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A BATALHA DO APOCALIPSE - P2 / Eduardo Spohr
A BATALHA DO APOCALIPSE - P2 / Eduardo Spohr

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Morte em Alto-Mar

         Três longos dias se passaram, durante os quais fomos espiados de perto por um homem armado de porrete e espada. Não vi mais o rosto de Cassius, embora tivesse pensado, inicialmente, que ele próprio nos vigiaria.

         As noites se tornavam mais frias à medida que nos afastávamos do continente c nos embrenhávamos na isolação marinha. Presos no compartimento da proa, Flor do Leste e eu recebíamos as lufadas mais geladas da madrugada primaveril, e meu vigor renovado, restaurado pelo tratamento de ervas, minguou-se nova­mente.

         No terceiro dia, a despeito das sementes de romã, desfaleci duas vezes. Pas­sei a noite imóvel, tão esgotado estava meu corpo. Foi então que, na manhã do quarto dia, ouvi os capangas conversando. Apostavam uns contra os outros que eu já estava morto e, conforme ordenado, abriram a cela para retirar Flor do Leste. Ouvi o trinco correndo, mas não pude reagir de imediato. O guarda que nos vigiava era mais jovem que Cassius, mas dotado de igual crueldade. Forte c alto, rinha cabelos loiros e curtos, e a barba malfeita lembrava a de seu dire-tor. Os marinheiros o chamavam de Titus e, apesar de esse nome ser tipicamente romano, eu não tinha certeza se era mesmo de Roma. O feitor levantou o al­çapão e puxou a menina pelo braço. Ela procurou reagir, mas estava fraca. Títus a arrastou para o convés, sem muita dificuldade. Mais uma vez, tentei me erguer, mas ainda não conseguia uma resposta dos músculos.

 

 

 

 

 

 

         — Ela se debate como um inseto — ouvi o guarda dizer, com uma gargalhada tão sonora quanto perversa.

         Um sujeito estufado, apelidado de Olho de Peixe, perguntou em latim:

         — E o bárbaro? Morreu, afinal?

         Titus, ainda imobilizando a garota, espiou novamente o buraco, bem no instante em que eu levantava a cabeça. Não fui capaz de distingui-lo de pronto, em meio à desordem que me nublava a mente.

         — Quase, Olho de Peixe, quase. Vou dar cabo do miserável de uma vez. De­pois podemos nos divertir com a menina.

         Enquanto me erguia, escorando-me sem rumo nas paredes sujas da cela, Titus passou a pequena à guarda de um segundo feitor, que a travou com os bra­ços possantes. Meu esforço foi poupado quando o capanga me arrancou para fora, com um puxão. Um golpe de bastão explodiu em minhas costelas. Olhei ao redor, mas nada avistei, apenas um borrão vacilante. Escutei, porém, os gritos dos marujos, excitados por assistir à peleja.

         Um outro impacto assaltou-me a cabeça, perto do ouvido, e segurei-me à amurada, para não esmorecer outra vez.

         — Esse bárbaro não sangra? — berrou alguém, sedento pelo linchamento.

         — Não o poupe, Titus! — incentivou outro.

         — Queremos o sangue do selvagem! — esbravejou um terceiro.

         Estimulado por tão inflamada torcida, o capanga apertou-me o pescoço e sacou o gládio da bainha. Notei que a espada tinha o escudo do exército, então deduzi que fora roubada de um soldado caído.

         Titus julgou que eu estava indefeso e preparou o golpe de misericórdia, pla­nejando cortar minha garganta. Quando desferiu o ataque, porém, inclinei a cabeça para trás, e a lâmina rasgou-me o queixo, provocando um ferimento su­perficial abaixo da boca. O sangue pulou para fora, manchando de vermelho a face e o peito do guarda. Nunca uma arma ordinária tinha me causado tamanho flagelo, e entendi, com irónico desgosto, que minha vida estava prestes a ser ceifada por um mortal, cuja espécie sempre jurei defender.

         Mas um fato inesperado ocorreu. Um segundo após o assalto, Titus largou o gládio e, apavorado, começou a esfregar o próprio rosto. Forçando a vista, vi que ele se afastava, respirando com extrema dificuldade. A face fervia e a tez borbulhava, deixando escapar uma fumaça esverdeada, não natural. Os marujos e feitores abriram um círculo em volta dele, impressionados demais para tocar o ferido.

         Quando Titus se ajoelhou, pálido e ofegante, com os olhos virados e o nariz deformado, compreendi o que se passava. O sangue que esguichara em seu ros­to, o meu sangue, não era normal. Outrora tivera a propriedade da longevidade eterna, mas agora estava contaminado. A peçonha de Mai Yun se agitava em minhas entranhas, e era isso que me tornava tão fraco. O veneno já causara a ruína de muitas entidades e acabara de atingir a pele de um ser humano.

         O capanga que segurava a menina a liberou, meio abstruso, e ela, esperta, valeu-se da apatia dos guardas para se agachar e encher o cantil em um balde de água doce, ainda intocado, que seria usado para lavar o convés.

         Quando Titus tombou com a cabeça no chão, a pele da face esfacelara-se em sangue, expelindo uma mistura nojenta de pus, carne e ossos. Ele parou de gemer, e a agonia cessou.

         O italiano estava morto.

         O terror dos homens converteu-se em aversão destrutiva, e eles tomaram todas as armas que podiam — varas, correntes, ganchos — e ameaçaram avançar. Imediatamente, peguei do chão um pedaço de pano e o pressionei contra o fe­rimento, tencionando deter a hemorragia. Seria inconcebível que Flor do Leste, ou qualquer outro, tivesse contato com meu sangue mortal.

         Diante da ferocidade dos tripulantes, que fechavam um cerco à minha volta, decidi que a opção mais segura seria voltar para a cela.

         — Venha, Flor do Leste — gritei em mandarim, com a mão direita estendida, enquanto a esquerda segurava o curativo.

         Ela tampou o cantil de pele e correu para junto de mim. Por fim, retroce­di ao buraco, fechando eu mesmo a grade do alçapão. Um marinheiro cerrou o trinco e não vi mais ninguém pelo resto do dia.

 

Roma, a Cidade Eterna

         O dia seguinte à morte de Titus amanheceu chuvoso, e ouvi os supersticio­sos culparem o mau humor de Netuno, o deus dos mares, a quem os navegantes prestavam sacrifícios.

         — Netuno deve ter tido uma indigestão com o presente de ontem — murmurou alguém, referindo-se à carcaça do morto, que fora lançada às águas.

         Encerrado na cela, eu já começava a planejar um meio de conseguir comida, uma vez que nossas provisões — as sementes de romã — tinham acabado. Consi­derei a possibilidade de negociar com Alexius, mas era improvável que ele me recebesse — e, se o fizesse, o que pediria em troca? Flor do Leste, por sua vez, deixara claro, por sinais, que prefereria morrer a ser entregue àquele homem depravado.

         Nossa situação, contudo, se inverteria rapidamente. À hora do almoço, al­guém empurrou duas vasilhas para perto da boca do alçapão. Era um escravo africano que provavelmente se oferecera para trabalhar. Entendi, ao ver o con­denado, que os feitores italianos e os marujos fenícios preferiam manter uma distância segura de nós,

         O numídico abriu o trinco e tomei as vasilhas. Nelas havia água, peixe e um pedaço de pão. Uma refeição modesta, mas veio em boa hora. Dividi a porção com a menina e depois devolvi os recipientes de barro, colocando-os para fora da grade. Dali em diante, surpreendentemente, todos os dias seguiriam a mesma rotina.

         Não sei muito bem quem tomara a decisão de nos alimentar, mas talvez te­nha sido uma ordem de Alexius, procurando evitar um novo escarcéu. Os mari­nheiros e capangas, após o tumulto, espiavam-nos com um respeito odioso e um medo colérico. Talvez o traficante ainda pensasse em nos vender; talvez o capitão tenha conversado com ele; talvez os marujos não quisessem nos entregar a Netuno... E impossível dizer. Não sei até hoje por que fomos poupados,

         O ferimento no queixo sarou rápido, e me sentei sobre o pano, deixando o pedaço sujo de sangue bem longe de Flor do Leste. Os dias correram, e assim a primavera avançou.

 

         Foi em uma manhã quente de abril, quando todas as nuvens se dissiparam, que o Insula Major aportou em Ostia, o principal porto romano daqueles dias. Não vi quando o navio atracou, mas despertei ao ser retirado da cela por escravos numídicos, que já se vestiam à moda romana, com togas curtas e desgastadas, Alexius estava de pé, no convés, mais arrogante do que nunca, uma vez acolhido por sua pátria natal.

         — É melhor andar na linha, bárbaro — grasnou o escravista. — Não vai con­seguir enganar mais ninguém com esses seus truques de fuga, então não se fa­ca de esperto — e fez um sinal para os carregadores. — Levem-no para a barcaça — ordenou, e murmurou para um guarda que o escoltava:

         — Vou tentar passá-lo adiante, O grego que me vendeu esse selvagem disse que ele tinha febre da Núbia. Febre da Núbia... Devo ter cara de idiota.

         Ainda às escuras, percebi que era carregado pelos negros para outro barco, supostamenté menor, que subiria o rio Tibre e chegaria a Roma. Havia perdido quase completamente a visão, o olfato e a audição, e minha barba estava tão grande e suja quanto a dos pedintes na sarjeta. Mas restava-me o sentido do tato, e a presença de Flor do Leste provou-se constante por todo o percurso, o que me deixou mais confiante e tranquilo.

         Roma, a Cidade das Sete Colinas. Não pude tê-la à vista ao ser levado pelo rio, pois o veneno enegrecera-me os olhos, então tentei formar uma imagem em minha mente, A Cidade Eterna havia se expandido incrivelmente desde o dia em que eu a deixara, nos últimos anos da antiga República. Roma agora ti­nha um imperador, César Augusto, que erguera grandes monumentos e salões suntuosos. Augusto, segundo suas próprias palavras, encontrara uma cidade de pedra e a convertera em uma cidade de mármore. Sob sua administração, a ca­pital alcançou inigualável esplendor

         Ao morrer, em 14 d.C., o soberano deixaria um legado espetacukr à poste­ridade. Construíra novos templos, bibliotecas, teatros, banhos públicos e aque­dutos, essenciais para trazer a água das montanhas à cidade, e para abastecer o sistema de esgoto. Mas não foi só no campo da engenharia que ele se destacou. Augusto foi, de fato, o primeiro imperador romano, e governou com inteligência e prudência. Desenvolveu um aparato burocrático que o permitiu controlar e organizar todos os aspectos da vida pública, na capital e nas províncias conquis­tadas, na África, na Europa e no Oriente Médio. Estabeleceu, por fim, a paz, e com isso pôde dedicar-se ao povo de Roma. Criou uma brigada para combater os incêndios, que eram um sério problema em uma cidade tão populosa. Montou uma força metropolitana para conter focos de crime e desordem e instituiu uma tropa pessoal, a famosa guarda pretoriana, um pelotão militar de elite que guar­dava a missão de defender o imperador e os interesses do Estado. Facilitou o comércio, fundando mercados práticos e bem localizados, e idealizou um sis­tema de distribuição de grãos para alimentar os mais de dois milhões de habi­tantes que viviam na metrópole.

         Alguma coisa bloqueou os raios do sol, e concluí que estávamos passando, de barco, sob um arco de pedra, através de um túnel curto e largo que cruzava o Muro de Sérvio, a muralha principal que delimitava a cidade nos tempos de Augusto. O muro era recortado por dezessete portões, e todos eles levavam a um emaranhado confuso de ruas, a maioria muito estreita. Um estrangeiro fa­cilmente se perderia sem o auxílio de um guia, especialmente à noite.

         Não muito longe do arco sobre o Tibre, situava-se o Emporium, o maior porto fluvial da cidade, Outrora um modesto entreposto comercial, a área se desenvolvera durante a República, e cem anos depois seus agitados complexos de armazéns já se espalhavam por um quilômetro à volta do cais. O Emporium era frequentado por compradores abastados, e ancorar por ali significava lucro rápido. Todavia, como em todo lugar em que há dinheiro, havia ladrões ali, e por isso os mercadores se cercavam de uma comitiva de brutos, munidos de por­retes, facas e armas improvisadas — os cidadãos comuns eram proibidos de tra­fegar armados pelas ruas de Roma, de acordo com uma lei que datava dos tempos de Júlio César.

         Quando dei por mim, já estava novamente de pé, sobre um tablado, ao lado de dezenas de escravos que esperavam por seus lances. Alguém amarrara meus punhos a um mourão rústico, quase um tronco, imobilizando-me também pelas pernas e a cintura. Flor do Leste estava presa no mesmo esteio, mas apenas seus braços foram atados.

         Lá de cima, vi que havíamos sido levados para um mercado aberto, uma praça de comércio ampla e movimentada no meio do complexo de armazéns. Já passava das quatro da tarde, hora em que as lojas reabriam após o descanso que se seguia ao almoço.

         Eu conseguira. Enfim estava de volta a Roma, e ainda vivo. A primeira parte de minha missão fora cumprida. A casa de Shamira não ficava muito longe, e tudo o que eu precisava fazer era ir até lá e encontrá-la. Mas, depois de toda aquela jornada, depois de atravessar meio mundo e enfrentar espíritos e anjos, eu não tinha mais forças para caminhar um metro sequer. Só me mantinha er­guido graças à corda que me colava à estaca. O veneno, agora, cercava o cora­ção, e meu tempo de vida reduzira-se a poucas horas.

         Eu cruzara selvas, montanhas, desertos e mares, mas não podia atravessar a cidade.

         Os planos de Zamir se fechariam em breve. E eu não podia mais alterá-los.

 

Negócio Fechado

         A tarde avançou.

         Sobre o tablado, Alexius começou a negociar a venda dos escravos, um por um, com os compradores na calçada. Os lances geravam discussões acaloradas, que em muitos outros lugares terminariam em pancadaria. Em Roma, porém, a gritaria era parte do negócio, e ninguém se importava de ser insultado se no final saísse no lucro.

         Os numídicos foram sendo arrematados, até que um homem berrou:

         — E aquela menina ali, ao lado do louro... Quanto está pedindo por ela?

         Olhei a praça lotada e vi um sujeito de barba preta, peludo, muito gordo, escoltado por um escravo de tez negra. Vestia um manto branco, solto e preguea­do, sobre a túnica de linho. Puxava, por uma corrente, um pequeno animal sal­titante, que à primeira vista me pareceu um macaco.

         — Esta pequena foi capturada de uma companhia itinerante do Oriente — mentiu Alexius. — É a melhor dançarina do leste e muito versada em orgias. O preço que peço por ela é 1.500 denários.

         Para minha surpresa, o comprador não se assustou com a exorbitância da oferta. Em vez disso, a expressão enrugou-se em um sorriso blasé.

         — É justo, o preço é justo — acedeu o barbudo. — Mas não dá para confiar em você, Alexius. Uma vez me vendeu um grego que mal sabia escrever.

         Alexius fingiu irritar-se. Continuava controlado por dentro, mas não era agradável ser difamado na frente de outros clientes, ainda mais no Emporium.

         — Você me devia dois cavalos na ocasião — defendeu-se.

         — O que não justificava sua perfídia. Você sabia que eu o pagaria cedo ou tarde... — rebateu, indiferente. — Mas voltemos à barganha. Pago oitocentos de­nários pela garota, nada mais.

         — Assim você me leva à falência, Merula — o traficante chamou o comprador pelo nome e, somando isso à contenda sobre os cavalos, deduzi que já se conhe­ciam de longa data. — Não posso vendê-la por menos de 1.300.

         — Ora, abra os olhos, gorducho! Ninguém vai pagar tudo isso por uma rapa­riga imunda. Só eu daria um lance alto por ela, então aceite os meus oitocentos denários e dê-se por satisfeito. Você já está com o bolso cheio de moedas — e apontou para o tablado quase vazio, antes repleto de escravos.

         Alexius sentiu-se impelido a ceder, mas preferiu arriscar um último golpe de lábia:

         — Fechemos assim: você me paga mil denários e leva o bárbaro junto.

         Um terceiro comprador, que até então se mantivera calado, meteu-se na transação:

         — O bárbaro então vale duzentos? — a pergunta súbita atrapalhou o racio­cínio de Alexius, que se complicou ao replicar.

         — Sim... Duzentos denários.

         O terceiro homem chegou mais perto, apalpando uma algibeira de moedas. Apesar do cabelo grisalho, era forte, vigoroso e tinha porte de soldado, o que me fez crer que era um oficial aposentado. Estava acompanhado por dois escra­vos gregos, rapazes entre 18 e 20 anos.

         — Eu compro o selvagem — decidiu o militar, apesar do alto preço por um homem enfermo.

         O tal Merula esbaldou-se. Voltou-se para Alexius com um ar de júbilo.

         — Pelo que vejo, a matemática é minha aliada — zombou, pressionando o escravista a aceitar seu lance.

         O mercador não perdeu a pose, embora derrotado.

         — Novecentos denários! — insistiu. — E nossa cizânia estará resolvida.

         O barbudo já preparava o dinheiro, quando uma voz feminina se precipitou sobre todas as outras, pondo fim à permuta.

         — Esperem. Interrompam a venda! Pago dois mil denários pelos dois. Te­nho o valor aqui em espécie.

         Nem sempre a compra era feita em moedas. Contratos de comércio estabe­leciam uma dívida, a ser liquidada ao longo de meses ou anos. Muitos escravos em Roma eram, ou haviam sido, devedores inadimplentes, condenados a saldar o débito com a própria liberdade.

         — Viva o lucro! — regozijou-se Alexius, invocando um mote clássico do co­mércio romano, frequentemente gravado em placas e afixado nas paredes das lojas.

         Quando a mulher se achegou ao tablado, a multidão abriu caminho, tama­nha era sua presença. Sem a ajuda de homem ou escravo, subiu os degraus do estrado e entregou uma bolsa de dinheiro ao escravista. Os compradores se ca­laram, parados a admirar sua beleza. A pele clara e os cabelos negros davam um formidável contraste à aparência sensual, O caminhar era decidido, e cada passo realçava suas curvas perfeitas. Trajava uma stola, uma túnica comprida, usada pelas mulheres ricas, sobreposta por um manto negro de linho.

         A moça encostou-se ao mourão e com uma faca rompeu a corda que me segurava à estaca. De soslaio, notei que aquela não era uma faca ordinária, mas uma adaga ritual, usada pelos feiticeiros cm suas cerimónias. Desabei ao ser li­berto, e teria me estatelado no piso se a mulher não tivesse me amparado. Cau­telosa, ela envolveu minha cabeça nos braços delicados, e pude sentir o doce aroma de sua pele. Foi então que a reconheci.

         — Shamira! — balbuciei, com a voz se acabando em um gemido.

         Era ela, a Feiticeira de En-Dor. De início, não acreditei que a sorte novamente me brindara. Sozinho, eu não conseguiria caminhar até sua casa, do outro lado. da cidade, muito menos fugir dos feitores, então abençoei a feliz coincidência, que depois vim a saber que não fora casual.

         — Shamira... Como me encontrou? Nesta cidade tão grande...

         — De alguma forma, pressenti que você corria perigo. Enviei espíritos espiões em seu encalço, mas eles não podiam atravessar o mar, então deixei alguns em vigília no porto de Ostia c cm outros lugares da Itália. Eu tinha a esperança de que você voltasse a Roma, porque sabia que ainda estava vivo. Hoje cedo, um dos espectros me avisou que o Anjo Renegado havia desembarcado de um navio escravo c era trazido para a Cidade Eterna.

         Flor do Leste esfregou os punhos para aliviar a dor do cabo que a prendia, e a feiticeira reparou na pequena. Não era difícil concluir que a menina e eu havíamos estado juntos por toda a viagem. Além disso, os espíritos deviam ter alertado sobre a jornada rio acima.

         — Seus olhos são poderosos, menina — afirmou Shamira, reconhecendo o valor da garota. — É uma das filhas de Shang?

         Esse clã chinês, eu soube depois, foi o primeiro a governar a China, até ser derrotado pelos guerreiros de Zhou, em 1122 a.C. Os reis Shang desenvolveram a escrita ideográfica e, segundo os antigos, tinham o poder de falar com seus antepassados por meio dos ossos-oráculos, um conjunto de varinhas marcadas por inscrições místicas. Eram dotados de mediunidade ímpar e de inteligência avantajada.

         Flor do Leste respondeu à pergunta de Shamira com um aceno de cabeça, e a feiticeira entendeu que ela não podia falar, por causa da língua cortada.

         Subitamente, minha cabeça tombou para frente, e explodi em uma tosse hemorrágica. Gotículas de sangue precipitavam-se pela garganta, e cuspi uma mistura de saliva e plasma no assoalho do estrado. Em uma ação instintiva, Shamira sacou um lenço de pano e fez menção de pressioná-lo contra minha boca, mas eu a impedi.

         — Este sangue é mortal — murmurei, lembrando-me do triste fim do capanga no barco.

         — Eu sei — ele devolveu, fitando a nódoa vermelha que manchava o tablado. — Mas não há perigo; estou sob um encantamento de proteção — explicou.

         Dito isso, limpou o filete que escorria pelo canto da minha boca e analisou o sangue com os dedos. Sua expressão encrespou-se, e ela se deu conta da gra­vidade da situação,

         — É veneno! Veneno de espírito. Você não resistirá por muito mais tempo. Tenho que levá-lo à minha casa. Talvez ainda possa salvá-lo.

         — Não! — protestei, recordando-me do motivo que me trouxera a Roma. — Não, Shamira. Não devemos voltar... Escute... — eu mal podia falar. — Zamir, o velho mago de Babel, Ele não morreu no Mar de Rocha, continua ativo. Foi ele quem armou essa cilada para mim, e agora está atrás de você. Pelo que soube, foi esse maldito invocador que assassinou Drakali-Toth e os outros mestres fei­ticeiros. É arriscado voltar ao seu domus. Ele pode estar à espreita.

         — Supus que fosse ele o assassino, mas agora você me traz a certeza. Zamir era o maior adversário de meu antigo tutor—retrucou, pensativa, provavelmente imaginando o que faria a seguir. — Mas não posso deixá-lo aqui, ou você morrerá.

         — Se prosseguirmos, nós dois morreremos. Você deve fugir, Shamira, en­quanto há tempo.

         Ela apertou forte meu braço e me pôs sentado.

         — Não, Ablon. Se eu tiver que enfrentar Zamir sozinha, vou enfrentá-lo. Já estou preparada para isso. Não permitirei que você morra. Há muito tempo me salvou do buscador, e agora é minha vez de ajudá-lo.

         Vi que havia felicidade e doçura em seus olhos, mas seu coração estava aper­tado por me ver naquele estado de debilidade.

         A praça do comércio começava a esvaziar, mas Alexius continuava sobre o tablado, deliciando-se ao contar as moedas de prata. Ao longe, um grandalhão fez cara feia ao me ver nos braços de uma bela mulher. Era Cassius da Calábria, que havia me espancado no primeiro dia de viagem. Estava acompanhado de um time de broncos, e Shamira, inteligente, percebeu que fora ele um de meus agressores. Por um instante, achei que a ira da feiticeira desceria sobre os escra­vistas, mas em uma atitude sensata ela engoliu toda a raiva e concentrou-se em me tirar daquele antro de abutres.

         —Vamos embora, Ablon. Essas ratazanas não são dignas de nossa vingança.

         A mulher ergueu-se em um movimento gracioso e escolheu a esmo um pas­sante na rua, um tipo plebeu, provavelmente artesão ou estivador. Ofereceu ao sujeito cinco sestércios, peças de cobre romanas, só para que me colocasse so­bre um cavalo. A moça, sozinha, não aguentaria meu peso nem desejava pedir ajuda aos rudes capatazes de Alexius.

         Como já sabia que eu estaria no Emporium antes mesmo de sair de casa, a necromante trouxera consigo dois cavalos selados — um garanhão cinzento e uma égua alva — ,ambos de ótima raça. O plebeu me empurrou para o lombo de um deles, com Flor do Leste, e Shamira acomodou-se no dorso da égua. Depois, dispensou o carregador.

Eram cinco da tarde, e faltava menos de meia hora para o veneno findar minha vida.

 

Emboscada no Domus

         A casa de Shamira ficava em uma rua tranquila, quase colada ao sopé do monte Capitolino, uma das sete colinas romanas. O Capitólio, como também era chamado, era como uma grande pedra redonda e ainda conservava suas en­costas escarpadas, tal como era no tempo das aldeias latinas. No passado, os se­te povoados sobre as sete colinas reuniram-se em uma federação e começaram a construir um muro que delimitaria a futura cidade. Oito séculos depois, ne­nhum resquício dos latinos restara. Nos primeiros anos do século I, à época des­te relato, um complexo de templos dominava o topo do morro, que em muito fazia lembrar a acrópole de Atenas. O mais grandioso desses santuários era o Templo de Júpiter, cuja parede posterior, sustentada por colunas de mármore, projetava, ao fim daquela tarde de abril, uma sombra opressiva sobre o terreno ocupado pelo domus da Feiticeira de En-Dor.

         O sol estava se pondo quando contornamos o Fórum de Augusto. O movi­mento urbano, àquela hora, começava a declinar. Durante o dia, nenhum veículo sobre rodas podia trafegar pelas ruas. Roma tinha, então, dois milhões de ha­bitantes, e um vaivém tão intenso de carros transformark as avenidas em um pandemônio. Com isso, os pobres eram obrigados a andar a pé, enquanto os ricos eram transportados em liteiras ou no lombo de cavalos.

         Era quase noite quando paramos em frente ao domus. As casas nobres ro­manas tinham fachadas altas, com vigas de madeira e paredes de tijolos, reco­bertas por urna argamassa resistente. O teto era de telhas sobrepostas em esca­mas, e o chão, decorado com mosaicos que retratavam seres mitológicos e heróis legendários. Uma porta dupla e grossa levava a um corredor coberto, que con­duzia ao átrio, o aposento central, geralmente caracterizado por uma abertura no teto, útil para ventilar o ambiente. No chão, abaixo do interstício de ventila­ção, havia uma piscina pequena, adornada por estátuas, que armazenava a água da chuva. Nos dias quentes, os romanos a usavam para se refrescar. Ao redor do átrio ficavam os quartos, uma escada que conduzia ao segundo andar e a pas­sagem para o tablinium, uma sala de recepção, muitas vezes usada como estúdio. A seguir, a mansão avançava, abrindo-se novamente em um pátio em volta de uma passagem coberta, ou peristilo. No coração do pátio havia, em quase todas as residências romanas, um suntuoso canteiro que abrigava um santuário dedica­do aos deuses domésticos. À direita do peristilo situavam-se a sala de jantar e a cozinha, e à esquerda mais quartos, às vezes adaptados em oficinas ou escritórios.

         Quando os cavalos pararam em frente ao domus Shamira me despertou.

         — Ablon, você precisa fazer um último esforço para caminhar. Temos que entrar na mansão.

         Ao ouvir suas palavras, joguei-me para fora da sela e, não sei como, consegui ficar de pé. Reconhecendo minha fragilidade crescente, ela me amparou com um braço, e com o outro empurrou a pesada porta de madeira. Foi nesse ins­tante que meu senso de perigo, que eu julgava perdido, deu o último sinal de ameaça.

         — Shamíra, há alguma coisa errada — insisti. — Não podemos entrar. O ini­migo nos espera.

         Calma e confiante, a mulher não se importou com o alarme. Fitou-me pro­fundamente e, com um ar de ternura, beijou-me suavemente a face.

         — Guerreiro, você precisa confiar em mim. Não há nada o que temer — re­plicou, e me encaminhou para o corredor. Flor do Leste veio atrás.

         A mansão estava envolta em uma penumbra sinistra, pois o crepúsculo che­gara, e não havia criados para acender as lamparinas. Cruzamos o corredor e penetramos no átrio, o aposento principal. Então, meus temores se concretiza­ram, e o pior aconteceu.

         Uma figura esguia saiu das sombras como um rato na escuridão. Estava en­costada à parede no outro extremo do átrio, bloqueando a passagem para o pá­tio do peristilo. Não pude vê-la com clareza, mas entendi que se aproximava devagar, ao mesmo tempo em que entoava uma fórmula mágica. Dando-se con­ta do perigo, a feiticeira tomou a frente, na intenção de usar o próprio corpo como escudo. Destra, Flor do Leste recuou, procurando amparo no corredor de entrada.

         De repente, o átrio se iluminou com uma luz mística tremulante, e vi que as mãos do inimigo queimavam em chamas verdes. A um comando do atacante, uma bola de fogo precipitou-se da ponta de seus dedos e cruzou o aposento com velocidade espantosa, explodindo violentamente ao encontrar a necromante. Em face de tão impetuoso ataque, a roupa de Shamira reduziu-se a pó e, des­nuda, ela perdeu o equilíbrio e foi atirada ao chão. Mas não parecia ferida. O punhal cerimonial que carregava sob o manto não chegou a se partire foi lan­çado a distância com a violência do choque.

         A figura achegou-se, mas a mulher escapou. Ainda aturdida, a Feiticeira de En-Dor rastejou na direção de uma das portas laterais, que levava, provavelmente, a um quarto comum. Sem o apoio da mulher, cedi à fraqueza. A sombra se apro­ximou de mim, emergindo da negritude. Ergui o olhar e vi o inimigo, um ho­mem de meia-idade, magro, alto, de pele bronzeada e nariz fino. Conservara, talvez por todos aqueles anos, o cavanhaque pontudo. Os olhos amendoados estavam levemente pintados com a mesma maquiagem usada pelos babilónicos. Só a roupa mudara, e agora o místico trajava uma túnica comprida, negra, sobre uma veste de algodão.

         Era Zamir, o Feiticeiro do Deserto!

         Seu rosto tornou-se mais claro ao encontrar os últimos raios da tarde.

         — Você, aqui? — ele estranhou. — Pensei que o tivesse liquidado com a em­boscada do bosque Tin-Sen.

         Não pude responder. Os músculos entravam em convulsão pela ação do ve­neno.

         — Felizmente — continuou — tomei alguns cuidados para que sua inesperada presença não comprometesse meu cronograma. Se bem que não vejo como po­deria me estorvar — disse, percebendo minha situação terminal. Reparei que não havia nenhuma expressão de arrogância ou júbilo em seus olhos. Para ele, era como se aquele assassinato fosse uma tarefa comum, uma atividade diária, — Vou resolver minha pendência com a feiticeira, e enquanto isso decidirei o que fazer com você. É lamentável que seu sangue esteja contaminado. Seria um in­grediente formidável em minhas cerimónias.

         Sem temer uma reação, o mago deu de ombros e caminhou para a porta através da qual Shamira havia entrado. Reuni energia e avancei, mas uma for­ça imprevista me travou.

         Uma parede mística e invisível barrava meu progresso, encerrando-me cm uma área restrita. Observei então, ao olhar para o chão, que eu estava, com efei­to, dentro de um círculo mágico de aprisionamento, usado pelos bruxos para capturar espíritos, mas que também funcionava com seres carnais. O anel fora desenhado com carvão e adornado por inscrições que eu não sabia decifrar. O curioso, pensei, era que tanto Shamira quanto Flor do Leste haviam pisado na­quele selo e não foram retidas pela potência da magia. E logo eu, que sou um celestial, supostamente imune a esses encantos, fui pego pelo feitiço. Presumi, então, que aquele era um ritual direcíonado, executado para afetar uma entidade específica. De início, não entendi como o invocador alcançara aquele efeito, mas depois me lembrei de sua atuaçáo no bosque Tin-Sen, quando se valeu de uma de minhas penas perdidas para concretizar o feitiço da convocação e me arrastar àquela mata infernal.

         O Feiticeiro do Deserto não perdeu tempo discursando sobre sua tárica. Abriu a porta do quarto e se meteu nas trevas, perseguindo o rastro da necromante.

 

Como um Peixe no Anzol

         O que se deu a seguir não foi presenciado por mim, e tudo o que sei foi re­latado por Shamira, quando de minha segunda volta a Roma, anos depois. Na­quele momento, enquanto Zamír perseguia seu plano, eu jazia agonizante dentro do selo mágico, que me aprisionava em um círculo invisível.

         Ao ter certeza de que eu não poderia mais enfrentá-lo, o invocador penetrou pela porta do quarto, mas em vez de encontrar um dormitório pequeno, com uma mulher acuada e medrosa, o que viu foi uma escada estreita e rochosa, de paredes úmidas, que descia para um suposto porão. Construções abaixo do solo em casas nobres romanas eram incomuns, mas o bruxo não viu nenhum absurdo naquilo e prosseguiu sua marcha.

         — Como um peixe no anzol — disse o mago para si mesmo, sem entender a atitude da mulher, que correra para um lugar de onde, seguramente, não havia saída.

         A escada terminava em um aposento quadrado, de teto alto, aparentemente vazio. Era espaçoso, pois a escuridão recobria suas alcovas, e o bruxo não pôde enxergar a totalidade da sala. Encontrou, porém, aquilo que procurava: Shamira, de corpo nu, deitada de costas no chão de pedra, ainda aturdida pelo impacto do fogo verde. Este, também chamado de fogo de Xahra, não é produto da com­bustão terrena, como são as chamas normais. Ele queima e existe tão somente no plano astral, não no mundo físico. Significa, portanto, que as labaredas não podem ser extintas por água, vento ou quaisquer métodos mundanos. O resul­tado desse feitiço é no mínimo hediondo — a alma, e não o corpo da vítima, é afetada. Com o espírito destruído, toda a essência da pessoa é apagada, encon­trando assim a morte final — não apenas a morte carnal, mas a conclusão ter­minal de sua existência.

         A mulher desnuda levantou-se, com a atenção fixa em Zamir, que parara no umbral da escada, impossibilitando-lhe qualquer tentativa de fuga,

         — Finalmente, minha empreitada aproxima-se de seu desfecho — disse o bru­xo, reconhecendo a vitória.

         — Então foi você quem assassinou Drakali-Toth? — perguntou a mulher, já sabendo a resposta.

         — Assassinato não é bem a palavra. Eu, por assim dizer, o superei e me vi no direito de matá-lo. Depois usei o ritual do conhecimento em seu espírito e ab­sorvi seus poderes. Não foi assim tão difícil, é verdade.

         — E quanto aos outros mestres feiticeiros?

         — Padeceram, devo admitir, do mesmo destino. Não eram realmente páreos para mim, mas não os recrimino. Afinal, quem é? Eu sou e sempre fui o maior mago da terra, mas sua atuação e a do Anjo Renegado em Babel sepultaram mi­nha nação e tudo o que ela representava — ele pareceu saudoso por um instante. — Ah, feiticeira, se você soubesse o que eu tinha arquitetado para o futuro do meu país, do meu povo, naquele tempo além do mundo, além da história... Mas não entenda isso como uma vingança. Não quero parecer taxativo. Você agiu sabiamente e mereceu o triunfo.

         — Você é tão perturbado quanto seu antigo rei, Zamir.

         Shamira pensou ter visto um sorriso de escárnio na face do bruxo.

         — Nimrod nunca foi rei de coisa alguma. Era um perdido. Eu o manipu­lava desde a infância. Eu era o verdadeiro governante de Babel. Quando você morrer, consumida pelo fogo verde, meu caminho estará livre novamente, e er­guerei uma nova nação, sobre as ruínas da antiga. Quando minha empreitada estiver encerrada, não serei mais Zamir, o Invocador, muito menos Zamir, o Necromante, e sim Zamir, o Arquimago, ou o Grande Mago, o único mestre de todos os ramos da mágica.

         A feiticeira guardou silêncio, e o bruxo continuou:

         — Sei que o que vou pedir é meio estranho, mas rogo-lhe que não me julgue mal. Não sou má pessoa. Sou apenas produto da inevitável evolução humana. Afinal, somos humanos, eu e você, com a graça do Deus Yahweh.

         Cansada daquelas palavras pedantes, Shamira disparou:

         —Vejo que está muito convicto em seu desejo. A persistência é uma qualidade valorosa. Mas não posso dizer que lamento estragar seus planos.

         O buscador franziu o cenho em uma expressão confusa. O que aquela moça indefesa queria dizer com tal explosão de bravura? Estava acabada, vencida!

         — E o que vai fazer? Vai convocar seus espíritos? Vai traçar um selo no chão e esperar que eu tropece dentro? Não há mais tempo para essas coisas, garota. Sua breve aventura como feiticeira termina agora.

         Em uma nova corrente de berros, o invocador cuspiu suas fórmulas mágicas, e o fogo de Xahra voltou a iluminar suas mãos, em preparação para o golpe final.

         Mas, antes que desse forma à bola de fogo, as chamas que brotavam de seus dedos iluminaram o recinto, e a luz reluziu nas alcovas. Dentro de cada uma daquelas entradas na parede repousavam estátuas antigas, de ferro enegrecido, que representavam ídolos antigos, ídolos babilônicos. Eram ícones tribais, figu­ras de pobres e escravos, e não da alta aristocracia que governava a cidade,

         Só então, ao mirar aquelas estátuas, Zamir entendeu que aquele era um san­tuário especialmente preparado, e que o tecido da realidade ali embaixo era in­crivelmente fino. E recordou-se também da origem daqueles ídolos, inferindo, com uma pontada de terror, sua real utilidade.

         — São figuras de Babel... Mas como é possível? A cidade foi engolida pela areia.

         — Desde que eu soube do primeiro assassinato dos magos, há cerca de um século, suspeitei que você pudesse estar envolvido. Antes de vir para Roma, fiz uma longa viagem à Ásia e encontrei esses objetos no deserto. Eles não têm gran­de representatividade divina, mas tudo o que eu precisava era de alguns fragmen­tos da antiga cidade. Com eles, montei este santuário.

         — Mas para quê? Com que objetivo? — a voz do bruxo já soava agitada.

         Shamira não respondeu. Não era preciso.

         Figuras astrais surgiram no ar, rodopiando como fumaça, até tomar forma. Eram fantasmas, de corpos translúcidos, intangíveis, que se sentiam muito à von­tade naquele sítio recluso, onde a membrana era frágil e delgada, O santuário fora feito para eles.

         O rosto do mago encheu-se de terror, e ele distinguiu os espectros. Aqueles eram os espíritos dos escravos que, 2.300 anos antes, ergueram a Torre de Ba­bel. Desde sua morte física, aquelas almas estiveram presas à terra, impedidas de seguir para o céu, e assim seria enquanto vivesse o arquiteto daquela infausta construção. Os primeiros escravos de Babel, que morreram trabalhando na Pi­râmide de Prata, durante o reinado de Cush, tiveram o espírito liberto quando os Filhos de Jafé capturaram o monarca e o condenaram à morte. Mas o segundo corpo de escravos, aqueles que se rebelaram durante meu ataque à capital, pere­ceram sem julgar seu malfeitor. Não podiam seguir ao paraíso até que essa pen­dência fosse resolvida, o que seria feito em instantes.

         — Estes fantasmas um dia foram escravos, que morreram sob os chicotes de seus homens — explicou a necromante.

         — Mas eu? — gaguejou. — Que mal eu poderia fazer a essa gente?

         — Você governava Babel na época, e estes são os antigos operários da torre. Será que não os reconhece? — a simples visão dos fantasmas era dantesca. Assim como os espíritos de Enoque, esses também se contorciam, em uma eterna ex­pressão de horror.

         — Operários? Escravos? — Zamir parecia ter ficado louco. — Mas não conheço essas pessoas...

         Um dos espíritos formou-se à sua frente, e ao ver a fumaça o bruxo recuou. A névoa mística revolveu, delineando o semblante de uma mulher muito velha. A bruma retraiu-se, e o rosto da idosa deu lugar à imagem de uma menina bem jovem, de pele escura, traços finos e cabelos lisos. Uma voz, que mais parecia um ruído, ressoou no porão.

         — Não se lembra de mim, feiticeiro? — indagou o espectro da garotinha. Sua fala era macabra, e o sangue do mago gelou. — Sou Adnari, uma das escravas do palácio.

         Era realmente possível que Zamir não se lembrasse dela, sobretudo naquele estado de estresse. Tentando refazer-se do assombro, o mago vociferou, encarando os corpos astrais:

         —Vocês são apenas espíritos atormentados! Não podem me ferir, não podem me ameaçar.

         A resposta de Adnari foi impiedosa:

         — Não, Zamir. Aqui, neste santuário, nossos poderes são supremos!

         E de fato eram. Zamir, pelo conhecimento de necromancia que assimilara ao matar Drakali-Toth, soubera disso desde o instante em que vira os fantasmas, mas custava a aceitar sua sina. Admitir aquilo era admitir a derrota e reconhecer que, pela segunda vez, fora superado pela Feiticeira de En-Dor. Não podia ser destruído! Era o maior mago do mundo. Fora o único que tivera contato, ainda em Babel, com a magia antiga, com os resquícios da magia de Enoque, com os segredos do mundo ancestral. Quem, em sã consciência, ousaria desafiá-lo? En­frentara os grandes magos, e a todos vencera. Como poderia ser superado por uma mulher, por uma garota?

         — Como um peixe no anzol — disse Shamira, replicando as palavras do bus­cado.

         Encurralado, o bruxo tremeu. A exemplo de como agira no Mar de Rocha, ao presenciar meu ataque ao pelotão babilônico, foi completamente tomado pelo desespero. Estava perdido, e tudo o que podia fazer era fugir, correr como uma criança apavorada — não que isso fosse salvá-lo. Deu meia-volta e armou os músculos para uma disparada, tencionando galgar a escada e deixar o san­tuário. Se pudesse sair do porão, estaria livre! Os fantasmas não poderiam mo­lestá-lo lá fora, onde o tecido era espesso.

         Mas, antes que iniciasse a corrida, os espectros atacaram.

         As formas translúcidas se uniram e fecharam um anel de brumas, que o en­volveu. Outros bloquearam a saída, formando um muro de névoas. Uma tercei­ra massa o agarrou. Os braços espectrais atravessaram-lhe a carne e encontraram o espírito do feiticeiro. Os dedos astrais afiaram-se em garras e puxaram a alma do inimigo para fora do corpo. A cabeça espiritual saiu primeiro, mas o invocador resistia, segurando-se como podia à sua carcaça mundana. Os olhos reviravam de dor, e a boca abriu-se em um grito medonho, até que toda sua alma foi su­gada. As brumas a engoliram, e o espírito do bruxo desapareceu na fumaça.

         No plano físico, o corpo tremulento parou e retraiu-se no chão. Iníciou-se então um espetáculo horrífico, monstruoso. A pele do defunto começou a se enrugar com rapidez incrível, e o cadáver murchou. Os globos oculares se des­fizeram, e os fios de cabelo cresceram. No momento seguinte, os tecidos cederam, e os órgãos atrofiaram. A epiderme colou-se aos ossos, até secar. Depois, o crânio, os dentes e os ossos se esfarelaram, e por fim tudo foi reduzido a pó. Ao beber o sangue da renegada Ishtar, Zamir prolongara sua vida além do limite, de ma­neira não natural. Ao morrer, os séculos vieram reclamar seu legado e cobraram, em segundos, tudo o que lhes era devido.

         Ao fim desse episódio aterrador, os fantasmas sumiram. Estavam livres para sempre.

         Assim morreu Zamir, o Buscador, e com ele o que restava da Babel legendária, aquela cidade maldita.

         Além do mundo, além da história...

 

Uma Estrada Marcada de Sangue

         Shamira não perdeu tempo. Subiu a escada aos tropeções e voltou correndo ao átrio. E lá estava eu, estirado no chão, ainda preso pela parede invisível.

         A noite chegara fria, trazendo em seu manto a anunciação derradeira. Aos poucos, a vida se apagava. O coração, cansado, batia lentamente, afogado na peçonha assassina. Não conseguia me mexer. Todos os músculos faleceram, mas ainda me restavam os débeis sentidos.

         O veneno vencera.

         A necromante surgiu no átrio, e pensei que aquele fosse um último delírio. Não imaginava que ela pudesse enfrentar Zamir, muito menos vencê-lo, mas ela podia. Ela pôde. Talvez sempre tivesse podido. A feiticeira estava viva, ilesa, e aquele era meu desejo final. Minha missão havia sido concluída.

         Shamira atravessou o círculo mágico, ao qual era imune, e me abraçou. Flor do Leste e Shamira estavam salvas. Quanto a mim, sempre soube, desde o com­bate com as rapinas, que a toxina me perseguiria até a morte — então por que insistia em me agarrar à vida? Por que relutava em me entregar ao vazio?

         Tentei abrir um dos olhos e vi o rosto alvo da necromante. Ela chorava. Mais atrás, uma silhueta pequena soluçava no escuro. Era Flor do Leste.

         — Ablon, resista — implorou a mulher. — Você não pode morrer. Você não vai morrer.

         — Cumpri minha missão, feiticeira, ou pelo menos parte dela. E estou orgu­lhoso por isso. Nós, anjos guerreiros, somos assim. A morte é só o fim da de­manda.

         Uma nova torrente de lágrimas desceu pela face macia.

         — Como vou viver sem você, renegado? Você salvou minha vida. Deu-me uma nova chance. E agora, o que vai acontecer?

         — Agora você seguirá sozinha, Shamira. Minha estrada está coberta de sangue.

         Não!— ela dizia com o olhar. Não queria me deixar partir, não queria que eu a deixasse. Sua força de vida era extrema, sublime. Sem ela, teria me deixado levar pela noite, para o eterno vazio da existência. A unidade do cosmo clamava por mim. Mas o universo podia esperar.

         Em uma atitude inesperada, a feiticeira esticou o braço, e em um canto es­curo encontrou sua adaga mágica, que caíra do manto quando a bola de fogo a sacudira. Com um movimento de punho, que mais parecia uma dança, apro­ximou o punhal de meu corpo. Por um momento, não entendi o que pretendia fazer.

         —Você tem que resistir, guerreiro. Não pode morrer — repetiu, decidida, en­golindo as lamúrias que derramara havia instantes.

         Com a mão direita, ergueu a faca, preparando um ataque. Com a outra, es­fregou os dedos acima das costelas, e entendi o que procurava: meu coração.

         — Ablon, aguente! Você não vai morrer — ela disse por fim. — Eu o amo.

         Antes que eu pudesse reagir, senti uma estocada perfurar-me o peito. A lâ­mina atravessou minha pele e rasgou a veia cava um centímetro abaixo do mús­culo cardíaco — a precisão da incisão fora perfeita. Ouviu-se um ruído abafado, do metal a penetrar a carne. Por um longo e inesquecível segundo, nada acon­teceu. No momento seguinte, o jorro de sangue.

         Um esguicho intermitente de plasma e veneno espirrou para cima, man­chando o chão do pátio e cobrindo de rubro os mosaicos do ladrüho. Uma po­ça grande avançou pelo solo, inundando os desenhos de carvão que demarcavam o selo mágico.

         Não me lembro de ter visto mais nada depois disso.

         A consciência apagou-se.

 

Trinta Anos

         A sensação era a de ser dragado, puxado para baixo com velocidade assom­brosa. Uma força não inferior à divina levou-me ao poço mais fundo do abismo, e então fui solto. Senti meu corpo flutuar, depois subi, subi sozinho, leve, até emergir, rasgando com o rosto a membrana aquosa.

         Uma nova miríade de impressões, já esquecidas, despertou-me à vida. O cheiro gostoso do ar encheu meus pulmões, trazendo um turbilhão de aromas intensos. Senti, novamente, a fragrância das flores que coloriam a primavera, o gosto da chuva, o perfume da terra. Estava vivo de novo, ou essa era a zona além da escuridão, o caminho depois do crepúsculo?

         A luz era fraca, indireta, mas era fácil enxergar — meus sentidos apurados haviam retornado, e podia ouvir murmúrios através das paredes. Abri os braços e entendi que estava comprimido em um espaço lateral, como que confinado em um caixão destampado. Só o teto figurava distante, e era alto, escuro, todo de rocha calcária. Dobrei a coluna, procurando me sentar.

         Ao divisar o ambiente, percebi que estivera deitado em um sarcófago, ou assim parecia, coberto até a borda com um líquido incolor, misturado a nódoas vermelhas de sangue. Na superfície da água flutuavam fragmentos picotados de plantas, ou melhor, ervas, ervas de odor penetrante. O caixão estava pousado no chão, ao centro de uma sala vazia, cingida por alcovas onde repousavam estranhas estátuas de ferro. Em um dos cantos havia uma passagem em arco e uma escada que subia reta. Não era uma sala, e sim uma câmara subterrânea. Era úmida, e pela pressão da atmosfera eu sabia que estava poucos metros abaixo do solo. Imaginei que permanecera imerso naquele líquido aromático por um dia inteiro, porque já era de manhã. Raios de sol invadiam a passagem, desenhando imagens de luz no soalho da sala.

         Mas eu não era o único a ocupar aquele enigmático recinto. Uma mulher estava de guarda, encostada à parede, como uma das figuras de ferro, quase imó­vel. Com passos miúdos, chegou mais perto ao me ver levantar. O andar e o cheiro da pele não deixavam dúvidas — não era Shamira, mas então quem se­ria? Com minha visão aguçada, reparei que era baixa, magra e tinha belas fei­ções orientais, a despeito de sua stola romana. A marca da idade já pesava sobre ela, e calculei que passara dos 40 anos, apesar dos modos delicados e do olhar de menina. Só uma pessoa me fitava daquele jeito.

         — Flor do Leste? — exclamei, ainda rouco pelo despertar.

         Eu não me enganara, e como poderia? Aquela era Flor do Leste, a pequena chinesa que conhecera no Extremo Oriente, ao ser levado pela caravana dos gre­gos. Mas o que acontecera com ela? Não era mais uma menininha, e sim uma mulher.

         — Aguardávamos pela sua recuperação, general — disse alguém que descia as escadas.

         — Shamira — murmurei, agarrando-me às laterais do sarcófago. — O que acon­teceu por aqui?

         A feiticeira encarou Flor do Leste e depois voltou-se para mim.

         — A magia ancestral e a medicina chinesa o trouxeram de volta — explicou. — Mas o verdadeiro mérito não é nosso. Eu disse que você não morreria. É mui­to forte para sucumbir ao ataque de qualquer espírito.

         — Mas e o veneno?

         — Foi expulso de seu corpo, absorvido pelas ervas que flutuam na água — ela apontou para o caixão, e só então notei que meu peito estava coberto por pequenos talhos, cortes superficiais através dos quais a toxina devia ter saído. — Você foi purificado durante o tempo em que esteve dormindo — e então a necromante olhou para a chinesa, reparando em sua aparência madura. — E esse período, devo dizer, não foi curto.

         — Então está explicado. Foi por isso que achei que Flor do Leste tinha en­velhecido. Mas fui eu que estive em letargo, suspenso enquanto meu organismo se recompunha.

         — Qualquer vestígio da peçonha poderia vitimá-lo mais tarde, assim todo seu sangue teve de ser renovado. Uma recaída seria fatal. Estudei esses espíritos e investiguei a trama de Zamir. Descobri que o veneno do escorpião pode ser contido, mas dificilmente é expelido. Ele permanece latente até que um novo episódio o desperte. Os efeitos voltam de repente e são ainda mais devastadores.

         Hibernando. Eu entrara em um tipo de hibernação natural, pela segunda vez. Talvez aquela fosse uma defesa inerente, um jeito de meu corpo responder ao perigo. Mas por quanto tempo dormira? Não havia de ser dias nem meses, mas anos, muitos anos. O que teria acontecido naquele período? A quantas an­dava o mundo?

         Ainda levemente tonto, levantei e saí do sarcófago, enquanto os últimos res­quícios de sangue contaminado escorriam pela pele. Já podia sentir a potência dos músculos voltando e o palpitar ritmado do coração — definitivamente, a debilidade sumira. Eu estava vivo, forte, curado, graças àquelas duas mulheres, que dedicaram tudo o que tinham para me salvar do vazio. Nada que eu fizesse poderia compensar aquele ato de amor. Em vez disso, dediquei um olhar de agradecimento à chinesa e depois a Shamira. E aí, ao reparar em sua pele macia, recordei-me daquele último instante, antes do golpe da faca, e do que ela havia me dito.

         — Shamira, antes que eu entrasse em torpor, você me disse...

         Ela interrompeu minha frase:

         — Ablon, não há tempo para isso agora. Você precisa completar sua missão.

         Minha missão! Nathanael, Jerusalém, a Criança Sagrada! Eu deveria ter ido ao encontro do ofanim e de seus anjos, depois de avisar Shamira sobre Zamir. Será que ainda havia chance de perseguir minha demanda?

         — Flor do Leste me contou tudo o que sabia sobre sua empreitada — explicou a necromante. — Ainda há tempo, mas você precisa correr. Os legionários que servem na Palestina chegam ao porto de Ostia com notícias sobre esse homem, que se diz rei dos judeus. Suponho que seja esse o Salvador que procura. Mas você tem que partir imediatamente, pois ele corre perigo.

 

         Sim, mas será que eu poderia ajudá-lo? Sozinho, certamente não. Imaginei como seria alguém com poder celestial e dotado de livre vontade. Que ente magnífico devia ser. Estaríamos o coro de Nathanael e eu à altura de defendê-lo?

         — Por quanto tempo dormi?

         — Trinta anos se passaram.

         — Então não há um minuto sequer a perder — retruquei, prontamente recom­posto.

         As duas mulheres me conduziram ao átrio, ao fim da escada que deixava o porão. Era primavera de novo, e o sol refletia nas telhas. Ouvi o som do co­mércio a distância e concluí que as lojas em Roma acabavam de abrir. Não de­via passar das sete horas da manhã. Dali eu as acompanhei ao tablinium, a sala de recepção, um aposento de portas largas nos dois extremos. Uma delas abria-se ao átrio, e a outra dava passagem ao pátio adiante.

         Quatro divãs decoravam a sala, e sobre um deles jazia uma peça de roupa. Flor do Leste ofereceu-me o tecido, e compreendi que era um presente, feito por ela. Parecia um quimono chinês, mas fora confeccionado em linho e depois tingido de preto. A camisa era fechada até a gola por pequenos botões de bar­bante, com comprimento que descia à altura das coxas. As calças escuras eram da mesma fazenda, e um par de botas de couro dava um aspecto atemporal à singular vestimenta. Ao lado do traje descansavam duas braçadeiras de cavaleiro, semelhantes àquelas que eu adquirira na cidade deTurfan, nos limites da China. Não era uma roupa soberba, mas era prática e resistente. A chinesa conhecia minhas preferências.

         Lavei-me em uma tina comum e aparei a barba antes de me vestir.

         — Os cortes em meu corpo sararam — reparei, antes de fechar o quimono.

         — Suas habilidades regenerativas estão agindo de novo. Estão agora no auge de seu poder — explicou Shamira.

         Pouco antes das oito horas, a feiticeira me levou para fora, e ao lado de uma das paredes externas do domus havia um aposento anexo, que dava para a rua. Muitos proprietários romanos alugavam o espaço para lojistas, mas a necroman-te o usava como estábulo e depósito. Ali descansavam cinco cavalos, todos se­lados, e Shamira me ofereceu um deles, uma égua marrom.

         — Chama-se Selene e é adestrada. Siga por terra até Ostia, depois deixe-a solta no campo. Ela conhece o caminho de volta. Há um navio que parte para o Oriente ao entardecer, e você ainda poderá tomá-lo — ela me ofereceu uma algibeira de moedas. — Você não precisa mais de comida, mas leve dinheiro. A passagem é cara, mas aí há o bastante para toda a jornada.

         — Você pensou em tudo, não foi?

         — Tive um bocado de tempo para isso — respondeu, com um sorriso agra­dável.

         Aceitei a oferta e montei no cavalo. Mas, antes de sair em disparada, Shamira me chamou. Tinha um pequeno embrulho nas mãos, um pedaço mínimo de veludo descolorado.

         — Pegue isso, Ablon — desenrolei o pano e ali havia uma pena manchada de sangue. — É sua. Zamir a usou para preparar o encanto que o aprisionou no cír­culo mágico, naquela noite do ataque à minha casa.

         Devolvi o objeto com certa repugnância. Um pedaço de mim utilizado co­mo ingrediente em rituais profanos... Aquela idéia me deixava enojado.

         — Destrua isso para mim. E vamos torcer para que não haja mais delas per­didas por aí.

         — Não acho que existam. Se houvesse, Zamir as teria usado. Comandei o animal, e ele ganhou a calçada. Mas, antes de acelerar o trote,

dei-me conta de que dekava minhas duas salvadoras sern ao menos lhes dizer uma palavra de adeus.

         — Shamira, Flor do Leste, sinto ter que deixá-las assim.

         — Não há o que sentir, guerreiro. Você tem uma missão a cumprir. Uma legião o espera — replicou Shamira, em tom épico.

         Assenti com a cabeça.

         — Mando notícias quando chegar a Jerusalém, nem que tenha que enviar um mensageiro pelo mar.

         Ela concordou e, com um aceno de mão, despediu-se de mim. Sabia, talvez melhor do que eu, a urgência de minha viagem.

         Soltei a rédea da égua, e a montaria disparou pelas ruas.

 

Óstia e Cesareia

         A cavalo, cruzei a Porta Latina, uma das principais saídas da cidade, e tomei o rumo pela Via Ápia, a maior das estradas romanas. Prossegui pelo campo o mais rápido que pude, observando os gigantescos aquedutos sobre os arcos de pedra, que cortavam as fazendas e convergiam como viadutos em direção à metrópole. Antes do meio-dia, a Cidade Eterna já figurava distante.

         Tomei um navio que saía de Óstia e embarquei em uma viagem tranquila, dessa vez como passageiro, e não como escravo.

         A cidade portuária central da Palestina era Cesareia, onde aportamos dias depois. A Jóia do Mediterrâneo, como era chamada, fora construída por Herodes, o Grande, rei da Judeia, em homenagem ao imperador César Augusto, e rapi­damente se tornou o maior centro romano da região. O porto de Cesareia era provavelmente a obra de engenharia mais magnífica de Israel, com suas muralhas que avançavam mar adentro, formando uma piscina natural e segura para os navios atracarem. O portão marítimo por onde entravam os barcos era ladeado por grandes estátuas de mármore, e mais adiante avistava-se a torre do farol, muito menor e mais modesta que a de Alexandria.

         Era o mês de abril, certamente o mais agradável de todos, quando a estação das chuvas já tinha terminado, e o calor ainda não era tão forte. As vias, que se enchiam de lama no fim do inverno, estavam secas de novo, e, apesar do clima árido, característico naquela parte do mundo, a grama rala crescia.

         Em vez de prosseguir pela estrada mais curta, que me levaria diretamente à parte alta de Jerusalém, achei melhor me desviar para o sul, porque a passagem era vigiada por sentinelas astrais, invisíveis aos olhos humanos. Eu não tinha cer­teza de que lado eles estavam, então achei prudente adentrar os portões, procu­rar Nathanael e só então revelar minha presença. Assim, optei por contornar o monte das Oliveiras e penetrar na cidade pelo outro lado, pela entrada principal.

         Ao amanhecer daquela sexta-feira, 7 de abril, cheguei à Betânia, uma aldeia situada no sopé do monte, e ao meio-dia já dominava o cume do morro. Era um dia claro de primavera, sem nuvens no céu, e a temperatura esquentara. Do alto podiam-se ver as águas do mar a distância, terminando em uma curvatu­ra que só o horizonte alcançava. Abaixo, prosseguindo a estrada, o vale do Cédron formava uma falda profunda, como o leito seco de um rio, e além dele meu objetivo final: Jerusalém.

         Altos muros cercavam a cidade, que então se dividia em quatro partes: a ci­dade baixa, a cidade alta, os subúrbios e a área do templo, cuja principal cons­trução era o Templo de Herodes, sede do conselho de sacerdotes e ponto fun­damental da fé judaica. Para lá convergiam as preces de todos os israelitas do mundo, um santuário que, em outros tempos, abrigara a maior relíquia de seu povo: a Arca da Aliança. O templo era um edifício alto, imponente, de umbrais adornados por placas de ouro e prata. Ficava ao centro de uma série de pátios, circundados por um muro de treze metros de altura. A Casa de Deus, assim re­ferida pelos fiéis em seu tempo, estava sob o controle do sumo sacerdote, que era também o oficial que presidia o Sinédrio, um concílio de figuras ilustres, de especial destaque na cidade.

         Uma língua de fumaça subia do pátio interno, onde uma pira ritualística queimava objetos de oferenda. Ao norte, as torres da Fortaleza Antônia — resi­dência do procurador romano — apontavam para o céu, e a oeste, encostado às muralhas da cidade alta, destacava-se o Palácio de Herodes, então habitado por seu filho, Herodes Antipas.

         Tomei o caminho que levava à ponte de pedra sobre o vale, certo de que es­taria no interior da metrópole antes do cair da noite. Um fato inesperado, porém, frustraria meus planos, e eu seria protagonista de um evento no qual só encon­traria lógica dois mil anos depois.

 

No monte das oliveiras

         Eram cinco horas da tarde e o sol estava morrendo. A lua em quarto min­guante já despontava no leste, quase imperceptível, desafiando o brilho da tarde. Continuei pela estrada principal, até que pressenti novamente a presença das sentinelas — com meus olhos de anjo eu podia vê-las através do tecido. Querubins armados com espadas e armaduras estavam em toda parte, preparados para de­fender o perímetro. Guardavam o topo das muralhas, os portões, os arredores do templo, os tanques e aquedutos. Muitos voavam em esquadrilha, protegendo a cidade de cima. As legiões aladas desciam por vezes, formando um cinturão de defesa e bloqueando o acesso à metrópole.

         — Não pensei que fossem tantos! — sussurrei para mim mesmo, estonteado com o contingente.

         O caminho regular que descia o monte — uma estrada romana bem conser­vada — era intransponível, tamanha a quantidade de soldados celestiais que a vigiavam do mundo espiritual. Optei por deixar a via e seguir por uma trilha sem marcações, que cortava as plantações de oliveiras. Essa era uma área rural, embora colada à cidade, e ficava deserta quando a noite caía.

         Permaneci oculto entre as sombras das árvores até o sol se pôr e depois pros­segui pela vereda. Mas antes de descer o vale do Cédron, que era uma depressão escarpada na época, notei que estava sendo observado e que fora enfim desco­berto. Meu andar sorrateiro era apurado, mas não o bastante para enganar vigias treinados.

         Não adiantava mais me esconder, e não era de meu feitio fugir. Ademais, por que fugiria? E se aqueles anjos fossem amigos de Nathanael? Poderiam me prestar assistência e me levar até ele. E, se fossem inimigos, eu não tinha receio de combatê-los. Afinal, não era para isso que estava ali?

         O tecido da realidade tremeu com um abalo estrondoso, indicando que al­guma criatura de poder desmedido acabara de se materializar. Eu estava cercado por árvores, e a vegetação impedia a visão, por isso fiquei alerta, esperando por um ataque furtivo ou por uma saudação amigável.

         Um anjo guerreiro, forte em sua couraça de ouro, apareceu no caminho. A espada estava embainhada, e não se mostrava agressivo. Não materializara as asas, o que demandava um esforço tremendo, e naquelas condições qualquer transeunte o tomaria por homem comum, assim como eu costumava ser con­fundido. À luz prateada da lua, eu o reconheci e identifiquei, na armadura, o símbolo da legião que, havia milénios, eu chefiara.

         Baturiel era, assim como eu, um querubim, um lutador implacável, que ser­vira sob minhas ordens na Legião das Espadas, divisão que eu comandava an­tes da conjuração. Mas de que lado ele estava? Teria simpatizado com a causa de Nathanael ou preferido se juntar a Miguel, para matar o Iluminado? O que mais me intrigava, porém, não era isso. O poder incomensurável que eu sentira havia poucos minutos não provinha do lutador adiante — era muito mais sublime e possante.

         Cheguei mais perto, ainda cauteloso, mas a expressão do guerreiro era im­passível. Estava rijo, como que montando guarda, e não arredava pé do caminho. Compreendi que seria eu a tomar a iniciativa.

         — Procuro por Nathanael, o Mais Puro — anunciei. O semblante do guarda não se alterou.

         — Não posso deixá-lo passar. Tenho ordens extremas de defender o morro. Diante daquilo, concluí que não era meu aliado.

         — Não quero ter que lutar com você, Baturiel. Mas também tenho uma mis­são a cumprir.

         — Não lutará comigo, general — ele rebateu, e vi que apontava para o lado, indicando um segundo anjo que chegava.

         O novo soldado portava um arco dourado e com ele preparava uma flecha, uma seta mortal, dirigida ao meu coração. Era Varna, general da Legião dos Arcos, uma mulher-anjo, como eram todas as arqueiras querubins. Vestia uma camisa de malha metálica, ajustada ao tamanho dos seios. Seus cabelos eram longos, castanhos, e os olhos, afiados como os das águias em caça. Seu ar era sério, compenetrado, e não vacilava um instante sequer. Rápida como uma co­bra, apontou o dardo, mas aguardou o comando.

         — Varna nunca errou uma flecha — ameaçou Baturiel. — Você é um anjo re­negado, está preso ao mundo físico. Se seu coração for destruído aqui, no plano material, estará acabado.

         Estaquei e analisei o impasse. Li, no rosto do guerreiro, que ele não estava seguro. Não queria me ferir, não queria dar o comando de ataque. Na verdade, havia um brilho em seus olhos. Algo dentro dele ainda admirava meus feitos. Eu ainda era, mesmo distante, seu líder em armas.

         A situação chegara a um ponto crítico. Os dedos de Varna começavam a sangrar em contato com as cordas tensas do arco. Ela precisava disparar, ou pôr abaixo a arma. Estávamos, os três, imóveis, e eu aguardava uma oportunidade para avançar. Mas ali se encontravam anjos de grande poder, entre eles dois ge­nerais, e nenhum de nós estava disposto a ceder. A crise, contudo, seria resol­vida em instantes.

 

         Um quarto anjo, também travestido de homem, apareceu no meio dos dois. Não materializara as asas — não via necessidade de fazê-lo. Vestia-se discretamente, com uma túnica longa, cinzenta, mas sua presença era sublime. Os cabelos cor de mel, normalmente presos em trança, estavam soltos e desciam pelo corpo magro e forte. A aparência era serena, e o poder de sua aura, magnânimo. Aquele não era um anjo comum.

         Diante de mim encontrava-se um arcanjo — Gabriel, o Mestre do Fogo. Na­da mais era preciso dizer. Aquele era o meu fim, terminaria ali. Um anjo rene­gado, descoberto por um arcanjo, seria rapidamente eliminado. Não teria ne­nhuma chance contra aquele gigante, uma das entidades de maior poder no universo, superado apenas por Miguel, Lúcifer e pelo próprio Yahweh. Não tra­zia sua armadura de ouro nem sua espada mística, mas também não era preciso. Mesmo confinado à carne de um avatar, era invencível, praticamente indestru­tível.

Mas, em vez de me atacar, ele avisou:

         — Vá embora, Ablon. Estamos resolvendo um problema de família aqui — sua voz era quase uma música, uma melodia suave, que a qualquer momento poderia estourar em acordes violentos.

         — Não posso recuar, Gabriel, não agora — conservei minha honra. — Não de­pois de tudo o que passei para chegar até aqui. Não depois da palavra que dei.

         O arcanjo moveu a cabeça, já sabendo que eu não desistiria tão fácil. Ce­dendo à minha teimosia, fez um sinal, e Varna recolheu a seta.

         — Deixe-nos. Eu resolvo isso.

         E, ao seu comando, os dois anjos saíram. Quando os oficiais deram as costas, alertei Baturiel para o erro que eu acreditava que estivesse cometendo.

         — Baturiel, nunca pensei que estivesse no meio dessa sujeira — disparei.

         — Não é o que parece, general.

         Uma vez sozinhos, na negritude da noite, em meio às oliveiras do morro, julguei ter chegado a hora de meu extermínio, mas o Mestre do Fogo me sur­preendeu novamente.

         — Sei do seu encontro com Nathanael, da casta dos ofanins — revelou o ar­canjo.

         — O que fez com ele, Gabriel? — endureci.

         — O Mais Puro está em uma missão delegada por mim, se é o que deseja saber.

         — Nathanael jamais lhe obedeceria.

         O Mestre do Fogo sorriu, reparando que meu sangue fervia e que eu me se­gurava para manter o controle.

         — Nathanael já me obedeceu uma vez, na época do dilúvio. Não é a primeira vez que o Mais Puro participa de uma missão ordenada pelos grandes. Você, que é tão amigo dele, devia conhecer melhor os seus louros. Pensei que soubesse de toda a história, mas agora entendo o que se passa. Seu ódio pelos arcanjos o impede de enxergar a verdade.

         Eu já havia me lançado em missões suicidas antes, por minha própria von­tade. Daquela vez, todavia, não tinha escolha. Seria liquidado, então por que não morrer lutando? Haveria honra maior para um anjo renegado do que pe­recer em combate com um dos arcanjos?

         — Está mentindo, Gabriel! — acusei. —Tenho uma demanda a cumprir e en­trarei nessa cidade, ou morrerei tentando.

         — É imprudente, meu jovem — não havia muitos que pudessem me chamar assim. Gabriel era um deles. Os arcanjos são anteriores à luz; foram criados al­guns bilhões de anos antes dos anjos comuns.

         Concentrado, ajoelhei-me sobre a grama macia do monte e vali-me de meu poder máximo para invocar a Ira de Deus. Não sabia se minha técnica de com­bate poderia prostrar um arcanjo, mas era a hora de tentar tudo de que dispunha.

         — Gabriel, Mestre do Fogo, já travei inúmeros duelos e não me envergonho de dizer que, em alguns deles, conheci a derrota. Na maioria das vezes, porém, saí vencedor. Não sei qual será o desfecho deste combate. Tudo o que sei é que, esta noite, serei seu oponente, sob essa lua que nos espia do leste.

         Tomei uma distância segura do Mestre do Fogo e avancei em carga, com toda a potência a queimar meu sangue. Mas, ao perigo do ataque, o arcanjo não se mexeu. Com o punho direito, preparei-lhe um soco no rosto, e executei um golpe perfeito, brilhante. A precisão do assalto poria qualquer um a nocaute, mas meu embate foi interrompido por um tipo de telecinesia. Um campo de energia mística frustrara a trajetória do murro, e eu agora tentava vencê-lo, sem sucesso. Gabriel não precisava tocar em nada para projetar sua força, que era descomunal, muito maior do que eu poderia imaginar. Era como se eu estivesse enfrentando um deus, e a diferença de poder entre nós revelou-se abissal.

         — O que há com você, general? Sua potente Ira de Deus, ou seja lá como os querubins chamam essa técnica, não é tão grande quanto pensava, não é? Seus inimigos devem fraquejar diante de tão inofensivo ataque — ele falava como um mentor, e não como um inimigo.

         — O que está fazendo, Gabriel? — rosnei, empregando toda a força para ven­cer o magnetismo que circundava o inimigo.

         — Recue, guerreiro. Meu objetivo não é machucá-lo — advertiu.

         — Nunca — insisti, e com um novo empurrão tentei afrontá-lo.

         Quanto mais eu arremetia, mais a força invisível me empurrava para trás, e, quando investi com novo estalar de fúria, a barreira mística reagiu, e fui lan­çado para longe com violência implacável. Meu corpo foi arrojado como projétil, abrindo uma vala em sua trajetória, destruindo árvores e espalhando esti­lhaços de rocha por centenas de metros. Nunca, em toda minha vida, fora vítima de uma ofensiva tão brutal.

         Aturdido, escorei-me nas laterais da cratera para me levantar, em meio à poei­ra que dominava o buraco.

         Tentei olhar adiante e vi a silhueta de Gabriel ereta sobre um pedaço de rocha. Se pudesse pegá-lo naquele segundo, desprevenido, talvez conseguisse acertá-lo.

         Com a habilidade de um querubim, saltei para fora da cratera como um gato na noite e desci com a mão fechada para assaltar o arcanjo. Mas minha destreza e rapidez superiores de nada serviram. O Mestre do Fogo executou um curto movimento de punho, e eu, ainda no ar, fui paralisado por sua telecinesia. Imobilizado, como que flutuando em uma esfera energética, eu estava totalmente sibmisso, sem poder mexer um músculo que fosse. Não conseguia nem mesmo falar.

         Gabriel demonstrou que sua paciência acabava. Ao esticar de um braço, a esfera me projetou novamente, mas dessa vez estabilizei o empuxo e aterrissei rolando sobre um sítio de pedra. No último instante, porém, um tropeção me jogou ao solo, e caí prostrado a centímetros de um precipício. A queda dali era assustadora, mesmo para alguém como eu, que pulava e escalava com perfeição superior à humana.

         O arcanjo, observei, movia-se à velocidade de seus golpes. Quando o procurei com o olhar, enxerguei o Mestre do Fogo já em meus calcanhares, flutuand mesmo sem asas a um metro do chão. Devia ser sustentado pela mesma forcai magnética que o envolvia.

         — Está derrotado — proferiu. — Não tem a mínima chance de me vencer em combate. Basta um simples movimento meu, e será jogado ravina abaixo. Agora, aceite seu destino e faça o que digo. Vá embora enquanto há tempo.

         Recompus-me devagar, porque conhecia a periculosidade de suas ameaças. Encurralado, preferi levá-lo ao diálogo.

         — Se sabe que Nathanael veio até mim, então conhece o valor de minha mis­são — ele se mostrou impassível. — Por que faz isso, Gabriel? Por que me impe­de de zelar pelo Iluminado?

         Flutuando, o Mestre do Fogo recuou uns dois metros, possivelmente para demonstrar uma disposição pouco agressiva.

         — Você não entende, general — havia angústia em suas palavras. — Sua de­manda não tem mais serventia.

         Minha missão, arruinada? O que poderia levá-la ao fracasso, senão minha morte? Será que eu chegara atrasado para encontrar o Sagrado com vida? Ou teriam os arcanjos destronado os defensores do Menino?

         — Então, o Salvador está morto? — sibilei, perdido em devaneios.

         — Não, ainda não. Ele foi condenado. Não por mim, nem por Miguel, nem por qualquer um dos celestiais, mas por sua própria gente. O Salvador foi con­denado pelos homens, e contra isso nada podemos fazer.

         Fiquei em silêncio, avaliando a idéia. Será que o Mestre do Fogo mentia? Não, não precisava... Poderia me matar com um piscar de olhos, então por que sustentar uma farsa? Como que adivinhando meus pensamentos, o arcanjo com­pletou:

         — Não é você mesmo que sempre diz que não devemos interferir no arbí­trio dos mortais? Não foi por isso que se insurgiu contra nós? Não foi por esse motivo que levantou armas contra os arcanjos?

         — Mas isso é diferente, Gabriel... — articulei, sem calcular bem as palavras.

         — O Iluminado, apesar de seu poder e sabedoria, é homem também. Dife­rentemente de nós, foi agraciado com o livre-arbítrio, como todos os seres huma­nos. O Salvador escolheu seu próprio martírio. O fato está consumado. Agora, só eu posso ajudá-lo, mais ninguém.

         Seguiu-se à revelação do arcanjo uma profunda tristeza, e senti que ambos compartilhávamos de igual amargura. Por um minuto, enquanto o vento do deserto soprava sobre a ravina, nada foi dito. As casas e fortalezas de pedra, na cidade de Jerusalém, resistiam às trevas corno pontinhos de luz, imitando as es­trelas no céu.

         Foi então que Baturiel, o querubim de couraça dourada, retornou, quebran­do o silêncio. O oficial chegou caminhando, e sobre os ombros de seu líder lan­çou a notícia:

         — Mestre, nosso mensageiro no Calvário acaba de chegar — ele abaixou a ca­beça em sinal de respeito. — O Salvador morreu.

         — Esse problema será contornado — devolveu Gabriel, como se já tivesse cal­culado todas as saídas possíveis. Detinha, seguramente, controle total da situa­ção, e imaginei que o Mestre do Fogo previra cada instante daquela odisseia.

         Baturiel recuou, e o arcanjo voltou-se à minha presença.

         — Como percebe, há muito que fazer, general, Deve partir agora — determinou, em um comando final. — E inútil tentar furar o bloqueio. A cidade está cercada, no mundo físico e no espiritual — e, confiando na dignidade de um guerreiro vencido, deu de ombros e preparou-se para deixar a cena de batalha.

         Eu estava estupefato. Tivera um encontro com Gabriel Arcanjo, fora der­rotado e seguia com vida. Alguma coisa não se encaixava.

         — Espere, Gabriel — trepliquei. — Por que me deixa livre? Sou um renegado, um proscrito, e você, um arcanjo, um executor, um gigante.

         Ele respondeu à minha pergunta com uma resposta profética:

         — Antes que o sétimo dia alcance seu fim, nós nos encontraremos mais uma vez. Por ora, siga em paz seu caminho — concluiu, evocando a frase emblemática do Mensageiro.

         Tudo o que queria saber era o paradeiro de Nathanael e o destino do Sal­vador. Mas, se o Mestre do Fogo dissera a verdade, o Iluminado estava morto, e com isso minha demanda desfazia-se ali. Não tinha certeza se as palavras do arcanjo eram verdadeiras ou não, mas minhas opções se esgotaram.

         Gabriel flutuou sobre o rochedo até o fundo da ravina e lá desmaterializou seu corpo físico, passando como espírito ao plano astral. Mais uma vez, a trans­ferência planar abalou o tecido, dissipando uma onda colossal de energia. De­pois, eu o vi através da membrana, voando em direção à cidade.

 

Um Último Beijo

         Três meses depois do meu fatídico encontro com o arcanjo Gabriel no monte das Oliveiras, regressei a Roma, levando pessoalmente a Shamira as notícias que prometera ao partir. Nem ela, nem Flor do Leste, nem eu mesmo esperávamos que eu retornasse tão cedo, mas, devo admitir, foi aprazível voltar à casa da fei­ticeira, um recanto seguro, um mundo à parte dos perigos que me espreitavam em viagem.

         Em julho, o calor na Cidade Eterna atingia níveis insuportáveis, e muitos aristocratas da época deixavam suas mansões na capital para passar uma tem­porada na villa, a propriedade rural fora dos muros da metrópole. Mas Shamira não tinha terrenos no campo, só o domus na capital, e lá permaneceu por todo o verão, estudando fórmulas mágicas e esperando por meu relato.

         Por uma semana inteira, descansei no aconchego daquela casa arejada, me­ditando no pátio do peristilo, banhando-me às vezes no lago artificial do centro do átrio e travando com a necromante discussões que varavam a noite, sobre toda sorte de acontecimentos, celestiais e mundanos. Era agradável conversar com ela, não só pela variedade de assuntos que partilhávamos, mas porque sim­plesmente sabíamos ouvir um ao outro. Por muitas vezes, desejei ficar para sem­pre na companhia da moça, quis que o mundo parasse para que tivéssemos nosso tempo, um eterno momento de paz.

         Mas o mundo não para.

         Enquanto eu estivesse ali, junto delas, Shamira e Flor do Leste correriam perigo, assim como correram Tales, Tommaso e todos os humanos e anjos que eu trouxe para o seio de minha vida fugaz.

         Em um de nossos infatigáveis diálogos, a feiticeira me contou o que acon­tecera no mundo dos homens enquanto eu estivera dormindo. Contou-me tam­bém sobre seu duelo com Zamir, antes de eu cair em torpor. Eu, por minha vez, relatei minha viagem à China e meu encontro com Nathanael perto da mura­lha. Discorri sobre minha visita a Enoque e sobre o reencontro com o capitão Hazai. Por fim, detalhei meu embate com Gabriel.

         — Mas então você não encontrou o anjo Nathanael? — perguntou Shamira, no pátio do domus.

         — Essa história ainda me instiga. Gabriel disse-me que o Mais Puro estava em uma missão delegada por ele, mas não falou qual era essa missão. Estou cer­to de que Nathanael não mentiu para mim quando disse, ainda na China, que integrava um grupo que pretendia salvar o Iluminado. Então como poderia es­tar no mesmo partido de Gabriel? Gabriel é um arcanjo. Os arcanjos odeiam os humanos, acima de tudo.

         — E você acha que Gabriel estava dizendo a verdade? — questionou a mulher.

