Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BESTA
A BESTA

 

 

 

                                                            Irmandade da "Adaga Negra"                                                                 

 

 

 

 

Capítulo CINQUENTA E SETE
Assail não fazia ideia de onde estavam. Enquanto Vishous dirigia o BMW como se morcegos do inferno o perseguissem pelas ruas de Caldwell, e então pela área rural,
Assail prestou pouca atenção por onde passavam. Só o que lhe importava era acompanhar a respiração do escravo.
— Fique comigo. – Ele sussurrou.
Antes de ter consciência do que fazia, estendeu a mão e tomou a mão fria do macho entre as suas. Esfregando-as suavemente, tentou transmitir um pouco do calor de
seu corpo, de sua força vital, ao ser que jazia imóvel a seu lado.
Deus, odiava aquelas correntes.
Quando finalmente ergueu o olhar para olhar pelas janelas... Por que estava perdendo a cabeça de preocupação e se perguntava por que a viagem estava levando tanto
tempo... Franziu o cenho. Ao redor, uma névoa havia caído sobre eles como se houvesse uma bruma no ar, mesmo que não houvesse nenhuma das denunciadoras nuvens brancas
no resto da paisagem.
— Você vai ficar seguro aqui. – Assail se ouviu dizer ao chegarem ao primeiro dos portões do centro de treinamento. — Eles vão cuidar bem de você aqui.
Depois de parar e continuar eles chegaram à última parte da viagem, uma descida que os levou ao subterrâneo. E então entraram em um estacionamento tão fortificado
e grande quanto qualquer área municipal de Caldwell.
Vishous parou bem à frente de uma porta de aço.
— Eu liguei avisando, estão nos aguardando.
Assail franziu o cenho, perguntando-se quando o Irmão teria falado ao telefone. Ele não tinha notado.
— Como vamos fazê-lo...
Não precisou terminar a frase. Aquela porta abriu-se repentinamente, e uma maca apareceu junto com a fêmea chamada Dra. Jane e outro Irmão que a empurrava adiante.
Assail reconheceu o guerreiro... Era aquele atarracado, com o estranho nome humano. Também conhecido por Dhestroyer.
A médica já tinha manchas de sangue na folgada blusa azul.
Ao sair do carro Vishous falava, ao mesmo tempo em que corria para abrir a porta de trás.
— Macho, idade desconhecida. Sinais vitais desconhecidos. Desnutrido. Traumas físicos e psicológicos desconhecidos.
Assail saiu do carro e correu para ajudar a retirar o macho que novamente tremia de medo.
—Deixem! – Rosnou ele — Ele não conhece vocês!
Embora, na verdade, o escravo também não conhecesse melhor Assail. Mas ele tinha a vantagem de ter libertado o prisioneiro.
— Aqui, ei. – Disse ao macho — Não vou abandoná-lo.
Assail estendeu as mãos e levantou o macho, virando e colocando-o sobre a maca. Imediatamente a médica adiantou-se para cobrir sua nudez, e a dignidade daquele ato
fez Assail precisar piscar rapidamente mais algumas vezes.
— Oi, meu nome é Jane. – A médica disse, olhando diretamente dentro daqueles olhos aterrorizados. — Vou cuidar de você. Ninguém vai te machucar aqui. Está a salvo
e não vamos deixar nada de ruim te acontecer. Entendeu o que eu disse?
O escravo olhou para Assail em pânico.
— Tudo bem. – Disse Assail — Eles são boas pessoas.
— Qual o seu nome? – A médica perguntou ao encaixar o estetoscópio nos ouvidos. — Desculpe, como disse?
— M-m-markcus.
— Markcus. Que nome bonito. – Ela sorriu. — Eu gostaria de ouvir seus batimentos cardíacos, tudo bem? E também colocar um acesso venoso no seu braço para podermos
injetar alguns fluídos em você. Tudo bem com isto?
Marckus olhou para Assail de novo.
— Tudo bem. – Disse Assail. — Eles vão fazê-lo se sentir melhor. Eu prometo.
As coisas ocorreram depressa depois daquilo. Um IV foi colocado, verificações foram feitas, e ao se moverem, entraram no sofisticado complexo que tinha os consultórios
médicos e suas disposições... E todo tipo de pessoas.
De fato, a Irmandade inteira parecia estar amontoada ali.
As correntes chamaram a atenção de todo mundo, a multidão variada no corredor virou na direção do som tilintado quando a médica moveu-os e aqueles elos de metal
se arrastaram no chão.
— Que diabos? – Disse alguém.
— Oh Deus... – Soou outra voz.
Os guerreiros se dividiram ao meio, dando espaço para eles passarem. Exceto por um dos membros da Irmandade.
Era o Irmão Zsadist. E quando viu o macho na maca, ficou tão branco que era como se tivesse morrido de repente, mesmo que continuasse em pé no meio do largo corredor.
O Irmão Phury aproximou-se dele e falou em voz baixa. Então, de forma hesitante, tocou o braço do irmão.
— Deixe-os passar. – Disse Phury. — Deixe-os cuidar dele.
Quando Z finalmente se moveu para o lado, Assail seguiu até chegarem a uma sala de exames com um grande lustre no centro e armários envidraçados em todos os cantos.
Vishous impediu sua entrada.
— Deixe-os trabalhar. E me diga que porra aconteceu.
Assail percebeu que seus lábios começaram a se mover e que estava falando, mas não fazia ideia do que estava dizendo.
Algo deve ter feito sentido... E sido acurado... Por que Vishous disse:
— Juro que ela merece a morte se for a responsável por isto.
A Dra. Jane virou-se para Vishous.
— Pode ajudar com as correntes?
— É pra já.
Vishous deu um passo adiante removendo a luva de couro preto de sua mão. Estendendo a mão, segurou uma das extensões... E um brilho cintilante emanou de sua palma
aquecendo os elos, desintegrando-os de modo que caíram livres no chão com muito barulho.
Assail esfregou o rosto quando o Irmão circulou pelas outras quatro extremidades, liberando muito do peso. As faixas ao redor dos pulsos e tornozelos continuaram
no lugar, mas pelo menos as correntes pesadas estavam fora.
Quando Vishous voltou para perto dele, Assail disse em voz baixa.
— Ele vai sobreviver?
O Irmão meneou a cabeça.
— Não faço ideia.
Capítulo CINQUENTA E OITO
Qhuinn ficou parado em pé no canto da sala de cirurgia com os olhos fixos em Layla enquanto Manny fazia novamente o exame interno nela, o macho enfiado por entre
suas coxas abertas, um lençol cobrindo a ação para preservar a privacidade dela.
— É cedo demais... – Qhuinn balançou a cabeça e tentou manter a voz baixa. — É cedo demais... Não era para acontecer agora. Por que está... Não era para ser agora.
Jesus, é cedo demais. Que porra... O ultrassom disse que tudo estava bem.
Não estava acontecendo, seu cérebro insistia. Devia ser algum tipo de sonho.
É, a qualquer minuto ele ia acordar e encontrar Blay ao seu lado no quarto deles... E ia dar um suspiro profundo de alívio ao perceber que o bicho-papão que o aterrorizava
não passava, de fato, de um produto de sua imaginação. Ou talvez devido a ter comido demais.
— Acorde. – Murmurou ele. — Acorde agora. Acorda porra...
Blay estava mesmo ao seu lado. Mas não na horizontal, e certo como a porra, não na suíte deles. No entanto, seu macho o apoiava integralmente: a única coisa que
o mantinha de pé era o braço forte de Blay ao redor de sua cintura.
Manny retirou a mão debaixo do lençol e arrancou a luva azul brilhante. Então se levantou e chamou com um gesto Blay e Qhuinn para perto da cama.
O fato de Layla ainda estar consciente era prova do quão forte a fêmea era, mas oh Deus, ela estava pálida. E havia tanto sangue enchendo a vasilha embaixo dela,
permeando o ar como uma mancha nas próprias moléculas de oxigênio.
Manny colocou a mão no ombro de Layla e falou com ela.
— O sangramento está diminuindo. Isto é bom. Mas agora os dois estão mostrando sinais de sofrimento fetal, e os batimentos cardíacos do menino está começando a oscilar.
Além de tudo, continuo particularmente preocupado com a garotinha por que ela é a menor dos dois. Eu recomendaria fortemente uma cesariana...
— Mas é cedo demais! – Layla olhou para Qhuinn em pânico. — É cedo demais...
Manny segurou a mão da fêmea.
— Layla, você precisa me ouvir. Os bebês estão lutando... Mais do que isto, você não vai sobreviver se não os retirarmos agora.
— Não me importo comigo! Você disse que o sangramento está parando...
— Está diminuindo. Mas estamos ficando sem tempo e preciso de você o mais forte possível quando o momento chegar.
— Não ligo para o que acontecer comigo! Você precisa mantê-los aqui dentro...
Layla estrangulou uma respiração quando outra contração a atingiu e Qhuinn esfregou o rosto. Então ele fez um gesto para Manny se afastar com ele.
Abaixando a voz, Qhuinn disse:
— Que caralhos está acontecendo?
Os olhos de Manny estavam firmes em meio a todo aquele pânico, um porto seguro no agitado mar de emoções.
— Conversei com Havers. Não há nada que possamos fazer para retardar mais o parto. Pelo ultrassom é óbvio que a placenta está se separando do útero. É exatamente
o que aconteceu com Beth... E é extremamente comum, especialmente em caso de múltiplos, e é a causa mais comum de morte materna e fetal na sua espécie. Layla não
fez nada errado... Fez tudo certo. Mas pra resumir, a gravidez está falhando e estamos em um ponto de decisão onde precisamos preservar a vida dela, e tentar salvar
a deles.
Houve uma pausa. E Qhuinn soltou as palavras que vinha falando consigo mesmo em sua mente.
— E os pulmões deles? Precisamos de mais algumas noites...
— Temos aparelhos especiais de respiração de Havers que podem ajudá-los. Temos o equipamento certo. Se os tirarmos conheço o protocolo, assim como Ehlena e Jane.
Qhuinn esfregou o rosto e sentiu vontade de vomitar.
— Está bem, tudo bem. Vamos fazer isto.
Preparando-se, ele foi até Layla e afastou carinhosamente os cabelos louros dela de seu rosto suado.
— Layla...
— Desculpe! Sinto muito! É tudo minha culpa...
— Shhh shhh shhh. – Ele continuou a passar a mão em sua cabeça para acalmar os seus protestos. — Ouça... Não, ouça. Ouça o que vou dizer... Não é culpa de ninguém.
E sua vida é importante. Não posso perder... Não vou perder todos vocês nisso, está bem? Tudo isso está nas mãos da Virgem Escriba. O que tiver de ser, será.
— Eu sinto muito... – Os olhos dela grudaram nos dele, as lágrimas escorrendo pelos cantos, molhando o travesseiro baixo sob sua cabeça. — Qhuinn, me perdoe.
Ele depositou um beijo em sua testa.
— Não há nada a perdoar. Mas precisamos fazer isto...
— Não quero perder os seus bebês...
— Eles são nossos bebês. – Ele olhou para Blay. — Nós os fizemos juntos e não importa o que aconteça, estou tranquilo em relação a isto, está certo? Você fez absolutamente
o melhor que podia, mas a esta altura, precisamos ir em frente.
— Onde está Blay? – Outra contração a atingiu e ela cerrou os dentes, contraindo o corpo. — Onde está...
Blay se aproximou.
— Estou bem aqui. Não vou sair.
Naquele momento, Jane entrou.
— Como estamos?
— Layla. – Qhuinn disse. — Precisamos fazer isto. Agora.
Enquanto estava deitada na cama hospitalar com seu corpo fora de controle e o futuro dos seus bebês em dúvida, Layla sentia como se estivesse em um carro acelerado
indo na direção de uma curva fechada em uma estrada escorregadia. A metáfora era tão adequada que cada vez que piscava sentia a velocidade aumentando, ouvia os guinchos
dos pneus, preparava-se para o impacto que evoluiria para um capotamento que certamente iria matá-la.
De fato, a dor do impacto já estava com ela, irradiando de sua coluna lombar em um zumbido regular e então se espalhando em contrações que atingiam sua barriga.
— Está na hora. – Disse Qhuinn, seus olhos díspares ardiam com uma decisão tão feroz que ela sentiu-se momentaneamente segura.
Era como se ele estivesse preparado para entrar em uma batalha por ela e seus bebês.
— Tudo bem? – Ele perguntou.
Ela olhou para Blay. E quando o macho meneou a cabeça, viu-se anuindo em concordância.
— Está bem.
— Podemos alimentá-la? – Qhuinn perguntou.
Jane se aproximou e negou com a cabeça.
— Precisamos do estômago dela vazio para a anestesia. E tem de ser anestesia raquidiana, não há tempo para uma epidural.
— O que for... – Layla pigarreou. — O que for preciso para salvar os bebês...
Ela lembrou quando isto tinha acontecido com Beth, o que tinha sido feito para salvá-la e ao L.W. Se acontecesse de Layla não poder mais ter filhos? Tudo bem. Ela
já teria dois. Ou... Talvez um.
Ou talvez... Nenhum.
Oh, querida Virgem Escriba, rezou ao começar a chorar. Leve-me. Deixe os bebês e me leve no lugar deles.
Virando a cabeça, olhou por entre as lágrimas para aqueles dois berços neonatais que foram trazidos para o quarto e deixados encostados na parede. Tentou imaginar
os bebês neles, pequenos, mas vivos.
Não conseguiu.
Gemendo, foi atingida por um impulso absurdo de se levantar e sair andando, como se aquilo fosse um filme no qual ela pudesse se levantar e ir embora por não gostar
do enredo. Ou um livro que pudesse fechar por não se importar com a direção para onde o autor estava levando os personagens. Ou uma pintura que pudesse abandonar
com o pincel por que a cena que teve intenção de retratar tinha se tornado uma bagunça.
De repente pareceu surgir pessoas por todos os cantos. Vishous entrou, o rosto com cavanhaque coberto com máscara cirúrgica, suas roupas de rua escondidas sob um
grande traje esterilizado. Ehlena estava lá. Qhuinn e Blay se aprontavam. Manny e Jane conversavam em um vai e vem em um tipo de abreviação que não conseguia entender.
— Não consigo respirar... – Ela grunhiu.
Subitamente um tipo de alarme soou, o som agudo separado do bip generalizado das máquinas que monitoravam a ela e aos bebês.
— Não consigo... Respirar...
— Ela está parando!
Layla não tinha ideia de quem disse aquilo. Ou mesmo se foi um macho ou fêmea a falar.
Uma sensação estranha recaiu sobre ela, como se submergisse em água morna que abafava sua visão, sua audição e fazia seu corpo se tornar sem peso. A dor também sumiu
e aquilo a aterrorizou.
Se sentisse dor significaria que ainda estava viva, correto?
Quando o abismo subiu e dominou sua consciência como um monstro devorando sua presa, tentou gritar pedindo ajuda, implorar pelas vidas de seus filhos, pedir desculpa
de novo pelas transgressões das quais somente ela sabia.
Mas não havia tempo.
Não havia mais tempo para ela.
Capítulo CINQUENTA E NOVE
Assail estava sentado em uma cadeira relativamente confortável, em um quarto cuja temperatura era amena... E ainda assim sentia como se sua pele estivesse sendo
queimada de seus ossos.
No quarto não muito grande, o escravo resgatado estava deitado em uma cama hospitalar e parecia mais um pretrans que um vampiro totalmente adulto. Lençóis e cobertas
foram colocados sobre o corpo nu para mantê-lo aquecido. Nutrientes e fluídos eram introduzidos em suas veias por meios de tubos. Várias máquinas avaliavam o desempenho
de seus órgãos.
Ele estava dormindo.
Markcus tinha adormecido. Ou desmaiado.
Desta forma, Assail estava sentado no quarto de hospital de um total estranho, tão incapaz de sair como se seu próprio sangue estivesse debaixo daquelas cobertas,
enganchado àqueles monitores, repousando sobre aquele colchão.
Esfregando os braços, desejou a sensação de calor de sua própria carne sumisse para poder se concentrar inteiramente na saúde de Markcus. Mas já tinha removido seu
paletó e tirado a gravata. Só faltava ficar nu.
Levou um tempo para perceber qual era o problema.
Com uma maldição, retirou o frasco de cocaína e o segurou na mão, olhando para o vidro marrom com a tampinha preta.
Cuidou de sua torturante necessidade de forma rápida, sentindo vergonha por ter de inalar a droga a poucos metros de distância do macho.
Perguntou-se quanto tempo até Naasha descobrir o que tinha tirado dela.
E como ela podia ter feito aquilo com uma pessoa? Especialmente considerando que tinha um estoque regular de jovens machos voluntários para servi-la não somente
em termos sexuais, mas também em sua necessidade de sangue.
De fato, cada vez que Assail fechava os olhos via aquela cela, cheirava aquele fedor, revivia sua entrada intempestiva naquela prisão subterrânea.
De onde ela o teria roubado? Será que algum familiar o procurava?
Quanto tempo ele tinha sofrido lá embaixo, sem nada além de uma refeição para manter-se vivo?
O diagnóstico até agora era desnutrição, infecção hepática, pneumonia e infecção respiratória. Mas a equipe médica tinha indicado que havia mais exames a serem feitos.
O horror de tudo aquilo tornava difícil respirar e Assail teve de se recostar na cadeira.
Do lado de fora, ouviu os Irmãos falando e perambulando. Claramente alguém tinha sido seriamente ferido, dado o alto nível de ansiedade, mas não tinha perguntado
a ninguém e ninguém tinha explicado nada. Alem disso, Vishous teve de sair para ajudar na emergência, fosse qual fosse, embora tivesse prometido voltar...
A batida foi suave.
— Entre. – Assail murmurou, mesmo que sentisse não ter direito de convidar ou proibir a entrada de visitantes para Markcus.
Demorou um tempo até a porta abrir um pouco.
— Olá? – Assail chamou.
Ao ver quem era, recuou.
Zsadist era um Irmão de quem há muito se ouvia falar. Afinal, a história e o comportamento do guerreiro eram tais que sua reputação, mesmo no Novo Mundo, tinha chegado
até o Antigo Continente. E sim, o rosto do macho com cicatrizes era algo a ser temido, as feridas mal curadas e grosseiras distorciam seu lábio superior, embora
os olhos estreitados brilhassem de maldade. Ao entrar no quarto com a cabeça quase raspada e o corpo imenso, ele parecia exatamente o que os boatos sugeriam... Um
sociopata a ser evitado a qualquer custo.
No entanto, Assail tinha ouvido falar que ultimamente as coisas mudaram para ele. Que tinha se vinculado. Tinha uma filha. Recuperara-se da ira assassina que o definia
desde que ele também tinha sido mantido prisioneiro contra sua vontade.
De fato, quando os olhos amarelos fitaram o macho em cima da cama, ele cruzou os braços sobre o peito como se buscasse se confortar.
— Eu o encontrei... – Assail teve de pigarrear. — Acorrentado a uma parede.
Zsadist caminhou lentamente até a cama e baixou o olhar para Markcus. Ficou lá por um longo tempo, mal piscando, somente o subir e descer de seu peito e um retorcer
ocasional das sobrancelhas sugeriam que não era um tipo de estátua.
Assail podia imaginar as lembranças que provavelmente estavam voltando a ele.
Aquelas faixas de escravidão ao redor do pescoço e pulsos do Irmão pareciam pretas como o mal que tinha posto a tinta em sua pele.
— O nome dele é Markcus. – Assail disse. — É só o que sei sobre ele.
Zsadist anuiu. Pelo menos Assail achou ter visto ele menear a cabeça em assentimento. Então o guerreiro falou.
— Eu quero... Ajudar. De algum jeito. De qualquer jeito.
Estava na ponta da língua de Assail dizer que não havia nada a fazer. Mas então uma ondulante ira inundou o seu peito.
Assail não era um salvador. Nunca tinha sido. Seus interesses sempre foram os seus próprios e os de mais ninguém. Também não era de se apegar, rápida ou permanentemente.
Mas Assail se viu estreitando os olhos para o Irmão.
— Exatamente o quão longe você iria?
Instantaneamente aquele olhar amarelado flamejou preto e os olhos se tornaram poços sem alma do Dhund.
— O quanto for necessário. E então cem mil quilômetros a mais.
— Mesmo que isto te coloque em problemas com o Rei? Pois vou fazer justiça com minhas próprias mãos, ao invés de esperar os meios legais. E não vou pedir a permissão
de Wrath.
— Não haverá problema.
O primeiro pensamento de Assail foi se levantar da cadeira, pedir por mais armas e prosseguir imediatamente de volta para aquela casa.
Mas não, depois de pensar melhor, aquilo não seria nada estratégico. E nem violento.
— Espero que esteja sendo sincero, gentil cavalheiro.
— Não sou gentil, nem cavalheiro.
Assail concordou.
— Bom. E não se preocupe. Sei exatamente no que você vai poder ajudar e não vamos perder tempo.
De volta à biblioteca na vasta mansão do hellren de Naasha, Throe pegou a fêmea pelos ombros e a chacoalhou.
— Ouça. Você precisa me ouvir.
Mesmo ao tentar acabar com o choramingar incessante dela, ele teve de confessar, mesmo que só para si mesmo, estar igual e infinitamente frustrado. Estava há quanto
tempo naquela casa? Dormindo com ela, paparicando, seduzindo-a até a sensação falsa de estarem em algum tipo de relacionamento duradouro. E o tempo todo ela tinha
garantido a ele sobre a lealdade de seu “adorado” hellren. Falando sobre como o dinheiro fluiria como vinho sobre ela quando o macho idoso finalmente morresse. Declarando
a Throe seu amor por ele, apesar de seu status de emparelhada ou seus outros amantes.
No entanto, Assail tinha entrado na jogada... E a presença daquele bastardo tinha criado tal fogo no meio das pernas de Naasha que Throe teve de agir mais cedo do
que queria. A sequência planejada seria: primeiro a alteração do testamento da própria Naasha, nomeando Throe seu herdeiro... À guisa de que estariam emparelhando
assim que o período de luto pelo atual hellren tivesse acabado. E Throe providenciaria a morte do velho. Seguido por um “suicídio” por parte dela.
Depois disso, os cofres de Throe estariam cheios e poderia usar os fundos para se estabelecer na glymera e armar uma estratégia para tirar Wrath daquele ridículo
trono eletivo que tinha criado para si mesmo.
Mas Assail – aquele puto maldito – tinha alterado a ordem de tudo, forçando a mão de Throe de tal forma que tais alterações foram necessárias. Viu-se em uma situação
em que ou agia de forma precipitada ou corria o risco das afeições volúveis de Naasha se transferirem para seu mais novo amante, jogando a merda no ventilador.
Throe viu o jeito que ela olhava para Assail.
Ele mesmo tinha sentido a atração daquele macho, maldito fosse.
E agora, esta confusão.
Aquele velho hellren dela tinha deixado tudo para um parente distante, um macho cujo nome Throe não reconhecia.
— Naasha, meu amor. – Disse Throe com urgência. — Preciso que seja racional.
Aquilo parecia ruim. O advogado os esperava no saguão, sem dúvida chegando a todo tipo de conclusões, ao mesmo tempo acuradas e inúteis. Ela cedia à raiva. Ele ficava
cada vez mais frustrado.
Tentando outra tática, Throe se aproximou da mesa decorada e colocou uma mão sobre a pilha de documentos que Saxton tinha trazido.
— Isto. Isto deve ser seu único foco. Qualquer outra coisa além de destrinchar estas disposições são uma distração inaceitável.
— Isto é uma humilhação! Ser deixada de lado assim é uma abominação! É...
— Você quer ser racional? Ou pobre? A escolha é sua. – Aquilo calou sua boca. — Imagine tudo isto perdido, você sem acesso a mais nada disso, suas roupas, as joias,
os serviçais, este mesmo teto acima de sua cabeça... Tudo perdido. Por que é o que vai acontecer, a menos que consiga se controlar um pouco. Abominação não é o que
seu hellren fez a você. Abominação é você deixar isto acontecer. Agora vou mandar o advogado entrar de novo. Você vai calar a boca e ouvir tudo o que ele tem a dizer.
Ou pode continuar a esbravejar e bater o pé aqui, desperdiçando tempo e estratégia, só pra poder avançar de seu status de vítima para miséria total e absoluta.
Foi como subir o zíper de um vestido de gala, ele refletiu. Subitamente uma compostura a imobilizou e transformou o rosto, de ruborizado e enlouquecido para, se
não exatamente plácido, certamente para algo bem mais composto.
Throe voltou a se aproximar dela. Segurando-a pelos ombros, beijou-a.
— Esta é minha fêmea. Agora está pronta pra seguir. Chega de ataques. Não importa o que mais seja revelado, permita que o advogado termine a leitura do testamento.
Não saberemos como lutar se não soubermos contra o que teremos de lutar.
Pelo amor da Virgem Escriba, que assim seja, ele pensou.
— Agora, posso trazê-lo de volta? – Quando ela anuiu, ele deu um passo atrás. — Lembre-se de tudo o que você tem a perder. Pode ser incrivelmente útil.
