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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BELA E A FERA / Hannah Howell
A BELA E A FERA / Hannah Howell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

                   Inglaterra, Século XVI

Por trás das aparências... Às vésperas de seu casamento, Gytha Raouille, uma jovem de rara beleza, descobre que o noivo está morto. E agora ela deve se casar com o novo herdeiro das terras de Saitun, um cavaleiro endurecido por muitas batalhas, conhecido como Diabo Vermelho... Com o rosto marcado por cicatrizes e o coração ferido por uma grande desilusão, a última coisa que Thayer Saitun deseja é uma esposa. Porém, nem mesmo o Diabo Vermelho consegue romper o compromisso assumido por seu pai adotivo anos atrás. Assim, ele se vê unido a uma mulher linda e inocente. Mas seria a doce Gytha capaz de enxergar além das aparências e descobrir os sentimentos profundos que ele guarda na alma?

 

 

 

 

                                 Inglaterra, 1365

        - Morto?

        - Totalmente morto.

        - Mas como?

        - Caiu do cavalo e quebrou o pescoço.

        Gytha piscou, depois olhou atenta para o pai. Não havia em seu rosto nenhum sinal de mentira, embora ele parecesse estranhamente desconfortável. Ela esperou sentir tristeza pela perda do prometido, o belo e galante barão William Saitun. O pesar surgiu e se foi. Afinal, pouco vira esse homem. O que a intrigava agora era por que os preparativos para o casamento ainda prosseguiam. Se William estava morto, não poderia haver casamento! Um momento mais tarde, sua mãe revelou estar pensando a mesma coisa.

        - Mas e o casamento? O banquete está quase pronto. Os convidados estão chegando. Devo mandá-los embora?

        - Não é necessário, Bertha, querida.

        - Papai, não posso me casar com um homem morto!

        - E claro que não, querida. - John Raouille cobriu rapidamente a mão delicada da filha com a dele, grossa e calejada.

        - Não vamos interromper os preparativos? - Gytha franziu a testa confusa, notando que o pai não se movia.

        - Minha filha, o acordo que fiz com meu bom amigo, o barão Saitun, que Deus guarde sua alma, previa que você se casaria com o herdeiro dos bens dos Saitun.

        - E esse era William.

        - Sim, mas há outros herdeiros. Thayer vem logo depois de William na sucessão pela herança.

        - Então, está dizendo que agora devo me casar com Thayer? - Ela não sabia se entendia o acordo feito pelo pai.

        - Não. Ele morreu na França.

        Ou era uma noiva amaldiçoada, ou os Saitun não eram muito saudáveis, ela pensou.

        - Vou me casar ou não, papai?

        - Sim, você vai. O terceiro herdeiro é Robert. E com ele que vai se casar amanhã. Creio que já o conhece.

        Sua memória era uma característica pela qual muitos a admiravam. Era rápida e muito exata, guardando até os menores detalhes com clareza e precisão. Ela a usava agora, mas não se sentia feliz por isso. Se não possuísse memória tão precisa, Robert Saitun não teria ficado gravado em seus pensamentos. Ele havia sido como uma sombra para William e passava a maior parte do tempo tentando fugir dos gritos e das ordens do tio, um homem muito desagradável que o dominava completamente.

        - Sim, eu o conheci. Não acha que é... bem, desrespeitoso me casar com outro homem tão pouco tempo depois da morte da Wiliiam?

        - Bem... William morreu há algum tempo. Ele estava muito longe daqui, por isso você não foi chamada para perto de seu leito.

        Nem fora informada, ela pensou.

        - E o segundo herdeiro? Esse Thayer que nunca conheci?

        - Já disse, filha, ele morreu na França. Não quero parecer insensível, mas talvez tenha sido melhor assim. Ele não era homem para você, Gytha.

        Thayer Saitun removeu a mão feminina de seu peito e sentou-se.

        - Já amanheceu, mulher. E hora de ir embora. Pegando a bolsa de sob o travesseiro, ele extraiu dela algumas moedas e as jogou na direção da mulher, que as pegou com facilidade. Um sorriso cínico distendeu seus lábios. Os olhos atentos a viram pesar as moedas na palma da mão. A mulher também sorriu. Havia sido sempre assim. Era um homem respeitado e honrado por outros homens, temido por eles, mas as mulheres tinham sempre de ver o brilho de seu dinheiro antes de demonstrar algum interesse.

        Deitando-se novamente e cruzando os braços sob a nuca, ele a viu se vestir sem pressa. Estava farto de meretrizes sem nome, mas pelo menos havia nelas uma certa honestidade, e essas mulheres não podiam se dar ao luxo de desprezá-lo por ser grande, desprovido de encantos físicos ou, pior ainda, ruivo. Embora não tivesse na pele o tom avermelhado que sempre amaldiçoava os ruivos, sabia que poucas pessoas notavam esse detalhe. Cabelos vermelhos e sardas cobriam boa parte de seu corpo. Até seu tamanho era um ponto negativo, porque representava simplesmente uma área maior para a maldita coloração exibir-se. O som da porta sendo aberta o arrancou da autodepreciação.

        - Pretende passar o dia na cama? - perguntou Roger, seu braço direito. Antes de entrar e fechar a porta, ele deixou o entretenimento noturno de Thayer sair.

        - Não.

        Thayer levantou-se e foi se lavar.

        - Um revés nos espera. - Roger acomodou-se na cama desfeita. -- Logo você vai deixar de ser um herdeiro.

        - Sim. William logo terá um herdeiro. Não tenho dúvidas disso. Ele já provou sua habilidade nesse campo muitas vezes.

        - Não parece estar muito preocupado com a iminência de se tornar um cavaleiro sem terras ou o administrador de algum proprietário abastado.

        - Isso pouco me incomoda. Só um tolo pensaria que um homem como William nunca se casaria nem teria um herdeiro. Melhor que a obrigação seja dele, não minha. Eu teria dificuldades para cumpri-la.

        - Subestima seu valor. Nunca o vi sem uma meretriz para aquecer sua cama.

        - Antes elas se certificam do valor do meu dinheiro. Thayer ignorou o ar de desaprovação de Roger diante da amargura que ele não conseguia esconder. Roger não o via como as mulheres o viam. O amigo via nele um valoroso companheiro de batalha, alguém que era como um irmão. Roger não via nada de errado em cabelos vermelhos. Aos olhos de um homem, os pêlos abundantes em seu peito, os caracóis nas virilhas e os pêlos em seus braços e pernas eram sinais de virilidade. Os homens também invejavam sua silhueta grandiosa. Muitos gostariam de poder estar ombros e cabeça acima de outros homens. Não entendiam que ser tão maior que muitas belas e delicadas damas inspirava nelas mais medo do que admiração.

        Roger também não percebia nada de errado em seu rosto, tão forte quanto seu corpo. Anos de vida pela lâmina da espada haviam começado a transformar a ausência de beleza de Thayer em feiúra. Quando Roger via como várias fraturas haviam deixado seu nariz ligeiramente torto, simplesmente lembrava as batalhas que as causaram. Thayer sabia que ter todos os dentes era algo de que devia se orgulhar, mas esse orgulho era reduzido pela consciência de que a boca de lábios finos começava a mostrar cicatrizes de todas as vezes em que sofrerá cortes. Ele tocou a cicatriz que marcava sua face. Roger também não veria nada de errado nisso, pois recordaria a gloriosa batalha que causara a marca.

        Ele tentou ajeitar os cabelos, que tinham a infeliz tendência para encaracolar. Mesmo que Roger estivesse certo, mesmo que pudesse capturar o coração de uma mulher, não tinha importância. Não possuía casa para abrigar essa mulher. Se encontrasse o amor, seria apenas para ver essa mulher ser dada a outro homem. Poucos queriam dar suas filhas a um cavaleiro sem terras.

        - Venha, Roger, me ajude a aparar as pontas. Logo teremos de sair. Anseio por ver aquela que William diz ser um anjo.

        Gytha entrou no quarto e bateu a porta. Jogando-se sobre a cama, ela começou a praguejar com veemência e continuamente. A boca carnuda e vermelha, tão freqüentemente elogiada por seus pretendentes, cuspia todos os horríveis palavrões que ela conhecia. E quando esses terminaram, ela inventou outros. Como sempre acontecia quando extravasava dessa maneira, finalmente ela disse um impropério que considerou engraçado. Rindo, viu a porta ser aberta e sua prima Margaret olhar cautelosamente para o interior do quarto.

        - Terminou? - Margaret entrou devagar, fechando a porta atrás dela.

        - Sim. Acabei de lançar uma maldição sobre cada homem do reino. E pensei no que poderia acontecer se a maldição surtisse efeito. - Ela riu novamente.

        - Há momentos em que penso que você deveria estar pagando uma grande penitência. - Margaret sorriu sem entusiasmo e deixou sobre a cama um vestido de bordado muito elaborado. - Seu vestido de noiva. Finalmente está pronto. Vamos ver como fica em você.

        Sentando-se, Gytha tocou o vestido, reconhecendo e apreciando sua beleza, mas sem sentir alegria por isso.

        - Você deve ser a melhor costureira do mundo. Podia costurar para a rainha. - Ela sorriu ao ver o rosto da prima corar.

        De fato, pensou, Margaret não era só bela com seus olhos cor de âmbar e o cabelo castanho-claro, mas já estava bem perto de completar dezoito anos. Ela também devia se casar. Era verdade que Margaret não poderia almejar nada muito elevado, mas nem por isso estava sem possibilidades. Seu tio havia assegurado um dote para ela, única filha bastarda, e uma soma admirável fazia parte dele. Talvez pudesse haver alguém adequado para a prima entre os homens que compunham a entourage de seu marido. Teria de se dedicar a essa questão.

        - Gytha, pare de fazer planos para mim. Imediatamente.

        Tentando parecer inocente, mesmo sabendo que fracassava, Gytha murmurou:

        - Eu jamais seria tão impertinente.

        - Humph. Praguejando, e agora mentindo. Seus pecados crescem. Vai experimentar o vestido?

        - Suponho que seja necessário. Afinal, o casamento será celebrado amanhã. - Sem se mover, Gytha continuou olhando para o vestido.

        Margaret suspirou, pegou uma escova, sentou-se atrás da prima e começou a escovar seus longos cabelos cor de mel. Mesmo carrancuda, Gytha era linda, e jamais exibia vaidade. Margaret sentia que sua prima merecia uma vida melhor. Na verdade, ela acreditava realmente que uma jovem como Gytha devia poder escolher o próprio marido, casar-se por amor.

        A beleza da prima também estava na alma. Os olhos azuis e brilhantes e o corpo sensual podiam causar admiração e desejo em muitos homens, mas seu espírito amoroso suavizava até mesmo os mais cínicos. Como os irmãos, Gytha via a própria beleza como um presente de Deus, algo a ser brevemente apreciado e depois posto de lado por não ter grande importância. Freqüentemente, quando era forçada a se defender ou esquivar de um pretendente mais ardoroso, ela considerava sua aparência mais uma maldição do que uma bênção. Precisava de um homem que pudesse enxergar sua essência, além do rosto encantador, e reconhecê-la como o verdadeiro tesouro, e Margaret estava certa de que Robert Saitun não era esse homem.

        Livrando-se da melancolia, Gytha murmurou:

        - De alguma forma, parece errado me casar tão rapidamente com o herdeiro sucessor de William.

        - Não sei se é tão rápido assim. Creio que William morreu há algum tempo. Além do mais, interromper os preparativos agora traria grande prejuízo financeiro a seu pai. - Margaret ajudou-a a despir o vestido e perguntou: - Conhece Robert?

        - Não. Por que acha que estava aqui praguejando contra tudo e todos? Não estou preparada para isso.

        - Muitos diriam que não teria sido necessário se preparar para desposar lorde William.

        - É verdade, ele era belo, forte e honrado. Mesmo assim, o casamento representa um grande passo. E sempre melhor ter algum tempo para refletir. Mas, em menos de um dia, estarei me casando com um homem que não conheço. Nada sei sobre o caráter de Robert.

        - Teve sorte por conhecer William tão bem. Poucas mulheres têm essa vantagem.

        - E verdade, mas essa parece ser uma maneira monstruosa de conduzir a questão. Uma mulher é protegida e preservada em sua pureza durante toda a infância e a juventude. Um dia, ela se vê diante de um homem, na frente de um sacerdote, e recebe ordens estritas para ir viver ao lado desse desconhecido e obedecer a suas ordens sempre sem nunca questioná-lo. Receio cometer alguma tolice por causa do nervosismo. Talvez até desmaie.

        Margaret riu.

        - Você nunca desmaiou. E ouso dizer que jamais desmaiará.

        - Uma pena. Assim seria poupada de grande desconforto.

        - Tia Bertha certamente conversou com você. Deve saber o que esperar.

        - Sim, ela conversou comigo. Porém, foi muito difícil compreender o que ela dizia. Tantos rubores, tremores e hesitações!

        Margaret riu novamente.

        - Posso até ver. Pobre tia Bertha.

        - Pobre de mim! Contudo, a questão que mais me preocupa é que terei de me despir. Não posso gostar disso.

        Concentrando-se em fazer os laços do vestido de Gytha, Margaret disfarçou uma careta. Ela também não gostava da idéia. Gytha tinha um corpo capaz de despertar a luxúria dos homens. Embora não tivesse consciência disso, aparentemente, essa era uma das razões pelas quais fora tão ferrenhamente protegida. De alguma forma, ela conseguia ser esbelta e elegante e, ao mesmo tempo, exuberante e sensual. Mais vezes do que pudera contar, Margaret vira o fogo se acender nos olhos de um homem diante de sua prima. Acidentes ocorreram, apesar da cuidadosa vigilância, ocasiões em que Gytha tivera de se retirar apressadamente para preservar sua virtude. Colocá-la nua diante de um homem era altamente perigoso, especialmente um homem que teria todos os direitos sobre ela. A pobre Gytha poderia viver em sua noite de núpcias uma experiência violenta e dolorosa.

        - Ele também terá de se despir - Margaret finalmente murmurou. - Pronto. - Ela se afastou de Gytha. - Ah, você vai ser uma noiva encantadora.

        - O vestido é lindo. - Gytha virou-se devagar diante do espelho. - Não precisa de ajustes. - O caimento era perfeito. - Já esteve com Robert? - Ela sorriu da expressão assustada de Margaret, consciente de ter mudado de assunto de repente, um hábito difícil de romper.

        - Já o vi, e você também. Lembra-se do rapaz que acompanhava William em sua última visita?

        - Sim. Só queria ouvir sua opinião.

        - Bem, ele é esguio e claro. E quieto.

        - Hum. Muito quieto. Tão discreto quanto é possível. Fico me perguntando quando ele foi sagrado cavaleiro e por quê. Não posso dizer que ele honre o título, porque passa todo o tempo tentando fugir da autoridade do tio, uma atitude que não condiz com um cavaleiro. - Ela suspirou. - Ah, bem. Pelo menos não preciso temer que seja um bruto.

        - Há muito a ser dito em favor disso. - Margaret ajudou Gytha a tirar o vestido.

        - Longe do tio e do primo, talvez ele mostre um lado mais favorável de seu caráter.

        - É o que espero.

        Pouco tempo depois da chegada de Robert, Gytha já começava a pensar que sua esperança era vã. Charles Pickney, tio de Robert, estava sempre por perto. Tudo que ela descobriu foi que não era capaz de gostar de Charles Pickney, por mais que se esforçasse. Assim que teve uma oportunidade, ela escapou do futuro marido, e de sua sombra, para ir procurar por Margaret, a quem arrastou para fora do castelo para colher flores.

        O dia era ensolarado e quente, e os campos em torno do castelo estavam cobertos de botões. Logo o humor de Gytha começou a melhorar. Adorava a primavera com sua promessa de vida e calor, e rir e caminhar na companhia de Margaret, ajudou-a a esquecer as preocupações. Em pouco tempo, ela lembrava mais uma menina rústica e desprovida de maneiras do que uma dama à véspera de seu casamento, mas não se importava com isso. Só por algum tempo, pretendia esquecer Robert, o tio dele e o casamento.

        Thayer viu as duas jovens correndo pelo campo e se deteve a alguns metros delas. Rápido, ele fez um sinal aos dois homens que o acompanhavam para que também parassem, sabendo que o mais impulsivo deles as abordaria sem nenhuma sutileza, se assim permitisse. Apesar do estado descomposto das duas, sabia que não se aproximava de camponesas. Os vestidos eram finos demais. Temendo assustá-las, ele cavalgou cauteloso na direção da dupla, seguido de perto por seus homens. Logo sua aproximação foi notada. Ao parar perto delas, Thayer sentiu-se fortemente afetado pela beleza da pequenina loira.

        - Olá, senhoras. - O sorriso com que ela o brindou tirou-lhe o fôlego. - Colhem flores para a noiva?

        - Sim. Veio para o casamento, senhor? - Gytha descobriu que era fácil sorrir para o grande homem ruivo, embora ele fosse muito maior do que ela e ainda mais imponente sobre seu cavalo negro.

        -- Sim, por isso estamos aqui. Meu primo é o noivo. Flertando abertamente com as duas jovens, Roger indagou:

        - Acham que a celebração vai justificar a jornada?

        - Certamente, senhor. - Gytha conduzia a conversa, porque Margaret estava aparentemente aturdida e sem ação. - Vinho e cerveja fluirão como um rio caudaloso. Haverá muita comida de sabor inigualável. Menestréis tocarão com habilidade insuperável. - Ela não conseguiu conter totalmente o riso provocado por seus comentários.

        - É apropriado, considerando que meu primo afirma que vai se casar com o anjo do Oeste.

        Thayer se espantou com a gargalhada franca e doce.

        - Um anjo, é? - Gytha olhou para Margaret, que emergira do estupor e sorria. - Eu não poderia dizer. - Ela agarrou a mão da prima. - Voltaremos a nos ver no castelo - disse, já começando a correr e puxando Margaret atrás dela.

        - É uma pena não podermos segui-las. - Roger olhou para Thayer. - Esse banquete se torna mais promissor a cada momento.

        Thayer sentiu o peso da depressão sobre os ombros. Havia experimentado uma forte e inegável atração pela delicada donzela de cabelos dourados como a luz do sol. A reação da jovem a sua presença tinha sido mais do que jamais obtivera de muitas criadas ao longo dos anos. Porém, sabia que ela não iria além disso. Não com ele. Começava a temer as festividades que se aproximavam. Com muito esforço, conteve o impulso de fugir. William era seu favorito entre os poucos parentes que tinha, e não permitiria que uma moça e delicada criada de olhos azuis o impedisse de testemunhar seu casamento.

        - A loira pequenina era toda sorrisos para você - Roger comentou quando eles retomaram a cavalgada num trote lento.

        - Ela foi polida, nada mais. - Thayer instigou o cavalo e seguiu na frente de Roger, encerrando a conversa.

        Roger praguejou em pensamento. Thayer tinha grande confiança em sua habilidade e força, uma segurança que beirava a arrogância. Entretanto, com relação às mulheres, ele era totalmente inseguro. E a culpada disso era lady Elizabeth Sevilliers. Alguns poderiam dizer que Thayer fora tolo amando uma mulher como ela. Contudo, o dano que a megera causara era indiscutível. Mesmo que pudesse convencer Thayer de que a pequenina loira demonstrara interesse, isso só o faria se manter afastado. Thayer era o flagelo de qualquer campo de batalha, mas uma donzela bela e bem-nascida o enchia de pavor. Elizabeth era uma donzela bela e bem-nascida.

        Decidindo que não perderia tempo discutindo, ele resmungou:

        - Sim, talvez. Vamos ver o tal anjo de William. E evidente que essa é uma região de pálidas beldades.

        Gytha parou de correr ao ver o castelo. Ela e Margaret levaram um ou dois minutos para recuperar o fôlego. Num acordo silencioso, as duas se esforçaram para pôr alguma ordem na aparência descomposta. Gytha notou que a prima precisava de menos cuidados do que ela, e ainda se esforçava para se limpar e ajeitar as roupas, quando percebeu que os cavaleiros que haviam encontrado pouco antes, já se aproximavam.

        - Ele não é nada parecido com William ou Robert. - Gytha suspirou ao ver o ruivo encorpado desmontar com elegância natural. - Que olhos encantadores.

        - Eu sei. - Margaret imitou o suspiro da prima ao ver o cavaleiro que acompanhava o grande homem ruivo. - E como grama nova, fresca e recém-saída da terra.

        Com a testa franzida, Gytha murmurou:

        - Verde? Como pode achar que ele tem olhos verdes?

        - Ao compreender de quem Margaret estava falando, ela riu. - Oh, não! Então é lá que está sua atenção.

        - Quieta. Eles podem ouvir. Quem tem olhos encantadores, então?

        - Ora, o grande homem ruivo, é claro.

        - O grande homem ruivo? Está brincando!

        Gytha sentiu uma forte necessidade de defender o desconhecido da perplexidade boquiaberta de Margaret, mas não saberia dizer por quê.

        - Não. Ele tem olhos encantadores. A cor é linda. Um castanho suave, doce.

        - Doce? Não se pode dizer que uma cor é doce. Margaret sentia uma estranha mistura de confusão e humor. Alguns dos mais belos cavaleiros haviam assediado Gytha sem nenhum sucesso, e agora um breve encontro com um cavaleiro grande, ruivo e um tanto castigado por marcas e cicatrizes, a deixava toda derretida.

        - Não tenho tanta certeza, realmente - Gytha respondeu. - Porém, doce é a palavra que me vem à mente. - Com um suspiro, ela se dirigiu à parte posterior do castelo. - Ah, bem, de volta a Robert.

        Seguindo a prima, Margaret perguntou:

        - O que achou do jovem cavaleiro de olhos verdes? Gytha precisou de um momento para se lembrar do homem a quem Margaret se referia.

        - Ele é favorecido.

        As palavras ecoaram na mente de Margaret até ganharem a magnitude de uma revelação. Como ela e a prima tiveram de se esgueirar pela entrada dos fundos do castelo para chegarem aos seus aposentos sem serem notadas, o silêncio de espanto não foi percebido, para seu grande alívio. Quando Gytha dizia que um homem era favorecido, estava apenas sendo polida. Não significava nada. Escolher um traço e elogiá-lo era sua verdadeira forma de louvor.

        Elas entraram no quarto de Gytha, e Margaret fechou a porta, olhando para a prima com verdadeira perplexidade.

        - Ah - Gytha sentou-se na cama -, estamos seguras e, melhor ainda, não fomos vistas. Mamãe ficaria aborrecida se eu fosse pega nesse estado.

        - Não estamos em estado tão condenável.

        - Há barro na bainha do meu vestido.

        - Oh. Sim, isso teria aborrecido minha tia. O que faremos com as flores? - Margaret deixou-as ao lado de Gytha sobre a cama. - Uma guirlanda para nossos cabelos?

        - Boa idéia. Usarei a minha esta noite, enquanto ainda estão frescas e lindas. Se ainda restarem algumas, mandaremos a criada colocá-las no aposento nupcial. Elas perfumarão o ar. - Começou a escolher as flores que queria.

        Sentada na cama e dedicando-se à mesma tarefa, Margaret perguntou:

        - O que tanto a impressionou no grande cavaleiro ruivo?

        - Que importância tem isso? Amanhã me casarei com Robert.

        Gytha não conseguia esconder a repentina tristeza que transbordava em sua voz.

        - Se quer mesmo saber, isso me intriga. Você já teve a seus pés o coração de muitos homens jovens e belos.

        - Duvido que eles se tenham realmente posto a meus pés, embora me importunassem com poesias ruins.

        - Digamos que eles flertaram com você, então. Tudo que jamais disse sobre eles, se é que disse alguma coisa, foi que eram favorecidos. Então, surge um homem que não é nem isso. Na verdade, comparado a William, esse cavaleiro ruivo é quase feio.

        - Dependendo de quando o pobre William morreu, o cavaleiro poderia ser belo comparado a ele agora.

        - Gytha!

        Margaret não conseguia conter o riso ou disfarçar a irritação provocada pelas respostas evasivas da prima.

        - Nunca olhou para alguém e sentiu vontade de sorrir por pouca ou nenhuma razão?

        - Sim, para bebês, normalmente. Há algo em um bebê que provoca em mim uma felicidade terna.

        - Foi o que senti quando olhei para aquele homem. Senti vontade de cuidar dele, de fazê-lo sorrir.

        - Os homens cuidam das mulheres - Margaret resmungou, sentindo-se um tanto surpresa. - As mulheres não podem cuidar dos homens.

        - Oh, sim... Os homens lutam, protegem, lideram e fazem coisas dessa natureza. Eu sei. Certa vez perguntei a papai se as mulheres eram realmente postas no mundo somente para ter filhos. Ele respondeu que não. Disse que éramos criadas para não deixarmos os homens esquecerem as coisas suaves e belas da vida, para mantermos vivas as emoções mais delicadas. Ele me disse que éramos postas no mundo para suavizar os caminhos de um homem, confortá-lo e dar a ele refúgio quando o mundo lá fora se torna cruel demais.

        - E é isso que sentiu vontade de fazer por aquele homem?

        - Sim. Quis apagar as linhas de preocupação de seu rosto, fazer aquela voz rica vibrar numa gargalhada.- Ela suspirou. - Mas não cabe a mim fazer tais coisas. Em menos de um dia estarei casada com Robert.

        - Não sente nada disso por ele?

        - Receio que não. Talvez mais tarde. Agora, quero apenas comandá-lo, como tantos outros já fazem com sua permissão.

        - Isso não é bom para o casamento.

        - Bem, um casamento é sempre o que se faz dele. - Gytha foi examinar sua guirlanda de flores diante do espelho. - Pronto. O que acha dela?

        Margaret aceitou a mudança de assunto e, caminhando até a porta para deixar entrar a criada que acabara de bater, ela assentiu.

        - Muito linda. Vai usá-la esta noite?

        - Sim. Ah, Edna. - Ela sorriu para a jovem e graciosa criada.-Tem notícias de nossos hóspedes recém-chegados?

        - Sim, senhora. O maior é chamado por todos de Diabo Vermelho. O Diabo Vermelho e seu bando de bastardos.

        Gytha franziu a testa.

        - E um apelido cruel.

        - Mas verdadeiro. Quase sempre verdadeiro, pelo menos. O homem é realmente vermelho, e dizem que ele é o próprio demônio no campo de batalha. Muitos de seus homens são bastardos, filhos naturais de homens de origem elevada. Todos eles têm habilidade e conhecimento, mas nenhum tem dinheiro ou terra. Então, eles seguem o Diabo Vermelho e vendem suas espadas como ele faz com a dele. Dizem que a simples visão desse grupo é suficiente para pôr fim a uma batalha. O inimigo foge ou se rende imediatamente.

        - E um pensamento agradável, mas duvido de que o Diabo Vermelho tenha conquistado tantas cicatrizes com rendições em massa - comentou Gytha. - Quem é ele?

        - Um Saitun, pelo que ouvi dizer. Solteiro, sem terras, mas rico em honra. E não muito pobre em moedas, a julgar pelos rumores.

        Margaret balançou a cabeça.

        - Não devia incentivar toda essa fofoca.

        - A fofoca vai existir com ou sem meu incentivo. Não preciso encorajá-la. Por que não devo lucrar com ela? E quanto ao homem que cavalga à direita do Diabo Vermelho, Edna?

        - Gytha! - Margaret exclamou, corando. Ao ver o rubor, Gytha piscou para a prima.

        -Vamos, admita que está curiosa. Edna? Sabe alguma coisa sobre ele?

        Com ar sonhador, Edna suspirou.

        - Ah, que homem. Um belo sorriso.

        - Como se eu não soubesse - Margaret resmungou para si mesma. - Chegou há poucos momentos e já atraiu os olhares de todas as criadas.

        Não foi fácil, mas Gytha conteve o riso.

        - Isso é tudo que sabe dele, Edna? Que tem um belo sorriso?

        - Não, senhora. Ele também é solteiro. Na verdade, acho que todos são. Seu nome é Roger. Sir Roger. Ele é um cavaleiro.

        - Obrigada, Edna. Vamos precisar de água para banho, por favor. - Assim que a crida saiu, Gytha olhou para a prima e sorriu. - É isso, Margaret. O homem é solteiro.

        - Sim, é um mestre na arte do flerte. Deve ser um patife, também.

        -Tsk, tsk. - Gytha assumiu uma expressão pesarosa. - Rotular o pobre homem dessa maneira só porque ele sorriu para uma criada graciosa... Receio que seu coração esteja endurecido, prima.

        - Bobagem. E pare de me provocar. Dessa vez não vai dar certo. Sim, ele é atraente. Sim, meu coração se comporta de um jeito estranho quando olho para ele. Porém, é melhor parar de pensar nele. O homem é destituído de terra, possivelmente pobre. Se algum dia ele procurar uma esposa, não há de querer alguém na mesma posição.

        Gytha foi tomada por um repentino desânimo. Não havia argumento que pudesse utilizar contra essa triste realidade. Mesmo que pudesse pensar em algum, era melhor guardá-lo para si mesma. Não faria bem nenhum a Margaret alimentar esperanças que bem poderiam ser falsas. Mesmo sem nenhuma riqueza, o cavaleiro podia obter terras e dinheiro pelo casamento, conquistando assim tudo de que fora privado pela condição de bastardo. Isso seria mais importante que qualquer laço emocional. Moeda e propriedade estariam sempre acima do amor. Era um fato da vida que ela não negaria, por mais que o deplorasse.

        O desânimo tornou-se ainda maior quando ela foi forçada a admitir que esse era o fator decisivo em seu próprio casamento. Tinha certeza do amor do pai, mas, com relação ao matrimônio, ele em nenhum momento havia considerado seus sentimentos. Estudara a linhagem do marido, suas propriedades e quanto dinheiro ele tinha. Seu interesse estava em garantir que ela fosse bem situada e provida, mesmo que não fosse amada. Se tentasse sugerir outro tipo de arranjo, ele certamente a julgaria louca. E essa seria a opinião da maioria.

        Embora se preocupasse com seu futuro emocional, essa não era a maior das preocupações de Gytha. Seus pais haviam encontrado o amor. Precisava acreditar que tinha chances de viver algo parecido. Se não conhecesse o amor, ao menos poderia encontrar contentamento. E ela disse a si mesma que isso seria o bastante.

        Arrancada das sombrias reflexões pelo retorno de Edna, Gytha começou a se preparar para as festividades daquela noite. Muitos convidados já estavam ali para o casamento, e a ocasião prometia ser animada. Ela tentou recuperar o ânimo habitual. Os convidados esperavam uma noiva sorridente.

        - Tem medo do que está por vir? -- Margaret propôs a pergunta tímida quando elas se vestiam.

        - Um pouco. Meu maior receio é odiar partilhar da cama de meu marido.

        - Ninguém espera que uma dama aprecie tal obrigação.

        - E o que dizem. Porém, se isso é verdade, por que tanta gente continua fazendo a mesma coisa com tanta freqüência? Por que as mulheres tomam amantes? Penso que essas coisas nos são ditas para que nos mantenhamos castas. - Ela deu de ombros. - Pouco importa. Prazer não é necessariamente o que busco. Só não quero sentir repulsa. Se Deus me der vida longa, passarei muito tempo na cama de meu marido. Pense em como seria terrível não tolerar essa experiência.

        - O que acha que pode considerar repugnante?

        - Não sei ao certo. Já disse, mamãe não foi muito precisa.

        - Mas deve ter obtido algum conhecimento com essa conversa.

        - Bem, é algo relacionado ao que existe entre as pernas de um homem. Ele vai fazer algo comigo usando esse apêndice. Algo que tem a ver com o que existe entre as minhas pernas. E como essas duas coisas se relacionam que eu não pude discernir. - Gytha franziu a testa, surpresa com o ataque de riso da criada. - Talvez Edna possa esclarecer a dúvida.

        Sufocando o riso, a criada se dirigiu à porta.

        - Oh, não, senhora. Não cabe a mim esse papel. Movendo-se com rapidez, Gytha bloqueou a saída do quarto.

        - Edna, vai me mandar para o leito nupcial em total ignorância? Não contarei a ninguém que falamos sobre isso. Todos pensarão que mamãe foi mais coerente do que realmente foi.

        - Receio conhecer apenas palavras ríspidas e impróprias para os seus ouvidos, senhora.

        - Meus ouvidos sobreviverão. Edna, é melhor começar a falar, porque não vai sair daqui antes disso. Não entende que é melhor para mim se eu souber? Melhor para todos?

        A criada refletiu por um momento e assentiu. Com grande agitação e seguidos rubores, ela explicou exatamente o que aconteceria na noite do casamento de Gytha. Quando terminou, um silêncio prolongado invadiu o quarto por vários segundos, até Gytha recuperar a voz. Finalmente, murmurando um agradecimento contido, ela permitiu que Edna saísse do quarto. Depois de fechar a porta, se apoiou nela como se temesse cair.

        - Bem, não sou mais ignorante.

        - E agora tem medo?

        - Não sei ao certo, Margaret. Talvez seja melhor assim. - Ela suspirou e balançou a cabeça. - Sinto-me melhor agora que sei o que me espera. Há uma coisa que receio, ao pensar nisso.

        - O que é?

        - Temo começar a pensar muito em como será com Robert.

        - Pelo sangue de Cristo! Eu disse que o Diabo Vermelho era um cavaleiro bom demais para ser derrubado por um francês!

        Detida repentinamente, Gytha tropeçou e praguejou em voz baixa, dizendo a si mesma que a culpa era dela. Se não estivesse olhando com tanto interesse para o Diabo Vermelho, que entrara no salão poucos passos na frente dela, certamente teria notado que seu acompanhante havia parado. Ela se encolheu ao sentir os dedos de Robert apertando seu braço. Séria, olhou para a mão que a segurava com brutalidade. Tentando livrar-se do doloroso contato físico, ela ergueu o olhar para o rosto de Robert e franziu a testa.

        Ele estava pálido. Os olhos cor de âmbar pareciam querer saltar das órbitas. Pequenas gotas de suor surgiram em sua testa. Seguindo a direção de seu olhar horrorizado, ela percebeu que Robert olhava para o Diabo Vermelho. Como não havia ameaça partindo daquela direção, ela ficou intrigada e curiosa com a estranha reação do noivo.

        Thayer olhou para o homem que acabara de falar. Encontrara-o algumas vezes e chegara a lutar a seu lado uma vez. Disposto a descobrir o que havia provocado tão estranho comentário, ele caminhou na direção desse homem.

        - Ouviu dizer que fui vencido na França? O homem assentiu.

        - Onde ouviu isso?

        - Ouvi a notícia de nosso anfitrião, meu primo, sir John Raouille.

        Olhando para o anfitrião, que o fitava sem tentar esconder o choque, Thayer perguntou:

        - Quem lhe falou sobre minha morte?

        - Seu próprio parente.

        - William?

        - Não, sir Robert e o tio dele. - John apontou para Gytha e Robert, ainda parados na porta.

        Virando-se, Thayer olhou para o primo assustado e trêmulo sem demonstrar nenhuma afeição.

        - Sua conclusão foi prematura e infundada, primo. Por quê?

        Com um grito sufocado, Robert soltou o braço de Gytha. Ele se virou para correr, mas não foi suficientemente rápido. Thayer o agarrou pela elegante casaca. Os pés de Robert balançavam centímetros acima do chão, e ele começou a emitir sons estrangulados enquanto as mãos finas e alvas puxavam inutilmente a mão forte e enorme de Thayer, que o segurava com firmeza apertando-lhe o pescoço.

        Notando a dificuldade de Robert, Gytha murmurou:

        - Creio que ele não poderá responder nessa posição. Ela sorriu quando o Diabo Vermelho olhou em sua direção.

        Soltando o primo prestes a ter um colapso, Thayer disparou:

        - Responda. Por quê?

        - Meu tio me disse - Robert falou com dificuldade. - Ele contou que você havia sido derrotado na França.

        Thayer empurrou Robert, que caiu no chão sem nenhuma elegância. Pensativo, o Diabo Vermelho cocou o queixo.

        - Que utilidade pode ter tal mentira? Você e Charles nada têm a lucrar com minha morte.

        Com a ajuda de Gytha e Margaret, Robert levantou-se, tentando recompor-se.

        - É evidente que lucro. Você não é o herdeiro de William? E eu não sou seu herdeiro? - Ele gritou ao ser novamente agarrado pela gola da casaca.

        Com o rosto quase tocando o de Robert, então ainda mais pálido, Thayer gritou:

        - Onde está William?

        - Morto - guinchou Robert. Jogado para o lado, ele bateu a cabeça no chão com força suficiente para perder a consciência.

        Virando-se para o pai de Gytha, Thayer perguntou em voz baixa e ameaçadora:

        - Tão morto quanto eu?

        - Não, William está realmente morto.

        - Quem garante? O mentiroso que Robert chama de parente?

        - O próprio escudeiro de William nos trouxe a notícia.

        - Como foi que ele encontrou a morte?

        - Caiu do cavalo ou foi derrubado, não sabemos ao certo. Seu pescoço se partiu. Sinto muito. - Apesar das inúmeras indicações oferecidas pelo breve e ruidoso confronto, John ainda não sabia quem era o alvo da fúria do homem. - Você é sir Thayer Saitun?

        - Sim. - Com os pensamentos centrados na perda de William, Thayer suportou as apresentações com grande dificuldade. - William está morto, mas o casamento vai acontecer?

        Gytha ajudava Margaret na tentativa de reanimar Robert, mas ergueu os olhos para responder:

        - Eu ia me casar com seu primo aqui.

        Vendo a ruga na testa de Thayer, John se apressou em explicar.

        - Faz parte do acordo.

        - Que acordo?

        - O acordo que assinei com o pai de William. Acertamos o casamento quando Gytha ainda era um bebê. A Peste havia deixado sua primeira cicatriz sobre a Terra, por isso o acordo foi redigido de maneira um pouco... estranha. - Ele fez uma pausa e ordenou que a esposa fosse buscar a cópia do documento. - O nome de Gytha consta do acordo, mas não o de William. O pai dele queria a união entre as famílias. E eu também. Três de vocês poderiam chegar à maturidade e realizar esse propósito. William, você e Robert. Todos estavam sob os cuidados do pai de William naquela época. O acordo decreta que Gytha se casaria com o herdeiro de Saitun, aquele que sobrevivesse, fosse ele William, você ou Robert.

        Gytha sentiu o olhar de Thayer como um toque físico e doloroso. A cor havia desaparecido de seu rosto. Ele parecia horrorizado. Essa era uma reação que ela jamais havia causado em um homem. Sabia que não a teria incomodado se fosse outro homem, porque nunca se importara com o que pensavam dela. Era injusto que se importasse agora, exatamente com um homem que parecia considerá-la uma praga.

        Lady Raouille colocou um documento na mão de Thayer, arrancando-o do estupor em choque. Por um momento ele olhou aturdido para a folha de papel, a mente tomada por pensamentos fragmentados. Agora ele era um homem de posses, um homem de propriedade e título. Não seria difícil aceitar a mudança. Mas o preço a pagar por isso o enchia de pavor. Teria de se casar. E que esposa teria! Um homem como ele se casar com tamanha beldade era simplesmente uma maldição.

        Finalmente, se obrigou a ler o documento que tinha na mão, mas não encontrou nenhum alívio ali. Na caligrafia firme de seu pai adotivo e tio, o documento afirmava que o proprietário do castelo de Saitun Manor se casaria com Gytha Odel Raouille quando ela completasse dezessete anos. Não era mais o casamento de William que ele testemunhava, mas o próprio casamento. Seus olhos recaíram sobre Gytha quando ela e outra jovem ajudavam Robert a se sentar. Ele ainda estava atordoado, mas não tinha tempo para ocupar-se do primo agora. Ele encarou John Raouille.

        - Isto é legal?

        - Legal e válido. Como pode ver, o rei colocou seu selo aprovando a união entre nossas famílias.

        Thayer viu o selo real. O documento o obrigava a se casar com Gytha. A aprovação do rei conferia ainda mais peso a essa obrigação. Na verdade, tal aprovação era quase uma ordem real. O título de lorde, barão de Saitun, agora era dele, bem como o castelo de Saitun Manor. Também era dele a riqueza da família. E também era dele Gytha Raouille, mesmo que não a quisesse. Ele estava ali. A noiva estava ali. O casamento havia sido preparado. Não havia como escapar.

        Ainda aturdido pela seqüência de eventos, Thayer se deixou levar para a mesa e ocupou o assento entre John e Gytha. Ele notou vagamente o olhar preocupado de Roger, que se sentara entre Gytha e Margaret, que também exibia uma expressão apreensiva. Nesse momento precisava de mais do que uma simples apreensão. Robert estava sentado ao lado de lady Raouille e parecia prestes a explodir em lágrimas. Thayer também sentia uma forte vontade de chorar e gritar. Ele mal reconheceu a qualidade indiscutível da comida e do vinho que eram servidos enquanto tentava encontrar uma forma de escapar. No entanto, não havia nenhuma.

        Gytha olhou para o noivo, esvaziou sua taça de vinho e esticou o braço para que fosse servida mais uma dose. Cuidava para que sua taça fosse mantida cheia durante toda a refeição, esperando afogar a própria dor em vinho. Sabia que não era a vaidade ferida que lhe causava o desconforto. Não só a vaidade. Era verdade que os homens sempre haviam reagido de maneira favorável a sua presença. Também era verdade que nunca se importara muito com essa reação do sexo oposto. Mas agora era diferente. Pela primeira vez na vida sentia um certo interesse por um homem. Um sentimento autêntico, genuíno. E dessa vez o homem não se interessava por seus sorrisos. Esse homem reagia à notícia do iminente casamento com ela como se acabasse de ser informado de que contraíra a Peste. Sim, encharcar-se de vinho era exatamente o que ela precisava fazer nesse momento. Segurando a taça para ser cheia mais uma vez, ela ignorou as tentativas de Margaret de chamar sua atenção.

        Margaret estava tão preocupada com Gytha que esquecia suas maneiras. Debruçando-se sobre a mesa, ela passou um braço pela frente de um espantado Roger para cutucar a prima, conseguindo finalmente chamar sua atenção. A luminosidade nos olhos de Gytha quando ela se virou para fitá-la só alimentou sua preocupação.

        - Quer parar de beber como...

        - Como se comemorasse? - Gytha sorriu e bebeu mais alguns goles. - E uma comemoração, não é? Minha festa de casamento, na verdade. Então, estou festejando.

        - Está se embriagando, isso sim.

        Gytha olhou para Roger e notou que ele ria.

        - Diga-me, senhor, o que as pessoas fazem em uma festa?

        - Comem, bebem e celebram - ele respondeu com um sorriso.

        - Ahá! Eu já comi. Agora estou bebendo. E estou celebrando. Vê, Margaret? Não há nada com que se preocupar.

        Quando Gytha se virou, Margaret tentou cutucá-la novamente, mas Roger a deteve.

        - Deixe a moça em paz, senhorita. Ela não faz mais do que todos os outros.

        - O que é muito mais do que ela jamais fez. Gytha nunca bebe mais do que uma taça de vinho com a refeição. Ela nunca se embriaga. Não imagino onde essa indulgência a levará.

        - Direto para a cama, sem dúvida.

        Margaret se preparava para responder quando uma voz masculina e familiar gritou:

        - Com licença! Não me deixaram nada para comer, então?

        - Bayard! - Gytha exclamou, levantando-se de um salto para ir cumprimentar o irmão. Margaret fez o mesmo.

        Ela correu para o rapaz esguio parado na porta. Sem nenhuma dificuldade, o recém-chegado tomou nos braços as duas jovens. Todos riram enquanto Gytha e Margaret cobriam o rosto do recém-chegado de beijos e o crivavam de perguntas. Por cima do ombro do irmão, ela viu lorde Edgar, seu tio, aproximando-se da porta. Logo os pais de Gytha também foram cumprimentar o filho e, depois de uma acolhida mais contida, eles o convidaram a se sentar. Olhando em. volta para o alegre grupo reunido momentaneamente na porta, Gytha percebeu que havia algo na festa de casamento que merecia sua gratidão. Sua família estava novamente reunida.

        Observando a feliz reunião, Roger murmurou:

        - O rapaz tem excelente aparência. John Raouille produz herdeiros de beleza admirável.

        Thayer concordou com um granhido. Não podia deixar de pensar em como duas pessoas tão comuns quanto John e Bertha podiam ter produzido filhos tão belos. Quando ele se surpreendeu imaginando qual seria a aparência de seus filhos com uma mulher tão linda quanto Gytha, praguejou para si mesmo. Pensar em futuros filhos era um final de aceitação de seu destino, quase um sopro de esperança para o futuro. Nunca tivera intenções reais de se casar. Agora que tinha posses, esse era um passo natural.

        Porém, não queria uma esposa tão bela. Nesse caso, o futuro traria apenas problemas, decepção e dor.

        - Feriu profundamente os sentimentos da moça-Roger continuou.

        - Como assim?-Thayer tinha dificuldades para acreditar nisso.

        - Como assim? - Roger balançou a cabeça com espanto. - E ainda pergunta, depois de ter se sentado aí como quem se prepara para prender uma ratoeira no próprio traseiro?

        - Um homem como eu é solicitado a se casar com uma mulher linda... E como uma ratoeira. - Podia imaginar o futuro. Dias e dias chutando homens para fora de sua cama.

        - Meu amigo, pela primeira vez na vida está fazendo um julgamento sem ter conhecimento do caso. Está tirando conclusões sem fatos que possam justificá-las. Sim, a moça é linda e pode incendiar o sangue de um homem. Porém, cá estou eu, pronto para trocar sorrisos e flertar, e ela não correspondeu aos meus esforços. Não acredito que seja leviana.

        - Ela não precisa ser. Ainda assim, estarei tropeçando em homens apaixonados até o fim de meus dias. E quando envelhecer, ela vai acabar sucumbindo a um ou outro assédio mais ardiloso.

        - Então, endureça seu coração e deixe o corpo se banquetear com essa bela esposa.

        Havia na voz de Roger uma rispidez que assustou Thayer. Entretanto, ele não teve tempo para refletir sobre a razão disso. Estava sendo apresentado a Bayard Raouille e lorde Edgar Raouille, irmão e tio de sua futura esposa. Alguns comentários sutis entre os membros da família revelaram quem era Margaret e agora também sabia que ela era a razão pela qual esposa e filhos de Edgar não compareciam ao casamento. Os poucos comentários lamentavam apenas a ausência dos filhos de Edgar.

        - John e Fulke ainda não chegaram? - Bayard perguntou.

        - Não - respondeu o pai dele. - Mandaram mensagens explicando a demora. Esperamos que eles cheguem a tempo de testemunhar a cerimônia.

        - Tenho certeza de que chegarão. - Bayard sorriu para Gytha. - Vejo que houve outra troca de noivos.

        - Parece que sim. Robert precipitou-se ao se colocar na posição de herdeiro. O relato sobre a morte de sir Thayer era inverídico - ela respondeu.

        Enquanto Bayard ria, Thayer olhava para a noiva. Estava certo de ter detectado sarcasmo por trás de suas palavras, mas ela parecia doce demais para esse tipo de atitude. A exagerada inocência no olhar, porém, alimentou suas suspeitas. Ele decidiu considerar essa questão mais tarde, em outra ocasião.

        Todos conversavam, mas ele não ouvia o que diziam, pois ponderava a situação em que se encontrava e tentava aceitar o destino que se apresentava sem aviso prévio. Margaret falava sobre a cerimônia de casamento na manhã seguinte, e ele queria acompanhar com atenção a reação de Gytha.

        - Veremos - ela resmungou. - Podemos acordar e descobrir que o noivo fugiu.

        Thayer encarou-a com ar severo.

        - Eu estarei aqui. Não costumo romper acordos.

        - Perdão! - Ela pôs a mão sobre o peito num gesto dramático. - O romance está no ar esta noite.

        Roger engasgou com a bebida. Margaret riu e bateu nas costas dele. Os dois pareciam se divertir muito, ao contrário do noivo. Thayer olhou para a taça de vinho que Gytha tinha na mão, e seus olhos excessivamente brilhantes e a cor nas faces, sugeriram que ela já havia bebido demais. Ele estendeu a mão para pegar a taça e descobriu que, além de ter uma forte tendência para o sarcasmo, sua noiva também podia ser obstinada.

        Gytha agarrou a taça e se recusou a entregá-la. Ela o encarou séria, reconhecendo que já havia bebido em excesso, mas sentia a necessidade de beber ainda mais. Não desistiria de sua taça. O vinho aliviava o desconforto causado pela atitude ofensiva do noivo.

        Notando como a noiva olhava para a mão de Thayer, Margaret colocou um pedaço de carne na mão de Roger.

        - Quando ela abrir a boca, encha-a de carne.

        - Mas por quê? - Roger não sabia se devia seguir a estranha sugestão.

        - Não há tempo para explicar. Lá vai ela. Faça o que eu disse... depressa!

        Quando Gytha se preparava para cravar os dentes na mão de Thayer, ela se descobriu com a boca cheia de carne. Metade do pedaço ainda estava do lado de fora. Quando ouviu as gargalhadas de Margaret e Roger, ela compreendeu que a prima estava por trás de sua incapacidade de causar dano ao futuro marido. Sem deixar de encará-lo, ela mastigou lentamente e engoliu o alimento.

        Era difícil, mas Thayer conseguiu conter o riso. Sabia que era melhor não ceder ao sorriso que ameaçava distender seus lábios. Uma coisa que devia esperar da esposa era obediência, e sentia que era necessário informá-la de sua intenção desde o início. O pai dela, porém, roubou-lhe a oportunidade.

        - Gytha, minha filha, por que não vai mostrar o jardim a sir Thayer? - Ele olhou para o cavaleiro, tentando transmitir sua esperança. Algum tempo sozinhos, e tudo começaria a melhorar. - Senhor, garanto que vai apreciar meu jardim.

        Sentindo as intenções do homem, Thayer murmurou:

        - Talvez seja melhor deixarmos esse passeio para a luz do dia.

        - Não é preciso esperar. O jardim está iluminado pela lua e por muitas tochas.

        Mesmo embriagada como estava, Gytha não tinha dificuldades para adivinhar a intenção do pai. Ela se preparava para dizer que não sentia nenhuma necessidade imediata de conhecer melhor o noivo, quando viu Thayer olhar para Roger com ar de súplica. Roger suspirou, mas levantou-se assim que Thayer se pôs em pé. Ela também se levantou e chamou Margaret com um gesto. Se Thayer insistia em ter companhia, ela não seria diferente. Com relutância semelhante a de Roger, Margaret levantou-se.

        - Pensei que iriam apenas os dois - John murmurou, olhando intrigado para a filha.

        - Se meu noivo decidiu levar um acompanhante, creio que devo fazer o mesmo.

        Sentindo-se corar, Thayer segurou o braço da noiva e a levou para longe dali. Irritado, ele notou que Gytha levava a taça e um bom suprimento de vinho para mantê-la cheia. Roger e Margaret os seguiam, a presença dos dois o ajudou a recuperar parte da calma.

        Uma vez do lado de fora, ele logo entendeu o comentário do pai de Gytha. Arbustos, árvores e flores ofereciam total privacidade a quem quisesse caminhar e apreciar a beleza natural do lugar. De início, um homem podia decidir que o uso do espaço era frívolo, tal a preciosidade com que eram tratados os canteiros de formatos geométricos e cores vibrantes. Thayer vira jardins parecidos em mansões da Europa, mas sabia que o estilo ainda era novidade na Inglaterra. Ali os jardins eram apenas um emaranhado de plantas ao natural ou canteiros de vegetais úteis, temperos e ervas para a culinária. John também acertara ao insinuar que aquele era um excelente lugar para o romance.

        Thayer fez uma careta ao pensar na última palavra. Romance. Sua noiva merecia um pouco de sedução. Não podia negar essa verdade. Ela não era culpada pela situação nem pela própria beleza. Infelizmente, a arte da sedução se perdera para ele. Vendo Gytha caminhar alguns passos na sua frente, e registrando o silêncio constrangido de Roger, ele tentou pensar em alguma coisa para dizer. Qualquer coisa.

        Ignorando a desaprovação de Margaret, Gytha enchia novamente sua taça e a dela. Ela ofereceu vinho a Roger, fazendo um grande esforço para se livrar da raiva que a envenenava rapidamente. No dia seguinte se casaria com o homem que marchava atrás dela. Em um lugar que sugeria romance, ele se mantinha afastado e carrancudo. De repente foi tomada por um impulso de falar diretamente, com total honestidade. Precisava descobrir exatamente por que ele se opunha com tanto fervor à idéia de desposá-la. Parando repentinamente, ela se virou para encará-lo.

        Ainda pensativo, buscando as palavras com desespero crescente, Thayer não a viu parar e tropeçou nela, derrubando-a na grama a seus pés. Roger e ele se moveram ao mesmo tempo, ambos com a intenção de ajudá-la a se levantar, e quase tropeçaram um no outro. Margaret também correu e estendeu a mão.

        - Devia ter avisado que pretendia parar - Thayer disparou enquanto Gytha, já em pé, removia as folhas de grama do vestido.

        - Parei porque pretendia lhe falar, senhor.

        - Sim? O que tem a dizer?

        Gytha o encarou e decidiu que sua posição ali era muito desconfortável e delicada. Com tudo que ocupava sua mente e todas as palavras que tinha para dizer, sentia que poderia sofrer um severo torcicolo antes de dar a missão por cumprida. Olhando em volta, ela localizou um banco de pedra. Segurando-o pela mão, puxou o assustado noivo até lá e, depois de colocá-lo sentado, mantendo-se ela mesma em pé, finalmente conseguiu encará-lo com um pouco mais de conforto.

        - O que o repudia tanto nessa idéia de nos casarmos? - ela perguntou.

        - Gytha... - Margaret começou num protesto hesitante. - E uma pergunta razoável, prima. E então, senhor? Prefere as damas morenas?

        - Não. - Não podia falar a ela sobre seus medos, sobre como temia um futuro cheio de sofrimento, vergonha e traição.

        - Sou pequena demais para o seu gosto, então?

        - Bem, é verdade que seria difícil encontrá-la, se fosse um pouco mais baixa.

        - Ah, entendo. Lamenta que eu não seja mais alta? - Ela franziu a testa ao vê-lo balançar a cabeça numa resposta negativa. - Mais magra? Mais gorda?

        Apesar do esforço para resistir, os olhos de Thayer analisaram a figura esguia. Não havia nada nela que pudesse criticar. Seios altos e cheios, cintura estreita e quadril arredondado, enfim, proporções que despertavam nele um inegável interesse. Seu corpo manifestava sem equívoco a ânsia de começar logo a vida conjugal com Gytha.

        - Nada disso. Fiquei chocado, apenas. Vim para cá esperando testemunhar o casamento de William, e de repente, descubro que William está morto e eu serei o noivo. Vim com a intenção de conhecer a esposa de meu primo. Em vez disso, sou apresentado à minha futura esposa. Essa é uma situação que deixaria qualquer homem perturbado.

        Ela entendia o sentimento. Mesmo assim, tinha certeza de que o noivo não estava dizendo toda a verdade. Apesar do vinho que lhe perturbava o raciocínio, ela também sabia que era inútil continuar pressionando. Felizmente já tomara a decisão de encerrar o assunto, porque vozes do outro lado de um canteiro atraíram sua atenção.

        - Não devemos - protestava arfante uma voz feminina. - Meu marido...

        - Está encharcado de vinho e bem próximo da inconsciência.

        - Sua esposa?

        - Deitada. E ela não dá muita importância a como me entretenho. Ah, você é tão encantadora... Seus seios são fartos e doces como melões maduros.

        Gytha olhou para Margaret, que cobria o rosto vermelho com as mãos. Embora sempre houvesse escutado comentários sobre amantes e encontros fortuitos, infidelidade e adultério, nunca acreditara muito neles. Seus pais eram profundamente apaixonados, e ela considerava o casamento fiel e sólido de que era fruto, como via de regra. Agora ficava claro que os rumores tinham, sim, um fundo de verdade.

        No auge da indignação, ela decidiu que tais coisas não seriam permitidas em sua casa. Depois de censurar com o olhar os dois homens que pareciam se divertir, Gytha caminhou na direção da cerca natural. Ouvindo os passos dos três companheiros atrás dela, tratou de se apressar para não se deixar deter. A visão do casal abraçado e deitado no chão a enfureceu. O homem a viu e se apressou em ficar em pé, mas ela o atingiu com um inesperado e violento chute nas nádegas. O casal tentava ajeitar as roupas sob o olhar severo de Gytha. Ela começou um duro sermão, enfatizando certas declarações com um chute ou empurrão direcionado a um ou outro. Sentia-se capaz de entender as fragilidades humanas e podia tolerar seus erros, mas isso já era demais. Encontrar alguém em flagrante adultério no jardim recém-construído por seu pai, entre as flores que eram o orgulho e a alegria de sua mãe, era mais do que podia tolerar. Inteiramente vestida e recomposta, a mulher por fim se revoltou.

        - O que sabe sobre o amor?

        - Está dizendo que ama esse patife infiel? - Se houvesse amor envolvido, poderia temperar sua condenação, embora julgasse tolice amar um homem capaz de trair a própria esposa.

        A mulher hesitou e, quando respondeu, não havia convicção em sua voz.

        - Bem... é claro que sim.

        - Mentira! Agora aumenta seus pecados mentindo. Volte para seu marido. Seu lugar é ao lado dele.

        - Já viu meu marido?

        - Sim, e reconheço que ele não tem a beleza desse porco traidor. Porém, ele é limpo, saudável e ainda tem todos os dentes e cabelo. E também parece ser um homem alegre. Podia ter encontrado alguém pior. Agora sumam os dois, porque já estão me aborrecendo.

        Ela se surpreendeu quando o casal se apressou em obedecer ao comando imperioso.

        - Oh, Gytha - Margaret murmurou quando o casal adúltero desapareceu -, não devia ter interferido.

        - Margaret, meus pais passeiam por esse jardim. Thayer ria sem parar. Roger também gargalhava. Gytha olhava para o chão como se o casal houvesse deixado na relva marcas indeléveis, e ainda parecia indignada. Furiosa ela era ainda mais linda.

        Devagar, Gytha olhou para Thayer atraída pelo som de sua risada. Era profunda, rica, mas com uma qualidade quase juvenil. Era contagiosa. Roger também ria. Margaret estava intrigada. Gytha sentiu vontade de perguntar à prima se a risada de Roger aquecia seu interior como a de Thayer a aquecia por dentro.

        - Suponho que tenha sido tolice minha interferir - ela murmurou, aproximando-se de onde ele se sentara no chão com as costas apoiadas contra uma árvore.

        Roger levantou-se, segurou a mão de Margaret e a levou para longe dali. Pelo que podia ver, seu pai não era o único a acreditar que devia passar algum tempo com Thayer. Só ela e ele. Embora não tentasse detê-los, Gytha se sentia dividida. O ataque de riso suavizara a expressão de Thayer, tornando-o menos distante. No entanto, não lábia o que dizer ou o que fazer. Estava nervosa, quase tímida.

        Sabia que a frieza e o distanciamento de Thayer podiam retornar, porque havia muitas razões para isso. O choque de descobrir-se noivo, porém, não era uma delas. E ela não sabia como chegar à verdade por trás daquele estranho comportamento.

        Tentar pensar em um jeito de começar a conversa fazia lua cabeça doer. Nunca tivera um problema antes. A única dificuldade que enfrentara havia sido manter a conversa amena, evitando palavras de amor ou desejo que Sempre acabavam escapando dos lábios de outros homens. Todos os outros, menos seu noivo. Ela suspirou tomada por uma súbita tristeza, reconhecendo que não teria esse problema agora. Era difícil não pensar na crueldade do destino. Essa era a primeira vez que desejava ouvir palavras doces, mas estava certa de que o homem a seu lado não as pronunciaria.

        Thayer estudou a noiva tão próxima dele. Não havia malícia em seu rosto alvo e perfeito. Nenhum traço de vaidade ofuscava o brilho natural de sua beleza. Havia em torno dela uma aura que sugeria que havia sido uma criança protegida. Mesmo assim, ele se agarrava ao desconforto, temendo relaxar, sabendo que, se não se defendesse, nenhum ferimento sofrido em batalha poderia se igualar em dor ao sofrimento que seria resultante de tal entrega.

        - Eles só irão a outro lugar. - Thayer mantinha o tom gentil, evitando dar a entender que a ridicularizava de alguma maneira. - Pode ter dificultado a relação, mas não a impediu.

        - Eu já pensei nisso. Eles vão arder no inferno.

        - Gytha, essa é uma ocorrência muito comum. Mulheres tomam amantes, homens se deitam com meretrizes...

        - Meus pais não cometem tais pecados. São fiéis aos votos que fizeram perante Deus. E eu sei que a fidelidade é resultante do amor que fortalece o casamento.

        - Sim. Qualquer um que os conheça pode ver que se amam, e nisso eles são afortunados. Mas nem todos têm essa sorte, e muitos tomam amantes.

        - Amantes... bah! Parceiros na luxúria. Não havia amor algum entre aquele casal. E é aí que o pecado realmente reside. - De repente ela pensou em algo que a atingiu com um raio. - Você vai ter amantes?

        Por um momento ele se sentiu tentado a falar duramente sobre impertinência. Esse era um assunto que qualquer esposa sensata e obediente devia ignorar. Gytha era mesmo impertinente e ousada, mas também era ingênua a ponto de ainda acreditar na santidade do casamento. Ele decidiu que esse não era o momento para um sermão. Além do mais, sabia que, enquanto a esposa se mantivesse fiel, ele não teria dificuldade para fazer o mesmo. Possuía um saudável apetite sexual, mas não precisava de variedade. Se Gytha levasse algum calor a sua cama, não sentiria nenhuma necessidade de buscar outros leitos.

        - Não, a menos que você leve outro homem para sua cama.

        A beleza do sorriso de Gytha o fez perder o fôlego.

        - Nesse caso, é melhor começar a escrever cartas de despedida a todas as mulheres com quem se relaciona.

        - Não tenho nenhuma amante.

        A incredulidade no rosto de sua noiva era lisonjeira.

        - As mulheres que conheço se interessam antes pelo valor da minha moeda. - Ele riu diante da persistente expressão de dúvida, mas logo ficou sério. - Conheceu William?

        - Não muito bem. Passamos apenas algumas poucas horas juntos. Quer saber se choro a morte de meu noivo?

        Ele assentiu lentamente.

        - Não o conheci o bastante para isso. O que senti foi apenas um pesar passageiro pela perda de um homem jovem e saudável.

        - Sim, e em circunstâncias muito terríveis.

        Ele falou distraído, pensando que estavam ali próximos, sozinhos. A beleza de Gytha era do tipo que inspirava os menestréis. Saber que ela logo seria sua pelas leis do rei e de Deus era inebriante. Ele tocou os cabelos brilhantes e estudou o rosto delicado e os lábios carnudos.

        Gytha reconhecia aquele olhar, mas não sentia o habitual impulso de se afastar.

        - Pretende me beijar?

        - Você é sempre tão ousada em suas perguntas?

        - Dizem que sim. Mas creio que o vinho me torna ainda mais arrojada que de costume. Vai ou não? - ela tornou a indagar.

        - confesso que a idéia me agrada. - Ele afagou a face corada com a ponta dos dedos. - William a beijou?

        - Sim, e tive de contê-lo com alguns tapas, uma ou duas vezes. Ele tinha idéias atrevidas sobre a arte de conquistar uma mulher.

        Thayer bem podia imaginar como o primo se comportara com uma mulher de tão estonteante beleza. Ele sorriu.

        - E Robert?

        - Eu mal havia me tornado noiva dele quando você chegou. Se quer uma lista, confesso que não tenho muitos nomes a recitar, mas já tive de aturar um dilúvio de poesias enjoativas e horríveis.

        O comentário espontâneo o fez rir.

        - O vinho também a torna impertinente.

        - Receio que essa característica não seja culpa do vinho. - Ela o observou com uma expressão ansiosa, cheia de expectativa e curiosa, tentando adivinhar como seria ser beijada por esse homem.

        Notando seu olhar, Thayer balançou a cabeça admirado e a tomou nos braços. Era um orgulho ser objeto de atenção da beldade. Firme, ele disse a si mesmo que vivia apenas um prazer passageiro, mas a idéia pouco fazia para amenizar a sensação prazerosa.

        Sem mais pensar, ele a beijou. Quando Gytha o abraçou e correspondeu, o beijo ganhou ardor. Só quando Thayer tentou tornar o beijo ainda mais íntimo, ela recuou hesitante, encarando-o com uma mistura de curiosidade e irritação. Mas havia também uma ponta de desejo em sua expressão.

        - Foi nesse momento que esbofeteei William.

        As mãos deslizando por suas costas despertavam nela um delicioso calor.

        -Você o preveniu da maneira como está me prevenindo? Thayer beijou-a várias vezes no rosto.

        - Não. - Estava ofegante. A voz soava rouca, o que a surpreendia.

        - Isso é só uma parte do beijo. Venha, deixe-me beijá-la. - Ela ofereceu os lábios. - Ah, que visão deliciosa.

        Thayer beijou-a novamente, dessa vez com maior intimidade, e Gytha suspirou de satisfação. Cada instante alimentava o calor que a incendiava por dentro. Ela o abraçou com mais força, deixando-se puxar para o colo do noivo. Quando o beijo chegou ao fim, ela estava trêmula em seus braços. A paixão tornava nebulosos seus pensamentos, dominado então por estranhas sensações.

        Thayer também estava um pouco tonto. Nunca um único beijo o excitara tanto. Talvez fosse a errante esperança alimentada pelo brilho que via nos olhos dela. Nada do que dissesse a si mesmo poderia mudar o que via nos olhos de Gytha. Excitara muitas mulheres antes, mas nenhuma como ela. Mulheres como ela nunca se aproximavam o bastante para testar sua habilidade ou a falta dela.

        - Eu me saí bem? - ela murmurou. Ele sorriu.

        - Sim. Muito bem. Tanto, que acho melhor voltarmos para a festa. - Ajudou-a a se levantar. - Não quero ser esbofeteado.

        Trocando informações variadas sobre eles, Gytha e Thayer retornaram ao salão e se juntaram a Roger e Margaret. Embora participasse da conversa, Thayer estava mergulhado nos próprios pensamentos, tomado por dúvidas e medos. Gytha havia sido noiva de William, um homem de beleza excepcional, e depois quase se casara com Robert, que também era muito atraente. Agora se casaria com ele. Sentira sua reação quando a beijara, mas sabia que logo ela se ressentiria por ter se casado com o primo mais desprovido de atrativos físicos. Por mais que tentasse se livrar dos pensamentos, sempre que olhava para a noiva, ele antevia problemas.

 

        Apesar da generosa dose de vinho, Thayer continuava tenso. Na companhia dos três irmãos de Gytha, ele esperava pela noiva e notava que os três rapazes também exibiam traços surpreendentemente belos. Alegres e vigorosos, faziam o possível para mantê-lo relaxado, mas o esforço era inútil, para seu desânimo. Nem mesmo o ambiente de camaradagem podia dispersar os sussurros em torno dele ou cegá-lo para os olhares lançados em sua direção. Piedade. Era esse o sentimento dos convidados pela noiva. Todos ali sentiam que a beleza da noiva seria desperdiçada ao lado de um homem como ele, e era impossível não concordar com aquelas pessoas.

        - Sinto que temos o dever de preveni-lo sobre o caráter de nossa irmã. - Fulke Raouille piscou para Thayer e riu.

        Thayer conseguiu sorrir para o rapaz.

        - Pretende relacionar os defeitos dela?

        John, o irmão mais velho, assumiu um ar de falso Ultraje.

        - Nossa irmã não tem defeitos. Apenas um ou dois arranhões em sua perfeição.

        - Disse bem - murmurou Thayer.

        Bayard acrescentou:

        - Ela não foi mimada, mas tem sido coberta de muitos cuidados, como Margaret, que a acompanhará. Ambas foram protegidas como duas donzelas devem ser.

        - Isso é evidente nas maneiras de ambas. Sossegue seus temores, Raouille. Pretendo ser um bom marido para Gytha.

        - Em alguns momentos vai sentir que sua paciência está por um fio.

        - John tem razão - confirmou Fulke. - Nossa irmã sempre teve liberdade para expressar opiniões.

        John assentiu e acrescentou:

        - E é comum que seu senso de humor pareça estranho. Juntando-se ao quarteto, o pai de Gytha disse:

        - E ela insiste em ser ouvida. Não nos interprete mal. Não estamos querendo convencê-lo de que vai se casar com uma megera intolerável. Não é isso. O fato é que ela nunca acata ordens num silêncio submisso, porque sempre insiste em obter explicações. Sim, e quer ter também uma chance de expressar sua opinião sobre o assunto. E ela é muito obstinada nesse sentido.

        - Sim - confirmou Fulke -, ela é conhecida por se agarrar às coisas até ser ouvida.

        Momentaneamente distraído de suas preocupações, Thayer sorriu.

        - Ela se agarra às coisas? O pai de Gytha suspirou.

        - Mesas, cadeiras, até pessoas. Agarra-se como musgo. É impossível demovê-la.

        Thayer riu.

        - O que o destino reservou para mim?

        Lorde John sorriu.

        - Ela não será uma esposa tediosa. A muito o que dizer em favor disso.

        Antes que Thayer pudesse responder, Roger se aproximou e perguntou:

        - Alguém viu Robert ou aquele tio dele?

        - Sim - respondeu lorde John. - Partiram antes do nascer do sol.

        Thayer franziu a testa ao receber essa informação. Havia presumido que a falta de retribuição imediata deixaria clara sua intenção de dar à dupla o benefício da dúvida. Não havia razão para a fuga desesperada. Em sua opinião, o ato servia para confirmar a culpa dos dois, mas ele baniu da mente todo e qualquer pensamento sobre ambos.

        A chegada de Gytha interrompeu a reflexão e o deixou sem ar. Sua beleza era acentuada pela evidente falta de vaidade e pela simplicidade que iluminava seus traços perfeitos. Ela se aproximava devagar, parando aqui e ali para cumprimentar os convidados que queriam desejar felicidade e sorte. Seu sorriso era tímido, mas não havia nele sinal de relutância. Isso só serviu para reduzir um pouco a tensão que o afligia.

        Gytha caminhava para o futuro marido com passos seguros. Estava um pouco nervosa, mas alegre, também, e não havia sentido nada parecido com William ou Robert. Só com Thayer Saitun. William e Robert não haviam dado a seus sonhos uma dose de sensualidade. Só Thayer Saitun. Esses sonhos haviam despertado nela uma certa curiosidade. Ao pousar sua mão sobre a de Thayer, ela descobriu que esperava ansiosa pela noite de núpcias, apesar do receio gerado pela inexperiência.

        A cerimônia foi mais rápida do que ela havia previsto. Suspeitava de que o nervosismo a roubava da noção do tempo real. Toda a sua atenção estava concentrada no sacerdote, nas palavras que ele dizia, na voz rica e profunda de Thayer repetindo seus votos. Ela se ajoelhou ao lado dele inundada pelo conhecimento de que, quaisquer que fossem os problemas no futuro, seu lugar era bem ali, ao lado do marido. Quando a cerimônia a separou de Thayer, ela se descobriu aborrecida por isso.

        A celebração prosseguia animada quando Roger conseguiu um momento a sós com Thayer.

        - Uma noiva encantadora, Thayer.

        - Não há criatura viva capaz de discordar disso.

        - Mas você ficaria mais feliz se ela fosse desprovida de encantos.

        - Sim, embora muitos me considerem maluco por isso. Você, inclusive. Olhe ali. Estamos casados há poucas horas, e ela já está cercada de admiradores.

        - Sim, mas note os olhos dela, meu amigo. Aquele olhar doce sempre recai sobre você, ignorando os homens que a cercam. Não seja injusto. Não a condene sem provas ou julgamento.

        Thayer suspirou profundamente.

        - Eu sei que seria melhor se ela não fosse tão bela. Por outro lado, essa será uma vitória conquistada com muito esforço. Muitos buscam alimentar meus temores. Muitos dizem que meu casamento é um passo grande demais para minha posição, que agora possuo algo mais valioso do que eu mesmo. Lembram-me de que sempre haverá alguém tentando roubar-me o troféu.

        - Não ouça o que dizem.

        - Não é tão fácil.

        - Se sua apreensão tem fundamento e a jovem só procura um rosto bonito, então ela não é digna de sua preocupação e de seu sofrimento.

        - Eu sei. - Thayer olhou para a esposa esperando poder absorver essas palavras de sabedoria.

        O rosto que Gytha buscava constantemente na multidão era julgado por muitos de excessiva beleza, fato que muitos se viam obrigados a elogiar e comentar com ela. Gytha sorria e era sempre polida com os rapazes que a assediavam, mas seguia Thayer com o olhar. Por mais que tentasse fazê-lo entender que desejava ser resgatada de seus admiradores, ele não captava a mensagem. Finalmente, ela procurou pelo pai disposta a pedir sua ajuda. No mesmo instante, ele a salvou do grupo ávido.

        Infelizmente, ele não a levou para Thayer, mas para um grupo de jovens mulheres do qual fazia parte Margaret, o que a agradou muito. Mas logo ela compreendeu que essa seria sua única satisfação. A prima era a única que sabia conter a língua. As outras manifestavam piedade por ela ter de aceitar a péssima escolha feita em seu nome, um marido feio e desprovido de graça e riqueza, e apesar do esforço para manter a calma e ignorá-las, Gytha ia ficando cada vez mais zangada.

        Uma jovem chamada Anne suspirou profundamente.

        - Ah, você é tão corajosa! Como suporta bem o infortúnio.

        - Não sofri nenhum infortúnio - Gytha falava por entre os dentes, mas nenhuma delas parecia perceber sua ira.

        Sua prima Isabel falou num tom excessivamente doce e falso:

        - Não precisa esconder o que sente. Ele é horrível. Tão horrivelmente vermelho!

        Gytha se ressentiu com as palavras usadas para descrever seu marido.

        - Ele é um homem bom e forte. Sua coragem foi provada muitas vezes.

        - Oh, ninguém duvida disso - disse uma loira chamada Edwina. - Ah, mas depois do doce William? Deve ser terrível ver-se obrigada a casar com um homem tão carente de beleza e elegância. E não esqueça, Gytha, que um homem casado com a espada raramente tem vida longa.

        Gytha ergueu a taça com a evidente intenção de esvaziá-la sobre a cabeça de Edwina, mas alguém segurou seu pulso. A intervenção de seu irmão Fulke não a agradou, e ela o encarou furiosa. O sorriso de Fulke só alimentou sua ira, mas Gytha não protestou, porque seu irmão já a levava para longe do grupo, o que era um alívio.

        Thayer observava a esposa e percebia sua contrariedade. Ele a seguiu quando Fulke a afastou do grupo. Margaret também corria atrás deles. Gytha se virou para fitá-lo quando sentiu a presença próxima, e Thayer se assustou com a fúria estampada nos olhos da esposa. Estava curioso quanto à causa de tão intensa emoção.

        Fulke balançou a cabeça e riu, arruinando o esforço para se mostrar austero.

        - Querida irmã, não é boa idéia lavar nossos convidados com vinho.

        - Era isso ou arrancar os olhos dela. - Gytha recuperou a taça que o irmão lhe havia roubado.

        - Que vocabulário! - Fulke revirou os olhos numa expressão exagerada de falso desânimo.

        Margaret tocou o braço da prima oferecendo conforto.

        - Elas estão com inveja, só isso. Queriam que a festa fosse delas.

        - Ah - Thayer murmurou, levando a mão da esposa aos lábios -, elas foram venenosas com você, não é?

        Um pouco mais calma, Gytha olhou para o homem, que agora chamava de marido. A mão enorme envolvia completamente a dela, mas o toque era gentil, e essa gentileza se refletia nos olhos emoldurados por cílios longos e escuros.

        - Sim, mas eu já devia saber que tais tolices devem ser ignoradas. Receio ter um temperamento ligeiramente volátil. - Ela olhou para Fulke com ar debochado ao ouvir sua gargalhada. - Ignore esse tolo - disse a Thayer antes de beber mais um gole de vinho.

        Os dois irmãos começaram a trocar provocações, e logo Roger se juntou ao grupo. Thayer decidiu que tinha muitas preocupações, mas a família da esposa não era uma delas. Havia entre eles uma proximidade que se estendia para os novos membros, e esse era um importante benefício. Uma família problemática podia se tornar uma praga na vida de um homem. Depois de passar alguns momentos na companhia dos Raouille, sabia que podia confiar neles. Gostaria de poder ter essa mesma confiança em Gytha.

        Logo o baile começou, e em pouco tempo Thayer percebeu que a esposa adorava dançar. Infelizmente, ele mesmo dançava tão raramente que não confiava na própria habilidade. Mesmo assim, dançou com Gytha algumas vezes, odiando entregá-la a tantos cavalheiros que a olhavam com ar de cobiça. Para impedir que esses pretendentes ansiosos se aproximassem dela, ele recorreu a seus homens. Todos se dispuseram a dançar com ela. Confiava neles. Só por isso foi capaz de permitir à esposa o prazer de dançar e ainda desfrutar da alegria de observá-la.

        Porém, foi com alívio que ele viu chegar o momento da consumação do casamento, um ritual testemunhado por um pequeno e seleto grupo. A permanência das pessoas nos aposentos do casal seria breve, e os comentários picantes eram recebidos com bom humor. Assim que a porta se fechou atrás dos convidados, Thayer se virou de lado para fitar a esposa.

        Embora tivesse sido exposta ao grupo apenas por um breve momento, Gytha estava visivelmente constrangida. Ela se cobria com o lençol e tentava não corar. Quando Thayer ofereceu uma taça de vinho, ela a aceitou com um olhar tímido na direção do marido.

        - Está com medo, Gytha?

        - Não. Sim. Não sei ao certo. Não estou acostumada a ser observada - ela sussurrou. - E não gostei muito.

        Em silêncio, ele admitiu que também não havia apreciado muito a experiência. Escolhera Roger, Merlion, Revê e Torr como suas testemunhas, e eles haviam olhado para Gytha com admiração reverente e com grande respeito. Mesmo assim, foi um alívio quando ela recebeu permissão para buscar refúgio sob as cobertas um instante depois de despir o robe. Thayer ressentia-se contra o sentimento de posse, mas era inútil negá-lo.

        - Eles agora são como sua família - disse, tentando acalmá-la. - Os homens que escolhi são muito próximos de mim, quase como meus parentes, mais do que Robert, aquele tolo. Estão comigo desde o início, lutando ao meu lado por muitos anos. Não posso contar quantas vezes salvamos a vida uns dos outros. Além do mais, isso só é feito uma vez, minha querida, e já acabou. Ela assentiu, um pouco mais relaxada, depois o encarou e recordou as palavras de Edwina.

        - Vai continuar sobrevivendo de sua espada?

        - Não. Agora sou um homem de posses. Não será mais necessário. Tenho a cama e a comida que antes precisava assegurar pela lâmina da minha espada. Porém, um homem precisa lutar de tempos em tempos, seja pelo rei ou por razões próprias. Considerando o lugar onde vivemos, duvido que minha espada enferruje por falta de uso. Além disso, a propriedade que agora me traz pelo casamento é muito próxima da problemática Gales. Pedi a meus homens para ficarem e integrarem minha guarda. Isso vai nos manter seguros e protegidos.

        O sorriso aliviado de Gytha quase o fez jurar nunca mais erguer a espada. Ele deslizou a mão sobre o ombro nu da esposa e sentiu a pele quente e macia como a mais flna seda. Seus cílios eram longos, espessos e sedosos. Quando ela baixava as pálpebras, esses cílios projetavam sombras sobre suas faces coradas, e ele se inclinou para beijar o nariz delicado.

        Thayer pensou nas mulheres de quem havia comprado favores sexuais recentemente e foi invadido por uma breve onda de culpa. Ele baniu o sentimento. Naquele tempo não era comprometido nem antecipava tal evento. E havia sido melhor assim. Sentia o sangue ferver nas veias mesmo tendo se deitado recentemente com meretrizes. Queria introduzir a esposa nos mistérios do leito conjugal com delicadeza e sem pressa, e, se houvesse passado muito tempo sem o conforto de um corpo feminino, isso acabaria sendo ainda mais difícil do que seria nas atuais circunstâncias.

        Tirando a taça vazia da mão dela, ele a pôs sobre a mesa de cabeceira.

        - Tentarei não machucá-la, Gytha.

        - Sei que uma certa dor é inevitável. Minha criada, Edna, foi muito precisa em seu relato.

        - Sua criada? - Ele riu. - Sua mãe nunca conversou com você?

        - Sim. - Havia na voz dela um tremor que revelava nervosismo. - Mas com tanta hesitação e todos aqueles rubores, só consegui entender o trecho sobre dever e modéstia. Aprendi muito pouco com minha mãe. Estava justamente dizendo isso a Margaret, quando Edna, que arrumava meu quarto naquele momento, começou a rir. Eu percebi que ela sabia mais sobre o assunto e a fiz falar.

        - Uma criada - ele murmurou. - Sim, vai precisar de uma criada. Acha que Edna aceitaria nos acompanhar e ir viver em nossa casa?

        - Não imagino por que não. Ela não tem família ou amante que possam retê-la aqui. E sua idéia é brilhante! - deu um gritinho quando o marido começou a puxar as cobertas.

        Thayer preferia o ambiente iluminado, mas sabia que, por enquanto, era melhor respeitar a modéstia da esposa. Ele se levantou para apagar todas as velas, deixando apenas as duas ao lado da cama. Quando retornou, foi impossível não sorrir da expressão atônita no rosto de Gytha.

        Ele deu de ombros. Estavam casados. Ela teria de se habituar com sua aparência. Não havia nada que ele pudesse fazer para melhorá-la.

        Apesar do rubor intenso, Gytha o observava. Sabia que sua opinião era parcial, mas considerava o marido simplesmente adorável. Os cabelos vermelhos e as cicatrizes de inúmeras batalhas não a repeliam. Seus olhos registraram os ombros largos, a cintura esguia, o quadril estreito e as pernas longas e musculosas. O corpo possuía uma graça quase animal, e a ereção só acentuava essa característica selvagem. Era impossível não pensar se sua figura tão pequenina poderia acomodá-lo. Apesar do esforço para não demonstrar medo, ela o olhou com receio quando o marido se deitou a seu lado. Relutante, Gytha deixou-se descobrir.

        Percebendo o receio da esposa, Thayer desejou poder aplacá-lo, mas sabia que seria difícil de controlar sua necessidade. O sentimento se confirmou quando ele pôde ver o corpo nu de Gytha à luz pálida das velas. Um rubor da timidez tingia a pele acetinada, e ela agitava as mãos numa tentativa de cobrir-se. Gentilmente, ele a segurou pelos pulsos e apreciou a beleza escultural com total liberdade.

        Os mamilos rosados se enrijeceram sob seu olhar. A cintura era delgada o bastante para ser contornada por uma de suas mãos, ou era essa a impressão que ele tinha. As pernas eram bem torneadas. Um ninho dourado ocultava a feminilidade. Thayer a encarou. - Ah, Gytha, minha esposa, você é realmente linda - ele murmurou antes de beijá-la.

        Ela o abraçou e correspondeu ao beijo sem nenhuma hesitação. Thayer cobriu o corpo delicado com o dele e sentiu o tremor que a sacudiu.

        Devagar, ele começou a acariciá-la. Gytha sentia-se inebriada pelos beijos ardentes. Um som rouco escapou de sua garganta quando ele tocou um seio, e apertou o mamilo entre os dedos e friccionando-o, enrijecendo-o. Era como se houvesse fogo correndo em suas veias. Seus lábios deixaram os dela para beijar-lhe o pescoço, acariciando-o com a ponta da língua.

        - Serei gentil com você - ele prometeu. - Confie em mim, minha querida.

        - Eu confio - ela murmurou com voz rouca. Thayer não viu sarcasmo em seus olhos, mas a resposta o deixou confuso.

        - Então, por que treme de medo, minha pequena?

        - Não é medo. - Era difícil falar enquanto ele acariciava seu seio, porque o toque das mãos fortes roubava-lhe a capacidade de raciocinar. - Não sei determinar o que me perturba.

        - O que sente, minha querida? - Ele acariciou-a no ventre e sentiu um novo tremor.

        - Sinto-me arder. É como se meu sangue fervesse. Isso me assusta um pouco.

        Chocado por saber que suas carícias a inflamavam tanto, ele teve dificuldades para responder. A voz soou como um sussurro rouco.

        - Não há nada a temer nisso.

        - Não quero desapontá-lo. Ah, Thayer... - Ela acariciou os abundantes cabelos vermelhos e o beijou com ardor.

        - Não vai me desapontar, querida. Como poderia? - ele indagou com voz rouca antes de beijar um dos seios.

        Gytha se contorcia sob a língua quente e úmida. O teor foi superado pela paixão. Com uma certa timidez inicial, ela moveu as mãos pelas costas largas e pelos braços musculosos, e tocar a pele quente e firme alimentou seu desejo.

        A maneira como ele a tocava nas coxas produzia uma estranha sensação de peso em suas pernas. Os dedos ávidos tocaram pêlos entre elas. Gytha se afastou fugindo ao contato. Com os olhos tomados pelo choque, ela o encarou.

        Thayer segurou-a pelo quadril para mantê-la quieta. Decidindo que a dor seria mais suportável se fosse rápida, ele a penetrou de uma só vez. O grito abafado o encheu de pesar, mas, encontrando a barreira da inocência, ele a superou com firmeza. Depois ficou imóvel, abraçando-a e tentando reacender o desejo da esposa.

        - Calma, meu amor. - Ele a beijou, tranqüilizando-a. - Abra-se para mim, querida, entregue-me seus segredos. Gytha descobriu que não tinha escolha. Ele a beijava entre os lábios e os seios, cobrindo cada centímetro de pele. O fogo voltou a arder com força redobrada. As carícias que antes ela oferecia hesitante e tímida agora se tornavam frenéticas.

        As sensações eram tão envolventes que ela mal percebeu a mudança de posição. Quando sentiu a prova concreta do desejo do marido dentro de seu corpo, ela gemeu e começou uma dança ritual mais antiga que o mundo, esfregando sua pele na dele numa urgência instintiva. Só quando ele também começou a se mover a paixão arrefeceu. Tensão e antecipação a tomaram de assalto. O que estava acontecendo?

        Por que sentia aquela crescente tensão na região do ventre?

        Gytha o fitava assustada. Os olhos dele brilhavam intensamente. Algo dilatara suas pupilas e ele tinha o rosto corado. A dor breve e aguda havia desaparecido. Ela percebia novamente o encaixe perfeito entre os corpos, quase como se fossem um só. O estranho calor que ele era capaz de provocar voltava a inundar suas veias, alimentado pelos beijos suaves, mas úmidos e quentes.

        - Tive medo de não poder acomodá-lo - ela revelou com voz trêmula, surpresa com a própria ousadia.

        Thayer riu, traçando com a língua o desenho da orelha delicada.

        - Estou muito bem acomodado. Quase como se penetrasse o paraíso. Agora, envolva meu corpo com suas pernas, querida.

        - Assim? - Ela enlaçou a cintura do marido com as pernas.

        - Sim. - Thayer se movia devagar, ouvindo os gemidos de prazer e surpresa. - Ainda sente dor?

        - Não. - O prazer a fez fechar os olhos. Ele a observava encantado.

        - Temia me sentir repelida pelo ato... Ou aborrecê-lo expressando excessiva apreciação...

        Ele balançou a cabeça numa resposta negativa.

        - Sei que outros homens discordam de mim, mas uma esposa que corresponda ao meu desejo me agrada muito mais.

        - Você... gostou?

        Ele afagou o rosto delicado.

        - Nunca gostei tanto antes.-Thayer beijou-a. - Gostei tanto, que acho que vou repetir a experiência. Gytha suspirou satisfeita.

        - Imediatamente?

        A inocência da esposa o encantava, e ele decidiu preservá-la. Gytha teria toda a vida para compreender que o ato sexual ia muito além do que ela havia experimentado até então.

        - Por quê? Está dolorida, pequena?

        - Não. Não realmente.

        - Isso era tudo que eu precisava saber.

        Mais uma vez, ele reacendeu a paixão que ainda não chegara em seu apogeu. Agora que havia superado o temor, ela se sentia livre pra apreciar ainda mais o prazer proporcionado pela experiência. Os sentimentos que Thayer despertava eram deliciosos.

        Ele a amava com menos controle, extravasando a paixão sem reservas. Os sinais que antes questionara agora sabia serem indicações do desejo da esposa por ele. O conhecimento era quase tão excitante quanto a própria mulher.

        A luz da manhã penetrava no quarto quando Thayer acordou e olhou para a delicada criatura que dormia com a cabeça apoiada em seu peito. Logo o desjejum nupcial seria levado ao quarto, e então o lençol manchado seria exíbido a um seleto grupo de testemunhas para comprovar a inocência de sua esposa e a consumação do casamento. Ele se levantou, pensando que seria melhor evitar que Gytha fosse novamente estudada em sua intimidade. Um sorriso distendeu seus lábios quando, ainda dormindo, ela murmurou seu nome. Ele correu para ir buscar robes para os dois. Já vestido, Thayer descobriu que acordar a esposa não era tarefa fácil.

        - Já é manhã? - ela perguntou sonolenta, sentando-se na cama e deixando-se vestir com o robe.

        - Sim, e logo as pessoas estarão chegando. Não é necessário exibir seus encantos pela segunda vez.

        - Quanta consideração...

        Coberta, Gytha bocejou e deixou a cabeça cair sobre o peito do marido.

        Ele riu e a deitou novamente.

        - Ah, bem, sei que não deixei você dormir muito.

        - Hum... Muito pouco. - Ela se aninhou nos braços fortes, sentindo-se aquecida e contente.

        - Podemos dormir agora.

        Bocejando, ela fechou os olhos, indicando que aceitava a sugestão. Embora nunca tivesse sido uma pessoa preguiçosa, acordar cedo não era uma das tarefas favoritas de Gytha. Porém, nunca antes havia sido tão difícil. Nunca antes tivera um sono tão entrecortado. Noites de núpcias e sono eram duas coisas incompatíveis. O prazer de se aninhar no peito de Thayer a fazia odiar ainda mais a idéia de deixar o paraíso da cama quente.

        Ele estava quase adormecendo quando o grupo da noite anterior retornou ao quarto seguido por uma criada carregando uma bandeja. Quando não conseguiu acordar a esposa, Thayer teve de suportar muitos comentários maliciosos. A cerimônia do desjejum foi realizada com eles ainda na cama. Consternado, Thayer viu a esposa se agitar no sono, murmurar seu nome e esfregar o corpo no dele com evidente intenção sensual. As mulheres saíram do quarto correndo, corando e rindo. Os homens eram mais recalcitrantes.

        Quando todos se retiraram, ele tentou comer ainda segurando a esposa adormecida, mas seus movimentos e o aroma da comida produziram o efeito esperado. Gytha começou a despertar. Ela se sentou devagar, piscando algumas vezes e esfregando os olhos. Era simplesmente adorável.

        - É melhor comer - ele disse, colocando a bandeja sobre seus joelhos -, antes que eu acabe com tudo.

        Sorrindo sonolenta, ela se serviu. Sua timidez era evidente. Terminada a refeição, Thayer removeu a bandeja e Gytha se encolheu sob as cobertas.

        Deitado de lado, ele tocou o rosto levemente corado.

        - Está muito quieta. Não vai dar um beijo em seu marido?

        Ela o beijou acanhada. Thayer se deu por satisfeito, mas só por um momento. Depois aprofundou o beijo. Quando ergueu a cabeça, ele arfava. Era satisfatório perceber que ela exibia a mesma reação.

        - E dia - Gytha murmurou, segurando o robe e odiando o próprio constrangimento.

        Sorrindo, ele a despiu.

        - Sim, pequena, e conheço um jeito perfeito para celebrar o nascer do sol.

        Ela não o repeliu, apesar da timidez, do cansaço e do corpo dolorido.

        - Não prefere a penumbra?

        Apoiado sobre um cotovelo, ele apreciava seu corpo com desejo e evidente apetite.

        - Não, porque ela ocultaria de meus olhos toda a sua beleza.

        Os dedos acariciavam um seio. Queria possuí-la à luz do dia para certificar-se de que a paixão da esposa não havia sido um sonho. Queria ver sua reação claramente, livre da ilusão criada pela luz das velas.

        Depois do inferno para o qual Elizabeth o arrastara, havia jurado nunca mais se envolver com uma mulher de origem elevada e beleza mais do que mediana. Agora se via casado com uma. Pior, sentia no peito um calor traiçoeiro, uma resposta tema a cada sorriso ou olhar. Quando beijou aquele seio macio, ele sentiu o fogo invadi-lo e reconheceu o temor de fazer papel de tolo mais uma vez.

        Gytha tremia de prazer. Ele a beijava e acariciava, e ela também o tocava sem reservas ou hesitação. Com abandono crescente, movia-se sob o corpo do marido e o tocava nas coxas, deslizando os dedos pela parte interna delas.

        Thayer não conteve um gemido rouco quando os dedos delicados encontraram sua pulsante e ereta masculinidade. Seu corpo tremia com a força do prazer. Surpresa, ela interrompeu a carícia, mas ele agarrou-lhe a mão e a levou de volta ao membro túrgido.

        - Sim, doce Gytha, toque-me. - O desejo fazia sua voz soar tensa, tornando as carícias mais ferozes. - Sim, meu amor, sim. Toque-me. Envolva-me com seus dedos.

        Apesar do esforço para conter-se, sua paixão tornava-se selvagem. O toque de Gytha o induzia a esquecer a cautela. Para seu deleite, ela também ardia.

        Gytha sentia prazer com a crescente ferocidade do marido, embora suas carícias fossem quase um assalto. A posse era quase dolorosa, mas ela sentia intenso prazer. Quando chegou ao clímax, ela soube que tinha a companhia do marido.

        Thayer precisou de algum tempo para recuperar o equilíbrio. Então, ele olhou admirado para a mulher em seus braços, viu as marcas vermelhas na pele alva e foi tomado pelo remorso. Porém, as mãos que acariciavam seu peito não revelavam raiva ou temor, somente uma letargia saciada.

        Gytha afagava o peito coberto por caracóis vermelhos e movia as pernas sobre as dele, deliciando-se com a sensação. A união entre os corpos era algo que ela apreciava.

        - Isso é maravilhoso, não é?

        - Maravilhoso? - Não sabia a que ela se referia com "isso".

        - Somos tão diferentes, mas nos encaixamos com perfeição.

        - Sim, é verdade. Machuquei você?

        - Não. - Ela o fitou com um sorriso sugestivo. - Começo a pensar que talvez não tenham sido seus inimigos que o apelidaram de Diabo Vermelho. Talvez tenham sido as mulheres cuja cama você visitou.

        - Feiticeira. - Ela o beijou com ternura. - Você me incendeia, doce Gytha. Receio perder o controle.

        - Eu poderia entender.

        - Sim, agora pode.

        - Sim, eu posso. Não me comporto como uma dama em certos momentos.

        - Bem, uma dama nem sempre satisfaz um homem na cama. - Ele a aninhou contra o peito. - Uma certa ousadia é apreciável em uma esposa - provocou rindo.

        Gytha riu sonolenta.

        - Homem pervertido. Logo teremos de sair da cama.

        - Descanse um pouco, querida.

        - Parece um pecado continuar deitada até tão tarde.

        -Ninguém sentirá nossa falta. Também preciso traçar os planos para os próximos dias, planejar a viagem...

        - Mais uma razão para nos levantarmos.

        - Descanse, minha linda. Isso tudo pode esperar.

        - Como você decidir.

        - Essa é uma atitude apropriada para uma esposa.

        Rindo, ela se ajeitou nos braços do marido. Não desejava estar em outro lugar. Fazer amor com Thayer só intensificara a sensação de ter encontrado seu lugar no mundo. Só uma coisa a perturbava. Apesar do ardor da paixão, sentia em Thayer uma reticência, como se ele quisesse se manter distante. Ele precisaria de tempo. Faria tudo que pudesse para demonstrar que a união entre eles era perfeita. Quando adormeceu, ela sonhou com os filhos que teriam e com o futuro de paz que os aguardava. Estava certa de que logo ele partilharia desses sonhos.

        Thayer olhava para a esposa e era tomado por uma intensa admiração. Apesar do fogo que o consumira, pudera observá-la e certificar-se de que a paixão não havia sido ilusão ou truque da luz. Ela realmente ardia sob seu toque. A constatação era inebriante, mas também era uma fonte de consternação. Agora que a apresentara às delícias da paixão, ela não esbofetearia tão rapidamente um galante oportunista. Sua moralidade anterior podia ter sido fruto da ignorância. Agora ela veria homens e mulheres com olhos de adulta, não mais com a ingenuidade de uma criança. Temia ter selado o próprio destino, o de marido traído e infeliz.

        Gytha sentia uma mistura de agitação e tristeza. Uma semana depois do casamento, ela e Thayer estavam prontos para partir. Começavam juntos uma nova vida. Infelizmente, também deixava para trás tudo que amava e conhecia. Sabia que a família estaria sempre ali, mas tudo mudaria definitivamente. Era necessário. Agora seu mundo era o mundo de Thayer.

        Quando o pai a abraçou para despedir-se, ela viu o brilho das lágrimas nos olhos dele. Vira esse mesmo brilho nos olhos dos irmãos, e a mãe chorava copiosamente. Temendo sucumbir às lágrimas, Gytha subiu na carruagem para se unir a Margaret e Edna. As lágrimas distorceram a imagem do castelo desaparecendo ao longe. Era impossível contê-las.

        O destino agora era Saitun Manor. Estava ansiosa para conhecer o lugar. Assim que tudo fosse posto em ordem ali, eles seguiriam para a pequena propriedade que ela herdara com o casamento. Era difícil não se agitar com a viagem. Viajara muito pouco na vida, e nunca para tão longe. Também era difícil não sentir um certo receio. Olhando para os vinte homens que os acompanhavam na jornada, ela disse a si mesma que o medo era tolo. Thayer e Roger eram lutadores endurecidos, bem como os outros doze homens a serviço de seu marido, muitos deles consagrados cavaleiros no campo de batalha. Seu pai cedera seis homens para o pequeno batalhão, todos guerreiros fortes e corajosos. Nenhum deles escondera a alegria por poder cavalgar ao lado do renomado Diabo Vermelho. Ela sabia que não precisava ter medo.

        O pouco que conseguira descobrir havia confirmado tudo que Edna tinha dito sobre Thayer e seus homens. Muitos eram filhos ilegítimos de nobres, como eram também os pajens e escudeiros que os serviam. De fato, muitos pajens eram meios-irmãos dos homens a quem serviam.

        Um deles despertou seu interesse. Ele tinha cabelos vermelhos como o fogo, e Gytha decidiu que falaria com o marido sobre o menino assim que tivesse uma oportunidade. O ciúme quase a dominara quando vira o garoto pela primeira, mas ela tratou de se conter. Ele devia ter oito ou nove anos. Gytha era uma criança quando de seu nascimento. Mesmo assim, descobriria a verdade. Só não sabia como reagiria se suas suspeitas se confirmassem.

        Roger a viu observando o menino novamente.

        - E melhor contar a ela - ele sugeriu em voz baixa a Thayer.

        Thayer olhou para a esposa e suspirou.

        - Sim. Sabia que Gytha não seria reticente, por isso fiz a escolha mais covarde. Decidi esperar que ela perguntasse sobre Bek. A história é sórdida. Não tenho muita vontade de repeti-la. Especialmente para ela.

        - Ela é uma das poucas pessoas que têm o direito de saber. Porém, entendo sua relutância. A inocência de Gytha é admirável. Até Margaret e a criada exibem essa mesma doçura. E como se vivessem em um mundo distante do nosso.

        - Lorde John fez de sua casa um mundo único. Quem pode culpá-lo? Há muita escuridão no mundo. Seu povo segue o que ele determina. E uma gente boa e simples que acredita que regras foram feitas para serem cumpridas. Ele trata seu povo com bondade e compreensão, o eles pagam por esse tratamento com uma lealdade inabalável. E um exemplo claro de como a vida pode ser... mas raramente é. Infelizmente.

        - Eu confesso que teria apreciado um ambiente menos correto. Senti falta das criadas que conheci em outras propriedades. Até os filhos dele têm de ir à cidade para se deitarem com uma mulher. - Thayer e Roger riram. - Mas entendo o lado positivo disso tudo.

        - Como assim?

        - Não há nenhuma possibilidade de uma criada se colocar acima da esposa, de pensar que é melhor do que ela. A senhora do lugar não precisa lidar com situações delicadas dessa natureza.

        - Sim. - Thayer franziu a testa. - Talvez eu tenha de limpar minha propriedade.

        - As mulheres cuidarão disso. Não tema.

        Quando pararam para dormir, o entusiasmo de Gytha pela viagem havia diminuído muito. Era tudo tão tedioso e sujo! Assim que a tenda de Thayer foi armada, ela pediu água e o menino chamado Bek atendeu à solicitação, obrigando-a a lembrar de algo que se esforçava para esquecer. Ela viu o garoto de cabelos de fogo se afastar, depois entrou na tenda.

        Margaret balançou a cabeça. - Por que hesita em interrogá-lo sobre o menino?

        - Porque essa é uma questão difícil.

        - Nunca a vi tão hesitante antes.

        - Ah, Margaret talvez eu tenha medo do que vou ouvir.

        - Melhor saber a verdade, milady - Edna disse enquanto ajudava sua senhora com a água.

        - Por que diz isso? Todos afirmam que uma esposa é mais feliz quando se mantém ignorante.

        - Bobagem. E se a mulher ainda for viva? E se for uma fina dama? Pode encontrá-la em algum momento. E se souber toda a história por terceiros, por alguém que possa envenenar o relato e seu coração? Não, é melhor saber tudo, milady, porque assim evitará surpresas no futuro. E... - Edna respirou fundo. - É melhor saber se esse é um amor do passado ou uma rival a ser combatida.

        Era justamente isso que Gytha mais temia.

        - Tudo que diz é verdade, Edna. Só preciso encontrar coragem para interrogá-lo.

        - Venha - Margaret tocou seu braço num gesto de compreensão e solidariedade -, vamos até a área que cerca o acampamento. Vi algumas flores espalhadas pelo bosque. Traremos algumas para amenizar o cheiro dos cavalos e dos homens suados. Colher flores vai acalmá-la.

        Antes que Gytha pudesse protestar, Edna as conduziu até a saída da tenda. Os homens davam pouca atenção a elas, e as duas atravessaram o acampamento sem que ninguém as detivesse. Sem pressa, caminharam pelo bosque tomando o cuidado de não se afastarem muito da área, mantendo-se perto o bastante para ouvirem os homens trabalhando no acampamento. Gytha logo se sentiu mais calma cercada pelo silêncio. Ela sorriu agradecida para Margaret, que colhia flores.

        Quando se preparavam para voltar ao acampamento, Gytha viu um campo particularmente colorido e perfumado. Ela se abaixou para colher as flores, atrasando-se vários passos atrás de Margaret. Ao se levantar, viu-se diante de um homem armado.

        Por um instante, o choque a paralisou. Olhou em volta, viu que outros homens surgiam de trás das árvores frondosas, puxando seus cavalos. Era um ataque. Ela se abaixou quando o homem na sua frente tentou agarrá-la, esquivando-se com sucesso.

        - Corra, Margaret - Gytha gritou, tentando chegar ao acampamento.

        Margaret hesitou apenas um segundo, olhando para trás para ver o que acontecia, mas obedeceu à ordem da prima e também correu para o acampamento.

        - Alerte-os, Margaret - Gytha gritou enquanto corria, sentindo que o homem se aproximava.

        - As armas! Ataque! As armas! - Margaret berrava. Os homens no bosque montaram em seus cavalos, privados do elemento-surpresa que tanto os teria beneficiado.

        Thayer ouviu os gritos de Margaret e ficou tenso. As palavras não eram claras, mas o significado era óbvio. Embora os homens já se armassem, Thayer vociferava suas ordens. Aflita, Edna se aproximou dele.

        - Elas foram sozinhas para a floresta?

        - Sim, meu senhor. - Ela recuou ao ver a fúria nos olhos do novo senhor. - Foram colher flores.

        Thayer correu na direção das árvores no mesmo instante em que Margaret surgia do meio delas.

        - Onde está Gytha?

        - Bem atrás de mim - ela respondeu sem interromper a fuga alucinada. Na entrada do bosque, Thayer lutou contra o pânico que ameaçava dominá-lo.

        -Gytha!

        - Aqui, Thayer - ela respondeu surgindo por entre as árvores.

        Olhar para o rosto do marido renovou suas forças, e ela passou por ele com a velocidade do vento, seguindo para a tenda sem argumentar ou fazer perguntas, limitando-se a acatar a ordem dada por um sinal silencioso. A fúria de Thayer era quase tangível. Ela ouviu o grito de seu perseguidor, mas não parou para olhar para trás. Sabia que a cena era sangrenta. Na tenda, Edna e Margaret já esperavam por ela. Juntas, assistiram à batalha com um misto de horror e fascinação.

        Gytha não sentia medo. Não muito. Não podia imaginar que seu marido, tão grande, forte e habilidoso, seria derrotado. Não dessa vez. Ela tentou acalmar as companheiras, argumentando que estavam protegidas pelo grupo de pajens e escudeiros reunidos diante da tenda. Entendia a preocupação de todos e admirava a coragem dos meninos, que se colocavam diante da tenda com a nítida intenção de proteger a nova senhora. Porém, não acreditava que esse inimigo em particular pudesse passar por Thayer e seus homens.

        Passos atrás dela atraíram-lhe a atenção, e ela se virou apavorada. Um homem conseguira contornar o acampamento e invadi-lo pela parte de trás, e agora caminhava em sua direção. Gytha empurrou Margaret e Edna para fora da tenda, para longe do perigo imediato. Assustadas, as duas mulheres tropeçaram nos garotos. Antes que alguém pudesse vir em socorro, Gytha foi agarrada pelo invasor.

        Apesar da luta desesperada, ele a levou para fora da tenda, colocando-a na frente do próprio corpo. Mesmo Aterrorizada, ela ficou emocionada com a ação dos pajens. Rápidos, eles cercaram as mulheres e, empunhando espadas, não fizeram nenhum movimento por medo de que ela sofresse as conseqüências.

        Gytha já havia compreendido que não seria morta, mas aprisionada. Seria refém. O medo deu lugar à fúria, e ela lutou com vigor renovado. Os movimentos não serviram para libertá-la, mas obrigaram o atacante a recuar desequilibrado. Ele ainda praguejava quando Gytha sentiu uma forte dor na cabeça. Depois mergulhou na escuridão.

        Removendo a espada de outro corpo, Thayer parou para olhar para a tenda. Um grito agudo ecoara no refúgio das mulheres, um grito que o encheu de apreensão. Ainda estava olhando na mesma direção quando um homem segurando Gytha a atingiu na cabeça com o cabo da espada. Um uivo furioso brotou de seu peito quando ela caiu inconsciente. Sem pensar na própria retaguarda, Thayer Correu para Gytha. A batalha chegava ao fim. Roger corria atrás dele com a intenção de protegê-lo, tendo se certificado de que nenhum dos atacantes em fuga tirava proveito do momento de desatenção de Thayer. O homem que havia capturado Gytha empalideceu ao vê-lo correndo em sua direção. Margaret, Edna e os pajens também estavam muito pálidos. Qualquer pessoa normal ficaria apavorada com o avanço furioso. Mas, aliviado, Roger viu Thayer conter o impulso assassino.

        Ele recuperou a sanidade a tempo de deter-se antes de atacar o homem que segurava Gytha. O desconhecido a mantinha diante do corpo, e foi justamente a visão da esposa desfalecida e indefesa que o fez parar. Thayer encarou o rival, a espada pronta para o ataque, o instinto clamando para que ele enterrasse a lâmina naquele que ousara ameaçar sua esposa.

        - Cuidado - Bek murmurou, reconhecendo a fúria que distorcia os traços do pai. - Ele fez da senhora um escudo.

        - Sim, eu sei. O covarde se esconde atrás de uma saia. Venha me enfrentar como um homem, verme rastejante.

        - Desejo me render. O homem olhou para Roger. - Desejo me render.

        Roger segurou o braço de Thayer para impedir movimentos impetuosos e ordenou:

        - Jogue a espada para longe.

        Depois de uma breve hesitação, ainda mantendo Gytha como refém, o homem atirou a espada aos pés de Thayer, que tremia sob a força do impulso de matar, mas deixou Roger recolher a arma e se aproximar do atacante. Sem dizer nada, Thayer embainhou a espada e tirou a esposa dos braços do trêmulo desconhecido. Ele a levou para sua tenda. Ainda a estava deitando sobre a cama, quando Margaret e Edna entraram correndo.

        Olhando para Gytha, Edna anunciou:

        - Vamos cuidar dos ferimentos, milorde. Foi só um golpe na cabeça.

        - Tem certeza?

        - Sim, milorde. Vê? Ela já começa a despertar. Podemos cuidar dela.

        Thayer olhou para Gytha por um momento, lutando contra o pânico diante de sua imobilidade e palidez. Edna estava certa. Gytha já se mexia e tinha a testa franzida como se os pensamentos despertassem. Virando-se repentinamente, ele saiu da tenda e quase derrubou Roger, que o esperava na porta.

        - Quantos perdemos? - ele perguntou, caminhando para o único prisioneiro.

        - Dois estão mortos. Três sofreram ferimentos, mas nada muito grave. Foi tolice das mulheres se afastarem daquela maneira, mas seus gritos nos salvaram. - Eles pararam diante dos prisioneiros, e Roger murmurou: - Não vai descobrir nada se matar esse homem.

        - Não vou matá-lo. - Thayer olhou para o homem assustado. - Seu nome?

        - John Black, milorde.

        - Quem o mandou aqui, John Black? - Ao perceber a hesitação antes da resposta, Thayer praguejou. - Vou arrancar a pele de seus ossos. Tira por tira...

        - Fomos contratados por seu primo, milorde.

        - Robert Saitun?

        - Sim, embora tenhamos recebido as ordens do tio dele. Agarrando o homem pela frente da camisa, Thayer ordenou:

        - Você vai procurar meu querido primo Robert e aquele cachorro vadio que o comanda. Vai aconselhá-los a desaparecer antes que eu os encontre. Não quero matar meus parentes, mas, por Deus, não hesitarei em tirar a vida daqueles dois vermes, caso os veja ou sinta o cheiro deles. - Ele jogou o homem para o lado. - Cortem três dedos da mão que ele usa para empunhar a espada - Ordenou aos homens que guardavam o prisioneiro -, depois mandem-no embora.

        Thayer caminhou para os barris de água, cerrando a mente para as súplicas do atacante e para seus gritos de pavor e dor quando a ordem foi cumprida.

        - A senhora? - Bek se apressou em providenciar um balde de água para o pai.

        - Edna garantiu que ela só sofreu um golpe na cabeça. Roger sorriu agradecido quando Bek providenciou água para ele também.

        - Por isso sua punição foi tão branda? - ele perguntou.

        - Não. - Thayer suspirou enquanto o menino o ajudava a despir a metade superior do corpo. - O homem só cumpria ordens. Ficou claro que ele controlou a própria força quando agrediu Gytha. Ele só queria contê-la. Compreendi tudo isso quando superei a cegueira da fúria.

        Com a ajuda de Bek, Roger também desnudou o tronco.

        - Acha que foi sensato prevenir Robert ou seu tio? Thayer deu de ombros e começou a se lavar.

        - Quem sabe? Acredito que esse ataque foi impensado e precipitado. Robert queria Gytha. Vi a expressão dele quando fui nomeado noivo. Além do mais, ele é meu único parente além de Bek. Não quero matá-lo. O tio dele está por trás disso. Ele quer Robert como herdeiro dos bens e deve estar disposto a tudo para isso. Temos de nos manter vigilantes. Não quero que a história de minha morte seja verdadeira na próxima vez em que for contada.

        - Especialmente quando há tantas razões para viver - Roger murmurou, olhando para a tenda de Thayer.

        - Sim. - Ele olhou na mesma direção enquanto se enxugava.

        - Foi ela quem viu o homem entrando na tenda - relatou Bek. - E empurrou as outras duas damas para fora, garantindo sua segurança.

        - E foi capturada - resmungou Thayer.

        - Quando gritar com ela, procure não exagerar.

        - O que está dizendo?

        - Bem, a cabeça dela vai doer por um tempo. Depois de olhar para o filho por um momento, Thayer sorriu.

        - Um cavalheiro não grita com uma dama. Bek retribuiu o sorriso do pai antes de dizer com entusiasmo infantil:

        - Viu como correram?

        - Sim, os miseráveis foram rápidos na fuga - concordou Roger.

        - Não me refiro aos homens, sir Roger. Falo das damas. - Ele sorriu quando os dois adultos riram. - Nunca pensei que mulheres pudessem correr tanto. Aposto que elas são mais rápidas que alguns do nosso grupo.

        - Sim, elas são velozes. E isso me dá uma idéia. Talvez - Thayer continuou rindo -, possamos colocá-las para disputar corridas e ganhar algum dinheiro para nós. - A expressão chocada do filho o fez gargalhar. - E só uma piada, menino. Agora vá providenciar uma refeição para nós. Comerei enquanto cuido de Gytha. Acabei de ver Edna indo buscar comida. Gytha deve ter despertado.

        Enquanto Bek corria a obedecer, Thayer foi cuidar de uma tarefa pessoal. Precisava providenciar uma mortalha para os dois mortos. Assim que passassem por uma igreja, cuidaria do enterro em solo sagrado. Lamentava as duas mortes, mas estava aliviado por nenhum deles ser próximo ou ter passado muito tempo em sua companhia. Depois de trocar algumas palavras com os feridos, assegurando-se de que nenhum deles corria riscos, ele se sentou com Roger para comer.

        Houve um silêncio prolongado antes de Roger murmurar:

        - Está muito pensativo, amigo.

        - E só o efeito da batalha. A calmaria que segue a tempestade. - Podia ver a dúvida no rosto de Roger. - Como um homem pode evitar que seu coração derreta por uma bela mulher?

        - Não pode. Não se tiver de ser assim...

        - O que tinha de ser era Gytha e William se casarem.

        - Talvez não. Quem sabe como operam Deus e o destino?

        - Não nós, pobres mortais, isso é certo.

        - Eu não me deixaria importunar por isso. Viva esse momento. Apesar de toda a dor que esse sentimento pode causar, não existe nada que possa superá-lo.

        - Fala como se tivesse experiência.

        Thayer não se lembrava de Roger ter mencionado problemas semelhantes antes.

        - Sim, é verdade. Foi há muitos anos. Não havia esperança para aquele amor, porque eu era um cavaleiro destituído e pobre, como ainda sou. Mesmo tendo sido breve, foi glorioso.

        - E com isso você não aprendeu nada sobre como conter esses sentimentos?

        - Não quero aprender essa lição. O que aprendi foi perceber quando ele pode trazer alegria ou tristeza. E assim incentivar as possíveis ocorrências felizes. - Ele respirou fundo, sabendo que as palavras seguintes tocariam um ponto sensível. - Eu sabia que meu amor seria infrutífero naquelas circunstâncias, e ainda assim o ofertei. A dama não fez falsas promessas, sempre disse a verdade. Quando o pouco que tínhamos chegou ao fim, a dor foi compartilhada. Ela nunca me tratou com desdém. Seu coração não era escravo, como o meu. mas ela nunca me desprezou por isso. Nunca zombou dos meus sentimentos.

        - E aí está a diferença - Thayer murmurou. Roger assentiu.

        - Sim, aí está a diferença. Talvez possa pensar um pouco sobre isso.

        Prometendo a si mesmo que pensaria, Thayer se retirou para sua tenda e dispensou Margaret e Edna. Por um tempo pensou que Gytha estivesse dormindo, até surpreendê-la olhando para ele. Como uma criança, ela tentava se esconder fechando os olhos para evitar sua ira, uma raiva que ele já não sentia mais. Thayer apagou a vela, despiu-se, deitou-se e tomou o corpo tenso em seus braços.

        - Como está a cabeça? - perguntou, beijando-a na testa para ajudá-la a relaxar.

        Gytha soube que ele não estava mais furioso. Sentia-se covarde por ter fingido dormir para evitar a raiva que o marido tinha todo o direito de sentir, mas não se sentira preparada para o confronto. No fundo, sabia que as palavras cortantes de Thayer poderiam fazê-la sangrar.

        - Dói um pouco, mas não muito. - Ela o enlaçou pela cintura.

        - Foi tolice sair por aí sozinha.

        - E não estava sozinha.

        Ele riu.

        - Gytha, isso é um sermão. Fique quieta e escute com atenção.

        - Sim, meu marido. Ele ignorou o toque de impertinêncía.