         — Não sei. Se não estivesse, então por que não me matou? Por que não me atirou do rochedo?

         Ela cortou um dos galhos de uma roseira do pátio, aparando a irregularidade da planta.

         — Sei pouco, quase nada, sobre a política celestial, mas, se ela for igual à hu­mana, eu diria que, para você encontrar a resposta, precisa antes analisar os in­teresses.

         — Como assim?

         — Há interesses por trás de cada movimento no mundo. Que benefício Ga­briel teria em deixá-lo vivo? Por que mentiria? Por que esconderia Nathanael de você? Tanto os justos quanto os perversos são movidos por vontades implícitas.

         — Implícitas demais para eu inferir.

         — Por enquanto, talvez, mas um dia a verdade aparecerá. Basta estar prepa­rado para encará-la — e olhou para mim em um sutil elogio. — E você sempre está preparado para tudo.

         Permiti-me uma autocrítica:

         — Eu não estava preparado para enfrentar Gabriel...

         — É claro que estava, caso contrário não estaria aqui. Derrotar alguém não significa necessariamente vencê-lo em combate.

         Sorri, zombando da natureza que me era inerente.

         — Meu caráter guerreiro não me permite essa multiplicidade de opções — retruquei, bem-humorado.

         Ela aparou mais um galho da roseira, retirando os espinhos com uma tesoura de ferro. Flor do Leste estava ali perto, no estúdio, escrevendo alguma coisa em pergaminhos de pele. Ao vê-la sentada em um diva, apoiando uma prancheta de madeira sobre as coxas, meus olhos se recusaram a reconhecê-la como mu­lher. Para mim era uma eterna menina, a pequena chinesa que se agarrava a mim nas noites de frio, que me salvara da morte duas vezes seguidas.

         Enquanto observava os graciosos movimentos da oriental, meus pensamen­tos se perderam nas aventuras pelos escombros de Enoque.

         — O que foi, Ablon? Você não costuma se deixar levar por devaneios — per­cebeu a mulher, reparando que eu cortara, por um instante, minha ligação com o mundo.

         — Essa jornada foi permeada por fatos intrigantes, Shamira, que não consi­go desvendar. Fico pensando qual seria a ligação entre eles. Se é que há uma li­gação...

         — Você se refere ao assassinato de Ishtar — supôs a feiticeira, já a par de meu encontro com o capitão renegado nas ruínas da Bela Gigante.

         — A simples morte dela não diz muita coisa, afinal todos os renegados são perseguidos. Mas Hazai me disse que Ishtar estava sendo caçada não só por ser uma pária, mas porque descobrira uma suposta conspiração, que aparentemente envolvia o céu e o inferno e ameaçava a existência do próprio Yahweh.

         — Se Ishtar estava certa em sua investigação, então pode contar que esse é o segredo mais bem guardado do universo. Seja quem for que esteja, ou estivesse, por trás desse conluio, vai trancá-lo a sete chaves. Mas não imagino quem te­nha poder para tanto. Até mesmo o mais forte dos arcanjos não seria adversário para o Reluzente, como você mesmo me disse uma vez.

         — Yahweh está dormindo — ponderei.

         — E ainda assim você acha que alguém poderia molestá-lo? — perguntou a necromante, que sabia muito menos do que eu sobre a conjuntura celeste.

         Fiquei um tempo calado e depois respondi, convicto:

         — É claro que não — declarei, aliviado. — Nem acho que devia estar pensando nessas coisas agora. Não há fatos com os quais trabalhar. Remoer isso só vai me levar ao desânimo.

         Conformado, preferi deixar a suspeita de lado e me contentei em gozar da quietude e da tranquilidade que desfrutava na mansão romana, com aquela mu­lher admirável. Mas houve um dia em que, como de hábito, meu tempo se esgo­tou. Não poderia ficar ali e ser egoísta a ponto de atrair mais inimigos para a vida daqueles que eu amava. Era ilusão pensar que tinha acabado. Mesmo tendo destruído as rapinas, mais caçadores viriam me buscar, e eu esperava estar bem longe de Shamira e de Flor do Leste quando isso acontecesse.

         Minha temporada em Roma havia acabado.

 

         Em uma calma manhã de verão, quando o sol nascia nas montanhas, anun­ciei minha partida. A feiticeira e a chinesa me acompanharam até a calçada, em frente ao domus, ainda vazia aos primeiros raios do dia. Aquela era uma área residencial, abastada, e por isso tomada por um silêncio quase rural, só quebrado pelo barulho do vento nas árvores e pelo canto dos pássaros que piavam ao sol.

         — Então, esta é mais uma daquelas habituais despedidas — brincou Shamira. — Já começa a parecer chavão.

         Eu sorri. Era sempre difícil deixá-la.

         — Por quanto tempo pretende continuar por aqui? — perguntei, referindo-me à casa romana.

         — Não muito. Esta casa está maculada. Nunca será a mesma depois da pas­sagem de Zamir.

         — E por qual estrada pensa em seguir?

         — Vou escoltar Flor do Leste de volta ao seu país. Por muitas vezes ela mani­festou a vontade de morrer na China, e, embora eu ache que ela ainda viverá por muitos anos, um dia seu corpo se curvará ao apelo da morte.

         Encarei a chinesa, que a tudo ouvira calada. A morte humana pode ser um sofrimento para os que ficam, mas é uma dádiva para os que vão. Libertar-se das limitações da carne é o presente final para aqueles que enfrentaram a du­reza da vida, e eu era testemunha de como Flor do Leste sofrera na infância.

         — Sei que é perda de tempo perguntar para onde você vai — antecipou-se Shamira.

         — Nem eu mesmo sei. Talvez siga para o norte, para as terras geladas além da Germânia. Os romanos costumam me confundir com os bárbaros que ha­bitam essas partes. Seria instigante conhecê-las.

         A feiticeira concordou com um movimento de cabeça e me agradou com um sorriso.

         Caminhei até Flor do Leste, em sua postura rígida, disciplinada, e abracei-lhe o corpo pequeno, que mesmo depois de trinta anos se conservava miúdo. O cheiro da pele também era o mesmo, inconfundível ao olfato de um anjo guerreiro.

         — Não importa quantos anos se passem, Flor do Leste, você sempre será mi­nha pequena chinesa. E quando tiver partido para junto de seus ancestrais, con­tinuarei a me lembrar de seu rosto quando vir uma flor, o mar ou as montanhas nevadas. Sua herança agora mora em mim, pequena, e eu a levarei até o fim do mundo.

         Ela se agarrou a mim com a afeição costumeira, mas não chorou como das outras vezes. Ao me ver vivo e forte, teria cumprido a demanda que escolhera para sua vida. E, para aquela pequena gigante, isso bastava.

         Voltei-me para Shamira, pronto para um último adeus. Ao longe, nas ruas do centro, o barulho do comércio anunciava o despertar da cidade.

         — Você parte junto com uma era, renegado — prenunciou a mulher. — A par­tir de agora, o mundo mudará para sempre. A mensagem deixada pelo Salvador jamais será esquecida. Em breve, Roma cairá, e uma nova comunidade mundial seguirá. Assim profetizaram os espíritos, sou apenas sua porta-voz.

         — Então talvez minha missão não tenha sido totalmente perdida — confor­tei-me.

         Nós nos olhamos, tentando adiar, nem que fosse por segundos, a dolorosa despedida. Nossos corpos se aproximaram, meio que involuntariamente, termi­nando em um abraço carinhoso. Ao soltá-la, Shamira levantou o rosto, antes deitado sobre meu ombro, e seus lábios se aproximaram dos meus. Senti o aro­ma doce de sua boca, e um turbilhão de emoções apoderou-se de mim. Sensa­ções novas e desconhecidas dominaram meu ser, levando-me próximo ao êxtase. Quando, porém, nossos lábios estavam a ponto de se tocar, ela se desviou e me beijou no canto da face.

         Encabulado, eu a olhei com um misto de confusão inocente e desejo apai­xonando.

         — Quando quiser um beijo de verdade, deverá toma-lo — disse a mulher, se­dutora. Seu charme era ardente, irresistível.

         Naquele momento, tudo o que eu mais queria era possuí-la, tê-la eternamen­te junto de mim, entregar-me ao seu fascínio. Mas era justamente por amá-la tanto, por querer protegê-la de todos os males, que eu não podia toma-la. Foi assim, e só por isso, que resisti ao desejo.

         — Haverá um dia em que as trevas se dissiparão, feiticeira. E aí teremos nosso tempo.

         Ela sorriu, orgulhosa, e por um instante, apesar do beijo sedutor, tive a im­pressão de que era por isso que esperara desde o início.

         Foi assim que deixei a Cidade das Sete Colinas e todas as minhas melhores lembranças da época dos césares. Eu ainda voltaria a Roma algumas vezes de­pois disso, mas ela nunca seria a mesma. Nunca seria a mesma sem Shamira.

         No outono daquele ano, a feiticeira deixou a grande metrópole, viajou para a China e lá ficou até Flor do Leste morrer, tão velha quanto pode um ser huma­no. Durante esse tempo, a necromante estudou a mágica chinesa, aperfeiçoan­do-se ainda mais nos estudos místicos. Sem querer, ao assassinar os mestres fei­ticeiros, Zamir havia lhe coroado com uma honra nefasta, porém respeitosa.

         Shamira era agora a maior feiticeira da terra.

 

Quase um Assassino

Na Cidade do Rio de Janeiro, na Costa Sul do Atlântico, uma nuvem ne­gra de chuva encobria o topo da montanha, encimada pela gigantesca estátua do Cristo Redentor. A manhã ia morrendo, e com ela o sol que coloria de azul as águas do mar e alvejava a areia das praias.

         No apartamento de Ablon, Sieme, a Mestre da Mente, olhava através da ja­nela, fitando a tempestade que se aproximava. Aziel, a Chama Sagrada, vigiava a porta, enquanto o Anjo Renegado vasculhava as prateleiras destruídas, tentan­do encontrar o passaporte falso que guardava para o caso de emergência, agora perdido na bagunça deixada pela passagem do Anjo Negro.

         — Aqui está! — exclamou Ablon, sacando o documento de uma pilha de en­tulhos.

         — O comércio está fechando as portas — reparou Sieme, atenta ao movimento nas ruas. — Há uma sensação coletiva de medo na mente das pessoas.

         — É a guerra. A guerra mundial deve ter sido oficialmente declarada — cal­culou o general.

         — Pelo que vi nos jornais — palpitou a serafim —, este país não faz parte de nenhum dos dois blocos em conflito.

         — A guerra afeta o mundo todo, Sieme. A potência de destruição dessas ar­mas humanas não conhece fronteiras — explicou Ablon, referindo-se à artilharia nuclear —, e uma hora ou outra seu eco alcançará toda a terra. Os locais afetados são contaminados por uma energia destrutiva, e os sobreviventes acabaram perecendo mais tarde.

         — Que perspectiva terrível! — assustou-se Aziel. — Os homens parecem imitar as catástrofes arquitetadas pelos arcanjos nos dias antigos. A que ponto chegaram!

         — Não foi à toa que minha esperança na humanidade acabou. Por muitos anos pensei que todo o ódio fosse reversível, até que vi o cogumelo atômico le­vantar-se sobre os céus do Japão. Mas o que Lúcifer disse é em parte verdade. A civilização humana sucumbirá nesta guerra, mas nem todos morrerão. Ainda é possível erguer um novo mundo dos escombros, mas não com Miguel perse­guindo os mortais.

         Apertou as amarras que prendiam o longo embrulho de pano, no qual en­fiara a Vingadora Sagrada. Não pretendia caminhar pela cidade com uma lâ­mina de um metro em punho. Trespassou uma corda pelo meio do invólucro, improvisando uma alça, e lançou o embrulho às costas. Ainda não sabia como fazer a arma passar pela alfândega.

         — É verdade, general — concordou Sieme. — Nós, anjos, já vimos os homens se recuperarem de cataclismos ainda maiores. Quem, na época, pensaria que resistiriam ao dilúvio?

         Involuntariamente, os olhares do Anjo Renegado e da Mestre da Mente se voltaram para Aziel. Por pouco, ele não se tornara o mais cruel dos assassinos, durante os dias da grande inundação. "Não vou participar desta destruição inú­til", dissera a Chama Sagrada a seu mestre, Amael, que, por ter recebido uma ordem direta dos arcanjos, não podia dar-se ao luxo de recusá-la.

         Fez-se um silêncio embaraçoso, até que Ablon assumiu o comando.

         — Vamos embora. Já tenho o que procurava — avisou, guardando o passaporte no bolso.

         Os três caminharam rumo à porta, mas Sieme pisou em um objeto no centro da sala e parou para observá-lo. Era a pistola de Shamira, a potente Desert Eagle que usara para manter a distância Euzin e Ankarel, na noite anterior. Estava jo­gada no piso, perto de uma trilha de sangue e miolos.

         — O que é isto? — perguntou, curiosa. Pouco conhecia sobre a tecnologia humana, então tudo com que se deparava era novo, interessante.

         — Uma arma, a pistola de Shamira — explicou Ablon.

         — É um objeto ordinário, de metal. Como ela esperava enfrentar celestiais com isto?

         — O chumbo dos projéteis estava encantado, o que os converteu em artefatos mágicos.

         A serafim, mesmo com toda sua inteligência celeste, ainda não compreendia muito bem como era possível combinar o conhecimento da mágica à fútil tecno­logia dos homens modernos. Parecia-lhe um tanto absurda a tática dos magos.

         — Esqueça isto, Sieme — determinou o Anjo Renegado. — Nosso tempo é curto.

         Ao mesmo tempo fascinada e indignada com a ousadia terrena, Sieme per­seguiu seu líder, deixando o quarto exatamente como o encontrara. Juntos, to­maram o caminho da rua.

 

A Runa da Paz

         O sol havia saído por completo, mas a umidade só fazia aumentar. A nuvem de chuva agora enegrecia todo o céu, e um trovão que mais parecia um rugido fez a cidade tremer. Um raio precipitou-se sobre o mar, anunciando a chegada de uma tormenta elétrica.

         — Mas será que nunca para de chover nesta cidade? — reclamou Sieme, reco­locando a parca de couro que deixara de lado por causa do calor. Os serafins são obcecados pela perfeição; não gostam quando alguma coisa está fora de lugar.

         — Essa tempestade não é natural — constatou Aziel. Os ishins entendiam como ninguém os fascinantes mistérios da natureza. — Realmente, não devia chover tanto assim.

         — São os efeitos da mudança climática — explicou Ablon.

         — E no que consistem essas mudanças? — perguntou a Chama Sagrada.

         — Destruição da camada de ozônio, efeito estufa, aumento da poluição... Tudo isso tem desestabilizado o clima no mundo. Áreas quentes esfriam, terri­tórios polares esquentam. Há um completo caos no meio ambiente global.

         Aziel, especialmente sensível ao problema climático, ficou introspectivo. Os ishins lutavam constantemente para manter o fluxo da natureza, para preservar as energias elementais, e de repente todo seu trabalho se revelava impotente diante da ganância humana.

         O coro passou reto pelo beco onde a motocicleta de Ablon estava estaciona­da. O veículo de duas rodas era impróprio para três, e o renegado optou por tomar o metro. Quando desciam as escadas sujas que davam acesso ao termi­nal, o general atentou ao som que só ele, com sentidos de predador, poderia escutar.

         — O que foi? — indagou Sieme.

         O querubim levantou a mão em sinal de silêncio, e os dois se calaram. Milhares de trabalhadores haviam deixado o trabalho mais cedo, conforme a Mestre da Mente observara pela janela da pensão, e estavam voltando para casa, lotando as escadarias que desciam aos guichês e às plataformas do trem.

         — O barulho da Segunda Trombeta que ouvimos mais cedo foi mesmo provocado por um novo bombardeio — revelou Ablon, ao escutar a transmissão de uma pequena TV instalada na barraca de um vendedor ambulante. — A guerra foi oficialmente declarada.

         — O que aconteceu? — quis saber Aziel.

         — A reportagem diz que a Aliança Oriental respondeu à ofensiva nuclear a Pequim lançando uma bomba sobre Nova York — a Chama Sagrada conhecia a cidade, mas Sieme nunca ouvira falar dela. — O segundo anjo tocou a trom­beta, e uma grande montanha abrasada foi lançada ao mar — murmurou o ge­neral, recordando-se das palavras de João no livro bíblico.

         — Não entendi a ligação — confessou a Mestre da Mente.

         — Nova York é uma ilha — esclareceu Aziel.

         A mulher-anjo entendeu o comentário, mas não tinha certeza se preferia ter entendido ou não.

 

         As linhas de metro, antes insuficientes para atender toda a cidade, haviam sido ampliadas oito anos antes, quando o Rio de Janeiro sediara os jogos olím­picos. De lá para cá, a verba de manutenção acabara, e os vagões bem ilumina­dos e plataformas limpas deram lugar a terminais imundos e vagões escuros, depredados por gangues de arruaceiros que passavam a madrugada destruindo os bancos e roubando fios de luz. Sieme reagiu com espanto, mas Aziel já tinha uma idéia do que encontraria. O cheiro da sujeira era insalubre, e os três anjos tiveram que se embrenhar na multidão para conseguir embarcar.

         No meio do caminho, antes de chegar ao aeroporto, Ablon desembarcou em uma estação perto da praia e pediu que os dois celestiais o acompanhassem.

         — Não vou demorar muito. Só preciso fazer uma coisa.

Subiram as escadas e viram-se diante da avenida à beira-mar. Aquela não era a mesma praia a que o renegado levara Shamira havia dois dias. Estavam defronte à enseada de Botafogo, abraçada ao longe pelo famoso Pão de Açúcar, um morro alto que parecia nascer do mar, delimitando o recôncavo marinho. Suas encostas rochosas e inacessíveis culminavam em um mirante belíssimo, só alcançado por um sistema teleférico denominado bondinho.

         Aziel e Sieme não compreenderam a atitude de seu general nem entenderam o porquê da parada. Atravessaram a avenida e pisaram na areia, chegando bem perto do mar. Era só o início da tarde, mas o céu estava negro com a iminên­cia da tempestade. Correntes de raios dançavam de uma nuvem para outra e depois explodiam no morro.

         — Sinto trazer-lhes aqui. Nunca acreditei muito em sorte ou destino, mas achei que deveria prestar uma homenagem — avisou o guerreiro.

         — Uma homenagem a quem? — perguntou Aziel, com o cuidado de não pa­recer ofensivo.

         Ablon pôs a mão no bolso do sobretudo emborrachado, próprio para dias chuvosos, e tateou o fragmento de basalto, dado a ele recentemente por Orion, quando de seu encontro no topo da estátua do Cristo Redentor.

         — À primeira grande nação. Ao povo que fez de tudo para exaltar as leis ce­lestes, julgando serem as diretrizes do próprio Yahweh, e que recebeu em troca a devastação de suas terras e a aniquilação total de sua cultura.

         — Atlântida — desvendou Sieme.

         Quando o Primeiro General abriu a mão, os dois celestiais notaram que ele segurava um pedaço de rocha preta. Uma das superfícies era lisa, lustrosa, como se outrora tivesse feito parte de um objeto maior. Sobre o lado polido era visí­vel um caractere antigo, que os anjos identificaram como um dos pictogramas atlânticos.

         — E uma runa atlântica — reconheceu Aziel. — O que quer dizer?

         — É o ideograma da paz. Este fragmento era parte do monólito que existia na capital de Atlântida há muito tempo e que foi posto abaixo pela grande inun­dação — o renegado fez uma longa pausa antes de retomar a explanação. — Os adantes tinham o costume milenar de escrever seus desejos em pedras e depois lançá-las ao mar. Contavam que as ondas sempre devolviam aquilo que o oceano havia engolido. Não sei por quê, mas algo me impulsionou a isto.

         O general arremessou com toda a força a pedra ao mar, que quase sumiu às vistas em sua trajetória. As águas envolveram a runa, sugando-a para o fundo da enseada. No outro bolso do casaco, Ablon sentiu o peso do objeto de barro, a chave mística dada a ele por Lúcifer. O renegado sabia que não a usaria e pensou em jogá-la, mas no fim preferiu manter a peça consigo, só por precaução.

         Um relâmpago iluminou a tarde.

         Começou a chover.

 

A Torre das Mil Janelas

         O terrífico Anjo Negro, com suas distinguíveis asas de penas pretas e o el­mo fechado a cobrir todo o rosto, voava pelo plano etéreo, levando a mulher desacordada nos braços. Era Shamira, a Feiticeira de En-Dor, que fora raptada no mundo físico e levada para lá. Apesar de toda sua habilidade mágica, ela era humana, era carne, e não podia atravessar o tecido da realidade sem o recurso de um portal. Mas o Anjo Negro tinha habilidades magníficas, e uma delas era a propriedade de "abrir todas as portas". Podia, portanto, se mover à vontade pelos planos, cruzar a membrana, atravessar o astral e invadir o etéreo.

         Dentre todas as edificações do etéreo, a Fortaleza de Sion é a mais magnífica. Suas proporções superam em todos os aspectos as estruturas humanas — mais parece uma torre, edificada em cem anéis decrescentes, um sobre o outro, ter­minando em um pequenino pátio circular, onde está fixado o maior dos arte-fatos do mundo, a Roda do Tempo, o círculo místico criado por Deus para mar­car a continuidade do sétimo dia.

         A magnitude da fortaleza é tamanha que o primeiro anel, a base, chega a superar três mil metros em diâmetro. De suas paredes externas, assentadas por uma rocha avermelhada, nascem dezenas de milhares de sacadas, janelas e um­brais, cautelosamente vigiados pelas poderosas legiões de querubins que guardam e cercam o perímetro. Em seu interior, um número incalculável de câmaras e salas dá abrigo aos partidários do arcanjo Miguel, anjos vis, invejosos, que dei­xaram suas moradias no paraíso para lutar a grande Batalha do Armagedon. A fortaleza é chamada também de Torre das Mil Janelas, embora tenha muito mais do que um milhar de passagens.

         O Anjo Negro voou por cima do círculo de montanhas que protegia Sion e se aproximou da torre. Adiante, quase no horizonte, era possível enxergar as águas rubras do rio Styx.

         Nenhum dos querubins que patrulhavam a região, nem mesmo os capitães e comandantes, ousou deter aquela estranha entidade, que ninguém sabia de onde viera e que respondia apenas ao Príncipe dos Anjos. Aterrissou firme em uma das plataformas do penúltimo andar e penetrou por um túnel escuro, para desaparecer nas entranhas da torre. Ainda carregada, Shamira acordou, mas dei­xou-se levar sem reaçáo. Sentia-se inútil, mas também era fascinante, para uma estudante do oculto, estar na Fortaleza de Sion, onde nenhum ser humano ja­mais entrara e que nem sequer contemplara.

         Ao fim do corredor, diante de uma enorme porta metálica, uma figura aguar­dava a chegada do Anjo Negro e de sua presa. Vestia uma armadura completa, de aço brilhante, com detalhes dourados, e levava na cinta uma espada de ca­bo adornado. O elmo de queixada pontuda tinha uma crina vermelha, e as asas brancas pareciam afiadas nas pontas, a reluzir como navalhas. Shamira nunca tinha visto aquele ser fabuloso, mas estava certa de que era o arcanjo Miguel, dada sua aura poderosa.

         — Encontrou problemas em proceder a meu comando? — perguntou o Prín­cipe dos Anjos.

         — Foi tão simples quanto derrotar a renegada Ishtar — respondeu o Anjo Negro.

         — Bom... — murmurou Miguel, analisando a mulher. — Acompanhe-me.

         A porta metálica abriu-se sem precisar ser tocada, revelando um aposento

curioso ao término de uma escada ascendente. Era uma grande sala redonda, revestida com as mesmas pedras vermelhas que compunham a fortaleza. Em suas paredes, a necromante contou duas dúzias de portas de ferro, todas fechadas. As dobradiças pareciam seladas, e nas portas não havia maçanetas, mas cada uma delas tinha no centro um recuo anelado, decorado com símbolos angélicos. Sha­mira supôs que aqueles nichos fossem um tipo de fechadura mística, onde se­ria encaixada uma chave redonda. No meio da sala fixava-se um pedestal em formato de meia coluna, sobre o qual jazia um livro de aparência antiga, escri­to por dentro e por fora. A feiticeira não sabia, mas aquele era o Livro da Vi­da, um tomo dado por Deus a Miguel antes de seu adormecimento. O aposen­to que cruzavam era, a propósito, a famosa Sala dos Portais, o lugar para onde Lúcifer queria enviar Ablon na tentativa de abrir o acesso ao inferno.

         Na câmara havia uma única porta aberta, diferente das outras, mais larga. Sua passagem levava a uma segunda escada, bem mais estreita, e os dois celes­tiais se dirigiram para lá. No percurso, a necromante notou que Miguel tomou o Livro da Vida do pedestal e o guardou consigo.

         Os degraus culminavam em um alçapão aberto, que saía para um pequeno pátio redondo. No meio descansava uma grande roda, como uma mesa de pedra, presa ao chão por um eixo. As extremidades da roda eram marcadas por uma sucessão de caracteres, como os números de um relógio. As inscrições, que Sha­mira não podia entender, derivavam do código sagrado dos malakins, um idio­ma anterior à aurora do mundo. Haviam chegado, portanto, ao topo da forta­leza, e aquele terraço estreito era seu último nível.

         Foi então que a feiticeira viu que sobre um dos lados da mureta do pátio fixava-se uma pilastra de mármore negro, com correntes para amarrar prisionei­ros. Foi ali que o Anjo Negro a prendeu, de frente para a roda, não deixando chance de fuga.

         — Pode ir agora — disse Miguel ao raptor. — Você sabe o que fazer. A criatura voltou-se ao alçapão e deixou o terraço.

 

         Shamira estava agora sozinha com o Príncipe dos Anjos. Jamais imaginara terminar naquela situação, diante do grande tirano do universo. Não sabia como proceder, o que falar ou como agir. Fora tomada pelo medo, o mesmo re­ceio que a acometera havia milênios, quando fora capturada pelo rei Nimrod. Pensava que depois de tudo se tornara capaz de enfrentar qualquer desafio. Mas sempre há mais um que nos põe à prova.

         Abriu os olhos, compreendendo a inutilidade de simular o desmaio.

         — Shamira, a Feiticeira de En-Dor — proferiu Miguel, orgulhoso. — Não sabe quanto é valiosa para nós.

         Ela não tinha certeza do que o arcanjo estava falando, mas formulara uma hipótese em sua mente.

         — Se pensa em me usar como isca para atrair Ablon, não terá sucesso em seu intento. O Anjo Renegado não tem como alcançar o plano etéreo.

         O Príncipe dos Anjos tirou o elmo, e a mulher viu seu rosto. Tinha o ca­belo negro cortado por uma mecha branca, que começava na testa e terminava na nuca. A face era dura, cheia de cicatrizes, marcas adquiridas nas Batalhas Pri­mevas, durante a criação do universo.

         — Sei bem disso, feiticeira, como não saberia? Eu mesmo o bani para a Haled muito antes de você nascer. Se hoje Ablon é um fugitivo, é porque eu o expul­sei de minha casa.

         Desbancada, a necromante limitou-se a encarar o arcanjo, neutra.

         — Mas você conhece a história — continuou o príncipe. — Pouca coisa deve ter-lhe escapado. Estudou por séculos os mistérios cósmicos, lendo tomos anti­gos, decifrando mosaicos em ruínas, ouvindo o sussurro dos mortos... Sobrevi­veu roubando a energia dos espíritos maléficos para se manter jovem para sem­pre. E por que fez isso, mulher, com que objetivo?

         Miguel era inteligente e astuto, e havia tocando no ponto fraco da moça. Ela não conseguiu responder.

         — Foi por causa dele, daquele anjo guerreiro. Você escolheu não morrer na esperança de que um dia o mundo mudasse e vocês pudessem ter seu momen­to de paz — Shamira estava assustada. Como aquele tirano sabia de tanta coisa? — Mas esse dia jamais chegará. O próprio Anjo Renegado já perdeu as esperan­ças. E você deveria aceitar a verdade.

         — A sua verdade não é a mesma que a minha, arcanjo — ousou a humana.

         — Está errada, feiticeira. Acha mesmo que a capturaríamos apenas para ar­mar uma emboscada para um anjo proscrito? Não... Nossas intenções para com você são ainda mais grandiosas.

         — Não foi isso o que seu capanga disse ao me raptar.

         — Você não devia confiar tanto em seus inimigos. Honra, glória, virtude... são convenções humanas. Nós, arcanjos, não somos limitados por elas.

         A necromante preferiu não questioná-lo e guardou silêncio. Tranquilo, Mi­guel caminhou pelo pátio, fitando a roda de pedra.

         — Sabe o que é isso? — perguntou, correndo o dedo sobre a superfície do ar-tefato rochoso.

         — A Roda do Tempo. Ablon me contou sobre ela.

         O arcanjo satisfez-se com a resposta. A conversa, ao que parecia, tomava o rumo que queria. Uma brisa gelada soprou no terraço, esvoaçando as melenas escuras da prisioneira.

         — Observe as marcações na rocha. Sei que não pode entendê-las, mas é fácil compreender o trajeto da roda. Como percebe, em breve ela completará seu ci­clo — afirmou, indicando os caracteres e mostrando que o último deles já avan­çara. Para Shamira, contudo, o objeto parecia estático. — A Roda do Tempo continua girando lentamente, embora você não possa perceber com sua visão humana. Será que não entende, mulher? Não há nada que seu amigo renegado possa fazer. Nem mesmo eu tenho o poder de parar o percurso do mundo. So­mente o Altíssimo poderia fazê-lo.

         —Você é um assassino, Miguel. Ceifou milhões de vidas humanas e justificou seus crimes com a palavra de Deus. Ninguém mais do que você desrespeitou as ordens do Criador. Por que acha que ele o poupará de seu julgamento, quan­do acordar de seu sono?

         — Você me chama de assassino, mas não vê o que sua espécie fez ao planeta. Guerras, morte, fome, destruição. Agora, as armas terrenas são tão potentes quanto a força divina, e o conflito dos homens acabará com o mundo. Os humanos roubaram o poder de Deus, e o usarão contra eles mesmos. Desde sua criação, os mortais vêm cultivando o ódio, o egoísmo e a violência.

         — Isso não o isenta de sua responsabilidade.

         — Suas palavras são levianas, feiticeira. Tudo o que fiz foi lutar para resguardar este mundo, desde o início. Sempre soube que terminaria assim, e de tudo tentei para preservar a criação de meu Pai — ele parecia sincero. — Se pensa que falhei, está enganada. Tudo agora converge para que minha vontade se cumpra. A humanidade será aniquilada. Os sobreviventes serão sacrificados, e enfim te­rei o trono que me foi reservado.

         — Levianas são as suas palavras, arcanjo. Como poderia saber que a humani­dade caminharia para o abismo? Pelo que sei, os únicos anjos que têm o dom da previsão são os malakins, e mesmo eles nada previram sobre a guerra dos homens.

         Ele sorriu, pois estava prestes a exibir suas cartas.

         — O que é o poder de um malakim se comparado à força de Deus? Se o An­jo Renegado lhe contou tanto, talvez tenha lhe falado a respeito disto.

         Miguel tomou à mão um livro de folhas amareladas, escrito por dentro e por fora com caracteres angélicos, e o ergueu às vistas da moça.

         — Este é o Livro da Vida, uma relíquia sagrada. Foi-me entregue pelo pró­prio Yahweh antes de ele buscar seu repouso e contém toda a história do séti­mo dia. Está tudo marcado aqui: o passado, o presente, o futuro. O destino de cada um de nós está traçado, foi escrito por ele.

         hamira engoliu em seco. Ablon havia, mais de uma vez, comentado sobre aquele tomo místico, e, se fosse verdade que ele continha o trajeto do mundo, então talvez o tirano estivesse mesmo certo. Apesar de todas as suas atrocida­des, seu impulso teria sido legítimo, segundo sua natureza celeste. Mas a necro-mante preferiu não acreditar nisso. Não poderia jamais aceitar que as idéias e os valores do Primeiro General fossem mutilados. Será que, por tanto tempo, Ablon lutara por causas erróneas?

         arcanjo afastou o livro. Deu as costas para a prisioneira e achegou-se à mureta do pátio. De lá, vislumbrou o horizonte e a cadeia de montanhas que circundava a fortaleza. Olhou para o céu, para o chão lá embaixo e para os anjos que patrulhavam a torre. Por fim, fitou o curso vermelho do rio Styx. Em seus olhos, a moça identificou a sombra do passado.

         Houve um tempo, feiticeira, em que os arcanjos governaram o mundo — a voz do príncipe soou mais suave. — Foi um breve momento, um instante fugaz entre a partida de Deus e o despertar da consciência humana, e a consequente confecção do tecido da realidade. Naqueles dias, a terra era um paraíso, até que sua raça começou a depredá-la. Com Yahweh ausente, tive que tomar a decisão de preservar sua obra. E foi assim que os massacres começaram. Eu pretendia aniquilar todos de uma vez, porque achava que podia mudar meu destino, que podia me esquivar do que estava escrito no Livro da Vida. Mas não pude. E, enfim, entreguei-me a meu propósito.

         A necromante examinou o discurso e encontrou uma falha nos argumen­tos do príncipe.

         — Mas e quando o Criador acordar? Acha que ele permitirá que você assassine os sobreviventes humanos e instaure seu mundo perfeito? — tentou ironizar.

         Foi então que o júbilo dominou a face do tirano.

         — Vejo que não entendeu absolutamente nada do que eu disse, mulher — e aproximou-se da prisioneira. — Saiba que mais cedo ou mais tarde os filhos su­peram os pais. O tempo de Yahweh terminou. É hora de estabelecermos uma nova ordem no universo.

         Enfim, Shamira entendeu as pretensões de Miguel, e o simples pensamento do que poderia acontecer a estarreceu. Não teve coragem de falar, mas o arcan­jo explicitou seu plano:

         — Quando a Roda do Tempo findar, eu me proclamarei divindade. A maneira pela qual farei isso você saberá a seu tempo, mas de qualquer forma não com­preenderia o processo. Agora consegue imaginar por que a trouxemos aqui?

         — Você precisa da minha alma. Por isso ainda não me matou.

         — Eu sou um arcanjo. Nós, assim como os anjos, estamos presos à nossa na­tureza. Não temos o livre-arbítrio. Esse é um atributo da alma, a alma que nos falta, a alma que nos foi negada — e um toque de melancolia, misturado a um impulso de ira, acompanhou sua última frase.

         A necromante estava assombrada. Nunca se sentira assim, tão inútil e ao mesmo tempo tão cobiçada. Nem em seu cárcere em Babel suportou tamanho horror. Se pudesse, poria fim à própria vida, mas estava imobilizada na pilastra de mármore.

         — Sua alma é poderosa — prosseguiu o malfeitor —, talvez a mais poderosa de todas. O Apocalipse iniciou-se e caminha para a conclusão. No tempo exato, usarei a energia de sua alma para fazer a minha própria, completando assim meu destino. Yahweh não despertará e os homens serão arrasados. Com a desinte­gração do tecido, nada me impedirá de povoar o mundo com os anjos leais à minha autoridade, e a terra finalmente será ocupada por seres iluminados, não pela matéria decrépita que hoje a habita.

         Shamira reuniu vontade suficiente para encarar o tirano.

         — É curioso, não acha? Para alcançar o que sempre almejou, precisa daquilo que mais odeia. Se o destino realmente existe, é possível que esteja a lhe pregar uma peça, arcanjo.

         — Está errada mais uma vez, necromante. O próprio Yahweh arquitetou tu­do isso e delineou seus anseios no Livro da Vida. Toda a nossa jornada está gra­vada, e minha fortuna é assumir o lugar dele.

         — Diga-me então, Príncipe dos Anjos... Você acha que minha alma apenas é suficiente para elevá-lo ao trono supremo? Acredita que, sozinho, tem poder para governar o universo?

         — Não, Shamira. Ainda há um elemento essencial ao meu plano, que não cabe ser revelado. É minha peça final.

         A feiticeira teve medo de pensar qual era essa peça.

         — Você esquece que tem inimigos igualmente poderosos, Miguel — atacou a mulher. — Acha que eles permitirão que leve adiante esse projeto macabro?

         O príncipe sorriu com desdém.

         — Deve estar pensando em meus irmãos. Nenhum deles me preocupa, real­mente. Gabriel não teria coragem de me enfrentar. Sua bondade pedante o le­vará à derrota. E quanto a Lúcifer... Eu já cuidei dele. Há um bom tempo ele não oferece mais ameaça.

         E já farto de ter com aquela humana, tola e insignificante em sua concepção, Miguel repôs o elmo, agarrou o Livro da Vida e desceu os degraus do alçapão, deixando-a sozinha no pátio. Por enquanto estava segura, mas quando seu fim chegasse experimentaria a pior de todas as mortes. Achou-se egoísta por ter-se deixado levar pela luxúria c decidido viver para sempre, pretendendo, no futu­ro, tomar o coração do herói renegado. Mas aí entendeu que o que a manteve erguida fora justamente essa esperança, esse desejo por um tempo de paz, ao lado do anjo que amava.

         Assim como Ablon resolvera uma vez, Shamira decidiu conservar a esperan­ça, a mesma que já havia fenecido no olhar do lutador fugitivo.

 

Na Sala de Controle

         Chovia torrencialmente na cidade do Rio de Janeiro.

         O dia parecia noite quando Ablon, Aziel e Sieme subiram as escadas do metro, finalmente diante do aeroporto. No espaço aéreo, o general percebeu que muitos aviões aterrissavam e poucos partiam.

         O Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro é um complexo de concreto e vidro, cortado por pistas e viadutos e composto por duas alas — uma antiga, construída na década de 70, e outra mais nova, feita nos anos 90. O setor co­mercial divide espaço com a Base Aérea do Galeão, um aeródromo militar que raramente abriga jatos de guerra. Logo na chegada, entre dois viadutos que le­vam às vias de embarque, uma grande edificação se destaca — a torre de comando —, onde uma dezena de técnicos organiza voos, autoriza partidas e direciona aterrissagens.

         Os três anjos andaram debaixo de chuva pela via de automóveis, estranha­mente engarrafada para um dia daqueles. Ônibus, táxis e carros circulavam na pista, parando em fila dupla e atravancando o trânsito. Ablon estivera ali ha­via poucos dias, antes de a guerra estourar, e não presenciara tamanho caos de pessoas.

         Quando entraram pela porta automática, que se abria ao saguão de embarque, entenderam o que se passava. Os voos estavam lotados. Uma multidão se espre­mia na área de espera, alguns sentados no chão, outros de pé, atentos ao painel de controle das aeronaves. Aviões vindos da Europa, dos Estados Unidos, do Oriente e dos demais países no eixo de combate aterrissavam no Rio, ocupando todas as pistas e atrasando os poucos voos de saída. O renegado percebeu que aquelas pessoas não esperavam parentes, mas eram estrangeiros, recém-chegados ao país à procura de abrigo.

         — Estamos recebendo refugiados — disse o Primeiro General, examinando o painel de chegada e saída de aeronaves. — Os voos de ida estão sendo cancelados para liberar a pista para os aviões.

         — Não há nenhum voo para Jerusalém? — perguntou Aziel, sem compreen­der muito bem a confusão do painel, que girava a cada instante.

         Pelo menos nenhum voo comercial.

         E o que fazemos agora? — indagou Sieme.

         Temos que saber se há aviões cargueiros, fretados ou militares que este­jam partindo para o Oriente Médio.

         Sieme olhou para o mostrador de embarque e desembarque, já entenden­do melhor como funcionava,

         Esse painel não nos diz nada sobre esses voos aos quais se refere. Só indica a movimentação das aeronaves de passageiros. Sabe onde poderíamos conseguir essas informações?

         Ablon aproximou-se da parede envidraçada do salão e olhou para fora, fi­tando o edifício alongado com uma cúpula no cimo, entre os dois viadutos de concreto.

         — Na torre de comando.

 

         A torre de comando é um setor fundamental para qualquer aeroporto. Lá, todos os voos são organizados. Uma equipe de profissionais bem treinados, técnicos e ex-pilotos, indica aos comandantes de bordo seus trajetos, que pista tomar e quando descer ou partir. Ablon não sabia pilotar aviões, mas conhe­cia o básico do funcionamento das instalações aeronáuticas, conhecimento acu­mulado por meio de livros e da observação dos procedimentos aéreos.

         A entrada para a torre, no aeroporto do Rio, fica perto do estacionamento de carros, logo abaixo do viaduto que leva às vias de embarque. Ablon, Azièl e Sieme caminharam até lá e, de longe, notaram que o elevador estava guardado por dois soldados do exército.

         — Posso entrar lá sem ser visto — sussurrou o general, confiando em suas ha­bilidades furtivas. — Mas e quanto a vocês?

         — Nós todos podemos entrar, general — retrucou Sieme. — Não se preocupe com isso.

         Ablon lembrou-se, então, que a serafim era telepata e podia manipular as mentes mais fracas.

         Foi uma experiência curiosa para o Anjo Renegado e para a Chama Sagrada prosseguir pelos militares sem ser barrados. A Mestre da Mente, de alguma for­ma, agiu sobre os sentidos dos guardas, e o coro entrou no elevador como se fosse invisível. Ao ver a porta do ascensor se fechando, uma das sentinelas ex­clamou:

         — Que estranho! Você tocou em alguma coisa?

         E a outra respondeu:

         — Não mexi em nada. Deve ser mau contato.

         — Espero que saiba lidar tão bem assim com os técnicos da sala de contro­le — elogiou Ablon, já no elevador.

         A porta do ascensor se abriu, revelando uma sala circular, envidraçada, cheia de computadores, radares e aparelhos eletrônicos, com ampla vista para toda a área da pista de voo. Silvos apitavam e transmissões de rádio chamavam, mas ninguém escutava. Os funcionários, todos eles, estavam dormindo sobre as mesas.

         — Acho que exagerei — criticou-se Sieme, que nunca antes tinha submetido mentalmente um humano. Havia pensado em deixá-los cansados, desatentos por um minuto, enquanto seu grupo buscava informações na sala, mas fora lon­ge demais.

         — Não tem importância — determinou o renegado. — Vamos encontrar os dados de que precisamos e sair logo daqui.

         Ablon sentou-se então defronte ao computador central e começou a pes­quisar a pasta eletrônica. Enquanto isso, sentindo-se horrivelmente inútil por nada entender daquela parafernália e depois de ter errado na dose de um de seus poderes, a Mestre da Mente tomou uma atitude. Aproximou-se de um dos técnicos adormecidos e levantou a mão direita sobre sua cabeça.

         Valendo-se de suas habilidades mentais, a serafim concentrou-se e, em um segundo, vasculhou a memória do homem, examinando e adquirindo seus co­nhecimentos, acumulados ao longo da vida. Já tinha tentado essa técnica mui­tas vezes com outros celestiais, o que costumava ser mais difícil. Ler a mente humana, percebeu ela, era bem fácil, mas também muito mais doloroso. Ao su­gar-lhe as lembranças, a despreparada Sieme foi acometida por um turbilhão de emoções e pensamentos humanos, ausentes nos anjos em geral. Amor, ódio, medo, raiva, apreensão, desejo. Era como uma torrente que a empurrava para longe. Desnorteada, viu a luz do nascimento e sentiu o frio do mundo fora do ventre. Experimentou o medo irracional das crianças pequenas, o aconchego dos pais e o calor do primeiro beijo. Provou a dor de um relacionamento des­pedaçado e encontrou vitalidade ao gerar um filho. Eram lembranças roubadas, memórias que nunca pensara em guardar e que nem sabia que de fato existiam.

         Cambaleou, e teria caído no chão se Aziel não a tivesse amparado.

         — Estou bem — agradeceu, tentando esconder suas fraquezas.

         Do outro lado da sala, o Anjo Renegado exclamou:

         — No hangar militar há um avião que pode nos servir. É um Boeing peque­no da Força Aérea, mas o tanque está cheio.

         — É um 737. Não tem autonomia de voo para nos levar a Jerusalém — con­testou a serafim, agora totalmente entendida na matéria aeronáutica.

         — Tem tanque triplo — mostrou o general. — É o bastante.

         Os tanques de combustível duplos e triplos foram desenvolvidos pela Liga de Berlim, com o objetivo de estabelecer uma ponte aérea sem escalas entre os Estados Unidos e os países mais distantes da Europa. Com isso, o espaço de car­ga e passageiros era reduzido, mas os viajantes desses aparelhos preferiam rapi­dez a volume.

         — Parece perfeito — reconheceu Aziel. — Mas não temos piloto.

         Os dois anjos se entreolharam diante daquele novo obstáculo. Tiveram a sorte de conseguir uma aeronave oficial, com grande autonomia e com o tanque cheio, mas infelizmente não tinham como pô-la em ação.

         — Eu sei pilotar — revelou Sieme, ainda meio confusa com as lembranças que adquirira instantes atrás.

         Nem todos os técnicos que trabalhavam na sala de controle eram pilotos, mas um deles era. Por sorte, ou por destino, era o mesmo cuja memória a se­rafim vasculhara.

         — Então vamos — ordenou Ablon, sem aguardar uma explicação detalhada. Esperou os outros, entrou no elevador e desceu.

         Segundos depois, os funcionários da torre acordaram, sem saber o que se passava. Rádios chamavam, apitos eletrônicos soavam e computadores chiavam. Retomaram o trabalho normalmente e continuaram a ordenar voos, aterrissa­gens e trânsito de aeronaves na pista.

         Mas não sabiam que, antes de sair da sala, a mulher-anjo lhes deixara uma sugestão na mente. O voo do 737 militar teria prioridade máxima para decolar.

         Já caminhando pelo estacionamento, em direção à base aérea, Ablon com­preendeu a tática de Sieme e mais uma vez abençoou Gabriel por tê-la enviado em missão.

 

O Acampamento Rebelde

         No plano etéreo, o acampamento rebelde fora montado a 350 quilômetros da Fortaleza de Sion, em uma planície de onde se enxergava o círculo de mon­tanhas que defendia a torre inimiga e os últimos três anéis concêntricos que, a distância, quase pareciam tocar o céu. Milhares de celestiais, liderados pelo ar­canjo Gabriel, haviam deixado a Cidadela do Fogo, no Primeiro Céu, e se es­tabelecido ali, para aguardar o início da Batalha do Armagedon.

         Do topo de um rochedo, o próprio Gabriel, com sua armadura de ouro e sua espada de fogo, observava a esplanada a seus pés. Nos olhos, a mesma harmo­nia de sempre, a serenidade inabalável do Mensageiro, convicto de suas ações.

         Gabriel, pensativo, solitário sobre o rochedo, esticou as majestosas asas bran­cas, que saíam das costas recortando a couraça, e observou os estandartes orgu­lhosamente carregados por seus guerreiros querubins.

         A general Varna, líder das arqueiras, galgou o penhasco e ajoelhou-se diante de seu comandante. Sempre fiel ao Mestre do Fogo, portava um arco dourado, e nas costas levava, entre as penas alvas da asa, uma aljava abarrotada de flechas. Uma malha metálica, também dourada, protegia-lhe o dorso. Os cabelos lon­gos eram castanhos, e os olhos, verdes. A expressão era de total seriedade, sempre disposta a lançar-se em combate mortal.

         — Sim, Varna — permitiu Gabriel. Ele não a havia chamado.

         — Aziel e Sieme ainda não retornaram, meu senhor — ela costumava ser direta. — Peço permissão para enviar um destacamento para resgatá-los.

         — Não há tempo. O mundo físico está em alvoroço. As duas primeiras trom­betas já foram soadas. Agora é apenas uma questão de horas até que a Batalha do Armagedon comece. O inimigo é numericamente superior. Precisamos de todos os anjos em suas posições.

         — Como queira, meu mestre, mas devo alertar que o ishim e a serafim po­dem estar em perigo.

         O Mensageiro respirou fundo e maquinou algo na mente.

         — Eles concluíram com sucesso a viagem ao plano físico?

         — Sim, diretamente ao encontro do Anjo Renegado.

         O arcanjo pareceu aliviado.

         — Então, estão mais seguros do que nós, neste acampamento.

         Gabriel fez uma pausa e sublinhou as tropas com o olhar. Varna sabia que por trás da segurança do arcanjo estava a extrema confiança no Anjo Renegado, o qual considerava o verdadeiro líder da rebelião, aquele que deixara a herança que semeara tudo aquilo. Varna reconhecia todo o mérito do anjo guerreiro e sabia que ele seria imprescindível em um momento difícil, porque era um ícone, um símbolo. Mas, como todo querubim, era desconfiada. Desde o encontro que tivera com Ablon, no monte das Oliveiras, não estava tão certa de suas habili­dades em combate. Vira o renegado ser derrotado pelo Mestre do Fogo, então ainda tinha dúvidas sobre sua capacidade de comandar um exército tão grande.

         — Farei sua vontade, meu senhor — conformou-se a arqueira,

         — Tenha fé, Varna — retrucou o arcanjo. — Teremos em breve o Primeiro Ge­neral de volta. Prepare nossas tropas para o embate. A Sexta Trombeta será o chamado para o início do ataque.

         A mulher-anjo curvou-se e deixou o rochedo, voltando ao campo.

         Gabriel regressou à solidão.

 

Os Duques do Inferno

         Os nove duques do inferno — Asmodeus, Molloch, Mephistopheles, Alastor, Mammon, Orion, Apollyon, Baalzebul e Bael —, os seres de maior poder e influência na hierarquia satânica, haviam sido convocados à caverna de Lúcifer, no Vale dos Condenados, para conferenciar com o mestre. Estavam apreen­sivos e indignados com a situação presente. Até então, a Estrela da Manhã ainda não havia se pronunciado sobre o papel dos infernais no Apocalipse e muito menos na Batalha do Armagedon, e os duques ficaram confusos. Desejavam

cobrar uma atitude de seu líder, queriam o aval dele para posicionar suas hor­das e atacar os celestes, revanche pela qual esperavam desde a derrota dos caídos. Mas, até ali, Lúcifer nada dissera e nada comunicara. Muitos fomentaram intrigas, idealizaram rebeliões, mas a verdade é que ninguém tinha coragem de se levantar contra a liderança do Arcanjo Sombrio.

         Em uma das salas do interior da caverna, de paredes chamuscadas e nichos de fogo, havia nove cadeiras feitas de ossos humanos, oito delas ocupadas pelos terríveis demônios. Uma estava vazia, e aquele era o assento de Apollyon. Acima, em uma plataforma de pedra, jazia o trono de Lúcifer, ainda desocupado, mas guardado por seu fiel bajulador, Samael, a Serpente do Éden.

         Ao longe, um tímido observador escondia-se nas sombras. Era Amael, o Se­nhor dos Vulcões, que às vezes também ficava na companhia de Lúcifer.

         — O altíssimo virá em instantes — anunciou Samael, com aquela voz sibilante. Era assim que o serviçal gostava de chamar seu mestre, para igualá-lo ao Deus adormecido.

         Um murmurinho propagou-se na gruta. Os duques estavam fartos de espe­rar, de tolerar os caprichos do Diabo. Mammon, um ser abominável, com corpo de hipopótamo, cabeça de porco e chifres imensos, sussurrou a Orion, que es­tava a seu lado:

         — O que esse maldito ex-arcanjo acha que é? Somos duques, e não um de seus capachos.

         Logo nesse momento, para aflição de Mammon, Lúcifer apareceu por uma passagem e adentrou o salão. Sua maravilhosa aparência contrastava com o con­cílio de monstros. Era belo, de feições delicadas, e teria o corpo perfeito não fossem as asas de morcego que lhe marcavam as costas.

         — Estava falando de mim, Mammon? — perguntou Lúcifer, e o duque tremeu.

         — Não, amo, perdoe-me — implorou. — Perdoe-me por qualquer mal-entendido — fez menção de se ajoelhar, mas a Estrela da Manhã já estava satisfeita.

         — Já chega, meu caro duque — cortou. — Por enquanto me contentarei com seu silêncio.

         O Arcanjo Sombrio sentou-se no trono e levou um tempo para se acomo­dar, de propósito, para enraivecer o conselho. Quando, enfim, se cansou do ri­tual, exclamou:

         — Então, meus queridos, vocês estão aqui. É para mim uma felicidade que tenham respondido ao meu chamado.

         Molloch, o Carrasco, tinha o corpo de um homem forte, mas a cabeça mui­to grande, com chifres pequenos e uma cauda comprida. Os olhos eram enor­mes e as pupilas, cortadas como as dos gatos. Levava sempre um chicote de mui­tas pontas, que usava para flagelar seus escravos. A criatura, quase explodindo em raiva, iniciou o debate:

         — Meu amo — esforçou-se —, Sua Majestade exigiu nossa presença, mas o que o faz tolerar a ausência de Apollyon? Por que ele pode faltar quase sempre, e nós não?

         Uma onda de aprovação silenciosa inundou a gruta, ameaçando anular o controle de Lúcifer, mas o infernal retomou a palavra:

         — Porque se você faltasse, Molloch, eu o sufocaria com sua bolsa escrotal. A sala calou-se.

         — Seria uma cena engraçada — divertiu-se o Filho do Alvorecer.

         E enfim, uma palavra de ordem:

         — Não adianta ficarmos trocando injúrias — apaziguou Orion. Em sua for­ma espiritual, o Rei Caído de Atlântida também mancava, tal qual seu corpo físico, mas agora estava sentado. As asas despenadas, que apesar disso eram efi­cientes em voo, deixavam-no desconfortável naquela posição. — É hora de os duques deixarem de lado as diferenças e juntarem-se contra um inimigo comum.

         — As palavras de Orion são sábias — concordou Asmodeus, um dos duques mais elegantes, conhecido por seus galanteios e por seu harém de escravas sexuais, lotado de espíritos de mulheres maléficas, que cometeram assassinatos e tortu­ras em vida. — O arcanjo Miguel, nosso grande inimigo, ameaça controlar to­da a terra. Correm rumores de que descobriu um meio de evitar o despertar de Yahweh, então devemos agir sem demora.

         — Miguel também tem inimigos — argumentou Alastor, uma figura grossa, de pele vermelha e patas de cabra, que agarrava um tridente. — Gabriel está con­tra ele, e seus exércitos, prontos para a batalha. Se os...

         — Isso não é novidade para ninguém — interrompeu Lúcifer, esticando-se no trono, com ar de tédio. — Até o demônio mais podre e o anjo mais fraco sa­bem dessa guerra civil e desse escarcéu que meus irmãos armaram lá no polei­ro. Agora, os bastardos estão levando essa zona toda para o etéreo, e acham que vão dominar o mundo quando o tecido da realidade cair.

         Enfim, o Anjo Caído era coerente em suas palavras, e os duques ficaram quie­tos a ouvir.

         — Foi por isso que os chamei aqui. Não sou tolo. Se fosse, não teria organi­zado este reino. Não se esqueçam de que, mesmo sozinho, ainda tenho poder suficiente para comer o rabo de vocês e fritar seus testículos.

         Os presentes engoliram em seco. A afirmação do Diabo era infelizmente verdadeira.

         — Escutem agora. Para ganharmos essa guerra, precisamos agir certo e na hora exata. Cada um de vocês vai convocar seus servos e comandantes, preparar suas hordas e levá-los todos ao porto do Styx, à saída desta caverna, ao soar da Quinta Trombeta. A partir de então, seguirão as instruções de Samael — e apontou para a criatura reptiliana que estava a seu lado direito. — Minhas ordens só serão reveladas a ele, porque o sigilo é essencial para nosso sucesso. Quem desobedecê-lo responderá a mim. E não serei generoso com os insurgentes. Há muito venho querendo reduzir a quantidade de duques; talvez esta seja uma boa oportunidade.

         Os oito presentes achavam-se no direito de obter mais informações sobre o plano de ataque, até para poder preparar suas hostes. Alguns estavam a ponto de estourar, mas alguma coisa os fez aceitar o comando. O pior daquilo tudo, sem dúvida, seria ter que obedecer a Samael, um bajulador pedante, que todos odiavam por ser o primeiro na escala de favores do Arcanjo Sombrio. Não havia um só duque que não quisesse degolá-lo, mas Satanás estava nas graças do amo.

         Lúcifer não se levantou. Em um gesto cansado, de tremendo desprezo, fez sinal para que os outros se fossem. Por fim, ficou sozinho na caverna com o ser escamoso e com o melancólico Amael, o Senhor dos Vulcões.

         — Tenho nojo desses pobres-diabos, Amael, mas com vocês dois é diferente. São meus amigos — confidenciou o demônio, à sombra de suas escuras asas de morcego.

 

Chuva Ácida

         Com as habilidades mentais de Sieme, Ablon e Aziel não tiveram problemas para driblar a segurança da base, entrar no hangar, subir no avião, taxiar e decolar o aparelho. Já sabiam que aquele era um veículo oficial, mas tiveram uma ótima surpresa ao compreender que a aeronave tinha visto especial dos países neutros, o grupo de nações não envolvidas na guerra, e que por isso teriam facilidade de aterrissar em praticamente qualquer aeroporto do mundo. Esses vistos haviam sido recentemente emitidos e permitiam o transporte de refugiados dos países em conflito para os territórios neutros.

         Sieme guiava o avião e ainda teria de ficar na cabine por mais alguns mi­nutos, até alcançar a altura máxima de cruzeiro, quando então passaria ao pi­loto automático. Sentia-se realmente estranha ao comando daqueles botões. Al­gumas horas atrás, quando chegara à Haled, mal sabia o que era um carro, e agora pilotava uma máquina aérea. Ficou impressionada com a tecnologia hu­mana e com a esperteza dos mortais, que podiam se adaptar às mais difíceis situações. Divagou sobre isso tudo, sobre a fascinante adaptabilidade dos homens. Eram sobreviventes, com certeza. Haviam resistido ao dilúvio e às inúmeras ca­tástrofes perpetradas contra sua espécie. Ao compreender isso, passou a respei­tá-los ainda mais, mesmo reconhecendo seus numerosos defeitos, que não eram, em verdade, muito maiores do que os pecados dos anjos.

         Ablon e Aziel estavam no compartimento de passageiros, uma área pequena para um Boeing 737 regular, justamente por causa do tanque triplo com o qual era equipado. Havia pouco mais de trinta poltronas e mais um espaço livre destinado à carga.

         — Isto não é água pura — percebeu Aziel, tocando a roupa branca, ainda en­charcada pelas gotas de chuva.

         — Está misturada a vários compostos químicos — esclareceu Ablon.

         A Chama Sagrada espantou-se.

         — Mas a água da chuva deveria ser a substância mais intocada de todas.

         — A atmosfera está tomada pela poluição. Quando as indústrias queimam combustíveis fósseis para produzir eletricidade, os dejetos são lançados ao ar e se fundem às moléculas de água. Depois, voltam à superfície da terra por meio de precipitações, que podem ser carregadas a grandes distâncias. Os cientistas humanos chamam esse fenômeno de "chuva ácida".

         Aziel manipulava a província do fogo, mas nem por isso tinha menos apreço pela água, a terra e o ar.

         — Então, não há regresso para a guerra dos homens, general, e para a des­truição do planeta?

         — No ponto a que chegamos, não vejo mais volta — pausou e encarou, através da janela, o horizonte azul acima das nuvens. — Recordo-me do dia em que vi a primeira explosão nuclear. Aquele brilho sinistro copiando os raios do sol, o calor radioativo, e depois a fumaça negra encobrindo a abóbada celeste.

         — Isso me lembra a destruição de Sodoma.

         — Até agora só ouvimos o soar de duas trombetas. Mas seu poder aumen­tará. Cada vez os terrenos usarão armas mais potentes. Sabe-se da existência de uma bomba tão forte que sua explosão queimará a atmosfera, lançando o pla­neta na escuridão nuclear. Suspeito que essa seja a arma final dos humanos.

         O ishim ouvia atentamente e buscava compreender a realidade das coisas. Não estivera tanto tempo afastado da Haled quanto Sieme, mas seus conheci­mentos tecnológicos eram deficientes. Por isso lançou a pergunta:

         — Você acha que a desintegração do tecido da realidade tem alguma coisa a ver com a ação dessas armas humanas?

         — Não diretamente. O tecido da realidade é feito da coletividade da cons­ciência terrena. Representa a capacidade dos homens de acreditar no que é real e negar o impossível. É a grande defesa que, mesmo inconscientemente, eles levantaram para se proteger das criaturas místicas, que os superam em longevida­de e poder. Mas o fim do mundo representará também o fim de todas as institui­ções, da civilização como a conhecemos. Todos os valores humanos serão truci­dados, e o impossível passará a existir. Não haverá mais uma barreira entre o real e o questionável. Os governos e as organizações religiosas cairão por terra. Tudo em que o homem sempre acreditou será desmentido. Você viu o caos no aeropor­to. Aqueles refugiados deixaram tudo para trás e não têm mais nada a perder. Muitos morrerão, e os que viverem aceitarão uma nova percepção do universo.

         Aziel começava a entender o foco da coisa.

         — Os sobreviventes passarão a admitir novas concepções. Se tudo em que acreditam desabar, que garantia terão de que realmente não existe o que antes achavam impossível?

         — É a melhor teoria que posso pensar. Mas não sou um malakim para pôr minha hipótese à prova. Talvez ela esteja totalmente equivocada.

         — Não acho que esteja. Faz muito sentido.

         Diferentemente de Sieme, Aziel era amigo íntimo de Ablon desde os dias passados e ficara contente em revê-lo. Reconheceu sua crescente sabedoria e fi­cou a imaginar como seria se os outros renegados ainda vivessem.

         — Dezoito renegados — reíletiu em voz alta. — Você tem certeza de que é o único ainda vivo?

         — Pude sentir a morte de cada um deles. Desde o assassinato de Ishtar, os fugitivos vinham sucumbindo aos seus caçadores. E os tempos se tornaram mais negros com a queda de Lúcifer.

         — O Arcanjo Sombrio culpou a Irmandade dos Renegados pela própria que­da e pela derrota na batalha contra o arcanjo Miguel — o ishim sabia a história, ou parte dela.

         — Ele alegou aos demônios vencidos que toda sua ruína começara ao dela­tar os renegados. Foi só ao trair a nossa conjuração que ele acumulou a influên­cia e o prestígio necessários para dar corpo à sua revolução, que a meu ver foi uma grande mentira. Pelo que Orion me contou, o Filho do Alvorecer se dizia defensor da liberdade, de um paraíso livre da tirania, mas o que realmente queria era superar seu irmão e tomar o trono. Ao ver sua rebelião destronada, não quis admitir o fracasso e responsabilizou os proscritos. Enviou o terrível Apollyon à Haled, para nos perseguir, e passamos a ter inimigos no céu e no inferno. Pelo menos nisso, os esforços de Miguel e Lúcifer convergiam.

         — Que ironia! Lembro-me de Apollyon, à época em que era um querubim. Chamavam-no de Anjo Destruidor, por sua técnica especial, chamada de Des­truição Total.

         — Diferentemente de Orion e Amael, Apollyon não se juntou a Lúcifer por discordar da política celeste. O Destruidor sabia que, se a Estrela da Manhã ven­cesse, ele assumiria lugar de destaque na casta e poderia prosseguir com sua car­nificina. Na verdade, Lúcifer nunca levantou uma palavra em defesa dos ho­mens, a não ser para contrariar o irmão.

         — Foi esse o motivo pelo qual você recusou a aliança com o Diabo?

         — Lúcifer já me traiu uma vez. Nada do que ele diz é verdade. Meu senso de perigo me alertou contra sua hipocrisia. Não sei ao certo o que planeja, mas certamente não é confiável.

         — Concordo com você. Conheço a ambição do Diabo e sempre soube de sua maldade. Por isso não me juntei a ele na guerra, mesmo consciente de que Miguel era igualmente perverso. Mas devo admitir que a proposta que o Arcan­jo Sombrio lhe fez é coerente. Vocês dois pretendem derrubar o Príncipe dos Anjos. Nada mais óbvio do que juntarem forças.

         — Seria muito fácil, Aziel. Além disso, por que Lúcifer teria me dado a tal chave do Sheol, mesmo eu tendo recuado a seu chamado?

         Em um gesto ilustrativo, Ablon tirou do bolso o círculo rústico de barro. A Chama Sagrada analisou a chave pela segunda vez e reparou em seus contor­nos. Inscrições ancestrais marcavam a superfície do anel, recortado por uma cruz no centro.

         — O Arcanjo Sombrio e Apollyon mataram muitos de meus aliados — con­tinuou o guerreiro. — O Filho do Alvorecer já sabia qual seria minha resposta. É aí que a coerência desanda.

         — E por que você não aproveitou o convite para desafiá-lo de vez e levar a cabo sua vingança?

         — Mesmo que eu conseguisse vencê-lo, jamais sairia vivo de sua caverna. Se­ria loucura e idiotice. Não... Lúcifer e Apollyon terão o seu tempo, mas primei­ro tenho que acertar as contas com o Príncipe dos Anjos.

         — Até para mim, que sempre estive nos Sete Céus, essa tripla contenda entre Miguel, Gabriel e Lúcifer é um tanto confusa.

         — Quando há mais de dois lados envolvidos numa disputa, o terceiro deve procurar aliar-se. Mas quem aceitaria a ajuda do Diabo? Miguel sempre foi seu maior oponente, e Gabriel, pelo que você diz, tornou-se uma figura bondosa, repudiando qualquer ação infernal.

         — Nessa guerra, só lamento por aqueles que não tiveram a chance de esco­lher seu partido, aqueles que tomaram as decisões erradas.

         Ao escutar Aziel, Ablon lembrou-se de Orion, que nunca pretendeu ser um demônio, e do pobre Amael, o melancólico executor do dilúvio.

         — Usei as rotas do rio Styx para viajar ao inferno. Orion veio me buscar, e Amael estava com ele.

         — Amael, meu velho e sofrido mestre Amael — a expressão do ishim enrugou-se. — Não é fácil esquecer o dia em que nos separamos. Nunca me perdoarei por ter-lhe dado as costas.

         Ablon preferiu ficar calado. Sentia-se comovido por Amael e concordava com a idéia de que ele não queria mesmo matar toda aquela gente, mas o Se­nhor dos Vulcões tivera sim, a seu ver, uma escolha. Teve, contudo, receio de assumi-la, teve medo de enfrentar os arcanjos, e talvez por isso se sentisse tão mal. Para o Anjo Renegado, Amael era uma vítima, mas de sua própria fraqueza. Vivia atormentado pelo mesmo temor que, no passado, o impedira de fazer sua eleição, de escolher entre obedecer aos grandes ou renegá-los.

         Ablon sabia que a segunda opção acarretaria consequências terríveis, mas o general dispusera-se a encará-las. Amael não.

 

         Longe dali, sob as águas geladas do mar de Barens, ao norte da Rússia, um submarino americano navegava. Conseguira enganar o radar inimigo e agora se aproximava da costa.

         A embarcação estadunidense, com as insígnias da Liga de Berlim, já estava preparada havia dias para uma situação como essa. Com a ofensiva nuclear a Nova York, não seria seguro utilizar bases fixas, daí a importância do transpor­te marinho. A equipe sabia o que fazer, e o almirante ordenou que o torpedo fosse posto a ponto de tiro. Quando disparou, o projétil saiu do mar e voou co­mo um míssil em direção a Moscou. Pequim já fora arrasada, e com ela parte da China. Agora, a Rússia era o segundo alvo prioritário.

         Pouco depois, do solo, os moscovitas viram a morte chegar, à semelhança de "uma estrela ardente a cair do céu, como uma tocha". A explosão abateu-se sobre a capital, e seu raio de extensão arrasou também países vizinhos. A oeste, partes da Bielorrússia, Ucrânia e Letônia foram destroçadas; a leste, a devastação varreu o Cazaquistão e sacudiu o mar Cáspio.

         No avião, sobre o Atlântico Sul, Ablon, Aziel e Sieme puderam ouvir o ba­rulho estridente da Terceira Trombeta. O Anjo Renegado e a Chama Sagrada cambalearam, mas se recuperaram de pronto. O zumbido, mais forte do que o anterior, levou-os a pensar que Sieme, sozinha na cabine, poderia sofrer dores horríveis, afinal era, dentre eles, a mais sensível aos abalos no tecido.

         Ao abrirem a porta, notaram a Mestre da Mente estirada no chão e correram para ampará-la. Ela se recuperaria em breve. Mas e os controles? Sieme era a única que sabia pilotar a aeronave.

         Felizmente, ela acabara de passar o comando ao piloto automático.

 

Algum lugar ao sul do mar Morto, cerca de quatro mil anos antes de Cristo

O que vem a seguir aconteceu seis mil anos depois do dilúvio e imedia­tamente após a expulsão da Irmandade dos Renegados dos Sete Céus.

         Seguiu-se à revolta um sentimento estranho, de desconfiança geral dos anjos em relação ao arcanjo Miguel. Por isso ele, que já havia decidido devastar So­doma, bem como outras cidades da planície, decidiu, para forjar a imagem de justo, repetir o que fizera no dilúvio e permitir que dois anjos fossem à terra verificar se na cidade condenada havia humanos bondosos. Se houvesse, seriam poupados. Para reforçar ainda mais sua "boa vontade", excluiu da tarefa o re­presentante dos hashmalins, uma casta de anjos tida como perversa, que controla a Gehenna.

         Foram enviados à Haled um ofanim e um querubim — um anjo da guarda e um anjo guerreiro. Esses dois celestes chegaram a Sodoma em uma tarde de maio, para cumprir sua missão. Ora, os sodomitas eram um povo justo, comum, como todos os outros, mas tinham governantes implacáveis. Um reduzido núme­ro de homens governava a cidade, e seus pecados eram tremendos. A terra de Sodoma era extremamente rica, mas, em vez de seus líderes compartilharem os frutos, fomentavam a ganância. Os soberanos tinham incrível repúdio por estrangeiros, que julgavam querer tomar o seu ouro. Mesmo a cidade estando se­gura contra ataques, seus juizes votaram uma lei pela qual todo habitante que fosse flagrado alimentando um forasteiro seria jogado à fogueira. Os viajantes que ali chegavam por engano eram torturados em camas que lhes esticavam os membros até se partirem. Certa vez, uma jovem ofereceu água a um andarilho. Sabendo desse ato criminoso, os chefes a untaram com mel e a puseram diante de uma colmeia de abelhas selvagens. Mas os trabalhadores livres, os servos e os escravos, que representavam o grosso do povo, eram pobres de bens e fracos de mente, e sofriam horrores nas mãos dos senhores maldosos.

         Aconteceu, então, que um tal de Lot, que descansava nos portões de Sodoma, avistou os dois anjos em forma de homem e os confundiu com viajantes. Lot não era um rico privilegiado, mas um trabalhador honesto. Mesmo saben­do das leis, teve pena daqueles forasteiros e os chamou à sua casa, oferecendo-lhes pão e abrigo. À noite, os guardas dos juizes estavam à sua porta, armados com estacas de bronze. Queriam prender e matar os visitantes, mas o querubim os cegou. Os celestes deixaram o local, não sem antes avisar a Lot:

         — Deve pegar sua mulher e filhas e partir de Sodoma, pois somos anjos de Deus e lhe dizemos que, quando o dia raiar, a cidade será destruída. Corra pa­ra além das montanhas e não olhe para trás.

         Antes do nascer do sol, portanto, o mortal deixou a planície e se escondeu nas colinas. E foi cumprida a vontade dos arcanjos.

 

         A legião de anjos materializou-se nos céus e voou por quilômetros sobre o mar, até alcançar o terreno montanhoso de Moab e depois a planície perto de Zoar. O tecido da realidade, naqueles dias antigos, era frágil, e isso permitia que os celestiais atuassem no plano físico sem muita dificuldade, desprendendo as asas e utilizando suas armas místicas para matar, mutilar e torturar os seres hu­manos. À frente do grupo, comandando a tropa, estava Apollyon, o Anjo Des­truidor, então um celeste, prestes a executar mais um terrível massacre. Tinha, nesses tempos ancestrais, asas brancas e uma armadura dourada. A pele era mo­rena como areia queimada, e levava nas mãos uma espada. A seu lado planava Euzin, o segundo em comando, um anjo que já fora herói de guerra, mas que com o triunfo se tornara cínico e perigosamente ambicioso. Sua espada era cha­mada Raio de Aço.

         A cidade de Sodoma, pequenina a distância, aumentava aos olhos daqueles predadores alados. Quando viram o coro de anjos voando como um enxame de abelhas, os juizes nada entenderam. Até que um deles gritou:

         — São os soldados de Deus que vêm nos matar. Ai de nós, que vivemos no pecado!

         O povo nas ruas entendeu seu destino e percebeu que pagaria pelo erro de seus chefes. Muitos tentaram correr, mas a legião já sobrevoava a cidade, cercando o terreno.

         — Espalhem-se! — ordenou Apollyon aos oficiais querubins. — Matem, des­truam, queimem tudo. Não poupem ninguém, nem as mulheres nem as crianças.

         E ao seu comando a tropa mergulhou, trespassando as nuvens e avançan­do em assalto.

         — Dariel, Asson, Ankarel! — chamou Euzin. — Venham comigo. Vamos in­vadir a casa dos juizes e queimar sua família.

         Os querubins, divididos em grupos, de espada em punho, tomavam as vias, as casas, as praças. Por onde passavam deixavam um rastro de sangue. Os que tentavam fugir eram pegos por trás, cortados ao meio ou decapitados. As lâmi­nas místicas venciam a carne com facilidade incrível, como as facas comuns di­videm a manteiga. Apollyon liberou os soldados para violar as virgens humanas, se assim o desejassem, e atirou as crianças no poço central, um buraco profun­do de onde os sodomitas tiravam água. Um pequeno agarrou-se à mureta e pu­lou para fora, mas com uma pancada o general o fez cm pedaços.

         Na sacada da casa dos chefes, Euzin e seu séquito apareceram, portando as cabeças dos governantes. Lançaram-nas dali para as calçadas e sobre os tetos das habitações. Os corpos eles haviam amassado e jogado a massa disforme em uma piscina do pátio, onde os juizes criavam crocodilos.

         Mesmo tomados pelo pavor, alguns poucos civis tentaram lutar, mas percebe­ram, assustados, que suas armas não feriam os celestes. Curioso foi que os guardas humanos, que tinham por tarefa defender a cidade, foram os primeiros a tentar fugir, e consequentemente os primeiros a morrer. Uma divisão bem alerta manteve-se distante, com a única missão de vigiar os limites da localidade e impedir que os mortais escapassem. Um ou outro se esquivou para as cavernas, mas as sentinelas voaram para dentro e arrancaram os medrosos dos túneis, levando-os acima das nuvens e largando-os no chão.

         Quando todos os cidadãos de Sodoma haviam enfim perecido, os anjos pu­seram fogo em suas moradas. Os predadores assassinaram os rebanhos, empur­raram as cercas c estragaram as plantações. Então, o Anjo Destruidor reuniu a legião no quarteirão principal e ordenou ao seu imediato:

         — Bom trabalho, capitão. Agora tire seus anjos daqui. Terminarei a missão, conforme me foi ordenado.

         Euzin não entendeu.

         — Mas, senhor, a missão está terminada — olhou ao redor, viu o sangue nas ruas, a fumaça das casas e os corpos espalhados nas praças. Teria feito algo errado?

         — Ainda não, capitão — replicou o cruel general. — A cidade deve ser intei­ramente arrasada. Daqui a um ano, quando os viajantes tomarem o caminho do deserto, jamais saberão que um dia existiu um lugar chamado Sodoma.

         E acrescentou, com a costumeira arrogância:

         — É a vontade dos arcanjos.

         O subalterno não ousou questionar, e por que o faria? Queria, também, ver aquelas pessoas desintegradas, reduzidas a pó, aniquiladas da face da terra. Le­vantou a Raio de Aço e a legião aceitou seu comando. Os querubins voltaram aos céus c voaram para longe. Muitos se questionaram por que o general não tinha ido com eles, e teriam a resposta em breve.

         Sozinho nos escombros, Apollyon ficou a observar, orgulhoso, sua obra. Co­mo Yahweh poderia ter criado os anjos para servir aos seres humanos, aquelas criaturas tolas, fracas e insignificantes? Não passavam de animais, esculturas gros­seiras de barro que são esmagadas com um apertar de punho. Ele sim era forte, poderoso, digno da herança de Deus. Na sua opinião, a criação dos homens fo­ra um erro, o único equívoco do Altíssimo. Mas ele, bem como muitos outros celestes, estava disposto a inverter os papéis. O Anjo Destruidor era o preferido de Lúcifer, mas era também um admirável agente de Miguel, o primeiro a ser convocado para liderar aquelas carnificinas dantescas.

         A legião perderia tempo demais atacando cidade por cidade da planície. Mas Apollyon tinha outros planos para findar aquela campanha. Guardava consigo um segredo, uma divindade terrível, destrutiva e voraz. Não podia usá-la sempre, porque a execução do poder o deixava exausto e vulnerável aos inimigos. Ali, porém, estava só, seguro, e farig o desejo dos arcanjos, que era igualmente seu.

         Concentrou-se, por fim, e traçou um círculo no chão de areia. Respirou fundo e focou toda a energia da aura em seu próprio avatar. Depois de segundos de extrema agonia, o Destruidor liberou toda a força contida, e aquele alento converteu-se em uma explosão de luz e calor de potência titânica, jamais vista naquelas terras do sul.

         Uma onda de fogo e fulgor varreu a planície, exterminando Sodoma, Gomorra e outras cidades. A fumaça elevou-se à altura das nuvens, como a de uma grande fornalha, c de longe os outros anjos assistiram boquiabertos ao espetáculo.

         De Sodoma e Gomorra restou apenas a lembrança, perpetuada pelas filhas de Lot, a única família a sobreviver àquele horror inumano.

         Quando o vapor negro baixou, Apollyon estava esticado no chão, fatigado, dentro do círculo de areia delimitado por ele, o único ponto em quilómetros a resistir aos efeitos da devastação.

 

Pesadelos Humanos

Ablon ajudou Sieme a ajustar a máscara de oxigênio no rosto, puxando-a de um nicho ao lado da poltrona do piloto. A mulher-anjo abriu os olhos len­tamente, os fios de cabelo prateados caídos sobre a face. O Anjo Renegado a pegou no colo.

         — Vou levá-la lá para trás e deitá-la no chão — comunicou a Aziel. — Fique aqui e atente ao espaço aéreo. Nunca se sabe o que ainda pode acontecer.

         A serafim começou a tossir quando o general a pôs no chão, sinal de que recobrava a consciência. Aos poucos, melhorou e se encostou à parede do jato. Ablon foi até a pequena cozinha, atrás da cabine, e encheu um copo de água com açúcar.

         — Beba isto. Não precisamos, é claro, mas nossos avatares às vezes apreciam esses pequenos caprichos. Vai se sentir melhor.

         Ela engoliu o conteúdo como se fosse remédio. Depois, ficou quieta, e o guerreiro notou que estava triste, quase chorava.

         — O que foi, Sieme?

         Ela relutou em responder, mas no fim entregou-se à ajuda.

         — Aquelas imagens... Não consigo tirá-las de minha mente.

         O renegado imaginou o que fosse.

— São as lembranças do homem da sala de controle, não são? Ao ler a mente dele, você incorporou também suas emoções.

         — Não sei como lidar com elas, general. Sinto a dor pela morte de pessoas que nunca conheci, ouço o choro de crianças de jamais pari, me apaixono e odeio a cada momento.

         Ele sorriu, condescendente.

         — A maioria das pessoas leva muito tempo para aceitar essas coisas, e você reteve todas de uma vez. E natural que fique confusa.

         — Sou uma celestial, uma serafim, a mais nobre das castas. Nunca havia pro­vado essas sensações. E também não achei que nós, anjos, fôssemos suscetíveis a elas.

         — É a carne, Sieme. Este corpo que materializamos nos faz como eles, como os humanos. Em nossos avatares, somos receptivos às mais profundas emoções. Todos os seres, físicos e espirituais, são capazes de sentir amor e ódio, mas a pai­xão, o desejo e a dor são propriedades carnais — e ao dizer isso, o renegado lem­brou-se de Shamira e de como ela o fizera se sentir tão humano. — E essas emo­ções não são todas ruins. É instintivo. E como seguir nossa natureza de casta. Às vezes nada podemos fazer para evitar o apelo do coração.