— Você tem razão. – Ela respirou fundo. — Você é muito forte.
Você não faz ideia, ele pensou ao virar as costas.
Voltando às portas duplas, ele abriu-as...
Cheirando o ar, franziu o cenho e olhou para o saguão. Saxton estava parado diante de um quadro, inspecionando o retrato de flores orvalhadas sobre um plano de fundo
preto e as mãos unidas atrás das costas, o torso levemente inclinado pra frente.
— Já estamos prontos para voltar? – O advogado perguntou sem erguer o olhar. — Ou precisam de mais tempo para se recompor? Já passou mais de uma hora.
Throe olhou ao redor. As portas do saguão e do escritório estavam na mesma posição que estiveram antes. Não havia mudança visível em lugar nenhum.Tudo parecia...
O mesmo.
Mas por que sentia aquele penetrante cheiro de ar fresco por todo o ambiente... Ar fresco e... Algo mais.
— Tem algo errado? – Saxton perguntou — Quer que eu volte outra hora?
— Não, ela está pronta. – Encarou o advogado buscando algum sinal de... Não sabia o que. — Eu a acalmei.
Saxton se endireitou. Ajustou a gravata. E se aproximou em uma marcha nada apressada. Totalmente natural. Sem afetação alguma.
— Talvez eu possa terminar com isto agora. – Saxton parou. — Embora, se for de sua preferência, posso somente deixar os documentos para vocês dois estudarem. A leitura
das disposições é mera formalidade, não faz diferença nenhuma.
— Não. – Disse Throe suavemente. — É melhor que ela tenha a oportunidade de fazer perguntas. Entre de novo e, por favor, desculpe-nos pela demora.
Ao se postar de lado e indicar o caminho, seus instintos formigaram e se recusaram a se aquietar.
— De fato, talvez seja melhor que você fique com ela um momento em privado. Talvez minha presença seja o problema.
Saxton inclinou a cabeça.
— Como quiser. Estou aqui para servir... Ou não... Ao que ela precisar.
— Ficamos eternamente gratos. – Throe murmurou. Em tom de voz mais alto, disse para a sala. — Naasha, querida, vou providenciar algo para comer. Talvez ajude neste
processo enfadonho.
Ele esperou enquanto ela colocava a mão sobre o seio e suspirava dramaticamente.
— Está bem, meu amor, estou me sentindo fraca com estas notícias.
— Mas é claro.
Fechando a porta atrás do advogado, cheirou o ar de novo. Fresco demais. E frio demais. Alguém tinha aberto uma porta ou janela.
Indo na direção da porta da frente da mansão, abriu-a completamente... E saiu para observar a área de estacionamento.
Saxton tinha chegado de carro. Ele viu o macho chegar da janela de seu quarto.
Girando, voltou a entrar na casa e foi direto ao escritório, abrindo a porta.
— Assail. – Ele chamou.
Mas é claro, o cômodo estava vazio.
Capítulo SESSENTA
Qhuinn prendeu a respiração enquanto a anestesia era administrada em Layla e um anticéptico marrom escuro com cheiro pungente era espalhado sobre sua barriga redonda.
E mais tarde não respirou enquanto Manny, Jane, Ehlena e Vishous se aglomeraram ao redor da mesa de operação, dois de cada lado, seus dedos cobertos por luvas passando
os instrumentos de um para o outro.
Podia se sentir o cheiro de sangue no ar enquanto os cortes eram feitos, e Qhuinn sentiu o chão fazer um padrão de ondas como se os azulejos tivessem certamente
tivessem se liquefeito.
Enquanto a mão de Blay apertava seu braço, era difícil dizer se era por que o macho estava preocupado que Qhuinn fosse desmaiar ou por que ele mesmo estava instável.
Provavelmente um pouco dos dois.
Como chegou a isso? Qhuinn se perguntou em silêncio.
Mas tão logo o pensamento o acertou, ele sacudiu a cabeça. Que porra que presumiu que ia acontecer com as duas crianças ali?
— Ela está bem? – Ele vociferou. — Eles estão vivos?
— Aqui vem um. – Blay disse asperamente.
— Bebê A. – Manny pronunciou enquanto entregava o pacotinho roxo a Ehlena.
Não houve nenhuma chance de olhar para a criança. A enfermeira moveu rápido, correndo com a criança até uma das duas camas de triagem que foram arrumadas.
Silêncio demais. Puta que pariu – estava quieto demais.
— Está vivo! – Qhuinn gritou. — Está vivo!
Blay teve que segurá-lo – mas também, se jogar pra frente era ridículo. Como se pudesse fazer qualquer coisa para ajudar em qualquer coisa daquilo? Oh, e como se
quisesse que a enfermeira estivesse pensando em qualquer outra coisa além de salvar aquela criança!
Mas Ehlena olhou para ele.
— Sim, está. Ele está vivo, nós só precisamos mantê-lo assim.
Qhuinn não tomou nenhum conforto em nada daquilo. Como podia quando a entidade a qual ela estava entubando e dando remédios parecia um minúsculo alien? Um pequenino,
frágil e enrugado alien que não tinha nada em comum com os bebês gordos que tinha visto nascer dos humanos na TV de tempos em tempos.
— Jesus Cristo. – Ele gemeu. — Tão pequeno.
A criança não ia sobreviver. Ele sabia do fundo de sua alma. Eles o perderiam e...
— Bebê B. – Jane anunciou quando o entregou para Vishous.
V passou como um raio com a criança e Qhuinn engasgou.
A filha... Sua filha... Era ainda menor. E não estava roxa.
Estava cinza. Cinza como uma estátua.
De uma só vez, a memória que tinha levado com ele quando serviu Layla durante seu período de necessidade veio a ele. Era quando ele tinha quase se matado e foi para
o Fade, e tinha se encontrado em frente à porta branca no meio de um campo branco cheio de névoa.
Ele viu uma imagem naquela porta.
A imagem de uma jovem fêmea com cabelos loiros e os olhos que tinham o mesmo formato dos dele – olhos que mudaram de cor perante ele da precisa cor dos olhos de
Layla para os dispares azul e verde dele.
Com um grito animalesco de dor, rugiu na sala de operação, gritando com uma agonia que nunca sentiu antes...
Ele tinha adivinhado errado. Ele estava... Errado. Havia interpretado errado o que tinha visto.
A visão na porta não tinha sido a premonição de uma filha por vir.
Mas sim uma filha que ele tinha perdido ao nascer.
Uma filha... Que tinha morrido.
Capítulo SESSENTA E UM
Enquanto Mary se apressava pelo túnel subterrâneo em direção ao centro de treinamento, o som dos seus pés apressados ecoaram diante dela, uma sombra autoritária
que parecia estar com tanta pressa quanto ela para chegar onde estava indo. Quando chegou na porta que abria para a sala de suprimento, digitou o código e se jogou
no espaço além, passando pelas prateleiras de canetas e blocos, os pendrives de backup e pilhas de papel da impressora.
Fora do escritório ela parou. Tohr estava sentado atrás da mesa, encarando a tela do computador que tinha todo o tipo de bolhas da cor de arco-íris obscurecendo
a página principal do DailyMail.co.uk.
Ele deu um salto quando a notou e então esfregou o rosto.
— Ei.
— Como eles estão?
— Eu não sei. Eles estão lá pelo que parece uma eternidade.
— Onde está Autumn?
— Ela saiu para a cabana da Xhex. É minha noite de folga e ela estava se aprontando pra gente... Você sabe. – Ele olhou o seu relógio. — Estava debatendo sobre se
deveria ou não ligar pra ela. Estava torcendo para ter notícias primeiro, para que ela não se preocupasse. Bem, boas notícias, quer dizer.
— Você deveria dizer a ela o que está acontecendo.
— Eu sei. – Os olhos dele voltaram a olhar pro monitor. — Eu, ah… Não estou lidando com isso muito bem.
Mary deu a volta na mesa e colocou a mão sobre o enorme ombro do macho. A tensão naquele corpo grande era tão grande que sentiu como se tivesse colocado a palma
dela em um nó. Feito de granito.
— Tohr, não acho que você deva ficar sozinho. E se eu fosse ela, estaria realmente muito chateada se você não me deixasse te apoiar.
— Eu só… – Agora ele olhou para o telefone do escritório. — Estou de volta nos velhos dias, sabe?
— Eu sei. E ela vai entender isso. Autumn é uma das pessoas mais compreensivas que eu já conheci.
O irmão olhou para ela, seus olhos azuis profundos penetrando no seu crânio.
— Mary, algum dia vou ficar bem?
Naquele momento ela foi transportada de volta para quando estava sentada com Bitty no GTO de Rhage – e pensou, sim, isso é o que todo mundo quer saber, não é? Eu
estou bem? Sou amado? Estou a salvo? Vou superar isso?
O que quer que “isso” seja, uma morte ou uma perda, confusão ou terror, depressão ou raiva.
— Você já está bem, Tohr. E acho mesmo que precisa ligar para sua shellan. Você não precisa protegê-la da sua dor. Ela sabe exatamente as cargas que você carrega
e te escolheu com todas elas. Não há nada aqui que irá chocá-la ou fazê-la pensar que você é fraco. Posso garantir, no entanto, que se você tentar esconder isso
dela, vai fazer com que ela sinta que você não confia nela ou que não ache que ela é forte o bastante para lidar com as coisas.
— E se a criança não sobreviver? E se...
Nesse momento, um grito… Um horrível grito masculino… Parecia que arrasou com o centro de treinamento inteiro, o som tão alto que estremeceu a porta de vidro, um
boom sônico de luto.
Enquanto Tohr se levantava as pressas da cadeira, Mary saltou para a saída, escancarando a porta.
Não foi uma surpresa ver a Irmandade inteira unida mais uma vez no vasto corredor. Também não era um choque que cada um dos machos e suas companheiras estivessem
olhando para a porta fechada da sala de cirurgia principal. E era mais sério, pois todas as Escolhidas e a Directrix, Amalya, estavam paradas entre eles igualmente
em pânico.
Ninguém disse nada. Era como se o grito de Qhuinn tivesse explicado o bastante.
Mary foi até Rhage, deslizando seu braço ao redor da cintura dele, e quando olhou pra ela, ele a puxou pra mais perto.
Quando não teve mais nada por um momento, as pessoas começaram a falar. Uma conversa baixa quebrou o silêncio.
Tohr tirou seu telefone com mãos que tremiam enquanto se sentava no chão de concreto como se suas pernas tivessem desabado debaixo dele.
— Oh Deus. – Rhage disse. — Isso é…
Insuportável, Mary pensou.
Perder uma criança, não importa o quão prematura, não importa as circunstancias, era uma agonia igual a nenhuma outra.
Pela primeira vez em sua vida adulta, Vishous congelou em meio a uma emergência médica. Foi só por um segundo, e voltou a ficar online um instante mais tarde… Mas
tinha uma coisa a respeito do corpinho sem vida em sua palma que tinha parado literalmente tudo nele.
Nunca esqueceria essa visão.
Não esqueceria também o grito que Qhuinn soltou.
Porém, sacudindo-se de volta ao foco, estalou de volta a ação para fazer a única coisa que talvez pudesse ajudar. Com mãos firmes, colocou o pequeno tubo pela garganta
da criança, colocou a máscara sobre o rosto e ligou os apetrechos a um equipamento que não era humano, mas estritamente para vampiros. Quando iniciou o fluxo, uma
solução salina oxigenada e fortificada foi em direção aos pulmões da criança, apertando os sacos, soprando-os para se abrirem… E então sugando o líquido, o qual
foi enviado para o sistema de filtro que o limparia, tornaria a oxigenar e mandar de volta.
Usando seu polegar, pressionou o minúsculo peito, massageando o coração com um ritmo.
Cor ruim. Realmente a cor errada. Maldito cinza de uma estátua de pedra.
E a criança estava parada, nada se movia, os braços e as pernas eram esqueléticos e enrugados como um filhote recém-saído da casca pendurado dos ombros e dos quadris.
Os olhos estavam abertos, as órbitas brancas não mostravam pupilas ou íris por que a garotinha era tão prematura.
— Vamos lá, acorde… Vamos lá…
Nada. Não havia nada.
Sem pensar, gritou por cima do ombro. — Payne! Tragam a Payne, porra. AGORA!
Ele não sabia quem tinha respondido o comando. Ele não se importava caralho nenhum. Tudo que importava era que um milionésimo de segundo depois, sua irmã estava
bem ao seu lado.
— Acorde-a, Payne. – Ele vociferou. — Acorde essa criança. Eu não vou ficar com isso na minha consciência para o resto da minha maldita vida. Acorde essa criança,
porra, agora mesmo!
Certo, tá, seu pedido foi uma merda. Mas não se importava – e nem sua irmã, evidentemente.
E ela sabia exatamente o que fazer.
Estendendo sua mão aberta diretamente sobre a criança, ela fechou os olhos. — Alguém me segure de pé. Eu preciso...
Qhuinn e Blay estavam ali, cada um dos machos pegando um dos seus cotovelos. E merda, V queria falar algo pelos dois, oferecer algum tipo de… Qualquer coisa… Mas
não havia nada que pudesse ajudar com meras palavras aqui.
— Payne, você consegue.
Enquanto as dolorosas sílabas atingiam o ar, foi um choque perceber que foi ele quem falou, que era sua voz que estava falhando, que ele, o único macho no planeta
que jamais implorou por nada, era a pessoa proferindo a instável...
Quente.
Ele sentia um calor.
E então viu a luz, o brilho que, diferente da força destrutiva que emanava da sua palma, era um poder gentil e curador, uma bendita força rejuvenescedora e miraculosa.
— Qhuinn? – Sua irmã disse rouca. — Qhuinn, me dê sua mão.
Vishous saiu da porra do caminho, apesar de ainda estar segurando a máscara de respiração no lugar por que a criança era prematura demais até mesmo para a menor
máscara que Havers tinha.
Qhuinn estendeu um braço e, merda, o macho estava tremendo tanto que era como estivesse sobre um agitador. Payne pegou o que ele ofereceu, e colocou sob a palma
reluzente para que a energia tivesse que passar através da carne dele para chegar à criança.
O irmão engasgou e sacudiu em resposta, seus dentes começaram a tremer, seu rosto ruborizado empalidecendo instantaneamente.
— Preciso de mais um par de mãos aqui. – Vishous vociferou. — Nós precisamos manter o papai longe do chão!
A próxima coisa que ele viu foi que Manny estava ao lado de Qhuinn, o humano segurando o cara ao redor da cintura.
Quando a energia começou a deixá-lo e canalizar para a criança, Qhuinn começou a respirar com dificuldade, seu peito palpitando, sua boca abrindo, seus pulmões claramente
queimando...
A criança mudou de cor em um piscar de olhos, toda aquela cor embotada e cinza, e o terrível tom de morte se tornando vermelho e rosa.
E então as mãozinhas, as impossivelmente minúsculas mãos, mas mesmo assim perfeitamente formadas, se mexeram. E também as pernas, os pés chutando uma vez, duas vezes.
E também a barriga, o buraco vazio se expandindo e contraindo com o ritmo da máquina.
Payne não parou. E Qhuinn perdeu o equilíbrio, somente os braços fortes de Blay e o suporte extra de Manny o mantiveram longe do chão.
Mais tempo, Vishous pensou. Continue mais tempo. Esvazie o poço se for preciso…
E foi isso exatamente o que sua maravilhosa irmã fez. Ela continuou mandando energia de si mesma para dentro e através de Qhuinn, onde era aumentada e focada, e
então afunilada para a criança.
Ela continuou até desmaiar.
Qhuinn não estava muito atrás dela.
Mas Vishous não podia se preocupar com eles. Só manteve seus olhos na criança, procurando por sinais de que a força da vida não se manteria… Que o cinza iria voltar
e um sinal de que o aperto da morte havia retornado nessa coisinha… Que o milagre não seria nada além de uma curta e cruel trégua…
Não faça isso, Mãe, ele pensou. Não faça isso com essas boas pessoas.
Não tome essa vida deles.
Capítulo SESSENTA E DOIS
Rhage provavelmente estava esmagando Mary com o aperto que ele tinha nela, mas ela não notou. Isso era bom, já que ele duvidava que pudesse relaxar os braços.
Estava mal e dolorosamente ciente dos seus irmãos, suas parceiras e as Escolhidas ao seu redor, a casa e a comunidade unidos em meio à tragédia no lado oposto de
uma porta que era muito fraca para conter o luto subsequente.
Rhage não conseguiu evitar pensar em Bitty. Deus, se ele tiver a chance… Se ele e Mary tiverem a chance, nunca descansaria em proteger aquela garotinha. Certificando-se
que ela tivesse a vida que merecia, a educação que precisava para ser independente, o chão de saber que nunca estaria sem um lar, não importando a distância que
ela viajasse.
— Isso é tão horrível. – Mary sussurrou. — Tão terrível. Tem acontecido morte demais por aqui ultimamente...
A porta escancarou e Blay explodiu lá de dentro da sala de cirurgia como se fosse atirado de um canhão.
— Ela está viva! – Ele gritou. — Eles dois estão vivos! Eles estão vivos! E Layla está estável!
Houve um momento de silêncio total. Como se todos que estavam naquele corredor tivessem meio que processar tudo, mudar para uma linha diferente, mudar para uma outra
marcha.
— E Qhuinn está duro desmaiado no chão!
Mais tarde, Rhage pensaria que foi um péssimo momento que a comemoração tivesse começado um pouco depois desse update – mas quem diabos se importava?
Blay foi soterrado por corpos, todo mundo gritando e chorando, abraçando e batendo as palmas, falando palavrões e rindo e cuspindo e tossindo enquanto detalhes eram
exigidos e dados uma vez, duas vezes, muitas vezes. Tinha tanto barulho, tanta vida, e Rhage estava bem lá com o resto deles se sentindo como se tivesse ganhado
na loteria, o presente dado, o caminhão reboque que passou raspando ao invés de acertado um deles.
Dra. Jane foi a próxima a sair e ela tirou a máscara do rosto enquanto todos a aplaudiam. Mas ao contrário do novo papai, ela teve cuidado ao fechar a porta atrás
de si, segurando-a no lugar.
— Shhhh. – ela falou com uma risada. — Nós temos muitos pacientes aqui. Preciso que duas macas passem por aqui, vocês podem abrir um pouco de espaço? Oh, obrigada,
Ehlena.
A enfermeira obviamente tinha saído pela outra porta e estava fazendo um empurra-e-puxa com as macas de rodinhas. As pessoas se mexiam pra sair do caminho, mas Blay
ainda estava recebendo abraços, o que levou a um pequeno atraso.
— Como posso ajudar? – Rhage perguntou para a Dra. Jane.
— Bem, agora nós estamos bem. Todo muito está ok, nós só precisamos mover alguns pacientes.
Rhage pegou o braço da Dra. antes que ela se virasse.
— Nós estamos realmente seguros com as crianças?
Aqueles olhos verdes floresta prenderam os dele.
— Tanto quanto podemos estar agora. Serão algumas longas noites, mas o sistema de ventilação por água do Havers salvou a vida de ambos. Nós devemos a ele.
Rhage assentiu e deixou a fêmea ir. E então estava indo até onde Mary e Tohr estavam abraçando e esperou sua vez. Ele só queria a sensação da sua shellan contra
ele mais uma vez.
Quando Mary girou em sua direção, ele ergueu os braços. Era bom pra caramba ter ela saltando em seus braços e a ergueu do chão.
— Você está pronta pra tentar? – Ele disse no ouvido dela. — Está pronta para ser mãe junto comigo?
— Oh, Rhage. – A voz da sua shellan ficou presa. — Oh, espero que sim.
— Eu também. – Colocando-a de volta no chão, ele franziu a testa. — O quê?
— Ah… – Mary olhou ao seu redor. — Onde você acha que podemos ter um pouco de privacidade por um segundo?
— Vem comigo.
Levando-a pela mão, guiou-a para longe da multidão, passando pelo vestiário e a sala de musculação até a entrada da academia.
— Primeiro as damas. – Disse enquanto segurava uma das portas de aço aberta.
As luzes de segurança iluminavam suavemente o vasto espaço e as placas de saída em cima das portas brilhavam vermelhas como pequenos corações.
— Tinha esquecido de como isso aqui era grande. – Mary disse enquanto se afastava, esticava os braços e girava imitando o filme A Noviça Rebelde.
Rhage ficou para trás e apenas a assistiu se mover, seu corpo esbelto e lindo para ele, agitando-o em lugares que ficariam ávidos bem depressa se não desviasse o
olhar.
— Posso ligar algumas luzes. – Ele murmurou, torcendo para ter algo para fazer.
— Gosto de pouca luz assim. É romântico.
— Eu concordo.
Quando seu pau chutava por trás das calças de couro que tinha colocado para o jantar, ele sacudiu a cabeça. Claramente, eles tinham algo importante para conversar,
ainda assim, aqui estava ele com sexo na cabeça. Vergonhoso.
Mas cara, ela estava gostosa.
E ele estava entusiasmado com as boas noticias.
E eles estavam sozinhos.
E então Mary fez uma pirueta e algum tipo de sacudida que fez os olhos dele irem para a bunda dela e ficarem ali.
Praguejando baixinho, ele estalou as costas, e esticou primeiro um braço e depois o outro.
— Tem algo errado? – Deus, esperava que não. Em muitos níveis. — Mary?
— Ah Rhage. Perder é difícil, sabia?
A tristeza na voz dela foi como uma grande borracha, apagando todo o erotismo da sua mente.
— Bitty está bem?
— Isso é o que ela queria saber. – Mary sorriu de uma maneira que parecia pesarosa. — Isso é o que Tohr queria saber também. Isso não é o que todo mundo quer saber…
E sim, ela está bem. Só está passando por muita coisa.
— Ela precisa de uma família.
Mary concordou.
— A caminho daqui, enquanto eu estava dirigindo, falei com uma das assistentes sociais, a que Marissa designou para nosso… Caso, ou pedido de adoção, ou seja lá
como a gente chame. Nós estamos meio que decidindo como preceder, mas ela vai falar com você e comigo separadamente, depois juntos. Sobre onde estamos em nossas
vidas. Como chegamos à decisão de querer adotar. Quais são nossos planos com e sem Bitty.
— O que eu preciso estudar para passar nisso?
Ela girou de volta para ele.
— Apenas seja honesto. E atencioso. Não existem respostas erradas.
— Tem certeza disso? Por que tenho certeza que ela não vai gostar da minha resposta pra pergunta “Você tem uma besta vivendo dentro de você?”
— Nós falamos sobre isso com Marissa, lembra? Não podemos esconder, mas a Besta nunca me machucou e nunca foi uma ameaça para ninguém da casa, contanto que eles
não estejam no campo. E posso rebater qualquer argumento de perigo mortal com a coisa toda do eu-não-posso-morrer. Sem problema.
Deus, o que os fez pensar que isso funcionaria, ele se perguntou.
— Isso vai me matar se não conseguirmos por causa da minha maldição.
— Nós não podemos pensar assim. – Ela pegou a mão dele e beijou. — Simplesmente não podemos.
— Beleza, então presumindo que a gente passe, seja lá o que isso for. E aí?
— Depois disso, se seguirmos o procedimento humano, Rhym viria e faria uma visita na mansão. Mas é um pouco diferente considerando onde nós moramos e com quem.
— Tanto faz, se alguém tem que vir aqui, vou dar um jeito nisso.
— Bem, vamos ver o que ela quer fazer, tá? – Mary colocou seu cabelo pra trás. — E escute, enquanto estamos falando… Bitty passou por tanta coisa e tão recentemente.
Eu realmente acho que é melhor pra todo mundo se a gente começar em um tipo de relacionamento de guarda de menor.
— Não. Eu não quero perdê-la...
— Me escute. Bitty acabou de perder a mãe. É importante que ela não sinta como se nós estivéssemos tentando eclipsar alguma coisa. Acho que quando falarmos com ela,
vamos dizer que ela é bem-vinda a ficar no Lugar Seguro o tempo que quiser. Ou pode vir pra cá com a gente.
— Podemos subornar a menina?
Mary soltou uma risada.
— O que? Não!
— Ai, qual é, Mary. O que você acha que ela ia gostar? Sorvete? Privilégios ilimitados da TV? Um pônei, pelo amor de Deus. Ou posso só comprá-la com uma bolsa. Ela
já está nessa idade?
Mary bateu no peito dele.
— Não, você não pode comprá-la. – E então abaixou a voz. — Acho que ela é apaixonada por animais. Quando ficarmos em dúvida, vamos usar a carta do Boo e do George...
Com fotos.
Rhage riu e puxou sua fêmea para um beijo.
— Você pensou sobre onde ela pode ficar na casa? Quer dizer… Se isso realmente acontecer?
— De fato sim, mas vai significar um pouco de reorganização. E uma mudança para nós.
— Para onde? O Pit está cheio, e Butch e V falam palavrão como caminhoneiros. Eles são piores do que eu.
— Bem, pensei que talvez pudéssemos perguntar pro Trez se ele está disposto a trocar de quarto com a gente. Poderíamos ir para o terceiro andar naqueles quartos
que ele e iAm usam. Quer dizer, as duas suítes tem seu próprio espaço e seus próprios banheiros, mas estaríamos perto se Bitty precisasse da gente.
