eles, incluindo o salário. Depois de lê-lo em voz alta, assinou-o e ofereceu-lhe para que fizesse o mesmo se estivesse de acordo. Mas não pôde aceitar com tanta rapidez a mudança que isso proporcionaria. Por esse motivo, pediu-lhe algum tempo para pensar e, indubitavelmente, Martin concedeu-lhe tudo o que necessitasse.

Percorreu o caminho de volta para casa com a mente ainda dentro da biblioteca. A proposta era tentadora, mas também impossível. Não seria capaz de terminar esse projeto em um ou dois meses, mas em anos. Ele não se deu conta da reconstrução do pequeno estábulo, nem da laboriosa reforma que precisava a lagoa no interior do jardim. E o tempo que seria necessário para consertar os imensos terrenos lá fora? Olhou para os galhos secos acima de sua cabeça e suspirou. Martin disse que tinha uma vida inteira para adaptar sua casa. Não, na verdade ele comentou que ficaria ali até morrer e que teria anos de sobra para comprar o que precisasse. Se aceitasse o trabalho, temia que os dois envelheceriam e morreriam juntos.

Esfregou o rosto enquanto subia as escadas de pedra que levavam à entrada de sua casa. Antes de bater, virou-se para o jardim e olhou-o pensativamente. Tinha cinco anos quando sua mãe a ensinou a amar a terra e a cuidar das flores que apareciam nesta. Segundo a crença cigana, as plantas eram presentes que Morgana oferecia aos filhos para que apreciassem a beleza da vida. Não entendeu suas palavras na época, mas sim quando completou nove anos.

Estava andando pela rua com seu pai, quando encontrou uma pequena haste de rosa no chão. Triste ao pensar no fatídico fim daquele pequeno ser vivo, o pegou e levou para casa para plantá-lo em uma panela de barro. Na esperança de salvá-lo, colocou-o no parapeito da janela de seu quarto, onde receberia luz e poderia observá-lo continuamente. No dia em que sua primeira rosa floresceu, se sentiu a menina mais sortuda do mundo por ter ajudado Morgana. Dezessete anos depois, aquele pequeno galho se tornou uma enorme roseira. Ela o chamou de Guardião, porque do fundo da estufa observava o crescimento das outras plantas.

«Dezessete anos...», suspirou novamente. Foi esse o tempo que levou para transformar um jardim árido no mais bonito de Londres. Até botânicos ilustres falaram com seu pai para que pudessem estudar alguns dos tipos de plantas que ela cultivava. Até Logan e Philip haviam trazido sementes dos lugares por onde viajaram! E agora, aquele matemático maluco queria dar-lhe cem libras por semana para transformar não apenas seus jardins em paraísos, mas também decorar e restaurar o interior de sua casa. A única coisa que aquela mente brilhante não pesou foi na repercussão social que teriam quando descobertos. Se ela aceitasse o acordo, compraria móveis, contrataria funcionários e os encomendaria como se fosse a dona da casa. Quanto tempo as pessoas levariam para se perguntar se a terceira filha dos Moore finalmente havia encontrado um amante para apoiá-la? E para piorar as coisas, morava na frente da casa de seus pais. Que tragedia!

—Boa tarde, Srta. Moore Hoje está mais bela que ontem —comentou a voz de um jovem que aparecia em sua casa com bastante frequência.

—Boa tarde, Lorde Cooper. Espero que minha beleza não diminua com a chegada da manhã seguinte —respondeu esboçando um amplo sorriso.

—Aposto meu relógio que não acontecerá —respondeu depois de lhe segurar a mão e lhe dar um leve beijo nos dedos.

—O que o trouxe aqui hoje? As cicatrizes ainda o incomodam? —ela perguntou inquieta.

—Não —disse o rapaz expressando felicidade e diversão em seu rosto—. Eu estava passeando e queria tomar um chá com uma família tão respeitável como a sua.

—Compreendo... —sussurrou Elizabeth olhando para ele.

Todos aguardavam as aparições do único filho do barão. A princípio pensaram que suas visitas se deviam à cura das feridas causadas por Josephine, mas com o passar dos dias descobriram que o jovem tinha algum interesse pela quarta filha. Claro, seus pais não se opuseram a que se apresentasse cada vez que o desejasse. Mas sua irmã não compartilhou dessa decisão. No início, fugia quando Shira o anunciava. Essa atitude inadequada causou-lhe repreensões intermináveis. Finalmente, a puniram e a obrigaram a receber a visita com um sorriso. Ela o cumpriu. No entanto, a risada de Josh não tinha nada a ver com amabilidade. Temia que a jovem buscasse o momento ideal para fazê-lo desaparecer e esconder seu cadáver.

—Como minha irmã te tratou desta vez? —se atreveu a perguntar—. Refiro-me à Josephine, claro.

—Claro —Eric respondeu com um largo sorriso—. Estranhamente encantadora. Sua mãe lhe pediu que ela mesma me servisse o chá e o fez sem rosnar.

—Verdade? —ela soltou arregalando os olhos de surpresa.

—Sim —afirmou o jovem com satisfação.

—É um grande passo —Elizabeth concordou.

—Enorme —Eric assegurou vermelho—. Espero que sua tarde tenha sido tão boa quanto a minha —disse em forma de despedida.

—Asseguro-lhe que assim foi.

—Boa tarde, senhorita Moore. Nos veremos logo —comentou tocando a aba do chapéu.

—Boa tarde, Lorde Cooper. Suponho que o faremos —respondeu fazendo uma pequena genuflexão.

Ela o observou sair assobiando. Estava feliz, não havia dúvida disso. Só esperava que o resto da tarde, mesmo da noite, continuasse assim. Embora suspeitasse que não seria possível. Se sua hipótese fosse verdadeira, o jovem Cooper teria uma noite horrível. Talvez até uma semana. Tudo dependia da quantidade de urtigas que Josh colocasse no chá.

Pensando em alertar sua família sobre a nova travessura de sua irmã, concordou em ir para casa. Assim que olhou para dentro, lembrou-se de Martin e do contrato. O que devia fazer? Com quem poderia falar sobre isso? Anne estava muito ocupada criando seu filho e engravidando. Mary ainda estava em sua residência de campo com Philip. Madeleine e Josephine eram muito jovens para ter uma palavra a dizer. Seu pai estava totalmente fora. Então, só restava uma pessoa: sua mãe.

Caminhou decididamente em direção à sala, acreditando que ainda estaria lá dentro ajudando Shira na limpeza. Mas não a encontrou. Não havia ninguém lá.

—A quem procura? —lhe perguntou Sophia atrás dela provocando um terrível susto.

—Mãe! —exclamou com as mãos no peito—. Quase morro de susto —ela alegou respirando agitada.

—Sinto muito. Não era minha intenção —respondeu com um sorriso tão falso quanto Josh teria mostrado ao jovem Cooper quando lhe ofereceu a xícara de chá.—. Quem estava procurando? —repetiu.

—A você. Preciso falar sobre um assunto que me preocupa. Tem alguns minutos para mim?

Sophia controlou as expressões de espanto que seu rosto expressaria ao ouvi-la. Era a primeira vez em quatro anos que Elizabeth estava pedindo para falar com ela a sós. Até agora, as únicas conversas entre as duas terminaram em uma discussão acalorada sobre seu comportamento inadequado. Mas parecia que a nova Eli voltava a recorrer à sensatez materna. Isso a encheu de orgulho, paz e satisfação. Por fim regressava a filha que sabia que era.

—Sempre tenho tempo para falar com minhas filhas —comentou agarrando-a com ternura do braço—. O que foi, querida? A reunião com o senhor Giesler não foi tão agradável como esperava? —perguntou enquanto a dirigia para seu salão preferido.

—Na verdade, não sei como defini-la —comentou reflexiva—. Mas preciso que me dê sua opinião sobre o que me aconteceu esta tarde com ele.

—Não resolveu seu problema? —disse parando no meio do caminho.

—Dúvida sobre seu intelecto? —esperou uma resposta, ao não a ter prosseguiu—. Não só obteve os resultados, como previu o futuro que terei se continuar a trabalhar para a senhora Spelman.

—Não gostou dos resultados? —continuou perguntando ao retomar a caminhada.

—Não. Martin determinou que só poderei comprar um vestido com o lucro do primeiro mês —declarou com pesar.

—Bem, é um bom começo. Certamente com o passar dos anos alcançará seu propósito —disse para acalmá-la.

—De acordo com a teoria matemática que usou para calcular esses ganhos, nunca alcançarei minha independência —comentou mais tranquila do que quando ele explicou na biblioteca, como se aquela opção já não fosse um problema.

—Sabe que esta é a sua casa e que sempre nos terá ao seu lado —Sophia a lembrou.

—Eu sei —suspirou.

—É com isso que está preocupada? —insistiu em saber.

—Não. O que me preocupa é a alternativa que me ofereceu. O que propôs, será mais benéfico para ambos. Embora deva confessar que ainda não aceitei. Preciso saber sua opinião sobre isso —declarou bastante serena.

—Outra alternativa? Minha opinião? O que está acontecendo Elizabeth? —Sophia perguntou ao fechar a porta quando as duas entraram na sala.

—Descubra por si mesmo —comentou tirando o contrato do bolso do casaco que ainda não tinha sido capaz de tirar.

Sophia pegou o papel dobrado e caminhou com este até sua poltrona. Uma vez que se sentou, desdobrou-o muito lentamente, como se nas suas mãos tivesse a tampa da caixa de Pandora. Quando leu o primeiro parágrafo, tirou os olhos da folha e olhou para a sua filha. Esta tinha se colocado em frente à janela e observava em silêncio a casa de Martin. Não quis interromper seus pensamentos, assim retomou a leitura e chegou até o final desta. Houve momentos em que segurou a respiração, outros em que sorriu e ao terminar de ler compreendeu o motivo pelo qual Elizabeth lhe pedia ajuda. Para ela era uma decisão muito importante e arriscada. Se não se enganasse, sua filha pensava que se assinasse esse acordo a esperança de encontrar um marido se reduziria a nada.

Dobrou o papel de novo, levantou-se da poltrona e caminhou até Elizabeth pensando na posição que devia tomar. A sua parte cigana gritava-lhe que tinha de aceitar o que Morgana lhe oferecia. Entretanto, sua outra parte, essa que havia adquirido com o passar dos anos, não deixava de insistir em que se assinasse esse contrato sua filha armaria o maior escândalo da cidade. Não só falariam sobre a estranha relação com Martin, mas começariam a falar de assuntos passados sobre suas insinuações a todos os homens solteiros que conheceu.

—É uma decisão muito difícil —disse quando ficou ao seu lado.

—Sim. É por isso que peço sua ajuda —respondeu sem desviar o olhar da janela da biblioteca de Martin. Ainda estaria trancado? Teria terminado os doces?

—Não consigo decidir por você, Elizabeth. Só posso lhe aconselhar a ouvir seu coração —continuou olhando através do vidro.

—Faz muito tempo que não o faço porque jamais me deu uma resposta sensata —respondeu com um longo suspiro.

—Pois já vai sendo hora de que volte a confiar em seu instinto. Deixe no passado as dúvidas e os erros porque não é aquela menina louca. Que tenha me pedido opinião, confirma isso.

—Acredita? —perguntou surpresa.

—Não só acredito, como afirmo também. Se há uns anos um homem como Martin tivesse proposto este contrato, o teria assinado antes de voltar a esta casa—Sophia assegurou—. Mas não o fez porque pensou em tudo o que esse acordo implicará para ambos. Isso se chama maturidade e fico feliz de que ao fim a tenha. É verdade que cometeste muitas loucuras, algumas das quais estará arrependida, mas deve olhar para um novo futuro e não voltar a pisar as pegadas do passado. Me entende?

—Sim —respondeu sem hesitar—. Mas o que faria se estivesse em minha situação? Por onde começaria?

—A primeira coisa que deve fazer é falar com o Martin sobre tudo aquilo que te atormenta. Dizer-lhe quem realmente é e deixe-o decidir se continua com o contrato que lhe ofereceu ou se procura outra pessoa. Como este papel indica, é verdade que precisa de ajuda e qualquer mulher estará ansiosa para ocupar esse lugar e obter o salário que mencionou —explicou com calma.

—Mas as pessoas falarão...

—Sim, mas se ele souber a verdade, tenho certeza que não reparará nessas fofocas. Caso não tenha notado, Martin não é um homem muito convencional.

—Sei muito bem do que está falando —disse esboçando um sorriso—. Hoje eu vi com meus próprios olhos. E é verdade que ele precisa urgentemente de ajuda feminina.

—Quem melhor que a família para fazê-lo? —insistiu Sophia.

—Foi isso mesmo que ele disse.

—Fale com Martin, Elizabeth. Seja sincera e permita-lhe a opção de decidir se continua com a proposta ou a retira. O importante entre duas pessoas é a confiança—concluiu depois de lhe dar um beijo na bochecha—. Quer que falemos de alguma outra coisa? Algo mais te preocupa? —perguntou olhando-a com expectativa.

—Não.

—Nesse caso, vou para a cozinha. Esta manhã Shira comentou que precisa de uma nova especiaria para adicionar ao jantar. Falarei com Madeleine para que explique qual é —comentou antes de se afastar dela.

—Peça-lhe também que olhe o pote de folhas de urtiga que guardo no armário. Se minhas suspeitas são verdadeiras, temo que tenham desaparecido algumas —disse ao lembrar-se da possível travessura de Josh.

—Urtigas? Por que alguém usaria uma folha tão perigosa? —perguntou Sophia enrugando a testa.

—Acho que Josh envenenou Lorde Cooper —declarou após observar o rosto atormentado de sua mãe.

—O que disse?! —Sophia abriu tanto os olhos, que podiam saltar de seu rosto a qualquer momento.

—Quando voltei, encontrei-o à porta e disseme que Josephine lhe serviu o chá sem resmungar. Isso me lembrou que há uns dias, Josh me perguntou sobre as propriedades das urtigas. Disse-lhe que se tomassem eram muito perigosas e que inclusive podiam matar a uma pessoa por envenenamento —explicou mal conseguindo respirar.

—Oh, Morgana! Oh, Morgana! —exclamou Sophia correndo pela sala o mais rápido que pôde—. Josephine Moore! Venha aqui agora mesmo! —gritou ao abrir a porta—. Randall! Onde você está? A nossa filha envenenou o filho do barão!

Enquanto sua mãe confirmava que Josephine havia acrescentado um par de folhas de urtiga ao chá de lorde Cooper e seu pai se preparava para lhe salvar a vida, Elizabeth continuou olhando pela janela, refletindo sobre o que devia fazer. Levou as mãos ao peito, fechou os olhos e ouviu com atenção os batimentos de seu coração.

«Farei o que ele me diz...» sussurrou para si mesma. Mas será que o entenderia? No dia que lhe indicou que Archie seria seu marido, errou, na noite em que saiu para o jardim com Lorde Norfolk, ocorreu uma tragédia que a manteve vivendo na miséria por dois anos. Abriu os olhos e olhou novamente para a casa de Martin. Como sua mãe havia dito, ele não era um homem convencional. Se fosse, a teria olhado de outra forma. No entanto, a única coisa que pôde observar nele foi ternura e respeito. Isso seria suficiente para selar entre eles um pacto que os uniria durante anos?

«Não vou propor casamento», lembrou-se das palavras que lhe disse. Não, não o faria, mas praticamente viveriam como tal. Passariam horas, dias, semanas juntos para realizar tudo o que fora proposto no contrato. Esta relação poderia prejudicá-lo, pois a possibilidade de encontrar uma esposa no futuro seria perdida. De sua parte, não teria problema, pois já tinha decidido tornar-se uma solteirona. Mas e ele? Teria pensado nessa opção? O melhor para ambos era expor todos os prós e contras. Uma vez que tudo estivesse esclarecido, estariam livres para escolher.

Virou-se para a porta e esperou que os gritos de sua mãe terminassem. Demorou vários minutos para deixar de ouvi-los. Então saiu da sala e foi para a cozinha. Devia pedir a Shira que aumentasse a quantidade do jantar, porque se não levasse algo para Martin comer, seria incapaz de dormir tranquila.


VI


Martin acariciou seus cabelos com as duas mãos. Não conseguia se concentrar no problema que tinha que resolver e o tempo estava se esgotando. Aguardavam os cálculos no final de março e, da forma que a pesquisa progredia, levaria anos para obter resultados precisos. Zangado com sua perda de interesse no trabalho, levantou-se e caminhou até a janela. O que lhe acontecia? Por que não estava se concentrando? A resposta apareceu com pouco esforço, mas ainda se opôs. Ele nunca foi um homem de emoções, mas de raciocínio lógico, mas desde o dia em que conheceu Elizabeth, seu mundo deu uma virada de cento e oitenta graus. Colocou a mão no bolso direito da calça e continuou olhando para a casa dos Moore se lembrando daquela tarde.

Ao entrar na sala onde encontraria o irmão, foi saudado não só por ele, mas também por Mary e sua família. Não sabia que ela estava dentro da sala até que todos saíram após as saudações. Quando Mary o levou até Elizabeth, pensou que estava vivendo um sonho, pois estava diante da mulher mais linda que já conhecera. Gostou da timidez dela, adorou a leve gagueira e ficou hipnotizado ao descobrir olhos tão azuis quanto os seus. Daquele momento em diante, não se comportou de maneira sensata. Seu nervosismo agiu incorretamente e começou um monólogo soporífero. Até causou mil bocejos em uma das jovens irmãs! Embora tenha tentado parar, não conseguiu e passou a tarde inteira expondo infinitas teorias matemáticas que não interessaram a ninguém.

Depois de sair da casa dos Moore, dirigiu-se diretamente ao escritório do advogado dos Bohman para averiguar se a residência continuava à venda. Ao saber que havia alguém interessado nela, não pensou duas vezes e lhes propôs uma boa contra oferta. Felizmente para ele, a resposta chegou na manhã seguinte. Quando teve os documentos em suas mãos, visitou Philip para que o ajudasse a procurar o melhor grupo de peões de Londres. Logicamente, antes de fazê-lo, pediu-lhe explicações. Ao lhe confessar o que fizera, demorou menos de um dia para que aparecesse na pousada onde vivia para informá-lo dos contratos, trabalhadores e do tempo estipulado em preparar tudo o que lhe pediu. Durante quarenta e cinco dias, vinte e sete trabalhadores trabalharam sem descanso. Enquanto isso, passou esse tempo lendo sobre todo tipo de flores. Mary comentou que sua irmã cultivava as plantas mais bonitas e estranhas da cidade e deduziu que seria muito importante conhecer tudo o que lhe interessava para ter algo do que falar. Quando o capataz o visitou para informá-lo que a obra havia terminado, recolheu todos seus pertences em menos de uma hora e os transportou ele mesmo ao seu novo lar. Não sabia quantos quartos, salas, banheiros, cozinhas ou jardins havia nesta casa. Essa informação lhe pareceu irrelevante. A única coisa que lhe importou foi saber que se converteu em seu vizinho e que podia vê-la com bastante frequência.

Depois de passar uma noite horrível no sofá que tinha na biblioteca, pois não parava de pensar em como se encontrar e conversar com ela, decidiu concentrar-se de novo no projeto que lhe encomendaram. Pegou a pipa que comprou numa loja de brinquedos e fê-lo voar devido ao vento que apareceu naquela manhã. Mas sua destreza com o objeto infantil foi nula. Ela voava de um lugar para outro descontrolada até que ficou presa em uma árvore. Uma vez que subiu para alcançá-la, teve a sensação de que alguém o vigiava. Ao olhar com dissimulação para sua esquerda, ficou petrificado ao descobrir quem estava em uma janela. Sua surpresa e descuido foram tais, que não percebeu que o ramo em que permanecia sentado se partia devido ao peso. Fez um grande esforço para não terminar no chão, dolorido e com algum outro osso quebrado. Ao sentir-se seguro, voltou a olhar para a janela, mas Elizabeth tinha ido embora. Passou o resto das horas planejando um jeito para encontrá-la. Felizmente, ele conseguiu. Escondido entre as árvores do jardim, espiou-a até que saiu da estufa com vários ramos nas mãos. Como estes não lhe permitiam ver ao seu redor, aproveitou a ocasião para se aproximar.

Que aceitasse sua ajuda foi prodigioso e o passeio juntos, fascinante. Estar ao seu lado, ouvi-la rir e descobrir que não se aborrecia com os seus solilóquios sobre tudo o que tinha aprendido sobre as flores, resultou-lhe tão maravilhoso como inesquecível. Depois, uma coisa levou a outra e adquiriu a coragem suficiente para convidá-la para sua casa. Pensou que não aceitaria sua proposta depois do que Philip e Mary lhe contaram sobre ela, mas não foi assim. A Elizabeth apareceu à porta com os bolinhos que pedira e os números das vendas. Descreveria o momento que a levou até a biblioteca como mágico, pois viveu a mesma situação que um jovem casal ao mostrar a sua esposa a casa que tinha adquirido para ambos. No entanto, sentiu-se envergonhado quando teve que limpar o assento. Embora ela não expressasse desagrado. Elizabeth foi capaz de estar à altura da ocasião e comportou-se tão educadamente que percebeu seu peito abrir-se de emoção.

Esforçou-se para se concentrar nos dados que lhe trouxera. Aqueles cálculos eram tão fáceis que até uma criança de dez anos os teria resolvido em menos tempo que ele. Mas sua mente não parava de pensar em sua proximidade. Seu nariz não deixava de cheirar seu perfume e seus olhos não podiam, nem queriam, deixar de observá-la.

Quando lhe passou os resultados, sentiu-se como o homem mais vil do mundo por destruir seu sonho. Talvez se conhecesse o propósito desse trabalho, tivesse sido mais delicado. O medo de perdê-la o dominou enquanto a via partir. Pensou que esta conversa seria a última que teriam e que o odiaria por ter se comportado de forma tão cruel. Por esse motivo, sugeriu outra opção. Lembrando do contrato, colou sua testa no vidro e suspirou profundamente. Estava tão desesperado para tê-la por perto que lhe ofereceu algo ridículo. Como poderia aceitar uma proposta tão estúpida? Não estava ciente do que aconteceria quando a cidade inteira falasse deles? Elizabeth agiu muito sabiamente ao pedir-lhe algum tempo para pensar sobre isso. Ponderaria as repercussões sociais de tal acordo entre os dois. Na pior das hipóteses, recusaria. Mas se aceitasse, talvez acrescentasse algumas cláusulas ao contrato. Logicamente, as aceitaria sem oposição. Desde que a tivesse por perto e a visse todos os dias, andaria sobre as brasas de uma fogueira com seus pés descalços se lhe pedisse.

Ele já estava saindo da janela para continuar seu trabalho, quando notou alguém andando pela trilha. Tirou os óculos e os limpou com o lenço, acreditando que as lentes estavam tão sujas que via sombras onde não havia. Entretanto, ao colocá-las e confirmar que era Elizabeth quem se dirigia a ele, conteve o fôlego. Afastou-se rapidamente, apoiou as costas na parede e fechou os olhos. Ia dar-lhe a resposta. Intuía-o. Mas qual seria? Seu raciocínio lógico optava pela negativa devido ao escasso tempo que precisou para pensar. Entretanto, seu coração gritava o contrário. Esperou que batesse à porta. O golpe que fez com a aldrava foi mais suave que a vez anterior. Mal se ouviu o eco percorrendo o interior da sua casa. Engoliu saliva, tentou arrumar o cabelo, despenteado de tanto tocá-lo, e caminhou até o hall.

Durante o breve percurso, sentia os batimentos do seu coração na garganta e podia notar como o seu sangue corria alterado pelas veias. Se não se acalmasse, apresentaria uma imagem desesperada. Mas não conseguia relaxar. Estava tremendo e suas mãos suavam! Colocou-se atrás da porta, inspirou fundo e a abriu.

—Elizabeth? —disse como forma de saudação.

—Boa tarde novamente —ela comentou, estendendo os recipientes que carregava nas mãos—. Trouxe-lhe algo para comer se durante a noite tiver fome.

—Muito obrigado—foi capaz de dizer pegando os recipientes.

—Eu também tenho a resposta —afirmou Elizabeth inclinando a cabeça ligeiramente—. Mas eu gostaria que conversássemos. Depois de ouvir tudo o que tenho para lhe explicar, pode considerar se ainda está interessado na minha companhia.

«As cláusulas...», pensou Martin.

—Claro —ele concordou rapidamente—. Quando quer que falemos sobre isso?

—Quando lhe parecer bem —respondeu levantando a cabeça.

—Tem algum plano para as próximas horas? —insistiu.

—Não deveria trabalhar? Não gostaria de ser a culpada por...

—Não se preocupe. Na verdade, eu não estava fazendo nada importante —acrescentou se afastando da porta para que ela pudesse entrar.

Elizabeth congelou, pensando sobre a decisão que tomara. Depois da conversa com sua mãe, se lembrou de todas as coisas importantes de seu passado e decidiu conversar com Martin sobre elas. Mas a dúvida a assaltou. Seria capaz de confessar algo que não disse a ninguém? Não era uma pessoa que contava com facilidade seus sentimentos ou emoções e muito menos revelava seus grandes e terríveis erros. Talvez porque não confiasse em ninguém. Entretanto, estava consciente de que sua sinceridade seria primordial para Martin. Se ela aceitasse o acordo sem explicar certos aspectos de seu passado, não só sua integridade correria perigo, mas também a dele.

—Elizabeth? —lhe disse ao vê-la tão calada e pensativa.

Depois de lhe responder com um ligeiro aceno para confirmar que aceitava o seu convite, entrou novamente. Não precisou observar o ambiente para ter a certeza que Martin não tinha tirado um único casaco do cabide. Temia que, desde que ela se foi, não tinha saído da biblioteca. Ouviu-o fechar a porta e se colocar ao seu lado. Sem ter que lhe indicar para onde se dirigiam, os dois caminharam juntos e em silêncio. Foi Elizabeth quem entrou em primeiro lugar na biblioteca e sentou-se na mesma cadeira que ele limpara naquela tarde.

—Entendo que tenha dúvidas —Martin começou a dizer assim que colocou os recipientes de comida na mesa—. Se eu estivesse em seu lugar, também acrescentaria cláusulas ao contrato —indicou antes de se sentar ao seu lado.

—Cláusulas? —perguntou olhando-o com assombro.

—Sim, requisitos ou normas que devo cumprir para que assine o acordo —esclareceu.

Elizabeth ficou sem palavras ao entendê-lo. Aquele homem acreditava que ela tinha várias condições e não era assim. Como poderia impor-lhe algo se praticamente lhe dava tudo? Deixava-a tomar conta da sua casa, dos criados e dava-lhe liberdade para comprar o que quisesse sem ter que lhe fazer uma simples consulta. Martin confiava nela por ser irmã de Mary. Embora temia que quando terminassem de conversar, seria ele quem enumeraria centenas de requisitos se continuasse querendo-a a seu lado.

—Na verdade, será você quem ditará —disse movendo-se desconfortável no assento.

—Eu? —perguntou abrindo tanto os olhos que finalmente pôde ver com clareza a cor destes—. Por que faria tal coisa? Há alguma razão para isso?

—Há sim —respondeu depois de inspirar profundamente.

—Sendo assim, estou ouvindo —disse surpreso enquanto se acomodava no assento.

Elizabeth fixou o olhar em suas mãos. Estas tremiam sobre seu colo. Ia contar-lhe uma coisa sobre a sua vida que nem a sua própria família conhecia, mas tinha de fazê-lo. Se queria que aquele trabalho prosperasse, tinha que ser totalmente sincera e continuar assumindo o resultado de suas loucuras.

—Alguns anos atrás, me apaixonei por um jovem chamado Archie. Acreditava que meu amor era correspondido e me entreguei a ele incondicionalmente. —Suspirou, levantou o queixo e olhou para ele para ver a reação que mostraria—. O nosso romance era secreto, embora a família dele e a minha suspeitassem. Antes de sair de Londres, para conseguir o título que herdou depois da morte de seu pai, pediu-me que o esperasse e fiz isso mesmo. Quando voltou, imaginei que finalmente tinha chegado o momento de que todo mundo soubesse que estávamos juntos, mas não foi assim.—Esperou que falasse. Como não o fez, prosseguiu—. Escreveu-me um bilhete insistindo que nos encontrássemos a sós. Pensei que me falaria de tudo o que tinha conseguido para que pudéssemos nos casar, embora tenha errado em minhas suposições. O propósito dessa conversa foi informar-me de que havia se comprometido com a filha de um barão.

—Ele não continuou com o relacionamento? —perguntou enrugando a testa—. Por quê?

—Me ofereceu mil razões desprovidas de sentido. Mas só foram isso, desculpas absurdas. Se tivesse me amado de verdade, teria deixado tudo por mim —garantiu com firmeza.

—Estou certo disso —Martin comentou levantando-se. Dirigiu-se para a mesa, abriu uma gaveta, pegou um cachimbo, encheu-o de tabaco e enquanto Elizabeth se decidia a continuar, acendeu-o e fumou.

—Naquele momento minha raiva era incontrolável —retomou a explicação—, e agi de forma errada.

—O que chama de forma errada? —perguntou caminhando para ela.

—Deixar-me levar por meu estúpido orgulho —confessou.

—A que se propôs?

—A encontrar um marido aristocrata.

—Por quê?

—Porque Archie me disse que a filha de um burguês encontraria um marido conforme com meu status social e que graças a minha beleza não perguntaria o motivo pelo qual se casaria com uma mulher manchada —manifestou mal respirando.

Martin tossiu tanto ao escutá-la, que apareceram lágrimas em seus olhos e teve que limpá-las com o lenço que guardava no bolso. Uma vez que se recuperou, deixou o cachimbo sobre um recipiente de vidro e a olhou em silêncio. Tinha ouvido bem? Ela lhe revelava aquela intimidade por temor a não ser a pessoa adequada para o trabalho que lhe oferecia? Não tinha aprendido que todo mundo tinha um passado? O seu era diferente, é claro, mas também envolvia certos aspectos ignóbeis. O que pensaria dele se confessasse que trabalhava para o exército norte-americano? O consideraria um inimigo de Londres?

—Continue, por favor, —conseguiu dizer.

—A partir daquele momento, sempre que ia a uma festa, o meu alvo tornava-se mais precipitado. Odiava-me se não tivesse tido a ocasião de dançar ou flertar com algum nobre. Esse comportamento tão descarado me causou mais dor que satisfação. Quem quereria se casar com uma mulher tão descarada como eu?

—Sempre sonhou em se tornar a esposa de um aristocrata? —soltou e cruzou os braços.

—Não. Meus pais nos advertiram desde muito pequenas que nossas possibilidades eram escassas.

—Com o que sonhava então? —se atreveu a perguntar.

—Mentiria se não lhe dissesse que desde criança quis encontrar um bom marido e ter filhos. A ideia de me tornar uma esposa fiel e uma mãe compreensiva estava na minha mente até o que aconteceu com Archie.

—Tirou de sua cabeça a possibilidade de realizar esse sonho pelo que aconteceu com esse imbecil? —soltou sem pensar.

—Martin, devo lembrá-lo que sou uma mulher incompleta —expôs olhando-o nos olhos.

—Não deveria ser descrito dessa forma. Apenas agiu por amor —ele afirmou levantando-se novamente—. Por que não contou ao seu pai? Tenho certeza que ele teria agido corretamente e que o tal Archie teria assumido a sua responsabilidade.

—Avisaram-me de todas as consequências do meu comportamento, mas não lhes dei ouvidos. Fugi de casa enquanto dormiam e encontrei-me com ele em segredo. O que aconteceu foi decisão minha, assim como me culpo por tudo o que sofri depois. Por esse motivo, jamais lhes contei o que aconteceu. Tenho de enfrentar sozinha as minhas decisões—expôs com voz trêmula ao recordar a noite no jardim do conde de Burkes.

—Se tornou uma mulher muito corajosa, Elizabeth —comentou Martin ao colocar-se a seu lado e lhe segurar as mãos—, e admiro a firmeza com que enfrenta seu futuro. Nem todo mundo é capaz de superar um episódio assim na vida.

Elizabeth olhou para ele estranhamente. Até agora, não suportava que alguém a tocasse, muito menos um homem. Os odiava! Sentia repulsa! No entanto, Martin não só lhe transmitia calma, mas também bem-estar e segurança. Por esse motivo, não se retirou, nem afastou as mãos. As deixou ali, entre as suas, percebendo seu leve tremor e o calor que irradiavam.

—Há mais alguma coisa que deveria saber. Essa parte do meu passado é muito sombria e lhe garanto que isso o faria mudar a opinião que tem sobre mim... —sussurrou, desviando o olhar e fixando-o naquelas quatro mãos que estavam entrelaçadas.

—Não quero ouvi-la —Martin disse, separando-se dela tão rapidamente que Elizabeth sentiu um frio estranho percorrer seu corpo—. Não preciso saber de mais nada —declarou com firmeza.

—Entendo...—Eli murmurou levantando-se da cadeira muito lentamente—. Lamento tê-lo incomodado. Eu prometo...

Ela ficou em silêncio. Seus lábios se apertaram enquanto o observava caminhar em sua direção com uma determinação mais parecida com a do irmão do que com a dele. Parecia que seu corpo tinha aumentado, repleto de músculos e força. Seu queixo barbudo endureceu, seus olhos se estreitaram, e as palmas de suas mãos se tornaram dois punhos.

—Acredita realmente que depois de ouvi-la, vou revogar o acordo? —rosnou.

—Isso que pensei —respondeu confusa.

—Pois está enganada. Nada do que ouvi mudou minha opinião sobre você.

—Mas...

—Não há “mas”! —ele continuou com raiva—. A oferta ainda está de pé. Se não se considera adequada para o cargo, entenderei sua recusa. Mas não me dê uma dúzia de desculpas tolas sobre seu passado para rejeitá-la porque não faz sentido.

—Martin, eu... eu poderia destruir sua reputação —disse abalada.

Tinha que lhe contar o que aconteceu em Brighton. Precisava falar sobre isso. Mas pela forma como a olhava, soube que o segredo ainda seria mantido.

—Minha reputação? —ele perguntou esboçando um sorriso malicioso—. Não me importo com o que as pessoas falam de mim! Pensa que esta sociedade tem me tratado com respeito? Nunca! Apesar de estar confirmado que sou filho de um barão alemão, não o fizeram. Enquanto o bastardo de um marquês inglês, visconde ou conde obtiveram os melhores postos sem esforço, eu sacrifiquei vinte anos de minha vida. Demorei mais de dez anos para conseguir um bom lugar na universidade porque o filho de um nobre sempre foi esperado. Se não tivesse tido o apoio do Reitor Kanthers, teria tido que viajar para a Alemanha para ter o reconhecimento.

—Entendo... —ela murmurou.

—Se realmente entendesse, aceitaria minha proposta —insistiu.

—Eu confessei uma parte da minha vida que ninguém conhece —Elizabeth se defendeu.

—E sinto-me lisonjeado por isso—, disse Martin, olhando para ela sem pestanejar. —Colocou minha honra acima de seu sonho de independência, e isso diz muito sobre seu bom coração. É por isso que ainda proponho que aceite minha oferta, que não a rejeite e que me permita protegê-la de qualquer ofensa que possa ter de enfrentar a partir de agora.

—As pessoas vão falar sobre nosso relacionamento. Não entenderão isso...

—Realmente se importa com o que dizem sobre nós? Tem em consideração os veredictos que essa imundície opina sobre os que não são de sua classe social? —ele perguntou, pegando suas mãos novamente.

Elizabeth o olhou fixamente. Era estranho, mas todo seu ser a incitava a aceitá-lo. Que seu dever na vida era cuidá-lo e sentir-se protegida por ele. Faria mal? Tomaria outra decisão errada? Observou-o lentamente, reparando em cada careta que fazia seu rosto. Não havia maldade nele, senão uma imensa bondade sob esse semblante zangado. Que Morgana a ajudasse desta vez e que seu sangue a conduzisse pelo bom caminho. Ficou nervosa, tanto como estaria uma apaixonada ante a chegada de seu amado para pedi-la em casamento. Por mais que tenha acreditado que isso aconteceria com Archie. Rapidamente afastou seus pensamentos do homem que Martin chamou de idiota e se concentrou na pessoa à sua frente. O cabelo desgrenhado, a camisa e o colete mal ajustados, aquele lenço que limpou metade da casa e que, apesar de cheio de sujeira, continuou usando... Ele precisava dela, assim como ela precisava dele.

Sorriu. Sem realmente saber por que, sua boca se transformou em um sorriso e uma das sobrancelhas de Martin se ergueu em dúvida. Sem largar aquelas mãos manchadas de tinta, respondeu à sua demanda silenciosa.

—Aceito a proposta.

—Perfeito! —exclamou alegremente antes de se aproximar para lhe dar um leve beijo no rosto.

Elizabeth se moveu nesse exato momento. Agiu de maneira inconsciente e sentiu a boca de Martin tocar levemente o canto de seus lábios. Não se retirou, nem expressou algo que incomodasse os dois. Aquele gesto tinha sido involuntário, repentino. Mas o que sentiu em seu corpo, a sensação que teve ao notá-lo, causou-lhe um tremor que a deixou desconcertada.

—Tudo bem se fizermos uma lista de tudo o que precisa? —ele perguntou, recuando rapidamente de seu lado, como se aquela faísca, aquela descarga elétrica tivesse sido sentida não apenas por ela, mas também por ele.

—Sim —conseguiu responder. Embora não tivesse certeza se tinha falado.


VII


Duas horas depois, Elizabeth voltou para casa.

Conforme combinaram, listaram e anotaram em uma folha tudo o que precisariam para transformar aquele lugar em uma residência aconchegante e familiar. O primeiro ponto focado foi a contratação do serviço. Martin explicou que devido ao seu trabalho não conseguia ouvir ruídos que o distraíssem, que precisava de silêncio para pensar com clareza. Em seguida, ela lhe deu a opção de colocar seu escritório na sala no final do corredor, por ser a área mais remota e tranquila da casa. Explicou que as janelas daquela sala davam para o jardim interior, dando-lhe muita luz e ventilação, e também prometeu que seria a última coisa que reconstruiria para não o perturbar. Não lhe perguntou por que conhecia sua casa tão bem, apenas aceitou a proposta.

Como estava combinado que a tarefa começaria na manhã seguinte, Elizabeth ofereceu-se para ajudá-lo a partir daquele momento. Novamente, Martin não se opôs ao seu desejo e os dois transportaram tudo da biblioteca para aquela área da casa. Enquanto faziam isso, continuaram falando sobre o resto das necessidades. Elizabeth percebeu rapidamente que era um homem muito prático. Decorações desnecessárias estavam fora de questão. Tudo o que queria em sua casa eram coisas úteis e se possível com várias funções. Essa maneira pragmática de ver a vida a fez lembrar novamente de seu pai. Ele também não gostava de ver enfeites desnecessários em sua casa. A última vez que sua mãe comprou um vaso enorme para as flores, explicando que o tamanho dos caules era tão grande que sobressaíam dos que já tinham, seu pai acabou transformando-o em um porta-guarda-chuvas. Logicamente, Sophia interrompeu seus esforços e lhe pediu que cortasse os caules para colocar nos vasos que tinham. Essa lembrança a ajudou a eliminar e selecionar muitas coisas que havia planejado pedir. Não pretendia que em um futuro próximo Martin transformasse um armário em um pequeno escritório.

Sentiu-se tão relaxada e animada que o tempo passou muito rápido. Ao descobrir que havia passado mais de uma hora com ele, ficou perturbada por não saber o que sua mãe pensaria sobre a demora. Só esperava que não a repreendesse antes de lhe contar o motivo disso.

—Eu ia procurá-la —Sophia disse quando a encontrou na porta—. Pensei que tinha esquecido o caminho de casa —alegou com sarcasmo.

—Estive muito ocupada ajudando Martin a mudar seu escritório de lugar —Elizabeth respondeu, limpando as manchas de poeira que ainda estavam em seu vestido.

—Aceitou o trabalho? —perguntou se afastando para deixá-la entrar.

—Em vez disso, foi ele quem me aceitou —indicou Eli ao entrar—. Como me disse, expliquei-lhe tudo o que me parecia importante sobre o meu passado e ele não só me pediu para ficar, mas me deu carta branca.

—O que disse? —Sophia perguntou, arregalando os olhos.—. Por acaso ele não sabe o que uma mulher pode fazer com esse tipo de liberdade?

—Não se preocupe —comentou esboçando um grande sorriso—. Apesar de me dar essa liberdade para comprar tudo que preciso, me implorou para não comprar coisas desnecessárias.

—É tão prático quanto Randall —suspirou Sophia.

—Sim —afirmou sem conseguir apagar o sorriso do rosto ao chegar à mesma conclusão de sua mãe—. Por esse motivo, preciso de seu conselho. Vive com o papai há mais de trinta anos e me ajudaria muito a sua experiência. Tenho certeza que me aconselhará de maneira correta.

Naquele momento, Sophia prendeu a respiração e conteve a vontade de chorar de emoção. Era a primeira vez que Elizabeth precisava de sua ajuda e a pediu, referindo-se a ela com respeito e admiração.

«Obrigada Morgana por me devolver minha menina. Obrigada por colocar Martin em seu caminho e obrigada por tudo o que sei que ainda está por vir.», pensou para si mesma.

—O que fará primeiro? Porque imagino que haja muito o que fazer. Essa casa está desabitada desde que os Bohmans se estabeleceram permanentemente em sua residência de campo —disse tentando controlar aquela grande emoção.

—Martin precisa de funcionários. Eu contei que cerca de cinco serão o suficiente, incluindo um cozinheiro experiente. Mas é muito importante que sejam fiéis e sigilosos—esclareceu enquanto estava na frente da escada principal.

—Sigilosos? —Sophia estalou de espanto.

—Não podem incomodá-lo enquanto trabalha. Como me disse, precisa de silêncio para se concentrar no projeto que lhe confiaram —explicou.

—Podemos falar com Shira sobre isso. Tenho certeza de que ela encontrará muitos servos que possuem essas qualidades. —Ofereceu.

—Nesse caso, não vamos demorar. Eu preciso fazer uma lista com todos os possíveis...—começou a dizer enquanto se dirigia para a cozinha, mas Sophia entrou em seu caminho para impedi-la—. O que ocorre?

—Suba para o seu quarto e tome um banho. Precisa se limpar.

—Mas mãe, não posso demorar. Amanhã devo começar com a entrevista. Martin precisa urgentemente que arrumem sua casa e uma cozinheira. Não tem nada para comer —declarou com angústia.

—Nós a ajudaremos enquanto a contrata. Mas, antes de tudo, deve se lembrar que o trabalho que se propôs a fazer não irá degradá-la como pessoa. Será uma dama o tempo todo e, como tal, não deve negligenciar sua imagem—avisou.

—Eu...

—Como disse, estou ao lado do teu pai há mais de 30 anos. Cuidei dele desde que nos unimos, mas sempre soube ocupar meu lugar. Posso servir-lhe uma xícara de café, colocar-lhe os óculos mais perto quando se esquecer, atar-lhe a gravata ou até ajudá-lo a vestir-se. No entanto, isso não faz de mim sua criada pessoal, mas a senhora, esposa e rainha de meu lar, entende o que estou dizendo?

—Sim, mãe —respondeu atônita.

—Portanto, ordeno que não saia de seu quarto enquanto não mostrar a aparência digna da filha de seu pai. —Acrescentou, apontando para o último andar.

—E se eu adormecer na banheira devido à exaustão? Porque eu garanto que não há uma única parte do meu corpo que não esteja cansada —alegou divertida.

—Se isso acontecer, eu mesma a tirarei dela, a secarei e a colocarei na cama para que descanse. Isso é o que faz uma mãe por suas filhas—admitiu com firmeza.

E depois de muito tempo afastada, Elizabeth se jogou contra a mãe, abraçou-a, beijou-a na bochecha e subiu as escadas exatamente como havia sido instruída.

Sophia apenas ficou parada até que sua filha entrou no corredor direito. Como não havia ninguém ao seu redor, ela colocou as mãos no rosto e começou a chorar de felicidade.

—O que aconteceu, querida? —perguntou Randall que, depois de encontrar sua esposa chorando, correu até ela—. Discutiu de novo com Elizabeth? Que motivo deu desta vez? —adicionou com raiva.

A Sophia não conseguiu falar, virou-se para ele, encostou a testa no seu peito e continuou a chorar. Não conseguiu acalmar-se, mesmo sentindo o calor do corpo do homem que amava desde que o viu pela primeira vez. Estava tão feliz, sentia-se tão orgulhosa, que nada freava sua choradeira.

—Calma, tudo passará. Com certeza logo voltará a ser a menina que foi no passado —sussurrou Randall acariciando suas costas para consolá-la.

—Essa mudança começou—soluçou enquanto se afastava do peito do seu marido—. Martin iniciou esse processo.

—Martin? Martin Giesler? O irmão de Philip? O matemático que não é capaz de falar de nada exceto de teorias aritméticas? —perguntou sem respirar e sem dar crédito às palavras de sua mulher enquanto tirava um lenço do bolso de sua calça.

—O mesmo—Sophia soluçou em lágrimas com o lenço de linho que Randall oferecia.

Uma vez que seu rosto ficou limpo, olhou para o lenço e franziu a testa. O que tinha feito desta vez para que cheirasse a antisséptico? Se não tivesse cuidado, um dia acabaria inconsciente e atirada no chão depois de usá-lo.

—O que fez? Falou sobre sua próxima descoberta matemática? —alegou divertido—. Certamente encontrou uma análise estatística que pode ajudar nossa filha em...—Randall ficou em silêncio quando sentiu um dedo da mão de sua esposa em sua boca. Seus olhos se arregalaram por trás dos óculos e esperaram que lhe respondesse.

—Pediu-lhe para trabalhar na antiga casa dos Bohmans —disse Sophia depois suspirar.

—O que aquele rapaz tem a ver com os Bohmans? —preguntou surpreso.

—Foi ele quem comprou aquela antiga residência —declarou pegando sua mão para conduzi-lo a uma sala onde pudessem conversar com calma sobre o que aconteceu com Elizabeth.

—E? —ele retrucou levantando as sobrancelhas.

—E ele pediu ajuda à nossa filha —continuou falando.

—Para arrumar o jardim? —Randall insistiu em saber.

—Para reconstruir a casa—Sophia admitiu depois de levá-lo para a sala e fechar a porta.

—O que exatamente quer dizer com reconstruir a casa? —disse o médico olhando-a com expectativa.

—Sua filha vai se tornar dona daquela casa e nada e ninguém vai mudar o destino que Morgana decidiu para ela. Entendeu querido? —afirmou com o tom de voz que usava para repreender as meninas.

—Vou entender melhor quando me explicar o que aconteceu durante a minha ausência—Randall disse depois de se sentar, desabotoando o paletó e tirando o lenço para limpar a lente dos óculos.


Elizabeth deslizava a espuma do sabão por uma de suas pernas enquanto pensava em Martin. Ainda estava surpresa com o comportamento que adotou depois de lhe falar de Archie. Notou como se irritava, como a raiva lhe percorria. Por um momento, acreditou que toda essa raiva tinha sido provocada por sua história, mas logo descobriu que não se tratava disso, mas pelo fato de que ele também havia sofrido o desprezo dessa classe social. Poucos, muito poucos homens seriam tão inteligentes como ele. Talvez fosse o melhor em sua matéria. Entretanto, foi afastado injustamente de cargos importantes por não ser um aristocrata inglês. Nesse aspecto se pareciam um pouco. Ambos tinham sido tratados como não mereciam. Ele por seu intelecto e ela por amor. Não obstante, o destino os havia unido e se encontravam juntos preparando-se para realizar um projeto que lhes levaria meses, inclusive anos, conseguir.

Esse tempo não era mais tão longo ou difícil, ao contrário. Parecia breve e simples, se conseguisse que nada interrompesse seu trabalho. O que estaria fazendo? Seria tão importante que precisava de silêncio por esse motivo? Se estivesse fazendo algo que pusesse a aristocracia inglesa de joelhos, ela estaria mais que disposta a ajudá-lo. Mesmo que o mérito fosse dele, ficaria sempre orgulhosa por saber que tinha estado em segundo plano. Ao pensar nisso soltou uma risada. Quando a famosa Elizabeth Moore, a descarada e especialista em chamar a atenção onde quer que fosse, sonhou em converter-se em uma mulher discreta? Como tinha mudado tanto? O pensamento que apareceu depois dessa pergunta lhe apagou o sorriso. Não queria pensar naquela noite, nem naquele homem, nem no que lhe fez. Precisava voltar ao presente, à vida que levaria com Martin e esquecer aquele episódio horrível. Mereceu aquilo. Embora Marco e Howlett lhe tenham dito milhões de vezes que não teve culpa, continuava a se culpando pelo que aconteceu.

Irritada por ter trocado tão rapidamente um belo pensamento por outro que a condenou durante dois anos de vida, saiu da água. Em seguida, colocou uma toalha branca ao redor do corpo e abandonou a casa de banho. Quanto tempo levaria para cicatrizar essa ferida? Quantos anos seriam necessários para que sua cabeça deixasse de recordar aquela noite? Estaria no leito de morte lamentando-se de sua atitude? Esperava que não acontecesse. Esperava que trabalhar com Martin a ajudasse a se salvar.

Deixando no chão um rastro de gotas de água caindo de seus cabelos loiros, dirigiu-se inconscientemente para a janela. Voltou a olhar para a casa de Martin. Que nome daria à residência? Tinha que dar um o mais rápido possível porque não podia passar a vida inteira se referindo à casa como "a casa do...". Assim que decidiu virar em direção a cama, para colocar o vestido que havia escolhido antes de entrar no banho, observou sua porta de entrada. Afastou-se da janela rapidamente e se escondeu atrás da cortina, como se pudesse vê-la apesar da distância, para continuar olhando sem ser descoberta. Quando percebeu que estava indo em direção ao caminho entre suas casas, seu coração parou de bater. Estava vindo aqui? Por que motivo? Antes que pudesse respirar uma segunda vez, notou Martin retornando pelo caminho. Ao chegar lá, virou-se e caminhou novamente. Virou-se e foi embora mais dez vezes. O que havia de errado com ele? Por que estava agindo tão estranho? Mas quando viu que estava tirando uma folha do bolso das calças e possivelmente escrevendo os passos que havia dado, o som de suas risadas foi ouvido em toda a casa.

O homem que quase a tinha beijado e que não disse nada nem sentiu nada, voltava a se concentrar em seu trabalho sem reparar no que acontecia a seu redor.


VIII


Onde estava? Não reconhecia aquele lugar nem sabia como tinha chegado até ali. Olhou para baixo e observou que, além de ir de camisola, caminhava descalça. Tentou parar, mas seus pés não obedeceram. Estes se moviam como se tivessem vida própria. Tirou com as mãos os ramos que encontrou no caminho e esquivou-se das raízes que poderiam fazê-la tropeçar. Sem poder evitar, adentrou pouco a pouco na floresta. Enquanto pensava no motivo pelo qual tinha saído de sua cama sem ser consciente disso, escutou o ensurdecedor grasnar de um corvo. Ao olhar para cima, descobriu uma enorme ave negra voando sobre ela. Seu plano foi inquieto e desenhava círculos no céu. Josephine disse uma vez que alguns caçadores usavam falcões para capturar presas. O método era muito simples: quando os pássaros pairavam sobre um terreno, os donos corriam para esse lugar para matar o animal que tinham encontrado. Um arrepio percorreu seu corpo ao se sentir tão encurralada como essas desafortunadas presas. Esfregou os braços, olhou para a frente e continuou o caminho. Não tinha dado nem vinte passos quando começou a ouvir um canto. Não era a primeira vez que ouvia aquela voz. Aparecia com bastante frequência desde que invocou o seu sangue cigano na última noite em que se encontrou com Archie. Ao compreender o que acontecia, utilizou toda sua força para parar. Era evidente que Morgana convocou sua alma para que esta aparecesse na floresta da ilha de Valáon. Um paraíso onde fadas, bruxas e seres mágicos viviam em paz. Aquele lugar era o adequado para que o espírito da mãe criadora pudesse contatar com suas filhas: as zingaras nascidas de seu próprio sangue. Nessa viagem incorpórea, Morgana mostrava-lhes a imagem do homem com quem deviam viver para que o dom com que nasceram não desaparecesse. Mas ela não queria um homem na sua vida, nem continuar a ser a bruxa das flores. Embora, pelo que pôde comprovar, a mãe criadora não consentia que uma de suas descendentes se recusasse a aceitar seu destino. Com muito esforço, tomou o controle de seu corpo, virou-se sobre seus calcanhares e correu pelo caminho em sentido contrário.

Jamais alcançaria o fogo, nunca aceitaria um homem e seu legado terminaria ao morrer.

—Não! —gritou ao despertar do sonho—. Eu não quero! —acrescentou sentando de repente—. Não me chame mais! Entendeu? —continuou gritando.

Com raiva, retirou o lençol e se levantou da cama. O tremor que sofria, como se estivesse congelando, não desaparecia. Puxou a colcha e envolveu-se com ela para eliminar os estranhos calafrios. Felizmente, o calor conseguiu apaziguar os horríveis tremores. Por que não a deixava viver em paz? Agora que os pesadelos tinham cessado e podia dormir tranquila, Morgana insistia em dirigi-la para um futuro que não desejava. Era verdade que a antiga Elizabeth teria voado para aquela fogueira para descobrir quem seria o homem com quem se casaria, mas a mulher em quem se tornara não queria nem falar disso. Decidiu que ficaria solteira, que não teria uma família salvo a que seus pais e irmãs criaram. Ali acabava sua história. Uma vez que a morte lhe chegasse, seu dom terminaria com ela.

Andou lentamente em direção à janela e ao abrir as cortinas descobriu que ainda não tinha amanhecido. Que hora seria? Teria dormido o suficiente para se sentir descansada? Tirou o olhar do exterior e a cravou na cama. Embora fosse muito cedo, não tinha vontade de voltar para ela. O medo de sonhar outra vez com aquele bosque a deixou inquieta. O melhor que podia fazer, para não pensar mais nisso, era se concentrar na tarefa que começaria em poucas horas. Tinham concordado que sua mãe a acompanharia ao escritório do senhor Spolven, o responsável que lhes recomendou Shira. Esta disse que os criados com as melhores referências se dirigiam a ele para que lhes encontrasse um bom emprego. Não gostou da ideia, pois segundo entendeu este ficava com uma porcentagem do salário. No entanto, não tinha outra opção se queria encontrar quem pudesse trabalhar com Martin sem incomodá-lo.

Virou-se para a direita com a intenção de começar a se arrumar. No entanto, algo chamou sua atenção. Voltou a olhar para fora e descobriu luz em uma janela do andar térreo da residência de Martin. Também estava acordado. Podia até jurar que não tinha dormido. De repente, sentiu-se mal por tê-lo entretido toda a tarde mudando seu escritório de lugar. Talvez isso o tenha atrasado tanto no trabalho que não pôde descansar. Ao pensar nisso, franziu a testa. Se estava trabalhando não devia se encontrar naquele local da casa, mas na ala oposta. Então, o que fazia lá? O desejo de descobrir o que fazia a essas horas aumentou e uma ideia louca apareceu em sua mente. Afastou-se da janela e dirigiu-se para a casa de banho. Depois de se ter lavado, voltou para o quarto e vestiu-se rapidamente. Não tinha nada de estranho que aparecesse na casa de Martin para lhe levar o café da manhã. Sua própria mãe lhe indicou que o atenderiam até que contratassem o pessoal adequado. Portanto, não havia motivo para que a repreendesse.

Com um sorriso que lhe cruzou o rosto, saiu do quarto, desceu as escadas e andou para a cozinha. Enquanto procurava desesperada algo para preparar-lhe, pensava em uma desculpa razoável para aparecer a essas horas. Não podia explicar-lhe que estava inquieta ou que sentia curiosidade sobre o que podia fazer um matemático a essas horas da noite. O que pensaria dela?

—Dois copos, dois pratos, duas colheres de chá, chá, leite, torrões de açúcar, pão, melaço e quatro laranjas —comentou colocando tudo em uma cesta de vime.

Em seguida, dirigiu-se para a saída de sua casa. Antes de sair, olhou para o andar de cima para garantir que ninguém a vigiava. Suspirou com tristeza ao recordar a última vez que escapou de sua casa. Mas esse pesar desapareceu ao concluir que seu propósito era muito diferente. Não ia se encontrar com um vilão, um ser desprezível que a abandonou para se casar com outra mulher, mas ajudar uma pessoa honrada e terna. Com firmeza, agarrou a alça da cesta com ambas as mãos e se dirigiu para a casa de Martin.


Martin tirou o colete e jogou no ar. Então olhou para o chão e acariciou o queixo. Tinha colocado as páginas de acordo com os cálculos que realizou. Tudo devia se encaixar perfeitamente, mas algo estava errado. Não sabia muito bem onde estava o problema, mas devia encontrá-lo o quanto antes. Desesperado, desabotoou os botões dos punhos da camisa e os levantou até os cotovelos. Em seguida, coçou a cabeça e olhou para as folhas que tinha espalhado pela superfície de mármore. Em alguma delas iria encontrar o erro. Mas em qual? Repassou lentamente todos os resultados das operações e concluiu que estavam corretos. Os números correspondiam porque não errou nas soluções. Então por que não conseguiu o que queria? Afastou-se das folhas que tinha escrito e dirigiu-se para a cadeira que horas antes transportou até à sala. Pegou no cachimbo, acendeu-o e reviu o esboço. As dimensões das partes direita e esquerda eram as adequadas para o tamanho e a parte posterior do futuro aparelho seria o aconselhável para que obtivesse a estabilidade esperada. A falha descobriria no centro? Quando se dispôs a repassar as folhas que havia nesse local, ouviu o som que provocava a aldrava ao tocar a porta de sua casa. Estranhou, tirou o relógio de bolso e confirmou que era muito cedo ou tarde, segundo se olhava, para aceitar uma visita. Preocupado por não saber quem queria vê-lo às cinco da manhã, dirigiu-se para a janela. Ao descobrir quem era essa pessoa, soltou de repente a fumaça que tinha nos pulmões.

O que ela fazia em sua casa? O que teria acontecido? Depois de deixar o cachimbo sobre a taça de vidro, que usava como cinzeiro, saiu disparado para a entrada. Ao se colocar em frente à porta, observou que não estava vestido adequadamente para recebê-la, mas era muito tarde para voltar à sala e se arrumar. Pensando em mil possíveis razões pelas quais Elizabeth queria vê-lo antes do amanhecer, abriu com rapidez.

—Bom dia, Martin. Espero não estar te incomodando —o cumprimentou um tanto sufocada por encontrá-lo de maneira tão informal. Não apenas olhou para seus antebraços nus, mas também para uma boa parte de seu peito. Embora não fosse tão forte quanto o de seu irmão, o achou terrivelmente sedutor e masculino.