         Sieme ouvia o querubim, e com seus conselhos se sentia melhor.

         — Com o tempo — continuou Ablon —, você saberá lidar com as impressões que registrou. E conhecerá outras, se ficar na Haled. É a Mestre da Mente. Vai conseguir.

         — A mente é lógica, general — contestou. — O coração é irracional.

         Ele pensou bem no que ela dissera e entendeu seu ponto de vista. Inteligên­cia prática e percepção emocional são duas coisas bem diferentes.

— Tem razão, Sieme — concordou. — Tem razão.

 

Aterrissando

         Várias horas se passaram na mais completa tranquilidade. Se fossem huma­nos, teriam dormido, mas, como não precisavam, Ablon, Aziel e Sieme passaram o tempo conversando. O Anjo Renegado lhes contou sobre suas aventuras na terra, e a Chama Sagrada e a Mestre da Mente falaram tudo o que podiam a respeito da política celeste. Narraram a luta pela soberania do Castelo da Luz, a épica fortaleza dos querubins no Quarto Céu, que foi tomada pelas forças do Mensageiro.

         Desde o soar da Terceira Trombeta, nada mais fora ouvido. A julgar pelo intervalo entre as duas últimas bombas, Ablon imaginou o perigo do ataque que estava por vir. Os adversários, certamente, estavam ganhando tempo para ana­lisar posições, preparar seus mísseis e lançar uma ofensiva fulminante e decisiva contra o alvo inimigo. O lutador temia que o estourar da Quarta Trombeta le­vasse consigo parte do mundo.

         Um botão da cabine apitou, e Sieme sabia que era hora de retornar ao as­sento do piloto, pois estavam chegando e precisava assumir o controle da aero­nave. O general acomodou-se a seu lado, na poltrona do copiloto, embora não entendesse muito bem o painel. Aziel sentou-se logo atrás, em uma cadeira re-trátil. Já seria quase meia-noite no Brasil, mas em Israel os relógios marcavam cinco horas da manhã, com horário ajustado ao fuso.

         Sieme pôs o fone de ouvido e ligou a comunicação com o rádio. Minutos depois, a torre de comando a chamou:

         — Aeronave prefixo PR-PJI — contatou o controle de terra, e a voz falava em inglês. — Estamos com vocês em nossos radares. Prossiga com as instruções de jornada.

         A mulher-anjo olhou para Ablon, em busca de apoio moral. Teria de conven­cer o controlador a deixá-los pousar, e talvez isso não fosse tão fácil. Estava mui­to longe para influenciar sua mente, mas felizmente os serafins são diplomatas natos, o que conviria ao momento. O renegado confiava em Sieme, sabia que ela conseguiria persuadir o operador, então a motivou com um breve sorriso.

         — Controle de terra — começou a Mestre da Mente, mais bem-humorada. As emoções impessoais que a castigavam já não eram tão latentes —, pedimos permissão para aterrissagem de urgência.

         — Estamos recebendo apenas aviões militares. Nossa sugestão é que desvie para a Jordânia... — o resto da transmissão se perdeu na estática.

         A celestial teve que pensar rápido.

         — Temos um visto especial dos países neutros para transporte de refugiados. Estou enviando os códigos agora.

         A comunicação ficou muda durante a transferência, mas continuou logo em seguida:

         — Proceda à aterrissagem na pista 2, PR-PJI. Qual é sua tripulação? — Apenas dois pilotos e um engenheiro de bordo — respondeu. Ablon sussurrou no ouvido da serafim:

         — Diga a ele que o voo seguirá para a África — a maioria dos países africanos era neutra na guerra, bem como quase toda a América Latina.

         — Controle de terra — Sieme voltou a chamar —, peço a convocação de um comandante e um copiloto. Minha tripulação precisa descansar, e queremos pas­sar o avião para alguém que possa guiá-lo. Temos ordem de levar refugiados à África.

         — Aguarde um momento, comandante — pediu o operador.

         Uns dois minutos correram.

         — A solicitação foi autorizada. Há pilotos voluntários aqui, e um grupo à espera de exílio.

         — Obrigado, controle — ela finalizou e retirou o fone.

         Ablon encarou orgulhoso sua oficial em ação. Aziel pôs a mão sobre o ombro da companheira, condecorando seu esforço e sua astúcia.

         — Saiu-se bem, Sieme. Sabe como dobrar as pessoas.

         — É minha natureza.

         — Os aviões militares devem estar levando centenas de pessoas à África — comentou o ishim.

         — Alguns, é verdade — concordou o general —, mas nem tantos. Árabes e ju­deus são por demais persistentes. Aposto que a maioria deles prefere continuar em suas terras até a morte chegar.

         A aeronave iniciou a descida, e a pressão apertou os ouvidos. Sieme liberou o trem de pouso e as rodas do aparelho baixaram. Em questão de minutos, ama­nheceria em Jerusalém. O Anjo Renegado entraria, enfim, na Cidade Sagrada.

         Desta vez, quem poderia impedi-lo?

 

Um Assassino nas Sombras

         O avião aterrissou no Aeroporto Internacional Ben Gurion, em Israel, às 5h28. A instalação do aeródromo fica em uma localidade chamada Lod, no meio do caminho entre Jerusalém e Tel Aviv, a uns 45 quilômetros da Cidade Sagra­da. Ainda era noite quando Sieme taxiou o aparelho e o levou à plataforma de desembarque. Ablon olhou para fora e reparou na mobilização militar. Soldados em tanques e jipes defendiam a área; helicópteros e caças vigiavam o ar.

         — Como se isso fosse ajudar alguma coisa — comentou.

         — Sabe para onde devemos seguir depois daqui? — perguntou Sieme, ante­cipando a próxima etapa.

         — Vamos para Jerusalém. De lá tentaremos alugar um carro com o qual to­maremos a estrada para a península do Sinai. Também temos que conseguir um mapa do deserto. Conheço as trilhas antigas, mas precisamos ter o plano das rodovias modernas. Vocês sabem exatamente onde ficam a montanha e o portal para o etéreo?

         — Seria fácil encontrá-la no mapa — explicou Aziel. — O arcanjo Gabriel me indicou a entrada. Ele me disse também que os religiosos mortais frequentemente confundem o Horeb com o monte Sinai. Mas a verdadeira montanha que pro­curamos fica um pouco mais ao norte. Sei localizar a caverna, só não sei direito como chegaremos lá.

         — Esta parte é comigo — replicou o general.

         A aeronave estacionou na plataforma, e os funcionários trouxeram a escada. Sieme desligou os motores e despressurizou a cabine.

         Quando abriram a porta, o frio cortante da madrugada enrijeceu-lhes os músculos. Era o mês de março, início de primavera, mas a estação ainda trazia o legado do inverno. Ablon fechou o sobretudo, e a serafim recolocou a parca, mas Aziel não se preocupou, pois podia produzir calor ele mesmo. Era um ishim, e sua província mestra era o elemento fogo.

         Com seus sentidos apurados, Ablon explorou o cheiro da terra. Lembrou-se do dia exato em que estivera ali, havia milhares de anos, para afrontar Ga­briel. Há aromas próprios a cada canto do mundo, para aqueles que sabem e conseguem percebê-los. O vento gelado levou-o de volta no tempo, aos dias da caravana dos gregos, com a qual cruzou as desoladas planícies orientais e a imen­sidão da Arábia. A imagem saudosa da menina chinesa invadiu-lhe a mente, as­sim como a lembrança de seus amigos, Tommaso, Pólix e Tales.

         Sieme, mais uma vez, ludibriou mentalmente os guardas, e o coro esquivou-se para fora do aeroporto. Já na estrada, esperavam o primeiro ônibus do dia quando o Anjo Renegado farejou o ar. Seu senso de perigo, que nunca o dei­xara na mão, estava a alertá-lo freneticamente.

         — Algum problema, general? — perguntou a Mestre da Mente.

         Ele não respondeu imediatamente e ficou quieto, examinando com suas ha­bilidades o ambiente em volta e o deserto que se estendia abaixo.

         — Por enquanto, acho que não.

         Aziel ia se oferecer para vasculhar o distrito, mas o ônibus chegou, e o as­sunto morreu.

 

         Trepado sobre um dos prédios do aeroporto, uma figura se escondia nas som­bras. Era um caçador e, assim como Ablon, sabia ocultar sua aura. Aliás, não era apenas um caçador, mas o maior de todos os assassinos do inferno.

         No mundo espiritual, Apollyon tinha rosto de monstro, com olhos negros como o abismo e dentes pontiagudos que saltavam da boca. No plano físico, porém, parecia um mortal, porque essa é a aparência dos avatares dos anjos e demônios quando materializados. Na Haled, portanto, fazia-se passar por ho­mem, um sujeito carrancudo, bronco, de cabelos escuros e corpo fortíssimo. Tal qual seu inimigo renegado, Apollyon era um lutador implacável e tinha ha­bilidades furtivas. Era mais forte que Ablon, porém muito mais lento. Os malikis, a casta de demônios guerreiros, eram bravos, indisciplinados e incontroláveis, exatamente o inverso de seus adversários celestes, os querubins.

         Mas o que pretendia Apollyon ao espionar o general? Queria ele levar a cabo uma vingança pessoal, ou estaria a serviço do Arcanjo Sombrio em pessoa? Teria Lúcifer decidido eliminar o Anjo Renegado, em resposta à sua recusa ao acordo, ou era o Exterminador que queria enfrentar o guerreiro e terminar o duelo que haviam começado quinze mil anos antes?

         Na última vez em que se encontraram, na entrada da caverna do Diabo, Ablon o desafiara ao combate.

         O caçador não esquecera o chamado.

 

Um Guia Teórico - Shamira em Sion

         Já era dia quando, do ônibus, Ablon avistou ao longe alguns prédios mo­dernos, fora dos muros da Cidade Velha. Era a parte nova de Jerusalém, ocu­pada principalmente depois de 1860, com o superpovoamento do centro histó­rico. Naquela época, foram planejados distritos para os imigrantes, e a periferia tornou-se um lugar eclético, multicultural, que reflete a arquitetura e os costumes de seus fundadores.

         A estrada, ladeada por colinas e plantações de oliveiras, estava bloqueada por uma cancela, defendida por uma guarita e por vários soldados do exército, em jipes e tanques. Aquele era um posto de controle, um dos muitos que obs­truíam as rodovias por toda Israel. O renegado sabia que muitos israelenses e palestinos, que moravam distante, trabalhavam na Cidade Sagrada, e imaginou que as vias estariam lotadas àquela hora do dia, mas se enganara. A autopista encontrava-se praticamente vazia. Supôs que, a exemplo do Rio de Janeiro, o comércio estivesse parado e todas as atenções estivessem voltadas para a guerra mundial que assolava o planeta.

         Escutando uma senhora em trajes islâmicos conversando a seu lado, o que­rubim entendeu que a maioria dos forasteiros no ônibus não era composta por trabalhadores, mas por fiéis, que se dirigiam aos templos em Jerusalém para re­zar e esperar o fim do conflito. Os santuários sagrados muçulmanos, cristãos e judeus estavam abarrotados de gente. Poucas lojas continuavam abertas ao pú­blico, só os armazéns de comida e os pequenos supermercados.

         Um soldado, armado de pistola e fuzil, entrou pela porta do ônibus e co­meçou a verificar documentos. Sieme disfarçou seu semblante e o de seus amigos com truques mentais, e os vigilantes não detiveram ninguém.

         O militar fez sinal para a sentinela levantar a cancela e comentou com seu parceiro:

         — Lembro-me de ter visto um homem loiro, alto, e uma mulher de cabelos prateados.

         O colega achou graça na curiosa ilusão.

         — É... — zombou. — Eles devem ter se escondido na bolsa das velhas.

 

         O ônibus em que Ablon, Aziel e Sieme viajavam deu a volta na Cidade No­va, passando pelos principais bairros da Jerusalém moderna, cruzou o monte Sion, atravessou o vale do Cédron, contornou o centro histórico pelo sul e su­biu o monte das Oliveiras, parando finalmente na Rua Jericó. Atrás deles, morro acima, estava o cemitério judeu, com seus túmulos centenários, incluindo as sepulturas dos profetas Zacarias e Malaquias e o jazigo de Absalão, o rebelde fi­lho do rei David. À frente, o vale de Josafá, uma depressão hoje pouco escar­pada, separava-os dos muros da Cidade Velha.

         Depois de milênios, o Anjo Renegado regressava ao seu ponto de duelo, ao lugar onde travara o épico combate com o arcanjo Gabriel. Dali, de cima do morro, os três anjos contemplaram a Cidade Velha, com suas casas antigas e ruas estreitas, dando cor a uma paisagem de tonalidade uniforme, meio marrom, meio cinzenta. A área colada ao monte das Oliveiras, delimitada pelo muro an­cestral, abrigara, havia anos, o Templo de Salomão e depois o Templo de Herodes.

         Por mais de meio século, a esplanada descansou em ruínas, até que os muçul­manos recuperaram o local em 691, construindo o Domo da Rocha, uma magní­fica mesquita de cúpula dourada, que até hoje é o principal cartão-postal de Jerusalém. A área toda é considerada sagrada e conta com outras edificações cé­lebres, como a Mesquita de El-Aqsa e o Museu de Arte Islâmica. A oeste, uma seçáo do muro separa a esplanada do templo do bairro judeu. Essa muralha, conhecida como Muro das Lamentações, é atualmente a referência mais ado­rada do judaísmo, porque é a única parte que resistiu ao incêndio que devastou o Segundo Templo. Adiante, o general avistou o bairro muçulmano e, além de­le, o bairro cristão e o arménio, repletos de igrejas, patriarcados e albergues das várias denominações cristãs da cidade.

         Ablon pôde notar, com seus olhos de águia, que o centro histórico estava curiosamente lotado. Ao redor do Domo da Rocha e em frente à Mesquita de El-Aqsa, milhares de muçulmanos rezavam ao ar livre, enquanto judeus orto­doxos oravam diante do Muro das Lamentações. No bairro cristão, uma pro­cissão seguia a Via Dolorosa — as ruas percorridas por Cristo em seu martírio — e se dirigia à Igreja do Santo Sepulcro. As dezenas de templos da Cidade Velha estavam apinhadas de gente, que se reunia naquele feriado não programado. E havia soldados, centenas de soldados do exército e da polícia israelense, espa­lhados por todos os cantos. Dois helicópteros de combate deslizavam no céu.

         Sieme constatou o que já esperava: o tecido da realidade, na parte antiga de Jerusalém, era extraordinariamente fino. A Mestre da Mente observou, também, que o plano astral estava desabitado de anjos. A Cidade Sagrada, por estar pró­xima à sua equivalente etérea, a Fortaleza de Sion, fora ocupada pelas legiões de Miguel depois da ressurreição do Salvador, quando Gabriel e seus querubins a deixaram. Desde então, o centro antigo vinha sendo vigiado pelos agentes do Príncipe dos Anjos, mas naquela manhã de março, às vésperas do Dia do Ajuste de Contas, nenhum celestial rondava o perímetro.

         — Na última vez em que estive aqui — confidenciou Ablon — incansáveis pa­trulhas celestes guardavam o plano astral, e as tropas de Gabriel cercavam a ci­dade, esperando pela investida dos soldados de Miguel, na primeira grande ofen­siva que, pelo que vocês me disseram, deu início à guerra civil.

         — Foi um dia santo — acrescentou Aziel. — O Salvador pereceu na cruz, e as legiões dos dois arcanjos entraram em confronto. Lutamos para defender a alma do Iluminado. Dois dias depois, ele ressuscitou. Nossa missão estava cumprida. Rechaçamos o exército inimigo e deixamos a Haled, refugiando-nos no Primeiro Céu, onde tínhamos bases mais seguras.

         — Realmente, general — concordou Sieme. —Tudo agora parece tão desolado. Jerusalém sempre foi um poço de fantasmas, e continua sendo — reparou —, mas não há um celestial sequer vagando pela região. Nem parece que a Fortaleza de Sion fica tão próxima daqui, no plano etéreo. Não acha um pouco estranha to­da essa apatia?

         O guerreiro ponderou:

         — Se Miguel está se preparando para a maior das batalhas, certamente pre­cisa de todos os seus anjos alertas. Felizmente eles não podem nos enxergar do etéreo. Mas sempre pode haver um desgarrado — alertou, lembrando-se da sen­sação de perigo que experimentara ao sair do aeroporto.

         O coro desceu o caminho na direçáo do Portão de São Estevão, recortado na muralha antiga, que acessava o bairro muçulmano. A passagem mais próxima seria o Portão Dourado, que levava ao complexo de templos e ao Domo da Ro­cha, mas o umbral fora fechado pelos islâmicos no século VII.

         — Acha que vamos conseguir um transporte aqui? — perguntou Aziel.

         — Tenho certeza — respondeu Ablon. — Trouxe algum dinheiro comigo, talvez o suficiente para alugarmos um carro.

         Já eram quase oito horas quando os três chegaram ao portão, construído pe­lo sultão Suleiman, o Magnífico, em 1538. Ao transpor o arco de pedra, o Pri­meiro General sentiu o aroma inédito de uma nova cidade. Olhou para o chão, para os muros, para as casas e vielas e para o povo nas ruas. Em Jerusalém, as marcas da história estão em todo lugar, em cada canto, em cada esquina. As im­pressões de uma localidade milenar, para um anjo com sentidos apurados, eram tão incríveis quanto saudosas. E ele percebeu também a tenuidade do tecido.

         — A membrana aqui é... é... — murmurou.

         — É como se toda a Cidade Velha fosse um enorme santuário — completou Sieme.

         Exatamente por isso, não era difícil para os celestiais enxergarem os espectros dos mortos de muitas eras passadas, que se escondiam nas alcovas e erravam pe­las calçadas, sem que os mortais os notassem. Eram inofensivos e melancólicos, como todos os fantasmas. Continuavam presos ao plano astral, mas sempre ob­servando o mundo físico, em busca de soluções para as questões que os impe­diam de rumar para o céu.

         — Enfim, estamos aqui — felicitou-se Aziel. — E agora?

         — Agora vamos precisar de um automóvel, de preferência resistente, para cruzar o deserto. E ainda temos que conseguir um mapa rodoviário.

         — Tem idéia de onde podemos conseguir tudo isso? — perguntou a serafim.

         — O comércio está fechado, mas talvez haja alguma venda aberta no souk central, um mercado livre na interseção entre os três bairros.

         Aziel apreciou a decisão de seu general.

         — Para quem nunca veio à cidade, até que você não é um mau guia — brincou.

         Ablon sorriu. Era verdade — jamais estivera em Jerusalém. Mas havia lido tudo a respeito. E a memória do renegado era o que ele tinha de mais rico, além de suas virtudes. As habilidades marciais vinham em segundo lugar.

         No pátio mais extremo da Fortaleza de Sion, sobre os cem níveis da torre, a Feiticeira de En-Dor continuava presa por correntes à negra pilastra de már­more. O vento gelado castigava-lhe a pele, e os fios de cabelo chicoteavam-lhe o rosto. Mesmo atada à coluna pelas amarras de ferro, podia ver o chão sob o parapeito, milhares de metros abaixo, e as cordilheiras que, ao longe, defendiam a fortaleza, como um anel a cercar a planície. Atrás dela, também a distância, além das montanhas, ficava o inquietante rio Styx, com suas turvas águas verme­lhas. Todas as divisões do exército de Miguel estavam prontas e posicionadas, es­perando o assalto da legião rebelde de Gabriel, acampada a 350 quilômetros dali.

         Shamira sabia que, mesmo a sós no terraço, estava sendo vigiada por espiões invisíveis. De qualquer maneira, não havia muita saída para seu sofrimento. Seus encantamentos, mesmo que pudesse invocá-los, seriam inúteis contra seus rap­tores, a menos que tivesse um objeto ou uma pena da vítima — e ela não tinha.

         Tentou racionalizar o que faria a seguir. Poderia simplesmente relaxar e es­perar a morte, mas ainda guardava esperança. Já estivera em situações difíceis e conseguira se livrar de todas, na maioria das vezes por mérito próprio. Não sabia o que acontecera a Ablon. Queria acreditar que ele estava a caminho, mas não devia contar com isso. De certa forma, uma parte dela não queria que ele viesse em seu resgate, pois agora, ao ver de perto a Torre das Mil Janelas, reco­nhecia a qualidade das patrulhas e a voracidade de seus guardiões. Confiava no renegado e em sua perícia com a espada, mas temia que ele não superasse os inimigos que habitavam as salas escuras, incluindo o sinistro Anjo Negro e o impiedoso Miguel.

         Em meio aos pensamentos desencontrados, a feiticeira concentrou-se em suas potencialidades. Sentia-se péssima. Sempre fora ativa, esperta e enérgica. Mas encontrou consolo ao entender que muitos que admirava também haviam passado por isso. Voltou a lembrar-se de Ablon e de como ele, certa vez, esca­para do inferno, após ser capturado e levado ao mais terrível dos calabouços.

         Na ocasião, o Anjo Renegado obteve auxílio, caso contrário teria morrido. Foi a amizade de um antigo confrade que o salvou da condenação certa nas mãos do Senhor do Sheol.

         Teria ela a mesma sorte?

 

Condado de Exmoor, sul da Inglaterra, 1231 d.C.

O Velho Carvalho

aconteceu naqueles dias sombrios, durante a chamada Idade das Trevas. Tempos sangrentos eram aqueles, quando homens de honra partiam para a guer­ra com suas armaduras polidas, enquanto os camponeses, famintos, trabalhavam a terra, subjugados por ociosos tiranos. Era a época dos grandes castelos e ca­valeiros, dos senhores feudais, do apogeu da Igreja e também das Cruzadas, gi­gantescas jornadas militares postas em curso para expulsar os muçulmanos da Terra Santa,

         Foi em uma manhã gelada de inverno, quando a neve se acumulava nos ga­lhos e encobria a relva macia, que o Anjo Renegado, cambaleante e ferido, cru­zou a floresta, chamada de bosque dos Cones, por seus pinheiros de copa pon­tuda. Parou, apoiado em um tronco, e respirou duas vezes. Nas costas, sob a roupa grossa, um talho imenso castigava-lhe o corpo. Mais parecia um golpe de espada, mas a hemorragia era mínima, porque o ferimento fora cauterizado, como que fustigado com um objeto fervente. A força vacilava e as pernas tre­miam, mas ele não podia parar. Faltava pouco, muito pouco. Já podia ver a fronteira dos ermos e os limites de um povoado além. Talvez tivessem água, comi­da e uma cama quente, tudo de que precisava para recompor seu avatar.

         Ablon estava esfomeado e cansado, mas não desistiu e continuou a correr sobre a neve, tropeçando e caindo às vezes, mas nunca se deixando vencer. Subiu e desceu uma colina, atravessou um corredor de pinheiros, contornou a margem de um lago e chegou a uma alameda. Ao fim dela, encontrou o que procurava.

 

         A trilha florestal abria-se em um campo coberto de neve, cuja área central abrigava um complexo monástico, com uma série de prédios de arquitetura ti­picamente normanda, de pedra clara e marrom, passagens em arco e janelas al­tas a uma distância segura do solo. Além do mosteiro, o bosque sumia, e uma estrada de terra continuava reta até um vilarejo, a um quilómetro de distância, ao redor do qual se cultivavam trigo e cevada. Ablon não enxergou muito bem o povoado, mas o monastério estava à sua frente, ao seu alcance. Reparou que o terreno era cercado por muros, mas na portaria, sob uma torre pequena, não havia vigília. E, colada ao próprio muro, havia uma casa longa, que o general sabia ser a ala de caridade, onde os monges alimentavam e medicavam os pobres. A seguir, depois do largo frontal, estava a igreja da abadia, flanqueada por duas torres dianteiras e decorada com vitrais coloridos. Ao lado, erguiam-se outros edifícios, entre eles o claustro, os dormitórios, a casa do abade e o capítulo, uma câmara onde os monges se reuniam diariamente para deliberar sobre diversos assuntos.

         O renegado avançou pelo portal arqueado e penetrou no pátio, ocupado por homens de batina escura. Uma dezena deles cercava um grande carvalho, enquanto outros dois, de machado em punho, tentavam cumprir a tarefa de pôr a árvore abaixo. Ablon não se preocupou com eles, quando seu olfato de pre­dador captou o cheiro de água potável. Virou-se e avistou um poço, com um balde cheio descansando na neve. Correu e engoliu tudo o que pôde, toda a água da qual se privara. Estava seguro agora. Se tombasse, seria ajudado.

         Quatro monges, jovens noviços, aproximaram-se do estranho andarilho, mas nada fizeram.

         — A cada dia uma surpresa — comentou o mais novo, indiferente.

         — De onde será que é esse? — perguntou um segundo.

         — Pode ser um camponês enlouquecido de Seaport — arriscou urn baixinho, de cabeça raspada.

         — É forte demais para ser um camponês, sua mula — retrucou o mais velho, com certa malícia.

         Os outros três, intimidados, ficaram calados. Tinham olhos curiosos e pouco amigáveis. O anjo guerreiro largou o balde e tentou articular um pedido de ajuda, mas a garganta doía. Cambaleou para frente, pisou em uma pedra e, já tonto, caiu.

         — Ele devia estar pedindo comida — inferiu o cabeça-raspada.

         — É, mas a caridade só começa daqui a meia hora. Ainda nem esquentaram os pães — explicou a voz dominante.

         — Devemos carregá-lo para dentro? — indagou alguém.

         — Não, o prior disse para cortarmos a árvore. Sempre uma coisa de cada vez. Sem protestar, os outros concordaram.

 

         Ablon foi vítima de um pequeno desmaio. Estava ferido, cansado e famin­to, mas não iria morrer. Aquele talho no corpo não configurava um ferimento mortal, apenas um contratempo, que o enfraquecia terrivelmente e o atrasava em sua empreitada.

         Acordou com o agradável calor do ambiente, ao ser esticado em um leito de palha. Tossiu muitas vezes e expeliu um pouco de sangue. Os dedos estavam congelados, as costas ardiam e a cabeça latejava.

         Sentou-se na cama e dali viu muitas outras, algumas com camponeses doen­tes, ao longo de uma sala comprida, de janelas estreitas, através das quais bri­lhavam os raios dourados do sol de inverno. Dois homens idosos, um magro e outro muito gordo, ofereciam aos infelizes pedaços de pão, distribuindo o ali­mento juntamente com uma tigela de água. Eram beneditinos, seguramente, uma ordem monástica devota dos ensinamentos de são Bento de Núrsia, o "pa­triarca dos monges ocidentais". Os preceitos beneditinos foram levados à In­glaterra por santo Agostinho, um italiano que, no século VI, veio a se tornar arcebispo de Cantuária, o centro religioso mais importante do país. Sustentavam a alcunha de "monges negros", por causa de suas vestes escuras.

         Um velho de corpo delgado, olhos azuis e expressão gentil estendeu a comida ao renegado, que a tomou vorazmente. O monge, longe de se impressionar, co­nhecia a atitude dos esfomeados e limitou-se a demonstrar um sorriso bondoso. Apesar da idade avançada, o irmão Thomas era só um enfermeiro, uma das po­sições mais tímidas da hierarquia monástica. Não era e nunca fora padre. Com efeito, as regras de são Bento propõem que a maioria dos monges seja composta de leigos, e que só uns poucos sejam ordenados.

         Ocupado em saciar a fome, Ablon nem deu atenção ao filantropo, que ficou parado a observá-lo durante todo o curso da refeição. Parecia querer falar-lhe com calma, por isso o aguardava sem pressa. O celestial só entendeu isso quan­do terminou seu pedaço de pão.

         — Contei ao prior que estava aqui — surpreendeu o ancião, com certo peso de culpa.

         — Contou? — estranhou o renegado. — Sou hóspede de honra? — brincou. O monge, encabulado, percebeu que o paciente não tinha sotaque e logo implorou desculpas, como se tivesse cometido um pecado mortal.

         — Eu... eu suplico seu perdão, bom cavaleiro. Pensei que fosse francês.

         O renegado achou graça no comentário, especialmente no título pelo qual fora chamado.

         — Não é o único. Estão sempre me confundindo, em toda parte que vou.

         — Mesmo assim seria bom que conversasse com o prior — insistiu. Ablon gostou da idéia. O prior era o segundo em comando do mosteiro,

abaixo somente do abade. Talvez pudesse ajudá-lo a encontrar a pessoa que fo­ra procurar naquelas terras do sul. Havia alguns meses, o querubim reencontrara um de seus oficiais renegados, Yarion, Asa de Vento, nas cercanias altas da Es­cócia. Decidiram, a partir de então, vagar juntos pelo mundo, e estabeleceram uma missão: reagrupar a Irmandade. Para organizar o plano de ação, refugia­ram-se na Abadia de Saint Luke, ao norte, disfarçados de clérigos, e lá encon­traram a paz de que precisavam para estabelecer a jornada de busca. Mas a tran­quilidade fora subitamente interrompida pela chegada de um assassino infernal. Vagando na noite, o demônio Apollyon invadira o monastério e, com sua espada de fogo negro, golpeara o general pelas costas. Moribundo, Ablon presenciou o Exterminador derrotar Yarion e levá-lo ainda vivo para as profundezas do in­ferno. O querubim ainda não sabia muito bem como o malikis conseguira car­regar seu amigo renegado para além do tecido da realidade, mas esperava que Shamira o iluminasse.

         Ablon conhecia, por alto, o paradeiro da Feiticeira de En-Dor. Sabia que ela tinha se estabelecido em Exmoor, então foi seguindo seu rastro desde Bristol, passando por Bath, Glastonbury e Ilchester, para enfim chegar ao condado.

         — Estou à disposição de seu superior, a hora que ele quiser — ofereceu-se.

         — Ele vai chamá-lo mais tarde. Temos que cumprir os ofícios.

         Para os beneditinos, a estrutura do dia é determinada pelas horas do culto, a que são Bento deu o nome de opus dei, as oito missas diárias cantadas no ora­tório monástico. São elas: o ofício divino da noite, ou vigílias; o ofício das pri­meiras horas do dia, ou matinas; as horas canónicas que se seguem às matinas, as laudes; e as sete horas canónicas seguintes, prima, terça, sexta, nona, véspe­ras e completas.

         — Posso esperar — colaborou o renegado.

         O ancião recolheu a tigela vazia de água e declarou, antes de sair:

         — Durma um pouco, então. E sobre o que disse, saiba que, para os mem­bros de nossa ordem, a hospitalidade é uma obrigação solene. Aqui, os visitantes são acolhidos como o próprio Cristo.

         Ablon assentiu com a cabeça, mas logo se lembrou da recepção impassível dos noviços no pátio. Contanto que não o crucificassem, estava tudo bem.

 

No Vinho a Verdade

         No mosteiro, cercado pela área rural, era tudo muito silencioso. Os mais in­trovertidos passavam grande parte do tempo calados, na calmaria do claustro, a não ser durante os ofícios, quando declamavam orações em estilo gregoriano. A igreja em que rezavam ficava do outro lado do pátio, mas Ablon podia ouvi-los entoando salmos e proferindo louvores ao Senhor. A melodia suave o des­pertou por completo, e ele teve um vislumbre saudoso ao recordar-se da Ban­cada da Paz, um dos muitos pavilhões do Sexto Céu, onde trezentos celestes teciam sinfonias honrosas em tributo ao Deus adormecido.

         Era quase hora do almoço, e lá fora a neve caía sem parar, alvejando o cam­po e os bosques. O renegado se levantou, já se sentindo melhor. Ficou circulando pela sala enquanto os outros doentes dormiam e arriscou uma subida na cama, para espiar o largo interno pela janela. O carvalho central havia mesmo sido cortado, mas o tronco ainda repousava no chão. Era tão belo, tão antigo, tão forte. Era uma árvore cheia de vida, mesmo com os galhos desfolhados pelo in­verno. Agora, mais parecia um cadáver tombado, que em breve regressaria à ter­ra. Para os antigos celtas, o carvalho era uma planta sagrada, mas muitos cris­tãos não davam importância aos cultos ancestrais.

         Ouviu passos no assoalho e sentou-se no leito de palha. O velho magrelo entrou pela porta.

         — Não conseguiu dormir? — arriscou uma dedução.

         — Consegui sim, mas já despertei. O calor da fogueira e os flocos de neve batendo na janela são o melhor sonífero para um homem cansado.

         O monge pareceu satisfeito.

         — Pode vir comigo agora?

         Era exatamente o que Ablon esperava.

         — Perfeitamente — acedeu, levantando-se da cama.

         Seguiu o ancião por pórticos obscuros e vastos salões. O frio era assombr e os dois caminhavam afastados das janelas. Cruzaram uma passagem em arco que levava a um átrio e depois à casa do abade. A neve fofa grudava nas botas.

         Chegaram a um corredor de pedra que terminava em uma porta de madeira com duas seções. O irmão Thomas bateu três vezes com a argola na tábua.

         — Nosso abade está em viagem a Cantuária, mas o prior John Marc vai recebê-lo. É um homem jovem e inteligente. Foi ordenado padre em Westminster.

         Em geral, a regra beneditina estipulava que os monges ficassem sempre na mesma comunidade, mas às vezes havia intercâmbios, pouco comuns. A abadia de Westminster ficava — e ainda fica — em Londres, a leste, bem longe dali. A vontade de Ablon era conferenciar com um homem local, que conhecesse a região e seus habitantes. Será que o prior aliviaria suas dúvidas?

 

         A porta de madeira se abriu, e um homem distinto, com menos de 40 anos, de corpo saudável e altura superior, convocou o visitante. Trajava o regular há­bito negro, mas por cima usava uma segunda veste, de algodão e veludo, luxuosa para os padrões rústicos do monastério. De dentro da sala, emanava um aprazível calor, misturado ao cheiro de diversas comidas.

         — Pode entrar — convidou. Tinha voz firme, e pela expressão Ablon soube que era sujeito instruído. O velho irmão Thomas deu meia-volta, e o querubim avançou pela porta.

         A casa do abade, então ocupada pelo prior, era a maior área particular do mosteiro. Tinha pelo menos três quartos e um espaço comum, onde se desta­cava uma mesa extensa, sobre a qual fora posta uma deliciosa refeição vesper­tina. Não havia carne, mas o almoço incluía pão preto, ovos cozidos e uma su­culenta sopa de cebola e ervilhas. Duas jarras decoravam a mesa, uma com água e outra com vinho. Na extremidade mais funda, uma lareira ardia, aquecendo os presentes.

         O prior se sentou e, com um aceno, incitou o visitante a imitá-lo.

         — Esteja à vontade, meu jovem — começou, indicando a comida sobre a mesa.

         Ablon aceitou a oferta e agradeceu a gentileza com uma vénia silenciosa.

Relaxou as costas contra o assento e acompanhou o padre em seu repasto. Sepa­rou para si um pedaço de pão, enquanto o anfitrião se servia do caldo de cebola.

         — Pão é vida, é carne — teceu o hospedeiro, contente ao ver que o viajante tinha hábitos modestos e aproveitando para, ao mesmo tempo, emendar uma metáfora religiosa.

         Deve ser soldado, pensou, e era exatamente de um soldado que precisava.

         — Pelo menos para mim, a simbologia é coerente, padre — retrucou o rene­gado, analisando a ironia. Ele precisava comer, beber e dormir para refazer seu corpo físico.

         O homem se animou com a resposta.

         — É cristão?

         — Devo admitir que não tenho ido muito à igreja — Ablon já estava se sain­do melhor com essas perguntas súbitas.

         A expressão do pároco não se alterou. Estava exultante por ter encontrado seu homem, e o usaria mesmo que não fosse cristão.

         — Perdoe-me a falha de etiqueta — repreendeu-se, quando o assunto morreu. — Sou o prior John Marc, responsável pelo monastério até o retorno do abade. E você, de onde vem?

         — Não sou seu inimigo, muito menos francês.

         O clérigo reparou que o hóspede não o tratava por "irmão" ou "senhor", sinal de que não era camponês. Os servos, em geral, respeitavam mais as forma­lidades feudais. Supôs que fosse nobre, cavaleiro ou mercenário, mas sua pos­tura evasiva o irritava por dentro. Determinado a arrancar a verdade do convi­dado, o prior encheu o copo do celestial com vinho até o topo, simulando um ato gentil.

         — Mas é um guerreiro, imagino — pressionou, e então Ablon entendeu a ma­lícia da coisa.

         — In vino ventas — ironizou o general, em latim, e a partir daí Marc viu que não estava lidando com um homem qualquer. O provérbio "No vinho a verdade" faz alusão à prática de embriagar um terceiro para deixá-lo mais propenso a ar­ticular confissões. Apenas os eruditos conheciam o ditado.

         Mesmo assim, o anjo sorveu a bebida da taça — não ficaria embriagado, se­guramente. Voltou-se ao seu inquisidor:

         — O que quer de mim, padre? — perguntou, encerrando os subterfúgios.

         O semblante do sacerdote endireitou-se, regressando à postura sisuda. A ora­tória com a qual ludibriava os fidalgos na corte de Londres falhara.

         — Antes de tudo, preciso saber se tem vivência de guerra e um mínimo co­nhecimento da mata. Quero ter certeza de que está disposto a cumprir uma ta­refa específica.

         Ablon viu a intenção nos olhos do homem.

         — Você procura um mercenário.

         O prior encabulou-se. Tal atitude, a de contratar soldados da fortuna, não era um costume muito cristão. Confiou, talvez inocentemente, no sigilo do hós­pede, mas dali em diante não havia mais volta.

         — Temos tido alguns problemas políticos aqui no mosteiro — confidenciou.

         O Anjo Renegado não disse nada, esperando que o monge fizesse seu rela­tório.

         — Quem sustenta a abadia é o barão Peter Madog — cedeu —, que é também o senhor de Redmill, o povoado que fica adiante, além dos campos de trigo. Deve tê-lo avistado em algum momento.

         — Vi os campos, mas não a aldeia.

         — A nevasca provavelmente encobriu a paisagem. Há muito tempo Madog quer construir uma estrada que ligaria Exmoor a Glastonbury, mas a rota pas­sa pelo meio de uma velha floresta, a floresta Vermelha, a leste.

         — Por que não ordena que seus monges derrubem as árvores? Acho que eles têm uma certa experiência no assunto — zombou, lembrando-se da desagradável visão do carvalho tombado.

         — Monges não são lenhadores. Aliás, a floresta é grande. Precisaríamos de mais homens para isso.

         — E o tal barão? Não tem dinheiro para financiar operários?

         O anfitrião esboçou um sorriso nervoso. Nem ele, esclarecido e letrado, gos­tava de tocar naquele assunto.

         — É claro que tem. O barão tem muito dinheiro, mas o problema é que nem os camponeses famintos querem entrar naquelas partes selvagens. Desde os ro­manos o povo conta que a mata é assombrada por duendes e fadas.

         O renegado deixou escapar uma risada cética:

         — Não vai me dizer que acredita nessas coisas...

         — Creio apenas em Deus, e só nele, forasteiro — o padre foi mais agressivo —, mas os pobres ainda são muito supersticiosos, uma herança profana deixada pe­los feiticeiros bárbaros — ele se referia aos druidas, antigos sacerdotes que habi­tavam a Inglaterra na época dos celtas. — Os lenhadores disseram ao barão que só entrariam na floresta se antes ela fosse percorrida por um grupo cristão. Há um ano, convenci uma comitiva monástica a visitar aqueles ermos. Fomos a pé até as árvores, mas alguns homens ouviram barulhos estranhos, escutaram ri­sadas e avistaram uma mulher de cabelos negros e pele alva, a quem deram o nome de Bruxa da Floresta Vermelha.

         O general parou de comer. A Bruxa da Floresta Vermelha só podia ser Shamira, a quem Ablon tanto procurava. Ele conhecia bem os hábitos da feiticeira e sabia que ela apreciava as regiões selvagens. A necromante nunca foi de se mis­turar a ordens ou a conselhos de bruxos, preferindo a vida solitária. Talvez por essa razão continuasse viva.

         — Ao ouvir aqueles sons horríveis — prosseguiu o padre —, o horror se apo­derou da comitiva, e minha missão fracassou. Desde então, os leigos estão con­vencidos de que aquele lugar é o lar do Diabo e se recusam a voltar lá. E, com isso, também os lenhadores.

         — Que história mais delirante — exclamou Ablon, incrédulo quanto à crença nas fadas. Era possível, contudo, que Shamira tivesse usado encantos básicos para afugentar os invasores. E o querubim estava convencido de que era real­mente ela a tal bruxa da floresta. A descrição não dava margem a dúvidas.

         — O abade Paul, chefe da nossa paróquia, foi a Cantuária tentar ganhar tem­po com os bispos. Enquanto isso, tenho que pensar em um jeito de desacreditar meus homens sobre essa fábula irritante, a fim de levá-los a visitar a floresta. Se a comitiva cruzar o bosque, os operários ficarão encorajados a entrar. E, se a es­trada não for construída, Redmill e este monastério estarão condenados.

         — É curioso que tenham resistido até agora.

         — A abadia foi financiada pelos pais do barão, assim como o povoamento da aldeia. Na época, as necessidades eram menores, mas agora a demanda de cereais aumentou. As sacas de trigo e cevada precisam ser vendidas fora daqui, para que a propriedade continue sendo rentável.

         — O que o barão quer é engordar ainda mais seus cofres.

         O clérigo não desmentiu a afirmação, mas também não a encorajou.

         — Ainda assim, lorde Peter Madog é nosso patrono.

         Ablon terminou o pão, bebeu um copo de água e pegou uma concha de sopa.

         — E por que exatamente você precisa de um mercenário?

         — Tudo o que eu quero é um homem de coragem, que seja livre dessas crendi­ces que perturbam o povo. Se um cavaleiro honrado passar uma noite na floresta Vermelha e de lá retornar com vida e sanidade, os monges entenderão que toda a mística em torno do bosque não passa de um folclore patético. E aí poderei organizar uma nova comitiva, abençoar a área e abrir caminho para os lenhadores.

         — É só isso? — estranhou o renegado.

         O hospedeiro levantou-se e foi até um canto da sala. Pegou uma pequena arca de madeira e a pôs sobre a mesa. Tinha reforço de ferro e estava fechada por um cadeado maciço.

         — É claro que o pagamento é satisfatório — sussurrou e, abrindo o tampão da caixa, revelou uma pilha de moedas de prata. No meio do tesouro, destaca­vam-se objetos de ouro e artefatos incrustados de pedras preciosas, como cruzes c colares. O celestial desprezou a futilidade dos homens e nem quis imaginar como os objetos haviam sido adquiridos.

         — Guarde seu dinheiro, prior. Felizmente para você, nossos objetivos se cru­zam. A floresta Vermelha era meu destino desde que cheguei ao condado, em­bora não soubesse muito bem disso. Vou me aventurar pela mata, mas talvez demore mais do que um dia lá dentro.

         — Suas palavras são incongruentes.

         — Eu também quero encontrar essa bruxa. Mas não se assuste, não sou um feiticeiro.

         O sacerdote fechou a arca e examinou o celeste dos pés à cabeça. Lentamente, foi se afastando e recolocou a caixa no chão. Por um momento, arrependeu-se terrivelmente de ter-lhe confiado a situação do mosteiro, mas estava desesperado.

         — Faça como quiser — determinou, sem saída. — Mas tente não demorar. Po­demos pagá-lo muito bem.

         — Eu já disse que dinheiro não é a questão — repetiu, sorvendo a última co­lherada de sopa.

         O padre virou o rosto e fez uma anotação mental, repetindo para si mesmo que não deveria mais tocar em assunto financeiro. Não podia deixar escapar a boa oportunidade que tinha arrumado — um soldado disposto a entrar na flores­ta Vermelha e nada cobrar por isso. Era como um daqueles heróis da mitológi­ca Bretanha, como os cavaleiros dos tempos de Artur. Imaginou a propaganda que poderia fazer sobre suas épicas façanhas e separou na mente alguns títulos para ele, como Matador de Dragões e Cavaleiro Sagrado. Talvez, no futuro, ain­da pudesse transformá-lo em santo.

         — Quando acha que podemos partir? — o pároco tinha pressa. — O enfermeiro da ala de caridade disse que estava ferido.

         — Já estou quase bom — e era verdade. Em um dia de repouso estaria em ótima forma. Os anjos guerreiros saram rápido, mesmo quando os ferimentos são provocados por armas místicas. — Podemos viajar amanhã, mas não conheço o caminho para os ermos.

         Dali em diante, John Marc já tinha todo o planejamento delineado, com etapas bem definidas. Trabalhara nele por muito tempo antes de o querubim aparecer à sua porta. Era só nisso que vinha pensando por meses a fio.

         — Hoje, mais tarde, antes das vésperas, convocarei uma procissão. Deixarei só alguns noviços para guardar a abadia, e os outros irão acompanhá-lo, inclusive eu. Acamparemos nos arredores do bosque e aguardaremos seu retorno.

         Ablon não queria frustrar o prior, mesmo não concordando com suas in­tenções progressistas. Não que fosse contrário à expansão da civilização humana, mas a destruição da floresta responderia à ganância dos nobres feudais. Havia outras rotas para a construção da estrada, mas estas eram mais longas e com­prometeriam o comércio e o lucro.

         — Quanto a isso, não posso prometer nada, padre. Já disse que nossos objetivos se cruzam, é só.

         O barão tinha, logicamente, um corpo de guerreiros, mas só obedeciam a ele. O que o clérigo precisava era de um herói solitário, um cavaleiro bravo e esperto. Preferia que fosse cristão, mas estava consciente de que nem tudo é per­feito. Aliás, nem tinha certeza do que ele era ou de onde vinha. Mas, verdadei­ramente, que diferença fazia?

         A identidade de seu herói seria montada, criada, reinventada. Se tudo desse certo, a estrada poderia estar pronta no fim do verão. O condado e a aldeia pros­perariam, e com eles a igreja e o mosteiro. Com o tempo, John Marc assumiria o lugar do abade. Quem não apoiaria um homem que ajudara um cavaleiro a derrotar o Diabo?

         E o Diabo era precisamente quem Ablon pretendia enfrentar.

 

A Floresta Vermelha

         No dia seguinte, Ablon acordou da última noite de sono necessária à sua recuperação, já praticamente são. A neve, que caíra por toda a madrugada, havia parado, mas o frio aumentara. Mesmo assim, o prior John Marc conseguira con­vocar a comitiva, uma procissão de cinquenta monges, equipados com barracas, suprimentos, agasalhos e todo tipo de ícones cristãos, como rosários, cruzes e incenses. Levavam, em uma liteira protegida por vidro, uma imagem de são Bento de Núrsia e o estandarte da família Anjou, à qual pertencia o então rei da Inglaterra, Henrique III. Alguns peregrinos estavam empolgados, mas a maio­ria, especialmente os mais novos, pareciam incrivelmente entediados e tremiam de frio.

         Já planejando tal romaria, o prior separara um traje militar para seu herói. Sugeriu ao guerreiro que deitasse fora os trapos que usava e vestisse uma cota de malha belíssima, por baixo de um camisão de algodão acolchoado, que ia até a altura das coxas. O tecido era também de qualidade excepcional, tingido de preto e com uma cruz vermelha estampada. O uniforme fazia-se completo com um par de manoplas de aço, mas o padre não tivera tempo de comprar uma espada, então embrulhou um pedaço de madeira em uma lona e pediu que Ablon a levasse consigo. O renegado não firmara nenhum contrato com o sacerdote, muito menos havia garantido que completaria a missão indicada, mas achou que devia alguma coisa ao homem, por ele tê-lo alimentado e acolhido — ainda que tenha sido por interesse próprio.

         Os monges não tinham cavalos, só quatro mulas de carga. Com isso, cami­nharam para leste por todo o dia, seguindo uma antiga estrada de terra, coberta de neve. Chegaram às cercanias da floresta Vermelha ao entardecer e lá montaram acampamento nas colinas geladas, a uma distância segura das árvores. Muitos deixaram transparecer o terror, intimidados pelas diabólicas histórias que en­volviam o bosque. Mas Marc e os homens mais velhos animavam os temero­sos, recitando versículos bíblicos e proferindo sermões.

         A floresta Vermelha era chamada assim por causa de suas árvores, singulares carvalhos de casca rubra, que não se desfolhavam mesmo no frio do inverno. Essas plantas não existem mais, e os cientistas modernos não as conhecem por­que já eram raras nos tempos antigos. Foram completamente extintas na Idade Média, e aquele talvez fosse o último bosque.

         A área da mata era extensa, percebeu o celeste, maior do que imaginara a princípio. Calculou que os lenhadores teriam um rigoroso trabalho para abrir caminho por entre as árvores, porque os troncos eram rijos e largos. Além disso, reparando bem na floresta, Ablon teve uma impressão sinistra, semelhante àque­la que sentira ao avistar os bambus do bosque Tin-Sen.

         Antes do pôr do sol, o querubim seguiu para a floresta Vermelha, ao som da morosa cantoria dos monges. O prior ofereceu-lhe uma tocha para as horas vindouras, mas o renegado não precisava dela. Carregou o objeto até o limiar da mata e, quando já estava distante, largou o bastão em um canto.

         Ainda era dia quando alcançou a linha das árvores. Em minutos, o crepúsculo dominaria a paisagem e depois a noite engoliria o cenário. Ablon julgou sensato aproveitar a claridade para investigar as folhagens — ainda que pudesse enxergar no escuro — e quem sabe encontrar uma trilha. Buscava por um rastro específico, por um aroma especial que reconheceria de pronto: o da Feiticeira de En-Dor.

 

         Por todo o tempo até o crepúsculo, Ablon vasculhou a mata, investigou as árvores e farejou o ar, mas nada encontrou. Começou a imaginar que suas su­posições acerca da necromante estavam erradas. A floresta era grande, mas, com seu olfato apurado, já teria, seguramente, captado um cheiro tão familiar.

         Cansado de procurar, o renegado fez uma pausa e sentou-se sobre a raiz protuberante de um grande roble de casca vermelha. Foi então que, subitamente, um fenômeno fabuloso teve início. Quando o último raio de sol se pôs, o teci­do da realidade afinou, esticando-se como borracha ao fogo. Imediatamente, o Anjo Renegado entrou em alerta e examinou o terreno. Percebeu que, logo à frente, a membrana se rasgava, ao fim de um caminho através do qual as copas das árvores se encontravam, dando forma a um túnel de galhos. Sem hesitar, o querubim caminhou até lá, alerta aos perigos que poderiam estar à espreita na penumbra.

         Mesmo com toda sua experiência nas questões espirituais e mundanas, Ablon nunca tinha presenciado um evento de igual natureza. Não sabia se aquele ca­minho levava a uma armadilha, se era um convite, ou se a passagem se abria independentemente de sua presença. Não tinha idéia para onde estava seguindo nem a sorte de criaturas que lá encontraria. Já não tinha certeza se a feiticeira habitava aquela floresta.

         A cada passo, a esquisitice aflorava. Ainda meio confuso, o renegado seguiu pelo túnel e, de repente, notou que as árvores do inverno se tornavam mais vivas, e suas folhas congeladas ganhavam o calor do verão. Uma névoa fina encheu o ar, trazendo o aroma das flores silvestres. Sob seus pés, a neve derretera, e agora o anjo pisava em relva macia. Era quase noite, mas havia luz, um fulgor azulado que emanava de cima, clareando o corredor florestal. Os animais, antes escon­didos, voavam, corriam e pulavam, indiferentes à passagem do andarilho. Uma cotovia piou, e as cigarras cantaram.

         Uma lebre saltou no meio da passagem e, com olhos astutos, fitou o visitante. Ainda deslumbrado com o espetáculo fantástico, o querubim não se deu conta de que, naquela expressão inocente, havia intenções resolutas. O animal disparou e desapareceu nas folhagens.

         Quando Ablon chegou ao fim da passagem, deparou-se com uma ampla cla­reira, muito bela, flanqueada por carvalhos enormes. O chão era como um mag­nífico jardim, cheio de flores coloridas e cogumelos vermelhos. Partículas de pólen dançavam no ar, e em um nicho uma poça profunda guardava a água que descia de um riacho. Uma abelha zumbiu, rondou o espaço e voou para cima.

         As brumas que enchiam a clareira se dissiparam, e foi com espanto que o renegado se viu cercado. Por todos os lados, um grupo de seres incríveis o ana­lisava, com faces mais hostis que curiosas. Lembravam seres humanos, mas es­tavam longe de sê-lo. Eram mais baixos e mais delgados do que os homens co­muns; as orelhas pontudas tudo captavam, e os olhos amendoados desafiavam a mais profunda das trevas. A pele era delicada e alva, e o semblante, frio e in­sensível. Trajavam roupas e capas multicolores, de tecido finíssimo. A maioria portava esplêndidos arcos de prata, com setas na corda, mas um deles segurava uma espada longa, de um só gume. O celeste reparou ainda que as fêmeas ti­nham dois pares de asas translúcidas, tal qual as libélulas.

         Quem eram aquelas criaturas? De onde saíram? Como teriam surpreendido um lutador tão sagaz? Ablon não foi capaz de deduzir as respostas, mas compreen­deu um fato chocante. O tecido da realidade, de uma hora para outra, não mais existia. Mas como isso era possível, se ele estava preso ao mundo físico?

         Lembrou-se de seu combate no bosque Tin-Sen. Recordou-se do momento em que entrara no templo pagão, deparando-se com os três espíritos antigos. O encontro só fora viável porque aquele ponto era um vértice, onde os mundos físico e espiritual se intersecionam. Esses lugares, esses vértices, vêm sumindo a cada dia. São uma herança dos dias remotos, quando o tecido não existia e os dois mundos eram unos. Em alguns raros locais, cheios de misticismo e magia, os vértices continuam a existir — é a banalidade dos homens que os destrói.

         Aqueles humanoides eram figuras etéreas, e Ablon concluiu que só podiam ser...

         — Meu nome é Mercurion, do povo das fadas — anunciou o portador da es­pada, arrogante. — O que o traz aqui, celestial? Sabe que sua gente não é bem-vinda em nossos domínios.

         O duende que o abordara era uma entidade espiritual e podia sentir a aura de Ablon, a energia característica dos anjos. Não seria enganado nem persua­dido. Mas o guerreiro não procurava confronto.

         — Minha gente? Não sou bem um celeste, Mercurion, sou um anjo rene­gado. Procuro pela mulher que assustou os monges, a Feiticeira de En-Dor — arriscou. Talvez a bruxa não fosse Shamira, e aí ele teria problemas. Como pro­varia que não era um espião?

         A figura de espada na mão fez um sinal para que os outros relaxassem os arcos.

         — Você afirma ser um celestial renegado — quis confirmar, ainda cauteloso.

         — Sou um velho amigo da feiticeira.

         Uma criaturinha, que de início Ablon pensou ser um inseto, veio por trás e pousou em sua cabeça. Antes que pudesse afugentar o intrometido, o estranho animal decolou e levou consigo dois fios dourados de cabelo do general.

         A figura pousou no ombro de Mercurion, e Ablon entendeu que não era um bicho silvestre. Como nas lendas, aquela era uma fada pequenina, de asas azuis e vermelhas, semelhantes às das borboletas. O corpo minúsculo brilhava com luz própria, como o ventre dos vaga-lumes. Em uma atitude bizarra, a luminosa mastigou e engoliu o cabelo do intruso, arregalando depois os olhos miúdos.

         — O que acha de nosso visitante, Serena? — indagou o chefe dos duendes.

         — É bonitão — retrucou a fadinha. Não havia malícia em seu coração nem em suas açóes.

         — E o que mais, além disso?

         — Tem um cabelo gostoso — falou, deglutindo o último fio.

         Com isso, estranhamente, os elfos se sentiram mais seguros e confortáveis. O general não entendia como aquela figurinha nanica podia ter tamanha in­fluência sobre as fadas maiores, mas o fato é que Mercurion embainhou a espada.

         — É meu convidado, Anjo Renegado — decidiu o duende, abrindo um sorriso. — Como se chama?

         — Ablon, dos querubins — replicou, em meio à recepção surreal.

         — Ablon, dos querubins... — o outro repetiu, considerando a sonoridade do nome. — A Feiticeira de En-Dor é nossa hóspede. Vou levá-lo até ela.

         Os guardas quiméricos desmancharam o círculo e formaram uma fila.

         — Hóspede... — Ablon pensou alto. — É como eu tinha imaginado.

         O anjo guerreiro perseguiu a trilha dos elfos através da floresta, à luz azu­lada das árvores. O frio congelante do inverno não penetrava naquelas partes, só o calor do verão.

         — Ela nos contou de você, mas apenas superficialmente — comentou o duen­de. — É uma das poucas humanas que nos conhecem de perto. A maioria dos homens vem destruir nossas casas.

         — Suas casas? — estranhou. Até ali, só vira mata fechada, e nenhuma chou­pana.

         Foi nesse exato instante que chegaram a uma segunda clareira, mais espaçada, onde as raízes davam vida a robles ainda maiores. Buracos no tronco simulavam portas e janelas, por onde saíam e entravam seres feéricos. Alguns voavam com suas asas de insetos, outros escalavam o caule, e um grupo brincava e saltitava na grama. No meio da miscelânea de seres, havia aqueles que se pareciam com os animais da floresta, mas a maioria das fadas era como os seres humanos, po­rém em miniatura, e dotadas de características fantásticas. O Anjo Renegado caiu em contemplação.

         — Seu domínio é fascinante, Mercurion — não encontrara tal beleza nem nos campos do paraíso. E existia também um tipo de sensação quente no ar, uma energia única, revigorante.

         — Em todo carvalho mora uma fada. Sempre que uma árvore morre, a fa­da morre também. Por isso estamos indo embora deste mundo.

         Ablon continuou observando a clareira e, por um segundo, esqueceu-se de seus compromissos, absorto em fantasia.

         — Vamos — chamou Mercurion, puxando o lutador pelo braço. — O camir para a feiticeira é por aqui.

 

O Lago dos Puros

         Anjo e duende rumaram por uma picada estreita, orlada por amoras, framboesas e cogumelos pintados, e alcançaram um sítio em que, fixada ao chão, havia uma tenda de seda, com uma das lonas aberta. No interior, uma mulher, sentada a uma mesa natural de raízes, estudava pergaminhos e objetos mágicos, à luz amarelada dos vagalumes. E a seu lado, como guardião do lugar, descan­sava um ser extraordinário, de corpo longo e reptiliano, olhos de fogo e dentes enormes. Era tão grande quanto um leão, e a cauda duplicava a silhueta assus­tadora. A pele estava protegida por escamas de cobra, e das costas nasciam duas asas escuras. O monstro parecia os dragões mitológicos, tão bem retratados nas esculturas vikings e nos desenhos dos bárbaros do norte.

         — Feiticeira — chamou Mercurion, e Shamira virou-se na hora. As pupilas da moça brilharam ao perceber a presença de seu amigo celeste. Deixou tudo de lado e correu para abraçá-lo.

         — Ablon! — exclamou, comovida. — Nem vou perguntar como me encon­trou — brincou.

         — Tive sorte desta vez. Os homens do mosteiro me ajudaram, e depois os duendes. Posso me considerar um viajante afortunado — sorriu.

         Shamira era uma bela mulher, mas ao crepúsculo, naquela terra das fadas, o guerreiro a achou ainda mais encantadora.

         — E que roupas são essas? — perguntou, reparando na cota de malha e no camisão que usava, com a cruz da Igreja bordada no peito.

         — Só quis retribuir o favor ao sujeito que me guiou até estas matas.

         Entendendo que havia total cumplicidade entre os dois, o elfo resolveu ir embora. Estava convencido de que Ablon não era ameaça.

         — Vou deixá-los à vontade — e dirigiu-se ao general. — A feiticeira conhece as trilhas do bosque. Ela vai orientá-lo.

         Quando Mercurion já se afastava, Ablon, ainda fascinado com a maravilhosa floresta Vermelha e seus habitantes, achegou-se à amiga.

         — Quem são essas criaturas? Que lugar é este, Shamira? Tudo é tão belo, tão rico, tão farto. Parece um sonho, embora eu raramente sonhe.

         Ela também estava encantada com o cenário sublime.

         — Você já deve ter notado que estamos no centro de um vértice. Com o aden­samento do tecido, essas áreas sobrevivem como bolsões, alheios ao mundo dos homens. Já faz alguns meses que venho estudando o povo das fadas. Mercurion e os duendes altos fazem parte da corte dos elfos, e são os mais solenes. São os últimos de sua espécie que continuam na terra. As fadas e as criaturas quimé­ricas são entidades espirituais. À medida que a membrana engrossa, elas ficam mais fracas.

         A necromante apontou para o dragão que repousava de olhos abertos dentro da tenda. Estava atento, apesar de imóvel. Muitos dragões têm a habilidade de se conservar inativos por dias, anos ou séculos. Por vezes, usam feitiçaria para assumir a forma de blocos de pedra ou de troncos de árvores, para que os seres humanos não os possam identificar.

         — Gorigath foi designado como meu guardião durante o tempo em que es­tou no reino das fadas — continuou a mulher. — Ele também é o último de sua raça, é a cria caçula de Margath, um dos dragões anciãos, que morava nesta re­gião antes da chegada dos usurpadores romanos.

         — Ele não me parece muito ameaçador, apesar de suas presas e garras.

         — Os dragões são como as fadas. São seres da natureza, de essência etérea. Alguns conseguem se materializar onde o tecido é muito fino, mas tais lugares são uma raridade hoje em dia. Venha — ela o puxou pela mão. — Venha comi­go. Vou levá-lo ao lago dos Puros.

         Sozinhos, Ablon e Shamira caminharam pelas árvores vermelhas, e toda a noção do tempo lhes foi apagada da mente. De repente, o general sentiu o apra­zível aroma das framboesas fantásticas, o cheiro mais gostoso que já provara. A fragrância despertou seu paladar, e ele identificou, no canto da trilha, um ramo da fruta. Separou o pomo do galho, na intenção de levá-lo à boca, mas a feiti­ceira o impediu.

         — Não coma isso, a não ser que queira ficar aqui para sempre.

         — Como assim? — estranhou, largando a framboesa.

         — O lampejo do país das fadas fascina todos os sentidos, mas não é nada comparável ao paladar. Se você foi preso à visão dos carvalhos, imagine o que aconteceria se experimentasse os gostos feéricos. Dizem que aqueles que provam as iguarias quiméricas ficam eternamente atados a este mundo.

         — É melhor não arriscar — concordou.

         Terminaram o passeio à beira de um lago pequeno, sobre o qual flutuava a mesma bruma gelada que cobria a primeira clareira, na entrada do bosque. Plantas aquáticas se levantavam da água como dedos gigantes, e os sapos coaxavam sobre as vitórias-régias.

         — O lago dos Puros é, assim como o corredor de árvores, uma passagem para dentro do vértice — esclareceu a mulher. —Além dele há uma saída da flor ta Vermelha, que só se abre no crepúsculo.

         — E esta bruma? É tão estranha, tão fria.

         — É uma manifestação etérea. Marca os limites da área compartilhada pele dois mundos. Em breve, acredito, este vértice desaparecerá, e as fadas ficarão li­mitadas ao plano etéreo. Foi assim com a ilha de Avalon, que um dia podia! alcançada tanto por homens quanto por elfos. Agora, só existe além do tecido. Em uma tarde clara de verão, quando a membrana se estica, os sensitivos aindal podem avistar o brilho de seus faróis. Logo, até mesmo as luzes se apagarão.

         — E o que acontecerá aos duendes?

         — Não sei. Provavelmente alguns, como Mercurion, ficarão aqui para sempre, vagando pelo etéreo, para ver as plantas morrerem, os rios secarem e a relva queimar. Mas a maioria deles já regressou à Arcádia, que é sua dimensão de origem. Lá é sempre verão, e o calor nunca fenece.

         — É uma história triste — admitiu o anjo. — Foi por isso que veio para cá? Para marcar o curso final desta saga?

         — Provavelmente sou a única humana com quem eles ainda mantêm contato direto. Sou uma ponte entre o reino quimérico e o plano material. Os sa­cerdotes druidas, que adoravam os elfos, foram exterminados pelos legionários de Roma. E hoje a Igreja condena os ritos pagãos. Como as tradições célticas eram quase todas orais, não sobraram relatos sobre as fadas e sua ligação com o povo primitivo.

         Ablon lamentou a tragédia daqueles pequenos, mas nem que quisesse po­deria ajudá-los. Tinha também sua própria missão a cumprir, e os querubins são obcecados pela conclusão de suas demandas.

         Shamira sentou-se à margem do lago, e seu semblante entristeceu-se ao en­carar o espelho noturno. O contentamento de receber o amigo se foi, e, em seu íntimo, lembrou que ainda não sabia o porquê daquela visita.

         — O que foi, feiticeira?

         — Estou feliz em tê-lo comigo, Ablon, mas também pressinto um grande vazio. Sempre que você vem até mim é para me alertar de um perigo, ou para me pedir algo absurdo. Qual será minha sina desta vez?

         O querubim entendeu a aflição da mulher, e ela estava certa em seus senti­mentos. Preferiu, então, ir direto ao assunto, porque a espera só fazia prolongar a dor.

         — Ao início do outono, reencontrei um dos renegados, Yarion, Asa de Ven­to, nas terras altas da Escócia. Juntos, achamos refúgio e paz no Mosteiro de Saint Luke e lá decidimos iniciar uma busca ao redor do mundo, para reagru­par os renegados sobreviventes. Mas nosso plano foi frustrado. Apollyon veio em nosso rastro e capturou Yarion. A seguir, desmaterializou-se, com o renega­do derrotado nos braços.

         — Como ele fez isso? Pensei que os renegados estivessem presos ao mundo físico. Ainda que o malikis pudesse dispersar seu avatar, não poderia ter carre­gado um fugitivo com ele.

         — Também fiquei impressionado. Não sei como ele fez aquilo, só sei que o Exterminador levou Asa de Vento, certamente, para as masmorras do inferno, e estou determinado a salvá-lo. Mas não tenho meios de viajar ao Sheol, a não ser com o auxílio de um portal.

         Shamira entendeu a vontade do amigo e por um momento não acreditou no que pretendia.

         — Você tem idéia do que está me pedindo?

         — É a única que conheço que sabe manipular a magia e que tem conhecimen­to para abrir a conexão espiritual. Meus poderes celestes não me permitem efetuar rituais mágicos. Preciso de sua ajuda, Shamira.

         — E o que tem em mente? Invadir o inferno, derrotar Apollyon, Lúcifer e suas hostes e em seguida libertar seu amigo? Mesmo que eu abra a passagem mística, Yarion está fora de seu alcance agora. Você mesmo me disse certa vez que o Arcanjo Sombrio é onisciente em seus domínios. Ele saberá assim que você puser os pés em seu reino. E virá afrontá-lo.

         — Você subestima meus poderes.

         — Não. Mais do que ninguém, conheço seu valor e seus poderes. Mas nem você nem ninguém poderia enfrentar tantos demônios. Além disso, Lúcifer é tão forte quanto qualquer arcanjo, e praticamente invencível em seu território. Nem Miguel tentaria uma loucura dessas.

         — Porque Miguel não tem amigos com os quais se preocupar.

         — Isso não tem nada a ver com amizade. Nunca lhe ocorreu que talvez seja exatamente isso que a Estrela da Manhã quer? Atraí-lo para seu território? Yarion pode ter sido só uma isca, uma tentativa do Diabo e de Apollyon de arrastá-lo para o inferno.

         O general olhou para baixo, com a mesma altivez que o tornaria, mais tarde, o ícone de um exército. Ele não acreditava na hipótese da feiticeira. Não achava que o Exterminador estivesse armando uma cilada para assassiná-lo. Mas, por outro lado, a necromante tinha razão. Seria improvável que ele conseguisse sucesso em sua missão.

         Ablon aproximou-se com carinho da mulher, indignada com sua decisão suicida.

         — Shamira, lembro-me de quando a conheci — começou, acariciando o rosto da moça. — Você era apenas uma garota, mas nem por isso desacreditei de sua sabedoria. Vocês, mortais, são divinos, talvez mais do que os anjos. Naqueles dias, quando a Torre de Babel penetrava nas nuvens, revelei-lhe um segredo. No topo da montanha, contei-lhe sobre a maior dádiva dos homens.

         Ela se emocionou ao reviver, em sua mente, as imagens e sensações daquele tempo remoto.

         — O livre-arbítrio. É a grande dádiva da humanidade.

         — Ainda que eu tente negar, sou um querubim, um anjo guerreiro. Minha casta persegue a justiça e não teme a morte. Se não completar minha missão, se der as costas aos meus companheiros, morrerei lentamente. Minha aura con­tinuará pulsando, mas toda minha força se apagará, e acabará também meu es­tímulo de vida. O que sobraria?

         — Talvez a essência humana que você tanto procura — rebateu.

         — Não devo repudiar o que sou, Shamira. É o mínimo que devo a meu Cria­dor. Posso ter sido renegado pelos arcanjos, mas não por Yahweh.

         Ela já havia tentado convencer o amigo de desistir de atitudes tão insanas como aquela, mas não conseguira. E não conseguiria, mais uma vez. A feiticeira era mortal e nunca compreenderia a natureza celeste. Só lhe restava aceitá-la, sem jamais entender por quê.

         — Já prosseguimos com esperanças menores do que esta, não é? — cedeu a mulher.

         E o guerreiro a abraçou.

 

         No interior do vértice da floresta Vermelha, ainda dentro do domínio das fadas, havia uma ciranda de pedras que os antigos druidas usavam como palco de cerimônias. Ali, eles se encontravam com os elfos e prestavam homenagem aos espíritos. O círculo era um ponto energético, um lugar-chave para a passa­gem entre as dimensões. O tecido não existia, o que facilitava aos sacerdotes a abertura de conexões místicas à Arcádia. Naquele templo ao ar livre, Shamira não precisaria de rituais demorados para abrir o portal, mas só de uma palavra de poder e de um desenho no solo.

         — Necessito de uma mecha de seu cabelo — explicou a mulher, oferecendo ao guerreiro uma adaga ritualística. — Alguns fios bastam.

         Com a faca mágica, o querubim cortou a ponta do rabo de cavalo e a en­tregou à necromante.

         O Anjo Renegado viu que a feiticeira traçava no chão de terra, com o dedo, um círculo místico, decorado por runas antigas. Não precisou de nenhum com­ponente material que comumente utilizava para abrir portais fora da zona das fadas, só do cabelo do anjo.

         — Este é o Portal de Shammash — avisou a moça. — Ele vai acessar uma co­nexão aos Campos da Morte, o mais desolado dos nove reinos do inferno.

Em seguida, proferiu as palavras secretas:

         — Ia Uddu-Ya! Ia Russuluxi! Saggtamarania! Ia! Ia! Atzarachi-ya! Atzarele-chi-yu! Bartalakatamani-ya kanpalZi Dingir uddu-ya kanpalZi Dingir ushtu-ya kanpalZi shtalZi Daraku! Zi belurduk! Kanpa! Ia shta kanpa! Ia!

         Um segundo depois, o solo da área ao centro da ciranda de pedras começou a mudar. A terra deu lugar a uma poça mágica, cuja superfície ondulava como a água dos lagos, ao ser agitada pelo impacto de uma pedra. Os fios dourados do cabelo de Ablon foram engolidos e se dissiparam no infinito. Além do portal, o querubim divisou a imagem de um céu vermelho como sangue, rasgado por nuvens negras e cinzentas.

         — Agora o portal está ligado a você — esclareceu a mulher. — No momento em que o cruzar, ele se fechará daqui para lá, mas o caminho de volta continuará ativo até que você retorne, quando então a passagem desaparecerá para sempre. Portanto, não aconselho que demore. Os Campos da Morte são um lugar de­serto, mas algum demônio errante poderia achar a passagem e usá-la como uma porta para a terra.

         Ablon fitou a amiga e agradeceu-lhe a ajuda com um sorriso amável. De­pois, caminhou para a poça, ansioso por completar sua vingança e salvar o com­parsa.

         — Eis que o envio para a morte certa, general.

         — Não, Shamira. Uma vez, sob os ventos da aurora romana, eu lhe fiz uma promessa. Nunca se esqueça de minhas palavras.

         O calor da lembrança daquele beijo no rosto encheu o coração do casal, mas, no fundo, a mulher estava triste, porque não acreditava no retorno de seu amado. Sempre esperou, um dia, tê-lo junto de si, mas agora o lançava à extinção.

         O Anjo Renegado atravessou o portal, e a poça desapareceu.

         Shamira não o veria mais por um bom tempo.

 

Os Campos da Morte

         O Sheol, ou inferno, é uma das dimensões inferiores, localizada no recanto mais obscuro do cosmo. Há muitas outras dimensões como essa, mas nenhuma tem igual importância ao interesse da terra. Por milhares de anos, o Sheol foi tão somente um buraco, um lugar vazio e abandonado, até a chegada de Lúcifer e de seus anjos caídos. Desde então, foi dividido em nove reinos, controlados por nove duques, que preferem ser chamados de príncipes. No topo da pirâmi­de está o onipotente Arcanjo Sombrio, que a todos vigia e comanda. Ele é au­xiliado de perto por Samael, a Serpente do Paraíso, que é também seu lugar-tenente.

         Os duques têm poder sobre seus domínios, que são, por sua vez, secionados em inúmeras províncias governadas por senhores demônios. Os combates entre as províncias e até mesmo entre os reinos são constantes. No Sheol sempre há guerra, embora uma palavra de Lúcifer seja o bastante para paralisar qualquer conflito e estagnar os movimentos de tropas. Esses embates são a principal cau­sa do extermínio de demônios, o que, teoricamente, reduziria a população do inferno, não fosse o turbilhão de almas maléficas que chega às mãos do Diabo todos os dias. Em um lugar tão terrível, só os fortes resistem, e os poucos sobre­viventes ascendem na hierarquia infernal. Diferentemente do céu, onde os an­jos são separados dos santos e dos mortais que morreram como justos, no Sheol até mesmo o espírito mais insignificante é aceito nas hostes malignas e, se for dotado de crueldade e malícia suficientes, pode galgar o comando, chegando ao controle de uma província. Os duques, entretanto, são muito poderosos para ser subjugados. São todos anjos caídos, celestiais que lutaram, um dia, ao lado da Estrela da Manhã em sua legendária batalha contra o arcanjo Miguel.

         O portal abriu-se no chão, tal qual uma poça, sobre o solo cinzento de um vale sórdido e escuro. Dois paredões de pedra erguiam-se ao lado de Ablon, como uma passagem estreita. O céu continuava rubro, sem sol ou estrelas. As cores, que eram tão abundantes na terra das fadas, ali variavam entre o preto e o cin­za, dando um tom depressivo à paisagem. Até o ar era pesado, opressivo e fétido. Havia, em toda parte, um assustador cheiro de morte, e ao longe o renegado escutou o lamento dos condenados.

         Escalou o paredão e chegou ao topo da pedra, para de lá enxergar uma planí­cie imensa, que se alongava até o horizonte. Ao centro da esplanada, o anjo avistou um abismo circular, como um redemoinho no chão. Seu eixo afunilava-se até cair em uma negritude grutesca, em um ponto onde nada havia, a não ser a solidão infinita. Centenas de milhares de almas sem rosto caminhavam em fila indiana e se jogavam, sem vontade, no poço abissal. Não tinham energia ou força para reagir. Simplesmente aceitavam o destino que lhes fora imposto, de cabeça baixa e olhos passivos. Nem uma amarra os prendia, mas grupos de demônios com cara de caveira e chifres de cabra chicoteavam os passantes. Do abismo, levantava uma fumaça que impregnava todo o planalto.

         — Os Campos da Morte — exclamou o celeste para si mesmo. — É para onde vêm as almas dos inúteis, dos suicidas, daqueles que desistiram da vida. Nem mesmo os demônios os aceitam.

         Como não sabia que caminho tomar, o general seguiu em direção ao abismo.

 

         Aquele era o Abismo de Nimbye, uma passagem para o limbo, o vazio su­premo entre as dimensões, o território do nada cósmico. Uma vez lançada ao limbo, a alma se perde para sempre na completa e total desolação do universo e não pode ser resgatada. Passa a eternidade boiando nas lufadas dos ventos mís­ticos, consciente o bastante para não se abster do terror, mas incapaz de resis­tir aos tormentos.

         Ablon subiu e desceu uma colina cinzenta, para não escapar à vista dos guar­das, que, com chicotes, flagelavam os condenados. Um deles percebeu a presen­ça do renegado e logo compreendeu que era um anjo, pelas emanações de sua aura celeste. Mas o querubim não tinha a intenção de fugir.

         — Perdeu o caminho de casa? — caçoou o demônio, chamando a atenção de seus companheiros. Tinham o corpo e o rosto cadavéricos, mas olhos humanos. Da cabeça brotavam chifres contorcidos, e um fogo infernal ardia no interior da cavidade torácica.

         — Senhores — ele falou aos seus iguais —, temos aqui um camarada que vem lá de cima — e apontou na direção do céu, fazendo alusão à morada de Deus.

         Cinco carrascos sinistros cingiram o forasteiro e empunharam seus chicotes em sinal de ameaça.

         — Quero que me levem ao castelo de Lúcifer — disse Ablon.

         — Ao castelo de Lúcifer? — zombou. — Mas você nem nos conhece! Acho que temos a obrigação de, antes, ensinar-lhe o protocolo, se quer visitar a corte do mestre — e com isso brandiu o açoite e o moveu na direção do querubim. Os outros também agitaram as armas, excitados com a possibilidade de massacrar uma entidade divina, mas foi o tagarela quem atacou primeiro.

         O flagelo assobiou e desceu sobre o renegado, mas com habilidade notável ele agarrou a ponta do chicote e o puxou para si. O demônio, relutante em largar a arma, foi lançado ao chão com força brutal. A mandíbula esquelética se partiu em dois ao encontrar uma pedra no solo. Os guardas desistiram do assalto e recuaram, assustados. Projetavam uma aparência imponente e temível, mas eram fracos e incapazes, por isso haviam sido delegados para castigar um bando de almas apáticas, que não reagiriam nem com mil golpes de espada.

         Chocadas com a determinação do anjo guerreiro, as entidades se preparavam para fugir, mas o lutador se lançou sobre uma delas, prendendo-a sob a mira de um soco.

         — Não nos machuque — implorou. — Somos servos cumprindo ordens, só isso.

         — Vocês são monstros covardes — insultou, depois libertou a caveira. — Vá embora daqui! Avise ao Arcanjo Sombrio que Ablon o chama ao duelo, e que ele traga consigo Apollyon, aquele assassino maldito.

         — O Anjo Renegado, aqui? — reconheceu o esqueleto. — Tenha piedade, ge­neral, piedade — suplicou. O demônio estava sufocado de medo, embora o guer­reiro nem tivesse sido tão violento.

         — Está livre, baal.

         A casta dos baals é composta por adoradores da morte e da tortura. São aná­logos aos celestiais hashmalins, a ordem de anjos que controla a Gehenna.

         Os cinco diabos deram ação às pernas descarnadas e correram para além das planícies, deixando os espíritos ao léu. Não obstante, as almas dos mortos não desfizeram a marcha e continuaram a se atirar no abismo, condenando a si pró­prios à solidão infinita.

 

lilith, a rainha das succubus

         Ablon continuou a errar pelas planícies cinzentas e, de repente, não sabia mais quanto tempo havia se passado. Um dia? Um ano? Cem anos? Ouviu um grunhido agudo ecoar na esplanada e divisou no céu um animal de asas largas e compridas, como a dos pteranodontes, um dos répteis alados da era jurássica. O corpo era como lava esfriada — negro, com veios flamejantes delimitando seções na casca. No lombo sustentava uma mulher-demônio, de longos cabelos ruivos e olhos azuis. A silhueta era perfeita, e a expressão, sedutora. O cheiro que exalava era como o das fêmeas no cio, que incitam os machos à fornicação. Guiava a montaria com apenas uma das mãos, e com a outra carregava um tri­dente afiado. Não usava roupa alguma, e a cauda pontuda era a única coisa que a distinguia como um ser infernal.