— Esta é uma ótima ideia.
— Hum-hum...
Segurando a mão da sua Mary contra ele, ficou curiosamente ciente do grande espaço que estava ao redor deles. Na luz fraca, os contornos do ginásio e cantos estavam
em sua maioria nas sombras, as arquibancadas vazias, as cordas penduradas do teto, as marcações de basquete no chão brilhante de pinho eram nada além de notas de
rodapé no interior cavernoso.
Rhage franziu a testa, pensando que tinha uma metáfora ali.
O mundo era meio que assim, vasto e vazio exceto por aqueles a quem amamos, nada além de uma versão mais quente do espaço cheio de tralha aleatória na qual você
saltava dentro. O que o mantinha no chão era sua família, seus amigos, sua tribo de mentes semelhantes. Sem isso?
Ele se afastou e começou a passear por ali.
Sem piruetas pra ele.
— Rhage?
Ele pensou no que ela disse, sobre esses encontros com a assistente social, ele com sua besta, ela com sua… Situação incomum. E então se lembrou de estar deitado
no campo daquele campus abandonado, ele no chão, ela sobre ele; sua Mary lutando pra mantê-lo vivo mesmo que eles tivessem uma saída que em momentos como aquele
era mesmo um milagre.
Quando ele parou, estava na linha de lance livre. Nenhuma bola de basquete em suas mãos, nenhuma cesta para ele lançar, nenhuma fileira de companheiros de time e
oponentes. Porém, havia uma urgência.
Ele olhou pra cima para o lugar onde a cesta de basquete deveria estar se o grande braço de metal com seu quadrado de vidro tivesse descido do teto para seu lugar.
— Mary, quero que me prometa uma coisa.
— Qualquer coisa.
Olhando para ela, ele encontrou dificuldade em falar e teve que pigarrear.
— Se nós… Se você e eu ficarmos com Bitty? Se nós a tomarmos como nossa, quero que prometa… — O centro do seu peito começou a queimar. — Se eu morrer, você tem que
ficar aqui com ela. Você não pode deixá-la para trás, tá? Se eu for, você fica. Não vou admitir aquela garotinha perdendo outros pais. Não vai acontecer.
Mary levou a mão até sua boca e fechou os olhos, abaixando a cabeça.
— Eu vou esperar por você. – Ele disse com voz rouca. — Se eu morrer, vou esperar por você no Fade assim como qualquer outro faz. Diabos, vou vigiar vocês duas das
nuvens. Serei o anjo da guarda das duas. Mas você… Você precisa ficar com ela.
Bitty, no final das contas, viveria mais do que ele. Esse era o modo que você esperava e rezava que funcionasse. Crianças sucediam seus pais, assumiam os lugares
deles, caminhavam no futuro caminhos seguindo as tradições e lições para que o que foi passado pudesse ser repassado novamente.
Era a imortalidade para o mortal.
E isso era verdade quer desse a luz aos seus filhos ou abrisse seus braços para eles.
— Você fica aqui, Mary.
Quando as implicações do pedido de Rhage começaram a ser absorvidas, Mary sentiu seu coração bater forte e seu corpo começar a suar frio.
Mesmo tendo confessado o desejo de mantê-lo no planeta pelo mesmo raciocínio que ele estava expressando, ouvi-lo colocando isso assim? A coisa toda a deixava zonza,
fazendo-a voltar para o momento quando achou que ia perdê-lo – mesmo que na época estivesse ciente de que poderia ir encontrá-lo no Fade.
Era como se ele estivesse de novo deitado e ofegando pelo ar que não conseguia capturar, sangrando dentro do peito, escorregando pra longe mesmo que o corpo dele
estivesse diante dela.
E então pensou em Bitty no banco de trás do GTO chorando, perdida, sozinha.
— Sim. – Mary disse rouca. — Vou ficar. Por ela. Pelo tempo que ela ficar viva, estarei com ela.
Rhage exalou longa e lentamente.
— Isto é bom. Isto é…
Eles se encontraram no meio, cada um andando em direção ao outro, e quando se abraçaram, ela colocou a cabeça de lado no seu peito pesado, ouvindo os batimentos
dele bem perto do seu ouvido. Olhando fixamente para o outro lado do ginásio mal iluminado, odiou a escolha que tinha acabado de fazer, o voto que tinha acabado
de fazer… E ao mesmo tempo, estava muito grata por isso.
— Ela não pode saber. – Mary falou abruptamente enquanto se afastava um pouco e olhava pra cima. — Bitty não pode saber sobre mim, pelo menos não até depois dela
tomar sua decisão. Não quero que seu medo de ficar sozinha encubra a escolha que ela terá que fazer. Se quiser vir com a gente, tem que ser por que escolheu livremente.
Todas as mortes em sua vida podem ser parte disso, mas não pode ser tudo.
— Concordo.
Mary voltou a ficar perto dele.
— Eu amo você.
— Eu amo você também.
Eles ficaram parados no ginásio por um longo tempo. E então Rhage mudou sua pegada, estendendo um braço para um lado e circulando o outro ao redor da cintura dela.
— Dança comigo? – Ele disse.
Ela riu um pouco.
— Que tipo de música?
— Qualquer coisa. Nada. Não importa. Apenas dance comigo aqui no escuro.
Por alguma razão, lágrimas pinicaram seus olhos quando eles começaram a se mover, balançando no começo, o movimento dos pés deles no chão liso e o farfalhar das
roupas eram o único acompanhamento. Logo encontraram um ritmo, e então ele a estava guiando em uma valsa, uma valsa antiga dos velhos tempos na qual ele era bem
melhor do que ela.
Girando ao redor do espaço vazio, ela descobriu que uma sinfonia começou a tocar na sua cabeça, as cordas e as flautas, o tímpano das baterias e os trompetes dando
majestade e poder para a dança deles.
Dando voltas e mais voltas, eles continuaram até que ela estava sorrindo para ele mesmo enquanto uma lágrima caía.
Ela sabia o que ele estava fazendo. Sabia exatamente por que ele pediu a ela para fazer isso.
Estava lembrando a ela que o futuro era incerto e imprevisível.
Então se você tivesse a oportunidade… Mesmo que não tivesse nenhuma música e nenhum vestido, nem Smoking nem gala… Quando seu verdadeiro amor te pedia pra dançar?
Era importante dizer sim.
Capítulo SESSENTA E TRÊS
Vishous ficou do lado de fora do ginásio, olhando através de uma das portas de aço que tinha janelas de vidro no meio.
Rhage e Mary estavam dançando no espaço vazio, rodopiando, o corpo menor da fêmea mantido firmemente e guiada pelo seu macho muito, muito maior. Eles estavam olhando
um para o outro, olhando nos olhos um do outro. Merda, você poderia jurar que havia um quarteto ou talvez uma orquestra completa tocando lá, pela maneira como eles
se moviam tão bem juntos.
Ele mesmo não era um dançarino muito bom.
Além do mais, você não poderia valsar ao som de Rick Ross ou Kendrick Lamar.
Tirando um cigarro enrolado a mão do bolso de trás da calça de couro, acendeu e exalou enquanto apoiava o ombro no umbral e continuou a assistir.
Você tinha que respeita os dois, ele pensou. Ir atrás daquela criança, tentar fazer uma família acontecer. Mas então, Rhage e Mary sempre estiveram na mesma página,
nada atrapalhando a relação deles, tudo sempre perfeito.
Era o que acontecia quando se emparelhava uma terapeuta que amava crianças com uma mistura de Brad Pitt e Channing Tatum: harmonia cósmica.
Deus, em comparação, a relação dele com Jane parecia meio que… Clínica.
Nada de dança no escuro para eles, não a menos que fosse do tipo horizontal – e quando foi a última vez que isso aconteceu? Jane esteve direto na clínica e ele esteve
lidando com todo tipo de merda.
Okay, isso era estranho. Mesmo que não fosse do tipo que tem inveja – isso junto com tantas emoções, era apenas uma puta perda de tempo – ele se viu desejando que
fosse um pouco mais perto de ser normal. Não que se desculpasse pela sua esquisitice ou pelo fato que ele era predominantemente um cara de razão, não de emoção.
Ainda assim, quando estava assim parado do lado de fora vendo o que o irmão tinha, sentia-se quebrado de uma maneira que não sabia dizer.
Não é como se quisesse se tornar uma versão masculina da Adele ou uma merda assim.
Tá, arquive isso sob Adeus.
Mas ele queria…
Ah, porra, não sabia que diabos estava acontecendo.
Mudando de assunto – antes que ele terminasse usando calcinha de renda – pensou na filha de Qhuinn, naquela coisinha minúscula que tinha voltado dos mortos.
Como Payne soube o que fazer? Merda, se ela não tivesse…
Vishous franziu o cenho enquanto uma lembrança de Mary veio à superfície e se recusou a afundar de volta. Ela estava falando sobre quando tinha salvado a vida de
Rhage… Quando tinha movido o dragão até o centro do peito dele para que sua Besta pudesse de alguma forma curar o ferimento à bala.
Não sei como eu sabia o que fazer, ela disse a ele. Ou algo parecido.
Pensou nele mesmo confrontando sua mãe enquanto Rhage estava morrendo, exigindo que ela fizesse algo antes de sair violentamente, todo furioso e irritado. E então
tornou a se lembrar do pedido que tinha enviado enquanto trabalhava no corpo sem vida da filha do Qhuinn.
Merda.
Inclinando-se, pisou no cigarro fumado pela metade com a sola da sua bota e jogou a bituca no lixo.
Fechando seus olhos... Ele desmaterializou até o jardim dos aposentos privados da sua mãe, tomando forma novamente em frente às colunas.
Instantaneamente soube que alguma coisa estava errada.
Olhando por cima do ombro, ele franziu a testa. A fonte que sempre corria com água cristalina… Estava parada. E quando andou até a base, descobriu que a coisa estava
seca, estava vazia como se nunca estivesse estado cheia.
Então deu uma olhada para onde estava a árvore que hospedava os rouxinóis.
Eles se foram. Todos.
Quando sinos de alerta começaram a soar em sua cabeça, ele começou a correr, atravessando até a entrada dos aposentos privados de sua mahmen. Socou a porta, mas
não por muito tempo – mais uma vez ele preparou o ombro e se jogou contra os painéis.
Dessa vez a coisa se soltou das dobradiças, caindo no chão de pedra como um cadáver.
— Mãe... Filha da puta.
Tudo se foi. A plataforma da cama. A penteadeira. A única cadeira. Até mesmo a cela de tranca dupla que havia mantido Payne por trás das cortinas estava exposta,
o tecido branco que estava pendurado já não estava no lugar.
Fechando os olhos, deixou seus sentidos varrerem o quarto, procurando por pistas. Sua mãe tinha acabado de estar ali. Ele sabia disso em seu sangue, um rastro da
energia dela remanescente no espaço como um perfume que fica no ar quando alguém parte. Mas para onde ela foi?
Ele pensou na multidão lá embaixo no centro de treinamento. Amalya, a directrix, esteve entre eles, junto com Cormia e Phury, e todas as Escolhidas que foram para
rezar e testemunhar os nascimentos.
A Virgem Escriba havia esperado até estar sozinha para partir.
Ela que sabia tudo, via tudo, tinha deliberadamente escolhido um momento de crise na Terra, quando todos que tivessem razão para estar ali em cima estivessem ocupados.
Vishous saiu correndo dos aposentos privados.
— Mãe! Onde diabos você está?
Ele não esperou resposta...
Um som ondulou em seu ouvido, emanando de algum lugar fora do pátio. Seguindo-o, foi até a porta que abria para o Santuário e olhou para o outro lado da terra verdejante.
Pássaros.
Os rouxinóis estavam cantando bem distante.
Começando a correr, ele seguiu a doce harmonia, cruzando a grama verde e passando pelos templos de mármore e dormitórios.
— Mãe? – Urrou através da paisagem estéril. — Mãe!
— Oi, mahmen, você está acordada agora.
Quando Layla ouviu a voz masculina acima dela, percebeu que sim, seus olhos estavam abertos e sim, ela estava viva...
— A criança! – Ela gritou.
Uma repentina explosão de energia a fez se erguer para se sentar, mas mãos gentis a fizeram se deitar de novo. E quando uma onda de dor se espalhou através da parte
inferior da sua barriga, Qhuinn colocou o rosto em frente ao rosto dela.
Ele estava sorrindo. De orelha a orelha.
Sim, seus olhos estavam injetados, estava pálido e tremia um pouco, mas o macho estava sorrindo tão abertamente que sua mandíbula devia estar doendo.
— Todos estão bem. – Ele disse. — Nossa filha nos deu um baita susto, mas ambos estão bem. Respirando. Se mexendo. Vivos.
Uma onda de emoção a inundou, seu peito literalmente explodindo com a combinação de alívio, alegria e uma sensação de terror que sentiu antes deles a sedarem. E
como se ele soubesse exatamente o que ela estava sentindo, Qhuinn começou a abraçá-la, envolvendo-a em seus braços – e ela tentou retribuir o abraço, mas não tinha
força.
— Blay. – Ela falou rouca. — Onde está...
— Bem aqui. Estou bem aqui.
Por cima do grande ombro de Qhuinn, ela viu o outro macho e desejou que pudesse alcançá-lo – e como se ele estivesse ciente disso, ele veio também, todos três envolvidos
em um abraço que os deixou tremendo, e ao mesmo tempo mais fortes também.
— Onde eles estão? – Ela perguntou. — Onde…
Os machos recuaram e o modo que Qhuinn olhou para Blay deixou-a nervosa.
— O quê. – Ela exigiu. — O que está errado?
Blay pegou a mãe dela.
— Escute, queremos que esteja preparada, okay? Eles são muito pequenos. Eles são realmente… Muito pequenos. Mas são fortes. Tanto a Dra. Jane quanto Manny checaram
os dois, Ehlena também. E fizemos uma videoconferência com Havers e revisaram tudo com ele. Eles vão ficar aqui por um tempo nos respiradores à água até os pulmões
deles amadurecerem e eles conseguirem respirar e comer sozinhos, mas eles estão indo muito bem.
Layla se encontrou acenando com a cabeça enquanto engolia um monte de medo goela abaixo. Olhando para Qhuinn, seus olhos se encheram de lágrimas de novo.
— Eu tentei mantê-los aqui dentro. Tentei...
Ele sacudiu a cabeça firmemente, aquele olhar azul e verde muito sério.
— Houve um problema com a sua placenta, nalla. Não havia nada que você pudesse ter feito para impedir que isso acontecesse. Foi exatamente a mesma coisa que aconteceu
com Beth.
Ela colocou as mãos em seu estômago muito mais plano.
— Eles tiraram meu útero?
Blay sorriu.
— Não. Eles tiraram as crianças e pararam o sangramento. Você pode ter mais filhos se a Virgem Escriba prover.
Layla baixou o olhar para seu corpo, sentindo uma onda de alívio. E também de tristeza pela Rainha.
— Eu tive sorte.
— Sim, teve. – Qhuinn disse.
— Nós todos tivemos sorte. – Ela corrigiu, olhando para os dois. — Quando poderei vê-los?
Qhuinn deu um passo para trás.
— Eles estão bem aqui.
Layla lutou para se sentar, pegando os braços do pai. E então ofegou.
— Oh…
Antes que soubesse, ela estava saindo do colchão, mesmo que doesse, e apesar de estar conectada à cerca de setenta quilos de equipamentos médicos.
— Merda. – Qhuinn disse. — Você tem certeza que quer...
— Certo, nós estamos nos movendo. – Blay interferiu. — Estamos de pé e nos movendo.
Com a mente em um único foco como ela nunca conheceu antes, não prestou atenção a nada além de chegar até suas crianças: nem no modo como os machos corriam para
organizar os monitores móveis, ou quanto ela tinha que se apoiar em vários braços e ombros, ou quanta dor gritava no seu abdômen.
As incubadoras estavam próximas da parede, lado a lado, separadas por três pés de distância. Luzes azuis brilhantes iluminavam as minúsculas formas, e oh… Céus…
Os fios, os tubos…
Foi aí que ela ficou um pouco tonta.
— Você não gosta dos óculos escuros. – Blay comentou.
De repente ela riu.
— Eles parecem mini-Wraths. – E então ela ficou séria. — Você tem certeza…
— Positivo. – Disse Qhuinn. — Eles tem um longo caminho a percorrer, mas merda, eles são guerreiros. Especialmente ela.
Layla chegou mais perto da sua filha.
— Quando posso segurá-los?
— A Dra. Jane quer que a gente dê a eles um pouco de tempo. Amanhã? — Blay disse. — Talvez na noite seguinte?
— Vou esperar. – Mesmo que fosse a coisa mais difícil que já fez. — Vou esperar o tempo que for preciso.
Ela se virou para o outro lado e olhou para o seu filho.
— Querida Virgem Escriba, ele se parece com você, não?
— Eu sei, tá? – Qhuinn balançou a cabeça. — É loucura. Quer dizer…
— Qual nome que vocês vão dar a eles? – Blay perguntou. — É hora de vocês dois pensarem nos nomes.
Oh, com certeza, Layla pensou. Na tradição dos vampiros, o nascimento de crianças não era antecipado com nenhum tipo de planejamento. Não havia chá de bebê como
os humanos faziam, nenhuma lista de nomes de meninos e meninas, nenhuma pilha de fraldas, prateleiras de mamadeiras ou até mesmo berços e pijamas. Para vampiros
era considerado má sorte adiantar as coisas e presumir um nascimento saudável.
— Sim. – Ela disse, focando novamente em sua filha. — Nós temos que dar um nome a eles.
Naquele momento, a minúscula garotinha moveu sua cabeça e pareceu olhar pra cima, através dos óculos escuros e do Plexiglas, passando a distância entre mãe e filha.
— Ela vai crescer e se tornar linda. – Blay murmurou. — Absolutamente linda.
— Lyric. – Layla falou abruptamente. — Iremos chamar ela de Lyric.
Blay se encolheu.
— Lyric? Você sabe, esse é o nome… Você sabe que esse é o nome da minha mahmen…
Quando o macho parou de falar, Qhuinn começou a sorrir. E então se abaixou e beijou a bochecha de Layla.
— Sim. Absolutamente. Ela vai se chamar Lyric.
Blay piscou algumas vezes.
— Minha mahmen vai ficar… Incrivelmente honrada. Como eu.
Layla apertou a mão do macho.
— Seus pais serão os únicos avós que essas crianças vão conhecer. É justo que um de seus nomes seja representado. E para nosso filho, talvez nós devamos fazer um
pedido ao Rei por um nome de Irmão? Parece encaixar, pois seu pai é um bravo e nobre membro da Irmandade da Adaga Negra.
— Oh, eu não sei quanto a isso. – Qhuinn se esquivou.
— Sim. – Blay concordou. — Essa é uma boa ideia.
Qhuinn começou a balançar a cabeça.
— Mas eu não sei se...
— Então está resolvido. – Layla anunciou.
Quando Blay concordou, Qhuinn colocou sua palma pra cima.
— Eu sei quando fui derrotado.
Layla piscou para Blay.
— Ele é esperto, não é?
Do lado de fora da sala de parto, Jane reviu a ficha que Ehlena tinha acabado de estender a ela, virando as páginas que detalhavam o progresso do escravo de sangue.
— Bom, bom… Os sinais vitais estão realmente melhorando. Vamos continuar com os fluídos. Eu quero mantê-lo no soro por mais um tempo e então vamos ver se conseguimos
uma Escolhida para alimentá-lo.
— Eu já pedi a Phury. – A shellan de Rehv se encolheu. — Porém, honestamente não sei como isso vai acontecer. Aquele macho está realmente em mal estado. Até aqui.
Conforme Ehlena indicava com a cabeça, Jane concordou.
— Eu falei com Mary a respeito disso. Ela disse que está pronta para falar com ele assim que ele estiver estável.
— Ela é ótima.
— Com certeza.
Jane devolveu o prontuário, trocando pelo da Layla. Sim, podia facilmente mudar para os registros médicos eletrônicos, mas foi treinada nos dias antes de tudo ser
computadorizado e sempre preferiu o bom e velho papel.
Ela teve que sorrir enquanto pensava na desaprovação de Vishous. Ele estava morrendo de vontade de obter um meio decente de sistema de informática naquele lugar,
mas respeitava sua prerrogativa, embora estivesse frustrado com ela. E eles digitavam um sumário em um banco de dados, algo que Jane gostava de passar as tardes
de domingo quando todo mundo ficava quieto.
Era um exercício de meditação tanto quanto qualquer outro.
— Então, como nossas crianças estão? – Ela murmurou enquanto corria através das notas que Ehlena tinha feito durante a última checada. — Oh, você vai conseguir,
menina. Olhe para essas taxas de oxigênio. Bem onde nós a queremos.
— Há algo de especial nessa garotinha. Estou dizendo a você.
— Concordo totalmente com isso. – Jane virou outra página. — E Mãe, como você está indo... Ah, bom. Sinais vitais muito fortes. A produção de urina está perfeita.
Contagem sanguínea ótima. Gostaria que ela começasse a se alimentar assim que puder.
— Sei que os irmãos estão morrendo de vontade de ajudar. Tive que expulsá-los. Juro, pensei que eles iam ficar aqui embaixo até essas crianças irem pra escola.
Jane riu e fechou a pasta.
— Vou dar uma checada rápida em todos enquanto você começa a fisioterapia de Luchas.
— Entendido.
— Você é a melhor...
— Ei, parceira.
Jane olhou para cima. Manny estava descendo o corredor com o cabelo molhado, seu uniforme limpo, os olhos alertas.
— Pensei que você ia ficar de folga pelas próximas seis horas.
— Não pude ficar longe. Poderia perder alguma coisa. Você vai lá?
— Quer se juntar a mim na visita?
— Sempre.
Jane estava balançando a cabeça para si mesma quando colocou a mão na porta de Layla e empurrou. Médico era tudo igual. Simplesmente não podia deixar sozinho...
Ela parou no umbral da porta.
Do outro lado do quarto, a nova mamãe estava de pé diante das incubadoras, Blay de um lado, Qhuinn do outro, os três olhando para os bebês e falando suavemente.
O amor era palpável.
E nesse momento, todo o remédio que era necessário.
— Alguma coisa errada? – Manny perguntou enquanto Jane recuava e tornava a fechar as coisas.
Jane sorriu.
— Está na hora da família agora. Vamos dar um minuto a eles, ok?
Manny sorriu de volta.
— Bate aqui, Dra. Você foi uma cirurgiã e tanto lá dentro.
Enquanto batia na palma da mão dele, ela balançou a cabeça.
— E você salvou o útero dela.
— Você não ama um bom trabalho de equipe?
— Todas as noites e todos os dias. – Ela disse enquanto voltavam pelo corredor, indo sem pressa pelo menos uma vez. — Ei, quer comer alguma coisa? Não me lembro
qual foi a última vez que comi alguma coisa.
— Acho que comi uma barra de Snickers na quarta-feira passada. – Seu amigo murmurou. — Ou foi na segunda?
Jane riu e bateu nele com a sua bunda.
— Mentiroso. Você tomou um Milk-shake duas noites atrás.
— Ceeeeeeeeeeerto. Ei, onde está seu homem? Ele devia sentar com a gente.
Jane franziu a testa e olhou de um lado a outro pelo corredor vazio.
— Sabe... Não faço idéia. Pensei que ele se afastou para fumar um cigarro, mas ele não deveria ter voltado?
Onde Vishous foi?
Capítulo SESSENTA E QUATRO
Lá em cima, no Santuário, Vishous seguiu o chamado dos pássaros, passando pela área de banho e o poço dos reflexos até o limite da floresta. Por um momento, ele
se perguntou se a intenção não seria justamente atraí-lo para a fronteira, mesmo que fosse de seu conhecimento que se tentasse atravessar aquela extensão de árvores
espessas, a merda só te cuspia de volta para onde começou.
Mas aí, diminuiu o ritmo.
E parou.
Os pássaros que tinham soltado as vozes para o ar caíram em silêncio quando ele olhou para o único lugar onde não tinha jamais considerado procurar.
O cemitério onde as Escolhidas que morriam eram postas para descansar era contornado dos quatro lados por arbustos angulosos, altos o bastante para que ele não conseguisse
ver por cima deles. Uma arcada interrompia a densidade de pequenas folhas e era na treliça que os pássaros estavam, encarando-o silenciosamente, tendo finalizado
o trabalho deles.
Aproximando-se, abaixou para entrar mesmo que não precisasse, pois a arcada era alta o suficiente para acomodar sua cabeça. E enquanto entrava os pássaros revoaram
no ar, cada vez mais alto até desaparecerem totalmente.
Era impossível não pensar em Selena ao encarar as estátuas das fêmeas, que na verdade não eram estátuas. Eram as Escolhidas que também sofreram o arrest, perecendo
como a companheira de Trez tinha perecido de uma doença tão implacável quanto letal.
Um ruído esvoaçante o fez virar a cabeça.
Lá, em um dos arbustos angulosos, agitando-se como uma bandeira, havia um bloco de símbolos cintilantes no Antigo Idioma. A mensagem não estava propriamente montada
em nada; o texto flutuava livremente, aglutinado em uma ordem que presumivelmente faria sentido a qualquer um que o lesse, e se movia em dobras sobre um vento não
existente, como se as palavras estivessem costuradas em um tecido e hasteadas em um mastro.
Com uma sensação de temor, ele se aproximou do que sabia ter sido deixado por sua mãe para ele.