—Bom dia, Elizabeth. Não incomoda —assegurou depois de recobrar a sensatez.

Enquanto abotoava os botões da camisa, fixou o olhar na cesta que ela segurava.

—É para você —Eli explicou oferecendo a ele—. Quando me levantei, descobri que havia luz em sua casa e pensei que, como ainda não contratei uma cozinheira, eu mesma poderia preparar o café da manhã.

Martin ficou mudo. Talvez porque as palavras que tinha aprendido quando criança desapareceram de sua mente ao descobrir que Elizabeth importava-se com seu bem-estar. Achou irrelevante que essa preocupação se devesse ao trabalho. O que gravou em sua cabeça e inclusive em seu coração foi que lhe havia preparado algo para comer e que o trouxera pessoalmente.

—O fez? —perguntou pegando a alça da cesta.

—O que disse?

—Me refiro, se tomou o café da manhã antes de preparar o meu —esclareceu.

—Não. Mas o farei quando voltar —respondeu baixando os olhos.

—Importa-se de me acompanhar? —se atreveu a sugerir.

—Não quero incomodá-lo. Se está acordado a estas horas...

—Juro que não me causará nenhum incômodo —ele comentou com uma voz tão terna que os pelos de Eli se arrepiaram—. Para ser sincero, estou um pouco cansado do silêncio desta casa.

Eli piscou várias vezes, surpresa. Tinha ouvido bem? Mas se passou menos de sete horas que tinha ido embora! Não lhe disse que precisava de silêncio e tranquilidade para trabalhar? Então, por que se queixava ao tê-lo?

—Desculpe o atrevimento —disse Martin ao permanecer bastante tempo calada—. Apesar de sermos parentes, não me lembrei que é uma senhorita e que...

—Tomaremos café da manhã juntos—aceitou dando um passo adiante acreditando que ele se afastaria, como sempre fizera.

No entanto, desta vez, o movimento para a frente apanhou-o desprevenido e não se retirou. Quando Elizabeth ergueu o queixo, pôde observar o pomo de Martin subir e descer, como se estivesse se esforçando por engolir um enorme pedaço de maçã. Sem se afastar, porque seus pés não se moveram, continuou olhando para ele. Sua espessa barba loura cobria grande parte de seu rosto, inclusive seus lábios. Precisava urgentemente de um camareiro para que o arrumasse. Enquanto seus olhos azuis percorriam o resto dos traços faciais, inspirou o perfume que desprendia: uma mistura de colônia um pouco rançosa e a fumaça do cachimbo que teria fumado antes de sua chegada. A velha Elizabeth teria fugido para casa para se proteger de um homem tão descuidado como o Martin. Mas a atual, não só ficou ali, olhando e anotando mentalmente todas as suas necessidades, mas se sentia com a obrigação de fazê-lo. Talvez sua prioridade seria ensiná-lo como preocupar-se com sua aparência pessoal. Se pudesse dar beleza a um jardim escabroso, conseguiria fazer com que Martin cuidasse de sua imagem.

—Lembra-se onde fica a cozinha? —Elizabeth perguntou virando à direita para entrar na casa pela terceira vez em menos de um dia.

—Corredor direito, terceira porta à esquerda —respondeu Martin de forma mecânica, pois não conseguiu fazê-lo de outra maneira.

Aquela proximidade entre ambos, sentir seu inebriante perfume e observar seus olhos, seu nariz e seus lábios tão próximos, o deixou completamente atordoado.

—Muito bem —comentou Eli esboçando um enorme sorriso—. Nesse caso, vamos preparar o café da manhã para nós dois. Mas aviso que não poderei ficar muito tempo. Minha mãe e eu decidimos nos reunir esta manhã com o senhor Spolven para entrevistar vários empregados —explicou enquanto entrava na casa. Quando descobriu que Martin ainda estava imóvel na entrada, o esperou—. Não concorda?

—Parece-me uma ideia muito acertada. Embora tenha certeza de que não precisará da ajuda de sua mãe. É capaz de fazê-lo sozinha com bastante perícia —respondeu depois de fechar a porta. Logo, caminhou para ela e parou a seu lado.

—Eu sei —respondeu Elizabeth ao tempo que se seguiam para a cozinha.

Naquele momento, percebeu como seu peito se expandiu de felicidade e orgulho. Foi o primeiro homem a confiar em seu esforço e capacidade. O primeiro que não a olhava como um lindo vaso para expor, mas como um igual. O único homem com quem se sentia tão segura, que podia permanecer mil anos a seu lado sem ter medo...

Quando Mary fez referência a suas irmãs, expôs que tinham gostos muito diferentes. A mais velha gostava de pintar, a gêmea de cabelos brancos adorava disparar e vestir roupas masculinas. A caçula das Moore passava os dias bordando, tocando piano ou preparando doces. Sobre Elizabeth, que ele se lembrasse, insistiu em deixar claro que há alguns anos não saía da estufa. Parecia que vivia nela, pelas horas que passava lá. Também lhe falou da sua falta de interesse pelos afazeres domésticos e brincou sobre uma morte por fome se algum dia abandonasse a casa de seus pais. Mary não conhecia a irmã ou ele tinha se tornado testemunha de um milagre. Desde que entrou na cozinha, Elizabeth se moveu com destreza e confiança. Encontrou um pano com o qual limpou a mesa e as duas cadeiras em que se sentaram. Depois mexeu nas gavetas até que encontrou um par de velas para iluminar o interior. Quando as colocou em duas jarras de vidro, esteve a ponto de lhe explicar que havia eletricidade por toda a casa, mas não falou. Talvez porque lhe pareceu mais íntima a cálida iluminação que estas ofereciam. A seguir, Elizabeth retirou tudo o que tinha trazido no cesto e colocou-o na mesa como se ambos estivessem fazendo um piquenique. Assombrado pelo conforto que ela mostrava ao seu lado, se sentou, apoiou os cotovelos na mesa e a observou em silêncio e sem piscar.

—Gosta de chá? —perguntou com a pequena chaleira nas mãos.

—Sim.

—Puro ou com leite? —insistiu em saber depois de encher a xícara com a bebida quente.

—Com leite, por favor —Martin respondeu sem tirar os olhos dela.

—Açúcar? —continuou Elizabeth derramando um pouco de leite.

—Três—conseguiu dizer.

Ela os adicionou à bebida e começou a mexer com uma colher. Quando o açúcar se dissolveu, lhe ofereceu a xícara. Em seguida, colocou o pão em um prato, untou melaço e estendeu-o. Depois disso, descascou as laranjas, dividiu-as em vários pedaços e distribuiu-as.

—Essas laranjas nasceram na minha estufa —Elizabeth comentou depois de morder um pedaço de laranja. Percebendo o suco escorrendo pelo queixo, ela pegou um guardanapo e se enxugou rapidamente—. Garanto que são as mais doces de Londres—acrescentou.

—Quando esta fruta amadurece? —Martin perguntou, rapidamente desviando o olhar daquele queixo que devia ser tão delicioso quanto suco.

—Da laranjeira começa a brotar a laranja no final de outubro. Mas eu não as colho até meados de novembro. Quanto mais tempo as deixo na árvore, mais suculentas ficam —comentou orgulhosa.

—É nativa?

—Não. Logan me trouxe da Espanha faz cinco anos. Quando me entregou, tinha apenas três palmos de altura e parecia que a viagem de barco o tinha adoecido. Pensei que não resistiria... —explicou pegando outro pedaço—. Mas resistiu. Agora é uma laranjeira forte, robusta e saudável —alegou antes de comer o novo pedaço que escolheu.

—Sua irmã Mary me contou que cultiva espécies tão raras que muitos botânicos pediram a seu pai permissão para poder estudá-las —indicou Martin depois de provar um pedaço de laranja e confirmar que era muito doce e saborosa.

—Sim —murmurou enxugando os lábios com o guardanapo.

—Por que usou esse tom de voz para me responder? Não gosta que visitem sua estufa? —perguntou estreitando os olhos.

—Não gosto que peçam permissão ao meu pai para fazê-lo. Quem cuida delas sou eu e é a mim a quem deveriam perguntar se quero que as visitem ou não —disse com raiva antes de colocar outro pedaço na boca.

—Pois se não quiser, negue-se. Está em sua casa e é seu direito —comentou Martin antes de dar uma mordida no pão.

Outra resposta que deixou Elizabeth atônita. Como era possível que fosse tão compreensivo? Outro homem em seu lugar teria apresentado uma série de razões pelas quais nunca deveria se recusar, a começar pelo fato de viver na casa de seus pais e sob sua proteção. No entanto, Martin reafirmou, com esse pensamento, que era muito diferente de todos os homens que tinha conhecido. Sentiu o seu peito cheio de calor e calma. Até os batimentos do seu coração se tornaram lentos, como se este não existisse. Olhou para ele com carinho, inclusive com devoção. Sem dúvida alguma, Martin Giesler era um espécime tão único que a mulher com quem se casasse seria a mais afortunada do mundo. Ao pensar nisso, tossiu e o pedaço de laranja que tinha tentado engolir, ficando preso na garganta.

Estava ficando sem ar. Tentou respirar pelo nariz, mas não alcançou seus pulmões. Sentiu seus olhos se encherem de lágrimas e começou a perder as forças. Sempre se perguntou como iria morrer, mas nunca pensou que iria morrer de uma maneira tão boba: engasgando com um pedaço de laranja e na casa de Martin. O que seus pais pensariam quando ele lhes desse a notícia? Nunca acreditariam que apareceu para lhe trazer o café da manhã. Mesmo assim, aceitariam a versão para evitar a humilhação social. Entretanto, o odiariam. Sim, o odiariam até o dia em que também morressem por tê-la deixado entrar em sua casa naquele momento.

Continuou sufocando enquanto sentia a alma se afastar de seu corpo. De repente, não estava mais na cozinha de Martin ou ao lado dele, mas na floresta. Maldita Morgana por levá-la lá de novo! Ela a mataria por não aceitar sua decisão? Ouviu o corvo e a voz de sua mãe criadora. À distância, observou o fogo. Seus pés estavam indo em direção a ele. Olhou para o pássaro quando este gritou tão alto que seus ouvidos doeram. Voou sobre ela novamente, então dobrou as asas e voou em direção ao fogo...

—Meu Deus! —Martin exclamou, levantando-se rapidamente de sua cadeira. Sem pedir sua permissão e sem pensar em fazê-lo, ele veio por trás dela e pressionou as duas mãos em seu abdômen, bem entre o umbigo e a extremidade do esterno.—. Vamos, Elizabeth! —exclamou ao fazer várias compressões—. Cuspa, querida!


IX


O pedaço de laranja saiu de sua boca e finalmente conseguiu respirar.

Elizabeth levou as mãos à garganta para aliviar a dor. Seu peito subia e descia agitado. Suas mãos tremiam e seus batimentos cardíacos continuavam frenéticos. Quase morreu sufocada, mas Martin a impediu de fazê-lo. Ela baixou o olhar para as mãos manchadas de tinta que continuavam pressionando sua barriga. Os braços de seu salvador continuaram a envolver sua cintura como se temesse a chegada de uma segunda asfixia. Respirou fundo, enchendo os pulmões de ar, e piscou para afastar as lágrimas derramadas durante aquele momento agonizante.

Estava viva graças a ele...

—Está melhor? —lhe perguntou depois de se afastar muito lentamente de seu lado.

Não tinha voz. De sua boca não brotou nem uma só palavra. Mas estava bem e estranhamente lúcida, como se o terrível acontecimento a tivesse libertado de um amargo pesadelo. Virou-se rapidamente para a Martin. Não só para apaziguar a sua inquietação, mas para lhe assegurar, através da expressão do seu rosto, que o perigo tinha passado. Conseguiu ver seu rosto, mas ela não podia observar o dele. As últimas lágrimas que ainda cobriam seus olhos provocaram uma imagem turva deste. Ainda assim, notava sua presença muito próxima. Movida pela emoção do momento, atirou-se a seus braços sem pensar duas vezes e agarrou-se ao peito masculino que respirava agitado depois de viver uma situação tão horrenda. Sentindo-se abrigada e protegida por Martin, fechou os olhos e começou a chorar. Desabafando, através desse pranto, do ocorrido e do pesar acumulado durante anos.

Com hesitação, aqueles braços que a salvaram, tocaram-lhe nas costas. Ele aceitou, no início com dúvidas e depois com firmeza, esse novo contato entre eles. Nunca pensou que o abraço de um homem seria tão necessário para ela. Talvez porque, até o momento, não tinha conhecido alguém que lhe transmitisse tanta bondade, ternura e paz.

—Não pode conversar enquanto come —sussurrou—. Os engasgos são muito frequentes quando se quer respirar e ingerir ao mesmo tempo —prosseguiu.

Se estivesse em outro lugar e vivesse outro momento, teria rido ao ouvi-lo, pois Mary usaria essas mesmas palavras para repreendê-la. Mas ele não a repreendia, só lhe informava de um fato enquanto continuava a abraçá-la.

Durante pouco mais de cinco minutos, continuou a seu lado, chorando sem consolo. Ao sentir em suas bochechas a umidade da camisa de Martin, percebeu que agia inadequadamente. Não podia se sentir tão cômoda em seus braços, nem desvendar com tanta leveza sua debilidade. Apesar de tudo, continuavam sendo dois estranhos. Mas quando começou a se afastar, sentiu frio novamente e os tremores voltaram. Por um segundo desejou retornar aos seus braços para apaziguar esse renascido mal-estar. Mas não o fez porque sua mente insistia que não seria correto nem sensato.

—Obrigada —soluçou depois de se afastar muito lentamente.

—Não me agradeça —respondeu colocando as mãos sobre seus ombros, como se entendesse, sem necessidade de palavras, que a aproximação tinha que terminar pelo bem de ambos—. Qualquer pessoa no meu lugar o teria feito.

Talvez tivesse razão. No entanto, não era uma pessoa desconhecida, mas ele. Elizabeth levantou lentamente o rosto até que seus olhares se encontraram, e se surpreendeu ao encontrar, atrás dos cristais das lentes, olhos azuis cheios de medo. Sofria por ela ou pelo fatídico desfecho que teria tido? Quis perguntar-lhe. Sua mente e seu coração ansiavam pela resposta, mas se recusou a fazê-la. Entre eles não havia nada além de um acordo de trabalho. Todo o resto era sua imaginação.

—Não sei o que dizer —comentou finalmente Elizabeth olhando-o fixamente.

—Não precisa dizer nada. Só preciso observar que respira corretamente —respondeu.

Mágico. Apesar do que aconteceu, Martin achou que estava vivendo um sonho maravilhoso, e este aumentou quando o tocou no queixo, na boca e até na área do pescoço, que a camisa não escondia, com a sua respiração. De repente, um efeito estranho e fascinante percorreu seu corpo, convertendo-o em um ser forte e poderoso. Que diabos acontecia? Parecia que ao se aproximar dela havia adquirido uma energia insólita. Olhou-a nos olhos, esperando obter a resposta ali. Logicamente, aquelas lindas írises azuis que brilhavam pelo reflexo da luz das velas não explicaram nada, exceto que Elizabeth continuava chocada.

Queria colocar distância entre eles, mas seus pés não andaram para trás, talvez porque sua mente tinha decidido ficar lá, ao seu lado. Optou por continuar falando para romper esse silêncio que haviam criado quando seus rostos ficaram tão próximos. Tampouco conseguiu dizer uma só palavra. Sua beleza o deixou mudo. Sem pensar nas possíveis consequências do atrevimento, suas mãos tomaram o rosto de Elizabeth e os polegares, trêmulos ante esse contato, afastaram com cuidado as lágrimas que deslizavam pelas bochechas. Engoliu saliva. Porque sentiu um nó na garganta ao observar que aceitava suas carícias fechando os olhos e inspirando fundo. A pele recuperou a sua antiga cor vermelha quando ele a percorreu com a ponta dos dedos. De repente, saiu do interior de seu peito um fogo tão intenso que sentiu como ardia cada parte de seu ser. Se sua mente não fosse tão racional, pensaria que o enfeitiçara. Mas ele não acreditava em bruxarias. Seu cérebro deduziu que a aproximação entre eles aumentou a atração que sentia desde que a viu pela primeira vez. No entanto, até agora, tinha controlado todos os seus desejos passionais quando Elizabeth estava ao seu lado. Agora queria apertá-la de novo em seus braços, beijá-la e saborear seus lábios. Assombrado pelo estranho anseio que lhe despertou sem pretender, afastou rapidamente as mãos e deu dois passos para trás.

—Tem que contar ao seu pai o que aconteceu—começou a dizer com um tom que não pretendia usar, mas que saiu de sua boca sem que pudesse evitar.—. Se considerar adequado que descanse durante o resto do dia, deveria obedecê-lo.

—Não! —exclamou Elizabeth abrindo de repente os olhos—. Estou bem, eu juro.

—De qualquer forma, seria aconselhável que a examinasse. Como compreenderá, não sou um perito nesse assunto e minhas conjecturas poderiam ser equivocadas —disse obrigando sua mente a não pensar mais nesse contato, nem na proximidade, nem no desejo de beijar seus lábios.

—Martin —comentou Eli pegando-lhe uma mão para envolvê-la entre as suas—, garanto que me sinto bem.

Deus! Por que o tocava? Por que não se afastava dele? Não estava consciente do ardor tão imenso que crescia em seu interior? Só queria beijá-la e abraçá-la de novo. Queria sentir o seu calor, inspirar seu perfume e descobrir se aqueles lábios sedutores teriam o doce sabor da laranja que esteve prestes a sufocá-la. «Maldição!» exclamou para si mesmo ao observar como ela fechava com suavidade aquela boca sensual.

—Deveria ir embora —expressou, embora não sabia muito bem se tinha dito com força suficiente para que ela o escutasse.

—Sim—Eli respondeu após soltar sua mão—. Tem razão. Já o incomodei o suficiente. —Durante alguns segundos continuou a observá-lo, esperando ouvir que ela não o incomodava, tal como havia dito quando chegou. Mas manteve-se em silêncio, absorto em seus pensamentos. Confusa pela mudança de atitude, caminhou até que seu ombro esquerdo quase tocou o direito de Martin—. Não precisa me acompanhar, sei onde está a saída —acrescentou com um halo de tristeza.

—Tenha um bom dia, Elizabeth —disse olhando para a frente.

—Igualmente, Martin —respondeu antes de abandonar a cozinha.

Uma vez que ficou sozinho, colocou as mãos sobre a mesa, abaixou a cabeça e expeliu o ar que segurava. Perto. Tinha estado muito perto de cometer o maior erro da sua vida. Porque se a tivesse beijado, ela teria ficado assustada e alegaria qualquer desculpa para não trabalhar com ele. Isso destruiria o plano que tramou desde que a conheceu, cujo objetivo era passar o maior tempo possível juntos para que Elizabeth se sentisse segura a seu lado. Além disso, precisava ser cuidadoso. Considerando o que aconteceu com seu antigo amor, não seria fácil conquistar um coração partido. No entanto, depois de viver ao seu lado... Como poderia dar-se o tempo que estipulou necessário? Adorou tê-la em casa e ver como se envolvia. Sem contar com a satisfação que sentiu ao tocá-la, ao consolá-la e descobrir que não evitava nem sua presença nem suas carícias. Talvez fosse devido à emoção e ansiedade do momento. Sim, o mais lógico era analisar minuciosamente o que havia acontecido entre eles. Embora tivesse a certeza de uma coisa, Elizabeth se preocupava e faria tudo o que estivesse ao seu alcance para ajudá-lo no seu trabalho. Ao pensar nisso, franziu a testa. Que opinião teria quando descobrisse a que se dedicava e para quem trabalhava? Com certeza deixaria de pensar que era uma boa pessoa e rejeitaria qualquer aproximação. Talvez até se arrependesse de tê-lo conhecido...

Levantou lentamente a cabeça e ficou olhando para tudo o que ela colocou sobre a mesa. Teria lhe preparado aquele magnífico café da manhã se soubesse a verdade? Um impulso brotou da profundidade de suas entranhas. Um que o fez sair da cozinha e correr para a saída. Ele precisava contar tudo. A sua paixão não o fez pensar nos problemas que teria quando descobrisse que trabalhava para uns americanos. Angustiado, percorreu o corredor, escutando o eco de seus passos urgentes. Não sabia como começaria a conversa. Nem como ela reagiria ao ouvi-lo. Da única coisa que era consciente era que devia enfrentar tudo isso com sinceridade.

Elizabeth se afastou da cozinha pensando no que havia acontecido lá dentro. Continuava sem compreender o motivo pelo qual se atirou em seus braços e chorou. Não tinha se mostrado tão fraca nem com Mary, e isso que a encontrou com uma adaga de Josephine nas mãos. Mas Martin era um homem muito especial. Não aproveitou sua fragilidade para usá-la contra ela, nem tentou beijá-la quando ambos os rostos estiveram próximos. No fundo, e contra tudo o que pensou antes de conhecê-lo, teria adorado que a beijasse porque desse modo teria uma razão para não aparecer mais em sua casa. No entanto, ao não o ter feito, deixou-a em uma confusão e uma necessidade estranhas.

Suas mãos continuavam tremendo, seu coração batia com rapidez e sua boca ansiava por aquilo que não obteve. Ela tinha enlouquecido ou a mulher que cometeu tantos erros teria voltado? Antes de chegar à porta, virou-se para o corredor que tinha percorrido e pensou nessa possibilidade. A antiga Elizabeth não teria mostrado fraqueza, mas firmeza e teria feito todo o possível para seduzi-lo. Mas ela não agiu assim. Talvez Martin fosse o causador das suas preocupações. Talvez sua ternura, sua compaixão e a forma de se dirigir a ela denominando carinho a confundiram. Provavelmente tocou-lhe no rosto e olhou-a com carinho porque faria o mesmo com qualquer pessoa que tivesse sofrido um engasgo. Essa ideia encheu-a de fúria. Não tinha muito claro a razão, mas ao pensar que poderia tocar daquela maneira outra mulher, sua pele ficou vermelha pelo ódio.

Zangada por essa absurda conclusão, virou-se para a porta. Tinha que se concentrar no trabalho, na contratação dos empregados e em conseguir que aquela casa se transformasse em um lar acolhedor para Martin. O que poderia acontecer no futuro não era da sua conta. Mas quando estendeu a mão para girar a maçaneta, ouviu o eco de alguns passos. Seu corpo se encheu de uma estranha felicidade ao confirmar que retornava a ela, apesar de que lhe pediu que não a acompanhasse.

—Elizabeth! —gritou.

—Martin? —respondeu virando-se. Ao vê-lo tão desesperado, sentiu algo parecido a uma sacudida, a mesma que teria uma pessoa ao ser atravessada por um raio. Embora sem dor, mas sim felicidade.

—Preci... preciso...—gaguejou devido ao esforço e fadiga dessa pequena corrida—. Quero dizer que...

Não pôde falar. Um dedo pousou em seus lábios para fazê-lo calar. Martin notou uma estranha tensão em seu corpo, como se seus músculos tivessem se transformado em barras de ferro. Piscou e a olhou com uma mistura de confusão e espanto.

—Não se preocupe comigo. Juro que estou bem. Por mais que insista, não vou pedir uma opinião médica ao meu pai porque não preciso dela—falou, como se essa fosse a resposta ao que ele queria dizer.

—Mas...

—Tal como disse durante a tarde de ontem, não há “mas” entre nós, Martin. Vou continuar com a tarefa para a qual me contratou. Precisa urgentemente de um serviço para atendê-lo. Assim, também não estará sozinho —acrescentou esboçando um leve sorriso.

Quis declarar que não estava sozinho quando ela estava presente, que se sentia só quando não estava ao seu lado. Mas foi incapaz de confessar esse sentimento tão profundo. Então o guardou para si.

—Está bem —finalmente desistiu—. Sabe melhor do que ninguém como se sente, então quem sou eu para refutar sua decisão.

Elizabeth se emocionou ao ouvi-lo respeitar sua opinião. Era único. Sim, já não tinha dúvida disso. Martin era um ser único em sua espécie.

—Nos veremos esta tarde —comentou olhando-o com carinho e devoção.

—Prometo que estarei esperando —manifestou depois de respirar fundo e aceitar que não era o momento de lhe confessar em que trabalhava.

—Eu sei —Elizabeth disse antes de dar-lhe um beijo na bochecha.

Em seguida, virou-se e voltou para casa com uma estranha sensação de bem-estar.


Sophia não parava de olhá-la. Algumas vezes o fazia de frente, mas na maioria, a observava de canto de olho. Ficou confusa e surpresa desde que apareceu em seu quarto ao amanhecer. Passaram-se anos desde que concordou com isso, sem ligar! Por sorte, Randall estava no banheiro quando Elizabeth bateu à porta.

—Mãe, está acordada? —perguntou ao chegar aos pés da cama.

—Sim, filha. Já estou acordada —respondeu ao sentar-se—. Aconteceu algo?

—Nada. só queria informar que a espero no salão para o café da manhã —explicou.

—Dormi demais? —disse afastando o lençol com rapidez.

—Não, são apenas sete horas...

—Sete horas? O que faz acordada a esta hora? —espetou abrindo os olhos como pratos.

—Lembre-se que temos que ir ao escritório do senhor Spolven e não quero chegar tarde. Se o fizermos, terão selecionado os melhores criados para outra residência —respondeu com um sorriso.

—O que aconteceu? —perguntou Randall saindo do banheiro vestido com uma longa camisola cinza.

—Pai, por Deus! Cubra-se! —exclamou Elizabeth entre gargalhadas enquanto tapava os olhos com as mãos.

—Elizabeth? Que diabos faz em nosso quarto a esta hora? —perguntou cobrindo-se com o tecido da cortina que estava à sua direita.

—Me espere na sala. não demorarei em descer—Sophia pediu.

—Sim, mãe —respondeu Eli ao virar-se—. Pai, lembre-se que a cor cinza não lhe cai bem. Parece um defunto —alegou com diversão antes de sair do quarto.

—Ouviu o que sua filha me disse? —disse Randall ao caminhar até sua esposa.

—Sim, ouvi —afirmou Sophia com um enorme sorriso—. E tem razão. Parece um cadáver.

—Sophia! —o médico exclamou horrorizado enquanto ouvia as intermináveis gargalhadas de sua mulher.

Elizabeth colocava os legumes que tinha adquirido no último estabelecimento na sacola, alheia ao olhar desconcertado de sua mãe. Uma vez que os colocou corretamente, endireitou seu corpo e se virou para Sophia.

—Terá suficiente para Shira preparar um de seus fabulosos guisados? —lhe perguntou ao segurá-la para empreender o caminho de volta à sua casa.

Estava ansiosa para chegar e ajudar na cozinha. Assim que o almoço estivesse pronto, visitaria Martin e explicaria tudo o que fizera durante sua ausência. Ficaria satisfeito? Tinha a certeza que sim, desde que não comesse na frente dele. Ao lembrar o incidente, como se sentisse seus braços novamente enredados em seu corpo, corou.

—Com a quantidade que tem aí poderá cozinhar ao menos durante três dias —comentou Sophia reparando no rubor que as bochechas de sua filha mostravam.

—Não sou muito boa nisto, não é? —preguntou angustiada.

—Fez corretamente. Estou muito orgulhosa, Elizabeth. Nunca pensei que aguentasse tantas horas entrevistando criados ou que tivesse paciência para isso. Embora preciso que me responda uma pergunta.

—Qual? —disse parando no meio da rua.

—Por que disse aos criados que contratou que não vão morar na residência de Martin? Ele pediu isso?

—Não —respondeu retomando o passo—. Mas sei que vai aceitar a minha decisão quando lhe explicar que o fiz para que não fosse interrompido. Segundo aprendi, deve ter absoluta tranquilidade e silêncio para se concentrar no trabalho que realiza.

—Entendo... —sussurrou Sophia mais surpresa, se isso fosse possível, pela repentina solidariedade de sua filha—. Mas pode não gostar da ideia de não encontrar sua nova cozinheira antes das dez da manhã. Um matemático que trabalha a noite toda vai precisar de um bom café da manhã —insistiu.

Ela cuidaria do café da manhã. Depois de deixar a residência de Martin, determinou que incluiria essa tarefa como a primeira em seu trabalho diário. Desta forma, lhe diria o que planejou fazer pelo resto do dia e ele poderia lhe explicar se parecia correto ou se precisava mudar algo no plano.

—Elizabeth? —perguntou quando viu que estava sorrindo sem motivo aparente.

—Mãe, não se preocupe. Me sairei bem, —disse para acalmá-la.

—Não tenho dúvidas sobre isso. No entanto, meu dever como mãe é saber tudo o que minhas filhas fazem caso precisem de minha ajuda. —Sophia explicou, apertando seu antebraço com amor.

—Por enquanto, só posso dizer que estou muito confiante e feliz. Talvez tudo se deva a Mary—opinou esboçando um grande sorriso—. Viver com ela durante mais de 20 anos deu-me experiência suficiente para saber o que Martin precisa. Por esse motivo, concluí que dois dos meus objetivos devem ser que esteja bem alimentado e que nada nem ninguém o distraia —acrescentou olhando para a frente.

—Garanto-lhe que no segundo terá um sucesso maravilhoso —apontou sarcástica.

—Por quê diz isso? —perguntou levantando uma sobrancelha.

—Porque contratou as criadas mais silenciosas que pôde encontrar. Não digo isso como objeção, mas sim como surpresa. Não se deu conta que poderiam ser suas avós? —declarou irônica.

—Eram as mais aptas —resmungou inquieta—. As quatro jovens com quem falamos não poderiam se manter em silêncio e sua algazarra terminaria incomodando Martin.

—Claro. E não quer que isso aconteça, certo?

—Exato—garantiu com rapidez.

—Porque sua única pretensão é que Martin permaneça fechado em seu escritório todo o tempo possível e, logicamente, o ruído que fariam as moças com suas risadas e conversas o fariam sair de lá antes que estivesse presente, estou errada? —continuou mordaz.

—O que insinua? —perguntou virando-se para ela—. Pensa que senti ciúmes ao vê-las tão jovens e bonitas?

—Eu? Impossível! Estou ciente de que é a mulher mais bonita de Londres e que ninguém poderia te fazer sombra. A única coisa que me pergunto é se Martin reparou nisso.

—Mãe! —exclamou depois de suspirar—. Martin não é desse tipo de homem. Ele jamais...

Elizabeth apertou os lábios ao observar as duas pessoas que se aproximavam. De repente, começou a sentir uma terrível dor no peito, como se Mary o tivesse aberto com um bisturi. Agarrou com força o braço de sua mãe, para se segurar, e tentou controlar o tremor de suas pernas. Que diabos fazia em Londres? Quando tinha chegado?


X


Sophia olhou de relance para Elizabeth depois de sentir como apertava seu braço. Deduziu que se agarrava desse modo para suportar a angústia que sofreria quando Archie a cumprimentasse. Porque o faria. A expressão de seu rosto delatava. Desejou lhe dar uma bofetada para que apagasse aquele sorriso petulante. No entanto, tinha de adquirir algum autocontrole e comportar-se adequadamente para não criar um escândalo. Todo mundo se perguntaria o motivo de sua atitude e retomariam os rumores sobre a possível relação que houve entre eles.

Porque existiu. Embora Elizabeth jamais tenha dito nada a respeito, não tinha nenhuma dúvida de que se viam às escondidas. Nunca tentou conseguir informações. Talvez porque era mais do que evidente a atração que existia entre eles. Ainda se lembrava das horas que a filha passava em frente ao toucador antes de ir a uma festa e das desculpas absurdas de Archie para procurá-la. Na verdade, ninguém podia negar que formavam um belo e invejável casal. Mas a filha de um médico não era o suficiente para a condessa viúva. Sempre as olhou por cima do ombro. Quando o seu marido estava para morrer na cama e Randall passou dez dias ao seu lado tentando livrá-lo da morte, aquela mulher horrível não foi capaz de lhe agradecer pelo seu esforço. Mas acontece que o seu filho era tão infame quanto a mãe e, depois de prometer um mundo idílico, abandonou-a para casar com uma dama da nobreza. Nunca se atreveu a perguntar o que aconteceu durante esses encontros clandestinos. Talvez porque não desejasse confirmar suas suspeitas. Embora o comportamento frívolo que sua filha mostrou desde então, lhe desse a resposta.

Sophia continuou a observá-la e sua raiva aumentou quando descobriu que a velha Elizabeth, aquela que agia superficialmente, estava voltando. Ergueu o queixo, endireitou as costas e seu rosto não mostrou nenhuma emoção de perplexidade. Ficou muito triste porque não achava justo que Elizabeth acordasse irradiando felicidade e terminasse o dia qualificando-o como um dos piores de sua vida. Infelizmente, o bem-estar que a companhia de Martin lhe proporcionara acabaria imediatamente. Por que o destino era tão cruel? O que poderia fazer para ajudá-la?

—Se desejar, podemos voltar à trás. Sabe muito bem que não me importo com o que as pessoas pensam de nós. -Sugeriu, esperando que aceitasse a alternativa. Mas pela maneira como as suas costas estavam retas, imaginou que rejeitaria imediatamente.

-Não, mãe. Devemos nos comportar com naturalidade, não só pelas fofocas que nossa conduta inapropriada provocaria, mas porque Archie acreditará que não o esqueci e que continuo magoada por seu desprezo.

-E teria razão em pensar isso? -perguntou Sophia olhando para os dois homens.

-Não -respondeu com firmeza.

Em parte, não a estava enganando. Era verdade que ainda se sentia magoada por tê-la rejeitado. Essa foi a razão pela qual cometeu tantos erros em suas decisões por quatro anos. Mas havia mudado. Sua atitude perante a vida passou por uma transformação incrível e amava ser a pessoa que se tornou. Desde que aceitou sua nova vida, não precisava encontrar um marido para salvaguardar sua dignidade e não tinha obrigação de provar nada a ninguém. Queria continuar a ser Elizabeth Moore e desfrutar do pouco que conseguia com um sorriso nos lábios. De repente, enquanto observava Archie examiná-la com seus olhos e apreciar o que via, uma ideia veio à sua mente que a deixou mais tensa, se é que isso era possível. Não podia ser verdade. Seria uma maldita coincidência porque, se sua conclusão fosse real, morreria antes de aceitar o desejo de Morgana.

-Pena que Josephine tenha decidido aproveitar a nossa ausência para cavalgar. Hoje teria permitido que nos acompanhasse com aquelas armas que esconde na faixa -Sophia murmurou ao confirmar que o Sr. Flatman, amigo e companheiro do seu marido, sorria ao dirigir-se a elas.

-Por que está vestido de preto? -Elizabeth soltou através de um sussurro.

-Talvez sua modesta e humilde mãe tenha morrido -Sophia disse mordaz.

-Mãe, por favor! -respondeu segurando com força a alça da sacola de pano onde guardava os legumes-. Não é do seu feitio falar assim dos mortos.

-Lembre-se de que sou um Arany e posso falar o que quiser -Sophia assegurou ao responder com um sorriso à saudação distante do médico.

-Sim, me lembro. Assim como tenho gravado a fogo que uma Arany nunca se ajoelha.

-Exato! Nós levantamos nosso queixo e nos comportamos com dignidade -indicou.

-Apesar de nossos erros? -perguntou virando o rosto para sua mãe.

-Isso nos torna mais fortes -assegurou antes de respirar fundo e esperar a chegada dos dois homens.

Elizabeth desviou o olhar da mãe e se concentrou em Archie. Não mudou em quatro anos. Ouviu em algumas conversas femininas que muitos cavalheiros negligenciavam sua imagem ao se casar. Ele não estava entre eles. Havia pequenas rugas em seu rosto ao redor dos olhos, mas não o faziam parecer feio, apenas o tornavam atraente. Sua compleição alta e atlética ainda estava intacta e o terno que vestia, apesar de ser preto, realçava aquela silhueta masculina esguia. Ficou surpresa por não se sentir mais atraída por ele. Sempre imaginou que se o visse novamente, as emoções do passado voltariam. Não foi assim. Apesar de irradiar sedução, seu coração não disparou nem sentiu o sangue bulir em suas veias. Tudo o que sentia por Archie era repulsa por ter confirmado que a olhava com malícia. Em meio a esse turbilhão de pensamentos, lentamente virou o rosto até olhar para Flatman. Devia se concentrar no amigo de seu pai para controlar a vontade de vomitar.

-Sra. Moore, Srta. Moore -o médico começou a saudação ao ficar em frente a elas-. Bom Dia.

O brilho nos olhos de Archie aumentou ao ouvir o médico se referir a Elizabeth como senhorita.

-Bom dia Sr. Flatman -respondeu Sophia notando o tremor da mão de sua filha.

-Hoje o destino sorri para mim -comentou após levar a mão à aba de seu chapéu.

-Por que motivo? -continuou a conversa Sra. Moore.

-Porque foi uma sorte tê-la encontrado -continuou o doutor com verdadeiro entusiasmo-. Neste exato momento, estávamos indo para sua casa. Preciso conversar com Randall. -Depois de falar, virou-se para Archie-. Não sei se conhecem Lorde Gharster.

-Lorde Gharster -Sophia disse fazendo uma pequena genuflexão depois de se soltar de Eli.

-Senhora Moore -Archie Respondeu.

-Milorde -Elizabeth comentou imitando sua mãe.

Mas o Archie não se contentou com aquela pequena saudação e deu um passo em frente para lhe beijar a mão. No entanto, o sorriso que exibia em foi removido de seu rosto ao ver que se recusara a mudar de braço a bolsa de tecido.

-Encontrarei Randall em sua casa? Como disse, preciso lhe falar com urgência -Flatman interveio, tão concentrado em saber a resposta que não percebeu a atitude rude de Eli.

-Não. Tinha que sair antes das dez. Uma das criadas de Lady Songher pediu-lhe que fosse à sua residência para ajudá-la no parto. -Explicou enquanto aplaudia mentalmente o desafio silencioso de sua filha.

-Não entendo porque continuam a ter filhos em casa... -o médico murmurou indignado.

-Porque se sentem mais confortáveis -Sophia revidou.

Flatman achava que as mulheres deviam deixar as suas casas para serem atendidas no Barts. Entretanto, aquele homem era incapaz de entender que uma parturiente não desejava ser observada, nem estudada por meia dúzia de jovens médicos, durante um momento tão importante. O melhor para elas era encontrar o apoio daqueles que as amavam e sentir a segurança de sua casa. Por esse motivo recorriam a Randall, porque ele sim as compreendia.

-Teremos que vê-lo em outro momento -Flatman comentou com Archie, que respondeu com um leve aceno enquanto olhava para Eli de maneira estranha.

-Não sei a que horas voltará. Como bem sabe, os partos podem durar horas ou até dias. Mas prometo que, quando aparecer em casa, direi que deseja vê-lo -insistiu Sophia com audácia pois suspeitou que Archie era o motivo pelo que desejava falar com Randall. Mas com que propósito?

-Serei muito grato se fizer isso. Embora realmente temo que não ficará livre até a noite -disse estreitando os olhos, ao considerar outra ideia-. Talvez... -começou a dizer olhando para Archie-. Lorde Gharster, seria um problema que eu visite seus filhos hoje e o senhor Moore amanhã?

-Nenhum. Acho que será o melhor -respondeu Archie mostrando um sorriso tão grande que Elizabeth pôde confirmar que não lhe faltava nem um só dente.

-Estão doentes? -Sophia retrucou preocupada. Odiar o homem que partiu o coração de Eli não era motivo para desejar o mal a essas criaturas. Haviam nascido alheios aos atos cruéis de seu pai.

-Espero que não -respondeu o conde-. No entanto, depois da morte de minha mãe e esposa por febres estranhas, quero ter certeza de que estão saudáveis. -Acrescentou concentrando o olhar em Sophia.

-Sinto muito -comentou com verdadeiro pesar-. Deve ter sido uma enorme tragédia para o senhor perder duas mulheres tão importantes em sua vida. Não posso imaginar a dor que devem sentir esses pequenos sem sua mãe... -acrescentou com um nó na garganta.

-É a parte mais cruel desta história, Sra. Moore, meus filhos ficaram órfãos de mãe. Além de encontrar os melhores médicos da Inglaterra e confiar nos seus conhecimentos, decidi que, durante esta temporada, procurarei uma esposa. Desse modo, nem meus filhos nem eu sentiremos a ausência que Penelope nos deixou -explicou de forma casual.

Elizabeth não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Como pode ser tão insensível? Estava tão apaixonada que não viu sua verdadeira personalidade? Era um homem mau, assim como sua falecida mãe. Todo esse tempo passou acreditando que Archie agia como um ingênuo e agora, depois de quatro anos, descobriu que a maldade da condessa corria nas veias de seu filho. Bem, se mostrava tão descaradamente quem era, ela também mostraria seu sangue cigano. Respirou fundo, manteve o queixo erguido e manteve uma expressão neutra no rosto.

-Tenho certeza de que será muito difícil escolher uma substituta. Imagino que amou tanto a sua condessa que ninguém poderá ocupar o seu lugar -Sophia respondeu ajustando as luvas. Isso a distrairia e manteria ocupadas as mãos para não lhe dar o bofetão que se merecia ao falar desse modo.

-Espero que não. Meu propósito é encontrar essa alma em menos de um mês, me casar e voltar para Norwich o mais rápido possível. Como compreenderá, não posso descuidar meus deveres como conde. Além disso, não desejo que meus filhos se adaptem à vida na cidade -asseverou com firmeza, oferecendo em sua voz a segurança e confiança de um conde.

-Tenho certeza que não terá nenhum problema -interveio de novo Sophia-. O sonho de todas as filhas casadoiras da nobreza é casar com um viúvo com filhos. Assim, não se sentirão pressionadas a dar-lhe um herdeiro. Embora não tenha certeza se estarão dispostas a se converter em uma criada vestida de seda. -Acrescentou com sarcasmo.

-Senhora Moore, espero em que fale com seu marido -Flatman interveio com rapidez ao ouvi-la se dirigir daquela forma ao Conde.

-Prometo que assim que retornar o informarei -declarou Sophia segurando sua filha novamente pelo braço.

-Foi um prazer revê-las -Archie disse inclinando levemente a cabeça para frente.

-Milorde -respondeu Sophia e imediatamente olhou para o amigo de seu marido-. Tenha um bom dia, Sr. Flatman.

-Desejo-lhes o mesmo -respondeu antes de continuar andando.

Mas no instante em que Archie passou por ela, o tempo pareceu passar muito mais devagar. Ele diminuiu a velocidade, olhou-a, respirou fundo, e finalmente sorriu. Em todos os momentos Elizabeth manteve seus olhos sempre à frente, como se não fosse afetada por essa proximidade ou não estivesse sendo olhada de forma maliciosa. Estava certa de que pretendia lhe provocar algum tipo de emoção. Embora achasse que o resultado não seria do seu agrado.

-Como está se sentindo? -perguntou quando ambas atravessaram a rua e se desviaram pelo caminho que as levaria para casa.

-Sinto-me irritada, zangada, irada e com vontade de matar alguém -resmungou com tanta força, que lhe doeu a mandíbula-. Ouviu?

-Sim, claro que ouvi.

-E chegou à mesma conclusão que eu? -disse levantando a voz.

-Acalme-se, querida. respire fundo e me diga o que pensou e sentiu -Sua mãe pediu depois de dar umas pequenas palmadinhas em seu braço para acalmá-la.

-Não percebeu como me olhou? -perguntou mostrando em seu rosto desconforto e repulsa.

-Como qualquer homem faz -Sophia respondeu com prudência-. É uma mulher muito bonita, Elizabeth. já deveria estar acostumada a ser observada desse modo.

A antiga Elizabeth teria chorado emocionada ao vê-lo, ao ter conhecimento que precisava de uma esposa e que poderiam ter uma segunda oportunidade. Mas essa mulher tinha morrido.

-Planejou tudo. -Disse depois de rever mentalmente toda a conversa.

-O quê? -Sophia perguntou se virando para ela.

-Seu retorno a Londres e encontrar o Dr. Flatman. Ele sabe que sempre pede ao papai uma segunda opinião -respondeu agarrando com mais força a alça de sua bolsa. Ela mesma lhe ofereceu essa alternativa quando, na noite em que a deixou, lhe disse que sua mãe estava doente. Naquele momento, a rejeitou. Quatro anos depois, necessitava-a com urgência.

-Eu o compreendo. Se estivesse em seu lugar, agiria da mesma forma. Depois dessas mortes, quer evitar que seus filhos enfrentem o mesmo destino.

-Por que não procurou outro médico em Norwich? Se quem atendeu sua mãe e esposa não o agradou, com certeza teria muitas outras opções -Eli expressou parando no portão de entrada de sua casa.

-Porque precisa da opinião dos dois melhores médicos da Inglaterra -Sophia declarou com orgulho.

-Pela primeira vez está errada -disse virando-se para ela-. Conheço Archie e sei que não faz nada sem um bom motivo.

Virou-se lentamente para a residência de Martin e observou que tinha aberto todas as janelas do andar térreo. O que estava fazendo?

-E na sua opinião, qual pode ser? -insistiu em confirmar que sua suspeita e a dedução de Elizabeth correspondiam.

-Voltou para casar comigo -declarou sem hesitar um segundo.

-E quer se casar com ele?

-Não -afirmou antes de seguir em direção à entrada de sua casa segurando a sacola de legumes como se tivesse dez barras de ouro dentro.


XI


Josephine aproveitou a emoção e a felicidade da mãe quando se levantou para perguntar se poderia dar um passeio. Quando respondeu que sim, demorou menos de dez minutos para se preparar e sair de casa. Precisava sentir novamente a liberdade que lhe foi negada desde que Lorde Cooper apareceu em sua vida. Pensando nisso, Josephine franziu a testa e cerrou os punhos. Odiava-o com todas as suas forças porque era o causador de tudo o que lhe acontecia. Até seu pai parou de lhe comprar armas!

-Sem adagas, espadas ou armas -Randall lhe disse depois que Lorde Cooper, ou Eric, como insistia em ser chamado, saiu de sua casa com o rosto coberto por uma enorme gaze.

-Não se esqueça dos estilingues! Sua filha é capaz de lhe romper o crânio com uma pedra! -gritou Sophia colocando as mãos na cintura.

-Sinto muito, querida -comentou enquanto lhe dava um beijo na bochecha-. É hora de mudar de atitude. Uma menina da sua idade deveria aprender outras coisas.

-Que coisas? -perguntou estreitando os olhos.

-As coisas que sua mãe diz -declarou olhando para sua esposa.

Maldito fosse Lorde Cooper e sua insistência em arruinar sua vida! Por acaso nasceu com um retardo mental que o impedia entender o óbvio? Qualquer homem em seu lugar deduziria rapidamente que não estava interessada na sua companhia. Mas ele não considerou isso como algo óbvio e todas as tentativas de expulsá-lo não tiveram o resultado desejado. Só esperava que depois do que aconteceu em sua última visita, admitisse, de uma vez por todas, a realidade. Não diziam que os homens procuravam esposas dóceis? Pois se enganaram no que dizia respeito a Lorde Cooper.

-Senhorita Moore, que agradável surpresa! -O cavalariço a saudou enquanto saía do estábulo.

-Bom dia, senhor House. vim dar um passeio com o Galleon -disse estendendo-lhe a mão direita.

Como sempre, o trabalhador respondeu a essa saudação masculina sem se surpreender. Talvez fosse sua idade ou porque sentisse carinho ao vê-la cuidar de seu cavalo, mas o senhor House sempre a tratava como uma igual.

-Estou muito feliz por ele. Ultimamente está bem inquieto e nada do que faço consegue acalmá-lo -explicou o empregado.

-Espero que este passeio relaxe nós dois -comentou ao entrar no estábulo.

-Um ser com tanta vitalidade necessita tempo para encontrar o equilíbrio entre seu espírito selvagem e a doma -esclareceu o senhor House apoiando-se no marco da porta-. Mas estou certo de que acabará por encontrá-lo.

-Acredita que esse equilíbrio o fará feliz? -Josh perguntou, parando no meio do estábulo para se virar para ele.

-A felicidade não é algo exato nem confiável, senhorita Moore. Ninguém pode saber o que fará feliz o resto do mundo. Mas asseguro-lhe que o seu cavalo está neste momento.

Josephine voltou a se virar. Enquanto observava seu amigo se movimentar inquieto pela baia e relinchar de excitação, ponderou sobre as palavras de House. Era verdade que estava feliz, assim como ela, pois ambos sabiam o que aconteceria nas duas horas seguintes. Mas quanto tempo demoraria para que voltasse no futuro? Teve um golpe de sorte ao encontrar sua mãe tão alegre que não conseguiu lhe dizer não. Entretanto, estava ciente de que esse estado de paz terminaria ao anoitecer e que as restrições voltariam.

-Se precisar de alguma coisa, sabe onde me encontrar -disse o Sr. House se afastando da porta.

-Posso fazer uma última pergunta? -Josh comentou ao estender a mão para o focinho de Galleon e este se aproximar para sentir seu contato.

-É claro -respondeu parando imediatamente.

-O que devo fazer para que a felicidade perdure?

A confusão que o empregado sofreu nesse instante se refletiu em seu rosto, embora a jovem não pudesse vê-la. House presumiu que depois de tanto tempo sem aparecer, gostaria de saber o que o animal fez ou como tentou relaxar. Mas não se tratava disso. Temia que a menina, através da pergunta, pedisse um conselho para ela mesma. O que devia dizer para não ser imprudente? Ninguém, até o momento, lhe pediu opinião em assuntos que não fosse a criação e o cuidado dos animais. Nem tinha filhos para saber como agir. A única coisa que podia falar era de sua própria experiência.

-Só posso explicar o que eu faço para ser -admitiu com franqueza.

-E o que faz? -Josh insistiu atenta.

-Não procuro problemas -declarou.

-Só isso? -expressou virando o rosto para o funcionário enquanto suas mãos não paravam de acariciar a cabeça de Galleon.

-Não pense que é uma tarefa fácil. Todos os dias encontro inúmeros obstáculos que insistem em me desviar do meu objetivo.

-Quando aparecerem, foge deles? -perseverou intrigada.

-De jeito nenhum! -exclamou com um largo sorriso-. Combato-os. É a única maneira de obter a experiência necessária para eliminá-los da próxima vez que se apresentarem. Senhorita Moore -prosseguiu com entusiasmo a sua exposição-. A vida é uma guerra na qual dois soldados lutam pela vitória.

-Refere-se a vida e morte? -perguntou Josephine com atenção.

-Me refiro a tudo. Terá que decidir entre subir ou descer, entre amar ou odiar, correr ou saltar até mesmo deve pensar se gosta de comida salgada ou doce. Durante sua longa vida terá que ocupar o posto do soldado que mais lhe interesse. Entende o que lhe digo? -Josh assentiu-. O único que lhe aconselho é que não se renda, que encontre a coragem e a força para superar qualquer problema. Procure esse equilíbrio e a felicidade será maior que a tristeza.

-Compreendo... -disse enquanto abria a porta da baia-. Muito obrigado pela conversa, Sr. House, asseguro-lhe que foi de grande ajuda -acrescentou depois de dar uma palmadinha no largo pescoço de seu amigo quadrúpede.

-Sempre à sua disposição -alegou antes de sair e começar a rezar para que o conselho não o colocasse em uma nova confusão.

Uma vez que ficou sozinha, abraçou Galleon e permaneceu ali até que o animal, aborrecido e desesperado para sair, abriu a boca e puxou o laço com que Josephine amarrava sua longa trança.

-Está impaciente, certo? -Perguntou afastando-se-. Eu também.

Assim que amarrou o cabelo novamente, olhou para o fim do estábulo e procurou sua sela. Ao encontrá-la, caminhou em sua direção, seguida pelo animal. Durante o percurso, e escutando o ruído que faziam os cascos ao pisar o chão, Josephine pensou em como era injusto para Galleon sofrer as consequências de seu comportamento rebelde. Quando Logan lhe deu o animal, prometeu-lhe que cuidaria dele até ao fim dos seus dias. Era verdade que não lhe faltava alimento ou um teto onde descansar e que o senhor House o escovava e o tirava do estábulo diariamente. Mas Galleon queria estar com ela e pela emoção que mostrou ao vê-la, certamente que até pensou que o tinha esquecido. Isso não era verdade. Todos os dias se lembrava dele e ansiava pela sensação de bem-estar que lhe proporcionava estar a seu lado e cavalgar juntos.

Sem deixar de pensar na mudança que devia ter em sua atitude para não voltar a cair no mesmo erro, levantou a sela com ambas as mãos, virou-se para seu amigo e esperou que este se posicionasse corretamente para jogá-la em seu lombo.

-De agora em diante farei tudo o que estiver ao meu alcance para que não me castiguem -disse ao mesmo tempo que ajustava a cinta no ventre do cavalo-. Tenho sido uma egoísta e não entendi que meus atos também o prejudicavam. Prometo que não acontecerá mais. -Depois disso, balançou a sela para confirmar que estava bem adaptada ao peito do animal, pôs o arreio, lançou as rédeas sobre a crina e montou no dorso de um salto-. Vamos ao parque, com certeza haverá uma corrida da qual poderemos participar. Gostaria de fazer de bobo aqueles cavalos galantes? -perguntou, dando uma palmada em seu pescoço enorme e firme.

Galleon relinchou feliz. Em seguida, deixaram o estábulo como se não houvesse amanhã.


-Tem certeza que a caminhada não irá piorar sua saúde? -Elliot perguntou ao amigo enquanto levava a mão direita em direção ao chapéu para cumprimentar as duas jovens que passavam do outro lado da rua.-. Por causa da palidez do seu rosto, acho que deveria ficar na cama por pelo menos um mês -adicionou focando novamente em seu amigo.

-Eu estou bem. Caso contrário, não teria pedido para virmos andar no Hyde Park -Eric mentiu.

Nunca usava a mentira para conseguir seus objetivos, mas nesta ocasião o engano estava justificado. O rapaz a quem pagava para vigiar a casa dos Moore informou-lhe que Josephine tinha saído de sua casa. Embora o rapaz não tenha dito para onde ia, ele sabia. Por esse motivo, quando anunciaram que Elliot se estava em sua casa para visitá-lo, correu para o hall com o casaco posto.

-Se eu estivesse no seu lugar, teria dito a verdade -declarou o jovem Manners quando ambos entraram no parque.

-Que benefícios obteria dessa conversa? -espetou Cooper olhando impacientemente para a frente.

-Salvar sua vida? Alcançar a velhice? -respondeu com ironia.

-O senhor Moore já se ocupou disso. Disse-me que devia tomar durante dez dias um xarope para reduzir a toxicidade da planta e estou fazendo isso mesmo. Tenho certeza que em breve voltarei a ser o de sempre -declarou com um sorriso.

-Essa jovem teria que ser julgada por tentativa de assassinato! -Elliot trovejou com raiva-. Por acaso se tornou lerdo? Não está ciente do que pretende? Se continuar a agir assim, acabará debaixo da terra antes de completar vinte e dois anos.

-Não posso lutar contra o amor que meu coração sente por ela -respondeu com um enorme sorriso.

-Amor? Realmente inclui as palavras amor e luta em uma mesma frase?

-Sim -Eric afirmou categoricamente-. Estou apaixonado por Josephine Moore desde que a conheci.

-Acho que confundiu paixão com horror -resmungou Elliot.

-Não fiz isso -rosnou Cooper-. Estou muito seguro de meus sentimentos e ninguém impedirá que atinja meu objetivo.

Elliot ficou pensativo durante um bom tempo. Não conseguia encontrar as palavras adequadas para fazê-lo entender que não estava sendo sensato. A decisão que tinha tomado colocava-o em grave perigo e se não agisse imediatamente, um dia não abriria os olhos. No entanto, e apesar da amizade que tinham desde que eram crianças, não sabia como lhe explicar que devia esquecer a moça.

-Embora o que vou dizer possa pôr em perigo a nossa relação, tenho de ser sincero contigo -comentou Elliot olhando para seu amigo.

-O que quer me dizer? -soltou cansado pela insistência em fazê-lo compreender que seu amor por Josh não era real.

-Já parou para pensar que talvez não seja amor, mas capricho? Se bem me lembro, essa jovem é a única que não se aproximou com um propósito matrimonial. -Comentou Elliot com raiva.

-Ela não faria tal coisa -murmurou Eric.

-Por isso mesmo deduzo que é um capricho -insistiu o filho mais velho do Duque de Rutland.

-Não se trata disso...

-Então? Que diabos é? -perguntou desesperado-. Porque não consigo entendê-lo. Qualquer um em sua situação teria compreendido há muito tempo que essa jovem não o quer a seu lado. Se por acaso lhe falha a memória, lembro-o de que lançou uma adaga em sua perna e que permaneceu três meses andando com uma bengala. Também esqueceu por que ainda tem pequenas cicatrizes em seu rosto? Está perdendo tempo e vida para alcançar o impossível. A isso, querido amigo, chama-se obsessão. Digo isso com carinho, Eric. Precisa de ajuda com urgência. Se não falar com seu pai, talvez eu deva fazê-lo -garantiu categórico.

-Se o fizer, me apresentarei em sua casa e explicarei a Beatrice o que faz seu honorável filho aos sábados à noite -defendeu-se do ataque.

-Não pode falar sério? -Elliot perguntou, levantando a sobrancelha direita.

-Sim.

Aquela ameaça o deixou tão surpreso que não soube como replicar. Naquele momento, seu amigo havia se tornado um estranho para ele. Como supôs, a amizade corria perigo se continuasse falando sobre isso. Mas o que tinha aquela moça de especial para que Eric se transformasse em um demente? Não se lembrava de grande coisa. Nas três ocasiões que se encontraram não lhe pareceu uma jovem de beleza deslumbrante. Seu cabelo era tão loiro que parecia branco e essa cor lhe dava uma imagem de velha. Seu comportamento não era o adequado para uma dama. Muito menos para uma futura baronesa! Se suas lembranças não haviam sido distorcidas pelo passar do tempo, o melhor papel que podia desempenhar a jovem era o da rainha de uma tribo selvagem.

-Diga-me o que ela tem de especial. Talvez assim descubra o motivo pelo qual se apaixonou -pediu depois de refletir.

-É justa, corajosa, desinibida, altruísta, sensata e possui uma grande força -enumerou depois de inspirar profundamente e selecionar as melhores qualidades de Josephine-. Nunca vi medo em seus olhos. Sempre caminha ereta e...

-E? -Elliot insistiu ao ver que ficava calado.

-E é a melhor amazona que conheci. Supera qualquer homem que se preze de sê-lo -determinou com um sorriso de orelha a orelha ao olhar para o lago.

-Não acho que essa habilidade agrade seu pai -Manners respondeu enquanto observava o lugar para onde seu amigo olhava.