         O monstro aterrissou a cinco metros do anjo guerreiro, e a demônia o abordou.

         — Você é Ablon, o Anjo Renegado — afirmou.

         — Sim. E você, quem é? — o querubim não a conhecia dos tempos em que era general celeste, entáo concluiu que não podia ser uma celestial caída. Todavia, sua aura era muito poderosa para pertencer ao espírito de um humano mortal.

         — Sou Lilith, a Rainha das Succubus — apresentou-se.

         As succubus são mulheres-demônio que tentam os homens por meio da atração sexual e dos prazeres carnais. Habitam especialmente os domínios de As-modeus, o mais pervertido dos duques do inferno. Lúcifer também as usava pa­ra satisfazer seus caprichos e, dentre elas, Lilith era sua principal cortesã.

         — Meu amo já sabe que está aqui e me ordenou que o escoltasse à sua pre­sença. Disse que aceita participar do duelo.

         — E quanto a Yarion, o anjo renegado trazido para cá antes de mim? — per­guntou o general, preocupado com seu companheiro de armas. Teria chegado a tempo de salvá-lo?

         — A Estrela da Manhã concordou em libertar seu amigo, se for o vencedor da disputa. Mas se perder será condenado ao cárcere nos Túneis de Zandrak e à posterior execução pelas mãos do Exterminador.

         Ablon sabia que não podia confiar no Diabo, mas, de todas as possibilidades terríveis, aquela era a melhor. Se havia algum senso de honra em Lúcifer, ele o estava pondo em prática.

         — Suba — convidou a mulher, estendendo a mão. Mesmo desconfiado, o re­negado montou no ser voador, assumindo lugar no assento duplo da sela, logo atrás da sensual condutora.

         — Você não é um anjo caído — constatou o Primeiro General, ainda sem en­tender a verdadeira origem de Lilith.

         A succubus apertou as rédeas, e o monstro esticou as asas, erguendo-se no ar. Uma nuvem de poeira levantou-se no campo.

         — Não. Não sou um anjo caído nem um espírito mortal, porque nunca mor­ri realmente. Sou uma entidade única — contou a rainha. — Fui a primeira es­posa de Adão, mas me recusei a me submeter às suas vontades. Por isso ele me expulsou de sua casa, e passei a vagar pelo mundo, até conhecer o arcanjo Lú­cifer, por quem me apaixonei. Entreguei-me àquele belo celeste, e em troca ele me concedeu a vida e a fertilidade eternas. Durante incontáveis séculos, fui seus olhos e ouvidos na Haled, e entáo, depois da queda dos anjos rebeldes, o Filho do Alvorecer me trouxe ao seu reino e fez de mim uma líder de casta.

         Ablon nunca tinha ouvido falar a respeito daquela figura demoníaca e ficou perplexo ao entender quanto ainda desconhecia dos infindáveis mistérios do universo.

         — E quanto a seu amor pelo Arcanjo Sombrio?

         — O amor é uma tolice. Ele nos torna fracos, vulneráveis. O amor é uma ilusão passageira, fadada a terminar um dia. Só os imbecis se rendem a tais sen­timentos. O amor por si é o único amor verdadeiro, porque no fundo todos nós, homens, anjos ou demônios, somos egoístas ao extremo. Quando amamos alguém, é porque assim nos sentimos felizes, e não o contrário.

         — Sua visão é própria de quem nunca conheceu de fato o amor, ou foi des­prezado por ele.

         O comentário soou como uma injúria aos ouvidos de Lilith, talvez porque nunca antes alguém lhe tivesse falado tão sinceramente. Quem teria coragem de disparar a verdade à cortesã preferida de Lúcifer? Por tal ousadia, ela teria esfolado qualquer um vivo, mas a naturalidade com que o guerreiro se expres­sara a deixou sem ação. Os infernais a temiam e estavam sempre bajulando-a, calculando as palavras e forjando mentiras para agradá-la. Na negritude de seu coração, a monarca ainda guardava, escondida, a esperança de encontrar um amor duradouro.

         — A busca pelo prazer individual é o verdadeiro sentido da vida. Pense nisso, renegado — retrucou. Não estava disposta a dividir suas fraquezas. — Quando você brande a espada, sente-se feliz, porque essa é sua natureza. Alguns encon­tram volúpia no sexo, outros no poder, outros na guerra. No fim das contas, é só isso o que importa: encontrar o prazer e a felicidade, seja como for. As con­sequências sáo secundárias.

         — Discordo de você, Lilith — insistiu o lutador. — O amor essencial reconhe­ce o respeito, não só por si mesmo, mas por todos aqueles que estão envolvi­dos. Por isso as consequências de nossos atos devem ser medidas.

         — Um anjo renegado falando em medir consequências — ela riu com desdém. — Se você agisse como fala, querubim, jamais estaria aqui — replicou a satânica mulher, e Ablon pensou que talvez ela estivesse certa. Se tivesse considerado mais longamente os sentimentos de Shamira, não teria viajado ao inferno e pos­to a própria vida em jogo.

         O general ficou um instante a pensar em tudo aquilo e preferiu não pro­longar a discussão. Suas idéias divergiam dos argumentos de Lilith, e com aque­la conversa ele só conseguiria arranjar um novo inimigo. Fixou-se então na pai­sagem, e do dorso do animal avistou uma cordilheira de vulcões, e depois dela um mar de lava. Acabavam de cruzar a fronteira dos Campos da Morte, gover­nados pelo duque Bael, o Infeliz, e adentravam o território do odioso Alastor.

         — Este é o caminho para o castelo de Lúcifer? — indagou o guerreiro.

         — Não. A Estrela da Manhã o aguarda no vale dos Condenados, cujos la­mentos das almas ressoam por todos os reinos do inferno. Lá há campo aberto e espaço suficiente para um duelo tão esperado.

         Ablon sentiu uma pontada de apreensão. Só agora se dera conta do que es­tava por vir e da magnitude do evento que convocara.

         Sem planejar, tomado pela raiva e pela sede de justiça, havia desafiado o Ar­canjo Sombrio para um confronto. E não podia mais recuar.

 

Ablon contra Lúcifer

         Lúcifer tinha inúmeros castelos e fortalezas no inferno, e mudava de resi­dência de acordo com sua vontade e segundo suas necessidades políticas. Mais recentemente, a Estrela da Manhã havia se fixado em uma caverna sob o solo, no Vale dos Condenados, onde passaria a maior parte do resto de sua longa exis­tência. A gruta, cheia de túneis e passagens, não era um lugar luxuoso como seus outros palácios, mas estava de acordo com a magnificência do grande se­nhor infernal.

         O vale dos Condenados era uma planície de proporções colossais, delimitada, ao longe, por dois paredões montanhosos. Ao sul da chapada, o enigmático rio Styx, o mais célebre dos corredores espirituais, passava defronte à caverna do Diabo e prosseguia seu curso, desaparecendo logo depois. Embora o Arcanjo Sombrio nunca tivesse usado as trilhas fluviais para cruzar dimensões, habitar à margem de uma via tão importante era motivo de respeito e admiração entre os nobres satânicos.

         O vale era o campo de punição mais central do Sheol, o grande terror para as almas dos injustos. O solo estava coberto por várias camadas de corpos hu­manos que, mesmo feridos, sem braços nem pernas, ou atingidos por chagas, ainda se contorciam. O sofrimento desses desgraçados é longo e terrível. Estão fadados a viver em dor e tortura por anos, até que se cumpra seu período de condenação. Só então talvez tenham a chance de servir a algum demônio me­nor e com o tempo galgar a hierarquia, tornando-se eles próprios demônios. A grande maioria desses infelizes, contudo, é prontamente eliminada, ou retorna ao vale, para mais alguns milênios de aflição.

         Montado no monstro alado, às costas de Lilith, Ablon avistou o vale dos Condenados. Ao redor da caverna, notou uma multidão de demônios, de todos os tamanhos e tipos, que para lá fora assistir ao duelo. Mas não encontrou seus principais inimigos: Lúcifer, a Estrela da Manhã, e Apollyon, o Exterminador.

         — Chegamos — indicou a succubus.

         — Sim, mas onde está o Arcanjo Sombrio? E seu capanga?

         — Estão a caminho — ela não chegou a aterrissar a fera voadora, mas desceu em rasante. — Pode saltar agora.

         Ablon preparou-se para pular, mas antes a rainha avisou:

         — Tenha cuidado! O Filho do Alvorecer é traiçoeiro até mesmo em suas téc­nicas de combate. Esteja pronto para o pior.

         E, sem responder, o general saltou para o campo. Naquele oceano de men­tiras e mentirosos, não sabia em quem confiar, e preferiu não dar atenção às pa­lavras da succubus. Independentemente do que acontecesse, o lutador agiria por seus próprios métodos. Lilith, por sua parte, dizia a verdade. Era uma en­tidade sádica e maldosa, mas, no percurso daquela curta viagem, sentira pelo anjo guerreiro algo que nunca antes havia provado. Era um sentimento inebrian­te, muito mais forte que o fogo do prazer e do sexo e muito maior que a pai­xão que uma vez cultivara pelo Arcanjo Sombrio. Com uma única frase since­ra, o querubim exercera sobre a mulher-demônio um formidável deslumbre, que ela não esqueceria jamais. Sempre estivera cercada por inimigos e criaturas vis. Seus aliados a usavam, ou a agradavam em prol de seus interesses pessoais.

         A montaria voadora subiu novamente, e a sombra do monstro se perdeu nas nuvens negras, levando consigo a sensual condutora. Com a agilidade de um ga­to, Ablon rolou sobre o solo e recobrou a postura a poucos metros da hoste que o aguardava, ansiosa. A esplanada estava lotada de espectadores dali até a caverna, mas o celestial sabia onde encontrar o seu verdadeiro oponente. À medida que caminhava rumo à gruta de seu traidor, a turba abria caminho, espantada com a coragem do anjo guerreiro. Os infernais tinham ouvido histórias, relatos so­bre um general querubim que desafiara o arcanjo Miguel. Quem, senão o Se­nhor do Sheol, poderia detê-lo?

         Foi então que, à sua frente, abriu-se um longo corredor animado, ladeado por demônios de todas as castas. Ao fim da trilha, Ablon visualizou, finalmente, seu adversário.

 

         Lúcifer não carregava espada ou armadura e vestia apenas uma túnica cla­ra, como a dos serafins. O rosto limpo e jovem simulava sua antiga aparência, de olhos azuis e loiras melenas trançadas. A seu lado, armado com a Fogo Ne­gro, estava Apollyon, fora da linha de combate. Este, por sua vez, também tinha asas, mas não as exibia, como seu chefe.

         Ao longe, sobre uma pedra, dois duques, Asmodeus e Orion, os mais razoá­veis dos príncipes macabros, observavam impassíveis o encontro, com diabólica elegância.

         — Vai ser um massacre — exclamou Asmodeus, confiante na vitória de seu amo. Mas o Rei Caído de Atlântida ficou em silêncio, apenas observando os movimentos do desafiante, que concentrava nos punhos a Ira de Deus, enquan­to os observadores se afastavam.

         No campo, Ablon ergueu-se como um predador. Lúcifer, contudo, nem se­quer tomava posição de batalha. Que trapaça estaria aprontando?

         — Ablon, o que está fazendo é uma loucura — surpreendeu a Estrela da Ma­nhã, iniciando um diálogo. — Espera mesmo poder me vencer?

         Mas, em vez de replicar uma resposta, o glorioso general retrucou com um sorriso determinado, que fez até mesmo os duques congelarem de medo, à exceção de Apollyon. Com aquela expressão resolvida, ficava claro que ele não retro­cederia. Se morresse, morreria feliz, porque aquela era sua natureza. Se sobre­vivesse, ainda que derrotado, guardaria consigo a experiência de enfrentar um arcanjo, ou alguém com similares poderes. Não era para isso que vivia — para lutar?

         — Peço que reconsidere — insistiu Lúcifer, com falso ar de preocupação pa­terna. — Desista deste duelo.

         — Eu o farei, se me entregar Yarion, Asa de Vento.

         — Você me pede o impossível, general.

         Ablon não estava mais disposto a deliberar. Sem mais delongas, acelerou em carreira, vencendo os cinquenta metros que o separavam do Anjo Caído. Sal­tou alto, com a Ira de Deus incendiando-lhe os punhos, e desceu para espan­car o inimigo.

         Mas, enquanto mergulhava no ar, um evento inesperado tomou forma. O corpo delgado de Lúcifer foi objeto de uma transformação instantânea e assaz assombrosa. Em uma fração de segundo, o Arcanjo Sombrio cresceu em tama­nho, convertendo-se em um ser monstruoso. A pele engrossou e os músculos saltaram, enquanto as pernas se moldavam em patas de cabra. Das mãos brota­ram garras, e uma cauda enorme apareceu, no mesmo momento em que o rosto macio se convertia em uma carranca satânica, com chifres negros e presas ver­melhas.

         Surpreendido pela dantesca metamorfose, o renegado perdeu a precisão do soco, que reduzidos instantes atrás mirava o rosto pequeno de Lúcifer.

         Aproveitando-se da hesitação do querubim, a Estrela da Manha, agora um demônio de três metros, baixou a cabeça, levantando o traseiro para empreender uma manobra ousada. Chicoteou com o rabo, e a cauda peluda enroscou-se em volta do corpo do general, que descia de seu pulo. No assalto seguinte, Lúcifer contraiu o membro crescido, de tal forma que o Anjo Renegado não podia mais se soltar. Com força espantosa, a fera arrojou o inimigo, que se espatifou com as costas no chão, ferido e atordoado. Depois, mais uma rabada o imprensou contra o solo, e as investidas seguintes arrancaram-lhe sangue e esfolaram-lhe a pele, deixando a carne à mostra. A dor era tanta que mesmo o vigoroso general não pôde mais se mover. A energia dos músculos sumira com a perda de san­gue, e a potência da aura fenecia. Ainda assim, teve forças para virar o rosto, só para arrostar o agressor.

         — O Diabo tem muitas faces — rosnou a fera gigante, justificando a amarga surpresa. Falava com uma voz nada suave, tão grossa quanto o rugido de um leão. — Seus sonhos de triunfo são tão efêmeros quanto a conclusão deste due­lo, general.

         Semiconsciente, o celestial lembrou-se do que Lilith dissera, sobre as táticas insidiosas de Lúcifer. A triste verdade era que, por mais habilidoso que fosse, Ablon não era páreo para a Estrela da Manhã. Não chegara, pelo menos ainda, aos pés dos arcanjos, figuras supremas e admiráveis, que justamente por isso governavam o universo.

         Em poucos segundos, o Anjo Renegado estava inteiramente derrotado.

         Nesse momento, o maldoso Apollyon aproximou-se de seu mestre, com a Fogo Negro nas mãos. Os olhos de Orion estremeceram ao ver que o Exterminador erguia a lâmina e a dirigia ao pescoço de Ablon, pronto para executá-lo com uma só espadada.

         Quando desceu a arma em sua trajetória mortal, Lúcifer deteve-lhe o pulso.

         — Não! — ordenou. — O Anjo Renegado não morrerá como mártir. A sentença já foi determinada — e então cravou as garras nos braços de Ablon e o ergueu para a multidão agitada. — O líder dos renegados será levado aos Túneis de Zandrak, onde será torturado por duzentos anos seguidos — e dirigiu-se ao Exter-minador, em particular. — Depois disso, terá permissão para executá-lo.

         Assim, o Primeiro General, que mal podia falar, foi arrastado por um ban­do de inúteis esqueletos-demônios para um túnel malcheiroso, sob o clamor ensurdecedor dos espectadores, que ovacionavam o triunfante Senhor Infernal.

Um dos esqueletos chifrudos, o mesmo que Ablon submetera nos Campos da Morte, comentou com um dos comparsas:

         — Devíamos ter acabado nós mesmos com ele no Abismo de Nimbye — disse, como se pudesse enganar a si próprio.

         — Não — retrucou o outro, dando continuidade à farsa. — Foi prudente dei­xar a glória para nosso adorado senhor, embora eu deva concordar que não te­ríamos problema em derrotar este rato.

         — De fato — concordou um terceiro, enfiando o celeste para dentro do túnel.

 

Prisioneiro em Zandrak

         Abaixo do vale dos Condenados, sob o solo, havia um descomunal emara­nhado de túneis, que se estendia para muito além das montanhas, superando em mil vezes o território do vale e alcançando uma profundidade incalculável. Esse lugar subterrâneo — os Túneis de Zandrak — era o lar dos baals, a casta in­fernal dedicada à tortura e ao tormento. Quem reinava em Zandrak era o de­mônio Balor, um abominável carrasco e executor, cuja mente perversa era capaz de formular intermináveis táticas de sofrimento.

         Apesar de seu grande poder, Balor não era um anjo caído, e a história de sua ascensão é um exemplo de sucesso entre os espíritos corrompidos. Sua trajetória é uma mistura de crueldade insana e sorte titânica.

         Balor uma vez fora um homem mortal, que vivera na Irlanda durante o sé­culo VIII a.C. Guerreiro respeitado e feroz, era o chefe de uma das primeiras tribos celtas, um povo que habitava a Europa Ocidental antes das invasões ro­manas. Mas uma profecia marcaria seu destino. Certa vez, um druida lhe con­tou que ele seria morto pelo próprio neto, por isso Balor trancafiou sua única filha, Ethlinn, em uma torre de pedra, para impedir que a moça se casasse e desse à luz seu assassino. Nesse meio-tempo, envolveu-se em incontáveis bata­lhas, sempre cercadas de fereza e barbárie. Em combate, perdeu um dos olhos, o que aumentou ainda mais sua presença e carisma.

         Os conflitos prosseguiram, até que o herói Cian libertou Ethlinn do cárce­re e desposou a donzela. Dessa união nasceu o menino Edan. Quinze anos de­pois, pai e filho partiram para a guerra das tribos. No calor da peleja, Edan ma­tou seu avô Balor com uma lança que lhe perfurou o olho saudável, vingando assim o aprisionamento da mãe. A fúria no coração do chefe persistiu mesmo após sua morte e, acredita-se, foi essa raiva que o consagrou no Sheol. Rápidamente ascendeu na rígida ordem dos baals, tornando-se um modelo para seus iguais e depois um líder admirado, superando seus rivais por meio de violência e intrigas. Para acalmar seu ódio enlouquecido, Balor passou a torturar e a mor­tificar todos os condenados lançados aos túneis, em suas câmaras de dor nos calabouços de Zandrak.

         A aparência desse furioso infernal é como a de um gigante, alto como dois homens comuns e gordo como três ursos selvagens. O abdome dilatado, sem­pre à mostra, vive sendo acariciado pelas enormes mãos. No centro da fronte sustenta apenas um olho, grande e negro, e a boca imensa está sempre baban­do fluidos gosmentos. Uma cabeleira fétida, suja como lodo, escorre até a altu­ra dos ombros.

         Balor recebeu Ablon com satisfação especial e garantiu a Lúcifer que se de­dicaria inteiramente à rotina de punição. O Anjo Renegado foi carregado às mas­morras e preso por correntes à parede de uma cela escura e gelada, no porão mais profundo do inferno. A cada dia, Balor o chicoteava mil vezes, até a pele rasgar, e depois deixava o corpo sarar, para uma nova sessão de torturas.

         E assim prosseguiu o tormento, por duzentos longos anos, durante os quais o querubim não teve descanso e só conheceu dor e humilhação.

         Dias antes da data marcada para a execução, Apollyon enviou um presente a Ablon, e Balor permitiu que o prisioneiro manuseasse o pacote. Quando o celestial abriu o saco, um objeto rolou pelo chão.

         Era a cabeça de Yarion, Asa de Vento.

 

         Na véspera do dia da execução, Ablon foi deixado em repouso por um dia inteiro, para que conseguisse se recuperar e andar a caminho do cadafalso. Sua alta resistência fez com que os músculos sarassem depressa, embora as costas continuassem lanhadas e sangrentas. As correntes que o prendiam à parede eram muito resistentes para ser partidas e só se abriam com a chave certa, que era guardada pelo próprio Balor.

         O baal largou o renegado sozinho por um instante, mas voltaria em breve à cela. A partir daquele ponto, não alimentava mais esperanças de salvação, mas um outro alguém lhe emprestaria a esperança, no momento mais negro.

         Ablon conhecia o itinerário de Balor e estranhou sua demora. Já devia ter voltado, porque ficava sempre a vigiá-lo, mesmo quando não o torturava com o chicote afiado. Por isso, quando a grande porta da cela se abriu, deixando en­trar a luz das piras de fogo, o celeste estranhou ao ver que o recém-chegado não era o gigante caolho. Enxergou a silhueta de um demônio só um pouco mais baixo que ele, de corpo atarracado e olhos vermelhos. Quando se aproximou da claridade, percebeu que tinha asas despenadas, garras retraídas e mancava de uma perna, situação que o obrigava a se apoiar em uma bengala. A pele era de um moreno claro, e o cabelo e a barba, de um preto profundo.

         Aquela era a aparência espiritual de Orion, o Rei Caído de Atlântida.

         — Você não está nada bem — exclamou o atlante, reparando nas costas ras­gadas de seu amigo. A visita era um presente agradável, independentemente das repercussões futuras.

         — Já estive muito pior que isso — respondeu o guerreiro, que não era dado a lamentos.

         — Eu sei. É por isso que estou aqui.

         — Sei que veio se despedir de mim e talvez prestar um último adeus ao nosso glorioso passado, mas nossos sonhos acabaram, velho amigo.

         — Despedir? — o satanis sorriu, indiferente ao fatalismo.

         Lentamente, Orion deslizou pela câmara fria e estacou bem perto do pri­sioneiro, esticado por correntes que lhe encerravam os punhos.

         — Quem você pensa que é, Anjo Renegado? Acha que é uma entidade co­mum, mais um celestial a vagar pelo universo criado por Deus? — e cabeceou uma negativa. — Não...      Você é o líder dos renegados, é um símbolo, um ícone.

         O demônio virou o rosto, e Ablon percebeu que seus olhos se enchiam de lágrimas.

         — Em Atlântida — continuou Orion — o povo contava histórias sobre épicos lutadores. A maioria dessas histórias foi inventada por mim e não passava de poemas oníricos. Mas eu lhe digo que, em meus sonhos mais grandiosos, tinha um modelo que guiava minhas legendas.

         O renegado levantou o olhar, começando a entender do que se tratava.

         — Não sei bem o que você se tornou, general — concluiu o atlante. — Não sei o que é realmente, anjo ou homem. Se fosse humano, terreno, andarilho carnal sobre a terra, eu diria que é um herói. E, definitivamente, estou certo de uma só coisa: não é assim que morrem os heróis.

         Dito isso, para a completa surpresa do condenado, Orion sacou uma chave e com ela libertou o querubim das amarras de ferro. Estava livre!

         — Fuja enquanto pode, general! — avisou o falido monarca. — Seu tempo de escape é limitado.

         — E onde está Balor? — quis saber o guerreiro.

         — Eu não poderia me esgueirar pelos túneis e invadir esta câmara com um baal a guardá-la, por isso precisei de uma breve distração.

         — Distração?

         — Lilith, a Rainha das Succubus. Ela se dispôs a "entreter" o carrasco en­quanto eu descia ao calabouço. Somos ambos responsáveis por esta pequena j conspiração.

         Lilith... a terrível senhora das mulheres-demônio. Ablon nunca pensou que receberia o auxílio de tão vil criatura, nem sequer percebeu quão encantada ela havia ficado com ele. A succubus, com efeito, apaixonara-se pelo anjo guerreiro e teria feito qualquer coisa para salvá-lo.

         —Vocês serão severamente punidos quando Lúcifer souber o que planejaram — alertou Ablon. — A Estrela da Manhã é onisciente em seus domínios.

         — Nem tudo ele pode enxergar, querubim — rebateu, com sincera convicção. — Agora corra! Lilith não segurará Balor eternamente.

         Mas Balor não era o único obstáculo que separava o general de sua completa libertação.

         — Não conheço o caminho para os Campos da Morte — Ablon não era ex­perto na geografia do inferno. — Como posso alcançar o portal e voltar à terra?

         A solução estava na ponta da língua:

         — A fera alada de Lilith está estacionada fora dos túneis. Siga o cheiro da lava e encontrará a saída de Zandrak. Ande pelas sombras, para que os inúteis baals não consigam percebê-lo. Cavalgue o monstro. Ele conhece o caminho para os Campos da Morte. Rápido! O tempo se esgota.

         Sem demora, o renegado, mesmo ferido, correu pelos túneis — passagens tor­tuosas, lotadas de espíritos-escravos, que mineravam enquanto recebiam o açoite dos demônios-caveiras. Nenhum deles chegou a notar a furtiva passagem do prisioneiro celeste, que com coragem de ferro errou pelas grutas, até encontrar o buraco que conduzia à superfície.

         Uma passagem estreita, cavada na rocha, terminava em uma grande caverna, cuja abertura acessava um sítio ao norte do vale dos Condenados, já fora do território particular de Lúcifer, o Senhor do Sheol. O salão pedregoso estava repleto de sentinelas, atentas a cada movimento no escuro. Ablon poderia enfren­tá-las, mas não queria alertá-las de sua presença e pôr a perder sua fuga fantás­tica. Assim, enganou a todos, e com o caminhar sorrateiro deixou as masmor­ras. Lá fora, encontrou a besta voadora e a dominou.

         Dois malikis que guardavam a passagem enxergaram, minutos depois, o monstro alado cortando o horizonte.

         — Não é a montaria da rainha? — comentou um deles.

         — Não há dúvida, mas não me lembro de tê-la visto regressando do subter­râneo — constatou o segundo. Lilith arrancava suspiros por onde quer que pas­sasse e tomava a atenção de todos os machos.

         Um terceiro demônio, mais poderoso, responsável pela guarda geral da ca­verna, aproximou-se dos soldados. O rosto parecia o de um leão negro, e segu­rava uma espada curvada.

         — Não é a rainha, seus porcos imprestáveis! — vociferou, e os vigias se re­traíram de medo. — Aquele é o Anjo Renegado, que escapa de Zandrak no dia de sua execução. O Filho do Alvorecer vai querer minha cabeça por isso. E, por enquanto, eu vou querer a sua.

         Com brutalidade animal, o cabeça-de-leão brandiu a cimitarra e com um único golpe cortou o pescoço dos dois malikis. Em seguida, disparou o alarme.

         — O Anjo Renegado fugiu! — gritou, com todo o vigor.

         Uma centena de demônios partiu em perseguição, mas já era tarde demais.

 

Lápides de um Mundo Perdido

         No lombo da fera voadora, Ablon cruzou o mar de lava, as montanhas, e avistou o Abismo de Nimbye, já nos Campos da Morte. Aterrissou perto da senda de rocha negra, onde se escondia o portal. Felizmente, constatou o rene­gado, a passagem jazia intocada.

         Ainda sangrando, mergulhou na poça mística, e no instante seguinte a espla­nada cinzenta havia sumido. Como num piscar de olhos, o ambiente transmutou-se em uma floresta de carvalhos ressecados. Quando vislumbrou o cenário, viu-se deitado no centro da ciranda de pedras, um círculo de velhos menires, especialmente sagrados aos antigos druidas. Com os pulsos inchados e o corpo ferido, percebeu aonde tinha chegado.

         Estava de volta à floresta Vermelha.

 

         Havia pelo menos cem anos que a floresta Vermelha perdera sua característica fantástica. Por muito tempo, suas árvores foram cortadas, e o mundo das fadas regrediu, até que o vértice que havia no coração do bosque desapareceu totalmente. A maioria dos duendes fugiu para a Arcádia quando da construção da estrada, e os poucos que ficavam, por sua natureza espiritual, não podiam mais se manifestar no plano físico. Aos poucos, o esplendor do eterno verão se extinguiu, e os carvalhos apodreceram por dentro. Os troncos sem vida agora se levantavam aqui e ali, como lápides de um mundo perdido. A relva secara, e os animais procuraram outros recantos para a procriação.

         Era início de primavera, o mês que se segue ao degelo, quando a neve dá lugar à lama e a chuva inunda os rincões. Ablon não sabia a data correta, mas ao reparar nas estrelas concluiu que haviam se passado exatamente 222 anos desde o dia em que Shamira abrira o portal.

         A passagem mística se fechara finalmente, e ele estava, por enquanto, a sal­vo. Exausto, entregou-se ao descanso, repousando entre as raízes de um velho roble, que pareciam abraçá-lo como a uma criança. Ficou a encarar as estrelas, até que o sol despontou no horizonte.

         Um vento frio soprou na floresta, trazendo o calor da manhã, e um raio dou­rado refletiu estranhas inscrições na superfície de um menir coberto de musgo. Não eram desenhos celtas, mas caracteres babilônicos, que de forma alguma po­deriam ter sido gravados em uma rocha britânica. Quando os celtas floresceram, Babel já tinha caído havia pelo menos mil anos!

         Ao examinar a pedra, decifrou o mistério e não pôde conter um sorriso. Aquelas gravações eram recentes — não tinham mais de duzentos anos. Não fo­ram marcadas pelos celtas ou por qualquer outro povo primitivo, mas pela Fei­ticeira de En-Dor, talvez por saber que só eles dois entenderiam o significado. A mensagem registrada na rocha provava que a necromante estava viva e incó­lume e que não perdera a confiança em sua promessa. Assim estava escrito:

 

"Meu querido amigo, tive que deixar a floresta. Por fim, os homens

ganharam e iniciaram a construção da estrada. Despeço-me do

mundo das fadas e me lanço de volta à civilização humana. Se um

dia chegar a ler este aviso, estarei à sua espera no último bastião do Império Romano do Oriente: Constantinopla."

 

         Constantinopla, a Rainha das Cidades, a capital do Império Bizantino no ponto mais oriental da Europa. Se alguma coisa ainda restara da glória dos cé­sares, era Constantinopla que a detinha. Centro da Igreja Ortodoxa e cerne da cultura grega, a cidade guardava, ao fim da Idade Média, o saudosismo de uma época de patrícios e imperadores, gravada em mármore e ouro.

         Mas o passado logo terminaria em cinzas, sob o testemunho do anjo guer­reiro.

 

Constantinopla - O Fim de uma Era

         Depois de mil anos de trevas, a Idade Média chegava ao fim. Um novo poder muçulmano se levantava no leste e avançava para o Ocidente como um tigre faminto a caçar sua presa. Os turcos otomanos, sob o comando do sultão, amea­çavam a Europa. Primeiro, invadiram a península Balcânica e derrotaram os cristãos europeus que vieram libertá-la. Depois de um curto período de estag­nação, durante o qual os islâmicos combateram uma ofensiva mongol, as guerras recomeçaram no oeste. Em pouco tempo, todo o Império Bizantino estava sob o jugo turco, à exceçáo de sua capital, Constantinopla.

         Constantinopla, outrora chamada Bizâncio, era uma cidade grega encravada no estreito de Bósforo, até que, em 330 d.C., o imperador romano Constantino, o Grande, a transformou na capital do Império Romano do Oriente, a segunda metrópole dos césares. Sua cultura era uma eclética congregação das artes grega, romana e cristã. Seus cidadãos, cristãos ortodoxos, não respondiam ao papa e tinham seu próprio patriarcado. Consideravam bárbaros os homens do Vatica­no. No apogeu, esse reino oriental estendia-se do sul da Itália até a Síria e a Ar­ménia, quando então os muçulmanos apareceram no teatro da história.

         Em 1439, o imperador de Bizâncio, Constantino XI, reconheceu que a ca­pital não resistiria ao assalto dos otomanos. Em uma última tentativa desespe­rada, engoliu o orgulho e foi a Roma propor a união das Igrejas do Oriente e do Ocidente, esperando, assim, receber o auxílio de que precisava para expul­sar os invasores. Mas, apesar da união, o monarca encontrou um duplo fracas­so. O povo, mesmo sofrido, não aceitou bem o acordo, e assim nenhum solda­do foi enviado para o leste. Depois, os turcos se acotovelavam nas muralhas, e dali em diante a queda de Constantinopla era só uma questão de tempo. Em janeiro de 1453, o imperador recebeu novo alento, com a chegada de dois na­vios genoveses sob o comando do célebre guerreiro Giovanni Giustiniani, um general que assumiu o comando das tropas e lutaria até a última gota de san­gue pela cidade castigada. Mas o exército otomano era imenso. Calcula-se que o sultão Maomé II dispunha de trezentos mil homens contra nove mil defen­sores. Ademais, os agressores contavam com artilharia, que aos poucos minava a resistência das muralhas.

         Um tiro de canhão foi disparado na noite, e Shamira despertou de seu sono. Era dona de uma casa luxuosa, uma construção de três andares, adquirida ha­via cinquenta anos de um comerciante florentino. No início, a mansão conta­va com um séquito de criados, mas agora estava vazia. Alguns empregados fu­giram da cidade sitiada, outros foram chamados ao exército imperial.

         A necromante levantou-se e subiu as escadas em direçáo ao terraço, de onde tinha uma visão ampla de toda a capital. De lá, avistou a fumaça do lado de fora da cidade, e as rachaduras que a artilharia turca abrira nas muralhas. Mi­lhares de homens — soldados profissionais e pessoas comuns — agrupavam-se em batalhões, com espadas na mão, aguardando o assalto. Os tambores otoma­nos rufavam ao longe, enquanto seus guerreiros se preparavam para a batalha final. Em meio à confusão, uma missa solene era celebrada na fabulosa Igreja de Santa Sofia, com suas cúpulas colossais e seus ângulos curvilíneos.

         Na mureta do terraço, uma figura tão silenciosa quanto o vento emergiu da penumbra. Lentamente, aproximou-se da mulher e estacou a seu lado. An­tes de se fazer notar, ficou uns instantes a admirá-la e a contemplar sua beleza. Reparou que a moça trajava um longo vestido de veludo verde-musgo e tinha os cabelos negros penteados em trança. Lá embaixo, nas ruas da metrópole, um cortejo deixava a basílica, e nele tomavam parte todos os habitantes civis de Cons­tantinopla. À frente, os sacerdotes entoavam salmos e carregavam imagens de santos que, achavam, protegeriam a cidade contra a ofensiva noturna.

         — A cruz e o crescente — murmurou a figura. — Um mesmo Deus, dois ini­migos distintos.

         Surpresa, Shamira virou-se de lado e quase não acreditou no que viu. Ali, diante dela, erguia-se um homem alto, forte, de cabelos dourados e olhos cin­zentos. A barba rala engrossava-se em um cavanhaque inconfundível, e ela não teve dúvidas sobre a identidade do visitante.

         —Você... — emocionou-se. — O que aconteceu? Por todos os deuses, por que não regressou à floresta? — perguntou, com a preocupação típica dos amigos sin­ceros. Já começava a se acostumar com a idéia de que ele tinha morrido, de que nunca mais o veria, mas no íntimo de sua alma sabia a verdade.

         Enquanto a mulher se recuperava do choque, Ablon a envolveu com os bra­ços, e ela pousou a cabeça sobre seu peito largo, feliz por sentir o calor de seu corpo e por escutar novamente as batidas de seu coração.

         — Então, encontrou o meu recado gravado na pedra? — sussurrou a necro­mante.

         — Eu disse que voltaria — ele sorriu, acariciando-lhe os fios escuros da tran­ça. — Mas talvez tenha demorado um pouco — olhou a cidade sitiada e espantou-se ao ver como o mundo havia mudado em duzentos anos. Dois povos, devotos de uma mesma divindade, estavam prestes a se matar em uma campanha ne­fasta.

         — E a sua missão? Conseguiu resgatar seu amigo?

         Ablon abaixou a cabeça, lembrando-se de seu fracasso, mas engolindo com glória a amarga derrota.

         — Fui vencido por Lúcifer e aprisionado nos calabouços do inferno. Yarion morreu, mas Orion, o Rei Caído de Atlântida, me salvou das masmorras.

         — Orion é o seu anjo da guarda — brincou. — Mas como ele escapará da fúria de seu senhor infernal? Quando o Arcanjo Sombrio descobrir que o atlante o libertou, seu salvador cairá em desgraça.

         — Espero que isso nunca aconteça. Orion me pareceu bastante seguro, em­bora os demônios comentem que a Estrela da Manhã enxerga tudo o que acon­tece em seu reino. Mas isso não muda nada. Mesmo se ele for punido, devo honrar seu sacrifício e seguir minha vida.

         Uma segunda explosão, muito maior que a primeira, tomou a atenção do casal. Os portões de Constantinopla cederam, e cinquenta mil turcos avança­ram para as ruas. Ouviram-se sucessivos tiros de canhão, que encheram o ar com o cheiro de pólvora. Nas avenidas, homens de armadura completa cruza­vam espadas contra as cimitarras de seus invasores. O clangor do metal inundou os becos, como uma triste sinfonia de morte. Começava a ofensiva otomana, que prosseguiria por toda a madrugada.

         Por duas vezes os muçulmanos foram repelidos, até que uma flecha perdida atravessou a couraça de um italiano moreno. Para o infortúnio dos defensores, era Giovanni Giustiniani, o general do exército. O moral dos homens caiu, e Ablon e Shamira viram, do terraço, quando um guerreiro de armadura reluzen­te tomou seu gládio e avançou pessoalmente ao comando. O bravo não era nin­guém menos do que o próprio imperador.

         O soberano foi cercado e, depois de vencer cinco homens, uma lança per­furou-lhe o pulmão. Constantino XI estava morto, e os turcos ocupavam a ci­dade.

         Percebendo a derrota, o pânico apoderou-se dos moradores, que fugiam aos milhares. Uma multidão correu para o porto, tentando embarcar nos navios an­corados. Outros procuraram refúgio no interior da Igreja de Santa Sofia, acre­ditando que seu caráter sagrado os pouparia de uma morte violenta.

         Nas praças e nas ruas, a carnificina começava. Todos que fossem encontra­dos com armas nas mãos eram abatidos, fossem homens ou mulheres, ricos ou pobres. Enquanto isso, os atacantes esquadrinhavam sistematicamente todos os bairros em busca de espólios.

         Um grupo de militares forçou a porta da casa de Shamira, no primeiro andar.

         — Vamos embora, Ablon — disse a mulher, descendo as escadas. — Não vai sobrar muito de Bizâncio.

         Com um movimento calculado, Shamira apertou a mão do amigo, e juntos correram para o porão. Lá havia uma passagem secreta que se abria na parede da adega.

         — Espere — o Anjo Renegado parou. —Você vai abandonar tudo o que guar­dou nesta casa?

         — Já transferi o que me interessava para uma mansão em Veneza — o teto tremeu com um estrondo, e o general entendeu que a parede externa fora atin­gida por uma bala de artilharia. — O edifício vai desmoronar! — a feiticeira ex­plicou, puxando o querubim para dentro do túnel.

         Quando os dois se meteram no túnel, as fundações do edifício cederam, es­magando os soldados que o haviam invadido. O caminho desceu e continuou para o norte, como um duto de esgoto. Não muito longe dali, a passagem sub­terrânea terminava em um alçapão, que saía no interior de uma gruta pequena, sob uma colina ao sul da cidade.

         Quando Ablon e Shamira deixaram a caverna, era quase dia. Antes de o sol nascer, assistiram ao incêndio que consumia os bairros mais altos. Os prisioneiros foram feitos escravos e, pela manhã, o sultão Maomé II recitou a prece muçul­mana de quarta-feira no altar-mor da Igreja de Santa Sofia. A cruz que encimava a cúpula da basílica foi substituída pelo crescente islâmico, e os mosaicos cris­tãos foram cobertos com cal.

         — Eis que morre a última cidade romana — murmurou o celeste, fitando as ruínas fumegantes.

         — Somos testemunhas da história, meu amigo. Somos os observadores do mundo.

         E assim teve fim a Idade das Trevas, afogada na chacina do tempo.

         O anjo e a feiticeira ficaram juntos por mais alguns dias e, depois, como sempre, ele partiu para longe. Shamira assumiu sua mansão em Veneza, e Ablon caminhou para a Espanha.

         Era o princípio da Idade das Luzes.

 

A Resposta do Arcanjo Sombrio

         A fuga de Ablon dos calabouços de Zandrak deixou o inferno em polvorosa. Lúcifer ficou tão irritado com o ocorrido que mandou executar todos os baals que vagavam por aquele nível da masmorra no dia do escape. Prendeu Balor e Lilith e ficou a pensar no que faria com eles. Para um grande líder infernal, um deslize poderia gerar uma revolta dos duques, então suas açóes tinham que ser calculadas, para que mantivesse o prestígio mesmo depois do fiasco.

         O que mais o intrigava era a nebulosa identidade do cúmplice da mulher-demônio. Alguém certamente tinha aberto as amarras do renegado enquanto a succubus fornicava com o carcereiro. Mas quem? Mesmo em sua onisciência satânica, a Estrela da Manhã não conseguia enxergar o culpado. Como isso seria possível, se ele era capaz de avistar mentalmente todos os cantos de seu reino, até mesmo os mais obscuros? Tal situação, que punha em xeque não só sua po­sição como líder, mas também sua confiança pessoal, o deixou arrasado.

         Com todos esses receios em mente, o Diabo estava desolado, mas manteve-se firme. Mandou que Apollyon buscasse Lilith na prisão e a levasse à sua pre­sença, na caverna do vale dos Condenados. Pretendia interrogá-la, como uma última tentativa de descobrir o segundo responsável por aquele plano de fuga, que tanta complicação lhe trouxera.

         O Exterminador tirou as algemas da ruiva e a deixou de frente para Lúcifer, em seu trono de ossos. Recuou dois passos e conservou-se em alerta, com a Fogo Negro nas mãos. A espada do impiedoso infernal ardia em chamas negras, um tipo de flama mística, distinta das flamas normais, que consome não só materiais inflamáveis, mas todo tipo de substância, orgânica ou inorgânica. O fogo ne­gro leva à combustão pedra, metal, carne, concreto e qualquer outro objeto que for posto em seu caminho. O fogo comum, conhecido pelos homens, é só um tipo de ardência universal — há muitas outras, como o fogo verde, ou fogo de Xahra, e o fogo azul, ou fogo das fadas, que só produz luminescência.

         — Lilith — sibilou o Diabo, encarando a prisioneira com seus inquietantes olhos azuis —, minha preciosa princesa-demônio... — sussurrou, com doçura ma­léfica. — Você me causou diversos problemas, garota.

         — Não são nada perto dos que já causou, Lúcifer — ela rebateu, sem remor­so. O fascínio que sentira pelo Arcanjo Sombrio, ao vê-lo pela primeira vez após ser abandonada por Adão, murchara como uma planta ao sol. Agora ele era o tirano, o vilão, o ser mais deplorável de um reino decadente.

         Em resposta, o senhor infernal sorriu, mas em seu íntimo se contorcia. Aque­le que fora tão belo quanto o sol, o preferido de Deus, acabava de levar uma es­tocada mortal.

         — Não era assim que você me tratava, rainha, até bem pouco tempo — ele olhou para o lado, c sua mirada alcançou uma alcova escura, que fora palco de incontáveis encontros eróticos entre o demônio e sua cortesã. — Quantas vezes já se deitou em minha cama? Quantas vezes já a possuí sob este teto? Quantas vezes já a levei aos prazeres supremos?

         — E, apesar disso, continua a ter-me como escrava, Estrela da Manhã.

         O rosto do Arcanjo Sombrio transmutou-se em uma máscara indignada. Com a arrogância e a malícia características de seu coração corrompido, ergueu-se de seu trono e achegou-se à ruiva como se a devorasse por dentro. Sua pre­sença era única, sufocante, e a energia de sua aura, assustadora.

         — Escrava? E o que dizer de sua corja de servidores sexuais? Eu a acolhi quan­do foi expulsa por aquele homem mortal. Eu lhe dei poderes incríveis e a vita­lidade eterna. Eu a presenteei com um reino no inferno. Sempre a recebi e a respeitei como a uma verdadeira duquesa, coisa que você nunca foi. E, em tro­ca, o que recebo por minha generosidade é uma punhalada pelas costas. Eu de­veria saber que alguém de origem tão podre não poderia ser confiável. Você foi humana, Lilith. Nem se quisesse alcançaria a glória dos grandes.

         Ao relembrar a atitude de Ablon, ela recuperou a vontade e achou que aque­le era o momento de falar sinceramente. Não se iludia, contudo, em pensar que o demônio a ouviria.

         — Até hoje, tudo o que você me deu foi poder, influência, riqueza e promessas vazias, só isso. Nem se quisesse — replicou, imitando as palavras do Diabo — se­ria capaz de me conceder aquilo que realmente desejo. É por isso que jamais saberá quem abriu as portas de Zandrak. O sentimento que nos motivou está além de sua estreita percepção.

         Lilith chegara à gota-d'água que fez o Arcanjo Sombrio explodir.

         — Como ousa nivelar-se acima de minha ciência? Você nasceu com a huma­nidade, e em que se resume a breve existência da espécie mortal? Quinze mil? Vinte mil anos? A história dos homens nada mais é do que um piscar de olhos se comparada à vivência do universo, à vivência dos arcanjos, à minha vivência. Fomos criados com a luz divina, na aurora dos tempos, mas vocês... o que são? Pobres animais moldados do barro — afirmou, e, com temor sem igual, Lilith viu na face da Estrela da Manhã um traço de nojo. Nunca, em todos aqueles milénios de íntimo contato, ouvira seu amo cuspir aquele discurso desvairado, que nada tinha a ver com sua propaganda humanista. Por certo, Lúcifer havia expressado, sem calcular, uma emoção secreta, e pela primeira vez a monarca soube que seu mestre dizia a verdade.

         Ao compreender sua falha, já era tarde demais. O Arcanjo Sombrio escorre­gara em suas próprias injúrias e agora só tinha uma coisa a fazer.

         Com um sutil movimento, inclinou a cabeça, dando a Apollyon o sinal que tanto esperava. Um golpe preciso foi lançado, e a Fogo Negro reluziu no ar, para encontrar em seguida o pescoço de Lilith. A cabeça da meretriz rolou para o lado, e o corpo tombou para trás. Tão rápida foi a execução que a cortesã na­da sentiu, nem teve chance de gritar ou arriscar um último suspiro. Seus res­tos mortais poluíram o chão da caverna, enquanto chamas negras consumiam pele, tecido e ossos. Em um minuto, o cadáver da rainha reduzira-se a uma pi­lha de cinzas.

         — Infelizmente, como seu ex-marido, ela foi longe demais — resmungou o Diabo, esmagando com o pé o montículo de carvão. — Eis que Adão se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal; agora vamos expulsá-lo do paraíso, para que não tome também a árvore da vida, e coma, e viva eternamente — de­clamou, narrando um trecho do Gênesis. — Eu deveria obrigar todos os meus demônios a ler a Bíblia.

         Introspectivo, Lúcifer deu de ombros e recolheu-se ao trono de crânios.

         — Poderíamos ter feito muito pior do que executá-la com um golpe — instigou Apollyon.

         — Em tais circunstâncias, mante-la viva seria muito arriscado, mesmo sob tortura. Fizemos a coisa certa, e agora este episódio está encerrado.

         — Mas e quanto a Balor? O que faremos com ele?

         — Enforque-o com seu próprio chicote, no mesmo cadafalso em que Ablon seria executado. E faça questão de que todos os duques estejam presentes. Se preferir, você mesmo pode assassinar o maldito.

         — O que eu quero é a cabeça do renegado!

         — Isso todos nós queremos, Apollyon, mas será que seremos capazes de tê-la?

         — Do que está falando? — rosnou o malikis, estranhando o comportamento evasivo de Lúcifer.

         — Ablon me enfrentou em duelo, e há mil anos confrontou Gabriel. Embora tenha perdido nas duas vezes, ele se manteve vivo. A cada batalha, o Anjo Re­negado torna-se mais experiente e mais poderoso. Brevemente, nem você esta­rá em condições de vencê-lo. Se não o matarmos logo... — o senhor infernal deteve-se, imaginando a possibilidade de ascensão de tão persistente inimigo.

         — Nunca serei vencido por um celestial adorador de animais — grunhiu o Exterminador.

         — Assim espero, meu caro — retrucou o Diabo, sem muita certeza. — Assim espero.

         Embainhando a espada, Apollyon deixou a caverna, sem prestar nenhum cumprimento. O Filho do Alvorecer retrocedeu à penumbra e ficou estático, ob­servando o que sobrara do defunto de Lilith. Por horas divagou, tentando enten­der o que a impulsionara a cometer um ato tão absurdo, que a levaria à ruína.

 

Um Espião na Lanchonete

ablon, aziel e sieme conseguiram acertar a compra de uma caminhonete Chevrolet de três lugares com um taxista israelense, e combinaram de receber o veículo ao fim da tarde, em uma praça no monte Sion, fora dos limites da Ci­dade Velha. Só para prevenir, pediram ao vendedor que pusesse dois tanques extras de gasolina no compartimento de carga, embora o renegado soubesse que só precisariam de um para chegar ao Sinai. Enquanto esperavam, adquiriram, em uma banca de jornal, um mapa rodoviário, e se prepararam para estudar o percurso.

         Pouco depois da hora do almoço, os três anjos entraram em uma lancho­nete perto do souk central, o mercado ao ar livre na interseçáo entre os bairros árabe, judeu e cristão, em Jerusalém. Apesar do feriado espontâneo, durante o qual o centro histórico se transformara em um campo de orações, o souk con­tinuava em atividade, embora reduzida. Alguns poucos estabelecimentos abriram as portas, como restaurantes e farmácias, mas a maioria dos comerciantes estava nas ruas, nas procissões, ou acolhida no interior dos templos, rezando pela paz. Não obstante as demonstrações de fé, a cidade estava repleta de agentes de se­gurança, policiais e soldados, preocupados com o curso da guerra e atentos a um possível ataque das milícias islâmicas.

         Uma hora atrás, a pequena lanchonete árabe estava lotada, porque muitos peregrinos vieram de longe para meditar em seus santuários sagrados. Encon­travam-se na Cidade Sagrada pessoas de Hebron, Gaza e Ramallah, e também de Tel Aviv, Eilat e Haifa. Agora, porém, o movimento no restaurante caíra, restando apenas alguns fregueses locais, que bebiam café de seus bules de bron­ze e fumavam narguilés, os famosos cachimbos aromáticos, compostos por um fornilho, um tubo e um vaso cheio de água, por onde o fumo atravessa antes de chegar à boca.

         Os celestiais se recolheram à mesa mais reservada do salão, poluído por pra­teleiras, tapeçarias, lustres e bugigangas que pendiam do teto. A fumaça obstruía a visão da saída, e os fortes odores que vinham do souk confundiam o olfato.

         Ablon acomodou a seu lado o embrulho longo de pano, que escondia a Vin­gadora Sagrada, e abriu o mapa sobre a mesa. Além das estradas, o planisfério mostrava também as localidades, os acidentes geográficos e as elevações de ter­reno desde a Galileia até o Egito.

         — É aqui! — reparou Aziel. — E esta a montanha.

         — A montanha de Horeb — verificou o general. — É onde encontraremos a entrada para a caverna.

         — E o portal que procuramos — completou o ishim. — O Horeb fica ao norte do monte Sinai, embora hoje os mortais acreditem que as duas montanhas são o mesmo lugar.

         Ablon traçou, com o dedo, uma linha imaginária sobre o papel, analisando o trajeto.

         — Partindo de Jerusalém, dirigiremos para o leste e depois dobraremos ao sul, seguindo a Rodovia 90, que corta o deserto do Negev até Eilat, a última cidade israelense antes da fronteira com o Egito. A partir de então já estaremos na península do Sinai e prosseguiremos pela Estrada 66, que margeia o golfo de Acaba. Continuaremos por essa rota até os arredores de Nuweiba, uma lo­calidade costeira, e então nos desviaremos para oeste, diretamente para o inte­rior do deserto. A via asfaltada termina perto de um complexo monástico, o Mosteiro de Santa Catarina. De lá, avançaremos a pé.

         — Um monastério foi construído na base da montanha — notou Aziel, de olho nas indicações.

         — É um sítio de peregrinação, mas não deve ter mais do que uma dúzia de monges e talvez uma patrulha do exército egípcio.

         Sieme atentou para a variedade de cores no mapa. Não sabia o que signifi­cavam.

         — O que é isso? — perguntou, apontando para uma faixa escura atrás do pon­to que indicava o mosteiro.

         — Uma cordilheira — explicou Ablon. — Toda essa região é extremamente montanhosa, e o marrom forte indica os picos mais altos. Há uma espécie de corredor rochoso, uma garganta de pedra que teremos que transpor para che­gar à trilha, que sobe rumo à caverna.

         — Acha que teremos problemas na estrada? — perguntou a serafim.

         —A julgar pelo contingente militar que vemos aqui, as rodovias devem estar bloqueadas. Se for preciso, teremos que contorná-las. Agora que conheço a di-reçáo correta, não vou me perder. Só temo pelo atraso na jornada. Mas talvez você possa nos ajudar com suas habilidades psíquicas.

         — Se necessário... Mas até meus poderes têm limites. Não posso enganar um exército, mesmo um exército de seres humanos, que em geral têm a vontade mais fraca do que os celestiais.

         — Não acho que vamos encontrar grandes tropas, só postos de vigília. Se bem que a fronteira sempre é uma zona conturbada, então tudo é possível.

         Aziel, que estava de frente para a porta, pressentiu uma estranha energia, uma emanação confusa. Sem vacilar, levantou-se e avistou, do lado de fora, um ho­mem grande e moreno, que certamente, por sua aura maléfica, não era um sim­ples mortal. Não conseguiu enxergar seu rosto em virtude da intensa fumaça dos narguilés e das quinquilharias penduradas.

         O instinto de sobrevivência o dominou, e suas mãos irromperam em cha­mas, que percorreram todo o antebraço, prontas para ser lançadas. Aziel era um anjo do fogo e, embora não soubesse lutar como os querubins, tinha as pró­prias alternativas de defesa — e de ataque.

         Preocupado primeiramente com a segurança das pessoas sentadas às mesas, Aziel preferiu não disparar uma rajada de flamas, que fulminaria o inimigo, por­que a intensidade das labaredas poderia provocar um incêndio e destruir todo o prédio. Correu na direção da nebulosa figura, preparado para estorricá-la com suas divindades pirotécnicas.

         Mas, quando se encontrava a um passo de alcançar o espião e identificar seu rosto, um barulho insuportável o fez parar, e o baque repentino o obrigou a se apoiar em um poste. Ablon e Sieme, ainda sentados, também escutaram o impacto e ficaram tontos, sem conseguir se mexer.

         Era o soar da Quarta Trombeta!

         — Ele se foi... — murmurou Aziel, ainda sozinho, quando o ruído acalmou. Olhou ao redor, procurou, vasculhou, mas não havia mais nenhuma entidade por perto.

         Um instante depois, o Anjo Renegado e a serafim atravessaram a porta, dei­xaram a lanchonete e se apressaram em auxílio do amigo. Mas ele já estava no­vamente a postos.

         — Estamos sendo seguidos, general — advertiu o ishim, ofegante. — Havia al­guém aqui. Infelizmente não consegui perceber seu rosto nem sua real natureza.

         — Eu sei. Senti a presença desse observador ao sair do aeroporto.

         — Então vamos encontrá-lo! Temos que impedir que o espião se reporte a seus aliados. Anjo ou demônio, ele é nosso inimigo.

         — Não, Aziel. Não há tempo para persegui-lo. A trombeta que acabamos de ouvir só encurta nossa missão. Veja — ele mostrou aos colegas um curioso fenô­meno, que só os seres místicos e os sensitivos podiam visualizar. O tecido da realidade estava picotado por rasgos, reconhecidos por seções translúcidas na membrana, que oscilavam como a visão de uma miragem.

         — O tecido está se desintegrando — entendeu Sieme.

         — Temos até o alvorecer de amanhã para atravessar o portal, porque só res­tam três trombetas para o Juízo Final, e pouco menos do que isso para a Bata­lha do Armagedon. Gabriel já deve estar movendo suas legiões.

         — Mas se esse observador avisar seus comparsas sobre o nosso percurso, nós três poderemos estar caminhando para uma emboscada.

         O Anjo Renegado já tinha considerado tal ameaça.

         — Não temos escolha.

 

A Escolha de Sieme

         A uma curta distância a pé a partir do Portão de Sion, que corta as mura­lhas do centro histórico pelo sul, situa-se a colina que simboliza a Jerusalém bí­blica e a Terra Prometida. O monte Sion, sagrado para cristãos, judeus e muçul­manos, mais parece uma ilha de tranquilidade fora dos limites da Cidade Velha, com suas praças arborizadas e construções aprazíveis. A principal dessas edifi­cações é a Igreja da Dormiçáo, coroada por uma torre alta e um domo com qua­tro pequenos torreões. Planejada em estilo neorromântico, domina o topo do morro e ocupa o local onde, supostamente, morreu a Virgem Maria. Foi no lar­go da igreja que Ablon combinou de se encontrar com o taxista israelense, de quem comprara a caminhonete com a qual pretendia vencer o deserto.

         Ainda reservada, Sieme observava a Cidade Velha do alto do monte, com uma sensação de terror a agitar-lhe o espírito. Já eram quase cinco horas da tar­de, e o frio do deserto começava a subir a colina.

         — Sinto uma presença sombria vagando pela Cidade Velha — avisou a Mes­tre da Mente, fitando o emaranhado de ruas no interior das muralhas. — Algum ser de grande poder está rastreando nossos passos, pronto para interferir em nos­sa viagem.

         — É aquele maldito espião que avistei mais cedo, perto do mercado — excla­mou Aziel, ainda perturbado com o episódio no souk.

         — Não é só um espião — corrigiu a serafim. — Sua aura é tão forte quanto a do nosso general. Ninguém com tamanho poder seria um mero enviado. Deve estar aguardando o melhor momento para nos atacar.

         — Então vamos esperar que ele nos alcance, Sieme — decidiu Ablon. — As­sim ao menos poderemos combatê-lo. Talvez o que ele queira seja justamente nos atrair para longe de nossa jornada.

         A conversa foi interrompida pelo roncar de um motor. Um homem de meia-idade, pele clara e cabelos pretos, um tanto flácido nos quadris, guiava um au­tomóvel de carga e estacionou o transporte ao avistar os três anjos. Já tinha sido pago previamente, mas era um sujeito honesto e não fugiria com o dinheiro, conforme Sieme havia constatado ao vasculhar-lhe a mente.

         O motorista saiu da boleia com muita pressa. Mostrou onde guardara os tanques de combustível e indicou os controles básicos da caminhonete, expli­cando como dirigir a picape. Depois foi embora, tão rápido como chegou.

         Ablon assumiu o volante e chamou os outros a entrar. Girou a chave e deu a partida na máquina, pousando a Vingadora Sagrada em um compartimento na parte de trás. Aziel acomodou-se no assento, mas a serafim não se moveu. Permaneceu parada do lado de fora, exposta aos raios poentes do sol.

         — Vou ficar, general. Vou continuar em Jerusalém. Não seguirei com vocês.

         — O quê? — reagiu Aziel, surpreso, mas Ablon apenas assentiu levemente com a cabeça. Já havia previsto aquela atitude e sabia que não poderia impedi-la.

         — Alguém nos persegue, e essa entidade pode pôr em risco nossa missão — explicou Sieme. — Nenhum de vocês dois poderia ficar para caçá-la, mas eu pos­so. Os rebeldes precisam do Primeiro General, e só você, Aziel, conhece a tri­lha para a caverna em Horeb.

         — Está ciente dos perigos que correrá? — perguntou o general, mesmo sa­bendo que ela já calculara o grau da ameaça.

         A mulher-anjo se aproximou do renegado e tocou-lhe o rosto. Deslizou o dedo pela face sofrida, como os fiéis fazem com a imagem dos santos. Tinha os olhos marejados e o coração disparado. Nunca antes nenhum serafim, anjos cal­culistas e críticos, fora tocado tão intensamente pela emoção da despedida.

         — Quando o encontrei há dois dias, naquele apartamento em ruínas, disse que estava disposta a morrer por uma causa e dar a vida para proteger meu lí­der. Foi sabendo disso que vim para a Haled, mesmo não conhecendo bem a humanidade e seus avanços históricos. Sei que os serafins são conhecidos por sua retórica ardilosa, mas eu disse a verdade desde o princípio. Jamais duvidei de seus ideais.

         Ao escutar o discurso, Aziel sentiu uma profunda dor no coração, por um dia ter questionado a dignidade de sua parceira. Saiu instantaneamente do carro e a abraçou forte, puxando-a para junto do peito. Suas castas tinham nature-zas e personalidades distintas, mas, por um minuto, pareciam tão unos quanto gémeos de sangue.

         — Voltarei à Cidade Velha — ela explicou — e procurarei por esse agente per­verso. Se não for capaz de detê-lo, ao menos poderei atrasá-lo.

         Ablon pensou em proibi-la de ficar, em ordenar que continuasse com eles até o portal, em obrigá-la a esquecer aquele empreendimento arriscado. Mas devia, acima de tudo, respeitar sua decisão e honrar sua escolha. Quantos sacri­fícios ele mesmo já não tinha feito, e quantas vezes terminara por superar desa­fios supostamente insuperáveis? Não... não podia censurá-la. Além disso, sua ajuda seria preciosa. Qualquer contratempo que transtornasse o inimigo, ainda que pequeno, seria valioso.

         — Apesar de pertencermos a castas opostas, reconheço que nunca vi tama­nha coragem em um serafim — admitiu o renegado. — Desejo-lhe toda a sorte, Sieme, Mestre da Mente. Lute com toda a vontade e com todo o coração, por­que eu não esperaria menos de uma acólita de Gabriel.

         — Sou sua acólita, general. Nós, os novos rebeldes, vivemos para servi-lo, por­que ainda acreditamos na palavra de Deus — disse, afastando-se do carro. — Mes­mo que os homens tenham degradado o mundo, continuaremos a louvar a cria­ção. Somos anjos, e esse é nosso dever. Até que o sol se apague e o brilho das estrelas feneça, até o último fulgor do universo.

         E com isso Sieme gravou sua bravura nos registros infinitos da história. Com um aperto na garganta, Aziel retornou à cabine, e a caminhonete partiu. Por longos instantes, a Chama Sagrada ficou vislumbrando a amiga, à medida que sua silhueta diminuía à distância.

         — Eu a julguei mal, Ablon — martirizou-se. —Algumas vezes, pensei que ela não se empenhava totalmente para promover nossa causa. Agora, me perturba imaginar que tenha resolvido ficar só para pôr à prova suas virtudes.

         — Sieme tomou a decisão dela, e não nos cabe inferir o motivo. Ninguém pode culpar os outros por suas escolhas. Se ela fez o que fez, foi por opção própria. A Mestre da Mente encontrou a maneira que lhe pareceu melhor para com­pletar a demanda.

         Entristecido, o ishim deixou que seu olhar navegasse suavemente pela pai­sagem. Dirigiam então pelos bairros modernos da Cidade Sagrada, já longe do centro histórico, e quase na entrada para a Rodovia 90.

         — Quando nos reencontrarmos, no acampamento rebelde, espero poder des­fazer nossas antigas contendas — murmurou o anjo do fogo.

         Como líder de guerra e veterano no campo de batalha, Ablon preferiu ser realista. Embora não quisesse magoar o amigo, também não desejava alimen­tar falsas esperanças.

         — Não creio que a veremos de novo, Aziel — retrucou, tomando a bifurca­ção que levava à estrada costeira.

         Um silêncio mortal imperou na boleia, e a Chama Sagrada divisou o monte Sion pela última vez, enquanto o sol se punha no oeste.

 

Masada, Fortaleza das Almas

         — A Europa morreu! — dizia o locutor de uma rádio jordaniana. Havia al­gumas horas, a Aliança Oriental, encabeçada pela China, Rússia e Coreia do Norte, respondera à ofensiva atómica que devastara Moscou lançando um míssil nuclear que arrasara o oeste da Europa. O alvo primário fora simbólico — Berlim, a cidade alemã que sediara, havia dois anos, a conferência que fundara a Liga de Berlim, grupo de países ocidentais liderados pelos Estados Unidos e pela Eu­ropa, que fazia frente aos interesses da Aliança. O raio da destruição, todavia, não se limitou à Germânia. Desde o extremo norte da Noruega até o sul da Si­cília, nenhuma nação se salvou.

         O aparente clima de tensão que se sucedera à detonação das primeiras bom­bas convertera-se em completa histeria. No Canadá e na costa oeste americana, ainda preservada, o caos dominava as ruas. Milhares de pessoas se aglomeravam nos aeroportos, buscando refugio nos países neutros, e outras fugiam para o cam­po, às vezes a pé, porque as estradas estavam lotadas. Mas até mesmo nos países de exílio, fora da linha de combate, a situação era perigosa. Em muitas repú­blicas da América Latina, o poder paralelo de facções criminosas e dos trafican­tes de drogas aproveitara-se da desordem para efetuar saques em grande escala e atacar instituições públicas, órgãos governamentais, delegacias de polícia e quar­téis do exército. Um embate civil estourou, mergulhando as cidades em sangue e barbárie. Na África, um maremoto varreu as praias, afogando as localidades portuárias e arruinando centros importantes como Casablanca, Luanda e Ci­dade do Cabo — uma trágica consequência da onda de choque que sacudira o Atlântico, provocada pela segunda grande explosão, que extinguira Nova York.

         Ablon desligou o rádio no instante em que a rodovia dobrava para o sul. Sob o anil do crepúsculo, Aziel pôde contemplar a aridez do cenário e a beleza estéril do mar Morto, com suas exuberantes salinas, que se alongava por dezenas de quilômetros a leste. A paisagem, um tanto acidentada e infértil, é recortada pela orla do mar — que é, na verdade, um grande lago, no qual desemboca o rio Jordão.

         Uma grande lua cheia ilustrava o firmamento, iluminando a superfície do mar. O aroma inconfundível do sal marinho chegava da praia, e Ablon viu, ao longe, uma grande montanha, encimada por um cume amplo e reto. No topo, fazia-se visível uma incrível cidadela em ruínas.

         — Aquela é Masada — indicou o renegado —, a capital de uma seita judaica ameaçada pelo poderio romano. Em 73 d.C., quando a cidade finalmente caiu, depois de dois anos de cerco, os defensores cometeram suicídio, para não en­tregar a vida aos invasores estrangeiros. Hoje o pináculo é uma fortaleza de es­píritos.

         Em Masada, restavam os fantasmas, remanescentes de um grupo que jamais admitiu a derrota e por isso continuava preso ao astral, incapaz de seguir para o céu. Como Masada, havia, às margens do mar Morto, dezenas de outras ci­dades que pereceram da mesma maneira, ao longo de milênios de guerras e ca­tástrofes.

         E a mais célebre delas ainda estava por vir.

 

O Portador da Luz

         No Sheol, os demônios e seus duques estavam perigosamente agitados. Ape­sar de Lúcifer ter garantido que todos tomariam parte na guerra e de ter orde­nado que os nobres infernais levassem suas hordas para o porto do Styx, ao soar da Quinta Trombeta, ninguém sabia ao certo o que aconteceria depois. Samael, o braço direito do Arcanjo Sombrio, ficaria responsável por revelar, na última hora, a tática final da Estrela da Manhã. A esse cronograma, a reação dos se­nhores escuros não foi nem um pouco suave. Todos eles, sem exceção, odiavam Samael, a quem consideravam um bajulador incapaz. E havia também a questão da enigmática ausência de Lúcifer, que aparentemente não participaria do combate direto — caso contrário, por que delegaria um comissário tão detesta­do para falar em seu nome?

         Os exércitos diabólicos preocupavam-se, ainda, com a batalha propriamente dita. Após reunirem-se às margens do Styx, para onde iriam? Todos sabiam que as duas facções angélicas — a de Miguel e a de Gabriel — se enfrentariam no pla­no etéreo e lutariam pelo domínio da Fortaleza de Sion. Mas como os demô­nios chegariam até o campo de peleja? O rio Styx é uma via espiritual, que atra­vessa dimensões, mas só os misteriosos barqueiros conhecem suas rotas, e suas embarcações são, em geral, pequenas demais para transportar batalhões. Além disso, quem poderia pagar o preço pela viagem das tropas, que é sempre cobrado em forma de energia vital? Se até o poderoso Amael, o Senhor dos Vulcões, fi­cara arrasado ao entregar parte de sua aura aos barqueiros, quem teria essência suficiente para satisfazer os exigentes condutores? E se, mesmo assim, fossem superadas as complicações logísticas e as hordas conseguissem chegar ao etéreo, o que fariam em seguida? Esperariam que os dois lados se matassem ou se alia­riam a um dos partidos celestiais? Tal perspectiva, para os duques, era abomi­nável! Combater em concordância com qualquer uma das facções celestes seria um ultraje, já que eram inimigos ferrenhos de ambas. Miguel expulsara os caí­dos do céu, e Gabriel fundamentava seu código nos ideais semeados pela Irman­dade dos Renegados, cujo líder, Ablon, era um dos maiores oponentes do Ar­canjo Sombrio.

         Não obstante, os senhores escuros preferiram, por medo ou respeito, não contrariar seu amo. Em seus reinos macabros, finalizavam os preparativos pa­ra o confronto, organizando e movimentando as forças satânicas, agora que já havia ecoado a Quarta Trombeta.

         No vale dos Condenados, na caverna do Diabo, Lúcifer esfregava as mãos e aguardava a conclusão de seu plano. Auxiliado por seu lugar-tenente, Samael, ele vestia com aversão sua couraça dourada, uma armadura peitoral cujos con­tornos simulavam músculos bem definidos, apropriados a um corpo delgado. Na cinta, fixava a bainha de uma espada de fogo, uma arma comum aos arcanjos, mas proibida aos anjos normais.

         — Não tão apertado nas costelas, Samael — orientou o Filho do Alvorecer, enquanto o ser reptiliano amarrava as tiras de couro que fechavam a couraça.

         — Mil perdões, meu altíssimo — suplicou o rastejante, afrouxando as amarras. Lúcifer fez um movimento com as asas, desfraldando a tez de morcego que

compunha seus membros aéreos, deixando-as livres, fora do colete metálico.

         — Confesso que me sinto péssimo nesta armadura, mas estou pronto a em­preender uma viagem solene. É uma boa ocasião para resgatar do baú este traje de gala.

         — Vossa Majestade está lindíssima! — exaltou o auxiliar.

         — Obrigado, Samael. Seus elogios engrandecem meu ego e animam meu es­pírito.

         Sozinho, Lúcifer tomou sua espada de fogo e a retirou da bainha. Ergueu-a às vistas e ficou a observar o magnífico instrumento. Tentou simular algumas manobras, mas golpeava apático, sem muita perícia, então recolheu a lâmina, desinteressado pela arte da esgrima.

         — E quanto a esta espada... — comentou o Senhor do Sheol — nunca a usei realmente nem nunca a batizei, como fizeram meus irmãos. Esta lâmina con­serva-se intacta desde o dia da criação, quando meu Pai a forjou. Acha que eu deveria nomeá-la agora, na etapa final do universo?

         — Se assim decidir o meu amo adorado... — replicou a Serpente do Éden.

         — Vou chamá-la de Raio da Aurora, um tanto condizente com seu esgrimista, a Estrela da Manhã. O que acha, Samael? Façamos com isso uma homenagem aos novos tempos, aos novos dias de glória que nascerão à conclusão da Batalha do Armagedon, ao alvorecer de um mundo de puro deleite e prazer. Um tributo ao retorno e ao princípio do cosmo!

         — Suas palavras são tão maravilhosas quanto sua aparência, ó Filho do Al­vorecer! — consagrou o miserável adulador.

         E a conversa seguiria morosa, não fosse a chegada de um terceiro personagem. Surgiu das trevas o demônio Amael, figura estimada por Lúcifer, por sua leal­dade e dedicação. Em sua forma espiritual, o Senhor dos Vulcões tinha asas de fogo tão reluzentes quanto a lava profunda da terra. Vestia uma armadura com­pleta, um tanto sensacional e faustosa, embora carcomida pela ferrugem. O metal avermelhado dava forma a uma couraça gótica, de extremidades afiadas e mano­plas pesadas. No rosto moreno, muito parecido com os semblantes humanos, lágrimas de fogo escorriam dos olhos e nunca paravam — uma marca perma­nente de sua vergonha, do remorso que ainda sentia por ter afogado Atlântida e Enoque.

         Amael ajoelhou-se na base do tablado do trono, sobre o qual o Arcanjo Som­brio terminava de ajustar a placa de ouro.

         — Meu fiel Amael — felicitou-o o Diabo —, levante-se! Você chega em mo­mento oportuno.

         Ainda sem encarar diretamente seu amo, o zanathus ergueu-se em postura pomposa.

         — Trouxe-lhe isto, meu senhor — disse o recém-chegado, estendendo ao mes­tre um pergaminho enrolado. — É uma mensagem do duque Mammon, em no­me de todos os outros duques e senhores do inferno.

         A Estrela da Manhã abriu o documento e o estudou com cuidado. Enquanto lia, seu emissário adiantou:

         — Eles estão impacientes. Ainda não sabem se o terão à frente de seus exér­citos, nem o que farão ao chegar ao porto do Styx.

         — Eu disse claramente àqueles imbecis que seguissem as instruções de Samael, e eles sabem disso! — reagiu, ateando fogo à carta com a força do pensamento. — Mas tanto melhor. O tormento da espera torna os guerreiros mais ávidos pela batalha.

         E, com isso, terminou de assentar a armadura e dirigiu-se à Serpente do Éden:

         — Samael... — chamou.

         — Sim, meu altíssimo!

         — Sua tarefa agora tem início. Vá e faça como foi combinado. Eu e Amael cuidaremos do resto.

         — Seja feita a sua vontade, meu amo.

         E, com movimentos serpentinos, o demônio, metade homem, metade cobra, deslizou por um buraco umbroso, deixando a presença do mestre. Um instante depois, o Arcanjo Sombrio desabou no trono e fitou o melancólico Senhor dos Vulcões.

         — Há tanto que fazer, meu nobre Amael.

         — Se for de minha competência ajudar...

         — Ah, você sempre foi tão prestativo! É claro que sua fidelidade será consi­derada, mas há coisas que só eu posso fazer.

         A expressão de Lúcifer mudou, desenhando um rosto entristecido e frustra­do. Amael, por sua vez, assustou-se, porque nunca — nem ninguém — havia sido testemunha de tão aparente fraqueza.

         — Ás vezes sinto falta de meu Pai — confidenciou o Filho do Alvorecer. — Tudo o que eu queria era tê-lo ao meu lado, era poder amá-lo e adorá-lo.

         — Compreendo, meu amo — murmurou o Senhor dos Vulcões, estupefato ao notar um fio de lágrima escorrendo pela face do Príncipe das Trevas.

         — Você sabe o que é ser Deus, Amael? Tem noção de que tipo de poder é esse? Entende o que significa criar o universo com um piscar de olhos?

         — Não sei se estou à altura de respondê-lo, meu senhor.

         — Infelizmente toda criação exige um sacrifício — concluiu, enxugando as lágrimas e retomando sua habitual atitude segura. — E seu auxílio será inesti­mável, grande zanathus.

         — Diga-me como posso ampará-lo, Estrela da Manha.

         O Arcanjo Sombrio levantou-se do trono e desceu do tablado.

         — Você conhece os barqueiros do Styx. Sabe como encontrá-los — não era uma pergunta.

         — Sim, já os contratei anteriormente, quando da última visita do Anjo Re­negado ao Sheol.

         — Imagino então que tais entidades sejam confiáveis.

         — Perfeitamente, meu amo, contanto que sejam bem pagas. Para as viagens, exigem energia vital, o que me foi extremamente estafante. Só há pouco recu­perei a exata condição de minha aura.

         O Senhor do Sheol encarou seu servo, com a mesma malícia que o carac­terizava no inferno.

         — Como eu disse... Toda criação exige um sacrifício — declarou, e foi cami­nhando para os túneis de saída da gruta. Amael o acompanhou. — Mas não se aflija, meu amigo. Já demonstrou seu martírio. Tudo de que preciso é que me conduza a essas criaturas do rio.

         — Vamos lutar contra as legiões celestes, meu amo? — indagou, tentando não parecer curioso.

         — Deixarei para divulgar minha decisão na última hora. De fato, muita coi­sa está prestes a mudar com o Armagedon. Quando isso acontecer, aqueles que estiverem ao meu lado serão privilegiados.

         — Entendo, meu mestre.

         Juntos, os dois infernais ultrapassaram o umbral da caverna e tomaram o caminho de ossos que terminava no porto de crânios, às margens do Styx.

         — Eu sou o Portador da Luz, o Filho do Alvorecer, a Estrela da Manhã. Sou o Eterno, o herdeiro do Criador. Sou o brilho do sol e o fulgor infinito — decla­mou o Diabo. — Sou o mais puro, o mais belo, o mais reto. Mas hei de subir ainda mais e consagrar meu nome.

         Quieto, o Senhor dos Vulcões temeu pela sanidade de seu amo e pensou que talvez ele não estivesse gozando de perfeito juízo, possivelmente pela carga de responsabilidade que pesava em seus ombros, em um momento tão crítico quan­to aquele.

         Mas Amael estava errado.

         Lúcifer não enlouquecera. Na verdade, esse era seu estado normal.

 

Fúria, Maldade e Sede de Morte

         Já era quase noite quando Sieme desceu o monte Sion e regressou à Cidade Velha. Na mente, guardava uma única missão: encontrar e derrotar a força som­bria que vagava pelas ruas estreitas e ameaçava a segurança de seus companheiros, já a caminho do deserto. A serafim tinha, portanto, a vantagem da surpresa, e sabia que deveria agir rápido, antes que o indecifrável agente descobrisse que Ablon e Aziel não estavam mais na cidade e decidisse segui-los. Para tal, pre­tendia usar a si própria como isca para atrair a enigmática figura, afastando-a, assim, de seus amigos e tentando vencê-la em combate singular.

         Cruzando o Portão de Sion, ao sul do centro histórico, a Mestre da Mente penetrou no bairro armênio e seguiu pela Rua Ararat em direção ao bairro cris­tão. Enquanto caminhava, espantava-se ao ver que, mesmo ao cair do crepús­culo, os fiéis não deixavam os templos. Notou, então, que os habitantes locais punham velas acesas nas janelas, em um silencioso protesto de paz e de repú­dio à guerra global.

         Ouviu uma melodia distante, um coro que recitava músicas cristãs, e per­seguiu sua origem até avistar a Catedral de São Tiago, uma das igrejas mais belas da Terra Santa. As grandes portas de acesso estavam abertas e, no interior, ilu­minado por lamparinas de óleo e decorado com azulejos azuis, a serafim vis­lumbrou centenas de pessoas comuns que, de pé, dedicavam louvores a Deus. Percebeu, finalmente, que semelhante atitude se repetia em cada santuário da velha cidade, sem distinção de culto, e entendeu que aquela seria, para todos, uma noite de vigília, seguida por uma madrugada de orações em prol do fim do conflito, que já devastara metade do mundo. Pouco letrada na história hu­mana, Sieme não compreendeu a ironia da situação. Jerusalém sempre fora um barril de pólvora, uma localidade em permanente confronto, palco de episó­dios sangrentos e assaltos mortais, disputada por partidos rivais. Mas agora, en­quanto o planeta lutava, ela acolhia seus filhos, em honra dos mártires e em de­fesa de seus marcos sagrados. Muçulmanos e judeus se abraçavam e rezavam unidos pela paz mundial. Deixavam as diferenças de lado, porque não eram mais inimigos, mas igualmente vítimas da mesma catástrofe, que ameaçava destruir não só sua vida, mas seus sonhos e crenças.

         A temperatura caíra um bocado à saída do sol, e não cessava de esfriar, à me­dida que a lua subia. Embora o movimento de pedestres tivesse se reduzido, os soldados do exército e os guardas da polícia israelense continuavam patrulhan­do vias, alamedas e travessas, em seus jipes blindados e carros militares. Volta e meia, um helicóptero sobrevoava as muralhas, rondava até o Domo da Rocha e depois retornava à base.

