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A família Stuart tem um animal doméstico chamado Lummox, trazido por um antepassado explorador galáctico. Mas Lummox cresce para converter-se em uma espécie de diplodocus de oito patas, de apetite insaciável, linguarudo e brincalhão, fisicamente indestrutível e praticamente imortal. Como se esse problema fosse pouco, Lummox é além disto... mas é melhor que o leitor descubra por si mesmo.
Como de costume, Lummox estava faminto, o que era um estado normal entre os da sua raça. Sempre estavam dispostos a comer, mesmo após terem comido muito. Também estava aborrecido, coisa não tão habitual, e a causa era porque seu amigo mais íntimo, John Thomas Stuart, tinha ficado fora o dia todo, pois havia saído com sua amiga Betty.
Uma tarde não significava nada, Lummox podia prender a respiração durante todo esse tempo. Mas ele identificou os sinais e compreendeu a situação: John Thomas havia chegado àquela fase da vida em que passaria mais tempo com Betty e outras criaturas semelhantes, e cada vez menos com ele. Depois viria um período bastante longo, durante o qual John Thomas quase não ficaria com Lummox, mas ao término do qual apareceria um novo John Thomas que cresceria até chegar a ser um interessante companheiro de brincadeiras.
Lummox sabia que esse ciclo era necessário e inevitável, no entanto lhe esperava uma época muito cansativa. Caminhou pesadamente e indiferentemente pelo pátio traseiro da mansão dos Stuart, procurando alguma coisa: um grilo, um gafanhoto, ou qualquer coisa que valesse a pena observar. Durante algum tempo contemplou um formigueiro. Uma fileira interminável de formigas arrastava migalhas brancas em uma direção, que parecia ser a da sua casa, enquanto outra fileira, que seguia na direção oposta, ia procurar mais migalhas. Assim ele se entreteve durante meia hora.
Quando se cansou das formigas, entrou na sua própria casa. Sua pata número sete esmagou o formigueiro, mas ele não se deu conta. Sua casa o cabia totalmente e era o último edifício de uma fileira de construções cujo tamanho ia diminuindo progressivamente. A do extremo oposto teria servido adequadamente como canil para um chihuahua.
Em frente ao seu celeiro havia vários fardos de feno. Lummox arrancou uma pequena quantidade e pôs-se a mastigá-la preguiçosamente. Não pegou mais porque isto era o máximo que podia roubar sem que descobrissem. Nada lhe impedia de comer todo o monte de feno... mas sabia que John Thomas ralharia com ele e inclusive talvez se negasse a passar o ancinho nele durante uma semana ou mais. As regras de comportamento doméstico requeriam que Lummox não tocasse em outro alimento além da forragem que colocavam na sua manjedoura; ele geralmente obedecia, pois odiava as dissensões e sentia-se humilhado pela desaprovação.
Além disso ele não queria feno. Ele o havia usado para jantar na noite anterior, voltaria a comê-lo esta noite e novamente amanhã à noite. Lummox queria algo mais sólido e cheiroso. Caminhou até a cerca baixa que separava o pátio traseiro do jardim da senhora Stuart, assomou a cabeça por cima da cerca e olhou demoradamente para suas rosas.
Lummox havia pulado a cerca uma vez, poucos anos antes e provara as rosas..., somente um pouco, um simples aperitivo para abrir o apetite, mas a senhora Stuart armou tal confusão que ele nem queria mais pensar nisto. Estremecendo, ao evocar aquela recordação, distanciou-se apressadamente da cerca.
Lembrou-se então de uns roseirais que não pertenciam à senhora Stuart, e que portanto, na opinião de Lummox, não pertenciam a ninguém Estavam no jardim dos Donahue, os vizinhos do outro lado. Havia um caminho possível, no qual ele vinha pensando ultimamente, de chegar até essas rosas "sem dono";
A propriedade dos Stuart era rodeada por um muro de cimento de três metros de altura. Lummox nunca subira nele, embora tivesse mordido sua borda em uma ocasião. Na parte traseira, o muro tinha uma abertura para dar passagem à ravina que cruzava a propriedade e que recebia as águas desta, formando um riacho. Esta abertura estava fechada por uma maciça cerca de troncos muito grossos, amarrados com arames extremamente fortes. Os troncos verticais estavam enterrados no leito do riacho e o empreiteiro que instalou a cerca assegurou à senhora Stuart que bastaria para deter Lummox, uma manada de elefantes ou qualquer coisa que tentasse passar se arrastando entre os troncos.
Lummox sabia que o empreiteiro em questão estava equivocado, mas ninguém pediu sua opinião e ele não a manifestou. John Thomas tampouco havia expressado a sua, mas parecia suspeitar da verdade, e por isto ordenou a Lummox, com muita ênfase, que não derrubasse a cerca.
Lummox havia lhe obedecido. Limitou-se a cheirá-la, mas os troncos haviam sido embebidos em uma substância que lhes dava um sabor realmente insuportável, então ele os deixou em paz.
Mas Lummox não se sentia responsável pelo que fizessem as forças naturais. Há três meses atrás ele havia notado que as chuvas de primavera haviam erodido o fundo do barranco de tal forma que dois dos troncos verticais já não estavam enterrados nele, mas descansavam sobre o leito seco da torrente. Lummox havia pensado nisto durante algumas semanas, e chegou à conclusão de que com um suave empurrão os troncos se separariam em baixo. Um empurrão um pouco maior poderia abrir um espaço mais largo sem necessidade de derrubar a cerca.
Lummox desceu para a torrente para verificar se sua ideia estava correta. O fundo do barranco havia sofrido a ação das últimas chuvas ainda com maior intensidade e um dos troncos verticais tinha a extremidade a alguns centímetros acima do leito de areia e o outro apenas descansava sobre o solo. Lummox sorriu como um ser de mentalidade simples e, cuidadosamente, com a maior delicadeza, colocou sua cabeça entre os dois enormes troncos. Então empurrou suavemente.
A madeira rangeu na parte superior e a pressão diminuiu de imediato. Surpreso, Lummox tirou a cabeça e olhou para cima. A extremidade superior de um dos troncos havia se soltado e girava sobre uma viga horizontal mais baixa. Lummox riu consigo mesmo. Que pena..., mas já não podia ser evitado. Não era dos que se lamentam pelo que já não tem solução; o que está feito, está feito. Sem dúvida John Thomas se aborreceria... mas, enquanto isso, aqui havia uma passagem através da cerca. Baixou a cabeça como um jogador de rugby e continuou empurrando. Ouviu-se uma queixa da madeira que protestava e cedia, misturado com os estalidos mais fortes de arames quebrados, mas Lummox fez caso omisso; agora já estava do outro lado, e podia considerar-se livre. Parou e foi se levantando como um verme, levantando as patas números um e três, dois e quatro, do solo, e olhou ao redor. Certamente era divertido estar fora e ele se perguntou por que não havia feito isso antes. Fazia muito tempo que John Thomas não o tirava dali, nem sequer para dar um curto passeio.
Ainda estava olhando ao redor, cheirando o ar da liberdade, quando uma criatura de aspecto feroz lançou-se contra ele uivando e ladrando furiosamente. Lummox o reconheceu de imediato: era um corpulento e musculoso mastim que vagava pela vizinhança, sem dono ao que parece. Frequentemente eles haviam trocado insultos através da cerca. Lummox não tinha nada contra os cães; durante sua longa relação com a família Stuart havia conhecido vários deles e tinham-lhe parecido uma companhia agradável na ausência de John Thomas. Mas com este mastim era outra história. Achava-se o dono do bairro, agia como um valentão aterrorizando os gatos e desafiava Lummox uma vez ou outra para sair e brigar como um cão.
Apesar de tudo, Lummox sorriu, abriu a boca de par em par e uma voz ciciante de menina surgiu do seu interior e chamou o mastim com o pior nome que lhe ocorreu no momento. O cão começou a emitir sons entrecortados. Provavelmente não compreendeu o que Lummox havia dito, mas sabia que este o havia insultado. Recobrou o domínio e renovou o ataque, ladrando ainda mais forte e armando uma confusão infernal, enquanto saltava ao redor de Lummox, lançando-se de vez em quando aos seus flancos para morder-lhe as pernas.
Lummox permaneceu em guarda, observando o cão, mas sem fazer o menor movimento. Acrescentou à sua primeira observação uma afirmação verídica sobre os antepassados do cão, e outra que já não era tanto sobre os hábitos deste; ambas as observações contribuíram para manter o mastim em um estado de agitação frenética. Mas no sétimo ataque o cão aproximou-se demais do lugar em que estaria o primeiro par de patas de Lummox, caso ele tivesse ficado com suas oito patas no solo. Lummox baixou rapidamente a cabeça, como uma rã disposta a pegar uma mosca. Abriu uma boca enorme e devorou lindamente o cão. "Não é tão ruim", pensou Lummox enquanto o engolia. "Não está ruim de todo..., e a coleira era uma verdadeira guloseima". Considerou se deveria voltar ao pátio, atravessando novamente a cerca, agora que já havia comido um bocadinho, e negar categoricamente que havia saído. Mas ele não podia tirar da cabeça aqueles roseirais "sem dono"... e sem dúvida John Thomas lhe poria empecilhos se tentasse sair outra vez. Caminhou perto da parede traseira dos Stuart, e então deu a volta junto à sua extremidade e entrou na terra proibida dos Donahue.
John Thomas Stuart XI voltou para casa pouco antes do jantar, depois de deixar Betty Sorensen em casa. Ao aterrizar notou que seu mascote não estava à vista, mas supôs que estaria na sua casa. Sua mente não estava ocupada por Lummox, e sim pelo antiquíssimo fato de que as fêmeas não atuam segundo a lógica, pelo menos tal como os varões entendem a lógica.
Planejava entrar para a Escola Técnica do Oeste e Betty queria que ambos fossem para a Universidade Estadual. Ele a fez notar que na universidade não poderia fazer os cursos que lhe interessavam, Betty insistiu que poderia, e forneceu várias referências que demonstravam isto, disse-lhe que não era o nome do curso o que importava, e sim o nome do professor que dava o curso. A discussão terminou sem resultado quando ela se negou a admitir que ele fosse uma autoridade no assunto.
Soltou as correias do seu helicóptero individual, abstraído em seus pensamentos, dizendo a si mesmo quão falta de lógica era a mente feminina, e estava guardando o aparelho no vestíbulo quando sua mãe apareceu em sua frente.
- John Thomas! Onde você estava?
Tentou pensar que erro poderia ter cometido. Era um mau sinal o fato da sua mãe chamar-lhe "John Thomas"... "John" ou "Johnnie" queriam dizer que tudo estava bem, ou mesmo "garotinho John". Mas "John Thomas" geralmente significava que em sua ausência o garoto havia sido acusado, julgado e sentenciado.
- Hein? Mas eu já lhe disse na hora do almoço, mamãe. Saí com Betty. Voamos até...
- Isso não importa agora. Sabe o que essa besta fez?
Ele já temia isto. Lummox! Tomara que não tivesse sido o jardim da sua mãe. Talvez Lum tivesse voltado a derrubar sua própria casa. Se fosse isso, sua mãe não demoraria a acalmar-se. Talvez tivesse que construir outra maior.
- O que aconteceu? perguntou cautelosamente.
O que aconteceu? O que aconteceu? John Thomas, desta vez você terá que livrar-se dele. Isto já é o cúmulo.
- Fique calma, mamãe apressou-se ele a responder. Não podemos desfazer-nos de Lum. Você prometeu a papai.
Ela não respondeu diretamente.
- Com a polícia vindo aqui a cada dez minutos, e essa besta enorme e perigosa andando livre à vontade, e...
- Como? Espere um momento, mamãe; Lum não é perigoso, é tão manso como um gatinho. O que aconteceu?
- Tudo de ruim que você possa imaginar!
Pouco a pouco ele foi-lhe arrancando alguns detalhes. Lummox havia saído para dar um passeio, isto estava claro. John Thomas esperava sem muita convicção que ele não tivesse comido nada de ferro ou de aço. O ferro tinha um efeito explosivo sobre seu metabolismo. Ainda lembrava da vez em que Lummox comeu aquele carro de segunda mão, um Buick.
Seus pensamentos foram interrompidos pelas palavras da sua mãe:
- ...e a senhora Donahue está uma fúria só. Só poderia estar, suas rosas premiadas...
Oh, isso era muito ruim. Tentou se lembrar a quando ascendia sua mesada atualmente. Teria que pedir desculpas, além disso, e imaginar algum meio de aplacar aquela harpia. Enquanto isso, daria com um machado nas orelhas de Lummox. Ele sabia como eram valiosas as rosas, e não tinha a menor desculpa.
- Olhe, mamãe, não sabe quanto sinto. Vou sair imediatamente e ver se consigo meter algum juízo na cabeça dura dele. Mostrarei que estou tão aborrecido que ele nem sequer se atreverá a respirar sem minha autorização.
E John Thomas voltou-se para sair.
- Aonde você vai? perguntou ela.
- O que? Claro que vou falar com Lum. Já estou farto e...
- Não seja estúpido. Ele não está aqui.
- Hein? E onde ele está?
John Thomas voltou a rogar aos céus que Lummox não tivesse conseguido achar algum pedaço de ferro. O caso do Buick não foi realmente culpa de Lummox, e além disso pertencia a John Thomas, mas...
- Não sabemos por onde ele anda. O chefe Dreiser disse...
- A polícia está procurando por ele?
- Você já devia ter entendido isto, garoto! Ele está sendo perseguido por uma patrulha. O senhor Dreiser queria que eu descesse para a cidade para levá-lo para casa, mas eu lhe disse que teria que chamar você, que é a única pessoa capaz de lidar com essa besta.
- Mas mamãe, Lummox teria lhe obedecido. Sempre obedeceu. Porque o senhor Dreiser o levou para a cidade? Ele já sabe que Lum vive aqui. Isso de levá-lo para a cidade pode assustar o coitadinho. Lum é um animalzinho muito tímido, com certeza não gostará.
- Um animalzinho! Ninguém o levou para a cidade.
- Isso foi o que você disse.
- Eu não disse coisa nenhuma. Se você conseguir ficar tranquilo, eu contarei o que aconteceu.
Ao que parece, a senhora Donahue surpreendeu Lummox quando este estava comendo apenas quatro ou cinco das suas rosas. Dando provas de muito valor e muito pouco juízo, ela o atacou com uma vassoura, gritando e batendo em sua cabeça. A senhora Donahue não seguiu o destino do mastim, apesar de que ele poderia tê-la comido de uma vez só. Mas Lummox tinha um senso de propriedade tão afinado como qualquer gato doméstico. Não podia comer as pessoas, na verdade elas eram quase que invariavelmente amigas. Mas aquela feriu seus sentimentos mais íntimos, e ele se afastou pesadamente fazendo beicinho.
A ação seguinte atribuída a Lummox aconteceu a uns três quilômetros de distância, e uma meia hora depois da primeira. Os Stuart viviam nos arredores de Westville; esta zona estava separada da cidade propriamente dita, por extensos campos. Um tal senhor Ito possuía uma pequena fazenda na região, onde cultivava verduras para as mesas dos gourmets.
O senhor Ito, ao que parece, não sabia o que era aquilo que ele descobriu arrancando os repolhos e engolindo-os. A grande residência de Lummox na vizinhança não era certamente um segredo, mas o senhor Ito não tinha o menor interesse pela vida das outras pessoas, e era a primeira vez que ele via Lummox.
Contudo, ele não mostrou mais admiração que a senhora Donahue. Precipitou-se para o interior da sua casa e saiu de lá armado com um canhão que havia pertencido ao seu avô..., uma relíquia da Quarta Guerra Mundial, do tipo conhecido popularmente como "canhão anti-tanque".
O senhor Ito firmou o canhão sobre uma fileira de vasos e disparou, apontando para o lugar em que Lummox estava sentado, como se tivesse sido criado para tal finalidade. O estampido assustou o senhor Ito, que nunca havia disparado aquela arma, e o clarão o deixou momentaneamente cego. Quando esfregou os olhos e conseguiu ver novamente, aquele ser havia desaparecido. Mas era fácil saber a direção que ele havia tomado.
Este encontro não humilhou Lummox, como havia acontecido com a senhora Donahue. Desta vez ele era presa de um verdadeiro pânico. Enquanto engolia a salada verde, estava de frente para as estufas do senhor Ito. Quando a explosão feriu seus ouvidos, Lummox partiu a grande velocidade na mesma direção para onde sua cabeça estava voltada. Normalmente ele punha suas patas no solo nesta ordem: 1, 4, 5, 8, 2, 3, 6, 7 e voltava a recomeçar, o que era bom para velocidades que iam desde um passo lento até uma espécie de trote de cavalo; mas agora ele adotou desde o começo um galope duplo, movendo as patas 1, 2, 5, e 6 simultaneamente, e alternando com as 3, 4, 7, 8.
Lummox já tinha atravessado as estufas antes mesmo que se desse conta da existência delas, abrindo um túnel por onde poderia passar um caminhão médio. À sua frente, a uns cinco quilômetros, achava-se a cidade de Westville. Teria sido melhor para ele ter ido na direção oposta, para as montanhas.
John Thomas Stuart ouviu o confuso relato da sua mãe com crescente apreensão. Quando soube o que havia acontecido com as estufas do senhor Ito, deixou de pensar nas suas economias e começou a se perguntar que bens poderia converter em dinheiro. Seu helicóptero era quase novo, mas não bastaria para pagar a indenização. Perguntou-se se poderia fazer algum contrato com o banco. Mas de uma coisa ele estava certo: sua mãe não queria ajudá-lo.
Logo foram chegando mais informações. Lummox, ao que parece, havia atravessado o campo até que alcançou a estrada que condúzia à cidade. Enquanto tomava uma xícara de café, o motorista de um caminhão transcontinental queixou-se a um guarda de trânsito, dizendo que acabara de ver um robô pedestre do tamanho de um caminhão e sem número de matrícula, e que o maldito não parecia prestar a menor atenção aos sinais de trânsito. O caminhoneiro aproveitou a ocasião para lançar uma diatribe contra os motoristas mecânicos, dizendo que não havia nada que pudesse substituir um motorista humano, sentado na cabine e com o olho alerta para tudo que pudesse acontecer. O agente de trânsito não havia visto Lummox, pois estava tomando café quando este passou, e não se mostrou muito impressionado pelo que disse o motorista, o qual falava, evidentemente, influenciado pelos seus prejuízos. Entretanto, deu um telefonema.
O centro de controle de tráfego de Westville não prestou atenção à informação: estava totalmente ocupado com um caos terrível.
John Thomas interrompeu sua mãe.
- Alguém foi ferido?
- Ferido? Não sei, provavelmente. John Thomas, você tem que se livrar desta besta imediatamente.
Ele ignorou a ordem; não lhe parecia o momento propício para discutir.
- O que mais aconteceu?
A senhora Stuart não sabia dos detalhes. Perto do centro da cidade, Lummox encontrou-se em um ramal da autopista aérea. Então avançava lentamente e vacilante, pois o trânsito e a grande quantidade de pessoas o confundiam. Saindo da calçada, subiu em uma pista rolante. A pista se deteve, pois não havia sido desenhada para suportar um peso de seis toneladas; houve um curto-circuito, os fusíveis saltaram e o trânsito de pedestres, na hora de maior aglomeração do dia, foi afetado ao longo de vinte quarteirões do distrito comercial.
As mulheres gritaram, os meninos e os cães acrescentaram suas vozes à confusão geral, os agentes de trânsito tentaram restabelecer a ordem, e o pobre Lummox, que não queria causar dano a ninguém, nem tampouco tinha intenção de visitar o distrito comercial, cometeu um equívoco perfeitamente compreensível...
As grandes janelas do Bon Marché lhe pareceram um refugio ideal para escapar de todo aquele falatório. Supunha-se que a duríssima substância transparente dos janelões era inquebrável, mas não haviam contado que Lummox pensaria que ali só existia ar. Ele entrou no janelão e tentou se esconder em um quarto exposto à venda. Como é de se supor, ele não conseguiu totalmente.
A pergunta seguinte de John Thomas foi interrompida por uma pancada no teto; alguém havia aterrisado. Ele olhou para cima.
- Está esperando alguém, mamãe?
- Provavelmente é a polícia. Disseram que queriam...
- A polícia? Meu Deus!
- Não saia daqui... você tem que falar com eles.
- Eu não ia sair respondeu ele, desolado, e apertou um botão para abrir a entrada do teto.
Momentos depois, um sargento e um agente de trânsito apareceram na porta.
- Senhora Stuart? começou a dizer o sargento com toda cortesia. Às suas ordens, senhora. Nós... então viu John Thomas, que tentava passar desapercebido. Você é John Thomas?
John engoliu em seco.
- Sim senhor.
- Então venha conosco imediatamente. Desculpe-nos, senhora. Por acaso quer vir também?
- Quem, eu? Oh não, estou melhor aqui.
O sargento assentiu, com expressão aliviada.
- Ouça, o que é isto? Você tem uma ordem do juiz ou alguma coisa parecida? O sargento parou, mas logo disse lentamente:
- Não, filho, não tenho uma ordem do juiz. Mas se você é o John T. Stuart que estou procurando... e eu sei que é, e a menos que deseje que sejam tomadas medidas drásticas e definitivas a respeito desse bicho espacial, ou o que quer que ele seja, que você está escondendo, será melhor não resistir e vir conosco.
- Oh, se é assim eu irei apressou-se a dizer John.
- Muito bem. E trate de se comportar com é devido.
John Thomas Stuart guardou silêncio e o seguiu. Nos três minutos que o carra patrulha levou para voar até a cidade, John Thomas tratou de inteirar-se do pior.
- Ouça, senhor sargento. Houve alguém ferido? Diga-me, houve?
- Sargento Mendoza respondeu o sargento. Espero que não, ainda não sei. John achou ambígua aquela resposta.
- Bem... Lummox ainda está no Bon Marché?
- Então é assim como ele se chama... Lummox? Não me parece um nome muito forte. Não, nós o espantamos dali. Agora ele está sob o viaduto do West Creek... eu suponho.
Aquela resposta tinha um certo tom de sarcasmo.
- O que você quer dizer com esse "suponho"?
- Você verá, primeiro nós bloqueamos a Main Street e a Hamilton, depois o fizemos sair do armazém utilizando extintores de incêndio. Era a única coisa que parecia capaz de perturbá-lo, pois os tiros ricochetearam na sua pele. Diga uma coisa, de que é feita a pele desse animal? De aço?
- Oh, não exatamente.
A ironia do sargento Mendoza estava mais perto da verdade do que se imaginava; John Thomas continuava se perguntando com inquietação se Lummox teria comido algum objeto de ferro. Depois de digerir o Buick, o crescimento de Lummox ativou-se extraordinariamente; em duas semanas ele passou do tamanho de um hipopótamo às suas desusadas dimensões atuais, um crescimento muito maior do que o que ele tinha tido desde o seu nascimento. Ficou extraordinariamente fraco e parecia uma armação coberta de lona, pois seu esqueleto, que não tinha nada de terrestre, despontava através da pele. Foram necessários três anos de um regime muito alto em calorias para preenchê-lo novamente. Desde aquele dia, John Thomas tentou manter o metal longe de Lummox, especialmente o ferro, apesar de que seu pai e seu avô tinham por costume presenteá-lo de vez em quando com pedacinhos de ferro velho, como guloseima.
- E finalmente os extintores de incêndio conseguiram expulsá-lo... mas ele espirrou e derrubou dois homens. Depois disto, e visto que não conseguíamos encontrar você, continuamos utilizando mais extintores para obrigá-lo a sair para a Hamilton Street, com a intenção de espantá-lo para o campo onde ele não poderia causar tantos danos... A operação ia bastante bem, pois ele só derrubava algum semáforo de vez em quando ou pisava em um ou outro carro, quando chegamos ao lugar onde queríamos fazê-lo voltar para Hillcrest e conduzi-lo novamente para sua casa. Mas ele escapou e dirigiu-se para o viaduto, tropeçou no parapeito e... bem, você o verá agora mesmo. Já chegamos.
Meia dúzia de carros de polícia pairavam sobre a extremidade do viaduto. Rodeando aquela zona, havia muitos carros aéreos particulares e um ou dois ônibus aéreos; os carros de polícia os mantinham afastados a uma distância conveniente. Havia também várias centenas de pessoas com helicópteros individuais, flutuando como morcegos em todas as direções entre os veículos e tornando a ação da polícia ainda mais difícil. Em terra, alguns agentes, reforçados por policiais da brigada de emergências, tentavam impedir o avanço da multidão e desviavam o trânsito do viaduto e da estrada de carga que corria abaixo deste. O motorista do sargento Mendoza abriu passagem entre os carros que haviam no ar, enquanto falava em um telefone colocado no seu peito. O carro do chefe Dreiser, de um vermelho brilhante, separou-se do engarrafamento que havia na extremidade do viaduto e aproximou-se deles.
Os dois carros pararam, separados por uns poucos metros e a uns trinta metros sobre o viaduto. John Thomas via a enorme abertura no parapeito causada pela queda de Lummox, mas não conseguia vê-lo porque o viaduto impedia sua visão. A portinhola do carro de comando abriu-se e o chefe Dreiser apareceu nela. Ele parecia embaraçado e sua calva estava coberta de suor.
- Diga ao garoto Stuart que apareça um momento.
John Thomas baixou uma janelinha e fez o que lhe mandavam.
- Diga, senhor.
- Ouça garoto, você pode dominar esse monstro?
- Certamente, senhor.
- Tomara que esteja certo. Mendoza! Deixa-o em terra, e que ele tente.
- Às ordens, chefe.
Mendoza disse alguma coisa ao motorista, o qual fez o carro avançar para além do viaduto e preparou-se para aterrizar ali. Então eles puderam ver Lummox que havia se refugiado sob a extremidade da ponte, ficando cada vez menor... em relação ao seu tamanho anterior. John Thomas apareceu e chamou-o.
- Lum! Lummie, garotinho! Venha com o papai.
A criatura agitou-se e a extremidade do viaduto agitou-se com ela. Elevou o corpo por uns quatro metros e olhou ao redor perplexo.
- Aqui, Lum! Aqui em cima!
Lummox distinguiu seu amigo e o seu rosto contraiu-se com um sorriso idiota. O sargento Mendoza gritou:
- Aterriza, Slats. Terminemos com isso de uma vez.
O motorista desceu um pouco e então disse ansiosamente:
- Aqui já é suficiente, sargento. Esse bicho pode nos alcançar.
- Muito bem, muito bem. Mendoza abriu a portinhola e jogou por ela uma escada de corda. Você pode descer por aqui, filho?
- Claro.
Enquanto Mendoza lhe dava uma mão, John Thomas escorregou pela portinhola e agarrou a escada. Começou a descer por ela, até chegar a um ponto em que esta terminava; ainda estava a dois metros acima da cabeça de Lummox. Olhando pra baixo, disse:
- Levanta a cabeça, bonito, e me desce.
Lummox levantou outro par de patas do solo e colocou cuidadosamente sua larga cabeça debaixo de John Thomas, que se deixou cair sobre ele, balançando-se ligeiramente e agarrando-se para não cair. Lummox baixou-o suavemente até o solo.
John Thomas saltou no chão e voltou-se para olhá-lo. Bem, ao que parece a queda não tinha causado danos em Lum; ao menos isto era um consolo. Ele o levaria para casa e depois o examinaria centímetro por centímetro. Enquanto isso, Lummox esfregava as patas e emitia um som que se parecia muito com um ronronar.
John fez uma cara séria:
- Lummie, você é mau! Mau sim, muito mau... Acha certo o que fez?
Lummox parecia embaraçado. Baixou a cabeça até o chão, olhou para o seu amigo e abriu a bocarra de par em par.
- Eu não tinha a intenção de fazer isso protestou, com sua voz de garotinha.
- Não tinha a intenção de fazer! Claro, você nunca tem. Vou arrancar suas patas dianteiras e o farei engoli-las. Sim, eu o farei engoli-las entendeu? Vou lhe dar uma piza até lhe transformar em mingau, e então lhe usarei como tapete. Hoje, para começar, você irá para a cama sem jantar. Com que então, não tinha intenção de fazer isto!
O carro vermelho brilhante aproximou-se e pairou sobre eles.
- Está tudo bem? perguntou o chefe Dreiser.
- Claro que sim.
- Perfeito. Escute meu plano. Vou fazer com que levantem aquela barreira. Você o levará até Hillcrest, fazendo-o subir pela extremidade superior da vala. Ali a escolta o estará esperando; Você ficará atrás dela e a seguirá por todo o caminho de volta à sua casa. Está me entendendo?
- Sim senhor.
John Thomas viu que o riacho tinha sido bloqueado em ambas as direções com parapeitos anti-motim, uns tratores com blindagem pesada na sua parte dianteira, o que permitia estabelecer uma barricada temporária em toda a largura de uma rua ou de uma praça. Esses veículos eram de uso obrigatório da força pública desde os tumultos de 91, mas ele não conseguia lembrar de terem sido utilizados em Westville até então e começou a compreender que o dia em que Lummox decidiu-se em ir à cidade não seria facilmente esquecido.
Mas estava contente por Lummox ser tímido o bastante para não morder aquelas couraças de aço. Começava a abrigar a esperança de que seu mascote tivesse entretido a tarde toda para ter tempo de comer um objeto de metal. Voltou-se para ele:
- Bem, tira teu corpo feio desse buraco. Voltemos para casa.
Lummox obedeceu de boa vontade e o viaduto voltou a tremer quando ele o roçou.
- Faz um assento para mim.
A parte central do corpo de Lummox afundou uns sessenta centímetros. Ele começou a pensar muito sobre isso, e a parte superior do seu corpo adquiriu uma forma vagamente parecida com uma cadeira.
- Fica quieto ordenou-lhe John Thomas. Não quero que me esmague um dedo. Lummox obedeceu, tremendo ligeiramente, e o jovem subiu por suas costas, agarrando-se às dobras da dura pele de Lummox. Uma vez em seu lombo, acomodou-se no assento como um rajá pronto para uma caça ao tigre.
- Perfeito. Agora sobe depressa até a estrada. Não, não! Dá a volta, pedaço de bruto. Para cima, não para baixo.
Docilmente, Lummox deu a volta e começou a andar.
Dois carros de patrulha abriam a comitiva e outros a fechavam. O carro vermelho do chefe Dreiser mantinha-se sobre eles a uma distância prudente.
John Thomas subiu na cadeira improvisada e ficou pensando: primeiro, no que diria a Lummox e, segundo, o que diria à sua mãe. O primeiro discurso era o mais fácil; saía com perfeita fluidez e adornado de formosos epítetos; mas o segundo emperrava a toda hora.
Estavam a meio caminho da sua casa, quando uma pessoa, voando rapidamente em um helicóptero individual, aproximou-se da pequena comitiva. Aquela pessoa parecia ignorar a luz vermelha de advertência que piscava no carro do chefe de polícia, e desceu obliquamente até a besta estelar.
John Thomas pareceu reconhecer o estilo atrapalhado de Betty mesmo antes de distinguir suas feições, e viu que não havia se enganado. Tomou-a nos braços quando ela parou o motor.
O chefe Dreiser abriu violentamente uma janela e assomou sua cabeça por ela, mas Betty interrompeu pela metade sua furiosa peroração.
- Pelo amor de Deus, chefe Dreiser! Que modo de falar é este? Ele parou de falar e sua expressou mudou.
- É você, Betty Sorensen?
- Claro que sim. E devo dizer, chefe, que depois de tantos anos vendo-o ensinar na Escola Dominical, eu nunca teria imaginado ter que ouvi-lo empregar uma linguagem tão inconveniente. Se com isso você acredita dar um bom exemplo, me parece que eu...
- Senhorita, tenha cuidado com o que diz.
- Eu? Mas se foi você que empregava....
- Basta! Por hoje eu já tive o bastante. Ponha para funcionar novamente o seu aparelho e vá embora imediatamente. Este é um assunto oficial. Agora saia.
Ela olhou para John Thomas e piscou um olho, então seu rosto assumiu uma expressão de inocência angelical.
- Sinto muito, chefe, mas não posso.
- Como assim? Por que não pode?
- Acabou-se meu combustível. Eu fiz uma aterrisagem forçada.
- Betty, não tente me enganar.
- Eu? Enganá-lo? Vamos, diácono Dreiser!
- Eu já lhe darei o diácono. Se está com o tanque vazio, desça dessa besta e volte a pé para sua casa. É perigoso permanecer aqui.
- Lummie, perigoso? Lummie é incapaz de fazer mal a uma mosca. E além do mais, você quer que eu volte sozinha para casa? Por uma estrada em pleno campo, e sendo quase de noite? Me surpreende muito isso em você.
Dreiser, resmungando, fechou a janela. Betty soltou-se do seu aparelho e acomodou-se no assento que Lummox havia preparado, sem que ninguém mandasse, ao lado de John Thomas.
John olhou para ela.
- Oi, querida.
- Oi, cabeça dura.
- Não sabia que conhecia o chefe.
- Eu conheço todo mundo. Agora cale a boca. Eu vim aqui, a toda velocidade e bastante furiosa, depois de ouvir as notícias pelo rádio. Nem você nem Lummox seriam capazes de sair desta, embora Lummox seja o que pensa melhor dos dois, então me decidi a vir. Agora me conte tudo, sem esconder os detalhes mais espantosos. Não esconda nada da mamãe.
- Você é uma boa garota.
- Não percamos tempo com o que já sabemos. Esta é, provavelmente, a única chance que temos de conversar em particular antes que comecem a se meter com você, de modo que não perca tempo e conte-me tudo.
- O que você acha que é? Uma advogada?
- Melhor que isto, já que tenho o cérebro repleto de antecedentes. Eu posso fazer um trabalho muito criativo.
- Bem...
Com Betty ao seu lado, ele se sentia muito melhor. Agora ele e Lummox já não estavam sozinhos contra um mundo hostil. Contou-lhe tudo que sabia, enquanto ela escutava em silêncio.
- Alguém foi ferido? perguntou-lhe por fim
- Acho que não. Pelo menos não falaram nada.
- Teriam falado. Betty se endireitou. Então não temos pelo que nos preocuparmos.
- Como? Com centenas, talvez milhares de pessoas, que reclamarão uma indenização? Gostaria de saber o que você entende por preocupação.
- Pessoas feridas respondeu-lhe ela. Tudo o mais pode ser resolvido. Talvez possamos declarar Lummox insolvente.
- Que grande estupidez!
- Se você acredita que isto é uma estupidez, é porque nunca esteve diante de um tribunal.
- E você?
- Não mude de assunto. Além disso, Lummox foi atacado com armas mortíferas.
- Que não lhe causaram dano; somente lhe fizeram cosquinhas.
- Isto está fora de lugar. Indubitavelmente lhe causaram uma grande angústia. Não estou certa se depois disso possa ser considerado responsável pelo que aconteceu. Deixe eu me concentrar.
- Se importa se eu pensar também?
- Não, desde que eu não ouça o mecanismo. Cale a boca.
A comitiva prosseguiu em silêncio até chegar à mansão dos Stuart. Quando se detiveram, Betty deu-lhe um conselho.
- Não admita nada, absolutamente nada. E não assine nada. Se precisar de mim, me chame.
A senhora Stuart não saiu para recebê-los. O chefe Dreiser inspecionou a brecha na cerca em companhia de John Thomas, enquanto Lummox também olhava por cima dos seus ombros. O chefe observou John Thomas em silêncio, enquanto ele pegava uma corda e a amarrava em ambas as extremidades da abertura.
- Pronto! Agora ele já não poderá sair de novo. Dreiser estirou o lábio inferior.
- Filho, você está bem da cabeça?
- Você não está entendendo, senhor. A cerca não o deteria mesmo que a consertássemos... Não sei de nada que possa detê-lo. Mas essa corda o deterá. Lummox!
- Que queres, Johnnie?
- Está vendo essa corda?
- Sim, Johnnie.
- Se você parti-la eu quebro sua cabeça.
- Sim Johnnie.
- E eu proíbo que você volte a sair do pátio, a menos que eu lhe tire.
- Está bem, Johnnie.
- Me promete?
- Sim, Johnnie. Com todo meu coração.
- Na realidade, ele não tem coração prosseguiu Johnnie. Tem uma sistema circulatório descentralizado. É como...
- Não me importa mesmo que ele tenha bombas hidráulicas, desde que não se mova de casa.
- Ele não se moverá. Nunca quebrou uma promessa, embora não tenha coração. Dreiser mordeu o polegar.
- Muito bem. Esta noite eu deixarei aqui um homem com um portófono. E amanhã poremos vigas de aço no lugar desses troncos.
John já ia dizer "oh não, aço não", mas pensou melhor. Dreiser perguntou-lhe:
- O que foi?
- Oh, nada não.
- Não tire o olho dele.
- Ele não sairá.
- Será melhor para ele. Suponho que você saiba que ambos estão presos, hein? O que acontece é que não há forma de encerrar esse monstro a chave. Dreiser prosseguiu em tom bondoso: Vamos, não se preocupe. Você é um bom garoto e todo mundo gostava do seu pai. Agora tenho que falar com sua mãe. Fique aqui até que chegue um dos meus homens... e eu o apresentarei a esse... hummm... a esse bicho - concluiu, lançando um olhar perspicaz a Lummox.
Afastou-se, dirigindo-se para a casa.
John Thomas achou que era o momento de contar sobre a quarentena a Lummox, mas não se sentia com ânimo para isto.
2 O DEPARTAMENTO DE ASSUNTOS ESPACIAIS
John Thomas Stuart XI sentia-se terrivelmente deprimido, e achava que ninguém poderia sofrer tanto como ele e Lummox. Na verdade, ele não era o único que passava mal em Westville. O senhor Ito era espreitado por uma doença fatal, que logo acabaria com sua vida... a velhice. Em todos os lares da cidade havia pessoas que sofriam em silêncio. Diversas razões dinheiro, saúde, orgulho, os mantinham encerrados em suas casas.
Mais distante, na capital do Estado, o governador contemplava desesperado os documentos que tinha à sua frente, e que constituíam as provas que iam enviar o seu amigo mais íntimo para a cadeia. Mais distante, em Marte, um explorador abandonava seu carro lagarta avariado e se dispunha a tentar a longa viagem de regresso ao Posto Avançado, aonde nunca chegaria.
Infinitamente mais distante, a vinte e sete anos luz, a astronave "Bolívar" entrava em uma transição interespacial. Um defeito em um minúsculo relé faria com que este funcionasse um décimo de segundo após o tempo devido. Em consequência desse fato, a astronave "Bolívar" permaneceria vagando durante muitos anos entre as estrelas. Nunca encontraria o caminho de volta à sua base.
Inconcebivelmente distante da Terra, no interior de outra galáxia, uma raça de crustáceos arborícolas perdia terreno progressivamente para uma raça de anfíbios mais jovens e agressivos. Transcorreriam vários milhares de anos terrestres antes da extinção total dos crustáceos, mas não havia dúvida quanto ao resultado da luta travada. Mas nunca achariam um modo de voltar ao estado anterior. Do ponto de vista humano era algo lamentável, porque a raça dos crustáceos possuía algumas faculdades mentais e espirituais que se teriam complementado bem com as humanas, favorecendo a mútua cooperação. Mas quando os primeiros humanos desembarcarem ali, dentro de uns onze mil anos, os crustáceos terão sido aniquilados há muito tempo atrás.
Na Terra, na capital da Federação, Sua Excelência o Mui Honorável Henry Gladstone Kiku, subsecretário permanente de Assuntos Espaciais, não estava nem um pouco preocupado pelos crustáceos sentenciados, porque nunca saberia da sua existência. Tampouco estava preocupado com a astronave "Bolívar", mas estaria. Além da perda da astronave em si, a perda de um dos passageiros originaria uma longa série de problemas para Henry Kiku e para os seus colaboradores.
Todas, e cada uma das coisas que aconteciam fora da ionosfera da Terra eram incumbência de Henry Kiku. Da mesma forma, tudo quanto concernia às relações entre a Terra e qualquer parte do Universo explorado. Inclusive assuntos que aparentemente eram somente terrestres, ficavam sob sua jurisdição, se afetasse ou fossem afetados de algum modo, por alguma coisa de origem extraterrestre, interplanetária ou interestelar... Um campo muito amplo, para dizer a verdade.
Os problemas que lhe eram apresentados incluíam coisas como, por exemplo, o transplante da erva dos desertos de Marte, devidamente modificada, para a meseta tibetana. O departamento de Kiku não aprovou o projeto até depois de ter examinado cuidadosa e matematicamente as possíveis repercussões que teria na indústria de lã australiana, juntamente com uma dúzia de outro fatores. Andava-se então com pés de chumbo, após o fracasso em Madagascar com o assunto das raízes marcianas em forma de baga. As decisões de índole econômica não preocupavam Henry Kiku, por mais importantes que fossem; mas em troca, havia outras que o mantinham acordado a noite toda, como sua decisão de não outorgar escolta policial para os estudantes de Procion VII que vinham para Goddard em um intercâmbio escolar, apesar do autêntico perigo que eles corriam entre terrestres provincianos cheios de preconceitos contra os seres cujos membros, olhos ou outras partes da sua anatomia não tinham nada de terrestre. Os cefalópodes daquele planeta eram muito suscetíveis, e algo muito parecido a uma escolta policial era o que eles utilizavam comumente para castigar seus criminosos.
Henry Kiku dispunha de uma grande equipe de colaboradores, e claro, contava também com a ajuda do seu ministro. Este pronunciava discursos, recebia visitas importantes, concedia entrevistas e livrava Kiku de algumas obrigações que certamente eram pesadas. Enquanto o ministro se portasse devidamente ocupando-se dos seus assuntos, fazendo aparições públicas e deixando que o subsecretário governasse à sua vontade o departamento, contava com a completa aprovação de Kiku. Claro, se não conseguia se livrar de parte do seu trabalho ou aliviar-se das suas obrigações, Kiku era capaz de encontrar uma maneira de desfazer-se dele. Mas fazia quinze anos que não se via obrigado a empregar medidas tão drásticas. Ainda não havia chegado a uma decisão no que concernia ao ministro, mas neste momento não pensava nele. Em lugar disto, estudava o Projeto Cérbero de energia para a estação de pesquisas de Plutão. Acendeu-se uma luz sobre sua mesa e ele levantou o olhar, a tempo de ver que se abrira a porta que comunicava seu gabinete com o do ministro, o qual entrou assobiando "Leva-me para dançar", mas Kiku não reconheceu a melodia.
O ministro disse:
- Oi, Henry. Não, não se levante.
Henry Kiku não havia feito o menor gesto para levantar-se.
- Como está, senhor ministro? Em que posso servi-lo?
- Em pouco, muito pouco. Deteve-se junto à mesa de Kiku e pegou a pasta do projeto. O que você está estudando? Cérbero, hein? Henry, isto é função dos engenheiros. Por que temos que nos preocupar com isto?
- Existem aspectos respondeu Kiku mordendo suas palavras que nos afetam.
- Acho que sim. O orçamento e outras ninharias. Seus olhos procuraram a linha que dizia: CUSTO CALCULADO: 3,5 megapavos e 7,4 vidas. O que é isto? Eu não posso me apresentar diante do Conselho com isto e pedir que ele aprovem. É grotesco.
- Os primeiros cálculos indicavam mais de oito megapavos e uma centena de vidas.
- O dinheiro não importa, mas este outro parágrafo... Quer que eu peça ao Conselho que assine a sentença de morte para sete homens e um quarto? Você não vai querer que eu faça isto, seria desumano. Mas me diga, que diabos é isso de quatro décimos de homem? Como se pode matar uma fração de homem?
- Senhor ministro respondeu pacientemente seu subordinado, todo grande projeto, até mesmo para fazer um balanço para o pátio da escola, implica em uma provável perda de vidas. Mas aqui o fator risco é pequeno. O que quero dizer é que seguindo adiante com o Projeto Cérbero, gozaremos da maior segurança, em termos médios, do que se ficarmos na Terra. Esta é a minha opinião.
- Como? Então por que você não falou isso antes? Por que não expôs o Projeto dessa forma?
- Esta informação é para meu estudo... unicamente para nós o estudarmos. O informe que apresentará ao Conselho destacará todas as medidas de segurança sem incluir o cálculo das mortes, que é aproximado.
- Então é apenas uma aproximação, hein?
O ministro largou a informe e pareceu perder o interesse nele.
- Algo mais, senhor?
- Ah, sim! Henry, você conhece esse dignatário rargiliano que tenho que receber hoje? O doutor... como se chama...
- O doutor Ftaeml disse Kiku, dando uma olhada no quadro de avisos colocado em cima da mesa. A entrevista será dentro de uma hora e sete minutos.
- Pois eu tenho que pedir que você me substitua. Apresente a ele minhas desculpas. Diga que estou sendo retido por assuntos de Estado.
- Acha prudente, senhor? Eu não o aconselharia. Ele espera ser recebido por um alto funcionário como você, e os rargilianos são muito meticulosos em questões de protocolo.
- Ora vamos, esse indígena não se dará conta da substituição.
- Pois eu lhe afirmo que sim, senhor.
- Bem, pois então que ele acredite que você sou eu. Não me importa. Mas não posso recebê-lo. O Presidente me convidou para ir a jogo de bola com ele, e um convite do Presidente é uma ordem, como você sabe muito bem.
Kiku sabia que não era nada disso, mas ficou calado.
- Muito bem então, senhor.
- Obrigado, amigo.
O ministro saiu sem deixar de assobiar.
Quando a porta se fechou, Kiku acionou, com um gesto azedo, uma fileira de comutadores que havia no painel da sua mesa. Agora estava isolado e ninguém poderia acessá-lo utilizando o telefone, vídeo, tubo, auto-escritor ou por qualquer outro meio parecido, que não fosse através de uma campainha de alarme que sua secretária só havia utilizado uma vez em doze anos. Pôs os cotovelos sobre a mesa e cobriu a cabeça com as mãos e alisou o cabelo crespo com os dedos.
Isso, aquilo, mais outra coisa... e sempre algum chato no momento mais inoportuno. Porque tinha deixado a África? Por que aquela inquietação por tornar-se um funcionário público? Uma inquietação que, havia muito tempo, tinha se transformado em um simples hábito.
Endireitou-se e abriu a gaveta do centro. Estava abarrotada de prospectos do Kenya. Em pouco tempo ele estava envolvido na comparação dos respectivos méritos de uma dúzia de fazendas. Uma delas era uma verdadeira barganha, se pudesse pagála... mais de 300 hectares, a metade com cultivos, e sete poços de água potável. Olhou o mapa e as fotografias e sentiu-se melhor. Depois de um tempo, guardou-os e fechou a gaveta.
Viu-se obrigado a admitir que, apesar de que tinha sido verdade o que havia dito ao seu chefe, sua reação nervosa se baseava principalmente no inveterado temor que lhe causavam as serpentes. Se o doutor Ftaeml fosse qualquer outra coisa e não um rargiliano, ou se os rargilianos não fossem medusas antropoides, ele não teria se importado. Claro que ele sabia que os tentáculos que brotavam da cabeça dos rargilianos não eram serpentes, mas seu estômago ignorava este fato. Tinha que encontrar o tempo necessário para submeter-se a um tratamento hipnótico... Não, não tinha tempo; em lugar disto, seria melhor que tomasse uma pílula.
Suspirou e voltou a acionar os comutadores. A bandeja dos assuntos a despachar começou a encher-se imediatamente, e acenderam-se todas as luzes do painel de comunicação. Mas as luzes eram de cor âmbar e não vermelho sangue. Ignorou sua existência e olhou os papeis que caíam na sua bandeja. Quase todos eram assuntos de trâmite pendentes da sua aprovação. Aplicando suas diretrizes, seus subordinados, ou os subordinados destes, costumavam resolver todos os assuntos. De vez em quando verificava um nome ou uma ação sugeridos e passava a folha para a bandeja de saída.
Chegou um radio-tipo que não era um simples assunto de trâmite, pois concernia a uma criatura que, ao que parece, era extraterrestre, mas de tipo e origem não determinados. O incidente no qual se havia visto envolvido parecia de pouca monta... um pequeno alvoroço em uma das aldeias indígenas da parte ocidental do continente. Mas o fato de que se tratava de uma criatura extraterrestre obrigava automaticamente a polícia a informar o Departamento de Assuntos Espaciais, e a falta de classificação da criatura extraterrestre impedia que se tomasse uma ação rotineira, pelo que se lhe havia sido enviado o informe.
Henry Kiku jamais havia visto Lummox, e mesmo que o tivesse visto não teria tido nenhum interesse por ele. Mas sabia que cada contato com o "lá de fora" era único. O universo era ilimitado em suas variedades. Presumir algo sem conhecimento prévio, raciocinar por analogia, dar por sabido o desconhecido, não era mais que convidar ao desastre.
Kiku repassou sua lista de pessoal para ver a quem poderia enviar. Todos e cada um dos seus funcionários de carreira tinham atribuições para atuar como um tribunal de jurisdição ordinária e superior em qualquer caso relacionado a seres extraterrestres, mas qual deles estava na Terra e livre de serviço?
Já o tinha. Sergei Greenberg era o homem. O Departamento de Inteligência Comercial poderia passar sem seu chefe durante um dia ou dois. Acionou um comutador.
- Sergei?
- Diga, chefe.
- Está ocupado?
- Bem, sim e não. Estou cortando as unhas e trabalhando para achar uma razão suficiente para obrigar os contribuintes a me dar mais dinheiro.
- Deveriam fazê-lo, não e mesmo? Estou lhe enviando uma nota agora mesmo.
Kiku acrescentou o nome de Greenberg no radio-tipo e deixou-o cair na bandeja de saída; esperou uns segundos até que viu Greenberg recolhê-lo da sua bandeja de entrada.