Como era de esperar, a essas horas, tinha se iniciado uma corrida clandestina ao redor do lago. Nesta ocasião eram quatro os participantes. Três deles não chegavam ao primeiro. Entretanto, Elliot rapidamente desviou o olhar daquele espetáculo ilegal ao perceber que uma figura feminina se aproximava deles. Pelo sorriso que mostrou, soube que aquele encontro não tinha sido fortuito. Não lhe deu importância. Depois do ocorrido da última vez que se viram, ela estaria ansiosa para descobrir se a relação continuava.

-Lorde Manners! Que surpresa maravilhosa! Nunca imaginei que uma manhã tão aborrecida se transformaria em afortunada -comentou a viúva movendo os cílios de maneira sedutora enquanto estendia uma mão para ele.

-Lady Bayton. O prazer é meu -respondeu o filho do Duque beijando com suavidade os nós dos dedos da sua mão.

Quando a mulher se dirigiu a Cooper para que a cumprimentasse como Elliot havia feito, ele apenas acenou levemente. Então virou-se para continuar admirando a corrida.

-Acho imprudente que se permitam corridas em um lugar tão concorrido como este. Esses dementes poderiam causar uma catástrofe -comentou a dama olhando o filho de Rutland.

-Concordo, Milady. Só uns loucos ousam... Meu Deus! Afaste-se Eric! Aquele cavalo vem direto para nós! -gritou antes de pegar Lady Bayton pelo braço e puxá-la até colocá-la atrás do tronco de uma árvore.

Uma vez que a mulher estava a salvo, Elliot olhou para seu amigo e observou horrorizado que não tinha se movido do lugar, apesar de que o cavalo continuava galopando para ele. Teria ficado imóvel devido ao pânico? Não. Não foi isso que observou no rosto de Eric, mas firmeza, arrojo e adoração. Ele rapidamente olhou para o cavaleiro e seus olhos arregalaram de repente ao descobrir quem era: a senhorita Moore. Afastou o olhar da mulher e os cravou em Cooper. Seguia inalterável, sereno. Por mais estranho que a situação lhe parecesse, acabou compreendendo o comportamento e, por alguns segundos, invejou-o. Precisava de um bom guerreiro naquela batalha, e Eric era. Sua postura solene indicava à moça que nada lhe impediria de consegui-la, nem mesmo a morte. De repente, a palavra loucura deixou de descrevê-lo e em seu lugar escolheu coragem, respeito, força e tenacidade.

Quando faltavam menos de dez passos para o cavalo chegar a Eric, ele tentou se afastar de Lady Bayton e agarrar seu amigo. No entanto, não conseguiu se mexer porque ela se atirou em seus braços e colocou a cabeça em seu peito para não testemunhar a tragédia. Mas esta não ocorreu. A senhorita Moore, no último momento, moveu as rédeas do animal para que este virasse para a esquerda. Mesmo assim, passou tão perto de Eric que a parte de baixo do seu casaco afastou-se do seu corpo devido à brutalidade do movimento. Elliot não se surpreendeu com a destreza da jovem, mas sim com o que aconteceu quando cruzaram o olhar. Naquele breve espaço de tempo descobriu que, por mais estranho que lhe parecesse, os sentimentos de seu amigo eram correspondidos. Mas, por que não declarava seu amor como as demais mulheres? Por acaso os Moore não eram nativos? Uma diferença cultural podia explicar o comportamento incomum de todas elas. Ouviu mencionar o caráter intransigente da segunda e que a mais velha matou seus dois noivos. Nada sabia da terceira, exceto que sua beleza ofuscava todas as jovens de Londres. A mais nova era uma incógnita para a sociedade. Embora tivesse dançado com a ruiva em algumas ocasiões e não parecia uma moça estranha, mas diferente...

Afastou as irmãs da sua mente e voltou a se concentrar no amigo. Seu rosto mostrava fascínio enquanto observava como sua amada partia depois de causar nos presentes o maior susto da história. Consideraria cortejar aquele tipo de loucura? Ou talvez medisse a paciência de Eric para ter certeza de que se converteria em um bom marido? Indubitavelmente devia ser um louco ou muito valente para se casar com uma mulher como ela...

«Nada pode ser dito sobre o amor» -sua mãe uma vez lhe disse-. «A única coisa que direi é que quando surgir, sua vida mudará para sempre».

-Quem diabos é aquele homem? -Lady Bayton trovejou de horror ao se afastar de Elliot.-. Deveriam julgá-lo, colocá-lo na prisão e enforcá-lo em uma praça -acrescentou com raiva.

-Não é um homem -Cooper comentou, seguindo Josh com os olhos-. É uma mulher. E não merece nada do que disse -acrescentou apertando a mandíbula.

-Esteve prestes a nos matar! -exclamou a mulher assustada.

-Não se queixe tanto, Lady Bayton. Deveria estar agradecida por tê-la ajudado a conseguir seu propósito -disse Eric, observando-a com os olhos entreabertos.

-Que propósito? Morrer de susto? -comentou altiva.

-Não, abraçar meu amigo em público.


XII


O pessimismo se apoderou de Elizabeth. A jovem na qual começou a se transformar há alguns meses, desapareceu. Em seu lugar surgiu uma mulher cheia de medos, falta de jeito, ansiedade, preocupações e ódio...

Embora tenha insistido em dizer à mãe que o aparecimento de Archie não lhe causou nenhum transtorno, as emoções mostraram o contrário. Durante as horas que passou na cozinha ajudando Shira, a cor de seu rosto mudava conforme seu estado de ânimo: vermelho pela ira, branco pelo horror e violeta cada vez que apareciam as náuseas. Por isso decidiu ficar em casa o resto do dia e não ir à casa de Martin. O que menos ansiava naquele momento era que a visse tão alterada e pensasse que tudo se devia ao engasgo.

«Teria sido melhor que não tivesse salvo sua vida...».

Depois do almoço, o qual não conseguiu comer nada, foi até a estufa para refletir com calma. No entanto, essa tranquilidade não existiu, pois toda vez que se lembrava do brilho que nos olhos de Archie quando ouviu Flatman chamá-la de senhorita Moore, a raiva assumia o controle e o desejo de vingança também. Por que teve que aparecer exatamente quando sua vida estava ressurgindo das trevas? Tinha um emprego, esperança e uma pessoa que lhe dava uma vitalidade inexplicável. Mas o destino foi caprichoso e imprudente em colocar Archie de volta em seu caminho.

Elizabeth suspirou profundamente e moveu a mão que havia colocado na fonte enquanto refletia sobre esse encontro. Não encontrou nada de bom em seus pensamentos. Pelo contrário, o seu desejo de lhe fazer mal aumentava e a sua mente procurava uma forma de fazê-lo pagar o sofrimento que padeceu desde aquela noite. Era verdade que, com a sua chegada e interesse por ela, recebera a oportunidade de arrancar-lhe o coração, tal como tinha arrancado o seu, anos atrás. Também lhe dava a oportunidade de alcançar o que tanto queria: tornar-se uma aristocrata. Isso a ajudaria a reaver o respeito social que perdeu com o tempo e a protegeria do ocorrido com Lorde Norfolk. A justiça permanecia sendo benevolente com os membros da aristocracia e jamais condenaria a esposa de um Conde.

Elizabeth tirou a mão da água e caminhou até a enorme roseira que cobria a parede do fundo. Uma vez em frente a ela, sentou-se, abaixou o rosto e esfregou-o desesperadamente.

«O que aconteceu iria assombrá-la até a morte...».

Dois longos anos se passaram e ainda não conseguia esquecer o que havia acontecido. Continuava sentindo os olhos de Lorde Norfolk em seu corpo, assim como sua pele sentia a aspereza daquelas mãos tocando-a. Até seus lábios continuavam a escorrer o sangue depois de sofrer o soco inesperado. Por que foi tão estúpida? Por que não pensou duas vezes que aquele monstro não queria roubar apenas alguns beijos? Sua atitude absurda, aquela pela qual sua mãe a censurava, teve consequências terríveis para ela e para duas das pessoas que adorava. Tiveram que fugir da Inglaterra por sua culpa! Graças a Deus estavam bem e continuavam juntos. No entanto, o nervosismo ainda persistia neles, pois temiam que uma manhã, uma tarde ou uma noite, alguém apareceria em sua casa para prendê-los.

«Se ela se casasse com Archie, seus pais nunca descobririam o que aconteceu».

«Se ela se casasse com Archie, ela estaria segura».

«Se ela se casasse com Archie, protegeria Howlett e Marco para sempre».

Pela primeira vez na vida, devia adotar uma posição altruísta. Havia passado muito tempo em busca de sua própria felicidade e não apenas não a encontrou, mas também fez todas as pessoas que adorava infelizes. Era hora de enfrentar seus próprios erros e trazer a coragem característica das Moore. Não demorou muito para concluir que, se ela se casasse com Archie, resolveria muitos problemas e protegeria sua família.

«Mas se o fizesse, se converteria em uma mulher desgraçada...».

«Mas se o fizesse, sempre se perguntaria o que teria acontecido com Martin».

Levantou-se de repente quando a sua mente apagou tudo o que aconteceu com Archie para colocar Martin em seu lugar. Enquanto andava de um lado a outro, seu coração começou a bater loucamente e notou o pulso acelerado em sua garganta. Como poderia ser tão tola de se perguntar o que aconteceria com ele? Por acaso não estava consciente da destruição que deixava em seu caminho? Nada do que havia feito até o momento lhe havia dado os benefícios que esperava. Por essa razão, devia manter-se afastada de Martin. Ele não merecia sofrer...

Voltou para o banco em frente à roseira, colocou as mãos na garganta e olhou para o Guardian como se fosse responder ao seu desespero. Logicamente, não a ouviu. Esfregou de novo o rosto ao perceber como a tristeza se apoderava de seu ser. As memórias que tentava esquecer tornaram-se tão nítidas que se apresentavam atuais em vez de passadas: seus flertes, suas fúrias, seus caprichos, seus erros, Lorde Norfolk... O dia que amaldiçoou todos aqueles que lhe fizeram mal não só causou uma condenação a eles, mas também a si mesma.

Com o rosto escondido nas mãos, começou a chorar. Não queria que Archie fosse uma opção para se salvar do horror, não queria encontrar um futuro que levasse a outra condenação. Não queria esquecer... De repente, parou de chorar e enxugou as lágrimas. E se...? Não, claro que não! Se não era capaz vê-la como uma mulher! Apesar de tudo, quando estava ao seu lado, toda a escuridão que a dominava se dissipava. Enquanto pensava nisso, seu coração bateu novamente e sua mente gritou um nome: Martin.

Era verdade que desde que o viu na reunião de família, tudo ao seu redor mudou. Aquelas nuvens cinzentas que a envolviam desapareceram instantaneamente e em seu lugar o sol nasceu. Como se isso lhe desse a oportunidade de seguir em frente, de esquecer o passado. Mas naquela mesma manhã, voltaram ao ver Archie e adivinhar seus propósitos.

-Elizabeth? Está aqui?

As nuvens cinzentas desapareceram novamente...

A voz de Martin a assustou. Retirou as mãos do rosto e olhou para ver de onde tinha vindo aquele tom suave de voz. Não podia ver com clareza porque a pressão das palmas sobre os olhos fez sua visão ficar turva. No entanto, teve um vislumbre de luz em torno da figura do homem. Os anjos apresentariam uma imagem tão bela e reconfortante? Porque foi isso que sua presença causou: um estado de paz tão incomum que se sentiu tonta.

-Desculpe interrompê-la, mas precisava vê-la -comentou sem se mexer.

-O que aconteceu? -perguntou se levantando bem devagar devido ao aturdimento-. Minha mãe ou o Josh não levaram a comida que lhe fiz?

-Sim -respondeu dando um passo para ela-. Isso é o que me preocupou. Esperava vê-la e ao não a encontrar quando abri a porta...

Suspirou ao mesmo tempo que controlou seus pensamentos e a língua. Não era correto expressar com tanta liberdade que se sentiu triste ao não a ver ou que sua cabeça não foi capaz de se concentrar no trabalho que lhe fora encomendado porque não deixava de pensar em tê-la perto, escutar sua voz ou sentir seu perfume embriagador. Não, não era correto revelar que tinha se apaixonado por ela desde que a conheceu e que comprou aquela casa para ter uma oportunidade. Pensaria que estava louco e fugiria dele como quem foge da peste.

-Está bem? -insistiu em saber.

Elizabeth, depois de recuperar a visão, observou o rosto preocupado de Martin. Tentou evitar exatamente isso ficando reclusa em sua casa. Não queria que outra pessoa sofresse por sua causa. Mas lá estava ele, com o cabelo loiro revolto e o casaco abotoado inadequadamente. Um súbito desejo brotou nela, um que a fez tremer. Nunca, jamais, havia sentido aquela sensação tão incomum. Parecia que tinha se tornado sua mãe e Martin em seu desastroso pai. Esse tipo de emoção era o que chamavam de proteção conjugal? Porque suas irmãs não paravam de fazer referência a esse assunto quando o centro de suas conversas eram seus maridos. Muito lentamente, e sob o olhar atento dele, aproximou-se, estendeu as mãos para os botões de sua jaqueta, os desabotoou e os abotoou corretamente.

-Estou bem -comentou depois de retirar as mãos, que tremiam diante desse leve contato-. Só precisava de um tempo para refletir sobre um problema que me perturba.

-Não tem nada a ver com asfixia? -disse com dificuldade. Que ela estivesse tão perto, tocando-o, embora fosse sobre as roupas, deixou-o sem palavras e com uma respiração acelerada-. Se seu pai lhe recomendou repouso, eu entendo. Eu mesmo a avisei que devia tomar um tempo de... -tentou dizer, mas o sorriso que ela lhe deu o deixou mudo.

-Não se trata disso.

Ele a observou sem piscar. Estudou a fragilidade de sua bela figura, o rubor em seu rosto, o brilho em seus olhos e imediatamente entendeu o que havia de errado com ela. Não era forte. Nunca havia sido, pois preferia exercitar a mente antes do corpo, mas naquele momento poderia matar a pessoa que a machucou. Porque sabia que alguém o tinha feito. Talvez durante o passeio com sua mãe alguém se dirigiu a ela de forma inadequada. Talvez tenham descoberto que Elizabeth trabalhava para ele e tentado intimidá-la. O que quer que fosse, quem tivesse lhe dado uma palavra ofensiva, um olhar repulsivo ou um gesto de desprezo, os faria pagar.

-Sabe que pode falar comigo sobre qualquer assunto. Durante o pouco tempo que nos conhecemos, creio ter deixado claro que é vital a confiança entre nós -comentou sem desviar o olhar de seus ombros inclinados para frente, como se as costas suportassem um peso enorme.

-Seria capaz de lutar contra dragões? -soltou levantando o rosto o suficiente para que seus olhares se encontrassem de novo.

-O que disse? -perguntou perplexo.

-Se seria capaz de lutar contra dragões -repetiu com calma.

Estava prestes a rir da confusão em seus olhos. Pensaria que tinha ficado louca? Bem, na realidade não estaria muito errado. Já tinha concluído que sua mente não estava saudável antes de sua mudança repentina de humor.

-Se me disser o tamanho, o peso e se cospem fogo, posso calcular a probabilidade...

E uma risada brotou.

-É o único que pode me fazer rir em um momento como este -comentou entre risos.

-Nunca pensei que tinha a habilidade de fazer alguém rir. Mas se consigo com você, continuarei me comportando assim o resto de minha vida -se abriu mais do que tinha decidido fazer.

Os lábios de Elizabeth se juntaram para exclamar um silencioso “Oh!” e seu rosto tomou a cor das flores de sua roseira. Foi incapaz de pronunciar qualquer palavra. Seus ouvidos zumbiam e só escutava sua respiração acelerada.

-Por que veio? -perguntou ao recuperar a serenidade.

Ela se sentou novamente, colocou as mãos na saia do vestido e as manteve o mais imóvel possível.

-Como eu disse, fiquei preocupado ao ver sua mãe bater na minha porta. Quando lhe perguntei a seu respeito, insistiu em me explicar que se encontrava indisposta e que tinha decidido ficar em casa -explicou ainda em pé.

-E? -Ao mesmo tempo que fez a pergunta, notou os batimentos de seu coração na garganta.

-E como entenderá, depois do que aconteceu esta manhã em minha casa, precisava de confirmar que estava bem -respondeu sem deixar de olhá-la.

«Se preocupa comigo», pensou pouco antes de notar como a temperatura de seu sangue aumentava, como se permanecesse dentro de uma fogueira.

-Não se trata disso... -murmurou enquanto tentava apaziguar toda aquela ansiedade que o percorreu ao descobrir que havia algum interesse de sua parte.

-Entendo, então, que este é um assunto íntimo, certo? -Apontou se sentado ao seu lado.

-Algo parecido -corroborou.

-Posso assegurar-lhe que, se puder ajudá-la, estarei mais que disposto a fazê-lo -indicou com segurança.

Nesse momento, Elizabeth se virou para ele e o observou. Seria correto lhe falar da chegada de Archie? Como reagiria à notícia? E se não houvesse tal reação? Sentiria muita dor se encontrasse indiferença naqueles olhos azuis como o céu.

-Elizabeth... -disse esticando seu braço direito até colocá-lo sobre seu colo para pegar-lhe uma mão-. Diga-me o que aconteceu. Preciso descobrir se minhas suposições são verdadeiras. Porque se são...

-Que suposições? -perguntou sem tentar se soltar desse aperto carinhoso e terno.

-Imagino que alguém lhe fez mal. Talvez uma pessoa de coração ruim se referiu a você de forma inadequada e...

-Pensa que estou assim porque alguém se referiu ao meu trabalho em sua casa? -disse surpresa.

-Sim, acho que sim -respondeu com um longo e agônico suspiro.

-Não tem nada a ver com isso, Martin -admitiu.

-Bem, então devo admitir que...

-Se lembra da razão pela qual não devia me contratar? -Elizabeth perguntou olhando-o sem piscar. Vendo como ele franziu a testa levemente, soube que se lembrava, mas precisava ouvir a resposta de seus lábios.

-Deixei claro que esse motivo não era da minha conta, que o que havia acontecido com outro homem não diminuía sua capacidade de fazer esse trabalho. Eu respeito a sua vida, Elizabeth, e é claro que incluo seu passado nela. As pessoas são um todo graças a...

-Ele voltou -o interrompeu de novo.

-Quem voltou? -Ao fazer a pergunta em poucas palavras não só lhe apertou mais a mão sem querer, mas sua testa se vincou tanto que parecia ter envelhecido duas décadas.

-Archie.

-Archie?

-Lorde Gharster -esclareceu.

-Entendo... -sussurrou relaxando essa fúria que seu rosto mostrou. Em seguida, lentamente retirou sua mão da de Elizabeth e a levou para o bolso do colete, procurando inconscientemente seu cachimbo. Ao não o encontrar, levantou-se lentamente e colocou ambas as mãos atrás das costas.

-Ele voltou viúvo. Sua intenção é procurar uma nova esposa para cuidar de seus filhos -continuou dizendo, olhando para aquela mão congelada, não sentindo o calor reconfortante de Martin.

-Imagino que tenha uma boa oportunidade de reconquistar esse amor. Por esse motivo se trancou aqui, certo? -disse evasivo.

-Sim -respondeu sincera.

Elizabeth também se levantou, embora não tão rápido como Martin. Em seguida, se colocou na frente dele.

-Garanto que nosso contrato será invalidado assim que eu voltar para casa -comentou em uma voz neutra-. Dessa forma, nada a impedirá de realizar seu sonho.

-Mas eu... só estou...

-Elizabeth, não se sinta obrigada. Nada existe entre nós exceto esse contrato e, como já lhe expliquei, não há de temer a respeito -alegou com as mãos coladas à parte inferior de suas costas rígidas-. Garanto-lhe -acrescentou apertando os punhos.

-Quer me dizer, com essas palavras, que aprovaria minha decisão de me casar com Archie? -expôs notando como seu coração se partia em dois.

-Não sou eu quem deve aprovar ou negar algo que deseja. Lembre-se que sou apenas um familiar ou um vizinho, conforme considerar -acrescentou depois de inspirar fundo.

-Posso ao menos fazer-lhe uma pergunta?

-Claro -respondeu Martin muito sério.

-Poderia me dizer com o que sonha? O que aspira conseguir em um futuro?

-Quando tiver certeza da resposta, prometo que a informarei. Boa tarde, Elizabeth -assinalou, com um pequeno aceno.

-Boa tarde, Martin -respondeu, tão confusa pela posição grosseira que adotou que nem uma única palavra saiu dela.


XIII


Duas horas depois, Elizabeth estava sentada no parapeito da janela de seu quarto. Seus olhos permaneceram fixos na única luz da casa de Martin. O que estaria fazendo? Continuaria trabalhando como se nada tivesse acontecido entre eles? Abraçou os joelhos e suspirou. Frio. Foi assim que se comportou quando anunciou que Archie havia retornado a Londres em busca de uma esposa. Presumiu que estava determinada a ocupar esse posto e não perguntou se o faria. Não desejava e nem o faria. Apesar de todas as vantagens que teria ao se casar com ele, havia um grande inconveniente: seu coração. Este sofreu durante muito tempo a humilhação que a rejeição de Archie lhe causou. Sangrou, chorou e morreu. Ao longo dos anos, recuperou-se o suficiente para continuar a bater. Por isso se negava que o ferissem novamente. Porque não tinha a menor dúvida de que, depois de se casarem, seu coração reencontraria a morte.

Desviou o olhar de fora e encostou a testa nos joelhos. Estava confusa. Seu antigo eu teria corrido para os braços de Archie animada e feliz. Mas a mulher em que se tornou, depois de aprender com seus erros, queria continuar com o que havia começado há vários dias. Essa relação de trabalho com Martin fez com que se sentisse viva, animada. Embora temesse que houvesse terminado...

Triste por chegar a essa conclusão, afastou-se da janela e foi até a casa de banho. Ficou na frente do espelho e silenciosamente observou seu rosto. Parecia um fantasma. Sua pele voltou à cor pálida que vira durante muito tempo. Era como se nada de belo tivesse acontecido e não era assim. Abriu a torneira, pegou uma grande quantidade de água nas mãos e derramou no rosto. Olhou para si mesma novamente depois de fechar a torneira. Nada mudou...

Sem secar-se, retirou-se do lavatório e voltou ao seu quarto. Olhou para a cama e depois para a janela. Não tinha sono. Também não queria deitar-se para que passasse o tempo com o olhar cravado no teto. Esse estado de insônia a faria pensar em Archie, em Marco, em Howlett e no maldito Lorde Norfolk. Ao pronunciar na sua mente este último nome, encolheu os ombros. O terror voltou a ela ao se lembrar daquela noite. Por que ninguém falava sobre seu desaparecimento? Por acaso não era um homem importante? Conforme explicou, durante a breve conversa que mantiveram, era o proprietário de vários hectares e tinha a seu cargo mais de uma centena de servos. Nenhum deles se perguntou onde estaria o homem que pagava seus honorários? Tudo era muito estranho. Não era normal que durante dois anos a vida passasse normalmente sem ninguém reparar nessa ausência. A única consequência desse dia, além de sofrer uma terrível depressão, foi que por sua culpa Marco e Howlett tiveram que fugir para a Irlanda.

Decidiu sentar-se de novo junto à janela, mas desta vez destravou o trinco e abriu-a. Esperava que o frescor da noite acalmasse sua inquietação. Quando o fez, ouviu o som que produziam os cascos de vários cavalos ao tocar a estrada. Tirou metade do corpo para ver o que acontecia. Talvez fosse alguém vindo em busca de seu pai. Não era de estranhar. Apesar de terem inaugurado um hospital no ano anterior, muitas pessoas resistiam a deixar sua casa e continuavam chamando o bom doutor Randall Moore.

Mas a carruagem não se dirigiu para sua casa, mas para a de Martin. Isso aumentou sua curiosidade. Não era uma hora adequada para visitas. Sem desviar os olhos do veículo, Elizabeth prosseguiu com a espionagem. Controlou muito bem a respiração e os batimentos do seu coração até que observou o cocheiro descer, abrir a porta e estender uma mão à figura feminina que havia em seu interior. Seus olhos, apesar de serem grandes, aumentaram de tamanho devido à surpresa. Tentou se afastar, mas o seu corpo a ignorou e continuou na mesma posição. A mulher, escondida sob uma grande capa preta, caminhou decidida para a porta principal. Pegou a aldrava e deu dois golpes. Em seguida, se virou e observou o que estava ao seu redor. Elizabeth supôs que o fazia para confirmar que ninguém era testemunha de sua chegada, mas a estranha se equivocava. Uma luz iluminou o hall. Depois, a porta se abriu e Martin apareceu. Depois de lhe dar dois beijos na bochecha, como se a conhecesse há muitos anos, deixou-a passar e quando entrou, ele também olhou para fora. Os dois confirmaram que ninguém os espiava. Os dois estavam errados.

Sem estar ciente disso, levou ambas as mãos ao peito para acalmar a dor que apareceu. Não era possível. Martin não era esse tipo de homem. Não pagava prostitutas... se afastou rapidamente da janela e andou inquieta pelo quarto. Suas mãos começaram a suar e a pulsação forte causou-lhe tremores incontroláveis. Por que e quando a chamou? Fez isso depois da conversa que tiveram na estufa? Respirou fundo para se acalmar, mas não conseguiu. Seu sangue fervia, por isso as gotas de suor acabaram umedecendo cada centímetro de sua pele. Até a camisola grudou nela! Seus olhos se estreitaram, com raiva, com raiva por ter descoberto que, no fundo, Martin não era diferente dos outros.

Fechou a janela de repente, com o perigo de quebrar os vidros e sair ferida. Pisando o chão com força, chegou até a cama, se deitou, pegou a almofada, o colocou sobre o rosto e gritou até ficar sem voz. Como tinha sido tão tola? Não estava ciente das necessidades de um homem? Além disso, estava solteiro e não devia prestar contas à ninguém exceto a si mesmo. Afastou a almofada, levantou-se da cama de um salto, voltou para a janela e apertou os punhos ao descobrir que a carruagem ainda estava lá. E a discrição? Nenhum dos dois conhecia em que consistia essa palavra? Esfregou o rosto com angústia. As mãos continuavam úmidas, suas bochechas ardiam pela cólera.

-Acalme-se -disse em voz alta ao retirar as mãos do rosto.

Não reconheceu sua voz. Não era a sua. Esta soava muito áspera, rude e forçada. Parecia que um demônio a possuía e tomava as rédeas de sua sensatez. Irritada, virou-se sobre si mesma com tanto ímpeto que seus pés se enredaram e esteve a ponto de cair de joelhos no chão. Conseguiu manter o equilíbrio e caminhar outra vez para a janela. Ódio, vingança e morte foram as palavras que apareceram em sua cabeça nesse instante. Odiava Martin por fazê-la acreditar que era um homem diferente dos demais. Necessitava vingar essa mentira e notava, muito a seu pesar, como seu coração morria lentamente.

Se afastou para continuar andando pelo quarto. De repente, seus olhos pousaram no robe de seda que havia deixado horas antes nas costas de uma cadeira. Sorriu. O sorriso em seus lábios era tão amplo quanto sinistro. Caminhou até ele e o vestiu. Caiu no chão procurando os chinelos que tinha embaixo da cama. Ela os calçou o mais rápido que pôde. Não havia tempo a perder. Tinha que impedir que essa reunião terminasse imediatamente. Como faria isso, se perguntaria quando chegasse à casa de Martin. Por enquanto, tudo em que estava pensando era em deixar sua casa sem ser descoberta, cruzar o caminho e entrar pela porta sem ser vista. Fazia muito tempo que não entrava naquela residência às escondidas...


Martin deixou o cachimbo sobre o recipiente de vidro ao ouvir que alguém batia a sua porta. Não esperava visita a essas horas. A única pessoa que aparecia sem avisar era Elizabeth e temia que não seria ela que encontraria na entrada. Enquanto caminhava pelo corredor, recordou pela décima quinta vez a horrível conversa que mantiveram na estufa. Nunca pensou em terminar uma conversa daquela maneira. Foi para confirmar que estava bem, que o engasgo não havia tido sequelas. Em vez disso, encontrou uma mulher forte, saudável e determinada a cometer uma loucura. Realmente sonhou em se casar com o homem que a afastou de sua vida como se fosse uma pedra no caminho? Pensou que tivesse mais orgulho e que entendesse o quanto era preciosa. Mas errou. Só procurava uma maneira de retornar aos braços de seu amado. Irritado por chegar a essa espantosa conclusão, acendeu a luz do hall e se colocou em frente à porta.

-Quem é? -perguntou.

Sua voz não só expressou desgosto, mas também raiva. Pensou que, durante a noite, encontraria algum tempo para se concentrar em seu trabalho e, até agora, não tinha conseguido. Uma coisa era decidir não o fazer e outra bem diferente era que alguém o obrigasse a isso.

-Abre, Martin -Valeria respondeu-. Ou te juro que arrombo a porta.

O que faltava para terminar um dia tão horrível!

-Não faça isso -comentou ao abri-la-. Como bem sabe, sou o mais pobre dos Gêiser e não gostaria de investir a pouca fortuna que tenho em adquirir uma nova.

-Ainda bem que está acordado -disse dando-lhe dois beijos. Em seguida, entrou enquanto tirava a capa.

-Se eu estivesse, já teria me acordado -comentou com sarcasmo-. Onde está seu querido marido? -perguntou enquanto dava uma rápida olhada para fora. Ao concluir que vinha sozinha, fechou e pegou a capa que lhe estendia.

-Tinha uma reunião -comentou sem deixar de observar tudo o que seu olhar alcançava.

Uma careta de desagrado apareceu em seu rosto ao confirmar suas suspeitas: Martin continuava tão desorientado como sempre e não tinha se ocupado com a decoração da casa.

-E meus sobrinhos? -prosseguiu o seu interrogatório depois de colocar a capa no cabide.

Este balançou devido ao peso, mas evitou que caísse agarrando-o com rapidez. Uma vez que ficou em seu lugar, virou-se para sua irmã e exibiu um sorriso inocente.

-A esta hora estão todos dormindo -murmurou Valeria.

-Gostaria de uma bebida? -disse enquanto a conduzia pelo braço até a pequena sala-. Não tenho mais nada para lhe oferecer. Tomei minha última xícara de chá algumas horas atrás, enquanto trabalhava em um projeto muito importante. -Acrescentou com ironia.

-Por que me ignora? Por que não me chamou para ajudá-lo? Sabe que ultimamente tenho algum tempo livre e posso fazê-lo sem alterar a criação e educação dos meus filhos. Somos família, lembra? -Valeria o reprovou.

-Não preciso de ajuda -suspirou cansado.

-Não? -Soltou parando no meio do corredor para se virar para seu irmão-. E essa bagunça? Não está ciente de que precisa de uma mulher para arrumar esta casa tão grande? -Acrescentou após continuar andando-. Há quanto tempo está aqui? Duas semanas? Três? Não me disse que estava procurando uma casa, nem que tinha pensado em comprar uma casa tão grande. Também não me disse que ia viajar menos porque pensava ficar definitivamente em Londres. Não se importa comigo, Martin? Não me ama?

O tempo estava passando. Foram inventados veículos movidos a vapor que percorriam as ruas e tornavam obsoletas as carruagens puxadas por cavalos. O transporte ferroviário havia se espalhado pela maior parte da Inglaterra. Os navios chegavam a países cujos nomes eram difíceis de pronunciar e as fábricas estavam em plena expansão. No entanto, sua irmã continuava usando as mesmas técnicas de sempre para fazê-lo se sentir culpado. Mas isso tinha uma grande desvantagem para ela e um enorme benefício para ele: sabia como enfrentar essa fingida tristeza.

-Não há mulher que eu ame mais -respondeu dando-lhe um beijo na bochecha-. Mas lembre-se que não sou mais criança e posso me virar sozinho.

-Sozinho? -Valeria gritou horrorizada-. Quem é o responsável pela cozinha? Quem sacode os lençóis da sua cama? Quem limpa a poeira dos poucos móveis que possui? -acrescentou quase sem respirar.

Pacientemente, Martin a conduziu até uma das cadeiras da sala. Para sua sorte, Elizabeth tinha decidido manter o lugar livre de poeira e coisas velhas.

-Não me respondeu -resmungou depois de se sentar e reparar visualmente o lugar austero.

-Para sua informação, já cuidei de todas essas coisas -começou a dizer enquanto caminhava até a licoreira. Encheu um copo e o bebeu de repente. Logo voltou a enchê-lo e serviu o outro. A noite seria mais tranquila com alguns copos de uísque no estômago.

-O que quer dizer quando fala que se encarregou? Não tome como uma alternativa válida viver desta maneira até que a morte chegue -resmungou aceitando o copo.

-Encontrei e empreguei uma mulher -tentou dizer.

-Uma governanta? -soltou arregalando os olhos-. Quem a recomendou? Tem referências? Diga-me onde trabalhou e obterei a informação necessária para confirmar se é adequada ou não para o trabalho.

-Basta! -exclamou em voz alta. Em seguida, se arrependeu-. Desculpe, Valeria. Juro que não queria ser tão rude. Sei que se preocupa com o meu bem-estar, o que agradeço, mas estou bem. Não vê que meu rosto parece saudável e que minhas roupas estão limpas? -Alegou depois de sentar-se. Ele olhou para a bebida, depois para a irmã, e apertou os dentes quando descobriu que suas bochechas estavam vermelhas de raiva. O que a havia irritado mais, seu tom de voz ou que realmente não a necessitasse?

-Quantos anos tem? Confia nela? Acredito que pode me responder a estas duas perguntas -disse antes de tomar um bom gole.

-Não me explicou uma vez que as mulheres não tinham idade? -Respondeu estreitando os olhos.

-Deduzo, então, que já passou de quarenta anos -pensou em voz baixa, sem tirar os olhos de seu irmão-. Ainda é jovem para o trabalho. Mas confia nela? -insistiu em descobrir.

-Totalmente. deixaria minha vida em suas mãos e tenho certeza de que jamais me decepcionaria. Até que apareceu, jamais tinha conhecido uma mulher tão inteligente, trabalhadora e generosa -declarou com firmeza.

Nesse instante, ambos ouviram algo parecido com um longo suspiro. Martin levantou-se rapidamente da cadeira e caminhou a grandes passos para a janela. Tirou metade do corpo para olhar o lado de fora, mas não encontrou nada que lhe chamasse a atenção.

-O que foi isso? -Valeria perguntou inquieta-. Tem visita? Há alguém aqui?! -Gritou.

-Não seja absurda, irmã. Não há ninguém e eu nunca traria uma pessoa desconhecida para minha casa.

-Bem, não seria o primeiro solteiro a esconder um amante em sua casa.

-Sabe que eu não sou um desses! -trovejou com raiva.

Nunca foi um aproveitador como Philip. Jamais se vangloriou de suas conquistas como Philip. Mas era um homem e tinha certas necessidades a satisfazer. Ao pensar em como aliviaria seu irmão ditas urgências, seu rosto se converteu em uma bola de fogo.

Uma irmã não deveria fazer conjecturas sobre esse tipo de coisas...

-Está bem, acredito -apontou calmamente.

-Eu não me importo se o faz -respondeu olhando para a porta de entrada. Tinha visto uma sombra? Ou será que seus olhos cansados o enganavam?- Valeria, se não se importa, gostaria de descansar. Amanhã virão todos os criados que contratei e tenho que me levantar cedo para planejar o dia.

-Amanhã? A que horas? -perguntou levantando-se-. Posso vir depois do café da manhã. Clarissa vai ficar com as crianças até que...

-Não é necessário. De verdade. A pessoa em quem depositei essa confiança controla seu trabalho com perfeição -comentou segurando-a pelo braço para levá-la o quanto antes à saída.

Se havia um intruso em sua casa, a primeira coisa a fazer era proteger sua irmã. Uma vez a salvo, procuraria uma maneira de enfrentá-lo.

-Realmente não precisa da minha ajuda? -Seu tom soou suplicante.

-Faremos uma coisa. Se não me agradar sua forma de trabalho, a chamarei imediatamente -declarou oferecendo-lhe a capa.

-Sabe que tenho uma lista infinita de bons funcionários. Trevor também pode nos ajudar. Conhece alguém da Scotland Yard que pode... -Ela ficou em silêncio e olhou para o irmão sem piscar, como se uma ideia magnífica lhe tivesse ocorrido.

-No que está pensando?

-Qual é o nome dessa mulher? Tenho certeza que...

-Valéria, ela não é uma ladra nem assassina e juro que a minha vida não corre perigo quando ela está comigo. Além do mais, até agora, tem cuidado para que não me falte um prato quente na mesa -disse lhe dando um beijo.

-Diga-me pelo menos o nome para que eu possa dormir em paz -garantiu.

-Tem certeza disso? -insistiu abrindo a porta.

-Sim -respondeu depois de abotoar o casaco.

-Bem, direi para que possa dormir e viver em paz.

-Diga de uma vez! -clamou ansiosa.

-O nome dela é Elizabeth Moore, sabe quem ela é? -declarou com um grande sorriso.

Pela sua expressão, desconcertada, assombrada e perplexa que depois ficou serena, Martin obteve a resposta. Claro que a conhecia! Ela tomara chá com a Sra. Moore centenas de vezes desde que Philip se casou com Mary. A teria visto de vez em quando. Talvez até tenha falado com ela.

-Ela é uma jovem adorável -comentou com os olhos transformados em duas fendas finas-, e bonita. Se não me engano, é a mais bonita de todas as irmãs Moore e não acho que tenha mais de vinte e cinco anos. -Acrescentou.

-Realmente? Não tinha percebido tudo isso... -declarou passando a mão pelos cabelos de maneira despreocupada.

-Sim, imagino que não o tenha feito -acrescentou com sarcasmo-. Boa noite, Martin. Esperarei notícias suas. Embora tema que não as terei -acrescentou dando-lhe um beijo na bochecha.

-Boa noite, Valeria. Obrigado pela sua curta e agradável visita -comentou enquanto a escutava resmungar ao dirigir-se à carruagem.

Assim que confirmou que Valéria estava a salvo, virou-se rapidamente para dentro de sua casa. Fechou a porta com um golpe, caminhou até o cabide, jogou ao chão todas as roupas que havia nele e o agarrou com ambas as mãos como se fosse uma perigosa lança.

-Sei que ainda está aqui! Não se esconda! Tenho uma arma e vou usá-la se não aparecer antes de eu contar até cinco!! -Gritou segurando o cabide com força-. Um, dois, três, quatro...

-Martin, sou eu. Elizabeth -disse saindo do escuro.


XIV


Se naquele momento uma espada lhe tivesse partido o corpo em dois, não teria percebido. Martin piscou várias vezes para confirmar que era Elizabeth quem estava em sua casa vestida daquela maneira. Quando não teve dúvidas sobre isso, assustou-se ao pensar em centenas de razões pelas quais se encontrava ali. Soltou o cabide como se este lhe queimasse as mãos e correu a seu encontro.

-Santo Deus! O que faz aqui? O que aconteceu? -perguntou desesperado enquanto a revistava de cima abaixo.

Elisabeth se apavorou ao vê-lo tão inquieto e preocupado. A contemplava como se acabasse de chegar de uma guerra coberta de sangue. Sua intenção ao ficar não foi perturbá-lo tanto. Na realidade, não sabia muito bem o motivo pelo qual não voltou para sua casa para salvaguardar sua identidade. A única coisa que sabia era que, quando ouviu a voz de Valeria, seus pés se apegaram ao chão e a fúria com que tinha chegado se dissipou em um segundo. Talvez fosse o fato de não ter contratado uma prostituta, ou confirmar que era um homem diferente dos outros, o que causou a paralisação.

-Preciso lhe falar -disse em voz baixa e tratando-o como ele fez quando a viu, com carinho, intimidade e amor -Mas, está bem? -insistiu na atitude protetora enquanto dava dois passos para trás sem desviar seu olhar.

-Sim, Martin, estou perfeitamente bem -confirmou acrescentando um leve sorriso.

Nesse momento, o rosto de Martin mudou de repente. Já não havia preocupação neste, mas horror. Eli sentiu um calafrio percorrer seu corpo. Foi tão intenso como o impacto de um chicote feroz.

-Veio falar comigo a esta hora e vestida dessa maneira? -perguntou enquanto a apontava com a mão direita-. Não está ciente do que teria acontecido se Valeria a descobrisse? Pensaria que somos amantes! -Continuou irritado.

-Não somos -respondeu serena.

-Pois claro que não somos! -Disse pegando o cabide-. Mas teria acreditado em nós? -Acrescentou irritado.

-Não me odeie, por favor -suplicou.

-Não te odeio, Elizabeth. Embora seja verdade que esta situação me irritou e me perturbou muito. Já pensou no que aconteceria se seus pais não a encontrassem em seu quarto? O que pensariam de mim se a descobrissem assim em minha casa? -Prosseguiu zangado.

-Não o farão. Estão dormindo, me assegurei disso antes de sair de casa -declarou muito segura.

Martin voltou a piscar, incrédulo pela firme declaração. Como não iam notar sua ausência? Pais protetores, como os Moore, estariam sempre de olho nas filhas. Moveu os lábios, como se quisesse replicar suas palavras, mas terminou por apertá-los, virar-se e caminhar até onde tinha atirado a roupa.

-Mesmo que não notem, o que para mim é difícil de acreditar, esta visita não é apropriada -continuou falando enquanto recolhia lenços, jaquetas e casacos para colocar no cabide-. Caso não tenha percebido, está colocando em risco sua honra ao ir à residência de um solteiro vestida assim. O que seu querido Lorde Gharster pensaria desse encontro? Felizmente, vamos fingir que isso não aconteceu. Por isso, peço-lhe que saia por onde entrou antes de eu me virar -prosseguiu enrolando um cachecol sobre o cabide como se fosse uma serpente enroscada ao galho de uma árvore.

-Não vou embora até que me escute.

-Podemos falar sobre isso amanhã. -Continuou falando lhe dando as costas-. Tenho certeza que pode esperar algumas horas...

-Não vou me casar com Archie -soltou desesperada.

O cabide caiu junto com toda a roupa.

Martin não percebeu que sua mão esquerda o atingiu até que caiu em seus pés. Deu um salto para trás e olhou as roupas estendidas de novo sobre o chão enquanto sua mente não parava de repetir as palavras de Elizabeth. Tentou controlar o sentimento inapropriado de felicidade que o dominou. Não era apropriado que mostrasse tão claramente o seu estado de bem-estar porque, apesar da notícia, continuava a pensar que não era prudente que ela se apresentasse em sua casa a essas horas. Mas não podia negar que a confissão lhe devolveu alguma esperança para continuar com o plano. Ainda assim, devia mostrar uma postura firme. Continuava a pensar que seus pais podiam vir a qualquer momento e, o que aconteceria depois? A obrigariam a casar com ele? Sem dúvida alguma. Embora estaria mais do que disposto a enfrentar esse casamento. Sonhava com isso desde o dia em que a conheceu. Mas não lhe parecia correto que tivessem que celebrar um casamento precipitado por cometer uma tolice semelhante. Desejava conquistá-la, captar o brilho da ansiedade em seus olhos, escutá-la suspirar quando estivessem juntos e, sobretudo, devia lhe confessar em que trabalhava e que perigos implicava tornar-se sua esposa.

Ao lembrar-se no que trabalhava e para quem, centenas de raciocínios apareceram em sua cabeça que lhe fizeram ver as coisas de uma maneira diferente: teriam que deixar Londres durante alguns anos se aceitassem o projeto, e isso a afastaria de sua família. O que os Moore pensariam sobre os americanos? Quantos gritos ouviria de Valéria depois de descobrir que seu terno e tímido irmão vivia graças aos pagamentos de pessoas que consideravam Londres um rival feroz? Sua família, a de Elizabeth... não. Não podia fazer isso.

Tomou forças de alguma parte do seu corpo que não tinha ficado paralisada após a reflexão. Uma vez que sua serenidade voltou, se abaixou para colocar o cabide no lugar. No entanto, quando seus dedos alcançaram as roupas, sentiu o contato das mãos dela. Virou lentamente a cabeça para Elizabeth e reparou como os batimentos do seu coração aceleravam estrepitosamente. Seus olhos foram incapazes de olhar para outro lado que não fosse aquele rosto, aquele cabelo loiro, solto e alvoroçado, e aquelas pupilas que brilhavam apesar da escuridão do lugar.

-Martin -sussurrou.

Como se um relâmpago lhe tivesse derretido o cérebro, não sabia o que lhe dizer nem como agir. Estava confuso e ao mesmo tempo alterado. O que devia fazer? Que atitude devia manter?

-Não entendo o motivo pelo que deseja me explicar essa decisão -comentou afastando-se dela muito lentamente-. Acho que interpretou mal minhas palavras na estufa. Em nenhum momento quis fazer com que pensasse que me incomodava. Acho que é suficientemente sensata e adulta para decidir o que é melhor para seu futuro. Claro, casar com um lorde, o mesmo por quem se apaixonou e que tirou a virgindade, é uma ocasião que não deveria deixar passar.

-Martin... -repetiu em voz baixa enquanto o observava e ouvia perplexa.

O que aconteceu? Em apenas um segundo mudou sua atitude carinhosa e cordial para uma fria e distante. Deduziu que ficaria feliz em saber que não se casaria com Archie. Mas estava errada. Estava enganada em acreditar que Martin a olhava de forma especial. Como errou ao acreditar que se preocupava com ela. A única coisa que havia entre os dois era uma amizade e o acordo de trabalho que tinham assinado.

-Tem que me dizer por onde entrou -continuou dizendo-. Tenho que fechar imediatamente essa passagem secreta. Hoje foi você, mas amanhã poderia entrar em minha casa uma pessoa desconhecida -adicionou pegando o cabide de uma vez por todas-. Vá embora, Elizabeth. volte para casa, para seus pais, e pense na decisão que tomou.

Eli o observava sem acreditar no que ouvia. Estava se livrando dela? Queria resolver de imediato a relação? Então lembrou-se da conversa que Martin teve com a irmã e toda a inquietação desapareceu. «Deixaria minha vida em suas mãos e tenho certeza de que jamais me decepcionaria. Até que apareceu, jamais tinha conhecido uma mulher tão inteligente, trabalhadora e generosa». Sem perceber, exibiu um sorriso que deixou Martin perplexo.

-Por que está sorrindo? Disse algo engraçado? -Perguntou dando um passo para ela-. Porque não foi minha intenção diverti-la, senão repreendê-la.

-Terminou? -perguntou com uma segurança incrível.

-Vai embora? Vai me dizer por onde entrou?

-Não -continuou firme-. Ficarei até que pare de sentir raiva de mim e não vou mostrar por onde entrei. Então poderei fazer isso sempre que eu quiser -acrescentou desenhando um pequeno sorriso.

-O que disse? -Perguntou arregalando os olhos.

-Não percebeu que agimos como duas crianças?

-Não somos crianças, mas adultos. E vejo-me na obrigação de lhe expor todos os prejuízos que pode desencadear esse comportamento. Espero que aprenda com eles e que da próxima vez não...

Martin parou de falar quando sentiu a pressão dos lábios de Elizabeth em sua boca. Não só ficou mudo, mas seu corpo se tornou uma barra rígida de metal. Estava tão perplexo que nem podia piscar.

-Bem, finalmente se calou -comentou Elizabeth ao se afastar-. É a minha vez -acrescentou tentando não pensar na loucura que acabava de fazer, em como lhe queimavam as bochechas ou na forma que batia seu coração-. É verdade que casar com Archie seria uma decisão muito acertada dadas as minhas circunstâncias. -Ao ver que ele movia os lábios, levantou a mão direita para que ficasse em silêncio-. Não só me ajudaria a conseguir o respeito que perdi com minhas atitudes absurdas, mas por ser o único que não pode reprovar a falta de minha virtude. No entanto, me repugna a ideia de sentir suas mãos sobre meu corpo.

-Claro, um marido tem que... -tentou dizer, mas calou-se ao ver o olhar reprovador que ela lhe lançou.

-Quando criança sonhei em me casar com um homem mais notável que meu pai. Queria ter filhos lindos e me tornar a mulher mais invejada de Londres. Entretanto, compreendi que tudo isso não me faria feliz. Prefiro ser uma pessoa independente e passar despercebida para a sociedade -começou seu monólogo-. No pouco tempo em que trabalho para a Sra. Spelman, consegui alcançar aquela felicidade de que falo. Embora os ganhos sejam mínimos -sublinhou desenhando um pequeno sorriso-. Mas tenho que confessar que a oportunidade que me ofereceu me satisfaz mais. Não só pelo salário que receberei, mas porque poderei continuar refugiada do mundo enquanto realizo aquilo que amo. -Respirou fundo ao mesmo tempo que se virou para a escada. Caminhou e se sentou no segundo degrau-. Não sei se Phillip ou Mary falaram sobre mim. -Esperou uma resposta, ao não a ter, continuou-. Como eu disse, me apaixonei por Archie e então ele me deixou. Não fui capaz de superar aquela humilhação e procurei uma maneira de curar o meu orgulho. Mas não agi corretamente. Me tornei uma mulher frívola, soberba e irresponsável. Fiz muito mal para as pessoas que me amam -declarou com um longo suspiro. Logo, levou as mãos para o rosto e o esfregou angustiosamente-. Mas esses descaramentos não foram nada comparado ao que aconteceu há alguns anos... -Tirou as mãos, levantou o rosto e procurou o olhar de Martin-. Quando Anne conheceu Logan, ele a convidou para passar uns dias em Harving House, sua residência de campo em Brighton. Como meus pais não quiseram que fosse sozinha, Josephine e eu a acompanhamos. -Desviou o olhar para o chão e respirou lentamente-. Ali aconteceu algo horrível. Tanto que durante dois anos estive sofrendo uma terrível depressão. -Levantou o rosto, respirou fundo e o olhou de novo-. A primeira vez que tentei tirar a minha vida, Mary impediu-me. Na segunda, a corda quebrou e a terceira... -Respirou fundo novamente quando percebeu como seus olhos ardiam com o aparecimento das primeiras lágrimas-. Parecia que o destino insistia em me fazer pagar pelo erro, obrigando-me a viver. Quando pensei que teria que passar o resto da minha vida em meio a horrores e medos, chegaram ao fim. Um belo dia, como se toda aquela monstruosidade fosse um feitiço destruído por outro mais poderoso, desapareceu. Meu corpo parou de sentir a pressão que suportou por tanto tempo. Madeleine chama isso de milagre, meu pai de maturidade. Embora eu ainda tenha minhas dúvidas se foi uma coisa ou outra, ou talvez o surgimento de uma terceira... -Enxugou as lágrimas que molhavam seu rosto e apertou os lábios, obrigando-se a não confessar que tudo começou no mesmo dia em que o conheceu. -A partir daquele momento, meu ambiente se encheu de luz e esperança. Achei que estava vivendo um sonho quando a Sra. Spelman apareceu em minha casa para me oferecer uma oferta de emprego. Me senti bem-aventurada, feliz e acreditei que nada superaria aquele estado de bem-estar. Duas semanas depois, você apareceu.

-E Archie -Martin apontou, colocando as mãos atrás das costas para que ela não visse que ele havia cerrado os punhos.

-E Archie -repetiu olhando-o fixamente-. Como lhe disse, estou muito feliz há algum tempo, mas sou consciente de que, se me casasse com ele, ajudaria outras pessoas que magoei no passado a serem também.

-Pode contar comigo Elizabeth -disse dando um passo à frente-. Acho que está ciente da confiança que existe entre nós desde que nos conhecemos. Embora não tenha demorado muito, criamos um certo vínculo...

-Não. Essa parte do meu passado prefiro que fique lá, no passado. Embora seja verdade que sua companhia me dará a força que preciso para enfrentar um futuro desconhecido -disse com absoluta sinceridade. Bem, era verdade que cada vez que estava com ele, se sentia uma mulher cheia de força e energia. Porque motivo? Ainda não sabia a resposta.

-Aceito sua decisão, Elizabeth. Embora deva confessar que não gosto de saber que existe algo que pode, ou poderia machucá-la e não saber. Talvez se...

-Não vou dizer -assegurou Elizabeth levantando-se da escada-. É melhor assim.

-Respeito isso -reiterou com uma expressão muito séria-. Pode pelo menos me explicar onde encontrou Archie e por que deduziu que quer que se case com ele?

-Não foi por acaso, disso tenho certeza -começou a explicar movendo-se inquieta de um lado para o outro.

-Percebo por sua voz e por suas palavras que é um homem calculista. Bem, diga-me o que aconteceu -insistiu em saber enquanto a olhava e avaliava seu nervosismo.

A forma como pisava o chão, sua respiração curta, mas agitada e a forma como esfregava as mãos, assegurou-lhe que Elizabeth não sentia atração por aquele homem, mas sim o contrário. Essa descoberta o fez feliz, mais do que desejou sentir em um momento tão difícil para ela.

-Minha mãe e eu voltávamos de uma compra de verduras e o encontramos na mesma rua. Ele e o Dr. Flatman estavam a caminho de nossa casa para falar com meu pai. Como explicaram, sua mãe e esposa morreram de febre e ele queria confirmar se seus filhos estavam saudáveis.

-O fato de ser um pai protetor...

-Podia ficar em Norwich e procurar outros médicos! -Exclamou com raiva-. Mas não quis, porque desejava aparecer em Londres e procurar uma esposa. Tenho certeza que apareceu para confirmar se ainda continuava solteira.

-Tem certeza disso?

-Se tivesse estado lá, não me faria essa pergunta -declarou ao mesmo tempo que caminhava para Martin. Colocou-se frente a ele, olhou-o e continuou dizendo-. Seus olhos brilharam de satisfação quando o Dr. Flatman me anunciou como senhorita Moore. Parecia que seu desejo havia se tornado realidade.

-Tem sua lógica -apontou confiante e sereno.

-Lógica? -Comentou Elizabeth franzindo a testa depois de dar um passo para trás.

-Ele sempre a quis e fez tudo que podia para conseguir isso. Por isso, se apaixonou. Sabia que, apesar de sua beleza, não conseguiria um marido, a menos que estivesse arruinado.

-Eu valho tão pouco? -Perguntou arregalando os olhos.

-Estou levantando hipóteses sobre as reflexões de Lorde Gharster. Claro que não penso dessa maneira. Mas tem que admitir que seu plano foi brilhante. Depois de quatro anos, continua solteira.

-Não vou me casar com ele. Não quero deixar de ser a mulher que sou agora. Não me importo se ficar solteira. Assim, quando esse erro do passado aparecer no futuro, não sofrerei uma grande infelicidade ao ter que abandonar filhos e um marido.

-Volto a dizer que pode contar comigo para...

-Volto a lembrá-lo que não quero envolvê-lo em nada -lhe disse depois de colocar um dedo em seus lábios para que se calasse-. Só quero saber se ainda confia em mim para o trabalho que me ofereceu.

-Para isso veio à minha casa a esta hora e de camisola?

-Sinceramente? -lhe perguntou sem se mexer.

-Evidentemente -Martin respondeu.

De novo Elizabeth começou a caminhar pelo hall em linha reta, como o faria um soldado frente à porta de um quartel.

-Estava sentada olhando pela janela do meu quarto quando vi a carruagem de Valéria chegar -começou a narrar.

-Sabia que era ela? Queria cumprimentá-la?

-Não -negou virando-se para ele-. Pensei que era uma prostituta -garantiu andando de novo.

-Não sou desse tipo de homem -murmurou.

-Isso já sei e, sinceramente, me alegra que seja assim. Não poderia trabalhar para um homem que traz prostitutas para sua casa -acrescentou colocando-se de novo na frente dele.

-Esse foi o único motivo? -perguntou Martin com olhos estreitados.

-Esse e o de te explicar minha decisão sobre o Archie. Embora não tenha me pedido isso, algo em mim dizia que deveria lhe confessar isso -disse tentando mostrar a mesma tranquilidade que oferecia Josh cada vez que negava ter querido matar a Lorde Cooper.

-E agora que conseguiu o propósito que a trouxe a minha casa, o que vai fazer amanhã, Elizabeth? -continuou a pressioná-la.

-Se nada mudou entre nós, adoraria que tomássemos o café da manhã juntos. Tenho que falar sobre todos os funcionários que contratei, especialmente a cozinheira.

-Nada mudou. O contrato continua em vigor -declarou Martin, colocando as mãos atrás das costas.

-Nesse caso vou sair pelo mesmo lugar que entrei -disse dando pequenos passos para trás.

-Dadas as circunstâncias, acho que é uma decisão muito sábia. Não é conveniente que saia neste momento pela porta principal -corroborou olhando-a sem piscar.

-Boa noite, Martin.

-Boa noite, Elizabeth.

-Nos vemos no café da manhã -indicou antes de se virar para o local da casa por onde tinha vindo.

A cada passo que dava para a cozinha, pois ali era onde se encontrava a porta com a fechadura quebrada, seu coração se fazia tão pequeno como o de uma menina de cinco anos. Tonta pela repentina dor que brotou de seu ventre e se estendeu por todo seu corpo, estendeu a mão direita e a posou sobre a mesa ao passar junto a esta. O que lhe acontecia? Seria uma reação tardia ao beijo? Porque não pensou e foi a única maneira que encontrou para fazê-lo calar. Mas devia admitir que não sentiu nojo, medo ou rejeição quando seus lábios tocaram os dele. Foi apenas um toque...

Talvez não estivesse preparada para ficar tão perto de um homem, mesmo sendo Martin. Talvez pensasse que tinha superado tudo e seu corpo lhe indicava que se enganava... tirou a mão da mesa e caminhou até a porta. Quanto mais cedo fosse embora, mais cedo a calma apareceria. No entanto, parou o andar ao ouvir que Martin corria pelo corredor em direção a ela.

-Elizabeth! -gritou ao encontrá-la no centro da cozinha virada para ele como se estivesse esperando sua chegada.

-Martin? -perguntou assustada ao pensar que tinha mudado de opinião.

-Sei que me vou arrepender disto, mas também acontecerá se não o fizer -comentou ao ficar de frente para ela.

-O que vai...?

Agora era ela quem não conseguia terminar a frase. Martin a segurou pela cintura, puxou-a para perto de seu corpo e, antes que Elizabeth pudesse soltar um longo suspiro, ele a beijou.

Seu coração recuperou a força que havia perdido.

Seu sangue cigano corria em suas veias aumentando sua temperatura.

Archie desapareceu de sua mente assim como Lorde Norfolk.

Devido à paixão do beijo, que começou tímido, mas no final se tornou voraz e ardente, Elizabeth notou um tremor terrível nas pernas. Então se sentiu tão tonta e fraca que acabou estendendo os braços para envolver o pescoço de Martin. Isso causou uma proximidade e uma intimidade maior entre eles. Mas Elizabeth não tinha necessidade de fugir de seus braços, mas sim de permanecer presa neles até o fim da eternidade.

-Agora é você quem decide se continua o contrato ou se sai -Martin comentou depois de separar os lábios. Muito lentamente, como se Eli fosse uma figura de cristal, pressionou sua testa na dela.