         Um dos pontos mais altos da Cidade Velha é a cúpula alta da Igreja do Santo Sepulcro, o magnífico templo erguido ao redor do suposto local do martírio, sepultamento e ressurreição de Cristo. A construção é composta por um com­plexo de capelas, torres e pátios, administrado por seis facções cristãs — armê­nios, gregos, coptas, católicos romanos, etíopes e sírios. Dentre as edificações, destacam-se duas abóbadas principais: uma maior, sobre a rotunda que guarda o túmulo de Cristo, e uma menor, o Domo de Catholikon, que desponta no nível mais baixo do telhado e cobre a nave central da igreja. A torre do campa­nário, colada à entrada principal da basílica, fica diante da Capela dos Francos, por onde ingressavam os cavaleiros cruzados nos tempos medievais.

         Prosseguindo pela rua fundamental do bairro cristão, Sieme atravessou um arco de pedra, passou ao lado da Mesquita de Ornar e parou no pátio, em frente à porta sul da Igreja do Santo Sepulcro. No largo, umas quinhentas pessoas de vela na mão rezavam baixinho, fazendo fila para entrar no salão e visitar o mau­soléu, excepcionalmente aberto àquela hora da noite. Preferindo não se misturar à multidão, a Mestre da Mente deu a volta no edifício, pulou um muro e su­biu no telhado, caracterizado por três níveis de amplo terraço, cada qual com seu domo, e por um outro ainda menor, que coroava a Capela de Santa Helena. Habitualmente guardada por um zelador muçulmano, toda a área encontrava-se estranhamente vazia, e a serafim aproveitou a oportunidade para galgar até o último nível. Lá, debruçada sobre o parapeito de pedra, ao lado da cúpula so­bre a rotunda, visualizou toda a cidade, procurando, através do tecido, a fonte da presença maligna que a surpreendera no souk. Mas, ao contemplar o astral, tudo o que enxergou foi um bando de espíritos perdidos — fantasmas de todas as eras, largados na borda do mundo.

         Desanimada, imaginou por um instante ter fracassado. Possivelmente, o ini­migo que procurava já tinha partido e, se isso fosse verdade, de nada teria adian­tado permanecer em Jerusalém, enquanto seus companheiros seguiam viagem.

Ficou por um longo tempo observando a paisagem, escutando a corrente de preces que escapava dos santuários. Assim correu boa parte da noite, e aquele foi um período de paz.

         Um breve período de paz...

 

         À meia-noite, Sieme foi testemunha de um acontecimento assombroso. No plano astral, uma sombra negra elevou-se na ala norte das muralhas, encobrindo o astro noturno. Do obscurecimento emanavam as vibrações místicas de uma aura maléfica, corrompida e possante. A aparição, basicamente espiritual, não podia ser vista pelos vivos, mas incitou pânico entre os fantasmas. As almas per­didas, dominadas pelo pavor instintivo, fugiram como estocadas por brasa, com­primindo-se contra os muros do centro antigo, porque muitas delas não podiam, por suas pendências vitais, deixar a Cidade Sagrada. Até mesmo a serafim, tão confiante e disciplinada, sentiu o coração disparar. Ainda assim, não recuou. Agora tinha certeza, mais do que nunca, de que aquela entidade seria sua opo­nente e de que deveria enfrentá-la, em nome de seus amigos e em honra de sua causa.

         Apurando o olhar, identificou a fonte do mal. Uma criatura de corpo hu­mano e rosto disforme corria pelo céu como um búfalo em assalto, apressan­do-se em espetacular ofensiva. Se tinha asas, as escondia, mas a ausência de gra­vidade no plano astral permitia que caminhasse no ar.

         O adversário era rápido e bruto, e a face apresentava uma boca enorme, api­nhada de presas pontudas. Os olhos eram grandes e negros, e uma cicatriz oblí­qua cortava o rosto deformado. Sieme não tinha mais dúvidas de que era um demônio e, a julgar pela potência de sua aura, talvez fosse confrade de Lúcifer, integrando o time dos anjos caídos.

         Apesar de seu desespero, a serafim preparava-se para a luta. Lembrou-se, com certo alívio, de que estava na Haled, e o inimigo, no plano espiritual. O tecido da realidade, ainda que frágil, limitaria o duelo, porque o agressor não poderia atacá-la enquanto não trespassasse a membrana e se materializasse. O processo de materialização nunca é imediato, demandando um mínimo de ener­gia e concentração. Assim, seu oponente, por mais impetuoso que fosse, não a golpearia de primeira, apesar de sua sede de sangue.

         Sieme afastou-se da base da mureta e encarou a vil criatura, que chegava em velocidade titânica. Arrostou de perto seu olhar abissal, quando a figura es­corregou pela cúpula, preparando o punho para um soco infalível.

         Foi aí que teve início o horror.

         Subitamente, o tecido rasgou-se como placenta materna, e o monstro eclodiu do astral. O rosto horrendo transmutou-se em uma carranca humana, e seu cor­po espiritual foi revestido de carne. Saltando ferozmente sobre Sieme, o recém-formado avatar atingiu-a com um soco no peito, e a indefesa mulher-anjo foi arremessada contra o apoio da segunda cúpula, danificando parte da parede de rocha e despedaçando os vitrais de uma janela em arco.

         Estendida no pátio, a celestial verteu fluidos de sangue, que subiam aos li­tros pelos pulmões.

         Mas o que era aquilo? Um demônio atravessando o tecido sem ao menos desprender sua essência? Como teria rompido a membrana assim, tão fácil e rá­pido? O que lhe dava a incrível habilidade de ir e voltar entre mundos? Que ti­po de poder era aquele?

         Quando, debilitada, Sieme ergueu a cabeça e viu a face do assassino, notou que, em sua carcaça física, ele guardava os antigos traços angélicos, porque os anjos, normalmente, são parecidos com homens. Dotada de memória invejá­vel, ela mentalizou a imagem de um passado longínquo e recordou-se de um belicoso oficial querubim, que havia se unido a Lúcifer em sua revolução.

         — Apollyon... — decifrou, com os lábios vermelhos de sangue — o Anjo Des­truidor — ajoelhou-se, tentando se levantar. — Era você que nos perseguia no souk.

         Sou Apollyon, o Exterminador — corrigiu, apresentando-se com a alcu­nha que recebera no inferno. — E você, suponho, é Sieme, a quem chamam Mes­tre da Mente — desdenhou. — Que tipo de truques sabe fazer, garota-anjo?

         — O tipo certo para arruinar malfeitores — respondeu, precisa.

         Indiferente à ameaça, o malikis avançou e a agarrou pelos cabelos. Enfra­quecida e desnorteada pela pancada no tórax, a celestial não teve forças para se libertar. Então, ele a arrastou até o parapeito e a ergueu do chão, de frente para a paisagem anoitecida da Cidade Velha.

         — Veja esta terra amaldiçoada, serafim — começou o demônio. — Ela é o exem­plo da vergonha dos homens. Observe o coração dessas almas perdidas e saberá quantas vezes esta cidade foi regada com sangue. Vocês, que adoram animais e defendem a integridade desses porcos de barro, deveriam entender o que eles fizeram ao mundo.

         — Suas opiniões são incoerentes com a oratória de Lúcifer — gemeu a Mestre da Mente, paralisada pela dor que esticava os cabelos.

         — Respeito somente minha própria coerência — rosnou o diabo guerreiro, e com um movimento de braço a jogou novamente contra a cúpula média. A es­trutura de pedra rachou, abrindo um grande buraco na armação de alvenaria. Pelo menos cinco grandes blocos de rocha despencaram na rotunda, levando alarme às pessoas que, lá embaixo, rezavam ao redor de um recipiente de pe­dra, em uma câmara considerada pelos antigos o centro do mundo.

         Com dificuldade, Sieme segurou-se na borda do domo e rolou novamente para o terraço, evitando uma queda de mais de dez metros. Ao ver uma mulher pendendo do teto, os fiéis, no interior do santuário, se espalharam, e alguns dei­xaram o templo para avisar os soldados. Ao impacto, o braço da serafim se des­locou, e um corte longo foi aberto na testa.

         Ao ver que Apollyon preparava uma nova acometida, a Mestre da Mente valeu-se da única arma que possuía: suas divindades psíquicas. Enquanto o as­sassino se preparava, Sieme foi mais rápida e fez jus a seu título. Apontou a mão na direção do agressor, e uma rajada invisível invadiu-lhe a mente. O Choque Mental, uma técnica conhecida pelos serafins, rastreava as fraquezas da vítima, selecionava suas piores lembranças e as trazia à tona como uma única torrente de sensações dolorosas. A consciência quase nunca aguentava o impacto, e a mente apagava. Os fortes de vontade se recuperavam horas ou dias depois, mas os fracos morriam ou eram lançados indefinidamente ao abismo da loucura.

         Tocado pelo baque mental, o poderoso Apollyon desmoronou, e seus olhos fecharam. Não estava morto, mas um simples desmaio era suficiente para que a mulher-anjo lhe arrancasse o coração e desse fim à sua carreira homicida.

         Com o braço quebrado e a testa sangrando, Sieme pôs-se de pé, abençoando suas valiosas perícias. Graças a um esforço tremendo, tinha derrotado o Exter-minador e cumprido sua preciosa missão. Em breve, poderia voltar à compa­nhia de seus amigos.

         Agachou-se ao lado do avatar estirado, enrijeceu os músculos do braço sau­dável e abriu a mão que penetraria a carcaça. Mas, quando atacou com o punho para trespassar-lhe a carne, o insidioso demônio virou-se de frente e bloqueou o golpe. Estava acordado o tempo todo, mas, por algum motivo, preferiu en­ganá-la!

         Assustada, a serafim tentou se afastar, mas Apollyon saltou como um tigre e apertou-lhe o pescoço, sufocando-a com os dedos gigantes.

         — É agradável a ilusão da vitória, não é? — rosnou o sádico assassino. — É es­sa ilusão que os estimula, a esses novos rebeldes, que veneram um general derro­tado. É o que os faz combater. E o caminho para a morte, para o vazio do cosmo.

         — Mas como é possível? — gemeu a Mestre da Mente. — Ninguém jamais re­sistiu ao meu Choque Mental.

         O criminoso deixou escapar um sorriso perverso.

         — Sua técnica baseia-se no embate de emoções conflitantes: valentia e me­do, segurança e fraqueza, amor e ódio, bem e mal. Eu, que já matei homens, anjos e deuses, não conheço a bondade, a justiça, a amizade nem os sentimentos pacíficos. Tudo o que há dentro de mim é fúria, maldade e sede de morte. Por­tanto, meu espírito não pode ser afetado, não pode ser destruído por seus arti­fícios psíquicos. Eu sou a personificação do que há de mais terrível e atroz neste mundo. Sou o mal verdadeiro, o injusto e o cruel. Nunca fui derrotado e nunca o serei.

         O Exterminador pressionou os dedos, até que Sieme não pôde mais respi­rar. Acometida pela tontura, ela quase desfaleceu, mas uma distração prolon­gou sua vida.

         Um estalo de tiro ressoou no telhado, seguido por uma rajada de balas. Só então, o malikis percebeu que cinco policiais, armados com metralhadoras com­pactas, tinham subido ao terraço por uma escada lateral e estavam a alvejá-lo. Os guardas haviam sido chamados havia dois minutos pelos cristãos que pre­senciaram o desabamento de parte do domo.

Irritado com a interrupção, Apollyon largou Sieme, liberando-a de sua pegada.

         — Mas o que são esses insetos? — enojou-se, no centro da linha de fogo. Os disparos simplesmente não o feriam, tão forte era seu poder e vigor. Suas imu-nidades encontravam estreita semelhança com as de Ablon, que não podia ser machucado por uma arma mundana qualquer.

         Enquanto os projéteis furavam-lhe a roupa, Apollyon concentrou-se nos ho­mens. Além de exímio combatente, contava com capacidades ocultas, entre elas uma aptidão inata para a destruição. Para quem devastara Sodoma com uma nuvem de fogo, aqueles atacantes não passavam de mosquitos, prontos para ser esmagados. Ao seu comando mental, uma fincada cardíaca paralisou os solda­dos, que soltaram os rifles e engasgaram com sangue. Gritando de dor, os iner­mes vigias sentiram uma pontada perfurar-lhes o peito, enquanto o corpo todo formigava e as pernas tremiam. O coração, já inchado de sangue, finalmente es­tourou, rasgando o pulmão e espalhando dejetos aquosos por todo o alpendre.

         Uma mancha vermelha, misturada aos trapos de roupa, foi o que restou dos seguranças armados.

         Apollyon voltou-se à sua vítima central. Com brutalidade terrível, pisoteou o rosto de Sieme, até que o crânio fosse amassado. Mas, em vez de matá-la, pre­feriu prolongar a tortura. Com a força de dez touros selvagens, o malikis levantou um volumoso fragmento de rocha e o largou sobre a Mestre da Mente, imobi­lizando-a.

         — Eu já volto, garota. Você não vai sair daí, vai? — zombou, certificando-se de que o bloco era suficientemente pesado para que ninguém o movesse.

         Ao mesmo tempo em que as sirenes de bombeiro acordavam os moradores incautos, o agente das trevas escalou o domo maior da Igreja do Santo Sepulcro. No cimo, pendia uma bela cruz prateada, larga como uma espada e de extre­midades pontiagudas. Era o símbolo máximo da fé cristã, o ícone que caracte­rizava o eterno túmulo do Salvador. Levando a mão ao sagrado objeto, o de­mônio o arrancou de sua base e o carregou como arma de volta ao ponto onde jazia Sieme.

         Afastando o bloco de pedra, o duque novamente a tomou pelos cabelos e a estocou com a ponta da cruz. A haste de prata, coberta de sangue, atravessou a barriga, despedaçou a coluna e despontou nas costas, perfurando os pulmões.

         — Morra agora, Sieme! E antecipe o destino de seus companheiros.

         Antes de perecer, toda sua vida regrediu em cenas corridas, e ela reviu suas lembranças, seus ideais. Relembrou-se da guerra, das duas facções celestes e da posição de Lúcifer, que nunca manifestara interesse em participar da batalha.

         — Por que nos persegue, Exterminador? Esta guerra não é sua nem de seu senhor diabólico.

         Com expressão odiosa, Apollyon respondeu:

         —Você é inocente, serafim. Não tem a menor idéia do que está se passando.

         E, com isso, executou o golpe final. Afundou a mão no peito já ferido da Mestre da Mente, destruindo seu coração. Depois, jogou longe o avatar destro­çado.

         — Você é o próximo, renegado — disse baixinho, para não esquecer seu alvo primário.

 

         No exato momento em que a vida de Sieme se extinguiu, Ablon, já distan­te no deserto, apertou os freios do carro e respirou profundamente à parada do automóvel.

         — Sieme está morta — afirmou, categórico.

         — Eu também senti — retrucou Aziel, sensivelmente abalado. — A energia de sua aura apagou-se.

         Esticando a cabeça através da janela, o Anjo Renegado fitou as estrelas.

         — Já passa da meia-noite, e estamos bem avançados em nosso percurso — afir­mou, para logo retomar a jornada.

         De início, Aziel não aprovou a austeridade do general, que repentinamente mudara de assunto, parecendo esquecer os feitos e a valentia da honorável Mestre da Mente. Minutos depois, contudo, entendeu a coerência do comentário. Com suas breves palavras, o Primeiro General havia somente explicitado o óbvio.

         Ao atrasar o caçador, Sieme deixara livre o caminho para que seus amigos alcançassem o portal.

         Sua missão estava cumprida.

 

Uma Pena como Vingança

         Por mais alguns quilômetros, Ablon e Aziel continuaram pelo percurso da Rodovia 90, sempre costeando o mar Morto. Era uma daquelas noites claras e frias, típicas da primavera oriental. À exceçáo do forte brilho da lua, nada ilu­minava a estrada, e nenhum farol piscava no asfalto. A partir de Masada, a pista mais parecia uma trilha fantasma. Às vezes, os viajantes avistavam as luzes das habitações praieiras, das salinas e dos spas instalados na orla, agora vazios. No lado oposto da via, o cenário era árido e montanhoso, mas o terreno ficava mais plano à medida que penetravam no Negev.

         O deserto começa onde termina o mar Morto, uma região de solo pedre­goso, repleta de colinas baixas e grutas ocultas, um tanto sombrias apesar de sua beleza. As elevações na paisagem lembram um cemitério de rochas, fragmentos destroçados de uma era tão antiga quanto o tempo das grandes catástrofes.

         Finalmente, na cabine da picape, os celestiais avistaram um holofote à mar­gem da estrada, em um ponto fixo ainda distante. Ao comando do operador, o feixe de luz dançava na pista, à procura dos veículos que chegavam pela rodovia.

         — Será um bloqueio? — perguntou Aziel, tentando enxergar na penumbra noturna.

         — É um posto de controle, improvisado pelos soldados do exército — explicou o general, identificando os elementos no escuro. — Há um pelotão militar, com pelo menos cinquenta homens. Alguns estão acampados, outros conduzem jipes e tanques — descreveu, reduzindo a velocidade do carro. — Montaram um projetor no alto de uma armação de metal e estão vasculhando o asfalto.

         O carro ainda se encontrava fora do alcance da luz.

         — Acha que devemos contornar pela planície e evitar a patrulha?

         — Seria o melhor a fazer, mas perderíamos muito tempo. Além disso, pro­vavelmente notariam nossa passagem pelo barulho do motor e nos descobririam com seus holofotes.

         — É uma pena não termos Sieme conosco — lamentou o ishim, ainda ma­goado pela perda da amiga.

         — É verdade. Ela enganaria rapidamente os guardas. Mas também não vejo por que eles impediriam nosso acesso. Não levamos armas de fogo ou explosi­vos e estamos saindo de Israel, não entrando — pelo caminho que tomavam, bre­vemente estariam no Egito. — Em último caso, você pode se desmaterializar e passar ao astral, enquanto eu tento convencê-los de que não sou ofensivo. Ain­da tenho aquele passaporte, que nunca cheguei a usar.

         Aziel assentiu, confortado com o otimismo do líder. Lentamente, o Anjo Renegado acelerou o veículo e dirigiu rumo ao bloqueio. Sem perceber, eles entravam em uma área de especial importância, que guardava inimagináveis perigos.

         Estavam no extremo sul do mar Morto.

 

         Ablon passou à segunda marcha quando o feixe de luz bombardeou a cabine. Ele e Aziel viram que um jipe militar bloqueava um dos lados da estrada, reduzindo a pista à metade e inibindo, assim, fugas ousadas. Dois espetaculares tanques de guerra, com seus canhões de 120 milímetros, figuravam em cada margem da via, e mais cinco carros blindados RAM V-1 circulavam por perto. À direita, na planície, algumas tendas haviam sido montadas, certamente para abrigar os oficiais graduados. Pelo menos vinte homens a pé rondavam o períme­tro, portando fuzis e granadas de mão. O restante estava nos veículos, no inte­rior das barracas ou mais atrás, defendendo o outro extremo da rodovia. Quatro observadores vigiavam tudo do alto da plataforma de observação, controlando a direção do holofote.

         — Há algo de estranho com esses soldados — sussurrou Aziel. — Não pare­cem humanos.

         — Não parecem, mas são — os militares, definitivamente, eram homens co­muns. Se fossem anjos ou demônios disfarçados, os dois celestes já teriam sen­tido as emanações de sua aura pulsante.

         Ablon parou o automóvel a dez metros do cerco. Cinco recrutas, imóveis, os ameaçavam sob a mira de rifles. Um deles fez sinal para que o motorista dei­xasse a cabine, balançando o cano da arma.

         — Fique aqui — ordenou o renegado ao ishim. — Esteja pronto, mas, aconteça o que acontecer, não os machuque. Tenho a impressão de que esses mortais são mais vítimas do que agressores.

         E ainda sem saber ao certo o risco que corria, o general apresentou-se diante dos atiradores, que o aguardavam com o dedo no gatilho. Todos os militares — na torre, nas tendas e nos blindados — encaravam o querubim com especial ci­nismo e perversidade, e foi aí que o lutador entendeu que haviam sido alvo de alguma transformação — não corpórea, mas psíquica. Decididamente, não go­zavam de perfeito juízo.

         Um silêncio tumular tomou o deserto, até que o Anjo Renegado falou.

         — Quem são vocês? — perguntou, convencido de que as intenções dos vigi­lantes não eram nada amistosas. A alma deles tremulava no corpo, fenômeno estranho aos entes viventes.

         — Devia nos conhecer — respondeu um dos peões na linha de frente. A voz era monstruosa, como dragada de alguma dimensão irreal. — É um anjo, e nossa relação com os alados não foi e nunca será esquecida.

         Com isso, os oficiais dispararam, sem esperar uma réplica do alvo. Sonoras rajadas criaram pontos de fogo e levantaram fumaça na pista. Ouviu-se o som dos projéteis se chocando contra o solo duríssimo e, mais atrás, contra o radiador da picape.

         Enquanto isso, no observatório, um atirador alvejou Aziel, mas ele, já con­centrado, desmaterializou-se no instante preciso, e a bala perfurou o vidro do carro, para alojar-se na parte posterior do assento. Seu avatar dissipou-se em tons azulados, e ele mergulhou para dentro do tecido. No plano astral, o ishim expan­diu as asas e flutuou, atravessando a capota do carro como se ela não existisse.

         No asfalto, quando a fumaça baixou, os agressores não encontraram resquí­cios de Ablon. Esperavam vê-lo desmoronado no chão, perfurado pelos peda­ços de chumbo. Entreolharam-se, intrigados, e vasculharam os arredores, à pro­cura do inimigo.

         Escutaram, então, um barulho que vinha do céu. Surpresos, avistaram o ge­neral, que caía em ataque, após um salto que eles nem sequer enxergaram. Antes que fosse atingido, o querubim pulara bem alto, acima do alcance do projetor, e mesclara-se à noite. Agora, regressava como um raio em tempestade.

         Com a leveza dos mais destros felinos, Ablon aterrissou nas costas de um atacante e o agarrou pela cintura. Correu para frente, com velocidade espanto­sa, carregando o guarda nos ombros e levando-o para longe de seus companhei­ros. Teve o cuidado de não feri-lo, pois não sabia exatamente quem era e que motivação perseguia.

         Ao se darem conta do rapto, os militares novamente esquentaram suas armas. Dessa vez, não só os cinco peões dispararam, mas outros também pegaram suas pistolas e espingardas de guerra. Sob o arrojo de centenas de tiros, que não acer­tavam seu corpo, o general pulou sobre a boleia da caminhonete e depois desceu à carroceria, procurando abrigo atrás da cabine. Era tão célere que os agressores quase não conseguiam mirá-lo, ainda mais na escuridão do deserto. Uma vez no cargueiro, o anjo largou o refém contra o piso de ferro.

         Mas os tiros não paravam e estavam destruindo o vidro e o motor da picape. Os espessos canhões dos tanques de combate começavam a rodar, e os recrutas preparavam as granadas. Na torre, um sujeito enfiava a cápsula explosiva em um lança-mísseis.

         Ablon precisava de tempo, então teve uma idéia. Trouxe para junto de si um dos tonéis de combustível, cheios até a boca, que transportava para reabastecer na viagem. Rasgou um pedaço de pano e o enfiou por um buraco na tam­pa, simulando um coquetel molotov. Depois, com dois fragmentos de metal, produziu faísca, acendeu o estopim e arremessou o barril no meio da pista, en­tre a picape e a área cercada. O recipiente despedaçou-se ao encontrar o asfalto, e seu impacto teve efeito de bomba, levantando uma nuvem preta de calor e fumaça e criando um momento de caos. Ameaçados pelo fogo, os oficiais re­cuaram, mas os condutores dos blindados já estavam para avançar.

         Aproveitando a distração, o renegado interrogou o refém:

         — O que vocês querem? Por que nos atacam sem motivo aparente? — repetiu, pressionando o soldado contra o assoalho da viatura.

         — Com seus poderes celestes pode até me agredir, assassino de Deus, mas tudo o que conseguirá será ferir este corpo — articulou, com aquele timbre gu­tural. — Ainda que me esfole com sua espada mística, ou que amasse meus ossos com sua força inumana, só conseguirá danificar a carcaça. Este invólucro físico não me pertence; ele é apenas um transporte.

         Mas a determinação do prisioneiro murcharia em segundos. No plano as­tral, surgiu o inestimável Aziel, que acabara de se desmaterializar na cabine. Pla­nando como uma sombra branca, de cabelos negros esvoaçando no ar, ele voou sobre o automóvel, desfraldando as asas em majestosa pose e intimidando a en­tidade que habitava o invólucro. Descendo como águia em rapina, segurou o espírito que habitava aquele corpo e o arrancou para fora com um empuxo si­nistro. Desprendeu-se da carne um avejão, uma criatura já morta, que possuí­ra o pobre soldado.

         Ao ver a imagem translúcida do fantasma, Ablon compreendeu a natureza dos fatos. Os patrulheiros estavam todos sob a influência de espectros, que ha­viam tomado seus corpos e assumido suas funções. Não raro, os espíritos pos­suem a carne dos vivos, mas é muito difícil isso acontecer quando o receptor não é voluntário — usualmente, só os sensitivos podem servir de canal para os de­sencarnados. Às vezes, um fantasma muito poderoso consegue assaltar um corpo humano, mas apenas sob condições específicas. Os espectros do deserto eram, logicamente, antigos e fortes, mas a chave do sucesso para aquela possessão em massa estava na fragmentação do tecido — só uma membrana prestes a se de­sintegrar permitiria tal ousadia.

         No astral, Aziel arrastou o avejáo para fora do carro. Estando ambos no mun­do espiritual, o ishim poderia feri-lo e até dissipar sua essência, o que represen­ta a morte para os vagantes astrais.

         O espectro sacudia-se, tentando libertar-se da pegada do anjo. Ablon repa­rou que, em sua forma original, a criatura se vestia à semelhança dos cananeus, um povo ancestral que habitava a Palestina havia milhares de anos. Transtorna­da, a criatura cuspia palavras em uma língua igualmente remota, mas que os presentes podiam interpretar facilmente.

         — Diga logo quem é e por que dominou os soldados — exigiu Aziel. Com uma das mãos segurava o prisioneiro, e com a outra o enfrentava com seu fogo sagrado.

         Temeroso, o desencarnado cedeu:

         — Por séculos estivemos escondidos no centro da terra, com medo, esperan­do impassíveis o Dia do Juízo Final — rosnou. — Mas agora, finalmente, a fron­teira entre o mundo dos mortos e o plano dos vivos começa a cair. Nosso tem­po chegou. É hora de concluirmos nossa vingança.

         — E como vocês ainda não podem se manifestar na Haled, resolveram pos­suir corpos humanos — concluiu o ishim, indignado com a petulância da entida­de. Muitos anjos consideram a possessão uma coisa terrível, empreendida ape­nas por demônios nojentos. De fato, dominar a carne humana significa privar o mortal de sua única arma: o livre-arbítrio.

         Aziel teve vontade de incinerar o espectro, mas lembrou-se do comando de seu general. Antes que seu último fio de paciência se rompesse, o Anjo Renegado ordenou, conclusivo:

         — Solte-o, Aziel. Não vamos lutar contra esses fantasmas. Na verdade, acho que nunca poderíamos fazê-lo.

         Livre, o avejão afastou-se, atordoado apesar de sua condição espectral. Ablon visualizava-o imaterial, envolto por uma luminosidade azulada, e ligeiramente disforme pela oscilação do tecido. Enquanto isso, os blindados atravessaram a onda de calor, mas, ao ver que os inimigos pouparam um dos seus, detiveram os disparos. Jamais haviam tido contato com celestiais piedosos. Para eles, os alados eram fundamentalmente homicidas, carniceiros e vis, porque foi assim que, anteriormente, apareceram na cena da história.

         Aos poucos, a cortina ardente desceu, e mais artilheiros se aproximaram da picape, cercando os celestes a distância segura. Analisando os adversários de per­to, os dois anjos repararam nas almas que ocupavam os corpos e tiveram certeza de que não pertenciam originalmente àquelas carcaças.

         — Eles são os espectros da tal fortaleza de Masada? — perguntou Aziel, ain­da preparado para lançar labaredas. Ablon podia ouvi-lo através da membrana.

         — Não. Masada fica muito longe daqui, e os fantasmas não podem deixar sua área assombrada. Estes são espíritos igualmente sofridos, mas muito mais antigos e rancorosos. Veja — ele apontou para o norte, mostrando a linha marinhã que sublinhava o horizonte —, estamos ao sul do mar Morto. Um dia, bem aqui, existiu uma cidade chamada Sodoma, uma terra habitada por homens jus­tos, mas governada por juizes tiranos.

         — Sodoma... — refletiu Aziel. — Foi contra sua condenação que a Irmandade dos Renegados se insurgiu. Foi por ela que os dezoito caíram.

         O Primeiro General concordou. Sentia-se estranhamente completo e tran­quilo, pois havia encontrado aqueles pelos quais se rebelara e não admitiria que estivessem em posições adversas. Em nobre postura, dirigiu-se aos desencarnados que o cercavam. Ergueu a mão em sinal de armistício e aproximou-se do ave-jão que julgava mais poderoso, incorporado na pessoa fardada de um coronel.

         — O que desejam, filhos de Sodoma? O que podemos fazer para acalmar sua fúria?

         Os seres astrais, com a alma aflita, ainda não pareciam totalmente certos do altruísmo do renegado, mas já não o consideravam um inimigo. Ficara claro que, se Aziel quisesse, poderia fulminá-los com uma chuva de brasas sagradas, o que por certo os expulsaria de dentro dos homens e poria fim às suas atrevidas incursões à superfície da terra.

         — Se são anjos, nada podem fazer — disse o porta-voz dos espíritos. — Os ce­lestiais são o objeto de nosso ódio e o motivo de nosso retorno.

         Embora Ablon não fosse instruído na boa retórica, tal qual os serafins, nem possuísse a sabedoria dos malakins, tentaria fazer o seu melhor para apaziguar as criaturas sofridas sem iniciar um combate. Como aliada, só tinha a pureza de seu coração, já reconhecida pelos fantasmas que agora o fitavam.

         — Compreendo sua ira. Foram os anjos que liquidaram seu povo. Antes de vocês, conheci outros amaldiçoados, vítimas da mesma tortura. Mas nem todos os celestiais são impiedosos e cruéis. Assim como havia em Sodoma pessoas per­versas e justas, há, entre nós, um grupo de virtuosos celestes que lutam em de­fesa dos homens. Como líder exilado, eu sei o que sentem. Só não entendo o que pretendem ao deixar as entranhas do mundo.

         Como muitas cidades derrubadas pelas catástrofes, a exemplo de Enoque e Atlântida, o pouco que ainda restava de Sodoma descansava nas profundezas, em meio aos pedregulhos enrijecidos e ao magma fervente.

         O espectro enlaçado ao corpo do coronel respondeu:

         — Se permanecemos aqui e não seguimos para o paraíso celeste, é porque algo nos prende à nossa lembrança passada. Acometemos os vivos para provar a força da matéria, a potência que necessitamos para executar nossa vingança. E o que queremos. Vingança contra quem nos destruiu. Vingança contra Deus.

         — Pois saibam, então, que o Altíssimo nada tem a ver com seu sofrimento — explicou o querubim. — Por todo esse tempo vocês mentalizaram erroneamen­te seu ódio. O grande Yahweh jaz adormecido desde o fim do sexto dia. A par­tir de então, os arcanjos assumiram seu trono, e foram eles que determinaram a devastação de Sodoma. Tendo iniciado uma revolta contra seus preceitos ti­rânicos, é meu dever, agora, confrontar Miguel, o Príncipe dos Anjos, e então trarei a vocês a justiça que tanto desejam. Peço-lhes, portanto, que libertem es­sas pessoas, pois não será assim que conseguirão sua vingança.

         Impactados por tão novos e surpreendentes conceitos, os espíritos não de­liberaram. Estavam ligados por laços emocionais e mentais, por sensações e von­tades muito fortes, e agiam e pensavam como um único organismo. Mas po­deriam confiar naquele anjo que se dizia amigável? Seria ele um vilão, como todos os outros, ou um herói, libertador das raças mortal e celeste?

         — Não sabemos quem é esse arcanjo de quem fala, mas conhecemos bem nosso assassino — argumentou o desencarnado. — Se prometer vingar nossa gen­te, então voltaremos ao subterrâneo e esperaremos quietos o Dia do Ajuste de Contas. Mas, antes, exigimos que conheça aquele que nos matou.

         Ablon aguardou ao lado de Aziel, até que dois soldados, ainda possuídos, trouxeram até ele um objeto antiquíssimo, uma espécie de estojo cilíndrico, la­pidado em pedra, mas já deformado pelo castigo dos séculos. Os motivos de marfim haviam sido apagados pela fossilização, e nesse estado o tubo mais pa­recia um fragmento de rocha. Quando os recrutas lhe entregaram a peça, o ge­neral esticou a mão, tornando visíveis as runas mágicas gravadas por Shamira em seu antebraço direito.

         Examinando o objeto com peculiar interesse, o guerreiro percebeu que era oco e que, pelo endurecimento da crosta, não poderia ser aberto com um giro de tampa, então o jeito seria parti-lo. Jogou o estojo ao chão, e o envoltório quebrou-se com um estrondo terrífico, comparável aos trovões em noite cala­da. Quando o artefato ruiu, um suspiro de treva escapou-lhe do ventre e uma pena de anjo rolou pelo asfalto. Outrora alva, a pluma enegrecera-se pela pas­sagem do tempo.

         O Anjo Renegado acocorou-se no meio da via e segurou o objeto com ambas as mãos.

         — Apollyon — decifrou, inspirando o aroma impregnado na pluma. Aquela era, decerto, a pena do Exterminador. Os fantasmas teriam, então, preservado a peça por milênios, desde aquele dia fatídico, quando o Anjo Destruidor usara suas habilidades para destronar a cidade.

         — Carregue esta pena consigo, justiceiro. Ela o guiará até nosso algoz — su­plicou o espírito.

         Guardando o objeto escurecido, o general garantiu:

         — Estejam certos de que não me esquecerei de confrontar seu carrasco, por­que sua vingança é minha também.

         Ablon não acreditava em destino, mas estava convencido da importância daquele auspicioso episódio. Justamente agora, quando a esperança falhava, ele encontrara novos estímulos para continuar combatendo. Primeiro, queria ba­talhar pelos homens, mas desistira ao ver a corrupção do planeta. Depois, o rap­to de Shamira o empurrara à ação e o lançara mais uma vez ao teatro da guer­ra. Agora, por fim, recebera o apoio daqueles por quem decidira inicialmente lutar. Começava a enxergar, novamente, quão importante seria o resultado da batalha que estava por vir e quantos dependiam da vitória das tropas rebeldes.

         Com isso, os espectros se convenceram, finalmente, da absoluta honestida­de do Primeiro General e cumpriram sua promessa, deixando a matéria huma­na e voltando aos escombros na fundura do mundo.

         Os dois anjos abandonaram a caminhonete e passaram à direçáo de um jipe do exército. Aziel recompôs seu avatar, refez-se em carne, e Ablon acelerou o veículo. Prosseguiram a jornada penetrando no Negev e dali para a fronteira do Egito.

         Minutos depois, no acampamento, os militares retomaram a consciência, inteiramente confusos pelo lapso de tempo, durante o qual a memória permane­cera apagada. Realizaram inúmeras patrulhas para tentar descobrir como uma picape cravejada de tiros aparecera no meio da rodovia sem que ninguém a no­tasse, mas nada encontraram.

 

As Batalhas Primevas

Na fortaleza de sion, em uma de suas muitas janelas, o arcanjo Miguel observava seu exército, que defendia a torre como vespas ao ninho. Centenas de milhões de celestes guardavam o bastião, esperando a investida dos novos rebeldes, assim distinguidos dos antigos revolucionários que acompanharam Lúcifer em sua queda. Os soldados angélicos estavam em toda parte, não só en­fileirados no solo, como tropas humanas, mas também pelos céus, voando, pla­nando e cercando o baluarte com suas flâmulas vermelhas. Eram tantos os de­fensores que suas patrulhas formavam uma parede animada, obstruindo a visão dos inimigos.

         Da sacada, Miguel contemplou o Styx além das montanhas. Retirou o elmo de queixada pontuda, deixando aparente um rosto castigado, picotado por ci­catrizes. Aqueles estigmas, gravados na face e no corpo, eram as marcas das Ba­talhas Primevas, uma campanha fantástica, travada antes mesmo da aurora do mundo.

         Poucos celestiais conhecem os relatos das Batalhas Primevas, e só os arcanjos se recordam de seus verdadeiros anais. Os arcanjos, como todos sabem, são an­teriores à luz, mas os anjos foram criados depois, no segundo dia, juntamente com o alvorecer do universo. Para que o fulgor cósmico tivesse início, Yahweh teve, antes, que vencer um séquito de poderosíssimas entidades, os chamados deuses das trevas, figuras tão fortes e antigas quanto ele, que dominavam o la­do escuro do espaço. Esses deuses nada têm a ver com os deuses pagãos ou com as entidades etéreas, deificadas pela adoração dos fiéis em seus templos humanos. Os deuses das trevas, liderados pela sinistra Tehom, eram ferozes inimigos do bem, e por isso Yahweh teve de subjugá-los à sua vontade e aprisioná-los em al­guma dimensão paralela, para só então criar o universo. Assim como Tehom ti­nha seu cortejo de entidades menores, Yahweh contava com os cinco arcanjos, dentre os quais Miguel era o mais valoroso. Os arcanjos batalharam ao lado do Altíssimo pela aniquilação dessas terríveis forças ancestrais, e, quando o mal foi derrotado, Deus encontrou-se único e pleno no vazio infindável. Com isso, ob­teve a paz necessária para iniciar sua obra.

         É só compreendendo as Batalhas Primevas que se entende a majestade dos arcanjos e sua superioridade em relação a todos os outros celestes.

         De dentro da fortaleza, o Anjo Negro, braço direito de Miguel, avançou para a sacada e aguardou a atenção do chefe. Tinha a face oculta pelo elmo e penas escuras como a noite profunda.

         — Então? — permitiu Miguel, em sua armadura de placas brilhantes.

         — O Anjo Renegado escapou para o deserto — anunciou,

         — Danação! — explodiu o monarca. Respirou fundo, apertou os dedos contra o cabo da Chama da Morte, sua espada mística, e se recuperou logo em seguida, suprimindo sua ira. — Não podemos permitir que o proscrito alcance o portaL Liquide-o, não importa o esforço! Se Ablon e Gabriel se encontrarem, as tropas rebeldes ficarão muito mais confiantes.

         — E o que sugere? Devo eu mesmo aniquilar o maldito?

         Miguel pausou, reflexivo. Isso não constava em seus planos. Mas por que aquele pária nunca morria? Era inacreditável como resistira ao expurgo, às per­seguições e ao cárcere no inferno.

         — Não devemos correr mais riscos. Chame Euzin e sua Legião Formidável. Lance todos os anjos possíveis à caça do renegado.

         O Anjo Negro maneou o pescoço, inconformado com a tática adotada. Era de compleição musculosa e, embora parecesse mais forte que seu líder supremo, estava muito aquém da imensidão dos arcanjos.

         — Isso não vai adiantar. Seria preferível que o deixássemos vir e preparásse­mos uma emboscada para ele aqui, na Fortaleza de Sion. Parece-me óbvio que, uma vez no etéreo, o falido general correrá para cá, para tentar resgatar a Feiti­ceira de En-Dor.

         Miguel não desviava o foco do Styx por um instante que fosse.

         — Não é um plano ruim, mas o perigo de executá-lo é enorme. Se perdermos a mulher, tudo estará acabado — explicou, vociferando uma ordem. — Faça o que eu mando! Envie Euzin e seus querubins à Haled e triplique o número de anjos no último andar, onde a necromante está aprisionada. Se Ablon vier bus­cá-la na torre, façamos com que ele entre por outro caminho. Nossos soldados formarão uma abóbada vivente, bloqueando a visão do pátio.

         O lugar-tenente não disse nada e saiu, insatisfeito com a decisão do tirano. Já tivera a chance de confrontar-se com Ablon, na ocasião do assassinato de Ishtar, e conhecia suas potencialidades. Mas mesmo não concordando com a visão de seu príncipe, cumpriria o comando. Mandaria um esquadrão ao com­bate e, se o Primeiro General sobrevivesse, aí sim poria em prática sua idéia de atraí-lo para a Torre das Mil Janelas e de lá para o monte Megiddo.

         Megiddo, a Montanha no Extremo do Mundo, é o marco bíblico para a ex­tinção do planeta, profetizado como o local do embate final entre as forças do bem e do mal.

 

Formação em Estrela

         Durante toda a noite, Ablon e Aziel viajaram com o corpo ao vento, aco­modados no assento do jipe. Cruzaram o Negev até o pontal do golfo de Aca­ba, perto de Eilat, e de lá ingressaram finalmente no Egito. Ali, a estrada con­tinuava descendo, mas mudava de número, sendo assinalada nos mapas como Rodovia 66. Quando o dia ia raiando, dobraram para o interior, para enfrentar rotas mais duras, e tomar um sinuoso caminho por entre as montanhas do Sinai, onde o tecido era frágil como no alvorecer deste mundo.

         No deserto, mesmo à sombra das montanhas, o calor aumentou, e Ablon retirou o sobretudo que o aquecera à noite. Enquanto guiava o automóvel, Aziel conferia o trajeto, analisando as rotas no mapa.

         — Estamos muito próximos ao Mosteiro de Santa Catarina, no sopé do mon­te Sinai — avisou, enquanto o general tomava um dos caminhos da bifurcação que os levaria ao monastério. — Agora que chegamos aqui, reconheço perfeita­mente as indicações de Gabriel. Mais ao norte fica a montanha de Horeb, e em seu topo a caverna com o portal para o etéreo.

         Continuaram a rumar por uma via menor, cheia de buracos no asfalto, e por ali seguiram por mais meia hora, sob o castigo do sol. Em determinado momento, viraram à direita e ingressaram num mundo exótico, de estonteante be­leza e macabras surpresas.

         Diante deles nascia uma colossal cordilheira de granito vermelho, com um amplo vale cortando seu ventre. No meio, erguia-se o mosteiro, um gigantes­co complexo de capelas, basílicas e torres, cercado por altos muros de pedra, que, no entanto, parecia uma construção de brinquedo, uma peça menor pe­rante a imensidão das montanhas.

         A membrana, naquele rincão isolado, quase não existia, o que fazia do sítio um santuário natural, preservado e mantido desde a criação do planeta.

         De repente, Ablon brecou o veículo e sentiu um odor adverso no ar.

         — O que foi? — perguntou Aziel, no silêncio da vastidão desolada.

         — Sinto o cheiro da morte — respondeu o renegado, tomando nas mãos a Vingadora Sagrada.

 

         O Mosteiro de Santa Catarina, encravado como uma jóia no imo da penín­sula do Sinai, é um dos primeiros monastérios do mundo, fundado em 527 pe­lo imperador Justiniano. Desde então, tornou-se um remoto posto avançado da ortodoxia bizantina, e continua até hoje a receber milhares de peregrinos por ano, curiosos por conhecer o local onde Moisés teria recebido os mandamentos de Deus. Em seus prédios, monges e eruditos trabalham para conservar o lugar e estudam centenas de manuscritos sagrados, guardados em seus preciosos acer­vos, só comparáveis à Biblioteca do Vaticano.

         Cercado por imponentes muralhas, o mosteiro posteriormente recebeu o nome da santa Catarina, por seu corpo ter sido encontrado ali, no século IX, por sacerdotes gregos.

         Algumas partes do complexo são originais, mas outras foram destruídas por um terremoto na Idade Média, e refeitas depois. O portão de acesso é pequeno, e figura quase escondido através dos jardins e pomares que antecedem os muros, onde se situa também o cemitério monástico. Dentro da cidadela há muitos edifícios célebres por sua história e beleza. A basílica central data da época da construção e conta com três naves laterais em típico estilo bizantino. Uma porta de madeira entalhada leva ao acervo dos ícones, únicos exemplares das pinturas orientais romanas que sobreviveram ao período iconoclasta, quando milhares de imagens foram quebradas. Há também a Capela da Sarça Ardente, a biblio­teca, uma hospedaria, o campanário — com nove sinos, doados em 1871 pelo então czar Alexandre II da Rússia — e o sagrado Poço de Moisés, principal fonte de água do mosteiro, que marca o ponto onde o profeta teria encontrado sua futura esposa. Existe, ainda, uma mesquita ao lado do solar do depósito, levan­tada pelos beduínos que ali trabalhavam no século XII.

         Ablon estacionou o jipe a exatos cem metros do jardim e a duzentos metros do portão recortado na muralha. Deixou o carro de espada na mão e fitou se­riamente o complexo.

         — Os monges estão mortos. Seus corpos estão empilhados na basílica central. Dois deles foram despojados na biblioteca.

         — Como sabe? — indagou Aziel. — Quase não vemos a basílica oculta além das muralhas...

         — Posso sentir o cheiro dos cadáveres. Se querem nos levar para uma arma­dilha, acabam de ter seu plano frustrado.

         E, de fato, era essa a intenção de seus inimigos.

         O farol do automóvel, que o renegado acendera à noite e esquecera de des­ligar à aurora, começou a falhar, e o sistema elétrico do veículo apagou.

         — Eis a cilada pela qual você tanto esperava, Aziel — disse o general.

         — Não, general, nada de cilada — retrucou o ishim, abençoando a percepção sobre-humana de seu líder rebelde. — Pelo menos sabemos de onde vem o ataque.

         Entendendo que seu planejamento gorara, os agressores abortaram a embos­cada e resolveram lançar-se em aberto conflito. Nos largos do mosteiro, prote­gidos pelos muros de pedra, materializaram-se então duas centenas de querubins. Raramente os anjos formam avatares dotados de asas ou carregam consigo ar­mas através do tecido, porque o gasto de essência é enorme. Mas, naquele re­canto santificado, a membrana era delgada, o que permitiu que uma legião emer­gisse do mundo espiritual.

         Uma vez na Haled, o temerário esquadrão alçou voo e subiu às muralhas. Seus soldados angélicos lá ficaram, parados, como abutres ao sol, acocorados no passadiço, no alto dos prédios e no telhado das torres. Vestiam-se como os anjos bíblicos, tantas vezes descritos nas escrituras, com placas douradas reves­tindo o arcabouço e braçadeiras reluzentes presas ao punho. As asas branquís­simas, quando abertas, inspiravam respeito, ainda mais se combinadas com o empunhar dos sabres — flagelos místicos de inigualável valor.

         No topo do campanário aterrissou o líder: Euzin. Carregava na cintura a pesada Raio de Aço, uma espada famosa por ser o terror das entidades etéreas. Encarando-o com olhos de águia, Ablon reparou que parte da cabeça dela esta­va marcada por uma grave queimadura, um dano recente, ainda não inteiramen­te cicatrizado. Ao captar-lhe o odor característico, o general lembrou-se dos mio­los espalhados pelo chão de seu apartamento, no Rio de Janeiro.

         — Ablon! — gritou Euzin, e sua voz ecoou pelo vale. — Será que se recorda de mim?

         O Primeiro General sorriu e replicou com desdém:

         — Como poderia esquecê-lo, ainda mais depois de saber que foi vítima dos projéteis mágicos da Feiticeira de En-Dor.

         A expressão de Euzin engrossou-se em uma máscara de ódio. Tal notícia, posta às claras, o desonrava profundamente.

         — Estamos aqui para defender o portal! Entregue-se agora, ou provará a ira da Legião Formidável. Este é apenas um pequeno esquadrão. Outros estão che­gando, e você não resistirá às nossas espadas.

         Certa vez Euzin fora reconhecido como herói de guerra, e de fato era um bom lutador. Mas o prestígio afetou-lhe a razão. Inseguro, temia perder sua gló­ria. Estava sempre querendo demonstrar força e exibir-se perante os arcanjos.

         — Pois diga ao seu príncipe — replicou o renegado — que não trato com fa­cínoras! Que venha ele mesmo me confrontar, se tiver coragem para isso.

         As asas dos querubins se agitaram — os soldados queriam peleja. Nas mãos de Ablon, a Vingadora brilhava, como se tivesse vontade própria e clamasse por sangue.

         — Ora, proscrito, então ainda resiste? Todos os seus companheiros estão mor­tos, e os rebeldes são fracos. Vou arrebentar seu orgulho e acabar com sua es­perança de vencer esta guerra.

         — Ameaças! E tudo o que sabem fazer. Balberith também me ameaçou e agora está morto. Se acha que pode me derrotar, então traga sua Raio de Aço ao duelo, e veremos se ela é páreo para a Vingadora Sagrada.

         Cansado da petulância do adversário, Euzin ordenou:

         — Peguem-no e tragam-me sua cabeça!

         Estático, o perverso comandante observou seus guerreiros decolarem em caçada. Deixaria que muitos morressem, e, quando o Anjo Renegado não pu­desse mais lutar, ele avançaria e lhe deceparia o pescoço.

         Como falcões famintos, os anjos se aproximaram voando, e Ablon deu um passo à frente, pronto para enfrentá-los, mas sentiu que Aziel apertava seu braço.

         — Ainda não, general — disse e, sem mais explicações, o renegado entendeu sua intenção. Percebeu, pela visão e pelo olfato, que o ishim tinha o punho es­querdo fechado, suprimindo a deflagração de um poder colossal.

         Os atacantes não notaram a suprema concentração daquele pequeno celeste, que se escondia atrás do musculoso anjo guerreiro. Em um primeiro momento, nem pensavam em agredi-lo, deixando que algum alado de compleição inferior o derrubasse depois. O que poderia um ishim fazer a um querubim? Os que­rubins eram guerreiros, soldados, instrumentos de matança. Nenhuma casta se comparava à sua habilidade em batalha.

         Quando o esquadrão venceu os cem metros e se afastou dos jardins, uma força divina paralisou o deserto. De repente, no céu, formou-se uma assustadora coluna de fogo, uma pilastra de chamas, que desceu ao solo como um trovão, imitando o brilho e a ardência do sol. Em um passe instantâneo, formou-se en­tre os dois anjos e a legião uma monstruosa parede de flamas, cuja largura to­cava as montanhas e cuja altura atingia o firmamento.

         O susto provocado pela aparição foi tamanho que, estarrecidos, os celestiais não conseguiram parar. Juntos, penetraram com ímpeto pelo muro de fogo.

         Terríveis gritos de dor ressoaram por todos os cantos do vale, elevaram-se aos céus e tremeram a crosta da terra quando o batalhão penetrou no calor das labaredas mortais.

         Igualmente impressionado, Ablon viu os alados cruzarem a flamejante pi­lastra e surgirem do outro lado com a pele queimada e as armaduras escureci­das pelo fulgor assassino. As armas místicas, tão rígidas e fortes, entortaram-se em varas quebradiças, fracas como carvão.

         Este é o verdadeiro poder dos ishins do fogo, quando usado na potência máxima.

         — Vá, Ablon — disse Aziel. — Minhas flamas não vão machucá-lo.

         E, convicto da palavra do amigo, o Anjo Renegado atravessou a coluna in­candescente e surgiu do fogo como um pesadelo à mirada de Euzin, que, tre­pidante, observava a espetacular ação dos inimigos.

         O Primeiro General correu como um furacão pelos jardins, pulou sobre as muralhas e de lá saltou para o campanário, de lâmina em riste. Chocado, o te­meroso lacaio de Miguel só teve tempo para levantar a guarda e defender o po­deroso golpe da Vingadora Sagrada. Quando as duas armas enfim se chocaram, um clarão acendeu e brilhou com um milhar de faíscas.

         Tão forte foi a pancada que Euzin não susteve o impulso. Atrapalhado, despencou do pináculo da torre, e teria se estatelado contra o solo se no último momento não tivesse conseguido minimizar o impacto com uma batida de asas. Sobre ele, veloz e insaciável, o general golpeava sem parar, mesmo durante os mínimos segundos de queda, e não dava descanso ao adversário.

         Sem dificuldade aparente, Ablon atacou uma, duas, três vezes, e na quarta girada o metal enfim acertou o ombro do oponente, abrindo-lhe um corte fun­do acima do braço. Desnorteado, Euzin não tinha mais chance, e o renegado preparou a investida final, mas o assalto foi aparado por outro celeste, e de re­pente o general viu-se cercado por mais anjos, que protegiam seu chefe. Euzin não era de todo ignorante e reservara um grupo de pelo menos cem indivíduos para protegê-lo no interior da cidadela.

         Acometido por todos os lados, o renegado batalhava contra oito, dez, doze querubins que mergulhavam em conjunto. Esquivou-se, bloqueou, rasgou o ar, e em cada contra-ataque derrubava ao menos quatro de uma só vez. Mas eles eram muitos, e para cada um que caía, dois o substituíam. Então, Ablon viu-se encurralado contra o muro e pensou como escaparia dali. O mosteiro era com­pacto, cheio de prédios e becos, e não dispunha de uma via larga ou de grandes espaços para combate.

         Com uma manobra perfeita, agrediu dois celestes, dividindo seus corpos como faca em manteiga. Abriu uma passagem por entre eles e disparou, circu­lando ao redor das muralhas. Sua celeridade, combinada aos poderes angélicos, permitiu que corresse com os pés na parede, transformando os muros em um percurso de morte. Os inimigos que se interpunham eram derrubados às dezenas, aniquilados antes que pudessem descer suas espadas.

         Quando só restavam alguns, o bando recuou, mas o renegado não os dei­xava fugir.

         — Ele é muito rápido — gritava um, que supostamente era o capitão de ba­talha. — Debandar! Vamos fugir daqui!

         Ao ouvir a ordem de evasão, Euzin, que voltara ao campanário, esbravejou do alto da torre:

         — Não retrocedam! Continuem lutando, seus inúteis! O reforço já está a ca­minho — estimulou, com um rio de sangue a escorrer pelo ombro.

         Mas nem o clamor foi capaz de impedir a escapada. Os querubins, desaten­tos à ordem do chefe, voejaram para longe, galgando as alturas, onde o renega­do, sem asas, não poderia alcançá-los.

         Vitorioso, Ablon pisou contra o firme chão do monastério e parou sozinho em uma praça central. Dali, divisou o cruel comandante, que continuava está­tico no topo do prédio.

         Fulminado pelo olhar, Euzin engoliu em seco, tremeu e quase fugiu, mas um fenômeno previsto o fez ficar para uma nova rodada.

         O Anjo Renegado sentiu, seguidamente, a expansão do tecido, o que anun­ciava a materialização de um novo esquadrão. Imediatamente, ao ver o enxame de anjos em formação no astral, prontos a cruzar a membrana, Ablon preocu­pou-se com Aziel. Mesmo dotado de poderes admiráveis, o ishim não resistiria a mais um assalto. A elevação da coluna de fogo o deixara arrasado, porque essas demonstrações de poder eram por demais cansativas. Ademais, já tinha usado essência para dissipar e recompor seu avatar, ao se livrar dos tiros na noite pas­sada. Por isso, em vez de partir ao confronto com Euzin, o general preferiu re­tornar ao vale, onde poderia lutar mais livremente, e ainda defender o amigo.

         Escalou habilmente as muralhas, saltou para o jardim e volveu ao sítio onde estacionara o jipe de guerra. Aziel alegrou-se ao vê-lo inteiro e saudável.

         — O que fazemos agora? — indagou o ishim. — Fugimos?

         — Ainda não — retrucou o guerreiro, contemplando a numerosa legião que se materializava nos céus.

 

         Euzin decolou como um foguete para encontrar o reforço que chegava. Mais de quinhentos celestiais, armados e trajados para o combate, tomaram forma, copiando na terra seus corpos astrais.

         — Vamos ser trucidados! — protestou Aziel, ao ver o esquadrão que sobrevoava o vale. Unido-se em um grupo coeso, os soldados desenharam a formação de um V, imitando uma ponta de flecha. — Temos que alcançar a trilha que nos le­vará à caverna. Se corrermos, ainda poderemos chegar à passagem antes que nos peguem — sugeriu, apontando para a fissura na rocha, que subia, estreita, e atin­gia o topo do monte Horeb.

         — É justamente isso o que eles querem: nos encurralar nas montanhas — ex­plicou o Anjo Renegado, experto nas táticas angélicas. —Antes de avançarmos, temos que desfazer a formação. Se não tivermos espaço para agir, eles atacarão só pela frente, e a força do assalto será multiplicada mil vezes. Esse é o objetivo de se posicionarem como um bico de seta.

         Ao ouvir a explanação, o ishim aceitou o comando, entendendo o estrata­gema inimigo. Enquanto as mãos de Aziel irrompiam em chamas, Ablon levan­tou a espada, e os dois esperaram de costas coladas. Entrementes, no céu, o con­fuso comandante Euzin viu sua estratégia ser abalada. Nunca esperaria que dois anjos, por mais poderosos que fossem, permanecessem ali, no centro do vale, para enfrentar meio milhar de combatentes. Imaginou que correriam e se me­teriam pela garganta rochosa, onde poderiam ser rapidamente aniquilados.

         Desprovido de alternativa melhor, o arrogante celeste gritou:

         — Preparem o assalto em estrela! Concentrem todos os golpes no renegado, pelos quatro lados e por cima.

         O ataque em estrela consistia em um embate quíntuplo. De cima, cinco co­lunas de querubins mergulhavam. Ao chegarem próximas ao solo, quatro delas davam rasante e se lançavam contra o oponente pelos quatro lados. A quin­ta coluna vinha reta, em queda sobre a cabeça do inimigo, impedindo que ele saltasse para o céu.

         Entendendo a mudança nos planos, Ablon falou:

         — Afaste-se, Aziel.

         — Vai ficar sozinho no núcleo da estrela?

         — Não sei se serei rápido o bastante para acertá-los, mas posso bloquear os golpes. A cada investida frustrada, eles ficarão atordoados e serão jogados para o lado, e aí talvez você possa incendiá-los com suas flamas divinas.

         Sem intervalo para discussão, a Chama Sagrada acatou a idéia e recuou pa­ra perto do morro, buscando refúgio no sopé da montanha. Acima, Euzin ber­rava:

         — Pelo arcanjo Miguel, vamos matar esses malditos rebeldes!

         E os soldados responderam com um único urro exaltado:

         — Pelo arcanjo Miguel!

         Desceram rodopiando, com as espadas afiadas, para perfurar o renegado co­mo projéteis de arma de fogo. Determinado a matar o general a qualquer custo, o comandante não se preocupou em acertar Aziel.

         Quando a multidão bem alinhada de anjos, vinda do céu, se chocou con­tra o alvo no centro da estrela, uma miríade de fagulhas ascendeu do coração da batalha. Com velocidade e perícia admiráveis mesmo para os maiores celes­tiais, o Anjo Renegado defendia cada acometida e contra-atacava pelos cinco cantos, despedaçando o metal das armaduras e a carne dos avatares. Os olhos de Aziel eram incapazes de acompanhar a ligeireza das manobras, e daquele ni­cho afastado a Chama Sagrada só distinguia as múltiplas centelhas do aço em choque. Em poucos segundos, acumulava-se aos pés do general uma montanha de corpos mutilados, destroçados, cobertos de sangue e penas rasgadas.

         A formação em estrela tinha fracassado, mas a legião não estava derrotada. Pelo menos metade dela continuava intacta, e Euzin mais uma vez mudou a es­tratégia.

         — Cerquem-nos em abóbada! — estourou, fremindo de ódio. — E tragam o ishim para dentro do círculo.

         Cercar em abóbada significava cingir normalmente o inimigo, aprisionan­do-o no interior de uma roda de soldados, mas também posicionando comba­tentes sobre sua cabeça, fechando uma abóbada vivente. Provavelmente, o objetivo do comandante era criar um ambiente de opressão, dando a falsa sensação de que o inimigo estava completamente subjugado.

         A estrela desfez-se, e os anjos declinaram ao solo em espiral, prontos para rodear os rebeldes. Na base da montanha, um querubim muito destro agarrou Aziel pelos braços, alçou voo e o largou ao lado do renegado.

         Os dois celestes viram-se juntos, no meio de uma sufocante redoma de guer­reiros alados, que lhes apontavam lâminas terríveis.

         Uma fileira abriu-se pelo meio dos lutadores, e dela surgiu o petulante Euzin, ferido criticamente no ombro, mas ainda pretensioso e audaz. Ablon tomou fô­lego e aguardou, porque agora Aziel estava na linha de confronto.

         — Não pode vencer a todos nós, renegado — afirmou o inimigo, desfraldando as asas como fazem as aves para impressionar suas presas. — Recebi permissão para deslocar quantos soldados quisesse. Mais querubins chegarão, e você será torturado — e empunhou sua Raio de Aço. — Em honra de seu passado heróico, ofereço-lhe uma morte digna. Largue a espada e ajoelhe-se. Prometo que nem sentirá o fio do metal dividindo-lhe a testa.

         Ablon olhou ao redor e compreendeu que estava absolutamente cercado. Aziel tocou-lhe o braço, incitando-o a não se entregar.

         — Não há saída — reforçou o desagradável Euzin, vendo a sombra da dúvida no semblante do anjo guerreiro. — Se for capturado, nossos serafins arrancarão informações preciosas de sua mente. O que estou lhe propondo é uma execu­ção gloriosa e indolor, que lhe devolverá o renome dos tempos antigos.

         O Anjo Renegado desceu a guarda, pensativo, e tirou o sobretudo, imundo de sangue. Olhou para as próprias mãos, observou o cabo da espada e encarou Aziel, que tanto o ajudara naquela tortuosa viagem. Trocou com o amigo um último olhar de agradecimento e depois jogou ao chão a Vingadora Sagrada.

         — Não! — sussurrou Aziel. A face de Euzin desenhou um sorriso malicioso. Sempre, desde os dias no Castelo da Luz, Euzin almejara vencer o Primeiro Ge­neral, mas nunca tivera habilidade para chamá-lo ao duelo. Agora, de uma ma­neira ou de outra, cumpriria sua demanda vital e com isso se firmaria como o grande oficial de Miguel.

         O Anjo Renegado ajoelhou-se perante Euzin. Uma quietude abissal encheu a paisagem.

         Agachado, Ablon fechou os olhos em meditação, e o comandante ergueu a espada, que já desceria para rasgar o crânio do irredutível rebelde.

         Mas, no momento em que a lâmina desceu, o punho energizado de Ablon subiu para defrontar-se com o fio da Raio de Aço. E tão incrível era a potência da Ira de Deus que um estrondo sacudiu o deserto, partindo em dois a arma mística. Como se não bastasse, o soco continuou seu trajeto, atingindo em cheio o rosto de Euzin, que foi arremessado para além das fileiras.

         Ninguém — nem Aziel, nem os anjos no céu, nem os celestes na terra — con­seguiu se mover ante o espetáculo de inigualável grandeza. O que não sabiam os espectadores era que, por milhares de anos, o renegado combatera sozinho na terra, desprovido de espada. Nessas condições, desenvolvera ao máximo a habilidade de lutar desarmado e aprimorara a Ira de Deus ao mais alto grau. Em luta, suas mãos eram tão letais quanto o metal afiado.

         Em um movimento esperto, Aziel agiu, fulminando os desprevenidos sol­dados na retaguarda com uma rajada de fogo. Em atitude concatenada, Ablon saltou para frente, golpeando os alados com chutes e socos.

         Mesmo numerosos e armados, os soldados do grupamento sucumbiram ao caos. Alguns celestiais recuaram, amedrontados, e outros atacaram, irados, sem nenhuma disciplina ou planejamento marcial. Experiente e ligeiro, o Primeiro General se desviava dos sabres dos agressores e respondia com golpes que os pu­nham em nocaute. Em certas ocasiões se esquivava, e em outras bloqueava as espadas com a dureza das mãos. Depois de muitos assaltos, Ablon gritou a Aziel, que se protegia no meio de um círculo de fogo:

         — Agora, Aziel! Abra caminho! — ordenou, e o ishim fez queimar o ar com uma torrente de lava, liberando espaço para a evasão. —Vamos para a trilha, enquanto a legião está consternada — avisou, recuperando do solo a Vingadora Sagrada.

         Dispararam os dois pelo vale e correram como nunca até uma fissura no so­pé da montanha, que subia em uma trilha estreita para o topo do monte. An­tes de entrar pela vereda, Aziel olhou para trás e divisou centenas de anjos mor­tos, estirados na terra.

         A subida, extenuante e lenta para pessoas comuns, não fadigou os heróis, que a galgavam com vontade e ardor sobre-humanos.

         Progrediram pelo caminho, e perto do fim a garganta se abriu.

         Adiante, avistaram a caverna.

 

Assim Morrem os Injustos

         A montanha de Horeb, um dos pontos extremos do Egito, fica ao sul do monte Sinai, e talvez por isso os dois picos tenham sido relacionados nas lendas como um mesmo lugar, e tomados como unos pelos estudiosos hebreus. O ter­reno, nessa parte do deserto, é árido, pedregoso e irregular, com incríveis morros de granito, completando assim uma longa cordilheira de rocha vermelha, cujo cume mais elevado é o monte Katharina, com 2.637 metros de altura.

         Aproximadamente ao meio-dia, Ablon e Aziel deixaram a vereda, à medi­da que o caminho se abria em um extenso platô, de onde facilmente se enxerga­va a entrada para uma pequena caverna, uma gruta comum e pouco atraente.

         A passagem que conduzia à caverna era baixa e escura. Mas, antes de atraves­sarem o umbral, Ablon escutou batidas regulares de asas ao vento e imediata­mente olhou para trás. Descia do céu o insistente Euzin, ferido no ombro e no rosto. Segurava um sabre qualquer, provavelmente pego de um soldado caído.

         O comandante aterrissou no platô, mas Ablon não tinha mais tempo para confrontá-lo. Perdera minutos preciosos lutando contra a Legião Formidável e agora precisava correr e chegar ao plano etéreo antes que a Batalha do Armage-don começasse.

         — Alto lá, fugitivo! — chamou o indesejado inimigo. — Não pense que esca­pará de mim tão facilmente. Ainda não nos batemos em apropriado confronto.

         — Não tenho mais tempo a perder com você, Euzin. Conforme-se com sua meia derrota e felicite-se por não estar entre a montanha de mortos.

         — Uma vez, proscrito, você foi o maior de todos os generais — admitiu. — Sempre quis superá-lo, mas nunca tive oportunidade. E então, quando eu plane­java desafiá-lo, você e sua irmandade foram expulsos do céu. Mas sempre soube que chegaria o dia em que nos veríamos de novo e eu cumpriria minha missão. Agora, este dia chegou! — exclamou, em épica eloquência. — Foi pensando nisso que ascendi e me tornei um general. Este é o momento de lutarmos até a mor­te, enquanto o mundo se acaba.

         — Sua atitude em nada me surpreende, Euzin. Todos que dizem me odiar apresentam a mesma impulsividade hipócrita. Muitos de vocês me proferiram injúrias, mas por que não vieram em meu encalço quando eu estava sozinho na terra? Em vez disso, tenta me surpreender numa emboscada, escoltado por uma legião de centenas de anjos.

         Em curiosa resposta, o perverso Euzin relaxou a defesa e imergiu em pen­samentos profundos. Maneou a cabeça, reflexivo, e olhou para o chão. No final, reconheceu, era só um herói fracassado, frustrado por nunca mais ter recupe­rado a glória das batalhas antigas.

         — Seu maior inimigo não sou eu, Euzin — concluiu o general. — Seu grande inimigo é o medo.

         Indefeso contra a verdade que lhe carcomia o espírito, Euzin decidiu final­mente que, diante do drama, preferia morrer. Via-se como o grande oficial do paraíso, o forte, o primeiro! Agora, era matar ou morrer. Com um brado colé­rico, disparou ao combate, e o renegado analisou o impasse. O que faria? Não podia perder nem um minuto que fosse, mas também não podia ignorar o de­safio.

         — Entre na caverna, general — sugeriu Aziel. — Ele é um forte oponente, e levará tempo até você derrubá-lo. Gabriel e os rebeldes o esperam. Dessa vez, eu serei o adversário de Euzin.

         Ablon sentiu um aperto sensível no peito, o mesmo que sentira ao se sepa­rar de Sieme. Aziel era um ishim influente, sábio e poderoso, mas grande par­te de sua energia havia sido consumida na batalha campal e no confronto da noite passada. Por outro lado, Euzin, embora não fosse o melhor, era um exí­mio combatente, e os querubins são mestres na ação corpo a corpo. O Anjo Renegado concluiu, desolado, que dificilmente a Chama Sagrada dominaria o duelo.

         — Depressa — reforçou Aziel, com labaredas dançando nos braços. — Mui­tos dependem de você.

         Os dois celestes eram amigos havia séculos, e o general relutou em deixá-lo. Mas, como lutador acostumado à guerra, estava sujeito a esse tipo de coi­sa. Às vezes achava-se por demais impassível nos assuntos do coração, mas não poderia ser diferente. Era um predador, habituado à matança, e também um soldado. Por criação, era um agente da morte.

         Mas, então, antes que se enfiasse na lapa, ouviu o som agudo de uma seta em trajetória certeira. Uma flecha dourada rasgou o ar como uma cusparada di­vina e trespassou a couraça de Euzin, perfurando-lhe o peito. Paralisado, o vil comandante sibilou um insulto e depois tombou para sempre, desmoronando sobre as pedras rubras do monte Horeb.

         No limiar da caverna, os celestiais enxergaram, aliviados, a autora do disparo, que tão afortunadamente pusera fim ao impasse. Uma arqueira alada, de rosto sério e grande beleza, fitava os celestes. Portava um arco de ouro e carregava uma aljava de setas místicas no espaço entre as asas. Os longos cabelos castanhos des­ciam soltos até os quadris e brilhavam ao reflexo da cota de malha. Aquela era Varna, lugar-tenente de Gabriel e líder suprema do regimento das arqueiras.

         — General, o Mestre do Fogo o aguarda — convocou a mulher-anjo, sempre austera.

Aliviado, Aziel permitiu-se um sorriso, enquanto Ablon recolhia a Vinga­dora Sagrada. Lembrava-se muito bem de Varna e de sua frieza no olhar. Esta­va feliz em tê-la como aliada.

         Guiados por Varna, o Anjo Renegado e a Chama Sagrada caminharam pa­ra o interior da caverna. O ishim ainda encontrou um instante para olhar, num último segundo, o corpo de Euzin prostrado nas rochas.

         — Tudo o que ele queria era confrontar o Primeiro General. E nem isso con­seguiu. Euzin falhou em sua demanda vital.

         Ablon encarou o avatar derrubado e replicou, sem muita lamúria:

         — É assim que morrem os injustos.

 

         A caverna ampliou-se em uma galeria comum, não muito grande, com um salão rochoso que terminava em uma passagem no lado posterior à entrada. Era quente e escura, e Ablon se deslumbrou ao ver que, em suas paredes, continua­vam marcadas inscrições ancestrais, mundanas, gravadas pelos profetas de ou-trora.

         Varna cruzou o umbral, e os dois anjos acompanharam seus passos. Pela pri­meira vez em séculos, desde seu expurgo do céu, o Primeiro General sentiu-se atravessando a membrana e entendeu que aquele limiar era o famoso portal, atra­vés do qual o Mestre do Fogo falara a Moisés.

         Dentro em pouco, dois antigos inimigos, Ablon e Gabriel, se encontrariam novamente.

         E disso dependeria o destino do mundo.

 

"lutaremos até o último soldado"

         Uma emanação mística de indescritível potência surgiu adiante, ao centro da caverna que se alargava com o fim da passagem. Do lado de lá, através do portal, a gruta se expandiu em um amplo salão natural, tão escuro que seus ni­chos mais negros escapavam à percepção aguçada do general. Um ponto de luz, ao norte, indicava a saída. Os três anjos já não estavam mais na Haled. Acabavam de ingressar no etéreo, a camada espiritual mais profunda além do tecido.

         Os celestiais se voltaram ao foco da vibração, a mesma energia suprema que dominava toda a galeria. Sentada, uma figura de impenetrável tranquilidade me­ditava, e no peito residia o núcleo de sua força. Trajava uma armadura completa, de um dourado brilhoso, e carregava uma espada embainhada no colo. Os olhos fechados eram a imagem da perfeita harmonia, reunindo em si o cheio e o va­zio, a lei e o caos, a luz e as trevas eternas. O Anjo Renegado reconheceu a aus­teridade daquele magnífico semblante e logo identificou sua essência.

         Ali, à distância de um toque, descansava aquele que fora, antigamente, um de seus mais célebres adversários: Gabriel, o Mestre do Fogo. Teria transmutado sua índole e passado de frio assassino a fiel defensor das causas humanas? O que estimulara tão repentina transformação? O nascimento da Criança Sagrada ilu­minara-o de fato, ou o arcanjo, a exemplo de Lúcifer, usava o ideal da liberda­de para incitar uma rebelião egoísta?

         Um fragor mudo no espaço, que ecoava e sacudia o espírito, imitou a explo­são de um milhar de vulcões — Gabriel abria os olhos. De repente, o universo pareceu ter ficado menor, tamanhas eram a presença e a sabedoria daquele gi­gante e a majestade que transmitia.

         Varna ergueu a mão em aceno. Ela e Aziel deixaram a caverna.

         — Sieme não regressou — reparou o Mestre do Fogo. — Há um desequilíbrio na fluência do cosmo.

         — Sieme está morta — anunciou Ablon. — Decidiu ficar em Jerusalém e de­fender sua causa.

         — É a mesma causa que nos une, general, que nos completa e nos fortalece — aproveitou, enxergando o relâmpago das eras. — Eis que agora um ciclo se cum­pre. Encontro-me de novo contigo, antes do fim e na véspera do crepúsculo dos tempos.

         — O crepúsculo dos tempos... — refletiu o querubim, recordando as palavras de Korrigan. — Foi esse o motivo de ter me poupado? Tinha previsto meu re­torno às legiões que viria a treinar?

         O Mensageiro descruzou as pernas e levantou-se do chão. Sua bela arma­dura era uma relíquia incrível, e também sua arma, a perigosa Flagelo de Fogo.

         — Ao longo da história, previ muitas coisas — explicou. — Sou o Anjo da Re­velação e ganhei de meu Pai o dom da visão. No início, achei que minha onis-ciência estivesse à altura de Deus, mas o livre-arbítrio dos homens me surpreen­deu e ludibriou meus instintos. Certo dia, enfiado na depressão do infinito, percebi meu engano. Ninguém, nem mesmo o Altíssimo, pode prever o futu­ro. Tudo o que vislumbramos são caminhos, trajetórias abertas. Cabe a cada um, homem ou anjo, deus ou demônio, escolher seu destino — ele discursava como o maior sábio da terra. — De minha parte, sempre guardei a esperança e cultuei seu regresso. A certeza não existe, nem a perfeita verdade. Mas sempre nos res­ta a fé, que nos faz confiar no impossível. E o impossível, com frequência, se torna concreto.

         Absorto pela impressionante oração, Ablon queria, realmente, acreditar no arcanjo, mas ainda era forte o ressentimento. Se Gabriel queria tanto tê-lo con­sigo, por que não o aceitara anteriormente? Milênios antes os dois haviam duelado, e durante o confronto o Mestre do Fogo nada falara sobre seu exército ou sobre sua intenção pura. Preferira, em vez disso, manter segredo, expulsá-lo de Jerusalém e tirá-lo do rumo de sua missão.

         — E por que não me incorporou às suas legiões quando me viu na Cidade Sagrada? Como único sobrevivente da conjuração, eu represento os renegados. Por que não me permitiu integrar suas tropas, se afirma que seu propósito é honrar os ideais da irmandade?

         O Mensageiro sorriu e o encarou como a uma criança. Em ocasiões muito raras sorria, porque as emoções, boas ou ruins, abalam a harmonia do mundo. Não há bem sem mal, amor sem ódio ou alegria sem tristeza.

         — Desde o dia em que foi expurgado, vi a vontade pulsante em seu coração. Sua missão derradeira e seu maior desejo são despojar o arcanjo Miguel. Mas o Príncipe dos Anjos nunca foi derrotado, nem pelos deuses das trevas que habi­tavam a sombra do espaço. Nenhum anjo está apto a derrubá-lo, talvez nem eu conseguisse vencê-lo. Aquele que me enfrentou na colina não era o Ablon de hoje. Era um general hábil, valoroso e justo, mas incapaz de derrotar um arcan­jo. Agora escute-me, celeste. Só o maior dos alados vencerá o tirano. Seus fra­cassos de outrora o transformaram em objeto de lendas. Suas batalhas comigo e com a Estrela da Manhã lhe deram a esperteza para desbancar o monarca. Se o tivesse aceitado em momento passado, sua força seria desperdiçada. E então não passaria de um ícone largado, desmistificado e inerte.

         — Inerte?

         — Por sua maldição, não poderia voltar ao paraíso e liderar a guerra civil. As portas do céu lhe foram fechadas, e nenhum portal o levaria à morada de Deus. Assumiria o posto de comandante no exílio, visitado por anjos, e por isso mui­to mais susceptível a ser encontrado por seus caçadores. Como tal, poderia ser achado, perseguido e morto. Mas, em vez disso, o que se sucedeu? Continuou renegado, excluso, caminhando pela escuridão do planeta. Combateu contra os melhores e desenvolveu uma técnica única, quase secreta. E, agora, chega a mim em ocasião oportuna, quando os esquadrões o esperam para a maior das em­preitadas.

         — A Batalha do Armagedon.

         — Nosso efetivo é três vezes menor que o do inimigo. Nossos soldados são destros, mas a simples destreza não é suficiente para vencer esta guerra.

         — E do que mais precisam, se já têm a coragem?

         O Mestre do Fogo caminhou à volta da gruta. Afagou o cabo da espada, com a lâmina oculta por uma bainha de ouro.

         — A coragem deles converte em você, como o último dos renegados. A ir­mandade é uma idéia, um conceito, um símbolo, e você carrega a marca des­ses heróis, a bravura perdida de uma era remota.

         Ablon encravou a Vingadora Sagrada no chão e sentou-se sobre uma pedra.

         — Quase posso ler seus pensamentos — continuou o Anjo da Revelação. — No fundo, ainda odeia os arcanjos, todos eles, e compreendo sua cólera. Sofreu deveras com a perversidade de Miguel e com o cinismo de Lúcifer. E o que os motiva? Ciúme, luxúria, ira e ganância. Não foram essas as razões que me in­citaram à revolta.

         — O Salvador! — exclamou o renegado. — Miguel estava determinado a matar a Criança Sagrada, e você não aprovou o assassinato. Mas por quê, Gabriel? De­pois de todo o sangue que derramou, depois de tantos massacres que promo­veu. Como um menino mortal pôde convertê-lo ao ideal de justiça?

         O arcanjo caminhou para um canto escuro e esquivou o olhar do ponto de luz, mas Ablon reparou em sua tristeza. Entendeu, finalmente, que alguma dor perpétua o feria, uma cicatriz que não se fecharia jamais.

         — Por que você veio à batalha? — Gabriel desafiou. — Há uma semana, repudia­ria qualquer ação de campanha. Estava resolvido a ficar fora do teatro da guerra, até a Feiticeira de En-Dor ser raptada — a expressão do Primeiro General endu­receu ao se lembrar do sofrimento da amiga. — Seu coração é sincero, mas não estaria aqui não fosse a captura da necromante. Na profundeza de seu espírito, é por ela que luta. É o seu amor que o impulsiona ao combate. Nesse ponto, nós dois somos iguais.

         — Nunca pensei que estivesse atrelado a tal sentimento.

         — Igualmente surpreso, descobri que não era imune ao ardor da matéria. Miguel sempre teve aversão à raça mortal, e, como mensageiro, era minha função executar, na Haled, suas tarefas macabras. Mas, ao formar um avatar, estava su­jeito aos atributos da carne.

         — A paixão. Também foi tocado por ela?

