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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BRUXA DE MOUNT MELLYN / Victoria Holt
A BRUXA DE MOUNT MELLYN / Victoria Holt

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

MARTHA LEIGH era jovem, altiva e pobre quando foi para Mount Mellyn como governante. Na superfície o lugar era um paraíso: uma vasta mansão antiga, rodeada de jardins exuberantes no belo litoral da Cornualha. Mas por dentro Mount Mellyn era um emaranhado de corredores escuros e portas secretas, com viseiras de onde olhos cultos observavam Martha; e no íntimo das pessoas ela encontrou também recantos escuros e sombras ameaçadoras.
Haveria algum trágico segredo na morte de Alice, a governante anterior? E de onde vinha aquela "sensação da presença de Alice na mansão imensa?
Envolvida no drama contra a sua vontade, Martha acabou forçada a enfrentar as ameaças de Mount Mellyn. O que aconteceu a seguir, constitui o desenrolar dramático de uma trama composta de mistério e lirismo, e cheia de surpresa até para o leitor mais experimentado em livros desse gênero.
EXISTEM apenas dois caminhos quando a situação é de penúria para uma moça bem-nascida - disse minha tia Adelaide. - Um é casar. O outro, procurar emprego condizente com a sua condição social.
Daí porque, já no trem que me conduzia montanha acima e planície abaixo, eu optara pelo segundo caminho; até mesmo em razão de, vistas as coisas de determinado ângulo, eu jamais ter tido oportunidade de tentar o primeiro. Imaginara, com os meus botões, que aspecto eu teria para os meus companheiros de viagem se algum dentre eles se desse o luxo de arriscar uma espiada, o que aliás eu não considerava muito provável: uma moça de estatura meã, já superada a primeira fase de sua juventude e agora nos seus vinte e quatro anos, metida num vestido de lã marrom fina, gola e punhos de renda creme. Minha touca de veludo castanho, atada sob o queixo, era desses modelos que caem às mil maravilhas num tipo feminino como o de minha irmã Phillida, mas, sempre achei, assentam ridiculamente em cabeças à feição da minha. Meus cabelos grossos, com nuanças de cobre, eu os repartia ao centro, reunindo-os atrás num coque. Olhos grandes, ganhando conforme a luz reflexos de âmbar, são o que tenho de melhor; e todavia muito buliçosos - no entender de minha tia Adelaide; e que significava não possuírem qualquer das graças femininas. Meu nariz é muito pequeno; a boca, rasgada demais. Em verdade nada combinava em mim; e, ainda por cima, devia conformar-me a viagens assim, uma vez que, para o resto de minha vida, dali por diante só a mim caberia ganhar o pão de cada dia e nunca acender esperanças com aquela outra alternativa - um marido.

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Embrenhávamo-nos agora nas charnecas e florestas montanhosas de Devon. Haviam-me recomendado prestar atenção na obra-prima representada pela ponte que salta o rio Tammar, em Saltash. Atravessando-a, daríamos no Ducado de Cornwall, exótico e pitoresco.
Minha ansiedade por cruzar a ponte era até um tanto idiota. Não era eu, aquele tempo, mulher de grandes rasgos imaginativos, embora mudasse depois; uma temporada numa casa como Mount Mellyn, no entanto, bastaria para transformar a mais materialista das criaturas também na mais imaginosa.
Absurdo - repreendi-me. Mount Mellyn pode ser deslumbrante. Connan TreMellyn, tão romântico quanto o próprio nome. Mas isso em nada me afetará. Permanecerei confinada no quarto das crianças e em outras dependências que tais, exclusivamente dedicada à pequena Alvean.
Que estranhos nomes os daquela gente! Os habitantes de Cornwall são herdeiros de idioma próprio. Talvez até o meu nome Martha Leigh, lhes soe extraordinário.
Um dos muitos amigos de tia Adelaide soubera das "dificuldades de Connan TreMellyn". Andava à cata de uma preceptora para a filha. Devia apresentar predicados de boas maneiras e paciência ao ponto requerido para cuidá-la e educá-la; em suma - pessoa de classe e de dinheiro curto. Tia Adelaide resolvera que eu preenchia os requisitos.
Quando morreu nosso pai, pastor anglicano de província, tia Adelaide prontamente tomou-nos sob tutela; e levou-nos para Londres num "veraneio" de despedida.
Phillida casou-se ao fim daquela temporada. Quatro anos trancorridos, porém, e eu - nada. E assim, despontou o dia em que tia Adelaide me pôs diante das duas alternativas.
" Olhei pela janela. Paráramos em Plymouth. Na cabina entrou um homem. Fitou-me com um sorriso desculposo, assim como que rogando que eu não me importasse de dividir a cabina com êle. Desviei o olhar. Saídos da Plymouth, já nas cercanias da ponte, notou o meu interesse:
- Gosta de nossa ponte?
Observei-o. Apresentava menos de trinta anos de idade, bem vestido à maneira clássica de um cavalheiro da nobreza rural, e quase excêntrica. Suas retinas estreitavam-se como se o dono estivesse perfeitamente cônscio das recomendações que me haviam feito em casa sobre isso de dirigir a palavra a estranhos.
- Sim, realmente. E uma belíssima construção arquitetônica - respondi.
- Vai para longe ? - perguntou sorridente ao entrarmos em Cornwall. Media-me com os seus olhos castanhos. E imediatamente me veio à
memória o meu lastimoso aspecto.
Só me dá atenção porque não há mais ninguém aqui, eu pensei. Mas logo me acudiu a frase que eu escutara de Phillida certa feita: "Tenha-se na conta de um ser desprezível e logo você fica sendo mesmo." Respondi:
- Salto em Liskeard.
- Ah, Liskeard. - Espichou as pernas e, tirando os olhos de mim, pô-los na ponta dos seus sapatos:
- Vem de Londres?
- Venho.
- Muda-se definitivamente para Liskeard?
Eu não estava bem certa de que me agradasse o interrogatório. Porém lembrei-me de Phillida outra vez: "É muito ríspida, Marty, com o sexo oposto. Você os afugenta." Resolvi, portanto, ao menos ser polida:
- Não. Vou para um vilarejo costeiro chamado Mellyn.
- Ah! - Calou-se. Quando recomeçou, assombrou-me: - Creio que uma jovem como a senhora não acredita em vaticínios . . . coisas no gênero.
- Como? - balbuciei engolindo em seco. - Que pergunta mais extraordinária!
- Permite-me ler a sua mão?
Relutei. Não ficaria mal dar a mão a um estranho daquele modo? Tia Adelaide logo suspeitaria de segundas intenções. Ele riu, adivinhando:
- Só quero ler o seu futuro.
- Não acredito nessas coisas.
- Permita-me, embora. - Lépido, curvou-se e tomou-me a mão. Susteve-a de leve. Contemplou-a. -Vejo que acaba de atingir uma encruzilhada na vida. Ingressa num mundo estranho. Terá de agir com prudência ... o máximo de prudência.
- Ora, é fácil, o senhor vê que eu estou viajando. Que acharia se lhe dissesse que vou apenas visitar parentes?
- Eu lhe diria que não é uma jovem muito digna de crédito - sorriu por sua vez, com um certo sarcasmo; e não pude deixar de simpatizar com ele...
- Não - prosseguiu. - A senhora viaja no rumo de uma vida
nova, de uma nova posição. Vai para uma casa incomum, povoada de sombras. Terá que pisá-la com cautela, Miss ou . . . - Como eu não lhe esclarecesse se era senhorita ou senhora, foi por diante: - É obrigada a ganhar o próprio sustento. Diviso lá uma criança e um homem ... Encobre-os uma névoa. Há também outra pessoa . . . mas talvez já tenha morrido.
Enervou-me aquele tom sepulcral. Recolhi a mão:
- Que disparate!
- Terá de cuidar da pequena Alice. Mas seus deveres irão além. E de antemão previno-a: cuidado com Alice - disse-me parecendo alhear-se de mim e semicerrando as pálpebras.
Arrepiei-me. A pequena Alice! Mas chama-se Alvean! Irritei-me. Então era aquilo o que eu já parecia? A pobre moça bem-nascida virava babá! Quem sabe se não me estava debochando?
Consultou o relógio de tal jeito que ninguém diria ter havido entre nós nenhum diálogo fora do comum:
- Exatamente em quatro minutos - comunicou solenemente - chegaremos a Liskeard. Permita-me ajudá-la com as malas.
Tirou-as do porta-bagagem. "Miss Martha Leigh", estava escrito com toda clareza nas etiquetas, "Mount Mellyn, Mellyn, Cornwall." Nem as leu. Perdera todo o interesse em mim. Na estação, desceu, pôs minhas malas na plataforma e afastou-se com um comprimento delicado.
Eu ainda agradecia, quando um homem já maduro marchou em minha direção:
- Miss Leigh? A senhora é Miss Leigh? - Era um sujeito trigueiro e engelhado. - Bem, miss. Vim buscá-la. São suas as malas? A senhora, eu e o velho Cherry Pie logo estaremos em casa.
Empurrou as malas no cabriolé de duas rodas. Aboletei-me junto dele. Tanto me parecia comunicativo que não resisti à tentação de, por seu intermédio, descobrir algo a respeito da gente com quem doravante eu iria conviver:
- O nome da casa, Mount Mellyn, dá a impressão de que fica na montanha.
- Está construída, sim, numa elevação sobre o oceano, em cuja direção descem os jardins. Mount Mellyn e a casa dos Nansellocks, Mount Widden, são como gêmeas. Vivem as duas desafiando o mar a destruí-las.
- Temos então vizinhos próximos?
- De certo modo, sim. Mount Widden fica três quilômetros adiante. E há a enseada Mellyn Cove, no meio. As famílias sempre se deram muito bem como vizinhos até que . . .
- Até que . . . ? - fiz eu curiosa diante da interrupção.
- Já ouviu demais - retrucou.
Não ficaria bem a uma jovem aparentemente bem educada insistir. Mudei de assunto:
- Muitos criados em Mount Mellyn?
- Eu e Mrs. Tapperty, minha mulher, e minhas filhas Daisy e Kitty; e Mrs. Soady, a porteira, Mrs. Polgrey, a governanta, Tom Polgrey e a jovem Gilly. Mas não ouse chamá-la criada.
- Gilly? Um nome incomum.
- Gillyflower. Jennifer Polgrey foi toleirona em batizá-la assim. Jennifer era filha de Mrs. Polgrey. Uns olhos pretos enormes, a cintura mais fina que já vi. Guardava-se muito bem até que um dia ela . . . ela meteu-se numa encrenca. E enquanto o diabo esfrega um olho, espocou a Gillyzinha. Jennifer, essa arrojou-se ao mar. Todas achamos que pairam muitas dúvidas sobre quem é o pai de Gilly. Geoffrey Nansellock deixava sempre corações apaixonados por onde passasse. - Olhou-me de esguelha: - Mas não tema porque ele não pode fazer mal à senhora, miss. Almas do outro mundo não podem ferir ninguém. Nem mesmo uma jovem. Morreu num desastre de trem, de que a senhora já deve ter ouvido falar. Em Plymouth.
- Bom, espero que me apresentem a Gillyflower. E são só esses os criados
- Tem ainda rapazes e moças, alguns nas cavalariças, outros nos jardins. Mas já não é como antes. As coisas mudaram muito depois da morte da dona da casa.
- Mr. TreMellyn deve ser um homem muito triste. Quanto tempo faz que ela morreu?
- Pouco mais de um ano, acho.
- E só agora êle decidiu contratar uma preceptora?
- Já houve três. Tudo isso. Não duraram. As duas primeiras diziam que o lugar era ermo demais. Depois veio Miss Jansen. Um encanto de pessoa. E adorava Mount Mellyn. Confessava adorar casas antigas. Foi despedida: gostava do alheio; uma pena. Todos a apreciávamos muito.
Voltei meu interesse para aqueles campos em agosto. Passávamos campos cultivados onde cresciam papoulas e morriões. Ocasionalmente, surgia, uma casa campestre muito cinzenta, austera e solitária. Foi aí que pela primeira vez divisei o mar através de uma fenda nas montanhas. Minha alma ficou leve. Flores desabrochavam sempre em maior número nas margens da estrada; e aspirei o perfume dos pinheirais. Tomamos um atalho íngreme. A beleza do panorama tirava a respiração. O atalho montava um abismo sobre o mar. O profundo purpúreo da charneca, a relva;, as flores espreguiçavam-se ao longo da costa. Ao longe, avistei a casa, altaneira, no topo do platô. Mount Mellyn lembrava um castelo talhado no granito, grande e nobre; mansão invicta por duzentos anos e fadada a assim permanecer centenas de anos mais.
- Tudo isto pertence ao senhor - revelou Tapperty com orgulho. - Se olhar sobre a enseada verá Mount Widden.
A exemplo de Mount Mellyn, fora construída em pedra cinza, sem embargo de ser menor e aparentemente datar de anos mais recentes. O cabriolé rodara até o cimo do platô. Confrontávamos agora um par de portões de ferro batido.
- Ei, vocês aí em cima! Abram! - comandou Tapperty.
Havia uma casinhola junto aos portões. Na porta, uma mulher tricotava. A criança perto dela correu a abrir. Era uma garota excepcionalmente simpática, cabelos longos e lisos, quase brancos, grandes olhos azuis.
- Obrigado, menina Gilly - fêz Tapperty enquanto entrávamos. - Giily, esta é Miss Leigh, que vem cuidar de Miss Alvean.
Encarei aqueles dois olhos muito azuis e atônitos pregados em mim num expressão indizível. A velha ergueu-se para receber-nos.
- E Mrs. Soady - apresentou Tapperty.
- Bom dia - disse-me Mrs. Soady. - Espero se sinta à vontade entre nós.
- Obrigada.
- É o que desejo - completou Mrs. Soady, abanando a cabeça como temerosa de que os seus votos de algum modo falhassem.
Procurei Gillyflower, que desaparecera!
- Gilly não disse palavra - observei ao começarmos a subir a aléia.
- Não é muito amiga de conversas. Cantar, isso ela faz. Vive ensimesmada. Nada de conversas ... ou poucas.
Era uma aléia de cerca de um quilômetro, debruada de hortênsias e brincos-de-princesa. Por entre os pinheiros, abriam-se nesgas de mar cintilante; e, novamente, a casa. À sua frente, um extenso relvado, onde dois pomposos pavões perambulavam. A mansão possuía três pavimentos. Era longilínea, lembrando um L. O sol escorria das janelas ogivais e tive a impressão de que alguém me espreitava.
Ao atingirmos a escadaria, a porta deixou ver uma senhora grisalha, envolta num xale branco; alta, nariz adunco, gestos enérgicos. Ninguém precisou dizer-me que era Mrs. Polgrey, a governanta.
- Estimo que tenha feito boa viagem, Miss Leigh - falou. - Entre. Venha tomar uma xícara de chá em meu quarto. Pode deixar as malas. Mandarei alguém levá-las para cima.
Tive uma sensação de bem-estar. Aquela mulher inspirava confiança, espancando as sombras que o encontro com o homem do trem haviam provocado em mim. Joe Tapperty pouco valera para afugentá-las, com as suas histórias de morte e suicídio.
Agradeci Mrs. Polgrey, comentando que muito apreciaria o seu chá. Introduziu-me no salão, tão grande que, por força, alguma vez fora usado para recepções. O chão era de laje, e o teto de madeira - soberbo. No canto, um saguão e uma grande lareira. No saguão, a mesa de refeições.
- Magnífico! - exclamei. E Mrs. Polgrey traiu o seu orgulho.
- Eu mesma dirijo o polimento dos móveis - informou. - Devemos manter olho vivo com as criadas nos tempos que correm. Essas raparigas Tapperty não passam de duas doidivanas. Depois eu lhe conto. Cera virgem e terebintina, eis a mistura. Tudo feito por mim mesma..
Segui-a até a porta do fundo do salão. Abrindo-a, mostrou um curto lanço de escadas. Titubeou um pouco antes de abrir a porta à esquerda.
- E a capela - disse decidindo-se; e vi, de relance, mármores, um altar, alguns bancos de igreja, tudo envolto num cheiro forte de mofo. Fechou a porta abruptamente: - Não a usamos hoje em dia. Freqüentamos a igreja da aldeia.
Penetramos, depois da escada, numa ampla sala de jantar com as paredes cobertas de tapeçarias. - Não é a sua parte na casa - sublinhou. - Mas a senhora deve conhecer os hábitos do lugar, como costumam dizer.
Agradeci, compreendendo ser aquele um modo polido de advertir-me de que eu não poderia sonhar muitas liberdades com a família.
À sala de jantar, sucedia-se novo lanço de escada, dando para o que, na aparência, seria um quarto de repouso privativo, paredes também forradas de tapeçarias cujos motivos se repetiam nos estofados das cadeiras. - Esta é a sala do ponche - continuou Mr. Polgrey.- Assim tem sido chamada porque é aqui que a família toma o ponche. Conservamos ainda velhos hábitos nesta casa.
Atravessando-se o quarto, topava-se uma galeria em cujas paredes se enfileiravam os retratos ancestrais. Logo chegamos à porta dos fundos. Adiante, uma diferente ala da casa. Os quartos dos empregados, imaginei, anotando o acanhamento do espaço.
- E aqui - disse Mrs. Polgrey - a sua parte da casa. Aquela escada leva aos seus aposentos e ao quarto da menina. Mas venha antes à minha sala de estar. Tomaremos lá o nosso chá.
- É muito gentil.
Bem, desejo mesmo fazê-la feliz conosco. Miss Alvean precisa disciplina, e uma preceptora de tacto, quero crer, não se encontra hoje a dar com os pés.
- Presumo que tenha havido outras preceptoras antes.
- Exato. Não muito boas. Nenhuma delas. Miss Jansen foi a melhor, mas tinha certos hábitos. Não sou nada maria-vai-com-as-outras. Mas ela me levou direitinho na conversa! - E Mrs. Polgrey assumiu um ar de quem considerasse altamente inteligentes as pessoas capazes de engambelá-las. - Miss Celestine ficou contrariadíssima.
- Miss Celestine?
- A jovem de Widden. Miss Celestine Nansellock. Vem muito aqui. Uma autêntica dama. E adora o lugar. Eis porque ela e Miss Jansen se davam tão bem, Ambas interessadas em casas antigas, veja. Conhecerá Miss Celestine. Raro o dia em que não aparece aqui. Alguns pensam que . . . Oh, Deus! Estou batendo com a língua nos dentes e a senhora ainda não tomou o chá.
Abriu a porta do quarto. Foi como se acabássemos de penetrar num mundo inteiramente diverso. Desaparecera a atmosfera de linhagem secular: o quarto estava abarrotado de móveis. Capas sobre as cadeiras, um porta-bibelô transbordante, inclusive com um chinelo de vidro, um porquinho dourado e uma taça com a inscrição: "Oferta de Weston." O quarto dava-me a mesma sensação de conforto que eu já recolhera da própria Mrs. Polgrey.
Ao ver a mesa, teve um gesto de impaciência; marchou para o cordão da campainha e deu-lhe um safanão. Um minuto depois entrou uma pequena de cabelos negros e olhar matreiro, trazendo a bandeja com o chá.
- Não é sem tempo! - admoestou-a Mrs. Polgrey. - Esta é Daisy, Miss Leigh. - Poderá chamá-la se alguma coisa não lhe agradar.
Daisy fêz uma ligeira mesura desajeitada e retirou-se.
- Esta geração.... - murmurou Mrs. Polgrey. De um pequeno armário tirou uma lata de chá. - O jantar será servido às oito. A senhora jantará no quarto. Depois que tiver tomado o seu chá e ter-se familiarizado com o dormitório, lhe apresentarei Miss Alvean.
- O que estará ela fazendo a estas horas ?
- Está em algum canto por aí. - Mrs. Polgrey franziu o cenho. - Ela costuma escapulir e o patrão não gosta. Por isso mesmo é que todos ansiávamos por uma preceptora, percebe?
Começava a perceber: Alvean era uma criança difícil.
Mrs. Polgrey dosou o chá no bule como se lidasse com ouro em pó e despejou a água quente. Depreendi que Connan TreMellyn estava ausente.
- Ele possui outra propriedade mais para o Oeste- explicou Mrs. Polgrey. - Na rota de Penzance. - Não sabia quando ele voltava.
Não demorou muito e levou-me para o quarto. Amplo, boas janelas, uma das quais dando para o gramado; toucador e cômoda. Minha cama era grande, mas em proporção ao quarto, diminuía. Havia outra porta além daquela por onde entráramos. Mrs. Polgrey percebeu meu espanto.
- A sala de aula - foi dizendo. - É contígua ao quarto de Miss Alvean.
- Ficarei esplendidamente instalada aqui - comentei, fitando a lareira e antecipando um fogo acolhedor dentro dela nos dias de inverno.
- A senhora será a primeira preceptora a ocupar este quarto. As anteriores dormiam do lado de lá de Miss Alvean. Foi Miss Celestine quem sugeriu ser este o quarto mais confortável.
- Então devo agradecimento a Miss Celestine.
- Moça ótima. Enche o mundo de Miss Alvean.
Mrs. Polgrey meneou a cabeça significativamente. Assim como se pensasse que, mais dias menos dia, o patrão tornaria a casar. E quem mais indicada para nova esposa do que essa vizinha tão dedicada a Miss Alvean ?
- Quer lavar as mãos e desarrumar as malas? Mando Daisy trazer água quente. As refeições poderão ser servidas na sala de aula. Ou quem sabe as prefere no quarto?
- Com Miss Alvean?
- Ultimamente ela come com o pai. Exceto o leite com biscoito, pela manhã. As crianças todas daqui sempre comem com a família a partir dos oito anos de idade. O aniversário de Miss Alvean foi em maio.
- Existem outras crianças?
- Oh, céus, não! Eu falava das crianças dos tempos idos. É uma tradição da família. Bem, vou indo. Se quiser dar uma volta no jardim antes do jantar, chame Daisy ou Kitty para ensinar-lhe o caminho da escada dos fundos. Porém, não esqueça: jantar às oito.
Saiu e o vazio da casa aprisionou-me. Desceu sobre mim o silêncio - o silêncio lúgubre de uma velha mansão.
O meu relógio-broche marcava seis horas em ponto. Ainda duas para o jantar. Abri a porta da sala de aula, maior do que o meu quarto, com almofadas de pelúcia vermelha nos assentos perto das janelas. Ao centro, a mesa salpicada de tinta; provavelmente a mesa onde gerações de TreMellyn estudaram. Alguns livros espalhados na mesa; cartilhas infantis e um caderno de exercícios, com o nome "Alvean TreMellyn Aritmética." Nas páginas internas, contas e mais contas, a maioria com resultados errados. Virando as páginas, achei o desenho de uma criança. Reconheci Gilly, a menina da casinhola do portão.
- Nada mau - pensei. - Então a nossa Alvean é artista. Já é alguma coisa. - Fechei o caderno com a mesma intuição que me assaltara quando entrara na casa: alguém me espreitava. Não pude refrear-me: - Alvean!
- chamei. - Onde você se escondeu, Alvean?
Nenhuma resposta. Corei, embaraçada. E retornei ao quarto. Quando acabei de desarrumar as malas, soavam as oito horas. Daisy trouxe o jantar.
- Onde está Miss Alvean ? - indaguei. - Esquisito que eu ainda não a tenha visto.
- Ela é má - disse Daisy. - Ouviu falar na chegada de uma nova preceptora e desapareceu. Não saberemos onde se meteu até que um rapaz qualquer de Mount Widden apareça para informar que ela anda trocando as pernas por lá.
- Sei. Quer externar seu ressentimento contra a nova preceptora.
- Miss Celestine põe essa criança a perder. Ouça! Uma carruagem. Daisy tentou arrastar-me para a janela. Não me agradava muito isso
de ficar ali espionando com uma criada. Mas a tentação foi mais forte; saltaram uma jovem talvez da minha idade ou um ano mais velha, e uma criança.
Era Alvean. Um pouco crescida para os seus oito anos. Cabelos castanhos-claros, uma trança em torno da cabeça; vestido listrado, meias brancas e sapatos pretos. Demonstrava ser bastante precoce, com todo jeito de uma mulherzinha. A alma caiu-me aos pés.
Portava-se como se estivesse consciente de que alguém a observava. Relanceou um olhar para o alto. Instintivamente recuei, mas certa de que ela me vira. Antes mesmo de nos encontrarmos, já eu me pusera em desvantagem.
- Poçozinho de malícia - segredou Daisy.
- Talvez esteja assustada com a chegada de uma nova preceptora.
- O quê? Ela? Desculpe, miss, mas só rindo. - E Daisy estourou numa gargalhada.
Comecei a jantar. Daisy ia saindo quando Kitty bateu à porta e entrou com um arzinho de intimidade:
- Mrs. Polgrey está chamando a senhora na sala do ponche. Miss Nansellock chegou e quer conhecê-la. Miss Alvean voltou.
- Irei quando acabar de jantar.
- Toque a campainha, miss. Eu ou Daisy lhe mostraremos o caminho.
- Obrigada.
Terminei a refeição calmamente. Imaginei a impaciência de Mrs. Polgrey, Alvean e Miss Nansellock. O caso é que eu não tinha a menor intenção de mostrar-me servil como a maior parte das preceptoras. Se Alvean era realmente o que eu previa, precisava uma lição. Afinal, toquei a campainha e Daisy atendeu.
- Chi! Esperam a senhora. Já passou muito da hora do jantar de Miss Alvean.
- É uma pena que ela então não tivesse chegado mais cedo. Daisy ria às bandeiras despregadas.
Levou-me para a sala do ponche, onde Celestine Nansellock se refestelara na poltrona. Mrs. Polgrey em pé, ao lado de Alvean, com as mãos cruzadas nas costas, estava indignada.
- Ah! Miss Leigh! Miss Nansellock já a aguardava.
Seu tom traduzia reprovação. Eu, uma simples preceptora, ter feito vizinha tão distinta esperar! Inclinei-me numa reverência a Miss Nansellock, não sem haver observado os olhos azuis da menina esbugalhados para mim. Será bonita quando crescer, pensei.
Levantando-se, Celestine Nansellock pousou a mão afetuosamente no ombro de Alvean:
- Alvean foi visitar-nos. Não brigue com ela.
Alvean ficou firme. Não desviei os olhos daquelas insolentes retinas azuis:
- Não me compete censurar o que se passou antes de minha chegada, não é?
- Para mim . . . quero dizer, para nós, ela é assim como um símbolo de toda a sua família - disse Miss Celestine. - Sempre fomos vizinhos muito amigos.
Pela primeira vez minha atenção limitou-se a Celestine. Mais alta do que eu, não era nenhum tipo de beleza. Indefinível o castanho dos seus cabelos. Olhos da côr de avelã. Aparência tranqüila.
- Tenho certeza de que se necessitar de minha opinião, não hesitará em chamar-me. - Seus olhos buscaram meigamente os meus: - Desejamos que seja feliz aqui, Miss Leigh.
- É muito gentil. Mas o primeiro passo agora é mandar Alvean para a cama. Já deve ter passado de sua hora de dormir.
- De fato, passou - disse Celestine. - E como a senhora deve estar fatigada da viagem, Miss Leigh, por esta noite eu cuido dela.
- Não! - berrou Alvean antes que eu pudesse responder. - É ela que eu quero. É minha preceptora. É ela quem deve ir, não é ?
A mágoa aflorou ao rosto de Celestine. Alvean não conteve uma expressão de triunfo. Acho que percebi: a menina exercitava o seu mando.
- Muito bem - retrucou Celestine. - Então não há mais razão para que eu fique.
- Boa noite - disse Alvean com toda a petulância. - E para mim:
- Venha. Tenho fome.
- Você esqueceu de agradecer a Miss Nansellock por tê-la trazido- adverti-a.
- Não esqueci. Nunca esqueço nada.
- Então sua memória é melhor do que as suas maneiras.
Houve um pasmo geral. Até eu mesma talvez me espantasse um tantinho. Mas era evidente que se eu quisesse domesticar aquela criança, teria de ser inflexível.
Alvean corou, esbugalhando novamente os olhos. Ignorando como revidar, fugiu da sala.
- Miss Leigh - aconselhou Celestine, formalista - vá devagar com essa criança. Ela perdeu a mãe . . . muito recentemente. Faz tão pouco tempo que a tragédia ainda está bem viva. A mãe era minha grande amiga.
- Entendo. Não serei rude com a menina, e no entanto é fácil verificar que ela reclama disciplina.
- Vá com cuidado. - E Celestine pôs a mão no meu ombro. - Crianças são seres muito susceptíveis.
- Farei o que estiver ao meu alcance - prometi.
NA SALA de aula, Alvean sentara-se à mesa diante do seu leite e de suas bolachas. Fingia não me ver.
- Alvean - exprobei. - Se vamos ter de ficar juntas, melhor será que nos entendamos desde agora.
- Que me importa? - ironizou, ríspida.
- Claro que você deve importar-se. Assim tudo correrá mais suavemente para todos nós.
- Se eu não me importar - encolheu os ombros - a senhora terá de ir embora. E eu ganharei outra preceptora. Não, é meu problema.
Provocou-me com expressão de triunfo, como se me dissesse que eu não passava de uma criada paga. Contra a vontade, enrubesci de vergonha. Pela primeira vez aguilhoou-me a humilhação dos que dependem do favor alheio para garantir o seu pão.
- E todavia é da maior importância - atalhei. - Porque é muito mais brando estar em harmonia do que em discórdia com quem convivemos.
- Que diferença faz, se eles não continuam a conviver? Principalmente se podemos despedi-los?
Seu olhar era tão malicioso que tive ímpeto de esbofeteá-la.
- A bondade é o que há de mais importante no mundo - argüi, enquanto ela, sempre sorrindo, engolia o leite.
- Para a cama - ordenei, levantando-me ao mesmo tempo que ela.
- Vou para a cama sozinha - despachou-me. - Não sou nenhum bebê, a senhora bem sabe.
- Talvez você pareça bem mais nova do que é porque ainda tem muito que aprender.
Refletiu. Mas logo deu aquele movimento de ombros, que eu não tardaria a descobrir ser a sua tônica.
- Irei desejar-lhe boa noite quando você estiver deitada.
- Não é preciso.
Retirei-me para o quarto acabrunhadíssima. Faltava-me experiência com crianças e me encontrava às voltas com uma criança rebelde. Que sucederia se eu chegasse à conclusão de não ser a pessoa indicada para assumir-lhe a educação? Que aconteceria a uma moça bem-nascida e sem recursos, se malograsse em agradar aos seus patrões?
Eis o fato consumado: eu estava amedrontada. Só depois de enfrentar Alvean compreendera que talvez pudesse falhar nesse emprego. Tentei não pensar no futuro, quando me visse obrigada a passar de emprego a emprego, nunca satisfazendo. O que sobreviria então a uma mulher como eu, sem nenhum daqueles atrativos femininos tão essenciais? Quase me joguei na cama em prantos.
Subi para o quarto, esforçando-me para dominar minha inquietação. Por fim, resolvi ir à janela, contemplar os campos e as montanhas. Quanta beleza! Tanta placidez lá fora, e tanta angústia dentro de mim.
Da janela, passei pela sala de aula, ao quarto de Alvean.
Alvean - sussurrei. Nenhuma resposta. Deitada, ela fechara muito bem os olhos.
- Boa noite, Alvean. Você sabe que seremos amigas - e debrucei-me sobre ela. Fingia dormir.
NÃO descansei naquela noite. Os móveis assumiam formas que o luar movediço recortava. Eu juraria não estar só. Vozes cochichavam ao meu redor. Uma tragédia palpável remanescia nesta casa.
Conjeturei se isso não se devia à morte da mãe de Alvean. E comecei a indagar-me em que circunstância essa morte se dera.
Pensei em Alvean, tão indominável. Forçosamente existia uma razão que me decidi a descobrir. Jurei a mim mesma fazê-la uma criança amorável e feliz.
O amanhecer foi como um refrigério. As trevas desta casa apavoravam-me. Infantil, sim, mas verdadeiro. Tomei o café da manhã com Alvean na sala de aula; mais tarde, ao iniciarmos as lições, verifiquei ser uma menina inteligente. Lera mais do que o comum numa criança da sua idade; e seus olhos cintilavam de interesse pelo estudo, a despeito da sua teimosia em manter viva a sua incompreensão entre nós duas. O meu estado de espírito começou a melhorar, e após o almoço, quando Alvean convidou-me a passear, percebi estar fazendo progressos com ela.
Existia um bosque na propriedade c a menina queria mostrá-lo. Alegremente, acompanhei-a por entre as árvores. Numa clareira, gritou:
- Veja! - E colheu uma flor escarlate. Conhece? Leve um punhado para o seu quarto, Miss Leigh. Afugentam o azar.
- É uma antiga superstição. E por que diabo tenho eu de afugentar o azar?
- Todos têm. Põem isso nos cemitérios porque todo mundo tem medo dos mortos.
- Tolice. Os mortos não fazem mal a ninguém. Obrigada, Alvean. - disse-lhe, vendo-a espetar uma flor numa casa do botão do meu vestido.
Fiquei sensibilizada. Lia-se a doçura em seu rosto, como se de repente ela se tomasse de solicitude para comigo. Pareceu perceber; e imediatamente recolheu toda a sua meiguice, substituindo-a pela insolência:
- A senhora não me dobra! - gritou e correu. - Alvean, volte já aqui!
Mas ela desapareceu entre as árvores, deixando apenas o rastro do seu riso de ironia.
Preferi voltar para a casa em vez de perseguir a criança. Mas o bosque era denso e eu não encontrava o caminho. Retrocedi. Logo vi, porém, que continuara desorientada. O pânico apoderou-se de mim. Tentei controlar-me, julgando-o um absurdo. Eu não podia estar senão a meia hora da casa. Ademais, não era crível que o bosque fosse tão grande.
Não daria a Alvean o prazer de ter-me trazido ao bosque para abandonar-me perdida nele. Marchei resolutamente por entre as árvores. O caso é que, quanto mais andava, mais elas se faziam compactas. Crescia minha raiva contra Alvean. Ao escutar o ruído de folhas secas pisadas, tive certeza de que a menina andava ali perto, troçando de mim.