- Leia.
Greenberg fez isto e depois levantou os olhos.
- Você me dirá o que fazer, chefe.
- Telefone ao juiz local e diga que este assunto passa para nossa jurisdição, depois vá para lá e veja do que se trata.
- "Seus desejos são uma ordem para mim, oh meu rei!" Imagino que a criatura seja terrestre, depois de tudo. Aposto o dobro contra um de que sou capaz de identificá-lo se não for.
- Nada de apostas, pelo menos nessa proporção. Embora provavelmente você tenha razão. Mas poderia tratar-se de uma "situação especial" e não podemos correr riscos.
- Eu manterei calmos os sabujos locais, chefe. Onde é a "favela"? Westville? É assim que se chama?
- Como eu vou saber? É você que tem o informe. Greenberg deu uma olhada.
- Puxa! É nas montanhas... Talvez sejam necessárias duas ou três semanas, chefe.
Lhe parece bem?
- Se você passar mais de três dias, eu descontarei das suas férias anuais.
Kiku fechou o comutador e envolveu-se em outras questões. Atendeu uma dúzia de chamadas, despachou totalmente os assuntos de trâmites, mas a bandeja voltou a encher-se, e alertou-se finalmente que havia chegado a hora de receber o rargiliano. Ficou todo arrepiado ao pensar e procurou apressadamente na sua mesa, tentando achar uma das pílulas especiais, que seu médico lhe havia aconselhado que não tomasse com muito frequência. Acabara de engoli-la quando uma luz começou a piscar e a sua secretária lhe disse:
- Senhor! O doutor Ftaeml está aqui.
- Faça-o entrar.
Kiku murmurou algo em uma língua que seus antepassados utilizavam para a magia e para fazer esconjurações... contra as serpentes, por exemplo. Quando a porta se abriu, seu rosto assumiu uma expressão conveniente à recepção de um visitante distinto.
3 «...UMA PERGUNTA IMPROCEDENTE»
O ponto de vista sobre o caso de Lummox não foi adiado pela intervenção do Departamento de Assuntos Espacias, ao contrário, os trâmites foram acelerados. O delegado do Departamento, Sergei Greenberg, pediu permissão ao juiz para que o deixasse utilizar a sala do tribunal. E rogou-lhe também que reunisse os implicados, Lummox incluído, às dez horas da manhã seguinte. O juiz O'Farrel não achava bom a presença da criatura estelar.
- É indispensável que ele compareça?
Greenberg respondeu-lhe que sim, uma vez que a relação desse ser com o caso era a única razão que o obrigava a intervir.
- Senhor juiz, nós do Departamento Espacial não gostamos de nos imiscuirmos nas questões locais. Uma vez eu tenha visto e interrogado a criatura, provavelmente me darei por satisfeito. O motivo da minha intervenção é precisamente a existência dessa suposta criatura extraterrestre. Portanto, rogo-lhe que convoque o Tribunal.
- Verá que é muito grande para entrar na sala. Faz alguns anos que não a vejo e, e acho que cresceu mais ainda... se bem que antes também não coubesse. Não poderia ir vê-la no lugar onde se encontra agora?
- Possivelmente, embora eu deva admitir que tenho o hábito de querer que estejam reunidos no tribunal todos os elementos de um julgamento. Onde ela está?
- Presa em seu domicílio, junto com seu dono. Possuem uma casa nas cercanias, a algumas milhas da cidade.
Greenberg refletiu. Embora fosse um homem conformista a quem não importava comer mal quando se tratava de alguma coisa concernente ao Departamento Espacial, preferia que os outros fizessem as coisas; do contrário, nunca poderiam resolver todos os assuntos pendentes do Departamento.
- Eu gostaria de evitar essa viagem ao campo, pois devo manter aqui a minha aeronave e voltar à capital amanhã à tarde, se for possível. Me reclamam ali assuntos urgentes... o tratado com Marte.
Esta era a mentira que Greenberg sempre utilizava quando queria apressar alguém que não pertencia ao Departamento.
O juiz O'Farrel disse que providenciaria isto.
- Levantaremos uma cobertura provisória no prado contíguo ao tribunal.
- Magnífico! Até amanhã, senhor juiz. Obrigado por tudo.
O juiz O'Farrel estivera pescando dias atrás, quando aconteceu o caso de Lummox. Os destroços já haviam sido reparados quando ele voltou, e tinha por princípio inamovível não ouvir nem ler informações jornalísticas nem falatórios sobre os casos que tinha que julgar. Quando telefonou ao chefe Dreiser, esperava que não haveria dificuldades em trazer Lummox
O chefe Dreiser deu um salto fenomenal.
- Senhor juiz, o senhor perdeu o juízo?
- Hein? O que está acontecendo, diácono?
Dreiser tratou de explicar-lhe, mas o juiz fez caso omisso das suas objeções. Então ambos telefonaram para o prefeito. Mas este também havia saído para pescar com o juiz, e deu-lhe a razão para isto. Suas palavras foram:
- Chefe, o senhor me surpreende. Não podemos admitir que um alto funcionário da Federação imagine que nossa pequena cidade é tão atrasada que não consegue resolver um probleminha como este.
Dreiser resmungou, mas chamou as Indústrias de Aço e Soldagem dos Estados Montanhosos.
O chefe Dreiser decidiu trasladar Lummox antes do amanhecer, pois desejava instalá-lo antes que as ruas estivessem cheias de carros e pedestres.
Mas ninguém se lembrou de advertir previamente a John Thomas. Despertaram-no às quatro da madrugada causando-lhe um susto tremendo e interrompendo lhe no meio de um pesadelo. A princípio achou que algo de mal havia acontecido com Lummox. Quando se inteirou da situação, mostrou-se muito disposto a cooperar. Mas ele era um sujeito que demorava a se mover, um desses indivíduos que pela manhã têm muito pouca glicose no sangue e que não servem para nada até depois de terem feito um copioso desjejum... que ele insistia em comer imediatamente.
O chefe Dreiser estava perdendo as estribeiras. A senhora Stuart, em tom bastante maternal, disse:
- Mas querido, não acha que seria melhor...?
- Primeiro vou tomar meu café da manhã, e Lummox também. Dreiser disse:
- Garoto, você está completamente equivocado. Se teimar em manter essa atitude, será muito pior. Anda, vamos. Tomará o café na cidade.
John Thomas continuava com sua teimosia e sua mãe o repreendeu com aspereza:
- John Thomas! Você tem que obedecer, está me ouvindo? Sempre tem que pôr dificuldades, do mesmo jeito que seu pai fazia.
A menção ao seu pai o firmou ainda mais em sua atitude de desafio, e disse com sarcasmo:
- Me estranha você não me defender, mamãe. Me ensinaram na escola que um cidadão não pode ser tirado da sua casa por um simples capricho de um policial. Mas você parece desejosa de ajudá-lo, em lugar de me ajudar. Está a favor de quem?
- John Thomas! Que modos são esses de falar com sua mãe?
- Sim interveio Dreiser. Se você não falar com sua mãe como deve, lhe darei uma bofetada... extra oficialmente, claro. Se existe uma coisa que não posso admitir é um filho que trata mal aos seus pais. desabotoando sua túnica, tirou um papel dobrado. O sargento Mendoza me falou sobre a argúcia que você usou com ele outro dia, e portanto vim prevenido. Aqui tem a citação do juiz. Virá agora ou terei que levá-lo arrastado?
O chefe de Polícia permanecia imóvel, batendo levemente o papel contra a palma da mão, sem oferecê-lo a John Thomas, mas quando ele tentou pegá-lo, entregou-o e esperou que terminasse de lê-lo.
- E então? Está satisfeito?
- É uma ordem do tribunal disse John Thomas convocando-me, juntamente com Lummox.
- Justamente.
- Mas a hora fixada é às dez. Não diz que não posso tomar o desjejum antes de me apresentar às dez.
O chefe inspirou profundamente, aumentando visivelmente seu volume. Seu rosto rosado ficou escarlate, mas não replicou.
John Thomas disse:
- Mamãe, vou preparar meu desjejum. Quer que eu prepare o seu também? Ela olhou para Dreiser, depois novamente para seu filho e mordeu os lábios.
- Não importa disse grunhindo. Já preparei o meu. Senhor Dreiser, quer tomar café conosco?
- Hein? A senhora é muito amável. Está bem, tomarei. Estive de pé a noite toda. John Thomas olhou para eles:
- Vou sair um momento para dar uma olhada em Lummox. vacilante, prosseguiu:
- Sinto ter sido um pouco brusco, mamãe.
- É melhor não falarmos mais nisto respondeu-lhe sua mãe, friamente.
Ele pensou em dizer alguma coisa se desculpando, mas pensou melhor e saiu.
Lummox roncava suavemente, estendido meio dentro e meio fora da sua casa. Seu olho sentinela estava erguido sobre o pescoço, como sempre acontecia quando a besta dormia. Quando John Thomas se aproximou, o olho girou para ele e o examinou, mas a parte de Lummox que montava guarda reconheceu o jovem e a criatura estelar continuou dormindo. Satisfeito, John Thomas voltou a entrar em casa.
A atmosfera suavizou-se durante o desjejum. Após ter comido dois pratos de mingau de aveia, ovos mexidos e torradas, e bebido meio litro de chocolate, John Thomas estava disposto a achar que o chefe Dreiser havia cumprido com o seu dever e que provavelmente não aborrecia as pessoas porqeu gostava. Por sua vez, o chefe, sob a influência do suculento desjejum, chegou à conclusão de que aquele garoto não era tão mau como parecia, e que uma mão firme e uma ou outra tapa ocasional o poria a andar no caminho certo. Era uma lástima que ele só fosse cuidado por sua mãe; parecia uma senhora muito fina e distinta. Perseguiu um pedaço de ovo com sua torrada, conseguiu capturá-lo e disse:
- Eu me sinto muito melhor, senhora Stuart, eu lhe asseguro. Para um viúvo, é muito perigoso provar a cozinha caseira... mas não me atrevo a dizer isto aos meus homens.
A senhora Stuart levou a mão à boca.
- Oh, eu havia me esquecido deles e acrescentou: Posso preparar mais café em um instante. Quantos são?
- Cinco. Mas não se preocupe, senhora, eles comerão quando terminarem o serviço. voltou-se para John Thomas. Está pronto, garoto?
- Hummm.. John Thomas voltou-se para sua mãe. Por que não lhes oferecemos desjejum também, mamãe? Eu ainda tenho que acordar Lummox e dar-lhe de comer. Após Lummox ter despertado e comido e John Thomas ter lhe explicado o caso, e após os cinco policiais terem tomado uma segunda xícara de café depois de um opíparo desjejum, a atmosfera parecia mais uma festa social que uma detenção. Eram mais de sete horas quando a comitiva saiu para a estrada.
Eram nove horas quando conseguiram meter Lummox na cobertura temporária anexa ao tribunal, e deixá-lo nele. Lummox ficou encantado com o cheiro do aço, e quis ficar mordiscando. John Thomas teve que falar-lhe muito sério. Ficou na companhia de Lummox e lhe fez afagos e carícias enquanto os operários soldavam a porta. Sentiu-se bastante preocupado ao ver a maciça jaula de aço, porque nunca havia dito ao chefe Dreiser que o aço era completamente inútil contra Lummox.
Já estava muito tarde, especialmente levando-se em conta que o chefe estava muito orgulhoso da sua jaula. Não tinha tido tempo de fazer de cimento e, portanto, o chefe ordenou que construíssem uma casa com vigas de aço no teto, fundo e traseira, mas com um lado aberto até que Lummox fosse encerrado nela.
"Bem" pensou John Thomas, "todos são muito sábios e nem sequer se preocuparam em me perguntar nada."
Limitou-se a advertir Lummox para que não comesse nem um pedaço da jaula, sob terríveis ameaças de castigo... e confiou que tudo ficaria bem.
Lummox sentia-se inclinado a discutir. Do seu ponto de vista, aquilo era tão estúpido quanto tentar encerrar um menino faminto rodeando-o com montões de pasteis. Um dos trabalhadores parou, baixou seu maçarico e disse:
- Ouça, eu diria que este bicho estava falando.
- E falava, com efeito.
- Oh! O operário olhou para Lummox e depois voltou ao seu trabalho. Ouvir um extraterrestre falar não constituía nenhuma novidade, especialmente nos programas estereofônicos. O homem pareceu dar-se por satisfeito, mas voltou a interromper seu trabalho. Não estou de acordo que os animais fAlém declarou.
John Thomas não respondeu. Aquela observação não merecia nenhum tipo de resposta.
Agora que estava com tempo, John Thomas teve vontade de examinar algo que havia em Lummox e que lhe havia preocupado muito. Tinha observado os primeiros sintomas na manhã seguinte ao desastrado passeio de Lummox: dois caroços situados onde Lummox teria os ombros, se os tivesse. Ontem tinham lhe parecido maiores, o que o inquietou, porque supunha que eram simples pancadas, embora Lummox muito raramente se ferisse.
Restava a possibilidade de que Lummox houvesse se ferido durante a acidentada perseguição de que foi objeto. O projétil que o senhor Ito disparou não lhe causou o menos dano e só havia uma ligeira queimadura no lugar onde a carga explosiva o atingiu, mas isto era tudo. Uma carga que teria destruído um tanque, para Lummox foi apenas como um bom pontapé em uma mula, capaz de causar-lhe sobressalto, mas não dano.
Lummox poderia ter se ferido ao atravessar as estufas, embora isso parecesse improvável. O mais provável era que tivesse se ferido a cair do viaduto. John Thomas sabia que uma queda semelhante teria matado qualquer animal terrestre de dimensões consideráveis, como um elefante, por exemplo. Claro que Lummox, cujo corpo se baseava em uma química não terrestre, não era tão frágil quanto um elefante. No entanto podia ter se ferido.
Relâmpagos! Os caroços estavam maiores do que nunca, autênticos tumores, e a pele que os recobria parecia mais suave e fina; já não era a couraça que cobria Lummox completamente. John Thomas se perguntou se um ser como Lummox poderia sofrer de câncer em consequência de uma golpe. Não sabia, e não conhecia ninguém que pudesse sabê-lo. Lummox nunca tinha estado doente durante todo o tempo que alcançavam as lembranças de John Thomas, e seu pai jamais havia dito que ele sofresse de alguma enfermidade. Era sempre o mesmo, ontem, hoje e sempre, com a única exceção que aumentava de tamanho.
À noite teria que ver o diário do seu avô juntamente com as notas do seu bisavô.
Talvez ele tivesse passado por cima de alguma coisa.
Comprimiu um dos caroços, tentando afundar seus dedos nele e Lummox agitouse inquieto. John Thomas parou de apertar e perguntou ansioso:
- Está doendo?
- Não respondeu com voz infantil, mas faz cosquinhas.
Esta resposta não o satisfez. Sabia que Lummox era muito propenso a ter cócegas, mas geralmente precisava de alguma coisa como um ancinho para causá-las. Aqueles caroços pareciam muito sensíveis. Dispunha-se a prosseguiu investigando, quando ouviu que o chamava.
- John! Johnnie!
Voltou-se. Betty Sorensen estava no exterior da jaula.
- Olá, Bela Adormecida cumprimentou-a. Recebeu meu recado?
- Sim, mas somente depois das oito. Você sabe como é o regulamento do dormitório. Olá, Lummox. Como está meu pequenino?
- Muito bem respondeu Lummox.
- Foi por isto que te chamei respondeu John Thomas. Esses idiotas me tiraram da cama antes de amanhecer. Que grande estupidez.
- É bom para você ver o nascer do sol. Mas a que vem tudo isto? Eu achava que a audiência seria realizada na semana que vem.
- E era assim mesmo. Mas algum peixe grande do Departamento do Espaço anunciou sua chegada lá da capital, para encarregar-se de direção do julgamento.
- Como?
- Que foi?
- Que foi? Nada, se você quiser Eu não conheço esse homem da capital. Eu achava que só teria que me entender com o juiz O'Farrel. Sei o que o preocupa. Esse novo juiz... bem, não sei. Em segundo lugar, tenho algumas ideias que ainda não tive tempo de desenvolver. Betty franziu o cenho. Teremos que pedir um adiamento.
- Para que? perguntou John Thomas Por que não nos limitamos a nos apresentar ante o Tribunal e dizer a verdade?
- Johnnie, você não tem jeito mesmo. Se isso bastasse, os tribunais não fariam falta.
- Talvez fosse melhor.
- Mas... Olha, cabeça dura, não fique aí fazendo ruídos estúpidos. Se temos que nos apresentar antes de uma hora... olhou para o relógio da torre do velho edifício do tribunal. Muito menos que isso. Temos que nos mover rapidamente. No mínimo, temos que apresentar uma reivindicação de propriedade.
- Isso é outra estupidez. Não a aceitarão. Não podemos considerar Lummox como uma casa de verão. Ele não é um pedaço de terreno.
- Pode-se reivindicar a propriedade de uma vaca, de dois cavalos e de uma dúzia de porcos. Um carpinteiro pode reivindicar a propriedade das suas ferramentas. Uma atriz pode fazer o mesmo com seu guarda-roupas.
- Mas não é o mesmo conceito jurídico. Eu fiz o mesmo curso de Direito Mercantil que você. Eles iriam rir de nós.
- Não brinque. Isso é tratado na seção II da mesma lei. Se você exibisse Lummox durante o carnaval, seria considerado "ferramenta do seu ofício", não? São eles que têm que demonstrar que não é assim. O que temos que fazer é registrar Lummox como um bem isento de qualquer imposto antes que seja emitido um veredito contra você.
- Se não podem tirar dinheiro de mim, tirarão da minha mãe.
- Não, eles não farão isto. Já foi comprovado. Uma vez que seu pai investiu seu dinheiro em um consórcio, legalmente ela não tem um centavo.
- A lei diz isso?
- É claro, homem! A lei é sempre aquilo que você consiga meter na cabeça de um tribunal.
- Betty, você é muito maquiavélica. Deslizando entre as barras, voltou-se e disse.
- Lummox, eu ficarei fora por uns minutos. Não se mova daqui.
- Está bem.
Em frente ao tribunal havia uma grande multidão, formada por pessoas que contemplavam Lummox boquiabertas. O chefe Dreiser havia ordenado que fossem colocadas barreiras de cordas e uma parelha de agentes a vigiavam para que a multidão nas as arrancasse. Os dois jovens passaram, agachando-se, sob as cordas e abriram passagem entre as pessoas até a escadaria do tribunal. O escritório do secretária era no segundo andar: nele encontraram sua ajudante, uma velha senhora.
A senhorita Schreiber era da mesma opinião de John Thomas a respeito de considerar Lummox isento de custas. Mas Betty fez notar que era o secretário quem tinha que decidir aquela questão, e citou um caso fictício sobre um homem que reivindicou a propriedade de um eco múltiplo. A senhorita Schreiber preencheu relutantemente os formulários, aceitou a modesta propina e entregou-lhes a cópia autenticada.
Eram quase dez horas. John Thomas saiu correndo escadarias abaixo. Parou em seco ao ver que Betty havia parado diante de uma balança automática.
- Vamos, Betty disse-lhe. Não temos tempo para isto agora.
- Não estou me pesando respondeu ela, enquanto se olhava no espelho da balança. Estou me maquiando. Quero causar uma boa impressão.
- Mas você já está muito bem assim.
- Puxa, Johnnie, um elogio da tua boca!
- Não é um elogio. Se apresse. Tenho que dizer uma coisa a Lummox.
- Insista em dez mil. Eu o apoiarei.
Borrou as sobrancelhas e voltou a pintá-las segundo o modelo de madame Staan, que estava na moda, e decidiu que ficava com aspecto de mais velha. Pensou em pintar um dado na bochecha direita, mas descartou a ideia, pois pensou que Johnnie não gostaria que ela perdesse mais tempo. Saíram correndo para fora.
Perderam alguns minutos tentando convencer o policial de que eles eram os donos do animal. Johnnie viu que junto à jaula de Lummox havia dois homens e correu para lá.
- Ouçam! Vocês dois! Afastem-se daí! O juiz O'Farrel voltou-se pestanejando.
- Por que tem tanto interesse que saiamos, jovem? Seu acompanhante voltou-se, mas sem dizer nada.
- Quem, eu? Porque sou seu dono. Ele não está acostumado à presença de estranhos. De forma que voltem para o outro lado da corda, certo? Dirigiu-se a Lummox: Está tudo bem, garotinho. Johnnie está aqui contigo.
- Como vai, juiz?
- Ah, olá Betty. O juiz olhou-a como se se não compreendesse a que se devia a sua presença ali. Então voltou-se para John Thomas: Suponho que você seja o jovem Stuart. Sou o juiz O'Farrel.
- Oh, desculpe-me senhor juiz respondeu John Thomas, ficando vermelho até as orelhas. Pensei que era um simples curioso.
- Um erro muito natural. Senhor Greenberg, este é o jovem Stuart... John Thomas Stuart. Jovem, apresento-o ao honorável Sergei Greenberg, delegado especial do Departamento de Assuntos Espaciais. olhou ao redor. Ah, sim... a senhorita é Betty Sorensen, senhor delegado. Betty, porque pintou o rosto desse jeito?
Ela, muito digna, ignorou a pergunta.
- Tenho muito prazer em conhecê-lo, senhor delegado.
- Pode chamar-me Greenberg, senhorita Sorensen. Greenberg voltou-se para Johnnie. Vocês tem algo a ver com o famoso John Thomas Stuart?
- Eu sou John Thomas XI respondeu Johnnie com simplicidade. Suponho que está se referindo ao teu tataravô.
- Efetivamente. Eu já imaginava que seria assim. Eu nasci em Marte, quase aos pés da sua estátua. Não tinha ideia de que sua família tivesse algo a ver com isto. Depois, talvez tenhamos tempo para conversar um pouco sobre história marciana.
- Devo reconhecer que nunca estive em Marte disse Johnnie.
- Não? Isto é surpreendente. Bem, na realidade você ainda é jovem.
Betty escutava atentamente e decidiu que este juiz, ao que parecia, seria ainda mais fácil de manejar que o juiz O'Farrel. Era difícil lembrar que o nome de Johnnie tivesse algum significado especial, sobretudo quando não tinha. Pelo menos em Westville.
Greenberg Prosseguiu:
- Você me fez perder duas apostas, senhor Stuart.
- Verdade?
- Sim. Eu pensava poder demonstrar que essa criatura não provinha do espaço exterior. Me equivoquei. Essa besta enorme certamente não nasceu na Terra. Mas estava igualmente seguro de que, no caso de ser terrestre, descobriria seu lugar de origem. Não sou um zoólogo especializado em fauna exótica, mas na minha profissão temos que estar ao corrente em tais matérias... embora seja apenas olhando fotografias. Mas eu me dou por vencido. O que é e de onde provém?
- Oh, veja bem, ele é simplesmente Lummox. É assim como o chamamos. Meu bisavô o trouxe na "Rastro de Fogo", na sua segunda viagem.
- Tanto tempo assim? Bem, mas isto não esclarece o mistério. Aconteceu antes que o Departamento Espacial fizesse um registro desses fatos. Na realidade, antes que se criasse o Departamento. Mas ainda assim, não entendo como essa besta não figura nos livros de história. Eu li o relato da viagem feita pela "Rastro de Fogo" e recordo que efetivamente trouxe alguns animais exóticos. Mas não me lembro dele ter sido mencionado, o que não deixa de ser estranho, levando-se em conta que os seres extraterrestres eram novidade naqueles dias.
- Oh, é que... veja senhor, o capitão não sabia que Lummox estava a bordo. Meu bisavô o trouxe em uma bolsa de mão e o tirou da nave sem que ninguém se desse conta.
- Em uma bolsa de mão! - exclamou Greenberg, olhando boquiaberto para a enorme figura de Lummox.
- Sim, senhor. Naquele tempo Lummie ainda era muito pequeno.
- Suponho que sim.
- Tenho fotografias suas. Tinha o tamanho de um cãozinho recém nascido, pouco mais ou menos. Com mais patas, claro.
- Sim, claro. Com mais patas. Embora ele me lembre mais de um triceratope que de um cãozinho recém nascido. Não sai muito cara sua manutenção?
John Thomas respondeu alegremente.
- Oh, não. Lummie como qualquer coisa. Não é muito exigente e John Thomas olhou com apreensão para os barrotes de aço. Além disso, ele pode passar muito tempo sem comer. Não é verdade, Lummie?
Lummox estava sentado sobre as patas, dando mostra de infinita paciência e de que sabia fazer reuniões quando era necessário. Escutava a conversa que seu amo sustentava com Greenberg, sem perder de vista Betty e o juiz. Então abriu sua enorme boca e disse:
- Sim, mas eu não gosto.
Greenberg ergueu as sobrancelhas e disse:
- Não sabia que ele pertencia à classe dos dotados de um aparelho fonador.
- Um o que? Ah sim, claro que sim. Lummie fala desde que meu pai era um menino; aprendeu logo em seguida. Vou apresentá-los. Olha, Lummie... quero que conheça o senhor delegado Greenberg.
Lummox olhou para Greenberg sem interesse e disse:
- Como vai, senhor delegado Greenberg? Pronunciou muito claramente a fórmula de cortesia, mas o nome e o título já não saíram tão bem.
- Muito bem, obrigado, e você, Lummox?
Ficou olhando-o, mas naquele instante o relógio no relógio do tribunal soaram as dez horas. O juiz O'Farrel voltou-se e lhe disse:
- Está na hora, senhor delegado. Creio que será melhor que comecemos.
- Não há pressa respondeu Greenberg, com ar distraído, o julgamento não pode começar até que nós estejamos ali. Estou interessado nesta investigação. Senhor Stuart, qual é o QRI de Lummox na escala humana?
- Como? Ah sim, seu quociente relativo de inteligência. Não sei, senhor.
- Mas pelo bom Deus, ninguém tentou sabê-lo ainda?
- Bem, então não, senhor... quer dizer, sim senhor. Fizeram alguns testes com ele no tempo do meu avô, mas ele se aborreceu tanto com a forma com que tratavam Lummie, que ele lhes deu pouca atenção. Desde então, temos procurado mantê-lo distante de estranhos. Mas é muito inteligente. Interrogue-o.
O juiz O'Farrel sussurrou para Greenberg:
- Esse bruto é mais é mais desajeitado que uma mula, embora saiba imitar alguma coisa da linguagem humana. Eu sei disto muito bem.
John Thomas disse indignado:
- Ou ouvi o que falou, senhor juiz. Isso não passa de preconceito! O juiz se dispunha a responder, mas Betty atalhou-o:
- Johnnie! Lembra do que te falei... Deixa que eu falo. Greenberg pareceu ignorar aquela interrupção:
- Foi feita alguma tentativa para aprender sua linguagem?
- Como disse?
- Já vi que não. E talvez o tenham trazido para a Terra antes que soubesse falar a sua própria linguagem. Mas deve ter uma; é um axioma entre os xenólogos que os centros de fala só são encontrados naqueles sistemas nervosos que os utilizam. Ou seja, ele não poderia ter aprendido o idioma humano, embora de uma forma imperfeita, se os indivíduos da sua própria raça não se comunicassem oralmente entre si. Ele sabe Escrever?
- Como posso saber, senhor? Ele não tem mãos.
- Sim, é verdade. Bem, fazendo um cálculo aproximado com a ajuda da teoria, eu me atrevo a apostar que ele tem uma média relativa de menos de 40. Os xenólogos descobriram que os seres de tipo elevado, equivalentes aos humanos, sempre apresentam três características: centro da fala, manipulação, e, em consequência dessas duas coisas, arquivo de lembranças. Portanto, podemos assegurar que a raça a que Lummox pertence utilizava linguagem. Você estudou xenologia?
- Não muito, senhor admitiu timidamente John Thomas, somente alguns livros que encontrei na biblioteca. Mas penso em me aprofundar na xenologia e na biologia exótica quando estudar essas matérias na universidade.
- Tanto melhor para você. É um campo muito amplo. Você se surpreenderia em saber como é difícil encontrar xenólogos em número suficiente para do Departamento Espacial. Mas a razão de fazer-lhe esta pergunta é a seguinte: como você sabe, meu departamento interveio neste caso. E o motivo é ele Greenberg apontou para Lummox. Existia a possibilidade de que seu mascote pertencesse a alguma raça que tivesse algum tratado de amizade conosco. Em duas ou três ocasiões, embora lhe pareça estranho, alguns estrangeiros que visitaram nosso planeta foram confundidos
com animais selvagens, com... digamos... resultados "infelizes". Greenberg franziu o cenho ao lembrar da terrível ocasião, prontamente silenciada, em que um membro da família do embaixador de Llabor foi achado morto e embalsamado em uma loja de curiosidade das Ilhas Virgens. Mas aqui não havia tal risco.
- Oh, creio que não, senhor. Lummox é... como mais um membro da família.
- Era o que eu pensava. o delegado dirigiu-se ao juiz O'Farrel: Posso fazer-lhe uma consulta a sós, juiz?
- Certamente.
Os dois homens se afastaram e Betty acercou-se de John Thomas.
- Vai ficar tudo bem sussurrou se souber manter a língua quieta.
- O que eu fiz? protestou ele. E o que a faz acreditar que tudo correrá bem?
- Isto é uma coisa que salta à vista. Você é simpático, Lummox igualmente.
- Não vejo de que vá me servir isto quando eu tentar pagar a janela do Bon Marché e todas essas lâmpadas da rua.
- Cuidado para que sua tensão arterial não suba. E deixe-se levar por mim. Antes que tudo termine, serão eles que nos pagarão. Você verá.
Um pouco mais longe, Greenberg dizia ao juiz O'Farrel:
- Ouça, juiz, pelo que eu pude ver, me parece que o Departamento de Assuntos Espaciais terá que retirar-se deste caso.
- Como? Não entendi.
- Eu explicarei. Eu pretendia adiar a visita por vinte e quatro horas, a fim de que o Departamento comprovasse minhas conclusões. Então é possível que eu me retire e deixe o assunto nas mãos das autoridades locais. Estou me referindo a você, claro.
O juiz O'Farrel mordiscou o lábio inferior.
- Não gosto dos adiamentos de última hora, senhor delegado. Sempre me pareceu incorreto reunir as pessoas, obrigando-as a abandonar suas obrigações, originando lhes gastos e inconvenientes, para depois dizer-lhes que voltem outro dia. Isso tira a seriedade da administração de justiça.
Greenberg franziu o cenho.
- Está certo. Deixe-me ver se podemos resolver isto de outro modo. A julgar pelo que disse o jovem Stuart, considero que este caso não requer nossa intervenção, segundo a política xênica da Federação, ainda admitindo que o centro de interesse seja extraterrestre, e, portanto, uma causa legal de intervenção, se fosse necessário. Embora o Departamento tenha poder para isto, este poder só se exerce quando é necessário evitar complicações com os governos de outros planetas. A Terra possui centenas de milhares de animais terrestres; há nela mais de trinta mil xenianos não humanos, quer sejam residentes ou visitantes, que possuem uma situação legal com amparo dos seus tratados, o que faz com que os consideremos "humanos", embora, evidentemente, não sejam. Temos que levar em conta a força que ainda tem a xenofobia, particularmente em nossas classes sociais mais baixas e nos distantes centros populacionais. Não, não estou me referindo a Westville! A natureza humana é como é, e cada um desses estrangeiros constitui uma causa potencial de perigo para nossas relações exteriores.
«Perdoe-me em repetir o que já sabe, mas era necessário deixá-lo bem assente. Nosso Departamento não pode acudir a todos os lados para assoar os narizes dos nossos visitantes xenianos..., inclusive aqueles que têm narizes. Não dispomos do pessoal necessário e muito menos do desejo se fazê-lo. Se um deles se vê envolvido em alguma complicação, geralmente é suficiente avisar ao magistrado local, pondo-o ao corrente das obrigações que nos impõe o tratado que temos com o planeta mãe do nosso visitante xeniano. Somente em poucos casos é que o Departamento intervém. Mas na minha opinião, o caso que nos ocupa não se ajusta a essas condições. Em primeiro lugar, parece que nosso amigo Lummox é um animal" que está dentro da lei, e...
- Havia dúvidas sobre isto? perguntou o juiz, assombrado.
- Sim, de fato. E esta é a razão porque eu me encontro aqui. Mas, apesar da sua limitada capacidade de falar, suas limitações restantes impedem este ser de alcançar um nível em que poderíamos considerá-lo como um ser civilizado, e portanto, não passa de um animal, e possui unicamente os direitos correntes que têm os animais sob nossas leis humanas. Por conseguinte, meu Departamento não se dá por aludido.
- Compreendo. Bem, ninguém o maltratará, pelo menos enquanto ele esteja sob minha jurisdição.
- Suponho que sim. Mas o Departamento tampouco está interessado no caso por outra razão de peso. Vamos supor que essa criatura fosse "humana" no sentido que as leis, os costumes e os tratados dão a essa palavra, desde o dia em que estabelecemos nosso primeiro contato com a Grande Raça de Marte. Não é assim, mas vamos supor que seja.
- De acordo concordou o juiz O'Farrel.
- Concedido, então. Contudo, não é da incumbência do Departamento, porque...
Diga-me, juiz, conhece a história da "Rastro de Fogo?
- Muito vagamente, dos dias em que eu estava na escola. Nunca estudei a fundo a exploração interplanetária. Já tenho bastante o que fazer com nossa confusa e embrulhada Terra.
- Certo. Bem, pois a "Rastro de Fogo" realizou três dos primeiros voos interplanetários de transição, quando tais viagens eram tão temerárias como a que Colombo tentou. Não sabiam aonde iam e só tinham noções muito confusas de como regressariam... De fato, a "Rastro de Fogo" jamais regressou da sua terceira viagem.
- Sim, sim, já estou me lembrando.
- O problema é que o jovem Stuart me disse que essa tosca criatura com seu sorriso estúpido é uma lembrança da segunda viagem da "Rastro de Fogo". Isto é tudo que necessito saber. Não temos tratado com nenhum dos planetas que essa nave visitou, nem relações comerciais ou de qualquer outro tipo. Legalmente eles não existem. Por conseguinte, as únicas leis a serem aplicadas a Lummox hão de ser as nossas próprias leis. Meu Departamento não tem pois que intervir e, embora o fizesse, um jurisconsulto especializado como eu teria que ater-se inteiramente às leis terrestres. E para isto, você está melhor qualificado que eu.
O juiz O'Farrel assentiu.
- Bem, não tenho objeções a fazer e aceito que o assunto volte à minha jurisdição.
Comecemos de uma vez?
- Só um momento. Sugeri um adiamento porque este caso tem aspectos muito curiosos. Desejo consultar o Departamento, para assegurar-me de que minha teoria é correta e de que não me passou por alto algum precedente ou lei importante. Mas estou disposto a retirar-me em seguida se você puder me assegurar uma coisa. Essa criatura... tenho entendido que, apesar do seu aspecto doce, mostrou-se destruidora e mesmo perigosa.
O'Farrel assentiu.
- Acredito que é assim... extraoficialmente, claro.
- Bem, houve alguma demanda pedindo que seja destruída?
- Veja bem respondeu lentamente o juiz, falando novamente em termos oficiais, posso dizer-lhe que sei que tal demanda será feita. Me inteirei particularmente
de que nosso chefe de Polícia tentará pedir ao tribunal que ordene a destruição desse ser, como uma medida de segurança pública. Prevejo também demandas parecidas por parte de outras pessoas.
Greenberg demonstrou preocupação em seu semblante.
- Você acredita que chegarão a isto? E então, qual será sua atitude? Como presidente do tribunal, pensa permitir que esse animal seja destruído?
O juiz O'Farrel respondeu.
- Senhor, sua pergunta me parece descabida. Greenberg ficou vermelho.
- Rogo-lhe que me perdoe. Mas tenho que dizer de qualquer forma. Você não se dá conta de que este exemplar é único? Deixando de lado o que tenha feito ou o perigo que possa representar, embora que este último não me ofereça dúvidas, o interesse que ele oferece para a ciência é tal, que sua vida deveria ser conservada. Você poderia assegurar-me de que não ordenará sua destruição?
- Senhor, você está me pressionando para que julgue um caso por antecipação.
Sua atitude não me parece muito conveniente!
O chefe Dreiser escolheu aquele momento tão delicado para vir correndo.
- Senhor juiz, estive lhe procurando por toda parte. Esse julgamento não vai começar? Tenho sete homens que...
O'Farrel interrompeu-o.
- Chefe, apresento-lhe o senhor delegado Greenberg. Senhor delegado, nosso chefe de Polícia.
- Muito prazer, chefe.
- Como está, senhor delegado? Senhores, sobre esse julgamento, eu gostaria de saber...
- Olhe chefe interrompeu-o o juiz bruscamente, faça-me o favor de dizer ao meirinho que tenha tudo pronto. Agora eu lhe agradeceria se nos deixasse a sós.
- Mas...
O chefe calou-se saiu murmurando alguma coisa entredentes, o que era desculpável, levando-se em conta que estava esgotado. O'Farrel voltou-se para Greenberg.
O delegado teve tempo, durante aquela interrupção, de relembrar que se supunha que ele era desprovido de emoções pessoais. Disse suavemente:
- Retiro a pergunta, juiz. Não tinha intenção de fazer perguntas inconvenientes sorriu. Em outras circunstâncias eu poderia ter sido detido por desacato à autoridade, não é mesmo?
O'Farrel esboçou um sorriso mal-humorado.
- É possível.
- Vocês têm uma prisão bonita? Eu disponho de sete meses de licença e nunca tive a oportunidade de usá-los.
- Não deveria trabalhar tanto. Eu sempre encontro tempo para pescar, por muito trabalho que tenha. «Alá não diminui o tempo concedido ao homem pelas horas passadas na pesca».
- Me parece uma sensação excelente. Mas continuo com um problema. Você sabe como poderia adiar a audiência enquanto consulto o Departamento?
- Certamente. Posso fazê-lo se você deseja. Suas decisões não têm que ser afetadas por minhas opiniões pessoais.
- Não. Mas estou de acordo com você; os adiamentos de última hora são descorteses.
Lembrou que consultar o Departamento equivaleria, neste caso, a consultar Henry Kiku.. e já lhe parecia ouvir o secretário fazendo observações ácidas sobre "a falta de iniciativa e de responsabilidade", e dizendo: "pelo amor dos céus, não existe ninguém nesta casa de loucos capaz de tomar uma simples decisão?". Greenberg tomou a sua.
- Creio que é melhor para os interesses do Departamento que eu não me retire do caso por enquanto. Estou pensando em assistir o julgamento e encarregar-me dele, pelo menos durante as primeiras sessões.
O'Farrel sorriu satisfeito.
- Era o que eu supunha. Tenho muito interesse em ouvi-lo. Segundo tenho entendido, vocês os juristas do Departamento de Assuntos Espaciais, às vezes esgrimem com argumentos legais muito pouco usuais.
- É isto que acredita? Espero que não seja assim. Penso em ater-me ao Direito que me ensinaram em Harvard.
- Em Harvard? Mas eu também estudei ali. Ainda continuam aferrados a Reinhardt?
- Ao menos continuavam enquanto eu estive lá.
- Ora, ora, que mundo tão pequeno! Lamento que seja um condiscípulo quem tenha que arcar com este caso, que eu receio será de alívio.
- Por acaso não são todos? Bem, vamos começar com os fogos artificiais. Por que não nos sentamos no mesmo banco? Provavelmente será você quem encerrará o caso.
Dirigiram-se para o edifício do tribunal. O chefe Dreiser, que estava soltando fagulhas a uma certa distância, observou que o juiz O'Farrel havia se esquecido completamente da sua presença. Dispunha-se a segui-lo, quando notou que o jovem Stuart e Betty Sorensen ainda estavam ao lado da jaula de Lummox. Tinham as cabeças muito juntas e não notaram a ausência dos magistrados. Dreiser dirigiu-se para eles com grandes passadas.
- Ei! Para dentro agora mesmo, John Stuart! Já faz vinte minutos que você deveria estar na sala do tribunal.
John Thomas mostrou-se surpreso.
- Mas eu pensava... começou a dizer, notando então que o juiz e Greenberg já tinham ido. Oh, somente um momento, senhor Dreiser! Tenho que dizer uma coisa a Lummox.
- Você não tem nada a dizer a essa besta agora. Vamos.
- Mas chefe...
Dreiser agarrou-o pelo braço e começou a andar. Levando-se em conta que pesava uns cinquenta quilos mais que Johnnie, este não teve outro remédio senão ir atrás dele. Betty tentou interpor-se.
- Diácono Dreiser! Que maneira de se comportar!
- Peço-lhe que não se meta nisto, senhorita respondeu Dreiser. E continuou na direção do tribunal, arrastando John Thomas. Betty optou por ficar calada e segui-los. Pensou em impedir a passagem do chefe de polícia, mas desistiu disto.
John Thomas inclinou-se ante o inevitável. Havia querido imprimir na mente de Lummox, no último instante, a necessidade de permanecer quieto e sem comer as barras de aço. Mas o senhor Dreiser não havia querido escutá-lo. John achava que a maioria dos adultos nunca escutam o que lhes dizem.
Lummox não deixou de notar sua saída. Levantou-se, fazendo ranger as barras, e seguiu John Thomas com o olhar, enquanto se perguntava o que deveria fazer. Betty voltou a cabeça e disse:
- Lummox, comporte-se bem e não se mova daí! Nós voltaremos logo.
Lummox continuou de pé, olhando-os e pensando. Uma ordem de Betty não era realmente uma ordem. Ou era? Havia precedentes que o fizeram refletir.
Finalmente optou por deitar-se novamente.
4 O RÉU NO BANCO
Os murmúrios na sala do tribunal cessaram com a entrada de O'Farrel e Greenberg. Um meirinho gritou:
- Ordem no tribunal!
Os espectadores correram em busca de assento. Um jovem usando chapéu se interpôs no caminhos dos dois magistrados.
- Um momento por favor! gritou, enquanto os fotografava. Mais uma... Sorria, juiz, como se o delegado tivesse acabado de dizer alguma coisa divertida.
- Basta uma. E faça o favor de tirar o chapéu.
O'Farrel passou ao seu lado rapidamente. O fotógrafo encolheu os ombros, mas não tirou o chapéu.
- Sinto muito, senhor juiz. Um momento. Inclinou-se sobre o microfone e disse: Testando, um, dois, três, quatro... Cincinatti... sessenta e seis. Levantou a vista. Este sistema de gravação tem me dado muito trabalho.
- Devia tê-lo testado antes.
- Eu sei, senhor juiz, mas não encontrei ninguém que me substituísse... O fato é que o testei e funcionava perfeitamente, mas quando tentei usá-lo novamente, às dez para as dez, um transistor falhou e demorou muito para localizar a avaria.
- Bem, bem disse O'Farrel impaciente, irritado com o fato de que aquilo acontecesse na presença de um visitante ilustre. Tire suas ferramentas do meu banco, faça o favor.
Greenberg apressou-se em dizer:
- Não importa, prefiro não utilizar o banco. Nos reuniremos em torno de uma mesa grande, ao estilo de um conselho de guerra. Me parece um sistema mais expedito.
O'Farrel mostrou-se desolado.
- Eu sempre mantive as antigas formalidades neste tribunal. Achava que valia a pena fazê-lo.
- Me parece muito justo. Suponho que todos nós, que nos vimos obrigados a exercer a profissão jurídica, adquirimos certos hábitos. Não se pode fazer nada para evitá-los. Não há que ver o caso de Minatare: suponha que tentasse, por cortesia, adaptar sua forma de julgar um caso. Lá, eles acham que o juiz deve fazer ablusões antes de subir para a área que lhe está destinada, na qual tem que permanecer, sem provar nenhum alimento nem bebida, até que tome uma decisão. Francamente, eu não poderia adaptar-me a esses costumes, e você?
Para o juiz O'Farrel era irritante que aquele jovem volúvel e loquaz pudesse inferir que existisse um paralelo entre o sério cerimonial do seu estrado e aquelas práticas pagãs. Recordou com inquietação das três panquecas, acompanhadas com salsichas e ovos, com que havia começado o dia.
- Bem... são outros povos e outros costumes resmungou.
- Exatamente. E muito obrigado por sua amabilidade.
Greenberg fez um sinal para o meirinho, e ambos começaram a reunir as mesas dos advogados para formar uma maior, antes que O'Farrel pudesse fazê-lo notar que, se havia citado o antigo ditado, havia sido para rechaçar o assunto categoricamente. Pouco depois, umas quinze pessoas tomavam assento em torno da mesa assim formada. Greenberg voltou-se para o meirinho, que se achava na sua mesa, com os auriculares postos e inclinado sobre seus aparelhos, na atitude característica dos técnicos eletrônicos.
- Seu equipamento já está funcionando?
- Perfeitamente.
- Muito bem. Está aberta a sessão.
O meirinho falou pelo microfone, anunciando a hora, a data, o lugar, a natureza e a jurisdição do tribunal, e o nome e títulos do magistrado que a presidia, pronunciando mal o primeiro nome de Sergei Greenberg, o qual não o corrigiu. Entrou um servente com as mãos cheias de cinzeiros e o o meirinho disse apressadamente:
- Fazemos saber, para o conhecimento público e geral, que todos aqueles que tenham algo a alegar perante este tribunal devem apresentar-se e...
- Deixe pra lá interrompeu-o Greenberg. Mas obrigado mesmo assim. Este tribunal celebrará agora uma audiência preliminar com o fim de esclarecer os acontecimentos e ações em que tomou parte, segunda-feira passada, uma criatura extraterrestre residente nesta localidade e conhecida pelo nome de Lummox. Estou-me referindo ao enorme bruto que se encontra encerrado em uma jaula não distante daqui. Meirinho, vá lá e tire-lhe uma fotografia, por favor, e junte-a ao processo.
- Como queira, meritíssimo.
- Este tribunal informa que nesta audiência poderá se chegar a uma determinação final sobre os fatos antes citados. Em outras palavras, que todo mundo possa atirar à vontade; esta sessão pode ser a única. O tribunal admitirá reclamações relativas a esse ser extraterrestre e escutará, no tempo próprio, as alegações pertinentes.
- Uma pergunta, senhor juiz.
- Fale.
- Com a vênia do tribunal, meu cliente e eu não temos objeções a fazer se somente se trata de um interrogatório preliminar. Mas, nós voltaremos aos procedimentos ordinários se a audiência continuar?
- Este tribunal, pelo fato de ter sido convocado pela Federação e atuando de acordo com o corpus legal conhecido pelo nome popular de "Costumes de Civilizações", que engloba convênios, tratados, etcétera, entre dois ou mais planetas da Federação que mantenham relações diplomáticas, não se acha afetado pelos procedimentos locais. É propósito deste tribunal chegar ao esclarecimento da verdade e, uma vez conhecida, alcançar a imparcialidade... a imparcialidade sob a lei. O tribunal não se oporá às leis e costumes locais, enquanto estes não se oponham à lei superior. Porém, quando os costumes locais se limitarem unicamente a questões de procedimento, este tribunal ignorará tais formalidades e continuará julgando de acordo com o dito anteriormente. Entenderam?
- Hum, creio que sim, senhor. Talvez eu apresente objeções mais adiante.
O homenzinho de idade mediana que pronunciou estas palavras parecia um pouco perturbado.
- Todos vocês são livres para apresentarem as objeções que quiserem a qualquer momento. Também podem apelar contra minhas decisões. Não obstante... Greenberg sorriu simpaticamente Duvido que isto lhes sirva de muito. Até hoje sempre consegui que minhas decisões fossem invariavelmente ratificadas.
- Eu não tentava insinuar respondeu o homenzinho altivamente que este tribunal carecesse de validez.
- Claro, claro! Continuemos com a audiência. Greenberg pegou um maço de papeis. Tenho aqui uma demanda apresentada pelo Bon Marché Merchandising Corporation contra Lummox, John Thomas Stuart XI... ("Esse nome ainda continua me perturbando", disse em um aparte ao juiz O'Farrel), Marie Brandley Stuart e outros; e outra semelhante, apresentada pela Companhia de Seguros Mútuos Ocidentais, seguradores do Bon Marché. Há outra, apresentada contra os mesmos demandados, por K. Ito e sua companhia de seguros, Riscos do Novo Mundo S.A., e mais outra, apresentada pela cidade de Westville, também contra os mesmos demandados. E, finalmente, há uma demanda apresentada por Isabelle Donahue. Também algumas querelas criminais... uma por abrigar um animal perigoso, outra por deliberada ocultação do mesmo, outra por negligência e outra por o dito animal representar um perigo público.
John Thomas ia ficando cada vez mais pálido à medida que lhe imputavam essas acusações. Greenberg olhou-o e disse:
- Não omiti nada, não é verdade, filho? Anime-se... o condenado sempre tem direito a uma suculenta refeição.
John Thomas esforçou-se para sorrir, mas foi um sorriso triste. Betty deu-lhe umas palmadinhas no joelho
Havia ainda uma outra folha na pilha, mas Greenberg a pôs junto às demais sem lê-la. Era uma petição firmada pelo chefe de Polícia da cidade de Westville, solicitando ao tribunal que ordenasse a destruição daquela perigosa besta, conhecida pelo nome de Lummox, e mais tarde identificada como tal, etcétera. Ao invés de lê-la, Greenberg levantou a vista e disse:
- Creio que agora é sua vez.
O interpelado era o advogado que havia posto em dúvida os métodos do tribunal. Ele apresentou-se como Alfred Schneider e afirmou que representava os Seguros Mútuos Ocidentais e o Bon Marché.
- O cavalheiro que está ao meu lado é o senhor De Grasse, gerente do Bon Marché.
- Muito bem. O seguinte, por favor.