         — Assim como você, certa vez conheci uma mulher, uma moça comum, hu­mana, simples e pura como as gotas de orvalho. Até então, pensava ter visto de tudo e experimentado o êxtase que deriva da grandeza do cosmo. Vi a criação do universo, o princípio da luz e a feitura do mundo. Lancei poeira estelar à negritude do abismo e presenciei a confecção do tecido. Antes do primevo ful­gor, lutei contra os deuses das trevas e derrotei divindades tão antigas quanto meu Pai Reluzente. Mas, em sua sinceridade humana, a mulher me mostrou o significado das coisas pequenas, que eu não enxergava lá do alto do céu. Pôs-me em contato com a terra, levou-me paia tomar banho de rio, mostrou-me o prazer de deitar sob as estrelas e de procurar o nascimento de vésper no leste. Em sua singela percepção, ela me aclarou a felicidade da vida.

         Digerindo lentamente o longo discurso, o general foi assaltado por uma an­tiga lembrança. Recordou-se de uma frase proferida por Gabriel, quando se en­contraram no monte das Oliveiras: "Estamos resolvendo um problema de fa­mília aqui".

         — Você concebeu o Iluminado! — desvendou o querubim. — É o verdadeiro pai da Criança Sagrada.

         — Imagine a distinção desse ser — o arcanjo prosseguiu, e a emoção consu­miu sua aura. — Agraciado com o brio celestial e dotado do arbítrio dos homens.

         — Não podia deixar que Miguel o matasse.

         — Por meio da mulher e do Menino, conheci o amor. Compreendi, final­mente, o que meu Pai sentia por mim, e toda a obscuridade se dissipou. Foi es­se amor que me afastou da maldade e me fez reconhecer a humanidade como legado do Criador.

         E então, sentado na rocha, o general encontrou, na euforia de imemoriais revelações, um autêntico sentido para todas as coisas. Se o Salvador era um le­gítimo descendente celeste, estavam certas as escrituras, que ilustram suas proezas divinas. Da mãe, herdara a doçura da alma, a humildade e a bondade que não demarcava fronteiras.

         Mas, a despeito de toda lisura, Ablon ainda não se entregara à candura do Mestre do Fogo, e não se entregaria rapidamente.

         — A dúvida coroa seu rosto — constatou Gabriel. — E natural a confusão. Co­mo poderia me creditar, se nunca lhe dei provas de minha boa vontade? Nun­ca fui seu amigo. Nunca lhe estendi a mão nos períodos de crise. Nunca o re­cebi em um abraço aprazível. Mas entre os que o aguardam há velhos parceiros, companheiros de eras, que não esquecem sua energia. E neles que deve confiar, porque a amizade é o suporte do mundo.

         Nesse momento, uma luz maravilhosa quebrou o breu da caverna. Mais pa­recia um astro dourado caído na terra, e seu clarão era intenso e delirante. Uma aura de sublime beleza o rodeava, como uma explosão cósmica de extraordiná­rio fulgor. Quando avançou, suas feições se fizeram aparentes.

         Era Nathanael, o Mais Puro, desde milênios sumido.

 

         O anjo de cabelos de ouro e olhos de bronze trazia a esperança com seu bri­lho eviterno. Nathanael era um ofanim, um anjo da guarda, leal e caridoso, agradável e belo, forte de espírito. Era também firme de caráter e determinado na defesa dos homens. Na época do dilúvio, seus preciosos esforços salvaram Noé e ajudaram na preservação da espécie humana. Depois, o Mais Puro visitara o renegado nas montanhas da China e o convocara à proteçáo da Criança Sagra­da. Mas, desde que Ablon perdera seu rastro, ao desfalecer no bosque Tin-Sen, o ofanim desaparecera.

         — Paz, meu amigo adorado! — tranquilizou o luminoso celeste. — Suplico-lhe perdão, pela desilusão que causei. Sei que fui gélido e insensato, mas mi­nha demanda acabou por tornar-se o ministério do mundo.

         Ablon ainda se sentia triste pelo abandono do amigo; custava a acreditar em traição ou descaso, mas a prudência era sua marca, e não se contentou com a rogativa. Seria aquele o verdadeiro Nathanael, emergindo da negritude, ou tudo não passava de um ardil do arcanjo para confundir-lhe os sentidos?

         — É você mesmo, ofanim, que se esconde por trás dessa máscara brilhosa? — perguntou, desconfiado. — Percorri meio mundo para honrar nosso acordo. Cruzei desertos e mares, venci bosques e rios, caminhei por planícies e escalei montanhas. E onde você estava, quando finalmente alcancei a Judeia?

         O Mais Puro inclinou a cabeça, em um lamento sincero. Em eras passadas, Nathanael fora um amigo leal, tão próximo do Primeiro General quanto Orion, Aziel e Ishtar.

         — Eu estava ali mesmo, na Cidade Sagrada.

         — E por que não veio à minha presença?

         — Eu continuava em missão — insistiu. — Por tudo o que já havia feito pela raça mortal, fui designado pelo Mestre do Fogo para, do astral, acompanhar cada passo do Salvador e salvaguardar sua vida. Antes de o Menino nascer, voei ao seu encontro no leste, para avisá-lo. Mas, na euforia de tê-lo conosco, fui to­lo e imprudente e não consultei o Mensageiro.

         — E eu — interpelou Gabriel, com sua voz sempre melódica — não permiti que você viesse a nós, pelos mesmos motivos pelos quais agora o trouxemos aqui. Nathanael foi imprudente ao procurá-lo sem me avisar, mas sua intenção era boa. Certamente ele confia em você, mas tomou uma atitude emocional, típi­ca dos ofanins. Se deseja julgar alguém, julgue a mim, general, que um dia o expulsei da Terra Santa e o lancei aos perigos terrenos.

         O Anjo Renegado encarou Gabriel com seus inesquecíveis olhos cinzentos, e neles não havia mais ira, dor ou desgosto. Conhecia os próprios limites e im­perfeições. Não se considerava realmente um herói nem um comandante épi­co, muito menos um mártir.

         — Não devo julgá-lo — acrescentou Ablon. — Quem sou eu para fazê-lo? Con­fiei na honestidade de Lúcifer, e em que resultou meu julgamento? Depois, pre­feri lutar com você em vez de escutá-lo, repudiando suas boas palavras. Como celestes, não somos perfeitos. Não somos deuses e nunca seremos. Aqueles que buscam superar o Altíssimo cairão, e assim será com o arcanjo Miguel. Mas não serei eu a condená-lo. Como fugitivo, já estive à beira do ódio. Foi o amor de Shamira que preservou meus valores. Nós dois encontramos quem nos mos­trasse o caminho, mas e quanto a ele? E quanto a Miguel? Não fosse nosso co­ração tocado pela ternura, talvez estivéssemos como ele, cheios de cólera e de­mência. É por isso que não o recrimino. Contudo, há coisas que precisam ser feitas. Não tenho o direito de julgá-lo, mas detenho a legitimidade para desa­fiá-lo. Sou um guerreiro. Essa é minha natureza.

         — Então conclua sua missão, general — incitou Gabriel, em timbre suave. — Chegou o Dia do Ajuste de Contas.

         E assim, sem que ninguém precisasse guiá-lo, o Anjo Renegado rumou ao ponto de luz, que indicava a saída da gruta. A passagem esticou-se em uma aber­tura, encravada perto do cume do morro.

         Sob o despenhadeiro estendia-se uma vasta planície, que dominava todo o deserto. Dali o general vislumbrou o acampamento rebelde, pontilhado por ten­das brancas e negras que ocupavam a imensidão da esplanada. Milhões de ce­lestiais, equipados com espadas, lanças e arcos, treinavam no solo e se exercitavam no ar, mergulhando e investindo, rapinando e esquivando, praticando mano­bras para o combate. Outros voavam em patrulha, vigiando o planalto, enquan­to, em suas barracas, os comandantes traçavam planos e definiam táticas. Ablon provou novamente o cheiro do metal, a excitação dos lutadores e o ardor que antecede o confronto. Ao todo, contou pouco mais de dez mil legiões, cada uma com cinco mil soldados alados. Eram tão numerosos que lotavam o céu e a ter­ra e superavam em milhões qualquer exército humano já registrado no decur­so da história.

         Ao longe, uns 350 quilômetros ao norte, a planície terminava em um cír­culo de montanhas de aspecto sombrio, que guardava no centro a sinistra For­taleza de Sion. A torre inimiga despontava além das cordilheiras, como uma lança fúnebre encravada no ventre do mundo.

         Exaltado pela emoção, Ablon lembrou-se da cidade afundada de Enoque e da profética visão de Hazai, o capitão dos renegados, que fizera da metrópole seu túmulo. E assim, visualizando as legiões que cortavam a paisagem, Ablon entendeu que, antes do expurgo, era exatamente como aqueles celestes, cheios de esperança, força e vontade. Por um golpe do acaso, convertera-se em símbo­lo, elevado à alteza pelo ódio do próprio inimigo. Agora não podia mais recuar. O Príncipe dos Anjos havia capturado Shamira, matado seus melhores amigos e fulminado cidades inteiras, aniquilando milhões de inocentes. Para aquelas pessoas, o general traria a vingança, mas por si buscaria a justiça.

         Em pé, à sua esquerda, tinha o bondoso e luminescente Nathanael, que o incentivava à gentileza, e, à sua direita, escoltava-o o dourado Mestre do Fogo, invencível em sua armadura sagrada.

         — Foram necessários mais de dois mil anos para que eu organizasse e trei­nasse esse exército — sussurrou Gabriel, contemplando o cenário. — São os mais valentes, e só se curvariam ao maior dos comandantes. Agora, essas legiões são suas. Lidere-as como quiser. Esses anjos nasceram de sua decência e por ela o seguirão.

         Mas Ablon sabia que não fora o único a inspirar aqueles rebeldes. Se ali es­tava, são e salvo, de espada na mão, era porque levava consigo a confiança de seus velhos amigos e a determinação da irmandade.

         — Rebeldes! — gritou o general, tomando uma rocha como parlatório, no topo do morro. — Escutem-me agora os que têm bravura no coração e fidelidade no espírito. Escutem-me os que são honrosos e sábios, e os que acreditam no poder da justiça — e com isso calaram-se as asas, os apitos e até o sopro do ven­to. Na Fortaleza de Sion, também o arcanjo Miguel escutou o clamor e, trans­tornado, correu à sacada para ouvir o espetáculo. — Vocês são um exército do bem, e tenho o prazer de liderá-los na derradeira batalha. Daqueles que aqui estão, sigam-me só os que não temem a morte, os guerreiros arrojados, os fortes e os temerários. Quando a peleja estalar e todos os seus companheiros tiverem tombado, vencerá o persistente, o corajoso, o que carrega a causa mais glorio­sa. Que me acompanhem os que adoram o Altíssimo, os que respeitam a lega­lidade de sua obra e os que estão contra o assassinato dos homens. Esta noite, lutaremos até o último soldado!

         Tão maravilhoso foi o breve discurso, somado à prodigiosa e emblemática presença, que ao fim da oração os combatentes explodiram em vivas, e seus bra­dos sacudiram desertos e montanhas, abalando o moral dos alados que defen­diam Sion. No bastião inimigo, os perversos tremeram, assustados com o fre­nesi do exército que os atacaria ao cair do crepúsculo.

         A vitória estava nas mãos dos rebeldes.

         Na Torre das Mil Janelas, cercada por uma multidão de soldados, o Prínci­pe dos Anjos subia as escadas, frenético. Com um pensamento agressivo, escan­carou as seçóes metálicas da porta dupla e ingressou na Sala dos Portais, um aposento circular, orlado por duas dúzias de passagens lacradas. Ali, o Anjo Ne­gro estacara, guardando a subida para o alçapão, que levava ao terraço da Ro­da do Tempo, onde Shamira estava aprisionada.

         — O renegado está vivo! — esbravejou o arcanjo, irado. — Não é absolutamente possível que tenha escapado da Legião Formidável!

         — Eu disse que seria inútil — retrucou o Anjo de Asas Negras. — Euzin era um incompetente, e para nós é uma sorte que tenha falhado. Assim não nos le­vará a mais uma burrada.

         Miguel arrancou da bainha a Chama da Morte, e a espada flamejante esquen­tou o ar frio. Embora em câmara fechada, estavam a quase três mil metros de altitude, onde os ventos são fortes, e o clima, gelado.

         — E o reforço no terraço? — mudou de assunto.

         — Ordenei que dez esquadrões criassem uma esfera vivente ao redor do pátio no pináculo da torre. Se Ablon vier até nós, terá que penetrar em Sion por outro caminho.

         Então, ainda inquieto, o Príncipe dos Anjos sacou o Livro da Vida, que es­condia preso ao cinto, sob as asas enormes. Pôs a relíquia sobre o pedestal no centro da sala e começou a ler em voz baixa as últimas páginas, impaciente co­mo uma criança a procurar o fim de uma história. Em certo ponto, quando al­cançou o versículo desejado, acalmou-se e recuperou a presença arrogante.

         — Vamos prosseguir com seu plano. Temos a isca e a armadilha. Então, que venha o maldito. Eu mesmo enterrarei o ideal da irmandade, enquanto nosso exército destrona os rebeldes. É o que farei — decidiu, fechando o tomo com uma violenta batida. -Assim prescreveu o Altíssimo.

         O Anjo Negro engrossou o semblante, na profundeza de seu elmo cerrado. O capacete ocultava-lhe a face, e nem o Monarca Celestial conseguia penetrá-la. Era o Anjo do Abismo Sem Fundo, aquele que abria todas as portas. Era a luz e as trevas. O começo e o fim.

         —A noite se aproxima. É o último dia dos humanos na terra. Nenhum mor­tal jamais voltará a ver a luz do sol.

 

Os Leviatãs

No sheol, o momento da decisão havia chegado. No vale dos Condenados, às margens do Styx, milhões de demônios, de todas as castas e tamanhos, aglome­ravam-se em turba desordenada, aguardando o comando de seus duques. Di­ferentemente dos anjos, nem todos voavam. Suas hordas se agrupavam no chio, como formigas nervosas ao estourar do formigueiro. Outros, dotados de asas, enchiam o céu, babando em colérica agitação, com os tridentes em riste. Alguns não passavam de diabretes, de aparência indefesa, mas havia também aqueles de enorme constituição, híbridos, de corpo animal, com chifres e cauda. Diver­sos possuíam presas aguçadas, olhos de fogo, garras escuras e pele escamosa. Um grupo cavalgava monstros alados, semelhantes à fera de Lilith, e outro montava cavalos esqueléticos, como terríveis cavaleiros do inferno. E existiam também os escravos, que mais pareciam bestas ferozes, fazendo lembrar leões e chacais, uivando em crueldade assombrosa.

         No ancoradouro, os oito duques — à exceção de Apollyon, ausente havia dias — esperavam pelas instruções de Samael, indignados e enfurecidos. À frente de­les, a odiada Serpente do Éden, uma figura reptiliana e asquerosa, que se arras­tava em vez de andar, anunciou aos nobres nefastos:

         — Reunam suas hordas. Os navios não tardarão a chegar.

         — Navios? — bufou Molloch, o Carrasco, um demônio musculoso, de cabeça grande, chifres pequenos e pupilas estreitas corno os olhos de gato. — Nem um milhão de barcos transportaria toda esta multidão. O calor da caverna do Diabo estorricou sua razão, Satanás.

         — Essas foram as instruções de nosso líder? — emendou Asmodeus, um per­sonagem perverso e elegante, que portava um cetro vermelho. As palavras po­lidas eram sua arma para desacreditar Samael.

         — Quem duvida de mim desafia o meu mestre — ameaçou, no assoviar de sua língua pontuda. Incitava o terror, pois sabia quão frágil era sua liderança.

         Molloch parou, sem palavras para reagir, e foi amparado por Orion, enquanto os outros príncipes se contorciam de raiva.

         — Paciência, camaradas! — tranquilizou o Rei Caído de Atlântida. — Ainda é cedo, e a batalha no etéreo nem começou. Não creio que a Estrela da Manhã dispensaria nossos esforços.

         Orion não costumava portar armaduras, mas para o embate final vestira uma exótica couraça prateada, antiga vestimenta dos guerreiros de Atlântida, ador­nada com o símbolo da Jóia do Mar. Não levava espada, só uma vara pontuda, mas suas garras eram tão letais quanto qualquer lâmina.

         — Que se dane! — rosnou Mammon, um demônio gordo, de corpo de hi­popótamo, cabeça de porco e chifres imensos. — Não vou me curvar a um ba­julador desprezível! — gritou, e Alastor, Baalzebul e Molloch se juntaram a ele, levantando as armas.

         Mas, quando os quatro se adiantaram para atacar Samael, as hordas em campo fizeram silêncio, e do porto os duques avistaram o que, para eles, era impossível.

         Centenas de navios nasciam ao longe, onde brotava o Styx, na entrada do vale, e se aproximavam como gigantes, afundando o leito do rio e esgarçando suas bordas. As águas rubras transbordavam ao fluxo das naus, afogando e atro­pelando os mais próximos à borda. Não eram, de fato, navios comuns. Longilíneos como os flutuadores egípcios, somavam mil metros da proa à popa, e à sua passagem as margens do Styx se alongavam para suportar o trajeto e depois regressavam à dimensão original. No passadiço, cada embarcação transportava três condutores de sinistra presença, cada qual com sua túnica negra. Aqueles capitães eram os apavorantes barqueiros, criaturas fantasmagóricas, desprovidas de alma ou essência e carentes de natureza ou moral.

         Sem vacilar, os duques recuaram ante a visão daqueles transportes incríveis. Eram tão compridos, largos e altos que só um deles sustentaria, em seus car­gueiros, aproximadamente quinhentos mil combatentes — e havia perto de dez centenas de barcos como esses navegando e correndo ao cais.

         — Definitivamente, o Filho do Alvorecer não olvidou seu exército — mur­murou Bael, o Infeliz, o príncipe do desespero, magricelo e horrendo, de rosto cadavérico e carne decomposta.

         — São leviatãs, os navios gigantes — Orion recordou-se. Já ouvira lendas sobre eles, mas nunca as tomara a sério.

         — Então vamos à guerra — concordou Mammon, desistindo de agredir Samael. —Escapou desta vez, sua cobra nojenta.

         — E contra quem lutaremos, afinal? — pressionou Mephistopheles, um aristo­crata de pele de fogo, asas de morcego e rosto de homem. — Qual dos dois par­tidos angélicos será nosso alvo?

         — Saberão a seu tempo — respondeu Samael, no instante em que o gigantes­co navio atracava no fundeadouro. — Agora, acompanhem-me a bordo — con­vidou-os, arrastando-se para dentro quando a ponte baixou.

         — Ainda me intriga toda essa história — sussurrou Asmodeus para Orion, a seu lado. — Qual será a verdadeira intenção do Arcanjo Sombrio?

         —Ainda hoje saberemos — replicou o satanis, marchando para a plataforma.

 

O Deus do Amor

         Por toda a tarde, Ablon percorreu a planície em revista às tropas. Continua­mente aclamado por todos os celestes, não encontrou tempo para conversar com cada soldado, mas entrevistou os generais, recolheu informações e se preparou para formular a tática final de batalha. Esteve com Varna, do regimento das ar­queiras, e reencontrou o inesquecível Baturiel.

         Como muitos combatentes ali espalhados, Baturiel, o Honrado, fora subor­dinado ao Primeiro General antes do expurgo e chegara a revê-lo no monte das Oliveiras, quando Gabriel ordenara que defendesse o morro contra qualquer invasão. Os dois quase se meteram em combate, mas a chegada de Varna, e de­pois do Mestre do Fogo, interrompera o confronto. Na ocasião, o Anjo Rene­gado julgara-o mal, acreditando que estivesse do lado ruim, e por isso logo se justificou pelo engano.

         — Eu teria feito o mesmo — confortou o amigo. Trajava uma couraça doura­da, comum aos oficiais, estampada com a antiga heráldica da Legião das Espadas.

         Depois, o próprio Baturiel o conduziu ao ishim Elohai, o Ferreiro, famoso por forjar as mais resistentes armaduras do céu. O celestial tomou as medidas de Ablon e prometeu que ao fim do dia ele teria a melhor placa já feita.

         Quando o dia já ia findando, o querubim subiu o rochedo e voltou à pre­sença de Gabriel, que montara sua tenda no topo do monte, de onde vigiava toda a extensão do deserto e as montanhas ao redor de Sion. Solitário, o arcanjo satisfazia-se apenas com a companhia de Varna, a fria querubim que vivia a es­coltá-lo, em cega obediência a seu líder rebelde.

         Dali, sobre um relevo no cume do morro, o Mestre do Fogo vislumbrava o maravilhoso exército dourado, que por longos séculos aprimorara, no transcurso da guerra civil. Sua face era tenra como a planta do lótus, cuja raiz toca a profu­são fecunda da terra e cujas pétalas saltam para o vazio do céu. Seus movimentos serenos respeitavam o fluxo do cosmo e acompanhavam a palpitação do infinito.

         Assaltado de repente pela radiação do universo, Ablon sentiu-se pequeno diante da enormidade das legiões e da massa gigante que completava o exército imbatível. Lamentou por sua delongada ausência e por sua incapacidade de tê-los liderado anteriormente em revolução produtiva.

         Gabriel apreciou o calor do sol que se deitava no oeste, dourando com seus raios a esplanada de guerra. Agachou-se de pernas cruzadas, para louvar o astro de fogo.

         — Assisto hoje ao último pôr do sol, com o mesmo fascínio com que con­templei o primeiro — confessou, melancólico. — Sou um vigilante do mundo, general, lanceado pela saudade e castigado pela lembrança. Posso sentir a pas­sagem das eras e tocar as marcas do tempo, como as pegadas na areia, que vão sumindo a cada lambida do mar.

         — Eu entendo sua amargura. É o revés da imortalidade. É o difícil fardo dos invencíveis. Também tenho o espírito ferido, mas sou jovem, apesar da idade. Sofro pelas ações que deixei de fazer e pelas batalhas que deixei de lutar. Queria ter sido mais competente na defesa da criação e livrado os homens da decadência.

         —Todos nós aspiramos ao inalcançável, e essa angústia é a centelha que acende o calor da existência. Quando todas as questões são respondidas, perde-se tam­bém o estímulo da vida.

         O general acedeu e virou-se para encarar o arcanjo.

         — Conte-me o que aconteceu, Gabriel. O que aconteceu depois que a irman­dade foi renegada? Há uma sensação de deficiência em meu coração, que me aflige pelos anos perdidos.

         O Mestre do Fogo exalou um suspiro e envolveu os ombros com a dobra das asas.

         — O paraíso nunca mais foi o mesmo. A expulsão dos renegados veio pôr à prova a unidade dos arcanjos, já desgastada pela maledicência. Depois da conjuração, muitos celestiais, incluindo o próprio Lúcifer, começaram a acreditar que a revolução seria possível, e então os oportunistas apareceram para corromper os desesperados.

         — Quando deixei os escombros da cidade amaldiçoada de Enoque, soube que o Arcanjo Sombrio havia arquitetado sua própria revolta e atraído um terço dos anjos à sua causa, enlaçada por mentiras e promessas vazias.

         — Sim. Lúcifer, o Filho do Alvorecer. Ele e seus conselheiros distorceram os ideais da irmandade. Juraram livrar os celestes da tirania, mas na beleza de seus discursos o Diabo ocultava seu verdadeiro objetivo, que era assumir o lugar do Príncipe Angélico. Infelizmente, os descontentes cresciam, e esses desgostosos, fracos de caráter, foram ludibriados por sua fascinante retórica, como frequen­temente acontece nos períodos de crise.

         — E como foi essa guerra?

         — Sangrenta, voraz e terrível. Muitos bons espíritos foram perdidos, em meio ao caos da batalha. No campo de guerra, enquanto as espadas acendiam relâmpa­gos no céu, Lúcifer e Miguel se evitavam, tomando seus tronos nos limites opos­tos do firmamento. E assim prosseguiu a matança, até que o sangue dos anjos fecundou Canaã, e a Estrela da Manhã rendeu-se em humilhante derrota. Como sentença, os perdedores foram isolados e condenados ao exílio na escuridão do Sheol.

         — O Sheol. É curioso que Miguel não tenha imposto aos caídos uma punição mais severa.

         — Antes da chegada do Arcanjo Sombrio ao inferno, o Sheol era tão somente uma dimensão-cemitério, um lugar de absoluta negritude e desolação, para onde Yahweh enviara os restos mortais de Tehom e dos deuses das trevas, destruídos nas Batalhas Primevas. O Abismo de Nimbye, nos Campos da Morte, represen­taria o suposto ventre de Tehom, uma passagem para o limbo, cheio de horror, agonia e desesperança.

         — O Portador da Luz... — murmurou o general, desvendando a chave para um dos muitos títulos atribuídos a Lúcifer.

         Ablon fincou a espada no chão endurecido, como às vezes costumava fazer, porque não tinha bainha para carregá-la nem cinto para sustentar o estojo. A lâmina endireitou-se sobre uma pedra vermelha.

         — Por que você acha que Miguel capturou a Feiticeira de En-Dor? — pergun­tou o guerreiro. — O anjo que a levou disse que ela ficaria bem se eu não me jun­tasse ao Diabo. Supostamente queria impedir minha aliança com Lúcifer.

         Gabriel ergueu-se em postura esticada e desceu da pedra em direção à ravina.

         — É um blefe, uma distração para desviá-lo do percurso central. Miguel co­nhece sua índole, seu passado, e sabe que jamais firmaria acordo com um traidor. Ademais, os soldados do inferno nunca teriam capacidade para invadir Sion. As hostes diabólicas são numerosas, mas fracas. A maioria das unidades satânicas é composta por espíritos-escravos, que tombam ao primeiro golpe de espada. Só os caídos são realmente ferozes, mas não somam um contingente temível. Se o Príncipe dos Anjos esperava por uma ofensiva militar, deveria impedir que você se unisse a nós — o arcanjo apontou para suas linhas voadoras, treinando em perfeita disciplina, e para as tropas no chão, espetando o ar como se fosse o inimigo. — Nosso exército sim tem o vigor e o treinamento necessários para derrubar as defesas da torre, mesmo em desvantagem numérica.

         — Então Miguel podia estar querendo justamente me atrair para a fortaleza?

         — Eu não disse isso. Não é fácil compreender as ambições de meu irmão, nem seus delírios de majestade. Seus anseios são um enigma até para mim, que por tanto tempo compartilhei de seu egoísmo colérico.

         — Mas por que ele raptaria a necromante? Não vejo sentido algum para um sequestro tão inusitado. Como uma mortal poderia ser útil ao seu projeto in­sano, seja ele qual for?

Gabriel achegou-se à ponta do precipício.

         — É possível que ele esteja tentando usá-la para alguma finalidade macabra — arriscou, sem mais opções. — Eu não duvidaria de que Miguel tenha descoberto um jeito de usar a alma da mulher para ascender à divindade. Para tal, ele ne­cessitaria de um espírito humano, agraciado com a dádiva da livre vontade.

         Ablon coçou o queixo, pensativo.

         — Foi exatamente o que Lúcifer me disse, quando fui encontrá-lo no vale dos Condenados. Segundo ele, Miguel pretende atingir a majestade do Criador com a conclusão do Apocalipse. Mas com isso ele se esquece do elemento fun­damental, que encerrará o Armagedon: o despertar do Altíssimo.

         O Mensageiro inclinou o olhar, tristonho, e tornou a mirada ao carmesim do horizonte.

         — Yahweh não adormeceu, general — anunciou, em surpreendente revelação. — Ele dissipou sua essência no cosmo, ao fim do sexto dia da criação.

         O Anjo Renegado maneou levemente a cabeça, em assustada reação negativa.

         — Isso não pode ser! — protestou. — Então o Reluzente está morto?

         — Não, meu amigo — tranquilizou o arcanjo. — Deus nunca esteve tão vivo. Por bilhões de anos, o Senhor moldou o universo, e um dia seu trabalho acabou. Orgulhoso por sua obra, o Altíssimo desejou a onipresença. Queria estar em todos os lugares, ver todas as coisas e provar as belezas do mundo. De seus frutos mais estimados, adorava a raça humana, uma espécie selvagem que vivia na po­dridão das cavernas. Cansado de admirar sua cria, Yahweh queria tocá-la, viver entre ela, amá-la. Assim, dispersou seu espírito, e dessa energia divina nasceu a alma humana, abençoada com o livre-arbítrio e agraciada pela seiva do amor. Com isso, a energia do Criador prosperou, sobreviveu e se multiplicou sobre a superfície da terra. Pois saiba, ó valoroso guerreiro, que em cada coração mor­tal bate a potência do Pai, e essa graça é infinita, indestrutível e imortal.

         O Primeiro General respondeu ao baque com um prolongado silêncio, du­rante o qual rememorou sua trajetória de vida, sua jornada celeste e terrena, atentando aos indícios sutis que explicitavam a ausência do Altíssimo

         — De alguma forma, acho que sempre suspeitei da verdade. Coma poucos, preferi viver meu próprio caminho, mas a busca pelo Onipotente se tornou um motivo, um propósito. Mas e quanto a você, Mestre do Fogo? Por que não com­partilhou seu conhecimento com os alados nem alertou os homens para sua ca­pacidade celeste?

         O gigante voltou a sorrir, mas havia também frustração em seu rosto.

         — Assim eu tentei, mas ninguém quis escutar. A existência palpável de Deus é um alimento para homens e anjos. Muitos dele dependem para justificar seus fracassos, suplicar perdão, ou para animar uma vida miserável. E não os conde­no. Não é fácil admitir que estamos sozinhos, que nosso sucesso depende ape­nas de nossos próprios esforços e de ninguém mais. Entenda agora, general, a obviedade do paraíso. O poder de Deus reside no amor incondicional. Quando amamos verdadeiramente, alcançamos o divino. Foi esse calor que nos atraiu à fonte e nos acendeu a paixão por mulheres humanas. Estar próximos a elas nos transporta à Presença Sublime, àquele que nos deu a vida e nos amou intensa­mente. Foi o amor por Shamira que o livrou da maldade. Foi o amor dela que deteve sua espada, pronta a executar Nimrod. É na ternura que reside o espírito de Deus, e por meio dela o acessamos.

         Nesse momento, Ablon avistou, como em sonho, a legendária Babel, o Mar de Rocha e a torre em construção, que se perdia nas nuvens. Recordou-se da feiticeira, perseguida pelos vilões babilônicos e encurralada pelo bruxo de bar­ba pontuda. Depois, sumiu o pesadelo, e ele sentiu o calor da fogueira na caver­na sobre a montanha, a mesma gruta em que os dois se abraçaram pela primeira vez e que mais tarde abrigaria o túmulo de Ishtar. A caverna, tal qual conservara na mente, era um lugar mágico, especial, um desses espaços congelados no tem­po, um recanto seguro, para onde sua fantasia vagava nos momentos de desen­canto e solidão.

         — Também o Salvador trouxe ao mundo a mensagem do amor — continuou Gabriel — e discorreu seguidamente sobre a natureza do Pai. Mas nem todos têm a capacidade de enxergar o que perpassa a realidade, o solucionável segre­do da existência, que está além de ícones, rituais e orações. Para mim, confesso, é duro pensar que nem mesmo Uziel, nosso irmão caçula, soube contemplar a verdade. Nem mesmo ele, que era um arcanjo e viu a dispersão do Altíssimo, soube aceitar sua escolha. Como muitos anjos, Uziel cultivou, por anos, a ilusão de que Yahweh estava dormindo em Tsafon, até o dia em que subiu ao monte e foi morto por Miguel. Mas talvez tenha vivido melhor assim, na ignorância. Já Rafael, sempre lúcido, engoliu a ausência com amargura, e em determinado momento desistiu de tudo, optando pelo exílio.

         A realidade, definida pelo Mensageiro, era absolutamente clara e singela. Deus é a totalidade do universo, e a compreensão do infinito. Ele é a pura bon­dade, o amor irrestrito e a aceitação do desigual. Na ciranda dos sentimentos, o amor é o mais grandioso, porque reúne uma mistura de sensações convergentes, tais como a paixão, a amizade e o respeito. Assim, Ablon entendeu finalmente a razão da empatia que o ligava à necromante. Ele era um anjo, nascido para servir ao Divino, e sempre estaria atrelado à energia suprema, o poder criador que a mulher carregava na alma fervente.

         No mesmo instante em que o general refletia sobre os extraordinários misté­rios do mundo, o Mestre do Fogo retirou sua espada mística do cinto e a ergueu contra o halo solar.

         — Esta é a Flagelo de Fogo — divagou o arcanjo —, a mais temida das armas celestes. Como ela derrubei os deuses das trevas e venci os caídos. As chamas que crepitam em sua folha não se apagarão enquanto houver um herói para em­punhá-la. Eu, que por tantas vezes a carreguei, agora a entrego a você, formidá­vel guerreiro, que me superou em pureza e sabedoria. Use-a hoje, com retidão e destreza, para desbancar as forças do mal — presenteou o Anjo da Revelação, estendendo ao lutador o punho da espada.

         Mesmo lisonjeado, o renegado não podia aceitar.

         — Agradeço sua oferta, Gabriel, mas não devo tomar sua arma. Sou um que­rubim e tenho minha própria espada, a Vingadora Sagrada — ele puxou a ponta de aço, até então encravada no solo.

         Diante da negativa, nada disse o Mensageiro. Em vez disso, agiu como estou­ro de tempestade, brandindo a espada sobre a cabeça, em extravagante atitude. Atônito, o general defendeu-se em reflexo, e a Flagelo de Fogo desceu com um ruído de incêndio, para rasgá-lo ao meio. Por sorte, a Vingadora Sagrada bloqueou o avanço da folha mortal, e ali ficaram os dois duelistas, estáticos, de ar­mas cruzadas, enquanto o sabre ardente do arcanjo derretia a lâmina gelada do renegado.

         — Por que está fazendo isso, Gabriel? — gritou o general, resistindo à pres­são da investida. — Por que está me atacando?

         Inabalável, o gigante aplicou ao golpe força tremenda, até que a Vingadora começou a ceder. O metal entortou, e as extremidades racharam. Em segundos, a empunhadura fervia, e Ablon foi obrigado a soltá-la, ou teria a palma infla­mada pela terrível superioridade do instrumento oponente. Esperto, saltou para o lado, antes que a Flagelo o tocasse, mas o Anjo da Revelação interrompeu o ataque e recolheu o sabre à bainha. A espada do general desfez-se em pedaços, e seus fragmentos abrasados se reduziram a pó, após resfriados pela brisa da tarde.

         — Perceba — retomou o Mensageiro, aos ofegos ruidosos do admirado guer­reiro. — A Vingadora Sagrada não resistiria ao confronto com a Chama da Morte, a lâmina mística do arcanjo Miguel — esclareceu, entregando sua espada flame­jante ao querubim. — Mas não se entristeça por isso. E um soldado e sabe que não há vergonha no regresso às cinzas, quando completamos nossa missão. A Vingadora o trouxe de volta, reacendeu em você o vigor da batalha e cumpriu o propósito pelo qual foi construída. Assim como ela, também eu terminei mi­nha demanda.

         — Suas palavras são confusas, arcanjo.

         — Organizei este exército para você e o preparei para o maior dos embates. Agora cabe ao Primeiro General a tarefa de guiar as legiões ao conflito. Queria poder ajudá-lo, meu honrado comandante, mas não posso. Esta guerra nunca foi minha, apenas a tomei emprestada. Miguel ainda é meu irmão, e não po­deria enfrentá-lo, muito menos matá-lo.

         — Seja então nosso parceiro na paz — Ablon não queria perdê-lo. — Precisa­remos de você para levantar o planeta dos escombros da guerra.

         — O universo estreitou-se aos meus sentidos, general. Estou velho, letárgico e cansado. Já vi muito, e de tudo provei. Agora, é meu dever seguir os passos do Pai, dissipar minha essência e retornar à escuridão.

         E assim, subitamente, um barulho estridente rematou o diálogo. No cam­po e na fortaleza, atacantes e defensores se retraíram ao ecoar do ruído. Era o sinal da Quinta Trombeta. Seu som, embora perturbador, era filtrado pelo te­cido, tornando-se assim bem mais tolerável ali, nas profundezas do etéreo.

         — Só faltam mais duas para o Juízo Final — observou Gabriel. — O Armagedon se anuncia. Retiro meu espírito da esfera vivente e o entrego à eternidade, mas deixo-lhe um legado. Em suas mãos repousam o destino do mundo e a obra da reconstrução. Quando estiver desanimado e aflito, puxe a Flagelo de Fogo e es­cute minha voz. Lembre-se das coisas que lhe falei. Enquanto houver um só homem no mundo, há esperança, porque os mortais carregam no peito o brio de Deus.

         Emudecido, mas inchado de grandeza e louvor, Ablon viu o arcanjo subir aos céus, trespassar o branco das nuvens e se desfazer como uma estrela radiante no anil do crepúsculo. Sua aura sumiu, e a consciência se apagou.

         Gabriel alcançara o infinito e ascendera ao estágio final. Estava vivo, mais do que nunca! Sua energia era agora o contínuo do cosmo.

         E, nas mãos do general, a Flagelo de Fogo continuava ardendo.

 

         Quase no mesmo instante em que Gabriel ascendeu, três anjos chegaram voando ao rochedo. Um deles, Elohai, o Ferreiro, trazia uma placa dourada, adornada com o símbolo da Legião das Espadas. Estava acompanhado por Ba-turiel, o Honrado, e Aziel, a Chama Sagrada.

         — Trouxemos sua armadura — disse Elohai, pousando a couraça no chão.

         Ablon notou que a placa era idêntica à sua antiga. Podia ser aberta do lado, para depois se fechar contra o peito. Nas costas, duas frinchas paralelas deixavam espaço para as asas de anjo, facilitando as manobras de voo.

         Era hora de o querubim despir as vestes mundanas. Tirou a camisa e, pela primeira vez desde a Babilônia, libertou as asas rajadas de sangue. Encaixou a couraça no tronco e fixou a bainha no cinto.

         No parlatório, retirou do couro a Flagelo de Fogo e a apontou para o céu, como um desafio ao bastião inimigo, encravado além das montanhas. Já era qua­se noite, e a lua se esgueirava no leste. Na planície, o exército rebelde enxergou o general no topo do morro, com a armadura de ouro, que reluzia ao brilho da lâmina ardente. Os combatentes avistaram suas penas marcadas, que eram o símbolo e o orgulho dos renegados, e reiteraram seu amor pela justiça.

         Na Fortaleza de Sion, o arcanjo Miguel e o Anjo Negro divisaram, ao longe, o fulgor da espada, e souberam quem a empunhava.

         — Amaldiçoado seja Gabriel! — bradou o Príncipe Angélico. — Ele passou ao expurgado a Flagelo de Fogo.

         No alto do monte, Ablon recolheu sua arma e se preparou para descer a ra­vina. Mas Varna continuava a seu lado, tal qual estivera desde o princípio da tarde, e se aproximou do comandante rebelde, com o fascínio a lhe esquentar o frio semblante.

         — General! — chamou a guerreira. — É um privilégio estar sob seu comando — rendeu-se, reconhecendo finalmente o encanto do líder.

 

Ponta de Lança

         No campo, ao centro de um círculo de tendas, havia uma mesa de pedra, sobre a qual os generais pousaram um mapa em pergaminho, que delineava todo o deserto. O planisfério mostrava a planície, as cordilheiras ao redor de Sion, o rio Styx, e mais adiante o monte Megiddo. Outros documentos, enrolados em couro e papiro, descansavam ao pé do encosto, com diagramas, plantas e infor­mações acerca dos fortes, das táticas e dos capitães inimigos.

         A lua já tinha subido quando os comandantes se reuniram para ouvir a estra­tégia final. Entre os dez generais, veteranos de várias campanhas, estavam queru­bins poderosos, muitos dos quais haviam servido na Legião das Espadas, antes da expulsão da irmandade. Varna e Baturiel figuravam como os mais louvados e juntos formavam uma dupla excelente, cada qual com sua arma de ataque. Próximo ao grupo, Aziel acompanhava o concílio. A Chama Sagrada e seus ishins da Cidadela do Fogo teriam participação decisiva na batalha, segundo a tática imaginada por Ablon. Sobre eles, um pelotão voava em espiral, subindo e des­cendo em vigília.

         O Primeiro General tocou um ponto no mapa, indicando o baluarte inimigo.

         — Quantos anjos você calcula que estejam defendendo Sion? — perguntou a Varna.

         — Cem milhões, só do lado de fora — ela respondeu, lacônica. Tinha os nú­meros na ponta da língua.

         — Pelo menos cinco mil legiões a protegem pelo interior, conforme reportam os espiões — acrescentou Baturiel.

         — É três vezes o contingente rebelde — constatou Aziel, coberto por vestes brancas de seda e cinto dourado, em traje tipicamente angélico.

         — Cada um dos nossos pode abater cinco deles — garantiu o renegado. — A lógica nos põe em vantagem, mas a prática nos esmaga. Eles estão bem alinhados, arranjados, e guardarão posições. Temos que desfazer suas linhas, antes de nos atirar ao choque de armas.

         — E qual seria a estratégia? — indagou Eblis, a segunda mulher-anjo no con­selho dos chefes. Era magra e esguia, mas portava uma maça, arma de impacto mais apreciada pelos brutamontes.

         Ablon elevou o olhar ao acampamento e percebeu quão dispostos estavam seus lutadores, sempre alertas, sempre treinando, excitados pela batalha e seden­tos para brandir suas lâminas. À frente de cada destacamento, subia um estan­darte bordado com a insígnia das tropas rebeldes, em preto e vermelho.

         — Eu avançarei primeiro, ao comando de um grupo tático de elite, para que­brar o cinturão de defesa que cerca o perímetro e desorganizar os esquadrões. Preciso de mil voluntários, prontos a lutar até a última gota de sangue.

         — Essa parte é fácil — garantiu Varna, conhecendo o ânimo dos combatentes.

         — Enquanto lutamos, o regimento das arqueiras deve percorrer o deserto em rasante e subir as montanhas que cercam a torre — e mostrou o desenho da cordilheira no mapa. —Ali ficarão escondidas, até o início da ofensiva. Em certo momento, deixarei a vanguarda e me infiltrarei em Sion, para salvar a Feiticeira de En-Dor e confrontar o arcanjo Miguel.

         — E quanto às legiões no interior da fortaleza? — lembrou Shenial, um ce­leste que liderara a defesa da Cidade Sagrada de Jerusalém, na noite da execução do Iluminado. — Elas perceberão seu assalto.

         — A prática da vida na terra me ensinou a suprimir as emanações de minha aura pulsante e assim escapar de meus caçadores. Voarei pelas sombras e usarei de furtividade para me esgueirar pelos corredores do forte e encontrar o Prín­cipe dos Anjos.

         — A Fortaleza de Sion é um labirinto de salões, câmaras e túneis vazios — in­sistiu Shenial, que era conhecido pela cautela. — Poderia explorá-la por anos e nem assim alcançaria os aposentos de Miguel.

         O Anjo Renegado recordou-se, no ato, das remotas campanhas das Guerras Etéreas, quando sua legião chegou primeiro ao castelo do deus Rahab, o Prín­cipe dos Mares, e venceu as divindades que ali viviam, destruindo o palácio e queimando suas sacadas. Mais tarde, naquele mesmo lugar, seria erguida a Torre das Mil Janelas, um marco da vitória dos alados sobre as entidades pagãs.

         —Vi Sion ser construída e participei de sua arquitetura. Eu estava lá quando Miguel fincou no topo a Roda do Tempo, roubando-a dos malakins no Sexto Céu. Não será a primeira vez que cruzarei suas defesas de espada na mão, para desafiar os sitiados.

         — E quando devemos lançar o ataque? — indagou Ebriel, um dos generais armados de lança em vez de espada.

         — Ao soar da Sexta Trombeta, as arqueiras dispararão suas setas contra os soldados destacados da torre, desorganizados pela ação do grupo de elite. A se­guir, todas as unidades arrancarão para o calor do combate — Ablon abriu um segundo pergaminho, que mostrava em detalhes o forte inimigo e seus arredores.

— Nosso objetivo central é concentrar a ofensiva em um único ponto e abrir uma ponta de lança, para que os ishins penetrem na torre e incendeiem a for­taleza por dentro.

         — Mais de cinco mil metros separam as montanhas do bastião — alertou Eblis.

         — A distância pode ser uma adversária para as flechas.

         — Isso é queima-roupa para minhas guerreiras — rebateu Varna, precisa.

         — E se você não retornar? — quis saber Aziel, visivelmente preocupado com o destino do amigo. — Devemos queimar a bastilha mesmo assim?

         — Se até então eu não tiver regressado, saberão que estou morto. Varna as­sume o comando em minha ausência, seguida por Baturiel e Shenial. Aconteça o que acontecer, não abandonem a luta. Continuem a tarefa até que Sion seja posta abaixo. Não se esqueçam de que o tecido da realidade terá caído ao fim da batalha, e os dois mundos serão unos. Caso eu não resista, agrupem os sobre­viventes e prossigam com os valores da irmandade, preservando os homens que escaparem à guerra do mundo mortal. Ajudem-nos e glorifiquem-nos, mas não esqueçam quem são. Foram o ciúme e o egoísmo que nos trouxeram a isso — e recolheu os mapas. — Varna, recrute os melhores alados para o batalhão de van­guarda.

         Ela ajustou a cota de malha e voltou os olhos verdes ao lutador.

         — Terá os soldados em uma hora, general.

         O concílio se dispersou.

 

A Chave do Inferno

         Enquanto as tropas se preparavam, Ablon refugiou-se sozinho no topo do morro, próximo à pedra de onde Gabriel subira aos céus. Ali ficou, parado, con­centrando-se para a batalha final. Viu as flâmulas esvoaçantes, os guerreiros em suas armaduras e o grupo misto de anjos, composto por mulheres e homens alados, conforme concebidos por Deus. Com olhos de águia, observou ao longe a Fortaleza de Sion e mirou o pináculo, obstruído por uma redoma de anjos que o defendiam em esfera, impedindo assim que qualquer um enxergasse o terraço.

         Sentou-se em um pedregulho e buscou no chão seu antigo sobretudo. Vas­culhou os bolsos e deles recuperou dois objetos de especial importância. Um era a chave do inferno, um artefato místico dado a ele por Lúcifer, que supostamente abriria, na Sala dos Portais de Sion, a passagem para o Sheol.

         O outro objeto era a pena alva de Apollyon, enegrecida pelo tempo. Ao rea­ver a pluma, Ablon meditou sobre como encontraria o Exterminador, uma vez que desconhecia a vinda dos infernais ao etéreo. Resolveu que terminaria, antes, sua contenda com o arcanjo Miguel, para só depois procurar um meio de caçar o assassino. Com isso vingaria não só os espectros do deserto, mas também seus amigos renegados.

         Ablon prendeu firme a pena ao cinto, com um fio entrelaçado de seda, e tateou mais uma vez a superfície de barro da chave, uma relíquia estranha, dê aparência rústica, menor do que a palma da mão, e em forma de anel recorta­do em cruz.

         Aziel, a Chama Sagrada, aterrissou no parlatório e desceu para falar com o amigo. Mas, quando viu o general absorto em devaneios, adiou o assunto central.

         — A chave do inferno — comentou o ishim, lembrando-se da primeira vez em que vira a relíquia, em um aprazível café no centro da cidade do Rio de Ja­neiro. Isso fora havia uma semana, mas pareciam séculos desde que ele, Ablon e Sieme deixaram o Brasil rumo a Israel, em meio à confusão que se seguiu à explosão das primeiras bombas, reconhecidas pelos anjos como o início das Sete Trombetas.

         — A participação de Lúcifer nesta guerra ainda continua velada — desabafou o renegado, correndo o olhar pelo objeto de barro. — Ele se conformou muito rapidamente com minha recusa em aderir a seu plano, mas estava determinado a entrar em batalha.

         — O Arcanjo Sombrio está de mãos atadas — sustentou Aziel. — Suas hostes não são páreo para nenhum dos dois exércitos celestes. Provavelmente tomará a trilha mais curta e aguardará o fim do combate, para só depois tentar um acor­do com os vencedores. Quem, mais do que ele, apreciaria ver os partidos angé­licos se matarem em batalha?

         Ablon maneou a cabeça em sinal negativo.

         — Então por que ele teria me dado esta chave? Seria uma manobra para des­pistar minha mente, ou há realmente uma intenção oculta, previamente acertada?

         Aziel guardou silêncio, porque também não fazia idéia das aspirações do Fi­lho do Alvorecer. Ficou quieto enquanto assistia ao general amassar com a mão o artefato sagrado.

         — Não acho que isso vá fazer muita diferença — disse Ablon —, mas é melhor que seja destruída de vez — ele apertou o punho, e a chave se reduziu a farelo. Sua energia mística sucumbiu à pressão e se dispersou no espaço. — Que Lúcifer continue afundado no Poço Sem Fundo.

         Esticou os dedos, e os restos de argila se precipitaram para o chão da mon­tanha. Os flocos mais finos foram carregados pelo vento noturno.

         — O grupo de elite está pronto — anunciou finalmente Aziel, depois que a poeira sumiu.

         Esfregando as mãos, o renegado subiu novamente à rocha no topo do morro, para seu último e definitivo discurso.

         Assim tinha início o Armagedon.

 

         Do parlatório sobre a montanha, Ablon enxergou a planície. Já era noite, e uma sombra estranha cobria Sion, como uma nuvem negra de tempestade. O deserto era pequeno para tantos rebeldes, e muitos alados adejavam, pairavam no ar e se alinhavam para a batalha que começaria em breve.

         O general subiu à rocha e puxou a espada de fogo, e então todos pararam para observar o seu líder. No campo, mil anjos guerreiros, vestidos com armadu­ras de prata e elmos brilhosos, compunham a força de elite, o grupo que acompa­nharia o renegado no primeiro assalto à torre inimiga.

         — Atenção! — bradou o Primeiro General, e sua voz poderosa alcançou o in­finito. Ao longe, Baturiel apertou sua lança, Varna recolheu seu arco e Nathanael levitou para o topo do Horeb. — Chegou o Dia do Juízo Final, o Tempo do Ajus­te de Contas. De todas as guerras, celestiais ou terrenas, esta é a maior, a dis­puta que encerrará a direção do universo. As lágrimas que vertemos por nossos irmãos renegados agora cobraremos com o fio da espada. Somos o instrumento de Deus, a mão da justiça, a herança do Pai Criador. Hoje nos lançaremos ao combate em honra do Altíssimo e em defesa da humanidade. Queimem suas auras e incendeiem seus corações, porque esta é a Batalha do Armagedon, e nin­guém sairá impune. Sangue será derramado até engolir as fundações do mundo, e os justos alcançarão o triunfo. Aos probos, os louros; aos perversos, a morte — concluiu, e os soldados responderam com um clamor estrondoso, que ecoou pelo espaço infindável e ficou gravado na fluência do cosmo.

         Sob fervorosa consagração, Ablon desfraldou as asas rajadas e desceu voando ao campo para encontrar seu batalhão de vanguarda. De espada em punho, os querubins o saudaram, hasteando lâminas e estandartes e provando a enormi­dade de sua presença. Depois, o Anjo Renegado e seus guerreiros prateados decolaram e juntos se lançaram rumo a Sion.

         No terraço da Torre das Mil Janelas, mesmo sem poder avistar a paisagem, interrompida pela redoma de anjos, Shamira escutou o bramido dos combaten­tes rebeldes e avisou aos celestes que a cercavam:

         — O Primeiro General regressará a Sion. Ai daqueles que estiverem em seu caminho — profetizou e fez fraquejar o moral dos injustos.

 

Orion e Asmodeus

         A frota dos leviatãs, os navios gigantes, percorria o Styx, com a horda satâ­nica a lotar seus porões. No convés da nau principal, conduzida do tombadilho por três nebulosos barqueiros, Orion e os outros duques observavam a estranha dimensão por onde passavam. O rio entrava e saía de universos bizarros, cru­zando cidades de luz, espaços de sombras, florestas, desertos, terras de fogo e fortalezas de gelo. Agora, seguiam por um plano vazio, fincado de estrelas como o vácuo sideral, e onde o leito do Styx era o único caminho palpável, flutuando na imensidão do infinito.

         Samael fitava os astros distantes, com olhos de cobra. Na mesma embarcação, vinham também as tropas especiais, que tomariam a linha de frente do combate. Eram a cavalaria infernal, que varreria o solo, e os ginetes ao controle das feras aladas, que tomariam os céus e avançariam em níveis sobrepostos, armados de lanças enormes. Essas feras voadoras não eram espíritos-escravos, ao contrá­rio do que se pensaria de início. Eram monstros sem vontade ou instinto, nasci­dos do ódio e da maldade. Foram criados pelos poderes sombrios do Senhor do Sheol, que às vezes gostava de imitar o Altíssimo, e em sua incapacidade de formular vida decente dava forma a essas bestas dantescas.

         Asmodeus baixou seu cetro vermelho e se aproximou do Rei Caído de Atlântida.

         — Conta-se que os barqueiros não são generosos. O preço por chamar os le­viatãs deve ter sido oneroso a quem os convocou.

         — Sem dúvida — concordou Orion, lembrando de quão arrasado ficara Amael, o Senhor dos Vulcões, ao pagar a viagem do Anjo Renegado ao inferno. — O contratante deve estar arrasado, vazio. Mas quem, senão os duques, teria essência para invocar os condutores?

         Asmodeus mirou as estrelas, sempre calculando as palavras.

         — E por onde anda Apollyon? — sussurrou, sugerindo, em uma glosa sutil, a participação do assassino na trama dos barcos. — É estranho pensar que o mais feroz dos malikis tenha desaparecido às vésperas da batalha final.

         — Lúcifer o enviou à Haled, em missão especial. É tudo o que sei.

         — Talvez tenha sido morto — sugeriu o nobre diabólico.

         Orion encarou Asmodeus e demonstrou um sorriso incrédulo.

         — Seria fácil demais.

         No fundo, preferia que o Exterminador estivesse morto.

         Mas ele não estava.

 

         No campo rebelde, o honrado Baturiel esperava. Sua principal arma era a lança, mas carregava também uma espada, como todos os querubins. Até as ar­queiras portavam lâminas na cinta, embora curtas, para o caso de combate fechado.

         O Honrado traçou um golpe no vazio do ar, só para testar a eficiência da ponta. Varna estava ali perto, com seu arco de ouro. Sua aljava era uma relíquia sagrada, porque as setas nunca acabavam, mesmo que um milhão de tiros fossem lançados. Era um artefato divino, mas a competência da general estava na pre­cisão de sua mira e na retidáo de seu caráter metódico.

         — Dizem que você nunca errou uma flecha — comentou Baturiel, reparando nos profundos olhos verdes da comandante.

         — E como poderia? Sou um anjo, e essa é minha função. Para isso fui con­cebida.

         — Mas não somos perfeitos. Cometemos erros, tal qual os seres humanos.

         — Sim — concordou. — Não somos infalíveis.

         — E quantas flechas acha que vai ainda perder? — ele instigou, quando a ar­queira admitiu ser passível de deficiência.

         — Só uma — respondeu, incisiva.

         — Uma?

         — Porque, no dia em que eu errar uma seta, minha demanda estará concluída. Minha função neste mundo terá terminado. E esse será o dia em que morrerei.

         Baturiel assentiu, impressionado com a determinação da celeste. Ele se afastou e regressou ao seu regimento.

 

Triunfo de Asas Vermelhas

         O Anjo Negro, aterrador em sua armadura escura e seu elmo fechado, des­cera a uma plataforma no antepenúltimo andar da fortaleza, de onde podia ter uma ampla visão das legiões e do cinturão de defesa que protegia a torre. Mi­lhões de soldados alados, organizados em companhias, voavam em linha, for­mando múltiplos anéis ao redor de Sion.

         Enquanto isso, no outro extremo do firmamento, um célebre esquadrão se aproximava, preparado para a mais épica ofensiva da história. Mil anjos, hábeis e corajosos, avançavam em seta, prontos para perfurar o bloqueio inimigo. Em­bora subordinados aos generais, que usualmente vestiam apenas placas sobre o peito, esses mirmidóes trajavam armaduras completas, banhadas em prata, que refletiam como espelho ao brilho da lua. À frente desses bravos celestes vinha um guerreiro dourado, em sua couraça recém-forjada, com os cabelos loiros es-voaçantes e os olhos cinzentos fixos no alvo. Era Ablon, o Anjo Renegado, que liderava o time de elite, tal qual fizera havia milhares de anos, quando invadira o castelo do deus Rahab, o Príncipe dos Mares, durante as Guerras Etéreas.

         E quando esses anjos, mesmo valentes, sobrevoaram as montanhas, um sus­piro assaltou todos eles, ante a visão da tarefa que os aguardava. Não longe dali, a Torre das Mil Janelas se elevava imponente, ao longo de seus três mil metros de altura. A distância, mais parecia uma colmeia de abelhas venenosas, cercada por tantos soldados que quase não era possível enxergar seu eixo. Em cada uma das pequeninas sacadas pairava um lutador, armado para resistir ao ataque. E no topo do forte um batalhão adejava em redoma, circundando o terraço e res­guardando o que o general julgava ser a Roda do Tempo.

         Uma nuvem de trevas cobria a bastilha. Ablon não sabia de onde viera ou quem a invocara, mas suas vibrações eram terríveis — estava cheia de ódio e cruel­dade, como uma onda funesta a serviço do mal.

         Ao perceberem os invasores prateados, comandados pelo Primeiro General, os anjos perversos sobressaltaram assustados, apesar de sua superioridade em contingente. Enxergaram o ímpeto dos invasores, sua fé na vitória e a sede de sangue em seus austeros semblantes. Alguns pensaram em recuar, mas o Anjo Negro, na borda do pontilhão, abriu as asas escuras e gritou uma ordem. Sua voz era como um rugido, e seus compatriotas endureceram nas linhas — não por bravura, mas por medo de seu capitão.

         — Guardem os anéis, seus covardes! Mantenham as defesas seguras.

         Nesse instante, os atacantes de prata também fraquejaram, mas Ablon sacou sua espada e as chamas eternas fizeram os sitiados tremer. Um novo fôlego esti­mulou os rebeldes e, na plataforma, o Anjo de Asas Negras recuou para dentro dos túneis, repudiando a Flagelo de Fogo, como se fosse essa a única arma que pudesse feri-lo.

         — Fechar em agulha! — ordenou o Anjo Renegado, e os prateados alinharam a posição em forma de seta. — E agora!

         Foi assim que o esquadrão penetrou o cinturão, como uma lança, rasgando a formação e desfazendo o anel de querubins que cingia a fortaleza. Espadas se chocaram e armaduras estalaram, quando os temerários guerreiros furaram o bloqueio inimigo.

         Na ponta, Ablon usou a Flagelo de Fogo para perfurar. Seu calor era tão in­tenso que a agulha mais parecia uma flecha abrasada, voando em velocidade máxima ao redor de Sion. Os soldados inimigos eram carbonizados ao toque, e aqueles que saíam da frente acabavam rasgados aos flancos, pelos prateados que compunham a lateral da formação.

         Em poucos segundos, pedaços destroçados de armadura zuniam no ar, mem­bros decepados caíam como meteoros, sangue jorrava pela área de guerra. Mais que tudo, os defensores de Miguel sofreram com a tática surpresa. Nunca es­peravam que um grupo tão pequeno os atacasse daquela maneira. Seus generais estavam corretos de certa forma. O sucesso da formação em agulha só foi pos­sível graças a Ablon e sua Flagelo de Fogo.

         Disciplinados, os prateados foram rodeando os anéis da torre, matando e mutilando com suas lâminas afiadas. Ninguém podia batê-los, nem os oficiais premiados, e nos níveis abaixo uma chuva de corpos despencava sobre os outros perversos, cada vez mais abismados.

 

         No acampamento rebelde, Varna e suas arqueiras assistiram de longe ao pri­meiro embate e ao triunfo inicial da tropa de elite, que continuava lutando como um leão feroz. Suas guerreiras estavam alinhadas no solo, aguardando o sinal. As armaduras eram malhas de ouro, trançadas, mais leves que as dos soldados infantes. Portavam, além do arco, espadas curtas, provando que estavam aptas também para a ação corpo a corpo.

         Ao lado da mulher-anjo, Baturiel apreciava o espetáculo do ataque.

         — Queria eu estar lá com eles — confidenciou o Honrado.

         — Estaremos em breve — retrucou a lutadora, ajeitando a corda da aljava.

         Baturiel recuou, e ela, percebendo o momento, levantou o arco, pronta para iniciar a corrida. As arqueiras a imitaram, e a general disparou, seguida por seu regimento. Avançaram em rasante, quase coladas ao chão, para que seus adver­sários em Sion não as enxergassem.

         Assim percorreram o deserto como cobras na noite, ocultas pela poeira do solo. Subiram as montanhas e ali ficaram, escondidas, esperando pela Sexta Trom­beta, de setas no fio.

         Na Fortaleza de Sion, prosseguia a batalha.

         Organizados em ponta, os rebeldes eram quase invencíveis, mas seus esforços como um corpo compacto só agiam em uma única direçáo, derrubando uma linha de defesa por vez, enquanto o resto do bloqueio continuava intocado. Era preciso, agora, atingir os múltiplos pontos da torre. Investindo em alvos estraté­gicos, eles poderiam provocar a desordem em cada um dos anéis de soldados, au­mentando assim a gravidade da ofensiva — ainda que não pudessem derrotá-los todos. Era uma tática suicida, porque um só atacante, separado do grupo, não resistiria por muito tempo ao assédio dos inimigos, por mais vigoroso que fosse.

         Mas para isso existem os épicos heróis, decididos a morrer em combate.

         — Desfazer formação! — gritou o Primeiro General. — Espalhem-se. Procurem os líderes de companhia. Matem os chefes. Morram por seus ideais!

         Ao comando, parte do esquadrão mergulhou, e outra parte subiu, dispersan­do sua força. Sozinhos, lutavam com bravura, abrindo caminho com suas espa­das, até alcançar o destino. Os mais espertos já acossavam os capitães, certos de que, uma vez derrubados, as companhias perderiam um tanto de seu entusiasmo.

         Desligado de seus querubins, Ablon virara o alvo central, e dezenas de mi­lhares de anjos vieram buscar sua cabeça. No ar, cercaram o general, mas seus ataques resultavam em nada. Ágil e rápido, o renegado aparava todos os golpes. A cada bloqueio, a Flagelo de Fogo derretia as lâminas adversárias e continuava a trajetória, destruindo espada, armadura, e ceifando a vida de quem a desafiava. Só a aproximação da arma de Ablon já amolecia o metal dos inimigos, que não encontravam meios de lutar contra o instrumento sagrado do arcanjo Gabriel, agora empunhado pelo último anjo renegado. Os caçadores passaram a caçados, e uma única investida do guerreiro mutilava dez ou vinte assassinos.

         O chefe da companhia que o Primeiro General assaltava era Asson, um co­mandante maldoso, que estivera presente ao massacre de Sodoma. Desde lá, era subordinado de Euzin, que na época respondia a Apollyon, então um celeste, general de legiões.

         Ablon identificou seu objetivo, ao avistar o capitão que controlava os alados. Voou direto em sua perseguição, dilacerando os soldados que entre eles se in­terpunham. Um baque solitário, pelas costas, conseguiu atingir o renegado, mas sua armadura dourada absorveu toda a violência do chofre.

         Asson não sabia ao certo o que acontecera a Euzin, mas ouvira dizer que ele fora enviado à Haled, com a missão de matar o proscrito. Então, quando notou o Primeiro General vindo até ele, com fúria no olhar e sangue no metal da cou­raça, descobriu a sina de seu superior, e da Legião Formidável.

         — Ataquem! Ataquem! Ataquem! — repetia Asson a seus oficiais, quase sem voz.

         Uma linha de cinquenta querubins, ajustados em fila, chegou para destro­nar o renegado, esperando que assim pudessem vencê-lo. Pretendiam acome­ter perfurando, com o próximo na ala substituindo imediatamente os comba­tentes caídos. Isso, supostamente, levaria a vítima à fadiga, até que cedesse ao embate mortal.

         Mas a estratégia fracassou.

         Esquivando-se para o lado, Ablon desviou da fileira e avançou, passando a Flagelo de Fogo pelo centro da linha. A espada ardente dividiu os corpos sem a menor resistência e retomou o movimento, para procurar Asson, o objeto fun­damental da agressão.

         Mais por sorte que por destreza, o capitão evadiu-se, e o golpe do renegado falhou. Sua pancada resvalou na estrutura da torre, fazendo-a estremecer, igual ao sacudir de um terremoto. Dentro da fortaleza, os batalhões que a guardavam sentiram-se como no ventre de um grande tambor, ao escutar o ruído abafado da possante pancada.

         Revivificado pelo erro do oponente, o desagradável Asson provocou o guer­reiro:

         — Então, é você o assassino de Euzin?

         — Não — respondeu Ablon. E era verdade. Euzin fora morto pela flecha cer­teira de Varna. — Mas gostaria de ter sido eu a derrotar o covarde.

         — Acabarei com você agora, em nome do arcanjo Miguel!

         Cheio de raiva, o vil adversário arrancou para a morte. E antes que descre­vesse a manobra, resolvido a esfacelar o querubim, a ponta da espada de Ablon fincou-lhe o coração. O inimigo soltou um berro estridente, que pôs fim à sua carreira maldita. Espetado pela Flagelo de Fogo, o cadáver começou a estorricar. O Anjo Renegado levantou o defunto e depois o arremessou. O corpo foi cain­do, carregando um odor nauseante aos andares inferiores.

         Os sitiados acompanharam o despencar do capitão e em seguida se viraram para encarar o carrasco — mas ele havia desaparecido!

         Recolhido às sombras, Ablon suprimiu o pulsar de sua aura. Os soldados, de fracos instintos e pouca inteligência, não poderiam mais encontrá-lo.

         Na penumbra da noite e em meio ao clangor da batalha, o Primeiro Gene­ral se infiltrava em Sion.

         Enquanto isso, no interior da Fortaleza de Sion, o Anjo Negro chegou a um enorme salão, de paredes largas e teto ogival. Ao centro da câmara, bem no eixo da torre, um vão amplo, de incalculável profundidade, descia à fundura dos calabouços, e nesse vácuo empoleiravam-se dezenas de milhares de anjos, devidamente armados para o combate. Eram parte das legiões internas, desig­nadas para guardar o bojo do forte, caso ali chegassem os invasores rebeldes.

         O Anjo de Asas Negras desceu voando pelo buraco e destacou cinquenta dos melhores soldados dali, capitães e generais na maioria, para acompanhá-lo aos níveis acima. Muitos detestaram a convocação, porque eram líderes de com­panhia e não podiam deixar sozinhos seus combatentes. Mesmo assim, engoliram o orgulho e nada disseram, cientes de quem os comandava.

         — Vamos aos andares superiores — ordenou o Anjo Negro, tomando um ca­minho que até os oficiais desconheciam. — Vocês serão a última linha de defesa do arcanjo Miguel.

         Esses lutadores eram os mais possantes entre as legiões, a nata do exército do Príncipe Celeste. Suas armaduras eram como bronze, e portavam espadas tão afiadas que as lâminas dividiam as partículas atómicas no espaço.

         E todos eles temiam o Anjo Negro.

 

Face a Face com o Anjo Negro

         Escondido pelo manto noturno, Ablon se esgueirava pelos umbrosos corre­dores da Fortaleza de Sion. Pulando de alcova em alcova, enganava a percep­ção dos anjos que montavam guarda nas câmaras vazias, atravessando passagens e subindo escadas, sem ser percebido. Mantinha a Flagelo de Fogo recolhida à bainha, para que os vigias não avistassem seu brilho ou alertassem para o cre­pitar de sua lâmina ardente. A armadura não atrapalhava seus movimentos nem provocava ruídos, mas seu reflexo dourado podia denunciá-lo, caso não se afun­dasse suficientemente nas sombras. Assim, driblou incontáveis patrulhas e bata­lhões inteiros, que vagavam por dentro da torre.

         O renegado conhecia bem os caminhos e labirintos de Sion, mas muitas seções haviam sido modificadas ou ampliadas, o que atrasou seu percurso até o acesso ao penúltimo andar e de lá para a Sala dos Portais. Lembrou-se do dia da edificação da bastilha e da noite em que Miguel veio ao plano etéreo para fundar a Torre das Mil Janelas, marco fundamental da soberania celestial sobre a região etérea de Canaá e Sinai.

         Com os dedos firmes agarrados à parede irregular, Ablon subiu e grudou-se ao teto. Prosseguiu como uma aranha caçadora e passou sorrateiro por dois sol­dados que guardavam uma escada ascendente. Esse túnel em degraus terminava em uma antessala circular, em formato de meia-lua, orlada por sacadas que se abriam para a altitude. O extremo sul do aposento continuava em um corredor longo, amplo, sustentado por colunas delicadamente trabalhadas com motivos angélicos. Ao fundo figurava uma porta dupla, guardada por um único querubim vigilante. Esse guardião chamava-se Dariel, e o general o reconheceu de primeira. Assim como o tal Asson, que acabara de derrotar no lado de fora da torre, Da­riel também fora subordinado a Euzin e participara da carnificina em Sodoma. Era um anjo poderoso, ágil e forte, e a percepção era sua maior qualidade — não à toa fora designado para defender o ingresso aos níveis superiores.

         Dariel estava protegido por uma armadura completa e portava uma alabarda, espécie de haste comprida, rematada por uma ponta de aço e cortada por uma lâmina semelhante à do machado. Estacava sério diante da porta — uma peça de ferro ancestral, moldada com imagens híbridas, tendo ao centro a figura do deus Rahab, o Príncipe dos Mares. Na verdade, esse objeto fora o único preser­vado do castelo da entidade etérea, posto em Sion como um trofeu pela vitória dos celestes sobre os deuses pagãos.

         Ablon teria que usar de toda sua rapidez para alcançar seu destino sem que Dariel o notasse. Se fosse descoberto, o guardião soaria o alarme, e sua tentativa de chegar incólume à Sala dos Portais resultaria frustrada. Sua grande habilidade em combate não o fazia invencível, e ele não gostaria de ser surpreendido por mais legiões, embora estivesse preparado para isso.

         Como o renegado, o vigilante também enxergava no escuro, então não seria eficiente deslizar pelas trevas. Assim, quando Dariel piscou, o general, em inacre­ditável velocidade, saltou para trás de uma alta pilastra — a última de uma ex­tensa fileira que suportava o teto. Ali ficou, estático, até que o guarda piscasse de novo. E, a cada piscadela, Ablon se aproximava da porta, pulando de coluna em coluna.

         No instante preciso, correu para um pilar muito próximo ao cauteloso vigia, e finalmente o soldado atentou para o vulto.

         Mas, antes que ele brandisse sua arma, o Primeiro General apareceu como um tigre e sacou a Flagelo de Fogo. A espada refulgiu em chamas vermelhas e cortou o inimigo ao meio, sem chance de contra-ataque.

         Nenhum som foi ouvido.

         Ablon repôs a folha ardente à bainha.

         Depois, empurrou a porta de ferro.

         A porta cedeu facilmente ao empurrão e deu acesso a um segundo corredor, bem maior que o primeiro, flanqueado por muitos umbrais nebulosos, que le­vavam a outras passagens, e assim por diante. Eram tão escuros esses umbrais, e seus afluentes tão sinuosos, que ficava impossível enxergar além deles ou ter certeza para onde corriam.

         No extremo oposto do corredor, uma outra porta, também metálica, mas de ouro, era o que separava o Primeiro General da Sala dos Portais e de seu der­radeiro inimigo: o arcanjo Miguel.

         Silencioso, caminhou ao seu objetivo, mas parou ao pressentir o perigo.

         Das portinholas escuras, então, emergiram cinquenta guerreiros alados — 25 de cada lado. Em suas armaduras de bronze, formaram um bloqueio, uma barrei­ra de quatro alas, fechando o caminho e impedindo que o invasor prosseguisse.

         Daqueles celestiais, Ablon conhecia todos. Diferentemente de Euzin, Asson ou Dariel, esses eram bons guerreiros, de espírito recuperável, mas que talvez não tivessem tido a coragem de repudiar o Príncipe Celeste e se juntar aos re­beldes. O renegado sabia que não eram perversos, mas temiam o tirano, por is­so acatavam seus comandos. Uma centelha de pureza vivia-lhes no coração, e, quando levantaram as armas para atacar, um argumento de Ablon fez com que atrasassem os golpes.

         — Muitos de vocês me reconhecem e já combateram a meu lado — falou, empunhando a Flagelo de Fogo. — Sou Ablon, o Primeiro General, e volto a Sion para novamente perseguir a vitória. Não importa quanto tenham se enfia­do nas trevas, ainda lhes resta escolha, mesmo agora, tão perto do fim. Abram o cerco e recuem, e vejam-se libertos da opressão que os cerca.

         Os capitães que ali estavam, ao escutar a oratória do anjo guerreiro, inter romperam a investida, mas, ainda confusos, não se despojaram das espadas.

Nesse momento, um elemento crítico abalou o cenário.

         O Anjo Negro, terrível e imponente, saiu voando de um túnel escondido e aterrissou bem à frente da porta dourada, guardando ele mesmo a entrada. Ao avistar o pavoroso agente, os oficiais congelaram, indecisos. A quem deveriam seguir?

         — A lealdade deles é para com o arcanjo Miguel — gritou o Anjo de Asas Ne­gras, com a voz abafada por dentro do elmo. Carregava na cinta uma espada enorme; era forte como um touro, e vibrações indecifráveis emanavam de sua aura misteriosa.

         Ablon o identificou de imediato e, mesmo controlado e seguro, não foi capaz de conter a raiva. Fora o Anjo Negro que, tanto tempo atrás, enfrentara Ishtar e a espancara até a inconsciência. Também raptara Shamira de seu apartamento, exigindo que o general não se unisse a Lúcifer. À exceçáo de Apollyon, que ma­tara a maioria de seus companheiros renegados, não havia quem o querubim mais detestasse. Miguel sempre fora um adversário simbólico, político, mas es­ses dois rivais eram objeto de seu ódio pessoal, porque haviam matado ou mo­lestado seus amigos queridos, e não havia nada que Ablon prezasse mais do que a amizade sincera.

         Naquelas circunstâncias, o renegado poderia ter barganhado, dialogado, ne­gociado a libertação da feiticeira. Mas a razão o abandou e, com os olhos ver­melhos de fúria, disparou pelo corredor, para aplacar sua ira. Expandiu as asas alvas manchadas de sangue, e os capitães desfizeram o bloqueio, assustados com seu ímpeto valente.

         Confiante, o Anjo Negro tocou o cabo da espada. Um combate épico po­deria ali ter início, mas, apesar da fúria, Ablon era agora muito mais sábio que outrora. Compreendia que Shamira precisava urgentemente de seu apoio e de­cidiu encerrar a batalha com um só movimento.

         O Primeiro General foi veloz e investiu com a Flagelo de Fogo em ataque circular, atingindo perfeitamente o rosto do inimigo. A força do golpe atirou ao longe o guardião, enquanto seu elmo zunia em direção oposta, indo girar contra o solo de pedra em um característico arrastar de metal. Não fosse o capacete, teria o crânio amassado, mas o impacto foi suficientemente grave para levá-lo a nocaute. O Anjo de Asas Negras rolou pelo chão e escondeu a face nas trevas.

         Era um agente e tanto, sem dúvida — e tão forte quanto Ablon. Nem se com­parava aos capitães que guardavam a torre, carbonizados pelo simples toque da Flagelo de Fogo.

         O que fazer? — ponderou o Anjo Renegado. Enfrentá-lo de uma vez, corren­do o risco de chegar tarde demais a Miguel, ou dar as costas para o adversário, podendo ser abordado por ele depois?

         Os guerreiros de bronze resolveriam o impasse.

         Convencidos da superioridade e grandeza do Primeiro General, os capitães tomaram sua decisão. Em apoio ao líder rebelde, puxaram suas lâminas e par­tiram para atacar o agente de asas escuras, ainda atordoado. Ablon novamente sentiu o ímpeto de se juntar a eles, mas, com o estardalhaço, talvez Miguel já soubesse da invasão. O renegado temia que, ao escutar o ruído de luta, o prín­cipe assassinasse a necromante, em resposta à infiltração.

         Não havia mais um segundo a perder.

         Com a espada incandescente, estraçalhou a porta de ouro, como um esti-lete a rasgar o papel.

         Dali, enxergou a escada que conduzia ao penúltimo andar, à Sala dos Por­tais — um nível antes do pináculo da Roda do Tempo.

 

"Eu Sou a Palavra"

         Lá fora, ao redor da fortaleza, os guerreiros prateados — soldados rebeldes de elite, que haviam chegado em primeira ofensiva à torre — começavam a perder força. Combatiam com incansável bravura, mas estavam fadados à morte. Dos mil querubins que iniciaram a batalha, liderados por Ablon, pelo menos trezen­tos já tinham caído.

         Mas mesmo encurralados, fatigados e esmagados pelo contingente inimigo, o time avançado alcançara sucesso em missão. Os anjos rebeldes, em sua épica investida, conseguiram desorganizar as linhas de defesa aéreas que cercavam Sion. O cinturão protetor, antes composto por anéis de combatentes alados, agora não passava de uma massa caótica, um enxame de celestiais que voavam de um lado para outro, caçando os incríveis heróis que insistiam em lutar. Movidos pela ganância, os capitães perversos, em vez de manter formação, lançavam-se eles mesmos à perseguição dos revoltosos, esperando colher os louros pela muti­lação de oponentes tão arrojados. Em sua ambição, pouco se preocupavam com a integridade do coletivo; eram maldosos e egoístas e subestimavam o exército dos novos rebeldes.

         E justificado era seu julgamento. As tropas insurgentes estavam muito dis­tantes, a quilómetros dali, além das cordilheiras, e o Primeiro General, ícone da revolução, havia sumido. Ninguém encontrara seu corpo, mas imaginavam que havia tombado, porque sua aura apagara-se completamente.

         A falta de percepção desses comandantes cruéis encerraria seu trágico destino.

 

         Próximas dali, enfiadas nas sombras das montanhas que abraçavam Sion, as arqueiras aguardavam o sinal da Sexta Trombeta. Uma multidão de belas guerrei­ras, em suas malhas de ouro, espalhava-se por toda a extensão da cordilheira, vigiando a torre inimiga pelos ângulos mais impensáveis e esperando. Não fa­lavam, não se mexiam, mal respiravam. Escondiam-se entre as gretas, atrás das pedras, dentro das fissuras na rocha.

         Preparada, de flecha entre os dedos, Varna percebeu a redoma que cercava o pináculo do forte e notou o excessivo número de anjos destacados para de­fender o pátio superior. Eram tantos que nem sequer se enxergava o terraço -ponto onde, ela sabia, estava fixada a Roda do Tempo. Mas se só um deus po­deria mover o artefato sagrado, conforme diziam os sábios malakins, então qual seria a razão para tão ostensiva guarnição? Se a relíquia não podia ser removi­da ou alterada, por que Miguel teria ordenado que o pino fosse cercado?

         Esperta, a general virou-se para uma de suas oficiais:

         — É inexplicável o interesse do inimigo pela preservação do pináculo — afir­mou, com os olhos possantes. — Junte as melhores — ordenou. — Faça com que concentrem seus disparos na guarnição do terraço. Quero que todos os alados no cume da torre sejam abatidos.

         A lugar-tenente sinalizou em afirmativa e desceu a encosta anterior da mon­tanha, silenciosa, para passar o comando às outras arqueiras.

         — O que mais será que você guarda no coração dessa redoma vivente, im­piedoso tirano? — divagou a guerreira, só para si.

         Varna, como os demais querubins, era uma predadora. E seus instintos não costumavam falhar.

 

         Com a mesma furtividade que o preservara seguidamente na terra, o Anjo Renegado, de espada em punho, galgou a escadaria de pedra vermelha e che­gou a um aposento alto, de forma redonda e aparência sombria. Aquela era a Sala dos Portais, uma câmara tão célebre quanto seu singular morador. A aura de Ablon fervia de raiva e excitação, por finalmente ter alcançado o ponto fi­nal de sua demanda, iniciada havia pelo menos cinco mil anos.

         Nas paredes ao redor do recinto, existiam passagens lacradas, encerradas por maciças portas de ferro. Essas entradas, sem maçanetas, eram centraliza­das por recuos anelados, cada qual com seus símbolos distintos. Acessavam mui­tas dimensões paralelas, entre elas o céu e o inferno. Mas o Primeiro General não reparou nesses arcos nem deu muita importância ao fabuloso tomo, escri­to por dentro e por fora, que encimava um pedestal em forma de meia coluna, bem no centro da sala. Sua atenção estava concentrada no objetivo primário.

         No outro extremo da câmara, ele divisou a Feiticeira de En-Dor, presa pelos braços, atada por correntes, exposta como um trofeu. Seu corpo, suspenso no ar pelas amarras de ferro, bloqueava uma porta, mais larga que as outras, que levava ao pináculo da torre, onde estava fincada a Roda do Tempo. No olhar da mulher, o general distinguiu uma expressão diferente, mais controlada, qua­se irreconhecível.

         E, entre ele e a necromante, erguia-se o mais temível dos adversários.

         Miguel, o Príncipe dos Anjos. Uma figura alta, imponente, impiedosa e in­vencível. Seu rosto, parcialmente oculto pelo elmo, estava marcado por profundas cicatrizes. Vestia uma armadura completa, de aço refulgente, decorada com de­talhes dourados, e nas mãos carregava a Chama da Morte, uma espada flame­jante de cabo adornado. As asas eram brancas, e suas extremidades brilhavam como o fio de navalha.

         — Então, o proscrito retorna à casa onde foi consagrado — provocou o arcanjo. — Pela segunda vez você invade Sion, procurando a vitória. Mas aqueles eram dias de glória, quando o Primeiro General combatia a meu lado, ceifando e mas­sacrando sob as ordens do céu — incitou, recordando o tempo em que Ablon matava em seu nome. — Agora é a imagem da decadência celeste.

         O renegado não cedeu à afronta. Estava determinado a libertar a feiticeira, antes de tudo.

         — Você sabe por que vim — retrucou e, involuntariamente, seu olhar correu à mulher. — O Anjo Negro disse que eu a teria de volta se não me juntasse a Lú-cifer. E aqui estou eu, honrando as condições.

         — Eu estou acima da honra, renegado — vangloriou-se. — Sou maior do que qualquer acordo ou promessa. Sou único, absoluto. Eu sou a palavra, a ordem. Dito minhas próprias leis e minha pretensão. Quando a última trombeta soar, toda a vida humana terá se extinguido. O tecido cairá, e então a alma da Feiticei­ra de En-Dor será o resquício final da existência de Yahweh, o derradeiro vestí­gio de um Deus desaparecido, exterminado por sua própria vontade. Tomarei esse poder e me consagrarei como o Altíssimo sobre este universo.

         — Cairá antes disso, arcanjo — rebateu o general, convencido da demência do oponente. — Já perdeu a sanidade, e agora perderá a vida.

         O tirano sorriu, com perigosa malícia.

         — E quem me despojará? Você, o anjo proscrito? O pária celeste? O líder de uma irmandade de heróis mortos, humilhados? Sei que derrotou Balberith, Eu-zin e tantos outros. Mas eles eram apenas anjos. Eu sou um arcanjo, um gigan­te, o primogénito do cosmo, o filho do Luminoso. Nunca fui derrubado, e não o serei. Tenho um destino a cumprir, e ele me põe na culminância de todas as criaturas. Em poucas horas, quando a Roda do Tempo findar, jogarei sua cabeça para as legiões revoltosas. E aí elas saberão a quem devem obedecer.

         Desagradado com a arrogância do inimigo, Ablon preparou sua lâmina.

         — Vejo que está cego pelas trevas, Miguel. Trago comigo a Flagelo de Fogo, que antes pertenceu ao Mensageiro. As chamas da espada iluminarão sua razáo e purificarão suas idéias. E assim será, para o bem ou para o mal.

         Com isso, os dois celestiais cruzaram suas armas ardentes.

         E, antes que desferissem o primeiro golpe, escutaram o ruído da Sexta Trom­beta.

         Era o princípio do fim.

 

A Sexta Trombeta - Começa a Batalha

Na planície, os rebeldes estavam alinhados. Baturiel os organizara em alas e fileiras, como colunas e linhas, verticais e horizontais. Formavam assim um exército maciço, como uma parede altíssima e de larga espessura. Apenas os sol­dados da primeira ala se apoiavam em terra. Os outros, sobre eles, adejavam, pairavam no ar, esperando para voar ao objetivo. Elevavam-se do chão três mil metros acima, que era a distância do solo até o último andar da fortaleza ini­miga, e assim avançariam, em formação.

         Baturiel, o Honrado, era o único destacado e voava à frente, armado de lan­ça e espada, preparado para liderar os milhões. Era noite, mas a lua cheia ilu­minava todo o deserto, como um lustre fúnebre aceso para o confronto final.

         Do acampamento, os revoltos assistiam ao massacre de seus guerreiros de elite, bravos celestes que encararam a morte para facilitar a ação das legiões prin­cipais. Mas, ao observar seus companheiros tombarem, não esmoreciam — ao contrário. A cada prateado abatido, acumulava-se no coração dos insurgentes a ânsia pelo combate, a energia que provém da vingança. A cada instante de es­pera, crescia o desejo pela batalha, a vontade de lutar, de cruzar armas e perse­guir o triunfo.

         E foi no exato momento em que caiu um dos alados mais estimados que soou a Sexta Trombeta.

         De lança e espada nas mãos, Baturiel gritou, ao silenciar do estrondo:

         — Aos probos, os louros; aos perversos, a morte! — repetindo as palavras de Ablon em seu discurso ao exército. — Em honra do Criador e das criaturas da terra!

         E iniciou seu ataque.

         As legiões rebeldes o seguiram.

 

         Na Fortaleza de Sion, os defensores, que ainda brigavam com os lutadores de prata, avistaram o maravilhoso exército rebelde que se levantava no sul e pro­gredia contra a cordilheira. Se comparados às tropas sitiadas, os revoltosos consti­tuíam uma força pequena, apesar de seus milhões de soldados. A energia desses atacantes, contudo, sufocava os perversos, que se apressaram em retomar posi­ção, pois assim se achavam indestrutíveis. Mas muitos de seus generais haviam sido exterminados pelos combatentes de elite, e os capitães encontravam difi­culdades para refazer os anéis.

         Então, antes que reagrupassem o cinturão de defesa, uma torrente de setas, que mais pareciam raios dourados, precipitou-se sobre parte dos guerreiros que protegiam a bastilha. Disparadas de todas as direçóes, as flechas encontraram seus alvos, abatendo grande número de sitiados. Eram tantos os projéteis que ao ser arrojados imitavam uma onda veloz, obscurecendo até mesmo o brilho da lua.

         Mas de onde partia aquele ataque quase invisível? Como surpreendera tão eficientes soldados?

         As picadas certeiras dizimaram todos os combatentes que rodeavam o piná­culo da torre e, quando eles caíram, Varna enxergou o pátio da Roda do Tem­po. Percebeu uma mulher de pele clara e cabelos negros presa a uma pilastra de mármore e concluiu que fosse a Feiticeira de En-Dor, embora nunca a tivesse encontrado.

         — É a tal necromante — disse para uma oficial a seu lado. — A redoma tinha o intuito de escondê-la do Primeiro General, para que ele entrasse em Sion por outro caminho. É possível que o anjo guerreiro esteja sendo atraído para uma armadilha.

         Na Torre das Mil Janelas, um dos comandantes maldosos, chamado Mirdoth, viu a movimentação das arqueiras nas montanhas circundantes, agora claramente aparentes, e entendeu quanto seus lutadores estavam vulneráveis a sucessivas investidas. Deduziu, com isso, a estratégia dos revoltosos e tentou or­ganizar os esquadrões.

         — Voem para a cordilheira! — berrou. — Massacrem os proscritos!

         — Não! — discordou um segundo general, estourando aos gritos. — Não pode­mos deixar a fortaleza desguarnecida.

         As legiões hesitaram, aguardando o comando final.

         — Então dividamos os grupos — propôs Mirdoth. — Não vou servir de alvo para os insurgentes.

         — Chamem as legiões de dentro da torre! — exigiu um terceiro, ferido na asa por um golpe dos prateados.

         Enquanto discutiam, principiou-se uma nova torrente. Mirdoth foi perfu­rado por uma seta que lhe atravessou a garganta, e um outro caiu com uma pon­ta alojada no ombro. Mais defensores tombaram, mas ainda eram muitos os in­tocados. Um oficial sobrevivente autorizou o deslocamento de tropas do interior da torre para o lado de fora.

         Assim, Sion converteu-se em algo semelhante a um ninho de insetos, repleta de zangões que saíam em fila, ajustando os ferrões.

         Mas, abandonando o forte, as companhias internas esvaziaram os salões prin­cipais, deixando a guarda de seus túneis a alguns poucos vigias, que sozinhos não teriam condições de impedir uma invasão — caso os rebeldes ali penetrassem.

 

         Na sombria Sala dos Portais, Ablon e Miguel se entreolhavam, em perfeita concentração, iluminados somente pelo ardor de suas espadas fulgentes. Con­fiante em sua grandiosidade, o Príncipe dos Anjos esperava pelo primeiro golpe, deliciando-se com a tensão do inimigo. O general, por sua vez, suava, aguardan­do um vacilo para manobrar sua lâmina.

         Os dois — príncipe e vagabundo — escutaram, com seus sentidos afinados, a gritaria do exterior e o rasgo das flechas mortais que se fincavam nos sitiados. Depois, veio o impacto abafado das setas, derrubando um por um os defensores.

         — Parece que seus guerreiros foram surpreendidos — constatou o renegado. — Minhas legiões deram início ao ataque. Logo, Sion será invadida.

         — Seus regimentos não perdem por esperar. Os insurgentes serão aniquilados, e suas legiões, totalmente vencidas. A mulher será sacrificada, e a essência de sua alma me elevará à divindade.

         — Sua loucura é patética, Miguel. Com ou sem um espírito humano, acha que, sozinho, será capaz de governar todo o espaço universal? Sua liderança ruiu até o firmamento e dividiu os anjos do céu. Seu carisma é uma farsa, e seus par­tidários o temem. Que tipo de reino pretende forjar sob o jugo do medo?

         — O medo é o instrumento dos fortes, não o carisma ou o amor. Só a fir­meza e a repressão governam. A benevolência leva à fraqueza, à indisciplina e à inação. E você, general, é a imagem dos fracos, a mancha que ameaça a pureza dos gloriosos. Por milênios tolerei sua anarquia, mas hoje terminarei minha mis­são, conforme preconizou o Pai Criador.

         Ablon não compreendia, em absoluto, o curioso fatalismo do soberano. Ima­ginou o que impulsionava sua fé no absurdo, mas interrompeu o raciocínio quan­do percebeu a ação da espada oponente. Era a Chama da Morte, que descia pa­ra esmagar-lhe a fronte!

         Em súbita agressão, o tirano atacou com toda a energia e perícia, e por um momento o querubim achou-se desesperado, a exemplo de seus embates com Lúcifer e Gabriel. Mas uma força superior animou seus movimentos, e a Fla­gelo de Fogo subiu para bloquear a poderosa lâmina do adversário. Ao choque das armas, um fogaréu emanou das folhas ardentes, aclarando todo o recinto.

         — Então ousa persistir no desafio, em vez de entregar-se à morte? — rosnou o Monarca Celeste.

         — Vou além com minha ousadia — rebateu o general. Em suprema veloci­dade, rolou para o lado e avançou como uma fera voraz.

         Mas o arcanjo era astuto e se defendeu. Começava assim o combate, com uma incrível sucessão de golpes que, a cada batida, estremecia a fortaleza.

 

         Enquanto ainda se recuperavam do espanto das flechas, os defensores assis­tiram à violenta abordagem dos revoltosos. As legiões regulares, lideradas por Baturiel, avançavam sobre os sitiados, cheias de cólera e vontade. Lá embaixo, na base da torre, já se empilhavam milhares de corpos, vitimados pelas flechas douradas e pela pujança dos guerreiros de prata. O montante de cadáveres, des­troçados e mutilados, prostrava-se no solo, chegando à altura do primeiro andar.

         Enfim, os poucos sobreviventes do grupo de elite recebiam reforço. Podiam recuar agora e ainda assim manter sua honra, mas nenhum dos celestes largou o combate. Continuaram a batalhar, e seguiriam lutando até a vitória final, ou até que a morte os levasse.

         Sucedeu-se, então, o choque inevitável. O exército dos novos rebeldes atacou em vários níveis, cada qual mirando um cinturão de defesa. Milhões de guardiões da fortaleza receberam a carga dos invasores, que rapidamente se espalharam por todos os cantos. Baturiel e seus anjos engoliram as linhas de sítio, suprimindo as defesas de Miguel como uma mão que se fecha sobre o cabo de uma bengala.

         A distância, a Torre das Mil Janelas converteu-se em um negro emaranhado de soldados alados, que se digladiavam em feroz ofensiva. A zona de conflito parecia uma nuvem coruscante, ora preta, ora rubra, que se movia em ondas desencontradas.

         Para quem estava no calor da peleja, o barulho era quase insuportável. Metal se chocando, gritos estridentes de dor, zumbidos de flechas e lanças passando a centímetros. Apesar de Sion erguer-se a quilómetros do chão, a área de batalha estava superlotada, e volta e meia um guerreiro era ferido por um golpe resva­lado. Além do ar rarefeito pela altitude, o calor no centro da briga era incrível, com milhões de celestes lutando tão próximos.

         Os rebeldes eram superiores, tinham bravura, força e disciplina, e a princípio seu triunfo era certo. Mas não paravam de sair esquadrões do interior da bastilha, repondo a cada segundo os milhares de mortos e feridos.

         — Quantos mais ainda existem lá dentro? — perguntou Shenial, um general insurgente, ao honrado Baturiel.

         — Não sei — o outro admitiu, voando pelas linhas adversárias. — Ataquem os comandantes! — vociferou, sempre atento à evolução do confronto. — Sem os ca­pitães, os malignos ficarão desnorteados.

         E, ilustrando a tática ordenada, Baturiel enxergou um chefe inimigo, que com a espada em punho tentava reagrupar sua divisão. O nome dele era Lahash, e antes da guerra civil era tido como um oficial indisciplinado, embora pode­roso. Devia ter alcançado o posto de comandante por meio de bajulações e sub terfúgios, e o Honrado decidiu que ele seria seu alvo.

         Mestre no uso da lança, Baturiel arremessou a arma contra Lahash. A lâmina voou tão rápido que parecia invisível, e por fim penetrou a placa peitoral do ce­leste. O rival não tardou a morrer. Num instante suas asas se fecharam, a visão apagou e ele caiu, atrapalhando os soldados que lutavam nos cinturões abaixo.

         Um oficial de Miguel chegou por trás, mas Baturiel pressentiu o golpe. Es­quivou-se do aço e logo avançou. A decisão mais óbvia foi reagir com um soco. O murro acertou o adversário no queixo, e mesmo com a barulheira da guerra todos ali escutaram o ruído do pescoço rachando.

         Depois, sacou a espada e prosseguiu com a chacina.

 

O assalto dos anjos do fogo

         No topo da fortaleza, Ablon e Miguel persistiam em fervoroso duelo. As lâ­minas se encontravam, e o Primeiro General resistia, mas era clara a superioridade do Príncipe dos Anjos, que frustrava todos os golpes do inimigo, respon­dendo às agressões com habilidade admirável.

         Ablon tentou avançar com um assalto na vertical, mirando-lhe a cabeça, depois na horizontal, à direita e à esquerda. Miguel defendia com tanta força que o bloqueio era quase um ataque e obrigava o renegado a usar toda a potência dos músculos para não se partir ao meio.

         Era a vez de o príncipe se adiantar. Era tão rápido que seus golpes deixavam rastros de movimento impressos no ar, os quais desapareciam momentos depois. Um humano que presenciasse um combate assim nem enxergaria as pancadas, tão assombrosa era sua velocidade.

         Miguel lutava com maestria ímpar. Lançou uma sequência de ataques ligei­ros, sem muita penetração, só para cansar o inimigo. Depois de dez ou quinze movimentos, usou as asas para pular sobre Ablon, rodopiando, e descer às cos­tas dele. Com esforço, o Primeiro General conseguiu se virar, mas a guarda ain­da não estava firme. Por pura sorte, a Chama da Morte encontrou a Flagelo de Fogo — se encostasse na armadura, o renegado estaria morto! A pancada foi im­pressionante, e Ablon foi duramente jogado contra a parede, sentindo alguns ossos da asa direita se quebrarem. Um pouco de sangue escorreu pela boca, mas ele se levantou prontamente, para segurar o próximo baque.

         No decurso de suas aventuras, jamais enfrentara tão formidável oponente. Nem mesmo em suas legendárias batalhas confrontara um adversário com tal capacidade.

         — Desista, rebelde! — exclamou o tirano. — Sua insistência só adiará sua morte. Prostre-se, para que eu abrevie este duelo.

         O querubim estacou, diante da súbita proposta.

         — Um arcanjo demonstrando piedade? Não é a firmeza que governa o uni­verso?

         Miguel não respondeu. Por um segundo, a justiça bateu em seu coração, e ele se lembrou das Batalhas Primevas e do rosto do Pai Celestial, cheio de afeição e bondade. Houve um tempo em que o príncipe chegou a amar, mas esse amor o levara ao ciúme. Isso fora nos dias antigos, quando Yahweh fizera de sua essên­cia a alma humana, entregando aos mortais a obra terrena, que os arcanjos julga­vam ser sua. O amor dos gigantes transmutou-se em ódio, fomentando a tirania.

         — Por quê, Príncipe Alado? — insistiu o renegado. — Como se degradou a tal ponto? Por que não fez o que lhe foi ordenado e louvou a graça dos homens? Talvez, se lhes tivesse indicado o caminho do bem, nunca tivessem conhecido a guerra ou a violência. Não foi para isso que foi coroado? Para liderar anjos e mortais e levá-los à trilha da virtude?

         Um brilho de esperança acendeu nos olhos da figura malévola.

         — Orion teria concordado com você — admitiu. — Foi assim que reinou em Atlântida. Mas não sou indulgente. Recuso-me a servir aos impuros, porque provenho da luz do Onipotente. Como poderia adorar um bando de animais que se arrastavam na profundidade das cavernas imundas?

         — Os humanos são os herdeiros de Deus e carregam na alma o legado do Criador-Ablon discordou. — Devia ter se conformado, servido. Mas sua soberba o incitou à carnificina.

         Miguel abaixou a espada, consternado, refletindo sobre o impasse. Era li­geiramente mais alto que Ablon, e fisicamente mais vigoroso.

         — Então eu lhe pergunto, Anjo Renegado, por que está lutando contra mim? Também não é um perverso que combateu em mil batalhas sangrentas?

         — Não vou negar — reconheceu — nem vou me justificar por meus assassi­natos. Não vou julgar meus atos, tampouco os seus. Mas agora não posso mais recuar. Há muitos que amo, muitos que confiaram em mim. Por eles, batalharei até a última centelha, mesmo que para isso tenha que roubar mais uma vida.

         — Mate-o — surpreendeu a Feiticeira de En-Dor, acorrentada. O general não compreendeu sua atitude, tão calma costumava ser a mulher. Supôs que estivesse sob tremenda fadiga mental.

         Mas foi Miguel quem atacou, recuperando toda sua loucura. Sumiu a dú­vida na face do opressor, e ele golpeou com a Chama da Morte, em traiçoeira manobra. Ao enérgico impacto da arma inimiga, a Flagelo de Fogo escorregou das mãos do renegado, indo perder-se em um extremo da sala.

         Desarmado, o general preparou a Ira de Deus, mas antes disso sofreu mais um assalto. Conseguiu esquivar-se, mas fugiu para uma área pequena, onde se­ria encurralado. A lâmina resvalou no chão de pedra, abrindo uma enorme fis­sura no piso.

         Miguel revirou-se, cercando o querubim em um canto e submetendo-o sob o fio da espada.

         — Esta é sua fronteira, proscrito, seu limite. Chega ao fim sua jornada — e, sem piedade, manobrou sua arma para lançar o choque fatal.

         Mais uma vez, porém, a Ira de Deus salvaria o herói.

         Com inacreditável destreza, o soco partiu, e Ablon percebeu como se sentia bem utilizando sua técnica fundamental. Ele nunca soube direito como acon­tecera, mas parecia que nunca estivera tão forte. A energia divina percorreu seu corpo, agitando os átomos no espaço e concentrando o vigor na dureza dos pu­nhos. A Ira de Deus, geralmente invisível, brilhou com uma aura dourada, acer­tando o rosto do tirano celeste.

         Miguel não esperava uma surpresa daquelas. Viu apenas o murro se aproxi­mando, explodindo contra o nariz, destruindo-lhe completamente o elmo. Ató­nito, cambaleou para trás, tropeçou e caiu. Agora tinha sangue no rosto, e por um minuto a visão escureceu. Tossiu e tentou se agarrar à parede.

         O soco de Ablon liberou o caminho entre o Primeiro General e a Feiticeira de En-Dor. Com a celeridade da acometida, a pena escurecida de Apollyon, que o guerreiro carregava no cinto, desprendeu-se e escapou para o breu, sem que ele percebesse.

         No curto instante de calma, durante o qual Miguel se levantava, Ablon não pensou em massacrá-lo. Dispensou a oportunidade de liquidar o rival e preferiu libertar a necromante, aprisionada pelas correntes de ferro. Por ela ingressara na guerra, e por ela invadira Sion.

         O Anjo Renegado acudiria Shamira, para depois terminar a peleja.

 

         Mesmo com as legiões internas da fortaleza unindo-se às tropas externas, os rebeldes venciam. Os soldados defensores eram repostos pelos esquadrões que saíam da torre, mas nem os incólumes eram capazes de segurar a coragem dos invasores. Nas montanhas, as arqueiras continuavam a disparar suas setas, mas não mais em ondas compactas, e sim em ataques cirúrgicos, para não ferir os companheiros em combate. Agora, não só o chão, mas os degraus que circula­vam os andares estavam abarrotados de mortos, e as rubras pedras do baluarte ficavam ainda mais rubras.

         Então, surgiu no horizonte um grupo de celestiais envoltos em uma nuvem ardente. Do corpo escapavam labaredas vermelhas, e os punhos copiavam to­chas acesas. Esses revoltosos, liderados pelo inestimável Aziel, não eram anjos guerreiros. Não carregavam arma ou armadura. Eram os ishins, governantes das forças elementais, que chegavam à batalha no momento do esvaziamento da torre. Tinham por missão invadir a bastilha e inflamar o símbolo da opressão, destruindo o maior orgulho do arcanjo Miguel.

         — Guerreiros de prata — convocou Baturiel, ao perceber a aproximação de Aziel e seu time —, atrás de mim! Preparar ponta de lança — ordenou. Pelo menos cem batedores de elite ainda viviam e responderam ao comando do general va­loroso.

         Com esses heróis, o Honrado formou uma dupla fila no céu, para perfurar as posições inimigas e abrir uma ponte segura, através da qual os anjos do fogo pudessem passar sem ser acertados. Não eram combatentes, apesar de seu poder magnânimo, e sofreriam se expostos ao calor do conflito.

         Assim atacaram os prateados e seu comandante, improvisando uma trilha celeste. Por esse livre corredor seguiram os ishins, para adentrar o forte por suas incontáveis janelas, agora já desguarnecidas.

         Quando pisaram nos salões de Sion — imensas câmaras vazias, de magníficos vitrais, colunas enormes e teto ogival —, Aziel e seus alados estavam prontos para iniciar o incêndio.

         Mas e quanto a Ablon, o Primeiro General? Ele ainda não regressara.

         A Chama Sagrada decidiu esperar.

 

Traição em Sion

         Ablon cruzou a Sala dos Portais com uma batida de asas, sobrevoando o pe­destal no centro da câmara sobre o qual jazia o Livro da Vida. Agarrou-se à pa­rede e, só com as mãos, arrebentou as correntes que prendiam Shamira.

         O ferro partiu-se com um estalar abafado.

         Sem dar espaço ao raciocínio, o Anjo Renegado tomou nos braços a feiti­ceira, que se apoiou na armadura do herói.

         — Vou deixá-la em área segura. Há muitos túneis vazios nos andares inferiores — avisou, satisfeito por tê-la libertado, mas então estranhou o aroma da pele, que mascarava um odor adverso. A textura da tez também parecia bem diferente, e até as batidas do coração não soavam as mesmas.

         No outro extremo da sala, o Príncipe dos Anjos ergueu-se, com os cabelos pretos cortados por uma mecha branca agora soltos, depois da destruição de seu capacete. Dali, retomou a Chama da Morte e enxergou o rosto da necromante, amparado ao ombro do general. De repente, os olhos castanhos da moça ficaram azuis, e sua face inverteu-se em uma expressão demoníaca.

 

         Ainda sem sua espada, Ablon deu meia-volta em direção à saída e só então percebeu as nuances do aposento. De posse da mulher, observou bem toda a sala, procurando a melhor rota de ruga. Mas então notou um detalhe terrível.

         Das dezenas de portas místicas, com seus recuos anelados e símbolos carac­terísticos, uma estava entreaberta — era a passagem do inferno!

         Antes que reagisse, a mão pequena da necromante, que abraçava seu forte pescoço, cresceu em garras enormes. As unhas pontudas, negras e afiadas pene­traram a garganta do querubim, rasgando-lhe a carne em um movimento ligeiro.

         Imediatamente, o renegado a soltou e caiu de joelhos, com jatos de sangue a espirrar pelo chão. O corte dilacerara a artéria carótida, e a morte era só uma questão de minutos.

         Aturdido, assustado e sem palavras, Ablon voltou o olhar para a figura da feiticeira e de repente entendeu quem era, verdadeiramente, seu ardiloso carrasco.

         Lúcifer, o Arcanjo Sombrio, estava ali, de pé, fitando o renegado com seu habitual sorriso malicioso. Como antes, vestia uma túnica branca, mas agora sobreposta por uma placa dourada. Trazia uma espada — fato raro, porque nunca era visto portando nenhum tipo de arma.

         Mas o que fazia o Senhor do Sheol na Fortaleza de Sion? Como teria en­trado na torre? Quem o teria chamado? Era um demônio, supostamente o maior inimigo do céu.

         — O Diabo tem muitas faces — sussurrou a Estrela da Manhã. — Você já deve ter ouvido isso em algum lugar — comprimiu as asas de morcego e juntou os dedos em estilo teatral.

         — Lúcifer! — exclamou o Primeiro General, esforçando-se para respirar. — Seu traidor! Era uma ilusão...

         — Ilusão? — protestou, indignado. — Ora, general, reconheça, ao menos uma vez, a grandeza de minhas habilidades. Não se trata de ilusão, absolutamente. É minha capacidade de transmutar-me. Você já a conhecia, suponho.

         O renegado nada disse, tomado pela dor e engasgado com o próprio sangue, que lhe escorria aos litros pelo pescoço.

         — Tente entender, Ablon, não é nada pessoal. Fiz de tudo para evitar este horrível confronto. Chamei-o até mim e ofereci-lhe aliança. E aí, quando você recusou, não tive escolha — e simulou uma carranca de choro. — Eu sinto tanto! Se sua resposta fosse outra, talvez hoje estivéssemos aqui, eu, você e Miguel, prontos para dar a partida a um novo mundo, preparados para governar todo o universo. O que é a terra senão uma semente perto da magnitude do cosmo? Quantos planetas poderíamos povoar por aí afora? Quantos sóis poderíamos ainda dominar?

         E, ao terminar o discurso, ficou muito sério e completou:

         — O Armagedon não é o fim, é o princípio.

         — Mas a revolução... — Ablon tossiu. — A guerra no céu.

         — Minha queda foi forjada — continuou o Filho do Alvorecer —, e muito bem arquitetada por mim e por meu irmão — e a imagem do Príncipe dos Anjos res­surgiu no limitado campo de visão do general moribundo. —Assim, governaría­mos o céu e o inferno, a luz e as trevas, e no final teríamos a recompensa pela qual esperamos. Para nossa conspiração, recrutamos um agente duplo, o Anjo Negro, único canal de comunicação entre o porão e o poleiro, uma entidade capaz de viajar livremente pelos planos de existência. Agora, com a essência da feiticeira, teremos o livre-arbítrio, e a destruição do tecido extinguira a fronteira que restringe nossos poderes. Onipotentes e dotados de vontade própria, cum­priremos nosso destino e nos elevaremos à divindade. O deus da luz e o deus das trevas, reinando absolutos sobre o infinito!

         — Dois arcanjos dividindo o poder? — a hipótese seria até cómica, se não fos­se tão trágica.

         — Sua visão é limitada, porque desconhece os anais dos dias remotos. Há muito tempo, antes da luz, havia Yahweh, o deus da claridade, e Tehom, a deusa da escuridão. O Criador nos deu a vida para que lutássemos a seu lado nas Bata­lhas Primevas e derrotássemos os deuses das trevas. E, quando tudo se acabou, quando o Altíssimo venceu e completou o trabalho da criação, sentiu-se ocioso, pois havia findado seu objetivo. E, cansado, dissipou sua essência. O maior er­ro do Reluzente foi ter-se consagrado único, porque isso acabou por levá-lo à inércia. Não cometeremos esse deslize. Sempre haverá fulgor e obscuridade; es­sas são duas províncias imisturáveis. Seremos eternos, inacabáveis, e cada qual controlará o seu reino. Para sempre brilhará em nós o estímulo da vida, porque o espaço é perene. E quando estivermos aborrecidos, restarão mais mundos para colonizar ou para destruir; mais lugares para saciar nossa fome. Povoaremos o cosmo com nossos agentes leais, que não serão nem anjos nem demônios, mas uma espécie renovada, nossos arautos. O duplo reinado garantirá nossa infin­dável sobrevivência. E assim encerra-se nosso conluio, tão primorosamente rea­lizado — finalizou, caminhando para mais perto do irmão. — No paraíso ou no Sheol, ninguém desconfiou de nossa intenção — vangloriou-se. — É admirável o poder da comunicação. Acho que sou o pai dos políticos.

         Miguel, o Príncipe dos Anjos, repôs à bainha a Chama da Morte e aproxi­mou-se do general.

         — Ishtar chegou perto da verdade — revelou o tirano, invocando o nome da renegada, a primeira proscrita assassinada, espancada pelo Anjo Negro.

         — Ah, sim, aquela pobre garota — recordou-se Lúcifer. — Como poderia tê-la esquecido? Ishtar foi a única que suspeitou de nosso estratagema.

         Irado, porém inútil, Ablon arrastou-se pelo piso da sala, na vã tentativa de retomar a Flagelo de Fogo, que ainda crepitava ali perto. Os inimigos gargalha­ram, desprezando seu esforço.

         — Pouco antes da queda, Miguel e eu nos encontramos na terra para acertar os pormenores da conspiração, longe dos outros arcanjos. Ishtar, que vagava pelas cercanias, pressentiu nossa aura e descobriu nosso segredo. Seria um perigo para nós se ela desse com a língua nos dentes, portanto preferimos exterminá-la e caçar todos aqueles aos quais ela poderia repassar a informação. Eis o mo­tivo pelo qual a irmandade foi condenada.

         — Então era tudo uma desculpa — gemeu o general. — A justificativa de que os renegados provocaram sua queda era só um pretexto. Também a propaganda de Miguel não passava de um embuste para nos silenciar.

         — Antes disso, enxergávamos a Irmandade dos Renegados como um séquito de desprezíveis. Suas idéias não poderiam nos ameaçar... até suceder-se esse de­sagradável episódio. E aí tivemos que decretar sua perseguição.

         Exaurido, no limite de suas forças, Ablon animou-se para mais uma vez bus­car o cabo da espada, mas não conseguiu. Uma nódoa grande de sangue inun­dava o solo de pedra, e sua pressão despencava.

         Com os olhos cinzentos já se apagando, ele fitou a porta do inferno, amaldi­çoando sua pouca cautela e sua incapacidade de compreender a mente aguçada dos inimigos. Lúcifer agachou-se, para uma última e surpreendente revelação.

         — A chave. Nunca precisei dela realmente, ou não a teria entregado na ca­verna do Diabo. Era uma relíquia original, de fato, mas não fazia a menor di­ferença para mim, já que minha passagem para Sion esteve aberta desde o início. Usei-a para desviar sua atenção, e consegui, ao que me parece. O segredo de uma boa mentira está nos detalhes, general.

         Incapaz de falar ou reagir, o Anjo Renegado gemia, desejando ter a Flagelo de Fogo ao alcance. Admirado com o vigor do querubim, o Filho do Alvore­cer, sarcástico, sinalizou para o irmão, permitindo que o moribundo recuperasse sua arma. O Monarca Celeste concordou, mais por sadismo que por piedade, e chutou a espada, que foi parar sob o punho do massacrado guerreiro. Com toda a energia que ainda guardava, Ablon apertou o cabo do sabre, sem a in­tenção de largá-lo.

         — Se assim prefere... — consentiu o Diabo — Morrer brandindo a espada... Não farei objeção.

         Lúcifer girou nos calcanhares e falou ao cúmplice:

         — Vamos, Miguel. Continuemos nossa conversa na cobertura. Lá é mais are­jado — convocou, referindo-se ao pináculo da torre, o pátio da Roda do Tem­po, onde a verdadeira Shamira estava aprisionada. — Permitamos que o revoltoso veja a feiticeira pela última vez.

         O Príncipe dos Anjos agarrou o general pela gola da armadura, para arrastá-lo ao terraço. Antes, porém, pegou o Livro da Vida, sobre o pedestal, e o levou juntamente para o andar culminante.

         A Estrela da Manhã subiu as escadas, seguida por Miguel. O sangue do re­negado escoou nos degraus, desenhando uma trilha macabra e fazendo uma po­ça no chão do salão.

Aos estímulos do cérebro, os músculos do querubim não mais respondiam, mas manteve os dedos firmes, carregando consigo a lâmina ardente.

 

A Cidade no Centro do Cosmo

         Nas águas rubras e turvas do Styx, os leviatãs estavam muito próximos de seu destino, embora os passageiros desconhecessem o caminho. Os barqueiros haviam conduzido as hordas por dimensões extraordinárias, algumas alheias até mesmo à inteligência dos espertos duques do inferno.

         O último atalho cruzaria um universo oculto, aterrador aos demônios — não por seu caráter maléfico, mas por sua natureza ilógica. Para um grupo de po­derosos caídos, que julgava ter visto de tudo e vivenciado as mais formidáveis experiências, aquele era um sítio de agonia e frustração.

         Os leviatãs deslizaram por um canal, um dos braços principais do Styx. As marolas estouravam nas margens, retidas por paredes esverdeadas de ferro, cor­roídas pela ferrugem. O terreno, por todos os lados, dava vida a uma impres­sionante cidade, diferente dos padrões concebíveis. Torres compridas nasciam do chão, encimadas por espigões de aço retorcido. No céu, brotavam mais cons­truções, de cabeça para baixo, como se a urbe fosse moldada no interior de uma esfera, de proporções incalculáveis.

         Mas apesar de sua amplitude, a localidade era abafada, úmida e sufocante. Um silêncio mortal inundava a metrópole, quebrado, de minuto em minuto, por um ruído agudo, parecido ao arrastar de uma monstruosa corrente. E, à borda do canal, acotovelavam-se os assustadores habitantes daquela terra bizarra — seres pequenos, redondos, de casca metálica, desprovidos de membros, que flutuavam no ar. Não tinham rosto, só um único olho, sem pálpebras, que usa­vam para observar os passantes. Transpareciam um tipo sinistro de imparciali­dade, como se não possuíssem espírito ou emoções, boas ou más. Nesse ponto, eram idênticos aos barqueiros — criaturas enigmáticas, impenetráveis.

         Asmodeus surpreendeu-se ao examinar tão inusitado cenário.

         — Diga-me, Orion — sibilou o demônio ao Rei Caído de Atlântida. — Você, que tanto estudou sobre os infinitos mistérios do multiverso... o que diria sobre este ambiente medonho?

         O satanis fitou novamente as torres de aço e inclinou a cabeça.

         — Xandria, a Cidade no Centro do Cosmo — afirmou, sem muita certeza. — É assim chamada pelos malakins, ainda que não seja propriamente uma cidade nem .steja exatamente no centro do cosmo.

         — E o que são essas figuras vazias, que nos encaram da margem? — indagou o duque, referindo-se às entidades de pele de ferro. — Não desprendem nenhuma essência ou energia vital.

         A erudição do atlante não chegava a tanto.

         — Não sei quem são, mas pertencem a uma esfera cósmica adversa, e isso explica nossa incapacidade de compreendê-las. Talvez sejam animadas por outra sorte de energia, diferente da minha ou da sua. Seria tolice especular a respeito

— concluiu, encerrando a conversa.

         Da proa, os oito nobres satânicos avistaram a passagem para uma galeria e viram quando a abertura se dilatou como mágica, para receber o primeiro dos navios gigantes. O túnel fluvial, que descia ao subterrâneo, ampliou-se, e por ele seguiram os leviatãs, lotados de diabos e espíritos-escravos.

         Dentro em breve, alcançariam o ponto terminal da viagem: o plano etéreo.

 

O Veneno da Serpente

         Enquanto a batalha seguia em volta de Sion, vitimando milhões de alados, no interior Aziel e os ishins esperavam, na frigidez das câmaras vazias. Mesmo juntos, pareciam formigas diante da enormidade dos salões abandonados. De­pois que todas as legiões de apoio se deslocaram para fora da torre, a fortaleza ficou desprotegida, quieta e um tanto soturna. O brilho da lua trespassava os vitrais, desenhando fúnebres figuras às sombras das magníficas colunas de bron­ze, que às vezes substituíam os pilares rochosos, em certas salas mais suntuosas.

         A Chama Sagrada e seus comandados — anjos ígneos, que mantinham os punhos em lume perene — esquadrinhavam os aposentos e avançavam, pouco a pouco, para o coração da bastilha, procurando seu eixo fundamental, para en­tão principiar o incêndio. Poderiam estalar imediatamente o fogaréu, posto que suas flamas divinas eram suficientemente intensas para consumir pedra, vidro e bronze. Mas Aziel adiou a açáo, preferindo, antes, buscar a tal linha central de sustentação, ponto onde as explosões provocariam uma destruição mais efi­ciente — e mais rápida. O atraso também daria mais tempo ao Primeiro General, que até então não retornara ao campo de guerra.

         O time meteu-se por um túnel pequeno, de paredes circulares e iluminação fraca — uma das passagens labirínticas que se conectavam aos andares superiores, também chamadas de vias angélicas —, chegando, finalmente, a um corredor largo e vazio. A parede norte era aberta, amparada por pilastras quadradas. A janela permitia uma impressionante visão do exterior, e dali os invasores observa­ram, por segundos, a evolução do conflito e a determinação dos rebeldes, que derrubavam com vigor os sitiados, destronando suas defesas e abrindo caminho para a vitória final.

         Banindo a escuridão com as mãos inflamadas, Aziel, surpreso, divisou marcas estranhas no piso, que de tão peculiares despertaram sua atenção. Pareciam ter derretido o soalho, todo pavimentado com maciças placas de pedra. Eram pe­gadas, ou assim se mostravam. Ajoelhou-se para examiná-las e descobriu, ain­da, minúsculos buracos no solo, como gotículas de erosão, supostamente pro­vocados por pingos corrosivos — ou seriam lágrimas de fogo?

         Tocou as distorções e percebeu que ainda ferviam. Tais marcas teriam sido causadas, certamente, por passadas escaldantes, emanadas por alguma entidade elemental, tão ou mais poderosa que ele. Aziel sabia que só os ishins tinham a habilidade de criar labaredas capazes de fundir as rochas mais duras, e imaginou, inicialmente, que um membro de sua casta, simpático ao inimigo, vagava pelos arredores.

         Por estar no principal bastião dos celestiais leais a Miguel, a mente de Aziel esqueceu o mais simples. Não só os ishins detinham a supremacia sobre a pro­víncia do fogo, mas também os zanathus. Excitado e temeroso, ele logo percebeu seu lapso.

         — Amael... — decifrou, em um murmúrio engasgado. E virou-se a seus com­panheiros:

         — Fiquem aqui e não façam nada até que eu retorne.

         De pronto, seus seguidores acataram o comando, porque compreenderam, no instante exato, a carga dramática da situação e o grande desafio imposto, pelo acaso, ao líder do esquadrão. Se Amael estivesse mesmo ali, na Torre das Mil Janelas, Aziel deveria encará-lo — e sozinho.

         Ele não parou para pensar no absurdo que significava um infernal transi­tando livremente pela fortaleza do Soberano Alado. Desde quando a inexpug­nável Sion servia de esconderijo para diabos?

         Cauteloso, porém pouco furtivo, continuou pelo corredor, sem enxergar o que espreitava adiante.

         O primeiro dos leviatãs — provavelmente o maior — saiu do túnel em uma grande caverna alagada e correu para a árida planície do etéreo. Dali em diante, o Styx serpenteava pelo deserto, contornando, ao longe, a cordilheira que abra­çava Sion. Era noite, mas uma forte lua cheia iluminava o campo de guerra.

         A distância, os duques assistiram ao magnífico espetáculo dos exércitos an­gélicos, que se digladiavam no ar, ao redor da fortaleza altíssima. Um dos par­tidos, supostamente o rebelde, liderava a disputa, infligindo severas baixas aos inimigos. Já haviam abatido tantos perversos que agora o número de soldados rebeldes, inicialmente inferior, se igualava ao contingente dos sitiados — e seguia-se a matança. As paredes da torre e seus degraus circulares estavam cobertos de sangue, e no cháo os cadáveres se amontoavam em camadas, à altura dos pri­meiros andares. Eram milhões de alados abatidos, milhões de corpos jogados, decepados e mutilados, com as asas partidas e a garganta cortada. Não obstante, o exterior da bastilha continuava infestado por atacantes e defensores, e a peleja não cessava.

         — Somos muito mais numerosos que qualquer um dos exércitos celestes — gabou-se Molloch, o Carrasco, com sua cabeça grande e seus chifres pequenos.

         — Mas veja como lutam! — exclamou Asmodeus. — Além disso, o grosso de nossas forças é composto por espíritos-escravos, fracos e estúpidos.

         — Mas temos também nossas tropas de elite — protestou Mephistopheles, uma figura imponente, de pele de fogo e asas de morcego —, e nossos malikis são bárbaros e furiosos, combatentes inigualáveis.

         — Sim — concordou Orion —, mas contra quem lutaremos? Ainda nos falta a correta instrução de como atuar — relembrou, e os nobres satânicos fitaram Samael, a Serpente do Éden.

         O asqueroso conselheiro virou-se e da proa encarou os aristocratas, com ex­pressão atrevida. Nem uma palavra fora até então revelada, mas os duques já imaginavam a estratégia, definida secretamente por Lúcifer e repassada ao seu testa de ferro. Supunham que deveriam aguardar o fim da batalha, para depois barganhar com os vencedores enfraquecidos. Se não aceitassem capitular, os in­fernais lançariam suas hordas, que aniquilariam sem muita dificuldade as legiões já fatigadas. Era uma tática suja, covarde, mas que agradava de todo os cruéis senhores-diabos. Na verdade, os caídos esperavam que os celestiais resistissem de fato, para que pudessem assim destruí-los, dando impulso à sua cólera assas­sina e efetivando a derradeira vingança contra aqueles que, um dia, os expulsaram do céu. Exigiriam execuções sumárias, sacrifícios e humilhações, mesmo se os alados entregassem as armas.

         — Preparem os batalhões — sibilou a serpente —, mas atrasem as espadas. Le­vantem os estandartes. Vamos mostrar nossa amizade ao Príncipe dos Anjos.

         — O quê? — grunhiu o gordo Mammon, incrédulo. Os outros duques, estupefatos, perderam a fala ante o inesperado comando. Selar aliança com qual­quer um dos partidos divinos, especialmente com os seguidores do arcanjo Mi­guel, era uma afronta àqueles demônios, derrubados antigamente pelas forças do Monarca Alado. O próprio Lúcifer reconhecia o irmão como seu pior ini­migo, o adversário que desbancara sua rebelião e o condenara ao exílio na es­curidão do Sheol. — Que palhaçada é essa, sua cobra maldita?

         — Não é nenhuma palhaçada, só a ordem do mestre. Sou leal ao meu amo.

         — É difícil aceitar que o Arcanjo Sombrio tenha ordenado que nos associás­semos aos anjos — apoiou Asmodeus, e à sua retórica os presentes se agitaram. Mammon era o mais furioso.

         — A Estrela da Manhã nunca pactuaria com aquele que nos arruinou. Sua memória é longa e copiosa — explodiu o untuoso infernal. — O rastejante imundo está mentindo!

Revoltados, mais com a liderança de Samael do que com a estratégia orde­nada, os chefes empunharam as armas.

         — Sugiro que se aquietem, senhores! — pediu a cobra, acuada. — Garanto que a ordem provém de Nossa Majestade satânica, que julgou imprescindível manter até agora o sigilo.

         Mas, à exceção de Orion, os aristocratas não se contiveram. Detestavam a Serpente do Éden e adorariam pôr fim à sua carreira indigesta. Mammon, que estava mais próximo ao conselheiro, foi o primeiro a avançar. Levantou o macha­do e preparou a arma para estraçalhar o escamoso.

         Samael era um monstrengo fraco e esguio, mas rápido e astuto. Quando o gordalhão armou o golpe, a cobra escancarou a bocarra e cuspiu um veneno malcheiroso na cara do agressor. No mesmo instante, Mammon largou a lâmina pesada e, tonto pela cusparada, desabou de costas no convés. O ruído alarmou os nobres do inferno, que recolheram a guarda.

         Com a face borbulhando em chagas de pus, o volumoso Mammon gritava como um suíno no matadouro. Cuspia bolas de sangue e se contorcia em convul­sões progressivas. A peçonha, naturalmente letal, fez dilatar a carne e os músculos, obstruindo a garganta e as narinas. De repente, a vítima não podia mais respirar, e as paredes venosas se romperam à pressão acelerada. Os órgãos e o coração sofreram colapso e faliram todos praticamente em conjunto.

         Foi no piso do leviatã, revirando-se de dor, incapaz de proferir uma última injúria, que morreu o duque Mammon, engasgado com a própria saliva.

         O terror dominou os espectadores, e frustrou-se a tentativa de desafiar o preferido de Lúcifer. Samael teria gargalhado, mas conteve a soberba. O surto maníaco de Mammon servira bem aos seus interesses, promovendo uma revira­volta na situação. Ao assassinar um dos caídos, recuperara todo o respeito, de­fendendo-se da investida.

         — Ponho à prova minha palavra — declarou a serpente. — Este é o desejo do Arcanjo Sombrio, e falo em seu nome. Os descontentes poderão desertar agora e sofrer as consequências depois.

         Sem mais opções e convencidos de que Samael dizia a verdade, os poderosos aderiram à sua vontade. A manobra fatal do conselheiro e suas palavras ousadas mostravam como era esperto. Os duques não tinham mais a intenção — ou a coragem — de provocá-lo, e reprimiram o orgulho.

         A Serpente do Éden, de moral renascido, ergueu a cabeça e mirou a forta­leza além das montanhas. Reparou na voracidade do embate e na derrota imi­nente dos alados partidários do príncipe, a quem deveriam prestar auxílio. De­pois, girou o corpo reptiliano e contemplou a fileira de leviatãs, que pelo leito do rio seguiam a nau capitânia — o mesmo barco em que navegavam os duques. Vislumbrou os milhões de demônios nos porões e conveses, ansiosos para en­trar em açáo. Atentou para os capitães; divisou as tropas de elite, os cavaleiros satânicos e os espíritos-escravos. Avistou a multidão caótica dos malikis, os dia­bos guerreiros, e enxergou a massa restante dos infernais, monstros de todas as castas, inflados de fúria e maldade.

         — Chegou o dia em que o inferno caminhará sobre a terra — disse Samael, já superada a crise. — Avisem a decisão aos comandantes. Logo, os navios vão atracar, e que estejam prontas as divisões.

         O primeiro transporte era reservado aos duques, aos altos oficiais e às forças especiais. Tais forças eram formadas por incríveis cavaleiros, equipados com lan­ças e armaduras completas, que guiavam cavalos esqueléticos — feras medonhas, de pele ressecada e cascos de fogo. Os demônios montados não podiam voar, mas suas bestas tinham o poder de elevar-se aos céus e trotar com o vento.

         — Se me permite a pergunta, ó conselheiro... — ousou Asmodeus, adicionando uma pitada irónica à oratória. — Os sitiados têm ciência de que lutaremos a seu lado?

         Samael sabia que, embora temido, sua reputação podia ser novamente ar­rasada. Discutir com os duques era o mesmo que pisar em ovos, e um simples movimento erróneo o jogaria de volta ao abismo.

         — Levantaremos a bandeira do arcanjo Miguel em alinhamento à nossa, si­nalizando a aliança.

         — E se eles recusarem o apoio? — interpelou Mephistopheles.

         Satã apontou um dedo escamoso à zona de guerra, indicando a superior energia dos revoltosos.

         — Não recusarão. Aos defensores não sobra escolha. Se declinarem nossa ade­são, serão massacrados pelos rebeldes. Nossas hordas vêm salvá-los da ruína com­pleta. E, findada a peleja, seremos nós, ainda fortalecidos, que ditaremos as nor­mas às tropas debilitadas.

         Era verdade. Os anjos sitiados eram perversos, inescrupulosos, e não rechaça­riam a ajuda que os afastaria da derrocada. Já os insurgentes não largariam seus ideais, adoravam a justiça, e jamais combateriam em concordância com os sol­dados satânicos.

         Aos duques estava claro contra quem deveriam lutar, mas por quê? O que pretendia Lúcifer, auxiliando um inimigo de eras?

         Surgiu, então, na mente de Orion, a hipótese da conspiração. Estariam os dois mancomunados? Seria esse o motivo da ausência do Senhor do Sheol durante toda a preparação da campanha? O que cobiçava Lúcifer ao proteger os interesses do tirano que habitava Sion?

         E, por fim, havia mais uma pergunta.

         Por onde andava Apollyon?

 

A Última Flecha

         Lúcifer subiu a escada e emergiu pelo alçapão, uma passagem aberta no pi­so, que acessava o pináculo da fortaleza, no ponto mais alto da torre. No pátio pequeno, com a Roda do Tempo no meio, o Arcanjo Sombrio encontrou de­zenas de corpos estirados no chão. Esses anjos abatidos haviam sido delegados para defender o terraço, mas foram aniquilados pelas setas douradas das arqueiras rebeldes, logo no princípio da ofensiva.

         Shamira, ainda presa à pilastra de mármore, assistiu à chegada do Diabo ao último andar. Enojada, a mulher encarou o demônio, que desviou o olhar para contemplar a batalha. Ao notar sua presença, a necromante recordou-se da cons­piração, tantas vezes mencionada por Ablon, e desvendou o que se passava. Foi então que viu o Príncipe dos Anjos subindo os degraus, carregando consigo o general derrotado.

         Arrastado pela armadura, Ablon tinha a garganta lascada. Perdia sangue aos litros, em um prelúdio à morte dolorosa. O rosto estava pálido, gelado, e o corpò, enfraquecido. Mas, mesmo às portas do extermínio, seus olhos ainda bri­lhavam, e ele insistia em apertar com vigor a Flagelo de Fogo.

         Shamira queria ajudá-lo, mas estava imobilizada dos braços às pernas. Seus feitiços vocais não afetariam os inimigos.

         Todos os truques da feiticeira haviam se esgotado, e ela reviveu o trauma da corte do rei Nimrod. O maior receio do Anjo Renegado era esquecer seus ideais. Já a moça temia a inutilidade. Não tinha medo de morrer, nunca tivera, mas lamentava perder seu sonho, o anseio de ter, algum dia, o general a seu lado.

         Miguel jogou Ablon com violência contra a base da coluna de mármore, entre a necromante e a Roda do Tempo. Quando ele caiu, o metal da couraça dourada estalou, mas resistiu ao impacto.

         — Shamira... — gemeu o renegado, aos pés da feiticeira acorrentada. — Sempre fui seu protetor. Quisera eu ter falhado na defesa de minha própria vida e sal­vado a sua.

         Ela tentou não chorar, para não lastimar ainda mais o amigo, mas as lágrimas teimaram em despencar pelo rosto. O coração tremeu à lembrança da caverna sobre a montanha, da despedida na Babilônia, dos dias em Roma e dos tempos medievais. Definitivamente, estavam ligados pelo amor verdadeiro, o sentimento divino que leva ao Criador.

         Estavam enamorados, e sempre estiveram, desde o dia em que se abraçaram na gruta, mas só então reconheciam a paixão que os unia e os completava. Não eram orgulhosos, apenas inexperientes nos assuntos da carne, a despeito de suas habilidades fantásticas.

         E ali terminava a esperança, o desejo de uma vida futura, longe das trevas. Por toda sua existência, o general preservara sua amada, para que um dia pu­desse tê-la em paz. E também a feiticeira sonhava com um tempo de luzes, em que abraçaria seu adorado e com ele caminharia eternamente.

         Mas o fim havia chegado, em um amargo desfecho. Ablon estava no preci­pício da morte, e Shamira seria sacrificada. A Feiticeira de En-Dor recordou-se de seu diálogo com o tirano Miguel e do Livro da Vida. Estaria toda sua jorna­da gravada no tomo sagrado, conforme sustentara o monarca? O destino dos dois, dela e do renegado, estava escrito desde o princípio do universo?

         E, se estivesse, por que teriam lutado?

 

         Nas cordilheiras, a general Varna observava o combate, de arco na mão e seta no dedo. Com o desenrolar da batalha, as arqueiras mantiveram suas posições nas montanhas, auxiliando os soldados rebeldes com flechas ocasionais. Não podiam disparar mais saraivadas, sob risco de acertar os companheiros, me­tidos em luta cerrada. Os alvos prioritários, agora, eram meticulosos, e as guerrei­ras procuravam derrubar os líderes de esquadrão. Graças às suas fincadas mortais, os revoltosos superavam os sitiados e faziam proveitosa investida. Logo Sion estaria em ruínas, ou assim pensavam os insurgentes.

         Foi quando, com olhos precisos e visão poderosa, Varna enxergou a oportu­nidade da vitória ao alcance da seta. Do topo da pedra, avistou o pináculo da torre e reconheceu o arcanjo Miguel, circulando à volta da Roda do Tempo. Divisou, ainda, uma segunda entidade obscura, que não identificou muito bem.

         Se pudesse, dali, alvejar o coração de Miguel, os perversos perderiam seu lí­der. E mesmo um arcanjo sucumbiria se trespassado em seu ponto vital. A dis­tância, para ela, não era um fator — já tinha perfurado inimigos a extensões mui­to maiores. Além disso, o príncipe estava desprevenido, alheio ao seu ataque, e não se desviaria do projétil dourado.

         Sem esperar, ela fez pontaria, mas aguardou o momento. Milhares de anjos, amigos e adversários, obstruíam a linha de tiro, enquanto se debatiam nas cer­canias da fortaleza. A cada instante, um combatente passava na frente, dificul­tando o ajuste da mira.

         Então, abriu-se uma lacuna, e ela atirou, com toda a perícia.

         O míssil sagrado percorreu o trajeto como trovoada, de encontro ao coração do soberano.

         Mas, conforme o próprio Miguel dissera uma vez, ele era um arcanjo, um gigante, o primeiro dos celestiais, o primogénito de Deus. Lutara nas Batalhas Primevas e vencera deuses antigos. Era a mais velha e mais forte das criaturas viventes.

         Com o senso de perigo aguçado, o tirano agachou-se e desfraldou as asas como a expansão de um leque. As penas anavalhadas, conhecidas por mutilar feito aço, cortaram a flecha pela metade com velocidade impressionante. O pro­jétil de ouro foi dividido em pleno percurso — um fragmento encravou-se no chão do terraço, e o outro se perdeu no campo de guerra.

         À visão do fracasso, Varna recuou um passo, desolada.. Jamais perdera um tiro e não sabia como reagir.

         Revoltado pela ousadia, Miguel catou do solo uma lança, a arma de um dos soldados feridos.

         — Esses rebeldes não aprendem seu lugar — resmungou.

         — Foi aquela de arco na mão — apontou Lúcifer, que melhor assistira ao as­salto.

         E assim, o Príncipe dos Anjos arremessou a lança, sem se preocupar com as obstruções. O arpão rasgou o vento, trespassando dezenas de anjos no cami­nho, mas nem por isso interrompendo sua corrida. Por fim, alcançou o destino, destruindo a malha metálica da arqueira celeste e atravessando-lhe o corpo.

         Varna caiu rolando pelo rochedo, e seu sangue jorrou na rocha.

         Uma oficial veio ampará-la, mas era tarde demais.

         A lutadora morrera antes de tocar o chão do penhasco.

 

A Bandeira Enrolada

         Quando todos os leviatãs estavam alinhados, próximos à margem do Styx, Samael fez sinal para que os navios parassem. Mandou um subalterno trazer do porão um embrulho e o desenrolou no convés — era o estandarte do arcanjo Miguel, preso a uma haste de prata.

         — Eis a flâmula com a qual sinalizaremos aos nossos aliados — explicou. — Será carregada por um porta-bandeira, na linha de frente.

         — E como conseguiu este objeto? — desconfiou Baalzebul, uma criatura re­pugnante, com rosto de mosca e corpo de inseto. Os duques estavam sempre prontos a desmoralizar a serpente, mas ela era habilidosa com a língua e rápida com a mente.

         — Foi-me entregue pelo Filho do Alvorecer em pessoa — respondeu.

         — Mas com isso a pergunta prossegue — insistiu o carrasco Molloch. — Como o Arcanjo Sombrio adquiriu esta bandeira?

         — Logo poderá esclarecer suas dúvidas diretamente com nosso amo — ma­nobrou sabiamente a cobra do Éden.

         Molloch não replicou, e o assunto perdeu-se. O conselheiro retomou as instruções.

         — Assumam já o controle de suas hordas. Alinhem-se no chão e no ar. E, depois, mandaremos tocar os tambores.

         As rampas dos barcos baixaram, e dos porões saíram milhões de demônios. Os duques se armaram para a batalha, mas Samael ficou na proa, perto do ca­dáver de Mammon.

         — E você? — intimou Asmodeus.—Vem conosco, ou permanecerá no navio?

         — Estarei com vocês, mas não sem antes limpar esta imundice — respondeu, referindo-se aos restos do gordalhão.

         Deu-se, então, um espetáculo horrendo. A serpente, tal qual uma sucuri gi­gante, abriu a bocarra e nela meteu a cabeça do volumoso Mammon. Foi engolindo o defunto, à medida que suas formas ofídicas se esticavam paxá suportar a carcaça do morto. Ao perceber a atitude, até os duques, sádicos e depravados, sentiram uma pontada de nojo e se afastaram da saliva tóxica que vazava para o convés.

         Em segundos, todo o corpo foi devorado, sumindo carne e ossos. Samael levantou-se. Sua silhueta crescera em altura e largura, e seus contornos só vol­tariam ao normal quando digerido todo o alimento.

 

         As hordas começaram a sair dos navios, como gafanhotos famintos. Imedia­tamente, assumiam suas posições, conforme ordenado por seus capitães.

         Como os rebeldes ao se prepararem para a batalha, os demônios também ar­maram fileiras e colunas no ar, porque muitos deles podiam voar, mas nem todos.

         Na primeira fileira vinham as unidades de elite, compostas por cavaleiros satânicos, em armaduras completas. Guiavam animais esqueléticos, que voavam com patas de fogo. E mesmo trotando no céu, onde nada havia além do vento uivante, escutava-se o som dos cascos pesados, como uma manada correndo na firmeza da terra.

         A segunda fileira era reservada aos lutadores mais desprezíveis, os espíritos-escravos, selecionados para executar os inimigos feridos, derrubados pelas tropas especiais. A aparência desses monstros é semelhante aos leões, chacais ou abutres, mas despelados, de carne ressecada e olhos em fúria.

         Na terceira fileira avançavam os soldados regulares: os malikis, os diabos guerreiros. Levavam tridentes, mas faziam bom uso das presas e garras quando ameaçados. O semblante era grotesco, e babavam de cólera. Fortes e vigorosos, costumavam balançar os chifres e a cauda para apavorar os adversários.

         Por fim, na quarta e última fileira, estavam as forças irregulares, formadas por infernais de todas as castas, unidos pelo desejo de matar, pilhar e torturar. Pelo manto celeste, passeavam ginetes com lanças compridas, montados em fe­ras voadoras, iguais à besta de Lilith, a finada rainha succubus.

         Os duques, que coordenavam a ação, caminharam até a planície e estacaram perto do monte Megiddo, a Montanha no Extremo do Mundo, para firmar a estratégia.

         — Há uma cordilheira que cerca a fortaleza — reparou Baalzebul.

         — Um destacamento rebelde se espalha nas rochas — avistou Molloch, fitando as montanhas. — Devem ser lanceiros ou lutadores de apoio.

         — É o regimento das arqueiras — reconheceu Alastor. — Uma tal Varna co­manda a divisão. É a preferida do arcanjo Gabriel, e seu braço direito.

         — Vamos sobrevoar o círculo de pedra — propôs Mephistopheles.

         — Seremos abatidos pelas setas douradas — protestou Bael, o Infeliz.

         — Não se enviarmos na frente os espíritos-escravos — solucionou Asmodeus, malicioso.

         — Mas e quanto aos demônios desprovidos de asas? — reagiu Molloch.

         — Ordenemos que escalem as montanhas e ocupem a posição das arqueiras.

         — Morrerão aos milhares — comentou Orion —, perfurados enquanto sobem a encosta.

         — Para isso foram convocados — lembrou Asmodeus, e os caídos apoiaram seu plano.

         Na proa da nau capitânia, Samael, gordo como um saco apinhado, levantou o braço escamoso.

         E os tambores rufaram.

 

         Nas alturas, ao redor de Sion, os anjos em guerra seguraram os golpes e pa­raram subitamente, ao escutar a percussão infernal. Cessaram as lutas, as flechas e as perseguições, ao som do ruído dos tambores satânicos.

         A atenção dos alados desviou-se para as planícies ao norte, anteriores à cor­dilheira, onde um estupendo exército de diabos eufóricos tomava posição, próxi­mo às margens do Styx. Eram centenas de milhões de soldados, que saíam dos negros navios e enchiam o céu até a altura do véu estelar.

         Todos os celestiais, atacantes e sitiados, tremeram, mesmo os mais destemidos, diante das hordas de monstros. Quanto aos rebeldes, eram fortes de corpo e sá­bios de espírito, e logo engoliram o receio.

         — São as hostes de Lúcifer — exclamou Baturiel, o Honrado, para o general Shenial, seu companheiro de campo. — O que fazem aqui e como chegaram tão repentinamente?

         — Leviatãs — respondeu o amigo, avistando os grandes barcos ancorados no rio. — Pensei que só existissem em lendas.

         — São muitos — replicou o Honrado, ao reparar na multidão de demônios. As divisões diabólicas ultrapassavam, de longe, o contingente dos dois exércitos angélicos juntos.

         — E quem apoiarão? — inquiriu Shenial, mas já sabia a resposta, e ao imaginá-la o terror percorreu-lhe a espinha. Os revoltosos, sob nenhuma hipótese, fir­mariam amizade com o Diabo. Os defensores, entretanto, acostumados à per­versidade, eram suficientemente malvados para aceitar o apoio, ainda mais em um momento difícil.

         Na linha de frente, um cavaleiro do inferno levava, aberto, o estandarte das hordas de Lúcifer. A seu lado, outro ginete carregava uma bandeira fechada.

         Os dois partidos celestes esperavam para ver a flâmula hasteada e saber ao certo com quem os satânicos formariam aliança.

 

         Samael, a Serpente do Éden, arrastou-se ao tombadilho, ainda entorpeci­do pela comida. De lá, avistou a Torre das Mil Janelas, viu o combate parado e vislumbrou a nuvem negra que encimava a bastilha. Ele não sabia, mas aquela era uma marca da presença de Lúcifer na fortaleza.

         — É uma noite propícia aos infernais — sibilou, pressentido a presença de seu mestre maldito.

 

Fim da Esperança

         Ablon estava esmorecido, quase morto, quando ouviu o rufar dos tambores. Com uma mão, apertava a Flagelo de Fogo, e com a outra tentava se escorar na pilastra de mármore. Presa à coluna, Shamira assistia, inútil, ao sofrimento do anjo guerreiro. Não queria admitir que erraram ao perseguir a justiça, então pa­recia mais confortável aceitar que sua sina fora previamente traçada.

         — Lá vêm eles, meus meninos — regozijou-se Lúcifer, sempre teatral, ao avis­tar as hordas do inferno. Ele se pôs de cócoras e falou ao renegado:

         — Você tem que ver isso, general, é um espetáculo.

         Ablon tossiu, com a hemorragia já avançada.

         — Não... não morra agora. Ainda não. Não sem contemplar meu exército.

         Miguel, com seus músculos poderosos, pegou Ablon pela armadura e o le­vantou, para que vislumbrasse, do terraço, a hoste de monstros. Foi quando um cavaleiro demônio, ainda na planície anterior às cordilheiras, desenrolou a ban­deira, e nela estava gravado o símbolo dos sitiados — a heráldica do Príncipe dos Anjos.

         A aliança fora declarada.

         No exterior da fortaleza, os anjos perversos enxergaram o estandarte, e um de seus comandantes gritou:

         — Estão conosco! — como que abençoando a ajuda das feras. — Continuem a lutar. Destruam os rebeldes!

         De alento revigorado, os sitiados retomaram suas armas. Alguns poucos, de coração resgatável, hesitaram à perspectiva de combater ao lado dos infernais, mas a maioria nem se importou com a identidade de seus salvadores. Buscavam somente o triunfo e o poder que dele deriva.

         Considerando a reviravolta, qualquer exército teria recuado, mas os revol­tosos não se afastaram. Estavam preparados para a morte, prontos para enfrentar qualquer oponente, fosse ele anjo ou demônio.

         — Mantenham posição! — clamou Baturiel às legiões rebeladas. — Levantem as espadas. Prossigam a guerra. São só diabretes, contra os quais nossas lâminas estão sempre afiadas.

         Ressurgiu o confronto na torre, enquanto os satânicos voavam rumo a Sion.

 

         — Seu levante está acabado, general — disse a Estrela da Manhã. — A Irman­dade dos Renegados fracassou, e também os novos rebeldes, que abraçaram seu ideal. Esta noite, minhas hordas exterminarão os insurgentes. A aura de Gabriel apagou-se, e em breve a sua também morrerá. Da feiticeira tomaremos a alma, e assim completa-se a Roda do Tempo. Chega ao fim o sétimo dia, e tem início o reino sagrado. Os seres humanos contaminaram suas idéias. E, então, o que se tornou? Sinto em sua pele o cheiro do barro, o aroma da matéria decrépita, o fedor dos animais que destruíram nosso planeta.

         Miguel, que agarrava o general pela gola, largou-o sobre a roda, e o sangue espargiu-se, encobrindo as marcações místicas no círculo de pedra. Mas, incrivel­mente, restava ainda, nos olhos do príncipe, uma centelha de lucidez, uma fa­gulha de retidão, inexistente no coração do Arcanjo Sombrio, corrompido pela maldade.

         — Acho que, enfim, admiro sua bravura, Anjo Renegado — discorreu Miguel, surpreso por suas próprias palavras. -Também sou um soldado — e era, realmen­te, o que Lúcifer nunca fora de fato — e conheço o ímpeto dos combatentes, o ardor que nos chama à batalha e nos faz aceitar os grandes desafios, como um dia eu enfrentei os deuses antigos. Mas compreenda, finalmente, que o curso do sétimo dia sempre esteve traçado — e, dito isso, mostrou ao herói o Livro da Vida. — O destino do mundo foi determinado por Deus, no princípio da criação, e registrado nas páginas do tomo — e o arcanjo abriu o volume, permitindo que o querubim visualizasse suas últimas páginas. — Nada que fizesse mudaria isso. Somos peões no plano divino, e continuaremos a ser, até que se conclua o Apo­calipse. Mas, quando o ciclo for terminado e o tecido cair, seremos nós, Lúcifer e eu, a escrevermos a história, como divindades supremas. A vontade do Altís­simo é imutável, inabalável e irresistível.

         — Já chega, Miguel — cortou o Filho do Alvorecer, desagradado com a piedade do irmão. — Vamos fazer um minuto de silêncio para o nosso rival — ironizou.

         E, ao nefasto soar dos tambores do inferno, o general perdeu os sentidos. Em suas mãos, a Flagelo de Fogo diminuiu o crepitar, à medida que seu esgrimidor fenecia. Era uma relíquia sagrada, uma das cinco espadas forjadas por Yahweh na aurora do universo, e jamais se apagara — até agora.

         Quanto à feiticeira, suas lágrimas já tinham secado. Vivera por anos culti­vando um amor ideal, só para ver, no fim, morrer seu guardião adorado. Se fos­sem ambos terrenos, ela o teria seguido à casa dos mortos, mas Ablon era um anjo, e os celestes são desprovidos de alma e não conhecem outra vida, além da existência. Ao perecerem, sua aura vira pura energia, se espalha e retorna à fluên­cia do cosmo, como uma estrela que expira no céu.

         No pináculo da Fortaleza de Sion, desmaiado sobre a Roda do Tempo, imun­do de sangue e suor, falecia o espírito da justiça, o mensageiro da esperança, o protetor da Feiticeira de En-Dor, aquele que a tirara do desespero e a ensinara a viver.

         Em resposta ao último hálito do lutador, a luz da Flagelo de Fogo extinguiu-se, e seu aço esfriou, tal qual o coração do guerreiro.

         E assim morria Ablon, o Primeiro General, líder dos renegados e ícone dos novos rebeldes.

 

A Persistência dos Generais

         No campo de guerra, as hordas do inferno já estavam muito perto das cordi­lheiras — o círculo de montanhas que abraçava Sion. As arqueiras rebeldes, ori­ginalmente ali posicionadas para alvejar a fortaleza, viraram-se para a planície na direçáo do Styx e começaram os disparos, atirando uma chuva de flechas nos infernais, que haviam declarado seu apoio às perversas legiões de Miguel.

         No início, os duques pensaram que enviar na frente os espíritos-escravos protegeria os cavaleiros voadores das setas douradas, mas estavam enganados. Tão poderosas eram as arqueiras que as flechas trespassavam o corpo dos dia­bretes, um após o outro, e só paravam ao encontrar os soldados de elite, que haviam passado à segunda fileira de ataque, temendo as fincadas mortais. Assim, os peões, convocados para a morte, constituíam uma barreira inútil e desapareciam como fumaça ao ser atingidos pelos projéteis. Em consequência, caíam também as tropas especiais, com os mísseis que furavam as armaduras.

         Mas, apesar da destreza, eram muitos os demônios, que lotavam a paisagem do chão às alturas. As flechas seriam insuficientes, e as celestiais resolveram, en­fim, pôr os arcos de lado, pegar as espadas e recuar para mais perto da torre, juntando-se às forças de Baturiel, que combatiam corpo a corpo com os sitia­dos, já praticamente exauridos.

         Com isso, o grande exército satânico sobrevoou as montanhas, entrou no perímetro de defesa da fortaleza e uniu-se ao partido dos anjos maléficos. Seu assalto era semelhante a um escarcéu de fumaça: obscuro, vivo, que gritava e rugia.

         Teve início, então, a maior batalha de todos os tempos, marcada pela força, resistência e heroísmo dos anjos rebeldes, que aguentaram com energia o ata­que estupendo. Dos grandes generais revoltosos, incluindo Baturiel e Shenial, poucos haviam caído. Cheios de fúria e calor, incentivavam os lutadores, que retalhavam e matavam com indescritível bravura, contra todas as possibilidades, humanas e divinas.

         Assim, eles resistiriam por muito tempo, mas não eternamente.

 

         Ao longe, o gordo Samael desceu a rampa da nau capitânia. Os barqueiros voltaram a comandar seus navios, que dali seguiriam, vazios, para outro lugar.

         Os condutores haviam sido contratados para levar os demônios do Sheol ao etéreo, mas não foi acertado um caminho de volta- porque Lúcifer não plane­java regressar ao inferno tão cedo. Para ele, estava garantido o triunfo, por is­so dispensou o serviço de retorno nos leviatãs.

         Assim, tendo cumprido o acertado, os barqueiros comandaram seus veículos incríveis, prosseguiram pelo leito do Styx e desapareceram no horizonte.

         Desajeitado pelo tamanho excessivo, a Serpente do Éden foi se arrastando rumo a Sion, onde as hostes já combatiam.

 

         — Terminou — suspirou Lúcifer, realizado. Olhou mais uma vez para o com­bate e fitou, desejoso, a feiticeira pendurada à coluna. Não era um desejo carnal, como uma vez sentira por Lilith, mas um apetite cósmico, que só a alma da moça poderia acalmar. Despiu-se da couraça dourada e largou sua espada de fo­go, a Raio da Aurora. — Não preciso mais desses acessórios baratos. Serei Deus, brevemente — e deu meia-volta, caminhando para o alçapão.

         — Aonde vai, meu irmão? — perguntou Miguel. — Temos trabalho a fazer — e indicou a necromante.

         — Vou dar um estímulo aos meus rapazes, mostrar-me em campo, incentivar meus soldados. Por enquanto, temos que aguardar o sinal da Sétima Trombeta e a desintegração total do tecido. Você pode sacrificar a mulher, se assim preferir, mas deve guardar sua alma — alguns celestiais têm o poder de segurar a alma dos mortos, impedindo que sigam ao céu. — Não permita que seu espírito es­cape para o paraíso celeste e ingresse na casa dos santos, ao leste do Éden, de onde nem nós poderíamos recuperá-lo. Seu poder humano só nos servirá final­mente quando a membrana cair.

         O Terceiro Céu, chamado de Shehaquim, é o Éden celestial, uma terra de maravilhas, reservada aos justos. Nessa camada estão as colónias espirituais, que recebem as almas dos virtuosos para o eterno descanso. As comunidades supe­riores são guiadas pelos santos, pelos profetas antigos e pelos mestres desencar­nados. O maior desses sábios é o próprio Salvador, nascido como homem em Nazaré e morto no calvário romano. Tão enorme é a força dos mestres que, em suas colónias, nem os arcanjos penetram sem permissão. Alguns dizem que o arcanjo Rafael, cansado da perversidade de seus irmãos, exilou-se em Shehaquim, ensinando aos íntegros muitos mistérios remotos, anteriores à criação.

         A Estrela da Manhã desceu a escada, deixando o terraço, e voltou à Sala dos Portais, para depois caminhar para um corredor obscuro, de onde teria ampla visão da batalha.

         Miguel, o Soberano Alado, refez o semblante de ódio, sua faceta mais na­tural. Retomou da bainha a Chama da Morte e empunhou a lâmina mística.

         Shamira estava para ser executada.

 

Baturiel contra Mephistopheles

         Quando os inimigos chocaram suas armas, os duques também ingressaram em batalha, juntamente com suas feras e monstros, à exceção de Orion, o Rei Caído de Atlântida, que desaparecera no começo da ofensiva. Os senhores sa­tânicos chegaram a considerar sua morte, porque não era de fugir à luta. Sen­tiram a perda de sua mente estratégica, e a ausência resultou no extermínio de hordas inteiras, que careciam de adequado comando, de um general que indi­casse a tática efetiva e mostrasse às tropas as manobras apropriadas. O satanis era um mestre do belicismo, conhecimento que aprimorara havia milénios, durante as Guerras Mediterrâneas, o confronto ancestral entre Atlântida e Enoque, as duas maiores civilizações humanas de antigamente, anteriores à grande inun­dação.

         Nas alturas, era notável a valentia com que os rebeldes afrontavam, simulta­neamente, tanto os soldados do inferno como seus adversários celestes, simpáti­cos ao arcanjo Miguel. Mas, para a infelicidade dos alados perversos, o assalto dos demônios fazia-se grosseiro e caótico, o que, de certa forma, complicava as legiões sitiadas. Essa falta de disciplina revelou-se preciosa aos insurgentes, que mantinham seus guerreiros em linha, e aguentavam, seguros, o embate das bestas.

         Misturados à confusão, Mephistopheles e Baalzebul voavam, cortando e es­traçalhando os revoltosos. Mephistopheles, chamado também de Mephisto, era um exímio espadachim, e carregava um sabre fino, porém indestrutível. Pare­cia um homem comum, forte e imponente, mas com pele de fogo, asas de mor­cego e um chifre grande que se dobrava para trás. Já Baalzebul, o Príncipe das Moscas, era um monstro abominável. O corpo humanoide estava recoberto por uma casca de inseto, dura e untada por uma gosma nojenta. As asas e o rosto imitavam a anatomia das moscas, com olhos compostos e pelos na boca.

         — Temos que anular a coragem dos rebelados — falou Mephistopheles ao demônio-inseto, que deslizava ao vento.

         O Príncipe das Moscas apontou para Baturiel, indicando ser ele o líder do exército dos justos.

         — É aquele que coordena as legiões revolucionárias.

         — Vou derrubá-lo. Venha comigo, mas fique escondido — e disparou ao en­contro do alvo.

         Assim, Mephisto chegou diante do Honrado, pairando no ar com as asas esticadas. Brandiu seu florete de lâmina delgada e encarou o comandante rebelde.

         — Sou Mephistopheles, duque do inferno, Senhor dos Zanathus e Rei do Mar Flamejante — anunciou-se.

         — É um dos caídos — reconheceu Baturiel. — Recordo-me do tempo em que era um ishim, no paraíso celeste, antes da guerra no céu.

         — Aceite, então, meu convite ao duelo, à disputa justa, sem estratagemas — convocou o infernal, e o anjo não podia mais recusar, porque era um guerreiro, e seu código o impedia de recuar ante o combate anunciado. Sentia-se até pre­miado por confrontar um diabo supostamente leal, pois ouvira que todos os infernais eram ardilosos e trapaceiros.

         Os dois se moveram, preparados para o conflito. As espadas rasparam, ba­teram, toparam, soltaram faíscas, e os duelistas se enfrentaram como leões. Mui­tos diabretes pararam para observar e pagaram com a vida pela distração.

         Baturiel ia ganhando, mas Mephisto chutou-lhe o ventre, empurrando o comandante para longe. O celeste recuperou-se e aguardou nova investida, mas então escutou um zumbido de inseto que o espreitava por trás. Girou sem de­mora e viu o Príncipe das Moscas, que voejava furtivo, pronto para agredi-lo. Pressionado nas duas direções por rivais poderosos, o Honrado sacou um punhal místico, que guardava na bota, e o arremessou contra Baalzebul, acertando-o na testa. Depois, voltou à posição anterior e rasgou a barriga de Mephistopheles, que tentava acometê-lo no calor do tumulto.

         O duque recurvou-se de dor e teve a cabeça decepada, diante das hostes pas­madas.

         Na face oposta da fortaleza, Shenial derrotava o carrasco Molloch, mas o sinistro Asmodeus matava dois generais rebelados.

         E, mesmo com a quantidade excessiva de inimigos, os rebeldes batalhavam em pé de igualdade.

 

         Lúcifer deixou o terraço, cruzou a Sala dos Portais e desceu para um corredor largo e vazio, cuja parede norte era aberta, dando vista à batalha. Ali ficou por alguns minutos, oculto, louvando a própria inteligência.

         — Que beleza! É uma maravilha! — rejubilou-se, abrindo as asas e se prepa­rando para decolar. Ia aparecer a seus combatentes, mas parou e decidiu esperar, recuando para a escuridão do alpendre.

         Apesar de seu decisivo triunfo, o Arcanjo Sombrio sentia-se enfraquecido. Ele mesmo sacrificara parte da energia de sua aura para contratar os leviatãs e, embora não estivesse arrasado, estava mais débil que o usual. Dentre os demô­nios, era o único que poderia ter saldado os barqueiros, porque só alguém tão poderoso teria essência suficiente para solicitar os navios gigantes.