Uma voz esganiçada entoava uma canção:
"... Alice, onde estás? . . .
Um ano atrás, tarde assim,
Estavas perto de mim.
Prometendo amar-me. Alice,
Acontecesse o que acontecesse!"
- Quem está aí? - perguntei.
Silêncio. Ao longe, no entanto, vi uma menina de cabelos alvos de algodão; a pequena Gilly.
Pouco depois, alcancei uma vereda entre, as árvores. Era o aclive próximo ao portão; e não tardei a encontrar o caminho da casa. Na sala de aula o chá estava servido. Alvean, sentada à mesa, séria, nem tocou em nossa aventura. Nem eu tampouco.
Tomado o chá, disse-lhe:
- Não sei o horário estabelecido pela preceptora anterior, mas estudaremos de manhã, e das cinco às seis leremos juntas.
Alvean não respondeu. Examinava-me como seu fosse um animalzinho raro.
- Miss Leigh - disse de repente - gosta do meu nome? Alvean?
Respondi-lhe que sim, embora jamais o houvesse escutado antes.
- É dialeto de Cornwall. Meu pai fala-o e escreve-o - animava-se quando mencionava o pai e deduzi: Eis aí ao menos alguém que ela admira. - Continuou: - Nesse dialeto, Alvean significa Alicinha. Minha mãe chamava-se Alice. Já morreu. Me deram esse nome por causa dela. Por isso sou Alicinha - disse encarando-me solenemente e pondo as mãos nos meus joelhos.
Ergui-me, não suportando por mais tempo a fixidez daquele olhar. Fui à janela.
- Venha ver os pavões no relvado - convidei-a.
Em verdade eu não via os pavões. Via as retinas zombeteiras do homem no trem; o homem que me aconselhara a ter cautela com Alice.
Capítulo 2
O SENHOR do Mount Mellyn regressou três dias depois de minha chegada. Meu trabalho com Alvean já entrara na rotina. Apesar de sua eterna preocupação em atrapalhar-me com perguntas que julgava eu não pudesse responder, era uma boa aluna. Não porque desejasse adular-me, mas porque não refreava a vontade de aprender. No fundo, talvez imaginasse que se aprendesse tudo quanto eu sabia, poderia colocar o pai no seguinte dilema: desde que Miss Leigh já me ensinou tudo, nada mais justifica que ela continue aqui.
Ouvi-la pronunciar o nome Alice pela primeira vez, chocara-me profundamente. E ao fim de todos os dias invariavelmente eu me assustava com as sombras lúgubres da casa. Pura imaginação. Mas eu também conjeturava sobre a causa real da morte da mãe de Alvean. Não raro, acordava alta noite a escutar vozes e gemidos: "Alice. Alice. Onde estás, Alice?" Ia à janela e apurava o ouvido. Os cicios diluíam-se no infinito.
Daisy, que, à feição da irmã, não era dona de muita imaginação, tentava explicar-me pela manhã:
- Ouviu o mar esta noite na enseada de Mellyn ? Sss . . . sss . . . bum . . . bum . . . como dois velhos palradores e mexeriqueiros ?
- Ouvi.
- Acontece em certas noites, quando há vento.
Ri de mim para mim. Não deixara de ser uma razão. Familiarizei-me com a criadagem. Mrs. Tapperty convidou-me para um copo de vinho. Visitei Mrs. Soady na casota do portão e soube dos seus três filhos homens e de suas crianças, motivos exclusivos do seu eterno tricô porque, também eternamente, viviam a espichar os dedões pelos buracos das meias.
Tentei pegar Gilly para conversar; sempre me escapava. Achei-me na obrigação de fazer alguma coisa por ela. Indignava-me aquela gente rude de aldeia, que a dizia louca porque ela não era igual a eles. Algo sucedera para que ela vivesse agora naquele permanente estado de terror. Se ao menos eu descobrisse o quê, poderia transformá-la numa criança comum. Abordei o assunto com Mrs. Polgrey; encontrei-a impiedosamente alheia. Avançou-me até a sua opinião pessoal: no seu entendimento, eu nada tinha a ver com Gilly e Gilly nada tinha a ver comigo.
Esse o ambiente quando Connan TreMellyn regressou a Mount Mellyn.
LOGO que lhe deitei os olhos, Connan TreMellyn despertou-me vivas emoções. Pois antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente, eu já privava, por assim dizer, com êle.
Chegou à noitinha. Alvean saíra por conta própria e eu já providenciara água quente para o banho. Kitty trouxe-a. Notei-a diferente assim que entrou no quarto. Seus olhos negros reluziam.
- O senhor chegou - foi anunciando.
Esforcei-me para não trair a perturbação. Daisy introduziu a cabeça pela fresta da porta. Pareciam-se bastante essas irmãs. Repugnava-me aquele não sei quê comum a ambas. Fácil verificar a sensualidade característica das duas. Eu já as pilhara numa intimidade, suspeitosa com à rapaziada que vinha da aldeia trabalhar ali. E o seu alvoroço todo com o regresso do senhor induziu-me a uma conclusão única: Ele era desse tipo de homem.
- O senhor chegou à meia hora - informou Kitty. Perguntou pela senhora, miss. Está esperando na sala do ponche. - E me lançavam os olhares cheios de segundas intenções.
- Irei num minuto. Podem retirar-se agora - disse, e baixei a cabeça. Meu coração batia apressado e me pus muito vermelha. Arrumei os
cabelos. Meus olhos estavam de um amarelo-âmbar; e até um tanto tristes, o que não deixara de ser ridículo. Ao descer para a sala do ponche, tranqüilizara-me comigo mesma, argumentando haver retratado mentalmente aquele homem com base apenas na cara e nos olhos daquelas duas tontinhas. Não obstante, podia quase apostar que a pobre Alice morrera de paixão ao saber que casara com um namorador. Bati na porta.
- Entre.
A voz era máscula e arrogante, tal qual eu presumira. Recebeu-me em pé, as costas para a lareira, o que lhe acentuava a estatura; uns bons dois metros. Sua excessiva magreza ainda mais a sublinhava. Cabelos pretos apesar dos olhos claros. Trajava culote, casaco azul-escuro, gravata branca. Uma elegância discreta, embora não impecável. Mas causara boa impressão à própria revelia. Parecia a um tempo rijo e cruel. E havia sensualidade em seu rosto. O principal, esse não emergia.
- Afinal nos vemos, Miss Leigh.
Aquilo me pareceu uma grosseria, assim como se estivesse lembrando de que eu não passava de uma empregada sua. Seu olhar era quase trocista. Nunca me senti tão desgraciosa e sem jeito.
- Não demorou tanto - repliquei. - Cheguei há poucos dias.
- Mrs. Polgrey deu-me boas referências suas.
- Gentileza dela.
- Por que seria gentil em contar-me a verdade?
- O que eu quis dizer foi que o fato de ela ter sido antes gentil comigo a ajudou depois a poder apresentar-lhe referências amáveis sobre mim.
- Vejo que a senhora não é muito amiga de circunlóquios. Vai direto ao ponto. Gosto. Pressinto que nos daremos muito bem.
Enquadrava no olhar cada pequenino detalhe meu. Ao menos estarei a salvo das investidas desse homem, que deve ser um técnico em mulheres bonitas, pensei.
- Qual a sua impressão de minha filha? Retardada para a idade?
- Absolutamente. É muito inteligente, embora careça de disciplina.
- Estou certo de que a senhora suprirá a lacuna.
- Tentarei. Mas... até onde posso levar essa disciplina?
- Exceto ao assassínio, tem minha permissão para agir como lhe aprouver. Se eu discordar dos seus métodos, logo a farei saber. Se quiser alterar o currículo, também pode.
- Obrigada.
- Gosto de experiências. Se os seus métodos não surtirem resultados em, digamos, seis meses . . . bem, então reexaminaremos o caso.
Seu olhar continuava atrevido. Tenciona descartar-se de mim breve. Naturalmente esperava que eu fosse uma criaturinha bonita e tola, disposta a entreter um romance com êle, refleti. Pois seja. O melhor é sair logo desta casa.
- Creio que devemos desculpar a Alvean essa falta de boas maneiras. Perdeu a mãe faz um ano.
Procurei em seu rosto ao menos um traço de sofrimento. Não descobri nenhum.
- Eu já soube.
- Foi tão inesperado! Pobre menina . . . Sem mãe. E o pai. . . Substituiu o resto da frase por um dar de ombros.
- Mesmo assim há crianças mais desafortunadas. Tudo de que Alvean precisa é mão firme.
- Tenho certeza - encarou-me com ironia - que a senhora possui essa mão firme e indispensável.
Bastou esse fugaz instante para que o seu magnetismo me envolvesse. Todas as suas arestas, os olhos claros e gélidos, o sarcasmo que flutuava neles - tudo não era senão máscara a encobrir algo que aquele homem se recusava a deixar transparecer.
Bateram. Celestine Nansellock entrou:
- Soube que você tinha chegado, Connan.
- Como as notícias voam! Minha prezada Celestine, foi bom você vir. Estava justamente conhecendo a nossa nova preceptora. Ela me dizia que Alvean é inteligente, mas requer pulso.
- Claro que é inteligente! - exclamou Celestine, quase agressiva.
- Espero que Miss Leigh não alimente projetos demasiadamente severos. Alvean é uma boa criança.
- Julgo que Miss Leigh não concorda inteiramente com isso. Você, Celeste, vê sempre o nosso patinho feio como um belo cisne.
- Talvez eu exagere meu amor por ela.
- Posso ir? - indaguei ansiando por me ver longe deles.
- Mas eu os interrompi - fêz Celestine.
- Não. Já havíamos terminado a conversa - afirmei.
Os olhos de Connan TreMellyn pousaram ora em mim, ora em Celestine, com um ar divertido. Talvez nos considerasse a ambas desprovidas de atrativos. Nenhuma de nós seria o seu tipo ideal de mulher.
- Digamos que a conversa continuará depois - observou, gentil. - Quero crer que a senhora e eu, Miss Leigh, teremos muito de conversar sobre minha filha.
Curvei a cabeça e deixei-os.
O chá me aguardava na sala de aula. Não vi Alvean. Cinco horas e ainda não dera o ar de sua graça. Mandei Daisy procurá-la e lembrar-lhe que das cinco às seis teríamos estudo. Eu sabia que Alvean se insurgiria. Seu pai chegara e ela haveria de preferir a companhia dele. Principiei a meditar no que aconteceria se ela não atendesse. Podia eu descer e exigir-lhe obediência?
Alguém subiu a escada. Connan TreMellyn puxava Alvean pelo braço; a menina aparentava tamanha infelicidade que eu mesmo cheguei a sentir dó. O pai parecia extrair disso um certo prazer. Atrás vinha Celestine.
- Aqui está ela - disse Connan. - Dever é dever, minha filha. Quando sua preceptora chamar para o estudo, obedeça.
Alvean a custo retinha as lágrimas.
- Connan - interveio Celestine. - É o primeiro dia desde que você voltou. Compreenda. Alvean esperou tanto por isso . . .
- Disciplina - murmurou êle sorrindo entre os dentes. - E isso, Celestine, é da maior importância. Deixemos, pois, Alvean entregue a Miss Leigh.
Alvean atirou-lhe um olhar súplice, que não foi atendido. Fiquei só com a menina.
Do incidente deduzi muito. Alvean adorava o pai, mas êle retribuía com indiferença. Minha revolta contra êle aumentava na medida que a minha pena pela criança crescia. Não era de admirar que fosse uma menina rebelde!
Eu teria condescendido mais com Connan TreMellyn se êle esquecesse a disciplina naquele prmeiro dia de retorno e dedicasse um pouco mais de tempo à filha.
ALVEAN esteve insuportável toda a tarde. Evitava odiar-me, mas o ódio era perfeitamente evidente e portanto dispensava qualquer menção. Quando foi dormir, deixou-me tão arrasada que fui refugiar-me no bosque. Sentei num tronco de árvore derrubada, remoendo os pensamentos. Fora um dia quente e no bosque reinava calmaria. Perguntava-me se afinal me era lícito continuar na casa. Era quase impossível concluir àquela altura. Nem eu mesma sabia ao certo se desejava ou não permanecer.
Connan TreMellyn inspirava-me desconfiança, embora eu não soubesse bem porque. Indiscutivelmente êle não me importunaria. Mas havia um magnetismo pessoal, alguma coisa enfim que infrutíferos tornava todos os meus esforços para tirá-lo da cabeça. De certo modo, agradava-me. Seria eu assim tão pouco atraente no seu entender? Ou era porque eu pertencia àquela classe de mulheres obrigadas a ganhar a vida e por isso tão sôfregas por ver que os outros gostem delas ? Teria êle um caráter cruel? Quem sabe Alice, coitada, a exemplo da mãe de Gillyflower, por causa dele caminhara também para a morte no mar?
Assim sentada a divagar, ouvi passos. Um homem vinha em minha direção. Pareceu-me tê-lo visto antes. Meu coração deu um pulo. O homem sorriu e identifiquei o meu companheiro de viagem no trem.
- Céus, eu diria até que a senhora viu um fantasma! - exclamou. - Sua estada em Mount Mellyn já lhe criou o gosto pelas assombrações?
- Quem é o senhor?
- Peter Nansellock. Confesso-o embora sabendo que assim decepciono.
- O irmão de Miss Celestina Nansellock?
- Exato. Eu já sabia de que se tratava quando a encontrei no trem com todo o jeitão de preceptora. E também sabia que aguardavam uma certa Miss Leigh em Mount Mellyn.
- Muito me conforma verificar que a minha aparência confirma a profissão que a vida me impôs.
- No fundo, a senhora não é lá muito amiga da verdade. O que sucede é que está realmente decepcionada porque alguém a tomou por preceptora à primeira vista.
- O fato de eu ser preceptora não me obriga a tolerar insultos de estranhos - reagi, vermelha de indignação. E ergui-me.
- Por favor, conversemos - pediu humilde. - Tenho muito a dizer-lhe. Há pormenores que deve ficar conhecendo. A curiosidade suplantou minha dignidade e sentei-me. - Assim é melhor, Miss Leigh. Sabe que parece um porco-espinho? Basta que alguém diga a palavra preceptora e logo a senhora se eriça.
- Desde que me compara a um porco-espinho, pelo menos reconheço que tenho espinhos.
- Não sou quiromante, Miss Leigh - informou rindo. - Não conheço nada de quiromancia. Enganei-a.
- E acha mesmo que me enganou?
- Por muito tempo. Tanto que até agora a senhora só se lembrava de mim com um certo medinho.
- Para ser franca, não me dei ainda o trabalho de lembrar-me do senhor.
- Pura mentira, Miss Leigh. A senhora é tão cruel quanto mentirosa. Esperei que se mostrasse grata pelo interesse. O que eu lhe ia dizer é que, se as coisas começarem a ficar pretas em Mount Mellyn, a senhora poderá mudar-se para Mount Widden.
- E por que hei de achar as coisas pretas em Mount Mellyn?
- Connan é insuportável. Alvean é uma ameaça à paz humana. E a atmosfera ali, desde a morte de Alice, é sepulcral.
- O senhor advertiu-me para que eu me acautelasse com Alice. O que quis significar? - perguntei abruptamente.
- Ah, então a senhora lembrou-se!
- Não me agrada confessar.
- Bom. Apesar de morta, o fato é que Alice continua. Nada mais é como antes em Mount Mellyn depois que ela . . . partiu.
- Como faleceu?
- Ainda não sabe? Presumi que Mrs. Polgrey ou algumas das moças já lhe houvessem dito. História muito simples. Uma mulher se convence de que a vida é intolerável com o marido. Foge com outro. Apenas a história de Alice teve um fim inusitado. - Fitou a ponta dos sapatos. - O outro era meu irmão.
- Geoffrey Nansellock! - não me contive.
- Então já ouviu falar nele.
- Sim, ouvi. Era um conquistador barato - respondi pensando em Gillyflower, cuja mãe se suicidara no mar.
- Termo duro esse que aplica ao meu irmão. Tinha a sua sedução pessoal. E não era um mau caráter. Mas sua grande fraqueza eram as mulheres. Considerava-as irresistíveis. E as mulheres adoram os homens que as consideram irresistíveis. Está acima das próprias forças delas. E vale por um elogio, não é? Uma por uma sucumbia aos encantos dele.
- E evidentemente êle não hesitava em empregar mal os tais encantos.
- Fala como uma autêntica preceptora! Minha querida Miss Leigh, as coisas não iam bem em Mount Mellyn. Julga que Connan seja um homem de convivência agradável?
- Não me fica bem criticar quem me emprega.
- Miss Leigh, quem é obrigado a viver numa casa tem também a obrigação de conhecer-lhe os segredos.
- Que segredos?
- Alice tinha medo de Connan - confidenciou, aproximando-se. - Antes de se casarem, ela conhecera e amara meu irmão. Ela e Geoffrey viajavam no trem que descarrilhou em Plymouth . . . Fugiam juntos. Identificaram Geoffrey embora terrivelmente desfigurado. Havia uma mulher com ele: porém tão queimada que foi impossível a identificação. Mas levava um medalhão, reconhecido como um que pertencia a Alice . . . E naturalmente pesou bastante a circunstância de ela haver desaparecido de casa.
- Que horror! Ela era assim tão desgraçada em Mount Mellyn?
- A senhora já conhece Connan. Não se esqueça de que êle não ignorava o antigo namoro da mulher com Geoffrey. Para mim, a vida de Alice sempre foi um inferno.
- Foi muito trágico - atalhei-o brutalmente. - Mas acabou. E por que o senhor me recomendou cautela com Alice, como se ela ainda existisse ?
- A senhora é meio louquinha, Miss Leigh! Não, seguramente não é. Não se influenciaria, portanto, com histórias fantásticas.
- Que histórias?
- Reconheceram o medalhão dela, não ela. Há quem acredite que não foi Alice a mulher que morreu no trem com Geoffrey.
- Se não era, onde está?
- E o que muita gente indaga. E daí também porque tantas sombras adejam, em Mount Mellyn.
- Preciso voltar. Logo será noite - disse eu levantando-me. Permaneceu em pé ao meu lado, um pouco mais alto do que eu; e nossos olhos se encontraram.
- Julguei que devia pô-la a par de tudo isso.
- Não há necessidade de me acompanhar até em casa - protestei ao ver que êle já começara a seguir meus passos.
- Sou forçado a contrariá-la. Acontece que eu já ia para lá. E este é o caminho mais curto.
Guardei silêncio até Mount Mellyn. Connan TreMellyn vinha das cavalariças. Aparentemente surpreendeu-se ao ver-nos juntos:
- Olá, Con - disse Peter Nansellock.
Escapei para casa e recolhi-me cedo. Não foi fácil dormir naquela noite. De novo o mar trovejava na enseada de Mellyn e, abalada como eu estava, concebi vozes ciciando lá embaixo, repetindo o refrão de sempre: "Alice! Onde estás, Alice? Alice, onde estás?"
Capítulo 3
Ao AMANHECER, os espectros notívagos reduziram-se a meras ridicularias. E perguntei comigo mesma porque tanta gente - inclusive eu própria - se empenhava em cercar de mistério o que se passara nesta casa. Ora, nada mais havia além de uma história terminada: Alice morrera no trem.
0 sol, penetrando em meu quarto, fez-me sentir outra. Eu já me reanimara, e o motivo era Connan TreMellyn. Não que eu gostasse dele; bem pelo contrário. Mas eu aceitara o desafio. E haveria de vencer no emprego. Transformaria Alvean não apenas numa aluna modelo, mas ainda numa mocinha graciosa e sem modismos. A perspectiva alegrou-me tanto que até cantarolei baixinho.
Ouvindo o rumor de um cavalo, corri à janela. Ninguém. Apenas os campos úmidos de orvalho transpiravam um frescor adorável. Escancarei as janelas de par em par e debrucei-me a mais não poder; minhas fartas tranças acobreadas derramaram-se no peitoril. Saindo das cavalariças, Connan TreMellyn deu comigo antes que eu pudesse me retirar. Ruborizei-me de pejo porque êle me vira despenteada e em camisola de dormir.
- Bom dia, Miss Leigh - cumprimentou jovial.
Inferi ter sido do seu cavalo o tropel que eu ouvira. Teria dado apenas uma cavalgada matinal ou montara toda a noite? Arquitetei que tivesse andado visitando alguma das menos respeitáveis senhoras da vizinhança.
- Bom dia - respondi arfando, ainda vermelha.
- Linda manhã! - gritou lá de baixo. - E já de dentro do quarto, pude ouvi-lo a exclamar alegremente: - Olá, Alvean. Também já está de pé?
- Olá, papai - escutei-a responder num tom meigo e perpassado daquele mesmo entusiasmo que lhe notara a primeira vez em que ela me falara nele.
Dois dedos de prosa com o pai a teriam feito feliz para o resto do dia. Mas êle não se deteve e entrou em casa.
Que indignidade! Saí do espelho, vesti o roupão e, sem poder conter-me, fui ao quarto de Alvean. Ela montava uma cadeira, de costas para a porta, falando sozinha:
- Não tenha medo. Segure-se bem. Não tenha medo. Assim não cairá.
Absorvia-se tanto naquilo que nem percebera o barulho da porta. Descobri então algo muito importante: o pai era um notável cavaleiro; e desejava que ela fosse uma grande amazona. Mas Alvean tinha medo de cavalo.
Acerquei-me para dizer-lhe que eu a ensinaria a montar, pois sempre lidáramos com cavalos na fazenda. Mas hesitei porque começara também a compreender Alvean: era uma criança infeliz. Perdera a mãe, a maior tragédia que pode atingir uma criança; agora o pai a tratava com indiferença. E ela o adorava. Era então uma dupla tragédia.
Fechei mansamente a porta e voltei a meu quarto. Fiquei mirando o tapete iluminado de sol. E explodi em júbilo: ia vencer na empresa! Lutaria, sim, contra Connan TreMellyn. Eu o faria orgulhoso da filha, obrigando-o a dar-lhe a atenção a que a menina tinha direito.
DEPOIS do almoço, decidi sondá-lo. Segui-o quando êle foi às cocheiras. Cheguei quando êle acabava de ordenar a Billy Trehay, o cavalariço, que selasse Royal Russet.
Surpreendeu-se com a minha presença. E então sorriu, talvez a recordar-me em trajes de dormir:
- Ora, é Miss Leigh.
- Precisava trocar algumas palavras com o senhor - fui dizendo. - Embora reconhecendo que o momento não é propício.
- Depende de quantas palavras deseja que troquemos. - Consultou o relógio: - Tem cinco minutos, Miss Leigh. Daremos uma volta por aí.
- Em minha adolescência... comecei, pondo-me a caminhar com êle - eu vivia em cima de uma sela. Creio que Alvean deseja aprender equitação. Peço-lhe, portanto, a necessária permissão.
- Tem minha permissão para tentar, Miss Leigh. Duvido que consiga.
- Quer dizer que outras pessoas já falharam ?
- Eu falhei. É inexplicável numa criança esse medo à equitação. Para a maior parte das crianças isso é tão fácil como respirar. - Falava em um diapasão ríspido e com expressão dura; de tal forma que logo imaginei as suas lições: a falta de compreensão esperando milagres. Não era de espantar que a menina se atemorizasse. Há pessoas que jamais aprendem a montar.
- E há pessoas que nunca aprendem a ensinar - retruquei-lhe à queima-roupa.
Fitou-me atônito, como se ninguém na casa jamais tivesse ousado falar-lhe assim. Foi tudo por água abaixo, pensei. Agora êle me dirá que os meus serviços não são mais necessários. Era perceptível o seu esforço para reprimir-se. Não desviou os olhos mas eram inescrutáveis. Seria apenas desdém? Desviou afinal o olhar:
- Desculpe, Miss Leigh.
E rodou nos calcanhares.
Na sala de aula, não perdi tempo em informar Alvean:
- Seu pai permitiu que eu ensinasse você a montar. Gostaria? Ela retesou os músculos do rosto. Desanimei. Seria possível, mesmo, ensinar equitação a uma criança a quem a equitação apavorava assim ? Não esperei pela resposta: - Quando tínhamos a sua idade, minha irmã e eu já montávamos muito bem. É um grande esporte.
- Não posso. Detesto cavalos - redargüiu depois de refletir.
- Detesta cavalos? - manifestei assombro. - Mas se eles são as criaturas mais dóceis do mundo!
- Não são. Não gostam de mim. Gray Mare tomou o freio nos dentes comigo e se Tapperty não segurasse as rédeas ela me mataria.
- Gray Mare não é cavalo para você. Devia ter um pônei para começar.
- Depois andei em Buttercup. Não queria sair do lugar.
Quase ri. Mas observei-lhe um desalento tamanho que me contive. Senti vontade de abraçá-la. Não era esse o processo de conquistá-la.
- Deve aprender uma coisa antes de poder montar: deve primeiro gostar do seu cavalo. Então não terá medo e o seu cavalo começará também a gostar de você. Um cavalo deseja um amo. Deve ser um amo compreensivo e carinhoso. - Ela agora era toda atenção. - Quando um cavalo dispara como Gray Mare, isto significa que êle também tem medo. Tem tanto medo quanto você, e o modo de o demonstrar é correndo. Agora, se você tiver medo, não deixe nunca o cavalo perceber. Por exemplo, fale baixinho a Gray Mare: "Está tudo bem, Gray Mare . . . Estou aqui." Quanto a Buttercup, é uma velha rabugenta. É preguiçosa e sabe que você não pode com ela. Desde que você a faça entender que é a senhora, obedecerá.
- Eu não sabia que Gray Mare tinha medo de mim.
- Seu pai quer que você aprenda equitação - disse-lhe. Contra-indicado dizê-lo pois recordava antigos fracassos. Mas eu disse. - Não seria divertido surpreendê-lo? Imagine que aprenda a saltar e a galopar sem que êle saiba, e um dia êle a veja? Doeu-me o assomo de felicidade em sua face. Incrível isso de um pai demonstrar tanta insensibilidade, ao ponto de recusar a uma filha o afeto que ela lhe mendigava. - Alvean - pedi-lhe. - Tentemos.
- Sim, tentemos. Vou mudar a roupa.
Tive uma exclamação de, contrariedade quando me lembrei ali mesmo de que não levará trajes próprios. Os meus haviam sido devorados pela traças durante a minha permanência em Londres.
- Não tenho roupa de equitação - disse.
Seu rosto tendo-se anuviado a princípio, não tardou a iluminar-se:
- Venha comigo. Atravessamos a galeria até a escada dos dormitórios. Alvean parou diante de uma porta, tal qual arrebanhasse coragem para entrar. Acabou lançando-se a ela, convidando-me a entrai.
Era um aposento minúsculo. Semelhava um quarto de vestir. Havia lá um grande espelho, um toucador, uma cômoda e uma arca de carvalho. Cruzando-o, atingia-se, por outra porta, um amplo quarto de dormir lindamente mobiliado, guarnecido de cortinas de veludo- azul.
- Há montões de roupa aqui - informou Alvean. - Encontraremos uma para montar. - Suspendeu a tampa da arca com uma vivacidade que eu jamais lhe suspeitara. - No sótão existe ainda mais. Malas apinhadas delas. Da vovó e da bisavó. Vestiam-nas para as festas e os jogos de salão.
Fui deixando que ela praticamente me arrastasse tão deleitada eu estava por haver encontrado um meio de capturar-lhe o interesse. Experimentei um chapéu de pele de castor preto - naturalmente próprio para hipismo - e Alvean riu a valer. Seu riso emocionou-me mais do que qualquer das minhas outras descobertas nesta casa. Era o riso de uma criança desacostumada a rir.
- A senhora fica engraçadíssima.
Fui para o espelho. O acobreado de meu cabelo contrastava esplendidamente com o preto. Achei-me um pouco menos desatraente do que de hábito. Era o que Alvean definia com o "engraçadíssimo".
- Nem se diria que a senhora é uma preceptora - opinou, tirando do baú um costume de lã preta para equitação, elegantemente talhado, adornado com galões e franjas de bolinhas.
- Isto servirá - decidiu-se. - Experimente-o. Não! Não aqui. Correu para a porta e voltamos para os nossos quartos. Vesti a roupa.
Não me ia lá essas coisas. Todavia eu não podia exigir que não fosse aquele bocadinho apertada na cintura. Mesmo porque no espelho tive diante de mim uma mulher completamente desconhecida de tão encantadora. Deliciada, ajeitei o chapéu de castor e precipitei-me para o quarto de Alvean. Já se aprontara. Vendo-me arregalou os olhos.
Descemos às cocheiras. Recomendei a Billy Trehay que selasse Buttercup para Alvean e outro animal para mim. Olhou-me perplexo. Montei Alvean em Buttercup, munida de uma rédea auxiliar, e levei-a para a pista de treino. Ali ficamos uma hora, finda a qual Alvean e eu iniciamos um novo tipo de contato. Não me aceitava ainda inteiramente - o que seria exigir demais; no entanto, a partir daquela tarde já não me encarava como uma inimiga.
Diligenciei o máximo para incutir-lhe confiança. Treinei-a progressivamente em montar seu cavalo e em monologar com ele. Acostumei-a a manter-se ereta no lombo de Buttercup, olhando para cima. Ensinei-lhe a montar e desmontar. Ao fim de uma hora, consegui quase dominar-lhe o medo.
Surpreendi-me por serem três e meia. E Alvean se surpeendeu tanto quanto eu.
- É hora de voltar para casa - disse-lhe eu - se quisermos chegar a tempo de trocar de roupa para o chá.
A nossa passagem, alguém emergiu do capim. Para meu espanto, era Peter Nansellock aplaudindo-nos:
- E aqui termina a primeira lição! - gritou. - É excelente.
- Estava nos vendo, tio Peter?
- Durante toda a meia hora final. Minha admiração por ambas é intraduzível.
- Verdade mesmo? - fêz ainda Alvean com um sorriso sóbrio relutando em acreditar.
- Jamais esse esporte foi tão graciosamente ensinado e tão pacientemente apreendido.
- Mr. Nansellock vive gracejando, Alvean.
- É - disse Alvean pesarosa. - Eu sei.
- Além do mais é hora de tomarmos chá - acrescentei.
- Que tal se me convidassem? - insinuou êle.
- Não tenho essa intenção. Venha, Alvean.
Soltei as rédeas de Buttercup, pondo-a a passo. Peter Nansellock acompanhou-nos. Quando alcançamos as cocheiras, êle tomou a direção da casa. Os cavalos ficaram entregues aos dois cavalariços, e eu e Alvean fomos para nossos quartos.
Livrei-me da roupa de montaria e já no meu vestido nunca me achei tão feia. Com o traje de equitação no cabide, resolvi consultar Mrs. Polgrey se eu poderia usá-la sempre. Ao pendurá-lo, li no cós o nome "Alice TreMellyn".
Senti um nó na garganta. Era então dela aquele quarto de vestir. E o dormitório por onde eu andara, era a alcova. Abalou-me que Alvean me tivesse emprestado roupas de sua mãe. Da janela procurei localizar o quarto de Alice. Imaginei tê-lo conseguido, e irresistivelmente senti um calafrio. Teci uma desculpa: ela teria apreciado que eu usasse suas roupas. Afinal eu não estava tentando ajudar-lhe a filha?
Alguém bateu. Tranqüilizei-me ao abrir a porta e dar com Mrs. Polgrey.
- Entre, não faça cerimônia - disse-lhe. - É justamente de quem eu mais precisava.
Entrou bamboleante. Fui tomada de uma súbita simpatia por ela; Mrs. Polgrey aspergia bom-senso.
- Estive dando uma aula de equitação a Alvean. E como não tivesse roupas próprias, ela me emprestou uma. Creio que pertenceu à mãe dela. - Mostrei a roupa, e Mrs. Polgrey concordou. - Usei-a desta vez. Não sei se fiz mal.
- O senhor autorizou essas aulas? - Naturalmente.
- Então, nada receie. Ele não objetará que a senhora vista a roupa durante as aulas de Miss Alvean.
- Obrigada. Tirou-me um peso da consciência.
Lisonjeara-a indiscutivelmente o fato de eu havê-la consultado sobre o meu problemazinho.
- Mr. Peter Nansellock está lá embaixo - avisou. - O senhor saiu. E Mr. Peter pede que a senhora e Miss Alvean o convidem para o chá.
- Deveríamos? Quero dizer, devo?
- E por que não, miss? O senhor aprovaria. Comuniquei a Mr. Nansellock que o chá será servido na sala do ponche. Estou certa de que a senhora e Miss Alvean o recebem. Tem alguma objeção?
- Não, não. Nenhuma. Agradeceu-me com um sorriso gentil e saiu, bamboleante como viera.
Não pude deixar de sorrir também. Tudo prenunciara que aquele seria um dia muito bom.
ALVEAN ainda não descera, mas Peter Nansellock já me esperava na sala do ponche. Levantou-se para receber-me.
- Mrs. Polgrey pediu-me para fazer as honras da casa na ausência de Mr. TreMellyn - comuniquei.
- Que bonito lembrar-me a todo instante que é apenas uma preceptora !
- Achei de bom alvitre lembrar, uma vez que o senhor podia ter esquecido.
É mesmo? Pois esteve longe de parecer uma mera preceptora durante a aula de equitação.
- Era a roupa. Penas alheias. Gralha vestida de pena de pavão.
- Minha prezada Miss Gralha, discordo. E antes que Alvean surja por aí, permita-me a pergunta: o que acha do velho Connan?
- O adjetivo é inadequado. E minha condição não me permite externar opiniões.
- Prezada preceptora - e deu uma gargalhada• - A senhora é de morte. - Aí Alvean surgiu, pondo fim à troça. - Ah, eis a pequena grande dama em pessoa! Querida Alvean, quanta finura, a sua e a de Miss Leigh, em convidar-me para o chá.
- Me admira que tenha aceitado o convite - replicou Alvean. - Nunca o fêz antes . . . exceto quando Miss Jansen estava aqui.
- Psiu! Psiu! Voce me desmoraliza.