Estendendo a mão, segurou a beirada de cima e puxou a mensagem esticando-a, sentindo o peso, embora não existente, e um fim, embora não houvesse nenhum.
Os símbolos dourados caíram em uma série de linhas retas e ele os leu de uma vez. E de novo. E então uma última vez.
Há um tempo para todas as coisas, e o meu tempo chegou ao fim. Entristeço-me pelas coisas que aconteceram entre nós, assim como pelo que aconteceu entre sua irmã
e eu. O Destino se provou mais poderoso do que estava em meu coração, mas era assim que tinha de ser.
Eu devo indicar um sucessor. O Criador me concedeu esta graça e assim o farei quando a hora chegar, e está próxima. O sucessor não será você nem sua irmã. Quero
que saiba que não é por birra, mas um sinal de reconhecimento pelo que ambos escolheram para suas vidas.
Quando cumpri meu dever de trazer a raça à existência, não foi este o fim que previ. Mas às vezes é difícil, mesmo para divindades, diferenciar entre o que elas
desejam e o que realmente tem de ser.
Em outra dimensão, talvez voltemos a nos encontrar.
Diga a sua irmã que eu a amo.
Saiba que sinto o mesmo por você também.
Adeus.
Quando o texto voltou ao lugar, os símbolos se dispersaram no ar, mais ou menos como os pássaros, erguendo-se e desaparecendo no céu branco como o leite.
Vishous se virou algumas vezes, como se o ato de girar pudesse, de alguma forma, provar ou negar esta realidade. Então só parou e ficou como mais uma das estátuas
no cemitério, os olhos vidrados, mas sem ver nada, o corpo congelado no lugar.
Não conseguia decidir se o que estava sentindo era alívio, dor ou... Diabos, não sabia que porra era. E sim, sentiu o súbito impulso de procurar Butch e fazer seu
melhor amigo amarrá-lo e chicoteá-lo até que o sangue escorresse e limpasse tudo aquilo de sua mente.
O Bloodletter estava morto, o pai de V há muito tinha sido morto pela sua irmã, e o fodido estaria agora no Dhund se houvesse alguma justiça no mundo.
Agora sua mahmen se fora.
Nenhum deles tinha sido grande coisa como pais, e tudo bem. Aquilo era normal, tanto que pessoas que tinham uma mahmen e um pai que desempenhavam adequadamente seus
papéis sempre pareciam os mais estranhos.
Então parecia tão completamente bizarro sentir-se sem raízes agora, considerando que na verdade jamais tivera uma família.
Voltou a lembrar da sobrevivência de Rhage naquele campo de batalha. E então considerou aquela bebezinha minúscula sobrevivendo, quando tudo indicava que seria impossível.
— Porra. – Ele exalou.
Igual à sua mãe. A última coisa que ela tinha feito antes de bater as botas, se é que se podia atribuir ao desaparecimento dela a palavra humana morte, tinha sido
conceder a ele resposta à suas preces... E salvar a vida da filha de Qhuinn.
Um foda-se final, como se podia dizer.
Ou merda, talvez aquilo fosse só o filtro sórdido dele retorcendo tudo sob uma luz pessimista.
Tanto faz. Ela se foi... E era isto. Só que...
Jesus Cristo, ele pensou ao esfregar o rosto. A Virgem Escriba se foi. Capítulo SESSENTA E CINCO
Ao cair da noite, Assail ainda estava lá embaixo, no complexo do centro de treinamento da Irmandade, sentado na cadeira em frente a Markcus, que tinha dormido o
dia inteiro.
Dado o seu período de ausência e os planos para aquela noite, Assail pegou o celular e os dedos começaram a voar pela tela enquanto digitava uma mensagem de texto
para os primos...
— O que é isto? – Veio a pergunta rouca.
Virando a cabeça, ficou surpreso ao ver que Markcus estava acordado.
— Um iPhone. – Ele ergueu o aparelho. — É um telefone celular.
— Receio... – O macho se ergueu um pouquinho apoiado nos travesseiros. — Receio que isto não me diz nada.
Por um momento, Assail tentou imaginar todo aquele cabelo emaranhado sumindo, alguns quilos a mais naquela estrutura óssea, o rosto preenchido, de forma que não
parecesse tão esquelético. Markcus devia ser... Provavelmente de aparência agradável.
Voltando à realidade, Assail murmurou.
— Um telefone? Sabe, para falar com as pessoas? Ou enviar mensagens?
— Oh.
— Você já viu um telefone?
Markcus anuiu.
— Mas no meu tempo eles ficavam em mesas, não em bolsos.
Assail sentou-se mais na beirada da cadeira.
— Por quanto tempo foi mantido lá embaixo?
O corpo inteiro do macho reagiu à pergunta, ficando tenso. Mas não fugiu, nem hesitou.
— Em que ano estamos? – Quando Assail respondeu, o rosto pálido pareceu desmoronar. — Oh, querida Virgem Escriba...
— Quanto tempo?
— Trinta e dois anos. Que... Em que mês estamos?
— Outubro. Quase Novembro.
Markcus anuiu.
— Pareceu mesmo frio quando me tirou da casa... Senti frio, mas não tinha certeza se era eu ou...
— Não era você.
Jesus, Naasha devia tê-lo capturado quase na mesma época em que se vinculou ao seu hellren. Ela devia saber no que se metia com o macho idoso. Mas por que não tinha
cuidado melhor de Markcus? Questões morais à parte, o sangue era, no final das contas, tão bom quanto o corpo que o produzia.
Só que então Assail pensou no jeito que Naasha tinha usado a ele e a muitos outros. Claramente ela tinha encontrado muitas outras fontes de alimentação.
A negligência tinha aumentado conforme a necessidade diminuía.
Houve silêncio. E então Markcus disse:
— Como sabia que eu estava lá?
— Eu estava explorando a casa em busca de... – Assail descartou a explicação pela sua falta de importância. — Estávamos nos perguntando sobre sua família... Tem
alguém a quem queira chamar?
— Minha linhagem vive no Antigo Continente. Saí de lá por que queria... – A voz de Markcus falhou. — Eu queria aventura. Fui àquela casa em busca de trabalho. A
senhora passou pelos meus aposentos uma noite e então me convocou à sua presença lá embaixo, no porão. Ela me deu um pouco de vinho e...
O olhar do macho pareceu enevoado, como se as lembranças fossem tão sombrias e pesadas que eram capazes de roubar sua consciência.
— Como faço para contatar sua família? – Assail perguntou.
— Eu não sei. Eu... – Markcus voltou subitamente ao foco. — Não, não entre em contato com eles. Ainda não. Não quero que me vejam assim.
Quando o macho ergueu os pulsos com as tatuagens, pareceu tão indefeso quanto quando acorrentado àquela cela.
— O que vou dizer a eles? Não passamos de plebeus... Tive de trabalhar para pagar minha passagem no navio até o porto de Nova York. Mas todas as famílias tem orgulho.
E não... Não há orgulho algum nisto.
Assail esfregou o rosto com tanta força que seu pobre nariz judiado gritou. O que o fez pensar... Precisava arrumar mais cocaína antes de sair para resolver seus
assuntos esta noite.
— Você pode ficar comigo e meus primos. – Ele anunciou. — Estará seguro lá.
Markcus balançou a cabeça ao passar a ponta dos dedos sobre o pulso esquerdo.
— Por que... Por que faria isto?
— Eu já disse. Você precisa de ajuda. E preciso ajudar alguém. – Assail estendeu as duas mãos. — Sem intenção nenhuma. Somos só três machos que moram juntos.
Naturalmente deixou de mencionar seu vício em coca, o fato de ter o costume de discutivelmente prostituir todos os seus relacionamentos e também seu passado como
traficante de drogas.
Então estava recomeçando do zero? Perguntou a si mesmo.
Hmmm. Considerando a transação de armas que tinha acabado de intermediar para a Irmandade? Talvez o termo fosse mais mudar de ramo do que começar do zero.
— Tem trabalho a ser feito na sua casa? – Markcus anuiu para a roupa de Assail. — Pelos seus trajes e seu modo de falar, você certamente é um macho de posses. Se
houver trabalho para mim lá, eu posso pagar pela minha permanência. De outro modo, não posso aceitar sua oferta. Não vou fazer isto.
Assail deu de ombros.
— Mas isto não passa de serviço inferior.
— Nenhum trabalho é inferior se for bem feito.
Assail recostou-se na cadeira e fitou o desfigurado pedaço de carne na cama hospitalar. Mesmo mal saído do cativeiro – onde ficou preso por mais de trinta anos,
porra – o macho já demonstrava um caráter excepcional.
— Tenho de ir agora. – Assail ouviu-se dizendo. — Mas volto antes do amanhecer, e quando te derem alta, você vem para casa comigo. E é assim que vai ser.
Markcus baixou a cabeça.
— Ficarei eternamente em débito com você.
Não, Assail pensou consigo mesmo. Tenho a sensação de que vai ser o contrário, meu bom macho.
Rhage e Mary subiram de braços dados a escada da mansão. Ao subirem, ela sorria ao se lembrar deles dançando no ginásio vazio. E então, ruborizou ao se lembrar do
que fizeram após pararem de dançar.
Aquela sala de equipamentos jamais viu tamanha ação.
— Para que horas está marcado? – Rhage perguntou.
— Você ainda tem cerca de trinta minutos pra se aprontar. É na cafeteria “I've Bean Waitin” na avenida Hemingway. Acho que Rhym vai de carro, mas você certamente
não precisa.
— Não vou pedir nada enquanto estiver lá. Não quero incomodá-la com bafo de café.
— Rhage. Sério. – Ela o deteve quando chegaram ao segundo andar. — Você vai se sair bem.
Tomando o belo rosto dele entre as mãos, acariciou suas sobrancelhas preocupadas e aquela sombra de barba.
— Seja apenas você mesmo como em qualquer outro tipo de conversa.
— Estarei sendo avaliado para ser o pai de Bitty. Como infernos isto deveria ser como qualquer outra conversa? E Deus, pode me ajudar a escolher uma roupa? Devo
vestir um terno? Sinto como se devesse usar um terno.
Tomando sua mão, ela o levou na direção do quarto deles.
— Que tal só uma calça normal e uma de suas camisas de seda preta? Ela ficará tão distraída pela sua beleza que não vai se lembrar do próprio nome, muito menos do
que tem de perguntar.
Ele ainda resmungava ao entrarem na suíte e a atitude não melhorou quando ela o mandou ir para o banho.
— Não. – Disse quando ele tentou puxá-la junto. — A gente vai acabar se distraindo. Deixa eu separar suas roupas.
— Tem razão. Além disto, cada vez que penso para onde estou indo, sinto vontade de vomitar.
Eles seguiram por caminhos separados no meio do quarto; ele, rumo a um rosto bem barbeado e cabelos recém lavados com xampu, ela para o closet, onde...
O grito que veio do banheiro foi suficiente para fazer o coração dela quase explodir.
— Rhage! Rhage... o que foi?
Ela disparou pelo carpete para dentro do... Só para dar de encontro com as costas dele.
— Mas que porra é essa!? – Ele rosnou.
— O que, o que você...
Mary começou a rir, e suas gargalhadas eram tão fortes que ela teve de se sentar na beirada da banheira.
Alguém ou alguéns, como era mais provável, tinha Pequena Sereiado o banheiro deles. Havia toalhas da Pequena Sereia penduradas nos ganchos e suportes, um tapete
da Pequena Sereia na frente das pias... Copos e escovas de dente, e creme dental infantil da Pequena Sereia nos balcões... Xampu e condicionador da Pequena Sereia
no box do chuveiro... Bonequinhos alinhados na borda da banheira e na moldura da grande janela que dava para os jardins.
Mas o que mais se destacava era, sem dúvida, o trabalho na parede. Cerca de cento e cinquenta adesivos diferentes, pôsteres, figurinhas e recortes de livros para
colorir foram colados, pregados ou grudados em cada centímetro da superfície vertical.
Rhage girou e saiu pisando duro... Mas não teve de ir muito longe. Um amontoado de seus Irmãos se enfileiravam na suíte, os machos se congratulando com os “bate
aqui” e alguns dando tapinhas no traseiro de Rhage.
— Isso vai ter troco. – Ele grunhiu — Para cada um de vocês... Especialmente você Lassiter, seu fodido do caralho.
— Como? – O anjo caído retrucou. — Inundando meu quarto? Vocês já tentaram com a despensa e Fritz consertou da noite para o dia.
— Não, vou esconder cada maldito controle remoto da casa.
O anjo congelou.
— Está bem, agora a porra ficou séria.
— Blam! – Rhage berrou batendo nos quadris. — Que tal, cadela?
Lassiter começou a olhar para os Irmãos em busca de ajuda.
— Isto não tem graça. Essa merda não tem graça nenhuma...
— Ei, Hollywood, posso te pagar para esconder aqueles? – Alguém disse.
— Nós ainda teremos acesso a eles, certo? – Alguém mais perguntou.
— Fodam-se todos vocês, de verdade. – Lassiter murmurou — Estou falando sério. Um dia desses, vocês ainda vão me respeitar...
Mary só se apoiou com os braços contra a parede e sorriu para o bando de doidos: de certa forma, aquilo era exatamente o que Rhage precisava, liberar um pouco a
tensão antes de sair para a cafeteria. Droga, teoricamente todos mereciam liberar um pouco de tensão.
Ultimamente teve horas de trabalho pesado.
Pequena Sereia do cacete, Rhage pensou ao sair do banheiro deles vinte e cinco minutos depois.
Fechando a porta, voltou a enfiar a camisa já usada e colocou o paletó que Mary tinha separado para esconder suas armas. Ao descer o corredor, ajeitou o cabelo,
endireitou os ombros e mexeu no cinto.
Suas mãos suavam. Como infernos iria cumprimentar a assistente social suado deste jeito? Ela ia ter de usar um guardanapo para secar.
Ou algumas cortinas.
Passando pelo escritório de Wrath, viu que as portas estavam abertas e parou se perguntando se aquele seria um bom momento para contar ao irmão e seu Rei o que diabos
eles estavam a ponto de fazer. Mas ao olhar pelo umbral, viu V e Wrath conversando; o Rei no trono, o irmão bem perto dele acocorado no chão. Suas cabeças estavam
muito juntas, as vozes baixas, o ar tão cheio de tensão que bem parecia haver mhis ao redor deles.
Que caralhos estava pegando, Rhage pensou, sentindo-se tentado a entrar.
Mas então olhou para seu Rolex dourado, o que tinha dado de presente a Mary, mas que ela insistiu que ele usasse para ter boa sorte. Não dava tempo de perguntar,
e a propósito, mal teria tempo de chegar para a coisa de Bitty também.
Mais tarde, decidiu.
Descendo à escada, cruzou o mosaico no chão e se apressou para a saída.
— Boa sorte.
Rhage parou de chofre e olhou para a direita. Lassiter estava na sala de jogos passando giz azul na ponta de um taco.
— Do que está falando? – Rhage estranhou.
Quando o anjo deu de ombros, Rhage balançou a cabeça.
— Você está louco...
— Quando ela perguntar como foi que o pai morreu, não minta. Ela já sabe que foi você e seus irmãos que o mataram. Está no prontuário. Ela odeia violência, mas sabe
que as duas não teriam sobrevivido de outra forma. Ela quer que vocês fiquem com a garota. Você e Mary.
Rhage sentiu o sangue abandonar sua cabeça e ir para a sola de seus sapatos, e desejou ter algo no que se apoiar.
— Como... Mary falou com você sobre isto? – Mesmo que fosse difícil acreditar nisto. — Marissa?
— E a Besta. Ela a deixa nervosa. Não tente minimizar... Você vai aprofundar demais o assunto e isto vai deixá-la desconfortável. Mary vai cuidar disto. Mary vai
dizer tudo o que ela precisa saber sobre este assunto.
— Como sabe de tudo isto?
Lassiter baixou o quadradinho de giz e aqueles olhos de cores estranhas mudaram.
— Sou um anjo, lembra? E vai dar certo. Basta aguentar firme... Vocês precisam manter a fé. Os dois, Mary e você. Mas vai acontecer.
— Sério? – Viu-se perguntando.
— Não é mentira. Posso zoar seu banheiro, mas jamais brincaria com algo assim.
Os pés de Rhage se moveram contra sua vontade, cruzando o caminho até a mesa de bilhar... E a próxima coisa que viu, foi que estava dando um abraço de urso no filho
da puta de cabelo bicolor.
— Vocês já conseguiram. – Lassiter disse quando ambos deram tapinhas um nas costas do outro. — Mas lembre-se. Precisam ter fé.
Antes das coisas ficarem sentimentais demais, Rhage recuou e foi para a porta da frente de novo. Ao sair pelo vestíbulo, respirou fundo o ar gelado... E se foi,
viajando pela noite em um jorro de moléculas em direção a um estabelecimento muito humano.
Ao chegar ao seu destino, teve o cuidado de retomar forma nos fundos do pequeno estacionamento, e sim, voltou a ajeitar os cabelos e a camisa antes de entrar pela
porta da frente da cafeteria “I've Bean Waitin'”.
Abrindo-a, foi atingido no nariz por uma porção de aromas de café e teve uma hesitação momentânea sobre aquela decisão de não pedir nada. O que ele faria com as
mãos enquanto estivesse sentado ali?
Praguejando contra o fato de não ter o hábito de fumar ou tricotar, olhou para os humanos, homens e mulheres, muitos dos quais ergueram o olhar para ele e ficaram
encarando.... E então localizou o único outro vampiro no lugar... Não, espere, havia um pretrans na multidão, a quem não reconheceu.
Mas sabia quem era Rhym. Já tinha visto inúmeras fotografias do trabalho de Mary.
Ao respirar fundo novamente, não foi bem a experiência catártica que obteve ao sair pela porta da frente da mansão, mas também envolvia oxigênio. Certo?
Deus, o cheiro de café estava sufocando-o. Ou talvez fossem suas glândulas de adrenais.
Rhage tentou vencer o nervosismo ao se dirigir às mesas ao fundo.
Ao parar na frente de Rhym, quis desmaiar. Em vez disto, esfregou a palma da mão na parte de trás das calças o mais discretamente que conseguiu e a ofereceu em cumprimento.
— Oi, eu sou Rhage.
A fêmea tinha os olhos um pouco arregalados ao olhar para ele... Mas aquilo era comum, e não, não estava sendo arrogante. As pessoas tendiam mesmo a ficar meio abobalhadas
quando o viam pela primeira vez, e então sim, elas geralmente acabavam encarando-o muito, como se tentassem descobrir se ele era real.
— Sinto muito. – Ela gaguejou — Eu, ah... Sou Rhym.
Quando se cumprimentaram, ele apontou para a cadeira vazia.
— Posso me sentar?
— Oh, por favor. Sinto muito. Espere, eu já disse isso. Santo Deus!
Para crédito dela, ela não o devorou com os olhos desnecessariamente, nem ficou dando em cima dele. E o fato dela também estar nervosa o fez sentir-se um pouco melhor.
— Quer pedir alguma coisa? – Ela perguntou.
— Não. Estou bem. Gostaria de mais um... O que é isto?
— É um latte. E não, obrigada, este é suficiente, – Houve uma pausa e ela abriu um caderninho. — Então... Eu, hum, olha. Tenho de ser honesta. Nunca estive diante
de um membro da Irmandade antes.
Ele sorriu, tomando cuidado para ocultar os dentes pontudos por estarem dentre tantos humanos.
— Eu sou como todo mundo.
— Nem um pouco. – Ela murmurou baixinho. — Então, eu... Ah... Tenho algumas perguntas para você, tudo bem? Imagino que Mary tenha te falado a respeito disto.
Rhage cruzou os braços e se apoiou na mesa.
— Sim, ela falou. E olha, se eu puder só...
Ele baixou o olhar para a madeira debaixo de seus cotovelos e tentou imaginar o que tentava dizer. Enquanto as conversas ao seu redor e o entra e sai pela porta
da frente e o ruído das máquinas de café soavam, começou a se preocupar de ter ficado tempo demais em silêncio.
Rhage olhou para a assistente social.
— O mais importante é que estou preparado para dar minha vida por aquela garotinha. Estou preparado para acordar ao meio dia por ela, caso tenha um pesadelo. Preparado
para alimentá-la e vesti-la, e ensiná-la a dirigir. Também estou preparado para abraçá-la bem forte quando tiver sua primeira decepção amorosa, e apresentá-la a
seu companheiro, quando ela encontrar alguém de quem goste. Quero ajudá-la a ter uma boa educação e seguir o sonho que tiver, e estar lá para ajudá-la a se levantar
quando cair. Sei que não vai ser tudo cor de rosa e haverá conflitos, e talvez até raiva... Mas nada disso irá mudar meu compromisso. Soube que minha Mary era a
pessoa com quem eu passaria o resto de minhas noites assim que a vi, e soube com a mesma clareza que Bitty é minha filha. Se você me der a chance de ser o pai dela.
Ele se recostou e esticou os braços.
— Agora, pode perguntar o que quiser.
Rhym sorriu um pouco. E então muito.
— Bem, vamos começar pelo começo, tudo bem?
Rhage sorriu de volta. O que, sim, era o que acontecia quando você tinha a sensação clara de que tinha dado uma dentro.
— Sim, vamos fazer isto. – Disse ele com uma sensação profunda de alívio.
Capítulo SESSENTA E SEIS
Jo Early não conseguia desviar o olhar.
Mas também, ela não era a única freguesa da cafeteria cujo latte estava esfriando enquanto tentavam não secar o cara. Ele tinha chegado sozinho sugando quase todo,
se não todo, o oxigênio no lugar, e então seguiu até uma das mesa dos fundos para se sentar com uma mulher de aparência agradável, mas nada excepcional.
Considerando tudo, ele devia estar com o tipo Miss America: ele era grande, incrivelmente alto, mas também corpulento, como se fosse um jogador de futebol, não do
tipo basquete. O cabelo era louro, mas parecia ser natural, não havia raízes aparentes, nem a linha demarcando um bom trabalho profissional crescendo, só sedoso,
saudável e... Louro.
Mas os olhos... Os olhos eram o destaque. Destaque total. Mesmo do outro lado da cafeteria lotada, dava para vê-los brilharem com uma cor azul digna do oceano das
Bahamas, a cor tão iridescente, tão clara, tão ressonantemente atraente que era de se perguntar se não seriam lentes de contato, por que como infernos podia ser
possível encontrá-la na natureza?
E, a propósito, as roupas também não eram nada más. Não. Ele vestia roupa preta, da camisa de seda e calças de alfaiataria perfeitamente cortadas, a um paletó que
tinha lapelas como um terno, mas o caimento de um casaco.
Os sapatos também eram espetaculares.
Era como se um artista de cinema tivesse aparecido no “I've Bean Waitin'”, e por um momento Jo se perguntou se talvez ela já não o tinha visto na telona...?
Quando seu celular tocou, ficou grata pela distração. Caso este hiperfoco dela se mantivesse, veria aquele belo rosto cada vez que fechasse as pálpebras. Não que
fosse ser um grande sacrifício.
Quando viu quem era revirou os olhos, mas aceitou a chamada, de qualquer forma.
— Dougie, e aí? Não. Não, não pode. O que... Não! Olha, eu já disse, estou sem emprego, não vou conseguir te emprestar mais dinheiro por um tempo... Bem, então peça
a um deles. Não. Não. Está bem... Tudo bem, mas só os Fig Newtons. Se eu voltar e você tiver comido meus Milanos, vamos ter uma conversinha. E dá para tirar a bunda
do sofá e arranjar um emprego, pelo amor de Deus?
Ao desligar, uma voz seca disse:
— Concordo com você sobre os biscoitos.
Recuando, ela levou a mão ao coração.
— Deus, Bill, que susto!
— Que história é essa de estar sem emprego? – Ele disse ao se sentar com seu latte e começar a tirar aquele cachecol do jeito que sempre fazia. — Você se demitiu?
— Não é nada. – Bem, além do fato do chefe dela ser um manipulador e ela se permitir ser manipulada por ele. — De verdade.
Oh, mas a propósito, Bryant acha que estamos tendo um caso, ela adicionou mentalmente.
— Olha, – Bill murmurou ao se inclinar e empurrar aqueles óculos para cima em seu nariz. — Antes de tudo, desculpe pelo atraso. E depois, tenho de perguntar. Com
pais como os seus, não dá pra acreditar... Digo, que dinheiro seja um problema...
Ela abriu a boca para amenizar as coisas, mas então decidiu: Foda-se.
— Depois que saí de casa e larguei todo aquele... Estilo de vida... Eles me deserdaram.
— Deve ter sido difícil fazer isto... Abandonar a família, digo. Bem, e o dinheiro.
Jo girou seu cappuccino.
— Eu nunca me encaixei direito na família deles. Papai... Desculpe, meu pai, como ele insistia que eu o chamasse... Providenciou minha adoção por que minha mãe passou
por uma fase onde queria um filho. Acho que ela pensava que bebês fossem como bolsas ou algo assim. Depois que me tiveram, fui criada por babás, algumas boas, outras
ruins. Então fui enviada para um internato... E quando saí, meio que tive de fingir que era quem eles queriam que eu fosse quando estava perto deles. Fora daquela
grande casa, eu podia ser eu mesma. Na presença dos dois, tinha de ser uma cópia de mim mesma do jeito que eles construíram versões deles mesmos. – Ela meneou a
mão no ar. — É bem aquela história típica da pobre-garota-rica.