Greenberg comprovou que estavam presentes os principais demandantes com os seus advogados Na cabeceira da mesa, estavam, além dele, o juiz O'Farrel, John Thomas, Betty e o chefe Dreiser. E um pouco mais afastados, Isabelle Donahue e seu advogado, Beanfield; Schneider e De Grasse, pelo Bon Marché; Lombard, advogado da cidade de Westville; o advogado da companhia seguradora de K. Ito e o filho deste último (que representava seu pai); os agentes de Polícia Karnes e Mendoza (testemunhas) e a mãe de John Thomas, acompanhada de Postle, o advogado dos Stuart.
Greenberg disse a Postle:
- Segundo acredito, você também defende o senhor Stuart. Betty interrompeu-o.
- Não, por Deus! Eu defendo Johnnie. Greenberg arqueou as sobrancelhas.
- Eu ia justamente perguntar o que você faz aqui. Por acaso é advogada?
- Bem... considere-me como sua assessora.
O'Farrel inclinou-se para Greenberg e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Isto é uma loucura, senhor delegado. Essa garota não é advogada. Eu a conheço muito bem. Tenho-lhe muito afeto, mas francamente, não a acho muito inteligente. Acrescentou com severidade e em voz alta: Betty, você não tem nada que fazer aqui. Vá embora e deixe de fazer estupidez.
- Veja você, juiz, é que...
- Um momento, senhorita interveio Greenberg. Pode alegar algo para poder apresentar-se como assessora do senhor Stuart?
- Certamente. Sou a assessora que ele quer.
- Hum, uma razão muito sólida, embora talvez não seja suficiente. Dirigiu-se então a John Thomas: Isto é certo?
- Oh, sim senhor.
O juiz O'Farrel murmurou:
- Não faça isto, filho. Você vai se dar mal. Greenberg sussurrou por sua vez::
- É isso que eu temo. Franzindo o cenho, dirigiu-se a Postle: Está disposto a atuar em defesa da mãe e do filho?
- Sim.
- Não contradisse Betty.
- Mas os interesses do senhor Stuart não estariam mais protegidos nas mãos de um advogado profissional que nas suas? Não, não me responda, quero que o faça o próprio senhor Stuart.
John Thomas ficou vermelho e murmurou:
- Eu... eu não quero ele.
- Por que?
John Thomas não parecia disposto a dar o braço a torcer. Betty disse com sarcasmo:
- Porque a mãe dele não gosta de Lummox, é esta a razão. E...
- Isto não está correto! atalhou Marie Stuart.
- Está sim... E esse velho fóssil do Postle está de acordo com ela. O que eles querem é desfazer-se de Lummox!
O'Farrel pigarreou, cobrindo a boca com o lenço. Postle ficou vermelho. Greenberg disse gravemente:
- Senhorita, levante-se e peça desculpas ao senhor Postle.
Betty olhou para o delegado, baixou os olhos e se levantou, dizendo humildemente:
- Senhor Postle, lamento que você seja um fóssil. Quer dizer, lamento haver dito que você era um fóssil.
- Sente-se disse Greenberg secamente. E daqui em diante tenha mais cuidado com o que fala. Senhor Stuart, ninguém é obrigado a aceitar um defensor que não seja do seu agrado. Mas você me põe em um dilema. Legalmente você é menor de idade, e escolheu como defensor a outra pessoa menor de idade. Isto não ficará bem no processo. alisou o cavanhaque Não poderia ser que você ou sua defensora... ou ambos ao mesmo tempo, estivessem querendo que o julgamento fosse anulado por erro do tribunal?
Betty respondeu:
- Oh, não, senhor.
Mostrava uma atitude de afetada inocência; de fato, havia contado com essa possibilidade, que não havia mencionado a John Thomas.
- Com a vênia do senhor meritíssimo...
- Diga, senhor Lombard.
- Isto está me parecendo enormemente ridículo. A jovem aqui presente não tem lugar neste tribunal. Não é jurisconsulto e portanto não pode atuar como advogada. Não gosto de me ver obrigado a relembrar essas verdades elementares ao respeitado tribunal, mas o que devemos fazer é colocá-la entre o público e nomear um advogado. Se me permite sugerir, que ocupe este posto o defensor público.
- Aceitamos a sugestão. Isto é tudo, senhor Lombard?
- Sim, senhor juiz.
- Permita-me acrescentar que este tribunal não gosta de ser aconselhado; rogo-lhe pois que não volte a fazê-lo.
- Sim, senhor juiz.
- Este tribunal cometerá seus próprios erros da maneira que lhe pareça mais conveniente. Segundo o costume que há presidido a formação deste tribunal, não é necessário que seja um defensor de carreira... ou, como você disse, um jurisconsulto, um advogado diplomado. Se isto lhe parece insólito, permita-me assegurar-lhe que os sacerdotes-advogados hereditários de Deflai ainda acham mais estranho. Mas é a única regra que tem aplicação universal. Entretanto, eu agradeço pela sua sugestão. O defensor público poderia levantar-se?
- Sim, senhor juiz. Eu me chamo Cyrus Andrews.
- Obrigado. Está preparado para tomar a defesa?
- Sim, mas precisarei de uma trégua para consultar meu cliente.
- Naturalmente. Bem, senhor Stuart, pode este tribunal nomear o senhor Andrews com seu advogado defensor, ou como defensor associado?
- Não! respondeu Betty novamente.
- Eu me dirigia ao senhor Stuart, senhorita Sorensen. Que responde? John Thomas olhou para Betty.
- Não, senhor juiz.
- Por que não?
- Eu vou responder-lhe interveio Betty. Falo mais depressa que ele e por isto me encarrego da sua defesa. Não aceitamos os serviços do senhor Andrews porque o advogado público atua contra nós em uma dessas estúpidas demandas que apresentaram contra Lummox, e porque o advogado representa Westville e porque ele e o senhor Andrews têm cada a metade de uma empresa. São sócios.
Greenberg voltou-se para Andrews:
- Isto é correto, senhor?
- E sim, somos sócios, senhor juiz. Você pode compreender que em uma cidade tão pequena como esta...
- Sim, eu compreendo. Mas compreendo também a objeção da senhorita Sorensen. Obrigado, senhor Andrews.
- Com vossa vênia.
- Quer agora, senhorita?
- Eu posso ajudá-lo a sair do atoleiro. Eu já previa que tentariam empurrar algum intrometido, portando me preveni. E sou dona da metade.
- Dona da metade?
- De Lummox, claro. Quer ver? Tirou um papel do bolso e mostrou-lhe. Um documento de venda, perfeitamente legal. Pelo menos tem que sê-lo, pois copiei-o do livro texto.
Greenberg estudou o documento.
- A forma parece correta. Tem data de ontem, o que a faz voluntariamente responsável, atingindo a responsabilidade dos seus interesses do ponto de vista civil. Não se aplica a matérias criminais anteriores.
- Bah! Não existem questões criminais.
- Isto ainda vai ser decidido. E não diga "bah", não é um termo legal. A questão aqui é saber se o firmante deste documento pode vender a possessão. Quem é o dono de Lummox?
- Johnnie, claro! Era assim que constava no testamento do seu pai.
- Ah sim? Isto é correto, senhor Postle?
Postle conversou em sussurros com Marie Stuart e depois respondeu:
- Está correto, senhor juiz. Esta criatura chamada Lummox é propriedade de John Thomas Stuart, menor de idade. A participação da senhora Stuart nesta adesão é feita através do seu filho.
- Muito bem disse Greenberg, entregando o documento de venda ao secretário. Tome nota dele.
Betty voltou a sentar-se e disse:
- Bem, senhor juiz, nomeie quem o senhor quiser Mas permita-me intervir quando julgar necessário.
Greenberg suspirou.
- Acha que haverá alguma diferença se eu nomear outro?
- Não muita, suponho.
- Constará no processo que vocês dois, depois de terem sido devidamente advertidos e aconselhados, insistem em atuar em defesa própria. O tribunal relutantemente assume o encargo de proteger os seus direitos e aconselhá-los nas questões legais.
- Oh, não fique assim, senhor Greenberg. Temos confiança em você.
- Preferiria que não tivessem disse ele secamente Mas continuemos. Esse cavalheiro na extremidade da mesa... Quem é você?
- Eu, senhor juiz? Sou correspondente da Imprensa Galáctica desta localidade.
Meu nome é Hovey.
- Ah sim? O secretário redigirá um resumo para a imprensa. Mais tarde eu concederei a entrevista de costume se alguém assim o desejar. Entretanto, não quero que me fotografe com esse Lummox. Existe mais alguém da imprensa?
Levantaram-se outros dois.
- O meirinho colocará cadeiras atrás da grade.
- Obrigado, senhor juiz. Mas antes...
- Fora da grade, por favor. Greenberg olhou em torno. Creio que isto é tudo...
Não, ainda resta aquele cavalheiro no canto. Seu nome, por favor?
O interpelado levantou-se. Vestia um terno cinza com riscas e seu porte era altivo e digno.
- Com a vênia deste tribunal, direi que me chamo T. Ornar Esklund, e que sou doutor em filosofia.
- Não precisa pedir a vênia do tribunal para isto, doutor. Você é parte litigante?
- Sim senhor. Estou aqui como amicus curiae, amigo do tribunal. Greenberg franziu o cenho.
- Este tribunal gostaria de poder escolher seus próprios amigos. Qual é sua ocupação, doutor?
- Com a devida vênia, senhor. Sou secretário executivo da Liga Humana para a Conservação da Terra. Greenberg evitou um grunhido, mas Esklund não notou, pois havia se inclinado para pegar um grande manuscrito. Como é fartamente sabido, desde que se iniciou a ímpia prática das viagens interplanetárias, nossa mãe Terra, que nos foi concedida pela Lei Divina, tem se visto cada vez mais infestada por criaturas... seria melhor dizer bestas, de origem duvidosa. As pestilentas consequências deste tráfico sacrílego se veem em todos...
- Doutor Esklund!
- Senhor?
- O que o trouxe a este tribunal? Atua como defensor de algum dos acusados?
- Não exatamente, senhor juiz. No sentido amplo, posso considerar-me como o advogado de toda a humanidade. A sociedade da qual tenho a honra...
- Não tem alguma coisa mais concreta para apresentar? Uma petição, por acaso?
- Sim respondeu Esklund sobriamente, tenho uma petição a apresentar.
- Apresente-a.
Esklund rebuscou entre seus papeis e tirou uma folha que foi passada para Greenberg, o qual nem sequer a olhou.
- Diga agora, brevemente, em que consiste sua petição. Fale com clareza e em direção ao microfone mais próximo.
- Bem... com a vênia do tribunal: a sociedade da qual tenho a honra de pertencer, uma liga que compreende toda a humanidade, roga... ou melhor, exige que seja destruída a besta não terrestre que já assolou esta pacífica comunidade. Sua destruição está sancionada e ordenada pelos sagrados...
- É esta a sua petição? Quer que este tribunal ordene que seja destruído o ser extraterrestre conhecido por Lummox?
- Sim, mas ainda mais que isto, tenho aqui uma cuidadosa documentação como reforço dos meus argumentos, dos meus irrebatíveis argumentos, eu diria, que...
- Um momento. A palavra "exige" que você utilizou, figura na petição?
- Não, senhor juiz, esta palavra saiu do meu coração, da plenitude de...
- Seu coração levou-o a sentir desprezo. Quer emendar a frase? Esklund ficou olhando fixamente e então disse relutantemente:
- Retiro esta palavra. Minha intenção não era depreciar ninguém
- Muito bem, admite-se a petição. O secretário tomará nota dela, à espera de nossa decisão. Falemos agora desse discurso que você tem intenção de fazer: a julgar pelo tamanho do seu manuscrito, calculo que durará umas duas horas, não é isso?
- Sim. Creio que duas horas serão suficientes, senhor juiz respondeu Esklund, um pouco apaziguado.
- Certo. Meirinho!
- Senhor juiz?
- Você poderá montar um estrado lá fora?
- Creio que sim, senhor.
- Excelente. Coloque-o no prado. Doutor Esklund, todos somos a favor da liberdade de expressão, assim sendo, divirta-se. Poderá falar nesse estrado durante duas horas.
O doutor Esklund ficou da cor de uma berinjela.
- Ainda irá falar de nós.
- Sem dúvida.
- Nós conhecemos os da sua laia. Traidores da humanidade! Renegados! Brincando com...
- Levem este homem daqui.
O meirinho cumpriu a ordem, sorrindo. Um dos jornalistas os seguiu. Greenberg disse amavelmente:
- Parece que agora só ficaram as pessoas indispensáveis. Temos várias demandas ante nós, mas todas se atêm aos mesmos fatos. A menos que alguém tenha alguma objeção, ouviremos primeiro o depoimento de todos os demandantes, para passarmos então a estudá-las uma por uma. Objeções?
Os advogados entreolharam-se. Finalmente, o advogado do senhor Ito disse:
- Senhor juiz, me parece que seria mais correto ouvi-las uma por uma.
- É possível. Mas se fizermos assim, ainda estaremos aqui no Natal. Não gosto de fazer essas pessoas atarefadas virem tantas vezes. Mas vocês gozam do privilégio de celebrar um julgamento de cada um dos fatos diante de um jurado... sem esquecer que, se perderem, seu patrocinado terá que sufragar sozinhos as custas suplementares.
O filho de K. Ito puxou a manga do seu advogado e sussurrou-lhe algo no ouvido.
O advogado assentiu e disse:
- Aceitamos uma audiência conjunta... em relação aos fatos.
- Muito bem. Existem outras objeções? ninguém apresentou nenhuma e Greenberg voltou-se para O'Farrel: Juiz, esta sala está provida de detectores de mentira?
- Hein? Certamente. Embora eu pouco os utilize.
- Eu gosto deles. voltou-se para os demais. Os detectores de mentiras serão ligados. Não se requererá a ninguém que os empregue, exceto no caso de que alguém se negue a declarar. Este tribunal, como é seu privilégio, tomará nota e enfatizará o fato de alguém que se negue a utilizar o detector de mentiras.
John Thomas sussurrou para Betty:
- Cuidado para não escorregar, Bela Adormecida. Ela respondeu-lhe:
- Não se preocupe comigo! Cuidado você, para não escorregar. O juiz O'Farrel disse a Greenberg:
- Ainda demorarão um pouco para prepará-los. Não seria melhor que interrompêssemos a sessão para ir almoçar?
- Ah sim, o almoço. Atenção todos... este tribunal não suspenderá a sessão para irmos comer. Vou pedir ao meirinho que traga café e lanche, o que vocês quiserem, enquanto esse empregado liga os detectores. Comeremos nesta mesma mesa. Enquanto isso... Greenberg procurou cigarros em seus bolsos. Alguém tem um fósforo?
Em sua cela, após considerar a difícil questão do direito que Betty tinha de dar-lhe ordens, Lummox chegou à conclusão de que ela possivelmente gozava de uma situação especial. Cada um dos John Thomas que havia conhecido havia introduzido em sua vida uma pessoa equivalente a Betty; cada um deles havia insistido em que a pessoa em questão fosse atendida em todos seus humores e caprichos. O John Thomas atual já havia iniciado seu processo com Betty e, por conseguinte, era melhor seguir a corrente com esta, sempre que não se tratasse de coisas graves. Estendeu-se no solo e pôs-se a dormir, deixando seu olho vigilante de guarda.
Teve um sono inquieto, turvado pelo saboroso cheiro do aço. Transcorrido algum tempo, despertou e esticou-se, agitando a jaula. Parecia-lhe que John Thomas estava ausente por muito tempo. Pensando bem, não gostara do modo como aquele homem havia arrastado John Thomas... não, não gostara nem um pouco. Perguntou-se o que deveria fazer. Que diria John Thomas se estivesse ali?
O problema era muito complexo. Voltou a deitar-se e provou as barras. Conteve-se para não comê-las; apenas provou seu gosto. Um pouco mofados, decidiu, mas eram boas.
Enquanto isto, o chefe Dreiser havia terminado sua declaração, que foi seguida pela de Karnes e Mendoza. Não surgiu nenhuma discussão e os detectores de mentiras permaneceram silenciosos. O senhor De Grasse insistiu em ampliar a parte da declaração. O advogado de K. Ito declarou que seu cliente havia disparado contra Lummox; foi permitido ao filho de Ito que descrevesse as consequências e mostrasse fotografias. Só faltava o testemunho de Isabelle Donahue para completar a história do que tinha acontecido no dia "L".
Greenberg voltou-se para o advogado dela:
- Senhor Beanfield, deseja fazer perguntas ao seu cliente ou o julgamento prossegue?
- Continue, senhor Juiz. É possível que eu ainda faça uma ou duas perguntas.
- Você tem direito a isto. Senhora Donahue, conte-nos o que aconteceu.
- Com muito prazer. Senhor juiz, distintos visitantes, apesar de eu não ser acostumada a falar em público, à minha maneira eu creio que sou...
- Isto não importa agora, senhora Donahue. Limite-se aos fatos e ao que aconteceu na segunda-feita à tarde.
- Mas era isto que eu estava fazendo!
- Muto bem, prossiga. Conte-nos simplesmente Ela bufou.
- Bem! Eu estava deitada, tentando descansar por uns minutos... tenho tantas responsabilidades a que atender: clubes, comitês de caridade e outras organizações semelhantes...
Greenberg olhava para o detector de mentiras que a demandante tinha sobre a cabeça. A agulha oscilava nervosamente, mas sem permanecer na zona vermelha o tempo suficiente para por em funcionamento a campainha do alarme. Decidiu que não valia a pena adverti-la.
- ...quando de repente me sobressaltei com um ruído indefinível.
A agulha saltou para o vermelho, acendeu-se uma luz cor de rubi e a campainha começou a soar estrepitosamente. Ouviram-se risinhos e Greenberg apressou-se a intervir:
- Ordem na sala. O meirinho tem ordem de expulsar todos que causem desordens. Isabelle Donahue interrompeu-se subitamente ao ouvir a campainha. Seu advogado, com o rosto sisudo, puxou-a pela manga e disse:
- Não faça caso, senhora. Limite-se a contar ao tribunal sobre o ruído que ouviu, o que viu, e o que fez em seguida.
- Ele está aconselhando a testemunha objetou Betty.
- Não importa disse Greenberg. Alguém tem que fazê-lo.
- Mas...
- Objeção não aceita. A testemunha pode continuar declarando.
- Bem! Pois... como eu dizia, ouvi aquele ruído e me perguntei o que poderia ser. Espiei para fora e vi essa grande besta de rapina correndo em todas as direções, com aspecto ameaçador e...
A campainha soou novamente e uma dúzia de espectadores não pôde conter o riso. A senhora Donahue disse, irada:
- Não podem para essa campainha? Como querem que eu declare com esse maldito ruído?
- Ordem! gritou Greenberg. Se continuar o alvoroço, o tribunal terá que deter alguém. prosseguiu dirigindo-se a Isabelle Donahue: Uma vez que uma testemunha haja aceito o uso do detector de mentiras, a decisão não poderá ser alterada. Mas os dados que este aparelho nos proporciona são somente informativos; o tribunal não se acha obrigado por isto. Continue.
- Bom, eu já esperava. Eu nunca disse uma mentira na minha vida.
A campainha permaneceu silenciosa e Greenberg pensou que ela devia acreditar nisto de boa fé.
- Quero dizer acrescentou o juiz que o tribunal forma seu próprio juízo dos fatos, sem permitir que uma máquina o faça por ele.
- Meu pai sempre dizia que aparelhos como este eram coisa do diabo. Dizia que um homem negócios honrado não deveria...
- Por favor, senhora Donahue.
Beanfield sussurrou-lhe ao ouvido para que contasse os fatos. Ela prosseguiu mais calma:
- Bem, ali estava aquela criatura, essa besta enorme, propriedade do garoto da casa ao lado. Estava comendo minhas roseiras.
- E o que fez?
- Eu não sabia o que fazer. Empunhei a primeira coisa que me veio à mão, uma vassoura, e me precipitei para a porta. Quando eu saí, a fera lançou-se sobre mim e...
Riiiiiiiiing!
- O que aconteceu então, senhora Donahue?
- Veja você, o covardão deu meia volta e saiu correndo do meu jardim. Não sei para onde ele foi, mas deixou o meu formoso jardim em ruínas.
A agulha oscilou mas a campainha não soou. Greenberg voltou-se para o advogado da dama:
- Senhor Beanfield, já examinou os danos sofridos no jardim da senhora Donahue?
- Sim, senhor juiz.
- Quer dizer-nos a extensão dos danos?
Beanfield decidiu que mais valia perder uma cliente que ver-se descoberto diante de todo o tribunal por aquela maldita brincadeira.
- Foram devoradas cinco roseiras, senhor juiz, total ou parcialmente. O gramado ficou pisoteado em parte e foi feito um buraco em uma cerca ornamental.
- Importância das perdas?
O advogado respondeu, medindo cuidadosamente as palavras:
- O montante que exigimos como indenização acha-se diante de Vossa Honra.
- Isto não responde à minha pergunta, senhor Beanfield.
Beanfield encolheu mentalmente os ombros e apagou a senhora Donahue da sua lista de clientes.
- Oh, em torno de duzentos dólares, senhor juiz, como perdas e danos. Mas o tribunal teria que aumentar a soma, pelo desconforto e angústia mental causados à minha cliente.
Isabelle Donahue gritou para o céu:
- Isto é um absurdo! Eram minhas rosas de exposição!
A agulha saltou, mas voltou rapidamente para sua posição anterior e a campainha não soou. Greenberg perguntou, cansado:
- De que exposição está falando, senhora Donahue? Seu advogado interveio:
- Estavam mesmo ao lado das famosas plantas premiadas da senhora Donahue. A valente ação desta senhora salvou as flores mais caras, afortunadamente.
- Algo mais a acrescentar?
- Creio que não. Posso apresentar fotografias, seladas e reconhecidas.
- Muito bem.
Isabelle Donahue fulminou seu advogado com o olhar.
- Pois bem! Pois eu tenho algo mais a acrescentar. Insisto absolutamente em uma coisa, e é que seja destruída essa besta sedenta de sangue.
Greenberg voltou-se para Beanfield:
- Devemos considerar isto como uma petição formal, senhor advogado, ou como uma simples retórica?
Beanfield parecia estar sobre brasas.
- Nós apresentamos uma petição neste sentido, senhor juiz.
- O tribunal admite a petição.
Betty interveio, dizendo:
- Ei, um momento! A única coisa que Lummie fez foi comer algumas das velhas e enrugadas...
- Depois, senhorita Sorensen.
- Mas...
- Depois, eu lhe rogo. Logo terá oportunidade de falar. O tribunal acha que já possui todos os dados pertinentes. Alguém deseja apresentar novos fatos ou interrogar outras testemunhas? Ou apresentar outro declarante?
- Sim, nós disse Betty no mesmo instante.
- Vocês o que?
- Nós queremos chamar uma nova testemunha.
- Muito bem, ela está aqui?
- Sim senhor juiz. Ou melhor, está lá fora. É Lummox Greenberg pareceu refletir.
- Eu entendi que me propõem que eu faça comparecer, ahn..., Lummox, para que ele assuma sua própria defesa?
- Por que não? Ele sabe falar.
Um jornalista voltou-se bruscamente para um dos seus colegas e sussurrou-lhe alguma coisa e depois saiu apressadamente da sala. Greenberg mordeu os lábios.
- Eu já sei admitiu. Eu mesmo troquei algumas palavras com ele. Mas a faculdade de falar não é suficiente, por si só, para que uma testemunha seja competente. Uma criança pode aprender a falar antes de completar um ano, mas só muito raramente uma criança de tenra idade, digamos de menos de cinco anos, será considerado capaz para testemunhar. Este tribunal admite que membros de raças não humanas, não humanas no sentido biológico, podem declarar como testemunhas. Mas nada nos faz crer nem nos demonstra que este ser extraterrestre a que nos referimos tenha competência para fazê-lo.
John Thomas disse em voz baixa no ouvido de Betty:
- Está ficando louca? Não sabemos o que Lummie pode dizer!
- Shh! Betty voltou-se para Greenberg: Olhe, senhor delegado, você disse um bom número de palavras, mas que significam? Está disposto a sentenciar Lummox, e nem sequer deseja dar-se ao trabalho de fazer-lhe uma pergunta. Diz que ele não está capacitado para declarar. Bem, eu vi outras testemunhas que tampouco estavam. Aposto que se colocar um detector de mentiras na cabeça de Lummox, a campainha não soará. Sim, eu já sei que ele fez coisas que não deveriam ser feitas. Comeu algumas rosas velhas e raquíticas e as couves do senhor Ito. Que há de horrível nisto? Quando você era menino, não deu alguma vez um pontapé em um cão, quando acreditava que ninguém estava vendo?
Suspirou profundamente.
- Suponha que quando deu esse pontapé naquele cão, alguém veio e bateu no seu rosto com uma vassoura, ou disparou um canhão contra você. Não teria se assustado? Não teria saído correndo? Lummie possui sentimentos amistosos. Todos aqui sabem disto... ou se não sabem é que são mais estúpidos e irresponsáveis que ele. Alguém tentou falar com ele razoavelmente? Oh, não! Aterrorizaram-no, dispararam canhões e lhe deram um susto mortal, acabando por jogá-lo de uma ponte. Você diz que Lummie é incompetente. Quem é competente aqui? Todas essas pessoas que o trataram mal, ou Lummie? Agora já não se conformam com nada menos que matá-lo. Se um menino desse um pontapé em um cão, suponho que o remédio seria cortar-lhe a cabeça, só para se assegurarem que não voltaria a fazê-lo. Estamos ficando loucos? Que farsa é esta?
Betty interrompeu-se, enquanto as lágrimas corriam por sua bochechas. Seus dotes histriônicos sempre lhes haviam sido muito úteis na escola de arte dramática, mas, com grande surpresa de sua parte, deu-se conta que desta vez as lágrimas eram reais.
- Já terminou? - perguntou Greenberg.
- Acho que sim. Pelo menos no momento.
- Devo reconhecer que você se expressou com muita emoção. Mas um tribunal não se deixa influenciar pela emoção. Sua tese é que a maior parte dos danos, digamos todos os danos menos as roseiras e as couves, deveram-se a atos improcedentes realizados por seres humanos, e que, portanto, não podemos atribuir a responsabilidade deles a Lummox nem ao seu dono.
- Creio que é assim, senhor juiz. A cauda costuma seguir o cão. Por que não pergunta a Lummie qual foi sua impressão?
- Já chegaremos lá. Mas por outro lado, não posso aceitar a validade da sua analogia. Agora nós estamos nos referindo, não a uma criança, e sim a um animal. Se este tribunal decretasse a destruição deste animal, não o faria animado por um espírito de vingança ou de castigo, uma vez que se presume que os animais não entendem tais valores. O propósito seria preventivo, com a finalidade de que um perigo potencial não chegasse a se converter em um perigo de verdade para as vidas ou as propriedades. A criança do seu exemplo poderia ser dominada pelos braços da sua babá, mas agora estamos enfrentando uma criatura cujo peso é de algumas toneladas, capaz de esmagar um homem inadvertidamente com uma das suas carícias. Não existe paralelo com a criança do seu exemplo.
- Não existe, hein? Esse menino poderia crescer e fazer voar a cidade toda somente apertando um botãozinho. De modo que cortemos sua cabeça antes que cresça. Não lhe perguntem por que deu pontapé no cão, não lhe perguntem nada! É um menino mau... cortem-lhe a cabeça e assim evitarão complicações ulteriores.
Greenberg voltou a morder os lábios:
- É portanto seu desejo que o tribunal interrogue Lummox?
- Foi isto o que eu disse, não?
- Não estou muito certo do que você falou. O tribunal considerará essa decisão. Lombard apressou-se em intervir:
- Eu me oponho, senhor juiz. Se esse extraordinário...
- Retenha sua objeção, por favor. O tribunal se retirará para deliberar durante dez minutos. Enquanto isto, permaneçam todos em seus lugares.
Greenberg levantou-se e se afastou. Tirou um cigarro, mas descobriu novamente que não tinha fósforos e voltou a botar o pacote no bolso.
Garota condenada! Ele havia disposto as coisas para que aquele caso deslizasse sobre rodas, aumentando seu prestígio junto ao Departamento e deixando todo mundo satisfeito... com exceção do jovem Stuart. Mas isto ele não havia previsto: o garoto e aquela precoce e descarada jovenzinha que o tinha dominado.
Não podia permitir que aquele exemplar único fosse destruído. Mas tinha querido fazer as coisas com suavidade... negar a demanda daquela velha harpia, inspirada evidentemente pelo ressentimento, e dizer ao chefe de Polícia, em particular, que retirasse a outra. A demanda apresentada pela Liga Humana para a Conservação da Terra não o preocupava. Mas aquela garota insolente, que falava quando deveria escutar, faria com que parecesse que um tribunal departamental tinha sido forçado a ariscar a segurança pública por causa de uma dose de falatório sentimental e antropomórfico!
Também o acusariam de haver-se deixado influenciar por aqueles lindos olhos. Era uma lástima que a jovem não fosse feia.
O dono do animal era o responsável pelos danos que este havia causado; havia um milhar de casos de "animais extraviados" que justificavam isto... visto que este não era do planeta Tencora. Isso de que a culpa era das pessoas que o haviam assustado era simples palavreado. Mas aquele ser extraterrestre, como exemplar único para a ciência, valia muito mais que os danos que havia causado. Sua decisão não afetaria economicamente o garoto.
Compreendeu que havia se deixado levar a um estado anímico muito pouco judicial. A solvência do demandado era assunto que não lhe incumbia.
- Peço-lhe que me desculpe, Vossa Honra, mas lhe agradeceria se não tocasse nessas coisas.
Levantou o olhar, disposto a repreender a quem quer que fosse, e achou-se em frente ao meirinho. Viu então que havia estado brincando com os interruptores e controles da mesa deste. Retirou rapidamente as mãos.
- Desculpe-me.
- Uma pessoa que não entenda seu funcionamento disse o meirinho em tom de desculpa pode provocar muitas complicações.
- Está certo. Desgraçadamente muito certo. afastou-se bruscamente. Que se restabeleça a ordem na sala. Sentando-se, voltou-se para Betty Sorensen:
- O tribunal decreta que Lummox não é uma testemunha competente. Betty ficou boquiaberta.
- Vossa Senhoria é muito injusto.
- Provavelmente.
Ela meditou por um instante.
- Solicitamos que o tribunal se reúna em outro lugar.
- Onde você aprendeu a pedir tais coisas? O lugar já estava indicado quando o Departamento interveio, e não vamos mudá-lo agora. Procure ficar calada por um momento, faça-me o favor.
Betty ficou vermelha.
- Você teria que renunciar!
Greenberg tentava demonstrar calma e modos olímpicos. Agora teve a necessidade de fazer três profundas inspirações.
- Senhorita disse ele, medindo suas palavras, o tempo todo você vem tentando enredar a sessão deste tribunal. Não é necessário que fale agora novamente; já o fez excessivamente. Está me entendendo?
- Eu não estou falando excessivamente, continuarei falando e não lhe entendi.
- Como? Quer repetir o que disse?
- Não, será melhor que eu retire o que disse... senão já o vejo acusando-me de insulto à autoridade.
- Não, não, eu só queria lembrar. Não creio ter ouvido nunca uma afirmação tão contundente. Mas não importa. Limite-se a conter sua língua, se é que sabe como fazê-lo. Mais tarde eu a permitirei falar novamente.
- Sim, senhor juiz.
Greenberg voltou-se para os demais juristas.
- O tribunal declarou anteriormente que estava disposto a terminar a audiência hoje mesmo. O tribunal não vê nenhuma razão que se oponha a isto. Têm algo a objetar?
Os advogados agitaram-se inquietos, olhando-se entre si. Greenberg voltou-se para Betty.
- Você, o que diz
- Eu? Pensava que eu não tinha voto.
- Terminamos a audiência hoje?
Ela olhou para John Thomas e disse sobriamente:
- Não faço nenhuma objeção. inclinando-se para este, sussurrou: Oh, Johnnie, eu fiz o possível.
Ele acariciou lhe a mão por baixo da mesa.
- Eu sei que fez, minha Bela Adormecida.
Greenberg fingiu não ouvir e prosseguiu com voz fria e oficial:
- Este tribunal tem aqui, para seu exame, uma demanda solicitando a destruição do ser extraterrestre chamado Lummox, alegando que é perigoso e incontrolável. Os fatos não corroboram esta alegação. Portanto, a demanda foi negada.
Betty começou a arfar e dar gritinhos agudos. John Thomas pareceu surpreso no momento, mas logo sorriu pela primeira vez.
- Ordem, ordem disse Greenberg suavemente. Temos aqui outra demanda no mesmo sentido, mas inspirada por diferentes motivos. exibiu o documento assinado pela Liga Humana para a Conservação da Terra. Este tribunal declara não ser de sua competência dita demanda e, portando, nega-a. A respeito das quatro querelas criminais, ficam rechaçadas. A lei requer...
O advogado que representava Westville iniciou um protesto:
- Mas senhor juiz...
- Se tem alguma observação, reserve-a. Neste caso, não acho intenção criminosa, e portanto, fica claro que não pôde haver crime. Não obstante, a lei exige que os cidadãos exerçam a devida prudência a fim de proteger os demais, e é sob esta luz que o caso deve ser julgado. A prudência se baseia na experiência, pessoal e delegada, e não é uma presciência impossível. Na opinião deste tribunal, as precauções adotadas eram prudentes à luz da experiência... ou seja, da experiência até a tarde da segunda-feira. Virando-se, dirigiu-se para John Thomas. O que eu quero dizer, jovem, é isto: as precauções que você adotou eram "prudentes" na medida do que você sabia até então. Mas agora está melhor informado. Se essa besta voltar a escapar, seremos mais duros com você.
Johnnie engoliu em seco.
- Sim senhor.
- Restam os danos e prejuízos. Aqui nosso critério é diferente. O tutor de um menor de idade ou o dono de um animal são responsáveis pelos danos cometidos pela criança ou pelo animal em questão, pois a lei sustenta que é preferível que sejam o dono ou o tutor quem sofram as consequências, em lugar de uma terceira pessoa inocente. Exceto somente por uma coisa, que não mencionarei por enquanto, os atos aqui julgados caem dentro desta regra. Em primeiro lugar, permitam-me observar que uma ou mais das demandas apresentadas alegam danos reais, pedindo ao mesmo tempo uma ação punitiva e exemplar. Esta petição de castigo fica rechaçada; não há motivo para isto. Creio que só existem os danos reais em todos os casos, e os advogados assim o declaram. Pelo que se refere às custas, o Departamento de Assuntos Espaciais, no interesse público, assume os mesmos.
Betty comentou com Thomas:
- Fizemos bem em declará-lo uma propriedade. Olha como sorriem esses abutres das companhias de seguros.
Greenberg prosseguiu:
- Eu disse que havia feito uma reserva. Apresenta-se indiretamente a questão de que Lummox possa não ser um animal e, por conseguinte, não possa ser considerado um bem, e sim que possa tratar-se de um ser sensível e inteligente, no sentido que damos a esta expressão os "Costumes de civilizações", sendo, portanto, dono dos seus próprios atos. Greenberg vacilou. Temia que sua alegação não fosse válida. Faz muito tempo que declaramos a escravidão fora da lei. Nenhum ser sensível e inteligente pode ser propriedade de terceiros. Mas se Lummox é um ser desta categoria, que devemos fazer? Podemos fazer Lummox responsável pelos seus atos? Não parece que ele possua o conhecimento suficiente dos nossos costumes para isto, e tampouco parece que se encontre entre nós por sua livre escolha. São seus donos putativos seus guardiães de fato, e portando os responsáveis? Todas estas perguntas se reduzem a uma: Lummox é um bem móvel ou um ser livre?
«Este tribunal expressou sua opinião, no momento oportuno, de que Lummox não podia declarar como testemunha... por enquanto. Mas este tribunal não está capacitado para pronunciar uma decisão final, por muito que acredite que Lummox é uma besta.
«O tribunal iniciará, portanto, uma pesquisa por sua conta, com o fim de determinar a natureza de Lummox. Enquanto isto, ele passará a depender das autoridades locais, as quais serão responsáveis, tanto por sua segurança, como pela segurança pública em relação a ele.
Uma mosca teria tido trabalho para escolher entre tantas bocas abertas. O primeiro a se recobrar do seu assombro foi o advogado da Sociedade Mutua de Seguros Ocidentais, Schneider.
- Mas senhor juiz... Como vai terminar este assunto?
- Ignoro.
- Mas... suplico a Vossa Honra que enfrente os fatos. A senhora Stuart não tem propriedades nem bens embargáveis; é beneficiária de um consórcio. O mesmo se pode dizer do garoto. Esperávamos poder embargar a própria besta; daria um bom preço no mercado adequado. Mas agora Vossa Honra, se me permite a expressão, capotou o carro das maçãs. Se algum desses cientistas começar uma longa série de testes, que durarão talvez anos, ou lançar dúvidas sobre a natureza do bem móvel da besta... bem, o que nós faremos? Teremos que demandar a cidade?
Lombard levantou-se de um salto.
- Ouça, vocês não podem processar a cidade. A cidade está entre os prejudicados.
Segundo esta teoria...
- Ordem disse Greenberg com firmeza. Nenhuma destas perguntas pode ser respondida agora. Todas as ações civis continuarão até que a natureza de Lummox seja esclarecida. olhou para o teto. Ainda existe outra possibilidade. Segundo parece, esta criatura veio para a terra na "Rastro de Fogo". Se o que me lembro da história é correto, todos os exemplares trazidos nessa nave eram propriedades do governo. Se Lummox não é um bem móvel, não poderá ser propriedade privada. Neste caso, a situação pode complicar-se e dar lugar a um litígio mais árduo.
Schneider parecia atordoado e Lombard mostrava um semblante colérico. John Thomas parecia confuso e sussurrou para Betty.
- Do que ele está falando? Lummox pertence a mim.
- Shh.. murmurou Betty. Eu já disse que sairíamos desta. Oh, o senhor Greenberg é um cordeirinho.
- Mas...
- Calado. Logo seremos vitoriosos.
O filho de K. Ito havia guardado silêncio durante toda a audiência, exceto quando se levantou para declarar. Mas agora voltou a levantar-se.
- Senhor juiz.
- Diga, senhor Ito.
- Não entendi uma palavra. Eu não sou mais que um fazendeiro, mas queria saber uma coisa. Quem pagará as estufas do meu pai?
John Thomas pôs-se de pé.
- Eu disse simplesmente. Betty puxou-o pela manga.
- Senta-te, idiota!
- Cala-te Betty. Já falaste bastante. Betty calou-se. Senhor Greenberg, todo mundo falou. Agora eu posso dizer algo?
- Adiante.
- Eu ouvi muitas coisas durante o dia todo. Uns, que diziam que Lummox é perigoso, quando na realidade não é. Outros, que queriam vê-lo morto, somente por despeito.. Sim, é a você que eu me refiro, senhora Donahue!
- Dirija-se ao tribunal, por favor disse Greenberg amavelmente.
- O senhor também disse uma série de coisas. Não entendi todas, mas se você puder me perdoar, senhor, eu direi que algumas delas me pareceram um perfeito absurdo. Peço-lhe que me desculpe.
- Estou certo que não tinha intenção de ofender-me.
- Pois bem. Por exemplo, analisemos o que se diz sobre se Lummox é ou não um bem móvel, ou se tem inteligência suficiente para votar. Lummox é muito inteligente, e acredito que ninguém sabe disto melhor que eu. O que acontece é que nunca pôde estudar nem viajar. Mas isto nada tem a ver com quem seja ou deixe de ser seu proprietário. Ele me pertence, da mesma forma que eu lhe pertenço... Fomos criados juntos. Agora, bem, já sei que sou responsável pelos danos causados na segunda-feira... Quer ficar quieta Betty? Não posso pagá-los agora, mas eu os pagarei. Eu...
- Um momento, jovem. O tribunal não permite que você contraia compromissos sem antes ser aconselhado pelo seu advogado. Se tem esta intenção, o tribunal se verá obrigado a nomear-lhe um advogado.
- Você disse que eu podia falar.
- Continue. Que conste que isto não o obriga.
- Sim, me obriga, porque penso em fazê-lo. Não demorarei em receber dinheiro para minha faculdade, o que cobre quase todos os danos. Acredito que poderei...
- John Thomas! gritou sua mãe encolerizada. Você não fará isto!
- Mamãe, é melhor que não se meta. Eu só ia dizer que...
- Você não vai dizer nada. Senhor juiz, ele é...
- Ordem! interrompeu Greenberg. Nada disto o obriga. Continue falando, garoto.
- Obrigado, senhor. De qualquer forma eu já terminei. Mas tenho algo mais a dizerlhe, senhor. Lummie é tímido. Eu posso controlá-lo porque ele confia em mim, mas se você crê que vou permitir que um grupo de estranhos o toquem, o pressionem, lhe façam perguntas estúpidas ou o deixem confuso e embaraçado, será melhor que pense melhor, porque eu não estou disposto a tolerar isto. Lummie está doente. As impressões recebidas foram muito fortes para ele. O pobrezinho...
Lummox esperou John Thomas por mais tempo do que desejara, pois não estava muito certo aonde seu amo havia ido. Havia-o visto desaparecer entre a multidão sem estar muito certo se ele havia entrado ou não na casa ao lado. Tentou dormir depois de ter despertado pela primeira vez, mas a jaula estava rodeada de curiosos e ele acordava a cada instante, pois seu circuito de guarda não tinha muito critério próprio. Não que ele o considerasse assim, mas simplesmente se deu conta de que seu sistema de alarme funcionava quase sem interrupção.
Por fim, decidiu que já era hora de encontrar John Thomas e voltar para casa. Mentalmente, fez em pedaços as ordens de Betty; além do mais, ela não era Johnnie. Para tanto, aguçou seu ouvido para o ponto de "busca" e tentou localizar Johnnie. Escutou durante um longo momento e ouviu várias vozes, a voz de Betty... mas esta não o interessava. Continuou escutando.
Ali estava Johnnie, finalmente. Afinou seu mecanismo de escuta e prestou atenção. Ele estava na casa grande. Puxa! A voz de Johnnie tinha o mesmo tom de quando discutia com sua mãe. Lummox aguçou ainda mais o ouvido e tentou descobrir o que estava acontecendo.
Falavam sobre coisas incompreensíveis para ele. Mas uma coisa estava clara: alguém tratava mal a Johnnie. Seria sua mãe? Sim, ouviu-a uma vez, e sabia que ela tinha o privilégio de tratar mal a Johnnie, do mesmo modo que Johnnie podia repreendê-lo, sem que isto importasse. Mas havia mais alguém, várias pessoas, e nenhuma delas gozava de tal privilégio.
Lummox decidiu que havia chegado o momento de agir e pôs-se de pé.
John Thomas nunca chegou a terminar sua frase. Ouviram-se gritos no exterior e todos os que se achavam na sala voltaram-se para ver o que acontecia. Os gritos foram se aproximando rapidamente e Greenberg se preparava para enviar o meirinho para ver o que estava acontecendo, quando imediatamente isto se tornou desnecessário. A porta da sala primeiro balançou e depois saltou dos seus gonzos, aparecendo pela abertura a parte dianteira de Lummox, o qual derrubou parte da parede, arrastando a moldura da porta como se fosse um colar. Abrindo a boca, ele falou com sua vozinha:
- Johnnie!
- Lummox! gritou seu amo. Não se mova daí! Não avance nem um centímetro! Todos os rostos demonstravam em sua expressão uma mescla de diversos senti-
mentos. O mais interessante era o do delegado espacial Greenberg.
5 DEPENDE DO PONTO DE VISTA
Henry Kiku abriu a gaveta da sua mesa e contemplou sua coleção de pílulas. Sua última úlcera estomacal tinha voltado a atormentá-lo. Engoliu a pílula para isto e voltou a concentrar-se em seus assuntos.
Leu um ofício da Seção de Engenharia do Departamento recomendando que ficassem em terra todas as naves interplanetários do tipo Pelicano, até que lhes tivessem feito certa modificações. O subsecretárionão se preocupou em ler o informe anexo dos engenheiros. Apôs sua assinatura e anotou à margem: "QUE SEJA EFETIVADO DE IMEDIATO". Então depositou os documentos na bandeja de saída. A segurança das viagens interplanetárias era uma incumbência do engenheiro BuEcon; Kiku não se interessava nem um pouco pela engenharia; limitar-se-ia a respaldar as decisões do seu engenheiro chefe, ou a substituí-lo se não estivesse satisfeito com seu trabalho.
Mas teve que admitir, de má vontade, que os importantes financistas, donos das naves do tipo Pelicano, não tardariam em puxar a orelha do ministro... e que este, preocupado com a força políticas desses ditos cavalheiros, os endossaria.
O novo ministro estava começando a irritá-lo. Era difícil amoldar-se aos seus costumes.
O documento seguinte parecia um puro trâmite e desprovido de interesse. Havia-lhe sido enviado em cumprimento à ordem de que tudo que se relacionasse ao ministro, por rotineiro que fosse, passaria por seu gabinete. Segundo o relatório que tinha à sua frente, uma organização denominada "Amigos de Lummox", presidida por uma tal Beulah Murgatroyd, pedia uma audiência ao ministro de Assuntos Espaciais, mas seriam enviados ao encarregado de relações públicas, Wes Robbins, o qual lhes prodigalizaria efusivas mostras de afeto, e nem ele nem o ministro seriam molestados por aqueles importunos. Divertiu-se ante a ideia de castigar o ministro, enviando-lhe essa tal de Murgatroyd, mas não passou de uma fantasia passageira; o tempo do ministro devia ser reservado para coisas mais importantes, como por exemplo a colocação das primeiras pedras, e não para perdê-lo atendendo a sociedades de malucos. Todas as organizações denominadas "Amigos disto ou daquilo", costumavam ser formadas, quase sempre, por pessoas que tinham um propósito oculto, além do sortimento costumeiro de badulaques e figurões profissionais. Mas tais grupos poderiam chegar a se tornarem um estorvo e, por conseguinte, nunca lhes concederiam o que pedissem.
Arquivou o documento e examinou o memorando redigido pelo engenheiro chefe BuEcon: um vírus havia se apoderado da grande fábrica de levedura de San Luis; o informe mostrava uma possibilidade de carência de proteínas, e umas medidas de racionamento mais drásticas. A fome que pudessem sofrer na Terra, tampouco interessava a Kiku, mas observou pensativo o documento, enquanto a régua de cálculo em sua cabeça embaralhava umas quantas cifras. Depois chamou um ajudante.
- Wong, viu o informe de BuEcon Ay0e28?
- Sim, creio que sim, chefe. O da fábrica de levedura de San Louis?
- Sim. O que você fez a respeito?
- Bem... nada. Isso não concerne a mim, acho.
- Não lhe concerne, hein? Mas lhe concernem as estações exteriores, não é isso mesmo? Revise seus horários de embarque para os próximos dezoito meses, ajuste-os de acordo com Ay0428 e faça a projeção. Talvez tenha que comprar gado australiano, e fazer com que passe a depender de nós. Não podemos tolerar que o nosso povo passe fome apenas porque algum mentecapto de San Luis deixou cair suas meias em um tanque de levedura.
- Sim, senhor.
Kiku voltou a se concentrar em seu trabalho. Deu-se conta, com desgosto, de que tinha sido muito brusco com Wong. Seu estado de ânimo atual, pensou, não era culpa de Wong, e sim do doutor Ftaeml.
Nem tampouco era culpa de Ftaeml... era culpa sua! Sabia que não devia albergar preconceitos raciais, pelo menos enquanto ocupasse aquele cargo. De um modo intelectual, se dava conta de que ele estava relativamente a salvo de perseguições que pudessem surgir de diferenças de cor da pele e do cabelo, e de forma do rosto, pela simples razão de que criaturas tão extravagantes como o doutor Ftaeml haviam conseguido fazer com que as diferenças entre as distintas raças humanas parecessem muito menos importantes.
Entretanto, a verdade era que odiava até mesmo a sombra de Ftaeml Não podia evitá-lo.
Se aquela confusão, que era Ftaeml, usasse um turbante, seria outra coisa... mas ele se empenhava em se exibir com aquelas serpentes asquerosas, que se mexiam e ondulavam como um viveiro de vermes. Mas, oh, não; os rargilianos orgulhavam-se delas. O seus modos pareciam sugerir que aquele que não as tivesse não era humano.
Mas apesar de tudo, Ftaeml era um sujeito decente. Redigiu uma nota convidando Ftaeml a jantar com ele; não podia mais adiar. Apesar de tudo, se prepararia com uma profunda preparação hipnótica; não queria dificuldades durante o jantar. Sua úlcera causou-lhe uma pontada de dor ante a ideia.
Kiku não culpava o rargiliano em haver criado um problema difícil para o Departamento; os problemas difíceis eram meras questões de trâmites. Era somente que... bem... por que aquele monstro não barbeava a cabeça?
A visão do doutor Ftaeml com a cabeça raspada, cheia de caroços e dentes, fez Kiku sorrir. Entregou-se novamente ao trabalho com o ânimo mais sossegado. O assunto seguinte era um informe... Ah, sim! Sergei Greenberg. Bom garoto, esse Sergei. Já estava aprontando a caneta para dar sua aprovação, mesmo antes de terminar de ler, mas, em vez de assinar, pensou um segundo com o olhar perdido no vazio. Então apertou um botão.
- Arquivo! Enviem-me o informe completo da missão do senhor Greenberg, esta da qual ele regressou a alguns dias.
- Tem o número de referência, senhor?
- Procure você. Espere... sim, é o Rt04ll, com data de sábado. Traga-o imediatamente.