-Vou embora -Elizabeth respondeu com uma respiração irregular.

-Entendo -Martin apontou, afastando-se abruptamente dela. Esperava mil palavras, mas não aquelas duas tão diretas e drásticas.

-Vou embora -repetiu olhando em seus olhos-. Mas só até amanhã.

O sorriso que os lábios de Martin esboçaram ao ouvi-la, a fez entender que a vida acabara de lhe dar uma segunda chance de ser feliz.

-Boa noite, Elizabeth -repetiu sem apagar aquele sorriso enorme de seu rosto.

-Boa noite, Martin -respondeu antes de abrir a porta e voltar para casa.


Martin não era capaz de dormir. Desde que Elizabeth voltou para casa, não parou de repetir mentalmente tudo o que havia lhe contado. Embora tivesse certeza de que seu único propósito era mantê-lo informado, conseguiu algo que talvez não desejasse: despertar nele muita curiosidade sobre seu passado. Era verdade que Philip havia falado sobre ela, mas não o informou sobre suas tentativas de suicídio ou da depressão que sofreu. Talvez Mary tenha pensado que era melhor manter isto em segredo. No entanto, agora sabia dessa parte da vida de Elizabeth e estava disposto a ir muito além nisso. Não podia ficar de braços cruzados e adotar a posição de um mero espectador. Essa, a seu ver, era uma atitude covarde. Porque se algum dia conseguisse que ela se apaixonasse por ele, tinha que estar preparado para enfrentar esse passado incerto que Elizabeth evocou.

Sentou-se e fumou um cachimbo enquanto seus olhos revisavam o contrato. Naturalmente, não pretendia quebrá-lo. Isso a faria pensar que, apesar de suas palavras, não a queria ao seu lado. Nada mais longe da verdade. Se dependesse dele, depois de descobrir que ela era uma pessoa frágil e vulnerável, a protegeria em sua casa até que tivesse forças para enfrentar o mundo por conta própria. Mas não era uma ideia muito oportuna naquele momento, e menos ainda depois de havê-la beijado daquela maneira...

Deixou o cachimbo dentro do recipiente de vidro, reclinou-se e fechou os olhos para pensar sobre esse beijo. Aceitou-o. Apesar de todas as dúvidas que surgiram em sua mente antes de tocar seus lábios, ela não o rejeitou. No entanto, tinha de admitir que, no início, Elizabeth estava indecisa, e até pensou que se afastaria e lhe daria uma bofetada. Mas não foi assim, o que o satisfez imensamente. Foi aceitando aquele beijo pouco a pouco e agiu como se fosse uma jovem inocente. Pôde sentir o tremor e a fragilidade do seu corpo e até mesmo captou em seus próprios lábios os batimentos do seu coração. Percebeu que esse beijo a havia surpreendido. Não só por sua atitude, mas também pelas emoções que lhe provocou. Por essa razão, quando se afastou, não soube especificar se havia gostado ou desgostado. Ambos pareciam confusos e inquietos. Embora tenha se acalmado ao ouvi-la dizer que voltaria no dia seguinte.

Martin continuou de olhos fechados. Precisava se lembrar de tudo. Qualquer detalhe que encontrasse serviria para solucionar o quebra-cabeças que Elizabeth lhe ofereceu. Segundo sua história, depois do ocorrido com Archie se tornou uma mulher atrevida. Duvidava, pois seu beijo foi tímido demais. Ainda assim, aceitava com certo receio que tivesse beijado um número incontável de cavalheiros. A seguir, lembrou-se dela sentada na escada, esfregando o rosto e tentando esconder as lágrimas que brotaram em seus olhos ao mencionar a Brighton. «Lá aconteceu algo horrível», evocou sua mente. Teria que ser, porque a partir daquele momento ela quis acabar com sua vida. Que situação vivenciou? Provocou-a ou surgiu por acaso? Segundo lhe havia dito, ela e Josefina estavam acompanhando sua irmã Anne. Logan era o guardião de todas elas. O que aconteceu para que Elizabeth ficasse desprotegida?

Abriu os olhos de repente quando uma palavra surgiu em sua mente. Estaria certo? Por isso Elizabeth tinha sofrido a depressão que mencionava? Isso também explicaria as consequências seguintes: o desejo de suicidar-se, a reclusão social, a debilidade, a insegurança e o retrocesso... Esmagado pela dor e cheio de raiva ao deduzir o que poderia ter acontecido naquele dia, levantou-se e correu para as quatro pilhas de livros que ele e Elizabeth haviam transportado dias antes. Uma vez em frente a eles, estendeu o dedo e percorreu os grossos volumes enquanto os lia em voz alta. Depois de encontrar aquele que procurava, pegou-o e voltou para o seu lugar. Antes de começar, tirou os óculos e os limpou com o tecido do colete cinza. Confirmou então que eram duas da manhã e que poderia terminá-lo antes de que retornasse com o café da manhã. Segurou o cachimbo entre os dedos e começou a ler.


XV


-Bendita Morgana! O que está fazendo dormindo ainda? Elizabeth Moore, levante-se agora!

Quando ouviu o grito, Eli saltou da cama com tanta pressa que o lençol se enrolou em seus pés fazendo-a cair de bruços no chão. Ao se levantar e virar o rosto para a porta de seu quarto, viu Josephine, de camisola comprida e com seu cabelo branco alvoroçado, morrendo de rir.

-Viu como imito bem a voz de nossa mãe? —A ouvi gritar comigo tantas vezes que sei como se faz. -Acrescentou sem deixar de rir.

-É uma pessoa má! -Elizabeth a repreendeu depois de se livrar dos lençóis. Logo, levantou-se e jogou-os sobre a cama-. Que horas são? Por que me acordou assim? -Acrescentou antes de sentar-se e colocar as mãos em ambos os lados da cabeça para atenuar a tontura.

-Ainda não são seis horas, e te acordei porque preciso lhe falar antes que mamãe saia do quarto -expôs aproximando-se.

-Falar? Está mentindo! Certamente sua intenção era me matar de susto -resmungou.

-Juro que não era até que entrei e a vi dormir dessa forma -indicou com um amplo sorriso.

-De que forma? -Perguntou afastando as mãos para olhá-la.

-Feliz -explicou sentando-se a seu lado-. É a primeira vez em muitos anos que seu rosto não expressava horror, mas felicidade.

-E decidiu se vingar por isso? -Continuou mal-humorada.

-Não é vingança, mas uma piada -Esclareceu Josh.

Elizabeth precisou de mais alguns segundos para acalmar a raiva e o choque. Uma vez que conseguiu, olhou-a de lado e descobriu, confusa, que o rosto de Josh se tornou sério e manteve o olhar cravado nos pés. O que aconteceu com a destemida Josephine Moore? Do que queria falar a essas horas?

-Se vai me pedir o nome de mais ervas venenosas, não perca tempo, porque não vou dizer. Ainda ouço os lamentos de nossos pais após a última visita de Lorde Cooper -Expôs sem se mover.

-Não se trata disso -indicou Josephine virando-se para ela-. Preciso que me dê um conselho.

-Um conselho? Eu? Sobre o quê? -Soltou perplexa.

-Sobre homens -Esclareceu.

-Sobre homens? -Repetiu para se certificar de que tinha ouvido bem.

-Sim. Já que Anne e Mary não estão em casa, é a próxima com quem posso conversar sobre esse assunto -admitiu sem hesitar.

-Não sei o que dizer sobre isso -Elizabeth comentou se levantando-. Caso não tenha notado, não tive muita sorte com eles.

-Mas sei que estava apaixonada por Archie. A família toda falava disso naquele tempo -Josh apontou olhando para ela.

-E? -Respondeu levantando uma sobrancelha.

-E esse amor se transformou em ódio. Ou seja, teve os dois sentimentos por um mesmo homem. Por essa razão penso que é a pessoa adequada para falar do que sinto ultimamente -Insistiu.

-Por que não fala com a mamãe? Ela saberá te aconselhar melhor do que eu.

-Prefiro ouvi-la gritar comigo do que ter uma conversa sobre homens -comentou com um sorriso sarcástico.

-Josh, caso não tenha notado, tenho vivido uma desgraça atrás da outra por causa deles. Eu não sou um bom exemplo -disse com tristeza.

-Mas só quero que me explique o que acontece com o meu coração -expressou dando-lhe um olhar de súplica.

-Não sei o que dizer sobre isso, o meu tem estado cheio de ressentimento, vingança, tristeza e...

-Mas agora está feliz -interrompeu-. Vejo nos seus olhos.

-O que quer dizer com isso? -Perguntou tão alarmada como assustada.

-Que, apesar de tudo, sobreviveu a um estado de escuridão. Ou como diz nossa mãe: a borboleta saiu da crisálida -disse imitando de novo a voz de Sophia-. Por isso estou aqui. Pode me esclarecer se o que acontece comigo é normal.

-O que acontece? -Perguntou resignada enquanto voltava para a cama para se sentar novamente.

-Algumas vezes sorrio sem ter um motivo -expôs envergonhada com sua falta de autocontrole-, outras, sinto tanto ódio que quero atirar em todos que se aproximam de mim. Acho que estou doente. Talvez papai tenha que me examinar a cabeça ou o peito, pois ultimamente o coração bate muito rápido. Sobretudo, quando penso em...

-Em...? -Eli perseverou levantando uma sobrancelha.

-Sabe em quem! -exclamou movendo-se desconfortável sobre o colchão.

-Suponho que se refere a Lorde Cooper -apontou subindo os pés à cama. Em seguida, Josh a imitou.

-Sim. Esse...

-É verdade que, desde há algum tempo, aparece com muita frequência em nossa casa -começou a dizer Eli.

-Ele veio aqui quarenta e duas vezes para o chá, vinte vezes para que nosso pai curasse as feridas das farpas e sete vezes para almoçar conosco. É claro que esta última aconteceu de forma inesperada. Aparentemente, nossa mãe, em um ato de cortesia, o convidou para almoçar quando o encontrou caminhando perto de nossa casa.

Elizabeth a olhou assombrada por um bom tempo. Não sabia se gritava ou lhe agarrava pelos ombros para sacudi-la. Não percebeu que Lorde Cooper estava interessado nela? Só faltava lhe colocar um anel! Qualquer moça em seu lugar choraria por quão afortunada era ao conquistar um dos solteiros mais desejados da cidade. Mas as necessidades e os valores de Josephine não se equiparavam com os de qualquer moça. Tirou de sua cabeça todas as vantagens que o casamento de Josh com Eric poderia trazer, respirou fundo e se concentrou no básico: descobrir o início da história.

-Como e onde se conheceram? -Perguntou finalmente.

-Foi durante a viagem que fizemos a Brighton com Logan. Uma manhã saí a galope com Galleon e parei quando ambos estávamos cansados. Enquanto ele bebia água num riacho, me divertia brincando com minhas armas.

-Josh! -Exclamou Elizabeth arregalando os olhos-. Teve algo a ver com o acidente que todo mundo falou?

-Digamos que fui esse caçador que ele mencionou -respondeu com um sorriso cheio de orgulho-. Mas juro que não estava caçando -acrescentou rapidamente-. Ele inventou essa história.

-Sem dúvida -apontou Elizabeth com sarcasmo.

-Acho que entrei em suas terras sem perceber. Ele apareceu justo quando eu estava fazendo alguns exercícios com o punhal e... -Seus olhos brilhavam diante da lembrança daquele dia. Claro que não podia contar que a havia beijado, nem o que aconteceu quando suas bocas se uniram. Isso guardaria como um tesouro precioso.

-E? -Eli perseverou quando Josh ficou tão calada.

-E lancei-a inconscientemente quando ouvi a sua voz -admitiu com tranquilidade, como se tivesse recolhido maçãs em vez de esfaqueá-lo.

-Santo Deus! -Disse Elizabeth levantando-se para andar de um lado a outro-. Sabe o problema que teria tido se o matasse? É o único filho do Barão de Sheiton! Já ouviu sobre o que o pai dele faz? Não viu como todos os aristocratas enrijecem seus corpos quando passam ao seu lado?

-Não o matei. Só o feri. Embora devo reconhecer que lancei com tanta força que poderia ter atravessado sua perna. No entanto, não ocorreu porque a qualidade de suas botas de montaria o salvou -comentou pondo os pés no chão. Ao olhar para sua irmã, descobriu que a observava com medo e assombro-. Não me julgue, Eli. Vim aqui porque sei que é a única pessoa que não o fará.

-Por que não deveria julgá-la? -Perguntou estreitando os olhos.

-Porque, como bem disse, nem sempre agiu com sensatez -determinou.

Elizabeth apertou os punhos, franziu a testa e mordeu a língua. Eram certas suas palavras. Não havia resposta possível diante disso. Ainda assim, tinha que adotar uma atitude correta. Como dizia sua mãe, diante dos erros, as Moore não se encolhiam, mas se levantavam e continuavam a vida com orgulho.

-Independentemente de como o conheceu e do que poderia ter acontecido, o que sente por ele? -Perguntou-lhe depois de voltar para a cama.

-Não sei. Estou muito confusa -revelou-. Odeio-o quando aparece, mas se não vem odeio-o ainda mais porque minha mente não faz outra coisa, a não ser pensar nos possíveis motivos de sua ausência. -Depois disso, respirou fundo, como se isso provocasse um grande esforço, e continuou com sua confissão-. Ultimamente o olho de maneira diferente...

-O que quer dizer com diferente? Porque há alguns dias tentou envenená-lo -lembrou.

-Só coloquei uma folha e meia no chá. As outras joguei na fogueira para que a mãe pensasse que adicionei -comentou divertida.

-Por que fez isso? -Eli perguntou, ainda mais confusa do que já estava.

-Queria lhe provocar uma leve indigestão e que não saísse de casa durante uma semana -declarou sem hesitações.

-Josephine! -exclamou atônita-. Como pode falar dessa maneira? Colocou-o em perigo! -insistiu em fazê-la raciocinar.

-Eu impedi que se fosse -esclareceu.

-Que se fosse? Para onde? -insistiu desesperada.

-Ouvi-o dizer ao papai que tinha a intenção de partir para Brighton em breve. Segundo explicou, estava ansioso para visitar o administrador que contratou e rever os livros de contas para garantir a sua lealdade.

-Josephine, se a incomodava tanto que se afastasse, por que não lhe pediu que não o fizesse em vez de o envenená-lo? -Elizabeth soltou depois de esfregar o rosto.

-O que pensaria de mim se lhe dissesse essa bobagem? -Perguntou com raiva.

-A verdade! Que está apaixonada por ele! -Desistiu desesperada.

-Isso não é verdade! -Recusou-se a admitir antes de se levantar e começar ela a andar de um lado a outro-. Não sou desse tipo de mulher!

-O coração é livre, Josh, e não escuta a razão. O seu acelera quando pensa nele, certo? -Josephine não respondeu-. Quando aparece, todos os seus sentidos se concentram nele? -Continuou sem obter resposta da sua parte-. Tenho certeza que sabe o que ele vai dizer antes de que abra a boca.

-Não sou capaz de adivinhar suas palavras, mas o observo em silêncio -declarou.

-É praticamente o mesmo -indicou Elizabeth tranquilamente-. O importante é que ele provoca sua curiosidade.

-Bem... -sussurrou confusa, embora logo esboçou um enorme sorriso-. Uma das maiores marcas deixadas pelos estilhaços está sobre o olho esquerdo. Desaparece quando sorri -começou a dizer enquanto andava de novo pelo quarto-. Sempre sabe quando nossa mãe vai pegar um doce e se levanta para lhe oferecer a bandeja. Precisa controlar a mecha loira em sua testa. Mas aquela franja, estranha entre os tons de cobre, é tão rebelde que não acredito que se mantenha fixa nem adicionando água com açúcar.

-Como conhece esse truque de beleza? Nunca se interessou por esse tipo de assuntos femininos.

-Ouvi Mary a gritar com a Anne que não andaria com ela se voltasse a usar essa mistura no cabelo, porque, ao que parece, nem as moscas nem as abelhas de Londres as deixariam tranquilas -explicou ao voltar para o lado de Elizabeth.

-Tem sua lógica.

Depois de se ouvir usar a palavra lógica, empregada com tanta frequência por Martin, sorriu.

-Na festa dada pelo Conde de Burkes, ele ficou ao meu lado o tempo todo, protegendo-me das harpias que vieram para descobrir quem nós éramos. -Admitiu subindo na cama-. Se não estivesse lá, teria sacado as pistolas que guardava em minhas ligas -esclareceu segurando os joelhos e olhando para Elizabeth-. Então, quando saímos, ele correu atrás de mim, embora estivesse de muleta. «Pode confiar em mim», disse. Porque sabia que tudo o que havíamos feito era uma farsa. Pensei que não voltaria a ter notícias dele, mas estava errada. Caso não se lembre, poucos dias depois de voltar, ele me mandou flores e uma carta. Todos pensaram que eu não a li, que a dei diretamente a Galleon para comer. Não foi nada disso...

Elizabeth não podia falar. Não só pela história de Josh, mas porque ao mencionar aquela noite, aquele lugar, seu peito começaram a doer. Foi a culpada de que saíssem precipitadamente, mas não havia outra opção...

-Elizabeth? -Perguntou Josh ao ver como o rosto de sua irmã tinha ficado pálido e apertava os punhos.

-Sinto muito. Cada vez que recordo aquele dia...

-Todas passamos muito mal e sei que Logan se arrependeu de nos levar, mas tínhamos de ajudá-lo -comentou segurando suas mãos.

-Tem razão -disse levantando o rosto e mostrando um pequeno sorriso-. Resumindo -acrescentou ao clarear a voz-. Gosta de lorde Cooper.

-Resumindo, não sei -apontou Josh.

-Quer que o comprovemos? -Perguntou Eli com tom misterioso.

-É possível fazer isso? -Soltou arregalando os olhos.

-Sim, mas tem que fazer tudo que eu pedir -garantiu.

-Farei -disse com veemência.

-Coloque as mãos no peito. -Josh o fez-. Feche os olhos e ouça as batidas do seu coração.

-Estou ouvindo.

-Bem, imagine que uma tarde Lorde Cooper não aparece. Se faz mil perguntas sobre o que seria tão importante para que não pudesse enviar uma carta de desculpas. De repente, papai lhe pede que o acompanhe para dar um passeio. Aceita e no meio do caminho, o encontra caminhando de braço dado com uma jovem. Diga-me, Josephine, como seu coração bate agora?

-Eu os mato nesse momento! -Trovejou dando um pulo. Assim que as solas de seus pés tocaram o chão, se virou abruptamente para sua irmã e esta pôde ver a extensão da raiva em seu rosto e nos olhos. -Se me fizer isso, juro que... -Tampou a boca rapidamente ao ouvir um barulho no corredor-. É a mamãe! -exclamou em um sussurro-. Está vindo aqui -acrescentou.

Antes que Elizabeth pudesse piscar uma vez, Josephine se jogou no chão e rolou sobre ele, se escondendo embaixo da cama. Não foi capaz de reagir quando sua mãe abriu a porta.

-Bom dia filha -Sophia comentou ao entrar no quarto.

-Bom dia mãe -Saudou-a depois de se levantar e respirar fundo para encontrar um pouco de paz-. O que faz acordada a esta hora?

-Não podia ficar no quarto por mais tempo. Passei a noite toda com os olhos abertos e não dormi nada -disse Sophia caminhando para a cama. Quando ela se colocou aos pés desta, sentou e olhou para sua filha.

-O que a preocupa? -Insistiu sem deixar de observar como Josh lhe fazia gestos com uma mão para que pensasse em algo que fizesse sua mãe levantar da cama.

-Sua reação depois de encontrar Archie me chamou a atenção. Ainda não sei como foi capaz de adotar tanta integridade. Alguns meses atrás, vagava por este quarto como se fosse um fantasma. Mas desde que Mary voltou, se tornou uma mulher diferente.

-Eu sou -garantiu, abrindo os olhos como pratos enquanto via as mãos de sua irmã ao redor de seu pescoço para informá-la de que o peso de sua mãe a estava sufocando. Como tirar Josh da confusão sem sofrer as repercussões disso? Afastou o olhar e o cravou em sua mãe. Que Morgana a ajudasse com o que ia dizer... -Acho que no fundo, sou mais cigana do que jamais pensei.

-Porque diz isso? -Perguntou Sophia com os olhos arregalados.

-Porque sou uma mulher muito forte, como a senhora. Apesar do que aconteceu com a bisavó, soube o que devia fazer e lutou contra todos. Sei que Archie não é bom para mim, apesar de poder me oferecer uma vida confortável. Mas com o tempo aprendi que uma posição social não significa nada se não há amor em um matrimônio. Archie só encontraria ódio da minha parte -disse com mais sinceridade do que esperava.

-Bendita Morgana! -Exclamou Sophia ao se levantar da cama-. Que alegria acaba de me dar! -Disse antes de abraçá-la.

Quando Elizabeth aceitou aquele abraço maternal, olhou para Josh e ordenou-lhe, fazendo gestos com os olhos, que saísse dali. Mas a jovem não se moveu.

-Sabia que era uma Arany! -Continuou Sophia sem poder apagar o sorriso de seu rosto enquanto se afastava dela-. Apesar de sua aparência ser idêntica à que seu pai tinha quando era jovem, sempre tive a certeza de que é meu sangue que corre por suas veias.

-Não se entusiasme muito, mãe. Demorei muito para descobrir quem sou de verdade e tenho que trabalhar nisso -declarou Elizabeth depois de respirar fundo.

-E o fará perfeitamente! -declarou feliz-. No momento, comece se lavar e preparar um café da manhã para Martin. Lembre-se que os servos vão aparecer hoje. Deve orientá-los com segurança, sem hesitações. Deverão vê-la como uma mulher segura e solene. Se hesitar, farão o que quiserem. Seja sensata, Elizabeth. Só assim conseguirá o respeito que uma grande dama merece.

-Sim, mãe.

-Confio em ti, querida -disse dando-lhe um beijo na testa. Em seguida, caminhou até a porta, pegou a maçaneta com a mão direita, levantou o rosto, respirou profundamente pelo nariz, franziu a testa e disse -: Josephine Moore, está de castigo por tentar atropelar Lorde Cooper com seu cavalo. Pensou que não descobriríamos? A senhora Cambell informou ontem a seu pai que as autoridades procuram o cavaleiro que tentou assassinar o filho do barão de Sheiton no Hyde Park. Se ama tanto seu pai, pare de fazer esse tipo de loucura. Esta noite ele teve que tomar uma infusão relaxante para poder dormir. Ainda assim, não descansou devido aos pesadelos.

Depois disso, saiu e fechou a porta com um golpe.

-Mas como soube onde eu estava? -Perguntou Josh saindo de seu esconderijo-. Nossa mãe faz bruxaria, não tenho a menor dúvida.

-Nossa mãe não faz isso, só percebe nossa presença e a sua é fácil de notar e cheirar -afirmou levando dois dedos em direção ao nariz.

-Não vou tomar banho hoje -resmungou sacudindo a camisola. Logo fez o mesmo com sua longa juba branca.

-Mas cheira a cavalo -apontou Elizabeth após retirar os dedos-. É verdade que quis matá-lo?

-A princípio, sim -Josh admitiu cruzando os braços-. Mas no último segundo eu mudei de ideia.

-Ainda bem que reconsiderou. Se o tivesses ferido, teria ido parar na prisão -disse enquanto se dirigia para a janela. Como sua irmã sairia em breve, queria descobrir se Martin estava acordado.

-Não foi por isso -admitiu Josh.

-Por que fez isso então? -perguntou enquanto puxava a cortina para o lado direito.

-Se afastou da mulher -declarou.

-Que mulher? -Soltou virando-se rapidamente para ela.

-Quando a mamãe me deixou cavalgar, fui com Galleon para Hyde Park. Jovens bêbados com bolsos cheios de moedas precisam de ação e desperdício. Por esse motivo aceitei a aposta que me ofereceram assim que cheguei.

-Não sabiam que era uma mulher? -perguntou surpresa.

-Volto a repetir que estavam bêbados. Essas pessoas não podem ver com clareza nem a cor da lua cheia! -Expôs divertida.

-O que aconteceu? -Insistiu em saber.

-Eu estava ganhando, é claro -adicionou com orgulho-. Só tinha cem metros para alcançar a meta estabelecida. Normalmente não me distraio nesses momentos cruciais, no entanto, uma voz dentro da minha cabeça gritava para eu olhar para a direita. -Franziu a testa e continuou-. No início, pensei que não era ele. Depois do chá, deveria estar em sua casa com o estômago revirado, mas estava errada -acrescentou agarrando os joelhos com os braços-. Estava lá, com seu amigo Lorde Manners e uma mulher.

-Sinto muito... -Sussurrou Elizabeth ao pensar que a enganava.

-Não dei importância -disse levantando o rosto para olhá-la. O sorriso que Josh mostrou deixou Eli com o coração apertado-. Se afastou dela assim que descobriu a corrida e, desde o primeiro instante, soube que cavaleiro era eu.

-Como descobriu? -Perguntou curiosa.

-Não sei. Talvez tenha notado a cor do meu cabelo, embora saiba que eu geralmente o prendo quando cavalgo. A única coisa que posso dizer é que seus olhos mostraram alegria ao me ver e que seus lábios esboçaram um grande sorriso. Se não fosse loucura, pensaria que estava me animando para ganhar aquela corrida -disse antes de deixar escapar um longo suspiro-. Passei com Galleon ao seu lado. Estava tão perto dele que pude sentir o tecido de seu casaco roçar na bota do meu pé direito. Então ouvi todo mundo gritando. A mulher também, mas ela pulou nos braços de Lorde Manners.

-Não entendo como consegue viver em risco contínuo -indicou com os braços cruzados.

-Como nossa mãe bem disse, lá no fundo, somos todas mais Arany do que Moore. De onde acha que tenho minhas habilidades? Quem atira facas, monta a cavalo e atira como eu faço?

-Os ciganos -comentou Elizabeth com um enorme sorriso.

-De fato.

-De qualquer forma, tem que admitir que teve muita sorte -comentou encaminhando-se de novo para a janela.

-Nós duas tivemos muita sorte -apontou levantando-se.

-Em que tive sorte, Josephine? -perguntou olhando todas as janelas da casa de Martin.

-Caso não tenha notado, a mãe não mencionou ou reprovou o que ê fez ontem -disse enquanto caminhava para a porta.

-Ontem foi um dia normal, exceto que vi Archie e me reviraram as tripas -respondeu concentrada no lado de fora.

-Não minta. Ela a viu e eu também.

-Não minto, Josh. Me vê todos os dias -disse com um sorriso de orelha a orelha ao descobrir que a luz do salão se acendeu.

-Quero dizer, sua escapada noturna. Devo avisar que mamãe a espiou da janela do corredor. Sabe a que horas saiu e quando voltou. Da próxima vez, seja mais cuidadosa -avisou antes de sair.

-Fez o quê? -Gritou ao se virar, mas Josh já não estava no quarto.


XVI


Durante o tempo que passou em seu quarto se preparando para descer, pensou em mais de cem desculpas confiáveis para sua mãe. No final, decidiu contar a verdade. Não havia nada de errado em ir à casa de Martin para descobrir se ele havia contratado uma prostituta. Certamente a entenderia e ficaria do seu lado. Mas quando chegou à cozinha não encontrou ninguém. O fogo nem estava aceso. Se retirou para seu quarto quando deixou o dela? Talvez fosse verdade que não tinha conseguido dormir e queria descansar antes que todos se levantassem. Confusa com a estranha atitude da mãe, ela começou a preparar o café da manhã. Estava tão focada em não perder nada que não percebeu que ainda estava sozinha até colocar um pano sobre os cupcakes que Madeleine preparou na noite anterior. Por que não aparecia? Se Josh estivesse falando a verdade, ela ficaria ansiosa para descobrir por que saiu de casa e foi para a casa de Martin. Elizabeth olhou para a porta, perguntando-se por que sua mãe ainda não desceu. Confiaria nela? Se isso fosse verdade, poderia considerar um verdadeiro milagre, porque nunca aconteceu. Razões não faltavam. Até o momento, sua atitude não era adequada para gerar segurança ou tranquilidade para a família, e sim o oposto. Mas, felizmente para todos, estava mudando aos trancos e barrancos.

Preocupada em não se atrasar, não prestou atenção ao fato de que não havia colocado um lenço e que suas mãos ainda estavam nuas sem luvas. Saiu da cozinha caminhando rapidamente e segurando a alça da cesta com força. Antes de tocar na maçaneta, olhou por cima do ombro esquerdo para o andar acima. A estranheza aumentou ao não a encontrar no alto das escadas de camisola. Sim, talvez o milagre fosse possível e confiasse nela. Pensando em como era raro adquirir algo tão importante como a confiança de sua mãe, abriu a porta e saiu para depois de fechá-la.

Uma vez que pisou no jardim seco da casa de Martin, todas as reflexões sobre a conversa de Josh e a atitude de sua mãe desapareceram de sua cabeça. Nesse instante só pôde pensar nele. Como a receberia? A beijaria novamente ou se manteria distante? O nervosismo se apoderou de Elizabeth. Não sabia como reagiria se escolhesse a primeira ou a segunda opção. Desejava que ao entrar a pegasse pela cintura, como fez na noite anterior, e sem lhe dar tempo para falar, colocasse os lábios sobre os seus. Embora estivesse consciente de que isso não beneficiaria a nenhum dos dois. Não seria nem adequado nem apropriado que começassem algo que não teria um final bonito. «Nem amor nem romances». Chegou a essa conclusão depois do que aconteceu com Lorde Norfolk, porque já tinha causado danos demais e cometido muitos erros. Apaixonar-se por Martin seria outro... O que pensaria dela quando lhe contasse o que aconteceu de verdade aquela noite? Que repercussão teria para ambos? Quebraria seu coração e sabia a dor e a tristeza que isso acarretava. Não destruiria a vida de outra pessoa. Devia manter-se firme e não se deixar levar por um absurdo entusiasmo. A nova Elizabeth Moore estava consciente do que o futuro lhe reservaria e o assumiria com firmeza.

Parou na entrada, respirando profundamente para acalmar esse estado de nervosismo. Uma vez que o conseguiu, levantou a mão, agarrou a aldrava para bater e abriu os olhos de par em par quando a porta se abriu sem esforço.

-Martin? -Perguntou ao entrar-. Bom dia, cheguei. A porta estava aberta -continuou a falar enquanto fechava o trinco.

Ao se virar, não o encontrou. Tampouco escutou nenhum ruído que delatasse seu paradeiro. Depois de alguns segundos imóvel na entrada, decidiu dirigir-se ao salão. Talvez a tenha esperado por um tempo e, ao ver que demorava, resolveu continuar a trabalhar. Caminhou devagar, embora as solas de suas botas pisassem o chão com força para fazer barulho. Chegou até a porta do cômodo e ficou em frente a ela.

-Está aí dentro? Posso entrar? -Ao não ouvir sua voz, decidiu abri-la.

A luz estava acesa. As cadeiras, onde ele e Valeria estiveram sentados na noite anterior, continuavam uma frente à outra. Deu dois passos em frente e olhou ao seu redor. Não o encontrou em lugar algum. Mas tinha estado lá. Soube assim que viu o cachimbo sobre o cinzeiro de vidro que estava no chão, junto ao sofá. Reparou no cobertor e no livro que havia sobre ele. Temia que tivesse passado a noite lendo. Que teoria matemática o teria mantido acordado? Algo dentro dela a incentivou a descobrir o conteúdo desse grosso exemplar, mas se recusou a fazê-lo. Essa ação ultrapassaria os limites de intimidade entre eles. Virou-se para a porta e voltou ao corredor. Olhou para o andar superior e logo para sua esquerda. Um sorriso apareceu em seu rosto quando finalmente ouviu algo. Foi um ruído muito fraco que provinha da cozinha. Olhou para o fundo do corredor e descobriu o reflexo de uma luz fraca na parede. O sorriso se tornou mais amplo ao supor que estava preparando a mesa para o café da manhã.

Com o coração batendo rápido, dirigiu-se para esta. Tal como disse a Josh, todos os seus sentidos se aguçaram: podia ver, embora o corredor estivesse na penumbra, podia cheirar a fragrância de Martin misturada com a fumaça do cachimbo e podia ouvi-lo respirar. Só lhe faltava saborear novamente sua boca... repreendia-se por ter tido a audácia de pensar nisso quando seus pés ficaram colados ao chão, impedindo-a de avançar. Elizabeth apertou mais a alça da cesta quando descobriu o que Martin estava fazendo na cozinha. Tentou se virar, mas o seu corpo ficou petrificado. Quis fechar os olhos, mas as pálpebras continuavam separadas. Seu sangue cigano, que na verdade corria em suas veias, começou a ferver, como a água de uma panela. Suas bochechas irradiavam tanto calor que não demorariam em sair bolhas por todo o rosto. Quantas casa de banho havia na casa? Cinco? E por que não as usava? Por que tinha que se lavar na pia dos pratos?

Tentou pigarrear, fazer algum barulho que traísse sua presença, mas sua voz não saiu. Ela estava paralisada e seus olhos estavam nas costas nuas de Martin. Olhou-o com tanta precisão que conseguiria explicar, quatro anos depois, quantas pintas havia nele e onde estavam localizadas. Ele, supostamente alheio à sua chegada, inclinou-se um pouco mais para a torneira, para que a água lhe molhasse o cabelo, e isso fez com que Elizabeth se fixasse em seu traseiro. A cintura da calça se prendia ao seu corpo perfeitamente e o tecido se ajustava não só a essas bases, mas também a suas pernas, longas e atléticas. Eli engoliu saliva, porque foi a única coisa que pôde fazer. Sua atração por Martin foi tal, que não se perguntou se continuava respirando. Notou que ele estendia a mão direita para esse lado do lavatório. Apalpou com os dedos o pano que tinha deixado próximo. Pegou-o para começar a secar o cabelo, o rosto e... se voltou. Enquanto secava o rosto, virou-se para Elizabeth. E ela não só descobriu como eram as costas, mas também o peito. Não era robusto, nem apresentava grandes músculos devido a um esforço físico. Mas sim, era firme. A barriga que seu pai escondia, depois de passar centenas de horas sentado e lendo, ainda não tinha aparecido nele. De repente, Elizabeth desejou tocar aquele pelo loiro que começava no peito e desaparecia pela cintura. Queria saber o conforto que lhe traria afundar a cabeça naquele torso. Instou-a a descobrir como era o toque de sua pele e a acariciar com a ponta dos dedos as gotas de água que vagueavam sobre ele...

Nesse momento a cesta caiu no chão.

-Sinto muito... pensei que...

Queria se desculpar por tê-lo surpreendido de forma tão íntima, mas estava tão envergonhada e exaltada que tudo que queria era sair correndo dali. Embora ainda não se mexesse. O sangue, com um poder até então escondido e desconhecido, a forçou a ficar lá. Elizabeth começou a tremer porque sentiu frio e depois muito calor. Sentiu os batimentos cardíacos acelerarem em sua cabeça, como se estivesse com uma terrível dor. De repente, quando ele jogou o pano para descobrir o que estava acontecendo ao seu redor, ela parou de respirar. Nunca tinha pensado que o rosto de um homem durante o asseio matutino lhe fosse agradável, mas o de Martin era, e mais do que desejava. Adorou ver seus olhos sem os óculos, a barba descuidada e a palidez de suas bochechas ao sentir frescor. Mas seus olhos ficaram fixos nos lábios. Mostravam uma cor vermelha intensa, sensual, e tão erótica que desejou beijá-los.

-Elizabeth? O que aconteceu? -disse correndo ao seu encontro-. Se machucou?

As pupilas da Elizabeth aumentaram quando o viu se aproximar sem reparar em sua nudez. Por que não pegou a camisa que estava no encosto da cadeira antes de vir em seu auxílio? Com rapidez, abaixou a cabeça, dobrou os joelhos e tentou recolher todos os bolos que haviam saído disparados da cesta.

-Por que se lava aqui? -Soltou com raiva-. Não tem uma casa de banho onde pode fazer isso com alguma privacidade?

-Eu adormeci e estava com pressa para me arrumar. Não queria que me encontrasse feito um desastre -explicou enquanto recolhia o último bolinho. Ofereceu a ela. Eli o pegou, e enquanto lhe dirigia um olhar assassino, ele acrescentou-: Peço desculpas por ter sido tão descuidado. Prometo que não voltará a acontecer -acrescentou levantando-se.

Enquanto Elizabeth segurava a cesta com as duas mãos, Martin caminhou até a cadeira, sacudiu a camisa branca, a vestiu e começou a abotoá-la.

-A porta estava aberta -disse dirigindo-se para a mesa.

-Deixei-a para que não tivesse que bater -indicou enfiando a camisa em volta do cós da calça.

-Não foi um ato muito sensato de sua parte. Minha mãe poderia ter me acompanhado e não sei o que teria pensado se o encontrasse assim -continuou falando com aparente calma, embora seu corpo continuasse tremendo.

-Que sou um desastre -admitiu com um sorriso de orelha a orelha.

Elizabeth olhou-o e quis repreendê-lo como se fosse uma criança pequena, mas a raiva passou quando o viu sorrir daquele jeito doce.

-Por favor, não faça mais isso -afirmou ao virar as costas para ele e começar a tirar tudo o que trouxe na cesta-. Lembre-se que a partir de hoje terá empregados rondando pela casa e não é adequado que o senhor desta se lave na cozinha. Se o fizer, pensarão que estão sob as ordens de um demente e isso não lhe faria nenhum bem. É um matemático respeitável, Martin. Um homem muito inteligente para deduzir que...

-Não o farei -Sussurrou tão perto que podia ouvir como respirava fundo antes de lhe responder.

Elizabeth se virou com rapidez ao pensar que seus sentidos a enganavam. Não o faziam. Martin estava atrás dela, com a camisa meio abotoada, com o cabelo ainda úmido, com seus lábios vermelhos...

-Está...? Está com fome? -Gaguejou. Assim como no dia em que o conheceu.

-Sim.

Ele ia beijá-la. Queria que a beijasse? Sim, estava morrendo de vontade de sentir aqueles lábios sobre os seus. Mas o que aconteceria depois? O que se tornariam? Cravou os olhos na região do peito que ainda continuava sem cobrir e foi olhando-o lentamente até que chegou à garganta. Seu pomo se moveu, como se acabasse de engolir um enorme pedaço de torta. Prestou atenção em sua forma de respirar. Era agitada, como se ele também travasse uma batalha entre o desejo e o dever, entre buscar ou esquecer, entre sentir ou desejar. Elizabeth levantou muito lentamente o rosto até que ambos os olhares se cruzaram. Então descobriu que não só ela tinha dúvidas...

-Devíamos tomar café da manhã e conversar sobre a área da casa que quer que comecemos -disse sem fôlego, porque estava tão excitada que mal conseguia respirar, falar ou pensar.

O contato visual, a proximidade, foi quebrada, e a atmosfera de tensão que havia sido criada ao redor deles desapareceu.

-Hoje pode começar pela biblioteca, se achar correto -comentou Martin dando vários passos para trás. Em seguida, rodou a mesa e sentou-se na cadeira que estava na frente dela.

-Vai me deixar sozinha? -perguntou confusa e nervosa.

-Por acaso não posso confiar em seu potencial? Julguei-a mal? -Soltou ajudando-a a tirar os talheres e os guardanapos que ainda estavam dentro da cesta.

-Pode confiar em mim -assegurou quase através de um grunhido-. Mas deduzi que ficaria para revisar tudo o que pretendo fazer.

-Quer que eu fique?

-Não -respondeu de mau humor enquanto servia o café.

Esperava que as teorias que havia lido no livro fossem verdadeiras, pois, do contrário, seria ele quem ficaria louco. Observou-a dar uma mordida no doce que havia pego e sentiu sua temperatura corporal subir rapidamente. Como podia lhe fazer isso? Como podia lamber os lábios daquela forma sem sentir pena dele? Talvez tenha sido vingança por não a ter beijado. Se essa hipótese fosse verdadeira, estava no caminho certo. Martin pegou a xícara onde Elizabeth servira o café, levou-a à boca e, escondendo-se atrás da pequena porcelana, sorriu.

Segundo a teoria do filósofo, professor e psicólogo alemão, as pessoas que passaram por uma grande tragédia precisavam recuperar a confiança em si mesmas. Isso poderia ser adquirido de duas maneiras: internando-os em um hospital para realizar uma série de tratamentos ainda a serem especificados, ou oferecendo experiências emocionais contraditórias para que pudessem tomar as decisões certas sem medo de errar. Logicamente, optou pela segunda, pois era menos perigosa que as supostas descargas elétricas que se davam no cérebro. Foi por isso que ficou à espera à porta até vê-la sair de casa. Essa também foi a razão pela qual a deixou aberta e correu para a cozinha. Na verdade, a casa tinha cinco banheiros onde podia lavar o rosto e o cabelo com intimidade. Mas o plano era que o descobrisse e que, embora pudesse ser uma ameaça, não a tocaria... por enquanto. Apesar de não ter pensado sobre certas consequências. Como pararia seu desejo de beijá-la, de abraçá-la e lhe mostrar que poderia estar segura ao seu lado? Deus o protegesse! Porque quem acabaria preso em um hospital sofrendo mil choques no cérebro seria ele...

-Vai sair? -Elizabeth quebrou o longo silêncio-. Porque imagino que tenha sido esse o motivo pelo qual me disse que poderia começar pela biblioteca.

-Vou visitar Valeria -respondeu com tranquilidade-. Depois do ocorrido ontem à noite, creio que seria adequado oferecer-lhe uma explicação.

-Vai lhe dizer que estive aqui? -Disse arregalando os olhos.

-Não. Jamais a colocaria em um compromisso semelhante -declarou levantando-se-. Alegarei que precisava trabalhar -acrescentou.

-É uma boa opção -respondeu segurando sua xícara com ambas as mãos.

-É a única que posso oferecer sem ter que mentir -declarou enquanto abria uma das gavetas do aparador. Pegou algo e se virou para ela-. Preciso pedir um favor.

-Qual? -Disse ao depositar a xícara sobre a mesa.

-Quando um dos criados chegar, peça para consertar a fechadura da porta -apontou o lugar por onde ela tinha entrado na noite anterior.

-Farei isso.

-Não terá que usá-la nem uma vez mais -garantiu colocando na uma chave sobre a mesa-. Pode entrar e sair daqui quando quiser. Minha casa é sua casa, Elizabeth -acrescentou olhando-a nos olhos.

-Martin... -sussurrou com espanto-. Não sei o que dizer a respeito.

-Não diga nada e aceite-a -disse se colocando ao seu lado-. Tenho certeza que fará um bom uso disso e que...

Acabaram-se as teorias do psicólogo alemão e acabou-se também a postura de se manter afastado, porque teve que abrir os braços quando Elizabeth se lançou sobre ele.

-É o presente mais bonito que já me deram em minha vida -comentou abraçando-o com força.

-Uma chave? -Perguntou para ter certeza de que não estava confuso.

-Não. -Ela sorriu sem desviar seu rosto daquele peito que se movia ao ritmo de uma respiração agitada-. A confiança que me oferece -esclareceu. Em seguida, se separou o suficiente para olhá-lo nos olhos.

-Por que não deveria? Foi sincera comigo e quero que compreenda que agradeço muito por ter feito isso. Exceto meus irmãos, nunca conheci uma pessoa que use a verdade para proteger os outros, mesmo que isso possa deixá-la em uma posição vulnerável -explicou sem saber onde devia colocar suas mãos agora. Estas queriam voltar ao corpo de Elizabeth. Comportavam-se como dois imãs à distância. Mas havia se prometido que não voltaria a beijá-la ou tocá-la até que não estivesse preparada-. Elizabeth? -Pronunciou seu nome ao descobrir que seu olhar estava perdido e que sua testa tinha se enrugado como se alguma má lembrança estivesse atormentando-a.

-Estou bem -respondeu colocando as mãos no colarinho da camisa para abotoar os botões que ainda estavam soltos.

-Está falando a verdade? Parecia abstraída em algum momento doloroso -insistiu em segurar suas mãos. Elas tremiam tanto que seus dedos eram incapazes de colocar um dos botões na lapela. Apertou-as com carinho, não só para lhe transmitir paz, mas também segurança a seu lado.

-Estou aqui, Martin -respondeu, levantando o queixo para lhe oferecer um sorriso que fizesse apagar a preocupação de seu rosto-. E não penso em nada doloroso. Só me pergunto em que lugar desta casa terá roupas decentes.

-Nos baús. Embora não saiba onde os homens que contratei os deixaram -respondeu ao separar as mãos.

-Por isso tem tantos casacos e coletes no cabide? Não sabe onde está o resto de suas roupas? -Perguntou a ponto de soltar outra gargalhada.

-Tinha pensado fazê-lo quando...

-Pelo amor de Morgana! -Exclamou sem querer-. É um desastre!

-Eu disse que precisava de ajuda -respondeu surpreso ao ela evocar uma feiticeira a quem todos os ciganos chamavam de mãe.

-Precisa de um milagre, Martin Gêiser -declarou antes de soltar uma enorme gargalhada.


XVII


A ideia de visitar Valéria foi esquecida...

Ambos percorreram a casa procurando os baús. Elizabeth corria de um lado para outro enquanto ele a seguia com as mãos atrás das costas. Uma vez que encontraram os dois baús, colocados em uma sala da qual não sabia da existência, ela o olhou espantada.

-Quando falou deles pensei que eram enormes. Estes têm um tamanho parecido com a maleta do meu pai -disse com sarcasmo ao abrir o primeiro.

-Sou um homem que se conforma com pouco -explicou-. Só preciso usar uma camisa limpa e um terno engomado e passado.

-Isso tem que mudar -assegurou ao começar a tirar as roupas que estavam no pequeno baú.

Martin achou que a tarefa seria simples, mas se enganou. Elizabeth, depois de revisar cada peça, a jogava no chão ou o fazia vestir porque, a seu julgamento, nada do que encontrava neles lhe serviria.

-Isto é da temporada passada -comentou vendo um dos trajes preferidos de Martin-. Vou levá-lo para a caridade.

Ele não respondeu. Ficou olhando-a com olhos bem abertos e pensando no motivo pelo qual um traje, que havia lhe custado doze xelins, não poderia ser usado até que o tecido estivesse gasto.

-Deve experimentar esta camisa também -indicou ao tirar a peça de vestuário do fundo do segundo baú-. É muito bonita, mas acho que não poderá usá-la.

-Estou certo que sim -afirmou agarrando-a. Virou-lhe as costas, mais por cortesia que por pudor, desabotoou a que usava atirou-a a uma das cadeiras e tentou vesti-la-. Com um casaco folgado, ninguém notará que os punhos não se fecham.

-Martin, não é do seu tamanho -disse cruzando os braços-. Diria que Valeria a comprou quando tinha uns quinze anos -alegou com raiva aparente.

-Ainda tenho um corpo atlético -replicou com orgulho-, e os botões encaixam perfeitamente -indicou antes de deixar de respirar e abotoá-los.

-Sim? Tem certeza? -Martin afirmou com a cabeça porque se respirasse sabia que consequências teria-. Mova os braços, Martin Gêiser.

-Se os mover, os botões sairão disparados -indicou olhando-a com desespero.

-Era isso que temia -disse antes de soltar outra bela risada.

Finalmente, todo o seu vestuário ficou reduzido a três camisas, cinco coletes, seis gravatas e dois trajes, embora tivesse a esperança de que não se desfizesse também das que pendurava no cabide. Apesar do investimento que devia fazer, Martin reconhecia que as duas horas que tinham passado juntos foram muito reveladoras. Elizabeth nunca se sentiu constrangida ou desconfortável. Pelo contrário, ambos agiram como se fossem uma dupla, para não dizer um casal, no qual a cumplicidade e o afeto flutuavam no ambiente. Era um grande feito. No entanto, ainda havia um longo caminho a percorrer antes que pudesse alcançar o objetivo que traçou quando a conheceu: que o amasse como ele a amava.

-Amará a senhora Doherty -comentou enquanto lhe oferecia um dos coletes pretos que tinham sido salvos.

-Quem é essa mulher? -perguntou enfiando a camisa no cós da calça.

-Será sua cozinheira. A escolhi porque tem muito boas referências -explicou.

-O importante é que saiba cozinhar -resumiu enquanto vestia o colete.

-O importante é que seja uma pessoa leal, que aprenda com rapidez seus gostos culinários e que tenha paciência -disse, procurando os óculos. Ao encontrá-los sobre o assento de uma cadeira, caminhou até eles, os pegou, limpou as lentes com um lenço que encontrou no primeiro baú e esperou que Martin terminasse de abotoar o colete e passasse ao seu lado para entregá-lo.

-Por que deve ter paciência? -Perguntou surpreso-. Sou um bom homem.

-Não questiono, mas está ciente de sua contínua distração? Temo que a Sra. Doherty fique com raiva inúmeras vezes depois de descobrir que a comida ainda está na mesa onde a deixou -explicou.

-Tenho muito trabalho e um prazo a cumprir -declarou aceitando os óculos.

-Não sabia que um professor podia trabalhar em sua casa. Acreditei que deviam ir às Universidades para ensinar a seus alunos -comentou com sarcasmo.

-Já não me dedico ao ensino -apontou Martin esperando-a na porta para que ela saísse do quarto primeiro.

-Não? Ao que se dedica? -Perguntou curiosa.

-À investigação -admitiu.

Martin leu no rosto de Elizabeth que queria saber mais. O fato de estar curiosa sobre a sua vida era outra grande conquista. Uma que merecia a mesma sinceridade que lhe havia oferecido, embora por enquanto não revelaria a origem de seu novo empregador.

-Há alguns anos, ao terminar uma das aulas que dava, recebi uma visita inesperada -comentou depois de fechar a porta.

-Quem era? O que queria? -Espetou impaciente enquanto ambos caminhavam pelo corredor do andar superior.

-Milton Wright. Precisava que revisasse um projeto em que estava trabalhando -confessou. Sabia que aquele nome não lhe pareceria familiar. Na realidade, ele também não tinha conhecimento de sua existência até aquele dia.

-Um projeto matemático? -Insistiu em descobrir.

-Algo assim... -disse parando ao pé da escada. Ofereceu o braço para ajudá-la a descer. Quando Elizabeth o aceitou, estendeu a mão direita em direção ao corrimão e o deslizou no mesmo ritmo dos degraus que desciam.-. É um bispo de Iowa -esclareceu.

-Um bispo? -Soltou confusa-. E o que uma pessoa religiosa teria que perguntar sobre números? -Acrescentou, levantando a saia do vestido lilás para não tropeçar.

-Estava interessado em um livro que publiquei sobre o método estatístico -declarou.

-Também é escritor? -Disse surpresa. Parou e olhou-o como se fosse um estranho para ela.

-Trata-se de um compêndio de teorias sobre os possíveis erros que encontraremos em um semicírculo -resumiu com o propósito de não a aborrecer e de que deixasse de olhá-lo como um bicho raro.

-Os semicírculos têm erros? Pensei que eram apenas metade de um círculo -comentou zombando pisando o próximo degrau.

-Há circunferências que... -Martin ficou em silêncio ao observar o rosto divertido de Elizabeth. Não tinha sido uma pergunta que exigisse uma resposta, mas uma pequena brincadeira-. Tem -determinou. Em seguida, parou no último degrau, virou-se para ela e acrescentou -: Nada nesta vida é perfeito. O importante para não ser um obtuso mental é encontrar onde se escondem os erros para fazê-los desaparecer.

-Que erro preocupava o bispo? -Prosseguiu com seu interrogatório esperando que ele decidisse que direção da casa iam tomar.

-Precisava dos meus cálculos para realizar um projeto que tinha iniciado com os seus filhos -declarou dando um passo para o corredor da direita. Uma vez que passaram muito tempo revendo as roupas, a decisão de visitar Valeria já não estava entre os seus objetivos. O melhor era esperar os criados e assegurar-se de que as ordens que Elizabeth lhes desse seriam cumpridas imediatamente.

-Por isso que estava brincando com uma pipa no outro dia? -Perguntou ao supor que ele queria terminar a conversa nesse momento.

-Me espionava? -Espetou olhando-a boquiaberto.

-Não estava... -apontou constrangida-. Estava olhando pela janela para averiguar se havia saído o sol. Nesse momento, vi sua pipa sobrevoando o jardim. Queria descobrir quem era seu dono, porque até o momento toda a família falava da venda desta casa, mas ninguém sabia dizer quem era o novo dono.

-Também me viu cair da árvore?

-Sim -respondeu tão envergonhada que sentiu suas bochechas queimando.

-Tentava obter alguns dados sobre a velocidade do vento, as dimensões da tela, o peso e como agiam essas variáveis no voo da pipa -explicou enquanto se esforçava para não embalar aquele rosto vermelho e beijar seus lábios para acalmar seu doce embaraço.

-Foi capaz de deduzir tudo isso apesar de não a controlar?

-Felizmente para mim, a destreza física não desacelera minha capacidade cerebral. E sim, tenho dados suficientes para admitir que o fator ambiental é essencial -admitiu movendo-se pelo corredor que os levaria de volta para a cozinha.

-Por que as crianças precisam de tais cálculos? -Continuou interessada.

-Não quero aborrecê-la, Elizabeth, e com certeza terá muito que preparar antes que os criados apareçam.

-A senhora Doherty chegará às dez, e os demais por volta das nove. Tenho tempo de sobra para ouvi-lo. E asseguro que nunca poderia me aborrecer. Quero saber a seu respeito, Martin. -Ao perceber o significado de suas palavras, acrescentou -: Uma boa funcionária deve conhecer a pessoa que a contrata para não cometer erros.

-Está falando sério? -Perguntou com ceticismo.

-Sim -respondeu sem hesitar.

-Nesse caso... -começou a dizer, afastando seu braço do dela. Quando Eli abriu a boca para perguntar o que havia de errado, ele pegou sua mão direita e a levou para a biblioteca-. Tenha cuidado -disse ao abrir a porta-, o chão está cheio de papéis -acrescentou se afastando de seu lado para girar a chave da luz.

Uma vez que o quarto se iluminou, Elizabeth ficou sem fala ao contemplar uma grande quantidade de folhas, com números e desenhos rabiscados, estendidos pelo chão formando uma espécie de cruz.

-O que é tudo isso? -perguntou sem se mover da entrada.

-Um esboço -esclareceu oferecendo-lhe uma mão para ajudá-la a entrar-. Este é o meu trabalho, Elizabeth.

-Papéis com números e desenhos? -Expressou confusa.

-Não -respondeu esboçando um enorme sorriso.

Quando a levou até a escrivaninha, se afastou de novo e voltou com algo que havia pego de dentro de uma das gavetas.

-Isto é um brinquedo. É igual ao que Milton deu a seus filhos. Me deu quando aceitei trabalhar com ele -indicou enquanto mostrava.

-Como se chama? -Perguntou sem desviar os olhos do objeto estranho para ela.

-Helicóptero. É o termo com o qual Gustave Ponton D'Amècourt chamou este aparelho voador desde mil oitocentos e sessenta e três -explicou sem poder apagar o sorriso-. Mas ainda é uma aeronave de asas rotativas. Este, como pode entender, não pode voar porque é construído de cortiça, bambu e cartão -acrescentou divertido.

-O que este brinquedo tem a ver com esses papéis? -perguntou apontando com um dedo para o chão.

-Quando os filhos do Milton quebraram o helicóptero, decidiram construir outro a uma escala superior. Logicamente, seus conhecimentos matemáticos e científicos ainda não são suficientes para obter os resultados que desejavam. Wright, que gosta de estimular as habilidades criadoras de seus filhos, quis buscar as respostas enquanto viajava de um país a outro por motivos religiosos. Quando chegou a Londres, visitou a universidade onde eu trabalhava. Na biblioteca encontrou o exemplar que escrevi, e depois de informado pelo reitor de que dava aulas ali mesmo...

-Quis falar contigo, porque sabia que encontraria os erros que seus filhos estavam cometendo -resumiu Elizabeth olhando-o com admiração e surpresa.

-Algo assim -afirmou antes de guardar o brinquedo no seu lugar.

-Desde aquele dia trabalha para ele? -Continuou falando olhando-o fixamente.

-Sim. Quer que o ajude a fazer um protótipo de aeroplano maior. Ele até quer que encontremos uma maneira de usá-lo como outro meio de transporte -indicou.

-Quer que as pessoas possam voar de um lugar para outro em um aparelho como esse? -soltou impressionada.

-Há apenas uma ideia sendo trabalhada agora, Elizabeth. Embora eu tenha certeza de que no futuro esse desenho se tornará real -comentou com um halo de esperança.

Olhou-o com atenção e então fixou os olhos nos papéis. Em silêncio, considerou algumas consequências que teria se obtivesse o que o Sr. Wright lhe havia pedido. Não apenas as pessoas que desejavam viajar para qualquer parte do mundo poderiam ser transportadas, mas os países, ávidos por poder, usariam a invenção para suas guerras. Quantos soldados poderiam caber em um aeroplano? Quantas armas poderiam esconder? Se o esquema de Martin se tornasse real, alcançaria um fato histórico.

-Quando deve entregá-lo ao senhor Wright?

-Em junho -comentou dando um passo para trás para que ela pudesse afastar-se da mesa e caminhar para a saída-. Por isso pedi que ninguém me incomodasse.

-Compreendo... -murmurou estendendo sua mão para que ele a pegasse de novo.

-Uma vez que tenha a solução, viajarei e...

-Terá que ir? Durante quanto tempo? O senhor Wright não virá? -Retrucou angustiada.

Ao perceber o tom de voz que Elizabeth usou ao falar, Martin agarrou-lhe com mais força a mão para acalmar a inquietação que tinha aparecido nela. O que lhe dava mais medo, sua partida ou que desse por concluído o contrato?

-Enquanto estiver fora, continuaremos com o acordo -assegurou, optando pela segunda opção, pois a primeira não seria certa.

-Martin -disse puxando a mão para que deixasse de andar-, sabe o que acontecerá se conseguir terminar esse projeto?

-Sim -respondeu olhando-a nos olhos.

-E já pensou no que acontecerá no futuro? -Insistiu.

-Por que diz isso? -perguntou arqueando as sobrancelhas.

-Porque o Sr. Wright não mora na Inglaterra -respondeu sentindo seu pulso acelerar-. O que os ingleses vão pensar a seu respeito?

-Como sabe que Wright não é inglês? -Estalou atordoado.

-Disse que é bispo de Iowa e, se não estou confusa, é um estado da América -apontou com tanta raiva, que podia ter cuspido fogo.

Se acertasse, o considerariam um inimigo do país e teria que partir. Jamais retornaria a Londres. Martin encontraria uma nova vida em um lugar da América e talvez encontrasse outra mulher... Seu coração encolheu ao pensar que ela ficaria em uma simples e vaga lembrança. De repente, teve vontade de recolher todos os papéis e queimá-los. Mesmo sabendo que não era uma pessoa boa, que algum dia o seu passado voltaria para destrui-la, não queria que se afastasse, nem que a esquecesse, nem ficar em casa olhando pela janela uma casa vazia...