— Típica e entediante, menos quando acontece com a gente.
— Seja como for, disse a eles que não ia voltar e eles disseram tudo bem, e foi isso. Os cheques mensais desapareceram... E, honestamente, tudo bem. Sou inteligente,
não tenho medo de trabalho e sou graduada. Posso conseguir sozinha, do jeito que muita gente conseguiu antes de mim.
Bill tirou o casaco.
— Posso fazer mais uma pergunta pessoal?
— Claro. – Quando ela provou seu cappuccino, fez uma careta. Secar aquele louro tinha esfriado muito da coisa. — Qualquer coisa.
— Você disse que foi adotada... Já pensou em procurar sua família verdadeira?
Ela negou com a cabeça.
— Os registros de toda a transação são mantidos em sigilo de justiça... Ou pelo menos foi o que me disseram. Acho que meu pai pagou para que as coisas ficassem assim.
E faz sentido... Ouvi dizer que minha mãe tentou fingir que eu era mesmo dela no começo, dizendo que tinha escondido a gravidez sob roupas folgadas e então tinha
passado o último mês em Naples ou algum lugar assim. Mas quando meus cabelos foram ficando cada vez mais vermelhos, a mentira acabou se tornando difícil de sustentar...
Principalmente por que ela não gostava da ideia das pessoas acharem que tinha traído meu pai.
— Então nunca soube nada deles?
— Não, e tudo bem. A esta altura, ei, minha educação superior está paga. Se esta for a pior coisa que aqueles dois farão por mim pelo resto de minha vida, saí no
lucro.
— Bem... – Bill pigarreou. — Então será que... Quer se candidatar a uma vaga no jornal? Sei que eles estão com algumas vagas abertas e eu podia te indicar. Você
já demonstrou que manda bem em investigação.
Por um momento, Jo só sentou-se ali, estupefata, piscando. Então estremeceu.
— Sério? Oh... Meu Deus, claro. Digo, obrigada. Tenho um currículo que posso te enviar por e-mail.
— Considere feito. Tipo, sei que eles estão em busca de um editor de conteúdo online no momento. O pagamento deve ser mais ou menos o mesmo que recebia como recepcionista,
mas pelo menos é um começo.
E melhor do que se preocupar com a vida amorosa e as roupas para lavar de Bryant, ela pensou consigo mesma.
— Obrigada. De verdade. – Mostrou a ele o guardanapo no qual vinha escrevendo. – E, a propósito, fiz uma lista dos lugares que visitei. Tem alguns que ainda quero
verificar... Quero ver aquele restaurante onde Julio Martinez disse que foi emboscado por um vampiro. E quero ir ao beco onde... Você viu aquele vídeo do tiroteio
no beco? Onde tinha um cara no telhado que mata alguém enquanto este outro cara corre de uma rajada de balas? Não há presas neste vídeo, mas foi publicado no YouTube
pelo mesmo cara que postou uma porção de gravações do massacre naquela fazenda.
Bill pegou o celular como se estivesse pronto para começar a navegar na net.
— Não, ainda não vi este.
— Aqui, deixa eu mandar pra você.
#NãoPrecisaPedirDuasVezes
Assail aguardou na periferia da grandiosa mansão do hellren de Naasha, rastreando os movimentos dos empregados e de sua senhora pelas janelas no primeiro e segundo
andares. Uma vantagem daquela fêmea ser uma exibicionista nata era que as cortinas da casa estavam sempre abertas, e assim era possível ver cada cômodo da casa do
lado de fora.
Naquele momento ela estava em seu banheiro, sentada em uma cadeira de maquiagem na frente de uma janela que dava para o oeste. Sua criada estava cacheando seus cabelos
enquanto ela olhava para algo no seu colo. Talvez fosse um e-mail em um iPad. Ou celular.
Pegando seu próprio celular, ele enviou uma mensagem de texto para ela... E observou a cabeça dela se erguer e olhar para o outro lado. A criada baixou o baby liss
que estava a ponto de usar e sumiu de vista. E então voltou, colocando um aparelho na mão da senhora.
O celular de Assail acusou o recebimento de uma mensagem logo em seguida. Ao ler o que ela tinha enviado, olhou para os primos.
— Vocês sabem o que fazer.
— Sim. – Disse Ehric. — O Irmão já está aqui?
— Bem atrás de você.
Os três se viraram para ver Zsadist exatamente onde ele disse que chegaria. Como todos eles, o Irmão trazia uma grande mochila e um monte de armas.
— Podemos ir, cavalheiros? – Assail murmurou.
A um gesto seu, seus primos desmaterializaram para os fundos da mansão, para o ponto de infiltração previamente estabelecido.
Assail colocou a mochila na base de uma árvore onde tinha se escondido e então apareceu à vista, endireitando o casaco e puxando as mangas. Ao chegar ao passeio
que levava à entrada principal, seus sapatos fizeram um som cortante. Zsadist, que seguia atrás dele, não emitiu som algum ao passar pela grama, mantendo-se fora
do alcance da luz lançada pelos baixos postes de luz na beira do pavimento.
Ao chegar à porta, Assail tentou a maçaneta. Não teve sorte desta vez; estava trancada.
Usou a campainha e tinha um sorriso no rosto quando o mordomo atendeu à porta.
— Boa noite, receio estar uns vinte minutos adiantado. Mas não quero incomodar sua senhora. Posso aguardar na sala?
Enquanto o doggen fazia uma reverência, Assail checou para ter certeza que não havia mais ninguém no saguão. E então quando o mordomo se endireitou, Assail sacou
sua quarenta milímetros.
De forma que o empregado ficou cara a cara com o cano.
— Não se mexa. – Assail sussurrou. — E não faça barulho a menos que seja para responder minhas perguntas. Quer viver? – Um aceno. — Quantos mais da equipe estão
na casa?
— S-s-s-sete.
— Throe está na residência? – Um aceno. — Onde ele está?
— E-e-ele está comendo lá em cima, no seu quarto.
Zsadist entrou na casa, e o doggen pareceu a ponto de desmaiar ao ver o rosto com cicatrizes e aqueles olhos negros.
— Não se preocupe com ele. – Assail disse suavemente. — Concentre-se em mim.
— S-s-s-s-sinto m-m-m-muito.
— Ouça e ouça com cuidado. Você tem sete minutos para tirar os empregados da casa. Isto dá um minuto por pessoa. Não perca nem um segundo. Não explique por que eles
têm que sair. Diga para te encontrarem na base da calçada. Não alerte sua senhora. Se denunciar minha presença, vou te considerar cúmplice dela quanto ao escravo
de sangue a quem resgatei a noite passada e eu vou te matar, esteja onde estiver. Fui claro? – Aceno. — Repita o que acabei de dizer.
— V-v-v-você... Eu tenho s-s-s-sete minutos para tirar a equipe daqui. Ir para a calçada.
— Base. Eu disse base da calçada. Vou estar te vigiando por que há um poste de luz lá. E sobre sua senhora?
Um olhar duro cruzou o rosto do mordomo, um que muito provavelmente lhe salvou a vida.
— Não devo dizer nenhuma palavra a ela. Ela e seu amante mataram o meu mestre.
— Qual o seu nome?
— Eu sou Tharem.
— Tharem, quero que vá para a Casa de Audiências do Rei depois de tudo isto. Conte a eles tudo... O que havia no porão, o que ela fez a ele, o que estou fazendo
aqui. Entendeu?
— Eu tirei fotografias. – O mordomo sussurrou. — Em meu celular. Não sabia para quem entregá-las.
— Bom. Mostre a eles. Mas vá agora. Sete minutos.
O doggen fez uma reverência acentuada.
— Sim, meu Senhor. Agora mesmo.
O macho uniformizado saiu correndo,na direção da cozinha, e antes de Assail estar a meio caminho da escada principal, três doggen vestidos em roupas brancas de cozinha
passaram correndo pela sala de jantar. Um tinha farinha nas mãos, e outro uma panela com algo dentro. Os olhos estavam arregalados e temerosos, sugerindo que o mordomo
não tinha sido completamente fiel ao acordo deles.
Ele claramente tinha revelado que havia forças letais agindo na casa.
Não importa. A motivação tinha funcionado, e era óbvio que não havia nada com o que se preocupar em termos de lealdade a Naasha. Os três cozinheiros deram um olhar
a ele e sua arma... E só correram mais rápido ao invés de causar tumulto.
E enquanto isso, o doce cheiro de gás já se espalhava pelo ar. Em breve aquilo não seria nem metade.
Assail subiu as escadas ao invés de correr. E enquanto subia duas criadas desceram correndo, seus cabelos presos soltando de grampos, as saias cinza pálido de seus
uniformes esvoaçando. Elas também deram um único olhar para ele e baixaram a cabeça em resposta, aumentando ainda mais a velocidade, sem interferir.
No segundo andar, virou à esquerda e parou na primeira porta com a qual se deparou, bem quando o mordomo surgiu à vista na outra extremidade do corredor e começou
a correr.
— Eu cuido da criada dela. – Assail disse. Quando o macho empalideceu, ele revirou os olhos. — Não deste jeito. Ela vai encontrar vocês lá embaixo.
O mordomo anuiu e se afastou.
Com a mão na maçaneta, Assail virou o nó de bronze ornado e empurrou. Os painéis cederam sem nenhum ruído, e instantaneamente sentiu o cheiro do perfume e xampu
de Naasha. Ao entrar e voltar a fechar a porta atrás de si, teve uma breve impressão de uma exagerada decoração com muito tafetá e seda rosada e cor de creme.
O tapete era espesso e os sapatos não emitiram ruído algum ao cruzar a distância até a arcada. O banheiro de mármore por trás dela era maior que a sala de estar
de muitas pessoas.
E de fato, a posição não poderia ser mais perfeita. Naasha estava de costas para ele naquela cadeira profissional de cabeleireiro, suas madeixas longas caindo pelas
costas, uma mesa com pincéis e equipamentos para fazer cachos estavam a seu lado. Havia espelho para todos os lados, mas todos estavam virados para ela, sem refletir
a presença dele.
— … Eu te disse que não importa se meu cabelo não pega. – Naasha brigou — Faça de novo! Ele vai chegar logo... Meu celular está tocando, pegue para mim.
Quando a criada recuou de seus afazeres, ela virou na direção de Assail... E congelou. Apontando a arma para a cabeça dela, ele levou o dedo aos lábios e gesticulou
Shhhhh.
A criada empalideceu.
— Pega meu celular! O que está fazendo?
Assail fez um gesto com o cabeça em direção do iPhone que vibrava sobre o balcão de mármore, bem ao alcance de Naasha.
A criada foi pegar a coisa, derrubou e levou uma bronca ao se abaixar para pegar o celular do chão.
— Até que enfim... Alô? Oh, alô querido, que bom que ligou. Estou devastada, simplesmente devastada...
Assail dobrou o dedo para a criada, chamando-a para si. Mas a pobrezinha estava congelada de pânico... Até Assail gesticular você e salva.
A fêmea aproximou-se lentamente. Enquanto Naasha continuava a encenar seu papel de viúva sofredora, Assail sussurrou.
— Saia pela porta da frente. Continue a correr até chegar aos outros no final calçada. Não volte para esta casa por motivo nenhum. Fui claro?
A criada anuiu e fez uma reverência curta... E então correu como o vento para fora do quarto.
Assail voltou à sua posição e esperou pacientemente enquanto Naasha continuava a falar, ainda varrendo a tela de seu iPad. Avultando-se por trás dela, sentia-se
um Ceifador que tinha fodido com ela... E estava a ponto de fodê-la de novo.
Quando finalmente desligou, ela disse.
— Onde você foi? Onde diabos você...
Assail agarrou um punhado do cabelo de Naasha e puxou com força. Quando ela soltou o telefone e o tablet caiu no chão, ela começou a lutar a sério... Até ele encostar
o cano da arma em sua boca e afastar-se para o lado.
Olhos aterrorizados encontraram os dele.
— Isto é por Markcus. – Ele rosnou.
— E então, como ele se saiu? – Mary perguntou quando Rhym chegou ao seu escritório no Lugar Seguro.
— Seu hellren é uma figura... E se saiu maravilhosamente bem. – A fêmea se sentou com um sorriso, arrumando o casaco sobre as pernas. — Se saiu mesmo. Ele tem um
coração enorme.
— O maior. – Houve uma pausa e Mary se inclinou sobre seus papéis. — E pode dizer... Não vou ficar estranha sobre isto. Eu tenho de viver com ele, lembra?
— Não sei do que você está... – Rhym ergueu as mãos. — Está bem, ok. Digo, ele é só ridiculamente atraente. Nunca vi uma coisa dessas.
Mary teve de rir.
— Eu sei, eu sei. O lado bom é que ele não liga particularmente para isto. Ele sabe, claro, mas Deus, se levasse essa coisa a sério, a cabeça dele seria tão grande
que não passaria pelas portas.
Rhym concordou.
— Tem razão. Então, está pronta?
— Sempre. – Mary se levantou e fechou a porta. — Qualquer coisa que queira saber.
— Sinto muito, eu devia ter feito isto.
Mary abanou a mão no ar.
— Não se preocupe.
De volta à sua mesa, ela se sentou de novo e reconheceu, pelo menos pra si mesma, que estava nervosa.
Rhym ajeitou aquele casaco. E então olhou para a urna perto do abajur.
— Aquela é...
— Sim. – Mary respirou fundo. — É Annalye. No início Bitty dizia que queria guardar as cinzas para quando o tio viesse buscá-la, mas agora...
— A respeito do tio. Tiveram notícias dele? Qualquer uma?
— Nada. Rhage até pediu para um dos Irmãos investigar. Não encontramos absolutamente nada.
Rhym deu de ombros.
— Pra mim, o problema principal é a duração do período de notificação. Marissa e eu concordamos que é melhor partir para uma situação de adoção temporária enquanto
Bitty se adapta, e pra dar tempo de qualquer parente que ela possa ter tenha oportunidade de reclamá-la. Mas não pode durar para sempre. Quanto tempo seria o ideal?
Um mês? Seis meses? Um ano? E como vamos fazer as notificações? Qual seria a forma mais justa?
O coração de Mary pulou do trampolim de suas costelas, deu uma cambalhota e caiu de barriga em seu estômago com força, espalhando líquido por todo seu interior.
Oh Deus, um ano. De incertezas. De se perguntar a cada noite se iria perdê-la.
Mesmo um mês naquela situação seria uma tortura.
— O que vocês decidirem ser o melhor. – Disse ela ao tentar manter sua hesitação só pra si mesma. — Mas tenho de confessar, não sou a melhor pessoa para avaliar
isto. Por mais que eu tente ser objetiva, a realidade é que... Só quero ela para nós.
— As Antigas Leis não são claras neste ponto, embora eu tenha verificado o que os humanos fazem. Quando se trata de encerramento de direitos paternos, é claro que
há um padrão muito alto a ser atingido. Mas para outros relacionamentos e parentes próximos? Depende do estado, das leis locais e sua interpretação. Desta forma,
vou deixar para o Rei decidir... É exatamente o tipo de coisa que precisamos que ele decida. Além disso, pela posição de Rhage, os dois teriam de obter aprovação
dele de qualquer forma.
— Isto parece justo. E eu realmente quero fazer tudo certo. É muito importante não deixar qualquer brecha.
— Que bom que concorda... E não me surpreende. – Rhym recostou-se em sua cadeira. — Então me fale sobre seu relacionamento com Bitty. Tive uns relances dele, mas
gostaria de uma visão pelo seu lado, não pelo lado profissional, mas como pessoa.
Mary pegou uma caneta e brincou com ela entre os dedos, do jeito que costumava fazer na faculdade.
— Eu a conheço desde que ela chegou no abrigo. Fui a principal encarregada do caso dela desde o começo, como sabe, e honestamente, ela era tão reservada e defensiva
que cheguei a achar que nunca ia conseguir me aproximar dela. Sei que toda esta coisa de adoção parece ter surgido com a morte da mãe dela, mas a verdade é que Bitty
esteve na minha cabeça e no meu coração nos últimos dois anos. Eu me recusava a admitir a oportunidade. Eu só... Como sabe, não posso ter filhos, e quando esta é
sua realidade, você não quer abrir esta porta trancada. Tudo o que há do outro lado são chamas que irão queimar até destruir sua casa.
— Está preparada para deixar a garota ir se um parente aparecer? Acha que vai conseguir fazer isto?
Desta vez não houve jeito de evitar demonstrar o esgar em seu rosto. Mas também, quando alguém aproximava o pé descalço da boca de um jacaré, a tendência era se
contrair.
— O que for melhor para Bitty. – Ela meneou a cabeça. — E eu, honestamente, estou sendo sincera. Se tivermos de deixá-la ir, nós deixaremos.
— Bem, a verdade é, eu também procurei por aquele tio. Procurei por qualquer pessoa que tivesse ligação com ela. Ninguém sabe de nada. Perdemos tantas pessoas nos
ataques, é possível que ele tenha morrido naquela época junto com o resto da família. Ou talvez de outra maneira.
— Posso apenas dizer... Não sou uma grande fã da morte.
Por um momento, lembrou-se de dançar com Rhage no ginásio. Estavam tão próximos um do outro com a concordância de que era um luxo não terem de viver preocupados
com aquela separação futura, e subitamente vem e paira sobre eles como fazia com todos os casais.
— Nem eu. – Disse Rhym. E então a fêmea pigarreou. — E falando nisso, podemos falar sobre sua situação?
— Quer dizer com a Virgem Escriba?
— Sim, por favor. – Houve uma pausa desconfortável. — Eu realmente não entendo a… Parte da quase imortalidade, acho que dá pra chamar assim... Não que seja impossível.
Com a Virgem Escriba, qualquer coisa pode acontecer. E então preciso te perguntar sobre a Besta. Tenho que confessar, esta é a única bandeira vermelha para mim nisto
tudo.
Mary riu.
— Aquela coisa não passa de um grande ursinho de pelúcia roxo. Juro, ela não machucaria uma mosca... Ou pelo menos não uma mosca fêmea, e certamente nunca a mim.
Mas estou me adiantando. Minha história começa há alguns anos atrás quando fui diagnosticada com...
Capítulo SESSENTA E SETE
Seu erro foi não usar um silenciador na arma.
Quando Assail partiu da suíte de Naasha para a de Throe, e então arrombou a porta trancada do macho, foi recebido por um quarto vazio. O traidor obviamente tinha
ouvido o disparo de sua arma.
— Maldição. – Assail murmurou ao girar e verificar o banheiro. E o closet.
Nada estava particularmente fora do lugar, e a única indicação da fuga apressada era a porta aberta do cofre na parede. Aquele quadro que estivera levemente torto
anteriormente, agora estava pousado sobre uma cadeira, a barriga de metal do cofre exposta, a luz dentro mostrando que todo o conteúdo tinha sido retirado.
Mas aquilo importava? Naasha era o verdadeiro alvo.
Assail teria tempo de sobra para ir atrás de Throe em outra ocasião.
Assail voltou ao quarto de Naasha e o atravessou, indo para a janela por onde a tinha visto lá de baixo. Mentalmente apagou as luzes do banheiro, e espiou pelo vidro
enquanto o doce cheiro químico de gasolina chegava agora ao segundo andar.
Lá embaixo, no fim da entrada de veículos, como tinha ordenado, havia um grupo de oito pessoas paradas ao lado de um poste de luz, a iluminação detalhava que sete
serviçais e o mordomo se organizaram em uma fila e olhavam para a mansão.
— Bom macho. – Assail murmurou ao se virar.
Estava a ponto de partir quando algo capturou seu olhar... Um brilho sobre um dos balcões. Voltando a acender as luzes, passou por cima do corpo de Naasha e pegou
o colar de diamantes. A coisa era modesta pelos padrões de Naasha, não passava de um cordão com pedras de dois e três quilates.
Debaixo de onde estava havia uma série de gavetas estreitas, cada uma com um par de fechaduras de bronze, trancadas.
Talvez por saudade de sua ladra ou talvez como um foda-se final para Naasha, apontou a arma e disparou algumas vezes nas malditas coisas, rachando a madeira, despedaçando
as fechaduras, arruinando os impecáveis gabinetes.
Quando ficou sem munição, a gaveta de cima estava dependurada como a língua de um desenho animado. Dentro, em uma bagunça, havia todo tipo de coisa brilhante que
ele pegou aos punhados, enfiando os anéis, brincos, colares e pulseiras nos bolsos.
Seu terno estava quase explodindo quando Zsadist entrou.
O Irmão já tinha preparado seu lança-chamas, do tipo que cuspia chama azul, a arma naquelas mãos tão hábeis era como a cabeça de um dragão pronto a rugir.
— Hora de ir. – O guerreiro disse.
Era de se admirar a falta de interesse no roubo. Mas também, Assail tinha acabado de cometer um homicídio bem ali, naquela cadeira giratória, e o Irmão não parecia
nem um pouco preocupado com aquilo também.
Com um último olhar para a forma caída e imóvel de Naasha, Assail saiu junto com o Irmão. No corredor, o cheiro era forte o bastante para fazer os olhos lacrimejarem,
o que se intensificava cada vez mais conforme desciam.
Ehric e Evale estavam reunidos no saguão, e prestativos como sempre, tinham trazido a mochila que ele tinha deixado lá fora.
Depois de pendurá-la e acender o piloto, por assim dizer, ele bombeou vários jatos de chamas alaranjadas.
— Vamos? – Disse ele.
Separando-se, foram para os quatro cantos da grandiosa mansão. A gasolina, que os primos derramaram em todo tipo de tecido e madeira era provavelmente exagerada,
já que os beijos dos lança-chamas seriam capazes de carbonizar paredes e madeira, carvalho e mogno com pouco mais de um jato.
Quando o incêndio começou com eficiência, Assail se moveu pela sala de jantar incendiando antiguidades e o papel de parede, os tapetes, a mesa de mais de sete metros
e dois séculos de idade. Ele fez uma pausa momentânea antes de ir à cozinha e lamentou pelo candelabro Waterford que estava no meio da crescente fogueira, desejou
tê-lo removido antes.
Mas às vezes sacrifícios eram necessários.
Ele não se incomodou com a despensa. Estaria consumida logo. Ao invés disso, incendiou a cozinha profissional, começando com as cortinas dos dois lados da fileira
de janelas e continuando por todos os armários de madeira que seus primos cobriram de combustível com tanta competência.
O grande whoosh! emitido quando as coisas pegavam fogo era uma viagem cada vez que acontecia e ele sentiu-se endurecer, alguma parte primal dele expressava domínio
e exigia submissão do ambiente estático de objetos inanimados. Na verdade, com cada explosão de poder, era como se estivesse reclamando parte de si mesmo perdida
ao longo do caminho.
Como se tivesse sido ele a viver acorrentado naquela cela lá embaixo.
Logo, o calor crescente se tornou insuportável, seu cabelo encaracolou nas pontas, a pele do rosto se contraiu a ponto de doer.
Quando deu a volta para voltar para o saguão, percebeu que estava cercado pelo fogo que tinha criado, preso em um inferno. Fumaça, ondulante e tóxica, aguilhoava
seus olhos e sufocava seu nariz, e além disto, paredes ondulantes de fogo bloqueava cada saída.
Talvez este fosse o fim, pensou ao baixar o cano de seu lança-chamas.
Ao seu redor, grandes ondas de chamas alaranjadas e vermelhas subiam e desciam como bocas devorando a mansão e seu conteúdo, e ficou momentaneamente maravilhado
pela beleza mortal das chamas.
Acalmando-se, ele pegou o celular.
Buscou um número, apertou “ligar” e girou em um círculo lento enquanto chamava, e chamava e chamava...
— Alô? – Ouviu a voz dela.
Ele fechou os olhos. Oh, aquela voz. A linda voz de Marisol.
— Alô. – Ela repetiu.
Houve um silêncio na linha, embora não na casa. Não, as coisas crepitavam e estalavam, gemiam e praguejavam como se os blocos e o concreto possuíssem ossos que se
quebravam e terminações nervosas que percebessem dor.
— Assail? – Disse ela com urgência. — Assail... É você?
— Eu amo você. – Ele declarou.
— Assail! O que é...
Ele cortou a ligação. Desligou o celular. E então tirou a mochila e colocou a seus pés.
Conforme a temperatura aumentava e o caos crescia ainda mais, ele endireitou o paletó e puxou as mangas.
Afinal, podia ser um degenerado, egoísta, sociopata traficante de drogas, mas era preciso ter padrões e estar com boa aparência ao morrer.
Dhund ou Fade, ele se perguntou.
Provavelmente o Dhund...
Do tsunami de chamas, uma figura escura apareceu direto do olho do furacão do inferno onde Assail estava.
Era o Irmão Zsadist. E contrário à morte iminente e destruição que ocorria às coisas ao redor, o cavalheiro parecia mais aborrecido do que frenético ao parar de
supetão à sua frente.
— Não vai morrer aqui. – O macho berrou acima de todo o alvoroço.
— Seria um final adequado para mim.
Aqueles olhos escuros e desalmados reviraram.
— Oh, por favor.