Apenas havia despachado uma dúzia a mais de documentos, quando, alguns segundos depois, o tubo de entrega produziu um ruído surdo e um pequeno cilindro caiu sobre sua mesa. Ele o introduziu na máquina de ler e sentou-se na sua cadeira, com o polegar direito apoiado em uma alavanca, a fim de controlar a velocidade do manuscrito na tela.
Em menos de sete minutos havia passado diante dele , não somente uma transcrição completa do julgamento, como também a informação de Greenberg sobre tudo quanto havia acontecido depois. Kiku conseguia ler em torno de duas mil palavras por minuto com a ajuda da máquina; considerava uma perda de tempo as gravações orais e as entrevistas pessoais. Mas quando a máquina terminou, decidiu-se por um informe oral. Inclinou-se para o intercomunicador interno e girou uma chave.
- Greenberg.
Este apareceu na tela, sentado atrás da sua mesa.
- Olá, chefe.
- Venha aqui, por favor.
Desligou o comutador sem a menor cortesia. Greenberg pensou que o estômago do seu chefe deveria estar incomodando-o outra vez. Mas já era tarde para inventar que tinha algum outro assunto urgente fora do Departamento. Subiu apressadamente a escadaria e compareceu diante do seu chefe com seu costumeiro sorriso jovial.
- Olá, chefe.
- Bom dia. Eu li o informe da sua intervenção.
- Verdade?
- Que idade você tem, Greenberg?
- Eu? Trinta e sete anos.
- Sei. Qual sua função atual?
- Como disse, senhor? Sou Oficial Diplomático de segunda classe... e fui indicado para a primeira.
Que diabos era aquilo? Kiku sabia tão bem quanto ele. Provavelmente sabia até o número que ele calçava.
- Idade suficiente para ter juízo sussurrou Kiku. Classificação suficiente para ser nomeado embaixador... ou agregado a um embaixador de carreira. Sergei, a que se deve o fato de que você seja tão enormemente estúpido?
Os músculos da mandíbula de Greenberg se contraíram, mas ele não disse nada.
- Então?
- Senhor respondeu Greenberg com voz glacial, você é mais velho e tem mais experiência que eu. Posso perguntar-lhe porque é tão enormemente grosseiro?
A boca de Kiku contraiu-se em um rictus, mas não chegou a sorrir.
- Pergunta muito acertada. Meu psiquiatra me disse que isto é porque eu sou um anarquista que errou de profissão. Agora sente-se e discutiremos porque você tem uma moleira tão dura. Achará cigarros no braço da cadeira.
Greenberg sentou-se, deu-se conta de que não tinha fósforos e pediu fogo a Kiku.
- Não fumo respondeu este. Pensava que eram desses que se acendem sozinhos. Não são?
- Oh sim, é verdade. Greenberg acendeu um cigarro.
- Veja você. Não sabe fazer uso dos seus olhos nem dos seus ouvidos. Sergei, quando essa besta falou, você deveria ter adiado a audiência até saber mais coisas sobre ela.
- É possível.
- É possível? Filho, seus sistemas de alarme subconscientes deviam estar soando como a campainha de um despertador na segunda-feira pela manhã. Em vez disso, deixou que lhe enchessem a cabeça com todo tipo de suposições e indiretas, uma vez terminado o julgamento, ou quando achou que tinha terminado. E por uma jovem, quase uma menina. Me alegro de não ter lido os jornais; apostaria que lhe tenham feito chacota.
Greenberg ficou enrubesceu. Ele havia lido os jornais.
- Então, quando tudo se tornou uma bagunça, em vez de tentar sair da embrulhada e fazer frente ao seu desafio... Fazer frente como? Fazendo um adiamento pra começar, e ordenando que fosse aberto o inquérito, o que você deveria ter feito desde o início, para...
- Mas eu ordenei...!
- Não me interrompa, ainda não acabei com você. Foi logo emitindo um veredito do qual não há precedentes desde que Salomão ordenou que partissem a criança em duas. Onde você estudou Direito?
- Em Harvard respondeu sombriamente Greenberg.
- Certo... Bem, eu não deveria ter me mostrado tão duro com você; está coagido. Mas, pelos setenta e sete deuses com sete lados dos Sarvanchil, o que lhe ocorreu fazer depois? Primeiro: rechaçar uma petição das próprias autoridade locais para que esse bruto fosse destruído no interesse da segurança pública. Então se contradiz, concede a petição e diz que o matem... mas com a única condição de que este Departamento dê antes a sua aprovação. Tudo isto em menos de dez minutos. Filho, não me importa que você dê a impressão de ter sido feito um perfeito joguete em público, mas precisava ter incluído também o Departamento?
- Chefe disse Greenberg com humildade, admito que errei. E quando vi que havia errado, fiz a única coisa que podia fazer: anulei meu veredito anterior. Essa besta é realmente perigosa e em Westville não existem os meios para mantê-la encerrada. Se isto não fosse ir além dos meus poderes, eu teria ordenado que a destruíssem imediatamente, sem esperar a aprovação do Departamento... sua aprovação.
- Ora!
- Era eu, e não você, quem estava lá. Você não viu como ele derrubou aquela sólida parede, nem presenciou a destruição subsequente.
- Isto não me impressiona. Já viu alguma uma vez uma cidade totalmente arrasada por uma arma nuclear? Que importância tem a parede da sala de um tribunal? Com certeza algum empreiteiro de obras sem escrúpulo fez antes seu pé-de-meia ao construí-la com materiais inferiores.
- Mas chefe... você devia ter visto a jaula que ele rompeu antes! Era feita com vigas de aço soldadas. Ele as arrancou como se fossem de palha.
- Eu lembro que você me disse que o examinou enquanto estava na jaula. Por que não procurou que o encerrassem em um lugar de onde não pudesse escapar?
- Porque? Porque não concerne ao Departamento a construção de masmorras.
- Garoto, tudo que está relacionado de algum modo com o "lá de fora", concerne especialmente a este Departamento. E você sabe disto. Quando souber disto, tanto dormindo como desperto, da ponta dos cabelos até a ponta dos pés, então você começará a ser um homem do Departamento Espacial. Não o enviamos ali para que cumprisse uma fastidiosa rotina, como se fosse um presidente honorário qualquer que vai provar a sopa em uma casa de caridade. Era de se supor que você iria ali com os olhos e ouvidos alertas, tentando descobrir qualquer "situação especial". Mas falhou. Agora fale-me dessa besta. Eu li o informe e vi sua fotografia, mas isto não é o bastante. Falta-me uma opinião, direta e pessoal.
- Veja bem, ele é um tipo multi-podal não equilibrado, com oito patas. Seu dorso tem uns dois metros de altura. É...
Kiku se endireitou:
- Oito patas? E mãos?
- Mãos? Não.
- Não tem algum tipo de órgãos manipuladores? Um pé modificado?
- Não, não tem nada disso, chefe... se ele tivesse, eu teria ordenado imediatamente uma investigação a fundo. As patas têm a grossura de barris de prego, e são muito delicadas. Por que?
- Por nada. Prossiga.
- A impressão que dá é o da uma mescla entre um rinoceronte e um triceratopo, embora suas articulações sejam completamente diferentes de todos os seres vivos do nosso planeta. Seu jovem dono o chama de Lummox. É uma besta bastante atraente, mas é estúpida, e este é o perigo. É tão grande e poderoso que existe a possibilidade de que fira alguém por essa mesma estupidez e falta de tino. Fala, com efeito, mas não melhor que uma criança de quatro anos. Aliás, ao ouvir sua vozinha, a pessoa tem a impressão de que ele tem uma menina no ventre.
- Por que você diz que ele é estúpido? Ao que parece, seu dono afirma que é inteligente.
- Isto é preconceito, chefe. Eu falei com essa besta e pude certificar-me de que é estúpida.
- Não vejo de forma alguma que você tenha conseguido demonstrar isto. Assegurar que um ser extraterrestre é estúpido porque não sabe falar nossa língua, é como dizer que um italiano é um analfabeto somente porque arranha o inglês. É um corolário ilógico.
- Mas, olhe bem chefe, ele não tem mãos. E seu cociente de inteligência é inferior ao de um macaco. Talvez supere o de um cão, embora não seja provável.
- Bem, admito que seu ponto de vista é ortodoxo, segundo a teoria xenológica, mas nada mais. Algum dia esta suposição se levantará para esbofetear os xenistas clássicos. Descobriremos uma civilização que não precisará prender ou pegar as coisas com mãos ou garras, mas que as terá superado.
- Quer apostar que não?
- Não. Onde Lummox está agora? Greenberg ficou confuso.
- Chefe, o relatório que redigi encontra-se agora no laboratório fotográfico, para ser filmado. A qualquer momento o enviarão ao seu gabinete.
- Então o problema continua... Vamos ver, conte-me.
- Eu me fiz muito amigo do juiz local e roguei-lhe que me mantivesse informado de tudo que acontecesse. Para começar, era impossível encerrar esse bicho no cárcere local; a verdade é que não existe nada ali que possa contê-lo com suficiente solidez. Eles o encerraram às suas custas, é claro. E não havia tempo de construir nada que oferecesse a solidez necessária. Acredite-me, a jaula que ele quebrou era muito forte. Mas o chefe de polícia começou a dar voltas ao assunto e fritar o cérebro e lembrou-se de um depósito de água vazio e com paredes de mais de nove metros de altura, construídas com cimento armado e reforçado. Faz parte de um sistema anti-incêndio. Então eles construíram uma rampa e levaram Lummox para esse depósito, fechando então a tampa. Parecia uma boa solução; essa criatura não pode saltar.
- Sim, não foi mal.
- Claro que sim. Mas isto não é tudo. O juiz O'Farrel me disse que o chefe de polícia estava tão aborrecido que não quis esperar a permissão do Departamento; assim então, decidiu começar a operação imediatamente.
- Como?
- Deixe-me terminar. Não comunicou a ninguém sobre o seu projeto, mas acidentalmente, ou de forma premeditada, naquela noite a válvula de entrada estava aberta, e o depósito se encheu. Na manhã seguinte, Lummox apareceu no fundo. Isto fez crer ao chefe Dreiser que aquele "acidente" havia tido êxito, e deu a besta por afogada.
- E que aconteceu?
- Aquilo não perturbou minimamente a Lummox. Passou várias horas dentro d'água, mas quando o depósito foi esvaziado, ele despertou, endireitou-se e disse: "Bom dia".
- Provavelmente ele é um anfíbio. Que medidas você tomou para por fim a esses atos arbitrários?
- Espere um momento, senhor. Dreiser sabia que as armas de fogo e os explosivos eram inúteis, já viu o resumo, pelos menos os que seriam prudente empregar em uma cidade. Assim é que ele então tentou o veneno. Como não sabia uma palavra sobre a natureza da criatura, utilizou uma dúzia de venenos de diversos tipos, e em quantidades suficientes para causar a morte de uma centena de pessoas. Ele os administrou misturados com a comida.
- E então?
- Lummox os papou como se não fossem nada. Nem sequer lhe deram sono. Na realidade, pareceram estimular-lhe o apetite, porque terminou devorando a válvula de entrada e o depósito começou a encher-se novamente. Tivemos que cortar a água na sala de bombas.
Kiku soltou uma risada.
- Estou começando a gostar desse Lummox. Você disse que ele devorou a válvula?
De que era feita?
- Isso eu ignoro. Da liga costumeira usada nesse tipo de peças, suponho.
- Parece um pouco forte para o seu regime. Talvez ele tenha moela, como os pássaros.
- Não me surpreenderia.
- E o que o chefe fez, então?
- Ainda não fez nada. Pedi a O'Farrel que dissesse a Dreiser que ele corria o risco de terminar em uma penitenciária a trinta anos luz de Westville, se continuasse empenhado em obstaculizar o trabalho do Departamento. Isto o acalmou, e agora está tentando ver se resolve o problema de outro modo. Parece que a sua última ideia consiste em jogar Lummox em um fosse cheio de cimento fresco e esperar que morra ali quando endurecer. Mas O'Farrel, de qualquer forma, conseguiu parar os pés desse... desumano.
- Portanto, Lummox ainda continua no depósito, esperando que nós façamos algo, não é assim?
- É isto, senhor. Pelo menos, ontem ele ainda estava lá.
- Bem, pode esperar ali, suponho, até que nos decidamos a empreender uma ação ulterior.
Kiku pegou o relatório de Greenberg, com a recomendação anexa. Greenberg disse:
- Devo supor que rechaça a petição, senhor?
- Não. O que lhe fez imaginar tal coisa? Assinou a ordem que autorizava a destruição de Lummox e deixou que esta desaparecesse pela bandeja de saída. Eu não costumo anular as decisões dos meus homens sem despedi-los... e já tenho outro trabalho para você.
- Oh!
Greenberg sentiu uma súbita compaixão. Havia esperado, confiantemente, que seu chefe anularia a sentença de morte de Lummox. Bem, o que se podia fazer? Era uma lástima, mas aquela besta era realmente perigosa.
- Você tem medo de serpentes?
- Não. Pelo contrário, eu gosto delas.
- Magnífico! Embora seja um sentimento que eu sou incapaz de imaginar. Sempre tive um medo mortal delas. Uma vez, quando era um menino, na África... mas não importa. Já trabalhou alguma vez em estreita colaboração com rargilianos? Não lembro.
Greenberg compreendeu imediatamente.
- Utilizei os serviços de um intérprete rargiliano no assunto de Vega VI. Essa gente e eu nos damos muito bem.
- Tomara que acontecesse o mesmo comigo. Sergei, eu tenho em mãos alguns assuntos nos quais intervém um intérprete rargiliano, um tal de doutor Ftaeml. Talvez já tenho ouvido falar dele.
- Com efeito, senhor.
- Tenho que admitir que para um rargiliano e pronunciou esta palavra destacando cada letra, o doutor Ftaeml é bastante aceitável. Mas eu farejo complicações nesse assunto, e a fobia que sinto contra essa gente me deixa sem olfato para o perigo. De modo que eu o nomeio meu ajudante, para que cheire por mim.
- Eu achava que não confiava no meu nariz, chefe.
- Deixaremos que o cego conduza o cego, se me permite que lhe obsequie com uma metáfora. Talvez entre nós farejemos melhor.
- Como queira, senhor. De que assunto se trata?
- Você verá...
Antes que Kiku pudesse responder, acendeu-se a luz do interfone e a voz da sua secretária anunciou:
- Seu hipnoterapeuta está aqui, senhor.
O subsecretário consultou o relógio e disse:
- Veja como o tempo passa... dirigindo-se ao interfone, disse: Faça-o passar para o meu gabinete particular. Vou para lá em seguida. e continuou, dirigindo-se a Greenberg: Ftaeml estará aqui dentro de meia hora. Não tenho tempo de explicar-lhe, tenho que me preparar para a entrevista. Saberá do que se trata se tiver a gentileza de consultar minha pasta de assuntos urgentes. Kiku deu uma olhada na bandeja de entrada, que havia se enchido até transbordar enquanto eles falavam. Você não demorará nem cinco minutos. O resto do tempo, dedique-se a despachar todos esses papelotes. Assine "de ordem" e separe o que acreditar que eu devo revisar... mas procure não reter mais de meia dúzia de assuntos, ou pelo contrário eu o envio de volta para Harvard.
Levantou-se apressadamente, enquanto dizia-se mentalmente que devia ordenar à sua secretária particular, no seu gabinete particular, que anotasse tudo que entrasse durante a próxima meia hora, para que ele visse depois, pois queria ver como se comportava o rapaz. Kiku, que tinhas negros pressentimentos a respeito da duração da sua vida, queria deixar as coisas dispostas de tal modo que Greenberg o substituísse. Enquanto isso, teria que tornar sua vida o mais dura possível.
O subsecretário dirigiu-se ao seu gabinete particular; empurrou a porta e saiu por um lado. Greenberg ficou sozinho. Pegou a pasta de assuntos urgentes. Como Kiku havia dito, o relatório que ostentava o nome "Ftaeml" não era volumoso. Viu que tinha como subtítulo "A bela e a fera", e se perguntou por que. O chefe tinha senso de humor, mas dava mais voltas que um cata-vento e era bastante difícil segui-lo.
Imediatamente franziu as sobrancelhas. Os rargilianos, incansáveis intérpretes, comissionistas e comerciantes, sempre intervinham nas negociações entre as diferentes raças. A presença do doutor Ftaeml na Terra fazia Greenberg supor que havia algo errado com uma raça não humanoide... não humana em sua mentalidade, formada
por criaturas tão diferentes psicologicamente, que a comunicação com elas se fazia muito difícil. Mas não esperava que o culto doutor representasse uma raça da qual Sergei nunca tivesse ouvido falar: uns seres chamados Hroshii.
Cabia a possibilidade de que Greenberg houvesse esquecido por completo desse povo, cujo nome soava como um espirro. Talvez se tratasse de uma raça pouco importante, de baixo nível cultural, de pouca potência econômica, ou que ainda não utilizava a navegação interplanetária. Talvez intervissem pela primeira vez na Comunicação de Civilizações enquanto ele tinha estado atolado até as sobrancelhas nos assuntos com o Sistema Planetário. Uma vez a raça humana tendo estabelecido contato com as outras raças que realizavam viagens interestelares, as adições à família de "seres humanos" legais chegaram a tais níveis que era quase impossível para um homem manter-se ao corrente. Quanto mais a humanidade expandia seus horizontes, mais ficava difícil distinguir esses horizontes.
Ou talvez ele conhecesse os Hroshii sob outro nome? Greenberg marcou o nome no Dicionário Universal eletrônico, que o processou. Logo a tela iluminou-se com estas palavras: NÃO HÁ INFORMAÇÃO.
Greenberg testou sem o "H" aspirado, na presunção de que aquela palavra pudesse ter degenerado nas bocas dos que não pertenciam àquela raça, mas obteve a mesma resposta.
Abandonou a busca. O Dicionário Universal do Museu Britânico não acumulava mais dados do que o que o subsecretário tinha no seu gabinete. As diferentes partes do dicionário ocupavam todo um edifício em outro lugar da capital, e um exército de enciclopedistas e especialistas em cibernética e semântica o enchiam continuamente de dados. Podia estar certo de que, fossem quem fossem os Hroshii, a Federação nunca tinha ouvido falar deles.
Era surpreendente.
Quando se refez da surpresa, Greenberg continuou lendo. Ele aprendeu que os Hroshii ainda não haviam desembarcado na Terra mas achavam-se ao alcance das ondas especiais, em uma órbita de estacionamento situada a uns 80.000 quilômetros de distância. Desta vez o assombro foi maior. Inteirou-se a seguir de que a razão pela qual não havia ouvido falar da sua chegada, era que o doutor Ftaeml havia avisado com urgência a Henry Kiku para que evitasse que as naves patrulha e outras similares desafiassem ou tentassem conter os estrangeiros.
Foi interrompido pela devolução do seu relatório sobre o caso Lummox, que ostentava a confirmação da sentença pelo punho e letra de Kiku. Meditou por um momento, e então acrescentou o seguinte texto: "Aprova-se a recomendação, mas esta ação não será levada a efeito até depois de haver-se realizado uma completa análise científica na criatura. As autoridades locais delegarão sua custódia, quando forem requeridas para isto, à Seção de Ciência Xênica, que se encarregará do transporte e escolherá a entidade que deverá prosseguir a avaliação".
Greenberg assinou a adição com o nome de Kiku e voltou a depositar o documento na bandeja. Ele reconheceu que a ordem agora era muito astuta, porque tinha a segurança de que, uma vez o xenobiólogos tendo Lummox em suas mãos, já não o deixariam sair. Sentiu imediatamente um grande alívio em seu coração. A outra ação tinha sido equivocada, esta era correta.
Voltou novamente sua atenção para os Hroshii, e suas sobrancelhas voltaram a franzir-se. Não tinham vindo para estabelecer relações com a Terra, e sim resgatar um dos seus. Segundo o doutor Ftaeml, eles estavam convencidos de que uma Hroshia estava retido na Terra e pediam para que a entregassem.
Greenberg achou que acabava de meter-se em um melodrama barato. Esse povo com nome de espirro havia se equivocado de planeta para estar brincando de polícia e ladrão. Um ser não humano na Terra, sem passaporte, sem o correspondente expediente pessoal no arquivo do Departamento, sem uma razão concreta e autorizada para visitar a Terra, estaria tão desvalido quanto um recém nascido. Seria detido em um abrir e fechar de olhos. Que idiotas! Nem sequer passariam da quarentena. Por que o chefe não se limitara a dizer-lhes que voltassem para casa?
Além disso, como achavam que seu compatriota havia chegado à superfície da Terra? A pé? Ou fazendo o salto do anjo? As astronaves não aterrissavam, comunicavam-se com a terra através das naves de conexão. Ele parecia ouvi-la pois se tratava de uma fêmea dizendo ao comissário de bordo de uma daquelas naves:
- Peço-lhe que me perdoe, senhor, mas eu fugi do meu marido que estava em uma parte distante da Via Láctea. Se importaria se eu me escondesse debaixo do assento e você me levaria como clandestina até seu planeta?
- Você não tem passagem nem passaporte responderia o comissário.
As companhias encarregadas daquelas viagens de conexão detestavam os clandestinos. Greenberg já o notara cada vez que apresentara seu próprio passaporte diplomático.
Uma coisa o estava incomodando... então lembrou-se do que o chefe lhe havia perguntado se Lummox tinha mãos. Compreendeu então que o chefe podia estar se perguntando se Lummox seria o Hroshii desaparecido, posto que os Hroshii, segundo Ftaeml, tinham oito patas. Greenberg sorriu. Lummox não era capaz de construir ou pilotar astronaves, nem ele nem ninguém de sua família. Claro, o chefe não havia visto Lummox, e portanto não sabia o quão absurda era esta ideia.
Além disso, Lummox já estava na Terra a mais de cem anos.
A verdadeira questão consistia em saber o que havia de fazer com os Hroshii, agora que se havia estabelecido contato com eles. Tudo quando viesse "lá de fora" era interessante, educativo e proveitoso para a humanidade, após ter sido analisado. E uma raça que havia conseguido as viagens interestelares, seria tudo isto, sem sombra de dúvidas. Tinha quase certeza de que seu chefe queria entretê-los, com o propósito de estabelecer relações permanentes com eles. Cabia pois a Greenberg manter aquela política e ajudar seu chefe a superar seu transtorno emocional ao ter que se defrontar com um rargiliano
Leu por cima o resto do relatório. O que sabia até aquele momento foi o que leu na sinopse, o resto do relatório não era mais que uma transcrição dos floridos circunlóquios de Ftaeml. Então voltou a colocar o relatório na pasta e começou a despachar o trabalho do chefe.
Kiku anunciou sua chegada olhando por cima do ombro de Sergei e dizendo:
- Esta bandeja continua tão cheia como sempre.
- Ah, olá chefe. Sim, mas pense como ela estaria se eu não tivesse lido os relatórios de trâmite.
Greenberg cedeu a cadeira ao seu chefe. Kiku assentiu.
- Eu sei disso. Às vezes eu mu limito a escrever "não aprovado" em todos os ímpares.
- Está melhor.?
- Eu me sinto capaz de cuspir no rosto dele. O que uma serpente tem que eu não tenha?
- Eu o felicito.
- O doutor Morgan é muito capacitado. Procure ele se alguma vez seus nervos falharem.
Greenberg sorriu:
- Chefe, a única coisa que me incomoda é a insônia durante as horas de trabalho.
Já não consigo dormir no meu gabinete como costumava fazer.
- Esses são os primeiros sintomas. Mas ainda está em tempo de ser curado pelos mecânicos da mente. Kiku consultou seu relógio. Ainda não temos notícias do nosso amigo de cabelos móveis?
- Ainda não.
Greenberg comunicou-lhe as medidas que havia tomado em alguns assuntos. Kiku aprovou e Sergei sentiu-se transbordante de satisfação. Então falou-lhe da revisão que havia feito no caso Lummox. Disse-lhe fazendo um rodeio.
- Chefe, sentado em sua cadeira, as coisas são vistas de outra maneira.
- Isto eu já descobri há anos.
- Enquanto eu estava aí sentado, fiquei pensando nessa minha última intervenção.
- Por que? Este assunto já está resolvido.
- Era isso que eu também achava. Não obstante.... bem, de qualquer forma... E contou em poucas palavras a mudança que havia introduzido na ordem.
Kiku voltou a assentir. Esteve a ponto de dizer a Greenberg que ele lhe havia evitado o trabalho de imaginar um meio de chegar ao mesmo resultado salvando as aparências, mas resolveu não falar. Em lugar disto, inclinou-se sobre a mesa.
- Mildred. Alguma novidade sobre o doutor Ftaeml?
- Ele acaba de chegar, senhor.
- Muito bem. Leve-o para a sala de conferência leste, por favor. Fechou o comutador e voltou-se para Greenberg:
- Bem, filho, vamos encantar algumas serpentes. Você trouxe sua flauta?
6 O ESPAÇO É PROFUNDO, EXCELÊNCIA
- Doutor Ftaeml, tenho o prazer de lhe apresentar meu colaborador, Sergei Greenberg.
O rargiliano fez uma profunda reverência, e seus joelhos duplos e suas articulações não humanas converteram aquele gesto em um curioso ritual.
- Conheço o distinto senhor Greenberg por sua grande reputação, graças a um compatriota meu que teve o privilégio de trabalhar com ele. É uma honra para mim, senhor.
Greenberg utilizou em sua resposta a mesma cortesia opulenta que o linguista cósmico empregava.
- Há muito tempo que eu esperava ter a sorte de conhecer pessoalmente o ilustre espírito do doutor Ftaeml, mas jamais me atrevi a conceber que tal esperança se convertesse em realidade. Sou seu mais humilde servidor e aluno, senhor.
- Doutor interrompeu Henry Kiku, o delicado assunto que o trás é de tal importância, que, devido às minhas constantes ocupações, eu não pude conceder-lhe a delicada atenção que merece. O senhor Greenberg tem a categoria de embaixador extraordinário e ministro plenipotenciário da Federação e está designado especialmente para esta missão.
Greenberg olhou de soslaio para seu chefe, mas não demonstrou surpresa. Já tinha notado que seu chefe havia dito "colaborador" em lugar de "ajudante". Esta foi uma manobra elementar para realçar o prestígio de um dos seus funcionários, devido ao protocolo, mas não esperava por aquela súbita nomeação. Tinha a certeza que Kiku não havia pedido ao Conselho que a aprovasse, mas as credencias estavam sobre a mesa. Perguntou-se se a nova nomeação também afetaria o seu salário.
Decidiu que o chefe deixara ver que aquele fastidioso assunto não tinha muita importância. Ou talvez estivesse unicamente se desembaraçando do medusoide?
Ftaeml voltou a inclinar-se.
Greenberg suspeitou que o rargiliano não se deixara enganar tão facilmente, não obstante, era provável que na verdade tivesse ficado encantado, pois isto adjudicava também o medusoide na categoria de embaixador.
Uma ajudante trouxe refrescos e eles se prepararam para cumprir o ritual. Ftaeml escolheu um vinho francês, enquanto que Greenberg e Kiku escolheram a única bebida rargiliana disponível... uma coisa chamada "vinho", porque a linguagem não dava para mais, mas que parecia mais com pão molhado com leite e que tinha gosto de ácido sulfúrico. Greenberg fez ver que gostava muito disto, embora evitasse cuidadosamente que a bebida passasse dos seus lábios.
Observou admirado que seu chefe conseguia engolir aquilo.
O ritual de troca de bebidas, usado por setenta por cento das civilizações, deu tempo para Greenberg avaliar Ftaeml com o olhar. O medusoide estava vestido com uma cara paródia dos trajes de etiqueta terrestres: jaqueta recortada, gravata borboleta e calça curta listrada. Seu traje ajudava-o a ocultar o fato de que, apesar de ser
um humano bípede, com duas pernas, dois braços e uma cabeça na extremidade de um tronco alongado, não tinha nada de humano, a menos que fosse no sentido legal da palavra.
Mas Greenberg havia crescido com os Grandes Marcianos e havia tratado, desde então, com muitos outros povos; não esperava que os "homens" parecessem homens, e não tinha o menor preconceito a respeito da forma humana. Aos seus olhos, Ftaeml era bonito e tinha uma certa graça. Sua pele seca e quitinosa, de cor violeta, com manchas verdes, era tão suave e decorativa como a de um leopardo. A ausência de nariz não importava, era compensada pela boca móvel e sensitiva.
Greenberg chegou à conclusão de que Ftaeml tinha a cauda enrolada em torno do corpo, sob suas roupas, a fim de manter a impressão de que seu aspecto era o de um terrestre, além de estar vestido como um. Os rargilianos eram capazes de ir a qualquer lugar, no seu afã de conformarem-se com a antiga regra que diz: "Em Roma, aja como os romanos". O outro rargiliano com que Greenberg havia trabalhado, não usava roupa alguma (os habitantes de Vega VI não as usavam), e mantinha sua cauda erguida como um gato orgulhoso. Greenberg estremeceu ao pensar em Vega VI, pois ali tinha sido obrigado a tapar os ouvidos.
Deu uma olhada nas gavinhas do medusoide. Não tinham forma de serpente, mas seu chefe devia ter alguma prevenção. Para começar, mediam uns trinta centímetros de comprimento e eram tão grossas quanto seu polegar, mas não tinham olhos, bocas ou dentes... não passavam de gavinhas. Muitíssimas raças possuíam gavinhas parecidas. Afinal que eram os dedos senão gavinhas curtas?
Kiku soltou seu copo ao mesmo tempo que Ftaeml soltava o seu.
- Doutor, consultou os seus superiores?
- Já tive esta honra, senhor. E aproveito a oportunidade para agradecer-lhe pela nave exploradora que pôs tão amavelmente à minha disposição para eu realizar as inevitáveis viagens de ida e volta, da superfície do seu encantador planeta para a nave do povo que tenho o privilégio de representar. Sem o menor desejo de menoscabar as atenções recebidas por parte daquele grande povo ao qual agora sirvo, me atrevo a dizer que sua nave é mais adequada à sua finalidade, e mais cômoda para um ser da minha raça, que os aparelhos auxiliares que eles têm na sua.
- Esqueça isto. Ficamos encantados em poder fazer um favor a um amigo.
- Estou impressionado com sua atenção, senhor subsecretário.
- Bem, o que foi que eles lhe disseram? O doutor Ftaeml encolheu todo seu corpo.
- Sinto ter que informar-lhes que eles se mostram inflexíveis. Insistem em que a fêmea da sua espécie que se encontra na Terra lhe seja devolvida sem demora.
Kiku franziu o cenho.
- Não duvido que você tenha-lhes explicado que nós não estamos com tal criatura e que jamais ouvimos falar dela. Caso isso não baste, não temos razão alguma pra crer que tenha estado alguma vez no nosso planeta, ao contrário, temos fortes razões para acreditar que jamais esteve aqui.
- Eu lhes disse. Rogo que me perdoem minha descortesia ao traduzir-lhe sua resposta em termos grosseiros mas inequívocos. encolheu-se para se desculpar. Eles dizem que você está mentindo.
Kiku não se sentiu ofendido, pois sabia que um rargiliano com função de representante era tão impessoal quanto um telefone.
- Oxalá eu estivesse mentindo. Se assim fosse, poderia entregar-lhes sua criatura e assunto concluído.
- Acredito em você disse Ftaeml imediatamente.
- Obrigado. Por que?
- Porque você empregou o subjuntivo.
- Oh! Disse-lhes que há mais de sete mil variedades de criaturas não terrestres na Terra, representados por algumas centenas de milhares de indivíduos? Que desses indivíduos, uns trinta mil são seres inteligentes, mas que desses seres inteligentes, somente alguns têm alguma coisa parecida às características físicas dos Hroshii? E que mesmo esses poucos podem demonstrar perfeitamente qual é sua raça e planeta de origem?
- Eu sou rargiliano, senhor. Disse-lhes isto e muito mais, na sua própria linguagem, fazendo-os ver tão claramente como você próprio teria podido fazer a outro terrestre. Eu os fiz viver diante dos seus olhos.
- Acredito em você Kiku tamborilou com os dedos na mesa. Pode me sugerir alguma coisa?
- Um momento interveio Greenberg. Tem uma fotografia de um Hroshii típico?
Talvez isto poderia ajudar-nos.
- "Hroshiu" corrigiu-o Ftaeml. Ou melhor, neste caso, "Hroshia". Sinto muito, mas eles não utilizam a simbologia da imagem. Desgraçadamente, eu não estou equipado para tirar uma fotografia.
- É uma raça sem olhos?
- Não, excelência. Sua visão é muito boa, agudíssima. Mas seus olhos e sistemas nervosos são um pouco diferentes dos seus. O que eles entendem por "imagem", para vocês não teriam o menos significado. Mesmo para mim é difícil, mesmo sendo admitido por todos que a minha raça é a mais sutil na interpretação das abstrações simbólicas. Se um rargiliano...
Interrompeu-se, mostrando-se satisfeito consigo mesmo.
- Bem... pois então descreva-nos um. Utilize seu talento semântico tão famoso.
- Com muito prazer. Os Hroshii que tripulam esta nave são todos do mesmo tamanho, pois pertencem à classe militar...
Kiku interrompeu-o
- A classe militar? Então é uma nave de guerra, doutor? Você não tinha me dito. Ftaeml parecia pesaroso.
- Achei que seria um fato ao mesmo tempo evidente e desagradável.
- Sim, eu também acho.
Kiku perguntou-se se deveria avisar ao Estado Maior da Federação. Ainda não era o momento, decidiu. Sentia grande repugnância pela intromissão do elemento militar nas negociações, pois acreditava que uma demonstração de força não somente admitia o fracasso por parte dos diplomatas, como também impedia toda possibilidade ulterior de acordo pacífico. Este parecer era perfeitamente racional, mas para ele continuava sendo uma emoção.
- Prossiga, por favor.
- Os indivíduos da classe militar são de três sexos; a diferenças que há entre eles não são muito aparentes à primeira vista e não temos porque nos preocuparmos. Meus companheiros de viagem e anfitriões são talvez uns quinze centímetros mais altos que esta mesa, e seu comprimento é uma vez e meia a estatura de vocês. Têm quatro pares de patas e dois braços. Suas mãos são pequenas e suaves e extremamente destras. Na minha opinião, eles são de uma rara beleza e neles a forma serve à sua função com rara graça. São notavelmente hábeis no manejo de máquinas e instrumentos, e fazendo todo tipo de manipulações delicadas.
Greenberg tranquilizou-se um pouco enquanto Ftaeml falava. Apesar de tudo, achava-se dominado pela angustiante impressão de que aquela criatura chamada Lummox poderia pertencer aos Hroshii. Contudo, compreendia que essa ideia só havia surgido de uma casual igualdade no número de patas. Como se um avestruz tivesse que ser um homem somente porque também é bípede! Desejava classificar Lummox em uma determinada categoria, e não deixaria de se empenhar até consegui-lo; mas aquela categoria não lhe correspondia.
O doutor Ftaeml continuava:
- ...mas a característica principal dos Hroshii, não explicada por esses simples fatos de tamanho, forma, estrutura corporal e função mecânica, é uma assombrosa impressão de grande poder mental. Tão assombrosa, na verdade o medusoide deu um risinho de embaraço, que quase me senti persuadido a renunciar aos meus honorários profissionais e considerar este serviço como um privilégio.
Greenberg ficou muito impressionado Aqueles Hroshii realmente deviam ter alguma coisa especial; os rargilianos, apesar de serem agentes honrados, deixariam um homem morrer de sede a comunicar-lhe a palavra local para obter água, se não lhes pagassem para isto. Sua atitude mercenária possuía a qualidade da devoção.
- A única coisa acrescentou Ftaeml que me salvou de cometer esse excesso foi saber que pelo menos em uma coisa eu era melhor que eles. Não são linguistas. Apesar da sua língua ser rica e poderosa, é o único idioma que são capazes de aprender bem. Inclusive, eles têm menos aptidões linguísticas que vossa própria raça. Ftaeml estendeu suas grotescas mãos em um gesto puramente francês (ou uma perfeita e estudada imitação) e acrescentou: De modo que mantive minha auto estima e cobrei-lhes em dobro.
Parou de falar. Kiku ficou olhando sombriamente para a mesa e Greenberg limitou-se a esperar. Finalmente, Kiku disse:
- O que sugere?
- Meu apreciado amigo, só há um partido a tomar. A Hroshia que procuram tem que ser-lhes entregue.
- Mas nós não temos.
- É verdadeiramente lamentável.
Greenberg olhou detidamente para ele. Aquele suspiro não indicava convicção. Compreendia que Ftaeml considerava aquele beco sem saída como uma coisa tremendamente emocionante, o que era ridículo, pois um rargiliano, após aceitar o papel de intermediário, desejava invariavelmente que as negociações chegassem a bom porto. Um fracasso o faria perder prestígio aos seus próprios olhos.
Sergei perguntou:
- Doutor Ftaeml, quando se encarregou desta missão para os Hroshii, esperava que poderíamos encontrar essa Hroshia?
As gavinhas da estranha criatura abateram-se imediatamente. Greenberg levantou uma sobrancelha e disse secamente:
- Não, já sei que não esperava. Posso perguntar-lhe então por que aceitou semelhante missão?
Ftaeml respondeu lentamente e sem sua costumeira confiança:
- Senhor, ninguém pode se negar tão facilmente a aceitar um trabalho dos Hroshii... acredite-me, não pode.
- Ao diabo com esses Hroshii! Doutor, você poderia me perdoar se eu disser que ainda não conseguiu me fazer compreender claramente esse povo? Disse-nos que têm uma mente muito poderosa, a tal ponto que uma mentalidade superior de uma raça muito avançada, estou me referendo a você, se sente quase "amedrontada" em sua presença. Informa também que são poderosos em outros aspectos, até o ponto em que você, membro de uma raça livre e orgulhosa, vê-se obrigado a obedecer aos seus desejos. E agora os temos aqui, somente com uma nave, enfrentando um planeta tão poderoso que poderia ser capaz de criar uma hegemonia mais extensa que quaisquer das anteriores neste canto do espaço... e no entanto disse que seria "lamentável" que não pudéssemos satisfazer sua demanda impossível.
- Sim, tudo isto é verdade respondeu Ftaeml cautelosamente.
- Quando um rargiliano fala profissionalmente, eu não posso deixar de acreditar, mas me custa acreditar nisto. Essas super-criaturas... Porque nunca ouvimos falar delas?
- O espaço é profundo, excelência.
- Certo. Não duvido que existem milhares de grandes raças que nós os terrestres nunca conhecemos nem nunca conheceremos. Devo inferir que este é também o primeiro contato da sua raça com os Hroshii?
- Não. Eu os conheço há muito tempo, muito antes de conhecer vocês.
- Hein? Greenberg trocou um rápido olhar com Kiku e prosseguiu: Quais são as relações de Rargil com os Hroshii? E por que não foram comunicadas à Federação?
- Excelência, foi uma censura esta última pergunta? Se for assim, me vejo obrigado a responder que neste momento eu não represento de modo algum ao meu governo.
- Não tranquilizou-o Greenberg, foi uma simples pergunta. A Federação sempre tenta estender suas relações diplomáticas o mais distante possível. Surpreendeu-nos saber que a sua raça, que se orgulha da sua amizade com a nossa, estivesse inteirada da existência de uma poderosa civilização e não houvesse comunicado este fato à Federação.
- Posso dizer, excelência, que me surpreendeu a sua surpresa? O espaço é profundo, e os da minha raça são grandes viajantes há muito tempo. Talvez a Federação não tenha feito as perguntas adequadas. Pelo que se refere à sua primeira pergunta, meu povo não tem relações diplomáticas nem relações de nenhum tipo com os poderosos Hroshii. Eles são um povo que, como você disse, só se ocupa dos seus próprios assuntos, e nós estamos muito contentes, como diriam vocês, de nos mantermos fora do seu caminho. Já transcorreram muitos anos, mais de cinco séculos terrestres, desde a última vez que uma nave Hroshia apareceu no nosso céu para pedir-nos um serviço. E é melhor assim.
Greenberg disse:
- Quanto mais vou sabendo, mais confuso me parece isso tudo. Eles pararam em Rargil para recolher um intérprete em vez de vir diretamente para cá?
- Não foi exatamente assim. Eles apareceram em nosso céu e nos perguntaram se tínhamos conhecimento da existência de vocês. Nós lhes respondemos que sim, e porque quando os Hroshii perguntam, temos que responder-lhes. Nós lhes indicamos seu planeta e eu tive a honra não procurada de ser escolhido como seu representante encolheu os ombros. E aqui me têm. Permitam-me acrescentar que só me inteirei do objetivo da sua viagem quando já havíamos adentrado profundamente o espaço.
Greenberg deu-se conta de que havia um fio solto.
- Um momento. Você disse que o retiveram com eles e empreenderam a viagem à Terra, e lhe disseram durante a mesma que iam em busca de uma Hroshia desaparecida. Deve ter sido então que compreendeu que a missão fracassaria. Por que?
- Mas não é evidente? Nós os rargilianos, para dizer no seu idioma preciso e encantador, somos os maiores fofoqueiros do espaço. Talvez vocês diriam "historiadores", mas eu quero dizer algo mais significativo que isto. Fofoqueiros. Vamos a todas as partes, conhecemos todo mundo, falamos todas as línguas. Eu não precisaria "verificar os arquivos" para saber que os homens da Terra nunca tinham estado no planeta natal dos Hroshii Se vocês tivessem estabelecido tal contato, se veriam obrigados a concentrar sua atenção neles, e teria surgido a guerra, o que seria conhecido em todo espaço interestelar. Até os ratos teriam sabido... formosa frase esta; tenho que ver um rato antes de ir embora. O fato teria sido comentado e acrescentado com saborosas anedotas pelos rargilianos. Portanto, compreendi que deviam estar equivocados; não encontrariam o que procuravam.
- Em outras palavras comentou Greenberg, vocês indicaram um planeta errado... o nos fizeram carregar o morto.
- Por favor protestou Ftaeml Nossa identificação foi perfeita, eu lhe asseguro, não do seu planeta, pois os Hroshii não sabiam de onde vocês vieram, e sim de vocês mesmo. As criaturas que eles desejavam localizar eram homens da Terra, até o último detalhe; desde as unhas até seus órgãos internos.
- No entanto, você sabia que estavam errados, doutor. Eu não sou o formidável filólogo que é você, no entanto me parece ver uma contradição, ou um paradoxo.
- Permita-me que lhe explique. Aqueles que se ocupam do estudo das palavras, sabemos o pouco que vAlém. Um paradoxo somente pode existir nas palavras, nunca nos fatos que estas ocultam. Uma vez que os Hroshii descreveram exatamente os homens da Terra, e uma vez que eu sabia que os homens não conheciam os Hroshii, cheguei à única conclusão lógica: que existe outra raça nesta galáxia tão parecida com a sua como conchas gêmeas, ou como duas ervilhas. Embora... vocês não costumam empregar mais o termo "feijão"?
- "Ervilhas" é o termo correto respondeu Kiku.
- Obrigado. Seu idioma é rico; tenho que refrescar meus conhecimentos enquanto estou aqui. Você acreditaria se eu lhe dissesse que o primeiro homem que me ensinou me fez aprender modismos inaceitáveis na sociedade educada? Por exemplo: "fresco como uma..."
- Sim, sim apressou-se a dizer Kiku. Eu acredito. Alguns dos nossos compatriotas têm um senso de humor muito curioso. E você chegou à conclusão de que em algum lugar desta nebulosa há uma raça tão parecida com a nossa que poderiam ser nossos irmãos gêmeos? Esta ideia me parece estatisticamente improvável, totalmente impossível.
- O universo inteiro, senhor subsecretário, é tão improvável que chega a ser ridículo. Por isto, nós os rargilianos sabemos que Deus é um humorista.
O medusoide fez um gesto peculiar aos da sua raça e logo depois repetiu-o cortesmente à maneira humana, fazendo um dos mais vulgares gestos de reverência em uso na Terra.
- Você explicou aos seus clientes a conclusão a que havia chegado?
- Sim, senhor, e a repeti cuidadosamente na última consulta que me fizeram. O resultado já era previsto.
- Ah, sim?
- Todas as raças têm suas qualidades e suas fraquezas próprias. Os Hroshii, uma vez tendo chegado, graças ao seu poderoso intelecto, a formar uma opinião, não mudam tão facilmente de ideia. "Mais teimosos que uma mula", é a expressão exata que você empregam.
- A teimosia gera teimosia, doutor Ftaeml
- Por favor, meu caro senhor! Espero que não caia nessa tentação. Deixe-me comunicar-lhes que vocês não conseguiram encontrar sua querida criatura, mas que estão organizando buscas mais minuciosas Sou amigo de vocês e não posso admitir que essa negociação possa fracassar.
- Nunca na minha vida em fracassei em uma negociação respondeu amargamente Kiku. Quando alguém se vê incapaz de convencer aos seus adversários, às vezes pode sobreviver-lhes. Mas não vejo que mais podemos oferecer-lhes. A não ser essa única possibilidade que que falamos na última vez... Você trouxe as coordenadas do seu planeta? Ou eles se negaram a entregá-las?
- Eu as trouxe. Eu já tinha lhes dito que eles não se negariam a entregar-me. Os Hroshii não temem de modo algum que outras raças saibam onde podem encontrá-los, são indiferentes a isto Ftaeml abriu a carteira que, ou era uma imitação de uma carteira terrestre, ou havia sido adquirida na Terra. Mas não foi nada fácil. Seus conceitos espaciais tiveram que ser traduzidos para os que colocam Rargil como verdadeiro centro do Universo, e para este fim foi necessário que primeiro os convencesse da necessidade, e que depois explicasse as unidades espaço-tempo que usamos em Rargil. E agora, com grande vergonha da minha parte, pois tenho de admitir que não sou hábil nos métodos que vocês usam para calcular a forma do universo, não tenho mais opção que pedir-lhes que me ajudem a traduzir as nossas cifras para as de vocês.
- Não tem porque ficar envergonhado respondeu Kiku, eu mesmo tampouco sei uma palavra dos nossos métodos de navegação interplanetária. Usamos especialistas para essas coisas. Um momento Tocou em uma moldura ornamental na mesa de conferências. Ponham-me em contato com BuAstro.
- Todos já saíram respondeu uma voz feminina, exceto o oficial de navegação de guarda.
- Então chame-o. Depressa.
Pouco depois uma voz masculina disse:
- Doutor Warner, oficial noturno de guarda, falando.
- Sou Kiku, doutor. Você resolve correlações de espaço e tempo?
- Certamente, senhor.
- Pode fazê-lo a partir de dados rargilianos?
- Rargilianos? o oficial de guarda soltou um leve assobio. Isso é outra coisa, senhor. Somente o doutor Singh é quem poderia fazê-lo.
- Envie-me então o doutor Singh imediatamente.
- É que... veja, ele já foi para casa, senhor. E não voltará até amanhã pela manhã.
- Não quero saber onde ele está, e sim que venha imediatamente. Utilize o alarme policial e a chamada geral se for necessário. Quero que venha agora.
- É que... sim senhor.
Kiku voltou-se novamente para Ftaeml:
- Espero poder demonstrar que nenhuma astronave terrestre jamais visitou os Hroshii, Afortunadamente, nós guardamos os relatórios de navegação espacial de todas as viagens interestelares. Minha ideia é esta: chegou o momento em que os líderes devem se enfrentar nesta negociação. Graças aos seus hábeis serviços de intérprete, nós os faremos ver que não temos nada a esconder, que os serviços da nossa civilização estão completamente à sua disposição, e que gostaríamos de ajudá-los a encontrar seu filho pródigo, mas que este... ou esta, não está aqui. Depois disso, se tiverem alguma coisa a sugerir, nós, com muito gosto... Kiku interrompeu-se a ver uma porta se abrir no fundo da sala. Disse com voz inexpressiva: Como está, senhor ministro?
Roy McClure, ministro de Assuntos Espaciais da Comunidade Federada de Civilizações, entrou na sala. Seus olhos pareceram se iluminar somente em ver Kiku.
- Finalmente o encontrei, Henry! Eu o procurei por todos os lugares. Aquela estúpida garota não sabia para onde vocêtinha ido, mas eu achei que não tinha saído do
edifício. Deveria...
Kiku pegou-o firmemente pelo cotovelo:
- Senhor ministro, permita-me apresentar-lhe ao doutor Ftaeml, embaixador de fato dos poderosos Hroshii
McClure dirigiu-se a ele sem olhá-lo.
- Como está, doutor? Ou deveria dizer excelência?
- Doutor é suficiente, senhor ministro. Estou bem, obrigado. Permite-me perguntar como está sua saúde?
- Oh, muito bem, muito bem, mas ainda estaria melhor se tudo não acontecesse de repente. A propósito... Permite que leve meu colaborador? Sinto muitíssimo, mas acaba de acontecer algo urgente.
- Nem precisava pedir, senhor ministro. Meu maior desejo é vê-lo contente.
McClure olhou inquisitivamente para o medusoide, mas foi incapaz de interpretar sua expressão... se é que ele tinha expressão, corrigiu para si mesmo.
- Tenho certeza de que o tratarão bem, doutor.
- Sim, muito obrigado.
- Magnífico. Realmente, eu sinto muito, mas... Henry, faça-me o favor.
Kiku cumprimentou o rargiliano inclinando a cabeça e depois deixou seu assento, mostrando um rosto tão inexpressivo que Greenberg estremeceu. Kiku sussurrou alguma coisa no ouvido de McClure assim que se afastaram da mesa.
McClure olhou para os dois, e logo respondeu em um sussurro que Greenberg pôde ouvir:
- Sim, sim! Mas estou dizendo que isto é de uma importância crucial, Henry. Como lhe ocorreu fazer aterrizar essas naves sem consultar-me?
A resposta de Kiku foi inaudível. McClure disse:
- Que grande absurdo! Bem, agora você não tem mais opção senão sair e dar as caras. Não pode...
Kiku voltou-se bruscamente:
- Doutor Ftaeml, você não tinha intenção de voltar esta noite para a nave Hroshii?
- Não há pressa. Estou às suas ordens, senhor.
- Você é muito amável. Me permite que o deixe nas boas mãos do senhor Greenberg? É como se fosse eu mesmo.
O rargiliano se inclinou.
- Considerarei uma honra.
- Me permito esperar que amanhã gozarei novamente da sua agradável companhia.
O doutor Ftaeml voltou a inclinar-se.
- Até amanhã. Senhor ministro, senhor subsecretário... às suas ordens.
Eles saíram e Greenberg não sabia se ria ou chorava; sentia-se inquieto por toda sua raça. O medusoide o observava em silêncio.
Greenberg deu um meio sorriso e disse:
- Doutor, a língua rargiliana inclui palavrões?
- Meu senhor, eu posso dizer palavrões em mais de um milhar de línguas. Algumas delas possuem blasfêmias que fariam as pedras se ruborizarem. Quer que lhe ensine algumas?
Greenberg recostou-se na cadeira e soltou uma sonora gargalhada.
- Doutor, gosto de você. Gosto realmente. Acredite no que estou dizendo, sem levar em conta nosso dever profissional que nos obriga a sermos corteses
Ftaeml contraiu os lábios em uma boa imitação do sorriso humano.
- Obrigado, senhor. O sentimento é mútuo... e sou grato por isto. Posso dizer, sem intenção de ofender a ninguém, que o modo de receber-nos, que têm vocês, os habitantes deste grande planeta, é algo que podemos considerar como filosofia?
- Eu sei, e acredite-me que o lamento. Meus compatriotas, a maioria deles, estão notadamente convencidos de que os preconceitos da sua aldeia nativa foram decretados pelo Todo Poderoso. Oxalá fosse diferente.
- O senhor não tem porque ficar envergonhado. Acredite-me senhor, esta é a única convicção compartilhada por todas as raças do universo, a única coisa que todos temos em comum. E minha ração não é exceção. Se você conhecesse os idiomas... todos os idiomas têm neles um retrato dos seres que o falam, e os modismos e transformações de todas a línguas repetem incansavelmente: é um estrangeiro, portanto é um bárbaro.
Greenberg deu um sorriso irônico.
- É desalentador, não é verdade?
- Desalentador? Por que teria que sê-lo? Na verdade é para morrer de rir. É a única piada que Deus nunca se cansa de repetir, pois seu humor nunca desapareceu. fez uma pausa e acrescentou: Qual é o seu desejo? Quer que continuemos conversando amigavelmente até o regresso do seu... colaborador?
Greenberg compreendeu que o rargiliano lhe dizia, o mais cortesmente possível, que ele não podia agir sem Kiku. Greenberg decidiu que não podia esperar pelo contrário. E além disso estava com fome.
- Nós já não trabalhamos bastante por hoje, doutor? Quer conceder-me a honra de jantar comigo?
- Não sabe quanto eu gostaria! Mas.. você conhece nossos regimes peculiares?
- Certamente. Lembre que passei várias semanas em companhia de um compatriota seu. Podemos ir ao Hotel Universal
- Sim, claro.
O doutor Ftaeml não parecia muito entusiasmado.
- Ou talvez prefira alguma outra coisa?
- Eu tenho ouvido falar dos seus restaurantes com espetáculos. Seria possível... Ou é...?
- Um clube noturno Greenberg refletiu. Sim! O Clube Cósmico. Sua cozinha pode preparar qualquer dos pratos que servem no Hotel Universal
Já se dispunham a sair quando uma porta se abriu e um homem magro e moreno assomou a cabeça por ela.
- Oh, desculpem-me. Achei que o senhor Kiku estava aqui.
Greenberg lembrou-se imediatamente que seu chefe havia chamado um matemático relativista.
- Um momento. Suponho que o senhor é o doutor Singh.
- Sim.
- Sinto, mas o senhor Kiku teve que sair, deixando-me em seu lugar.
Apresentou-os e explicou o problema. Sing examinou o rolo de papel rargiliano e fez um sinal de assentimento.
- Necessitarei de um certo tempo.
- Posso ajudá-lo em alguma coisa, doutor? perguntou Ftaeml.
- Não será necessário. Suas notas são bastante completas.
Uma vez tranquilizados sobre aquele particular, Greenberg e Ftaeml dirigiram-se à cidade.
O espetáculo do Clube Cósmico incluía um malabarista, que deleitou Ftaeml, e coristas, que deleitaram Greenberg. Já era tarde quando Greenberg deixou Ftaeml em um dos apartamentos especiais reservados para hóspedes não humanos do Departamento Espacial no Hotel Universal. Greenberg bocejava ao descer no elevador, mas decidiu que a noite em claro havia valido a pena no que se referia ao reforço das relações estrangeiras.
Apesar de estar muito cansado, passou pelo Departamento. Ftaeml havia revelado uma coisa durante a madrugada, que ele achou que seu chefe devia saber, naquela mesma noite, se pudesse encontrá-lo. Se não, teria que deixar uma nota sobre a sua mesa. O rargiliano, entusiasmado pelas proezas do malabarista, manifestou seu pesar porque tais coisas logo deixariam de existir.
- Que quer dizer? perguntou-lhe Greenberg.
- Quando a poderosa Terra for volatilizada... começou a dizer o medusoide, mas interrompeu-se.
Greenberg tentou persuadi-lo a continuar, mas o rargiliano insistiu em que estava brincando.
Sergei se perguntou se aquilo significaria algo realmente. Mas o humor rargiliano costumava ser muito mais sutil. Portanto, resolveu comunicar a Kiku o mais breve possível. Talvez aquela estranha nave precisasse de uma descarga de frequências paralisantes, uma bomba "quebra-nozes" e uma dose de vazio.
O guarda da noite o deteve na porta.
- Senhor Greenberg... o subsecretárioestá lhe procurando há meia hora.
Agradeceu ao guarda e subiu os degraus de dois em dois. Encontrou Kiku inclinado sobre a mesa do seu gabinete. A bandeja de entrada estava abarrotada como sempre, mas o subsecretárionão lhe dava atenção alguma. Levantou o olhar e disse calmamente:
- Boa noite, Sergei. Olhe para isto. E estendeu-lhe um relatório...
Era a tradução que Singh havia feito das notas de Ftaeml. Greenberg seguiu as coordenadas geocêntricas inferiores e fez um rápido resumo.
- Mais de novecentos anos luz! respondeu. E nessa direção! Não é estranho que jamais tenhamos nos encontrado. Não são exatamente o que se pode chamar de vizinhos próximos, hein?
- Isso não importa agora advertiu-o Kiku. Observe a data. Este cômputo serve aos Hroshii para alegarem quando e onde foram visitados por uma das nossas naves. Greenberg olhou a data e sentiu seu sangue gelar. Dirigiu-se à máquina de respostas e começou a registrar uma pergunta.
- Não se preocupe em fazê-lo disse-lhe Kiku. Sua lembrança está correta. A "Rastro de Fogo". Em sua segunda viagem.
- A "Rastro de Fogo"... repetiu Greenberg, como um alelado.
- Sim. Nunca soubemos que rota ela seguiu, portanto, não poderíamos conjecturar. Mas sabemos exatamente quando ela foi. Combina com este relatório. É uma hipótese muito mais simples que a das raças gêmeas, de que fala o doutor Ftaeml.
- Então... olhou para seu chefe Então... é Lummox.
- Sim, é Lummox.
- Mas não pode ser. Ele não tem mãos. E é mais estúpido que um coelho.
- Não, não pode ser. Mas é.
7 DE VOLTA PARA CASA
Quando Lummox se cansou de ficar esperando no depósito, fez uma brecha na parede procurando causar o menor dano possível e voltou para casa. Estava farto de discutir, assim pouco lhe importava que John Thomas lhe repreendesse por ter escapado.
Ignorou as pessoas que armavam um grande escândalo por causa da sua fuga e limitou-se a ter o cuidado de não pisar em ninguém, nem mesmo quando o pulverizaram com aquelas malditas mangueiras. Fechou seus olhos e suas fileiras de narizes e seguiu seu caminho de regresso para casa.
John Thomas encontrou-o no caminho, depois que o chefe de polícia, que achava-se em um estado que raiava o histerismo, fosse buscá-lo. Cumprimentaram-se e se fizeram todo tipo de perguntas. Lummox fez uma cadeira para John Thomas e então continuou andando decididamente para casa.
O chefe Dreiser gritava como um louco:
- Obrigue esse bruto a retornar!
- Obrigue você respondeu-lhe sombriamente Johnnie.
- Isso lhe custará muito caro!
- Mas o que foi que eu fiz?
- Você... está querendo dizer que não fez nada. Essa besta escapou e...
- Eu nem sequer estava lá disse John Thomas, enquanto Lummox continuava andando como se não visse nada.
- Sim, mas... Isso não tem nada a ver! Agora ele está livre; sua obrigação é ajudar a lei e fazer com que o prendam novamente. John Thomas, você está se metendo em uma grande complicação.
- Francamente, não acho. Foi você quem tirou ele de mim, quem fez com que o condenassem e quem disse que ele não me pertence. Inclusive quis matá-lo, não negue, sem esperar que o Governo desse sua autorização. Se ele me pertence de verdade, teria que demandá-lo. Se não me pertence, eu não dou a mínima por Lummox ter escapado desse depósito John Thomas inclinou-se e olhou para Dreiser. Por que não sobe no seu carro , chefe, em lugar de se esgotar correndo ao nosso lado.
O chefe Dreiser aceitou relutantemente o conselho e permitiu que seu chofer o recolhesse. Quando subiu ao carro, já havia recobrado parte do seu domínio próprio. Assomou a cabeça pela janela e disse:
- John Stuart, não quero perder tempo discutindo com você. O que quer que eu tenha feito ou deixado de fazer, não vem ao caso. Os cidadãos têm a obrigação de colaborar com os agentes da ordem sempre que seja necessário. Peço-lhe oficialmente, e o microfone do carro está ligado enquanto digo isto, que me ajude a reconduzir essa besta para o depósito novamente.
John Thomas mostrou uma expressão de inocência.
- E depois posso ir para casa?
- Hein? Certamente.
- Obrigado, chefe. Mas quanto tempo acha que ele permanecerá no depósito depois que eu o deixar e voltar para casa? Ou você tem a intenção de alugar meus serviços como membro permanente das suas forças policiais?
O chefe Dreiser se deu por vencido e Lummox continuou seu caminho para casa. Mas Dreiser considerou aquilo apenas como uma derrota como temporária. A teimosia que o tornava um bom agente de polícia não o abandonou. Teve que admitir que o público provavelmente estaria mais seguro com aquela besta encerrada em sua casa, e enquanto isso ele poderia imaginar algum meio seguro de matá-la. A ordem do subsecretário de Assuntos Especiais, permitindo-lhe destruir Lummox, cegou às suas mãos e Dreiser sentiu-se melhor. O velho juiz O'Farrel havia se mostrado bastante sarcástico diante dos seus fracassos.
O cancelamento daquela ordem, e sua retificação, adiando indefinidamente a morte de Lummox nunca chegou até ele. Um empregado novo no escritório de comunicações do Departamento Espacial cometeu um pequeno erro que consistiu na transposição de dois símbolos. Como resultado, o cancelamento foi enviado para Plutão, e o anexo, pelo fato de estar unido ao mesmo, seguiu caminho idêntico.
Portanto, Dreiser permaneceu sentado em seu gabinete com a sentença de morte em mãos, pensando a que meios recorreria para liquidar a besta. Eletrocutá-la? Talvez... mas nem sequer conseguia conjecturar quantas descargas seriam necessárias para isto. Degolá-la como a um porco? O chefe tinha sérias dúvidas sobre que tipo de faca deveria utilizar, e o que lhe faria o bruto enquanto isso.
As armas de fogo e os explosivos não serviam. Um momento! Podia fazer com que o monstro abrisse a boca de par em par e então disparar apontando para sua garganta, utilizando uma carga explosiva que o transformasse em papa interiormente. Matá-lo-ia no mesmo instante, sim senhor! Muitos animais tinham couraça tartarugas, rinocerontes, tatu e outros, mas sempre no exterior, nunca dentro. E aquele bruto não era uma exceção. O chefe havia dado uma olhada na sua bocarra quando tentou o veneno. Aquela besta podia ser encouraçada exteriormente como quisesse, mas no interior era rosada, úmida e suave como qualquer outro animal.
Vejamos... teria que conseguir com que o garoto Stuart dissesse ao bruto para abrir a boca e... não, isto não serviria. O garoto se daria conta das suas intenções, e era capaz de ordenar à besta que o atacasse... Como resultado, algumas viúvas de policiais cobrariam suas pensões. Aquele garoto estava se extraviando, não havia dúvida. Era uma pena, ver como um bom rapaz podia tomar o caminho do mal e terminar com sua carcaça no cárcere.
Não, o que teria que fazer era atrair o garoto para a cidade com qualquer desculpa e cumprir a ordem na sua ausência. Podiam induzir o bruto a dizer "ah" oferecendo-lhe comida... ou jogando-a de longe, retificou Dreiser.
Consultou seu relógio. Hoje? Não, antes queria escolher a arma e então instruir bem a todos para que a coisa corresse macia como seda. Amanhã, na primeira hora. O melhor que devia fazer era pegar o garoto após o desjejum.
Lummox parecia contente de achar-se novamente em casa, e disposto a esquecer o passado. Nunca disse uma palavra sobre o chefe Dreiser, e se compreendeu que tinham tentado causar-lhe danos, nunca o mencionou. Sua disposição, naturalmente bondosa, demonstrou-se pelo fato de querer botar a cabeça nos joelhos de Johnnie para que este o abraçasse. Fazia muito tempo que sua cabeça era muito grande para poder fazer isto. Então, limitou-se a colocar a extremidade do focinho sobre as coxas do rapaz, procurando não esmagá-las, enquanto Johnnie acariciava seu nariz com um pedaço de ladrilho.
Johnnie só estava feliz pela metade. Com a volta de Lummox, ele se sentia muito mais aliviado, mas compreendia que as coisas ainda não estavam resolvidas. O chefe Dreiser não desistiria até matar Lummox e este pensamento lhe dava muitas dores de cabeça.
Sua mãe aumentou seu desgosto quando lançou um grande grito ao ver que "esta besta" havia voltado à mansão dos Stuart. John Thomas fez caso omisso das suas exigências, ordens e ameaças, e levou seu amigo ao estábulo para dar-lhe água e alimento. Transcorrido certo tempo, ela voltou a entrar em casa como uma fúria, dizendo que ia telefonar ao chefe Dreiser. Johnnie já esperava por isto, e estava completamente certo de que nada aconteceria. E nada aconteceu; sua mãe continuou encerrada na casa. Mas Johnnie tinha muita pena daquela situação; sempre havia se dado bem com sua mãe e era um filho diferente e obsequioso. Dava-lhe pena deixá-la daquele modo, na realidade, ainda sentia mais que ela. Cada vez que seu pai partia de casa (inclusive daquela vez em que sua nave não voltou) ele havia dito a Johnnie:
Cuide da sua mãe, filho. Não lhe dê o menor desgosto.
Bem, ele havia tentado. Havia tentado o mais que pôde. Mas estava certo de que seu pai nunca teria imaginado que sua mãe quisesse se livrar de Lummox. Sua mãe havia se casado com seu pai sabendo que Lummox fazia parte da equipe, não?
Betty nunca lhe faria uma coisa semelhante Ou faria?
As mulheres eram umas criaturas estranhas. Talvez ele e Lum fariam melhor ficando solteiros para não correr esse risco. Continuou afundado em seus pensamentos até o anoitecer, passando o tempo na companhia da besta estelar e acariciando-a. Os tumores de Lummie eram outra causa de preocupação para ele. Um deles parecia muito tenro e a ponto de arrebentar. John Thomas se perguntou se deveria abri-lo com um bisturi. Mas ninguém podia saber melhor que ele, e ele não sabia de nada.
Como se isso não bastasse, agora Lummox estava doente... Vamos! Isto já era o cúmulo!
Não se apresentou para jantar e sua mãe saiu para procurá-lo com uma bandeja.
- Pensei que talvez você gostaria de jantar aqui fora com Lummox disse-lhe com brandura.
- Sim, obrigado, mamãe, obrigado.
- Como está Lummie?
- Oh, ele está bem, eu acho.
- Tanto melhor.
Ele a seguiu com o olhar quando ela entrou em casa. Sua mãe já era bastante desagradável quando estava aborrecida, mas com aquela expressão secreta e felina, toda doçura e brilho, ainda lhe dava mais medo. No entanto comeu a excelente janta com apetite, pois não havia comido nada desde o café da manhã. Ela voltou a sair meia hora depois e disse:
- Já terminou, querido?
- Ah, sim, obrigado, estava muito bom.
- Obrigado a você, querido. Quer trazer-me a bandeja? Eu gostaria que você viesse para casa.
E a porta fechou-se atrás da sua mãe.
Ele a encontrou no andar de baixo, sentada em seu cadeirão, fazendo um chinelo de ponto. Ela sorriu-lhe e disse:
- Então? Como está o ânimo?
- Muito bem.
- Tire o sapato, querido. Quero provar esse chinelo em você. Contrariado, ele começou a tirar o sapato, mas logo interrompeu-se.
- Mamãe, eu não gosto de chinelos de lã.
- O que você está dizendo, querido? Mas se a mamãe gosta muito de fazê-los.
- Sim, mas... Olhe, é que me fazem bolhas na planta dos pés. Me parece que já lhe disse isto várias vezes!
- Não seja bobinho! Porque acha que esta lá tão suave lhe causaria danos nos pés? Pense no que custaria um par de chinelos de verdadeira lã, e feitos a mão, se você tivesse que comprá-los. Qualquer garoto se mostraria agradecido.
- Mas eu lhe digo que não gosto! Ela suspirou:
- Às vezes, meu filho, não sei o que fazer com você, não sei mesmo enrolou seu trabalho e pôs de lado.
Ele a olhou fixamente e não disse nada.
Então, sua mãe aproximou-se dele o pôs a mão no seu ombro.
- Johnnie... Johnnie, meu filho... Olha para mim, filhinho. É triste que tenhamos dito coisas desagradáveis um ao outro... Estou certa de que sua intenção não era ofender-me. Mas mamãe só pensa, agora e sempre, em seu bem, sabe disso?
- Sim, acho que sim.
- Mamãe não pensa em outra coisa, e sua maior preocupação é com seu bem estar. Você é jovem, e quando se é jovem damos importância demais a coisas que não são importantes. Mas quando você for maior, compreenderá que sua mãe sabia melhor que você o que lhe convinha. Não compreende isto?
- Bem... ouça, mamãe, falemos de Lummox. Somente se eu pudesse...
- Por favor, filhinho. Mamãe está com um enxaqueca enorme! Não falemos mais disto por agora. Tente dormir bem esta noite, e amanhã verá as coisas de outro modo deu-lhe uma palmadinha no joelho, inclinou-se e deu-lhe um beijo. Boa noite, filho.
- Adeus.
Ele permaneceu ali sentado por um longo tempo depois que ela se foi, esforçando-se para compreender. Finalmente, levantou-se e saiu para ver Lummox.
8 UMA DECISÃO SENSATA
John Thomas não sabia o que falar com Lummox, então não ficou muito tempo junto dele. Lummox, consciente da sua preocupação, acossava-o com perguntas. Finalmente, John Thomas fez um esforço e lhe disse:
- Não estou te escondendo nada de ruim! Cala-te e procura dormir. E não se atreva a sair do pátio. Se fizer isto vou pô-lo de joelhos.
- Sim, Johnnie. Não estou querendo sair. Não quero que ninguém se meta comigo.
- Pois veja se não esquece isso e não volte a fazê-lo.
- Não farei mais, John. Eu lhe prometo.
John Thomas voltou para casa, subiu para o seu quarto e deitou-se na cama. Mas não conseguiu conciliar o sono. Depois de um momento, ele se levantou meio vestido e subiu para o sótão. Aquela casa era muito antiga e tinha até sótão, ao qual se subia por uma escada de madeira, mas foi suprimida quando foi construído o terraço de aterrisagem no telhado, pois precisaram do espaço que ele ocupava para colocarem o elevador.
Mas o sótão continuava no mesmo lugar, e era o único retiro autêntico que John Thomas tinha. Sua mãe costumava "limpar" o lugar às vezes, se bem que habitualmente isto era feito por ele. Qualquer coisa podia acontecer quando sua mãe limpava o local. Seus papeis se perdiam, eram destruídos ou até lidos, porque ela era da opinião de que entre pais e filhos não deve haver segredos.
Portanto, tudo aquilo que ele queria manter bem guardado mantinha no desvão; sua mãe nunca subia ali, pois as escadas de mão lhe davam vertigens. O garoto tinha naquele lugar um quarto muito reduzido, quase sem ventilação e enormemente sujo, que sua mãe achava que utilizava somente como quarto de trastes velhos. Seu verdadeiro uso tinha múltiplos aspectos: havia criado serpentes ali durante alguns anos atrás; ali ele guardava sua pequena coleção de livros que todos os jovens formam às escondidas dos pais; tinha inclusive uma extensão conectada à linha audiovisual do seu quarto. Este aparelho era o resultado prático dos ensinamentos de física que recebeu na Escola Superior, e lhe deu muito trabalho sua instalação, pois só pôde montá-lo aproveitando as ausências da sua mãe, e de tal modo que ela não notasse, e além disso teve que evitar que os técnicos da companhia o notassem.
Mas o telefone funcionava e ele acrescentou um circuito auxiliar que fazia acender uma luz de aviso quando alguém estivesse escutando nos outros aparelhos que havia na casa.
Naquela noite ele não estava com vontade de chamar minguem, e já havia passado a hora em que poderia chamar Betty. Queria simplesmente ficar sozinho, e revisar alguns papéis que fazia muito que tempo que não via. Procurou debaixo da sua mesa de trabalho, acionou uma alavanca e abriu-se uma portinha no que parecia ser uma parede lisa. No armário, assim surgido, viam-se livros e papéis que ele se tirou apressadamente.
Entre aqueles tesouros havia um livro de notas em papel de bíblia, o diário do seu bisavô, referente à segunda viagem de exploração que fez no "Rastro de Fogo". Tinha mais de cem anos e estava muito manuseado. John Thomas já o tinha lido dezenas de vezes e supunha que seu pai e seu avô tinham feito o mesmo. Todas as páginas estavam em um estado precário e algumas haviam sido restauradas.
Começou a folheá-lo, voltando as páginas cuidadosamente, e olhando rapidamente para eles. Seus olhos se detiveram em um parágrafo que ele já quase sabia de cor: "...alguns dos rapazes entraram em pânico, especialmente os casados. Mas eles deveriam ter pensado melhor antes de se alistarem. Agora todos nós sabemos o que nos espera. Saímos rapidamente e chegamos a um lugar bastante afastado. Mas que importa? O que nós queríamos era viajar, não?"
John Thomas passou mais algumas páginas. Conhecia há tanto tempo a história da "Rastro de Fogo" que ao relê-la não lhe produzia assombro nem terror. Tinha sido uma das primeiras naves interestelares, e seu comandante e tripulação haviam se transformado em modernos descobridores, com o mesmo arrojo diante do desconhecido que assinalou os dias de ouro do século XV, em que os homens desafiaram mares não indicados nos mapas, aventurando-se por eles em frágeis navios de madeira. A "Rastro de Fogo" e suas naves irmãs seguiram o mesmo caminho, rompendo a barreira de Einstein, na presunção de que poderiam regressar. John Thomas VIII achava-se a bordo daquela nave em sua segunda viagem e ao voltar para a Terra se casou, teve um filho e se estabeleceu. Foi ele quem construiu o terraço de aterrisagem no telhado.
Uma noite, ele ouviu outra vez a chamada do desconhecido e alistou-se de novo.
Nunca mais voltou.
John Thomas procurou a primeira menção a Lummox no diário: "Este planeta é muito similar à Terra, o que significa um alívio, depois dos três últimos que visitamos e que eram repugnantes. Aqui a evolução fez as coisas em escala dupla. Em lugar da disposição de quatro membros, que é considerada a correta entre nós, quase todos têm pelo menos oito patas. Existem "camundongos" que se parecem com centopeias, criaturas parecidas com coelhos com seis patinhas e mais um par de patas saltadoras, e todo tipo de seres, tem até alguns tão grandes como girafas. Eu me apoderei de um animalzinho (se é que posso chamá-lo assim... a verdade é que ele se aproximou de mim e enrodilhou-se sobre meus joelhos) e eu fiquei tão preso a ele que quis adotá-lo como mascote. Lembra um cachorro bassê, se bem que melhor constituído. Crsty estava de guarda na escotilha estanque, de modo que pude levá-lo a bordo sem ser obrigado a entregá-lo aos biólogos".
O diário do dia seguinte não mencionava Lummox, pois se tratava de uma coisa mais séria: "Desta vez acertamos no alvo... Civilização. Meus companheiros estão tão excitados que quase perderam a cabeça. Vi ao longe um membro da raça dominante Eles têm o mesmo número de patas, mas por outro lado, fazem com que alguém se pergunto o que teria acontecido na Terra se os dinossauros tivessem conseguido medrar".
E mais adiante: "Tenho me perguntado o que poderia dar de comer ao meu cachorrinho carinhoso. Ele gosta de tudo que consigo trazer para ele de despensa, mas também gosta de qualquer outra coisa. Hoje ele comeu minha esferográfica Everlasting, e isso me deixou preocupado. Não acredito que a tinta o envenene, mas que efeito produzirão as partes de metal e plástico? É como uma criancinha que leva à boca tudo que lhe cai nas mãos.
"Está cada dia mais esperto. O diabinho parece que vai começar a falar de um momento para outro; me olha e fica choramingando, e eu o olho e faço a mesma coisa. Depois, ele sobe nos meus joelhos e me diz, lisa e simplesmente, que gosta de mim.
Que me enforquem se eu deixar que os biólogos ponham a mão neles, mesmo que me descubram. Esses passarinhos de gaiola seriam capazes de abrir-lhe a barriga para pesquisar nela. Ele gosta de mim e confia em mim, e eu não vou abandoná-lo".
O diário saltava dois dias, pois a "Rastro de Fogo" tivera que efetuar uma decolagem de urgência, e o ajudante de energia, J.T.Stuart, esteve muito ocupado para escrever e John Thomas sabia porque. As negociações iniciadas com a raça dominante sob tão bons augúrios, haviam chegado ao mais completo fracasso... sem que ninguém soubesse porque.
O capitão teve que fugir para escapar e para salvar sua nave e a tripulação. Saíram disparados, rompendo novamente a barreira de Einstein, sem conseguir obter da raça inteligente os dados astronômicos que desejavam.
Havia somente mais alguns parágrafos sobre Lummox filhote. John Thomas afastou o diário, pois não estava com ânimo para continuar lendo as referências a Lummox. Ao por suas coisas novamente no esconderijo, sua mão pousou sobre um livrinho impresso por conta do autor, intitulado Algumas notas sobre minha família. Foi escrito por seu avô, John Thomas IX, e o pai de Johnnie o havia atualizado antes de partir para sempre em sua última viagem. Fazia parte da biblioteca da família, onde figurava também a volumosa biografia oficial de John Thomas Stuart VI, mas John o levou para o sótão sem que ninguém percebesse, e sua mão nunca deu pela sua falta. Ele o conhecia quase todo de memória, como o diário, mas começou a folheá-lo para não pensar em Lummox.
O livro começava em 1880, com John Thomas Stuart. Não se sabiam quem foram seus pais e sua família, pois ele vinha de uma pequena cidade de Illinois, que naquele tempo remoto não tinha registro oficial de nascimentos. Ele mesmo acabou de apagar a pista dos seus antepassados, quando embarcou em um navio na idade de quatorze anos. Navegou pelos mares da China em navios mercantes, sobreviveu aos espancamentos e à má alimentação, e finalmente terminou "lançando âncora", como capitão reformado na aurora da navegação a vela. Foi ele quem construiu a velha mansão em que John Thomas vivia.
Seu filho, John Thomas, não ouviu o chamado do mar. Em vez disso, matou-se em um estranho aparelho ao qual denominavam "aeroplano". Isto aconteceu antes das primeiras guerras mundiais. Depois, durante vários anos, a casa recebeu "hóspedes pagantes".
J. T. Stuart III morreu cumprindo finalidades mais importantes. O submarino onde ele servia como oficial artilheiro entrou no estreito de Tsushima, em direção ao Mar do Japão, mas nunca regressou.
John Thomas Stuart IV morreu na primeira viagem à Lua.
John Thomas V emigrou para Marte. Seu filho, o personagem famoso da família, não interessava a Johnnie, que passou rapidamente as páginas que tratavam sobre ele, pois há muito tempo que estava farto de que lhe lembrassem que tinha o mesmo nome do general Stuart, o primeiro governador da Comunidade Marciana depois da revolução. Teriam-no enforcado, em lugar de erigir-lhe estátuas?
Em grande parte do livro, o avô de Johnnie havia se proposto a reivindicar o nome do seu próprio avô, porque o filho do general Stuart foi totalmente o contrário de um herói e passou os últimos quinze anos da sua vida trabalhando duramente na colônia penitenciária de Tritão. Sua esposa retornou à Terra com sua família, tomando novamente o nome de solteira, para ela e para seu filho.
Mas este último apresentou-se orgulhosamente diante de um tribunal no dia em que atingiu a maioridade, e conseguiu trocar seu nome de Gariton Gimmidge pelo de John Thomas Stuart VIII. Foi ele quem trouxe o encantador Lummox para casa, e
usou o dinheiro que lhe proporcionou a segunda viagem da "Rastro de Fogo" para adquirir o solar. Aparentemente, ele levou seu próprio filho a se convencer de que seu avô tinha recebido um tratamento injusto, e seu filho insistia muito nisto no seu livro.
O avô de Johnnie poderia usar os serviços de um advogado para limpar seu nome maculado. O livro dizia simplesmente que John Thomas Stuart IX abandonou o serviço e nunca voltou a trabalhar no espaço, pois Johnnie sabia que o fizeram escolher entre a renúncia ou um conselho de guerra, pois seu próprio pai havia dito isto, dizendo-lhe também que seu avô teria saído do processo com todas as honras, se somente tivesse querido declarar. Seu pai acrescentou: "Johnnie, eu preferiria ver você fiel aos seus amigos, que com o peito coberto de medalhas".
O velho ainda vivia quando o pai de Johnnie lhe contou isto. Em um outro dia, aproveitando que seu pai estava de patrulha, Johnnie deu-lhe a entender que sabia.
O avô ficou furioso.
- Raios e centelhas! gritou. Eles me deram a morte civil.
- Mas papai me disse que na realidade foi seu piloto quem...
- Seu pai não estava lá. O capitão Dominic era o mais completo piloto que jamais pisou sobre um chão de aço. Que sua alma descanse em paz.
Johnnie tentou ver as coisas mais às claras depois da morte do seu avô, mas seu pai lhe respondeu com uma evasiva:
- Seu avô era um romântico sentimental, Johnnie. Nunca teve instinto comercial nem compreendeu o valor do dinheiro. tirando o cachimbo da boca, colocou um bocado de fumo e acrescentou: Mas nós nos divertimos muito.
Johnnie guardou os livros e os papéis, dando-se conta de que não havia feito muito bem em ler a história dos seus antepassados. Não conseguia tirar Lummox da cabeça. Pensou que o melhor que deveria fazer era descer e ir dormir.
Já se preparava para por em prática esse pensamento, quando o telefone se iluminou. Pegou no auricular antes que a luz se transformasse em chamada acústica pois não queria que sua mãe despertasse.
- Diga?
- É você, Johnnie?
- Sim, mas não posso vê-la, Betty. Estou no sótão.
- Não é esta a única razão. Não tive tempo de ajeitar o rosto e por isto desliguei o vídeo Além disto, aqui no vestíbulo está mais escuro que boca de lobo, pois a esta hora da noite não me deixam telefonar. Ouve, a duquesa não está ouvindo?
Johnnie olhou para o sinal de aviso.
- Não.
- Vou ser breve. Meus espiões me comunicaram que o diácono Dreiser recebeu a aprovação para seguir em frente com sua ideia.
- Não!
- Sim. Que vamos fazer? Esta é a questão. Não podemos ficar de braços cruzados deixando que ele faça o que lhe pareça.
- Não, claro. Mas o que acontece é que eu não sei o que fazer, e...
Neste momento a comunicação foi cortada. Tentou chamá-la de novo, mas só recebeu como resposta uma voz gravada que dizia:
- Este aparelho está fora de serviço até amanhã às oito d amanhã. Se deseja gravar uma mensagem, disque...
Ele ficou sentado com a cabeça entre as mãos, desejando estar morto.
Continuou sentado ali, sem saber que partido tomar. Quanto mais pensava nisto mais desgosto sentia.
Ao diabo com o bom senso! Nenhum dos seus antepassados o havia utilizado!
Quem era ele para começar tal prática na família?
Nenhum deles tinha feito ações sensatas e corretas. Por exemplo, o pai do seu tataravô encontrou-se em uma situação que não gostava, e pôs todo um planeta de pernas para o ar com uma sangrenta guerra que durou sete anos. Daí em diante o consideraram um herói.. mas tem alguma coisa a ver com o bom senso desencadear uma revolução?
Ou por exemplo.... Que diabos, qualquer um deles! Não tinha existido um só "bom garoto" entre os Stuart. Teria seu avô abandonado Lummox à sua sorte? Claro que não. Se seu avô estivesse na mesma situação dele, estaria montando guarda ao lado de Lummox, empunhando um rifle e desafiando todo mundo que se atrevesse a causar-lhe o menos dano. Então ultimou seu plano, que possuía a virtude de não ter absolutamente nem pé nem cabeça; era formado de loucura e riscos em partes iguais. Pensou que seu avô o teria incentivado.
9 O PATINHO FEIO
Desceu cautelosamente e parou para escutar na porta do quarto da sua mãe. Tratava-se de um gesto instintivo, pois sabia que o quarto era à prova de som. Então foi para seu quarto e preparou-se para a caminhada. Vestiu-se como montanhista, com botas de cravos, e colocou seus equipamentos de acampar nos bolsos, sem esquecer o saco de dormir e seu correspondente grupo gerador.
Contou seu dinheiro e proferiu uma praga. O resto estava na sua caderneta de poupança e não tinha tempo de ir retirá-lo. Que se podia fazer... Já estava descendo a escada quando se lembrou de uma coisa importante e voltou para sua mesa.
"Querida mamãe escreveu, Lum e eu vamos embora, e será melhor que não tente nos achar. Lamento tomar esta decisão, mas não tenho outra alternativa."
Releu a nota e acrescentou: "Te amo" e assinou.
Começou a redigir outra para Betty, mas após várias tentativas achou que era melhor enviar-lhe uma carta quando tivesse mais coisas para dizer-lhe. Foi à cozinha e deixou a nota sobre a mesa. Então foi à despensa e pegou algumas coisas para comer. Poucos minutos depois, carregado com uma grande mochila cheia de latas e pacotes, saiu e foi para o barracão de Lummox.
Seu mascote dormia, mas o olho vigilante o reconheceu e Lummox continuou dormindo suavemente. John Thomas tomou impulso e deu um tremendo pontapé nas costas de Lummox.
- Ei Lummox! Acorda.
A besta abriu os olhos, bocejou discretamente e disse com sua voz aflautada:
- Olá, Johnnie.
- Levanta. Vamos sair em uma excursão.
- De acordo.
- Me faz um assento; e prepara um lugar para isto também. John Thomas levantou a mochila até o lombo da besta e a seguir subiu nela. Logo estavam na estrada.
Apesar de ser um rapaz inexperiente, John Thomas sabia que fugir e esconder-se com Lummox era um projeto quase impossível de se realizar pois Lummox chamaria a atenção por onde passasse. Entretanto, havia uma certa dose de método naquela loucura: não era tão impossível ocultar Lummox perto de Westville como teria sido em outros lugares.
Westville estendia-se por um vale muito aberto e imediatamente a oeste o espinhaço da cordilheira elevava seus agudos picos para o céu. A poucos quilômetros da cidade começava uma das grandes zonas primitivas do país, constituída por milhares de quilômetros quadrados de terreno acidentado, que se encontrava quase no mesmo estado em que estava quando os nativos deram as boas vindas a Colombo. Durante uma breve temporada anual, andavam pela região caçadores de jaqueta vermelha, que disparavam contra veados e alces, e mesmo contra eles mesmos; a região era deserta na maior parte do ano.
Se pudesse levar Lummox para lá sem que os vissem, era bastante possível que
conseguissem evitar serem descobertos... pelo menos enquanto durassem as reservas de alimento. Quando esse momento chegasse, viveria do que conseguisse na região, tal como faria Lummox, podia comer veado. Ou talvez voltasse à cidade sem Lummox, e então negociar, na forte posição que representaria sua negativa de dizer-lhes onde ele se achava, até que eles aceitassem entrar em acordo. Não se detinha para pensar nas possibilidades de realizar seu plano, ele tentava simplesmente pôr Lummox a coberto dos seus perseguidores. Depois disto teria tempo para pensar. Ocultá-lo em algum lugar onde aquele canalha do Dreiser não pudesse alcançá-lo para causar-lhe algum dano.
John Thomas podia ter ordenado que Lummox se dirigisse para o oeste, para chegar às montanhas, atravessando o campo, pois Lummox podia andar em todos os terrenos, mas deixava um rastro na terra macia tão visível como o de um tanque. Era preciso não sair da estrada, que tinha um pavimento duro.
Johnnie acariciava uma ideia que solucionaria perfeitamente o problema. Em séculos anteriores, uma rodovia transcontinental cruzava as montanhas passando ao sul de Westville e serpenteando ao subir até a Grande Divisão. Havia muito tempo que tinha sido substituída por uma moderna rodovia movida a energia, que atravessava a muralha rochosa por meio de um túnel, ao invés de entranhar-se nela. A velha estrada ainda existia, abandonada e coberta pela vegetação em muitos trechos, com suas placas de cimento levantadas e rachadas pela neve e pelo calor do verão, mas continuava sendo uma estrada pavimentada, na qual a pesada marcha de Lummox deixaria muito poucas pegadas.
Conduziu Lummox por becos afastados, evitando as casas e dirigindo-se para um lugar situado a uns cinco quilômetros para o oeste, onde a rodovia penetrava pelo primeiro túnel e a antiga rodovia iniciava sua subida. Não chegou até a bifurcação, mas deteve-se a uma centena de metros dela, deixando Lummox em um terreno baldio e advertindo-o para que não se movesse, enquanto ele reconhecia o terreno. Não se atreveu a chamar Lummox para a rodovia para passar desta para a velha rodovia. Não somente poderiam vê-los, como além disto poderia ser perigoso para Lummox.
Mas John Thomas conseguiu encontrar o que procurava: uma estrada secundária que dava a volta na bifurcação. Não era pavimentada, e sim recoberta de cascalho e bem compactada, e pareceu-lhe que os pesados passos de Lummox não ficariam marcados nela. Voltou para junto deste e encontrou-o comendo tranquilamente uma placa que dizia "à venda". O garoto já se preparava para sair com ele, quando pensou melhor e decidiu que mais valia livrar-se daquela prova. Voltando ao terreno, esperou que Lummox terminasse de comer o letreiro.
Uma vez na antiga rodovia, John Thomas respirou aliviado. Durante os primeiros quilômetros o pavimento estava em bom estado, porque ainda era utilizada pelos moradores das casas situadas além do cânion . Mas o trânsito local ainda não havia começado àquela hora. Uma ou duas vezes passou por eles um carro aéreo, conduzido por pessoas que tinham ido a alguma festa ou teatro e que voltavam para suas casas, mas se os seus passageiros notaram a enorme besta que avançava pela estrada abaixo deles, não demonstraram.
A estrada ziguezagueava subindo pelo cânion , até que desembocou em uma meseta. Aqui o pavimento estava obstruído por uma barreira: ESTRADA FECHADA. PROIBIDA A PASSAGEM DE VEÍCULOS ALÉM DESTE PONTO. Johnnie apeou-se para examinar o obstáculo. Era formado somente por um grande tronco, muito grosso, colocado transversalmente e à altura do peito.
- Lummie, pode passar por cima deste tronco sem tocá-lo?
- Claro que sim, Johnnie.
- Muito bem. Depressa então. Não precisa derrubá-lo. Tente nem sequer roçá-lo.
- Nem sequer o roçarei, Johnnie.
E assim foi feito. Ao invés de saltar por cima do obstáculo, como um cavalo sobre o obstáculo baixo, Lummox foi encolhendo sucessivamente seus diversos pares de patas e escorregou com presteza por cima do tronco.
- Não sabia que você era capaz de fazer isso.
- Eu também não.
A estrada estava em muito mau estado, daquele ponto em diante. John parou para amarrar a mochila com um corda em baixo da barriga de Lummox, amarrando-se então ele mesmo pelas coxas.
- Muito bem, Lummie. Vamos ver se podemos correr um pouco. Mas não galope, não quero cair.
- Segure-se, Johnnie!
Lummox adquiriu velocidade mantendo a sequência normal das suas patas. Avançava em um trote rápido, e sua marcha era suave e sem sacudidelas, graças às suas numerosas patas. Johnnie deu-se conta de que estava muito cansado, tanto de corpo como de espírito. Distante dos lugares habitados e das estradas movimentadas, ele se sentia seguro e a fadiga o dominou. Deitou-se sobre o lombo de Lummox, e este adaptou o contorno do seu corpo ao corpo do seu amigo. O movimento do balanço e o barulho rítmico das numerosas patas de Lummox tiveram sobre ele um efeito calmante e acabou dormindo.
Lummox continuou avançando sobre as placas rachadas com passo firme e seguro. Fazia uso da sua visão noturna e não corria o menor perigo de tropeçar na escuridão. Deu-se conta que Johnnie dormia e tentou fazer com que seu caminhar ficasse o mais suave possível. Mas terminou ficando entediado e decidiu cochilar um pouquinho também. Hão havia dormido bem nas noites que passou fora de casa, pois sempre se havia visto envolvido em algo desagradável, e porque o inquietava não saber onde Johnnie estava. Portanto, montou seu olho guardião, fechou os olhos e passou o controle ao seu cérebro secundário situado na garupa. Lummox entregou-se a um sono suave, deixando que aquela parte insignificante de si mesmo, que nunca dormia, se encarregasse da tarefa simples de vigiar a estrada e assegurar o incansável movimento das suas oito patas.
John Thomas despertou quando as estrelas começavam a empalidecer no céu matinal. Sacudiu sus músculos enrijecidos e estremeceu. Por todas as partes estavam rodeados de altas montanhas, e a estrada corria junto a uma delas, com um precipício cortado a prumo do outro lado, e que terminava em um rio, lá embaixo, muito distante. Endireitando-se, gritou.
- Ei, Lummie!
Não recebeu resposta. Voltou a gritar. Desta vez Lummie respondeu com uma voz sonolenta:
- Que é, Johnnie?
- Você adormeceu acusou Johnnie.
- Você não tinha proibido dormir, Johnnie.
- Bom... está bem. Continuamos na mesma estrada? Lummox consultou seu outro eu e respondeu:
- Sim. Quer ir para outra estrada?
- Não. Mas temos que sair desta. Está ficando de dia.
- Por que temos que sair?
John Thomas não soube como responder àquela pergunta. Não achava graça nenhuma ter que explicar a Lummox que ele estava sentenciado à morte e que tinha
que esconder-se.
- Temos que fazê-lo, isto é tudo. Mas continue andando, eu já lhe contarei.
O rio subia até eles e depois de percorrer coisa de um quilômetro e meio, a estrada estava somente a poucos metros por cima do abismo. Chegaram a um lugar onde o leito do rio se alargava, transformando-se em uma extensão semeada de grandes pedras, cruzada por um fiozinho d'água.
- Para! gritou Johnnie.
- Vamos descansar? perguntou Lummox.
- Ainda não. Vê essas pedras?
- Sim.
- Quero que você passe sobre eles sem por os pés nessa lama macia. Passe diretamente da estrada. Entendeu?
- Não quer que eu deixe pegadas? perguntou Lummox desconfiado.
- Isso mesmo. Se vier alguém e vir suas pegadas, você terá que voltar à cidade... porque eles as seguirão e nos encontrarão. Compreende?
- Não deixarei pegadas, Johnnie.
Lummox desceu para o leito seco do rio como um verme gigantesco. A manobra obrigou John Thomas a agarrar-se fortemente com uma mão à sua corda de segurança, enquanto que com a outra segurava a mochila. Lançou um grito agudo.
Lummox parou e perguntou?
- Está bem, Johnnie?
- Sim. É que me pegou de surpresa. Suba agora pelo leito do rio, mas sem sair das rochas.
Seguiram o leito do rio até que encontraram um ponto por onde poderiam vadeá-lo, e então continuaram pela outra margem. O rio mudou de direção afastando-se da estrada, e logo eles acharam-se a algumas centenas de metro dela. Já era dia e John Thomas começava a se preocupar com um eventual reconhecimento aéreo, embora fosse improvável que se tivesse dado o alarma tão cedo.
À frente deles, uma ladeira montanhosa coberta de abetos descia até a margem do rio. O bosque parecia bastante denso. Embora Lummox não ficasse completamente invisível dentro dele, se permanecesse quieto, pareceria uma enorme pedra coberta de musgos. Tinha que metê-lo ali, não havia tempo de escolher um lugar melhor.
- Suba e ficque entre essas árvores, Lum, e tente não desmoronar a margem. Pise com cuidado.
Entraram no bosque onde pararam e Johnnie apeou da sua montaria. Lummox arrancou um galho de abeto e começou a comê-lo. Isto lembrou a Johnnie de que ele não havia comido nada havia muito tempo, mas estava tão cansado que nem sequer tinha fome. Só queria dormir de verdade, e não um meio sono cheio de sobressaltos e segurando uma corda de segurança.
Mas ele tinha medo de deixar Lummox pastando enquanto ele dormia, pois o estúpido grandalhão podia para um lugar descoberto e ser visto.
- Lummie, vamos dormir um pouquinho antes de comer?
- Por que?
- Olha, Johnnie está muito cansado. Você se deita e aqui eu eu porei o saco de dormir ao seu lado. Depois que nós acordarmos, nós comeremos.
- Não comeremos até você acordar?
- É isso.
- Bem... como quiser disse Lummox.
John Thomas tirou seu saco de dormir do bolso e abriu de uma vez a leve membrana e a conectou ao grupo gerador. Ajustou o termostato e ligou o comutador. Depois, enquanto esquentava, inflou o colchonete. O tênue ar das alturas tornou aquele trabalho muito fatigante. Deixou o colchonete meio inflado e tirou a roupa. Tremendo naquele ar gelado, deslizou para o interior do saco e fechou até deixar somente um orifício onde pudesse botar o nariz.
- Boa noite, Lummie.
- Boa noite, Johnnie.
Henry Kiku dormiu mal e levantou-se cedo. Tomou o café da manhã sem perturbar sua esposa e dirigiu-se para Assuntos Espaciais, onde chegou enquanto o grande edifício ainda estava silencioso, e só havia nele o turno da noite. Sentado na sua mesa tratou de pensar.
Seu subconsciente o havia importunado a noite toda, dizendo-lhe que havia esquecido de alguma coisa importante. Kiku respeitava muito seu subconsciente, e sustentava a teoria de que a a principal função pensante não se realizava na parte superficial da mente, que ele considerava simplesmente como um mostruário onde eram exibidos os resultados que chegavam de outra parte, com a tela de "resposta" de uma calculadora.
Era algo que Greenberg havia dito... algo relacionado à crença do rargiliano de que o Hroshii, apenas com uma nave, constituíam uma enorme ameaça para a Terra. Kiku considerou aquela afirmação como uma grosseira tentativa, por parte do homem das serpentes, para ver se conseguia salvar a honra e concluir satisfatoriamente as negociações. Na realidade, pouco importava, pois as negociações estavam quase concluídas e o único detalhe que restava por resolver era o estabelecimento de relações diplomáticas permanentes com os Hroshii
Mas seu subconsciente não pensava assim.
Inclinou-se sobre sua mesa e falou com o supervisor noturno de comunicações:
- É Kiku falando. Chame o Hotel Universal. Está alojado ali um tal doutor Ftaeml, um rargiliano. Quero falar com ele no café da manhã. Não, não quero que o acordem, todo mundo tem direito ao descanso.
Depois de fazer tudo quanto podia no momento, consagrou seu tempo ao trabalho rotineiro que tinha diante de si, o que serviu-lhe de sedativo.
Sua bandeja de entrada estava vazia pela primeira vez em muitos dias, e o edifício começava a entrar em atividade quando acendeu-se uma luz vermelha intermitente na tela do intercomunicador.
- Kiku falando.
- Senhor disse um rosto ansioso, chamamos o Hotel Universal. O doutor Ftaeml não pediu seu desjejum.
- Talvez ele deseje levantar-se tarde. Pode ser isto.
- Não, senhor. Estou querendo dizer que ele não tomou seu desjejum. Está se dirigindo agora mesmo para o espaçoporto.
- Faz muito tempo que ele saiu?
- Cerca de cinco ou dez minutos. Acabo de saber.
- Muito bem. Chame o espaçoporto e diga-lhes para que não permitam a saída dessa nave. Assegure-se de que compreendam que trata-se de um gabinete diplomático e que eles tem que fazer alguma coisa, sem se limitarem simplesmente a rabiscar o despacho da aduana na pizzaria e depois voltarem a dormir. Depois que localizar o próprio doutor Ftaeml, apresente-lhe meus respeitos e diga-lhe que me conceda a honra de esperar uns minutos, pois preciso vê-lo. Estou saindo agora mesmo para o espaçoporto.
- Sim, senhor.
- Se fizer bem o que lhe digo, procurarei fazer constar uma nota favorável na sua folha de serviço. Você é Zdenov, não é verdade? Decida você mesmo sua promoção, quero ver que opinião tem de si mesmo.
- Obrigado, senhor.
Kiku cortou a comunicação e chamou Transportes.
- Sou Kiku. Estou saindo para o espaçoporto tão rápido quanto possa subir ao telhado. Providenciem um carro rápido e uma escolta policial.
- Agora mesmo, senhor!
Parou apenas o tempo necessário para dizer à sua secretária para onde estava indo e então entrou no seu elevador particular que o conduziu ao telhado.
No espaçoporto, Ftaeml esperava na sala de passageiros, contemplando as naves e fingindo fumar um cigarro. Kiku aproximou-se dele e inclinou-se.
- Bom dia, doutor. Foi muito amável em me esperar. O rargiliano tirou o cigarro da boca.
- É você quem me concede uma alta honra, senhor subsecretário. Que uma pessoa da sua classe e com inumeráveis ocupações oficiais preocupe-se em vir despedir-se de mim...
Terminou a frase com um gesto que denotava surpresa e prazer ao mesmo tempo.
- Não o reterei por muito tempo. Mas não queria privar-me do prazer de vê-lo novamente hoje, e não sabia que tinha a intenção de ir embora.
- Foi culpa minha, senhor subsecretário. Eu só tinha a intenção de ir e voltar de imediato, para ter o gosto de vê-lo esta tarde.
- Muito bem. Bom, talvez amanhã possa oferecer uma solução aceitável a este problema.
Ftaeml demonstrou uma surpresa inequívoca.
- Uma solução favorável?
- Assim o espero. Os dados que nos proporcionou ontem nos deram uma nova pista.
- Devo entender que vocês encontraram a Hroshia perdida?
- É possível. Você conhece a história do patinho feio?
- O patinho feio? o rargiliano parecia procurar em seus arquivos. Sim, conheço essa expressão.
- O senhor Greenberg, seguindo a pista que você nos proporcionou, saiu em busca do nosso patinho. Se por sorte, acontecer dele ser o cisne que andamos procurando, então.
Kiku, inconscientemente, fez um gesto como o doutor Ftaeml. O rargiliano não parecia acreditar no que ouvia.
- E você acredita que é, senhor subsecretário?
- Veremos. A lógica nos diz que deve ser, mas o cálculo das probabilidades nos diz que não.
- Posso comunicar isto aos meus clientes?
- Creio que será melhor esperarmos notícias do senhor Greenberg. Ele está fora da capital, investigando. Eu poderei ir buscá-lo com a nave exploradora, doutor?
- Certamente, senhor.
- Ouça, doutor... tem mais uma coisa.
- Ah, sim?
- Ontem à noite, você fez uma observação singular na presença do senhor Greenberg. Pensamos que se tratasse de uma brincadeira... ou talvez de uma distração. Disse alguma coisa sobre a Terra poder ser "volatilizada".
Durante um momento o rargiliano permaneceu calado. Então mudou de assunto:
- Diga-me, doutor, que fundamento lógico existe para afirmar que esse patinho feio seja um cisne?
Kiku respondeu, medindo cuidadosamente suas palavras.
- Uma astronave terrestre visitou um planeta desconhecido na época a que se referem os dados que você nos deu. A raça dominante desse planeta pode ter sido a dos Hroshii. A identificação só é exata no que se refere à data. Um ser vivo desse planeta foi raptado e transportado para a Terra. Este ser ainda continua vivo, embora já tenham transcorrido mais de cento e vinte anos desde essa data. O senhor Greenberg foi à sua procura, para que seus clientes procedam a uma identificação.
O doutor Ftaeml disse em voz baixa e calma:
- Tem que ser este. É incrível, mas tem que ser prosseguiu em voz baixa e alegre: Senhor, você me deu uma grande alegria.
- Verdade?
- Sim, uma grande alegria. Também tornou possível que eu lhe fale com inteira liberdade.
- Você sempre pôde falar livremente, doutor, ninguém o impedia. Ignoro as instruções que lhe deram seus clientes a esse respeito.
- Não exerceram coerção alguma. Mas... já se deu conta, senhor, de que os costumes de uma determinada raça se refletem na sua língua.
- Às vezes encontrei coisas que me fizeram acreditar nisto respondeu secamente Kiku.
- Exatamente. Se visitasse um amigo seu, enfermo em um hospital, sabendo que ele iria morrer e que você não pode fazer nada para evitá-lo, você lhe falaria do fim que o espera.
- Não. A menos que ele mesmo abordasse o tema.
- Exatamente! Ao falar com você e com o senhor Greenberg, me vi obrigado a adaptar-me aos seus costumes.
- Doutor Ftaeml disse Kiku lentamente, vamos falar com franqueza, embora com risco de nos mostrarmos descorteses. Devo acreditar que você está convencido de que somente esta nave pode causar danos a este planeta, apesar das defesas nada desprezíveis com que conta?
- Falarei com franqueza, senhor subsecretário. Se os Hroshii chegassem a ficar convencidos de que, devido às ações cometidas neste planeta ou por algum membro da sua cultura, sua Hroshia tinha sido morta ou estava perdida para sempre, a Terra não receberia danos graves, seria simplesmente destruída.
- Unicamente por essa nave?
- Sem outra ajuda.
Kiku balançou a cabeça duvidando.
- Doutor, estou certo de que você está convencido do que diz. Mas eu não. A extensão e qualidade das defesas deste planeta, o principal da Federação, possivelmente lhe são desconhecidas. Mas se eles se atrevessem a cometer essa loucura, nós os ensinaríamos que temos dentes e que sabemos morder.
Ftaeml estar com pena.
- Em nenhuma das línguas civilizadas consigo achar palavras para convencê-lo. Mas acredite-me: o que quer que vocês possam fazer contra eles seria tão fútil como jogar pedras contra um dos seus modernos vasos de guerra.
- Isso nós veremos. Ou melhor, não veremos. Detesto as armas, senhor, elas são o último recurso da má diplomacia. Você lhes falou do desejo da Federação de aceitá-los como membros da Comunidade das Civilizações?
- Eu tive grandes dificuldades para fazê-los entender a natureza da sua oferta.
- Eles são então uma raça decididamente belicosa?
- Não são belicosos, em absoluto. Como eu poderia lhe dizer? Você é belicoso quando esmaga uma mosca? Os Hroshii são praticamente imortais de acordo com a medida humana de tempo, e mesmo para a nossa. São tão invulneráveis ante todos os acidentes e azares, que tendem a ver-nos... qual é a expressão que vocês usam?... "Olímpico!", é isto, a contemplar-nos de alturas olímpicas. Não conseguem ver nenhuma utilidade nem finalidade nas relações com raças inferiores. Por isto sua proposta não foi levada a sério, embora eu tenha me esforçado para que a considerassem seriamente.
- Eu os acho uns perfeitos idiotas respondeu Kiku sarcasticamente.
- Isto não é correto, senhor. Eles valorizam altamente a raça humana e a nossa. Sabem que todas as culturas que conseguiram a navegação interplanetária possuem pelo menos uma certa habilidade nas artes menores e, portanto, são conscientes de que vocês se consideram muito poderosos. Por tal razão, planejam uma demonstração de força para convencê-los de que devem entregar imediatamente a sua Hroshia. Eles consideram esta ação como uma tapa em um animal de tração, um sinal que este compreenderá muito bem.
- Que seja... Você conhece a natureza dessa demonstração?
- Conheço sim. Minha viagem de hoje à sua nave, tem por objetivo persuadi-los a esperar. Eles tencionavam tocar ligeiramente a face da lua, deixando nela uma marca incandescente de mais de mil e seiscentos quilômetros de largura, para convencê-los de que eles... "não estão brincando" .
- Isto não me impressiona nem um pouco. Podemos reunir uma esquadrilha de naves e fazer o mesmo sinal, se quisermos
- Mas poderiam fazer apenas com uma nave, em poucos segundos, sem fazer o menor ruído e de uma distância de quatrocentos milhões de quilômetros?
- Acredita que eles poderiam?
- Estou certo disto. Seria apenas uma demonstração sem importância. Senhor subsecretário, na parte do espaço que eles ocupam têm aparecido coisas que não eram acidentes da natureza.
Kiku vacilou. Se aquilo era certo, tal demonstração poderia servir aos seus próprios fins ao obrigar os Hroshii a mostrar do que eram capazes. A perda de umas quantas montanhas lunares sem valor algum não tinha importância, mas seria difícil evacuar uma zona tão extensa, mesmo que nela houvesse muito poucas pessoas.
- Você lhes disse que nossa Lua é habitada?
- Não está habitada pela sua Hroshia, e isto é a única coisa que lhes interessa.
- Suponho que sim. Doutor, poderia sugerir-lhe, primeiro: que estamos a ponto de encontrar o paradeiro da sua Hroshia e, segundo: que esta pode estar em algum lugar do nosso satélite, sendo esta a causa de que sua procura tem sido tão trabalhosa?
O rargiliano imitou um amplo sorriso humano.
- Senhor, permita-me que o felicite. Ficarei muito contente em comunicar-lhes o que me sugere. Estou certo de que não haverá demonstração de força.
- Boa sorte, doutor. Permanecerei em contato.
- Obrigado, senhor, e até à vista.
De volta ao seu gabinete, Kiku se deu conta de que não havia experimentado sensação alguma de náusea na presença do medusoide. Depois de tudo, aquele patife era bastante simpático, embora não deixasse de ser horrível. O doutor Morgan era certamente um hipnotizador incrível.
Sua bandeja de entrada estava repleta, como de costume. Afastou os Hroshii do pensamento e pôs-se a trabalhar ativamente e cheio de confiança. Quando a tarde estava muito avançada, comunicaram-lhe que Greenberg estava no circuito e desejava falar com ele pessoalmente.
- De acordo disse Kiku, pensando que finalmente as peças do quebra-cabeças estavam se encaixando
- Chefe? começou a dizer Greenberg.
- Hein? Sim, sou eu, Sergei. Porque demônios você está com essa cara?
- Porque estou considerando que eu gostaria muito de entrar como simples soldado na Legião Estrangeira do Espaço.
- Deixe de rodeios. O que aconteceu?
- O pássaro voou.
- Voou? Para onde?
Oxalá eu soubesse. O lugar mais provável é uma reserva florestal a oeste da cidade.
- Então por que está perdendo tempo me contando isso? Vá procurá-lo imediatamente.
Greenberg suspirou.
- Eu já esperava que dissesse isso. Veja, chefe, esta região tem mais de quarenta mil quilômetros quadrados, altas árvores, altas montanhas e nela não existe estradas de nenhum tipo. Além disso, o chefe de polícia local tomou a dianteira, levando todos seus homens e a metade dos ajudantes do xerife do condado. Ele lhes ordenou que o matem quando o virem, e ofereceu uma recompensa para a nave que conseguir matá-lo.
- O que?
- Foi isso mesmo que ouviu. Receberam, no seu devido tempo, a autorização que você deu para matar Lummox, mas sua anulação se perdeu. Não tenho idéia de onde foi parar. Mas este chefe é um homem antiquado e com alma de chupa-tinta. Ele se atem à uma ordem e não tem que o tire dali. Nem sequer me permitiu usar a frequência da polícia para eu lhe chamar. Depois de haver sido retirada nossa intervenção, eu não tenho a menor autorização para opor-me a ele.
- E você está aceitando esta situação, não é isto? disse Kiku acremente. Espera de braços cruzados que esse bicho rebente.
- Quase. Tentei falar com o prefeito, mas ele está fora da cidade. Tentei que o governador me recebesse, mas ele está em uma reunião a portas fechadas muito importante. Também não pude ver o chefe dos guardas florestais. Acho que ele se uniu aos perseguidores para ver se consegue a recompensa. Tão logo termine de falar dom você, vou torcer o braço do chefe até fazê-lo entrar na razão e...
- Já deveria estar fazendo isto.
- Não demorarei muito. Eu lhe chamei para pedir uma coisa chefe. Preciso de ajuda.
- Você a terá.
- Não somente para conseguir ver o governador e iniciar uma nova intervenção. Mesmo depois de conseguir pegar esse chefe de polícia louco e persuadi-lo a chamar seus sabujos de volta, continuarei precisando de ajuda. Quarenta mil quilômetros quadrados de terreno montanhoso significa homens e naves. Não é uma tarefa que possa ser feita por um homem apenas com uma carteira de negócios. De qualquer forma, já sei que terminarei na Legião Estrangeira.
- Nos veremos lá disse Kiku sombriamente. Muito bem, mãos à obra. Andando.
- Foi uma sorte encontrá-lo, chefe.
Henry Kiku cortou a comunicação e começou a fazer as gestões necessárias, iniciando uma nova intervenção departamental, e enviou mensagens urgentes e em caráter de exceção ao governados do Estado, ao prefeito de Westville e ao tribunal do distrito de Westville. Uma vez adotadas essas primeiras medidas, sentou-se durante uns segundos para refletir sobre o que devia fazer... Levantando-se foi dizer ao ministro que deviam pedir ajuda às autoridades militares da Federação.
10 A DECISÃO DI CISNE
Quando acordou, John Thomas não conseguia compreender onde estava. Sentia-se preguiçoso, embora descansado. Quando relembrou os acontecimentos do dia anterior, tirou a cabeça do saco de dormir. O sol estava radiante e fazia calor. Viu Lummox que olhava para ele.
- Olá, Lummie.
- Olá, Johnnie. Você dormiu muito. E além disso, roncava.
- Ah, sim? saiu de rastros do saco e se vestiu. Desligou o saco de dormir, dobrou-o e voltou-se para Lummox... E então ficou olhando algo fixamente: Que é isso?
Perto da cabelo de Lummox, amassado como se tivesse sido esmagado, via-se o cadáver de um urso pardo, um macho que pesaria uns duzentos e cinquenta quilos. Do seu focinho saía sangue já coagulado. Lummox deu-lhe uma olhada, distraído.
- O café da manha disse, à guisa de explicação. O rapaz olhou para o urso com repugnância.
- Para mim, certamente não é. Onde o encontrou?
- Eu o capturí respondeu Lummox, sorrindo bobamente.
- Não se diz "capturí", e sim capturei.
- Bem, então isso. Ele estava tentando se aproximar de você, então eu o capturí.
- Bom, está bem, obrigado.
John Thomas voltou a olhar para o urso, afastou-se e abriu sua mochila. Tirou uma lata de ovos com presunto, abriu-a e esvaziou seu conteúdo em um recipiente e esperou que esquentasse.
Lummox considerou esta ação como um indício de que ele também podia começar a comer. Em um instante devorou o urso e como sobremesa comeu um par de pequenos abetos, um punhado de cascalho e a lata vazia que continha o desjejum do rapaz. Depois disto foram ambos ao riacho. Lummox encharcou sua comida com o equivalente a alguns tambores de água de montanha, pura e cristalina. Johnnie ajoelhou-se para beber, lavou o rosto e as mãos e secou a camisa.
Lummox perguntou-lhe:
- Que faremos agora, Johnnie? Vamos passear? Procurar coisas, talvez?
- Não respondeu Johnnie. Nós nos esconderemos entre as árvores até que escureça. Você tem que simular uma pedra subiu pela margem, seguido de Lummox.
- Deite aqui ordenou-lhe. Quero examinar esses caroços.
Lummox obedeceu e Johnnie examinou-os com crescente preocupação. Haviam crescido e pareciam ter inchaços e protuberâncias em seu interior. Tentou lembrar se aquele tipo de tumor era maligno. A pele que os recobria estava esticada e tinha se tornado tão fina que parecia ter somente a grossura do couro, sem que parecesse absolutamente com o resto da couraça que recobria Lummox, seca e quente ao tato. Johnnie esfregou com cuidado o tumor da esquerda e Lummox afastou-se vivamente.
- Está tão sensível assim? perguntou-lhe Johnnie ansiosamente.
- Não consigo resistir protestou Lummox. Estendeu as patas e dirigiu-se para uma grande conífera, contra a qual começou a esfregar o tumor.
- Ei! gritou Johnnie. Não faça isto! Vai se ferir.
- Mas é que isto está me picando disse Lummox, sem deixar de esfregar-se.
John Thomas correu para ele, tentando mostrar-se firme. Mas assim que chegou ao seu lado, o tumor arrebentou, e ele olhou horrorizado.
Alguma coisa escura e úmida saía contorcendo-se, desprendeu-se da pele solta para soltar-se em seguida e começar a dançar e oscilar como uma serpente pendurada em um galho. Por um momento, de agonia, Johnnie pensou que se tratava de algum gigantesco verme parasita que tentava sair do seu desgraçado hóspede. Pensou, cheio de remorso, que havia obrigado Lummie a subir pelas montanhas, quando aquilo provavelmente o transformava em doente terminal.
Lummox suspirou e contorceu-se.
- Ufa! exclamou ele satisfeito. Estou muito melhor!
- Lummox, você está bem?
- Por que não estaria, Johnnie?
- Por que? Por isto!
- O que? Lummox olhou ao redor; a estranha excrescência inclinou-se para diante e ele deu-lhe uma olhada de soslaio. Ah, isso... respondeu, e não prestou mais atenção.
A extremidade daquela coisa abriu-se como um cálice de uma flor e Johnnie compreendeu por fim do que se tratava.
Tinha saído um braço em Lummox.
O braço secou rapidamente, tornou-se de uma cor mais clara e pareceu adquirir firmeza. Lummox ainda não o dominava muito, mas John Thomas já sabia qual seria sua forma definitiva. Tinha dois cotovelos e uma mão perfeitamente definida com polegares em ambos os lados. Além destes tinha mais cinco dedos, ou seja, sete no total. O dedo médio era mais comprido e extraordinariamente flexível, como a tromba de um elefante. A mão não se parecia muito com uma mão humana, mas não havia dúvida de que era pelo menos tão útil como esta... ou seria. No momento os dedos se contorciam com estranhos movimentos.
Lummox deixou que o examinasse, embora não parecesse especialmente interessado no que havia brotado no seu corpo. Comportava-se como se aquilo lhe acontecesse todos os dias depois do café da manhã.
Johnnie disse:
- Me deixe dar uma olhada no outro caroço e deu a volta a Lummox. O tumor do lado direito estava ainda mais inchado. Quando John Thomas o tocou, Lummox encolheu-se e fez um gesto de afastar-se, como se estivesse indo esfregar-se novamente na árvore.
- Espera gritou-lhe Johnnie. Fica quieto.
- Tenho que me coçar.
- Você poderia ficar estropiado pelo resto da vida. Não se mova, vou tentar uma coisa.
Lummox obedeceu, um pouco sisudo, e Johnnie pegou sua faca de caça e picou delicadamente o centro do tumor.
O caroço rasgou-se e o braço direito de Lummox brotou quase no rosto de Johnnie, que afastou-se com um salto.
- Obrigado, Johnnie.
- Por nada, homem, por nada.
Embainhou a faca e contemplou com ar pensativo os braços recém nascidos.
Ele não podia imaginar todas as consequências que teria a inesperada aquisição de braços por Lummox. Porém sabia que mudaria muitas coisas, embora não soubesse de que maneira. Talvez Lummox não necessitasse de tantos cuidados depois disso. Por outro lado, teria que vigia-lo constantemente, para que não tocasse em coisas que não devia. Lembrou inquieto de ter ouvido dizer uma vez que era uma sorte que os gatos não tivessem mãos. Bem, Lummie era dez vezes mais curioso que um gato.
Mas ele compreendia, inconscientemente, que aqueles eram aspectos secundários da questão. O importante era o fato em si.
De qualquer forma, decidiu com surda raiva, que isto não mudaria uma questão: o chefe Dreiser não poderia tentar nada contra ele uma segunda vez.
Esquadrinhou o céu através dos galhos e perguntou-se se poderiam vê-los.
- Lum...
- Diga, Johnnie.
- Encolhe tuas patas. Chegou o momento de representar o papel de pedra.
- Oh, vamos dar um passeio, Johnnie.
- Olha, queres voltar hoje mesmo para a cidade? Não quer, não é mesmo? Muito bem, então não discutamos mais.
- Bom, como quiser
Lummox encolheu-se no solo o melhor que pôde. John Thomas sentou-se apoiando-se nele e começou a meditar.
Talvez ele e Lummie pudessem encontrar algum meio de ganhar a vida... em uma feira, ou algo parecido. Os seres extraterrestres eram muito apreciados nas feiras que não podiam passar sem eles embora que mais da metade fossem falsos, e Lummox não era uma falsificação. Provavelmente ele poderia aprender a fazer truques com as mãos, ou tocar algum instrumento. Ou talvez em um circo fosse melhor.
Não, Lummie não gostaria, pois as multidões o deixavam nervoso. Que poderia fazer para ganhar a vida? Depois que aquele irritante problema com as autoridades fosse resolvido e estabelecido definitivamente, claro. Talvez uma fazenda? Lummie seria melhor que um trator, e com suas mãos poderia ser também mão de obra. Talvez fosse esta a solução, embora nunca tivesse pensado em ser fazendeiro.
Imaginou ele e Lummox cultivando grandes campos de trigo, de feno, de verduras e... Sumido nestes pensamentos, adormeceu.
Foi despertado por um ruído e soube vagamente que havia ouvido vários deles nos seus sonhos. Abriu os olhos e olhou ao redor e deu-se conta de que estava deitado junto de Lummox. A criatura não havia se movido dali, mas agitava os braços. Um deles passou junto à cabeça de Lummox e alguma coisa cruzou os ares e ouviu-se outro ruído... e um pequeno choupo, situado a uma certa distância, caiu no mesmo instante no chão. Junto dele viam-se outros caídos.
John Thomas levantou-se com dificuldade.
- Ei, deixa de fazer isto! Lummox parou.
- Que foi, Johnnie? perguntou com voz magoada. À sua frente havia um monte de pedras e naquele momento dispunha-se a pegar uma.
- Não atire pedras nas árvores.
- Mas você também faz isso, Johnnie.
- Sim, mas eu não as derrubo. Está bem que coma árvores, mas não as destrua sem necessidade.
- Mas eu vou comê-las. Já ia começar a fazer isto.
- Está bem. Johnnie olhou ao seu redor. Dentro de poucos minutos já não haveria perigo, pois estaria totalmente escuro. Anda, vai buscá-las para comê-las na janta. Ouve, espera um momento.
Examinou os braços de Lummox. Estes estavam da mesma cor do resto do seu corpo e começavam a tornar-se duros como uma couraça. Mas a mudança mais surpreendente era que tinham o dobro da grossura inicial, tão grossos como a coxa de Johnnie. A maior parte da pele solta havia caído. Johnnie viu que podia arrancar facilmente o que restara.
- Vamos jantar!
Lummox engoliu os choupos em menos tempo do que Johnnie usou para comer seu lanche simples e então devorou a lata vazia como se fosse um bombom. Já era noite e eles dirigiram-se para a estrada.
A segunda noite foi ainda mais tranquila que a primeira. O frio aumentava consideravelmente à medida que iam subindo. Johnnie ligou o grupo gerador às suas roupas e logo começou a sentir-se sonolento debaixo daquele reconfortante calor.
- Lum... se eu dormir, me chame quando o dia começar a surgir.
- De acordo, Johnnie.
Lummox passou esta ordem ao seu cérebro posterior, por prevenção. O frio não o incomodava, nem sequer o sentia, pois o termostato do seu corpo era mais eficiente que o de Johnnie, inclusive, ainda mais eficiente que o que controlava o grupo gerador.
John Thomas cabeceava sonolento. Estava cochilando quando Lummox o chamou, ao notar que os primeiros clarões do dia iluminava os picos distantes. Johnnie endireitou-se e começou a procurar um lugar onde pudessem se esconder, mas a sorte parecia tê-lo abandonado. De um lado da estrada elevava-se um imponente penhasco, e o outro era cortado a pico sobre um profundo e aterrador barranco. À medida que os minutos iam passando o dia ia chegando e o pânico ia se apoderando dele.
Mas não podiam fazer mais nada, a não ser continuar avançando.
A uma grande altura cruzou uma nave estratosférica. Ele ouviu o ruído que fazia, mas não a viu. A única coisa que podia fazer era esperar que não os estivessem procurando. Poucos minutos depois, enquanto continuava esquadrinhando o céu, distinguiu uma pequena mancha e supôs que seria uma águia.
Mas logo viu-se obrigado a admitir que era um ser humano com um helicóptero individual.
- Alto, Lummox! Encosta no paredão. Agora tu és um desprendimento de terras. Com sua vozinha, seu enorme amigo perguntou?
- Um desprendimento de terras, Johnnie?
- Cala-te e faz o que eu disse!
Lummox obedeceu sem reclamar e John Thomas deslizou pra ao solo e ocultou-se atrás da cabeça de Lummox, enrodilhando-se o máximo que podia, esperando que o voador passasse.
O indivíduo voador não passou, e começou a descer em uma precipitada curva cujo estilo era familiar a John. O garoto respirou aliviado quando Betty Sorensen aterrissou no lugar que ele acabara de deixar. Cumprimentou Lummox amistosamente e então, voltando-se para Johnnie e botando as mãos na cintura, disse:
- Então? Que bonito, hein? Fugindo sem me contar.
- Mas eu queria te avisar, Bela Adormecida, juro. Mas não tive chance de fazê-lo.
Sinto muito.
- Não importa. Agora tenho uma melhor opinião tua do que tinha antes. Pelo me-
nos fizeste alguma coisa, Johnnie, eu temia que fosse mais um Lummox... deixandose dominar ao gosto de qualquer um.
John Thomas decidiu não discutir, pois estava muito contente de vê-la para irritar-se com suas palavras.
- Como conseguiste descobrir-nos?
- Como? Tu deves saber, cabeça dura, que apesar de ter marchado durante duas noite, estás somente a poucos minutos de voo da cidade. Como queria que eu não descobrisse?
- Sim, mas como soube onde procurar-nos?
- Seguindo a velha regra: pensei como uma mula e fui para onde teria ido uma mula. Sabia que tu seguirias esta estrada e portanto, me pus a voar sobre ela sem perdê-la de vista. E se não queres que te descubram dentro de poucos minutos, faríamos melhor saindo daqui o quanto antes e escondendo-nos em algum lugar. Vamos! Lummie, garoto, põe o motor em marcha.
Estendeu a mão para Johnnie e este a ergueu para bordo. A caravana se pôs em marcha.
- Eu estava querendo sair da estrada explicou Johnnie nervoso, nas não encontrava um lugar para fazer isto.
- Compreendo. Bem, não se preocupe, depois dessa curva estão as Cascatas Adão e Eva, e poderemos sair da estrada justamente acima delas.
- Oh, nós chegamos até aqui?
- Sim Betty inclinou-se para a frente, um uma fútil tentativa de ver do outro lado de um esporão rochoso. Ao fazê-lo, notou pela primeira vez os braços de Lummox. Segurando fortemente em John Thomas, ela gritou: Johnnie! Há uma jiboia em cima de Lummox!
- O que? Não seja boba, isso não é nada mais que o seu braço direito.
- Seu o que? Johnnie, tu não estás bem da cabeça.
- Fica tranquila e não me aperte desse jeito. Eu falei braço: o que achávamos que eram tumores eram braços.
- Os tumores... eram braços? a jovem suspirou. Eu me levantei muito cedo e além disso ainda não comi nada. Esse tipo de surpresa não me convém. Muito bem, diz que ele para que eu quero vê-los.
- E se antes procurássemos um esconderijo?
- Oh, sim, tens razão. Geralmente tu tens razão, Johnnie... com duas ou três semanas de atraso.
- Bom, já é alguma coisa. Aí estão as cascatas.
Passaram sobre elas e o fundo do cânion contiguo subiu ao seu encontro. John Thomas descobriu o primeiro lugar adequado para abandonar a estrada, um lugar semelhante àquele onde haviam acampado no dia anterior. Estava muito mais tranquilo por ter Lummox outra vez embaixo das árvores. Enquanto ele preparava o desjejum, Betty foi examinar os braços novinhos em folha de Lummox.
Lummox disse ela, em tom se reprovação, não disseste nada à mamãe sobre isto.
- Você não me perguntou respondeu ele.
- Desculpas, sempre desculpas. Bem, o que podes fazer com eles?
- Sei atirar pedras. Johnnie posso fazer?
- Não! apressou-se a responder Johnnie. Betty, como queres o café?
- Puro respondeu ela distraidamente, e continuou inspecionando os braços. Uma ideia dava voltas no seu cérebro, mas não conseguia vê-la claramente, o que a desgostava, pois gostava que sua mente trabalhasse com a precisão de uma calculadora
e não admitia erros. Bem, primeiro comeria.
Depois de dar os pratos sujos a Lummox, para que ele os comesse, Betty recostou-se na grama e disse a John Thomas:
- Filho desregrado, te dás conta do que fizeste?
- Sim, acho que devo ter deixado o chefe Dreiser espumando.
- Suposição acertada. Mas ainda há mais.
- Mamãe, para começar.
- Naturalmente. Ela altera o pranto por seu menino perdido com a declaração de que já não és seu filho.
- Sim, eu conheço mamãe admitiu com desgosto Bom, isso não importa. Sabia que todos iam ficar com raiva de mim, mas eu tinha que fazer isto.
- Claro que tinha que fazer, meu querido cabeça dura, embora o tenhas feito com a graça alada de um hipopótamo. Mas eu não me refiro a eles.
- Ah, não?
- Johnnie, há uma pequena cidade na Geórgia chamada Adrian. É muito pequena para ter uma força regular de polícia e só conta com um xerife. Sabe como se chama este xerife?
- Eu? Claro que não.
- Pois é uma pena. Porque, segundo pude saber, esse xerife é o único policial que não te procura, pelo que eu decidi fugir, apesar de que você, seu sujinho, partiu sem nem sequer se dar ao trabalho de me avisar.
- Eu já disse que sinto muito.
- E eu já te perdoei. E permitirei que esqueça disto dentro de dez anos ou algo assim.
- Mas por que veio me falar desse xerife? E por que todos têm que andar atrás de mim, Além do chefe Dreiser?
- Porque ele deu o alarme geral e ofereceu uma recompensa para aquele que prender Lummie morto ou vivo... melhor morto que vivo. E eles levaram a sério, Johnnie, terrivelmente a sério. Portanto, você tem que abandonar qualquer plano que tivesse feito e traçar outro melhor. Que está pensando fazer?
John Thomas empalideceu e respondeu lentamente.
- Bem... em pensava em ficar aqui por mais umas duas noites até encontrar um lugar seguro.
Ela balançou a cabeça.
- Não serve. À sua torpe maneira oficial, terão chegado a conclusão de que você se dirigirá para cá, uma vez que é o único lugar próximo de Westville onde se pode esconder uma criatura do tamanho de Lummox. E além disto...
- Oh, mas nós saímos da estrada!
- Eu sei disto. E eles logo estarão procurando neste bosque, árvore por árvore. Estão disposto a fazê-lo, amiguinho.
- Você não me deixou terminar. Conhece aquela velha mina de urânio? A Glória e Energia? Temos que flanquear o passo do Lobo Morto e continuar para o norte por uma estrada de cascalho. É para aí que nos dirigimos. Nessa mina eu poderei esconder Lummox completamente, pois a galeria principal é muito espaçosa.
- Nisso já há um sinal de sentido. Mas ainda não resolve de todo o atoleiro em que está metido.
A jovem permaneceu silenciosa. Johnnie agitou-se com desgosto e disse:
- Bom, se isto não serve, o que faremos?
- Faca calado, estou pensando. permaneceu silenciosa e quieta, contemplando o
profundo céu azul da montanha. Daí a pouco disse: Não resolveremos nada fugindo deste jeito.
- Não... mas assim eu dificulto mais as coisas para eles.
- Sim, e consideravelmente. De vez em quando teremos que revolver tudo, assim entra luz e ar. Mas agora o que temos que fazer é tentar fazer com que as peças se ajustem como nós queremos. Para conseguir isto, temos que ganhar tempo. Tua ideia sobre esta mina não é má de todo, mas servirá até que encontremos alguma coisa melhor.
- Acho muito difícil que nos descubram ali. É um lugar completamente solitário e afastado. Não se pode pedir nada melhor.
- E, por esta mesma razão, você pode estar certo de que os procurarão ali. Para começar, isto poderia enganar o diácono Dreiser, pois ele seria incapaz de encontrar seu próprio chapéu sem ter um mandato judicial. Mas ele formou uma força aérea do tamanho de um pequeno exército. Um dos seus esbirros terminará encontrando-te. Eu fiz isto porque sei onde te aperta o sapato, mas eles o farão guiando-se pela lógica, o que é mais lento, mas igualmente seguro. Eles te encontrarão... e isto será o fim de Lummox. Agora eles não correrão riscos desnecessários e provavelmente lançarão bombas contra ele.
John Thomas considerou aquela triste perspectiva.
- Então, o que conseguimos ocultando-o na mina?
- Ganhamos um dia ou dois, porque eu ainda não posso tirá-lo daqui.
- Hein?
- Naturalmente. Depois nós o esconderemos na cidade.
- Como? Minha Bela Adormecida, acho que você está com o mal das montanhas.
- Na cidade é em um local seguro, porque ali é o único lugar em todo mundo onde não o procurarão. e acrescentou: Talvez nas estufas do senhor Ito.
- Que está dizendo? Agora estou certo de que está ficando doida.
- Pode indicar um lugar mais seguro? O filho do senhor Ito é um homem razoável. Ontem mesmo estive falando com ele, e ele mostrou-se muito sensato. Uma das suas estufas seria um esconderijo perfeito, cômodo e muito bem abrigado. Não se pode ver através do vidro esmerilhado com que são construídos, e ninguém sonhariam nem de longe que Lummox estaria ali dentro.
- Não entendo como conseguirá isto.
- Deixe que eu resolvo. Se não conseguir a estufa... mas eu conseguirei, então encontrarei um armazém vazio ou alguma outra coisa parecida. Esta noite levaremos Lummie para a mina, depois eu voltarei voando e prepararei as coisas. Amanhã à noite, Lummie e eu voltaremos para a cidade e...
- Não pode ser. Nós demoramos duas noites para chegar aqui e ainda teremos que caminhar esta noite toda para chegar à mina. Você não conseguirá levá-lo à cidade em apenas uma noite.
- A que velocidade ele pode ir?
- Ele corre bastante, mas ninguém pode ir montado quando ele vai a galope. Nem mesmo eu.
- Eu não montarei nele, e sim voarei sobre ele, dirigindo-o e fazendo diminuir a velocidade nas curvas. Isso levará umas três horas, talvez? E temos que contar com uma hora a mais para levá-lo às escondidas para a estufa e escondê-lo ali.
- Bem... talvez dê certo.
- Dará sim, tem que dar. Então, você não se deixe prender.
- Como? Eu não voltarei para casa?
- Não. Isto nos delataria. Se o prenderem, você diz que estava fazendo uma simples prospecção de amador em busca de urânio. Eu lhe trarei um contador para as radiações. Que não sabe onde Lummox está e que lhe deu um beijo de despedida e o deixou em liberdade e veio para cá com a finalidade de esquecer seus pesares. Tem que se mostrar convincente. E não permita que usem o detector de mentiras.
- Sim, mas... escute, Bela Adormecida, de que vai servir isto? Lummox não pode ficar encerrado para sempre na estufa.
- Só estamos ganhando tempo. Eles estão dispostos a matá-lo assim que o virem e o farão. Desta forma, nós o manteremos invisível, até que possamos mudar a situação.
- Não sei como vamos conseguir mudá-la disse Johnnie, com voz compungida.
- Não desanime tão rápido, cabeça dura. Olha, lembra da "Decisão do Cisne?"
- A decisão do cisne? Nós demos isto em Costumes das Civilizações, no grau elementar.
- Sim. Repita-a.
- Que significa isto? Aonde está querendo parar? John Thomas franziu o cenho e rebuscou na sua memória. "Os seres que possuem fala e movimento devem ser considerados como inteligentes e portanto, possuirão direitos humanos inatos, a menos que se demonstre o contrário de maneira conclusiva." endireitou-se. Arrá! Eles não podem matar Lummox... ele tem mãos!
11 É TARDE DEMAIS, JOHNNIE
- Freia teu entusiasmo preveniu Betty. Conhece o caso daquele homem ao qual seu advogado assegurou que não podiam encarcerá-lo por aquilo?
- Que aquilo?
- É nisso que dá! Seu cliente respondeu: "Mas, senhor advogado, eu estou lhe falando da prisão". O que eu estou querendo dizer, é que a "A decisão do cisne" não é nada mais que teoria. Temos de manter Lummox escondido até que o tribunal mude seu parecer.
- Sim, acho que tem razão.
- Eu sempre tenho admitiu Betty com um gesto de dignidade. Johnnie, estou morrendo de sede e só pensar nisto me deixa a garganta seca. Tens água do riacho?
- Bem... não.
- Você não trouxe um balde?
- Sim, mas não sei onde coloquei procurou nos bolsos, encontrou e tirou-o. Então começou a inflá-lo até que adquiriu uma certa rigidez, e então disse: Vou buscar água.
- Não, eu vou. Preciso esticar as pernas.
- Cuidado com os que voam!
- Menino, não queira ensinar a uma vovozinha.
Desceu pela ladeira com o balde na mão, ocultando-se entre as árvores, até chegar na margem do riacho. Johnnie viu como sua esbelta figura recebia fartamente a luz que penetrava por entre os ramos dos pinheiros, como se fossem os vitrais de uma catedral, e pensou que ela era muito bonita... e seu cérebro era quase tão bom como o de um homem. Pondo à parte que ela gostava de mandar, como quase todas as mulheres, sua Bela Adormecida era encantadora.
Quando ela voltou, ele lhe disse:
- Você sabe, Betty, que se não fosse cangalha seria muito bonita?
- Quem é cangalha?
- E além disso, seu rosto... prosseguiu risonho. Com exceção dessas... duas imperfeições, você é....
Não conseguiu terminar... ela abaixou-se e lhe deu uma pancada. Johnnie estava bebendo e a água derramou-se sobre sua cabeça. A luta continuou até que ele conseguiu prender seu braço direito e dobrá-lo nas costas, impedindo-lhe todo o movimento.
- Diga: eu me rendo ordenou.
- Você me pagará, Johnnie Stuart.
- Diga.
- Está bem. Eu me rendo. Agora me solte.
- Está certo, vou soltar.
Johnnie levantou-se. Ela girou até ficar sentada, olhou para ele e começou a rir. Ambos estavam sujos, cheios e arranhões e contusões, mas se sentiam maravilhosamente bem. Lummox contemplou a luta simulada com interesse, mas sem se alarmar, uma vez que ele sabia que Johnnie e Betty nunca brigavam de verdade. Seu único comentário foi:
- Johnnie está todo molhado.
- É, Lummie.. ele está encharcado até os ossos. Deveríamos pendurá-lo em uma árvore para secar.
- Estarei seco em cinco minutos, com esse sol tão quente.
- Estás parecendo uma galinha molhada, Johnnie.
- Não me importo com isso Deitando-se no chão, pegou uma agulha de pinheiro e ficou mordiscando. Bela Adormecida, este lugar é encantador. Gostaria de ficar aqui e não ir para a mina.
Se você quiser, quando tivermos resolvido este problema e antes das aulas começarem, voltaremos para passar uns dias aqui. Traremos Lummox, claro. Gostaria disso, Lummie?
- Muito disse Lummox. Procurarei coisas. Atirarei pedras. Divertido. John Thomas olhou-a com reprovação.
- E provocaríamos comentários na cidade toda. Não, obrigado.
- Não sejas melindroso. Nós não estamos aqui agora?
- Mas trata-se de uma situação de emergência.
- Tu e tua reputação inatacável.
- Claro, alguém tem que pensar nessas coisas. Mamãe disse que os garotos deveriam se preocupar com isto quando as garotas deixam de fazê-lo. Disse que antigamente as coisas eram diferentes.
- Claro que eram... e voltarão a ser. É um programa que se repete várias vezes parecia pensativa. Johnnie, eu acho que você presta muita atenção a tudo que sua mãe diz.
- É possível, admitiu ele.
- Seria melhor se você pensasse por sua conta. Do contrário, nenhuma garota se arriscará a casar-se contigo.
Ele sorriu.
- Esta é minha apólice de seguro. Ela baixou os olhos e corou.
- Não falava de mim! Eu não lhe amo... apenas cuido de você para praticar. O rapaz resolveu que era melhor não prosseguir naquele caminho.
- Sinceramente disse, o certo é que uma pessoa se acostuma a agir de uma determinada maneira, e depois fica difícil mudar. Por exemplo, eu tenho uma tia... tia Tessie, lembra dela? Que acredita em astrologia.
- Não acredito!
- É verdade. Parece estar em seu juízo perfeito, não é verdade? Pois na verdade é doida e é muito irritante porque sempre se empenha em falar da sua mania, e mamãe insiste que eu tenho que me mostrar cortês com ela e escutá-la. Se me deixassem dizer-lhe que ela está mais louca que uma cabra, eu não me importaria em suportar suas manias. Mas não! Tenho que escutar e tratá-la como uma pessoa super sensata e responsável... quando na verdade não é capaz de contar até dez sem a ajuda de um ábaco.
- Um ábaco?
- Você sabe... um quadro com bolinhas móveis para ensinar a contar. Eu disse ábaco, porque ela seria incapaz de aprender a manejar uma calculadora. Ela gosta de ter um cérebro imperfeito, e eu tenho que incentivar esse desejo.
- Não faça isto disse Betty de imediato. Não preste atenção ao que sua mãe
diz.
- Bela Adormecida, você é uma influência subversiva.
- Sinto muito, Johnnie respondeu ela mansamente, acrescentando: Eu nunca lhe contei porque deixei meus pais?
- Não, nunca. É uma questão da sua vida privada.
- Com efeito. Mas eu vou contar, porque você poderá me compreender. Venha aqui.
Pegando-o por uma orelha, sussurrou-lhe algo.
- Não é possível!
- Mas é. Eles nunca tentaram refutar, e portanto nunca tive que contar a ninguém Mas foi assim
- Não compreendo como você pôde suportá-lo.
- Não suportei. Me apresentei ante um tribunal e pedi a emancipação. Quando a obtive, me nomearam um tutor que não tem essas ideias absurdas. Mas olha, Johnnie, eu não desnudei minha alma somente para você ficar de boca aberta. A herança não é tudo; eu sou eu, um indivíduo diferente. Você não é seus pais. Não é seu pai nem sua mãe. Mas demorou muito tempo em dar-se conta disto endireitou-se. Então seja você mesmo, cabeça dura, e tenha a coragem de arruinar sua própria vida sem imitar os erros dos outros.
- Bela Adormecida, quando você diz essas coisas, faz com que pareçam racionais.
- Isso é porque eu sempre sou racional. Você trouxe muitas provisões? Estou com fome.
- Está parecendo Lummox. Aqui está a mochila.
- Vamos comer? inquiriu Lummox, ao ouvir seu nome.
- Ouve Betty, não quero que ele comece a derrubar árvores em pleno dia. Quanto tempo você acha que eles demorarão para descobrir-nos?
- Não acho que consigam em menos de três dias, a região é enorme.
- Bem... Guardarei comida para cinco, como prevenção.
Escolheu uma dúzia de latas de conserva e deu-as a Lummox sem abri-las, pois ele gostava que as latas esquentasse de repente quando lhes fincava os dentes. Lummox engoliu-as antes que Betty tivesse tempo de abrir as latas para eles.
Depois de comer, Johnnie abordou o tema novamente.
- Betty, você acha de verdade que... interrompeu-se subitamente Ouviu? Ela escutou, e então assentiu solenemente.
- A que velocidade?
- Não mais de trezentos quilômetros. Ele concordou por sua vez.
- Estão explorando. Lummox! Não mova nem um músculo!
- Não moverei, Johnnie. Mas porque não posso mover nem um músculo?
- Faz isso e verás.
- Não fique excitado advertiu-o Betty. Provavelmente estão estendendo a rede de busca. Existe a probabilidade de que não possam identificar-nos nem na tela nem a olho nu, pois estas árvores deformam a imagem mas parecia preocupada. Seria bom se Lummox já estivesse na galeria da mina. Se alguém for suficientemente esperto para percorrer a estrada, onde estamos esta noite, com um detector seletivo...
John Thomas, na realidade não a escutava. Estava inclinado para a frente, com as mãos atrás das orelhas.
- Silêncio! sussurrou. Betty... eles estão voltando!
- Não se assuste. Provavelmente é o outro lado da grade de busca.
Mas, mesmo enquanto dizia isto, sabia que estava equivocada. Aquele som foi se
aproximando, pairou sobre eles e depois decresceu em intensidade. Olhavam para cima, mas a espessura do bosque e altura em que se achava o aparelho os impediram de ver alguma coisa.
Imediatamente brilhou um resplendor tão forte, que a luz do sol ficou apagada quando passou.
Betty engoliu em seco.
- Que é isto?
- Fotografia com ultra-flash respondeu ele secamente. Estão comprovando o que descobriram com a televisão.
O som que se ouvia sobre suas cabeças aumentou de intensidade, para decrescer logo em seguida; houve um novo relâmpago cegante.
- Agora estão usando estéreo anunciou Johnnie solenemente. Agora eles estão nos vendo de verdade. Suas suspeitas transformaram-se em certeza.
- Johnnie, temos que tirar Lummox daqui!
- Como? Levando-o para a estrada para que façam papa dele com as bombas? Não, amorzinho, nossa única esperança é que eles achem que se trata de uma enorme rocha... Estou contente de tê-lo obrigado a ficar quieto e escolhido e acrescentou: Nós também não devemos nos mover. Talvez eles vão embora.
Mas nem mesmo essa esperança se realizou. Um após o outro, ouviram-se quatro aparelhos mais. Johnnie os contava nos dedos.
- Este posicionou-se ao sul. O terceiro está indo para o norte, acho. Agora estão convergindo para o oeste... É a manobra do molinete. Eles nos têm cercados, Bela Adormecida...
Ela o olhou, com seu belo semblante mortalmente pálido.
- Que podemos fazer? perguntou.
- Na verdade, nada.. Não, olha Betty. Você desce, ocultando-se entre as árvores, até o riacho. Leve o helicóptero. Então siga pela torrente durante um bom trecho e empreenda o voo. Fique abaixada até que esteja fora da sombra. Eles a deixarão escapar... não se interessam por você.
- E o que você fará enquanto isto?
- Eu? Eu fico aqui.
- Se você fica eu também fico. John disse com displicência:
- Não me crie mais dificuldades. Vá embora.
- Mas o que você acha que pode fazer? Nem sequer tem uma arma.
- Tenho esta respondeu John Thomas sombriamente, tocando sua faca de caça, - e Lummox sabe atirar pedras.
Ela ficou olhando para ele, para então romper em uma gargalhada incontida.
- O que você disse? Pedras? Oh, Johnnie...!
- Eles não nos pegarão sem luta. Agora faça o favor de ir embora... e rápido. Se você ficar aqui não será nada mais que um estorvo.
- Não.
- Olha, Betty, agora não tenho tempo para discutir. Você vai e assunto encerrado.
Eu fico com Lummox, este é meu privilégio. Lummox é meu.
Ela caiu no choro.
- E você é meu, seu pedaço de idiota.
Ele tentou responder mas não conseguiu. Seu rosto começou a contrair-se, com os espasmódicos movimentos do homem que contém as lágrimas. Lummox agitava-se inquieto.
- Que está acontecendo, Johnnie? disse, com sua voz de menininha.
- Hein? respondeu John Thomas com voz afogada. Nada endireitou-se e deu palmadinhas carinhosas no seu mascote. Absolutamente nada, amigo, Johnnie está aqui com você. Está tudo bem.
- Está tudo bem, Johnnie?
- Sim assentiu Betty debilmente. Está tudo bem, Lummie. e acrescentou em voz baixa, dirigindo-se a John Thomas: Será rápido, não é verdade, Johnnie. Espero que não sintamos nada.
- Acho que será assim... Eh! Sem falar que em menos de meio segundo lhe darei um bom empurrão... e depois a jogarei pela margem do riacho. Acho que isto a protegerá da explosão.
Ela balançou a cabeça lentamente, sem ira nem temor.
- É muito tarde, Johnnie. E você sabe muito bem. Não ralhe comigo, somente me dê sua mão.
- Mas... e ele se interrompeu. Está ouvindo isto?
- Chegaram mais.
- Sim. Provavelmente estão trazendo um octógono, para se assegurarem de que não possamos escapar.
Um trovão repentino encobriu a resposta. Foi seguido pelo uivo agudo de uma nave que pairava sobre eles, mas desta vez puderam vê-la a menos de trezentos metros sobre suas cabeças. Então uma voz autoritária retumbou no céu:
- Stuart! John Stuart! Saia do seu esconderijo!
Johnnie desembainhou sua faca de caça, levantou a cabeça e gritou:
- Venha me buscar se puder!
Betty olhou para ele com o rosto radiante e acariciou lhe o braço.
- Muito bem, Johnnie! É assim que eu gosto de te ver.
Os homens que se ocultavam atrás daquela gigantesca voz pareciam ter um microfone direcional focado para ele, pois lhe responderam:
- Não queremos prendê-lo nem causar dano a ninguém Saia para que possamos vê-lo.
- Não sairemos.
A voz atroadora prosseguiu:
- Última advertência, John Stuart. Saia com as mãos vazias. Enviaremos um aparelho para recolhê-lo.
John Thomas gritou:
- Enviem e o faremos em pedaços! acrescentou com voz rouca e dirigindo-se a Lummox: Já recolheu algumas pedras, Lummox?
- Como? Claro! Agora, Johnnie?
- Ainda não. Eu avisarei.
A voz permaneceu em silêncio e nenhum aparelho baixou à terra. Em lugar disto, outra nave, que não era a do comandante, deixou-se cair rapidamente, pairando a uns trinta metros sobre os abetos e aproximando-se à mesma distância lateral deles. Iniciou então um lento voo circular, quase se arrastando sobre as copas das árvores.
Imediatamente ouviu-se um ruído como de alguma coisa que cai e então rangido e um gigante do bosque caiu pesadamente ao solo. Outro seguiu-o quase em seguida. Como uma grande mão invisível, um machado estranho que surgia da nave aérea derrubava as árvores e a separava para o lado. Lentamente, foi limpando uma ampla zona circular em torno deles como se estivessem tentando conter um incêndio.
- Por que estão fazendo isto? sussurrou Betty.
- É um aparelho do serviço florestal. Estão nos isolando.
- Mas, por que? Por que não nos atacam e terminam com isto de uma vez? Come-
çou a tremer e ele a abraçou, protetor.
- Ignoro, Bela Adormecida. Eles estão se aproximando.
O aparelho fechou o círculo e então defrontou-se com eles e pareceu agachar-se. Com o delicado cuidado de um dentista arrancando um molar, o condutor aproximou-se, escolheu uma árvore, arrancou-a do solo e pôs de lado. Então escolheu outra... e outra mais. Gradualmente, foi abrindo um largo caminho através do bosque, em direção ao local onde estavam.
Eles não podiam fazer outra coisa senão esperar. A nave do guarda florestal arrancou a última árvore que os ocultava e o campo de energia os roçou mesmo estando distante, fazendo com que tremessem e provocando em Lummox um chiado de terror. John Thomas conseguiu dominar-se e deu umas palmadinhas carinhosas no costado da besta.
- Fica tranquilo, rapaz. Johnnie está contigo.
O aparelho madeireiro retirou-se e uma nave de combate ocupou seu lugar. Desceu subitamente, aterrizando na extremidade do corredor. Johnnie engoliu em seco e disse:
- Agora, Lummox. Procure acertar tudo que saia dessa nave.
- O que você aposta, Johnnie?
Lummox começou a reunir munições com as duas mãos.
Mas nunca chegou a jogar as pedras. John Thomas sentiu como se estivesse afundado em cimento fresco até o pescoço; Betty estava ofegante e Lummox gritava. Então disse com sua voz de menininha:
- Johnnie! As pedras estão pregadas no chão! John Thomas tratou de dizer:
- Está bem, rapaz. Não lute. Betty, você está bem?
- Apenas não posso respirar! disse ela, ofegante.
- Não podemos lutar. Eles nos prenderam.
Oito figuras saíram pela porta da nave. Seu aspecto não tinha nada de humano, pois estavam cobertos da cabeça aos pés com uma pesada armadura de metal. Cada um deles tinha um elmo parecido com uma máscara de esgrima, e levavam nas costas antigeradores de campanha. Avançavam confiadamente e a passo rápido, em fila dupla, pela passagem aberta entre as árvores. Quando ali chegaram, diminuíram ligeiramente a marcha, saltaram chispas e eles ficaram rodeados de um nimbo violeta. Mas continuaram avançando.
Quatro deles transportavam um grande cilindro de tela metálica, alto como um homem e de largura correspondente. Balançavam-no facilmente no ar. O homem que estava na frente gritou:
- Não se aproximem da besta. Primeiro pegaremos os garotos, e depois nos ocuparemos dela.
Sua voz parecia bastante alegre e risonha.
O destacamento aproximou-se deles, rodeando para evitar Lummox.
- Cuidado! Peguem-nos ordenou o chefe.
A jaula em forma de tonel foi colocada sobre Betty e John Thomas, baixando lentamente até que o homem que dava as ordens colocou a mão no seu interior e acionou um interruptor... Então começou a soltar fagulhas e pousou no solo.
O chefe olhou-os com um sorriso em seu rosto congestionado.
- Estamos melhor sem a raiva, não é verdade?
Johnnie fulminou-o com o olhar enquanto seu queixo tremia, e fez um juramento, enquanto esfregava as pernas paralisadas
- Vamos, vamos! respondeu o oficial sem animosidade. Não fique assim. Vocês
nos obrigaram a isto deu uma olhada em Lummox. Meu bom Deus! Que bicho enorme. Não gostaria de encontrá-lo desarmado em um beco escuro.
Johnnie deu-se conta de que as lágrimas corriam pelo seu rosto, sem que pudesse evitar.
- Vamos, homem! gritou com voz entrecortada. O que está esperando? Acabem logo com isto de uma vez!
- Hein?
- Ele nunca causou dano a ninguém! Então matem-no rapidamente e não o façam sofrer, não façam jogo de gato e rato com ele.
O oficial parecia estar com pena.
- De que está falando, filho? Nós não viemos para causar-lhe dano. Temos ordens de levá-lo sem nem um arranhão, mesmo que para isto tenhamos que perder algum homem. Nunca antes tive que cumprir uma ordem mais descabelada.
12 LUMMOX IMPÕE CONDIÇÕES
Henry Kiku nunca tinha se sentido melhor. A úlcera não o atormentava, e nem sequer desejava folhear os folhetos sobre a África. A Conferência Tripartite deslizava sobre rodas e os delegados marcianos começavam a entrar em acordo. Ignorando as diversas luzes âmbar que pediam sua atenção, começou a cantar:
Frankie e Johnnie eram amantes... Oh, como se amavam, jurando fidelidade eterna..."
Tinha uma boa voz de barítono, mas lamentavelmente era desafinado.
O melhor de tudo era que aquele desagradável e confuso assunto hroshiano podia dar-se por concluído e não havia vítimas. O bom professor Ftaeml parecia acreditar que ainda existia a possibilidade de estabelecer relações diplomáticas, tal era o contentamento dos Hroshii ao recuperar sua Hroshia perdida.
Era indispensável estabelecer relações diplomáticas com uma raça tão poderosa como a dos Hroshii. Tinham que ser aliados, embora isso ainda pudesse demorar um certo tempo. Talvez não muito tempo, pensou, a reação dos Hroshii ao ver Lummox havia sido extraordinária, quase idólatra.
Ao refletir sobre o acontecimento, compreendeu que não era difícil ver o que os tinha confundido. Quem teria pensado que um ser quase tão grande como uma casa, e de mais de cem anos de idade, pudesse ser somente um bebê? Ou que aquelas raça somente adquiria mãos quando chegava a idade de usá-las? Além disso, por que aquela Hroshia tinha um tamanho muito superior aos seus semelhantes? Seu tamanho enganou Greenberg e a ele mesmo, quase tanto como tudo o mais. Faria com que os xenólogos se ocupassem desse estudo.
Mas isto não importava agora. Lummox estava a caminho da nave hroshiana e o perigo havia sido conjurado. Teriam realmente podido volatilizar a Terra? Era melhor não ter sido preciso comprovar. Como dizia o velho Shakespeare, para um bom fim não existe um mau começo. E continuou andando.
Ainda estava cantando quando a luz de "urgente" começou a brilhar e ele cantou os últimos versos bem no nariz de Greenberg: "e... tão certo como as estrelas que nos olham...! E acrescentou:
- Sergei, você tem voz de tenor?
- Que importa isso, chefe? De qualquer modo você canta desentoado.
- O que acontece é que você é exigente. Que quer, filho? Eles já partiram?
- Veja chefe, surgiu uma pequena dificuldade. Tenho o doutor Ftaeml comigo. Podemos vê-lo?
- De que se trata?
- Nós diremos quando estivermos a sós. Em uma das salas de conferência?
- Venham ao meu gabinete disse Kiku sisudo. Cortou a comunicação e, abrindo uma gaveta, tirou uma pílula e engoliu.
Greenberg e o medusoide chegaram logo em seguida. Greenberg deixou-se cair em uma cadeira como se estivesse exausto, tirou um cigarro, procurou fósforos em seus bolsos e desistiu. Kiku cumprimentou Ftaeml cerimoniosamente e então perguntou a Greenberg:
- Que está acontecendo, Sergei?
- Lummox não quer ir embora.
- Como?
- Ele se nega a partir. Os outros Hroshii não param de ir de um lado para outro, como formigas doidas. Fiz com que levantassem barricadas e bloqueassem a zona do espaçoporto onde está a nave. Temos que fazer alguma coisa.
- Por que? O ocorrido é surpreendente, mas não consigo ver por que seríamos nós os responsáveis por isto. Por que ele se nega a embarcar?
- Verá...
Greenberg olhou para Ftaeml desamparado. O rargiliano disse suavemente:
- Permita-me que lhe explique, senhor. A Hroshia nega-se a embarcar sem seu mascote.
- Seu mascote?
- O garoto, chefe. John Thomas Stuart.
- Exatamente assentiu Ftaeml. A Hroshia afirma que vem criando John Thomas há muito tempo e nega-se a voltar para casa, a menos que lhe deixem levar o seu John Thomas atual. Mostra-se imperiosa a este respeito.
- Compreendo disse Kiku. Falando em termos vulgares, o garoto e a Hroshia estão apegados. Mas Lummox terá que resignar-se à separação, tal como fez John Thomas. Se bem me lembro, ele armou um alvoroço enorme mas o obrigamos a se calar e o enviamos para casa. Isto é o que se tem que fazer com a Hroshia: dizer-lhe que se cale e obrigá-la, se necessário, a subir a bordo da sua nave e enviá-la para seu planeta. Para isto vieram seus compatriotas.
O rargiliano respondeu:
- Permita-me que lhe diga, senhor, que ao traduzir a "termos vulgares", você alterou o sentido da frase. Eu discuti esta questão com ela na sua própria língua.
- O que? Como ela pôde aprender tão depressa?
- Ela sabe há muito tempo. Os Hroshii, senhor subsecretário, sabem sua própria língua quase desde a casca. Alguém poderia aventurar-se a afirmar que este uso da linguagem quase em um nível instintivo é talvez a única razão de que achem tão difíceis as outras línguas e nunca cheguem a aprendê-las bem. A Hroshia fala a língua de vocês como um menino de quatro anos, embora, segundo acredito, tenha começado a aprende-la há duas gerações. Mas em seu próprio idioma, ela fala com fluidez e soltura, segundo eu pude apreciar, infelizmente.
- Ah, sim? Pois deixemos que fale. As palavras não causam danos.
- Ela falou... e ordenou ao comandante da expedição que recupere imediatamente seu mascote. Do contrário, afirma, ficará aqui para continuar criando outros John Thomas.
- E acrescentou Greenberg, o comandante nos entregou um ultimatum no qual nos ordena que entreguemos John Thomas imediatamente, ou pelo contrário...
- "Ou pelo contrário" significa o que imagino que seja? disse lentamente Kiku.
- Exatamente respondeu Greenberg pura e simplesmente. Depois de ter visto sua nave, não estou muito certo de que não possam fazê-lo.
- Tente compreender, senhor acrescentou seriamente Ftaeml, que o comandante lamenta tanto como nós. Mas ele tem que cumprir os menores desejos da Hroshia Esta combinação foi acordada há mais de dois mil anos dos seus e eles não desistirão com tanta facilidade. Não pode permitir que ela fique... nem tampouco pode
obrigá-la a ir contra sua vontade. Acredite-me, ele está consternado.
- E não estamos todos? disse Kiku, tomando mais duas pílulas. Doutor Ftaeml, vou lhe passar uma mensagem para seus chefes. Rogo-lhe que a traduza fielmente.
- Assim o farei, senhor.
- Diga-lhes que rechaçamos com desprezo seu ultimatum. Que...
- Senhor, eu lhe rogo...!
- Atenda. Diga-lhes assim mesmo, sem mudar um ponto ou uma vírgula. Diga-lhes que fizemos tudo quanto pudemos para ajudá-los, para conseguir finalmente, e que eles responderam as nossas atenções com ameaças. Que sua conduta é imprópria de seres civilizados e que lhes retiramos nosso convite para ingressar na Comunidade das Civilizações. Diga-lhes que cuspo-lhes na cara... ou procure uma frase igualmente forte. E que preferimos morrer de pé a viver de joelhos.
Greenberg mostrava um amplo sorriso no rosto e juntou as mãos em um velho sinal de aprovação. O doutor Ftaeml pareceu empalidecer sob sua pele quitinosa.
- Senhor disse, lamento profundamente ver-me obrigado a comunicar tal mensagem.
Kiku franziu seus lábios com um sorriso gélido.
- Diga-lhes tal como eu lhe disse. Mas, antes de fazê-lo, veja se consegue achar um jeito de falar a sós com a Hroshia Lummox. Poderá consegui-lo?
- Com toda certeza, senhor.
- Diga-lhe que o comandante da expedição, levado pelo seu excesso de zelo, parece disposto a matar o ser humano, John Thomas Stuart. Tente fazê-la compreender claramente quem é o ameaçado.
O rargiliano pôs na boca um largo sorriso.
- Perdoe-me, senhor; eu não o apreciava pelo que vale. Ambas as mensagens serão entregues na ordem correspondente.
- Isto é tudo.
- Espero que fique bem, senhor e voltando-se para Greenberg, o rargiliano abraçou seus ombros com um dos seus braços de articulações livres. Irmão Sergei, me parece que encontramos o caminho para sairmos de um atoleiro. Agora, com a ajuda do seu pai espiritual, acharemos a saída de outro, não?
- Assim espero, doutor. Ftaeml partiu.
Kiku voltou-se para Greenberg e disse: Faça vir o garoto Stuart. Vá buscá-lo pessoalmente e traga-o sem perda de tempo. Isso... traga sua mãe também. O garoto é menor de idade, não é verdade?
- Sim. Qual é seu plano, chefe? Não vai entregá-lo aos Hroshii depois da magnífica repreensão que lhes passou.
- Claro que sim. Mas quem imporá as condições serei eu. Não tenho intenção de deixar que essas mesas de bilhar animadas achem que podem governar-nos ao seu bel prazer. Usaremos esta base para conseguir com que façam o que queremos. Agora, vá andando!
- Já estou indo.
Kiku continuou sentado na sua mesa, despachando os assuntos de trâmite distraidamente, enquanto seu subconsciente continuava ocupado com o problema de Lummox. Tinha o pressentimento de que se aproximavam momentos difíceis... para os humanos. Tinha que prevenir-se contra o temporal iminente. Estava concentrado em seus pensamentos, quando a porta se abriu e Roy MacClure entrou no lugar:
- Ah, aqui está você, Henry!
Kiku começou a fazer um relatório completo sobre a nova crise Hroshii e MacClure
escutava sem fazer comentários. Kiku terminou contando-lhe de que modo havia rechaçado o ultimatum
Ele voltou-se para Kiku e resmungou:
- Henry, você voltou a me deixar por um fio. Não tenho mais alternativa, senão seguir seu jogo novamente.
- Posso perguntar o que você teria feito?
- Eu? MacClure franziu o cenho. Homem, eu teria dito exatamente a mesma coisa que você, acho... mas em termos ainda mais duros. Admito que provavelmente não teria pensado em criar uma cisão interna aproveitando-me desse Lummox. Isto foi muito hábil.
- Compreendo, senhor ministro. Tratando-se de rechaçar um ultimatum formal, que ação defensiva você teria empreendido? Devo acrescentar que eu queria evitar que o Conselho tivesse que avisar as estações de combate de todo o planeta para que ficassem prevenidas.
- Do que você está falando? Nada disso teria sido necessário. Eu teria ordenado à Guarda Metropolitana que os expulsasse, sob minha responsabilidade. Além de tudo, eles estão em nossa zona interior de segurança e estão proferindo ameaças... Trataria-se apenas de uma simples ação policial.
"Isso pensou Kiku é o que eu supunha que você faria." Mas o que disse foi:
- Suponha que não conseguissem expulsar a nave... e que esta voltasse.
- Que disse? Isto é um absurdo!
- Senhor ministro, a única coisa que aprendi em quarenta anos realizando este trabalho, é que quando alguém enfrenta alguma coisa de "lá de fora", nada é bastante absurdo.
- Bom, concordo que... Henry, você está convencido de que eles poderiam causar-nos danos. Estava assustado. examinou o rosto de Kiku. Está me escondendo alguma coisa? Tem provas de que podem cumprir com sua absurda ameaça?
- Não senhor.
- Então?
- Senhor MacClure, no meu pais, há pouco mais de trezentos anos, vivia uma tribo muito valente. Um pequeno grupo de europeus armados lhes fizeram certas exigências... queriam cobrar-lhes impostos, como eles diziam. O chefe era um homem valente e seus guerreiros eram numerosos e treinados. Sabiam que os estrangeiros tinham armas de fogo, mas eles também possuíam algumas. Confiavam principalmente em seu número e seu valor. Traçaram um plano astuto e armaram uma emboscada ao inimigo em um desfiladeiro. Estavam certos do seu triunfo.
- Ah, sim?
- Nunca tinham ouvido falar de metralhadoras. Inteiraram-se da sua existência à custa das suas próprias vidas, porque eram muito aguerridos e avançavam em ondas. Aquela tribo já não mais existe. Foi apagada do mapa.
- Se está tentando me assustar... Bem, dá no mesmo. Mas ainda não me mostrou essas provas. Além de tudo, nós não somos uma tribo de selvagens ignorantes. Não existe paralelo possível.
- Talvez não, mas a metralhadora daquela época era somente uma pequena melhoria do fuzil ordinário. Agora nós possuímos armas ao lado das quais a metralhadora parece um canivete. E ainda assim...
- Você parece querer sugerir que esses "hoorussianos" possuem armas que transformariam nosso últimos modelos em algo tão inútil como um garrote. Francamente, não quero acreditar nisto e não acredito. A energia que se oculta no átomo é a última energia possível de se achar no universo. Você sabe disto e eu também. E nós dispomos dessa energia. Não duvido que eles a possuem também, mas nós somos superiores em número, em muitos milhões, e além disso estamos em nosso planeta, em nossa casa.
- Assim raciocinava o chefe da tribo.
- Bem, mas não é a mesma coisa.
- Nunca nada é a mesma coisa duas vezes respondeu Kiku, cansado. Não estou tentando imaginar armas mágicas que ultrapassem o que podem conceber nossos físicos; eu me perguntava somente que melhorias poderiam ser introduzidas em uma arma já conhecida; alguma nova peça que já se encontra implícita na teoria. Não, sei, claro. Não entendo nada dessas coisas.
- Em também não, mas pessoas entendidas me asseguraram que... Olha, Henry, vou ordenar que seja levada a cabo esta ação policial imediatamente.
- Muito bem, senhor ministro.
- Não fique aí com essa cara, dizendo "muito bem, senhor ministro". Você não sabe nada, não é verdade? Então, por que não posso fazê-lo?
- Não lhe faço objeção alguma, senhor. Quer um circuito secreto? Ou quer que eu faça comparecer aqui ao comandante da base?
- Henry, você é, sem dúvida alguma, o homem mais irritante dos dezessete planetas. Eu lhe perguntei por que não posso fazê-lo.
- Não vejo razão alguma, senhor. Posso dizer somente porque lhe recomendei que não o fizesse.
- E então?
- Porque eu não sabia nada. Porque me baseava somente nos temores de um de um ser não-humano que talvez fosse ainda mais tímido que eu, ou que estava desorientado pelo que poderia se chamar de terror supersticioso. Uma vez que eu não sabia de nada, não me atrevi a jogar na roleta com nosso planeta como aposta. Preferi lutar com a dialética por tanto tempo quanto fosse possível.. Quer que dê essa ordem, senhor? Ou que me encarregue dos detalhes?
- Deixe de me aborrecer olhou para seu subsecretário com o rosto congestionado. Suponho que sua próxima ação será ameaçar-me com demissão.
Kiku sorriu entredentes.
- Senhor MacClure, não tenho por costume apresentar duas vezes um pedido de demissão em um mesmo dia. e acrescentou: Não esperarei até que seja levada a cabo a ação policial. Após isto, se ainda estivermos vivos, ficará demonstrado que me equivoquei em um assunto importante. Então minha demissão será absolutamente lógica e necessária. Posso acrescentar, senhor ministro, que espero que tenha razão? Preferiria muito mais chegar à velhice sem dissabores, que ver minha memória reivindicada a título póstumo.
MacClure moveu a boca, mas não falou. Kiku continuou tranquilamente:
- Me permite o senhor ministro que lhe faça uma sugestão de caráter estritamente oficial?
- Como? Claro que pode, isto é o que a lei exige. Fale.
- Posso pedir que o ataque comece dentro de poucos minutos? Se atuarmos rapidamente talvez possamos consegui-lo, o que não aconteceria se nos demorássemos demais. A Seção Astronômica pode nos fornecer os dados relativos à órbita da nave inimiga. Não esqueça que a nave que está em terra é somente um pequeno aparelho de desembarque.
Kiku inclinou-se para o intercomunicador e chamou a Seção Astronômica.
- O chefe de balística, por favor... imediatamente. Ah, Cartier... isole seu aparelho; este aqui já está isolado. E fale em voz baixa. Quero que os elementos táticos do...
MacClure pegou o aparelhou e cortou a comunicação.
- Muito bem disse encolerizado, você conseguiu, graças à sua desfaçatez.
- Não era desfaçatez, senhor.
- Bem, bem, conseguiu convencer-me de que é um homem ajuizado e prudente. Não posso arriscar cegamente as vidas de cinco bilhões de seres. Quer que eu me arraste aos seus pés?
- Não, senhor. Mas estou muito mais tranquilo. Obrigado.
- Está muito mais tranquilo? E quanto a mim, o que? Agora me diga como pensa resolver isto. Ainda estou às escuras.
- Eu o farei, senhor ministro. Em primeiro lugar, eu mandei buscar o jovem Stuart...
- O jovem Stuart? Por que?
- Para persuadi-lo a ir. Preciso do seu consentimento.
O ministro parecia não acreditar no que estava ouvindo.
- Devo entender que depois de rechaçar plenamente o ultimatum, o único plano que lhe ocorre é capitular?
- Eu não diria assim.
- Não me importa como digam vocês os diplomatas. Não entregaremos o garoto. Não queria correr um risco às cegas, mas isso é diferente. Não entregarei um só ser humano, seja qual seja a pressão a que me submetam... e posso assegurar-lhe que o Conselho estará de acordo comigo. Existe uma coisa que se chama dignidade humana. Devo acrescentar que estou surpreso.. e desgostoso.
- Posso continuar, senhor?
- Bem, prossiga. Ouçamos sua parte.
- Jamais me passou pela cabeça a ideia de entregar o garoto. Na ciência da diplomacia, faz tempo que o apaziguamento deixou de ser uma teoria válida. Se tivesse considerado a possibilidade de sacrificar o garoto, compreenderia o seu desgosto, e o aplaudiria. Mas, na realidade, não o compreendo.
- Mas você disse...
- Por favor, senhor. Sei perfeitamente o que eu disse. Mandei buscar o garoto para sondar seus próprios desejos. Pelo que eu sei dele, é possível que concorde, com entusiasmo, até.
MacClure balançou a cabeça.
- Isto não podemos permitir, mesmo no caso de que este garoto estivesse tão louco para concordar em ir. A novecentos anos luz dos demais seres humanos? Antes eu ofereceria veneno ao um menino.
- Isto é completamente diferente, senhor. Se obtenho seu consentimento, posso mantê-lo em segredo durante o curso das negociações. Jogar com um ás escondido na manga. Pode-se salvar muita coisa por meio da negociação, e obter-se muito.
- Por exemplo?
- Sua ciência, seu comércio. Todo um novo setor do espaço. As possibilidades que isto nos oferece podem apenas ser entrevistas.
MacClure agitava-se inquieto.
- Ainda não estou certo se não seria melhor desencadear o ataque. Se os homens são Homens, devemos correr algum risco. Não gosto de me arrastar aos pés dessas alimárias que vêm ameaçar-nos
- Senhor ministro, se meus planos não surtirem o efeito desejado... ou não receberem sua aprovação, então me unirei a você para lançar meu grito de desafio para os céus. Temos que negociar, mas negociar como homens.
- Bem... prossiga. Fale-me do resto.
13 COMPLICAÇÕES
Quando Henry Kiku chegou ao seu gabinete na manhã seguinte, encontrou Wesley Robins, encarregado de relações públicas, dormindo em sua cadeira.
- Bom dia, Wes disse o sub-secretário.
- O que você está sabendo sobre isto? respondeu Robbins, entregando-lhe um exemplar do Capital Times. Kiku leu:
INVASORES EXTRATERRESTRES AMEAÇAM COM A GUERRA! PEDEM REFENS
O ministro de Assuntos Espaciais revelou hoje que os visitantes chamado Hroshii, atualmente no porto da Capital, exigem da Federação...
Kiku viu pela notícia que MacClure tinha dado na língua, distorcendo também a resposta dada pelo subsecretário aos Hroshii.
Inclinou-se sobre o interfone:
- Segurança? disse. Ah, O'Neil, coloque mais policiais anti-distúrbios ao redor da nave dos Hroshii. Voltando-se para Robbins, disse:
- Acho que devemos falar com MacClure.
Dirigiram-se para o gabinete do ministro e, uma vez ali, Robbins esperava que Kiku falasse, mas este mostrava um rosto impenetrável. Foi o ministro quem falou:
- Então Henry? Hoje estou muito ocupado e...
- Achei que desejaria dar-nos instruções a respeito do novo plano de ação, senhor.
- Que novo plano de ação?
- A respeito dos Hroshii Ou não é certo o que dizem os jornais?
- Bem... sim, sim, é. Embora eles tenham exagerado. Eu simplesmente disse ao povo o que tinham direito de saber.
- Ah, claro, obrigado por me lembrar respondeu Kiku. Suponho que agora devo reparar meu erro e contar a a historia a todo mundo.
- Que está querendo dizer?
- Bem, contar-lhes como, devido à nossa falta de respeito aos direitos dos demais, raptamos no passado um membro de uma raça civilizada. Como este só pôde sobreviver graças a uma sorte incrível. E como em face disto agora vemos nosso planeta sendo ameaçado com a destruição.
MacClure escutava-o de boca aberta.
- Santos céus, Henry! Está tentando desencadear um distúrbio?
- Senhor, já tomei medidas para preveni-los. A xenofobia sempre está disposta a atacar, e isto apontou para o jornal desatará as paixões de muitas pessoas.
O ministro levantou-se e começou a percorrer seu gabinete de um lado para outro. Wes Robbins limpava as unhas com uma navalha. MacClure voltou-se subitamente para Kiku.
Olhe, Henry disse-lhe, não acredite que vai me amedrontar.
- Eu, senhor ministro?
- Sim, você. Sabe muito bem que se dermos à imprensa todos esses detalhes desnecessários, o alvoroço que haverá no Conselho poderá ser ouvido em Plutão. A Conferência Tripartite poderia ter resultados desastrosos calou-se por um instante para tomar fôlego. Pois bem, você não vai ter essa oportunidade, porque... está despedido! Está me entendendo? Despedido!
- Muito bem, senhor ministro disse Kiku, dirigindo-se para o seu gabinete. Neste momento Wes Robbins se levantou e disse:
- Um momento, Henry. Ouça, Mac...
- Não me chame de Mac saltou o ministro e não se meta nisto. É um assunto oficial.
- Não se mostre tão estirado comido disse-lhe Robbins com ironia. Há muito que eu o conheço, se bem que então eu gostava de você, o que não posso dizer agora. Diga-me, por que tanto empenho em perder seu posto?
- Como pode lhe ocorrer que...?
- O que acha que acontecerá quando Henry falar com os jornalistas? acrescentou Wes.
- Como? exclamou MacClure. Henry, eu o proíbo de...
- Posso dizer uma coisa? interveio Kiku. Não tenho a menor intenção de falar com a imprensa. Só queria fazer ver que manter a gente informada pode ser desastroso. Esperava evitar mais indiscrições da sua parte, senhor, enquanto os danos eram reparados.
- Verdade? disse o ministro. Sinto muito, Henry, eu me precipitei. Esqueça o que eu disse e...
- Não, senhor ministro, sinto muito disse Kiku, friamente. Não adiantaria. Neste momento, Robbins voltou a intervir.
- Henry pode ser um homem honrado e leal disse, mas eu não sou. Estou pensando em dizer tudo à imprensa a menos que se demita, Mac, e retifique suas declarações de ontem.
- Se é este o seu plano, Wes, já pode sair daqui imediatamente. Declararei à imprensa que tive que demitir os dois por deslealdade e incompetência.
- Eu já esperava por isto disse Robbins ferozmente. Sua cabeça cairá de qualquer modo, mas você pode sair honrosamente ou por mal. Se eu disser tudo que sei, o secretário geral o jogará aos lobos.
MacClure escutou-o sem interromper.
- Você só tem uma opção prosseguiu Robbins. Apresentar sua renúncia, que não se fará pública em até duas semanas, quando estará solucionado o problema dos Hroshii, e desmentir a notícia que disse ontem à imprensa.
- Está bem respondeu MacClure mansamente.
Tinha custado muito para Greenberg convencer a senhora Stuart de que ele o John Thomas o acompanhassem à Capital. Mas quando voltou na manhã seguinte, viu que não era bem recebido. A senhora Stuart mostrou-lhe o jornal.
- E antão, senhor Greenberg apontou para o jornal, o que tem a me dizer?
- Senhora Stuart, já sabe como são os jornais. A notícia não tem nenhum fundamento. Não se falou absolutamente em reféns e...
- Olhe, senhor Greenberg, você sabe que eu cedi relutantemente. Mas você me decepcionou. Isto é um complô para entregarem meu filho a esses monstros.
- Mamãe interrompeu-a Johnnie, não seja absurda.
- Cala-te, John Thomas. Não há mais o que falar.
Foi impossível qualquer discussão.
Greenberg dirigiu-se ao seu hotel. Pensava em telefonar ao seu chefe, mas decidiu que ele não gostaria de saber que não era capaz de solucionar o assunto por si mesmo.
Quando já estava em seu quarto, o chefe Dreiser lhe telefonou. O jovem Stuart havia desaparecido, e sua mãe achava que ele poderia achar-se ali. Dreiser lembrou-o que era um cidadão apesar da importância do seu cargo, e que como tal poderia ser perseguido pela lei.
- Chefe respondeu então Sergei, se me encontrar fazendo alguma coisa ilegal, não tem mais que cumprir seu dever.
- Eu o farei, senhor. Não duvide. E desligou.
O telefone tocou novamente e Sergei achou-se diante do rosto de Betty Sorensen, que sorria para ele.
- Fala a senhorita Sorensen disse.
- Como está, senhorita Sorensen? respondeu Greenberg.
- Estou bem, obrigada, mas muito ocupada. Veja, tenho um cliente, o senhor Brown, ao qual foi solicitado fazer uma viagem. A questão é que há um amigo em sua cidade de destino e ele deseja saber se poderá vê-lo.
Greenberg pensou por um momento e disse:
- Diga ao senhor Brown que o amigo o verá.
- Muito bem respondeu Betty. Quando seu piloto passará para nos pegar?
- É melhor que façam a viagem em uma linha comercial. Não se preocupe pelo dinheiro, eu lhe farei um empréstimo pessoal. A você, não para o senhor Brown.
- Oh, excelente disse Betty.
Greenberg esperou duas horas e chamou a mãe de Johnnie.
- Senhora Stuart disse-lhe, eu ouvi dizer que seu filho viajou para a Capital por sua conta esperou que ela se acalmasse e acrescentou: Quer me acompanhar até lá? Minha nave é mais rápida que as comerciais.
Meia hora depois saíam para a Capital da Federação.
O senhor Kiku recebeu primeiro John Thomas. Tratou-o como a um igual, apesar de ter idade suficiente para seu seu avô. Explicou-lhe que Lummox não queria voltar sem ele, e que era muito importante ele que voltasse, tanto para os Hroshii como para a Terra.
Johnnie disse divertido:
- É curioso que seja tão indispensável para eles e que eu o estava dominando todos esses anos.
- De qualquer forma esclareceu Kiku não vou pedir-lhe que evite uma possível guerra. Queremos estabelecer relações amistosas com os Hroshii. Que lhe pareceria ir com Lummox ao seu planeta? Não precisa responder agora.
- Eu irei, claro disse Johnnie resolutamente
- Não se precipite. Tenha em conta que Hiroshijud, o planeta de Lummox, está a quase mil anos luz da Terra.
- Meu bisavô chegou até ali, por que eu não haveria de fazê-lo?
- Muito bem. Desfrute de sua estadia aqui, enquanto isto.
Henry Kiku havia recebido Johnnie em seu gabinete, mas recebeu sua mãe em uma sala deslumbrante, desenhada por psicólogos, para impressionar os visitantes. Sabia que não seria fácil tratar com a senhora Stuart.
Tomaram chá e ele focou a conversa para temas triviais. Finalmente entrou no assunto.
- Eu estive falando com seu filho. Contarei tudo brevemente. Vamos enviar uma missão cultural e científica ao planeta dos Hroshii. Quero enviar seu filho como ajuda especial. Ele aceitou ir.
Esperou a explosão que não demorou.
- Nem se fala nisso! Nego-me totalmente! Enviar meu filho como refém desses monstros...
- Está equivocada, senhora. Os jornais deram uma visão falsa. O ministro já desmentiu as declarações de ontem. Seu filho só servirá de ajuda para estabelecer uma ponte cultural entre duas raças muito diferentes. De fato, a profunda amizade que existe entre Johnnie e Lummox me parece uma bênção do destino.
- Idiotices exclamou ela. Meu filho vai entrar na universidade e...
- Se a educação do seu filho a preocupa, eu acabarei de explicar o assunto. Além de uma embaixada, enviamos as melhores mentes dedicadas à ciência, à economia e à cultura. Ninguém poderia ter uma educação como a do seu filho no campo da xenologia.
- Ele não vai estudar xenologia respondeu a senhora Stuart com raiva e sim direito.
- Senhora, isto é o que ele deseja estudar e é uma oportunidade única. Para que se faça uma ideia das diferenças entre nossos povos, eu falarei algo mais desta raça. Sua jovem Hroshia, ou seja, Lummox, tem um papel fundamental em um plano genético traçado há dois mil anos... Está se dando conta? São seres praticamente imortais. Por isto não estavam aborrecidos nem desesperados pelo desaparecimento da sua Hroshia durante cem anos; consideravam-na simplesmente extraviada. Outra característica é que eles aumentam de tamanho ao comer, e encolhem ao passar fome. Seu filho alimentou Lummox em excesso...
- Eu lhe disse isto muitas vezes! interveio ela.
- De qualquer forma, não houve prejuízo algum, estão devolvendo-a ao seu tamanho normal. Enfim, senhora concluiu, seu filho é um homem e se tentar controlá-lo, poderá ver-se repudiada por ele.
- Johnnie não faria tal coisa com sua própria mãe respondeu ela indignada. Além disto ele é menor de idade.
- Talvez. Mas nosso tribunais de menores conhecem o uso arbitrário da autoridade paterna. A coerção na hora de escolher a carreira é um tema recorrente. Se se opuser muito a ele, terminará pendendo-o. Pense nisto.
14 RELAÇÕES NÃO DIPLOMÁTICAS
Novamente o estômago estava atormentando o subsecretário, mas em lugar de prestar-lhe atenção, Henri Kiku inclinou-se para seu intercomunicador e disse:
- Sergei, venha cá imediatamente. Greenberg entrou e perguntou ao seu chefe:
- Como vai nosso caso difícil?
- Ela não quer deixá-lo ir.
- Ah, não?
- Mas ele vai.
- Essa mulher armará um escândalo enorme na imprensa.
- Claro Kiku inclinou-se sobre sua mesa: Wess?
- O senhor Robbins está no funeral do ministro venusiano de Assuntos Exteriores respondeu uma voz feminina, com o senhor ministro.
- Ah sim. Diga-lhe que passe para me ver quando voltar, por favor.
- Sim, senhor Kiku.
- Obrigado, Shizuko o subsecretário voltou-se para Greenberg. Sergei, sua nomeação para oficial diplomático de primeira classe foi tornada efetiva em caráter permanente quando foi designado para este assunto.
- Verdade?
- Sim. Não demorará em receber sua nomeação. Mas agora você será promovido a primeiro oficial diplomático na ativa. Reterei a nomeação permanente durante noventa dias, para evitar críticas e fofocas inoportunas.
O rosto de Greenberg não demonstrou a menor emoção.
- Ótimo disse. Mas, por que? Porque limpo os dentes regularmente? Ou porque mantenho meu portfólio sempre muito limpo e polido?
- Você irá a Hiroshijud como delegado e chefe de missão. O senhor MacClure será nomeado embaixador, mas duvido muito que chegue a aprender o idioma, o que fará com que seja você que terá que carregar o pesado fardo de manter as relações com eles. Portanto, tem que aprender seu idioma imediatamente, mesmo que seja somente para passear. Entendeu?
Greenberg compreendeu devidamente. MacClure teria que falar com eles através dele, com o que se evitariam erros.
- Sim respondeu com ar pensativo, mas e o doutor Ftaeml? O embaixador provavelmente utilizará seus serviços como intérprete de preferência aos meus.
E acrescentou para si mesmo: "chefe, não pode fazer isto comigo. MacClure pode deixar-me de lado em benefício de Ftaeml; e lá estarei eu, a novecentos anos luz de qualquer ajuda possível".
- Sinto muito respondeu Kiku, mas não posso livrar-me de Ftaeml. Eu o reterei comigo para utilizá-lo como intérprete com a missão Hroshii que eles deixarão aqui. Ele já aceitou o emprego.
- Começarei a espremer o cérebro seriamente, então. Eu já rabisco um pouco de Hroshii. A pessoa fica com a garganta como papel de lixa. Mas quando concordaram com tudo isto? Alguma coisa se passou sem que eu saiba? Talvez quando eu estive em Westville?
- Ainda não aceitaram, mas aceitarão.
- Admiro sua confiança, chefe. Eles me parecem tão teimosos como a senhora Stuart. A propósito, Ftaeml e eu tivemos uma conversa enquanto você discutia com ela. Ele me disse que insistem muito pelo garoto Stuart. Agora que você sabe que ele vai, não deveríamos tranquilizá-los a esse respeito? Ftaeml está muito nervoso. Disse que a única coisa que os impedem de transformar-nos em pó é que isto desgostaria muito o nosso amigo Lummox.
- Não respondeu Kiku, não lhe diremos. Nem a eles nem a Ftaeml. Quero que continuem em dúvida.
- Chefe disse Greenberg lentamente, isto não seria procurarmos mais complicações ainda? Ou é porque supõe que eles não são tão invencíveis como parecem? Se chegarmos à conflagração, acha que poderíamos derrotá-los?
- Eu duvido muitíssimo. Mas o garoto Stuart é o meu trunfo.
- Acho que sim. Deus me livre de citar a quem você sabe, mas se o risco realmente é grande, o povo não tem o direito de saber?
- Sim, mas não podemos dizer.
- Como é isso?
Kiku franziu o cenho.
- Sergei disse lentamente, nossa sociedade está em crise desde o dia em que o primeiro foguete chegou à lua. Durante três séculos, os cientistas, engenheiros e exploradores irromperam repetidas vezes em novas zonas, novos perigos, novas situações. E a cada vez, os dirigentes políticos tiveram que trabalhar para sustentar o precário edifício, como um malabarista com objetos demais no ar. É inevitável.
«Mas temos conseguido conservar uma forma republicana de governo e manter as instituições democráticas. Podemos nos orgulhar disto. No entanto, nossa forma de vida atual não é a de uma verdadeira democracia, e não pode sê-lo. Acho que é nosso dever manter esta sociedade unida, enquanto ela se ajusta a um mundo estranho e amedrontador Seria muito agradável discutir todos e cada um dos problemas que aparecessem, submetê-los a votação e retirá-la mais tarde se a decisão coletiva fosse errada Mas raramente as coisas se apresentam assim tão fáceis. Frequentemente nos achamos como os pilotos de uma nave em um transe de vida ou de morte. Por acaso é dever do piloto conversar com seus passageiros em tais circunstâncias? Ou sua obrigação consiste em usar sua habilidade e experiência para levá-los sãos e salvos para suas casas?
- Suas palavras são muito convincentes, chefe. É possível que tenha razão.
- Sim, é possível Kiku prosseguiu: Tenho a intenção de celebrar a conferência com os Hroshii amanhã pela manhã.
- De acordo. Eu direi isto a Ftaeml. Assim eles ficarão tranquilos esta noite.
- Já que eles se mostram tão inquietos, adiaremos a conferência para depois de amanhã e deste modo ficarão ainda mais Kiku meditou. Que Ftaeml lhes diga isto: nossos costumes exigem que os forasteiros que desejam entabular negociações conosco devem enviar-nos presentes antes, portanto, eles têm que enviar-nos presentes. Que lhes diga que presentes esplêndidos comprometem a seriedade do assunto em discussão, mas um presente miserável pode prejudicar sua causa.
Greenberg franziu o cenho.
- Você tem algo entre as mãos, mas não consigo ver o que é. Ftaeml sabe que nossos costumes não exigem isto.
- Você não pode convencê-lo de que se trata de um costume que ele ainda não conhecia? Ou então dê-lhe uma mostra de confiança e diga-lhe a verdade. Entendo seu conflito: a luta entre a lealdade que deve aos seus clientes e suas simpatias, que parecem estar conosco.
- Acho que é melhor não o enganar. Mas fazer com que um rargiliano minta no desempenho dos seus deveres profissionais como intérprete... duvido que ele possa fazê-lo.
- Então diga-lhe de forma que não seja uma mentira. Diga-lhe que se trata de um costume muito antigo, o que é certo, e que só ressurge em ocasiões importantíssimas... como a presente. Deixe-lhe uma porta aberta, permitindo-o ver nosso propósito, e providencie que consiga uma tradução indulgente.
- Isso é diferente. Mas, por que quer fazer isto, chefe? Somente para obter uma vantagem?
- Precisamente. Somos a mais fraca das partes e é imperativo que comecemos jogando com vantagem. Tenho a esperança de que o simbolismo do suplicante trazendo presentes seja tão universal como descobrimos que era até hoje.
- E se eles não aceitarem?
- Então nos manteremos inflexíveis, até que mudem de opinião Kiku acrescentou: Comece a escolher sua equipe. Amanhã verei a lista que formou.
Greenberg grunhiu:
- Eu estava pensando em deitar cedo hoje.
- Nunca pense nisto quando estiver ocupado. Ah, tão logo a conferência tenha terminado, envie um dos seus melhores homens, Peters talvez, à nave deles, para que ele veja que mudanças precisarão ser feitas para acomodar passageiros humanos. Depois diremos aos Hroshii o que precisaremos.
- Espere um minuto, chefe. Eu preferiria ir em uma das nossas naves. Já sabe se eles têm lugar para nós na sua?
- Nossas naves irão depois. Mas a Hroshia Lummox vai com eles e o jovem Stuart a acompanha. Portanto, nossa missão irá em sua nave para que o garoto possa gozar da companhia de seres humanos.
- Compreendo, desculpe.
- Haverá lugar. Lembre que eles deixarão aqui a sua própria missão, ou do contrário ninguém sairá. Uma centena de Hroshii, por exemplo, deixarão lugares mais que suficientes para uma centena dos da nossa espécie.
- Em outras palavras, chefe Disse Greenberg com suavidade, você insiste nos reféns.
- Reféns disse Kiku com afetação é uma palavra que nenhum diplomata deveria empregar. E voltou para sua mesa.
Para celebrar a conferência, foi escolhido o salão do piso inferior do edifício de Assuntos Espaciais, porque suas portas eram largas o suficiente e seu piso era suficientemente forte e sólido. Teria sido mais seguro celebrá-la no espaçoporto, como aconselhou o doutor Ftaeml, mas Kiku insistiu que eram os Hroshii que tinham que vir, por razões de protocolo.
Seus presentes os precederam. Foram amontoados em ambos os lados do grande salão, e eram muito abundantes em número, mas ainda se desconhecia seu valor e qualidade. Os xenologistas do departamento estavam tão ansiosos como uma criança diante dos seus presentes de aniversário, mas Kiku ordenou-lhes que esperassem até que a conferência houvesse terminado.
Sergei Greenberg uniu-se a Kiku no salãozinho situado atrás da tribuna no momento em que a delegação dos Hroshii entrava na sala. Parecia preocupado.
- Não gosto disso, chefe. Kiku olhou para ele.
- Por que não gosta?
Greenberg olhou para o resto dos presentes... MacClure e o dublê do secretário geral. O dublê, um hábil ator, cumprimentou e internou-se novamente no estudo do discurso que ia pronunciar, mas MacClure disse asperamente:
- Que está acontecendo, Greenberg? Esses diabos estarão preparando alguma coisa?
- Espero que não e Greenberg dirigiu-se a Kiku: Revistei as defesas aéreas e me pareceram boas. Levantamos barricadas na Avenida dos Sois, daqui até o espaçoporto, colocando de ambos os lados reservas suficientes para fazer uma pequena guerra. Depois disso, pairei sobre a cabeça da coluna dos Hroshii, quando saiu do espaçoporto, e continuei voando sobre ela. Eles postaram forças a cada quinhentos metros, colocando aparelhos de forma estranha em todos os pontos estratégicos. Talvez se trate de linhas de comunicação com sua nave, embora eu duvide disto. Mas acho mesmo que é armamento.
- Também acho isto conveio Kiku.
O ministro disse, com expressão preocupada:
- Ouça, Henry...
- Por favor, senhor MacClure, espere um minuto. Sergei, o chefe do Estado Maior já tinha me comunicado. Aconselhei ao secretário geral a conveniência de não empreender nenhum alção, a menos que tentassem derrubar nossas barricadas.
- Poderíamos perder muitos.
- Com efeito. Mas, que faria você, Sergei, se tivesse que entrar em um acampamento estranho para parlamentar? Confiaria por completo neles, ou trataria de cobrir a retirada? Por minha parte, considero isto como o sinal mais esperançoso de todos que tivemos até este momento. Se o que eles colocaram são armas, como parece, quer dizer que nos consideram adversários nada desprezíveis. Não se coloca artilharia para lutar com camundongos olhou ao redor. Vamos lá? Me parece que já os fizemos esperar demais. Está pronto, Arthur?
- Sim senhor. O dublê do secretário geral pôs seu script de lato. Esse garoto, Robins, sabe escrever discursos. Não carrega nas letras sibilantes, com o que eu evito ter que cuspir nas cinco primeiras filas.
Entraram na tribuna, com ator na frente seguido pelo ministro, e a seguir o subsecretário permanente seguido pelos seus auxiliares.
Da longa comitiva de Hroshii que havia deixado o espaçoporto, somente uma dúzia deles entraram na sala, mas mesmo aquele número tão reduzido fazia parecer que a sala estava lotada. Kiku contemplou-os com interesse, pois era a primeira vez que punha seus olhos sobre um Hroshii. Era certo, pensou, que aqueles seres não tinham o aspecto caloroso e amistoso que apresentava a Hroshia Lummox nas fotografias que ele tinha visto. Tratava-se de adultos, embora menores que Lummox. O que estava situado em frente à plataforma e flanqueado por outros dois, olhava-o diretamente nos olhos com um olhar frio e confiante. Kiku sentiu que o olhar daquela criatura o deixava nervoso e teve vontade de afastar os olhos. Mas manteve a vista firme nele, pensando que seu hipnoterapeuta o fazia tão bem ou melhor que o Hroshii
Greenberg tocou no seu cotovelo.
- Eles colocaram armas aqui também sussurrou Está vendo? Ali no fundo. Kiku respondeu.
- Eles não sabem se nós sabemos que isto é uma arma. Vamos fingir que acreditamos que se trata de um aparelho para gravar a conferência.
O doutor Ftaeml estava em pé junto ao primeiro dos Hroshii O subsecretário disse-lhe:
- Mostre-lhes nosso secretário geral e descreva-o como o chefe de dezessete poderosos planetas.
O rargiliano vacilou.
- E o presidente do conselho?
- O secretário geral representa ambos os cargos nesta ocasião.
- Muito bem, meu amigo.
O rargiliano pôs-se a falar em uma linguagem de tons agudos, que lembrou a Kiku o lamento de um cão. Os Hroshii responderam-lhe rapidamente na mesma língua e logo Kiku deixou de sentir o medo que lhe havia inspirado o olhar da criatura. Não era possível sentir medo de um ser cuja voz parecia com a de um cão abandonado. Mas lembrou também que naquela língua ridícula podiam dar ordens de morte.
Ftaeml falava agora em inglês:
- Aqui, junto a mim, está... e rompeu em um múltiplo chiado daquela língua estranha, que é o comandante da nave e da expedição. Ela... não, talvez "ele" seria melhor... é o marechal por herança e... o rargiliano interrompeu-se inquieto. Vocês não possuem uma classificação equivalente. Talvez deveria dizer "prefeito do palácio", ou alguma coisa parecida.
Greenberg disse de imediato.
- Que lhe parece "chefe", doutor?
- Uma feliz sugestão! Sim, ele é o chefe. Sua posição social não é tão elevada, mas sua autoridade prática quase não conhece limites.
Kiku perguntou:
- Essa autoridade lhe permite atuar como ministro plenipotenciário?
- Ah sim, certamente!
- Então passemos agora ao discurso voltou-se para o ator, e este assentiu. Então falou, dirigindo-se à mesa que tinha em frente, utilizando um circuito fechado: Estão gravando tudo isto?
Uma voz respondeu, somente para seus ouvidos:
- Sim, senhor. O aparelho transmissor de imagens teve uma leve avaria, mas agora já esta consertado.
- O secretário geral e o Chefe do Estado Maior estão escutando a transmissão?
- Creio que sim, senhor. Estamos conectados aos seus respectivos gabinetes.
- Muito bem.
Kiku escutou o discurso do secretário geral. Era breve, mas foi pronunciado com grande dignidade, e o ator fez as pausas oportunas para que Ftaeml pudesse ir traduzindo. O secretário geral dava as boas vindas à Terra aos Hroshii, assegurando-lhes que os povos da Federação estavam muito contentes de que os Hroshii tivessem finalmente conseguido encontrar sua prole perdida, acrescentando que esse feliz acontecimento daria ocasião para que os Hroshii ocupassem o lugar que lhes correspondia na Comunidade das Civilizações. Sentou-se, e em pouco tempo ficou praticamente adormecido, com os olhos abertos e o rosto transformado em uma máscara de tranquilidade e dignidade. O dublê poderia sustentar aquela pose de imperador durante horas inteiras, sem que nem sequer se desse conta do desfile ou da cerimônia a que estava assistindo.
MacClure falou brevemente, enfatizando os pontos de vista do secretário geral e acrescentando que a Federação estava preparada para discutir qualquer questão que pudesse apresentar-se entre a Federação e os nobres Hroshii
Greenberg inclinou-se para Kiku e sussurrou:
- Aplaudimos agora, chefe? Alguém tem que começar, e não acho que sejam eles quem tem que fazer.
- Cale-se disse-lhe Kiku amigavelmente. Doutor Ftaeml, o comandante não tem que pronunciar algum discurso de saudação?
Creio que não Ftaeml dirigiu-se ao chefe da delegação Hroshii e então disse: A resposta consiste mais em um comentário feito com muita seriedade sobre os discursos que escutamos, que de uma resposta protocolar. Ele afirma que os Hroshii não têm necessidade de relacionar-se com outras... raças inferiores e diz que passemos logo ao ponto sem mais trivialidades.
- Se eles não têm mesmo necessidade de se relacionarem com outros povos, pergunte-lhe por favor, por que vieram a nós e por que nos trouxeram presentes.
- Mas foi você que insistiu nisso, meu amigo respondeu Ftaeml surpreso.
- Obrigado, doutor, mas não quero ouvir seu comentário. Faça com que ele me responda. Por favor, não lhe diga mais nem o aconselhe.
- Eu tentarei Ftaeml trocou algumas palavras, que pareciam ganidos agudos, com o comandante Hroshii e então voltou-se novamente para Kiku: Perdoe-me, mas ele disse que concordou com sua infantilidade como o meio mais simples de realizar seu propósito. Deseja que falemos agora da entrega de John Thomas Stuart.
- Diga-lhe, por favor, que este assunto vem mais adiante na ordem do dia. A agenda requer que primeiro resolvamos a questão das relações diplomáticas.
- Perdoe-me, senhor, mas "relações diplomáticas" é um conceito muito difícil de traduzir. Faz dias que estou tentando.
- Diga-lhe que o que vê agora é um exemplo de relações diplomáticas. Povos livres negociando como iguais, animados por intenções pacíficas, para benefício mútuo.
O rargiliano imitou um sorriso.
- Cada um desse conceitos oferece as mesmas dificuldades. Mas mesmo assim eu tentarei.
Pouco tempo depois, respondeu:
- O marechal hereditário disse que se o que fazemos constituem relações diplomáticas, então já as temos. Onde está o garoto Stuart?
- Não tão depressa. Temos que seguir a agenda ponto por ponto. Eles têm que aceitar uma embaixada e uma missão mista com finalidade científicas, culturais e comerciais. Têm que deixar entre nós uma missão e uma embaixada similares. Temos que estabelecer viagens regulares entra as duas potências. E até que isto tenha sido resolvido satisfatoriamente, é impossível falar do jovem Stuart.
- Tentarei novamente.
Ftaeml falou longamente dirigindo-se ao "chefe" Hroshii, a resposta deste último foi breve:
- Ele me disse para dizer-lhes que rechaça totalmente esses pontos como não dignos de consideração. Onde está o garoto Stuart?
- Nesta caso respondeu suavemente Kiku, diga-lhes que nós não negociamos com bárbaros. Diga-lhes que recolham seus badulaques... assegure-se de traduzir bem, com que sujaram nossa casa, e que voltem imediatamente à sua nave. Que levem para bordo a sua preciosa Hroshia, à força se necessário, se é que querem voltar a vê-la... pois não se lhes permitirá aterrissar nunca mais.
Ftaeml parecia a ponto de cair no choro, apesar de lhe ser impossível verter lágrimas.
- Por favor! Eu lhe suplico que não os desafie. Vou além do que me está permitido, me excedo no cumprimento dos meus deveres profissionais, mas podem destruir esta cidade sem que seja preciso voltarem à sua nave.
- Traduza minha mensagem. A conferência está encerrada.
Henry Kiku levantou-se, mediu seus oponentes com o olhar e dirigiu-se para o salãozinho contiguo, seguido pelo dublê. MacClure pegou Kiku pelo braço e colocou-se junto a ele.
- Henry... já sei que é você quem faz isto, mas não deveria dizer-lhes outra coisa?
São bestas selvagens. Talvez...
- Senhor MacClure disse Kiku, amavelmente, como disse uma vez um distinto predecessor meu, ao tratar com certos tipos temos que pisar forte até que terminem nos apresentando suas desculpas. e empurrou o ministro para a porta.
- Mas se eles não fizerem isto?
- Temos que correr esse risco. Por favor... não discutamos em sua presença. Entraram no salãozinho que se fechou atrás deles. Greenberg voltou-se para Kiku.
- Muito bem, chefe...mas, que faremos agora?
- Esperamos.
- De acordo.
Greenberg dirigiu-se nervosamente a um relé na parede, conectado com a cena que se desenrolava no grande salão. Os Hroshii não tinham ido embora. Pôde distinguir Ftaeml, com dificuldade, rodeados por criaturas muito maiores que o medusoide.
O dublê perguntou a Kiku:
- Ainda precisa de mim, senhor?
- Não, Arthur. Você trabalhou muito bem.
- Obrigado. Terei tempo de tirar a maquilagem e escutar o segundo tempo da partida.
- Muito bem. Talvez fosse melhor se mudasse seu aspecto aqui.
- Oh, os fotógrafos já sabem, estão todos por dentro. Saiu, assoviando uma canção.
MacClure sentou-se, acendeu um charuto, deu uma baforada e soltou-o.
- Henry, você deveria avisar ao chefe do Estado Maior.
- Ele já sabe. Esperemos. Continuaram esperando. Greenberg disse de imediato:
- Aí vem Ftaeml.
Correu para a porta e introduziu o rargiliano.
O doutor Ftaeml parecia presa de uma grande tensão.
- Meu querido senhor Kiku, o comandante Hroshii disse que concordarão com os seus estranhos desejos com o fim de chegarem a um pronto acordo. Insiste em que lhe entreguemos agora o jovem Stuart.
- Diga-lhes por favor, que ele desconhece totalmente a verdadeira natureza das relações amistosas entre povos civilizados. Nós não negociamos a liberdade de um dos nosso cidadãos por seus indignos favores, da mesma forma que eles não iriam querer negociar a liberdade da sua compatriota Lummox. Diga-lhe que lhe ordeno que abandone imediatamente este edifício.
Ftaeml disse muito sério:
- Entregarei sua mensagem contra a minha vontade. Em poucos momentos estava de volta.
- Eles concordam com suas condições.
- Bem. Venha, Sergei. Senhor MacClure, você não precisa aparecer se assim o desejar.
Saiu do salão, seguido por Greenberg e Ftaeml.
O "chefe" Hroshii, segundo pareceu a Kiku, tinha um aspecto mais ameaçador que antes. Mas logo combinaram os detalhes: um número determinado de Hroshii contra um número igual de humanos, que constituíam respectivamente ambas as missões, passagem na nave Hroshii, e um dos presentes seria nomeado embaixador diante da Federação. Ftaeml lhes assegurou que aquele Hroshii seguiria na classificação o chefe da expedição.
- E agora disse o comandante Hroshii, chegou o momento de nos entregarem John Thomas Stuart.
Ftaeml acrescentou ansiosamente:
- Confio em que você tenha tomado as medidas oportunas, meu amigo. Não gosto do aspecto que toma o assunto. Foi tudo muito fácil.
Com uma sensação de contentamento que acalmava seu estômago doente, Kiku respondeu:
- Eu não vejo dificuldades. O jovem Stuart está disposto a ir, agora que temos garantias de que teremos relações civilizadas. Por favor, tente fazê-los compreender claramente, e assegure-se de que tenham compreendido, que ele vai como um ser livre, não como um escravo ou um mascote. Os Hroshii têm que garantir que este acordo será respeitado e também uma passagem de volta em uma das suas próprias naves, sempre que ele desejar.
Ftaeml traduziu e respondeu:
- Tudo está satisfatório, com a exceção de algo que eu traduziria como um "detalhe sem importância". O jovem Stuart fará parte da família da Hroshia Lummox. Naturalmente, traduzo com o maior cuidado: a questão de que o garoto regresse, se é que alguma vez regressará, considera-se como uma prerrogativa pessoal da anteriormente dita Hroshia Lummox. Se ela se cansasse dele e desejasse que regresse, seria posta uma nave à sua disposição.
Kiku respondeu.
- Não.
- Não o que, Senhor?
- Uma simples negativa. A questão do jovem Stuart está encerrada. Ftaeml voltou-se para seus clientes.
- Eles dizem respondeu que não há tratado.
- Eu sei. Não se assinam tratados com... eles têm alguma palavra que signifique servo?
- Têm vários tipos de servos, uma mais altos, outros mais baixos.
- Utilize a palavra que designe os da classe mais baixa. Diga-lhes que não existe tratado porque os servos não têm poder para fazê-lo. Diga-lhes que se vão e não percamos mais tempo.
Ftaeml olhou tristemente para Kiku.
- Eu o admiro, meu amigo. Mas não o invejo.
Voltou-se para o comandante da expedição e lamentou-se por uns momentos.
O Hroshii abriu sua bocarra de par em par, olhou para Kiku e pôs-se a ganir e gritar como um cachorro espancado. Ftaeml estremeceu e afastou-se.
- Palavras muito grosseiras, intraduzíveis.. o monstro continuou proferindo toda sorte de estranhos ruídos e Ftaeml esforçava-se freneticamente para traduzir. Ele os despreza... animais inferiores... ele os comeria com gosto... comeria também aos seus antepassados... vossa desprezível raça teria que aprender urbanidade... raptores de crianças...
Deteve-se, presa de uma grande agitação.
O Hroshii se aproximou do estrado caminhando pesadamente e levantou a cabeça
até que seu olhar cruzou com o de Kiku. Greenberg deslizou sua mão soba a mesa e localizou um controle que lançaria um campo magnético sobre a plateia; era uma instalação permanente. A sala já havia presenciado outros distúrbios.
Mas Kiku permanecia sentado em uma pétrea imobilidade. O maciço ser de "lá de fora" e o frágil ancião contemplavam-se fixamente. No grande salão ninguém se moveu e teriam podido ouvir o voo de uma mosca
Então levantou-se no fundo do salão um grande lamento, uma gritaria como se um cesto de cachorros tivesse sido jogado ali. O comandante Hroshii deu meia volta fazendo o piso tremer, e dirigiu agudos ganidos aos do seu séquito. Estes responderam com outros ganidos, e ele pareceu dar-lhes ordens imperiosas. Os doze Hroshii reuniram-se para dirigirem-se à porta de saída, pela qual cruzaram com uma rapidez incrível em uns seres tão pesados.
Henry Kiku levantou-se devagar e contemplou com olhar sereno aquela fuga. Greenberg puxou-lhe por um braço.
- Senhor Kiku, o chefe do Estado Maior que falar com você. Kiku se soltou.
- Diga-lhe que não é preciso apressar-se. É mais conveniente que não tenha pressa. Saiamos.
15 SINTO MUITO POR TERMOS COMPLICADO AS COISAS.
Johnnie quis estar presente à conferência, mas se opuseram terminantemente. Ele estava hospedado no Hotel Universal, onde ocupava uma série de quartos que lhes haviam sido destinados. Jogava xadrez com seu guarda-costas, quando Betty apareceu em companhia da senhorita Myra Holtz, agente da Seção de Inteligência do Departamento Espacial, e que ocultava sua profissão policial sob uma agradável aparência. As instruções dadas por Henry Kiku a respeito de Betty haviam sido: "Não tire os olhos de cima dela. Ela tem uma predileção pelas emoções fortes".
Os guardiões cumprimentaram-se e Betty disse:
- Olá, Johnnie. Por que você não foi à reunião dos chefões?
- Não deixaram eu ir.
- Nem a mim olhou ao redor. Onde está a duquesa?
- Fazendo compras. E continua sem falar comigo. Já comprou dezessete chapéus.
O que você fez no rosto?
Betty voltou-se para o espelho.
- Gostou? Chama-se "Contorno Cósmico" e é a última moda.
- Você parece uma zebra com cinomose.
- Bah, palhaço. Ed, você gosta, não é verdade?
Ed Cowen levantou o olhar do tabuleiro e apressou-se a responder:
- Eu não entendo nada disso. Minha mulher diz que eu não tenho gosto.
- A maioria dos homens não têm. Johnnie, Myra e eu viemos convidá-los para dar uma volta pela cidade.
Cowen falou:
- Não apoio essa ideia, Myra.
- Foi dela respondeu Holtz. John Thomas disse a Cowen:
- Por que não? Estou farto de jogar xadrez. Você vê... é que tenho que manter-me em contato com o escritório. Podem chamar-me a qualquer momento.
- Besteira interveio Betty. Leve um corpo-fone. E Myra também. Cowen balançou a cabeça.
- Por acaso estarei presa? insistiu Betty. Ou Johnnie está?
- Bem... não. Trata-se apenas de uma custódia protetora.
- Então pode continuar custodiando-o protetoramente em qualquer outro lugar. Se não quiser, pode ficar aqui. Vamos Johnnie.
Cowen olhou para a senhorita Holtz e esta respondeu lentamente:
- Acho que não temos nada a objetar, Ed. Nós estaremos com eles. Cowen encolheu os ombros e levantou-se.
Johnnie disse a Betty:
- Não vou me apresentar em público com você enquanto estiver pintada desse jeito. Vá lavar o rosto.
- Mas Johnnie! Eu demorei duas horas para me maquiar.
- Foi pago pelos contribuintes, não é verdade?
- Bem, sim, mas...
- Lave a cara, ou não vamos a parte alguma. Que lhe parece, senhorita Holtz?
A agente especial Holtz só tinha um desenho floral adornando a bochecha esquerda, além da cor de costume. Disse com expressão pensativa:
- A verdade é que Betty não precisa disso. Na sua idade esses enfeites não fazem falta.
- Oh, vocês são um par de puritanos! disse Betty com azedume, estirando a língua para Johnnie e entrando no banheiro. Não demorou a sair com o rosto vermelho causado pela esfregadela a que havia se submetido. Me sinto nua. Vamos.
Houve outra discussão no elevador que foi vencida por Ed. Cowen. Subiram para o terraço para pegar um taxi aéreo em vez de descer para a rua.
- Garotos, os rostos de vocês apareceram muito nos jornais nesses últimos dias. E nesta cidade existem muitos fofoqueiros e curiosos. Não quero que ocorram incidentes.
- Se você não tivesse deixado que eles me coagissem, meu rosto estaria irreconhecível saltou Betty.
- Mas a dele não.
- Teríamos podido pintá-la também. Qualquer rosto de homem melhora com a maquilagem.
Mas mesmo assim concordou em entrar no elevador e tomaram um taxi aéreo.
- Aonde vamos? perguntou o motorista.
- Oh disse Cowen, dê umas voltas sobre a cidade e nos mostre as vistas bonitas. Um passeio de uma hora, entendeu?
- Você é quem manda. Posso voar sobre a Avenida dos Sois. Há um desfile ou coisa parecida, hoje.
- Já sei.
- Olha interveio Johnnie, leve-nos ao espaçoporto.
- Não corrigiu Cowen. Ali não.
- Por que não, Ed? Eu ainda não vi Lummox. Gostaria de dar uma olhadinha nele.
Pode ser que não esteja bem.
- Esta é a única coisa que você não pode fazer disse Cowen. A nave dos Hroshii está em uma zona militar.
- Bem, mas eu posso vê-lo do ar, não?
- Não!
- Mas...
- Não discuta aconselhou-o Betty. Tomaremos outro taxi. Eu tenho dinheiro, Johnnie. Até logo, Ed.
- Escutem queixou-se o motorista. Eu os levarei até a Timbuctu, se desejarem, mas não posso ficar parado sobre um terraço de aterrisagem. Os guardas me multarão se descobrirem.
- Dirija-se ao espaçoporto disse Cowen resignado.
A extensa zona reservada para os Hroshii estava rodeada por uma barreira, aberta unicamente no lugar por onde havia saído sua delegação para passar pela Avenida dos Sois, e mesmo ali a barreira continuava em outras duas que se prolongavam paralelamente nos dois lados da avenida, em direção ao edifício onde haviam celebrado a conferência. No interior do recinto, a nave de desembarque dos Hroshii permanecia agachada. Tinha um aspecto feio e era quase tão grande quanto uma astronave ter-
restre. Johnnie olhou-a e pensou em como seria sua vida em Hiroshijud, Esta ideia lhe produzia desgosto, não porque tivesse medo ante a perspectiva, e sim porque ainda não havia dito a Betty que ia embora. Tinha começado a dizer umas duas vezes, mas em nenhuma delas conseguiu terminar. E uma vez que ela não havia abordado o tema, presumiu que o ignorava.
Havia outros curiosos no ar, uma multidão não muito compacta na parte externa da barreira. Nada novo, por assombroso que fosse, retinha por muito tempo a atenção dos capitalinos. Estes se jactavam de estar de volta ao redor e, na realidade, os Hroshii não tinham um aspecto muito fantástico, comparado com uma dúzia de outras raças amigas, algumas delas, membros da Federação.
Os Hroshii moviam-se em torno da nave, realizando estranhas operações nos artefatos que haviam montado. Johnnie tentou calcular seu número, mas lhe pareceu tão difícil como calcular as ervilhas que cabiam em uma garrafa. Dúzias deles, seguramente...
O taxi passava diante da zona de estacionamento dos carros aéreos da patrulha policial. Johnnie gritou imediatamente:
- Ei! Ali está Lummie! Betty estirou o pescoço.
- Onde, Johnnie?
- Agora ele está do outro lado da nave. Ali! voltando-se para o motorista, disse: Ouça, amigo, não poderia levar-nos para o outro lado, tão perto quanto for permitido?
O motorista olhou para Cowen, que assentiu. Deu a volta, passando em frente aos sentinelas da polícia militar, e aproximaram-se da nave Hroshii pelo outro lado. O motorista escolheu um lugar situado entre dois carros de polícia, e aproximou-se um pouco mais. Agora eles viam Lummox claramente, rodeado por um grupo de Hroshii que o acompanhavam a todas as partes, e entre os quais sobressaía.
- Se tivéssemos binóculos queixou-se Johnnie. Não o vejo muito bem.
- Encontrará um no porta-luvas disse-lhe amavelmente o motorista.
Johnnie apoderou-se deles. Eram de ótica sensível, sem amplificação eletrônica, mas conseguiu ver Lummox como se estivesse muito mais perto. Contemplou o rosto do seu amigo.
- Como está o aspecto de Lummie, Johnnie?
- Bom. Um pouco fraquinho me parece. Gostaria de saber se está comendo o suficiente.
- Segundo me disse o senhor Greenberg, não estão lhe dando nada em absoluto.
Eu pensava que você já sabia.
- Como? Não podem fazer isto com Lummie!
- Não vejo como possamos fazer nada.
- Está bem... John Thomas baixou a janela, tentando ver melhor. Ouça, não poderia aproximar-se um pouco mais? E um pouco mais baixo também. Quero examiná-lo bem.
O chofer resmungou:
- Não quero problemas com a polícia.
Mas aproximou-se um pouco mais, até ficar na linha de carros da polícia.
Quase que imediatamente, um alto falante colocado sobre o carro mais próximo atroou no espaço:
- Você aí! Número quatrocentos e oitenta e quatro! Onde pensa que está indo com esse carrão? Saia daí imediatamente!
O chofer murmurou algo baixinho e preparou-se para obedecer.
John Thomas, que ainda continuava com os binóculos pregados nos olhos, gritou:
- Droga!... e acrescentou: Será que ele poderá ouvir-me? Lummie! gritou com voz estentórea, Ei, Lummox!
A Hroshia levantou a cabeça e olhou ao redor, estupefata.
Cowen agarrou John Thomas, tentando fechar a janela ao mesmo tempo. Mas Johnnie soltou-se com um empurrão.
- Vá fritar aspargos! disse com voz irritada. Já me manobraram à vontade por muito tempo. Lummox! Sou eu, Johnnie! Aqui! Aproxime-se!...
Cowen conseguiu arrastá-lo para o interior e fechou a janela com um golpe.
- Eu já sabia que não devíamos ter vindo. Motorista, vamos sair daqui.
- Tomara que fosse tão fácil!
- Ou melhor, mantenha-se atrás das linhas da polícia. Quero ver o que se passa.
- Bem, decida-se de uma vez.
Não era preciso os binóculos para ver o que estava se passando. Lummox estava se dirigindo para a barreira, avançando em linha reta para o taxi, derrubando alguns Hroshii à sua passagem. Ao chegar na barreira não fez a menor tentativa de passar por cima dela, simplesmente a perfurou.
- Relâmpagos! disse Cowen em voz baixa. Bem, o campo magnético a deterá. Mas não foi assim. Lummox diminuiu a marcha, mas suas poderosas patas continuavam avançando uma após outra, como se o ar carregado não fosse mais que uma espessa lama. Com a tenacidade de um glaciar, a Hroshia dirigia-se para o ponto imediatamente abaixo do taxi.
Mais Hroshii surgiam pela abertura. Lutavam com grandes dificuldades para caminhar através do campo imobilizador, mas também continuavam avançando. Cowen, que, observava atentamente, viu que Lummox saía da zona magnética e começara a galopar, derrubando as pessoas que encontrava à sua passagem.
Cowen balbuciou:
- Olha, põe no circuito militar! Vou chamar o escritório. Betty puxou-o pela manga.
- Não!
- Hein? Você outra vez? Cale-se ou lhe darei uma tapa.
- Senhor Cowen, poderia fazer o favor de me escutar? e prosseguiu apressadamente: De nada lhe servirá pedir ajuda. Ninguém pode fazer Lummox obedecer exceto Johnnie... e eles não escutarão a ninguém exceto a Lummox. Você sabe disto. De modo que baixe até um lugar onde possa falar com Lummie.. ou teremos muitas pessoas feridas, e depois imputarão a você a culpa de tudo.
O agente secreto de primeira classe, Edwin Cowen, olhou-a nos olhos e revisou mentalmente sua brilhante folha de serviços e seu esperançoso futuro. Então, quase instantaneamente, tomou uma valente decisão.
- Baixe murmurou. Aterrisse e deixe-nos sair, o garoto e eu. O chofer resmungou.
- Vou lhe cobrar o dobro por isto.
Mas fez o carro descer com tão bruscamente que todos tiveram que se segurarem para não cair. Cowen abriu a porta com um empurrão e junto com John Thomas precipitaram-se para fora. Myra Holtz tentou deter Betty, mas sem conseguir. A jovem saltou em terra quando o carro voltava a subir.
- Johnnie! gritou Lummox, estendendo seus poderosos braços em um gesto universal de boas vindas.
John Thomas correu para a besta estelar.
- Lummie! Estás bem?
- Claro que sim disse Lummox. Por que não estaria? Olá Betty.
- Olá Lummie.
- A única coisa que tenho é fome acrescentou Lummox, muito pensativo.
- Já resolveremos isto.
- Não, deixa pra lá. Eles dizem que agora não posso comer.
John Thomas já se dispunha a responder adequadamente a esta surpreendente afirmação, quando observou que Myra Holtz se afastava apreensiva de um Hroshii Outros se juntavam ao seu companheiro, como se não soubessem que partido tomar. Quando John viu que Ed Cowen sacava sua pistola e se interpunha entre os Hroshii e Myra, disse imediatamente:
- Lummox! Esses aí são meus amigos. Diga aos seus compatriotas que os deixem em paz e voltem lá para dentro. Depressa!
- O que você quiser, Johnnie.
A Hroshia falou em sua linguagem aguda, dirigindo-se aos seus compatriotas e estes a obedeceram imediatamente.
- Faz um assento para nós. Iremos contigo e falaremos de tudo.
- Agora mesmo, Johnnie.
Os dois jovens treparam no dorso de Lummox e este se dirigiu para a brecha aberta na barreira. Quando Lummox voltou a entrar no campo magnético, parou e deus algumas ordens peremptórias a um dos Hroshii
O interpelado chamou outro no interior e o campo magnético desapareceu como por encanto. Então eles entraram na zona delimitada sem dificuldade.
Quando Henry Kiku, Sergei Greenberg e o doutor Ftaeml chegaram ao espaçoporto, encontraram-se em uma trégua entre os dois oponentes em potencial, que se vigiavam com atenção. A totalidade dos Hroshii estava atrás da barreira quebrada e grande quantidade de aparelhos militares tinham sido mudados de lugar pela patrulha policial, e, a bastante distância, em um lugar onde não poderiam ser vistos, os bombardeiros estavam preparados para o caso em que não houvesse mais remédio senão converter aquela zona em um deserto radioativo.
O secretário geral em pessoa, acompanhado pelo chefe do Estado Maior, recebeu-os junto à barreira. O primeiro mostrava um semblante grave.
- Ah Henry, parece que fracassamos Não é culpa sua, claro. Kiku olhou para os Hroshii apinhados.
- Talvez.
O chefe do Estado Maior acrescentou:
- Estamos evacuando o mais rápido possível a zona que seria afetada pela explosão. Mas, caso nos vejamos obrigados a bombardear, não sei o que poderemos fazer por esses dois jovens.
- Então não devemos fazer nada por enquanto, não acha?
- O que me parece é que você não se dá conta da gravidade da situação, senhor subsecretário. Por exemplo: nós pusemos um campo de imobilização ao redor de toda esta zona e ela desapareceu. Eles a anularam. E não foi só aqui, mas em todas as partes.
- Ah sim? Talvez seja você que não se dá conta da gravidade da situação, e não eu, general. De qualquer forma, somente algumas palavras não podem causar-nos danos. Venha comigo, Sergei. Vem também, doutor?
Kiku separou-se do grupo reunido em torno do secretário geral e dirigiu-se para a brecha aberta na barreira. O forte vento que percorria o largo campo, obrigou-o a segurar o chapéu.
- Não gosto do vento queixou-se ela ao doutor Ftaeml Ele desarruma tudo.
- Há um vento muito mais poderoso aí em frente respondeu o rargiliano com sobriedade. Meu amigo, acha que é prudente o que estamos fazendo? A mim eles não farão nada, pois estou ao seu serviço. Mas a você...
- Que mais eu posso fazer?
- Ignoro, mas há situações em que a coragem não serve para nada.
- Provavelmente. Mas ainda não me encontrei em nenhuma delas.
- Uma pessoa só se encontra em tais situações uma vez na vida.
E durante essa conversa, eles iam se aproximando da compacta massa de Hroshii que rodeava Lummox. Distinguiram as duas criaturas humanas colocadas sobre o dorso da Hroshia quando ainda se achavam a uma centena de metros de distância e Kiku se deteve.
- Diga-lhes que se afastem. Desejo aproximar-me da Hroshia Lummox.
Ftaeml traduziu estas palavras, mas nada aconteceu, embora os Hroshii tenham se agitado inquietos.
Greenberg disse:
- Chefe, e se pedisse a Lummox e aos dois garotos que se aproximassem? Esta multidão não me parece muito amistosa.
- Não. Não gosto de gritar com este vento. Faça o favor de chamar o jovem Stuart, e diga-lhe que os obrigue a nos deixar passar.
- Às ordens, chefe. Pelo menos terei alguma coisa para contar aos meus netos... se é que chegarei a tê-los. e formando uma concha com as mãos, gritou: Johnnie! John Stuart! Diga a Lummox que os obrigue a nos deixarem passar.
- Está bem!
Um caminho suficientemente largo para deixar passar uma coluna de tropas se abriu, como sob o efeito de uma vassoura gigantesca. A pequena comitiva avançou entre as fileiras dos Hroshii. Greenberg sentia que calafrios lhe percorriam a espinha, e notou que sua pele se arrepiava.
A única preocupação de Kiku parecia consistir em evitar que o vento lhe arrebatasse o chapéu. Lançava pragas entre os dentes, enquanto com uma das mãos segurava fortemente o chapéu. Pararam ao chegar em frente a Lummox.
- Como está, senhor Kiku? cumprimentou-o John Thomas. Quer que desçamos?
- Talvez fosse melhor.
Johnnie deslizou pelo costado de Lummox, e depois pegou Betty nos braços.
- Sinto muito por termos complicado as coisas.
- Eu também sinto muito. Quer me apresentar ao seu amigo, por favor?
- Oh, sim. Lummox, este é o senhor Kiku. Ele é uma excelente pessoa e um grande amigo meu.
- Como está, senhor Kiku?
- Bem, e você, Lummox? Kiku parecia pensativo. Doutor, não é o comandante, este que está junto da Hroshia? O que tem essa expressão tão feia no olhar.
O rargiliano assentiu.
- Sim, de fato é ele.
- Pergunte-lhe se ele informou à sua esposa sobre a conferência.
- Está bem. O medusoide falou com o comandante Hroshii e então respondeu: Ele disse que não.
- John Thomas, nós concluímos um tratado com os Hroshii com o fim de realizar tudo quanto falei com você. Mas de repente eles cancelaram o tratado, ao descobrir que nós nos negamos a entregar sua pessoa sem garantias. Você quer me ajudar a descobrir se são estes os desejos do seu amigo?
- Está se referindo a Lummox? Claro, agora mesmo.
- Obrigado. Espere um momento. Doutor Ftaeml, você quer comunicar os pontos essenciais do tratado à Hroshia Lummox... na presença do comandante? Ou tais conceitos escapam à sua compreensão?
- Por que poderiam escapar? Ela tinha talvez uns duzentos dos anos terrestres quando a trouxeram para cá?
- Tantos assim? Bem, pode informá-la.
O rargiliano começou a emitir um curioso lamento na língua Hroshii, dirigindo-se a Lummox. Este o interrompeu uma ou duas vezes, permitindo-lhe continuar logo a seguir. Quando Ftaeml terminou, a Hroshia falou com o comandante da expedição.
Ftaeml disse aos seres humanos:
- Ela está lhe perguntando: "isto está certo?"
O comandante abriu um círculo tão largo como lhe permitia o espaço, e arrojou-se diante dela, enquanto o pequeno grupo que representava a Federação lhe dava passagem. O comandante havia encolhido todas as suas patas e se arrastava como uma tartaruga. Sem levantar a cabeça do chão, gemeu alguma coisa em resposta.
- Ele admite a verdade dessas afirmações, mas disse, para desculpar-se, que o fez impelido pela necessidade.
- Que se apresse disse Kiku mal humorado. Estou congelando. Seus joelhos fracos tremiam.
- Lummox não aceita a explicação. Eu lhes fornecerei a tradução exata do que ela disse... mas sua retórica é soberba.
De repente, Lummox lançou um grande grito e então ergueu-se, levantando quatro das suas patas do chão. Encolhendo seus braços, a enorme besta baixou a cabeça e deu no comandante um tremendo golpe no lado, que levantou o Hroshii do solo, jogando-o entre a multidão. O comandante agredido voltou a pôr-se lentamente de pé, e arrastou-se novamente ante Lummox. Lummox começou a falar-lhe outra vez.
- Ela está lhe dizendo... quisera que pudessem ouvi-la em seu rico idioma! Que enquanto a Galáxia existir, os amigos de Johnnie são seus amigos. Acrescenta que aqueles que não são amigos dos seus amigos não são nada, menos que nada, e não quer nem vê-los. Está lhe ordenando em nome de... , agora está recitando sua árvore genealógica com todos seus complicados ramos, e para dizer a verdade é algo aborrecido. Querem que tente traduzir?
- Não se preocupe disse-lhe Kiku. "Sim" é "sim" em qualquer língua
- Mas ela falou de uma forma bela objetou Ftaeml. Recorda acontecimentos terríveis e maravilhosos, que se perdem na noite dos tempos...
- Isto só me interessa no que possa afetar o futuro... e estou farto de suportar este vento irritante Kiku espirrou. Ah, eu já entendi.
Ftaeml tirou sua capa e a pôs sobre os débeis ombros de Kiku.
- Meu amigo... irmão. Não sabe o quanto sinto.
- Não, não, assim você também ficará resfriado.
- Esta capa não combina comigo.
- Vamos dividi-la, então.
- É uma honra respondeu amavelmente o medusoide, enquanto seus tentáculos vibravam de emoção. Cobriu-se com sua parte da capa e ambos se apertaram sobe ela, enquanto Lummox finalizava sua peroração.
- Nunca fizeste uma coisa assim comigo disse Betty.
- Mas você já sabe, Bela Adormecida, que eu gosto de você.
- Bem, então me abrace, pelo menos.
- Na frente de todo mundo? Suba novamente em Lummox.
Enquanto falava, Lummox permanecia erguido. À medida que seu discurso avançava, os Hroshii ali reunidos foram prostrando-se, encolhendo as patas até ficarem na humilde postura do comandante. Por último, Lummox pareceu dar-se por satisfeito, terminando com uma incisiva observação. Os Hroshii agitaram-se e começaram a se mover.
- Ela disse traduziu Ftaeml que agora deseja ficar a sós.
- Peça-lhe ordenou-lhe Kiku que garanta ao seu amigo John Thomas que tudo quanto disse é verdade e será cumprido.
- Assim o farei.
Quando os outros Hroshii começaram a afastar-se a toda pressa, Ftaeml falou brevemente com Lummox.
Esta o escutou e logo voltou-se para John Thomas. De sua enorme boca brotou a vozinha infantil e aflautada.
- Tudo que eu falei é verdade, Johnnie. Eu juro. John Thomas assentiu solenemente.
- Não se preocupe, senhor Kiku. Pode confiar totalmente. É verdade.
16 NOVENTA E SETE PRATOS USUAIS
- Façam-na entrar.
O subsecretário de Assuntos Espaciais deu uma olhada na bandeja de chá e assegurou-se de que o íntimo salãozinho estava em condições. Neste momento a porta se abriu e Betty Sorensen entrou.
- Olá, senhor Kiku disse ela docemente.
Então sentou-se com grande compostura e circunspecção. Kiku disse:
- Como está, senhorita Sorensen?
- Chame-me Betty. Meus amigos me chamam assim
- Obrigado. Gostaria de contar-me entre eles.
Contemplou-a e estremeceu. Betty estava testando uma nova maquilagem em quadrados, que dava ao seu rosto o aspecto de um tabuleiro de xadrez. Além disto, notava-se às léguas que tinha ido às compras, pois vestia umas roupas pouco adequadas para uma garota da sua idade. Kiku viu-se obrigado a admitir que os costumes tinham mudado muito.
- Minha cara senhorita, o motivo porque a chamei aqui é algo difícil de explicar.
- Leve o tempo que quiser Não tenho pressa.
- Quer tomar chá?
- Permita-me que eu sirva para nós dois.
Kiku esperou que a jovem servisse o chá e então recostou-se com a xícara na mão, em uma atitude que contradizia seu verdadeiro estado de ânimo.
- Espero que sua estadia aqui tenha sido agradável.
- Certamente! Antes eu nunca tinha podido ir às compras sem ter que contar cuidadosamente o que podia gastar. Todo mundo tinha que ter uma conta corrente para seus gastos.
- Desfrute dela. Eu lhe asseguro que nunca figurará no orçamento anual... literalmente. É o nosso fundo secreto e discricionário. Você é órfã, não é verdade?
- Do ponto de vista jurídico, sim. Sou uma Menina Livre. Meu tutor é o Lar dos Meninos Livres de Westville. Por que me pergunta?
- Então, você não é maior de idade?
- Depende de como se veja. Eu opino que sim, mas o tribunal diz que não. Mas esta situação não durará muito.
- Sim, claro. Talvez eu deva dizer que já estava inteirado desses pormenores.
- Eu já achava que sim. Mas a que vem tudo isto?
- Bem, talvez fosse melhor que antes eu lhe contasse uma história. Já criou coelhos? Ou já teve gatos?
- Sim, eu já tive gatos.
- Surgiu uma dificuldade com a Hroshia que conhecemos pelo nome de Lummox. Não é nada grave e não afeta nosso tratado com essa raça, uma vez que ela já deu sua palavra. Mas... se pudéssemos satisfazer Lummox em uma determinada questão,
isto repercutiria em uma disposição mais favorável, e na melhoria das relações futuras.
- Suponho que seja assim, já que você está dizendo. De que se trata, senhor Kiku?
- Tanto você como eu sabemos perfeitamente que essa Hroshia Lummox tem sido há muito tempo o mascote de John Thomas.
- Com certeza. Que divertido, não?
- Claro. E que Lummox havia sido antes o mascote do pai de John Thomas, e assim sucessivamente durante quatro gerações.
- Sim, claro. Ninguém poderia ter encontrado um animalzinho mais dócil e carinhoso, nem um mascote mais original.
- Mas aí é que está precisamente a dificuldade, senhorita Sorensen... Betty. Este é o ponto de vista de John Thomas e seus antecessores. Mas em todas as questões existem pelo menos dois pontos de vista a considerar. Do ponto de vista de Lummox, ela... ele... não era um mascote. Ao contrário: John Thomas era seu mascote. Lummox se dedicava a criar uma série de John Thomas.
Betty arregalou os olhos e então começou a rir até quase se engasgar.
- Por Deus, senhor Kiku! Não é possível!
- Eu lhe asseguro que estou falando completamente a sério. É uma questão de pontos de vista, o que é muito razoável se considerarmos as durações respectivas de nossas vidas e das deles. Lummox havia criado várias gerações de John Thomas. Isto constituía o único passatempo de Lummox e sua principal ocupação. Muito infantil, claro, mas Lummox era e ainda é uma criança.
Betty conseguiu dominar-se o suficiente para dizer com fala entrecortada:
- O mascote de John Thomas. Johnnie sabe disto?
- Sabe sim, embora eu tenha lhe explicado de uma forma um pouco diferente.
- E a senhora Stuart sabe também?
- Não me pareceu necessário contar-lhe.
- Eu posso contar? Quero ver a cara dela. "Criando John Thomas" Oh! Isto é genial.
- Me parece que seria uma crueldade disse Kiku com rigidez.
- Sim, acho que sim. Bem, então não o farei. Mas permita pelo menos que eu imagine.
- Todos nós podemos pensar o que tivermos vontade. Mas continuemos: Lummox parece ter sido perfeitamente feliz com este inocente passatempo. É intensão da Hroshia continuar praticando-o indefinidamente. Esta foi a razão por que nós enfrentamos o curioso dilema de ver-nos incapazes de fazer os Hroshii partirem, depois que eles recuperaram sua criança perdida. Lummox quer continuar... criando John Thomas.
E vacilou.
Finalmente, Betty disse:
- Bem, senhor Kiku. Prossiga.
- Isto... quais são seus próprios planos, Betty... senhorita Sorensen?
- Meus planos? Ainda não falei deles com ninguém
- Perdoe-me essa indiscrição. Você verá que em toda empresa existem certas exigências, e Lummox, segundo parece, se dá conta de uma dessas exigências... Digamo-lo de outro modo, se temos um coelho... ou um gato...
Interrompeu-se, incapaz de continuar. Ela examinou o rosto desolado do ancião.
- Senhor Kiku, está tentando dizer que se precisam de coelhos para ter mais coelhos?
- Pois bem, sim. Essa é uma parte,
- Vamos, homem! Para que tantos rodeios? Isto todo mundo sabe. Suponho que o resto do assunto é que Lummox não ignora que a mesma regra se aplica aos John Thomas, não é isto?
Ele só pôde assentir em silêncio.
- Pobrezinho, porque não me comunicou por escrito? Teria sido menos violento para você. Suponho que terei que ajudá-lo a desembuchar o resto. Você acredita que eu possa me encaixar neste plano.
- Não desejo imiscuir-me... mas queria sondar suas intenções.
- Quer que eu me case com John Thomas. Esta sempre foi minha intenção, claro. Kiku suspirou.
- Obrigado.
- Oh, eu não falei para lhe agradar.
- Oh, não! Estou lhe agradecendo por ter me ajudado a dizer.
- Agradeça a Lummie, ao bom e velho Lummie. Lummox não se engana tão facilmente.
- Devo compreender então que já está tudo resolvido e acordado?
Eu ainda não me declarei a Johnnie, mas o farei... Estava esperando que faltasse pouco tempo para a partida da nave para fazer isso. Você sabe como são os homens... nervosos, tímidos e espantados. Não queria dar-lhe tempo para refletir. Sua esposa de declarou de imediato? Ou esperou que estivesse maduro para o sacrifício?
- Veja bem, os costumes do meu povo são um pouco diferentes. Seu pai combinou as coisas com o meu pai.
Betty pareceu surpresa
- Escravidão afirmou, pura e simplesmente.
- Não duvido disto. Mas não passei tão mal. levantou-se. Me alegro em havermos concluído nossa conversa tão amistosamente.
- Espere um momento, senhor Kiku. Ainda há algumas coisas. Que se propõem a fazer com respeito a John Thomas?
- Que quer dizer?
- Estou me referindo ao emprego que lhe oferecem.
- Temos a intenção de nos mostrarmos muito generosos no plano econômico. Ele dedicará a maior parte do tempo à sua instrução, mas eu havia pensando em dar-lhe um título na embaixada... agregado especial, secretário auxiliar, ou alguma coisa do tipo. Betty permanecia silenciosa e Kiku continuou:
- E já que você o acompanha, eu pensei em conceder-lhe um cargo de nível semioficial. Que lhe parece ajudante especial, e com o mesmo salário? Lhe permitiria reunir um pé-de-meia para a volta... se é que pensam em voltar.
Ela balançou a cabeça negativamente.
- John não é ambicioso, mas eu sim.
- Ah, sim?
- Johnnie tem que ir como embaixador para os Hroshii
- Kiku caiu na cadeira, mas por fim conseguiu gaguejar:
- Mas minha cara senhorita! Isto é impossível!
- Isso é o que você acha. Veja bem, o senhor MacClure deu nos calcanhares e lhe devolveu sua nomeação, não é mesmo? Não me venha com evasivas. Eu tenho minhas conexões no seu departamento para inteirar-me do que ocorre por lá. Repito-lhe que ele se demitiu e portanto o cargo está vago. E será de Johnnie.
- Mas senhorita disse ele debilmente, este cargo não pode ser ocupado por um garoto sem experiência e sem os conhecimentos que requer...
- MacClure não era mais que um figurão. Isto é do domínio público. Mas Johnnie não será nenhum figurão. Quem sabe mais coisas sobre os Hroshii? Johnnie, sem dúvida.
- Senhorita, admito que ele possui conhecimentos especiais sobre a matéria e eu lhe asseguro que os utilizaremos. Mas não para embaixador.
- Sim.
- E que tal encarregado de negócios? Que lhe parece? É um cargo extraordinariamente elevado. Mas o senhor Greenberg tem que ser o embaixador. Falta-nos um diplomata neste posto.
- O que há de difícil no cargo de diplomata? Ou, dito de outra forma, que poderia fazer o senhor MacClure que meu Johnnie também não pudesse fazer?
Kiku deixou escapar um profundo suspiro.
- Você me deixou num beco sem saída. A única coisa que posso dizer é que às vezes eu me encontro diante de situações em que me vejo obrigado a aceitar, embora sabendo que são equivocadas, e em outras em que não tenho necessidade de aceitar. Se você fosse minha filha eu lhe daria uma surra. A resposta é não.
Ela sorriu.
- Me parece que você não está entendo a situação como ela é na realidade.
- Não?
- Não. Johnnie e eu somos muito importantes para vocês no assunto que têm em mãos, não? Especialmente Johnnie.
- Sim. Especialmente Johnnie. Você não é tão essencial... nem sequer para... a criação de John Thomas.
- Quer fazer um teste? Acha que poderá arrancar John Thomas deste planeta se eu me opuser a isto?
- Duvido.
- Eu também. Mas sou bastante teimosa para fazer o teste. Se eu ganhar, como vocês ficarão? Em um campo batido pelo vento, tentando sair da enrascada com argúcias e subterfúgios outra vez... mas sem Johnnie para ajudá-los.
Kiku dirigiu-se para uma janela e olhou para fora e logo voltou-se.
- Mais chá? perguntou-lhe Betty cortesmente.
- Não obrigado. Você tem alguma ideia, senhorita, do que é um embaixador extraordinário e ministro plenipotenciário?
- Sei alguma coisa sobre isto.
- Tem o mesmo nível e pagamento de um embaixador, exceto de que trata-se de um caso especial. O senhor Greenberg será o embaixador e ostentará a autoridade que lhe confere o cargo. O nível especial e meramente nominal corresponderá a John Thomas.
- Nível e pagamento respondeu ela. Gosto de fazer compras.
- E pagamento concordou Kiku. Senhorita, você tem a moral de um caimão e a cara mais dura que a casca de um coco. Muito bem, de acordo... se conseguir que seu jovem amigo esteja de acordo também.
Ela deu um risinho.
- Não terei a menor dificuldade.
- Não estou querendo dizer isto. Conto com senso comum e modéstia natural quanto ao seu ganho. Creio que se conformará em ser secretária auxiliar de embaixada.
- Oh sim, já veremos. A propósito, onde ele está?
- Hein?
- Ele não está no hotel. Você o tem aqui, não é verdade?
- Sim, ele está aqui.
- Muito bem dirigiu-se para Kiku e deu-lhe umas palmadinhas carinhosas na bochecha. Gosto de você, senhor Kiku. Agora faça Johnnie vir para cá e deixe-nos a sós. Demorarei uns vinte minutos para convencê-lo. Não precisa se preocupar com nada absolutamente.
- Senhorita Sorensen perguntou Kiku maravilhado, com é que não pediu o cargo de embaixador para você mesma?
Lummox foi o único ser não humano que assistiu o casamento. Henry Kiku foi padrinho da noiva. Observou que ela não estava maquiada, o que o fez se perguntar se o jovem secretário de embaixada não terminaria usando as calças na sua casa, afinal. Receberam os costumeiros noventa e sete pratos usuais, quase todos estranhos, e presentes muito valiosos que não pensavam em levar, incluindo uma viagem paga ao Havai, que não poderiam usar de modo algum. A mãe de Johnnie chorou, deixou-se fotografar e se divertiu muitíssimo. Claro, foi um casamento muito chique. Kiku verteu algumas lágrimas enquanto os contraentes davam o sim, mas é que ele era um homem muito sentimental.
Na manhã seguinte, estava sentado em seu gabinete, com seus folhetos agrícolas do Kenia estendidos à sua frente. Mas na realidade não estava olhando para eles. O doutor Ftaeml e ele haviam dado uma volta pela cidade depois do casamento e Kiku recordava, sentindo-se tranquilo e sossegado. Apesar do zumbido na cabeça e que lhe custava coordenar as ideias, seu estômago não o incomodava. Sentia-se muito bem.
Esforçava-se para passar em revista todo o assunto. Todos aqueles encontrões e todos os dissabores por culpa de um estúpido navegador estelar que cem anos atrás não teve juízo suficiente para não imiscuir-se na vida nativa até que tivessem sido estabelecidas as devidas relações Oh, os homens, os homens!
O bom Ftaeml havia dito alguma coisa à noite... algo que... O que ele havia dito na realidade? Alguma coisa que, no momento, convenceu Kiku de que os Hroshii jamais haviam possuído armas capazes de destruir a Terra ou de causar-lhe graves danos. Claro que um rargiliano não podia mentir, pelo menos no exercício das suas funções de intérprete... mas, ele não poderia ignorar habilmente a verdade, com o fim de concluir satisfatoriamente uma negociação que parecia fadada ao fracasso?
Bem, já que tudo tinha sido resolvido sem terem que recorrer à violência, a dúvida permanecia de pé. E talvez fosse melhor assim. Além disso, os próximos pagãos que se apresentassem talvez não fanfarronassem. Isto já seria mais desagradável. Escutou a voz da sua secretária:
- Senhor Kiku, a delegação de Randavia está esperando.
- Diga-lhes que estou trocando as penas.
- Como, senhor?
- Nada não. Diga-lhes que os receberei em seguida. Mande-os à sala de conferência leste.
Suspirou, engoliu uma pílula e levantou-se. Dirigiu-se para a porta disposto a seguir adiante. É uma obrigação indesculpável, pensou, uma vez começada não poderia deixá-la.
Mas continuava sentindo-se contente, e pôs-se a cantarolar um fragmento da única canção que sabia, enquanto se dirigia para a sala de conferências: "... esta história não tem moral, esta história não tem final. Esta história nos mostra que no homem só existe o mal".
À vontade, no espaçoporto, o ministro de Assuntos Espaciais se despedia dos nobres Hroshii. Sua Alteza Imperial, a Infanta daquela raça, a de número 213 da sua estirpe, herdeira do matriarcado dos Sete Sois, futura rainha de nove bilhões de súditos da sua própria espécie, e mais tarde apodada de "A Lummox", embarcou na nave imperial, transbordante de satisfação, em companhia dos seus dois queridos mascotes.
Robert A. Heinlein
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