        - Foi tolice deixar a segurança do acampamento. Nunca mais se afaste do grupo sem antes me dizer aonde vai e por quê. Sei que esperava me ver furioso, e eu estaria, se não tivesse me mantido afastado até meu sangue esfriar. Felizmente, você não sofreu ferimentos graves, e o aviso que me deu salvou meus homens. Um ataque-surpresa como esse teria acarretado um massacre. O nosso. Em vez disso, perdi apenas dois homens. Afinal, por que deixou o acampamento?

        - Queria colher flores para perfumar esse ambiente.

        - Na próxima vez que quiser flores, avise-me. Mandarei um homem armado para escoltá-la. Talvez dois.

        - Eles não vão gostar muito.

        - Mas farão o que eu mandar mesmo assim. Entendeu?

        Ela assentiu.

        - O que aconteceu com o homem que me fez refém?

        - Perdeu três dedos da mão que usava para segurar a espada. E foi mandado de volta ao seu mestre com um aviso.

        Gytha sabia que a punição era misericordiosa, comparada ao que muitos outros haviam, enfrentado.

        - E quem é esse mestre?

        - Meu primo Robert.

        - Robert? - Ela balançou a cabeça surpresa. - Tem certeza?

        - Sim. Esse foi o nome sob o qual o ataque foi perpetrado. Porém, foi o tio dele quem planejou e comandou tudo. Deve saber disso.

        - Sim. E Robert aceitou as ordens, mesmo não concordando com elas. E sempre assim. Mas por quê? Por que fazer tal coisa?

        - Ele quer tudo. Minhas propriedades, minha fortuna. Tudo pertenceria legalmente a Robert, mas o tio dele comandaria os bens. Além do mais, Robert queria você. Não - ele murmurou ao perceber que Gytha pretendia protestar. - Ele queria e ainda quer. E agora sei que esse não teria sido um casamento seguro para você.

        - Como assim?

        - Você poderia ter feito de Robert um homem. Ela assentiu, indicando que compreendia.

        - Se Robert se fortalecesse, se assumisse mais responsabilidades, então ele poderia se tornar uma ameaça para o tio. E aquele homem não toleraria uma ameaça.

        - Não, ele cuidaria de remover rapidamente uma ameaça como essa.

        - O que pretende fazer a respeito disso?

        - Já mandei aquele homem de volta para Robert e seu tio. Agora eles saberão que o plano falhou, que tenho consciência de seus esquemas. Mandei avisá-los de que seria sensato desaparecer. Será meu único aviso.

        - Acha mesmo que eles farão como ordena?

        - Espero que sim. Não gostaria de matar alguém do meu próprio sangue.

        - E triste quando familiares brigam entre si. Acontecia muito na família de meu pai.

        - É difícil acreditar. Sua família é tão unida, tão amorosa. Qualquer um vê.

        - Meu pai aprendeu com os erros que testemunhou enquanto crescia, Thayer. Ele viu um marido virar a própria esposa contra ele. Viu como, em sua dor, ela jogou os próprios filhos contra o pai. Viu como bastardos, reconhecidos e criados com conforto, mas sem amor, tornaram-se amargos e gananciosos, passando a cobiçar o que lhes fora negado. Enquanto crescia, ele viu pessoas, que deviam ter permanecido unidas por laços de amor e confiança, se afastarem umas das outras. Essas pessoas tramaram, brigaram e mataram até restarem apenas meu pai e o irmão dele. Ele e meu tio juraram que nunca deixariam esse veneno tocar-lhes o coração. - Ela balançou a cabeça. - Mas minha tia ainda tenta.

        - Por causa de Margaret?

        - Sim. Minha tia tem ciúme de um erro que meu tio cometeu quando ainda era solteiro, embora eu deteste pensar em Margaret nesses termos. Por causa desse ciúme, minha tia tenta envenenar a família contra o marido. Ela tenta, mas não consegue.

        - Tem certeza disso?

        - Absoluta. Logo os meninos irão para outras casas, e as meninas também. Meu tio vai mandar os filhos para a casa de meus pais. Margaret está aqui comigo, como sempre foi planejado. As duas casas se unirão ainda mais. Se algum veneno for instilado, será expelido e anulado.

        Thayer a ouvia com atenção, compreendendo que aquela era uma boa hora para falar sobre Bek. A conversa sobre Margaret a fizera relaxar. Mesmo assim, ele não sabia como começar.. Não estava preocupado com a possibilidade de Gytha não aceitar Bek, porque isso seria resolvido. Era a história que teria de repetir que o perturbava. Era sórdida e o fazia parecer um grande idiota. Além do quê, nenhuma esposa ficaria contente ouvindo o marido falar sobre seu amor por outra, mesmo que a mulher em questão estivesse fora de sua vida ou morta. Mesmo assim, ele engoliu todos os receios e começou a contar.

        - Falando em erros de solteiros... - disse hesitante. Gytha lutou contra a tensão. Não queria que nada o impedisse de falar o que ele estava prestes a relatar. Ela esperou em silêncio, orando para não sair muito magoada desse momento de revelação.

        - Preciso falar agora - Thayer anunciou agitado. - É mais fácil falar sobre certas coisas no escuro.

        - A sensação de estar exposto é menor.

        - Sim, é isso. Gytha, Bek é meu filho.

        - Eu já suspeitava disso. - Ela afagou os cabelos do marido. - Essa coloração é rara.

        - O que vai ouvir agora é uma confidência.

        - Não contarei nada a ninguém - ela prometeu -, exceto, talvez, Margaret. E Edna.

        - A mãe dele era lady Elizabeth Sevilliers. Seu nome de nascimento era Darnelle.

        - Não conheço nenhuma dessas famílias.

        - Mas vai conhecer as duas, se formos chamados à corte. Onde a corte está, lá está lady Elizabeth.

        - Ela é muito bonita?

        - Sim, muito. Cabelos de ébano, pele de marfim, olhos verdes, curvas suaves. Eu era muito jovem quando a conheci. Tinha apenas vinte e um anos. Aos dezesseis, ela já dominava as técnicas de flerte empregadas na corte, e sua virtude não passava de uma recordação. Mas eu não era apenas jovem. Era tolo, também. Acreditei na inocência daquela mulher e decidi que ela era dominada e usada pelo estilo corrupto e pecaminoso da corte. Tornei-me seu amante.

        Um lampejo de dor a tomou de assalto. Gytha disse a si mesma que era apenas uma menina de oito anos nesse tempo. A dor desapareceu.

        - Ela correspondia a todos os meus juramentos de amor. - Thayer balançou a cabeça. - E me fez crer que havia uma chance de nos casarmos, embora eu fosse só um cavaleiro sem terra. Vendi minha espada para um conde na esperança de obter recompensas que amenizariam minha pobreza. Ela se comportou com dignidade quando chegou o momento da minha partida. Deu-me a certeza de que realmente me amava.

        - E você voltou para ela?

        - Sim. Seis meses depois, ainda sem terra, mas com uma bolsa cheia de dinheiro. Cheia o bastante para comprar uma pequena propriedade. Mas ela já não estava mais na corte. Levei quinze dias para encontrá-la.

        - Onde ela estava?

        - Em um convento, preparando-se para ter meu filho. Bek tinha dias de vida quando encontrei Elizabeth. Ela ficou sentada ouvindo com muita calma enquanto eu contava sobre como havia obtido meus ganhos e falava sobre amor e casamento. Quando concluí meu relato, ela começou a rir.

        Gytha ouviu a dor e a humilhação na voz dele e o abraçou com mais força. Gostaria de poder apagar de seu coração e de suas lembranças toda essa história de dor.

        Era difícil, mas Thayer conseguiu continuar.

        - Ela disse que nunca havia imaginado que eu fosse tão tolo. Que havia mesmo acreditado em todos os juramentos que ela tinha feito. Lembrei Elizabeth sobre o filho que ela acabava de me dar, a vida que era a prova de seu amor por mim. Ela riu novamente. Disse que tudo que um filho demonstrava era que seus truques para impedir minha semente de germinar não eram perfeitos. Como também não eram perfeitos os métodos que ela havia empregado para arrancar a criança de seu corpo,

        - Ela tentou matar o filho que estava esperando? - Gytha murmurou chocada.

        - Sim, mas Bek foi forte. Mais tarde eu descobri que seu primeiro sopro de vida também poderia ter sido o último. Ao ficar sozinha com o bebê, ela tentou sufocá-lo. Uma das freiras a surpreendeu, e elas ficaram com o menino. Justificaram seus atos alegando que a prova viva de seus pecados a levara à loucura, mas eu sabia que a intenção dela era não deixar provas de sua falta de castidade. Um casamento já estava arranjado. Eu não podia acreditar, não queria acreditar. Mais uma vez, insisti para que ela se casasse comigo. Elizabeth me chamou de tolo por pensar que ela aceitaria desposar um cavaleiro destituído de terras, alguém que precisava vender sua espada para sobreviver, quando podia se casar com o rico e nobre Sevilliers. Um homem de muitas posses. Argumentei que ele deixaria de amá-la rapidamente quando a descobrisse violada. Ela riu. Haveria sangramento na cama, e os Sevilliers acreditariam que ela tinha se casado virgem e casta.

        - E você a deixou e ficou com Bek.

        - Sim, eu fiquei com Bek. Mas não consegui desistir de Elizabeth, e nisso está minha vergonha. Pouco depois de ela se casar com Sevilliers, tornei-me novamente seu amante. Ela sabia usar a cegueira de meu coração. Julguei ser seu único amante. Havia rumores sobre seu comportamento leviano, mas eu insistia em ignorá-los.

        - Mas os rumores eram verdadeiros, não eram?

        - Sim, totalmente verdadeiros. Certa noite, eu descobri a verdade em um jardim. Ela fornicava com um cortesão como uma meretriz qualquer. Sabe, acho que era estúpido o bastante para perdoá-la mesmo depois disso. Foi o que ela disse que finalmente me libertou daquela obsessão. O homem falava como se tivesse me vencido, deitando-se com ela, e era alguém que jamais teria me superado com uma espada. Ela riu, dizendo que eu era seu amante mais persistente e duradouro. E disse que meu estado de perplexidade a divertia. O homem manifestou surpresa por ela se deitar com alguém tão grande, tão vermelho e tão desprovido de atrativos físicos. Ela concordou sobre eu ser bruto e feio, disse que eu merecia todas as piadas e provocações, mas alegou que eu era generosamente dotado. Desde aquele dia, nunca mais me aproximei dela. - Ele suspirou. - Bem, essa é a horrível história. Agora, quero saber o que você tem a dizer sobre Bek.

        Gytha sentiu uma ponta de amargura ao perceber que ele não havia dito que deixara de amar a tal mulher, mas nada comentou. Nesse momento, Thayer precisava de uma resposta com relação ao filho. Precisava ter certeza de que ela não o desprezaria nem repeliria o menino por causa do passado.

        - Bek é seu filho. Pelo pouco que vi, ele é um bom menino. Eu jamais o rejeitaria por conta das circunstâncias de seu nascimento.

        - Sou grato por isso.

        - Não precisa me agradecer. E... você não é feio ou bruto.

        - Não sou bonito, Gytha - ele respondeu, recusando-se a deixar convencer por elogios vazios. - Não sou William. Não sou Robert ou Roger.

        - Eu não disse que é bonito. - Ela o fitou sorrindo. - Porém, se continuar deixando que seu rosto seja espancado, logo poderá se tornar horroroso. - Gytha ficou séria novamente. - Sim, você é grande e vermelho. Mas também é forte e saudável. Tem toda a graça que o destino pode conceder a alguém. E um homem grande, mas proporcional. Nada é muito longo ou curto. Seu rosto não é belo, mas é imponente e inspira confiança. Sua voz e seu jeito de rir são mais do que agradáveis. Quando você sorri, não é para debochar de alguém ou para esconder uma mentira. E adorável. - Ela o tocou na face. - Seus olhos são encantadores. O castanho profundo e suave traz à mente coisas gentis.

        - Olhos encantadores?

        - Sim. Tive essa impressão desde o início. Ele a estreitou entre os braços. O instinto sugeria que ela dizia a verdade, que expressava com exatidão seus sentimentos. Gytha percebera e elogiara seus pontos mais favoráveis. De repente, estava desesperado para possuí-la, mas continha essa necessidade. Depois dos eventos do dia, ela precisava descansar.

        - Chega, mulher. Vai me fazer corar, e já sou suficientemente vermelho. - Ele sorriu ao ouvi-la rir. - Vá dormir, minha pequena. Essa é a cura mais certa para uma dor de cabeça.

        Ela se aninhou contra o marido e sentiu a evidência de seu desejo pressionada contra o ventre.

        - Que dor de cabeça? Rindo, ele a abraçou aceitando o convite implícito.

 

        - Meu primo e aquele porco que o domina pouco se importaram com esse lugar.

        Tentando acompanhar os passos largos do marido, Gytha não respondeu. Sentia a mesma fúria de Thayer e, ao lado dele, percorria o castelo. Toda a beleza que podia ter existido na propriedade estava agora, encoberta pela imundície e pela negligência. O belo e rico castelo de que tanto ouvira falar não era adequado ao porco que percorria livremente seus aposentos.

        Ela lutava contra a raiva. O sentimento era inútil. O dano estava feito. A energia que desperdiçava odiando o causador do estrago seria mais bem empregada se trabalhasse duro para repará-lo.

        - Não consigo acreditar que William deixou a situação chegar a esse ponto - Thayer comentou.

        - Não - Gytha estava tão ofegante que mal conseguia falar. - Ele parecia apreciar a limpeza.

        Ouvindo sua respiração arfante, Thayer parou para pegá-la nos braços. Gytha era tão leve! Os seios fartos se moviam com o esforço para respirar. Era difícil desviar os olhos do rosto corado. Mesmo assim, a raiva ainda o dominava. Ele voltou a andar. Precisava se mover para lidar com a fúria. Sair do castelo não serviu para aliviar a ira. Do lado de fora, a situação era tão ruim quanto no interior.

        - Há tanto trabalho por fazer - ele comentou.

        - Limpeza, basicamente - Gytha respondeu. - Sim, de cada canto. Cada pedra. - Temos braços suficientes para o trabalho?

        Ele beijou-a no rosto.

        - Se não houver, traremos mais gente do vilarejo. Depois de se certificar de que o chão sob uma árvore estava limpo, Thayer sentou-se. Gytha não tentou deixar a proteção do abraço. Em vez disso, ela apenas se acomodou com mais conforto. Thayer já havia notado que ela costumava demonstrar abertamente seu afeto. Essa atitude da esposa despertava nele um sentimento agradável, um sentimento que podia ser perigoso. Essa sensação poderia acabar enfraquecendo a decisão de se manter distante, protegendo assim seu coração já tão castigado. Mas era impossível não retribuir o sorriso caloroso. Não era forte o bastante para resistir a esse tipo de truque de sedução.

        - Está lidando muito bem com tudo isso, minha pequena.

        - Bem, devo confessar que não estou muito satisfeita com a idéia de todo esse trabalho esperando por mim. Porém, todas as tarefas podem ser cumpridas com facilidade, desde que tenhamos braços suficientes. E haverá recompensas por esse esforço. Sob a negligência e a sujeira existe um lugar valioso e belo.

        Nos dias seguintes Gytha enfrentou grandes dificuldades para provar as palavras que dissera. O trabalho era árduo para homens e mulheres igualmente. Ela contratou mais alguns trabalhadores, mas foi cautelosa, lembrando que não devia distribuir seu dinheiro livremente. Desde a praga que devastara a população, sabia que não podia mais contar com o trabalho livre e não remunerado dos servos. O pai havia aprendido rapidamente a dominar a arte da contratação e da negociação de pagamento, e ela agora se sentia feliz por ter se dado ao trabalho de aprender com ele. Thayer deixou tudo em suas mãos, pois nunca antes tivera de se ocupar de tais questões.

        A primeira decisão de Gytha foi limpar tudo. Estava certa de que, concluída essa etapa, poderia ver mais claramente o que precisava ser substituído ou consertado. Por uma semana inteira, ela se dedicou ao trabalho com o mesmo afinco de todos os outros. Quando decidiu que o lugar estava suficientemente limpo, sentia-se exausta.

        No final daquela semana, ao olhar em volta, ela percebeu que estava cansada demais para apreciar o resultado do esforço. Depois de dispensar os trabalhadores que havia contratado, ela jantou e caiu na cama sucumbindo à exaustão. Quando Thayer se deitou, Gytha mudou de posição sem abrir os olhos, incapaz de acordar do sono pesado. Pela primeira vez desde que o conhecera, estava cansada demais até para desejar ao marido uma boa noite de sono.

        Sorrindo, Thayer aninhou-a nos braços e sufocou o desejo. Sabia que a esposa estava muito cansada. Ela murmurou seu nome, mas nem se moveu entre seus braços. Dessa vez ele teria de conter o ímpeto. Nada poderia despertar o interesse de Gytha naquele momento. De repente ele torceu o nariz.

        - O que é esse cheiro?

        - Receio que seja eu - Gytha respondeu sonolenta.

        - Sim, isso eu já havia percebido. O que é?

        - Algum produto que utilizei na limpeza da casa.

        - E horrível! Que produto é esse?

        - Melhor não saber. - Ela se removeu do abraço. - Sei que devia ter tomado banho, mas não consegui. Estou muito cansada. Vou dormir do outro lado da cama.

        - Não vai ajudar muito. - Thayer se levantou.

        Ela tentou chamá-lo de volta, mas, sem forças, adormeceu novamente. Sabia que na manhã seguinte se sentiria mal por tê-lo afastado da cama, mas nesse momento estava exausta demais para se importar. Quando já mergulhava novamente num sono profundo, Thayer arrancou as cobertas de cima dela.

        - O que está fazendo? - Ela tentou se cobrir, mas ele a tomou nos braços. - Quero dormir!

        - Vai tomar um banho.

        - Estou cansada... Vou acabar dormindo e me afogando.

        - Não se preocupe. Eu mesmo vou cuidar de tudo. - Ele a pôs em pé ao lado da tina que enchera pouco antes.

        De repente, Gytha despertou o suficiente para compreender o que estava acontecendo.

        - O cheiro é tão ruim assim?

        - Receio que sim, meu amor. - Ele riu, começando a despi-la.

        Gytha estava cansada demais para ficar embaraçada. Ainda não se sentia confortável exibindo a própria nudez, mas o cansaço era mais do que a modéstia. Fraca, ela se entregou aos cuidados do marido.

        Thayer descobriu que banhá-la era, ao mesmo tempo, frustrante e delicioso. Podia tocá-la e contemplá-la com, liberdade, mas, por causa dessa mesma exaustão que era a causa de toda a liberdade, não poderia saciar a fome que o contato físico despertava. As vezes ficava muito perturbado com a facilidade com que ela despertava sua paixão. Mesmo gloriosa como era, essa ânsia era uma perigosa fraqueza.

        Ele a tocava sem pressa. Suspirando, decidiu que Gytha despertaria essa mesma fraqueza em qualquer homem. Por mais difícil que fosse aceitá-la, tinha de reconhecer que a reação era inevitável e natural. Cada manhã que acordava e a descobria em seus braços, a surpresa se renovava. Pensar nisso pouco colaborava para aliviar o ardor em seu corpo. Já começava a pensar que nunca seria capaz de contê-lo por completo.

        Enquanto a enxugava e vestia com uma camisola limpa, Thayer não conseguiu evitar um sorriso. Ela parecia embriagada. Com gentileza, ele a pôs na cama. Depois de apagar as velas, deitou-se ao lado dela e a tomou nos braços.

        - Ah, muito melhor - murmurou.

        - Era tão ruim assim?

        - Sim. Agora está cheirosa.

        - Obrigada, Thayer. E... - Apesar do cansaço, podia sentir no corpo do marido as vibrações do desejo. - Eu sinto muito. Estou exausta.

        Ele sorriu.

        - Amanhã estará descansada.

        - Sim, estarei. E daí?

        - E daí que posso esperar.

        Ela adormeceu enquanto Thayer ainda ria. Sentindo o perfume doce da esposa, ele decidiu que não a deixaria se esgotar novamente. E não tomava a decisão impelido apenas pelas necessidades do corpo. Pensava também nos riscos à saúde de Gytha. Gostava de ordem e limpeza, mas esse era um preço alto demais a pagar. Pensando bem, a frustração que experimentava nesse momento também era um preço alto demais. Fechando os olhos, ele tentou dormir e ignorar as necessidades não atendidas.

        Gytha espreguiçou-se e, sem pressa, ficou observando o marido que se lavava. Ela decidiu que era muito agradável acordar com beijos ardentes e carícias provocantes.

        A euforia provocada pelo ato de amor não podia ser ofuscada nem mesmo pela idéia de todo o trabalho que a esperava.

        - Gytha, não quero mais que trabalhe desse jeito.

        - Não?

        - Não. Entendo a necessidade de limpar esse lugar. Mas agora já está tudo limpo. O trabalho que ainda está por fazer pode ser feito sem pressa. Sua saúde é mais importante que a organização da casa. Na verdade, se adoecer, só perderá mais tempo.

        - Sim, você está certo. Pensei nisso quando caí na cama ontem à noite. Foi a imundície. Não consegui suportar.

        Ele se aproximou para beijá-la.

        - Eu sei. Mas já está tudo limpo. Só precisa supervisionar o trabalho de manutenção. Cuide de você. E isso é uma ordem - ele concluiu antes de partir.

        Gytha não protestou. Essa era uma ordem a que poderia obedecer com facilidade. Havia muitas coisas sem as quais poderia sobreviver, mas limpeza não era uma delas. Não suportara a sujeira que tinha encontrado na casa. Agora tudo estava limpo. Podia trabalhar menos. Tinha muito tempo para fazer da casa o lugar adorável que ela poderia ser. Daria um passo de cada vez. Em pouco tempo ela começou a se perguntar se mesmo um passo de cada vez não seria demais.

        Olhando para o jardim, Gytha resmungou:

        - E difícil distinguir as ervas do mato.

        - Sim - Margaret concordou. - E evidente que os tolos nunca se incomodaram com medicamentos.

        - Nem com aromas agradáveis.

        - Isso eu já havia notado.

        Gytha arregaçou as mangas e se ajoelhou na terra.

        - Bem, nós não vivemos sem essas coisas. Vamos ver o que é útil no meio dessa confusão. As ervas podem estar enfraquecidas pela falta de cuidado. Porém, creio que ainda há tempo para recuperá-las.

        - Sim. E fazê-las desabrochar. - Margaret imitou a prima. - Creio que posso ver algumas plantas úteis.

        Um silêncio confortável caiu sobre as duas. Gytha gostava de trabalhar no jardim. A tarefa a acalmava, O trabalho era duro, mas gratificante.

        - Gytha? Você está feliz?

        - Sim, estou. Por quê? Teme que eu seja infeliz?

        - Não. Mas você pouco fala sobre o assunto.

        - Não há muito a dizer. Creio que falamos mais nos momentos difíceis.

        - Sim, às vezes. Quer dizer que ama Thayer, então?

        - Ah, essa pergunta...

        - Sim. Exatamente essa pergunta. Você o ama?

        - Não sei ao certo, Margaret. Não é tão fácil saber. Não como eu imaginava que fosse. Só tenho certeza de que gosto muito dele. Mas gostar e desejar equivalem a amar? Creio que é possível gostar muito de alguém sem amar essa pessoa. Entende o que digo?

        Margaret balançou a cabeça.

        - Ele a ama?

        - Quem sabe? Nunca falamos sobre isso. Talvez seja esse silêncio que me mantém na incerteza.

        - Oh. Ele gosta de você. Eu sei.

        - Gosta de mim... sim. Mas esse gostar leva ao amor, ou é simplesmente o sentimento de um homem por alguém com quem ele divide a cama e tem filhos? Entende o que quero dizer? Há muitas respostas para essas questões. Muitas questões. Pode ser amor. Pode ser um sentimento forte e duradouro. Se pudessemos conversar sobre isso, talvez a confusão se esclarecesse. Mas nunca tocamos no assunto.

        - Precisa dar tempo a ele.

        Talvez, mas não sei se Thayer é o tipo de homem com quem eu possa conversar sobre essas coisas. Alguns homens se negam a ter esse tipo de conversa. - E verdade. Mas há outros que falam de amor com facilidade e mentem.

        - Prefiro o silêncio às mentiras. - É mesmo muito melhor. É possível que algo contribua para manter a confusão, algo que, quando esclarecido, poderá revelar as respostas para muitas dúvidas.

        - Bem, há uma coisa. - Ela encolheu os ombros. - Não sei se esse esclarecimento pode resolver tudo. Thayer não confia em mim.

        - Não. Está imaginando coisas.

        - Receio que não. Sou tudo que ele aprendeu a evitar. Há uma evidente desconfiança nele. Posso senti-la, embora não tenha certeza de sua profundidade. Pior, não sei quanto dessa insegurança poderei remover. Trata-se de um obstáculo para tudo que podemos sentir um pelo outro.

        - Certamente é. Gytha, acho que tudo que pode fazer é exatamente o que está fazendo. Se alguma mulher merece confiança, essa mulher é você. Logo ele vai perceber que essa insegurança é tola e desnecessária. O tempo resolverá tudo. Afinal, mesmo casados, vocês ainda são praticamente estranhos. Ambos têm muito a aprender sobre o outro. Esse aprendizado leva tempo, mas traz conhecimento e confiança.

        - Talvez. Proferir votos diante de um sacerdote não significa confiança e amor imediatos. Sou muito afortunada. Nunca minha confiança foi desmerecida. Ele não pode dizer o mesmo. Posso confiar com mais facilidade. - Ela sorriu para Margaret. - E você, o que decidiu sobre meu marido?

        - Não decidi nada. Não completamente. E verdade que ele pode me causar grande incerteza às vezes.

        - Sim, quando extravasa sua fúria - Gytha riu. - Não há nada a temer nisso, prima.

        - Parece muito segura disso.

        - E estou. Confie em mim. Não há nada para temer na ira de Thayer, exceto a possibilidade de ficar surda com seus gritos. Ele brande os punhos, prima. E pode destruir coisas, como fez com a porta do estábulo na semana passada. Mas raramente tocam um ser vivo. Ele conhece bem a própria força e seu temperamento. Sim, ele grita, ameaça... mas nunca vi meu marido ferir alguém.

        - O criado do estábulo teria gostado de saber disso. Deve ter temido pela própria vida.

        - Imagino que sim. Sua negligência quase aleijou o melhor cavalo de Thayer. Muitos outros o teriam punido na hora. Mas o homem continua vivo. E talvez mantenha sua posição de mestre do estábulo, se não cometer outro erro grave.

        - É claro. Vou tentar me lembrar disso na próxima vez em que os gritos de Thayer fizerem tremer as paredes.

        - Isto é orégano? - Gytha franziu a testa para a planta diante dela.

        Margaret estudou as folhas com cuidado.

        - Bem, acho que as três do meio são.

        Gytha começou a remover o mato que as cercava.

        - Creio que seria mais fácil arrancar o orégano e deixar o mato.

        Margaret riu, mas logo ficou séria outra vez.

        - Esperava algumas respostas, algum conhecimento. Talvez algumas revelações.

        - Revelações? Sobre o quê?

        - Amor - Margaret murmurou corando.

        - Oh, não. Roger...

        - Sim, Roger. Eu acho. É difícil ter certeza, não só dos meus sentimentos, mas dos dele. Roger é um mestre na arte do flerte. Receio ver mais em seus sorrisos e em suas belas palavras do que realmente há. Esperava que pudesse me ajudar a esclarecer essa confusão, entender melhor tudo isso.

        - E agora sabe que estou tão confusa quanto você - respondeu Gytha. - Lamento, prima. Tenho pouco a dizer. Nunca vi Roger tentar seduzir as criadas da casa. Ele também não costuma acompanhar os outros homens ao vilarejo.

        - Eu sei disso. Mas receio estar vendo apenas o que quero ver. Se diz que também notou o que eu vi, então, talvez, seja verdade. E se é verdade, talvez ele seja sincero.

        - Quer saber o que eu faria?

        - Sim. Talvez me ajude.

        - Eu confiaria até ter motivo. E agiria de acordo com sua aparente sinceridade. O excesso de insegurança pode causar a perda de tudo que mais desejamos. Sim, é verdade que o sofrimento é uma possível conseqüência do erro na escolha do objeto de nossa confiança, mas a recompensa que se pode obter justifica o risco. Thayer é meu marido, e por isso tenho de suportar a desconfiança dele. Roger não é obrigado a tolerar sua hesitação. Ele é livre para ir aonde quiser, para procurar alguém que não desconfie de sua sinceridade.

        Margaret assentiu devagar.

        - Sim, você tem razão. Espero poder seguir seu conselho e ser corajosa o bastante para assumir o risco.

        As duas voltaram a trabalhar no jardim em silêncio. O calor do sol vespertino aquecia as costas de Gytha, por isso ela teve consciência imediata de sua remoção. Alguém a observava.

        - Temos nuvens? - Margaret perguntou intrigada, erguendo os olhos para o céu claro.

        Gytha olhou por cima do ombro e murmurou:

        - Só uma. Uma grande nuvem vermelha. - Ela sorriu para o marido. - Algum problema, Thayer?

        - Pensei que ia trabalhar menos.

        Era difícil manter a expressão severa. Gytha estava imunda. Não lembrava em nada a dama que era. E sua aparência inocente o encantava.

        - Essa é a única tarefa do dia.

        - Mas não é fácil, pelo que vejo.

        - Não, mas, como pode ver, tenho ajuda.

        - E isso é tudo?

        - Sim, isso é a comida que terá de estar pronta no final do dia. Os homens têm de comer. Não é muito, Thayer. Realmente. E eu gosto disso.

        - Evite apenas o cansaço que a derrubou ontem à noite.

        - Eu prometo. Oh, e Thayer? Pode pedir para alguém trazer um carregamento de esterco?

        - Esterco? Para quê?

        - Para adubar o jardim. As plantas foram muito negligenciadas. Precisam de nutrição.

        - Nutrição? Com esterco? Vou mandar alguém cuidar disso por você - ele decidiu antes de se retirar.

        Gytha o viu se afastar. Ele era mesmo muito atraente. A beleza que não enriquecia seu rosto podia ser facilmente encontrada em seu corpo atlético.

        Margaret riu e corou.

        - O que é agora, Margaret?

        - Oh, nada... E só o jeito como você olha para ele, Gytha. Parece sentir... fome! Sim, fome.

        - E exatamente o que sinto. Meu corpo desperta quando olho para ele.

        - De fato?

        - De fato. Ah, prima, sei que meu marido não é belo, apesar de ter olhos encantadores. Porém, na forma física ele beira a perfeição. Há em seu corpo um poder, uma graça que me fazem pensar num garanhão. Vi essa força desde o início. E claro, agora que sei o que acontece no leito nupcial... Thayer é um bom amante, prima. Não tenho com que comparar o que vivemos, mas... Não, não posso acreditar que outro me daria mais prazer. A noite ou de amanhã.

        Margaret olhou chocada para Gytha, segurando entre os dedos a erva daninha que acabara de arrancar.

        - De manhã? Gytha riu.

        - Sim. Uma donzela recebe poucas informações. Esperava apenas suportar meu dever, talvez não sentir muita dor, ou, caso a sorte me sorrisse, conhecer algum, prazer por agradá-lo. Mas obtive muito mais do que isso. Mais do que posso descrever com palavras.

        - É bom, então? - Margaret perguntou tímida.

        - Sim, e talvez por isso tenhamos tão poucas informações. Com Thayer tudo é tão bom, que começo a pensar que devo sentir amor por ele. Como pode ser diferente? Por outro lado, lembro-me de que ele também aprecia nossa união física. Isso significa que ele me ama? - Ela balançou a cabeça. - Acho que não. A paixão de um homem nem sempre vem do coração. E talvez a da mulher também não. E isso nos remete de volta ao início, à confusão.

        Margaret assentiu.

        - Para você é mais fácil. A paixão não perturba seus sentimentos nem confunde seus pensamentos. - Gytha sorriu para a prima. - E isso. Como eu imaginava. Porém, embora a corteje, seduza e cubra de atenção, como fazem os amantes, Roger não é seu amante. Thayer era um estranho para mim. E de repente nos vimos casados. Sei que é assim que as coisas costumam acontecer, mas começo a questionar se isso não é errado. Não conheço esse homem que me abraça à noite. E há muitos deveres a que temos de nos dedicar durante o dia. Quando teremos tempo para nos conhecermos? Conversamos um pouco à noite, quando estamos abraçados no escuro. Mas a paixão que arde entre nós torna essas conversas breves e pouco elucidativas. Às vezes receio que a paixão se apague. Então, serei forçada a viver com um estranho. Conheceremos o corpo um do outro, talvez tenhamos um filho, mas não nos conheceremos de verdade.

        - Oh, não, Gytha. - Margaret tentou confortá-la tocando-a no braço. - Não. Não consigo imaginar tal ocorrência. Vai descobrir que sabe muito sobre Thayer. Talvez não conheça a profundidade dos sentimentos dele, os temores, esperanças e tudo que há em seu passado, mas sabe alguma coisa, e esse conhecimento só vai crescer com a convivência, porque vocês conversam muito. Eu notei.

        Gytha assentiu.

        - Sim, você está certa. Falamos muito, realmente. E essas conversas trarão o conhecimento que quero ter sobre Thayer. Preciso procurar conhecê-lo, pensar mais em tudo que conversamos e em tudo que vejo, e o tempo é meu aliado nessa busca. O resto virá com maior facilidade. Terei ao menos uma boa idéia do que ainda preciso saber.

        A conversa foi interrompida pela chegada de um homem com o esterco que Gytha havia solicitado. Ela prometeu a si mesma que não esqueceria o que ela e Margaret haviam discutido. A conversa havia sido importante. Pensaria também no que já tinha aprendido sobre Thayer e no que ainda precisava saber.

        Contudo, ela já se preparava para ir dormir quando encontrou tempo para cumprir essa promessa. Deitou-se e ainda teria alguns minutos de solidão até Thayer ir se juntar a ela. Pretendia fazer bom uso desse tempo. Deitada, ela cruzou os braços sob a nuca. Examinaria primeiro o óbvio, aquilo que tinha certeza.

        Thayer era forte, um guerreiro habilidoso e vencedor. Esse era um ponto positivo. Significava que ela e os filhos estariam sempre protegidos.

        A honra também fazia parte de seu caráter. Ele era honrado e justo. O dinheiro não havia sido o único motivo por trás de suas lutas. E ele era gentil. Vira essa gentileza na maneira como ele lidava com outras pessoas, em como a tratava. Deus dera a Thayer um corpo forte e grande, mas ele nunca abusara desse evidente poder físico.

        A chegada repentina do marido interrompeu sua reflexão. Mas ela não se ressentiu, porque sentia que estava progredindo, construindo uma compreensão dos próprios sentimentos. Retomaria a contemplação em outra oportunidade, porque agora queria apenas estar com Thayer.

        Ele se despiu e começou a se lavar.

        - Parece que cumpriu sua promessa de ir mais devagar com o trabalho - ele comentou.

        - Sim, eu cumpri.

        - E bom ouvir isso.

        - Fui muito obediente.

        - E é muito ardilosa, também. - Ele sorriu.

        - E você? Trabalhou muito?

        Mais um dom favorável: senso de humor. Ele também gostava de provocá-la com brincadeiras e piadas debochadas. Gytha apreciava tais características.

        - Trabalhei muito - ele respondeu. - Na verdade, trabalhei o bastante para planejar nosso próximo movimento. Logo poderemos viajar para as terras que você herdou com nosso casamento.

        - Ouvi dizer que essa área na fronteira pode ser perigosa e problemática.

        - Sim, ouvi a mesma coisa. - Ele apagou todas as velas, exceto a que ardia ao lado da cama.

        - Acha que isso é verdade?

        Thayer deitou-se e a tomou nos braços.

        - Nem sempre essas histórias são verdadeiras. Não sei ao certo o que nos espera, e não saberei até chegarmos lá. Preciso ir conhecer o lugar. Talvez você deva ficar aqui enquanto eu faço o reconhecimento.

        - Prefiro ir com você.

        - Vai discutir com seu marido, então?

        - Bem... não exatamente.

        - Não exatamente? Que nome daria a essa atitude, então?

        - Conversar sobre o assunto?

        - Poupe sua retórica, pequena - ele disse, rindo. - Também gostaria de ter sua companhia. Prefiro assegurar sua segurança pessoalmente, garantir seu conforto e saber sempre que está bem.

        - Meu pai nunca mencionou todos esses problemas em Riverfall. Talvez eles não existam.

        -Hum... Talvez.

        Gytha sabia que a atenção do marido não estava mais na conversa. A maneira como ele acariciava suas costas era prova disso. Ela sorriu e o abraçou. Os corpos nus se encontraram.

        - Cansou de conversar, Thayer? - ela murmurou enquanto o beijava na orelha.

        - Sim. É bom saber que você percebeu.

        - Uma boa esposa deve saber a hora de se calar.

        - Falaremos mais tarde. Agora, meu interesse está voltado para outras questões.

        - Eu já notei. Pode me dizer que questões são essas? Thayer se deitou sobre ela.

        - Prefiro mostrar, minha pequena.

        A gargalhada debochada foi sufocada por um beijo. Como sempre, Gytha se deixou dominar pela paixão. Só mais tarde, saciada e feliz nos braços do marido, ela se perguntou por que ainda tentava entender o que sentia. Qualquer que fosse o significado de seus sentimentos, sabia que eram positivos e que não precisava se preocupar com eles.

        Ela olhou para o homem deitado a seu lado. Gostaria de saber o que ia na mente e no coração dele. Thayer não dava pistas ou indicações. Sabia que nunca teria total certeza de seu julgamento se o baseasse apenas nas ações.

        Ainda levava gravada na mente a imagem do rosto de Thayer no momento em que ele fora informado de que se casariam. Essa era, em grande parte, a razão da apreensão que a atormentava, das dúvidas que em alguns momentos dominavam-lhe a mente. Teria sido melhor se não tivesse visto aquela expressão. Algo no casamento com ela aborrecera Thayer, apesar da paixão que ele demonstrava, apesar de como a tratava. De algum jeito, teria de resolver o problema. Só esperava que a descoberta não fosse dolorosa demais e que o problema não fosse de muito difícil solução.

        - Riverfall fica depois da próxima colina.

        Gytha suspirou aliviada ao ouvir o anúncio de Thayer. Estava mais do que pronta para concluir a jornada. Se fechavam a carruagem o calor era insuportável, e para mantê-la aberta tinham de enfrentar a poeira. Eles optaram pela poeira, e agora ela tinha a sensação de estar carregando nas roupas toda a terra da estrada. Olhando na direção indicada, ela mal conseguia ver a colina mencionada por Thayer. Olhou para o marido, que cavalgava do lado de fora do veículo.

        - A colina está muito longe? - perguntou.

        - Um dia de cavalgada. Acamparemos logo ali na frente. Há uma pequena clareira e água para os cavalos.

        Ela o viu se afastar da carruagem e lamentou não ter nada para arremessar contra suas costas largas. O anúncio havia sugerido que o fim da viagem não estava próximo. Mais um dia? Esperava ter água suficiente para um banho, pelo menos.

        Quando eles pararam, a noite já caía sobre a paisagem. Gytha falou o mínimo possível até a tenda estar montada e pronta.

        Então, com a ajuda de Bek, ela conseguiu tomar um banho. Livre da poeira e do suor, sentia-se muito melhor. Não foi surpresa para ela quando, assim que se retirou da tina, Margaret correu a tomar seu lugar. Vestida, com os cabelos presos por uma fita, ela saiu para ir procurar pelo marido. Ele estava sentado perto de uma fogueira em companhia de Roger, Merlion, Torr e Revê.

        Thayer a observou intrigado quando ela se sentou a seu lado. Notara como o humor da esposa havia desaparecido a cada quilômetro de terra percorrido. Qualquer pessoa teria se ressentido, sabia disso. Mas o silêncio de Gytha podia ser conseqüência de outros aborrecimentos. Talvez ela já tivesse se cansado de sua presença. A novidade do casamento já se esgotara. Talvez não encontrasse mais nada que cativasse seu interesse, agora que havia saciado a curiosidade inicial. Tentando se livrar da apreensão que considerava uma perigosa fraqueza, ele disse a si mesmo que tinha mais com que se ocupar. Não podia perder tempo com o humor instável de uma mulher.

        - Nunca pensei que houvesse tanta poeira na Inglaterra - Gytha comentou. - E acho que cada grão dela acabou grudado em mim.

        - A região é seca - respondeu Thayer. - Até os homens menos inclinados aos hábitos de limpeza sentiram necessidade de tomar um banho.

        - E verdade - confirmou Roger. - Todos passaram pelo rio.

        - Sim, somos muito fortes! Não precisamos aquecer a água do nosso banho - Thayer acrescentou rindo.

        - Bem, alguns diriam que é loucura pular na água fria quando há um jeito de aquecê-la antes, mas eu nunca diria tal coisa de meu marido - ela respondeu, tomando um gole do vinho que era partilhado por todos. E riu.

        - Não é claro que não. - Thayer também riu e tocou os cabelos úmidos da esposa. - Não seria apropriado.

        - Não. Nem mesmo depois de ter ouvido os gritos dos homens fortes e corajosos no riacho gelado.

        - Amanhã, a essa mesma hora, estaremos em Riverfall - Thayer prometeu.

        - Os que nos antecedem conseguiram ver o lugar?

        - Só um deles conseguiu. E disse que a construção é sólida e parece ser boa. Construída para servir de defesa e abrigo.

        - E bom saber disso, mas não era esse tipo de conhecimento que eu buscava.

        - Eu sei que não, mas foi só o que ele disse. Não deve ter se aproximado para ver mais do que isso.

        - Oh? Ele não informou ninguém sobre nossa chegada?

        - Não. Mandei outro homem para cuidar disso. Ele vai ficar lá para cuidar dos preparativos.

        - Lamento não ter questionado meu pai sobre esse lugar.

        - Não pode ser pior do que Saitun Manor.

        - Por favor, espero que não!

        A conversa seguia animada, mas Thayer se perdeu em pensamentos. Desde a primeira noite de viagem, fizera pouco mais do que dormir ao lado de Gytha. Cansada, ela já havia adormecido quando conseguia ir se juntar a ela na cama. O banho a refrescara. A notícia de que a viagem chegava ao fim também servia para reanimá-la. Precisava levá-la para a tenda antes que a perdesse novamente para a exaustão.

        Ele já se levantava e segurava o braço de Gytha, disposto a tirá-la dali, quando um grito de alarme soou entre as árvores mais próximas da clareira. Thayer conduzia a esposa para um abrigo seguro, quando um dos vigias deixados por ele na floresta surgiu no acampamento. O homem cambaleava. Ensangüentado e fraco, o homem mal conseguiu emitir novo alerta antes de o ataque começar.

        Gytha estava aturdida. Entendia o que acontecia, mas hesitava em buscar a proteção da tenda. Queria ajudar, atuar na luta contra os atacantes, mas não conseguia pensar em nada que pudesse fazer. Thayer olhou para ela. Enquanto gritava ordens para seus comandados, ele também conseguiu comandá-la. Apontando o dedo para a tenda, deixou clara a ordem silenciosa. Gytha obedeceu e correu para o abrigo.

        Assim que ela passou pela abertura, a tenda foi cercada por pajens e homens armados. Dessa vez Thayer não correria riscos. Não deixaria espaço para um dos atacantes se aproximar sem ser visto. Homens armados guardavam a entrada.

        - O que está acontecendo? - Edna gritou agarrando-se a Gytha.

        Aproximando-se da prima, Margaret sussurrou:

        - É outro ataque?

        Gytha se sentia confortável na presença das duas, apesar do medo.

        - Sim. Outro.

        - Houve um alerta, ou os homens foram surpreendidos? - Margaret perguntou.

        - Não foi uma surpresa. Não completamente. Vi homens surgindo do bosque e vi também os homens de Thayer correndo para enfrentá-los.

        - Ladrões? Viemos acampar em um covil de ladrões?

        - Creio que não, Edna. São muitos e estão bem armados.

        - Robert e o tio novamente? - Margaret ainda estava ao lado da prima.

        - Talvez. Não ouso afirmar. Afinal, estamos em uma área de conflitos.

        Elas permaneceram em silêncio, atentas aos sons da batalha do lado de fora da tenda. Gytha temia por Thayer. Era estranho que nada tivesse sentido na primeira luta, quando ele defendera sua vida. Seria algum tipo de premonição? Ela baniu da mente o pensamento assustador. Se não se preocupara na primeira vez, era porque não tinha pleno conhecimento do custo de uma batalha, porque ainda não tinha sentimentos profundos pelo marido. Queria se convencer disso e orava por ele e pelo fim da batalha.

        Thayer lutava e praguejava com o mesmo ardor. Sabia que se fracassasse, Gytha sofreria as conseqüências nas mãos dos atacantes.

        Foi quando os invasores começaram a se retirar e a batalha perdeu força, que Thayer se viu em maior perigo. Ao retirar a espada do corpo de um homem caído, ele girou sobre os calcanhares e se viu diante de dois grandes oponentes. Eles não pareciam afetados pela luta. De sua parte, sentia-se cansado e desgastado, bem próximo da exaustão.

        - Olhem em volta, cães. Sua matilha já começa a enfiar o rabo entre as pernas. Melhor se juntarem aos outros. - Ele empunhou também a adaga, aumentando seu poder letal.

        - Nesse caso, vamos ter de mandar você para o inferno mais cedo do que planejávamos - gritou um dos atacantes, investindo contra Thayer.

        Ele se esquivou facilmente do golpe, mas evitar o segundo oponente não foi tão fácil, especialmente porque ele atacava ao mesmo tempo. Pouco habilidosos, eles uniam forças para tentar superá-lo. Roger, que normalmente protegia sua retaguarda, estava afastado da cena. Teria de contar com a sorte para escapar ileso. Não podia se descuidar das próprias costas. Precisava manter os dois em seu campo de visão. Concentração era a palavra-chave. O sorriso que via nos lábios dos inimigos confirmava suas suspeitas; eles tinham consciência de suas inúmeras desvantagens. Por um tempo, ele os manteve afastados sem muitos problemas. Enquanto testavam sua força lendária e sua reputação de lutador invencível, eles também estudavam sua maneira de lutar. Logo decidiriam qual era a melhor forma de ataque. Precisava atingi-los antes que a dupla chegasse a esse perigoso consenso. Era sua única chance de superá-los. Ele investiu contra um dos inimigos e se virou depressa, encontrando o outro despreparado e aberto para o golpe. Sua espada perfurou o corpo do adversário. A vítima caiu; ele removeu a lâmina do corpo inerte e se preparou para prosseguir na aguerrida luta. O adversário agiu depressa. Thayer também foi veloz, o suficiente para impedir que o ataque fosse fatal, mas não o bastante para evitar o profundo corte em seu braço. Cambaleando, ele tentou se preparar para um novo ataque, mas a força se esvaía do braço ferido, justamente aquele que empunhava a espada. Lutou contra o sentimento de ínevitabilidade. Sabia que aceitar a derrota era a maneira mais certa de promovê-la.

        Um sorriso frio bailava no rosto do inimigo. Thayer sabia que sua fraqueza havia sido notada. Rangendo os dentes contra a dor, ele ergueu o braço para se defender de um novo golpe. O impacto foi pura agonia. Era difícil lutar contra a escuridão da inconsciência. Numa tentativa que sabia ser inútil e quase patética, ele levantou a espada para tentar conter mais um golpe.

        A espada inimiga não chegou a entrar em contato com ele, porque foi interceptada por uma terceira lâmina. Ao reconhecer Roger e ver a fúria assassina em seus olhos, Thayer cedeu à fraqueza. Praguejando em voz fraca, caiu de joelhos e viu o amigo pôr fim à vida daquele que ousara ameaçá-lo. A batalha chegava ao fim. Os atacantes se retiravam, correndo como coelhos assustados na tentativa de salvar a própria vida.

        Roger se abaixou ao lado de Thayer e forçou um sorriso, mas os olhos revelavam preocupação.

        - Está tão ruim assim?

        - Não. O sangramento é intenso o bastante para me deixar sem forças. Vencemos?

        - E o que parece. Mas ainda não sei dizer quanto essa vitória nos custou.

        - Espero que não tenha sido um preço alto demais.

        - Não. Pode parecer terrível à primeira vista, mas não foi nada sério.

        Roger ajudou-o a se levantar. Juntos, viram Gytha, Margaret e Edna saírem cautelosas da tenda.

        Atraída pelo silêncio que seguia o estrondo da batalha, Gytha olhava em volta. Mais uma vez, um aviso soara a tempo de salvá-los do pior, mas era fácil perceber que esse ataque custara mais ao grupo do que os anteriores. Ela não perdeu tempo pensando nisso. Sua maior preocupação era encontrar o marido. Quando finalmente o viu, sufocou um grito. Thayer estava coberto de sangue e se mantinha em pé com a ajuda de Roger. Ela correu para o marido seguida por Margaret e Edna. Desesperada, agarrou-se à túnica ensangüentada.

        - Está ferido! - Sabia que afirmava o óbvio, mas estava apavorada.

        - E só um arranhão.

        - Um arranhão? Está coberto de sangue!

        - Não é só meu. E nós vencemos a batalha. Acabou. Acalme-se.

        - Acalmar-me? Está aí sangrando como um porco e quer que eu tenha calma? Roger, Merlion, levem-no para a tenda. Água. Preciso de água. E bandagens - ela concluiu, correndo na frente para preparar a tenda.

        Margaret segurou o braço de Edna, impedindo-a de seguir Gytha, e olhou para os três homens.

        - Se seu ferimento não é mesmo grave, milorde, talvez Edna e eu possamos ajudar os outros feridos.

        - Sim, podem ir - Thayer respondeu. - Merlion, Roger pode me levar até a tenda. Leve as mulheres até onde estão os feridos.

        Enquanto os outros se afastavam, Thayer murmurou para Roger:

        - O que acontece com Gytha? Ela manteve a calma na última batalha, quando quase foi raptada.

        - Daquela vez o marido dela não foi ferido.

        - Talvez tenham sido muitas batalhas em pouco tempo. Ela pode temer viver cercada delas.

        Roger suspirou irritado.

        - E claro. Ela não pode ter ficado nervosa só porque o encontrou ensopado em sangue.

        - O ferimento não é tão grave.

        Gytha se sentia mais calma, mas a tranqüilidade só perdurou até Roger e Thayer entrarem na tenda. Ver novamente o marido pálido e ensangüentado reacendeu seu pavor. Trêmula, ela estendeu um lençol sobre a cama antes de Thayer se deitar nela. Roger a ajudou a despi-lo, deixando-o apenas com a calça. Ela limpava o ferimento quando Merlion entrou. Era difícil conter o impulso de mandar todos saírem dali. Respirando fundo, se concentrou no ferimento e tentou não desmaiar diante da visão assustadora do corte profundo. Enquanto trabalhava, ouvia a conversa entre os três homens.

        - As mulheres foram cuidar dos feridos? - Thayer perguntou a Merlion, tentando ignorar a dor.

        - Sim. Talvez até salvem aquele que julguei condenado à morte. O homem que deu o alarme e salvou todos nós. Espero que ele não pague com a vida pelo ato de coragem. Algum prisioneiro?

        - Não. E não se aborreça com isso. O morto revelou tudo que precisávamos saber.

        - Mas como?

        - Lutei contra um deles no último ataque.

        - Tem certeza disso?

        - Ninguém esquece um rosto feio como aquele.

        - Então - Roger murmurou -, Robert e o tio não deram ouvidos ao nosso aviso.

        - Parece que não. Aquele primeiro ataque não foi só uma reação à raiva - Thayer respondeu.

        - Não. - Roger suspirou, sabendo que a batalha contra os parentes incomodaria Thayer. - Isso é guerra. Robert e o tio pretendem ir até o fim nisso.

        A notícia só aumentava a inquietação de Gytha. Sabia que estava perdendo a batalha contra o medo e todas as outras emoções que a afligiam. Ela cobriu o ferimento com uma bandagem e continuou ouvindo a conversa, tomando conhecimento dos planos dos homens para deter Robert e o tio. O que ouvia só aumentava sua aflição. Foi um alívio ver Roger e Merlion partirem.

        Ao terminar, foi lavar as mãos e ficou olhando para elas posicionadas sobre a bacia com água. Ver o sangue do marido acabou com o pouco controle que ainda lhe restava. Ela mergulhou as mãos na bacia e as esfregou com desespero enquanto chorava. Sabia que não poderia se conter, mas se esforçou para manter o pranto silencioso. Não queria que Thayer a julgasse fraca e inútil, incapaz até de cuidar de seus ferimentos.

        - Gytha - Thayer chamou preocupado, estranhando o vigor com que ela esfregava as mãos.

        A resposta foi o silêncio. Intrigado, ele a viu secar as mãos e guardar tudo que havia usado para fazer o curativo. Seus movimentos não tinham a graça habitual. Era evidente que ela estava chorando, ou não faria tantos ruídos abafados. O comportamento da esposa o confundia. Ela parecia muito abalada por conta de seu ferimento.

        - Gytha.

        Ela se virou e ficou apavorada. Thayer estava quase em pé. Esquecendo a intenção de esconder o pranto, ela correu a ampará-lo.

        - O que está fazendo?

        Thayer tocou-a no rosto e ignorou a dor na ferida.

        - Esteve chorando. Não... Está chorando.

        - Não estou. Deite-se. Esqueceu que está ferido? Ele se deixou acomodar novamente na cama, mas manteve o olhar fixo no rosto marcado pelas lágrimas. - Parece estar mais preocupada que eu com esse arranhão.

        - Arranhão? Chama isso de arranhão? Um arranhão não precisa ser costurado. Também não ensopam uma túnica de sangue. E não acabam com a força de um homem a ponto de ele precisar de ajuda para chegar a sua cama.

        - Só fiquei fraco um pouco. - Ele conteve um sorriso.

        - E nesse momento podia ter a cabeça arrancada do pescoço. - A idéia a fez tremer de pavor.

        - Gytha, apague as velas. Todas, exceto a mais próxima da cama.

        - O quê?

        - Apague as velas. Isso mesmo - ele a incentivou ao ver que sua ordem era acatada. - Agora, dispa-se e venha se deitar a meu lado.

        Ela obedeceu ao comando sem esconder sua irritação, movendo-se com enorme cuidado ao se aproximar dele. Quando o braço saudável a envolveu, ela quase se atirou contra Thayer. Agarrando-o com desespero, buscou conforto em seu calor, na força de seu corpo, nos batimentos fortes de seu coração. E prometeu a si mesma que aprenderia a se controlar no futuro.

        - Já viu minhas cicatrizes e sabe que posso levar um ou outro golpe de vez em quando - ele murmurou.

        - Sim. Eu sei. - Mas nunca havia pensado no sangue, dor ou no perigo que produzira cada uma daquelas cicatrizes.

        - Sei que perdi muito sangue e fiquei um pouco fraco, mas o ferimento não é grave.

        - Também sei disso. - E sabia que os pontos eram necessários apenas para reduzir a extensão da marca.

        Ele a beijou na testa.

        - Então, pode aplacar seus temores.

        - Não. Minhas lágrimas e essa atitude tola de mulher fraca... sim. Mas não os meus medos. Robert e aquele verme que ele chama de tio querem pôr fim a sua vida. Como disse Roger, isso é guerra. Eles vão tentar outra vez.

        - Estou preparado. Sofremos um ataque, mas agora entendo que foi mais que isso. Foi uma tentativa de assassinato.

        - Seu assassinato.

        - Sim. Eles afastaram Roger de seu posto às minhas costas, deixando-me diante de dois inimigos e sem nenhuma ajuda. Isso não pode voltar a acontecer. Na próxima vez, estaremos preparados para esse tipo de plano. Sobrevivi a batalhas com homens mais fortes e mais habilidosos.

        - Eu sei. Perdoe minha fraqueza. Não voltarei a desapontá-lo. - Sentia-se embaraçada.

        - Você não me desapontou. Mesmo abalada, cuidou do meu ferimento e se manteve firme no momento de necessidade. Preciso me empenhar para protegê-la desse tipo de violência no futuro.

        - Não foi a violência. Não foi a batalha.

        - Bem, lembro-me de que se manteve mais firme naquele primeiro ataque.

        Thayer sentiu uma ponta de esperança aquecendo seu peito. Se não havia sido a batalha, devia ter sido o ferimento. E se ela se abalara tanto com isso, devia sentir alguma coisa mais séria e profunda por ele.

        - Sim, é verdade. É muito estranho. Não senti medo nem me preocupei com a possibilidade de você ser ferido naquela ocasião. Dessa vez não tive tanta confiança. No momento em que o ataque ocorreu, temi por sua vida. Busquei razões para essa mudança. Não quero essa capacidade de... bem, de prever o que vai acontecer. Agarrei-me a razões tolas, sem fundamento. E acho que ver concretizado um temor que eu preferia poder ignorar só alimentou minha tolice.

        - Esses sentimentos não são tão raros quanto pode imaginar. Homens que se vêem na iminência de uma batalha freqüentemente sentem o próprio destino ou o daqueles mais próximos.

        - Espero não ser amaldiçoada com esse dom. Já é terrível você ter de lutar.

        - Um homem...

        - Eu sei. Sei que o mundo é assim. Sei que é necessário. Na verdade, aprendi a lidar com isso há muito tempo, porque meu pai e meus irmãos sempre partiam para o campo de batalha. Mas sentir qual será seu destino todas as vezes? Não, espero não ter de sofrer essa sina.

        - Talvez tenha sentido que o ataque era perpetrado por Robert, de seu desejo de me matar - ele murmurou.

        - Não acredito que Robert deseja mesmo matar você. O tio dele...

        - Os dois são um só.

        - Sim. Talvez tenha razão. Quando o ataque ocorreu, tive de reconhecer esse pressentimento que havia tentado ignorar. Oh, Thayer, não quero ficar viúva!

        - Nem eu pretendo fazer de você uma viúva.

        Ela riu. Era o momento perfeito para expressar o que transbordava de seu coração, mas hesitou. Era um conhecimento ainda muito novo, assustador. A certeza viera ao ver o marido fraco e ensangüentado. Queria saborear por um momento como era estar profundamente apaixonada por Thayer. E também queria manter esse sentimento puro, imaculado, livre de uma possível ausência de resposta ou de uma reação insatisfatória do marido.

        Ela suspirou ao sentir a mão deslizando por suas costas.

        - Seu ferimento...

        - Não estou aleijado. - Pelo contrário. Sentia-se vivo e saudável, um homem pleno de vida e vigor.

        Gytha correspondia ao sentimento, a julgar por seus gemidos abafados.

        - Devia descansar.

        - A batalha aqueceu meu sangue, doce Gytha, e você o efervesceu.

        - Tem certeza de que ainda sobrou sangue suficiente para ser fervilhado?

        Ele a apertou contra o corpo, pressionando-a contra a evidência de seu desejo.

        - Mais do que suficiente. E você? Está cansada demais para pôr à prova minha afirmação?

        Ela sorriu.

        - Acho que pode me convencer, se procurar se empenhar.

        Thayer beijou-a. Ele prolongou o beijo e tornou-o mais profundo e sensual, despertando seus sentidos. Era delicioso perceber Gytha responder com ferocidade crescente. Senti-la friccionando o corpo contra o dele destruiu o pouco controle que ainda tinha sobre os próprios impulsos. Sabia que ela estava preparada para recebê-lo.

        - Entregue-se a seu marido, minha doce Gytha. Corando, ela o montou e se entregou ao desejo.

        - Não sei se entendo o que espera de mim.

        - Quero que me conduza nessa dança. Mova-se sobre mim, querida.

        Ela atendeu ao pedido. A paixão ganhava força e tornava-se selvagem. Gytha era cuidadosa, pois temia machucá-lo ainda mais. O gemido rouco de Thayer indicou que a sensação predominante era de prazer, não de dor. A união entre os corpos era ainda mais perfeita que antes.

        Ela se movia. As sensações roubavam-lhe o fôlego e davam mais velocidade aos movimentos. As mãos do marido em seu quadril a impeliam a prosseguir.

        Thayer mantinha os olhos abertos, pois queria acompanhar a dança de expressões no rosto de Gytha. Vê-la alimentava seu prazer. Sentia uma alegria que nenhuma palavra poderia descrever. Ele ergueu as mãos para segurar os seios tentadores, e o contato a fez acelerar ainda mais o ritmo. Sabia que logo chegariam ao clímax.

        Ele a puxou para um beijo feroz. O jeito como ela reproduzia com a língua os movimentos do corpo o levava à loucura. O grito de prazer explodiu em sua boca e ela o seguiu na explosão sensual e incontrolável.

        Vários minutos transcorreram antes de Thayer reunir a força necessária para se mover ou fazer qualquer coisa além de respirar e segurá-la contra o peito. Gytha adormeceu a seu lado, aninhada em seu peito. A satisfação podia ser ouvida na respiração profunda, podia ser sentida no corpo quente e relaxado. Como sempre, observá-la 0 surpreendia e fascinava. Não podia deixar de pensar em como uma beleza tão delicada encontrava prazer com Um homem como ele. Envergonhava-se com a admissão, mas sabia que havia uma razão para a necessidade de observá-la enquanto faziam amor. Precisava ter certeza de que tudo não passava de uma encenação, de que o prazer que ela parecia sentir em seus braços era genuíno.

        - Como vai o ferimento?- Gytha perguntou sonolenta e sem abrir os olhos.

        - Não sinto dor - ele mentiu. O desconforto era um preço pequeno a pagar pelo que acabara de viver.

        Ela riu e balançou a cabeça. Sabia que o marido não dizia a verdade, mas escolheu não desmenti-lo. Se havia existido alguma dor, não devia ter sido muito intensa, pois não havia fraqueza no abraço forte nem agonia na voz. Ceder ao desejo certamente não causara grande dano ao marido.

 

        - Ah, vejo que ainda está forte e saudável, Janet - Gytha provocou ao cumprimentar a mulher ao lado do galpão da lavanderia.

        - E cedo, milady. Ainda posso pegar uma friagem. Gytha revirou os olhos num gesto de exasperação, mas também riu. Riverfall havia sido uma agradável surpresa. Era preciso pouco trabalho para tornar o lugar habitável, embora tudo ali fosse simples. A simplicidade não a incomodava. Seria agradável dar os próprios toques a casa.

        Porém, os trabalhadores e o povo que vivia em torno de Riverfall precisava de boas noções de higiene pessoal. Ela ignorara os uivos, pusera de lado os temores de contrair uma friagem fatal por causa de um banho, e insistira para que todos seguissem as mesmas regras de higiene que ela adotava. Muitas das queixas e das apreensões haviam desaparecido com o passar do tempo, e ninguém morrera por ter perdido a grossa camada de sujeira sobre a pele. Alguns, como Janet, se sentiam à vontade para brincar e fazer piadas. Gytha esperava não encontrar grande resistência quando, dentro de alguns dias, anunciasse a regra do banho diário e da limpeza completa da casa uma vez por semana.

        - Bem, em dois dias tentaremos novamente - ela provocou Janet enquanto inspecionava o resultado da limpeza. - Vejo que o jovem Bek tem pulado na cama com os pés sujos de barro. Os lençóis revelam as travessuras.

        Rindo enquanto esfregava o lençol imundo, Janet concordou:

        - Sim, ele é um garoto cheio de vida e energia.

        - Falarei com ele pessoalmente sobre os lençóis. Bek precisa aprender a poupar o trabalho alheio sempre que for possível. Se a conversa for insuficiente, farei com que ele lave os próprios lençóis. Garanto que essa será uma lição inesquecível. - Gytha sorriu ao ouvir a gargalhada rouca de Janet, depois seguiu em sua ronda.

        No pouco tempo que estava em Riverfall, encontrara poucas coisas que precisavam ser corrigidas. As pessoas eram negligentes com a higiene pessoal, mas não havia mais faltas que pudesse criticar. Todos trabalhavam com empenho e competência. Talvez isso contribuísse para o profundo sentimento de adequação que experimentava naquela terra. Se pudesse escolher sua residência, certamente optaria por Riverfall, mas não sabia se isso seria conveniente a Thayer. Afinal, Saitun Manor era a propriedade da família dele.

        Percebendo a presença de Bek, ela se encaminhou para onde estava o menino. Parado ao lado do pai, ele assistia ao treino dos homens com suas espadas. A presença de Thayer ao lado do menino a fez hesitar. Bek era filho dele... não dela. Balançando a cabeça, ela seguiu em frente. Formavam uma família. Para que tudo desse certo, precisava tratar Bek como trataria os próprios filhos. Só esperava que o marido compreendesse e concordasse, porque, caso contrário, a situação poderia se tornar dolorosamente complicada.

        Thayer sorriu ao vê-la se aproximar.

        - Encontramos lutadores habilidosos aqui. Seu pai administrou bem a propriedade.

        - Ele mandou para cá os homens que pareciam mais... bem, entediados com a relativa paz de onde morávamos.

        - E fez uma boa escolha. Aqui eles têm com que se ocupar, mas não tanto quanto faziam imaginar os rumores que ouvimos.

        - Esse é um grande consolo - ela respondeu sorrindo para o marido.

        - Precisa de alguma coisa? - Thayer perguntou ao notar sua expressão séria.

        - Na verdade, vim falar com Bek. - Ela olhou para o menino, que sorriu intrigado.

        - Quer minha ajuda para alguma coisa? - ele perguntou.

        - De certa forma, sim. Notei que esquece de limpar os pés antes de subir na sua cama. Francamente, seus lençóis dão a impressão de que você pulou na cama com os pés sujos de barro.

        Bek franziu a testa e encolheu os ombros.

        - O lençol é lavado. As mulheres cuidam disso.

        - Sim, aí está o problema. Você os deixa tão sujos, que as mulheres levam muito mais tempo lavando seus lençóis do que cuidando do restante da roupa.

        - O trabalho delas é esse. Limpar as coisas que sujamos.

        - Eu sei, mas isso não quer dizer que devemos ser relaxados para tornar o trabalho mais difícil. Quero que limpe os pés antes de ir para a cama, e quero também que pense um pouco mais nas pessoas que têm que limpar o que você suja. - Ela notou o silêncio prolongado do menino. - Estamos entendidos, Bek?

        - Sim. - Ele se afastou. Gytha olhou para Thayer.

        - Não queria que ele se zangasse.

        Rindo, Thayer passou um braço sobre seus ombros e beijou-lhe a testa.

        - Receio que ele tenha o temperamento do pai. Como é ainda muito jovem, não aprendeu a dominá-lo.

        Gytha sorriu, depois o observou por um momento enquanto pensava.

        - Entende que tive de censurá-lo?

        - Sim. Ele precisa aprender a pensar nos outros. E mesmo que não concordasse com você, jamais diria tal coisa na frente do menino. Falaremos sobre isso mais tarde, está bem? O que penso é que Bek deve aprender a respeitá-la como me respeita.

        Gytha o abraçou com força.

        - Obrigada, Thayer.

        - Por nada, embora eu nem saiba o que fiz.

        Ainda rindo, ela voltou para o interior do castelo. Thayer aceitava sua autoridade sobre o filho. Duvidava de que ele pudesse entender o que isso realmente significava para ela. Agora, só precisava pensar em como faria Bek aceitar essa mesma autoridade.

        Com o passar do dia e a continuidade da expressão carrancuda no rosto do garoto, ela deduziu que teria de enfrentar uma batalha. Essa suspeita se confirmou na manhã seguinte, para sua enorme decepção. Ao deixar o salão onde tomara o desjejum, ela viu Janet descendo a escada carregando vários lençóis. Mesmo enrolados como estavam, era possível ver marcas escuras neles.

        - Bek voltou a pisar nos lençóis com os pés sujos?

        - Sim, milady.

        - Por Deus - Gytha gemeu depois de examiná-los. - Não vai lavar esses lençóis, Janet. Prepare a tina, mas espere por mim no galpão. Vou buscar Bek. Como soube que teriam de ser lavados novamente?

        - O menino me chamou e ordenou a troca e a lavagem dos lençóis de sua cama.

        - Que arrogância!

        Gytha dispensou a criada e suspirou. Pelo menos o menino a enfrentava abertamente, em vez de tramar por suas costas. Quando se virou para ir procurar o garoto, ela se viu frente a frente com Thayer. Ele a observava na porta do salão.

        - Problemas? - perguntou.

        - Um pouco. Sabe onde está Bek?

        Levando a mão às costas, Thayer puxou o filho para a frente.

        - Ele estava escondido no corredor. Agora entendo por que se esforçava tanto para não ser visto.

        Com as mãos na cintura, ela olhou para o garoto com o ar mais severo que conseguiu compor.

        - O que você fez? Pisou no maior lamaçal que encontrou e depois foi sapatear em cima da sua cama? Não me surpreenderia descobrir que levou o barro em baldes para sujar os pés várias vezes entre uma dança e outra. Não sei como conseguiu dormir naquela imundície.

        O olhar culpado indicou que ele não havia dormido na cama. Ela quase riu. Esse seria um erro grave, sabia, por isso tratou de conter o riso e manter a expressão severa.

        - Como se não bastasse, ordenou que a pobre Janet fosse remover os lençóis para lavá-los.

        - Esse é o trabalho dela - Bek disparou.

        - Sim, mas não porque um menino decidiu se comportar mal. Acho que você precisa ter noção de quanto é penoso esse trabalho que impõe a outros com tanta tranqüilidade.

        - O quê? - Bek gritou quando ela o segurou pela orelha.

        - Vai lavar o lençol que sujou, mocinho.

        - Não! Esse trabalho é das mulheres! É obrigação de Janet, não minha. E dever dela. Papai!

        - Acho que a solução é justa - Thayer respondeu calmo.

        - Justa? Serei um cavaleiro, um guerreiro.

        - Sim, um cavaleiro - Gytha confirmou. - E os cavaleiros seguem regras. Eles têm consideração por aqueles que garantem seu conforto, pelos que contam com sua proteção. E agora você vai aprender o que é consideração.

        Gytha segurava a orelha de Bek, obrigando-o a marchar para o galpão da lavanderia. No início, Janet e as outras mulheres hesitaram. Afinal, o menino era filho do senhor da propriedade. Mas logo elas acataram a determinação da senhora. Bek era teimoso.

        Quase uma hora mais tarde, Gytha sentiu que podia finalmente deixá-lo entregue as cuidados das outras mulheres. Mesmo carrancudo como estava, ele parecia resignado com o próprio destino. Ela terminou de supervisionar todas as tarefas domésticas, depois foi para a cama. Deitada de costas, fechou os olhos e sentiu uma forte compaixão pelos pais. Disciplinar uma criança teimosa não era fácil. Uma mulher adulta encontrava dificuldades para impor sua vontade a um menino! Pensativa, sentiu que não estava mais sozinha. Quando abriu os olhos, viu Thayer se sentando na cama a seu lado.

        - Ele é teimoso... - murmurou o pai constrangido.

        - Sim.

        - E temperamental.

        - Oh, sim, certamente.

        Thayer riu do tom enfático da resposta.

        - Bek criou dificuldades?

        - Algumas, mas se dedicou a cumprir a tarefa. Espero que ele compreenda que o trabalho é difícil e sinta um pouco de piedade por aquelas criadas que se responsabilizam pela lavagem das roupas.

        - Sim. Essa é uma lição que ele precisa aprender. Ele não teve quem o ensinasse. Não com a vida que levou até agora.

        - Eu sei. Por isso me limitei a censurá-lo de maneira tão branda na primeira vez. Mas ele precisa aprender. E tem de aprender do início.

        - Sim, e você precisa de um tempo longe de tudo isso. - Ele se levantou e a puxou pela mão, indicando que devia acompanhá-lo.

        - Eu preciso, não é?

        - Sim, precisa. Tem trabalhado duro desde que chegamos aqui. Primeiro cuidou de mim até a ferida fechar, depois se dedicou à supervisão das tarefas domésticas. E agora ainda tem de medir forças com um menino teimoso. Sim, precisa se afastar por um tempo. - Ele a levou para fora do quarto.

        - E para onde fugirei?

        - Para um recanto muito sossegado que encontrei cavalgando pela propriedade.

        Ela não fez mais perguntas, porque já se aproximavam do estábulo. Thayer havia mandado ensilar apenas um cavalo. Ele a acomodou na frente do corpo e juntos deixaram a área protegida da propriedade. Thayer recusou a oferta de escolta. Gytha mantinha os olhos voltados para a terra diante dela. Cansada da jornada, ela pouco notou quando chegaram, e ainda não havia tido oportunidade para explorar a área além das muralhas.

        O local onde pararam a deixou momentaneamente sem fala pela beleza. Irrigado pelo mesmo riacho que cortava Riverfall, a área era verde e exuberante. Havia flores em abundância. A água corria pelo leito rochoso entoando uma canção envolvente. Gytha se aproximou do riacho e molhou os dedos na água fresca.

        - É tão gelada quanto parece - ela murmurou, secando a mão na saia.

        Sentado com as costas apoiadas contra um tronco de árvore, Thayer assentiu:

        - Ela recebe pouca luz do sol.

        - Uma pena. Parece convidativa. - Ela foi se sentar ao lado do marido e riu quando ele a tomou nos braços. - E tão tranqüilo aqui... Quando encontrou esse paraíso?

        - Quando percorria as fronteiras da propriedade.

        - A terra é boa?

        - Parte dela, sim. Não vai nos fazer ricos a ponto de nunca termos de contar nossas moedas, mas também não vai nos empobrecer.

        - É boa o bastante, então.

        - Sim. - Thayer a beijou demoradamente. Quando encerrou o beijo, ele disse: - Posso falar com Bek, se quiser.

        - Não. Acho que será melhor se eu cuidar disso sozinha.

        - Sim, eu também penso assim, mas quis fazer a oferta. Creio que as coisas mudaram depressa demais para o menino. Ele perde o controle sobre seu temperamento com mais freqüência que antes.

        Gytha segurou as mãos dele.

        - Ele vai se aquietar. Deve estar com medo de você deixá-lo de lado. Logo perceberá que seu lugar está assegurado. Suspeito de que ele também não esteja habituado a cumprir ordens de uma mulher.

        - É verdade. Ele tem vivido em um mundo de homens... - Thayer franziu a testa ao perceber que o cavalo se agitava repentinamente.

        Sentindo a súbita tensão no marido, Gytha perguntou:

        - Algum problema?

        - Não sei. - Colocando-a no chão a seu lado, ele tocou a espada. - Alguma coisa perturbou o cavalo.

        Gytha começava a se levantar cautelosa quando uma flecha cortou o ar. Ela gritou aterrorizada ao ver que a ponta afiada encontrava o tronco da árvore e prendia o braço de seu marido. Quando fez menção de ajudá-lo, Thayer usou a mão livre para fazê-la parar. Praguejando vigorosamente, ele usou a adaga para cortar o tecido da manga da casaca e libertar-se. A flecha não causara nenhum ferimento. Mas era um alvo perigosamente fácil.

        Ele ainda terminava de se libertar, quando outra flecha zuniu no ar e se cravou no tronco da árvore, agitando seus cabelos.

        Livre, Thayer segurou a mão de Gytha e correu para a montaria. Ele parou furioso ao ver que o animal era atingido por uma flecha. Virando-se rapidamente, correu para o bosque, buscando a proteção das árvores e da penumbra.

        Identificando um bom esconderijo, fez Gytha se abaixar e se ajoelhou ao lado dela. O inimigo teria de caçá-lo, expondo-se nessa busca. Essa era uma pequena vantagem da qual pretendia tirar grande proveito. Certificando-se de que Gytha estava bem e controlada, embora um pouco ofegante, ele estudou a área que os cercava.

        Gytha tentava se manter quieta enquanto respirava profundamente, buscando recuperar um mínimo de tranqüilidade. Thayer não estava ferido. Seu marido era um homem de muita sorte. Mais do que qualquer outro que já havia conhecido. Esperava que essa tendência se mantivesse. Sabia que precisariam de uma carroça transbordando sorte para poderem escapar ilesos.

        Ela ouviu alguém se aproximar e sentiu que Thayer ficou tenso, os olhos buscando a origem do som. O breve toque do dedo indicador em seus lábios nem era necessário, porque sabia que devia ficar quieta. Conhecia o valor do silêncio em situações como essa. Movendo-se o mínimo necessário, olhou na mesma direção em que Thayer olhava e viu três homens caminhando cautelosos na direção em que eles estavam. Sabia que haviam sido enviados por Robert para matar Thayer.

        - Acho que isso não é muito inteligente - resmungou um deles. - Ele pode estar escondido em uma infinidade de buracos no meio de tantas árvores.

        - Quieto, cachorro covarde. Ele é só um homem, e ainda tem de proteger a mulher. Vamos nos separar aqui - decidiu o mais alto dos três. Ele olhou para o mais hesitante. - Você vai em frente. Eu vou pela direita. Vamos pegar esse pássaro.

        - Eu acho...

        - Nada. Você não é pago para pensar. Encontre-o e ache também aquela maldita mulher. - O líder seguiu pela direita.

        Um sorriso frio surgiu no rosto de Thayer, e Gytha estremeceu ao vê-lo. Ali estava o homem que conquistara o apelido de Diabo Vermelho. Cercada por proteção e segurança nos outros confrontos, nunca o vira realmente nessas circunstâncias. Sabia que logo veria a morte, e precisava endurecer o coração. Esses homens planejavam matar Thayer. Misericórdia seria um erro fatal.

        Mesmo reconhecendo que aquela era uma atitude necessária, Gytha ficou chocada com o que viu. Ele era veloz e ágil. Considerando seu tamanho, o movimento foi ainda mais surpreendente. Thayer esperou até que o homem estivesse diante deles. Então atacou. Com um salto impressionante, cobriu a boca do atacante com uma das mãos e puxou-o para trás. O desconhecido ainda levantava os braços para tentar se safar quando teve o coração perfurado pela lâmina da adaga. Gytha ecoou o espasmo sufocado que brotou do corpo que caía.

        Thayer não esperou que ela reagisse realmente ao que acabara de ver. Ele soltou o corpo e a amparou com um braço. Tentando respirar com alguma normalidade enquanto a levava para outro esconderijo, ele a impedia de protestar ou fazer perguntas. Gytha sufocava o grito de terror, lembrando-se de que lutavam pela sobrevivência.

        Thayer a jogou entre arbustos altos e abaixou-se a seu lado. Alguém se aproximava. Ele se levantou de um salto para interceptar outro atacante.

        Gytha desviou os olhos. Preferia não ver quando o marido pusesse fim a mais essa ameaça. Resignada e entorpecida, ela se sentiu arrastar novamente, como se fosse uma bagagem qualquer, até ser depositada em um novo esconderijo. Para seu desespero, o último inimigo não morreu tão rapidamente nem tão silenciosamente. Thayer precisava de respostas, por isso o enfrentou com a espada preparada e apontada para seu peito. Ele obteve todas as informações de que precisava antes de pôr fim à vida do homem.

        O homem revelou que eram apenas três atacantes, por isso sabiam que agora estavam seguros. Portanto, foi sem nenhuma surpresa que ela se sentiu arrastada pela mão, dessa vez para fora do bosque. Thayer depositou-a sobre a relva macia cercada por arbustos que proporcionavam proteção e alguma sombra. Gytha o viu usar a barra da túnica para limpar a espada e depois cortá-la, jogando-a para o lado.

        Recuperada de tudo que acabara de ver e sentir, ela se preparava para fazer algumas reclamações, quando o marido a encarou. As palavras morreram em sua garganta ao ver a expressão dele. O desejo escurecia seus olhos e endurecia seus traços. Ela sentiu uma resposta imediata. Decidindo deixar as queixas para mais tarde, abriu os braços e riu ao vê-lo praticamente mergulhar neles.

        O ato sexual foi rápido, selvagem, atribulado. Gytha se sentia tomada pela ferocidade do encontro. Só quando estavam já saciados nos braços um do outro, ela percebeu que se deixara possuir deitada na relva como uma camponesa qualquer. Nem haviam se despido. Tinha as saias erguidas até a cintura, e Thayer ainda estava com a calça presa aos tornozelos. Quando o marido revelou o próprio constrangimento levantando-se para erguer a calça, ela riu. Aliviado, ele a viu se arrumar sem pressa.

        - Machuquei você?

        - Não, embora deva encontrar alguns hematomas em pontos estratégicos.

        Ele a abraçou e beijou.

        - Tê-la por perto quando ainda tinha o sangue quente da batalha foi uma tentação irresistível.

        Lembrando o que havia aquecido seu sangue, ela ficou repentinamente séria.

        - Acha que pecamos por nos termos entregado à paixão depois de... depois de tudo?

        - Não. Eles queriam nos matar, Gytha.

        - Eu sei. Sei que tinha de agir como agiu. Ser misericordioso teria sido seu fim. Mesmo assim, sentir esse desejo tão intenso quando há três homens mortos... Não sinto que tenha feito algo de errado, mas parece tão insensível!

        Aliviado por ela não estar arrependida e por ter sentido prazer em sua companhia, Thayer tentou explicar sentimentos que eram muito familiares para ele.

        - Talvez. Sempre pensei algo muito parecido. A luxúria não me domina no meio da batalha. Não sou tão cruel a ponto de me inflamar por derramar o sangue de um homem.

        - Enquanto se vê cercado pela morte e por mortos, ainda vive.

        - Sim. - Ele a olhou demonstrando apreciação por Sua percepção. - É nesse momento que surge a necessidade. Olho em volta, e sei que sobrevivi para ver outro dia... - Ele encolheu os ombros, incapaz de descrever claramente o que sentia.

        - Então, procura provas mais concretas de seu bem-estar - ela deduziu. - É uma celebração?

        - Talvez. Você não lutou essa batalha, mas se viu envolvida nela. Talvez tenha acontecido a mesma coisa com você.

        - Pode ser. Acho que tudo isso teve muito a ver com como você me segurou.

        - É mesmo? - Não devia deixar a admissão de Gytha subir-lhe à cabeça.

        - Sim. Realmente. Todo aquele ardor... Senti como se o fogo brotasse de seu corpo e queimasse o meu.

        - Vou tentar me lembrar disso.

        - Oh, então devo ser mais cuidadosa?

        - Não, para poder descobrir exatamente o que a inflamou tanto, depois praticar bastante.

        - Pode ser difícil... - ela murmurou, sorrindo. Thayer riu, mas interrompeu a gargalhada de repente e olhou em volta, ouvindo com atenção.

        - Cavaleiros.

        - Deus não permita! Mais assassinos contratados? - Ela se encolheu entre os arbustos.

        Recolhendo rapidamente a túnica e a espada, Thayer se abaixou na frente dela, olhando na direção de onde viera o som.

        - Se Robert tivesse mais homens por aqui, eles já teriam atacado. A chance de me matar seria muito maior. De qualquer maneira, é melhor agirmos com cuidado. Há outros com quem devemos nos preocupar.

        Gytha teve a impressão de que horas se passaram até os cavaleiros surgirem. Ela quase desfaleceu de alívio ao reconhecer Roger na frente do pequeno grupo. O medo que havia sentido era tão intenso, que demorou um pouco para levantar-se e cumprimentar os homens, como Thayer fazia.

        - Não disse que desejava ficar sozinho? - ele disparou, embora sorrisse.

        - Sim, eu me lembro de alguma coisa nesse sentido - Roger respondeu. - Porém, algo chamou minha atenção e nos fez pensar que poderia apreciar alguma companhia, afinal.

        - O que foi isso? - Thayer perguntou passando um braço em torno da esposa.

        - Merlion retornou da cidade contando uma história interessante. Estranhos foram vistos por lá nos últimos dias.

        - Quantos?

        - Seis, de acordo com o que nos contaram.

        - Bem, agora são três, então.

        Roger o encarou com os olhos cheios de curiosidade.

        - Está dizendo que não temos mais de nos preocupar com os outros três?

        - Se não quer deixá-los entregues à natureza, os corpos estão no bosque - disse Thayer.

        - Isso pouco me incomoda. Onde está seu cavalo?

        - Morto. Precisamos de uma montaria. Você nos salvou de uma longa caminhada.

        Logo Gytha e o marido paravam diante do castelo em Riverfall, onde um mensageiro do rei esperava por eles.

        Gytha estava curiosa quanto à mensagem, mas temia que fosse uma simples convocação.

        Como cabia ao seu papel de esposa, ela se retirou e deixou Thayer lidar com o homem em total privacidade. Era claro que esse era um assunto de homens. Contendo o ímpeto de voltar ao salão e exigir informações que, em última análise, diziam respeito a sua vida, ela subiu a escada para ir se lavar e se recompor no quarto. Mais tarde acabaria sabendo de tudo, não tinha dúvidas disso.

        Depois do banho, usando um vestido limpo e exibindo os cabelos brilhantes e ainda úmidos, Gytha estranhou as batidas na porta de seus aposentos. Esperava não ter de resolver dificuldades domésticas agora, porque precisava de paz e sossego para refletir sobre os eventos daquela tarde. Foi com grande surpresa que viu Bek abrir a porta ao receber autorização para entrar.

        - Terminei de lavar os lençóis - ele disse.

        - Trabalho duro, não? - Gytha perguntou enquanto escovava os cabelos. Quando chegasse à idade adulta, Bek partiria muitos corações com aqueles olhos verdes e profundos.

        - Muito.

        Ela deixou a escova sobre o toucador e encarou o menino.

        - E mesmo assim, fez Janet repeti-lo por dois dias consecutivos.

        - Sim. - Ele baixou os olhos. - Isso não foi correto.

        - Perceber seu erro é o primeiro passo para tornar-se o melhor cavaleiro da Inglaterra. - Ela sorriu para o menino, depois ficou séria novamente. - As coisas não são mais como antes, nos tempos de meu pai. Naquela época era apropriado tratar bem os servos e o povo de modo geral, mas agora, depois da peste, esse cuidado tornou-se ainda mais importante. Temos sorte por contarmos com os braços necessários aqui em Riverfall para realizar todo o trabalho - ela comentou séria. - Está entendendo o que digo? Não quero que pense que deve demonstrar consideração só para manter os servos trabalhando.

        - Eu sei. Devo agir assim porque essa é a atitude correta. Fui cruel com Janet, e crueldade é sempre condenável. Mas eu estava zangado.

        - Eu percebi. Todos nós ficamos zangados de vez em quando, Bek. Já viu seu pai ficar furioso.

        - Mas ele nunca comete uma crueldade.

        - Não que eu tenha visto, e isso é algo que conferiu a ele muito respeito. E você, Bek, acaba de me mostrar que tem a mesma qualidade. - Ela conteve o sorriso ao ver que o menino inchava o peito com orgulho.

        - Serei um cavaleiro tão valoroso quanto meu pai.

        - Não tenho dúvidas disso. E provavelmente será tão grande quanto ele. - Podia antever também esse detalhe, porque Bek já era alto demais para a idade.

        - Acha mesmo?

        - Bem, vai ser mais alto do que eu, é certo.

        Thayer bebeu mais um gole de cerveja, olhando para o mensageiro do rei com evidente contrariedade. O rei estava no Oeste se preparando para enfrentar rebeldes e ladrões. E requisitava sua presença na corte. Ainda devia ao rei quarenta dias de serviço. Era claro que a dívida era cobrada.

        - Vamos, não precisa ficar tão taciturno - Roger manifestou-se.

        - Tenho meus problemas para resolver. Esse é um péssimo momento para ser chamado a solucionar dificuldades de nosso soberano.

        - Talvez não.

        - Em que está pensando?

        - Bem, duvido que Robert e o tio se atrevam a atacar enquanto você estiver na corte.

        - Mas ele pode aproveitar minha ausência para atacar Gytha.

        Roger franziu a testa.

        - Não pretende levá-la? Não seria mais seguro mantê-la a seu lado?

        - Você acha que seria? Sabe como é a corte...

        - Sim... E Elizabeth vai estar lá.

        - Tenho de pensar nisso, embora não me referisse a ela. Estava pensando em todos aqueles homens bem-vestidos pulando de cama em cama como pavões exibicionistas.

        Roger balançou a cabeça.

        - E é claro que eles vão se exibir na sua cama. E Gytha vai permitir. Sendo você como é, porque seria diferente?

        - Roger - Thayer tentou silenciá-lo, irritado com o tom sarcástico.

        - Continua denegrindo o nome dela sem causa. Pois marque minhas palavras, meu amigo. Gytha não é tola. Logo ela vai deduzir seus pensamentos, se é que já não o fez. Quando perceber o quanto você pensa mal dela, como desconfia de sua conduta, talvez faça exatamente aquilo que você teme e espera. Já que a condena sem causa, ela pode lhe dar esse motivo.

        - Ah, entendo. A culpa será minha? Eu mesmo porei os chifres em minha testa?

        - Sim, Thayer, se continuar esperando por eles, eles virão. - Roger bebeu o que restava de sua cerveja e se levantou da mesa no salão.

        Thayer também esvaziou sua caneca. O que mais o aborrecia era poder detectar a verdade nas palavras de Roger. Quando se esperava pelo pior, o pior acontecia. Sabia disso. Infelizmente, também sabia que muitas mulheres como Gytha acabavam fazendo exatamente o que se esperava delas. Vira acontecer. Estava condenado. Cortejava o desastre, fosse por antecipar continuamente uma vergonhosa traição, fosse por ter uma esposa bela e atraente como Gytha.

        Desanimado, ele se recolheu aos seus aposentos. Podia levar a esposa à corte como ele. Talvez estivesse abrindo espaço para mais problemas, mas precisava pensar na segurança dela.

        Quando entrou no quarto, ele encontrou Gytha e Bek rindo. Vendo a esposa feliz, formando um elo com seu filho, podia quase acreditar que o idílio dos últimos meses poderia perdurar. Queria acreditar nisso, mas parte dele se agarrava ao medo da traição, do deboche e da humilhação que havia conhecido no passado.

        - O mensageiro trouxe más notícias?

        - Inconvenientes, mas não exatamente ruins - ele respondeu. - Fomos chamados à corte.

        - Nós fomos? Você e eu?

        - Sim, você e eu. Partiremos em três dias.

        - Margaret, como foi capaz de fazer isso comigo? Sofrendo os efeitos de um ataque de espirros, Margaret se sentou na cama e viu Gytha andando pelo aposento.

        - Acha que sofro assim por opção? - Ela pegou a caneca de caldo sobre a mesa de cabeceira e bebeu um gole para amenizar a dor na garganta.

        Gytha suspirou e foi se sentar na beirada da cama da prima. A pobre Margaret parecia estar muito mal, especialmente por causa do nariz vermelho e dos olhos inchados e lacrimejantes. As três mulheres que dividiam o quarto com ela haviam fugido, temerosas de contrair a enfermidade. Era egoísmo sentir-se contrariada porque a prima não poderia acompanhá-la à corte.

        - Estou me comportando como uma tola insensível.

        - Não, Gytha, eu entendo. E gostaria muito de ir, embora não entenda sua aflição com a viagem.

        - Aquela mulher vai estar lá!

        - Lady Elizabeth? A mãe de Bek?

        - Sim, ela.

        - Tem certeza?

        - Pelo pouco que Thayer me contou sobre ela... sim. O fato de lady Elizabeth freqüentar a corte foi a única razão pela qual ele me contou o pouco que revelou sobre ela.

        - Mas Thayer também disse que não tem nada a ver com essa mulher agora.

        - Sim, mas não disse que deixou de amá-la. Ele a evita, e essa é a resposta para sua questão. Para mim, isso indica que a tal mulher ainda pode ter poder sobre meu marido, ou ele não sentiria necessidade de se manter longe dela.

        - Bem... se ele ainda se interessa pela megera, merece ser deixado nas garras do sofrimento. Mas espero que seus temores sejam infundados.

        - Eu também. - Gytha se levantou e surpreendeu ao encontrar Roger na porta do quarto. - Sabe onde está meu marido?

        - Com o responsável pelas armaduras. Por isso vim visitar Margaret antes de ir falar com ele sobre o que Merlion e eu descobrimos. Ela está melhor?

        - Está péssima, mas vai sobreviver. - Balançando a cabeça, ela saiu e deixou Roger na companhia da pobre Margaret. Precisava encontrar o marido.

        Ele saía do galpão das armaduras e sorriu satisfeito ao vê-la. Porém, mesmo diante do sorriso radiante, Gytha ainda sentia medo. A visita à corte deveria ser motivo de excitação e alegria, mas temia que ela custasse sua felicidade e seu casamento.

        Talvez devesse confessar o amor que sentia por Thayer. , Assim, ele teria mais um motivo para continuar evitando lady Elizabeth e permanecer a seu lado. Porém, se ele não correspondesse ao sentimento, a relação seria composta apenas de culpa e obrigação, e isso era algo que não desejava. Era uma mulher orgulhosa. Se ele não soubesse o quanto era importante em sua vida, também não poderia saber Como a magoaria se a deixasse para seguir Elizabeth.

        - Está tudo pronto para a viagem - ele anunciou, passando um braço sobre seus ombros. - Partiremos amanhã com a luz do dia.

        Caminhavam juntos de volta ao castelo fortificado.

        - Quanto tempo de viagem até a corte do rei?

        - Alguns poucos dias. Não mais do que isso. Não será uma viagem tão árdua quanto as outras que fizemos.

        - Quanto tempo passaremos lá?

        Gytha parou no hall para instruir uma criada. Queriam vinho, pão e queijo no salão.

        - Receio que tenhamos pelo menos quarenta dias de obrigações -Thayer revelou enquanto se sentava à mesa.

        - Tanto assim? Estamos em guerra, então!

        - Bem, não houve uma declaração oficial. Na verdade, o rei busca rebeldes e ladrões, pois está farto dos constantes ataques e das ameaças veladas. Para caçar esses bandidos é preciso ter tempo e inteligência, porque eles vivem escondidos em seus covis sombrios.

        Ela assentiu, depois se virou para servir o vinho trazido pela criada. Já se preparava para retomar a conversa sobre a corte, quando Roger e Merlion entraram no salão. Ela os serviu e esperou impaciente pelo relato sobre a busca pelos mercenários de Robert.

        - Encontramos os outros três - Roger anunciou.

        - E? - Thayer incentivou-o.

        - Eles nos enfrentaram, mas conseguimos obter mais informações sobre os planos de Pickney antes de mandarmos os miseráveis para o inferno.

        - Ele o quer morto - Merlion revelou sem rodeios.

        - Eu já imaginava - Thayer respondeu.

        - Acreditamos que Pickney está envolvido na morte de William. E, pelo que ouvimos dos mercenários, ele planeja sua morte há mais tempo do que podíamos imaginar.

        - Também já havia considerado essa possibilidade. Lembro-me agora de alguns incidentes que tinham a marca de um atentado. Não foram simples acidentes ou conseqüências de uma luta justa.

        - Sim, também me lembro de alguns - Roger concordou.

        - Então... - Gytha mal conseguia falar. - Charles Pickney planeja que Robert seja o senhor de Saitun Manor?

        Ele certamente planejou essa ação desesperada, depois de Robert ter estado tão próximo de obter a herança e perdê-la.

        - Não podemos ter certeza - respondeu Thayer. - E nem tem importância, mas agora sabemos que ele planeja me matar. Ponderar sobre crimes do passado é perda de tempo.

        - Suponho que sim. No entanto, se ele matou William...

        - Pagará por isso - Thayer anunciou com firmeza. - Descobriram alguma coisa sobre as intenções que esse miserável tem com Gytha? - Havia pensado em tirá-la do salão, mas decidira que seria melhor ela ter conhecimento do que a esperava, por pior que fosse a ameaça.

        - Oh, sim, isso ficou muito claro - Roger respondeu. - Pickney quer que Gytha se case com Robert, aquele idiota fraco e dominado. Assim, ele asseguraria o poder sobre Saitun Manor e ainda teria também a propriedade onde agora estamos.

        - E ele espera que a família de Gytha aceite tudo sem se manifestar, sem reagir?

        - Pickney terá Gytha como refém. Ela será sua proteção.

        - Sim, seria. Os Raouille se sentiriam de mãos atadas, pois temeriam prejudicá-la com uma ação precipitada. Estou certo? - Ele olhou para a esposa.

        - Inteiramente - ela confirmou. - Levaria algum tempo até que o desespero os impelisse a agir.

        - Exatamente. Chegaria um momento em que eles pensariam não ter nada a perder. - Thayer balançou a cabeça. - Não sei como esse sujeito espera escapar com vida. No início, quando agia de forma sutil, talvez... Mas agora ele me ataca abertamente. E teria de levar Gytha pela força bruta. Haveria um alerta.

        - Creio que ele se tornou refém dos próprios planos - opinou Roger. - Agora vai ter de ir até o fim, porque não há mais como parar. Pickney já se revelou como seu inimigo. E você vai estar sempre alerta, vigilante.

        - Sim, eu sei, mas... Tem certeza de que ele não pretende matar Gytha também?

        - Pelo menos, não por ora, mas isso não significa que ela não sofrerá prejuízo. Pickney precisa dela viva no início, mas não vai se importar se tiver de matá-la.

        - Sim, entendo. Bem... preciso servir ao rei agora. Você tem razão, Roger, ao sugerir que Pickney vai recuar enquanto estivermos na corte. Usaremos esse tempo para surpreendê-lo com algum plano.

        - Como? - Gytha quis saber.

        - Ainda não sei, mas vou pensar em alguma coisa. Estaremos seguros na corte, minha querida, e isso é o que importa.

        Gytha deixou os homens e se retirou do salão, pensando nas palavras do marido. Não conseguia pensar na corte como um paraíso de segurança. Era verdade que nunca havia estado lá, mas ouvira rumores e conversas em quantidade suficiente para suspeitar de que a corte poderia oferecer muitos perigos. Intriga e traição eram comuns nos corredores do palácio. E certamente, esse seria o lugar perfeito para Charles Pickney pôr em prática seus planos e esquemas.

        Thayer sabia muito mais que ela sobre o mundo de maneira geral. Se acreditava que Pickney os deixaria em paz enquanto estivessem na corte, teria de confiar em seu julgamento.

        Margaret também confiava em Thayer e em seus comandados, a julgar por sua reação depois de ouvir o relato da prima.

        - Pickney sofre da doença da ganância. Não é uma enfermidade rara, pelo que ouço dizer. Porém, é difícil compreender como o homem espera realizar todos esses males e escapar ileso. Ele deve ser um pouco desequilibrado, também - Margaret concluiu tossindo.

        - Eu ficaria muito mais tranqüila se ele estivesse morto... Que Deus me perdoe por isso.

        - Ele a perdoará. O homem quer matar seu marido e quer atentar também contra sua vida. E um alívio saber que Thayer é um lutador habilidoso.

        - Sim, ele é muito forte, corajoso e capaz, mas se o inimigo continuar atacando em grande número, acabará por superá-lo. Temo pela vida de Thayer.

        - Você o ama.

        - Sim. Amo muito.

        - Então, acabou a confusão. E acho até que sei quando ela acabou. Quando seu marido foi ferido.

        - Sim, foi quando percebi. Agi como se ele houvesse perdido uma perna. - Ela riu. - Bem, pelo menos não desmaiei quando cuidava do ferimento, nem afoguei meu marido em lágrimas.

        - E o que ele disse quando confessou seus sentimentos? - Eu não contei. - Não? Por quê?

        - Preferi manter segredo por um tempo. Sei que ele não corresponde ao sentimento, e sei também que essa falta de retribuição vai me ferir profundamente. Prefiro evitar esse sofrimento. E você não pode me criticar por isso.

        - Não, mas acho que deve tomar cuidado. Não deixe esse medo criar raízes profundas, ou vai acabar guardando silêncio quando chegar a hora de falar.

        - Eu sei. Além do mais, tenho de considerar Elizabeth.

        - O que lady Elizabeth tem a ver com sua decisão de revelar seus sentimentos a Thayer?

        - Muito. Pensei em falar com ele antes de irmos para a corte, antes de ele reencontrar essa mulher.

        - Seria uma boa decisão. Daria a ele força, caso seja necessária, para evitar essa mulher.

        - Sim, isso o faria ficar do meu lado, mesmo que ela tente atraí-lo. Mas será que ele também sente o mesmo por mim, ou algo parecido, pelo menos? E se, mesmo sabendo de meus sentimentos, ele for atrás dela? E se revelar meu amor a ela? Eu não suportaria essa humilhação.

        - Ah, orgulho.

        - Sim, orgulho. Não é a mais nobre das emoções, mas todos nós a temos em alguma medida. O meu diz que devo esperar. Falar com Thayer não me trará nada de positivo. Não falar me poupará da dor. A dor de saber o quanto ele poderá me magoar se decidir voltar para seu antigo amor. Não revelar o que sinto me permitirá ao menos preservar um mínimo de dignidade diante da derrota. Posso fingir que não me importo, e ele jamais saberá da minha agonia.

        - Gytha, não acredito que Thayer voltará para lady Elizabeth, uma mulher que o tratou tão mal. Não quando tem você. Ele não é idiota.

        - Os homens sempre podem ser tolos quando se relacionam com uma mulher, e nós duas sabemos disso. Ela não é só um antigo amor, mas mãe do filho dele, também. Esse é um elo inegável e forte. Sei que deseja aplacar meus medos, mas considero sensato me apegar a alguns deles. Assim estarei alerta para problemas que poderão surgir.

        - Sim, talvez você esteja certa. Bek falou alguma coisa sobre a mãe? Ele deve saber que lady Elizabeth estará na corte.

        - Oh, ele sabe, mas fala pouco sobre o assunto, e eu não quero pressioná-lo. Bek não parece estar incomodado com isso. E ele também não parece estar feliz, agitado ou ansioso. Talvez tenha aprendido a esconder as emoções. Se lady Elizabeth o importunar ou magoar de alguma forma, eu terei de interferir. Se não, prefiro ficar fora disso.

        - Sensata, como sempre - Margaret aprovou.

        - Mais seis homens mortos. - Robert olhou com evidente nervosismo para o tio que, carrancudo, dividia a mesa com ele. - Essa sua campanha está nos custando caro demais.

        - Ninguém pediu sua opinião - Charles respondeu, olhando em volta pelo chalé que usavam como esconderijo. - Quer passar o resto da vida assim?

        - Podemos consertar as coisas com meu primo. Então, retornaríamos a Saitun Manor.

        - Você não raciocina? Há meses tentamos matar o homem! Acha mesmo que ele vai simplesmente esquecer tudo isso e nos receber como parentes e amigos? Ele vai nos arrancar a cabeça do pescoço, isso sim.

        - Bem, não podemos alcançá-lo na corte, e agora se tornou difícil encontrar mais homens para a missão. Temos cada vez mais mortos e menos dinheiro. Não devíamos ter começado com isso. Não devíamos... - Robert se calou ao ser atingido por uma bofetada do tio.

        - Pare de choramingar! Ainda não perdemos. Robert abriu a boca para argumentar, mas desistiu. A cada fracasso, o tio tornava-se mais violento, e era aterrorizante pensar que havia atado seu destino ao de um louco. Amaldiçoava a fraqueza que o mantinha ligado ao irmão da mãe, obrigando-o a participar de planos que não aprovava. Sempre havia sentido ciúme de William e Thayer, mas nunca desejara nenhum mal a eles. Também não queria o mal de Gytha, mas começava a desconfiar de que o tio tinha planos nefastos também para ela. Odiava pensar que nem essa certeza dava a ele a força necessária para combatê-lo.

        - Thayer e sua meretriz... - Piekney dizia.

        - Gytha não é uma meretriz.

        O protesto rendeu a ele outra bofetada, mas Robert manteve a declaração.

        - Eles estarão ocupados na corte. Isso pode nos beneficiar. Teremos tempo para tomar Saitun Manor.

        - E como manteremos a propriedade? Precisamos de mais homens do que temos agora.

        - Teremos mais homens e teremos Gytha. Ela será nosso escudo em caso de ataque.

        - Se pudermos capturá-la. Ela é mantida em total segurança.

        - Já pus esse plano em ação. Não será fácil, mas, se recuarmos um pouco, talvez relaxem a guarda. Temos tempo. Se tomarmos Saitun Manor, podemos até evitar que o Diabo Vermelho saiba da perda por algum tempo. Podemos usar a mulher dele para tomar o lugar.

        - Ele virá atrás dela.

        - É claro que sim. E eu o quero também. Vamos atraí-lo usando a mulher como isca e depois o mataremos.

        - E eu me casarei com Gytha?

        Robert observava atento as reações do tio.

        - O quê? Ah, sim, é claro. O casamento é necessário para assegurar o domínio sobre as terras. Terá sua bela esposa.

        Por um tempo, Robert ouviu as palavras que não foram ditas. Não conseguia entender o que o tio lucraria com a morte de Gytha, mas sentia que era essa sua intenção.

        O plano de Pickney era como uma rede cheia de furos. Charles realmente pensava que os homens de Thayer se retirariam quando ele fosse morto? Acreditava que a família de Gytha não reagiria? Estariam cercados de inimigos poderosos! E seu tio não parecia pensar nisso.

        Robert encheu o copo de vinho e bebeu com desespero. Embriagar-se não resolveria seus problemas, mas libertaria a mente das dúvidas, dos medos e da confusão. Por algum tempo, encontraria paz e não teria de admitir que era um fraco.

                Sentada na cama, Gytha abraçou os joelhos e ficou observando Thayer se preparar para dormir. Na manhã seguinte partiriam para a corte. Ela tentava se convencer de que a jornada não representaria o fim de seu casamento, mas o medo persistia. Tentando deixar os temores de lado, concentrou os pensamentos nos problemas que Robert e o tio representavam.

        - Fez algum plano com relação a Robert e Pickney? - perguntou.

        - Nada concreto. Conversamos muito, mas as possibilidades são inúmeras. Temos de escolher com cuidado.

        - Entendo. Vai falar com o rei sobre esse assunto?

        - Também discutimos essa possibilidade, mas não decidimos nada.

        - Por que não revelaria esse problema ao rei? Pickney é um criminoso. O rei não tem o direito de saber? Ao menos terá a sanção real para qualquer atitude que se veja obrigado a tomar.

        - Sim, isso me pouparia de ter de dar explicações posteriores. Mas estamos tratando de uma questão familiar, uma batalha entre parentes. Reluto em revelar toda essa situação. Creio que seria melhor se pudesse manter essas dificuldades no âmbito privado, familiar. Entende o que digo?

        - Oh, sim. Mas os parentes não são meus, por isso posso ver benefícios e dificuldades que você não enxerga.

        - O mesmo ocorre com Roger e Merlion - ele respondeu, apagando todas as velas, exceto a que estava ao lado da cama. - Eles acham que devo contar tudo ao rei. - Thayer se deitou e tomou-a nos braços.

        - Não pode estar preocupado com o que vai acontecer com Pickney. E em Robert que está pensando?

        -- Sim. Custo a crer que ele esteja por trás disso tudo. Robert é fraco, fácil de dominar, mas nunca foi cruel. Ele não é um assassino. Nunca teve estômago para lutar.

        - Mas ele e Pickney podem mandar que outros matem por eles.

        - É verdade. Posso estar confundindo a criança que ele foi com o homem que se tornou. Um homem moldado e comandado por Charles Pickney.

        - Pobre Robert.

        - Pobre Robert? - Ele riu. - Eu sou o alvo da espada!

        - Eu sei, mas não consigo deixar de sentir pena dele. Não o conheci realmente, mas tenho a sensação de que ele é refém de algo que não quer ou não pode parar. É errado, eu sei, mas nunca senti nenhuma maldade nele. Por mais que me esforce, não consigo imaginá-lo por trás disso.

        - É o que sinto. Mas parte de mim insiste em dizer que sou apenas um fraco, um tolo emotivo que fica cego para a razão. O resultado é a dúvida, e esse não é um sentimento favorável para um homem que se vê na iminência de uma batalha.

        - Em resumo, não quer ter nas mãos o sangue de Robert.

        - Não.

        - E não existe um meio de evitar isso? Não pode derrotar Pickney e poupar Robert?

        - Talvez. Não sei. E se ainda assim eu estiver deixando uma faca apontada para as minhas costas? Sei que Robert nunca me enfrentaria frente a frente, mas não posso ter certeza de que ele não se tornou capaz de me atacar pelas costas. Essa é uma dúvida com a qual não poderei conviver. - E não revelaria que a espada poderia estar apontada para ela também.

        - Não seria maravilhoso se Robert tivesse forças para se libertar do tio, se passasse para o seu lado?

        - Sim, seria esplêndido. Nesse caso eu poderia confiar nele.

        Ainda podia lembrar o primo na infância, o rosto pálido e amedrontado. Apesar de todo o esforço empregado com esse propósito, ele e William nunca conseguiram remover o medo dos olhos de Robert. Agora percebia que Charles Pickney já começara a dominá-lo. Poucas correntes eram tão fortes quanto aquelas forjadas pelo medo. Thayer duvidava de que Robert houvesse conhecido outro sentimento.

        Ainda sentia pena daquela criança, mas tinha de endurecer e resistir ao apelo das lembranças. A piedade poderia enfraquecê-lo em um momento de grande perigo. Seria justo. Não negaria ao primo nenhuma chance de reparar seus erros. O que não podia era permitir que a emoção interferisse no que tinha de ser feito.

        Gytha se moveu, interrompendo seus pensamentos.

        - Acabei de pensar que... Não contei nada disso a sua família - ele disse.

        - E acha que é necessário? - Gytha indagou.

        - No momento não preciso da força extra que eles podem representar.

        - Nesse caso, é melhor não dizer nada. Só causaria apreensão. Vamos guardar segredo por mais um tempo. Enquanto for possível. E tente tirar da cabeça todas essas preocupações, ao menos por algumas horas.

        - Seria ótimo não pensar em problemas por algum tempo. - Ele sorriu, abraçando-a com mais força.

        - Como sua esposa, é meu dever assegurar que você esteja sempre satisfeito. - Gytha o beijou no pescoço e sorriu sedutora.

        -Tem razão, essa é sua obrigação - Thayer concordou antes de beijá-la.

        - Farei você esquecer Robert.

        - Que Robert? - ele murmurou rindo.

        Robert olhou para o tio e caiu na cama rústica. Bebera cerveja até não poder mais, mas não conseguiu encontrar a paz que tanto queria ter. Imagens e pensamentos ainda o atormentavam, e giravam em sua mente num carrossel embriagado, confuso. Sentia-se tonto, enjoado. Deitado de costas e mantendo os olhos fechados, esperou que o tio e seus homens logo subissem ao forro do castelo, pois assim ficaria sozinho e em silêncio.

        - Por que mantém por perto o idiota bêbado?

        - Porque, Thomas, ele é o legítimo herdeiro de tudo que quero - Charles respondeu. - Essa sempre foi sua única utilidade para mim. Acha que eu arrastaria esse peso morto se tivesse escolha?

        - Não pode conseguir o que quer sem ele? - Bertrand indagou cocando a barriga.

        - Não. Se existe um meio, ainda não o encontrei. Depois que os pais dele morreram, obtive acesso aos bens por intermédio de meu sobrinho. Quando ele se casar com a bela Gytha e tiver um herdeiro, continuarei controlando tudo por meio dessa criança. Então ele não terá mais nenhuma serventia.

        Thomas balançou a cabeça.

        - E difícil acreditar que esse sujeito fraco tem seu Sangue.

        - Minha irmã era fraca. Só tive de cuidar para que o menino nunca desenvolvesse o espírito para me desafiar. É preciso começar quando eles ainda são jovens, submetê-los a sua vontade desde que ainda são bebês. Por isso ele ainda se curva ao meu comando quando, na verdade, ele tem direito a tudo que eu domino. Criarei o herdeiro dele da mesma forma.

        - E terá o controle sobre tudo enquanto estiver vivo.

        - Exatamente. Bem, agora devemos descansar. Amanhã teremos muitas decisões a tomar.

        Quando todos os sons cessaram, Robert abriu os olhos e ficou fitando a escuridão, ouvindo o eco de tudo que acabara de escutar. Por um momento, ele experimentou uma força inesperada e envolvente, um sentimento que resultava da fúria. Desejava matar Charles Pickney. Era uma pena estar embriagado demais para pôr em prática essa vontade e seguir o impulso.

        Com o retorno da fraqueza veio também a dúvida. Estava bêbado. Talvez houvesse escutado mal. De repente ele pensou no rosto doce de Gytha. A bela e adorável Gytha. Ela era a única coisa que jamais havia desejado realmente. Por ela seguira os planos do tio. Mesmo errados e até criminosos, eles o levariam até Gytha. E ela o tornaria imune aos pesadelos. Daria a ele força, faria dele um homem. Só quando a tivesse a seu lado, ele pensaria novamente nas palavras que havia pouco escutara da boca de seu tio. Sim. Gytha o ajudaria a se libertar de Charles Pickney.

 

        Gytha suspirou e deu um último retoque no arranjo de cabeça. Estavam na corte havia uma semana. Uma semana que, para ela, tinha sido longa demais. A Corte era pouco mais que um ninho de víboras imorais. O único passatempo dos cortesãos parecia ser roubar maridos e esposas, amantes e prometidos. Só uma coisa os distraía desse esporte, e era a chance de enfraquecer a aposição de outra pessoa na corte, fortalecendo assim a própria posição. Era impossível desembaraçar a teia de mentiras e intrigas.

        E como se não bastasse, havia Elizabeth. Pensar nela despertava em Gytha um instinto assassino.

        A primeira reação de Thayer à mulher fora de frieza, mas a alegria que ela sentira com isso havia durado pouco. Temia agora que ele se reaproximasse da antiga amante. cortesia o impedia de repelir abertamente uma dama tão elevada posição, mas... Seria só isso? Gytha temia beleza e as tramas daquela mulher. Tinha medo de que Thayer voltasse a amá-la.

        - Está linda, esposa - ele disse, colocando-se atrás dela e sorrindo para o espelho. - Não precisa ficar tão preocupada.

        - Tem certeza de que estou apresentável?

        - Muito mais do que isso. Pronta?

        - Sim. - Ela sorriu e se virou em seus braços. Thayer beijou-a nos lábios e a segurou pela mão.

        - Não precisa se inquietar tanto.

        - Não estou habituada a desfrutar de tão elevada companhia -: ela explicou enquanto se dirigiam ao salão. - Nunca tive de exibir maneiras requintadas por tanto tempo antes.

        - Não vai ter de suportar a pressão por muito mais tempo. Logo tomarei conhecimento dos planos feitos para mim. Levarei você de volta a Riverfall, se assim preferir, cumprirei as tarefas que o rei designar, e depois irei encontrá-la em nossa casa. Também me irrito com a vida na corte. Tudo aqui é subterfúgio, traição e ócio.

        - Hum... Pensei que quisesse me deixar aqui enquanto cumpre as ordens reais. Você disse que seria mais seguro.

        - E é. Mas não suporto vê-la infeliz e tensa. Sei que não encontra aqui nada de seu interesse.

        -E verdade. Às vezes... Muitas vezes, para ser sincera, surpreendo-me olhando em volta e pensando em tudo que poderia estar fazendo em Riverfall.

        -Meus pensamentos também divagam. Prefiro cuidar da terra e da propriedade. Há mais trabalho nessa posição do que imaginava, e ainda temos de considerar o trabalho que os galeses nos dão em Riverfall. Lá tenho toda a possibilidade de batalha que posso desejar.

        - É bom saber disso. - Ela riu satisfeita.

        Neste momento, entraram no grande salão, e só isso o impediu de beijá-la na boca, como gostaria de fazer. Sentia esse impulso sempre que a via sorrir. Os medos logo o invadiram. Os homens olhavam para Gytha com cobiça e desejo, expressando abertamente admiração por sua beleza. Todos eram muito mais atraentes do que ele. Sua maior vontade era tirá-la dali, afastá-la da tentação.

        Gytha olhou em volta e suspirou, registrando aqueles olhares novamente. Nada do que fazia podia evitá-los. Sentia-se desconfortável e zangada. Não se abalava com os elogios e as tentativas de aproximação dos jovens cortesãos, e ainda assim eles a atormentavam sem trégua.

        Não sabia como lidar com o assédio, ainda pensava nisso, quando notou Elizabeth caminhando na direção deles. Sentiu a tensão imediata em Thayer.

        Não podia se deixar perturbar. Tinha de pensar que era em sua cama que ele passava todas as noites. Era seu marido. Ele a amparava, aquecia e saciava, e um homem Cujo coração estava em outras partes não poderia demonstrar tanta ternura. Mas a insegurança persistia.

        Lady Elizabeth anunciou que estava ali para escoltar Thayer até a presença do rei.

        Como se ele não pudesse encontrar o soberano sozinho, Gytha pensou irritada.

        Quieta, ela procurou um recanto afastado para esperar pela volta do marido. Para seu desânimo, Elizabeth retornou a fim de fazer-lhe companhia. Sabia que o tão temido momento do confronto havia chegado e, resignada, rezou para que Thayer voltasse o quanto antes para pôr fim à desagradável situação.

        - Sente-se muito segura, não é, lady Gytha?

        - E não devia ser assim, milady?

        - Ele me amou no passado.

        - No passado.

        - E vai me amar novamente. Não vê como ele muda em minha presença? Poderia tê-lo arrancado de suas garras agora mesmo, e sem nenhuma dificuldade.

        - Com que finalidade? - Gytha indagou, tentando não demonstrar que esse era seu maior temor. - Sei que procura um marido, mas Thayer já é casado.

        - Sim, realmente busco um marido, mas, enquanto isso, preciso viver. Thayer não é mais um cavaleiro destituído. Como amante, tenho certeza de que ele seria muito generoso.

        - Não acredito que terá a oportunidade de confirmar sua suspeita.

        - Não? Ele é um homem grande e saudável. E cheio de vigor. Ah, lembro-me bem de como ele pode se deixar consumir pela luxúria. Uma só mulher não pode saciar um homem com o apetite de seu marido.

        - Ele não tem se queixado.

        - Não? Talvez por não ter escolha. Veremos...

        - Thayer é um homem que honra seus votos. - Gytha gostaria de sentir a mesma convicção que demonstrava.

        - Votos de casamento? - Elizabeth riu com desdém. - Menina tola! Nenhum homem os honra. Está apenas revelando sua ingenuidade. Vou lhe mostrar, criança inocente, como um homem pode esquecer facilmente as palavras pronunciadas diante de um sacerdote.

        Gytha viu Elizabeth se afastar. Havia em seus passos um convite aberto ao pecado, uma segurança que alimentava sua fúria. Ousada, a mulher se dirigiu ao local onde Thayer conferenciava com o rei e começou a flertar com um jovem cortesão que Gytha reconheceu, um rapaz de rara beleza chamado Dennis. Mas os olhos verdes de Elizabeth buscavam... os de seu marido! Gytha também o observava, apesar de saber que devia sair dali, ignorar o jogo proposto por aquela víbora.

        Odiava a dúvida e a insegurança, mas nada podia fazer para aplacá-la. Não conseguia apagar da lembrança a expressão de Thayer quando ele revelara ter amado Elizabeth, nem conseguia ignorar o fato de ele nunca ter declarado o fim desse amor. Temia que ele sucumbisse novamente aos encantos da mulher vil e vulgar. Sabia que, quando o coração estava envolvido, até o mais sábio dos homens podia ser um tolo.

        Quando Thayer acompanhou Elizabeth para fora do salão, Gytha sentiu o ar congelar em seus pulmões. Ele não só saía sem sequer olhar em sua direção, como mantinha os olhos fixos no belo rosto da cortesã. Elizabeth apoiava a mão no braço dele. Eram como dois amantes escapando para um momento de privacidade. Gytha se negava a crer que seu marido a submeteria a tamanha humilhação. Era como se todos os olhos estivessem voltados para ela.

        - Ah, milady, venha comigo. Permita-me levá-la ao jardim - convidou uma suave voz masculina. Aturdida, Gytha olhou para Dennis que segurava seu braço.

        - Jardim? Disse que quer me levar ao jardim?

        - Sim. - Ele já a conduzia à saída. - Parece tão perturbada! Não é sensato revelar fraqueza em um ninho de víboras. Lamento, milady, mas essas coisas acontecem. É preciso aprender a manter a dignidade.

        Dignidade era a última coisa em que ela pensava. A mente estava tomada por uma coleção de imagens de Thayer e Elizabeth em abraços tórridos, e o pouco espaço restante já era dominado por imagens violentas dela atacando os dois, rasgando-os em tiras.

        - Que coisas? - perguntou por entre os dentes, tentando não extravasar a ira na pessoa errada.

        - Amantes, querida. - Ele parou em um recanto discreto do jardim.

        Apoiada em um tronco de árvore, Gytha sentiu-se repentinamente cansada e enojada.

        - Dê ao pecado seu verdadeiro nome, senhor. É adultério.

        - E é comum. O casamento serve ao propósito de legitimar herdeiros. Mais nada. - Dennis apoiou uma das mãos no tronco da árvore, ao lado da cabeça de Gytha, e se aproximou.

        - O casamento é a união entre um homem e uma mulher, uma união sancionada por Deus - ela murmurou.

        - Sim, de forma que os filhos sejam legítimos e herdem sem dificuldade. Todos sabem disso. - Ele pôs a outra mão no tronco.

        - Ninguém entende coisa nenhuma!

        - Minha querida, deixe-me amenizar sua dor. - Segurando-a pelo queixo, ele a beijou.

        Gytha levou um momento para superar o choque, mas, no instante seguinte, reagiu. Depositando no golpe toda a força de sua fúria, ela esbofeteou o rosto do ousado cavalheiro. O som da bofetada ecoou pelo jardim silencioso.

        Dennis cambaleou. Sua expressão sugeria que considerava a recusa um insulto. Gytha gritou quando ele a segurou pelos ombros e a empurrou contra a árvore com violência.

        - Maldita seja, mulher! Seu marido está alegremente se fartando em outro corpo, e você ainda se comporta como uma freira!

        - Não cometerei o pecado para punir outro pecado. Deixe-me em paz! Outras o aceitarão com alegria, milorde. Eu não.

        - Farei com que suplique por minhas carícias, minha encantadora freira.

        Quando ele a jogou no chão, Gytha ficou perplexa. Todo o ar escapava de seu corpo pela força do golpe, e ela tentava encher novamente os pulmões. Porém, quando conseguiu gritar, já era tarde demais. Ele a beijava com ardor, e quando removia seus lábios dos dela, tratava de substituí-los com uma das mãos, silenciando-a com eficiência. Gytha tentava mordê-lo, mas ele a atingiu com um tapa no rosto que a deixou zonza, sem ação.

        Dennis tentava despi-la. Aproveitando o momento de distração do cavalheiro, ela introduziu uma das pernas entre as dele. Seus irmãos a haviam instruído sobre a vulnerabilidade de um homem, explicando que tal conhecimento podia sempre ser útil em um momento de perigo. E o momento chegara. Ela ainda se debatia, tentando soltar-se das mãos fortes de Dennis e atingi-lo, quando percebeu a presença de mais alguém no recanto recluso. Thayer, Elizabeth e Roger se aproximavam.

        Thayer ria, divertindo-se com a troca de olhares furiosos entre Roger e Elizabeth. Ele também se divertia com a patética tentativa de sedução da mulher. No momento em que ela se dissera indisposta, à beira de um desmaio, ele soube tratar-se de uma mentira, mas a acompanhara ao jardim mesmo assim, curioso para desmascará-la em seu jogo.

        Nada sentia por essa mulher. Finalmente havia se libertado de seu pernicioso domínio. Gytha agora o dominava completamente, ocupando os espaços que antes Elizabeth poderia ter reclamado. A esposa restaurara sua confiança, e não havia mais nele a fraqueza de que Elizabeth se valia para mantê-lo sob controle. Ela era divertida, embora um pouco irritante em sua ousadia. Só isso.

        A deliciosa euforia proporcionada por essa descoberta durou pouco, destruída com dolorosa violência pela cena que se descortinava diante de seus olhos. Gytha estava deitada na relva sob o corpo de um belo cavalheiro. Suas roupas estavam descompostas.

        Era como viajar no tempo. Estava em outro jardim, sofrendo um novo e definitivo ataque a suas ilusões. A única diferença era que, agora, a dor era muito pior. Ele parou esperando pelo som das gargalhadas. Pelos comentários que o exporiam ao ridículo. Sentindo que Roger pretendia interferir, ele conteve o amigo. Queria ver até onde poderia ir sua ingenuidade, sua tolice. Ali a verdade seria revelada. E pretendia encará-la de frente, sem reservas. Dessa vez não seguiria sendo tolo, um joguete nas mãos de uma mulher.

        Aos poucos, a verdade que ele viu contrariou a primeira impressão. Gytha não estava naquela situação por vontade própria. Seus movimentos eram desesperados, como se lutasse. O que estava vendo não era o que imaginava em princípio.

        Ela o viu. E o fitou com uma súplica no olhar. Havia em seu rosto choque, medo e muita dor, porque o marido nada fazia para ajudá-la. Thayer sabia que ela considerava sua imobilidade a mais amarga traição, mas não conseguia se mover.

        Gytha estava perplexa. Por que Thayer não tomava uma atitude? Ele simplesmente a observava, chegando ao extremo de conter Roger, impedindo-o de socorrê-la. Seu marido, obrigado pelos votos sagrados a defendê-la e protegê-la, deixava-a entregue à própria sorte.

        A brisa fria em suas coxas a arrancou do estado de estupor. Teria de se defender sozinha, e o tempo não era seu aliado. Mais tarde lidaria com a atitude de Thayer e o sofrimento causado por sua indiferença.

        Erguendo a perna num movimento firme e veloz, levou o joelho à região entre as pernas de Dennis, empregando toda a força que tinha. Ele gritou, agarrou a parte ofendida e caiu de lado, libertando-a. Gytha levantou-se depressa, usando a árvore como apoio para não cair.

        Sem sequer tentar esconder a dor causada por sua traição, ela olhou para Thayer como se pretendesse agredi-lo também. Estava arfante. Gostaria de dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas temia vomitar. Ele deu um passo em sua direção. Ela ergueu a mão para contê-lo. Enquanto corria na direção de alguns arbustos próximos, viu Elizabeth ajudar Dennis a se levantar.

        Pálido, ele nada dizia, percebendo o olhar atento e ameaçador de Roger. O casal trocou algumas palavras furiosas e, aproveitando a distração de Thayer e Roger, desapareceu rapidamente. Gytha deduziu que tudo que havia acontecido nos últimos minutos fora planejado. Porém, a reação física ao choque ocupava seus pensamentos, e ela vomitava sem parar.

        Caída de joelhos, fraca e trêmula, viu Thayer estender a mão para ajudá-la.

        - Não toque em mim! - disse, sucumbindo a mais um ataque de náusea violenta.

        Thayer recuou como se recebesse uma bofetada. Roger aproximou-se dela e usou o lenço que umedecera na fonte para lavar sua testa, ajudando-a a superar o mal-estar.

        Thayer não sabia o que dizer. Não havia uma explicação para sua atitude condenável.

        Minutos mais tarde, quando conseguiu se levantar, Gytha notou que Bek se juntara aos dois homens. Elizabeth e Dennis haviam desaparecido. Sabia que tudo isso significava alguma coisa, mas estava abalada demais, furiosa demais para raciocinar com clareza. Sua atenção estava toda voltada para a principal causa de sua agonia.

        - Gytha, eu...

        - Não fale nada! Não se atreva a tentar explicar o que não tem explicação! Vai me dizer que não é capaz de distinguir um ato de amor de um estupro? Ou esse é um dos costumes dessa corte decadente? Você é meu marido!

        - Gytha...

        - Meu marido! Devia ter matado aquele miserável! Mas preferiu esperar para se certificar de suas suspeitas, não é?

        - Não!

        - Sim! Sempre esperou que eu desse um passo em falso, que cometesse um erro. Não percebeu a violência porque não esperava vê-la. Nunca confiou em mim, Thayer. Nunca!

        ? Gytha, vamos conversar nos nossos aposentos. Você precisa se recompor, descansar...

        - Não irei a lugar algum com você!

        - Não pode vagar pela corte sozinha.

        - Não posso? E por que não? Estou mais protegida sozinha do que em sua companhia. Um assassino poderia me atacar, cortar minha garganta e sair tranqüilamente antes de você decidir se tudo é um truque ou um ataque real.

        - Gytha, por favor...

        - Vou me retirar para os nossos aposentos... sozinha! Foi um dia longo e difícil. Primeiro sua ex-amante destila o amargo veneno em meus ouvidos, depois sou forçada a vê-los deixando o salão de braços dados diante dos olhares debochados de toda a corte, e enquanto luto contra o ciúme sou arrastada para o jardim por um cortesão que perde a razão quando me ofendo com sua ousadia. E como se tudo isso não bastasse, descubro que meu marido sempre me julgou uma meretriz. E entretenimento demais para mim. - Ela sentiu alguém segurar sua mão e olhou para o lado. - Bek?

        - Eu vou com você - o menino declarou. A compaixão nos olhos do menino era um bálsamo para suas emoções torturadas. Ele não podia entender tudo que era dito ali. Porém, sabia que estava sofrendo, e se aproximava para oferecer conforto e carinho. Temendo vê-la partir antes que pudesse dizer alguma coisa, Thayer estendeu a mão para conter a esposa. Gytha cuspiu um palavrão que o fez arregalar os olhos. Roger e Bek também pareciam chocados. Em seguida ela o acertou com um soco no estômago. Ainda dobrado ao meio, Thayer a viu se afastar ao lado de Bek, que olhava nervoso por cima de um ombro. Quando finalmente ele se moveu para segui-la, Roger o impediu.

        - Não, Thayer. Deixe-a em paz. E melhor.

        - Preciso falar com ela.

        - Sobre o quê? O que vai dizer?

        - Não sei. Quero pedir desculpas, acho.

        - Ainda penso que é melhor deixá-la em paz por um tempo.

        - Para que o ódio se cristalize?

        - Ela não sente ódio. Mágoa, raiva, decepção... Sim. Por que se comportou daquela maneira? Como conseguiu ficar parado enquanto um verme apalpava sua mulher?

        - Fiz exatamente aquilo que ela me acusou - Thayer reconheceu com tom culpado.

        O que as pessoas pensavam dele não era importante. Precisava pensar num jeito de reparar o mal que causara a Gytha. Porém, não estava muito confiante dessa possibilidade. E a expressão de Roger também não transmitia muita esperança.

        - Peça desculpas - ele sugeriu. - Pode ser um bom começo.

        - E o que pretendo fazer. Assim que ela se dispuser a me ouvir.

        - E o que vai dizer?

        - Bem, não posso negar as acusações. Seria mentira. E mentir só tornaria a situação ainda pior, se é que isso é possível. Estava mesmo esperando pela traição. Você sabe disso, e até chamou minha atenção algumas vezes. Devia ter ouvido seus conselhos. E estava começando a confiar nela.

        - Pena ter me ouvido tarde demais. Joguei pérolas aos porcos.

        - Insultar-me não vai resolver o problema.

        - Não. E também não pretendo ajudar com mais nada. Nem poderia, porque não sei o que sugerir.

        - Sou capaz de enfrentar um exército com coragem e segurança!

        - Pena Gytha não ser um exército. Thayer ignorou o comentário sarcástico.

        - Mas, quando preciso lidar com uma mulher, eu me transformo num menino tolo e sem experiência. Trato a meretriz como dama e a dama como meretriz. Um marido tem o dever de proteger sua esposa. Na opinião de Gytha, deixei de cumprir esse sagrado dever.

        - Ela precisa de tempo para superar a raiva.

        - E acha que vai superar?

        - Gytha não é rancorosa.

        - Não, mas nunca a atingi tão duramente antes. Como posso saber?

        - Escute, passe a noite nos meus aposentos. Deixe para conversar com ela amanhã. Assim ela terá tempo para acalmar-se, e você poderá refletir sobre tudo que aconteceu.

        - E, talvez tenha razão. Se me deitar ao lado dela esta noite, Gytha é bem capaz de cortar meu pescoço.

        Gytha de fato tinha pensamentos violentos enquanto se dirigia ao quarto. Edna a olhava assustada e curiosa enquanto ela lavava o rosto e enxaguava a boca, mas não dava nenhuma explicação. Nem poderia, pois, sentada ha cama, ela rompeu em lágrimas amarguradas.

        Edna e Bek não sabiam o que fazer. O menino finalmente pegou a escova, acomodou-se atrás dela e começou a escovar seus cabelos. O gesto a emocionou. Ela bebeu o chá de ervas preparado por Edna, depois deixou a criada vesti-la com a camisola de dormir. Enquanto isso, Bek relatava a Edna os últimos eventos. Gytha queria ajudá-lo, mas os soluços e o pranto a impediam de falar. Finalmente se deitou, recebendo sobre a testa a compressa de água fria que Edna providenciou em silêncio, e ficou olhando para o teto, tentando sufocar os soluços que sacudiam seu corpo.

        - Pobre Bek - murmurou, olhando para o menino que ainda segurava sua mão. - Não sabe o que fazer comigo, não é?

        - Vou ficar aqui. A seu lado - ele declarou.

        - Sua companhia será um bálsamo para mim.

        - Ela planejou tudo.

        - O que disse?

        - Minha mãe. Ela planejou tudo. Ouvi quando ela conversava com aquele homem. Ela queria que meu pai a visse com aquele homem, porque então se reaproximaria dela.

        - Eles se merecem!

        - Oh, não, milady - Edna protestou. - Não pode estar falando sério! Lorde Thayer jamais se envolveria com aquela mulher.

        - Não mesmo - confirmou Bek.

        - O problema não é lady Elizabeth - Gytha argumentou. - É ele. Thayer ficou ali parado sem fazer nada. Nunca confiou em mim. Esperava que eu agisse como a meretriz que acredita que seja.

        - Não! - Bek e Edna gritaram ao mesmo tempo.

        - Sim. Quero ir para casa. Desejo voltar a Riverfall.

        - Papai logo estará aqui, eu sei! E ele vai poder deixar a corte em breve.

        - Quero ir para casa agora, Bek. Edna, comece a arrumar minhas coisas.

        - Vou avisar meu pai - Bek decidiu.

        - Não é necessário. Deixarei uma mensagem para ele. Quer ir comigo, Bek?

        - Sim, mas meu pai...

        - Seu pai não vai ficar zangado com você. Edna, ainda não começou a arrumar as coisas?

        Edna e Bek tentaram dissuadi-la da idéia de partir, mas Gytha estava irredutível. Sabia que ambos esperavam que Thayer aparecesse e pusesse um fim à discórdia, mas ele não apareceu, para seu alívio. Rumores davam conta de que ele se encontrava nos aposentos de Roger, bebendo muito e sentindo pena de si mesmo. Esperava que ele continuasse bêbado até poder chegar em Riverfall, onde estaria fora de seu alcance.

        Gytha estava cansada. Dentro dela havia uma dor tão grande que nenhum remédio era capaz de amenizá-la. Amava Thayer, mas preferia não amá-lo. Havia sido justamente esse amor que a deixara inteiramente devastada por sua desconfiança, destruída pela descoberta de sua . verdadeira opinião. O que antes parecia belo e promissor, e agora era a maior das maldições.

        O céu começava a clarear quando ela finalmente chegou em Riverfall. Quatro homens de seu pai a acompanhavam, garantindo sua segurança. Bek e Edna dividiam a Carruagem com ela. Talvez estivesse seguindo a trilha da covardia, mas não tinha importância. Precisava dessa retirada estratégica para garantir sua sanidade mental. Necessitava de um refúgio onde pudesse lamber suas feridas com alguma privacidade. Tinha de pensar em que atitude tomar com relação ao casamento, se é que ainda havia um casamento com que se preocupar.

        O novo dia encontrou Thayer em péssimas condições. Sua cabeça doía, a boca estava seca e amarga, e saber que cometera um erro para o qual poderia não haver perdão o atormentava. Para aumentar sua infelicidade, tinha de responder a um chamado urgente do rei. Ele atendeu à convocação com grande relutância, esperando que o homem fosse breve. Precisava ver Gytha. Para aumentar sua frustração, o rei o manteve cativo por horas.

        - Viu Gytha? - ele perguntou a Roger no final da tarde, quando voltou aos aposentos do amigo.

        - Não. E também não vejo Bek desde ontem à noite.

        - Ele deve estar com Gytha - Thayer resmungou enquanto se lavava. Batidas na porta o irritaram ainda mais. - Quem pode ser?

        Roger foi atender ao chamado e, ao reconhecer a mulher parada no corredor, não escondeu a indignação.

        - O que quer aqui?

        Elizabeth entrou, mesmo sem ser convidada, e caminhou para Thayer.

        - Você parece estar muito bem - ela disse.

        - Em que posso ajudá-la? - ele disparou com frieza, tratando de se vestir rapidamente.

        - Bem, já que sua esposa partiu, achei que gostaria de me acompanhar às festividades desta noite.

        - Gytha partiu?

        - Sim. Soube que ela deixou a corte antes do nascer do dia e... Aonde vai? - ela perguntou assustada.

        Thayer não se deu ao trabalho de responder, porque já corria para fora do quarto seguido de perto por Roger.

        Um momento mais tarde, os dois homens entravam nos aposentos que Thayer havia dividido com Gytha. Ali estavam todas as provas necessárias, todos os sinais que confirmavam a partida repentina.

        - Espere até amanhã, você disse! Deixe-a superar a ira!

        - Jamais pensei que ela seria capaz de deixá-lo - Roger se defendeu.

        - Bem, é claro que ela partiu. O que é isto? - Ele se sentou sobre a cama para ler o bilhete que encontrara sobre ela.

        Thayer,

        Retornei a Riverfall. Bek está comigo. Fiz-me acompanhar por alguns homens de meu pai. Não precisa se apressar para vir me encontrar. Gytha

        Ele entregou a breve mensagem a Roger, que fechou os olhos por um instante depois de ler as palavras secas. Havia uma frieza evidente no bilhete. Thayer sabia que Gytha tinha consciência da intenção de Elizabeth; afinal, a mulher não era sutil. Mesmo assim, ela o deixara à mercê dos planos e ardis da megera. A atitude era mais eloqüente que todas as palavras. Ela o abandonava. Era isso.

        - Preciso ir atrás dela.

        - Não pode partir, Thayer. Não sem a permissão do rei.

        - Mas isso pode atrasar a viagem em semanas!

        - Gytha sabe que você não pode simplesmente abandonar a corte. Se essa sua tarefa se arrastar por muito tempo, converse com Edward. Explique a ele que tem assuntos pessoais para resolver. Pelo menos ela foi para Riverfall, não para a casa do pai.

        - Sim, mas a mensagem deixa claro que minha presença em Riverfall não é bem-vinda.

        - Ela ainda estava magoada quando escreveu o bilhete, Thayer. Talvez seja melhor assim. O tempo vai amenizar a dor.

        Ele não sabia se concordava com isso, mas Roger estava certo em dizer que nada poderia fazer, pelo menos naquele momento.

        - Sim... vou aproveitar esse tempo para encontrar o patife que causou toda essa horrível confusão.

        - Ele já deve estar a caminho de Londres.

        - Nesse caso, só está adiando o amargo fim da própria vida.

        Thayer tinha tempo. Muito tempo. O rei o enviava com alguns de seus homens em ataques contra pequenos covís de rebeldes e ladrões, bandidos que eram como praga naquela região. Ele jurou cumprir seus quarenta dias do serviço, mas não iria uma hora além disso.

        Margaret recebeu Gytha em Riverfall sem esconder a surpresa. Gytha contou à prima tudo que havia acontecido e, para sua irritação, teve de enfrentar a resposta compreensiva e racional de Margaret. Logo ficou claro que ela esperava convencê-la de seu ponto de vista antes da volta do senhor do lugar.

        Apesar do esforço persistente de Margaret, dias se passaram antes de Gytha começar a pensar realmente no que precisava fazer com relação ao casamento. Estava encurralada e, relutante, reconhecia que não queria mudar aquela situação. Não queria desistir de Thayer. Na verdade, já esperava ansiosa pela volta ou por alguma notícia do marido. Por mais profunda que fosse a mágoa, ainda pertencia a ele de corpo e alma. Seria necessário um bom tempo até que voltasse a amá-lo abertamente, com a liberdade de antes. Ele a ensinara a ser cautelosa, a desconfiar.

        Na véspera de seu quadragésimo primeiro dia na corte, Thayer disse ao rei que partiria para Riverfall na manhã seguinte. O rei permitiu relutante, e só depois de ser lembrado que a dívida do súdito leal já havia sido paga. Ele também ouviu Thayer falar sobre os problemas que teria de resolver em casa, questões cuja solução adiava havia um bom tempo. Como a repentina partida de Gytha fora motivo de comentários na corte, o rei Edward não o pressionou. Thayer partiu antes que o soberano pudesse re-considerar sua decisão. Quando se deitou para a última noite na corte, ele agradeceu a Deus por isso. As noites que passava sozinho na cama que antes dividira com Gytha eram as mais difíceis de enfrentar. Para conciliar o sono, acabava bebendo demais. Foram várias as noites em que Roger tivera de despi-lo e colocá-lo na cama.

        Eiizabeth ainda o assediava, tentando reacender a paixão ou reviver o feitiço que lançara sobre ele no passado. Estava ansioso para livrar-se dela. Ela era tediosa em alguns momentos, mas era sempre tentadora. Viril, solitário como estava, sentia o corpo clamar por uma mulher que se pusera longe de seu alcance. Mas quando se viu bem perto de Eiizabeth, que oferecia seus favores abertamente e com liberdade ultrajante, ele recuou sem se preocupar com a cortesia e as boas maneiras. Não importava que agora, depois de anos, pudesse finalmente devolver a humilhação sofrida por suas mãos. O que importava era que, rejeitando Eiizabeth, havia contraído uma inimizade perigosa e de grande peso.

        Enquanto esperava pelo amanhecer, ele tentou fortalecer sua coragem. Não era muito habilidoso com as palavras ou com as mulheres. Esperando por ele em Riverfall, estava uma mulher que ele havia magoado profundamente. Reparar essa situação exigia as palavras corretas, a abordagem, perfeita e oportuna. E não sabia ao certo se seria capaz.

        Os gritos de boas-vindas ecoavam por Riverfall. Houve uma repentina e frenética explosão de atividade. Gytha deduziu que Thayer tinha voltado. Diante da janela da torre na qual tantas horas passara em vão, ela o viu chegar. Devagar, desceu ao salão para ir recebê-lo. A cada passo ela lutava contra o impulso de recepcioná-lo com uma atitude fria e digna.

        Sentira falta dele. Mais do que gostaria de admitir. Cada noite havia parecido interminável. Preenchia os dias com trabalho para que não se arrastassem. E não queria que Thayer soubesse disso. Ainda não. O conhecimento daria a ele uma vantagem que, sabia, o bravo cavaleiro reconheceria e utilizaria.

        Ele a magoara. Pretendia fazê-lo reparar esse erro. Não o deixaria pensar que poderia tratá-la assim, depois agir como se nada houvesse mudado. Caso contrário, teria um futuro de dor e sofrimento, de ofensas seguidas por impunidade. E Thayer não ia querer a seu lado uma esposa tão fraca, tão desprovida de orgulho.

        Na verdade, o tempo havia reduzido a profundidade da dor. Obtivera até uma certa compreensão. Elizabeth o tinha marcado profundamente, e outras mulheres haviam colaborado para aprofundar essa cicatriz ao longo dos anos. Estava muito ofendida por ele, mas dispunha-se a entender. Porém, mesmo que o perdoasse por isso, tinha de encontrar um meio de modificar seu pensamento.

        Depois de rever o incidente muitas vezes, agora podia enxergar tudo com mais clareza. Podia imaginar a cena vista do ângulo de Thayer. Ela deitada no chão, sob o corpo de um homem jovem e belo. O marido ficara chocado. Certamente confundira passado e presente, Elizabeth e humilhação, Gytha e estupro. Porém, aquele não havia sido o melhor momento para se deixar dominar pela confusão.

        E também precisava considerar o tempo que passaram distantes. Como ele ocupara esse tempo? Teria sucumbido miais uma vez a Elizabeth? Ao partir, teria jogado o marido nas garras daquela víbora? Queria acreditar que ele era astuto o bastante para não se deixar vitimar mais uma vez, mas não conseguia esquecer que ele nunca havia declarado não mais amar Elizabeth.

        - Thayer está de volta, Gytha.

        Sorrindo para Margaret e Edna, que a esperavam apreensivas ao pé da escada, ela respondeu com cinismo:

        - Eu já desconfiava de alguma coisa nesse sentido.

        - O que pretende fazer?

        - Vou receber meu marido como é dever de uma boa esposa.

        - Gytha...

        - Margaret, se vai pregar a sabedoria do perdão, como tem feito todos os dias, quero que saiba que estou disposta a perdoar. Porém, não me colocarei submissa aos pés dele. Não estamos aqui tratando de uma questão simples, de uma mera discussão. Ele ficou parado enquanto eu quase fui estuprada. Entendo todos os motivos que meu marido teve para agir dessa maneira, mas isso só serve para amenizar um pouco o sentimento de traição e a amargura do insulto. Pense bem. Se agir como se nada tivesse acontecido, tornarei seu crime menor do que realmente foi. E também, se ele não fizer nenhuma tentativa para reparar o erro, isso vai me devorar por dentro. Não, Margaret. Espero que Thayer peça desculpas, no mínimo, ou nossa união estará condenada. - Ela terminou de descer a escada. - Também espero ouvir uma explicação, embora me disponha a compreender se ele não me der nenhuma. Talvez nem ele mesmo entenda o que fez.

        Gytha parou antes de alcançar a porta e respirou fundo.

        - Não deixarei de cumprir meus deveres de esposa. Jamais causaria essa vergonha a minha família e a mim mesma. Mas se Thayer espera mais que dever desse casamento, vai ter de reparar as conseqüências daquele horrível incidente. E eu estava pensando...

        - Em quê? - Margaret indagou preocupada.

        - Bem, talvez a melhor cura para essa ferida do meu casamento seja uma boa sangria.

        - Como assim?

        Não havia mais tempo para responder, pois Thayer e Roger já abriam a porta. Gytha sentiu o coração saltar dentro do peito, mas, contida, adiantou-se para cumprimentar o marido. A situação era mais difícil do que havia antecipado. Já sentia o sangue ferver nas veias, e ele ainda nem a tocara. Se continuasse assim, não poderia agir conforme tinha planejado. Teria de controlar o desejo por Thayer, ou ele o sentiria, como sempre, e usaria essa poderosa vantagem.

        Aproximando-se, ela ofereceu o rosto para um beijo formal.

        - Saudações, marido. Saudações, sir Roger. Sua chegada é uma surpresa para nós, mas estou certa de que logo tudo estará a contento em seus aposentos. Assim que se refrescarem e mudarem de roupa, haverá uma refeição quente à mesa.

        - Obrigado, milady - Roger respondeu enquanto Thayer continuou parado e sem ação.

        - Ah, Bek - ela chamou ao ver o garoto entrar no salão -, pode ter a gentileza de ajudar seu pai e sir Roger? Os criados já prepararam os banhos para eles. Vou ver como está o preparo da refeição. - Ela se retirou, antes de ceder à tentação e se atirar nos braços do marido.

        - Olá, Bek - Thayer finalmente falou, já seguindo o filho escada acima.

        - Olá, papai. Está zangado por eu ter partido?

        - Não. Há sempre muitos pajens no entourage real. Usei alguns deles.

        - É bom saber disso, porque ela precisava de mim. Thayer não sabia o que dizer. Por isso não disse nada.

        Depois de se ver livre da armadura, dispensou as criadas e o filho e se aproximou de uma das banheiras fumegantes preparadas nos aposentos de Roger.

        - Há uma intensa frieza no ar - ele resmungou enquanto entrava na banheira.

        - Sim, eu senti - Roger respondeu enquanto se acomodava na água quente.

        - E eu fiquei lá parado como um idiota. Não fui capaz de pronunciar uma única palavra.

        - Ela ainda está aqui, Thayer. Poderia ter ido para a casa da família.

        - Sim, eu sei, mas é difícil saber o que isso significa. Tão rígida, tão polida... Ela nunca foi assim.

        - Pelo menos ainda cuida de sua casa.

        - E isso significa alguma coisa? Roger deu de ombros.

        - Muitas esposas expressam a insatisfação com banhos frios e refeições sofríveis.

        - Ainda não comemos - Thayer disse, brincando.

        - Não, mas não a considero capaz de usar esse tipo de truque. Francamente, meu amigo, creio que seus problemas o esperam no quarto. Mais precisamente, no leito nupcial.

        - Era o que eu temia. Ela foi cordata e polida quando nos recebeu, está cumprindo os deveres de esposa com perfeição, ao menos no salão, mas duvido que tenha a intenção de continuar cumprindo esses deveres no quarto. E isso é algo que não vou suportar.

        - Então fale com ela, homem! Seja sincero!

        - Mesmo correndo o risco de me expor ao ridículo?

        - Mesmo assim. Não vejo outra saída.

        - Nem eu.

        Thayer ainda se agarrava à esperança de encontrar outra solução. Sabia que magoara Gytha, mas ainda esperava que ela houvesse refletido, compreendido sua reação e encerrado o assunto. Sabia que teria de fazer algum tipo de reparo, pedir desculpas, talvez, mas preferia não ter de rever todo o vergonhoso evento.

        Pensar que Gytha seria apenas obediente no leito nupcial era a mais terrível agonia. Não queria acreditar que podia ter matado sua paixão com aquele horrível insulto.

        Precisava dela. A energia da esposa era tão vital quanto o ar que respirava.

        - Vamos, meu amigo, saia logo desse banho e enfrente seu destino - Roger incentivou-o.

        - Sinto-me como se estivesse a um passo do cadafalso -Thayer confessou enquanto se enxugava.

        - Entendo.

        - Há muitas possibilidades de erro.

        - É verdade. - Vestido, Roger dirigiu-se à porta do quarto. - Estarei a seu lado quando a refeição for servida, mas agora quero desfrutar de um momento de privacidade com Margaret.

        - Não se atreva a brincar com essa mulher, Roger.

        - Não estou brincando.

        - Nesse caso... desejo-lhe boa sorte.

        Thayer suspirou ao ver o amigo sair. Estava feliz por Roger, esperançoso de que ele encontrasse as recompensas que seu coração merecia. Porém, parecia injusto que o destino colocasse no caminho do amigo, um amor que desabrochava, enquanto seu casamento desmoronava. Podia ver o fracasso pairando no horizonte. Era um castigo que não poderia suportar. Não se sentia forte o bastante para isso. Mas, mesmo deprimido como estava, tinha de enfrentar Gytha.

        Pronta para a refeição da noite, Gytha sentou-se para que Edna pudesse arranjar seu cabelo.

        - Viu Margaret? - Estranhando a demora da resposta, ela pressionou: - Edna? Sabe onde está Margaret?

        - Ela está com sir Roger, milady.

        - Ah... e temia falar por causa dos meus problemas?

        - Senhora, eu...

        - Não tema, Edna. Estou feliz por minha prima. Diga-me, acha que as intenções de sir Roger são sérias?

        - Sim, eu acho. Está nos olhos dele, milady.

        - Que bom. Ele é um bom homem. Nossa Margaret. merece o melhor. Suponho que ela nada tenha dito por considerar minhas dificuldades. Deve ter tido receio de ser indelicada. Confesso que sinto uma certa inveja, mas preciso dizer a ela que não tem de se esconder, Margaret é como uma irmã para mim. Compartilho de sua felicidade.

        - E ela de seu sofrimento, milady. Essa sua situação...

        - Sim, Edna?

        - Receio parecer impertinente, senhora.

        - Como se pudesse ser alguma outra coisa.

        - Sim, sei que sou muito impertinente. - Ela sorriu. - E quero falar sobre minha senhora e seu marido.

        - Fale, então. Não sou tola a ponto de pensar que sei mais do que você. Em uma questão grave como essa que agora vivo, só uma idiota poderia ignorar qualquer conselho.

        - Os homens são criaturas estranhas.

        - Não está fazendo nenhuma grande revelação, Edna.

        - E ainda não acabei. Eles sabem que erraram, mas não conseguem se desculpar. Quanto mais orgulhoso é o homem, maior a chance de sufocar com as palavras. Ele sabe o que deve dizer, mas não consegue falar.

        - Preciso de um pedido de desculpas, Edna.

        - Entendo. Sim, milady, e concordo. A razão para essa sua necessidade é mais do que correta. Se deixar um homem pensar que pode maltratá-la impunemente, nunca mais verá o fim de seu sofrimento. Porém, esse pedido de desculpas pode não ser direto, claro ou romântico como gostaria que fosse. Alguns homens sabem escolher palavras belas. Outros não. Se não as ouvir com grande atenção, talvez nem as perceba. E quanto a uma explicação sobre por que fizeram o que fizeram... Bem, isso é ainda mais difícil. E comum que nem eles mesmos entendam. - Já me perguntei exatamente isso, Edna. Se Thayer tem alguma compreensão sobre o que fez comigo.

        - Os homens não costumam analisar o motivo de suas ações. Especialmente se uma ação o faz parecer idiota. E isso torna o pedido de desculpas ainda mais difícil. Um homem prefere banir da mente e da memória esse tipo de coisa. Se pedem desculpas, é sempre de forma rápida e superficial. Nenhum homem gosta de implorar e pôr em risco seu orgulho.

        - E Thayer é um homem orgulhoso.

        - Sim, milady. Muito orgulhoso. E não é muito bom com as palavras.

        - Tem razão.

        - Mas o coração dele é verdadeiro. Ele sabe que errou. Tenho certeza de que vai tentar compensar esse erro, milady. E a senhora vai precisar estar atenta para perceber essa compensação, para ouvir esse pedido velado de desculpas.

        - Atenta... Sim, a menos que meu marido seja incentivado a adotar uma certa eloqüência.

        - Como assim?

        - Há uma coisa que aprendi sobre os homens, Edna. Alguns precisam do calor da ira para libertar a palavra. O que não podem dizer em um momento de calma e quietude, pode ser anunciado aos berros num acesso de raiva.

        É preciso apenas acender o pavio.

        - Tenha cuidado, milady. Não vai querer provocar um incêndio...

        - Thayer jamais me faria mal. Ele conhece bem a própria força. Pode quebrar tudo que houver à nossa volta, mas jamais me atacaria. Sendo assim, se ouvir algum estrondo por aqui, não se assuste. É tudo planejado. Ouvirei as palavras que necessito ouvir, nem que elas me ensurdeçam.

        Gytha desejava sentir-se tão confiante quanto soava. Acreditava honestamente que promover a ira de Thayer era a melhor maneira de fazê-lo falar, e não tinha dúvidas sobre o que afirmara a respeito da própria segurança. Thayer jamais a atacaria. O que a preocupava era o que ele poderia dizer. Afinal, seu marido estivera à mercê de Elizabeth por quase um mês.

        - Milady? - Edna chamou intrigada quando viu sua senhora dirigir-se à porta do quarto.

        - Sim? Mais algum conselho?   .

        - Não permita que ele a sacuda ou empurre nesse acesso de raiva. Em seu estado, não seria conveniente.

        - Meu estado?

        - O bebê que carrega no ventre. Certamente já sabe...

        - Suspeito. Como pode ter tanta certeza? - ela sussurrou.

        - Suas regras falharam nos últimos três períodos. Agora são quase quatro. Tem estado enjoada, mesmo que só ocasionalmente, sempre no início da manhã. E sua silhueta começa a mudar. Não tenho dúvidas de que esteja esperando o herdeiro de meu senhor.

        - Sabe muito sobre esse assunto?

        - Bem... um pouco.

        - Há alguma coisa que eu não deva fazer? - Foi impossível impedir o rubor que tingiu seu rosto. Ambas sabiam muito bem a que "coisas" ela se referia.

        Edna respondeu sem rodeios:

        - Não. Apenas não se deixe agredir. E cuide para não cair nem se machucar. Milady acredita que esse não é um bom momento para ter um filho?

        - Não é o melhor, Edna. - Gytha suspirou e se dirigiu ao salão.

        Saber que esperava um filho de Thayer provocava emoções confusas. Amava-o, e esse amor era tão forte que às vezes a amedrontava, e era esse sentimento que causava alegria por saber que estava grávida. Porém, ainda precisava esconder a emoção. Antes de revelar o que sentia, teria de esclarecer tudo que havia entre eles. Temia as conseqüências de um fracasso nessa missão de esclarecimento. A dor se cristalizaria. A frieza que agora fingia passaria a ser verdadeira, não mais um produto do orgulho ou uma ferramenta de proteção. E isso seria terrível para a criança.

        - Gytha?

        Bruscamente interrompida em sua sombria reflexão, ela se assustou com a voz de Margaret.

        -Oh, você me surpreendeu. O que faz aí? - Estranhou ver a prima sair do nicho sob a escada.

        -Queria falar com você antes de ir se juntar aos homens.

        - E espantoso como os problemas conjugais soltam a língua de todas as pessoas.

        Margaret ignorou o sarcasmo da prima.

        - Sei o que planeja fazer. Precisa mesmo enfurecê-lo?

        - Sim, preciso.

        - Gytha, não estou gostando disso.

        - A raiva o fará falar. Isso é tudo muito importante.

        - Tem certeza de que deseja ouvir tudo que ele tem para dizer?

        - Não, mas ouvirei mesmo assim. Sei o que a preocupa, e confesso que partilho de sua apreensão. Deixei meu marido sozinho na corte, ao alcance de uma víbora que não esconde o desejo por ele. E bem possível que Thayer tenha caído novamente sob o encanto da megera. E acho que serei capaz de perdoar esse deslize.

        - Tem certeza?

        - Sim. Quando o deixei lá eu já sabia o que poderia acontecer.

        - Então, por que o deixou?

        - Acha mesmo que poderíamos ter resolvido nossas diferenças na corte? No meio de toda aquela gente fofoqueira, maldosa e traiçoeira?

        - Não. E claro que não.

        - Além do mais, a magia ainda era muito recente. Eu precisava de tempo para recuperar-me. Sofrendo como estava, certamente o teria afastado de mim, e isso o teria empurrado para outros braços sem nenhuma dúvida. Nossos problemas só cresceriam e ganhariam complexidade.

        - Não creio que ele tenha quebrado os votos. Thayer é um homem honrado.

        - Muito honrado. Certa vez ele me disse que nunca tomaria amantes, desde que eu não recebesse nenhum outro homem em minha cama. E claro que ele pode ter interpretado minha partida como um anúncio de separação, como uma declaração da minha intenção de me deitar com outro homem, mas...

        - Isso não quer dizer que ele fez alguma coisa.

        - Não. Mas Thayer é um homem de grande... apetite - ela declarou, sorrindo, divertindo-se com o rubor de Margaret. ? Depois de uma batalha ele é sempre muito ardente, e duvido que o rei o tenha deixado descansar da espada. Thayer teve muitas noites de solidão depois de dias de luta sangrenta.

        - Você também esteve sozinha - Margaret lembrou.

        - Sim, e quero acreditar que ele não se envolverá com outras mulheres cada vez que estivermos longe um do outro. A única coisa pela qual oro é que não tenha se deitado com Elizabeth.

        - Ainda pensa no que ocorreu entre eles?

        - Penso no que ainda pode existir entre eles. Thayer nunca disse que deixou de amar aquela mulher. Disse apenas que a evita.

        - Não. Ele não poderia amar uma mulher como ela. Não quando tem você.

        - Margaret, agora sabe que o coração não pode ser comandado. Ele vai aonde deseja ir.

        - Então seu marido é um tolo.

        - Talvez. De qualquer maneira, eu gostaria muito de saber se ele ainda a ama, mesmo que a descoberta possa me fazer sofrer.

        - Entendo. Assim saberia em que terreno está pisando, que batalhas terá de lutar.

        - Exatamente. Ainda não sei se ela está realmente entre nós, ou se apenas me deixo envolver por receios sem fundamento.

        - Bem, ainda não tenho certeza de que concordo com seus métodos, mas compreendo que deva fazer alguma coisa. O casamento é um laço que não pode ser quebrado, e o seu é muito promissor. Vale a pena lutar por algo tão bonito.

        - E isso. E há outra razão para eu querer superar todo esse problema o quanto antes. Eu... estou esperando um filho.

        Margaret arregalou os olhos e abriu a boca.

        - Tem certeza? - ela murmurou.

        - Eu já suspeitava, e Edna acaba de confirmar minhas suspeitas.

        Margaret abraçou a prima. Quando recuou, a alegria havia dado lugar à apreensão em seu rosto.

        - Oh, Gytha, agora acho que deve abandonar essa idéia de despertar a ira de seu marido.

        - Não se preocupe. Os gritos serão ensurdecedores e a cena será assustadora, mas ele não vai me ferir. Diferente da maioria dos homens, Thayer tem consciência da própria força, por isso controla seu uso.

        - Não sei onde encontra tanta coragem - Margaret suspirou enquanto se dirigiam ao salão. - Já pensou que ele pode estar arrependido a ponto de se sentir deprimido? Isso impediria o ataque de fúria que deseja provocar.

        - Bobagem! - Gytha riu. - Culpado, arrependido, deprimido... Nenhum estado emocional pode impedir a fúria de meu marido, desde que ela seja adequadamente provocada.

        Ao ver a esposa entrar no salão com Margaret, Thayer preparou-se para o que poderia ser uma experiência bastante desafiadora para sua paciência. Havia prometido a si mesmo que controlaria o próprio temperamento. Porém, quando ela o cumprimentou com a mesma polidez que dirigia a Roger na mesa de refeições, compreendeu que manter a calma seria quase impossível.

        De repente percebia que ela o tratava como havia tratado os cortesãos afetados, com indiferença fria e boas maneiras. Isso o irritava. Não havia no comportamento de Gytha nenhuma indicação de intimidade conjugal. Não notara antes, mas agora que esse elo se rompera, sentia falta dele. E havia pouca esperança de recuperá-lo.

        Após alguns momentos de silêncio pesado, ele decidiu se arriscar.

        - Vejo que realizou muitos progressos por aqui.

        - Sim, mas ainda há muito a ser feito - ela respondeu sem encará-lo.

        - Já cumpri meus quarenta dias de serviço. Agora posso ficar aqui e ajudar a cuidar da propriedade.

        - Como preferir.

        Thayer respirou fundo, tentando sufocar os primeiros sinais de uma explosão temperamental.

        - E bom saber que se recuperou de sua enfermidade, Margaret. - E gostaria de entender por que ela parecia tão nervosa.

        - Muito obrigada, milorde. Janet foi uma enfermeira de grande valor.

        Thayer não sabia quem era Janet, e aproveitando essa ignorância ele conseguiu manter Margaret falando por alguns minutos. Estava um pouco mais calmo, embora ainda se mantivesse atento a cada reação da esposa. Era hora de tentar falar novamente com Gytha.

        - Não teve nenhuma dificuldade? - ele perguntou, lamentando não conseguir pensar em nada mais profundo para dizer.

        - Nada. Quer mais vinho, senhor meu marido?

        Ele assentiu e a viu chamar um pajem para servi-lo. Sabia que Gytha estava agindo assim de propósito. O silêncio, a frieza... Tudo era estudado, e irritante.

        Gytha observava o marido. Sabia que a raiva crescia a cada minuto, e logo ele perderia o controle. Mas havia outras emoções desfilando por seu rosto, e eram essas que realmente interessavam. Podia ver o medo em seus olhos. Seria esse um sinal de que Thayer também temia um afastamento definitivo? Havia culpa, também. Esperava que fosse apenas pela cena no jardim real, não por coisas que ele fizera depois de sua partida.

        Um olhar rápido foi suficiente para ela deduzir que Roger adivinhava seu plano. O sorriso divertido não a deteve. Pelo contrário, sentia que ele poderia ajudá-la. Thayer odiaria ver um de seus homens aliando-se a ela, e isso o enfureceria ainda mais.

        Era hora de dar o próximo passo. Queria resolver de uma vez por todas os problemas que a afligiam e mantinham separada do marido, porque seu corpo clamava pelo dele.

        Fingindo um desinteresse que estava longe de sentir, Thayer comentou:

        - Fomos mandados em buscas consecutivas. O rei queria encontrar e subjugar rebeldes e ladrões.

        - Há muitos por aí. - Ela preferiu não pensar no perigo que o marido havia enfrentado.

        Rangendo os dentes, Thayer prosseguiu:

        - Fui ferido em um desses confrontos.

        Seu coração parecia querer saltar do peito, mas ela o conteve com grande esforço. Não era fácil continuar falando com aquele tom frio e distante, mas precisava se empenhar. Era sua única chance de salvar o casamento e reacender a esperança de uma vida feliz ao lado do homem amado.

        - Parece ter se recuperado bem.

        Lembrando como ela reagira na última vez em que ele sofrerá um ferimento, Thayer se sentiu desapontado com a resposta indiferente.

        - Sim.

        - Quer que Janet examine o ferimento? Ela é muito habilidosa para cuidar de enfermidades de maneira geral.

        - Não.

        - Como preferir, meu marido.

        - O nome é Thayer - ele disparou, bebendo alguns goles na esperança de recuperar a compostura.

        - Sim, eu sei.

        - Então, por que não o utiliza?

        - Como preferir, Thayer. Quer frutas? - Ela apontou para um prato delas.

        Ele pegou uma maçã com um movimento furioso, e Gytha conteve o riso.

        Era um jogo delicado, um confronto de forças. Ela se empenhava para levá-lo ao descontrole, e ele se esforçava para não perder a calma. Quem seria o vencedor?

        Cada palavra polida de Gytha alimentava a ira que crescia no peito de Thayer. Lembrava como tudo havia sido entre eles antes da lamentável e odiosa cena no jardim real, e a dor da perda se juntava à revolta. Sabia que teria problemas digestivos mais tarde.

        Enquanto terminava de comer a maçã, ele observava sério a conversa entre Gytha, Roger e Margaret. Era como esfregar sal sobre uma ferida aberta. Sentia-se um hóspede em sua própria casa, e um hóspede não muito bem-vindo.

        Determinado a fazer um último esforço, ele perguntou:

        - Que outros planos fez para Riverfall?

        - Prefiro viver um dia de cada vez.

        - De fato? E o que planeja para amanhã, então?

        - Vou cuidar das ervas.

        - Que ervas?

        - As de sempre.

        - E claro. Quer ter um jardim como o de seu pai?

        - Se quiser um jardim como o dele, milorde...

        - Pensei que você queria um jardim assim.

        - Seria ótimo.

        - Então, plante-o.

        - Como quiser, meu marido. Deseja mais vinho?

        - Está tentando me embriagar?

        - Se quiser, milorde...

        Gytha pensou que Thayer não devia ranger os dentes daquela maneira. Podia ser perigoso. Ela sorriu para Margaret, que estava pálida de medo, e para Roger, que mal podia conter o riso. E desviou o olhar quando o patife piscou para ela, assinalando sua cumplicidade. A fúria que crescia no peito de Thayer era quase tangível. Gytha tentava não sorrir satisfeita com a vitória iminente. Precisava manter as respostas breves e polidas, embora Thayer formulasse perguntas cada vez mais elaboradas, tentando obter explicações mais longas e complexas. E cada resposta breve era mais um sopro nas brasas que logo se transformariam em incêndio. O jogo prosseguia. Na medida em que outros iam percebendo sua atenção, o salão ia ficando mais e mais silencioso. Todos olhavam para ela, confirmando sua impressão anterior.

        Ninguém teria coragem para provocar o Diabo Vermelho como ela fazia.

        - Bek a ajudou enquanto eu estive fora? - Thayer perguntou ofegante, tal a ira que tentava sufocar.

        - Sim. Quer mais maçã?

        - Não.

        - Como quiser, meu marido.

        Nesse momento ela viu a luz nos olhos de Thayer e soube que finalmente alcançara seu objetivo. A tempestade se abateria sobre Riverfall.

 

        - Chega!

        Gytha tentou não se encolher. O urro de Thayer podia tê-la ensurdecido. Esperava recuperar a audição plena para ouvir o que o marido teria para lhe dizer quando ficassem sozinhos.

        - Algum problema, marido?

        - Já disse que o nome é Thayer!

        - Sim, Thayer. Eu... - Ela se calou ao ser repentinamente arrancada da cadeira por mãos fortes.

        - Se disser "como preferir" mais uma vez, juro que vou estrangular você! Venha comigo.

        - Já acabou de comer?

        - Sim, acabei! - ele berrou, arrastando-a para a escada.

        No quarto, ele a sentou sobre a cama com violência contida, voltou para fechar a porta e respirou fundo, tentando se controlar. Não era fácil.

        -Gytha...

        - Sim, meu marido?

        - Sou um hóspede nesta casa? E isso?

        - É claro que não. Você é meu marido, e eu sou sua esposa obediente.

        - Muito obediente. E fria. É assim que pretende punir-me?

        - Puni-lo?

        - Sei que não a protegi como era meu dever...

        - É verdade. - Ela ficou em pé para encará-lo. - E também me insultou. Comparou-me àquela meretriz! - Sabia que a raiva de Thayer perdia força, mas não tinha importância, porque agora ela estava furiosa pelos dois. - Cheguei casta ao nosso leito conjugal, mas você preferiu acreditar que eu tinha a índole de uma prostituta. Durante todo o tempo comportou-se como um abutre ao lado de um cadáver, esperando paciente que eu agisse como a bela e elegante Elizabeth.

        - E por que não? Os homens a seguem e devoram com os olhos. Não hesitam em assediá-la com elogios e palavras de amor.

        - É verdade, e você me deixou à mercê daqueles palhaços lascivos da corte!

        - Você não parecia muito ansiosa por minha companhia.

        - Tem certeza de que estava prestando atenção, marido?

        - Thayer! - ele gritou. - Pare com essa idiotice de me chamar de milorde, marido ou meu senhor!

        - Como quiser - ela provocou.

        - Muito bem - ele respondeu em voz baixa, respirando com grande dificuldade. - Pensei em todas as acusações que me fez. Sei que tive terríveis e amargas experiências com belas damas de fino trato, mulheres que dizem palavras doces e oferecem seus corpos com liberdade, mas resguardam o coração e se entregam a muitos homens ao mesmo tempo, enganando-os com suas mentiras. Por isso fiquei horrorizado quando fui informado de que seria seu marido. Antevi um futuro de amargura, anos que viveria tropeçando em belos cortesãos buscando sua cama... nossa cama! Antevi o riso, o escárnio, a humilhação... Naquela noite no jardim, eu me vi encurralado entre o passado e o presente. O choque foi mais forte que tudo, porque havia acabado de descobrir que estava livre de Elizabeth. Você me havia dado a liberdade. E então eu a vi deitada no chão... - Ele parou e fechou os olhos por um momento. - Agora sei que só estive ali por um momento, não por horas seguidas, até minha mente recuperar a clareza. Compreendi que o que eu tinha visto não estava realmente ali, mas era tarde demais. Você já se havia defendido e libertado. Nunca senti vergonha maior. Por que saiu com ele do salão da corte?

        - Ainda está procurando por um pecado que nunca existiu? Saí com aquele patife miserável porque não estava raciocinando. Ele tirou proveito de um momento de confusão.

        - O patife miserável está morto.

        A notícia a deixou chocada e paralisada por um momento. Porém, logo retomou o assunto que era discutido ali.

        - Havia visto meu marido deixar o salão de braços dados com outra mulher.

        Sem pressa, ela começou a se preparar para deitar. Thayer já havia dito quase tudo que ela desejava ouvir. Agora era hora de promover a reconciliação. Porém, ainda havia alguns detalhes que gostaria de entender, e provocá-lo sensualmente seria uma maneira certa de soltar sua língua.

        - A megera disse que precisava de ar, porque se sentia à beira de um desmaio!

        - Um truque mais velho que o mundo. - Gytha riu com amargura.

        - Sim, eu sei, mas precisava testar minha recente descoberta.

        - Podia ter escolhido uma ocasião mais oportuna para realizar esse teste. - Ela começou a soltar os cabelos. - Teria frustrado o jogo mesquinho de Elizabeth. Ela sabia que, se me visse nos braços de outro homem, você condenaria primeiro para raciocinar depois.

        - Quer dizer... que foi tudo um plano? Tem certeza?

        - Bek me contou. Ele ouviu a mãe conversando com aquele homem antes de se aproximar de você.

        - Mas por quê? Elizabeth quer um marido, e eu já sou casado.

        - Um amante rico e generoso a teria tirado da miséria enquanto ela não encontra um marido. E também teria preenchido o espaço vazio em sua cama. Na verdade, ela foi muito precisa quanto a sua capacidade nesse aspecto. E ela estava certa de que o teria de volta, caso eu saísse do caminho.

        - E mesmo assim, conhecendo os planos de Elizabeth, você me deixou.

        - Não estava preocupada com Elizabeth e sua cama. Naquele momento eu era só um animal ferido. Busquei minha toca para lamber as feridas.

        - Não me deitei com ela, por mais que Elizabeth tenha me tentado.

        - Não duvido disso.

        - Não me deitei com nenhuma mulher. Passei minhas noites encharcado de vinho e numa cama vazia, tentando sufocar o medo de que essa fosse uma condição definitiva. - Ele se aproximou e tocou os cabelos de Gytha. - Não houve outra. Nem mesmo quando eu retornava da batalha com o sangue ainda fervendo. Foi numa dessas situações que Elizabeth mais me tentou, mas minha rejeição foi direta, rude.

        Gytha o encarou com um novo brilho no olhar.

        - Deve estar faminto, então - ela sussurrou sedutora.

        - Oh, Gytha... - Thayer a apertou entre os braços, aliviado ao não encontrar nela nenhuma relutância. - Minha doce Gytha... - Ele a beijou com paixão.

        Mais tarde, Gytha se virou nos braços do marido para fitá-lo na escuridão do quarto.

        - Onde foi ferido? - ela perguntou preocupada, lembrando como o havia tocado durante o ato de amor.

        - Não fui.

        - Não foi? Então...?

        - Queria provocar alguma reação, superar aquela muralha de frieza.

        - Thayer! - Ela riu. Ele estreitou o abraço, deixando as mãos deslizarem por sua cintura.

        - Estou enganado, ou você engordou um pouco desde que nos separamos?

        - Ganhei peso, sim.

        - Falta de atividade física, imagino. Especialmente...

        - Não, meu caro marido. Creio que a razão para esses quilos a mais é justamente o oposto do que diz. Excesso de atividade física. Especialmente à noite.

        - O que quer dizer? - Ele apertou-a na cintura.

        - Cuidado. Pode perturbar o bebê.

        - O...?-Thayer se sentou na cama.-Está esperando um bebê?

        - Foi o que acabei de dizer.

        - E eu sou o pai?

        - Thayer! E claro que sim!

        - Eu não estava presente quando Bek nasceu. - Ele pulou da cama.

        - Aonde vai?

        - Preciso contar a alguém! - Thayer gritou eufórico enquanto vestia o robe, já a caminho da porta. - Por Deus! Espero que Roger esteja acordado!

        Thayer invadiu os aposentos do amigo sem sequer bater na porta. Descontrolado, ele segurou-o pelos ombros e o sacudiu.

        - Acorde! Isso não é hora de dormir! Roger sentiu-se assustado.

        - Fomos atacados? Inimigos?

        - Não! Eu vou ser pai!

        - Você já é pai.

        - De novo. E a mãe agora é Gytha. Ela está esperando um filho meu.

        - Ah... parabéns. - Roger riu, compreendendo o estranho comportamento do amigo. - Quando?

        - Quando?

        - Sim, quando. A criança vai nascer quando?

        - Ah... Não sei. Esqueci de perguntar. - Ele saiu correndo sem se importar com as gargalhadas de Roger.

        Gytha, que aproveitara o momento de privacidade para se lavar e atender ao chamado da natureza, estava servindo vinho em uma caneca quando quase derrubou o líquido por causa do estrondo da porta. Era Thayer que retornava ainda mais agitado que antes.

        - Quando?

        - Quando o quê? - ela devolveu confusa.

        - Quando o bebê vai nascer?

        - Ah... em cinco meses, mais ou menos. Ele saiu correndo novamente.

        Depois de invadir o quarto de Roger pela segunda vez, anunciou:

        - Dentro de cinco meses! Cinco meses! Vou envelhecer enquanto espero!

        - Muitos homens esperam nove meses.

        - Quer dizer que ela está errada? Não são cinco meses?

        - Não, Thayer. Quero dizer que ela está grávida há quatro meses. Quase a metade da gestação já passou. Devia estar grato por isso.

        - Sim, é claro. Mas ela devia estar descansando.

        - As mulheres são mais fortes do que parecem, meu amigo. Especialmente quando esperam um bebê.

        - Talvez, mas vou me dedicar mais à minha esposa, agora que teremos um filho.

        - Resolveram tudo, então?

        - Sim, os problemas foram solucionados. - Thayer já se encaminhava para a porta. - Tenha uma boa noite, Roger. Nomes - ele resmungou. - Preciso pensar em alguns nomes.

        Mais uma vez, Gytha foi surpreendida pela entrada repentina do marido. Como se não bastasse, ele a pegou nos braços e a levou do toucador, onde ela escovava os cabelos, para a cama.

        - Precisa descansar.

        - Thayer, sou uma mulher forte e saudável. Quase nem tive enjôos, e os poucos que tive já desapareceram.

        - Enjôo? - Ele a encarou horrorizado. - Esteve enjoada?

        - No começo da gravidez, todas as mulheres têm náuseas. Depois passa. A minha foi tão leve que quase nem a percebi.

        - Ah, sim... E claro. Não estou raciocinando com clareza. Mas agora você está bem?

        - Muito bem. Não precisa se preocupar.

        - E difícil... Já pode sentir o bebê? - ele perguntou, tocando seu ventre com reverência.

        - Sim, às vezes. Duvido que você já possa sentir os movimentos. E só uma agitação rápida... - Ela começou a se levantar.

        - Aonde vai?

        - Levar a caneca vazia. Terminei de beber o vinho.

        - Eu cuido disso. Deite-se e descanse.

        Gytha mal teve tempo de se acomodar sob as cobertas antes de o marido voltar. Ele a cobriu e se deitou a seu lado, tomando-a nos braços com uma delicadeza comovente, como se tocasse um cristal muito fino. Ela começou a ter um incômodo pressentimento sobre os próximos cinco meses. A sensação ganhou força nos momentos seguintes, alimentada pela imobilidade dele. Precisava encontrar um meio de livrá-lo dessa noção absurda.

        Thayer olhou para ela e perguntou:

        - Como se sente com relação a essa criança?

        - Encantada. E ainda é pouco. Só hoje tive certeza. Edna confirmou minha suspeita.

        - Pai! Por Deus, é difícil acreditar! Que maravilha!

        - Você já é pai, Thayer.

        - Se pensa que vou dar as costas para ele, não se preocupe. Bek é meu filho, e isso é um elo que jamais esquecerei. A mãe de Bek só me causou sofrimento e humilhação. Tentou arrancá-lo do corpo e tentou matá-lo logo depois do nascimento. Eu nem soube da gravidez. Dessa vez vou participar de tudo desde o início. Eu amo Bek. Ele sabe disso. Farei tudo que puder para dar a ele um futuro e alguma fortuna, e o reconheço como meu filho diante de todos e em todas as circunstâncias. A única amargura que ele pode sentir é contra a mãe, e acho que esse sentimento já existe. Você o conforta com seu carinho.

        - Gosto de pensar que existe afeto entre nós.

        - É possível notar esse sentimento. Bek é um menino muito carinhoso. Ele nunca saiu de perto de mim. Desde que o recebi da mãe, nunca o abandonei e nem ele quis ir embora.

        - Thayer, ele partiu comigo - Gytha sussurrou, compreendendo repentinamente o que isso significava.

        - E verdade. E nem me consultou antes de partir. Isso é bom.

        - Bom?

        - Sempre fiz questão de mostrar a ele quem é Elizabeth. Não queria que ele alimentasse esperanças vãs. Agora sei que meu esforço rendeu frutos. Se ele se agarrou em você tão rapidamente, é porque não tem nenhum vínculo com a mãe.

        - Ele ouviu coisas que foram ditas sobre ela. E vai ouvir ainda mais. É inevitável. Mas, como é um menino justo, aproveitou a breve estadia na corte para ver por si mesmo quem é Elizabeth.

        - Ele falou com a mãe?

        - Não, mas a observou. E a seguiu. Foi assim que ele descobriu tudo sobre o plano que ela tramou contra mim. Contra nós.

        Thayer suspirou, cheio de pesar pelo filho.

        - E uma lição muito dura para um menino ainda tão jovem. Entendo que os meninos não mantêm uma ligação muito forte com suas mães, mas ninguém gosta de descobrir coisas negativas sobre elas.

        - Não sei se ele se incomodou muito com tudo isso. Não notei amargura ou revolta, e Bek não voltou a tocar no assunto desde que me contou sobre o que ouvira na corte.

        - Talvez eu deva falar com ele.

        - Pode ser bom.

        Gytha o beijou no pescoço.

        Thayer sabia o que ela pretendia, mas tratou de ignorar o convite nada sutil.

        - Vamos escolher nomes para meninos e meninas. Sorrindo ao detectar a rouquidão na voz dele, Gytha mudou de posição e beijou o canto da boca do marido.

        Ele a segurou pelos cabelos, tentando contê-la. O truque foi ineficiente.

        - Gytha, você está grávida...

        - Eu sei. Não foi exatamente isso que acabei de lhe contar? - Ela continuou descrevendo uma trilha de fogo com os beijos que ia depositando em seu rosto, entre o queixo e a orelha.

        - Mas... Você é tão pequena! E eu sou muito grande...

        - Hum... Enorme!

        - Posso ferir o bebê.

        - Ainda tenho muito para aprender sobre gravidez e parto, mas há uma coisa que já sei: os primeiros três meses são os mais perigosos, porque é nesse período em que existe maior possibilidade de perder a criança. E eu já estou grávida há quatro meses.

        - Quatro meses...

        - Exatamente. E o que fizemos há um mês, Thayer?

        - Há um mês? - Era difícil pensar. A febre que ardia em seu corpo afetava o raciocínio e prejudicava a memória. - Acho que... fizemos amor. E eu podia ter machucado...

        - Mas não machucou. Sendo assim, que conclusões podemos tirar disso, meu grande e obtuso marido?

        - Que fazer amor não vai prejudicar o bebê?

        - Exatamente!

        - Então...?

        - Thayer, chega! Pare de fazer tantas perguntas e venha dar prazer à sua mulher! Até uma esposa obediente como eu pode perder a paciência em certas circunstâncias.

        Rindo, ele a tomou nos braços e beijou com ardor, entregando-se às delícias que só podia viver com sua doce Gytha.

        Gytha estava feliz. Muito feliz. Resolvera todos os problemas com o marido, tinha certeza de que Elizabeth não ameaçava sua felicidade, e ainda teria um filho do homem que amava. Dormir nos braços dele era tudo que podia querer depois do prazer intenso que acabara de experimentar.

        Mas ainda havia uma nuvem no horizonte. Uma última dúvida a sanar.

        - Thayer?

        - Já devia estar dormindo, Gytha - ele respondeu sonolento. - O bebê...

        - E só uma pergunta. A última.

        - O que é?

        - Disse que Dennis está morto?

        - Sim. O patife voltou à corte pouco antes de eu partir. Como não tentei encontrá-lo imediatamente depois da ofensa, ele julgou estar seguro. Eu o desafiei. Foi uma luta justa da qual ele saiu derrotado. Mesmo que tardiamente, vinguei o insulto contra sua honra. Isso a incomoda?

        - O que me incomoda é saber que a honra maculada só pode ser lavada com sangue. Mas, se é assim... - Era terrível pensar que Elizabeth, a grande e verdadeira culpada de tudo, saíra ilesa da situação.

        - Agora durma, Gytha. Você precisa descansar. Estava mesmo muito cansada.

        - Eu vou dormir. Mas não quero que se preocupe comigo.

        - Não estou preocupado - ele mentiu, incapaz de ignorar os temores que já superavam a alegria causada pela notícia da gravidez.

        Gytha adormeceu em seus braços. Havia muitas noites não a tinha a seu lado, e passara muitos dias se perguntando se algum dia voltaria a tê-la. Por um tempo, ele manteve a mente livre de todos os pensamentos, concentrando-se apenas na felicidade de poder senti-la novamente.

        Porém, por maior que fosse a felicidade, era impossível seguir ignorando todos os pensamentos a respeito do que poderia acontecer. A preocupação exigia ser reconhecida.

        Emoções confusas o invadiam, todas relacionadas à criança que nasceria em breve. Eram contraditórias, algumas mais intensas que outras. Sentia euforia, felicidade e terror. Agradecia a Deus por esse presente, mas também lamentava que a união houvesse frutificado. Mal podia esperar para ter nos braços o filho de Gytha, mas também desejava que ela nunca houvesse concebido.

        A morte pairava sobre o leito do parto. Era impossível não pensar nisso. As palavras "morta no parto" estavam gravadas em muitas lápides. Muitas mulheres tinham a vida interrompida nesse momento que devia ser de alegria e beleza. Mulheres pobres e ricas, amadas ou não, belas ou feias. Até as fortes e saudáveis podiam cair vítimas de um parto complicado. Até Gytha...

        Ele se recusou a seguir essa linha de pensamento.

        Apertou-a contra o corpo, sorrindo ao ouvi-la murmurar seu nome. Queria protegê-la da ameaça que nenhuma espada podia deter. Se a vontade de um homem tinha algum peso no jogo da vida e da morte, nada poderia arrancá-la de seus braços.

        Mas Thayer sabia que nada era mais forte que a vontade de Deus. Tudo que podia fazer era esperar para ver o que aconteceria. Porém, pensar no faturo sem Gytha o impediu de dormir naquela noite. E sabia que a noite de insônia era só a primeira de muitas que ainda viriam.

        - Tenho a sensação de liderar uma procissão - Gytha comentou enquanto olhava para trás, observando os quatro homens armados que a seguiam.

        Margaret riu e piscou para Bek, que se divertia com a situação.

        - Thayer diz que você deve ser protegida.

        - E estou mais do que protegida. O único lugar em que consigo estar sozinha é no banheiro, e não me surpreenderia encontrar um guarda parado na porta ao sair. - Olhando em volta pelo vilarejo por onde caminhavam, ela suspirou. - Acho que as pessoas se assustam com essa demonstração de força.

        - Não. O povo fica atento, é verdade, mas não assustado.

        - Eles se mantêm bem afastados de nós.

        - Bem, eles percebem que você está protegida e deduzem que há algum motivo para isso. Não querem fazer nenhum movimento que os homens possam considerar perigoso. Por isso ficam distantes, quietos.

        - Eu sei. Só me queixo porque estou cansada de toda essa história. Não fomos mais ameaçados por Pickney.

        - Acha que ele desistiu dos planos?

        - Quem sabe?

        - Até alguém ter certeza do fim do perigo, você vai continuar protegida. - Margaret segurou o braço da prima. - Duvido que seu marido permita que saia por aí sem escolta, mesmo que Pickney não represente mais uma ameaça.

        - E - Bek acrescentou, balançando a mão que segurava a de Gytha -, papai diz que agora tem de proteger vocês dois.

        - Minha barriga ainda nem aparece. - Ela riu.

        - Acha que terei um irmão?

        - Tenho me sentido um pouco irritada e mal-humorada desde o início da gestação. Dizem que esse tipo de alteração acontece quando o bebê é menino. Você quer um irmão?

        - Sim, mas papai diz que devo rezar pedindo apenas para o bebê ser saudável, então... - Ele franziu a testa ao ver uma mulher baixa e roliça acenando para eles na frente da hospedaria. - Quem é aquela?

        - Não sei - Gytha respondeu, olhando para Merlion com ar espantado ao vê-lo se colocar diante dela. - Conhece essa mulher, sir Merlion? Ela pode estar acenando para um de vocês.

        - Não, nenhum dos homens a conhece. Vou verificar o que ela deseja.

        Ao ver Merlion caminhando em sua direção, a mulher recuou um passo.

        Gytha notou que a expressão de Merlion ia se tornando mais sombria na medida em que ele falava com a desconhecida. Havia nela algo de familiar. Por um momento, Gytha pensou tê-la visto na corte, mas não podia ter certeza. Vira tantos rostos, todos tão parecidos... Era impossível afirmar.

        Quando Merlion retornou, ela sentia uma mistura de Curiosidade e desconforto. - O que ela quer?

        - A mulher é criada pessoal de lady Elizabeth - respondeu Merlion com tom contrariado.

        - Lady Elizabeth? O que essa mulher faz aqui?

        - Parece que ela veio procurá-la, milady. Pretendia cavalgar até Riverfall amanhã cedo, mas quando a viu aqui, ela decidiu providenciar um encontro imediatamente. E ela também quer falar com Bek.

        - Ela disse por quê?

        - Para se redimir.

        Havia uma evidente incredulidade na voz de Merlion, e Gytha compartilhava do sentimento. Elizabeth não era o tipo de mulher que pedia desculpas. Por outro lado, ela podia estar preocupada com a própria segurança. Devia saber que Thayer já havia tomado conhecimento de sua participação no episódio no jardim do rei. Dennis fora morto por isso. Elizabeth devia estar esperando algum tipo de retaliação.

        Por um momento, Gytha pensou em se negar a falar com ela. Seria um merecido castigo deixá-la consumida pelo medo e pela apreensão. Mas tinha de pensar em Bek. Elizabeth era a mãe dele. Mesmo que o pedido de desculpas não fosse sincero, mas uma simples maneira de escapar das conseqüências de seus atos maldosos, seria bom para o menino ouvir a mãe manifestar arrependimento.

        - Ela está na hospedaria?

        - Sim. A criada disse que a levará até sua senhora. Não gosto disso, milady.

        - Bem, sir Merlion, também não desejo rever essa mulher, mas... - Ela inclinou a cabeça na direção de Bek. - O encontro pode beneficiar algumas pessoas. E não imagino que tipo de problema pode advir de uma breve conversa com lady Elizabeth.

        - Ela só receberá milady e o menino. Mais ninguém.

        - Não me surpreende. Se quisesse pedir desculpas por alguma coisa, também não ia querer uma platéia tão numerosa e bem armada. Além do mais, não caberíamos todos em um quarto da hospedaria.

        - Seria preferível que ela fosse pedir desculpas em Riverfall.

        - Na verdade, prefiro resolver isso hoje mesmo, o quanto antes. E também prefiro que ela não se aproxime de Riverfall. - Ela olhou para o menino. - Lamento, Bek, mas é o que sinto.

        - Eu entendo. Ela foi cruel com você. - Bek olhou para Merlion. - Eu estarei com Gytha, senhor, caso haja algum problema.

        Merlion sorriu.

        - E verdade. Bem, vá então, milady. Estarei aqui com os homens esperando por seu retorno. Não podemos nos demorar.

        - Não vamos demorar. Leve os homens para beber uma cerveja na hospedaria, sir Merlion. Depois de toda essa caminhada, eles merecem um pouco de conforto.

        Gytha se afastou do grupo e caminhou na direção da criada. Podia ouvir os homens um passo atrás dela. Eles não a seguiriam ao quarto, mas estariam dentro da hospedaria, o que já seria um conforto. Não acreditava que Elizabeth seria estúpida a ponto de tentar atingi-la novamente, mas também não confiava na mulher. Segurando a mão de Bek, ela esperou que o menino não tivesse de ver novamente o lado diabólico da mãe.

        Atrás da criada, Gytha entrou na hospedaria. Quando parou para esperar a criada abrir a porta do quarto de Elizabeth, ela sentiu Bek apertar sua mão e compartilhou do nervosismo do menino.

        Respirando fundo para se acalmar, ela entrou no aposento. Elizabeth se mantinha tão bela quanto na corte. E também exibia a mesma atitude altiva e arrogante, in-congruente com alguém que pretende se desculpar.

        - Ora, ora... - Elizabeth disse olhando para o ventre de Gytha. - Vejo que o homem ainda é fértil.

        Certa de que pedir desculpas não era a intenção da detestável dama, Gytha perguntou:

        - O que deseja, Elizabeth?

        - Ah... bem, não desejo nada...

        Alarmada pelo sorriso vitorioso nos lábios da mulher, Gytha se virou para sair e foi detida por um baque. De repente Bek se tornou um peso morto pendurado em sua mão.. O menino caiu com um lado do rosto ensangüentado. A mão inerte escorregou de seus dedos. Ela abriu a boca para gritar, mas foi silenciada por uma enorme e imunda mão. Gytha se debateu, tentando lutar, mas uma forte dor em sua cabeça a deixou sem forças. A gargalhada de Elizabeth foi o último som que ela registrou antes de perder os sentidos.

        - Depressa, tire-a daqui - ela ordenou enquanto pegava o manto, chamando a criada para ajudá-la a cobrir-se.

        - Deixe o menino. Os homens que a escoltam logo estarão aqui em cima. É melhor sairmos rápido. - Empurrando a aturdida criada, Elizabeth saltou sobre o filho desfalecido e foi abrir a porta.

        Merlion decidiu que era hora de pôr fim ao encontro entre Elizabeth e Gytha. Não devia ter permitido que sua senhora se dirigisse ao quarto sozinha. Deixara a hospedaria para ir urinar do lado de fora, e ao retornar ele encontrou Thayer e Roger na porta, o que o fez sentir-se ainda mais tolo.

        - Onde está Gytha? - Thayer perguntou.

        - Lá em cima. Em um dos quartos.

        - Ela não se sente bem?

        - Não há nada de errado com ela. Milady foi ao encontro de lady Eiizabeth.

        A expressão de Thayer sugeria que Merlion estava encrencado. -Você a deixou ir sozinha ao encontro daquela víbora?

        - A criada afirmou que sua senhora só queria se desculpar.

        - Eiizabeth? Pedindo desculpas?

        - E possível. Ela pode temer alguma retaliação, agora que Dennis está morto...

        - Sim, é possível, mas deixar Gytha ir encontrar aquela megera sozinha...

        - Bek está com ela. O menino... Oh, meu bom Jesus! Virando-se para descobrir o que fizera Merlion ficar repentinamente tão pálido, Thayer praguejou. Com o rosto desprovido de cor e sujo de sangue, Bek descia cambaleante a escada da hospedaria. Thayer correu a ampará-lo. Sentado em um dos bancos do salão, ele acomodou o filho a seu lado, mantendo um braço em torno de seus ombros. Alguém pôs em sua mão uma toalha umedecida. Ele percebeu que tremia quando começou a limpar o rosto do menino. O estado de Bek só podia ter um significado: alguém havia levado Gytha.

        Ajoelhando-se, Roger ajudou o garoto, ainda atordoado, beber um pouco de caldo.

        - Já examinei a cabeça dele, Thayer. Encontrei um galo enorme e um corte superficial, mais nada. Bek, acha que consegue nos dizer o que aconteceu?

        - Não tenho certeza - sussurrou o menino, incapaz de conter as lágrimas de dor e medo.

        - Você foi encontrar sua mãe - Thayer lembrou, tentando conter a aflição e o pânico.

        - Sim, ela... disse que queria pedir desculpas a Gytha. Mas ela mentiu. Gytha desapareceu.

        Thayer fechou os olhos e respirou fundo. Ceder ao desespero não o ajudaria a resgatar a esposa.

        - Viu quem a levou? - perguntou.

        - Não. Minha mãe disse que não queria nada. Gytha parecia preocupada e... E alguém bateu na minha cabeça. Quando acordei, não havia mais ninguém no quarto. Não fui capaz de protegê-la.

        - Filho, você foi atacado pelas costas. Podia ter acontecido comigo ou com Roger... Com qualquer um.

        Margaret se aproximou de Thayer.

        - Deixe-me levar o menino, milorde. Ele precisa de um curativo nesse corte.

        - Obrigado, Margaret.

        Assim que ela se retirou com Bek, Merlion falou:

        - Os homens já saíram em busca de alguém ou alguma coisa. Acha que lady Eiizabeth se aliou a Pickney?

        - O que mais pode ser? - Thayer disparou furioso. - Pickney é o único que está atrás de Gytha.

        Merlion passou a mão na cabeça.

        - Eu não queria permitir o encontro, Thayer, mas nunca imaginei que isso pudesse acontecer.

        - E por que deveria imaginar? Até onde sei, Pickney e Elizabeth nunca se encontraram. Nunca disse a ninguém que Eiizabeth merecia cuidados especiais. Quando saí da corte, eu já sabia que havia contraído uma inimiga perigosa. De alguma forma, ela descobriu o que Pickney pretende e viu nele uma chance de vingar-se da humilhação que pensa ter sofrido com minha recusa. Por que Gytha foi encontrar essa mulher?

        - Acho que ela foi pelo menino. Duvido que tenha esperado um pedido sincero de desculpas, mas ela queria que o menino o escutasse.

        - Sim, eu entendo. - Thayer levantou-se de um salto. Preciso ir procurar por Gytha.

        Com a ajuda de Merlion, Roger conteve Thayer já a caminho da porta.

        - Espere os homens voltarem com notícias. Não é bom sair por aí às cegas. Pickney a quer casada com Robert. Não é a vida dela que corre perigo.

        - Não? Ela carrega meu herdeiro, Roger. Se a criança nascer e viver, Robert não poderá mais herdar Saitun Manor. E é isso que Pickney quer.

        - Acho que é hora de mandar avisar a família dela - Roger opinou.

        - Sim, assim que soubermos um pouco mais. Os homens já estão retornando.

        Com grande esforço Thayer conseguiu ficar onde estava, Porem, ao ver quem os homens arrastavam para dentro da hospedaria, ele nem tentou se conter. Roger e Merlion precisaram de muita força para conter o avanço mortal contra Elizabeth. Ao vê-lo contido e mais calmo, o terror da mulher deu lugar à velha arrogância.

        - O que descobriram? - Thayer perguntou aos homens. Torr, o líder do grupo, respondeu:

        - Pouco, exceto por essas duas. - Ele apontou para Elizabeth e sua criada. A mulher tremia e choramingava apavorada.

        - Exijo ser libertada imediatamente - Elizabeth declarou com altivez, tentando ajeitar as roupas descompostas.

        - Não está em posição de exigir nada - Thayer respondeu furioso. - O que faz em minhas terras?

        - Viajava para ir visitar minha família.

        - Sozinha? Você já mentiu melhor. Onde está Gytha?

        - Sua esposa? E sou eu quem deve saber do paradeiro da mulher que mora com você?

        - Elizabeth, escute, não estou com disposição para aturar seus jogos. Responda! Onde está Gytha?

        - Não sei. Fomos atacadas no quarto enquanto conversávamos. E fomos roubadas. Minha criada e eu conseguimos fugir. E evidente que os bandidos levaram sua esposa. Logo pedirão um resgate, imagino.

        Elizabeth deixou escapar um grito de pânico quando Thayer a segurou pelos ombros e a empurrou contra a parede, mantendo-a imobilizada com uma das mãos em seu pescoço.

        - Quero a verdade! - ele trovejou.

        - Thayer, como pode me tratar assim? Sou a mãe de seu filho!

        - Mãe? Você nunca foi mãe para Bek. Uma mãe de verdade não permitiria que outra pessoa criasse seu filho. Nem o deixaria ser atacado e depois fugiria, deixando-o desacordado e sozinho, com um sangramento na cabeça! Quem levou Gytha?

        - Pickney. Charles Pickney e seu primo Robert. Dois homens de Pickney fugiram com ela.

        - Para onde?

        - Saitun Manor.

        Thayer soltou-a. Elizabeth caiu no chão ofegante. A pobre criada apavorada correu em seu socorro, mas ela se levantou sozinha e a afastou com um gesto irritado. A velocidade com que recuperava a arrogância era espantosa. E também era admirável sua total ausência de noção de perigo.

        - Como ele pode buscar refúgio em Saitun Manor? Eu sou o dono do lugar!

        - Não será mais. Pickney pretende usar sua esposa para abrir os portões e desarmar a guarda.

        - Como se envolveu com esse homem?

        - Eu o conheci quando deixava a corte a caminho de casa. Ele me contou seus planos, e vi nele uma chance de vingar-me e ainda ganhar um bom dinheiro. Charles prometeu me dar uma parte do que tirar de você.

        - Então, acha que tudo isso é só um jogo para obter lucro? Vejo que Charles mente muito melhor do que você. Ele a envolveu em uma trama de assassinato, mulher! O resgate que pretende pedir é minha vida!

        - Bem, todos iremos ao encontro do Criador em algum momento.

        Ela parecia calma, mas Thayer reconheceu mais uma de suas mentiras. A verdade estava refletida em seus olhos, no medo que havia neles. Elizabeth percebia que a situação em que se envolvera era muito mais grave do que havia pensado em princípio, e nem mesmo sua elevada condição de nascença ou o nome obtido pelo casamento, poderiam livrá-la da punição, caso alguém morresse em conseqüência de seus planos.

        - Você pode fazer essa viagem bem antes do que pretende - ele disparou ameaçador.

        - O que quer dizer? - Elizabeth olhou em volta, estudando com certa aflição os homens armados.

        - Leve lady Elizabeth para Riverfall, Torr, e mantenha a prisioneira bem vigiada.

        Lutando inutilmente contra as mãos que a agarravam pelos braços, Elizabeth olhou para Thayer.

        - Não pode fazer isso comigo. Não pode me prender como se eu fosse uma... uma qualquer! Esquece quem sou?

        - Nunca, milady. Ficará em Riverfall até tudo isso estar resolvido. Se eu retornar com minha esposa, nós a devolveremos a sua família em segurança. Se Gytha morrer, você será enforcada. - Ele sorriu com frieza ao vê-la empalidecer. - Se eu não sobreviver para pôr pessoalmente a corda em seu pescoço, muitos outros se apresentarão com alegria para essa missão.

        - Não pode... Sou a mãe de seu filho!

        - Isso não vai salvar sua vida se Gytha morrer. E se ela viver e sua família for chamada para vir buscá-la, aproveitaremos a ocasião para informá-los sobre Bek.

        - Informá-los...? Você prometeu! Ninguém jamais saberia! Não! - Elizabeth gritou ao vê-lo fazer um sinal ordenando que Torr a levasse. - Precisa me ouvir!

        - Devo voltar para cá, milorde? - Torr indagou.

        - Não. Espere por mim em Riverfall.

        Thayer deu as costas para Elizabeth, ignorando seus protestos. Olhando em volta, encontrou o olhar do filho. Um olhar sincero e penetrante que o fez reconhecer que não seria tão fácil obter punição para Elizabeth. Decidiu considerar o problema mais tarde. Agora, a única coisa que importava era encontrar Gytha e levá-la de volta à segurança de Riverfall.

        - Então... vai fazer o que Pickney espera, indo atrás de Gytha ou vai sentar e esperar que ele venha procurá-lo? - Roger perguntou, aproximando-se de Thayer.

        - Eu vou atrás dele. Armado e pronto para a batalha, embora ele não esteja interessado em um confronto justo.

        - Acha que é uma decisão sensata?

        - Que alternativa eu tenho? Pickney mantém minha esposa refém!

        - Ele quer casá-la com Robert. Isso significa que não vai fazer mal a ela. Não enquanto não se beneficiar com esse casamento.

        - Acha que podemos ter certeza disso, Roger? Gytha está grávida. Meu herdeiro cresce em seu ventre, e isso pode ameaçar os planos de Pickney. A existência de outro herdeiro porá a perder tudo que ele quer conquistar.

        Thayer tremia de raiva e medo. Pickney tinha nas mãos tudo que era mais precioso para ele.

        Não conseguia pensar em nenhum plano de imediato, mas não se surpreendia com isso. No estado em que se encontrava, não tinha mesmo condições de tratar uma estratégia de ação.

        - Vamos voltar a Riverfall. Agiremos como se nossa intenção fosse promover o confronto e a batalha - Thayer anunciou, já a caminho da porta da hospedaria. Seu povo o seguia. - É isso que aquele miserável espera. Então, fingiremos agir de acordo com suas expectativas. Seguiremos para Saitun Manor e nos reuniremos diante das muralhas. Exibiremos toda a nossa força e fúria, como se quiséssemos fazer desabar a fortaleza sobre a cabeça do infeliz.

        - E qual será nosso plano real? - quis saber Roger.

        - Nosso plano real? - Thayer deixou escapar uma gargalhada amarga. - Ainda não existe. Espero poder pensar em alguma coisa até acamparmos diante dos portões de Saitun Manor.

        No momento em que Thayer entrou em Riverfall, ele soube que Torr havia prevenido os homens. Sem rodeios, ele deu as ordens que todos em seu exército esperavam e seguiu para os próprios aposentos, preparando-se para partir.

        Nem mesmo na privacidade do quarto, ele encontrava paz para raciocinar claramente. O espírito de Gytha estava em todas as partes. Seu cheiro pairava no ar, e ele se apressou para poder escapar logo do quarto e das lembranças nele contidas. As recordações alimentavam o medo que precisava controlar.

        Foi para o quarto de Margaret e não se surpreendeu ao encontrar Roger lá. Os dois já eram considerados um par em Riverfall, e todos esperavam pelo anúncio do casamento. Porém, seu interesse não era participar do momento de despedida dos amantes, mas encontrar Bek, que Margaret acomodara em seus aposentos. O menino dormia na cama da prima de Gytha.

        - Como ele está? - perguntou num sussurro preocupado.

        - Melhor, milorde - Margaret respondeu ao lado de Roger. - Dei a ele uma poção para aliviar a dor na cabeça. Porém, nada poderá diminuir a dor que o pobrezinho carrega na alma.

        - Eu sei. Em vez de ver alguma bondade na mãe, mesmo falsa, como se podia esperar, ele só viu maldade ainda maior do que já conhecia. E perdeu Gytha, que já era muito importante para ele.

        - Sim, minha prima tem um jeito todo especial com crianças. Gytha parece compreender como os pequenos enxergam o mundo.

        - Notei como ele conversa livremente com ela.

        - Vai trazê-la de volta sã e salva, milorde. Tenho certeza disso.

        Thayer sabia que Margaret não acreditava nas próprias palavras. Não o suficiente para banir do rosto todos os sinais de preocupação. Mas ela queria acreditar.

        - Espero que esteja certa. Pode se incumbir de mandar notícias para a família de Gytha? Eles precisam ser informados sobre todo esse problema.

        - Sim, milorde. E tentarei informá-los com toda a... gentileza.

        - Faça isso. Serei eternamente grato. Roger, é melhor irmos de uma vez. - Ele sorriu com frieza. - Não podemos fazer Charles Pickney esperar...

        - Não. E claro que não. - Roger tomou a mão de Margaret e levou-a aos lábios para um beijo. - Eu volto assim que puder, meu coração.

        Os dois homens já se retiravam. Já do lado de fora do quarto, Thayer murmurou para Roger:

        - Vamos precisar muito da ajuda divina.

        Os homens esperavam no salão, já armados e prontos para a jornada.

        - Ainda não tem um plano?

        - Não. Nada. Não consigo pensar. Toda a minha atenção está em Gytha e no mal que ela pode sofrer.

        Roger abriu as pesadas portas para o grande salão.

        - Ninguém vai se surpreender com isso - disse. Thayer dirigiu-se à mesa e esperou que seus homens o seguissem.

        - Eu sou o líder - ele murmurou para o amigo em voz baixa. - Um homem com o raciocínio prejudicado não pode liderar um exército.

        - Pensaremos em alguma coisa enquanto nos dirigimos a Saitun Manor, velho amigo. Já fizemos isso antes.

        Thayer sentou-se. Os criados serviam uma refeição simples, mas muito nutritiva. Comeriam enquanto conferenciavam e se preparavam para enfrentar os perigos que os aguardavam lá fora. Thayer comia sem sentir o sabor dos alimentos. Estava devastado. Um plano apressado e sem nenhum cuidado não parecia ser o suficiente. Não quando havia tanto em jogo.

        - Talvez tenhamos de segui-los - ele sugeriu, desistindo de comer.

        - Em que direção? - Roger perguntou. - A trilha não é certa ou clara. Eles podem ter seguido em dez direções diferentes. Seria perda de tempo e desgaste desnecessário de homens e cavalos. Melhor se preparar e seguir diretamente para Saitun Manor. Você sabe disso.

        - Sim, eu sei, mas queria minha decisão confirmada. O temor pela segurança de Gytha abala minha confiança. Duvido de minhas atitudes e estou sempre hesitando, sem saber se já cometi algum erro ou se deveria ter agido diferente em algum momento.

        - E um homem de batalha. Siga seus instintos. Ouça o coração que lhe rendeu o apelido de Diabo Vermelho. É isso que nos mantém vivos. E vai garantir a sobrevivência de Gytha também. Acredite nisso, Thayer.

        - Se eu puder encontrar esse instinto...-Thayer murmurou desanimado. O homem que havia liderado e sobrevivido a tantas batalhas parecia não existir mais dentro dele, sufocado pela preocupação e pelo medo. O amor podia despertar a covardia em um homem.

        Ele olhou para os bravos combatentes reunidos à sua volta enquanto era devorado por essa última idéia. Por mais que houvesse tentado ignorar o sentimento, sabia que amava Gytha. Era essa emoção que despertava tanto medo, agora que ela estava em perigo. Por isso ele se sentia inundado pela desesperada necessidade de trazê-la de volta à segurança, por isso via o fracasso como a própria morte, embora não tivesse de ser assim. O amor que sentia por ela explicava muitas coisas, como atitudes que tomara, palavras que dissera ou coisas que sentira. Havia descoberto o que um homem precisa ter para se sentir completamente vivo. Não era de estranhar que não conseguisse nem mesmo raciocinar diante da possibilidade de perder tudo isso.

        Ter alguma explicação o ajudava a recuperar parte da compostura, mesmo que fosse fria e forçada. Ele se concentrou em ouvir os planos que eram sugeridos por seus homens. Nenhum deles era perfeito. A idéia de Torr era a que despertava mais esperança. Já havia pensado nela e a descartado em um dos poucos momentos de sanidade desde o rapto de Gytha. Infelizmente, Torr não sabia como solucionar o ponto mais fraco do plano. Como chegariam a Saitun Manor sem serem vistos? Nenhum deles conseguia lembrar uma entrada que pudesse usar para ganhar acesso ao interior da fortaleza. Se o castelo possuía uma área desprotegida e oculta, só a família tinha conhecimento dela, e William levara o segredo para o túmulo.

        Aceitando com pesar a necessidade de traçarem um plano durante a jornada, já a caminho do campo de batalha, Thayer decretou que era hora de partirem. Ele parou por um momento quando, entre Merlion e Roger, se preparou para montar. Seu orgulho odiava revelar uma fraqueza, mas sabia que tinha esse dever moral com os dois amigos.

        - Roger, observe-me com atenção - ele disse.

        - Não é o que sempre faço? Proteger sua retaguarda?

        - Não me refiro a minha retaguarda, mas a mim. Fique de olho em mim. E você também, Merlion.

        Roger franziu a testa.

        - Não sei se entendi.

        - No estado em que me encontro, posso cometer algum tipo de sandice. Uma loucura.

        - Você parece bem calmo - Merlion opinou depois de montar. - E tem razões de sobra para estar alterado.

        - Com ou sem razão, cuidem de mim. O que ferve em minha alma é justamente o que pode causar a morte de um homem. A calma que aparento é tênue. Essa é uma situação em que não podemos nos guiar pela emoção, mas ela é tão forte em mim que pode facilmente assumir o comando. Vocês têm minha permissão para arrancar-me da liderança, caso eu comece a agir de maneira estranha ou de forma a pôr em risco as vidas que levo para o campo de batalha. Jurem que não me seguirão cegamente, porque só Deus sabe aonde posso levá-los dessa vez. Para ser um bom líder na luta, um homem precisa ter sangue-frio e cabeça no lugar. Não disponho de nenhuma dessas coisas no momento. Agora jurem - ele exigiu enquanto montava.

        - Eu juro - Roger respondeu sem hesitar. Merlion também fez seu juramento. - Mas rezo para que não cheguemos a esse ponto.

 

        Gytha lutou contra a consciência, porque com ela veio a dor. Uma dor lancinante que castigava sua cabeça. Vozes invadiam o torpor a que tentava se agarrar. Cada ruído, cada pequeno movimento intensificava a dor.

        Abrindo os olhos com cautela, ela aceitou resignada o fato de que não teria mais o consolo da inconsciência. Tinha pés e mãos amarrados. Estava sobre uma carroça, no meio de sacos e barris. Não precisava olhar para o céu para saber que a carroça viajava em alta velocidade. Os solavancos que a sacudiam eram prova disso.

        Tentando não pensar muito na dor, ela se virou de lado para encontrar posição menos desconfortável entre os sacos, protegendo-se contra os solavancos. Tanta agitação não faria bem ao bebê.

        Mudar de posição também serviu para aliviar a dor na cabeça, mas o ódio contra Elizabeth só fazia crescer. Caíra na armadilha da víbora!

        Inclinando um pouco o pescoço, ela olhou para os dois homens na frente da carroça. Via costas largas, próprias de adultos. Talvez eles tivessem alguma notícia de Bek...

        - Ah, finalmente acordou! - um deles exclamou olhando para trás.

        - O menino...? - Gytha tinha a garganta tão seca que falar era dolorido.

        - Nós o deixamos para trás. Não precisamos dele.

        - Como ele está?

        - Quem sabe? Não tive tempo para olhar. E a fina dama também não parou para examinar o garoto. Passou por cima dele e fugiu tão depressa quanto podia. Por que ficar? Ela já havia cumprido o que havia prometido.

        - Sim... colocou-me nas mãos de Pickney...

        - Logo estará com ele.

        Era a confirmação de que precisava. Já havia imaginado que Charles Pickney estava por trás disso. Mesmo assim, ter certeza só servia para desanimá-la ainda mais.

        Pior ainda era não ter notícias de Bek. Queria ter certeza ao menos de que o menino estava vivo, ou de que Elizabeth, tomada de assalto por um resquício de instinto maternal, cuidara de seus ferimentos antes de fugir. Em vez disso, levava na mente apenas a última imagem do garoto, uma visão que só alimentava seu tormento.

        Se estava sendo levada para Pickney, isso significava que a vida de Thayer corria perigo, ela compreendeu com um sobressalto de pavor. Seria usada como isca para atrair o marido para a morte. Era horrível pensar nisso, mas sabia que não podia ignorar o fato. Pelo bem de Thayer, era importante que enfrentasse realmente o perigo. Se havia alguma chance de frustrar os planos de Pickney, mesmo que pequenas, ela precisava estar alerta para poder agarrá-la rapidamente.

        Fechando os olhos, ela decidiu que sua situação era desesperadora. A sensação de derrota era inevitável e premente, e por um momento se deixou dominar pelo pessimismo.

        A carroça parou, arrancando-a do poço de lamúrias. Quando olhou em volta tentando localizar-se, Gytha foi tomada por um novo desconforto. Podia ver que os pulsos estavam inchados em conseqüência da imobilidade forçada. Não precisava olhar para os tornozelos para saber que estavam em pior estado.

        Ela deixou escapar um grito assustado quando um dos homens, o mais baixo e truculento, tirou-a da carroça e a pôs em pé no chão. Não conseguia sustentar o próprio corpo. Mesmo amarrada, conseguiu usar a carroça como apoio para as costas, evitando a queda. Os dois homens começavam a montar um acampamento.

        - Preciso de ajuda - ela anunciou em tom altivo e imperioso, aliviando a humilhação.

        - Henry, escute só a moça - disse irônico aquele que a tirara da carroça. - Cuide de si mesma, milady!

        - Se não precisasse de ajuda, nem me rebaixaria a ponto de dirigir a palavra a dois vermes como vocês. Vocês me amarraram com cordas muito apertadas. Tenho mãos e pés inchados, o que significa que não posso me mover sozinha. Se cair, posso prejudicar o bebê que estou esperando.

        - Rasteje, então. - Henry encolheu os ombros. - Eu e John temos mais o que fazer.

        - E Pickney vai ficar satisfeito se você perder o bebê - acrescentou John.

        - Talvez ele fique, mas meu marido, o Diabo Vermelho, será tomado por sua fúria assassina.

        - Ele que se enfureça. Vai morrer antes de poder fazer alguma coisa. John e eu não precisamos ter medo dele.

        - Não? Quem pode afirmar que ele vai morrer?

        - Bem, Pickney planeja... - John começou.

        - Nem sempre os planos se desenrolam como queremos - ela o interrompeu, sorrindo ao ver que conseguia deixá-los preocupados. - Um homem esperto refletiria cuidadosamente sobre seus movimentos.

        - O que quer dizer? - Henry estava inquieto.

        - Bem, um homem realmente sensato tentaria agradar aos dois lados.

        - Ninguém é capaz disso - John argumentou com uma risada nervosa.

        - Não? Pickney quer que eu seja levada até ele com vida. O Diabo Vermelho me quer viva e ainda com seu filho no ventre. Não sei onde está a dificuldade de atender aos dois lados. Só é necessário um pouco mais de cuidado. Lembrem-se de que o Diabo Vermelho é conhecido por sair vitorioso de todas as batalhas. Que batalhas Charles Pickney venceu?

        - Vá ajudá-la, John.

        - Por que dar ouvidos a ela? - John resmungou enquanto ia ampará-la.

        - Porque ela demonstra muita sabedoria para uma mulher.

        Gytha foi levada para perto do fogo, onde se sentou, precisava convencê-los a mudar as amarras, pois sabia que não as removeriam. As cordas que impediam a circulação causavam dor, e sabia que seriam prejudiciais ao bebê.

        - Acredita no que ela diz? - John perguntou ao companheiro.

        - Sim. Pickney tem bons planos, mas estamos esquecendo de considerar quem é o inimigo. O Diabo Vermelho já enfrentou homens mais valorosos que Pickney e sobreviveu. E está vivo até hoje.

        - Bem, pensando por esse lado... Por que nos colocamos do lado de Pickney, então?

        - Porque recebemos um bom dinheiro por isso, idiota.

        - Não vamos poder gastar essas moedas se formos mortos.

        - E verdade. Mas o Diabo Vermelho luta com justiça, enquanto Pickney se vale de traição. Por isso achei que ele pode ter alguma chance de vitória. - Henry olhou sério para a prisioneira. - Agora tenho dúvidas. Pickney já o atacou à traição outras vezes, e ele sempre escapou. E é bem possível que ele desista de jogar limpo quando se vir encurralado, o que o tornará ainda mais perigoso.

        - Então... vamos fugir? Vamos escapar antes que a armadilha se feche sobre nós?

        - Não. Não podemos fugir. Pickney nos mataria por isso. Forjamos nosso caminho e agora devemos percorrê-lo até o fim. O que podemos fazer é assegurar que a mulher do Diabo Vermelho não sofra nenhum mal em nossas mãos.

        - Mas nós a raptamos!

        - Pickney ordenou o rapto. Somos apenas criados, homens contratados para seguir ordens. Isso pode nos salvar. Ele vai se voltar contra Pickney e aquele outro idiota chamado Robert, mas não vai perder tempo com seus seguidores. Estaremos salvos se tomarmos cuidado com a senhora. Agora, deixe de ser covarde. Precisamos comer e descansar. Pickney nos espera amanhã cedo. É melhor não nos atrasarmos.

        John seguiu os conselhos de Henry, e Gytha praguejou mentalmente. Por um momento havia esperado que o medo de John pudesse fazê-los fugir, tentar escapar de Thayer e Pickney. Infelizmente, Henry não era apenas mais inteligente, mas era mais calmo que o parceiro, também.

        - Então - ela resmungou para si mesma -, preciso ao menos de um pouco mais de conforto. - Estendendo as mãos, ergueu a voz. - Preciso ser desamarrada. Henry a encarou e gargalhou.

        - Acha que somos desmiolados, mulher? Gytha não respondeu. Queria assustá-los para tornar sua viagem mais fácil, e responder ao comentário com as palavras ásperas que gostaria de dizer só os enfureceria e pioraria sua situação.

        - Não vê o que essas cordas me causam? - Ela mostrou os punhos e os tornozelos inchados.

        - Não é nada com que deva se preocupar, mulher.

        - Não? Não me surpreende que não possa perceber o mal que isso pode causar. Duvido que tenha filhos. Esse inchaço pode ser muito prejudicial para uma mulher grávida.

        - Não me interessa. - Apesar das palavras, Henry aproximou-se dela e olhou apreensivo para seus pulsos.

        - Como poderemos mantê-la sob controle se a desamarramos? Tola!

        - Tenho certeza de que homens tão espertos poderão pensar em alguma coisa. - Sabia que não conseguia banir da voz o desprezo, mas esperava que eles atribuíssem o tom à simples arrogância aristocrática. - Uma mulher grávida tem necessidade de momentos de privacidade. Se continuar hesitando, vai descobrir que digo a verdade e nós dois sofreremos um grande constrangimento.

        Quando finalmente desamarrou suas mãos e seus tornozelos, Henry resmungou:

        - Entendi o que quer dizer, mas não vai se afastar daqui sozinha.

        - Afastar-me sozinha é o principal significado de ter momentos de privacidade.

        - Bem, a sua privacidade vai se restringir a eu me virar de costas. Vamos.

        Cambaleando, Gytha o acompanhou por entre alguns arbustos. Sua necessidade era tão desesperada, que ela nem pensou em discutir com o homem. Duvidava mesmo de que houvesse algum argumento capaz de fazê-lo mudar de idéia. Apesar de ter consciência de tudo isso, foi com grande constrangimento que ela se abaixou entre os arbustos enquanto o bandido lhe dava as costas. Era humilhante. Como se não bastasse, ainda precisou se apoiar no miserável para voltar ao acampamento, porque a circulação deficiente resultante das amarras dificultava o simples ato de caminhar.

        Assim que ela se sentou ao lado do fogo, John colocou uma vasilha e uma colher de pau em suas mãos. A mistura parecia encaroçada e pouco convidativa, mas estava faminta demais para recusar o alimento. A comida não tinha sabor, a textura era intolerável, mas ela comeu tudo e bebeu todo o vinho que lhe foi servido.

        Quando Henry se aproximou com uma corda, ela recuou. Só agora encontrava pleno alívio para a dor e o inchaço. Não suportaria enfrentar tudo outra vez. Para evitar o tormento, jurou que não tentaria escapar.

        - Não vou amarrar forte como antes, madame - explicou Henry com tom impaciente.

        - Precisa amarrar a mulher - John protestou. - É claro que ela vai fugir.

        - Pretendo prendê-la a mim. Cintura com cintura. A escolha é sua, madame.

        Gytha cobriu o estômago com as mãos.

        - Não pode amarrar minha barriga. A criança...

        - A corda vai ficar acima da criança. E então? Depois de uma breve hesitação, ela assentiu. Qualquer coisa seria melhor do que a dor que sentira. Se experimentasse algum desconforto, reclamaria ao primeiro sinal.

        A maneira como ele a amarrou forçava uma certa proximidade. Gytha tentou ignorar a repulsa, mesmo quando teve de dividir um cobertor com o bandido e se deitar ao lado dele no chão. De olhos fechados, colocou alguma distância entre eles, o máximo possível naquelas circunstâncias, e tentou encontrar conforto na inconsciência do sono.

        - Lá estão eles.

        Ao ouvir o anúncio de Henry, Gytha olhou na direção indicada por ele. Sua única restrição era a corda que a mantinha presa à carroça pela cintura. Como o nó estava bem perto de Henry, ela não tinha nenhuma chance de se soltar, e duvidava de que pensasse em tentar, quaisquer que fossem as possibilidades. Saltar de uma carroça em alta velocidade seria um risco maior do que se dispunha a assumir. Porém, quando viu Charles Pickney, ela contemplou essa ação por um instante, pensando que talvez fosse dos males o menor.

        A carroça parou na entrada de um acampamento. Lá estava Charles. Ela notou que o homem tinha no máximo duas dúzias de homens armados, garantindo sua segurança. Quando Robert e Pickney se aproximaram da carroça para estudá-la, ela os encarou com ousadia e firmeza. O olhar de Pickney fixo em seu ventre a assustou, mas ela tentou esconder o medo. Robert parecia perplexo. Ela disse a si mesma que estava se concentrando em algo sem importância. Era Pickney que devia observar. Ele era o líder.

        - Está grávida. - Pickney cerrou os punhos, contendo o impulso de esmurrá-la.

        - Quanta astúcia. A gravidez é algo que ocorre com relativa freqüência a uma mulher que tem um marido.

        - Chega de impertinência! Maldito seja aquele homem e maldita seja você! Vamos ter de resolver esse problema.

        As palavras geladas de Pickney a encheram de pavor. Robert também parecia aterrorizado. Havia um limite para o que ele podia endossar. Gytha só precisava descobrir se Robert poderia encontrar coragem para impedir o que o horrorizava, ou se podia dar a ele essa coragem de alguma maneira.

        - Eu não faria tantos planos - ela disse a Pickney com tom gelado, sem sequer tentar esconder o ódio que sentia por ele.

        - E tola o bastante para pensar que seu grande Diabo Vermelho pode vencer dessa vez?

        - É tolo o bastante para pensar que ele não pode?

        - Mulher, eu a fiz prisioneira, e por seu intermédio, logo me apoderarei de Saitun Manor. Agora peguei aquele bastardo vermelho.

        - Ainda não.

        - É melhor tomar cuidado, milady. Como já disse, você agora é minha prisioneira.

        - Nesse caso, é melhor me manter bem presa, senhor, porque posso ser o único obstáculo a separá-lo da morte mais do que merecida nas mãos de meu marido. Fica aí parado se gabando como se já houvesse vencido, mas é melhor não contar vitória antes do tempo, porque a batalha ainda nem começou.

        Notando como as palavras de Gytha enfureciam seu tio, Robert ousou murmurar:

        - Cuidado, Gytha.

        - Sim, ouça o conselho do idiota do meu sobrinho. Não é inteligente me desafiar. - Ele se virou para os homens. -Vamos embora! E hora de seguirmos para Saitun Manor!

        Por um momento Gytha teve a impressão de que Robert ia falar com ela, mas ele correu atrás do tio sem dizer nada. O grupo partiu depressa demais, em sua opinião. Era evidente que Pickney não queria correr o risco de ser alcançado por Thayer em espaço aberto. Desviando os olhos dos homens que seguiam na frente do grupo, Gytha notou que Henry olhava para ela. Havia preocupação nos olhos dele.

        - Robert pode ser idiota, mas ele disse a verdade - O rapaz comentou depois de um momento. - E melhor tomar cuidado, milady. Pickney costuma ter acessos de fúria. Ele planeja casá-la com o pateta que chama de sobrinho, mas isso não o impedirá de atacá-la, caso provoque sua ira. Ele é capaz de matar. - Henry afastou-se, incitando John e os outros a aumentarem a velocidade do trote.

        Gytha acomodou-se entre os sacos na carroça. Não estava pensando no aviso que acabara de receber, mas no motivo que o prontificara. De repente compreendia que havia julgado Henry e John mais perigosos do que realmente eram. Eles não a trataram mal. Eram grosseiros, sim, ignorantes, sem dúvida, mas não eram cruéis. Cumpriam ordens, nem mais nem menos. Mas agora notava que eles também tinham limites. Fechando os olhos, decidiu descansar e pensar em um jeito de usar todas essas recentes descobertas.

        - Ela dormiu. - Ouviu Henry comentar um pouco mais tarde.

        - Como consegue dormir em uma carroça que sacode tanto? - John estranhou.

        - Ouvi dizer que uma mulher grávida é capaz de dormir em qualquer lugar. É estranho, mas parece que é verdade.

        - Sim, e há outra coisa que também é verdade. Nós nos metemos em uma confusão muito maior do que nos fizeram acreditar que seria.

        - Tudo por causa daquele bastardo. Maldito Pickney! Eliminar um herdeiro, ele disse. Casar o idiota do sobrinho com essa mulher. E nós acreditamos nele. Só ouvimos o tilintar das moedas, tolos que somos. Isso tudo é muito mais sério do que se livrar de um herdeiro problemático.

        - E podemos cair em desgraça com ele. Acha que ele falou sério quando ameaçou a criança que a mulher está esperando? - sussurrou John.

        - Alguma vez o homem fez uma ameaça que não pretendesse cumprir?

        - Confesso que não gostei nada de saber sobre o assassinato dos dois homens, mas pensei... Bem, eles podem lutar, e é assim que funciona toda essa coisa de cavalaria, nobres e duelos. Roubar a esposa de outro homem? - John encolheu os ombros. - Acontece muito. Nada de grave. Mas agora ele fala em matar um bebê. Um bebê, Henry! E acho que esse louco vai matar também a mulher, quando não tiver mais utilidade para ele.

        - Sim, ele é capaz disso. Pickney pode realmente matar mulheres e bebês. Tenho mais pecados pesando sobre minha alma do que gosto de pensar, mas nada tão horrendo. Nunca sujei minhas mãos com o sangue de mulheres e crianças. E nem pretendo cometer essas atrocidades.

        - Então, podemos fugir agora? Vamos escapar antes que isso vá mais longe?

        - Como? Se levarmos essa carroça para qualquer lugar que não seja o caminho indicado por Pickney, ele nos matará.

        - Estamos perdidos, então.

        - Talvez. Talvez não. Vamos ver o que acontece em Saitun Manor.

        Gytha esperou tensa, mas nada mais foi dito. Outra chance, ela pensou, tentando não alimentar muitas esperanças. John e Henry podiam não ser totalmente maus, mas isso não queria dizer que seria capaz de convencê-los a ajudá-la. Era mais provável que eles estivessem pensando apenas em salvar a própria pele. Para escapar das conseqüências do crime hediondo que acreditavam ser inevitável, eles simplesmente fugiriam. E nada fariam para evitar a atrocidade.

        - Acorde, milady. O castelo está bem diante de nós.

        - Ah, Henry. - Ela piscou sonolenta sentando-se na carroça. - Estou acordada... mais ou menos.

        - Dormiu durante toda a jornada - John resmungou.

        - Ajuda a passar o tempo - ela respondeu. Haviam reduzido a velocidade de forma a não tornar a aproximação ameaçadora. Gytha se sentiu desanimada quando eles foram recebidos quase com cordialidade pelos homens na muralha. Chegara a ter esperanças de que Thayer houvesse enviado um mensageiro para os homens na propriedade, qualquer coisa que os prevenisse contra Pickney. A velocidade em que viajaram matara essa esperança. Nenhum mensageiro poderia tê-los ultrapassado. A idéia de gritar um alarme também foi abandonada quando Pickney se aproximou da carroça.

        - Nem uma palavra, senhora - ele murmurou, puxando um manto sobre a corda presa em sua cintura.

        Ela engoliu o grito que se formava em sua garganta. Tudo que podia fazer era rezar para que seu silêncio não causasse a morte dos homens que guardavam o castelo. O medo pelo bebê a fez calar. Esperava que o custo de salvar essa vida ainda em formação não fosse um terrível derramamento de sangue.

        - Levante-se agora - Pickney ordenou assim que passaram pelas muralhas da propriedade. - Levante-se para que eles possam ver que você é minha prisioneira.

        No momento em que ela obedeceu à ordem, revelando-se amarrada, o som de espadas sendo removidas de suas bainhas ecoou pelo pátio. Pickney também empunhou sua espada e a aproximou dela. Gytha quase nem respirava. Todos os homens que guardavam a fortaleza ficaram imóveis.

        - Quero todos os homens no pátio. Agora! E todas as armas descartadas - Pickney gritou quando, relutantes, os defensores do castelo começaram a se reunir. - Não façam nenhuma tentativa corajosa de resgate, ou matarei sua senhora. E com ela irá o herdeiro de seu senhor... o Diabo Vermelho.

        Ninguém esboçava reação. Para grande alívio de Gytha, Pickney não matou os prisioneiros desarmados que tinha acabado de fazer. Em vez disso, ordenou que todos fossem trancafiados nas masmorras. Só quando se certificou de que a ordem havia sido cumprida ele removeu a espada do pescoço da refém. Gytha caiu sobre os sacos na carroça. Enquanto Pickney se dedicava a tomar posse do castelo, ela foi deixada aos cuidados de Henry e John.

        - Parece que a chave para a porta de uma propriedade fortificada é uma mulher - Henry comentou enquanto puxava a carroça para o estábulo.

        - Duvido que funcione com todas as mulheres - John respondeu, ajudando o amigo a estacionar o veículo.

        Gytha estava sendo retirada da carroça pelos dois homens quando ouviu o som de um choro abafado. Choro de mulheres. Ela viu Pickney e seus homens reunindo no pátio todas as mulheres e crianças da fortaleza. A maneira como o grupo indefeso era cercado por homens armados a enervava. Compartilhava do pavor que as mulheres não conseguiam esconder, pois não era capaz de imaginar o que Pickney pretendia para elas e seus filhos.

        Olhando para o rosto sério de Henry, ela perguntou:

        - O que vai acontecer com elas?

        - Pickney vai trancafiá-las. Ele quer tirar do caminho todos que possam tentar ajudar os homens ou você. Além do mais... - Ele hesitou antes de prosseguir. - O Diabo Vermelho não vai demorar para aparecer. Venha. - Segurando-a pelo braço, ele a levou para o castelo. - Recebi ordens para colocá-la no quarto da torre oeste.

        Uma vez no aposento da torre, Gytha sentou-se na cama. Sentia-se exausta e totalmente derrotada. Logo Thayer chegaria, mas não encontraria um jeito de salvá-la ou de salvar a própria vida. E ela não conseguia pensar em como poderia impedir Pickney de usá-la como isca para atrair Thayer a uma armadilha mortal. Só podia rezar para que Thayer tivesse alguma maldade nele, porque traição e crueldade seriam suas únicas possibilidades de sobrevivência. Só assim Pickney seria derrotado.

        Aproximando-se da janela, ela olhou para baixo, para o pátio. Os homens de Pickney se preparavam para a chegada de Thayer. Por que eles se armavam para uma batalha que Pickney não tinha intenção de lutar? Ele a usaria para matar Thayer, depois a usaria para impedir os homens de Thayer de buscar vingança.

        Por um momento ela lamentou a gravidez que complicava tudo, que a mantinha paralisada quando mais precisava agir. Cada movimento tinha de ser bem planejado para não pôr em risco a integridade da criança. Em seguida ela tocou o próprio ventre num pedido silencioso de desculpas. Pickney era o único culpado de toda a confusão em que ela estava metida.

        Seus pensamentos foram interrompidos pelo som de alguém abrindo a porta. Pickney e dois de seus seguidores mais fieis e próximos, Thomas e Bertrand, entraram com ar confiante. O sorriso vitorioso nos lábios de Pickney a enfurecia. Adoraria apagá-lo com um soco violento.

        - Lady Gytha, em breve poderá ver o Diabo Vermelho encontrar a morte - ele anunciou com tom rouco e sinistro.

        - Senhor, talvez eu prefira assistir a sua morte. E rezo Deus para que ela seja lenta e dolorosa. Infelizmente, receio que meu marido seja incapaz de descer tanto quando o senhor.

        Pickney a atingiu no rosto com o dorso da mão. Gytha mal conteve o grito de dor ao ser jogada contra a parede. O sabor de seu próprio sangue explodiu em sua boca. Examinando o interior da boca com a língua, ela descobriu que a bofetada provocara um corte em uma das laterais. Banindo do peito uma violenta onda de ódio, ela se forçou a recordar o aviso de Henry. Pickney estava tomado pela fúria, e ela era o objeto desse sentimento. Não queria expor-se mais do que o necessário.

        - Eu venci, mas é claro que você precisa de mais para aceitar essa vitória. Logo terá as evidências que tanto deseja, milady. Porei em suas mãos a cabeça do arrogante Diabo Vermelho.

        Gytha sentiu uma súbita vontade de vomitar, mas lutou contra o impulso. Negava-se a recusar qualquer tipo de fraqueza diante de Pickney.

        - Um dia, senhor, vai pagar por esses crimes que comete com tanta alegria.

        Antes que ela pudesse dizer mais, um homem empurrou a porta e espiou para dentro do quarto.

        - Uma força se aproxima das muralhas, senhor - ele anunciou.

        Pickney assentiu.

        - Bertrand, quando eu der o sinal, você deve segurar a mulher diante da janela para que ela seja vista claramente pelo homem. - Ele riu, olhando uma última vez para Gytha antes de sair do quarto seguido por Thomas e o outro ajudante. - Parece, milady, que seu marido está muito ansioso para morrer.

        - Pickney!

        Thayer gritou para as muralhas de Saitun Manor enquanto lutava contra a fúria cega. Ao ver o castelo, sentira vontade de cavalgar diretamente para os portões num gesto de loucura. Quando Pickney apareceu sobre a muralha, ele empunhou a espada, reconhecendo uma vontade inusitada de matar. Jamais havia experimentado tal sensação antes.

        - Ah, o grande Diabo Vermelho clama diante de minhas muralhas - Pickney respondeu com tom debochado.

        - São minhas muralhas, bastardo! Mas não é sobre esse roubo que vim tratar. Onde está minha mulher?

        - Sua mulher? Por que eu saberia do paradeiro da meretriz?

        - Quando eu puser as mãos nesse desgraçado, ele terá uma morte lenta e dolorosa - Thayer disse a Roger e Merlion, que o escoltavam. Depois ele ergueu a voz novamente. - Sua aliada preza mais a própria vida do que a lealdade que professou a você, idiota! Ela me contou tudo.

        - Ah... aquela mulher. Sua esposa. Sim, ela está comigo, mas vai ter de pagar para reavê-la.

        - Não discutirei mais nada antes de ver Gytha viva e bem.

        - Como quiser.

        Thayer viu Pickney acenar chamando alguém. O homem apontou para a torre oeste. Olhando naquela direção, Thayer praguejou com ferocidade. Gytha estava precariamente equilibrada no parapeito da estreita janela da torre. Seu temor só arrefeceu um pouco quando ele viu as mãos que a seguravam pelos braços. Alguém impedia a queda. Porém, essa mesma pessoa poderia arremessá-la para a morte.

        - Gytha - ele gritou, sem saber se a voz poderia chegar tão longe -, você está ferida?

        Ela balançou a cabeça. Seu pavor era evidente.

        - Muito bem, Pickney, já a vi. Mande seu homem tirá-la de lá.

        Segundos depois, Gytha era levada para o interior da torre.

        - Então, Diabo Vermelho, agora entende que eu estou no comando. Terá de se curvar à minha vontade.

        - Isso é o que vamos ver. O que você quer?

        - No momento, creio ter tudo que desejo. Ah, não, ainda há uma coisa.

        Thayer continha a fúria com grande esforço, concentrando os pensamentos na segurança de Gytha e do bebê. Sabia que Pickney era um homem desequilibrado e perigoso. Precisava fingir que fazia seu jogo.

        - E que coisa é essa? - ele perguntou.

        - Você.

        - Eu? Quer que eu entre no castelo, então?

        - Sim, desarmado.

        - Para que possa me matar sem correr nenhum risco.

        - Sua vida pela da mulher.

        - Não - Roger murmurou a seu lado. - Thayer, não pode ceder tão depressa.

        - Ele não vai me dar muito tempo, Roger.

        - Ah, ele vai, nem que seja apenas para poder saborear o que considera ser uma vitória certa.

        - Não acredita nessa vitória? Roger suspirou.

        - Acabamos de chegar. Estamos cansados e tensos. Ganhe algum tempo para nós. Precisamos estudar o lugar e tentar adivinhar o que ele realmente pensa. Deve haver alguma solução que não seja a de se entregar à morte como um antigo cordeiro de sacrifício.

        Thayer olhou para cima e viu Robert ao lado do tio.

        - Lá está a sombra de Pickney - ele disse, certo de que o rapaz jamais ousaria ajudar Gytha. - Pickney, tenho a impressão de que está esperando que eu ceda sem nenhuma garantia de retorno ou benefício!

        - Você não tem escolha, Diabo Vermelho. Porém, se acha que não pode atender às minhas exigências...

        - Eu não disse isso.

        - Não? Bem, hoje estou de bom humor. Sinto-me quase generoso, sabe? Vou lhe dar um tempo. Fique aí ruminando em vão, se quiser. Tente inutilmente encontrar uma saída, uma solução que nós dois sabemos que não existe. Você tem até amanhã, nessa mesma hora, para aceitar a derrota.

        Thayer virou o cavalo e retornou para o local onde seus homens haviam montado acampamento. Roger e Merlion o seguiram. A gargalhada sarcástica de Pickney ecoava em seus ouvidos. Thayer parou o cavalo, desmontou e foi se sentar sozinho sobre uma pedra no extremo oposto do acampamento. Precisava dominar as emoções. Estava começando a superar o pior momento de angústia, quando ouviu alguém se aproximar. A mão firme sobre seu ombro anunciou a presença de Roger.

        - Parece que falhei mais uma vez com a pobre Gytha, Roger.

        - Você não falhou - o homem respondeu depois de se sentar ao lado do amigo.

        - Não? Ela é prisioneira de um louco e não posso resgatá-la. Não há salvação para Gytha, nem mesmo se eu oferecer minha cabeça a Pickney numa bandeja de prata. Tudo isso só vai mantê-la viva por mais um tempo. Não percebe?

        - Não. O que vejo é só um plano bem-feito. Pickney criou uma armadilha ardilosa, e você não pode sempre evitar todas elas. Mas isso não significa que a armadilha vai funcionar.

        - Pensou num meio de resolver a questão, não é?

        - Ainda não, mas temos tempo. Assim que escurecer, os homens irão vasculhar toda a área em torno de Saitun Manor e as muralhas do castelo em busca de alguma coisa, seja um buraco de ratos ou um ponto fraco na guarda, não importa. Se esse lugar existe, nós o encontraremos.

        Thayer assentiu.

        - Pickney não pretende libertar Gytha, mesmo que eu cumpra sua exigência.

        - Não. Todos nós sabemos disso. Por essa razão os homens vão vasculhar a área até encontrarem aquilo de que precisamos. Caso contrário, você perderia sua vida por nada, e nós nem teríamos a chance de vingar sua morte. Os homens sabem que a vida de seu herdeiro também está em jogo. Se não encontrarem uma entrada para a fortaleza, é porque ela simplesmente não existe. E isso é impossível. Sabemos bem que sempre há uma passagem qualquer.

        - Espero que esteja certo. Senão, amanhã caminharei para a morte mesmo sem saber se ela será a libertação de Gytha. Será uma maneira terrível de morrer.

        - Então, por que ainda a considera?

        - Porque não poderia viver se me negasse a cumprir a exigência e Pickney a matasse. Fazendo o que ele quer, pelo menos ganharei mais algum tempo para Gytha. Nesse tempo você poderá tentar libertá-la. Se eu tiver de me entregar, quero que jure que vai continuar lutando para tirá-la de lá.

        - Eu juro. E juro também que não descansarei enquanto não puser um fim na vida daquele bastardo desgraçado. Nem que tenha de derrubar as muralhas de Saitun Manor pedra por pedra para chegar até ele.

        Thayer sentiu-se confortado pelo juramento. Se tivesse de ir ao encontro da morte no dia seguinte, iria certo de que Gytha ainda teria um protetor. Alguém faria Pickney pagar por seus crimes. Mas sua maior esperança era que, antes do final da noite, seus homens encontrassem uma forma de invadir a fortaleza.

        Gytha olhou pela janela e viu a luz do fogo no acampamento de Thayer. Queria estar com ele, abraçá-lo e encerrar esse tormento.

        Um ruído na porta interrompeu seus pensamentos.

        Sem nenhum interesse, ela viu Henry deixar a comida sobre uma mesa enquanto John se mantinha na porta. Quando os dois a encararam, ela suspirou e foi se sentar na banqueta diante da mesa. Sentia fome. Era desleal pensar em comer quando a vida do marido estava por um fio, mas tinha de pensar na criança dentro dela.

        - Precisa comer, milady - Henry manifestou-se.

        - Por quê?

        - O bebê em seu ventre...

        - Ah, sim. Devo engordá-lo para ser morto, não é? Sabia que os atingia com esse tipo de comentário.

           - Não, milady. Deve dar à criança uma chance de sobreviver.

           Ela riu, mas partiu um pedaço de pão e outro de queijo, comendo-os sem pressa.

        - Não minta! Sabe tão bem quanto eu que Pickney não vai permitir que eu e o bebê sigamos vivos. Mesmo que me deixe ter o bebê, será apenas para matá-lo assim que nascer. Trago no ventre um herdeiro para o lugar onde agora estamos. Sabe como Pickney lida com herdeiros, não sabe?

        - Talvez tenha uma menina.

        - E acha que isso vai mudar o destino do bebê, Henry? Não seja tolo! Se o rei descobrir que um de seus cavaleiros morreu deixando viva uma filha, ele a tomará sob sua proteção. E direito e dever de um soberano agir assim. Ele a entregará com todos os bens de Thayer a um cavaleiro qualquer, um sujeito que sinta necessidade de recompensar por um ou outro motivo. Pickney não vai querer correr esse risco.

        -Bem, não temos nenhuma participação nisso - John anunciou.

        - Ah, não? E quem me trouxe para cá?

        - Não conhecíamos todo o plano de Pickney.

        - Declaram-se inocentes. Entendo. Bem, agora não podem mais alegar ignorância. Conhecem as reais intenções de Charles Pickney, mas se negam a me ajudar.

        - Não queremos morrer - Henry protestou irritado. - Somos vigiados. Pickney não confia em ninguém.

        - E assim, vão ficar aí parados enquanto ele os envolve em uma sangrenta seqüência de assassinatos. O fato de não empunharem a espada não manterá suas mãos limpas de sangue. Omissão não é sinônimo de inocência, senhores.

        - E contrariar Pickney só servirá para nos levar à morte, porque não conseguiremos contê-lo. - Henry recolheu a bandeja vazia. - Não quero morrer, muito menos numa inútil e tola tentativa de impedir algo que é inevitável.

        - Não pode nos culpar por isso - John gritou.

        - Ah, mas eu não os culpo! Sei como a fome pode induzir um homem a fazer qualquer coisa por um punhado de moedas. Sei também que muitos não consideram errada a intenção de Pickney, tomar o que não pertence a ele e ceifar vidas que encontre esse caminho, roubar a mulher de um homem para colocá-la na cama de outro... Infelizmente, essas coisas acontecem com freqüência suficiente para serem aceitas. E também não os culpo por desejarem seguir vivendo. Esse também é o meu maior desejo. Sendo assim, podem ir... e garantam sua segurança. Não os condenarei por isso.

        A batida furiosa da porta não a surpreendeu. Tinha oferecido perdão com uma das mãos, mas usara a outra para esbofeteá-los. Compreendia realmente o que os metera naquela confusão e por que não conseguiam sair dela. Mas sua vida e a do bebê também estavam em risco, e era impossível não se ressentir contra aqueles que recusavam ajuda. Não pedia nenhum sacrifício. Só queria auxílio. Infelizmente, eles acreditavam que ajudá-la equivalia a assinar a própria sentença de morte, e nada os faria mudar de idéia.

        - Resumindo, estou sozinha - ela murmurou enquanto caminhava de volta à janela com a caneca de vinho.

        Olhando para a luz da fogueira do acampamento de Thayer, ela tentou pensar em alguma coisa. Nenhum plano sobrevivia a uma análise mais aprofundada. Todos precisavam de pelo menos mais uma pessoa, e não podia contar com ninguém.

        O som de alguém entrando em sua prisão a fez pensar que, talvez, o destino pudesse estar mandando essa pessoa.

        Quando se virou e viu Robert, ela decidiu que o destino tinha um senso de humor cruel.

        - O que quer aqui, Robert? - indagou, sentindo uma estranha mistura de piedade e ódio.

        - Só vim me certificar de que não está sendo maltratada.

        - Maltratada? Não! A prisão é muito confortável!

        - A torre é mais uma forma de mantê-la segura.

        - E mesmo? Estranho... Com a tranca do lado de fora, deduzi que o objetivo era impedir-me de sair, não impedir a entrada de outras pessoas. Entende o que digo? Você entrou, mas eu ainda não posso sair.

        Robert passou a mão pelos cabelos loiros. Gytha ainda era linda, apesar do ressentimento. E a queria tanto, que não conseguia dormir à noite pensando nela. Mas Thayer a tinha. Grande, vermelho e desajeitado, era ele quem se deitava com Gytha todas as noites. Uma injustiça.

        - Não gostaria de ser pega no meio da batalha - ele explicou, tentando parecer calmo.

        - Batalha? Que batalha? Seu tio não tem coragem para enfrentar Thayer. Ele me usa para atrair meu marido para a morte.

        O desconforto e a vergonha refletidos na expressão de Robert não a comoveram. Ele que se afogasse em vergonha. Seria um castigo merecido para alguém tão fraco.

        - Não quero falar sobre isso - resmungou Robert.

        - Não, e também não quer pensar nisso. Pois saiba que fingir ignorância não vai salvar sua alma.

        - Serei um bom marido para você, Gytha.

        - Acha mesmo que vou permitir que seja alguma coisa para mim, mesmo depois de participar do assassinato de meu marido?

        - Vai ter de se casar comigo! Esse é o plano de meu tio.

        - Ah, sim, é provável que ele possa me obrigar a casar com você. Combinando forças, também sejam capazes de me colocar em sua cama. Mas nada vai me obrigar a gostar de você. Considerando que seu tio pretende matar meu filho...

        - Não! Isso não é verdade! Ele nunca disse isso.

        - Disse. Você ouviu e entendeu. Mas é evidente que se convenceu do contrário. Mas não vai poder ignorar a realidade quando estiver diante do túmulo desse inocente. Será tarde demais para agir, então.

        De repente ela percebeu que a porta estava destrancada. Nervoso, Robert andava pelo quarto, deixando o caminho livre para ela. Podia sair. A pergunta era: o que faria depois disso? Permaneceria entre as muralhas de Saitun Manor, mas poderia se esconder em algum lugar, talvez até escapar por uma brecha qualquer. Eram chances mínimas, ela reconhecia, mas era melhor do que nada.

        Ela correu para a porta.

        - Não, Gytha! Espere!

        Um corpo masculino bloqueava a saída e destruía suas esperanças. Dedos furiosos a agarravam pelos braços, empurrando-a de volta para o interior do quarto.

        Antes mesmo de erguer o olhar, Gytha soube que havia sido interceptada pelo furioso Pickney. Thomas e Bertrand o seguiam.

        - O que faz aqui, Robert? - Pickney perguntou. - Quase nos faz perder nosso trunfo!

        Depois de jogá-la sobre a cama, ele esbofeteou o sobrinho com tanta força que o rapaz cambaleou.

        Gytha ficou sentada na cama assistindo à cena. Robert nem tentou se esquivar do golpe. E também não tentava se defender com palavras ou atos. Era difícil entender como um homem adulto aceitava esse tipo de tratamento. A rebelião surgia apenas no brilho intenso e ressentido de seus olhos.

        - Ela só havia corrido para a porta - Robert murmurou. - E vim para tentar acalmá-la.

        - Aproximar-se dela, você quer dizer. - Pickney riu, olhando para Gytha. - Não se incomode com isso. Logo terá o que tanto deseja, meu rapaz. A jovem Gytha será sua esposa. E se ela quer ou não esse destino... Não importa.

        - E a opinião de minha família também não tem importância? - Gytha manifestou-se. - Ou se esqueceu deles?

        - De jeito nenhum. Eles não me atacarão pela mesma razão que contém seu marido. Eu a tenho cativa.

        - Eles podem esperar para fazê-lo pagar por seus crimes. Como os homens de meu marido também podem esperar. A vida que planeja levar será muito precária, senhor, com tantas espadas eternamente apontadas em sua direção. Todas estarão esperando pelo momento de mandá-lo para o inferno.

        - Por um tempo, talvez, mas todos se cansarão do jogo.

        - Senhor, há homens cuja sede de justiça e a lealdade não arrefecem com o tempo.

        - E você, milady, superestima seu valor. E agora, vamos tratar do assunto que me traz aqui. Minha intenção, como sabe, é matar seu marido. Porém, penso agora que há outra forma de eliminá-lo, de aumentar o tormento que será imposto a sua alma na jornada ao encontro do Criador.

        - O que está dizendo?

        - Ele saberá que a esposa conheceu outro homem. - Pickney riu ao ver que ela tentava fugir, mas era contida por Thomas e Bertrand. - Sim, e será um delicioso passatempo enquanto espero. Vamos ver se toda essa beleza também tem ardor, fogo e paixão.

        - Tio, não - Robert protestou aflito. - Você prometeu que ela seria minha.

        - E você a terá. Não seja egoísta, meu rapaz.

        - Ela está grávida! Pode fazer essa mulher perder o bebê!

        - Melhor ainda. A criança é inútil para nós. Na verdade, não é apenas inútil, mas é um grande problema.

        Gytha se debatia entre Thomas e Bertrand, mas era inútil. Eles a imobilizaram sobre a cama. Tudo que podia fazer era se contorcer, também inutilmente, o que parecia diverti-los. Ela olhou para Robert, pálido e trêmulo, e soube que não poderia contar com sua ajuda. Mesmo que se rebelasse e tentasse lutar contra Pickney, não teria força física para vencê-lo.

        Quando Pickney estendeu as mãos para as fitas que fechavam o corpete de seu vestido, Robert o puxou para trás.

        - Não! Deixe-a em paz. Não vou permitir tal coisa.

        - Você não vai permitir? - Pickney debochou.

        - Não posso deixar que a ataque dessa maneira.

        A luta que se seguiu foi breve, furiosa e terrível de ver. Quando Thomas se moveu para ir ajudar Pickney, Gytha tentou fugir, mas foi impedida por Bertrand. Não foi com surpresa que ela viu, momentos mais tarde, um Robert tonto e ensangüentado ser arrastado até a porta do quarto. Pickney sorriu para ela. Thomas e Bertrand também sorriam. Ela sabia que não tinha meios de impedir a violência que eles planejavam, um ataque que provavelmente poria em risco a vida do bebê, mas lutaria até o fim. Não se submeteria sem luta.

        Robert estava sentado no chão no corredor, olhando para a porta do quarto. Limpando o sangue dos lábios na manga da casaca, ele ouviu um grito abafado e tentou se levantar.

        - Então, finalmente criou coragem para lutar, rapaz. Assustado, Robert olhou para os dois desconhecidos em pé a seu lado.

        - Quem são vocês?

        - Sou Henry - disse o que havia falado antes, estendendo a mão para ajudá-lo a ficar em pé. - E esse é John. Somos os dois idiotas que trouxemos a mulher para cá.

        - Precisamos detê-los! - Robert deu um passo na direção da porta, mas foi contido por Henry.

        - Se entrar, vai levar outra surra e será novamente jogado para fora.

        - Vocês podem me ajudar. Seremos três. Três contra três.

        - Não sei usar a espada. John também não.

        - Nem eu - Robert declarou, cobrindo o rosto com as mãos. - Eles vão machucar Gytha. Como posso permitir tal horror?

        - Ficar aí chorando não vai ajudar a dama.

        - Então, o que devo fazer? Devo ficar aqui ouvindo aqueles animais abusarem dela?

        - O que faria se pudesse tirá-la das garras daquelas bestas? Ainda estaríamos cativos dentro dessas muralhas.

        - Não! Eu a tiraria daqui. Sei como sair. Levaria Gytha de volta a Thayer - Robert sussurrou, desistindo do sonho de ter a seu lado a mulher que tanto amava e desejava. - Ela não me quer.

        - Está dizendo que conhece um saída desse lugar? - Henry perguntou eufórico, segurando Robert pelo braço e sacudindo-o.

        - Sim, um buraco em uma parte muito isolada da propriedade. William me mostrou a saída há muito tempo.

        - Seu tio sabe disso?

        - Não. Guardei o segredo.

        - Então, talvez haja uma forma de repararmos nossos erros. - Henry olhou para John. - Quer tentar?

        - É claro que sim - John respondeu, perturbado com mais um grito de Gytha.

        - Mas você disse que não podemos lutar contra aqueles três - Robert comentou.

        - Então, traremos até aqui alguém que possa.

        - Quem?

        - O Diabo Vermelho - Henry respondeu. - Vamos sair pelo tal buraco e voltaremos com ele.

        - Será tarde demais para Gytha. Todos a terão violentando, então.

        - Não, vou adiar a violência - Henry anunciou. - Posso atrair a atenção deles sem despertar suspeitas. Terão uma hora, no máximo. Quanto menos, melhor.

        - Será o suficiente. Receio encontrar problemas quando passarmos pelas masmorras, porque há dois homens de guarda lá.

        John sorriu.

        - Não sou bom com a espada, mas sou ótimo para bater na cabeça do inimigo.

        - Perfeito. Robert, você vai atrair a atenção dos dois guardas nas masmorras. John vai se colocar atrás deles. Não se esqueçam de amarrar bem os dois infelizes depois de acertá-los na cabeça. Em seguida, corram até o acampamento do Diabo Vermelho e tragam-no aqui o mais depressa possível.

        Assim que John e Robert se afastaram, Henry bateu na porta do quarto. O palavrão do outro lado foi prova de que havia interrompido Pickney.

        - Vá embora - ele gritou furioso.

        - E importante, senhor. Caso contrário, eu jamais o teria incomodado.

        - Seja o que for, mande o idiota do meu sobrinho cuidar disso.

        - Não quero desrespeitar o rapaz, senhor, mas creio que essa questão exige mais do que ele pode oferecer.

        - Maldição! Malditos sejam todos os tolos - Pickney gritou, afastando-se de Gytha e vestindo a calça. - Meu bem, vai ter de esperar para conhecer o prazer que um homem de verdade pode proporcionar.

        Ela não respondeu. Não se sentia capaz de falar. Thomas e Bertrand a soltaram, e ela ajeitou as roupas com mãos trêmulas, cobrindo-se rapidamente. Os três homens se dirigiram à porta, e ela se encolheu contra a parede do outro lado do quarto. Não foi surpresa para Gytha ver Henry diante da porta aberta. Jamais acreditara que ele fosse um membro do grupo de Pickney.

        - Espero que o assunto seja mesmo importante como diz - Pickney disparou furioso.

        - E importante, senhor.

        - O que é?

        - Creio ter encontrado uma fraqueza em sua defesa. E um buraco grande o bastante para permitir a passagem de um certo diabo ruivo.

        - Então, alguém está facilitando a entrada do inimigo, porque cobri todos os pontos. Tenho certeza disso.

        - Foi o que pensei, senhor. Por isso vim procurá-lo imediatamente. Sabia que ia querer ver a falha pessoalmente e cuidar das punições necessárias. E sempre melhor o líder cuidar desses assuntos mais sérios.

        -Tem razão. Venham comigo - Pickney disse a Thomas e Bertrand. - Tudo indica que vou precisar de ajuda. - Ele olhou para trás, para Gytha. - Não fique desapontada, meu bem. Eu volto logo para cuidar de você.

        Robert viu John amarrar os dois guardas inconscientes. Estava enfrentando o tio. A constatação o aterrorizava e o enchia de alegria. Ele quase riu. Esperava que Gytha desse a ele a força necessária para se libertar do domínio do tio, e ela acabava de fazer justamente isso, porém não como havia imaginado.

        - Terminei - John anunciou. - Qual é o problema? Está arrependido?

        - Não, eu... Acabei de perceber que estou livre.

        - O que está dizendo?

        - Nada. Não se incomode comigo. Vamos em frente. Meu tio vai voltar para Gytha assim que puder. Temos de nos apressar.

        Um dos presos manifestou-se.

        - Vão nos deixar aqui? - ele perguntou.

        Robert reconheceu o homem que acabara de falar. Era Wee Tom, um homem enorme que se agarrava à grade da cela.

        - Por enquanto - ele respondeu.

        - Podemos lutar contra Pickney.

        - Sem espadas, Wee Tom? Não. Seja paciente. Logo estaremos de volta. - Ele se encaminhou para um pequeno cômodo à direita.

        - Espere... - John agarrou as chaves e foi abrir a porta da cela. - Um de vocês. Só um - ele decidiu quando todos se aproximaram da porta.

        - O que está fazendo? - perguntou Robert. - Por que vai deixar um deles sair?

        Enquanto puxava para fora o enorme Wee Tom e voltava a trancar a porta, John respondeu:

        - Ele pode assegurar que qualquer um que apareça por aqui fique quieto. Não precisamos de um alerta. - John entregou as chaves ao grandalhão. - Entende o que quero dizer?

        - Perfeitamente. Se alguém aparecer por aqui, devo silenciá-lo.

        - Isso mesmo. E se não puder calar o sujeito, solte os homens. A comoção vai nos dar o tempo de que precisamos.

        - Tempo para quê? - quis saber Wee Tom.

        - Para irmos buscar o Diabo Vermelho - disse Robert, agarrando o braço de John e levando-o para o cômodo à direita da cela. - Ajude-me a afastar esses baús, John - ele ordenou, já se dedicando à tarefa.

        Sob os baús havia uma pequena porta. Robert a abriu e rastejou pelo minúsculo túnel além dela. John o seguia. Úmido e escuro, o túnel não era alto o bastante para permitir que ficassem em pé, mas era largo para acomodar dois homens adultos. Rangendo os dentes para suportar o som e a sensação de uma multidão de pequenas criaturas, Robert ia tateando pelo túnel escuro. Foi um alívio chegar finalmente à curva que dava início à subida.

        Argolas de metal incrustadas na parede de pedra serviam de sustentação e escada. John teve de se espremer ao lado de Robert para ajudá-lo com o alçapão emperrado. O sopro de ar fresco que invadiu o túnel trouxe também uma chuva de folhas secas, galhos e pedregulhos. Robert foi o primeiro a sair do túnel. John o seguiu. O interior do tronco de árvore oca era pequeno demais para os dois, por isso Robert deixou o esconderijo, permitindo que John fizesse o mesmo. Ele olhou para o campo aberto e para as muralhas de Saitun Manor. Esperava que o plano de Henry estivesse surtindo efeito.

        - Depressa - John resmungou limpando as roupas. - Podemos nos proteger entre as árvores até estarmos bem perto do acampamento do Diabo Vermelho. Assim, ninguém vai nos ver e pensar que somos inimigos.

        Robert e John haviam percorrido uns dez metros, quando um bando de homens saltou sobre eles e os agarrou antes que pudessem lutar. O sorriso de Merlion encheu de pavor o pobre e trêmulo Robert.

        - Quero falar com Thayer - Robert anunciou, odiando o tom apavorado da própria voz.

        - Oh, sim, você vai falar com ele - Merlion respondeu irônico. - Afinal de contas, todo homem tem o direito de manifestar seu último desejo diante daquele que o executará.

 

        Quando Merlion entrou repentinamente na tenda, Thayer se levantou. Havia uma urgência tensa no visitante que despertava sua esperança.

        -Descobriu alguma coisa? - ele perguntou, orgulhoso do tom calmo.

        - Sim. - Merlion apontou para trás, e dois homens foram jogados dentro da tenda. - Não sei que tipo de jogo eles planejam, mas encontramos os dois idiotas perambulando pelo bosque.

        Thayer reconheceu o primo e foi invadido pela fúria, uma ira cega que o impelia a atacar Robert. E ele o teria atacado e matado, não fosse a interferência precisa de Roger e Merlion.

        - Podem me soltar - ele disse aos amigos e defensores. - Não vou matar o covarde. Não por enquanto. Antes ele vai ter de falar. E quem é esse outro?

        - Meu nome é John, sir Robert e eu estamos aqui para oferecer ajuda. Queremos mudar de lado.

        - Ah, sim? Sentem-se. - Thayer viu John se sentar no banco de madeira, puxando o amedrontado Robert para se sentar a seu lado. - Por que devo acreditar no que diz?

        - Senhor, que outro motivo nos traria aqui desarmados?

        - Não sei. E ainda não me disse quem é você. O que faz com Robert?

        - Sou um dos homens que entregou sua esposa a Pickney. - Ele se encolheu quando Thayer deu um passo em sua direção. - Meu amigo e eu fomos informados apenas de que roubávamos uma noiva. Fomos levados a acreditar que tudo era apenas um desses jogos praticados entre os nobres. Vocês estão sempre se matando e roubando terras e mulheres uns dos outros.

        - Nem todos somos iguais. O que fez vocês mudarem de idéia?

        - Descobrimos que fomos enganados. Não era só um jogo. Talvez não acredite nisso, mas meu amigo Henry e eu temos algum senso do que é certo.

        - Talvez possa me convencer disso. Continue.

        - Bem, Pickney vai longe demais. Ele não se incomoda se tem de prejudicar mulheres e bebês. Henry e eu não aceitamos isso. Nunca participamos desse tipo de atrocidade, e não vamos começar agora. Descobrimos que ele não pretende deixar a mulher e o bebê vivos por muito tempo.

        - E você também se incomoda com isso, Robert?

        - Sim. - Ele finalmente encarou o primo. - Foi um erro deixá-lo atacar William, e agora você.

        - Ele matou William?

        - Não posso dizer com certeza, mas quando fala sobre o assunto, ele não se refere ao ocorrido como um acidente. De qualquer maneira, isso não é importante agora. Estou aqui por Gytha. Ele quer... Ele quer...

        - Fale de uma vez, garoto! - John se inquietou. - Henry não vai conseguir segurar aqueles homens para sempre!

        - Ele a quer. E pretende tomá-la. E Thomas e Bertrand estão com ele... com a mesma intenção. - Robert não continha as lágrimas.

        - E você a deixou lá? - Thayer gritou descontrolado.

        - Não! Henry os afastou dela. Temos algum tempo.

        - Pouco - John acrescentou. - Henry não vai poder retê-los para sempre. Temos de voltar para lá.

        - Passamos metade da noite procurando uma brecha por onde pudéssemos entrar - disse Merlion. - Não há nenhuma.

        - E como acha que saímos?

        - Há uma passagem. Saímos por ela e viemos até aqui para buscá-los.

        - Para sermos assassinados lá dentro? - Roger questionou desconfiado.

        Robert balançou a cabeça e respondeu:

        - Por que eu me incomodaria com isso? Pickney só precisaria esperar até amanhã para ter tudo que quer. Thayer simplesmente se entregaria. Por favor, confiem em mim. Por Gytha! Meu tio pretende violentá-la e depois entregá-la a Thomas e Bertrand! Acha que eu poderia ficar quieto diante dessa barbaridade?

        Thayer pegou a espada.

        - Vamos - disse.

        - Melhor deixar alguns homens aqui - John sugeriu enquanto se levantava.

        - E verdade - concordou Robert. - Eles não podem ver muito bem do alto das muralhas, mas se não identificarem uma ou outra sombra se movendo pelo acampamento de vez em quando, podem ficar desconfiados. É melhor não alertá-los.

        - Pickney sabe sobre essa brecha?

        - Não, Thayer. Eu nunca contei nada a ele. Ah, e seus homens estão na masmorra. E lá que fica a passagem por onde vamos entrar. Eles vão precisar de armas. Deixamos Wee Tom vigiando para impedir que um dos homens de Pickney descesse e desse o alarme.

        Thayer saiu da tenda seguido pelos outros. Ele deixou Roger com Robert e John enquanto dava ordens e cuidava dos preparativos. Sentia que Robert era sincero em sua intenção de ajudar, mas duvidava de sua força para perseverar. De qualquer maneira, pretendia tirar proveito desse raro momento de coragem do primo.

        - Estamos prontos para partir - anunciou por fim. - Vocês vão na frente para indicar o caminho. E se tudo isso for uma armadilha, saibam que morrerão conosco.

        Quando penetraram no bosque rumo ao tronco de árvore por onde entrariam na fortaleza, Roger perguntou a Thayer:

        - O que vai fazer com Robert e John quando tudo isso acabar?

        - Muitos homens os enforcariam.

        - Sim. Mas sei que não vai ser essa sua decisão.

        - Como posso punir Robert por ter sido dominado pelo tio durante toda a vida? E esse John... Ele me olhou nos olhos, Roger. Foi honesto. Ele realmente acredita que roubar mulheres e terras é comum entre os nobres. Mesmo assim, sabe distinguir até onde pode ir com seus erros. Não vai fazer mal a mulheres e bebês. Devo a ele a vida de Gytha. Como poderia puni-lo?

        -Tem razão, deixe-os. Imagino que eles pensarão duas vezes antes de se envolver novamente em malfeitos, mesmo que o pagamento seja tentador.

        - É verdade. - Robert e John pararam ao lado de uma árvore. - E aqui?

        - Sim, por aqui - Robert confirmou.

        Todos o seguiram. Thayer empunhava uma lanterna e, atento, passou pelo alçapão.

        Wee Tom os esperava do outro lado.

        - Finalmente! - ele exclamou aflito. - Milorde...

        - Trouxemos armas para os homens.

        - Ótimo! Eles estão ansiosos para entrar em ação.

        - Alguma notícia de Gytha? - Robert perguntou.

        - Aquele homem... Henry... Ele esteve aqui. Quase o feri com a espada antes de perceber que era ele.

        - E verdade - Henry confirmou.

        - Gytha - Robert murmurou, segurando seu braço. - Como ela está?

        - Contive Pickney tanto quanto pude. É bem verdade que um homem foi chicoteado por isso, mas... Bem, agora eles voltaram à torre. Se querem libertar a dama, é melhor correrem.

        - Colin, Wee Tom - Thayer chamou. - Libertem os homens que estão aqui e armem-nos. Vou levar Roger, Merlion e os outros. Onde está Gytha? Eu a vi na janela da torre oeste. E isso?

        - Sim - confirmou Henry. - Mas tome cuidado quando for até lá.

        - Eu sei. Eles a têm como refém.

        - Ainda não - Henry gritou, correndo atrás deles. - Sua mulher encontrou um jeito de mantê-los afastados por mais um tempo.

        - Como?

        - Ela está na janela, milorde, e ameaça se jogar se um deles ousar tocá-la. Saí de lá um momento, e eles tentavam convencê-la a se afastar da janela.

        - Por Deus! - Thayer estremeceu. - Venham, vamos depressa! Ela pode estar falando sério!

        Gytha se agarrava ao parapeito e tentava não perder o equilíbrio. Estava apavorada, mas temia ainda mais os homens no quarto. Era detestável pensar em se atirar no vazio, em voar para a morte e cometer o imperdoável pecado do suicídio, mas o que Pickney e seus capangas planejavam também era horrível. De um. jeito ou de outro, ela pensou deprimida, o bebê não sobreviveria.

        - Saia dessa janela, mulher - Pickney exigiu furioso.

        - Não. Ficarei aqui até você sair.

        - Vai macular sua alma por toda a eternidade se saltar para a morte.

        - Está preocupado com minha alma? Pois saiba que prefiro o inferno ao que planeja para mim!

        - Se pular, vai matar também a criança que espera.

        - O que você e esses homens imundos pretendem também vai significar a morte do bebê. Não me dá escolha.

        - Está bem, está bem. - Pickney ergueu as duas mãos num gesto conciliatório. - Desça daí, e prometo que nenhum de nós vai tocar em você. Tem minha palavra de que será deixada em paz.

        - Sua palavra? Ahá! Ela não vale nada. Só um tolo aceitaria sua palavra.

        - Pense no que estou dizendo, mulher. Você não é útil para mim morta. Não quero que morra.

        - Ainda não! - ela respondeu, sem perceber que os homens não a ouviam mais.

        Só quando o quarto foi invadido ela percebeu que havia sido esquecida. Thayer comandava a invasão ruidosa e violenta.

        - Thayer! - ela gritou incrédula.

        - Desça daí antes que se machuque, mulher maluca! - ele gritou, apontando a espada para Pickney.

        - Sim, marido. Como quiser.

        Gytha desceu da janela com grande cautela, mas, antes que pudesse saborear a sensação de estar novamente em segurança, as pernas começaram a tremer sob seu corpo. Zonza, ela escorregou para o chão sem entender o que acontecia, e foi se arrastando até um canto seguro contra a parede, fora da área onde se desenrolava a luta. Era impossível parar de tremer.

        Thayer se concentrava em Pickney. As roupas rasgadas e os hematomas que vira nos braços da mulher confirmavam o relato de Robert. Seu desejo era matar Pickney pouco a pouco, causando grande dor e interminável sofrimento. Não foi com surpresa que ele viu Charles empunhar a espada e, mesmo armado, empurrar Thomas na sua frente. Sua covardia era revoltante.

        - Pare de se esconder atrás de seus cúmplices e me enfrente como um homem - Thayer provocou. - Estou lhe dando uma chance que você não me teria dado.

        - Mate-o! - gritou Pickney, encolhendo-se atrás de Bertrand e de Thomas. - Matem esse desgraçado, seus idiotas!

        Roger adiantou-se. Merlion também deu alguns passou à frente, pronto para agir, caso fosse necessário. Gytha fechou os olhos por um momento, sem saber o que esperar, mas voltou a abri-los ao sentir que alguém se aproximava. Surpresa, ela viu Robert, John e Henry se reunirem a sua volta formando um escudo.

        - O que estão fazendo?

        - Queremos impedir que meu tio tente usá-la como escudo - explicou Robert.

        - Eu agradeço, mas preciso ao menos de um espaço para ver o que está acontecendo.

        - Uma dama não deve testemunhar esse tipo de coisa.

        - Não seja idiota, Robert!

        Henry e John riram.

        A violência a horrorizava, mas ela sentia uma estranha e inesperada excitação vendo o marido brandir sua espada com tanta maestria. Fechou os olhos por um momento quando Thayer feriu Thomas. Não gostava dos seguidores de Pickney, mas nem por isso desejava vê-los sangrar até a morte. Sabendo que agora Thayer enfrentaria Pickney, ela abriu os olhos e ainda testemunhou os últimos instantes do combate entre Bertrand e Roger. Pickney perdia mais um homem.

        Roger colocou-se ao lado de Thayer.

        - Não - disse ele. - Quero enfrentar esse verme pessoalmente, Roger.

        - A culpa é toda de Robert - Pickney gritou desesperado ao se ver desamparado. - Foi idéia dele. Confesse, Robert! Revele como fui só um mero soldado forçado a fazer seu jogo!

        A resposta de Robert foi tão cruel, vulgar e cheia de ódio, que Gytha o encarou boquiaberta. O som do choque entre espadas atraiu sua atenção de volta à luta. Apesar da evidente covardia, Pickney era um bom lutador. Gytha tremia novamente. Confiava na habilidade de Thayer e sabia que ele poderia derrotar Pickney numa luta justa, mas não acreditava que Pickney tivesse a intenção de lutar com justiça e honestidade.

        Depois de alguns momentos percebeu que o marido estava brincando com o oponente, causando ferimentos pequenos, mas dolorosos, adiando o golpe fatal. Considerava que Pickney era merecedor dos mais duros castigos, mas não suportava assistir à morte lenta.

        De repente Pickney gritou, e ela soube que havia acabado.

        Thayer estava abaixado a seu lado, amparando-a.

        - Está ferida?

        - Não... - respondeu com voz fraca, dominada por forte vertigem. - Minhas roupas foram rasgadas, tenho alguns hematomas... Mas é só isso. E Bek...?

        - Está bem. Sofreu um corte na cabeça, mas não foi nada grave. Agora que conheci os dois homens que os atacaram na pousada, chego a acreditar que eles não usaram muita força quando o agrediram, ou meu filho estaria morto.

        Ela fechou os olhos e sorriu aliviada.

        - Sobre Henry e John...

        - Depois, minha querida. Antes quero que as mulheres a examinem para termos certeza de que está mesmo bem. Depois será banhada e vestida com trajes apropriados e limpos. Então poderemos conversar.

        O quarto foi rapidamente limpo. Todos os sinais de morte desapareceram. Duas mulheres chegaram para ajudá-la. Gytha foi examinada, banhada e ungida com bálsamos que aliviaram a dor de pequenos hematomas e ferimentos. Depois, ela foi posta na cama sobre muitos travesseiros e recebeu uma bandeja com uma variedade de guloseimas. Enquanto comia, conseguiu captar alguns detalhes sobre como Thayer fora capaz de resgatá-la, mas foi um grande alívio vê-lo retornar ao quarto, depois de inspecionar o castelo, e expulsar todos que ameaçavam sua privacidade.

        - Já começava a me sentir uma inválida - ela resmungou.

        Thayer riu e se serviu de um pedaço de queijo do prato na bandeja.

        - Logo a levarei para os nossos aposentos - ele disse. - Pickney se instalou em nosso quarto, por isso dei ordens para que tudo fosse limpo antes de voltarmos para lá. Achei que você ia preferir assim.

        - Sim, obrigada.

        Ela parecia melhor, mas ainda estava um pouco pálida. Thayer conteve o riso ao imaginar o que ela diria se soubesse como o marido passara a última hora, de joelhos na capela agradecendo a Deus por ainda ter a mulher e o bebê a seu lado.

        Parte dele clamava pela revelação de seus mais profundos sentimentos, mas se mantinha calado. Acabara de salvar a vida dela, evitara uma terrível e traumática violência sexual, e toda e qualquer declaração de amor seria recebida com gratidão efusiva. E esse era o último sentimento que desejava despertar nela.

        - Já mandei informar sua família de que o perigo está superado. Mandei notícias também para os que esperam em Riverfall - ele disse.

        - Lamento por todo esse problema, Thayer. Se eu não tivesse ido ao encontro de Elizabeth...

        - Você não tem do que se desculpar. Nunca disse a ninguém que ela era minha inimiga, que poderia oferecer perigo. Quando deixei a corte estava decidido a falar sobre esse assunto, mas depois esqueci tudo sobre Elizabeth.

        - O que fez com ela? Deixou aquela mulher livre para cometer outras maldades?

        - Não. Ela está presa na masmorra em Riverfall. Quando eu voltar, chamarei a família dela para ir buscá-la e levá-la sob custódia. Porém, antes de partirem, serão informados sobre algumas verdades a respeito de Elizabeth. Falarei inclusive sobre o filho que tivemos.

        - Pobre Bek! Agora sabe que a mãe não se importa mesmo com ele.

        - Se isso o magoa, ele esconde bem o que sente. Na verdade, acho que Bek sempre soube disso. O que realmente o incomoda é que, mais uma vez, Elizabeth participou de um plano para prejudicar você. Isso é algo que ele não pode entender, e não sei se o ajudei muito nesse sentido. Não tive tempo. De qualquer maneira, tenho de informá-lo de que a mãe dele não sabia que um assassinato fazia parte desse plano.

        - Tem certeza disso?

        - Sim. Ela sabia de um plano de rapto para pedir um resgate, e viu nesse esquema uma forma de pôr algumas moedas em sua bolsa sempre vazia.

        Gytha se reclinou contra os travesseiros e bebeu sem pressa o vinho em sua caneca, vendo Thayer devorar o que ainda havia na bandeja. Ela estendeu a mão para tocar os cabelos do marido, que sorriu. Exceto por aquele primeiro abraço emocionado depois da morte de Pickney, haviam retomado o estado anterior da relação. Próximos, mas não muito, e confortáveis. A situação a entristecia, mas sentia-se ainda mais triste por sua participação nela. Ainda não revelara seus verdadeiros sentimentos, calando-se covardemente cada vez que tentava falar.

        - Thayer, acha mesmo que deve informar a família de Elizabeth sobre Bek?

        - Por que não? - Ele se levantou para remover da cama a bandeja vazia.

        - E se eles também rejeitarem o menino? - Quando o marido voltou e se sentou a seu lado, ela apoiou a cabeça em seu ombro e se sentiu confortada pelo abraço. - Bek saberia que tem familiares, mas que eles também não o querem.

        - Existe essa possibilidade, eu sei. Mas tenho de dizer a eles. Já devia ter falado. Talvez a solução seja não conversar com Bek sobre isso até ter certeza de qual vai ser a reação da família de Elizabeth. Não quero que ele sofra ainda mais.

        - Quando ele for mais velho, talvez você possa falar com ele sobre tudo isso. Se a família o reconhecer, é claro. Se não...

        - Se não, ele nunca saberá. Sim, talvez tenha razão, Gytha. Decidiremos tudo quando o momento chegar. Agora, temos outra questão a tratar. Queria falar comigo sobre Henry, John e Robert?

        - Sim. O que planeja fazer com eles?

        - Não pensei em nada. Por quê? O que acha que devo fazer? Foi você quem mais sofreu nas mãos deles.

        - Não, Thayer. Nas mãos de Pickney. Sei que Henry e John me trouxeram até aqui, para ele, mas esses homens são só seguidores, pequenos comandados. O verdadeiro mal estava em Pickney. Mesmo depois de terem me batido na cabeça, eles me trataram bem. E quando tomaram conhecimento dos verdadeiros planos de Pickney, eles ficaram chocados. Infelizmente, Henry e John não são modelos de coragem.

        - Eu não teria tanta certeza. John me encarou quando admitiu ser um dos homens que a trouxe para cá. E estava desarmado quando fez essa confissão.

        - Ora, isso é uma surpresa. Ele e Henry demonstraram sentir muito medo de você.

        - De mim? - Thayer fingiu inocência.

        - O que quero dizer é que há neles uma semente do bem.

        - E ela germinará se eles forem mantidos bem alimentados, abrigados e com algumas poucas moedas para atender às próprias necessidades - deduziu Thayer.

        Gytha riu.

        - Você já havia decidido poupá-los.

        - Sim, mas queria ter certeza da sua opinião. E Robert?

        - Pobre Robert. Pickney fez dele o que é. Quem sabe que tipo de homem ele poderia ser, se não houvesse sido manipulado e prejudicado pela péssima influência do tio? Mas, por um momento, Robert enfrentou o tio. Infelizmente, ele não tinha a força e a habilidade, e Pickney percebeu e usou essa carência.

        - Sim, eu sei disso. No final, quando foi realmente importante, Robert fez o que era certo. Não tenho estômago para matar alguém que tem o mesmo sangue que eu nas veias. Além do mais, Robert não sabe que William foi assassinado. Ele desconfia, mas não tem certeza.

        - Mas ele sabia que você seria assassinado.

        - Sim, e ignorou essa informação por uma razão que muitos homens considerariam boa. Ele queria você. Agora, creio que Robert desistiu inteiramente desse sonho. Sabe, começo a pensar que John e Henry o tomaram sob sua proteção. Talvez a melhor coisa a fazer seja pensar em alguma coisa que eles possam fazer juntos e que proporcione um certo lucro e os mantenha fora de confusões.

        Gytha levou a mão à boca para conter um bocejo.

        - E quanto aos homens de Pickney?

        - Estão mortos.

        - Todos eles?

        - Sim, todos. Os homens que libertamos da masmorra sofreram um golpe duro contra sua honra. Foi impossível contê-los em sua ânsia de vingança. - Thayer se levantou e a cobriu, acomodando-a para dormir. - Agora descanse. Passou por momentos difíceis e precisa se recuperar.

        - Thayer, sei que vai me achar um pouco tola, mas será que pode ficar aqui comigo? Pelo menos até eu dormir?

        - Sim, e não acho que você é tola. Está traumatizada, assustada... Tudo isso é normal. O perigo real já passou, mas a memória ainda vai incomodá-la por um tempo.

        Ela sorriu agradecida diante da resposta compreensiva. Aninhada nos braços do marido, Gytha fechou os olhos e começou a relaxar. Finalmente sentia que estava realmente viva, que o plano de Pickney fracassara.

        - Gytha?

        - Hum...?

        - Ia mesmo pular daquela janela?

        Sonolenta como estava, era difícil responder com clareza, mas ela tentou:

        - Não sei. Parte de mim não via razão para não pular, mas outra parte repelia essa idéia. Se Pickney houvesse se aproximado, talvez... Sentia mais medo dele do que da morte ou do castigo de Deus.

        Gytha já havia adormecido, mas Thayer continuava ao lado dela, segurando sua mão. Estivera muito perto de perdê-la e de perder o filho que ela esperava. Depois disso seria muito difícil não tentar escondê-la do mundo, de qualquer possibilidade de perigo. Talvez estivesse condenado a passar o resto da vida temendo pela vida da mulher amada.

        Thayer resmungou e bateu na mão que tocava seu ombro. Não queria acordar. Estava ainda um pouco embriagado depois da celebração do casamento de Roger e Margaret na noite anterior.

        - Se eu fosse um inimigo, já teria cortado sua garganta. Havia algo de familiar na voz profunda e rica, mas Thayer tentou ignorá-la e continuar dormindo.

        - Jesus! - gritou Fulke.

        Ótimo! O invasor havia acordado o irmão de Gytha. Os três Raouille dormiam em esteiras em seus aposentos, e logo poriam para fora quem ousava incomodá-lo.

        - Mas... ouvimos dizer que estava morto! - John murmurou. - Como pode estar aqui?

        - Porque não estou morto, talvez? - Soou a resposta debochada. - Acorde, pateta ruivo!

        Thayer tinha certeza de que ainda estava embriagado, ou não teria pensamentos tão absurdos.

        Gytha não sabia se gritava ou desmaiava de susto. Queria arrancar o marido daquele torpor, mas hesitava em despertá-lo para o que só podia ser uma visão estranha e irreal. William Saitun estava morto! Não podia estar em pé ao lado de sua cama em Riverfall, sorrindo tranqüilamente.

        - Pela quantidade de bêbados que encontrei dormindo pelos corredores, suponho que tenha acontecido uma festa grandiosa ontem à noite.

        - Roger se casou com minha prima Margaret - ela respondeu, tentando entender como podia estar conversando com uma visão.

        - Ah, então era sobre isso que Robert falava.

        - Falou com Robert?

        - Ele resmungou algumas palavras antes de cair desfalecido. O tio dele está morto? Isso é verdade?

        - Sim. Thayer o matou em Saitun Manor.

        - Lástima... Esperava ter esse prazer. E claro que muitas coisas aconteceram durante os meses que passei fora. - William sacudiu Thayer mais uma vez. - Acorde, seu grande idiota. Precisamos conversar. Onde está sua educação? Não vai acolher e receber alguém que volta da morte?

        Decidindo que William devia estar vivo, já que sua imagem não desaparecia, Gytha também sacudiu o marido. Seus irmãos já estavam em pé, lavando-se e vestindo-se enquanto trocavam opiniões variadas a respeito de como contar aos pais tudo que havia acontecido ali.

        - Thayer, acho que devia acordar e falar com esse homem. - Vendo que ele abria os olhos, Gytha insistiu: - Tente superar o torpor, Thayer. Olhe para a sua direita. Relutante, ele se virou... e não conteve uma exclamação espantada. Thayer esfregou os olhos, mas o que via não desapareceu. Olhando para Gytha e para os irmãos dela, soube que todos ali esperavam alguma reação. Quando William gargalhou, abraçou-o e bateu em suas costas, ele se recuperou pelo menos o suficiente para retribuir o abraço. Depois, quando William recuou, ele começou a pensar nas conseqüências do retorno do primo.

        - É você mesmo, William... - Thayer sentou-se na cama. - Por que fomos informados de que estava morto?

        Sentado na beirada da cama, William agradeceu o vinho que Fulke servia.

        - Eu quase morri de verdade. A queda do cavalo causou-me graves ferimentos. Cortland, meu escudeiro, achou que seria melhor se todos me julgassem morto. Ele sabia que a queda não havia sido um acidente, e sabia também que eu não estava em condições de lutar contra outro possível atentado. Além do mais, não podíamos ter certeza da origem do atentado. Tenho alguns inimigos.

        - Todos nós temos. Onde esteve?

        - Não muito longe, para dizer a verdade. Estava em uma estalagem. A princípio não percebi o que Cortland havia feito. Quando me recuperei o bastante para pensar com clareza, tentamos descobrir quem havia me atacado. Quando soubemos que tinha sido Pickney, pensei em preveni-lo, mas Cortland garantiu que você já sabia.

        - Eu sabia. Ele me havia declarado morto também. Não precisei de muito tempo para deduzir tudo. Sofri alguns acidentes incomuns, embora não tenha me ferido tanto quanto você. Parece bem agora, William.

        - Sim, mas tenho cicatrizes novas, e minha perna direita enrijece consideravelmente em alguns momentos. E um milagre que não tenha ficado manco. Só lamento por uma coisa. - Ele sorriu.

        - O quê?

        - Receio que meu retorno represente para você a perda de tudo que você obteve. Só isso é suficiente para me fazer quase desejar estar morto. Por um breve momento, pelo menos.

        Thayer também sorriu. A perda de tudo que obteve. As palavras ecoavam em sua mente, causando insuportável agonia com seu verdadeiro significado. Nada do que tinha era realmente dele. E isso incluía sua esposa. O contrato decretava que Gytha deveria se casar com o herdeiro de Saitun Manor. Como William não morrera, ele não era o herdeiro e não tinha o direito legal de estar casado com Gytha. William tinha esse direito.

        - Bem. - Ele olhou para William. - Nunca tive nada. Não vai ser tão difícil retornar ao que era antes. - E nunca contara uma mentira tão grande. Certamente perderia Gytha também.

        - Nada? - Ela estranhou. - Sei que Riverfall não é tão grande ou tão próspero quando Saitun Manor, mas é mais do que nada.

        - Sim, mas Riverfall é seu dote.

        - Sim, e por isso agora você é o senhor dessas terras. Quando nos casamos, Riverfall passou para suas mãos.

        - Gytha, nós nos casamos porque William foi considerado morto.

        - E daí? - Tinha o pressentimento de que não ia gostar do fim dessa conversa.

        - Pelos termos do contrato, você deveria se casar com o herdeiro de Saitun Manor. Não sou mais esse herdeiro. Agora tudo pertence a William.

        - E daí?

        - Você nunca teve um raciocínio lento. O contrato determina que você deveria se casar com o herdeiro. William é o herdeiro. E ele está vivo. Você vai ter de ser devolvida a ele.

        William engasgou com o vinho. Thayer teve de bater nas costas do primo para salvá-lo de sufocar.

        Gytha se sentia tão perplexa quanto seus irmãos pareciam estar. De onde Thayer tirava essa argumentação absurda? Estavam casados havia meses! O casamento havia sido consumado centenas de vezes e já produzia frutos. Ele não podia estar pensando em simplesmente anular a união e entregá-la a William, só porque, de repente, o homem aparecia vivo.

        De repente ela se sentiu zangada. Não poupou esforços para mostrar a Thayer que gostava de estar a seu lado e queria continuar com ele. Agora descobriu que fracassara. Ele ainda acreditava que poderia simplesmente trocar sua cama pela de William.

        Era insultante! Na opinião de Thayer, não era mais do que parte de uma herança, quase como uma pedra de Saitun Manor. William voltava para reclamar a propriedade; portanto, William levaria também a noiva.

        Ela o atingiu com um soco. Quando Thayer praguejou e a encarou surpreso, ela o acertou com outro soco. Depois se levantou da cama, sem dar importância à falta de jeito provocada pela barriga distendida.

        William a estudava surpreso e boquiaberto. Não havia notado sua condição antes. Gytha não podia deixar de pensar na atitude desprezível de Thayer. Ele havia esquecido a gravidez, ou pretendia entregar também o bebê a William?

        - Quer me jogar fora como se eu fosse um trapo velho? E isso? - ela disparou. - Vai me oferecer numa bandeja para o herdeiro que retorna? Ah, olá, William! Já que é dono do castelo e do título, por que não leva também a mulher?

        - Você entendeu mal - Thayer protestou, lamentando não estar vestido. Era horrível se descobrir nu na cama enquanto tentava conduzir uma conversa tão séria com uma esposa furiosa. - O contrato de casamento...

        - Para o diabo com o contrato! Não sou um objeto a ser negociado com a propriedade e os outros bens! E o bebê? Fica, ou também vai ser descartado com a mãe?

        - Não estou descartando você! Por que distorce minhas palavras?

        - Distorço? Elas já saem distorcidas de sua boca! O que pretende fazer? Anular o casamento? A gravidez pode dificultar seus planos, caso ainda não tenha pensado nisso. Qualquer um pode perceber que nosso casamento foi consumado. Acha que pode tomar uma decisão e tornar-me virgem outra vez?

        - Agora está sendo tola - ele decidiu irritado, levantando-se para ir vestir a ceroula. - William entende as razões para tudo que aconteceu.

        - William ainda não foi interpelado quanto ao que pensa - disse o próprio William, notando que sua presença era ignorada.

        Uma dor aguda surgiu e desapareceu em seguida. Gytha franziu a testa. De repente entendia o que estava acontecendo. Sabia por que havia dormido tão mal à noite. Ela encarou o marido e decidiu ignorar os sinais do parto iminente. Atacá-lo era mais importante que tudo nesse momento.

        - E ótimo saber que William é tão compreensivo, mas receio não ter a mesma qualidade. Como pode desistir de mim tão rapidamente, sem sequer pensar nos meus sentimentos? No que eu quero? Você está sempre dando ordens, decidindo por todos!

        - Acalme-se e escute. Eu só mencionei o contrato. E legal, válido e sancionado pelo rei. Seus pais a casaram comigo porque eu era o herdeiro naquele momento. Eles foram enganados, embora ninguém tenha tido essa intenção. Isso vai ter de ser discutido. Você é uma dama de origem nobre que devia ter sido casada com um título e posses. E eu não tenho nada disso.

        - Estranho. Pensei que fosse casada com um homem.

        - Está dificultando as coisas de propósito.

        - Eu estou dificultando as coisas? - Gytha olhou para os irmãos. - Não têm nada a dizer sobre isso?

        Fulke respondeu hesitante:

        - Lamento, mas não consigo raciocinar com clareza desde que William ressurgiu dos mortos. E, por mais maluco que pareça, pode haver alguma verdade nas palavras de Thayer.

        O insulto que ela pretendia dirigir ao irmão e à sua confusão mental soou apenas como um gemido de dor.

        Agarrou-se à cabeceira da cama, segurou o ventre com a outra mão e dobrou-se ao meio, tomada de assalto por uma violenta contração. Todos os homens a olharam com compreensão horrorizada.

        - E então? - ela disparou. - Vão ficar aí parados até o pobrezinho cair no chão?

        Thayer deu um passo na direção da esposa.

        - Gytha... É o bebê?

        - O que você acha? Vá buscar Janet e chame minha mãe! - ela ordenou. Foram os irmãos dela que se retiraram para obedecer à ordem. Outra contração a castigava quando, notando a mão de Thayer estendida em sua direção, ela reagiu: - O que está fazendo?

        - Vou colocá-la na cama - ele respondeu enquanto a tomava nos braços e a deitava novamente. - E lá que deve ficar.

        - Eu nem teria me levantado, se você não fosse o idiota tolo que é!

        Thayer ignorou o insulto e olhou para William.

        - Ajude-me a encontrar minhas roupas antes que as mulheres cheguem.

        - Onde está Bek? - William indagou curioso enquanto ajudava o primo a recompor-se. - Ele não é mais seu pajem?

        - Ele é, mas está se recuperando de algumas dificuldades criadas pela própria mãe dele.

        Thayer resumiu tudo que havia acontecido recentemente, notando o horror nos olhos de William. Felizmente, Bek fora aceito com grande alegria pela família materna, que o reconhecera como descendente mesmo enquanto ameaçava deserdar Elizabeth. Mas as explicações eram breves, entrecortadas, porque Thayer permanecia atento em Gytha. Vestido, ele correu para perto da cama e segurou a mão da esposa, notando com alívio que ela não o repudiava. Porém, a fúria ainda não havia arrefecido.

        - Ora, então não vai delegar essa tarefa a William, também?

        Antes que Thayer pudesse responder, William segurou a outra mão de Gytha, ignorando o olhar ruivoso do primo.

        - Gytha, não seja tão severa. Um contrato de casamento é um laço de honra, e se existe um homem no mundo que respeita a honra e a palavra, esse homem é meu primo Thayer. Pode soar absurdo e até ofensivo, mas esse casamento é agora uma questão legal.

        Gytha queria responder, mas foi dominada pela dor de outra contração.

        William apertou a mão dela.

        - Você é forte. Mais do que parece - disse.

        - Sente muita dor? - Thayer perguntou aflito.

        - Vejo que hoje acordou disposto a formular questões estúpidas - ela respondeu irritada, tentando respirar antes da próxima onda de dor.

        - Quanto ao dilema que estamos enfrentando aqui... - William adiantou-se, sentindo que o casal poderia começar uma discussão que, naquelas circunstâncias, não seria conveniente.

        - O dilema só existe - Gytha cortou - para certas pessoas que querem se desfazer de suas esposas.

        - Eu não disse que quero me desfazer de você.

        - Chega! - William exclamou com firmeza. - Quero dizer o que penso, e vocês precisam me ouvir. Gytha, quando a deixei depois de nosso último encontro, parti mais do que satisfeito com o arranjo. Porém, as coisas mudaram, e não me refiro apenas ao bebê que vai nascer a qualquer momento. Não. Sei que é melhor você ficar com seu marido. Não pretendo reclamá-la para mim.

        Gytha o encarou entre uma e outra contração. William resolvia o conflito antes mesmo de ele surgir. Ainda estava furiosa com Thayer por sua aparente disponibilidade para entregá-la ao primo, mas não precisava mais temer que uma lei qualquer o arrancasse de seus braços. Porém, a facilidade com que William abria mão dela não era exatamente lisonjeira.

        - É estranho - ela murmurou. - Considerando que não desejo trocar de marido, mas sinto-me ofendida.

        Thayer continha a vontade de rir. Em nenhum momento havia pensado em desistir dela. Era um alívio constatar que William não pretendia criar problemas. Porém, também se sentia insultado com a atitude desinteressada do primo. Sentira o coração dilacerado ao pensar que talvez tivesse de se separar de sua Gytha, porque a lei poderia obrigá-lo a isso, mas William nem se dava ao trabalho de reconhecer com gratidão sua intenção de sacrifício.

        William riu e beijou o rosto de Gytha.

        - Confesso que no início fiquei desapontado por ter perdido uma noiva tão adorável. E para meu primo! Mas, sendo livre, logo entreguei meu coração a outras mãos. Casei-me há três meses.

        Gytha queria fazer dezenas de perguntas, mas, antes que pudesse começar, ela viu Janet e sua mãe se aproximando da cama. Thayer e William foram expulsos do quarto.

        Era frustrante não poder saciar a curiosidade, mas o nascimento de seu primeiro filho chamava a atenção de todos. Especialmente a dela.

        Thayer esperava no salão em companhia dos primos, William e Robert, e de seus mais novos amigos, John e Henry. A demora o preocupava. William falava sobre sua intenção de levar Robert de volta a Saitun Manor, mas Thayer protestou.

        - Ele não quer ir. Prefere ficar aqui, pois lá todos se lembram dele como o comandado de Pickney. Robert pretende gerenciar uma hospedaria, e já prometi ajudá-lo nessa empreitada. Sei que o trabalho não é apropriado para um homem de sua origem, mas ele está animado. O negócio é promissor. Robert cuida das contas, e os dois, John e Henry, fazem o trabalho propriamente dito. Creio até que Robert já se interessou por alguém, uma jovem delicada e interessante o bastante para fazê-lo esquecer sua devoção por minha esposa. Isso é muito bom, porque, quando tiver de me ausentar e deixá-la aqui sozinha, posso pedir a Robert para cuidar dela sem nenhum temor.

        - Por que pensa em se ausentar? O rei o convocou novamente?

        - Não, mas agora sou destituído de terras e título. Vou ter de vender minha força de trabalho.

        - Riverfall é uma bela propriedade.

        - Sim, mas é o dote de Gytha. O que ela trouxe ao nosso casamento. Eu não trouxe nada. Preciso trabalhar para contribuir com minha parte. Gytha deveria ter se casado com um homem de título e posses, e tenho o dever de compensá-la pela perda que sofreu com toda essa confusão.

        - Primo, sempre admirei sua inteligência, mas você parece ser incapaz de usar o raciocínio quando o assunto é sua esposa.

        Antes que Thayer pudesse responder, lady Bertha entrou no salão. A mulher parecia cansada, mas feliz. Mesmo assim, Thayer se recusava a ter esperanças, a acreditar que Gytha escapara ilesa do difícil e arriscado momento do parto.

        - Você é pai de um menino, Thayer - ela anunciou, indo se sentar ao lado do marido.

        Ele assentiu e aceitou distraído os votos de felicidades e congratulações. Queria que tudo acabasse depressa, porque tinha uma pergunta a fazer a lady Bertha. Ela ainda não havia revelado o que, para ele, era mais importante que tudo.

        - E Gytha? - finalmente murmurou depois de um instante.

        - Está bem. Cansada, mas bem. Ela terá muitos outros filhos, a julgar por como enfrentou o primeiro parto. Por que não vai vê-la? Sua mulher o espera.

        Thayer subiu a escada correndo, mas parou diante da porta do quarto. Não podia deixar de lembrar a última vez em que estivera ao lado da cama de uma mulher com quem tivera um filho. Dizendo a si mesmo que Gytha não era como a fria e imoral Elizabeth, ele entrou e se aproximou da cama da esposa. Janet saiu imediatamente. Gytha parecia cansada, mas radiante. Ela segurava o bebê com uma ternura emocionante.

        - Como se sente? - Thayer perguntou com a voz embargada.

        - Bem. Venha conhecer seu filho.

        - Bek vai ficar feliz - ele murmurou, sorrindo atordoado.

        Gytha o viu tocar a criança com sua mão grande e calejada. Enquanto ele se certificava de que o menino era forte e saudável, ela se emocionava com a cena. Não precisava perguntar se o marido estava feliz. Podia ver a resposta em seu rosto.

        Mas ela ainda sentia os resquícios da velha mistura de raiva e dor. Havia conversado com a mãe sobre a discussão que precedera o parto. Lady Bertha ficara um pouco chocada, mas tentara fazer a filha entender que havia bons motivos para a reação de Thayer. O argumento não servira para acalmá-la. Queria alguma indicação do marido de que ele teria ao menos relutado em entregá-la a William. Mas ele se mostrara dolorosamente complacente.

        - O bebê é forte, Gytha. E é bonito, também - Thayer comentou antes de beijá-la, desejando encontrar um meio mais eloqüente de manifestar seus sentimentos. - Vamos chamá-lo de Everard, como combinamos? Ainda quer dar à criança o nome de meu pai?

        - É claro que sim. Não mudei de idéia. É um bom nome. Porém, confesso que tive medo de que deixasse também essa escolha aos cuidados de William.

        Thayer sentou-se na banqueta ao lado da cama e respirou fundo. Chegara a esquecer o confronto, mas era evidente que ela ainda o tinha nítido na memória. Teria de dar boas explicações, embora não soubesse nem por onde começar.

        - Gytha, precisa entender como funcionam esses contratos - ele começou.

        - Isso já foi explicado. Ainda acho que é tudo uma grande loucura, mas entendo que esses documentos e essas leis nunca levam em consideração as pessoas que são afetadas por elas.

        - Então, se entende, por que continua tão zangada? Quando William voltou, era minha obrigação oferecer de volta tudo que ele deveria ter herdado, tudo que obtive em conseqüência de sua suposta morte. Saitun Manor, o título, você...

        Ela quase praguejou. Mais uma vez, era relacionada como um bem, um objeto qualquer. Isso a enfurecia. A raiva a impedia de ceder à exaustão que reclamava seu corpo.

        - Entendo. Porém, como seria se, por ocasião do retorno de William, eu me virasse para você e dissesse: "Bem, Thayer, meu verdadeiro marido voltou, e agora tenho de deixá-lo"? Teria sido aceitável para você?

        Ele piscou. De repente percebia tudo. Ela afirmava compreender o contrato de casamento e a questão levantada pelo retorno de William, mas a verdade era que Gytha não estava pensando. Estava sentindo. Entendia que ele se dispunha a entregá-la a William, mas não sabia que dor e que tumulto emocional a decisão causava em sua alma. Vira frieza em vez de obediência, honra e lealdade. E, com seu controle férreo e sua aparente calma, ele causara sofrimento e até a ofendera.

        - Gytha, querida, se a fiz acreditar que queria entregá-la a William, peço que me perdoe.

        - Foi exatamente essa a impressão que tive.

        - Sim, eu sei. Estou vendo agora, querida. Você está certa. Às vezes sou mesmo um idiota. Tudo que posso dizer é que o choque provocado pelo retorno de William tornou-me ainda mais tolo.

        - Entendo. Vê-lo também me deixou atordoada.

        - Quando me lembrei de que deveria devolver tudo que havia herdado, naturalmente a incluí na lista. Descobri-me dividido entre o que a honra exigia de mim e o que eu queria fazer. Saitun Manor e o título tinham pouca importância. Se incluindo você nesse pacote, a fiz se sentir pouco importante também, tudo o que posso dizer é que nunca tive essa intenção. Sempre soube que não poderia entregá-la a outro homem. E o bebê... Por acaso não consegui demonstrar a alegria que me deu com essa gravidez? Por isso acreditou que eu poderia desistir de tudo?

        - Não. Eu sabia... Eu sei... Sim, tenho certeza de que está feliz com a criança.

        - Não imagina o alívio que experimentei quando William revelou que havia se casado com outra. Naquele momento eu percebi que não teria de me colocar contra ele.

        - E teria feito isso?

        - Sim. Teria feito qualquer coisa para mantê-la a meu lado. O contrato deixava de ser importante. Você é minha esposa. O bebê é nosso filho. Podia devolver todo o restante a William, mas vocês dois... Nunca! E há mais uma coisa.

        - O quê?

        - Queria que você tivesse uma chance de escolher. Como tinha a alternativa de ir viver com William, não quis que se sentisse obrigada a ficar onde não desejava estar.

        Era como Gytha havia suspeitado. Não estava surpresa, mas magoada, uma emoção que tentava esconder. E também se sentia muito desanimada. Nada do que tinha feito ou dito o tocara como pretendia. Como poderia dizer a esse homem que o amava? Ele nunca acreditaria. Não se podia pensar que seria capaz de deixá-lo por outro homem, por um título e terras. Thayer não acreditava na força desse casamento. Parte dele ainda duvidava de que ela o desejaria como marido para sempre. E Gytha não sabia como resolver esse problema.

        - Thayer, em algum momento fui desonesta com você?

        - Não. Nunca. Em alguns momentos chegou a ser dolorosamente honesta.

        - Pois bem, se eu quisesse ir viver com William, não teria ido? Não teria simplesmente manifestado minha vontade? Eu mesma teria usado esse argumento do contrato de casamento.

        - Como, se o considerava uma loucura, se nem entendia o que estávamos dizendo? Deixe-me pôr Everard no berço - ele sugeriu, estendendo o braço para pegar o bebê.

        Ver as mãos fortes cuidando tão bem de seu filho despertou em Gytha uma intensa fraqueza. Thayer seria um bom pai. Já havia notado a bondade com que ele tratava Bek. Esperava que essa certeza ajudasse a demonstrar que ela também era tudo que ele podia querer.

        - Se acreditasse que um papel idiota e estúpido poderia me ser útil, eu mesma o teria mencionado.

        Sentado na beirada da cama, ele segurou as mãos da esposa e sorriu. Gytha estava certa. Sempre que lidava com uma questão de importância ou necessidade, ou quando defendia um desejo pessoal, ela demonstrava ter mais inteligência e fibra do que todas as mulheres que ele conhecia. A verdade era que ela não pensara em trocá-lo por William. Em nenhum momento. Sustentava seus votos com firmeza, votos que fizera a ele, não a William. Ele beijou-lhe as mãos, tocado pelo brilho que viu em seus olhos.

        - Estou perdoado, então, esposa?

        - Por sua estupidez?

        - Não devia chamar seu marido de estúpido. E muito desrespeitoso.

        - Sim, eu sei.

        - Estou perdoado, então?

        - Sim, eu o perdôo por ser tão tolo. Ele riu e a beijou nos lábios.

        - Descanse. Vou mandar Janet levar nosso filho para o quarto vizinho. Assim, os que quiserem conhecê-lo não perturbarão seu repouso. Você precisa dormir.

        - Não foi tão difícil quanto eu imaginava que seria.

        - Não precisa me fazer acreditar que foi fácil.

        - Não disse que foi fácil. Apenas que não foi tão difícil. Acho que estava tão zangada com você que esqueci o medo. Só pensava no que queria dizer quando o encontrasse novamente. Por favor, lembre-se de me deixar furiosa sempre que eu for ter um filho.

        - Sempre? Não esperava que pensasse em ter outros filhos agora, logo depois do parto.

        - Não quero outra gravidez tão cedo, é verdade. Mas não estou assustada a ponto de não pensar em ter mais filhos. Não pretendo ter tantos que me veja envelhecida antes da hora, mas espero ter pelo menos mais um. E isso, meu marido, quer dizer que pretendo ficar do seu lado. Portanto, pare de pensar que vou abandoná-lo a qualquer momento.

        - Nada poderia me fazer feliz, exceto, talvez, devolver-lhe tudo que foi perdido, tudo que você tem por direito.

        Algo nessas palavras a atingiram como um presságio. Gytha não teve chance de pressioná-lo, fazer perguntas, porque ele a beijou e saiu levando o bebê. Gytha prometeu a si mesma que arrancaria de Thayer uma explicação assim que o visse novamente. O instinto a prevenia de que o marido tinha na cabeça uma daquelas estúpidas idéias de homem, algo de que ela certamente não gostaria.

        Thayer saiu do quarto pensando no filho que acabara de nascer. Gytha havia dado a ele o mais valioso de todos os presentes, e ele nada tinha para oferecer em retribuição. Horas antes do parto, fora devolvido à condição de homem destituído de terras e título. E esse estado não era mais tolerável. Gytha merecia mais, seus filhos mereciam mais... E como poderia planejar ter mais filhos, se ainda nem acumulara o suficiente para a família que já devia sustentar e manter? Recentemente, o rei havia comentado alguma coisa sobre uma boa recompensa por seus leais serviços. Ele decidiu que era hora de se curvar agradecido por essas sugestões e cobrar o que lhe fora prometido.

 

        - Vai partir. Não tente negar novamente. Gytha olhou para o marido enquanto amamentava o bebê. Notara os preparativos, apesar da tentativa óbvia de ocultá-los e mantê-la confinada em seus aposentos. Thayer suspirou e sentou-se na beirada da cama. Era covardia, sabia, mas havia mesmo tentado esconder dela seus planos até o momento de partir. Odiava mentir, mas algo lhe dizia para não revelar exatamente o motivo de sua jornada. Quando retornasse vitorioso com sua recompensa, então poderia ser totalmente honesto e franco.

        - Esperava poupá-la da preocupação enquanto fosse possível.

        - Acha que não percebo toda a movimentação? E acha que me preocupo menos por não saber a verdade?

        - Na verdade, sim... tinha esperanças de que não notasse.

        - Percebi tudo logo depois da partida de William e de minha família. Tem idéia do barulho provocado por tantos homens se preparando para uma batalha? E isso que eles fazem, não é? Logo irá lutar em algum lugar distante daqui.

        - Sim, vamos para a Escócia. Para o Norte. Os escoceses causam problemas na fronteira mais uma vez.

        - Mas você já deu ao rei seus quarenta dias de serviço. Há menos de um ano!

        - Não se pode recusar a convocação do rei. - Especialmente quando a convocação foi solicitada pelo convocado.

        - Não é fácil, eu sei, mas também sei que já foi feito antes. Um cavaleiro que já prestou tantos serviços e sempre foi leal pode solicitar licença.

        - Não posso, Gytha. O rei precisa da força de muitos guerreiros. Os escoceses não respeitam nosso soberano e nosso território. Alguém tem de contê-los.

        - Ninguém conseguiu conter aqueles bárbaros até hoje. Era verdade, mas Thayer não pretendia concordar com ela. Invocar um chamado do rei e a necessidade de ação imediata pelo bem do país era a única maneira de fazer Gytha aceitar sua partida, mesmo que relutante. Era um subterfúgio detestável, mas necessário.

        - Os saques não causam apenas a morte pela espada ou pelas flechas. Os escoceses roubam alimento, matando também pela fome. O Norte não pode mais ser submetido a esse tipo de terror.

        - Eu sei. - Ela suspirou. - O bebê terminou de mamar. Pode colocá-lo no berço, por favor? Edna não vai voltar enquanto você estiver aqui.

        Thayer atendeu ao pedido e voltou a se sentar sobre a cama. Gytha sabia que não podia mais tentar retê-lo em casa. Insistir seria atentar contra sua honra e seu senso de dever. Isso era algo que não podia fazer.

        Quando ele segurou suas mãos e fitou-a nos olhos, Gytha estudou-o. Não havia nele nenhum sinal de relutância, o que a desapontou, mas não a surpreendeu. Havia desposado um guerreiro, um homem que passara boa parte da vida empunhando uma espada. Diante da chance de lutar uma batalha justa, ele não podia recuar. Era seu dever de esposa esconder o medo e a apreensão e libertá-lo sem lágrimas ou condenação.

        - Quer ir mostrar aos escoceses a fúria do Diabo Vermelho, não é? - Ela sorriu com tristeza.

        - Como diz Roger, já enfrentamos dezenas de guerreiros escoceses de cabelos vermelhos. Chegou a hora de mostrar que a Inglaterra também tem alguns deles.

        - Quando vai partir?

        - Em dois dias.

        - Dois dias? Tão cedo? Não pode esperar um pouco mais? Uma semana, talvez?

        - Os escoceses não vão esperar por nós, minha querida.

        - Malditos escoceses!

        - Não vou demorar a voltar.

        - Como pode ter certeza disso?

        - Estamos falando de saques, não de uma guerra. Eles só querem roubar. Não querem lutar. E claro que não fugirão do confronto, mas não é esse o objetivo dos escoceses. Sua principal preocupação é voltar para casa levando o produto do saque. A nossa é recuperar tudo que pudermos. Essas coisas não são demoradas.

        Gytha não concordava, mas havia um certo conforto na argumentação de Thayer. Se os escoceses só queriam saquear e roubar, o perigo seria menor. Eles estariam mais interessados em fugir do que em lutar. Ficaria em casa rezando para que os escoceses encontrados por Thayer fossem os mais covardes que jamais haviam vivido.

        - O vento é frio. O bebê devia estar dentro de casa. E você também.

        Gytha nem se deu ao trabalho de responder ao conselho de Edna. Ficaria ali até seu marido partir, e não pensaria que essa podia ser a última vez em que o via com vida. Ele voltaria. Precisava acreditar nisso.

        Quando Bek se aproximou para beijar o irmão e a madrasta e despedir-se, Gytha forçou um sorriso. Quisera impedi-lo de ir. Tão jovem ainda... Só um menino! Mas não havia manifestado esse desejo. Bek era pajem de Thayer. Fazia parte de seu treinamento de cavaleiro acompanhá-lo em batalhas. Só o mortificaria se tentasse retê-lo em Riverfall. E um dia teria de ter o mesmo controle emocional, porque Everard e todos os outros filhos que tivesse também partiriam.

        Esperava ter a mesma força para se despedir de Thayer, porque ele caminhava em sua direção.

        - Não devia ficar aqui fora, minha querida.

        - Estamos agasalhados. Seu filho e eu viemos desejar boa viagem e orar para que Deus o proteja. E viemos dizer também que queremos vê-lo de volta em breve. São e salvo.

        - Esse também é o meu desejo, Gytha. Vamos espantar aqueles escoceses, tomar de volta tudo o que eles roubaram, e então retornaremos. Não terá tempo nem para sentir nossa falta.

        - Impossível! Já sinto sua falta, e você ainda está aqui. Vou ter de providenciar pedras quentes para aquecer nossa cama à noite.

        - Desde que não utilize nenhum outro recurso... - Ele brincou, beijando-a na testa.

        - E vou ter de encontrar pedras bem grandes para ocupar o espaço vazio. - Ela apoiou o rosto em seu peito. - Vai cuidar, não vai?

        - Pode ter certeza disso, Gytha. E você também vai. Espero encontrá-la saudável e forte quando eu voltar.

        Gytha sorriu com esforço e recuou um passo. Thayer montou. Ela o viu passar pelos portões de Riverfall e esperou até que todos os homens saíssem. E continuava ali quando os portões foram fechados. Margaret se virou e correu para seus aposentos. Esperava que ela superasse a tristeza o quanto antes, porque precisariam muito da ajuda uma da outra para esperarem pelo retorno de seus homens.

        - Onde está Margaret? - Gytha perguntou a Edna quando a criada chegou a seus aposentos para cuidar de Everard.

        - Nas muralhas novamente.

        - Isso já foi longe demais. Onde está meu manto? Tentando ajudar sua senhora a se proteger contra o ar frio da noite, Edna argumentou:

        - Ela se casou há pouco...

        - Eu também. E não pretendo censurá-la. Quero dizer, não pretendo ser muito dura. Mas Margaret se casou com um cavaleiro, e precisa aprender a aceitar esses períodos de ausência. Caso contrário, expõe-se ao risco de adoecer e ainda envergonha o marido com sua fraqueza.

        - Sim, a senhora está certa. Só peço que não fique muito tempo lá fora. O ar está frio e úmido.

        Gytha assentiu e saiu do quarto. Thayer e Roger haviam partido uma semana antes. Margaret se comportava de maneira tão estranha, que ela começava a se perguntar se a ausência de Roger era a única coisa que a incomodava. Nos últimos dois ou três dias, passou a ter a impressão de que a prima estava zangada com ela, evitando-a deliberadamente. Por mais que tentasse se livrar dessa sensação, ela permanecia.

        Margaret estava em pé sobre uma das muralhas, olhando para o horizonte na direção em que seguiram Thayer, Roger e todos os outros. Ela tocou o braço da prima com a intenção de oferecer conforto, mas Margaret se afastou.

        - Sei que sente falta de Roger. Eu também sinto falta de Thayer e...

        - Sente mesmo?

        Estranhando a questão e o tom furioso, Gytha respondeu:

        - E claro que sim. Como pode perguntar tal coisa?

        - Considero estranho que afirme sentir falta do homem que você mesma enviou para o campo de batalha.

        - Eu enviei?

        - Nunca esperei isso de você, Gytha. Não imaginava que se importasse tanto com títulos e terras. Parecia tão satisfeita com Riverfall! Não pensei que faria diferença o fato de seu marido ser um simples cavaleiro ou um lorde. Acho que essas coisas devem fazer falta para quem sempre as teve, não é? Porém, devia ter pensado em mim antes de fazer esse pedido a Thayer. Deve saber que Roger sempre estará ao lado de seu marido. Uma coisa é enviar seu marido de encontro ao perigo para obter um título e propriedade. Mas mandar também o homem que eu amo? Nunca pensei que fosse tão cruel. Tão insensível.

        - Margaret, do que está falando? Não entendo... Thayer disse que o rei o convocou para ir lutar contra os escoceses.

        - Sim, mas só depois de Thayer ter dito ao rei que precisava realizar um certo feito.

        - Um feito...? Quer dizer que meu marido pediu para lutar?

        - Exatamente. O rei há muito vem sugerindo que seu marido merece uma recompensa concreta, mais do que elogios e honras. Thayer pediu para lutar em troca dessa recompensa. Título e terra. E ele fez isso por você, para poder oferecer a você tudo que teve de devolver a William.

        - E ele disse que eu pedi isso?

        - Não, ninguém disse isso. Não exatamente. - Margaret suspirou, arrependida de ter julgado mal a prima que conhecia tão bem. - Foi a maneira como Roger falou... Não pude acreditar que Thayer partiria para a batalha, que poria em risco a própria vida e de todos que o seguem, apenas para obter uma recompensa de que não precisa. Eleja tem a terra que antes buscava. Sendo assim, deduzi que você havia falado alguma coisa... Que havia pedido de alguma maneira, ou insinuado... Gytha, se me enganei...

        - É claro que se enganou, Margaret. Sabe de meus sentimentos por Thayer. Acha que eu o poria em risco por uma recompensa qualquer?

        - Não, mas era a única explicação viável. E se não pediu nada, por que ele foi, então?

        - Não sei. Mas pode estar certa de que vou perguntar ao idiota, se não acabar com a vida dele antes disso.

        - Deve ter sido o orgulho. Ele pode sentir que precisa fazer tal coisa, ou vai parecer que se casou com você para obter lucro.

        - Esse é o motivo pelo qual são arranjados quase todos os casamentos. Mas você tem razão. O orgulho tem boa participação nisso tudo. Porém, há outra razão. Um motivo que conheço bem. Há meses luto contra isso sem chance de vitória, e já começo a perder a esperança.

        - Do que está falando?

        - Não consigo fazer Thayer acreditar que ele é o homem que quero.

        - Ele deve ter percebido seu interesse quando você não quis acompanhar William. E se já disse a ele que o ama...

        - Eu não disse.

        - Não disse? Gytha, mas...

        - Por favor, não me critique. Não disse nada porque acho que ele não vai acreditar em mim. Tentei de tudo para fazê-lo entender que estou contente a seu lado, mas ele ainda parece acreditar que me sinto sacrificada com esse casamento. Não sei mais o que fazer.

        - Ame-o, Gytha. Só isso. Ele não pode ignorar seu amor para sempre. E reze para que ele volte logo para casa. Inteiro.

        - Não tenho feito outra coisa, Margaret.

        - Nem eu.

        - Continue rezando. Se Deus atender a nossas preces e eles retornarem inteiros, juro que estrangularei aquele idiota com quem me casei.

        Thayer mantinha a mão sobre o focinho do cavalo para silenciá-lo. Sentia que os escoceses estavam ali. Podia senti-los. Normalmente, iria embora e os deixaria fugir, porque já haviam recuperado quase todo o produto do saque, mas o rei queria sangue. Queria que os escoceses pagassem caro por sua ousadia. Muitos já estavam mortos, mas recebera ordens para matar todos que fossem encontrados em solo inglês, eliminá-los até que não restasse nenhum.

        Por isso estava ali parado, cercado pela umidade e pela escuridão, tentando localizar o inimigo que não podia ver. E felizmente estava atento, ou teria sido atingido pelo golpe que ele só conseguiu conter com a espada no último instante.

        Desequilibrado pelo impacto do golpe, ele se recuperou e contra-atacou.

        O combate causava grande estardalhaço, anunciando sua posição para quem quisesse encontrá-lo. Em uma área repleta de inimigos, essa era uma idéia que o incomodava.

        Matar o oponente não deu a ele nenhum sentimento de vitória. Na verdade, Thayer nem teve tempo para sentir-se vitorioso. Um ruído anunciou uma segunda ameaça, e ele se virou apressado. Mas, antes que pudesse reagir, uma dor aguda na perna esquerda o derrubou do cavalo. Caído, ele tentou conter o inimigo com habilidade e destreza, mas não tinha forças para erguer a espada. A única alternativa era enfrentar o ataque da adaga adversária com a mão esquerda. A lâmina atingiu seus dedos, causando uma segunda onda de dor. Mesmo assim, conseguiu mover o braço e enterrar a espada no peito do escocês, matando-o.

        Remover o corpo que o imobilizava foi o mais difícil. Sabia que perdia a pouca força que ainda lhe restava. Ele tentou se levantar e descobriu que a perna esquerda estava inutilizada. Podia tentar rastejar, mas montar seria impossível, e o cavalo estava agitado, uma indicação clara de que ainda havia algum perigo por ali.

        Gytha foi a única imagem que passou por sua cabeça antes do mergulho na escuridão.

        Roger insistia em cavalgar pela área.

        - Estou dizendo que ouvi sons de batalha - ele repetia para Merlion e Torr.

        - E como pode saber de onde viveram? - indagou o último. - Nessa escuridão...

        - Quieto - Merlion interrompeu o parceiro. - Ouviram isso?

        - Um cavalo - sussurrou Roger. - Ali na frente. Eles seguiram adiante. Mais dois ou três minutos, e Roger saltava de sua montaria para se ajoelhar ao lado do amigo caído no chão.

        - É Thayer!

        - Ele está vivo? - Merlion perguntou enquanto desmontava.

        - Sim, mas não estará por muito tempo se não receber alguns cuidados. - Roger já começava a cuidar dos ferimentos. - Ele perdeu alguns dedos - disse, envolvendo a mão ensangüentada em ataduras improvisadas com pedaços de tecido que Torr ia rasgando da própria camisa.

        - Devemos levá-lo para a cidade para uma sangria - opinou Merlion, unindo-se a Torr no esforço para estancar o sangramento da perna de Thayer.

        - Ele já perdeu muito sangue. Não precisa de sangria - protestou Roger. - Aquela senhora que cuidou dos nossos feridos ontem à noite seria melhor.

        Os três levantaram Thayer do chão e o puseram sobre seu cavalo, conduzindo o animal com grande cuidado. A jornada foi longa e lenta, e Roger temia que a demora pudesse custar a vida do grande amigo. Quando chegaram ao casebre que utilizavam como quartel-general, Roger já não acreditava que Thayer pudesse sobreviver para rever Riverfall.

        Por muito tempo, Thayer só teve consciência da dor. Depois ele ouviu um ruído abafado. Um ronco, talvez. De olhos fechados, moveu a mão numa exploração cega do ambiente que o cercava. Estava em uma cama. Alguém o encontrara. Recordações confusas o tomavam de assalto. A voz de Roger, compressas frias sobre sua pele, um sacerdote murmurando e... o rei. Sem saber quanto era sonho e quanto era realidade, ele abriu os olhos. Havia luz no ambiente. Roger dormia numa esteira ao lado de sua cama.

        - Roger... Roger...

        O cavaleiro se levantou de um salto empunhando a espada, olhando em volta com ar confuso e assustado.

        - Roger, sou eu. Está apavorado demais para um soldado.

        Identificando a rouquidão seca na voz do amigo, Roger foi buscar um pouco de caldo. Passando um braço em torno dos ombros de Thayer, ele o ergueu apenas o suficiente para ajudá-lo a beber. A fraqueza no corpo castigado por inúmeros ferimentos era evidente e assustadora. A febre o enfraquecera também.

        - Muito obrigado, amigo. Sinto-me fraco. Há quanto estou aqui?

        Roger sentou-se numa banqueta ao lado da cama.

        - Há quase uma semana. Estava sangrando muito quando o encontramos. Uma senhora esteve aqui para cuidar dos ferimentos.

        - Sim, sim, eu me lembro dela. É muito grave?

        - Bem... Dois de seus dedos estão menores. Foram cortados quase ao meio.

        - E minha perna?

        - Ainda a tem, mas o ferimento é grave. O homem tentou aleijá-lo.

        - E conseguiu.

        - Ainda não sabemos. Não podemos saber enquanto não tentar andar. Vai sentir dificuldade no início, é claro, mas não temos como prever se o tempo vai trazer alívio ou devolver sua capacidade de locomoção. Mas, como disse, ainda tem sua perna. Só isso já é motivo para se sentir grato.

        - Algum outro ferimento?

        - Algumas novas cicatrizes, mas nenhuma que não pudesse ter adquirido antes em batalhas.

        - E você, meu amigo, ficou com o ingrato dever de cuidar de mim? Está presente em todos os fragmentos de recordações que tenho desses últimos dias.

        - Não foi um dever ingrato. Você já fez o mesmo por mim. Não me esqueci daquele tempo na França.

        - Um tempo que eu também não vou esquecer. E o rei? Ele esteve aqui, ou foi uma alucinação?

        - Sim, o rei esteve aqui. Por um momento, cheguei a pensar que você havia superado o delírio da febre, porque falou claramente com nosso soberano, mas assim que ele partiu, você voltou a delirar. Na verdade, quando falou com ele ainda estava delirando, lembrando outra visita do rei ao nosso acampamento, três anos atrás. Você conversava com uma lembrança. Mas não importa. O rei nada percebeu. Deu a recompensa que você tanto queria, e você respondeu como era esperado.

        - Eu consegui o que queria?

        - Sim, agora você é o barão de Riverfall, milorde. - Roger sorriu e se inclinou. - E também é proprietário de uma pequena área três dias ao sul de Riverfall. Contarei mais quando se sentir mais forte. Precisa descansar para recuperar-se completamente. A batalha terminou, você conseguiu o que queria, e agora só precisa voltar para Riverfall e Gytha.

        - Ah, Gytha... Não era um belo cavaleiro antes, mas pelo menos tinha todas as partes do corpo. Agora sou um aleijado. Talvez fosse melhor se...

        - Thayer, se disser que talvez seja melhor se afastar dela, juro que causarei mais alguns ferimentos nessa sua cabeça dura. Por favor! Durante todo o tempo em que esteve inconsciente você chamou por ela. Gytha é parte de você, meu amigo. Não conseguiu esquecê-la nem quando estava sofrendo com a possibilidade da morte. Acha mesmo que pode deixá-la, arrancá-la de sua vida? E justamente agora, quando tem tudo que pensa que ela queria?

        - Sim, agora tenho que sua origem nobre requer, mas olhe para mim! Minha mãe foi mutilada e é bem provável que tenha de mancar pela vida. A única coisa que tinha a oferecer antes era uni corpo forte e saudável. Agora não tenho mais essa saúde e essa força. E como nunca tive beleza...

        - Você é mesmo um idiota. Está sempre ressaltando sua falta de atrativos físicos, sem parar para pensar como as outras pessoas o vêem. Acredita que Gytha se incomoda por não ser belo, mas já parou para tentar encontrar nela alguma evidência disso? Não, ou já teria descoberto seu erro.

        - Está tentando me dizer que uma beldade como Gytha poderia amar um homem grande, vermelho, feio e cheio de cicatrizes?

        - Não sei qual é a profundidade dos sentimentos de sua mulher..O que sei é que ela não o vê como você acredita. Não há desapontamento ou desgosto quando ela olha para você, e ela nunca tentou esconder o marido do mundo. Não. A mulher sempre esteve a seu lado e sem nenhuma demonstração de relutância.

        - Sim, é verdade. Você tem razão. Nunca parei para examinar... Tem razão, Roger, nunca notei nela a repulsa que vi em tantas outras mulheres.

        - Não em sua esposa.

        -- Não, nunca em Gytha. - Ele sorriu. - Mas isso foi antes de eu sofrer esses ferimentos. Agora...

        - Chega, Thayer. Você já chegou ao casamento coberto de cicatrizes, e ela o aceitou como é. Não se martirize mais, meu amigo. Aceite com gratidão o que a vida lhe deu.

        Thayer considerou as palavras de Roger por um momento, depois sorriu. Como sempre, seu grande amigo estava certo. A revelação o enchia de alegria. Havia sido injusto com Gytha, até ofensivo de certa forma. Por mais que revirasse os próprios pensamentos, não era capaz de encontrar uma única ocasião em que ela houvesse demonstrado repulsa, desgosto ou decepção por sua aparência. Simplesmente não tinha importância. Ele lembrou os elogios que ouvira da esposa em várias situações e teve certeza de que Roger tinha razão.

        - Não, ela não vai me repelir - disse. - Porém, quando descobrir por que vim para o campo de batalha, por que fiz tudo isso... Gytha vai ficar furiosa comigo.

        - Pela primeira vez desde que o conheço, meu amigo, sou obrigado a concordar com você e reconhecer que seu julgamento é acertado.

        - Eles voltaram! Os homens retornaram!

        Gytha mal olhou para Edna quando a jovem criada invadiu seu quarto gritando a notícia. Era algo que ela já sabia. Vira a aproximação de Thayer e de seus homens do alto de uma das muralhas de Riverfall. Não a surpreendia que o marido não houvesse mandado ninguém para anunciar sua chegada. Ele devia pensar que a breve mensagem enviada quase um mês antes era suficiente, embora não tivesse determinado nela a data de seu retorno.

        Suspeitava de que a culpa fosse a principal causadora desse retorno silencioso. Thayer devia pensar que ela já tinha conhecimento das razões que o levaram a lutar contra os escoceses. Ponderava preocupado a necessidade de falar com ela, de revelar toda a verdade. Qualquer que fosse a situação, ele esperava amenizá-la valendo-se da tática da surpresa. Pois seria ele o grande surpreendido.

        Edna se aproximou de onde Gytha escovava os cabelos com calma aparente.

        - Milady, vim informar que seu marido está de volta.

        - Eu ouvi.

        - Não vai recebê-lo?

        - Sim, eu vou. Em breve. Mande preparar banhos para os homens. Pode providenciar o de Thayer com o de Roger, nos aposentos de Roger. Não, espere! Margaret estará lá. Prepare o banho de Thayer aqui mesmo. Irei me preparar para o banquete de boas-vindas no aposento das damas.

        - Mas logo eles estarão chegando...

        - Sim, eu sei. Trate de se apressar. Precisa ajudar com os preparativos do banho de Thayer e levar minhas coisas para o aposento das damas.

        Gytha se dedicou à escolha do traje que usaria no banquete de boas-vindas. Os criados já corriam para a cozinha numa euforia visível e ruidosa. Não ir receber Thayer no pátio ou no salão serviria para demonstrar claramente a extensão de sua fúria. Mesmo que Margaret nada dissesse, ele acabaria adivinhando o que a causava. A grande surpresa estaria em quando e como ela o confrontaria. E esperava causar grande constrangimento.

        Thayer suspirou profundamente ao ver o abraço de Margaret e Roger. Infelizmente, ele ainda tinha os braços vazios. Gytha não estava ali. Sim, ela podia estar furiosa, mas... Ele foi invadido pelos primeiros sinais de alarme. Ela podia não estar em Riverfall.

        - Margaret, onde está Gytha? - O olhar nervoso e relutante da jovem não o acalmava.

        - Lá dentro - ela disse.

        - Ainda está aqui?

        - É claro que sim.

        - E não está doente?

        - Não.

        - E meu filho?

        - Também está muito bem de saúde.

        - Então... Ela está zangada comigo. Deve ter descoberto a verdade. Eu pretendia mesmo informá-la de tudo.

        - Entendo. Bem, isso vai servir para acalmá-la.

        A falta de convicção na voz de Margaret quase o fez rir.

        Gytha também não estava em seus aposentos, o que não o surpreendeu. Havia ali um banho quente esperando por ele. Era difícil calcular a extensão de sua ira.

        Em silêncio, Bek o ajudou a despir-se para o banho, enquanto Thayer considerava a possibilidade de usar sua autoridade de marido e exigir a presença da esposa imediatamente. A idéia foi logo descartada. Ainda não sabia qual era a melhor maneira de enfrentá-la nesses momentos de ira, mas sabia que impor sua vontade não era a melhor delas.

        - Você aborreceu Gytha novamente?-Bek perguntou enquanto o pai entrava na banheira.

        - Sim, receio que sim.

        - Como, se foi lutar por recompensas para ela?

        - Esqueci de perguntar se ela queria essas recompensas. Pode esfregar minhas costas, filho?

        Bek atendeu ao pedido e franziu a testa.

        - Uma esposa não deve ficar satisfeita com tudo que faz o marido?

        Não foi fácil, mas Thayer engoliu o riso. - Bek, vou lhe dizer duas coisas sobre as mulheres. E ouça com atenção, porque é melhor não esquecer o que vai ouvir agora. O primeiro conselho, meu filho, é que nunca faça o que eu faço. Receio que seu pobre pai saiba muito pouco sobre as mulheres. Se manejasse a espada como lido com as mulheres, teria sido morto em minha primeira batalha. A segunda coisa que tenho para dizer, Bek, é que poucos homens são verdadeiramente mestres nessas questões envolvendo as mulheres. E poucos são realmente senhores em suas casas. Francamente, eu olharia desconfiado para qualquer mulher que se comporte como se isso fosse verdade. Ou ela mente, ou é desprovida de inteligência, ou é fraca de espírito, o que fará dela uma companhia tediosa.

        - Então, não se incomoda por Gytha estar zangada com você.

        - Eu não disse isso. Depende de quanto ela está zangada e de como poderei acalmá-la.

        Thayer ainda pensava nisso quando entrou no salão. Lá também não havia nenhum sinal de Gytha. A situação começava a se tornar embaraçosa. Não precisava olhar para os que ali se reuniam para saber que o observavam discretamente, tentando entender o que acontecia. Quando se sentou à mesa, no lugar que cabia ao chefe da casa, ele ainda pensou em ir procurá-la e arrastá-la até ali. Gytha podia ficar zangada, revoltada, furiosa ou deprimida, mas não tinha o direito de ridicularizá-lo diante de seu povo. Eleja começava a se levantar para ir procurá-la, quando a viu entrar no salão. Sentiu-se grato por ainda estar sentado.

        Gytha caminhou para a mesa com passos lentos e os olhos fixos no marido. Havia algo de estranho em sua postura, alguma coisa diferente... Ele se levantou para ir recebê-la, como exigia seu papel de marido e senhor do lugar, e foi então que Gytha percebeu a dificuldade com quê ele movia a perna esquerda. Thayer havia sofrido um ferimento grave.

        Preocupada, ela o examinou rapidamente, porém com grande atenção, e percebeu os dedos parcialmente ceifados de sua mão esquerda. Era um alívio constatar que nada de mais sério havia ocorrido, mas o alívio não fazia diminuir a raiva.

        Não fora informada. Sim, sabia que ele havia sido ferido na batalha, mas nunca fora informada da gravidade desses ferimentos. Agora descobria que sua preocupação era justificada, afinal.

        - Então... Conseguiu tudo que queria por ter ido enfrentar os malditos escoceses encrenqueiros? - ela disparou.

        - Sim. Agora sou um barão, lorde de Riverfall.

        - De fato? E a terra?

        - Sim, sou dono de uma pequena propriedade a três dias daqui, para o Sul.

        - Que ótimo. Não vai precisar ir muito longe para bancar o grande senhor de terras.

        - Gytha, fiz isso por você.

        - Por mim? Eu nunca pedi essas coisas. Não sugeri que fosse para a fronteira ao norte e se oferecesse para ser todo cortado como um carneiro de sacrifício.

        - Não, realmente não me pediu nada disso. Eu fui porque quis. Porque essa foi minha escolha. Porque sei que uma mulher de sua origem elevada não devia se casar com um cavaleiro destituído. Então, fui lutar para ser agraciado por um título.

        - Ah, sim. Você foi, lutou e conquistou seu precioso título. E agora? O que vai acontecer quando decidir que o recebeu não é suficiente? Deu parte dos dedos e dos movimentos para tornar-se barão. O que vai dar para ser um... conde? O braço? Sim, talvez meta na cabeça que pode conquistar uma extensa coleção de títulos, como muitos homens já fizeram e ainda fazem. E eu terei de carregá-lo por aí num desses carrinhos com rodas, mas poderei exibir seus pedaços e anunciar orgulhosa que sou casada com o lorde disso, o barão daquilo e o conde não-sei-de-quê. Haverá um conforto para mim, afinal.

        Gytha estava zangada. Muito zangada. Thayer não se surpreendia por ser o alvo dos olhares chocados de seus homens. Também estaria boquiaberto, não fosse o receio de expor-se a um constrangimento ainda maior. Queria acalmá-la, contê-la, mas não sabia como isso era possível. Não sabia nem determinar qual era a verdadeira extensão da raiva de Gytha.

        Ela se sentia dilacerada. Rasgada ao meio. Queria chorar sobre os ferimentos do marido e gritar por ele ter castigado um corpo tão belo por recompensas tolas e inúteis. Queria ofendê-lo por ter sido tão estúpido, mas também queria correr para longe dali, fugir, ir refugiar-se em algum lugar onde pudesse examinar e compreender seus sentimentos atormentados.

        - Por que faz essas coisas comigo? - ela indagou em voz baixa. - O que foi que eu fiz para convencê-lo de que me importo com coisas tão banais? Títulos, terras... Por que acha que dou mais valor a bens materiais do que a sua vida? Tudo que fiz e disse deveria ter provado o contrário, mas você está cego para qualquer coisa que contrarie essa sua eterna autodepreciação. Não me interessa se você é um barão ou um ferreiro. Não me interessa se é dono da melhor propriedade da Inglaterra ou se mora em uma caverna. E você que eu quero. Não estou procurando riquezas, conforto ou luxo.

        Thayer estava boquiaberto. E perceber que muitos ali também reagiam espantados diante da confissão emocionada o fez compreender que a conversa estava se tornando pessoal demais para ser conduzida em local público. Sentia-se muito constrangido.

        - E muito bom saber disso, Gytha.

        - Muito bom? - Era incrível como ele podia receber palavras tão tocantes e sinceras com aquela atitude distante, desinteressada. - Muito bom... Acho que vou conversar com a lua. Ela me entenderá melhor. Devo estar perdendo a razão para tentar... Sim, eu perdi o juízo. Só isso pode explicar meu amor por um homem tão estúpido. O mais estúpido da Inglaterra!

        Silêncio.

        Gytha se virou e saiu do salão. Estava confusa, abalada, à beira das lágrimas. A última coisa que queria era começar a chorar diante de Thayer e de todos os outros. Precisava se refugiar em seus aposentos, onde poderia chorar, gritar e quebrar algumas coisas para tentar se acalmar.

        Thayer continuava parado no mesmo lugar, ainda boquiaberto. Vozes abafadas o arrancaram do estado de choque. Todos discutiam o que tinham acabado de presenciar. Sua adorável esposa confessara amá-lo diante de todos os habitantes de Riverfall! Ele, o grande, feio e vermelho Thayer Saitun, conhecido por todos como Diabo Vermelho, conquistara o coração da rica e nobre beldade. Era impossível não se sentir orgulhoso.

        - E então, o que vai fazer? - Roger perguntou a seu lado.

        - Eu? O que vou fazer?

        Margaret piscou para superar o espanto.

        - Não vai atrás dela?

        Thayer balançou a cabeça e olhou para a mesa.

        - Não posso comer primeiro?

        - Thayer! - Margaret reagiu furiosa.

        - Bem, acho que devo ir censurá-la por ter chamado o marido de estúpido de maneira tão desrespeitosa. E diante de tantas pessoas!

        - Ah, sim, isso é importante - concordou Roger. - Se não se apressar, alguns homens podem começar a pensar que ela tem razão.

        Como Margaret parecia muito perto de partir para a agressão física, Thayer se retirou apressado.

        Quando abriu a porta do quarto, ele a ouviu chorar. O som desesperado partiu seu coração e quase o fez chorar também. Fechou a porta e mancou até perto da cama, onde ela estava deitada de bruços com o rosto enterrado no travesseiro. Sentando-se na beirada, ele segurou a mão dela e pôs entre os dedos tensos um lenço que retirou do bolso. Queria tomá-la nos braços, mas depois de tantos meses de privação, temia não ser capaz de oferecer apenas consolo.

        - Gytha... - Ele afagou seus cabelos. - Por favor, não chore mais. Não suporto... Melhor gritar comigo ou me tratar com indiferença, como já fez antes. A dor é menor do que a que me causa com essas lágrimas.

        Ela se virou para encará-lo, secando o rosto com o lenço.

        Thayer ainda acariciava seus cabelos.

        - Gytha, eu disse que fui atrás das recompensas para você, mas fui porque eu queria tudo isso. Queria aquelas coisas para você. Não disse a verdade antes porque sabia que tentaria me impedir de ir.

        - Eu certamente teria tentado. E se não tentei foi por pensar que a questão envolvia honra e lealdade.

        - Foi orgulho. Pouco mais que isso. Queria conquistar tudo que tive de devolver a William. Eu, meu coração. eu sabia que você não se importava com bens materiais, mas eu me importava. Não queria viver pensando que você perdeu tudo para continuar casada comigo. Isso era mais importante do que eu queria admitir, mas só enfrentei essa dura realidade quando fui forçado a permanecer na cama me curando dos ferimentos.

        - Dos quais nem chegou a falar comigo. Devia ter mandado me buscar.

        - Não, minha querida. A viagem até a fronteira ao norte é longa e perigosa. Aquela região é muito perigosa. Havia na cidade uma velha muito habilidosa que cuidou de mim. Roger também esteve o tempo todo comigo. Ele e eu cuidamos dos ferimentos um do outro há anos. Temos algum conhecimento.

        - Qual é a real extensão de seus ferimentos, Thayer? Podia ter morrido, e eu só saberia quando fosse tarde demais?

        - Oh, não, não foi tão sério!

        - Não minta para mim.

        - Primeiro me chama de estúpido, agora de mentiroso... - Ele se inclinou para beijá-la nos lábios. - Ah, Gytha, como senti sua falta!

        Ela suspirou, sentindo todo o seu ser responder ao desejo na voz dele.

        - Eu sei - disse. Consolava aquela parte dela que pensava estar cedendo depressa demais com uma justificativa plausível. Thayer havia explicado bem seus motivos para ter ido lutar contra os escoceses.

        Tomada pela necessidade, embora ele ainda nem a houvesse tocado, Gytha sentou-se e sorriu.

        - De quanto tempo precisa para despir-se, marido?

        - Estarei pronto quando você estiver - ele respondeu, rindo.

        Cerca de uma hora mais tarde, quando se levantou dos braços de Thayer para puxar a coberta sobre seus corpos nus e saciados, Gytha notou a enorme cicatriz em sua perna e não conseguiu conter uma exclamação aterrorizada.

        - E horrível, não?

        - Bem, não é bonita, mas o que me espanta é que... Céus, ele poderia ter cortado sua perna no joelho!

        - Não. Foi um corte profundo, reconheço, mas não o bastante para me fazer perder a perna, a menos que fosse por conseqüência de uma infecção. Felizmente, esse risco está superado. Tive febre por um tempo, mas ela cedeu, graças às ervas utilizadas pela velha que cuidou dos meus ferimentos. Só demorei a voltar porque sou teimoso. Quis me recuperar completamente sem sua ajuda, sem preocupá-la.

        - Agora está recuperado.

        - Não inteiramente. Não como gostaria. Estou mancando, Gytha.

        - Sim, mas isso pode melhorar com o tempo. E eu me sinto culpada por não ter estado a seu lado para cuidar de sua saúde.

        - Não, Gytha. Só teria se atormentado e adoecido de preocupação. Agora que sei o quanto se preocupa comigo...

        - Acredita em mim, então?

        - Sim. Não deveria acreditar?

        - Na verdade, não esperava conquistar sua confiança. O que o fez mudar de idéia? Quero dizer, por que acredita em mim agora? Por favor, eu preciso saber. Devo ter feito algo certo para convencê-lo de meus sentimentos com uma única declaração, depois de todo o empenho infrutífero dos últimos meses.

        - Você gritou comigo.

        - Eu não gritei!

        Mas ela sabia que havia se descontrolado.

        - Estava furiosa. As palavras foram saindo de sua boca sem que pudesse elaborá-las, pensar muito no que ia dizer. Uma confissão feita dessa maneira, sem nenhum estímulo, soa mais verdadeira. E sei que não é o tipo de mulher capaz de mentir sobre o que sente. Não disse essas palavras antes por medo de que eu duvidasse delas?

        - Confesse que não teria acreditado em uma declaração.

        - Não. - Ele riu. - Talvez não.

        - Eu sabia. Já havia tentado de tudo sem sucesso.

        - Não tinha confiança em mim, Gytha. Por isso não podia confiar em ninguém. Temia cometer um erro de julgamento, ouvir apenas o que me interessava... Aceitei apenas o que não podia ser questionado, o que eu não tinha de considerar. Como a paixão que existe entre nós. Era tão evidente, que eu jamais poderia duvidar dela.

        - Eu entendo. Você aprendeu a desconfiar.

        - Sim, e fui injusto com você por conta dessa desconfiança generalizada.

        - Talvez. Mas demonstrou sabedoria, porque não ignorou uma lição que aprendeu com grande sofrimento.

        - Sim... Uma lição que agora posso deixar para trás, no passado. Graças a você, minha doce Gytha.

        - A mim? Não. Sou só uma mulher!

        - E mesmo assim poderia ter me ferido mais profundamente que a espada de um guerreiro sanguinário.

        - Então... você me ama? - Ela arriscou hesitante, mas cheia de esperança.

        - E claro que a amo! - Ele a apertou entre os braços quando a esposa se atirou sobre seu peito. - Gytha, por favor, não chore!

        - Não estou chorando - ela mentiu, abraçando-o com todo o corpo. - Finalmente alcancei seu coração. Sentia-me derrotada, porque não conseguia imaginar uma maneira de tocá-lo profundamente, de abrir caminho para sua alma.

        - Você encontrou esse caminho há muito tempo, minha querida.

        - Oh, Thayer, eu o amo como nunca pensei que pudesse amar alguém!

        - E eu amo você, minha doce Gytha.

        Mesmo que Thayer não a estivesse beijando, Gytha não poderia falar, tal a intensidade da emoção que experimentava. Esse único momento a compensava por todos os instantes de dúvida, medo e decepção que sofrerá ao longo do caminho. Encolhida em seus braços, com a cabeça descansando sobre o peito largo e forte, ela ouvia as batidas firmes do coração do valente guerreiro e sabia que encontrara seu lugar no mundo, na vida.

        - Quando teve certeza? - ela perguntou.

        - No instante em que a vi pela primeira vez.

        - Não, Thayer. Quando teve certeza do seu amor por mim?

        - Acho que... Sim, foi quando Pickney a fez refém. Enlouqueci de medo e dor. Não conseguia fazer nem o que sempre fiz bem, lutar contra o inimigo. Nunca senti um pavor tão grande. Sabia que sua presença era vital para a minha felicidade antes disso, mas me negava a entender por quê. Depois disso, restava-me apenas dizer como e quando declarar meu amor por você. Quando você me deu Everard... A propósito, onde ele está?

        - Com as mulheres no aposento das damas. Você o verá em breve, Esse momento é só nosso, Thayer. Everard tem todo o meu tempo.

        - Eu sei. E já que esse momento é só nosso, diga-me...

        - O quê?

        - Quando você soube?

        - Desde o início tive certeza de que nosso casamento era o certo.

        - Certo?

        - Sim, certo. Quando você foi apresentado como o Saitun com quem eu deveria me casar. Experimentei um sentimento de adequação, como se cumprisse meu destino...

        - E não sentiu isso com William ou Robert?

        - Não! Aceitei William com resignação, porque ele era belo e simpático, mas Robert... Pobre Robert! Eu só queria dominá-lo, como todos pareciam fazer. Com você foi diferente. E eu tive certeza do meu amor quando você foi ferido em nossa jornada para cá. Desde então, passei todos os momentos do dia e da noite tentando encontrar um jeito de fazê-lo acreditar em minha sinceridade, em minha intenção de ser sua esposa para sempre e fazer de você um homem feliz.

        - Eu sou um homem feliz. Graças a você.

        - Quer dizer que não vai mais lutar?

        - Não preciso mais do estímulo da batalha para sentir-me vivo. Você me devolveu a vida, Gytha. Quando enfrentei os escoceses, descobri que não sinto mais prazer no confronto. Acabou. Eu só queria voltar para Riverfall, para você e para Everard. E queria trazer Bek para um local seguro, também.

        - Então, ser um homem de título e propriedade acalmou o Diabo Vermelho!

        - Não. O Diabo Vermelho foi domado por um pequenino anjo de grandes olhos azuis. O Diabo Vermelho não existe mais.

        - Não quero que ele desapareça. E também não quero que ele seja domesticado... demais.

        - Ah, não? E onde pretende perpetuar a existência do Diabo Vermelho?

        - Aqui. Em nossa cama. Ao meu lado, amando-me com paixão.

        - Acho que posso trazê-lo sempre que quiser convocá-lo. Nem mesmo um diabo pode se cansar de amar e ser amado por um anjo lindo e delicado.

        - Mesmo que seja para sempre? Porque é essa minha única condição.

        - Para sempre, meu coração, ainda não será suficiente.

 

 

                                                                  Hannah Howell

 

 

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