— Embora este incêndio seja apropriado, – Assail gritou. — Seu Rei terá de me indiciar por assassinato, já que não houve o devido processo pela transgressão de manter
um escravo de sangue por parte daquela fêmea. Então permita que eu morra aqui do jeito que eu quero, satisfeito de ter...
— Não no meu turno, cuzão.
O golpe veio da direita e atingiu Assail no maxilar com tanta violência que cortou, não somente seu discurso poético, como diria para si mesmo, mas seu vínculo com
a consciência.
A última coisa que ouviu ao apagar foi:
— ... Te carregar pra fora daqui como o mala que você é, seu maldito imbecil.
Pelo amor de Deus, Assail pensou quando tudo escureceu e silenciou. Os princípios dos outros eram tão inconvenientes.
Especialmente quando te impediam de se matar.
Capítulo SESSENTA E OITO
Ao voltar para casa depois de sua entrevista no “I've Bean”, Rhage sentia-se o cara.
Rhym tinha até dado um abraço nele no final da entrevista. E aquilo devia significar alguma coisa, não é?
A primeira coisa que queria fazer ao se dirigir à escada da mansão era ligar para sua Mary, mas ela ainda estava em sua entrevista e ele teria de esperar. Não importava,
podia trocar de roupa e talvez ir ao centro da cidade, caçar um pouco e queimar um pouco de adrenalina.
Seu telefone soou um bing! Assim que chegou ao segundo andar, viu que o Rei estava sentado no trono à sua mesa... Ao invés de estar na Casa de Audiências, onde devia
estar.
Ignorando a mensagem de texto, Rhage aproximou-se e bateu na porta aberta.
— Meu Senhor?
A cabeça de Wrath se ergueu como se surpreso pela interrupção... Que foi a primeira indicação de que algo tinha acontecido. Aquele irmão podia ter ficado cego, mas
tinha os instintos do predador mais letal.
— Está adiantado. – Murmurou Wrath. — A reunião só começa daqui a vinte minutos.
— Como é?
— Não recebeu a mensagem do V?
Rhage entrou na sala azul-bebê cheia de babados com seus móveis franceses e seu ar de frieza esnobe. O escritório, sala de reuniões ou seja lá o que for, era o ambiente
mais ridículo para se planejar luta e estratégias de guerra, mas agora, como muita coisa na mansão de Darius, era uma tradição que ninguém queria mudar.
Tateando o peito onde seu celular tinha vibrado, ele murmurou:
— Acho que acabou de chegar. O que houve?
Wrath recostou-se na grandiosa cadeira ornamentada que fora de seu pai, e no chão ao seu lado, George ergueu a cabeça loura de maneira inquisitiva, como se o cão
quisesse saber se iriam para algum lugar ou se ficariam por ali.
O Rei estendeu a mão e acariciou o cão.
— Vai descobrir logo, com os outros. Tem algo em mente, meu irmão? Você quase entrou quando V conversava comigo mais cedo.
Rhage olhou ao redor da sala vazia.
— Na verdade, sim.
— Fale.
A história saiu em um amontoado de pedaços de sons: Bitty, sua mãe, Mary, ele, o GTO... É, por alguma razão, o fato da garota gostar de seu carro o fez tocar no
assunto. Ele também explicou que tinha passado por uma entrevista social com Rhym, que Mary estava passando pela dela agora, e que precisavam da aprovação de Wrath.
Blá blá blá.
Quando interrompeu os substantivos e verbos, descobriu que tinha perambulado pela sala e tinha acabado se sentando na cadeira do outro lado do trono, ele o irmão
separados pela imensa mesa, todas aquelas figuras e símbolos sagrados entalhados marcando a divisão entre a posição deles.
E ainda assim, parecia que ele e Wrath eram um só e o mesmo quando o macho sorriu.
— Você já a tem, meu irmão. Qualquer coisa que precisar, é sua. E se precisarem fazer uma pesquisa de campo, ou seja lá como a chamem, os assistentes sociais serão
bem vindos aqui. Podemos pedir a Fritz que os tragam.
Rhage exalou toda sua tensão quando Butch e Phury entraram.
— Obrigado. – Ele disse com voz rouca. — Muito obrigado.
— Você mudou muito desde a época em que era um cuzão que eu conhecia e tolerava.
Quando Wrath esticou o anel de diamante negro do Rei, Rhage se levantou e se inclinou para beijá-lo.
— É... Todos nós mudamos...
Assim que começou a se endireitar, alguém o beliscou com tanta força no traseiro que ele quase caiu de cara na mesa. Virando-se, viu Lassiter sorrir.
— Desculpe, – Disse o anjo. — Não consegui evitar.
Rhage expôs as presas.
— Lass, sério, dá pra ser mais irritante?
O maldito fodido colocou o dedo no queixo e batucou ao inclinar a cabeça.
— Hmm, não sei. Mas posso tentar.
— Juro por Deus que um dia desses...
Só que era mentira. Ele não ia fazer merda nenhuma. O problema com o cuzão titular da coroa real era que era impossível verdadeiramente odiá-lo. Não quando, constantemente,
provava que havia um cara com quem se podia contar por baixo de toda aquela maldita porra de zoação.
O resto da Irmandade chegou e se ajeitou em seus lugares costumeiros na sala. Enquanto Rhage sentava-se com Butch em um dos sofás floridos, levou um minuto para
perceber que faltava alguém.
Não, lá estava Vishous. Com Payne a seu lado.
Um olhar para aqueles dois rostos sombrios e Rhage praguejou mentalmente. E não foi o único.
As portas foram fechadas e então todo mundo caiu em um silêncio mortal...
Antes que algo pudesse ser dito, Zsadist entrou na sala e todo mundo recuou.
— Que porra aconteceu com você? – V questionou.
O irmão exalava vapor... E não por estar puto. Tinha, tipo, fumaça de verdade subindo dos ombros de sua jaqueta e das solas de suas botas. E, Jesus Cristo, o fedor...
Ele fedia a borracha queimada, combustível ruim e a um acampamento de três dias atrás.
— Nada. – O cara disse ao se afastar até o seu gêmeo. — Só estava assando marshmallows.
— Aquele é meu lança-chamas? – Alguém perguntou, indignado.
— Um marshmallow de quantos metros? — Alguém murmurou.
— Ei, era um Stay Puft21? – Lassiter interrompeu.
O Rei praguejou.
— Ah, puta que o pariu, você queimou a casa daquela cadela?
Bem, olá, todo mundo claramente pensou, ao silenciarem e encararem Z.
— Tecnicamente, a casa era do velhote. – Rhage sentiu-se compelido a comentar. — Assumindo que estamos falando da puta que manteve aquele escravo de sangue em seu
porão.
Wrath balançou o dedo na direção de Rhage.
— Ei, nada dessa coisa de boca suja, se vai mesmo ser pai. Precisa parar com esta merda agora mesmo e se acostumar antes de trazer aquela garotinha para essa casa
do caralho.
Eeeeeeeeeeeeeeeeee agora todo mundo e seus tios se viraram para olharem para ele.
Fantástico.
Podemos voltar a falar dos marshmallows? Pensou consigo mesmo.
Enquanto esperava por uma mudança de assunto, que absolutamente não aconteceu, ele balançou a cabeça. Aquilo não era bem a cara da mansão da Irmandade, onde as notícias
se alastravam mais rápido do que... Bem um incêndio, por exemplo?
— Está bem, primeiro, – Disse ele à multidão. — Eu não sei ainda se vamos conseguir adotar Bitty. Segundo, este discurso não-praguejarás-ó-todo-poderoso-pai teria
sido bem mais efetivo se não viesse acompanhado de um “merda” e um “caralho”. E por último, sim, Mary e eu estamos tentando nos tornar pais, e não, eu não quero
falar sobre isto ainda. Assunto encerrado.
Lassiter se aproximou.
— Toca aqui pela referência ao Esqueceram de Mim.
— Eu fiz por você, seu pedaço de merda. – Rhage retribuiu o cumprimento daquele escroto. — E obrigado pelo apoio. Agora vamos para a próxima crise. Alguém quer baixar
as calças e admitir que está de fio dental? Ou vamos levar mais a sério e começar a compartilhar nossas pedicures?
Wrath falou.
— Rhage está certo. Temos problemas. V e Payne, assumam.
Instantaneamente, o clima na sala mudou. Todo mundo ficou sério quando os irmãos se aproximaram da lareira. Cara, dava pra ver a semelhança familiar entre eles,
com os cabelos pretos e os olhos diamantinos. V era pouca coisa mais alto que a irmã, também mais largo, e então havia aquelas tatuagens de alerta em sua têmpora
e o cavanhaque. Payne, no entanto, não era pequena, seu corpo de guerreira estava coberto pelo mesmo couro que o do irmão, os braços musculosos e pernas dignos de
fazer Ronda Rousey parecer a vovó encarquilhada de alguém.
— A Virgem Escriba está morta.
Quando V soltou a bomba, houve um período momentâneo de silêncio, tipo, coooooooooooomo-ééééééé-qqqqqqueeeeeee-ééééeé? Então houve uma caralhada de ofegos e xingamentos
na sala, todo tipo de PQP subindo aos ares.
Vishous ergueu as mãos.
— Antes que façam qualquer pergunta, não sabemos muito mais do que isto. Eu subi para vê-la, descobri que todas as merdas dela tinham desaparecido e encontrei uma
mensagem no cemitério das Escolhidas. Dizia que ela iria indicar um sucessor no momento certo. Só isto.
Rhage olhou de um para outro. O rosto de Payne era uma máscara de não-vou-nem-falar-nada, como se tivesse aguentado tanto drama por duzentos anos que agora não queria
nem saber de sua mãe. V mais ou menos o mesmo.
— Como ela pode ter morrido se é imortal? – Alguém perguntou.
Vishous acendeu um e deu de ombros.
— Ouçam, não quero cortar o barato de ninguém, mas não sei de mais nada além disso.
Rhage assoviou suavemente e tirou um pirulito do bolso. Ao ver que era de uva, pensou, Bem, talvez isto tenha algum jeito de acabar bem.
Cacete, a quem queria tentar enganar?
Lá embaixo no centro de treinamento, Layla estava indo ao banheiro. De novo.
Desde que os bebês nasceram, ela sentia que, embora a todo momento esvaziasse a bexiga o suficiente, seu corpo reconhecia a mudança de não apenas ter se libertado
do peso dos bebês, leves como eram, mas também, aparentemente, de setecentos litros de água.
Inacreditável.
Por que ninguém tinha lhe falado sobre isto? Mas também, tiveram um monte de coisas mais importantes para falar.
E ainda havia, pensou sombriamente ao mudar o absorvente na calcinha de malha que tinha sido dada a ela e voltou a ficar em pé. Deu a descarga, atravessou até a
pia e lavou as mãos com o cheiroso sabonete francês que Fritz abastecia até a clínica.
Ao sair do banheiro, estava cambaleando devido ao tamanho do absorvente que precisava usar, mas apesar de tudo se sentia bem mais forte.
— Como estão, pequeninos?
Mesmo exausta, cada vez que se levantava ela os visitava, e era tão mágico: mesmo através do acrílico, eles pareciam ouvi-la, reconhecê-la, as cabecinhas se viravam
em direção à sua voz.
— Lyric está respirando melhor? Sim? Aposto que está.
A garotinha teve algumas dificuldades há algumas horas, o respirador tinha aumentado o bombeamento automaticamente em resposta a uma queda nos índices de oxigenação
no sangue, mas agora, de acordo com os monitores que Layla se pegava lendo como uma médica, estava tudo bem.
— E você, Senhor Carinha? Oh, você parece muito bem mesmo.
Voltando para a cama, ela se esticou e colocou uma mão sobre a barriga lisa. Era incrível ver o inchaço diminuir a cada hora, seu corpo voltando ao formato normal
graças à alimentação que vinha tendo.
Qhuinn e Blay eram tão generosos com suas veias a ponto dela achar que estava drenando-os completamente.
Mas ainda havia um período de recuperação para ela. Pelo que sabia, as humanas levavam ainda mais tempo, embora o tempo de gravidez fosse menor... Para as mães vampiras,
era menos em termos de tempo de recuperação, mas ainda havia todo tipo de coisa, hormonalmente falando, que seu corpo precisava recalibrar.
Engraçado, quis tanto que seu corpo voltasse ao normal. Agora? Parecia meio solitário ser somente ela em seu próprio corpo.
Ao ouvir uma batida, disse.
— Entre?
Receber visita era bom. Visita era um alívio das perguntas que inundavam sua mente, perguntas sobre o que precisava fazer a respeito de Xcor...
Tohrment e Autumn entraram hesitantes, e oh, a expressão no rosto do Irmão quando seus olhos azuis profundos viram os bebês... Tanta dor. Tanta tristeza pelo que
tinha perdido.
E ainda assim, ele sorriu ao olhar para ela.
— Ola, mahmen. Você parece bem.
Layla inclinou a cabeça e sorriu de volta.
— Você é muito gentil. Autumn, olá.
Quando Autumn se aproximou para um abraço, Layla estudou o rosto de Tohr ao abraçar a shellan dele, buscando por características que o ligassem a seu meio-irmão.
Havia muito pouco. Mas a cor dos olhos... Exatamente a mesma. Por que não tinha notado antes?
Pois tanto ele quanto Xcor tinham sido gerados pelo mesmo pai.
— Vim te oferecer minha veia. – Tohr disse abruptamente. — Com a permissão de seus machos. Mas obviamente, se preferir usar somente a eles, eu compreendo.
— Ah, não. Não, por favor, e obrigada. Estou meio preocupada de estar tomando demais deles.
O olhar de Tohr voltou aos bebês.
— Pode ir se apresentar. – Disse Layla, gentilmente.
Autumn foi com seu macho para perto das incubadoras e os dois ficaram lá um longo tempo, olhando para os pequeninos.
— Eu sempre me perguntei como seria ter um irmão ou irmã. – Tohr disse.
Mantendo a voz calma, Layla disse. — Não tem nenhum?
Ele negou com a cabeça.
— Meu pai sem dúvida espalhou sua semente de forma pródiga, como costumam dizer, mas nunca soube de nenhum.
Até agora, ela pensou.
— Tohrment, eu preciso...
— Mas chega de falar de mim. – Ele se virou de forma decidida. — Vamos cuidar de você. Como Autumn diz, é um bálsamo ajudar aos outros.
Quando a fêmea do Irmão sorriu e disse algo, Layla retraiu-se para dentro de sua própria mente.
Isto vai ter de aguardar um pouco mais, ela pensou quando Tohr começou a subir a manga da camisa.
Capítulo SESSENTA E NOVE
Na noite seguinte, Mary não conseguia decidir com quem discutir.
E considerando a garota de treze anos no banco de trás do GTO, aquilo não depunha a favor do adulto de duzentos anos atrás do volante.
— Só estou dizendo que acho que podíamos esperar um pouco mais. Sabe... – Tipo, uns anos? — Vai ser difícil para ela alcançar os pedais.
Bitty olhou para o retrovisor em busca de ajuda.
— Mas ele disse que podia ajustar o banco, não é?
— Por favor, Mary. – Rhage choramingou. — Vamos lá, o que pode acontecer de ruim?
— Não me faça nem começar...
— Poooooor favor. – Bitty cortou. — Eu vou ter cuidado.
— Oh, olha. – Rhage deu seta e entrou em uma galeria de lojas, que tinha uma imobiliária em meio a bando de lojas de alta classe. — Se formos aqui nos fundos, aposto
que tem espaço suficiente.
— Espaço suficiente! – Bitty ecoou. — Muito.
Mary pôs a cabeça entre as mãos e balançou pra frente pra trás. Mas sabia quando era voto vencido e aquela era uma das vezes: os dois não iam ceder e era melhor
desistir agora. Diminuiria o efeito estufa e o aquecimento global de tanto ar quente.
— Você vai devagar. – Ela disse contra as mãos.
— Muito devagar!
— Ela vai tão devagar que você poderia ultrapassá-la caminhando, certo Bits?
— Claro.
Afinal, a noite foi divertida, os três foram ao O'Charley para jantar antes de Rhage ir para o trabalho. Aparentemente, ele tinha decidido que era absolutamente
crucial para o desenvolvimento de Bitty como uma vampira de verdade experimentar todos os restaurantes da cidade... Ele tinha feito até um cronograma para as próximas
quinze ou vinte noites. Com lugares como WW Cousins, o point do burger. Zaxby's. A Cheesecake Factory. Pizza Hut. Texas Roadhouse.
Sim, até mesmo o McDonald's, o Wendy's e o Burger King.
Bitty, para não ficar atrás, pegou o celular dele e criou um sistema de avaliação na maldita coisa, os dois passaram uma boa meia hora com os cabelos louro e o escuro
juntos, debatendo o relativo mérito de critérios variados de algum tipo de pontuação.
Seria uma jornada digna de Dickens através da gordura trans e porções descomunais.
O lado bom? Bitty tinha mesmo de engordar um pouco e aquela era uma tática tão boa quanto qualquer outra.
— Lá vamos nós. – Rhage anunciou como se tivesse encontrado a cura para a Síndrome do intestino irritável. — Vê? Bastante espaço.
Está bem, pelo menos ele tinha razão. Ao pisar no freio e deixar os faróis fazerem seu trabalho, o trecho asfaltado dos fundos era comprido e largo, e completamente
vazio se não por algumas lixeiras: considerando tudo, não havia nada além de grama mal cortada e árvores atrás da galeria.
— Está bem, mas vou sair do carro. – Mary abriu sua porta. — Passei por dois quase acidentes nos últimos tempos. Não vou arriscar um terceiro.
Enquanto segurava o banco para Bitty, a garota parecia séria.
— Eu não vou estragar o carro. Prometo.
Mary colocou a mão no ombro da garota e apertou.
— Eu não ligo para o carro...
— O que?! – Rhage gritou ao sair do carro. — Como pode dizer isto?
Calando-o, voltou a se concentrar em Bitty.
— Tenha cuidado. Vá devagar. Você vai se sair bem.
Bitty deu a ela um rápido abraço... E quem diria, era algo que quase fazia o coração de Mary parar cada vez que acontecia. E então a garota e Rhage estavam no banco
do motorista, falando daquele jeito rápido de sempre, a conversa rápida fazia a cabeça de Mary girar.
Afastando-se bem, bem, beeeeeem do caminho, acabou apoiada contra o prédio térreo, comprido como um campo de futebol, perto da placa onde estava escrito “Somente
entregas”. A noite estava injustificadamente quente, tanto que deixou a jaqueta aberta, e sobre sua cabeça, o céu estava cheio de nuvens, como se Deus tivesse puxado
uma coberta de lã branca sobre a terra contra o frio do fim de outubro.
— Aqui vamos nós! – Rhage disse ao ir para o banco do passageiro. — Prepare-se!
Quando ele acenou como se estivesse no deque de um cruzeiro que estava a ponto de partir, ela acenou de volta e pensou, Por favor, não dêem uma de Titanic aqui,
pessoal.
Ajustes, partida. Engate. Pulos e sacolejos... E então Bitty conseguiu. De alguma forma... A garota assumiu o controle daquele motor de doze bilhões de cavalos sob
o capô e ela e Rhage estavam guiando. A dois quilômetros por hora.
Mary pegou-se pulando pra cima e pra baixo, batendo palmas como se a criança tivesse se graduado em medicina tendo achado a cura para o câncer.
— Você conseguiu! É isso aí, Bitty!
Deus, era tão bom torcer. Testemunhar um aprendizado acontecer. Ser testemunha da garota conseguir guiar o carro pesado até a extremidade e começar a voltar de novo,
acenando loucamente ao passar por ela, o rosto brilhando de felicidade enquanto Rhage sentava-se ao seu lado batendo palmas e assoviando como se Bitty estivesse
fazendo um touchdown no Super Bowl, acertando a última cesta no campeonato NCAA e cruzando a linha de chegada da Maratona de Boston, tudo ao mesmo tempo.
Lá vinham eles de novo, ganhando velocidade, até Bitty estar engatando a terceira no percurso reto.
Era... Mágico.
Era... Família.
Era... Absolutamente, positivamente, tudo o que importava e era importante.
E então tudo deu errado.
Bitty e Rhage tinham acabado de virar de novo e estavam indo na direção da outra extremidade quando o som de uma garrafa sendo jogada contra o asfalto fez Mary erguer
a cabeça.
Quatro ou cinco caras apareceram na esquina... E pararam imediatamente como se estivessem tão surpresos de encontrar alguém ali atrás quanto Mary, por ter seu momento
de fantasia com a família perfeita interrompido.
— Que porra. – Um deles murmurou.
— E aí, vadia?
Mary cruzou os braços sobre o peito e encarou-os diretamente, mantendo-se firme sem dizer uma palavra. Eles eram o bando típico de maloqueiros de quinze, dezesseis
anos, tentando fingir serem gangsters com as calças lá embaixo e os bonés de beisebol virados para trás... Quando na realidade eles podia bem estar em um centro
comercial na Macy's ou no Sunglass Hut. Mas o problema? Em bando eram como coiotes, perigosos mesmo que sozinhos fossem insignificantes.
— Como vai? – Um terceiro disse com voz arrastada.
O que, como se você fosse Tony Soprano, seu trombadinha, ela pensou enquanto eles se aproximavam dela. Exceto que quando viu que um deles trazia uma faca baixada
ao lado do corpo, ela gelou.
O pior? O garoto armado parecia agitado como se estivesse drogado.
Àquela altura, Rhage e Bitty deram a volta e voltavam, e tudo o que Mary pode pensar foi, Por favor, continuem rodando. Tire Bitty daqui.
Mas não. O GTO parou a uns seis metros de distância, os faróis iluminando Mary e o bando de animais.
— Oooooohhhhhhh, merda, saca só aquele carro. – Um deles disse.
— Vou levar aquela belezinha pra casa...
O coro de assovios e impropérios baixou quando Rhage abriu a porta do passageiro e se levantou em toda sua altura.
— Mary, venha cá.
Mary começou a andar até ele, mas não foi longe. A próxima coisa que viu, foi que o cara com a faca a tinha agarrado e puxado de costas contra ele, encostando a
lâmina em sua garganta.
— Vai fazer o que? – O garoto provocou — Uh? Vai fazer o que?
Mary estremeceu, mas não por temer pela própria vida. Que diabos eles podiam fazer com ela? Em vez disso, só no que pensava era, Não, não, não na frente de Bitty...
— Continue! – Ela gritou para Rhage. — Apenas dirija...
— Eu vou te furar. – Veio a voz em seu ouvido.
— Está bem, faça o que quiser. – Murmurou. — Mas não na frente deles. Deixe-os ir e pode me cortar o quanto quiser.
— Como é que é? – O garoto balbuciou.
— Saia daqui, Rhage...
Tá, não.
Nem brincando.
De repente, a luz que brilhava em seus olhos e sobre eles se tornou mais intensa por um fator de cento e cinquenta mil quilowatts. E Mary praguejou.
Merda. Ela sabia o que aquilo significava.
— Não falta muito agora.
Ao falar, Assail pisou no acelerador da Range Rover e virou à direita na alameda que seguia para a península na qual vivia. Ao lado dele, no banco do carona, Markcus
estava muito calado, os olhos grudados nas janelas tanto à frente quanto na lateral.
O jovem macho estava fascinado pelos arredores... E parecia confuso.
— A ponte era diferente. – Disse abruptamente. — Aquela que acabamos de passar. Estava diferente de quando eu...
— Imagino que muita coisa tenha mudado.
— Há construções muito mais altas no centro. Mais carros. Mais... Tudo.
— Espere até conhecer a Internet, meu amigo. Aí sim vai ver um avanço verdadeiramente duvidoso.
Logo chegaram à casa e Markcus ofegou.
— Ela é tão... Bonita.
— Tem bastante vidro. E põe ironia nisso.
Assail estacionou diante das portas das garagens, abrindo a mais próxima, então seguiu para dentro dela. Quando Markcus ia abrir a porta Assail o impediu com uma
mão no antebraço.
— Não até as portas se fecharem de novo. Temos que ser cautelosos.
— Peço desculpas.
Quando estavam apropriadamente fechados, saíram por suas respectivas portas e Assail esperou pelo outro macho dar a volta. Markcus se movia devagar e usava a Range
Rover para se apoiar, mas já tinha deixado bem claro que não aceitaria ajuda e que também não usaria nenhuma bengala ou suportes.
Assail deu alguns passos na direção da porta e abriu o painel reforçado de aço. O cheiro que veio pelo vestíbulo era maravilhoso, tudo estava bem com a Primeira
Refeição. Bacon e ovos, café, panquecas... Não, waffles?
Markcus cambaleou ao entrar na casa.
— Oh... Isto é...
— De fato. Quem diria que os bastardos sabiam cozinhar?
Assail encurtou a distância rapidamente até a cozinha, tentando fingir que ele sempre agia assim.
Na cozinha, ficou óbvio que Ehric e Evale tinham feito o máximo para fazer o hóspede sentir-se bem-vindo: arrumaram a mesa – embora torta e com os garfos do lado
errado dos pratos; cozinharam várias coisas – no que se saíram melhor; passaram café... Não, espere, era café instantâneo, mas pelo cheiro, ainda parecia bom.
— Sente-se. – Ehric disse para Markcus depois que foram apresentados. — Vamos servi-lo... Não, não aceito recusas.
Markcus sentou-se gemendo de alívio ao tirar o peso leve sobre suas pernas esqueléticas. Ao jogar o cabelo comprido para trás, seu rosto foi revelado, a anomalia
que o levava a não ter barba crescida, significando que suas bochechas e maxilar, o queixo e a garganta, ficavam ao dispor para os primos encararem.
De fato, Assail pensou consigo mesmo, o macho era algo a se olhar.
— Eu preparo a Última Refeição então. – Markcus disse.
— Vamos ver sobre isto, parceiro. – Ehric retrucou ao colocar uma montanha de comida na frente do hóspede.
Por hábito, Assail tateou os bolsos de seu paletó, pegou seu frasco... Mas antes de retirá-lo, parou e olhou para o relógio do microondas. Então confirmou o dito
horário no fogão e em seu relógio de pulso Piaget.
— Junte-se a nós, primo. – Ehric disse, quando ele e Evale se serviam e se sentaram.
Evale pegou o garfo e apontou para a direção do prato de Markcus.
— Serve-se.
— É “sirva-se”. – Assail corrigiu de forma distraída.
— Não vai comer, primo? – Ehric perguntou.
Assail se virou para a pia. Com passos tão cuidadosos quanto os de Markcus, abriu a tampa do frasco e derramou a cocaína no ralo.
— Lá embaixo. – Ele disse, em voz áspera ao abrir a torneira na pia. — Sabe onde meu estoque está guardado?
Da cocaína.
— Sim. – Ehric sussurrou. — Sabemos.
— Sumam com ela da casa.
Quando primos fizeram menção de se levantar, ele os impediu.
— Comam primeiro, tudo bem. Preciso que fiquem e o façam comer. Então o levem para um dos quartos de hóspedes perto do de vocês.
— Não preciso de nenhum luxo. – Markcus disse. — Basta um lugar para encostar a cabeça durante o dia.
— Você mais do que mereceu meu respeito, meu caro.
Houve uma batida na porta e Assail olhou para os três.
— Eu preciso ir e vocês vão ver que vou ficar... Como posso dizer... Indisponível por algumas noites. Não sei quanto tempo. Cuidem dele, por favor. Não vou gostar
nada de voltar e ver que Markcus não está mais forte e mais saudável.
Ao erguer as mãos, notou que elas tremiam.
Isto ia... Se podia usar um termo chulo... Ser um pé no saco.
Voltando para a porta dos fundos, abriu e sentiu uma absurda necessidade de fazer uma reverência. O que ele prontamente fez.
Em resposta, o Dr. Manello indicou o Mercedes preto com as janelas filmadas que estava no estacionamento.
— Está pronto?
— Sim.
— Está muito mal? Está tremendo.
— Acho que vai piorar ainda mais.
A última coisa que fez antes de partir de sua casa de vidro foi olhar de volta para Markcus. O macho comia lentamente, suas mãos esqueléticas seguravam os talheres
de prata de forma desconfortável, como se não usasse tais utensílios há muito tempo.
Ia ser uma longa jornada de volta para ele.
Mas se, depois de tudo o que tinha passado, ainda restava a coragem de se agarrar ao fio da vida... Então Assail também podia.
Assail?
Em sua mente, ouviu a voz de Marisol em seu celular, enquanto cercado pelo anel de fogo que tinha criado. Desintoxicação seria mais ou menos como aquelas chamas,
ele temia.
— Assail?
— Sim. – Disse ele para o bom doutor. — Vamos.
Capítulo SETENTA
Assim que a luz brilhante cegou seu atacante, fazendo-o afrouxar o aperto, Mary livrou-se das mãos do garoto e o golpeou na barriga com o cotovelo.
E enquanto ele se curvava e derrubava a faca, ela correu desabaladamente para o GTO.
— Tire-a daqui! – Rhage disse. — Rápido!
Aquelas foram suas últimas palavras.
A Besta já estava emergindo enquanto ela corria para o lado do motorista, o enorme corpo dele dobrava os joelhos, a cabeça baixando enquanto tentava conter a força
contra o asfalto, como na tentativa de lhe dar tempo para que ela saísse dali antes que dragão surgisse.
Parando ao lado da porta do motorista, Mary abriu a coisa ao mesmo tempo em que Bitty mudava para o banco do passageiro.
— Rhage! – a garota gritou. — Rhage! O que está acontecendo, qual o problema?
Rhage teve, de alguma forma, presença de espírito de estender a mão e fechar a porta, e Mary não perdeu um segundo.
— Cinto! Coloque o cinto de segurança!
— Não podemos deixá-lo!
— Cinto! Ele vai ficar bem, mas temos de ir!
Mary girou a chave e acelerou ao mesmo tempo, engatando a primeira antes de soltar o pé esquerdo. Os pneus cantaram quando todos aqueles cavalos buscaram se liberar
no asfalto e ela se preparou para o impulso impelí-las adiante.
Enquanto isto, de volta ao CEP dos cuzões, o grupo de idiotas tinha decidido avançar na direção do carro.
É, como se aquilo fosse durar.
Então tudo ficou em câmera lenta.
No momento em que o GTO começou a gritar avançando, enquanto Bitty gritava a seu lado e Mary lutava para ficar calma, um grande rugido iluminou a noite, tão perto
delas que chegou a impactar a tração do carro.
E mesmo que fosse só pela sua visão periférica, Mary teve uma visão clara do segundo em que Bitty viu a Besta emergir do corpo de Rhage.
A garota congelou, uma expressão boquiaberta tomou o lugar do seu medo anterior.
— O que... É aquilo?
— Ela não vai nos machucar, está bem? – Disse Mary.
E YEEEEEI, elas voaram como se tivessem sido lançadas por um canhão, projetando-se, esquivando-se.
Infelizmente, os humanos – também conhecidos por pinos de boliche com mau comportamento – estavam bem na frente do GTO. Que fez com que o sonho de Mary, de não escapar
de um acidente número três, ser dolorosamente frustrado. Girando o volante para a direita, evitou matar um ou mais deles – uma cortesia que nenhum deles merecia
– mas o lado ruim foi que ela atingiu uma lixeira, batendo na coisa, todo aquele impulso à frente virando uma imobilidade completa em uma fração de segundo.
Quando o volante a atingiu no peito e um sibilo que prenunciava más notícias vindas do capô amassado, ela se virou para Bitty em pânico.
A garota tinha conseguido colocar o cinto de segurança antes da batida.
Graças a Deus...
Outro rugido cortou a noite, e sim, pela janela de trás viu que a Besta estava totalmente lá, e não só urrando sua opinião. E sim, os humanos mudaram de ideia sobre
seu pequeno ataque, tropeçando uns nos outros para fugirem pelo lado oposto.
Como se tivessem se dado conta, por mais improvável que fosse que um dragão se materializasse no estacionamento dos fundos de uma galeria, eles não iam discutir
com o que parecia estar realmente acontecendo...
Antes de conseguir impedir Bitty, a garota saiu correndo do carro.
— Maldição! Bitty!
Mary saltou do carro também... E praguejou ainda mais: a Besta tinha se curvado sobre suas pernas poderosas e estava bancando o Jurassic Park, tipo as-coisas-estão-mais-perto-do-qu
e-parecem-pelo-retrovisor, entrando em posição de ataque enquanto soprava as teias de aranha de seus pulmões.
Não, não, nada de almoçar. Não, não vai acontecer...
— Volte para o carro! – Mary gritou ao se interpor no caminho da Besta, colocando-se entre os idiotas que fugiam e seu querido marido.
— O que é isto? – Bitty gritou. — O que aconteceu com ele!?
— Ei! Oi! – Abanando as mãos, Mary captou a atenção da Besta. — Aí está você. Olá, tudo bem aí?
A Besta soltou um bufo, suas mandíbulas expuseram os enormes dentes em um sorriso. Então soltou um som de lamento, parte pergunta, parte protesto.
— Não. Não pode. Não pode comer humanos.
É, está bem, ela ainda não conseguia acreditar o tanto de vezes em que estas palavras tinham de sair de sua boca. Oh, as viradas que a vida dá, de fato.
Mas a Besta baixou a cabeça. Como se estivesse chateada.
— Eu sei. Eu sei, mas você tem um gosto apurado. Gosta mais de lessers...
Abruptamente, a cabeça gigantesca da Besta virou para a esquerda. E Mary fechou os olhos pensando, merda, ela sabia por que.
— Bitty. – Murmurou sem desviar o olhar do dragão. — Eu te disse para voltar para o maldito carro.
As narinas da Besta se abriram largamente. E então fungou ao sentir o cheiro da garota.
— Bitty! Estou falando sério! Volte...
Sons de movimento abundaram quando a Besta se esticou no chão, pousando a cabeça no asfalto na direção de Bitty.
Mary baixou as mãos. Olhou para a garota.
Bitty estava parada lá, completamente imóvel, como se seu cérebro não conseguisse processar tudo aquilo. E então se aproximou lentamente, de braços baixos e sobrancelhas
erguidas. Sua expressão era desconfiada e nervosa, mas parecia determinada a ver por si mesma qual era a do dragão.
Mais sons, como se a Besta tentasse comunicar que estava tudo bem. Ele não ia ser um garoto mal. Só queria dizer oi.
O maior cão do maldito planeta, Mary pensou. E vamos só torcer pra tudo continuar assim.
— Tenha cuidado. – Disse Mary — Nada de movimentos súbitos...
— Será que ele gosta de mim? Não tenho certeza... Mas acho que ele gosta de mim.
Um minuto depois, Bitty parou bem na frente da cabeça do dragão, bem ao lado daquelas mandíbulas assustadoras, perto daqueles olhos reptilianos que piscavam na vertical,
ao invés de na horizontal.
— Posso fazer carinho? – Ela perguntou.
A Besta fez um som inquisidor, como se imitasse o tom de voz dela.
— Isto é um sim?
Quando ele fez aquele som meio ronronado, meio respirado de novo, Bitty estendeu a mão trêmula e colocou bem na bochecha da Besta.
— Oh, você é tão macio. É bem mais macio do que achei.
Houve um súbito indício de movimento, e Mary adiantou-se e agarrou a garota, tirando-a do alcance. Mas não precisava se preocupar.
A Besta tinha rolado de costas, seus braços menores em comparação ao resto do corpo, curvaram-se no peito, as pernas traseiras, grandes como casas, esticadas. Para
acariciar a barriga, Bitty precisaria de uma escada de dois metros – e Mary dois Xanax e uma garrafa de vinho, muito obrigada – mas a garota fez o que pôde, aproximando-se
e ficando nas pontas dos pés quando a Besta virou a cabeça em ângulo para observá-la com olhos suaves.
— Ele é tão fofo. – Disse Bitty — Não é mesmo? Quem é que é fofo?
— Eu preciso de uma bebida. – Mary murmurou consigo mesma. — Preciso de um maldito drink.
Mas pelo menos conseguimos resolver esta parte, tirá-la do caminho, pensou.
Quando Rhage voltou a seu corpo, estava em modo de pânico total.
— Mary! Bitty! Mary!
Mas então percebeu que dois pares de mãos enlaçavam as suas e havia duas belas vozes confortando-o... Bem, uma o confortava, a outra só era reconfortante de ouvir.
— Está tudo bem, estamos bem...
— Rhage! Você tem um dragão! Um dragão de estimação! Eu consegui fazer carinho na barriga dele!
Como é que é? ele pensou, cego.
— Quando ele vai voltar?! Eu quero vê-lo de novo! Posso brincar com ele?
Seu delírio, felizmente, não era acompanhado por dores estomacais, então viu que não tinha devorado nenhum daqueles escrotos fodidos que tinham agredido sua Mary.
E oh, bom, havia uma coberta sobre a parte de baixo de seu corpo, então não estava nu.
Mas tinha de começar a clarear a cabeça, mesmo que não soubesse direito para onde a garota estava olhando.
— Ele não é um brinquedo, Bits. Ele é perigoso...
— Ele gosta de mim! Foi incrível!
— ... E eu não consigo simplesmente fazê-lo aparecer, está bem? Mas quando você vier morar com a gente, prometo tentar.
Silêncio. Absoluto.
E então Bitty disse bem baixinho.
— Ir morar com vocês?
— Ah... Merda. – Ele exclamou. Daí se lembrou do Rei mencionando aquela coisa do não xingar. — Digo, bosta. Digo, cocô.
— Viver com vocês? – A garota repetiu.
Quando Mary pigarreou, Rhage tentou se sentar, mesmo sem forças no departamento vertical.
— Bitty. – Sua shellan disse. — Eu tentei encontrar o seu tio. Na verdade, muitas pessoas tentaram localizá-lo... E ninguém conseguiu descobrir nada. Não sei o que
aconteceu com ele ou onde ele está... Não consigo nem imaginar. Mas assumindo que não esteja... Disponível... Rhage e eu andamos conversando, e sabe, não queremos
roubar o lugar de sua mahmen. De jeito nenhum. É só... Nós realmente gostaríamos que você considerasse vir viver conosco. Poderia começar como um teste, e se você
não gostar, sempre poderia...
Houve um impacto abafado e Mary parou de falar.
Até ele sentir o cheiro de lágrimas.
— O que houve? – Ele virou ao redor. — Qual o problema? O que ela está fazendo...
De repente bracinhos enrodilharam no pescoço dele e a voz de Bitty soou em seu ouvido.
— Isto quer dizer que vai ser meu pai?
A respiração de Rhage ficou presa na garganta. Então retribuiu cuidadosamente o abraço da garota, tomando cuidado para não esmagá-la.
— Se me aceitar... – Está bem, ele não podia falar. — Sim, sim, eu vou ser.
Ele sentiu Mary acariciar suas costas em movimentos circulares e pode sentir a felicidade de sua companheira fluindo bem ao seu lado – mas aquilo não era suficiente.
Ele a puxou tão apertado que ambas as fêmeas ficaram esmagadas contra o seu peito.
Então esta... Era sua família, ele pensou com uma súbita pontada de orgulho. Estas eram suas duas garotas.
O sorriso que se abriu em seu rosto esticou tanto suas bochechas que ele soube que jamais seriam as mesmas.
Especialmente quando se lembrava de quando tinha segurado L.W. no colo na cozinha, olhando para o outro lado de uma sala que ele não via, com o coração doendo por
tudo que jamais teria.
E ainda assim, ali estava ele, com tudo o que sempre quisera não só a seu alcance, mas em seus baços.
— Posso me mudar hoje? – Bitty perguntou. — E quando vou conhecer todo mundo?
Capítulo SETENTA E UM
A resiliência das crianças era uma coisa incrível, Mary pensou mais tarde quando ela, Bitty e Rhage pararam o carro na frente da mansão da Irmandade.
A despeito de tudo o que tinha passado, a garota estava de olhos e coração totalmente abertos diante da perspectiva de uma vida totalmente diferente, pronta para
qualquer coisa, excitada, feliz. Mas também estava com pessoas que a amavam, mesmo que parecesse cedo demais para falar sobre isso.
O que não significava que não havia um pouco de tristeza. Especialmente quando ela e Bitty subiram para o quarto no sótão do Lugar Seguro para pegar as duas malas.
Quando a garota perguntou se podia levar também as coisas da mãe, Mary sentiu lágrimas nos olhos. E então foi a vez da urna.
Mas no final das contas, havia alegria. E Mary se concentrava nisto.
E parou o GTO com o porta-malas bem aos pés dos degraus de pedra, o que provavelmente era um exagero, já que a garotinha não tinha mais do que duas maletas e a urna.
Mas de certa forma, só queria levar Bitty para a casa... E qualquer distância parecia longe demais. Depois de Rhage ter ligado para Wrath e Mary ter ligado para
Marissa, ficou decidido que, sob situação de lar adotivo temporário, não havia motivo para Bitty não se mudar para lá imediatamente. Além disso, isto significaria
que a Dra. Jane e Manny poderiam fazer acompanhamento médico dela com mais facilidade e não havia motivo nenhum para mantê-la no Lugar Seguro.
O fato de ainda não haver documentação deixava Mary um pouco inquieta, mas Ryhm estava cuidando daquilo. O que realmente a preocupava? O período de espera de seis
meses começava esta noite, e até que aquele prazo mutuamente acordado se esgotasse, aquilo ainda não era negócio fechado.
E sim, Mary continuaria procurando pelo hipotético tio, mesmo que isto congelasse seu coração cada vez que imaginava que o macho poderia aparecer.
Ainda assim, tinha o dever de agir corretamente com Bitty.
— Chegamos? – Perguntou Rhage. — Acho que chegamos. Bitty, o que vê?
— A família Monstro vive nesta casa? – A garota perguntou. — Parece a casa da família Monstro, só... Qual o tamanho dela?
— Tem centenas de cômodos. O espaço é amplo, mas tentamos fazê-lo funcionar.
A mão de Rhage tateou pela porta até achar a maçaneta e abri-la. Ao se levantar, ele endireitou a coberta enrolada ao redor de seus quadris e quase tropeçou no meio-fio.
Mary desligou o motor e puxou o freio de mão. Quando olhou de volta para Bitty, a garota encarava a enorme construção de pedra. Aninhada em seus braços, bem junto
ao peito, estava a urna com as cinzas da mãe.
Isto não era um recomeço, Mary refletiu.
Não era nem mesmo uma continuação, uma finalização... Ou uma substituição de tudo o que tinha sido duro, brutal e carente de brilho, de coisas frescas e fervilhantes.
Não era natal. Não era um cachorrinho de presente de aniversário, nem uma festa surpresa com balões e bolo com cobertura.
Este era somente outro capítulo. Um que ia ser muito mais estável e emocionalmente apoiador, mas ainda passível de ter seus altos e baixos, desafios e triunfos,
frustrações e felicidades.
— Bitty? – Ela disse. — Você não precisa fazer isto.
A garota se virou e sorriu.
— Qual deles é meu quarto?
Mary riu e saiu do carro.
— Rhage, eu pego as malas.
— O inferno que pega. – Os olhos cegos dele reviraram. — Onde elas estão?
— Tudo bem, deixa eu achar que te entrego. E prende direito esta coberta, por favor, não vai querer ficar de bunda de fora durante nossa grandiosa entrada.
Bitty deu um passo na direção de Rhage e segurou a urna ainda mais apertado.
— Uau, é ainda maior do que parece.
— Espere até ver por dentro.
Abrindo o porta-malas, Mary retirou a maleta de Annalye primeiro e não conseguiu evitar: ergueu o olhar para o céu, tentando imaginar a fêmea olhando para baixo,
lá de cima observando tudo isto – esperava – com aprovação.
Vou cuidar muito bem dela, Mary jurou.
— Vamos. – Disse quando Rhage fechou a porta do carro do lado dele.
— Malas?
— Bem aqui, garoto. – Quando as entregou para suas mãos tão hábeis, eles se beijaram. — Que tal eu te guiar pelo braço?
— Posso ajudar também. – Bitty disse agarrando o outro cotovelo de Rhage.
Mary teve de piscar para impedir as lágrimas de rolarem quando o peito nu de Rhage inflou cinco vezes mais do que seu tamanho natural. Seu orgulho de ter suas duas
fêmeas com ele ao entrarem na residência do Rei era coisa épica: mesmo cego e sem dúvida meio dolorido, era evidente que se sentia no paraíso.
E então eles estavam no vestíbulo e Mary expunha o rosto para a câmera de segurança.
— Prepare-se. – Mary murmurou para Bitty. — É um lugar bem grande...
A porta se abriu e o mordomo começou a sorrir, só para congelar ao ver Bitty.
— É o Fritz! – A garota exclamou. — É o Fritz! Oi! Eu sou a Bitty!
O mordomo quase derreteu. Se o mordomo tivesse ficado mais encantado com a garota, seu rosto inteiro teria caído de seu crânio no chão de mármore.
Tipo o Os Caçadores da Arca Perdida mesmo.
O doggen fez uma reverência acentuada. — Senhora. E senhor. E... Senhorita.
Bitty olhou na direção de Rhage. — Eu sou uma senhorita?
Mary anuiu e sussurrou. — Você vai se acostumar com isto. Eu me acostumei.
Os três entraram no grande saguão e a primeira coisa que viram foi Lassiter no sofá da sala de jogos. Ele estava apertando o controle da TV e xingando.
— Eu não ligo para futebol! ESPN minha bunda! Que seja... Cadê o inferno do Who's the Boss?
— Lassiter!
Ao ouvir seu nome, o anjo olhou por cima das mesas de bilhar para onde estavam. E oh, como ele sorriu, aquela expressão gentil e suave mais associada aos anjos do
que a coisa que ele geralmente expunha ao mundo. Levantando, ele se aproximou, e sim, Mary ficou realmente feliz por estar vestindo algo normal, só jeans e uma camiseta
preta da Hanes, o cabelo louro e preto solto por cima dos ombros.
Com ele a gente nunca sabe.
Acocorando-se, ele estendeu a mão.
— Como sabia quem eu era, Bitty?
A garota aceitou o cumprimento dele e apontou para Rhage.
— Ele me contou tudo sobre vocês. Tudo de todo mundo... Espera, como você sabia o meu nome? Ele te falou sobre mim?
Lassiter olhou pra os três e acariciou o rosto da garotinha.
— Minha pequenina, eu vi este momento desde que vi pela primeira vez sua nova mahmen e pai...
— Não. – Mary interrompeu. — Não me chame de mahmen. Este é o título de Annalye. Não sou mahmen, sou só Mary. Não quero tomar o lugar de ninguém.
— Você tem olhos estranhos. – Bitty sussurrou. — Eles são lindos.
— Obrigado. – O anjo inclinou a cabeça. — Estou sempre aqui, Bitty. Se precisar de alguma coisa, me procure e eu consigo pra você. Acho que vai descobrir que isto
é verdade para muitos dos que moram aqui.
A garota anuiu quando Lassiter voltou a se levantar. Então Rhage soltou uma das malas e os machos se cumprimentaram com batidinhas no ombro um do outro. Lassiter
com melhor coordenação por que conseguia enxergar.
— Escute, Bitty. – Mary disse quando o anjo voltou para o controle remoto. — Eu tenho uma ideia para nossos quartos, mas não sabíamos que você estaria vindo hoje.
Então, se estiver tudo bem, você pode ficar no quarto de hóspedes ao lado do nosso? Se precisar de nós, estaremos...
E lá veio a guerra de água.
Na balaustrada do segundo andar por trás do corrimão dourado, John Matthew e Qhuinn vieram correndo do corredor das estátuas, Qhuinn na frente, John Matthew bombeando
litros de Poland Spring. Sem aviso, Qhuinn pulou pela balaustrada em uma queda livre de seis ou nove metros, desmaterializando-se no exato momento antes de se estatelar
sobre o mosaico no chão.
John partiu bem atrás dele, escorregando pelo corrimão da escada com um lado do traseiro, rindo silenciosamente.
Os dois pararam assim que viram Bitty.
— Qhuinn! – Ela exclamou. — Com um olho azul e outro verde!
O Irmão pareceu tão espantado com a garotinha, mesmo ao se aproximar e se avultar sobre ela.
— É, este é meu nome, quem... Oh, meu Deus! Rhage e Mary! Sua garotinha! Deu certo!
Mary recebeu um abraço de urso. Um abraço de um urso enorme. Um gigantesco abraço de urso quebrador de ossos de um pai recente. E então John Mattew começou a gesticular.
— Você é John Matthew! – Bitty olhou para seus dedos. — O que ele está dizendo... Espere, o que? — Então ela olhou para o imenso guerreiro e disse: — Você precisa
me ensinar isto. Se vou viver aqui, vou precisar aprender.
Bem, aquilo conquistou John Matthew. É. A ponto de seus dedos não parecerem funcionar... A linguagem de sinais equivalente a alguém gaguejando.
E deus, Bitty era incrível, tão amigável e espontânea... E corajosa considerando tudo pelo que já tinha passado.
Mary esfregou o centro do peito. Sim, pensou, ela estava sentindo uma grande dose de orgulho materno ali... E era melhor do que um milhão de taças de vinho. Além
de não dar ressaca.
— Você está cego de novo? – Qhuinn perguntou ao Irmão.
— Sim, tentei comer uns humanos.
— Tentou? Aquela sua Besta está de dieta?
Estavam todos rindo quando alguém apareceu por baixo da escada. Instantaneamente o papo parou, como se as pessoas estivessem preocupadas sobre quem seria.
Zsadist estava vestido em suas roupas de trabalho, couro preto cobrindo seu corpo como uma segunda pele, armas penduradas no peito, coxas, debaixo dos braços...
Apesar da aparência dele, Bitty correu direto em direção ao macho com cicatrizes, seu vestido costurado a mão bem gasto esvoaçando sob aquele feio e grande casaco
dela.
Z parou de chofre do jeito que todo mundo fez... Tipo, como se tivesse visto um fantasma. E então olhou ao redor, com um ar que pareceu confuso.
— Você é Zsadist. – Bitty exclamou. — Você tem uma filha... Posso vê-la? Queria muito conhecê-la, por favor.
Em resposta, Zsadist se moveu com lentidão extra, abaixando-se ao nível dela. E então só olhou para ela por um tempo, como se ela fosse algum tipo de criatura selvagem
que tinha inesperadamente provado ser mansa.
— O nome dela é Nalla. – Ele disse roucamente. — Minha filha é muito mais nova do que você. Mas acho que ela iria gostar de ter uma irmã mais velha, se quiser ensinar
umas coisas para ela.
— Oh, sim. Eu adoraria.
— O que é isto que traz nos braços, pequenina?
Bitty baixou o olhar e Mary prendeu a respiração.
— Esta é minha mahmen. Ela morreu. Foi por isto que Mary e Rhage estão me adotando. Espero que eu consiga ficar aqui. Gosto muito deles.
Simples assim. A explicação foi simples e emocionante... E todos os adultos piscaram, retendo as lágrimas.
Zsadist inclinou a cabeça bem baixo com os olhos amarelos brilhando.
— Minhas condolências pela sua perda. E seja bem-vinda ao nosso lar... Que agora você deve considerar como seu também.
Bitty inclinou a cabeça para o lado e observou o Irmão.
— Eu gosto de você. Você é legal.
Horas mais tarde, depois de acomodarem Bitty no quarto ao lado, Rhage e Mary foram para o quarto deles.
Ele ainda estava cego como o inferno, mas Rhage não se importava de tropeçar ou esbarrar em portas, pois Bitty estava debaixo do teto deles, então tudo estava infernalmente
certo no mundo dele. E cara, ela tinha conquistado a todos.
Mesmo que fosse aquela coisinha pequena nesta enorme e grandiosa mansão com todas estas pessoas que nunca tinha visto na vida, ela tinha se aventurado, chamado todo
mundo pelo nome, apresentando-se, sorrindo e rindo. Ela tinha mantido a urna da mãe consigo o tempo inteiro, e de alguma forma, aquilo parecia adequado, ao invés
de mórbido ou assustador.
Sua mahmen era uma parte importante dela e sempre seria... E, oh, sua Mary estava sendo tão respeitosa quanto a isto...
Como se sua fêmea pudesse fazê-lo se apaixonar ainda mais? Jesus.
— Não acredito que temos uma filha. – Disse, quando sua shellan o levou para o banheiro e colocou pasta de dente em sua escova. — Somos pais. Temos... Uma filha.
— E sinto muito, posso já estar sendo tendenciosa, mas viu como ela é fantástica? Viu Wrath? Ele se apaixonou por ela. Acho que ele quer que L.W. se case com ela.
— Bem, ela é forte. É esperta. Quem não iria querer...
Do nada um esgar retorceu o lábio superior dele e um grunhido se ergueu de seu peito... Enquanto ao mesmo tempo, a Besta surgiu contornando suas costas, buscando
uma maneira de sair.
E tudo ficou pior quando ele imaginou algum macho parado perto de sua Bitty com todo tipo de ideias fodidas na sua...
— Rhage. Pare. Ela provavelmente vai querer namorar alguém em algum momento...
— Só por cima do cadáver dele que vai encostar na minha filha...
— Rhage, tudo bem, respiração de ioga... – Ela deu tapinhas em seu ombro como se acalmasse um leão. — É perfeitamente normal que garotas cresçam e queiram namorar...
— Não. Ela não vai namorar. Nunca.
Mary começou a rir.
— Sabe, isto seria verdadeiramente engraçado se eu não estivesse preocupada de você estar falando ligeiramente a sério.
— Eu estou total e muito sério.
— E lá vamos nós de novo. – Mary suspirou. — Juro que Bella e eu vamos ter de levar você e Zsadist para um grupo de terapia.
— Sim! – Ele concordou. — Meu irmão saberá exatamente como é. Solidariedade entre pais...
Mary o interrompeu enfiando uma carga dobrada de creme dental na sua boca.
— Cala a boca e escove os dentes, querido. Vamos falar disto depois da transição dela. Tipo, daqui a doze ou quinze anos.
— Bdjgaehu hasdpi knidhgil.
— O que?
— Não vai fazer porra de diferença nenhuma.
Mas ele foi um bom garoto e escovou os dentes direitinho. Então ele e Mary tomaram banho... – Onde todo o tipo de outras coisas aconteceram...
TODAS AS QUAIS LHE LEMBRARAM EXATAMENTE POR QUE ELA JAMAIS IRIA NAMORAR, NUNCA, NUNCA.
Quando finalmente se deitaram juntos em sua grande cama, ele posicionou sua amada junto a ele e soltou um suspiro que durou um século e meio.
— As luzes estão apagadas? – Perguntou depois de um momento.
— Mmmm-hmmm.
Ele beijou a cabeça dela.
— Por que será que todas as boas coisas acontecem quando estou cego? Eu conheci você quando estava cego. Agora... Ela está aqui, e estou cego.
— Deve ser sua versão de amuleto da sorte.
Rhage encarou o nada acima de suas cabeças quando Mary bocejou tão forte que sua mandíbula estalou.
Um pouco antes de cair no sono, suas pálpebras voltaram a se abrir.
— Mary?
— Hmmmmmm.
— Obrigado. – Ele sussurrou.
— Por quê?
— Por fazer de mim um pai.
Mary ergueu a cabeça do apoio do braço dele.
— O que você... Eu não fiz isto.
— Você com certeza criou uma família para nós. – Maldição, ele queria poder vê-la. Em vez disso, teve de se contentar com a memória de seu rosto bonito... Que bom
que tinha passado tanto tempo admirando sua shellan. — Você absolutamente fez de mim um pai... Eu estava morrendo no campo de batalha e você me salvou. Se não tivesse
feito isto, jamais teríamos conseguido Bitty por que acabaríamos no Fade e ela teria acabado aqui embaixo, sozinha. Você fez isto acontecer. E não só por causa de
minha quase morte. Você ficou com Bitty desde o momento em que ela perdeu o pai, depois da morte do irmão dela, e então da mãe. Você trabalhou com ela depois de
tudo isso, ajudando a sair da concha. E então decidiu tentar isto, cuidou do processo de adoção e certificou-se de que tudo fosse feito dentro dos conformes. Me
ajudou na minha entrevista. Você se concentrou em Bitty. Você... Fez tudo isto acontecer, minha Mary. Você gerou minha filha, talvez não em seu útero, mas certamente
dentro das circunstâncias... Você fez de mim um pai. E este é o maior presente que uma fêmea pode dar a um macho. Então... Obrigado. Por nossa família.
O doce cheiro das lágrimas de sua shellan surgiu e ele buscou seu rosto na escuridão, trazendo sua boca para junto da dele. O beijo que lhe deu foi casto e cheio
de reverência, uma expressão de sua gratidão.
— Você tem um jeito de falar as coisas, sabia? – Ela disse em voz rouca.
— Estou sendo honesto. Só isso.
Quando Mary voltou a se recostar no seu peito, Rhage fechou os olhos.
— Eu amo você, minha Mary Madonna.
— E você sempre vai ser meu príncipe de presas brilhantes.
— Sério?
— Mmm-hmmm. Você é a melhor coisa que já me aconteceu. Você e Bitty.
— Isto é tão fofo. – Ele suspirou de novo. — Jesus, mas eu sinto muito por Bitty.
Mary ergueu a cabeça de novo.
— Por quê?
— POR QUE ELA NUNCA VAI NAMORAR...
— Rhage, sério. Você precisa dar um tempo com isto...
Capítulo SETENTA E DOIS
Sentada nos fundo do I’ve Bean, Jo olhou para cima quando Bill veio até a mesa.
— Nós temos que parar de nos encontrar assim.
O repórter riu enquanto sentava com seu café com leite.
— Então, boas notícias.
— Você achou o restaurante que Julio estava falando no centro da cidade?
— Não, você conseguiu a posição de editor online. Eles vão ligar pra você em uma hora e oferecer oficialmente. Não me disseram qual é o salário, mas chutando deve
ser uns trinta.
Jo deu um soco no ar de vitória.
— Sim. Sim. Isso é incrível. Posso começar logo depois que terminar meu aviso prévio na Bryant.
— Você sabia que ele me ligou?
— O que?
Bill desembrulhou outro de seus cachecóis e colocou nas costas da cadeira.
— Sim. Acho que ele é obcecado por você. Ele queria saber se estamos ou não namorando.
— Você é casado.
— Eu disse isso a ele. A propósito, Lydia quer convidá-la para jantar sábado a noite. Meu primo está vindo. Troy, você se lembra dele.
— Diga a ela que eu adoraria. O que posso levar?
— Só você mesma e não o Dougie.
— Feito.
Houve uma ligeira pausa, algo que ela não associava com o cara que tinha de alguma forma se tornado seu irmão mais velho ao longo da última semana, mais ou menos.
— O que foi? – Disse ela.
Bill olhou ao redor da cafeteria lotada como se estivesse em busca de um rosto familiar na multidão. Mais provavelmente estava escolhendo palavras em sua cabeça.
— O emprego é bom. – Ela instigou. — O jantar é bom. Então...
— Não quero que você fique chateada comigo, mas dei uma olhada na sua adoção.
O coração de Jo parou. Em seguida, começou a martelar.
— O que... O que você achou? E você não tinha o direito de fazer isso, blá blá blá.
Se ele tivesse pedido, ela teria dito não. Mas considerando que ele claramente encontrou alguma coisa?
Bill enfiou a mão no bolso de seu casaco de veludo e tirou um maço de papéis que estavam dobrados longitudinalmente.
— Sua mãe natural era uma enfermeira. Em Boston. Ela deixou o hospital quando descobriu que estava grávida. Naquela época, na década de setenta, mães solteiras não
eram bem vistas, e ela teve um filho que deu para adoção. Permaneceu em Boston, continuando a trabalhar em vários locais. Quinze anos mais tarde, fica grávida mais
uma vez, do mesmo cara. Porém nunca casou com ele. Não pelo que eu vi. Mas definitivamente era o mesmo homem, de acordo com as entradas dos diários que foram copiados
e colocados no arquivo. Desta vez, com você, ela se mudou, veio pra cá, estabeleceu-se em Caldwell. Quando teve você, infelizmente não resistiu. Foi uma gravidez
de alto risco por que estava mais velha nessa época. Ela nunca revelou quem era o seu pai, não houve nenhum parente próximo que veio te reivindicar.
Jo recostou na cadeira e sentiu que todo barulho e as pessoas ao seu redor desapareceram. Irmão? E sua mãe tinha morrido...
— Eu me pergunto se ela teria me mantido. – Ela disse calmamente.
— Seu pai, o adotivo, pediu a um advogado para manter seus olhos em possíveis bebês em St. Francis aqui na cidade. Assim que sua mãe biológica morreu, ele pagou
para reivindicar você e isso foi feito.
— E é isso.
— Não exatamente. – Bill respirou fundo. — Encontrei seu irmão. Mais ou menos.
O repórter colocou uma fotografia em preto e branco em cima da mesa. Era de um homem com cabelos pretos que ela não conhecia. Cerca de quarenta anos de idade.
— Seu nome é Dr. Manuel Manello. Ele era o chefe da cirurgia no St. Francis. Mas desapareceu há mais de um ano e realmente ninguém o viu desde então.
Com a mão trêmula, Jo pegou a foto pesquisando as características, encontrando algo que, sim, fosse como ela mesma.
— Nós dois acabamos no mesmo lugar...
— Caldwell tem um modo de reunir as pessoas.
— Nós temos o mesmo formato de olhos.
— Sim, tem.
— Eles parecem cor de avelã, você não acha? Ou talvez sejam castanhos.
— Eu não posso dizer.
— Posso ficar com isso?
— Por favor. E sinto muito se enfiei meu nariz onde sem dúvida não fui chamado. Mas comecei a cavar e não consegui parar. Eu não estava certo do que iria encontrar,
então não disse nada.
— Está bem. – Disse ela sem olhar para cima. — E obrigado. Eu... Sempre me perguntei como meu sangue parecia.
— Nós podemos tentar encontrá-lo, sabe?
Agora ela ergueu os olhos.
— Você acha?
— Tenho certeza. Somos repórteres investigativos, certo? Mesmo se ele deixou Caldwell, deve haver alguma maneira de localizá-lo. É extremamente difícil na vida moderna
ficar completamente em branco. Também há muitos registros eletrônicos, você sabe.
— Bill, você é algum tipo de fada padrinho?
Ele balançou a cabeça e brindou com seu café com leite.
— A seu dispor.
Um irmão, Jo pensou enquanto encarava a imagem de um cara indiscutivelmente bonito.
— Apenas um irmão? – Ela murmurou, mesmo que fosse ganancioso, ela supôs, querer mais.
— Quem sabe? Isso é tudo que parece que sua mãe deu a luz. Mas talvez do lado do seu pai? De qualquer forma, talvez haja alguma forma de encontrá-lo. A trilha pode
estar fria, mas podemos ter sorte.
— Sabe, toda essa busca de vampiro é como uma distração. – Ela sorriu com tristeza. — Estou bem ciente de que eles realmente não existem, e certamente não em Caldwell.
Acho que seria melhor começar a procurar pela minha família de verdade do que alguma fantasia falsa, você não acha?
— Talvez seja por isso que você ficou um pouco louca com tudo isso. Embora eu admita, estava bem lá com você.
— Família. – Ela murmurou, ainda encarando a imagem. — Família de verdade. Isso é o que eu quero encontrar.
Capítulo SETENTA E TRÊS
— Devo vestir um terno?
Quando Rhage saiu do banheiro, ele tinha o rosto barbeado, a maior parte dos cabelos secos e uma toalha em volta da cintura.
— Mary...
— Estou indo. – Ele ouviu vindo do hall. — Estou apenas ajudando Bitty.
— Sem pressa.
Ele estava sorrindo quando cruzou o tapete e caminhou para dentro do closet. A cerimônia deveria começar em meia hora, de modo que ainda tinha tempo para pensar
qual camisa de seda preta colocar...
— Filho da puta! – Ele gritou no ápice dos seus pulmões. — Está de sacanagem comigo!
Tão logo deixou voar os palavrões, todos doze tipos de gargalhadas borbulharam no quarto, seus Irmãos, sua shellan e sua garota Bitty estavam entrando, achando engraçado
como a destruição total de seu guarda-roupa fosse tãoooooo divertido pra caralho.
Era como se SOS Malibu tivesse vomitado sobre suas merdas.
— Uma prancha de surf! Rede de pesca? Isto é um... Um arpão? – Ele enfiou a cabeça para fora do batente. — Onde vocês, bando de lunáticos, encontraram um arpão em
Caldwell?
— Internet. – Disse alguém.
— Amazon. – Alguém interrompeu.
Ele revirou os olhos e apontou para Bitty.
— E você está nisso também? Até tu, Brutus Bits?
Quando a menina riu mais forte, ele voltou para o armário, pegou e soprou o grande tubarão branco.
— Quantas horas alguém gastou colocando ar nessa coisa?
Enquanto Rhage jogou o pesadelo dentro do quarto, Vishous levantou a mão.
— Fui eu. Mas usei uma bomba de ar... Na verdade eu soprei o primeiro.
— Ainda bem que tivemos apoio. – Butch apontou.
— Vocês são loucos. Insanos!
— Nunca fica velho. – Anunciou Wrath. — Jamais. Mesmo sem o visual, é uma inestimável mer... Ah, shitake. Cogumelo. É isso.
— Ha! – Disse Rhage ao seu Rei. — Está se divertindo com isso? Não é tão fácil, meu Senhor, é isso.
— Tecnicamente, posso ter você decapitado por esse tipo de insubordinação.
— Promessas, promessas.
Rhage revirou os olhos quando a multidão começou a dispersar e teve que lutar para chegar às suas roupas, empurrando de volta o... OMG, puta que pariu, era um Pirarema
empalhado?
— Vocês têm muito tempo em suas mãos. – Ele gritou para ninguém em particular.
Cinco minutos depois, saiu vestindo a mesma versão de preto e sob medida que tinha colocado para ser entrevistado por Rhym. Suas duas fêmeas estavam sentadas nos
pés da cama, Mary em um vestido preto e Bitty em um vestido azul brilhante que tinha sido feito apressadamente com orgulho pelo doggen da casa. Ambas tinham laços
prateados na cintura, e entre elas em cima do edredom, tinha duas longas fitas de cetim em azul, preto e prata.
— Oh, minhas garotas. – Ele parou e olhou para elas. — Oh, minhas belas fêmeas.
Ambas coraram, e Mary foi a primeira a se livrar disso quando ficou em pé e estendeu a mão para Bitty.
— Aqui estão suas fitas. – Disse sua fêmea enquanto eles iam com os arranjos.
— Nossas fitas. – Ele corrigiu.
Quando saíram do quarto juntos, eles se juntaram num rio de outras pessoas, todos fluindo para baixo na grande escadaria, fazendo a curva, continuando pela porta
escondida e dentro do túnel subterrâneo.
— É comprido. – Bitty disse enquanto caminhava entre eles. — O túnel é longo.
— Este é um lugar grande. – Rhage murmurou.
— Alguém já se perdeu?
Ele pensou em Lassiter.
— Não. – Ele resmungou. — Todo mundo sempre encontra seu caminho de volta. Especialmente anjos caídos com maus hábitos de programas de TV.
— Eu me enquadro nessa observação. – Lassiter estalou na parte de trás do cortejo.
Através do armário de abastecimento. Fora do escritório. Dentro do ginásio, que tinha sido especialmente iluminado com centenas de velas.
Em pé no interior das portas duplas, Layla, Qhuinn e Blay estavam ao lado das incubadoras, que foram movidas para o ginásio e enfeitadas com tecido branco apenas
para esta ocasião sagrada, e que seriam removidas de volta para o quarto de Layla logo que isto acabasse. Ao lado deles, numa cadeira de roda com terno e gravata,
Luchas era uma parte muito importante da família, mesmo que permanecesse quieto.
Na tradição dos vampiros, esta cerimônia era decisiva e não algo que pudesse esperar, considerando que a equipe médica sentia que as crianças estavam suficientemente
estáveis.
Ainda assim, tudo era mantido no escuro e ninguém falava para não agitar os bebês.
Depois de todos dentro, o grupo familiar, incluindo os empregados, Trez, iAm e sua companheira, bem como todas as Escolhidas e a Directrix, e também os pais de Blaylock
reunidos, Wrath e a Rainha entraram com George entre eles, e L.W. nos braços do Rei. Normalmente haveria longos discursos no antigo Idioma, mas em deferência aos
lactantes, Wrath manteve-se breve.
— Estamos reunimos aqui esta noite para dar boas-vindas na comunidade ao filho de sangue e a filha de sangue do Irmão da Adaga Negra Qhuinn, filho de Lohstrong,
e a Escolhida Layla, gerada do Primale e a Escolhida Helhena, e o filho adotivo e a filha adotiva de Blaylock, filho de sangue de Rocke e Lyric. Possam estes bebês
ter saúde, força e vida longa, um testemunho do amor de seus pais e sua mãe. Agora, como Rei, confiro a esta fêmea, – Wrath estendeu a mão e Beth o guiou até onde
o minúsculo berço feminino. — O nome de Lyric, em honra de sua avó por parte do seu pai Blaylock.
Quando a mahmen de Blay fungou, e Qhuinn e Blay colocaram seus braços em torno dela, Wrath colocou a mão sobre a outra incubadora.
Vindo de todos ao redor, uma explosão de energia borbulhou no meio da multidão e Rhage sacudiu a cabeça, espantado por testemunhar isto.
Com sua adaga real na mão sobre o pequeno berço do macho, Wrath pronunciou:
— Em reconhecimento à posição deste jovem pai como membro da Irmandade da Adaga Negra, sendo pedido a mim, o que eu confiro como Rei, um nome de Irmandade para este
macho. Eu tenho considerado o pedido e este foi apropriado.Tenho a honra de escolher o venerável nome Rhampage.
Um rugido de aprovação se levantou dos Irmãos e Rhage estava bem ali com o outros... Por que ele sabia que estava acolhendo o macho em seu meio.
Isto era feito certo, ele pensou. Isto era a maneira antiga. A maneira correta. A maneira para preservar as tradições.
Rhampage.
Era um nome muito antigo e muito bom.
Com seu filho nos braços e sua shellan ao seu lado, Wrath então colocou as sagradas fitas vermelha e preta da Primeira Família na borda de ambas as incubadoras.
E então, um a um, todos fizeram o mesmo, cada unidade familiar colocando juntos: Phury e Cormia, e Z, Bella e Nalla indo atrás de Wrath e Beth, seguido por todos,
de V, Jane, Payne e Manny, a Rehv e Ehlena, e John Matthew e Xhex.
Quando chegou sua vez, Rhage sorriu para suas fêmeas e se aproximaram das incubadoras. Era difícil não ser emocional quando três mãos se estenderam à frente com
seus comprimentos de azul, preto e prata da linhagem pela primeira vez no berço da Lyric e depois Rhampage. E depois todos três abraçaram os membros da família.
Tanto amor.
Todos ao redor.
As Escolhidas foram as próximas, e em seguida Trez, iAm e a Rainha de iAm colocaram um rubi do Território em cada um dos berços do bebês como uma forma de participar.
Depois disso, foram os doggens, suas fitas mais finas, mas não menos importantes.
Quando Rhage ficou atrás e assistiu, ele tinha um braço ao longo dos ombros de Mary, e um braço em Bitty. Era incrível quantas coisas tinham mudado quando ele voltou
a pensar na primeira noite, quando tentou ganhar Mary dizendo luxúrias ou sussurrar ou morangos.
Ela tinha respondido a ele com nada, dizendo repetidamente.
Engraçado, ela ter escolhido aquela palavra em particular. Por que na verdade ao longo destes últimos anos ela deu a ele absolutamente, positivamente... Tudo.
Capítulo SETENTA E QUATRO
Foi uma festa ótima.
Quando Mary finalmente conseguiu relaxar nos pés da escadaria da mansão, ela estava respirando com dificuldade, seu calcanhar esquerdo tinha uma bolha e sabia que
ia ficar toda dura mais tarde. Mas a dança – a dança.
A versão de house music do V, a qual era estritamente rap e hip-hop, estava inspirando todo tipo de aeróbica, e ela estava orgulhosa de notar que seu marido estava
todo Channing no seu Tatum lá, sacudindo o que a mãe dele deu com o melhor de si. Bits estava lá com ele aprendendo os passos, rindo, comendo e bebendo refrigerante.
Engraçado como algumas vezes a melhor época podia ser só sentar e assistir seu filho se divertir.
Através da multidão, Rhage fez sinal para ela ir até eles, e quando se abanou e sacudiu a cabeça, ele girou ao redor com Bitty.
— Mary!
— Eu só preciso de um minuto de descanso! – Ela gritou de volta. Por que esse era o único jeito de ser ouvida.
— Bitty, você pode convencer sua mahm... – Rhage se interrompeu. — Você pode convencer sua, ah, Mary, a se juntar a nós?
A pequena mordida de dor no meio do peito dela não era um grande problema, especialmente quando Mary pensava sobre o quanto a verdadeira mahmen da garotinha teria
amado fazer parte disso. E então não pensou em mais nada quando Bitty dividiu a multidão, agarrou sua mão e puxou ela pra cima.
E então teve ainda mais dança.
E mais comida, e mais bebida, e mais risadas, e mais comemoração... Até as duas da tarde, e então até as três...
Às quatro horas, até Lassiter tinha decidido que estava na hora de terminar e as pessoas começaram a dispersar para várias camas.
Naturalmente isso significava que ela, Rhage e Bitty acabaram indo parar na cozinha.
— Então Bits, esse é meu orgulho e alegria. – Ele disse enquanto guiava a garotinha pelo corredor até a despensa. — Esse é meu freezer de sorvete.
Deixando-os, Mary fez um trabalho rápido de pegar três tigelas, três colheres e três guardanapos, e só sentou e sorriu do arranjo que ela tinha colocado na mesa
de carvalho. Cantarolando para si mesma, esperou para ver o que viria do frio, por assim dizer, e se sentiu grata pela mania de organização obsessiva de Fritz, toda
a comida para a cerimônia da fita tinha sido limpa horas atrás.
— Okay, uau. – Ela disse com um sorriso. — Isso é muita coisa.
Quatro galões, não, espera, cinco.
— Nós escolhemos sabiamente. – Rhage disse com grande gravidade. — Apresento a você essa tarde…
Bit assumiu dali com a mesma voz pseudo grave.
— Rocky road22, café, menta com pedaços de chocolate, framboesa com pedaços de chocolate, e o seu favorito, chocolate crocante.
Enquanto os dois fizeram uma reverência se abaixando pela cintura, Mary bateu palmas.
— Muito bem escolhidos, muito, mas muito bem escolhidos.
— E agora. – Rhage falou com voz de Darth Vader. — Devo começar com o número de desaparecimento.
Bitty parou ao lado de Mary e as duas assistiram ao show, Rhage fazendo todo o tipo de truques, jogando as bolas de sorvete no ar e os oh-Deus-por favor-pegue-isso
no ar, e de fato pegando-as com as tigelas. Quando todos tinham o que queriam, eles começaram a comer.
Ou melhor, Rhage e Mary começaram a comer.
Quando notou que Bitty não estava comendo, Mary franziu o cenho.
— Você está bem? Comeu demais o bolo que serviram?
Levou um tempo antes da garota falar.
— Como os humanos chamam a mahmen deles? Qual é a palavra deles pra mahmen?
Mary piscou os olhos na direção de Rhage ao passo que ele congelou. Então ela limpou a garganta.
— Ah… Nós as chamamos de Mãe. Ou Mamãe.
— Mãe. – Bitty olhou para seu sorvete. — Mamãe.
— Mmm-hmm.
Depois de um momento, a garotinha olhou direto nos olhos de Mary.
— Eu posso, por favor, chamar você de mamãe?
Abruptamente Mary se encontrou sem ser capaz de respirar, sua garganta se apertando até uma extensão insuportável. Inclinando pra frente, ela segurou aquele rosto
entre suas palmas e olhou os traços que ela de repente sabia, sem dúvida, que veria crescer e amadurecer.
— Sim. – Ela sussurrou engasgada. — Eu gostaria disso. Gostaria que você me chamasse disso.
Bitty sorriu.
— Okay, mamãe.
E bem desse jeito, a garota a abraçou, enlaçando aqueles braços magrinhos, mas fortes ao redor de Mary e segurando firme.
Mary piscou com dificuldade, mas as lágrimas vieram de qualquer jeito, especialmente enquanto segurava a cabeça de Bitty contra seu peito e encontrou os olhos de
Rhage com lágrimas também.
Seu hellren lhe deu os dois polegares pra cima e formou as palavras Isso aí, Mamãe com os lábios.
Rindo e chorando, Mary respirou fundo e pensou, Sim, de verdade milagres com certeza aconteciam…
E ela só podia agradecer a Deus, à Virgem Escriba, a quem você quisesse, por aquilo.
Ela… Era uma mamãe.como seriam as rochas no caminho.

 

 

                                                                                                    J. R. Ward

 

 

 

                                          Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades