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Primeira mulher do continente americano a ganhar o prêmio Nobel de literatura, Pearl S. Buck pertence a uma categoria de autores que tiveram enorme repercussão em sua época, mas que hoje precisam ser redescobertos. Passa-se com a escritora aquilo que aconteceu com nomes como Romain Rolland ou Stefan Zweig: prestigiados e influentes por causa de uma postura política lúcida, pacifista, de uma reivindicação de direitos humanos avessa a sectarismos e aberta às diferenças culturais, foram “esquecidos” pelos mesmos motivos que os tornaram célebres, ou seja, por razões extraliterárias, ideológicas.
A exemplo do romancista francês e do ensaísta austríaco, Pearl S. Buck parecia relegada às estantes dos sebos, como se o caráter militante de sua obra tivesse sido suplantado pelas formas mais radicais e eficazes de engajamento que se seguiram à Segunda Guerra, período no qual os traços mais marcantes de sua literatura – a atenção aos deserdados da terra, ao diálogo inter-racial e, sobretudo, à condição feminina – já haviam se consolidado.
Hoje, porém, é essa terminologia que parece datada. A publicação de A boa terra pelo selo Alfaguara oferece, assim, a possibilidade de ler sob nova luz este romance, considerado pela crítica o ponto alto de uma produção que traz os vestígios da experiência de vida da autora.
Filha de missionários protestantes, Pearl S. Buck foi educada na China, tornando-se “culturalmente bifocal” (segundo sua próprias palavras) a ponto de dominar dois idiomas e, portanto, ter uma visão do Oriente despida de qualquer idéia preconcebida. Como o leitor percebe logo nas primeiras páginas do romance, esta saga de um lavrador que enfrenta as árduas condições sociais de um país rigidamente hierarquizado poderia sem maiores dificuldades ser transplantada para outros solos.
Pearl não enxerga as personagens Wang Lung e O-lan (ex-escrava com a qual o protagonista se casa) como “chineses”, mas como dois seres cuja humanidade vai sendo progressivamente deformada, ora pela pobreza extrema, ora pela brutalidade da exploração do trabalho. O livro não apresenta personagens estereotipadas num ambiente típico, não apela para a “cor local” – procedimento dos escritores românticos que visava ampliar os limites estreitos de seu mundo (daí os livros de viagem de autores como Goethe e Stendhal), mas que na era do turismo acabou redundando em literatura de entretenimento que anestesia a experiência do estranho, apresentando-o em roupas exóticas.
E, se Pearl S. Buck consegue evitar os clichês, isso ocorre porque ela talvez nunca tenha se sentido uma estrangeira nesse país continental. Segundo o historiador James Thomson – em frase citada pelo biógrafo Peter Conn –, ela foi “o mais influente ocidental a escrever sobre a China desde Marco Polo, no século XIII”. E o próprio Conn assinala que a filha dos pastores presbiterianos Absalom e Carie Sydenstricker, à diferença dos outros escritores de sua geração, cresceu em contato com uma China real, bem diversa das conjecturas simplificadoras que vicejavam nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, ela nunca perdeu de vista o fato de pertencer a uma minoria étnica – sentimento de exclusão amplificado por sua condição feminina num país que rebaixou a mulher a um estado de completa sujeição.
Esses dois traços aparecem de chofre na passagem que abre o romance, na qual o casamento de Wang Lung com a ex-escrava é descrito não como realização afetiva ansiosamente esperada, ou como projeto de continuidade de seu clã, mas como libertação dos afazeres domésticos. Com uma crueldade acentuada pelo tom seco da escrita de Pearl, que naturaliza a maneira utilitária com que seu protagonista encara o matrimônio, o narrador expõe as hesitações que precederam o enlace.
Na comunidade à qual pertence Wang Lung, dizia-se: “É melhor viver só do que se casar com uma mulher que foi escrava numa casa grande” – frase que traduz o hábito, corriqueiro nessa China senhorial, de produzir uma classe de mulheres que, quando crianças, eram vendidas pelas famílias pobres para servirem como escravas dos estratos mais abastados. Wang Lung deverá, portanto, escolher entre permanecer celibatário ou desafiar um senso comum que aceita tal prática sem contudo abdicar da condenação moral que passa a recair sobre elas.
Na seqüência inicial de A boa terra, em que são descritos os preparativos desse casamento ditado por razões pragmáticas, Wang Lung já tomou sua decisão. Pajem do pai desde a morte da mãe, o protagonista se vê prestes a transferir para a esposa-escrava (e para a prole vindoura) sua servidão doméstica: “Todas as manhãs nesses seis anos, o velho esperara o filho vir lhe trazer água quente para aliviá-lo da tosse matinal. Agora pai e filho poderiam descansar. Estava chegando uma mulher na casa. Nunca mais Wang Lung teria que se levantar inverno e verão ao romper da aurora para acender o fogo. Poderia esperar deitado na cama, e também teria uma tigela de água trazida para ele, e se a terra fosse fecunda, haveria folhas de chá na água. (...) E se a mulher se cansasse, haveria os filhos dela para acender o fogo, os muitos filhos que ela teria de Wang Lung.” E, quando vai até a Casa de Hwang (grande propriedade senhorial localizada na cidade) para buscar sua noiva, ele ouve da governanta as palavras que reiteram essa relação servil: “Tome-a e use-a bem. Ela é uma boa escrava, embora meio lenta e burra.”
Arma-se, assim, um esquema que percorre as diversas idas e vindas de um romance no qual a crueza de laços sociais ditados pela necessidade não oblitera, entretanto, as nuances psicológicas. Este é o ponto a se ressaltar nessa leitura propiciada pelo relançamento da obra maior de Pearl S. Buck. A boa terra é certamente um afresco da China pré-revolucionária, em que a questão agrária e a contaminação das relações familiares e afetivas pela estrutura produtiva ocupam a boca de cena. Reduzi-lo a esse viés de denúncia social, contudo, seria confirmar o veredicto que durante tantas décadas transformou a obra da autora norte-americana num artefato obsoleto.
Pearl não é uma inovadora do ponto de vista da criação literária, da linguagem e do repertório das formas narrativas. Contemporânea das vanguardas do início do século XX, sua obra assemelha-se mais ao realismo oitocentista, com as crônicas da vida burguesa e proletária e as tensões de classe fornecendo o pano de fundo para um retrato exemplar das contradições íntimas. Em A boa terra, testemunhamos a lenta transformação de Wang Lung, cuja trajetória para deixar de ser lavrador e tornar-se proprietário de terras vai mostrando as mutações de valores e a perversidade comum que enlaça opressores e oprimidos.
Numa China assolada pelo flagelo da fome, em que correm boatos sobre canibalismo, Wang Lung vê na mulher uma parideira e, em cada filho homem que nasce, um sinal de prosperidade, confirmado pela compra de sua primeira gleba de terra. A decepção com o nascimento da primeira filha (que mais à frente ele descobrirá ser uma criança com retardamento mental) soa como prenúncio de maus tempos.
De uma hora para outra, o pequeno agricultor se vê na condição de pária, obrigado a abandonar o campo e a vagar com a família pelas ruas da cidade, mendigando e comendo nas cozinhas públicas. A doce frugalidade que garantira momentos de conforto e o fizera olhar para a mulher com enternecimento cede lugar a um desespero homicida: O-lan assassina o quarto filho logo após o nascimento e Wang Lung cogita vender a pequena filha como escrava.
Nesse ponto extremo, surgem as ambigüidades que fazem do livro uma anatomia da servidão humana que vai além dos aspectos meramente econômicos. Pois é só quando um dos filhos rouba carne no açougue que a indignação do lavrador chega a seu limite; a desonra pública é mais insuportável do que as pequenas atrocidades familiares e Wang Lung decide voltar a suas origens camponesas. “Seu lugar era a terra e ele não podia viver plenamente enquanto não sentisse a terra sob os pés, não seguisse um arado na primavera e não carregasse uma foice na mão durante a colheita.” O que parece uma idealização do campo em contraposição à cidade, porém, logo mostra serem ambos a face de uma mesma moeda. Na cidade, a ostentação do luxo torna explícitos a impessoalidade das relações sociais e o caráter contratual da exploração; no campo, as relações sociais baseadas na tradição dos laços comunitários supostamente mitigam a desigualdade, mas é justamente esse enraizamento que legitima e perpetua a violenta submissão a uma determinada ordem.
Em literatura, porém, esse viés sociológico sempre aparece filtrado pela imaginação – e Pearl S. Buck, cuja militância política lhe valeu perseguições durante o período do macartismo, foi sobretudo uma escritora. Isso significa que em A boa terra os acontecimentos estarão sujeitos a uma gratuidade que não cancela – antes intensifica – a força da representação de uma realidade que a ficção examina sob ângulos sempre inesperados e iluminadores.
Assim, a volta de Wang Lung e família para o campo é favorecida por acasos decisivos: a eclosão de uma guerra e a destruição dos portões da casa senhorial levam a uma onda de saques; de posse de dinheiro e jóias, ele conseguirá retomar a semeadura de sua gleba e recomeçar a vida.
O fortuito, todavia, não será aquela marca que singulariza o destino do herói. A mudança de status social de Wang Lung se encaixa de modo verossímil no contexto dessa China em convulsão e permite a Pearl S. Buck investigar sob outro prisma as deformações da subjetividade nessa sociedade embrutecedora. O camponês que se torna senhor de terras passa a olhar de outro modo para as pessoas à volta, adquire novos desejos e temores: percebe que a mulher, “criatura fiel e opaca”, não sacia seus novos apetites e arruma uma concubina; projeta a humilhação do analfabetismo nos filhos, enviando-os para a escola; descobre que o tio invejoso de sua riqueza é integrante dos Barbas Vermelhas, gangue que arrasa os vilarejos da região, e, intimidado, acolhe sua família de sanguessugas.
As tensões, que nas primeiras partes do romance ocorriam em espaços externos, públicos, passam-se agora nos aposentos e edificações da propriedade da “grande família Wang”, como agora é reconhecido seu clã. As rivalidades entre as concubinas, a submissão das mulheres aos desejos de seu senhor e a disputa sexual que se estabelece entre o pai e um de seus filhos assinalam essa nova modalidade de exercício do poder, cuja moeda é a posse do corpo.
A atmosfera criada por Pearl S. Buck remete àquela sensualidade asfixiante, eivada de conspirações e traições, do filme Lanternas Vermelhas, de Yimou Zhang (1991), em que a autoridade invisível do patriarca impregna cada gesto.
Pearl S. Buck compôs a narrativa fechada de uma sociedade que parecia imóvel – imobilismo que se transfere para o ritmo sem sobressaltos de sua escrita, que vai acumulando acontecimentos. Em apenas dois momentos percebe-se um elemento externo a esse mundo.
No primeiro deles, Wang Lung recebe de um estrangeiro, missionário como os pais de Pearl, um papel no qual está impresso “o retrato de um homem, um homem branco, pendurado numa cruz de madeira. O homem estava sem roupas a não ser por uma tanga em volta dos quadris e, aparentemente, estava morto, uma vez que tinha a cabeça caída sobre o ombro e os olhos fechados acima dos lábios cobertos de barba. Wang Lung olhou horrorizado e com crescente interesse para o retrato do homem. Havia caracteres embaixo, mas, esses, ele não conseguia entender”.
No segundo, recebe um panfleto anticapitalista que mostra “um homem igual ao próprio Wang Lung, um sujeito comum”, sendo esmagado por “um homem grande e gordo, que o apunhalava com uma faca comprida”.
Em ambas as passagens, Wang Lung toma contato com algo que pode transformar seu mundo, mas que ainda não pertence a ele. Talvez não haja metáfora melhor para o livro de Pearl S. Buck: uma obra de ficção que, sendo ao mesmo tempo fiel e crítica em relação à realidade representada, abre brechas para a imaginação e para a utopia.
Manuel da Costa Pinto
Colunista da Folha de S. Paulo, coordenador editorial do Instituto Moreira Salles, autor de Albert Camus – Um elogio do ensaio (Ateliê) e Literatura Brasileira Hoje (Publifolha).
Foi isso que Vinteuil fizera pela pequena frase. Swann achou que o compositor se contentara (com os instrumentos à sua disposição) em desvelá-la, dar-lhe visibilidade, acompanhando e respeitando seus contornos com uma mão tão amorosa, tão prudente, tão delicada e tão segura, que o som se alterava a todo momento, embotando-se para indicar uma sombra, reavivando-se de repente quando precisava acompanhar o contorno de uma projeção mais ousada. E uma prova de que Swann não estava errado quando acreditava na existência real desta frase era que quem quer que tivesse um ouvido musical requintado detectaria de imediato a impostura, tivesse Vinteuil, dotado de menos capacidade de ver e transmitir suas formas, procurado dissimular (acrescentando, aqui e ali, uma linha de sua invenção) a imprecisão de sua visão ou a fraqueza de sua mão.
— Marcel Proust, No caminho de Swann
Capítulo 1
Era o dia do casamento de Wang Lung. No primeiro momento, quando abriu os olhos na escuridão das cortinas de sua cama, não atinou por que o amanhecer parecia diferente de todos os outros. No silêncio da casa, só ouvia a tosse fraca e ofegante de seu velho pai, cujo quarto ficava em frente ao dele do outro lado da sala central. Todas as manhãs, a tosse do velho era o primeiro som que se ouvia. Wang Lung em geral ficava deitado a escutá-la e só se mexia quando a ouvia mais próxima e a porta do quarto do pai rangia nas dobradiças de madeira.
Mas, nesta manhã, ele não esperou. Pulou da cama e abriu as cortinas. Era um amanhecer escuro e avermelhado, e pela pequena abertura quadrada de uma janela, onde o papel esfarrapado esvoaçava, brilhou uma nesga de céu cor de bronze. Ele foi até a abertura e rasgou o papel.
— É primavera e não preciso disso — resmungou.
Envergonhava-se de dizer em voz alta que queria que a casa parecesse em ordem naquele dia. A abertura era tão apertada que mal dava para sua mão passar e ele a meteu para fora a fim de sentir o ar. Uma brisa suave soprava do leste, uma brisa amena e murmurante e plena de chuva. Era um bom presságio. Os campos precisavam de chuva para frutificar. Não choveria naquele dia, mas em pouco tempo, se aquele vento continuasse, haveria água. Isso era bom. Ontem, ele dissera ao pai que, se aquele sol abrasador e inclemente continuasse, o trigo não espigaria. Agora era como se o céu tivesse escolhido esse dia para lhe desejar boa sorte. A terra daria frutos.
Entrou depressa na sala central, vestindo as calças no caminho e amarrando na cintura a faixa de tecido de algodão azul. Ficou de peito nu até acabar de aquecer a água para se banhar. Foi até o alpendre que servia de cozinha e, no lusco-fusco, ao lado da porta, surgiu a cabeça de um boi que mugiu fundo para ele. A cozinha era feita dos mesmos tijolos de barro que a casa, grandes quadrados de terra tirada de seus próprios campos, e coberta de palha de seu próprio trigo. Daquela mesma terra, seu avô, na juventude, fabricara também o forno, que os muitos anos de preparação de refeições haviam cozido e enegrecido. Em cima dessa estrutura de barro erguia-se um caldeirão de ferro fundo e redondo.
Ele encheu esse caldeirão parcialmente de água, tirada de cuia de um jarro que estava ali perto, mas com cuidado, pois a água era preciosa. Em seguida, após hesitar um pouco, levantou o jarro e esvaziou toda a água do caldeirão. Naquele dia, lavaria o corpo inteiro. Desde criança no colo da mãe, ninguém olhava seu corpo. Hoje, alguém olharia, e ele desejava estar limpo.
Passou por trás do forno, e, escolhendo um punhado de capim seco no canto da cozinha, dispôs tudo delicadamente na boca do forno, tirando o melhor partido de cada folha. Depois, com uma pederneira e um pedaço de ferro velhos, produziu uma centelha e ateou fogo à palha.
Aquele era o último dia em que precisaria acender o fogo. Acendera-o todas as manhãs desde que a mãe morrera havia seis anos. Acendia o fogo, fervia a água, despejava-a numa tigela e levava-a ao quarto onde o pai estava sentado na cama, tossindo e tateando à procura dos sapatos no chão. Todas as manhãs nesses seis anos, o velho esperara o filho vir lhe trazer água quente para aliviá-lo da tosse matinal. Agora pai e filho poderiam descansar. Estava chegando uma mulher na casa. Nunca mais Wang Lung teria que se levantar inverno e verão ao romper da aurora para acender o fogo. Poderia esperar deitado na cama, e também teria uma tigela de água trazida para ele, e se a terra fosse fecunda, haveria folhas de chá na água. Em alguns anos, às vezes era assim.
E se a mulher se cansasse, haveria os filhos dela para acender o fogo, os muitos filhos que ela teria de Wang Lung. Wang Lung parou, quando lhe ocorreu a idéia de crianças correndo pelos três quartos da casa. Sempre parecera que três quartos eram demais para eles, na casa meio vazia desde a morte de sua mãe. Estavam sempre tendo que resistir aos parentes que viviam mais apertados — o tio, com sua interminável prole, sugerindo:
— Ora, como dois homens sozinhos podem precisar de tanto espaço? Pai e filho não podem dormir juntos? O calor do corpo do jovem confortará a tosse do velho.
Mas o pai sempre respondia:
— Estou poupando minha cama para meu neto. Ele aquecerá meus ossos na minha velhice.
Agora os netos iam chegar, netos atrás de netos! Teriam que colocar camas ao longo das paredes na sala central. A casa estaria cheia de camas. O fogo no forno morreu enquanto Wang Lung pensava em todas as camas que haveria na casa meio vazia, e a água começou a esfriar no caldeirão. A figura sombria do velho apareceu no portal, segurando no corpo as roupas desabotoadas. Tossia e cuspia dizendo ofegante:
— Como ainda não tem água para me esquentar os pulmões?
Wang Lung ficou olhando para ele, depois caiu em si, envergonhado:
— Essa lenha está úmida — resmungou detrás do fogão. — O vento úmido...
O velho continuou tossindo obstinadamente, sem parar, até a água ferver. Wang Lung encheu uma tigela, e então, pouco depois, abriu um pote vitrificado que estava numa aba do fogão, tirou dali mais ou menos uma dúzia das folhas secas enroladas e espalhou-as na superfície da água. O velho arregalou os olhos gulosamente, mas logo começou a reclamar.
— Por que você é perdulário? Tomar chá é comer dinheiro.
— É o dia — respondeu Wang Lung com uma risada curta. — Tome e se reconforte.
O velho pegou a tigela com os dedos enrugados e nodosos, resmungando e emitindo pequenos grunhidos. Observou as folhas se desenrolarem e se espalharem na superfície da água, incapaz de admitir beber o precioso líquido.
— Vai esfriar — disse Wang Lung.
— É verdade... é verdade... — disse o velho alarmado, e começou a tomar grandes goles do chá quente, com uma satisfação animal, como uma criança fixada na comida. Mas não estava tão distraído a ponto de deixar de ver Wang Lung enchendo temerariamente uma funda tina de madeira com a água do caldeirão. Levantou a cabeça e olhou para o filho.
— Essa água toda dá para fazer uma colheita frutificar — disse subitamente.
Wang Lung continuou despejando a água até a última gota. Não respondeu.
— Alto lá! — gritou o pai.
— Não lavo meu corpo desde o Ano-novo — disse Wang Lung em voz baixa.
Ficou com vergonha de dizer ao pai que queria ter o corpo limpo para uma mulher o ver. Saiu depressa, levando a tina para o quarto. A porta estava meio solta no caixilho de madeira empenada e não fechava direito, então o velho correu para a sala central, pôs a boca na abertura e gritou:
— Vai ser ruim se acostumarmos a mulher assim — chá de manhã e esse banho todo!
— É só um dia — gritou Wang Lung. Depois acrescentou: — Vou jogar a água na terra quando terminar e não será tudo desperdício.
O velho ficou quieto diante disso, e Wang Lung desamarrou a cinta e se despiu. No quadrado de luz que entrava pela abertura, torceu uma toalhinha com água fumegante e esfregou vigorosamente o esguio corpo moreno. Embora tivesse achado que estava quente, quando umedeceu a pele, sentiu frio; correu com o processo, mergulhando a toalha na água e retirando-a até que de todo seu corpo saía uma delicada nuvem de vapor. Depois, foi até uma arca que pertencera à sua mãe e tirou dali de dentro uma roupa limpa de algodão azul. Talvez sentisse um pouco de frio naquele dia sem as roupas de inverno acolchoadas, mas de repente não conseguia admitir o contato delas na pele limpa. Tinham a capa rasgada e imunda, e o forro saía pelos furos, cinzento e úmido. Ele não queria que essa mulher o visse pela primeira vez com o forro saindo para fora das roupas. Mais tarde, ela teria que lavar e cerzir, mas não no primeiro dia. Ele vestiu o casaco e as calças de algodão azul e uma túnica comprida do mesmo tecido — sua única túnica comprida, que só usava em dias de festa, mais ou menos dez dias por ano, ao todo. Então, com dedos ágeis, desfez a longa trança que lhe caía nas costas, e, pegando um pente de madeira na gaveta da mesinha bamba, começou a pentear o cabelo.
Seu pai se aproximou de novo e pôs a boca na fresta da porta.
— Não vou ter nada para comer hoje? — reclamou. — Na minha idade, os ossos são água de manhã até receberem comida.
— Já vou — disse Wang Lung, trançando o cabelo depressa e serenamente e entrelaçando as mechas com um cordão de borlas de seda preta.
Aí, logo depois, tirou a túnica comprida e enrolou a trança em volta da cabeça e saiu, carregando a tina de água. Quase esquecera o café-da-manhã. Misturaria um pouco de água na farinha de milho e daria ao pai. Ele mesmo não conseguiria comer. Foi trôpego com a tina até a entrada e despejou a água na terra o mais junto da porta, e, ao fazer isso, lembrou-se que usara toda a água do caldeirão para o banho e teria que tornar a acender o fogo. Ficou irritado com o pai.
— Aquela cabeça velha só pensa em comer e beber — resmungou na boca do forno; mas, em voz alta, não disse nada. Era a última manhã em que teria de preparar comida para o velho. Pôs um pouquinho d’água no caldeirão, tirando-a com um balde de um poço junto à porta. A água ferveu logo, ele preparou o mingau e levou-o para o velho.
— Vamos comer arroz hoje à noite, meu pai — disse. — Enquanto isso, tem aí milho.
— Só sobrou um pouquinho de arroz no cesto — disse o velho, sentando-se à mesa na sala central e mexendo com os pauzinhos o espesso mingau amarelo.
— Então, vamos comer um pouco menos do que na última festa da primavera — disse Wang Lung. Mas o velho não ouviu. Tomava ruidosamente a papa da tigela.
Wang Lung foi para seu quarto, tornou a vestir a túnica azul comprida e desenrolou a trança. Passou a mão na testa raspada e nas faces. Talvez fosse melhor estar recém-barbeado. O sol ainda não despontara. Poderia passar pela rua dos Barbeiros e fazer a barba antes de ir para a casa onde a mulher esperava por ele. Se tivesse dinheiro, faria isso.
Tirou da cinta uma bolsinha sebosa de tecido cinza e contou o dinheiro que havia lá dentro: seis dólares de prata e dois punhados de moedas de cobre. Ainda não contara ao pai que convidara amigos para jantar naquela noite. Convidara o primo mais moço e o tio por causa do pai, e três fazendeiros vizinhos que moravam na aldeia com ele. Planejara naquela manhã trazer da cidade carne de porco, um peixe de água doce pequeno e um punhado de castanhas. Talvez até comprasse um pouco de brotos de bambu do sul e um pouco de carne de vaca para ensopar com o repolho que plantara no jardim. Mas isso só se sobrasse dinheiro depois de comprados o óleo vegetal e o molho de soja. Se raspasse a cabeça, talvez não pudesse comprar a carne. Bem, rasparia a cabeça, decidiu de repente.
Não disse nada, deixou o pai e saiu ainda de manhãzinha. Apesar da aurora vermelho-escura, o sol subia nas nuvens do horizonte e faiscava no orvalho que cobria os pés de trigo e de cevada. O lavrador que havia em Wang Lung distraiu-se um instante e ele parou para examinar os brotos que saíam. Estavam vazios ainda e esperando a chuva. Ele cheirou o ar e olhou com ansiedade para o céu. A chuva estava ali, nas nuvens pretas, no vento abafado. Ele compraria um bastão de incenso e o colocaria no pequeno templo do Deus da Terra. Num dia como aquele faria isso.
Foi seguindo seu caminho pela trilha dos campos. Não muito longe, erguia-se o muro cinzento da cidade. Do outro lado da porta no muro por onde ele entraria ficava a casa grande onde a mulher era escrava desde criança, a Casa de Hwang. Havia aqueles que diziam: “É melhor viver só do que se casar com uma mulher que foi escrava numa casa grande.” Mas quando ele perguntara ao pai: “Nunca vou ter uma mulher?”, o pai respondeu:
— Com os casamentos custando o que custam nesta época ruim e com as mulheres querendo anéis de ouro e roupas de seda antes de tomar um homem, os pobres só podem ter escravas.
Seu pai então agira e fora à casa de Hwang perguntar se havia uma escrava disponível.
— Que não seja muito jovem, nem, sobretudo, bonita — dissera.
Wang Lung sofrera por ela não dever ser bonita. Gostaria de ter uma mulher bonita, que os outros homens o felicitassem por tê-la. O pai, vendo sua cara revoltada, gritara-lhe:
— E o que faremos com uma mulher bonita? Precisamos de uma mulher que cuide da casa e tenha filhos enquanto trabalha no campo. E uma mulher bonita fará essas coisas? Estará sempre pensando em roupas para combinar com a cara! Não, nada de mulher bonita em nossa casa. Somos lavradores. Além do mais, quem já ouviu falar de uma bela escrava que fosse virgem numa casa abastada? Todos os senhores jovens já se saciaram com ela. É melhor ser o primeiro com uma mulher feia do que o centésimo com uma bonita. Você acha que uma bela mulher vai achar suas mãos de lavrador tão agradáveis quanto as mãos macias de um filho de rico, e sua cara queimada do sol tão bela quanto a pele dourada dos outros que a tiveram para o seu prazer?
Wang Lung sabia que o pai estava certo. Contudo, teve que lutar com sua carne antes de poder responder. E aí, falou com violência:
— Pelo menos, não quero uma mulher que tenha cara bexiguenta nem lábio leporino.
— Vamos ter que ver o que há disponível — respondeu o pai.
Bem, a mulher não era bexiguenta nem tinha lábio leporino. Isso ele sabia, mas nada mais. Ele e o pai haviam comprado dois anéis de prata banhada a ouro e brincos de prata, e estes o pai levara ao dono da mulher como reconhecimento do noivado. Além disso, nada sabia da mulher que seria sua, a não ser que nesse dia poderia ir buscá-la.
Entrou na escuridão fria do portão da cidade. Os aguateiros, acabando de sair com os carrinhos de mão carregados de grandes tinas de água, passavam para lá e para cá o dia inteiro, a água respingando das tinas nas pedras. Era sempre úmido e frio dentro do túnel do portão sob a parede grossa de barro e tijolo; frio até num dia de verão, de modo que os vendedores de melão espalhavam suas frutas em cima das pedras, melões abertos para beber na friagem úmida. Ainda não havia nenhum, pois a estação ainda não começara, mas havia cestos de pequenos pêssegos verdes e duros ao longo das paredes. Os vendedores gritavam:
— Os primeiros pêssegos da primavera... os primeiros pêssegos! Comprem, comam, purguem seus intestinos dos venenos do inverno!
Wang Lung disse a si mesmo:
— Se ela gostar de pêssegos, comprarei um punhado para ela quando voltarmos.
Mal conseguia imaginar que, quando passasse de volta pelo portão, haveria uma mulher andando atrás dele.
Virou à direita depois de passar o portão e, logo, já estava na rua dos Barbeiros. Havia pouca gente ali tão cedo, apenas alguns lavradores que haviam levado seus produtos para a cidade na noite anterior a fim de poder vender suas hortaliças no mercado de madrugada e regressar para o dia de trabalho na lavoura. Haviam dormido tiritando agachados sobre seus cestos, agora vazios a seus pés. Wang Lung os evitou, temendo que alguns o reconhecessem, pois não queria ouvir nenhuma de suas piadas naquele dia. Ao longo da rua inteira, os barbeiros esperavam numa fila comprida atrás de suas barraquinhas. Wang Lung escolheu a mais afastada, sentou-se no banco e fez sinal para o barbeiro, que conversava com o vizinho. O barbeiro veio imediatamente e começou logo a despejar água quente, de uma chaleira pousada sobre uma panela de carvão, em sua bacia de latão.
— Raspar tudo? — disse num tom profissional.
— A cabeça e a cara — respondeu Wang Lung.
— Ouvidos e narinas limpos? — perguntou o barbeiro.
— Quanto isso vai custar a mais? — perguntou Wang Lung precavido.
— Quatro tostões — disse o barbeiro, começando a mergulhar um pano preto na água quente.
— Dou-lhe dois — disse Wang Lung.
— Então limpo um ouvido e uma narina — retrucou o barbeiro prontamente. — De que lado da cara quer que seja feita a limpeza? — Fez uma careta para o barbeiro ao lado enquanto falava e o outro caiu na gargalhada. Wang Lung percebeu que havia caído nas mãos de um piadista, e, sem saber por quê, sentindo-se, como sempre, inferior àqueles citadinos, ainda que não passassem de barbeiros e fossem as mais reles das pessoas, disse depressa:
— Como quiser... como quiser...
Então se deixou ensaboar, esfregar e raspar pelo barbeiro que, sendo afinal de contas um sujeito bastante generoso, lhe deu uma série extra de socos habilidosos nos ombros e nas costas para soltar seus músculos. Enquanto raspava o alto da testa de Wang Lung, comentava:
— Este não seria um lavrador feio se cortasse o cabelo. A nova moda é cortar a trança.
Sua navalha rondava tão de perto a coroa de cabelo no alto da cabeça de Wang Lung que este gritou:
— Não posso cortar isso sem perguntar a meu pai! — E o barbeiro riu e contornou a coroa de cabelo.
Terminado o serviço e contado o dinheiro na mão enrugada e molhada do barbeiro, Wang Lung ficou horrorizado. Tanto dinheiro! Mas, tornando a descer a rua, com o vento fresco na pele barbeada, disse a si mesmo: “É uma vez só.”
Foi então ao mercado e comprou duas libras de carne de porco, observando o açougueiro embrulhá-la numa folha de lótus seca. Em seguida, hesitando, comprou também seis onças de carne de vaca. Depois de tudo comprado, até os tabletes frescos de pasta de soja, tremendo como geléia sobre a folha, foi a uma loja de velas e lá comprou um par de bastões de incenso. Então rumou com grande timidez para a Casa de Hwang.
Uma vez no portão da casa, foi tomado de terror. Como fora sozinho? Deveria ter pedido ao pai — ao tio — até ao vizinho mais próximo, Ching — a qualquer pessoa para vir com ele. Nunca estivera antes numa casa grande. Como poderia entrar com o banquete de casamento no braço e dizer: “Vim buscar uma mulher?”
Ficou um bom tempo na frente da casa, olhando para o portão. Estava trancado, duas grandes folhas de madeira pintadas de preto, emolduradas e tacheadas de ferro, fechadas uma sobre a outra. Dois leões de pedra montavam guarda, um de cada lado. Não havia mais ninguém. Afastou-se. Era impossível.
Súbito, sentiu-se fraco. Primeiro iria comprar um pouco de comida. Não comera nada — esquecera a comida. Entrou num pequeno restaurante de rua, e, colocando dois tostões sobre a mesa, sentou-se. Um garçom sujo com um avental preto lustroso aproximou-se e ele lhe gritou:
— Duas tigelas de macarrão!
E quando vieram os pratos, ele comeu avidamente, metendo a comida na boca com os pauzinhos de bambu, enquanto o garçom ali parado girava os cobres entre o polegar e o indicador encardidos.
— Vai querer mais? — perguntou o garoto com indiferença.
Wang Lung fez que não com a cabeça. Empertigou-se e olhou em volta. Não havia ninguém que ele conhecesse na salinha escura e apertada, cheia de mesas. Só havia alguns homens sentados comendo ou tomando chá. Era um lugar para gente pobre, e, naquele meio, seu aspecto correto, asseado e quase rico, fez com que um pedinte lhe implorasse ao passar:
— Seja bondoso, professor, e me dê um dinheirinho... estou morrendo de fome!
Wang Lung jamais fora abordado por mendigos e ninguém jamais o chamara de professor. Ficou satisfeito e jogou na tigela do homem dois trocados, que são um quinto de um tostão, e o mendigo puxou com agilidade aquela mão escura e, agarrando o dinheiro, meteu-o dentro dos andrajos.
Wang Lung ficou ali sentado e o sol subiu. O servente o rondava, impaciente.
— Se não vai comprar mais nada — disse afinal muito atrevido —, vai ter que pagar o aluguel do banco.
Wang Lung ficou furioso com tal atrevimento e teria levantado se a idéia de entrar na grande Casa de Hwang e perguntar ali por uma mulher não o tivesse feito começar a suar em bicas como se estivesse trabalhando num campo.
— Traga um chá — disse sem firmeza ao garoto. Antes que conseguisse se virar, o chá já estava lá, e o menino perguntava incisivo:
— Cadê o tostão?
E Wang Lung, horrorizado, viu que não podia fazer outra coisa senão sacar da cinta mais um tostão.
— Isso é roubo — resmungou, contrariado. Então, ao ver entrar na casa o vizinho a quem convidara para o banquete, pôs o tostão depressa na mesa, bebeu o chá de um gole só, saiu rapidamente pela porta lateral e já estava de novo na rua.
— Tem que ser feito — disse a si mesmo desesperado, e, lentamente, rumou para os grandes portões.
Dessa vez, como já passava do meio-dia, os portões estavam abertos e o porteiro matava o tempo na entrada, palitando os dentes com uma lasca de bambu depois da refeição. Era um sujeito alto com um sinal grande na face esquerda, do qual pendiam três compridos pêlos pretos que ele nunca cortara. Quando Wang Lung apareceu, gritou com aspereza, pensando, por causa do cesto, que ele fora vender alguma coisa.
— O que quer aqui?
Com grande dificuldade, Wang Lung respondeu:
— Sou Wang Lung, o lavrador.
— Bem, Wang Lung, e daí? — retorquiu o porteiro, que não era cortês com ninguém a não ser com os amigos ricos do amo e da ama.
— Eu venho... eu venho... — titubeou Wang Lung.
— Isso, eu estou vendo — disse o porteiro com uma paciência estudada, torcendo os longos pêlos do sinal.
— Há uma mulher aí — disse Wang Lung, num fio de voz. No sol, sua cara estava molhada.
O porteiro deu uma boa gargalhada.
— Então é você! — rugiu. — Mandaram que eu aguardasse um noivo hoje. Mas não o reconheci com um cesto no braço.
— São só algumas carnes — disse Wang Lung como que se desculpando, aguardando que o porteiro entrasse com ele. Mas o porteiro não se mexeu. Afinal, Wang Lung disse com ansiedade:
— Devo ir sozinho?
O porteiro fingiu uma reação de horror.
— O Senhor Velho vai matá-lo!
Então, vendo que Wang Lung era muito inocente, disse:
— Uma pratinha é uma boa chave.
Wang Lung viu afinal que o homem queria dinheiro dele.
— Sou um homem pobre — disse em tom de súplica.
— Deixe-me ver o que você tem na cinta — disse o porteiro.
E riu quando Wang Lung, em sua ingenuidade, pôs de fato o cesto nas pedras e, levantando a túnica, tirou da cinta a bolsinha, sacudindo na mão esquerda o dinheiro que sobrara das compras. Só havia uma moeda de prata e 14 tostões de cobre.
— Vou pegar a prata — disse o porteiro friamente, e, antes que Wang Lung pudesse protestar, o homem estava com a prata na manga e cruzava o portão, aos berros:
— O noivo, o noivo!
Wang Lung, embora revoltado com o que acabara de acontecer e horrorizado com esse anúncio ruidoso de sua chegada, não pôde fazer outra coisa senão acompanhar, e isso ele fez, pegando o cesto do chão sem olhar para um lado nem para o outro.
Depois, embora fosse a primeira vez que entrava numa grande casa de família, não conseguiu lembrar de nada. Com a cara ardendo e a cabeça baixa, atravessou pátio após pátio, ouvindo aquela voz berrando à sua frente, ouvindo risadas tilintando de todos os lados. Então, de repente, quando lhe pareceu já ter atravessado cem pátios, o porteiro ficou calado e o empurrou para dentro de uma pequena sala de espera. Ali ele ficou sozinho, enquanto o porteiro entrava num aposento interno, voltando logo para dizer:
— A Senhora Velha manda que se apresente diante dela.
Wang Lung começou a se adiantar, mas o porteiro o impediu, gritando com repugnância:
— Não pode se apresentar diante de uma grande dama com um cesto no braço... — um cesto de carne de porco e pasta de soja! Como vai se inclinar?
— É verdade... é verdade... — disse Wang Lung agitado. Mas não se atreveu a pousar o cesto porque temia que pudessem lhe roubar alguma coisa. Não lhe ocorria que houvesse quem não cobiçasse tais iguarias como duas libras de carne de porco, seis onças de carne de vaca e um peixe de água doce pequeno. O porteiro percebeu o temor dele e exclamou com um grande desprezo:
— Numa casa como esta, damos essas carnes aos cães! — e, pegando o cesto, jogou-o atrás da porta e empurrou Wang Lung em frente.
Passaram por uma varanda estreita, os tetos escorados por delicadas colunas entalhadas, e entraram num salão como Wang nunca vira. Umas vinte casas iguais à dele poderiam caber ali e desaparecer, tão amplos eram os espaços, tão alto o pé-direito. Erguendo a cabeça maravilhado para ver as grandes vigas entalhadas e esculpidas, tropeçou na soleira alta da porta e quase caiu, mas o porteiro lhe agarrou o braço e gritou:
— Será que fará a fineza de se prosternar de cara no chão assim diante da Senhora Velha?
E, acalmando-se, muito envergonhado, Wang Lung olhou para a frente, e, num estrado no centro do quarto, viu uma senhora muito velha. Seu corpo miúdo e magro estava vestido de cetim cinza perolado lustroso, e, sobre o banco baixo ao seu lado, havia um cachimbo de ópio, aceso sobre uma pequena lâmpada. Ela olhou para ele com olhos pequenos, penetrantes e negros, tão fundos e agudos como os de um macaco, na cara magra e enrugada. A pele da mão que segurava o cachimbo estava esticada em cima dos ossinhos, tão lisa e amarela quanto o dourado sobre um ídolo. Wang Lung caiu de joelhos e bateu com a cabeça no chão ladrilhado.
— Levante-o — disse a Senhora Velha gravemente para o porteiro. — Essas reverências não são necessárias. Ele veio pela mulher?
— Sim, Venerável — respondeu o porteiro.
— Por que ele não fala por ele? — perguntou a Senhora Velha.
— Porque é um tolo, Venerável Senhora — disse o porteiro, torcendo os pêlos do sinal.
Isso despertou Wang Lung e ele olhou com indignação para o porteiro.
— Sou apenas uma pessoa rústica, Venerável Senhora — disse. — Não sei que palavras usar em sua presença.
A Senhora Velha olhou para ele cautelosamente e com perfeita gravidade e fez menção de que ia falar, só que sua mão fechou-se sobre o cachimbo que uma escrava lhe estendia e imediatamente pareceu esquecer Wang Lung. Inclinou-se e pitou avidamente por um momento; seus olhos perderam a acuidade e uma película de esquecimento toldou-os. Wang Lung permaneceu postado à sua frente até que seus olhos, ao passar, captaram a figura dele.
— O que este homem está fazendo aqui? — perguntou com uma raiva súbita. Era como se ela tivesse esquecido tudo. A expressão do porteiro estava inalterável. Ele nada disse.
— Estou esperando a mulher, Grande Senhora — disse Wang Lung muito espantado.
— A mulher? Que mulher?... — começou a Senhora Velha, mas a escrava ao lado dela abaixou-se e sussurrou, e a mulher se refez. — Ah, sim, havia esquecido, uma questão sem importância... você veio pela escrava chamada O-lan. Lembro-me de que a prometemos em casamento a um lavrador qualquer. Você é esse lavrador?
— Sou ele — respondeu Wang Lung.
— Chame O-lan depressa — disse a Senhora Velha à escrava. Era como se de repente estivesse impaciente para terminar com aquilo tudo e ser deixada em paz no sossego do salão com seu cachimbo de ópio.
E, num instante, a escrava apareceu trazendo pela mão uma figura quadrada, bastante alta, vestida com uma túnica e umas calças limpas de algodão azul. Wang Lung deu uma olhada e depois desviou os olhos, o coração batendo. Esta era sua mulher.
— Venha cá, escrava — disse a Senhora Velha sem prestar atenção. — Esse homem veio por você.
A mulher colocou-se diante da senhora e ficou parada de cabeça baixa e mãos juntas.
— Está pronta? — perguntou a senhora.
A mulher respondeu tão devagar quanto um eco.
— Pronta.
Wang Lung, ouvindo a voz dela pela primeira vez, viu-a de costas, pois ela estava à sua frente. Era uma voz bastante boa, não sendo alta, nem suave, sendo simples e não geniosa. O cabelo da mulher era limpo e macio, e sua túnica estava limpa. Ele viu com um desapontamento instantâneo que seus pés não estavam enfaixados. Mas sobre isso não pôde se deter, pois a Senhora Velha estava dizendo ao porteiro:
— Leve a arca dela até o portão e deixe-os ir embora. — Então chamou Wang Lung e disse: — Fique do lado dela enquanto falo. — E quando Wang adiantou-se, ela lhe disse: — Essa mulher entrou em nossa casa quando era uma criança de 10 anos, e aqui viveu até agora, que tem 20. Comprei-a num ano de fome quando seus pais vieram para o sul porque não tinham o que comer. Eles eram de Shantung, no norte, e para lá regressaram, e não sei mais nada sobre eles. Você vê que ela tem o corpo forte e a cara quadrada da gente dela. Trabalhará bem para você no campo, carregará água e tudo o mais que você desejar. Ela não é bonita, mas disso você não precisa. Só homens que vivem de renda têm necessidade de belas mulheres para distraí-los. Também não é inteligente. Mas faz bem o que lhe mandam e tem bom gênio. Até onde sei, é virgem. Não tem beleza suficiente para tentar meus filhos e meus netos, mesmo se não estivesse na cozinha. Se houve alguma coisa, foi apenas um criado. Mas com as inúmeras belas escravas correndo livremente pelos pátios, duvido que tenha havido algum. Tome-a e use-a bem. Ela é uma boa escrava, embora meio lenta e burra. Se eu não desejasse adquirir mérito no templo para minha existência futura trazendo mais vidas para o mundo, deveria guardá-la, pois ela cozinha muito bem. Mas caso minhas escravas fora de casa se alguém ficar com elas e os senhores não as quiserem.
E para a mulher, disse:
— Obedeça-lhe e dê-lhe filhos e mais filhos. Traga o primeiro para eu ver.
— Sim, Venerável Senhora — disse a mulher submissamente.
Eles estavam hesitantes, e Wang Lung ficou muito embaraçado, sem saber se devia falar ou não.
— Está bem, vão embora! — disse a Senhora Velha irritada, e Wang Lung, inclinando-se apressadamente, virou-se e saiu, a mulher atrás dele, e atrás dela o porteiro, carregando a arca nos ombros. Esta arca, ele largou no aposento onde Wang Lung foi buscar seu cesto, recusando-se a carregá-la mais, e, de fato, desapareceu sem mais uma palavra.
Então Wang Lung virou-se para a mulher e olhou para ela pela primeira vez. Tinha uma cara quadrada e honesta, um nariz curto e largo com grandes narinas pretas, e uma boca rasgada como um talho na cara. Seus olhos eram pequenos e de um preto sem vida, cheios de uma tristeza impenetrável. Era uma cara que parecia habitualmente silenciosa e muda, como se não conseguisse falar se quisesse. Ela suportou com paciência o olhar de Wang Lung, sem embaraço ou reação, simplesmente esperando que ele a tivesse visto. Ele viu que de fato não havia beleza de espécie alguma na cara dela — uma cara morena, comum e paciente. Mas não havia marcas de bexiga em sua pele escura, e ela também não tinha lábio leporino. Em suas orelhas, ele viu seus brincos pendurados, os brincos banhados a ouro que ele comprara, e, em suas mãos, estavam os anéis que lhe dera. Ele se afastou exultando no íntimo. Bem, tinha a sua mulher!
— Cá estão essa caixa e esse cesto — disse asperamente.
Sem uma palavra, ela se abaixou, pegou uma extremidade da caixa, que colocou no ombro, e, cambaleando sob o peso, tentou levantar-se. Vendo-a fazer isso, ele disse de repente:
— Eu levo a arca. Cá está o cesto.
E passou a arca para o próprio lombo, sem se importar que estivesse usando a melhor túnica, e ela, ainda em silêncio, pegou a alça do cesto. Ele pensou nos cem pátios que atravessara e em sua figura, ridícula sob aquele fardo.
— Se tivesse um portão lateral — murmurou, e ela fez que sim com a cabeça depois de pensar um pouco, como se não entendesse logo o que ele dissera. Então foi na frente por um pátio pequeno e sem uso que estava invadido pelo mato, e com o lago entupido. Ali, embaixo de um pinheiro torto, havia um portão redondo que ela destrancou, e os dois ganharam a rua por ali.
Uma ou duas vezes, ele se virou para olhá-la. Ela ia firme andando com aqueles pés grandes como se tivesse caminhado por ali a vida inteira, a cara larga inexpressiva. No portão do muro, ele parou inseguro e tateou na cinta com uma mão à procura dos tostões que lhe sobravam, segurando a arca com firmeza no ombro com a outra mão. Tirou dois tostões, e, com isso, comprou seis pequenos pêssegos verdes.
— Tome e coma — disse asperamente.
Ela agarrou as frutas avidamente como uma criança poderia ter feito e ficou com elas na mão, calada. Quando contornavam os trigais, ele olhou para ela e a viu cautelosamente mordiscando um. Ao perceber que ele a observava, tornou a esconder a fruta com a mão e parou de mastigar.
E assim eles foram até chegarem ao campo ocidental, onde ficava o templo da terra. Esse templo era uma pequena estrutura, não mais alta que o ombro de um homem, feita de tijolos cinzentos e coberta de telha. O avô de Wang Lung, que cultivara exatamente os mesmos campos onde o neto agora passava a vida, construíra-o, trazendo os tijolos da cidade em seu carrinho de mão. As paredes eram rebocadas por fora, e um artista da aldeia fora contratado num ano bom para pintar no estuque branco uma paisagem de colinas e bambu. Mas a chuva de gerações desbotara a pintura da qual agora só ficara um leve sombreado de bambus, com as colinas quase totalmente apagadas.
Dentro do templo, confortavelmente embaixo do teto, havia duas figuras sentadas, pequenas e solenes, feitas com o barro dos campos ao redor do templo. Eram o deus e sua mulher. Usavam vestes de papel vermelho e dourado, e o deus tinha um bigode ralo e caído de pêlos naturais. Todos os anos, no Ano-novo, o pai de Wang Lung comprava folhas de papel vermelho e cuidadosamente cortava e colava roupas novas para o casal. E todos os anos, chovia e nevava ali dentro e batia o sol de verão e estragava as roupas.
Naquele momento, porém, as roupas ainda estavam novas, uma vez que o ano apenas começara, e Wang Lung estava orgulhoso da aparência impecável das imagens. Tomou o cesto do braço da mulher e procurou com cuidado embaixo da carne de porco os bastões de incenso que comprara. Estava ansioso, temendo que os bastões tivessem quebrado, o que seria de mau agouro, mas eles estavam inteiros, e quando os encontrou, espetou-os lado a lado nas cinzas de outros bastões de incenso que se amontoavam diante dos deuses, pois toda a vizinhança venerava aquelas duas imagenzinhas. Então, pegou a pederneira e um pedaço de ferro e fez fogo, usando uma folha seca para acender o incenso.
Juntos, esse homem e essa mulher ficaram parados diante dos deuses de seus campos. A mulher observava as pontas do incenso enrubescerem e se transformarem em cinza. Quando a cinza pesou, ela se abaixou e, com o indicador, empurrou a ponta consumida. Então, como que temendo pelo que havia feito, olhou rapidamente para Wang Lung, com os olhos mudos. Mas havia algo no movimento dela que lhe agradou. Era como se ela sentisse que o incenso pertencia a eles dois; foi um momento de comunhão. Eles ficaram ali em silêncio total, lado a lado, enquanto o incenso virava cinza; depois, porque o sol estava caindo, Wang Lung pôs a arca nas costas e os dois foram para casa.
À porta, estava o velho para pegar os últimos raios de sol. Não se mexeu quando Wang Lung se aproximou com a mulher. Reparar nela seria rebaixar-se. Em vez disso, fingiu um grande interesse nas nuvens e exclamou:
— Aquela nuvem pendurada na ponta esquerda da lua nova fala de chuva. Vai chegar, o mais tardar, amanhã à noite. — E aí, ao ver Wang Lung pegar o cesto da mulher, exclamou de novo: — Você gastou dinheiro?
Wang Lung pousou o cesto na mesa.
— Vai haver convidados hoje à noite — disse lacônico, e levou a arca para o quarto onde dormia, pousando-a ao lado daquela onde guardava suas roupas. Olhou para aquilo de forma estranha. Mas o velho veio à porta e disse, palavroso:
— Não tem fim o que se gasta de dinheiro nesta casa!
No íntimo, estava satisfeito que o filho tivesse convidados, mas achava que não devia fazer outra coisa senão reclamar diante dessa nova nora, para que, desde o início, ela não se acostumasse com extravagâncias. Wang Lung nada disse, mas levou o cesto para a cozinha e a mulher foi atrás dele. Ele tirou um a um os alimentos do cesto, botou-os na beira do fogão frio e disse a ela:
— Aqui tem carne de porco, de vaca e peixe. São sete para comer. Pode preparar a comida?
Não olhou para a mulher enquanto falava. Não ficaria bem. A mulher respondeu com sua voz simples.
— Fui escrava de cozinha desde que entrei na Casa de Hwang. Havia carne em todas as refeições.
Wang Lung balançou a cabeça positivamente e deixou-a, só tornando a vê-la quando os convidados começaram a chegar — o tio jovial, manhoso e faminto, o filho do tio, um rapaz sem-vergonha de 15 anos, e os lavradores desajeitados, sorrindo com timidez. Dois eram homens da aldeia com quem Wang Lung trocava sementes e trabalho na época da colheita, e um era seu vizinho de porta, Ching, um homem baixo e calado, não muito disposto a falar, a menos que fosse obrigado a isso. Depois que foram acomodados ao redor da sala do meio objetando com reticência para tomar assento, por polidez, Wang Lung entrou na cozinha para pedir à mulher que servisse. Então, ficou satisfeito quando ela lhe disse:
— Eu lhe entrego as tigelas se você quiser botá-las na mesa. Não gosto de aparecer na frente de homens.
Wang Lung sentiu um grande orgulho por essa mulher lhe pertencer e não ter medo de aparecer diante dele, mas não querer fazê-lo diante de outros homens. Ele pegou as tigelas de suas mãos na porta da cozinha e colocou-as na mesa, na sala do meio, dizendo ruidosamente:
— Comam, meu tio e meus irmãos. — E quando o tio, que gostava de piadas, disse: — Não vamos ver a noiva de testa de mariposa? —, Wang Lung respondeu com firmeza: — Ainda não somos um só. Não fica bem outros homens a verem antes da consumação do casamento.
E insistiu para que eles comessem e eles comeram com entusiasmo daquela boa comida, com entusiasmo e em silêncio, e este elogiou o molho castanho do peixe, e aquele, a carne de porco bem passada, e Wang Lung dizia a toda hora em resposta:
— É coisa pobre, está malfeita.
Mas, no íntimo, estava orgulhoso dos pratos, pois, com as carnes que tinha, a mulher combinara açúcar e vinagre e um pouco de vinho e molho de soja e trouxera à luz com habilidade a própria força da carne. Ele mesmo nunca provara tais pratos na mesa de seus amigos.
Naquela noite, depois de os convidados terem feito render bastante o chá e acabado de contar suas piadas, a mulher ainda continuava atrás do fogão. E quando Wang Lung se despediu do último convidado e entrou, encontrou-a encolhida num monte de palha dormindo ao lado do boi. Havia palha no cabelo dela quando ele a levantou, e quando a chamou, ela levantou o braço de repente, ainda dormindo, como se para se defender de um golpe. Quando afinal abriu os olhos, fitou-o com seu estranho olhar mudo, e ele teve a sensação de encarar uma criança. Pegou-a pela mão e levou-a para o quarto onde, naquela manhã, banhara-se para ela, e, sobre a mesa, acendeu uma vela vermelha. Naquela luz, quando se viu a sós com a mulher, de repente se intimidou e foi obrigado a se lembrar:
“Aqui está essa mulher que me pertence. A coisa deve ser feita.”
E começou a se despir com obstinação. Quanto à mulher, esgueirou-se para trás da cortina e começou, sem um ruído, a se preparar para a cama. Wang Lung disse bruscamente:
— Quando deitar, apague a luz primeiro.
Então, deitou-se e enrolou a grossa colcha em volta dos ombros e fingiu dormir. Mas não dormia. Estava trêmulo, todos os nervos de sua carne despertos. E quando, após um bom tempo, o quarto escureceu, e ele sentiu o movimento lento e silencioso da mulher ao seu lado, foi invadido por uma exultação capaz de fazê-lo explodir. Deu uma risada rouca no escuro e tomou a mulher.
Capítulo 2
Existia esse luxo de viver.
Na manhã seguinte, ele ficou deitado na cama e observou a mulher que agora lhe pertencia totalmente. Ela se levantou, vestiu as roupas soltas e amarrou-as no pescoço e na cintura, ajustando-as no corpo com um requebro lento. Depois, meteu os pés nos sapatos de pano e amarrou-os pelas tiras do calcanhar. A nesga de luz que vazava da pequena abertura iluminava-a, e ele viu seu rosto indistintamente. Parecia igual. Isso deixou Wang Lung espantado. Tinha a sensação de que a noite deveria tê-lo modificado; no entanto, ali estava essa mulher levantando-se da cama dele como se tivesse feito isso todos os dias de sua vida. Ouviu-se a tosse queixosa do velho no amanhecer escuro e Wang Lung disse à mulher:
— Primeiro leve para meu pai uma tigela de água quente, para os pulmões dele.
Ela perguntou, com a mesma voz com que falara na véspera:
— É para ser com folhas de chá?
Essa pergunta simples perturbou Wang Lung. Ele gostaria de dizer: “Claro que é para ser com folhas de chá. Acha que somos mendigos?” Gostaria que a mulher pensasse que eles não davam importância a folhas de chá naquela casa. Na Casa de Hwang, naturalmente, cada tigela de chá vinha cheia de folhas verdes. Talvez ali até uma escrava não bebesse água pura. Mas ele sabia que o pai ficaria aborrecido se, no primeiro dia, a mulher lhe servisse chá em vez de água. Ademais, eles realmente não eram ricos. Portanto, respondeu com indiferença:
— Chá? Não, não, piora a tosse dele.
Depois, continuou deitado na cama quentinha, feliz da vida, enquanto, na cozinha, a mulher punha lenha no fogo e fervia a água. Gostaria de ter tornado a dormir, agora que podia, mas seu corpo tolo, que ele fizera se levantar todas as manhãs tão cedo durante todos esses anos, não adormecia embora pudesse, então ficou ali deitado, provando e saboreando na mente e no corpo esse luxo da preguiça.
Ainda estava meio envergonhado para pensar nessa sua mulher. Parte do tempo, pensou nos campos e nos grãos de trigo, e no que seria a colheita se as chuvas chegassem e nas sementes de nabo branco que ele queria comprar do vizinho Ching se pudessem chegar a um acordo em relação ao preço. Mas entre todos esses pensamentos que estavam em sua cabeça todos os dias, entrelaçava-se um novo pensamento a respeito do que sua vida agora era, e ocorreu-lhe, de repente, ao se lembrar da noite, de perguntar se ela gostava dele. Esta era uma nova curiosidade. Só questionara se gostaria dela e se ficaria satisfeito com ela na cama e em casa. Embora a cara dela fosse feia e a pele de suas mãos fosse áspera, a carne de seu corpo grande era macia e intocada e ele riu ao pensar naquilo — a risada curta e dura que ele soltara no escuro na noite da véspera. Os senhores jovens não haviam visto, então, além daquela cara feia da escrava de cozinha. Seu corpo era belo, magro e de ossos grandes, mas redondo e macio. Ele subitamente desejou que ela gostasse dele como marido, depois se envergonhou.
A porta se abriu e, do seu jeito silencioso, ela entrou segurando com as duas mãos uma tigela fumegante para ele. Ele sentou-se na cama e pegou a tigela. Havia folhas de chá boiando na superfície da água. Ele olhou para ela rapidamente. Ela ficou logo com medo e disse:
— Não levei chá para o Velho. Fiz como você mandou, mas, para você...
Wang Lung viu que ela estava com medo dele e ficou satisfeito e respondeu antes de ela terminar:
— Eu gosto, eu gosto — e sorveu o chá em goles ruidosos de prazer.
Dentro dele, havia aquela nova alegria que ele tinha vergonha de articular até para si mesmo: “Essa minha mulher gosta bastante de mim!”
Pareceu-lhe que, durante os meses seguintes, ele não fez outra coisa a não ser observar essa sua mulher. Na realidade, trabalhou como sempre trabalhara. Punha a enxada no ombro e ia para suas glebas e cultivava as carreiras de grão, e jungia o boi ao arado e arava o campo oeste para plantar alho e cebola. Mas o trabalho era um luxo, pois, quando o sol estava a pino, ele podia ir para casa e a comida estava pronta para ele comer, o pó espanado da mesa, e as tigelas e os pauzinhos postos em ordem sobre ela. Até agora, ele tivera que preparar as refeições quando entrava, embora estivesse cansado, a não ser que o velho ficasse com fome antes da hora e fizesse um pouco de mingau ou assasse um pedaço de pão chato sem fermento para enrolar num talo de alho.
Agora, o que quer que houvesse, estava pronto para ele, e ele podia sentar-se no banco à mesa e comer logo. O chão de barro estava varrido e a pilha de lenha reposta. A mulher, quando ele saía de manhã, pegava o ancinho de bambu e um pedaço de corda, e com essas coisas, percorria os campos, colhendo um pouco de capim aqui e um graveto ou um punhado de folhas ali, voltando ao meio-dia com o suficiente para preparar o jantar. Agradava ao homem que não fosse mais necessário comprar lenha.
À tarde, ela pegava uma enxada e um cesto, e, com isso no ombro, saía para a estrada principal que levava à cidade, onde mulas e burros e cavalos carregavam fardos de um lado para o outro, e ali ela colhia os excrementos dos animais e levava para casa e amontoava o esterco no quintal para fazer adubo para os campos. Fazia tudo isso sem uma palavra e sem que a mandassem fazê-lo. E quando chegava o fim do dia, só descansava depois de ter alimentado o boi na cozinha e colhido água para lhe levar ao focinho e deixá-lo beber à vontade.
E remendava as roupas esfarrapadas com linha que ela mesma fiava numa roca de bambu de um chumaço de algodão, e conseguia cobrir os rasgos de suas roupas de inverno. A roupa de cama ela punha ao sol à porta e abria as capas dos edredons, lavava-as e as pendurava num bambu para secar, e catava o algodão que havia endurecido dentro do forro, matando os insetos criados nas dobras ocultas, expondo tudo ao sol. Dia após dia, ela fazia uma coisa de cada vez, até os três cômodos ficarem com um aspecto limpo e quase próspero. A tosse do velho melhorou e ele sentava ao sol, do lado sul da casa, sempre sonolento e aquecido e satisfeito.
Mas aquela mulher nunca falava, a não ser para as breves necessidades da vida. Wang Lung, observando seus movimentos lentos e firmes circulando pela casa com aqueles pés grandes, olhando disfarçadamente sua cara quadrada e impassível, seu olhar inexpressivo e meio amedrontado, não sabia o que pensar dela. À noite, conhecia a suave firmeza de seu corpo. Mas, de dia, suas roupas, sua túnica e suas calças simples de algodão azul cobriam tudo que ele conhecia, e ela parecia uma criada fiel e muda, que é só uma criada e nada mais. E não ficava bem ele lhe perguntar: “Por que não fala?” Devia bastar que cumprisse com suas obrigações.
Às vezes, trabalhando a terra nos campos, ele ficava pensando nela. O que ela vira naqueles cem pátios? O que havia sido a vida dela, aquela vida que ela nunca compartilhara com ele? Não sabia o que pensar. E então, envergonhava-se da própria curiosidade e de sua curiosidade em relação a ela. Ela era, afinal de contas, só uma mulher.
Mas três cômodos e duas refeições por dia não mantêm ocupada uma mulher que foi escrava numa casa grande e que trabalhava do amanhecer à meia-noite. Um dia, quando Wang Lung estava todo envolvido com o trigo que inchava e lavrava a terra com a enxada, sem parar, até suas costas latejarem de cansaço, a sombra dela atravessou o sulco sobre o qual ele se abaixava, e lá estava ela, com uma enxada ao ombro.
— Não há nada a fazer em casa até anoitecer — disse ela laconicamente, e, sem mais uma palavra, pegou o sulco à esquerda dele e pôs-se a cavar com firmeza.
O sol os castigava, pois era início de verão, e logo ela ficava com a cara pingando de suor. Wang Lung tinha as costas nuas, mas ela trabalhava com a roupa fina que lhe cobria os ombros, e a roupa ficava molhada, grudada no corpo como uma pele. Movendo-se juntos num ritmo perfeito, sem uma palavra, horas a fio, ele entrava numa comunhão com ela que tirava o sofrimento de sua labuta. Não tinha idéia articulada de nada; só havia aquela perfeita afinidade de movimentos, de revolver aquela terra deles ao sol, aquela terra com a qual faziam sua casa, seus deuses e que lhes dava o alimento. A terra jazia rica e escura, e se despedaçava de leve sob as pontas de suas enxadas. Às vezes, eles desenterravam um pedaço de tijolo, uma lasca de madeira. Não era nada. Em algum tempo, em alguma época, corpos de homens e mulheres haviam sido enterrados ali, casas haviam se erguido ali, desmoronado, e voltado para a terra. A casa deles também, um dia, voltaria à terra, assim como seus corpos. Cada um tinha sua vez nessa terra. Eles trabalhavam, movendo-se juntos — juntos —, produzindo o fruto dessa terra — movimentando-se juntos, em silêncio.
Quando o sol se pôs, ele endireitou as costas lentamente e olhou para a mulher. Ela era escura como o próprio chão. Suas roupas molhadas e escuras grudavam-se ao seu corpo quadrado. Ela alisou um último sulco devagar. Então, naquele seu jeito modesto, ela disse, diretamente, a voz neutra e mais simples que de hábito no silêncio da tarde:
— Estou grávida.
Wang Lung ficou estatelado. O que havia a dizer em relação a isso, então! Ela se abaixou para pegar um caco de tijolo e jogou-o para fora do sulco. Era como se tivesse dito: “Eu lhe trouxe chá”, ou “Podemos comer”. A notícia parecia natural assim para ela! Mas, para ele... ele não podia dizer o que significava. Seu coração inchava e parava como se encontrasse limites súbitos. Bem, chegara a vez deles nessa terra!
Ele pegou a enxada de repente da mão dela e disse, a voz embargada na garganta:
— Deixe estar por ora. É o fim de um dia. Vamos contar ao velho.
Os dois foram para casa, então, ela meia dúzia de passos atrás dele como convinha a uma mulher. O velho estava parado à porta, querendo a refeição da noite, pois agora que havia uma mulher em casa, ele nunca mais preparara sua comida. Estava impaciente e gritou:
— Estou muito velho para esperar assim pela minha comida!
Mas Wang Lung, passando por ele ao entrar no quarto, disse:
— Ela já está grávida.
Tentou dizer isso com naturalidade como alguém poderia dizer “Semeei o campo oeste hoje”, mas não conseguiu. Embora tivesse falado em voz baixa, para ele foi como se tivesse gritado as palavras mais alto do que desejava.
O velho pestanejou um instante, depois compreendeu, e deu uma risada.
— Heh-heh-heh — disse à nora quando ela entrou —, então há colheita à vista!
A cara dela ele não enxergava no lusco-fusco, mas ela respondeu num tom neutro:
— Já vou preparar a comida.
— Sim... sim... a comida... — disse o velho ansioso, indo atrás dela para a cozinha como uma criança. Assim como a idéia de um neto o fizera esquecer a refeição, agora a idéia da comida fresca diante dele o fez esquecer a criança.
Mas Wang Lung sentou-se num banco à mesa no escuro e pousou a cabeça nos braços cruzados. Saindo do seu corpo, de suas entranhas, vida!
Capítulo 3
Quando se aproximava a hora do nascimento, ele disse à mulher:
— Precisamos ter alguém para ajudar na hora... uma mulher.
Mas ela balançou a cabeça. Estava retirando as tigelas após a refeição da noite. O velho fora para a cama e os dois estavam sozinhos no escuro, só com a claridade que caía sobre eles da chama bruxuleante de uma pequena lamparina de lata, cheia de óleo de soja e uma mecha de algodão como pavio.
— Nenhuma mulher? — perguntou ele, consternado. Já começava a se acostumar com essas conversas em que a parte dela era pouco mais que um movimento de cabeça ou de mão, ou, quando muito, uma palavra ocasional caída a contragosto de sua boca rasgada. Começara até a achar que nada faltava nesse tipo de conversa. — Mas será estranho só com dois homens na casa! — prosseguiu ele. — Minha mãe teve uma mulher da aldeia. Eu não sei nada dessas coisas. Não há nenhuma na casa grande, nenhuma escrava velha de quem você fosse amiga, que pudesse vir?
Era a primeira vez que ele mencionava a casa de onde ela viera. Ela se irritou com ele como ele nunca a vira irritar-se antes, seus olhos apertados se arregalaram, sua cara estremeceu com uma raiva obtusa.
— Ninguém daquela casa! — gritou ela.
Ele largou o cachimbo que estava enchendo e olhou para ela. Mas a cara dela, subitamente, voltou ao normal e em pouco tempo estava recolhendo os pauzinhos, como se não tivesse falado.
— Bem, eis uma coisa! — disse ele espantado. Mas ela nada disse. Então, ele continuou discutindo: — Nós dois homens não temos prática em parto de criança. Para meu pai, não fica bem entrar em seu quarto. Minhas mãos desajeitadas poderiam machucar a criança. Alguém da casa grande, agora, onde as escravas estão sempre parindo...
Ela pousara cuidadosamente os pauzinhos numa pilha ordenada em cima da mesa e olhou para ele, e, depois de algum tempo, disse:
— Quando eu voltar àquela casa, será com meu filho nos braços. Hei de tê-lo vestido com uma túnica vermelha e calças com flores vermelhas. Na cabeça, usará um chapéu com um pequeno Buda dourado bordado na frente e, nos pés, sapatos com cara de tigre. E usarei sapatos novos e um casaco novo de cetim preto e entrarei na cozinha onde passava meus dias e na grande galeria onde a Velha fica sentada com seu ópio, e hei de me mostrar e mostrar meu filho a todos.
Ele nunca ouvira tantas palavras saírem dela antes. Saíram firmes e ininterruptas, se bem que lentamente, e ele se deu conta de que ela planejara tudo isso para si. Quando trabalhava nos campos ao lado dele, andara planejando isso! Quão espantosa era ela! Ele diria que ela pouco pensara na criança, tão calada fazia seu trabalho, entrava dia e saía dia. E, em vez disso, ela via essa criança, nascida e toda vestida, e a si mesma como sua mãe, de túnica nova! Ele próprio estava por uma vez sem palavras e pressionou o fumo diligentemente entre o indicador e o polegar, formando uma bola, e, pegando o cachimbo, encheu-o de fumo.
— Suponho que precisará de algum dinheiro — disse afinal com aparente rispidez.
— Se me der três moedas de prata... — disse ela receosa. — É muito, mas fiz as contas com cuidado e não desperdiçarei um tostão. Farei o negociante de tecidos me dar o metro até o último centímetro.
Wang Lung tateou dentro da cinta. Na véspera vendera um fardo e meio de junco do lago do campo oeste para o mercado da cidade e tinha um pouco mais do que ela desejava. Pôs os três dólares de prata na mesa. Então, após uma pequena hesitação, acrescentou uma quarta moeda que guardava na hipótese de querer jogar um pouco uma manhã qualquer na casa de chá. Mas nunca fazia mais do que se demorar em volta das mesas e ver os dados retinindo, temendo perder se jogasse. Em geral terminava passando as horas vagas na cidade, na barraca do contador de histórias, onde se podia ouvir uma lenda antiga sem pingar mais que um tostão quando a tigela era passada.
— Seria melhor você pegar a outra moeda — disse, acendendo o cachimbo entre as palavras, soprando depressa o papel para acendê-lo. — Você poderia fazer o casaco dele de uma pequena sobra de seda. Afinal de contas, é o primeiro.
Ela não pegou logo o dinheiro, mas ficou olhando para ele, impassível. Então disse num meio suspiro:
— É a primeira vez que tenho dinheiro de prata na mão.
Num impulso, pegou as moedas e apertou-as na mão e foi depressa para o quarto.
Wang Lung estava sentado fumando, pensando no dinheiro que estava na mesa. Esse dinheiro saíra da terra, dessa terra que ele lavrava e revolvia e sobre a qual se desgastava. Tirava sua vida dessa terra; gota a gota, com seu suor, arrancava dela o alimento, e, do alimento, o dinheiro. Antes, todas as vezes que pegara dinheiro para dá-lo a alguém, fora como tirar um pedaço de sua vida para dá-lo a uma pessoa indiferente. Mas agora, pela primeira vez, dar assim não doía. Ele via o dinheiro não na mão estranha de um mercador na cidade; via-o transmutado em algo mais valioso que o dinheiro — roupas no corpo de seu filho. E essa estranha mulher dele, que trabalhava calada, parecendo nada ver, fora a primeira a ver a criança vestida assim!
Ela não quis ninguém com ela quando chegasse a hora. Chegou uma noite, cedo, quando o sol mal tinha se posto. Estava trabalhando ao lado dele na colheita. O trigo amadurecera e fora cortado, o campo inundado e o arroz novo semeado, e agora o arroz carregara, e as espigas estavam maduras e cheias após as chuvas de verão, e o sol quente que tudo amadurecia do início de outono. Juntos, haviam passado o dia inteiro cortando feixes, abaixando-se e cortando-os com foices de cabo curto. Ela se abaixava com dificuldade, por causa do fardo que carregava, e movia-se mais devagar que ele, de modo que cortavam de maneira desigual, a carreira dele avançando mais que a dela. À medida que entardecia, ela foi cortando cada vez mais devagar. Ele olhou para ela com impaciência. Ela parou e se levantou então, largando a foice. Em sua cara, havia um suor novo, o suor de uma nova agonia.
— Chegou — disse. — Vou para casa. Não entre no quarto até eu chamar. Só me traga uma vara recém-descascada, e corte-a, para eu poder separar a vida da criança da minha.
Atravessou os campos a caminho de casa como se nada fosse acontecer. Ele ficou olhando, e depois foi até a beira do lago no campo de fora e escolheu um junco verde esguio, descascou-o com cuidado e cortou-o com a foice. A noite rápida do outono já caía, e ele pôs a foice no ombro e foi para casa.
Ao chegar, encontrou a ceia quente na mesa e o velho comendo. Ela interrompera o trabalho de parto para lhes preparar a comida! Ele disse a si mesmo que não era comum se achar uma mulher como aquela. Depois, foi até a porta do quarto e gritou:
— Cá está a vara!
Ficou esperando que ela gritasse para ele levar-lhe a vara. Mas ela não fez isso. Foi até a porta e, pela fresta, estendeu a mão e pegou a vara. Não disse uma palavra, mas ele ouviu-a arfando como um bicho depois de uma longa corrida.
O velho ergueu os olhos da tigela para dizer:
— Coma, senão vai esfriar. — Depois disse: — Não se perturbe ainda. Vai demorar muito. Lembro bem que, quando me nasceu o primeiro, o dia raiou e o parto ainda não tinha terminado. Ah, e pensar que de todos os filhos que eu gerei e sua mãe pariu, um depois do outro, mais ou menos uns vinte, esqueço, só você vingou! Vê por que uma mulher deve parir e parir? — Então, tornou a dizer, como se tivesse acabado de se dar conta daquilo: — Amanhã, a essa hora, posso ser avô de um neto homem! — Começou a rir de repente, parou de comer e ficou sentado rindo um bom tempo no lusco-fusco do aposento.
Mas Wang Lung estava na porta escutando aqueles pesados arquejos animais. Um cheiro de sangue quente saiu pela fresta, um cheiro enjoativo que o assustou. Os arquejos da mulher lá dentro se aceleraram e ficaram altos, como gritos abafados. Mas ela não emitia nenhum ruído alto. Quando ele não conseguia agüentar mais e estava prestes a entrar no quarto, ouviu-se um choro fino e feroz e ele esqueceu tudo.
— É homem? — gritou ele inoportunamente, esquecendo-se da mulher. Ouviu-se de novo o choro, fino, nervoso, insistente. — É homem? — tornou a gritar. — Me diga pelo menos isso. É homem?
E a voz da mulher respondeu fraca como um eco:
— Um homem!
Ele então foi sentar-se à mesa. Quão rápido fora tudo! A comida já esfriara há muito, e o velho dormia no banco, mas quão rápido fora tudo! Sacudiu o ombro do homem.
— É um menino! — gritou triunfante. — Você é avô e eu sou pai!
O velho acordou de repente e começou a rir como andara rindo quando adormecera.
— Sim, sim, claro — ria — um avô... um avô... — E se levantou, indo para a cama, ainda rindo.
Wang Lung pegou a tigela de arroz frio e começou a comer. Estava com muita fome de repente e não conseguia meter a comida na boca suficientemente depressa. No quarto, ouvia a mulher se arrastando e o choro da criança era incessante e pungente.
— Suponho que não vamos mais ter sossego nesta casa agora — disse a si mesmo com orgulho.
Quando acabou de comer tudo o que desejava, tornou a ir para a porta. Ela o chamou e ele entrou. O ar ainda recendia a sangue derramado, mas não havia vestígio nenhum, a não ser na tina de madeira, que estava embaixo da cama com a água que ela despejara, de modo que ele mal viu. A vela vermelha estava acesa e ela estava deitada bem coberta na cama. Ao seu lado, enrolado numas calças velhas dele, como era costume naquela região, estava seu filho.
Chegou até a cama e, no momento, de sua boca não saía nenhuma palavra. Tinha o coração apertado no peito e debruçou-se sobre a criança para olhá-la. O menino tinha uma cara redonda e enrugada que parecia muito escura, e, na cabeça, o cabelo era comprido, molhado e preto. Parara de chorar e estava deitado de olhos bem fechados.
Wang Lung olhou para a mulher e ela olhou para ele. Ainda tinha o cabelo molhado do sofrimento, e os olhos apertados estavam abatidos. À parte isso, era a mesma de sempre. Mas, para ele, era comovente vê-la ali deitada. O coração dele precipitou-se para aqueles dois, e ele disse, sem saber o que mais havia de dizer:
— Amanhã, vou à cidade comprar uma libra de açúcar mascavo para misturar com água fervente para você beber.
Depois, olhando para a criança novamente, essa frase brotou dele de repente, como se ele tivesse acabado de ter a idéia:
— Teremos que comprar um bom cesto de ovos e pintá-los de vermelho para a aldeia. Assim, todo mundo vai saber que tenho um filho!
Capítulo 4
No dia seguinte ao do nascimento da criança, a mulher se levantou como de hábito e preparou comida para eles, mas não foi para os campos de colheita com Wang Lung, e assim ele trabalhou sozinho até depois do meio-dia. Então, vestiu a túnica azul e foi para a cidade. Foi ao mercado e comprou cinqüenta ovos, não frescos, mas ainda bastante bons e custando um tostão cada um, e comprou papel vermelho para ferver na água com eles e tingi-los de vermelho. Então, com os ovos no cesto, ele foi à doçaria e ali comprou pouco mais de uma libra de açúcar mascavo e viu que fosse cuidadosamente embrulhado em seu papel pardo, e embaixo do cordão de palha que o amarrava, o doceiro enfiou uma tira de papel vermelho, sorrindo ao fazer isso.
— É para a mãe de um recém-nascido, talvez.
— Um primogênito — disse Wang Lung com orgulho.
— Ah, que tenha boa sorte — respondeu o homem com indiferença, de olho num cliente bem vestido que acabara de entrar.
Essas palavras, ele já dissera muitas vezes a outros, diariamente mesmo dizia-as a alguém, mas a Wang Lung, pareceram-lhe especiais e ele ficou satisfeito com a cortesia do homem, fazendo várias mesuras ao sair da loja. Parecia-lhe, enquanto ele caminhava sob o sol cáustico na rua poeirenta, que nunca existira um homem tão cheio de sorte quanto ele.
Pensou nisso a princípio com alegria e depois com um aperto no coração, de medo. Não convinha nesta vida ser muito afortunado. O ar e a terra estavam cheios de espíritos malignos que não podiam suportar a felicidade dos mortais, especialmente dos que são pobres. Entrou bruscamente na loja de velas, onde também se vendia incenso, e ali comprou quatro bastões de incenso, um para cada pessoa da casa, e com esses quatro bastões, entrou no pequeno templo dos deuses da terra e espetou-os nas cinzas frias do incenso que colocara ali antes, ele e sua mulher juntos. Ficou olhando queimarem e foi para casa, reconfortado. Aquelas duas pequenas imagens protetoras, sentadas dignamente sob aquele pequeno teto — que poder tinham!
E então, quase antes que alguém pudesse se dar conta de algo, a mulher já estava de volta nos campos ao lado dele. As colheitas haviam passado, e os cereais foram malhados no terreiro que era também o quintal da casa. Malharam-nos com manguais, ele e a mulher juntos. E, feito isso, joeiraram-nos, lançando-os ao vento de grandes cestos de bambu e aparando os grãos sadios ao cair, enquanto a palha era soprada pelo vento como uma nuvem. Havia os campos de trigo de inverno para semear de novo, e depois que Wang Lung jungia o boi e arava a terra, a mulher vinha atrás com a enxada e quebrava os torrões nos sulcos.
Ela trabalhava o dia inteiro e o menino ficava dormindo no chão em cima de uma colcha velha rasgada. Quando ele chorava, a mulher parava e lhe dava o peito, sentada no chão, sob o sol teimoso de fim do outono, que reluta em deixar ir embora o calor do verão até que o inverno iminente o obrigue a isso. A mulher e a criança eram da cor do chão e ali pareciam duas imagens de barro. Havia poeira dos campos no cabelo da mulher e na macia cabeça preta da criança.
Mas, dos fartos seios morenos da mulher, o leite jorrava para o menino, um leite branco como a neve, e enquanto ele sugava um, do outro o leite escorria como de uma fonte, e ela o deixava escorrer. Havia mais que o suficiente para a criança, por mais gulosa que fosse, vida suficiente para muitas crianças, e ela a deixava escorrer despreocupadamente, consciente de sua abundância. Sempre havia mais e mais. Às vezes, ela levantava o seio e deixava o leite pingar no chão para poupar a roupa, e ele impregnava na terra, formando uma mancha macia, escura e fecunda no campo. O menino era gordo e bem-disposto e se alimentava da vida inesgotável que a mãe lhe dava.
Chegou o inverno, e eles estavam preparados para enfrentá-lo. As colheitas haviam sido inéditas, e a pequena casa de três cômodos estava abarrotada. Dos caibros do telhado de palha, pendiam réstias e réstias de cebola e alho secos, e na sala do meio e no quarto do velho e no deles havia esteiras feitas de vime e torcidas na forma de grandes recipientes que estavam cheios de trigo e arroz. Quase tudo isso seria vendido, mas Wang Lung era frugal e não gastava, como os outros aldeões, seu dinheiro liberalmente em jogo nem em iguarias muito delicadas, e não era obrigado, como eles, a vender os grãos na época da colheita quando o preço era baixo. Em vez disso, armazenava a safra e vendia-a quando a neve chegava no campo, ou no Ano-novo, quando as pessoas da cidade pagam qualquer preço pela comida.
Seu tio vivia tendo que vender seus grãos até antes de estarem bem maduros. Às vezes, vendia o trigo no campo para se poupar o trabalho de colher e malhar e para ganhar um dinheirinho rápido. Mas a mulher de seu tio era tola, gorda e preguiçosa, sempre pedindo comidas doces e uma coisa e outra e sapatos novos comprados na cidade. A mulher de Wang Lung fazia todos os sapatos para ele e para o velho e para seus próprios pés e os da criança. Ele não saberia o que fazer se ela quisesse comprar sapatos!
Nunca havia coisa alguma pendurada nos caibros da casa velha e caindo aos pedaços do tio. Mas, em sua própria casa, havia até um pernil que ele comprara do vizinho Ching quando este matara seu porco, que dava a impressão de estar ficando doente. O porco fora morto antes de emagrecer e o pernil era grande e O-lan o salgara completamente e o pendurara para secar. Havia também duas das galinhas deles mortas e estripadas e secas com as penas e recheadas com sal.
Em meio a toda essa fartura, eles se sentavam dentro da casa, portanto, quando os ventos do inverno chegaram do deserto a nordeste, ventos amargos e cortantes. Logo a criança quase podia sentar sozinha. Eles tiveram um banquete de macarrão, o que significava vida longa, em seu aniversário de mês, quando ele tinha uma lua cheia de idade, e Wang Lung convidara aqueles que haviam ido à sua festa de casamento e a cada um ele dera uma dezena redonda dos ovos vermelhos que ele fervera e secara, e a todos aqueles que vieram da aldeia para felicitá-lo ele deu dois ovos. E todos o invejavam pelo filho, uma criança grande, gorda, de cara de lua, com as maçãs do rosto salientes como as da mãe. Agora que o inverno chegava, ele ficava sentado na colcha colocada no chão de terra batida da casa em vez de nos campos, e eles abriam a porta para entrar a luz do sul, e o sol entrava, e o vento do norte batia em vão contra a grossa parede de barro da casa.
As folhas logo foram arrancadas da tamareira na entrada e dos chorões e dos pessegueiros próximo aos campos. Só as folhas de bambu se seguravam nos bambus na moita rala a leste da casa, e embora o vento dobrasse as hastes em dois, as folhas se seguravam.
Com aquele vento seco, as sementes de trigo que estavam no chão não podiam brotar e Wang Lung esperava as chuvas com ansiedade. E então, as chuvas vieram de repente de um calmo dia cinzento quando o vento caiu e o ar estava sossegado e quente, e eles todos ficaram sentados dentro de casa cheios de bem-estar, olhando a chuva cair plena e reta e afundar nos campos em volta do quintal e pingar do beiral de palha do telhado em cima da porta. O menino estava espantado e esticava as mãos para pegar as linhas de prata da chuva que caía, e ria e eles riam com ele. O velho se agachou à porta ao lado do menino e disse:
— Não há outro menino como esse em dez aldeias. Aqueles fedelhos do meu irmão não reparam em nada antes de começar a andar. — E, nos campos, a semente de trigo brotava e empurrava grelos de um verde delicado sobre a terra úmida e escura.
Numa época como aquela, faziam-se visitas, porque cada lavrador achava que, por uma vez, o Céu fazia o trabalho nos campos e suas plantações estavam sendo regadas sem que eles estivessem se derreando para isso, carregando baldes para lá e para cá, suspensos num pau atravessado nos ombros. De manhã, eles se reuniam numa ou noutra casa, tomando chá aqui e ali, indo de casa em casa descalços pela trilha estreita entre os campos embaixo de grandes guarda-chuvas de papel oleado. As mulheres ficavam em casa e faziam sapatos para os homens e remendavam roupas, se eram econômicas, e pensavam nos preparativos para a festa do Ano-novo.
Mas Wang Lung e sua mulher não eram assíduos nas visitas. Não havia casa na aldeia de pequenas casas esparsas, em que a deles era uma dentre meia dúzia, que fosse tão cheia de calor e fartura quanto a deles, e Wang Lung sentia que, se ficasse muito íntimo dos outros, haveria empréstimos. O Ano-novo estava chegando, e quem tinha todo o dinheiro que queria para as roupas novas e os festejos? Ele ficou em casa e, enquanto a mulher remendava e costurava, ele examinava os ancinhos de bambu, e onde o cordão estava quebrado, ele fazia um novo com o cânhamo que ele mesmo plantava, e onde um dente estava quebrado, ele pregava com destreza um outro pedaço de bambu.
E o que ele fazia com seus implementos da lavoura, sua mulher, O-lan, fazia com os implementos da casa. Se um jarro de cerâmica vazava, ela não o deixava de lado e falava de um novo, como faziam as outras mulheres. Em vez disso, misturava terra e argila e soldava a rachadura e aquecia o jarro devagar e a peça ficava como nova.
Eles ficavam em casa, portanto, e se regozijavam com a aprovação um do outro, embora sua conversa nunca fosse nada mais do que palavras esparsas como essas:
“Guardou as sementes da abóbora grande para a plantação nova?” Ou: “Vamos vender a palha do trigo e queimar as hastes da soja na cozinha.” Ou, quem sabe, raramente Wang Lung dissesse: “Este é um bom prato de macarrão”, e O-lan respondesse depreciativamente: “É farinha boa que temos este ano dos campos.”
Dos produtos, Wang Lung nesse ano bom obteve um punhado de dólares de prata a mais do que precisavam e ele estava temeroso de guardá-los na cinta ou de dizer a qualquer pessoa, a não ser a mulher, o que tinha. Procuraram um lugar onde guardar o dinheiro, e, afinal, a mulher habilmente fez um pequeno buraco na parede interna do quarto deles, atrás da cama. Ali dentro, Wang Lung meteu o dinheiro e, com um torrão de terra, ela tapou o buraco, e era como se não houvesse nada ali. Mas para Wang e O-lan, isso dava uma sensação de riqueza secreta e previdência. Wang Lung estava consciente de que tinha mais dinheiro do que precisava gastar, e quando andava entre os companheiros, andava à vontade consigo mesmo e com todos.
Capítulo 5
O Ano-novo se aproximava e havia preparativos em todas as casas da aldeia. Wang Lung foi à loja de velas na cidade e comprou quadrados de papel vermelho em que estavam pintadas em tinta dourada a letra para a felicidade e alguns com a letra para riquezas. Colou esses quadrados em seus utensílios agrícolas para lhe trazer sorte no Ano-novo. No arado, no jugo do boi e nos baldes em que carregava o adubo e a água, em cada um desses, colou um quadrado. E então, nas portas da casa, colou tiras compridas de papel vermelho pintadas com divisas de boa sorte, e no portal, colou uma franja de papel vermelho habilmente recortado em forma de flores e muito bem cortado. E comprou papel vermelho para fazer vestidos novos para os deuses, e, isso, o velho fez com bastante destreza para suas mãos velhas e trêmulas. Wang Lung levou-os e vestiu com eles os dois pequenos deuses no templo da terra e queimou um pouco de incenso diante deles em homenagem ao Ano-novo. E, para a casa, comprou também duas velas vermelhas para acender na véspera do ano na mesa embaixo do retrato do deus, que estava colado na parede da sala do meio em cima de onde ficava a mesa.
E Wang Lung tornou a ir à cidade e comprou banha de porco e açúcar branco e a mulher deixou a banha macia e branca e pegou farinha de arroz, que eles haviam feito com o próprio arroz moído em suas mós às quais podiam jungir o boi quando precisavam, e pegou a banha e o açúcar e misturou e preparou ricos bolos de Ano-novo, chamados bolos de lua, como os que se comiam na Casa de Hwang.
Quando viu os bolos enfileirados em cima da mesa, prontos para serem assados, Wang Lung sentiu o coração quase explodindo de orgulho. Não havia outra mulher na cidade capaz de fazer o que a dele fizera, fazer bolos como os que só os ricos comiam na festa. Em alguns dos bolos, ela colocara faixas de pequenos pilriteiros vermelhos e pontos de ameixas verdes secas, formando flores e desenhos.
— É uma pena comer esses bolos — disse Wang Lung.
O velho rondava a mesa, feliz como uma criança com as cores brilhantes. Disse:
— Chame meu irmão, seu tio e os filhos dele. Deixe que eles vejam!
Mas a prosperidade tornara Wang Lung cuidadoso. Não se podia convidar gente faminta só para ver bolos.
— Dá azar ver os bolos antes do Ano-novo — retrucou depressa. E a mulher, as mãos brancas com a fina farinha de arroz e engorduradas, disse:
— Esses não são para nós comermos, tirante um ou dois dos simples para os convidados provarem. Não somos ricos o bastante para comer açúcar branco e toucinho. Estou preparando-os para a Senhora Velha na casa grande. Vou com o menino no segundo dia do Ano-novo e vou levar os bolos de presente.
Então os bolos eram mais importantes que nunca, e Wang Lung estava satisfeito que para a grande galeria onde ele estivera tão tímido e tão pobre, sua mulher agora entrasse como visita, levando seu filho, vestido de vermelho, e bolos como aqueles, feitos com a melhor farinha, o melhor açúcar e a melhor banha.
Tudo o mais naquele Ano-novo ficava insignificante ao lado dessa visita. Quando vestiu a túnica nova de algodão preto que O-lan fizera, disse a si mesmo:
— Vou usá-la quando os levar ao portão da casa grande.
Ele até agüentou despreocupadamente o primeiro dia do Ano-novo quando seu tio e seus vizinhos chegaram em peso na casa para desejar felicidades a seu pai e a ele, todos agitados com a comida e a bebida. Ele mesmo já fora ver que os bolos coloridos fossem guardados no cesto para não ter que oferecê-los aos homens comuns, embora achasse muito difícil deixar de exclamar quando os brancos simples foram elogiados por seu sabor de banha e açúcar:
— Devia ver os coloridos!
Mas não fez isso, pois, mais que tudo, desejava entrar na casa grande com orgulho.
* * *
Então, no segundo dia do Ano-novo, que é o dia de as mulheres se visitarem, tendo os homens comido e bebido bem na véspera, o casal se levantou de madrugada. A mulher vestiu o menino com seu casaco vermelho e calçou-o com os sapatos de cara de tigre que havia feito, e pôs em sua cabeça, recém-raspada pelo próprio Wang Lung no último dia do ano velho, o chapéu vermelho sem copa com o pequeno Buda dourado aplicado na frente. Botou o menino na cama e Wang Lung vestiu-se depressa enquanto O-lan penteava o cabelo preto comprido e prendia-o com o grampo de latão banhado a prata que ele lhe comprara. Depois vestiu a túnica nova feita do mesmo tecido da roupa nova dele, 24 pés de bom tecido para as duas, e mais 2 pés de tecido de folga, como é a praxe nas lojas de tecido. Então, ele levando o menino, ela o cesto com os bolos, puseram-se a caminho pela trilha que cortava os campos, agora improdutivos com o inverno.
Wang Lung teve sua recompensa no grande portão da Casa de Hwang, pois quando o porteiro veio atender ao chamado de O-lan, arregalou os olhos para aquela cena, torcendo os três pêlos compridos do sinal, e gritou:
— Ah, é Wang o lavrador, três desta vez, em vez de um! — E então, vendo as roupas novas que eles usavam e a criança que era um menino, disse ainda: — Não é preciso lhes desejar mais sorte este ano do que vocês tiveram no que passou.
Wang Lung respondeu com indiferença, como se fala com um homem que não é um igual:
— Boas colheitas... boas colheitas... — e entrou com segurança portão adentro.
O porteiro estava impressionado com tudo o que via e disse a Wang Lung:
— Sente-se em minha miserável sala enquanto anuncio sua mulher e seu filho lá dentro.
E Wang Lung ficou olhando enquanto sua mulher e seu filho atravessavam o pátio, levando presentes para a chefe de uma casa grande. Tudo aquilo o deixava honrado, e depois que eles sumiram na longa perspectiva dos pátios, um após o outro, entrou na casa do porteiro, onde aceitou com naturalidade da bexiguenta dona da casa o lugar de honra à esquerda da mesa na sala central, e aceitou, apenas com um leve movimento de cabeça, a tigela de chá que ela lhe ofereceu. Mas pousou à sua frente a tigela intocada, como se a qualidade das folhas não estivesse à sua altura.
Wang Lung teve a sensação de que o porteiro custara a voltar com a mulher e o menino. Estudou a expressão da mulher, tentando ver se estava tudo bem, pois já aprendera a detectar pequenas mudanças a princípio invisíveis naquela cara quadrada e impassível. Ela aparentava, porém, uma profunda satisfação e ele logo ficou impaciente para ouvi-la contar o que se passara naqueles pátios das damas vedados a ele, agora que não tinha nenhum interesse ali.
Com mesuras curtas, portanto, ao porteiro e à sua mulher bexiguenta, saiu depressa com O-lan, levando nos braços o menino que dormia todo amassado vestido com a túnica nova.
— Bem? — perguntou ele, por cima do ombro, à mulher, que vinha atrás dele. Por uma vez, estava impaciente com a lerdeza dela. Ela aproximou-se mais e disse baixinho:
— Acredito, se me perguntarem, que estão passando um aperto este ano nesta casa.
Falou num tom chocado como o de alguém que falasse de deuses sentindo fome.
— O que quer dizer? — perguntou Wang Lung, estimulando-a.
Mas ela não se apressava. As palavras eram, para ela, coisas para serem apanhadas, uma a uma, e soltas com dificuldade.
— A Venerável Senhora usava a mesma túnica do ano passado. Nunca vi isso acontecer antes. E as escravas também não tinham túnicas novas. — Em seguida, depois de uma pausa, disse: — Não vi nenhuma escrava com uma túnica nova igual à minha. — Então, pouco depois, falou de novo: — Quanto ao nosso filho, não havia sequer uma criança entre as concubinas do próprio Senhor Velho que se comparasse a ele em beleza e em roupa.
Um sorriso lento espalhou-se pelo seu rosto e Wang Lung riu alto, segurando o menino com ternura junto ao peito. Como ele se dera bem — como se dera bem! Então, enquanto se regozijava, ficou apavorado. Que tolice estava fazendo, andando assim em campo aberto, com um belo menino, para que qualquer mau espírito de passagem pelo ar o visse! Abriu a túnica mais que depressa e escondeu a cabeça do menino no peito, dizendo em voz alta:
— Que pena termos tido uma filha mulher que ninguém vai querer, e, além do mais, coberta de varíola! Vamos rezar para que morra.
— Sim... sim — disse sua mulher o mais rápido que pôde, compreendendo vagamente o que haviam feito.
E, confortado com essas precauções que agora haviam tomado, Wang Lung mais uma vez deu corda à mulher.
— Descobriu por que eles estão mais pobres?
— Só conversei um instante em particular com a cozinheira a quem eu era subordinada antes, mas ela disse: “Essa casa não pode agüentar eternamente com os cinco senhores jovens gastando dinheiro a rodo em outros lugares e mandando para casa uma mulher atrás da outra quando delas se cansam. O Senhor Velho morando em casa e todos os anos tomando mais uma ou duas concubinas, e a Senhora Velha consumindo uma quantidade de ópio equivalente a dois pares de sapatos cheios de ouro.”
— É mesmo? — murmurou Wang Lung, encantado.
— Então a terceira filha vai se casar na primavera — continuou O-lan —, e o dote dela equivale ao resgate de um príncipe e dá para comprar um posto oficial numa cidade grande. Ela faz questão que suas roupas sejam do cetim mais fino, com padrões especiais tecidos em Soochow e Hangchow, e vai mandar vir um alfaiate de Xangai com um séquito de subalfaiates para que seus trajes não estejam menos na moda que os das mulheres do estrangeiro.
— Com quem ela vai se casar então, com essa despesa toda? — perguntou Wang Lung, admirado e horrorizado com tal desperdício de riqueza.
— Com o segundo filho de um magistrado de Xangai — respondeu a mulher, e após uma longa pausa, acrescentou: — Eles devem estar ficando mais pobres, pois a Senhora Velha me disse que queriam vender algumas terras, umas glebas ao sul da casa, em frente ao muro da cidade, onde sempre plantaram arroz todos os anos porque é uma boa terra e o fosso em volta do muro a alaga facilmente.
— Vender as terras — repetiu Wang Lung, convencido. — Então, de fato, estão ficando pobres. A terra é a carne e o sangue da pessoa.
Refletiu um instante e de repente lhe ocorreu uma idéia. Deu um tapa na testa.
— Como não pensei nisso antes! — gritou, virando-se para a mulher. — Vamos comprar a terra!
Eles se olharam, ele exultante, ela estupefata.
— Mas a terra... a terra... — gaguejou ela.
— Vou comprá-la! — gritou ele com uma voz senhorial. — Vou comprá-la da grande Casa de Hwang!
— É muito longe — disse ela consternada. — Teremos que caminhar meia manhã para chegar lá.
— Vou comprá-la — repetiu ele com irritação, como poderia ter insistido com a mãe se ela o tivesse contrariado.
— É uma coisa boa comprar terra — disse ela pacificamente. — Certamente é melhor do que esconder o dinheiro numa parede de barro. Mas, por que não um pedaço da terra de seu tio? Ele está louco para vender aquela faixa perto do campo oeste, que temos agora.
— Aquela terra do meu tio — disse Wang Lung elevando a voz — eu não quero. Há vinte anos ele tira dela safra disso e daquilo sem nunca adubá-la com esterco ou farelo de soja. O solo é como cal. Não, vou comprar a terra de Hwang.
Ele disse “terra de Hwang” tão casualmente como poderia ter dito “terra de Ching” — Ching que era o lavrador seu vizinho. Ele seria mais do que igual àquela gente da casa grande tola e perdulária. Iria com o dinheiro na mão e diria simplesmente:
“Tenho dinheiro. Qual é o preço da terra que querem vender?”
Diante do Senhor Velho, já se ouvia dizendo ao administrador: “Considerem-me um comprador como outro qualquer. Qual é o preço justo? Eu tenho na mão.”
E sua mulher, que havia sido escrava nas cozinhas daquela família orgulhosa, seria a mulher do proprietário de um pedaço da terra que, durante gerações, fizera a Casa de Hwang grande. Foi como se ela sentisse a idéia dele, pois, de repente, parou de resistir e disse:
— Que seja comprada. Afinal de contas, terra de arroz é boa, e é perto do fosso e podemos ter água todos os anos. É seguro.
E, mais uma vez, o sorriso lento se espraiou em seu rosto, o sorriso que nunca iluminava seus olhos pretos apertados, e, após um bom tempo, ela disse:
— Ano passado, nesta época, eu era escrava naquela casa.
E continuaram caminhando, calados na plenitude dessa idéia.
Capítulo 6
Aquela gleba que agora pertencia a Wang Lung mudou muito sua vida. A princípio, depois que tirara o dinheiro da parede e o levara à casa grande, depois que tivera a honra de falar de igual para igual com o Senhor Velho, bateu-lhe uma depressão do espírito que era quase arrependimento. Quando pensava no buraco da parede agora vazio mas antes cheio de dinheiro que ele não precisava gastar, desejava tê-lo de volta. Afinal de contas, aquela gleba exigiria horas de labuta de novo, e, como dissera O-lan, era longe, mais de uma li, que é um terço de milha. E, também, sua aquisição não fora assim tão cheia de glória como ele antecipara. Ele fora muito cedo à casa grande e o Senhor Velho ainda dormia. De fato, era meio-dia, mas quando ele disse, elevando a voz: “Diga à Sua Venerável Excelência que tenho um assunto importante a tratar... diga-lhe que diz respeito a dinheiro!”, o porteiro respondeu positivamente:
— Nem todo o dinheiro do mundo me deixaria tentado a despertar o velho tigre. Está dormindo com a nova concubina, Flor de Pessegueiro, que ele só tem há três dias. Não vale a pena eu me arriscar acordando-o. — Então, acrescentou com uma certa malícia, puxando os pêlos do sinal: — E não pense que dinheiro vai acordá-lo... ele já nasceu com dinheiro na mão.
Afinal, então, o negócio teve que ser tratado com o administrador do Senhor Velho, um patife melífluo cujas mãos estavam pesadas do dinheiro que grudava nelas na passagem. Assim, às vezes parecia a Wang Lung que, afinal de contas, o dinheiro valia mais que a terra. Podia-se ver a prata brilhar.
Sim, mas a terra era dele! Foi vê-la num dia cinzento no segundo mês do novo ano. Ninguém sabia ainda que ela lhe pertencia e ele saiu para vê-la sozinho. Era um retângulo de argila preta pesada que se estendia ao lado do fosso que rodeava a muralha da cidade. Ele mediu a terra cuidadosamente, trezentos passos de comprimento e cem de largura. Quatro pedras ainda marcavam as quinas dos limites, pedras incrustadas com o grande selo da Casa de Hwang. Bem, ele teria que mudar aquilo. Levantaria as pedras depois e colocaria nelas seu próprio nome — não já, pois ainda não estava preparado para que as pessoas soubessem que ele era rico o bastante para comprar terras da casa grande, mas depois, quando estivesse mais rico e não tivesse que dar satisfação do que fazia. E, olhando para aquele retângulo comprido de terra, pensou com seus botões:
“Para os da casa grande, esse punhado de terra nada significa, mas, para mim, significa muito!”
Então, seu estado de espírito mudou, e ele se desprezou por dar tanta importância a um terreno tão pequeno. Ora, quando pusera orgulhosamente seu dinheiro diante do administrador, o homem contara as moedas com indiferença e dissera:
— De qualquer maneira, aqui tem o suficiente para alguns dias de ópio para a Senhora Velha.
E a grande diferença que ainda havia entre ele e a casa grande de repente pareceu tão intransponível como o fosso cheio d’água à sua frente, e tão alta como a muralha além, que se erguia reta e patinada à sua frente. Revoltado, prometeu então a si mesmo que tornaria a encher aquele buraco de dinheiro muitas vezes até ter comprado tanta terra da Casa de Hwang que, a seus olhos, esse terreno nem chegaria a representar uma polegada.
Então, aquela gleba tornou-se para Wang Lung um sinal e um símbolo.
A primavera chegou com ventos de rajada e nuvens de chuva rasgadas e, para Wang Lung, os dias de semi-ócio do inverno se transformaram em longos dias de labuta desesperada em sua terra. O velho tomava conta da criança agora e a mulher trabalhava com o homem de sol a sol, e quando Wang Lung percebeu um dia que ela estava de novo grávida, sua primeira reação foi de irritação porque ela não teria condições de trabalhar durante a colheita. Gritou com ela, com a irritação do cansaço:
— Então, escolheu essa época para parir de novo, é!
Ela respondeu com firmeza:
— Desta vez não é nada. É só o primeiro filho que é difícil.
Além disso, nada mais foi dito a respeito do segundo filho, desde que Wang Lung vira seu crescimento inchando o corpo de O-lan até chegar o dia de outono em que ela pousou a enxada de manhã e foi de mansinho para casa. Ele não voltou naquele dia nem para a refeição do meio-dia, pois o céu estava carregado de nuvens de tempestade e seu arroz já estava pronto para ser enfardado. Mais tarde, antes do pôr do sol, ela já estava ao lado dele, o corpo batido, exausto, mas a cara calada e corajosa. O impulso dele foi dizer:
“Por hoje, já basta para você. Vá se deitar na cama.”
Mas a dor de seu próprio corpo exausto o tornou cruel, e ele disse a si mesmo que sofrera com sua labuta tanto quanto ela com o parto, então só perguntou entre os golpes de foice:
— É menino ou menina?
Ela respondeu com calma:
— É outro menino.
Nada mais disseram um ao outro, mas ele estava satisfeito, e o incessante curvar-se e abaixar-se pareceu menos árduo. Trabalharam até a Lua surgir acima de um banco de nuvens roxas, e, terminado o trabalho, foram para casa.
Após a refeição e após ter lavado o corpo queimado de sol em água fria e enxaguado a boca com chá, Wang Lung foi ver o segundo filho. O-lan deitara-se na cama após o preparo da refeição e o menino estava ao seu lado — um menino gordo e plácido, bastante sadio, mas não tão grande como o primeiro. Wang Lung olhou para ele e depois voltou satisfeito para a sala do meio. Outro filho, e outro, e outro a cada ano — a pessoa não podia se preocupar com ovos vermelhos todos os anos; bastava fazer isso para o primeiro. Filhos todos os anos; a casa estava cheia de sorte — aquela mulher só lhe trouxera sorte. Ele gritou para o pai:
— Agora, Velho, com outro neto, teremos que botar o grande na sua cama!
O velho exultou. Há muito tempo andava desejando que essa criança dormisse em sua cama e esquentasse sua carne velha e enregelada com a renovação de ossos e sangue novos, mas o menino não queria largar a mãe. Agora, porém, entrando no quarto com os passos vacilantes de bebê, olhava para essa nova criança ao lado de sua mãe, e pareceu compreender, com um olhar sério, que outro tomava o seu lugar, e deixou-se ser levado para a cama do avô sem protestar.
Mais uma vez, as colheitas foram boas e Wang Lung juntou dinheiro com a venda de seus produtos e, mais uma vez, escondeu-o na parede. Mas o arroz que colheu da terra dos Hwangs lhe trouxe o dobro do que lhe trouxera o de seu próprio arrozal. A terra daquela gleba era úmida e rica e o arroz crescia ali como o mato cresce onde não é desejado. E todo mundo já sabia que Wang Lung era dono daquela gleba, e na aldeia já se falava em fazer dele o chefe.
Capítulo 7
O tio de Wang Lung começou nessa época a virar o problema que Wang Lung previra desde o início. Esse tio era o irmão mais moço de seu pai, e, por todos os direitos de parentesco, podia depender de Wang Lung caso não tivesse o suficiente para seu sustento e o de sua família. Enquanto Wang Lung e o pai eram pobres e mal alimentados, o tio deu um jeito de tirar de sua terra o suficiente para alimentar os sete filhos, a mulher e a si próprio. Mas, uma vez alimentados, ninguém mais trabalhava. A mulher não se mexia para varrer o chão do casebre, nem as crianças se davam ao trabalho de limpar a comida da cara. Era uma vergonha que as meninas, enquanto cresciam e mesmo já quase na idade de casar, ainda corressem pela rua da aldeia, todas desgrenhadas, com os cabelos duros e queimados de sol, e às vezes até conversassem com homens. Wang Lung, encontrando sua prima mais velha assim um dia, ficou com tanta raiva da vergonha causada à sua família que se atreveu a dizer à mulher do tio:
— Agora, quem vai querer se casar com uma garota como minha prima, que qualquer homem pode olhar? Ela já está para casar há três anos e anda correndo por aí, e hoje eu vi um vagabundo na rua da aldeia botar a mão no braço dela e ela lhe respondeu só com uma risada descarada!
A mulher do tio não tinha nada ativo no corpo, exceto a língua, que ela soltou então para Wang Lung.
— Bem, e quem vai pagar o dote para o casamento e os honorários do intermediário? Para quem tem tanta terra que nem sabe o que fazer com ela e ainda pode comprar mais terra das grandes famílias com suas economias, é fácil falar, mas seu tio é um homem sem sorte e sempre foi. Seu destino é mau e não é por culpa dele. Os Céus assim o querem. Onde outros podem produzir bons grãos, para ele, as sementes morrem na terra e nada brota senão ervas daninhas, e isso embora ele se esfalfe!
Caiu num pranto ruidoso e fácil, e foi ficando furiosa. Soltou o coque preso na nuca e começou a arrancar os cabelos soltos em volta da cara, gritando desenfreadamente:
— Ah, você não sabe o que é não ter sorte na vida! Onde os campos dos outros dão bom arroz e bom trigo, os nossos dão ervas daninhas; onde as casas dos outros ficam em pé cem anos, a terra treme embaixo da nossa, fazendo as paredes racharem; onde as outras mulheres parem homens, eu, apesar de conceber um homem, dou à luz uma menina... ah, destino cruel!
Gritou tão alto que as vizinhas correram de suas casas para ver e ouvir. Wang Lung agüentou firme, porém, querendo acabar o que viera dizer.
— No entanto — disse —, embora eu não tenha a pretensão de dar conselhos ao irmão de meu pai, direi isso: é melhor que uma menina seja casada enquanto ainda é virgem, e quem já ouviu de uma cadela que foi deixada solta nas ruas e não tenha parido uma ninhada?
Tendo falado com essa clareza, foi para casa e deixou a mulher do tio gritando. Pretendia comprar mais um terreno da Casa de Hwang naquele ano, e mais terras ano após ano conforme pudesse. Além disso, sonhava acrescentar um quarto novo à casa, e irritava-se ao ver que, enquanto ele e os filhos se transformavam numa família de posses, a geração preguiçosa de seus primos levava uma vida dissoluta, usando o mesmo nome que o seu.
No dia seguinte, seu tio foi ao campo onde ele estava trabalhando. O-lan não estava lá, pois dez luas se haviam passado desde o nascimento do segundo filho e um terceiro estava para nascer. Como não estava tão bem desta vez, há um punhado de dias, não vinha aos campos, de modo que Wang Lung trabalhava sozinho. Seu tio vinha se arrastando ao longo de um sulco, as roupas nunca abotoadas direito, mas presas de qualquer maneira com a cinta, de modo que sempre dava a impressão de que se batesse um pé de vento, poderia deixá-lo nu. Foi aonde estava Wang Lung e ficou calado enquanto o outro arava com a enxada uma linha estreita ao lado dos feijões largos que ele estava cultivando. Afinal, Wang Lung disse com malícia e sem erguer os olhos:
— Peço-lhe perdão, meu tio, por não parar o meu trabalho. Esses feijões, para produzir, devem, como sabe, ser cultivados duas e três vezes. Os seus, sem dúvida, estão prontos. Sou muito lento, um pobre lavrador, que nunca termina seu trabalho a tempo de descansar.
O tio entendeu perfeitamente a malícia de Wang Lung, mas respondeu calmamente:
— Sou um homem sem sorte. Este ano, de vinte sementes de feijões, só uma germinou, e tão fraca que não adianta botar a enxada no chão. Teremos que comprar feijões este ano se quisermos comer.
E deu um suspiro fundo.
Wang Lung endureceu o coração. Sabia que o tio viera lhe pedir alguma coisa. Meteu a enxada no chão com um movimento longo e suave, com muito cuidado, quebrando um torrão minúsculo na terra macia já bem fofa. Os pés de feijão erguiam-se viçosos e bem espaçados, projetando pequenas franjas de sombra ao sol. Afinal, seu tio começou a falar.
— A pessoa em minha casa me contou do seu interesse por minha imprestável escrava mais velha. Tudo o que você disse é verdade. Você é sábio para sua idade. Ela deveria se casar. Está com 15 anos e, há três ou quatro anos, já poderia ter parido. Vivo apavorado que ela conceba de algum cão selvagem, envergonhando a mim e ao nosso nome. Imagine isso acontecendo em nossa respeitável família, comigo, irmão de seu próprio pai!
Wang Lung desceu com força a enxada na terra. Gostaria de ter sido explícito. Gostaria de ter dito:
“Por que não a controla, então? Por que não a mantém decentemente em casa, obrigando-a a varrer, limpar, cozinhar e costurar para a família?”
Mas não se pode dizer uma coisa dessas a alguém de uma geração mais velha. Ficou calado, portanto, e revolvendo com a enxada a terra em volta de uma plantinha enquanto esperava.
— Se eu tivesse tido a sorte — prosseguiu o tio pesaroso — de ter casado com uma mulher como seu pai se casou, que pudesse trabalhar e, ao mesmo tempo, produzir filhos, como a sua também faz, e não com uma mulher como a minha, que só engorda e só dá à luz mulheres e aquele meu filho tão preguiçoso que não conta como homem, eu também poderia ser rico agora como você é. Então eu ficaria feliz por dividir minhas riquezas com você. Casaria suas filhas com bons partidos e colocaria seu filho como aprendiz num armazém, pagando de bom grado a taxa de garantia. Adoraria consertar sua casa e alimentaria você, seu pai e seus filhos com o que eu tivesse de melhor, pois somos do mesmo sangue.
Wang Lung respondeu sucintamente:
— Sabe que não sou rico. Já tenho cinco bocas para alimentar, meu pai é velho e não trabalha mas come, e, pelo que sei, agora mesmo está nascendo outra boca lá em casa.
O tio respondeu estridulamente:
— Você é rico... você é rico! Comprou a terra da casa grande sabem os deuses por que preço. Há mais alguém na aldeia que fosse capaz de tal coisa?
Ao ouvir isso, Wang Lung ficou furioso. Jogou a enxada no chão e gritou de repente, fuzilando o tio com os olhos:
— Se eu tenho um punhado de dinheiro é porque trabalho e minha mulher trabalha, e não ficamos, como alguns ficam, sentados à toa numa mesa de jogo ou falando da vida alheia na entrada nunca varrida das casas, deixando o mato tomar conta dos campos e nossos filhos mal alimentados!
O sangue subiu ao rosto amarelo do tio, e ele avançou no sobrinho, dando-lhe duas bofetadas.
— Isso é por você falar assim com a geração de seu pai! Você não tem religião, não tem moral, para ser tão desprovido de conduta filial? Não ouviu dizer que, segundo o mandamento nos Éditos Sagrados, nunca se deve corrigir os mais velhos?
Wang Lung ficou taciturno e imóvel, consciente de seu erro, mas irritado até o fundo do coração com aquele homem que era seu tio.
— Vou contar o que você disse para a aldeia inteira! — gritou o tio com a voz desafinada de fúria. — Ontem, você atacou minha casa e gritou na rua que minha filha não é virgem; hoje, você recrimina a mim, que, se seu pai morrer, devo ser como seu próprio pai para você! Minhas filhas podem não ser virgens, mas de nenhuma delas eu ouviria uma conversa dessas! — E repetia sem parar: — Vou contar para a aldeia, vou contar para a aldeia... — Até que, afinal, Wang Lung disse a contragosto: — O que quer que eu faça?
Feria seu orgulho que essa questão de fato pudesse ser tratada diante da aldeia. Afinal de contas, tratava-se de sua própria carne e seu próprio sangue.
Seu tio mudou imediatamente. Sua raiva se dissolveu. Sorriu e pôs a mão no braço de Wang Lung.
— Ah, sei que você é um bom rapaz, um bom rapaz — disse suavemente. — Seu tio conhece você, você é meu filho. Filho, uma pratinha nesta pobre mão velha... digamos, dez moedas, ou até nove, e começo a tratar um casamenteiro para arranjar alguém para essa minha escrava. Ah, você tem razão! Está na hora, está na hora!
Suspirou, balançou a cabeça e olhou piedosamente para o céu.
Wang Lung pegou a enxada e tornou a jogá-la no chão.
— Venha à casa — disse sucintamente. — Não ando carregando prata como um príncipe. — E foi andando na frente, amargurado demais para falar, porque parte da boa prata com que ele planejara comprar mais terra estava para passar para a mão do tio, de onde escorregaria para a mesa de jogo antes que a noite caísse.
Entrou em casa, afastando de sua frente os dois filhinhos que brincavam, nus no sol quente, na entrada da casa. O tio, bonachão, chamou as crianças e a cada uma deu uma moeda de cobre desencavada de alguma dobra da roupa amassada. Estreitou junto ao peito os corpinhos gordos e lustrosos, e, metendo o nariz em seus pescoços macios, cheirou com um carinho espontâneo a carne queimada de sol.
— Ah, vocês são dois homenzinhos — disse segurando um em cada braço.
Mas Wang Lung não parou. Entrou no quarto onde dormia com a mulher e o último filho. Estava muito escuro, para quem, como ele, vinha da claridade de fora, e, a não ser pela barra de luz da abertura, ele nada enxergava. Mas o cheiro de sangue quente de que tão bem se lembrava encheu-lhe as narinas e ele gritou com aspereza:
— E agora, sua hora chegou?
A voz de sua mulher respondeu da cama com uma fraqueza que ele nunca ouvira.
— Acabou mais uma vez. Agora é só uma escrava, não é digna de menção.
Wang Lung ficou parado. Sentiu um mal-estar. Uma menina! Uma menina estava causando aquela perturbação toda na casa do tio. Agora, uma menina nascera em sua casa também.
Foi, então, sem dizer nada até a parede, procurou a aspereza que era a marca do esconderijo e removeu o tampão de barro. No fundo, tateou o montinho de prata e contou nove moedas.
— Por que está tirando o dinheiro? — perguntou O-lan, de repente, no escuro.
— Sou obrigado a emprestar para meu tio — respondeu ele sucinto.
A mulher nada respondeu a princípio e depois disse com seu jeito franco e pesado:
— É melhor não dizer emprestar. Não existe emprestar naquela casa. Só dar.
— Bem, sei disso — respondeu Wang Lung com amargura. — Está me dilacerando dar só por sermos do mesmo sangue.
Então, na entrada da casa, jogou o dinheiro para o tio e voltou depressa para o campo, retomando o trabalho como se quisesse rasgar a terra das bases. Por ora só pensava no dinheiro; viu-o ser jogado com indiferença numa mesa de jogo, viu-o ser recolhido por uma mão ociosa — seu dinheiro, o dinheiro que ele juntara com tanta dificuldade dos frutos de seus campos, para investi-lo de novo em mais terras para si.
Anoiteceu, e sua raiva ainda não tinha passado. Ele se endireitou e se lembrou de sua casa e sua comida. Então, pensou naquela boca nova que chegara naquele dia à sua casa e ocorreu-lhe, com pesar, que começara para eles o nascimento de filhas, filhas que não pertenciam a seus pais, mas nasciam e eram criadas para outras famílias. Com tanta raiva do tio, nem pensara em parar para ver a cara dessa nova criaturinha.
Ficou apoiado na enxada e foi tomado pela tristeza. Agora, só depois de mais uma colheita poderia comprar aquela terra, uma gleba pegada à que era sua, e lá estava aquela boca nova na casa. No céu pálido e nacarado do crepúsculo vinha voando um bando de corvos retintos que passou por cima dele, crocitando com estardalhaço. Ele ficou olhando as aves desaparecerem como uma nuvem nas árvores em volta da casa, e correu atrás delas, aos gritos, sacudindo a enxada. Elas tornaram a voar lentamente, rondando em cima dele, zombando dele com seus guinchos, e afinal sumiram no céu da noite que caía.
Ele resmungou alto. Era um mau presságio.
Capítulo 8
Parecia que, quando se viram contra um homem, os deuses não mais o consideram. As chuvas, que deveriam ter começado no início do verão, não caíram, e, dia após dia, os céus brilhavam com um esplendor novo e indiferente. A terra crestada e faminta não era nada para eles. De um amanhecer ao outro, não havia uma nuvem, e, à noite, as estrelas sobressaíam no céu, douradas e cruéis em sua beleza.
Os campos, embora Wang Lung os cultivasse desesperadamente, secaram e racharam. E pés de trigo, que haviam brotado bravamente com a chegada da primavera e se preparavam para criar grão, não encontrando nenhum alimento no solo ou no céu, encruaram, e, a princípio, ficaram imóveis debaixo do sol, depois murcharam e amarelaram, transformando-se numa colheita estéril. Os canteiros de arroz novo que Wang Lung semeou, primeiro, eram quadrados de jade sobre a terra escura. Ele carregava água para regá-los todos os dias, depois de ter desistido do trigo, em pesados baldes de madeira pendurados num bambu que levava aos ombros. Mas, embora tenha ficado com um sulco na carne e um calo do tamanho de uma tigela, não choveu.
Afinal, o lago secou, formando um barreiro, e até a água do poço baixou tanto que O-lan lhe disse:
— Se as crianças precisam beber e o velho precisa ter a água quente dele, as plantas devem secar.
Wang Lung respondeu com uma raiva que se quebrou num soluço:
— Bem, e eles devem morrer de fome se as plantas morrerem de fome. — Era verdade que a vida deles toda dependia da terra.
Só um terreno ao lado do fosso produziu, e isso porque afinal, quando o verão terminou sem chuva, Wang Lung abandonou todos os outros campos e dedicou-se exclusivamente a esse, tirando água do fosso para regar a terra insaciável. Naquele ano, pela primeira vez, vendeu os grãos logo após a colheita, e, ao sentir o dinheiro na palma da mão, agarrou-o desafiadoramente. Apesar dos deuses e da seca, faria o que determinara, disse a si mesmo. Tinha o corpo alquebrado e suara por esse punhado de prata e faria o que quisesse com ela. Correu para a Casa de Hwang e encontrou o agente das terras ali e disse sem cerimônia:
— Tenho com que comprar o terreno pegado ao meu ao lado do fosso.
Agora, Wang Lung ouvira aqui e ali que, para a Casa de Hwang, fora um ano que beirara a pobreza. A Senhora Velha passou muitos dias sem sua dose de ópio completa e parecia uma tigresa velha com fome, de modo que, diariamente, mandava chamar o administrador e o amaldiçoava, batia-lhe com o leque na cara, gritando para ele: “E ainda não restam glebas de terra?”, deixando-o tão fora de si que ele até abrira mão das comissões que normalmente subtraía das transações da família para seu uso pessoal.
E, como se não bastasse isso, o Senhor Velho tomou outra concubina, uma escrava que era filha de outra que lhe pertencera quando nova, mas que agora estava casada com um criado da casa, porque o desejo do Senhor Velho por ela terminara antes que ele a levasse para seu quarto como concubina. Essa filha da escrava, que não tinha mais de 16 anos, ele agora via com um novo desejo, pois à medida que envelhecia e ficava com o corpo pesado e doente, parecia desejar mais e mais mulheres que fossem esguias e jovens, mesmo crianças, de modo que sua concupiscência não esmorecia. Tal qual a Senhora Velha com seu ópio, era ele com seus desejos, e não tinha como fazê-lo entender que não havia dinheiro para brincos de jade para as favoritas nem ouro para suas lindas mãos. Ele, que a vida inteira só precisara estender a mão e enchê-la quantas vezes quisesse, não conseguia entender as palavras “não há dinheiro”.
E vendo os pais assim, os jovens senhores encolhiam os ombros e diziam que ainda devia haver o suficiente para se sustentarem até o fim da vida. Estavam de acordo a respeito de uma única coisa: repreender o administrador pela má administração das propriedades, e ele, antes um homem melífluo, de vida abastada e fácil, tornava-se ansioso e aflito, emagrecendo e ficando cheio de pelancas soltas dançando em volta dele como uma roupa velha.
O Céu também não mandara chuva nos campos da Casa de Hwang, e ali, também, não houve colheitas, então, quando Wang Lung chegou para o administrador gritando “Tenho dinheiro”, foi como se tivesse dito a um faminto: “Tenho comida.”
O administrador agarrou-se a isso, e se antes discutiram o preço em torno do chá, agora os dois sussurravam com ansiedade, e sem que tivessem terminado de falar, o dinheiro mudou de mãos e os papéis foram assinados e selados e a terra era de Wang Lung.
E, mais uma vez, não foi duro para Wang Lung pagar o dinheiro, que era sua carne e seu sangue. Comprava com ele o desejo de seu coração. Tinha agora uma vasta gleba de boa terra, pois o campo novo era o dobro do primeiro. Mas, mais importante para ele do que sua fertilidade escura era o fato de já ter pertencido à família de um príncipe. E, dessa vez, não contou a ninguém, nem mesmo a O-lan, o que havia feito.
Entrava mês, saía mês, e não chovia. Mais perto do outono, as nuvens apareciam de má vontade no céu, claras e pequenas. Na rua da aldeia viam-se homens parados, ociosos e ansiosos, olhando para cima, examinando atentamente essa nuvem e aquela, discutindo se havia alguma carregada de chuva. Mas, antes que se formasse uma nebulosidade auspiciosa, bateu um vento cortante de noroeste, o vento acre do deserto distante, e varreu as nuvens do céu como quem varre a poeira do chão com uma vassoura. E o céu continuava limpo e claro, com o sol majestoso levantando-se todas as manhãs, fazendo seu percurso e se pondo solitário a cada noite. E a lua em sua hora brilhava como um sol menor.
De seus campos, Wang Lung tirou uma colheita escassa de feijões duros, e, do campo de milho, que semeara em desespero quando o arroz dos canteiros gorou antes mesmo de brotar no campo irrigado, arrancara espigas encruadas, com grãos esparsos aqui e ali. Nem um feijão foi perdido na debulha. Ele pôs os dois meninos para peneirar a poeira da eira entre os dedos depois de ter debulhado as favas com a mulher, e debulhou o milho no chão da sala do meio, observando atentamente cada grão que caía longe. Quando já ia guardar as espigas para servir de lenha, sua mulher falou:
— Não... não as desperdice queimando. Lembro que quando eu era pequena, em Shantung, em anos como este, até as espigas eram moídas e comidas. É melhor que capim.
Depois que ela falou, todos ficaram calados, até as crianças. Havia uma premonição nesses dias estranhos e resplandecentes em que a terra falhava com eles. Só a menina não sabia o que era medo. Para ela, havia os dois seios fartos da mãe ainda cheios para suas necessidades. Mas O-lan, dando-lhe de mamar, resmungava:
— Coma, bobinha, coma, enquanto ainda há o que comer.
Então, como se não bastassem todos os males, O-lan tornou a engravidar, e seu leite secou. E, permanentemente, ecoava pela casa o choro de uma criança pedindo comida.
Se alguém perguntasse a Wang Lung: “Como vai se alimentar no outono?”, ele teria respondido: “Não sei, comendo um pouquinho de vez em quando.”
Mas não havia ninguém para lhe perguntar isso. Ninguém perguntava a ninguém na região inteira: “Está se alimentando bem?” Ninguém perguntava nada, exceto a si mesmo: “Como me alimentarei hoje?” E os pais diziam: “Como nos alimentaremos hoje, nós e nossos filhos?”
Wang Lung cuidara do boi o mais que pôde. Alimentara-o com um pouco de palha e um punhado de ervas enquanto havia disso. Depois passou a lhe dar as folhas das árvores, que conseguiu catar até o inverno chegar e não haver mais folhas. Então, já que não havia mais terra para arar, e as sementes, se plantadas, secavam na terra, e já que eles haviam comido suas sementes, soltou o boi para deixá-lo pastar o que encontrasse, mandando que o menino mais velho ficasse o dia inteiro montado nele, segurando a corda passada em suas ventas para que não o roubassem. Mas, ultimamente, não se atrevia a fazer isso, temendo que os homens da aldeia, até mesmo seus vizinhos, pudessem dominar o menino e tomar o boi para matá-lo e comê-lo. Então, deixou o boi à porta de casa até o bicho ficar um esqueleto.
Mas chegou um dia em que o arroz e o trigo acabaram e só restavam alguns feijões e um magro estoque de milho. O boi mugia de fome e o velho disse:
— Vamos comer o boi, então.
Mas Wang Lung reagiu, pois para ele era como se alguém dissesse: “Vamos comer um homem, então.” O boi era seu companheiro nos campos e ele andara atrás dele e elogiara-o e amaldiçoara-o conforme seu humor. Conhecia-o desde rapaz, quando o haviam trazido ainda vitelo. E disse:
— Como podemos comer o boi? Como voltaremos a arar?
Mas o velho respondeu, com toda a tranqüilidade:
— Bem, é a sua vida ou a do bicho, e a vida do seu filho ou a do bicho, e é mais fácil um homem poder comprar outro boi do que a própria vida.
Mas Wang Lung não o mataria naquele dia. Passou-se o dia seguinte e o outro. As crianças choravam de fome e não sossegavam. O-lan olhou para Wang Lung implorando pelas crianças, e ele viu afinal que a coisa precisava ser feita. Então, disse asperamente:
— Então que seja abatido, mas não posso fazer isso.
Entrou no quarto onde dormia e deitou-se na cama, enrolando a cabeça com a manta para não ouvir os mugidos do bicho ao ser abatido.
Então O-lan apanhou um facão de ferro na cozinha, saiu de mansinho e meteu a faca no cangote do bicho, tirando-lhe assim a vida. Pegou uma tigela e recolheu o sangue para cozinhá-lo e fazer um pudim. Esfolou o boi e cortou em pedaços a grande carcaça. Wang Lung não quis sair do quarto enquanto não estivesse tudo terminado, com a carne cozida e posta na mesa. Mas, quando tentou comer a carne de seu boi, sua garganta fechou e ele não conseguiu engolir. Só tomou um pouco da sopa. Então O-lan lhe disse:
— Um boi é só um boi, e esse ficou velho. Coma, pois haverá outro um dia e muito melhor que esse.
Wang Lung sentiu-se um pouco melhor e comeu um pedaço e depois mais outro, e todos eles comeram. E afinal o boi foi consumido, tendo os ossos quebrados para o tutano. Logo, logo, só restava o couro, seco e duro, estendido na armação de bambu que O-lan fizera para mantê-lo esticado.
A princípio houvera hostilidade na aldeia contra Wang Lung, porque supôs-se que ele estava escondendo dinheiro e estocando comida. Seu tio, que foi um dos primeiros a ter fome, veio importuná-lo à sua porta, e, de fato, o homem, sua mulher e os sete filhos nada tinham para comer. Wang Lung mediu, de má vontade, no lado direito da roupa do tio, um montinho de feijões e um precioso punhado de milho. Depois, disse com firmeza:
— É só do que posso dispor, e, mesmo que não tivesse filhos, tenho meu pai a levar em consideração.
Quando o tio voltou à carga, Wang Lung exclamou:
— A piedade filial também não alimenta minha família! — e deixou o tio ir embora de mãos vazias.
A partir daquele dia, o tio virou-se contra ele como um cão que foi chutado, e espalhava pelas casas da aldeia:
— O meu sobrinho ali tem dinheiro e comida, mas não vai nos dar nada, nem mesmo a mim ou a meus filhos, que somos do mesmo sangue. Nada podemos fazer senão passar fome.
E quando as famílias, uma após outra, esgotaram suas provisões na pequena aldeia e gastaram a última moeda nos minguados mercados da cidade, e os ventos do inverno desceram do deserto, frios como uma faca de aço, secos e estéreis, o coração dos aldeões se angustiou com sua própria fome e com a fome de suas mulheres mirradas e seus filhos que choravam. Quando o tio de Wang Lung, tiritando pelas ruas como um cão esquálido, disse na surdina com aqueles beiços famintos: “Há uma pessoa que tem comida... há uma pessoa cujos filhos ainda estão gordos”, os homens armaram-se de paus e foram uma noite bater à porta de Wang Lung. Quando ele abriu, ao ouvir as vozes dos vizinhos, caíram-lhe em cima, afastando-o do caminho, puseram seus filhos assustados para fora de casa e revistaram todos os cantos, revirando a casa toda para ver onde ele escondera a comida. Então, quando encontraram seu miserável estoque de alguns feijões secos e uma tigela de milho seco, deram um grande uivo de desapontamento e desespero, e agarraram os móveis, a mesa e os bancos e a cama onde o velho estava deitado, assustado e chorando.
Então O-lan adiantou-se e falou, e sua voz clara e lenta se fez ouvir entre os homens:
— Isso não... isso ainda não — disse. — Ainda não é hora de tirar nossa mesa e os bancos e a cama de nossa casa. Vocês têm toda a nossa comida. Mas, de suas próprias casas, vocês ainda não venderam as mesas nem os bancos. Deixem os nossos para nós. Estamos quites. Não temos uma fava nem um grão de milho a mais do que vocês... não, vocês têm mais que nós, agora, pois tomaram tudo o que era nosso. Deus vai castigar se levarem mais. Agora, vamos sair juntos e catar capim para comer e casca das árvores, vocês, para seus filhos, e nós para os nossos três, e para este quarto que vai nascer nestes tempos.
Apertou a barriga com a mão, e os homens ficaram envergonhados e saíram um a um, pois não eram maus a não ser quando passavam fome.
Um se demorou, o que se chamava Ching, um homenzinho calado e amarelo com uma cara de macaco nos bons tempos mas agora encovada e aflita. Gostaria de ter dito alguma boa palavra de desculpa, pois era um homem honesto, e só o choro do filho o obrigara a agir mal. Mas, trazia no peito um punhado de feijões que pegara quando o estoque foi descoberto, e temia ter que devolvê-los se falasse. Por isso só olhou para Wang Lung com olhos esgazeados e mudos, e saiu.
Wang Lung ficou ali no terreiro, onde ano após ano malhara suas boas safras, e que já estava há muitos meses ocioso e inútil. Não sobrava nada na casa para dar de comer a seu pai e seus filhos — nada para dar de comer à sua mulher que, além de alimentar o próprio corpo, tinha que alimentar aquele outro que, com a crueldade da vida nova e ardente, sugava a carne e o sangue de sua mãe. Por um instante, sentiu um pavor extremo. Então, sentiu correr-lhe nas veias esse consolo, como um vinho calmante, e disse a si mesmo:
“Eles não podem me tirar a terra. O trabalho de meu corpo e o fruto dos campos coloquei no que não pode ser tirado. Se eu tivesse dinheiro, eles mo teriam tomado. Se eu tivesse comprado provisões com o dinheiro, eles teriam levado tudo. Mas ainda tenho a terra, e ela é minha.”
Capítulo 9
Wang Lung, sentado à porta de casa, disse a si mesmo que agora, com certeza, algo precisava ser feito. Não podiam continuar ali naquela casa vazia e morrer. Em seu corpo magro em volta do qual ele apertava cada vez mais a cinta frouxa, havia uma determinação de viver. Ele não iria, portanto, justo quando entrava na plenitude da vida, de repente deixar que uma fatalidade idiota lhe roubasse isso. Havia uma revolta tão grande nele que muitas vezes não conseguia expressá-la. Às vezes, apoderava-se dele como um delírio e ele se precipitava para a eira e sacudia os braços para o céu idiota que resplandecia no alto, eternamente azul e claro e frio e sem nuvens.
— Ah, você é muito mau, seu Velho do Céu! — gritava ele sem pensar. E se, por um instante, tinha medo, em seguida gritava mal-humorado: — E o que pode me acontecer de pior do que já aconteceu!
Uma vez foi, arrastando-se naquela fraqueza da fome, ao templo da terra, e deliberadamente cuspiu na cara do pequeno deus imperturbável ali sentado com sua deusa. Não havia bastões de incenso agora diante dessa dupla, e já há muitas luas. Suas roupas de papel estavam esfarrapadas, deixando à vista seus corpos de barro através dos rasgões. Mas eles estavam ali indiferentes a tudo. Wang Lung rangeu os dentes para eles, voltou para casa resmungando e caiu na cama.
Qualquer um deles agora mal se levantava. Não havia necessidade, e um sono agitado substituía, pelo menos por algum tempo, a comida que não tinham. Haviam secado e comido as espigas de milho e raspavam a casca das árvores. Por toda a região, o povo estava comendo o capim que se conseguia encontrar nas montanhas de inverno. Não havia um animal em parte alguma. Um homem podia caminhar dias sem ver um boi ou um burro ou qualquer tipo de bicho ou ave.
As crianças tinham a barriga inchada de ar, e não se via nessa época uma criança brincando na rua da aldeia. No máximo, os dois meninos de Wang Lung iam de mansinho até a porta sentar ao sol, o sol inclemente que brilhava sem cessar. A não ser pelas pesadas barrigas, seus corpos antes redondos estavam angulosos e ossudos, ossinhos pontiagudos como os de passarinho. A menina nem se sentava sozinha, embora já tivesse idade para isso, mas jazia sem reclamar hora após hora enrolada numa manta velha. A princípio, a insistência irritada de seu choro enchia a casa, mas ela passara a ficar quieta, chupando fracamente o que quer que se lhe pusessem na boca e nunca levantando a voz. Seu rostinho encovado olhava atentamente para eles todos, com os lábios roxos chupados como os de uma velha desdentada, e os fundos olhos negros espiando.
A persistência da pequena vida de alguma forma conquistou a atenção do pai, embora, fosse ela gorda e alegre como os outros eram na idade dela, ele não haveria de querer saber dela, pois era menina. Às vezes, olhando para ela, dizia baixinho:
— Pobre tola... pobre tolinha. — E, uma vez, quando ela ensaiou um sorrisinho mostrando as gengivas sem dentes, ele começou a chorar e pegou com a magra mão calejada a mãozinha dela, sentindo a pressão dos dedinhos que apertavam seu indicador. Daí em diante, levantava-a muitas vezes, nuazinha como ela estava, e metia-a no escasso calor de sua túnica contra sua carne e ficava com ela assim sentado à porta de casa, olhando para os campos secos e planos.
Quanto ao velho, estava melhor do que qualquer um, pois o que porventura houvesse para comer era dado a ele, mesmo que as crianças ficassem sem nada. Wang Lung disse a si mesmo com orgulho que ninguém devia dizer na hora da morte que se esquecera do pai. Mesmo que desse a própria carne para alimentá-lo, o velho devia comer. O velho dormia dia e noite, e comia o que lhe davam e ainda tinha forças para caminhar de mansinho pelo terreiro ao meio-dia quando o sol estava quente. Era mais alegre que qualquer um deles e disse um dia, com sua voz tremida de velho que era como um ventinho tremendo entre bambus rachados:
— Já houve dias piores, já houve dias piores. Uma vez, vi homens e mulheres comendo crianças.
— Nunca haverá uma coisa dessas em minha casa — disse Wang Lung com o maior horror.
Houve um dia em que seu vizinho Ching, que agora era menos que uma sombra de criatura humana, veio à porta da casa de Wang Lung e sussurrou com aqueles lábios que estavam secos e pretos como terra:
— Na cidade, estão comendo os cachorros e, em toda parte, os cavalos e toda espécie de ave. Aqui comemos os animais que aravam nossos campos e o capim e a casca das árvores. O que nos resta para comer agora?
Wang Lung balançou a cabeça desesperado. Trazia ao colo o corpinho esquelético da filha. Olhou para a cara delicada e ossuda, e para os olhos penetrantes e tristes que o fitavam sem cessar. Quando seu olhar se encontrava com o dela, naquele rostinho sempre havia um sorriso que lhe cortava o coração.
Ching aproximou o rosto.
— Na aldeia, estão comendo carne humana — sussurrou. — Dizem que seu tio e sua tia estão comendo. Do contrário, como estão vivendo e com força suficiente para andar por aí, eles, que, como é sabido, nunca tiveram nada?
Wang Lung afastou-se da cara cadavérica de Ching, que se aproximara enquanto falava. Assim tão de perto, ele era horrível. Wang Lung de repente sentiu um medo incompreensível. Levantou-se depressa como se para se livrar de algum perigo intrincado.
— Vamos deixar este lugar — disse. — Iremos para o sul! Aqui, por toda parte há gente passando fome. Os céus, por mais perversos que sejam, não vão exterminar de uma vez os filhos de Han.
O vizinho olhou para ele com paciência.
— Ah, você é jovem — disse com tristeza. — Sou mais velho que você, e minha mulher é velha e não temos nada senão uma filha. Podemos morrer bastante bem.
— Você tem mais sorte que eu — disse Wang Lung. — Tenho meu pai velho e essas três boquinhas e mais outra que está para nascer. Precisamos ir, para não esquecer nossa natureza e nos comermos uns aos outros como fazem os cães selvagens.
Então, pareceu-lhe de repente que o que ele disse estava muito certo, e ele gritou para O-lan, que estava deitada na cama havia dias sem falar, agora que não existia comida para o fogão nem lenha para o fogão:
— Venha, mulher, vamos para o sul!
Havia um ânimo em sua voz como há muitos meses ninguém ouvia. As crianças olharam, o velho saiu mancando do quarto e O-lan levantou-se cheia de fraqueza, foi até a porta do quarto, e, apoiando-se na ombreira da porta, disse:
— É uma boa coisa a fazer. Podemos pelo menos morrer andando.
A criança em seu corpo pendia de seus quadris magros como um fruto nodoso, seu rosto estava totalmente descarnado, com os ossos angulosos sobressaindo duros embaixo de sua pele.
— Espere só até amanhã — disse ela. — Já terei parido então. Posso dizer isso pelos movimentos da criança dentro de mim.
— Amanhã, então — respondeu Wang Lung. Então viu a cara da mulher e teve um sentimento de piedade maior do que qualquer outro que já sentira por si mesmo. Aquela pobre criatura ainda estava dando à luz mais uma! — Como vai andar, pobre criatura? — resmungou ele, e disse de má vontade ao vizinho Ching, que ainda estava apoiado na ombreira da porta: — Se tiver alguma comida sobrando, por caridade, me dê um pouquinho para salvar a vida da mãe dos meus filhos, e esquecerei que vi você como um ladrão em minha casa.
Ching olhou para ele envergonhado e respondeu com humildade:
— Nunca mais pensei em você com paz desde aquela hora. Foi aquele cão do seu tio que me incitou, dizendo que você tinha boas colheitas armazenadas. Diante desse céu cruel, eu lhe juro que só tenho um punhado de feijões vermelhos secos escondidos embaixo da soleira da minha porta. Esse punhado, eu e minha mulher botamos ali para nossa última hora, para nossa filha e para nós, para podermos morrer com um pouco de comida na barriga. Mas lhe darei um pouquinho. E amanhã, vá para o sul, se puder. Eu fico, eu e minha família. Sou mais velho que você e não tenho filho, e não importa se vou viver ou morrer.
E foi embora, voltando pouco depois, com dois punhados de feijões vermelhos pequenos, mofados e sujos de terra, amarrados num lenço de algodão. As crianças se ergueram ao ver comida, e até mesmo os olhos do velho brilharam, mas Wang Lung, pela primeira vez, afastou-os e levou a comida para a mulher deitada, e ela comeu alguns feijões, de um em um, sem vontade, só porque sua hora estava chegando e ela sabia que se não comesse nada, iria morrer com as dores do parto.
Só alguns dos feijões Wang Lung escondeu na mão, e esses, pôs na boca e mastigou até virarem uma polpa macia. Aí, colando os lábios nos da filha, passou a comida para ela, e, vendo o movimento daquela boquinha, sentiu-se ele próprio alimentado.
Aquela noite, ele ficou no quarto do meio. Os dois meninos estavam no quarto do velho e, no terceiro quarto, O-lan deu à luz sozinha. Ele ficou ali sentado como ficara durante o parto de seu primogênito, escutando. Nem agora em sua hora ela admitia tê-lo ao seu lado. Daria à luz sozinha, agachada em cima da tina velha que guardava para este fim, arrastando-se depois pelo quarto para apagar os vestígios do que se passara, escondendo como faz um bicho as manchas de nascimento de suas crias.
Wang Lung estava na escuta, à espera do gritinho pungente que tão bem conhecia, e era uma espera desesperada. Homem ou mulher, isso agora não tinha importância para ele — só havia mais uma boca chegando que precisava ser alimentada.
— Seria uma bênção se faltasse o sopro — resmungou, e aí ouviu o choro fraco... tão fraquinho!... ecoar um instante no silêncio. — Mas não há bênção de espécie alguma atualmente — terminou com amargura, e continuou na escuta.
Não houve um segundo choro, e pela casa, o silêncio ficou impenetrável. Mas, há muitos dias, o silêncio reinava em toda parte, o silêncio da inatividade e das pessoas, cada qual em sua casa, esperando a morte. Aquela casa estava impregnada deste tipo de silêncio. De repente, Wang Lung não agüentou. Ficou com medo. Levantou-se e foi para a porta do quarto onde estava O-lan e chamou pela fresta e o som de sua própria voz animou-o um pouco.
— Está tudo bem com você? — perguntou à mulher. Ficou na escuta. E se ela tivesse morrido enquanto ele estava ali sentado! Mas ele ouvia um ligeiro farfalhar. Ela estava andando e, afinal, respondeu, num suspiro:
— Entre!
Ele entrou, então, e ela ficou ali deitada na cama, o corpo quase não fazendo volume debaixo da coberta. Estava sozinha.
— Onde está a criança? — perguntou ele.
Ela fez um ligeiro movimento com a mão sobre a cama, e ele viu no chão o corpo da criança.
— Morta! — exclamou.
— Morta — sussurrou ela.
Ele se abaixou e examinou o corpinho — um punhado de pele e ossos — uma menina. Já ia dizer: “Mas escutei o choro dela, viva”, e aí olhou para a cara da mulher, que tinha os olhos fechados e a pele cinzenta, com os ossos salientes sob a pele. Era uma cara infeliz e calada que jazia ali, tendo suportado o máximo, e ele não tinha o que dizer. Afinal de contas, durante esses meses, só tivera que carregar o próprio corpo. Que agonia de fome essa mulher suportara, com a criatura faminta consumindo-a por dentro, desesperada para viver!
Ele nada disse, mas levou a criança morta para o outro quarto, deitou-a no chão de terra e catou um pedaço de esteira no qual enrolou o corpo. A cabeça redonda pendia para lá e para cá, e, no pescoço, ele viu duas marcas escuras, mas terminou o que tinha que fazer. Então, pegou o rolo de esteira e, afastando-se da casa o máximo que suas forças permitiam, depositou o fardo no lado aberto de um velho túmulo. Este túmulo erguia-se entre muitos outros, deteriorado e abandonado, numa encosta bem no limite do campo oeste de Wang Lung. Mal ele depositara o fardo no chão, surgiu atrás dele um voraz cão faminto, tão faminto que, embora ele tivesse acertado uma pedra em seu flanco magro, com um baque surdo, o bicho não se afastou mais que uns passos. Afinal, Wang Lung sentiu as pernas fraquejarem e foi embora, tapando o rosto com as mãos.
“Foi melhor assim”, disse de si para si, e, pela primeira vez, ficou completamente desesperado.
Na manhã seguinte, quando o sol se ergueu igual naquele céu de um azul envernizado, pareceu-lhe um sonho ele poder algum dia ter pensado em deixar sua casa com aquelas crianças indefesas, aquela mulher enfraquecida e aquele velho. Como poderiam se arrastar por cem milhas, mesmo que fosse para a fartura? E quem sabia se no sul havia ainda o que comer? Dir-se-ia que aquele céu de bronze não acabaria mais. Talvez gastassem as últimas forças só para encontrar mais gente passando fome e, ainda por cima, gente estranha para eles. Muito melhor ficar onde pudessem morrer em suas camas. Ele estava abatido, sentado na soleira da porta, olhando desolado para os campos secos e endurecidos dos quais toda partícula de tudo quanto pudesse ser chamado de comida ou lenha havia sido arrancada.
Não tinha dinheiro. Há muito, a última moeda se fora. Mas dinheiro, também, não adiantaria muito agora, pois não havia comida para comprar. Ouvira dizer que havia homens ricos na cidade que estavam acumulando comida para si mesmos e para vender aos muito ricos, mas isso nem o revoltava mais. Sentia-se naquele dia incapaz de ir à cidade, ainda que fosse para comer de graça. Estava, de fato, sem fome.
A sensação de algo lhe corroendo o estômago que ele tinha a princípio já passara, e ele podia pegar um pouquinho de terra de um determinado ponto de um de seus campos e dar aos filhos sem desejar nada para si. Essa terra, eles andavam comendo com água há alguns dias — terra deusa da misericórdia, chamava-se, porque possuía uma leve qualidade nutritiva, embora, afinal, não pudesse sustentar a vida. Mas, na forma de papa, enganava a fome das crianças e botava alguma coisa em suas inchadas barrigas vazias. Ele estava firmemente decidido a não tocar nos poucos feijões que O-lan ainda tinha na mão e sentia um vago consolo em ouvi-la comendo-os, um de cada vez, com muito tempo de intervalo.
Então, enquanto estava ali à porta, já sem esperança, pensando com um prazer onírico em deitar na cama e morrer dormindo sem sofrer, viu alguns homens atravessarem os campos vindo em sua direção. Continuou sentado enquanto eles se aproximavam e viu que um era seu tio e com ele havia três desconhecidos.
— Não o vejo há muitos dias — disse o tio com estardalhaço, aparentando bom humor. E, quando chegou mais perto, disse com o mesmo estardalhaço: — Como você está bem! E seu pai, meu irmão mais velho, vai bem?
Wang Lung olhou para o tio. O homem estava magro, é verdade, mas não passava fome, como devia estar passando. Wang Lung sentiu no próprio corpo murcho a última força de vida remanescente transformar-se numa raiva devastadora contra aquele homem, seu tio.
— Como tem comido, como tem comido! — murmurou com uma voz rouca. Não quis saber daqueles estranhos nem de regras de etiqueta. Só viu o tio com carne nos ossos, ainda. O tio arregalou os olhos e jogou as mãos para o céu.
— Comido! — exclamou. — Se você pudesse ver minha casa! Nem um pardal poderia catar sequer uma migalha ali. Minha mulher. Lembra-se como era gorda? Como sua pele era clara e gorda e luzidia? Pois agora está como uma roupa pendurada numa vara... nada mais que os pobres ossos chacoalhando dentro da pele. E, de nossos filhos, só sobram quatro... os três pequenos morreram, morreram. E quanto a mim, você está me vendo! — Ele pegou a ponta da manga e enxugou com cuidado o canto de cada olho.
— Você come — repetiu Wang Lung obtusamente.
— Não penso em outra coisa senão em você e seu pai, que é meu irmão — retrucou o tio animadamente —, e agora lhe provo isso. Logo que pude, peguei emprestado com esses bons homens na cidade um pouco de comida, prometendo que, com a força que isso me deu, eu os ajudaria a comprar algumas terras em volta de nossa aldeia. Aí, pensei em primeiro lugar na sua boa terra, em você, o filho de meu irmão. Eles vieram para comprar sua terra e lhe dar dinheiro... comida... vida! — O tio, tendo dito essas palavras, deu um passo atrás e cruzou os braços com um floreio das roupas sujas e esfarrapadas.
Wang Lung não se mexeu. Não se levantou nem reconheceu de alguma forma os homens que vieram. Mas levantou a cabeça para olhar para eles e viu que, de fato, eram homens da cidade, vestidos com longas túnicas de seda manchadas. Tinham as mãos macias e as unhas compridas. Davam a impressão de ter comido e o sangue ainda corria muito em suas veias. Ele de repente sentiu um ódio imenso deles. Ali estavam aqueles homens da cidade, que haviam comido e bebido, ao lado dele, cujos filhos passavam fome e comiam a própria terra dos campos; ali estavam eles, para arrancar dele a terra naquela situação extrema em que ele se encontrava. Ele olhou para eles emburrado, os olhos fundos e enormes na cara cadavérica.
— Não vou vender minha terra — disse.
O tio se adiantou. Nesse instante, o mais moço dos dois filhos de Wang Lung veio engatinhando de mansinho até a porta. Desde que enfraquecera ultimamente, o menino às vezes engatinhava como fazia em bebê.
— É o seu menino? — perguntou o tio —, o gordinho a quem dei um cobre no verão?
E todos olharam para a criança, e de repente, Wang Lung, que durante esse tempo todo não chorara, começou a chorar em silêncio, as lágrimas se acumulando em grandes nós de dor em sua garganta e lhe escorrendo pelas faces.
— Qual é seu preço? — sussurrou por fim.
Bem, havia essas três crianças para alimentar — as crianças e o velho. Ele e a mulher podiam cavar a própria sepultura na terra e deitar nela e dormir. Mas ali estavam aqueles.
Então, um dos homens da cidade falou, um homem com um olho cego e afundado na cara, melifluamente:
— Meu pobre homem, nós lhe daremos um preço melhor do que se poderia obter atualmente em qualquer lugar em consideração ao menino que está passando fome. Nós lhe daremos... — fez uma pausa e depois disse bruscamente: — lhe daremos cem pence por acre!
Wang Lung riu com amargura.
— Ora, isso — exclamou —, isso é levar minha terra de presente. Ora, pago vinte vezes isso quando compro terras!
— Ah, mas não quando compra de gente morrendo de fome — disse o outro homem da cidade. Era um sujeito baixo e magro, com um nariz grande e fino, mas a voz saiu de dentro dele inesperadamente forte e grossa e dura.
Wang Lung olhou para os três. Conheciam a situação dele! O que um homem não dá pelos filhos famintos e pelo velho pai! A fraqueza da rendição transformou-se numa raiva como jamais conhecera na vida. Ele avançou nos homens como um cachorro avança no inimigo.
— Nunca hei de vender a terra — gritou para eles. — Palmo a palmo, vou escavar os campos e alimentar as crianças com a própria terra e, quando elas morrerem, vou enterrá-las na terra, e eu, minha mulher e meu velho pai, até ele, vamos morrer na terra que nos deu à luz!
Chorava violentamente, e a raiva saiu de dentro dele tão subitamente como um vento, e ele continuou chorando e tremendo. Os homens ficaram ali sorrindo de leve, impassíveis, o tio entre eles. Aquela conversa era uma loucura, e eles esperaram a raiva de Wang passar.
Então, de repente, O-lan apareceu na porta e falou com eles, a voz neutra como se tais coisas acontecessem todos os dias.
— A terra, não venderemos, com certeza — disse —, senão, quando voltarmos do sul, não teremos nada para nos alimentar. Mas venderemos a mesa e as duas camas e a roupa de cama e os quatro bancos e até o caldeirão do fogão. Mas os ancinhos e a enxada e o arado não venderemos, nem a terra.
Havia uma calma na voz dela que tinha mais força do que a raiva do marido, e o tio de Wang Lung perguntou com hesitação:
— Vocês vão mesmo para o sul?
Afinal, o caolho falou para os outros, depois que confabularam entre si:
— São coisas pobres que só servem para lenha. Duas moedas de prata pelo lote, e é pegar ou largar.
Afastou-se com desprezo enquanto falava, mas O-lan respondeu tranqüilamente:
— Isso é menos do que o custo de uma cama, mas, se tem a prata, passe-a para cá depressa e leve as coisas.
O caolho tateou na cinta e pôs na mão estendida a prata. Os três homens entraram na casa e dividiram entre si a mesa e os bancos e a cama do quarto de Wang Lung, primeiro, com a roupa de cama, e arrancaram o caldeirão do forno de barro em que estava. Mas, quando entraram no quarto do velho, o tio de Wang Lung ficou de fora. Não queria que o irmão mais velho o visse, nem queria estar lá quando o deitassem no chão para tirar-lhe a cama. Quando tudo terminou e a casa estava completamente vazia, a não ser pelos dois ancinhos e as duas enxadas e o arado num canto da sala do meio, O-lan disse ao marido:
— Vamos, enquanto temos as duas moedas de prata e antes que precisemos vender os caibros da casa e não tenhamos um buraco onde nos meter quando voltarmos.
E Wang Lung respondeu com pesar:
— Vamos.
Mas olhou para os vultos pequenos dos homens desaparecendo nos campos e ficou repetindo:
— Pelo menos, tenho a terra, tenho a terra.
Capítulo 10
Não havia nada a fazer senão fechar bem a porta nas dobradiças de madeira e correr o ferrolho. Todas as roupas que possuíam, eles as levavam vestidas. Na mão de cada menino, O-lan pôs uma tigela de arroz e um par de pauzinhos. Os meninos se agarraram àquilo como uma promessa de comida futura. Assim, partiram pelos campos, uma pequena procissão triste andando tão devagar que parecia que nunca chegariam aos muros da cidade.
Wang Lung carregou a menina no colo até ver que o velho cairia, então entregou-a a O-lan e, curvando-se embaixo do pai, levantou-o nas costas e carregou-o, cambaleando sob aquele esqueleto seco e levíssimo. Caminhavam em silêncio total, passando pelo pequeno templo com os dois pequenos deuses majestosos no interior, os quais nunca notavam nada do que se passava. Wang Lung suava de fraqueza apesar do frio e do vento cortante. Esse vento nunca parava de soprar neles e contra eles, fazendo os dois meninos chorarem de frio. Mas Wang Lung os persuadia dizendo:
— Vocês são dois homenzinhos e estão viajando para o sul. Lá faz calor e tem comida todos os dias, arroz branco para todos nós, e vocês vão comer e comer.
Em tempo, chegaram ao portão da muralha, descansando continuamente a cada pequeno trecho. E onde já se deliciara com a temperatura agradável, Wang Lung agora cerrava os dentes para enfrentar a rajada fria que corria furiosamente pelo túnel, como um rio de água gelada entre penhascos. Sob seus pés, a lama era grossa e transpassada de agulhas de gelo. Os garotinhos não conseguiam andar e O-lan ia sobrecarregada com a menina e desesperada sob o peso do próprio corpo. Wang Lung vinha cambaleando com o velho e o colocou no chão e voltou para buscar cada menino. Quando terminou essa operação, o suor escorria dele como uma chuva, levando todas as suas forças, e ele teve que se apoiar um bom tempo no muro úmido, olhos fechados e a respiração ofegante. A família esperava em volta dele, tiritando.
Encontravam-se agora perto do portão da casa grande, que estava trancada, as portas de ferro totalmente fechadas e os leões de pedra, de cada lado, cinzentos e corroídos pelo vento. Na escada da frente, jaziam encolhidos alguns vultos maltrapilhos de homens e mulheres que olhavam, famintos, para o portão fechado e barrado. E quando Wang Lung passou com sua pequena procissão miserável, alguém gritou com uma voz quebrada:
— O coração desses ricos é empedernido como o coração dos deuses. Eles ainda têm arroz para comer, e com o arroz que não comem ainda fazem vinho, enquanto morremos de fome.
E outro gemeu:
— Ah, se tivesse um instante de força nessa minha mão, eu botaria fogo nos portões e naquelas salas e naqueles pátios lá dentro, mesmo que eu morresse no incêndio. Mil pragas para os pais que geraram os filhos de Hwang!
Mas Wang Lung nada disse, e prosseguiram em silêncio para o sul.
Depois que atravessaram a cidade e saíram no lado sul, e esse percurso fizeram tão devagar que já era quase noite, encontraram uma multidão indo para o sul. Wang Lung começava a pensar em qual canto do muro seria melhor escolherem para dormir da melhor forma, quando se viu com a família de repente no meio de uma multidão, e perguntou a alguém que o empurrava:
— Para onde está indo essa multidão?
E o homem respondeu:
— Somos gente que passa fome e vamos pegar o vagão de fogo e ir para o sul. Ele sai daquela casa e ali há carros para gente como nós por menos de uma moeda de prata pequena.
Vagões de fogo! Já se ouvira falar disso. Wang Lung, há tempos, na casa de chá, ouvira os homens falarem desses vagões, acorrentados um ao outro e puxados não por homem nem bicho, mas por uma máquina cuspindo fogo e água como um dragão. Dissera a si mesmo várias vezes que, num feriado, ele iria ver isso, mas com uma coisa e outra a fazer nos campos, nunca houvera tempo, uma vez que ele morava bem para o norte da cidade. E sempre se desconfiava daquilo que não se conhecia ou entendia. Não convém a um homem saber mais que o necessário para sua vida cotidiana.
Agora, porém, ele se virou indeciso para a mulher e disse:
— Vamos então nesse vagão de fogo?
Afastaram um pouco o velho e as crianças da multidão que passava e se entreolharam com ansiedade e medo. Enquanto isso, o velho caiu no chão e os meninos deitaram na terra, sem se preocupar com os pés passando em volta. O-lan ainda carregava a menina, mas o aspecto da criança de olhos fechados e com a cabeça pendurada sobre seu braço era tão moribundo que Wang Lung, esquecendo-se de tudo o mais, gritou:
— A escravinha já morreu?
O-lan fez que não com a cabeça.
— Ainda não. O ar entra e sai de dentro dela. Mas ela vai morrer esta noite e nós todos se não...
Aí, como se não pudesse dizer mais uma palavra, olhou para ele, a cara quadrada exausta e encovada. Wang Lung nada respondeu, mas, consigo mesmo, pensou que mais um dia de caminhada como aquele, e eles todos estariam mortos ao anoitecer. E disse com a animação que lhe restava na voz:
— Levantem, meus filhos, e ajudem o avô a se levantar. Vamos no vagão de fogo e seguiremos sentados para o sul.
Mas, se poderiam ou não ter se deslocado, ninguém sabe, não tivessem surgido da escuridão um estrondo como a voz de um dragão e dois grandes olhos cuspindo fogo, causando uma gritaria e uma correria gerais. E, na confusão, Wang Lung e sua família foram empurrados de um lado para outro, mas sempre se mantendo desesperadamente juntos, e, no escuro, em meio à gritaria e à choradeira, entraram por uma portinhola para uma sala que parecia uma caixa. Então, com um rugido incessante, a coisa na qual embarcaram precipitou-se na noite, carregando-os nas entranhas.
Capítulo 11
Com as duas moedas de prata, Wang Lung pagou por cem milhas de estrada e recebeu de troco do funcionário um punhado de tostões de cobre. Com alguns desses cobres, comprou de um vendedor, que meteu sua bandeja de mercadorias por um buraco do vagão tão logo o trem parou, quatro pãezinhos e uma tigela de arroz papa para a menina. Era mais do que haviam comido de uma vez em muitos dias, e, embora estivessem passando fome, quando tiveram a comida na boca, os meninos perderam o apetite e precisaram ser seduzidos para engolir. Mas o velho chupava com perseverança o pão entre as gengivas desdentadas.
— É preciso comer — dizia, muito simpático com todos os que se espremiam em volta dele, enquanto o vagão de fogo seguia chacoalhando aos solavancos. — Não quero saber se minha barriga tola ficou preguiçosa após esses dias todos sem muito o que fazer. Ela precisa ser alimentada. Não vou morrer porque ela não quer trabalhar. — E os homens riam de repente para o velhinho sorridente e murcho, cuja barba branca rala se espalhava por todo o queixo.
Mas Wang Lung não gastou todos os cobres em comida. Guardou o que pôde para comprar esteiras com que fazer um abrigo para a família quando chegassem ao sul. Havia homens e mulheres no vagão de fogo que haviam estado no sul em outros anos. Alguns iam todos os anos às ricas cidades do sul para trabalhar e mendigar e assim poupar o dinheiro da comida. Wang Lung, quando se acostumou com a maravilha de estar onde estava e com o espanto de ver a terra passar pelos buracos no vagão, escutou o que esses homens diziam. Falavam com a força da sabedoria onde os outros são ignorantes.
— Primeiro, você precisa comprar seis esteiras — disse um homem de lábios grossos e caídos como os de um camelo. — São dois pence para uma esteira, se você for esperto e não agir como um caipira; do contrário, lhe cobrarão três pence, que é demais, como bem sei. Os homens das cidades do sul não me enganam, mesmo se forem ricos.
Balançou a cabeça e olhou em volta para ser admirado. Wang Lung escutava com ansiedade.
— E aí? — perguntou. Estava agachado no fundo do vagão, que era, afinal de contas, apenas uma sala vazia feita de madeira e sem nenhum assento, com vento e poeira entrando pelas frestas do chão.
— Aí — disse o homem mais alto ainda, a voz se sobrepondo ao barulho das rodas de ferro —, aí faça uma cabana com elas e saia para mendigar, mas depois de ter se sujado de lama e outras coisas para parecer o mais miserável possível.
Mas Wang Lung nunca na vida mendigara de ninguém e não gostava dessa idéia de mendigar de estranhos no sul.
— É preciso mendigar? — repetiu.
— Ah, com certeza — disse o homem das beiçolas —, mas só depois que já tiver comido. Essa gente no sul tem tanto arroz que todas as manhãs você pode ir a uma cozinha pública e, por um tostão, se empanturrar de tanto arroz quanto couber na sua barriga. Então pode mendigar confortavelmente e comprar pasta de soja e repolho e alho.
Wang Lung se afastou um pouco dos outros e se virou para a parede e, discretamente, com a mão na cinta, contou as moedas que lhe sobravam. Havia o suficiente para seis esteiras e um pouco de arroz e ainda ficava com três moedas. Sentiu-se consolado ao pensar que assim poderiam começar uma vida nova. Mas a idéia de pegar uma tigela e sair para mendigar dos passantes continuava a angustiá-lo. Isso era muito bom para o velho e as crianças e até para a mulher, mas ele tinha suas duas mãos.
— Não existe trabalho para as mãos de um homem? — perguntou de repente ao homem, voltando-se para ele.
— Ai, trabalho! — disse o homem com desprezo. E cuspiu no chão. — Pode puxar um rico num riquixá amarelo se quiser e suar seu sangue com o calor enquanto corre, para ter esse suor transformado numa capa de gelo em cima de você quando estiver parado esperando ser chamado. Prefiro mendigar! — E rogou uma praga, de modo que Wang Lung não quis mais lhe fazer perguntas.
Mas, mesmo assim, foi bom ele ter escutado o que o homem disse, pois quando o vagão de fogo chegou onde os levaria e os deixou desembarcar, Wang Lung já tinha um plano preparado. Deixou o velho e as crianças encostados no muro cinzento e comprido de uma casa que havia ali perto, disse à mulher para tomar conta deles e saiu para comprar as esteiras, perguntando a um e a outro onde ficava o mercado. A princípio, mal entendia o que lhe diziam, tão estridente e abrupto era o sotaque daqueles sulistas, e muitas vezes, quando perguntava e eles não entendiam, ficavam tão impacientes que ele aprendeu a observar a que tipo de homem se dirigia e só perguntar aos de cara mais simpática, pois aquela gente tinha um temperamento muito irritadiço.
Mas encontrou a loja de esteiras no limite da cidade. Pôs as moedas no balcão como quem sabe o preço das mercadorias e levou seu rolo de esteiras. Quando voltou ao local onde deixara a família à sua espera, os meninos choraram de alívio, e ele viu que eles estavam apavorados naquele lugar estranho. Só o velho olhava tudo com prazer e espanto e disse a Wang Lung:
— Veja como são gordos, esses sulistas, e como têm a pele clara e oleosa. Comem carne de porco diariamente, sem dúvida.
Mas nenhum passante olhava para Wang Lung e sua família. Homens iam e vinham para a cidade pela estrada calçada, ocupados e atentos, sem olhar para os mendigos. A toda hora passava uma pequena caravana de burros com o passo rápido, os pequenos cascos encaixando-se bem às pedras, carregados de cestos de tijolos para a construção de casas e com grandes sacas de grão balançando atravessadas no lombo. No fim de cada caravana, vinha o tropeiro montado no último animal, levando um grande chicote que ele fazia estalar com um barulho incrível no lombo dos bichos, dando um grito ao fazer isso. E, ao passar por Wang Lung, cada tropeiro lhe lançava um olhar arrogante de desprezo. Príncipe nenhum poderia parecer mais arrogante que aqueles tropeiros vestidos com seus ásperos capotes de trabalho ao passar pelo grupinho de pessoas paradas na beira da estrada, espantadas. Era um prazer especial de cada tropeiro, ao ver o aspecto estranho de Wang Lung e sua família, estalar o chicote ao passar. O corte incisivo e explosivo do ar sobressaltava-os, e, ao ver o susto que levavam, os tropeiros gargalhavam. Wang Lung irritou-se com isso umas duas ou três vezes e foi procurar um local para armar sua barraca.
Já havia outras barracas encostadas no muro atrás deles, mas o que existia do outro lado ninguém sabia, nem tinha como saber. Era um paredão extenso, muito alto e cinzento, e, encostadas em sua base, as cabaninhas de esteira se agarravam como pulgas nas costas de um cachorro. Wang Lung observou as barracas e começou a modelar suas esteiras para lá e para cá, mas elas eram duras e, na melhor das hipóteses, desajeitadas, feitas de tiras de junco, e ele já se desesperava, quando O-lan disse de repente:
— Isso eu sei fazer. Aprendi de pequena.
Pôs a menina no chão e puxou as esteiras assim e assim, fazendo uma cobertura arredondada até o chão, com altura suficiente para um homem sentar embaixo sem bater em cima. Prendeu as pontas das esteiras que estavam no chão com tijolos que encontrou por ali e mandou os meninos catarem mais tijolos. Quando a barraca estava terminada, eles entraram nela e, com uma esteira que ela dera um jeito de não usar, fizeram um piso, onde se sentaram abrigados.
Sentados assim e olhando uns para os outros, parecia impossível que na véspera eles tivessem largado sua casa e sua terra e que estas agora estivessem a cem milhas de distância. Era uma distância bem grande para ter exigido semanas de caminhada em que alguns deles poderiam ter morrido antes de chegar ao fim.
Depois, a sensação geral de fartura naquela terra rica, onde ninguém parecia ter fome, impregnava-os, e quando Wang Lung disse: — Vamos procurar as cozinhas públicas —, eles se levantaram quase alegres e saíram mais uma vez. Agora, os meninos caminhavam batendo os pauzinhos nas tigelas, pois logo haveria algo para botar dentro delas. E eles logo viram por que as barracas eram construídas ao longo daquele paredão. Não muito além do extremo norte do muro, havia uma rua por onde passava muita gente carregando tigelas e baldes e vasilhas de lata, todos vazios. Essa gente estava indo para as cozinhas dos pobres, que ficavam no fim da rua, não longe dali. Então, Wang Lung e sua família se misturaram a essas pessoas e com elas chegaram afinal aos dois grandes galpões de esteira. Todo mundo se espremia dentro desses galpões.
No fundo de cada galpão, havia fogões de barro, maiores do que qualquer outro que Wang Lung já vira, e, em cima deles, caldeirões de ferro do tamanho de pequenos lagos; e quando as grandes tampas de madeira eram levantadas, via-se o bom arroz branco borbulhando e fervendo, e nuvens de fumaça cheirosa se desprendiam. Quando sentiam o cheiro daquele arroz, que, para seus narizes, era o mais doce do mundo, aquela gente toda avançava em massa, empurrando-se aos gritos. As mães esbravejavam com raiva, temendo que seus filhos fossem pisoteados, os bebezinhos choravam e os homens que destampavam os caldeirões berravam:
— Dá para todos! Cada qual terá sua vez!
Mas nada conseguia deter a massa de homens e mulheres famintos, que brigavam como bichos até terem comido. Wang Lung, apanhado no meio deles, não podia fazer outra coisa senão agarrar-se ao pai e aos dois filhos e, quando chegou diante do grande caldeirão, estendeu a tigela e, quando esta ficou cheia, entregou a moeda. Foi tudo o que pôde fazer para agüentar firme e não ser arrastado antes de terminada a operação.
Então, voltaram para a rua e ficaram comendo o seu arroz. Wang Lung deixou um pouco no prato e disse:
— Vou levar isso para casa para comer à noite.
Mas, um homem que estava ali perto e era uma espécie de guarda do local, pois usava uma roupa especial azul e vermelha, disse, incisivo:
— Não, você não pode levar nada a não ser o que está na sua barriga.
Wang Lung admirou-se com isso e disse:
— Bem, se paguei com a minha moeda, o que lhe interessa se levo a comida dentro ou fora de mim?
O homem disse então:
— Precisamos impor esta regra, pois há gente de coração tão duro que vem aqui comprar esse arroz que é dado aos pobres (pois, por uma moeda, ninguém come assim) e leva o arroz para dar de comer aos porcos em casa como resto de comida. E o arroz é para gente e não para porcos.
Wang Lung ouviu isso espantado e disse:
— Existem homens duros assim! — Depois disse: — Mas por que dão assim aos pobres, e quem dá?
O homem respondeu então:
— Os ricos e os fidalgos da cidade. Alguns fazem isso como uma boa ação para ter uma recompensa futura, salvando vidas para merecer o Céu, e outros o fazem por virtude, para que se fale bem deles.
— Seja por que motivo for, é uma boa ação — disse Wang Lung —, e alguns devem praticá-la por terem bom coração. — Então, vendo que o homem não lhe respondera, acrescentou em defesa própria: — Pelo menos, há alguns desses?
Mas o homem estava cansado de falar com ele e deu-lhe as costas, cantarolando uma canção. As crianças puxaram então Wang Lung, que levou todos de volta à barraca que haviam feito. Ali se deitaram e dormiram até a manhã seguinte, pois era a primeira vez desde o verão que haviam se saciado de comida, e foram totalmente vencidos pelo sono.
Na manhã seguinte, era necessário arranjarem mais dinheiro, pois haviam gasto a última moeda no arroz da manhã. Wang Lung olhou para O-lan, sem saber o que fazer. Mas não foi com o desespero com que olhara para ela diante de seus campos áridos e vazios. Aqui, com o ir e vir de pessoas bem alimentadas nas ruas, com carne e legumes nas feiras, com peixes nadando nas tinas, nos mercados de peixes, seguramente era impossível um homem e seus filhos passarem fome. Não era como na terra deles, onde nem prata comprava comida porque não havia o que comer. E O-lan respondeu-lhe com firmeza, como se aquela fosse a vida que sempre conhecera:
— Eu e as crianças podemos mendigar e o velho também. Os cabelos grisalhos dele comoverão alguns que se negarão a me dar.
Chamou os dois meninos, que, sendo crianças, haviam esquecido de tudo a não ser que tinham comida de novo e estavam num lugar estranho. Só queriam saber de correr para a rua e ficar olhando todo mundo que passava.
— Cada um pegue sua tigela, segure assim e grite assim...
E pegou a tigela vazia e, estendendo-a, pedia miseravelmente:
— Caridade, bondoso senhor, caridade, bondosa senhora! Tenha caridade... Uma boa ação para sua vida no Céu! O trocado... a moeda de cobre que vai jogar fora... alimenta uma criança faminta!
Os meninos olhavam para ela, e Wang Lung também. Onde ela aprendera a gritar assim? Quanto havia dessa mulher que ele não conhecia! Ela respondeu ao olhar dele dizendo:
— Assim eu pedia quando era criança e assim era alimentada. Num ano como este, fui vendida como escrava.
Então, o velho, que andara dormindo, acordou, e eles lhe entregaram uma tigela e os quatro foram para a rua mendigar. A mulher começou a gritar e a sacudir a tigela para cada passante. Metera a menina no seio nu, e a criança dormia com a cabeça balançando conforme a mãe corria para lá e para cá com a tigela estendida à frente. Apontava para a criança enquanto mendigava e gritava:
— Se não der, bom senhor, boa senhora, a criança morre, estamos morrendo de fome, morrendo de fome. — E, de fato, a criança parecia morta, a cabeça sacudindo de um lado para o outro, e houve algumas pessoas, poucas, que lhe jogaram um trocado de má vontade.
Mas os meninos, depois de algum tempo, começaram a considerar a mendicância uma brincadeira, e o mais velho estava envergonhado, rindo encabulado enquanto pedia. Percebendo isso, a mãe os arrastou para dentro da cabana, deu-lhes umas boas bofetadas e repreendeu-os com raiva.
— Dizem que estão morrendo de fome e ao mesmo tempo riem! Seus tolos, então morram de fome! — E deu-lhes outra bofetada e mais outra até ter as mãos doendo e os meninos estarem aos prantos. Mandou-os de novo para a rua, dizendo:
— Agora vocês estão prontos para mendigar! Vão levar mais se tornarem a rir!
Quanto a Wang Lung, foi para a rua e ficou indagando até encontrar um lugar onde havia riquixás para alugar. Entrou e alugou um pelo dia por meia moeda de prata a ser paga à noite e tornou a sair para a rua arrastando o veículo.
Puxando aquela carroça cambaia de madeira de duas rodas, parecia-lhe que todo mundo olhava para ele como se ele fosse idiota. Estava tão sem jeito no meio daqueles varais, como um boi jungido pela primeira vez ao arado, que mal conseguia andar; mas precisava correr se quisesse ganhar a vida, pois aqui e ali, em todas as ruas daquela cidade, homens corriam puxando outros homens em veículos como aquele. Entrou numa viela onde não havia lojas, só portas de residências particulares, fechadas, e passou algum tempo subindo e descendo, para se acostumar. E justamente quando dizia a si mesmo em desespero que melhor seria mendigar, uma porta se abriu, e um velho, de óculos e com roupa de professor, saiu e o chamou.
Wang Lung, a princípio, começou a lhe dizer que era muito novo na atividade para correr, mas o velho era surdo, pois não ouviu nada do que Wang Lung disse e só lhe fez sinal tranqüilamente para baixar os varais e deixá-lo entrar. Wang Lung obedeceu, sem saber o que mais fazer, mas sentindo-se compelido a isso pela surdez do velho, por sua maneira de vestir e sua aparência erudita. Então, o velho, sentando-se empertigado, disse:
— Leve-me ao templo de Confúcio. — E lá ficou sentado, empertigado e calmo. Sua calma tinha algo que não permitia perguntas, de modo que Wang foi em frente como viu os outros fazerem, embora não tivesse a menor noção de onde ficava o templo de Confúcio.
Mas, no caminho, foi perguntando, e, uma vez que o trajeto era feito por ruas movimentadas, com os vendedores indo e vindo com seus cestos, mulheres seguindo para o mercado e carroças puxadas por cavalos, e muitos outros veículos iguais ao que ele puxava, todos se espremendo uns contra os outros, era impossível correr. Ele andava o mais depressa que conseguia, sempre cônscio dos solavancos penosos da carga atrás dele. Estava acostumado com cargas às costas, mas não a puxá-las, e, antes de avistar as paredes do templo, já tinha os braços doendo e bolhas nas mãos, pois os varais pressionavam pontos que a enxada não tocava.
O velho professor saltou do riquixá quando Wang Lung o abaixou ao chegar diante dos portões do templo e, procurando dentro da roupa, sacou uma moedinha de prata, que deu a Wang Lung dizendo:
— Nunca pago mais do que isso, e não adianta reclamar. — E, com isso, virou as costas e entrou no templo.
Wang Lung não pensara em reclamar, pois nunca tinha visto uma moeda como aquela, e não sabia por quantos pence podia ser trocada. Entrou numa loja de arroz ali perto, onde se fazia câmbio, e o cambista lhe deu pela moeda 26 pence. Wang Lung maravilhou-se com a facilidade com que se ganhava dinheiro no sul. Mas outro puxador de riquixá que estava por perto debruçou-se para vê-lo contar o dinheiro e disse:
— Só 26! Até onde levou aquele velho? — E quando Wang lhe contou, o homem disse: — Que velho mesquinho! Só lhe deu metade da tarifa justa. Quanto pediu antes de começar?
— Não pedi nada — respondeu Wang Lung. — Ele disse: “Venha”, e eu fui.
O outro homem olhou para Wang Lung com pena.
— Vocês têm um caipira aí, de trança e tudo! — gritou para os que assistiam. — Alguém diz venha e ele vai, sem perguntar, esse grande idiota: “Quanto me dá pela corrida?” Fique sabendo disso, seu idiota, só estrangeiros brancos podem ser levados sem discussão! Eles têm um gênio instável, mas quando dizem “Venha”, você pode ir e confiar neles, pois eles são tão imbecis que não sabem o preço justo de nada, mas deixam a prata lhes correr dos bolsos como água.
E todos os que ouviram começaram a rir.
Wang Lung não disse nada. Era verdade que se sentia muito humilde e ignorante em meio a toda aquela multidão de citadinos e se afastou dali com o seu veículo sem retrucar.
“No entanto, isso vai alimentar meus filhos amanhã”, disse a si mesmo com obstinação e aí lembrou-se de que tinha de pagar o aluguel do veículo no fim do dia e não possuía nem a metade desse dinheiro.
Teve outro passageiro de manhã e, com este, discutiu o preço. À tarde, mais dois o chamaram. Mas, à noite, quando contou o dinheiro que tinha na mão, constatou que só havia um tostão a mais que o aluguel do riquixá. Voltou para a cabana muito amargurado, dizendo a si mesmo que, por mais trabalho do que o de um dia de colheita no campo, ganhara só um tostão de cobre. Então, a lembrança de sua terra o invadiu. Não pensara nela uma só vez durante aquele dia estranho, mas agora a lembrança da terra, lá longe, é verdade, mas à sua espera e sua, encheu-o de paz e assim ele foi para a cabana.
Quando entrou, viu que O-lan havia, por seu dia de mendicância, recebido quarenta moedinhas, o que era menos que cinco pence, e dos meninos, o mais velho recebera oito e o mais moço, 13. Tudo somado, dava para pagar o arroz do dia seguinte. Só que quando juntaram o dinheiro do menino mais moço ao resto, ele gritou pelo que era dele. Apegou-se ao dinheiro que mendigara e dormiu com ele na mão aquela noite e os pais não conseguiram tirá-lo dele. Só na manhã seguinte ele mesmo o usou para pagar o seu arroz.
Mas o velho nada recebera. Passara o dia inteiro na beira da estrada como lhe mandaram, mas sem pedir. Dormia e acordava e olhava o que se passava em volta e, quando se cansava, tornava a dormir. E sendo da geração mais velha, não podia ser censurado. Quando viu que tinha as mãos vazias, disse simplesmente:
— Arei e semeei e colhi e assim enchi minha tigela de arroz. E além disso gerei um filho que também gerou filhos.
E com isso acreditava, como uma criança, que agora teria o que comer, pois tinha um filho e netos.
Capítulo 12
Agora, passado o primeiro aperto da fome, e tendo Wang Lung visto que seus filhos tinham o que comer todos os dias, que sua diária de trabalho e a de mendicância de O-lan garantiam o suficiente para pagar o arroz de cada dia, a estranheza de sua vida passou, e ele começou a sentir o que era aquela cidade, a cuja periferia se agarrava. Correndo o dia inteiro pelas ruas, aprendeu a conhecer a cidade de um modo especial, e viu isso e aquilo de seus segredos. Aprendeu que de manhã as pessoas que ele carregava em seu veículo, se fossem mulheres, iam à feira, e, se fossem homens, iam às escolas e às casas de negócios. Mas, que tipo de escolas eram essas não tinha como saber — só sabia que eram chamadas de nomes tais como “A Grande Escola do Saber Ocidental” ou como “A Grande Escola da China” — pois nunca passava os portões e, se entrasse, sabia que alguém viria lhe perguntar o que ele fazia fora do lugar dele. E que casas de negócios eram aquelas aonde conduzia os homens não sabia, já que, quando era pago, não lhe diziam mais nada.
E, à noite, sabia que levava homens a grandes casas de chá e lugares de prazer, o prazer às claras que jorra nas ruas ao som da música e do jogo, com peças de marfim e bambu em mesas de madeira, e o prazer secreto, silencioso e oculto por trás de paredes. Mas nenhum desses prazeres Wang Lung conheceu para si, uma vez que seus pés não cruzavam outro limiar que não o de sua cabana, e seu caminho sempre terminava diante de uma porta. Era, naquela cidade rica, tão estrangeiro quanto um rato na casa de um homem rico, alimentando-se de restos jogados fora e escondendo-se aqui e ali sem nunca participar da verdadeira vida da casa.
Então assim é que, embora cem milhas não sejam uma distância tão grande quanto mil, e a estrada terrestre nunca seja tão longa quanto a marítima, Wang Lung, sua mulher e seus filhos eram como estrangeiros naquela cidade sulina. É verdade que as pessoas que andavam pelas ruas tinham cabelo e olhos pretos como Wang Lung e toda sua família, como todos no país onde Wang Lung nasceu, e é verdade que a língua desses sulistas podia ser entendida, ainda que com dificuldade.
Mas Anhwei não é Kiangsu. Em Anhwei, onde Wang Lung nasceu, a língua é lenta e profunda e gutural. Mas, na cidade de Kiangsu, onde eles agora moravam, as pessoas falavam em sílabas que lhes saíam dos lábios e da ponta da língua. E enquanto os campos de Wang Lung produziam lenta e facilmente duas colheitas por ano de trigo e arroz e um pouco de milho e soja e alho, aqui nas fazendas em volta da cidade, os homens aceleravam suas terras com uma adubação contínua e malcheirosa de dejetos humanos para forçá-las a uma produção apressada deste e daquele vegetal, além do arroz.
Na terra de Wang Lung, tendo um bom pão de trigo branco com uma cabeça de alho, um homem tinha uma boa refeição e não precisava de mais. Mas ali, as pessoas se empapuçavam de almôndegas de carne de porco e brotos de bambu e castanhas guisadas com frango e miúdos de ganso e mais este e aquele legume, de modo que, quando um homem honesto chegava recendendo ao alho da véspera, elas empinavam o nariz e diziam: “Cá está um nortista fedorento de rabicho!” O cheiro de alho fazia os próprios comerciantes das lojas de tecido subirem o preço do algodão azul como fariam para um estrangeiro.
Então, a pequena aldeia de barracos colados ao paredão nunca se tornou uma parte da cidade nem do campo que se estendia além, e uma vez Wang Lung ficou alarmado ao ouvir um rapaz discursando para uma multidão na esquina do templo de Confúcio, onde qualquer um que tivesse coragem de falar em público podia fazê-lo. O rapaz disse que a China deveria ter uma revolução e deveria se levantar contra os estrangeiros odiados. Wang Lung saiu de fininho, sentindo que era o estrangeiro contra quem o rapaz falava com tanta paixão. E quando, em outro dia, ouviu outro jovem proclamando — pois aquela cidade estava cheia de jovens oradores — na esquina de sua rua que o povo da China precisava se unir e se educar, não ocorreu a Wang Lung que aquilo tivesse algo a ver com ele.
Foi só um dia, quando estava na rua dos mercados de seda procurando passageiro, que passou a saber mais do que sabia, que havia gente mais estrangeira que ele naquela cidade. Por acaso, naquele dia, ele passava por uma loja de seda de onde às vezes saíam senhoras depois de fazer suas compras. Entre elas, uma vez ou outra, ele arranjava alguma que lhe pagava melhor. E, nesse dia, súbito lhe surgiu alguém lá de dentro, uma criatura como ele nunca vira igual. Não tinha idéia se era homem ou mulher, mas era alta e estava vestida com uma túnica preta reta de um tecido grosseiro e usava a pele de um animal morto enrolada no pescoço. Quando ele passou, a pessoa, homem ou mulher, fez-lhe um sinal incisivo para que abaixasse os varais e ele fez isso, e quando se levantou de novo, atordoado com o que lhe acontecera, a pessoa, com um sotaque quebrado, deu instruções para que fosse à rua das Pontes. Ele começou a correr depressa, sem saber o que fazia, e, uma vez, perguntou a um colega de profissão a quem conhecia casualmente do trabalho de todo dia:
— Olhe aqui, o que é isso que estou puxando?
— Uma estrangeira... uma mulher da América... você está rico...
Mas Wang Lung corria o mais que podia, com medo da estranha criatura atrás dele, e quando chegou à rua das Pontes, estava exausto e suando em bicas.
Aquela mulher saltou então e disse com o mesmo sotaque quebrado:
— Não precisa se matar de correr — e deixou-lhe duas moedas de prata na mão, o dobro da tarifa de praxe.
Então, Wang Lung viu que aquela era de fato uma pessoa estrangeira e ainda mais estrangeira que ele naquela cidade, e que, afinal de contas, todas as pessoas de cabelo e olhos pretos são de um tipo e as de cabelo e olhos claros, de outro, e, depois disso, não se sentiu mais totalmente estrangeiro na cidade.
Quando voltou para a cabana naquela noite com o dinheiro que recebera ainda intacto, contou o ocorrido a O-lan, que lhe disse:
— Já as vi. Sempre mendigo delas, pois só essa gente joga prata em vez de cobre na minha tigela.
Mas nem Wang Lung nem a mulher achava que os estrangeiros jogavam prata por bondade de coração, mas antes por ignorância, por desconhecerem que é mais correto dar cobre que prata a mendigos.
Todavia, com essa experiência, Wang Lung aprendeu o que os rapazes não lhe ensinaram: que pertencia à sua espécie, que tem cabelo e olhos pretos.
Agarrados assim à periferia da cidade grande, opulenta e espraiada, parecia que pelo menos ali não poderia faltar comida. Wang Lung e sua família haviam vindo de uma região onde, se os homens passavam fome, era porque não havia comida, uma vez que a terra não podia produzir embaixo de um céu implacável. Ter dinheiro na mão valia pouco porque, onde nada havia, nada se podia comprar.
Ali na cidade, havia comida em toda parte. As ruas calçadas do mercado de peixe eram ladeadas de grandes cestos de peixões prateados, pescados à noite no rio infestado; de tinas de peixinhos brilhantes, apanhados de rede num lago; de montes de caranguejos amarelos, esperneando e se beliscando num espanto irritado; de enguias se contorcendo para os banquetes dos gulosos. No mercado de grãos havia desses cestos em que um homem podia se meter e afundar e se afogar sem que ninguém ficasse sabendo se não tivesse visto; arroz branco e escuro, trigo amarelo-escuro e trigo dourado; e feijões de soja amarelos e feijões vermelhos e favas verdes e milho miúdo amarelo-canário e gergelim cinza. Nos mercados de carne, porcos inteiros pendurados pelo pescoço, abertos no sentido do comprimento de seus corpos grandes para mostrar a carne vermelha e as belas camadas de banha, a pele tenra, grossa e branca. E vendas com patos pendurados em carreiras superpostas, nos tetos e nas portas, patos tostados lentamente no espeto colocado diante da brasa e patos brancos salgados e fieiras de miúdos de pato. E a mesma coisa nas vendas que vendiam gansos e faisões e todo tipo de aves.
Quanto aos vegetais, havia tudo o que a mão do homem podia tirar da terra; luzidios rabanetes vermelhos e brancos, raízes ocas de lótus e inhame, repolhos e pés de aipo verdes, brotos de feijão crespos e castanhas marrons e maços cheirosos de agrião. Não havia nada que o apetite do homem pudesse desejar que não se achasse nas ruas e nos mercados daquela cidade. E, andando para baixo e para cima, estavam os vendedores de doces, frutas e castanhas e bolos quentes de batata-doce fritos em azeite doce e pequenas almôndegas de carne de porco temperadas com delicadeza e enroladas em massa e cozidas no vapor, e bolos doces feitos de arroz glutinoso. As crianças da cidade corriam para os vendedores daquelas coisas com as mãos cheias de tostões e compravam e comiam até ficarem cobertas de açúcar e azeite.
Sim, dir-se-ia que naquela cidade ninguém poderia morrer de fome.
Mesmo assim, todas as manhãs, pouco antes do amanhecer, Wang Lung e sua família saíam de sua cabana e, com as tigelas e os pauzinhos, formavam um grupinho numa longa procissão de pessoas que saíam das respectivas cabanas, tiritando com suas roupas finas demais para a névoa úmida do rio, caminhando encurvadas sob o vento gelado da manhã para as cozinhas públicas, onde, por um tostão, podia-se comprar uma tigela de papa de arroz. Com todo o esforço de Wang Lung atrás de seu riquixá e com toda a lábia de O-lan mendigando, nunca conseguiam ganhar o suficiente para cozinhar arroz diariamente em sua própria cabana. Se sobrava um tostão depois de pagarem o arroz nas cozinhas dos pobres, compravam um pedaço de repolho. Mas o repolho era caro a qualquer preço, pois os dois meninos precisavam ir catar lenha para cozinhá-lo entre os dois tijolos que O-lan montou à guisa de fogão, e essa lenha tinham que dar um jeito de agarrar dos lavradores que carregavam os fardos de junco e capim para os mercados de lenha da cidade. Às vezes, as crianças eram apanhadas e levavam uma boa surra, e uma noite, o menino mais velho, que era mais tímido que o outro e mais encabulado, voltou com um olho fechado de tão inchado depois de levar um tabefe de um lavrador. Mas o caçula ficou jeitoso. Era, de fato, mais jeitoso para praticar pequenos furtos do que para mendigar.
Para O-lan, isso não tinha importância. Se o menino não podia deixar de rir nem brincar, que roubasse para encher a barriga deles. Mas Wang Lung, embora não tivesse resposta para ela, sentia-se mal em ver os filhos roubarem, e não censurava o mais velho quando ele era lento no negócio. Aquela vida à sombra do grande muro não era o tipo de vida que Wang Lung amava. Sua terra estava à sua espera.
Uma noite, voltou tarde e havia no guisado de repolho um bom pedaço de carne de porco. Era a primeira vez que comiam carne desde que mataram o boi, e Wang Lung arregalou os olhos.
— Você deve ter pedido dinheiro a um estrangeiro hoje — disse a O-lan. Mas ela, segundo seu hábito, nada disse. Então, o menino menor, muito pequeno para ter sabedoria e todo prosa com a própria esperteza, disse:
— Eu peguei... é minha essa carne. Quando o açougueiro olhou para o outro lado depois que cortou a fatia do pedaço grande no balcão, corri por baixo do braço de uma velha que tinha ido comprar a carne, agarrei o pedaço, fugi para um beco e fiquei escondido dentro de um jarro de água vazio em frente a uma porta esperando o Irmão Mais Velho chegar.
— Agora não vou comer essa carne! — exclamou Wang Lung com irritação. — Vamos comer carne que pudermos comprar ou pedir, mas não carne roubada. Podemos ser mendigos, mas não somos ladrões. — E tirou a carne da panela com dois dedos e jogou-a no chão sem ligar para a gritaria do menino.
Então O-lan se adiantou com aquele seu jeito firme, pegou a carne, lavou-a com um pouquinho d’água e jogou-a de novo na panela fervente.
— Carne é carne — disse calmamente.
Wang Lung nada disse então, mas estava irritado e com medo no coração porque os filhos estavam se tornando ladrões ali naquela cidade. E, embora não dissesse nada quando O-lan cortou a tenra carne cozida com seus pauzinhos, deu grandes nacos ao velho e aos meninos, encheu a boca da menina e comeu também, ele se negou a tocar naquela carne, contentando-se com o repolho que comprara. Mas, depois da refeição, levou o filho caçula para a rua onde a mulher não os escutava e ali, atrás de uma casa, pegou a cabeça do menino embaixo do braço e estapeou-a com firmeza de um lado e do outro, sem fazer caso dos gritos do rapaz.
— Toma, toma e toma! — gritou. — Isso é para um ladrão.
Mas, a si mesmo, disse quando deixou o menino voltar choramingando para casa:
“Precisamos voltar para a terra.”
Capítulo 13
Dia a dia sob a opulência dessa cidade, Wang Lung viveu na base da miséria sobre a qual ela se erguia. Com os mercados transbordando de comida, com as ruas das lojas de seda desfraldando esplendorosos galhardetes de seda preta e vermelha e laranja para anunciar suas mercadorias, com homens ricos vestidos de cetim e veludo, carne macia coberta de vestes de seda, mãos macias e perfumadas como flores belas e inativas, com tanta coisa contribuindo para a beleza majestosa da cidade, naquela parte em que Wang Lung morava não havia comida suficiente para alimentar uma fome selvagem nem roupas suficientes para cobrir os ossos.
Homens trabalhavam o dia inteiro fazendo pães e bolos para os banquetes dos ricos e crianças labutavam desde a aurora até a meia-noite, indo dormir todas meladas e sujas como ficavam, em colchões ásperos colocados no chão, para voltar cambaleando para os fornos no dia seguinte, mas não ganhavam o suficiente para comprar um dos ricos pães que faziam para os outros. E homens e mulheres trabalhavam no corte e na confecção de abrigos de pele pesados para o inverno e leves para a primavera, e pesados brocados de seda, para cortá-los e transformá-los em suntuosas vestes destinadas aos que comiam daquela profusão dos mercados, e eles próprios arranjavam um retalho de algodão azul grosseiro e o costuravam às pressas para cobrir a própria nudez.
Wang Lung, vivendo em meio a esses que trabalhavam para o prazer dos outros, ouvia coisas estranhas a que prestava pouca atenção. Os homens e as mulheres mais velhos, é verdade, não falavam com ninguém. Barbas grisalhas puxavam riquixás, puxavam carrinhos de carvão e lenha para padarias e palácios, forçando as costas até os músculos saltarem como cordas, e empurravam e puxavam pesadas carroças de mercadoria pelas ruas calçadas, comiam frugalmente sua comida escassa, dormiam suas breves noites e ficavam calados. Tinham a cara igual à de O-lan, apagada, inexpressiva. Ninguém sabia o que lhes ia na cabeça. Se falavam alguma coisa, era de comida ou dinheiro. Raramente tinham a palavra prata na boca porque raramente tinham prata nas mãos.
Seus rostos em repouso eram contraídos como se estivessem com raiva, só que não era raiva. Eram os anos de tensão sob fardos muito pesados para eles que lhes haviam levantado o lábio superior, deixando ver os dentes no que parecia um rosnado, e essa tensão inculcara rugas profundas na carne em volta de seus olhos e suas bocas. Eles próprios não tinham idéia de que espécie de homens eram. Um deles, uma vez, ao se ver num espelho quando passava por uma carroça de mercadorias para o lar, gritara:
— Que sujeito feio!
E quando os outros caíram na gargalhada, sorriu dolorosamente, sem saber de que riam, olhando depressa em volta para ver se havia ofendido alguém.
Em casa, dentro das pequenas choças onde moravam, em volta da choça de Wang Lung, as mulheres, amontoadas, costuravam trapos para fazer cobertas para os filhos que elas viviam parindo, pegavam pedaços de repolho nos campos dos lavradores, roubavam punhados de arroz nas vendas de grãos e, durante o ano inteiro, catavam no capim das encostas. Na época das colheitas, seguiam os ceifadores como aves, os olhos penetrantes e aguçados atentos aos grãos ou brotos que caíam no chão. E por aquelas choças passavam crianças; umas nasciam e morriam e tornavam a nascer outras até que nem a mãe nem o pai sabiam quantas haviam nascido ou morrido, e mal sabiam até mesmo quantas estavam vivas, pensando nelas só como bocas a alimentar.
Aqueles homens, aquelas mulheres e aquelas crianças entravam e saíam dos mercados e das lojas de tecido, perambulavam pelos campos que cercavam a cidade, os homens trabalhando nisso e naquilo por alguns tostões e as mulheres e as crianças roubando e mendigando e furtando, e Wang Lung e sua mulher e seus filhos estavam entre eles.
Os velhos e as velhas aceitavam a vida que tinham. Mas quando os filhos varões chegavam a uma certa idade, quando ainda não eram velhos mas já não eram mais crianças, ficavam insatisfeitos. Os rapazes tinham conversas revoltadas e resmungavam. E mais tarde, já homens feitos e casados, quando se angustiavam com o crescimento da família, a raiva esparsa de sua juventude se transformava num desespero feroz e numa revolta muito profunda para meras palavras porque, a vida inteira, eles davam mais duro que animais, para ganhar apenas um punhado de restos para encher suas barrigas. Ouvindo uma dessas conversas, uma noite, Wang Lung tomou conhecimento pela primeira vez do que havia do outro lado do paredão onde se apoiavam as fileiras de barracas.
Foi no final de um daqueles dias de fim de inverno quando se começa a acreditar na possibilidade da volta da primavera. Em torno das choças, o chão ainda estava lamacento por causa da neve fundida, e, como a água escorria para dentro de casa, as famílias cataram tijolos aqui e ali para dormir em cima deles. Mas, apesar do desconforto da terra molhada, naquela noite havia uma doçura no ar, e essa doçura deixou Wang Lung agitadíssimo. Sem conseguir dormir logo depois de comer, como era seu hábito, foi para o fim da rua e lá ficou à toa.
Era lá que seu pai costumava ficar, agachado e encostado na parede, e lá estava ele agora, com a tigela de sopa que levara para comer, fugindo da algazarra das crianças dentro da choupana. O velho segurava numa das mãos as duas pontas de uma tira de pano que O-lan rasgara da cinta e que envolvia a menina, permitindo-lhe andar para lá e para cá com seus passos vacilantes sem cair. Assim ele passava seus dias, tomando conta daquela criança que agora não queria mais ter que ficar no colo da mãe enquanto esta mendigava. Além disso, O-lan estava novamente grávida e a pressão de uma criança maior em cima dela era muito dolorosa para suportar.
Wang Lung ficou observando a criança caindo e se levantando e tornando a cair e o velho puxando as pontas da tira. E assim, com a brisa da tarde a lhe acariciar o rosto, bateu-lhe uma imensa saudade de seus campos.
— Num dia como este — disse ao pai em voz alta —, os campos devem ser revolvidos e o trigo cultivado.
— Ah — respondeu o velho tranqüilamente. — Sei o que está em sua cabeça. Duas vezes e mais duas na vida tive que fazer o que fizemos este ano e abandonar os campos, sabendo que neles não havia semente para novas colheitas.
— Mas o senhor sempre voltou, meu pai.
— Havia a terra, meu filho — disse o velho com simplicidade.
Bem, eles também voltariam, se não naquele ano, então no próximo, disse Wang de si para si. Desde que houvesse a terra! E a idéia de que ela estava lá à espera dele, rica com as chuvas da primavera, encheu-o de desejo. Voltou para a cabana e disse grosseiramente à mulher:
— Se tivesse alguma coisa para vender, eu venderia e voltaria para a terra. Ou se não fosse pelo velho, voltaríamos a pé, mesmo passando fome. Mas como ele e a criança pequena podem caminhar cem milhas? E você, com seu fardo?
O-lan já lavara as tigelas de arroz com um pouco de água, e agora as empilhava num canto da cabana. Olhou para ele do lugar onde estava acocorada.
— Não há nada para vender a não ser a menina — respondeu lentamente.
Wang Lung ficou com a respiração em suspenso.
— Ora, eu não vendo filho! — disse elevando a voz.
— Eu fui vendida — respondeu ela muito devagar. — Fui vendida a uma casa grande para meus pais poderem voltar para casa.
— E, por isso, você venderia a criança?
— Se fosse só por mim, ela seria morta antes de ser vendida... a escrava das escravas eu fui! Mas uma menina morta nada traz. Eu venderia essa menina por você... para levá-lo de volta à terra.
— Eu nunca faria isso — disse Wang Lung com firmeza —, nem se eu tivesse que passar a vida nesta desolação.
Mas, quando tornou a sair, aquela idéia, que nunca teria lhe ocorrido, começou a tentá-lo contra sua vontade. Ele olhou para a meninazinha, titubeando com persistência na ponta da alça que o avô segurava. Ela crescera muito, graças à comida que lhe era dada diariamente, e, embora ainda não dissesse uma palavra, era gorda como qualquer criança que receba um mínimo de cuidado. Seus lábios, que antes pareciam lábios de velha, agora eram vermelhos e sorridentes, e, como antes, ela se alegrava e sorria quando ele olhava para ela.
— Eu talvez fizesse isso — pensou —, se ela não tivesse deitado no meu regaço e sorrido assim.
E então, tornou a pensar na terra e gritou com paixão:
— Será que nunca mais tornarei a vê-la? Apesar de todo esse trabalho e essa mendicância, nunca há dinheiro suficiente para mais do que a comida do dia.
Então, do lusco-fusco, respondeu-lhe uma voz, uma voz cava e forte:
— Você não é o único. Há milhares como você nesta cidade.
O homem se aproximou, fumando um cachimbo curto de bambu. Era o pai de uma família que morava a duas cabanas de Wang Lung. Raramente era visto de dia, pois dormia o dia inteiro e trabalhava à noite, puxando pesados vagões de mercadoria, muito grandes para transitarem nas ruas durante o dia, quando outros veículos precisam se cruzar constantemente. Mas, às vezes, Wang Lung o via chegando em casa de mansinho de madrugada, arfando e exausto, com os nodosos ombros largos caídos. Wang Lung cruzava com ele quando saía assim de madrugada para puxar o seu riquixá, e, às vezes, à tardinha, antes do trabalho noturno, o homem saía e ficava com os outros, antes que eles se recolhessem em suas choças.
— Bem, vai ser assim para sempre? — perguntou Wang Lung com amargura.
O homem deu três baforadas no cachimbo e cuspiu no chão. Depois disse:
— Não, para sempre, não. Quando os ricos são muito ricos, há saídas, e quando os pobres são muito pobres, há saídas. No inverno passado, vendemos duas meninas e suportamos, e, neste inverno, se essa criança que minha mulher está esperando for menina, vamos vender de novo. Uma escrava eu guardei: a primeira. As outras, é melhor vender do que matar, embora haja quem prefira matá-las antes que respirem. Esta é uma das saídas quando os pobres são muito pobres. Quando os ricos são muito ricos, há uma saída, e se não estou enganado, essa saída vai chegar logo. — Balançou a cabeça e apontou com o cabo do cachimbo para o muro atrás. — Já viu dentro desse muro?
Wang Lung balançou a cabeça, olhando. O homem prosseguiu:
— Levei uma das minhas escravas ali para vender e vi. Você não acreditaria se eu lhe contasse quanto dinheiro entra e sai naquela casa. Eu lhe conto isso... até os criados comem com pauzinhos de marfim encapados com prata, e até as escravas usam jade e pérolas nas orelhas e têm pérolas costuradas nos sapatos. Quando os sapatos têm um pouco de lama ou um furinho que você ou eu não chamaríamos de furo, elas os jogam fora, com pérolas e tudo!
O homem deu uma tragada forte no cachimbo e Wang Lung ouvia, boquiaberto. Então, do outro lado desse muro, havia mesmo essas coisas?
— Há uma saída quando os homens são muito ricos — disse o homem. Fez uma pausa e depois, como se não tivesse dito nada, acrescentou com indiferença:
— Bom, vamos trabalhar de novo. — E saiu na noite.
Mas Wang Lung naquela noite não conseguiu dormir pensando na prata e no ouro e nas pérolas do outro lado daquele muro contra o qual descansava o corpo, vestido com a roupa que usava dia após dia, porque não havia colcha para cobri-lo e só uma esteira em cima de tijolos embaixo dele. Então, sentindo-se de novo tentado a vender a criança, disse a si mesmo:
— Seria melhor talvez vendê-la a uma casa rica, para poder comer coisas finas e usar jóias, se calhar de ficar bonita e agradar a um senhor.
Mas, contra sua vontade, ele mesmo respondeu a isso pensando:
“Bem, e se eu a vendesse, ela não vale quanto pesa em ouro e rubis. Se nos der o suficiente para nos levar de volta à terra, de onde sairá o suficiente para comprar um boi e uma mesa e uma cadeira e os bancos mais uma vez? Deverei vender uma criança para que passemos fome lá e não aqui? Nem temos sementes para semear.”
E não entendeu de que saída o homem falava quando disse:
— Há uma saída, quando os ricos são muito ricos.
Capítulo 14
A primavera alvoroçava a vila das cabanas. Aqueles que haviam mendigado podiam agora ir para as colinas e os campos catar as ervinhas verdes — dentes-de-leão e bolsa-de-pastor — que botavam folhinhas novas, já não sendo mais necessário furtar vegetais aqui e ali. Um bando de mulheres e crianças andrajosas saía todos os dias das cabanas, e com pedaços de lata e pedras afiadas ou facas gastas, com cestos de bambu trançado ou de tiras de junco, catavam pelos campos e caminhos os alimentos que podiam conseguir sem pedir e sem pagar. Todos os dias O-lan saía com esse bando, O-lan e os dois meninos.
Mas os homens precisam trabalhar, e Wang Lung trabalhava como antes, embora os longos dias quentes e o sol e as chuvas repentinas enchessem todo mundo de desejos e descontentamentos. No inverno, haviam trabalhado calados, suportando com firmeza a neve e o gelo sob os pés nus calçados com sandálias de palha, voltando no escuro para as cabanas e comendo, em silêncio, a comida que o dia de trabalho e de mendicância rendera, adormecendo pesadamente, homens, mulheres e crianças, todos juntos, para propiciar a seus corpos o que a comida era muito pobre e muito escassa para dar. Assim era na cabana de Wang Lung e ele bem sabia que devia ser assim em todas as outras.
Mas, com a chegada da primavera, uma onda de conversas foi saindo num crescendo de seus corações e se fazendo ouvir em suas bocas. À noitinha, quando o crepúsculo se demorava, eles se reuniam em volta das cabanas e conversavam, e Wang Lung conheceu alguns daqueles homens que moravam perto dele e que, no inverno, não havia conhecido. Se O-lan fosse de falar, ele poderia ter tido notícia, por exemplo, de que um batia na mulher, outro tinha uma lepra que lhe comia as bochechas, outro ainda era chefe de um bando de ladrões. Mas, além das poucas perguntas e respostas que fazia ou dava, ela não falava, de modo que Wang Lung permanecia timidamente à beira da roda, ouvindo a conversa.
A maioria desses homens andrajosos nada tinha além da quantia que o dia de trabalho e mendicância lhe rendia, e ele estava sempre consciente de que não era verdadeiramente um deles. Possuía terra e sua terra o esperava. Aqueles outros pensavam em como poderiam comer peixe no dia seguinte, ou ficar um pouco sem fazer nada, e mesmo como poderiam jogar um pouco, um ou dois tostões, uma vez que seus dias eram todos igualmente ruins e cheios de desejos, e um homem, embora desesperado, às vezes precisa se divertir.
Mas Wang Lung pensava em sua terra e ponderava isso e aquilo, com a esperança adiada lhe apertando o coração, imaginando como podia voltar para ela. Seu lugar não era com aquela escória que se agarrava às paredes da casa de um homem rico; nem na casa do homem rico. Seu lugar era a terra e ele não podia viver plenamente enquanto não sentisse a terra sob os pés, não seguisse um arado na primavera e não carregasse uma foice na mão durante a colheita. Ouvia, portanto, apartado dos outros, porque oculto em seu coração estava o conhecimento da posse de sua terra, a boa terra de trigais de seus pais, e a faixa de rica terra de arrozais que ele comprara da casa grande.
Aqueles homens viviam falando de dinheiro — de quanto haviam pago por um metro de tecido, por um peixinho do tamanho de um dedo, do que podiam ganhar num dia, e sempre, afinal, do que fariam se tivessem o dinheiro que o homem do outro lado do muro tinha nos cofres. Todos os dias a conversa terminava assim:
— Se eu tivesse o dinheiro que ele tem e a prata que ele carrega todo dia na cinta e se eu tivesse as pérolas que suas concubinas usam e os rubis que sua mulher usa...
E, ouvindo tudo o que fariam se tivessem aquelas coisas, Wang Lung só escutava quanto eles comeriam e dormiriam, e que iguarias que ainda não haviam provado comeriam, e quanto iriam jogar nessa e naquela grande casa de chá, e quantas belas mulheres comprariam para seu prazer, e, acima de tudo, como ninguém trabalharia mais, assim como o homem rico atrás do muro nunca trabalhava.
Então, Wang Lung gritou de repente:
— Se eu tivesse o ouro e a prata e as jóias, compraria terra, boa terra, e tiraria colheitas da terra!
Diante disso, a um só tempo, todos se viraram para ele e o censuraram.
— Cá está um caipira de trança que não entende nada de vida urbana e do que se pode fazer com dinheiro. Continuaria trabalhando como um escravo atrás de um boi ou de um burro!
E cada um deles se sentia mais digno que Wang Lung de possuir riquezas, porque sabia melhor como gastá-las.
Mas esse desprezo não mudou a cabeça de Wang Lung. Só o fez dizer a si mesmo em vez de dizer em voz alta para os outros ouvirem:
“Contudo, eu investiria o ouro e a prata e as jóias em boas terras ricas.”
E, pensando isso, ficava cada dia mais impaciente para voltar à terra que já era sua.
Fixado naquela idéia de sua terra, Wang Lung via como num sonho as coisas que aconteciam em volta dele na cidade todos os dias. Aceitava essa e aquela estranheza sem questionar o porquê das coisas, a não ser que naquele dia aquilo aconteceu. Houve, por exemplo, o papel que os homens distribuíam aqui e ali e às vezes até para ele.
Ora, Wang Lung nunca aprendera, na juventude nem em outra época qualquer, o significado das letras do papel, e não podia, portanto, entender nada de um papel desses coberto com marcas pretas, colado nos portões da cidade ou em muros ou vendido aos punhados ou até distribuído de graça. Duas vezes lhe deram um papel desses.
A primeira vez foi um estrangeiro, como aquela mulher que ele um dia puxara de má vontade em seu riquixá. Só que esse era homem, e era muito alto, magro como uma árvore fustigada por ventos cortantes. Tinha olhos azuis como gelo e uma cara cabeluda, e quando deu o papel a Wang Lung, viu-se que suas mãos eram cabeludas também e a pele, avermelhada. Tinha, ademais, um nariz grande projetando-se da face como uma proa dos costados de um navio e Wang Lung, embora com medo de pegar qualquer coisa de sua mão, teve mais medo de recusar, vendo seus olhos estranhos e seu nariz assustador. Então, pegou o que lhe foi jogado, e quando teve coragem de olhar para aquilo depois que o estrangeiro passou, viu no papel o retrato de um homem, um homem branco, pendurado numa cruz de madeira. O homem estava sem roupas, a não ser por uma tanga em volta dos quadris, e, aparentemente, estava morto, uma vez que tinha a cabeça caída sobre o ombro e os olhos fechados acima dos lábios cobertos de barba. Wang Lung olhou horrorizado e com crescente interesse para o retrato do homem. Havia caracteres embaixo, mas, esses, ele não conseguia entender.
Levou o retrato para casa à noite e mostrou-o ao velho. Mas este também não sabia ler e Wang Lung, o velho e os dois garotos ficaram discutindo seu possível significado. Os dois garotos gritavam encantados e horrorizados.
— Veja o sangue escorrendo do peito dele!
E o velho disse:
— Com certeza, esse era um homem muito ruim para ser pendurado assim.
Mas Wang Lung se assustou com o retrato e ficou imaginando por que um estrangeiro o dera a ele, e se algum dos irmãos desse estrangeiro fora tratado assim e os outros irmãos estavam procurando vingança. Evitou, portanto, a rua em que encontrara o homem e, após alguns dias, quando o papel foi esquecido, O-lan pegou-o e costurou-o na sola de um sapato junto com outros pedaços de papel que catava aqui e ali para reforçar as solas.
Mas, a outra vez que alguém deu um papel de graça a Wang Lung foi um homem da cidade, um jovem bem vestido, que falava alto enquanto distribuía folhas de papel aqui e ali entre a multidão que se reunia em torno de quaisquer novidade e estranheza que aconteciam na rua. Aquele papel também trazia um retrato de sangue e de morte, mas o homem que morreu dessa vez não era branco e cabeludo, e sim um homem igual ao próprio Wang Lung, um sujeito comum, amarelo e esguio, de olhos e cabelos pretos e vestido com andrajos azuis. Em cima do morto estava um homem grande e gordo, que o apunhalava com uma faca comprida. Era uma cena lamentável e Wang Lung ficou olhando para aquilo e desejando entender alguma coisa das letras por baixo do retrato. Virou-se para o homem ao lado dele e disse:
— Conhece alguns caracteres para poder me dizer o significado dessa coisa pavorosa?
E o homem disse:
— Fique calado e ouça o jovem professor; ele conta para nós todos.
E assim Wang Lung escutou, e o que ouviu foi algo que nunca ouvira antes.
— O homem morto são vocês — proclamou o jovem professor —, e o assassino que os apunhala quando estão mortos e não sabem são os ricos e os capitalistas, que são capazes de apunhalá-los mesmo depois de vocês já estarem mortos. Vocês são pobres e oprimidos, e isso porque os ricos tomam tudo.
Que era pobre, Wang Lung sabia muito bem, mas até aqui atribuíra isso a um céu que não chovia na estação, ou, tendo chovido, continuava a chover como se a chuva fosse um hábito ruim. Quando havia chuva e sol na proporção certa, e a semente germinava na terra e as hastes granavam, ele não se considerava pobre. Portanto, escutou com interesse para ouvir mais o que os ricos tinham a ver com aquilo, com o fato de não chover na estação. E afinal, quando o jovem falara e falara mas nada dissera a respeito dessa questão que interessava a Wang Lung, este ganhou coragem e perguntou:
— Senhor, há alguma maneira pela qual os ricos que nos oprimem possam fazer chover para que eu possa trabalhar na terra?
Ao ouvir isso, o jovem virou-se para ele com desprezo e respondeu:
— Como você é ignorante! Você que ainda usa esse cabelo trançado comprido! Ninguém pode fazer chover quando não for chover, mas o que isso tem a ver conosco? Se os ricos pudessem compartilhar conosco o que têm, com chuva ou sem chuva, todos teríamos dinheiro e comida.
Um grande grito escapou dos ouvintes, mas Wang Lung afastou-se insatisfeito. Sim, mas havia a terra. Dinheiro e comida se consomem e acabam, e se não houver sol e chuva na proporção certa, haverá fome de novo. No entanto, pegou de bom grado os papéis que o jovem lhe deu, porque se lembrou que O-lan nunca tinha papel suficiente para as solas dos sapatos, então entregou-os a ela quando chegou em casa, dizendo:
— Agora tem enchimento para as solas dos sapatos — e trabalhou como antes.
Mas, entre os homens das cabanas com quem ele conversava à noite, muitos ouviram avidamente o que o rapaz dissera, mais avidamente ainda porque sabiam que do outro lado do muro morava um homem rico e parecia pouco haver entre as riquezas deste e eles, apenas aquele muro de tijolos, que podia ser derrubado com alguns golpes de pau, como o que eles usavam nos ombros para carregar seus fardos pesados todos os dias.
E, ao descontentamento da primavera, juntava-se agora o novo descontentamento que o rapaz e outros como ele disseminavam nos espíritos dos moradores das cabanas, a noção da posse injusta por parte de outros daquelas coisas que eles não tinham. E, como pensavam dia após dia em todas essas questões e conversavam sobre elas à tardinha, e, sobretudo, como nunca recebiam pagamento maior pelo trabalho que faziam, surgiu no coração dos jovens e dos fortes uma maré tão irresistível quanto a maré de um rio engrossado com as neves de inverno — a maré da plenitude do desejo selvagem.
Mas Wang Lung, embora visse isso e ouvisse as conversas e sentisse a raiva deles com um estranho mal-estar, nada desejava senão ter sua terra de novo sob os pés.
Então, nessa cidade de onde sempre surgia alguma novidade, Wang Lung viu outra novidade que não entendeu. Um dia, quando puxava seu riquixá vazio por uma rua à procura de um cliente, viu um homem ser detido por um pequeno grupo de soldados armados, que lhe brandiam facas na cara enquanto ele protestava. E enquanto Wang Lung assistia àquilo com espanto, outro e mais outro foram detidos, e ele percebeu que os detidos eram todos sujeitos comuns que trabalhavam com as mãos. E viu ainda mais um homem ser agarrado, e era um dos que moravam na cabana vizinha à sua.
Então, Wang Lung percebeu de repente em seu espanto que todos aqueles homens detidos desconheciam tanto quanto ele o motivo de estarem sendo levados assim a esmo, por bem ou por mal. Wang Lung meteu seu riquixá num beco, largou-o ali e chispou para dentro de uma casa de água quente, não querendo ser o próximo, e se escondeu, agachando-se atrás dos grandes caldeirões, até os soldados acabarem de passar. Então, perguntou ao dono da casa o que significava aquilo, e o homem, que era velho e murcho por causa do vapor que subia continuamente em volta dele vindo dos caldeirões de cobre de seu negócio, respondeu com indiferença:
— Isso é só mais uma guerra em algum lugar. Quem sabe o motivo de toda essa hostilidade? Mas tem sido assim desde que eu era rapaz e assim será depois que eu morrer e eu sei muito bem disso.
— Bem, mas por que eles prenderam meu vizinho, que é tão inocente quanto eu, que nunca ouvi falar dessa nova guerra? — perguntou Wang Lung muito consternado. E o velho bateu as tampas dos caldeirões e respondeu:
— Esses soldados vão lutar em algum lugar e precisam de carregadores para suas roupas de cama e suas armas e suas munições, então obrigam trabalhadores como você a fazer isso. Mas de onde você é? Isso não é uma cena nova nesta cidade.
— Mas e aí? — insistiu Wang Lung sem ar. — Que pagamento, que retorno...
Ora, o velho era muito velho e não tinha grandes esperanças em nada, nem interesse em coisa alguma além de seus caldeirões. Sendo assim, respondeu despreocupadamente:
— Salário, não há nenhum, além de dois pedaços de pão seco por dia e um gole de água de lago. A pessoa pode voltar para casa quando o destino for alcançado, se suas duas pernas puderem carregá-la.
— Bem, mas a família... — disse Wang Lung horrorizado.
— Ora, que importância eles dão a isso? — disse o velho com desprezo, olhando embaixo da tampa de madeira do caldeirão mais próximo para ver se a água já borbulhava. Uma nuvem de vapor envolveu-o e mal dava para se ver sua cara enrugada espiando dentro do caldeirão. Todavia, era bondoso, pois quando tornou a sair do vapor, viu o que Wang Lung não podia ver de onde estava agachado: que os soldados voltavam revistando as ruas das quais agora todos os trabalhadores aptos haviam fugido.
— Abaixe-se mais — disse a Wang Lung. — Eles voltaram.
E Wang Lung agachou-se atrás dos caldeirões, enquanto os soldados passavam com estardalhaço, dirigindo-se para oeste, e quando já não se ouvia o barulho de suas botas de couro, Wang Lung saiu ventando e, pegando seu riquixá, correu com ele vazio para a cabana.
A O-lan, que acabara de voltar da rua para cozinhar um pouco da verdura que colhera, contou com palavras entrecortadas e ofegantes o que estava acontecendo e por quão pouco ele escapara. Enquanto falava, este novo horror brotou nele, o horror de ser arrastado para campos de batalha, deixando seu velho pai e sua família abandonados para passar fome, e, além disso, o horror de morrer num campo de batalha e ter seu sangue derramado, sem nunca mais poder ver sua própria terra. Olhou para O-lan abatido e disse:
— Agora estou realmente tentado a vender a escravinha e voltar para a terra no norte.
Mas O-lan, depois de ouvi-lo, refletiu e disse com seu jeito simples e impassível:
— Espere alguns dias. Há uma conversa estranha por aí.
Todavia, ele não saiu mais de dia. Mandou o menino mais velho devolver o riquixá ao lugar onde o alugara e esperou anoitecer, indo então para os armazéns. E, por metade do que ganhava antes, passou a noite toda puxando carroças de caixas. Cada carroça era puxada por 12 homens gemendo retesados. As caixas estavam cheias de sedas e algodões e tabacos perfumados, tão perfumados que seu cheiro escapava através da madeira. Havia também grandes vasos de azeite e vinho.
A noite inteira, pelas ruas escuras, ele puxava as cordas, o corpo nu e suando em bicas e os pés descalços derrapando nas pedras do calçamento, escorregadias e molhadas do sereno da noite. Diante deles, para mostrar o caminho, corria um garoto carregando uma tocha acesa, e, à luz dessa tocha, as caras e os corpos dos homens e as pedras molhadas brilhavam da mesma forma. Wang Lung voltava para casa antes da aurora, ofegante e muito alquebrado para se alimentar antes de ter dormido. Mas, durante o dia claro, quando os soldados revistavam a rua, ele dormia em segurança no fundo da cabana atrás de um monte de palha que O-lan juntara para lhe fazer um escudo.
Que batalhas havia ou quem lutava com quem Wang Lung não sabia. Mas, com o correr da primavera, a cidade se encheu de inquietação e medo. Todos os dias, carruagens puxadas por cavalos levavam homens ricos, suas roupas, suas cobertas de cetim, suas belas mulheres e suas jóias para a beira do rio, onde navios os levavam para outros lugares. Outros iam para aquela outra casa onde chegavam os vagões de fogo. Wang Lung nunca saía de casa de dia, mas seus filhos voltavam de olhos arregalados e brilhantes, gritando:
— Vimos isso e aquilo, um homem tão gordo e tão monstruoso como um deus num templo, e seu corpo coberto de muitos metros de seda amarela. No polegar tinha um anel de ouro com uma pedra verde como um pedaço de vidro. A carne dele brilhava de óleo e muita comida!
Ou o mais velho gritava:
— Vimos tais caixas e caixas e quando perguntei o que havia nelas, disseram: “Há ouro e prata nelas, mas os ricos não podem levar tudo o que têm, e um dia isso tudo será nosso.” O que ele quis dizer com isso, meu pai?
E o menino olhava para o pai com uma cara inquisitiva.
Mas, quando Wang Lung respondeu secamente:
— Como vou saber o que um sujeito da cidade que não faz nada quer dizer? —, o menino exclamou melancolicamente:
— Ah, quem dera que a gente pudesse ir pegar agora mesmo essas coisas, se elas são nossas. Eu gostaria de provar um bolo. Nunca provei um bolo doce polvilhado com gergelim.
O velho saiu da sonolência ao ouvir isso e disse, como alguém falando sozinho:
— Quando tínhamos uma boa colheita, tínhamos esses bolos na festa de outono; separávamos um pouco de gergelim, depois de debulhado e antes de ser vendido, para guardar e fazer esses bolos.
E Wang Lung lembrou-se dos bolos que O-lan fizera uma vez na festa de Ano-novo, bolos de farinha de arroz com banha e açúcar. Ficou com água na boca e o coração apertado com saudades do passado.
— Se ao menos estivéssemos de volta em nossa terra — murmurou.
Então, de repente, pareceu-lhe que não poderia passar nem mais um dia naquela cabana miserável, que nem tinha largura suficiente para ele se esticar atrás do monte de palha; e nem mais uma noite fazendo força, o corpo curvado puxando uma corda que lhe entrava na carne, arrastando o fardo pelas pedras do calçamento. Cada pedra era agora para ele como um inimigo independente, e ele conhecia cada sulco onde devia pisar para fugir da pedra e assim gastar menos uma onça de vida. Às vezes, nas noites escuras, especialmente quando chovia e as ruas estavam molhadas e mais molhadas que de hábito, todo o ódio de seu coração ia contra aquelas pedras sob seus pés, aquelas pedras que pareciam grudar e se pendurar nas rodas de sua carga desumana.
— Ah, a linda terra! — exclamou de repente e começou a chorar. As crianças se assustaram com isso, e o velho, olhando consternado para o filho, contraiu o rosto embaixo da barba rala, como uma criança ao ver a mãe chorar.
E, mais uma vez, foi O-lan que disse em sua voz simples e neutra:
— Daqui a mais um pouquinho, vamos ver uma coisa. Agora está se falando em toda parte.
De sua cabana, onde se escondia, Wang Lung ouvia, por horas a fio, os passos dos soldados marchando para a batalha. Levantando às vezes um pouquinho a esteira que o separava deles, via pela fresta aqueles pés passando, passando, os sapatos de couro e as pernas cobertas de pano, marchando em fila, aos pares, às vintenas, aos milhares. À noite, quando estava trabalhando, via suas caras cintilando ao passar por ele, iluminadas por um instante na escuridão pela tocha que ia à frente. Não se atrevia a perguntar nada sobre eles, mas puxava sua carga com persistência, comia às pressas sua tigela de arroz e dormia de dia, um sono agitado, na cabana atrás do monte de palha. Ninguém falava naqueles dias com ninguém. O medo abalava a cidade e cada homem fazia depressa o que tinha que fazer antes de ir se trancar em casa.
Não havia mais conversa fiada à noitinha em volta das cabanas. Nas feiras, as barracas onde antes havia comida agora estavam vazias. As lojas de seda retiraram seus galhardetes vistosos e fecharam a frente de suas grandes lojas com tapumes de tábuas bem encaixadas, de modo que quem passava pela cidade ao meio-dia tinha a impressão de que o povo todo dormia.
Corria à boca pequena por toda parte que o inimigo se aproximava e todos os que possuíam alguma coisa estavam com medo. Mas Wang Lung não estava, nem os moradores das cabanas. Em primeiro lugar, não sabiam quem era esse inimigo, e, depois, não tinham nada a perder, uma vez que suas próprias vidas não eram uma grande perda. Se esse inimigo estava se aproximando, que se aproximasse, já que nada podia ser pior do que a situação em que se encontravam. Mas cada um seguia seu caminho e ninguém conversava abertamente com ninguém.
Depois, os encarregados dos armazéns disseram aos operários que puxavam as caixas de um lado para outro desde a beira do rio que eles não precisavam mais vir, uma vez que nada havia para comprar e vender naqueles dias nos balcões, então Wang Lung passou a ficar em casa dia e noite sem fazer nada. A princípio, achou bom, pois parecia que seu corpo nunca poderia descansar o suficiente, e dormia pesado como um homem morto. Mas, se não trabalhava, também não ganhava, e, em poucos dias, a sobra de dinheiro que tinham acabou e, de novo, ele ficou imaginando desesperadamente o que podia fazer. E, como se não bastassem as desgraças que lhes aconteciam, as cozinhas públicas também fecharam as portas e aqueles que assim sustentavam os pobres trancaram-se em suas próprias casas. Portanto, não havia comida nem trabalho, e nas ruas não passava ninguém a quem se pudesse pedir esmola.
Então, Wang Lung pegou a filha nos braços e sentou com ela na cabana, olhou para ela e disse baixinho:
— Bobinha, você gostaria de ir para uma casa grande onde há comida e bebida e onde você pode ter um casaco inteiro para seu corpo?
Então ela riu, sem entender nada do que ele disse, e ergueu a mãozinha para tocar maravilhada os olhos parados do pai, que não conseguiu suportar e gritou para a mulher:
— Me diga, você foi espancada naquela casa grande?
Ela lhe respondeu melancolicamente num tom apagado:
— Diariamente, eu apanhava.
Ele tornou a gritar:
— Mas era só com uma cinta de pano ou era com bambu ou corda?
Ela respondeu com o mesmo desânimo:
— Me batiam com uma tira de couro que já tinha sido o cabresto de uma das mulas e ficava pendurada na parede da cozinha.
Ele bem sabia que ela entendia o que ele estava pensando, mas manifestou sua última esperança e disse:
— Essa nossa filha é uma mocinha bonita, até mesmo agora. Me diga, as escravas bonitas também apanhavam?
E ela respondeu com indiferença, como se nem uma coisa nem outra a afetassem:
— Sim, apanhavam ou eram levadas para a cama de um homem, conforme o capricho do momento. E não só para a de um homem, mas para quem quer que pudesse desejá-la aquela noite. Os senhores moços brigavam entre si por causa dessa ou daquela escrava e diziam: “Se é você hoje, amanhã, sou eu”, e quando todos eles se cansavam de uma escrava, eram os criados que a disputavam entre si. E isso antes que a escrava saísse da infância... se era bonita.
Então, Wang Lung gemeu e apertou a menina contra o peito, repetindo para ela baixinho:
— Ah, tolinha, ah, pobre tolinha...
Mas, no íntimo, chorava como um homem chora quando é apanhado numa enxurrada e não pode parar de pensar: “Não há outra maneira, não há outra saída...”
Então, de repente, enquanto estava ali sentado, ouviu-se um barulho como se o céu estivesse rachando e todos eles caíram no chão instintivamente, escondendo o rosto, pois parecia que o rugido medonho iria pegá-los e esmagá-los. E Wang Lung tapou a cara da menina com a mão, sem saber que horror poderia surgir depois daquele estrondo terrível, e o velho gritou no ouvido de Wang Lung:
— Nunca ouvi uma coisa dessas em toda a minha vida.
Os dois meninos gritavam de medo.
Mas, quando o silêncio voltou tão bruscamente como se fora, O-lan levantou a cabeça e disse:
— Agora aconteceu aquilo de que ouvi falar. O inimigo arrombou os portões da cidade.
E, antes que qualquer um pudesse lhe responder, uma gritaria ecoou pela cidade, uma gritaria crescente de vozes humanas, a princípio fraca, como o barulho do vento de uma tempestade que se aproxima, mas depois se transformando num tremendo escarcéu, cada vez mais alto à medida que tomava conta das ruas.
Wang Lung então empertigou-se sentado no chão da cabana, e um medo estranho lhe correu pelo corpo, arrepiando-o todo. Todos sentaram-se como ele, entreolhando-se à espera não sabiam do quê. Mas só se ouvia o barulho de gente acorrendo e a gritaria geral.
Então, do outro lado do muro, não longe deles, ouviram o barulho de uma porta grande rangendo nos gonzos e estalando ao ser arrombada, e, de repente, o homem que falara com Wang Lung uma vez à tardinha e fumava um cachimbo curto de bambu meteu a cabeça pela abertura da cabana e gritou:
— Vocês ainda estão aí? Chegou a hora. Os portões do homem rico estão abertos para nós! — E, como se por um passe de mágica, O-lan desapareceu, esgueirando-se por baixo do braço do homem enquanto ele falava.
Wang Lung levantou-se, devagar e meio atordoado. Pôs a menina no chão e saiu. Diante do grande portão de ferro da casa do homem rico, uma multidão de gente do povo avançava aos gritos, emitindo em conjunto o urro selvagem que ele ouvira, crescendo e engrossando nas ruas, e ele entendeu que no portão de todos os homens ricos comprimia-se agora essa multidão uivante de homens e mulheres a quem fizeram passar fome e aprisionaram e estavam por ora livres para fazer o que bem entendessem. E os grandes portões estavam escancarados e as pessoas avançavam se atropelando, comprimindo-se tanto que formavam uma massa que se deslocava como se fosse um só corpo. Outros, que chegavam correndo dos fundos, apanharam Wang Lung e o impeliram para a multidão, de modo que ele não teve outro remédio senão avançar com eles, embora ele mesmo não soubesse o que queria, porque estava muito espantado com o que acontecera.
Assim, ele foi arrastado pelo grande portão adentro, os pés mal tocando o chão pela pressão da turba. E, como um rugido contínuo de bichos furiosos, ouvia-se por todo lado a gritaria geral.
Foi atravessando um pátio atrás do outro até os mais internos, sem ver nenhuma das pessoas que moravam na casa. Era como se ali estivesse um palácio morto há muito a não ser pelos lírios temporões que floresciam entre as pedras dos jardins e as flores douradas das primeiras árvores da primavera que desabrochavam nos galhos nus. Mas, nos quartos, havia comida em cima da mesa e, nas cozinhas, o fogo estava aceso. Aquela multidão conhecia bem a casa dos ricos, pois passou dos pátios da frente, onde viviam criados e escravas e onde ficavam as cozinhas, para os pátios internos, onde os senhores e as senhoras tinham suas camas delicadas e onde ficavam suas arcas de laca preta, vermelha e dourada, suas arcas de roupas de seda, e onde havia mesas e cadeiras entalhadas, e, nas paredes, rolos pintados. E, em cima desses tesouros, a multidão caiu, agarrando-os e arrancando das mãos uns dos outros o que aparecia nas arcas ou nos armários que eram abertos, de modo que roupas, cobertas de cama, cortinas, pratos passavam de mão em mão, as mãos tomando o que os outros agarravam, e ninguém parando para ver o que pegara.
Só Wang Lung, na confusão, nada pegou. Nunca na vida pegara o que pertencia a outra pessoa, e não podia fazer isso de repente. Então ficou parado no meio da multidão, sendo arrastado de um lado para outro a princípio, mas depois, recobrando de certa forma o controle, foi abrindo caminho com perseverança e se viu afinal onde começava a multidão. Ali ficou, movendo-se ligeiramente como os pequenos rodamoinhos à beira de um remanso de corredeira; mas conseguia ver onde estava.
Estava nos fundos do pátio mais central onde viviam as mulheres do rico. A porta dos fundos estava aberta de par em par, aquela porta que os ricos mantinham há séculos para sua fuga em tempos como esse, e, por isso, se chama a porta da paz. Por essa porta, sem dúvida, escaparam todos nesse dia, e estavam escondidos aqui e ali pelas ruas, escutando a gritaria em sua casa. Mas um homem, fosse por causa de seu tamanho ou de seu sono pesado, não conseguira fugir, de modo que Wang Lung topou com ele numa sala interna vazia, onde a turba entrara e tornara a sair. O homem, que se escondera em algum lugar secreto e não fora encontrado, agora, imaginando-se sozinho, saía para fugir. E assim, Wang Lung, sempre se afastando dos outros, acabou topando com ele quando já estava sozinho.
Era um sujeito grande e gordo, nem velho nem moço, e andara dormindo nu em sua cama, sem dúvida com uma mulher bonita, pois seu corpo nu aparecia através de uma túnica de cetim roxa em que ele se enrolava. Os grandes pneus amarelos de sua carne caíam-lhe por cima dos peitos e da barriga e, nas montanhas de suas bochechas, seus olhos eram pequenos e fundos como olhos de porco. Quando viu Wang Lung, ficou tremendo da cabeça aos pés, gritando como se estivessem lhe metendo uma faca, de modo que Wang Lung, desarmado como estava, ficou espantado e quase achou graça naquela cena. Mas o sujeito gordo caiu de joelhos, batendo com a cabeça nas lajotas do chão e gritando:
— Poupe uma vida, poupe uma vida... não me mate. Tenho dinheiro para você, muito dinheiro...
Foi essa palavra “dinheiro” que de repente trouxe uma clareza pungente à mente de Wang Lung. Dinheiro! Sim, ele precisava disso! E, mais uma vez, ocorreu-lhe claramente, como se uma voz lhe falasse: “Dinheiro, a menina salva... a terra!”
E gritou de repente, com uma voz áspera como não sabia que tinha no peito:
— Então me dê o dinheiro!
O homem gordo se levantou, soluçando e balbuciando. Tateou no bolso da roupa, de onde suas mãos amarelas, ao sair, mal continham o ouro que Wang Lung aparava com a túnica esticada. E, de novo, gritou com aquela voz estranha que parecia de outro homem:
— Me dê mais!
E de novo as mãos do homem se estenderam deixando cair o ouro, só que dessa vez ele reclamou:
— Agora não tem mais e não tenho mais nada senão minha vida miserável. — E começou a chorar, as lágrimas escorrendo como óleo por suas bochechas penduradas.
Wang Lung, vendo-o tremer e chorar, de repente teve mais nojo dele do que de qualquer outra coisa na vida e gritou-lhe, cada vez mais repugnado:
— Suma da minha frente, senão mato você, seu verme gordo!
Wang Lung gritou assim, embora fosse um homem de coração tão mole que não era capaz de matar um boi.
O homem saiu correndo como um vira-lata e sumiu.
Então, Wang Lung ficou sozinho com o ouro. Não parou para contá-lo, mas meteu-o no peito, saiu pelo portão da paz e foi pelas vielas para sua cabana. Apertava contra o peito o ouro ainda quente do corpo do outro homem, repetindo para si mesmo:
— Vamos voltar para a terra... amanhã vamos voltar para a terra!
Capítulo 15
Em poucos dias, Wang Lung já tinha a sensação de nunca ter ficado longe de sua terra, como de fato, em seu coração, nunca ficara. Com três moedas de ouro, comprou boas sementes do sul, grãos sadios de trigo, arroz e milho, e para mostrar riqueza, sementes de tipos que nunca plantara antes, aipo e lótus para seu lago e grandes rabanetes vermelhos que se servem guisados com carne de porco em banquetes e cheirosos feijõezinhos vermelhos.
Com cinco moedas de ouro, comprou um boi de um fazendeiro que estava arando o campo, e isso antes de ter chegado à sua própria terra. Viu o homem arando e parou e todos eles pararam. O velho e as crianças e a mulher, apesar de ansiosos para chegar à casa na terra, ficaram olhando o boi. Wang Lung se impressionara com o pescoço forte do animal e, notando logo a arrancada vigorosa de seu cachaço contra a canga de madeira, gritou:
— Esse boi não presta! Quanto quer em prata ou ouro por ele? É que está me fazendo falta um animal, e estou disposto a levar qualquer coisa.
E o fazendeiro respondeu:
— Vendo antes minha mulher do que esse boi que só tem três anos e está na melhor fase — e continuou arando sem dar trela a Wang Lung.
Então, pareceu a Wang Lung que, de todos os bois do mundo, ele tinha que ter precisamente aquele. Perguntou a O-lan e ao pai:
— Que tal esse boi?
O velho olhou e disse:
— Parece um animal bem castrado.
E O-lan:
— Tem mais um ano do que ele falou.
Mas Wang Lung nada respondeu porque se encantara com aquele boi pela firmeza com que trabalhava a terra, por sua macia pelagem amarela e seus olhos escuros saciados. Com ele, podia arar seus campos e cultivá-los e, atrelando-o ao moinho, podia moer o grão. Então foi ao lavrador e disse:
— Dou-lhe o suficiente para comprar outro boi e mais alguma coisa, mas este será meu.
Afinal, após muita barganha e discussão e algumas tentativas infrutíferas, o lavrador cedeu pelo valor de um boi e meio naquela região. Mas o ouro de repente não era nada para Wang Lung diante desse boi, e ele entregou o dinheiro ao fazendeiro e ficou olhando este descangar o animal e o levou embora com uma corda passada pelas ventas, apaixonado por sua posse.
Quando chegaram à casa, encontraram a porta arrancada e o teto sem a palha e, lá dentro, as enxadas e os ancinhos que deixaram não estavam, de modo que só sobravam os caibros nus e as paredes de barro, e mesmo as paredes de barro estavam danificadas por causa das neves tardias e das chuvas de inverno e do início da primavera. Mas, passado o primeiro espanto, nada daquilo importava para Wang Lung. Ele foi à cidade e comprou um arado novo de madeira forte e dois ancinhos e duas enxadas e esteiras para cobrir o teto até poderem novamente ter a palha da colheita.
Então, à noite, ficava na porta de casa olhando a terra, sua terra, solta e descansada depois do gelo do inverno, pronta para o plantio. Era plena primavera e, no lago raso, as rãs coaxavam num tom sonolento. Os bambus na esquina da casa balançavam lentamente com a brisa suave da noite e, no lusco-fusco, ele via indistintamente a orla de árvores no limite do campo próximo. Eram pessegueiros floridos do mais delicado tom de rosa e chorões derramando as tenras folhas verdinhas. E, da terra quieta e expectante, subia uma névoa diáfana, prateada como o luar, envolvendo os troncos das árvores.
A princípio, e durante muito tempo, pareceu a Wang Lung que não queria ver nenhum ser humano, apenas ficar sozinho em sua terra. Não ia às casas da aldeia, e quando os que haviam escapado da fome do inverno o procuravam, tratava-os com arrogância.
— Qual de vocês arrancou minha porta e qual tem meu ancinho e minha enxada e qual de vocês usou a palha do meu telhado como lenha?
Assim gritava para eles.
E eles faziam que não com a cabeça, cheios de virtude. E um disse:
— Foi seu tio.
E outro disse:
— Não, com bandidos e ladrões perambulando pela terra nesses tempos ruins de fome e de guerra, como se pode dizer que foi este ou aquele que roubou alguma coisa? A fome transforma qualquer um em ladrão.
Então, Ching, seu vizinho, veio de mansinho de sua casa para ver Wang Lung e disse:
— Durante o inverno, um bando de ladrões ocupou sua casa e pilhou o quanto pôde a aldeia e a cidade. Seu tio, dizem, sabe mais sobre eles do que um homem honesto deveria saber. Mas quem sabe o que é verdade atualmente? Eu não me atreveria a acusar ninguém.
Esse homem não era mais que uma sombra, de fato, tão colada aos ossos era sua pele e tão ralos e grisalhos tinha os cabelos, embora ainda não tivesse chegado aos 45 anos. Wang Lung ficou olhando por algum tempo para ele e, de pena, disse de repente:
— Você está pior do que nós. O que comeu?
E o homem murmurou, suspirando:
— O que não comi... Restos das ruas como os cães quando pedíamos esmola na cidade e cachorros mortos e, uma vez, antes de morrer, minha mulher fez uma sopa com uma carne que não me atrevi a perguntar o que era, só que eu sabia que ela não tinha coragem de matar, e, se estávamos comendo, era algo que ela tinha achado. Então, ela morreu, tendo menos força do que eu para suportar, e, depois que ela morreu, dei a menina a um soldado porque não podia vê-la passar fome e morrer também. — Fez uma pausa e, depois de algum tempo, disse: — Se tivesse algumas sementes, eu plantaria de novo, mas não tenho nenhuma.
— Venha cá! — exclamou Wang Lung com rispidez e puxou-o pela mão para dentro de casa e o fez levantar a aba esfarrapada do casaco e, ali dentro, derramou parte do estoque de sementes que comprara no sul. Sementes de trigo lhe deu, e de arroz e de repolho, e disse:
— Amanhã vou com meu boi arar sua terra.
Então Ching começou a chorar e Wang Lung esfregou também os olhos e exclamou fingindo-se de zangado:
— Acha que esqueci do punhado de feijões que me deu?
Mas Ching não conseguiu responder nada, apenas foi embora chorando, chorando sem parar.
Foi uma alegria para Wang Lung ver que seu tio não estava mais na aldeia e ninguém sabia ao certo seu paradeiro. Uns diziam que ele fora para uma cidade, e outros, que estava em regiões distantes com a mulher e o filho. Mas, em sua casa na aldeia, não havia ninguém. As meninas, e isso Wang Lung ouviu muito revoltado, foram vendidas, primeiro a mais bonita, pelo preço que podiam dar, mas mesmo a última, que era bexiguenta, foi vendida por um punhado de tostões a um soldado que passava a caminho da batalha.
Então, Wang Lung dedicou-se à terra com vigor e reclamava até das horas que precisava passar em casa para comer e dormir. Preferia levar o seu pão com alho para o campo e ficar ali comendo, planejando e pensando: “Aqui vou semear os feijões-fradinhos e ali os canteiros de arroz novo.” E se ficasse muito cansado, deitava-se dentro de um sulco e ali, sentindo na pele a quentura gostosa de sua terra, dormia.
E O-lan não ficava à toa em casa. Com as próprias mãos amarrou com firmeza as esteiras nos caibros, trouxe barro dos campos e misturou com água e consertou as paredes da casa, e reconstruiu o fogão e tapou os buracos que a chuva fizera no chão.
Então foi um dia com Wang Lung à cidade e, juntos, compraram camas e uma mesa e seis bancos e um caldeirão de ferro grande e depois compraram por prazer um bule de chá vermelho de barro com uma flor preta gravada a tinta e seis tigelas combinando. Por fim, entraram numa loja de incenso e compraram um deus da fartura em papel para pendurar na parede em cima da mesa do quarto do meio e compraram castiçais e uma urna de incenso de estanho e duas velas vermelhas para acender para o deus, velas vermelhas grossas de sebo de vaca, com um junco fino no meio à guisa de pavio.
E com isso, Wang Lung lembrou-se dos dois pequenos deuses no templo da terra e, na volta para casa, entrou para vê-los, e fazia pena vê-los. A chuva lavara suas feições e seus corpos de barro estavam nus, aparecendo entre os farrapos de suas roupas de papel. Ninguém se preocupara com eles naquele ano horrível, e Wang Lung contemplou-os com tristeza e satisfação e disse em voz alta, como se fala a uma criança castigada:
— Isso é o que acontece com deuses que fazem mal aos homens!
No entanto, quando a casa voltou a ser como antes, com os castiçais de estanho brilhando e as velas vermelhas acesas neles, e o bule de chá e as tigelas em cima da mesa e as camas em seus lugares outra vez com algumas cobertas, e um pedaço novo de papel colado no buraco do quarto onde ele dormia, e uma porta nova colocada nas dobradiças de madeira, Wang Lung teve medo de sua felicidade. O-lan engordava com o próximo filho; seus filhos brincavam como cachorrinhos escuros na frente da casa e, apoiado na parede sul, seu velho pai se sentava e cochilava e sorria dormindo; em seus campos, o arroz novo brotava verde como jade e mais belo, e as cabeças encapuzadas dos feijões novos despontavam da terra. E ainda sobrava dinheiro para alimentá-los até a colheita, se comessem com parcimônia. Olhando para o céu azul e as nuvens brancas que o atravessavam, sentindo em seus campos arados como na própria pele o sol e a chuva na proporção certa, Wang Lung murmurava de má vontade:
“Preciso ir acender um incenso diante daqueles dois no pequeno templo. Afinal de contas, eles têm poder sobre a terra.”
Capítulo 16
Uma noite, quando estava deitado com a mulher, Wang sentiu um caroço duro do tamanho de um punho entre os seios dela e lhe disse:
— O que é isso aí no seu corpo?
Pôs a mão naquilo e sentiu um embrulho de pano duro mas que cedia quando tocado. Ela recuou violentamente a princípio, mas depois, quando ele agarrou o embrulho para arrancá-lo dela, ela não resistiu e disse:
— Bem, então olhe, se precisar — e pegou o cordão que o prendia ao seu pescoço e arrebentou-o e entregou-o a ele.
Estava amarrado num pedaço de trapo, que ele rasgou. Então, de repente, caiu-lhe na mão uma massa de jóias e Wang Lung ficou olhando para elas bestificado. Eram tantas jóias que não dava para imaginar ver uma quantidade daquelas reunida. Jóias vermelhas como o cerne das melancias, douradas como trigo, verdes como folhas novas na primavera, transparentes como a água que mina da terra. Que nome tinham Wang não sabia, nunca na vida tendo ouvido nomes de jóias nem visto jóias reunidas. Mas, segurando-as na concha de sua calejada mão escura, viu, pelo brilho e pelo faiscar na penumbra do quarto, que segurava riqueza. Segurava aquilo sem se mexer, embriagado de cores e formas, mudo. E, junto com a mulher, fitava o que tinha na mão. Afinal, sussurrou a O-lan, sem ar:
— Onde, onde...
E ela respondeu também sussurrando baixinho:
— Na casa do rico. Deve ter sido o tesouro de uma favorita. Vi um tijolo solto na parede e me esgueirei tranqüilamente até lá para que ninguém visse e viesse pedir uma parte. Afastei o tijolo, peguei aquelas coisas brilhantes e meti-as na manga.
— Mas como você sabia? — murmurou ele de novo, admirado, e ela respondeu com o sorriso nos lábios que nunca estava em seus olhos:
— Acha que nunca morei em casa de rico? Os ricos vivem com medo. Uma vez, num ano ruim, uns ladrões invadiram a casa grande e eu vi as escravas, as concubinas e até a Senhora Velha correndo de um lado para outro para esconder o tesouro delas. Cada uma já tinha o seu esconderijo secreto. Portanto, eu sabia o significado de um tijolo solto.
E, mais uma vez, ficaram calados, olhando para a maravilha das pedras. Então, depois de muito tempo, Wang Lung respirou fundo e disse decidido:
— Não se pode guardar um tesouro assim. Deve ser vendido e investido em algo seguro, em terra, pois nada mais é seguro. Se alguém soubesse disso, estaríamos mortos no dia seguinte e um ladrão levaria as jóias. Elas precisam ser investidas em terra hoje mesmo ou não vou dormir esta noite.
Enrolou as jóias no trapo enquanto falava, amarrando-as bem com o cordão, e, abrindo o casaco para escondê-las no peito, por acaso, viu o rosto da mulher. Ela estava sentada de pernas cruzadas no pé da cama e, em seu semblante pesado que nunca mostrava nada, via-se uma expressão confusa de desejo nos lábios entreabertos e na cara projetada à frente.
— Bem, e agora? — perguntou admirado com ela.
— Vai vender todas elas? — perguntou num sussurro rouco.
— E por que não, então? — respondeu ele, espantado. — Por que teríamos jóias assim numa casa de barro?
— Eu queria poder guardar duas para mim — disse ela com a tristeza impotente de quem nada espera, e ele ficou comovido como se visse um de seus filhos desejando um brinquedo ou um doce.
— Está bem! — exclamou ele pasmo.
— Se eu pudesse ter duas — prosseguiu ela com humildade —, só duazinhas, mesmo duas perolazinhas brancas...
— Pérolas — repetiu ele, boquiaberto.
— Eu as guardaria, não as usaria — disse ela —, só as guardaria.
Baixou os olhos e começou a torcer um pedaço da coberta onde havia um fio solto, esperando com paciência como alguém que não espera muito uma resposta.
Então Wang Lung, sem compreender, olhou um instante para aquela criatura fiel e opaca, que trabalhara a vida inteira em tarefas pelas quais nunca fora recompensada e que, na casa grande, vira outras pessoas usando jóias em que ela nunca sequer tocara.
— Eu poderia tê-las nas mãos de vez em quando — acrescentou, como se pensasse alto.
E ele se comoveu com algo que não entendia. Tirou as jóias do peito, desembrulhou-as e entregou-as a ela em silêncio. Ela procurou entre as cores vivas, a mão escura e calejada revirando delicada e lentamente as pedras, até encontrar as duas pérolas brancas lisas, que separou. E, amarrando de novo as outras, devolveu-as a ele. Então pegou as pérolas e rasgou um pedaço do casaco e enrolou-as e escondeu-as entre os seios e ficou reconfortada.
Mas Wang Lung olhava-a espantado, sem entender direito. E mais tarde naquele dia e em outros dias, parava e ficava olhando para ela, dizendo de si para si:
“Pois bem, essa minha mulher, ela ainda tem aquelas duas pérolas no peito, eu acho.” Mas nunca a viu tirá-las ou olhar para elas e eles nunca as mencionavam.
Quanto às outras jóias, ele ponderou isso e aquilo, e afinal decidiu que iria à casa grande ver se havia mais terra para comprar.
Para a casa grande, então, ele foi, e nessa época não havia porteiro postado no portão, torcendo os pêlos compridos do sinal, olhando com desprezo aqueles que não podiam passar por ele para entrar na Casa de Hwang. Em vez disso, os portões estavam trancados, e Wang Lung bateu neles com os dois punhos, mas não apareceu ninguém. Os homens que passavam nas ruas olhavam e gritavam para ele:
— Sim, pode bater e bater de novo. Se o Senhor Velho estiver acordado, ele pode vir, ou se houver alguma cadela escrava perdida por aí, talvez ela abra, se estiver a fim.
Mas, afinal, ele ouviu passos lentos atravessando a entrada, passos lentos e erradios que paravam e avançavam aos arrancos, depois ouviu a barra de ferro que trancava o portão ser retirada lentamente, o portão ranger e uma voz rachada sussurrar:
— Quem é? — Então Wang Lung respondeu bem alto, embora estivesse espantado:
— Sou eu, Wang Lung!
Então a voz disse com irritação:
— E quem é esse raio de Wang Lung?
E Wang Lung percebeu pela qualidade do xingamento que era o próprio Senhor Velho, porque ele xingava como alguém que está acostumado a criados e escravas. Wang Lung respondeu, portanto, com mais humildade que antes:
— Senhor, vim para um pequeno negócio, não para incomodá-lo, mas sim para tratar de um pequeno negócio com o administrador de Vossa Excelência...
Então, o Senhor Velho respondeu sem abrir mais a fresta através da qual ele contraía os lábios:
— Maldito seja, aquele cão me deixou há meses e não está aqui.
Wang Lung não soube o que fazer depois dessa resposta. Era impossível falar em comprar terras diretamente do Senhor Velho sem um intermediário, mas as jóias pendiam de seu peito queimando como fogo, e ele queria se ver livre delas e, mais do que isso, queria a terra. Com as sementes que tinha, poderia plantar toda a terra que já possuía e queria a boa terra da Casa de Hwang.
— Vim por causa de um dinheirinho — disse com hesitação.
Imediatamente, o Senhor Velho fechou a porta.
— Não tem dinheiro nesta casa — disse elevando mais a voz. — O ladrão daquele administrador, e maldita seja por ele a mãe dele e a mãe da mãe dele, levou tudo o que eu tinha. Nenhuma dívida pode ser paga.
— Não, não — disse Wang Lung depressa. — Vim pagar, não cobrar dívida.
Diante disso, ouviu-se um grito estridente de uma voz que Wang Lung ainda não ouvira e uma mulher apareceu na porta.
— Isso é uma coisa que não ouço há muito tempo — disse incisiva, e Wang Lung viu uma cara bonita, atrevida e muito corada olhando para ele. — Entre — disse bruscamente, e abriu os portões apenas a conta para deixá-lo passar. E ele ficou aturdido no pátio, enquanto ela tornava a fechar cuidadosamente a porta atrás dele.
O Senhor Velho estava ali tossindo e olhando, enrolado numa túnica de cetim cinzento suja, da qual pendia uma ponta de pele suja. Aquilo já fora uma roupa fina, como qualquer um podia ver, pois o cetim ainda era pesado e macio, apesar de manchado, e estava amassado como se tivesse sido usado como roupa de dormir. Wang Lung ficou olhando para o Senhor Velho, curioso, mas meio receoso, pois passara a vida inteira com um certo medo das pessoas da casa grande, e parecia-lhe impossível que o Senhor Velho, de quem tanto ouvira falar, fosse essa figura velha, não mais temível que seu velho pai, e de fato menos ainda que ele, pois seu pai era um velho limpo e sorridente, e o Senhor Velho, que fora gordo, agora estava magro e cheio de pelancas, sujo e barbado, e tinha a mão amarela e trêmula quando a passava no queixo e puxava os velhos beiços caídos.
A mulher era bastante limpa. Tinha uma cara dura e angulosa, bela como um falcão, com o nariz grande e olhos azuis penetrantes e pele clara muito esticada em cima dos ossos. Tinha as faces e os lábios vermelhos e duros. O cabelo preto parecia um espelho de tanto que reluzia, mas, por sua maneira de falar, percebia-se que ela não era da família do senhor, mas sim uma escrava, de voz firme e língua afiada. E, além desses dois, a mulher e o Senhor Velho, não havia ninguém no pátio onde antes homens e mulheres e crianças corriam de um lado para o outro em seus afazeres ligados ao cuidado da casa grande.
— Agora, vamos tratar do dinheiro — disse a mulher incisiva. Mas Wang Lung hesitava. Não conseguia falar diante do Senhor Velho e essa mulher logo percebeu, como percebia tudo antes que se pudesse falar, e disse ao velho com uma voz esganiçada:
— Agora caia fora!
E o Senhor Velho, sem uma palavra, saiu se arrastando e tossindo, os sapatos de veludo velhos batendo nos calcanhares. Quanto a Wang Lung, ao ficar sozinho com a mulher, não soube o que dizer nem o que fazer. Estava estupefato com o silêncio que reinava. Olhou para o pátio contíguo e também não viu ninguém. Só viu montes de restos e lixo e palha espalhada e ramos de bambu e agulhas de pinheiro secas e flores mortas, como se há muito ninguém pegasse em uma vassoura para varrer o pátio.
— Pois bem, cabeça de pau! — disse a mulher incisiva demais, e Wang Lung sobressaltou-se com o som de sua voz, tão inesperado era seu tom esganiçado. — Qual é o seu negócio? Se você tem dinheiro, me mostre.
— Não — disse Wang Lung com cautela. — Eu não disse que tinha dinheiro. Tenho um negócio.
— Negócio quer dizer dinheiro entrando ou saindo — retrucou a mulher —, e não tem dinheiro para sair desta casa.
— Bem, mas não posso falar com uma mulher — objetou Wang Lung com delicadeza. Não estava entendendo a situação em que se encontrava e continuava olhando em volta.
— Bem, e por que não? — retrucou a mulher irritada. Então gritou para ele de repente: — Não ouviu dizer, seu idiota, que não tem ninguém aqui?
Wang Lung ficou olhando timidamente sem acreditar, e a mulher tornou a gritar:
— Eu e o Senhor Velho. Não tem mais ninguém!
— Então, cadê os outros? — perguntou Wang Lung, pasmo demais para entender o que dizia.
— Bem, a Senhora Velha morreu — retrucou a mulher. — Não ouviu na cidade como os bandidos invadiram a casa e levaram as escravas e os bens que quiseram? E penduraram o Senhor Velho pelos polegares e bateram nele e amarraram a Senhora Velha numa cadeira e a amordaçaram e todo mundo fugiu. Mas eu fiquei, escondida embaixo de uma tampa de madeira dentro de um gongo com água até a metade. E quando saí, eles já tinham ido embora e a Senhora Velha estava morta na cadeira, não por causa de alguma coisa que lhe tivessem feito, mas de medo. Tinha ficado com o corpo igual a um caniço podre de tanto fumar ópio e não conseguiu agüentar o medo.
— E os criados e as escravas? — perguntou Wang Lung. — E o porteiro?
— Ah, esses — respondeu ela distraidamente — já tinham ido há muito tempo. Quem tinha pés para ir embora dali foi, pois não havia comida nem dinheiro em pleno inverno. De fato... — e a voz dela virou um sussurro —, há muitos dos criados entre os bandidos. Eu mesma vi aquele cachorro do porteiro... estava mostrando o caminho, apesar de ter virado a cara na presença do Senhor Velho, mas eu conhecia os três pêlos compridos da verruga dele. E havia outros da casa, quem senão os de casa saberiam onde estavam escondidas as jóias e as provisões secretas de coisas que não eram para ser vendidas? Eu não descartaria o envolvimento do próprio administrador, embora ele considerasse que aparecer publicamente no negócio não era digno dele, uma vez que tem um parentesco distante com a família.
A mulher se calou, e o silêncio dos pátios tinha o peso do silêncio da morte. Então, disse:
— Mas isso não foi uma coisa repentina. Durante toda a vida do Senhor Velho e do pai dele, esta casa já estava entrando em decadência. Na última geração, os senhores deixaram de ver a terra e recebiam o dinheiro que os administradores lhes davam e gastavam-no como água. E nessas gerações, o amor pela terra foi indo embora dos senhores, e a terra também começou a ir embora, pedaço a pedaço.
— Onde estão os jovens senhores? — perguntou Wang Lung, ainda olhando em volta, tão impossível era para ele acreditar naquelas coisas.
— Para um lado e para o outro — disse a mulher com indiferença. — A sorte é que as duas meninas se casaram antes que isso acontecesse. O senhor moço mais velho, quando ouviu o que acontecera com seu pai e sua mãe, mandou um mensageiro buscar o Senhor Velho, seu pai, mas eu persuadi o velho a não ir. Eu disse: “Quem vai ficar na casa? Não é adequado que eu, que sou apenas uma mulher, fique.”
Contraiu os finos lábios vermelhos virtuosamente ao dizer essas palavras e baixou os olhos atrevidos, prosseguindo após uma pequena pausa:
— Além do mais, há anos que sou a escrava fiel de meu amo e não tenho outra casa.
Wang Lung olhou com atenção para ela e logo desviou a vista. Começava a perceber o que significava aquilo: uma mulher que se agarrava a um velho moribundo por causa da última coisa que ainda podia tirar dele. E disse com desprezo:
— Vendo que é apenas uma escrava, como posso fazer negócio com você?
Diante disso, ela gritou para ele:
— Ele fará qualquer coisa que eu lhe mandar.
Wang Lung refletiu sobre essa resposta. Bem, e havia a terra. Outros a comprariam por intermédio daquela mulher se ele não comprasse.
— Quanta terra ainda há? — perguntou-lhe de má vontade, e ela viu na hora qual era o intuito dele.
— Se veio comprar terra — disse depressa —, há terra para vender. Ele tem cem acres a oeste e duzentos ao sul que pode vender. Não é tudo um pedaço só, mas as glebas são grandes. Podem ser vendidas até o último acre.
Disse isso tão prontamente que Wang Lung viu que ela sabia tudo que o velho ainda possuía, até o último palmo de terra. Mas, mesmo assim, estava desconfiado e não queria fazer negócio com ela.
— Não é provável que o Senhor Velho possa vender todas as terras da família sem o consentimento dos filhos — objetou.
Mas a mulher revidou com ansiedade:
— Quanto a isso, os filhos já lhe disseram para vender o que pudesse. A terra fica onde nenhum dos filhos deseja morar e a região está infestada de bandidos nesta época de fome, e todos eles disseram: “Não podemos viver num lugar desses. Vamos vender e dividir o dinheiro.”
— Mas, na mão de quem devo entregar o dinheiro? — perguntou Wang Lung, ainda sem acreditar.
— Na do Senhor Velho, e de quem mais? — respondeu a mulher com suavidade. Mas Wang Lung sabia que a mão do Senhor Velho se abria na dela.
Portanto, não falaria mais com ela, mas se afastou dizendo:
— Outro dia, outro dia — e foi para o portão e ela foi atrás dele, gritando-lhe quando ele já estava na rua:
— A essa hora amanhã, ou então hoje à tarde, todas as horas são iguais!
Ele seguiu pela rua sem responder, muito intrigado e precisando refletir sobre o que ouvira. Entrou numa pequena casa de chá e pediu um chá ao servente. Quando o menino o colocou com elegância à sua frente, depois de agarrar e jogar com um gesto impudente a moeda com que ele pagara, Wang Lung pôs-se a meditar. E quanto mais meditava, mais monstruoso lhe parecia que a grande e rica família que, durante toda a sua vida e a de seu pai e a de seu avô, fora uma força e uma glória na cidade agora estivesse decaída e dispersada.
“Isso é porque eles abandonaram a terra”, pensava com pesar, e lembrou de seus dois filhos, que estavam crescendo como brotos de bambu na primavera, e resolveu naquele mesmo dia que os faria parar de brincar no sol e os colocaria para trabalhar no campo, onde começassem cedo a sentir nos ossos e no sangue o contato da terra sob os pés e a textura dura do cabo da enxada nas mãos.
Bem, mas enquanto isso, essas jóias eram um peso lhe queimando o corpo, e ele estava sempre com medo. Parecia que o brilho delas apareceria sob seus farrapos e faria alguém exclamar:
— Eis aí um homem pobre carregando o tesouro de um imperador!
E não conseguia sossegar enquanto não as trocasse por terra. Ficou esperando, portanto, o comerciante ter um momento de folga e o chamou, dizendo:
— Venha beber uma xícara por minha conta e me contar as novidades da cidade, pois passei o inverno fora.
O comerciante estava sempre pronto para conversas desse tipo, especialmente se tomasse o próprio chá às custas dos outros, e logo foi sentar-se à mesa de Wang Lung. Era um homem miúdo com cara de doninha, com o olho esquerdo torto e vesgo. Tinha a frente da calça e do casaco dura e preta de gordura, pois, além de chá, também vendia comida, que ele próprio fazia, e orgulhava-se de dizer: “Há um provérbio: a túnica de um bom cozinheiro nunca está limpa.” Portanto, considerava-se justa e necessariamente sujo. Sentou-se e começou logo:
— Pois bem, além da gente passando fome, a maior novidade foi o assalto à Casa de Hwang.
Era exatamente o que Wang Lung esperava ouvir e o homem continuou a lhe contar com prazer, descrevendo como as poucas escravas haviam gritado e como haviam sido levadas e como as concubinas que ficaram foram estupradas e expulsas e algumas até raptadas, de modo que agora ninguém queria morar naquela casa.
— Ninguém — terminou o homem —, a não ser o Senhor Velho, que agora é totalmente dominado por uma escrava chamada Cuco, que, graças à sua inteligência, está há muitos anos na alcova do Senhor Velho, enquanto outras entravam e saíam.
— Então essa mulher tem autoridade? — perguntou Wang Lung, ouvindo com atenção.
— Agora, pode fazer qualquer coisa — respondeu o homem. — Por isso, agarra tudo que pode e engole tudo que pode. Um dia, claro, quando tiverem arrumado seus negócios em outros lugares, os jovens senhores vão voltar e aí ela não vai poder enganá-los com sua conversa de criada fiel a ser recompensada e será posta na rua. Mas agora está com a vida feita, mesmo se viver cem anos.
— E a terra? — perguntou Wang Lung afinal, tremendo de ansiedade.
— A terra? — disse o homem inexpressivamente. Para esse comerciante, terra nada significava.
— Está à venda? — perguntou Wang Lung com impaciência.
— Ah, a terra! — respondeu o homem indiferente. Naquele momento, entrava um cliente e ele se levantou, dizendo ao se afastar: — Ouvi dizer que está toda à venda, menos o terreno onde a família está enterrada há seis gerações.
Então Wang Lung também se levantou, tendo ouvido aquilo que motivara sua ida ali. Saiu e voltou até os portões. A mulher veio abrir para ele, mas ele não entrou e lhe disse:
— Primeiro me diga: o Senhor Velho vai selar a escritura de venda com seu próprio selo?
E a mulher respondeu com impaciência, os olhos grudados nos dele:
— Vai... vai... juro pela minha vida!
Então, Wang Lung lhe perguntou simplesmente:
— Você quer vender a terra por ouro, prata ou jóias?
E os olhos dela brilharam enquanto ela respondia:
— Quero vender por jóias!
Capítulo 17
Agora Wang Lung tinha mais terra que um homem com um boi pode cultivar e colher, e mais colheitas que um homem pode colher, então construiu mais outro quartinho na casa, comprou um burro e disse a seu vizinho Ching:
— Venda o seu terreninho para mim, saia da sua casa solitária e venha morar comigo para me ajudar com a minha terra.
E Ching fez isso, e ficou feliz.
Então a chuva caiu na estação; o arroz novo cresceu e, quando o trigo foi ceifado e colhido em pesados fardos, os dois homens plantaram o arroz novo nos campos alagados. Wang Lung plantou esse ano mais arroz do que nunca, pois as chuvas chegaram fartas, de modo que terras que antes eram secas esse ano estavam adequadas para arroz. Então, quando chegou a época dessa colheita, ele e Ching sozinhos não deram conta dela, tão grande foi, então Wang Lung contratou como lavradores mais dois homens que moravam na aldeia e a colheita foi feita.
Ele também se lembrava dos jovens senhores preguiçosos da casa grande decaída enquanto trabalhava na terra que comprara da Casa de Hwang e exigia que os filhos fossem para o campo todas as manhãs com ele. Botava-os para fazer qualquer tarefa que suas mãozinhas pudessem fazer, como guiar o boi e o burro, e, se não tinham capacidade para fazer grandes trabalhos, pelo menos que conhecessem o calor do sol na pele e o cansaço de andar para baixo e para cima nos sulcos.
Mas não deixava O-lan trabalhar nos campos, pois já não era pobre, mas sim um homem que podia contratar mão-de-obra para trabalhar para ele se quisesse, e via que a terra nunca dera tantas colheitas como esse ano. Foi obrigado a construir mais um quarto na casa para estocar suas colheitas; do contrário, não teriam espaço para andar dentro de casa.
Então O-lan trabalhava na casa, fazendo roupas novas para cada um e sapatos novos, e cobertas de tecidos floridos forradas com algodão novo quente para cada cama, e depois de tudo pronto, eles estavam ricos como nunca estiveram em matéria de roupas e colchas. Então, ela se deitou na cama e deu à luz mais uma vez, embora ainda não quisesse ter ninguém a assisti-la; embora pudesse contratar quem quisesse, preferiu ficar só.
Dessa vez, o parto foi demorado e, quando chegou à noite, Wang Lung encontrou o pai parado na porta, rindo e dizendo:
— Um ovo com duas gemas desta vez!
E, quando Wang Lung entrou no quarto, lá estava O-lan na cama com dois recém-nascidos, um menino e uma menina tão iguais como dois grãos de arroz. Riu ruidosamente do que ela fizera e pensou depois numa coisa alegre para dizer:
— Então é por isso que você usava duas jóias no peito!
Riu de novo do que lhe ocorrera dizer, e O-lan, vendo a alegria dele, deu aquele seu sorriso lento e doloroso.
Wang Lung não tinha, portanto, tristeza de espécie alguma naquela época, a menos que fosse tristeza o fato de que sua filha mais velha não falava nem fazia aquelas coisas próprias da idade, mas só abria aquele sorriso de bebê quando via o olhar do pai. Fosse pelo desesperador primeiro ano de sua vida ou pela fome, o fato é que os meses se passavam e Wang Lung esperava as primeiras palavras saírem de sua boca, nem que fosse o nome com que os filhos o chamavam, “da-da”. Mas nenhum som saía dela, só o sorriso doce e vazio, e, quando olhava para ela, o pai resmungava:
— Tolinha... minha pobre tolinha...
E, no íntimo, dizia:
“Se eu tivesse vendido essa pobre ratinha e vissem que ela é desse jeito, teriam matado a coitadinha!”
E, como se para compensar a menina, dava muita importância a ela e a levava ao campo consigo algumas vezes e ela o seguia calada, sorrindo quando ele falava e olhava para ela.
Naquela região, onde Wang Lung vivera a vida toda e seu pai e o pai de seu pai viveram da terra, havia fome de cinco em cinco anos, ou, se os deuses fossem camaradas, de sete em sete, ou de oito em oito, ou mesmo de dez em dez. Isso acontecia porque chovia demais ou não chovia nada, ou porque o rio do norte, com as chuvas e as neves das montanhas distantes, engrossava e invadia os campos, transbordando as barragens que os homens construíam há séculos para contê-lo.
Muitas vezes, os homens fugiam da terra e a ela regressavam, mas Wang Lung agora se dedicava a garantir sua riqueza de tal modo que, nos anos ruins futuros, nunca precisasse tornar a deixar a terra, mas pudesse viver dos frutos dos anos bons e subsistir assim até outro ano chegar. Dedicou-se e os deuses o ajudaram e, por sete anos, houve colheitas, e cada ano Wang Lung e seus homens malhavam mais trigo do que o que se podia comer. A cada ano, contratava mais lavradores para seus campos, até chegar a ter seis homens. Construiu uma casa nova atrás da antiga, com um quarto grande atrás de um pátio e dois quartinhos de cada lado do pátio ao lado do quarto grande. A casa ele cobriu com telhas, mas as paredes ainda eram feitas com o barro duro dos campos, só que mandara caiá-las, e elas estavam limpas e brancas. Para esses quartos ele e a família se mudaram, e os trabalhadores, com Ching à testa, moravam na casa antiga em frente.
Nessa época, Wang Lung já testara Ching de todas as maneiras e vira que ele era honesto e fiel. Deu-lhe então o cargo de capataz dos homens e da terra e pagava-lhe bem, duas moedas de prata por mês, além da comida. Mas, embora Wang Lung insistisse para que Ching comesse e comesse bem, o homem ainda não criava carne nos ossos, continuando sempre miúdo e franzino e muito sério. Todavia, trabalhava alegremente, ocupando-se de uma coisa e de outra calado de sol a sol, falando com sua voz fraca se havia algo a dizer, mas mais feliz e mais satisfeito se não houvesse nada e ele pudesse ficar em silêncio. E, durante horas e horas, levantava e baixava a enxada, e quando amanhecia e à tardinha, carregava para os campos os baldes de água ou de esterco para colocá-los nas carreiras de hortaliças.
Mas Wang Lung sabia, ainda, que se algum dos trabalhadores dormia demais cada dia sob as tamareiras ou comia mais que seu quinhão de pasta de soja no prato comum ou se algum deles mandava vir clandestinamente a mulher ou o filho na época da colheita para furtarem punhados do grão que estava sendo malhado pelos manguais, no fim do ano, quando patrão e homens se banqueteiam juntos depois da colheita, Ching vinha lhe dizer baixinho:
— Este e aquele não precisam voltar no ano que vem.
E parecia que o punhado de ervilhas e de sementes que haviam passado entre esses dois homens os tornava irmãos, só que Wang Lung, que era o mais jovem, estava no lugar do mais velho e Ching nunca esquecia completamente que era contratado e morava numa casa que pertencia a outro.
No fim do quinto ano, Wang Lung pouco trabalhava em seus campos, tendo na verdade que gastar todo o seu tempo, de tal maneira suas terras haviam aumentado, com a venda dos produtos e a orientação dos trabalhadores. Sentia-se muito incomodado com sua falta do conhecimento dos livros e dos caracteres escritos num papel com um pincel de pêlo de camelo e tinta. Além do mais, quando estava num mercado de grãos onde estes eram comprados e revendidos, era uma vergonha para ele dizer aos altivos negociantes quando era escrito um contrato fixando o preço do trigo ou do arroz:
— Senhor, quer me ler o contrato, pois sou muito ignorante?
Era uma vergonha para ele também que, quando precisava colocar o nome no contrato, outra pessoa, até mesmo um reles escrevente, erguesse as sobrancelhas com desprezo e, com a ponta do pincel molhada na tinta, traçasse apressadamente os caracteres do nome de Wang Lung; e a maior vergonha era quando o homem exclamava de piada:
— É a Lung do dragão ou a do surdo?
Wang Lung precisava responder com humildade:
— A que você quiser, pois sou muito ignorante para saber meu próprio nome.
Foi num desses dias, na época da colheita, após ter ouvido a gargalhada dos escreventes na loja de cereais, à toa na hora do meio-dia, todos atentos a qualquer coisa que acontecia, e todos eles pouco mais velhos que seus filhos, que ele foi para casa passando com irritação por suas próprias terras, dizendo a si mesmo:
— Ora, nenhum daqueles idiotas da cidade tem um palmo de terra e, no entanto, acha que pode dar um cacarejo de ganso na minha cara só porque não entendo o que querem dizer aqueles riscos de pincel na página.
Depois, quando a indignação passou, pensou consigo mesmo: “É verdade que não saber ler nem escrever é uma vergonha para mim. Vou tirar meu filho mais velho dos campos e ele vai para uma escola na cidade aprender, e quando eu for aos armazéns, vai ler e escrever por mim e, assim, vão parar de rir de mim, eu, que sou um proprietário de terras.”
Isso lhe pareceu bem e, naquele mesmo dia, chamou o filho mais velho, agora um rapaz esguio de 12 anos, que puxara da mãe a cara larga e chata, as mãos e os pés grandes, e do pai, a vivacidade. Quando o menino chegou diante dele, Wang Lung disse:
— De hoje em diante, você vai sair do campo, pois preciso de um estudante na família para ler os contratos e escrever meu nome, para eu não passar vergonha na cidade.
O menino ficou rubro e seus olhos brilharam.
— Meu pai — disse —, isso já desejo há dois anos, mas não me atrevi a pedir.
Então, o mais moço, ao ouvir isso, veio chorando e se queixando, coisa que tinha o hábito de fazer, pois era um menino falador e barulhento, sempre disposto a gritar que sua parte era menor que a dos outros, e agora choramingava para o pai:
— Bem, eu também não vou trabalhar no campo, e não é justo que meu irmão possa ficar no bem-bom sentado numa cadeira aprendendo alguma coisa, e eu, que sou seu filho tanto quanto ele, deva trabalhar como um boçal!
Então, Wang Lung, que não conseguia suportar suas lamentações e lhe dava qualquer coisa quando ele gritava bastante pelo que queria, disse apressadamente:
— Bem, bem, vão vocês dois, e se o Céu, em sua força maligna, levar um de vocês, haverá o outro com conhecimento para fazer o negócio para mim.
Então enviou a mãe de seus filhos à cidade para comprar pano e fazer uma túnica comprida para cada rapaz, e ele próprio foi a uma papelaria e comprou papel, pincéis e dois tinteiros, embora não entendesse nada dessas coisas, e com vergonha de dizer que não sabia, desconfiava de tudo que o homem trazia para lhe mostrar. Mas, afinal, ficou tudo ponto e arranjado para enviar os meninos a uma pequena escola perto da porta da cidade mantida por um velho que um dia tentara prestar exames oficiais e fora reprovado. Na sala central de sua casa, portanto, ele colocara bancos e mesas e, por uma pequena quantia paga em cada dia festivo do ano, ensinava os clássicos aos meninos, batendo neles com seu grande leque, fechado, quando eram preguiçosos ou não conseguiam repetir para ele as páginas que estudavam de sol a sol.
Só nos dias quentes de primavera e verão os alunos tinham uma folga, porque então o velho cabeceava e cochilava depois de ter comido ao meio-dia, e o ruído de seu sono enchia a salinha escura. Então os rapazes cochichavam e brincavam e desenhavam para mostrar uns aos outros essa e aquela graça e riam ao verem uma mosca zumbindo em volta da boca aberta do velho, apostando se a mosca entraria ou não na caverna daquela boca. Mas, quando abria os olhos de repente — e não dava para dizer quando ele os abriria tão depressa e secretamente como se não tivesse dormido —, o velho professor os via antes que eles se dessem conta e rodava o leque, batendo na cabeça deste ou daquele. E, ouvindo as batidas de seu leque robusto e os gritos dos alunos, os vizinhos diziam:
— Afinal de contas, é um velho professor de valor.
E por isso Wang Lung escolheu a escola para os filhos.
No primeiro dia, ao levá-los lá, foi andando na frente, pois não fica bem pai e filho caminharem lado a lado. Levou um lenço azul cheio de ovos frescos e deu-os ao velho professor quando chegou. Ficou assombrado com o professor, com aqueles óculos de latão enormes, aquela túnica comprida e solta e aquele leque imenso, que usava mesmo no inverno; então curvou-se na frente dele e disse:
— Senhor, aqui estão meus dois filhos incapazes. Se algo puder ser metido em suas cabeças duras, é só na base da pancada, portanto, se desejar me agradar, bata neles para fazê-los aprender. — E os dois meninos ficaram olhando os outros meninos nos bancos, e estes também olhavam para eles.
Mas quando Wang Lung voltou para casa, depois de deixar os garotos, seu coração quase explodia de orgulho, e parecia-lhe que, entre todos os rapazes da sala, nenhum se igualava a seus dois em altura, robustez e bom aspecto. No portão da cidade, ao encontrar com um vizinho que vinha do povoado, respondeu à pergunta que o homem lhe fizera.
— Venho da escola de meus filhos. — E, para surpresa do homem, disse com aparente tranqüilidade: — Já não preciso deles na lavoura, e é melhor eles aprenderem um monte de caracteres.
Mas, a si mesmo, disse ao passar: “Não seria surpresa para mim se o mais velho chegasse a prefeito com esse estudo todo!”
E daquele dia em diante, os rapazes já não eram mais chamados de Mais Velho e Mais Moço, pois o velho professor lhes dera nomes na escola, escolhidos depois que se informou da ocupação do pai. Para o mais velho, Nung Em, e para o segundo, Nung Wen, e a primeira palavra de cada nome significava “aquele cuja riqueza vem da terra”.
Capítulo 18
Assim, Wang Lung construiu a fortuna de sua casa, e quando chegou o sétimo ano, o grande rio do norte, muito engrossado pelo excesso de chuva e neve no nordeste onde ficava sua cabeceira, transbordou e inundou todas as terras daquela região. Mas Wang Lung não teve medo. Não teve medo, embora dois quintos de sua terra tivessem virado um lago cuja profundidade chegava à altura dos ombros de um homem e até mais.
Durante todo o fim da primavera e o início do verão, as águas subiram e afinal se estenderam como um grande mar, lindo e improdutivo, espelhando nuvens e lua e salgueiros e bambus cujos troncos estavam submersos. Aqui e ali, erguia-se uma casa de barro, abandonada pelos moradores, até que, após alguns dias de inundação, desmoronava lentamente na água e na terra. E assim foi com todas as casas que não eram, como a de Wang Lung, construídas numa colina, e essas colinas erguiam-se como ilhas. E os homens iam e vinham da cidade de barco ou balsa, e, como sempre, houve os que passaram fome.
Mas Wang Lung não se assustou. Os mercados de cereais lhe deviam dinheiro, ele tinha os celeiros abarrotados com as colheitas dos últimos dois anos e suas casas eram construídas no alto, longe da água, portanto, nada tinha a temer.
Mas, como grande parte da terra não podia ser plantada, ele nunca havia estado tão à toa na vida, e, estando à toa e bem alimentado, ficava impaciente depois de ter dormido tudo o que podia e ter feito tudo o que tinha para fazer. Ademais, havia os trabalhadores, que ele contratava por um ano, e era tolice sua trabalhar quando havia os que comiam o arroz dele enquanto estavam semi-ociosos, esperando dia após dia as águas baixarem. Então, depois que os mandara consertar o telhado da casa velha e cuidar da colocação das telhas onde o telhado novo pingava e os mandara consertar as enxadas e os ancinhos e os arados e alimentar o gado e comprar patos para criar na água e torcer o cânhamo para fazer cordas — todas aquelas coisas que, no passado, ele mesmo fazia quando lavrava a terra sozinho —, ficou de mãos vazias, sem saber o que fazer consigo mesmo.
Ora, um homem não pode passar o dia todo sentado contemplando um lago de água cobrindo seus campos, nem pode comer mais do que consegue de uma vez, e quando Wang Lung despertava, já não dormia mais. Quando vagava pela casa com impaciência, a casa estava silenciosa, silenciosa demais para seu sangue vigoroso. O velho agora estava muito fraco, meio cego e quase totalmente surdo, e não havia necessidade de se falar com ele a não ser para perguntar se ele estava bem aquecido e alimentado ou se queria tomar um chá. E Wang Lung se agoniava com o fato de o velho não poder ver quão rico ele estava e resmungar sempre que via folhas de chá em sua xícara:
— Um pouco d’água é suficiente e chá é dinheiro.
Mas não adiantava contar nada ao velho, pois ele esquecia logo e vivia recolhido em seu próprio mundo, sonhando sempre que era jovem novamente, na flor da idade, mal percebendo o que acontecia em volta.
O velho e a menina mais velha, que nunca falava, mas ficava o tempo todo sentada ao lado do avô torcendo um pedaço de pano, dobrando e redobrando aquilo, sorrindo, nada tinham a dizer a um homem próspero e vigoroso. Depois que Wang Lung servia ao velho uma xícara de chá e passava a mão no rosto da menina e recebia seu sorriso doce e morto, que lhe passava pelo rosto com uma fugacidade tão triste, deixando vazios os olhos apagados e sem brilho, não havia mais o que fazer. Sempre se afastava dela em silêncio, que era a marca da tristeza que a filha deixava nele, e olhava para os dois filhos mais moços, o menino e a menina que O-lan parira juntos, e que agora corriam alegremente na entrada da casa.
Mas um homem não pode se satisfazer com as bobagens de criancinhas e após um instante de risadas e implicâncias, os meninos voltavam às suas brincadeiras e Wang Lung ficava sozinho e nervoso. Era então que olhava para O-lan, sua mulher, como um homem olha para a mulher cujo corpo ele conhece plenamente até estar farto e que viveu a seu lado tão intimamente que não há nada que não conheça a respeito dela nem nada de novo que dela possa esperar ou desejar.
E pareceu a Wang Lung que olhava O-lan pela primeira vez na vida, e viu pela primeira vez que era uma mulher a quem nenhum homem poderia chamar outra coisa diferente do que era: uma criatura comum e apagada, que andava calada e sem se preocupar com a imagem que tinham dela. Viu pela primeira vez que seu cabelo era áspero, castanho e seco e que sua cara era larga e chata, com a pele grossa e as feições brutas, sem beleza ou luz de espécie alguma. Suas sobrancelhas eram espalhadas e ralas, seus lábios, muito rasgados, e suas mãos e seus pés eram grandes e largos. E vendo-a assim com olhos estranhos, gritou para ela:
— Quem vê você diz que você é mulher de um joão-ninguém, nunca de um proprietário de terras com trabalhadores contratados para lavrá-las!
Era a primeira vez que falava do aspecto que O-lan tinha para ele, e ela lhe respondeu com um olhar lento e sofrido. Estava sentada num banco enfiando uma agulha comprida na sola de um sapato e puxando. Parou com a agulha no ar e a boca aberta, mostrando os dentes escuros. Então, como se tivesse compreendido afinal que ele a olhara como um homem olha uma mulher, um rubor intenso se insinuou nas altas maçãs de seu rosto, e ela murmurou:
— Desde que esses dois foram paridos juntos, não ando bem. Minhas entranhas estão em fogo.
Ele viu que, em sua simplicidade, ela achava que ele a acusava porque ela não concebia há mais de sete anos. E ele respondeu com mais grosseria do que pretendia:
— Quero dizer: não dá para você comprar um pouco de óleo para o cabelo como as outras mulheres e fazer uma túnica nova de tecido preto? E esses sapatos que você usa não são próprios para a mulher de um proprietário como você é agora.
Mas ela nada respondeu, só olhou para ele humildemente e, sem saber o que fazer, escondeu os pés, um por cima do outro, sob o banco onde estava sentada. Então, embora, no íntimo, ele se envergonhasse de repreender essa criatura que, naqueles anos todos, o seguira com a fidelidade de um cão, e embora se lembrasse de que quando era pobre e trabalhava nos campos com as próprias mãos, ela saía da cama, mesmo depois de ter dado à luz, e ia ajudá-lo nas colheitas, não conseguia conter a irritação em seu peito, e continuou implacavelmente, embora contra a própria vontade:
— Trabalhei e enriqueci e gostaria que minha mulher não parecesse tanto uma camponesa. E esses seus pés...
Parou. Parecia-lhe que era completamente medonha, porém mais medonhos eram seus pés grandes dentro daqueles sapatos largos de algodão azul. Olhou para aqueles pés com tanta raiva que ela os escondeu ainda mais debaixo do banco. Afinal, O-lan disse num suspiro:
— Minha mãe não os amarrou, uma vez que fui vendida muito pequena. Mas os pés da menina eu vou amarrar — os pés da menina mais moça, eu vou amarrar...
Wang Lung mandou-se dali, no entanto, com vergonha de estar irritado com ela e irritado porque ela não estava irritada com ele, mas só assustada. Vestiu a túnica preta nova, dizendo mal-humorado:
— Bem, vou para a casa de chá ver se ouço alguma novidade. Em minha casa só tem idiotas, um velho caduco e duas crianças.
Seu mau humor aumentou enquanto ele caminhava para a cidade porque de repente lembrou-se de que nunca poderia ter comprado todas aquelas suas terras novas se O-lan não tivesse se apoderado do punhado de jóias da casa do homem rico e se ela não as tivesse dado para ele quando ele exigiu. Mas quando se lembrava disso, ficava com mais raiva ainda e dizia, como se para responder a si mesmo, com rebeldia:
— Bem, mas ela não sabia o que estava fazendo. Pegou as jóias por prazer, como uma criança pode pegar um punhado de doces vermelhos e verdes, e teria ficado com elas escondidas para sempre no peito se eu não as tivesse encontrado.
Então, se perguntou se ela ainda tinha as pérolas entre os seios. Mas o que antes lhe parecia uma coisa estranha em que às vezes gostava de pensar, agora imaginava com desprezo, pois os seios dela haviam ficado flácidos e caídos por causa dos filhos e não tinham beleza, e pérolas entre eles eram uma tolice e um desperdício.
Mas tudo isso não teria sido nada se Wang Lung ainda fosse um homem pobre ou se seus campos não estivessem alagados. Mas ele tinha dinheiro. Havia prata escondida nas paredes de sua casa e um saco de prata escondido embaixo de uma lajota no chão da casa nova e havia prata enrolada num pano na caixa no quarto onde ele dormia com a mulher e prata costurada na esteira embaixo da cama e sua cinta estava cheia de prata, e prata não lhe faltava. E agora, em vez de sair dele como o sangue vertido de uma ferida, o dinheiro estava em sua cinta queimando-lhe os dedos quando o tocava, e, na ânsia de gastar nisso ou naquilo, começou a ficar descuidado com ele e a pensar no que poderia fazer para gozar a época de sua virilidade.
Nada lhe parecia tão bom quanto antes. A casa de chá em que costumava entrar timidamente, sentindo-se um caipira vulgar, agora lhe parecia suja e mesquinha. Antigamente, ninguém o conhecia ali e os atendentes eram insolentes com ele, mas agora as pessoas se cutucavam quando ele entrava e ele ouvia um homem dizer a outro:
— Lá está aquele Wang da aldeia de Wang. Aquele que comprou as terras da Casa de Hwang naquele inverno em que morreu o Senhor Velho, quando houve a grande fome. Ele agora está rico.
E Wang Lung, ouvindo isso, sentava-se aparentando indiferença, mas seu coração inchava de orgulho de sua atual situação. Mas, naquele dia em que repreendera a mulher, até mesmo a deferência com que foi tratado não lhe agradou, e ele ficou sentado melancolicamente, tomando seu chá e sentindo que nada em sua vida era tão bom quanto ele acreditara. E aí, de repente, perguntou a si mesmo:
“Por que devo tomar meu chá nesta casa, cujo proprietário é um furão zarolho que ganha menos do que os trabalhadores da minha terra, eu, que tenho terras e meus filhos estudam?”
Levantou-se depressa e jogou o dinheiro na mesa e saiu antes que alguém pudesse falar com ele. Perambulou pelas ruas da cidade sem saber o que queria. Uma vez, passou pela barraca de um contador de histórias, sentou-se um instante na ponta de um banco cheio de gente e ficou ouvindo a história dos tempos dos Três Reinos, quando os guerreiros eram valentes e espertos. Mas ainda estava nervoso e não conseguiu se deixar envolver pelo encanto do contador de histórias como os outros e o som do pequeno gongo de metal que o homem tocava cansou-o e ele tornou a se levantar e foi embora.
Ora, havia na cidade uma grande casa de chá aberta recentemente por um homem do sul que entendia desse tipo de negócio, e Wang Lung já passara por ali, horrorizado com a idéia de como se gastava dinheiro naquela casa em jogo e em diversões e em mulheres de má fama. Mas agora, levado pela inquietação do ócio e desejando fugir das acusações de seu próprio coração quando se lembrava de que fora injusto com sua mulher, dirigiu-se para lá. A ansiedade o impelia a ver ou ouvir algo novo. Assim, chegou à nova casa de chá e entrou num imponente salão iluminado, cheio de mesas e dando para a rua, e foi em frente, com um andar bastante ousado e tentando ser mais ousado porque era tímido e lembrava-se que só nos últimos anos era mais que um homem pobre que nunca tinha mais que uma ou duas moedas de prata e até trabalhara puxando um riquixá nas ruas de uma cidade do sul.
A princípio, não disse uma palavra na casa de chá, mas comprou calado seu chá, bebeu-o e olhou em volta admirado. Era um grande salão de teto dourado e paredes de onde pendiam painéis de seda branca pintados com figuras de mulheres. Wang Lung olhava para essas mulheres secretamente com atenção, e parecia-lhe que eram mulheres de sonho, pois nunca havia visto nada parecido na terra. E, no primeiro dia, olhou-as, bebeu seu chá depressa e saiu.
Mas, dia após dia, enquanto suas terras continuavam alagadas, ele ia àquela casa de chá. Comprava o chá, sentava-se sozinho, contemplava os retratos das mulheres bonitas, demorando-se mais a cada dia, uma vez que nada havia para ele fazer em sua terra ou em sua casa. Assim teria podido continuar dias a fio, pois, apesar da prata escondida em vários lugares, ele ainda tinha o aspecto de um camponês e era o único naquela rica casa de chá que usava algodão em vez de seda e tinha uma trança de cabelo pendurada nas costas como nenhum homem urbano usava. Mas, uma noite, quando estava sentado bebendo e olhando de uma mesa perto do fundo do salão, alguém desceu de uma escada estreita encostada na parede mais afastada que levava ao andar superior.
Essa casa de chá era o único prédio em toda aquela cidade que possuía um andar superior, à exceção do Pagode Ocidental, que tinha cinco andares fora da Porta Oeste. Mas o pagode era estreito e mais estreito em direção ao topo, enquanto o segundo andar da casa de chá era tão quadrado quanto a parte térrea do prédio. À noite, a cantoria alta das mulheres e as risadas ligeiras escapavam das janelas superiores com o doce som dos alaúdes tangidos delicadamente por mãos de garotas. Podia-se ouvir a música escoando para a rua, especialmente após a meia-noite, mas onde Wang Lung costumava sentar-se, a barulheira de muitos homens tomando chá e o tinido seco dos dados e dos dominós abafavam todo o resto.
Por isso, Wang Lung não ouviu atrás de si os passos de uma mulher na escada estreita e assustou-se violentamente ao ser tocado no ombro, não esperando que alguém o conhecesse ali. Quando olhou, viu um belo e delicado rosto de mulher, o rosto de Cuco, a mulher em cujas mãos derramara as jóias naquele dia em que comprara a terra e que segurara com firmeza a mão trêmula do Senhor Velho, ajudando-o a apor seu selo na escritura de venda. Ela riu quando o viu, e seu riso era uma espécie de murmúrio pungente.
— Vejam só, Wang o lavrador! — disse ela, demorando-se com malícia na palavra “lavrador” — Quem imaginaria encontrar você aqui!
Pareceu então a Wang Lung que precisava provar a qualquer custo a essa mulher que era mais que um mero camponês, e ele riu dizendo bem alto:
— Meu dinheiro não é tão bom para gastar como o de qualquer outro homem? E dinheiro não me falta atualmente! Tive sorte.
Cuco parou ao ouvir isso, os olhos apertados e brilhantes como os de uma cobra, e a voz suave como azeite fluindo de um vaso.
— E quem não ouviu falar nisso? E como um homem pode gastar melhor o dinheiro que tem sobrando senão num lugar como este, onde os homens ricos se divertem e os senhores elegantes se reúnem para se deleitar em festas e prazeres? Não há vinho como o nosso... já provou, Wang Lung?
— Só tomei chá até agora — respondeu Wang Lung, meio envergonhado. — Não toquei em vinho nem em dados.
— Chá! — exclamou ela depois dele, com uma risada estridente. — Mas temos vinho de osso de tigre, vinho de aurora e vinho de arroz perfumado; por que toma chá? — E enquanto Wang Lung baixava a cabeça, prosseguiu, de mansinho e insidiosamente: — E suponho que não tenha olhado para mais nada, hein? Nem para mãozinhas lindas, nem para rostos perfumados?
Wang Lung baixou ainda mais a cabeça e o sangue lhe enrubesceu as faces. Tinha a sensação de que todos o olhavam com zombaria e escutavam a voz da mulher. Mas quando arranjou coragem para olhar em volta disfarçadamente, não viu ninguém prestando atenção e o barulho dos dados continuava a ser ouvido. Então disse confuso:
— Não, não, não olhei... só tomei chá...
Então a mulher tornou a rir e, apontando para os painéis de seda pintados, disse:
— Lá estão os retratos delas. Escolha a que deseja ver e ponha o dinheiro em minha mão e eu a coloco diante de você.
— Aquelas! — disse Wang Lung, espantado. — Pensei que fossem retratos de mulheres de sonho, de deusas na montanha de Kwen Lwen, como aquelas de quem falam os contadores de histórias!
— E são mesmo mulheres de sonho — retrucou Cuco, com um bom humor zombeteiro —, mas sonhos que um pouco de dinheiro transforma em realidade. — E seguiu seu caminho, balançando a cabeça e piscando para os criados e apontando para Wang Lung como para alguém de quem dissesse: “Lá está um caipira!”
Mas Wang Lung ficou sentado contemplando os retratos com novo interesse. Então, subindo essa escadinha, nos quartos do segundo andar, havia essas mulheres em carne e osso, e os homens iam ter com elas — outros que não ele, obviamente, mas homens! Bem, e se não fosse o homem que era, um homem bom e trabalhador, um homem com mulher e filhos, que retrato escolheria, fingindo, como uma criança finge que faz alguma coisa? Olhou as caras uma a uma, com atenção, intensamente, como se fossem reais. Antes disso, todas lhe haviam parecido igualmente belas, quando não era uma questão de escolha. Mas agora, nitidamente, havia umas mais belas que outras, e, de todas, escolheu três mais bonitas, e, dessas três, tornou a escolher, e escolheu a mais bonita. Era uma coisinha esguia, com um corpo leve como um bambu e uma carinha pontuda como a de um gatinho. Segurava numa das mãos um talo de flor de lótus em botão, e a mão era delicada como uma folha nova de samambaia.
Ele olhava para ela, e sentia um calor como de vinho lhe correr nas veias.
— Ela é como uma flor de marmeleiro — disse de repente em voz alta. E, ao ouvir a própria voz, ficou alarmado e envergonhado. Levantou-se correndo, pôs o dinheiro na mesa e saiu na noite que já havia caído, indo para casa.
Mas, sobre os campos e as águas, o luar pairava, uma rede de névoa prateada, e em seu corpo, seu sangue corria misterioso, quente e acelerado.
Capítulo 19
Se as águas tivessem então se retirado das terras de Wang Lung, deixando-as úmidas e fumegantes sob o sol, de modo que, com poucos dias de calor de verão, precisariam ser aradas e gradadas e semeadas, Wang Lung talvez nunca tivesse voltado à grande casa de chá. Ou se uma criança tivesse adoecido ou se o velho subitamente tivesse chegado ao fim de seus dias, Wang Lung talvez tivesse se envolvido na nova atividade e assim esquecido a cara pontuda no painel e o corpo da mulher esguio como um bambu.
Mas as águas continuavam plácidas e paradas, a não ser pela leve brisa de verão que se levantava ao pôr do sol, e o velho cochilava e os dois meninos iam para a escola de madrugada e ficavam fora até a noite e, em casa, Wang Lung ficava nervoso e evitava os olhos de O-lan, que o olhava infeliz enquanto ele andava de um lado para outro e se atirava numa cadeira e se levantava sem tomar o chá que ela servira, nem fumar o cachimbo que acendera. Ao fim de um longo dia, mais longo que qualquer outro, no sétimo mês, quando o crepúsculo se prolongava murmurante e doce com o ar do lago, ele estava na porta de casa, quando, de repente, sem uma palavra, virou-se bruscamente, entrou no quarto e vestiu a túnica nova de tecido preto brilhante, quase tão brilhante quanto seda, que O-lan fizera para os dias de festa, e, sem dizer uma palavra a ninguém, pegou os caminhos estreitos que beiravam a água e atravessou os campos até chegar à escura porta da cidade. Passou o portão e seguiu pelas ruas até chegar à nova casa de chá.
Ali, todas as luzes estavam acesas, brilhantes lâmpadas de azeite compradas nas cidades estrangeiras do litoral, e os homens sentavam-se embaixo das luzes bebendo e conversando, as túnicas abertas para a frescura da noite. Por toda parte, leques balançavam para lá e para cá e risadas gostosas corriam como música para a rua. Toda a alegria que o trabalho na terra nunca dera a Wang Lung estava ali contida nas paredes dessa casa, onde os homens se encontravam para se divertir e nunca para trabalhar.
Wang Lung hesitou na entrada e ficou parado na claridade forte que saía das portas abertas. E talvez tivesse continuado ali parado e ido embora, pois estava com medo e tímido no íntimo, embora seu sangue lhe corresse pelo corpo como se fosse arrebentar as veias, caso não tivesse surgido das sombras no limite da luz uma mulher que estivera à toa, encostada no portal, e era Cuco. Ela se adiantou quando viu um vulto de homem, pois era seu trabalho arranjar clientes para as mulheres da casa, mas, quando viu quem era, encolheu os ombros e disse:
— Ah, é só o lavrador!
Wang ficou magoado com o desinteresse cortante na voz dela, e a raiva súbita lhe deu a coragem que de outra maneira ele não teria, e então disse:
— Bem, e não posso entrar nesta casa e fazer o que os outros fazem?
Ela tornou a dar de ombros e dizer:
— Se tiver o dinheiro que os outros têm, pode fazer o que eles fazem.
E ele quis lhe mostrar que era altivo e rico o bastante para fazer o que quisesse. Meteu a mão na cinta e trouxe-a cheia de prata e disse a ela:
— Isso basta ou não?
Ela ficou olhando para o punhado de prata e disse então sem mais demora:
— Venha dizer a que deseja.
E Wang Lung, sem saber o que dizia, resmungou:
— Bem, não sei se quero alguma coisa. — Depois, seu desejo o venceu e ele sussurrou: — Aquela pequena, a de queixo pontudo e rostinho miúdo, um rosto branco e rosado como uma flor de marmeleiro, e que tem um botão de lótus na mão.
A mulher fez que sim com a cabeça e, fazendo-lhe um sinal, abriu caminho por entre as mesas cheias de gente, e Wang Lung a seguiu de longe. A princípio, parecia-lhe que todos os homens olhavam para ele, mas, quando tomou coragem para ver, constatou que nenhum lhe prestava atenção, exceto um ou dois que falaram: “Então já está na hora de ir às mulheres?”, e outro disse: “Cá está um sujeito vigoroso cujas necessidades devem começar cedo!”
Mas aí já estavam subindo a escadinha, e isso Wang Lung fez com dificuldade, porque era a primeira vez que subia escadas numa casa. Todavia, quando chegaram em cima, era a mesma coisa que uma casa térrea, a não ser que parecia muito alto quando passou por uma janela e olhou para o céu. A mulher conduziu-o por um salão fechado e escuro, e ia gritando à medida que andava:
— Cá está o primeiro homem da noite!
Ao longo do salão, as portas se abriram de repente e aqui e ali, cabeças de mulheres se mostravam em nesgas de luz, como as flores que brotam dos cálices ao sol, mas Cuco gritava cruelmente:
— Você não, nem você. Ninguém pediu nenhuma de vocês. Este é para a anãzinha de carinha cor-de-rosa de Soochow, para Lótus!
Um zunzunzum percorreu o salão, indistinto e galhofeiro, e uma menina, rubra como uma romã, gritou com uma voz forte:
— E Lótus pode ter esse sujeito?... ele cheira a campo e a alho!
Isso Wang Lung ouviu, embora se recusasse a responder, apesar de sentir as palavras dela como uma punhalada, porque receava parecer o que de fato era, um lavrador. Mas continuou firme quando se lembrou da boa prata na cinta, e afinal a mulher bateu irritada com a palma da mão numa porta fechada e entrou sem esperar e ali em cima de uma cama coberta com uma colcha vermelha florida estava sentada uma garota magra.
Se alguém lhe tivesse contado que havia mãozinhas como essas, ele não teria acreditado, mãozinhas tão pequenas e ossos tão finos e dedos tão aguçados com unhas compridas pintadas da cor dos botões de lótus, intensa e rosada. E se alguém lhe dissesse que poderia haver pés como esses, pezinhos enfiados em sapatos de cetim cor-de-rosa não maiores que um dedo médio de homem balançando-se infantilmente na beira da cama — se alguém lhe dissesse isso, ele não teria acreditado.
Sentou-se empertigado na cama ao lado dela, olhando-a, e viu que era como o retrato, e, tendo visto o retrato, tê-la-ia reconhecido se a tivesse encontrado. Mas sobretudo, suas mãos eram iguais à mão pintada, fechadas e finas e brancas como leite. Suas duas mãos estavam cruzadas sobre o colo de seda rosa, e ele não sonharia que pudessem ser tocadas.
Olhou para ela como olhara para o retrato e viu o corpo esguio como bambu apertado numa túnica curta; viu o rostinho pontudo montado em sua beleza pintada acima da gola alta debruada de pele branca; viu os olhos redondos como abricós e entendeu então o que queriam dizer os contadores de história quando cantavam os olhos de abricó das beldades do passado. E para ele, ela não era uma mulher de carne e osso, mas uma pintura.
Então ela ergueu a mãozinha e colocou-a em seu ombro e deslizou-a lentamente por todo o seu braço, bem lentamente. E embora ele nunca tivesse sentido nada tão leve, tão macio quanto esse toque, embora se não tivesse visto, não saberia que essa mão se movimentava, olhou e viu a mãozinha descendo pelo seu braço, e foi como se um fogo a acompanhasse e queimasse através de sua manga, penetrando a carne de seu braço, e ele ficou olhando a mão até ela chegar no fim de sua manga.
Então ela caiu com um instante de estudada hesitação em seu pulso nu e depois na concha de sua mão calejada e escura. E ele começou a tremer, sem saber como recebê-la.
Então, ouviu uma risada, ligeira, rápida e tilintante como o sino de prata de um pagode balançando ao vento, e uma vozinha igual à risada disse:
— Ah!, como você é ignorante, seu grandão! Vamos ficar aqui sentados a noite inteira enquanto você me olha?
E ao ouvir isso, Wang Lung apertou-lhe a mão entre as suas, porque parecia uma frágil folha seca, quente e seca, e lhe disse em tom de súplica e sem saber o que dizia:
— Não sei nada... me ensine!
E ela lhe ensinou.
Agora Wang Lung pegou a maior doença que um homem pode pegar. Sofrera trabalhando ao sol e sofrera debaixo dos ventos gelados do deserto rigoroso e sofrera de fome quando os campos não produziam e sofrera o desespero de trabalhar sem esperança nas ruas de uma cidade do sul. Mas em nenhuma dessas situações sofrera tanto como agora na mão delicada dessa moça.
Diariamente, ia à casa de chá; toda tarde, esperava até ela o receber, e toda noite ela o recebia. Toda noite, sentia-se o caipira que não sabia nada, tremendo na porta, sentado todo tenso ao lado dela, aguardando o sinal de sua risada; depois febril, cheio de uma fome doentia, seguia como um escravo, pouco a pouco, a revelação dela, até o momento da crise, quando, como uma flor pronta para ser colhida, ela desejava que ele a tomasse totalmente.
Mas nunca conseguiu tomá-la totalmente, e era isso que o tornava febril e sedento, mesmo se ela deixava-o fazer o que queria com ela. Quando O-lan chegara em sua casa, isso foi saudável para sua carne. Desejava-a fortemente como um animal à companheira, tomava-a e satisfazia-se e esquecia-se dela e fazia seu trabalho contente. Mas agora não havia contentamento em seu amor por essa moça, e ela não era saudável para ele. À noite, quando ela não mais o queria, pondo-o porta fora com petulância, as mãozinhas de repente fortes nos ombros dele, o dinheiro dele metido no seio, ele ia embora tão faminto como chegara. Era como se um homem, morrendo de sede, bebesse água do mar, a qual, apesar de ser água, seca seu sangue e dá mais sede, de modo que ele acaba morrendo, enlouquecido pelo próprio ato de beber. Ia a ela e fazia o que queria com ela de novo e saía de novo insatisfeito.
Durante todo aquele verão quente, Wang Lung amou assim essa moça. Nada sabia sobre ela, de onde era ou quem era. Quando estavam juntos, ele quase não falava e mal escutava a constante falação dela, fácil e entrecortada de risadas como a de uma criança. Só ficava olhando seu rosto, suas mãos, as posições de seu corpo, a expressão de seus doces olhos arregalados, esperando por ela. Nunca se fartava dela, e voltava para casa de madrugada, atordoado e insatisfeito.
Os dias não tinham fim. Ele já não queria dormir em sua cama, pretextando o calor do quarto, e estendeu uma esteira embaixo dos bambus e dormia ali um sono entrecortado, permanecendo acordado para contemplar as sombras pontudas das folhas de bambu, o peito cheio de uma mágoa doce que ele não conseguia entender.
E se alguém falasse com ele, sua mulher ou seus filhos, ou se Ching chegasse e lhe dissesse: “As águas logo vão baixar, e o que devemos preparar para semear?”, ele gritava:
— Por que me perturba?
E o tempo todo, seu coração estava quase explodindo porque não se saciava com a moça.
Assim, enquanto os dias se passavam e ele só vivia para fazer hora até a noite chegar, não olhava para a cara séria de O-lan e das crianças, que de repente paravam de brincar quando ele chegava, nem para o pai, que o examinava e perguntava:
— Que doença é essa que deixa você de mau humor, com a pele amarela feito barro?
E enquanto esses dias passavam para a noite, a moça Lótus fazia o que queria com ele. Quando riu de sua trança, embora ele passasse parte do dia a trançar e escovar o cabelo, e disse: “Os homens do sul não têm esses rabos de macaco!”, ele saiu sem uma palavra e mandou cortá-lo, embora, antes, nem as chacotas nem o desdém o tivessem persuadido a fazê-lo.
Quando viu o que ele havia feito, O-lan exclamou apavorada:
— Você cortou sua vida!
Mas ele gritou para ela:
— E sempre vou ter cara de um idiota fora de moda? Todos os rapazes da cidade usam o cabelo curto.
Porém, no fundo, tinha medo do que fizera, mas, mesmo assim, cortaria a vida se a moça Lótus tivesse mandado ou desejado, porque tinha toda a beleza que ele já imaginara desejar numa mulher.
Seu saudável corpo moreno que ele raramente lavava, considerando o suor limpo do trabalho o suficiente para lavá-lo em tempos normais, esse corpo, ele agora começava a examinar como se fosse de outro homem e se lavava diariamente, levando sua mulher a dizer, perturbada:
— Você vai morrer com esses banhos todos!
Comprou sabonetes cheirosos na loja, uma barra de sabonete estrangeiro vermelho e perfumado, e esfregava a carne. Por nada deste mundo comeria um dente de alho, embora isso fosse algo que, antes, ele adorava, para não cheirar mal diante dela.
E ninguém em sua casa sabia explicar essas coisas todas.
Comprou também tecidos novos para roupas, e, embora O-lan sempre tivesse feito suas túnicas, deixando-as mais largas e compridas para não ter problema e reforçando as costuras, agora ele desdenhava a costura dela. Levou os tecidos a um alfaiate da cidade e mandou fazer suas roupas como os homens da cidade tinham as deles, uma túnica cinzenta de seda leve, bem cortada para seu corpo e com pouca sobra de pano, e, por cima disso, uma sobrecasaca sem manga. E comprou os primeiros sapatos que teve na vida não fabricados por uma mulher, e eram sapatos de veludo preto como os que o Senhor Velho usava batendo nos calcanhares.
Mas tinha vergonha de usar essas roupas finas na frente de O-lan e dos filhos. Guardava-as dobradas em folhas de papel encerado, e as deixava na casa de chá com um empregado que ficara conhecendo, e, por um preço, o empregado o deixava entrar num quarto às escondidas e vesti-las antes de subir a escada. E, além disso, comprou um anel de prata banhada a ouro para seu dedo, e, como o cabelo que fora raspado na testa já tornara a crescer, ele o amaciava com um óleo perfumado de um vidrinho pelo qual pagara uma moeda de prata.
Mas O-lan olhava para ele espantada sem saber o que pensar daquilo tudo e, um dia, depois de ter ficado muito tempo olhando para ele enquanto comiam arroz ao meio-dia, disse pesadamente:
— Tem alguma coisa em você que me faz pensar nos senhores da casa grande.
Wang Lung riu ruidosamente e disse:
— E devo ter sempre cara de caipira quando temos dinheiro sobrando?
Mas, no íntimo, ficou satisfeitíssimo e, naquele dia, foi mais bondoso com ela do que o que vinha sendo ultimamente.
Agora o dinheiro, a boa prata, escorria de suas mãos. Não era só o preço que precisava pagar por suas horas com a moça, mas havia o jeitinho com que ela pedia o que desejava. Ela suspirava e murmurava, como se estivesse de coração partido de desejo:
— Ai, ai!
E quando ele sussurrava, tendo aprendido a falar na presença dela: “O que foi, meu coraçãozinho?”, ela respondia:
— Hoje você não me dá alegria porque Jade Negro, aquela do quarto em frente, tem um amante que lhe deu um alfinete de ouro para o cabelo, e eu só tenho esse velho de prata, há muito tempo.
Então, por sua vida, ele não pôde fazer outra coisa senão sussurrar para ela, afastando a mecha macia de seu cabelo negro, para ter o prazer de ver suas orelhinhas de lobos compridos:
— Então vou comprar um alfinete de ouro para o cabelo da minha jóia.
Pois todos esses nomes de amor ela lhe ensinara, como se ensinam palavras novas a uma criança. Ela lhe ensinara a dizê-las para ela e ele não se cansava de repeti-las no íntimo, mesmo enquanto as gaguejava, ele, que a vida inteira só falava de plantação e colheita e sol e chuva.
Assim a prata saiu da parede e do saco, e O-lan, que, no passado poderia lhe ter perguntado com a maior facilidade: “Por que tira o dinheiro da parede?”, agora nada dizia, só ficava olhando para ele arrasada, sabendo muito bem que ele estava vivendo uma vida à parte da sua, à parte até da terra, mas sem saber que vida era essa. Porém, desde o dia em que ele vira claramente que ela não tinha beleza nos cabelos ou na pessoa, que tinha os pés grandes, ela tinha medo de lhe perguntar qualquer coisa, por causa da raiva com que agora a tratava sempre.
Houve um dia em que Wang Lung voltou para casa passando pelos campos e chegou perto dela, enquanto ela lavava suas roupas no lago. Ficou ali calado um instante, depois lhe disse com grosseria, e era grosseiro porque estava envergonhado e não queria reconhecer isso:
— Onde estão aquelas pérolas que você tinha?
E ela respondeu timidamente, erguendo os olhos da beira do lago e das roupas que agora batia numa pedra lisa e chata:
— As pérolas? Estou com elas.
E ele resmungou, sem encará-la, mas olhando para suas mãos molhadas e enrugadas:
— Não adianta guardar as pérolas para nada.
Então ela disse lentamente:
— Pensei que um dia poderia mandar fazer brincos com elas — e, temendo a zombaria dele, disse ainda: — Eu poderia guardá-las para a menina mais moça quando se casasse.
E ele lhe respondeu elevando a voz, o coração duro:
— Por que a menina deveria usar pérolas com aquela pele escura como a terra? Pérolas são para mulheres claras! — Aí, depois de um instante de silêncio, gritou de repente: — Me dê as pérolas... preciso delas!
Então, lentamente, a mulher meteu a mão enrugada no peito, tirou o embrulhinho, deu-o a ele e ficou olhando enquanto ele o desembrulhava. As pérolas pousaram na mão dele, captando suave e plenamente a luz do sol, e ele riu.
Mas O-lan voltou a bater a roupa e, quando as lágrimas caíram lenta e pesadamente de seus olhos, ela não levantou a mão para enxugá-las; só bateu mais firmemente com a ripa de madeira nas roupas estendidas na pedra.
Capítulo 20
E tudo poderia continuar assim até a prata acabar, se o tio de Wang Lung não tivesse regressado de repente sem nenhuma explicação de onde estivera e do que fizera. Ficou parado à porta como se tivesse caído de uma nuvem, as roupas esfarrapadas desabotoadas e soltas no corpo como sempre, e a cara de sempre, só que mais enrugada e crestada do sol e do vento. Arreganhou um sorriso para eles todos, reunidos em volta da mesa na refeição matinal, e Wang Lung ficou boquiaberto, pois já se esquecera que o tio vivia e parecia um defunto voltando para vê-lo. Seu pai piscou e ficou olhando sem reconhecer a pessoa, até esta exclamar:
— Muito bem, Irmão Mais Velho, teu filho e os filhos dele e minha cunhada.
Então Wang Lung se levantou, no íntimo, consternado, mas aparentando cortesia no semblante e na voz:
— Muito bem, meu tio. Já comeu?
— Não — respondeu o tio com desenvoltura. — Mas como com vocês.
Então sentou-se, puxou para si uma tigela e pauzinhos e serviu-se à vontade de arroz e peixe seco, cenouras salgadas e dos feijões secos que estavam na mesa. Comeu como se estivesse com muita fome e ninguém falou até ele ter batido ruidosamente três tigelas do ralo mingau de arroz, quebrando avidamente entre os dentes as espinhas de peixe e os grãos de feijão. E quando terminou de comer, disse simplesmente, como se fosse um direito seu:
— Agora vou dormir, pois já não durmo há três noites.
Então, perplexo, e sem saber mais o que fazer, Wang Lung levou-o até a cama do pai, o tio levantou as colchas e sentiu o tecido bom e os lençóis de algodão novos e olhou para a cabeceira de madeira e para a boa mesa e para a grande cadeira de madeira que Wang Lung comprara para o quarto do pai e disse:
— Bem, ouvi dizer que você era rico, mas não sabia que era tanto assim. — E jogou-se na cama, puxou a colcha até os ombros, apesar do calor daquele verão, e usou tudo como se fosse dele, adormecendo sem dizer mais nada.
Wang Lung voltou para a sala do meio bastante consternado, pois sabia muito bem que o tio nunca sairia dali, agora que sabia que Wang Lung tinha condições de alimentá-lo. E Wang Lung pensou nisso e pensou na mulher do tio com muito medo porque viu que eles viriam para sua casa e nada os deteria.
E aconteceu o que ele temia. O tio se espreguiçou na cama, afinal, já depois do meio-dia, e bocejou alto três vezes e saiu do quarto, segurando as roupas no corpo, e disse a Wang Lung:
— Agora vou buscar minha mulher e meu filho. Somos três bocas, e nesta sua casa grande, o que comemos e as pobres roupas que usamos nunca farão falta.
Wang Lung nada pôde fazer senão responder com olhares mal-humorados, pois é uma vergonha para um homem, quando tem de sobra, botar o irmão do próprio pai para fora de casa. E Wang Lung sabia que se fizesse isso, seria uma vergonha para ele na aldeia onde agora era respeitado por causa de sua prosperidade. Então não se atreveu a dizer nada. Mas ordenou que os lavradores se mudassem todos para a casa velha de modo que os quartos ao lado do portão ficassem vagos. Para esses quartos, naquele mesmo dia o tio chegou à noite, trazendo a mulher e o filho. Wang Lung estava extremamente revoltado e tanto mais porque precisava guardar tudo para si e responder com sorrisos, dando as boas-vindas aos parentes. Isso, embora se sentisse prestes a explodir de raiva ao ver a cara gorda e lisa da mulher do tio e, ao ver a cara impudente e calhorda do filho do tio, mal tivesse conseguido se segurar para não lhe dar um bofetão. E, durante três dias, não foi à cidade por causa da raiva que sentia.
Então, quando já se haviam acostumado com o que acontecera e quando O-lan lhe dissera: “Deixe de ficar com raiva. Isso é uma coisa que se tem que agüentar”, e Wang Lung viu que seu tio, a mulher e o filho de seu tio seriam suficientemente corteses para ter casa e comida, então seus pensamentos voltaram-se com mais violência que nunca para Lótus, e ele disse consigo mesmo:
“Quando a casa de um homem está cheia de cães selvagens, ele deve buscar paz em outro lugar.”
E toda a velha febre e a velha dor ardiam nele e ele ainda não se saciava com seu amor.
Ora, o que O-lan, em sua simplicidade, não vira, nem o velho por causa do embotamento da idade, nem Ching, por causa da amizade, a mulher do tio de Wang Lung viu logo e exclamou, a alegria saltando dos olhos:
— Agora Wang Lung está tentando colher uma flor em algum lugar. — E quando O-lan olhou humildemente para ela, sem entender, ela riu e tornou a dizer: — É preciso sempre partir o melão para você poder ver as sementes, hein? Pois bem, então, falando claramente, seu homem está louco por outra mulher!
Isso Wang Lung ouviu a mulher do tio dizer no pátio em frente à sua janela, enquanto jazia dormitando cansado no quarto de manhã cedo, esgotado com aquele amor. Acordou logo e prestou mais atenção, chocado com a acuidade dos olhos dessa mulher. A voz grossa continuava tagarelando, derramando-se como óleo quente de sua garganta gorda.
— Bem, já vi muitos homens, e quando um começa a pentear o cabelo e comprar roupas novas e querer sapatos de veludo de repente, há outra mulher, com certeza.
Então, ouviu-se um ruído entrecortado saindo de O-lan. O que ela disse ele não conseguiu ouvir, mas a mulher do tio disse de novo:
— Não se deve pensar, pobre tola, que uma mulher baste para um homem, e se for uma mulher trabalhadeira que se desgastou trabalhando para ele, pior ainda. Seu interesse corre para outro lugar mais depressa ainda, e você, pobre tola, nunca foi adequada para a fantasia de um homem, e é pouco mais que um boi para o trabalho dele. E não deve reclamar agora que ele tem dinheiro e compra outra mulher para trazer para casa, pois todos os homens são assim, e o meu velho vagabundo teria feito o mesmo, só que o pobre coitado nunca tem dinheiro suficiente nem para comer.
Disse isso e mais ainda, mas na cama Wang Lung não ouviu mais nada, pois seu pensamento se concentrou só nisso. Agora, de repente, via como saciar a fome e o desejo da mulher que amava. Iria comprá-la e trazê-la para casa e torná-la sua de modo que nenhum homem pudesse ir ter com ela e assim ele poderia comer e ser alimentado e beber e ser saciado. Levantou-se depressa da cama, saiu e chamou disfarçadamente a mulher do tio. Quando ela o seguiu até debaixo da tamareira já depois do portão, onde ninguém poderia ouvir o que ele tinha a dizer, falou:
— Escutei o que você disse no pátio, e é isso mesmo. Preciso de mais do que aquela, e por que não, uma vez que tenho terra suficiente para alimentar a nós todos?
Ela respondeu com naturalidade e entusiasmo:
— E, de fato, por que não? Todos os homens que prosperaram fizeram isso. É só o pobre que precisa beber de uma única taça. — Assim falou ela, sabendo o que ele diria em seguida, e ele prosseguiu como ela planejara:
— Mas quem negociará isso para mim e será o intermediário? Um homem não pode chegar para uma mulher e dizer: “Venha para minha casa.”
Ao que ela respondeu instantaneamente:
— Deixe esse caso comigo. Só me diga que mulher é e cuidarei de tudo.
Então Wang Lung respondeu a contragosto, timidamente, pois nunca falara o nome dela em voz alta para ninguém.
— É a mulher chamada Lótus.
Parecia-lhe que todo mundo devia conhecer Lótus e ter ouvido falar nela, esquecendo-se como, há apenas duas luas, não sabia de sua existência. Estava impaciente, portanto, quando a mulher de seu tio fez mais perguntas:
— E onde é a casa dela?
— Ora! — respondeu com aspereza. — Onde senão na grande casa de chá na rua principal da cidade?
— A que se chama Casa das Flores?
— E que outra seria? — retrucou Wang Lung.
Ela pensou um instante, o dedo no lábio inferior contraído, e disse afinal:
— Não conheço ninguém lá. Terei que encontrar um jeito. Quem é o guardião dessa mulher?
E quando ele lhe disse que era Cuco, que havia sido escrava na casa grande, ela riu e disse:
— Ah, essa? Foi isso que ela fez depois que o Senhor Velho morreu na cama dela uma noite! Bem, isso é o que ela faria.
Então riu de novo, um cacarejo: “Eh... eh... eh...”, e disse logo:
— Essa! Mas isso é simples, de fato. Tudo está claro. Essa! Desde o começo essa aí seria capaz de tudo, até de fazer uma montanha, se pudesse sentir uma quantidade suficiente de prata na palma da mão.
E, ao ouvir isso, Wang Lung sentiu a boca seca e sua voz saiu num sussurro:
— Prata, então! Prata e ouro! Qualquer coisa, até o próprio preço de minhas terras!
Então, por causa de uma estranha e contrária febre de amor, Wang Lung não iria de novo à grande casa de chá até o caso ficar acertado. A si mesmo dizia:
— E se ela não vier para minha casa para ser só minha, podem me cortar a garganta, que não irei mais ter com ela.
Mas, ao pensar nas palavras “se ela não vier”, ficava com o coração paralisado de medo e ia correndo dizer à mulher do tio:
— Falta de dinheiro não deve fechar a porta. — E repetia: — Já disse a Cuco que tenho prata e ouro à vontade? —, e dizia: — Diga a ela que ela não fará nenhum trabalho em minha casa, mas só usará roupas de seda e, se quiser, comerá barbatana de tubarão todos os dias —, até a mulher gorda ficar impaciente e lhe gritar, revirando os olhos:
— Chega! Chega! Sou uma idiota, ou essa é a primeira vez que cuido de um homem e uma mulher? Me deixe em paz e farei isso. Já disse tudo muitas vezes.
Então, não havia nada a fazer senão roer as unhas e olhar a casa com os olhos de Lótus. Mandava O-lan fazer isso e aquilo, varrer, lavar e mudar de lugar mesas e cadeiras, de modo que a pobre mulher foi ficando cada vez mais apavorada, pois bem sabia agora, embora ele nada dissesse, o que lhe esperava.
Wang Lung não suportava mais dormir com O-lan e disse a si mesmo que, com duas mulheres na casa, deveria haver mais quartos e outro pátio e um lugar aonde ele pudesse ir com seu amor e ficar isolado. Então, enquanto esperava a mulher do tio fechar o negócio, chamou seus trabalhadores e ordenou-lhes que construíssem outro pátio atrás do quarto do meio, e, em volta do pátio, três quartos, um grande com dois pequenos de cada lado. Os trabalhadores ficaram olhando para ele, mas não se atreveram a responder. Ele não lhes contou nada, mas os instruiu pessoalmente para não ter que falar nem com Ching a respeito do que fazia. E os homens trouxeram terra dos campos e fizeram as paredes e Wang Lung mandou buscar telhas na cidade para o telhado.
Então, quando os quartos ficaram prontos e a terra do chão foi alisada e batida, mandou comprar tijolos que os homens assentaram lado a lado, ligando-os com argila, e foi criado um bom chão de tijolos para os três quartos para Lótus. E Wang Lung comprou tecido vermelho para fazer as cortinas das portas, comprou uma mesa nova e duas cadeiras entalhadas para pôr de cada lado e dois painéis pintados representando montanhas e água para pendurar na parede atrás da mesa. E comprou uma caixa para doces redonda de laca vermelha com tampa, dentro da qual pôs bolos de gergelim e doces de banha, e colocou a caixa na mesa. Então, comprou uma cama entalhada larga e funda, que por si só tinha o tamanho de um quarto pequeno, e comprou cortinas floridas para pendurar sobre ela. Mas tinha vergonha de pedir a ajuda de O-lan nisso tudo, então, à noite, a mulher do tio foi lá e pendurou os cortinados da cama e fez as coisas que os homens são muito desajeitados para fazer.
Depois de tudo pronto, não havia mais o que fazer, e passou-se uma lua sem que o negócio tivesse sido concluído. Então Wang Lung ficou se divertindo sozinho no pequeno pátio que mandara fazer para Lótus e teve a idéia de fazer um laguinho no centro do pátio. Chamou um trabalhador e o homem fez um lago de um metro quadrado revestido de ladrilhos, e foi à cidade e comprou cinco peixinhos dourados para o laguinho. Então não conseguia pensar em nada mais para fazer, e, de novo, esperou impaciente e febril.
Durante esse tempo todo, não falava com ninguém, a não ser para ralhar com as crianças se elas estivessem de nariz sujo ou gritar com O-lan, que fazia mais de três dias que ela não se penteava. Até que afinal, uma manhã, ela caiu em prantos e chorou alto, como ele nunca a vira chorar antes, mesmo quando passavam fome, ou em qualquer outra época. Ele disse com brutalidade, portanto:
— O que é que há, mulher? Não posso mandá-la pentear esse rabo-de-cavalo sem que você faça esse escândalo todo?
Mas a única resposta dela foi ficar repetindo sem parar, gemendo:
— Eu lhe dei dois filhos... lhe dei dois filhos...
Wang Lung ficou calado e aflito, resmungando consigo mesmo, pois sentiu-se envergonhado diante dela e deixou-a sozinha. Era verdade que, perante a lei, não tinha queixa da mulher, pois ela lhe dera três filhos homens saudáveis que estavam vivos, e ele não tinha desculpa senão o seu desejo.
Assim foi até que, um dia, a mulher do tio chegou e disse:
— O negócio está fechado. A mulher que é a guardiã para o dono da casa de chá fará a transação por cem moedas de prata, à vista, e a moça virá em troca de um par de brincos de jade, um anel de ouro, dois conjuntos de cetim, dois conjuntos de seda, uma dúzia de sapatos e duas colchas de seda para a cama dela.
De tudo isso, Wang Lung só ouviu esta parte: “O negócio está fechado...”, e exclamou:
— Que seja fechado... que seja fechado... — e correu para o quarto para pegar a prata que despejou nas mãos dela, mas ainda às escondidas, pois não queria que ninguém visse as boas colheitas de tantos anos irem embora assim, e, à mulher do tio, disse: — E para você, pegue dez moedas de prata.
Então, ela fingiu recusar, empertigando o corpo balofo e balançando a cabeça para lá e para cá, exclamando com um suspiro alto:
— Não, não vou pegar. Somos uma família e você é meu filho e sou sua mãe, e faço isso por você, não por dinheiro.
Mas Wang Lung viu que ela tinha a mão estendida enquanto negava, e nela despejou a boa prata e considerou-a bem gasta.
Então comprou carne de porco e de vaca e peixe mandarim e brotos de bambu e castanhas, e comprou ninhos de pássaros do sul para fazer sopa, e comprou barbatanas de tubarão secas e todas as iguarias que conhecia e esperou, se é que se podia chamar de espera aquela impaciência ardente e angustiada em seu peito.
Num dia radioso e abrasador na oitava lua, que é o final do verão, ela chegou à casa dele. De longe, Wang Lung a viu chegar. Vinha num palanquim fechado de bambu carregado sobre ombros de homens. E ele viu o palanquim balançando de um lado para o outro nos caminhos estreitos que beiravam os campos, e, atrás dele, seguia a figura de Cuco. Então, por um instante, teve medo e disse a si mesmo:
— O que estou trazendo para minha casa?
E quase sem saber o que fazia, foi depressa ao quarto onde dormira esses anos todos com a mulher e fechou a porta. Ali no escuro do quarto, esperou confuso, até ouvir a mulher do tio chamando por ele em voz alta, pois alguém o esperava na porteira.
Então, envergonhado, como se nunca tivesse visto a moça antes, saiu lentamente, inclinando a cabeça sobre as roupas finas, olhando para um lado e para o outro, mas nunca para a frente. Mas Cuco chamou-o alegremente:
— Bem, nunca pensei que faríamos negócio assim!
Então foi até a cadeira que os homens haviam pousado, levantou a cortina, estalou a língua e disse:
— Saia, minha Flor de Lótus, aqui estão sua casa e seu senhor.
E Wang Lung ficou agoniado porque viu sorrisos rasgados na cara dos carregadores e pensou com seus botões:
“Esses aí são uns vadios das ruas da cidade e não prestam para nada”, e ficou revoltado por sentir a cara quente e vermelha e por isso não queria falar alto.
Então a cortina foi levantada e, sem se dar conta do que estava fazendo, olhou e viu, sentada no recesso sombrio da cadeira, pintada e fresca como um lírio, a moça Lótus. Esqueceu tudo, até a revolta contra os sujeitos sorridentes da cidade, tudo, salvo que comprara essa mulher para si e ela vinha para sua casa para sempre. Permaneceu empertigado e trêmulo, vendo-a se levantar, graciosa como se o vento passasse por uma flor. Então, enquanto ele observava sem conseguir parar de olhar, ela pegou a mão de Cuco e saltou, mantendo a cabeça inclinada e os olhos baixos enquanto andava, e caminhou com passos incertos e vacilantes, apoiada no braço de Cuco. Ao passar por ele, não lhe falou, mas sussurrou só para Cuco, fracamente:
— Onde é meu apartamento?
Então a mulher do tio foi até o outro lado do palanquim e, entre elas, conduziram a moça pelo pátio para os novos quartos que Wang Lung mandara construir para ela. E ninguém da casa de Wang Lung estava ali para vê-la passar, pois naquele dia ele mandara os homens e Ching trabalharem num campo afastado e O-lan fora com os dois filhos menores a algum lugar que ele não sabia e os meninos estavam na escola e o velho dormia encostado na parede e não viu nem ouviu nada, e, quanto à retardadazinha, ela não via quem entrava nem saía e só conhecia a cara do pai e da mãe. Mas, depois que Lótus entrou, Cuco fechou as cortinas do quarto.
Depois de algum tempo, a mulher do tio de Wang Lung saiu, rindo com uma certa malícia, e limpou uma mão na outra como se quisesse libertá-las de alguma coisa agarrada a elas.
— Essa aí recende a perfume e pintura — disse ainda rindo. — Cheira como se não prestasse. — Depois, disse com mais malícia: — Ela não é tão jovem como parece, meu sobrinho! Ouso dizer que, se não estivesse beirando uma idade em que os homens logo não mais irão olhar para ela, não sei se jade em suas orelhas e ouro em seus dedos e mesmo seda e cetim a teriam tentado para a casa de um lavrador, mesmo que fosse rico. — E, vendo a raiva na cara de Wang Lung diante dessa maneira de falar tão clara, acrescentou depressa: — Mas bonita ela é, e nunca vi outra mais bela e será doce como o arroz de oito grãos num banquete depois desses anos que você passou com a escrava de ossos brutos da Casa de Hwang.
Mas Wang Lung não respondeu nada, só ficou perambulando pela casa, tentando ouvir sem conseguir sossegar. Afinal, atreveu-se a levantar a cortina vermelha e entrar no pátio que construíra para Lótus e depois no quarto escuro onde ela estava e ficou ao lado dela o dia inteiro até a noite.
Esse tempo todo, O-lan não chegara perto da casa. De madrugada, já pegara uma enxada da parede e chamara as crianças, saíra levando um pouco de comida fria embrulhada numa folha de repolho e não voltara. Mas, quando a noite chegou, entrou em silêncio, suja de terra e deprimida de tão cansada, com as crianças caladas atrás. Não falou com ninguém, mas entrou na cozinha, preparou a comida e colocou-a na mesa como sempre, chamou o velho e pôs os pauzinhos na mão dele, deu de comer à retardadazinha e depois comeu um pouco com as crianças. Então, quando elas dormiram e Wang Lung continuava sentado à mesa sonhando, ela se lavou para dormir e afinal entrou em seu quarto, dormindo sozinha em sua cama.
Então, Wang Lung comeu e bebeu de seu amor noite e dia. Dia após dia, entrava no quarto onde Lótus jazia indolente em cima da cama, sentava-se ao lado dela e ficava olhando tudo o que ela fazia. Ela nunca saía no calor dos primeiros dias do outono, mas ficava deitada enquanto Cuco banhava seu corpo esguio com água morna e esfregava-lhe óleo no corpo e perfume e óleo no cabelo. Pois Lótus dissera com obstinação que Cuco devia ficar como sua criada e pagava-lhe prodigamente de modo que a mulher estava bastante satisfeita por servir a uma pessoa só em vez de muitas, e ela e Lótus, sua ama, viviam separadas dos outros, no novo pátio que Wang Lung fizera.
O dia inteiro, a moça ficava na fresca penumbra do quarto, beliscando doces e frutas, vestida só com roupas simples de seda verde de verão, um casaquinho justo até a cintura e calças largas por baixo, e assim, Wang Lung a encontrava quando ia a ela e bebia de seu amor.
Então, quando o sol se punha, ela o mandava embora com sua linda petulância. Cuco a banhava e a perfumava de novo, vestia-a com roupas limpas, seda branca macia em cima da pele e seda pêssego por fora, as roupas de seda que Wang Lung dera, e, em seus pés, Cuco calçava sapatinhos bordados, e aí a moça ia até o pátio e examinava o laguinho com seus cinco peixes dourados, e Wang Lung ficava olhando para a maravilha que possuía. Ela oscilava em cima dos pezinhos, e, para Wang Lung, não havia nada tão maravilhoso em termos de beleza no mundo como seus pezinhos afilados e suas mãos delicadas e indefesas.
E comia e bebia de seu amor, banqueteando-se sozinho, e estava satisfeito.
Capítulo 21
Não se devia supor que a chegada desta chamada Lótus e de sua criada Cuco à casa de Wang Lung se desse sem tumulto ou discórdia, uma vez que mais de uma mulher debaixo do mesmo teto é confusão na certa. Mas Wang Lung não previra isso, e, embora visse pela cara mal-humorada de O-lan e pela severidade de Cuco que algo ia mal, não dava atenção a isso e não tinha consideração com ninguém, desesperadamente apaixonado como estava.
Mas quando depois do dia veio a noite e a madrugada, Wang Lung viu que era verdade que o sol se levantava de manhã e que aquela mulher Lótus estava ali, e que as luas se sucediam, e ela estava ali ao alcance de sua mão, e sua sede de amor se aplacou de alguma forma e ele viu coisas que não via antes.
Em primeiro lugar, viu que havia problemas entre O-lan e Cuco. Isso o espantou, pois estava preparado para que a mulher odiasse Lótus, já tendo ouvido falar muitas vezes dessas coisas, e algumas até se enforcavam numa viga com uma corda quando um homem trazia uma segunda mulher para casa, e outras brigavam e procuravam inutilizar a vida do marido para se vingar do que ele fizera. E Wang Lung estava feliz pelo fato de O-lan ser uma mulher calada, pois pelo menos não podia pensar em palavras contra ele. Mas não previra que, embora nada falasse sobre Lótus, sua raiva seria descarregada em Cuco.
Wang Lung pensara só em Lótus, e quando ela lhe pedira:
— Deixe-me conservar essa mulher como criada, visto que estou completamente só no mundo, pois meu pai e minha mãe morreram quando eu ainda nem falava e meu tio me vendeu assim que fiquei bonita para uma vida como a que tive, e não tenho ninguém.
Isso ela disse banhada em lágrimas, sempre fartas e brilhando nos cantos de seus lindos olhos, e Wang Lung não conseguia lhe negar nada quando ela o olhava assim. Além disso, era verdade que a moça não tinha ninguém para servi-la, e era verdade que estaria sozinha na casa, pois era bastante claro e previsível que O-lan não serviria à segunda, e não falaria com ela nem notaria sua presença na casa. Só havia o tio de Lótus então, e fazia mal ao estômago de Wang Lung ter este bisbilhotando e se intrometendo com Lótus para que ela falasse dele, então não havia ninguém melhor do que Cuco, e ele não sabia de mulher alguma que se prestasse àquilo.
Mas pareceu que, quando viu Cuco, O-lan ficou com uma raiva tão profunda que Wang Lung nunca vira e não imaginava que ela fosse capaz de senti-la. Cuco estava bastante disposta a fazer amizade com ela, uma vez que fora compensada por Wang Lung, se bem que não se esquecia que, na casa grande, ela estivera no quarto do senhor e O-lan era uma escrava de cozinha entre muitas outras. Porém, exclamou para O-lan num tom bastante afável quando a viu pela primeira vez:
— Bem, minha velha amiga, cá estamos juntas novamente numa casa, e você é a ama e primeira esposa... minha mãe... e como as coisas mudaram!
Mas O-lan ficou olhando para ela e, quando entendeu quem era ela e o que fazia, não disse nada, mas pousou a jarra d’água que estava carregando e entrou no quarto do meio, onde Wang Lung passava os intervalos de suas horas de amor, e lhe disse com clareza:
— O que essa escrava está fazendo em nossa casa?
Wang Lung olhou para os lados. Gostaria de responder num tom arrogante de senhor: “Bem, a casa é minha, e nela entra quem eu quiser, e quem é você para perguntar?” Mas não conseguiu porque a presença de O-lan o deixava meio envergonhado, e essa vergonha lhe dava raiva, porque quando pensava no assunto, não havia necessidade de se envergonhar, pois não fizera mais do que faria qualquer um que tivesse dinheiro sobrando.
Mesmo assim, não conseguia falar e só olhava para os lados, fingindo ter guardado o cachimbo no lugar errado na roupa, e tateava a cinta. Mas O-lan estava ali solidamente plantada em cima daqueles pés grandes e, quando ele ficou quieto, ela tornou a perguntar com clareza usando as mesmas palavras:
— O que essa escrava está fazendo em nossa casa?
Então, Wang Lung, vendo que ela queria uma resposta, disse timidamente:
— E o que você tem com isso?
E O-lan disse:
— Suportei a cara arrogante dela durante toda a minha juventude na casa grande. Ela entrava correndo na cozinha várias vezes por dia gritando: “Agora chá para o senhor...” “Agora comida para o senhor...”, e as coisas estavam sempre quentes demais, frias demais ou mal cozidas, e eu era muito feia e muito lenta e muito isso e muito aquilo...
Mas Wang Lung ainda não respondia, pois não sabia o que dizer.
Então O-lan esperou e, como ele não respondesse, parcas lágrimas quentes foram lhe marejando devagarinho os olhos, que ela piscou para reprimi-las, até que pegou a ponta do avental azul, enxugou os olhos e disse afinal:
— Isso é uma coisa difícil na minha casa, e não tenho casa de mãe para onde voltar em lugar nenhum.
Wang Lung, que continuava calado sem responder, sentou-se e acendeu o cachimbo, ainda mudo. Ela olhou para ele com uma tristeza que dava pena, com aqueles seus estranhos olhos mudos que pareciam olhos de um bicho que não sabe falar, e depois foi embora, tateando até a porta porque as lágrimas a cegavam.
Wang Lung viu-a ir embora e ficou satisfeito de estar sozinho, mas mesmo assim estava envergonhado e ainda irritado por isso, e disse a si mesmo, em voz alta e com impaciência, como se estivesse brigando com alguém:
“Bem, há outros homens que são assim e tenho sido bastante bom para ela, e há outros homens piores que eu.” E disse afinal que O-lan tinha que suportar isso.
Mas O-lan ainda não acabara com aquilo, e foi levando sua vida calada. De manhã, aquecia água e a levava para o velho, e se Wang Lung não estivesse no pátio interno, ela lhe levava chá. Mas quando Cuco vinha buscar água quente para a ama, o caldeirão estava vazio e nenhuma de suas perguntas ruidosas provocava qualquer resposta de O-lan. Então, Cuco não tinha outro jeito senão aquecer ela mesma a água para a ama se ela quisesse ter água quente. Mas então era hora de preparar o mingau da manhã e não havia espaço no caldeirão para mais água e O-lan ia fazer a sua comida sem dar confiança à gritaria de Cuco:
— E minha delicada ama vai ter que ficar morrendo de sede na cama de manhã esperando um gole d’água?
Mas O-lan não lhe dava ouvidos; continuava metendo mais capim e palha no forno, espalhando a lenha com a mesma economia dos velhos tempos quando uma folha era bastante preciosa por causa do fogo que fazia debaixo da comida. Então Cuco ia reclamar em altos brados com Wang Lung, e ele se irritava porque seu amor era perturbado por esse tipo de coisa, então foi falar com O-lan para repreendê-la, gritando com ela:
— E você não pode pôr um pouco mais de água de manhã no caldeirão?
Mas ela lhe respondeu com uma cara mais mal-humorada que nunca:
— Não sou escrava de escravas nesta casa, pelo menos.
Então ele não conseguiu conter a raiva, agarrou O-lan pelo ombro, sacudiu-a com força e disse:
— Não seja tão idiota. Não é para a criada, mas sim para a senhora.
E ela suportou essa violência, olhou para ele e disse simplesmente:
— E a esta você deu minhas duas pérolas!
Então sua mão caiu e ele ficou sem fala. A raiva passou e ele foi dizer a Cuco:
— Construiremos outro forno e farei outra cozinha. A primeira mulher nada sabe das delicadezas de que a outra precisa para seu corpo de flor e das quais você também usufrui. Você poderá cozinhar o que quiser nele.
Então mandou os trabalhadores construírem um quartinho e um forno de barro e comprou um bom caldeirão.
— Você cozinhará o que quiser nele.
Quanto a Wang Lung, disse a si mesmo que afinal seus assuntos estavam resolvidos e suas mulheres estavam em paz e ele podia gozar seu amor. Parecia-lhe de novo que nunca poderia cansar-se de Lótus e do beicinho que ela lhe fazia com as pálpebras caídas como pétalas de lírio sobre os olhos grandes, e como seus olhos brilhavam de alegria quando ela olhava para ele.
Mas, afinal de contas, essa questão da cozinha nova tornou-se um espinho em sua carne, pois Cuco ia à cidade todos os dias e comprava alimentos caros importados das cidades do sul. Havia comidas de que ele nunca sequer ouvira falar: nozes de lichia e tâmaras cristalizadas e curiosos bolos de farinha de arroz e nozes e açúcar mascavo, e peixes de bico do mar e muitas outras coisas. E isso tudo custava mais dinheiro do que ele queria gastar, mas mesmo assim nem tanto, ele tinha certeza, como Cuco lhe contava, e, no entanto, tinha medo de dizer: “Você está me comendo”, de medo que ela se ofendesse e ficasse com raiva dele, e isso desagradaria a Lótus, então não havia nada que ele pudesse fazer a não ser pôr a mão na cinta a contragosto. E isso era um espinho para ele, dia após dia, e porque não havia ninguém a quem pudesse se queixar, o espinho o picava sempre mais fundo, e esfriou um pouco do ardor de seu amor por Lótus.
E havia ainda outro pequeno espinho que brotava do primeiro, e era que a mulher de seu tio, que adorava comer bem, muitas vezes ia ao pátio interno na hora das refeições, e podia lá ir à vontade, e Wang Lung não gostou que, de todas as pessoas da casa, Lótus tivesse escolhido essa mulher como amiga. As três mulheres comiam bem nos pátios internos e conversavam sem parar, sussurrando e rindo. E havia qualquer coisa que agradava a Lótus na mulher do tio, e as três eram muito felizes juntas, e disso Wang Lung não gostou.
Mas não havia nada a fazer, pois, quando ele disse com delicadeza e para seduzi-la:
— Agora, Lótus, minha flor, não desperdice sua doçura com uma bruxa velha e gorda como essa. Preciso de sua doçura para mim, e ela é uma criatura fingida que não é de confiança, e não gosto que ela esteja junto de você o dia inteiro.
Lótus ficou irritada e respondeu de mau humor, fazendo beicinho e tirando a cabeça de junto dele:
— Não tenho ninguém a não ser você. Não tenho amigos e me acostumei a viver numa casa alegre. Na sua, não tem ninguém a não ser a primeira mulher que me odeia e esses seus filhos que são uma praga para mim. Não tenho ninguém.
Então, usou suas armas contra ele, não o deixando entrar no quarto naquela noite, e se queixou:
— Você não me ama, pois, se amasse, iria querer que eu fosse feliz.
Então, humilhado, nervoso, submisso e triste, Wang Lung disse:
— Que seja como você quiser, e para sempre.
Então, ela o perdoou majestosamente e ele ficou com medo de contrariar suas vontades. Depois disso, quando a procurava, se ela estivesse conversando, tomando chá ou comendo algum doce com a mulher do tio, fazia-o esperar e não lhe dava atenção. Ele se afastava, irritado por ela não querer recebê-lo quando aquela outra mulher estava lá, e seu amor esfriou um pouco, embora ele não soubesse disso.
Irritava-o, sobretudo, que a mulher de seu tio comesse as comidas ricas que ele precisava comprar para Lótus e engordasse e ficasse mais sebosa do que era, mas não podia dizer nada, pois a mulher de seu tio era esperta e o tratava com cortesia, lisonjeando-o com belas palavras e levantando-se quando ele entrava na sala.
Então, seu amor por Lótus já não era integral e perfeito como antes, absorvendo completamente seu espírito e seu corpo. Estava todo crivado de raivinhas tanto mais agudas porque precisavam ser suportadas e porque ele já não tinha sequer a liberdade de ir conversar com O-lan, visto que agora suas vidas estavam separadas.
Então, como um campo de espinhos brotando de uma raiz e se espalhando aqui e ali, aconteceram mais coisas para perturbar Wang Lung. Um dia, seu pai, de quem se diria que nada via, de tal maneira a idade o apagara, acordou de repente de seu sono ao sol e, apoiado no cajado de cabeça de dragão que Wang Lung lhe dera de presente de 70 anos, foi cambaleando até a porta onde havia uma cortina separando a sala principal do pátio onde Lótus caminhava. O velho nunca vira a porta antes, nem quando o pátio foi construído, nem sabia se havia mais alguém morando na casa ou não, e Wang Lung nunca lhe dissera “tenho outra mulher”, pois o velho era surdo demais para entender alguma coisa nova em que já não tivesse pensado.
Mas, naquele dia, por acaso, viu aquela porta, e entrou e abriu a cortina. Aconteceu de ser numa hora da tarde em que Wang Lung passeava com Lótus no pátio, e os dois estavam ao lado do lago, olhando os peixes, mas Wang Lung olhava Lótus. Então, quando viu o filho ao lado de uma moça magra pintada, o velho gritou com sua voz esganiçada:
— Tem uma prostituta na casa! — e não queria ficar quieto, embora Wang Lung, temendo que Lótus se irritasse, pois aquela criaturinha era capaz de guinchar e gritar e bater palmas se estivesse com raiva, tivesse se adiantado e levado o velho para o pátio externo, dizendo para acalmá-lo:
— Agora acalme seu coração, meu pai! Não é uma prostituta, mas sim uma segunda mulher na casa.
Mas o velho não ficava quieto e, tivesse ou não ouvido o que era dito, continuava gritando:
— Aqui tem uma prostituta! — e, de repente, disse, vendo Wang Lung ao seu lado: — Tive só uma mulher e meu pai teve só uma mulher e cultivávamos a terra. — E tornou a gritar pouco depois: — Digo que é uma prostituta!
Então, o velho acordou do sono intermitente da velhice com uma espécie de ódio vivo de Lótus. Ia até a porta do pátio dela e gritava de repente:
— Prostituta!
Ou abria a cortina e cuspia furiosamente nas lajotas. E catava pedrinhas e as jogava com o braço fraco no laguinho para espantar os peixes, e, com as maldades de uma criança travessa, expressava sua raiva.
Isso também causou perturbação na casa de Wang Lung, pois ele tinha vergonha de repreender o pai e no entanto temia a ira de Lótus, uma vez que descobrira que ela possuía um temperamento bem petulante e estourava facilmente. E essa ansiedade para impedir que o pai a irritasse era cansativa para ele e foi mais um motivo para transformar seu amor num fardo.
Um dia, ouviu um guincho vindo dos pátios internos e correu para lá, percebendo que era a voz de Lótus. Viu então que os dois filhos menores, o menino e a menina gêmeos, haviam levado para o pátio interno a filha mais velha, sua pobre idiota. Agora os outros quatro filhos viviam curiosos a respeito dessa senhora que morava no pátio interno, mas os dois meninos maiores eram conscientes e tímidos e sabiam muito bem por que ela estava ali e o que seu pai tinha a ver com ela, embora nunca falassem dela, a não ser um com o outro em segredo. Mas os dois menores não cansavam de espionar e exclamar e cheirar o perfume que ela usava e mergulhar os dedos nas tigelas de comida que Cuco levava dos aposentos dela depois que ela havia comido.
Lótus se queixava muitas vezes a Wang Lung que seus filhos eram uma praga para ela e que desejava que houvesse uma forma de não deixar que entrassem ali para que ela não precisasse ser incomodada por eles. Mas isso ele não estava disposto a fazer e respondia-lhe brincando:
— Bem, eles gostam de olhar um rosto bonito tanto quanto o pai.
E nada fez senão proibi-los de entrar nos pátios internos, e eles não entravam quando ele os via, mas quando ele não os via, entravam e saíam escondidos. Mas a filha mais velha não sabia nada de nada, apenas ficava sentada ao sol encostada na parede do pátio externo, sorrindo e brincando com seu pedacinho de pano torcido.
Nesse dia, porém, estando os dois filhos mais velhos na escola, os dois menores inventaram que a idiota também deveria ver a senhora nos pátios internos e pegaram-na pelas mãos e a arrastaram para o pátio e ela ficou parada diante de Lótus, que nunca a vira e ficou sentada olhando para ela. Ora, quando viu a seda lustrosa da túnica que Lótus usava e o jade brilhante em suas orelhas, a idiota foi movida por uma alegria estranha e estendeu as mãos para agarrar as cores vivas e riu alto, uma risada que era apenas um ruído sem sentido. E Lótus se assustou e gritou, de modo que Wang Lung veio correndo, e Lótus tremia de raiva e dava pulos com aqueles pezinhos e sacudia o dedo gritando na cara da pobre menina que ria:
— Não fico nesta casa se essa aí se aproximar de mim, e não me disseram que eu teria que suportar idiotas malditos. Se soubesse disso, eu não teria vindo... esses seus filhos imundos! — E empurrou o garotinho boquiaberto que estava mais perto dela, de mão dada com sua irmã gêmea.
Então a justa raiva despertou em Wang Lung, pois ele amava os filhos, e ele disse asperamente:
— Não admito que ninguém, nem você, que não tem filho no ventre para homem nenhum, xingue meus filhos, nem minha pobre idiota. — E reuniu os filhos e lhes disse: — Agora saiam, meu filho e minha filha, e não voltem ao pátio dessa mulher, pois ela não ama vocês, e se não ama vocês, também não ama o pai de vocês. — E, à menina mais velha, disse com muita gentileza: — E você, minha pobre idiota, volte ao seu lugar ao sol. — E ela sorriu e ele a pegou pela mão e levou-a embora.
Pois o que mais o revoltava era que Lótus se atrevesse a xingar essa sua filha e chamá-la de idiota, e uma carga de dor nova pela menina baixou em seu coração, de modo que, por dois dias, ele não chegou perto de Lótus, mas brincou com as crianças e foi à cidade comprar uma roda de doce de cevada para a pobre idiota e se consolou com o prazer infantil que ela teve com o doce melado.
E quando voltou para Lótus, nenhum dos dois tocou no assunto de que ele passara dois dias sem vir, mas ela se preocupou mais que nunca em agradá-lo, pois, quando ele chegou, a mulher de seu tio estava ali tomando chá, e Lótus se desculpou e disse:
— Agora, meu senhor veio me ver e preciso obedecer a ele, pois esse é meu prazer. — E ficou em pé até a mulher ir embora.
Então, foi até Wang Lung, pegou na mão dele, levou-a até o rosto e o acariciou. Mas ele, apesar de amá-la de novo, não a amava tão completamente como antes e nunca mais voltou a amá-la completamente como a amara.
Chegou um dia em que o verão terminou e o céu da madrugada era claro e frio e azul como a água do mar e um vento puro de outono soprava com força sobre a terra, e Wang Lung acordou como de um sono. Foi até a porta de casa e olhou para seus campos. E viu que as águas haviam baixado e a terra brilhava com o frio vento seco e o sol ardente.
Então uma voz gritou dentro dele, uma voz mais profunda que o amor gritou dentro dele por sua terra. E ele a ouviu mais alto do que todas as outras vozes de sua vida e arrancou a túnica longa que estava usando, descalçou os sapatos de veludo e as meias brancas, arregaçou as calças até os joelhos, avançou, forte e ávido, e gritou:
— Onde estão a enxada e o arado? E onde estão as sementes para plantar o trigo? Venha, Ching, meu amigo... venha... chame os homens... Vou sair para o campo!
Capítulo 22
Assim como se curara do mal do coração quando voltara da cidade do sul e se consolara das aflições que lá passara, agora Wang Lung estava curado do mal de amor pela boa terra preta de seus campos. Sentia o solo úmido sob os pés e o perfume da terra subindo dos sulcos que revolvia para o trigo. Mandava os trabalhadores irem de um lado para o outro e eles tinham um dia de trabalho duro, arando aqui e ali. Wang Lung era o primeiro atrás dos bois e estalava o chicote em seus lombos, vendo a profunda ondulação da terra se revolvendo quando o arado entrava no chão. Depois, chamou Ching e lhe deu as cordas, e ele mesmo pegou uma enxada e quebrou os torrões, transformando-os em terra fina e solta, macia como açúcar preto, e ainda preta com a umidade da terra por cima. Isso ele fazia por puro prazer e não por qualquer necessidade e, quando se cansava, deitava-se na terra e dormia e a saúde da terra se espalhou em sua carne e ele se curou da aflição.
Quando a noite caía e o sol se escondia ardente sem uma nuvem para suavizá-lo, ele entrava em casa, o corpo dolorido e cansado e triunfante, e abria a cortina que dava para o pátio interno e lá estava Lótus passeando com suas roupas de seda. Quando o via, ela reclamava da terra nas roupas dele e encolhia os ombros quando ele se aproximava dela.
Mas ele ria e pegava aquelas mãozinhas delicadas com suas mãos sujas e ria novamente dizendo:
— Agora você vê que seu senhor não passa de um lavrador e você não passa de uma mulher de lavrador.
Então ela exclamava com espírito:
— Mulher de lavrador não sou, você pode ser o que quiser!
E ele ria de novo e se afastava dela com facilidade.
Comia seu arroz à noite todo sujo de terra como estava e se lavava a contragosto antes de dormir. E, lavando o corpo, tornava a rir, pois não o lavava para mulher nenhuma, e ainda ria, porque estava livre.
Então, pareceu a Wang Lung que estivera fora durante muito tempo, e havia uma quantidade de coisas que precisava fazer. A terra clamava por cultivo e plantio e, dia a dia, ele trabalhava nela, e a alvura que o verão de seu amor deixara em sua pele virava um moreno forte sob o sol, e suas mãos, que haviam perdido as calosidades com o ócio do amor, se endureceram de novo em contato com o cabo da enxada e os braços do arado.
Quando entrava ao meio-dia e à noite, comia bem da comida que O-lan lhe preparava, bom arroz, couve, massa de soja e bom alho recheando o pão de trigo. Quando Lótus tapava o narizinho com a mão e reclamava de seu fedor na hora em que ele chegava, ele ria e não ligava e soprava o bafo forte na cara dela e ela era obrigada a suportar aquilo como podia, pois ele comia o que queria. E agora que estava novamente cheio de saúde e livre do mal de amor, podia ir a ela, fartar-se e dedicar-se a outras coisas.
Então essas duas mulheres tinham seus lugares na casa dele: Lótus para seu brinquedo e prazer e para satisfazer seu gozo de beleza e delicadeza e da alegria de sua pura sexualidade, e O-lan, para sua mulher de trabalho e mãe que lhe dera os filhos e cuidava de sua casa, alimentava a ele, ao pai e aos filhos. E era um orgulho para Wang Lung que, na aldeia, os homens mencionassem com inveja a mulher em seu pátio interno; era como se falassem de uma jóia rara ou de um brinquedo caro que era inútil mas simbolizava um homem que já ultrapassara a necessidade de só se preocupar com o que comer e o que vestir e podia gastar seu dinheiro em alegria se quisesse.
E o primeiro dentre os homens da aldeia a gabar sua prosperidade era seu tio, pois seu tio, naquela época, parecia um cão que mostra afeição e deseja conquistar favores. Dizia:
— Esse aí é meu sobrinho, que mantém para o prazer dele uma mulher como nós, homens comuns, nunca vimos. — E tornava a dizer: — E ele vai a essa mulher, que usa túnicas de seda e cetim como uma senhora de casa grande. Eu não vi, mas minha mulher me conta. — E dizia ainda: — Meu sobrinho, o filho do meu irmão, está fundando uma casa grande. Os filhos dele vão ser filhos de um homem rico e nunca vão precisar trabalhar na vida.
Então, os homens da aldeia olhavam para Wang Lung cada vez com mais respeito e já não o tratavam de igual para igual, mas como alguém que vivia numa casa grande. Vinham lhe pedir dinheiro emprestado a juros e lhe pedir conselhos sobre o casamento de seus filhos e filhas, e se dois deles discutiam por causa dos limites de um campo, Wang Lung era solicitado a resolver a questão e sua decisão era aceita, fosse qual fosse.
Se antes Wang Lung estivera ocupado com seu amor, agora estava saciado e ocupado com muitas coisas. As chuvas chegaram na época certa, o trigo brotou e cresceu, o inverno chegou e Wang Lung levou suas colheitas aos mercados, pois segurou a mercadoria até os preços subirem, e desta vez levou com ele o filho mais velho.
É um orgulho para um homem ver o filho mais velho ler alto as letras num papel e colocar o pincel e a tinta no papel para escrever o que pode ser lido pelos outros, e esse orgulho Wang Lung tinha. Com orgulho, viu isso acontecer e não riu quando os copistas, que antes caçoavam dele, agora exclamavam:
— Belas letras faz o rapaz, e é inteligente!
Não, Wang Lung não demonstrava ser nada de mais ter um filho assim, apesar de, quando o menino disse incisivamente enquanto lia: “Aqui está uma letra com o radical da madeira e não o da água”, ter ficado com o coração tão inchado de orgulho que se sentiu compelido a se virar e cuspir no chão para se poupar. E quando um murmúrio de surpresa correu entre os copistas diante da sabedoria de seu filho, apenas exclamou:
— Então mude-a! Não assinaremos nosso nome em nada que esteja escrito errado.
E ficou olhando com orgulho o filho pegar o pincel e mudar o sinal errado.
Quando terminou e o filho escreveu o nome do pai na fatura e no recibo da venda do grão, os dois foram para casa juntos, pai e filho, e o pai dizia no íntimo que agora o filho era um homem e seu filho mais velho, e ele precisava fazer o que era certo para o filho. Tinha que tratar de escolher uma esposa para o filho para que o rapaz não precisasse ir mendigar numa casa grande como ele fizera, escolhendo o que sobrava ali e ninguém queria, pois seu filho era filho de um homem rico e que possuía terras.
Wang Lung se empenhou, portanto, na busca de uma donzela que pudesse ser a mulher de seu filho, e isso não foi uma tarefa fácil, pois ele não queria nenhuma que fosse uma mulher comum e vulgar. Falou sobre isso uma noite com Ching, depois que os dois já estavam sozinhos na sala do meio, calculando o que precisava ser comprado para o plantio da primavera e o que tinham de sementes. Falou não como alguém que espera uma grande ajuda, pois sabia que Ching era muito simples, mas mesmo assim sabia que o homem era fiel como um bom cão é fiel ao dono, e era um alívio falar o que pensava para alguém assim.
Ching permanecia humildemente de pé enquanto Wang Lung se sentava à mesa, pois, apesar da insistência de Wang Lung, agora que este ficara rico, não se sentava na presença dele como se fossem iguais, e ouvia-o atentamente falar do filho e da mulher que buscava, e quando Wang Lung terminou, Ching suspirou e disse com sua voz hesitante que era pouco mais que um suspiro:
— E se minha pobre filha estivesse aqui e fosse sadia, você poderia tê-la de graça e também minha gratidão, mas onde ela está eu não sei, e talvez ela esteja morta e eu não saiba.
Então Wang Lung lhe agradeceu, mas não disse o que estava em seu coração, que para seu filho, era preciso alguém de posição muito mais alta do que a filha de uma pessoa como Ching, que, embora fosse um bom homem, era apenas um camponês comum na terra dos outros.
Wang Lung guardou sua opinião, portanto, só ouvindo aqui e ali na casa de chá quando se falava de donzelas, ou de homens prósperos na cidade que tinham filhas casadouras. Mas para a mulher do tio, nada disse, escondendo dela suas intenções. Pois ela fora bastante eficiente quando ele precisara de uma mulher da casa de chá. Era a pessoa para acertar um assunto como aquele. Mas, para seu filho, ele não queria ninguém como a mulher do tio, que não podia conhecer ninguém que ele considerasse adequada para seu filho mais velho.
O ano se afundou em neve e no rigor do inverno. Chegou o festival do Ano-novo e eles comeram e beberam e veio gente falar com Wang Lung, não só do campo mas também da cidade, desejar-lhe boa sorte, dizendo:
— Bem, não podemos lhe desejar mais sorte do que você já tem, filhos homens em casa, mulheres, dinheiro e terras.
E Wang Lung, com aquela túnica de seda, ladeado pelos dois filhos homens bem vestidos, diante de uma mesa cheia de bolos, caroços de melancia e nozes, com as portas da casa enfeitadas com recortes de papel vermelho exprimindo os votos de um próspero Ano-novo, sabia que tinha sorte.
Mas o inverno virou primavera, os chorões ganharam um verde pálido, os pessegueiros cobriram-se com suas flores cor-de-rosa e Wang Lung ainda não encontrara aquela que procurava para o filho.
A primavera chegou em dias longos e quentes, perfumados com a floração das ameixeiras e das cerejeiras, e as folhas dos salgueiros se desenvolveram completamente, as árvores estavam verdes, e a terra, úmida, vaporosa e prenhe de produtos agrícolas, e o filho mais velho de Wang Lung mudou de repente e já não era mais criança. Ficou mal-humorado e petulante, sem querer comer isso e aquilo, cansando-se dos livros. Wang Lung se assustou, não entendendo essa mudança, e falou em chamar um médico.
Não havia como corrigir o rapaz, pois, se seu pai lhe dizia com jeito: “Agora coma dessa boa carne e desse bom arroz”, o rapaz teimava e ficava melancólico, e se Wang Lung se irritava, ele começava a chorar e saía da sala.
Wang Lung estava perplexo, sem entender nada, então ia atrás do rapaz e lhe dizia com a maior delicadeza possível:
— Sou seu pai. Me conte o que está no seu coração. — Mas o menino nada fazia a não ser sacudir violentamente a cabeça.
Além disso, começou a implicar com o velho professor e, para se levantar da cama de manhã para ir à escola, Wang Lung precisava gritar com ele ou mesmo bater-lhe. Aí, ele ia de mau humor e às vezes passava dias inteiros perambulando à toa pelas ruas da cidade, e Wang Lung só sabia disso à noite, quando o irmão mais moço dizia com despeito:
— O Irmão Mais Velho não foi à escola hoje.
Wang Lung ficava com raiva do filho mais velho então e gritava com ele:
— Vou gastar dinheiro bom para nada?
E, na raiva, partia para cima do menino com um bambu e batia-lhe até O-lan, a mãe, ouvir e se precipitar da cozinha para interpor-se entre o filho e o pai, de modo que os golpes caíam em cima dela e não do menino. O estranho é que, enquanto era capaz de chorar por causa de uma repreensão, o menino agüentava essas surras de bambu sem dar um pio, a cara imóvel e pálida como uma imagem. E Wang Lung não entendia nada, embora pensasse no assunto noite e dia.
Assim, enquanto pensava sobre isso uma noite depois de comer, porque naquele dia batera no filho por faltar à escola, O-lan entrou na sala. Chegou calada e pôs-se diante de Wang Lung, e ele viu que ela tinha algo que desejava lhe dizer. Então lhe disse:
— Fale. O que é, mãe do meu filho?
E ela disse:
— Não adianta você bater no rapaz desse jeito. Já vi isso acontecer com os senhores moços nos pátios da casa grande. Ficavam melancólicos e, quando isso acontecia, o Senhor Velho encontrava escravas para eles se eles não tivessem procurado nenhuma por eles mesmos, e a coisa passava facilmente.
— Não precisa ser assim — contra-argumentou Wang Lung. — Quando eu era rapaz, eu não tinha essa melancolia nem essas crises de choro e de mau humor, nem tampouco tinha escravas.
O-lan esperou, depois respondeu lentamente:
— Eu também só tinha visto isso nos senhores moços. Você trabalhava na terra. Mas ele é como um senhor moço e está à toa na casa.
Wang Lung ficou surpreso, depois de refletir um pouco, pois viu que havia verdade no que ela dizia. Quando ele era rapaz, não havia tempo para melancolia, pois tinha que estar de pé de madrugada para cuidar do boi, sair com o arado e a enxada e, na época da colheita, tinha que trabalhar até ficar alquebrado, e, se chorasse, podia chorar, pois ninguém o ouvia, e não podia fugir como seu filho fugia da escola, pois, se fizesse isso, não tinha o que comer quando voltasse, de modo que era obrigado a trabalhar. Lembrou-se de tudo isso e disse a si mesmo:
“Mas meu filho não é assim. É mais delicado do que eu era. O pai dele é rico e o meu era pobre, e o trabalho dele não é necessário, pois tenho mão-de-obra no campo, e, além disso, não se pode pegar um erudito como meu filho e colocá-lo no arado.”
E, no íntimo, orgulhava-se de ter um filho assim e disse a O-lan:
— Bem, se ele é como um senhor moço, é outra coisa. Mas não posso comprar uma escrava para ele. Vou arranjar-lhe uma noiva e vamos casá-lo logo. É o que precisa ser feito.
Então se levantou e se dirigiu ao pátio interno.
Capítulo 23
Agora Lótus, vendo Wang Lung angustiado em sua presença, pensando em outras coisas que não sua beleza, amuava e dizia:
— Se soubesse que, em menos de um ano, você poderia me olhar e não me ver, eu teria continuado na casa de chá. — E virava a cabeça para o outro lado enquanto falava, olhando para ele de esguelha. Ele ria e pegava a mão dela, levando-a ao rosto para cheirar o seu perfume, e dizia:
— Bem, um homem não pode viver pensando na jóia que tem costurada na túnica, mas, se a perdesse, ele não conseguiria suportar. Atualmente, penso em meu filho mais velho e em como seu sangue está agitado de desejo. Ele precisa se casar, mas não sei com quem. Não quero que se case com a filha de nenhum dos lavradores da cidade, nem isso ficaria bem, uma vez que ambos temos o mesmo nome Wang. Mas não conheço suficientemente bem ninguém na cidade para lhe dizer: “Eis aqui meu filho e aí está sua filha”, e acho abominável ir a uma casamenteira profissional, pois ela pode ter feito algum acerto com um homem que tenha uma filha deformada ou idiota.
Desde que o primogênito se tornara um rapaz alto e cheio de graça, Lótus olhava para ele com interesse e, divertindo-se com o que Wang Lung lhe dissera, respondeu com um ar sonhador:
— Havia um homem que costumava me procurar na grande casa de chá, e muitas vezes me falava da filha, dizendo que ela era igual a mim, miúda e magra, mas ainda só uma criança. Dizia: “Amo você com uma aflição estranha como se fosse minha filha; você se parece demais com ela, e isso me perturba porque não é direito”, e, por essa razão, embora me amasse mais, procurava uma moça alta e vermelha chamada Flor de Romã.
— Que tipo de homem era esse? — perguntou Wang Lung.
— Era um homem bom, tinha o dinheiro pronto e não prometia sem pagar. Todas nós o queríamos bem, pois ele não era rabugento, e, se às vezes uma menina estava cansada, ele não brigava como alguns faziam, dizendo que havia sido passado para trás, mas sempre dizia com educação, como poderia fazer um príncipe ou alguém de uma casa culta e nobre: “Bem, tome o dinheiro e descanse, minha filha, até o amor tornar a florescer.” Falava muito bonito para nós. — E Lótus ficou sonhando até Wang Lung dizer apressadamente para despertá-la, pois não gostava que ela pensasse na antiga vida:
— Qual era o negócio dele, então, com esse dinheiro todo?
E ela respondeu:
— Não sei, mas acho que era senhor de um mercado de grãos, mas vou perguntar a Cuco, que sabe tudo sobre homens e seu dinheiro.
Então, bateu palmas e Cuco veio correndo da cozinha, as maçãs do rosto e o nariz afogueados, e Lótus lhe perguntou:
— Quem era o homem alto, corpulento e simpático que vinha me visitar e depois visitava Flor de Romã, porque eu era parecida com a filha dele, e isso o perturbava, embora sempre tivesse gostado mais de mim?
E Cuco respondeu na hora:
— Ah, era Liu, o negociante de grãos. Era um homem bom! Me dava dinheiro sempre que me via.
— Onde é o mercado dele? — perguntou Wang Lung por perguntar, porque aquilo era conversa de mulher e não devia dar em nada.
— Na rua da Ponte de Pedra — disse Cuco.
Então, nem bem ela acabara de falar, Wang Lung bateu palmas satisfeito e disse:
— É onde vendo meus grãos, e isso é uma coisa propícia que certamente pode ser feita. — E, pela primeira vez, ele se interessou, porque lhe parecia uma sorte casar o filho com a filha do homem que comprava seus grãos.
Quando havia alguma transação a ser feita, Cuco farejava o dinheiro envolvido como um rato fareja sebo. Então enxugou as mãos no avental e disse depressa:
— Estou pronta para servir ao senhor.
Wang Lung estava indeciso e em dúvida. Olhou para a cara astuciosa dela, mas Lótus disse alegremente:
— É verdade, e Cuco deve ir falar com o homem Liu que a conhece bem e a coisa pode ser feita, pois Cuco é bastante esperta. Se o casamento for arranjado, ela deve receber os honorários do intermediário.
— Isso eu vou fazer — disse Cuco animada, e riu ao pensar na boa prata na mão. Desamarrou o avental da cintura e disse animadamente: — Vou agora mesmo, pois a carne está pronta para ser cozida e os legumes estão lavados.
Mas Wang Lung não havia ponderado suficientemente o assunto, que não era para ser decidido tão depressa assim, e gritou:
— Não, não decidi nada. Preciso pensar no assunto alguns dias e lhe direi o que acho.
As mulheres estavam impacientes, Cuco pelo dinheiro e Lótus porque era uma novidade e ela ouviria uma coisa nova para diverti-la, mas Wang Lung saiu, dizendo:
— Não, é meu filho e vou esperar.
E poderia ter esperado muitos dias, pensando nisso e naquilo, não tivesse o rapaz, seu primogênito, chegado em casa um dia de madrugada, a cara afogueada de vinho, o bafo fétido e os passos trôpegos. Wang Lung ouviu-o tropeçando no pátio e correu para ver quem era, e o menino passou mal e vomitou na frente dele, pois não estava acostumado a mais do que o vinho suave e claro que faziam do arroz fermentado, e caiu e ficou no chão e vomitou como um cachorro.
Wang Lung se assustou e chamou O-lan. Juntos, eles levantaram o rapaz, O-lan o lavou e o pôs na cama em seu próprio quarto. Antes que terminasse com ele, o rapaz já dormia pesado como um morto e não podia responder nada do que perguntava o pai.
Então Wang Lung entrou no quarto onde os dois meninos dormiam juntos, e o mais moço estava bocejando e se espreguiçando e amarrando os livros dentro de um pano quadrado para levar para a escola, e Wang Lung lhe disse:
— Seu irmão mais velho não estava na cama com você ontem à noite?
E o menino respondeu a contragosto:
— Não.
Havia algum temor em seu olhar e, ao ver isso, Wang Lung gritou-lhe asperamente:
— Aonde ele foi? — e quando o menino não respondeu, pegou-o pelo pescoço e sacudiu-o gritando: — Agora me conte tudo, seu cachorrinho!
O menino ficou assustado com isso, e desatou a soluçar e a chorar, dizendo entre os soluços:
— O Irmão Mais Velho disse que não era para eu lhe contar e que iria me beliscar e me queimar com uma agulha quente se eu contasse. Mas, se eu não contasse, me daria dinheiro.
E Wang Lung, fora de si, gritou:
— Contar o quê, você é que devia morrer?
E o menino olhou em volta e disse desesperado, vendo que seu pai iria esganá-lo se ele não respondesse:
— Ele já está fora há três noites, mas o que faz eu não sei, a não ser que vai com o filho do seu tio, nosso primo.
Wang Lung tirou então a mão do pescoço do rapaz e empurrou-o para o lado e foi para os aposentos do tio. Ali encontrou o filho do tio, a cara afogueada de vinho, como seu filho, mas mais firme nos pés, pois o rapaz era mais velho e acostumado com os hábitos masculinos. Wang Lung gritou para ele:
— Aonde você levou meu filho?
E o rapaz deu uma risadinha para Wang Lung e disse:
— Esse filho do meu primo não precisa ser levado. Sabe ir sozinho.
Mas Wang Lung repetiu a pergunta, e, dessa vez, pensou consigo mesmo que agora mataria o filho do tio, aquele descarado sem-vergonha, e gritou com uma voz terrível:
— Onde esteve meu filho esta noite?
Então o rapaz se assustou com o som da voz dele e respondeu de cara feia, baixando os olhos descarados:
— Esteve na casa da prostituta que mora no pátio que já pertenceu à casa grande.
Quando ouviu isso, Wang Lung deu um grande gemido, pois a prostituta era muito conhecida de muitos homens e só a gente pobre e ordinária ia a ela, pois ela já não era moça e estava disposta a dar muito por pouco. Sem parar para comer, Wang Lung saiu porta afora e atravessou seus campos e, pela primeira vez, não viu nada do que crescia em sua terra e não reparou em quão promissora era a colheita, por causa da perturbação que seu filho lhe trouxera. Ia com o olhar parado. Passou pela porta no muro da cidade e entrou na casa que já fora grande.
As pesadas portas agora estavam escancaradas, e já ninguém as fechava nas grossas dobradiças de ferro. Qualquer um entrava e saía à vontade. Wang Lung entrou, e os pátios e os quartos estavam cheios de gente ordinária que alugava os quartos, uma família de gente ordinária por quarto. A casa estava imunda. Os velhos pinheiros haviam sido abatidos, os que foram deixados em pé agonizavam, e os lagos nos pátios estavam afogados de lixo.
Mas ele não viu nada disso. Parou no pátio da primeira casa e gritou:
— Onde está a mulher chamada Yang, que é prostituta?
Havia uma mulher ali sentada num banco de três pernas costurando uma sola de sapato. Ela levantou a cabeça e indicou uma porta lateral que dava para o pátio e tornou a pegar a costura, como se muitas vezes os homens lhe fizessem essa pergunta.
Wang Lung foi até essa porta e bateu. Uma voz mal-humorada respondeu.
— Quem é?
— Vá embora, pois já terminei meu trabalho dessa noite e preciso dormir, já que trabalho a noite inteira.
Mas ele tornou a bater, pois entraria de qualquer maneira, e, afinal, ouviu um arrastar de pés e uma mulher abriu a porta, uma mulher não muito jovem, com uma cara cansada e pendurada, lábios grossos, a testa emplastrada de pintura branca, a boca e as maçãs do rosto que ela não lavara pintadas de vermelho. Ela olhou para ele e disse incisiva:
— Agora não posso antes de anoitecer, e, se quiser, pode vir bem cedo à noite, mas agora preciso dormir.
Mas Wang Lung interrompeu-a com aspereza, pois a visão daquela mulher o repugnava, e, não conseguindo suportar a idéia do filho ali, disse:
— Não é para mim. Não preciso de alguém da sua laia. É por meu filho.
E sentiu de repente na garganta um nó de choro pelo filho. Então a mulher perguntou:
— Bem, e o que aconteceu com seu filho?
E Wang Lung respondeu com voz trêmula:
— Esteve aqui ontem à noite.
— Ontem à noite, filhos de muitos homens estiveram aqui — respondeu a mulher —, e não sei qual era o seu.
Então Wang Lung implorou:
— Procure se lembrar de um rapaz magro, alto para sua idade, mas ainda sem ser um homem, e nunca sonhei que ele se atrevesse a experimentar uma mulher.
E ela, lembrando-se, respondeu:
— Eram dois, e um deles era um rapaz de nariz arrebitado e cara de saber tudo, o chapéu caído numa orelha? E o outro, como disse, um rapaz alto, mas ansioso para ser homem!
E Wang Lung disse:
— Sim, sim, é ele, esse é meu filho!
— E o que houve com seu filho? — perguntou a mulher.
Então Wang Lung disse seriamente:
— Isso: se ele tornar a vir aqui, mande-o ir embora... diga que só deseja homens... diga-lhe o que quiser... mas cada vez que o puser para fora, eu lhe darei na mão o dobro do dinheiro que recebe.
A mulher riu então despreocupadamente e disse com súbito bom humor:
— E quem não concordaria com isso, ser paga para não trabalhar? Então eu também concordo. É bem verdade que desejo homens, e garotinhos são um prazer pequeno. — E acenou com a cabeça para Wang Lung enquanto falava olhando de soslaio para ele, e ele ficou repugnado com aquela cara rude e disse depressa:
— Que seja assim, então.
Virou-se rápido e foi para casa. Ia cuspindo para se livrar da náusea e da lembrança da mulher.
Nesse dia, portanto, disse a Cuco:
— Que seja como você disse. Vá ao mercador de grãos e combine o negócio. Que o dote seja bom mas não grande demais se a moça for adequada e o negócio puder ser combinado.
Depois que disse isso a Cuco, voltou ao quarto e sentou-se ao lado do filho adormecido e pôs-se a ruminar, pois viu quão belo e jovem era o rapaz, e viu o rosto tranqüilo, adormecido e liso da juventude. Então, quando pensou na mulher cansada e pintada e em seus lábios grossos, ficou com o coração cheio de náusea e raiva e continuou ali sentado, murmurando consigo mesmo.
Aí, O-lan entrou no quarto e ficou olhando o menino. Ao ver sua pele molhada de suor, trouxe vinagre e água morna e lavou delicadamente o suor, como era costume lavar os senhores moços na casa grande quando eles bebiam demais. Então, vendo a delicada cara infantil e o sono embriagado que nem a água despertava, Wang Lung se levantou e se dirigiu furioso ao quarto do tio, esquecendo que ele era irmão de seu pai, lembrando-se apenas que esse homem era pai do jovem ocioso e descarado que estragara seu próprio filho honesto, entrou ali e gritou:
— Abriguei um ninho de cobras ingrato e elas me morderam!
O tio estava sentado inclinado sobre uma mesa tomando seu café-da-manhã, pois nunca se levantava antes do meio-dia, já que não tinha trabalho nenhum a fazer, e ergueu os olhos ao ouvir essas palavras e disse preguiçosamante:
— Como?
Então Wang Lung lhe contou, meio engasgado, o que acontecera, mas seu tio apenas riu e disse:
— Bem, e dá para impedir um menino de se tornar homem? Dá para impedir um cão jovem de correr atrás de uma cadela perdida?
Ao ouvir essa piada, Wang Lung se lembrou de tudo o que suportara por causa do tio; como, havia tempos, o tio tentara obrigá-lo a vender sua terra, e como aqueles três viviam ali, comendo e bebendo sem fazer nada, e como a mulher de seu tio comia as comidas caras que Cuco comprava para Lótus, e agora como o filho de seu tio estragara seu próprio filho honesto, e mordeu a língua entre os dentes e disse:
— Fora da minha casa, você e os seus. De agora em diante, não tem mais arroz para nenhum de vocês, e prefiro botar fogo na minha casa a abrigar vocês, que não são agradecidos nem na sua preguiça!
Mas o tio continuou onde estava, comendo dessa e daquela tigela. Wang Lung ficou ali parado quase apoplético, e, ao ver que o tio não fazia caso dele, adiantou-se com o braço erguido. Então o tio se virou e disse:
— Me ponha para fora se você se atreve.
E quando Wang Lung gaguejou e bufou sem entender: “Bem... e que... bem, e que...”, o tio abriu a túnica e mostrou o que havia no forro.
Então, Wang Lung ficou imóvel e teso, pois viu ali uma barba postiça de pêlos vermelhos e um pedaço de pano vermelho. Aí, sua raiva se esvaziou como água e ele começou a tremer, quase desfalecendo.
Essas coisas, a barba vermelha e o pedaço de pano vermelho, eram sinal de um bando de ladrões que viviam e assaltavam para os lados do noroeste. Já haviam incendiado muitas casas, raptado mulheres, amarrado na porta de casa fazendeiros bons que só eram encontrados no dia seguinte, alucinados se ainda estavam vivos e queimados e tostados como carne assada se estivessem mortos. Wang Lung olhava com os olhos esbugalhados. Virou as costas e foi embora sem dizer palavra, ouvindo a risada do tio que se inclinava de novo sobre a tigela de arroz.
Agora Wang Lung estava numa enrascada como nunca sonhara. Seu tio entrava e saía como antes, rindo um pouco por baixo da rala barba grisalha, a roupa enrolada no corpo negligentemente como sempre, e Wang Lung suava frio quando o via, mas não se atrevia a dizer nada a não ser palavras educadas com medo do que o tio pudesse fazer com ele. Era verdade que, durante todos esses anos de sua prosperidade e especialmente durante os anos em que a safra foi nula ou muito pequena e os outros homens passavam fome com os filhos, os bandidos nunca foram à sua casa nem às suas terras, embora muitas vezes ele tivesse ficado com medo e trancasse as portas à noite. Até o verão de seu amor, ele se vestia grosseiramente e evitava aparentar riqueza e quando ouvia a gente da cidade contar histórias de assaltos, voltava para casa e dormia mal, prestando atenção nos barulhos da noite.
Mas os ladrões nunca vieram à sua casa e ele ficou descuidado e ousado, julgando-se protegido pelos céus e um homem predestinado a ter sorte. Relaxava com tudo, até com o incenso dos deuses, uma vez que estes já eram bastante bons para ele sem isso, e não pensava em nada a não ser em seus negócios e sua terra. E agora, de repente, viu por que nada lhe acontecera e nada lhe aconteceria enquanto desse de comer aos três da família do tio. Quando pensava nisso, suava frio e não se atrevia a contar a ninguém o que o tio escondia no peito.
Mas, ao tio, não voltou a falar sobre sair de casa, e, à mulher do tio, disse no tom mais insistente que conseguiu:
— Coma o que quiser nos pátios internos e tome um dinheirinho para você gastar.
E ao filho do tio disse, embora sentisse um nó na garganta:
— Tome aqui um pouco de dinheiro, pois os rapazes gostam de se divertir.
Mas vigiou o próprio filho e não lhe permitia sair de casa depois que o sol se punha, embora o rapaz se revoltasse e gesticulasse e batesse nas crianças mais novas por nada, a não ser seu próprio mau humor. E assim Wang Lung estava cercado de problemas.
A princípio, não conseguia trabalhar pensando em todos os problemas que lhe apareceram, e pensava neste e naquele, e dizia a si mesmo: “Eu poderia expulsar meu tio e me mudar para a cidade cujos portões são trancados à noite para evitar ladrões”, mas depois se lembrava de que todos os dias tinha que vir trabalhar em suas terras, e quem podia dizer o que poderia lhe acontecer enquanto ele trabalhasse desprotegido, mesmo em suas próprias terras? Além do mais, como um homem podia viver trancado numa casa na cidade? Ele morreria se o separassem de suas terras. E, certamente, viria um mau ano, e nem a cidade poderia resistir aos ladrões, como não resistira no passado quando a casa grande caiu.
E ele poderia entrar na cidade e ir à casa onde morava o juiz e lhe dizer:
— Meu tio é um dos Barbas Vermelhas.
Mas, se fizesse isso, quem acreditaria nele, quem acreditaria num homem que dissesse uma coisa dessas do irmão do pai? Era mais provável ele levar uma surra pela conduta não filial do que o tio sofrer. E ele acabaria tendo que temer pela própria vida, pois, se o ouvissem falar naquilo, os ladrões o matariam por vingança.
Então, como se não bastasse isso, Cuco voltou da conversa com o negociante de grãos e, embora o caso do acerto do noivado tivesse andado bem, o negociante Liu não queria que nada se realizasse agora a não ser a troca dos documentos do noivado, pois a moça era muito jovem para se casar, tendo só 14 anos, e era preciso esperar mais três anos. Wang Lung ficou consternado com a idéia de mais três anos de revolta e ociosidade e olhares sonhadores do rapaz, que agora só ia à escola dois dias em cada dez, e disse a O-lan naquela noite enquanto comiam:
— Bem, vamos acertar o casamento dos outros filhos logo que conseguirmos, e quanto antes melhor, e vamos casá-los assim que começarem a ter desejo, pois não posso ter essa situação mais três vezes!
E, na manhã seguinte, depois de não ter dormido quase nada à noite, tirou a longa túnica e os sapatos, e, como era seu hábito quando os assuntos domésticos se complicavam muito para ele, pegou a enxada e foi para os campos. Ao passar pelo pátio externo onde estava sentada a filha mais velha sorrindo, torcendo e alisando seu pedaço de pano, resmungou:
— Essa minha pobre idiota me dá mais consolo que todos os outros juntos.
E, durante muitos dias, saiu para trabalhar na terra.
Então, a boa terra tornou a fazer seu trabalho curativo e o sol brilhou sobre ele e curou-o e os ventos tépidos do verão o envolveram com paz. E, como se para curá-lo da raiz de sua incessante ruminação sobre seus próprios problemas, um dia apareceu uma nuvenzinha vinda do sul. Primeiro, pairou no horizonte pequena e suave como uma névoa, só que não andou como andam as nuvens sopradas pelo vento, mas ficou parada até que se abriu, subindo como um leque no ar.
Os homens do vilarejo a observaram e falaram dela com medo, pois o que temiam era isso: que tivessem chegado gafanhotos do sul para devorar o que estava plantado nos campos. Wang Lung também ficou observando com os outros e afinal o vento soprou uma coisa até seus pés. Um dos homens se abaixou depressa e pegou o que era um gafanhoto morto, mais leve que os exércitos vivos atrás dele.
Então Wang Lung esqueceu de tudo que o perturbava, mulheres e filhos e tio, e correu entre os aldeões assustados, e gritou para eles:
— Agora, por nossa boa terra, vamos combater esses inimigos que vêm do céu!
Mas alguns homens fizeram que não com a cabeça, sem esperanças já de saída, e disseram:
— Não, não adianta fazer nada. O céu ordenou que este ano passemos fome. Por que devemos nos desgastar lutando contra isso, vendo que, no final, teremos que passar fome?
E as mulheres foram chorando para a cidade comprar incenso para espetar diante dos deuses da terra em seu pequeno templo, e algumas foram para o grande templo na cidade, onde ficavam os deuses do céu, e assim a terra e o céu foram reverenciados.
Mas, apesar disso, os gafanhotos se espalharam pelo ar e pelos campos.
Então, Wang Lung chamou seus trabalhadores, e Ching ficou calado e a postos ao seu lado com alguns dos outros lavradores mais moços e, com as próprias mãos, tocaram fogo em certos campos, queimaram o bom trigo que estava quase maduro para a colheita, e abriram fossos largos, que encheram de água dos poços, trabalhando sem dormir.
O-lan lhes levava comida, e as mulheres levavam comida para seus homens, e os homens comiam em pé no campo, engolindo o alimento como fazem os bichos, enquanto trabalhavam dia e noite.
Então o céu ficou preto e o ar vibrou com o rugido profundo de muitas asas batendo uma na outra, e, sobre a terra, baixaram os gafanhotos, sobrevoando esse campo e deixando-o intocado, e baixando sobre aquele, e deixando-o nu como no inverno. E os homens suspiravam e diziam: “É a vontade dos Céus”, mas Wang Lung estava furioso e batia e pisava nos gafanhotos, e seus homens batiam neles com manguais e os gafanhotos caíam nas fogueiras que estavam acesas e nas águas dos fossos que haviam sido abertos. E muitos milhões deles morreram, mas, diante daqueles que sobravam, isso não era nada.
No entanto, Wang Lung foi recompensado por toda aquela luta: seu melhor campo foi poupado e, quando a nuvem passou e eles puderam descansar, ainda havia trigo para colher e seus canteiros de arroz novo foram poupados e ele estava satisfeito. Então, muita gente comeu os corpos assados dos gafanhotos, mas Wang Lung não fazia isso, pois, para ele, os insetos eram uma coisa suja por causa do que fizeram com a terra dele. Ele nada disse quando O-lan os fritou em óleo, os lavradores os comeram, as crianças os desmembraram delicadamente e os provaram, com medo de seus olhos grandes. Mas não comeu.
Todavia, os gafanhotos fizeram isso para ele. Durante sete dias, não pensou em nada a não ser sua terra, e curou-se dos problemas e dos medos. Dizia então, calmamente:
— Bem, todo homem tem seus problemas, e eu tenho que dar um jeito de conviver com os meus como puder. Meu tio, que é mais velho que eu, vai morrer, e três anos vão passar como podem passar para meu filho, e eu não vou me matar.
E colheu seu trigo e vieram as chuvas e o arroz novo verdinho foi plantado nos campos alagados e era verão de novo.
Capítulo 24
Um dia depois de Wang Lung ter dito a si mesmo que sua casa estava em paz, ele voltava do campo quando seu filho mais velho foi ao seu encontro ao meio-dia, dizendo:
— Pai, se for para eu ser um erudito, aquele velho na cidade não tem mais nada a me ensinar.
Wang Lung tirara uma bacia de água fervente do caldeirão na cozinha. Nessa bacia, molhou uma toalha, torceu-a e, segurando-a fumegante no rosto, disse:
— Bem, e agora?
O rapaz hesitou e depois prosseguiu:
— Bem, se for para eu ser um erudito, eu gostaria de ir para uma cidade no sul e entrar numa grande escola, onde eu possa aprender o que há para aprender.
Wang Lung esfregou a toalha em volta dos olhos e dos ouvidos, e, com a cara toda fumegando, respondeu ao filho incisivamente, pois tinha o corpo doído do trabalho na terra:
— Bem, e que disparate é esse? Digo que você não pode ir e não quero ser atormentado com isso, pois digo que você não pode ir. Já tem cultura suficiente para esta região.
E tornou a mergulhar a toalha na água e torcê-la.
Mas o rapaz ficou ali, olhando para o pai com ódio, e murmurou algo que deixou Wang Lung irritado, pois não conseguiu entender o que era. Então gritou para o filho:
— Diga o que tem a dizer!
Então, o rapaz se esquentou ao ouvir a voz do pai e disse:
— Digo, sim, então! Pois vou mesmo para o sul, e não vou ficar nesta casa idiota sendo vigiado como uma criança, e nesta cidadezinha que não é melhor que uma aldeia! Vou sair e aprender alguma coisa e ver outros lugares!
Wang Lung olhou para o filho e para si mesmo. O filho estava ali parado com uma túnica longa de linho cinza-prata, fino e fresco para o calor do verão. O buço escuro de sua masculinidade já cobria seu lábio inferior, ele tinha a pele macia e dourada e, sob as mangas compridas, mãos macias e finas como as de uma mulher. Então, Wang Lung olhou para si mesmo e viu que tinha a pele grossa e suja de terra, usava apenas umas calças de algodão azul e estava nu da cintura para cima. Dir-se-ia que era o criado do filho e não o pai. E essa idéia o fez desdenhar da elegância do rapaz e exclamar com irritação e brutalidade:
— Então vá já para o campo e esfregue um pouco da boa terra no corpo, para não o confundirem com uma mulher, e trabalhe um pouco pelo arroz que você come!
E Wang Lung esqueceu de que já se orgulhara da instrução e da inteligência do filho com os livros e saiu como um furacão, batendo os pés descalços enquanto caminhava e cuspindo no chão grosseiramente, porque a delicadeza do filho o irritava no momento. E o rapaz olhou para o pai com ódio, mas Wang Lung não quis se virar para ver o que o rapaz fazia.
No entanto, aquela noite, quando foi ter com Lótus, que estava deitada na cama onde Cuco a abanava, ela lhe disse preguiçosamente, como se estivesse falando de algo sem importância, só por falar:
— Esse seu meninão está louco para ir embora.
Então Wang Lung, lembrando-se da raiva que estava sentindo do filho, disse incisivo:
— E o que isso quer dizer para você? Não o quero nesses aposentos nessa idade.
Mas Lótus apressou-se em responder:
— Não... não... é Cuco que está dizendo.
E Cuco se apressou em dizer:
— Qualquer um pode ver isso e ele é um rapaz encantador e muito grande para estar à toa, cheio de desejos.
Isso fez Wang Lung perder o fio do raciocínio e só pensar na raiva que sentia do filho. Disse então:
— Não, ele não vai. Não vou gastar meu dinheiro tolamente. — E não quis mais falar sobre isso. Vendo que ele estava irritado com alguma coisa, Lótus mandou Cuco embora, agüentando-o ali sozinha.
Então, durante muitos dias, não se falou mais no assunto, e o rapaz de repente parecia satisfeito de novo, mas não queria mais ir à escola. Wang Lung consentiu, pois o menino já estava quase com 18 anos e tinha a ossatura larga da mãe. Quando chegava em casa, encontrava o filho lendo no quarto e ficava satisfeito, pensando consigo mesmo:
“Foi um capricho da juventude. Ele não sabe o que quer, e só faltam três anos... talvez dois, ou mesmo um, se houver dinheiro suficiente. Um desses dias, quando a colheita tiver terminado, o trigo de inverno estiver plantado e os feijões estiverem cultivados, eu cuido disso.”
Então Wang Lung esqueceu o filho, pois a colheita, tirante o que os gafanhotos haviam consumido, fora bastante boa, e àquela altura ele tornara a ganhar o que gastara com Lótus. Seu ouro e sua prata eram preciosos para ele de novo, e às vezes ele se espantava no íntimo consigo mesmo de ter gasto tão liberalmente com uma mulher.
Mesmo assim, havia momentos em que ela o emocionava docemente, ainda que não tão intensamente quanto no princípio, e ele se orgulhava de possuí-la, embora visse muito bem que o que a mulher do tio dissera era verdade, que ela não era muito jovem apesar de toda aquela miudeza, e nunca concebera para lhe dar um filho. Mas ele não ligava para isso, uma vez que tinha filhos e filhas, e estava querendo conservá-la pelo prazer que ela lhe dava.
Quanto a Lótus, ficava mais encantadora à medida que amadurecia, pois se antes tinha algum defeito, era a magreza excessiva que tornava sua silhueta muito angulosa e sua carinha pontuda e muito encovada nas têmporas. Mas agora, graças à comida que Cuco lhe preparava e à ociosidade de sua vida com um homem só, tornou-se suave e redonda de corpo, seu rosto encheu e ficou macio nas têmporas, e, com aqueles olhos grandes e aquela boca pequena, ela parecia cada vez mais um gatinho gordo. Dormia, comia e assim seu corpo criava essa carne suave e tenra. Se já não era mais o botão de lótus, também não era mais que uma flor desabrochada, e se não era jovem, também não parecia velha, e a juventude e a velhice estavam igualmente longe dela.
Com a vida novamente tranqüila e o rapaz satisfeito, Wang Lung poderia se dar por satisfeito. Só que uma noite, quando estava sozinho contando nos dedos o que venderia de milho e arroz, O-lan entrou de mansinho no quarto. Com o passar dos anos, ela ficara magra e seca, com os ossos brutos da cara sobressaindo e os olhos fundos. Se lhe perguntavam como estava, respondia apenas:
— Tem um fogo nas minhas entranhas.
Nos últimos três anos, sua barriga parecia de grávida, só que não havia nascimento. Mas ela se levantava ao romper da aurora e fazia seu trabalho e Wang Lung a olhava apenas como olhava a mesa ou a cadeira ou uma árvore do pátio, nunca com a atenção com que olharia para um dos bois que andasse cabisbaixo ou um porco que não quisesse comer. Ela fazia seu trabalho sozinha e só falava aquilo que não podia deixar de falar com a mulher do tio de Wang Lung, nunca falando com Cuco. Jamais entrou nos aposentos de Lótus e nas raras ocasiões em que Lótus saía para caminhar um pouco em outro lugar que não o seu espaço, O-lan metia-se no quarto e lá ficava até alguém dizer: “Ela foi embora.” E, calada, fazia seu serviço, cozinhando e lavando no lago, mesmo no inverno, quando a água congelava e era preciso quebrar o gelo. Mas Wang Lung nunca teve idéia de dizer:
“Bem, e por quê, com todo o dinheiro que eu tenho sobrando, você não contrata uma criada ou compra uma escrava?”
Não lhe ocorria que não havia nenhuma necessidade disso, embora ele contratasse trabalhadores para os campos e para ajudá-lo a tratar dos bois, dos burros e dos porcos, e, nos verões, quando o rio transbordava, contratava temporariamente homens para arrebanhar os patos e gansos que criava nas águas.
Nessa noite, então, quando estava sozinho, só com as velas vermelhas acesas nos castiçais de estanho, ela se postou diante dele, olhou para os lados e finalmente disse:
— Tenho uma coisa para dizer.
Então, ele ficou olhando para ela surpreso e respondeu:
— Bem, diga.
Ficou olhando para ela e, ao ver seu rosto chupado, tornou a pensar em como, nela, não havia beleza e em como já não a desejava há muitos anos.
Então ela disse num sussurro duro:
— O filho mais velho vai muito aos pátios internos. Quando você não está, ele vai.
Wang Lung, a princípio, não conseguiu entender o que ela dizia sussurrando daquele jeito e inclinou-se à frente boquiaberto, perguntando:
— O quê, mulher?
Ela apontou calada para o quarto do filho e contraiu os lábios grossos virada para a porta do pátio interno. Mas Wang Lung ficou olhando para ela, rude e incrédulo.
— Você está sonhando! — disse afinal.
Ela balançou a cabeça diante disso, e, as palavras difíceis custando a lhe sair dos lábios, falou:
— Bem, então o meu senhor volte para casa de surpresa. — Após uma pausa, prosseguiu: — É melhor mandá-lo embora, mesmo que seja para o sul.
Então foi até a mesa, pegou a tigela de chá dele, viu que estava frio e derramou o chá frio no chão. Depois tornou a encher a tigela com o chá da chaleira quente e saiu como entrou, calada, deixando-o ali boquiaberto.
“Bem, essa mulher está com ciúmes”, pensou Wang Lung. Não iria se preocupar com isso, uma vez que seu filho estava satisfeito e todos os dias ficava lendo no quarto. Levantou-se e riu e tirou isso da cabeça, rindo das idéias mesquinhas das mulheres.
Mas, quando estava deitado com Lótus naquela noite e virou-se na cama, ela reclamou e foi petulante, afastando-o e dizendo:
— Está quente e você fede e eu gostaria que se lavasse antes de vir deitar comigo.
Então sentou-se na cama, afastou o cabelo da cara com irritação e deu de ombros quando ele quis atraí-la para si, não cedendo à sedução dele. Ele ficou deitado quieto, lembrando-se de que ela vinha cedendo de má vontade nas últimas noites, e ele achara que isso se devia a um capricho dela e que o calor abafado de fim de verão a deprimia. Mas agora as palavras de O-lan se destacaram incisivamente e ele se levantou de repente e disse:
— Bem, então durma sozinha e me cortem o pescoço se eu me importar!
Saiu ventando do quarto e entrou na sala central de sua casa, juntou duas cadeiras e deitou-se nelas. Mas, como não conseguiu dormir, levantou-se, saiu de casa e foi passear junto aos bambus ao lado da casa. Ali, sentiu na carne quente o vento fresco da noite que já trazia o frio do outono.
Então lembrou-se que Lótus sabia que seu filho queria sair de casa. Como soubera disso? E lembrou-se que ultimamente seu filho não falava em sair de casa, mas andava satisfeito, e por que estava satisfeito? E Wang Lung disse a si mesmo ferozmente:
— Vou saber disso eu mesmo!
E ficou vendo a aurora chegar avermelhada com a névoa que pairava sobre suas terras.
Quando o sol saiu e sublinhou de dourado o limite dos campos, ele entrou em casa e comeu. Depois saiu para supervisionar seus homens como era seu hábito na época da colheita e da semeadura, andou de um lado para outro em suas terras e afinal gritou bem alto, para que qualquer pessoa da casa o ouvisse:
— Agora vou para o campo ao lado do fosso da cidade e só voltarei tarde — e rumou para a cidade.
Mas, quando estava na metade do caminho, na altura do pequeno templo, sentou-se num cômoro coberto de mato na beira da estrada que era uma velha sepultura já esquecida, arrancou um capim e ficou torcendo-o nos dedos, meditando. Diante dele, estavam os pequenos deuses, e, na superfície, ele pensava em como eles o olhavam e como antigamente tinha medo deles, mas agora não ligava, tendo ficado rico e sem necessidade de deuses, de modo que quase não os via. No fundo, não parava de se perguntar:
“Devo voltar?”
Então, de repente, lembrou-se da noite anterior, quando Lótus o repelira, e, revoltado por causa de tudo o que fizera por ela, disse a si mesmo:
“Sei bem que ela não teria durado muitos anos na casa de chá, e, lá em casa, é alimentada e ricamente vestida.”
E, no calor da revolta, levantou-se e voltou para casa por outro caminho. Entrou escondido e ficou atrás da cortina que guarnecia a porta do pátio interno. E, prestando atenção, ouviu o murmúrio de uma voz masculina, e era a voz de seu filho.
A raiva que subiu ao coração de Wang Lung era uma raiva que ele nunca sentira na vida, embora, desde que prosperara e passara a ser chamado de rico, tivesse perdido a timidez inicial de caipira e tivesse pequenas explosões súbitas, sendo orgulhoso mesmo na cidade. Mas essa raiva agora era a de um homem contra outro homem que rouba a mulher amada, e quando se lembrou de que o outro homem era seu filho, Wang Lung sentiu vontade de vomitar.
Cerrou os dentes e então foi ao quintal escolher na moita de bambu uma vara fina e flexível, da qual retirou as brotações, deixando apenas um tufo na ponta, fino e duro como uma corda, que desfolhou todo. Então, entrou de mansinho e abriu de repente a cortina. E lá estava seu filho, parado no pátio, olhando para Lótus sentada num banquinho à beira do lago, vestida com sua túnica de seda cor de pêssego, que Wang Lung nunca a vira usar de manhã.
Os dois conversavam, e a mulher ria alegremente e olhava de soslaio para o rapaz, a cabeça virada para o outro lado, e os dois não ouviram Wang Lung, que olhava para eles, lívido, arreganhando os lábios e rosnando entre dentes, as mãos apertando o bambu. Os dois continuavam sem ouvi-lo e não o ouviriam se Cuco não o tivesse visto ao chegar e dado um grito.
Então Wang Lung deu um salto à frente e caiu em cima do filho, chicoteando-o, e embora o rapaz fosse mais alto que ele, ele era mais forte graças ao trabalho no campo e à solidez de seu corpo maduro, e deu uma surra do rapaz até tirar sangue. Quando Lótus, aos gritos, puxou-lhe o braço, ele a empurrou, e, quando ela persistiu, berrando, ele também lhe bateu, e bateu até ela fugir, e bateu no rapaz até ele se agachar no chão todo encolhido e tapar com as mãos a cara lanhada.
Então, Wang Lung parou. Sua respiração chiava através de seus lábios entreabertos, e o suor lhe escorria pelo corpo, empapando-o, e ele se sentia fraco como se estivesse doente. Largou o bambu e sussurrou para o rapaz, arfando:
— Agora vá para o seu quarto e não se atreva a sair até eu me livrar de você, senão eu mato você!
E o menino se levantou sem uma palavra e saiu.
Wang Lung sentou-se no banquinho onde Lótus estivera sentada, pôs as mãos na cabeça, fechou os olhos, ofegando muito. Ninguém se aproximou dele e ele ficou assim sozinho até que se acalmou e a raiva passou.
Então, levantou-se cansado, entrou no quarto onde Lótus estava deitada na cama, chorando alto, e virou-a. Ela ficou olhando para ele, chorando, com a marca do chicote roxa e inchada na cara.
Ele lhe disse com uma grande tristeza:
— Então você tem que ser sempre uma prostituta e andar atrás dos meus próprios filhos!
E ela chorou mais alto ao ouvir isso e protestou:
— Não, eu não andei. O rapaz é que se sentia sozinho e vinha aqui. Pode perguntar a Cuco se algum dia ele chegou mais perto da minha cama do que você viu no pátio!
Então olhou para ele assustada e, num estado lastimável, pegou-lhe a mão, levou-a ao lanho em seu rosto e choramingou.
— Veja o que você fez com sua Lótus... não há homem no mundo para mim a não ser você. Se ele é seu filho, é só seu filho, para mim é só isso!
Olhou para ele, os lindos olhos nadando nas lágrimas transparentes. Ele gemeu porque a beleza dessa mulher era mais do que ele podia desejar, e ele a amava mesmo não querendo. De repente lhe pareceu que não conseguiria suportar saber o que se passara entre esses dois e desejou não saber nunca, e era melhor para ele não saber. Então, gemeu de novo e saiu. Passou pelo quarto do filho e gritou sem entrar:
— Agora ponha suas coisas na caixa e vá amanhã para o sul fazer o que quer e não volte para casa até eu mandar buscá-lo!
E foi em frente. Quando passou por O-lan que costurava uma roupa dele, ela não disse nada. Se ouviu a surra e os gritos, não deu sinal disso. E ele foi para os campos no sol a pino do meio-dia, sentindo-se esgotado como se tivesse trabalhado o dia inteiro.
Capítulo 25
Quando o filho mais velho partiu, Wang Lung sentiu que a casa fora purgada de uma sobrecarga de inquietação, e isso foi um alívio para ele. Disse a si mesmo que era bom para o rapaz ter partido, e agora ele podia olhar para os outros filhos e ver o que eram, pois, com seus problemas e a terra que precisava ser semeada e ceifada na época certa, acontecesse o que acontecesse em outro lugar, não conhecia bem os filhos que tinha depois do primogênito. Decidiu, além disso, que tiraria logo o segundo rapaz da escola e o faria aprender um ofício sem esperar que o assanhamento da juventude o pegasse e fizesse dele uma praga na casa como o outro fora.
Ora, o segundo filho de Wang Lung era tão diferente do mais velho como podem ser dois irmãos numa casa. Enquanto o mais velho era alto, tinha uma estrutura óssea avantajada e a cara corada dos homens do norte e de sua mãe, o segundo era baixo e magro, de pele amarela, e tinha alguma coisa que fazia Wang Lung lembrar do próprio pai: um olhar astuto, arguto e cheio de humor, e uma queda para a malícia se houvesse oportunidade. E Wang Lung disse:
— Esse rapaz dará um bom comerciante, e vou tirá-lo da escola e ver se pode entrar como aprendiz no mercado de grãos. Será conveniente ter um filho ali onde vendo minhas safras. Ele pode vigiar as balanças e dar um pequeno toque no peso a meu favor.
Portanto, um dia disse a Cuco:
— Vá dizer ao pai da noiva do meu filho mais velho que tenho uma coisa para falar com ele. E devemos, de qualquer maneira, tomar uma taça de vinho juntos, já que vamos ser vertidos num único recipiente, o sangue dele e o meu.
Cuco foi e voltou dizendo:
— Ele falará com você quando você quiser e se puder ir beber vinho hoje ao meio-dia, está bem, se quiser que ele venha aqui, ele vem.
Mas Wang Lung não queria que o comerciante da cidade fosse à sua casa porque temia ter que preparar uma coisa e outra, de modo que se lavou e pôs a túnica de seda e partiu pelos campos. Foi primeiro à rua das Pontes, como Cuco lhe dissera, e ali, diante de um portão que trazia o nome de Liu, parou. Não que soubesse a palavra, mas adivinhou o portão, duas portas à direita da ponte, e perguntou a alguém que passava e a letra era a letra de Liu. Era um portão respeitável, construído simplesmente de madeira, e Wang Lung bateu nele com a palma da mão.
Imediatamente, o portão foi aberto e uma criada já estava ali, enxugando as mãos no avental enquanto perguntava quem ele era. Quando ele disse o seu nome, ela ficou olhando para ele e o conduziu ao primeiro pátio onde moravam os homens, depois levou-o a um quarto, mandou que ele sentasse e tornou a olhar para ele, sabendo que era o pai do noivo da filha da casa. Então saiu para chamar o patrão.
Wang Lung olhou em volta com atenção, levantou-se, tocou no tecido das cortinas da porta, examinou a madeira da mesa simples e ficou satisfeito, pois havia ali provas de que se vivia bem, mas sem uma riqueza exagerada. Ele não queria uma nora rica, que poderia ser orgulhosa e desobediente, chorando para ter isso e aquilo em termos de comida e roupa e afastando o filho dos pais. Então Wang tornou a sentar-se e esperou.
De repente, ouviram-se passos pesados, e entrou um homem forte e já idoso. Wang Lung se levantou, fez uma mesura, depois ambos se fizeram mesuras, olhando-se disfarçadamente, e simpatizaram um com o outro, cada qual respeitando o outro pelo que ele era, um homem digno e próspero. Então, sentaram-se e beberam do vinho quente que a criada lhes serviu e conversaram lentamente sobre uma coisa e outra, safras e preços e qual seria o preço do arroz naquele ano se a colheita fosse boa. E, afinal, Wang Lung disse:
— Bem, vim tratar de uma coisa, mas, se o seu desejo não for este, vamos falar de outros assuntos. Mas, se tiver necessidade de um ajudante em seu grande mercado, há o meu segundo filho, que é muito vivo, mas se não tiver necessidade dele, vamos falar de outras coisas.
Então o mercador falou muito satisfeito:
— Pois estou muito precisado de um rapaz vivo, se ele souber ler e escrever.
E Wang Lung respondeu com orgulho:
— Meus dois filhos são bons alunos e sabem quando uma letra está errada, e se o radical da madeira ou o da água está certo.
— Ótimo — disse Liu. — Que ele venha quando quiser. No começo, receberá como salário só a comida, até aprender o ofício, e, depois de um ano, se trabalhar bem, pode receber uma moeda de prata no fim de cada lua, e, no fim de três anos, três moedas, e, depois disso, já não é mais um aprendiz, mas pode subir de vida e está apto para o ramo. E, além desse salário, há as comissões que ele pode obter de um vendedor ou de um comprador, e não digo nada quanto a isso se ele for capaz de consegui-las. E porque nossas duas famílias estão unidas, não lhe peço nenhum depósito de garantia pela vinda dele.
Wang Lung então se levantou, satisfeito, sorriu e disse:
— Agora somos amigos. Você não tem nenhum filho para minha segunda filha?
Então o mercador riu fartamente, pois era gordo e bem alimentado, e disse:
— Tenho um segundo filho de dez anos que ainda não prometi em casamento. Quantos anos tem a menina?
Wang Lung tornou a rir e respondeu:
— Vai fazer dez anos no próximo aniversário e é uma linda flor.
Então os dois homens riram juntos e o mercador disse:
— Vamos nos unir com uma corda dupla?
E Wang Lung não disse mais nada, pois isso não era uma coisa que pudesse ser discutida cara a cara além desse ponto. Mas, depois de ter feito a mesura e ido embora satisfeito, disse a si mesmo: “A coisa pode ser feita.” Quando chegou em casa, olhou para a filha menor e ela era bonita e a mãe havia amarrado bem seus pés, de modo que ela andava com passinhos graciosos.
Mas, quando olhou para ela assim de perto, Wang Lung viu as marcas de lágrimas em suas faces, e seu rosto era ligeiramente pálido demais para sua idade. Então ele puxou-a pela mão para junto de si e disse:
— Por que você chorou?
Ela abaixou a cabeça e brincou com um botão da túnica e disse, tímida e quase sussurrando:
— Porque minha mãe amarra um pano nos meus pés cada dia mais apertado e não consigo dormir de noite.
— Mas não ouço você chorar — disse ele admirado.
— Não — disse ela simplesmente. — Minha mãe disse que não devo chorar alto porque você é muito bom e fraco para a dor e poderia dizer para me deixar como eu sou, e aí meu marido não me amaria, assim como você não a ama.
Disse isso com a mesma simplicidade com que uma criança recita uma história, e Wang Lung ficou magoado ao ouvir que O-lan contara à menina que ele não a amava, a ela que era a mãe de seus filhos, e disse depressa:
— Bem, hoje ouvi falar de um lindo marido para você, e vamos ver se Cuco pode acertar o assunto.
Então a menina sorriu e baixou a cabeça, de repente uma donzela e não mais uma criança. E Wang Lung disse a Cuco naquela mesma noite quando esteve no pátio interno:
— Vá ver se isso pode ser feito.
Mas dormiu mal ao lado de Lótus naquela noite. Acordava e começava a pensar na vida e em como O-lan fora a primeira mulher que ele conheceu e em como ela fora uma leal servidora a seu lado. E pensava no que a menina dissera, e se entristecia, porque, apesar de toda a sua estupidez, O-lan vira a verdade nele.
Poucos dias depois disso, mandou o segundo filho à cidade e assinou o contrato do noivado da segunda filha. Decidiram o dote, os presentes e as jóias e roupas para o dia do casamento. Então, Wang Lung descansou e pensou:
“Bem, agora meus filhos estão garantidos. Minha idiotazinha não sabe fazer mais nada senão sentar ao sol com seu paninho. O caçula vou guardar para a terra e ele não irá à escola, uma vez que dois sabem ler e isso basta.”
Sentia-se orgulhoso, pois tinha três filhos e um era estudante, outro comerciante e outro lavrador. Estava satisfeito, então, e não pensou mais nos filhos. Mas, querendo ou não, começou a pensar na mulher que lhe dera os filhos.
Pela primeira vez desde que vivia com ela, Wang Lung começou a pensar em O-lan. Mesmo nos dias em que ela chegara, ele não pensara nela por ela mesma nem por nada mais, porque ela era uma mulher e a primeira que ele havia conhecido. E parecia-lhe que, com uma coisa e outra, sempre andara ocupado e sem tempo a perder, e só agora, quando seus filhos estavam encaminhados e seus campos cuidados e descansando com a chegada do inverno, quando sua vida com Lótus estava regulada e ela lhe era submissa desde que ele lhe batera, parecia-lhe que tinha tempo para pensar no que quisesse, e pensou em O-lan.
Olhou para ela, dessa vez não porque ela fosse mulher, nem porque fosse feia e seca e amarela. Mas olhou com um estranho remorso e viu que ela emagrecera e sua pele ficara seca e amarela. Ela sempre fora uma mulher morena, de pele avermelhada e escura quando trabalhava em seus campos. Mas agora, havia muitos anos, ela não ia aos campos a não ser talvez na época da colheita, sendo que nos últimos dois anos, nem isso, pois ele não gostava que ela fosse, temendo que os homens dissessem:
— Sua mulher ainda trabalha no campo e você é rico?
No entanto, ele não se perguntara por que ela afinal andava querendo ficar em casa e por que caminhava cada vez mais devagar, e agora que pensava nisso, lembrava-se que, às vezes, de manhã, ouvia-a gemendo ao se levantar da cama e ao se abaixar para alimentar o forno. Só quando ele perguntava “O que é?”, ela parava de repente. Agora, olhando para ela e para a estranha inchação de seu corpo, ele sentiu remorso, embora não soubesse por quê, e argumentava consigo mesmo:
“Bem, não tenho culpa se não a amei como se ama uma concubina, uma vez que os homens não fazem isso.” E a si mesmo dizia como consolo: “Não bati nela e lhe dei dinheiro quando ela pediu.”
Mas, mesmo assim, não conseguia esquecer o que a menina lhe dissera e isso o incomodava, embora não soubesse por quê, visto que, quando expunha a questão, sempre fora um bom marido para ela e melhor que muitos.
Então porque não conseguia se livrar desse mal-estar em relação a ela, continuava olhando para ela, e quando ela se abaixou para varrer o chão de tijolos um dia depois de terem comido, ele viu sua cara ficar cinzenta por causa de alguma dor interna, e ela abriu a boca, arfando baixinho, e levou a mão à barriga, ainda abaixada como se fosse varrer. Ele lhe perguntou incisivo:
— O que foi?
Mas ela afastou o rosto e respondeu mansamente:
— É só a velha dor nas entranhas.
Então ele ficou olhando para ela e disse à filha menor:
— Pegue a vassoura e varra, pois sua mãe está doente.
E, a O-lan, disse com mais bondade do que falava com ela há anos:
— Vá deitar na cama, que vou mandar a menina lhe levar água quente. Não se levante.
Ela obedeceu devagar e sem responder, foi para o quarto e ele ouviu-a se arrastando até finalmente deitar-se gemendo baixinho. Então ele se sentou e ficou ouvindo esses gemidos até que não conseguiu suportar mais e se levantou para ir à cidade perguntar onde havia um consultório médico.
Encontrou o consultório recomendado por um escriba do mercado de cereais onde seu segundo filho estava agora e foi para lá. Na sala, o médico estava sentado sem fazer nada diante de um bule de chá. Era um homem velho com uma longa barba grisalha e óculos de latão grandes como olhos de coruja em cima do nariz. Usava uma suja túnica cinzenta cujas mangas compridas lhe cobriam completamente as mãos. Quando Wang Lung lhe contou quais eram os sintomas de sua mulher, ele contraiu os lábios e abriu uma gaveta da mesa em que estava sentado, pegou uma trouxa envolta num pano preto e disse:
— Vou agora mesmo.
Quando chegaram à cama de O-lan, ela dormia um sono leve e o suor lhe brotava no lábio superior e na testa como gotas de orvalho. O velho fez um sinal de cabeça negativo ao ver aquilo. Estendeu a mão seca e amarelada como a de um macaco e tomou seu pulso. Depois de tê-lo segurado por um bom tempo, tornou a fazer um gesto grave de cabeça, dizendo:
— O baço está aumentado e o fígado, doente. Ela tem no ventre uma pedra do tamanho de uma cabeça; o estômago desmanchou. O coração mal bate, e, sem dúvida, há vermes nele.
Ao ouvir essas palavras, o coração de Wang Lung parou de bater e ele ficou com medo e gritou com raiva:
— Bem, então não pode lhe dar um remédio?
O-lan abriu os olhos quando ele falou e olhou para os dois, sem entender, tonta de dor. Então o velho médico tornou a falar:
— É um caso difícil. Se não quiser garantia de restabelecimento, pedirei como honorários moedas de prata e lhe darei uma receita de ervas, coração de tigre seco e um dente-de-cão, que devem ser fervidos juntos para se obter um caldo que ela deverá beber. Mas, se quiser garantia de um restabelecimento completo, então são quinhentas moedas de prata.
Quando O-lan ouviu as palavras “quinhentas moedas de prata”, despertou subitamente daquele langor e disse fracamente:
— Não, minha vida não vale tanto. Um bom pedaço de terra pode ser comprado por esse preço.
Ao ouvi-la dizer isso, Wang Lung sentiu aqueles remorsos todos voltando e respondeu-lhe furioso:
— Não admito mortes em minha casa e posso pagar esse dinheiro.
Quando o velho médico o ouviu dizer “posso pagar esse dinheiro”, seus olhos brilharam com ganância, mas conhecia as penas da lei se não mantivesse a palavra e a mulher morresse; então disse, se bem que com pesar:
— Não. Quando vejo a cor do branco dos olhos dela, percebo que me enganei. Preciso de cinco mil moedas de prata para garantir a recuperação.
Então Wang Lung olhou para o médico em silêncio, entendendo com tristeza. Não possuía tantas moedas de prata no mundo a não ser que vendesse sua terra, mas sabia que, mesmo que vendesse a terra, não adiantaria, pois o que o médico dizia simplesmente era: “A mulher vai morrer.”
Saiu com o médico, então, e pagou-lhe dez moedas de prata e, depois que ele se foi, entrou na cozinha escura onde O-lan vivera a maior parte da vida e onde, agora que ela não estava ali, ninguém o veria, virou a cara para a parede escurecida e chorou.
Capítulo 26
Mas a morte não chegou de repente ao corpo de O-lan. Ela ainda não entrara na meia-idade, e a vida custava a querer deixá-la, de modo que ela esteve muitos meses moribunda na cama. Esteve assim durante os longos meses de inverno, e, pela primeira vez, Wang Lung e os filhos souberam o que ela havia sido na casa, e o conforto que lhes dera a todos sem que eles sentissem.
Parecia agora que ninguém sabia acender o capim e mantê-lo queimando no fogo, nem virar um peixe no caldeirão sem quebrá-lo ou queimá-lo de um lado antes que o outro estivesse cozido, nem se óleo de gergelim ou de soja era adequado para fritar este ou aquele legume. A sujeira das migalhas e da comida caída ficava embaixo da mesa e ninguém varria. Aí Wang Lung perdia a paciência com o cheiro daquilo e chamava um cão do pátio para comer tudo ou gritava para a filha menor vir recolher os restos e jogá-los fora.
E o caçula fazia de tudo para preencher o lugar da mãe junto ao velho seu avô, que estava indefeso como uma criança, e Wang Lung não conseguia fazer o velho entender por que O-lan não vinha mais lhe trazer chá e água quente nem ajudá-lo a se deitar e a levantar. E o velho ficava irritado e atirava a tigela de chá no chão como uma criança cheia de vontades porque a chamava e ela não vinha. Afinal, Wang Lung levou-o ao quarto de O-lan, mostrou-lhe a cama onde ela jazia, e o velho ficou olhando com aqueles olhos velados e meio cegos, murmurando e chorando porque via vagamente que havia algo errado.
A pobre idiota era a única que não sabia de nada e ficava só rindo e torcendo aquele paninho. Mas alguém tinha que pensar nela e trazê-la para casa à noite e alimentá-la e botá-la no sol durante o dia e fazê-la entrar se chovia. Tudo isso um deles tinha que lembrar. Mas até o próprio Wang Lung esquecia, e uma vez ela foi deixada ao relento uma noite inteira, e, na manhã seguinte, a pobre infeliz estava tiritando e chorando de madrugada, e Wang Lung ficou irritado e amaldiçoou o filho e a filha que haviam esquecido a pobre idiota que era irmã deles. Então, viu que eles não passavam de crianças tentando em vão substituir a mãe, e se segurou, e depois disso, cuidou pessoalmente da pobre idiota dia e noite. Se chovia, nevava ou ventava muito, levava-a para dentro de casa e fazia-a sentar-se em meio às cinzas quentes que caíam do forno da cozinha.
Durante os escuros meses de inverno em que O-lan esteve moribunda, Wang Lung não prestou atenção à terra. Pôs o trabalho de inverno e os homens sob o comando de Ching, e Ching trabalhava fielmente, vindo todas as manhãs à porta do quarto onde O-lan jazia, perguntando duas vezes por dia com aquele sussurro flautado como ela ia passando. E afinal Wang Lung já não conseguia suportar isso porque todas as vezes só podia dizer: “Hoje tomou uma sopinha de ave”, ou “hoje comeu uma papinha rala de arroz”.
Então mandou que Ching não viesse perguntar mais e que bastava que trabalhasse direito.
Durante todo o inverno frio e escuro, Wang Lung muitas vezes vinha sentar-se à cabeceira de O-lan, e se ela estivesse com frio, acendia um pote de barro com carvão e colocava-o ao lado da cama para aquecê-la, e toda vez ela murmurava num fio de voz:
— Bem, isso é muito caro.
Afinal, um dia, quando ela disse isso, ele não agüentou e deixou escapar:
— Não consigo suportar isso! Eu venderia toda a minha terra se pudesse curá-la!
Ela sorriu ao ouvir isso e disse num sussurro ofegante:
— Não... eu não... deixaria. Pois preciso morrer... algum dia. Mas a terra estará aí depois de mim.
Mas ele não queria falar da morte dela e se levantava e saía cada vez que ela tocava no assunto.
No entanto, porque sabia que ela tinha que morrer e aquilo era seu dever, um dia foi a uma funerária na cidade e olhou cada caixão que havia ali pronto para ser comprado, e escolheu um dos bons, feito de madeira maciça. Então o carpinteiro, que aguardava enquanto ele escolhia, disse com astúcia:
— Se levar dois, só paga dois terços do preço, e por que não compra um para o senhor e já fica garantido?
— Não, meus filhos podem fazer isso para mim — respondeu Wang Lung. Então, lembrando-se do pai, ficou aflito, pois ainda não tinha um caixão para o velho, e acrescentou: — Mas tem o meu velho pai, que vai morrer em breve, fraco como está das pernas e surdo e meio cego, então vou levar os dois.
E o homem prometeu dar uma nova mão de boa tinta preta nos caixões e mandá-los para a casa de Wang Lung. Então Wang Lung contou a O-lan o que havia feito, e ela ficou feliz que ele tivesse tomado boas providências para a morte dela.
Assim, ele ficava ao lado dela muitas horas por dia, sem falar muito, pois ela estava fraca, e, além do mais, eles nunca foram de muita conversa um com o outro. Muitas vezes, ela esquecia onde estava enquanto ele estava ali sentado calado, e falava de sua infância, e, pela primeira vez, Wang Lung via dentro de seu coração, embora, mesmo agora, só através de palavras tão breves como estas:
— Levarei as carnes só até a porta... sei muito bem que sou feia e não posso aparecer diante do grande senhor... — E, de novo, disse ofegante: — Não me bata... nunca tornarei a comer desse prato... — E repetia muitas vezes: — Meu pai... minha mãe... meu pai... minha mãe... — E ainda: — Sei muito bem que sou feia e não posso ser amada...
Quando ela disse isso, Wang Lung não conseguiu suportar e pegou sua mão, acalmando-a. Era uma mão grande e calejada, rígida, como se já estivesse morta. Admirou-se e ficou ainda mais triste consigo mesmo porque o que ela dizia era verdade e até mesmo enquanto lhe pegava a mão, desejando sinceramente que ela sentisse sua ternura, envergonhava-se por não conseguir ter carinho por ela nem se derreter todo como quando Lótus lhe fazia beicinho. Quando pegava sua mão rígida, não a amava, e até sua compaixão era prejudicada pela repugnância que sentia por ela.
Por isso, era mais bondoso com ela e comprava-lhe comidas especiais e sopas delicadas feitas de peixes de carne branca e coração de repolhos novos. Além do mais, não conseguia mais ter prazer com Lótus, pois, quando a procurava para se distrair do desespero da longa agonia da morte, não podia esquecer O-lan e, mesmo quando abraçava Lótus, perdia-a por causa de O-lan.
Havia momentos em que O-lan recobrava a consciência e, uma vez, chamou por Cuco, e, quando muito espantado, Wang Lung a chamou, O-lan se levantou trêmula e disse com bastante clareza:
— Bem, você pode ter vivido na residência do Senhor Velho e ter sido considerada bela, mas eu fui esposa de um homem e lhe dei filhos, e você ainda é escrava.
Cuco já ia lhe dar uma resposta irritada, mas Wang Lung implorou-lhe que não o fizesse e levou-a para fora dizendo:
— Ela já não sabe o que as palavras significam.
Quando ele voltou para o quarto, O-lan, que continuava com a cabeça apoiada nos braços, lhe disse:
— Quando eu morrer, não quero essa mulher nem a ama dela em meu quarto tocando nas minhas coisas. Se elas fizerem isso, mandarei meu espírito de volta para amaldiçoá-las. — Então, entrou naquele sono agitado, com a cabeça caída sobre o travesseiro.
Mas, pouco antes do Ano-novo, um dia, ela teve uma melhora súbita, como uma vela cintila vivamente no final, e voltou a ser o que não era há muito tempo. Sentou-se na cama, torceu o cabelo sozinha e pediu um chá. Quando Wang Lung entrou no quarto, ela lhe disse:
— Como o Ano-novo está chegando e não há bolos nem carnes prontos, tive uma idéia. Não quero aquela escrava na minha cozinha, mas queria que você mandasse buscar minha nora, que está prometida a nosso filho mais velho. Ainda não a vi, mas, quando ela vier, direi a ela o que fazer.
Wang Lung ficou feliz com o ânimo dela, embora não estivesse interessado em festejos naquele ano, e mandou Cuco interceder junto a Liu, o mercador de grãos, diante da tristeza do caso. E, pouco depois, Liu se dispunha a fazer isso, tendo sabido que O-lan não passaria do inverno, talvez, e, afinal de contas, a moça tinha 16 anos e já era mais velha que algumas que vão para a casa dos maridos.
Mas, por causa de O-lan, não houve festejos. A moça veio silenciosamente num palanquim, só com a mãe e uma velha criada, e a mãe voltou depois de ter entregado a filha a O-lan, mas a criada ficou a serviço da moça.
Agora as crianças foram retiradas do quarto onde haviam dormido, o quarto foi dado à nova nora, e tudo foi arranjado como deveria ser. Wang Lung não falou com a moça, uma vez que não era adequado, mas inclinou a cabeça gravemente quando ela fez a mesura e ficou satisfeito com ela, pois ela conhecia suas obrigações e andava pela casa calada e de olhos baixos. Além do mais, era uma moça atraente, bastante bonita, mas não tanto a ponto de se envaidecer disso. Era cuidadosa e correta no comportamento, e entrava no quarto de O-lan e a atendia, e isso aliviava a pena que Wang Lung sentia da esposa, que agora tinha uma mulher à sua cabeceira, e estava muito satisfeita.
O-lan passou mais de três dias satisfeita e depois teve outra idéia. Disse então a Wang Lung quando ele veio de manhã ver como ela havia passado a noite:
— Há outra coisa que quero fazer para poder morrer.
A isso, ele respondeu com irritação:
— Você não pode falar em morrer e me agradar!
Ela sorriu devagar, o mesmo sorriso lento que terminava sem lhe chegar aos olhos, e respondeu:
— Morrer eu devo, pois sinto a morte esperando em minhas entranhas, mas não morrerei antes que meu filho mais velho volte para casa e se case com esta boa moça que é minha nora e me serve tão bem, segurando com firmeza a bacia de água quente e sabendo lavar meu rosto quando suo de dor. Agora quero que meu filho venha para casa, porque preciso morrer, e quero que ele primeiro se case com essa moça, para que eu possa morrer tranqüilamente, sabendo que foi gerado seu neto e um bisneto para seu pai.
Mas estas eram muitas palavras para ela em qualquer época, mesmo na saúde, e, como há muitas luas ela não falava com tanta firmeza, Wang Lung ficou animado com a força em sua voz e com o vigor com que ela desejava aquilo. Não quis contrariá-la, embora preferisse ter mais tempo para fazer uma grande boda para o filho mais velho. Portanto, disse apenas com toda a sinceridade:
— Bem, vamos fazer isso. Hoje mandarei um homem ao sul procurar meu filho e trazê-lo para casa para se casar. Então você precisa me prometer que vai se fortalecer de novo e desistir de morrer e ficar boa, pois a casa é como um covil de animais sem você.
Disse isso para agradá-la e agradou, embora ela não tornasse a falar mais, deitando-se de novo, fechando os olhos e sorrindo um pouco.
Wang Lung despachou então o emissário e lhe disse:
— Diga a seu senhor moço que a mãe dele está morrendo e seu espírito não pode descansar até que ela o veja e o veja casado, e se ele preza a mim, à mãe e à casa dele, deve voltar o quanto antes, pois daqui a três dias terei os festejos preparados e as pessoas convidadas e ele estará casado.
E dito e feito. Mandou Cuco preparar a melhor festa que pudesse, chamando cozinheiros da loja da cidade para ajudá-la. Derramou dinheiro nas mãos dela e disse:
— Faça como seria feito na casa grande numa ocasião dessas, e há mais dinheiro que isso.
Então, foi ao vilarejo e convidou as pessoas, homens e mulheres, todo mundo que conhecia, e foi à cidade e convidou seus conhecidos das casas de chá, e dos mercados de grãos e todo mundo que conhecia. E disse ao tio:
— Convide quem quiser para o casamento de meu filho, qualquer um de seus amigos e qualquer um dos amigos de seu filho.
Disse isso porque sempre se lembrava quem era seu tio e sempre o tratava com cortesia como a um convidado de honra, desde o momento em que soube quem era o tio.
Na noite da véspera do casamento, o filho mais velho de Wang Lung chegou e entrou no quarto. Wang Lung esqueceu-se de todos os problemas que o rapaz lhe havia causado, pois já não via o filho há mais de dois anos, e ele já não era mais um rapaz, mas sim um homem alto e bem-apessoado, de constituição quadrada, faces angulosas coradas e cabelo preto e curto, luzidio e untado. E usava uma comprida túnica de cetim vermelho como as que se encontram nas lojas do sul, e uma jaqueta de veludo preto sem mangas, e o coração de Wang Lung explodiu de orgulho ao ver o filho, e ele esqueceu de tudo, menos que o rapaz era seu filho, e o levou até a mãe.
Então o jovem sentou-se à cabeceira da mãe e vieram-lhe lágrimas aos olhos ao vê-la assim, mas ele só disse coisas alegres como essa:
— Você está muito melhor do que disseram e a anos de distância da morte.
Mas O-lan disse simplesmente:
— Quero ver você casado e depois morrerei.
Agora a moça que ia se casar não podia, obviamente, ser vista pelo rapaz, e Lótus levou-a para sua residência a fim de prepará-la para o casamento, e ninguém poderia fazer isso melhor do que Lótus e Cuco e a mulher do tio de Wang Lung. Essas três levaram a moça e, na manhã do casamento, lavaram-na da cabeça aos pés, e enfaixaram novamente seus pés com tiras brancas novas por baixo das meias novas, e Lótus untou-a com um óleo de amêndoa perfumado que possuía. Depois, vestiram-na com roupas que ela trouxera de casa; seda branca florida junto à doce carne virginal e depois um casaco leve de lã de ovelha da espécie mais fina e mais frisada e, finalmente, o traje nupcial de cetim. E esfregaram-lhe lodo na testa e, com um cordão habilmente amarrado, arrancaram-lhe os pêlos de sua virgindade, a franja sobre a testa, e deixaram sua testa alta e lisa e quadrada de acordo com o novo estado. Então, pintaram-na com pó e tinta vermelha, e, com um pincel, alongaram suas sobrancelhas com dois riscos finos e colocaram-lhe na cabeça a coroa de noiva e o véu de contas, e calçaram-lhe os pezinhos com sapatos bordados, e pintaram-lhe as pontas dos dedos, perfumaram-lhe a palma das mãos e assim prepararam-na para o casamento. Em tudo a moça assentia, mas com relutância e tímida, como era apropriado e correto em seu caso.
Então, Wang Lung, seu tio, seu pai e os convidados esperaram na sala central e a moça entrou amparada por sua criada e pela mulher do tio de Wang Lung. Entrou recatada e corretamente de cabeça baixa, e caminhou como se não quisesse se casar com um homem e precisasse ser amparada para isso. Essa atitude demonstrava seu grande recato e Wang Lung ficou satisfeito e disse a si mesmo que ela era uma moça adequada.
Depois, o filho mais velho de Wang Lung entrou vestido com aquela túnica vermelha e aquela jaqueta preta. Tinha o cabelo macio e o rosto recém-barbeado. Atrás dele, vinham seus irmãos, e Wang Lung, ao vê-los, quase explodiu de orgulho com esse desfile de seus belos filhos, que continuariam depois dele a vida de seu corpo. Agora o velho, que não entendera nada do que estava acontecendo e só conseguia ouvir os fragmentos do que lhe gritavam, de repente entendeu e desatou a cacarejar sua risada desafinada, repetindo com sua velha voz aflautada:
— Tem casamento, e um casamento quer dizer filhos de novo e netos!
E riu com tanto entusiasmo que os convidados todos riram ao ver sua alegria, e Wang Lung pensou consigo mesmo que, se O-lan não estivesse de cama, aquele teria sido um dia feliz.
O tempo todo, Wang Lung olhava disfarçada e incisivamente para o filho para ver se ele olhava para a noiva, e o rapaz a olhava disfarçadamente, de soslaio, mas isso bastou, pois ficou satisfeito e alegre, e Wang disse a si mesmo com orgulho:
— Bem, escolhi alguém de quem ele gosta.
Então, o rapaz e a moça juntos cumprimentaram o velho e Wang Lung, depois entraram no quarto de O-lan, que se fizera vestir com sua boa túnica preta. Quando eles entraram, ela sentou-se na cama e em suas faces ardiam duas rodelas vermelhas, que Wang Lung equivocadamente julgou serem sinal de saúde, de modo que disse em voz alta:
— Agora ela vai ficar boa de novo!
E os dois jovens foram até ela e fizeram uma mesura. Ela deu uma pancadinha na cama e disse:
— Sentem aqui e bebam o vinho e comam o arroz de seu casamento, para que eu veja tudo isso. E este será o seu tálamo, uma vez que não o usarei mais e serei levada embora.
Nenhum dos dois quis responder-lhe quando ela falou isso, mas ambos permaneceram lado a lado, tímidos e calados. Então a mulher do tio de Wang Lung entrou, gorda e solene, compenetrada da importância da situação, trazendo duas tigelas de vinho quente, que os dois beberam separadamente, e depois misturaram e tornaram a beber, simbolizando que agora eram um só, e comeram arroz e misturaram o arroz, significando assim que sua vida agora estava unida e portanto estavam casados. Então tornaram a se inclinar para O-lan e Wang Lung e saíram juntos e cumprimentaram os convidados reunidos.
Então começou a festa e as salas e os pátios se encheram de mesas, do cheiro da comida e do barulho das risadas, pois os convidados vinham de todo canto, aqueles que Wang Lung convidara e, com eles, muitos que Wang Lung nunca vira, uma vez que se sabia que ele era um homem rico e a comida nunca seria contada nem faltaria em sua casa numa ocasião como aquela. E Cuco trouxera cozinheiros da cidade para preparar o banquete, pois haveria muitas iguarias das que não podem ser preparadas na cozinha de um lavrador, e os cozinheiros da cidade chegaram trazendo cestos de comida pronta que só precisava ser esquentada. Davam-se muita importância, faziam floreios com os aventais encardidos e andavam de um lado para outro, diligentemente. E todos comiam e repetiam e bebiam o quanto podiam agüentar, e estavam muito satisfeitos.
O-lan quis ficar com todas as portas e cortinas abertas para poder ouvir o movimento e as risadas e sentir o cheiro da comida, e perguntava a Wang Lung, que a toda hora vinha ver como ela estava:
— Todo mundo tem vinho? E o prato de arroz-doce no meio do banquete está bem quente, e puseram toda a medida de banha e açúcar e as oito frutas?
Quando ele lhe garantiu que tudo estava como ela desejava, O-lan ficou satisfeita e permaneceu deitada, escutando.
Então a festa acabou, os convidados foram embora e a noite caiu. E, com o silêncio instalado na casa e a vazante da alegria, as forças deixaram O-lan, que ficou cansada e enfraquecida, chamou os dois recém-casados e lhes disse:
— Agora, estou satisfeita e essa coisa dentro de mim pode fazer o que quiser. Meu filho, tome conta de seu pai e de seu avô, e minha filha, tome conta de seu marido e do pai de seu marido e de seu avô e da pobre idiota no pátio, ali está ela. E vocês não têm obrigação para com mais ninguém.
Isso foi dito por O-lan tendo em mente Lótus, com quem ela nunca falara. Então pareceu cair num sono agitado, mas eles aguardaram para ver se ela falava mais, e mais uma vez ela se levantou para falar. Porém, quando falou, foi como se não soubesse onde eles estavam ou onde ela estava de fato, pois disse, murmurando e virando a cabeça de um lado para o outro, os olhos fechados:
— Bem, se sou feia, ainda assim tive um filho; mesmo não passando de uma escrava, tenho um filho em minha casa. — E de novo disse de repente: — Como pode aquela mulher lhe dar de comer e cuidar dele como eu faço? Beleza não dá filhos a um homem!
E esqueceu-se de todos e ficou delirando. Então, Wang Lung fez sinal para que eles fossem embora e sentou-se ao lado dela enquanto ela dormia e acordava, e olhou para ela. E se odiou porque até mesmo enquanto ela estava morrendo, ele reparava na maneira horrível como aqueles lábios arroxeados se afastavam dos dentes. Então, enquanto a olhava, ela arregalou os olhos que pareciam cobertos por uma névoa estranha, pois ela o encarava de novo fixamente, como se se perguntasse quem ele era. De repente, sua cabeça caiu do travesseiro redondo onde estava deitada, ela estrebuchou e morreu.
Com O-lan morta, Wang Lung sentia que não conseguia estar ao seu lado e chamou a mulher do tio para lavar o corpo para ser sepultado. Terminado esse procedimento, não quis tornar a entrar no quarto, mas deixou que a mulher do tio, o primogênito e a nora levantassem o corpo da cama e o colocassem no grande caixão que comprara. Mas, para se consolar, ocupou-se indo à cidade chamar quem selasse o caixão segundo o costume e foi procurar um geomante para perguntar qual seria o dia propício para enterros. Encontrou um bom dia dali a três meses, e esse era o primeiro dia que o geomante conseguiu encontrar, então Wang Lung lhe pagou, foi para o templo na cidade e discutiu com o abade o preço do aluguel de uma vaga onde deixar o caixão durante três meses, e o caixão de O-lan foi levado para ficar lá até o dia do sepultamento, pois Wang Lung achava que não conseguiria tê-lo diante de seus olhos em casa.
Então Wang Lung fez escrupulosamente tudo o que deveria ser feito pela falecida. Mandou fazer trajes de luto para si mesmo e para os filhos, seus sapatos foram feitos de pano branco grosso, que é a cor do luto, amarraram nos tornozelos tiras de pano branco, e as mulheres da casa amarraram os cabelos com cordões brancos.
Depois disso, não conseguindo suportar dormir no quarto onde O-lan morrera, Wang Lung levou seus pertences e se mudou para os aposentos onde Lótus morava e disse ao filho mais velho:
— Vá com sua mulher para o quarto onde sua mãe viveu e morreu, onde você foi concebido e parido, e gere ali seus próprios filhos.
E os dois se mudaram para o quarto, e ficaram satisfeitos.
Então, como se a morte não pudesse sair facilmente da casa onde entrara uma vez, o velho, o pai de Wang Lung, que estava desesperado desde que vira o corpo rígido de O-lan ser colocado no caixão, deitou-se uma noite para dormir e, quando a segunda filha entrou pela manhã para lhe levar o chá, lá jazia ele morto na cama, a barba rala espetada no ar e a cabeça caída para trás.
Ela gritou ao ver aquilo e correu chorando para o pai e Wang Lung encontrou o velho assim; seu corpo leve rígido e velho estava seco, frio e magro como um pinheiro nodoso. Já morrera há horas, talvez assim que se tivesse deitado na cama. Então, Wang Lung lavou pessoalmente o velho, colocou-o delicadamente no caixão que lhe comprara, selou-o e disse:
— No mesmo dia sepultaremos esses dois mortos de nossa família, e tomarei um bom pedaço de terra da colina para sepultá-los juntos. Quando eu morrer, serei sepultado ali também.
Então fez como disse que faria. Depois de selar o caixão do velho, colocou-o em cima de dois bancos na sala central, e lá ele ficou até chegar o dia escolhido. E parecia a Wang Lung que era um consolo para o velho estar ali, mesmo morto, e ele se sentia próximo ao pai no caixão, pois Wang Lung pranteara o pai, mas não sua morte, porque o senhor era muito idoso e estava há muitos anos apenas meio vivo.
Então, no dia escolhido pelo geomante em plena primavera, Wang Lung mandou chamar sacerdotes do templo taoísta, que vieram vestidos com vestes amarelas e os cabelos compridos amarrados no alto da cabeça. Chamaram também sacerdotes dos templos budistas, que vieram com suas compridas vestes cinzentas, a cabeça raspada e as nove cicatrizes sagradas, e tocaram tambores e cantaram uma noite inteira pelos dois que estavam mortos. E sempre que paravam de cantar, Wang Lung lhes punha dinheiro na mão e eles recobravam o fôlego e cantaram sem parar até o dia raiar.
Wang Lung escolhera um bom lugar para as sepulturas, à sombra de uma tamareira numa colina, e Ching já mandara escavar as covas e cercá-las com um muro de barro, e havia espaço lá dentro para o corpo de Wang Lung e cada um de seus filhos com as mulheres, e também para os filhos dos filhos. Essa terra Wang Lung não usou de má vontade, embora fosse alta e boa para trigo, porque era sinal do arraigamento de sua família em sua própria terra. Mortos e vivos descansariam em sua própria terra.
Então, no dia marcado, depois que os sacerdotes terminaram a noite de cânticos, Wang Lung vestiu-se com uma túnica de sarja branca e deu uma igual ao tio e ao filho do tio, a cada um de seus filhos e à mulher de seu filho e às suas duas filhas. Mandou vir cadeiras da cidade para transportá-los, pois não ficava bem caminharem até o local do sepultamento como se ele fosse um homem pobre e ordinário. Então, pela primeira vez, foi transportado nos ombros de homens atrás do caixão onde estava O-lan. Mas, atrás do caixão de seu pai, ia seu tio. Até Lótus, que enquanto O-lan era viva não se apresentava diante dela, agora que ela estava morta, vinha num palanquim em sinal de respeito à primeira mulher de seu marido. Também para a mulher e o filho do tio, Wang Lung alugara palanquins e, para todos eles, providenciou túnicas de sarja. Até mesmo para a pobre idiota mandou fazer uma túnica, alugou um palanquim e instalou-a ali, embora ela estivesse tremendamente perplexa, dando risadas estridentes, quando só se devia ouvir choro.
Então, lamentando e chorando ruidosamente, o cortejo seguiu para as sepulturas, acompanhado por Ching e os trabalhadores a pé, calçados com sapatos brancos. E Wang Lung ficou parado ao lado das duas sepulturas. Mandara trazer do templo o caixão de O-lan, que foi colocado no chão enquanto o velho era enterrado primeiro. E Wang Lung ficou observando, com uma dor dura e seca, sem chorar alto como os outros, pois não havia lágrimas em seus olhos, porque lhe parecia que o que acontecera, acontecera, e ele não podia fazer mais do que havia feito.
Mas, quando a terra foi coberta e as sepulturas foram alisadas, afastou-se em silêncio e dispensou o palanquim, indo sozinho para casa. E em seu pesar se destacava estranhamente um único pensamento claro que lhe doía, e era isso: desejava não ter tomado as duas pérolas de O-lan naquele dia em que ela lavava suas roupas no lago, e nunca mais suportaria ver Lótus usá-las de novo nas orelhas.
Assim pesaroso, foi para casa dizendo a si mesmo:
“Aí nessa minha terra está enterrada mais que a primeira boa metade de minha vida. É como se metade de mim estivesse enterrada aí, e agora a vida em minha casa é diferente.”
E, de repente, ele chorou um pouco e enxugou os olhos com as costas da mão, como uma criança.
Capítulo 27
Durante esse tempo todo, Wang Lung mal pensara nas colheitas, ocupado como andara com os esponsais e os funerais em sua casa, mas um dia, Ching foi a ele e disse:
— Agora que a alegria e a tristeza terminaram, tenho que lhe falar sobre a terra.
— Fale, então — respondeu Wang Lung. — Ultimamente, quase não penso se tenho ou não terras, a não ser para enterrar meus mortos.
Ching esperou um pouco calado em respeito às palavras de Wang Lung, depois disse delicadamente:
— Que os Céus possam evitar isso, mas parece que este ano haverá uma enchente como nunca houve, pois as águas estão subindo sobre a terra, apesar de ainda não ser verão, e ser muito cedo para isso acontecer.
Mas Wang Lung disse com firmeza:
— Ainda não recebi nada de bom daquele velho no Céu. Incenso ou não incenso, ele é igual na desgraça. Vamos ver a terra. — E levantou-se ao dizer isso.
Ching era um homem medroso e tímido, e por piores que fossem os tempos, não se atrevia a blasfemar contra o Céu. Dizia somente: “É a vontade do Céu”, e aceitava enchentes e secas com mansidão. Wang Lung não era assim. Saiu em suas terras, indo neste e naquele campo, e viu o que Ching dizia. Todas as glebas ao longo do fosso, ao longo dos cursos d’água, que ele comprara do Senhor Velho da Casa de Hwang, estavam encharcadas pela água que filtrava do fundo, de modo que o bom trigo de sua terra ficara fraco e amarelo.
O próprio fosso parecia um lago e os canais eram rios, rápidos e encrespados, formando pequenos rodamoinhos, e até um idiota poderia ver que, com as chuvas de verão ainda por chegar, haveria naquele ano uma enchente poderosa e homens e mulheres e crianças passando fome novamente. Então, Wang Lung correu para lá e para cá em suas terras, com Ching calado como uma sombra atrás dele, e eles calcularam que terra podia ser cultivada com arroz e que terra já estava alagada antes que o jovem arroz pudesse ser plantado nela. E olhando para os canais já quase transbordando, Wang Lung blasfemou e disse:
— Agora esse velho do Céu vai se divertir, pois vai olhar para baixo e ver gente afogada ou passando fome. É disso que o maldito gosta.
Falou alto e com raiva, de modo que Ching estremeceu e disse:
— Mesmo assim, ele é maior que qualquer um de nós, e não fale assim, meu amo.
Mas, desde que enriquecera, Wang Lung ficara inconseqüente e se revoltava à vontade. Voltou para casa resmungando, ao pensar na água inundando suas terras e suas boas plantações.
Então, tudo aconteceu como Wang Lung previra. O rio do norte rompeu os diques, primeiro os mais afastados, e quando viram o que acontecera, os homens correram de um lado para outro a fim de arranjar dinheiro para consertá-los, e cada homem dava o que podia, pois era do interesse de cada um manter o rio em seu leito. O dinheiro foi confiado então ao magistrado do distrito, um homem novo que acabara de assumir. Ora, esse magistrado era um homem pobre e nunca havia visto tanto dinheiro na vida, tendo sido só recentemente elevado àquela posição pela generosidade do pai, que investira todo o dinheiro que tinha e o que conseguiu tomar emprestado para comprar essa colocação para o filho, para que por meio dele a família pudesse adquirir alguma riqueza. Quando o rio tornou a transbordar, o povo foi aos brados reclamando à casa do magistrado porque ele não cumprira a promessa de consertar os diques. O homem correu para se esconder, porque gastara na própria casa o dinheiro, que chegava a três mil moedas de prata. E a gente do povo invadiu sua casa gritando e exigindo sua vida pelo que ele havia feito. Ao ver que seria morto, o magistrado fugiu e pulou dentro d’água e se afogou, acalmando assim as pessoas.
Mas, mesmo assim, o dinheiro acabara, e o rio rompeu mais um dique e mais outro antes de se contentar com o espaço que tinha. Depois derrubou aquelas paredes de barro até ninguém poder dizer onde houvera um dique naquela região toda, e engrossou e avançou como um mar sobre as boas terras de lavoura, e o trigo e o arroz novo ficaram embaixo d’água.
Um por um, os vilarejos se transformaram em ilhas e os homens viam a água subindo. Quando chegava a dois palmos de suas casas, eles amarravam camas e mesas e colocavam as portas das casas sobre elas fazendo balsas, e amontoavam todas as cobertas e roupas que conseguiam além de suas mulheres e seus filhos sobre essas jangadas. E a água chegou às casas de barro e amoleceu as paredes e rompeu-as e elas se dissolveram nas águas como se nunca tivessem existido. Depois, como se a água da terra atraísse a água do céu, choveu como se a terra estivesse seca. Dia após dia, chovia.
Wang Lung sentava-se à porta e olhava para as águas que ainda estavam bastante longe de sua casa, construída sobre uma vasta colina alta. Mas ele viu as águas cobrindo a terra e receou que cobrissem as sepulturas recém-construídas, mas não cobriram, embora as ondas de água amarelada e barrenta lambessem avidamente em volta dos mortos.
Não houve nenhum tipo de colheita naquele ano, e, em toda parte, havia gente passando fome e revoltada com o que lhe acontecera de novo. Alguns foram para o sul, e outros que eram ousados e estavam furiosos e não se preocupavam com o que faziam se juntaram a bandos de ladrões que prosperavam em toda parte no campo. Estes bandos até tentaram sitiar a cidade, de modo que o povo mantinha os portões da muralha sempre trancados, a não ser um pequeno, chamado portão da água oeste, que era vigiado por soldados e fechado também à noite. E, além dos que roubavam e dos que foram para o sul trabalhar e mendigar, como Wang Lung fizera com seu velho pai, sua mulher e seus filhos, havia outros que eram velhos e cansados e tímidos e não tinham filhos, como Ching, que ficaram e passaram fome e comiam capim e as folhas que podiam encontrar nos lugares altos e muitos morreram na terra e na água.
Então, Wang Lung viu que uma fome como nunca se vira estava chegando, pois as águas não baixaram na época de semear o trigo para o inverno e não poderia haver colheita no próximo ano. E cuidou bem de sua casa e do gasto de dinheiro e alimentos, tendo discussões inflamadas com Cuco porque durante muito tempo ela ainda ia à cidade todos os dias comprar carne. Afinal ficou feliz, pois, uma vez que a inundação era inevitável, a água separara sua casa da cidade, de modo que ela não podia ir ao mercado quando quisesse, e ele só permitia que os botes saíssem com sua autorização, e Ching obedecia a ele e não a Cuco, apesar de toda a sua lábia.
Wang Lung não deixou nada ser comprado nem vendido depois do início do inverno sem sua ordem e poupou zelosamente o que tinham. Diariamente, entregava à nora a comida necessária naquele dia para a casa, e a Ching, a que os trabalhadores deveriam ter, embora lhe doesse alimentar homens ociosos, e lhe doía tanto que, afinal, quando o frio do inverno chegou e as águas congelaram, mandou os homens para o sul, a fim de mendigarem e trabalharem até a chegada da primavera, quando poderiam voltar para ele. Só a Lótus dava escondido açúcar e óleo, porque ela não estava acostumada a enfrentar provações. Até mesmo no Ano-novo, só comeram um peixe pescado por eles próprios no lago e um porco da fazenda morto por eles.
Ora, Wang não era tão pobre como queria aparentar, pois possuía boa prata escondida nas paredes onde seu filho dormia com a mulher, sem o conhecimento do casal, e possuía boa prata e até algum ouro escondidos num vaso no fundo do lago do campo mais próximo, e mais um pouco escondido entre as raízes dos bambus. Tinha ainda grãos do ano anterior, que não vendera no mercado, e não havia perigo de fome em sua casa.
Mas estava cercado de gente passando fome e lembrava-se dos gritos dos famintos no portão da casa grande que ouvira ao passar, e sabia que muitos deles o odiavam porque ele ainda tinha o que comer e com que alimentar os filhos, então conservava as portas fechadas e não deixava entrar nenhum desconhecido. Mas, mesmo assim, sabia muito bem que, não fora por seu tio, esse cuidado não o teria salvo nessa época de ladrões e anarquia. Bem sabia Wang Lung que, não fora pelo poder do tio, sua casa já teria sido assaltada para lhe levarem a comida, o dinheiro e as mulheres. Então, era gentil com o tio, o filho do tio e a mulher do tio e os três eram como hóspedes em sua casa, tomando chá antes dos outros e sendo os primeiros a meter os pauzinhos nas tigelas na hora das refeições.
Esses três viram muito bem que Wang Lung os temia e ficaram arrogantes, cheios de exigências, queixando-se do que comiam e bebiam. E especialmente a mulher se queixava, pois sentia falta das iguarias que comia na outra residência e queixou-se ao marido e os três queixaram-se a Wang Lung.
Wang Lung via que o tio estava ficando velho, preguiçoso e descuidado e, por ele só, não teria se dado ao trabalho de reclamar, mas o jovem, seu filho e a mulher o atiçavam, e, um dia, quando estava na porteira, Wang Lung ouviu esses dois insistindo com o velho:
— Bem, ele tem dinheiro e comida, então vamos lhe pedir dinheiro.
E a mulher disse:
— Nunca tornaremos a ter uma ocasião como essa, pois ele sabe que teria sido roubado e saqueado e estaria com a casa em ruínas se você não fosse tio dele e irmão do pai dele, já que está abaixo do chefe dos Barbas Vermelhas.
Wang Lung, estando ali sem que o vissem, ao ouvir isso, ficou com tanta raiva que parecia que ia explodir, e, com muito esforço, ficou calado, tentando planejar o que poderia fazer com aqueles três, mas não conseguiu pensar em nada. Portanto, quando o tio foi a ele no dia seguinte, dizendo: “Bem, meu bom sobrinho, me dê um punhado de prata para eu comprar um cachimbo e um pouco de fumo, e minha mulher está esfarrapada e precisa de uma túnica nova”, não conseguiu responder, mas entregou ao velho as cinco moedas de prata que tinha na cinta, embora rangendo os dentes disfarçadamente, e pareceu-lhe que nem na época em que quase não tinha dinheiro separara-se dele tão a contragosto.
Então, menos de dois dias depois, o tio tornou a lhe pedir dinheiro. Wang Lung gritou afinal:
— Bem, e logo todos morreremos de fome?
E o tio riu e disse despreocupadamente:
— Você está embaixo de um céu amigo. Há homens menos ricos que você que estão pendurados nos caibros de suas casas incendiadas.
Ao ouvir isso, Wang Lung começou a suar frio e deu o dinheiro sem uma palavra. E assim, embora eles passassem sem carne na casa, aqueles três precisavam comer carne, e embora Wang Lung quase não pusesse fumo na boca, o tio pitava o cachimbo sem parar.
O filho mais velho de Wang Lung andava absorto no casamento, mal vendo o que acontecia, mas guardava ciosamente a mulher dos olhares do primo, de modo que os dois já não eram amigos, mas sim inimigos. O filho de Wang Lung quase não deixava a mulher sair do quarto, a não ser nas noites em que o outro saía com o pai, obrigando-a a ficar trancada durante o dia. Mas quando viu aqueles três fazendo o que queriam com seu pai, ficou irritado, pois tinha um temperamento esquentado, e disse:
— Bem, se está mais interessado nesses três tigres do que em seu filho e a mulher dele, a mãe de seus netos, é uma coisa estranha, e seria melhor irmos morar em outro lugar.
Wang Lung lhe disse claramente então o que não dissera a ninguém:
— Odeio mais esses três do que tudo na vida e se pudesse pensar num jeito, eu o faria. Mas seu tio é chefe de uma horda de ladrões violentos, e se eu o alimento e o paparico, estamos salvos, e ninguém pode demonstrar raiva deles.
Quando o primogênito ouviu isso, quase que seus olhos saltaram das órbitas, tão arregalados ficaram, mas quando pensou um pouco naquilo, ficou com mais raiva ainda e disse:
— Que tal esse jeito? Vamos jogá-los todos na água uma noite. Ching pode empurrar a mulher, pois ela é gorda e mole e indefesa, e eu empurro o jovem meu primo, de quem tenho ódio, pois ele não tira os olhos da minha mulher, e você pode empurrar o homem.
Mas Wang Lung era incapaz de matar; embora preferisse matar o tio a matar o boi, não era capaz de matar mesmo quando odiava e disse:
— Não, e mesmo se eu pudesse fazer isso, empurrar o irmão de meu pai na água, eu não faria, pois, se os outros ladrões ouvissem falar nisso, o que faríamos? Com ele vivo, estamos seguros, com ele morto, somos como as outras pessoas que têm alguma coisa e estão em perigo em épocas como esta.
Então os dois ficaram calados, cada qual pensando no que poderia fazer, e o rapaz viu que o pai tinha razão e a morte era fácil demais pelo transtorno e deveria haver outro meio. E Wang Lung falou alto afinal, sonhando:
— Se houvesse uma maneira de mantê-los aqui mas inofensivos e sem desejo, que bom seria, mas não existe mágica como essa!
Então o rapaz bateu palmas e exclamou:
— Bem, você me disse o que fazer! Vamos comprar ópio e mais ópio e deixá-los fumar à vontade, como fazem os ricos. Vou fingir estar de bem com meu primo de novo e atraí-lo para a casa de chá na cidade onde se pode fumar e podemos comprar o ópio para meu tio e a mulher.
Mas Wang Lung, uma vez que a idéia não partiu dele, ficou em dúvida.
— Vai custar muito — disse lentamente —, pois ópio é caro como jade.
— Bem, e é mais caro que jade tê-los em cima de nós assim — argumentou o rapaz — e, além do mais, agüentar a arrogância deles e o rapaz olhando para minha mulher.
Mas Wang Lung não quis consentir logo, pois isso não era uma coisa tão fácil de fazer e custaria uma boa bolsa de prata.
Não se sabe se o plano algum dia seria posto em prática e eles teriam continuado como estavam até as águas resolverem baixar se não tivesse acontecido uma coisa.
Esta coisa foi que o filho do tio de Wang Lung pôs os olhos na segunda filha de Wang Lung, que era sua prima e, pelo sangue, o mesmo que sua irmã. Ora, a segunda filha era uma menina lindíssima, parecida com o segundo filho, que era comerciante, com a mesma delicadeza e vivacidade dele, mas sem sua pele amarela, sendo branca e clara como a flor da amendoeira, com um nariz pequeno, os lábios vermelhos e finos e os pés miúdos.
Uma noite, quando vinha sozinha da cozinha, começou a gritar ao ser agarrada à força pelo primo, que lhe apertou os seios. Wang Lung saiu correndo e bateu na cabeça do homem, que parecia um cachorro, sem querer largar um pedaço de carne roubada, de modo que o pai teve que arrancar a filha de suas garras. Então o homem deu uma risada grossa e disse:
— É só brincadeira, e ela não é minha irmã? Um homem pode fazer algum mal à irmã? — Mas os olhos dele brilhavam de luxúria enquanto ele falava, e Wang Lung resmungou e puxou a menina e mandou-a para o quarto.
E Wang Lung contou ao filho naquela noite o que acontecera, e o rapaz ficou sério e disse:
— Precisamos mandar a menina para a casa do noivo na cidade. Mesmo que o comerciante Liu diga que é um ano muito ruim para o casamento, precisamos mandá-la, pois não podemos conservá-la virgem com esse tigre excitado na casa.
Então, Wang Lung fez isso. Foi no dia seguinte à casa do mercador na cidade e disse:
— Minha filha tem 13 anos, já não é uma menina e está pronta para o casamento.
Mas Liu estava hesitante e disse:
— Não tenho lucro suficiente este ano para começar uma família em casa.
Agora Wang Lung tinha vergonha de dizer: “Tenho o filho do meu tio em casa e ele é um tigre”, então disse apenas:
— Não quero ter a responsabilidade de cuidar dessa donzela, pois sua mãe morreu e ela é bonita e está em idade de engravidar, e minha casa é grande e cheia de gente, e não posso vigiá-la o tempo todo. Uma vez que vai pertencer à sua família, deixe que sua virgindade seja guardada aí, e case-a quando quiser.
Então o mercador, sendo um homem bondoso, respondeu:
— Bem, se é assim, que venha a moça e falarei com a mãe de meu filho, e ela pode vir e estar em segurança em casa com a sogra, e mais ou menos depois da próxima colheita, poderá casar-se.
Assim foi resolvida a questão, e Wang Lung foi embora satisfeito.
Mas, no caminho para a porta da cidade, onde Ching tinha um barco esperando por ele, Wang Lung passou por uma casa onde se vendiam tabaco e ópio, e entrou para comprar um pouco de fumo picado para pôr em seu cachimbo d’água à noite. Enquanto o vendedor pesava o fumo, Wang Lung lhe perguntou constrangido:
— Quanto é seu ópio, se você tem?
E o vendedor disse:
— Não é permitido atualmente vender ópio sem receita, e não vendemos, mas se quiser comprar e tiver o dinheiro, ele é pesado na sala atrás desta, uma moeda de prata a onça.
Então Wang Lung não quis pensar mais no que fazia e disse depressa:
— Vou levar seis onças.
Capítulo 28
Então, depois que a segunda filha foi mandada embora e Wang Lung estava livre da ansiedade em relação a ela, disse um dia ao tio:
— Uma vez que é o irmão do meu pai, cá está um tabaco um pouco melhor para você.
E abriu o vidro de ópio que era pegajoso e tinha um cheiro doce, e o tio de Wang Lung pegou-o e cheirou-o, e riu e ficou satisfeito e disse.
— Bem, já fumei um pouco disso, mas não muitas vezes, pois é muito caro, mas gosto muito.
E Wang Lung lhe respondeu, fingindo indiferença:
— Só comprei um pouco para meu pai quando ele ficou velho e não conseguia dormir à noite. Hoje encontrei o que não foi usado e pensei: “Está aí o pai do meu irmão, e por que não fica com ele antes de mim, que sou mais moço e ainda não preciso?” Então tome e fume quando quiser ou estiver com alguma dorzinha.
Então o tio de Wang Lung pegou-o avidamente, pois tinha um perfume doce e era uma coisa que só os homens ricos usavam, e comprou um cachimbo e fumou o ópio, deitado o dia inteiro na cama. Então Wang Lung tomou providências para que fossem comprados cachimbos e deixados aqui e ali e fingiu fumar também, mas só levava o cachimbo para o quarto e o deixava ali sem acender. E não permitia que seus dois filhos na casa e Lótus tocassem no ópio, dizendo como desculpa que era muito caro, mas recomendava-o para o tio e a mulher e o filho do tio, e a casa se encheu do cheiro adocicado da fumaça e Wang Lung não reclamava de gastar dinheiro com isso porque comprava sua paz.
E aconteceu que um dia, no fim do inverno, quando as águas começavam a recuar e Wang Lung podia caminhar por suas terras, seu filho mais velho o seguiu e lhe disse com orgulho:
— Bem, logo haverá mais uma boca na casa e será a boca de seu neto.
Então, Wang Lung, ao ouvir isso, virou-se e riu e esfregou as mãos e disse:
— Este é mesmo um grande dia!
E riu de novo, e foi procurar Ching, mandando-o ir à cidade comprar peixe e boa comida, que mandou para a mulher do filho dizendo:
— Coma, fortaleça o corpo de meu neto.
Durante toda a primavera, a idéia desse nascimento servia de consolo a Wang Lung. Quando estava ocupado com outras coisas, pensava nisso, e quando estava perturbado, pensava nisso e se reconfortava.
À medida que a primavera se transformava em verão, as pessoas que haviam fugido da enchente voltaram, uma por uma e grupo por grupo, esgotadas e cansadas por causa do inverno e felizes de estar de volta, embora no lugar onde se erguiam suas casas agora não houvesse nada senão a lama amarela da terra encharcada. Mas, dessa lama, podiam-se construir novamente casas, e podiam-se comprar esteiras para cobri-las, e muitos procuraram Wang Lung para lhe pedir dinheiro emprestado, e ele emprestava a juros altos, vendo quão grande era a demanda por ele, e exigindo sempre terra como garantia. E, com o dinheiro emprestado, as pessoas semearam a terra que estava fértil com a riqueza deixada pelas águas, e quando precisavam de bois e sementes e arados e não podiam pedir mais dinheiro emprestado, algumas vendiam terras e parte dos campos para poder semear o restante. E dessas, Wang Lung comprou terras e mais terras, e comprou barato, uma vez que os homens precisam de dinheiro.
Mas alguns não queriam vender sua terra, e quando não tinham com que comprar sementes, arados e bois, vendiam as filhas, e houve aqueles que vieram a Wang Lung para vender, porque era sabido que ele era rico e poderoso e tinha bom coração.
E ele, pensando constantemente na criança por nascer e nas outras que nasceriam de seus filhos quando todos se casassem, comprou cinco escravas, duas de mais ou menos 12 anos com pés grandes e ventres fortes, e duas mais moças para servi-los e buscar e carregar, e uma para servir a pessoa de Lótus, pois Cuco ficara velha e, desde que a segunda filha fora embora, não havia outra pessoa para trabalhar na casa. E comprou as cinco no mesmo dia, pois era um homem rico o bastante para realizar logo o que decidia.
Então, um dia, muito depois disso, chegou um homem trazendo uma menina delicada de uns sete anos, querendo vendê-la, pois ela era muito pequena e fraca. Mas Lótus a viu e gostou dela e disse com obstinação:
— Agora, essa eu quero, porque é muito bonita, e a outra é grosseira e cheira a carne de cabra, e não gosto dela.
Wang Lung olhou para a criança e, vendo seus belos olhos assustados e sua magreza de dar dó, disse, em parte para dar prazer a Lótus e em parte para ver a menina alimentada e gorda:
— Bem, que seja assim, se você quiser.
Então, comprou a criança por vinte moedas de prata e ela morava na residência interna e dormia aos pés da cama de Lótus.
Agora parecia a Wang Lung que poderia ter paz na casa. Quando as águas baixaram e o verão chegou e a terra estava para ser plantada com boas sementes, ele andou de um lado para outro examinando cada gleba e discutiu com Ching a qualidade de cada solo e o que deveria ser plantado para a fertilidade da terra. E sempre levava consigo o filho caçula, que deveria estar trabalhando na terra depois dele, para que aprendesse. E Wang Lung nunca olhava para ver se ele ouvia ou não, pois o rapaz sempre andava de cabeça baixa com uma cara emburrada, e ninguém sabia o que ele pensava.
Mas Wang Lung não via o que o rapaz fazia, só via que caminhava ali calado atrás do pai. E quando tudo estava planejado, Wang Lung voltou para casa satisfeito, dizendo a si mesmo:
— Já não sou jovem e não preciso mais fazer trabalho braçal, já que tenho homens em minha terra e filhos e paz em casa.
Mas, quando entrava em casa, não havia paz. Embora tivesse dado uma mulher ao filho e comprado escravas para servir a todos, e embora seu tio e a mulher de seu tio recebessem ópio suficiente para seu prazer o dia todo, mesmo assim não havia paz. E mais uma vez era por causa do filho de seu tio e de seu filho mais velho.
Parecia que o filho de Wang Lung não conseguia superar seu ódio pelo primo ou a profunda desconfiança de que o primo era mau. Já havia visto bem com os próprios olhos quando era garoto que o rapaz, seu primo, era cheio de maldades de todo tipo, e as coisas chegaram a um ponto em que o filho de Wang Lung só saía de casa para ir à casa de chá se o outro fosse também, e vigiava o primo, só saindo quando ele saía. E desconfiava de suas más intenções com as escravas e até com Lótus, embora isso não tivesse fundamento, pois Lótus engordava e envelhecia dia a dia e há muito tempo não se interessava por mais nada senão suas comidas e seus vinhos e não se daria ao trabalho de olhar para o rapaz se ele se aproximasse dela. Até se alegrava com o fato de Wang Lung a procurar cada vez menos à medida que ficava mais velho.
Agora, quando Wang Lung chegou em casa dos campos com o filho caçula, o primogênito chamou-o a um canto e disse:
— Não vou mais suportar meu primo andando pela casa com aqueles olhares, todo desabotoado, de olho nas escravas. — Não se atrevia a dizer mais o que pensava: “E até tem a ousadia de olhar para sua própria mulher”, porque se lembrava com uma náusea no estômago que ele mesmo andara rondando essa mulher de seu pai, e agora, vendo-a gorda e mais velha como ela estava, não podia imaginar que tivesse feito isso, e ficou envergonhadíssimo e por nada neste mundo lembraria isso ao pai. Então calou sobre isso e só mencionou as escravas.
Wang Lung, que havia voltado dos campos bem-disposto e animado porque a água saíra da terra e o ar estava seco e quente e porque estava feliz que o filho mais moço tivesse ido com ele, reagiu com raiva a esse novo problema em sua casa.
— Bem, você é uma criança boba por estar sempre pensando nisso. Apaixonou-se demais por sua mulher, e isso não é conveniente, pois um homem não deve se preocupar com a mulher que os pais lhe deram mais do que com qualquer coisa no mundo. Não fica bem para um homem amar sua mulher com um amor tolo e exagerado, como se ela fosse uma prostituta.
Então, o jovem ficou magoado com essa reprimenda do pai, pois o que mais temia era ser acusado de não agir direito, como se fosse ordinário e ignorante, e respondeu logo:
— Não é por minha mulher. É porque isso não fica bem na casa de meu pai.
Mas Wang Lung não o escutou. Estava meditando com raiva e tornou a dizer:
— E nunca vou me livrar desse problema em minha casa entre macho e fêmea? Cá estou eu, envelhecendo. Meu sangue esfria, afinal estou livre de desejos, e eu gostaria de um pouco de sossego. Preciso agüentar então os desejos e os ciúmes de meus filhos? — E depois de um momento de silêncio, tornou a gritar: — Bem, e o que quer que eu faça?
Agora o rapaz havia esperado pacientemente que a raiva do pai passasse, pois tinha algo para lhe dizer, e isso Wang Lung viu claramente quando gritou: “Bem, o que quer que eu faça?” O jovem respondeu com firmeza:
— Eu gostaria que pudéssemos sair desta casa e ir morar na cidade. Não fica bem continuarmos morando no campo como caipiras. Poderíamos deixar meu tio e a mulher e o filho dele morando aqui, e nos mudarmos para a cidade, onde viveríamos com segurança atrás dos portões.
Wang Lung deu uma risada amarga e curta quando o filho disse isso e descartou o desejo do rapaz como algo sem valor que não merecia ser levado em conta.
— Esta é minha casa — disse com firmeza, sentando-se à mesa e puxando para si o cachimbo — e vocês podem morar nela ou não. É minha casa e minha terra, e se não fosse pela terra, estaríamos todos passando fome como os outros passaram, e você não poderia andar por aí com suas roupas elegantes, ocioso como um estudante. Foi a boa terra que fez de você algo melhor que o filho de um lavrador.
E Wang Lung levantou-se e pôs-se a andar com passos pesados pela sala central, agindo com grosseria e cuspindo no chão como um camponês, porque ainda que um lado de seu coração exultasse com o refinamento do filho, o outro era rústico e desdenhava dele, embora ele soubesse no íntimo que se orgulhava do filho, e se orgulhava porque ninguém que olhasse para seu filho poderia sonhar que ele fosse a primeira geração separada da terra.
Mas o filho mais velho não estava disposto a ceder. Foi atrás do pai dizendo:
— Bem, lá está a velha grande casa dos Hwangs. A parte da frente está cheia de gente do povo, mas os aposentos internos estão trancados e silenciosos. Poderíamos alugá-los e morar ali sossegadamente. O senhor e meu irmão caçula poderiam vir para o campo e voltar e eu não ficaria irritado com esse cão do meu primo.
Então convenceu o pai deixando as lágrimas lhe subirem aos olhos, forçando-as a escorrer pelo seu rosto sem enxugá-las. Então tornou a dizer:
— Bem, tento ser um bom filho. Não jogo nem fumo ópio, estou satisfeito com a mulher que me deu e lhe peço pouco e mais nada.
Agora Wang Lung não sabia se só as lágrimas o teriam comovido, mas comoveu-se com as palavras do filho quando disse “a grande casa dos Hwangs”.
Wang Lung nunca esquecera que uma vez entrara de rastros naquela casa grande e se postara envergonhado diante de seus moradores, com medo até do porteiro, e isso lhe ficara a vida inteira na cabeça como uma lembrança vergonhosa que ele odiava. Sempre tivera a sensação de ser considerado um pouco inferior a quem morava na cidade, e quando estava diante da Senhora Velha da casa grande, essa sensação chegou ao paroxismo. Então, quando o filho dissera: “Poderíamos morar na casa grande”, imediatamente a imagem lhe veio à mente como se estivesse diante de seus olhos. “Eu poderia até me sentar onde a velha se sentava, mandando que eu ficasse de pé como um criado. Agora posso me sentar ali e chamar dessa maneira outra pessoa à minha presença.” E pensou e tornou a dizer a si mesmo: “Se quisesse, eu poderia fazer isso.”
E brincou com a idéia, calado, sem responder ao filho, mas encheu o cachimbo e o acendeu com um fósforo que estava preparado e fumou e sonhou com o que poderia fazer, se quisesse. Então, não por causa do filho nem do filho de seu tio, sonhou que poderia morar na Casa de Hwang, que para ele era sempre a casa grande.
Portanto, embora a princípio não estivesse disposto a dizer que iria ou que mudaria alguma coisa, depois disso, ficou cada vez mais aborrecido com a ociosidade do filho do tio e o vigiava de perto, constatando que era verdade que ele não tirava os olhos das donzelas. Então disse:
— Já não posso viver com esse cão lascivo em casa.
Olhou para o tio e viu que o ópio o emagrecera e lhe amarelara a pele e ele estava empenado e velho, cuspindo sangue quando tossia. Olhou para a mulher do tio e ela era um verdadeiro repolho, fumando com sofreguidão seu cachimbo de ópio, satisfeita com ele e sonolenta. E estes agora não eram grande problema para ele, pois o ópio produzira o resultado que Wang Lung desejara.
Mas lá estava o filho do tio, ainda solteiro, com desejos de animal selvagem, não cedendo facilmente ao ópio como os dois velhos haviam cedido, nem satisfazendo em sonhos suas luxúrias. E Wang Lung não queria que ele se casasse em sua casa, por causa da prole que geraria, e já bastava um como ele. O rapaz também não trabalhava, uma vez que não havia necessidade e ninguém o obrigava a isso, a não ser que as horas que passava fora de casa à noite pudessem ser chamadas de trabalho. Mas até essas iam rareando, pois conforme os homens regressavam à terra, a ordem voltava às aldeias e à cidade. Os ladrões se retiraram para as montanhas no noroeste e o rapaz não quis ir com eles, preferindo viver às custas da fartura de Wang Lung. Assim, era um espinho na casa, vagando à toa por todo canto, seminu, conversando e bocejando até o meio-dia.
Um dia, portanto, quando Wang Lung foi à cidade ver o segundo filho no mercado de grãos, perguntou-lhe:
— Bem, meu segundo filho, o que diz do que seu irmão deseja: que nos mudemos para a casa grande na cidade se pudermos alugar parte dela?
O segundo filho agora era um homem e ficara delicado e suave como os outros vendedores da casa, embora continuasse baixo e amarelo e com olhos espertos.
— É uma idéia excelente e me conviria muito — respondeu delicadamente —, pois então eu poderia me casar e ir morar ali também com minha mulher e estaríamos debaixo do mesmo teto como uma grande família.
Wang Lung não tomara providência alguma para o casamento deste filho, pois ele era um jovem frio que nunca manifestara nenhum sinal de desejo e Wang Lung já tinha muitos outros problemas. No entanto, disse com uma certa vergonha, pois sabia que não agira bem em relação ao segundo filho:
— Há muito tempo, venho dizendo a mim mesmo que você deveria se casar, mas com uma coisa e outra, não tive tempo, e com essa última fome e a necessidade de evitar qualquer festejo... mas, agora que os homens voltaram a comer, será feito isso.
E ficou pensando, no íntimo, onde poderia encontrar uma donzela. O segundo filho disse então:
— Bem, então vou me casar, pois isso é uma coisa boa e melhor que gastar dinheiro com uma cortesã quando a necessidade chega, e é bom para um homem ser pai. Mas não me arranje uma mulher de uma casa da cidade, como a de meu irmão, pois ela vai viver falando no que havia na casa do pai dela, fazendo-me gastar dinheiro e irritando-me.
Wang Lung ouviu isso com espanto, pois não sabia que sua nora era assim, vendo apenas que ela era uma mulher cuidadosa em se comportar corretamente e bastante bonita. Mas isso lhe pareceu uma conversa sábia e ele exultou que o filho fosse inteligente e esperto no que dizia respeito à economia de dinheiro. De fato, mal conhecia este rapaz, que crescera fraco ao lado do vigor do irmão mais velho, e, a não ser por suas histórias tranqüilas, não fora um menino ou um rapaz em quem se prestasse muita atenção. Então, quando ele foi para a loja, Wang Lung o esqueceu e só se lembrava dele para responder quando lhe perguntava quantos filhos tinha: “Bem, tenho três filhos.”
Agora olhou para o rapaz, seu segundo filho, e viu seu cabelo bem-cortado, untado e liso, e sua túnica limpa de seda cinza com estampa miúda, e viu seus movimentos corretos e seu olhar firme e misterioso, e disse a si mesmo, surpreso: “Bem, este também é meu filho!” E, em voz alta, disse:
— Que tipo de moça gostaria de ter, então?
O jovem respondeu com tanta suavidade e tanta firmeza como se já tivesse isso planejado:
— Desejo uma moça de aldeia, de boa família proprietária de terras e sem parentes pobres, que traga um bom dote, não seja feia nem bonita, cozinhe bem, de modo que, mesmo que haja criadas na cozinha, possa vigiá-las. E deve ser uma mulher que, se comprar arroz, seja em quantidade suficiente e nem um punhado a mais, e, se comprar pano, a roupa seja bem cortada e os retalhos que sobrem lhe caibam na palma da mão. Uma dessas eu quero.
Wang Lung espantou-se mais ainda ao ouvir essa conversa, pois aquele era um rapaz cuja vida ele não conhecia, embora fosse seu filho. Não era um sangue assim que lhe correra no corpo lascivo quando ele era jovem, nem no corpo de seu filho mais velho; no entanto, admirou a sabedoria do rapaz e disse rindo:
— Bem, procurarei uma moça dessas e Ching há de procurá-la nas aldeias.
Ainda rindo, foi embora e desceu a rua da casa grande, hesitando entre os leões de pedra. Então, como não houvesse ninguém para detê-lo, entrou e os aposentos de frente eram como ele se lembrava quando foi lá buscar a prostituta que julgava fazer mal ao filho. Havia roupas penduradas nas árvores e mulheres sentadas por toda parte falando da vida alheia e costurando com compridas agulhas as solas dos sapatos que estavam fazendo, e crianças rolando nuas e empoeiradas nas lajotas dos pátios. O lugar fedia àquele povo que invade as casas dos grandes quando os grandes se vão. E ele olhou para a porta onde a prostituta morava, mas a porta estava escancarada e outra pessoa agora morava lá, um velho. Wang Lung ficou feliz e foi em frente.
Wang Lung, no tempo em que a grande família vivia lá, teria se identificado com aquela gente do povo, opondo-se aos grandes, odiando-os e temendo-os ao mesmo tempo. Mas agora que tinha terra e prata e ouro bem guardados, desprezava esse povo que infestava todos os lugares e disse a si mesmo que eram todos imundos e foi andando com cuidado de nariz em pé no meio da multidão sem respirar fundo por causa do bodum exalado. E desprezava esse povo como se pertencesse à casa grande.
Atravessou a residência, por pura curiosidade, não porque tivesse decidido alguma coisa. E mesmo assim foi andando e, nos fundos, encontrou uma porta fechada ao lado da qual dormia uma mulher. Viu que era a mulher bexiguenta do antigo porteiro. Isso o espantou, e ele olhou para ela, de quem se lembrava como uma saudável mulher de meia-idade, e agora estava macilenta e enrugada, com os cabelos brancos e os dentes amarelos moles nas mandíbulas. Olhando para ela assim, viu de repente quantos anos haviam passado — e com que rapidez — desde que chegara lá com o primogênito nos braços, e pela primeira vez sentiu a idade chegando.
Então, disse com alguma tristeza para a velha:
— Acorde e deixe-me entrar.
E a velha sobressaltou-se, piscando e molhando os lábios secos. Disse:
— Não devo abrir para ninguém a não ser para quem queira alugar toda a parte interna da residência.
E Wang Lung disse de repente:
— Bem, e talvez eu o faça, se me agradar.
Mas não lhe disse quem era. Acompanhou-a, lembrando-se bem o caminho. Lá estavam os pátios em silêncio; lá estava a salinha onde ele deixara sua cesta; aqui estavam as compridas varandas sustentadas pelas delicadas colunas envernizadas de vermelho. Acompanhou-a até o grande salão, e com que rapidez sua lembrança voltou ao passado, quando esteve ali esperando para se casar com uma escrava da casa. Ali, diante dele, estava o grande estrado entalhado onde se sentava a Senhora Velha, seu frágil corpo tenso envolto em cetim prateado.
E, movido por um estranho impulso, ele se adiantou e sentou-se onde ela havia sentado, pondo a mão na mesa. E, da posição de superioridade que isso lhe dava, olhou para a cara cansada da velha bruxa que piscava para ele, aguardando em silêncio o que ele faria. Então, uma satisfação que ele sempre desejara sem saber cresceu em seu coração, e ele bateu na mesa e disse de repente:
— Hei de ter esta casa!
Capítulo 29
Nessa época, quando tomava uma decisão, Wang Lung não conseguia executá-la tão depressa quanto desejava. Com a idade, foi ficando mais impaciente para terminar as coisas e ficar sossegado, sem fazer nada, no fim do dia, contemplando o pôr do sol e dormir um pouco depois de ter dado uma volta por suas terras. Então, comunicou sua decisão ao filho mais velho, ordenando que o rapaz tratasse do assunto, e mandou chamar o segundo filho para vir ajudar com a mudança. Então, quando ficaram prontos, mudaram-se, primeiro Lótus e Cuco, suas escravas e seus pertences, depois o filho mais velho de Wang Lung com a mulher e os criados e as escravas.
Mas Wang Lung não quis ir logo e guardou com ele o filho caçula. Quando chegou a hora, não conseguiu deixar a terra onde nascera tão facilmente nem tão depressa quanto imaginara e disse aos filhos quando eles o apressaram:
— Muito bem: preparem um aposento para eu morar sozinho, e, no dia que quiser, vou, e será um dia antes do nascimento do meu neto, e, quando eu quiser, posso voltar à minha terra.
E quando tornaram a apressá-lo, disse:
— Bem, tem a pobrezinha da minha boba, e não sei se a levo comigo ou não, mas preciso levá-la, pois se eu não cuidar disso, ninguém lhe dará de comer.
Wang Lung disse aquilo como uma censura à mulher do filho mais velho, pois ela não suportava a presença da tolinha, mas era cheia de fricotes e dizia:
— Uma pessoa dessas não devia viver. Só de olhar para ela, posso perder o filho que tenho no ventre.
O filho mais velho de Wang Lung lembrou-se da antipatia da mulher e ficou quieto. Então Wang Lung se arrependeu da reprimenda e disse com doçura:
— Vou quando for encontrada a noiva para meu filho, pois é mais fácil ficar aqui onde Ching está até a questão ser acertada.
O segundo filho, portanto, desistiu de insistir.
Não ficou na casa, então, mais ninguém, a não ser o tio com a mulher e o filho e Ching e os lavradores, além de Wang Lung com seu caçula e a idiota. E o tio e a mulher se mudaram para a ala que Lótus ocupara e lá se instalaram como se fosse a casa deles. Mas Wang Lung não se incomodou demais com isso, pois via claramente que o tio não tinha muito tempo de vida e quando o velho preguiçoso tivesse morrido, estaria terminado o seu dever com aquela geração e se o rapaz não andasse na linha, ninguém censuraria Wang Lung se ele o expulsasse de casa. Então Ching mudou-se com os lavradores para a ala externa. Wang Lung, o filho e a idiota ocupavam a central, e Wang Lung contratou uma mulher forte para servi-los.
Wang Lung dormia e descansava e não se preocupava com nada, pois de repente sentia-se muito cansado e a casa estava em paz. Não havia ninguém para perturbá-lo, pois seu caçula era um rapaz calado que evitava cruzar com o pai, e Wang Lung mal o conhecia, tão calado ele era.
Mas afinal Wang Lung se mexeu para mandar Ching arranjar uma noiva para o segundo filho.
Ching estava velho, murcho e magro como um caniço, mas conservava a força de um velho cão fiel, embora Wang Lung não o deixasse mais pegar na enxada nem seguir os bois atrás do arado. Mas ainda era útil, pois vigiava o trabalho dos outros e assistia à pesagem e à medição dos grãos. Então, quando ouviu o que Wang Lung desejava que ele fizesse, lavou-se, vestiu a túnica boa de algodão azul, foi de vilarejo em vilarejo, viu muitas donzelas e afinal voltou dizendo:
— Antes ter que escolher uma mulher para mim do que para seu filho. Mas se eu fosse moço e estivesse escolhendo para mim, a três povoados daqui, há uma moça boa, forte e zelosa, sem nenhum defeito a não ser o riso frouxo, e o pai dela está disposto e contente de se unir à sua família pela filha. O dote é bom para essas épocas, e ele tem terra. Mas eu disse que não poderia dar minha palavra até você dar a sua.
Então Wang Lung achou que aquilo estava bastante bom e ficou ansioso para resolver logo o assunto, de modo que se comprometeu, e quando os papéis chegaram, assinou-os, aliviado, e disse:
— Agora só falta casar um filho e encerro esse assunto de casamentos. Ainda bem que estou tão perto da minha paz.
E quando tudo já estava feito e foi marcado o dia da cerimônia, ele descansou sentado ao sol e dormiu como seu pai havia feito antes dele.
Então pareceu a Wang Lung que, como Ching estivesse mais fraco por causa da idade e ele mesmo, com a idade, se sentisse pesado e sonolento quando comia, e como seu terceiro filho ainda fosse muito jovem para ter responsabilidades, seria bom arrendar alguns de seus campos mais afastados para outras pessoas do vilarejo. E fez isso, então, e muitos dos homens das aldeias vizinhas vieram a Wang Lung para arrendar suas terras, tornando-se seus arrendatários. E decidiu-se que a renda seria metade da safra para Wang Lung, que era o proprietário da terra, e a outra metade para o arrendatário que entrava com o trabalho. E havia outras coisas que cada lado devia fornecer: Wang Lung, estoques de esterco e torta de soja e bagaço de gergelim do moinho de azeite depois de moída a semente, e os arrendatários deviam reservar certos produtos para uso da casa de Wang Lung.
Como sua administração não era necessária como antes, Wang Lung às vezes ia à cidade e dormia no aposento que mandou preparar para ele, mas, quando amanhecia, voltava ao campo, atravessando a porta do muro em volta da cidade quando era aberta depois que raiava o dia. E aspirava o cheiro fresco dos campos e, quando voltava à sua própria terra, rejubilava-se.
Então, como se pela primeira vez os deuses fossem bondosos e tivessem lhe preparado uma velhice de paz, o filho de seu tio, que andava cada vez mais indócil na casa agora sossegada e sem mulheres a não ser a criada robusta que era casada com um dos lavradores, tendo ouvido falar de uma guerra no norte, disse a Wang Lung:
— Dizem que há uma guerra no norte, e vou entrar nela para ter alguma coisa para fazer e para ver. Farei isso se me der dinheiro para comprar mais roupas e minhas cobertas e um pau-de-fogo estrangeiro para pendurar no ombro.
Então, o coração de Wang Lung deu um pulo de prazer, mas ele escondeu espertamente esse prazer, fingindo hesitar.
— Você é o único filho de meu tio — disse —, e depois de você, não há ninguém para continuar seu sangue, então, se você for para a guerra, o que vai acontecer?
Mas o rapaz respondeu, rindo:
— Bem, não sou nenhum idiota e não vou me colocar onde minha vida esteja em risco. Se houver uma batalha, vou-me embora e só volto quando acabar. Quero mudar e viajar um pouco e ver outros lugares antes de estar velho demais para isso.
Então Wang Lung lhe deu prontamente o dinheiro, e dessa vez também dar não foi muito difícil, de modo que derramou as moedas na mão do homem e disse a si mesmo:
“Bom, se ele gosta disso, termina esta maldição em minha casa, pois sempre há uma guerra em algum lugar nesta nação.” E pensou ainda: “Ele até pode ser morto, se eu continuar com sorte, pois às vezes, nas guerras, há gente que morre.”
Estava bem animado, então, embora disfarçasse. Consolou a mulher do tio quando ela chorou um pouco ao ouvir que o filho estava partindo, deu-lhe mais ópio, acendeu o cachimbo para ela e disse:
— Sem dúvida vai chegar a oficial do exército e conheceremos a glória através dele.
Então, afinal houve paz, pois na casa do campo só havia os dois sonolentos além dele, e na casa da cidade aproximava-se a hora do nascimento do neto de Wang Lung.
À medida que ia chegando essa hora, Wang Lung passava cada vez mais tempo na casa da cidade, passeando pelas alas sem conseguir tirar da cabeça o que havia acontecido e sem parar de se maravilhar com o fato de que ali, naquela residência onde morara a grande família de Hwang, agora ele morava com a mulher e os filhos e as mulheres dos filhos e estava para nascer uma criança da terceira geração.
Estava cheio de orgulho no peito, sentindo que nada era tão bom que seu dinheiro não pudesse comprar. Comprou metros de cetim e seda para toda a família, pois parecia mal ver túnicas ordinárias de algodão em cima das cadeiras entalhadas e em volta das mesas entalhadas de ébano do sul, e comprou metros de bom algodão azul e preto para as escravas, para que nenhuma delas tivesse que usar uma roupa rasgada. Fez isso, e gostava quando os amigos que o filho mais velho fizera na cidade vinham à casa, e se envaidecia de que vissem tudo o que havia ali.
E Wang Lung dera para comer iguarias delicadas, e ele mesmo, que antes se satisfazia com um bom pão de trigo envolvendo uma cabeça de alho, agora que dormia até tarde e não trabalhava a terra com as próprias mãos, não se satisfazia facilmente com esse ou aquele prato e saboreava brotos de bambu de inverno e ova de camarão e peixes do sul e mariscos dos mares do norte e ovos de pombo e todas essas coisas que os ricos usam para estimular o apetite. Seus filhos comiam e Lótus também, e Cuco, vendo tudo isso, riu e disse:
— Bem, é como nos velhos tempos, quando eu vivia nessa residência, só que este meu corpo está murcho e seco e não serve nem para um senhor velho.
Dizendo isso, olhou matreiramente para Wang Lung e tornou a rir. Ele fingiu não perceber sua obscenidade, mas todavia gostou de ter sido comparado ao Senhor Velho.
Então, com essa vida de ócio e riqueza, acordando e dormindo quando queriam, ele esperava o neto. Uma manhã, depois de ouvir os gemidos de uma mulher, foi para os aposentos do filho mais velho. O filho o recebeu e disse:
— Chegou a hora, mas Cuco diz que vai demorar, pois a mulher é estreita e será um parto difícil.
Então Wang Lung voltou para seus aposentos, sentou-se e ficou ouvindo os gritos, e, pela primeira vez em muitos anos, teve medo e sentiu necessidade de alguma ajuda espiritual. Levantou-se e foi à casa de incensos, comprou alguns e foi ao templo na cidade onde mora a deusa da misericórdia em sua alcova dourada, e chamou um sacerdote desocupado, deu-lhe dinheiro e lhe pediu que espetasse o incenso diante da deusa, dizendo:
— Não é apropriado que eu, um homem, faça isso, mas meu primeiro neto está para nascer e é um parto difícil para a mãe, que é uma mulher da cidade e de constituição muito estreita, e a mãe de meu filho morreu, e não há mulher para espetar o incenso.
Então, enquanto olhava o sacerdote enfiá-lo nas cinzas da urna diante da deusa, pensou de repente horrorizado: “E se não for um neto mas sim uma menina?”, e gritou depressa:
— Bem, se for um neto, pagarei uma túnica vermelha nova para a deusa, mas não farei nada se for uma menina.
Saiu do templo agitadíssimo porque não pensara nessa possibilidade, a de não ser um neto mas sim uma menina, e foi comprar mais incenso. E embora estivesse calor e, nas ruas, houvesse um palmo de poeira, foi até o templozinho do campo onde ficavam os dois deuses que protegiam os campos e a terra, espetou o incenso e o acendeu, resmungando para a dupla:
— Pois bem, cuidamos de vocês, meu pai e eu e meu filho, e agora chega o fruto do corpo de meu filho, e se não for um neto, não há mais nada para vocês dois.
Então, tendo feito tudo o que podia, voltou à residência, muito esgotado, e sentou-se à sua mesa. Gostaria que uma escrava lhe trouxesse chá e que outra lhe trouxesse uma toalha torcida com água quente para lhe limpar o rosto, mas, embora batesse palmas, não apareceu ninguém. Ninguém fazia caso dele, e havia uma correria de um lado para outro, mas ele não se atrevia a deter ninguém para perguntar que tipo de criança havia nascido nem se já havia nascido alguma. Ficou ali sentado, sujo e esgotado, e ninguém falou com ele.
Então, afinal, quando, depois de tanto esperar, já lhe parecia que ia anoitecer logo, Lótus entrou balançando naqueles pezinhos por causa do excesso de peso e apoiada em Cuco. Ria e disse ruidosamente:
— Bem, há um filho na casa de seu filho, e tanto a mãe quanto o filho estão vivos. Já vi a criança. É bonita e sadia.
Então Wang Lung riu também, levantou-se, bateu palmas, tornou a rir e disse:
— Bem, e estive aqui sentado como um homem que aguarda a chegada do próprio filho, sem saber o que fazer e com medo de tudo.
Então, quando Lótus foi para seus aposentos e ele tornou a sentar-se, começou a matutar e pensou:
“Bem, não tive tanto medo quando a outra deu à luz o primeiro, meu filho.”
E ficou calado pensando, lembrando-se daquele dia, de como ela entrava sozinha no quartinho escuro para lhe dar filhos e mais filhos e filhas, de como dava à luz calada, e de como voltava para os campos para trabalhar ao lado dele outra vez. E cá estava esta, agora a mulher de seu filho, que gritava de dor como uma criança, e que tinha todas as escravas correndo pela casa, e o marido ali à porta.
E lembrou-se, como quem se lembra de um sonho sonhado há muito tempo, de como O-lan descansava um pouco do trabalho e amamentava fartamente o menino, e o rico leite branco lhe escorria do seio e caía no chão. E isso parecia muito remoto para ter acontecido.
Então seu filho entrou sorridente e importante, dizendo ruidosamente:
— O menino nasceu, meu pai, e agora precisamos encontrar uma mulher que o amamente, pois não quero que a beleza de minha mulher seja estragada com a amamentação nem suas forças minadas. Nenhuma das mulheres da posição dela faz isso.
E Wang Lung disse com tristeza, sem saber por que estava triste:
— Bem, se for preciso ser assim, que seja, se ela não puder amamentar o próprio filho.
Quando o menino fez um mês, o filho de Wang Lung, seu pai, deu uma festa de nascimento, para a qual convidou gente da cidade, o pai e a mãe de sua mulher, e todos os grandes da cidade. E mandou tingir de escarlate muitas centenas de ovos de galinha, que foram oferecidos a cada convidado e a cada um que mandava convidados. A casa estava em festa, pois a criança era um belo menino gordo, já passara o décimo dia e estava vivo. Esse medo, então, ficara para trás, e todos se rejubilavam.
E quando terminou a festa, o filho de Wang Lung foi ao pai e disse:
— Agora que há três gerações nesta casa, devemos ter as placas dos ancestrais que as grandes famílias têm e devemos montá-las para serem adoradas nos dias de festa, pois agora somos uma família estabelecida.
Isso agradou muito a Wang Lung, que deu ordem para que isso fosse feito, e ali, no salão, foi montada a fileira de placas, o nome de seu avô em uma delas, depois o de seu pai, e deixados espaços em branco para o nome de Wang Lung e o de seu filho quando eles morressem. E o filho de Wang Lung comprou uma urna de incenso e colocou-a diante das placas.
Quando isso terminou, Wang Lung lembrou-se da túnica vermelha que prometera à deusa da misericórdia, então foi ao templo dar o dinheiro para comprá-la.
Depois, quando voltava para casa, como se os deuses não suportassem dar de graça sem esconder alguma dor no presente, chegou um homem correndo dos campos de colheita com a notícia de que Ching estava à morte e perguntava se Wang Lung iria vê-lo morrer. Wang Lung, ouvindo o mensageiro ofegante, gritou com raiva:
— Suponho que aquele maldito casal do templo esteja com ciúmes porque dei uma túnica vermelha a uma deusa da cidade. Acho que eles não sabem que não têm poder sobre os nascimentos, mas só sobre a terra.
Embora sua refeição do meio-dia já estivesse na mesa, ele se recusou a pegar os pauzinhos, e, embora Lótus lhe dissesse, elevando a voz, que esperasse até o sol começar a cair, ele não ficaria por causa dela e saiu. Então, quando viu que ele não fazia caso dela, Lótus mandou uma escrava atrás dele com uma sombrinha de papel encerado, mas Wang Lung corria tanto que a robusta moça tinha dificuldade de manter a sombrinha em cima de sua cabeça.
Wang Lung entrou imediatamente no quarto onde Ching jazia e gritou:
— Como aconteceu tudo isso?
O quarto estava cheio de trabalhadores espremidos, que responderam confusa e precipitadamente:
— Quis trabalhar sozinho na debulhada... Dissemos a ele que não por causa da idade... Havia um lavrador contratado há pouco tempo... Ele não sabia manejar direito o mangual e Ching quis lhe mostrar... É um trabalho muito duro para um velho...
Então Wang Lung gritou com uma voz terrível:
— Tragam-me esse trabalhador!
E eles empurraram o homem para a frente diante de Wang Lung, e ele ficou ali trêmulo com os joelhos nus batendo um no outro, um homenzarrão rústico e corado, com os dentes salientes sobre o lábio inferior e olhos redondos e apagados como os de um boi. Mas Wang Lung não teve pena dele. Esbofeteou-o dos dois lados, pegou a sombrinha da mão da escrava e bateu na cabeça do rapaz, e ninguém se atreveu a detê-lo, temendo que a raiva lhe entrasse no sangue e o envenenasse. E o caipira agüentou humildemente aquilo, choramingando um pouco e chupando os dentes.
Então Ching gemeu da cama onde jazia, e Wang Lung jogou a sombrinha no chão e gritou:
— Agora esse vai morrer enquanto estou batendo num idiota!
Sentou-se ao lado de Ching e pegou sua mão. Era uma mão leve, seca e pequena como uma folha de carvalho murcha e não dava para acreditar que o sangue corresse por ela, tão seca, leve e quente estava. Mas a cara de Ching, que era sempre pálida e amarela, tinha agora uma coloração escura e manchas daquele seu sangue escasso, e seus olhos semicerrados estavam toldados e cegos e sua respiração era agônica. Wang Lung abaixou-se sobre ele e disse alto em seu ouvido:
— Estou aqui e vou lhe comprar um caixão que só fica atrás do de meu pai!
Mas Ching tinha os ouvidos cheios de sangue e, se ouviu Wang Lung, não deu sinal, mas apenas ficou ali agonizando e assim morreu.
Quando ele morreu, Wang Lung inclinou-se sobre ele e chorou como não chorara na morte de seu pai. Encomendou um caixão da melhor qualidade, contratou padres para o enterro e acompanhou o féretro usando o branco do luto. Fez até o primogênito usar tiras brancas nos tornozelos como se um parente tivesse morrido, embora o filho reclamasse dizendo:
— Ele era só um criado superior, e não fica bem prantear um criado.
Mas Wang Lung o obrigou a isso durante três dias. E se tivesse feito tudo de acordo com sua vontade, Wang Lung teria enterrado Ching no túmulo de barro onde seu pai e O-lan estavam enterrados. Mas seus filhos não admitiram isso e reclamaram dizendo:
— Nossa mãe e nosso avô devem ficar enterrados junto com um criado? E nós também, quando nossa hora chegar?
Então Wang Lung, porque não podia brigar com eles e porque em sua idade queria ter paz em casa, enterrou Ching na entrada do muro e se consolou com o que fizera, dizendo:
— Bom, assim está bem, pois ele sempre me resguardou do mal. — E orientou os filhos para que, quando ele morresse, o enterrassem o mais próximo possível de Ching.
Depois disso, passou a visitar suas terras cada vez mais raramente, porque Ching já não estava lá e era penoso ir sozinho, pois estava cansado do trabalho e seus ossos doíam quando atravessava sozinho os campos acidentados. Então arrendou o que pôde de suas terras, e os homens tomaram tudo com avidez, pois era sabido que era boa terra. Mas Wang Lung nunca falaria em vender um palmo de qualquer gleba e só arrendava por um ano, por um preço combinado. Assim, sentia que a terra era toda sua e ainda estava em suas mãos.
E designou um dos trabalhadores com a mulher e os filhos para morar na casa do campo e cuidar dos dois sonhadores de ópio. Então, vendo os olhos melancólicos de seu filho caçula, disse:
— Bem, pode vir comigo para a cidade. Levarei minha boba comigo também, e ela pode morar na ala em que estou. Esta casa é muito solitária para você agora que Ching se foi, e, sem ele aqui, não sei se a pobrezinha será bem-tratada, uma vez que ninguém me contará se batem nela ou não lhe dão comida direito. E já não há mais ninguém para lhe ensinar sobre a terra, agora que Ching se foi.
Então, Wang Lung pegou o filho caçula e a retardada e partiu, passando muito tempo depois disso quase sem pôr os pés na casa de campo.
Capítulo 30
Agora parecia a Wang Lung que, em sua situação, nada mais havia a desejar, e ele podia ficar sentado ao sol em sua cadeira ao lado da retardada, fumando seu cachimbo d’água sossegado porque a terra estava cuidada e o dinheiro dela lhe chegava sem que ele se preocupasse.
E assim poderia ter sido não fora pelo filho mais velho que nunca se contentava com o que já tinha e precisava sempre procurar mais. Então foi ao pai dizendo:
— Faltam várias coisas nessa casa, e não devemos achar que podemos ser uma grande família só porque moramos nessa ala da residência. O casamento de meu irmão menor vai ser daqui a menos de seis meses, e não temos cadeiras suficientes para acomodar os convidados nem tigelas nem mesas nem nada nos quartos. É uma vergonha, além do mais, convidar as pessoas para entrar pelas grandes portas e atravessar toda aquela plebe fedorenta e barulhenta, e, com o casamento do meu irmão e os filhos dele e os meus por vir também, precisamos daquelas alas.
Então Wang Lung olhou para o filho todo paramentado ali com suas belas roupas, fechou os olhos, deu uma tragada forte no cachimbo e rosnou:
— Bem, e daí?
O jovem viu que o pai estava cansado dele, mas continuou teimando, elevando um pouco a voz:
— Digo que devemos ter também a ala externa e o que for conveniente a uma família com tanto dinheiro e tanta terra como nós temos.
Então Wang Lung resmungou fumando o cachimbo:
— Bem, a terra é minha e você nunca pôs a mão nela.
— Bem, meu pai — exclamou o rapaz ao ouvir isso —, foi o senhor que quis que eu estudasse, e quando tento ser um bom filho para um homem proprietário de terras, o senhor desdenha de mim e quer que eu e minha mulher nos transformemos em caipiras. — E o jovem foi embora furioso, como se fosse dar com a cabeça num pinheiro retorcido.
Wang Lung se assustou com isso, temendo que o rapaz se machucasse, pois sempre fora inflamado, então gritou:
— Faça o que quiser... faça o que quiser... só não me perturbe!
Ao ouvir isso, o filho saiu depressa, receando que o pai mudasse de opinião, e foi todo satisfeito. Logo que pôde, então, comprou mesas e cadeiras entalhadas de Soochow, cortinas de seda vermelha para pendurar nos portais, vasos grandes e pequenos e painéis para pendurar nas paredes, tantos quantos conseguiu de belas mulheres, e comprou pedras estranhas para fazer jardins de pedra como os que havia visto no sul, e com isso esteve ocupado vários dias.
Com essas idas e vindas todas, ele tinha que passar muitas vezes pela ala externa, todos os dias mesmo, e não conseguia passar no meio daquela ralé sem empinar o nariz, pois não a suportava, de modo que as pessoas que moravam ali caçoavam dele depois que ele passava, dizendo:
— Ele já esqueceu do cheiro de esterco na porta da fazenda do pai dele!
Mas, na frente dele, ninguém ousava falar assim, pois ele era filho de um homem rico. Quando chegou a festa em que se decide o preço dos aluguéis, essas pessoas viram que o aluguel dos quartos e dos pátios onde moravam havia subido muito, porque havia quem pagasse esse preço por eles, e tiveram que se mudar. Então souberam que fora o filho mais velho de Wang Lung que fizera isso, embora ele tivesse sido esperto e não dissesse nada, fazendo tudo por cartas endereçadas ao filho do Senhor Hwang Velho no estrangeiro, e este filho do Senhor Velho só queria saber como conseguir mais dinheiro pela velha casa.
As pessoas, então, tiveram que se mudar e o fizeram reclamando e maldizendo porque um rico não podia fazer o que bem entendia. Embalaram seus pertences esfarrapados e foram embora revoltadas e resmungando que um dia voltariam da maneira como os pobres voltam quando os ricos são ricos demais.
Mas tudo isso Wang Lung não ouviu, uma vez que morava na ala interna e raramente saía. Depois de certa idade, ele dormia, comia e descansava, deixando as coisas nas mãos do primogênito. E este chamou carpinteiros e bons pedreiros que consertaram os portões da lua entre os pátios que a ralé, com aquele modo de vida grosseiro, destruíra. Reconstruiu também os lagos e comprou peixes sarapintados e dourados para neles soltar. E depois de tudo pronto e embelezado até onde ele conhecia a beleza, plantou lótus e lírios nos lagos, e o bambu de bagas vermelhas da Índia e tudo o que se lembrava de ter visto no sul. Sua mulher foi conhecer o que ele havia feito e os dois correram a residência toda e ela viu uma coisa e outra que ainda faltava. Ele prestou muita atenção a tudo o que ela disse para poder providenciar o que faltava.
O povo nas ruas da cidade ouviu falar em tudo o que o filho de Wang Lung fazia e comentava a obra que estava sendo realizada na casa grande, agora que um homem rico voltara a morar nela. E quem antes chamava Wang Lung de Wang o Lavrador agora o chamava de Wang o Grande Homem ou Wang o Rico.
O dinheiro para tudo isso saía da mão dele aos poucos, de modo que ele mal notava, pois o filho mais velho chegava e dizia: “Preciso de cem moedas de prata aqui”; ou então: “Há uma boa porta que só precisa de uma quantia pequena de dinheiro para ficar como nova”; ou ainda: “Há um lugar onde deveria ser colocada uma mesa comprida”.
E Wang Lung ia lhe dando o dinheiro aos poucos, enquanto estava sentado fumando e descansando em sua ala, pois, como o dinheiro entrava com facilidade da terra depois de cada colheita e sempre que era preciso, ele o dava com facilidade. Não teria sabido quanto possuía se o segundo filho não tivesse entrado em seu quarto uma manhã mal o sol saíra e dito:
— Meu pai, esse desperdício de dinheiro não vai ter fim? Precisamos morar num palácio? Esse dinheiro todo emprestado a vinte por cento poderia nos ter trazido muitas libras de prata, e para que servem todos esses lagos e essas árvores floríferas que nem fruta produzem, e esses imprestáveis lírios em flor?
Vendo que haveria mais discussão entre os dois irmãos por causa disso, Wang Lung disse depressa, receando não ter paz:
— Bem, tudo está sendo feito em homenagem a seu casamento.
Então o jovem respondeu, com um sorriso amarelo, sem manifestar alegria:
— É estranho que o casamento seja dez vezes mais caro que a noiva. Eis aqui nossa herança, que deve ser dividida entre nós quando você morrer, sendo gasta agora sem nenhum motivo a não ser o orgulho de meu irmão mais velho.
Wang Lung conhecia a determinação deste seu segundo filho e sabia que se começasse a discutir com ele, não terminaria, de modo que disse depressa:
— Muito bem... muito bem... Vou pôr um fim nisso e fechar a mão. Já basta. Você tem razão!
O jovem trouxera um papel onde estava listado tudo o que o irmão havia gasto, e, ao ver a extensão da lista,Wang Lung logo disse:
— Ainda não comi e, na minha idade, sinto-me fraco de manhã enquanto não como. Outra hora tratarei disso.
— Virou as costas e entrou no quarto, dispensando o filho.
Mas falou naquela mesma noite com o primogênito, dizendo:
— Acabe com toda essa pintura e esse polimento. Basta. Afinal de contas, somos gente do campo.
Mas o rapaz respondeu orgulhosamente:
— Isso não somos. Os homens na cidade já começam a nos chamar a Grande Família Wang. É adequado vivermos de acordo com esse nome, e, se meu irmão não consegue enxergar além do significado do dinheiro, eu e minha mulher faremos respeitar a honra do nome.
Wang Lung não sabia que sua casa era chamada assim, pois estava ficando velho, raramente saía, sequer, para ir às casas de chá, e já não ia mais aos mercados de grãos, uma vez que havia seu segundo filho para fazer os negócios por ele, mas, no íntimo, isso lhe agradou, e ele disse:
— Bem, até mesmo as grandes famílias vêm da terra e têm raízes na terra.
Mas o rapaz respondeu com esperteza:
— Sim, mas não permanecem lá. Ramificam-se, dão flores e frutos.
Wang Lung não gostava que o filho lhe respondesse com essa facilidade e essa rapidez, então disse:
— Já falei. Acabe com esse desperdício de dinheiro. Quanto a raízes, para dar frutos, precisam estar fincadas no solo da terra.
Então, como estava anoitecendo, desejou que o filho saísse dali e fosse para os aposentos dele. Desejou que o rapaz fosse embora e o deixasse em paz e sozinho no crepúsculo. Mas aquele filho não lhe dava paz. Agora estava disposto a obedecer ao pai, pois estava satisfeito com os quartos e os pátios, pelo menos por enquanto, e fizera o que queria, mas começou de novo:
— Bem, que baste, mas há outra coisa.
Então Wang Lung atirou o cachimbo no chão e gritou:
— Será que nunca vou ter paz?
Então o rapaz prosseguiu obstinadamente:
— Não é por mim nem por meu filho. É por meu irmão mais moço, que é seu filho. Não fica bem ele crescer tão ignorante. Deveria aprender alguma coisa.
Wang Lung ficou olhando espantado, pois isso era novidade. Há muito tempo já havia resolvido a vida do caçula e então disse:
— Não há mais necessidade de barrigas cheias de letras nesta casa. Duas já chega, e ele tem que estar na terra quando eu morrer.
— Sim, e por isso ele chora à noite e é um rapaz tão pálido e frágil — respondeu o primogênito.
Wang Lung nunca cogitara em perguntar ao caçula o que desejava fazer da vida, já que havia decidido que um filho devia cuidar da terra. O que o primogênito acabara de dizer atingiu-lhe no meio da testa, e ele ficou calado. Apanhou o cachimbo do chão devagar e pensou no terceiro filho. Era um rapaz diferente dos outros irmãos, um rapaz calado como a mãe, e, por ser calado, ninguém lhe prestava atenção.
— Já o ouviu dizer isso? — perguntou Wang Lung ao mais velho, com hesitação.
— Pergunte você mesmo, meu pai — respondeu o rapaz.
— Bem, mas um filho precisa cuidar da terra — contra-argumentou Wang Lung de repente, com a voz muito elevada.
— Mas por quê, meu pai? — insistiu o rapaz. — Você é um homem que não precisa ter nenhum filho como servo. Não fica bem. As pessoas dirão que tem um coração mesquinho. “Existe um homem que transforma o filho num caipira enquanto vive como um príncipe.” Isso as pessoas vão dizer.
O rapaz falou com esperteza, pois sabia que o pai se importava muito com o que falavam dele, e prosseguiu:
— Poderíamos chamar um instrutor para ensiná-lo e poderíamos mandá-lo para uma escola do sul e ele poderia aprender, e, já que estou em casa para ajudá-lo e a meu irmão no ofício dele, deixe o rapaz escolher o que quer.
Então Wang Lung disse, afinal:
— Mande-o falar comigo.
Pouco depois, o terceiro filho chegou e postou-se diante do pai. Wang Lung examinou-o, para ver como ele era. Viu um rapaz alto e magro, que não se parecia com o pai nem com a mãe, de quem tinha apenas a gravidade e o silêncio. Mas havia mais beleza nele que nela, e nenhum dos filhos de Wang Lung, tirante a segunda filha que fora morar com a família do marido e não pertencia mais à casa de Wang, tinha tanta beleza. Mas na testa do rapaz, quase um defeito em sua beleza, havia suas duas sobrancelhas negras, muito grossas e negras para sua cara jovem e pálida. Quando ele franzia o cenho, o que fazia com facilidade, aquelas sobrancelhas negras se juntavam, pesadas e retas, cortando sua testa.
Wang Lung examinou o filho e, depois de olhar bem para ele, disse:
— Seu irmão mais velho diz que você quer aprender a ler.
E o rapaz retrucou, mal mexendo os lábios:
— Sim.
Wang Lung sacudiu a cinza do cachimbo e, com o polegar, empurrou para dentro o fumo novo.
— Bem, suponho que isso signifique que você não quer trabalhar na terra e que eu não terei um filho em minhas terras. E tenho filhos de sobra.
Disse isso com amargura, mas o rapaz ficou calado. Permaneceu ali empertigado e calado naquela comprida túnica branca de linho de verão, até que afinal Wang Lung se irritou com seu silêncio e gritou com ele:
— Por que não fala? É verdade que não quer trabalhar na terra?
E novamente o menino respondeu apenas aquela palavra:
— Sim.
E Wang Lung, olhando para ele, pensou consigo mesmo que esses seus filhos eram demais para ele naquela idade avançada, que eram uma preocupação e um fardo, e ele não sabia o que fazer com eles. Tornou então a gritar, sentindo-se explorado pelos filhos:
— O que significa para mim o que você faz? Saia da minha frente!
Então o rapaz saiu depressa e Wang Lung ficou sozinho e disse a si mesmo que suas duas filhas afinal de contas eram melhores que seus filhos. Uma, embora fosse uma pobre idiota, nunca queria nada mais do que um pouco de qualquer comida e seu paninho para brincar; a outra já estava casada e fora de casa. E o crepúsculo caiu sobre o pátio, encerrando-o sozinho nele.
No entanto, como fazia sempre quando a raiva passava, Wang Lung deixou os filhos fazerem o que queriam. Chamou o primogênito e disse:
— Contrate um instrutor para o caçula, se ele quiser, e deixe-o fazer o que quiser, mas não quero ser incomodado com isso.
E chamou o segundo filho e disse:
— Já que não terei um filho trabalhando na terra, é seu dever cuidar dos arrendamentos e do dinheiro que entra da terra em cada colheita. Você sabe pesar e medir e será meu administrador.
O segundo filho ficou bastante satisfeito, pois isso significava que o dinheiro finalmente passaria por suas mãos, e ele saberia o que entrava, podendo reclamar com o pai se os gastos da casa ultrapassassem o que seria suficiente.
Esse segundo filho parecia a Wang Lung mais estranho do que os outros, pois até no dia do casamento, que acabou chegando, foi cuidadoso com o dinheiro gasto em carnes e vinhos, e dividiu as mesas com cuidado, guardando as melhores carnes para os amigos da cidade que sabiam o custo dos pratos, e, para os rendeiros e a gente do campo que precisavam ser convidados, espalhou mesas nos pátios, e a estes só deu carne e vinho de segunda, já que, diariamente, eles comiam uma comida grosseira, e um pouco melhor era muito bom para eles.
O segundo filho tomou conta do dinheiro e dos presentes que chegaram, e deu às escravas e aos criados o mínimo possível, de modo que Cuco riu com desdém quando ele lhe pôs na mão duas insignificantes moedas de prata e disse para muita gente ouvir:
— Uma família grande de verdade não é tão cuidadosa com seu dinheiro. Bem se vê que o lugar dessa família não é esta residência.
Ouvindo isso, o primogênito se envergonhou e, com medo da língua dela, deu-lhe mais dinheiro às escondidas, irritando-se com o irmão. Assim, houve problema entre eles até no dia do casamento, enquanto os convidados se instalavam em volta das mesas e a noiva entrava na residência.
E, de seus próprios amigos, o filho mais velho só convidou uns poucos dos menos importantes para a festa, porque se envergonhava da parcimônia do irmão e porque a noiva não passava de uma moça de aldeia. Ficou à parte, desdenhosamente, e disse:
— Bem, meu irmão escolheu um vaso de barro quando, pela posição de meu pai, poderia ter tido uma taça de jade.
E, cheio de desprezo, fez um sinal de cabeça forçado quando o casal se inclinou diante dele e de sua mulher, o irmão e a irmã mais velhos. E a mulher do irmão mais velho foi correta e altiva, inclinando-se o mínimo aceitável para sua posição.
De todos os que viviam naquela residência, parecia que ninguém estava plenamente tranqüilo e confortável, a não ser o netinho de Wang Lung. Até o próprio Wang Lung, despertando na escuridão do grande leito entalhado onde dormia em seu quarto ao lado da ala onde vivia Lótus, até mesmo ele às vezes sonhava que voltara à casa de barro simples e escura onde um homem podia derramar seu chá frio sem respingar um pedaço de madeira lavrada, e onde estava a um passo de seus campos.
Quanto aos filhos de Wang Lung, a tensão entre eles era permanente, o mais velho receando que não se gastasse o suficiente e eles fossem diminuídos aos olhos dos homens e que os aldeões fossem entrando portão adentro enquanto eles estivessem recebendo uma visita da cidade, envergonhando-os assim perante a visita; e o segundo filho receando que o dinheiro fosse desperdiçado e terminasse; e o caçula esforçando-se para recuperar os anos que perdera como filho de fazendeiro.
Mas havia alguém que corria titubeando para lá e para cá, e era o filho do filho mais velho. Esse pequeno nunca pensava em outro lugar senão a casa grande, que, para ele, não era grande nem pequena, mas somente a sua casa, e ali estavam sua mãe e seu pai e seu avô e todos aqueles que viviam apenas para servi-lo. E com esse, Wang Lung garantia a paz, não se cansando de observá-lo, de rir com ele nem de levantá-lo quando ele caía. Lembrava-se também o que seu pai havia feito e adorava atar um cinturão em volta do menino para não o deixar cair, e iam os dois caminhando de ala em ala, e o menino apontava para os peixes rápidos como flechas nos lagos e balbuciava uma coisa e outra e arrancava a cabeça de uma flor e estava à vontade no meio de tudo. Só assim Wang Lung encontrava sossego.
Esse não foi o único. A mulher do filho mais velho era fiel e concebia e dava à luz e concebia e dava à luz regular e fielmente, e, para cada menino que nascia, havia uma escrava. Assim Wang Lung via mais meninos em casa e mais escravas, de modo que quando alguém lhe dizia: “Vai haver mais uma boca na casa do primogênito”, ele apenas ria e dizia:
— Eh... eh... bem, há arroz para todos, já que temos a boa terra.
E ficou satisfeito quando a mulher do segundo filho também deu à luz na hora certa. Teve primeiro uma menina como era adequado e conveniente por respeito à cunhada. Wang Lung, então, em cinco anos teve quatro netos e três netas que enchiam a casa com suas risadas e seus choros.
Cinco anos não são nada na vida de um homem a não ser quando ele é muito jovem ou muito velho e se esses deram a Wang Lung essas crianças, também levaram aquele velho sonhador, seu tio, que ele quase havia esquecido, a não ser para ver que ele e sua velha mulher estivessem alimentados e vestidos e tivessem ópio à vontade.
No inverno do quinto ano fez muito frio, como não fazia há trinta anos, de modo que, pela primeira vez, desde que Wang Lung se lembrava, o fosso congelou em volta do muro da cidade e se podia atravessá-lo a pé. Um vento gelado constante soprava do nordeste e não havia nada, abrigo de couro de cabra nem de pele, que conseguisse manter um homem aquecido. Em cada aposento da casa grande foram colocados braseiros de carvão, e ainda fazia frio a ponto de se ver o ar saindo das pessoas quando elas exalavam.
O tio de Wang Lung e sua mulher há muito tempo haviam fumado toda a carne dos ossos e jaziam na cama o dia inteiro como dois galhos secos, sem nenhum calor. Wang Lung soube que o tio já não conseguia mais sentar-se na cama e cuspia sangue quando se mexia. Foi visitá-lo e viu que o velho não tinha mais muito tempo de vida.
Então, Wang Lung comprou dois caixões de madeira bastante boa sem ser excepcional e mandou levá-los ao quarto onde estava o velho para que os visse e morresse confortado, sabendo que havia um lugar para seus ossos. E o tio disse, num sussurro trêmulo:
— Bem, e você é um filho para mim. Mais que aquele vagabundo do meu próprio filho.
E a velha disse, pois ainda tinha mais forças que o homem:
— Se eu morrer antes que esse filho volte para casa, prometa-me que vai encontrar uma boa moça para ele, a fim de que ainda possa ter filhos para nós. — E Wang Lung prometeu.
A que horas seu tio morreu Wang Lung não soube. Soube apenas que já estava morto quando a criada entrou para retirar a tigela de sopa, e Wang Lung o enterrou num dia gelado quando o vento soprava nuvens de neve sobre a terra, colocando o caixão no cemitério da família ao lado do pai, só um pouco abaixo do túmulo do pai, porém mais acima do lugar reservado ao seu.
Então ordenou que a família inteira guardasse luto, e eles passaram um ano usando o sinal de luto, não porque verdadeiramente lamentassem o desaparecimento do velho que nunca fora outra coisa senão trabalho para eles, mas porque é de bom-tom fazer isso numa grande família quando morre um parente.
Wang Lung mudou a mulher do tio para a cidade, onde ela não deveria ficar só. Deu-lhe um quarto no fim de uma ala e encarregou Cuco de supervisionar uma escrava que cuidasse dela. A velha mamava o cachimbo de ópio deitada na cama toda satisfeita, dormindo os dias inteiros junto do caixão, colocado onde pudesse vê-lo para sentir-se bem.
E Wang Lung admirou-se ao pensar que já tivera medo daquela camponesa gorda e tosca, preguiçosa e faladora, que agora jazia ali murcha, amarela e calada, tão murcha e tão amarela como a Senhora Velha da decaída Casa de Hwang.
Capítulo 31
Toda a vida Wang Lung ouvira falar de guerra aqui e ali, mas nunca vira a coisa de perto, a não ser quando passara o inverno na cidade do sul, ainda jovem. Nunca esteve mais perto que isso, embora, desde criança, tivesse ouvido muitas vezes os homens dizerem: “A guerra é no leste ou no nordeste.”
E, para ele, a guerra era uma coisa como a terra e o céu e a água, e por que existia ninguém sabia, só sabiam que existia. Uma vez ou outra, ouvia os homens dizerem: “Vamos para a guerra.” Diziam isso quando estavam para passar fome e preferiam ser soldados a mendigos; e às vezes, quando estavam indóceis em casa como o filho de seu tio, mas de qualquer modo, a guerra sempre fora num lugar distante. Então, de repente, como um vento insensato vindo do céu, a coisa chegou perto.
Wang Lung ouviu falar nela primeiro por seu segundo filho, que um dia chegou do mercado para a refeição do meio-dia e lhe disse:
— O preço dos grãos subiu de repente, pois a guerra está no sul e cada dia se aproxima mais daqui, e precisamos segurar nossos estoques de grãos, porque o preço vai subir à medida que os exércitos forem se aproximando e poderemos vender a bom preço.
Wang Lung ouviu isso enquanto comia e disse:
— Bem, guerra é uma coisa curiosa, e ficarei feliz de ver uma, pois a vida inteira ouço falar em guerra e nunca vi nenhuma.
Então lembrou-se de que uma vez tivera medo de ser apanhado contra a vontade, mas agora estava velho demais para ser aproveitado e, além do mais, era rico, e os ricos não precisam temer nada. Então, não prestou muita atenção ao assunto além disso e não foi movido por mais que uma pequena curiosidade. Disse então ao segundo filho:
— Faça com os grãos o que bem entender. Está em suas mãos.
E, nos dias que se seguiram, brincou com os netos quando estava disposto, e dormia e comia e fumava e às vezes ia ver a pobre idiota que ficava sentada num canto afastado do pátio.
Então, vindo de noroeste como um enxame de gafanhotos, um dia, no início do verão, chegou uma horda de homens. O netinho de Wang Lung estava no portão com um criado vendo o que se passava numa bela manhã ensolarada no princípio da primavera e, quando viu as longas fileiras de homens de túnicas cinzentas, correu para o avô, exclamando:
— Venha ver o que está chegando, Velho!
Então, Wang Lung foi até a porta com ele para lhe agradar, e ali estavam os homens enchendo a rua, enchendo a cidade, e Wang Lung teve a impressão de que o ar e o sol haviam sido cortados de repente por causa do número de homens de cinza que atravessavam a cidade, marchando pesadamente em uníssono. Então, Wang Lung olhou para eles com atenção e viu que cada homem levava um instrumento com uma faca projetando-se da ponta, e tinha uma cara feroz e grosseira; embora muitos fossem apenas rapazes, eram assim. Wang Lung puxou o menino depressa para junto de si, ao ver a cara deles, e murmurou:
— Vamos embora e vamos trancar a porta. Eles não são homens bons de se ver, meu coraçãozinho.
Mas, de repente, antes que virasse as costas, um dos homens o viu e lhe gritou:
— Ei, você aí, sobrinho do meu pai!
Wang Lung ergueu os olhos ao ouvir esse chamado e viu o filho de seu tio, vestido como os outros, empoeirado e cinzento, mas com o rosto mais selvagem e feroz do que o de qualquer um deles. E o rapaz riu asperamente e gritou para os companheiros:
— Aqui podemos parar, meus camaradas, pois este é um homem rico e é meu parente!
Antes que Wang Lung, horrorizado, pudesse se mexer, a horda já passava por ele e ia entrando em sua casa, com ele impotente no meio deles. Invadiram sua residência como uma água suja e nociva, enchendo cada canto e cada fresta. Deitaram no chão, meteram as mãos nos lagos e beberam água, bateram com as facas nas mesas entalhadas, cuspiram onde quiseram, sempre gritando uns com os outros.
Então, Wang Lung, desesperado com o que acontecera, foi correndo com o menino procurar o primogênito. Entrou na ala do filho, que estava sentado lendo um livro e se levantou ao ver o pai. Quando ouviu o que Wang Lung contou, começou a resmungar e saiu.
Mas, quando viu o primo, não sabia se o maldizia ou o tratava com cortesia. Mas olhou e disse ao pai que estava atrás dele:
— Cada homem com uma faca!
Então foi cortês e disse:
— Bem, meu primo, seja bem-vindo à sua casa.
E o primo abriu um sorriso largo e disse:
— Trouxe alguns convidados.
— Eles são bem-vindos, sendo seus convidados — disse o filho mais velho de Wang Lung —, e prepararemos uma refeição para que possam comer antes de seguir seu caminho.
Então o primo disse, ainda rindo:
— Faça isso, mas não se apresse depois, pois descansaremos um punhado de dias ou uma lua ou um ano ou dois, porque temos que ficar aquartelados na cidade até a guerra chamar.
Quando ouviram isso, Wang Lung e o filho mal conseguiram esconder a consternação, mas precisavam fazê-lo por causa das facas faiscando por toda parte nos pátios, então sorriram o sorriso amarelo que conseguiram e disseram:
— Estamos felizes... estamos felizes...
E o filho mais velho fingiu que precisava se preparar, pegou a mão do pai, foi correndo com ele para a ala interna, trancou a porta e então os dois, pai e filho, se entreolharam consternados e nenhum deles sabia o que fazer.
Então o segundo filho chegou correndo, bateu à porta e, quando o fizeram entrar, precipitou-se para dentro, mal conseguindo se salvar na pressa, e disse ofegante:
— Há soldados pela casa toda... até nos cômodos dos pobres... e vim correndo para dizer que você não deve protestar, pois, hoje, um empregado de minha loja, que eu conhecia bem... estava todos os dias ao meu lado no balcão... ao saber disso, foi para casa e encontrou soldados no quarto mesmo onde jazia doente sua mulher. Ele protestou, e meteram-lhe a faca como se ele fosse feito de banha... com essa facilidade... e a faca saiu limpinha do outro lado. O que quiserem, temos que entregar, só rezando para que, em breve, a guerra se mude para outras partes!
Então, os três se entreolharam com pesar e pensaram em suas mulheres e naqueles homens lascivos e famintos. O primogênito pensou em sua bonita e boa mulher e disse:
— Precisamos acomodar as mulheres e as crianças juntas no aposento interno e temos que montar guarda ali dia e noite, mantendo as portas trancadas, com as portas da paz preparadas para serem abertas.
E assim fizeram. Pegaram as mulheres e as crianças e colocaram-nas no aposento interno onde Lótus vivia sozinha com Cuco e as criadas, e ali, espremidas desconfortavelmente, ficaram morando. O filho mais velho e Wang Lung vigiavam a porta dia e noite e o segundo filho vinha quando podia, e vigiavam tão cuidadosamente de noite quanto de dia.
Mas lá estava aquele, o primo, e porque era um parente, ninguém podia legitimamente mantê-lo afastado. Ele batia na porta e entrava e andava pela casa à vontade, levando a faca desembainhada faiscando na mão. O primogênito andava atrás dele, a cara amargurada, mas sem se atrever a dizer nada, pois havia a faca desembainhada e faiscante. O primo olhava isso e aquilo e avaliava cada mulher.
Olhou para a mulher do primogênito, deu aquela sua gargalhada áspera e disse:
— Bem, é um bom pedaço delicado que você tem, meu primo, uma dama da cidade, de pés tão pequenos como botões de lótus! — E, à mulher do segundo filho, disse: — Bem, aqui temos um bom e forte rabanete vermelho do campo... um pedaço de carne vermelha substancial!
Disse isso porque a mulher era gorda e corada e de ossos grossos, mas não era feia. E enquanto a mulher do filho mais velho recuava quando ele olhava para ela e escondia o rosto atrás da manga, esta riu, bem-humorada e forte como era, e respondeu com vivacidade:
— Bem, alguns homens apreciam o sabor de um rabanete picante, ou um pedaço de carne vermelha.
E o primo revidou, prontamente:
— Disso eu gosto! — e fez menção de agarrar sua mão.
Esse tempo todo, o primogênito estava morrendo de vergonha dessa brincadeira entre um homem e uma mulher que não deviam sequer se falar e olhava para a mulher porque estava com vergonha do comportamento do primo e da cunhada na frente dela, que havia tido uma educação melhor que a dele, e o primo, vendo a timidez dele diante da mulher, disse com malícia:
— Bem, prefiro comer carne vermelha qualquer dia a uma fatia de peixe fria e insossa como essa!
Ao ouvir isso, a mulher do filho mais velho levantou-se com dignidade e retirou-se para um aposento interno. Então o primo riu grosseiramente e disse a Lótus, que estava ali fumando seu cachimbo de água:
— Essas mulheres da cidade são muito fricoteiras, não, Senhora Velha? — E, olhando atentamente para Lótus, acrescentou: — Bem, de fato, Senhora Velha, se eu não soubesse que meu primo Wang Lung era rico, saberia agora só de vê-la assim transformada nessa montanha de carne, depois de comer do bom e do melhor! Só as mulheres dos ricos podem ter o seu aspecto!
Lótus adorou ser chamada de Senhora Velha, porque este é um título que só as senhoras de grandes famílias podem ter. Deu uma risada profunda e gorgolejante lá do fundo daquela garganta gorda, soprou a cinza do cachimbo e o entregou a uma escrava para ser reabastecido. Então disse, virando-se para Cuco:
— Bem, esse sujeito grosseiro é um piadista!
E disse isso com um olhar sedutor para o primo, embora tais olhares, agora que já não tinha mais aqueles olhos grandes e amendoados, não fossem tão provocantes como antes. E ao ver como ela o olhava, o primo riu estrondosamente e exclamou:
— Bem, e ainda é uma bisca velha! — e deu outra gargalhada ruidosa.
Esse tempo todo, o filho mais velho estava ali calado e furioso.
Então, depois de ter visto tudo, o primo foi visitar a mãe, e Wang Lung foi com ele para levá-lo até ela. Lá estava ela, dormindo na cama, e o filho só conseguiu acordá-la batendo com o cabo da arma no chão ao lado de sua cabeceira. Então, ela acordou e ficou olhando para ele no meio do sonho, e ele disse com impaciência:
— Bem, seu filho está aqui, mas você continua dormindo!
Ela se levantou na cama, tornou a olhar para ele e disse espantada:
— Meu filho... é meu filho... — e ficou um bom tempo olhando para ele. Finalmente, como se não soubesse o que mais fazer, ofereceu-lhe o cachimbo de ópio, como se não conseguisse pensar em nada melhor que isso, e disse à escrava que a atendia:
— Prepare uma dose para ele.
E ele encarou-a de volta e disse:
— Não, não quero.
Wang Lung estava ali parado ao lado da cama e de repente teve medo que aquele homem pudesse virar-se para ele e dizer:
“O que fez com minha mãe, que ela está assim murcha e amarela, sem mais nada daquelas carnes saudáveis?”
Então foi logo dizendo:
— Eu gostaria que ela se contentasse com menos, pois é gasto um punhado de prata diariamente para lhe comprar ópio, mas, na idade dela, não nos atrevemos a contrariá-la e ela quer isso tudo. — E suspirou enquanto falava, olhando disfarçadamente para o filho do tio, mas o homem nada disse, apenas ficou olhando para ver em que se transformara sua mãe, e quando ela tornou a adormecer, ele se levantou e saiu com estardalhaço, usando o fuzil como cajado.
Daquela horda de desocupados da ala externa, Wang Lung e sua família não odiavam e temiam ninguém mais do que o primo; e isso embora os homens arrancassem os galhos em flor das ameixeiras e das amendoeiras, quebrando-os à vontade, e destruíssem os delicados entalhes das cadeiras com suas botinas de couro, e emporcalhassem com a própria sujeira os lagos onde nadavam os peixes dourados e sarapintados, que morriam e ficavam boiando e apodrecendo na água, com as barrigas brancas viradas para cima.
Pois o primo entrava e saía à vontade, de olho nas escravas. Wang Lung e os filhos se entreolhavam com os olhos fundos e esgazeados porque não se atreviam a dormir. Então Cuco viu isso e disse:
— Só há uma coisa a fazer. Devem lhe dar uma escrava para ele se divertir enquanto estiver aqui, senão vai buscá-la onde não deve.
Wang Lung aceitou avidamente essa idéia porque lhe pareceu que não podia mais suportar a vida com todo o tumulto que havia em sua casa e disse:
— É uma boa idéia.
E mandou Cuco ir perguntar ao primo que escrava queria, já que havia visto todas.
Cuco foi, então, e voltou dizendo:
— Ele diz que quer a menina pálida que dorme na cama da senhora.
Essa escrava pálida chamava-se Flor de Pereira e era aquela que Wang Lung comprara num ano de fome quando ela era uma criança miúda e faminta. E porque era sempre delicada, era acarinhada e só tinha permissão para ajudar Cuco e fazer os trabalhos menores em volta de Lótus, enchendo seu cachimbo e servindo-lhe chá, e fora assim que o primo a vira.
Quando Flor de Pereira ouviu isso, gritou enquanto servia o chá de Lótus, pois Cuco falara na frente de todos os que se encontravam na ala interna onde elas estavam sentadas. Deixou cair o bule que se partiu em pedacinhos nos ladrilhos e o chá escorreu, mas a menina não viu o que fez. Apenas se atirou no chão diante de Lótus e bateu com a cabeça no chão, gemendo:
— Ah, minha senhora, não... eu não... morro de medo dele!
Lótus ficou aborrecida com ela e respondeu com irritação:
— Ele é homem, e homem só é homem com uma moça, e são todos iguais, então para que esse barulho? — E virou-se para Cuco e disse: — Leve essa escrava e entregue-a a ele.
Então a moça juntou as mãos miseravelmente e chorou como se fosse morrer de medo e de tanto chorar, tremendo dos pés à cabeça. Olhava de uma cara para outra, suplicando com o pranto.
Mas os filhos de Wang Lung não podiam contrariar a mulher do pai. Se não podiam fazê-lo, suas esposas muito menos, assim como o caçula, que estava ali parado, olhando para a menina, as mãos cerradas no peito e as sobrancelhas contraídas sobre os olhos, retas e pretas. Mas não falava. Os garotos e as escravas olhavam também calados, e só se ouvia aquele choro terrível e apavorado da menina.
Mas Wang Lung sentiu-se mal com aquilo e olhou em dúvida para ela, sem querer irritar Lótus, mas mesmo assim comovido, pois sempre tivera um coração mole. Então a moça enxergou o coração no rosto dele e foi correndo prostrar-se a seus pés, segurando-os com as mãos e chorando convulsivamente. Ele olhou para ela e viu quão pequenos eram seus ombros e como tremiam e lembrou-se do corpanzil grosseiro e selvagem do primo, que há muito já deixara para trás a juventude, e aquilo o repugnou. Disse então a Cuco, com voz suave:
— Muito bem, é maldade forçar a menina assim.
Disse essas palavras com bastante suavidade, mas Lótus gritou incisiva:
— Ela tem que obedecer, e eu digo que é tolice esse choro todo por uma coisa à toa que, mais cedo ou mais tarde, tem que acontecer com toda mulher.
Mas Wang Lung era indulgente e disse a Lótus:
— Vamos ver primeiro o que mais se pode fazer. Deixe-me comprar-lhe outra escrava, ou o que você quiser, mas deixe-me ver o que se pode fazer.
Então Lótus, que já desejava há muito tempo um relógio estrangeiro e um novo anel de rubi, calou-se de repente. Wang Lung disse a Cuco:
— Vá dizer a meu primo que a menina tem uma doença vergonhosa e incurável, mas se isso não o incomodar, muito bem, ela irá para ele, mas se ele receia a doença como todos nós, diga-lhe que temos outra, e sadia.
Deu uma olhada nas escravas que estavam em volta, e elas viraram a cara, rindo, como se estivessem encabuladas, todas elas, menos uma moça forte, que já tinha uns 20 anos, e disse com uma cara corada e risonha:
— Bem, já ouvi falar bastante nisso e estou propensa a experimentar, se ele me quiser, e ele não é um homem dos mais medonhos.
Então Wang Lung respondeu aliviado:
— Bem, então vá!
E Cuco disse:
— Venha bem atrás de mim, vai acontecer, eu sei que ele pegará o fruto que estiver mais perto. — E saíram.
Mas a mocinha ainda continuava agarrada aos pés de Wang Lung, só que já parara de chorar e prestava atenção a tudo que acontecia. Lótus, que continuava irritada com ela, levantou-se e foi para o quarto sem dizer palavra. Então Wang Lung levantou a moça com delicadeza, e ela ficou de pé diante dele, abatida e pálida, e ele viu que tinha uma carinha oval e doce, extremamente delicada e pálida, e uma boquinha rosada. Disse então com bondade.
— Fique longe de sua ama por um ou dois dias, minha filha, até a raiva dela passar, e, quando aquele entrar aqui, esconda-se para que ele não torne a desejá-la.
Ela ergueu os olhos, encarando-o apaixonadamente, passou por ele calada como uma sombra e se foi.
O primo passou uma lua e meia morando lá e tinha a moça quando queria e ela concebeu dele e se gabava disso nos pátios. Então de repente a guerra chamou e a horda foi embora tão depressa como um cisco carregado pelo vento, sem deixar nada senão sujeira e destruição. O primo de Wang Lung pôs a faca na cinta, postou-se diante deles com o fuzil no ombro e disse zombeteiro:
— Bem, se eu não voltar, já lhes deixei meu segundo eu e um neto para minha mãe. Nem todo homem é capaz de deixar um filho onde pára por uma lua ou duas, e essa é uma das vantagens da vida de soldado... sua semente brota depois que ele parte e os outros precisam cuidar dela!
E, rindo para todos, seguiu seu caminho com os outros.
Capítulo 32
Quando os soldados partiram, Wang Lung e os dois filhos mais velhos, pela primeira vez, concordaram a respeito de alguma coisa e esta era que todo vestígio do que acabara de passar devia ser apagado. Então chamaram novamente carpinteiros e pedreiros, e os criados limparam os pátios, e os carpinteiros restauraram com habilidade as talhas e as mesas quebradas, e os lagos foram esvaziados para que se trocasse a água suja por outra limpa. O primogênito tornou a comprar peixes sarapintados e dourados, plantou mais árvores floríferas e podou os galhos quebrados das que ficaram. Em um ano, o lugar estava novo e florido, e cada filho tornara a se mudar para sua ala e havia ordem de novo em toda parte.
A escrava que concebera do filho do tio de Wang Lung foi designada para servir à mulher de seu tio enquanto esta vivesse, o que não poderia ser muito, e encarregada de colocá-la no caixão quando ela morresse. E foi motivo de alegria para Wang Lung que essa escrava só tivesse dado à luz uma menina, pois, se fosse um menino, teria ficado orgulhosa e exigido um lugar na família, mas, sendo uma menina, era apenas uma escrava parindo uma escrava, e não era mais que antes.
No entanto, Wang Lung foi justo com ela, como era com todos, e lhe disse que, se quisesse, poderia ficar com o quarto da velha quando esta morresse, e também com a cama, que ninguém sentiria falta de um quarto e uma cama numa casa de sessenta quartos. E deu um pouco de dinheiro à escrava, que ficou bem contente, mas lhe fez ainda um pedido:
— Guarde o dinheiro como um dote para mim, meu amo, e, se não for incomodá-lo, case-me com um lavrador ou um bom homem pobre. Será um mérito para o senhor, e tendo vivido com um homem, é duro para mim voltar a dormir sozinha.
Então Wang Lung prometeu facilmente, e, ao prometer, ocorreu-lhe o seguinte: ali estava ele prometendo uma mulher a um homem pobre, e ele já fora um homem pobre vindo buscar sua mulher exatamente naquela casa. Há meia vida não pensava em O-lan, e agora pensou nela com uma tristeza que não era dor, mas só o peso da lembrança e das coisas passadas, tão longe ele estava dela agora. E disse pesadamente:
— Quando a velha fumadora de ópio morrer, vou encontrar um homem para você, e isso não pode demorar muito.
E Wang Lung fez o que prometeu. A mulher foi a ele um dia e disse:
— Agora cumpra sua promessa, meu amo, pois a velha morreu dormindo de madrugada, e já a pus no caixão.
Então Wang Lung se perguntou que homem conhecia em suas terras e lembrou-se do rapaz chorão que causara a morte de Ching, aquele cujos dentes cobriam o lábio inferior, e disse:
— Bem, ele não teve intenção de fazer o que fez e é tão bom quanto qualquer outro e o único de que me lembro agora.
Então mandou buscá-lo e ele veio. Agora já era um homem crescido, mas continuava grosseiro e com os dentes para fora. E Wang Lung teve o capricho de sentar-se no estrado do salão e chamar os dois à sua presença. Disse então lentamente, para poder saborear todo o estranho momento:
— Homem, cá está esta mulher, e ela é sua se você a quiser. Nenhum homem a conheceu a não ser o filho de meu tio.
E o homem a aceitou agradecido, pois ela era uma moça forte e de boa índole, e ele, muito pobre para se casar senão com uma como aquela.
E Wang Lung desceu do estrado com a sensação de que agora sua vida estava completa e ele havia feito tudo o que dissera que faria e mais ainda do que algum dia poderia ter imaginado fazer. Ele mesmo não sabia como tudo acontecera. Só agora lhe parecia que poderia verdadeiramente ter paz e dormir ao sol. Também já era hora, pois estava quase com 65 anos e os netos pareciam bambus jovens em volta dele. Três eram filhos de seu primogênito, tendo o mais velho destes quase 10 anos, e dois eram filhos de seu segundo filho. Bem, e o terceiro filho deveria se casar logo, e, feito isso, não sobrava mais nada para afligi-lo na vida e ele podia ficar em paz.
Mas não ficava. A passagem dos soldados fora como a passagem de um enxame de abelhas selvagens que deixam ferroadas onde podem. A mulher do filho mais velho e a do mais moço, que se tratavam com bastante cortesia até irem morar juntas, agora haviam aprendido a se odiar intensamente. O ódio nascera de centenas de briguinhas, desentendimentos entre mulheres cujos filhos têm que viver e brincar juntos e brigam como cão e gato. Cada mãe corria em defesa do filho e esbofeteava os outros com energia mas poupava o dela, e o dela tinha sempre razão em qualquer disputa, e assim as duas mulheres se hostilizavam.
Então, quando o primo elogiara a mulher do campo e caçoara da da cidade, foi algo imperdoável. A mulher do mais velho erguia a cabeça altivamente quando passava pela cunhada e um dia disse em voz alta ao marido ao passar:
— É um peso ter na família uma mulher atrevida e mal-educada que ri na cara de um homem que a chamou de carne vermelha.
E a mulher do segundo filho foi logo respondendo com estardalhaço:
— Minha cunhada está com ciúmes porque um homem a chamou de posta de peixe frio!
E assim as duas começaram a trocar olhares enfurecidos, embora a mais velha, orgulhosa de sua superioridade, mantivesse um silêncio desdenhoso, esforçando-se para ignorar a presença da outra. Mas quando seus filhos queriam sair de casa, ela gritava:
— Quero que fiquem longe de crianças mal-educadas!
Dizia isso na frente da cunhada, a quem via no pátio ao lado e que gritava para os próprios filhos:
— Não brinquem com cobras, que serão mordidos!
Então as duas mulheres se odiavam cada vez mais, e a coisa era ainda mais amarga porque os dois irmãos não gostavam muito um do outro, o mais velho sempre com medo que seu nascimento e sua família parecessem baixos aos olhos da mulher que fora educada na cidade e era mais bem-nascida que ele, e o mais moço com medo que o desejo de gastar e ter uma posição os levasse a dilapidar a herança antes que fosse repartida. Além disso, era uma vergonha para o irmão mais velho o segundo irmão saber quanto dinheiro o pai possuía e quanto se gastava. O dinheiro passava por suas mãos, de modo que embora Wang Lung recebesse e distribuísse todo o rendimento de suas terras, o segundo irmão sabia quanto era e o primeiro não, mas precisava pedir ao pai uma coisa e outra como criança. Então, quando as duas mulheres se odiaram, seu ódio se espalhou para os homens também e as alas de ambos se encheram de ódio e Wang Lung resmungava porque não havia paz em sua casa.
Wang Lung também tinha um problema íntimo com Lótus desde o dia em que defendera a escrava contra o filho de seu tio. Desde então, a jovem caíra em desgraça com Lótus, e, embora a servisse calada e servilmente, e passasse o dia inteiro ao seu lado, enchendo seu cachimbo, apanhando uma coisa e outra, levantando-se no meio da noite quando a ama se queixava de insônia, e massageando suas pernas e seu corpo para acalmá-la, nem assim Lótus estava satisfeita.
E tinha ciúmes da moça, mandando-a sair do quarto quando Wang Lung entrava e acusando-o de olhar para ela. Mas Wang Lung não pensara na moça senão como uma pobre menina assustada e gostava dela como gostava de sua pobre idiota e nada mais. Porém, quando Lótus o acusou, lembrou-se de olhá-la e viu que era verdade que a menina era muito bonita e pálida como uma flor de pereira, então algo que estava calmo nos últimos dez anos ou mais agitou-se em seu velho sangue.
Por isso, embora risse quando Lótus dizia “Está pensando que ainda sou lasciva, quando não entro em seu quarto mais de três vezes por ano?”, olhava de rabo de olho para a menina e se excitava.
Mas Lótus era ignorante em todos os assuntos a não ser no dos homens com as mulheres e sabia que os homens, quando velhos, despertam de novo para uma breve juventude, por isso estava furiosa com a moça e falava em vendê-la para a casa de chá. Mas mesmo assim, gostava do conforto que ela lhe dava e Cuco estava velha e preguiçosa e a menina era rápida e acostumada com a pessoa de Lótus, percebendo as necessidades da ama antes mesmo de ela saber que as tinha. Assim, Lótus não estava disposta a separar-se dela e irritava-se mais ainda por sentir-se mal com esta divisão, tornando-se assim mais do que nunca uma pessoa com quem era difícil conviver. Wang Lung passava dias sem ir a seus aposentos porque seu mau gênio estava exagerado. Dizia a si mesmo que esperaria, achando que aquilo passaria, mas, enquanto isso, pensava na bela mocinha pálida mais do que ele mesmo poderia acreditar.
Então, como se já não houvesse problemas suficientes com as mulheres da casa todas arrevesadas, havia os do caçula de Wang Lung. Ora, o caçula fora um rapaz tão calado, tão dedicado à sua educação tardia, que ninguém pensava nele a não ser como um jovem esguio sempre com livros debaixo do braço e um velho instrutor sempre atrás dele como um cão.
Mas o rapaz havia convivido com os soldados quando estes estavam lá e ouvira suas histórias de guerra e pilhagem, extasiado, sem dizer nada. Então pediu romances ao instrutor, histórias de guerras dos três reinos e dos bandidos que viveram em tempos idos em volta do lago Swei, e sua cabeça estava cheia de sonhos.
Portanto, foi ao pai e disse:
— Sei o que vou fazer. Vou ser soldado e vou para as guerras.
Quando ouviu isso, Wang Lung achou que era a pior coisa que poderia ter-lhe acontecido e falou grosso:
— Que loucura é essa? Será que meus filhos nunca vão me dar paz? — E discutiu com o rapaz, e, tentando ser gentil e bondoso quando viu suas sobrancelhas se juntarem formando uma linha, disse: — Meu filho, desde os velhos tempos se diz que não se usa ferro bom para fazer prego nem homem bom para fazer soldado. Você é meu melhor filho caçula, então como vou dormir à noite com você vagando pela terra de um lado para outro numa guerra?
Mas o rapaz estava decidido e olhou para o pai franzindo as sobrancelhas pretas e disse apenas:
— Eu vou.
Então Wang Lung tentou manipulá-lo dizendo:
— Você poderá ir para qualquer escola que quiser, e hei de mandá-lo para as grandes escolas do sul ou até para uma escola estrangeira para aprender coisas curiosas, e poderá ir estudar em qualquer lugar se não for soldado. Isso é uma desgraça para um homem como eu, um homem que possui dinheiro e terras, ter um filho soldado.
E quando o filho continuou calado, ele tornou a tentar manipulá-lo dizendo:
— Diga a seu velho pai por que quer ser soldado.
E o rapaz disse de repente, com os olhos acesos sob as sobrancelhas:
— Vai haver uma guerra como nunca se ouviu falar, vai haver uma revolução com luta e guerra como nunca houve, e nossa terra será livre!
Wang Lung ouviu isso espantado como nunca ficara com os três filhos.
— O que é tudo isso não sei — disse admirado. — Nossa terra já está livre. Toda a nossa boa terra está livre. Eu a arrendo a quem quiser e ela me traz dinheiro e bons grãos e você come e se veste e se alimenta. Então não sei que liberdade deseja mais do que a que tem.
Mas o rapaz só murmurou com amargura:
— Você não entende, é muito velho, não entende nada.
Wang Lung refletiu e, vendo a cara de sofrimento do filho, pensou consigo mesmo:
“Dei a esse filho tudo, até a vida. Ele tem tudo de mim. Permiti até que deixasse a terra, de modo que não tenho um filho para cuidar da terra depois de mim, e permiti que aprendesse a ler e escrever embora não haja necessidade disso na família com dois já sabendo.” E pensou ainda, continuando a olhar para o rapaz: “Esse filho tem tudo de mim.”
Então olhou com atenção para o filho e viu que já era alto como um homem, mas ainda tinha o corpo esguio de rapaz. Disse então, hesitante, murmurando, pois não via sinais de luxúria no rapaz:
— Bem, pode ser que precise de mais uma coisa. — E disse alto então e devagar: — Bem, vamos casá-lo em breve, meu filho.
Mas o menino lançou um olhar de fogo para o pai de sob as pesadas sobrancelhas franzidas e disse com desdém:
— Então vou fugir mesmo, pois para mim uma mulher não é resposta para tudo como é para meu irmão mais velho!
Wang Lung viu logo que estava errado e disse precipitadamente para se desculpar:
— Não, não, não vamos casá-lo, mas, quero dizer, se houver alguma escrava que você deseje...
E o menino respondeu com olhares altivos e com dignidade, cruzando os braços no peito:
— Não sou um rapaz como os outros. Tenho meus sonhos. Desejo a glória. Há mulheres em toda parte. — Então, como se ele se lembrasse de algo que já esquecera, de repente abandonou a atitude de superioridade e disse com a voz normal: — Além do mais, nunca houve um conjunto de escravas mais feio que o que temos. Se eu me interessasse... mas não me interesso... bem, não há uma única beldade na casa a não ser talvez a mocinha pálida que serve àquela da ala interna.
Então Wang viu que ele se referia a Flor de Pereira, e foi dominado por um estranho ciúme. De repente sentiu-se mais velho ainda, um velho barrigudo de cabelos brancos, e viu o filho esbelto e jovem, e, naquele instante, não eram pai e filho, mas dois homens, um velho e um jovem, e Wang Lung disse irritado:
— Fique longe das escravas... não admito os hábitos podres dos senhores moços em minha casa. Somos gente do campo boa e forte, e gente decente. Nada disso em minha casa!
Então, o menino arregalou os olhos e ergueu as sobrancelhas negras, encolheu os ombros e disse ao pai:
— Foi você quem falou primeiro nisso! — e virou as costas e saiu.
Então, Wang Lung ficou ali sozinho no quarto sentado ao lado da mesa, sentindo-se triste e sozinho, e murmurou para si mesmo:
“Bem, não tenho paz em lugar nenhum de minha casa.”
Estava confuso, irritado com muitas coisas, mas, embora não conseguisse entender por quê, esta se destacava com mais clareza; seu filho havia olhado para uma mocinha pálida da casa e a achara bonita.
Capítulo 33
Wang Lung não conseguia parar de pensar no que o filho caçula lhe dissera sobre Flor de Pereira e observava sem cessar a moça ir e vir, e, sem querer, só pensava nela e estava louco por ela. Mas não disse nada a ninguém.
Uma noite, no início daquele verão, na hora em que o ar da noite fica denso e suave com as nuvens de calor e fragrância, ele descansava em seu pátio debaixo de uma cássia florida e o perfume doce das flores lhe enchia as narinas com o sangue correndo perfeito e quente em suas veias como o de um jovem. O dia todo sentira o sangue assim e quase saíra para caminhar pela propriedade e sentir a boa terra sob os pés e tirar os sapatos e as meias para senti-la na pele.
Teria feito isso, mas teve vergonha de ser visto assim, ele que, dentro dos muros da cidade, já não era considerado um lavrador, mas sim um proprietário de terras e um homem rico. Então, ficou vagando indócil pela casa, evitando a ala onde Lótus estava sentada à sombra fumando seu cachimbo d’água, porque ela sabia bem quando um homem estava indócil e tinha perspicácia para ver o que ia mal. Vagava sozinho, então, sem querer ver nenhuma das noras briguentas, nem mesmo os netos, com quem ele habitualmente se deliciava.
E assim passou aquele dia, muito longo e solitário, sentindo o sangue correndo nas veias. Não conseguia esquecer o filho caçula, a cara dele à sua frente, alto e empertigado, as sobrancelhas negras franzidas com a seriedade de sua juventude, e não conseguia esquecer a moça. Disse então a si mesmo:
“Suponho que têm a mesma idade — o menino já deve ter 18 anos e ela não tem mais de 18.”
Então, lembrou-se de que faltavam poucos anos para que ele mesmo completasse 70, envergonhou-se daquele sangue que fervilhava e pensou:
“Seria uma boa coisa dar a moça ao rapaz.”
Repetiu isso algumas vezes, e a idéia sempre parecia uma punhalada numa ferida aberta, mas ele não conseguia deixar de se ferir nem de sentir a dor.
E assim passou aquele dia, muito longo e solitário.
Quando anoiteceu, ele continuava só e sentou-se sozinho em seu pátio, não havendo ninguém na casa toda a quem pudesse procurar como amigo. E o ar da noite estava denso e suave com o perfume das flores da cássia.
E enquanto estava ali sentado no escuro debaixo da árvore, alguém passou no pátio ao lado do portão perto de onde ele estava, e ele olhou depressa e viu que era Flor de Pereira.
— Flor de Pereira! — chamou, e sua voz saiu num sussurro.
Ela parou de repente, a cabeça inclinada, escutando.
Ele tornou a chamar, e a voz mal lhe saía da garganta:
— Venha cá!
Ao ouvi-lo, ela passou temerosa pela porta e postou-se diante dele. Ele mal conseguia vê-la no escuro, mas sentia-a ali e, estendendo a mão, segurou seu casaquinho e disse, meio engasgado:
— Menina...!
Deteve-se ao dizer essa palavra. Pensou consigo mesmo que era um velho e aquilo era uma coisa horrível para um homem com netos e netas mais próximos da idade daquela menina do que ele e tocou no casaquinho dela.
Então ela, esperando, captou o ardor do sangue dele, abaixou-se e, como uma flor que se dobra sobre a haste, deslizou para o chão, agarrando-se a seus pés e lá ficando. Ele disse devagar:
— Menina... Sou um velho... um homem muito velho...
E ela disse, com uma voz que saiu na noite como o próprio hálito da cássia:
— Gosto de velhos... gosto de velhos... eles são muito bons...
Ele tornou a dizer, com ternura, inclinando-se um pouco para ela:
— Uma menina como você deveria ter um rapaz alto e empertigado... uma menina como você!
E, no íntimo, acrescentou:
“Como meu filho.”
Mas não podia dizer isso em voz alta, porque poderia lhe dar essa idéia, e isso lhe era insuportável.
Mas ela disse:
— Os jovens não são bons... são apenas ardentes.
Ao ouvir aquela vozinha infantil trêmula a seus pés, uma grande onda de amor por aquela moça encheu seu coração, e ele levantou-a com delicadeza, e a levou para seus próprios aposentos.
Quando terminou, aquele amor de sua velhice espantou-o mais do que quaisquer de suas luxúrias anteriores, pois, apesar de todo o seu amor por Flor de Pereira, não a possuiu como possuíra as outras que conhecera.
Não, abraçou-a com delicadeza e contentou-se em sentir sua juventude viva contra a carne velha, e em vê-la na claridade e tocar em seu casaco esvoaçante e ter seu corpo em repouso ao lado dele à noite. E maravilhou-se com o amor da velhice, que é tão afetuoso e tão facilmente satisfeito.
Quanto a ela, era uma moça sem paixão que se agarrou a ele como a um pai, e, para ele, era de fato mais que meio criança e pouco mulher.
Ora, o que Wang Lung havia feito custou a se tornar público, pois ele nada disse, e por que o faria, sendo quem mandava na casa?
Mas o olho de Cuco foi o primeiro a perceber, e quando viu a menina sair de mansinho do quarto dele de madrugada, segurou-a e riu, com os olhos de falcão velho brilhando.
— Muito bem! — disse. — O Senhor Velho voltou a ser o que era!
Wang Lung, em seu quarto, ao ouvi-la, enrolou a túnica rapidamente no corpo e saiu, sorrindo entre encabulado e orgulhoso, e murmurou:
— Bem, eu disse que seria melhor ela ficar com um rapaz jovem e ela quis o velho!
— Vai ser uma bela coisa para contar à ama — disse Cuco, então, com os olhos faiscando de malícia.
— Eu mesmo não sei como a coisa aconteceu — respondeu Wang Lung pausadamente. — Eu não tinha a intenção de pôr mais uma mulher em meus aposentos, e isso aconteceu naturalmente.
Depois, Cuco disse:
— Bem, e a ama deve saber.
E Wang Lung, temendo a raiva de Lótus mais do que qualquer outra coisa, implorou a Cuco:
— Conte a ela, se quiser, e se conseguir arrumar isso sem que eu enfrente raiva, dou-lhe um punhado de dinheiro.
Então Cuco, ainda rindo e balançando a cabeça, prometeu, e Wang Lung foi para o quarto e não quis sair até Cuco voltar, dizendo:
— Bem, já contei, e ela ficou bem zangada até eu lhe lembrar que há muito tempo ela queria o relógio estrangeiro que o senhor lhe prometeu. E que gostaria de ter um anel de rubi para cada mão e outras coisas que lhe ocorrerem, além de uma escrava para substituir Flor de Pereira. E que não quer mais ver Flor de Pereira na frente dela, nem o senhor tão cedo, porque, só de vê-lo, fica enjoada.
Wang Lung prometeu ansiosamente e disse:
— Dê a ela o que ela quer e eu dou tudo de boa vontade.
E ficou feliz por não precisar ver Lótus tão cedo, até a raiva esfriar com a realização de seus desejos.
Mas ainda havia seus três filhos, e ele sentia-se estranhamente envergonhado perante eles pelo que havia feito, repetindo sempre para si mesmo:
— Não sou eu quem manda em minha casa e não posso tomar minha escrava que comprei com meu dinheiro?
Porém, estava envergonhado, mas orgulhoso também, como alguém que ainda tem desejos e se sente homem enquanto os outros o consideram apenas um avô. Esperou os filhos irem a seus aposentos.
E foram, um por um, cada um por si. O primeiro a ir foi o segundo, que falou da terra e da colheita e da seca de verão que este ano reduziria a colheita à terça parte. Mas Wang Lung não levava em consideração esses dias de chuva ou seca, pois se a colheita do ano lhe trouxesse pouco dinheiro, havia o dinheiro do ano anterior. E estava cheio de dinheiro em casa, deviam-lhe dinheiro nos mercados de grãos, emprestara muito dinheiro a juros altos cobrados para ele pelo segundo filho, e já não olhava mais para ver como estavam os céus sobre suas terras.
Mas o segundo filho continuava falando assim e, enquanto falava, corria os olhos de um lado para outro pelos quartos disfarçadamente, e Wang Lung percebeu que ele procurava a moça para ver se era verdade o que havia ouvido, então chamou Flor de Pereira do quarto de dormir onde ela estava, dizendo:
— Traga um chá, minha filha, para mim e para meu filho.
Ela apareceu, e seu rosto delicado era rosado como um pêssego. Caminhava de cabeça baixa com aqueles pezinhos silenciosos, e o segundo filho olhou para ela como se já soubesse, mas só agora conseguisse acreditar.
Mas não disse nada, a não ser que a terra estava assim e assado e este e aquele rendeiro deviam ser trocados no fim do ano, e aquele outro, porque fumava ópio e não tirava da terra aquilo que ela podia dar. E Wang Lung perguntou ao filho como estavam os filhos dele, e ele respondeu que tiveram a tosse dos cem dias, mas isso era uma coisa à toa agora que o tempo esquentara.
Assim conversaram enquanto tomavam chá, e o segundo filho ficou satisfeito com o que viu e foi embora, e Wang Lung ficou satisfeito com ele.
Então chegou o filho mais velho, antes que aquele mesmo dia estivesse pela metade. Entrou, alto e bem-apessoado e orgulhoso com os anos da maturidade, e Wang Lung teve medo de seu orgulho e não chamou Flor de Pereira imediatamente, mas esperou, fumando seu cachimbo. O filho mais velho ficou ali sentado todo empertigado com seu orgulho e sua dignidade, e perguntou ao pai, como era de bom-tom, por sua saúde e seu bem-estar. Então Wang Lung respondeu rápida e tranqüilamente que estava bem, olhou para o filho e seu medo desapareceu.
Pois viu o filho como ele era: um homem que tinha tamanho, mas tinha medo da mulher urbana e mais medo ainda de não parecer nascido em berço nobre. E a robustez da terra, que era forte em Wang Lung mesmo quando ele não sentia, cresceu nele, deixando-o mais uma vez despreocupado com o filho mais velho como já estivera, despreocupado com sua boa aparência, então, de repente, gritou para Flor de Pereira:
— Venha, minha filha, servir um chá para outro filho meu!
Desta vez, ela entrou muito fria e calada. Tinha a carinha oval branca como a flor de seu nome. Ao entrar, baixou os olhos, movendo-se em silêncio, fazendo o que haviam mandado que fizesse e logo se retirando.
Os dois homens ficaram sentados em silêncio enquanto ela servia o chá, mas depois que ela saiu e eles ergueram as tigelas, Wang Lung olhou nos olhos do filho e captou ali um olhar indisfarçável de admiração, e era o olhar de um homem que inveja outro secretamente. Então, tomaram o chá e o filho finalmente disse com uma voz grossa e irregular:
— Não acreditei que fosse assim.
— Por quê? — respondeu Wang Lung tranqüilamente. — A casa é minha.
O filho suspirou e, depois de algum tempo, respondeu:
— O senhor é rico e pode fazer o que quiser. — Suspirou de novo e disse: — Suponho que uma mulher nem sempre é suficiente para um homem, e que chega um dia...
Interrompeu-se, mas tinha no olhar a expressão de um homem que, sem querer, inveja outro homem, e Wang Lung viu e riu por dentro, pois conhecia bem a natureza sensual do filho e sabia que a boa mulher urbana não iria sempre segurar as rédeas e um dia o homem tornaria a se mostrar.
Então o primogênito não disse mais nada, mas saiu como alguém a quem acabavam de dar uma idéia. E Wang ficou sentado fumando seu cachimbo, orgulhoso de ter feito o que desejava, mesmo já sendo velho.
Mas já era noite quando o filho caçula chegou, e também veio sozinho. Wang Lung estava sentado na sala central de sua ala, com as velas vermelhas acesas sobre a mesa, fumando. Flor de Pereira estava sentada à mesa diante dele, as mãos cruzadas e quietas no colo. Às vezes, olhava para Wang Lung, em cheio, sem faceirice, como uma criança, e ele a observava, orgulhoso do que havia feito.
Então, de repente, lá estava o caçula parado diante dele, surgido da escuridão do pátio, sem que ninguém o visse entrar. Ficou ali numa estranha posição agachada, trazendo de relance à lembrança de Wang Lung a imagem da pantera que ele vira sendo trazida das montanhas pelos homens que a haviam capturado, e o animal estava amarrado, mas pronto para dar o bote, e seus olhos brilhavam. Os olhos do rapaz também brilhavam fitando a cara do pai. E aquelas suas sobrancelhas, que eram muito pesadas e muito pretas para sua idade, ele franzia ferozmente sobre os olhos. Assim ficou, e afinal disse, com uma voz baixa e carregada:
— Agora vou ser soldado... vou ser soldado...
Mas não olhou para a moça, só para o pai, e Wang Lung, que não tivera medo dos outros dois filhos, de repente teve medo deste, a quem quase não levara em consideração desde que nascera.
E Wang Lung gaguejou e resmungou, querendo falar, mas, quando tirou o cachimbo da boca, não saiu som nenhum, e ele ficou olhando para o filho, que repetia sempre:
— Agora, vou... agora, vou...
De repente, virou-se e olhou uma vez para a moça, e ela olhou para ele, encolhendo-se, tapando o rosto com as duas mãos para não vê-lo. Então, o rapaz parou de olhar para ela e saiu de um pulo do quarto. Wang Lung ficou olhando para o quadrado de escuridão da porta, aberta para a noite fechada de verão. O rapaz já se fora e tudo estava em silêncio.
Afinal, virou-se para a moça e disse humilde e delicadamente, com muita tristeza e desprovido de todo orgulho:
— Sou muito velho para você, meu coração. Bem sei disso, sou um homem velho, muito velho.
Mas a moça destapou o rosto e exclamou com uma paixão como ele nunca vira:
— Os jovens são muito cruéis... prefiro os velhos!
No dia seguinte pela manhã, o filho caçula de Wang Lung já havia partido, para onde ninguém sabia.
Capítulo 34
Então, tal como o outono arde com o falso calor do verão antes de morrer no inverno, assim foi o breve amor de Wang Lung por Flor de Pereira. Seu ardor efêmero passou e a paixão acabou; ele lhe tinha afeto, mas sem paixão.
Com o apagar daquela chama, de repente sentiu o frio da velhice e era um velho. No entanto, gostava dela, e era um consolo tê-la em sua residência, e ela lhe servia fielmente com uma paciência além da sua idade, e ele era sempre bondoso com ela, e cada vez mais seu amor por ela era um amor de pai para filha. E por causa dele, ela até era boa para a pobre idiota, o que era um consolo para ele, por isso um dia contou-lhe o que já estava há muito tempo em sua cabeça. Muitas vezes pensara no que seria de sua pobre idiota quando ele morresse, pois não havia ninguém senão ele que se importava se ela continuava viva ou morria de fome. Comprou então uma trouxinha de um veneno branco numa farmácia, dizendo a si mesmo que daria aquilo para a idiota tomar quando visse que seu próprio fim se aproximava. Mesmo assim, temia isso mais do que a hora de sua própria morte, e era um consolo para ele ver que Flor de Pereira lhe era fiel.
Então chamou-a um dia e disse:
— Não há ninguém senão você com quem eu possa deixar essa minha pobre retardada quando eu me for, e ela continuará vivendo muito tempo depois de mim, pois seu espírito não tem nenhum problema, e ela não tem nada que a mate nem nada com que se preocupar. E bem sei que, quando eu morrer, ninguém fará nenhum esforço para alimentá-la ou tirá-la da chuva e do frio do inverno, ou para fazê-la tomar o sol do verão. Talvez a mandem perambular pelas ruas... essa pobrezinha que a vida inteira recebeu carinho da mãe e meu. E aqui está a porta de salvação para ela neste pacote, e depois que eu morrer, misture isso no arroz e deixe que ela coma, para que possa me acompanhar onde eu estiver. Assim ficarei sossegado.
Mas Flor de Pereira fugiu da coisa que ele tinha na mão e disse com seu jeito meigo:
— Mal consigo matar um inseto, como posso tirar essa vida? Não, meu senhor, mas tomarei conta dessa pobre idiota porque o senhor foi bom para mim... a melhor pessoa que conheci na vida, e a única boa.
E Wang Lung quase chorou ao ouvir isso, porque ninguém jamais lhe retribuíra assim. Seu coração prendeu-se a ela e ele disse:
— Mas fique com isso, minha filha, pois não há ninguém em quem eu confie mais do que em você, mas até você há de morrer um dia... embora não dê para eu dizer as palavras... e depois de você, não há ninguém... ninguém, ninguém... e sei bem que as mulheres de meus filhos são muito ocupadas com os filhos e as brigas, e meus filhos são homens e não podem pensar nessas coisas.
Então, quando viu o que ele queria dizer, Flor de Pereira pegou o pacote de suas mãos sem dizer mais nada, e Wang Lung confiou nela e ficou sossegado quanto ao destino de sua pobre idiota.
Wang Lung envelhecia cada vez mais e vivia sozinho a não ser pela companhia de Flor de Pereira e de sua idiota. Às vezes, animava-se um pouco, olhava para Flor de Pereira, ficava meio aflito e dizia:
— Esta vida é sossegada demais para você, minha filha.
Mas ela sempre respondia com delicadeza e muito grata.
— É sossegada e segura.
E, às vezes, ele tornava a dizer:
— Sou muito velho para você, e meu fogo é cinza.
Mas ela sempre respondia com delicadeza e cheia de gratidão:
— Você é bom para mim e não desejo mais que isso de um homem.
Uma vez, quando ela lhe deu essa resposta, Wang Lung ficou curioso e lhe perguntou:
— O que aconteceu quando você era menina que a deixou com medo dos homens?
E, olhando para ela à espera da resposta, viu um terror enorme em seus olhos. Ela os tapou com as mãos e sussurrou:
— Odeio todos os homens, menos você... odeio todos, até meu pai que me vendeu. Só ouvi maldade da parte deles e odeio todos eles.
Ele disse curioso:
— Eu diria que sua vida em minha casa era sossegada e fácil.
— Estou revoltada — disse ela, olhando para o outro lado —, estou revoltada e odeio todos eles. Odeio todos os homens jovens.
E não quis dizer mais nada. Wang Lung ficou refletindo sobre aquilo, sem saber se Lótus lhe havia enchido a cabeça com histórias de sua vida e a ameaçado, ou se Cuco a assustara com sua lubricidade, ou se lhe acontecera alguma coisa íntima que ela não queria lhe contar, ou o que era.
Mas suspirou e parou de perguntar, porque, acima de tudo, agora queria paz, só desejando ficar sentado em seu pátio ao lado daquelas duas.
E assim ficou, e assim foi envelhecendo dia após dia, ano após ano, e dormia ao sol um sono agitado como seu pai fizera, e dizia a si mesmo que já tinha vivido sua vida e estava satisfeito com ela.
De vez em quando, mas raramente, ia aos outros aposentos. Mais raramente ainda, via Lótus, que nunca mencionava a jovem que ele tomara, mas recebia-o bastante bem. Estava muito velha e satisfeita com a comida e o vinho de que gostava e com o dinheiro que recebia sempre que pedia. Ela e Cuco, depois desses anos todos, já não eram ama e criada mas sim amigas, e conversavam disso e daquilo, sobretudo dos velhos tempos com os homens, e sussurravam baixinho coisas que não falavam em voz alta e comiam, bebiam e dormiam, e acordavam para falar da vida alheia de novo antes de comer e beber.
E quando Wang Lung ia, o que era raríssimo, à ala dos filhos, eles o tratavam com cortesia e corriam para lhe trazer um chá. Ele pedia para ver o último filho e perguntava muitas vezes, pois andava muito esquecido:
— Quantos netos já tenho?
E lhe respondiam prontamente:
— Onze filhos e oito filhas têm seus filhos juntos.
E ele, rindo, retrucava:
— Cada ano somo mais dois e sei o número, é isso?
Então sentava-se um pouco e ficava vendo as crianças que se reuniam em volta dele para olhá-lo. Seus netos estavam crescidos, e ele os examinava com atenção para ver a quem haviam saído, e resmungava consigo mesmo:
— Aquele é a cara do bisavô, aquele é um pequeno negociante Liu, e este sou eu quando era jovem.
E lhes perguntava:
— Vocês estão na escola?
— Estamos, vovô — respondiam em coro, e ele tornava a perguntar:
— Estudam os Quatro Livros?
Então eles riam com um desprezo infantil transparente por um homem tão velho assim e diziam:
— Não, vovô, ninguém estuda os Quatro Livros desde a Revolução.
E ele respondia, pensativamente:
— Ah, já ouvi falar de uma Revolução, mas andei muito ocupado com minha vida para prestar atenção nisso. Havia sempre a terra.
Mas os rapazes riam disso, e Wang Lung acabava se levantando, sentindo-se afinal de contas apenas um hóspede na casa dos filhos.
Depois de algum tempo, deixou de ir ver os filhos, mas às vezes perguntava a Cuco:
— Minhas duas noras já estão em paz depois desses anos todos?
E Cuco cuspia no chão e respondia:
— Aquelas? Estão em paz como dois gatos de olho um no outro. Mas o filho mais velho está cansado das queixas da esposa... é uma mulher correta demais para um homem. Vive falando do que faziam em casa do pai dela, e isso cansa. Andam dizendo que ele vai arranjar outra. Vai sempre às casas de chá.
— Ah? — disse Wang Lung.
Mas, quando quis pensar nisso, desinteressou-se, e quando percebeu, já estava pensando em seu chá e naquele ventinho de primavera frio batendo em seus ombros.
E, em outra ocasião, disse a Cuco:
— Alguém já ouviu falar por onde meu filho caçula tem andado esse tempo todo?
E Cuco respondeu, pois não havia nada que ela não soubesse naquela casa:
— Bem, ele nunca escreve, mas às vezes alguém chega do sul dizendo que ele é um oficial do Exército muito importante numa coisa que lá eles chamam de Revolução, mas eu não sei o que é... talvez seja uma espécie de negócio.
E de novo Wang Lung disse:
— Ah?
Teria pensado naquilo, mas a noite caía e os ossos lhe doíam com a umidade e a friagem do ar quando o sol se punha. Pois agora seus pensamentos iam para onde bem queriam e ele não conseguia se concentrar muito tempo numa coisa. E a necessidade que seu velho corpo sentia de comer e tomar um chá quente era mais forte que tudo. Mas à noite, quando sentia frio, tinha o corpo quente e jovem de Flor de Pereira junto ao seu e se sentia consolado na velhice com o calor dela na cama.
Assim as primaveras iam passando e cada vez mais vagamente ele as sentia chegar conforme os anos passavam. Mas alguma coisa persistia para ele e era o amor por sua terra. Saíra dela, radicara-se numa cidade e estava rico. Mas suas raízes estavam em sua terra, e embora a esquecesse por meses a fio, todos os anos, quando chegava a primavera, precisava ir para sua terra; e agora, embora já não pudesse segurar um arado nem fazer outra coisa senão olhar os outros passarem o arado na terra, tinha necessidade de ir, e ia. Às vezes, levava um criado e a cama, e dormia de novo na velha casa de barro e na velha cama onde gerara filhos e onde O-lan morrera. Quando acordava de madrugada, saía de casa e, com as mãos trêmulas, arrancava um pedaço de broto de salgueiro e um ramo de flor de pessegueiro e passava o dia todo segurando-os.
Assim passeava um dia, no finzinho da primavera. Atravessou seus campos e chegou ao lugar cercado no cômoro onde havia enterrado seus mortos. Parou, trêmulo, apoiou-se no cajado, olhou as sepulturas e lembrou-se de cada um deles. Lembrava-se deles com mais clareza do que dos filhos que viviam em sua casa, com mais clareza do que se lembrava de qualquer pessoa, com exceção de sua pobre idiota e de Flor de Pereira. E seus pensamentos voltaram muitos anos para trás, e ele via tudo nitidamente, até sua segunda filhinha, de quem não ouvia falar já nem sabia há quanto tempo, e a via uma linda moça tal qual era em sua casa, seus lábios finos e vermelhos como uma tira de seda... e ela era para ele como aqueles que jaziam ali na terra. Então, ficou meditando e de repente pensou:
“Bem, vou ser o próximo.”
Então, entrou no recinto, olhou com atenção e viu o lugar onde iria jazer abaixo do pai e do tio, acima de Ching e não longe de O-lan. E viu-se ali de volta à sua terra para sempre. Então murmurou:
“Tenho que providenciar o caixão.”
Conservou essa idéia rápida e dolorosamente na cabeça. Voltou à cidade, mandou chamar o filho e disse:
— Tenho uma coisa para dizer.
— Então diga — respondeu o filho —, estou aqui.
Mas, quando quis falar, Wang Lung de repente não conseguia se lembrar o que era e ficou com os olhos cheios d’água porque conservara a idéia tão dolorosamente na cabeça e agora ela teimava em lhe escapar. Então, chamou Flor de Pereira e lhe disse:
— Menina, o que eu queria dizer?
E Flor de Pereira respondeu com delicadeza:
— Onde esteve hoje?
— Estive na minha terra — respondeu Wang Lung, aguardando, os olhos grudados na cara dela.
E ela tornou a perguntar com delicadeza:
— Em que gleba?
Então, de repente, lembrou-se e exclamou, o riso misturando-se às lágrimas em seus olhos:
— Bem, já estou lembrado. Meu filho, escolhi meu lugar na terra, e é abaixo de meu pai e do irmão dele, acima de sua mãe e ao lado de Ching, e eu gostaria de ver meu caixão antes de morrer.
Então, o filho mais velho de Wang Lung exclamou correta e conscienciosamente:
— Não diga essa palavra, meu pai, mas farei o que diz.
Então seu filho comprou um caixão entalhado, cortado de um grande tronco de madeira perfumada que é usada para enterrar os mortos e para mais nada, porque essa madeira é durável como ferro e dura mais que os ossos humanos, e Wang Lung ficou confortado.
Mandou levarem o caixão para seu quarto e todos os dias olhava para ele.
Então, de repente, lembrou-se de uma coisa e disse:
— Bem, quero que ele seja levado para a casa de barro, onde viverei os poucos dias que me restam e onde morrerei.
E quando viram quanto ele queria isso, fizeram o que ele desejava e ele voltou para a casa em sua terra com Flor de Pereira e a retardada, e os criados de que necessitavam; e Wang Lung voltou a morar em sua terra, deixando a casa da cidade para a família que fundara.
Passou a primavera e o verão e veio a época da safra, e Wang Lung sentava-se onde se sentara seu pai encostado na parede ao sol quente do outono antes de chegar o inverno. Não pensava em mais nada a não ser sua comida, sua bebida e sua terra. Mas, em relação à terra, já não pensava mais na safra que daria nem na semente que plantaria nem em nada a não ser na terra em si, e às vezes se abaixava, pegava um punhado de terra e ficava ali sentado segurando aquilo, que parecia cheio de vida entre seus dedos. Ficava satisfeito, assim, com a terra na mão, e pensava nela intermitentemente e em seu bom caixão que estava ali; e a bondosa terra esperava sem pressa até que ele fosse para ela.
Seus filhos eram bastante corretos com ele e vinham vê-lo diariamente ou, no máximo, dia sim, dia não, e lhe mandavam comidas delicadas, adequadas para sua idade, mas ele preferia um prato rápido em água quente e tomá-lo aos goles como seu pai fazia.
Às vezes, reclamava um pouco dos filhos se eles não iam vê-lo todos os dias e dizia a Flor de Pereira, que estava sempre ao seu lado:
— Bem, e com que estão tão ocupados?
Mas se Flor de Pereira respondia: “Estão na flor da idade e têm muitos negócios. Seu filho mais velho foi nomeado para um cargo de autoridade na cidade entre os homens ricos e tem uma nova esposa, e seu segundo filho está fundando um grande armazém de cereais particular”, Wang Lung escutava-a, mas não conseguia compreender tudo isso de que já se esquecia tão logo olhava para sua terra.
Mas, um dia, viu com clareza por alguns instantes. Era um dia em que seus dois filhos haviam vindo, e, depois de o terem cumprimentado cortesmente, saíram e deram a volta no terreno da casa. Wang Lung seguiu-os em silêncio, eles pararam, e ele se aproximou deles lentamente. Eles não ouviram seus passos nem o ruído de seu cajado na terra macia, mas Wang Lung ouviu o segundo filho dizer com sua voz afetada:
— Vamos vender este campo e aquele, e vamos dividir o dinheiro irmãmente entre nós. A sua parte tomarei emprestada a bons juros, pois agora, com o trem direto, posso exportar arroz pelo mar e...
Mas o velho só ouviu as palavras “vender a terra” e gritou, não conseguindo impedir que sua voz saísse entrecortada e trêmula de raiva:
— Ora, filhos ruins e preguiçosos... vender a terra! — Engasgou e quase caiu, mas eles o seguraram e o levantaram e ele começou a chorar.
Então, eles o acalmaram e disseram, tranqüilizando-o:
— Não... não... nunca venderemos a terra...
— É o fim de uma família... quando começam a vender a terra... — disse arquejando. — Da terra saímos e para a terra temos que voltar... e se segurarem a terra, poderão viver... ninguém pode lhes roubar a terra...
O velho deixou suas parcas lágrimas secarem em seu rosto e ali elas deixaram marcas salgadas. E ele se abaixou, pegou um punhado de terra e, com a terra na mão, murmurou:
— Se venderem a terra, será o fim.
Os dois filhos o ampararam, um de cada lado, segurando-lhe o braço, e ele apertava com força na mão a terra solta e quente. Os dois o acalmaram, repetindo:
— Fique tranqüilo, nosso pai, fique tranqüilo. A terra não será vendida.
Mas, por cima da cabeça do velho, olharam um para o outro e sorriram.
Pearl S. Buck
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