Mrs. Polgrey veio comboiando Kitty, que estendeu a toalha numa mesinha, pondo-lhe em cima a bandeja com o chá, bolos e sanduíches de pepino. Preparei o chá. Alvean serviu os sanduíches.
- Que luxo! - disse Peter. - Pareço um sultão entre as beldades. Mudei de assunto, encabulada:
- Na minha opinião, Alvean cedo se tornará uma hábil amazona. Concorda?
- Será campeã de Cornwall. Verá!
Alvean não cabia em si. Nunca desejei tanto, como então, ser Martha Leigh, sentada na sala do ponche, a sorver o meu chá em companhia de Peter Nansellock e Alvean TreMellyn.
- Por enquanto é segredo - esclareceu Alvean, baixinho.
- É, vamos fazer uma surpresa ao pai dela.
- Ficarei mudo como uma porta.
Alvean passou-lhe os bolos. Era um prazer vê-la tão dócil e amiga.
- Ainda não me deu a honra de uma visita a Mount Widden, Miss Leigh - lembrou Peter. - A casa não é tão antiga nem tão grande quanto esta, porém o lugar é lindo. Minha irmã apreciará muitíssimo a sua visita qualquer dia desses.
- Não sei. . .
- Não sabe se lhe será permitido em face de suas obrigações? Podemos dar um jeito. Leve Alvean para tomar chá em Mount Widden.
De repente a porta se escancarou e para minha maior confusão - que tentei ocultar - entrou Connan TreMellyn. Dir-se-ia que me apanhava em flagrante delito, bancando a senhora da casa na sua ausência. Mas apenas sorriu:
- Miss Leigh, tem uma xícara de chá para mim ?
- Alvean, toque a campainha e peça outra xícara, sim?
Ela nem pestanejou. Sua presteza em servir o pai tornou-a tão desastrada que, levantando-se, derrubou uma xícara. Pôs-se vermelha como um pimentão.
- Não faz mal - consolei-a. - Toque a campainha. Kitty cuidará disso. - Quando Kitty veio apontei a xícara quebrada: - Por favor, leve esta e providencie outra para Miss TreMellyn.
Kitty deixou a sala rindo como uma tonta. Gozara o incidente, o que me aborreceu. A presença do dono da casa me tolhia.
- Muito trabalho, Connan? - perguntou Peter.
Connan começou a descrever a complicada situação dos negócios; não me dava atenção, como se me advertisse de que meus deveres de empregada não iam além de servir o chá. Tive ódio dele por estragar o meu pequeno triunfo. Pobre Alvean, pretendendo angariar a afeição de um homem que desconhecia toda afeição! Pobre Alvean! Pobre Alice!
E foi como se Alice entrasse na sala. Jamais a idealizara assim tão claramente: mulher mais ou menos do meu corpo, a cintura um pouco mais delgada, também um pouquinho menor na estatura, dentro do costume preto de equitação e do chapéu também preto. Tudo muito vago; o rosto, mera sombra . . . Peter aproveitou a pausa para introduzir-me na conversa:
- Miss Leigh e eu nos conhecemos no trem.
- É?
- Por um estranho golpe do acaso, viajamos na mesma cabina.
- Muito interessante - fez Connan, dando a impressão de que nada
mais pudesse haver de interessante para êle.
- Peço-lhes que me desculpem e a Alvean. - Consultei meu relógio.
- Ora - disse Peter. - A ocasião tolera uns arranhões no regulamento.
A insinuação principiava a agradar Alvean e cortei o mal pela raiz:
- Não seria aconselhável. Vamos, Alvean.
A menina fuzilou-me com um olhar de desaprovação; quase temi ter posto a perder os meus sucessos daquela tarde. - Por favor, papai . . .
- Minha querida filha - respondeu, severo. - Ouviu o que sua preceptora disse.
Alvean corou e subiu comigo. Na sala de aula interpelou-me.
- Por que a senhora sempre estraga tudo? Podíamos estudar a qualquer outra hora.
- A aula de leitura é das cinco às seis e não a qualquer hora - revidei, não obstante perturbada no íntimo. Na verdade, eu lhe gostaria de ter dito: "Você anseia sempre pela aprovação do seu pai. Mas, minha pobrezinha, não sabe como obtê-la. Deixe-me ajudá-la." Acontece que eu não sou extrovertida. - Obedeça - ordenei. - Resta-nos somente uma hora. E não podemos perder um minuto.
Sentou à mesa, fixando desconsoladamente o livro de leitura. Perdera a animação. Nem sequer prestava atenção. De repente tirou os olhos do livro:
- Acho que a senhora o odeia. Acho também que a senhora não suporta a companhia de meu pai.
- Que absurdo! - gaguejei, a despeito de recear trair a minha confusão. - Prossigamos. Não há tempo a perder.
NAQUELA mesma noite, tendo Alvean se recolhido, Kitty entrou em meu quarto:
- Miss, o senhor está chamando na biblioteca.
Pedi-lhe que me levasse lá, o que ela fez passando por uma ala que eu ainda não conhecia. Pela porta, enxerguei Connan TreMellyn sentado a uma escrivaninha cheia de papéis e livros encadernados em couro. A única luz provinha de uma lâmpada de cristal côr-de-rosa na mesa.
Descobrira ter eu usado a roupa de Alice? Naturalmente, pensei, não gostou do abuso. Minha cabeça rodava; mesmo assim decidi enfrentar altivamente o pito.
- Interessou-me muito saber esta tarde - começou - que a senhora já conhecia Mr. Nansellock.
- Deveras? - fiz eu, procurando encobrir o pasmo.
- Era inevitável. Mais cedo ou mais tarde, teria de conhecê-lo. Ele e a irmã são visitas assíduas aqui, mas ...
- Talvez o senhor considere uma impropriedade minha . . . Bem, falando claro; terá sido uma impropriedade de minha parte pôr-me em pé de igualdade com um amigo da família.
- Os amigos que faz, Miss Leigh, são assunto que somente à senhora diz respeito. Mas sua tia a colocou sob minha custódia, digamos assim, quando a enviou para a minha casa. Foi por isso que tomei a liberdade solicitar a sua presença para dar-lhe uma palavra de aviso, embora possa parecer intromissão minha. - Corei violentamente. - Mr. Nansellock - continuou - tem reputação . . . como direi ? ... de ser muito susceptível às moças.
- Oh! - a exclamação me escapou.
- Miss Leigh - sorriu complacente - tome isso como aviso.
- Mr. TreMellyn - disse-lhe com falsa energia. - Não preciso dessa espécie de avisos.
- Ele tem fama de ser uma criatura cativante - acrescentou no mesmo tom de mofa que lhe era peculiar. - Houve uma moça aqui, antes da senhora; uma certa Miss Jansen. Ele também a cortejou. Miss Leigh, peço-lhe que não interprete mal. Mas rogo-lhe não levar muito a sério Mr. Nansellock.
- Agradeço-lhe, Mr. TreMellyn, preocupar-se tanto comigo,
- Evidentemente me preocupo. A senhora está aqui para cuidar de minha filha. E, portanto, o seu bem-estar tem-me grande importância.
Ergueu-se. Imitei-o. Tomei-lhe o gesto como um ponto final na conversa. Mas êle caminhou para mim e segurou-me o ombro:
- Perdoe-me. Sou um homem rude, sem as maneiras tão gabadas em Mr. Nansellock. Quis, cordial e simplesmente, preveni-la.
Fitei-o dentro dos olhos claros e frios. Eu ia, aos poucos, penetrando-lhe a máscara. Agora, repentinamente, eu recobrara a calma; e num instante de emoção, absolutamente convicta da minha solidão, do drama da solidão daqueles que são sozinhos no mundo, não tendo ninguém para escudar-se - agradeci-lhe e voltei depressa para o quarto.
ALVEAN e eu montamos todos aqueles dias. Vendo-a sobre Buttercup, mais e mais me convencia de que o pai fora sempre muito impaciente com ela; pois a menina, mesmo não sendo uma criança prodígio na equitação, cedo a praticaria a contento.
Informaram-me de que, todo novembro, se realizava um concurso de hipismo na aldeia de Mellyn. Aconselhei Alvean a participar. Não deixava de ser divertido, porque Connah TreMellyn seria o presidente do júri e ambas já antecipávamos o seu espanto quando se desse conta de que uma das vencedoras era a sua filha; a mesma filha por êle declarada incapaz de aprender hipismo. A vitória, mesmo ainda mera conjetura, se resumiria em algo de que eu e Alvean compartilharíamos. Claro que ela monopolizaria a melhor das emoções. Queria vencer por amor ao pai. Para mim, valeria por uma desforra. Assim como se eu lhe dissesse por fim: "Viu, seu arrogante? -Venci onde você fracassou." O dia do primeiro salto alvoroçou-nos.
Ao regressarmos à casa, como estivéssemos juntas, entrei pela escadaria principal. No salão, Alvean, tomou a dianteira. Seguindo-a, senti um penetrante cheiro de mofo escoando-se pela porta entreaberta da capela. Pensando que Alvean tivesse ido lá, entrei. O ambiente era assustador e gélido. Tremi de frio e medo sobre aquelas lajes azuis. Examinei o altar à distância. De costas para a porta, percebi um arfar atrás de mim.
- Não! - gritou uma voz tão desfigurada que não reconheci. Estremeci da cabeça aos pés. Rápida, girei sobre mim mesma: era Celestine Nansellock, que me olhava estarrecida e tão pálida que imaginei estivesse a pique de desmaiar. Graças ao costume de equitação de Alice, desavisadamente me confundira com ela.
- Miss Nansellock . . . Alvean e eu acabamos de voltar da aula de equitação.
- Que diabo a trouxe à capela ? - perguntou trêmula, o rosto quase cinza.
- Alvean correu na frente e julguei que tivesse vindo para cá.
- Alvean ? Ah, não . . . ninguém vem aqui.
- Sente-se mal, Miss Nansellock? Quer um copo de conhaque?
- Não, não. Estou perfeitamente bem.
- Naturalmente estranha o meu traje. Tomei-o por empréstimo para as aulas de equitação com Alvean. A roupa era da . . . mãe dela. Lamento tê-la assustado. Está tão pálida!
- Oh, não. Não assustou. Mas devia ter dito logo. Estou bem. Deve ser a luz da capela . . . Rouba-nos toda a côr. - Saímos para o ar livre. No ínterim, ela recobrara a côr. - Alvean gosta de aprender hipismo? E a senhora? Vai indo melhor com ela?
- Vamos ficando amigas. As lições de equitação ajudaram bastante. Aliás, ainda constituem segredo para o pai. - Diante da surpresa de Celestine, apressei-me a explicar: - Sossegue. O segredo é apenas o progresso que Alvean está fazendo no esporte. O pai autorizou as lições.
- Compreendo. E confio, de todo o coração, que não a esteja obrigando a um esforço exagerado, Miss Leigh.
- Exagerado? Mas por quê? E uma menina saudável.
- É uma pilha de nervos. Não acredito que seja capaz de dominar um cavalo.
- É tão moça que nos dá a oportunidade de formar-lhe o caráter. De resto, gosta de montar.
- Então ela se vai fazendo sua amiga, Miss Leigh? Alegro-me. Bem, vou indo. Já ia embora mesmo, quando passei e vi aberta a porta da capela.
Disse-lhe adeus efui para o quarto.
UMA semana depois, as lições orais e as de hipismo haviam progredido bastante. Peter Nansellock visitou-nos duas vezes, fingi não vê-lo. Não me esquecera do aviso de Connan TreMellyn. Até o achava agora razoável e não seria nada demais se, de uma hora para outra, eu me surpreendesse a suspirar pelas visitas de Peter.
De quando em quando eu me recordava de Geoffrey. Não sei por que fantasiei que êle e Peter se pareciam. E pensando em Geoffrey, pensava também na filha de Mrs. Polgrey, de quem aliás ela nunca falava. Fazia-me mal o simples fato de meditar nas terríveis armadilhas que se antepõem no caminho das mulheres incautas . . .
Meu interesse em Alvean induziu-me a olvidar temporariamente Gillyflower. Uma vez ou outra, eu a escutava cantar com a sua vozinha fina. Então matutava: se aprendeu a cantar, aprenderá também tudo o mais. E juntamente com a imaginária cena de Connan TreMellyn premiando a própria filha no concurso hípico, um outro quadro se esboçava: Gilly na sala de aula, lado a lado com Alvean. Eu já previa o povo murmurando: Ninguém acreditaria, mas aconteceu graças a Miss Leigh . . . Ela consegue milagres com essas crianças.
A esse tempo, no entanto, Alvean não passava de uma criança obstinada. E Gillyflower era uma criança tonta; ou, como as duas Tapperty diziam: tinha um parafuso de menos.
Em meio àqueles dias mais ou menos tranqüilos, dois acontecimentos liquidaram a minha relativa paz de espírito.
O primeiro foi rápido como um relâmpago, e assim mesmo apoquentou-me.
Eu preparava-me para corrigir um dos exercícios de Alvean, enquanto ela estudava. Virando as páginas do caderno, caiu de dentro uma fôlha de papel cheia de desenhos. Não me era estranho o seu indizível talento artístico para o desenho. Eu já tentara até interessar Connan TreMellyn nisso. Reconheci-me desenhada numa página. Seria possível que eu desse mesmo aquela impressão? Vinha depois um esboço do pai; melhor - vinham esboços. Virei a folha. Havia uma porção de cabeças de criança.
Dela mesma? Não, de Gilly, fora de toda discussão. E ainda um auto-retrato.
- É minha disse Alvean, arrancando mais do que depressa a fôlha de minhas mãos.
- Também são seus esses modos feios?
- A senhora não tem o direito de me espionar.
- Meu bem, a folha estava dentro do seu livro de aritmética.
- Desculpe ...... resmungou, sem abandonar o tom de desafio.
Por que se aborrecera tanto? Por que desenhara aqueles rostos que eram a um só tempo Gilly e ela mesma?
- Alvean, por que não quer que eu veja os desenhos? Alguns são muito bons. Principalmente as cabeças de criança. Quem são? Você ou Gilly?
- Quem pensa a senhora que sejam? - reagiu com a respiração entrecortada.
- Bem, deixe-me reexaminá-los. - Primeiro hesitou, mas acabou me estendendo o papel. - Este, por exemplo, tanto pode ser você como pode ser Gilly - comentei, depois de analisar o desenho.
- Então a senhora nos acha parecidas?
- Ora, não é isso. Nem eu percebera até hoje semelhança.
- Não sou parecida com ela. Não sou como aquela . . . maluca.
- Você não deve empregar palavras tão ásperas, Alvean.
- Não pareço com ela! - gritava como se quisesse convencer-se de
que não existia a menor semelhança entre ambas.
Qual a razão de tanta veemência?
- Temos exatamente dez minutos para acabarmos as contas - disse-lhe com toda a calma, olhando o relógio de pulso.
E afundei no livro de aritmética, simulando a maior atenção.
O SEGUNDO incidente foi ainda mais intranqüilizador.
O dia trancorreu manso, e eu fui dar um giro à noitinha. Já de volta, encontrei dois cabriolés parados em frente da casa. Um, reconheci logo: era de Mount Widden. O outro, muito bonito, jamais eu vira.
Esgueirei-me pela escada dos fundos, para os meus aposentos.
Fazia calor. Sentei-me à janela. Súbito, escutei música. Conann TreMellyn devia estar recebendo. Idealizei-os numa sala para mim ainda desconhecida, jogando cartas ou talvez ouvindo música. Era "Sonho de uma Noite de Verão", de Mendelssohn. Lamentei não estar lá. Kitty e Daisy sempre sabiam de tudo. Toquei a campainha. Daisy atendeu.
- Quer trazer um pouco de água quente, Daisy?
- Sim, miss.
- Vejo que há convidados esta noite.
- Sim, miss. E aposto que, depois de um ano de luto, o senhor resolveu tirar o pé da lama.
- Quem são os convidados?
- Miss Celestine e Mr. Peter, claro. E Sir Thomas e Lady Treslyn.
- E daí? - dei-lhe corda.
- Daí que Mrs. Polgrey costuma dizer que Sir Thomas não agüenta muito tempo essas festas. O velho não passa dos setenta. O coração dele já está dando o prego. Mrs. Polgrey diz que a gente pode descer pra cova de uma hora para outra com um coração assim; e sem precisar quem empurre. Agora ela . . . - Interrompeu-se com uma piscadela: - Bem, ela é uma boa bisca.
- Ela quem?
- Ora, Lady Treslyn. Só vendo! Usa umas saias por aqui de tão curtas. É um pedaço. Vê-se logo que só está esperando que . . .
- Sei. Ela é bem mais nova do que o marido.
- Dizem que há uma diferença de quarenta anos. E ela é tão bonita que ainda faz a gente pensar que a diferença é de cinqüenta.
Daisy saiu para buscar a minha água quente. Agora eu já sabia o que ia pela sala de estar.
Fui dormir ainda pensando neles. Os músicos tocavam uma valsa de Chopin, fazendo-me sonhar com coisas para mim inatingíveis e bem opostas às daquele quarto de preceptora. Na janela respirei a maresia ao ritmo suave das ondas. Recomeçavam as "vozes" em Mellyn Cove.
Empolgada, dei com uma luz na parte escura da casa. Conhecia aquela janela; era o quarto de Alice.
Os estores estavam corridos. Tive a certeza de que agora não era como na outra noite. E tive certeza porque eu me dera desde então o hábito - que eu mesma condenava - de espreitar aquela janela sempre que chegava à minha.
Eram estores de um material transparente, filtrando uma luz pálida. Estiquei o corpo sobre o parapeito e nessa posição pude ver uma sombra feminina projetando-se nos estores. Alguém exclamou:
- É Alice!
Reconheci a minha própria voz. Devo estar sonhando, pensei. Estou imaginando coisas.
A silhueta projetou-se mais uma vez.
Apertei o parapeito com toda a força de minhas mãos trêmulas. Tive ímpetos de ir ter com Mrs. Polgrey. Contive-me para que ela não me julgasse doida. Meus olhos colaram-se à janela de Alice até que a luz se apagou.
Continuei à janela, tiritando de frio naquela noite cálida de setembro. Quando me animei a ir para a cama, não conciliei o sono. E quando consegui dormir, sonhei que uma mulher entrava em meu quarto. Vestia um traje de montaria enfeitado com galões e franjas de bolinhas.
- Não era eu que estava naquele trem, Miss Leigh- falava-me. - A senhora costuma indagar-se onde estou. É tempo de encontrar-me.
Mesmo em sonho, não cessara o marulhar das ondas nas grutas lá embaixo. O meu primeiro cuidado pela manhã foi ir à janela espiar o quarto que - menos de um ano atrás - pertencera a Alice.
Os estores estavam suspensos. E pude ver em todos os seus detalhes as ricas cortinas de veludo azul.
CAPÍTULO 4
MAIS ou MENOS uma semana depois conheci Linda Treslyn. Passava das seis. Alvean e eu tínhamos já abandonado os nossos livros e fomos às cavalariças ver Buttercup que estava com suspeita de luxação de um tendão. Melhorara. Consultei a hora.
- Vamos dar um giro no jardim - sugeri.
O platô, sobre o qual Mount Mellyn assenta, cobre uns dois quilômetros de largura. Despenca abruptamente sobre o mar. Mas os caminhos em ziguezague amenizam a descida. Arbustos floresciam em profusão e vários caramanchões de roseiras permitiam que, mesmo sentados, tivéssemos uma visão muito ampla do oceano.
Descemos por um atalho perfumado, e demos com um caramanchão antes mesmo que notássemos as duas pessoas que lá se encontravam muito aconchegadas. Era uma mulher morena, de uma beleza fora do comum. Traços perfeitamente delineados. Usava nos cabelos um lenço de gaze muito fina. No vestido colante, na altura da garganta, um broche de diamantes.
- Ah, eis minha filha e Miss Leigh ...... disse Connan. - Conhecem
Lady Treslyn ? - Ela cumprimentou-nos com um movimento de cabeça e ele prosseguiu: - Então, Miss Leigh, está tomando fresco com Alvean?
- Faz uma tarde tão agradável comentei, tentando prender a mão de Alvean, que se esquivou.
- Posso sentar com você e Lady Treslyn, papai ? - pediu.
- Você está passeando com Miss Leigh - observou o pai. - Não prefere continuar?
- Sim - respondi por ela. - Vamos, Alvean.
- Foi muita sorte contratarmos Miss Leigh - observou Connan à companheira. - Ela é tão . . . admirável!
- Espero que desta vez seja mesmo a preceptora indicada - disse Lady Treslyn. - Para o seu bem, Connan.
Examinaram-me, com a mesma atenção que dedicariam a uma potranca em leilão. Tive a impressão de que o meu constrangimento o atraía.
- E tempo de voltarmos, Alvean - disse eu.
- Mas quero ficar. Por favor, papai! - implorou, com voz de choro.
- Vejo que Alvean é muito obstinada - interveio Lady Treslyn.
- Miss Leigh sabe como tratá-la - replicou Connan TreMellyn friamente.
- É uma preceptora perfeita . . . - disse Lady Treslyn. Puxei Alvean pelo braço. Obedeceu num silêncio, choroso.
- Odeio-a! - desabafou, já no quarto. - Ela quer tomar o lugar de mamãe. 392
- É extraordinário que você pense isso - respondi, fechando a porta. - Como poderia ela pretender o lugar de sua mãe se já tem um marido?
- Ele vai morrer logo. Todos murmuram que meu pai e ela só esperam por isso.
A notícia contrariou-me. Prometi-me falar com Mrs. Polgrey a respeito. Os criados precisam ter mais cuidado com o que dizem na frente de Alvean.
- Ela vem sempre - queixou-se a menina. - Não deixarei que tome o lugar de minha mãe. Não deixarei que ninguém tome o lugar de minha mãe.
- Você está ficando fora de si com essas tolices. Não deve insistir. É degradante para o seu pai.
Minha reprovação fê-la pensativa. Como o amava! Pobre Alvean! Pobre criança enjeitada.
Um pouco antes eu me arrependera de ter ido àquele bonito jardim. Agora, arrependia-me por Alvean.
NÃO a larguei até que ela foi dormir. Só então fui para o quarto. A imagem de Connan TreMellyn no caramanchão com Lady Treslyn perseguia-me. Era óbvio que Alvean e eu interrompêramos o colóquio amoroso. Como êle se metera numa intriga assim com uma mulher casada ?
Da janela, aspirei a noite molhada de perfume. As estrelas cintilavam. Perscrutei a janela do quarto de Alice. Os estores estavam levantados, e lá estavam as cortinas azuis. Nem eu mesma sabia que o procurava. Quem sabe procurava alguém acenando daquela janela?
As cortinas moveram-se. Não era mais possível negar uma presença humana ali.
O quarto de Alice ficava na outra parte da casa. Eu me dispusera a ser corajosa naquela noite. A idéia de Alice obcecava-me. Ardia em mim o desejo de desvendar o mistério que encobria a morte dela.
Afundei-me pelas galerias no rumo do quarto de vestir. Bati levemente na porta. Com o coração aos pulos, escancarei-a. Não vi ninguém. E no entanto continuava o vaivém nas cortinas. Alguém se escondia atrás delas.
- Quem está aí? Não houve resposta.
Dei um repelão nas cortinas. Gillyflower estava acocorada num canto. Piscava terrivelmente os seus olhos azuis.
- Não tenha receio, Gilly - tranqüilizei-a com doçura. - Não lhe farei mal. O que faz você aqui ?
Permaneceu muda. Olhava amedrontada em redor como à espera de um auxílio. Ou talvez vendo alguém ou algo que eu não via.
- Gilly, você sabe que não deve vir aqui, não sabe? Vou levá-la para o meu quarto.
Toquei-a. Ela tremia. Impeli-a em direção à porta; no limiar, olhou para trás e gritou:
- Senhora! Volte! Agora!
Levei-a à força para o meu quarto e fechei a porta impedindo-lhe a fuga. A menina continuava a tremer como vara verde.
- Gilly, não lhe farei mal. - Tive uma intuição e aproveitei-a: - Quero ser sua amiga assim como Mrs. TreMellyn foi.
Isso colheu-a desprevenida. O olhar pungente sumiu de um momento para outro. Eu acabara de fazer nova descoberta: Alice fora bondosa com aquela criança.
- Você veio aqui na esperança de ver Mrs. TreMellyn, não foi? - Assentiu em silêncio, parecendo tão comovida que, enternecida por minha vez, abracei-a. - Não poderá revê-la, Gilly. Ela morreu. Devemos tentar esquecê-la, não devemos, Gilly? - Fechou os olhos como a escondê-los deliberadamente. - Seremos amigas. Quero que sejamos assim. Se formos amigas, você não se sentirá tão só, não acha?
Sacudiu afirmativamente a cabeça. Não tremia mais, o que me convenceu de que eu já não a amedrontava. Mas sem que eu pudesse evitar, libertou-se ágil de meus braços e correu para a porta. Antes de desaparecer, dirigiu-me um sorriso esmaecido.
Recomecei a pensar em Alice, tão boa para aquela menina. À janela, contemplei o prédio em L, no ponto onde se abria a janela do quarto de vestir. Veio-me à memora a noite da sombra nos estores. Ter encontrado Gilly no quarto não explicava a outra silhueta que eu vira; Não era, disto eu estava certa, uma silhueta de criança. Era uma silhueta de mulher.
Fui a Mrs. Polgrey no dia seguinte.
- Gostaria muitíssimo de debater com a senhora um assunto de certa importância - disse-lhe.
- Será um prazer tê-la em minha companhia durante o chá - replicou. Já no seu quarto, diante da xícara de chá, sondou-me cordialmente:
- Agora, Miss Leigh, estou à sua disposição.
- Estou um tanto confusa com uma observação de Alvean. Ela anda dando ouvidos a mexericos. E isto é completamente fora de propósito em uma criança da sua idade.
- Ou em qualquer de nós - comentou Mrs. Polgrey não sem uma certa hipocrisia.
Contei-lhe que encontráramos Connan TreMellyn e Lady Treslyn: - E Alvean disse-me que Lady Treslyn pretendia ser a sua nova mãe.
- Aceita uma colher de uísque no chá, Miss Leigh? - Mrs. Polgrey meneara a cabeça. - Não há nada melhor para conservar o ânimo.
- Uma colherinha apenas, Mrs. Polgrey - acedi, embora totalmente a contragosto.
Apanhou a garrafa e mediu o uísque. Assumimos um ar de conspiradoras, o que evidentemente agradava Mrs. Polgrey.
- Vai deixar cair o queixo - principiou.
- Estou preparada.
- Bem, Sir Thomas é um velho caduco. Casou-se com essa moça, uma atriz segundo dizem. Por aqui ela vira a cabeça de todos os vizinhos, posso garantir-lhe. É tida como a mulher mais bonita dos arredores. E homens como o senhor são fáceis de tapear. - Chegou-se mais perto: - Há quem diga que os dois não são do tipo de conter as impaciências até receberem as bênçãos do padre. O senhor é um impulsivo por natureza.
- Então a senhora crê ...
- Quando Sir Thomas morrer - disse meneando mais uma vez a cabeça - haverá uma nova senhora nesta casa. - E lastimosamente:
- Aliás, prefiro ver o senhor desta casa outra vez casado do que nos braços do pecado. Agora só tem que aguardar a morte de Sir Thomas. Mrs. TreMellyn, essa já se foi. - Já era assim . . . quando Mrs. TreMellyn estava viva ?
- Ele visitava com freqüência Lady Treslyn. Às vezes saía à noite. Só voltávamos a pôr os olhos nele já de manhãzinha.
- Não podíamos evitar que as raparigas fizessem comentários na presença de Alvean ?
- Tanto quanto se quiséssemos... evitar que o cuco cantasse na primavera. Mesmo que eu as espancasse até cair de cansada, elas continuariam falando.
Concordei quietamente, pensando na infortunada Alice. Não admirava que ela houvesse fugido com Geoffrey Nansellock! Minha antipatia contra Connan TreMellyn e Lady Treslyn transmudava-se em franca repugnância.
Mrs. Polgrey pusera-se de tal forma expansiva, que decidi aproveitar a sua disposição.
- Já lhe ocorreu alguma vez a necessidade de ensinar Gilly a ler e a escrever ?
- Gilly! Ora, a senhora precisa compreender que Gilly não é o que devia ser - protestou Mrs. Polgrey.
- Ela vive cantando. Se aprende canções, por que não aprenderá outras coisas?
- É uma çriaturinha esquisita. Às vezes chego a pensar que nasceu sob maus fados. Não a queríamos. Era apenas um tenro bebezinho de dois meses de idade quando Jennifer se foi.
- Quando notou que ela não era . . . exatamente como as outras crianças?
- Mais ou menos quatro anos atrás, acho. Nasceu pouco meses antes de Alvean. Brincavam juntas. Aí houve o acidente. Gilly brincava perto da estrada e a senhora passeava a cavalo em redor da casa. Gilly saiu como uma flecha de trás dos arbustos e o cavalo atropelou-a. Só por milagre não morreu.
- Coitadinha!
- A senhora ficou aflitíssima. Incriminou-se a despeito de não lhe caber qualquer culpa. Desde então, desvelava-se com Gilly. E Gilly seguia-a sempre daí por diante, encorujando-se quando a senhora não estava.
- Entendo.
Mrs. Polgrey serviu mais chá. Pasmei porque ela não associava a alteração mental de Gilly ao acidente.
Eu custaria a compreender Gilly e a domar Alvean. Juntamente ia descobrindo em mim, em relação a crianças, uma ternura de que jamais suspeitara.
Foi de azáfama o dia imediato. Dariam um baile - o primeiro desde a morte de Alice. Convidou-se um mundo de gente do lugar. Kitty e Daisy vibraram. E foi um custo manter Alvean atenta às lições.
- Quando mamãe era viva - recordou com ar longínquo - havia bailes em profusão. Ela adorava-os. Tinha o costume de vir mostrar-se a mim antes da festa. E me permitia ficar sentada na varanda vendo o baile através da seteira.
- Seteira ?
Ah, a senhora não sabe? - Encarou-me triunfante. - Existe uma porção de seteiras nesta casa. Sabe o que é uma seteira? Muitas casas grandes têm. Minha mãe me contava que as senhoras a utilizavam quando os homens se reuniam a sós. Elas podiam assim saber de tudo, sem necessidade de estarem junto deles. Há uma na capela. Nós a apelidamos "olho dos leprosos". Os leprosos não podiam entrar na capela e por isso ficavam do lado de fora, espiando pela seteira. Venha ao terraço comigo ver o baile pela seteira! Venha, sim?
- Veremos isso depois... prometi.
Na noite do baile, Alvean tomou comigo as suas aulas de equitação. Só que, em lugar de Buttercup, já montava Black Prince, que se comportava muito bem, contribuindo para consolidar a nascente confiança da menina.
Mas foi um mau dia. Percebi que a atenção de Alvean se voltava mais para o baile do que para o hipismo. Galopando comigo, deu um gritinho que assustou Black Prince. Num relance, o animal desabalou para a cerca. E Alvean, esquecendo inteiramente tudo quanto já aprendera, escorregava pelo flanco! Emparelhei com ela a toda velocidade. Fui obrigada a arrebatar as rédeas de Prince antes que ele saltasse a cerca, pois, se saltasse, Alvean levaria um trambolhão feio. O pavor deu-me forças e consegui agarrar as rédeas no momento exato em que o cavalo armava o salto. Enquanto eu sossegava o animal, Alvean, sem um pingo de sangue na face, desmontava sã e salva.
Mesmo intimidada, montou novamente, à minha insistência. Obedeceu-me relutando. Porém, ao terminar a aula, vencera todo o susto. E eu sabia que no dia seguinte ela própria pediria para montar.
Ao abandonarmos a pista de exercício, caiu na gargalhada:
- Oh, Miss Leigh! - gritou rindo. - A senhora tem um rombo no vestido.
- Como é?
- Seu vestido rasgou debaixo do braço. E o rasgão cada vez aumenta mais! - Devo ter deixado perceber que ficara sem jeito porque ela acrescentou: - Não importa. Arranjo-lhe outro vestido. Há muitos, como já viu.
A menina exultava de regresso à casa. E era desconcertante ver que a minha pequena infelicidade a animava ao ponto de fazê-la perder a lembrança do perigo recentemente passado.
CHEGAVAM os convidados. Da janela, observei-os. Elegantes de fazer inveja.
O baile seria no grande salão. Kitty não descansara enquanto não me convencera a dar-lhe uma olhadela antes da festa. Poucas vezes eu vira coisa tão linda. As vigas haviam sido cobertas com uma decoração de folhas.
- E uma velha tradição de Cornwall - explicava Kitty. Trouxeram das estufas vasos com flores. As grandes velas de cera
ocupavam os seus lugares nos castiçais. Não foi difícil conceber o efeito que fariam quando acesos, nem os reflexos que emprestariam à orgia de cores dos vestidos, das pérolas e dos brilhantes rodopiando na dança com os convidados. Como ambicionei ser um deles! Saí do salão com um travo de amargura na garganta. Ao jantar, Alvean disse:
- Botei um novo traje de equitação no seu armário.
- Obrigada. Foi muito gentil.
- O caso é que a senhora não podia montar corri esse daí. - E apontou o meu vestido cor de alfazema.
Baixei os olhos, desgostosos, para o vestido. Que horrível era, assim afogado no pescoço, com a gola e os punhos de renda, tão diferentes dos vestidos das convidadas de Connan TreMellyn!
- Andemos depressa - respondeu Alvean - para chegarmos a tempo de ver o baile.
- Você tem permissão?
- Todo o mundo sabe que sempre espio no terraço. Minha mãe costumava olhar lá para cima, me acenando. - Ficou taciturna. - Hoje farei de conta que ela está lá embaixo dançando. . . Miss Leigh, acha que a gente pode voltar depois de morto?
- Que pergunta mais rara! Claro que não podemos voltar.
- E no entanto - acentuou como se não escutasse - se ela tivesse voltado, viria certamente ao baile.
A VASTIDÃO da casa constituía motivo de assombro para mim; principalmente agora que eu subia com Alvean outra escada de pedra até ao terraço envidraçado.
- Há duas seteiras aqui em cima - informou Alvean.
E desapareceu atrás de uma das quatro pesadas cortinas. Imitei-a e dei numa alcova. Numa parede havia uma pequena abertura em forma de estrela, disfarçada de tal maneira que só a custo se descobria. Pela abertura, vi a capela bem embaixo.
- Quando a doença os impedia de subir escadas, os antigos sentavam-se aqui e acompanhavam a missa. Havia um padre aqui nos velhos tempos. Foi Miss Jansen quem me contou. Ela conhecia bem esta casa.
- Alvean, acho que você ficou triste quando ela partiu.
- Fiquei. A segunda seteira está no outro lado do terraço.
Fomos andando pelo quarto e entramos numa segunda alcova também com abertura em forma de estrela em tudo igual à outra.
Tinha-se dali uma visão magnífica do salão. Os músicos já estavam no tablado. Os convidados, não tendo ainda começado as danças, espalhavam-se, conversando. Connan TreMellyn palestrava com Celestine Nansellock. Também Peter já chegara. E Lady Treslyn destacava-se em meio a todo aquele fulgor, no seu vestido de metros e metros de musselina cor de fogo. Seus cabelos escuros pareciam quase negros em contraste com o escarlate da roupa. Usava um diadema de brilhantes.
- Lá está ela - mostrou Alvean amarrando a cara.
- O marido também, veio?
- Veio. - E apontou um ancião grisalho, encarquilhado e decrépito. Incrível que fosse o marido de tão flamejante criatura.
- Olhe! - cochichou Alvean. - Meu pai vai iniciar o baile. Costumava abri-lo com tia Celestine, e mamãe com tio Geoffrey. Estou ansiosa para saber quem êle escolherá desta vez.
Os músicos começaram a tocar. Connan levou Celestine para o meio do salão. Peter Nansellock, logo depois dele, fêz o mesmo com Lady Treslyn. Deram início à dança. Pobre Celestine! Mesmo naquele vestido de cetim azul, simplesmente desaparece comparada ao elegante trio.
Escoou-se toda uma hora e nós ali, firmes, acompanhando o baile. Pareceu-me que Connan TreMellyn olhara uma ou duas vezes em nossa direção. Alvean espreitava os dançarinos prendendo a respiração, quase com fervor, como animada da certeza de que, se olhasse bem, acabaria vendo o rosto da mãe.
Já se fizera noite fechada e uma recortada lua surgira. Avistei-a pelo teto envidraçado. E era como se a escutasse dizer-me que, estando eu tão longe das luzes dos castiçais, ela decidira compensar-me com aquele macio luar. A luz da lua emprestava ao terraço uma aparência quase sobrenatural. Tive a intuição de que ali tudo podia acontecer.
Recomecei a vigília ao baile. Valsava-se agora. Contagiava. A mão de alguém tocou a minha. Levei um susto tão grande que não reprimi uma exclamação surda. Era Gillyflower.
- Veio ver a dança ? - perguntei.
Fêz que sim com a cabeça. Sentei-a num banco para que ela alcançasse a seteira.
Alvean, com a chegada de Gilly, perdeu o interesse no baile. Abandonou a seteira e, no momento em que os músicos executavam os primeiros acordes do "Danúbio Azul", pôs-se a dançar pelo terraço.
A melodia também me contagiou. Valsei atrás de Alvean, tal como nos tempos dos meus bailes em Londres - modéstia à parte, eu sempre fui boa dançarina - e Alvean aplaudiu entusiasmada:
- Continue, Miss Leigh! Não pare!
E assim fui dançando com um par imaginário, enquanto a lua me sorria. Já atingira o lado oposto, quando me barraram os passos:
- Como a senhora está encantadora! - Era Peter Nansellock. Tomou-me nos braços num arrebatamento que me fêz tropeçar. - Acerte o passo - disse ele.
E continuamos dançando.
- Isso não é muito usual - comentei.
- Mas é muito delicioso.
- Prefiro ficar com a senhora.
- Lembre-se de que . . .
- De que é a preceptora ? Posso lembrar-me, se fizer questão. Como dança bem!
- Ah, então foi para cá que êle fugiu! - disse alguém. Intimidei-me ao ver tanta gente no terraço - e ainda mais quando reconheci o vestido flamejante de Lady Treslyn, pois, onde quer que ela estivesse, forçosamente Connan TreMellyn haveria de estar. O "Danúbio Azul" terminou. Ajeitei os cabelos no maior atarantamento por verificar que, dançando, perdera os grampos. Serei demitida amanhã pela minha irresponsabilidade. Sei bem que o mereço, pensei.
- Mas que ótima idéia! - falou outro. - Dançar ao luar. E daqui ouve-se muito bem a música.
- É um esplêndido salão de baile isto aqui, Connan - observaram.
- Então é usá-lo - alvitrou. - E indo até à seteira, gritou para baixo: - Repitam o "Danúbio Azul"!
Dei as mãos a Alvean e a Gilly. Começavam a dançar em volta de nós.
Duas pessoas conversavam sem ao menos se darem o trabalho de baixarem a voz:
- E a preceptora de Alvean, sabe? Sujeitinha pernóstica! Outra dessas conquistas fáceis de Peter. Ponho a mão no fogo, se não fôr.
- Creio que a última teve que ser despedida.
- Logo chegará a vez dessa aí.
Acometeu-me uma onda de calor, num misto de fúria e de algum temor. Conann acercou-se, olhos fitos em mim, segundo imaginei, reprovando-me.
- Alvean - ordenou. - Vá para o seu quarto e leve Gilly.
- Sim, vamos - concordei o mais seguramente que pude. Mas quando já seguia as meninas, Connan susteve-me o braço:
- A senhora dança muito bem, Miss Leigh,
- Obrigada.
- Estou certo de que o "Danúbio Azul" é a sua melodia preferida. A senhora estava enlevada.
E não esperou mais: saiu valsando comigo, no meu vestido de algodão e tudo, por entre todas aquelas deslumbrantes roupas de baile. Felizmente o lugar impediu que se notasse o meu rubor. Eu corara porque, de início, supus que se irritara e que tencionasse envergonhar-me ainda mais. Deslizei na valsa, meditando que, dali por diante, o "Danúbio Azul" me soaria sempre como uma dança extravagante um dia acontecida num terraço, tendo Connan TreMellyn como meu par.
- Peço-lhe que perdoe a impolidez dos meus convidados...
- Eu já a esperava e de fato merecia-a.
- Que tolice! - contraditou numa voz tão acariciante que cheguei a crer que sonhava.
Alcançáramos a outra extremidade do terraço. Sem dar tempo para nada, empurrou-me para além da porta cortinada que se abria num pequeno patamar entre dois lances de escada granítica. Paramos de dançar, porém mesmo assim manteve os braços em torno de mim. Da parede pendia uma lâmpada de parafina num receptáculo de jade verde; e a luz mal lhe iluminava o rosto, um tanto transfigurado.
- Miss Leigh ... a senhora é encantadora quando abandona sua expressão de severidade.
Perdi o fôlego porque imediatamente êle me apertou contra a parede, beijando-me.
Não sei o que me aterrou mais: se as minhas emoções em tumulto ou se o impacto do inesperado. Não me era estranho o sentido daquele beijo; êle traduzia que, se não me desagradava um flerte discreto com Peter Nansellock, também não me haveria de repugnar um flerte com Connan.
Perdi de tal maneira o senso das coisas que não mais me dominei. Com toda a força, arranquei-me dos seus braços, arrebanhei as saias e desci na carreira a escada. Nunca as utilizara, mas continuei correndo às tontas até enveredar pela galeria contígua ao meu quarto, onde me arrojei na cama.
Não haveria mais opção; sem perder um minuto, eu devia sair dessa casa. Ele não fazia segredo de seus intuitos baixos e já agora eu compreendia, sem receio de erro, por que Miss Jansen, não as aceitando, fora despedida. Como se atrevera! Nunca me sentira assim tão acabrunhada. Eu não estava pretendendo falsear a verdade, mas o fato é que lamentava do fundo do coração sua atitude comigo.
Ergui-me e olhei pela última vez a minha porta, naquela também última noite na casa. E comecei a fazer as malas.
Abri o guarda-roupa. Alguém se escondera lá dentro! Alarmada, gritei. Logo dei com o que me assustara: o traje de equitação que Alvean me prometera e de cuja presença ali eu já não me lembrava.
Ecoaram vozes sob a janela. Um grupo de convidados dançava no relvado ao luar. Também Connan e Lady Treslyn. Com os rostos colados... Com um muxoxo de mau-humor, saí da janela. Semivestida, caí na cama como um fardo. Custei a dormir. E tive sonhos desconexos. Despertei em sobressalto. No quarto enluarado, pareceu-me ver um impreciso vulto de mulher. Era Alice, eu sabia. Não falava e, contudo, comunicava-me algo:
- Não se vá. Deve ficar. Pode ajudar-me. Pode ajudar todos nós.
Pulei da cama tremendo. Mas logo compreendi tudo: eu deixara o armário aberto e o fantasma de Alice não era senão o seu costume de montaria.
Acordei tarde. Quando Kitty bateu e entrou, encontrou-me ainda semivestida.
- Não foi uma boniteza, miss? Dançaram no relvado ao luar. Mas a senhora parece cansada! O barulho não a deixou dormir?
- Sim, deve ter sido isso.
- Bom, agora já acabou. O senhor pede que a senhora desça pra sala do ponche. Ele recomendou que é urgente.
Acabei de aprontar-me o mais depressa que pude. Adivinhava o motivo do recado dele. Bem: eu me anteciparia, diria que decidira despedir-me, sem lhe dar oportunidade de fazê-lo. Desci para a sala do ponche preparada para a batalha.
Num culote de equitação, êle não dava a menor impressão de tresnoitado.
- Bom dia, Miss Leigh - cumprimentou num sorriso que me desarmou.
- Bom dia - retruquei; mas não lhe retribuí o sorriso: - Já estou de malas prontas e gostaria de partir agora mesmo.
- Miss Leigh!
Seu tom era de reprovação. E uma alegria infantil tomou conta de mim. Então não queria que eu fosse embora! E naturalmente iria agora desculpar-se. Respondi numa voz formalizada e bem alta:
- É a única alternativa que me resta depois da. . .
- Da minha atitude ultrajante, de minha injustificável conduta de ontem, é isso? Miss Leigh, reconheço minha culpa. Imploro a sua generosidade. Corra um véu sobre o incidente. Esqueça-o e continue como antes.
Eu juraria que êle zombava de mim. Porém foi tamanho o meu contentamento que não resisti.
- Aceito as suas explicações, Mr. TreMellyn. Esqueçamos o caso. Quando saí da sala, meus pés quase dançavam como na noite anterior no terraço.
Então eu ficaria! Toda a casa parecia aconselhar-me a não ficar. A verdade é que, mais do que nunca, só a contragosto eu poderia afastar-me dali.
Talvez fosse prudente levar em consideração aquela advertência muda. Sucede que eu não era prudente. Qualquer mulher, naquelas condições, raramente o seria.
ALVEAN e eu, como de hábito, nos entretínhamos no hipismo. Eu vestira o novo traje de equitação - um costume leve e bem junto, com um casaco curto. Em Alvean já era coisa do passado o susto do dia anterior. Prometi-lhe que em breve tentaríamos um salto.
Fui ao quarto trocar de roupa antes do chá. Enfiei-me num vestido de algodão e já ia pendurar o traje de equitação quando apalpei uma saliência, até ali despercebida no forro do casaco. Admirada, estendi-o na cama e principiei a apalpá-lo. Havia um bolso dissimulado. Dentro dele, um livrinho - um diário. Não resisti à curiosidade de folheá-lo. Na primeira página, li numa caligrafia primária: "Alice TreMellyn." Procurei a data: correspondia ao ano anterior, o último ano da sua vida. Fui virando as páginas. Se eu esperava surpreender ali qualquer revelação íntima, logo me desenganei. Alice apenas o utilizava à guisa de agenda: "Chá em Mount Widden." "C. em Penzance." "C. deve voltar hoje." .
Sob a data de 14 de julho, lia-se: "Os Treslyn e os Trelander para o jantar. Falar à costureira sobre o cetim azul. . . Falar a Polgrey sobre as flores . . . Sair com Alvean ... Se o joalheiro não mandar o broche até o dia 16, lembrá-lo de que preciso dele para o jantar de T no dia 18." E a seguir, com a data de 16: "Não mandou o broche. Ver o joalheiro sem falta amanhã."
- Tudo muito insignificante. Recoloquei o livro no lugar. Súbito veio-me uma idéia: ela devia ter morrido pouco depois disso; seriam hipócritas essas anotações se ela já tencionasse abandonar marido e filha por outro homem! Era imperioso apurar o dia exato da sua morte.
Alvean estava com o pai e, portanto, me sobrava tempo. Desci ao vale, na direção da aldeia de Mellyn, onde ficava a velha igreja, com a sua torre cinzenta meio coberta de hera. Era uma vilazinha muito faceira, o casario de pedra cinza e verde agrupado em torno. Passei o portão alpendrado e entrei no cemitério. Tudo era paz ali. A eternidade ilhava-me e lamentei sinceramente não ter levado Alvean para visitar o túmulo de sua mãe. Os TreMellyn não dispensariam um mausoléu. Divisando um, enorme, não muito distante, dirigi-me para êle. E dei com Celestine Nanselloçk.
Corei ao lembrar que ela estivera entre os demais convidados no terraço.
- Passeava na aldeia e acabei entrando.
- Trago sempre flores para Alice. Já viu o mausoléu dos TreMellyn? É aquele.
Acompanhei-a pelas aléias gramadas até ao mausoléu. Na entrada, um vaso de margaridas de São Miguel - maravilhosas na sua aparência de estrelas cor de malva.
- Acabei de trazê-las - explicou. - Eram as suas flores prediletas. - Tive a impressão de que ela ia chorar.
Li o nome de Alice entre os outros gravados no mármore. Morrera a 17 de julho.
- Vou indo - despedi-me.
Limitou-se a um aceno, como se a emoção lhe embargasse a voz. Devia adorar Alice. Por um triz não lhe contei o meu achado do diário. Mas desisti. A recordação da vergonha que eu passara na noite anterior continuava muito forte. E, depois, que direito tinha eu de imiscuir-me, nos assuntos íntimos daquela gente?
Ajoelhou-se enquanto eu me afastava. E enfiou o rosto nas mãos.
Fui direta ao diário. Então a 16 de julho do ano passado - na véspera do dia tido como o da sua fuga - Alice escrevera que procuraria o joalheiro no dia seguinte porque precisava do broche para 18!
Uma anotação assim não podia ter sido feita por uma mulher que planejasse fugir. Possuía eu, pois, uma prova iniludível de que o corpo encontrado com Geoffrey Nansellock no trem não era de Alice.
Mas então o que sucedera a Alice? Se não estava no mausoléu da família, onde estava?
Capítulo 5
Eu LEVANTARA indiscutivelmente uma pista importante; porém não
fiz maiores progressos nos dias subseqüentes. Ainda por cima, estive
indecisa sobre se devia ou não informar Connan TreMellyn da existência
do diário. Não confiava nele. De resto, se Alice não ia no trem, a quem
poderia mais interessar sabê-lo? A Connan TreMellyn?
Abstive-me de abordar o assunto com Peter; era frívolo demais com aquela mania de transformar em flerte uma ingênua conversa. Sua irmã, esta sim, fora amiga de Alice. Em ninguém mais, senão nela, eu poderia confiar. Mesmo assim, relutei. Celestine habitava um mundo onde, como simples preceptora de Alvean, eu não tinha o direito de entrar. Havia outra pessoa em quem eu podia confiar: Mrs. Polgrey. Ainda aqui, hesitei; lembrava-me de suas colheradas de uísque ...
O melhor mesmo seria guardar comigo o segredo. Outubro não tardava. E constituía um fascínio a mudança de estações naquele canto do mundo. Morno e úmido, soprava o teimoso vento sudoeste. Contudo, quando saía o sol, o ar aquecia tal qual se fora junho. - O verão é esticado, em Cornwall- prevenira-me Tapperty. E embora a umidade do clima, as hortênsias mantinham-se azuis, rosadas, brancas - atapetando o chão e florindo-o.
Na aldeia me haviam dito que o concurso de hipismo seria a 1.° de novembro. Alertei Alvean:
- Restam-nos apenas três semanas. Vamos treinar também de manhã. Connan fora a Penzance. Kitty avisou-me, quando me trouxe água quente à tarde: - Parece que ficará lá uma semana ou mais.
Aquele homem enfadava-me. Não que eu pretendesse que êle me avisasse previamente da viagem: mas não lhe custaria nada descer de sua torre de marfim para ao menos dizer um até-logo à filha. Convenci-me de que não existia nenhum motivo para que eu me preocupasse com êle durante a sua ausência. E só isso já era um alívio.
O programa do concurso previa duas provas de salto para juvenis. Resolvi que Alvean participaria da mais simples. Tinha boas probabilidades de ganhar um prêmio.
- Veja, Miss Leigh! - cutucou-me. Alvean lendo o programa. - Há uma prova de saltos para adultos. Por que não concorrer ?
- Minha querida, não vim aqui para meter-me em competições.
- Pois eu vou inscrevê-la - anunciou com um olhar traquinas. - Ninguém aqui monta tão bem como a senhora.
- Discutiremos isso depois - repliquei, recorrendo ao meu velho chavão e assim matando uma discussão nada oportuna.
TROTANDO uma tarde nas cercanias de Mount Widden, demos com Peter Nansellock. Montava uma bela égua baia, que me pôs roxa de inveja.
- Que coincidência, prezadas senhoras! - gritou de longe. - Vieram visitar-me?
- Não, Mr, Nansellock - respondi.
- Perversas! Mas desde que estão aqui, não lhes resta senão entrar para esticar as pernas.
- Oh, vamos, Miss Leigh, por favor? - pediu Alvean.
Peter volteou a égua e juntou-se a nós. Notou que eu não despregava os olhos do animal:
- Gosta dela ?
- Claro. E uma formosura.
- És uma formosura sem par, não és, minha amuada Jacinth?
- Chama-se Jacinth?
- Garanto que está achando o nome lindo. Um lindo nome para uma linda criatura. Corre como o vento. Eqüivale a quatro dessa velha azêmola de tração que a senhora monta agora, Miss Leigh.
- Velha azêmola de tração! Dion é um excelente cavalo.
- Foi, Miss Leigh. Foi! Não suspeita que esse animal tenha conhecido melhores dias? Antes de ir-se, Miss Leigh, eu apreciaria que montasse um bocadinho em Jacinth. Ela lhe provará num minuto o que é um bom animal de sela.
- Estamos satisfeitas com os que temos - disse-lhe indelicadamente.
- Estamos praticando para o concurso hípico - contou-lhe Alvean.
- Concorrerei. Mas não diga nada a papai. E uma surpresa. E Miss Leigh participará também de uma das competições.
- Vencerá - acudiu Peter. - Apostarei nela.
- E apenas uma idéia de Alvean - argumentei sem muita disposição.
- A senhora tem de competir! - gritou Alvean. - Eu quero.
- Nós ambos queremos - ajudou Peter.
Chegamos a Mount Widden. Um criado levou os cavalos. Certifiquei-me, logo à primeira vista, que era uma casa menos tratada do que Mount Mellyn. Possuía um salão mais moderno do que o nosso, o chão era de mosaico, e uma ampla escada levava a uma galeria cheia de quadros a óleo. Não obstante era claramente perceptível o desleixo; eu quase diria - a decadência.
Peter tocou a campainha pedindo o chá. E introduziu-nos na biblioteca ampla e suja:
- Sentem-se, prezadas senhoras. Quero crer que o chá não demore, mas cumpre-me avisá-las de que não temos aqui, em matéria de serviço, a precisão desfrutada pelo nosso rival, o do outro lado da enseada.
- Rival? - perguntei surpreendida.
- Bem, como se evitaria uma certa rivalidade? Moramos um em frente ao outro. Mas é do lado de lá que estão todas as vantagens. Têm uma casa maior e os criados necessários. Seu pai, querida Alvean, é um homem de posses, Nós, os Nansellock, somos os primos pobres.
- Não somos seus primos - corrigiu Alvean.
- E não é curioso que não sejamos? Difícil de acreditar que, morando lado a lado durante gerações, as duas famílias não se tivessem caldeado. Por força existiram TreMellyns sedutoras e simpáticos Nansellock. Que lástima que não se casassem! E hoje aí temos a graciosa Alvean, cuja existência não podemos infelizmente corresponder com a de um rapaz da sua idade. Não importa. Eu esperarei que ela cresça.
Alvean explodiu numa gargalhada. Peter praticamente a hipnotizara. Talvez êle esteja falando mais a sério do que aparenta, matutei. Quando veio o chá, Peter dirigiu-se a mim:
- Miss Leigh, quer ter a bondade de servi-lo? - Acompanhou-me com o olhar até à mesa de chá. - Alegrou-me encontrá-las hoje. Não me resta muito tempo.
- Prevê que algo vá acontecer a algum de nós?
- Miss Leigh, vou partir - e encarou-me gravemente.
- Partir para onde, tio Peter? - quis saber Alvean.
- Para longe, minha filha. Para o outro lado do mundo.
- Mas para onde? - insistiu Alvean num fio de voz.
- Tenho um amigo na Austrália. Fez fortuna. Ouro! Pense no que isso significa, Alvean. Basta cavar o chão!
- Muitos partem na esperança de fazer fortuna - intrometi-me. - Mas todos voltam ricos?
- Eis uma mulher prática. Não, Miss Leigh, nem todos voltam ricos. Mas a palavra Esperança jamais desertará dos corações humanos.
- Eu não quero que o senhor vá embora, tio Peter.
- Obrigado, querida. Mas voltarei rico um dia. E no futuro todos dirão que foi Peter Nansellock quem salvou a família da miséria. Pois, prezadas senhoras, alguém terá de salvá-la, e já. Então construirei uma nova ala em Mount Widden.
Começou a idealizar a reconstrução da casa e o ajudamos nas conjeturas. Era um passatempo ameno. E eu me regozijava em sua companhia. No fim, levou-nos às cavalariças, fechando a questão para que eu montasse Jacinth. Obedeci. Era uma delícia de animal. E invejei Peter por possuí-lo.
- Está às suas ordens, Miss Leigh.
Peter acompanhou-nos a cavalo ao portão de Mount Mellyn. Já no quarto, Alvean comentou: - Tio Peter admira-a, não é, Miss Leigh?
- É apenas gentil comigo.
- Não é isso. Acho que êle a admira como admirava Miss Jansen.
- Miss Jansen ia tomar chá em Mount Widden ?
- Ia. Quando êle comprou a égua, pôs-lhe o nome de Jacinth porque assim também se chamava Miss Jansen.
- Deve tê-lo acabrunhado a partida dela - fiz eu, um tanto desapontada.
- Parece que ficou - respondeu meio pensativa. - Mas logo a esqueceu.
Eu sabia por que a esquecera: ela não passava de uma preceptora.
MAIS tarde Kitty avisou-me de que havia um recado para mim.
- E veio ainda outra coisa - ajuntou com uma risadinha. - No estábulo. Venha ver.
Era Jacinth, trazida por um cavalariço de Mount Widden. Estendeu-me um cartão. Li com Daisy e o velho Tapperty e Billy Trehay acompanhando a cena com expressão marota:
Prezada Miss Leigh,
Não conseguiu esconder a sua admiração por Jacinth. Sei que ela a retribui. Rogo-lhe que a aceite como um presente. Creia-me, Miss Leigh, seu vizinho e admirador,
Peter Nansellock
Fiquei constrangida. Tapperty disfarçou o riso. Como Peter pudera ser assim tão idiota? E como podia eu aceitar um presente daqueles?
- Tem resposta, miss? - perguntou o cavalariço.
- Tem - disse eu para ser bem ouvida. - Escreverei num instante. Com toda a dignidade de que fui capaz, dirigi-me ao quarto; escrevi apenas isto:
Prezado Mr. Nansellock.
Agradeço-lhe o excepcional presente que, naturalmente, não posso aceitar. Não tenho meios de sustentar um cavalo, e não posso por conseguinte ficar com Jacinth.
Sinceramente sua,
Martha Leigh
- Entregue este bilhete e Jacinth ao seu patrão - recomendei ao cavalariço, não sem notar o olhar de zombaria de Tapperty. Mr. Nansellock gosta de gracejar. - E fui para casa.
O DIA seguinte era sábado e Alvean pediu-me para irmos à charneca.
Sua tia-avó morava lá e nos acolheria. Seria aliás indicado sair um pouco; ainda mais porque, na casa, o assunto do dia estaria sendo eu e Peter Nansellock.
Saímos depois do café. A manhã era esplêndida para andar a cavalo, com um sol discreto de outubro e um brando vento sudoeste. Alvean acordara de excelente humor e o percurso na charneca resultou um bálsamo para mim. Encantei-me com os baixos muros de pedra, os seixos cinzentos e os regatos que serpeavam por entre eles. Recomendei a Alvean cuidado com os barrancos. Nem era necessária a recomendação, tal a cautela com que ela os evitava. Por isso não me preocupei muito.
A distância, apareceu a pitoresca Mansão da Charneca, como era conhecida a casa da tia-avó Clara. Um recanto amorável e aconchegado, nas fímbrias de uma povoação campestre. Como chegáramos sem aviso prévio, houve um grande rebuliço.
- O diabo me carregue se não é Miss Alvean! - gritou a idosa caseira. - E quem é essa moça que você trouxe, queridinha?
- Miss Leigh, minha preceptora.
- Muito bem! O papai também veio?
- Não. Papai foi a Penzance.
Talvez tivesse sido um erro meu aceder aos desejos de Alvean, invadindo daquela maneira a casa sem antes solicitar, permissão. Tolice. Fomos introduzidas numa sala onde a tia Clara, senhora muito simpática, se instalou numa poltrona; cabelos de neve, as faces muito coradas, o olhar acolhedor. Junto da anciã, uma bengala de ébano.
Alvean correu para ela e recebeu-lhe o caloroso abraço. Só aí aqueles vivos olhos azuis deram comigo:
- Então é a preceptora de Alvean, querida? Que boa idéia a sua, trazendo-a para visitar-me. Principalmente porque meu neto chegou e começa a aborrecer-me por não ter alguém de sua idade para brincar.
Não demorou o chá. Também não tardou o neto, menino simpático, pouco mais novo que Alvean. Saíram ambos para brincar. Tão pronto nos deixaram sós, percebi que tia Clara andava doida por um cavaco, talvez porque vivesse em solidão. Tinha uma conversa fluente. E falava em Alice com notável franqueza.
- Agora, diga-me: corre tudo a contento em Mount Mellyn? - indagou. Alcei as sobrancelhas assim como quem não está entendendo bem. - Foi um choque tremendo a morte de Alice - prosseguiu. - Uma tragédia dessas acontecer logo à menina! Porque ela era ainda quase uma menina. Penso neles, em Alice e em Geoffrey, à noite. E me culpo a mim mesma. - Fiquei estatelada. Uma anciã assim afável e comunicativa, incriminando-se pela infidelidade de Alice? - Ninguém tem o direito de intrometer-se na vida dos outros. Mas, assim fazendo, se alguém puder ser útil . . .
- É - concordei com firmeza. Se alguém puder ser útil, creio que é perdoável a intromissão.
- A questão é saber até que ponto alguém pode ser útil.
- Talvez fazendo o que julgue o melhor.
- Penso nela demais, na minha infeliz sobrinha. Era uma criatura muito meiga e, por assim dizer, não preparada para a crueldade do mundo. Vejo que a senhora, Miss Leigh, é muito bondosa para a pobre menina. Alice ficaria tão contente sabendo o que a senhora faz por essa criança . . . A última vez que vi Alvean, foi com Alice . . . com Connan. E nem por sombra parecia tão feliz como hoje.
- Alegro-me - interrompi, embora abominando cortar o fio daquela
exposição, da qual eu, quem sabe, extrairia algum novo indício sobre a sorte de Alice. - Mas a senhora falava-me na mãe de Alvean, e estou certa de que não tem culpa alguma.
- Gostaria muito de acreditar. Eu não devia importuná-la com isso, mas a senhora é tão simpática . . . E depois, cuida de Alvean como . . . como se fosse a mãe. Agradeço-lhe do fundo do coração, querida, pois há coisas neste mundo que não se podem comprar.
- Amor ... dedicação. -Fez uma pausa. -Alice morava comigo antes do seu casamento. Aqui nesta casa. Muito cômodo: são apenas poucas horas a cavalo até Mount Mellyn. E isso proporcionou aos dois jovens a oportunidade de se conhecerem.
- Quer dizer que não se conheciam?
- Acertou-se o casamento praticamente quando ambos ainda estavam em fraldas. Com o casamento, ela trouxe-lhe bens substanciais. O pai de Connan ainda vivia. E Connan não passava de um menino rebelde e incontrolável. A idéia era casá-los sem demora.
- E êle permitiu que contratassem o casamento à revelia ?
- Antes aceitavam a coisa com muita naturalidade. Ela ficou comigo muitos meses antes das bodas. Eu a amava ternamente.
- Muita gente a amou ternamente - aparteei pensando em Gilly. Tia Clara assentiu. A essa altura, irromperam na sala Alvean e o neto.
- Posso mostrar meus desenhos a Alvean? - pediu o menino.
- Pode - autorizou a avó. - Traga-os aqui para baixo. Talvez ela já se arrependera de ter falado além das medidas. Era, sem qualquer possibilidade de engano, uma dessas mulheres que jamais podem guardar um segredo. Para mim, tia Clara estivera a ponto de confidenciar-me algo importantíssimo.
ANDANDO pela aldeia, passei pela porta de uma pequena joalheria. Nenhuma jóia de alto preço, na vitrina; apenas uma coleção de broches de prata e anéis de ouro, alguns incrustados de pedras semipreciosas. Fácil presumir que toda a aldeia comprava ali as alianças de casamento e que o joalheiro ganhava a vida consertando jóias.
Na vitrina havia um broche de prata em forma de rebenque. Ocorreu-me comprá-lo para Alvean, à guisa de amuleto, para o dia do concurso. Entrei. Dera apenas uns dois ou três passos dentro da loja quando, sentado atrás do balcão, um velho de óculos me recebeu com ar inquiridor.
- Desejo ver o broche da vitrina. Aquele em forma de rebenque.
- Pois não, miss. Com todo o prazer. Mostro agora mesmo. Trouxe-me o broche, que comecei a examinar. Havia perto uma salva cheia de jóia com etiquetas; evidentemente recebidas para conserto. Esse era, por força, o joalheiro a quem Alice entregara o broche no mês de julho. Sorri, encorajando-o:
- O broche é para a minha aluna de Mount Mellyn - frisei.
- Ah! A meninazinha sem mãe. Comove saber que há agora uma pessoa bondosa como a senhora cuidando dela. - Tirou uma caixinha para o broche debaixo do balcão. - Não se vê muita gente de Mount Mellyn por aqui nestes tempos. Mrs TreMellyn vinha sempre. Via uma quinquilhariazinha na vitrina e logo a comprava, às vezes para uso pessoal, às vezes para presenteá-la a outros. Ora, veio aqui no próprio dia em que morreu!
- Verdade? - Eu ardia de impaciência.
- Estava um pouco triste,daquela vez - comentou o velho pondo o broche na caixa. - Perguntou-me: "Meu broche já está pronto, Mr Pastem? Janto amanhã com Lady Treslyn." - Olhou-me intrigado. - Era senhora muito franca. Julguei ter-me enganado quando ouvi dizer que ela abandonara o lar aquela noite.
- De fato, foi inexplicável.
- Compreenda, miss. Ela não tinha nenhuma necessidade de falar comigo sobre o jantar. Se tivesse dito a outra qualquer pessoa, ainda se poderia suspeitar que estivesse despistando. Mas comigo? Por que falou sobre o jantar comigo? Até hoje não sei.
- Talvez o senhor a entendesse mal.
Abanou negativamente a cabeça. Não, não se enganara. Não podia acreditar que se enganara. Nem eu acreditava, pois lera anotação semelhante no diário.
CELESTINE viera visitar Alvean. Escavamos de saída para a aula de equitação e ela foi conosco.
- Hoje faremos uma sabatina, Alvean. Tente antecipar a Miss Nansellock a surpresa que você reserva pára o papai.
Íamos praticar salto nas imediações da aldeia de Mellyn. Celestine mal podia crer nos progressos de Alvean:
- Mas a senhora fêz milagres, Miss Leigh! - disse ela.
- Confio em que isso agrade ao pai - falei, enquanto observávamos Alvean circundando o prado a meio galope. - Ela estreará no concurso hípico.
- Connan lhe ficará muito grato com toda a certeza, Miss Leigh. - Fitou-me, benevolente. - Ah, sim, Miss Leigh. Sobre o meu irmão Peter, eu queria mesmo falar a sós com a senhora. E a respeito de Jacinth. - Corei. - Soube que êle lhe presenteou a égua e que a senhora a devolveu por achar o presente uma liberalidade excessiva.
- Excessiva até mesmo para que eu a aceitasse. É muito dispendiosa para mim.
- É um avoado, sim. Mas é o homem mais generoso da terra. Receia tê-la ofendido.
- Diga-lhe, por gentileza, que êle não me ofendeu.
- Admira-a bastante, Miss Leigh. Houve porém uma outra razão para o presente: êle almejava deixar Jacinth entregue a boas mãos antes de sair da Inglaterra. É louco pela égua e considerou que ela ficaria perfeitamente bem com a senhora. Autoriza-me a pedir a Connan que acolha o animal nas suas cavalariças e o reserve para a senhora ?
- A senhora é magnânima, Miss Nansellock - disse eu com ênfase. - Mas eu não tenciono pleitear de Mr. TreMellyn favores de exceção.
Adiantando-se, ela me segurou a mão num gesto amigo. Tinha os olhos marejados. Emocionara-se com a minha situação e o meu empenho em conservar intacto o meu orgulho. Por isso Alice gostara tanto dela. Um dia desses, pensei, eu lhe conto o que deslindei sobre Alice. Mas ainda não será hoje.
CONNAN TREMELLYN regressou na véspera do concurso. Gostei de que não retornasse antes porque no íntimo eu temia que Alvean se traísse. Eu concordara finalmente em competir numa prova mista, para cavaleiros e amazonas. Tapperty nem queria ouvir-me falar em aprontar Dion para o concurso.
- Bolas, miss - lamuriava-se. - Por Deus, miss. Se a senhora aceitasse Jacinth agora ganharia o primeiro prêmio. O velho Dion é um bom animal, mas não um ganhador de prêmio. Que tal Royal Rover?
- E se Mr. TreMellyn se opuser? Tapperty piscou o olho.
- Coisa nenhuma. Não se opõe nada. Ele montará May Morning e o velho Royal estará livre. E nada fará o senhor mais bobo do que presenciar o seu cavalo levantar um prêmio.
Eu fremia por exibir-me diante de Connan TreMellyn. Por isso concordei de bom grado com a sugestão de Tapperty. Afinal, tratava-se do cavalariço-chefe.
Na noite anterior ao concurso presenteei o broche a Alvean:
- É para dar sorte.
- Dará! Eu sei que dará! - disse ela empolgada.
- Lembre-se, porém, de que a sorte só bafeja aqueles que fazem por merecê-la - preveni. E cantarolei a velha melodia que meu pai sempre nos repetia:
"A cabeça e o coração sempre para cima,
As mãos e os pés sempre para baixo."
- E quando saltar, não esqueça: salte com Prince.
- Não esquecerei.
A ansiedade tirou-lhe o sono. Sentei-me na beira da sua cama e li em voz alta o "Hiawatha" de Longfellow. Não conheço melhor narrativa para devolver-nos a paz de espírito. As palavras brotavam-me dos lábios, evocando a Alvean as florestas primitivas. Varreu do pensamento a competição, os receios, as esperanças. E foi fazer companhia ao pequeno Hiawatha ao pé do bom Nokomis. E acabou dormindo.
QUANDO acordei, a neblina penetrava no quarto. Fui à janela. Fiapos de névoa baloiçavam nas árvores. Será bom que o nevoeiro passe antes da tarde, pensei.
Mas o nevoeiro persistiu durante toda a manhã. A casa era toda confusão. A maioria dos criados iria também ao concurso; Billy Trehay e alguns cavalariços competiriam.
Após o almoço, Alvean e eu saímos; ela em Black Prince e eu no Royal Rower. Confortava vê-la montar um bom cavalo. E eu estava tão impaciente quanto Alvean.
O concurso realizava-se no grande prado das cercanias da igreja. Já encontramos toda a multidão lá. Apesar de já não haver quase nevoeiro, fazia um dia enfarruscado. Alvean e eu trocávamos idéias. Tão pronto chegamos, soubemos que a prova da qual eu participaria era uma das primeiras.
Connan, montando May Morning, chegou com os demais componentes do júri. A banda de música da aldeia atacou acordes tradicionais e todos se puseram de pé, cantando:
"E poderão menosprezar TrePol e Pen,
E poderá "Trelawny morrer?
Então vinte mil homens de Cornwall
Compreenderão o motivo."
Uma canção altiva, digna de um povo altivo. Reparei Gillyflower ao lado de Daisy, cantando também. ,
- Que um raio me fulmine se não é Miss Leigh! - bradou alguém. Virei-me. Era Peter, montando Jacinth.
- Não me diga que a senhora e eu competiremos na mesma prova - disse ao ler o número afixado nas minhas costas.
- Então estou perdida. Não posso esperar nada com Jacinth.
- E pensar que a senhora podia estar montando-a agora, Miss Leigh!
- Devia estar louco para fazer o que fêz. Todo mundo comentou nas cavalariças.
- Quem se preocupa com a opinião de cavalariços?
- Eu. Uma preceptora deve preocupar-se com a opinião de todos. - Não está fazendo prova do seu celebrado equilíbrio - retrucou. - A senhora não é uma preceptora comum.
- Tome isto como quiser, Mr. Nansellock - disse-lhe com uma ponta de ironia; - tenho a impressão de que para o senhor nenhuma preceptora é comum.
E larguei-o falando sozinho.
Peter iniciou a prova antes de mim, talhados num só bloco, ele e Jacinth.
- Que perfeição! - aplaudi alto, contemplando-os saltar com elegância e perfeição. Quem não faria prodígios montando um animal assim?
Uma tempestade de aplausos premiou-os. Enxerguei Connan no Júri e murmurei:
- Royal Rover, ajude-me. Vença Jacinth. Quero mostrar a Connan TreMellyn que pelo menos alguma coisa eu faço bem. Vamos, Rover! Os dois havemos de conseguir!
Iniciamos os saltos com tanto garbo, pareceu-me, quanto Jacinth. Ouvi estourarem palmas ao concluirmos a prova. Anunciou-se a classificação:
- Houve um empate - comunicou Connan em voz alta. - Os dois competidores ganharam as mesmas notas. O cavaleiro e a amazona. Miss Martha Leigh montando Royal Rover e Mr. Peter Nansellock montando Jacinth.
Trotamos para receber os prêmios.
- O primeiro é uma taça de prata - informou Connan. - Na impossibilidade de dividi-la, a amazona fica com a taça e o cavaleiro com uma colher de prata. Consolação por haver empatado com uma amazona.
Connan sorriu ao entregar-me a taça:
- Boa prova, Miss Leigh. Eu ignorava que alguém fosse capaz de obter tanto de Royal Rover.
- As honras cabem exclusivamente a ele - respondi afagando o cavalo;
- Quando ajeitar suas rosas na taça - falou Peter ao nos afastarmos - jamais deixará de pensar: parte desta taça pertence àquele homem . . .
Como é mesmo o nome dele? Sempre foi uma criatura encantadora comigo. Mas sempre o tratei com rispidez.
- Raramente esqueço dos nomes das pessoas.
- Há um remédio para o nosso caso. Moremos juntos. A taça ocupará um lugar de honra. É nossa, diremos. E ambos ficaríamos felizes com isso.
- Em compensação não ficaríamos nada felizes com o resto - explodi, irritada com a presunção dele.
E mais uma vez dei-lhe as costas.
Eu queria estar perto do estrado dos juízes quando Alvean aparecesse só para ver a cara de Connan quando a filha ganhasse o prêmio - o que certamente ela ganharia, pois trabalhara duro.
Começou a prova de saltos para a categoria infantil. Aguardei aflita a vez da categoria de Alvean, seguindo com atenção as outras meninazinhas e garotos competirem. Mas Alvean não aparecia. A competição infantil terminou, veio a classificação e eu mergulhei em desespero. Ela caíra em pânico no último instante!
Distribuíam os prêmios. Saí à procura de Alvean. Não consegui encontrá-la. Quando principiou a competição para os juvenis, tive o pressentimento de que a menina fora para casa. Devia estar moralmente abatida ao extremo porque perdera a coragem no instante crítico. Nunca desejei tanto encontrá-la e confortá-la. Corri sem parar a Mount Mellyn. Dei uma escovadela rápida em Royal Rover e entrei. Tudo era silêncio; todos, exceto Mrs. Polgrey, estavam na festa. Fui ao meu quarto, chamando Alvean.
Nada. Precipitei-me pela sala de aula, segui para o quarto dela. Ninguém. Quem sabe não chegara ainda? Na janela, deixei-me ficar indecisa sobre o que fazer; até pensei que ela pudesse ter voltado para o local do concurso. Mas havia alguém no quarto de Alice! Não sei como percebi. Talvez apenas por uma sombra nos estores.
Não titubeei mais: corri pelo corredor até o quarto de vestir. Escancarei a porta:
- Quem está aí?
Ninguém. Mas, num abrir e fechar de olhos, vi que fora fechada a porta que dava para a alcova.
Palpitou-me que seria Alvean; ela precisava de mim. Abri a derradeira porta e não demorei a descobrir que entrara no quarto de Connan: sua gaveta pendia da cômoda; eram dele o roupão e os chinelos. Eu estava no antipático papel de uma intrometida. E contudo alguém me precedera ali minutos antes. Não fora Connan, por certo. Então, quem?
Atravessei a alcova, puxei a porta e dei com o corredor.
Deserto.
Quem fora ao quarto de Alice ? E que direito me assistia de andar bisbilhotando ?
- Alice! - chamei alto. - É você, Alice.
Acabei descendo para as cavalariças. Decidi voltar à festa para localizar Alvean. Já selara Royal Rover e me pusera a caminho, quando vi Billy Trehay na carreira.
- Deus, miss! Houve um acidente medonho! Miss Alvean levou uma queda ao saltar um obstáculo.
- Mas ela não estava inscrita na prova de saltos - gritei.
- Estava sim. Na categoria adiantada. Era o salto maior. Prince refugou, caiu, ela caiu e . . .
Perdi o controle. Cobri o rosto e soltei um grito lancinante.
- Contenha-se, miss! Estão-nos olhando. Ela continua sem sentidos no chão. Estão com medo de carregá-la. Esperam o Dr. Pengelly. Parece que ela fraturou qualquer coisa.
Toquei-me para a aldeia à toda. Ia rezando e lamentando.
- Bom Deus, salvai-a. Oh, Alvean, sua bobinha. Bastava participar da prova de pequenos obstáculos. Isso o teria alegrado do mesmo jeito! Foi culpa dele! Se fosse um pai mais amoroso, nada teria acontecido.
Jamais me saíra da memória o que vi no prado: Alvean inconsciente, estendida na relva, cercada de uma porção de gente. Haviam cancelado todas as outras provas.
- Miss Leigh - disse Connan, com o rosto grave - foi bom ter vindo. Alvean ...
Nem me dignei a ouvi-lo. Ajoelhei-me junto da menina.
- Alvean, queridinha. . .
Voltara a si. Abriu os olhos. Já não era a minha alunazinha arrogante; era apenas uma criança desamparada e ferida.
- Não se vá - implorou-me.
- Não vou não. Vou ficar aqui com você.
- Mas antes a senhora foi embora - balbuciou com uma voz fraca que tive de inclinar-me até quase à sua boca a fim de ouvi-la.
Compreendi que ela não falava com Martha Leigh, a preceptora. Falava com Alice.
CAPÍTULO 6
O DR. PENGELLY diagnosticara fratura da tíbia mas não pôde dizer se havia mais alguma coisa. Engessou a fratura e transportou Alvean para Mount Mellyn na sua própria carruagem. Connan e eu seguimos atrás em silêncio.
Depois de ministrar a Alvean um sedativo, o médico veio falar conosco.
- Volto mais tarde. A menina encontra-se em estado de choque. Mantenham-na coberta e deixem-na dormir à vontade. Daqui a horas poderei fornecer o diagnóstico definitivo.
- Venha à sala do ponche - convidou-me Connan assim que o médico saiu. - Venha, imploro-lhe. - Atendi. - Não nos aflijamos, Miss Leigh - aconselhou êle.
- Talvez seja mais fácil para o senhor não se afligir, Mr. TreMellyn, mas eu tenho minhas obrigações com ela - disse-lhe com raiva.
- O que teria induzido essa menina a isso?
- O senhor. Só o senhor!
- Eu? Mas eu não tinha a menor idéia de que ela já estivesse tão adiantada em hipismo.
Meus nervos estavam à flor da pele. Seria capaz de jurar que Alvean se magoara gravemente. Eu errara ao querer que ela vencesse a sua idiossincrasia pela equitação para, em meu próprio proveito, captar-lhe a simpatia com um triunfo que desmentisse o pai. Por que me metera eu nas vidas daquela gente ? Por que me arrogara o direito de modificar Alvean, de modificar-lhe o pai ? Mesmo assim, não me cabia toda a responsabilidade. A Connan cabia boa parte dela.
Fiquei inteiramente fora de mim. E, nas raras ocasiões em que isso sucede a pessoas como eu, as conseqüências são sempre piores do que naqueles que assim procedem por hábito.
- Não! - gritei-lhe. - Claro que o senhor não tinha a menor idéia. Como teria tido, se não dá a menor atenção a essa criança ? É isso, é essa indiferença paterna que a modifica. E foi só por isso que ela tentou alguma coisa além das suas forças e da sua capacidade.
- Prezada Miss Leigh! - Ele estava completamente desnorteado.
- Quando aqui cheguei - berrei-lhe na cara, partindo do princípio de que, desde que eu malograra com Alvean, nada mais importava - logo entendi tudo. Essa pobre criança sem mãe era uma esbulhada de amor e de afeição pelo próprio pai. Esbulhada a tal ponto, que não titubearia em arriscar a própria vida para ganhá-los. Exercitou-se para competir, semanas a fio, só para dar uma surpresa ao senhor.
- Compreendo - fêz com ternura. E tirando o lenço enxugou-me os olhos: - Miss Leigh, a senhora está chorando.
- Chorando de ódio - retruquei, arrebatando-lhe o lenço com um repelão e enxugando as lágrimas eu mesma.
- E de tristeza. Prezada Miss Leigh, a senhora tem sido uma santa para Alvean. Eu tenho-me portado como um vilão com ela.
- Como pode? Não tem nenhum.sentimento? A sua filha, órfã de mãe! Não compreende.que justamente porque perdeu a mãe ela precisa muito mais do senhor?
Ele me deixou boquiaberta:
- Miss Leigh. A senhora veio para ensinar apenas a Alvean. Mas fui eu quem aprendeu uma série de coisas.
Encarei-o, perplexa. Celestine entrou:
- Que tragédia aconteceu aqui, meu Deus - exclamou aflitíssima.
- Houve um acidente, Celeste. Alvean caiu do cavalo.
- Oh, não! - gritou Celestine horrorizada.
- Ela está no quarto - explicou Connan. - Pengelly engessou-lhe a perna. Voltará daqui a pouco.
- É muito grave? - perguntou.
- Ele ainda não sabe. Tenho experiência desses acidentes; ela ficará boa.
Não descobri se êle falava com uma confiança real ou se apenas acalmava Celestine. Ela ama Alvean como uma filha, pensei. E aumentou minha simpatia por ela.
- A pobre Miss Leigh ficou muito aflita - observou Connan. - Atribui-se a culpa. Mas não tem a menor responsabilidade no caso.
Minha culpa! Não resisti:
- Alvean queria tanto impressionar o pai que se meteu em coisa superior às suas forças - atalhei-o, ácida. Celestine derrubou-se numa cadeira, o rosto entre as mãos. - Vou para o quarto - concluí, olhando de esguelha para a minha roupa, o traje de Alice. - Vou trocar de roupa.
- Volte - pediu Connan. - Podemos consolar-nos mutuamente. Além disso, desejo que esteja presente quando o médico vier.
No quarto, despi o trajo de equitação de Alice, metendo-me no meu como sempre sóbrio vestido. Emprestava-me o ar de uma preceptora mesmo. Todavia, também me ajudou a recobrar o ânimo. Abotoando-me, recordei o que eu dissera, na explosão de raiva, a Connan TreMellyn. Meu espelho refletiu uma face crispada, uns lábios trêmulos de horror.
Lavei o rosto. Só então fui ter com Connan e Celestine.
O MEDICO demorava séculos. Mrs. Polgrey preparou um bule de chá forte. Connan, Celestine e eu sentamos para bebê-lo. Connan não deixava transparecer qualquer indício de lembrar-se da minha explosão. Tratava-me com uma gentileza e uma consideração fora do comum. Estaria talvez tentando certificar-se se a razão pela qual eu o increpara assim tão violentamente não se devia a um complexo de culpa.
- Alvean ficará boa - disse. - E logo vai querer montar outra vez. Quando eu era pouco mais velho do que ela, sofri acidente muito pior. Ninguém diria que eu voltaria a montar.
- Não terei mais paz se ela tornar a montar - disse Celestine com a voz entrecortada.
- Celestine, não se deve mimar demais as crianças. A especialista aqui presente não concorda? - E fitou-me.
Imaginei que fosse um meio de nos animar e respondi:
- Não se deve mimar. Mas se as crianças não gostam de alguma coisa, creio que não se deve forçá-las. Os dotes de Alvean, por exemplo, podem ser outros que não o esporte hípico. Tem grande talento artístico e desenha muito bem. Aliás, Mr. TreMellyn: desde algum tempo eu vinha tencionando mesmo pedir-lhe autorização para incluir no programa escolar de Alvean umas aulas de desenho. - O silêncio fêz-se tenso; para mim se afigurava inexplicável a perplexidade de ambos. Insisti: - Tenho certeza de que ela possui um grande talento artístico e seria uma pena não aproveitá-lo.
- Miss Leigh - argumentou Connan impassível. - A senhora foi contratada para educar minha filha. Que necessidade temos de contratar mais professores?
- Porque - repliquei-lhe arrebatadamente - ela tem talento. Sou uma preceptora, Mr. TreMellyn. Não sou uma artista.
- Cuidaremos do assunto noutra ocasião - retrucou carrancudo. O médico veio afinal. Aguardei no corredor com Celestine, enquanto
Connan entrava para ver Alvean. Milhões de tragédias perpassavam-me a alma. Ela podia já ter morrido . . . Depois apavorou-me a possibilidade de a menina ficar aleijada para o resto da vida, inutilizada e infeliz, a coitadinha. - Essa espera me enerva - queixou-se Celestine. - Se lhe acontecer o pior - Umedeceu os lábios e tive uma vontade imensa de abraçá-la.
O Dr. Pengelly surgiu, sorridente:
- Afora a fratura - comunicou - nada de maior importância.
- Graças, meu Deus! - gritamos Celestine e eu a um tempo.
- Daqui a um dia ou dois se sentirá melhor. Fraturas em crianças soldam-se sem dificuldade. Não se preocupem, senhoras.
- Podemos vê-la? - pediu Celestine.
- Podem. Ela já chama por Miss Leigh.
No quarto, Connan cismava em pé, na beira da cama. Não era bom o aspecto de Alvean. Dirigiu-nos um sorriso lânguido:
- Alô, miss. Alô, tia Celestine.
Celestine ajoelhou-se perto da cama e beijou-lhe a mão.
- Seu pai está orgulhoso de você - falei.
- Ele me deve achar uma boba.
- Não acha - atalhei com veemência. - Orgulha-se de você. Disse-me que não teve nenhuma importância você perder. Disse também que o importante foi você competir. Vencerá da próxima vez.
- Ele disse mesmo? Disse mesmo?
- Disse - animei-a embora um tanto agastada com o silêncio dele.
- Você foi ótima, Alvean. Estou orgulhoso de você - disse ele. Agradeceu-lhe com um sorriso débil e pediu:
- Não se vá, Miss Leigh. Fique só a senhora.
Ajoelhei-me também e afaguei-lhe as mãos. De novo me derramei em lágrimas.
- Ficarei, Alvean. Ficarei com você para sempre. - Meus olhos se encontraram com os de Celestine e os de Connan. Corrigi: - Ficarei enquanto me quiserem.
Alvean sossegou.
DEIXAMO-LA dormindo e fomos para a biblioteca receber instruções do médico.
- Virei diariamente - disse Celestine. - Acho até, Connan, que seria melhor eu permanecer aqui enquanto ela estiver doente. Talvez contribua para fazê-la sarar.
- As senhoras arranjem tudo - recomendou o Dr. Pengelly. - Distraiam sempre a criança enquanto a fratura se consolida. - E deu por encerrada a sua parte.
Connan declarou a Celestine não haver necessidade de sua, permanência. A seu ver, Misse Leigh poderia arcar com toda a tarefa, conquanto para Miss Leigh evidentemente representasse um sossego saber que, em qualquer emergência, podia contar com Celestine.
- Bem, Connan - respondeu Celestine. - Talvez seja a melhor solução. Há sempre comentários. Sobretudo se eu ficar . . . Essa gente é tão maldosa! Vive a inventar coisas sobre a vida dos outros.
- Como conseguiu chegar até aqui, Celeste? - indagou Connan ainda a rir.
- Vim em Speller.
- Acompanharei você até em casa. - E para mim: - A senhora está exausta, Miss Leigh. Aconselho-a a repousar.
Mas eu já sabia que não dormiria. Era uma dedução implícita na minha cara. Tanto que o médico interveio:
- Vou-lhe dar um calmante, Miss Leigh. Com êle, dormirá bem. Agradeci penhorada porque de fato estava exausta.
No QUARTO havia um prato de sopa à minha espera. Não tive apetite. Já me dispunha a tomar o calmante e a enfiar-me na cama, quando, bateram. Era Mrs. Polgrey.
- Que coisa terrível - iniciou apreensiva.
- O médico informou que ela ficará boa.
- Sim, eu sei. Mas é Gilly que me preocupa. Ela ainda não voltou do concurso, Miss. Não a vejo desde a tardinha.
- Andará perambulando por aí.
- Não entendo por que ela foi à festa, miss. Tem medo até da proximidade dos cavalos. E essa demora ...
- Já procurou na casa?
- Já. Esquadrinhamos tudo.
- Vou ajudar.
E assim, em lugar de dormir, juntei-me à busca de Gilly.
Que diabo lhe acontecera? Teria ido vaguear na praia e acabara arrastada pelas ondas ? Ora, por certo fora apenas perambular e caíra dormindo em algum ponto. Fui à praia.
- Gilly! Gilly!
O nevoeiro, que reincidira com a aproxiamção da noite, colheu minha voz e abafou-a como se a amordaçasse num chumaço de algodão. Enveredei pelo bosque, pressentindo que se escondera ali: estaria apenas escondida.
Acertei. Estendera-se ao comprido numa clareira nos abetos. Já a vira ali antes uma ou duas vezes. Transformara aquele recanto no seu paraíso particular.
- Gilly!
Ergueu-se num salto, pronta para fugir. Hesitou ao reconhecer-me.
- Gilly. Está tudo bem. Vim sozinha e não castigarei você. - Seus lindos cabelos brancos caíam-lhe em ondas sobre os ombros. - Ora, Gilly, você acabará pegando um resfriado deitada nessa relva úmida. - Pelos seus olhos deduzi que fora o medo que a impelira para aquele refúgio. - Gilly. Somos amigas, não somos? Você sabe que somos. Sou sua amiga como a senhora era.
Fêz que sim. E o pavor largou-a. Pus meu braço em torno dela; tinha o vestido molhado e olhava-me com as sobrancelhas quase brancas pero-ladas de orvalho.
- Venha, Gilly. Voltemos. Sua avó aflige-se por você. - Prontificou-se a obedecer. - Você foi à festa hoje?
Estreitou-se a mim, calada, enfiando a cabeça no meu vestido e torcendo-o entre as mãos. Era claro: aquela criança, a exemplo de Alvean, devotava verdadeiro horror a cavalos. Explicável - um deles quase a matara. O impacto do acidente sofrido persistia ainda nela sem que jamais a menina houvesse encontrado quem se dispusesse a varrer-lhe o trauma. Testemunhara a queda de Alvean sob as patas de um cavalo, naquele mesmo dia, e incontestàvelmente associara esse acidente ao que ela própria sofrerá aos quatro anos.
Por entre o bosque nevoento, tornei-me em uma mulher com uma missão a cumprir. Abracei-a com força. Mal acabara de fazê-lo, quando escutei um tropel de cascos no chão:
- Olá! - gritei. - Acabo de encontrá-la. Venham.
- Estou aqui, Miss Leigh.
Meu coração bateu descompassado porque reconheci a voz de Connan. Informado do desaparecimento de Gilly, ajudara a busca. Assim que êle se fêz visível montado em May Morning, Gilly apertou-se contra mim, tremendo.
- Ela está aqui. Completamente exausta. Leve-a na sela.
- Não! Não! - apavorou-se a menina quando êle se abaixou da sela para erguê-la.
- Gilly, irei andando ao seu lado, segurando a sua mão - tranqüilizei-a. - Esta é May Morning. Ela quer que você a monte porque sabe que você está cansada. - Examinou medrosamente a égua, o que robusteceu minhas deduções. - Leve-a - pedi a Connan, ajudando-o a levantá-la. Ele a acomodou no colo. - Aí você não corre perigo - continuei. - A cavalo, poderá ir mais depressa para a sua caminha quente e boa.
Daí por diante a menina não opôs resistência. Mas manteve a mão apertada à minha.
Assim terminou aquele dia de desgraça. Quando Gilly se viu transferida do cavalo para os braços da avó, Connan brindou-me com um sorriso de carinho infinito. Como por encanto desaparecera dele o tique zombeteiro que até ali era uma constante. Subi para o quarto, alegre como um passarinho.
Também não era segredo o que se passara comigo. Aquele dia esclareceu tudo além da expectativa; eu incidira numa idiotice - talvez a mais idiota de toda a minha vida: apaixonara-me. E me apaixonara por uma criatura inteiramente à parte de meu mundo. Amava o senhor de Mount Mellyn. E um sexto sentido me dizia que êle sabia.
Fechei a porta, despi-me e tomei o calmante dado pelo Dr. Pengelly. Antes de ir para a cama, analisei-me com ar crítico, na minha camisola de algodão, formalíssima. Ridicularizei então os meus pensamentos, dizendo em voz alta, no melhor figurino de preceptora: depois de um bom sono, pela manhã você acordará em seu juízo perfeito.
FORAM de extrema felicidade as semanas que se sucederam. As mais felizes que eu passei em Mount Mellyn. Todos já se haviam convencido de que Alvean não inspirava maiores cuidados. Não perdera nem um bocadinho do seu entusiasmo pela equitação e me bombardeava com perguntas a propósito dos ferimentos de Black Prince, não se cansando de anunciar que voltaria a montar logo que sarasse.
Gostosamente na primeira semana de sua doença, retomamos as lições orais. Também lhe ensinei xadrez, que assimilou com assombrosa rapidez. Tanto que, se eu cochilava no jogo e perdia a rainha, não demorava a dar-me o xeque-mate.
Não era, porém, só o progresso de Alvean que me tornava tão feliz; era a presença de Connan em casa. E não me passou despercebido o fato de que, embora ele não tivesse feito qualquer referência à minha mal-criação - no dia do acidente, já aparecia no quarto de Alvean a miúdo, sobraçando livros e jogos para ela.
- Mais do que os presentes que lhe traz - dissera-lhe eu - o que ela mais aprecia é a sua companhia.
- Que boba! Preferir-me a um livro ou a um jogo.
Sorri-lhe e êle sorriu-me. E novamente verifiquei que o seu traço irônico acabara.
Não raro, vinha sentar-se para acompanhar a nossa partida de xadrez. Torcia por Alvean.
- Atenção, Alvean. Ponha o bispo ali, isso abre uma brecha na defesa de nossa prezada Miss Leigh!
Alvean disfarçava o riso e eu me sentia tão compensada que, por falta
de atenção, terminava perdendo a partida. Mas não perdia todas as partidas. Pois entre Connan e eu havia também uma partida em processo.
- Quando Alvean puder andar, faremos um piquenique em Fowey - anunciou certo dia.
- Por que ir tão longe se temos uma praia esplêndida para piqueni-ques aqui?
- Prezada Miss Leigh (já era um hábito nele isso de chamar-me de prezada), sabe que as praias alheias são sempre melhores do que nossas?
Alvean agitou-se tanto com a promessa do piquenique que naquele dia raspou o prato sem protestar. O Dr. Pengelly não ocultava o seu contentamento pela sua franca recuperação.
- O senhor foi o melhor remédio - observei a Connan. - Fê-la feliz porque demonstrou preocupar-se com ela.
Teve um gesto imprevisível: prendeu-me a mão e beijou-me de leve o rosto. Um beijo bem diferente daquele outro, na noite do baile. O de agora era terno, sem maldade, afetuoso.
- Foi a senhora, não eu, a principal razão da cura de Alvean, minha prezada Miss Leigh.
Aprontei-me para o resto. Todavia, calou-se e saiu abruptamente.
Eu não esquecera Gilly. Iria lutar por ela tal qual já lutara por Alvean. E resolvi também comunicar isso a Connan, aproveitando a sua boa disposição de espírito. Procurei-o de manhã na sala do ponche. Pedi paia falar-lhe.
- Sou todo ouvidos.
- Quero colaborar com Gilly - iniciei, abordando logo o principal. - Não creio que ela seja retardada mental. Conheço a história do acidente. Mas sei também que antes ela era uma criança perfeitamente normal. Não concorda ser possível recuperá-la? .
- Acho que o que Miss Leigh quiser, Deus também quer - frisou
agora sim com aquele mesmo traço de zombaria boiando nas retinas.
- O essencial é a sua permissão - prossegui, fingindo não ver a provocação. - Peço que me autorize a cuidar dela. Poderia ensiná-la nas minhas horas de folga.
- Se eu proibisse a senhora logo encontraria um meio de furtar-se à proibição. Mais simples então é não proibir. Desejo-lhe sucesso.
- Agradeço-lhe.
- Miss Leigh - chamou quando eu já ia saindo. - Iremos breve àquele piquenique. Posso levar e tirar Alvean da carruagem.
- Seria ótimo, Mr. TreMellyn. Aviso-a agora mesmo. Ficará contentíssima.
- E a senhora, Miss Leigh, também ficará contente?
Julguei que ia beijar-me. E eu sabia que, ao contacto dele, de suas mãos no meu ombro, minhas resistências ruiriam. Por isso escapei pela tangente, desestimulando-o:
- Tudo que alegre Alvean, também me alegra, Mr. TreMellyn.
E ASSIM foram-se as semanas - agradáveis, feiticeiras. Tinha medo que jamais se repetissem.
Na sala de aula esforcei-me por ensinar a Gilly as primeiras letras. Ela gostou das figuras do livro e deixou-se absorver inteiramente. Comparecia às aulas com pontualidade. E já pronunciava uma ou outra palavra. Toda a criadagem acompanhava-nos com indiscutível interesse. Mas também era indiscutível que, quando Alvean reiniciasse os estudos na sala, dificuldades sobreviriam em face de sua aversão a Gilly.
Muita gente veio visitar Alvean. Celestine, todos os dias. Peter, galante e galhofeiro, sempre bem acolhido pela menina. Lady Treslyn trazia livros caros e flores; Alvean recebia-a emburrada.
- Ela está doente e daí o seu mau-humor - justificava eu.
O sorriso de agradecimento de Lady Treslyn arrebataria até um frade de pedra.
- Claro que compreendo - falava Lady Treslyn. - Pobre criança! Mr. TreMellyn contou-me que a senhora tem sido um tesouro nesta casa. E eu lhe respondi que ele teve muita sorte em encontrar tal tesouro. Aliás, disse-lhe, textualmente: "Tesouros assim não são fáceis de encontrar." E lembrei-lhe de como eu perdi a minha cozinheira. Ela também era um tesouro.
Baixei a cabeça num ódio mortal. Não porque me houvesse comparado à sua cozinheira e sim por Mr. TreMellyn. Ele parecia outro quando ela chegava. Nem me ligava. Eu os ouvia rir. E me enraivecia só em pensar no que os fazia rir.
Que tola eu era! Alimentando esperanças que não me atreveria a confessar de público.
Uma ocasião Celestine sugeriu que Alvean passasse o dia com ela em Mount Widden.
- Você, Connan, vai jantar e a traz de volta.
Ele aceitou. Mordi-me de despeito porque não me estenderam o convite; o que demonstrou à saciedade que ilusões eu me permitira nas últimas semanas. Critiquei a minha estupidez. Era como acordar para uma manhã sombria depois de acreditar que durariam pela eternidade os dias de sol.
CONNAN levou Alvean na carruagem e eu fiquei sozinha e ao léu. Tive uma idéia: aproveitaria para um passeio a cavalo na charneca. Veio-me à lembrança a tia Clara; e fustigou-me novamente o mistério da morte de Alice que eu esquecera totalmente naquelas semanas agradáveis. Tia Clara gostaria de saber notícias de Alvean. De resto, ele me tratara com a maior afabilidade e até insistira em que eu a visitasse sempre que quisesse.
- Alvean estará ausente todo o dia - preveni Mrs. Polgrey. - Vou tirar um dia para descansar.
Mrs. Polgrey demonstrava-se muito minha amiga desde que eu externara interesse por Gilly; amava devotadamente a criança.
- E ninguém merece mais um dia de descanso - comentou. - Onde pretende ir?
- Talvez à charneca.
- Não será imprudência ir sozinha, miss? Há pântanos e o nevoeiro. E às vezes gnomos.
- Gnomos? Ora essa!
- Não ria, miss. Eles detestam gente que os ridiculariza.
- Serei prudente, Mrs. Polgrey. E se encontrar algum gnomo no caminho serei também muito polida. Não tenha cuidado.
Nas cavalariças, indaguei de Tapperty que animal eu podia montar. Não sem comunicar-lhe que era para ir à charneca.
- May Morning. Está livre hoje. Leva companhia, miss? - E riu malicioso.
Disse-lhe que iria só. Nem por sombra acreditou. Zanguei-me porque supus que êle estivesse pensando em Peter Nansellock. Depois, quem me diria que a minha crescente amizade com Connan não principiasse a ser comentada? Detestei a idéia. Mesmo que isso não me agradasse, eu ainda toleraria insinuações malévolas a propósito de Peter e de mim; porém, seria bem diferente se começassem a falar de mim e de Connan.
Puxei May Morning do estábulo. Indo para a aldeia, olhei sobre a enseada para Mount Widden. E desejei muito encontrar Connan de volta. Claro que não encontrei. E no entanto continuei a desejar até que transpus a aldeia e atingi o primeiro muro cinzento e as primeiras penedias da charneca. Fazia uma daquelas manhãs ofuscantes de dezembro. Manchas douradas de tojos se derramavam pela charneca. Do chão turfoso subia um cheiro bom. Soprava um vento fresco e brincalhão.
Galopei pela charneca, o vento batendo-me no rosto; sonhava com Connan correndo atrás de mim. Nessa região tão fantástica não constituiria um pecado sonhar nos braços da fantasia. Muitos acreditavam em gnomos ali. Por que não podia então eu acreditar que Connan me amasse?
Alcancei ao meio-dia a Casa da Charneca. A caseira recebeu-me e foi comigo à sala de estar de tia Clara.
- Ora viva, Miss Leigh! Veio sozinha?
Narrei-lhe o acidente de Alvean e tranqüilizei-a com a notícia de que a menina não tardaria em curar-se.
- Deve estar precisando de um estimulnate, Miss Leigh - disse tia Clara. - Um copo do meu vinho de sabugueiro. Almoça conosco?
Aceitei desvanecida. E regalei-me com o almoço: assado de carneiro regado a molho de alcaparra e - excelente. Da mesa fomos à sala de estar para o que ela batizou de "um cavaco". Era justamente o que mais eu ambicionava e, na verdade, a conversa não me desiludiu.
- Conte-me como vai a minha querida Alvean. Já é mais feliz?
- O pai tem sido muito atencioso com ela desde o acidente.
- Ah! O pai...
Pespegou-me um olhar porta-voz de sua malícia. Não resistia ao prazer de um mexerico. Decidi-me estimulá-la ainda mais.
- No meu entender o casal não se dava muito bem - disse-lhe. Houve uma pausa, que ela cortou de um fôlego:
- Não. E era inevitável - confidenciou, enquanto toda tensa eu a escutava. - Culpei a mim mesma - e olhou-me como se não me visse e sim ao passado redivivo. Alice ficou comigo depois do noivado. Então tudo podia ter sido diferente. O caso é que eu a persuadi de que ele era o melhor partido. - Temerosa de atalhar-lhe as confidencias, não me atrevi a pedir-lhe que elucidasse melhor esse ponto; e ela foi avante: - Pergunto-me ainda hoje o que teria sido se ela houvesse escolhido o outro. Conhece esse joguinho de faz-de-conta, Miss Leigh? Nunca se distraiu intimamente em indagar-se por exemplo: "Se eu tivesse feito isto e não aquilo, ou aquilo e não isto, como seria hoje minha vida?"
- Todo mundo faz isso. Acredita então que as coisas se teriam passado de modo diverso para a sua sobrinha?
- Para Alice, sim. Mais do que para os outros. Ela estava numa encruzilhada. Seguindo numa direção, teria uma vida assim. Seguindo a outra, eis tudo de pernas para o ar. Se tomasse a direita em lugar da esquerda, talvez hoje ainda estivesse aqui. Pois se casasse com Geoffrey, nenhuma necessidade haveria de fugir mais tarde com êle, não é lógico?
- A senhora gostava muito de sua sobrinha, não gostava?
- Muitíssimo. Só tive filhos homens e sempre desejei uma menina. Quis vê-la casada com um dos meus filhos. Morávamos então em Penzance, perto dos pais de Alice. O pai dela morreu e a mãe, minha irmã, sempre teve uma queda pelo Connan TreMellyn. O mais velho, quero dizer. Através dos séculos, houve sempre um Connan na família. Tenho a impressão de que minha irmã quis casar com o pai desse Connan que a senhora conhece agora. Mas as famílias arranjaram outros partidos para ele e para ela. Daí porque combinaram depois casar os seus filhos um com o outro, a título de compensação. Assim, desde os vinte anos de Connan e os dezoito de Alice, ficaram eles mutuamente prometidos. O casamento devia realizar-se um ano mais tarde. No meio tempo, acharam uma ótima idéia que Alice permanecesse comigo, uma vez que eu moro a um pulo de Mount Mellyn.
- E naturalmente Mr. TreMellyn vinha vê-la com freqüência.
- Vinha. Mas não com a freqüência que eu desejava. Comecei a suspeitar que eles não estavam tão unidos quanto o destino parecia querer uni-los.
- E Alice ? Que espécie de moça era ?
- Como explicar? Um coração estouvado, uma cabeça estouvada. Não quero dizer que possuísse também a moral estouvada. Se bem que depois do que houve . . . Mas quem se pode arvorar em juiz? Note: ele vinha aqui pintar. Pintou paisagens lindas da charneca.
- Quem? Connan TreMellyn?
- Oh, não! Geoffrey. Geoffrey Nansellock. Era um artista de renome. Não sabia?
- Não. Nada sei a respeito dele a não ser que morreu com Alice.
- Vinha assiduamente. E continuou a vir enquanto ela permaneceu comigo. Saíam juntos, êle sempre agarrado às suas tintas e pincéis. Ela justificava-se dizendo que só ia vê-lo trabalhar. Mas evidentemente não era em pintura que os dois se entretinham.
- Estavam . . . apaixonados?
- Fiquei chocadíssima quando ela me contou. Compreenda, ia nascer uma criança . . .
Fiquei pasma. A criança só podia ser Alvean, refleti. Não era de admirar que Connan a tratasse com tanta indiferença. Não era de admirar aquele talento para o desenho, talento repudiado por ele e por Celestine.
Ela me confessou tudo duas semanas antes do casamento, implorando-me: "O que farei, tia Clara? Devo casar com Geoffrey?" Perguntei-lhe: "Minha querida, e Geoffrey quer casar com você?" Ela respondeu: "Teria de querer se eu lhe dissesse, não teria?" Vi logo que ela já lhe participara. Acontece que o casamento já fora marcado. Alice era rica e os Nansellock quase nada tinham. Assim eu sabia, como todos também sabiam. Geoffrey de certo modo também era famoso. E Alice não teria sido a única a passar por isso, ora essa. - Calou-se um momento. Foi aqui mesmo, nesta sala - acentuou - que conversamos as duas a respeito. Isso ficou grudado à minha consciência desde que ela morreu. Ainda me lembro dela dizendo: "O que farei, tia Clara? Ajude-me! Diga!" E eu lhe disse: "Case-se com Connan. Você é noiva dele. Esqueça Geoffrey." Ela teimou: "Como posso esquecer? Doravante haverá uma lembrança muito viva ..." E aí então fiz esta coisa inominável: "Case-se com Connan", repeti. "Deve casar com Connan. Diga depois que a criança nasceu antes do tempo." Alice atirou a cabeça pra trás e caiu num riso histérico. Pobre querida! Estava no fim de sua resistência.
Tia Clara recostou-se na poltrona. Dir-se-ia que sairáa de um transe.
Emudeci. Em meu espírito revoluteavam as cenas do casamento, da morte da mãe de Alice imediatamente depois da morte do pai de Connan no ano seguinte. O casamento dos filhos efetuara-se de acordo com a vontade de ambos, porém não viveram o suficiente para sorrir com êle. E Alice quedara com Connan - o meu Connan - e Alvean, filha de um outro homem e a qual, inutilmente, a mãe tentara fazer passar por filha do marido. Connan permitira que todos acreditassem ser êle o pai; no íntimo, jamais a aceitara como filha.
- Meu Deus - queixou-se tia Clara, - Que língua eu sou! Até parece que vivemos tudinho outra vez. Devo tê-la fatigado. Miss Leigh - disse de repente, um tanto inquieta - confio que saberá guardar segredo de nossa conversa.
- Sossegue quanto a isso. E não se recrimine mais. A senhora fêz o o que julgou melhor para Alice.
Acompanhou-me à porta. Voltei abismada em pensamentos. Agora eu sabia que Gilly era meia-irmã de Alvean. Lembrei-me dos desenhos, traço comum entre ambas. E Alvean então também sabia. Ou apenas desconfiava ser meia-irmã de Gilly?
O NATAL avizinhava-se a passos largos, no mesmo afã dos dias antigos com meu pai.
Eu já começara a pensar nos presentes - para Phillida e sua família, para tia Adelaide. Mas eram os de Mount Mellyn que me preocupavam. Não me faltaria dinheiro; eu economizara a maior parte do meu salário. Fui a Plymouth fazer as compras de Natal. Comprei livros para Phillida e família e um xale para tia, Adelaide, despachando-os pelo correio. Perdi muito tempo escolhendo presentes para a criadagem de Mellyn. Resolvi enfim comprar xales também para Kitty, Daisy e Gilly. Para Mrs. Polgrey, uma garrafa de uísque, o que certamente a deixaria deliciada. Para Alvean comprei lenços com sua inicial bordada.
Dei-me por satisfeita com as compras que fiz e ansiei pelo Natal na mesma medida de Daisy e Kitty. Na véspera ajudei a enfeitar o grande salão.
Os homens trouxeram hera, ramos de azevinho, louros, enfeites, e as colunas foram embelezadas com tudo isso. Daisy e Kitty ensinaram-me a preparar coroas. Tomamos dois aros de madeira, entrelaçamos um no outro em circunferência, cobrimo-los com folhas de tojo, penduramos laranjas e maçãs e os suspendemos nas janelas. Vieram achas enormes para a lareira. O salão dos empregados recebeu a mesma decoração.
- Teremos o nosso baile enquanto a família realiza o seu - explicou Daisy.
Fiquei indecisa sobre a qual dos dois bailes devia ir. Talvez a nenhum A posição de uma preceptora, de certo modo, fica sempre no meio.
- Nossa Senhora! - suspirou Daisy. - Mal posso esperar o dia. O último Natal foi tão triste, com a casa enlutada
Durante toda a véspera de Natal pairou na cozinha um cheiro de fazer água na boca. A habitualmente impassível Mrs. Polgrey sofreu uma metamorfose. Vermelha e suada, ia e vinha sem cessar, rezingando, nomeando em êxtase as tortas que portavam curiosos apelidos, como "solado", "trouxa", "musguenta". Pediram-me uma ajudazinha. - Olho vivo na caçarola, miss - recomendou Mrs. Polgrey. - Quando começar a frigir, avise-me.
Eu estava tirando uma fornada de pastéis dourados quando Kitty enveredou cozinha adentro aos berros:
- Mãe, chegaram os cantores!
- Pois faça-os entrar, sua imbecil - ordenou Mrs. Polgrey enxugando a testa. - Dá peso a gente deixar mofando lá fora os cantores.
Acompanhei-a ao grande salão, onde um coro de moças e rapazes de aldeia começara a cantar.
Mrs. Polgrey acenou a Daisy e Kitty que trouxessem os licores. Serviram, aos meninos licores de amora e de sabugueiro com pastéis de carne. Comeram e beberam a fartar, estendendo depois a Mrs. Polgrey um receptáculo enfeitado de fitas vermelhas e ramos de tojo. Majestosamente ela deixou cair um punhado de níqueis dentro.
- Ora, miss - disse Daisy quando os cantores partiram. - Quase me esqueci. Chegou um embrulho para a senhora. Eu mesmo o botei no seu quarto antes da vinda dos cantores.
Abalei para o quarto. Era um pacote de Phillida. Continha um xale de seda preta bordado de verde e amarelo-âmbar, e uma travessa espanhola, também âmbar. Joguei o xale sobre os ombros e ajeitei a travessa nos cabelos. O espelho devolveu-me para minha vaidade uma imagem exótica, bem mais própria a uma dançarina espanhola do que a uma preceptora inglesa.
O embrulho trazia outra surpresa: o vestido de seda verde de Phillida que eu mais namorara. Caiu uma carta de dentro:
"Querida Marty
Então, como vai na sua nova ocupação? Receio que a sua Alvean seja um amorzinho. Mas desde que você entrou aí nessa Mount Mellyn tornou-se tão pouco comunicativa que realmente continuo na dúvida.
O xale e a travessa são meus presentes de Natal. Serão muito tolos ? Preferiria você um jogo de roupa de baixo de lã ou talvez uma boa coleção de livros? O caso é que tia Adelaide resolveu mandar-lhe livros.
Mal posso imaginar você com essa família na ceia de Natal. Talvez haja por aí alguma dessas ceias em que falta sempre um convidado e alguém sugere: "Chamem a preceptora. Não podemos ser treze à mesa." Nesse caso minha Marty ceará com o meu vestido verde de estimação, com o seu xale e a sua travessa: seduzirá um rico proprietário de terras e viverão ambos muito felizes para todo o sempre, amém.
Falando seriamente, Marty: o vestido é um presente. Não pense que me desfaço dele como roupa velha. Adoro-o e dou-o a você, não porque me haja cansado de vesti-lo, mas porque êle sempre caiu muito melhor em você do que em mim.
Feliz Natal, Marty querida. Mande notícias. As crianças e William enviam o seu amor. E também mando o meu.
Phillida"
A leitura da carta já me ia deixando emocionada quando um grito me sacudiu dos pés à cabeça. Virei-me assustada e vi Alvean na porta.
- Ah, a senhora!
- Claro que sou eu. Nunca me viu com uma travessa e um xale?
- A senhora está linda.
- Obrigada, Alvean.
Ela ainda estava toda trêmula. Confundira-me com Alice.
O DIA DE NATAL foi um desses de que a gente não esquece por toda a vida.
Acordei com as gargalhadas dos criados sob a minha janela. Quando Daisy trouxe a água quente, exibia uma animação desusada:
- Melhor apressar-se, miss, ou não chegará a tempo para o brinde.
Lavei-me e vesti-me às pressas, arrebanhando os embrulhos com os presentes que comprara. O de Alvean eu já o largara ao pé de sua cama à noite. Fui à janela. O ar era um bálsamo. Aspirei-o profundamente, deliciando-me com o marulhar das vagas. Não traduziam mensagens fantasmagóricas naquela manhã. Apenas e alegremente silvavam. Talvez porque chegara o Natal.
Alvean entrou no quarto um tanto timidamente com os seus lenços na mão.
- Obrigada, Miss Leigh. Feliz Natal!
Abracei-a e beijei-a e, não obstante parecesse envergonhá-la um pouco a minha excelente demonstração de ternura, beijou-me também.
Trouxera-me um broche muito semelhante ao chicotinho de prata que eu lhe dera:
- Comprei-o na aldeia. Fiz questão que fosse quase igual ao meu, mas não de todo igual, pois em caso contrário os acabaríamos confundindo. Agora cada uma de nós terá o seu quando montar.
Comovi-me. Ela não me poderia ter provado tão bem a sua disposição de retornar à equitação.
- Você não podia ter escolhido melhor, Alvean.
Meus presentes foram um sucesso. Os olhos de Mrs. Polgrey devoraram o uísque. Daisy e Kitty subiram ao céu com os xales. Gilly não se cansava de esbugalhar os olhos e de acariciar o seu xale. Mrs. Polgrey presenteou-me com um jogo de guardanapos. - Para o seu enxoval de casamento, querida - sorriu acanhada pela modéstia do presente.
Prometi-lhe que começaria a pensar em casar; todos rimos. Vieram os cantores dos brindes, cantaram à porta e entraram no salão. Traziam também uma vasilha para recolher níqueis. Os criados acorreram, e quando Connan surgiu o cântico foi repetido.
Dois anos antes teria sido Alice quem entraria com êle. Connan ainda se lembraria? Ao menos aparentemente, não o demonstrava. Cantou com os criados e mandou vir a taça do brinde, o bolo de açafrão e os pastéis preparados especialmente para a ocasião. Aproximou-se de mim.
- Miss Leigh perguntou em meio à cantoria - o que acha do nosso Natal em Cornwall?
- Muito interessante, pelo que já assisti.
- Ainda há mais para ver. Descanse esta tarde para a festa à noitinha e para o baile de Natal.
- Mas eu . . .
- Mas é claro que acompanhará a família! Com quem mais poderia passar o Natal? Com os Polgrey? Com os Tapperty? Por falar nisso: ainda não lhe desejei um feliz Natal. Trouxe-lhe uma pequena lembrança. Um símbolo da minha gratidão. A senhora tem sido muito boa para Alvean.
- Faz parte de minhas obrigações de preceptora.
- E jamais a senhora abrirá mão de deveres e obrigações . . . Bem, então digamos que se trata apenas de um pretexto para desejar um feliz Natal.
Depositou um embrulhinho em minhas mãos. Fiquei tão alegre que, meramente por fitar meus olhos, êle deve ter percebido.
- É muito gentil comigo - balbuciei.
Sorriu, afastando-se. Surpreendi os olhos de Tapperty em nós. Teria visto Connan dando-me o presente?
Desejei ficar só. A caixinha que Connan largara em minhas mãos pedia que a abrissem; e isso eu não podia fazer ali. Saí furtivamente do salão e corri ao quarto.
Era uma caixinha de pelúcia. Dentro, envolto num cetim pérola, um broche em ferradura, crivado de brilhantes.
Quase caí para trás. De jeito nenhum podia aceitar um presente daquele preço. Devia devolvê-lo.
Por que êle fizera aquilo ? Mesmo um presente modesto me teria alegrado. Estive a pique de jogar-me na cama e derramar-me em lágrimas.
- Miss Leigh, é hora de ir à igreja.
Recoloquei o broche na caixinha. Foi só o tempo de vestir a touca e a pelerine, e Alvean entrou.
QUANDO Connan foi às cavalariças, depois da missa, chamei-o. Parou, sorridente. Aproximei-me:
- Mr. TreMellyn, foi muita bondade sua. Mas é um presente valioso demais para que eu o aceite.
- Minha prezada Miss Leigh - cortou devagarinho, inclinando um pouco a cabeça para o lado e recaindo na antiga ironia. - Sou um imbecil completo. Não consigo perceber nunca quando um presente é de tão pouco valor que possa ser aceito. - Fiquei rubra como um pimentão, mas ele nem se perturbou: Presumo-o um presente adequado. Ferraduras trazem sorte, como sabe. E a senhora vive às voltas com cavalos.
- Eu . . . eu jamais terei oportunidade de usar uma jóia assim.
- Minha intenção é que a use esta noite no baile.
Imaginei-me já no baile, dançando com Connan. Iria com o vestido de Phillida e exibiria com orgulho, no fundo de seda verde, aquele broche que eu já encarava como um tesouro muito querido.
- Acho que não tenho o direito.
- Ah - fez êle. - Começo a entender. Receia que eu lhe tenha dado o broche com a mesma intenção com que Peter Nansellock lhe presenteou Jacinth. A senhora devolveu o cavalo; e assim agiu tal qual eu esperava que agisse. Mas o broche é um presente com intenção diversa. A senhora tem sido boa para Alvean, não apenas como preceptora, mas como mulher. O broche pertencia à mãe de Alvean. Tome-o como um penhor de nós ambos. Fica tudo bem assim?
- Fica . . . ficou diferente agora - repliquei a custo. - Aceito o broche. Muito obrigada, Mr. TreMellyn.
Sorriu. Não compreendi muito bem aquele sorriso porque afinal não sou muito inteligente para compreender várias coisas.
- Obrigada - repeti atarantada.
E fugi para a casa. No quarto, tirei o broche da caixa e espetei-o na minha gola alta de algodão, que imediatamente ganhou um aspecto inteiramente novo.
E eis como, naquele estranho Natal, recebi também um presente de Alice.
JANTEI ainda com o sol a pino, em companhia de Connan e Alvean. Conversamos animadamente sobre as tradições natalinas de Cornwall. Imaginei Alice sentada na cadeira que eu agora ocupava e perguntei-me se a conversa teria sido como agora. Estaria êle, enquanto me olhava, pensando em Alice? Nada me demovia de supor que eu só me sentava ali porque era Natal e que, cessadas as comemorações, eu teria de recolher-me à minha insignificância.
Repreendi-me por pensar assim. Não incidiria nas suspeitas. O que eu queria era ir ao baile. E, como por artes de mágicas, possuía um vestido invejável para a ocasião, além da travessa de âmbar e do broche de brilhantes.
Segui o conselho de Connan e descansei. E sem querer, dormi. Como tantas outras vezes nesta casa, sonhei com Alice. Ela viera ao baile, mera sombra espectral, cochichando-me enquanto Connan dançava comigo: "E isto o que eu desejo, Marty. Gosto disto. Gosto de ver você e Connan enlaçados. Você, Marty - Você. Não a outra."
Acordei de má-vontade. Fora um sonho agradável. Daisy entrou.
- Trouxe um pedaço de quitute de Mrs. Polgrey, miss. É para tomar com o chá - e mostrou uma fatia de bolo de passas. - Trago a água quente às seis. Fica com tempo de sobra para se vestir para o baile. O senhor receberá os convidados às oito. Ceia às nove. A senhora passará um mundão de tempo antes de poder comer outra vez.
Deixou-se ficar por uns instantes encostada na porta, a cabeça levemente tombada. Teria descoberto em mim um motivo inédito de interesse? Antevi-os no salão da criadagem: Tapperty empolgando toda a conversa. Suspeitariam de que um novo laço afetivo se estabelecera - ou se estabelecia - entre o senhor e a preceptora?
AGUARDEI que o salão de baile se enchesse, e só então entrei, o broche na seda verde do meu vestido de corpete justo e saia franzida. Peter veio ao meu encontro.
- Está um anjo!
- Obrigada. Alegra-me surpreendê-lo.
- Não me surpreendeu absolutamente. Veja, Connan vai iniciar o baile. Permite que eu seja o seu cavalheiro?
- Aceito.
- É uma dança tradicional aqui. Mas é fácil. Tem apenas que me acompanhar.
Principiou a música. Connan caminhou para o centro do salão, dando a mão a Celestine. Desassossegou-me verificar que Peter e eu devíamos formar par e dançar com eles.
Celestine abriu a boca quando me viu. Connan permaneceu imperturbável. Naturalmente Celestine pensava. É muito bonito convidar a preceptora, mas é um abuso da parte dela aceitar o convite. Mas depois daquela cara inicial de desagrado, brindou-me com o seu sorriso mais cordial.
- Sei que não devia ter vindo - falei. - Afinal eu . . .
- Acompanhe-nos - ordenou Connan.
- Tomaremos conta da senhora - ecoou Peter.
Os demais alinharam-se atrás de nós. E lá fomos todos rodopiando na dança.
- Vai indo muito bem - elogiou Connan, sorrindo quando nossas mãos se tocaram.
- Breve a senhora será uma cornualiana - disse Celestine.
- Cornwall cada vez me encanta mais - respondi.
- Cornwall e também os seus habitantes, espero - cochichou Peter. Prosseguimos dançando. Quando a música cessou, ouvi alguém indagar:
- Quem é a dama vistosa que está com Peter Nansellock ? Esperei ouvir a resposta de que era a preceptora, mas o que ouvi foi:
- Não tenho a menor idéia. Ela é tão bonita!
Exultei. E exultei porque afinal eu não era só uma convidada no baile, mas uma convidada que estava tendo franco sucesso nele.
Não procurei enganar ninguém com quem dancei. Apesar disso, mesmo quando, satisfazendo-lhes a indiscrição, eu me apresentava como a preceptora de Alvean, nem assim esmoreciam as homenagens que julgavam devidas a uma mulher bonita. Por que cargas d'água não fora também assim nas festas de tia Adelaide ? Comecei a dar-me conta da transformação que experimentava. Não eram apenas o vestido, a travessa, o broche de brilhantes; era que eu me apaixonara perdidamente, e o amor empresta maior beleza à mulher. Tal qual a Borralheira, dispus-me a tirar proveito do baile até a última badalada da meia-noite.
E que coisa estranha! Dancei com Sir Thomas Treslyn, que se revelou um ancião muito galanteador e um perfeito cavalheiro, embora um tanto asmático. Sugeri-lhe sentar e ele gostou da idéia.
- Estou ficando um tantinho velho para a dança, Miss . . . Mrs . . .
- Miss Leigh. Sou a preceptora, Sir Thomas.
- Não diga! Mas o que ia falando, Miss Leigh, é que foi muito gentil da sua parte preocupar-se comigo, quando o natural seria que a senhora continuasse a divertir-se.
- Até que foi muito bom sentar um pouquinho.
- Ainda é mais gentil. - Inclinou-se e assumiu um ar confidencial: - Minha mulher é que gosta destas coisas. Tem sempre excelente disposição.
- Ela está linda - comentei, mesmo porque já a notara, primorosa no seu vestido de gaze côr de malva com fundo verde.
Meneou tristonhamente a cabeça. Enquanto ele falava, alcei os olhos para a fresta através da que Alvean e eu acompanháramos o baile precedente. Havia alguém lá! A distância não permitia averiguar quem.
Naturalmente é Alvean, matutei. Mas levei um susto quando, ao baixar os olhos, dei com Alvean entre os dançarinos. Eu me esquecera de que aquela era uma ocasião especial a que ela não podia faltar.
Fitei açodadamente a seteira. Havia ainda lá a silhueta de um rosto.
A CEIA foi servida na sala de jantar e na sala do ponche. Os convidados serviam-se eles mesmos porque, segundo a tradição, nesse grande dia os criados realizavam o seu baile no outro salão.
Peter Nansellock, meu par na dança da ceia, conduziu-me à sala do ponche. Já lá estavam à mesa Sir Thomas e Celestine. Peter levou-me até eles.
- Deixem por minha conta - foi dizendo. - Dou de comer a todos. - E dirigindo-se a mim: - Para vocês, estrangeiros de além-Tamar, nossa comida é extravagante. Que espécie de pastelão querem ? Recomendo-lhes o pastelão de pombo: borrachos com maçã, toucinho, cebola e carneiro.
- Pronta para prová-lo - acudi.
Connan acercou-se com Lady Treslyn.
- Estou dando uma aula de nossa comida típica a Miss Leigh - esclareceu-lhe Peter. - Ela ainda não sabe o que é fair-maid, a bela aia. Não é engraçado, Conn ? Se ela própria é uma . . . Os olhos de Connan riram com muito calor.
- Fair-maid, Miss Leigh, é o apelido da sardinha defumada, servida em azeite e limão. E uma corruptela do espanhol arcaico: fumadoe. Dizemos aqui que é um prato digno de um nobre espanhol.
- Uma relíquia, Miss Leigh - acrescentou Peter - daquelas eras em que os espanhóis infestavam nossas costas e dedicavam demasiado interesse a uma outra espécie de . . . sardinhas. Alvean reuniu-se ao grupo. Parecia cansada.
- Devia estar na cama - ralhei.
- Devia mesmo - concordou Celestine. - Coitadinha.
- Tenho fome - resmungou Alvean.
- Depois da ceia subiremos.
Fez que sim e agradeceu a Peter com prazer sonolento quando ele lhe trouxe o prato. E eis-nos todos afinal sentados à mesma mesa: Alvean, Peter, Celestine, Sir Thomas, Connan, Lady Treslyn e eu. Dir-se-ia um sonho a minha presença ali com os outros. O broche de Alice reluzia em meu vestido. Dois anos atrás, filosofei, seria ela quem estaria aqui no meu lugar.
Veio-me à lembrança o rosto na fresta. Também recordei o que Alvean me dissera na noite do outro baile: algo sobre a paixão de sua mãe pela dança; se ela retornasse à mansão, compareceria ao baile. Fora quando Alvean se empenhara esperançosamente em localizá-la no salão... E se agora ela nos observasse de um ponto qualquer?
Minha atenção voltou ao grupo na mesa. Connan fazia companhia a Lady Treslyn. Formavam um casal muito distinto, a meu ver. Ela, a mais linda mulher do baile; ele, o mais distinto dos homens. Riam em uníssono. Aquela intimidade mútua magoou-me fundo. Talvez eu bebera vinho doce em excesso - o hidromel, como eles o denominam. E hora de sair, decidi com os meus botões.
- Alvean, você está cansadíssima - observei, notando-lhe as olheiras. - Vamos para a cama.
Praticamente ela já cochilava e não protestou, limitando-se a erguer-se, tonta de sono. Despedi-me.
- Volte, Miss Leigh - pediu Peter, erguendo-se.
Nada prometi. Tentei desesperadamente não olhar Connan, certa de que ele se alheava inteiramente de mim; sobretudo certa de que ele não prestava atenção senão a Lady Treslyn.
- Au revoir - falou Peter, imitado por todos.
Saí da sala do ponche puxando Alvean pela mão. Sentia-me exatamente como Cinderela ao soar a meia-noite. Desvanecera-se o encanto. A presença de Lady Treslyn mostrara a futilidade dos meus sonhos.
ANTES mesmo de eu deixar o aposento, Alvean já ferrara no sono. No caminho para meu quarto, combati valentemente o desejo de pensar em Connan e Lady Treslyn, mesmo quando acendi o candelabro sobre o toucador. Os brilhantes cintilaram ao espelho, o que me recordou mais uma vez o rosto na seteira.
Sem vacilar, desci ao pavimento inferior ao meu. Subia até lá o barulho ensurdecedor do baile dos criados. Estava entreaberta a porta do quarto de Gilly. A luz da lua banhava a menina sentada na cama.
- Gilly! - exclamei.
- A senhora! - gritou cheia de felicidade. - Eu sabia que a senhora voltaria esta noite!
- Vou acender uma vela - disse eu, acendendo-a sem demora. Fitava-me com uns olhos muito abertos e muito azuis. Sentei na borda da cama. Era inegável que, quando eu entrara, ela me tomara por outra. Mesmo percebendo agora o engano, não se desapontara; isso provava a confiança que eu já lhe inspirava. Mostrei-lhe o broche:
- Era de Mrs. TreMellyn.
Abriu um sorriso e fêz um gesto afirmativo.
- Você falou quando eu entrei. Por que não continua falando? Continuou sorrindo, quietamente.
- Gilly, era você que estava na abertura do terraço? Foi ver o baile? Outro gesto de anuência.
- Gilly, não fale só com a cabeça. Diga: era.
- Era respondeu.
- Você foi lá em cima sozinha ? Não teve medo ? Sacudiu a cabeça com outro sorriso.
- Por que não teve medo?
- Não tive medo porque ... - e sorriu.
- Porque . . . - animei-a, interessada,
- Porque - repetiu.
- Gilly, você estava sozinha lá em cima?
Outro sorriso. E nada mais lhe arranquei. Beijei-a e ela também me beijou. Gostava de mim, isso eu via, embora certa de que ainda me confundia com Alice.
Relutei em despir o vestido. Fiquei à janela uma hora ou mais. Fazia uma noite amena e também era ameno ter o xale nos ombros. Já alguns convidados buscavam as suas carruagens. Escutava-se distintamente a troca de adeuses.
Ouvi a voz de Lady Treslyn. Falava baixo, porém com tanta intensidade que podia apreender sílaba por sílaba.
- Connan, agora não vai demorar muito. Não vai demorar.
QUANDO Kitty trouxe-me a água quente de manhã, Daisy também veio.
- Dia, miss... Dia, miss. . .
Pediram-me para acordar logo; tinham notícias importantes, como aliás se depreendia da expressão de cada uma.
- Miss - falaram as duas em coro, cada qual mais ansiosa por ser a primeira. - Ontem, à noite.. . . não, esta manhã ... - Kitty tomou a dianteira à irmã: - Levaram Sir Thomas muito mal para casa. Morreu antes de chegar a Treslyn Hall.
Dei um pulo da cama, encarando estupidamente ora uma ora outra. Como Kitty e Daisy, eu previa as conseqüências daquela morte.
CAPÍTULO 7
SIR THOMAS TRESLYN foi sepultado no dia primeiro de janeiro. Durante a semana precedente a tristeza imperou na casa, uma tristeza ainda ,mais chocante porque sucedia à alegria do Natal. Não se retirou a decoração. As opiniões dividiram-se a propósito do que seria mais penoso; retirá-la antes da noite de Ano Novo ou deixá-la, aqui e ali, numa evidência de grosseira falta de respeito para com o morto. Toda a criadagem opinava que aquela morte nos dizia respeito muito de perto. Sir Thomas morrera no caminho entre, nossa e a sua casa; nossa mesa fora a última em que comera. A gente de Cornwall é supersticiosíssima, sempre atenta a agouros e empenhada em aplacar o sobrenatural.
Pouco vi Connan, e quando isso acontecia ele se mostrava muito pouco interessado em mim. Talvez meditasse no que tudo aquilo representaria. Se ele e Lady Treslyn fossem amantes já não existia agora qualquer obstáculo a que legitimassem a ligação. Essa era uma idéia quase comum a todos, conquanto ninguém ousasse abordá-la. Mesmo Mrs. Polgrey consideraria de mau agouro trazê-la a lume ainda tão perto do sepultamento de Sir Thomas.
Mrs. Polgrey chamou-me ao seu quarto. Bebemos uma xícara de chá estimulada com uma colher do uísque que eu lhe dera.
- Foi um acontecimento aziago - disse ela - Sir Thomas morrer no Dia de Natal. Verdade que não era propriamente o Dia de Natal mas a manhã do Dia da Oferenda - corrigiu-se, como se disso extraísse um certo consolo. - O enterro foi cedo demais, não acha, miss?
- Sete dias - contei nos dedos.
- Deviam tê-lo prolongado. Ainda mais porque estamos no inverno. Naturalmente a senhora já ouviu falar de pessoas enterradas vivas.
- Não há dúvida nenhuma de que Sir Thomas morreu mesmo.
- É, mas algumas pessoas parecem mortas e no entanto não estão . . . Vem ao enterro comigo, miss?
- Não tenho vestido apropriado.
- Empresto-lhe uma touca e um véu preto.
E eis porque pude estar presente quando desceram o corpo de Sir Thomas. A viúva, toda em gazes negras, parecia ainda mais formosa. Tinha gestos graciosos e o preto fazia-a ainda mais esbelta e fascinante. Tentei definir a expressão do rosto de Connan, porém ele jamais estivera tão determinado em esconder o que lhe ia na alma.
O sol do inverno brilhava intensamente nas guarnições douradas do caixão à medida que o desciam na tumba. Um silêncio de chumbo pesava em todo o cemitério, entrecortado apenas por um ou outro grito de gaivota vadia. Tudo acabou. Voltamos às carruagens.
A caminho de Mount Mellyn, Mrs. Polgrey instava comigo para bisarmos o chá e o seu complemento. Seus olhos luziam, e não era difícil perceber que ela custava a prender a língua. Tão grande era o seu respeito para com os mortos, porém, que se mantinha muda em relação às implicações que aquela morte traria a todos nós em Mount Mellyn.
SIR THOMAS não foi olvidado. Ouvi falarem nele semanas a fio, particularmente porque Daisy e Kitty se mostravam muito menos discretas que Mrs. Polgrey. E sempre que me traziam a água de manhã, desandavam a mexericar.
- Vi Lady Treslyn ontem - comunicava Daisy. - Não se comportava como uma viúva, apesar do luto. Juro que o jeito dela . . . ora, a senhora sabe o que quero dizer.
- Não sei não.
- Kit estava comigo. Ela também achou. A viúva estava mas era muito satisfeita por não ter que esperar mais tempo. Um ano, como manda o costume. Eu acho um ano muito tempo.
- Um ano? Esperar um ano para quê? - perguntei a despeito de conhecer antecipadamente a resposta.
- Não ficará bem aos dois estarem vendo-se muito pelo menos durante um prazozinho - disse Daisy com uma risadinha. - Afinal, o velho morreu aqui... Agora, também é verdade que os dois queriam isso mesmo.
- Daisy! Não diga absurdos. Como poderiam querer isso?
- A senhora fala porque não sabe ou finge que não sabe.
Despachei-a. A conversa escorregava para um terreno perigoso. Então já há comentários, matutei assim que ela saiu. Já consta que ambos desejavam a morte de Sir Thomas. Bem, enquanto não passar de disse-me-disse não há com que me preocupar.
Os dois deviam estar agindo com muita prudência, no meu entendimento. Phillida dissera-me que enamorados se comportam como o avestruz: enterram a cabeça no chão e ficam muito tranqüilos pensando que, como não vêem ninguém, ninguém os vê. Acontece que aqueles não eram dois inexperientes. Sim, seriam prudentes.
No mesmo dia, passeando no bosque, escutei pata de cavalo a passo nas imediações. E a voz de Lady Treslyn:
- Connan! Oh, Connan!
Então encontravam-se! E encontravam-se imprudentemente, pertinho de casa. O bosque abafava quase todo o eco. Mesmo assim, retalhos de frases chegavam até mim.
- Linda! Não devia ter vindo!
- Eu sei. . . - Baixou a voz e perdi o resto.
- Mandar o bilhete! - Agora era Connan: - Por força os criados viram o rapaz que o entregou. Sabe como eles são.
- Sei, mas...
- Quando aconteceu isto ? . . .
- Esta manhã. Eu tinha que mostrar a você.
- É a primeira ?
- Não, já houve outras duas. Por isso vim ver você. Connan, estou com medo.
- E obra de algum perverso. Não ligue.
- Leia!
Houve uma pausa. E outra vez ouvi Connan:
- Bem. Só nos resta uma coisa ... Afastaram-se e não pude ouvir mais. No mesmo dia, Connan saiu de Mount Mellyn.
- Foi chamado a Penzance - informou Mrs. Polgrey.
MUITOS dias passaram. Alvean e eu repassamos as lições. Gilly também comparecia às aulas. Enquanto lecionava a Alvean, eu incumbia Gilly de um dever qualquer, por exemplo, escrever no quadro, somar bolinhas no ábaco. Não cabia em si de contente. Acreditara em Alice e transferira-me esse crédito. Alvean rebelara-se a princípio. Mas frisei-lhe a necessidade de sermos bondosos com os desafortunados e isso causou tanto efeito no seu coração, que acabou aceitando a presença de Gilly, embora um tanto contrafeita.
Connan permaneceu fora toda uma semana. Numa gélida manhã de fevereiro, Mrs. Polgrey entrou na sala de aula. Trazia duas cartas, e estava em sobressalto.
- Foi o senhor quem me escreveu ......- disse. - Quer que a senhora leve Miss Alvean para Penzance. Esta carta é para a senhora.
Tomei-a, toda nervos, pedindo a Deus que Mrs. Polgrey não percebesse a minha emoção. A carta dizia:
Prezada Miss Leigh,
Devo demorar-me aqui ainda algumas semanas. Estou certo de que concordará que será muito conveniente para Alvean vir ter comigo. Acho que não devo prejudicar-lhe os estudos e por isso peço-lhe que a acompanhe por uma semana. Talvez possam embarcar amanhã mesmo, no trem das 2,30.
Connan TreMellyn
Recobrei a cor. Fiz tudo para não comunicar aos outros a felicidade imensa, toda minha.
- Alvean - disse-lhe. - Vamos para junto de seu pai amanhã. Atirou-se em meus braços, um gesto não muito comum nela. Comoveu-me ao âmago e ajudou-me a retomar o equilíbrio.
- Mas é só amanhã. Hoje continuaremos estudando.
Pedi a Mrs. Polgrey que providenciasse para que Billy Trehay nos levasse ao trem. E fiquei em êxtase. Nem Alvean nem eu nos concentramos em mais nada. Só muito depois me lembrei de Gilly. Fitava-me com aquela expressão amedrontada que eu já quase acreditara ter-lhe afugentado dos olhos.
Gilly compreendera que íamos viajar e que a deixaríamos sozinha.
ALVEAN e eu almoçamos e fomos arrumar as malas. Não tive grande trabalho. Meus dois vestidos de algodão estavam limpos; para a viagem, eu usaria o de lã escura, que era muito mais incômodo de pôr na mala. Tirei o vestido de seda verde do armário. Levo-o? Por que não? Raramente eu tivera um tão do meu agrado. E quem sabe haveria oportunidade de vesti-lo?
Não percebi Gilly entrar. Tomei até um susto ao vê-la, olhando-me muito séria. Contemplou as malas e as roupas dobradas na cama. Perdi todo o fogo. Mais do que ninguém eu podia prever a solidão de Gilly quando partíssemos. Apertou as pálpebras como para não ver.
- Gilly. Voltaremos logo, prometo-lhe.
Balançou negativamente a cabeça, e duas grossas lágrimas escorreram-lhe dos olhos. Arrancou-se dos meus braços e, correndo à cama, começou a puxar tudo de dentro da mala.
- Não, Gilly. Não faça isso. - Levei-a no colo para a cadeira e consolei-a. - Voltarei, Gilly. Voltarei mais depressa do que você supõe.
- A senhora não volta - choramingou. - Ela ... também ... foi... e ...
Nem me lembrei mais de que ia para junto de Connan. Gilly sabia algo e o que sabia podia deitar uma luz no mistério de Alice.
- Gilly. Ela se despediu de você antes de embarcar?
A menina sacudiu ainda negativamente a cabeça e julguei que fosse debulhar-se em lágrimas.
- Gilly, fale comigo, tente explicar . . . Você viu quando ela embarcou ?
Enterrou o rosto no meu peito; acarinhei-a com meiguice. Não obteria mais nada dela naquele dia. Encostou o rosto no meu e logo já não era a expressão amedrontada e oca que lhe boiava nos olhos: era uma expressão de tragédia.
Quanto lhe significava a minha afeição e como era impraticável convencê-la de que minha viagem não seria para sempre! Uns poucos dias de ausência representariam anos para ela. Impossível deixá-la.
Indaguei de mim mesma qual seria a reação de Connan quando me visse chegar com as duas. Tive fé em que lhe apresentaria razões convincentes. Quanto a Mrs. Polgrey, aquilo seria uma sopa no mel para ela; adorava ver Gilly comigo.
- Gilly - falei-lhe. - Você e Alvean vão comigo. - E beijei-a no rosto.
Demorou um pouco a compreender, e quando compreendeu apertou os olhos com força, baixou a cabeça e sorriu.
TODA a casa veio despedir-se de nós. Aboletei-me entre as duas meninas no carro. Billy Trehay, na sua libré de TreMellyn, ocupou garbosamente a boléia. Minha alma estava tão leve quando partimos que por um triz não comecei a cantar. Era excelente o humor das crianças; Alvean falava pelos cotovelos e Gilly outra vez não cabia em si, agarrada à minha manga. Tomamos o trem na estação de Liskeard. Em Penzance já nos aguardava uma carruagem. Pusemo-nos a caminho de Penlandstow. Já escurecera quando chegamos a uma vereda. Logo à frente, a mansão. Um homem, lanterna em punho, exclamou no alpendre:
- Já estão chegando. Corra a avisar o senhor. Ele mandou que o avisássemos assim que elas viessem.
Estávamos todas um pouco entorpecidas pela viagem. As meninas cochichavam. Auxiliei-as a descer. E dei com Connan atrás de mim'. A penumbra não me permitia vê-lo bem, mas eu sabia que a minha vinda o alegrara. Estou imaginando coisas, repreendi-me. Naturalmente êle se alegra por Alvean. Mas então por que me olha sorrindo? Nunca o vi tão feliz desde que o conheço.
- Foi ótimo você ter vindo- - disse êle abraçando Alvean. Aí, viu Gilly. - Mas como ?. . .
- Não podia deixá-la sozinha - desculpei-me. - O senhor mesmo autorizou-me a zelar por ela.
Vacilou um instante. Por fim, sorriu. Agora, sim, tive certeza de que fora eu que o alegrara - eu, mais ninguém - e de que não se importava com quem eu levasse, contanto que eu fosse.
E foi assim que entrei no antigo lar de Alice: como num palácio de conto de fadas.
NAQUELAS duas semanas, convenci-me de que saíra mesmo da realidade rotineira para ingressar num mundo exclusivamente meu. Em Penlandstow Manor tratavam-me não como preceptora, mas como hóspede. Voltei a ser a moça despreocupada da minha juventude.
Penlandstow datava da Era Elisabetana. Mansão quase tão grande quanto Mount Mellyn. Não seria exagero supor que alguém podia perder-se pelos seus múltiplos escaninhos. Alojaram-me num quarto amplo com os assentos das janelas forrados de veludo vermelho e cortinas de um vermelho mais escuro. A cama era de pilastras com cortinas de seda bordada. Chão forrado no mesmo vermelho escuro. E fogo crepitante na lareira.
Uma aia ajudou-me a desfazer as malas, indagando cortesmente se eu não apreciaria um banho. Na sua simplicidade aldeã, nem Daisy nem Kitty jamais me haviam tratado assim.
- Há um banheiro no fundo do saguão, miss - disse a aia. - Quer que eu a acompanhe lá ou prefere que lhe traga a água quente aqui? - Guiou-me pelo quarto até onde havia um grande banheiro com uma banheira excelente. - Miss Alice mandou preparar este quarto para usá-lo depois do casamento.
E não foi sem uma certa sensação de mal-estar que me encontrei na antiga alcova de Alice.
Banhei-me, vesti-me e fui ver Alvean. Caíra no sono. Gilly também dormia no seu quarto. No meu, a aia que me mostrara o banheiro avisou-me que Mr. TreMellyn pedia que eu fosse à biblioteca.
- Muito bom tê-la aqui, Miss Leigh - disse êle.
- Será bom para o senhor ter Alvean . . .
- Eu disse - interrompeu-me sorrindo - que é muito bom ter a senhora aqui, Miss Leigh. Não disse mais do que isso.
- É muito gentil . . . Trouxe os livros das meninas . . .
- Vamos conceder-lhes umas férias, sim? O estudo é importante, como diz a senhora, mas não acha um crime encurtar o tempo?
- Não vejo inconveniente, tendo em vista a ocasião excepcional.
- Miss Leigh, a senhora é um amor. - Recuei assombrada, mas êle nem deu por isso: - Alegro-me de que não tenha demorado a vir.
- Eram essas as suas ordens.
- Não tive a intenção de ordenar, Miss Leigh. Pedi apenas.
- Mas ... - ia eu recomeçar, porém calei-me a tempo.
Descobrir nele um homem diferente daquele que eu conhecia, inquietava, sim. Era agora um estranho; um estranho que me cativava tanto quanto o outro Connan TreMellyn. E um estranho que me assustava um pouco porque era eu quem não confiava em minhas reações.
- Imaginei que lhe agradasse fugir de Mount Mellyn.
- Fugir de quê?
- Das sombras da morte.
- Da morte de Sir Thomas, é isso? Ora, Mr. TreMellyn, eu . . .
- Era apenas um vizinho. Mas fiquei deprimido e quis afastar-me. Alegra-me que me faça companhia . . . com Alvean e a outra menina.
- Faço votos que o senhor não considere uma impertinência minha ter trazido Gillyflower. Ela ficaria desolada se não viesse.
- Compreendo perfeitamente que ficasse desolada com a sua ausência - murmurou deixando-me tonta.
- As meninas precisam comer alguma coisa.
- Peça o que quiser para elas - disse, mudando de assunto.
- Quando tiver cuidado das duas, jantaremos juntos. Providenciei tudo para as meninas e fui encontrar-me com Connan no jardim de inverno. Que sensação doce jantar com êle à luz de velas! Contou-me sobre a casa, que fora construída com a forma de E em homenagem à Rainha Elizabeth, então no trono.
- São dois pátios de três lados e um corpo central avançado. Estamos na parte central. A secção mais importante dela é o salão; depois a galeria e as dependências menores, como este jardim de inverno.
Do jantar fomos para a biblioteca. Êle sugeriu uma partida de xadrez. Jogamos em silêncio - um silêncio profundo, concentrado. Jamais esquecerei o crepitar da lareira, o tiquetaque do relógio francês, os compridos dedos de Connan movendo as pedras de marfim.
Concentrada no tabuleiro, senti os olhos de Connan pregados em mim: pilhei-o em flagrante. Contemplava-me entre irônico e inquiridor. Atraiu-me com um objetivo, pensei. Mas qual?
- Ah! - exclamou assim que mexi a pedra. - Miss Leigh, minha prezadíssima Miss Leigh, acaba de cair na armadilha.
- Não, não! - sobressaltei-me.
- Lamento desapontá-la - e mexeu um cavalo que por um lapso eu não previra. - Acho que é . . . não, não é. Xeque, Miss Leigh. Mas não xeque-mate.
Apanhara-me desprevenida. Cacei aflita uma saída. Inútil; qualquer movimento levaria apenas ao fim inevitável.
- Xeque-mate, Miss Leigh - falou então, divertido. - Vali-me da supremacia que me proporcionou o seu cansaço de viagem.
- É que o senhor é mesmo o melhor jogador.
- Pois tenho a impressão que somos dois jogadores que se combinam
muito bem.
NÃO foi melhor que o precedente o dia seguinte. Também imprevisível desde o começo. Dei umas aulas às crianças pela manhã, e à tarde Connan levou-nos a passear na costa. Vimos o Monte São Michel dominando o mar.
- Na primavera - prometeu - levo-a lá. Poderá ver a famosa cadeira de São Michel.
- Podemos sentar nela, papai? - perguntou Alvean.
- Se você sentasse, ficaria com as pernas balançando no ar a uns vinte metros do chão. Muita mulher pensa que ainda assim vale a pena.
- Por que, papai, por quê? - indagou Alvean que adorava vê-lo com a atenção concentrada exclusivamente nela.
- Porque existe um velho adágio segundo o qual, se uma mulher sentar-se na cadeira de São Michel antes do marido, será ela, e não êle, quem mandará no lar.
Alvean riu com gosto e Gilly sorriu.
- E a senhora, Miss Leigh - perguntou Connan. - Acha que vale a pena tentar?
- Não, Mr. TreJVíellyn, não acho - repliquei em tom de desafio depois de uma ligeira indecisão.
- Quer dizer que não gostaria de ser o chefe da família ?
- Parece-me que nem o marido nem a mulher deve ser o chefe nesse sentido.
- Miss Leigh, sua sabedoria envergonha o nosso folclore. E voltamos todos, sob o sol do inverno.
JÁ durava uma semana a minha estada em Penlandstow. Mal podia crer nesse interlúdio de sonho. Connan resolveu-se a dizer o que tinha em mente. As meninas já se haviam recolhido e êle me convidara para uma partida de xadrez na biblioteca. Lá o encontrei, as pedras dispostas no tabuleiro, o fogo ardendo acolhedor na grande lareira. Ergueu-se à minha presença. Tomei o meu lugar diante do tabuleiro.
Já me decidira a mover o rei, quando Connan interveio:
- Miss Leigh, não lhe pedi que viesse aqui apenas para jogar. Desejo falar-lhe.
- Sim, Mr. TreMellyn.
- Conheço-a já há bastante tempo. A senhora representou para Alvean e para mim uma vida inteiramente nova. E ambos desejamos que não nos deixe mais. - Não ousei encará-lo para que êle não adivinhasse o que me ia no coração. - Miss Leigh . . . ficará conosco . . . para sempre?
- Não . . . não entendo.
- Estou pedindo que case comigo. - Mas é impossível!
- Por que impossível, Miss Leigh? Acha-me... repulsivo? Seja franca.
- Não, não é isso. Mas não é próprio. Sou a preceptora da casa.
- Aí está justamente o que eu receio. Preceptoras costumam mudar de emprego. Seria intolerável para mim que a senhora se despedisse.
- Estou . . . estou tão surpreendida ...
- Quem sabe eu deveria tê-la preparado antes? - Entreabriu os lábios. - Lamento, Miss Leigh. Esforcei-me ao máximo para dar-lhe a entender os meus sentimentos.
Num segundo previ o futuro: eu voltando a Mount Mellyn casada com o senhor, abandonando o papel de preceptora para assumir o de senhora da mansão. Claro que não era impossível e que, em poucos meses, ninguém se lembraria de mim como preceptora. Mas seja o que for que me falte, sobra-me dignidade; talvez até me sobre dignidade demais. Aquela proposta, conforme eu entendia, devia ter vindo de outro modo. Ele não me pegara a mão; nem ao menos me tocara.
- Minha prezada Miss Leigh - continuou - Alvean precisa de mãe. A senhora serviria a caráter.
- Acha que duas pessoas devem casar-se apenas para o bem de uma criança ?
- Sou um extremado egoísta - desculpou-se. - Não devia ser, mas sou. - Curvou-se sobre o tabuleiro e no olhar pôs um brilho que não entendi. - Confesso que não considerei apenas o caso de Alvean. Três pessoas lucrariam com esse casamento, prezada Miss Leigh. Alvean precisa da senhora. Eu ... eu preciso da senhora. E que fará a senhora se não se casar? Viverá de emprego em emprego. Quando ainda se é jovem e se tem disposição, vá lá. Mas diligentes preceptoras não tardam em fazer-se lerdas.
- Insinua que eu aceite esse casamento - retruquei com azedume - à guisa de seguro contra a velhice?
- Sugiro apenas que proceda como lhe parecer melhor, Miss Leigh. Houve um silêncio exasperador, que quase me obrigou a chorar. Connan apresentava-me uma lista de motivos pelos quais nos devíamos casar; porém entre eles não constava o único que eu desejava ouvir.
- O senhor vê apenas o lado prático - gaguejei. - Não é assim que sonho com um casamento.
- Como isso me desafoga - reagiu, depois de franzir o cenho e rir. Parecia muito contente consigo mesmo. - Sempre a considerei uma pessoa veementemente prática. Foi por isso que procurei dispor as coisas de maneira a que as entendesse melhor.
- Está mesmo pedindo-me em casamento? A sério?
- Em minha vida toda jamais falei com tanta seriedade. Qual é a resposta ? Por favor, não prolongue a minha expectativa.
Disse-lhe que necessitava de tempo para decidir.
- Amanhã?
- Amanhã.
Marchei para a porta. Mas êle se antecipou. Aguardei que a abrisse por gentileza. Ao invés, tomou-me nos braços.
Beijou-me como nunca eu fora beijada, como nunca eu sonhara ser beijada; posso garantir que para mim foi uma emoção totalmente inédita. Beijou minhas pálpebras, meu rosto, minha boca, meu pescoço, até quase me asfixiar. E eu correspondia! De repente parou.
- Resolver amanhã! - zombou, rindo. - Você acha que sou o tipo de homem capaz de esperar até amanhã? O tipo de homem capaz de casar apenas para o bem da filha ? Ora ... - assumiu o seu tão conhecido ar de deboche. - Minha prezada, minha prezadíssima Miss Leigh, eu quero casar com você porque desde que a vi não consigo tirá-la da cabeça. Nem conseguirei tirá-la para o resto dos meus dias.
- Verdade? - sussurrei. - Verdade mesmo?
- Martha! Martha! - pronunciou com amor. - Que nome austero para uma criatura adorável assim! Mas assenta-lhe bem.
- Minha irmã chama-me Marty. Meu pai também me chamava assim.
- Marty soa muito pouco feminino. Às vezes você é Marty, sim. Mas para mim será sempre todas as três reunidas: Marty, Martha e minha prezada Miss Leigh. Minha queridíssima Marty trairá sempre Miss Leigh. Foi Marty quem me fêz perceber que você estava mais interessada em mim do que Miss Leigh aprovaria.
- Fui tão descuidada?
- Adoràvelmente descuidada.
Não era mais preciso fazer de conta. Abandonei-me aos seus beijos e isso ultrapassava a imaginação. Por fim, segurou-me firme e olhou-me dentro dos olhos:
- Seremos felizes, querida. Mais felizes do que eu e você jamais imaginamos.
Não consegui mais ocultar meus pensamentos. Esforcei-me por lembrar-me de que a emoção que nos pode fazer subir tão alto traz sempre o perigo de derrubar-nos; e quanto mais alto o sonho, mais dura é a queda.
- Vamos combinar tudo - voltei a mim. - Anunciaremos em Mount Mellyn nosso noivado. E teremos um mês para preparar a lua-de-mel. Sugiro a Itália. - Sentei torcendo as mãos como uma meninazinha de escola. - Você aprova a Itália?
- Aprovaria até o Polo Norte desde que acompanhado.
- Acompanhado por mim, não é, querido? - disse-lhe em tom de aviso.
- Era justamente o que eu pretendia significar. Minha prezada Miss Leigh, como me agradam essas maneiras azedas. Elas contribuirão para tornar agradabilíssimas as nossas conversas ...
Não sei porque, mas me acudiu que êle estava-me comparando a Alice. Meu coração bateu forte:
- O que dirão em Mount Mellyn?
- Os criados e a aldeia? Ora, que importa? Você se importa? Mal posso aguardar a hora de comunicar a Peter que me caso com você. Falando francamente, sempre tive ciúme desse sujeito.
- Ciúme sem razão.
- Ainda assim. Dava-me engulhos pensar nele tentando convencê-la a acompanhá-lo à Austrália. Era injusto o meu ciúme?
- Não terá nunca necessidade de enciumar-se.
E eis-me outra vez em seus braços, alheia a tudo o mais. Eu descobrira o amor e acreditava, tal qual as imensas legiões de enamorados, que não existia um amor igual ao nosso.
- Bem, voltemos depois de amanhã - decidiu-se. - Remeta os convites e dê um baile para participarmos o noivado.
- É assim que se faz?
- E a tradição, querida. Alguma coisa a preocupa?
- Quanto aos habitantes da aldeia, não.
- Minha Marty, dessa vez iniciaremos juntos o baile. Nunca lhe falei do meu primeiro casamento. Não foi um casamento feliz.
- Lamento.
- Casamento resolvido por outros. Agora, caso por livre escolha. Só quem já sofreu o primeiro processo de casar pode imaginar como é bom o segundo. Querida, não tenho levado uma vida de santo, reconheço. Mas Alice e eu não combinávamos.
- Fale-me dela.
- Era uma criatura gentil, sossegada, ansiosa por causar boa impressão. Não andava de moral alta e logo eu soube porque: amava outro e casava-se comigo.
- O homem com quem ela fugiu? Moveu afirmativamente a cabeça:
- Pobre Alice. Escolheu o marido errado e o amante errado. Não havia muito o que escolher entre mim e o Geoffrey Nansellock.
- Você estará pretendendo dizer que teve muitos casos de amor?
- Estou pretendendo dizer que fui um pirata porque a partir de agora e até à morte serei o mais fiel dos maridos. E felizmente acho que você me acredita. Deus a abençoe por acreditar. Não quebrarei o juramento, querida. - Beijou minha mão, profundamente compenetrado: - Eu a amo, Marty. Lembre-se disso; lembre-se sempre disso. Não se deixe envenenar pelos mexericos.
- Todos ouvem, mexericos - admiti.
- Já ouviu que Alvean não é minha filha? Ah, querida, é a pura verdade. Nunca pude amar essa criança. Ela representava um lembrete permanente de tudo quanto eu mais desejava esquecer. Mas você se transformou em mãe de Alvean; e agora, sim, sinto-me o pai.
- Seremos tão felizes, Connan!
- Prevê o futuro?
- Posso prever o nosso porque êle será o que quisermos que seja. Por isso será também de felicidade completa.
- E o que Miss Leigh decide, acontece. Mas prometa-me que não se afligirá com as intriguinhas a meu respeito ?
- É Lady Treslyn o que você tem em mira - retruquei-lhe. - Já sei. Ela era sua amante. - A palavra escapou-me, não sem que eu me espantasse de estar podendo abordar com tanta calma um assunto assim. Era preciso saber toda a verdade, porém. E diante da sua silenciosa confirmação, perguntei-lhe: - Já está tudo acabado?
- Não lhe jurei fidelidade eterna? - sorriu, beijando-me a mão.
- Mas ela é tão bonita! E ainda continua morando lá.
- Acontece que estou apaixonado pela primeira vez na vida. Eu sei: entusiasmo às vezes parece amor; mas quando se encontra o amor verdadeiro, logo o reconhecemos à primeira vista. Querida, sepultemos o passado. Vivamos uma vida nova daqui por diante . . . nós dois . . . para o bem, para o mal.
De manhã contei a Alvean a novidade. No primeiro instante, aflorou-lhe apenas um sorriso de simpatia no canto da boca; quis fingir indiferença; era no entanto palpável a sua alegria.
- Ficará conosco para sempre ?
- Para sempre;
- Como vou chamá-la? Será minha madrasta, não é? Então devo chamá-la mamãe. - Comprimiu os lábios.
- Se você preferir, chame-me Martha na intimidade. Ou Marty. Era assim que me tratavam meu pai e minhas irmãs.
- Marty - repetiu. - Gosto. Parece nome de cavalo.
- O que vale por um elogio - ri, apesar de ela receber a minha tirada ainda com muita compenetração.
Fui em busca de Gilly no quarto.
- Vou ser Mrs. TreMellyn, Gilly.
Esbugalhou os grandes olhos azuis num sorriso maravilhado. Correu para mim e mergulhou o rosto na minha saia. Ria a mais não poder.
Nunca tive plena certeza do que se passava no íntimo daquela criança. Uma coisa era certa: agora exultava. Confundira-me com Alice, e assim achava muito natural que eu ocupasse o lugar dela.
Doravante, para Gilly, eu seria Alice.
Foi uma viagem jovial a de regresso. Cantamos todo o tempo, desde a estação até Mount Mellyn. Jamais eu vira Connan tão expansivo.
Quando entoamos - ''No primeiro dia de Natal meu bem-amado mandou-me uma perdiz num ramo de pereira" - interveio Alvean:
- Não foi um presente muito próprio. Acho que êle fingia gostar dela mais do que gostava.
- Mas êle era o amado dela - ponderei.
- Como é que ela podia ter certeza?
- Porque ele lhe confessara - aparteou Connan. - E devemos confiar sempre em quem ama.
Fiquei admirada ao chegarmos. Connan queria que me recebessem com todas as honras, devia ter mandado recado na frente, sem dúvida. Os criados alinhavam-se no saguão, cerimoniosamente: desde os Polgrey e os Tapperty aos do jardim e das cavalariças. Connan entrou de braço comigo. - Como sabem - foi dizendo - Miss Leigh consentiu em ser minha mulher. Dentro de umas poucas semanas será senhora desta mansão.
Os homens curvaram-se e as mulheres fizeram uma mesura. Mas, embora sorridente à medida que lhes retribuía os cumprimentos, não me escapou a exagerada circunspecção deles. Não estavam preparados ainda para me aceitarem como a senhora da casa.
Jantei com Connan e Alvean. Depois subi com ela e voltei a seguir para junto de Connan na biblioteca. Perguntou-me se eu já escrevera à minha família. Respondi-lhe que não, porque ainda não me convencera de não estar sonhando.
- Esta lembrança ajudará você a acordar - sorriu, tirando um porta-jóias da gaveta e passando-me uma bela esmeralda num quadrado cercado de brilhantes. Pôs o anel no meu terceiro dedo. - É apenas o começo de todos os encantos que lhe trarei. E a perdiz no ramo de pereira, querida.
Beijou-me a mão e decidi que, sempre que pensasse estar sonhando, olharia a esmeralda e saberia que não era sonho.
MRS. POLGREY procurou-me na manhã seguinte:
- Miss Leigh, já pus a chaleira a ferver. Quer vir ao meu quarto participar do meu chá?
Aceitei com prazer. Desejava sinceramente que se conservassem inalteradas as nossas relações, tão agradáveis e dignas até ali.
Agora, porém, ela não insinuava que misturássemos uísque ao chá. No íntimo, diverti-me com isso. E seria a senhora dali por diante, e oficialmente devia ignorar aquele pecadilho. Mrs. Polgrey mais uma vez congratulou-se comigo, revelando que a notícia fora esplendidamente recebida por todos. Indagou se eu tencionava introduzir mudanças nos hábitos da mansão. Respondi-lhe que, como o governo da casa vinha sendo tão eficientemente exercido por ela, eu não introduziria modificação alguma. Foi-lhe um alívio, vi logo. Animou-se então a ir ao cerne do assunto:
- Enquanto a senhora esteve ausente, Miss Leigh, houve aqui um torvelinho de comentários a respeito do súbito falecimento de Sir Thomas.
- Mas agora êle já foi sepultado - sublinhei com o coração na boca.
- É, mas isso não significa necessariamente o fim do caso, Miss Leigh. Há rumores, rumores maldosos. E há cartas anônimas.
- Endereçadas a . . . quem?
- A viúva . . . e também a outras pessoas. Por isso vão exumá-lo. Haverá autópsia.
- Quer dizer . . . quer dizer que suspeitam de envenenamento ?
- Bem, houve as cartas, compreenda. Tendo êle morrido assim tão de repente ... - E parou os olhos nos meus.
Revivi a hora em que Connan e Laàdy Treslyn, na sala do ponche, riam juntos. Já me amaria êle? Escutei de novo as palavras que ela dirigira no fim da festa: "Não vai demorar muito . . . "
Pensei também naqueles fiapos de conversa que eu surpreendera no bosque.
Uma dúvida martelava-me o cérebro. Não permiti, no entanto, que ela se fixasse. Não ousei permitir.
Encarei estupidamente Mrs. Polgrey.
- Pensei que a senhora devesse saber - disse ela.
CAPÍTULO 8
APODERARA-SE de mim um pavor indizível desde que eu chegara a esta casa. A mulher de Sir Thomas sempre quisera livrar-se dele; constituía segredo de polichinelo o fato de ela e Connan serem amantes. Existiam dois empecilhos à união: Alice e Sir Thomas. Ambos tiveram morte repentina. Uma suspeita repulsiva martirizava-me. Connan já soubera da exumação? Seria eu a presa de um cínico? E por que não empregar logo a palavra correta? - seria eu a presa de um assassino? Não podia crer. Amava Connan. Como me atrevia a pensar o pior sobre êle, na primeira circunstância difícil ? Uma idéia medonha se instalou em mim: Martha Leigh, sinceramente acredita que um homem como Connan TreMellyn possa apaixonar-se por você?
- Sim, acredito - respondi-me em voz alta. - Acredito sim! Mas a dúvida teimava na amargurada mulher em que eu me transmudara.
Consultei Connan sobre o caso Treslyn.
- São uns intrigantes - resmungou. - A autópsia provará a morte natural. O seu médico sempre me disse que êle acabaria morrendo assim.
- Será um grande aborrecimento para Lady Treslyn.
- Ela não se deixará aborrecer, pois nada existe que justifique aborrecimento. Mesmo porque, desde que a andam atormentando com cartas anônimas, ela própria terá o máximo interesse em submeter a questão a um tribunal.
Imaginei o tribunal em funcionamento. Connan já meu noivo - e êle se mostrara muito ansioso em comunicar oficialmente o nosso noivado - seria provável que os juízes encarassem o caso de outro ângulo, oposto àquele em que se colocariam se acreditassem que Lady Treslyn queria desposá-lo ?
Os convites para o baile foram expedidos depressa. Muito depressa, refleti. O baile seria no quarto dia após o nosso regresso. Lady Treslyn, devendo velar os restos mortais do marido, obviamente não compareceria.
Celestine e Peter visitaram-nos na véspera do baile. Celestine beijou-me:
- Querida, como estou contente! Observei-a com Alvean e sei bem o que tudo isso representa para ela. Alice apreciaria tanto . . .
- Você sempre foi uma boa amiga - respondi.
Peter tomou-me a mão, apenas roçando-lhe os lábios. O olhar desgostoso de Connan encheu-me de felicidade; envergonhei-me das minhas suspeitas.
- Afortunado Connan! - gritou Peter espalhafatosamente. - Ocioso dizer-lhe quanto o invejo. Trouxe Jacinth. Eu já lhe prometera dá-la de presente, não foi? Pois será o seu presente de casamento.
- Nosso presente de casamento - corrigi, fitando Connan. - Obrigada, Peter. É um presente generoso.
- Eu queria mesmo um bom lar para ela. - Puxou-me à parte: - Sabe que embarco no fim da próxima semana?
- Tão perto ?
- Não há mais nada que me prenda aqui. - Dirigiu-me um olhar significativo e Kitty, servindo o vinho, apurou o ouvido. - Trate bem de Connan, Miss Leigh. Já vi que Alvean concorda. Suspeito mesmo de que, entre a senhora e Miss Jansen, Alvean sempre a preferiu.
- Coitada de Miss Jansen! Que fim terá levado?
- Celestine ajudou-a a arranjar outro emprego. É na casa de uns amigos nossos, os Merrivales. Moram em Hoodfield Manor, próximo de Tavistock.
- Ainda bem. Celestine foi muito bondosa em socorrê-la.
- Problema de Celestine - ergueu o copo. - A sua felicidade, Miss Leigh. E se por acaso mudar de idéia, há uma casota à sua espera na Austrália. Eu estarei sempre à espera, Miss Leigh.
- E sempre que eu montar Jacinth, me recordarei do seu primeiro nome, Miss Jansen. E também de você, Peter.
O BAILE foi um sucesso. Até a mim surpreendeu a espontaneidade com que todos me aceitaram. Talvez os que realmente apreciassem Connan se sentissem aliviados por êle casar com uma jovem de boa família. Na certa não desejavam vê-lo no escândalo da morte de Treslyn.
Um dia após o baile, Connan viu-se obrigado a viajar a negócios.
- Negligenciei um mundo de coisas enquanto estivemos em Penlandstow. Outros assuntos monopolizavam-me a atenção. Penso regressar em uma semana. E quando regressar, estaremos a uma quinzena do nosso casamento. Melhor que você se apresse. Se achar que deve alterar qualquer coisa na casa, faça-o. Mas não seria contra-indicado consultar Celestine. Ela tem larga experiência de casas antigas. .
Prometi apenas para contentá-lo e porque também desejava agradá-la.
- Ela foi ótima comigo desde o início. Sempre lhe serei grata por isso.
Despediu-se de mim, que lhe acenava do alpendre.
Quando me virei, dei com Gilly atrás de mim. Desde que eu lhe dissera que ia ser Mrs. TreMellyn, habituara-se a seguir-me por todos os cantos. Alice TreMellyn desaparecera; pois ela me vigiaria bem para que o mesmo não me sucedesse.
- Olá, Gilly.
Ela baixou a cabeça naquele cacoete característico e segurou-me a mão com força.
- Gilly, dentro de três semanas estarei casada e serei a mulher mais feliz deste mundo.
Meditei nas palavras de Connan no tocante a alterações na casa. Ainda existiam dependências que eu não conhecia.
Lembrei-me de Miss Jansen, que habitara outro quarto, não o meu. Ainda não vira esse quarto e resolvi conhecê-lo.
Venha, Gilly. Vamos visitar o quarto de Miss Jansen. Nao havia lá nada fora do comum, exceto um quadro. Gilly puxou-me por um braço para perto dele. Atrás do quadro existia uma seteira! Espiei por ela e vi a capela, de ângulo oposto ao da porta existente no terraço.
Gilly ficou encantada de mostrar-me a seteira. Acompanhou-me ao meu quarto.
Não desistia de vigiar-me.
Um sudoeste tempestuoso soprou do oceano durante toda a noite e todo o dia. A chuva batia horizontalmente nas vidraças e se diria que até os sólidos alicerces de Mount Mellyn vergavam. Pela manhã o céu clareou um pouco; a chuva torrencial cedeu lugar a uma leve garoa.
Ao almoço Mrs. Polgrey revelou que Lady Treslyn andara à procura de Connan.
- Está muito inquieta - observou Mrs. Polgrey. - Não descansa enquanto não puserem uma pedra nesse tenebroso assunto.
Alvean e eu descemos à tarde para apanhar os cavalos.
- Jacinth está nervosa hoje - avisou-me Billy.
- É porque descansou até agora. - Bati-lhe de leve no focinho e ela o esfregou em mim, toda amorosa.
Trotamos pelo aclive, passamos a enseada e Mount Widden, mais adiante subimos a estrada do penhasco. Acostumara a utilizar essa estrada porque, visto dela, o panorama era um espetáculo. Divisava-se lá embaixo o contorno ondulante da costa, estirado à nossa frente. Às vezes a estrada levava diretamente ao mar, para depois subir, estreita e vertiginosa.
Não era um passeio que dispensasse prudência; a chuva tornara o barro escorregadio. Comecei a preocupar-me com Alivean. Estava firme na sela - não era mais uma noviça no esporte. Mas eu conheço bem as manhas dos cavalos. Por vezes eu tinha de conter Jacinth com toda a disposição, porque um galope lhe saberia muito melhor do que esse passo mole e cauteloso sobre caminhos bem mais perigosos do que os usuais.
Na estrada havia uma garganta estreita. Logo acima agigantava-se o topo do penhasco, coroado de tojos e espinheiros; logo abaixo, a penedia despencava-se sobre o mar. Em geral, não havia perigo. Naquele dia, contudo, tinha havido desmoronamentos. Pensei em retroceder; para retroceder, no entanto, teria de explicar a Alvean os meus receios, o que, por motivos óbvios, eu sempre evitava durante a equitação. Melhor prosseguir um pouco adiante e fazer meia-volta rumo a um chão mais firme.
Ao alcançarmos a garganta, íamos em fila indiana, Jacinth à frente do cavalo de Alvean. Firmei-me nos estribos e virando-me na sela recomendei-lhe :
- Bem devagar aqui.
Aí escutei o estouro. Retesei-me na sela e uma pedra imensa passou rolando, desabada do alto, arrastando uma chuva de seixos menores e galhos de arbustos. Passou a poucos palmos de Jacinth e caiu no mar.
Jacinth relinchou apavorada, pronta para pular até mesmo dentro do abismo. E foi uma sorte eu ser uma amazona experiente. Em segundos domei a égua, falando-lhe numa voz que queria parecer confiante, quando eu estava literalmente intimidada.
- Que houve? - acudiu Alvean.
- Já passou - respondi tentando aparentar calma. - Você livrou-se muito bem.
Embora todo o meu empenho em contrário, o fato é que eu me assustava tremendamente. Espiei em pânico o topo do penhasco, sem ao menos saber o que procurava. Além dos robustos tojos, mais nada. Ou teria havido mesmo aquele movimento que me parecera ver antes do rolar da pedra? Ou tudo não era senão imaginação? Que excelente oportunidade aquela, convenhamos, para alguém descartar-se de mim! Pois -se uma pedra se deslocara com a chuva, muito fácil seria empurrá-la na hora em que eu passava. E ninguém ignorava que eu e Alvean usávamos invariavelmente aquela estrada.
Continuemos - comandei com um calafrio. - Voltaremos para casa pela estrada de cima.
Atingimos sãs e salvas a outra estrada; e só quando cheguei em casa foi que aquilatei a intensidade do meu alarma. Uma suspeita arrepiante nascera em mim: Alice morrera; morrera Sir Thomas Treslyn; e agora eu, em vias de tornar-me a mulher de Connan, quase morria também. Sempre fui muito realista. Não seria agora que iria mudar. Suponhamos que Connan não tivesse viajado. Suponhamos que êle pretendesse que eu sofresse um acidente enquanto, todos o acreditavam em viagem. Pensei na beleza sensual e voluptuosa de Lady Treslyn. Connan confessara que haviam sido amantes. Haviam sido? Seria admissível que alguém, depois de tê-la, me desejasse a mim?
A proposta de casamento fora açodada demais. Acontecera às vésperas da exumação do marido da amante.
Eu estava realmente em pânico. E não tinha a quem pedir auxílio, talvez a Peter ou a Celestine . . . Não, a eles não. Não me senti capaz de confessar a nenhum deles minhas funestas suspeitas de Connan.
- Não fique nervosa - acautelei-me. - Mantenha a calma. Lembrei-me da mansão enorme, habitada de mistérios; uma casa onde era possível espreitar através de frestas nas paredes. Talvez existisse mais daquelas aberturas. Talvez alguém me espreitasse agora mesmo. Lembrei-me da seteira do quarto de Miss Jansen e da dispensa inesperada da preceptora. Hoodfield Manor, perto de Tavistock . . . Por que não falar com Miss Jansen? Provável que ela pudesse esclarecer alguns dos segredos desta casa.
Animei-me a escrever-lhe uma carta:
Prezada Miss Jansen:
Sou preceptora em Mount Mellyn e ouço falarem constantemente na senhora. Desejaria vê-la o mais breve possível.
Assinei e despachei a carta e procurei esquecê-la. Aguardei inutilmente uma carta de Connan. Não veio nenhuma. O esquema diabólico fazia-se cada vez mais plausível. Mas talvez a morte acidental de Alice tivesse dado a Connan e a Lady Treslyn a idéia de se livrarem também de Sir Thomas. Quem sabe não puseram veneno no copo dele aquela noite? Então Connan noivara com a preceptora para afastar suspeitas. Já agora a preceptora se transformara num obstáculo. Daí porque seria aconselhável sofresse um acidente na égua que ganhara recentemente e à qual ainda não se acostumara; estaria então desimpedido o caminho para os dois amantes assassinos.
Censurei-me por pensar assim do homem que eu amava. Porque a verdade é que o amava; amava-o tanto que preferia ser morta por êle a viver uma vida vazia sem êle.
RECEBI três dias depois uma carta de Miss Jansen. Declarava-se pronta ao encontro comigo. Iria a Plymouth no dia seguinte, e se eu concordasse em procurá-la no White Hart almoçaríamos juntas.
Avisei Mrs. Polgrey de que ia a Plymouth fazer compras. Fui direto ao White Hart. Miss Jansen já chegara - uma jovem loura muito bonita. Cumprimentou-me efusivamente. A mulher do dono do hotel levou-nos para uma saleta reservada. Servido o almoço, foi Miss Jansen a primeira a falar:
- Mount Mellyn é um lugar maravilhoso. Lamentei ter de deixá-lo. Já sabe por que me despedi?
- S . . . sei - relutei.
- Foi um caso muito desagradável. Fiquei furiosa com a infâmia. Mostrava tal sinceridade que logo acreditei; isso lhe confessei. Pareceu grata. Enquanto almoçávamos, contou a história:
- Os Treslyn e os Nansellock iam tomar chá. Naturalmente conhece.
- Conheço sim.
- Eu sempre merecera um tratamento especial - corou um bocadinho e pensei imediatamente: sim você é muito bonita; Connan também devia achar. - Convidaram-me para o chá porque Miss Nansellock queria informações sobre Alvean. Adora a menina. Assim, desci para conversar com ela, tomei meu chá e portei-me tal qual uma hóspede. Acho que Lady Teslyn não gostou muito. Eles estavam inteiramente absorvidos em mim . . . quero dizer, Mr. Nansellock e Mr. TreMellyn. Lady Treslyn tem um gênio dos diabos. Acho que foi ela quem simulou tudo.
- Não podia ser tão vil!
Pois foi. Compreenda, ela usava na ocasião um bracelete de brilhantes e o pega-ladrão partiu. "Vou tirá-lo para levá-lo a conserto na aldeia logo que sair daqui", declarou. Tirou-o, pondo-o sobre a mesa. Deixei-os ainda tomando chá e fui para a sala de aula estudar com Alvean. Inesperadamente, abriram com violência a porta e entraram todos, olhos fitos em mim: Lady. Treslyn exigia uma busca geral para descobrir o bracelete. Mr. TreMellyn, com muito jeito, declarou esperar que eu não me opusesse. Fiquei irritadíssima. "Pois procurem no quarto", enfrentei-ds. "E um insulto, mas procurem." Fomos todos ao quarto e lá, numa gaveta, escondido entre os meus guardados, encontramos o bracelete de diamantes. Lady Treslyn gritou que me mandaria prender. Todos tentaram demovê-la do escândalo. Por fim, acertou-se que, se eu partisse sem discussões, passariam uma esponja no caso. Fiquei possessa. Exigi um inquérito policial. Mas que podia eu fazer? Haviam encontrado a jóia no meu quarto.
- Deve ter sido uma passagem humilhante - comentei com um friozinho na espinha.
- Teme que lhe suceda coisa parecida ? - falou com um sorriso de candura. - Lady Treslyn vive obcecada pela idéia de casar com Mr. TreMellyn. Porque êle é um viúvo e não pertence àquela raça de homens capaz de viver sem mulher.
- Tentou conquistar a senhora?
- Pelo menos Lady Treslyn viu em mim uma futura rival. Por isso optou por aquele processo indigno visando a desembaraçar-se de mim.
- Que criatura terrível ! E Miss Nansellock? Era boa?
- Muito bondosa. Quando eu fazia as malas, entrou em meu quarto e disse: "Tudo isso me aborreceu muito, Miss Jansen. A senhora não pôs o bracelete na gaveta, pôs?" Respondi-lhe: "Miss Nansellock, juro-lhe que não." E ela: "Sei que os Merrivales precisam de uma preceptora. Interferirei pela senhora." Deu-me dinheiro, que depois lhe paguei, e escreveu aos Merrivales apresentando-me.
- Graças a Deus houve alguém para auxiliar.
- E só Deus sabe o que teria sido de mim se ela não estivesse lá na hora. É uma profissão muito ingrata a nossa, Miss Leigh. Estamos à mercê dos nossos empregadores. Procurei esquecer tudo aquilo. Dentro de seis meses me casarei com o médico dos Merrivales.
- Minhas congratulações, Miss Jansen. Aliás, eu também fiquei noiva. Vou casar com Connan TreMellyn.
- O quê! - exclamou, os olhos muito abertos. - Eu . . . desejo-lhe as maiores felicidades - gaguejou visivelmente sem graça, pondo-se naturalmente a espremer a memória para ver se não dissera alguma inconveniência de Connan. - Mas ainda não sei por que a senhora quis falar comigo.
- Há coisas que pretendo esclarecer sobre a casa. Disseram-me que a senhora é especialista em mansões seculares.
- Oh, não tanto! Já vi muitas e li um bocado a respeito. Adoro-as.
- Existe uma seteira no seu antigo quarto. Sabia?
- Morei naquele quarto três semanas antes de dar com ela. Já conhece as do terraço?
- Já.
- Dão para o salão e a capela. O salão e a capela são, aliás, as dependências mais importantes da casa desde a construção. Datam da Era de Elizabeth, como sabe. Naquele tempo, tinham que manter sempre secreta a presença de padres nas casas. Acho que foi por isso que construíram tantas seteiras.
- Muito interessante.
- Miss Nansellock é uma autoridade em mansões seculares. Nisso temos algo em comum. Ela sabe que você veio ver-me?
- Ninguém sabe.
- Quer dizer que veio sem ao menos participar ao seu futuro marido ? Confidências vieram-me à ponta da língua. Devia contá-las a uma
estranha? Desejei que fosse Phillida a minha interlocutora naquele minuto. Mas como diria eu a uma estranha: "Suspeito que o meu noivo é o cabeça de um complô para assassinar-me"?
- Ele viajou a negócios -..... expliquei. - Casamo-nos daqui a três
semanas. - As palavras brotaram-me em torrentes: - Quis encontrá-la porque acreditei que a acusaram injustamente. Muitos também pensam assim em Mount Mellyn. Quando Mr. TreMellyn regressar, lhe direi que estive com a senhora e pedirei que a convide.
- Não importa muito agora. O Dr. Luscombe sabe de tudo. Ficou indignadíssimo. Mas eu lhe disse que nada de útil resultaria em desenterrar o caso.
- Que mulher perversa essa Lady Treslyn! Mas a bondade de Miss Nansellock ...
- Exato... cortou. - Quer comunicar-lhe que vou casar com o Dr. Luscombe ? Isso a alegrará. E ainda há algo que a senhora gostatá de saber. E sobre a casa. Estive estudando prédios do período elizabethiano e meu noivo conseguiu-me uma visita a Mount Edgcumbe, na península de Cornwall. Parece-se muito com Mount Mellyn. A capela é quase idêntica, com as mesmas seteiras e pátios destinados aos leprosos. Mas em Mount Mellyn o pátio é bem maior e a arquitetura das muralhas é diferente. Para dizer a verdade, jamais vi uma casa igual a Mount Mellyn. Conte a Miss Nansellock. O detalhe a interessará muito, tenho certeza.
- Contarei. Sei, contudo, que a interessará muito saber que a senhora está feliz e que se casará breve.
- Dê-lhe lembranças minhas e o meu muito obrigado também.
Separamo-nos. Retornando à mansão, tornou-se incontestável que eu obtivera de Miss Jansen esclarecimentos inéditos e oportunos para os meus problemas. Não persistia dúvida de que Lady Treslyn recorrera a um ardil para despedirem Miss Jansen. Era muito bonita essa Miss Jansen. Connan deitara-lhe o olho e Lady Treslyn, à imitação de uma fera, não iria permitir que êle desposasse alguém que não fosse ela mesma.
Agora eu acreditava piamente que Lady Treslyn intentava descartar-se de mim como já se descartara de Miss Jansen; como eu já estava noiva de Connan, porém, vira-se forçada a lançar mão de métodos mais drásticos.
Mudei de idéia: quando Connan voltasse eu lhe diria tudo - tudo que eu desvendara, tudo o que me atormentava.
A resolução confortou-me bastante.
MAIS dois dias e nada de Connan.
Peter Nansellock veio despedir-se de mim em companhia de Celestine; embarcaria tarde da noite no trem de Londres. Julgavam que Connan já houvesse regressado; e por falar nisto, durante a visita de ambos recebi carta de Connan avisando que chegaria altas horas, ou o mais tardar no dia seguinte.
Senti-me imensamente feliz.
Enquanto lhes servia o chá, informei-os do meu encontro com Miss Jansen. Assombraram-se.
- E como foi isso ? - indagou Peter.
- Escrevi-lhe sugerindo o encontro. Ela morou aqui e era forte minha curiosidade a seu respeito. Assim, fui a Plymouth . . .
- Criatura encantadora - suspirou Peter.
- É sim. Ficarão contentes em saber que está noiva, prestes a casar com o médico da família.
- Que bom! - exclamou Celestine.
- Os clientes masculinos do marido se apaixonarão todos por ela - comentou Peter. - Lembrou-se de nós?
- Particularmente de sua irmã - sofri para Celestine. - E-lhe muito grata; você foi muito compreensiva com ela.
- Qual nada. Mas eu não podia tolerar impassível que aquela mulher fizesse o que fez.
- Acha que Lady Treslyn foi quem pôs o bracelete na gaveta?
- Não há discrepâncias sobre isso - respondeu Celestine com toda a convicção.
- Miss Jansen está bem agora. A propósito, trago-lhe um recado especial. Miss Jansen visitou Mount Edgcumbe e comparou a seteira existente na capela de lá com a daqui. Concluiu que a nossa é única . . . muito maior. Há ainda um pormenor sobre a arquitetura das muralhas . . .
- E mesmo ? Que interessante - disse Celestine. - Vamos visitá-las juntas qualquer dia destes. Você vai ser a senhora da mansão e deve manter-se a par de tudo.
- Eu ia justamente pedir-lhe que me elucidasse.
- Com prazer - prometeu com outro sorriso sedutor. Perguntei a Peter o horário do seu trem e êle me informou que seria o das dez horas.
- Vou a cavalo para a estação e deixo-a numa cocheira lá perto. Quero ir sozinho. Não desejo as despedidas de praxe. Porém, Miss Leigh - e seus olhos se iluminaram de malícia - se estiver disposta a ir comigo... ainda é tempo.
ACOMPANHEI-OS à varanda para o último adeus. Os criados também foram: Peter era o grande favorito deles. Sou capaz até de jurar que deu beijos demais em Daisy e Kitty e que todos lamentaram vê-lo partir. Tinha uma aparência muito elegante na sela; a seu lado, Celestine ficava insignificante.
Estas foram as últimas palvras que pronunciou antes de ir-se:
- Lembre-se, Miss Leigh. Se mudar de idéia . . . Ri. E todavia também me entristeci quando ele foi.
- Posso dar-lhe uma palavra? - pediu Mrs. Polgrey assim que ele partiu.
- Naturalmente - disse-lhe, acompanhando-a ao seu quarto.
- Acabo de saber o resultado da autópsia. Morte natural.
- Uff! Que alívio para mim.
- Para nós todos. Garanto à senhora que eu não estava gostando nada dos boatos.
- Deve ter sido um grande alívio principalmente para Lady Treslyn. Mrs. Polgrey encabulou. Por certo se recordara do que me dissera há tempos sobre Connan e Lady Treslyn. Resolvi varrer para sempre a cerimônia, pondo-a à vontade:
- Sabe que eu apreciaria muito se a senhora me oferecesse agora uma xícara do seu Earl Grey especial?
Ela mudou completamente. Conversamos sobre assuntos domésticos enquanto ela preparava o chá; tentando-me, tirou o uísque do armário. Aceitei, e ela apressou-se em derramar uma colher da bebida em cada xícara. Retomamos os antigos laços de cordialidade.
Desanuviei-me. Se Lady Treslyn houvesse de fato tentado assassinar-me, Connan evidentemente nada tivera com isso. Sir Thomas morrera de morte natural e assim nada mais havia para esconder. Connan não tivera qualquer razão oculta para pedir-me em casamento, amava-me - e era tudo.
Às nove horas as crianças dormiam. Impaciente, eu aguardava a chegada de Connan. A todo minuto parecia-me ouvir as patas do seu cavalo e corria à porta.
Esperava. A noite aquietara-se; também a casa. Os criados já se haviam recolhido.
Alguém se aproximava. Era Celestine. Viera pelo atalho do bosque, não pela estrada comumente usada. Mal podia respirar:
- Alô! Vim vê-la. Senti-me muito sozinha depois da partida de Peter.
- Qualquer um se sentiria - consolei-a, fazendo-a entrar.
- Peter bancava o engraçadinho a maior parte do tempo. Mesmo assim eu gostava muito dele. Agora, eis-me sem os meus dois irmãos. Connan ainda não chegou ?
- Não. Improvável que chegue antes da meia-noite.
- Sabe de uma coisa? Prefiro mesmo que esteja só. Resolvi dar uma olhada àquela seteira da capela. Desde que você me deu o recado de Miss Jansen, tenho ardido de curiosidade para examinar novamente a fresta.
- Quer ir agora?
- Sim, se não a aborreço. Tenho uma teoria: oculta atrás do altar deve existir uma porta para uma dependência qualquer da casa. Pregaríamos uma peça em Connan descobrindo-a.
- É mesmo! - concordei. - Seria engraçado.
Passamos pelo salão e de lá olhei para cima, em direção à seteira; pressenti, como sempre, que alguém me espreitava. Fui mesmo ao exagero de perceber um movimento suspeito lá em cima; não consegui ver direito e calei. Atravessamos a porta dos fundos e descemos a escada da capela. De novo o odor de mofo.
- Cheira a falta de uso - comentei, e minha voz soou cava. Celestine não respondeu. Acendera um dos candelabros do altar. A luz oscilante arremessava sombras contra a parede.
- Vamos à seteira - convidou. - É aqui, por esta porta. Há outra porta logo depois, dando para o jardim interno. Era o caminho que os leprosos utilizavam para alcançar o pátio e a sua seteira.
Ergueu o candelabro à altura da cabeça. Segui-a a uma pequena sacristia.
- É aqui? - perguntei. - Parece bem maior do que o comum. Continuou muda. Tateava a parede. Parou num ponto e virou-se para mim, sorrindo:
- Seria capaz de apostar que em algum lugar desta casa há um esconderijo, sabe ? Um sótão reservado ao padre residente e onde êle se escondia quando por aqui irrompia a Guarda da Rainha. Connan adora este lugar; ficaria satisfeitíssimo se o descobrisse. Seria o melhor presente de casamento que você poderia dar-lhe, não acha ? Ademais, o que iria você dar a quem já tem tudo? - Hesitou, a voz febril. - Espere aí! Descobri uma coisa. -. Acerquei-me, o coração aos saltos, porque a secção da parede que ela comprimia girara. Era uma porta comprida e estreita.
Olhou-me inquieta. Seus olhos dardejavam. Estendeu a mão para o interior da abertura e fez menção de entrar. De repente mudou de idéia:
- Não. Entre você primeiro. A casa é sua. Você deve ser a primeira a entrar.
Transferira-me sua excitação. Passei-lhe à frente e experimentei o impacto de um cheiro nauseabundo, nauseante.
- Não demore - recomendou. - Cuidado. Talvez haja degraus. Ergueu o candelabro e iluminou dois degraus. Eu ainda estava descendo quando a porta bateu com força atrás de mim.
- Celestine! - gritei desatinada. Não obtive nenhuma resposta. - Abra a porta! - desesperei-me. E a escuridão engoliu minha voz.
Ficara prisioneira. Prisioneira de Celestine.
A escuridão envolvia-me - gélida, lúgubre, horrível. O mais completo terror pânico sacudiu-me. Eu caíra numa armadilha. Marchara incauta para onde ela quis atrair-me. Tremia acovardada no corpo e na mente. Mesmo assim, consegui subir os dois degraus e esmurrei a porta:
- Solte-me! Deixe-me sair!
Mas eu já sabia que minha voz não subiria até ao "olho dos leprosos". E ninguém costumava ir à capela.
Agora Celestine escaparia e ninguém teria conhecimento de que ela estivera na mansão.
O pavor soluçava em minha voz de tal maneira que nem eu a reconhecia, acovardando-me cada vez mais. Não era difícil prever que ninguém se manteria vivo muito tempo naquele lugar ermo e soturno. Arranhei as paredes até quebrar as unhas e sentir o sangue escorrer pelas mãos.
Olhei em torno porque meus olhos já se iam acostumando às trevas. E vi que não estava só . . .
Alguém me precedera: os restos de Alice estavam lá. Por fim, eu a encontrara.
- Alice! bradei. - Então era aqui que você estava?
Mas os lábios de Alice permaneciam selados há mais de um ano.
Cobri o rosto com as mãos. O cheiro de morte e da putrefação nauseava. Comecei a conjeturar sobre quanto tempo Alice vivera depois que a porta se fechara sobre ela. Porque eu não devia esperar viver senão o mesmo prazo.
Acho que estive horas sem sentidos. Delirava ao recobrá-los. Escutava minha voz exprimindo-se confusamente em balbucios. Reconheci-a com dificuldade. Durante algum tempo, não fui capaz sequer de lembrar-me de quem eu era. Seria Martha? Seria Alice?
Nossas histórias semelhavam-se estranhamente. Diziam que ela fugira com Geoffrey. Diriam que eu fugira com Peter. Nossos desaparecimentos haviam sido programados com sórdida inteligência.
Sabia agora de quem era a silhueta que eu surpreendera nos estores. Era ela . . . era Celestine. Soubera, vendo pelas frestas, a minha descoberta do diário e andava-lhe à cata, desconfiava de que êle podia fornecer indícios que a comprometessem. Não amava Alvean; enganara-nos a todos com seus trejeitos. Eu também sabia agora que ela jamais amara ou amaria alguém. Amava apenas a casa. Idealizei-a debruçada à janela em Mount Widden, do outro lado da enseada, cobiçando Mount Mellyn mais fervorosamente do que qualquer mulher cobiçaria um homem. - Alice - disse em voz alta. - Somos vítimas delas, você e eu.
E era quase como se Alice também me falasse . . . narrando-me o dia em que Geoffrey tomara o trem para Londres e Celestine viera até à casa participar-lhe a sua grande descoberta na capela, imaginei Alice pálida, linda, frágil, a receber com gritinhos de prazer a notícia, depois descendo aqueles degraus para a morte. Enfim eu a encontrara e agora mutuamente nos consolávarnos e aguardava o instante de penetrar o mundo
de trevas que ela já habitava desde que acompanhara Celestine Nansellock ao "olho dos leprosos".
UM RAIO de luz muito frouxo feriu meus olhos. Alguém me transportava.
- Já morri, Alice? - indaguei. Alguém respondeu:
- Querida, minha querida . . . você está salva!
Era Connan carregando-me no colo. Senti que me punha na cama com muita gente em volta. A luz refletiu-se num cabelo quase branco: - Alice, há ali um anjo ... - ciciei.
- Sou eu, Gilly - ouvi o anjo dizer. - Gilly. Gilly chamou eles para a senhora. Gilly vigiou. Gilly viu . . .
Então fora Gilly que me recuperara para o mundo. E eu não morrera. Eram de verdade os braços de Connan, eram verdadeiros os seus carinhos.
E era a cama do meu quarto, de onde eu via aquele outro que pertencera a Alice e em cujos estores eu via a sombra da assassina de Alice, quase minha assassina também.
Dei um grito de horror. Mas Connan permanecia a meu lado.
- Já acabou tudo, meu amor, meu único amor - escutei-o, numa voz doce e macia. - Estou aqui . . . Estou aqui com você para sempre.
ESTA É a história que conto aos meus bisnetos. Exigem sempre que eu a repita. Vêm de seus folguedos no parque ou trazem-me flores do jardim, o seu melhor tributo à velha que tem o dom de os encantar com a história do seu casamento com o bisavô.
Os anos com Connan transcorreram freqüentemente tumultuosos. Continuamos sempre demasiadamente voluntariosos para podermos viver em paz permanente. Mas foram anos repletos de vida - e que pode alguém desejar mais? Tivemos cinco filhos e cinco filhas. Mais três Connan Tre-Mellyn nasceram desde o nosso casamento na igreja de Mellyn - nosso filho, nosso neto e nosso bisneto.
Ouvindo a história, as crianças exigem sempre os menores detalhes. Por que tomaram a mulher no trem como sendo Alice ? Por causa do broche que ela usava. Mas fora Celestine quem identificara a jóia como sendo uma que ela própria presenteara a Alice. Na realidade, Celestine jamais vira aquele broche em toda a sua vida.
Instigara-me a aceitar Jacinth quando Peter quis presentear-me a primeira vez, porque temia que Connan pudesse interessar-se por mim; era por isso que ela estimulava uma ligação entre mim e Peter. E fora ela quem rolara a pedra no despenhadeiro.
Fora ela também a autora das cartas anônimas a Lady Treslyn e ao promotor público, insinuando serem suspeitas as circunstâncias da morte
de Sir Thomas, porque julgara que, se estourasse um grande escândalo, estariam liquidadas ou ao menos indefinidamente adiadas as probabilidades de casamento entre Connan e Lady Treslyn. Porém não contou com a paixão de Connan por mim; e assim, ao saber que eu me casaria com êle, traçou um plano para matar-me. Também fora Celestine quem pusera o bracelete na gaveta de Miss Jansen. A preceptora começara a conhecer demais a casa, e isso inevitavelmente a acabaria levando mais cedo ou mais tarde ao "olho dos leprosos" e ao cadáver de Alice. Celestine amava apaixonadamente Mount Mellyn. Queria casar com Connan apenas para ser a senhora de Mount Mellyn. Descobrira e guardara cuidadosamente o segredo da seteira, esperando a oportunidade de assassinar Alice - e depois eu.
Não contara também com Gilly. Gilly sabia que Alice ficara em casa naquela noite porque Alice tinha o hábito de ir dar boa-noite à menina, como a Alvean. E como jamais quebrara o hábito, Gilly não acreditava que ela o tivesse esquecido daquela vez. Gilly continuou certa de que Alice jamais saíra da casa, e não se cansou de procurá-la. Fora o rosto de Gilly que eu vira na fresta. Conhecia-as todas e por elas espiava sempre na esperança de ver Alice.
Espreitando do terraço vira-me e a Celestine entrando no salão. Correra à seteira oposta e vira-nos entrar na capela. Como não seria fácil continuar vendo-nos no terraço, Gilly precipitou-se para o quarto de Miss Jansen; dali tinha ampla visão. Observou-nos desaparecer pela porta e esperou que saíssemos . . . Esperou inutilmente porque Celestine, por seguro, saiu pela porta que dava para o pátio dos leprosos, fugindo para casa. E assim, enquanto eu morria de terror na câmara da morte de Alice, Gilly montava guarda à seteira do quarto de Miss Jansen.
Connan voltara às onze e tocara a campainha chamando Mrs. Polgrey.
Devia ter-se agastado porque êle era - e ainda é - desse tipo de homem que vive a reclamar atenções e afeições permanentes dos entes queridos, e pensar que eu já estivesse dormindo pareceu-lhe inconcebível.
Imagino a cena: Mrs. Polgrey informando-o de que eu não estava no quarto, a busca, o momento angustiante em que Connan começou a acreditar naquilo que Celestine engenhosamente se esforçara para que êle acreditasse:
- Mr. Nansellock veio esta tarde despedir-se. Tomou o trem das dez ...
Ignorava eu quanto tempo se passara, antes que êle se desse conta de que eu não fugira com Peter. Celestine preparara caminho para tornar-se senhora de Mellyn; espertamente, tornara-se indispensável a Alvean e a Connan; e dois esqueletos continuariam emparedados no porão que dava para o pátio dos leprosos. Não obstante, apenas uma criança, gerada na tristeza, vivendo em sombras, desvendara a verdade.
Connan freqüentemente mencionava o alvoroço na casa quando me procuravam. Conta-me que a criança apareceu, conservando-se pacientemente em pé, diante dele, esperando a oportunidade de ser ouvida; e que lhe puxava as abas do casaco tateando palavras para fazer-se entendida.
- Deus nos perdoe - ele costuma dizer. - Demorou muito para resolvermos a ouvi-la.
- Por fim, ela os guiara até lá . . . pela porta do pátio dos leprosos. Ela nos vira, dizia.
Tudo estava muito empoeirado, e na parede localizaram uma impressão palmar. Só aí Connan começou a tomar Gilly a sério. Mas não fora fácil encontrar o ressalto da mola da porta. Houve dez minutos de procura desesperada, Connan já disposto a botar as paredes abaixo.
Encontraram enfim a mola e me encontraram. E encontraram Alice também.
LEVARAM Celestine para Bodmim a fim de ser julgada pela morte de Alice. Antes mesmo do julgamento, ficou louca furiosa. Morreu vinte anos depois, tendo-os passado internada.
Enterraram os restos mortais de Alice no mausoléu onde estivera o corpo da desconhecida. Connan e eu casamo-nos três meses depois do dia em que ele me arrancou das garras da morte; Phillida e a família compareceram ao casamento; também tia Adelaide.
Ponho-me a divagar no passado depois que conto a história às crianças. Alvean vive muito feliz, casada com um proprietário de Devonshire. Quanto a Gilly, jamais me deixou. A qualquer instante ela aparece com o café das onze horas, que nos dias mais quentes tomamos naquele mesmo caramanchão onde, pela primeira vez, encontrei juntos Lady Treslyn e Connan.
Devo confessar, que Lady Treslyn continuou um motivo de preocupação para mim nos primeiros anos de minha vida de casada, pois descobri que, além de amorosa, eu era também terrivelmente ciumenta. Mas Lady Treslyn mudou-se para Londres alguns anos depois e soubemos que se casou lá.
Peter voltou ao fim de quinze anos. Casara-se e tinha dois filhos, mas continuava pobre; retornou galhofeiro e cheio de vida como sempre.
No ínterim venderam Mount Widden; anos após, uma de minhas filhas casou com o novo proprietário e desde então passei a ter ali um prolongamento do meu lar.
E assim se foram os anos. Agora, sentada aqui, revivendo-os em pensamento, percebo Connan regressar do jardim. Não demorará muito - porque estamos sós - e ele entra aqui dizendo:
- Ah, prezada Miss Leigh!
Sempre o diz nos nossos momentos de ternura. Traz um sorriso nos lábios, a traduzir-me que me vê, não como sou agora, mas como era antes: a preceptora um tanto inconformada com o seu fado, desesperadamente agarrada à sua dignidade e ao seu orgulho - amando-o a despeito dela mesma.
Sua prezadíssima Miss Leigh.

 

 

                                                                  Victoria Holt

 

 

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