         Sua potência regressaria em breve, mas por ora precisava redobrar a cautela e cuidar para que os duques não descobrissem sua atual condição. Os aristocratas satânicos, os quais comandava, eram astutos e traiçoeiros, e poderiam tentar se voltar contra o mestre se soubessem de sua fraqueza. Cansado, Lúcifer seria ca­paz de lidar com qualquer um deles, mas não com todos ao mesmo tempo.

         Assim, aguardou mais um pouco. Só se apresentaria ao combate em mo­mento seguro.

 

A Caverna sobre a Montanha

         De repente, como em sonhos, Ablon estava de volta à caverna sobre a mon­tanha, seu santuário particular, o refúgio mental para onde se reportava sempre que a tristeza superava a esperança. Sentia-se entorpecido, como ao despertar de um sono profundo.

         Estava frio como um cadáver, imóvel e insensível, quando uma mão quente apertou seu braço. Abriu os olhos e descobriu-se no centro da gruta, deitado sobre o colo da Feiticeira de En-Dor. Desafiando toda a lógica do espaço e do tempo, a necromante vestia-se como nos dias antigos, pura e natural, e o único perfume que exalava era o gostoso aroma de seu corpo adorável. Mas como po­deria o renegado ter retornado ao passado, a não ser em meio aos delírios que antecedem a morte?

         Tentou se erguer, mas os músculos enrijeceram. Os ossos mais pareciam gra­vetos, frágeis e quebradiços. Nem o coração se agitava. Era pouco mais que um defunto, incapaz de movimentar um membro sequer.

         Então, a moça sorriu, com carinho e sensualidade, e o terror desapareceu. Recurvando-se sobre o busto do general destronado, ela afagou seu rosto, cas­tigado pelas batalhas, e o encarou com alegria, cultivando o amor já semeado. Acariciou-lhe os cabelos dourados e deslizou os dedos pela barba malfeita, até encontrar os lábios rachados. Depois, aproximou a face à dele e o beijou inten­samente.

         Quando a boca macia da mulher tocou o herói, um calor encheu a caverna, fazendo reviver a carcaça inerte e recuperando o ardor no coração congelado. O sangue voltou a correr, e o peito palpitou novamente. Em um breve segundo, toda sua vida percorreu-lhe a lembrança, desde a luz do nascimento, no prin­cípio do universo, até seu jazigo no pináculo da torre.

         Assaltado pela paixão, então elevada ao máximo, Ablon não mais distinguia o real do ilusório. Não tinha certeza sobre o que faria ou de onde estava, verda­deiramente. Talvez ainda agonizasse, estirado na Roda do Tempo, porque não há redenção para os celestiais fracassados.

         Sentou-se à fogueira e percebeu que havia, na gruta, outras entidades celes­tes. Ao seu redor, como um precioso círculo de guardiões, estavam todos os re­negados, honrando o general com suas espadas brilhantes. À luz tremulante do fogo, o general reconheceu a saudosa Ishtar, o bravo Hazai e o valoroso Yarion, entre outros. Estava reunida a irmandade, com seus dezoito guerreiros, de asas brancas rajadas de sangue e coragem insuperável.

         E, no centro dos expurgados, uma figura especial ganhava destaque, por sua essência sublime. O arcanjo Gabriel guardava a saída, de semblante tranquilo, postura altiva e expressão decidida.

         — Estão todos aqui — gemeu Ablon. — A Irmandade dos Renegados e o Anjo da Revelação. Como podem ter escapado da morte?

         — Para nós, os alados, a morte é a dispersão do espírito — explicou o Mestre do Fogo —, mas nossa energia é indestrutível. Não somos mais consciências indi­viduais, mas uma só potência. Agora, vivemos em sua mente, e nossa força fará sua aura ascender. Nossos sacrifícios o levarão à vitória.

         — Eis o valor da amizade — disse Hazai. — É o suporte do mundo.

         — Confie em seus ideais, general — instigou a bela Ishtar —, e regresse ao cam­po de guerra.

         E, com o apoio dos velhos amigos, o guerreiro reanimou-se para a batalha. O braço direito fervia, mas não chegava a feri-lo. Na verdade, só o elevava.

 

         No último andar da Torre das Mil Janelas, sob o gélido vento na culminância da terra, o príncipe Miguel apontou sua espada, a Chama da Morte, para o co­ração da Feiticeira de En-Dor. Sacrificada, sua alma seria roubada e convertida em pura energia, para saciar a avidez dos arcanjos. Nascida em Canaã, havia muitos anos, hoje não existia um só mortal que a superasse em poder e longevi­dade. Seu espírito era forte e antigo, e atraiu, assim, a cobiça de seus assassinos.

         O corpo de Ablon continuava esticado sobre a Roda do Tempo. A Flagelo de Fogo jazia ao alcance da mão, mas sua lâmina era então só uma chapa gelada, uma arma de aço comum, sem suas labaredas fantásticas.

         Foi quando, à escuridão da nuvem que encobria Sion, sucedeu o milagre. No braço do renegado, acima do pulso, acendeu uma marca abrasada, no exato local onde a necromante o tocara em sonhos. A inscrição esquentou, como um sinal registrado a ferro. O sangue, espalhado em poças no chão, iniciou um lento regresso ao cadáver, em uma inacreditável demonstração de misticismo e pujança. A trilha vermelha que sujava a escada subiu de volta à ferida, e mes­mo a garganta rasgada se regenerou, até que todo o sangue refluiu à carcaça.

         No antebraço do general brilhava uma runa — a runa do corpo, gravada por Shamira no ritual de alta magia, e que tinha por objetivo prevenir a destruição do guerreiro, quando de sua visita ao inferno a convite de Lúcifer. O encontro pacífico não exigira o feitiço, mas ele continuaria ativo até que fosse ceifada a vida de seu protegido. E agora, em circunstância surpreendente, o encantamento entrava em ação, recuperando o general em plenitude e fazendo-o recobrar to­talmente suas habilidades celestes.

         Em resposta ao renascimento do herói, a Flagelo de Fogo incendeu-se em flamas sagradas. O querubim inspirou, expandiu as asas e lembrou-se das pala­vras de Gabriel, que o incentivara a tomar a espada em um instante de aflição.

         Ao escutar o estalido do aço, Miguel imediatamente parou o que estava fa­zendo e virou-se à Roda do Tempo. O que viu não era aceitável, absolutamente, para alguém tão fatalista.

         Levantava-se o Anjo Renegado sobre o círculo de rocha, inteiramente recom­posto. Sua essência vital ascendera, multiplicara-se e explodira ao patamar dos arcanjos, suplantando a aura do inalcançável tirano.

         Num primeiro momento, nem Ablon compreendera totalmente o que tinha acontecido. Todos os ferimentos sararam, a força voltara, e os sentidos estavam apurados como nunca. Olhou para os punhos, meio incrédulo, e começou a ver e escutar coisas novas. Uma agradável melodia inundou-lhe os ouvidos, e ele entendeu que aquele era o som da natureza, o incrível movimento dos áto­mos e partículas, vivas e mortas, que mantinham o universo fluindo. Ao seu re­dor, enxergou os anjos em batalha, antes velozes, brigando tão lentamente que seria ridículo vencê-los. Era assim, imaginou, que Miguel devia perceber seus golpes, durante o duelo na Sala dos Portais.

         Preocupado, inicialmente, com a salvação de Shamira, Ablon golpeou a Cha­ma da Morte, para desarmar o Príncipe Celeste e impedir a execução da feiti­ceira. O inimigo não resistiu ao ataque, e sua lâmina escapou-lhe à pegada. A arma rolou pelo piso do pátio, deixando vulnerável o soberano.

         — Não pode ser real o que vejo! — protestou o surpreso Miguel, negando seus instintos primários. — Há pouco estava arrasado, acabado, derrotado pela cons­piração. Como pode ter retornado do breu infinito, com energia tão magnífica?

         — Eu não luto sozinho — avisou o general. — Estão comigo a irmandade, o arcanjo Gabriel e a Feiticeira de En-Dor. É a força deles que me revive. Foi o amor pela justiça que me trouxe de volta. Agora, pegue sua espada. Meu código me impede de enfrentar um oponente desarmado.

         Assim, ainda chocado pelo extraordinário prodígio, o príncipe buscou a ar­ma do chão e equipou-se para novo combate. Mas, logo que brandiu a relíquia, o renegado avançou e investiu contra ele com toda a vontade, demonstrando celeridade invencível.

         Um estrondo descomunal sacudiu os pilares do mundo, abalando as fun­dações do planeta. Acompanhou uma explosão luminosa, que ofuscou o pináculo ao embate das lâminas cintilantes. O tirano tremeu, sobrepujado pelo es­plendor do Renascido.

         — O Criador previu sua morte e minha ascensão! — gritou o arcanjo. — O Livro da Vida é inquestionável, é o registro do Onipotente para o destino do mundo. Atreve-se a desafiar Yahweh?

         Ablon inclinou a cabeça, lamentando a ignorância do gigante.

         — Quem sou eu para questionar a memória do Pai? Mas quem é você para reescrever suas palavras? O Livro da Vida não é um compêndio de história uni­versal. É um artefato místico muito mais singular, desenhado para a mente dos justos e feito para ludibriar os perversos. O tomo não descreve o fado do mun­do, mas apenas nossos desejos, nossas ambições, nossos anseios mais sigilosos, por isso seu conteúdo é incerto. Descobri o mistério quando li suas páginas, antes de perecer sobre a Roda do Tempo. Você e Lúcifer tanto almejavam a di­vindade que preferiram confiar nos escritos e utilizá-los como instrumento para justificar inomináveis maldades. Ao enganar-se sobre o futuro, mergulharam, ambos, em demência, e agora estáo cegos para a verdade.

         O sinistro Miguel, apesar da situação, resistia a aceitar os argumentos mais óbvios. Franziu a sobrancelha e rodou a espada sobre a cabeça, pronto a devol­ver o maior dos assédios. Estava tão certo de sua sina que não reconhecia o equí­voco, mesmo após ver seu plano cair por terra. Lutaria ferozmente para defender sua crença, com o mesmo alento com que vencera os deuses das trevas, no al­vorecer da eternidade.

         — Se é assim, então conte-me seus desejos, proscrito — desafiou, procurando, no desespero, uma falha na lógica do renegado. — O que estava escrito no tomo, o que você viu com seus olhos de fugitivo?

         Como resposta, Ablon não disse palavra, mas em vez disso atacou com for­midável perícia. E, dotado de vitalidade e destreza completas, não deixou defesa ao adversário, que sucumbiu ao fio da lâmina. Miguel até tentou reagir, mas o renegado era agora mais rápido. A Flagelo de Fogo desceu como um incandes­cente cometa, despedaçou a armadura e atingiu o coração do gigante, pondo termo à sua anosa existência. Agachando-se para penetrar-lhe a fincada, o ge­neral replicou:

         — Diziam as páginas do livro... que eu seria seu assassino — ultimou, puxan­do a espada encravada no peito do inimigo. — Para mim, o fim da história en­cerra a missão de toda uma vida.

         — Mesmo acabando comigo, seu exército nunca vencerá as hordas do inferno e minhas legiões fenomenais — cuspiu o arcanjo, trespassado pela Flagelo de Fogo.

         — Os combates não são só ganhos pela brutalidade, mas também pela vir­tude — ensinou o Renascido. — Onde houver retidáo e justiça, estará a vitória.

         Um jorro de sangue saltou pelo busto do príncipe, silenciando-lhe a respi­ração. Ablon ficou ali, inabalável, absorto na cena final, imaginando o que pen­sara o gigante, surpreendido pela devastação das ilusões cultivadas.

         Ainda vivo, Miguel balbuciou:

         — Estou morrendo. Como pode ser? — o rosto perdeu toda a arrogância. — General, você pode me salvar?

         — Eu tentei — respondeu o anjo guerreiro.

         — Ablon... — chamou o príncipe, no momento fatal. — Quero que saiba de uma coisa. Quero que saiba. Foi tudo por amor.

         — Foi tudo por ciúme.

         — Ainda assim, por amor.

         Pálido como uma flor atirada ao deserto, Miguel vislumbrou os dias antigos, os tempos de glória que precederam a luz, a era de esplendor anterior à aurora do homem, quando voava com o Pai e os irmãos pela sombra do espaço. En­tendeu, no derradeiro suspiro, que não queria ser Deus só pela ambição, mas também para recuperar o brio do universo de outrora. Almejava a divindade não apenas para governar plenamente, mas para sentir, só mais uma vez, a pre­sença do Criador, que havia tanto dispersara o espírito, em sacrifício aos seres humanos, que dele herdaram a alma.

         No fim, o arcanjo queria somente rever o Altíssimo, ou provar sua força su­prema.

         O Príncipe dos Anjos morreu de olhos abertos, fitando o vazio do céu.

 

O Mestre e o Aprendiz

         No amplo corredor com vista para a batalha, Lúcifer analisava o combate, oculto pela escuridão do alpendre. Enquanto urros, brados e estalos ressoavam no exterior, dentro da fortaleza o silêncio era sepulcral. Todas as legiões de apoio, inicialmente designadas para permanecer dentro da torre, haviam saído mais cedo, antes da chegada dos leviatãs, para massacrar os revoltosos, mas encon­traram uma sorte nefasta.

         Apoiados pelas hordas de monstros, os anjos perversos voltaram a lutar com todo o vigor, mas mesmo assim não reduziram os rebeldes, que continuavam a defraudar os inimigos, fossem eles celestes ou feras. Quanto maior o número de guerreiros malvados, maior era a garra dos insurgentes, inspirados pelos an­tigos heróis renegados. Dentro do círculo de montanhas, a devastação era es­pantosa. À volta da fortaleza, tudo o que se via no chão era um tapete ajuntado de corpos — restos de soldados decepados, mutilados, estraçalhados e perfurados. Armaduras amassadas e armas quebradas ainda brilhavam, enquanto o solo be­bia sua partilha de sangue.

         Nas cordilheiras, os demônios de infantaria, desprovidos de asas, já tomavam as posições antes ocupadas pelas arqueiras, nos picos e encostas. Ali fixaram sua bandeira, mas a disputa estava longe do fim. Se assim continuassem, os dois exér­citos poderiam brigar por muitos dias, meses ou séculos, sem despontar um ven­cedor. Então, convencido da pertinácia dos rebelados, Lúcifer decidiu agir, final­mente. Comandaria seus lutadores e logo findaria o conflito, agora que muitos duques já tinham caído.

         Não é este, afinal, o desejo do Criador, registrado no Livro da Vida?, pensou cinicamente. Que eu ganhe rapidamente o embate e instaure meu trono em Tsafon, o Monte da Congregação, ao lado do grande Miguel?

         A Estrela da Manhã recolheu a bainha da túnica e subiu na mureta, pronto para alçar voo e se lançar ao campo de guerra, mas pressentiu uma aura insur­gindo do escuro. Já conhecia, ou julgava conhecer, a identidade do invasor, e recuou ao telheiro com um sorriso atrevido. Ainda poderia se divertir desgra­çando o audaz visitante.

         Aziel, a Chama Sagrada, emergiu das trevas, com as palmas de fogo e o sem­blante cheio de cólera. Separara-se havia pouco de seus companheiros de missão e seguira sozinho pelas vias angélicas, para encontrar o renegado, que ainda não regressara à batalha. Tinha esperanças de que Ablon estivesse vivo ainda, por isso relutara em incendiar a bastilha anteriormente.

         Lúcifer olhou com desprezo para a Chama Sagrada.

         — Aziel, soberano da Cidadela do Fogo — zombou, referindo-se às suas atri­buições como governante da fortaleza. — Que surpresa mais estimulante!

         — Desde quando os demônios se esgueiram pelos salões de Sion? — irritou-se o ishim. Seus negros cabelos refletiam as flamas dos punhos, que se eleva­vam em delgado filete.

         O Arcanjo Negro enrugou a testa, dissimulado.

         — Ora, eu achei que, para os revoltosos, tanto os infernais quanto seus ini­migos celestes fossem da mesma estirpe perversa.

         — Agora vejo que sim — Aziel sabia que nem Lúcifer nem qualquer outro penetraria na fortaleza sem o consentimento do arcanjo Miguel, a não ser pela força. O Diabo não fora visto do lado externo, forçando a passagem, então es­tava ali convidado pelo anfitrião. — Estão aliados, você e o Príncipe Angélico.

         — Sua perspicácia é impressionante — caçoou novamente. — Mas o que vai fazer? Vai me chamar ao confronto, como fez seu general?

         — Onde ele está? Em que câmara...

         — Seu líder está arruinado. Foi liquidado por mim na Sala dos Portais e se­pultado no pináculo da torre. Seu corpo jaz nas pedras frias do pátio superior, e logo também será aniquilada a Feiticeira de En-Dor.

         A notícia atingiu fundo o coração de Aziel, como uma seta enfiada no peito. De início, quis negar o aviso, rechaçar o discurso, repudiar aquela falação arro­gante. Mas, infelizmente, Lúcifer podia estar dizendo a verdade — e estava, pro­vavelmente. Ablon não abandonaria por tanto tempo seu exército. Só a morte o impediria de retornar ao combate.

         As labaredas de Aziel se agitaram, rodando e crepitando em uma dança mor­tal. Enfurecido pelo suposto assassinato de seu comandante e amigo, não mediu consequências e atacou sem piedade. Dos dedos expeliu uma enxurrada de fogo, que clareou o corredor e derreteu o piso vermelho. Sua energia notável queima­ria o céu e borbulharia os oceanos — mas seria suficiente para vencer o Diabo?

         O Arcanjo Sombrio parou com as mãos o jato incandescente, que refletiu nos pilares, já sem muita potência. Fraquejara, contudo, ao segurar a investida, e cambaleou para trás, embora nada ferido. Não resistiria tão facilmente a mais um assalto, mas se fez parecer invencível.

         — Sua força é crescente, ishim — reconheceu —, mas você se esquece de que, além de todos os meus atributos, eu também sou perito na província do fogo. Minhas chamas aclararam as trevas do inferno, quando no porão só havia obs­curidade. Por isso, não acho que esteja em situação de me enfrentar. Vá embora, e eu o pouparei desta luta.

         Aziel estranhou a piedade do inimigo, mas ele não poderia, realmente, der­rotar o Diabo. Não sozinho. Se Lúcifer decidisse usar seu poder seriamente, ele seria esmagado. Naquela ocasião, porém, o Arcanjo Sombrio preferiu não de­monstrar suas habilidades e guardar o alento para sua atuação na desordem do front — por isso optara pela ameaça, intimidando o ishim, em vez de estorricá-lo de vez. Foi quando um terceiro personagem entrou na contenda, para des­fazer o impasse.

         Surgiu primeiro, brotando das sombras, um par de asas de fogo. Depois, brilharam as lágrimas fulgentes, como gotas ardentes de óleo pingando no chão. Amael, o Senhor dos Vulcões, o antigo mestre de Aziel, aparecia em cena.

         Amael era um demônio passivo, conformado, que não buscava poder ou vingança. Por isso, Lúcifer permitiu que residisse em sua caverna, e gostava, sin­ceramente, de sua companhia. Sempre reservado e submisso, o Senhor dos Vul­cões nunca contrariava seu líder, e então o Diabo o escolheu para levá-lo a Sion, confidenciando seu plano. Escondido nas câmaras internas desde o princípio da guerra, o zanathus ressurgia agora, na presença de seu amo satânico.

         Aziel, mais triste que assustado, lamentou a sentença de seu reformado men­tor, que havia decaído ao inferno. Seu rosto seria o mesmo, não fosse o choro fervente. Trajava a mesma armadura celeste, mas enferrujada, e o coração era pura melancolia. O algoz do dilúvio era uma criatura infeliz, arrependida, aflita por seus pecados passados.

         — Aí está você, Amael — felicitou-se o Arcanjo Sombrio, aliviado. — Defini­tivamente, este é um encontro fortuito. Será que se recorda de seu pupilo Aziel?

         O Senhor dos Vulcões nada disse em réplica à excitação de seu chefe. Era por demais reservado e vivia afundado nas próprias lembranças, preso à depres­são e agoniado pelo remorso.

         — Sinto muito, pequenino, mas estou de saída — provocou Lúcifer, encarando a Chama Sagrada. — Não tenho mais tempo para suas infantilidades — deslizou rumo à janela e cuspiu uma ordem ao sombrio zanathus. — Esta querela é sua, Amael. Acabe logo com esse anjo insolente.

         E assim, seguro de sua majestade, a Estrela da Manhã deu de ombros, gi­rou nos calcanhares e abriu as asas de morcego, pronto para escapar pela sacada.

         — Não posso fazer isso, Lúcifer. Eu me recuso — ousou o Senhor dos Vulcões. — Se você deseja matá-lo, então que o faça. Estou farto de sua autoridade.

         O Diabo levantou uma sobrancelha e voltou-se ao alpendre, indignado. Seus súditos não o chamavam pelo nome, só pelos títulos solenes. Lúcifer não po­dia ser questionado, absolutamente, em circunstância tão decisiva. A vitória es­preitava adiante, e não seria um diabrete que iria afastá-lo da consagração.

         — É por pouco tempo, Amael — insistiu, esforçando-se para não vacilar. — Estamos muito próximos do fim, perto de exterminar esses detestáveis rebeldes. O triunfo é iminente — e fitou seu criado com toda a dureza do mundo. — Não seja tolo de me desobedecer agora.

         Mas o Senhor dos Vulcões não seria persuadido mais uma vez, como fora à época da inventiva revolução contra o arcanjo Miguel. Não cultivava mais ilu­sões sobre a honestidade de Lúcifer, a quem apoiara em era remota. Tinha che­gado ao limite, e é nesse estado que os acuados avançam e os medrosos se trans­formam em heróis.

         — Você está fraco, Estrela da Manhã. Desfalcou sua aura ao entregar parte da essência aos barqueiros, contratando seus serviços.

         O Diabo recuou, tremulante. Um pensamento horrível brotou na fundura da mente, e ele preferiu nem cogitá-lo. Armou-se do blefe, que era sua arma mais eficaz.

         — Fraco ou não, você ainda é um inseto perto de mim — engrossou. — Jamais me abateria, se é que tem em mente um duelo.

         — Sozinho, seguramente não — devolveu, sugerindo conivência com Aziel, que até ali só observava a conversa. — Eu também provei o preço pelas viagens no Styx, e sabia quão fadigoso seria convocar os leviatãs. Por isso, eu o levei aos barqueiros.

         — Traição! — reagiu o Arcanjo Sombrio. Estava óbvio que Amael premeditara a cilada, embora Aziel desconhecesse a prévia intenção. Debilitando seu amo, o Senhor dos Vulcões teria a chance de afrontá-lo.

         — Não, Lúcifer — rebateu, indomável. — Foi você quem me traiu, ao inventar aquela maldita revolução. Mentiu, arquitetou a guerra no céu e usou a mim, a Orion e aos outros como cobaias em seu experimento cósmico. Fomentou o ódio pelos renegados e nos obrigou a matar nossos irmãos. Agora, pede que eu elimine meu único discípulo!

         Nervoso, Lúcifer deslizou furtivamente a mão à cintura, buscando o cabo da Raio da Aurora, mas ele a havia deixado no nível de cima. Também estava sem armadura — não que ela fosse de grande ajuda agora.

         — Amael, escute-me com cuidado. Você vai fazer o que eu mando. Podemos limpar esta bagunça, dar um novo começo a todos. E você vai me ajudar. Nós dois, juntos.

         Aziel estava em silêncio. Ele sabia que aquele era um momento crítico para o seu mestre. O Senhor dos Vulcões tinha que desafiar Lúcifer sozinho, encontrar a própria redenção. Podia até ajudá-lo, mas a decisão final precisava ser dele. O Arcanjo Negro endureceu.

         — E se teimar em me desafiar, Amael, vou ter que matá-lo — fez uma expressão maligna. — Poderia destruí-lo apenas com um olhar.

         — Verdade? Então por que está procurando sua espada?

         Aziel sorriu na escuridão. Não sentia nenhum prazer com aquilo, mas era irônico observar Lúcifer naquela situação. Logo ele, que sempre fizera o papel de carrasco.

         — Seus monstros, porcos infiéis! — gritou, tentando intimidá-los. — Vou aca­bar com vocês agora mesmo, seus vermes insignificantes.

         — Você pode tentar — avisou Aziel —, mas, se ainda não percebeu, este é um tribunal de execução.

         Acossado, o Diabo juntou as mãos e apelou para a súplica. Ajoelhou-se e forçou uma lágrima, mas os carrascos eram insensíveis à choradeira. O Filho do Alvorecer não sobreviveria aos dois adversários, se eles resolvessem submetê-lo.

         — Eu só queria o bem para todos, a satisfação de homens e anjos — garan­tiu, implorando perdão, mas sua oratória era incoerente.

         — Basta de calúnias, Estrela da Manhã — interferiu Aziel, irritado. Cansara-se de sua petulância, e agora não tinha mais dúvidas sobre a redenção do mestre, Amael. — Suas lamúrias não o absolvem.

         — Dê-me mais uma chance!

         — Você teve todas as chances.

         — Não! — desesperou-se o Arcanjo Sombrio. — Miguel! — berrou, convocando o irmão. — Miguel! — esgoelou-se.

         — O Príncipe dos Anjos foi morto — avisou Amael. — O Primeiro General o derrubou.

         — O Anjo Renegado? Não pode ser! Eu mesmo... — ele engasgou antes de confessar o homicídio. Rasgara a garganta do guerreiro instantes atrás. Como poderia ter revivido? — Posso sentir uma aura poderosa no topo da torre, a aura de um arcanjo. Isso significa que Miguel está vivo. Então, como se atreve...

         — O que você sente não é a aura de Miguel, mas a essência do Renascido — explicou Amael, para a alegria da Chama Sagrada. Então, Ablon seguia ileso e triunfante!

         — Renascido? Que loucura é essa? — Lúcifer parecia inteiramente descontro­lado. — Poupe-me, Amael! Você não é um assassino, nunca foi. Por que está fa­zendo isso?

         — Desde o dilúvio eu jurei não matar inocentes. Vivi por milénios com o peso da culpa, calado, como um vulcão que esconde sua fúria. Hoje, cuspo meu ódio, copiando a erupção da grande montanha. Eu o sentencio à morte, Diabo, pela gravidade de seus crimes e pela persistência no erro.

         — Pense nos anjos justos, Amael — soluçou. — Eles não me condenariam à sumária execução.

         — Sou sua cria, Lúcifer. Sou um maldito, um demônio. Também sou per­verso — declarou, justificando sua inesperada atitude.

         Nesse momento, baniu-se toda a penumbra em Sion, quando mestre e apren­diz incendiaram sua aura pulsante e consumiram o sentenciado com rajadas de fogo. Um estouro de flamas atravessou a janela, e seu impacto fez a fortaleza inclinar. Na seção lateral da Torre das Mil Janelas, o calor exaustivo amoleceu as pilastras, e toda a rocha derreteu-se em lava vulcânica.

         Lúcifer uniu as palmas diante do rosto para defender-se, usando todo o po­der que lhe restava para repudiar o ataque. Tinha conseguido deter o assalto de Aziel, porém agora não só fogo, mas também cusparadas de magma o atingiam. O coração acelerou quando entendeu finalmente que poderia morrer, que es­tava sendo derrotado! Mãos e braços começaram a derreter, a túnica branca in­cendiou-se. Sentiu o cheiro da própria carne queimando, e uma massa de lava grudou-se em seu rosto. Os lindos cabelos louros se desintegraram, e um dos olhos murchou. A violência rasgou a membrana das asas de morcego, sobrando só osso.

         A onda de choque jogou o arcanjo para além do telheiro, e ele despencou, devorado pelo ardor escaldante. Seus gritos assombraram os soldados, que avis­taram uma trilha esfumaçada no céu e se esquivaram da trajetória.

         Lúcifer não morreu rapidamente. Berrava enquanto caía, chorava, tossia, debatia-se, incapaz de voar. Pela fumaça, não conseguia mais respirar. Ninguém o acudiu. Ninguém o reconheceu.

         O Filho do Alvorecer desabou às profundas gretas da terra, um buraco imun­do onde se acumulavam os celestes tombados. Estava ali ao lado dos cadáveres dos anjos derrotados, dos demônios vencidos, dos espíritos-escravos. Seu cor­po era uma porção nojenta, sem braços ou asas; o tecido da roupa grudara-se à pele. Lúcifer pereceu como indigente, em uma vala comum, gemendo e rogando socorro.

 

Perigoso Legado

         No pátio superior de Sion, Ablon libertou Shamira dos grilhões apertados e a abraçou fortemente, envolvendo-lhe o corpo com as asas rajadas. A pele da feiticeira estava gelada, pelos ventos cortantes àquela altitude. Não fosse por seus encantos de conservação, que a protegiam do frio, entre outros perigos, a necromante já teria congelado. Era humana, apesar de tudo, e não tinha a ex­cepcional resistência dos celestiais e dos demônios.

         A batalha seguia acirrada, e o general sabia que deveria regressar às legiões, mas era sensível ao coração e reservou um momento para o casal.

         — A runa do corpo — sussurrou a mulher, afagando o antebraço do herói. — Eu mesma havia esquecido as atribuições do feitiço.

         A inscrição mágica, marcada profundamente na carne do renegado, havia sumido, desaparecendo suas propriedades fantásticas. Conforme a própria necromante dissera à execução do ritual, o encanto só funcionaria uma vez, afastando o guerreiro da morte. E assim agiria também a runa da mente, que preservaria o cérebro de qualquer alteração psíquica, como tentativa de controle e esqueci­mento. Essa segunda marca, não usada, continuava gravada no braço esquerdo do querubim, como uma tatuagem discreta.

         — O Príncipe dos Anjos foi derrotado pela inteligência de uma mulher — declarou o general, embora sua perícia tenha sido igualmente indispensável à vitória. — Sem sua magia, eu não teria regressado à vida. É irónico. Miguel sem­pre desprezou os artifícios da espécie mortal.

         Shamira olhou para o cadáver do tirano, em sua prateada armadura. Não fossem as asas, afiadas na ponta, sua carcaça seria indistinguível das dos homens comuns. Os olhos perdiam o brilho, como é natural aos defuntos, e a face em­palidecera pela falência de sangue.

         — Na morte, somos todos iguais, terrenos e alados, demônios e deuses — la­mentou, reparando na extinção do gigante.

         — A eternidade é uma ilusão. Você se lembra quando, juntos, assistimos à devastação de Constantinopla e à destruição final do Império Romano, cujos césares se diziam perenes? Como muitos reinos de outrora, cai agora o último arcanjo. O infinito é só utopia. Nós também feneceremos um dia, seja pela es­pada ou pelo cansaço, como nos mostrou Gabriel. E chegará o tempo em que até mesmo o universo fechará seu manto. As estrelas se apagarão, e de nós só restará a energia, a palpitação una à fluência do cosmo.

         Uma explosão colossal arruinou os andares inferiores, encetando o incên­dio. Fogo e lava foram atirados ao ar, inclinando os alicerces da torre. O mag­ma borbulhante escorreu para os níveis abaixo, corroendo as paredes de rocha como papel à fogueira. Ablon segurou a feiticeira pelos braços, mas o pináculo continuava estável.

         — Os ishins estão incinerando as fundações da bastilha — avisou o Primeiro General, ciente do planejamento rebelde. Aquela, porém, não era a atuação do grupo insurgente, mas o reflexo das rajadas escaldantes que liquidaram o Diabo.

         — A nuvem negra sobre Sion dissipou-se — reparou a necromante.

         — E a aura de Lúcifer também se apagou. A Estrela da Manhã suprime seu brilho. Agora, quem poderá se opor aos rebeldes?

         Com a morte dos irmãos conspirados, os anjos perversos perdiam seu principal comandante, e os demônios enfraqueciam o ataque. Os duques do inferno não eram páreo para os generais revoltosos, e dos nove aristocratas satânicos restavam só três. As numerosas hordas malditas lutavam frenéticas, mas eram massacradas pelas legiões revolucionárias. A aliança entre os dois exércitos não trouxera unidade, só confusão. As feras partiam ao assalto direto, dificultando a estratégia dos sitiados. Com o tumulto, ganhavam os insurgentes, disciplinados em suas táticas de guerra.

         Miguel e Lúcifer sucumbiram, mas deixavam um perigoso legado. Sozinhos, nada seriam, não fosse a peça fundamental da conspiração, uma entidade sinistra, capaz de acessar as dimensões mais remotas, rasgar o tecido e garantir a perfei­ta comunicação entre o céu e o inferno. O lacaio era também assassino, espião e soldado, e superava seus mestres em ódio, crueldade e sadismo.

 

         O Anjo Negro, temido servidor dos arcanjos, subiu os degraus ao pináculo, silencioso como um tigre na floresta. Não fora derrotado, nem sequer ferido pelos guerreiros de bronze, só momentaneamente excluído da luta. Ablon o atur­dira ao ingressar em Sion e enfrentar o malfeitor com a Flagelo de Fogo — objeto ao qual a entidade parecia ter singular aversão. Não fosse o elmo metálico, o criminoso teria tido o crânio amassado, mas o capacete poupara-lhe a vida.

         Por alguma enigmática razão, o monstro de asas negras era tão furtivo quanto o renegado, e podia ocultar sua essência, fazendo-se imperceptível aos inimigos — quando assim o queria. Na mão brandia uma espada, pronto a estocar o ge­neral que, de costas, não percebera o embuste.

         O assassino esgueirou-se pelo terraço como um espectro na noite e atacou de surpresa, inclinando a lâmina para decapitar sua vítima. Mas o alvo não era comum. Rápido e ágil, Ablon pressentiu o perigo e sacou sua arma, aparando a astuciosa investida. Shamira desviou o olhar e protegeu a visão, para que a faísca do choque não a cegasse.

         Os dois fios bateram, e deu-se a revelação. Tal qual a Flagelo de Fogo, a es­pada do agressor fulgia também, mas em chamas negras — sinistras labaredas do inferno. A figura na armadura escura deixara para trás sua máscara, ficando aparente o rosto disforme. A face, cortada de um lado a outro por uma cicatriz horrorosa, não era angélica, muito menos humana — mas diabólica. Da boca saltavam dentes pontudos, como a mandíbula dos tubarões, e os olhos eram profundos e negros.

         — Apollyon! — exclamou o querubim, deixando transparecer a satisfação da vingança. — Poupa-me um bocado de trabalho — acrescentou, lembrando-se dos espíritos de Sodoma e da promessa de desforrar os fantasmas.

         — Apollyon é o Anjo Negro — murmurou a Feiticeira de En-Dor, admira­da, mas os lutadores não a escutaram. Encaravam-se com indescritível firmeza, concentrados como cobras preparadas para o bote.

         Ablon não se surpreendeu totalmente. Para ele, tanto o duque-demônio co­mo o Anjo Negro eram perversos, detestáveis, e haviam perseguido seus com­panheiros, o que os colocava no topo da lista dos mais execrados. O Anjo Negro espancara Ishtar e raptara Shamira. Apollyon capturara Yarion e assassinara os principais renegados — e também Sieme, embora o general ainda não conhecesse sua culpa. A despeito da traição de Lúcifer e da felonia do arcanjo Miguel, esses eram adversários políticos, e sua derrocada estava, necessariamente, atrelada à vitória dos novos rebeldes. A contenda com Apollyon, entretanto, fomentava um ódio acumulado, particular. E o Anjo Destruidor guardava também uma cólera pessoal contra o Renascido. Em jogo não estava o desfecho da guerra ou o futuro dos exércitos em campo, mas o acerto de contas entre dois inimigos havia muito privados de terminar seu duelo.

         Agora, a oportunidade caía nas mãos do herói, que por ela tanto aguardara. Alerta, tomando distância da briga, a feiticeira entendeu que a natureza híbrida do monstro garantia a ocultação de sua aura. Não era anjo ou demônio, mas uma criatura única, um celestial corrompido segundo a vontade dos terríveis arcanjos.

         Normalmente sólido e controlado, Ablon entregou-se ao furor. Os olhos irados acenderam em um brilho vermelho, e o semblante enfureceu-se tal qual o de um leão agitado. Só duas vezes na vida provara tamanha exaltação. A pri­meira fora ao saber que Ishtar estava presa em Babel, e a segunda, ao presenciar o sequestro da necromante. Shamira compreendeu, então, que não poderia acal­má-lo.

         Apollyon recuou e golpeou novamente, mas o Renascido evitou o corte da arma, agachando e, depois, levantando para agarrar o pescoço da besta.

         Preso pela garganta, o Destruidor debateu-se, engasgado, incapaz de mano­brar a espada. Furioso, Ablon o jogou para longe, como uma só mão. A fera sa­tânica despencou por entre os soldados em batalha como um meteoro chispante, pronto para colidir contra as montanhas. Tão intenso foi o barulho do corpo lançado que os exércitos no céu suspenderam o combate, voltando a atenção à entidade cadente.

         Apollyon trombou com a encosta da cordilheira, e o impacto fez rachar a montanha, mas ele, nada sofreu. Sua armadura era uma relíquia e absorvera to­da a violência do choque. Ileso, pulou para um pico ao lado e maneou sua lámina, convocando o Primeiro General ao embate. Mas, mesmo exaltado, o re­negado não poderia deixar Shamira sozinha, vulnerável à queda da torre.

         — Vá! — exigiu a mulher, entendendo o dilema de seu protetor. — A bastilha ainda resistirá por mais algum tempo — garantiu.

         Então, todos os combatentes que ainda podiam enxergar, fossem eles demônios ou anjos, avistaram os dois lutadores em preparação para a disputa, cada qual em seu posto avançado. Ablon pairava no auge da Fortaleza de Sion, e Apollyon esticava as asas no topo da montanha mais alta.

         — O Primeiro General está vivo! — gritou Baturiel às legiões insurgentes, apon­tando para o líder rebelde no pátio da fortaleza.

         — Ele alcançou o terraço da Roda do Tempo — completou Shenial. — O ar­canjo Miguel foi derrotado — não restavam mais dúvidas.

         Em outro lugar, ainda nas alturas ao redor de Sion, Asmodeus indicou ao duque Alastor:

         — Lá está nosso colega sumido — comentou, reconhecendo a face desfigu­rada do Destruidor.

         — Ele trabalhava para o Monarca Celeste — concluiu, ao notar as asas escuras, as quais nunca mostrara aos seus diabólicos confrades. — Espião ou traidor?

         — Talvez nenhum deles — incitou Asmodeus, reflexivo, coçando o queixo ao prelúdio da luta.

         A cada instante, ficava mais óbvia a conspiração. Miguel e Lúcifer estavam destruídos, e o Exterminador era agora o perverso mais forte. Seu poder superava a potência dos aristocratas malditos, e dentre os infernais talvez apenas Orion estivesse em situação de abatê-lo, mas o Rei Caído de Atlântida desaparecera ao início da ofensiva, largando suas hordas ao caos. As tropas, maléficas e justas, guerreavam empatadas, e assim seguiriam eternamente, se nenhum evento as abalasse.

         A conclusão era lançada, então, às costas dos duelistas. Se Ablon ganhasse, os rebeldes venceriam, mas, se Apollyon triunfasse, seria o princípio de um rei­no de trevas, muito pior do que aquele sonhado pela mente doentia de Lúcifer ou pelos delírios insanos do arcanjo Miguel.

 

Megiddo, a Montanha no Extremo do Mundo

         No pátio sobre Sion, Ablon retesou as asas e saltou como uma águia em ra­pina ao encontro do Destruidor. Era tão veloz que um rastro de fogo acompa­nhava sua corrida, desenhando uma trilha vermelha na curvatura do céu.

         Mas, em vez de se lançar contra o Renascido, Apollyon deu meia-volta e voou para longe, para além das cordilheiras. Rumou para o norte, na direção do Styx, e muitos pensaram que fugia de medo, correndo do líder rebelde, con­tra o qual, supostamente, não teria nenhuma chance. Mas Asmodeus percebeu seu real objetivo.

         — Está atraindo o general para o monte Megiddo — disse ao duque Alastor.

         — A Montanha no Extremo do Mundo — divagou o monstro. — O ponto profético para a conclusão do Apocalipse.

 

         Nos andares inferiores, quando o chão da fortaleza cedeu, Amael e Aziel adejaram, sacudiram as asas e assistiram ao desmoronamento do piso, amolecido pelo calor. Pouco depois, também as paredes caíram, e eles escaparam pela sa­cada, já derretida em chamas.

         Lá fora, os ruídos da batalha foram suprimidos, e os golpes também. Ablon e Apollyon voavam ao monte Megiddo, e os três exércitos os seguiam.

         — A feiticeira! — lembrou-se o Senhor dos Vulcões. — Ela ainda deve estar no pináculo.

         — Vamos tirá-la de lá — decidiu Aziel, disparando ao terraço. Nenhum sol­dado os impediria. O caminho estava livre. A Torre das Mil Janelas fora evacuada.

 

         Ablon e Apollyon pousaram em Megiddo, uma montanha larga, de cume bem amplo, solitária na esplanada, única na vastidão do deserto. Fazia lembrar um calombo, um caroço nefasto na pele do mundo, distante uns cem quilóme­tros das cordilheiras que cercavam Sion. No plano físico, essa magnífica eleva­ção fora cenário de muitas batalhas e abrigara dezenas de fortificações antigas, hoje em ruínas. Mas no plano etéreo Megiddo era só um morro de arenito, titâ­nico em dimensão, cujo topo se aplainava em forma de arena, um círculo aber­to para o derradeiro combate.

         Os anjos perversos e justos, e também os demônios, perseguiram os duelistas e desceram ao solo, tomando posições para entrever o confronto.

         No alto do maciço de rocha, nada abalava a confiança do general, frente a frente com seu maior inimigo. Já derrotara o Príncipe Celeste. Como o Exter-minador pretendia batê-lo?

         — Terminaram seus truques, Anjo Negro — disse o renegado. — Seus líderes foram liquidados, e a conspiração está arrasada. Este é o momento do nosso ajuste. Durante tantos anos, você perseguiu meus amigos e matou muitos deles. Agora vou fazer com que se arrependa de suas agressões.

         O monstro sorriu, desprezando a determinação do herói.

         — Pois saiba, proscrito, que eu sou invencível. Por mais que você tenha ar­ruinado Miguel e até superado os arcanjos, eu tenho a Fogo Negro — e mostrou sua espada de chamas negras. — Esta arma me foi dada por Lúcifer, como um presente por meu ingresso na conspiração. Esta relíquia pertenceu a Bahemot, servo de Tehom, um dos deuses antigos, aniquilados por Yahweh antes da fei­tura da luz. Ela é anterior à criação do universo e precedeu o nascimento dos anjos. Sua lâmina é indestrutível. Nada nem ninguém poderá me vencer enquan­to eu a brandir. Derrotarei os novos rebeldes, sozinho se for necessário, até o último insurgente.

         Em resposta, o guerreiro levantou sua Flagelo de Fogo.

         — Então, talvez você se lembre da Flagelo de Fogo — desafiou-o, exibindo a ponta abrasada da espada. — É a única arma que já o feriu.

         Durante a guerra no céu, Gabriel, que não sabia da aliança entre Miguel e Lúcifer, lutou bravamente contra os agentes do Diabo, e em meio à peleja gol­peou o Exterminador bem no rosto, com sua espada fulgente. A cicatriz era ain­da visível.

         Cansados e furiosos, os dois rivais se afastaram e tomaram distância para o combate mortal. Flutuando ao lado de Shenial, Baturiel lembrou-se dos dias remotos, quando Ablon e Apollyon se bateram no Castelo da Luz. Na época, eram ainda generais de legiões, e só não morreram porque Balberith, então prín­cipe da casta, interrompeu o embate.

         — Continua aqui um desafio que se iniciou há quinze mil anos — sua arma­dura dourada estava coberta de sangue, seu e de outros. Os braços tinham cor­tes abertos, e as asas doíam pelas pancadas sofridas.

         — A espada de um arcanjo ou a arma de um deus — proferiu Shenial, refe­rindo-se à Flagelo de Fogo e à Fogo Negro. — Quem vencerá?

         Era impossível precisar a vitória.

 

O Fim do Universo

         Shamira estava sozinha no ponto extremo da fortaleza, acompanhada somen­te pelos mortos. No terraço, o sangue chegava aos calcanhares, e era difícil an­dar sem pisar em cadáveres. Apesar do incêndio, a torre continuava segura e certamente resistiria por mais alguns minutos.

         Livre das correntes e sem alados para vigiá-la, a feiticeira preferiu tomar uma atitude, em vez de assistir passiva ao duelo. Desceu pelo alçapão e entrou na Sala dos Portais, palco da armadilha preparada pelos arcanjos para assassinar o general dos rebeldes.

         A necromante estacou na entrada da câmara e observou tudo em volta. Es­tava resolvida a encontrar ela mesma a saída e a escapar, sem ajuda, do fogaréu que consumia a bastilha.

 

         Ablon e Apollyon chegaram à beira do precipício sobre a montanha, em cantos opostos da arena de pedra. Dali se viraram, um de frente para o outro, como desafiantes em lados extremos do ringue. A tensão atingiu o ponto má­ximo e, então, eles correram à batalha, inchados de força colérica.

         Os exércitos estavam estagnados, aguardando o impacto. Como cavaleiros em justa, os titãs rasgaram a noite e se enfrentaram bem no meio do círculo.

         Quando as duas espadas bateram, o planeta inteiro tremeu. A explosão soou como um acorde estridente na fluência do universo, uma nota gritante na sin­fonia do espaço. Uma fabulosa onda de fogo — negro e rubro — desceu pelas en­costas do morro, fulminando os espectadores mais próximos e lambendo toda a planície. Os mais espertos voaram, enquanto o vagalhão escaldante chamus­cava o chão do deserto, consumindo tudo à sua frente.

         As armas mais poderosas do cosmo se partiram ao encontro, lançando es­tilhaços ferventes ao céu. Os duelistas foram atirados para trás, pela violência do choque, e rolaram ao marco inicial do combate. A explosão fez rachar as ar­maduras, que logo sumiram em farelos. As couraças desapareceram como poei­ra ao vento, mas haviam preservado a vida de ambos — sem elas, o corpo dos combatentes teria sido desintegrado, engolido pela suprema energia das lâmi­nas, forjadas por deuses insuperáveis.

         A Flagelo de Fogo fez seu trabalho, mas as ameaças de Apollyon não eram simples bravatas. A Fogo Negro realmente era, e sempre fora, a arma mais po­tente já criada, por isso um de seus estilhaços resistiu. A lasca abrasada atraves­sou o ombro de Ablon em extrema velocidade, perfurou-lhe a carne e saiu pelas costas, indo perder-se nas pedras além.

 

         Na Sala dos Portais, Shamira vasculhava as alcovas, atenta aos símbolos gra­vados nas portas. Enquanto examinava os umbrais, encontrou um curioso objeto pousado no chão: uma pena enegrecida, de aparência antiga, já encurvada nas pontas, maior que a plumagem das aves. Levando a pluma à luz, não teve dúvidas sobre a quem pertencia.

         Aquela era a pena de Apollyon, dada ao Primeiro General pelos espíritos da velha Sodoma. Ablon a levara à batalha, para não esquecer sua vingança, mas durante o combate contra o arcanjo Miguel ela lhe escapara do cinto, e agora a feiticeira a encontrava entre as sombras.

         Sob circunstâncias normais, anjos e demônios não são afetados por encan­tamentos comuns, a não ser que o feiticeiro tenha um elemento físico da enti­dade para os rituais. Foi assim que Zamir conseguira atrair Ablon para o bosque Tin-Sen e imobilizá-lo na entrada da casa romana.

         Agora, Shamira tinha uma pena do Destruidor.

         Podia fazer um feitiço!

 

         Recuperados da explosão, os dois guerreiros se levantaram, enraivecidos e desarmados. Nenhum deles esperava que as espadas se quebrassem ao impac­to, mas não podia ser diferente. O poder das lâminas era enorme.

         — E agora, onde está sua arma invencível? — instigou Ablon, sem dar a me­nor importância ao ferimento no ombro. — Está inerme, maldito.

         — Inerme? E quanto a você? — riu Apollyon, apontando para o rasgo onde o estilhaço penetrara. — Achava que nada mais poderia vencê-lo, não é? Entenda, renegado. A Fogo Negro foi feita para exterminar os arcanjos, e isso o tornou o alvo perfeito.

         — Acredita mesmo que este ferimento pode me matar?

         — Não. Mas agora suas forças estão reduzidas. Lutamos novamente em igual­dade. Não é assim que prefere?

         — Eu prefiro vê-lo morto. Desta vez nenhum príncipe vai ajudá-lo.

         — É verdade — concordou o demônio. — A salvação está reservada aos for­tes. Assim morreram os renegados, sem um líder para ampará-los — provocou. — Assim morreu Yarion, Asa de Vento. Assim morreu Sieme, Mestre da Mente.

         — Já falou demais, assassino — censurou o guerreiro. — Vejamos se é tão bom com os punhos quanto é com as palavras.

         Eles voltaram ao combate, agora sem as armaduras a cobrir-lhes o torso. A batalha, recordou Baturiel, repetia a sequência do duelo no Castelo da Luz, quan­do os dois generais lutaram, deitando fora as couraças de ouro.

         Apollyon disparou para cima com a rapidez de um trovão, como se convo­casse o Renascido. Ablon o seguiu, e os dois subiram alto, muito alto, só parando quando enxergaram as estrelas. O frio do espaço endureceu-lhes o corpo, e o general sentiu que sangrava, sangrava muito. A lasca da Fogo Negro não ape­nas o enfraquecera, mas ainda poderia matá-lo. Seria ele, enfim, vencido por seu inimigo mais pessoal, depois de ter voltado da morte e derrotado o arcanjo Miguel?

         Mas, no momento em que a esperança fugia, o mundo girou, em seu ca­racterístico movimento diário. A escuridão sideral recebeu o brilho da luz, e o primeiro raio de sol surgiu na curvatura.

         Os desafiantes voaram um contra o outro, como dois foguetes em colisão. Apollyon esmurrou, aproveitando toda a energia do empuxo, mas Ablon des­viou o ataque. Agarrando o malikis pelo braço, ele o rodou sobre a cabeça e de­pois o lançou para baixo. O Exterminador despencou, girando feito um fura­cão, enquanto o general o massacrava com uma sequência de socos.

         À medida que reentravam na atmosfera terrestre, o monte Megiddo tornava-se novamente visível. Apollyon não conseguiu adejar e caiu de costas no chão, abrindo uma cratera no cume do morro. O choque esmagou-lhe as asas, des­pedaçando os ossos do dorso.

         Acelerado, Ablon desceu à vala e pousou já montado, forçando o joelho con­tra o estômago do monstro, que se defendia, insensível à dor. O general repa­rou, à proximidade, que o baque também tinha dilacerado as costelas da besta, trespassadas por estacas de pedra. O sangue do misterioso Anjo de Asas Negras encheu o buraco, sujando a fundura da fenda.

         — Está derrotado, Exterminador. Sem sua espada, não é quase nada. Conhe­cerá agora o caminho da morte. Partirá ao vazio, e sua essência voltará ao fluido do cosmo, de onde nunca deveria ter se formado.

         Enlouquecido pela exaltação, Ablon invocou a Ira de Deus. Desceu um soco no rosto do malfeitor, mas a fera esquivou-se, escapou para o lado e pulou às costas do general, como uma pantera faminta.

         A pancada falhou, e o golpe possante atingiu o coração da montanha. Ao embate, sobreveio um grande terremoto, que fez vibrar todo o morro e amea­çou engolir a cratera. Ablon tentou voar, mas Apollyon estava enlaçado às suas asas, como um carrapato colado à pele. Juntos, foram quase soterrados pelas pedras rolantes, mas um impulso do renegado jogou os dois para fora da vala.

 

         O monte Megiddo implodiu, ruindo por dentro e destroçando todo o de scrto. A planície se rasgou em gretas profundas, castigando a esplanada, já ar­rasada pelo fogo das espadas divinas.

         Os duelistas aterrissaram sobre os destroços, salvos, mas buscando estabili­dade no terreno imperfeito.

         Agora, o jogo tinha virado, e o Destruidor detinha a vantagem. Enrolando o braço no pescoço do inimigo, o demônio apertou o rebelde em um golpe do tipo gravata. Ele sabia que, por mais que lutasse, seus assaltos seriam ineficazes contra o Renascido, por isso guardava, secretamente, sua principal tática de guer­ra — o ataque final que encerraria a disputa. Ablon se tornara insuperável ao ven­cer o arcanjo Miguel, mas não subsistiria à estratégia suprema do Exterminador.

         O herói rolou para a frente, contraiu todos os músculos, tentou escorregar para baixo, mas não conseguiu se libertar da pegada. Era o mais destro dos lu­tadores, possuía habilidades incríveis, mas já havia perdido muito sangue. Além disso, o malikis ainda tinha maior força física, e usou de toda sua brutalidade para reter o revoltoso.

         — Suas manobras são inúteis — avisou Apollyon. — Como poderá agir, enquan­to estiver imobilizado?

         Pela posição do rival, Ablon percebeu que ele também nada podia fazer. Um único movimento agressivo permitiria que o general se libertasse da chave.

         — Nunca vai me ferir — constatou o renegado. — Solte-me, e voltemos à briga.

         O assassino não deu importância à proposta e retrucou em regozijo:

         — Para você, reservei minha arma mais primorosa — explicou, e continuou lentamente. — Soube que você ficou muito impressionado pela maneira como arruinei Sodoma e Gomorra... — havia um deleite macabro em sua voz. — Esse é meu poder de total destruição, a potência capaz de arrebentar o tecido e tra­zer a condenação sobre o mundo.

         Destruição total! — a energia que vitimara os filhos de Sodoma, o horror que liquidara as duas cidades, convertera os mares em sangue e transformara os fu­gitivos em colunas de sal. Ao discurso, Ablon temeu pelo futuro da humanidade, pelo destino da terra e de seus habitantes. A fera não era só assassina — mas tam­bém suicida.

         — Se não me soltar, você morrerá junto — alertou o querubim.

         — Então, morreremos. Você é meu inimigo, minha nêmesis. Nosso fim mar­cará a devastação do planeta. Essa é minha demanda vital — revelou, repetindo as glosas sobre sua identidade. — Eu sou o Anjo do Abismo Sem Fundo, sou aquele que abre todas as portas. Eu sou a luz e as trevas, o começo e o fim.

         Com isso, seus músculos se dilataram, e o sangue vermelho da besta ganhou brilho azulado. Ablon notou, com sua visão apurada, que os átomos do plas­ma inchavam e logo se chocariam a ponto de estourar, culminando em uma explosão luminosa. De repente, o corpo do Destruidor mais parecia um canal, um veículo retentor de toda a energia destrutiva do cosmo, um receptáculo car­regado de sentimentos terríveis, concentrando, em si, horror e agonia, maldade e aflição, ódio e crueldade.

         O general não sabia de onde vinha tamanho poder, ou como era ativado.

         Não havia mais reversão ao processo.

         Aquele era o fim do universo, para homens e anjos.

 

"Assim Morrem os Heróis"

         Apressada, Shamira voltou ao pináculo da torre, com a pena negra na mão — a pena de Apollyon. De lá, avistou o terremoto devastando a planície, e os dois gigantes ainda lutando.

         Apertou a pluma contra o peito e evocou sua mágica, para recitar um últi­mo encantamento.

 

         Sobre os escombros do monte Megiddo, então reduzido a uma colina de pedregulhos instáveis, Apollyon prendia o Primeiro General em sua guarda, en­quanto invocava a arma letal, que vitimaria não só os dois duelistas, mas todos os mortais do planeta. Imobilizado, Ablon imaginou qual seria o verdadeiro pa­pel do Exterminador na conspiração. Por que Miguel e Lúcifer o teriam recru­tado, além de usá-lo como mensageiro? Supôs, então, que sua habilidade supre­ma de destruição fosse parte essencial do plano final. Os arcanjos tinham por meta liquidar a humanidade após a desintegração do tecido, e quem melhor para ajudá-los do que o Anjo Destruidor, um agente da morte, criado para a carnificina e atraído pelos mais violentos massacres?

         Apollyon era fascinado pela dor e pela matança. Por toda a história, ele lá estava, onde quer que houvesse agonia e morticínio. Não interferia, mas acompa­nhava do plano astral as chacinas, as guerras, as hecatombes, as catástrofes. As­sistira ao primeiro homicídio, quando Caim matou o irmão; espiara as guerras da Grécia, o avanço do Império Romano, o horror das Cruzadas; espreitara as campanhas de Napoleão e os conflitos do século XX. Um dia, na primavera de 1916, caminhara sobre os campos entrincheirados de Verdun, na França, ao término da maior batalha humana da Europa, em que oitocentos mil soldados morreram. Anos depois, vira a bomba atómica sobre o Japão e se admirara ao entender que seu poder havia sido roubado pelos homens. Soube, então, que cedo ou tarde a civilização se extinguiria, ela própria, mas caberia a ele caçar os sobreviventes. Era para isso que a Estrela da Manhã o havia chamado — o Dia­bo julgava conhecer o futuro, revelado no Livro da Vida.

         Assim se concluiria o sétimo dia, com a derrota do Renascido.

         Mas Ablon não acreditava em destino, e o que aconteceria a seguir desafiaria qualquer previsão.

         Surgiu, voando no céu, uma figura virtuosa e altiva, apesar de sua diabólica aparência. Envergava uma armadura de prata, adornada com símbolos atlantes. O colete metálico se abria nas costas, de onde brotavam duas asas despenadas, refletidas na pureza da couraça brilhante. Os olhos eram vermelhos, a pele, mo­rena, e a barba, de um negro profundo. Mistura de homem e fera, o Rei Caído de Atlântida ingressava ao combate, oculto desde o princípio da luta.

         Mergulhou no ar feito um falcão, e com suas garras pontudas furou o dor­so do Destruidor, puxando a besta para trás e libertando o renegado.

         — Orion! — espantou-se o Primeiro General.

         — Orion? — grunhiu Apollyon, enquanto o satanis o segurava pelas asas par­tidas, enfiando-lhe os dedos na carne, cada vez mais profundamente.

         — Vá embora, Ablon — falou o Rei Caído. — Não vou detê-lo por muito tempo.

         O general planava diante do amigo, ainda estupefato. Como veterano de guerra, sua primeira reação foi preservar o camarada, e não correr da batalha.

         — Ele não vai parar, Orion — avisou, referindo-se ao Exterminador e a seu poder de total destruição. — Largue-o, ou será imolado.

         O velho confrade sorriu.

         — Faço isto pela nossa antiga amizade, general, que nem o céu e o inferno conseguiram apagar — e, ao notar o querubim ainda indeciso, acrescentou:

         — Minha salvação está em morrer em glória, como um monarca atlante. Fu­ja, ou meu sacrifício não terá serventia. Você já terminou sua missão. Permita que eu cumpra a minha.

         Compreendendo que Orion havia feito sua escolha, e que nem mesmo ele poderia impedi-lo, Ablon decolou e voou com toda a celeridade na direção de Sion, esperando chegar à fortaleza a tempo de salvar a Feiticeira de En-Dor. Aos brados indignados de Apollyon, que teve frustrada sua demanda, o Renascido olhou para trás e proferiu uma última frase em tributo ao bom companheiro:

         — Assim morrem os heróis — sussurrou, e as palavras se perderam ao vento.

 

A Chave do Poço do Abismo

         Ao ver a fuga de seu inimigo, Apollyon decidiu persegui-lo. Orion ainda o segurava, mas o ocioso satanis não seria páreo para a força descomunal do malikis. Se nem o Primeiro General o prendera, não seria o Rei Caído que o faria.

         O Destruidor forçou o atlante para trás, com o objetivo de atirá-lo ao alto, mas percebeu, subitamente, que seus impulsos não eram mais tão possantes assim.

         — O que houve, Exterminador? — perguntou com ironia o falido monarca. — Seu vigor colossal o abandonou?

         Desesperado, Apollyon esperneou, mas sua magnífica potência sumira. Ele gritou em protesto, esbravejou, e nada aconteceu.

         Como? Que tipo de energia o debilitara? Quem poderia sugar toda sua pu­jança?

 

         —Alsi ku nushi ilani mushiti!— proferiu Shamira no cimo da fortaleza, com a pena negra na mão. Aquele era o encanto do enfraquecimento, o mesmo que Zamir lançara em Ablon, à entrada da casa romana.

         Mas, agora, o alvo era Apollyon.

         O feitiço não era mortal, só debilitante. No renegado, os efeitos foram par­ticularmente terríveis porque, na ocasião, ele já estava arrasado pelo veneno do escorpião. O Exterminador não seria vitimado pelo encantamento, e sim por sua própria arma de destruição.

 

         — Foi você! — decifrou de repente Apollyon. — Foi você quem libertou Ablon dos calabouços de Zandrak.

         — Sim — confirmou o Rei Caído de Atlântida. — Eu e a rainha-demônio.

         — Lúcifer enxergava tudo em seus domínios — rugiu, buscando uma expli­cação aceitável. — Não é possível que isso tenha escapado à sua visão!

         — Nem tudo o Arcanjo Sombrio podia enxergar. A amizade e o amor... fo­ram as emoções que nos motivaram, a mim e à sedutora. A Estrela da Manhã jamais perceberia nossas intenções porque, para os perversos, esses sentimentos são indecifráveis.

         Então, enfraquecido pelo feitiço de Shamira, incapaz de voar com as asas quebradas e retido no solo por Orion, Apollyon liberou sua fúria, que, uma vez invocada, não poderia mais ser contida.

         Assim, deu-se a grande explosão. O coração pulsante da besta rasgou, lan­çando um oceano de fogo e fulgor sobre o mundo. No campo, os três exércitos enfrentaram, atônitos, o espetáculo, à medida que o calor cósmico desintegra­va seus corpos.

         Ruíram as fundações do planeta, e por toda a terra começaram os cataclismos. Rios transbordaram, continentes se dividiram, montanhas desabaram. O solo foi castigado, e suas gretas sugaram os mares às entranhas do globo.

         Sobre os escombros de Megiddo subiu uma coluna de negra fumaça, como se aberto o poço do abismo — uma passagem aos nefastos confins do universo. O ardor queimou todo o céu, obscurecendo o firmamento e apagando o bri­lho dos astros.

         Submetendo o Exterminador, Orion foi o segundo a morrer, seguidamen­te ao suicida. Mas, antes de perecer, teve um último lampejo, uma visão — não do futuro, mas do passado.

         Ao fenecer, avistou uma ilha e uma cidade de torres resplandecentes, ba­nhada pelo sol da manhã, onde era sempre verão. Viu um povo feliz, navegando pelos mares e mergulhando nas ondas. Vislumbrou uma terra de encantos e ma­ravilhas, sem fome, ódio ou tristeza; um país unido pelo amor ao Criador, mas ciente das próprias capacidades.

         Aquela era Atlântida, a Pérola do Mar.

         Falecia seu monarca perpétuo.

 

         Antes de a explosão engolir a bastilha, Amael e Aziel chegaram ao terraço da Roda do Tempo para resgatar a Feiticeira de En-Dor. A Chama Sagrada se­gurou a mulher, e os três voaram para longe dali, em direção ao acampamento rebelde, tentando fugir da nuvem de choque.

         Mas a energia os alcançou, lançando seus corpos ao deserto.

 

O Beijo dos Mortos

Devastação

atordoado pela explosão, ablon levantou-se do chão, trôpego e dolorido. Cuspiu um pouco de sangue no solo queimado e esticou as asas rajadas. Sentia-se péssimo, mas ainda estava vivo. A respiração também voltava com custo, e ele inspirou fundo, só para sentir o gosto funesto do ar poluído.

         Mas onde estava? O que acontecera? De repente, perdeu a noção do tempo e do espaço.

         Olhou ao redor e viu uma paisagem de horror — um deserto cinzento, de terreno acidentado, coberto por ruínas e estilhaços. O céu estava fechado por uma nuvem escura, profunda e venenosa, que deixava a planície em penumbra lunar. O clima esfriara, e uma estranha poeira descia à superfície, imitando uma neve sinistra, pesada e plúmbea.

         Percebeu, então, que algo havia mudado, não só no cenário, mas no uni­verso. O tecido da realidade caíra, e os dois mundos — o físico e o espiritual — eram agora um só. A distância, divisou os escombros da cidade santa de Jeru­salém, desabitada e aniquilada. Mas como fora destruída? Teria sido arrasada pela energia de Apollyon ou pelo estouro da Sétima Trombeta, a última das bom­bas humanas? O general não procurou a resposta, nem a acharia. Talvez o Des­truidor e sua arma fossem de fato a Trombeta Final, e ele, o único responsável pelo cataclismo e pela terminação da espécie mortal — ou talvez não.

         Na esplanada, espalhavam-se milhões de corpos, celestiais e mundanos, de­cepados e mutilados. O sangue dos anjos misturava-se ao sangue dos homens, ruborizando a negritude da terra.

         Afundado na areia chamuscada, o guerreiro encontrou um volume intacto, em meio à devastação. Ele o puxou e analisou a capa. Era o Livro da Vida, con­cebido para confundir os perversos, cegos pela própria ganância. Resistindo à tentação de abrir o compêndio, o general o guardou consigo, virou-se ao sul e rumou em direção aos destroços que, pouco antes, eram a inexpugnável fortaleza do Príncipe Celeste.

         Shamira — teria ela sobrevivido?

         O coração apertou, e ele se deu conta do derradeiro fracasso. Mesmo voando, correndo a toda velocidade, o querubim não conseguira chegar a Sion.

Só um milagre teria preservado a Feiticeira de En-Dor.

         Disparou às ruínas, e do céu enxergou três figuras, entre elas o ishim Aziel e seu antigo mestre, Amael, o Senhor dos Vulcões. Estavam reunidos diante de uma mesa redonda de pedra — a Roda do Tempo —, que agora jazia no chão do deserto, espantosamente preservada após ter despencado do pináculo. Certas relíquias são tão especiais que nunca se quebram, mesmo atacadas pelos mais terríveis desastres.

         O renegado sentiu uma fincada cortar-lhe o espírito, ao notar que Aziel dei­tava uma jovem no solo — uma moça de pele alva e cabelos negros — e fechava-lhe os olhos.

         — Tentei salvá-la, general — disse o ishim, quando Ablon pousou a seu lado e tomou a necromante no colo. — Mas seu corpo humano não resistiu à explosão.

         As entidades fizeram silêncio.

         Morta! Shamira estava morta! O Renascido não quis acreditar, mas era a mais pura verdade. A feiticeira o abandonara e não regressaria jamais. Para onde teria seguido sua alma? Ali, ajoelhado, teve vontade de resgatá-la, de trazê-la de volta, para que vivessem tudo aquilo que não viveram, para que se encontrassem, afi­nal, na tranquilidade que tanto sonharam.

         Mas ele não podia revivê-la, realmente.

         E agora, o que faria? Como prosseguiria sua vida miserável? Que forças teria para continuar habitando este mundo?

         Compreendeu, finalmente, o exato sentimento de sua amada, ao tê-lo a seus pés, sangrando, à beira da morte, no átrio da casa romana. Com efeito, a morte é muito mais dolorosa para aqueles que ficam, e certamente pouco sombria aos falecidos. Entendeu, portanto, que suas lágrimas não ajudariam seu coração, muito menos a pobre mulher.

         — Você fez sua parte, feiticeira. Siga em paz para o eterno descanso — sus­surrou e a beijou entre os lábios.

         Foi aquele o único beijo real, desde que se conheceram.

         O beijo dos mortos.

 

O Crepúsculo dos Tempos

         Ali estavam as três entidades, no campo destruído, em volta da Roda do Tempo, sobreviventes da grande catástrofe, velando o corpo da Feiticeira de En-Dor. Tinham vencido a guerra, derrotado os inimigos, despojado os tiranos, mas a que preço!

         Como seus opressores, os rebeldes também haviam sido derrotados. O projeto dos arcanjos se concretizara afinal, apesar da ruína de seus arquitetos. A hu­manidade fora enfim liquidada, conforme planejaram os chefes perversos.

         Mas agora o sétimo dia havia terminado. E este era o crepúsculo dos tempos — o declínio do universo.

         Aziel parou em frente à relíquia de pedra, marcada com o código secreto dos malakins. Tão próxima, a roda mais parecia um relógio, gravada com runas antigas e símbolos cósmicos. Durante todo o curso da história, o círculo esteve girando, mas agora descansava, estático sobre seu eixo.

         — Então, esta é a famosa Roda do Tempo — arriscou o ishim, quando o clima de tristeza acalmou. Nunca havia admirado o artefato de perto e percebeu que, mesmo inerte, a energia continuava latente na rocha. — Sua força mística é mag­nífica. Por isso Miguel quis roubá-la do santuário dos malakins no Sexto Céu e trazê-la para Sion. Quem detivesse a roda deteria o poder.

         — A Roda do Tempo é a maior das relíquias deixadas por Deus — confirmou o renegado.

         Amael desviou o olhar para cima e depois voltou a atenção aos escombros do monte Mcgiddo.

         — O que aconteceu aos três exércitos? — perguntou o Senhor dos Vulcões. Ele e Aziel não tinham assistido ao duelo, só à explosão. A pilha de defuntos indicava o fado das legiões, mas quem teria sido o arauto da destruição?

         — Estão todos mortos — explicou o general. — Apollyon era o agente da cons­piração, o Anjo Negro, escolhido pelos arcanjos para caçar os sobreviventes mor­tais, à queda do tecido da realidade — e inclinou a cabeça. — Miguel não cairia no mesmo erro que cometeu no dilúvio, quando desprezou a capacidade de re­produção dos seres humanos, e eles voltaram a povoar o planeta.

         Aziel fitou as palmas frias, outrora cheias de fogo.

         — Juntos, triunfamos na Batalha do Armagedon. Completamos nossa missão, mas não conseguimos afastar o mundo de sua extinção. Os grandes valores fo­ram deitados por terra.

         Ablon encarou o rosto gélido da necromante, impressionado por sua beleza, mesmo na frieza da morte. Era como se ela ainda vivesse, e realmente vivia, al­gures em seu coração. Tocando-lhe a face macia, o querubim reviveu o ritual em seu apartamento, quando a moça trouxe o espírito celta ao pentagrama -Korrigan, uma entidade com habilidades proféticas.

         — Há esperança—sussurrou o Renascido. O murmúrio era quase um suspiro.

         — Como? — perguntou o ishim. — Como vamos devolver a vida aos mortos e reconstruir um planeta infértil? Somos anjos, não deuses.

         O general concordava com o amigo, mas não inteiramente.

         — Este universo está arrasado, mas a verdade é incerta. No infinito, os ca­minhos nunca levam ao mesmo lugar nem correm em uma só direção.

         Os três silenciaram, até que Amael decifrou:

         — A Roda do Tempo. Acha que poderíamos voltá-la?

         — Talvez.

         — Mas só um deus pode movê-la — reagiu a Chama Sagrada. Era o que todos sempre diziam.

         Ablon aprendera muitas coisas em sua jornada, mas sobretudo a desacreditar no destino, nos rumos traçados, nos trajetos já determinados. Preferia crer no revés, confiar no livre-arbítrio, na capacidade de construir o próprio futuro. Ain­da que não fosse humano e estivesse preso à sua natureza angélica, acreditava na liberdade de decisão.

         — É o que somos agora — interpretou Amael. — Foi o que nos tornamos. So­brepujamos os arcanjos, e agora não há quem nos supere. Aqui, somos deuses. Deuses sem rosto, sem seguidores.

         — Acabamos por nos converter naquilo que tanto lutamos para que nossos inimigos não se tornassem: deuses de um mundo em cinzas — completou o Pri­meiro General, olhando para o céu obscuro. Além das nuvens, o sol nascia, mas sua luz não alcançava a terra. O globo se tornara uma estufa gelada, mergulhada nas trevas, assolada pelo inverno nuclear e contaminada pela radiação das bom­bas humanas.

         Enquanto deliberavam, avistaram um ponto dourado no horizonte, que bri­lhava feito estrela na noite fechada. Sua energia era amável, bondosa, e os três se sentiram acolhidos. O brilho deslizou até eles, e de repente até a contorcida paisagem pareceu concertar-se.

         Aquele era o fulgor vivo de um anjo, um ofanim — a casta dos alados mais piedosos. Não eram guerreiros, muito menos políticos, mas guardiões dedicados à assistência dos homens e à proteção dos necessitados. Os olhos eram como pedrinhas de cobre, e tranças de ouro desciam pela longa túnica branca. As asas tinham reluzir próprio e se abriam como folhas de prata.

         Quando pousou, até o velho Amael o reconheceu. Ainda que afastado do céu, o Senhor dos Vulcões não esquecera a cintilante beleza de Nathanael, o Mais Puro.

         — Nathanael... Está preservado — constatou Ablon.

         — Eu não fui ao combate — esclareceu o ser reluzente. — Continuei a distância, na caverna do monte Horeb, perto do acampamento rebelde. Assim, escapei da explosão. Além disso, sou capaz de me transformar em luz pura, tornando todo meu corpo absolutamente imaterial.

         A chegada de Nathanael era uma bênção em um instante de tanta aflição. O ofanim era um dos mais sábios celestiais, por isso fora selecionado como as­sistente direto de Gabriel. O Mestre do Fogo o designara para acompanhar, do plano astral, cada passo do Salvador, até o martírio na cruz. Foi por causa de sua missão que o Mais Puro não pôde encontrar Ablon no monte das Oliveiras, quando da primeira viagem deste à Cidade Sagrada. Depois, Nathanael esteve à frente das legiões que escoltaram o Iluminado ao paraíso. O Mensageiro con­fiava ao ofanim os assuntos do espírito, e a Varna a matéria da guerra.

         — Ilumine-nos, Nathanael, com sua infinita prudência—Ablon pediu. — Sou só um guerreiro e não enxergo muito bem os mistérios do cosmo — ele apontou para a relíquia de pedra. — Podemos voltar a Roda do Tempo?

         — Agora vocês três são soberanos — declarou. — São uma trindade suprema, onipotentes e imperecíveis. O sétimo dia acabou, e as leis antigas caíram. Cabe a vocês encontrar a decisão. Se aqui ficarem, poderão tentar refazer um universo arrasado. Se retrocederem, abrir-se-á uma nova chance à civilização. Mas saibam, ó gigantes, que caso regressem não se lembrarão do futuro. Sua mente será apa­gada até o ponto em que decidirem voltar. O destino é indecifrável.

         — Mas se retornarmos, sem consciência do futuro, como poderemos garantir a retidão de nossas ações? — interpelou Aziel. — Como saberemos que, no fim, a situação não nos trará a este mesmo ponto final?

         — Miguel morreu porque se entregou ao destino — alertou o Primeiro Gene­ral. — Não somos como ele. Construiremos nossa estrada, nossos valores, nesta ou noutra existência.

         Seguiu-se uma longa pausa, enquanto a neve escura despencava das nuvens. Então, Amael confessou:

         — Nunca me perdoei por ter acatado as ordens de Miguel e os comandos de Lúcifer. Executei o dilúvio, sob a atenção dos arcanjos. Meus pecados agora são irreparáveis. Mas, se tivesse urna nova oportunidade, eu os enfrentaria.

         — E eu o ajudaria — replicou Aziel, arrependido por, um dia, ter virado as costas a seu mestre querido.

         Sobre o deserto, a poeira cinzenta descia. Sion era só estilhaços, uma ruma fumegante de colunas e blocos, como uma fogueira em brasa que se apaga ao orvalho da madrugada.

         — General, você foi o líder da irmandade e o ícone dos revoltosos — arbitrou Nathanael. — É sua a palavra final.

         Korrigan — pensou o Renascido. Durante o ritual mágico, o espírito celta havia previsto o impasse, mas não expusera nenhuma solução. Nem precisara — a vontade do guerreiro era óbvia. Ele era um herói, e como tal dedicara a vida ao mundo. Por séculos, desistira da felicidade para perseguir um ideal. Rene­gara a liberdade, e até o amor. E agora, por fim, teria o aguardado repouso.

         Sua missão estava cumprida.

 

         Juntos, os três cingiram a Roda do Tempo, sob a luz inspiradora do ofanim.

         E a giraram.

 

Estoril, costa de Portugal, tempo presente

O conversível vermelho estacionou à margem da pista, entre o asfalto e a mureta de aço. Além da estrada, a praia se alongava até o horizonte, subindo em uma falésia adiante. No céu, as gaivotas dançavam, mergulhando às vezes no mar vespertino.

         Ablon rodou a chave do carro e desligou o motor. A seu lado, Shamira tirou os óculos escuros, para apreciar o esplendor da paisagem.

         — Por que paramos? — ela perguntou.

         — Só um velho costume atlante — respondeu o celestial. De baixo do banco, ele sacou um embrulho pequeno. Abriu a porta do automóvel e caminhou em direção à mureta. — Já volto.

         — Não se apresse — sugeriu a mulher, fascinada pelo cenário. — Por mim, fi­caria aqui para sempre.

         O anjo desceu à areia e andou até a beira do oceano. Do embrulho, retirou um compêndio ancestral, um livro grosso, de aparência antiga, com as páginas já amareladas, mas sem inscrição alguma. Estava em branco, e nenhum título cobria-lhe a capa.

         — O Livro da Vida — sussurrou para si, recordando de sua existência oníri­ca, uma vivência quase quimérica, que agora só resistia em lembranças.

         Ao testemunho do sol, o querubim atirou o volume ao mar. O tomo resva­lou na superfície, boiou e depois afundou lentamente. Entrementes, um símbolo ferveu em seu braço, como um selo gravado a ferro. A marca ardeu feito sinal abrasado, até que se apagou totalmente. O feitiço da necromante estava com­pleto. A segunda runa — a runa da mente — terminava sua função, preservando a memória do anjo guerreiro.

         Submerge o último elo com um universo decrépito — pensou o querubim, à imersão do Livro da Vida. Uma nova chance se abre ao mundo.

         Realizado, voltou ao conversível, entregando o tomo às profundezas.

         — Que dia lindo! — exclamou a feiticeira, contemplando o mar cristalino. Uma brisa fraca agitava seus fios escuros.

         — O mais belo de todos — concordou o celeste.

         A atenção da moça correu pelas nuvens e deslizou ao horizonte.

         — Às vezes eu sonho com o fim do mundo — confessou, admirada pela be­leza da orla. — Fico pensando nas profecias do Apocalipse, e se um dia a espécie humana realmente destruirá o planeta, como descrito no livro sagrado.

         No assento do motorista, Ablon se afastou do volante.

         — O Apocalipse é o início de um reino de paz, após um período de grandes mudanças — explicou. — É o que nos contam todas as religiões, apesar de seu caráter fatídico. O fim do mundo não será uma era de morte, mas de renasci­mento. O Apocalipse não virá pela guerra, mas pela evolução. Pelo menos, eu assim acredito.

         A necromante tocou com ternura o rosto do alado, mas seu semblante ainda era confuso.

         — O que foi? — preocupou-se o anjo.

         — Nada — ela reconheceu. — É que, de repente, me senti como que desperta de um pesadelo.

         Ablon a acolheu entre os braços, aproximou-a de sua face e a beijou longa­mente.

         — Então, não adormeça.

         Virando-se à estrada, deu partida no carro.

         — Para onde vamos? — ela quis saber, prendendo as madeixas com uma fita vermelha.

         — O que importa?

         O automóvel regressou ao centro da pista, e o condutor acelerou.

         Na praia, um peixe saltou sobre as ondas, e um caranguejo escondeu-se na toca. Uma pedrinha negra, trazida pela correnteza, rolou na areia, reluzindo aos raios da tarde.

         Era um pedaço comum de basalto, mas um caractere estranho estava dese­nhado em cima, esculpido em baixo-relevo. Seus contornos eram como os das runas atlânticas, aquelas gravadas no grande obelisco da capital anciã. Certa vez, um anjo renegado jogou ao mar o fragmento, mas isso só acontecera em sonhos, em uma realidade ilusória e fantástica, havia muito esquecida. Agora, a pedra retornava ao verdadeiro universo, respondendo à vontade de seu portador.

         Era a runa da paz.

 

                                                                               Eduardo Spohr 

 

 

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