-Deus! Não só é bonita, como possui uma incrível capacidade de dedução! -Martin exclamou sem pensar.

Elizabeth ficou sem respiração e seu coração começou a palpitar com mais rapidez. Naquele momento, já não sabia se seu corpo reagia dessa maneira pelo desespero que lhe causou imaginar-se sem ele ou porque a tinha chamado bonita e inteligente.

-Por favor, não interprete mal minhas palavras. -Ao observar o horror que mostrava seu rosto, soltou-lhe a mão e decidiu corrigir seu erro-. Queria dizer que é...

-Me chamou de bonita e inteligente? -o interrompeu olhando em seus olhos.

-Isso é algo óbvio -respondeu dando grandes passos para trás para colocar distância entre os dois.

-Não pensei que me observasse dessa forma -comentou Elizabeth sem deixar de observar sua mudança de atitude.

-E como pensa que a observo? -Esperou uma resposta, mas ela continuava calada-. É verdade que sou uma pessoa que não contempla o mundo através da beleza, mas pelo que se guarda dentro de si. As pessoas não estão conscientes de que a aparência murcha com o tempo, como faz uma planta ao chegar o outono. O importante é a semente que germinará dela quando murchar. E sei que, sob essa beleza, que faz a cabeça de mais de um homem se virar, há uma mulher inteligente, forte, solidária e piedosa. Sabe o que quero dizer?

-Eu... ontem lhe contei que... e continua me olhando dessa forma -expressou incrédula.

-Juro que não consegui dormir pensando no que pode ter acontecido em Brighton. -Ao mover os lábios para falar de novo, ele continuou -: Gosto de você, Elizabeth. Gosto de você desde que nos conhecemos. Mas nunca a forçaria a fazer algo que não quer.

-Pensei que o beijo que me deu fosse para me confortar -conseguiu dizer.

-Não sou um homem que beija mulheres para confortá-las -murmurou-. Confesso que o fiz sem pensar e que foi errado agir de forma tão impetuosa. Quando saiu, eu disse a mim mesmo que não faria de novo se voltasse.

-E cumpriu sua palavra -disse olhando-o fixamente.

-Não quero que se sinta desconfortável ao meu lado. Ao contrário, desejo que encontre em mim uma pessoa em quem confiar. Estou ciente de que merece muito mais do que posso lhe oferecer. Sei, e repito para mim mesmo constantemente, desde que comprei essa casa. Mas meus sentimentos não mudaram desde que começamos essa espécie de amizade -respondeu levantando o queixo e colocando as mãos atrás das costas para consolidar a sinceridade de suas palavras-. Também estou ciente de que deve resolver o passado para empreender um futuro novo. Se será ao meu lado ou ao lado de outro homem, só depende de você.


XVIII


Levou as mãos para seu peito lentamente, e ficou petrificada ao sentir palpitações rápidas e fortes. Seu coração bombeava o sangue como se participasse de uma corrida de galgos. Como chegou aquela situação? Começou a manhã com a visita de Josh em seu quarto, a confiança de sua mãe e sua estranha ausência, continuou com a imagem de Martin seminu na cozinha e o desejo que despertou nela. Os baús, o guarda-roupa, seu trabalho e... uma declaração? Tinha escutado bem? Continuou parada, olhando-o sem poder falar. Não sabia o que responder. Sua confusão mental impedia-a de se concentrar numa ideia específica. Estava consciente de que se enfureceu ao pensar que ele iria embora e que desejou evitar isso com todas as suas forças. «E repito para mim mesmo constantemente, desde que comprei esta casa». Essa afirmação a fez compreender que a comprara para estar perto dela e que essas emoções apareceram quando se conheceram. Não foi a partir desse instante que ela começou a observar o mundo de uma cor diferente do preto? Naquela noite desapareceram os pesadelos, os gritos, as insónias e o desejo de morrer...

«Uma mulher Arany sabe quando encontrará o homem que nossa mãe lhe destinou porque, no instante em que o encontra, começa sua verdadeira vida», ouviu a voz de sua mãe como se estivesse sussurrando ao seu ouvido. «Só pude ver que o homem que espera aparecerá pelo caminho que une nossa casa com a dos Bohman», previu Madeleine. A única coisa que faltava era alcançar o fogo que Morgana lhe oferecia. Mas não precisava sonhar com essa fogueira para confirmar que Martin era o homem que apareceria nela.

Tontura, desorientação, fraqueza, tremores nas pernas e nas mãos. Atordoada pela descoberta, tirou as mãos de seu peito e as estendeu para frente, buscando um lugar firme no qual apoiar-se. Não queria que ele as pegasse, mas foi o que fez depois de tirar as suas das costas e dar vários passos em direção a ela.

-Está se sentindo bem? -perguntou.

«Não», quis responder. Mas continuava muda, incapaz de soltar um monossílabo tão simples. Olhou-o nos olhos, embora as lágrimas banhassem os seus, impedindo-a de ver que expressão os de Martin mostravam. Piscou, ansiosa para apagar essa imagem distorcida. A única coisa que conseguiu foi que as lágrimas descessem pelo seu rosto. E ele se comportou como havia feito desde que a conheceu, com doçura, compreensão e carinho. Agarrou-lhe com mais força as mãos e a conduziu até uma das cadeiras que deixaram dias antes na biblioteca.

-Sente-se devagar -indicou com suavidade enquanto a ajudava a se sentar. Não era uma ordem, embora, se tivesse sido, seu tom de voz não a expressou-. Trarei um copo de água -disse antes de soltá-la e o calor que sentia em suas mãos desaparecer.

Queria dizer não. Tentou gritar antes de que ele abandonasse a sala. Continuava sem poder falar... Durante essa angustiosa solidão, observou com atenção os papéis do chão e começou a chorar. Martin tinha um futuro próspero fora de Londres. Alcançaria fama, uma posição respeitável e um dia não muito distante, os livros de história falariam a seu respeito. Sua foto sairia nos jornais, seu nome e sua vida encheriam incontáveis colunas da sociedade. Investigariam o seu passado e ficariam surpresos ao descobrir que possuía origens alemãs. Os detratores de sua descoberta utilizariam essa ascendência alemã para destroçar seu trabalho e conduzi-lo à ruína. Sabia das terríveis consequências que a opinião que alguns jornais poderiam causar. Tinha testemunhado mortes e destruições que os escritos provocaram em jovens inocentes que amaram o homem errado. Ou, como aconteceu com ela, onde se viam na obrigação de avisar os considerados solteiros, de possíveis víboras burguesas ansiosas em obter um título aristocrático. Elizabeth escondeu seu rosto com as mãos e continuou chorando. Não havia como se acalmar. Talvez, porque fosse a primeira vez que podia alcançar a verdadeira felicidade e deveria rejeitá-la.

Como era possível que se sentisse atraído por ela? Não tinha ouvido quando confessou? Claro que ouviu, mas Martin era uma pessoa tão boa que não considerou todos os problemas que poderia lhe trazer. Não seria um, nem dois, mas milhares. As notícias que apareceram sobre ela há quatro anos atrás não estariam mais no passado e seriam oferecidas como eventos atuais: «A víbora Moore finalmente conseguiu uma presa», a partir desse momento, as pessoas falariam sobre tudo o que se lembravam. A maior parte dessas memórias seriam inventadas. Ainda assim, não demoraria a aparecer o nome de Archie. Claro, ele se defenderia. Seria uma grande humilhação ver escrito seu glorioso título nobiliário junto ao nome de uma mulher repudiada por seus erros. Lutaria com ferocidade para salvaguardar seu orgulho. Talvez, até se reunisse com algum jornalista para narrar seus encontros amorosos. Como Martin reagiria ao descobrir que o caminho e sua nova casa foram testemunhas silenciosas daquele amor? Também foi da traição. Mas a sociedade não repararia nessa parte da história. Continuariam indagando sobre a esposa do inventor até que chegassem a Lorde Norfolk. Se isso acontecesse, não só sua vida acabaria, mas também arrastaria a de Martin.

Tirou as mãos do rosto e olhou de novo os papéis. Centenas de desenhos e operações estavam escritos neles. Dois anos de trabalho árduo se refletiam ali, entre rabiscos, gabaritos e números. Não tinha dúvidas de que teria gasto mais de vinte horas por dia para realizá-lo. Quantas vezes esqueceu de comer? Quanto teria dormido? Conhecia-o o suficiente para responder a essas perguntas: pouco e quase nada. Quando Martin trabalhava, abstraia-se do mundo à sua volta para realizar seu projeto. Este seria tão importante que falariam a seu respeito durante séculos. Não podia destruir uma carreira tão brilhante. Ao contrário, devia ajudá-lo. E era isso mesmo faria. Deixaria de lado suas emoções, esqueceria a sensação de tranquilidade que sentia ao ouvir sua voz e extinguiria de sua memória a explosão de felicidade que provocou ao seu coração ouvir sua recatada declaração. Por uma vez na vida, devia ser consciente e agir com sensatez. «Suas conquistas são as minhas, suas penas são as minhas e os inimigos de seu pai já podem se dar por mortos», ouviu a sua mãe dizer mais de uma vez. Mais uma vez, a compreendia. Porque quando uma pessoa sentia amor por outra, fosse romântico ou fraternal, fazia o impossível para que fosse feliz e inclusive colocaria seu corpo na frente para receber todos os golpes que lhe fossem dirigidos. Se converteria nesse escudo porque gostava Martin, disso já não tinha a menor dúvida. Mas também sabia que se tornaria um fardo para ele se declarasse seus sentimentos. Tinha que deixar claro que não era uma mulher apropriada para ele e a única maneira de consegui-lo era confessando o que aconteceu com Lorde Norfolk.

Nesse momento, inclinou-se para a frente. Suas mãos foram rapidamente colocadas sobre o abdômen e sua testa tocou os joelhos ao sentir uma dor terrível. Parecia que seu sangue tinha congelado e a rachava por dentro. Elizabeth abriu a boca para gritar, mas não sua voz saiu. O que acontecia? Fechou os olhos e tentou respirar. Não teve sucesso. Não foi capaz de respirar nem um pouco. Parecia que seu corpo, dada a decisão que havia tomado, queria matá-la...

-Elizabeth! -Exclamou Martin quando voltou e a encontrou dessa forma. Ele correu, copo d'água na mão, parou à sua frente e se ajoelhou-. O que acontece? O que dói? -Perguntou com uma mistura de angústia e desespero.

Tudo. Não havia uma pequena área de seu corpo que não doesse, que não causasse o mesmo sofrimento que uma pessoa sentiria quando sua pele fosse rasgada.

-Juro que minha intenção não era te fazer sofrer -sussurrou. Depois de colocar o copo no chão, dirigiu suas mãos para o rosto de Elizabeth, as apoiou em ambos os lados e o levantou muito lentamente-. Perdoe-me -acrescentou.

A dor desapareceu com a mesma rapidez que chegou. Mas quando Martin descobriu a cor dos olhos de Elizabeth, ficou tão pasmado que se sentou sobre seus calcanhares.

-Devo avisar o seu pai -comentou esforçando-se em se levantar-. Não é normal o que está acontecendo.

-Não faça isso -pediu depois de lhe pegar numa mão para evitar que partisse-. Não me deixe sozinha.

-Elizabeth, tem os olhos brancos. A cor de suas írises desapareceu -explicou espantado.

-Acontece quando choro -mentiu. Porque nem ela mesma sabia o que estava acontecendo.

-Nunca comentou com seu pai? Poderia ser alguma doença importante.

Não se tratava de uma doença. O que acabava de sofrer era uma pequena amostra de como seria o resto de sua vida se continuasse com a decisão. Morgana iria torturá-la dia após dia, até que ela própria pusesse fim a esse suplício. Logicamente, o final não seria o desejado por sua mãe criadora.

-Me ajude a levantar -pediu estendendo uma mão para ele.

Rapidamente, Martin se ergueu e a ajudou.

-Não sou um especialista em medicina, Elizabeth. Mas Randall deveria saber disso. Talvez exista uma cura para...

-Isto só tem uma cura e não vou aceitá-la -segurou com força-. Por favor, me leve até o sofá.

Em silêncio, fez o que ela pediu. Assim que se sentou, ele voltou para pegar o copo d'água.

-Beba um pouco -disse oferecendo-o.

Elizabeth bebeu um pequeno gole. Quando a água entrou em sua boca, notou tanto calor, que suas bochechas queimaram.

-Antes que pense que tenho uma constipação, confirmo que não é isso -falou ao ver que ele movia os lábios para fazer referência a outra possível condição.

-Não ficarei tranquilo até que seu pai confirme -declarou olhando-a estreitando os olhos.

-Ele corroborará minhas palavras -expressou depois de colocar o copo no chão.

-Quer dizer que essa reação foi provocada por mim? -Soltou surpreso.

-Esta reação foi causada pela minha ansiedade -comentou um pouco mais tranquila.

-Eu não queria machucá-la, Elizabeth -declarou com tristeza.

-Não fez isso comigo, Martin. Apenas foi sincero -garantiu.

-Respondi da mesma maneira que falou comigo -explicou sem se mover-. Sou uma pessoa que gosta de dar o que recebe -acrescentou.

Isso já havia descoberto. Por isso, não queria estragar sua brilhante carreira profissional. No dia em que ele aparecesse em um jornal e comentassem sobre sua grande descoberta, ficaria orgulhosa da decisão que havia tomado. Mesmo que isso significasse abraçar a escuridão novamente.

-Também quero continuar sendo assim.-Elizabeth disse abaixando a cabeça-. Quero que entenda que não sou uma boa pessoa e que não mereço esse sentimento do qual me falou.

-Vai me dizer que meus sentimentos não são verdadeiros? Ou talvez vá me pedir perdão por não sentir o mesmo que eu? Se assim for, aconselho que comece sua explicação com: o problema não é você, mas eu. Sei que é uma boa pessoa e não mereço alguém como você na minha vida -manifestou com raiva. Estou ciente dos meus erros, de como observo meu mundo. Mas também sei que posso fazê-la feliz apesar de não ser o homem com quem poderia ser...

-Basta! -exclamou Elizabeth levantando-se, como se a fraqueza e o mal-estar que padeceu anteriormente não tivesse ocorrido nunca-. Como pode ser tão inteligente e dizer esse tipo de bobagem?

-São deduções que...

-Isso não são deduções, Martin! -O interrompeu-. Não sou um número para adicionar a outra de suas operações. Juro que, se não sentisse nada por você, não teria aceitado o beijo de ontem. Ou acha que ainda sou uma mulher descarada? -Acrescentou com tanta raiva que sentiu seu sangue ferver novamente.

Martin voltou a ficar sem palavras ao ver que seus olhos também não estavam azuis, mas vermelhos. O que acontecia com Elizabeth? Como podia mudar a cor de seus olhos? Até agora, só conhecia esse fenômeno em alguns animais. Usavam essa habilidade como um mecanismo de defesa. No entanto, não tinha ouvido falar de algo semelhante em humanos. Sem dúvida, teria que perguntar isso ao melhor médico de Londres: o pai de Elizabeth. Mas o faria em outra ocasião, quando tudo ficasse esclarecido entre eles. Concentrou-se na rigidez da postura de Eli, em como esfregava as mãos e o olhava. Queria falar e ele queria ouvi-la para descobrir o que tinha acontecido naquele dia. Embora temia que já soubesse a resposta.

-Não me responde? -Elizabeth trovejou diante de seu silêncio.

-Essa pergunta não precisa de uma resposta -afirmou colocando as mãos atrás das costas-. É óbvio que mudou.

-Como tem tanta certeza? -Insistiu desafiadoramente.

-Deveria duvidar? -Respondeu olhando-a nos olhos.

-Não deveria confiar em mim -apontou. Naquele momento, toda a força desapareceu de seu corpo como o ar em um balão inflado não selado.

-Dê-me razões para não fazer isso, Elizabeth. Porque até agora só posso descrevê-la com boas palavras.

-Não sou uma boa pessoa -Eli murmurou, abaixando a cabeça e esfregando as mãos novamente.

-Não será para os demais, mas desde que entrou por essa porta -apontou a saída, como se a entrada da casa não fosse no final do corredor, mas na frente deles-, se preocupou com o meu bem-estar. Me trouxe doces no primeiro dia. Madeleine os tinha guardados no armário ou pediu que os preparasse? Tinha um pouco de farinha na ponta de suas botas quando apareceu com os documentos... Ajudou-a a fazê-los? Para quantas pessoas cozinhou, Elizabeth? Cozinhou para Archie? -Elizabeth não respondeu. Ficou sem fôlego quando ouviu sair aquele nome de sua boca-. Não pode dar um passo à frente sem confirmar que o dei ao mesmo tempo. Sei que conhece minha casa melhor do que eu. Algum dia perguntei o motivo? Não preciso de uma resposta, sei porque...—Enquanto ela tentava dizer algo, Martin continuou -: Não me importo com o seu passado, Elizabeth. Tenho certeza que não teria gostado dessa mulher e que nem teria chamado minha atenção. Odeio pessoas superficiais. Não suporto as pessoas que olham com superioridade aos demais porque, no fundo, os invejam. Fujo da ganância, da soberba e do egoísmo. Venho de uma família humilde, apesar do meu pai ter sido barão. Mas uma das coisas que aprendi daquele tempo de humildade foi que o amor humano é vital para mim. As moedas que levo nos bolsos, a casa em que vivo ou os trajes que visto não são importantes se não tenho algo tão básico como o afeto. -Com as mãos atrás das costas, caminhou lentamente até ela. Quando seus olhares voltaram a encontrar-se, descobriu com raiva que seus olhos estavam de novo cobertos de lágrimas, embora voltassem a ser azuis-. Quando vem aqui, completa aquele círculo que me falta para ser feliz. Até sou capaz de jogar fora o meu traje favorito porque o considera antiquado. Rimos e conversamos como se nos conhecêssemos a vida toda. Há cumplicidade entre nós. Ou assim acreditava porque algo mudou desde que entrou nesta sala. O que aconteceu, Elizabeth? Assustou-se mais com minha confissão sobre gostar de você ou que trabalhe para um americano? Nunca pensei que minha sinceridade seria um impedimento para ser...

-Martin -o interrompeu-, há dois anos matei um homem.


XIX


O silêncio que se produziu foi tão prolongado e absoluto, que Martin pôde ouvir o canto dos pássaros que pairavam pelo jardim. Seu olhar continuava cravado nos olhos de Elizabeth. Tentava decifrar se havia alguma expressão neles que lhe indicasse que mentia. Não a encontrou, certamente porque dizia a verdade. Respirou fundo e separou os lábios para falar. Não disse nada. Foi incapaz de expressar uma só palavra porque não sabia o que comentar a respeito.

-Martin? -perguntou Elizabeth rompendo a atmosfera incômoda que se criou entre eles.

Não lhe respondeu. Continuou calado, tentando assumir a confissão. Não sabia bem como devia agir nem o que dizer. Enquanto seu corpo permanecia imóvel, sua mente lutava uma angustiante batalha contra suas emoções. Desejava mais que tudo no mundo que fosse mentira, que Elizabeth estivesse dando essa desculpa por não corresponder aos seus sentimentos. Surgiu a dúvida. Durante uns segundos desconfiou dela, mas no mesmo instante deixou de fazê-lo e se irritou por pensar desse modo. Até o momento, tinha sido sincera. Contou-lhe coisas de seu passado que ninguém conhecia. Então, por que se negava a acreditar nela? Talvez porque se fosse verdade, o problema não seria resolvido com palavras gentis e gestos compreensivos. Se Elizabeth tinha matado um homem, estava diante de uma assassina que devia ser julgada.

Ele se virou e caminhou rapidamente até a última gaveta da mesa do escritório. Abriu-a e tirou uma garrafa de Bourbon que guardava lá para celebrar a conclusão do seu trabalho. Abriu a garrafa e bebeu diretamente dela. Em seguida, a observou como costumava olhar para uma nova operação matemática. Qual era a sua altura? Que peso teria? Qual seria a aparência do homem que matou? Os cálculos que ponderou não se ajustaram aos dados estipulados, a menos que o tivesse atacado traiçoeiramente. Se assim foi, o fez para se defender?

-Não vai dizer nada? -Elizabeth insistiu.

-Não sei o que dizer -respondeu sincero-. Se é verdade o que me contou...

-É verdade! -gritou com raiva-. Por que duvida de mim? Dei motivos para que desconfie?

As perguntas que ela expressava com sua voz eram semelhantes às que ele tinha em sua mente. Estas continuavam sem resposta. Talvez porque a única pessoa que podia respondê-las era ela. Mas deveria saber o que aconteceu? E se o fizesse, como procederia? Continuou a observá-la enquanto tentava encontrar uma forma de lidar com as circunstâncias. No meio dessa hecatombe mental tomou uma decisão: averiguar a história e, quando reunisse todos os dados, analisaria tranquilamente que posição adotar.

-Posso saber o que aconteceu? -soltou com um tom de voz mais alto e grosseiro do que pretendeu.

-É uma longa história -sussurrou Elizabeth abaixando a cabeça.

-Tenho todo o tempo do mundo para ouvi-la -apontou antes de deixar a garrafa sobre a mesa e retornar a seu lado.

Mas ele ficou muito longe de onde ela estava. Isso fez com que Elizabeth se entristecesse ainda mais, pois entendeu que esse distanciamento era o início da ruptura entre eles.

-Lembra da viagem que fizemos a Brighton com o Logan? -Começou a história-. Te falei disso faz uns dias.

-Sim, você e Josephine acompanharam Anne -indicou colocando as mãos atrás das costas, adotando de novo uma postura firme e rígida.

-O Logan contratou a minha irmã para fazer seu retrato. Segundo nos fez crer, foi a única alternativa que encontrou para conseguir o respeito social que ela havia perdido depois do falecimento de seus noivos. Embora com o tempo entendemos que planejou tudo porque tinha se apaixonado por Anne -alegou esboçando um pequeno sorriso-. Durante nossa estadia em Lambergury tudo foi normal, até que uma noite, enquanto jantávamos, um homem, ao qual Logan chamou George Laxton, irrompeu no salão.

-Nunca ouvi esse nome.

-É o sobrinho do conde de Burkes -esclareceu olhando-o de novo.

-Foi ele quem morreu? -perguntou impaciente.

-Não. Tio e sobrinho acho que ainda estão vivos -respondeu rapidamente.

-Continue, por favor -perguntou enquanto procurava algum controle sobre si mesmo.

-O conde deu uma festa. Fomos obrigados a comparecer porque, caso contrário, nossa reputação seria prejudicada. -Fez uma pausa para se acalmar. Recordar aquela noite, explicar o que aconteceu, era muito doloroso para ela-. Concebemos um plano em que Anne se apresentaria como sua prometida e convenceria o conde da honradez de Logan. Fiquei surpresa ao vê-la enfrentar a todos com tanta valentia e decisão. Até então, sempre fugia das pessoas, como acontece com Madeleine. No entanto, dias depois, entendi que sua atuação não era uma farsa. Anne amava Logan -esclareceu.

-O homem que matou, estava lá? -perguntou para que se concentrasse na parte que o interessava.

-Sim -respondeu olhando-o nos olhos-. Lorde Norfolk estava entre os convidados -admitiu ao mesmo tempo que suas pernas começaram a perder a força. Estendeu a mão para o sofá e se sentou. Quando olhou para Martin, ele ainda estava no mesmo lugar. Nem tinha tentado dar um passo para ajudá-la. Como tinha pensado, a relação tinha se rompido-. Naquele tempo, como sabe, minha atitude não era apropriada. Flertei com ele enquanto bebíamos. Ele me disse que tinha chegado a Brighton para comprar vários terrenos. Não parava de falar sobre a riqueza e o poder que tinha conseguido quando obteve seu título aristocrático.

-E acreditou -murmurou Martin.

-Sim, acreditei -admitiu com tristeza.

-Era a época em que procurava um marido aristocrático, certo? -Elizabeth afirmou envergonhada-. Manteve um romance com ele? -Retrucou com raiva.

-Não! Jamais teria feito algo assim!

-Quando morreu? Onde isso aconteceu? O que te fez? -perseverou rudemente.

-Depois de conversar um pouco, me pediu para darmos um passeio pelos jardins e aceitei. -comentou com lágrimas nos olhos-. No início pensei que era apenas um flerte inocente, mas quando ele agarrou minha mão e me arrastou para o escuro, fiquei com tanto medo que não pude reagir.

Martin abandonou sua postura rígida e distante. Afastou os punhos das costas e correu em sua direção. Se ajoelhou, pegou suas mãos e beijou-as para acalmar sua dor, sua inquietação, sua tristeza...

-Me pegou -declarou abaixando a cabeça-. Quando desejou tocar meu corpo, quando quis algo mais que uns beijos, me assustei e ordenei que se afastasse. Não o fez. Naquele momento, se tornou um monstro. Ele me sacudiu e me deu um soco. Fiquei tonta e notei o calor do meu sangue nos lábios. Ao pôr a minha mão direita sobre a boca para me limpar, agarrou meu vestido e puxou-o com tanta força que o rasgou até à cintura. Então me empurrou e me jogou no chão. Ficou em cima de mim...

-Não me explique o que aconteceu depois, porque posso imaginar -disse apertando tanto a mandíbula que lhe doeu.

-Não consegui gritar -prosseguiu-. O choro causou um nó na garganta que me impediu de fazê-lo. Escutei seus insultos, observei-o sorrir e naquele momento, assustada e indefesa, só pensei em meus pais e em minha mãe criadora. -Quando Martin levantou uma sobrancelha em dúvida, ela esclareceu -: Mary nos contou que sua mãe era uma cigana espanhola. A nossa é cigana e, apesar de ser mulher de um burguês, a sua fé em Morgana perdura. -Outra pequena pausa foi dada para Martin assumir outro de seus segredos importantes e retomar a narração -: Desde que conheci Archie, não apenas rejeitei essa parte da minha vida, mas também minha mãe. Acreditava que minhas origens se tornariam um impedimento ao nosso amor -esclareceu com sarcasmo-. Mas, naquele instante, quando estava à mercê de Lorde Norfolk, evoquei meu sangue. Orei com todas as minhas forças a Morgana, pedi perdão por tê-la negado e prometi que se me ajudasse me tornaria sua serva mais fiel.

-O que aconteceu? -perguntou, surpreso ao observar que ela realmente pensava que Morgana tinha ouvido seus apelos e intercedido.

-De repente, tudo ficou vermelho. Como se alguém tivesse colocado um pano dessa cor no meu rosto. Acho que foi a primeira vez que meus olhos deixaram de ser azuis... -Fechou, depois os abriu e continuou-. Não conseguia ver o rosto de Norfolk, mas sentia as suas mãos nojentas tocando meu corpo. Pensei que a minha visão tinha se tornado dessa cor por causa do medo e que acabaria por perder a consciência. De repente, ele gritou algo sobre bruxaria e maldições. —Sorriu, embora esse sorriso tenha desaparecido rapidamente-. Houve um segundo em que pensei que não continuaria e que se afastaria, mas não o fez. Agarrou-me com força pelos pulsos. Lutei desesperada, embora só consegui libertar a mão direita. Estendi os dedos ao colocá-la sobre o chão. Queria atirar terra na sua cara e aproveitar o momento para escapar. No entanto, não senti um grão de areia, mas a rugosidade e a frieza de uma enorme pedra.

-Pegou-a e golpeou sua cabeça? -Martin perguntou depois de entender que Elizabeth, quando estava sob muita pressão, as veias de seus olhos se inflamavam tanto que faziam desaparecer o azul. Isso não era uma doença, mas uma reação física muito estranha.

-Fiz com tanta força que o matei no ato -declarou com o olhar perdido-. Caiu para trás como se fosse o tronco de uma árvore velha. Movi as pernas para afastá-lo de mim. Levantei-me e corri sem olhar para trás até chegar ao portão da entrada. No instante em que me encontrei no jardim do conde, tropecei com o corpo de Howlett. Tinha saído para me procurar ao ver que demorava muito.

-Quem é Howlett?

-Era o valete de Logan. Embora durante a minha estadia em Lambergury se tornou um grande amigo.

-Um grande amigo não a deixaria passear com um desconhecido -resmungou.

-Ele insistiu que não o fizesse! -O defendeu-. Mas não o escutei. Como tampouco escutei os conselhos que os demais me deram -admitiu irritada-. Levou-me até um dos bancos de pedra e ali, enquanto lhe explicava o que tinha acontecido, tirou o casaco e me cobriu com ele para que ninguém notasse o rasgo no meu vestido. Depois apareceu Marco, o administrador de Logan, e começou a gritar com ele por me ter deixado sozinha. Culpava-o de tudo, e se irritou tanto que pensei que a relação entre eles terminaria aquela noite. -Afastou as mãos de Martin e se levantou do sofá. Em seguida, começou a andar de um lado para o outro-. Marco insistia em avisar Logan e as minhas irmãs. Implorei, supliquei até ficar afônica para que não o fizesse. -Pregou os calcanhares no chão e virou-se para Martin. Ele continuava de joelhos, como se não fosse capaz de se mover até que não soubesse o final-. Marco acabou por me ouvir. Ficou em silêncio, com os braços cruzados diante de nós. Quando cheguei à parte em que lhe expliquei como o tinha matado, ele recusou-se a acreditar em mim. Insistia que um soco na cara o deixaria inconsciente. Que tinha visto muitos lutadores ficarem no chão depois de um duro murro e que nenhum tinha falecido. Howlett, depois de ouvir isso, não pensou e correu para o lugar onde aconteceu, rezando para que a reflexão de Marco fosse real. Claro, nós dois o seguimos. -Parou de falar uns segundos. Suas mãos se juntaram e se apertaram, como se estivessem se abraçando-. Quando chegamos, o corpo não estava lá. Tinha desaparecido. Marco me perguntou novamente se eu tinha certeza de que tinha acontecido naquele mesmo lugar. Olhei para cima, procurando as copas das árvores que o tinha visto ao cair ao chão. Então, quando esperei que Norfolk estivesse vivo, Howlett gritou: Aqui!

-Ao viver uma situação como a que padeceu, não teria calculado bem a distância -apontou Martin depois de levantar-se.

-Eles concluíram isso mesmo -Elizabeth apontou depois de respirar fundo.

-Quem confirmou a sua morte?

-Marco. Foi ele quem o virou, lhe tocou no peito e afirmou que não respirava.

-O que fez? -A pergunta saiu de sua boca sem pensar, pois, sua mente estava focada em um detalhe que havia chamado sua atenção.

-Howlett agarrou-o pelos tornozelos e Marco pelos braços. Levantaram-no e levaram-no para o lago onde terminam os terrenos de Burkes. Não sei quanto tempo levou para alcançá-lo, mas me pareceu que tinha passado uma eternidade -comentou depois de inspirar fundo-. Observei em silêncio como o balançavam e como o lançaram à água. Depois, Howlett correu até mim e me virou para que não visse como o corpo se afundava.

-Ninguém descobriu que estava desaparecida há muito tempo? Onde estavam Anne e Josephine? -perguntou inquieto.

-Imagino que Anne continuava tão focada em seu papel que não reparou em minha ausência. Josephine lutava para se livrar de lorde Cooper. Embora não soubesse até esta mesma manhã -esclareceu.

-Como saíram de lá?

-Howlett acompanhou-me à carruagem em que tínhamos viajado e Marco voltou à festa para informar as minhas irmãs de que regressava a Lambergury. Colocou como desculpa que sofria uma terrível enxaqueca. Josephine foi a primeira a aparecer. Vinha tão zangada que não reparou em minha aparência. Quando chegamos, subi ao quarto, tirei a roupa e me lavei. Lembro que me esfreguei com tanta força que durante uma semana me ardeu a pele. -Parou de andar, olhou para Martin e respirou fundo-. No dia seguinte, voltamos a Londres...

-Aí começou sua depressão -comentou.

-De dia e de noite -garantiu Elizabeth-. Não houve um único minuto que não lembrasse o que tinha feito. A tristeza e o desespero foram me consumindo até buscar a morte. Sabe o que fiz quando ouvi que Logan ia se casar com Anne? Sabe como agi em seu casamento ou no de Mary com seu irmão? Só podia chorar -comentou deixando que outras novas lágrimas escorregassem pelas bochechas-. Passei dois anos chorando, Martin. Sempre que havia uma notícia que fazia a minha família feliz, me escondia no meu quarto e chorava porque não sabia até quando iria durar essa felicidade. Tem ideia de como foi difícil olhar para o meu pai cada vez que se aproximou da cama para me consolar? Oh, Deus! -Exclamou ajoelhando-se-. Depois de todo o esforço que fez para ser reconhecido como o bom médico que é, posso arrimar-lhe a vida! -ela disse antes que seu choro se tornasse tão agonizante que o coração de Martin se partiu.

-Elizabeth -disse enquanto se aproximou. Inclinou-se para ela, a ajudou a levantar-se e a abraçou.

Durante bastante tempo, Elizabeth deixou-se confortar pelo calor e ternura que Martin lhe transmitia. Sentiu-o acariciando as costas e ouviu o seu coração a bater. O seu, por mais estranho que fosse, palpitou sem ritmo até que acabou por encontrar o dele. Foi incrível para ela ouvir e sentir dois corações batendo em uníssono.

-Onde estão Howlett e Marco? Eles poderiam corroborar seu testemunho se alguma vez descobrirem o cadáver de Norfolk -comentou ao se separar. Colocou suas mãos sobre o rosto de Elizabeth e passou com suavidade o dedo polegar direito pelo lábio que havia sofrido a crueldade do golpe.

-Marco foi para a Irlanda. Disse a Logan que um familiar havia falecido e que devia tomar conta da herança. Pensei que rejeitaria sua decisão e que indagaria sobre essa história -disse quando Martin parou de acariciar sua boca.

-Por que o visconde não aceitaria a decisão de seu empregado? -perguntou confuso.

-Porque toda a família de Marco é espanhola. Fugiu deles quando seu pai descobriu que seu filho observava mais os homens que as mulheres -assinalou, irritada pela falta de compreensão desse pai.

-E Howlett?

-Logicamente, também foi para a Irlanda. Mas não o fez até um mês depois.

-Desde então, ninguém perguntou por lorde Norfolk? -Elizabeth negou com a cabeça-. Nem mesmo sua família?

-Não -garantiu-. Durante estes dois anos levanto-me fazendo as mesmas perguntas: quando descobrirão o corpo de lorde Norfolk? Quando receberei a visita dos agentes? Em que momento de minha vida pagarei minha dívida? -Martin tinha o olhar cravado nela, mas Elizabeth sabia que não a observava. Estava abstraído em algum pensamento. De repente, se separou e caminhou até sua mesa de escrivaninha-. O que acontece? -Perguntou assustada e surpresa.

-Como era Norfolk? -Soltou enquanto se sentava. Pegou uma folha, a caneta e esperou a resposta.

-Quer que o descreva? -retrucou atordoada.

-Só preciso saber se era alto, baixo, forte, atlético, robusto...

-Martin! -Gritou ao mesmo tempo que se dirigiu para a mesa. Pousou as mãos nela e olhou-o com raiva-. Por que se importa em saber como era? Ouviu que o matei? Entendeu que não posso estar com ninguém porque isso iria destruí-lo? -Gritou desesperada-. O que aconteceria se terminasse seu projeto? Como o mundo reagiria se descobrisse que sua esposa é uma assassina?

Martin piscou várias vezes. Ouviu corretamente? Elizabeth estava falando sobre casamento? Surpreso, se levantou de um salto, jogou a cadeira para trás com as panturrilhas, deu a volta na mesa e encarou Elizabeth.

-Quero te perguntar mais uma coisa -indicou olhando-a nos olhos.

-Como volta a se referir... -parou de falar quando Martin embalou seu rosto novamente.

-Gosta de mim? Quero dizer, se sente algo...

-Sim -respondeu sem hesitar.

-A razão pela qual me rejeita é lorde Norfolk?

-Sou uma assassina -lhe lembrou porque parecia que não tinha entendido muito bem essa parte da história.

-Não me respondeu -insistiu.

-Sim, Martin. Não quero que haja nada entre nós porque sei que no dia de amanhã, eu... -Ficou calada no momento em que a boca do Martin atingiu a dela. Mal tinha assimilado que seus lábios voltavam a sentir seu calor quando se afastou.

-Tenho que sair. Preciso fazer algo muito importante e não posso perder mais tempo. Pode encomendar à senhora Doherty um almoço para três? -perguntou depois de lhe virar as costas e mover a cabeça de um lado para o outro à procura de um casaco. Ao lembrar que os únicos que lhe restavam estavam no cabide, caminhou até a saída.

-Para três? -Espetou mais atordoada pelo beijo do que pelo pedido.

-Hoje nós dois almoçaremos com Borshon -respondeu depois de se virar para ela sob o marco da porta.

-Quem é Borshon? -Perguntou sentindo como seu coração batia com rapidez, como se a avisasse de que sua vida ia mudar novamente.

-É o marido da tia Kristel, e o diretor da Scotland Yard -esclareceu.

Depois disso, a deixou sozinha.


XX


Borshon bateu na mesa com os dedos da mão direita enquanto observava Martin. Ele deduziu, ao vê-lo entrando no prédio, que estava com problemas e precisava de sua ajuda. Não estava errado. Assim que se cumprimentaram com um forte aperto de mão e um abraço fraterno, lhe pediu que conversassem no escritório. Assim que se sentou, começou a lhe contar o motivo de sua visita. Ele permaneceu em silêncio, ouvindo atentamente até o fim da história.

-Tem certeza que disse a verdade? -perguntou tirando sua mão da mesa.

-Até agora, sempre foi sincera comigo -respondeu com firmeza.

-Afirma que o matou depois de lhe bater com uma pedra na cabeça? -concluiu por meio de pergunta.

-Sim, embora tenha minhas dúvidas sobre isso -Martin afirmou sem mudar seu tom de voz decidido.

-Explique-se -Borshon respondeu, recostando-se na cadeira enquanto cruzava os braços.

-É verdade que uma pessoa sujeita a uma situação angustiante e terrível, como Elizabeth, adquire uma força sobre-humana. É o instinto de sobrevivência -esclareceu-. Mas duvido muito que aquele golpe tenha sido tão preciso a ponto de matá-lo.

-Tenho vários criminosos na masmorra que podem contradizer essa teoria -manifestou tranquilo.

-Com uma pedra? -Soltou se levantando-. Sei que mostro a imagem de uma pessoa muito desesperada, e não contesto, mas quando a conhecer entenderá meu comportamento e minhas dúvidas.

-Está apaixonado por ela? Porque isso explicaria sua rejeição da declaração que ela mesma expõe sobre o que aconteceu -continuou calmamente.

-Independentemente de meus sentimentos por Elizabeth, peço que me ajude a investigar o que realmente aconteceu -insistiu, evitando responder. Sabia que, se confessasse que estava apaixonado por ela, suas conjecturas sobre o caso ficariam anuladas.

-Como acha que te posso ajudar?

-Procurando o corpo? -Martin ofereceu.

-Não está falando sério, está? Depois de dois anos, nem mesmo os ossos dele sobraram e, mesmo que os encontrássemos, não poderíamos nem mesmo confirmar que eram daquele...

-Lorde Norfolk -apontou rapidamente-. Mas há alguma maneira de provar que ela não o matou?

-Segundo a história que me contou, levou dois amigos seus ao lugar onde ocorreu. Estes asseguraram que estava morto e o jogaram na água -resumiu-. Não, Martin. Não há uma forma possível de considerar sua inocência.

-Tem que haver! -Exclamou tão desesperadamente que os óculos dispararam de seu rosto e acabaram no chão.

-Não há provas -Borshon garantiu.

-Há sim, mas estão na mente da Elizabeth -continuou depois de pegar os óculos, verificar as lentes e colocá-los de volta-. Diz que, depois do golpe, moveu as pernas para afastar o corpo de Norfolk. Ele caiu para trás como se fosse o tronco de uma árvore velha -repetiu as palavras dela-. Quando retornaram, além de encontrá-lo em um lugar diferente, Marco teve que girá-lo para averiguar se continuava vivo -explicou impacientemente-. Os mortos se movem? Pelo que eu sei, para uma pessoa fazer qualquer tipo de movimento, tem que respirar e viver.

-Um morto pode se mover. Só precisa do impulso das mãos de um vivo -ele adicionou com raiva-. Mas não considerou a possibilidade de que o pânico que sofreu o fizesse acreditar que seu agressor caiu para trás -apontou estreitando os olhos.

-Se fosse assim, Elizabeth não teria mexido as pernas -enfatizou-, mas teria empurrado seu corpo para longe com as mãos enquanto ele desabava sobre o peito e rosto -supôs com firmeza.

-Martin, acho que está tão ansioso por salvá-la que não repara em suas próprias palavras -disse a modo de repreensão.

-Ela não o matou! -insistiu.

O Borshon ficou calado enquanto pensava na reviravolta desesperada que Martin queria dar à história. Sem corpo não podia fazer nada a não ser realizar uma série de premissas e estas não chegariam a nada. Também não ajudava que Elizabeth confessasse ser a autora dessa morte. Mas admitia que tinha razão num ponto importante: ela não teria chutado a não ser que o corpo tivesse caído para trás.

-Ela disse se havia animais rondando a área? -perguntou.

-Se vai me dizer que um animal arrastou o corpo e o virou para baixo, pensarei que a cadeira em que está sentado é muito grande para você -resmungou.

-Demônios, Martin! -exclamou Borshon levantando-se rapidamente-. Agora mesmo te daria um soco! -Adicionou com raiva.

-Se me der, talvez me deixe inconsciente, mas prometo que não vou morrer. Embora tenha que lidar com Valeria e tia Kristel. Acredito que elas jamais te perdoariam que me machucasse -apontou mordaz.

-Não tenha tanta certeza -murmurou estreitando os olhos.

Durante uns segundos se olharam sem dizer nada.

-Borshon, não vim até aqui para te insultar ou te fazer perder tempo, mas para pedir ajuda -declarou Martin pegando o casaco que havia deixado no encosto da cadeira-. Mas deduzo que não me dará.

-Não há caso! -Gritou depois de dar um golpe na mesa.

-Há sim, mas não quer ver -afirmou enquanto abotoava o casaco.

-Pelo amor de Deus! -Exclamou apertando os punhos-. Não entende que, se não há corpo, não há crime e sua querida Elizabeth não será julgada? Não compreende a opção que te ofereço?

-Entendo que ela se defendeu do seu agressor, que não é culpada da sua morte e que devo prová-lo para que possa ser feliz. Está há dois anos em uma melancolia pelo peso de um assassinato que não realizou. Tentou tirar a vida em várias ocasiões e quero...

-Quer casar com ela -decidiu Borshon cruzando os braços.

-Quero que se liberte dessa angústia para sempre. O que fizer depois de provar sua inocência, respeitarei -manifestou solene.

Os dois se olharam nos olhos. O silêncio que se criou no interior do escritório foi interrompido com as vozes dos agentes que trabalhavam fora da sala. Borshon refletiu sobre a atitude de Martin. Já não estava diante de um menino que chorava porque seu irmão havia escondido um de seus livros. Estava diante de um homem sensato, racional e discreto até agora. Sua inteligência era admirável e invejável em partes iguais. Então, por que não podia apoiá-lo? Desde criança era uma pessoa justa e imparcial. Jamais falava sem coerência. Essa atitude fez com que Valeria sonhasse em se tornar a irmã do melhor juiz de Londres. Kristel sabia que ele só se interessava por números porque neles via a certeza do mundo. Sincero, tenaz e, pela forma como o olhava, também desesperado.

-Sei que vou me arrepender disso -disse sem desviar o olhar-, mas aceitarei seu convite para almoçar com ela. Escutarei a história, como se não a tivesse contado, e indagarei nessas lembranças.

-Significa muito para mim que o faça. Embora deixe que te dê um conselho. -Ao observar que Borshon o olhava com ferocidade, acrescentou com rapidez-. Se estivesse no seu lugar, antes de sair daqui pediria a um dos seus melhores agentes que recolhesse toda a informação possível sobre o nome de lorde Norfolk. Se minhas hipóteses estão corretas, temo que esse lorde nunca existiu -Martin disse parado em frente à porta-. Talvez fosse um personagem inventado. Talvez alguém o tenha contratado para fazer mal a alguma das irmãs Moore. Logicamente, optou pela mais... fraca -alegou franzindo a testa.

-Por que diz isso? -perguntou afastando-se da mesa.

-Não parece estranho que a família desse lorde, supostamente bastante rico e poderoso, não tenha perguntado onde se meteu durante os dois últimos anos?

-Há famílias que não se falam durante décadas -comentou depois de pegar seu casaco.

-O fato de não falar com um membro da família não significa que não anseie pela herança que possa lhe oferecer. Como bem sabe, sempre encontraremos um sobrinho, um irmão ou mesmo um tio que vive à procura de seus interesses futuros.

-Talvez não fosse tão rico e poderoso como disse a ela -expressou Borshon.

-Ainda assim, alguém o convidou para aquela festa, não acha? Algum dos presentes teria que conhecê-lo e reparar em sua longa ausência -insistiu-. Tampouco suponho que vivesse na rua. Pernoitaria em uma pousada ou na residência de um amigo. Por que ninguém se interessou por ele?

-Tem razão nesse ponto -indicou Borshon reflexivo-. Esta mesma tarde escreverei uma carta ao Sr. Clarke. É o juiz que se encarrega da justiça por aquela região de Brighton. Se há uma queixa de desaparecimento, ele teve que assinar.

-Boa ideia. Embora eu sei o que vai responder -alegou Martin com segurança.

-O quê? -ele retrucou levantando uma sobrancelha.

-Que nunca ouviu falar dele -declarou antes de que ambos saíssem do escritório.


Não parava de pensar no que o Martin teria planejado até os primeiros criados aparecerem. Assim que os recebeu, enfrentou centenas de problemas para resolver, milhares de dúvidas para deliberar e milhares de decisões para tomar. Não pôde descansar nem um só segundo. Até teve que ir ao mercado para fazer compras! A senhora Doherty, amável e compreensiva, ditou-lhe uma lista de alimentos e sugeriu-lhe onde encontrá-los. Embora tenha feito o mais depressa que pôde, ausentou-se quase duas horas. As mesmas que julgou perdidas, pois não havia ninguém na casa que permanecesse atento aos criados. No entanto, ao retornar descobriu com surpresa que havia duas mulheres limpando as janelas como se sua vida fosse isso, um dos homens recolhia as folhas secas do jardim da entrada, outro tirava os móveis velhos para a rua e um terceiro sacudia os tapetes sobre a grade.

-Por que não me chamou antes de sair? -a repreendeu Sophia ao vê-la entrar com as mãos carregadas de cestos. aproximou-se de sua filha e pegou aqueles que lhe tapavam o rosto.

-Não achei oportuno incomodá-la -respondeu depois de sentir como seus braços se libertavam de tanto peso-. Imaginei que não demoraria muito, mas me enganei.

-Felizmente, Madeleine estava olhando para a janela quando a viu sair.

-Estava me espiando? -perguntou se virando para ela-. Não disse que confiava em mim ou que minhas decisões eram corretas?

-Confio em ti e nas tuas irmãs -assegurou Sophia sem parar-. Mas uma mãe sempre tem que estar atenta ao que suas filhas fazem para ajudá-las quando precisarem. Quando tiver filhos, me entenderá -acrescentou caminhando com decisão pelo corredor.

Elizabeth observou sua mãe dirigindo-se para a cozinha. Naquele instante pensou no terrível erro que Martin havia cometido ao comprar aquela casa. Também pensou no que aconteceria se a atração e o carinho que havia entre eles se transformasse em algo mais profundo. Ele não se assustou quando confessou que havia matado uma pessoa. Até insistiu em sua inocência! Mas temia que, quando descobrisse as mulheres Moore perambulando por sua casa com tanta facilidade e liberdade, todos os sentimentos que dizia ter desapareceriam imediatamente.

-O que faz aí parada? -Sophia gritou-. Não tem um almoço para preparar?

-Também foi informada sobre isso? -murmurou caminhando para a frente.

-A senhora Doherty foi muito amável ao explicar-nos o motivo de sua ausência -indicou com calma -e lhe pareceu uma ideia excelente que a ajudássemos.

-Ajudássemos? -perguntou Elizabeth enquanto entrava na cozinha.

-Olá! -exclamou Madeleine ao vê-la-. Conseguiu comprar a farinha? Eu preciso de um pouco mais para que esta mistura seja perfeita -explicou com um grande sorriso enquanto movia com uma colher de pau o que preparava dentro de uma tigela.

Desviou o olhar de sua irmã e o fixou na senhora Doherty. Supôs que encontraria um rosto cheio de angústia e desespero. Não foi assim. A cozinheira contemplava e revisava o que Madeleine fazia com fascinação e carinho. Elizabeth deixou os cestos junto aos outros, tirou a farinha, aproximou-se de sua irmã mais nova, colocou o pacote ao seu lado e lhe deu um beijo na bochecha.

-Aqui a tem -comentou olhando para a massa-. Espero que sejam suficientes. Lembre-se que Martin é capaz de comer dez sem apenas respirar.

-Sairão vinte, dez para cada um -respondeu Madeleine enchendo a colher de farinha.

Sophia não desviou o olhar de suas filhas. Os olhos encheram-se de lágrimas ao ver como Elizabeth tratava sua irmã. Estava mudando. Felizmente para todos, o caráter de sua terceira filha começava a ser tão doce como os bolos que pedia à mais nova.

-Madeleine, podemos ir? Sua irmã já pode cuidar de tudo -falou com um nó na garganta devido à felicidade.

-Senhora Doherty, só falta estender a massa e cortá-la em pequenos quadradinhos. O creme está pronto dentro da panela que deixei junto à panela de caldo. Só tem que estendê-lo sobre eles antes de colocá-los no fogo.

-Foi um prazer conhecê-la, senhora Doherty -comentou Sophia como despedida.

-Igualmente, senhora Moore -respondeu a cozinheira.

Enquanto Sophia segurava suavemente o braço de Elizabeth, observou como Madeleine segurava o braço da mulher, com as mãos nuas, e lhe dava um beijo. Essa mostra de afeto e de confiança a deixou perplexa. Parecia que estava mudando não só a terceira de suas filhas, mas também a quinta. O que estava acontecendo?

-Não deveria ter se incomodado -Elizabeth expressou quando saíram da cozinha.

-Ajudar um ao outro não é aborrecimento, mas apoio. Entenderá com o passar dos anos -afirmou, apertando seu braço afetuosamente.

-Tenho tanto que fazer em tão pouco tempo -suspirou Eli.

-Nós preparamos o salão diurno para que possam almoçar ali -indicou Sophia ao confirmar que Madeleine as seguia-. Pedi a um dos homens que transportasse até lá a mesa que estava na sala de engomar. As donzelas a cobriram com uma toalha que trouxe de nossa casa. Espero que seja longo e largo o suficiente para que não se vejam os buracos que as traças fizeram. -Ficou calada e pensativa durante uns segundos-. Martin deve saber que precisa de mais mobília. Hoje recebe um familiar e este não dirá nada que o prejudique, mas o resto das visitas não serão tão compreensivas. -Fez uma pequena pausa, como se duvidasse de algo que desejava contar. Finalmente falou -: Encontrei roupas no chão de um quarto. -Quando Elizabeth ia se explicar, Sophia continuou-. Imaginei que as deixou lá porque são desnecessárias para ele. Foi por isso que pedi à Josephine para que as embalasse para levá-las à caridade. Espero que esse gesto de solidariedade faça com que as pessoas descubram que tem bom coração e deixem de olhá-la com medo. Também verifiquei o quarto principal e, sabe o que encontrei? -Parou em frente à porta de saída e virou-se para ela-. Nada! Onde diabos dorme esse rapaz? -Ela estalou perplexa.

-Em um sofá na biblioteca. Não entrou, certo? Martin trabalha lá -manifestou inquieta.

-Não. Só subi ao andar superior. A senhora Doherty explicou-me que ordenou às criadas que começassem por essa parte da residência. Imagino que a biblioteca é um lugar sagrado para Martin.

-Isso mesmo -afirmou Elizabeth-. Ninguém deve entrar nem o incomodar.

-Deve convencê-lo a visitar prontamente o senhor Sullivan -indicou depois de pegar o casaco do cabide-. Em seu estabelecimento encontrará móveis de alta qualidade. Com certeza fará um bom preço.

-Mãe, ele não precisa de muitas coisas -a interrompeu.

-Os homens pensam que algo é desnecessário até que o tenham. Martin tem urgência em ter uma cama onde possa descansar -insistiu.

-É uma decisão muito íntima -expressou Elizabeth-. Fico nervosa só de pensar que tenho que encomendar um colchão para ele.

-Não te peço que o faça sozinha. É preferível que ele a acompanhe.

-Quer que nós dois vamos até o Sr. Sullivan para comprar uma cama? Mãe, pensou no que disse? -Perguntou atordoada.

-Dá muita importância a coisas que não têm. -Elizabeth ficou muda ao ouvi-la-. Hoje decidiu almoçar com o senhor Hill, o marido de sua tia Kristel, e te pediu que os acompanhasse, certo? -Eli assentiu-. Se quer que fique ao lado dele quando um parente vier à sua casa, não se importará de passear contigo para escolher os móveis. Lembre-se que nem todos os homens acham que estar acompanhado por uma linda mulher é símbolo de sucesso. Para pessoas como seu pai ou Martin, representa confiança, segurança e orgulho.

Depois de dizer isso, deu-lhe um beijo na bochecha, agarrou Madeleine pelo braço e caminharam para a cerca. No entanto, exatamente quando iam tomar o pequeno caminho, Martin apareceu acompanhado de um homem tão alto, que sua mãe teve que retroceder vários passos para olhá-lo nos olhos. Se cumprimentaram e conversaram durante vários minutos. Pela posição que ambas adotaram frente a eles, deduziu que não era uma pessoa estranha para elas. Sua mãe parecia encantada e Madeleine, que devia estar correndo para sua casa devido a sua timidez, ficou ali, escutando um comentário que Martin lhe fez. Sem dúvida, falavam de seus famosos bolos. Do que mais poderiam conversar?

Elizabeth estava prestes a se retirar da entrada, para que não a encontrassem espionando-os, quando seus olhos e os de Martin se encontraram. Ficou imóvel, não apenas pela maneira como olhou para ela, mas pelo sorriso que lhe deu. Parecia que estava lhe dizendo, através dele, que tinha sentido sua falta.

-Sim, de fato. Ela é minha filha, a terceira das cinco -ouviu a voz de sua mãe como se estivesse no topo da montanha mais alta e afastada do mundo.

Ela fechou os olhos e quando os abriu, Martin estava na frente dela. Estava respirando com dificuldade, como se tivesse caminhado pelo jardim a passos largos.

-Está bem? -Perguntou segurando as mãos. Depois de confirmar que Borshon tinha ficado para trás, as beijou.

-Sim -respondeu Elizabeth quando o homem se pôs na frente deles.

Nesse momento, a luz de fora deixou de iluminar o hall.

-Elizabeth -disse depois de colocar a mão direita na parte inferior de suas costas-, este é o meu tio, Borshon Hill.


XXI


Uma vez que esteve diante dela, Borshon a observou. Martin não lhe disse que seu agressor a escolheu por ser a irmã mais fraca? Talvez fosse, já descobriria depois, mas temia que a verdadeira razão foi sua beleza.

Conheceu as outras filhas de Randall durante o casamento do Philip e da Mary. Ele não sabia quantas eram até que vários convidados perguntaram pela terceira delas. A senhora Moore a desculpou, alegando que padecia de uma doença e que lhe havia debilitado tanto que não podia sair de casa naquele momento, ele não entendeu por que um dos melhores médicos da cidade não foi capaz de curar sua própria filha. Agora entendia tudo. Para um dano semelhante, não havia remédio que pudesse curá-la. Sua dor e tristeza a teriam consumido até deixá-la sem carne nos ossos. «Tentou tirar a própria vida», lembrou as palavras de Martin. Não estranhou aquela declaração. Desde que se tornou agente, encontrou mais de cinquenta corpos sem vida de mulheres que tinham sido agredidas, como Elizabeth foi. Mas chamou-lhe a atenção que Martin tivesse esse tipo de intimidade. Por que contou precisamente a ele? Tanta confiança havia entre eles? Reparou como mantinha a mão direita nas costas da jovem. Um gesto muito significativo para um homem que, tal como quis fazê-lo acreditar, só desejava livrá-la de seu passado.

-Senhorita Moore, encantado em conhecê-la -disse estendendo-lhe uma mão. Quando a jovem a aceitou, a apertou com suavidade.

-Senhor Hill.... -Conseguiu dizer sem gaguejar.

-Borshon aceitou almoçar conosco porque quer ouvir sua história -confessou Martin. Ao ver que Eli começou a tremer por medo e confusão, pegou uma das suas mãos com a que afastou de suas costas. A princípio, hesitou em pegá-la na frente do tio, mas a indecisão se dissipou quando Elizabeth entrelaçou os dedos nos seus-. Chegamos a uma conclusão muito diferente da sua -acrescentou olhando-a nos olhos.

Ao ver sua inquietação e angústia, desejou abraçá-la para lhe trazer o conforto de que necessitava, mas não era conveniente realizar esse tipo de demonstrações afetivas diante da pessoa que devia valorizar sua objetividade na história. Embora, pela forma como se agarravam as mãos, Borshon já teria deduzido quais eram seus sentimentos. Não lhe perguntou se queria se casar com Elizabeth? Claro que sim! Se apaixonou por ela desde o minuto em que a viu e contava secretamente os dias restantes para se ajoelhar na frente dela e fazer a tão esperada pergunta. Embora estivesse ciente de que não seria tão cedo...

-Ainda não tenho certeza de nada -murmurou Hill-. Tomarei uma decisão quando falarmos.

-Certo -interveio Martin com rapidez-. Elizabeth, que lugar da casa lhe parece mais apropriado para conversar com tranquilidade? -Perguntou sem soltá-la.

-O salão diurno. Minha mãe arrumou tudo para que almocemos nesse lugar da casa. -Foi capaz de dizer. Ao apreciar que Martin a olhava confuso, porque não sabia onde estava exatamente o dito salão, acrescentou -: Por favor, venham comigo.

-É um lugar bastante grande -opinou Borshon depois de percorrer o interior da casa com o olhar-. Muito para um homem que sempre desejou se manter solteiro -acrescentou com sarcasmo.

-A passagem do tempo, e os acontecimentos que surgem neste, fazem com que as pessoas mudem de ideia. Nunca se sabe o que pode acontecer no futuro. Hoje estou aqui e amanhã posso acordar em outro lugar muito diferente -respondeu Martin encolhendo os ombros.

-Sim, é exatamente isso que tem feito desde que te conheço -assegurou o agente enquanto cravava o olhar nos dois jovens.

Ela caminhava lentamente pelo corredor; Martin não se afastava do seu lado. Apesar de serem observados, continuavam a segurar as mãos. Hill decidiu andar uns passos atrás e analisar a situação. Se durante a conversa em seu escritório teve alguma dúvida dos sentimentos do menino por ela, eliminaram-se ao contemplar como tentava protegê-la inclusive de sua própria presença. Sentiu tristeza por seu sobrinho. Insistia em que Elizabeth era inocente porque estava apaixonado. Mas seria? Seus raciocínios foram lógicos ou se deixou levar pelo que lhe ditava o coração?

-É aqui -comentou Elizabeth após abrir a porta do salão.

Mas nenhum deles entrou lá até ela entrar. Inconscientemente, encolheu os ombros quando ouviu a porta fechar. Tentou se acalmar e se concentrar que Martin tinha levado o agente até lá para procurar uma maneira de salvá-la. Não havia. Ela matou um homem, e quando ele ouvisse sua versão, não lhe restaria mais remédio que assumir sua culpa.

-Martin veio ao meu escritório pedir-me ajuda, sabia? -Borshon disse após colocar o casaco escuro no encosto da cadeira que tinha escolhido para sentar-se.

-Martin saiu daqui me pedindo que ordenasse à senhora Doherty um almoço para três. Quando lhe perguntei quem viria, mencionou seu nome, e então acrescentou que era o diretor da Scotland Yard -expôs Elizabeth com sinceridade e sem mover-se do centro da sala.

-Meu sobrinho acha que é inocente, que alguém idealizou um plano para machucá-la. Tem alguma ideia de quem desejaria fazê-lo? Prosseguiu Borshon o interrogatório enquanto se sentava.

-Poderia lhe nomear mais de uma centena de pessoas que residem na cidade e que rezaram para presenciar minha destruição. Mas todas as que conheci em Brighton eram estranhas -assegurou sem desviar o olhar do agente.

-Por que diz que quem a conhece deseja sua destruição? -Quis saber Borshon.

-Porque durante alguns anos, não adotei um comportamento apropriado -limitou-se a dizer.

«Sincera», deduziu Hill. tal como disse Martin, a jovem era direta e franca. Isso lhe agradou, pois descartou de imediato a ideia de que fosse uma harpia buscando misericórdia.

-Deixando de lado o comportamento que Elizabeth manteve durante esses anos -interveio Martin dirigindo-se para o decantador de bebida que alguém tinha colocado sobre uma mesa baixa-, acho que ela não era o verdadeiro objetivo. Embora seja verdade que foi escolhida como um meio para alcançá-lo -garantiu. Em seguida, olhou para o seu tio e levantou o copo para perguntar-lhe se ele queria beber. Este respondeu que sim com um pequeno movimento de cabeça.

-Senhorita Moore, não estou aqui para julgá-la por fatos de que, pelo rubor que vejo em seu rosto, se envergonha e se arrepende. Só quero ouvir o que aconteceu naquela noite. Há aspectos da história que me intrigam e preciso resolver as dúvidas que apareceram em minha mente. Pode me dizer exatamente o que aconteceu?

-Com exatidão? -Repetiu finalmente caminhando até o agente.

-Sim -Borshon respondeu pegando o copo que Martin lhe oferecia. esperou que ela decidisse se sentar, mas não o fez, nem tampouco Martin. -Sei que deve ser muito difícil reviver o que aconteceu, mas prometo-lhe que é a única forma possível de averiguar se as hipóteses que meu sobrinho especula são verdadeiras.

-Hipóteses? -Soltou com surpresa.

-Quando terminar de falar, lhe direi quais são -respondeu Martin após deixar seu copo sobre a mesa e aproximar-se dela-. Não tenha medo, Elizabeth. prometo que tudo ficará entre nós. Nossa única intenção é ajudá-la e não provocar mais sofrimento -acrescentou agarrando-lhe de novo as mãos.

-Eu juro que sua história não será tornada pública -expressou Hill. -Sua reputação não será prejudicada.

-A minha reputação deixou de me preocupar há muito tempo, Sr. Hill, mas quero proteger a minha família. Conhece-os, sabe como são. Acha que merecem sofrer um escândalo como este? -Perguntou desesperada.

-Dou minha palavra de que o manterei em segredo -Borshon manifestou com firmeza.

-Elizabeth -interveio Martin de novo, -se deseja tanto cuidar deles, primeiro deve descobrir a verdade. Por favor, suplico que nos permita ajudá-la. Precisa mudar seu futuro e encontrar, de uma vez por todas, a felicidade que merece. Prometo que estarei ao seu lado enquanto desejar.

Elizabeth sentiu uma forte pressão no peito. Foi tão intensa, que a impediu de respirar. Quis fugir de lá, esconder-se em seu quarto e afastar-se novamente do mundo. Até amaldiçoou o dia em que conheceu Martin e recuperou a vontade de viver. Por que era tão difícil ele aceitar que não teria um futuro digno se continuasse ao seu lado? Continuava sem reparar em todos os prejuízos que ela traria à sua vida? Olhou-o nos olhos e observou perplexa que transmitiam esperança. Mas não havia, assim como não existia esse futuro que mencionara. Ela tinha claro o que tinha acontecido naquela noite e as consequências que teria a partir desse momento. Só esperava que ele também as aceitasse.

-Vou fazê-lo para que admita de uma vez por todas que não valho a pena -comentou zangada. Se soltou das mãos do Martin e colocou-se à frente de Hill. -Por onde quer que comece?

-Desde o início -respondeu Borshon.

Por pouco mais de uma hora, Elizabeth contou o que aconteceu. Respondeu a todas as perguntas que Borshon lhe fez e esclareceu tudo aquilo que lhe foi pedido que fizesse. Descreveu Lorde Norfolk e todos os convidados que encontrou na casa do Burkes. No momento em que ela mencionou o nome Clarke, pois explicou que o juiz também estava entre eles, Borshon se moveu desconfortável no assento, bebeu o licor do copo e olhou para Martin. Não precisaram falar para que seus pensamentos coincidissem.

-Viu lorde Norfolk conversando com outros convidados? -A interrompeu Hill nesse ponto da história.

-Quando chegamos tinha uma conversa com vários deles. Marco, depois das saudações, se dirigiu a nós e nos disse quem eram duas dessas pessoas.

-Que nomes deu? -Perguntou Martin.

-O do senhor Clarke, o juiz, e o do senhor Rickley, o médico -esclareceu.

-Prossiga, por favor -pediu-lhe Hill depois de levantar-se.

Em seguida, pegou o copo, caminhou até o decantador de brandy, se serviu até a metade e o bebeu de um gole. Logo voltou a enchê-lo e olhou para Martin; este fumava seu cachimbo sem desviar os olhos da moça. Se sua experiência não o enganasse, o jovem estaria analisando cada palavra que ouvia e elaborava outra hipótese que não tinham analisado até o momento: a participação de Clarke e Rickley nesse desaparecimento. Mas como iria se apresentar em Brighton para perguntar, nada menos que ao próprio juiz, se estava implicado em um assassinato?

Entretanto, Elizabeth continuou falando. Contou-lhe todos os detalhes que lhe pareceram irrelevantes e Borshon confirmou, depois de reunir toda a informação, que a história dela coincidia com a que Martin lhe contou no seu escritório. Não houve detalhes idealizados ou inventados pelo rapaz para assegurar a sua inocência. Ela tinha concordado em dar um passeio, Lorde Norfolk tornou-se agressivo, a jovem defendeu-se com uma pedra e depois vieram os seus amigos para ajudá-la. No entanto, ele reparou em um ponto que nenhum deles percebeu: o espaço vazio dessa história. Quanto tempo passou desde que Elizabeth fugiu de seu agressor até que retornou com seus amigos? O que aconteceu nesse período? «Tive que olhar os ramos das árvores para estar segura». «Howlett encontrou-o num lugar mais afastado de onde eu acreditava». «Marco o virou para confirmar que estava morto». Até o momento, as inquietudes de Martin concordavam com as suas. Se era um homem alto e forte, como a jovem descreveu, teria que ter sido arrastado, no mínimo, por duas pessoas, ou talvez... Existia a possibilidade de que ele mesmo se levantasse e tentasse fugir? E se assim foi, quem o matou?

-E está submerso no lago há dois anos -concluiu Elizabeth cobrindo seu rosto com as mãos.

-Isso não é verdade -comentou Borshon após deixar o copo vazio sobre a mesa.

-Eu juro! -Exclamou Elizabeth. -Não estou mentindo. Nós o jogamos no lago! -Insistiu em supor que o agente não acreditava nela.

-Confio em suas palavras, senhorita Moore -indicou olhando-a com seriedade—, mas asseguro-lhe que um corpo não permanece sob a água durante tanto tempo. Sua decomposição faz com que flutue antes dos sete dias. Temo que, mais cedo ou mais tarde, alguém teve que encontrá-lo.

-Santo Deus! -Soltou horrorizada. -Quer dizer que descobriram o corpo de lorde Norfolk e estão me procurando desde então?

-Isso é um ponto que devo estudar, junto com todas as incógnitas que me criou sua história -admitiu Hill.

-Incógnitas? -Perguntou Elizabeth levantando-se do assento. -Que tipo de incógnitas?

Quando Martin ia tentar explicar a que Borshon se referia, bateram na porta.

-Entre -respondeu ela tentando adotar uma postura serena.

-Senhorita Moore, a senhora Doherty deseja saber se pode servir o almoço -disse a donzela após saudar com uma ligeira reverência aos presentes.

-Sim, claro -afirmou depois de olhar para ambos os homens. Estes aproveitaram a interrupção para reunir-se em frente à lareira.

Os três permaneceram em silêncio até que a porta se fechou de novo. Nesse momento, Borshon golpeou com a ponta de sua bota um pau em chamas. As chamas se avivaram tanto que pôde vê-las através dos cristais dos óculos de Martin.

-Acho que está certo -disse Hill depois de desviar o olhar do fogo e cravá-lo no rosto de seu sobrinho.

-Eu disse que era inocente -respondeu Martin após ter fumado do cachimbo.

-Inocente? -Retrucou olhando ansiosa primeiro a um e logo a outro. -Fui eu quem golpeou esse homem! -Perseverou em fazê-los entender.

-Temo que tenham aproveitado o golpe que ela lhe deu para culpá-la do assassinato -manifestou Borshon com tom reflexivo.

-Eu bati naquele homem com uma pedra na cabeça! -Repetiu, porque pensou que eles tinham ficado surdos de repente.

-Sim, o fez -disse Martin voltando-se para ela-, mas não tem força suficiente para matá-lo. No máximo, o deixaria inconsciente -esclareceu. Em seguida, olhou para ela e continuou a fumar enquanto sua mente não parava de avaliar todos os fatos.

-Mas não respirava! -Continuou alterada. -Marco confirmou sua morte -acrescentou olhando primeiro a um e logo a outro.

Nesse momento, tudo começou a dar voltas. Estendeu a mão para a cadeira onde tinha permanecido sentada. Agarrou-se a ela, e quando notou que as pernas começavam a dobrar-se pelos joelhos, sentiu ao redor de sua cintura as cálidas mãos de Martin.

-Sente-se bem devagar, Elizabeth -disse enquanto a ajudava. -Quer um copo d'água?

-Seria melhor um uísque -comentou Hill ao agachar-se para pegar o cachimbo que tinha saído voando. Esvaziou seu conteúdo na lareira, o sacudiu e o deixou sobre a cornija.

-Se precisar, posso te servir uma bebida -expressou Martin, mas ela negou com a cabeça depois de fechar os olhos.

-Senhorita Moore -falou Borshon de novo, -não nego que tudo ocorreu tal como a senhorita conta. Ou seja, ao retornar encontraram o cadáver. Mas eu apostaria minha vida que não o matou. Quem fez isso e por que, é algo que preciso investigar.

-Mas..., mas... -Elizabeth tentou dizer antes de cobrir seu rosto com as mãos.

-Disse que assegurava que o corpo foi deixado mais perto da residência do que onde foi encontrado, e eu acredito, -observou Hill. -Se aprendi algo durante meus anos como agente, é que a vítima nunca esquece o lugar onde foi ferida. -Caminhou até eles, colocou as mãos sobre a mesa e continuou: -Pela descrição que me deu, deduzo que esse tal lorde Norfolk podia pesar uns oitenta e cinco quilos e alcançar uma estatura de um metro e oitenta. Para movê-lo precisaria, no mínimo, a força de dois homens. -Ao ver que Martin o olhou com curiosidade, esclareceu. -O peso é dobrado, ou mesmo triplicado, quando uma pessoa morre. Entretanto, comentou que todos os convidados eram velhos amigos do conde. O único jovem que estava na festa, descartando Logan Bennett, era Lorde Cooper. Mas este caminhava apoiado numa bengala porque sofreu um acidente, certo?

-Sim -respondeu Elizabeth depois de afastar as mãos de seu rosto.

-Isso me leva a considerar duas possíveis alternativas -indicou, desviando o olhar da jovem para cravá-la em Martin -: Imaginemos que duas pessoas vagueiam pelo local, sem se preocuparem com o motivo que os move a isso -disse. -Estes teriam se tornado testemunhas de uma agressão. Por que não a defenderam? Por que esperaram que ela fugisse para mover o corpo? É ilógico que pessoas inocentes se mantenham escondidas. Aproveitariam o momento não só para adquirir um reconhecimento social, ao salvar uma mulher em apuros, mas também afirmariam sua inocência nesse ataque.

-Se tivessem arrastado o cadáver para ocultá-lo, teriam se convertido em cúmplices -concluiu Martin com rapidez.

-Isso é -afirmou Borshon. -Daí que me incline mais pela segunda alternativa: que esse tal Norfolk despertou do golpe e tentou fugir ao não conseguir terminar com êxito a sua missão. Mas se deparou com seu verdadeiro assassino. Se focarmos a investigação em que a identidade de lorde Norfolk era falsa...

-Por que acha que era falsa? -Perguntou Elizabeth mais confusa se isso era possível.

-Porque lhe disse que era rico e poderoso -indicou Martin.

-E? -Continuou olhando para ele atordoada.

-Senhorita Moore, asseguro-lhe que a família de um nobre rico e poderoso não se esquece desse parente durante dois anos. Se fosse real, não duvido que alguém se interessaria por ele. Como Martin bem disse na delegacia, sempre há um tio, um irmão ou até mesmo um primo que vigia a herança e a posição social que pode obter em um futuro.

Elizabeth se levantou rapidamente, e sob o olhar atento de ambos os homens, começou a andar de um lado a outro murmurando frases que nenhum dos dois entendia. Rezava a Morgana. Suplicava-lhe que parasse aquela tortura, pois assim a definiu. Martin e Borshon queriam buscar sua inocência negando inclusive o evidente. Como não ia se dar conta de que falava com um falso lorde? Tinha conversado com centenas de aristocratas para reconhecer um impostor. Obrigou a sua mente a voltar ao passado, ao instante em que conversavam. Recordou o tom suave de sua voz, seus gestos estudados, o ligeiro tremor que fez sua mão ao oferecer-lhe a taça, sua forma de olhar... Virou-se para Borshon e Martin quando tudo à sua volta ficou vermelho. Seus olhos tomaram de volta essa cor ao notar como a raiva se apoderava de seu corpo. Tinham razão! Tinha sido tão estúpida e presunçosa que não prestou atenção a duas coisas básicas: ele pensava antes de falar e a olhava cada vez que realizava um gesto, como se esperasse sua aprovação. Um verdadeiro aristocrata não teria qualquer dificuldade em falar e agir corretamente, porque o aprendiam desde o berço.

-Elizabeth! -Exclamou Martin correndo até ela ao descobrir a cor de seus olhos.

-Deus Abençoado! -Borshon olhou para ela. -Que diabos está acontecendo com ela?

-Acalme-se, querida -disse-lhe abraçando-a com força. -Respira, chora, ou me bate se assim se sentir melhor.

-Como eu pude...? Eu mereço tudo o que aconteceu comigo! -Gritou antes de afundar o rosto no peito de Martin e começar a chorar.

-Não diga isso, Elizabeth. Me dói a alma quando a ouço dizer essas coisas tão horrendas -tentou consolá-la.

-Mas eu as mereço! -Ela rugiu bem no momento em que decidiu se separar dele, embora ela não pudesse, porque os braços de Martin a seguraram.

-Senhorita Moore, -Borshon interveio, pasmo e inquieto, -não sei por que se força a pensar que merecia tanto sofrimento, mas está errada.

-Não me conhece... -Elizabeth soluçou sem se afastar de Martin.

-Mas conheço meu sobrinho desde que ele tinha cerca de oito anos e entendo que, se ele insiste que não deve se acusar dessa forma, eu também acho.

-Merece tanta coisa boa... -sussurrou Martin afastando-a muito lentamente. Evolveu-lhe o rosto, levantou-o para que o olhasse e limpou-lhe as lágrimas com os polegares-. Quando descobrirmos o verdadeiro culpado, poderá recuperar a vida que perdeu naquele dia. Não terá que se esconder em seu quarto e escolherá o que fazer e quando fazê-lo por si mesma -admitiu antes de lhe dar um ligeiro beijo nos lábios para que estes deixem de tremer.

-Por agora, temos de nos concentrar em descobrir quem contratou o falso Lorde Norfolk. Tenho certeza de que foi a mesma pessoa que o matou—interveio com rapidez Hill, dando-lhes uns instantes para que decidissem se separar.

Mas não o fizeram, Martin voltou a beijá-la. Depois colocou sua mão direita ao redor da cintura de Elizabeth e a aproximou dele. Borshon esfregou o rosto. Não se preocupava com o caso, mas com o que Valeria e Kristel diriam quando descobrissem que ele conhecia certos aspectos íntimos de Martin que elas nem imaginavam. Claro, Kristel o mandaria dormir no sofá e Valeria lhe amargaria a vida por muito tempo.

-Talvez quiseram prejudicar o conde ou Logan -disse Elizabeth olhando Martin. -É a única coisa que me ocorre -acrescentou envergonhada por um comentário tão simples. Mas os olhos de Martin se iluminaram ao ouvi-la.

-E isso! -Exclamou depois de girar e lhe dar outro beijo nos lábios.

Embora este não foi tão suave como os dois anteriores. Sua boca pressionou a dela como faria um pirata depois de meses sem ver a sua amada.

-O que pensou? -Hill perguntou, revirando os olhos.

-Buscavam a destruição social e econômica de um dos dois. Ou de ambos -admitiu eufórico. Ao perceber que nenhum dos dois o compreendia, esclareceu: -Quem concebeu o plano, pretendia criar um acontecimento tão horrível que arruinaria a reputação de algum deles. No caso de Bennett, todo mundo o culparia por não ter cuidado das filhas do médico, que o acompanhavam, para salvaguardar sua honra. Uma que ele mesmo tinha manchado ao levá-las a sua residência de campo.

-E Burkes? Por que desejavam destruir o conde? Pelo que nos disse, todos os presentes eram velhos conhecidos -insistiu Borshon.

-Uma pessoa com ódio é capaz de esperar muitos anos para cumprir uma vingança que implicaria a morte de... -Refletiu Martin olhando-a horrorizado.

O coração dela começou a bater a um ritmo que nunca tinha tido. Quis fazê-lo parar, mas este continuou palpitando daquela forma ao descobrir que os olhos de Martin estavam banhados em lágrimas.

-Martin! O que acontece? No que está pensando? -Gritou assustada.

-Elizabeth...

Era a primeira vez que dizia seu nome de uma maneira tão dilacerante. Parecia que lhe arrancavam as entranhas enquanto o fazia. Ele olhou para Borshon, em seguida, para Martin. Nenhum deles era capaz de responder a uma pergunta tão simples.

-O que o meu sobrinho se recusa a dizer é que o falso lorde Norfolk não foi contratado para agredi-la -começou a dizer Borshon apertando os punhos. -Imagino que, ao conhecê-la, seu desejo sexual alterou o verdadeiro plano.

-Que plano? -A pergunta foi feita a Martin, que continuava paralisado, horrorizado por esses pensamentos que não era capaz de desvendar. -Diga-me o que queria de mim, -continuou perguntar envolvendo as duas mãos em seu rosto, como tantas vezes ele lhe fez. -Martin, por favor. Diga-me o que queria de mim...

-Senhorita Moore, temo que, se não tivesse se defendido, o cadáver que estaríamos procurando seria o seu -concluiu Hill ao ver que seu sobrinho não era capaz de falar.

Nesse momento, bateram na porta de novo.


XXII


Quando os criados entraram, Martin estava apoiado no lado direito da lareira, Borshon no esquerdo e ela ao lado da mesa. A Elizabeth acolheu-os com uma calma incrível. Parecia que os três estavam falando da última tendência em chapéus em vez de realizar centenas de hipóteses sobre quem foi o verdadeiro autor do assassinato. Ela observou e esperou com paciência que os criados colocassem as bandejas de comida no centro da mesa e enchessem as taças com o vinho que a senhora Doherty lhe pediu nessa mesma manhã.

-Podem se retirar. Eu me encarrego de servir -lhes disse.

Nenhum dos dois lacaios mostrou em seu rosto uma amostra de estranheza ou desgosto. Ao contrário, pareciam bastante aliviados, como se a presença do senhor Hill os inquietasse. Mas tanto ele como Martin continuavam junto ao fogo, sem reparar no que acontecia a seu redor, murmurando outra possível hipótese. Uma vez sozinhos e com a comida nos pratos, Elizabeth lhes indicou que deviam aproximar-se da mesa. Fizeram-no, ainda que quinze minutos mais tarde.

-É inegável que as três irmãs correram perigo -concluiu Borshon afastando a cadeira.

-Sim. Mas continuo insistindo que ele escolheu Elizabeth porque a considerou uma vítima fácil, -disse o Martin, depois de deixar o cachimbo no cinzeiro que colocou na lareira. Depois, dirigiu-se a ela, afastou-lhe a cadeira e esperou que se sentasse-. Felizmente, não foi assim -adicionou antes de dar-lhe um beijo no cabelo.

-Se quem nós acreditamos o matou, nunca o pegaremos -comentou Hill depois de tomar um longo gole da taça.

-Se o fez, algum dia a justiça cairá sobre ele -explicou Martin sentando-se-. Mas a morte desse homem e o autor dela não me importam. O único que me interessa de tudo isto é que resolvemos que Elizabeth foi uma vítima e que finalmente pode ser livre dessa culpa -expôs olhando-a com carinho.

«Livre? Para quê?», perguntou-se enquanto observava fixamente a taça de cristal que tinha ao seu lado. Deixou de ouvir o resto da conversa e se concentrou nessa liberdade que Martin mencionou. Sugeria que recuperasse sua antiga vida? O que queria fazer antes daquela noite? Que planos tinha para o futuro? Não lhe agradou ouvir uma voz dentro da sua cabeça lembrando-lhe quem foi e o que fez. Felizmente, nada restava dessa mulher. Morreu, assim como o falso lorde. Mas Martin tinha razão numa coisa: a inocência a ajudaria a corrigir seus erros e recuperaria tudo o que perdeu. No momento, acabariam as enxaquecas que alegava como desculpa cada vez que sua família se reunia para celebrar uma boa notícia. Também não devia ficar trancada no seu quarto durante dias inteiros. Agora podia sair à rua com o queixo erguido e passear com sua mãe sem pensar que, a qualquer momento, alguém a deteria. E quanto tempo fazia que não se sentava ao lado de seu pai enquanto ele lia algum de seus livros?

Apertou os punhos e sua respiração acelerou ao lembrar-se de seu pai. Martin insistia em referir-se a ela como a vítima, mas se enganava. Ele foi a verdadeira vítima. Howlett e Marco continuavam juntos, suas irmãs mais velhas tinham se casado, as mais novas continuavam sob a proteção de sua mãe. Mas o seu pai, o homem que ela amava acima de tudo e de todos, continuava sofrendo em silêncio. Era verdade que, depois da sua recuperação, nunca mencionou nada sobre o que aconteceu naquele dia. No entanto, cada vez que olhava seus olhos, percebia neles uma profunda tristeza.

Desviou o olhar da taça e fixou-o no rosto de Martin. Segundo ele, as três estavam em perigo, embora aquele homem a escolheu depois de conhecê-la na festa. Insistiu em lhe fazer compreender que foi sua debilidade o motivo de tal escolha, mas só queria confirmar o óbvio: a preferiu porque era a mais tola das irmãs. A sua soberba, o seu orgulho e a ânsia de ser admirada por outro aristocrata cegaram-na a ponto de se afastar da realidade. Se o seu desejo era matá-la, devia tê-lo feito. Assim teria poupado dois anos de sofrimento e horror às pessoas que mais amava no mundo.

Recordou a tristeza que sofreu Howlett depois da partida de Marco, ouviu de novo os gritos de sua mãe ao pedir que se levantasse da cama, as reprovações de suas irmãs e seus olhares de indignação. Reviveu os três momentos em que decidiu tirar a própria vida e quem a salvou da última vez: seu pai. Elizabeth notou como as lágrimas deslizavam de novo por seu rosto ao lembrar-se daquela tarde...

Achou que era o melhor momento para o fazer, porque ouviu Shira dizer à mãe que, como não precisavam dos seus serviços, queria visitar a prima Bertha e conhecer o novo membro da família. Foi paciente; esperou longas horas sentada sobre a cama para que todos se fossem. Quando saiu do quarto, e confirmou que não havia ruído dentro da casa, caminhou até o escritório de seu pai. Sabia onde guardava os remédios e como seria fácil pegar. Desceu as escadas devagar, como se o seu corpo se recusasse a fazer o que a sua mente gritava. Foi até a porta do escritório, abriu e entrou. Uma vez lá, colocou-se frente à vitrine de vidro e procurou com o olhar o frasco que tivesse mais cápsulas. Saiu com um punhado delas escondidas na mão direita. Não parou de andar até que voltou ao seu quarto. Então se trancou na casa de banho, abriu a torneira e esperou a banheira encher. Enquanto ouvia de fundo o som que causava o jato de água impactar sobre a dura porcelana, ela colocou na boca tudo o que tinha na mão. Tossiu, porque se engasgou ao querer tomá-las de repente. Algumas dessas cápsulas acabaram no chão do banheiro. Mas dentro de sua garganta ficaram as suficientes para notar como a asfixia a deixava sem forças. Começou a ver embaçado. Não sabia se era devido às lágrimas ou à lenta perda de vida. Embora antes de desmaiar, descobriu uma sombra embaçada se aproximando dela. Essa imagem confusa e obscura gritou algo quando ela caiu para trás. Mãos trêmulas seguraram-lhe as costas para que a cabeça não atingisse o chão. Não pôde confirmar o que aconteceu depois, tudo estava muito confuso para ela. A única certeza que tinha era que, ao acordar, seu pai dormia em uma cadeira junto à cama e lhe segurava uma mão. Quis falar, pedir perdão pelo que pretendeu fazer. Não disse nada. A garganta doía como se alguém a tivesse cortado em dois. Apesar do silêncio, ele advertiu o momento em que ela abriu os olhos. Sem soltar-lhe a mão, pôs-se de joelhos no chão e começou a chorar.

Seu amado pai, abatido, com a roupa suja, porque não se retirou de seu lado nem um só segundo, ajoelhado e com os olhos vermelhos devido ao cansaço e ao pranto, debatia-se entre dois sentimentos: a amargura e a felicidade. Amargura por não saber o que havia acontecido a sua filha para que desejasse morrer e alegria porque, depois de três longos dias, havia despertado.

-Não me importa o que fez, minha filha. Eu te perdoo e te prometo que cuidarei de você enquanto me ficar um fôlego de vida. Te amo, Elizabeth. Eu te amo muito! -disse sem parar de chorar enquanto a abraçava.

Naquele dia, ficou consciente do terrível mal que causou à pessoa mais bondosa do mundo e jurou que, quando o velho coração de seu pai deixasse de bater, o seu também o faria.

-Elizabeth?

A voz de Martin ao seu lado a fez voltar ao presente. Piscou, porque as lágrimas a impediam de vê-lo com nitidez.

-O que aconteceu? -Continuou perguntando.

Mas não pôde responder, tinha ficado novamente sem voz. Sem levantar-se da cadeira, virou-se muito lentamente para ele e estendeu os braços. Necessitava consolo. Lhe urgia sentir esse conforto que lhe transmitia seu corpo e inspirar essa fragrância tão familiar e essencial para ela. Não demorou muito a fazê-lo. Martin a abraçou com tanta força que Elizabeth sentiu na bochecha esquerda as fortes batidas do coração pulsando sob seu peito.

-Deveria voltar para sua casa. Estará mais tranquila entre os seus -opinou Borshon.

-Tem razão -afirmou Martin depois de colocar o queixo sobre o cabelo de Elizabeth e olhar para Hill. -Isto tem sido demais para ela e tem que assumir pouco a pouco.

Quis recusar, mas aceitou a ideia de voltar para casa quando observou que o rosto de Martin expressava medo e preocupação. Qual era o seu temor? O que o preocupava? Seus olhos deviam expressar felicidade e esperança depois de semelhante descoberta. Mas não era assim.

Enquanto a ajudava a se levantar, Elizabeth perguntou-se o que acontecia à pessoa que a tinha salvo da escuridão. Estava preocupado por não saber quem havia matado aquele homem? Porque para ela era irrelevante.

-Lembre-se de descansar -aconselhou Borshon quando Martin a agarrou pela cintura e a conduziu até a porta. -Quando o tiver feito, tenho certeza que se sentirá melhor -acrescentou seguindo-os.

-A senhora Doherty... os criados... -Começou a dizer ao lembrar que estes permaneciam na casa e que não se iriam até depois das cinco.

-Eu me encarrego de tudo -garantiu Martin.

-Não se preocupe, senhorita Moore. Prometo que não o deixarei sozinho -apontou Borshon ao entender a preocupação da jovem-. Se dirijo uma delegacia com mais de trezentos agentes, certamente me arranjarei com cinco criados e um sobrinho -acrescentou estendendo a mão para ela.

Até que se soltou de Martin para responder à despedida cordial de Hill, não sabia o quanto necessitava seu apoio e sua proximidade. Observou-o em silêncio, como se tivesse encontrado a flor mais estranha do mundo. Só que não era uma planta rara, mas um homem: Martin Giesler, o matemático que, através de sua lógica, deduziu em uma tarde o que ocorreu dois anos atrás.

-Quer que a acompanhe? -Ele perguntou depois de abrir a porta da frente.

-Não. Deve ficar aqui. Se meus pais o virem me acompanhando, vão se preocupar e não quero mentir mais -comentou alterada.

-Mas seria maravilhoso que soubessem a verdade -insistiu Martin. -Entenderão por que agiu desse modo e tenho certeza que...

-Ainda não estou preparada para falar sobre o que aconteceu -disse olhando para Borshon, implorando-lhe com esse olhar que o mantivesse ali dentro, mesmo que tivesse que empregar a força.

Este respondeu ao seu pedido silencioso com um ligeiro aceno.

-Sabe que sempre respeitarei suas decisões, embora desta vez não a compartilho -comentou Martin com firmeza.

-Há tempo para tudo -alegou ela olhando para fora.

-Posso, pelo menos, ficar aqui até que eu tenha entrado em sua casa? Eu preciso ter certeza de que...

Ficou calado quando Elizabeth se virou para ele. A menina apoiou as pontas de suas botas no chão e deu-lhe um ligeiro beijo na espessa barba loira que cobria sua bochecha esquerda.

-Nos veremos amanhã -declarou como despedida.

-Vou esperá-la -ele sussurrou.

A sensação de liberdade que sentiu ao sair a inquietou a ponto de lhe causar medo. Fazia tanto tempo que vivia rodeada de escuridão que não sabia como agir uma vez que não a envolvia mais. Levantou o rosto, olhou o céu e inspirou profundamente, como se durante dois anos não tivesse sido capaz de respirar. Por que lhe parecia tudo tão estranho? Era o mesmo céu, o mesmo lugar que havia percorrido durante anos e, no entanto, tudo parecia diferente. Sorriu ao sentir sobre seu rosto uma leve brisa. Até esse toque áspero e frio lhe pareceu maravilhoso. Tinha ficado louca? Se era assim, queria sofrer essa loucura até o final de seus dias.

Fixou o olhar em sua casa e também a contemplou de maneira diferente. Já não tinha que entrar e procurar mil desculpas para afastar-se de sua família. Agora podia estar com eles e desfrutar de suas alegrias como se fossem as próprias. Como reagiriam a sua mudança de atitude? Ficariam surpresos e se perguntariam o que tinha acontecido, mas evitariam falar dessa transformação para não lhe fazer mal.

Enquanto seguia pelo caminho olhou suas mãos. Não lhe causaram náuseas, nem pavor, nem sequer uma pequena aversão. Talvez porque já não as olhava como se estivessem manchadas de sangue. Depois de saber a verdade, observava-as tal como sempre tinham sido: limpas e brancas. Essa estranha sensação de bem-estar a fez querer gritar, mas levou as mãos à boca para não o fazer. Estava alegre, contente, e queria que seus pais percebessem essa felicidade. Se aparecesse gritando como uma louca, criaria um pânico maior ao que costumava provocar Josephine com suas catástrofes.

Subiu os degraus que separavam o jardim da entrada de sua casa como se flutuasse. Não sabia se a leveza se devia à felicidade ou ao fato de haver tirado de seus ombros o peso que tinham suportado durante tanto tempo. Fosse o que fosse, seus pés apenas tocavam o chão. Parou frente à porta e se virou para a casa de Martin. Continuava ali, tal como lhe prometeu. Levantou sua mão direita para indicar-lhe que já tinha chegado, que não devia temer por ela. Borshon lhe disse algo, ele negou com a cabeça e, em seguida, foi o próprio Hill quem fechou a porta com um golpe. No momento em que deixou de vê-lo, uma estranha sensação de vazio, tristeza e confusão se apoderou dela. O que lhe acontecia? Onde estava essa felicidade que havia sentido?

-Elizabeth? -Sophia perguntou ao abrir a porta e encontrá-la olhando para a residência de Martin. -O que está fazendo aqui? Por que veio tão cedo? Não me disse que os criados deviam trabalhar até as cinco? Como foi o almoço com o senhor Hill? De que falaram? -Continuou sem tomar uma lufada de ar.

-Me espiava de novo? -Respondeu, piscando os olhos como se estivesse chateada.

-Eu? -Soltou ofendida levando as mãos ao peito. -Como pode dizer uma coisa tão horrenda de sua...? -Sophia não conseguiu terminar a frase porque sua filha se jogou nela e a abraçou. -Está bem, querida? -Perguntou acariciando o cabelo dela.

-Só quero pedir-lhe perdão por todas as coisas más que fiz e dizer que, apesar de tudo o que ouviu da minha boca, te amo muitíssimo -disse entre soluços.

-Nunca duvidei, Elizabeth -comentou abraçando-a. -Vale o mesmo para você, não deve duvidar do meu. Nós mães nos comprometemos, enquanto vivemos, a estar perto dos nossos filhos, mesmo que eles não desejem. O passar dos anos nos faz sábias e sabemos que, mais cedo ou mais tarde, precisarão da nossa ajuda -assegurou antes que a emoção a impedisse de falar.

-É a mais sábia de todas as mães -disse Eli sem soltá-la.

-Mas não a mais velha -concluiu Sophia.

Durante um bom tempo, mãe e filha permaneceram fora de casa, abraçadas e falando sobre a função de uma mãe desde que um filho sai de suas entranhas. Nenhuma das duas reparou que as gêmeas as observavam da janela do hall.

-Tanto amor me parece espinhoso -comentou Josephine dando-lhes as costas. Encostou-se à janela, cruzou os braços e soprou com força uma mecha que não parava de cair no rosto.

-Se estivesse em seu lugar, iria me acostumando a esses espinhos, porque isto só acaba de começar -disse Madeleine limpando as lágrimas nos punhos de seu vestido.

-Começar? Me acostumar? Como assim? -Insistiu em piscar os olhos. -Teve outra visão?

-Tive muitas, mas nem sempre saiu nelas, caso se pregunte -declarou antes de se retirar da janela e caminhar até o salão onde se encontrava seu pai.

-Madeleine... -Josh rosnou andando atrás dela.

-Josephine... -lhe respondeu antes de soltar uma gargalhada.


Quando entrou em casa, na companhia da mãe, a dúvida atacou-a. Pensou, assim que entrou no corredor, que, tal como Martin lhe disse, todos deviam saber o motivo da sua depressão. No entanto, quando encontrou as gêmeas sentadas ao lado de seu pai, essa ideia desapareceu de sua cabeça. Era certo que a descoberta lhes faria conhecer as razões pelas quais ela viveu daquela maneira tão horrível, mas... o que aconteceria depois? Seu pai culparia Logan por não ter protegido uma de suas filhas como prometeu. Isso colocaria Anne contra eles, pois ficaria do lado de seu marido e os lembraria de que sua terceira filha não manteve uma atitude correta. Josephine sofreria ao ouvi-la dizer que, enquanto conversava com lorde Cooper, sua irmã era agredida. Jamais seria perdoada. Ela, que se autoproclamou a guardiã da família, pensaria que tinha fracassado em sua tarefa e a pena a submergiria em um estado de tristeza que seria difícil abandonar. Sem contar com todas as loucuras que poderia realizar a partir desse momento. Sua mãe lutaria para levar adiante a família depois do duro golpe. Tampouco o conseguiria. Como poderiam superar que uma de suas filhas foi vítima de tal agressão? O melhor para todos era seguir mantendo-o em segredo e viver essa felicidade que Martin lhes havia dado.

Sem deixar de pensar nele, e como teria passado o resto da tarde, permaneceu na sala. Conversou e se interessou por coisas que antes não eram importantes para ela. Randall estudava-a sempre que sorria, como se tivesse uma doença horrível. Logicamente, a única da qual sofria era a de sentir-se finalmente livre de um assassinato.

-Não me contou como foi o almoço -disse Sophia enquanto jantavam. -Pareceu um bom lar ao senhor Hill?

-Pareceu-lhe uma casa grande para um solteiro, -explicou Elizabeth logo após limpar a boca. -Madeleine, esta sobremesa está deliciosa, o que é? -Acrescentou para mudar o tema da conversa.

-Chama-se flan -respondeu a menina com orgulho. -Shira disse que é uma sobremesa muito comum nas refeições solenes da aristocracia.

-Prefiro as maçãs interveio -Josephine olhando com nojo o que tinha na colher. -São menos doces.

-Minha filha -concordou Randall. -Na vida encontrará coisas doces e salgadas, duras e suaves, fortes e fracas. A única coisa que deve fazer é apreciá-la e estudá-la. Só assim encontrará a experiência suficiente para escolher com razão a próxima vez.

Josephine estreitou os olhos e olhou-o por alguns segundos. O senhor House, quando falou com ela no estábulo, disse algo semelhante. Por que coincidiam? Foram os anos ou foi um raciocínio puramente masculino? Fosse o que fosse, a fez pensar em Lorde Cooper. Ele era aquele salgado e doce, aquela aspereza e delicadeza, aquela força e fraqueza. Mas que escolha fazer a cada momento?

-Eu acho que escolheu bem -disse Sophia focando-se novamente no assunto que lhe interessava. -É um homem jovem e não tardará em encontrar uma esposa.

-Esposa? -Randall deixou escapar divertido. Esse menino nunca vai casar!

-Por que está dizendo tanta bobagem? -Sophia falou olhando para ele como se quisesse matá-lo.

-Minha querida, não se lembra da conversa que teve com o irmão no dia em que nos visitaram?

-Não -respondeu rapidamente.

-Philip lhe perguntou se tinha a intenção de ficar em Londres durante muito tempo e ele respondeu que não tinha nada decidido. O fato de um homem dizer uma frase tão evasiva significa que não o fará -manifestou Randall confuso ao apreciar que o rosto e os olhos da sua mulher coravam. Por que se zangava com ele?

-Se bem me lembro, -Sophia levantou-se. Atirou o guardanapo na mesa e afastou a cadeira com as panturrilhas, você também não desviava os olhos dos seus livros e pensou que jamais se casaria até me conhecer. A partir desse momento, não só procurou uma forma de nos encontrarmos clandestinamente, mas, em menos de uma semana, pediu-me para fugir contigo. Se lembra o que aconteceu depois? Porque eu sim -assegurou tão irritada que seus olhos se transformaram em duas bolas de fogo.

-Querida, o que eu faria se ficasse sem coração naquele momento? Lembro-me de como o roubou, como se tornou dona dele e, depois de três décadas juntos, não há mulher que queira mais no mundo que a minha amada, inteligente e maravilhosa Sophia Arany -comentou Randall para apaziguar a súbita fúria de sua esposa.

-Isso mesmo! Se apaixonou por mim! -Sophia gritou fixando os olhos em Elizabeth. -Quando um homem se apaixona, esquece tudo o que planejou no passado e se concentra em buscar a felicidade da mulher a quem ama. Sabem por que? -Perguntou olhando as três. Porque quer estar ao seu lado e desfrutar de um futuro próspero.

-Sua mãe tem toda a razão -apontou Randall observando suas filhas. —É, como sempre, uma mulher muito sábia. A mais sábia do mundo! -Reiterou em voz alta para que sua esposa o ouvisse.

Depois disso, caminhou até ela, deu-lhe um beijo na bochecha e ofereceu-lhe a mão para acompanhá-la até à saída. Uma vez que a aceitou, respirou tranquilo.

As três filhas não desviaram o olhar de seus pais até que estes se foram. Madeleine soltou uma gargalhada quando fecharam a porta. Josephine começou a murmurar algo sobre a loucura e a debilidade que sofria uma pessoa apaixonada e Elizabeth compreendeu, e admitiu, algo que a deixou tão surpresa quanto confusa.


XXIII


A conversa com sua mãe ficou no esquecimento uma vez que se retiraram a sala de estar.

Elizabeth divertiu-se e riu tanto que até sentiu um leve desconforto na mandíbula. Durante a noite, aproveitou todas as oportunidades que teve para abraçar o seu pai e beijar sua mãe. Ouviu com atenção as histórias de Josephine sobre seu cavalo e desfrutou das bonitas melodias que Madeleine tocou ao piano. Houve momentos em que se encontrou tão eufórica que desejou saltar, rir e gritar em voz alta como se encontrava feliz. Mas evitou porque não quis preocupar ainda mais a sua família. Eles permaneceram todo o tempo observando-a como se fosse um ser de outro mundo. No entanto, ninguém se atreveu a perguntar-lhe o que lhe acontecia para se comportar dessa forma. Talvez pensassem que se o fizessem, quebrariam o feitiço a que estava sujeita. Embora o único encantamento que sofria era a saudade de não os ter tido. Sua mãe sempre lhe dizia que não se dava valor ao que tinha até perdê-lo, e era verdade. Apesar de viver sob o mesmo teto, distanciou-se tanto deles que houve dias em que os considerou estranhos e sentiu a amargura de ver-se tão sozinha. Mas isso tinha mudado e era o momento de recuperar o tempo perdido.

Quando se retiraram para os quartos, porque sua mãe encerrou a reunião às dez horas, ela tentou descansar, como o Sr. Hill sugeriu. No entanto, não conseguia fechar os olhos por um único momento. Havia tantas emoções que a oprimiam que roubavam seu sono. Devido à insônia, ela ficou, depois da meia-noite, sentada no parapeito da janela vigiando a casa de Martin. Não se esqueceu dele nem por um segundo. Até sentia sua falta de uma forma improvável. Talvez esse sentimento de nostalgia se devesse a seu desejo de fazê-lo partícipe do milagre que havia conseguido. Ou talvez não... Fosse qual fosse o motivo, cada vez que ria ou abraçava seu pai, agradecia-lhe em silêncio por tê-la ajudado, por lhe ter oferecido outra oportunidade. Uma que, sem dúvida, aproveitaria. Não lhe disse que devia aproveitar da liberdade? Naquele momento se encontrava tão confusa que não sabia em que ia usá-la. Agora tinha a resposta.

Afastou o cabelo do rosto, abraçou os joelhos e continuou a olhar para a enorme fachada da residência. Uma vez que ficou a sós, seu único pensamento foi ele. Perguntava-se constantemente se teria tratado dos criados, mas não tinha dúvidas de que o senhor Hill cumpriu sua promessa. Ainda assim, estava preocupada com Martin. Durante a tarde, aproximou-se várias vezes da janela, que dava para o jardim, para assegurar-se de que tudo permanecia tranquilo. Inclusive olhou o relógio esperando que chegasse as cinco. Mas suas irmãs a distraíram tanto que, o tempo passou muito depressa. A última vez que verificou a hora eram seis. Logicamente, não havia ninguém lá fora. Teriam terminado as tarefas que lhes solicitou? A senhora Doherty deixara o jantar preparado? Claro que sim. A mulher era muito eficiente e bondosa. No entanto, não tinha muita certeza de que Martin o tivesse comido. Talvez tenha aproveitado a tranquilidade para se trancar em seu escritório e se concentrar no trabalho. Pensar nisso a levou a outra reflexão importante: o projeto de Martin. Quando disse que deveria entregá-lo? Quanto tempo até ele sair de Londres? A mera ideia de não o encontrar cada vez que aparecesse em sua casa, causou-lhe uma dor aguda no peito que não diminuiu nem o pressionando contra os joelhos.

Desconcertada e inquieta, afastou-se da janela e caminhou de um lado a outro do quarto. Quando chegasse esse dia, o que aconteceria? Pediria que o esperasse como Archie fez? Voltariam a lhe destroçar o coração? Era verdade que lhe confessou que gostava dela e insinuou que aspirava ter uma relação, mas ela não a aceitou porque continuava a pensar que era culpada. No entanto, agora que sabia a verdade, perguntaria de novo ou continuariam como estavam? Bem, também era verdade que nessa mesma tarde se comportou, diante do seu tio, como se estivessem juntos mais de uma década. Até percebeu que Borshon o olhava estranho ao oferecer-lhe tantas mostras de afeto: pegou-a pelas mãos, abraçou-a e beijou-lhe os lábios um número incontável de vezes. Mas talvez esses beijos fossem produto da emoção e do desejo de consolá-la.

«Não sou um homem que vai beijando mulheres para consolá-las», lembrou as palavras que ele mesmo lhe disse nessa manhã. Certo, Martin não era o tipo de homem que usava a fraqueza de uma mulher para se aproveitar dela. Essa atitude atenciosa assegurou-lhe que todas as suas demonstrações de carinho foram sinceras. Assim como ela estava consciente de que, cada vez que o encontrava ao seu lado, a inquietude e a confusão desapareciam de sua cabeça.

«Soube que o seu pai era o escolhido pela Morgana porque, no momento em que o vi, toda a maldade que me rodeava foi imediatamente eliminada. Já não havia trevas, mas luz e esperança».

Elizabeth arregalou os olhos e seu coração começou a bater acelerado ao se lembrar da conversa que mantiveram ao terminar o jantar. Seria verdade que Martin estava apaixonado ou teria sido inventado pela mãe? Porque não tinham tido tempo suficiente para que esse agrado, que ele mesmo mencionou, se transformasse em algo tão profundo como amor. E como ela definia seus próprios sentimentos? Era verdade que não lhe escondia sua verdadeira personalidade, que adorava tê-lo por perto, que seu corpo não rejeitava suas carícias, nem seus abraços, nem seus ternos beijos. No entanto, isso não dizia nada, exceto que existia neles a confiança e o respeito e que os considerava mais úteis e sinceros do que as expressões poéticas estudadas. O que Archie teria feito se tivesse confessado ter assassinado um homem? A resposta era mais do que óbvia. Mas Martin não ficou satisfeito com essa declaração de culpabilidade. Procurou uma maneira de inocentá-la depois de ouvir a história Confiança... uma qualidade que, junto às de atenção, inteligência, firmeza, racionalidade e sensatez, o descreviam perfeitamente. Alguma vez sonhou em gostar de um homem como ele? Não, nunca. Foi tão frívola que em seus pensamentos só viu a figura de um aristocrata, sem se importar com a sanidade deste. Ansiava uma posição e um respeito que, indubitavelmente, não conseguiu. Pelo contrário, sempre que foi rejeitada, ou ouvia uma proposta para se tornar uma amante, a angústia e o desespero aumentavam. Esse comportamento tão errôneo a afastou da realidade e não descobriu a essência de um verdadeiro casamento até que era muito tarde. Por que nunca valorizou a felicidade e o amor que havia entre seus pais? Talvez porque acreditou consegui-lo quando esteve com Archie. Mas este partiu-lhe o coração em pedacinhos tão pequenos que ainda continuava incompleto.

Voltou para a cama, sentou-se e cobriu o rosto com as mãos. Um sentimento de amargura se apoderou dela ao pensar que Martin merecia uma mulher que o amasse de verdade. Não era justo que se contentasse com o pouco que podia oferecer-lhe. Ela ainda não havia se recuperado e não sabia quanto tempo demoraria em fazê-lo. No entanto, a ideia de perdê-lo a angustiava. Será que poderia definir essa necessidade como amor? Será que esse desejo não seria suficiente para iniciar um relacionamento? Pensando nisso, seu corpo começou a tremer. Um casamento não poderia ser baseado apenas no respeito, na amizade e na compreensão. Havia muito mais do que isso. Mas será que estaria pronta para dar esse passo? O que aconteceria quando as mãos de Martin deslizassem sobre seu corpo nu? E ela? Como reagiria quando o visse excitado? Elizabeth esfregou o rosto novamente por causa da ansiedade causada pelas perguntas. Algumas das quais, por enquanto, também ficaram sem resposta.

Angustiada, levantou-se e caminhou de novo pelo quarto. Era um fato que Archie lhe causou milhares de sobressaltos e que Martin só lhe oferecia paz. Nos braços de Archie nunca se sentiu segura ou protegida como nos de Martin. com Archie devia fingir ser uma pessoa que em realidade não era. Martin conhecia a origem de sua mãe e a respeitava ainda mais porque a sua também foi uma cigana, embora espanhola. Nunca sentiu necessidade de cuidar de Archie, no entanto estava o tempo todo pensando em se Martin teria comido, trabalhado ou descansado. Com Archie demorava horas para se arrumar, Martin não se importava com sua aparência. Segundo ele, era muito bonita e inteligente. Alguma vez Archie a definiu desse modo? Não, nunca. Para ele, a inteligência de uma mulher era algo injustificado. Archie pedia-lhe encontros a sós. Horrorizava-se com a ideia de serem descobertos. Martin oferecia-lhe não só um reconhecimento diante de sua família, mas também mundial. Archie a abandonou. Martin estava sempre a seu lado. Durante os beijos de Archie, suas mãos percorriam seu corpo com urgência. Os beijos de Martin eram tranquilos, relaxantes e suaves, como se temesse lhe fazer mal.

A hecatombe de pensamentos desapareceu de sua cabeça quando parou em frente à janela e observou que havia uma tênue luz no salão matinal. Por que Martin não estava trabalhando? E o que fazia naquela parte da casa? De repente, seu coração voltou a bater acelerado e começou a sofrer uma terrível dor no ventre. Este foi aumentando com o passar dos segundos. Por que seu sangue se aglomerava e se retorcia em seu interior? O que desejava lhe dizer? Fechou os olhos e respirou profundamente, acreditando que assim a dor diminuiria. Não foi assim. Sua mãe criadora a instava a cumprir seu destino através de uma enorme tortura. Mas deveria aceitá-lo? Deixaria de lhe fazer mal quando Martin estivesse a seu lado? Afastou-se da janela e se colocou em frente à cômoda. Ali guardava a chave que ele lhe deu para que entrasse em sua casa quando desejasse.

-Como me pede isso? Não confio em você! -Clamou olhando o teto de seu quarto. Fez com que me apaixonasse por um homem que me destroçou não só o coração, mas também a vida. Me deixou cair em um abismo e... continua lutando para que cumpra o destino que decidiu para mim? -Continuou dizendo em voz alta.

Nesse momento, a gaveta da cômoda se abriu e saiu e a chave saiu de dentro. Esta deslizou pelo chão até que parou ao tocar as pontas dos dedos de seu pé direito. Elizabeth se inclinou e a agarrou.

-Martin é o homem que verei na fogueira? É o escolhido? -A chave, guardada em sua palma, começou a esquentar. Elizabeth abriu a mão e a observou. Parecia um ferro recém tirado do forno de um ferreiro. No entanto, apesar da alta temperatura desta, sua pele não sofreu nenhum dano. -Espero que tenha razão, porque se estiver errada, vou encontrar uma maneira de destruir o seu legado -garantiu enquanto fechava a mão.

Foi para a cama, sentou-se e calçou os chinelos. Em seguida, percorreu o quarto até chegar à cadeira, pegou o roupão e cobriu o seu corpo com este. Andou até a porta, a abriu e, uma vez que confirmou que sua mãe não a veria perambulando pela casa, saiu para apresentar-se na de Martin.


Martin continuava olhando dentro da lareira enquanto girava uma e outra vez o papel que tinha em suas mãos. Desde que se sentou, quis lançá-lo. Mas o tempo passou e o enorme fogo se converteu em uma manta de cinzas e brasas.

Por muito que o negasse, devia enfrentar a alternativa que Borshon ofereceu. Pois tinha razão, como sempre. Não podia ser uma pessoa egoísta e tirar a liberdade que Elizabeth acabava de adquirir. Não seria próprio dele transformar-se em um ser tão ganancioso, apesar de entender que sua atitude altruísta o afastaria do futuro que havia sonhado. A mera ideia de perdê-la, o destroçou. Esse era o verdadeiro motivo pelo qual lhe custava tanto aceitar a sugestão de seu tio. Mas devia fazê-lo. Ela sofreu uma condenação durante dois anos porque se culpou de uma morte que não causou e agora, vendo-se livre dessa infelicidade, esperava-lhe uma vida diferente. Que ele se incluísse nesta, era decisão de Elizabeth, não sua.

-Não seria justo nem para ti nem para ela -lhe disse Borshon frente à porta, enquanto saía. -Deve lhe dar tempo para que reconsidere, para que encontre de novo o caminho que perdeu e decida por si mesma o que lhe interessa. Martin, entenda que seus sentimentos estão alterados e confusos. Pode ser que goste, não coloco em dúvida depois de ser testemunha de suas mostras de carinho e sua aceitação. No entanto, deve estar ciente de que agora mesmo Elizabeth o declara seu salvador. Isso não tem nada a ver com o amor, mas com o entusiasmo, o respeito e até mesmo a veneração. O que acontecerá dentro de alguns anos? Se sentirá prisioneira de um matrimônio que escolheu durante um estado de euforia? Pense bem, filho. Se quer consegui-la, se quer que ela sinta por você sentimentos reais, precisa viver tudo aquilo que não pôde ter até hoje.

Respirou profundamente, ao mesmo tempo que levantou o documento para o reler pela décima quinta vez. Aquele contrato a ligava a ele durante meses, talvez até anos. Podia tê-la por perto durante a reforma e aproveitar qualquer situação para continuar a cortejá-la. Mas não podia agir dessa forma tão detestável. Tinha que lhe dar a liberdade que merecia e rezar para que seus escassos sentimentos por ele não desaparecessem quando lidasse com outras pessoas. Ao pensar nisso, se irritou. A possibilidade de que voltasse desapareceria quando Elizabeth se relacionasse com outros homens. Alguns que, é claro, não teriam nada em comum com ele. Como poderia amar um homem que não sabia nem se vestir corretamente?

Quando decidiu lançar o papel, ouviu um barulho na entrada do salão. Ao virar-se para a porta, ficou sem fôlego ao encontrá-la em sua casa vestida, novamente, de camisola e de roupão.

-O que aconteceu? -Perguntou inquieta ao vê-lo sentado em frente à lareira.

Desde que chegou, observou-o em silêncio. Tinha tirado o casaco, o colete e a gravata e deitado no chão. Mas não pensou que algo o preocupava até que descobriu como girava o papel que tinha em suas mãos e como mantinha o olhar perdido no fogo.

-É uma carta do senhor Wright? -Disse dando uns passos inseguros passos para dentro.

-Não -respondeu levantando-se. -O que faz aqui? Por que não está descansando?

-Não conseguia dormir -confessou corando.

-Pela emoção? -Insistiu em saber enquanto deixava o papel sobre a mesa.

Por um segundo, hesitou sobre como agir. Por um lado, desejava correr para ela, abraçá-la e confessar-lhe o quão contente se encontrava ao tê-la de novo em sua casa. A outra, aquela que parecia não desaparecer jamais, mandava-lhe que colocasse distância entre eles e que realizasse tudo o que havia planejado.

-Sim, também -respondeu, parando no centro da sala. Observou-o dirigir-se para o armário de bebidas. Serviu-se de um copo de brandy e o tomou de um gole. Por que não a recebia com um abraço? Por que colocava distância entre eles? -O que aconteceu? Você e Borshon descobriram mais alguma coisa? -Se atreveu a perguntar finalmente.

-Meu tio é um homem muito observador -murmurou evitando olhá-la nos olhos -e descobre coisas que nem a pessoa mais inteligente poderia conseguir.

-Martin, está me assustando -comentou abraçando-se a si mesma. -Por isso age desta forma? Mudaram de ideia? Eu o matei?

-Não o matou -reafirmou, -e sabemos quem o fez. Mas ainda não encontramos uma maneira de apanhá-lo.

-Então, por que coloca distância entre nós? Não gosta que o visite? Quer ficar sozinho? Devia saber que precisava de tempo para trabalhar. Não foi uma boa ideia vir. Mas eu... -apertou os lábios e fez todo o possível para que seus olhos não se enchessem de lágrimas. Não ia começar sua nova vida dessa maneira. Levantou o queixo, olhou para ele e disse: -É melhor eu ir.

Em seguida, virou-se e caminhou de costas erguida para a porta. Mas não a alcançou porque Martin correu para ela, agarrou-a pelo braço e virou-a para ele. Durante alguns segundos, Elizabeth tentou decifrar a expressão que mostrava seu rosto. Sentiu-se morrer ao encontrar amargura, dor e ansiedade.

-Não quero carregar sobre meus ombros outra culpa, Martin. Quer tranquilidade, pois te darei -asseverou levantando o queixo.

«Mal, Elizabeth», pensou ao ver como Martin inspirava como se quisesse tomar todo o ar da sala para falar sem parar.

-Juro-te pela minha vida que não desejo nada mais no mundo que não seja a tua presença nesta casa. Não só esta noite, Elizabeth, mas também amanhã, no dia seguinte e todos os anos que me restam neste mundo -declarou olhando-a nos olhos.

-Martin... -Sussurrou, porque não lhe saíram mais palavras de sua boca ao ouvir uma frase tão bonita.

Esperava ouvir de tudo, menos uma declaração de amor. Era verdade que não tinha sido um te amo, mas Martin não expressava suas emoções com algo tão simples. Ele preferia frases que nem os melhores poetas escreviam em seus livros.

-Mas estou ciente de que não deve estar aqui -expressou soltando-a muito lentamente. -Este não é o seu lugar -adicionou recuando vários passos.

-Não te entendo. Me diz que deseja me ter ao seu lado, mas afirma que este não é o meu lugar. Quer me deixar louca ou eu fiz algo que o irritou e não quer me dizer? Se for assim, peço perdão, -acrescentou com voz estrangulada.

-Oh, Elizabeth! -Exclamou retornando a seu lado. Segurou seu rosto com as duas mãos e a olhou com tristeza. -Não fez nada que me incomode, ao contrário. Encheu esta casa e minha vida de esperança. Mas... -disse apoiando sua testa na dela.

-Mas? -insistiu em saber.

-Mas estou ciente de que não seria justo que se submeta a outro cativeiro, -esclareceu, separando-se aos poucos, como se seu corpo tivesse perdido a força que o mantinha de pé.

-Cativeiro? Martin, quanto bebeu? -Ela deixou escapar com o mesmo tom de voz que sua mãe costumava repreender Josephine.

-Acha que estou bêbado e por isso minhas palavras estão tão confusas? -Ele retrucou com uma mistura de admiração e diversão.

-Se não for esse o motivo, diga-me imediatamente o que acontece com você! -Rugiu.

Ele a encarou por alguns segundos. Os mesmos que levou para supor que, paradoxalmente, tiveram sua primeira discussão. Como se ela tivesse que admitir que a coragem dos Moore não havia sido herdada apenas por Mary, mas também pelo resto das irmãs.

-Estou esperando uma resposta, -Elizabeth persistiu depois de colocar as mãos em cada lado da cintura.

-Meu tio me fez pensar em algo que não percebi, -disse ele enquanto caminhava até a mesa onde havia deixado o contrato. Quando sua mão esquerda pousou na folha, ele começou a girá-la na superfície. -Antes de me conhecer, você viveu alguns anos difíceis.

-Isso já sei, -ela murmurou.

-Agora que sabe a verdade sobre o que aconteceu naquela noite, precisa recuperar o tempo perdido para encontrar a felicidade, -acrescentou.

-E? -Perguntou enrugando tanto a testa que podia sentir uma forte pressão sobre seus olhos.

-E acho que não é apropriado para nenhum de nós começarmos um relacionamento -declarou mostrando-lhe o papel. Não quero que se sinta ligada a mim por isso. -Então ele caminhou até a lareira e o jogou. Enquanto queimava, apoiou as mãos sobre a cornija e viu as brasas queimarem o contrato até transformá-lo em cinzas. -Deve recuperar sua antiga vida, Elizabeth. Precisa cumprir seus sonhos, esses que eliminou aquele dia.

-Minha o quê? -Soltou arregalando os olhos.

-Sua antiga vida -repetiu virando a cabeça o suficiente para vê-la.

-Quer dizer, me afasta de você porque não sou mais culpada de assassinato. -Quando ele tentou refutar suas palavras, ela ergueu a mão para silenciá-lo. -Enquanto eu precisava de conforto, me ofereceu seus braços, suas carícias e seus beijos. Porém, agora que sou uma mulher forte e me livrei das trevas, me diz que não preciso de você, que devo voltar ao passado. O mesmo que me causou tanta dor e destruição. Talvez não seja tão diferente de como eu pensava, -ela o desafiou. -Talvez se pareça mais com Archie do que eu...

-Não! -Gritou Martin dando uns grandes passos para chegar até ela. -Eu não sou ele! -Acrescentou. -Não entende que só quero o melhor para você? É nisso que consiste o amor, Elizabeth, em oferecer alegrias, esperança e bem-estar à pessoa por quem se está apaixonado. Se ficar trancada aqui -disse apontando a sala com as mãos, -e se afastar de tudo o que pode encontrar lá fora, o que acontecerá em alguns anos? Não pensou que odiaria até o amor que te ofereço?

Elizabeth levou as mãos ao peito. Nem sentir o calor e a pressão dessas palavras acalmou o bater acelerado de seu coração. Sua mãe estava certa! Estava apaixonado! Nesse momento, lembrou que seu coração não estava completo e que poderia levar anos para estar. Mas deveria sair e voltar quando se recuperasse? Não queria fazer isso! Martin era a sua casa! Quando se afastava dele sentia tristeza, angústia e desespero. Isso só se acalmavam ao estar a seu lado. Voltou a pensar no matrimônio de seus pais. Por que os comparava em um momento como esse? Porque seu pai era todo amor e ternura. Não se cansava de dizer a sua esposa o quanto a amava. No entanto, sua mãe não era tão expressiva. Apesar de mostrar uma atitude forte e dominante, sempre lhes disse que ela não sofreria nem uma hora a perda de seu marido. Que morreria tão rápido, que teriam que enterrar os dois no mesmo dia e na mesma hora. Isso significava amor para a grande Sophia e isso era o que ela percebia naquele momento: a angústia de não o ter. Talvez estivesse mais apaixonada do que admitia. Talvez continuava negando seus sentimentos por medo de que lhe fizessem mal. Mas Martin não era Archie...

-Elizabeth? -Perguntou ao vê-la tremer, ao observar que seu rosto havia ficado pálido, ao pensar que suas palavras lhe tinham feito tanto mal como uma adaga atravessando esse peito que ela protegia com suas mãos.

-Está... apaixonado... -balbuciou.

-Desde o primeiro dia -confessou sem desviar o olhar. -Mas não quero que meus sentimentos a obriguem a nada.

-Obrigar? -Perguntou sem ouvir sua própria voz.

-Sim. Obrigar, condicionar, forçar, impor...

-Sei o que essa palavra significa, Martin. Não preciso que me enumere mil sinônimos mais -o repreendeu. -A única coisa que quero saber é o que quer dizer exatamente.

-Elizabeth -disse esboçando um pequeno sorriso diante dessa réplica tão sublime, a única coisa que pretendo é te deixar desfrutar do mundo. Gostaria que continuasse com a venda de suas flores, que se relacione com uma infinidade de pessoas, que possa escolher qual caminho lhe é o mais apropriado.

-E?

-E se dentro desse futuro me encontrar, serei o homem mais feliz do mundo. Mas se decidir que sou pouco para você, terei que resignar-me.

-Pouco? Acha que é pouco para mim? -Perguntou com sarcasmo. -Disse que me entreguei a um homem e não se importou. Confessei que era uma assassina e procurou mil maneiras de provar que apenas fui uma vítima. Deu-me a chave da sua casa para entrar e sair quantas vezes quisesse. Declara que está apaixonado por mim e... acha que é pouco o que me oferece?

-Esqueceu de acrescentar que trabalho para uns americanos e que talvez tenha que ir...

-Não esqueci, Martin Giesler! E isso me impediu de vir esta noite? Não! Sabe por quê? Porque não me interessa para quem trabalha ou onde trabalha. Quero o homem que não sabe abotoar os botões corretamente, que limpa os óculos com um lenço sujo, que se veste com trajes fora de moda ou que se esquece de comer porque se concentra em seu trabalho. Adoro o homem que revira os olhos cada vez que come um bolinho que a minha irmã fez e que teve a imensa coragem de comprar uma casa ao lado da residência de minha família, mesmo sabendo que entrarão quando lhes apetecer sem pedir permissão. Adoro o homem que, apesar de conhecer meus erros, continua me considerando muito mulher para estar a seu lado. Sabe o que me trouxe até aqui? Não, claro que não sabe. É muito inteligente, mas muito bobo para outras coisas -resmungou.

-Suponho... -tentou dizer. Embora apertou os lábios ao ver que ela caminhava decidida para ele.

-Não supõe nada porque não está dentro da minha cabeça -replicou apontando para ele. —Quer que eu vá? Quer que procure um futuro no qual não esteja? -Perguntou-lhe uma vez que se coloco à sua frente.

-Quero que seja feliz -declarou com firmeza.

-Bem. Nesse caso, ambos concordamos em algo -disse antes de saltar em seus braços e beijá-lo.


XXIV


Depois da surpresa que teve quando Elizabeth o beijou, reagiu tal como ela esperava: a agarrou pela cintura, a atraiu para ele e buscou sua boca com avidez.

Elizabeth, apesar de sentir um leve formigamento em sua pele devido à barba, deleitou-se com o ardor e a paixão que Martin expressava. Separou lentamente os lábios, permitindo-lhe conquistar o interior de sua boca. Quando sua língua encontrou a dela, seus sentidos se aguçaram tanto que podia ouvir as folhas de Guardião, sua roseira, crescendo. Seu coração acelerou como se o tivesse obrigado a percorrer todas as ruas de Londres e seu sangue alcançou uma temperatura tão alta que toda ela desprendia fogo. Juntos, através daquele beijo faminto, saltaram para um abismo tórrido de sensualidade e desejo. Encontraram-se num estado de frenesi e necessidade que nenhum poderia acalmar nem vivendo trinta vidas. Rendida a esse prazer, rodeou com suas mãos o seu pescoço e deslizou os dedos muito lentamente sobre este.

Apesar de manter os olhos fechados, ela pôde ver um mundo cheio de plantas com cheiros e cores tão maravilhosos que parecia um sonho. Não lhe disseram suas irmãs que quando beijavam o homem de sua vida tudo parecia diferente? Pois sentia isso mesmo naquele momento. Seu mundo tinha mudado e a única coisa que importava era Martin.

Notou com surpresa como o seu corpo exigia aquilo que pensava não ter depois do ocorrido naquela noite. Seus mamilos endureceram, os pelos arrepiaram e sentiu contrações em seu ventre. Estas ficaram tão intensas que lhe causaram uma dor insuportável. Muito devagar, como se ele tivesse reparado nesse desejo sexual que demandava, retirou as mãos de sua cintura e acariciou suas costas, seu pescoço, seus braços... se pretendia acalmá-la, provocou o efeito contrário, porque se excitou ao notar as suaves e cálidas mãos percorrerem seu corpo sobre o tecido, ao ponto de soltar um longo gemido. Então, Martin virou a cabeça, com uma respiração rápida, e o beijo que o precedeu tornou-se mais profundo e úmido.

Elizabeth se adaptou mais ao seu corpo e sentiu o desejo de Martin pressionando seu quadril, logo acima daquela área que procurava seu contato e que estava ansiosa para satisfazer. Seu sangue, o qual rejeitou inúmeras vezes, incitou-a a seguir, para resolver a necessidade despertada unindo-se a ele para sempre. Ele queria que a mesma coisa acontecesse quando seus dedos deslizaram lentamente para os ombros e alcançaram o primeiro botão de sua camisa. Porém, aquela performance desinibida fez Martin relaxar a paixão e acalmar o beijo. Confusa, ela o agarrou pelas lapelas e o segurou. Não queria que o momento acabasse nunca e esperava que sua língua procurasse desesperadamente a dela. Não haviam se separado e já sentia falta de seu sabor de uísque, sua fragrância masculina misturada com a fumaça do cachimbo, seu toque, sua presença...

Que Morgana ficasse com sua alma quando morresse. Que a escravizasse, mortificasse e torturasse por desobedecer-lhe. Cumpriria todos e cada um dos castigos que lhe impusesse, porque, por muitos sonhos que ela lhe oferecesse, jamais alcançaria o fogo para ver o escolhido. O único homem que queria em sua vida era Martin e jamais se afastaria dele.

-Elizabeth... -ofegou ao separar seus lábios-. Querida... Me... Deus! Isto é uma tortura para mim. Quero te fazer minha agora, mas a minha cabeça não para de gritar que vamos ter os seus pais de vizinhos para o resto das nossas vidas e... meu amor... Juro que te desejo -insistiu como se ela pensasse que a estava rejeitando. -Mas quero dar-lhe o que merece: um infinito respeito de minha parte. Entende isso, certo?

Ela olhou para ele excitada, surpreendentemente sedenta e respirando entrecortadamente, como se não soubesse respirar o ar. Não o entendia e desejou gritar-lhe que a tomasse ali mesmo sobre a mesa, sobre uma cadeira... Que tipo de vontade tinha? Como era capaz de conquistar sua alma e mantê-la imaculada? Como tinha sido capaz de transformá-la a ponto de não se importar com sua vida? «Nem uma só hora». Isso foi o que disse sua mãe ao referir-se à perda de seu marido. Agora a compreendia. Ela também não conseguiria viver sem ele.

-Sentiu isso -perguntou, percebendo a camada branca de névoa que manchava os óculos.

-Se fala sobre minha reação física, é... óbvio. Disse que a quero, -ele comentou um tanto constrangido.

-É algo mais... -suspirou.

-Não te entendo -disse ele, inquieto.

-Martin, percebi que vou começar uma nova vida na qual só você deve estar, -ela comentou tão comovida que seus olhos se encheram de lágrimas.

-Elizabeth, sabe o que acabou de me dizer? -soltou emocionado enquanto colocava suas mãos sobre as bochechas dela.

- Sim -garantiu.

-Meu Deus, querida! -exclamou beijando-lhe os lábios, a ponta do nariz, a testa e até as bochechas vermelhas-. Me fez o homem mais feliz do mundo.

Elizabeth chorou em seus braços devido à emoção e felicidade que a embargava nesse instante. Ele confessava que o converteria no homem mais feliz do mundo sem reparar os erros de seu passado e ela quis dizer-lhe que a faria alcançar um sonho que acreditava impossível: casar-se com um homem que a amava e respeitava. Mas não lhe saíam as palavras, pois confirmar que ao fim tinha alguma sorte, obstruiu sua garganta.

-Quando vamos contar aos seus pais? Quando quer que nos casemos? Não tenho o seu anel! -disse impaciente sem soltá-la. -Teremos tempo para arrumar nossa casa? Gostaria que pudéssemos comemorar aqui acrescentou.

Nossa casa... duas palavras muito simples, mas muito importantes para Elizabeth. Porque nunca soube onde devia estar, porque jamais se encontrou segura em nenhum lugar, porque não se sentiu parte de nada. Entretanto, estava consciente de que seu lar, onde queria viver até que lhe chegasse a morte, era nos braços de Martin.

-Não se altere -ela comentou afastando-se lentamente. -Temos muito tempo. A primeira coisa que deve fazer é finalizar seu trabalho. Enquanto o faz, me ocuparei de preparar a casa.

-Quatro meses? -espetou arregalando os olhos. -Sou incapaz de esperar tanto tempo! Preciso tê-la aqui, ao meu lado as 24 horas do dia e... Elizabeth, não me peça tanto tempo! -exclamou desesperado.

-Martin, não conhece minha mãe. Se lhe pedir para organizar um casamento em uma semana, ela fará isso sem questionar quem deve atacar ou extorquir. É melhor mantê-lo em segredo até que conclua o projeto. Uma vez que retornar de sua viagem para a América, iniciaremos os preparativos para...

-Realmente acha que vou ser capaz de resolver uma única operação enquanto está rondando minha casa sem que possa tocá-la, beijá-la ou...? Ficaria louco! -exclamou revirando os olhos.

Elizabeth soltou uma gargalhada ao entender seu desespero. Ela estaria igual. Seria incapaz de fazer algo se ele estivesse longe, se não pudesse dormir com ele, acordar ao seu lado ou até visitá-lo às escondidas quando se fechasse na biblioteca. Viveria um pesadelo! Sem contar com a tortura que sofreria em sua casa quando sua mãe lhe perguntasse até a saciedade que diabos lhe acontecia para que estivesse tão perturbada.

-Não quero atrapalhar o teu trabalho -disse como desculpa, -e se para isso tiver que desaparecer durante um tempo, poderia ficar em casa de...

-Afastar-se de mim? -Espetou Martin agarrando-a pelas mãos. -Me mataria! Morreria de pena, de fome, de dor, de...

Elizabeth não permitiu que continuasse com aquela declaração tão dilacerante. Se lançou de novo em sua boca e o beijou com a mesma paixão que anteriormente.

-Posso considerar este beijo como uma afirmação a minhas súplicas? -perguntou acariciando lentamente seu cabelo. -Porque se não for, minha querida Elizabeth, tenho a intenção de te raptar e te levar esta mesma noite a Gretna Green.

-Martin, de verdade, não conhece minha mãe. E o proíbo de falar sobre essa opção quando estiver com ela. Lembre-se que viveremos ao seu lado o resto de nossas vidas, -ela comentou divertida.

-Certo, -ele respondeu, abraçando-a novamente-. O que propõe? O que quer que eu faça? Aceitarei tudo que me pedir.

E ela sabia que suas palavras eram sinceras, assim como seu amor.

-Falaremos com meus pais amanhã. Vamos contar a eles o que vai acontecer e com certeza vão nos ajudar, -disse, segurando seu rosto com as duas mãos. -Minha mãe mencionou a falta de um quarto, posso pedir a ela que me acompanhe até o estabelecimento do Sr. Sullivan enquanto você continua com o projeto.

-Quanto tempo vai demorar para trazê-lo? -ele perguntou, trazendo-a para mais perto dele.

-Martin! -exclamou divertida. -Nunca pensei que seria tão...

-Apaixonado? Enamorado? Ardente? -beijou o pescoço dela até chegar ao lóbulo da orelha direita. -Sou um Giesler, Elizabeth. E, apesar do fato de minha família vir de um país muito frio, garanto que meu sangue é quente, -sussurrou em uma voz tão sensual que os pelos de Elizabeth se arrepiaram.

-Agora entendo porque minha irmã Mary sempre tem um sorriso nos lábios... -Murmurou ao fechar os olhos e deixando-se levar pelas maravilhosas sensações que seus beijos e inúmeras carícias lhe causavam.

 

Meia hora depois, os dois estavam à porta da casa dos Moore. Martin insistiu em acompanhá-la para evitar que corresse perigo. Mas a única ameaça que sofreu tinha um nome: Martin. Os dois minutos que levava apenas para percorrer o caminho que unia ambas as casas, converteram-se em vinte, pois não deixava de parar para beijá-la. Por sorte, era uma noite nublada e sem lua, assim a escuridão os salvou de qualquer olhada inoportuna.

-Quantas horas faltam para o amanhecer? -comentou Martin abraçado a ela.

-Não muitas -respondeu Elizabeth depois de suspirar fundo. Fossem as que fossem, a ela também seriam uma eternidade.

-Quer que a acompanhe quando visitar o Sr. Sullivan? Não quero que se sinta desconfortável ao escolher nosso quarto -propôs após se separar dela.

-Eu prometo que não estarei se me garantir que se trancará na biblioteca -declarou.

-Isso será uma tortura, sabe disso, certo? -comentou trazendo os lábios à boca dela novamente.

-Prometo que vou te compensar quando voltar -sussurrou antes que se fundissem novamente em outro beijo apaixonado.

-Aham, aham. Algum de vocês pode me explicar o que estou vendo? -Randall perguntou ao abrir a porta e encontrar sua filha nos braços de Martin.

-Pai! -Elizabeth exclamou, empurrando com tanta força o peito de Martin que ele cambaleou. Quando ela o viu com o robe de seda preta e chinelos, pensou que a noite não poderia ser mais paradoxal.

-Sr. Moore, não é o que parece -Martin interveio, ao lado de Elizabeth.

-Os Giesler usam muito essas frases quando suas línguas procuram as das minhas filhas -Randall apontou com um tom severo.

- Pai! Não é o que pensa! -Elizabeth expressou envergonhada.

-E o que posso pensar? -Respondeu franzindo a testa.

- Quer deixá-los passar de uma vez? -Sophia soltou depois de aparecer pela porta. Logicamente, também em roupão de seda, mas de cor vermelha, em chinelos e com o cabelo solto. -disse para interrompê-los para os proteger dos curiosos, não para interrogá-los.

-Mãe! O que faz acordada? -Exclamou horrorizada.

Tinha pensado que a noite não podia ser mais surpreendente? Pois deduziu em algum momento no qual não se lembrou quem era sua família...

-Quando aprenderá que uma mãe é incapaz de dormir sem revisar primeiro as camas de suas filhas? -Apontou com sarcasmo.

-Senhora Moore, tentava explicar ao seu marido que não me aproveitava de sua filha. Nunca foi minha intenção -insistiu Martin enquanto segurava a mão de Elizabeth. -Eu a amo, e pedi-lhe para casar comigo -acrescentou olhando-a nos olhos.

-O que respondeu ao pedido de casamento? -Sophia perguntou.

-Não poderia viver sem ele -lhe respondeu sem duvidar um só segundo.

-Nesse caso, entrem e falaremos com tranquilidade no salão. Enquanto te esperávamos, seu pai acendeu o fogo e preparei um chá. Embora temo que uma bebida seja melhor para nós -expressou entrando em casa. Em seguida, Randall, que continuava surpreso pela acuidade de sua esposa, seguiu-a.

Pensou que estava vivendo um pesadelo quando o levantou da cama e o informou que Elizabeth não estava em casa. Milhares de ideias terríveis apareceram em sua mente. Tentou rechaçá-las, mas depois de rever o estranho comportamento de sua filha, o óbvio afastou qualquer esperança. Mas Sophia o tranquilizou quando desceram ao salão e lhe explicou o que estava acontecendo entre Martin e Elizabeth. Apaixonado por sua filha? Desde quando? Então lembrou-se da conversa que tiveram naquela noite durante o jantar e percebeu porque é que Sophia estava irritada com ele. Ela estava desvendando o que aconteceria em breve e ele não a compreendeu. «Elizabeth também o quer. Embora ainda não esteja segura disso. Depois do que viveu com Archie, não acredita que possa amar de novo. Mas o ama, asseguro-lhe», disse-lhe pouco antes de olhar para a janela e descobrir que a sua filha voltava acompanhada de Martin. Randall correu para a porta, para recebê-los. No entanto, o que devem ter sido alguns minutos parecia dez horas. Que diabos estavam fazendo? Por que não chegavam de uma vez? Quando já não tinha paciência, abriu a porta e os encontrou se beijando.

-Randall? -Sua esposa perguntou pela enésima vez.

-Sim? -Respondeu voltando ao presente.

-Disse que deveríamos ir em frente para preparar as bebidas, -Murmurou, levantando o braço direito tanto que seu cotovelo poderia tocar o teto.

-Claro, minha querida, -respondeu, seguindo-a rapidamente. Elizabeth, feche a porta ao entrar. Não esperamos mais visitas, -acrescentou sarcasticamente.

Depois de um bufar, mais próprio de Josephine que dela, esperou que seus pais estivessem suficientemente longe para que não a escutassem. Então, disse a Martin: -Corra! Vá agora! Fuja enquanto tem tempo! Se você se casar comigo, não vão deixá-lo em paz.

Por um momento, ele pensou que estava falando sério. Mas ao observar a diversão em seus olhos, soltou uma gargalhada.

-Acho que sua mãe e Valeria são muito amigas, não? -Finalmente perguntou.

- Sim, se dão muito bem -Eli esclareceu fechando a porta.

-Agora entendo o motivo... murmurou depois de abraçá-la de novo.

-Tem certeza do que vai fazer? Podemos ir agora. Nossas pernas são ágeis e fortes. Se corrermos muito rápido, não nos alcançarão -Elizabeth insistiu divertida.

-Seria capaz de se casar sem seu pai a levar de braços dados? Roubaria da sua mãe a expectativa de preparar o casamento de sua terceira filha? -Martin espetou aproximando os lábios dos dela novamente.

-Não -confessou Eli antes de desviar com rapidez o rosto, pois observou pelo canto do olho que seu pai espreitava a cabeça para vigiá-los.

-Eu também não faria isso com Valeria -disse ele antes de entrelaçar os dedos entre os de Elizabeth e caminhar em direção à sala onde havia luz.

Quando apareceram na porta, Sophia teve que se virar para que não a encontrassem chorando. Não queria que Elizabeth se sentisse desconfortável ou pensasse que não aceitava Martin. Não apenas o considerou o homem certo para ela, mas estava certa de que era a escolha de Morgana. Embora não tenha dito nada, exceto que não queria ver a imagem do homem saindo do fogo. «Nunca vi uma filha tão teimosa. Tão pouco nenhuma decidiu rejeitar minha ordem como Elizabeth fez. Às vezes acho que está errada, mas lembro como a roseira aceitou e mudo de ideia».

-Entrem, não fiquem aí parados como se tivessem se transformado em figuras de mármore -Randall disse depois de pegar um copo. -Sr. Giesler? -acrescentou afiado, levantando a bebida em sua direção.

-Por favor, me chame de Martin -pediu enquanto caminhava abraçado a Eli.

-Martin -apontou, estreitando os olhos. -Nesse caso, pode me chamar de Randall.

-Sou Sophia, embora imagino que sua irmã tenha falado sobre mim -comentou levantando ligeiramente o queixo.

-Sim, senhora, e asseguro-lhe que só usou boas palavras ao descrevê-la -afirmou Martin, pensando se tinha sido correto lhe lançar o elogio. No entanto, ao notar como Sophia estufava o peito sob o roupão, respirou tranquilo.

Elizabeth decidiu soltar a mão antes que Martin e seu pai se aproximassem. Depois de lhe lançar um olhar carinhoso, virou-se para sua mãe e a encontrou observando-a com os olhos vidrados.

-Seria interessante se pudesse nos dizer o que planejou fazer -Randall disse depois de tomar um longo gole de sua bebida. -Estou ansioso para descobrir o que há entre vocês e desde quando.

-Pai, creio que é evidente o que...-. Tentou suavizar o momento para não incomodar Martin. Mas ficou calada ao ver como a olhava. O brilho nos seus olhos era devido ao seu amor ou à felicidade que lhe causou a tentativa de protegê-lo? Porque seu coração encolheu ao pensar que alguém poderia lhe fazer mal.

-Se lembra do dia em que Mary e Philip os visitaram? -Martin retrucou -Antes do Natal - o médico respondeu.

-Quinze de dezembro, para ser exato -continuou ele, sem tirar os olhos de Elizabeth. -Naquele dia conheci a sua filha e nesse mesmo dia também me apaixonei por ela.

Houve um suspiro. Não Eli, mas Sophia. Isso fez com que todos olhassem para ela com surpresa e preocupação.

-Eu sabia -disse ela, movendo lentamente os dedos da mão direita como se estivesse contando.

-A partir daquele momento, só consegui pensar em encontrar uma maneira de conhecê-la um pouco mais -acrescentou Martin com um pequeno sorriso-. Quando fui informado de que a residência dos Bohman estava à venda, procurei uma maneira de comprá-la.

-Por que ninguém nos deu o nome de seu novo proprietário? -Sophia perguntou curiosamente.

-Pedi ao meu advogado para mantê-lo em segredo porque não tinha certeza se teria de revendê-la. Na época, meu chefe estava pensando se não seria melhor para nós dois se eu trabalhasse perto de onde ele mora. Finalmente, quando confessei o motivo pelo qual queria ficar aqui, aceitou a minha decisão, -explicou.

Elizabeth levou as mãos ao peito ao pensar o que teria sido dela se ele tivesse ido para a América. Não teria retornado. Teria se apaixonado por outra mulher. Ela ainda estaria em depressão. De repente, sentiu-se tão tonta que tudo à sua volta começou a girar à sua volta. Sua mãe correu em sua ajuda, colocou uma mão sobre seus ombros e a conduziu até uma cadeira.

-Minha filha, sente-se ao meu lado. Se sentirá melhor -assegurou-lhe segurando as mãos trêmulas. Mas não a acalmou, só Martin poderia fazê-lo.

-Passei vários dias olhando para a janela, estudando o momento certo para me apresentar a ela -prosseguiu seu relato. Fez uma pausa, como se precisasse lembrar daquela manhã, não muito distante, mas extremamente importante para ele-. Me aproximei do seu jardim quando saia da estufa cheia de flores. Para ser sincero, achei que recusaria a minha presença, mas milagrosamente, aceitou.

-Não só concordei que me acompanhasses, como também me deixou chocada com a sua conversa sobre os meus crisântemos, -interveio ainda sem se recuperar do susto-. Nunca pensei que um matemático soubesse tanto sobre esse assunto.

-Não precisa saber. Mas enquanto esperava a resposta da compra, li tudo o que encontrei na biblioteca sobre plantas. Queria estar à sua altura quando pudéssemos iniciar uma conversa -desvendou corando no instante.

-Uma excelente ideia -apontou Randall.

-Sim que o foi -declarou Sophia.

-Quando Elizabeth me falou do seu desejo de ser uma mulher independente, ocorreu-me a ideia de contratá-la para reformar o interior da minha casa. Devo confessar que minha intenção não foi boa, pois queria aproveitar cada momento para cortejá-la -confessou olhando-a com tanta paixão, que ela ruborizou instantaneamente-. Felizmente, os meus sentimentos por sua filha foram correspondidos em menos tempo do que imaginei. Como disse antes, pedi e ela concordou em se tornar minha esposa.

-Isso já sei -interveio de novo Randall-. Mas há uma coisa que não ficou claro em toda esta bonita história.

-O que, pai? -perguntou Elizabeth nervosa.

-Não entendo como pode passar de um estado de sofrimento para outro totalmente oposto -refletiu-. É tão estranho para mim...

-Acha que a reação da minha filha é estranha? -Sophia soltou levantando-se da poltrona como se tivessem cravado mil agulhas no traseiro. -Desde quando se pergunta o porquê de uma Arany transformar a sua vida ao encontrar o seu homem? Não se lembra o que aconteceu entre nós, Randall Moore?

Elizabeth arregalou os olhos e seu queixo tocou o chão ao contemplar atônita a atitude de sua mãe. Os impedia de falar sobre o que aconteceu dois anos atrás? Por quê? Sabia? Sabia? Santa Morgana! Havia algo no mundo que sua mãe não conhecia?

-Não fique brava, querida -disse Randall com um tom suave-. Mas tem que admitir que nossa filha não tem passado bons momentos nos últimos anos.

-Todo mundo comete erros. Ninguém é perfeito -concordou Martin ao lembrar que ela disse que não queria falar sobre o que aconteceu naquela noite.

-Martin, entendo que ame a minha filha porque é uma mulher maravilhosa, mas não seria honesto de minha parte que te escondesse que ela...

-Refere-se às vezes que buscou sua morte? -perguntou sem vacilar.

-Sim -o médico suspirou.

-Sei tudo. E sabe o que aconteceu depois de conhecer a verdade? Meu amor por ela aumentou —declarou solene.

-Minha filha é uma moça muito forte -disse Sophia com voz trêmula pela emoção. -Só era preciso que ela mesma descobrisse quem é na realidade e que o assumisse de uma vez por todas.

Fez-se um silêncio que apenas durou alguns segundos, tempo que Elizabeth levou para se levantar da poltrona e abraçar a sua mãe.

-Te amo, mãe -soluçou-. Te amo mais do que tudo neste mundo.

-Eu te amo mais -respondeu, finalmente quebrando aquele choro que suportou por tanto tempo.

-De qualquer forma... -Randall pigarreou no instante em que tirou os óculos. Enxugou-os com a camisa e secou as lágrimas com os punhos-. O que pensa em fazer? Quando quer se casar?

-Espero que em breve -disse Martin, impaciente.

-Não! -Elizabeth exclamou entre soluços e sem soltar a mãe-. Martin tem que terminar um trabalho!

- Que trabalho? -Randall perguntou curioso.

- O que mencionou antes. Aquele que um empresário inglês lhe encomendou -respondeu Eli astutamente-. E você precisa de muita paz de espírito porque é muito importante. Quando terminar, deve sair...

- Não vou a lugar nenhum, -a cortou-. Vou ficar aqui em Londres.

-Por quê? -ela soltou, seus olhos se arregalando quando entendeu suas palavras.

-Porque a primeira coisa que quero fazer é casar contigo. Depois, farei o trabalho e falarei com esse empresário para que me pague o acordado sem ter que viajar -apontou sério. Não quero te afastar da sua família, Elizabeth. Durante muitos anos só pude contar com a presença de Valeria, Philip e tia Kristel. Não digo que não fossem suficientes para mim. Não me entenda mal, porque já sabem que são, no momento, minha única família. Mas aqui estão seus pais, que pode ver mesmo da janela do nosso futuro quarto. Há as gêmeas, Anne, Logan e seus sobrinhos. Não vou privá-la disso, nem quero privá-los dos nossos futuros filhos -acrescentou.

- Oh, Martin! -Elizabeth exclamou correndo em sua direção para se jogar em seus braços-. É... é ...

Como as palavras não saíram, ela o beijou.

-Sophia... -Randall disse, olhando para ela para interrompê-los.

-Vão se casar, Randall, e farão muito mais coisas, -comentou após respirar fundo.

-Então não podemos perder tempo -Elizabeth comentou, colocando as mãos em torno do rosto de Martin. -Se quero que trabalhe, devo terminar o mais rápido possível.

-Acho que a primeira coisa que deve fazer é visitar o estabelecimento do Sr. Sullivan. Como mencionei à minha filha, precisa de vários móveis e uma cama no quarto, -afirmou Sophia astutamente.

-Poderia ajudá-la? -Martin perguntou. Então ouviu um leve bufo de Elizabeth em seu ouvido direito quando os olhos de Sophia se arregalaram e seu sorriso era enorme. -Se tiver que trabalhar, como pede minha futura esposa, não poderei sair da biblioteca por muitas semanas. E não quero deixá-la sozinha. Conhece a boca a boca de alguns comerciantes. Se acompanhá-la, ficarei mais tranquilo e me concentrarei no projeto.

-Eu? De verdade? -Sophia perguntou emocionada.

-Não deveria lhe pedir nada... Não faça... Mude de opinião, rapaz -sussurrou Randall enchendo outra taça.

-Claro -Martin comentou agarrando a cintura de Elizabeth. -Além disso, me parece conveniente que tivesse uma chave de nossa casa. Para que possa entrar sempre que não estivermos. Eli, poderia dar-lhe a sua? Prometo que um chaveiro fará outra manhã.

-Não! -ela exclamou-. Não pode lhe dar! É minha!

-Não a dê... Não a dê... -continuou murmurando o médico, colocando o copo frente a seus lábios para que sua mulher não o descobrisse murmurando.

-Bom, nesse caso, trarei a minha -Martin comentou divertido diante do comportamento possessivo e irracional de Elizabeth. -Sophia...

-Sim, Martin? -perguntou com um tom de voz que deixou seu marido congelado.

-Chamaria de abuso de confiança se lhe pedisse para me ajudar a encontrar um anel para Elizabeth? Podia pedir à Valeria, mas tenho certeza que conhece melhor os seus gostos. Além disso, ficaria muito contente se, dentro das alianças, gravassem amor para sempre na sua língua natal. Assim, a origem da minha esposa estará presente para o resto das nossas vidas.

E Sophia quase desmaiou de prazer.

-Acabou de se tornar o genro preferido. Apostaria o pescoço que já o ama mais que a mim -comentou Randall ao ver como os olhos de sua esposa brilhavam como duas estrelas do céu.


XXV


Um mês depois...

Nunca pensou que chegaria um dia em que seria tão feliz que seria impossível apagar o sorriso dos lábios e as lágrimas dos olhos pela emoção. Mas o que vivia era real e finalmente tinha se tornado a esposa de Martin Giesler...

Madeleine tocava uma nova peça no piano para que Martin dançasse com Mary enquanto seu pai tentava com Josephine. Anne e Logan partiram depois do jantar com os pequenos Roger e Samuel, este último com apenas dez dias de vida. Também se retirou o avô, como todos chamavam carinhosamente o barão alemão, com a pequena Kerstin e a nova babá, escolhida pelo próprio ancião, é claro. Borshon, Kristel, Philip e Trevor conversavam sentados em volta da mesa. Provavelmente, ainda estavam analisando as vantagens e desvantagens que Martin teria em começar como colaborador na Scotland Yard. Sua mãe e Valeria estavam ao seu lado, conversando sobre a emocionante cerimônia e as belas decorações florais que escolheram para a igreja. Não se lembrava de quantos buquês colocaram nos bancos ou no altar, porque a única coisa que viu, assim que entrou agarrada ao braço do pai, foi o seu futuro marido vestido com um elegante traje azul celeste e a sua espessa e longa barba loura. «Não me pergunte por que razão não quis que o barbeassem», disse Valeria quando a abraçou, depois de se tornar a senhora Giesler. «Mas não encontramos forma de fazê-lo mudar de opinião». Que se empenhasse em tê-la, apesar de mostrar o mesmo rosto que um mendigo, não lhe pareceu importante. O que deixou a Elizabeth sem fôlego foi o tremor que encontrou na mão de Martin quando deslizou o anel por seu dedo. Uma aliança simples de ouro e com as palavras que sua mãe ordenou que gravassem no interior. Claro que não foram as que ele pediu. Sophia no final decidiu esculpir: não há vida sem amor. Embora temia que não tivesse consultado Martin para essa mudança.

-É uma pena que não possam partir. A viagem que segue a um casamento não se esquece jamais -comentou Valeria.

-Eles o farão, se assim o desejarem, quando seu irmão terminar seu trabalho. Embora posso dizer que minha experiência não foi tão maravilhosa como a sua. Só me lembro de tonturas, do barulho da carruagem, frio, porque mal tínhamos cobertores para nos cobrir, e fome, pois as estalagens estavam muito longe umas das outras. Minha verdadeira felicidade começou ao chegar em minha casa -expressou sua mãe.

A ideia de que Martin e sua filha se afastassem umas semanas lhe provocava ardores. Por isso sempre oferecia mil argumentos negativos quando surgia o assunto.

- Gostou de como preparei o primeiro andar? -Valeria perguntou de repente.

Elizabeth ficou olhando-a em silêncio. Embora a pergunta parecesse muito simples, implicava uma resposta complicada e difícil...

No dia seguinte a conversa com seus pais, foram para a casa de Valeria para anunciar seu noivado. Ela ficou louca! Não parava de falar sobre como deviam preparar a casa para transformá-la em um lar digno e acolhedor. Martin, inocente, ofereceu-lhe a chave que tinha acabado de pegar no chaveiro. Ficou furiosa, mas se manteve tranquila e sorridente em todo momento. Logicamente, seu temor, sobre o que aconteceria quando as duas mulheres de caráter similar permanecessem juntas, começou na mesma tarde. Sua mãe e Valeria tinham uma opinião diferente. Então, depois de ouvir mil ideias opostas sobre o mobiliário que deviam adquirir e observar como os olhos de sua mãe avermelhavam, pediu-lhes que uma se encarregasse do primeiro andar e a outra do segundo. Uma vez que terminaram, Valeria devolveu a chave. Sua mãe ainda a guardava.

-Devo dizer que me surpreenderam -respondeu depois de pensar com cautela o que devia responder. -Souberam escolher o conforto que precisamos com a simplicidade que nos caracteriza.

Ao observar o sorriso que sua mãe mostrou, respirou tranquila e voltou a se concentrar na pequena reunião familiar. Elizabeth olhou de novo para seu marido. O coração batia rápido e seu corpo se excitou ao descobrir como a observava. «Ardente, sensual e passional». Isso mesmo foi o que lhe sussurrou antes de beijá-la depois de casados. Uma promessa que logo cumpriria. Ou assim esperava, porque o tempo passava e ninguém desejava deixá-los sós.

-Elizabeth... -Sophia pigarreou.

-Sim, mãe? -respondeu inquieta ao perceber seu tom de voz.

-Não convidou Lorde Cooper?

-Sim. Eu mesma levei o convite -assegurou-lhe.

-E? -retrucou levantando uma sobrancelha enquanto batia no chão com a ponta do sapato.

-O servo que me recebeu disse que ainda estava em Brighton, mas que lhe daria a notícia o mais rápido possível para que estivesse conosco hoje. Como me explicou, tinha ordens explícitas para enviar o máximo de informações possíveis sobre nossa família.

-Pois não o vejo no salão, ou está? -apontou Sophia estreitando os olhos.

-Talvez o trabalho o tenha impedido. Lembre-se que nos disse que devia rever todos os livros de contas -Elizabeth colocou como desculpa.

-Mas é um moço de palavra. Sei que, se recebeu a notícia de seu casamento, faria todo o possível para não o perder. Por esse motivo, não deixo de pensar que possivelmente... -murmurou olhando a Josephine.

-No que está pensando, mãe? O que acha que aconteceu com ele? -Eli disse intrigada.

-Receio que a sua irmã tenha feito outra asneira -respondeu sem deixar de observar Josh. -Esta manhã me pediu permissão para ir cavalgar e, quando voltou, não cheirava a cavalo.

-Talvez tenha mudado de ideia e só queria confirmar se o animal estava bem.

-Poderia ser, mas minha intuição me diz que fez algo ruim e que por isso se vê tão tranquila -apontou preocupada.

Elizabeth desviou o olhar de sua mãe e o fixou em sua irmã. Tinha razão, como sempre. A atitude de Josh era suspeitosamente calma. Até hoje, sempre que sabia que Lorde Cooper ia se encontrar com a família, desesperava-se tanto, que queria morder com os dentes as lâminas das suas espadas. Mas o que teria feito desta vez? O teria sequestrado, amordaçado e escondido num lugar que só ela conhecia?

-Deveria pedir à senhora Doherty que um servente nos traga mais três garrafas -apontou Valeria-. As que estão sobre a mesa vão acabar em seguida -acrescentou.

- Eu o farei -Elizabeth se ofereceu com rapidez ao encontrar, por fim, um momento para se livrar de tanta tensão. -Assim confirmarei que também servirão os doces que Madeleine preparou.

-Devemos ter paciência com a minha filh, -disse Sophia a Valéria. -Ainda é muito cedo para ela se comportar como uma anfitriã sagaz. Mas tenho certeza que conseguirá se continuarmos a nos encontrar aqui uma vez por semana.

Elizabeth abriu os olhos para a terrível ideia que a mãe dela acabara de ter. Não entendia que recém-casados desejavam um tempo de solidão? Não, parecia que a grande Sophia tinha se esquecido de uma coisa tão importante...

-Oh! A entendo perfeitamente -Valeria disse referindo-se a sua pouca perícia-. Quando recebi meus primeiros convidados, esqueci de pedir para aquecer a água para o chá. Felizmente, foram compreensivos e...

Elizabeth afastou-se delas. Sabia que iam travar outra batalha dialética sobre quem teria sido a mais inexperiente das duas durante os primeiros anos de casada. Claro, sua mãe acabaria falando de todas as crianças que nasceram em sua cama e Valeria da paciência que precisou para lutar contra aqueles que menosprezaram seu marido.

Antes de sair do salão, olhou para Martin. Tinha terminado a dança com Mary e, indubitavelmente, se dirigiria para a mesa para continuar com a conversa que deixou pela metade. Elizabeth se virou e caminhou pelo corredor com um sorriso enorme em seus lábios. Estava feliz, muito mais do que alguma vez sonhou, porque não só tinha encontrado o homem perfeito para ela, mas este tinha sido capaz de se adaptar às loucuras da sua família com suma rapidez.

-Valeria foi uma grande professora -disse-lhe dois dias antes, quando o encontrou no jardim com o Josh. -Ela ensinou-me a não me preocupar com coisas sem valor.

- Martin, querido, salvar sua vida é um assunto muito importante, ao menos para mim. por isso, suplico que não esteja perto de Josephine quando tiver uma arma. Ainda me lembro o que fez ao rosto do pobre lorde Cooper.

-Elizabeth, não precisa se preocupar. Só estávamos calculando a velocidade do projétil e o impacto deste no tronco. Borshon precisa desses resultados para descobrir se o disparo foi feito pelo amante, a partir do telhado do edifício, ou a esposa infiel desde...

-Martin -insistiu embalando o rosto, -repita comigo: não ficarei ao lado de Josephine quando tiver uma arma nas mãos, embora isso possa ser vital para um caso.

-Eu vou, prometo -sorriu e respondeu antes de dar-lhe um beijo apaixonado.

Mas temia que lhe fosse impossível cumprir essa promessa. Josh tinha descoberto o ponto fraco de Martin: a sua necessidade de calcular tudo o que encontrava diariamente, e não estava disposta a desperdiçar nenhuma oportunidade para brincar com todo o armamento que escondia. Na verdade, na tarde anterior, encontrou-a trancada no seu quarto afiando espadas e punhais. Nunca havia visto sua irmã daquela maneira. Até o momento, tinha-a observado como uma jovem rebelde e algo inocente. No entanto, ao admirar sua longa cabeleira branca sobre os ombros, a forma com que permanecia sentada na cama, sua vestimenta e como admirava e adorava as armas, um arrepio percorreu seu corpo.

-Se acontecer alguma coisa ao meu marido, te mato -ameaçou-a depois de ficar ao seu lado.

-Não se torne nossa mãe, Elizabeth. Acho que o mundo não está preparado para aguentar duas Sophia ao mesmo tempo -respondeu-lhe levantando a lâmina da espada. Arrancou um fio de cabelo e passou-o pela lâmina. Ao dividir-se em dois fios brancos sem esforço, sorriu.

-Eu não sou a nossa mãe -resmungou de braços cruzados-. Sou uma mulher preocupada com a vida de seu marido -acrescentou irritada.

-Só vamos cortar um porco morto em várias partes. Meu querido cunhado deseja saber quão afiada deve estar uma espada para que corte, com precisão, um corpo humano e quero agradá-lo.

-Juro que...! - Tentou dizer apontando-lhe com o dedo, mas apertou os lábios ao descobrir o enorme sorriso que Josh mostrava-. Vai tomar conta dele, não vai?

-Com a minha vida, se necessário -respondeu solene.

-Confio em sua palavra, Josh, e espero não me arrepender disso -disse se virando.

-Irmã?

-Sim? -perguntou virando-se para ela quando estava prestes a tocar na maçaneta.

-Entendo o motivo pelo qual se apaixonou por Martin -declarou sem tirar os olhos da espada.

-Verdade? Desde quando se tornou uma especialista em amores? -retrucou sarcasticamente.

-Eu também o faria se encontrasse um homem tão especial como o nosso pai. Teve muita sorte e espero que saiba respeitá-lo e amá-lo como merece. Caso contrário, eu mesma comprovarei como deve estar afiada minha espada para separar a cabeça de um corpo. Entendeu?

-Não vou lhe fazer mal -disse tão atordoada que mal lhe saía a voz. -Eu o amo -Como disse -expressou colocando a espada sobre a cama - vou protegê-lo com a minha vida -acrescentou.

Quando parou no meio do corredor, sentiu uma brisa fresca soprando. Colocou as mãos nos braços e se acariciou para aliviar o frio repentino que a percorreu. Olhou para a esquerda e viu os servos entrando e saindo da cozinha. Então, fez o mesmo para a direita e ficou furiosa ao ver que a porta de entrada estava aberta. Como disse sua mãe, ainda tinha muito que aprender e a primeira coisa a fazer seria dizer ao serviço que deveria manter a porta da frente fechada. Já estava chocada o suficiente com as aparições repentinas de sua mãe para lidar com a presença de outros visitantes indesejados. Além disso, precisava proteger o projeto de Martin. Estava prestes a terminar e, apesar do segredo que criaram em torno dele, seu marido insistia que era muito importante que o governo pudesse contratar espiões para monitorá-los.

Caminhou lentamente pelo corredor, olhou para fora e observou o movimento das copas das árvores. Piscou várias vezes, porque pensou que estava tendo alucinações. Não podia ser real que apenas as árvores em seu jardim, e as que seus pais tinham no deles, se moviam daquela forma sem vento. Bem quando decidiu se virar e esquecer o que tinha visto, ouviu um enorme rugido vindo da estufa. Então os cristais vibraram como se um furacão permanecesse trancado lá dentro. Assustada, entrou em casa sem fechar a porta. Pretendia voltar para a sala e alertar o resto da família sobre o que estava acontecendo lá fora. No entanto, uma sombra, de repente aparecendo à sua direita, a fez parar. Quando descobriu quem estava saindo da escuridão, soltou um grito.

-Boa noite, Elizabeth -Archie disse ao ficar ao seu lado rapidamente.

-O que diabos faz aqui? - perguntou em voz alta.

-Vim à sua procura -comentou com um amplo sorriso. Olhou-a de cima para baixo, exibindo nesse olhar um repulsivo desejo-. Imagino que o vestido foi escolhido por você. Sempre gostou da combinação de renda e cetim, mas não deveria ter escolhido a cor branca. Este só tem que levar as mulheres virtuosas e, que eu recorde, sua virtude a perdeu em meus braços.

-Fora daqui! Saia da minha casa agora mesmo! -gritou.

-Como eu disse, vim procurá-la e não vou sair daqui sem você, -ele apontou enquanto agarrava seu braço com força e a sacudia. -Como ousa me rejeitar? Por que permitiu que esse ninguém tomasse meu lugar? O que te prometeu para que se tornasse sua prostituta?

-Solte-me! -agora sou uma mulher casada e mereço respeito! -perseverou desesperada.

-Nunca pertencerá a outro homem! Entendeu? É minha! E ninguém, a não ser eu, tem o direito de estar na sua cama -acrescentou, puxando-a para a rua-. Como pode me esquecer? Como foi capaz de me substituir por esse homem? Quem pensa que é? -continuou sua ameaça.

-Eu não te amo! Me ouviu? Não poderia te amar e só teria um grande ódio de mim! -ela continuou com os olhos cheios de lágrimas.

-Isso vai mudar depois desta noite. Ainda posso te convencer. Lembro-me dos seus gemidos e de como me pedia para beijá-la, para entrar no seu corpo. Farei com que me queira novo! -assegurou antes de deixar escapar uma risada nojenta.

-Socorro! Ajude-me! -gritou.

Naquele momento, uma árvore caiu na frente deles. Archie olhou para o céu e Elizabeth aproveitou a confusão para tentar se libertar. Mas os dedos dele apertaram sua pele com tanta força que ela sentiu que estava sendo rachada.

-Nada nem ninguém impedirá que venha comigo -declarou olhando-a com ódio.

De repente, os cristais da estufa voltaram a estalar. Desta vez, parecia que mil balas de Josephine os haviam atravessado. Ela olhou para cima e ficou sem ar ao descobrir que uma nuvem de pétalas, das rosas caía sobre eles. O que estava acontecendo?


XXVI


Todo mundo ficou em silêncio quando Madeleine levantou as mãos do piano e deixou de tocar. Observaram-na expectantes, preocupados. Ela não olhou para eles, mas pregou os olhos na janela. De repente, os cristais começaram a vibrar.

-Elizabeth está em perigo! -clamou a mais nova dos Moore levantando-se do banco.

Antes que pudesse dizer mais uma palavra, Martin correu para a porta. Indubitavelmente, todos saíram atrás dele. Os segundos que demorou para encontrá-la lhe pareceram tão eternos e angustiantes que se sentiu morrer. O que acontecia? Onde estava? As respostas apareceram quando saiu da casa e descobriu que um homem tinha pego sua mulher pelo braço e tentava levá-la à força.

-Quem é? -Perguntou Valeria justo quando Martin saltava os degraus para chegar o quanto antes até Elizabeth.

-Maldito seja! -Clamou Randall.

-É Lorde Gharster! -gritou Sophia.

-Como é que ele a agarrou dessa forma? -Josephine trovejou depois de empunhar as duas adagas que guardava na cinta-liga.

-Será sua última noite com vida -murmurou Borshon correndo para eles.

-Solte minha esposa! -Martin gritou depois de dar um forte empurrão ao lorde Gharster.

-Martin! -exclamou Elizabeth.

-Não me ouviu? -disse-lhe para soltar minha esposa! -repetiu dando-lhe outro forte soco.

Uma vez que Elizabeth se libertou, deu dois passos para trás. Rapidamente olhou para o lugar onde a árvore havia caído e esta não estava, assim como haviam desaparecido as pétalas de rosas.

-Vá com sua mãe! -Martin ordenou.

-Martin... não quero que...

-Faça o que lhe pediu -disse Borshon depois de jogar um braço sobre seus ombros e gira-la para os demais.

-Ela não o ama. Faz isso para proteger sua honra. Contou que tivemos um caso? -disse Archie enquanto observava como um gigante a levava de seu lado. -Sabe que sua esposa não é virgem?

-Meu Deus! -exclamou Valéria. -Esmurre essa boca nojenta!

-Eu vou matá-lo! - Josephine bramou avançando. Mas alguns braços, que rodearam sua cintura, a pararam no ar. Ao virar a cabeça para trás, descobriu que era Philip quem a segurava. -Solte-me! -gritou -Josh, não vou permitir que cometa o maior erro da sua vida -garantiu-lhe sem soltá-la.

-Bastardo filho da puta! -Bramou Martin antes de se lançar para o conde para lhe dar a surra que se merecia.

Elizabeth se moveu inquieta sob o corpo de Hill. Queria se livrar dele para terminar a luta. Mas este a agarrou com mais força.

-Deixe-o -Falou com tom suave, -deve deixa-lo lhe dar o que merece. Um homem deve impor respeito em seu lar. Se Martin não o fizer, receio que o seu casamento fracassará, porque ele viverá acreditando que não é capaz de ser um bom marido e melhor pai.

-Mas..., mas... -balbuciou Elizabeth. Sentiu uma horrível dor no peito, como se alguém tentasse arrancar-lhe o coração. Seus olhos se encheram de lágrimas e mal pôde respirar.

-Não se preocupe, ele sabe se defender muito bem. Me encarreguei de instruí-lo desde criança -comentou Philip agarrando Josh. Não podia aproximar-se deles, porque se a soltasse, tinha certeza de que aquele ingrato sairia dali não só com um par de hematomas no rosto.

Enquanto Martin tentava deixar claro que ninguém devia tocar em sua esposa, os homens, incluindo seu pai, o animavam quando ele estava lá em cima e lhe indicavam como devia reagir quando recebia os golpes. Valeria agarrava Sophia, Madeleine a Mary, e Kristel desceu até o jardim para ocupar o lugar de seu marido. Quando abraçou Elizabeth, a menina tremia e chorava. Nem seu abraço podia consolar a amargura que sentia. Olhou para Borshon, para que terminasse de uma vez aquela luta, mas este moveu a cabeça, negando o seu pedido.

-Solte-me! -Josh gritou a Philip-. Ou juro pela minha vida que te mato!

-Acho que a sua irmã não gosta de ouvi-la ameaçar o seu amado marido. Tal como o seu pai não ia gostar de visitá-la em uma prisão -disse-lhe com severidade. Se quer ajudar, fique calma-. O olhar que a jovem lhe lançou, não era bom, mas Philip confiava em que recuperasse o juízo por si mesma ao mencionar o sofrimento de Randall.

-Vou matá-lo -garantiu-lhe depois de sacudir os ombros e se acalmar.

Quando tentou dizer algo mais, seus lábios se apertaram e seus olhos se arregalaram. O que fazia ali? Como diabos tinha chegado? Desviou o olhar daquela figura que entrava no jardim em silêncio e observou a sua família. Nenhum deles tinha reparado em sua chegada, mas ela podia sentir e inclusive cheirar o perfume de Eric, embora estivesse a mil milhas de distância. O coração começou a disparar. Apesar da felicidade que sentia ao vê-lo, depois de tantas semanas, Josephine se negou a se emocionar.

-Boa noite, vejo que cheguei no melhor momento da festa. Embora sempre tenha acreditado que o momento mais importante de um casamento era a oferenda dos anéis dos noivos -comentou a voz jovem de lorde Cooper ao aparecer da escuridão.

Nesse momento, Borshon agiu com rapidez. Aproximou-se de Martin, que tinha se colocado em cima de Archie e não parava de lhe dar socos, agarrou-o pelos braços e separou-o.

-Vamos, filho, ele já entendeu que sua casa, sua esposa e sua família devem ser respeitadas, -disse Hill enquanto Martin continuava a balançar os braços como se não tivesse se retirado.

-Quero matá-lo! Como se atreve a vir na minha casa e tratar assim a minha esposa? Tem que pagar por isso! -gritou desesperado.

-Garanto-lhe que ele já entendeu que errou, não é, milorde? -O agente comentou.

-Martin! -Elizabeth exclamou correndo em direção a ele. Não estava com os óculos, onde estariam? Sua boca estava manchada de sangue, seu rosto vermelho dos golpes, suas roupas sujas, seu cabelo despenteado, mas ainda estava vivo e respirando.

-Está bem querida? -perguntou, abraçando-a-. Te machucou? -olhou para ela com impaciência. -Me desculpe por não ter vindo antes...

Quando Elizabeth se encostou em seu corpo, ouviu o bater de seu coração e sentiu seu tremor. O que poderia dizer para acalmá-lo? Que explicação poderia dar a toda a família após a declaração de Archie sobre sua desonra?

-Martin... -sussurrou com a cabeça escondida no seu peito. -Desculpe, sinto muito.

-O meu amor -disse-lhe depois de afastá-la ligeiramente. Tocou-lhe o queixo e o ergueu para que o olhasse. -Não tenho nada que perdoar. Não fez nada de errado.

-Mas... todos sabem que... -soluçou lhe abraçando novamente.

-Por favor, Elizabeth. Somos os Giesler, Reform e Hill, sua família -comentou Valeria ao ouvi-la-. O que nós não fizemos, ninguém fez. Acha que vamos nos escandalizar por uma coisa tão insignificante?

-A única coisa que esse imbecil pretendia era fazer mal a vocês -interveio Kristel-. Mas não conseguirá. Não importa quem amou no passado, o importante é quem ama no presente e no futuro.

-E eu amo você -Elizabeth soluçou com a cabeça no peito de Martin-. Te amo muito!

- Querida... -ele sussurrou levantando o seu rosto novamente - Não só te amo, mas estou louco por você -adicionou antes de beijá-la e abraçá-la.

Ouviu cada vez mais distante a conversa que sua família reiniciou, quando os lábios do seu marido pousaram nos seus. Nada importava, exceto ele e a vida que teriam juntos.

-Foi testemunha do que me fizeram! -clamou Archie a lorde Cooper quando o jovem se aproximou com as mãos atrás das costas.

-Com certeza, Lorde Gharster. Dou fé do que vi -respondeu olhando o conde com repulsa, como se desejasse lhe dar um murro tão forte que o deixasse inconsciente sobre o chão.

Por culpa de tipos como ele, que pensavam que seu título lhes outorgava poder absoluto, a aristocracia estava em decadência. Felizmente, ainda restavam cavalheiros que faziam justiça sem medo do título nobre que os criminosos possuíam. Agora entendia a luta de seu pai e se sentia mais orgulhoso dele, se isso fosse possível.

-Deduzo, então, que me apoiará na denúncia. Quero ver esse monstro metido atrás das grades -resmungou enquanto limpava o sangue da boca.

-Lorde Cooper... -interveio Hill-. Gostaria de lhe explicar que...

-Não se incomode, -disse Eric, levantando a mão para o calar-. Como diz Lorde Gharster, testemunhei o que aconteceu, e eu mesmo afirmo, sem receio de me enganar, que o Conde veio prestar homenagem ao novo casamento e tropeçou nas escadas de mármore da casa. Logicamente, o jovem casal ainda não pôde colocar uma luminária enorme na entrada para que este tipo de imprevistos não aconteça a seus convidados.

-O que disse? -Archie perguntou arregalando os olhos.

-O que ouviu, -Eric comentou, colocando-se na frente do nobre. -E se mudar a versão que acabou de ouvir da minha boca, juro pela minha honra que encontrarei uma maneira de destruí-lo.

-Senhor Hill? -Eric perguntou, desviando o olhar de Archie para se fixar no agente.

-Sim, milorde -ele disse incapaz de apagar um largo sorriso de seu rosto.

-Faria a gentileza de acompanhar Lorde Gharster à rua? Não seria bom se sofresse outro acidente terrível, certo?

-Sem dúvida - o agente respondeu depois de dar ao filho de Lorde Sheiton um leve aceno de cabeça. Em seguida, bateu com força nas costas de Archie e sussurrou: -estarei te vigiando, querido lorde. Isso não ficará assim.

-Não vá -Philip disse, estalando os nós dos dedos. -Eu o acompanho. Lembre-se, meu amigo, lá fora há um buraco enorme e não queremos que nosso convidado de honra tropece duas vezes, certo? -comentou sarcasticamente.

-Eu não perco isso! -clamou Trevor, depois de separar-se de sua esposa e descer as escadas.

-Cavalheiros, que a queda não seja muito grave -os advertiu Eric. -Amanhã mesmo lorde Gharster tem que empreender uma viagem para Norwich, onde lhe espera uma vida afastada de Londres e da família Moore.

-Isto não ficará assim! -Bramou ao virar-se para o jovem. -Falarei com o seu pai! Seu Ilustríssimo saberá como agir a seu respeito! -adicionou com um resmungo. -Maldita desgraça! Talvez os rumores sejam verdadeiros. Talvez não é o filho de...

-Não fale assim do meu pai! -Eric retrucou antes de lhe dar uma direita tão forte, que Lorde Gharster caiu sentado. -E agora, vá embora ou juro pela honra do meu sobrenome que será você quem permanecerá em Reading até apodrecer! -O ameaçou Cooper.

Nos poucos minutos que Archie levou para se levantar e sair com Borshon, Philip e Trevor, ninguém disse nada. Não só ficaram atordoados com o soco do rapaz, mas também com a maldade que o homem emitiu.

Cooper olhou para eles um a um, preocupado com o que aconteceria a seguir. Até agora, tinham mantido em segredo a possível infidelidade de sua mãe e a verdadeira identidade de seu pai. Mas, como ouviu, havia certos membros da aristocracia que desejavam lembrá-lo que seu sangue talvez não fosse o mesmo do homem que o criou. Para ele, Federith Cooper era seu pai e sempre seria. Assim como só tinha uma mãe. Anais. A única coisa que importava, naquele momento, era o que diriam aqueles que o observavam atônito. Os Moore lhe negariam entrada em sua casa ao ouvir que talvez não fosse filho de lorde Sheiton? E Josh? Olhou-a nos olhos e sentiu o peito inflar. Seu olhar para ele não tinha mudado, seguia mostrando essa mistura de ódio e amor que o deixava louco.

-Doem-lhe os nós dos dedos, jovem? -perguntou Randall rompendo o silêncio.

Nesse momento, Josephine se voltou sobre si mesma e entrou na casa seguida de Madeleine.

-Não muito, senhor -comentou estendendo os dedos da mão com a que golpeou.

-Com um par de copos, desaparecerão as possíveis moléstias- asseguro-lhe. - Vamos, Kristel -comentou Valéria ao agarrar a sua amiga pela mão. -Vamos pedir à senhora Doherty que tire da adega mais dez garrafas de uísque.

-Não serão muitas? -perguntou a senhora Hill.

-Eu vou beber uma -apontou antes que ambas entrassem na casa.

-Está bem? -Martin perguntou a Elizabeth.

-Sim. Embora eu ainda trema -respondeu olhando para o seu marido.

- Sinto muito, Sr. Giesler, -disse Eric ao se colocar na frente do casal. -Asseguro-lhe que nem todos os aristocratas se comportam como vermes.

-Não tem por que se desculpar, e pode me chamar Martin - lhe pediu aceitando a saudação.

Então, Elizabeth se aproximou mais do corpo do marido e o fez andar até as escadas. Quanto mais cedo entrassem em sua casa, mais cedo esqueceriam o ocorrido.

-Foi uma benção que tenha aparecido justo neste momento -interveio Sophia depois de observar que Josephine não estava por ali.

-Sinto a demora, senhora Moore, mas tive um ligeiro contratempo -explicou com um enorme sorriso enquanto se aproximava do casal para cumprimentá-los.

-Durante a viagem? -perguntou Randall apertando a mão dele.

-Não, aqui, em Londres -afirmou o jovem com um enorme sorriso.

Um suspiro profundo e agonizante saiu da boca da Sophia. Elizabeth se afastou de Martin e correu para ela quando viu que levava as mãos à cabeça. Se não a pegasse, desmaiaria ali mesmo.

-Vamos, mãe. tenho certeza que Josh não teve nada a ver -comentou para acalmá-la, mas nem ela mesma acreditou em suas próprias palavras.

-Vou matá-la! -Sussurrou-. Juro por Morgana que vou matá-la!

-Diga-me o que lhe aconteceu, -disse Randall quando viu a sua mulher caminhando com sua filha para dentro de casa. Se seus ouvidos não falhavam, murmurava algo sobre matar a Josephine.

-Alguém partiu todos os eixos e rodas das minhas carruagens. Quando descobrimos que não podiam ser arrumados, decidi vir andando -informou uma vez que os três entraram na casa e se asseguraram de que a porta se fechasse corretamente.

-Um ato de vandalismo... -refletiu Martin com seu típico olhar de investigador. -Sabe quem pode odiá-lo o suficiente para realizar tal atrocidade? Ficaria feliz em ajudá-lo a procurar...

-Filho -Randall interveio com rapidez parando no meio do corredor, - não precisa procurar o culpado dessa ação terrível. Todos nós aqui presentes sabemos o nome do responsável por esse ato -acrescentou com pesar.

-Senhor Moore... -disse Eric ao aparecer no salão e observar a sua querida Josephine apoiada numa parede com os braços cruzados. -Acha que será castigo suficiente forçá-la a dançar comigo duas ou três danças?

-Pedirei a Madeleine que toque dez sem descanso -respondeu o médico.

-Foi Josephine? -perguntou Martin voltando-se para Eric com espanto.

-Sim -respondeu Cooper sem poder afastar o olhar dela.

-E por que ele faria uma coisa dessas? -se interessou em saber.

-Porque é a única maneira que encontrou para me declarar o seu amor -asseverou Eric justo quando o seu olhar e de Josh se encontraram.


Epílogo


Seis meses depois...

Morgana voltou a chamá-la, por isso percorria um bosque durante o sonho. Embora Elizabeth estivesse segura de que não se encontrava em Ávalon. Os ramos das árvores não estavam apenas cheios de folhas, mas também de frutas. Não era de noite, nem tampouco ouviu o grasnar de um enorme corvo. O sol iluminava desde o centro de um céu sem nuvens e bandos de pássaros voavam de um lado a outro piando sem parar. Para onde a tinha levado? E mais importante, o que desejaria desta vez? A única coisa que tinha certeza era que não veria uma fogueira ao chegar a um prado. Já não lhe importava que Morgana lhe mostrasse a imagem do escolhido porque ela escolheu Martin e nada nem ninguém os separaria. Ainda assim, a incerteza de não saber o que desejava fez com que seu pulso acelerasse. Mas essa inquietude desapareceu ao finalizar o caminho e observar o que havia diante de seus olhos: um paraíso. Sim, uma preciosa e infinita pradaria onde cresciam milhares e milhares de flores de diferentes classes e cores. Elizabeth ficou parada e apreciou maravilhada a imagem idílica. Jamais viu um lugar tão bonito nem tão cheio de vida.

-É bom vê-la, minha filha. Por fim aceita seu destino.

A voz que ela ouviu durante seus sonhos parecia tão perto que a assustou. Depois de se recuperar do choque, se virou lentamente e seus olhos se arregalaram quando encontrou uma linda mulher com longos cabelos escuros ao seu lado.

-Mãe? -perguntou fazendo uma reverência.

-Sim, Elizabeth. Eu sou, -afirmou. -Gosta deste lugar? -acrescentou, desviando o olhar dela para se fixar no campo colorido.

-É lindo -conseguiu dizer.

-Sim, é, -disse Morgana, virando-se em direção ao prado-. Venha, junte-se a mim e não tenha medo, não vou te mostrar a imagem de nenhum homem - ela adicionou divertida.

-Martin é o homem da minha vida e o único que amarei -garantiu sem se mexer.

-Se tivesse chegado ao fogo, nos dez sonhos que te enviei, o teria visto sair dele -disse antes de caminhar com tanta elegância que parecia voar.

Elizabeth ficou atônita ao escutá-la. Martin era o escolhido! Não sabia se ria, se chorava ou pulava de alegria. Tinha medo de pensar que não seria ele quem apareceria e por isso os rejeitou. Agora compreendia que seu amor havia estado em seu coração muito antes da noite em que se prometeram. Talvez também se apaixonou por ele assim que o viu...

-Elizabeth! -exclamou Morgana ao descobrir que não estava a seu lado.

-Desculpe, mãe! —Respondeu avançando rapidamente.

Enquanto a alcançava, não deixava de pensar no motivo pelo qual a tinha chamado. Que ela soubesse, nunca falava com suas filhas depois de lhes mostrar o escolhido. Mas era certo que seu caso era diferente. Pretendia castigá-la pela desobediência? Olhou-a em silêncio, tentando averiguar o que pretendia. Não pressentiu nada e seu sangue estava muito tranquilo.

-Imagino que se pergunta por que está aqui, certo?

-Sim, mãe.

-Não é castigo -Morgana comentou olhando para frente.

- Obrigada, mãe -respondeu, fazendo outra reverência leve e rápida.

-Quando nasceu, Sophia passou uma semana orando na frente do seu berço.

-Minha mãe fez...? -ela não conseguiu terminar a frase devido à emoção que a dominou.

-Sabia que era a única maneira de falar comigo -esclareceu Morgana.

-Estive doente? Queria que me curasse?

-Não. Sua intenção era me pedir, por meio daquela oração, uma audiência. Quando aceitei seu pedido, me disse que você nasceu com o dom de dar vida. Logicamente, não acreditei nela -disse, virando-se para Elizabeth. -Como pode deduzir, sua aparência física não é a de um verdadeiro cigano.

-É verdade que sou idêntica ao meu pai, mas para mim não é uma desgraça, mas uma honra. Assim como não tenho vergonha do sangue que corre em minhas veias -afirmou com firmeza.

-Nem sempre foi assim -a lembrou.

-E me arrependo de ter rejeitado minha origem -disse, curvando a cabeça.

-Mas uma mãe não abandona suas filhas, não importa o quanto elas a neguem -Morgana continuou. -Eu também não fiz isso com você.

-Comigo? -perguntou Elizabeth parando imediatamente.

-Sim -afirmou ao virar-se para ela-. Quando Archie a abandonou, chorou na terra e regou-a com o sangue que saiu das tuas mãos, lembra-se? Me chamou para ferir aqueles que a provocaram. -Elizabeth ficou calada. Morgana continuou. -Choveu por sete dias. O tempo que demorou a causa de seu sofrimento em sentir as gotas de chuva envenenada sobre seu rosto.

-Fala da condessa? -perguntou arregalando os olhos.

-A ela dirigi minha ira, mas a esposa de seu filho, devido a seu bom coração, contagiou-se ao cuidá-la -explicou Morgana caminhando de novo para frente. -Pensei que essa ajuda a faria aceitar seu destino, mas não foi assim. Seguiu seu caminho, muito longe do meu. No entanto, quando aquele homem quis machucá-la, me pediu ajuda. E não recusei. Que tipo de mãe eu seria se não ouvisse as súplicas de uma filha arrependida? Por isso transformei a terra que pegou com a mão em pedra e o golpeou com ela.

-Mas eu não o matei -esclareceu com rapidez.

-Não, o fez outro homem -declarou com tanta tranquilidade que Elizabeth ficou com os pelos arrepiados. -Perdi tantas vezes a confiança em você que não consigo contá-las. Mas se estou aqui, falando contigo, é por Sophia. Nunca vi uma mãe sofrer tanto por uma filha. Espero que entenda o dano que lhe causou -alegou com reprovação.

-Teria que viver doze vidas para recompensá-la -declarou a moça.

-E ainda faltam algumas mais -sentenciou antes de parar no meio do campo.

Durante um longo tempo, Morgana ficou em silêncio, esperando uma queixa por parte de Elizabeth. Não a obteve. Tal como Sophia lhe disse, a jovem havia assumido sua verdadeira identidade e se arrependia dos erros de seu passado.

-Também me salvou na noite do meu casamento? -perguntou Elizabeth ao se lembrar do ocorrido com Archie e todos os fenômenos estranhos que aconteceram esse dia.

-Não, o fez seu querido roseiral. Também a livrou da morte a segunda vez que tentou -alegou sem olhá-la-. Nunca se perguntou como foi possível cortar a corda que enrolou no seu pescoço?

-Guardião... -sussurrou tão assombrada e confusa que deixou de observar a beleza que havia ao seu redor. Em seu lugar contemplou o ocorrido aquela tarde, quando abriu os olhos e se encontrou em frente ao imenso roseiral, viva e com a corda cortada sobre seus ombros.

-Ele sempre esteve ao seu lado, protegendo-a como um guardião deve fazer com sua dama. -Morgana esclareceu e esperou alguns segundos que a moça assumisse tudo o que estava dizendo. Era algo difícil de acreditar e entendia que reagisse desse modo. -Mas seu destino se gravou no mesmo instante que pegou o caule da roseira. Elizabeth -disse com calma. -Quer saber por que a chamei?

-Sim -respondeu com um longo soluço.

-Apesar de não acreditar na sua mãe, descobri com alegria e felicidade que a sua alma foi má para com as pessoas, mas misericordiosa para com as plantas. É incapaz de lhes fazer mal -comentou apontando uma roseira muito parecida, senão precisa, a sua própria. -Ainda me lembro como acolheu em suas mãos o pequeno corte que eu deixei na rua.

-Não consigo conceber uma vida sem plantas -disse ela animadamente ao descobrir a origem de sua amada Guardião.

Havia procurado mil tipos de roseiras em todos os livros que caíram em suas mãos, mas nunca averiguou sua origem. Agora entendia o motivo; indubitavelmente, jamais encontraria naqueles volumes a vegetação mágica de uma ilha mitológica como o era Avalon.

-Foi por isso que a chamei. Preciso da tua ajuda, -disse, fixando os olhos nas flores-. Os humanos não valorizam a beleza do mundo em que vivem. São obcecados por realizar coisas sem interesse. Por que querem construir grandes casas sobre terrenos onde podem cultivar seu alimento? São tão obtusos que se esquecem de como isto é importante para eles -acrescentou zangada. -A irracionalidade humana os fará sofrer uma catástrofe em cada século que subsistam. Haverá milhões de mortes, o sol arderá tanto que lhes queimará a pele, a terra fará despertar a ferocidade dos vulcões e do céu cairão pragas. No entanto, as plantas darão vida onde o homem a ceifou e trarão esperança onde ninguém a encontra. Entende o que digo?

-Sim, embora não sei muito bem como posso ajudá-la. A única coisa que tenho é uma pequena estufa -declarou preocupada.

-É suficiente -comentou Morgana levantando um dedo para que posassem nelas duas lindas borboletas de cor púrpura. Estas, depois de mover várias vezes as asas, empreenderam um novo voo-. Nela desenvolverá seu dom e o transmitirá a suas primogênitas.

-Minhas... primogênitas? -perguntou mais assombrada, se isso fosse possível.

-Sim, suas duas primeiras e únicas filhas: Violet e Margot... -disse Morgana apontando o dedo para o horizonte-. Quer conhecê-las?

Elizabeth não pôde responder, mas olhou para a frente, para a área do campo que a sua mãe criadora lhe apontava. Levou as mãos ao peito ao observar a duas meninas pequenas de cabelos dourados e pele branca. Eram iguais a Martin e tão idênticas uma à outra que não encontrou nem uma só diferença. Caminhavam entre as flores, alheias à sua presença. Tocavam as pétalas com seus pequenos e suaves dedinhos. Sorriam ao falar. Do que falariam? Que lhes provocava aqueles lindos sorrisos?

-Elas serão as que salvarão o mundo depois de uma batalha mundial terrível -afirmou Morgana-. Nelas estará a esperança da humanidade.

-Em minhas filhas? -Elizabeth espetou enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas devido à emoção.

-As mesmas que tem agora em seu ventre -esclareceu olhando-a. Ao ver Elizabeth retirar as mãos de seu peito e colocá-las sobre a barriga, acrescentou: -Ainda não as sente, mas não tardará em fazê-lo.

- Como essas duas criaturas vão salvar a humanidade? -insistiu sem desviar o olhar das meninas.

-Mostra-lhes o seu dom, Elizabeth. ensina-lhes a criar vida e elas farão o resto...


Elizabeth abriu os olhos e se ergueu na cama. Seu coração batia depressa e as lágrimas deslizavam lentamente por seu rosto. Inquieta e confusa olhou para Martin. Dormia tranquilo, alheio a tudo, e com a mão esquerda à volta da sua cintura. Tentou relaxar. Não só para evitar que acordasse, mas também para assumir o que havia vivido no sonho. Mas não conseguiu. A imagem de suas filhas, caminhando por um campo tão lindo, lhe roubou o sossego. Por que lhe havia dito que elas salvariam a humanidade? Como poderiam lutar com um dom tão simples? Enquanto os inimigos se levantavam com armas mortais, suas filhas só teriam a habilidade de cultivar flores. Isso não era suficiente para salvar o mundo...

-Bom dia, meu amor -comentou Martin com sua típica voz sonolenta. -Está bem? -acrescentou afastando a mão de seu ventre. Depois, virou-se de costas e esperou que ela se aproximasse.

-Sim -respondeu quando se recostou. Encostou a cabeça em seu peito e ouviu o discreto bater do coração. Por muito incrível que fosse, aquele palpitar suave e compassado a tranquilizou.

-Que horas são? -disse-lhe depois de colocar as mãos sobre suas costas e acariciá-la para apaziguar aquilo que a alterava. Porque sabia que, apesar de dizer que estava bem, não estava.

-Creio que não serão mais de sete -ela respondeu ao levantar o rosto e contemplar o semblante livre da longa e descuidada barba.

Elizabeth sorriu ao lembrar-se do dia em que o barbeou pela primeira vez. Não só confirmou que era um homem muito bonito, como possuía covinhas sedutoras em ambas as bochechas. E observava isso todas as manhãs, porque Martin se recusou que lhe cortasse o cabelo ou lhe barbeasse outra pessoa que não fosse ela. «Podem tentar matar-me», disse como desculpa à mulher que se definiu como uma assassina durante dois anos. Mas aqueles pequenos gestos de amor e confiança fizeram que, em pouco tempo, acabasse tão apaixonada por ele, que seria capaz de matar de verdade a quem quisesse fazer mal ao seu marido.

-Maravilhoso... -sussurrou Martin abraçando-a. Isso significa que posso ficar um pouco mais na cama com minha querida esposa.

-Tem certeza do que está fazendo? -perguntou apoiando os cotovelos em seu torso.

-Sobre o quê? -respondeu levantando uma sobrancelha maliciosamente.

-Martin, não estou falando de sexo, mas de trabalho -comentou com um grande sorriso.

-Esta é uma grande oportunidade, Elizabeth. Continuarei ajudando Borshon na Scotland Yard e poderei ensinar futuros arquitetos -explicou, tocando no seu cabelo.

-Ainda não entendo por que pediu ao Sr. Wright para não mencionar seu nome -insistiu no assunto, acariciando sua bochecha esquerda com uma das mãos. -Foi você quem descobriu como construir o avião.

-Porque não quero fama e não quero passar minha vida viajando de um país para outro. Só quero acordar todos os dias com a mulher que amo e comer os deliciosos bolos que Madeleine prepara para mim no café da manhã. Adoro caminhar com seu pai e ouvir como enfrenta uma nova doença. E o que seria de mim sem as aulas magistrais de Josephine sobre o manuseio das armas? Também quero estar em minha casa quando Valeria ou a sua mãe aparecer, que, como bem sabe, nos visitam com bastante frequência. Quero te acompanhar à estufa e ver como cuida das suas flores enquanto a observo impressionado. E, sobretudo -comentou atraindo-a até ele, quero que meus filhos nasçam e vivam aqui, rodeados de sua numerosa família. Não gosta dos meus desejos, senhora Giesler?

-Eu adoro e os compartilho, senhor Giesler -disse antes de beijá-lo.

Quando Martin transformou o beijo suave em um mais apaixonado, ele acariciou o corpo dela com impaciência. Elizabeth fez o mesmo com seus braços, peito e pescoço. Nunca imaginou que um homem tão sereno, racional e terno se transformasse em um amante insaciável na intimidade. Ele a acariciou e beijou com tanto desejo e amor que às vezes a fazia perder a cabeça. Amor e desejo... Dois sentimentos que nunca pensou que sentiria ao mesmo tempo. Mas este homem, que ainda precisava da sua ajuda para se vestir, embora tenha se tornado um especialista quando a despia, conseguiu.

-Acho que chegarei tarde ao meu primeiro dia como professor -ronronou beijando-lhe o pescoço e acariciando-lhe os seios.

-Isso não seria correto, senhor Giesler, -disse-lhe ao mesmo tempo que tirava a camisola e a atirava ao ar-. Não ensinaria nada de bom aos seus alunos -alegou, olhando-o com tanto desejo que Martin se esqueceu de respirar.

-Claro que me compreenderão -declarou antes de atraí-la para ele para beijá-la.

-Acho que não é boa ideia -comentou Sophia atrás da porta do quarto. -Um bom professor tem de ensinar com o exemplo.

-Mãe?! -gritou Elizabeth afastando-se de Martin e cobrindo-se com o lençol como se acabasse de entrar no quarto-. O que faz aqui?

-Preciso falar com vocês -explicou do lado de fora. -Mas, claro, não imaginei que iria encontrá-los tão tarde dentro do quarto.

-Juro, minha filha, que tentei detê-la. Mas só consegui que se mantivesse em nossa casa até agora. Queria comparecer ontem à noite, quando a viu chegar na carruagem! -comentou Randall desesperado.

-Pai? Também veio? -gritou Elizabeth pulando da cama. Em seguida, olhou para Martin com os olhos arregalados-. Não me prometeu que pediria a chave? -sussurrou zangada.

-E ele fez! -Randall respondeu. -Mas sabe como sua mãe é...

-Parem de me criticar e saiam de uma vez! Temos que lhes dar uma notícia estupenda. Vamos, Randall, vamos à cozinha para lhes dar um pouco de intimidade.

-Querida, o que acabamos de fazer se afasta muito do que significa essa palavra -disse seu marido enquanto a acompanhava pelo corredor.

Não saía de seu espanto. Apesar de ouvir mil pedidos de perdão, Elizabeth colocou a camisola e o roupão sem falar com Martin. Saiu do quarto rosnando. Andou pelo corredor fazendo com que os seus passos fortes fizessem tremer o chão e desceu as escadas sem deixar de amaldiçoar a fraqueza do seu marido e os pretextos que a sua mãe lhe teria dado para não lhe dar a chave. Com raiva? Nem um pouco! O que sentia por suas veias se afastava muito de uma simples raiva. Seu mau gênio poderia causar pânico ao mundo inteiro.

-Bom dia, filha -Sophia a cumprimentou ao vê-la aparecer com os olhos vermelhos como papoulas-. Viemos aqui porque seu pai tem uma boa notícia.

-Eu? -perguntou Randall tão atônito que ficou sem fôlego. -Foi você quem falou com a senhora Spelman! -A acusou.

-Com a senhora Spelman? -perguntou Elizabeth sentindo como toda a raiva se dissipava no ato. -Mudou de opinião? Quer que continue lhe levando minhas flores?

Assim que Archie descobriu que vendia as flores através da floricultura da senhora Spelman, contatou a mulher e propôs-lhe um acordo que não podia recusar. Por esse motivo, na manhã seguinte à celebração do seu noivado, Elizabeth apareceu no estabelecimento com os sete ramos que tinha cortado. A florista não os aceitou e, apesar de ela ter lhe perguntado porque os rejeitava, não lhe deu uma resposta convincente. No entanto, uma semana depois, Valeria apareceu em sua casa e explicou-lhes que lorde Gharster encarregou à senhora Spelman que levasse todos os ramos e plantas que tinha no estabelecimento para a sua residência em Norwich, caso se recusasse a aceitar as flores de Elizabeth. Um acordo que, logicamente, não pôde recusar. Quando Martin, Trevor e até o próprio pai souberam o que tinha acontecido, quiseram procurar Archie para lhe dar outra surra. Felizmente, a sua mãe fê-los entrar em juízo com apenas uma frase: pagará pela sua maldade e quem o tocar, também a sofrerá. Desde então, ela decidiu continuar a cuidar de sua estufa e se concentrar em arrumar os dois jardins de sua nova casa.

-Não. A notícia é melhor que essa, não é Randall? -Sophia disse sorrindo enquanto tirava tudo o que tinha preparado de dentro da cesta.

-Sim, querida, é muito boa -indicou olhando Elizabeth, avisando-lhe que não tinha sido fácil controlar algo que sua mãe tinha feito, mas que manteria em segredo até sua morte.

-Decidiu te vender a floricultura -declarou Sophia finalmente-. Quer que amanhã mesmo contratemos um advogado para redigir o contrato.

-Como? -Elizabeth se sentou de repente em uma cadeira. Nessa altura, Martin, que apareceu com uma camisa branca, sem fechar corretamente os botões e uma velha calça escura, correu para ela e agarrou-lhe as mãos-. Venderá para mim? Por quê? O que fez para fazê-la mudar de ideia?

-Eu? Nada! Acabamos de ter uma conversa amigável e ela percebeu que não foi feita para negócios. Além disso, não é a pessoa certa para encher o mundo de flores -afirmou.

Esse comentário fez seu coração disparar e uma sensação de asfixia a invadiu. Ela se agarrou às mãos do marido com mais força, buscando o conforto que só ele proporcionava.

-Vamos, querida, acalme-se, -disse Martin com ternura. -Deve presumir que é uma boa oportunidade para você. Enfim alcançará seu sonho! -acrescentou dando-lhe um beijo carinhoso na testa.

-Elizabeth, filha, está se sentindo mal? -Randall perguntou, alcançando-a em apenas três longas passadas.

-Só está surpresa com a notícia, certo? -Sophia concordou.

-Sim, mãe -conseguiu responder.

-Por que não nos deixa um momento a sós? -pediu aos dois homens-. Uma breve conversa entre mãe e filha a relaxará -acrescentou com um enorme sorriso.

-Sophia... -Randall tentou avisá-la.

-Juro que, quando voltarem, contaremos o que conversamos -indicou depois de rodear a mesa e se colocar nas costas da Elizabeth.

Durante alguns segundos, nem Martin nem Randall quiseram sair, mas no final, depois de observar como Sophia não parava de fazer gestos para que as deixassem sozinhas, aceitaram sua decisão relutantemente.

-Vamos, Martin. Vamos lá fora para confirmar que ainda não começou a chover -disse o médico antes de virar-se para a porta.

-Não demorarei para voltar -comentou Martin antes de beijar suas mãos e sair acompanhado de Randall.

Sophia esperou que os dois estivessem longe o suficiente para que não as ouvissem. Em seguida, colocou-se na frente de sua filha.

-Sei que Morgana falou com você -começou a dizer.

-Não sei como faz, mas sempre se inteira de tudo -alegou mordaz.

-Te expliquei uma vez que nosso sangue vem de mulheres muito especiais. Elas sempre tiveram diferentes dons. O meu é proteger as minhas filhas quando a distância não me impede -esclareceu com suspeita.

-Fala como Josephine -murmurou Elizabeth.

-De onde acha que herdou seu espírito guerreiro? -Sophia soltou com orgulho. -Minha filha -acrescentou segurando-lhe as mãos para que estas deixassem de tremer - logo será mãe e quando tiver a suas filhas nos braços me entenderá.

-Também sabe isso? -perguntou olhando-a com assombro.

-Sim -contestou com um sorriso.

-Deduzo, então, que também sabe o motivo pelo qual Morgana me convocou esta noite -asseverou sem esperar uma resposta.

-É tão difícil acreditar que uma Arany conseguirá reconstruir um mundo devastado pela maldade humana? -Sophia disse após se separar dela.

-Mãe, ela quer que as minhas filhas salvem o mundo cultivando flores -comentou irritada. -As batalhas não são vencidas lançando flores aos soldados -acrescentou sem relaxar o seu tom.

-Escute-me bem, Elizabeth. As Arany livraram-se da peste negra através das infusões que a sua tetravó fazia com ervas do seu jardim. E se superamos uma epidemia tão mortífera graças às plantas, por que não confia no que Morgana te pediu?

-Porque é impossível que o consigam -manifestou sem titubear.

-Não é o momento de se perguntar como farão. A única coisa que deve fazer é lhes ensinar o seu dom e que elas o desenvolvam -asseverou com firmeza. -Se as privar do seu destino, sofrerão tanto como você sofreu durante estes últimos anos.

- Elas não cometerão meus erros -declarou apertando os dentes. -As protegerei de qualquer perigo.

-Já está agindo como uma mãe -disse Sophia esboçando outro grande sorris-, e isso que ainda não saiu de suas entranhas. Quando o fizerem, será pior que eu -adicionou antes de soltar uma gargalhada.

-Eu não serei, -Elizabeth murmurou. -Encontrarei uma maneira de me parecer com o papai -acrescentou solenemente.

Sophia, rapidamente, pegou no braço direito e puxou-lhe a manga do roupão. Então levantou a sua mão e colocou-a ao lado da filha. Quando Elizabeth observou as duas manchas escuras, no mesmo lugar e tão iguais que pareciam gêmeas, ficou sem palavras.

-Será como eu, filha. Porque seu sangue é Arany, não Moore -perseverou.

-Podemos entrar? Passou muito tempo e estou com fome -comentou Randall colocando a cabeça pela porta.

-Claro, querido. Entrem. Elizabeth há de dar-lhes uma maravilhosa notícia.

-Compraremos a floricultura? -perguntou Martin depois de se aproximar dela e abraçá-la. -Acho que é uma grande oportunidade para você, meu amor.

-Sim, a floricultura será nossa. Mas tenho que te dizer outra coisa -expressou enquanto pousava suas mãos sobre o ventre. -Martin, logo seremos...

- Santo Deus! -exclamou Randall arregalando os olhos. -Elizabeth está grávida!


O que aconteceu dois anos antes


Lambergury, residência do conde de Burkes durante a noite de 15 de novembro de 1882.

Madden, Clarke e Rickley se olharam quando o mordomo de Burkes anunciou a chegada de lorde Devon.

-Calma, tenho tudo sob controle. Nada pode dar errado -sussurrou o médico para seus amigos.

-Foi o que nos disse quando chegamos e o filho de Sheiton apareceu, -rosnou o juiz.

-Se o mantivermos longe das irmãs Moore e de nosso homem, não haverá nada a temer -interveio Madden para aliviar a tensão entre o médico e o juiz.

-Vou cuidar disso -disse Rickley.

-Mantenha seus olhos e ouvidos atentos -advertiu Clarke. -Se Sheiton vier aqui, encontrará apenas um culpado: você.

-Não precisa falar comigo assim. Até agora, nunca falhei -assinalou piscando.

-Uma coisa é asfixiar bebês antes de nascerem e outra muito diferente o que temos planejado esta noite -advertiu o juiz.

-O caminho nunca é fácil, mas Deus nos ajudará -interveio Madden.

-Continue a rezar ao seu Deus enquanto me encarrego de controlar todo o resto -apontou o médico antes de se afastar.

Com cautela, dirigiu-se ao seu companheiro: um antigo servo, agora ladrão, chamado Alvin. Não foi preciso muito para convencer Clarke a fazer o trabalho. Assim que lhe disse que ganharia a liberdade e uma boa recompensa, aceitou sem perguntar o que devia fazer. Antes de colocar-se a seu lado, observou-o satisfeito. Tinha sido um acerto vesti-lo com um traje tão sofisticado. Como indicou sua esposa, Alvin oferecia o aspecto e a opulência de um verdadeiro aristocrata. No entanto, ele continuava pensando que a noite só terminaria com sucesso se mantivesse a boca fechada, porque não tiveram tempo suficiente para corrigir sua atitude e sua linguagem. Mas a pressa do Burkes para dar uma festa em honra da noiva do Devon condicionou-os tanto, que nem sequer puderam ensinar-lhe as expressões mais básicas.

-Sabe o que deve fazer - lhe disse quando se aproximou.

-Me disse que poderia escolher uma. Eu quero essa -comentou Alvin sem desviar o olhar de Elizabeth.

-Essa? Não te serve a mais jovem?

-Não. A jovem é feia e me dá calafrios. Parece que leva a morte em suas mãos.

-Mas seria a mais fraca das duas, não acha? -perguntou o médico.

-Não. Temo que não é e, mesmo que fosse, quero a outra. Vou me divertir muito com ela -explicou Alvin piscando.

-Não me importa o que pretende fazer com a moça, mas sabe como há de terminar a noite -murmurou Rickley dirigindo-lhe um olhar desafiador.

-Cumprirei o acordo, desde que não se esqueçam do que me prometeram. Se não o fizerem, todo mundo saberá os nomes de quem me contratou -advertiu antes de caminhar para a mesa de bebidas, onde permanecia a jovem de cabelos dourados.

Rickley apertou os punhos depois de ouvir a ameaça. Desejou dirigir-se a Clarke e contar-lhe o que tinha acontecido para que estivessem atentos. No entanto, deixou de pensar numa vingança quando Alvin ofereceu à moça uma bebida e a aceitou com um sorriso. No momento precisava dele vivo. Depois de que completasse o plano, pensaria...

Quando decidiu voltar com os outros cavalheiros, descobriu que o jovem Cooper percorria o salão para encontrar-se com a jovem que provocou calafrios em Alvin. Lorde Cooper era amigo das senhoritas Moore? Se assim fosse, o assunto se complicaria muitíssimo. Mas não podia perder a esperança com tanta rapidez. Talvez se aproximou dela para uma conversa cordial, já que eram as únicas pessoas jovens na sala. No entanto, as poucas esperanças que tinha desapareceram quando Cooper a olhou nos olhos. Ali não houve desconhecimento, senão outra coisa que o deixou tão frio como um iceberg.

Desesperado, aterrorizado e confuso, olhou para seus amigos. O medo aumentou ao descobrir que estavam tão surpresos quanto ele. Deviam cancelar o plano? Porque se acontecesse a tragédia que haviam previsto, temia que o menino pedisse ajuda ao seu pai para encontrar o assassino da irmã de sua amada. Lorde Sheiton não demoraria um dia a sair de Londres acompanhado pela sua comitiva de vigilantes. Sem dúvida, Brighton estaria cercada até que encontrassem o culpado e o colocassem na cadeia.

Em um segundo, Rickley viu a vida passar diante de seus olhos, e o final que percebeu nessa história não lhe agradou. Com rapidez, procurou Alvin e... Não estava! Onde tinha se metido? Gotas de suor escorregaram por sua testa ao confirmar que tampouco a moça de cabelos dourados se encontrava no salão. Não pensou em nada exceto em encontrá-los. Correu para fora com a rapidez de um adolescente. Mas na sacada não havia ninguém, nem tampouco nos arredores. Estariam no jardim? Que lugar teriam escolhido? Rickley deu uma olhada. A parte esquerda foi descartada imediatamente depois de encontrar vários cocheiros vigiando as carruagens. «Centro ou direita?» pensou. A probabilidade de acertar estava reduzida à metade. Mas não havia tempo para refletir. Olhou para a frente e depois para o lado direito. Finalmente escolheu o centro ao decidir que a jovem não suspeitaria nada se caminhassem para frente.

Durante os dez minutos seguintes, ao não ouvir nada, pensou em voltar e tomar o outro caminho. Entretanto, antes de fazê-lo, ouviu a jovem chorar e suplicar.

-Por favor, Lorde Norfolk, não me machuque!

-Não chore, preciosa. Só quero que desfrute da minha companhia. Não é o que estava procurando?

Apesar da crueldade que ouviu, ficou aliviado ao confirmar que não tinha chegado tarde. Ela estava viva e podia resgatá-la. O que faria a seguir era uma pergunta que na altura não lhe queria fazer. Mas a pressa, a escuridão e o nervosismo não foram uma boa combinação e tropeçou em um grosso e longo tronco. Quando se levantou, tudo estava em silêncio. Como se de repente o mundo inteiro tivesse ficado mudo. Levantou-se e conteve a respiração pelo pânico que se apossou dele nesse momento. Como iam arrumar aquele desastre? Enquanto retomava o passo, não deixou de pensar na melhor forma de salvar a situação. Milhares de ideias passaram por sua cabeça até que se concentrou em uma que não seria estranha, dada a juventude da moça. Que criança apaixonada não foge com um cavalheiro para se casar em Gretna Green? A história seria bastante crível, ninguém suspeitaria que na verdade estava morta e enterrada em algum pântano de Brighton.

No entanto, quando chegou ao lugar onde devia ocorrer o crime, ficou pasmado com o que viu: a jovem chutava para afastar o corpo do homem. O que tinha acontecido? Não entendia nada. No meio dessa confusão, a moça levantou-se e correu para a casa soluçando frases em um idioma que não entendeu. Rickley permaneceu escondido atrás de uma árvore com o olhar pregado no corpo. Estava tentando encontrar uma explicação razoável para o que tinha acontecido. Alvin, com um peso de quase oitenta e cinco quilos e uma altura de um metro e setenta em cinco, tinha sido derrotado por uma mulher de constituição delgada e com uma altura mediana. Como é que conseguiu? Sem dar crédito ao que seus olhos contemplavam, deu um passo em frente, para dirigir-se ao homem, mas retrocedeu quando advertiu que Alvin tentava se levantar. «E agora, o que?» perguntou enquanto observava que, depois de conseguir, andava ziguezagueando desorientado.

Uma vez que Alvin se afastou o suficiente para que não o ouvisse, deu vários passos para a frente e olhou pelos arredores. Procurava o objeto com o qual a garota se defendeu. Mas ali não havia nada exceto terra e grama seca. Talvez lhe deu um soco... A curiosidade sobre o que a jovem tinha usado dissipou-se ao escutar com clareza os murmúrios de Alvin. Não gostou nada do que entendeu. As palavras chantagem e riqueza não deviam ser acrescentadas em uma mesma frase. Sem pensar duas vezes, pois de sua decisão dependia o destino dos três, voltou à escuridão e buscou o tronco com o qual havia tropeçado. Depois de o encontrar, agarrou-o como se fosse o taco com que jogava polo e caminhou depressa para a sua presa.

Tratava-se de sobrevivência. Era ele ou eles e, logicamente, aquele ladrão não valia a pena. Furtivamente, continuou estudando a melhor forma de lhe dar um forte golpe na cabeça. Era complicado, porque era muito mais forte, alto e jovem que ele. Não tinha a menor dúvida de que se não acertasse de primeira, o morto a quem encontrariam seria ele.

E, de repente, a sorte ficou do seu lado...

Sua boca desenhou um enorme sorriso ao ver que Alvin estava tão chocado que caiu de joelhos. Que tipo de golpe a mulher lhe deu? Era verdade que, durante episódios de medo, o ser humano agia de maneira insuspeita. O último caso estranho ocorreu um ano atrás, quando o senhor Jonas, com setenta anos, subiu em uma árvore depois de ser atacado por um lobo. Logicamente, toda a cidade foi ajudá-lo a descer, já que, uma vez que a ansiedade do idoso desapareceu, não lhe restaram forças para descer. A senhorita Moore não necessitou da agilidade de um gato para salvar sua vida, mas sim a força de um Titã.

-Maldita cadela! -Balbuciou Alvin tocando a testa com uma mão.

Rickley percebeu que o tempo estava passando e precisava aproveitar o único momento que tinha para matá-lo. Muito lentamente, se colocou as suas costas e quando levantou o bastão, este virou a cabeça para ele. Rickley não teve compaixão e lhe deu um duro golpe. Em seguida, Alvin caiu para a frente como se fosse uma pedra lançada do céu.

-Morta a ratazana, acaba-se a raiva -disse com orgulho depois de confirmar que não tinha pulso. -Agora, a quem vai chantagear? -acrescentou com zombaria. Apesar de saber que estava morto, levou mais quatro pancadas.

-Tem certeza de que o deixou aqui? - Ouviu uma voz masculina.

Rickley, surpreso ao ouvir que havia pessoas por perto, jogou o bastão e voltou à escuridão. A melhor forma de salvaguardar a sua identidade era aparecer na festa e conversar com os convidados. Deste modo, todos confirmariam a sua presença nela. No entanto, a curiosidade impediu-o de se afastar. Precisava saber quem eram e o que faziam ali.

-Aqui! -gritou um homem com um tom estranhamente feminino.

-Santo Deus, é verdade! -exclamou o primeiro que falou.

-O que vamos fazer? -soluçou a moça.

-A única coisa que este bastardo merece -assinalou a segunda voz masculina, que também se inclinou para o corpo para confirmar a sua morte. -Agarre-o pelos pés, eu o pego pelos braços.

-Onde vamos levá-lo? -perguntou o da voz afeminada.

-Ao lago. É a única opção que me ocorre.

«Imbecis!», pensou o médico ao ouvir o plano improvisado. Eram tão idiotas que decidiram jogá-lo na água. Suas estúpidas mentes não eram capazes de pensar que o morto não ficaria no fundo para sempre? Por que não consideraram uma possibilidade mais simples e efetiva como a de enterrá-lo? Enquanto a jovem permanecia em choque, Rickley testemunhou como os dois homens faziam uso de suas forças para levá-lo até a margem do lago. Uma vez que o lançaram, voltaram com a jovem.

-Venha, deixe-me abraçá-la -disse a voz afeminada.

-Leve-a para a carruagem. Vou encontrar suas irmãs e dizer-lhes que está sofrendo de enxaqueca -explicou o outro.

-Não sei como vai se recuperar disto -indicou abraçando a jovem com força.

-Temo que Elizabeth não se recuperará nunca desta tragédia -respondeu o segundo homem.

Uma vez que se afastaram, Rickley começou a pensar em como devia arrumar aquele desastre. Em três dias, o corpo emergiria, alguém o encontraria e ligaria para Clarke. Como o lago estava perto da propriedade, a notícia logo chegaria, e Burkes não só se interessaria em saber quem era, mas também insistiria em saber a razão pela qual Clarke, Madden e ele o levaram à festa. Com a suspeita que o caracterizava, não demoraria em descobrir que os três conspiraram contra ele. Um homem como Burkes podia detectar a traição e a maldade que o rodeavam num piscar de olhos.

Rickley, enquanto seguia observando o lago, pensou na opção mais conveniente para todos: tirar outro preso da prisão para vigiar o lugar. Uma vez que o corpo emergisse, teria que levá-lo numa carroça até uma região afastada dos terrenos de Burkes e atear-lhe fogo. Até o momento, ninguém era capaz de descobrir a identidade de uma pessoa através de algumas cinzas. A ideia lhe pareceu perfeita. Embora tivesse um inconveniente: Clarke. Tinha certeza de que recusaria voltar a se envolver, pois foi ele quem falou e tirou Alvin da prisão. De qualquer forma, tinha outra opção: Madden. Como reverendo, buscava o perdão divino de seus paroquianos e estes eram capazes de fazer qualquer coisa para alcançá-lo...

O médico sorriu enquanto retomava o caminho para Lambergury. O plano não tinha saído como esperavam, mas nenhum dos três se daria por vencido. Cedo ou tarde destruiriam o conde de Burkes e matariam seu sobrinho George Laxton.


A seguir – a coragem de Josephine.

Prólogo

Londres, abril de 1885. Hamilton, residência do Barão de Sheiton.

Eric estava voltando para casa com um sorriso que atravessava seu rosto. Novamente visitou os Moore sem avisar. E como das vezes anteriores, Josephine teve que recebê-lo a pedido estrito de seu pai. Para a menina, a ordem foi um castigo; para ele, um prazer insuperável. Ele a estava torturando assim desde que atirou na árvore e uma dúzia de estilhaços voaram em seu rosto. Lá onde todo mundo viu uma tentativa de assassinato, ele considerou como a melhor oportunidade para seguir conhecendo-a. Mas ainda não havia alcançado seu propósito. Josephine era uma mulher muito teimosa. Seu pai a descreveu como uma guerreira. Sua mãe, uma demente. A questão era que ele amava aquela guerreira demente desde que a conheceu em Brighton e esperava com paciência que seus sentimentos por ele mudassem. No momento, se contentava em vê-la e escutá-la resmungar cada vez que aparecia em sua casa. Embora a questão mais importante era descobrir quando seria o momento apropriado para fazê-la entender que ele lhe daria a lua se a pedisse.

-Boa tarde, Milorde. Devo anunciar-lhe que seu pai o espera no escritório -explicou-lhe o mordomo depois de recebê-lo.

-Obrigado, Blanchett -respondeu entregando-lhe o casaco e as luvas.

-De nada -disse antes de se retirar.

Ao ficar sozinho no hall olhou para o andar de cima. Hope não demoraria em aparecer junto a Anais. Mãe e filha iriam à casa dos Riderland para fazer compras com Evelyn. As três tinham começado há duas semanas os preparativos para a sua festa de aniversário. Não lhe agradava ter que celebrar um dia assim rodeado de tantos convidados que mal conhecia. Preferia uma cerimônia íntima, para poder estar com sua amada Josephine. No entanto, o que sonhava era impossível.

Desviou o olhar do primeiro andar e fixou-o no final do corredor, respirou profundamente e caminhou até o escritório pensando sobre o assunto que trataria desta vez seu pai. Temia que conhecia seu propósito assim como sabia a resposta. Ele desejava aceitá-la. Havia se preparado para isso desde os dezessete anos. Enquanto os outros jovens se preocupavam em desfrutar de todas as oportunidades que lhes oferecia a puberdade, ele passou esses anos estudando e assumindo a administração dos bens familiares. Até o momento, seu interesse no posto que seu pai lhe oferecia era mínimo, ainda que temesse, que cedo ou tarde, deveria assumir o futuro que teria ao ser o único filho varão. Não lhe pesava sobre suas costas carregar um cargo tão importante, ao contrário, gostava. No entanto, estava consciente de que ainda não estava preparado. Talvez mudasse sua decisão se Josephine aceitasse o óbvio. E para isso faltavam alguns anos...

-Entre -Federith disse ao ouvir alguém bater na porta.

-Boa tarde, pai. Blanchett me disse que queria falar comigo -comentou Eric ao entrar no escritório.

-Boa tarde, filho. Feche a porta e sente-se -declarou levantando-se.

Tal como lhe pediu, ao fechar, caminhou para um dos dois assentos que havia frente à mesa, desabotoou os botões da jaqueta e se sentou sem deixar de olhá-lo.

-De onde vem? -perguntou Federith ao rodear a mesa. Se apoiou com as nádegas nesta e cruzou os braços.

-Da residência dos Moore.

-Voltou a adoecer? -disse preocupado.

-Algo assim -comentou desenhando um pequeno sorriso.

Federith o observou por alguns segundos. Reparou no brilho que mostravam os olhos do menino e o leve sorriso que tentava esconder. Não mostrava sinais de outra doença, por isso não entendia o motivo pelo qual aparecia naquela casa um dia sim e outro também. Estaria interessado na medicina? O senhor Randall estaria lhe dando aulas particulares? Vindo de Eric, tudo era possível. Sua necessidade de indagar sobre mil matérias diferentes o tornavam um rapaz inquieto e audaz. Essa faceta de seu filho lhe agradava. No entanto, lhe angustiava a atitude distante que mantinha a respeito de sua oferta. Até agora, tinha-lhe permitido investigar e estudar tudo aquilo que lhe parecesse interessante. Entretanto, em uma semana se produziria uma grande mudança para ele. Alcançar duas décadas de vida implicava uma maturidade, uma posição social e um comportamento digno de um futuro barão.

-Já sabe que logo completará os vinte e é um momento muito importante para um homem -começou a dizer.

-Eu sei -respondeu sereno.

-Até agora, não te pedi para reconsiderar o lugar que deve ocupar, porque acho que foi muito aceitável todo o trabalho que fez como administrador. Mas esse cargo é muito simples para um futuro barão -prosseguiu Federith.

-Esse não é o futuro ao que aspiro. Só aguardo o tempo adequado para estar à altura de suas expectativas -disse solene.

-Sempre correspondeu às minhas expectativas, -disse Federith, olhando para ele. -Não mudaria nada do que fez até agora. E posso garantir que estou muito orgulhoso de ser seu pai. No entanto...

-No entanto?

-Deve assumir de uma vez por todas a sua verdadeira ocupação. Entendo que se sintas indeciso, mas asseguro que fará um magnífico trabalho. É sábio, correto, sensato, firme e tenaz. Qualidades básicas para se tornar um bom advogado.

-Sou muito jovem, pai. Não acha que todos falarão sobre isso? -perguntou inquieto.

-Aprendi há muito tempo que é preciso respeitar seus próprios princípios e que estes não agradarão a todo mundo. O importante é que te agradem.

-Mesmo assim, ainda acho que não estou pronto para aceitar sua oferta -respondeu ele, movendo-se desconfortavelmente na poltrona.

-Talvez porque não tenha certas responsabilidades -Federith apontou rapidamente.

-A que tipo de responsabilidades se refere? Porque administrei os bens familiares melhor que qualquer administrador da cidade e, que eu saiba, jamais o ouvi queixar-se.

-Se beneficiou tanto com o cargo de administrador? -Ficou espantado.

-Não. Isso foi apenas mais um passo para alcançar meu verdadeiro objetivo. Quero me tornar um bom advogado. Mas não tenho certeza se esse momento chegou. Tenho que aprender mais e melhorar minhas habilidades para beneficiar-me delas.

-Não há tempo, -comentou Federith, descruzando os braços. Se afastou da mesa e voltou ao seu lugar. -A decisão já está tomada, -anunciou após pegar alguns documentos e colocá-los perto do rapaz. -Em uma semana trabalhará comigo e aceitará seu destino.

-Pai! -exclamou, levantando-se da poltrona. -Por que faz isso comigo?

-Porque é o melhor para você. Não tenho reclamações sobre suas aptidões. Na verdade, sinto-me muito orgulhoso de que falem sobre meu filho com respeito e admiração. Entretanto, ninguém há de saber que tem dúvidas sobre o cargo que te ofereço. Se o descobrem, jamais acreditarão em seu bom julgamento.

Dúvidas? Ele não duvidava de nada! Aquilo que se propunha, conseguia-o à base de perseverança. Prova disso era o aumento do patrimônio familiar que ele mesmo realizou sendo tão jovem e suas incontáveis visitas aos Moore. Perdeu seu interesse durante os milhões de grosserias de Josephine? Não, pelo contrário, aumentou seu amor por ela e o desejo de convertê-la em sua esposa.

-Conceda-me mais alguns anos -pediu esperançoso-. Acho que com vinte e dois...

-Não posso te dar mais tempo. Em seis meses o senhor Swank abandonará seu posto e quero que ocupe essa vaga -garantiu.

-Não será suficiente... -Murmurou para si, mas seu pai o ouviu.

-É o adequado -garantiu.

-Adequado? -Eric deixou escapar olhando-o com expectativa-. O que considera adequado?

-Lembro-lhe que também atingiu a idade de sair à procura de uma esposa. Esse seria um bom passo antes de exercer a advocacia. Pode começar essa busca durante a próxima temporada social. Anais pode ajudá-lo a escolher a jovem mais adequada para se tornar a futura Baronesa de Sheiton.

-Vai morrer? - Perguntou através de um grunhido.

-Não -respondeu Federith confuso.

-Então, não entendo sua pressa. Ainda tenho vários anos para cortejar uma mulher.

-Tem que fazê-lo! -Federith perdeu a paciência.

-Pelo amor de Deus! -Eric gritou esfregando o rosto-. Ouviu o que está pedindo?

-É o seu dever. Futuramente se tornará o barão de Sheiton e, como tal, deve cumprir as duas obrigações mais importantes: ser um homem próspero e contribuir com filhos para...

-Lembra-se que estamos no final do século? A sociedade está mudando -ele murmurou.

-Talvez para outros, mas não para nós. Temos um passado a respeitar e um futuro a alcançar.

Ao se ouvir falar daquela forma, Federith retrocedeu mentalmente ao passado. Encontrava-se no mesmo lugar, mas seu papel tinha mudado. Quem se sentava atrás da mesa era seu pai e ele ocupava o lugar de Eric. Quando saiu do escritório batendo a porta, jurou que lutaria contra toda a sociedade e prometeu que nunca obrigaria seu filho a fazer algo que não quisesse. No entanto, três décadas depois, ele quebrou sua promessa.

-Não vou procurar uma esposa -declarou o jovem.

-Não precisa encontrá-la este ano. Mas seria interessante se indagasse sobre as jovens que se apresentam na sociedade. Talvez se apaixone por alguma delas -comentou com um tom mais relaxado.

-Não preciso procurar uma esposa porque já a encontrei -confessou finalmente. -Ela é a escolhida e não me importo com sua opinião. Josephine se tornará minha esposa e futura baronesa de Sheiton.

-Josephine? -Federith perguntou levantando uma sobrancelha.

-Josephine Moore -o rapaz esclareceu.

-Não pode ser! -gritou. -Se apaixonou pela mulher que quase te matou?! Ficou louco?

-O amor é uma loucura, pai. E Josephine tem feito com que cometa milhões desde que a conheci há três anos -comentou com um sorriso de orelha a orelha.

-Corteja essa jovem desde que tinha 17 anos? -Federith soltou atônito.

-Sim -Eric respondeu sem tirar aquele sorriso divertido do rosto.

-E o que ela diz sobre suas pretensões? -continuou intrigado Sheiton.

-Pois além de me apunhalar na perna no dia em que nos conhecemos, tentar me atropelar com seu cavalo, atirar em mim, colocar uma folha de urtiga no chá e resmungar cada vez que me vê, nada -continuou divertido.

-Tentou te envenenar? -Federith arregalou os olhos.

-E não se esqueça que também atirou em mim - lembrou-o-. O chá só me deu uma terrível dor de estômago e uma indisposição que durou uma semana.

-Pelo amor de Deus, Eric! Como pode continuar apaixonado por ela? Já tentou matá-lo de todas as maneiras que conhece! -exclamou com raiva.

-Mas lá no fundo, sei que o fez porque me ama. Tudo o que preciso é de um pouco de tempo para que ela assume seus sentimentos -pediu-lhe depois de pôr as mãos sobre a mesa e olhá-lo suplicante.

-Não sei o que dizer a respeito... -Murmurou levantando-se da poltrona para dirigir-se para o decantador de brandy. -Esteve em perigo tantas vezes por causa dela que agora só quero denunciá-la e colocá-la na prisão -expressou antes de beber de um gole da taça que se tinha servido. Encheu-a de novo e olhou para Eric à espera de uma resposta silenciosa à sua oferta. Ao acenar este, tomou outra taça e logo caminhou para ele para sentar-se a seu lado-. O que pensou em fazer com ela?

-Da última vez que me fiz essa pergunta, pensei em raptá-la e levá-la até à Gretna Green para obrigá-la a casar comigo. Mas depois reconsiderei porque não tenho a menor dúvida de que só ela regressaria a Londres.

-Por que voltaria sozinha? -perguntou Federith reclinando-se na poltrona.

-Porque me mataria e jogaria meu cadáver em qualquer descampado que encontrasse perto.

-Sim, poderia fazê-lo com facilidade -concordou Sheiton um pouco mais tranquilo.

-Levo três anos tentando descobrir como conquistá-la, mas ainda não encontrei a resposta -Eric expôs desesperado depois de tomar um gole da bebida.

-Já pensou em ficar longe dela? Talvez assim reaja de uma vez. Muitas vezes não se valoriza o que se tem até que encontramos o perigo de perdê-lo -sugeriu-lhe.

-Refere-se a lhe deixar com ciúmes? Simular um cortejo com outra mulher? Não sou desse tipo de homem, pai. Além disso, talvez essa atitude a afastasse de mim. Uma das muitas coisas que aprendi com Josephine é que ela odeia pessoas mentirosas e nunca me perdoaria se o fizesse -esclareceu.

-Esqueçamos então essa opção -comentou Federith reflexivo.

-Pensei em perguntar à Anais. Talvez ela possa me dar uma opinião diferente por ser mulher. Também é amiga de Anne, a mais velha das Moore, e poderia tirar-lhe certa informação. Estou tão desesperado que aceitaria qualquer proposta -apontou Eric antes de soltar um longo suspiro.

-Seria uma boa opção. Sabe que ela te ama como uma mãe e se comportou como tal desde que nos casamos. Assim que lhe pedir conselho, fará todo o possível para te ajudar.

-Eu sei, -comentou, olhando para o líquido em sua taça.

-Está bem! Vamos fazer assim, -exclamou Federith de repente, levantando-se de sua poltrona. Então caminhou rapidamente até a porta e chamou o mordomo. Quando ele apareceu, perguntou: -Minha esposa ainda está em casa ou saiu?

-Ainda na entrada, Milorde. Lady Sheiton espera a carruagem que alugaram ontem -informou-lhe Blanchett.

-Alugaram uma carruagem? Por que não usam as que temos? -interveio Eric.

-Anais decidiu transformar o nosso salão de baile em um pequeno Almack’s. Para isso, precisa de um veículo maior. Os que possuímos não têm espaço suficiente para transportar todas as compras que se dispõem a fazer -Federith declarou divertido-. Bem, diga a minha esposa que se reúna conosco imediatamente.

-Sim, milorde -comentou o mordomo antes de sair e procurar a baronesa.

- O que lhe ocorreu? -perguntou Eric.

- Selaremos um pacto... -comentou com mistério enquanto voltava a poltrona. -Aceitará o posto que te ofereço e em troca nós te ajudaremos a conquistar a senhorita Moore.

-Não será fácil. Como expliquei, tenho tentado atravessar esse férreo coração durante os últimos três anos.

-Mas fez isso sozinho, meu filho. A partir de agora, terá o apoio de toda a sua família -comentou Federith esboçando um sorriso malicioso.

-Hope também participará? Não acho que deveria...

-Não, Eric. Não quis dizer Anais e Hope, mas todas as pessoas que considero família.

-Todas? - o jovem soltou espantado.

-Todas -concordou Federith.

Eric soube naquele momento que sua vida se tornaria uma tortura quando os Riderlands, os Rutlands, os Devons, que incluíam a irmã mais velha de Josephine, e sua família falassem, expressassem suas opiniões e decidissem sobre seu futuro.

 

 

                                                    Dama Beltrán         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades