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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A BUSCA DE BRIGHID / P.C. Cast
A BUSCA DE BRIGHID / P.C. Cast

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Em vez de seguir as regras restritivas de sua família, Brighid, uma centaura, escolhe partir em busca da sorte, fazendo novos amigos e criando laços com humanos e outros seres de sua espécie. Para sua surpresa, a Grande Deusa despertou nela o poder divino do Xamã. Enquanto se divide entre aceitar uma dádiva com a qual jamais sonhou e o medo de assumir um amor proibido, Brighid tem a premonição de uma tragédia que poderá destruir todos a quem sempre amou...

 

 

 


 

 

 


ATRAVÉS DO SANGUE de uma deusa agonizante, seu povo será salvo.
Há mais de um século, mulheres começaram a desaparecer da terra verde e próspera chamada Partholon. A princípio os desaparecimentos eram esporádicos, aparentemente
aleatórios. Só quando uma horda invasora atacou o Castelo MacCallan, massacrou os bravos guerreiros do clã e escravizou suas mulheres é que a terrível verdade foi
descoberta. Os fomorianos, uma raça de demônios alados, estavam usando mulheres humanas para gerar uma nova raça de monstros. De nada significava para as criaturas
vampíricas que dar à luz fetos mutantes provocasse a morte das mães relutantes. As mulheres humanas eram incubadoras - suas mortes não eram mais do que um meio maligno
para um fim medonho.
A fúria da deusa Epona foi terrível, tanto que através de sua escolhida, a deusa encarnada Rhiannon, e seu consorte, o centauro ClanFintan, os povos de Partholon
se uniram para derrotar os fomorianos. A raça demoníaca foi destruída, mas os povos de Partholon não perceberam que o legado da guerra era mais do que morte e maldade.
Nos Ermos, bem longe do coração de Partholon, crianças aladas nasceram de mães humanas que miraculosamente sobreviveram. Parte demônio, parte humano, o pequeno grupo
de seres híbridos lutou para construir uma vida nos Ermos. Agarraram-se com firmeza à humanidade, mesmo que a recusa ao chamado do sangue sombrio dos pais lhes causasse
dor... Dor que lentamente lhes consumia a vontade, até a loucura se tornar o único repouso.
- Através do sangue de uma deusa agonizante, seu povo será salvo.
Mas Epona não se esquecera das mulheres que nunca perderam a esperança e permaneceram fiéis à Deusa, embora não pudessem voltar a Partholon com seus filhos alados.
A Grande Deusa sussurrou a profecia aos seus filhos destituídos, e a promessa de salvação soprou esperança na raça de meio-demônios.
Um século se passou lentamente e o povo alado esperou pela resposta às suas preces. Partholon se recuperou e prosperou novamente, e a Guerra Fomoriana se tornou
uma lembrança enterrada na história.
E então uma criança nasceu, parte humana e parte centauro. Tocada pela mão poderosa de Epona, o bebê recebeu o nome de Elphame. Através dos sonhos, a menina chamava
Lochlan, o líder dos meio-demônios alados que aguardavam nos Ermos. A criança se tornou adulta, e Lochlan seguiu os vestígios de seus sonhos até o Castelo MacCallan,
onde Elphame despertou mais do que as pedras de uma antiga ruína.
- Através do sangue de uma deusa agonizante, seu povo será salvo.
Por amor a Lochlan e confiança em sua Deusa, Elphame cumpriu a profecia, sacrificando uma parte de sua própria humanidade junto com o coração de seu irmão ao salvar
a raça de fomorianos híbridos. Agora essa nova linhagem de seres estava finalmente voltando para casa. Mas a luta só tinha começado. Lembre-se, não era fácil trilhar
o Caminho da Deusa...
Um
ELPHAME ESTAVA EXATAMENTE onde a caçadora imaginou que estaria - não que fosse necessário o talento de uma centaura caçadora para rastrear a chefe do clã. O hábito
d'A MacCallan de visitar aquele ponto específico dos rochedos no penhasco se tornara bem conhecido. Daquele ponto privilegiado, na mais alta das rochas imensas e
desgastadas pelo tempo, Elphame podia se sentar e olhar para o norte, na direção das Montanhas Trier, que eram apenas uma linha roxa dentilhada sobressaindo no horizonte.
Ficava fitando aquela linha distante, tentando enxergar os Ermos mais além.
Brighid se aproximou de Elphame em silêncio, relutante em perturbá-la. Mesmo depois de viver e trabalhar perto de Elphame por mais de dois ciclos completos da lua,
Brighid ainda se comovia com a visão do ser único que se tornara sua amiga e também sua chefe de clã. Nascida a filha mais velha da Deusa Encarnada de Partholon
e do xamã centauro que era seu consorte, Elphame era humana só até a cintura; suas duas pernas eram mais equinas que humanas. Eram tremendamente poderosas e cobertas
por uma bela pelagem reluzente, terminando em dois cascos de ébano.
Mas as diferenças físicas não eram tudo que distinguia Elphame. Ela carregava consigo os poderes concedidos por Epona. Comunicava-se com o Reino dos Espíritos através
da afinidade com a magia de terra. Elphame podia ouvir os espíritos das pedras do Castelo MacCallan. Também possuía uma conexão especial com Epona, tanto que Brighid
geralmente sentia a presença da Deusa benfeitora de Partholon quando Elphame invocava a bênção matutina ou agradecia à Deusa ao fim de um dia particularmente produtivo.
E, claro, todos tinham testemunhado o favor de Epona quando Elphame invocou a força e o amor de uma Deusa para derrotar a loucura dos fomorianos...
Brighid estremeceu, não querendo se lembrar daquele dia medonho. Era suficiente saber que sua chefe de clã era uma miraculosa mistura de centauro e humana, deusa
e mortal.
- Teve sucesso na caçada matinal? - perguntou Elphame, sem se virar para olhar a caçadora.
- Bastante. - Brighid não ficou surpreendida com a chefe pressentindo sua presença. Os poderes sobrenaturais de Elphame eram aguçados e acurados. - A floresta que
cerca o Castelo MacCallan não é vasculhada propriamente há mais de cem anos. A caça praticamente salta diante de minhas flechas, implorando para ser escolhida.
Os lábios carnudos de Elphame se ergueram numa alusão de sorriso.
- Cervo suicida? Isso me soa um prato realmente único.
Brighid bufou:
- Não conte a Wynne. Aquela cozinheira exigirá que eu escolha o temperamento dos animais com mais cuidado para que seus cozidos tenham sabor mais perfeito.
A MacCallan tirou o olhar das montanhas distantes e sorriu.
- Seu segredo está a salvo comigo.
Fitando os olhos de Elphame, Brighid foi surpreendida pela tristeza contida ali. Só os lábios dela sorriam. A MacCallan não mostrava esse rosto assombrado para o
público em geral - era um raro privilégio ter consentimento para tal intimidade. Por um momento, Brighid temeu que a loucura fomoriana emboscada no interior do sangue
da amiga tivesse despertado, mas logo desconsiderou a ideia. Brighid não enxergava ódio ou fúria dentro dos olhos de Elphame, via apenas profunda tristeza. Tinha
pouca dúvida quanto à fonte dela. Elphame estava feliz ao lado de Lochlan. O clã estava saudável e próspero. Sua chefe devia estar contente. E Brighid sabia que
Elphame estava, exceto por um detalhe.
- Está preocupada com ele. - Brighid estudou o perfil forte de Elphame quando seu olhar se voltou novamente para o horizonte.
- Claro que estou preocupada com ele! - Ela pressionou os lábios numa linha fina. Quando falou outra vez, a voz estava triste e resignada: - Sinto muito. Não pretendia
descontar em você, mas ando preocupada com ele desde a morte de Brenna. Ele a amava muito.
- Todos nós amávamos a pequena curandeira - disse Brighid.
Elphame suspirou:
- É porque ela era especial. O coração dela era incrivelmente grande.
- Você teme que Cuchulainn não se recupere da perda.
Elphame fitou as montanhas distantes.
- Não seria tão ruim se ele estivesse aqui, se eu pudesse conversar com ele e saber como está passando. - Meneou a cabeça. - Mas não podia impedi-lo de partir. Ele
disse que tudo aqui o lembrava Brenna, que nunca aprenderia a viver sem ela aqui. Quando partiu, era apenas um fantasma de si mesmo. Não... - ela reconsiderou a
comparação - ... não um fantasma de si mesmo. Era mais como uma sombra do que costumava ser...
A voz de Elphame sumiu. Brighid ficou ao lado da chefe, que se debatia em silêncio de preocupação com o irmão, e os próprios pensamentos da caçadora se puseram a
recordar a pequena curandeira, Brenna. Assim como Brighid, viera até o Castelo MacCallan procurando por uma nova vida e um novo começo, mas a curandeira desfigurada
encontrara muito mais. Encontrara o amor nos braços do irmão guerreiro da chefe, que era capaz de enxergar a beleza do coração que existia por trás das terríveis
cicatrizes de queimadura. Brighid recordou o quão espetacularmente feliz a amiga estava - até o momento de sua morte prematura. Que sua morte tivesse dado início
aos eventos que levaram à salvação de um povo pouco servia para curar a ferida deixada por sua ausência. E agora Cuchulainn estava nos Ermos para guiar de volta
a Partholon o próprio povo que acarretou a morte de sua amada.
- Foi por insistência dele - disse Elphame baixinho, como se pudesse pressentir o caminho dos pensamentos de Brighid. - Não culpou os outros fomorianos pela morte
de Brenna. Compreendeu que a assassina estava sob controle da loucura contra a qual todos lutavam.
Brighid assentiu:
- Cuchulainn só culpou a si mesmo. Talvez trazer os fomorianos híbridos para casa sirva como ato de conclusão. Lochlan disse que muitos em seu povo ainda são crianças.
Talvez elas ajudem na cura de Cuchulainn.
- Recuperar-se sem o toque de uma curandeira é um processo difícil - murmurou Elphame. - Só odeio pensar que está sofrendo e sem... - Ela se interrompeu com uma
risada seca.
- O quê? - perguntou Brighid.
- Sei que parece tolice, afinal Cuchulainn é um guerreiro renomado por sua força e coragem, mas odeio pensar que ele está sem a família por perto enquanto está sofrendo.
- Especialmente sem a irmãzona?
Os lábios de Elphame se retorceram.
- Sim, especialmente a irmãzona. - Ela suspirou novamente. - Partiu há muito tempo. Achei que estaria de volta a essa altura.
- Você sabe que o relatório do Castelo Guardião dizia que uma grande nevasca de primavera assolou as montanhas e fechou a passagem para os Ermos. Cuchulainn teria
que esperar até o próximo degelo e, então, teria que viajar devagar, tendo cuidado para não sobrecarregar a força das crianças. Deve ser paciente - avisou Brighid.
- A paciência nunca foi uma de suas virtudes, meu coração.
A voz profunda veio de trás delas. A caçadora e sua chefe se viraram para observar o homem alado terminar sua aproximação silenciosa. Brighid imaginava se um dia
se acostumaria ao fato de tal ser existir. Parte fomoriano e parte humano, Lochlan nascera uma anomalia. Mais humano que demônio, ele e seus semelhantes tinham sido
criados em segredo pelas mães humanas na adversidade dos Ermos, ao norte das Montanhas Trier. Era alto e delgadamente musculoso. Suas feições eram definidas e atrativamente
humanas, mas a luminescência da pele indicava sua herança sombria. E também existiam as asas. Agora estavam em repouso, bem dobradas às costas, apenas com a face
externa cor de tempestade visível. Mas Brighid as vira bem abertas, em terrível magnificência. Era uma visão que a caçadora não se esqueceria com facilidade.
- Bom dia, caçadora - disse ele calorosamente ao se aproximar delas. - Wynne me disse que você retornou essa manhã com uma caça espetacular e que teremos filés de
cervo para a refeição da noite.
Brighid inclinou a cabeça num breve aceno, reconhecendo o elogio ao se afastar para que Lochlan pudesse cumprimentar a esposa.
- Senti sua falta de manhã - disse ele, pegando a mão de Elphame para beijá-la com carinho.
- Sinto muito. Não conseguia dormir e não quis acordá-lo, então... - Ela encolheu os ombros.
- Está impaciente pelo retorno de seu irmão, e isso a deixa inquieta - afirmou ele.
- Sei que ele é um guerreiro, e sei que estou pensando com o coração de uma irmã no lugar da mente de uma chefe, mas estou preocupada com ele.
- Sou um guerreiro, mas se perdesse você, perderia minha alma. Ser um guerreiro não impede um homem de sofrer. Cuchulainn também tem feito parte de meus pensamentos
ultimamente. - Lochlan fez uma pausa, escolhendo as palavras com cuidado. - Talvez um de nós devesse ir atrás dele.
- Quero ir. Até pensei nisso, mas não posso partir. - A frustração de Elphame inundou-lhe a voz. - O clã é muito novo, e ainda há muito trabalho a ser feito na reconstrução
do castelo.
- Eu irei. - Brighid falou num tom simplesmente prático.
- Você? - perguntou Elphame.
A caçadora assentiu e deu de ombros.
- A floresta está tão repleta de caça que até mesmo os guerreiros humanos podem facilmente manter o castelo abastecido. Ao menos por enquanto - acrescentou com um
sorriso. - E será necessária a habilidade de uma caçadora para seguir a trilha que Cuchulainn tomou pelas montanhas. - Ela olhou explicitamente para Lochlan. - Não
é?
- É um caminho obscuro, e, mesmo que eu saiba que Cuchulainn e os outros o terão demarcado, ainda seria difícil de ser encontrado e seguido - concordou ele.
- Além disso, a caça é escassa nos Ermos. Ao menos poderei aliviar o fardo da fome enquanto se preparam para a viagem. - Brighid sorriu para sua chefe. - Uma caçadora
é sempre companhia bem-vinda, especialmente quando há bocas famintas para se alimentar.
- Uma amiga também é sempre uma companhia bem-vinda - disse Elphame, a voz ficando embargada de emoção. - Obrigada. Você deu um alívio enorme à minha mente.
- Cuchulainn provavelmente vai me considerar uma pobre substituta para a irmã - disse Brighid a grosso modo, para encobrir as próprias emoções. Importava-se com
Elphame como se importaria com um membro da própria família. Não, corrigiu silenciosamente a caçadora, foi da minha família que escapei ao me juntar ao clã MacCallan.
É muito mais fácil me importar com Elphame.
- Ele não vai pensar uma coisa dessas. - Elphame riu.
- Desenharei um mapa que torne seu caminho mais claro - disse Lochlan. Então pousou a mão com leveza sobre o ombro da caçadora. - Obrigada por fazer isso, Brighid.
Ela olhou nos olhos do homem alado e conteve a vontade de encolher-se ao seu toque. A maioria do clã estava lentamente aceitando Lochlan como consorte de Elphame.
Ele era meio-fomoriano, mas provara sua lealdade à chefe e ao clã. Porém Brighid não conseguia sufocar a sensação incômoda que estar na presença dele sempre despertava.
- Parto logo pela manhã - disse a caçadora com resolução.
Brighid odiava neve. Não que fosse um desconforto físico. Como acontecia com todo centauro, o calor natural de seu corpo só não a isolava eficientemente das mudanças
climáticas mais severas. Odiava a neve em sua essência. Ela amortalhava a terra num manto de umidade dormente. As criaturas silvestres se entocavam ou fugiam para
terras mais quentes. Concordava com os animais. Levara cinco dias para viajar ao norte desde o Castelo MacCallan, atravessando a densa floresta até a boca da passagem
obscura que Lochlan esboçara em seu mapa detalhado. Cinco dias. Brighid bufou de desgosto. Poderia muito bem ser um humano cavalgando em círculos num cavalo imbecil.
Tinha esperado viajar o dobro da distância em metade do tempo.
- Maldita neve - murmurou, a voz soando estranha nas paredes das montanhas avultosas. - Deve ser essa aqui. - Ela estudou a formação rochosa singularmente talhada
à procura de algum sinal de que o pequeno grupo de Cuchulainn tivesse entrado ali. Brighid achava que Cuchulainn teria marcado o caminho, embora fosse improvável
existir outro agrupamento de rochas vermelhas que se parecessem exatamente com a boca aberta de um gigante, com direito a língua estendida e dentes serrilhados.
Seus cascos faziam ruídos úmidos e abafados conforme se aproximava do túnel escancarado.
De repente, o ar foi tomado pelo som agitado de asas fortes e uma forma preta se lançou para pousar na rocha em forma de língua.
Brighid parou abruptamente e apertou os dentes. O corvo entortou a cabeça e grasnou para ela. A caçadora fez cara feia.
- Vá embora, pássaro miserável! - gritou, agitando os braços.
Sereno, o corvo a encarou com seu olhar frio e negro. Depois, lenta e distintamente, bateu por três vezes na lateral da rocha com o bico antes de abrir as asas e
se lançar ao ar primorosamente, esvoaçando tão baixo que agitou os cabelos de Brighid, que se obrigou a não se abaixar. Franzindo a testa, a caçadora se aproximou
da rocha. Os pés da ave tinham deixado marcas em forma de garras na neve, de modo que o vermelho da rocha ficava visível em linhas cor de ferrugem que contrastavam
com o quadro de inverno. Ela estendeu a mão e espanou a área, sem sentir surpresa quando o talho do caminho de Cuchulainn se tornou visível, apontando para dentro
da boca do túnel.
Brighid meneou a cabeça.
- Não quero sua ajuda, mãe. - Misteriosamente, a voz arremeteu de volta das paredes do túnel. - O preço que você cobra por isso sempre foi alto demais.
O grasnado do corvo foi trazido por um vento que de súbito, como que por mágica, parecia quente, carregado de perfumes e sons da Planície dos Centauros. Brighid
fechou os olhos para conter uma onda de saudade. O verde das campinas ondulantes era mais do que uma cor - acolhia perfume e textura quando a brisa morna soprava
por elas. Era primavera na Planície dos Centauros, completamente diferente daquele mundo frio e branco das montanhas. O capim estaria chegando na metade do jarrete,
pontilhado com a orgulhosa exibição das flores silvestres azuis, brancas e roxas. Brighid respirou fundo e sentiu o gostinho de casa.
- Pare! - Abriu os olhos. - É um blefe, mãe. A liberdade é a única coisa que a Planície dos Centauros não me oferece!
O chamado do corvo esvaiu e morreu, levando consigo o cálido vento com sabor de lar. Brighid estremeceu. Não deveria ficar surpresa com a mãe enviando um guia espiritual.
A sensação de expectativa que tinha sentido durante todo o dia fora instigada por mais do que a aproximação da entrada para a passagem da montanha. Brighid devia
ter pressentido a mão da mãe. Não, corrigiu-se Brighid, ela tinha pressentido - deveria ter reconhecido.
Fiz minha escolha. Sou a caçadora do clã MacCallan - um membro jurado do clã. Não me arrependo da minha escolha.
A caçadora ergueu os ombros e entrou no túnel, desvencilhando-se física e mentalmente dos efeitos persistentes da presença da mãe. Ficou subitamente contente porque
a passagem estava coberta com neve suficiente para exigir toda sua concentração e bastante de sua vasta força física para que caminhasse. Não queria pensar na mãe,
nem na beleza familiar da terra natal que decidira deixar para sempre.
O dia ainda estava no começo. De acordo com Lochlan, conseguiria se livrar das partes mais traiçoeiras da trilha antes que escurecesse. Se tudo corresse bem, no
dia seguinte encontraria o acampamento fomoriano e Cuchulainn. Acertou o passo, tomando cuidado para não pisar em falso e prender o casco numa fenda escondida na
neve. Brighid se concentrou no trajeto. Não pensou na mãe nem na vida que abandonara. Ignorou a culpa e a solidão que acompanharam cada decisão. Tinha feito a escolha
certa. Estava certa disso. Mas só porque tinha escolhido com sabedoria não significava que tivesse tomado o caminho mais fácil.
Ao se arrastar por uma curva estreita e escorregadia na trilha traiçoeira, sorriu numa ironia amarga. O caminho físico que decidira tomar estava rapidamente se provando
quase tão difícil quanto o caminho de vida que tinha escolhido.
Distraída com sua confusão interna e seus desafios externos, os sentidos perspicazes da caçadora só registraram os olhos observadores no subconsciente, como uma
breve sensação de inquietude. Uma sensação negligenciada por acreditar serem vestígios de irritação com a interferência do emissário espiritual da mãe.
Imperturbáveis na escuridão, os olhos cintilaram na cor de sangue velho conforme continuavam a observar e esperar.
Dois
O MALDITO VENTO era interminável. Cuchulainn achava que essa era a coisa que mais desgostava nos Ermos. Podia suportar o frio, ao menos em doses limitadas. Podia
até achar a terra descampada e as estranhas plantas rasteiras incomuns e interessantes. Mas o maldito vento era um tormento constante. Uivava incessantemente e irritava
a pele exposta até deixá-la áspera de tão esfolada. O guerreiro estremeceu e puxou o capuz da capa debruada de pele sobre a cabeça. A noite estava se aproximando
com rapidez, e, apesar de estar nos Ermos há menos de dois ciclos inteiros da lua, já tinha aprendido a respeitar o quanto era perigoso ficar em local aberto ao
pôr do sol, mesmo que por pouco tempo.
Cuchulainn parou e se agachou para estudar as distintas reentrâncias de cascos na neve. Os rastros eram recentes. O vento açoitador não teve tempo de obscurecê-las.
O carneiro montês não podia estar muito longe.
A jovem loba deu uma choramingo abafado ao pressionar o focinho frio no flanco de Cuchulainn. Distraído, ele afagou a loba.
- Com frio e fome também, não é, Fand?
A loba choramingou novamente e esfregou o nariz molhado debaixo do queixo dele. Abruptamente Cuchulainn se ergueu e apertou os cordões da capa.
- Razão ainda maior para pegar o carneiro. Venha, ele não está muito à nossa frente. Vamos andar logo isso.
O choramingo da loba parou conforme avançavam. Embora ainda não totalmente crescida, era completamente devotada ao pai adotivo. Aonde Cuchulainn fosse, Fand acompanhava.
Cuchulainn acertou o passo, imaginando os gritos felizes das crianças quando levasse a caça para o acampamento. Por um brevíssimo instante, os pensamentos do guerreiro
se abrandaram. As crianças foram realmente inesperadas. Não que não soubesse que elas existiam. Tinham sido o ímpeto de sua missão. Era sua tarefa viajar aos Ermos
e guiar as crianças dos fomorianos híbridos, ou neofomorianos, como gostavam de ser chamados, para Partholon, o lar de suas mães humanas há muito falecidas. Mas
pensar numa coisa e fazê-la de fato geralmente era tão dissimilar quanto a severidade dos Ermos e a prosperidade verde de Partholon.
Os neofomorianos, em termos gerais, foram uma surpresa atrás da outra.
Quando Cuchulainn pensava em como seria o verdadeiro encontro com os fomorianos híbridos, sua mente de guerreiro os imaginava como bárbaros, provavelmente perigosos.
Que Lochlan fosse civilizado não fazia diferença. Por mais improvável que tivesse parecido a princípio, Epona o criara para ser o consorte da irmã de Cuchulainn.
Claro que Lochlan seria diferente, mas Cuchulainn sabia muito bem que os fomorianos híbridos eram capazes de grande selvageria.
Tinham sobrevivido na dureza dos Ermos por mais de um século. E, mesmo com a loucura extirpada recentemente do sangue, ainda eram descendentes de demônios. A irmã
insistira no retorno dos híbridos a Partholon, já que aquela terra era parte da herança deles. Ela era sua chefe de clã e seria obedecida, mas Cuchulainn também
era um guerreiro experiente. Não conduziria inimigos para Partholon. Por isso, seria cauteloso e prudente. Essa era uma das razões para ter insistido em viajar sem
outros guerreiros humanos. Sozinho poderia descobrir a verdade, e sozinho poderia voltar para alertar Partholon, se necessário.
Conforme ele e os gêmeos híbridos, Curran e Nevin, seguiam do Castelo MacCallan através da floresta ao norte até a passagem escondida nas Montanhas Trier, Cuchulainn
aguardou, observou os gêmeos e nutriu a ferida aberta que era seu pesar. Acordar a cada manhã capaz de se obrigar a executar as ações de um novo dia era um pequeno
milagre. Olhando para trás, a jornada aos Ermos fora um longo e doloroso borrão. Curran e Nevin eram companheiros de viagem silenciosos. Não pareciam mostrar qualquer
predileção por violência. Não reclamaram do ritmo que ele impôs, nem reagiram aos seus modos grosseiros e retraídos. Cuchulainn dizia a si mesmo que o comportamento
benigno deles não significava nada. Pretendia avaliar a reação dos outros fomorianos à sua notícia quando chegasse ao acampamento, e depois faria o melhor por Partholon.
Então Cuchulainn viajou para o norte, lutando contra o pesar dentro de si e imaginando demônios do lado de fora. Não tinha ferimentos físicos dos quais se recuperar,
mas a ferida que a morte de Brenna deixara em sua alma era um buraco aberto e invisível. A passagem do tempo ainda não tinha começado a amenizar a agudeza de sua
dor. Nunca se recuperaria realmente disso. Apenas sobreviveria. Havia uma distinta diferença.
Sua mente se desvencilhou da dor provocada por pensar em Brenna. Não que a perda não estivesse sempre com ele. Brenna nunca estava longe de seus pensamentos, mas
ele tinha descoberto que se cedesse ao desespero, pensando no que "poderia ter sido", as brasas ardentes da dor logo se transformariam numa ânsia quente e flamejante.
Era uma ânsia que nunca seria saciada. Brenna se fora. Este era um fato inalterável. Era bem melhor não pensar - não sentir - absolutamente nada.
Apenas apanhe o carneiro. Mate-o. Retorne ao acampamento. Ordenou que a mente parasse com suas andanças inquietas.
Cuchulainn fez uma curva. Ele e a jovem loba calmamente abriram caminho entre as rochas cobertas de neve que se aninhavam na encosta norte das Montanhas Trier. Estava
contente porque a neve diminuíra visivelmente. Dias atrás nem teria conseguido seguir o carneiro até a base das montanhas. Se tivessem sorte e não viesse outra nevasca,
talvez a passagem ficasse limpa o suficiente para a viagem em poucos dias. Claro que teria de ter certeza. As crianças eram resistentes e dispostas, mas eram, apesar
de toda a ansiedade e precocidade, apenas crianças.
Eram incomuns, porém. Nunca se esqueceria de sua primeira visão - nem da reação das crianças ao primeiro humano que viam. Era uma tarde nublada e sombria. O céu
estava pesado com a nevasca que selaria a passagem e os prenderia nos Ermos. Ele, Curran e Nevin saíram das montanhas e cruzaram a pequena distância desde a passagem
até o pequeno vale que abrigava o acampamento dos neofomorianos. Foi um jovem sentinela chamado Gareth quem os avistou e, como todo bom guarda, correu para alertar
o acampamento. Mas em vez de receber o pequeno grupo com armas erguidas e cautela, os neofomorianos dispararam do acampamento com braços abertos e sorrisos de boas-vindas.
Crianças! Pela Deusa, não esperava tantas crianças. Rindo e cantando uma bela melodia que Cuchulainn ficou chocado ao reconhecer como uma antiga canção partholoniana
de louvor a Epona, os híbridos abraçaram os gêmeos. Depois a atenção logo se voltou para ele - o único humano no meio deles.
- Este é Cuchulainn - dissera Nevin.
- É o irmão da deusa Elphame que nos salvou - completou Curran por ele.
A cantoria alegre cessou imediatamente. O grupo de pessoas aladas o encarava. Cuchulainn recordava ter pensado que parecia um bando de aves reluzentes e belas. Depois
a multidão se abriu para deixar uma figura esguia passar. A primeira coisa que notou foi que a pele dela tinha a estranha luminescência pálida dos outros fomorianos
híbridos, mas o cabelo, as asas e os olhos eram bem mais escuros. E então ele viu as lágrimas que lavavam suas maçãs do rosto. Os olhos amendoados e escuros estavam
brilhantes. Seu olhar se fixou no de Cuchulainn, que enxergou compaixão e profunda tristeza. Ele queria desviar o olhar. Não queria que as emoções dela o comovessem.
Sua própria dor ainda era muito profunda, muito recente. Mas quando virou a cabeça para interromper o olhar fixo, a mulher alada se pôs graciosamente de joelhos.
E então, como se fosse um pedregulho atirado num lago, a multidão de gente alada, tanto adultos quanto crianças, seguiu seu exemplo e se colocou de joelhos.
- Perdoe-nos. Somos responsáveis pela morte de sua irmã. - A doce voz da mulher alada estava repleta da mesma tristeza que Cuchulainn lia em seus olhos.
- Minha irmã não está morta. - A voz de Cuchulainn estava dissonante e tão desprovida de emoção que soou estranha até aos seus ouvidos.
A mulher reagiu com óbvio choque:
- Mas a maldição foi retirada. Todos nós sentimos a ausência dos demônios em nosso sangue.
- Vocês interpretaram mal a profecia - explicou Cuchulainn em sua voz ríspida e vazia. - Não exigia a morte física de minha irmã. Em vez de sua vida, a profecia
a levou ao sacrifício de uma parte de sua humanidade. Ela está viva. E só pela graça de Epona não está louca.
Ainda de joelhos, a mulher olhou de Cuchulainn para Curran e Nevin.
- O que ele diz é verdade - afirmou Curran. - Elphame bebeu do sangue de Lochlan e assim aceitou a loucura de nosso povo. Derrotou a perversidade de nossos pais
através do poder de Epona, mas a loucura vive dentro do sangue dela.
- Lochlan? Ele sobreviveu? - perguntou ela.
- Sim. Está casado com Elphame - disse Nevin.
- Keir e Fallon?
- Eles escolheram outro caminho - respondeu Nevin apressadamente.
Cuchulainn se sentiu transpassado por gelo. Fallon tinha escolhido o caminho da loucura e, ao fazê-lo, assassinou Brenna. Mas antes que pudesse ser executada por
seu crime, revelou que estava grávida. Elphame tinha aprisionado Fallon no Castelo Guardião para aguardar o nascimento da criança. Keir era seu companheiro e escolhera
ficar com ela.
Ciara observou o rosto do guerreiro humano com atenção. Reconhecia o ar anestesiado e desesperançado que era a sombra deixada por uma perda tremenda. Não tinha perdido
a irmã, mas carregava consigo uma tristeza terrível. Tinha acontecido muita coisa que todos precisariam saber, mas não agora - não neste momento. Mais tarde, disse
a si mesma. Mais tarde descobriria o que poderia ser feito para aliviar a dor do guerreiro, e também ouviria a história de Fallon e Keir. No momento o mais importante
era que aquele homem era o irmão de sua salvadora. Isso bastava para que tivessem com ele um débito de gratidão.
Ela sorriu, enchendo as palavras com a alegria que era parte de sua alma: - Então agradeceremos a Epona por sua irmã estar viva, Cuchulainn.
- Faça o que achar que deve - disse ele com voz morta. - Minha irmã pediu que os levasse de volta a Partholon e ao castelo de nosso clã. Seu povo virá comigo?
Ela cobriu a boca com as mãos. Por toda parte ao seu redor, Ciara ouviu exclamações de alegria e surpresa. Não conseguia falar. Uma exultação ofegante cresceu dentro
dela. Era isso! Essa era a realização do sonho que suas mãe e avós nutriram e mantiveram vivas em cada um deles. Depois, explodindo em meio ao círculo de adultos
ajoelhados, surgiu uma onda de risadas e entusiasmo quando uma horda de crianças, incapazes de conter a animação, se aglomerou no espaço vazio que cercava o guerreiro
e seu cavalo. Os adultos ficaram de pé e se aproximaram, repreendendo seus pequenos encargos e tentando, em vão, restaurar alguma impressão de ordem e dignidade
nas boas-vindas ao guerreiro.
As crianças se amontoaram ao redor de Cuchulainn, os olhos bem arregalados. Com as asas abertas, empurravam uns aos outros como num ninho lotado de filhotes de cuco.
De repente, ele se sentiu um solitário e sobrecarregado pardal.
- Partholon! Nós vamos para Partholon!
- Vamos conhecer a deusa!
- A terra é mesmo quente e verde?
- Você não tem asas mesmo?
- Posso tocar no seu cavalo?
O grande capão de Cuchulainn bufou e deu dois passos rápidos para trás, para longe de uma menininha alada que estava sobre a ponta dos pés tentando tocar-lhe o focinho.
- Crianças, chega! - A voz soou severa, mas a mulher alada, cujos olhos cintilavam, sorria ao falar: - Cuchulainn vai pensar que as lições de cortesia que nossas
avós ensinaram foram esquecidas.
Imediatamente os pequenos seres alados abaixaram a cabeça e murmuraram desculpas. A menininha que estava tentando tocar o cavalo abaixou a cabeça também, mas Cuchulainn
pôde ver que ela estava andando de lado, a mão meio erguida, ainda tentando uma carícia escondida. O capão bufou e recuou mais um passo. A menina acompanhou. Exatamente
como Elphame quando era pequena, pensou Cuchulainn com ternura. Sempre querendo alcançar coisas que não podia. E pela primeira vez desde a morte de Brenna, Cuchulainn
quase riu.
- Sim, criança - disse ele acima da cabecinha loira. - Pode tocá-lo. Apenas vá devagar, ele não está acostumado com crianças.
A cabecinha se inclinou e a criança presenteou Cuchulainn com um tremendo sorriso de gratidão. Os afiados dentes caninos brilharam em estranho contraste com sua
aparência inocente.
- O nome dela é Kyna.
A mulher alada veio para junto da criança. Deu a Kyna um aceno de cabeça em sinal de encorajamento, então Cuchulainn aumentou a pressão sobre o capão, mantendo-o
com firmeza no lugar para que a menina pudesse afagar com cuidado o peito luzidio. O restante das crianças observava e sussurrava umas com as outras.
- Sou Ciara, neta da Musa Encarnada Terpsícore. Você é muito bem-vindo aqui, Cuchulainn. - Ela também exibiu um radiante sorriso com seus dentes afiados. - Acredito
que as crianças tenham respondido sua pergunta por todos nós. Esperamos há mais de cem anos por esse dia. Sim, será um grande prazer acompanhá-lo até Partholon.
Um pandemônio saudou sua proclamação. Os adultos exultaram e as crianças dançaram como se possuíssem molas além de asas. Com medo de que alguém fosse pisoteado,
Cuchulainn foi forçado a desmontar, o que provocou outra saraivada de perguntas das crianças, que queriam tocar suas costas para ter certeza de que não estava escondendo
asas debaixo da capa. Ciara e os outros adultos tiveram grande trabalho para acalmar o grupo agitado de pequeninos que saltitavam, dançavam e gargalhavam.
Tentando manter o verniz de observador imparcial, Cuchulainn tinha observado em silêncio a cacofonia de júbilo. Era óbvio que as pessoas aladas buscavam pela liderança
de Ciara. Ela tinha se desculpado rindo da recepção entusiasmadíssima enquanto ordenava que uma das cabanas fosse preparada e o apresentava a vários adultos sorridentes.
Mas quando Cuchulainn perguntou se ela tinha sido declarada líder durante a ausência de Lochlan, Ciara apenas riu e disse que era a mesma que fora quando Lochlan
estava com eles - apenas uma simples xamã para seu povo.
As palavras dela foram completamente inesperadas. Xamã? Onde estavam os bárbaros demônios híbridos que ele esperava observar com cautela e julgar com severidade?
Cuchulainn recordou o quanto se sentiu estupefato parado ali naquele primeiro dia. Então a pequena Kyna berrou. Ele deu o bote, puxando a claymore pelo pomo. Agachado,
pronto para a batalha, acompanhou o dedo apontado da criança para descobrir que Fand finalmente saíra da moita onde estava escondida para se esgueirar até ele. Cuchulainn
logo embainhou a espada e se ajoelhou para tranquilizar a filhote nervosa, enquanto ouvia as perguntas disparadas por Kyna. Sentiu-se observado por Ciara e ergueu
a cabeça para se deparar com seus olhos escuros estudando-o intencionalmente.
- Não tem inimigos aqui, Cuchulainn, exceto aqueles batalhando dentro de você - murmurara ela.
Antes que pudesse responder, o céu se abriu e flocos de neve imensos e úmidos começaram a cair.
Com Fand e o imenso capão temporariamente esquecidos, Kyna tinha puxado a capa de Cuchulainn pedindo atenção.
- Me veja apanhar a neve com a língua!
Ainda agachado ao lado da filhote de lobo, Cuchulainn observou a menininha abrir os braços e estender as asas cor de pomba. Com a inata inocência da infância, Kyna
espichou a língua, girou e pulou, tentando apanhar os flocos elusivos. Logo estava na companhia de dúzias de outras crianças, rodeando Cuchulainn nas eternas risada
e alegria da juventude. Por um instante inesperado, ele sentiu a dor sufocante de perder Brenna se rearranjar, acalmar e ficar quase suportável.
Cuchulainn achava que se lembraria daquele momento para o resto da vida. Embora não percebesse, pensar nas crianças relaxava a forte tristeza que reclamava seu rosto
bonito desde a morte de Brenna. Quase se parecia consigo mesmo outra vez, o Cuchulainn que era ligeiro para sorrir e rir, que estava cheio de vida e esperança com
a promessa de um futuro pleno e feliz.
Naquele momento, com um uivo baixo, Fand se agachou no chão, atraindo os pensamentos de Cuchulainn de volta ao presente e mudando o foco de sua atenção para a trilha
adiante. Cuchulainn seguiu em frente silenciosamente. Preparando uma flecha, espiou ao redor do rochedo seguinte para ver o carneiro montês branco pateando pela
neve numa mancha de líquen amarelo. Respirando longa e lentamente, ajustou a flecha, mas antes que pudesse puxar e apontar, ouviu a vibração característica de um
arco sendo disparado. O carneiro tombou, uma flecha tremendo bem cravada na base do pescoço.
O rosnado de Fand se transformou num latido de saudação quando a centaura caçadora saiu de trás do abrigo das pedras.
Três
- PEGOU MINHA PRESA, caçadora. - As palavras de Cuchulainn eram ríspidas, mas ele sorriu e apertou o antebraço da centaura num cumprimento. Estava surpreso com o
prazer que sentiu ao ver Brighid. Com ela veio a visão do Castelo MacCallan. Até aquele momento não tinha percebido o quanto começara a ansiar por seu lar. E então,
nos calcanhares da recordação, veio uma onda de dor renovada. Brenna não estaria lá. Tudo o que restava dela era um monumento esculpido com sua imagem e uma tumba
fria.
- Peguei sua presa? - Os incomuns olhos violeta da caçadora cintilaram. - Se me lembro corretamente, da última vez em que caçamos juntos, não acertou nada e preferiu
trazer sua presa viva. - Brighid retribuiu o sorriso de Cuchulainn, mesmo que desbotado numa careta estranha. Apertou-lhe o antebraço com entusiasmo antes de fazer
cara feia para a jovem loba que estava saltitando ao redor de seus jarretes. - Vejo que a criatura ainda está viva.
- Fand é excelente companhia. - Ele acenou para que a filhote jubilante deixasse a caçadora em paz. Fand o ignorou.
- Ainda não aprendeu a ter modos. - Brighid sacudiu um casco distraidamente para afastar a filhote desassossegada, que concluiu que era uma brincadeira e começou
a morder seu jarrete.
Cuchulainn rosnou baixinho, soando notavelmente como um lobo, e, parecendo triste, Fand parou seu falso ataque e achatou a barriga no chão para fitar o guerreiro
com olhos emotivos.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Parece que cheguei na hora certa. É óbvio que precisa de um pouco de companhia civilizada.
- Refere-se a você?
A caçadora assentiu:
- Não há nada mais civilizado que um centauro.
Brighid esperou pela resposta depreciativa de Cuchulainn, que não veio. Em vez disso, o guerreiro guardou a flecha de volta na aljava e começou a andar na direção
do carneiro.
- Minha irmã mandou você, não é?
- Me voluntariei. Não gosto de vê-la preocupada. E...
Cuchulainn girou e a interrompeu: - Elphame está bem?
Brighid ouviu o pânico pouco velado na voz do guerreiro e se apressou em tranquilizá-lo: - Ela está muito bem. A renovação do castelo prossegue. O clã está feliz
e saudável. O primeiro novo membro do clã MacCallan nasceu dentro dos muros do castelo. E, como eu estava para explicar, as presas na floresta são tão numerosas
que até os humanos podem caçá-las. Então achei que poderia matar dois pássaros com uma única flecha. - Ela sorriu, erguendo o arco vazio. - Assim aliviaria a preocupação
de minha chefe quanto ao irmão andarilho, e também caçaria algo mais desafiador que cervos praticamente domesticados.
Enquanto falava, estudava o rosto de Cuchulainn. O pânico se dissipara, deixando-o parecer cansado e aliviado, e então, conforme Brighid observava, até essas pequenas
emoções sumiram do rosto, até parecer que ele estava usando uma máscara inexpressiva. Cuchulainn tinha perdido peso. Os olhos estavam sombreados por manchas escuras,
com novas linhas recobrindo os cantos. Aquilo eram fios brancos nos cabelos cor de areia? Ele se curvou para puxar a flecha do corpo do carneiro, dando-lhe a chance
de uma boa olhada. Sim, de fato, o grisalho cintilava por suas têmporas. O homem diante dela parecia uma década mais velho do que há dois ciclos da lua.
- Tome - disse Brighid, girando a cintura para puxar duas longas cordas de couro de uma das sacolas de viagem presas em seu lombo. - Amarre isso nas pernas. Eu arrasto.
Cuchulainn devolveu a flecha depois de limpá-la na neve.
- Meu capão não está longe daqui.
Brighid bufou:
- Espero que o acampamento não esteja longe daqui. Vi pouco dos Ermos, mas já não aprecio a ideia de passar a noite no descampado. Não nesse maldito vento.
Por um instante, pensou ver um lampejo de divertimento nos olhos dele, mas tudo o que Cuchulainn disse ao olhar para a corda foi: - O acampamento também não fica
longe. Mas devemos nos apressar. As noites são frias.
Metodicamente, Cuchulainn se agachou ao lado do quarto traseiro do carneiro e começou a amarrar-lhe as pernas.
Elphame fora prudente em se preocupar. Era óbvio que o Cuchulainn que a irmã conhecia e amava estava desaparecendo por baixo do peso do lamento e da culpa. Brighid
só podia imaginar o quanto a visão magoaria sua chefe. Odiava ver o que a morte de Brenna fizera a ele, que era um verdadeiro amigo.
Sorriu com tristeza às costas do guerreiro. A amizade deles era improvável. Cuchulainn conhecia muito bem as crenças segregacionistas de sua família com relação
a humanos e centauros e se mostrou cauteloso antes de confiar em Brighid. E, francamente, a caçadora achava Cuchulainn um mulherengo arrogante. A princípio, se puseram
a analisar um ao outro como feras incansáveis protegendo território. Mas quando a caçadora observou o guerreiro libertino se apaixonar pela recém-nomeada curandeira
do clã, enxergou o verdadeiro Cuchulainn - o homem compassivo e leal que vivia na pele do guerreiro arrojado. E, por sua vez, ganhou a confiança dele. Primeiro ajudando-o
a rastrear Elphame depois de sofrer uma queda horrível, e por fim, lamentavelmente, lutando ao seu lado quando capturaram a híbrida Fallon, depois de matar Brenna.
- A morte de Brenna é um fardo pesado de suportar - disse Brighid solenemente.
A cabeça de Cuchulainn estava abaixada, concentrado que ele estava enquanto terminava de apertar as cordas, mas Brighid pôde ver as costas dele se enrijecerem. O
guerreiro se levantou devagar e buscou o olhar sagaz da caçadora.
- Sim. - Ele cuspiu a palavra.
Brighid não se amedrontou com a raiva na voz dele. Sabia por experiência própria que a raiva era parte do processo de cura do luto.
- Sua irmã plantou aquelas flores silvestres azuis que Brenna tanto gostava ao redor do túmulo. O clã fala do quanto a tumba é bonita, e no quanto Brenna faz falta.
- Pare - disse Cuchulainn por entre os dentes cerrados.
- Brenna não terá partido completamente enquanto nos lembrarmos dela, Cuchulainn.
- Não terá partido completamente! - Cuchulainn riu sem humor. Atirou as cordas que estava segurando no chão e abriu os braços, palmas erguidas, olhando ao redor.
- Então mostre para mim. Não a vejo. Não a ouço. Não posso tocá-la. Para mim, caçadora, ela partiu completamente.
- Brenna odiaria vê-lo assim, Cuchulainn.
- Brenna não está aqui!
- Cuchulainn... - principiou a caçadora, mas a voz ríspida do guerreiro a interrompeu: - Esqueça, Brighid.
Ela enfrentou-lhe o olhar com sinceridade: - Esquecerei por enquanto, mas você não pode continuar assim. Não eternamente.
- Tem razão sobre isso. Nada continua eternamente, caçadora. - Abruptamente, Cuchulainn se curvou e apanhou as cordas de couro. Entregando uma para ela, puxou a
outra por cima do ombro. - Por aqui. - Ele apontou o queixo para o caminho pelo qual viera. - Precisamos nos apressar. A noite cairá logo.
Imitando os movimentos de Cuchulainn, Brighid pôs a corda sobre o ombro e juntos arrastaram o corpo do carneiro. Enquanto olhava para o perfil cansado do amigo,
ela considerava que o sofrimento já tinha feito a noite cair sobre a alma ferida de Cuchulainn. Será que alguma coisa, talvez o amor da irmã tocada pela deusa, poderia
levar a luz da felicidade à vida dele outra vez?
Falaram pouco enquanto rumavam diligentemente na direção do sol poente. Juntos esfolaram rapidamente o carneiro, que foi cingido à padiola de couro que Cuchulainn
tinha atado aos quartos do capão. Havia várias perguntas que Brighid queria fazer, mas os modos do guerreiro eram tão retraídos, suas poucas palavras tão bruscas
que ela não descobriu muito além de que o assentamento dos fomorianos híbridos tinha sido encontrado com facilidade, que existia quase uma centena deles, e que estavam
ansiosos para retornar a Partholon. Quando perguntou como eles eram, Cuchulainn apenas disse: "São somente pessoas", e se recolheu ao silêncio novamente. Brighid
concluiu que conversar com ele era como abraçar um porco-espinho. Não compensava o trabalho. Ela era uma caçadora. Observaria os híbridos por si mesma, assim como
faria com qualquer criatura dos Ermos, e depois formaria sua própria opinião.
E sempre guardaria em mente que eram descendentes de uma raça de demônios.
- Gosta de crianças?
Brighid ergueu as sobrancelhas diante da estranha pergunta, sem ter certeza de ter ouvido Cuchulainn corretamente.
- Crianças?
Ele grunhiu e assentiu.
- Não sei. Particularmente não gosto nem desgosto delas. Crianças geralmente não figuram na vida de uma caçadora, a não ser quando se conta que temos que considerá-las
como bocas a mais para alimentar. Por que pergunta?
- Estamos quase no acampamento. Existem... - ele fez uma pausa e a olhou de esguelha - ... crianças lá.
- Eu antecipava as crianças. Lochlan contou a todos nós lá do castelo sobre elas. Você sabe disso. Você estava lá.
- Lochlan não nos contou exatamente tudo - disse Cuchulainn enigmaticamente.
- Isso não me surpreende. - Brighid bufou.
O guerreiro lhe deu uma olhada velada.
- Você não parece confiar em Lochlan.
- Você confia?
- Ele salvou a vida da minha irmã - disse Cuchulainn simplesmente.
Brighid assentiu devagar:
- Sim, salvou. Mas foi a vinda de Lochlan para Partholon que pôs a vida dela em risco, para começar.
Cuchulainn não disse nada. Já tinha pensado e repensado no quanto a presença de Lochlan mudara a vida de todos. Mas achava difícil culpar o consorte da irmã, o que
não significava que estivesse inteiramente disposto a abraçar o homem alado. Só significava que Cuchulainn estava mais disposto a culpar a si mesmo pelos eventos
que culminaram no sacrifício da irmã e na morte de Brenna. Deveria saber. Saberia se tivesse ouvido os avisos do reino espiritual. Mas Cuchulainn sempre dera as
costas ao uso de espíritos e magia e ao poder misterioso da deusa, mesmo quando se tornou óbvio desde tenra idade que herdara os dons espirituais de seu pai xamã.
Cuchulainn era um guerreiro. Foi tudo o que sempre quis ser. Sua afinidade com a espada era o único dom que desejava.
Sua teimosia tinha selado a perdição de sua amada.
- Pensei que tivesse dito que estávamos quase no acampamento. Não vejo nada adiante além de mais terra vazia e lúgubre.
Cuchulainn trouxe seus pensamentos de volta para a centaura de pelagem prateada que trotava ao seu lado.
- Olhe com mais atenção, caçadora - disse ele.
Brighid fez cara feia. Poderiam ter se tornado amigos, mas o guerreiro ainda possuía um talento especial para irritá-la.
Cuchulainn quase sorriu.
- Não se sinta mal. Também não vi de primeira. Se não fosse por Curran e Nevin, eu provavelmente teria tropeçado às cegas em sua margem.
- Eu não... - A princípio o cenário parecia uma planície coberta de neve e sem árvores. Xisto vermelho, da mesma cor dos grandes rochedos que flanqueavam as Montanhas
Trier, revestia o chão. Mas então sua visão percebeu uma mudança quase imperceptível. - É um desfiladeiro. Pela Deusa! A terra é tão descampada e similar que um
lado combina com o outro quase que perfeitamente.
- É uma ilusão de ótica, algo que as mães humanas dos neofomorianos pensaram em usar a seu favor há mais de um século quando estavam desesperadas para encontrar
um lugar seguro para construir o assentamento.
- Neofomorianos?
- É como eles se chamam - explicou Cuchulainn.
Brighid bufou:
- O caminho termina aqui.
Ele apontou para o traseiro de Fand, que desaparecia numa curva, e pôs seu capão num meio-galope suave, refreando bem antes que a trilha desaparecesse abaixo deles.
Brighid foi ficar ao lado de Cuchulainn e respirou fundo diante da visão lá embaixo. O desfiladeiro se abria como se um gigante tivesse apanhado um machado e cortado
um pedaço enorme da terra fria e rochosa. A parede na qual estavam era mais alta que o lado oposto do cânion. A queda abrupta devia ter pelo menos sessenta metros.
Um riozinho corria pelo meio do vale. E aninhado na parede norte do cânion, que era mais branda, estava um agrupamento de construções redondas. Brighid conseguia
distinguir figuras distantes e se esforçou para ver asas enquanto os autoproclamados neofomorianos se movimentavam entre casas de formato circular, currais e estruturas
baixas e atarracadas que ela imaginou serem abrigos de animais.
Podia sentir-se observada por Cuchulainn.
- As mulheres humanas escolheram bem. Há abrigo nas paredes do cânion e suprimento de água à mão. Até consigo ver algumas coisas que podem se passar por árvores.
Se eu estivesse com elas, este teria sido o lugar que eu recomendaria. - Na verdade, se Brighid estivesse com elas, teria recomendado que cortassem a garganta de
seus bebês monstruosos e retornassem para Partholon, lugar ao qual as mulheres pertenciam. Mas esse era um pensamento que a caçadora preferiu manter consigo mesma.
- É uma região implacável. Fui surpreendido por terem sobrevivido tão bem. Esperava... - As palavras morreram como se Cuchulainn lamentasse ter falado demais.
Brighid o encarava com franca curiosidade.
Cuchulainn pigarreou e direcionou a cabeça do capão para a descida íngreme.
- Cuidado onde pisa. O xisto é escorregadio.
Brighid seguiu Cuchulainn, indagando-se das mudanças nele. Eram por causa da morte de Brenna ou alguma coisa acontecera ali nos Ermos? Mesmo que não fosse amigo
dela, a caçadora devia à chefe descobrir.
Quatro
O PRIMEIRO HÍBRIDO que Brighid viu estava fazendo algo totalmente inesperado. Estava rindo. A caçadora o ouviu antes de vê-lo. A risada ecoou até encontrá-los na
trilha, pontuada por rosnados zombeteiros e grunhidos juvenis.
- Eles gostam de Fand - murmurou Cuchulainn em explicação.
O guerreiro e a caçadora finalmente chegaram ao nível do chão e caminharam ao redor de um afloramento rochoso para ver um homem alado esparramado de costas no meio
da trilha. Com a língua espichada e a boca aberta como que sorrindo, as patas da jovem filhote de lobo estavam firmemente plantadas no peito dele.
- Fand me derrubou, Cuchulainn. Está crescendo tão rápido que logo será uma loba de verdade - disse ele, rindo e coçando a filhote. Quando ergueu o olhar e viu a
centaura ao lado de Cuchulainn, seus olhos se arregalaram de choque.
- Fand, aqui! - ordenou Cuchulainn. Dessa vez a loba decidiu obedecer, deixando o peito do híbrido e saltitando de volta ao mestre.
O homem alado se levantou depressa, espanando a terra e a neve da túnica, sempre mantendo os olhos arregalados fixos em Brighid.
- Gareth, esta é...
A voz animada de Gareth o cortou:
- A caçadora Brighid! É ela, não é?
- Sim, Gareth. Esta é a caçadora de MacCallan, Brighid Dhianna.
Gareth executou uma reverência apressada e desajeitada, e Brighid percebeu que ele era apenas um rapaz alto e magro que a encarava com franco e estupefato deleite.
- É um prazer conhecê-la, Brighid! - exclamou Gareth, a voz tremendo ao dizer seu nome.
Brighid pôde ouvir o suspiro de Cuchulainn e conteve um sorriso.
- É um prazer conhecê-lo, Gareth - respondeu ela à saudação.
- Espere até eu contar aos outros! Não vão acreditar. Você é ainda mais bonita do que Curran e Nevin descreveram.
Gareth começou a correr, depois parou, virou-se e fez uma tímida reverência para Brighid. A caçadora poderia jurar que as faces do rapaz estavam vermelhas com um
rubor de vergonha.
- Perdoe-me, caçadora. Avisarei aos outros que temos uma visita. Mais uma! - Então virou-se e, com as asas abertas, simplesmente voou trilha abaixo.
- Garoto bobo - murmurou Cuchulainn.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Sou ainda mais bonita do que Curran e Nevin descreveram?
Cuchulainn ergueu as mãos num gesto de plácida frustração.
- Os gêmeos contam histórias à noite. Você é o assunto favorito.
- Eu? Como é possível? Curran e Nevin mal me conhecem.
- Aparentemente fizeram excelente uso do pouco tempo que passaram no Castelo MacCallan. Ouviram e observaram. E muito. Você sabe como o clã gosta de falar, e quanto
mais falam, mais os feitos crescem. Você não apenas rastreou Elphame à noite numa floresta até descobrir onde tinha caído. Você fez isso debaixo de uma tempestade
fustigante - disse ele.
- Não fiz nada assim. A tempestade começou quando estávamos voltando para casa. E ainda não estava completamente escuro quando encontramos Elphame. - Brighid tentou
soar aborrecida, mas não conseguiu evitar o sorriso que brincou nos cantos dos seus lábios.
- E depois tem a história de Fand - disse Cuchulainn, remexendo-se na sela como se de repente se sentisse desconfortável.
As sobrancelhas de Brighid se ergueram.
- E quem contou a eles sobre isso, Cuchulainn?
Cuchulainn deu de ombros e apertou os joelhos no capão para que seguisse o caminho de Gareth.
- Me perguntaram. E podem ser muito persistentes quando querem saber algo.
- Refere-se a Curran e Nevin? - perguntou Brighid para as costas largas.
- Não. Me refiro às crianças.
Então um ruído chamou a atenção da audição aguçada da caçadora. Achou que parecia o tagarelar de muitos pássaros.
As orelhas do cavalo de Cuchulainn se inclinaram para a frente.
- Lembre que eu avisei sobre as crianças - falou ele por cima do ombro.
Brighid franziu a testa com severidade para as costas do guerreiro. Avisar? Ele não tinha avisado nada - simplesmente perguntou se ela gostava de crianças. Pelo
reino mais sombrio do Mundo Inferior, o que estava acontecendo ali?
Eles fizeram outra curva no caminho e a trilha se abriu. Brighid andou rápido para ficar ao lado de Cuchulainn. A estrada se alargava e levava direto ao coração
do assentamento pequeno e organizado, que no momento estava repleto com corpinhos alados tagarelando de maneira agitada. Quando a viram, a conversa das crianças
foi imediatamente substituída por uma exclamação coletiva que lembrou a Brighid o arrulhar de pombos.
- Oh, minha boa deusa! - murmurou a caçadora. - Existem tantas delas.
- Tentei dizer a você - disse Cuchulainn baixinho. - Prepare-se. São tão enérgicas quanto são pequenas.
- Mas como pode existir tantas? - Seus olhos varriam o grupo enquanto tentava uma contagem acurada... dez... vinte... quarenta. Havia ao menos quarenta crianças.
- Pensei que tivesse dito que eram menos de cem híbridos no total. Eles têm nascimentos múltiplos?
- Não. Geralmente não. A maioria dessas crianças já não tem mais os pais - disse o guerreiro soturnamente.
- Mas...
- Mais tarde - disse Cuchulainn. - Explico tudo mais tarde. Não ficarão paradas por muito tempo.
- O que elas vão fazer? - perguntou Brighid com cautela.
O guerreiro lhe ofereceu um brevíssimo sorriso.
- Nada do que se possa defender, acredite.
O grupo expectante se abriu e Cuchulainn viu a cabeça escura de Ciara.
- Venha. É melhor conhecê-los de frente.
Lado a lado, Cuchulainn e Brighid pararam diante do grupo no mesmo instante em que uma adorável mulher alada adiantou-se para cumprimentá-los.
Cuchulainn fez apresentações apressadas: - Ciara, esta é a caçadora de MacCallan, Brighid Dhianna. Brighid, Ciara é a xamã dos neofomorianos. - Ele apontou para
os dois homens alados que seguiram Ciara em meio às crianças. - E você deve se lembrar de Curran e Nevin.
Os gêmeos acenaram com a cabeça, sorrindo abertamente. Brighid ficou imediatamente impressionada com o quanto pareciam bem. Da última vez em que os vira, as asas
estavam terrivelmente rasgadas. Agora pareciam inteiras e saudáveis, com apenas pálidas linhas rosa marcando as membranas delicadas. Um dos gêmeos falou, mas Brighid
não fazia ideia se era Curran ou Nevin: - É bom vê-la novamente, caçadora.
- Estamos todos muito satisfeitos por ter vindo, Brighid Dhianna, famosa caçadora dos MacCallan - disse Ciara.
Brighid tentou não se deixar distrair com a horda de crianças que a observava, mesmo que seus olhos fossem atraídos por seus rostinhos. Todas com tamanhos e formas
diferentes, sorriam exibindo dentes afiados enquanto as asas tremiam com animação mal contida. Cachorrinhos, pensou ela. Pareciam uma massa agitada de cachorrinhos
saudáveis, felizes e alados.
Desviando o olhar das crianças, assentiu educadamente, primeiro para Ciara e depois para os gêmeos.
- A MacCallan achou que poderiam precisar de uma caçadora para aliviar o fardo de alimentar seu povo durante a jornada. Fiquei contente em ser de préstimo a ela
- disse Brighid.
- E agora compreendo porque sonhei com uma águia prateada com asas de pontas douradas nas últimas noites - disse Ciara, olhando do cabelo branco-prateado da caçadora
para o brilho dourado de sua pelagem equina.
Brighid manteve o rosto cuidadosamente neutro, mas a menção ao sonho da xamã era como um soco em seu estômago. Mesmo ali, nos longínquos Ermos, não conseguia escapar
de sua infância.
- Oooh, você é ainda mais bonita do que imaginei!
Os olhos da caçadora buscaram e encontraram a falante em miniatura - uma menininha parada perto de Ciara. Os cabelos e as asas eram de um incomum cinza-prateado,
como o peito de um pombo. Os olhos grandes brilhavam com inteligência.
- Obrigada - respondeu Brighid.
- Esta é Kyna - disse Cuchulainn.
À menção de seu nome, a criança equilibrou-se animada na ponta dos pés.
- Cuchulainn, posso chegar mais perto? Por favor! Por favoooor!
Cuchulainn olhou indagadoramente para a caçadora. Sem saber o que fazer, Brighid encolheu os ombros.
- Então venha - disse Cuchulainn. Quando a criança correu adiante, com várias outras em seu encalço, Cuchulainn ergueu a mão e avisou com severidade: - Lembrem-se
dos modos!
A corrida precipitada de Kyna perdeu velocidade instantaneamente, e as crianças que vinham atrás se empurrando quase trombaram nela. Brighid teve que ter o cuidado
de não rir quando a menina acotovelou um dos amigos e declarou "Lembre-se dos modos!", soando precisamente como Cuchulainn. Ela dobrou as asinhas e caminhou muito
mais controlada até parar diante de Brighid.
- Você é a famosa caçadora sobre quem Cuchulainn nos contou histórias, não é? - O rosto da menininha brilhava com mais do que a luminescência característica da pele
dos fomorianos. Era uma coisinha linda, de aparência sobrenatural, cintilando de inteligência e curiosidade.
- Bom, sou a caçadora Brighid. Entretanto, não sei o quanto sou famosa - disse, fixando em Cuchulainn um olhar de brando aborrecimento.
- Ah, nós sabemos! Ouvimos tudo a seu respeito!
- Verdade? Precisam compartilhar comigo essas histórias - disse Brighid.
- Agora não - disse Cuchulainn com brusquidão. - Agora temos que cuidar do jantar. - Ele desmontou e começou a desamarrar os nós que prendiam a carne fresca atrás
da sela.
- Pegou outro cervo, Cuchulainn? - perguntou Kyna, saltitando.
- Dessa vez foi um carneiro montês branco, Ky. E pode agradecer à caçadora por isso. Foi ela quem abateu o animal - disse ele, simplesmente transferindo a atenção
da criança de volta a Brighid.
Dúzias de pares de olhinhos arregalados se reconcentraram na caçadora.
Brighid deu de ombros.
- Só o venci no disparo.
- Não, você é especial. Já sabemos - disse Kyna. - Posso... posso tocar você?
Brighid olhou desamparada para Cuchulainn, que de repente estava ocupadíssimo entregando a carne embrulhada para Curran e Nevin.
- Por favor? - pediu a criança. - Eu sempre quis conhecer um centauro.
- Sim, acho que tudo bem - respondeu a caçadora com impotência.
Kyna se aproximou de Brighid e então estendeu com reverência a mão para tocar o luzidio pelo dourado da caçadora.
- É macio como água. E seu cabelo é tão bonito, exatamente como Cuchulainn disse. Acho que ele tem razão. É bom que mantenha seu cabelo longo, embora a maioria das
caçadoras o use curto.
- Eu... Eu nunca achei que precisava cortá-lo - gaguejou Brighid, completamente abismada com o comentário da criança. Cuchulainn tinha falado sobre o cabelo dela?
- Bom. Deve mantê-lo assim.
- Quero ser uma caçadora quando crescer! - gritou uma voz do grupo.
Kyna revirou os olhos e meneou a cabeça.
- Não pode ser uma caçadora, Liam. Você não é centauro e nem é fêmea.
Brighid viu o rosto de uma das crianças maiores desabar, e sentiu um nó de pânico quando os olhos dela se encheram de lágrimas.
- Mas ainda pode ser um caçador, Liam - disse Brighid. - Alguns centauros aceitam treinar humanos nas perícias de uma caçadora. - Assim que falou, percebeu seu erro
ridículo. O menino alado definitivamente não era humano. Provavelmente choraria de verdade agora. E se ele fizesse os outros começarem a chorar também? Mas Liam
não notou nada de errado no que ela disse. Seu sorriso afiado era radiante.
- Fala sério? Poderia me ensinar? - O menino correu até ela, e logo sua mãozinha cálida estava afagando seu flanco sedoso.
Ensiná-lo? Não tinha intenção de ensinar a ele nem a ninguém - especialmente alguém cuja cabeça nem chegava ao seu ombro. O pânico de Brighid aumentou. Só estava
querendo evitar que a criança chorasse.
- Se ela vai ensinar a Liam, quero que me ensine também! - Outra criança se separou do grupo e foi até Brighid, a adoração brilhando em seus grandes olhos azuis.
- Eu também! - disse uma menininha com cabelo da cor de margaridas.
Brighid não tinha ideia de como acontecera, mas se viu cercada por criaturinhas aladas que tagarelavam sobre suas vidas como caçadoras. Mãozinhas quentes afagavam
suas pernas e flancos enquanto Kyna fazia perguntas intermináveis sobre como Brighid mantinha o cabelo longe dos olhos quando caçava, e com o que enxaguava o cabelo
para deixá-lo tão brilhante, e se usava o mesmo enxágue na sua parte cavalo, e...
Brighid preferia ter sido atirada numa alcateia de lobos raivosos, ao menos poderia chutá-los para ficar livre e escapar.
- Talvez devêssemos dar tempo à caçadora para que descarregue suas sacolas e encha a barriga antes de perguntarmos mais sobre ela. - A voz firme de Ciara interrompeu
o falatório estridente e infantil.
As mãozinhas se afastaram com relutância do corpo da centaura.
Destemida, Kyna ainda berrou animada:
- Brighid pode ficar na nossa cabana?
Para imenso alívio de Brighid, Cuchulainn falou: - Acho que seria melhor se a caçadora se abrigasse comigo. Ela é parte do meu clã, lembra?
- Sim, eu me lembro - murmurou Kyna, chutando um torrão de terra com seus pés descalços que, Brighid notou, terminavam em garras notavelmente afiadas.
São anomalias, pensou a caçadora. Não são realmente humanos, nem obviamente fomorianos. Como poderão sequer encontrar lugar em Partholon?
- Cuchulainn, por que não mostra a Brighid sua cabana? Mandarei chamar quando for a hora da refeição da noite.
Cuchulainn surpreendeu Brighid ao jogar as rédeas de seu capão para a pequena Kyna.
- Cuide dele para mim.
- Claro que cuido, Cuchulainn! Sabe que sou a favorita dele. - A criança deu uma risadinha. - Tchau, Brighid. Vejo você na refeição da noite - disse antes de estalar
a língua e puxar meticulosamente as rédeas do grande capão. O cavalo bufou pelo nariz no cabelo da criança e depois se arrastou docilmente atrás dela.
- O resto de vocês, vamos andando! Vocês têm tarefas para terminar antes de comermos - disse Ciara às crianças.
Em grupos de dois e três, sumiram como peixes assustados, dando adeus a Brighid e Cuchulainn.
- Acho que se comportaram melhor desta vez - disse Ciara ao guerreiro.
- Bom, ao menos tivemos muito menos pulos e dança - respondeu Cuchulainn.
- Melhor do que o quê? - perguntou Brighid.
Ciara sorriu.
- Melhor do que quando conheceram Cuchulainn.
Brighid bufou:
- Você ri, mas estamos falando sério - retrucou Cuchulainn.
- Eu não ri. Zombei de descrença. Há uma distinta diferença - disse a caçadora, espanando uma marca de mão suja que fora deixada em sua pelagem dourada.
- Vai se acostumar com elas - disse Ciara. Ao ver a expressão no rosto da centaura, riu.
Brighid pensou nunca ter ouvido um som tão adorável e musical.
Cuchulainn pigarreou em reprovação.
- Agora é minha vez de zombar.
- Ah, Cuchulainn, está se dando muito bem com as crianças. Elas adoram você! - afirmou Ciara.
- Não estou interessado na adoração delas. Só quero garantir que cheguem em segurança no Castelo MacCallan - respondeu Cuchulainn com rispidez, o rosto endurecendo
numa máscara vazia e insensível.
- Claro - disse Ciara, o sorriso sempre constante.
Era interessante, pensou Brighid, observar a familiaridade com que a mulher alada falava com Cuchulainn. E como ignorava a maneira com que ele ficava frio e retraído.
- Deixo você com Cuchulainn. Ele conhece as coisas por aqui. Se precisar de alguma coisa, ele saberá se podemos oferecer. Não temos muito aqui, Brighid, mas dividimos
o que temos com prazer.
- Obrigada - disse Brighid, automaticamente respondendo à franqueza e cordialidade de Ciara.
- Cuchulainn, a refeição da noite será na casa comunal, como sempre, depois da cerimônia da bênção do anoitecer. Por favor, leve Brighid. E seria bom se dessa vez
você ficasse para compartilhar a refeição conosco. - Ciara cumprimentou Brighid educadamente com a cabeça antes de se afastar graciosamente.
Cinco
CUCHULAINN GESTICULOU PARA que Brighid entrasse primeiro na pequena construção. Ela atravessou a grossa pele animal que servia de porta e ficou agradavelmente surpresa
por sentir o ar quente e parado, em vez do vento frio constante. A cabana era circular e as paredes eram feitas do xisto vermelho que era tão abundante nos Ermos.
Era seguramente reforçada com uma mistura de lama e areia. Havia uma lareira que envolvia quase metade do cômodo curvado. Duas janelinhas estavam cobertas, então
havia pouca luz, mas estava claro o bastante para que Brighid visse que o telhado era incomum. Parecia ser uma rede entrelaçada com junco ou galhos finos. Sobre
o revestimento havia uma substância que Brighid não conseguia identificar. Tinha sido bem pressionada na trama, mas agora parecia ser duro e seco.
- É musgo - disse Cuchulainn. - Eles o cortam do chão e, enquanto ainda está maleável, o pressionam na rede de bulbos entrelaçados. Quando morre, enrijece até ficar
como rocha, só que mais leve. Nada consegue passar através disso.
- O que é isso no chão? - Brighid se curvou e apanhou um punhado de capim curto e perfumado.
- Chamam de urze anã. Só cresce até a altura do jarrete, mas é farta, especialmente em áreas de cânion como essa. Dá uma boa isolação. O chão aqui é danado de frio
e duro. - Cuchulainn apontou para o outro lado do cômodo, oposto à rede de pele animal esticada que servia de cama. - Pode deixar suas sacolas aqui. Ciara mandará
peles para que durma. Deve ficar bem confortável e quente - e de qualquer forma estaremos de partida em poucos dias.
- Cuchulainn, o que está acontecendo aqui?
- Estou me preparando para guiar os híbridos de volta a Partholon, claro. A neve derreteu quase o bastante para que a passagem se abra novamente - como sabe melhor
do que eu - concluiu ele sucintamente.
Brighid meneou a cabeça.
- Não foi o que eu quis dizer. Contei pelo menos quarenta crianças. E só vi três adultos. O que está acontecendo aqui? - repetiu ela devagar.
Cuchulainn tirou a capa e passou a mão pelo cabelo, que estava atipicamente longo e revolto.
- Não tenho muita certeza - disse ele.
- Não tem?
Cuchulainn fez cara feia para ela.
- Isso mesmo. Eles não são o que você pensa. A única coisa que sei por certo é que os neofomorianos são diferentes.
- Claro que são diferentes! - Brighid queria sacudir Cuchulainn. - São uma mistura de humano e fomoriano. Nunca houve raça como a deles.
Cuchulainn se aproximou da lareira. Remexendo o borralho refulgente para atiçá-lo, alimentou-o com blocos de turfa seca da pilha próxima e as brasas queimaram num
fogo vivaz e crepitante. Depois Cuchulainn se virou e deu em Brighid uma olhada cansada e resignada.
- Descarregue suas sacolas. Relaxe. Não é muito, mas contarei o que sei.
Enquanto Cuchulainn a ajudava a descarregar, Brighid o observava com atenção. Pesar e culpa o tinham envelhecido e endurecido, mas havia algo mais nele, algo que
provocava uma comichão em sua mente, mas era algo que não conseguia entender bem.
Será que os híbridos tinham lançado um encanto nele? Cuchulainn fugia do reino espiritual e teria pouca proteção contra um ataque mágico. Embora Brighid não possuísse
o treinamento e a experiência da mãe, não era estranha aos poderes do mundo espiritual. Nem era estranha aos modos pelos quais os poderes concedidos pela Deusa podiam
ser distorcidos e mal utilizados. Silenciosamente, prometeu a si mesma que mais tarde, quando estivesse livre para se concentrar, tentaria detectar qualquer energia
malévola pairando ao redor do assentamento. Até lá, poderia fazer o que fazia de melhor - encontrar um rastro e segui-lo.
- Tome - disse ela, jogando ao guerreiro um gordo odre da última sacola. - Sua irmã mandou isso.
Cuchulainn destampou o odre, cheirou o líquido, gemeu de prazer e tomou um longo gole. Limpou a boca com as costas de uma das mãos e se acomodou no catre.
- Faz bastante tempo que não provo o vinho do Templo de Epona. Minha mãe diria que não há desculpa para viver como um selvagem.
- Foi exatamente o que sua irmã disse.
O sorriso de Cuchulainn pareceu quase normal por um instante.
- Sinto saudades dela.
- Ela sente saudades também.
Ele assentiu e tomou outro gole do delicioso vinho tinto.
- Cuchulainn, por que existem tão poucos híbridos adultos? - perguntou Brighid calmamente.
Ele encontrou-lhe os olhos.
- Aqui está o que sei. Contei 22 adultos híbridos - 12 fêmeas, uma das quais acabou de anunciar que está grávida, e dez machos. E existem setenta crianças com idades
variadas entre bebês e adolescentes. Ciara e os outros dizem que todos os demais estão mortos.
- Como? - A cabeça de Brighid girava com a disparidade dos números.
- Foi a loucura. Ciara disse que era mais difícil de resistir quanto mais velhos ficavam. Dos híbridos originais, nascidos de mães humanas, só restam Lochlan, Nevin,
Curran, Keir e Fallon. - Cuchulainn calou-se, trincando os dentes. - Deles, Fallon está louca.
Brighid assentiu:
- Os carcereiros no Castelo Guardião disseram que ela continua louca. O sacrifício de Elphame não a tocou.
- Foi tarde demais. Ela já tinha aceitado a perversidade do pai quando Elphame bebeu o sangue de Lochlan e assumiu a loucura deles. Aparentemente não existe reversão
depois que ela surge. - O estômago dele se apertou ao se lembrar da cena horrorosa em que Elphame cortou os próprios pulsos, forçando Lochlan a compartilhar seu
sangue para salvar a vida dela. Com o sangue dos híbridos, ela tinha assumido dentro de si a loucura de uma raça de demônios. - Isso deveria ter enlouquecido El
também. Só pelo poder de Epona é que ela permanece sã, mesmo que a loucura permaneça adormecida em seu sangue.
- Mas aceitar a loucura não matou sua irmã, e não matou Fallon. Como matou os outros adultos?
- Suicídio. Ciara disse que quando um híbrido não consegue mais suportar a dor de resistir ao mal dentro de si, prefere o suicídio a uma vida de violência e ódio.
A caçadora inclinou a cabeça e fixou nele um olhar incrédulo.
- Então o que ela está dizendo é que alguém que está decidido a aceitar o ódio e o mal tem a capacidade de fazer o último sacrifício de tirar a própria vida?
- Sim. Como um último ato de humanidade.
- E você acredita nisso tudo?
Em vez da raiva com que Brighid esperava que ele respondesse, a expressão de Cuchulainn se tornou introspectiva. Ele tomou outro gole do odre.
- A princípio não acreditei em nada disso. Andei por aí armado por dias, esperando que demônios alados pulassem em mim detrás de cada rocha. - Ele ergueu as sobrancelhas
e um pouco do antigo brilho iluminou seus olhos. - Os demônios não apareceram. Mas pode adivinhar o que realmente pulou em mim?
Brighid bufou uma risada rápida.
- Se tivesse me deixado na cabana com elas, acho que as chamaria de demônios. Demônios muito pequenos, mas nada menos assustadores.
- As crianças estão por toda parte. São tantas, mas tão poucos adultos, que é uma luta constante cuidar delas e mantê-las alimentadas. Não que sejam indefesas -
ao menos não tanto como crianças humanas, ou mesmo centauras, seriam nessa idade. São fortes e inteligentes. Apesar da apresentação um tanto exuberante quando recebem
estranhos, são incrivelmente bem-comportadas. - Cuchulainn buscou e sustentou o olhar afiado de Brighid. - E são os seres mais felizes que já conheci.
- Não há nada de novo no fato de crianças serem felizes, Cuchulainn. Até sua filhote bobalhona corre e saltita por aí. É como são as crianças antes que as responsabilidades
do mundo invadam seus sonhos irreais para o futuro.
Cuchulainn ouviu o tom amargo na voz da caçadora e imaginou o que acontecera em sua infância para colocar aquilo ali.
- Mas antes do sacrifício de Elphame, as crianças dos neofomorianos não tinham nenhum período de inocência despreocupada. Desde o dia do nascimento, não lutavam
apenas para sobreviver, mas tinham que travar uma guerra constante com os sussurros sombrios dentro do próprio sangue enquanto observavam os pais sucumbirem ao mal
e morrerem.
- Se foi isso realmente o que aconteceu.
- Estou cansado, Brighid. - Cuchulainn passou a mão pela testa. - Não vim para cá como um herói que os levaria de volta para seu antigo lar. Vim aqui cheio de ódio.
Brighid acenou lentamente com a cabeça.
- Eu sei.
- Elphame não sabia. Ao menos, espero que não. Não queria que ela pensasse que eu trairia sua confiança. - Cuchulainn sacudiu a cabeça e ergueu a mão para detê-la
quando quis falar. - Não, não digo que vim aqui com a intenção de massacrar os híbridos. Mas estava procurando culpá-los e encontrar um campo de batalha no qual
vingar Brenna.
- Isso não traria Brenna de volta, Cuchulainn.
- Não, não traria. E em vez de um campo de batalha ou uma raça de demônios, encontrei um povo imbuído de felicidade. - Ele esfregou a testa novamente. - A felicidade
está por toda parte. Estou cercado por ela. Mas não consigo mais senti-la.
Brighid sentiu um arroubo de simpatia por ele. Vivendo num rosto que era velho demais para sua idade, Cuchulainn parecia perdido e sozinho.
- Você precisa ir para casa, Cuchulainn.
- Preciso...
As palavras de Cuchulainn foram interrompidas por sons de tapinhas na pele da porta, seguidas pela cabeça radiante de Kyna.
- Ciara me mandou chamar você. - Ela sorriu para Cuchulainn. Depois seus olhos brilhantes e o sorriso faiscaram para Brighid. - E você também, caçadora. A bênção
da noite está para começar. Não quer perdê-la, quer?
- Já estamos indo, Ky - respondeu Cuchulainn.
A cabeça da criança desapareceu.
- Bênção da noite? - perguntou Brighid.
- Eles reverenciam Epona todos os dias, tanto no nascer como no pôr do sol. É um pouco como estar de volta ao templo da minha mãe.
- Exceto pela terra fria e triste, a ausência das riquezas de Partholon e a presença de hordas de crianças aladas - disse Brighid.
Cuchulainn atirou o odre de volta para a caçadora e apanhou a capa.
- Exatamente. - Ele parou diante dela a caminho da porta. - Estou contente que esteja aqui, Brighid.
- Eu também, Cuchulainn. Eu também.
A longa e baixa construção retangular que Brighid tinha tomado por abrigo para animais quando viu o assentamento do alto era na verdade o local de reunião geral
e, Cuchulainn explicou, servia como Grande Salão para os híbridos. Foi para lá que Kyna, pulando e dançando, os guiou, e depois, com um grande sorriso e a promessa
de sentar-se perto deles durante a refeição, correu para um dos grupos de crianças que aguardavam.
Embora Cuchulainn tivesse preparado Brighid para o número de crianças, a centaura descobriu-se boquiaberta como um potrinho inexperiente. Eram tantas! As crianças
aladas estavam por toda parte. Era como se o assentamento inteiro tivesse se reunido diante da casa comunal num círculo grande e frouxo. As crianças se amontoaram
em grupos, cada uma rodeando um adulto que falava atentamente e mantinha vigilância sobre seus encarregados. O sol já tinha quase sumido no distante horizonte ocidental,
e o vento incessante se tornara ainda mais frio e mordaz, mas nenhuma criança chorava ou reclamava. Não corriam ao redor na dança indisciplinada típica dos pequenos.
Simplesmente esperavam com paciência, mesmo os menorzinhos com suas asinhas e grandes olhos brilhantes. Claro que encaravam Brighid abertamente. Mas, quando ela
encontrava o olhar de uma criança, era correspondida com um amplo sorriso afiado. Várias acenaram. Ela notou o menino Liam, imediatamente, já que ele fez questão
de chamar-lhe a atenção executando uma reverência bem adulta e enviar-lhe um olhar de pura adoração. Como se ela realmente fosse sua mentora, pensou com um gemido
silencioso.
O que afinal faria com uma pequena sombra alada?
A porta da casa comunal se abriu e Ciara saiu. Ela se encaminhou apressada ao centro do círculo. O olhar da mulher alada repassou o grupo até pousar em Brighid.
Seu sorriso se tornou radiante.
- É um dia abençoado que se encerra! - proclamou ela.
As crianças exclamaram com alegria enquanto as cabeças assentiam em vigorosa concordância. Todos os olhos se voltaram para a caçadora.
- Até hoje só conhecíamos a nobre raça dos centauros pelas recordações das nossas mães e avós, pelas histórias que nos foram contadas. Mas hoje fomos honrados com
a presença da famosa caçadora MacCallan, Brighid Dhianna. Vamos agradecer a nossa deusa por mais um novo dia e pela nova bênção com a qual nos presenteou.
Sentindo o peso de todos aqueles olhos juvenis, Brighid queria se esconder, melhor ainda, fugir. Felizmente, quando Ciara ergueu as mãos e voltou o rosto para o
oeste, todas as crianças e adultos se viraram com ela, focando os olhos no horizonte. Mas quando a voz clara de Ciara ecoou forte e doce, invocando o eterno ritual
da bênção noturna de Epona, Brighid descobriu que a curiosidade e a surpresa atraíam seus olhos para a forma delicada da mulher alada.
Ó Epona, Deusa de beleza e de magnificência,
Deusa de jovialidade e força jubilosa.
Neste pôr do sol damos início ao nosso agradecimento
voltados para o oeste, a direção da água,
banhados nas bênçãos de outro dia.
Hoje te agradecemos por guiar até nós a caçadora,
descendente de uma nobre raça.
Envolta em honra.
Rica em tradição.
Ciara estava parada com os braços erguidos e a cabeça jogada para trás. As asas escuras se abriram e ergueram-se ao redor dela, ondulando suavemente no vento frio
da noite. Brighid suspirou de surpresa. O corpo da mulher alada foi delineado pela névoa cintilante que durante as últimas duas luas se tornara tão familiar para
Brighid. Era o mesmo poder reluzente que vira inúmeras vezes quando Elphame invocava o nome de Epona.
- Você não esperava por isso, não é? - sussurrou Cuchulainn.
Brighid só conseguia menear a cabeça e continuava a encarar a híbrida tocada pela deusa.
Ó Deusa dos nossos corações,
protetora de tudo que é selvagem e livre,
nós te agradecemos por tua brilhante presença
e por teu poder que flui na água...
Braços ainda erguidos, Ciara virou-se para a direita, e o grupo acompanhou seu movimento.
Na terra...
Ela se virou para a direita novamente.
No ar...
Novamente, o grupo a acompanhou no círculo sagrado virando-se para fitar o sul.
E no fogo.
Depois Ciara e o grupo fecharam o círculo virando novamente para o oeste. No momento em que o sol afundou na terra, ela ergueu a voz com júbilo, abriu os braços
e gritou: Acendam-se, luzes divinas!
Brighid ofegou quando duas tochas fincadas diante da porta da casa comunal se incendiaram numa luz brilhante e incandescente.
Este é um dia de recompensa e alegria,
digno de ser celebrado,
assim como em épocas muito antigas
nossas mães nos ensinaram
a honrá-la, ó Deusa.
Sua luz sempre guiará
aqueles que se perderam na escuridão.
Todos saúdem Epona!
- Todos saúdem Epona! - gritou o grupo, e o círculo se rompeu quando crianças sorridentes seguiram em meio a conversas e risadinhas para a casa comunal.
Brighid sentiu como se os cascos estivessem enraizados no chão frio.
- Pelo sopro sagrado da Deusa, ela possui magia de fogo! - Suas palavras explodiram em Cuchulainn. - Por que não me contou?
- Nas duas últimas luas, descobri que algumas coisas devem ser vistas para que sejam plenamente apreciadas. Venha, caçadora. - Muito à maneira como teria feito com
a irmã, Cuchulainn enlaçou o braço no de Brighid e levou a espantada centaura à casa comunal. - Eu disse que compreendê-los não é tão fácil quanto possa parecer.
Seis
- TAMBÉM NÃO PODIA me contar sobre isso? - murmurou Brighid conforme entrava na casa comunal.
- Não tive tempo - respondeu ele baixinho. - E acho que só falar não teria sido adequado.
Era uma construção bonita. Mais retangulares que circulares, as duas paredes maiores sustentavam lareiras imensas nas quais o fogo crepitava vivaz ao redor de enormes
panelas borbulhantes que, pelo aroma maravilhoso que pairava pelo salão, deviam estar cheias de cozido bem temperado. Longas fileiras de mesas de cavalete eram feitas
de tábuas aplainadas pousadas seguramente sobre pilares de pedra, que tinham sido entalhados para parecerem botões em flor. Mas o que chamou a atenção de Brighid
foram as paredes da grande construção. Por fora pareciam as paredes da cabana de Cuchulainn, mas por dentro tinham sido meticulosamente alisadas e cobertas com cenas
pintadas de maneira tão adorável que rivalizavam com quaisquer das estimadas peças de arte que agraciavam as paredes de mármore e os corredores sagrados do Templo
de Epona.
A cena central era estonteante. Uma égua prateada, silhuetada na luz dourada de um sol nascente, arqueava o pescoço orgulhoso e presidia regiamente o salão. Os olhos
da égua eram sábios - seu olhar, benevolente. Ao redor dela, vinhetas de Partholon tinham ganhado vida nas mãos de um mestre. Lá estava o Templo de Epona, radioso
com paredes peroladas e majestosas colunas esculpidas. Os terrenos elegantes do Templo da Musa estavam repletos de mulheres trajadas em seda, congeladas no tempo,
que rodeavam cada uma das nove deusas encarnadas, ouvindo com enlevo as lições diárias. Havia até uma cena onde dois centauros corriam por capim à altura da cernelha,
o que Brighid facilmente reconheceu como sendo a Planície dos Centauros. Emoldurando cada uma das cenas, havia nós intricados que escondiam pássaros, flores e animais
nativos de uma terra muito mais hospitaleira que os Ermos.
- É realmente impressionante - disse Brighid.
- Que bom que gostou - disse Ciara. Com um gesto elegante da mão, apontou para uma área onde uma das mesas fora arrumada longe das outras. O banco de um dos lados
tinha sido removido para acomodar o corpo equino de Brighid. O outro lado permanecia adaptado aos diminutos traseiros humanos. - Espero que fique confortável. Pensei
que Cuchulainn e eu pudéssemos ficar com você, aqui longe dos outros, para que não seja inundada por perguntas dos pequenos. - Ciara os levou aos assentos, enquanto
Liam e Kyna se apressavam com bandejas de comida fumegante. - Bom, com duas possíveis exceções - murmurou Ciara à caçadora.
Brighid observou as crianças ansiosas com suspeita. Os olhares indagadores a deixavam mais desconfortável que uma alcateia de coiotes famintos. No momento em que
sentou à mesa, Liam se adiantou e serviu-lhe uma generosa porção de cozido cheio de pedaços de batata, carne e cevada, e um acompanhamento de verduras quentes que
cheirava muito como espinafre.
- As verduras são especialmente para você, Brighid. - A agitação nervosa de Liam chegava a transbordar sobre eles. - São uma verdadeira iguaria assim tão cedo na
primavera. Eu, hã, quero dizer, nós esperamos que goste.
- Tenho certeza de que sim. Tudo está com um cheiro maravilhoso. - Brighid sorriu com hesitação para o garoto. Ele praticamente saiu da pele de tanto prazer.
- Fand pode comer na nossa mesa, Cuchulainn? - pediu Kyna ao guerreiro, que se servia das verduras que ela oferecia.
- Claro, mas certifique-se de que ela fique debaixo da mesa. Não sobre ela - avisou Cuchulainn.
- Deixem as bandejas e vão comer - instruiu Ciara quando as duas crianças demonstraram que ficariam contentes em ficar paradas ali a noite inteira observando cada
movimento que Brighid fazia ao tentar comer sob o intenso escrutínio. Elas obedeceram, mas com relutância, ainda disparando olhadas curiosas sobre os ombros para
a bela centaura.
- As crianças estão enamoradas por você, caçadora - disse Ciara com um sorriso.
Cuchulainn relanceou Brighid.
- É um alívio que estejam obcecadas por outra pessoa - disse em meio às colheradas de cozido.
Ciara riu.
- Ah, não pense que se esqueceram de você, guerreiro.
Cuchulainn fez cara feia e voltou a atenção para sua tigela.
Brighid comeu em silêncio, deixando os olhos se perderem nas cenas incríveis que enchiam as paredes.
- Vejo que está surpresa com nossa arte - disse Ciara.
O olhar de Brighid se voltou para ela.
- Sim - disse com franqueza. - Estou.
O sorriso caloroso de Ciara não falseou.
- Não ficaria se conhecesse a história de nosso nascimento.
- Sei um pouco - que seu povo veio de um grupo de mulheres roubadas de Partholon pelos fomorianos durante a guerra há mais de cem anos. Quando os fomorianos perceberam
que estavam perdendo a guerra, escaparam pelas Montanhas Trier com tantas mulheres humanas quanto conseguiram capturar. Planejaram se esconder lá e ficarem fortes
novamente, reforçando-se com uma nova geração de demônios nascidos de mulheres humanas. Por fim, retornariam para atacar Partholon outra vez.
- Sim, este tanto é verdade. O que mais sabe?
Brighid ergueu um ombro.
- Só o que Lochlan nos contou. Que os fomorianos escaparam dos guerreiros partholonianos, mas não conseguiram escapar da praga despejada sobre eles pelo ultraje
de Epona com a violação de suas mulheres. Os demônios ficaram doentes e enfraqueceram. Então um grupo de mulheres grávidas, liderado pela mãe de Lochlan, atacou
seus captores, os matou e vasculhou as montanhas, ajudando os outros grupos de mulheres a se erguerem contra seus captores também.
Ciara assentiu e tomou o fio da história: - O plano delas eram retornar a Partholon. Sabiam que a gravidez significava uma sentença de morte. Nenhuma mulher humana
jamais sobrevivera ao nascimento de uma criança gerada por um demônio. Era o desejo delas retornar aos lares, onde poderiam morrer cercadas pelos entes amados.
O belo rosto de Ciara se iluminou ao contar a história e Brighid ouvia, hipnotizada pela voz melodiosa da xamã.
- Mas o impossível aconteceu. Quando começaram a jornada para Partholon, Morrigan MacCallan entrou em trabalho de parto e sobreviveu ao nascimento. Deu à luz um
menino que tinha asas e também uma centelha de humanidade. Estimou o filho com o amor selvagem de uma mãe e o batizou de Lochlan. E depois outra mulher sobreviveu
ao nascimento do bebê. E outra. E mais outra. - Ciara fez uma pausa, sustentando o olhar de Brighid. - O que as mulheres deveriam fazer? Alguns diriam que deveriam
matar ou abandonar seus filhos e retornar para as vidas que as aguardavam na amada Partholon. Os bebês eram, afinal, descendentes de demônios. Mas aquelas mães não
os enxergavam assim. Em vez disso, viam sua verdadeira humanidade. Então Epona guiou as jovens mães até aqui, ao nosso cânion, onde construíram novas vidas a partir
dos sonhos de seu antigo mundo. E aqui ficamos por mais de cem anos, esperando para realizar o sonho daquelas mães de retornar ao mundo que amavam com uma profundidade
de espírito menor apenas que o amor aos filhos.
- E Epona ofereceu à mãe de Lochlan a Profecia, que ele cumpriu após sonhar com Elphame e seguir aquele sonho até Partholon - disse Brighid apressada, sem olhar
para Cuchulainn. Não queria falar dos eventos que levaram Fallon a seguir Lochlan até o Castelo MacCallan. A mulher tinha se desesperado com o cumprimento da Profecia
porque sabia que Lochlan estava apaixonado por Elphame. Então Fallon matou Brenna para atrair Elphame para longe da segurança do clã. - Disso eu sei, mas não explica
nada disso. - A centaura apontou para as pinturas adoráveis.
- Ah, mas explica. Veja, o maior grupo de mulheres grávidas foi capturado durante a grande batalha no Templo da Musa.
Os olhos de Brighid se arregalaram em compreensão.
- Então muitos de vocês são descendentes das deusas encarnadas das Musas, ou de suas acólitas.
- Isso mesmo. Você já sabe que sou neta da deusa encarnada Terpsícore, musa da dança. Este salão está cheio de descendentes de todas as nove Musas das deusas. Nossas
mães e avós conheciam a magia das Musas e nos transmitiram esse conhecimento. O maior desejo delas era que o milagre de Partholon não morresse nos Ermos. A beleza
ao seu redor agora não faz sentido?
- Sem dúvida - murmurou Brighid. Por Partholon inteira, o Templo da Musa era conhecido por suas várias escolas de aprendizado e as mulheres excepcionais que viviam
e treinavam lá. A própria Escolhida de Epona era sempre educada pelas deusas encarnadas da Musa. A caçadora considerou as palavras de Ciara. A situação apresentava
muito mais camadas do que ela previa. E camadas significavam coisas que raramente eram como se apresentavam à primeira vista.
- Sua mãe era filha da deusa encarnada da dança, e seu pai?
A tristeza cruzou o rosto expressivo da mulher alada.
- Ele era filho de uma acólita devotada a Calíope que foi capturada pelos fomorianos, violentada e engravidada aos 13 anos de idade. De fato, apenas uma criança...
- A voz de Ciara se esgotou.
- Onde estão seus pais agora? - forçou-se Brighid a perguntar.
Antes de responder, Ciara olhou para Cuchulainn. O guerreiro retornou o olhar firmemente, com olhos que mais uma vez estavam chapados e inexpressivos. Ela se voltou
lentamente para Brighid. Quando falou, a voz estava encoberta de pesar: - Meus pais cometeram suicídio há mais de duas décadas. Escolheram morrer nos braços um do
outro antes de sucumbirem ao mal que estava sufocando a humanidade deles. Como desejavam, espalhei as cinzas deles ao sul. - Os olhos de Ciara penetraram Brighid
quase tão completamente quanto as palavras seguintes: - Sou a xamã de meu povo. Treinada por minha mãe, que seguiu os costumes da mãe dela, a Amada de Terpsícore.
Não mentiria para você, caçadora. Pressinto que tem conhecimento do Caminho Xamãnico. Não consegue discernir a verdade em minhas palavras?
Brighid sentiu mais do que viu Cuchulainn se endireitar no assento. Ela não tinha contado a ninguém - nem a Cuchulainn, nem à irmã dele. Como Ciara sabia?
- Xamãs podem mentir - disse Brighid. - Sei disso por experiência própria.
- Sim, podem. - O rosto franco e honesto de Ciara estava tingido de tristeza. - Mas eu não minto.
- Todos eles cometeram suicídio - disse Brighid.
- Nem todos. A maioria. Os outros... - Ciara desviou o olhar. Entrelaçou os dedos das mãos. Os nós ficaram brancos da pressão com que ela se reprimia. - A loucura
reclamou os outros, que logo depois morreram também.
- É doloroso para você falar disso - disse Brighid.
- Sim, muitíssimo. - Ciara se obrigou a separar as mãos e pressionar as palmas na madeira lisa da mesa. - Precisa entender o que aconteceu conosco quando Elphame
cumpriu a Profecia e retirou a loucura de nosso sangue. Durante todos esses longos anos, lutamos contra o mal dentro de nós, mesmo que isso tenha nos causado dor
e que cada batalha nos custasse um pedaço da nossa humanidade. E de repente aquele mal imenso e abrangente sumiu. - A respiração de Ciara ficou contida enquanto
ela revivia o momento: - O que restou dentro de nós é o que lutamos tanto para manter. Nossa bondade. Nossa humanidade. Queremos seguir em frente - nos transformar
na gente que nossas mães humanas acreditavam que éramos há tanto tempo. Quando recordo os horrores do passado e aqueles que foram derrotados antes de a salvação
chegar, é como se eu estivesse desconstruindo a fortaleza de bondade dentro da minha mente. O pesar e a tristeza pairam nos cantos escuros. A desilusão se aloja,
e viver de recordações não serve para nada que não seja barrar as portas e selar a dor. - Ela não voltou a encarar Cuchulainn, mas Brighid sentia que Ciara estava
mais falando para ele do que para ela. - Lidar com a tragédia faz o sofrimento se tornar um pendente de gelo que começa tão pequeno e inofensivo quanto uma lasca
fria. Mas lentamente, conforme o inverno da lamentação prossegue, uma camada após outra se acumula numa inquebrável adaga de dor. - Ciara endireitou as costas e
virou as mãos, de modo que repousassem de palmas para cima num gesto de franqueza e súplica. - Me teste, caçadora. Sei que tem a habilidade de discernir qualquer
falsidade em minhas palavras. Eu recebo com prazer seu escrutínio.
Brighid ignorou Cuchulainn, que tinha parado de comer e a encarava com uma expressão mista de surpresa e repulsa. Respirou bem fundo e concentrou seus poderes apurados
de observação - poderes que eram, como Ciara dissera, aprimorados pela rica herança xamã que lhe pertencia por direito de nascença - na mulher alada. Como quando
procurava uma presa para seu clã, a caçadora cheirava mais do que o ar. Aspirava a essência espiritual daquilo que procurava. E o que procurava ali na casa comunal
era o rastro sombrio deixado pelo mal e pelas mentiras.
Ciara permanecia parada e serena, esperando pacientemente que a caçadora vasculhasse seu espírito e visse o que vivia ali.
- Você não está escondendo nada de nós - disse Brighid, enfim.
O sorriso de Ciara agora era radiante.
- Não, caçadora. Não estou escondendo nada de vocês. Mas se for acalmar sua mente, convido você a viajar comigo numa verdadeira jornada espiritual ao Mundo Superior,
e garantirei diante da própria Epona que minhas palavras são verdadeiras.
Brighid sentiu um punho gelado se fechar sobre seu coração. Usar seus poderes inatos para alimentar o clã ou saber a verdade sobre Ciara e assim manter os MacCallan
a salvo era uma coisa. Para ela não era diferente de transpassar o coração de um nobre cervo com uma flecha. Não era agradável, mas era algo que devia fazer para
cumprir o caminho que escolhera para sua vida. Mas não viajaria numa jornada espiritual. Sabia muito bem quem encontraria.
- Não - disse ela, um bocado apressada. - Não será necessário, Ciara.
- Você tem o poder dentro de si, mas não faz a Jornada Sagrada?
- Não. Sou uma caçadora, não uma xamã.
Ciara abriu a boca, depois mudou de ideia e simplesmente assentiu: - Cada um deve encontrar o próprio caminho.
Cuchulainn se levantou tão abruptamente que quase derrubou o banco.
- É hora de me retirar.
Ciara não fez tentativa de esconder o desapontamento: - Mas já vão começar a contar histórias. As crianças ficarão perguntando por você.
- Hoje não - respondeu sucintamente.
- Eu também devo pedir para me retirar mais cedo. Minha viagem até aqui foi longa e cansativa - anunciou Brighid, levantando-se com graça e circulando a mesa para
parar ao lado de Cuchulainn.
O desapontamento de Ciara logo se tornou um olhar gentil de compreensão.
- Claro. Descanse bem, Brighid.
Antes de se virarem para sair, Cuchulainn anunciou em sua voz tensa: - Amanhã quero explorar a passagem. Acho que pode estar limpa o bastante para começarmos nossa
jornada em breve.
- Que ideia excelente! Pretendo ir com você - disse Ciara.
Cuchulainn resmungou. Sem esperar pela caçadora, saiu intempestivo pela porta, deixando Brighid sorrir e acenar despedidas tímidas para as crianças desapontadas.
Tochas estavam acesas por toda parte do assentamento, e não demorou muito para que os olhos sagazes de Brighid distinguissem as costas curvadas conforme Cuchulainn
caminhava ligeiro entre as cabanas. Ela o alcançou com facilidade.
- Você possui poderes xamânicos - disse ele sem encará-la.
- Sim. Embora eu preferisse que não, possuo a habilidade de fazer a Jornada Sagrada e de me comunicar com o reino espiritual. Está no meu sangue... - ela fez uma
pausa e relanceou seu perfil rígido - ... por parte de minha mãe. Ela é Mairearad Dhianna.
As palavras dela o detiveram.
- Você é filha da Sumo Xamã da manada Dhianna?
- Sou.
- Qual filha?
Brighid dispôs o rosto em cuidadosas linhas neutras.
- A mais velha.
Ele meneou a cabeça com descrença.
- Mas é tradição de sua manada que substitua sua mãe como sumo xamã.
- Eu quebrei a tradição.
- Porém carrega o poder dentro de si - acusou ele.
- Sim! Você faz parecer como se eu acabasse de anunciar que carrego comigo uma praga rara. Seu pai é um sumo xamã também. Não sabe nem um pouquinho como é ter o
poder e escolher não trilhar o caminho exato que deveria seguir?
O queixo de Cuchulainn se contraiu e descontraiu.
- Você já sabe a resposta, Brighid. Não quero assunto com o reino espiritual.
A caçadora lançou as mãos no ar com frustração.
- Há outras maneiras de se lidar com os poderes que tocam nossas vidas que não seja rejeitá-los completamente.
- Não para mim. - Ele rosnou as palavras entre os dentes.
- Sua irmã é a filha mais velha da Escolhida de Epona. A tradição estabelece que ela deve substituir a mãe como A Amada de Epona, porém todos que a conhecem compreendem
que seu destino é ser A MacCallan. Ela não deu as costas ao poder herdado por seu sangue. Ela usa sua afinidade com magia de terra para trazer vida ao Castelo MacCallan.
Como ela, escolhi não seguir a tradição, mas não rejeitei completamente os dons da minha herança.
Cuchulainn estava em silêncio, encarando-a como se fosse uma pária. Brighid suspirou, mantendo a raiva crescente sob controle por lembrar que não era contra ela
que ele batalhava - era consigo mesmo.
- Minha afinidade é com os espíritos dos animais.
Os olhos dele se estreitaram.
- É por isso que suas habilidades como caçadora são tão vastas.
Brighid bufou:
- Gosto de pensar que uso minha afinidade para ampliar, não para criar minhas habilidades.
- Não vejo diferença entre as duas coisas.
- Tenha muito cuidado, Cuchulainn. Lembre-se que sou a caçadora do seu clã. Não vou tolerar suas calúnias. - A voz de Brighid estava bem controlada, mas os olhos
brilhavam de raiva.
Cuchulainn hesitou apenas por um instante, antes de assentir devagar: - Você está certa por me lembrar, caçadora. Por favor, aceite minhas desculpas.
- Aceito - disse ela sucintamente.
- Prefere se abrigar em outro lugar? - perguntou ele.
Brighid bufou novamente, deixando um pouco da tensão relaxar nos ombros: - É me mandando para uma cabana cheia de crianças que planeja me torturar por minha transgressão
no reino espiritual?
- Não - disse ele às pressas. - Só pensei que talvez não...
- Vamos apenas dormir.
- Concordo - disse ele.
Caminharam em silêncio. Brighid podia sentir a confusão dentro do guerreiro soturno que andava ao lado dela. Era uma flecha curvada esperando para arrebentar. Quando
falou de repente, a voz soou como se vinda de uma tumba: - Teria usado seus poderes para salvá-la, não é?
Brighid o olhou depressa, mas Cuchulainn evitou seus olhos.
- Claro que teria, mas meu dom não é o da predestinação. Já lhe disse que simplesmente tenho afinidade com... - Sua voz cessou ao perceber o que ele estava realmente
dizendo. Fora prevenido sobre a morte de Brenna com uma premonição de perigo. Um aviso que rejeitou apenas porque sempre rejeitou qualquer coisa do reino espiritual.
Ela parou e pôs a mão sobre o ombro dele, virando-o de maneira que a encarasse.
- Não importa o quanto culpe a si mesmo, ou a mim, ou à sua irmã, Brenna continuará morta.
- Não estou culpando você ou Elphame.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Eu... Eu não consigo me livrar disso!
- Disso? - perguntou ela.
- Da dor de perdê-la.
Ela sentiu sob a mão a tensão nos músculos do ombro dele. O que poderia dizer? Não era boa para lidar com emoções puras. Era uma das razões pelas quais escolhera
ser uma caçadora. Queria deixar o tumulto emocional e sua antiga vida para trás. Os animais eram simples. Não discutiam, manipulavam ou mentiam. Cuchulainn precisava
conversar com um xamã, não com uma caçadora. Mas o guerreiro não procuraria um xamã. Por ordem de eliminação, ela era tudo o que ele possuía.
- Não sei o que dizer, Cuchulainn - disse com honestidade. - Mas me parece que você não pode fugir desse tipo de dor. Precisa enfrentá-la. Então você decide se quer
se curar e seguir em frente, ou se quer viver como um morto-vivo. Eu sei o que Brenna preferiria para você.
Ele a fitou com olhos velhos e cansados, levando um dedo ao meio da testa.
- Eu também sei. Fico pensando que se eu a deixar bem zangada, ela ao menos virá me repreender nos meus sonhos. - A risada seca e sem graça soava mais como um soluço.
- Ela não vem. Não virá. Rejeitei o mundo espiritual, e é lá que ela está.
Brighid observava sua agonia com impotência.
- Precisa descansar, Cuchulainn.
Ele concordou e, como um homem sonâmbulo, retomou o caminho até a cabana deles. Ele lembrava a Brighid um animal ferido. Precisava de um milagre para se curar, ou
de alguém que o tirasse daquele sofrimento.
Sete
O FOGO DA lareira queimou até virar brasa cintilante, mas os olhos aguçados de Brighid precisavam de pouquíssima luz. Achava que ele finalmente dormira. De seu lado
na cabana, observara o guerreiro se debater para dormir. Era como se o corpo lutasse contra o relaxamento como outra maneira de se punir. Não era surpresa que parecesse
tão cansado. O que Cuchulainn precisava era de um copo dos notórios chás de Brenna para fazê-lo descansar. A caçadora deu um longo e lento suspiro. Não, o que Cuchulainn
precisava era de Brenna.
Ela estava cansada também. O que dissera a Ciara sobre precisar se retirar mais cedo era verdade. Rearrumou os membros equinos dobrados e enroscou-se mais confortavelmente
de lado, aspirando a leve e agradável fragrância da urze anã que cobria o chão da cabana. Suas pálpebras estavam pesadas, mas ela resistiu à vontade de dormir. Ainda
não. Havia algo que precisava ver primeiro. E agora que Cuchulainn estava dormindo, poderia começar.
Observando as brasas cintilantes cor de ferrugem, relaxou o corpo enquanto aprofundava e desacelerava a respiração. Não entraria no estado de transe que levava à
Jornada Sagrada, mas precisava da concentração focada da meditação, que era apenas o primeiro passo para o mundo espiritual.
Mas Brighid não viajaria muito longe. Não permitiria isso. Nunca permitia.
Tendo como pano de fundo as brasas cintilantes, a caçadora se imaginou como quando estivera mais cedo à beira do precipício do cânion e tivera o primeiro vislumbre
do assentamento híbrido mais abaixo. Viu o acampamento bem organizado e as construções benfeitas. Então observou novamente, desta vez com os sentidos além dos olhos.
A cena ondulou, como um sopro agitando a água, e as cores mudaram. Os maçantes cinza e ferrugem dos Ermos se transformaram e de repente foram inundados por um brilhante
halo verde - uma cor que irradiava vida, saúde e a promessa de primavera. Brighid se permitiu adentrar mais no transe e expandiu os sentidos. O halo verde se intensificou,
e sua visão espiritual se tornou mais clara. A luz na verdade vinha de dúzias de esferas reluzentes que tremulavam brilhantes em contraponto às cores sombrias dos
Ermos.
Antes que pudesse intensificar a concentração, sentiu algo mais, mas pressentia que a sensação não vinha do assentamento. Em sua visão surgiu uma consciência incômoda
de algo atrás dela. Imaginou-se girando, e as montanhas oscilaram e tornaram-se vermelhas, como se estivessem banhadas em sangue. Surpresa, Brighid rompeu a concentração
e se viu novamente fitando os restos do fogo na lareira.
O que aquilo tudo significava? Desejava possuir o conhecimento da mãe. Pense!, ordenou a si mesma. O acampamento híbrido fora pintado num verde etéreo. Não existia
nenhuma conotação negativa com aquela cor. No mundo espiritual, representava o mesmo que no mundo físico - crescimento, prosperidade e recomeço da vida. Tinha visto
qualquer matiz escuro dentro do halo verde? Não... Brighid verificou a memória da meditação. Ciara estava dizendo a verdade. Ela não estava escondendo nenhum mal
- ao menos nenhum mal que Brighid pudesse descobrir.
Então os pensamentos dela se voltaram para o breve vislumbre que teve das montanhas. A aura delas estava definitivamente escarlate. E a sensação que se irradiava
delas era diferente, mais complexa, tingida de escuridão. Ela franziu a testa e remexeu inquieta as pernas dobradas. A cadeia de montanhas fora batizada Trier, que
era a palavra na língua antiga para a cor vermelha, por causa das rochas vermelhas e das pequenas plantas de folhas avermelhadas que acarpetavam as colinas mais
baixas durante os meses mais quentes. Será que era isso que sua visão tinha refletido? Que as montanhas eram adequadamente batizadas e que mesmo em espírito eram
vermelhas? Ou seria algo mais profundo que isso? No reino espiritual, a cor vermelha carregava um simbolismo complexo e conflitante. Significava paixão, mas também
representava ódio. Profetizava nascimento, e também morte.
Simplesmente não tinha certeza - olhou para a forma sonolenta e inquieta de Cuchulainn -, não tinha certeza sobre nada ali, exceto que permaneceria alerta e cautelosa
contra qualquer coisa que ameaçasse o clã. Brighid fechou os olhos, mas o sono não vinha fácil. Ficou ouvindo o som fantasmagórico de asas e vendo o horizonte mergulhado
na cor escarlate do sangue.
Ainda era muito cedo pela manhã. O dia amanhecera brilhante e fresco, com uma mudança quase imperceptível do vento incessante vindo do frígido norte para uma corrente
noroeste, mas gentil, que trazia consigo o distinto e atraente aroma do mar. Cuchulainn e Brighid se juntaram a Ciara na cerimônia de bênção matinal, e depois do
desjejum os três refizeram a trilha que Brighid e Cuchulainn tomaram no dia anterior, a caminho da boca da passagem escondida da montanha.
Mas algo não estava certo. Ciara sentia bem no fundo do espírito. Quanto mais perto chegavam das montanhas, mais intensa era a sensação de algo errado. Era mais
do que sua eterna antipatia pela barreira rochosa que os separava de Partholon e tudo que era bom, verde e fértil. Hoje ela sentia um aviso se esgueirando por sua
pele e se alojando dentro dela como a picada de uma aranha venenosa. Queria acreditar que era só sua imaginação, só o fato de que as Montanhas Trier simbolizavam
tanta negação. Mas ela não era uma moça comum. Ciara era a xamã de seu povo, não precisava estar numa Jornada Sagrada para reconhecer a mensagem do reino espiritual.
Precisava escapar das montanhas e da inquietação que elas pareciam invocar. Então poderia se retirar para sua cabana e se abrir para a Jornada Sagrada. Lá Ciara
poderia chamar seus guias espirituais para que a ajudassem a interpretar o aviso que a abalara até a alma. Percebeu que estava prestes a fugir das sombras das montanhas
quando a voz de Cuchulainn interrompeu seu tumulto interno e a ancorou novamente no mundo físico: - Derreteu um bocado. Se o tempo firmar, e todos os sinais indicam
que sim, a trilha ficará transitável nos próximos dias - disse Cuchulainn pensativamente, acenando com a cabeça enquanto estreitava os olhos para a trilha ainda
salpicada de neve que seguia por duas margens escarpadas de rocha vermelha e diretamente para as montanhas.
- Acha mesmo? - Ciara forçou a voz a não trair o medo que as palavras dele fizeram espiralar nela.
- Não vejo por que não. Será, claro, uma jornada difícil. Mas você mesma disse que o inverno acabou. - Ele acenou com a cabeça para a passagem estreita. - Ao menos
não teremos mais nenhuma neve para bloquear o caminho.
A caçadora observou Ciara e Cuchulainn espiarem o rasgo escuro nas antigas paredes de rocha. Ela cruzou os braços sobre o peito e meneou a cabeça.
- Vocês dois devem estar totalmente loucos.
O guerreiro fez cara feia, mas a mulher alada simplesmente voltou o olhar para a caçadora.
- Sobre o que você está falando? - perguntou Cuchulainn.
- Sobre o que eu estou falando? Melhor perguntar a vocês mesmos.
- Explique-se, caçadora - rosnou Cuchulainn.
Brighid enrugou os lábios.
- Pela Deusa, é simples! Não pode conduzir setenta crianças por esta passagem. Nem dentro de alguns dias, nem em alguns ciclos da lua.
Cuchulainn abriu a boca para gritar, mas a voz calma de Ciara interrompeu seu desvario: - O que quer dizer, Brighid?
- Que é claramente perigoso demais. Talvez fosse diferente quando Cuchulainn veio por aqui duas luas atrás, mas hoje seria uma jornada difícil até para um grupo
de adultos. É impossível para crianças.
- Nossas crianças são especiais - disse Ciara com calma. - Não são crianças normais.
- Mesmo assim, não deixam de ser crianças. Não importa que sejam fortes, as pernas não são tão longas. Eu as observei. Algumas mal conseguem planar, o que significa
que os adultos ou as crianças mais velhas teriam que carregar as menores. Isso duplicaria o perigo e a dificuldade - falou Brighid com praticidade, na voz lógica
e insensível de uma caçadora discutindo o rastro de uma caça.
- Tem certeza? Mesmo se os levássemos em pequenos grupos? - perguntou Cuchulainn.
- Em grupos pequenos seria melhor, mas ainda perigoso. A viagem seria lenta, então seriam forçados a passar a noite na passagem. E isso seria uma noite sem fogo.
- Brighid relanceou a xamã que tão facilmente empunhava o poder de chamas. - O fogo enfraqueceria a neve que já está derretendo nas paredes da passagem.
- Avalanche - disse Cuchulainn. O guerreiro sacudiu a cabeça com desgosto. Não tinha pensando naquilo, mas deveria. - Mas grupos pequenos funcionariam?
Brighid ergueu um ombro.
- Suponho que sim.
Os olhos escuros da xamã buscaram os dela.
- Se fossem suas crianças, arriscaria levá-las pela passagem, mesmo em grupos pequenos?
- Não.
- Se você não levaria suas crianças, não levarei as minhas - decretou Ciara.
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas diante da rapidez da decisão da mulher alada, mas era o povo dela e era uma escolha que ela devia fazer.
- Então teremos que esperar até o ápice do verão para levar as crianças, quando não houver mais neve nas paredes da passagem - disse ele devagar. Já podia sentir
o peso do desapontamento das crianças quando descobrissem que esperariam pela viagem para a terra de seus sonhos por mais várias passagens da lua.
- Não necessariamente - disse Brighid.
- Mas você acabou de dizer... - resmungou Cuchulainn.
- Eu disse que esta passagem era perigosa demais para as crianças. Mas esta não é a única passagem para Partholon.
Cuchulainn pulou de surpresa.
- A Passagem Guardião!
- Exatamente. - A caçadora parecia satisfeita consigo mesma.
- Nem tinha considerado isso, mas você tem razão. Faz mais sentido. É mais ampla, bem demarcada e bem guarnecida. Provavelmente já está até transitável.
- É vigiada por guerreiros do Castelo Guardião. - A voz macia de Ciara tremeu de leve. - O único encargo deles é impedir que os fomorianos entrem em Partholon.
- Vocês não são nossos inimigos. O sacrifício de minha irmã promete isso - resmungou Cuchulainn.
- Mas é onde ela foi aprisionada.
O corpo de Cuchulainn se sacudiu como se alguém o tivesse golpeado. O ela a quem Ciara falava era Fallon, a híbrida louca que tinha assassinado Brenna. Depois que
Fallon foi capturada, Elphame a sentenciou à morte por ter tirado a vida da curandeira, mas a híbrida estava grávida, e nem mesmo Cuchulainn estava disposto a sacrificar
uma criança que estava por nascer para pagar o débito que a mãe devia. Então Fallon fora levada ao Castelo Guardião para ficar presa até o nascimento da criança.
Era lá que por fim seria executada.
- Sim. - Cuchulainn salientou a palavra. - Fallon está presa lá.
- Então as pessoas não pensarão que somos como ela? - perguntou Ciara, os olhos luminosos de sensibilidade. - Não vão nos odiar?
- Vocês não são responsáveis pelas ações de Fallon - disse Brighid. - Ela escolheu a loucura e a violência. Nenhum de vocês fez isso.
- Os guerreiros são homens e mulheres honrados. Tratarão vocês com justiça - afirmou Cuchulainn.
Brighid deu uma olhada nele, considerando a ironia da situação. Ali estava Cuchulainn, assegurando Ciara de algo contra o que ele mesmo lutara. Esteve pronto para
tratar os neofomorianos injustamente - já tinha lhe admitido isso. Mas a bondade deles era óbvia, mesmo para um guerreiro pesaroso. Se Cuchulainn podia enxergar
além das asas e do sangue demoníaco, seriam os guerreiros guardiões capazes de fazer o mesmo? Brighid esperava desesperadamente que sim.
- Se fossem minhas crianças, levá-las pela Passagem Guardião seria o único caminho até Partholon - disse a caçadora.
Ciara olhou da caçadora para o guerreiro.
- Se acredita que é o melhor, então é pela Passagem Guardião que entraremos em Partholon.
Cuchulainn grunhiu e olhou para o leste.
- O que acha? É uma viagem de aproximadamente dois dias? - perguntou Brighid, seguindo-lhe o olhar.
- Com crianças? Eu diria que é melhor dobrar isso.
- Pensei que conhecesse melhor as crianças, Cuchulainn.
Antes que Cuchulainn pudesse responder à mulher alada, Brighid bufou: - Vocês terão ampla oportunidade de nos mostrar o quão especiais são os pequenos. Quando todos
vocês estarão prontos para a viagem?
- Quando quiserem. Estamos prontos desde que a neve começou a derreter. E estamos esperando por essa viagem há mais de cem anos.
- Partiremos ao raiar do dia - disse Cuchulainn.
- Então que seja ao raiar do dia - disse Ciara com firmeza. - Devemos voltar depressa para que eu possa avisar aos outros.
Com essas palavras, Ciara estendeu as asas e pairou veloz pelo chão rochoso na corrida deslizante que seu povo herdara dos pais. Ouviu o bater de cascos conforme
a centaura e o capão de Cuchulainn galopavam atrás dela. Sentiu a tensão dentro dela se aliviar quando decidiram seguir pela Passagem Guardião em vez da trilha escondida,
mas a sufocante sensação de que havia algo errado não se dissipou até estarem bem fora das sombras das montanhas e novamente no terreno plano e áspero dos Ermos.
A mente da xamã redemoinhava enquanto suas pernas trabalhavam ritmicamente. Por que recebera um aviso? A resposta óbvia era que o reino espiritual concordava com
a caçadora - a trilha escondida era muito perigosa para as crianças atravessarem. Mas a resposta parecia simplista demais para uma reação tão intensa. A caçadora
reconhecera facilmente o perigo, e Ciara já acreditava que o julgamento da centaura era honesto e acurado. Teria dado ouvidos a ela, assim como Cuchulainn, sem qualquer
indicação do reino espiritual. Parecia perda de tempo para os espíritos enviar um alerta desnecessário. Uma coisa que compreendia muito bem graças à sua experiência
com o mundo dos espíritos era que eles nunca desperdiçavam seus poderes e que seus avisos nunca deveriam ser considerados desnecessários.
Ela devia encontrar tempo para fazer a Jornada Sagrada e descobrir o que o outro reino estava tentando contar a ela. Era sempre prudente dar atenção aos avisos dos
espíritos.
Oito
- NÃO ACHEI QUE conseguiriam - disse Brighid baixinho conforme ela e Cuchulainn se aproximavam do coração do assentamento, onde cada membro dos neofomorianos tinha
se reunido. Desde a menorzinha das crianças aladas até a bela Ciara, todos esperavam ansiosos pela centaura e o guerreiro que os conduziriam à terra que só conheciam
por pinturas, histórias e sonhos de mulheres há muito falecidas.
- É o raiar do dia e estamos prontos - disse Ciara. - Só estávamos esperando por vocês dois.
Brighid notou o óbvio brilho de orgulho nos olhos da mulher alada, mas achava difícil culpá-la. As crianças estavam alinhadas como pequenos guerreiros, cada uma
com um pacote amarrado às costas. Os adultos estavam bem mais carregados, e a caçadora contou cinco deles que levavam faixas de couro cruzando o peito nas quais
descansavam as crianças menores. A maioria das provisões para a viagem estava bem empilhada em padiolas que, Brighid bufou de surpresa, estavam atadas a cabras de
pelo desgrenhado. Eles estavam definitivamente prontos para a viagem.
Cuchulainn encontrou a voz primeiro: - Muito bem. - Ele assentiu para as crianças sorridentes, mas não retribuiu os sorrisos. - Nosso caminho primeiro segue para
o leste, antes de virarmos para o sul e entrarmos em Partholon. - Ele montou no cavalo e, estalando a língua, trotou em direção ao sol nascente.
Brighid foi para junto dele e sobressaltou-se um pouco quando o grupo atrás deles irrompeu num viva ensurdecedor. Uma vozinha deu início a uma antiga canção entoada
por gerações de crianças de Partholon em saudação ao sol de Epona: Saudações, sol de Epona,
que viaja no alto dos céus.
Com seus passos fortes
em seu voo altaneiro,
você é a feliz mãe da estrelas.
Logo outra criança se pôs a cantar, e depois mais outra e outra, até a manhã ecoar com o som feliz de vozes infantis elevadas em louvor à Deusa: Você afunda no perigoso
oceano
sem dano e sem ferimento.
Você se ergue no silêncio da onda
como uma jovem chefe desabrochando...
- Será uma jornada danada de longa - disse Brighid com um suspiro.
- Pode apostar - afirmou Cuchulainn. - Mas poderia ser pior.
- Como?
- Poderiam estar cavalgando você.
Brighid não podia dizer com certeza por causa do ruído retumbante de setenta crianças, mas achava que o guerreiro talvez estivesse dando uma risadinha.
Conforme o meio-dia se transformava em tarde e depois noite, Brighid concluiu sem qualquer dúvida que os Ermos eram o lugar mais deprimente que teve o desprazer
de visitar. Só levaram algumas horas para alcançar as montanhas. Uma vez dentro das sombras das gigantes completamente vermelhas, Cuchulainn tinha virado o grupo
para leste e pelo resto da manhã seguiram em paralelo à cadeia de montanhas.
O olhar de Brighid varria a paisagem. Feia, pensou enquanto assimilava o xisto saliente e a vegetação baixa e fina que se passava por folhagem. Além de ser feio,
o lugar a deixava com os nervos à flor da pele. Parecia plano e fácil de transpor, mas na verdade o terreno escondia barrancos repentinos semelhantes a feridas talhadas
no chão. O xisto entulhava o cenário frio e rígido. Seria muito fácil um casco pisar em falso. Um erro, mesmo naquele passo lento, e seria fácil quebrar a perna.
As montanhas não eram melhores que a terra que delimitavam. Vermelhas e intimidadoras, pareciam sentinelas silenciosas, o que, estranhamente, não era uma conotação
positiva. Mas talvez as montanhas devessem ser intimidadoras e impor pavor. Brighid tinha pouca experiência em terrenos assim. A única referência que poderia usar
para comparação eram os Outeiros Azuis, as colinas brandas e ondulantes que separavam a margem noroeste da Planície dos Centauros do resto de Partholon. Os outeiros
não se qualificavam como montanhas de verdade, mesmo que parecessem impressionantes quando comparadas à planeza e livre abertura da Planície dos Centauros. Mas em
nada se comparavam à gigante barreira vermelha da cadeia Trier. Os Outeiros Azuis eram redondos e tão cobertos de árvores compactas e vicejantes que de longe pareciam
possuir uma brumosa cor safira. Enquanto os outeiros eram acolhedores e cheios de verde e vida selvagem, as Montanhas Trier eram exatamente o oposto. Brighid olhava
as grosseiras Trier com inquietude, mais uma vez contente por Cuchulainn e Ciara terem dado ouvidos ao seu conselho e desistido de levar as crianças pela perigosa
passagem escondida.
Atrás dela, a risada compartilhada por duas meninas esvoaçou no vento incessantemente inquieto. A caçadora não precisava olhar para trás para saber o que veria.
Com asinhas estendidas quase se arrastando pelo chão, as meninas estariam com as cabeças juntas, rindo deliciadas com... com... Brighid bufou. Só a Deusa sabia com
o quê! Estava além de Brighid compreender como aquelas crianças conseguiam encontrar alegria e felicidade primitivas se tudo aquilo que as cercava - tudo que sempre
conheceram - eram os tristes Ermos e uma luta pela vida que seria amedrontadora para um centauro adulto. E eram meras crianças! Isso a surpreendia tanto quanto confundia.
- Você parece tão pensativa quanto o guerreiro - disse Ciara.
Brighid relanceou a mulher alada que ajustara seu passo deslizante com a caminhada firme da caçadora.
- Isso não pode ser elogio. - Brighid inclinou a cabeça de maneira sardônica para as costas eretíssimas de Cuchulainn. - Não posso imaginar um companheiro de viagem
mais deprimente.
O guerreiro mantivera-se persistentemente adiante do grupo de modo que, mesmo que guiasse quase cem viajantes sociáveis, passou a maior parte do dia sozinho. Falou
o mínimo possível e raramente interagia com eles. Ao meio-dia Brighid tinha desistido de tentar estabelecer conversa e concluiu - com relutância - que preferia viajar
perto do júbilo das crianças à nuvem escura que encobria Cuchulainn.
O sorriso de Ciara era tão caloroso quanto a voz: - Não foi nem elogio nem insulto. Foi simplesmente uma observação, caçadora.
Brighid reconheceu as palavras da mulher alada com um leve aceno de cabeça.
- Na verdade, não estava pensando em Cuchulainn. Estava pensando nas crianças. Estão indo bem. Muito melhor do que antecipei - admitiu.
O sorriso de Ciara se alargou.
- Eu disse que eram especiais.
Mais risadas alegres esvoaçaram até elas no vento. Brighid bufou: - São aberrações!
O ar radiante de Ciara imediatamente embotou, e Brighid percebeu sua difamação nada intencional.
- Agora sou eu quem deve se explicar. Não pretendi causar insulto - disse apressada. - Admito que não passei muito tempo com crianças - a vida de uma caçadora raramente
inclui um parceiro e filhos. Mas o pouco que sei sobre elas não me levou a esperar tamanho... - Ela se calou, procurando pela palavra certa antes de concluir: -
Otimismo.
O rosto de Ciara relaxou novamente em sua expressão familiar e sincera.
- Seria difícil para elas não estarem cheias de otimismo. Todos os seus sonhos estão se tornando realidade - nossos sonhos estão se tornando realidade.
Como sempre, a caçadora falou o que lhe vinha à mente: - Não pode crer que retornar a Partholon será coisa fácil.
- O fácil é relativo, não acha?
Brighid ergueu uma sobrancelha questionadora.
- Considere, caçadora, como seria se seu povo estivesse vivendo há mais de cem anos numa terra perigosa e estéril com demônios nas próprias almas - demônios que
lenta e metodicamente destruíam você e todos que você amava. E então, incrivelmente, você sobreviveu a isso. O que não pareceria fácil depois de uma vida assim?
- Ciara, Partholon é uma terra linda e próspera, mas deve se lembrar de que existem muitos tipos de perigo e muitas maneiras de se destruir uma alma.
Ciara sustentou-lhe o olhar.
- Com a ajuda de Epona, sobreviveremos a essa transição.
Brighid estudou as costas rígidas de Cuchulainn. Às vezes a sobrevivência parecia ser mais cruel que um fim rápido e indolor.
Ciara acompanhou o olhar da caçadora, e, como se lesse sua mente, disse: - A alma do guerreiro está despedaçada.
Os olhos de Brighid pularam de volta para a mulher alada, mas não disse nada.
- Posso perguntar uma coisa, caçadora?
- Pode perguntar. Não posso prometer responder - disse Brighid sucintamente.
Os lábios de Ciara se ergueram.
- Não é minha intenção bisbilhotar - ou ofender. Mas como xamã é difícil observar o sofrimento de alguém sem tentar... - Ela hesitou, remexendo os ombros com inquietação.
- Ele não vai aceitar sua ajuda - disse Brighid com franqueza.
- Percebi isso. Mas sempre há como uma xamã ser de auxílio mesmo que a pessoa não esteja disposta. - Diante do olhar estreito de Brighid, Ciara riu. - Garanto que
não escondo motivos, e não gostaria de me intrometer na privacidade do guerreiro. - Então sua expressão ficou séria. - Mas ele tem sofrido tanto que não posso ficar
parada sem ao menos tentar oferecer-lhe algum alívio.
Brighid sentiu a verdade das palavras de Ciara se assentar bem fundo nela.
- Faça sua pergunta, xamã.
- Como Cuchulainn era antes da morte da amada?
A caçadora ergueu as sobrancelhas, abismada com a pergunta. Tinha esperado que Ciara perguntasse sobre Brenna e sua morte, ou mesmo sobre como Cuchulainn tinha reagido
ao assassinato, mas Brighid não esperava que a mulher alada perguntasse sobre antes.
Reagindo à óbvia surpresa de Brighid, Ciara baixou a voz para ter certeza de que nenhuma de suas palavras fosse carregada pelo vento: - Às vezes, quando o destino
é muito cruel e o trauma das tragédias pessoais, das doenças ou das crises é mais do que se pode suportar, a alma de uma pessoa literalmente se fragmenta - se desintegra
- e pedaços dela se perdem no Reino dos Espíritos, deixando a pessoa com a sensação de que está quebrada... perdida... inteiramente ausente. A princípio é um mecanismo
de defesa para nos ajudar a sobreviver a algo que do contrário nos destruiria. Mas mesmo assim a pessoa está... - Ela lutou para colocar seu entendimento nas palavras.
- Está danificada? - sugeriu Brighid.
- Exatamente. - Ciara sorriu com apreciação. - Você tem os instintos de uma xamã, Brighid.
A expressão da centaura se achatou e seus olhos violeta se estreitaram.
- Está enganada.
Ciara não se abalou nem se amedrontou com o olhar da caçadora.
- Descobrirá que raramente me engano. Talvez seja por causa da minha afinidade com o fogo, que sempre pensei como algo purificador e não destruidor, mas meus instintos
não me falham. Mesmo antes de conhecê-la, sonhei com a chegada de uma águia prateada, um dos guias espirituais mais poderosos.
- Não tenho um guia espiritual. Não sou xamã. - A voz de Brighid era gélida.
- Veremos, caçadora - disse Ciara calmamente, antes de redirecionar o assunto ao guerreiro: - Como você disse, uma alma despedaçada pode deixar a pessoa danificada.
E se os pedaços da alma não se juntam... Imagine uma ferida invisível que se recusa a fechar e depois começa a inflamar e apodrecer. É o que acontece.
- E você consegue consertar isso? - perguntou Brighid incisiva, forçando-se a ignorar as sensações misturadas de irritação e pânico que os comentários de Ciara evocaram.
- Nem sempre. Às vezes a alma não quer se curar.
- O que acontece então?
- Geralmente suicídio. Às vezes a pessoa continua presa à vida, mas só um fantasma do que era antes - explicou Ciara com tristeza.
- Saber que tipo de homem Cuchulainn era antes de perder Brenna ajudaria a consertá-lo? - perguntou Brighid, mas seus instintos, quisesse admiti-los ou não, já espelhavam
a resposta de Ciara antes que a xamã alada falasse.
Ciara suspirou:
- Talvez. Uma alma despedaçada é bem difícil de ser curada quando o paciente aceita ajuda abertamente. Sem a cooperação de Cuchulainn, há pouco que eu possa fazer,
exceto tentar contatar aquela parte dele que se perdeu e convencer a alma danificada a escolher a vida e a cura, em vez do desespero e da morte.
Brighid assentiu, recordando de sua infância e das vezes em que a mãe fora capaz de salvar da tristeza a vida de outro centauro. A mãe curava almas despedaçadas,
concluiu a caçadora, envergonhada por nunca ter pensado nisso antes. Houve época em que Brighid via a mãe como um exemplo radiante de tudo o que era bom. Mas isso
foi antes de Mairearad ficar obcecada com o poder que sua posição oferecia. Brighid tinha parado de enxergar a mãe como curandeira espiritual há muito tempo, e aquele
pensamento de repente inundou Brighid de tristeza. Cuchulainn, lembrou a si mesma. Isso diz respeito a Cuchulainn, não a mim e à manada Dhianna. Ela era parte do
clã MacCallan agora, e Cuchulainn era mais irmão do que o dela fora por anos.
Engolindo um nó na garganta, a caçadora falou: - Cuchulainn era um libertino. Elphame geralmente o chamava de incorrigível, e estava certa. Era um tremendo paquerador.
Não se percebe agora, mas o sorriso parecia natural ao seu rosto, e ele ria com uma sinceridade que eu costumava achar inteiramente marota e ridiculamente encantadora
- o que negarei ter dito, se repetir isso para ele.
O próprio sorriso de Ciara se alargou.
- Prossiga, eu nem pensaria em repetir nada disso. Do que mais se lembra? Apenas fale a primeira coisa que vier à sua mente.
- As mulheres o amavam, e ele as amava - revelou Brighid, que bufou, recordou o quanto o guerreiro estava confuso quando tentou se aproximar de Brenna pela primeira
vez. - Exceto Brenna. Ela o rejeitou abertamente quando tentou cortejá-la. - Brighid deu uma risada. - Lembro de quantas besteiras fez tentando ganhar a afeição
da curandeira. Foi notavelmente inepto. De fato, uma vez eu o comparei a um touro no cio, demarcando o território ao redor da moça com toda a delicadeza de uma fera
ruidosa.
A explosão da gargalhada de Ciara fez a cabeça do guerreiro se virar brevemente na direção delas. As duas mulheres ficaram inocentemente silenciosas até ele reassumir
sua pose de estátua. Mesmo assim, Brighid teve o cuidado de manter a voz baixa quando continuou: - Ele não sabia como galantear uma mulher que lhe dizia não, não
e não. Cuchulainn era um homem que poucas mulheres rejeitariam.
Ciara piscou surpresa.
- Brenna o rejeitou?
- Ela não confiava nos homens. Só estava acostumada a ser rejeitada e banida.
- Por quê?
- Brenna ficou terrivelmente desfigurada num acidente na infância. Pensei que soubesse. Curran e Nevin não contaram histórias sobre ela?
- Não, não diretamente. É óbvio o quanto é doloroso para o guerreiro ouvir ou falar de seu amor perdido. Minha ideia era a de uma curandeira bonita e talentosa.
- Ela era - mas também era muito mais.
- Aparentemente há muito mais em Cuchulainn também, se o libertino que costumava ser possuía a capacidade de ver além do físico para encontrar o amor que estava
escondido.
As palavras de Ciara soaram como um grande enaltecimento, mas sua expressão era tensa e séria.
- Isso é uma coisa ruim, xamã?
- Complica as coisas.
- Explique - pediu Brighid.
Ciara afastou uma mecha de cabelo escuro do rosto e demorou-se para responder.
- O amor vem de várias formas. Por exemplo, o amor que sentimos por nossa família - mesmo dentro desta dinâmica, o amor difere. Tem irmãos? - perguntou ela de repente.
Pega desarmada pela pergunta, a voz de Brighid estava tensa ao expelir um sucinto "Sim" através de lábios tensos.
- Então compreende a diferença entre o amor que se sente por um irmão ou uma irmã e o amor que tem pelos pais.
A caçadora assentiu depressa, esperando que Ciara não prosseguisse naquela linha de questionamento. Não precisava ter se preocupado, a voz da xamã assumira um caráter
quase melodioso quando se pôs a explicar as nuanças do amor: - Assim como dentro da nossa família, o amor entre um homem e uma mulher pode assumir muitas formas
também. Alguns amam apaixonada e impetuosamente, e como um fogo que arde quente demais, o amor se consome rápido e geralmente deixa borralho frio para trás. Outros
não sentem a paixão intensa, o amor é como brasa fumegando ano após ano, mantendo suas vidas aquecidas e satisfatórias. Existe amor que é quase exclusivamente da
mente, do coração ou do corpo. É raro, mas às vezes todos os três se misturam.
- Todos os três se misturavam com Cuchulainn e Brenna.
- E é mais difícil se recuperar desse.
- Tentará ajudá-lo mesmo assim? - perguntou Brighid.
- Claro, mas...
- Mas o quê? - indagou Brighid.
- Mas não sou o que ele precisa. Cuchulainn se retraiu dentro de si mesmo. Precisa do auxílio de um xamã que se importe com ele num nível muito mais pessoal. - Ela
suspirou de leve. - Respeito o guerreiro, e talvez no devido tempo consiga me tornar íntima para alcançar suas emoções mais profundas, mas creio que a necessidade
de Cuchulainn é muito imediata.
- O pai dele é o Sumo Xamã de toda Partholon. Não poderia ajudar Cuchulainn?
Ciara pressionou os lábios e meneou a cabeça.
- Por que não? Midhir é um grande xamã.
- Lembra dos diferentes tipos de amor?
Brighid assentiu com impaciência.
- Para se curar da perda de Brenna, Cuchulainn precisa de uma intimidade com o xamã que é diferente daquela da ligação entre pai e filho. Ele precisa de alguém que
possa alcançar mais do amante e menos do filho - disse Ciara.
Brighid franziu a testa.
- Isso não faz sentido nenhum. O único xamã em quem Cuchulainn poderia chegar a confiar é o pai. Não existe mais ninguém - exceto você.
- Não existe? - Ciara sorriu de maneira enigmática. - Posso sentir a mão de nossa Deusa sobre o guerreiro. Não acredito que Epona vá deixá-lo privado de auxílio,
mas os desígnios da Deusa são sempre misteriosos e difíceis de serem totalmente compreendidos por nós. Até outro xamã surgir, tentarei aliviar o sofrimento do guerreiro.
As palavras de Ciara fizeram os pelos na nuca de Brighid se arrepiarem, e quando falou, a voz soou mais áspera do que pretendia: - Esperar por um "talvez" ou "e
se" é ridículo. Faça o que puder para ajudar Cuchulainn. Mas eu não contaria nada a ele.
Ciara curvou a cabeça numa gentil concordância.
Nove
O ACAMPAMENTO DAQUELA primeira noite se organizou com surpreendente eficiência conforme as crianças trabalhavam rápida e habilmente em grupinhos supervisionados
pelos adultos e os adolescentes mais velhos. As traves das padiolas foram logo transformadas nos esqueletos das tendas, e depois cobertos com peles de cabra esticadas.
Os abrigos improvisados se ergueram num círculo fechado ao redor de uma área plana e rochosa que Ciara escolhera com cuidado. A aba de cada tenda foi deixada aberta.
- Compreendo a formação de círculo - murmurou Brighid com Cuchulainn, que veio para junto da centaura, que estava esfolando a meia dúzia de lebres que tinha capturado
enquanto as tendas eram erguidas. - Mas por que deixar a frente das tendas aberta? Parece que estão convidando esse frio maldito para congelá-los durante o sono.
- Observe - resmungou Cuchulainn, pegando um coelho e desembainhando a faca.
Antes que a caçadora pudesse dizer a Cuchulainn como era irritante a companhia introvertida na qual se tornara, a voz de Ciara soou com clareza no dia que terminava:
- É hora! Tragam o combustível.
Com gritinhos de alegria e mais tagarelice que Brighid acreditava ser saudável para os nervos de alguém, as crianças aladas flutuaram até as padiolas. Enchendo os
braços com o que pareciam grandes torrões de terra cinza dura, rodopiaram ao redor da xamã, que apontou para uma área no meio da rocha achatada. Exultantes, as crianças
largaram a carga numa pilha crescente. Quando o monte estava quase à sua cintura, Ciara gesticulou para as crianças pararem. Elas ficaram num silêncio satisfeito
enquanto formavam junto com os neofomorianos adultos um círculo frouxo ao redor da xamã.
A caçadora enviou a Cuchulainn um olhar questionador, mas ele só repetiu a ordem de "observe".
Brighid fez cara feia, mas os olhos foram atraídos para Ciara, que sorriu para seu povo antes de se virar para o oeste. Seguindo seu exemplo, o círculo farfalhou
e virou-se também para o sol poente. As mãos de Brighid, que estavam esfolando com eficiência uma lebre atrás da outra, pararam quando Ciara falou: Gentil Epona,
Deusa abençoada, outro dia tu encerras,
transformando o calor do céu na noite escura.
Voltados na direção do fogo, enviamos nossas rezas,
abriga-nos da escuridão que agora se afigura.
As asas de Ciara se abriram e o ar ao redor dela cintilou com a presença tangível de Epona. Ela ergueu os braços, e a voz ficou ampliada e repleta de felicidade,
confiança e do poder do toque de uma deusa: Chamas dançantes da luz de Epona,
força fulgurante de fogo purificador
que em necessidade não nos abandona,
auxiliem nesse momento de clamor.
Tua visão é um resplandecer,
dom da chama, ó ardente flor,
preencha-me com o divino poder,
toca-me com todo o teu fulgor.
Ciara estendeu as mãos abertas na direção do monte. Instantaneamente a pilha se incendiou. Chamas ardiam alegremente, lançando bruxuleantes sombras aladas sobre
as tendas conforme os adultos chamavam suas crianças e o círculo se dispersava. O alarido de panelas anunciava que logo estariam prontos para a presa da caçadora,
mas Brighid não conseguia arrancar os olhos da xamã.
Ciara permaneceu onde estava ao fim da invocação, parada tão perto do fogo que Brighid pensou que sua roupa provavelmente se incendiaria. A cabeça estava abaixada
e os olhos estavam fechados, mas Brighid podia ver que os lábios se moviam silenciosamente. Por um longo momento, Ciara ficou parada ali feito estátua em sua concentração.
Depois, devagar, ergueu a cabeça e abriu os olhos, encontrando o olhar curioso da caçadora com o seu, límpido e sincero. Brighid foi a primeira a desviar o olhar.
- Sabe, poderia me falar mais do que "observe" ou "você verá" quando faço perguntas sobre... - Brighid apontou vagamente a fogueira e o acampamento.
- Acho que deve ter a mesma experiência que eu tive - disse Cuchulainn.
- Que é?
- Surpresa. Não. - Cuchulainn ergueu uma das mãos sujas com sangue de coelho, interrompendo o bufo de aborrecimento da caçadora. - Não faço isso para ser irritante.
Quero sua reação honesta a eles - a isso. - Ele lhe buscou o olhar. - Confio nos seus instintos, caçadora, mais do que confio nos meus.
Brighid abriu e depois fechou a boca. Era um bocado difícil conversar com Cuchulainn. Num momento estava distante e evasivo, no momento seguinte era tranquilamente
honesto e quase o Cuchulainn que ela costumava conhecer. Era como se ele tivesse se tornado um retrato incompleto de si mesmo. Suas reações estavam desligadas e
ele sabia disso. A alma do guerreiro está despedaçada.
- Talvez seus instintos ainda sejam confiáveis. Talvez só precise chamá-los de volta e começar a acreditar em si mesmo novamente - disse Brighid a duras penas. Sentia-se
fora de seu elemento, tentando aconselhar o guerreiro. Preferia levá-lo para uma longa caçada e fazê-lo se cansar até a exaustão na perseguição de uma presa esquiva
a aconselhá-lo nas questões da alma. E pela reação silenciosa às suas palavras e a falta de expressão no rosto quando voltou a esfolar a lebre, Cuchulainn provavelmente
preferia que ela lhe golpeasse na cabeça para acabar logo com aquilo. Mas ela sabia que o que havia de errado com Cuchulainn não poderia ser consertado pelo mundo
físico tanto quanto sabia que se ele não encontrasse uma forma de cura, continuaria a decair. Aquilo magoaria Elphame, mas Brighid não queria que sua chefe e amiga
conhecesse a dor de perder um membro da família. Brighid conhecia muito bem a dor desse tipo de perda.
Relanceou o guerreiro. O rosto estava ajustado no que estava se tornando sua expressão típica de rígido retraimento. Talvez fosse a conversa que teve com Ciara,
mas o contraste entre o Cuchulainn de agora e o Cuchulainn de duas luas atrás de repente deixou Brighid deprimida. Lembrou-se claramente de como ele costumava rir
e gracejar com facilidade, como sua própria presença podia avivar uma reunião. Mesmo quando o conheceu e o considerou tremendamente arrogante, tinha invejado a aura
dinâmica que ele irradiava.
- Pare de me olhar assim. - A voz de Cuchulainn era tão inexpressiva quanto o rosto.
- Cuchulainn, odeio que você...
- Ciara disse que estamos prontos para os coelhos agora! - Como um redemoinho alado, Kyna veio rodopiando até eles, Liam em seu rastro.
- Posso ir com você caçar na próxima vez? Eu posso ajudar. Posso mesmo. De verdade. - Os olhos de Liam piscavam entusiasmados enquanto ele saltitava em um pé e em
outro.
Brighid disse à testa que não se franzisse. Era exatamente por isso que uma caçadora raramente tinha filhos. Eles interrompiam quando não deviam e faziam barulho
demais.
- Para se caçar lebres, deve-se ficar muito quieto, Liam - disse com severidade.
- Ah, eu fico! Consigo ficar! Eu fico quieto. Olhe só, eu fico quieto - assegurou-lhe, ainda dançando em um pé ou outro.
- Você nunca fica quieto, Liam - disse Kyna com desgosto.
- Fico sim!
- Não fica não!
- Fiquei quieto durante a bênção da noite - disse Liam. As asas farfalharam quando ele cerrou os punhos e ergueu o queixo em desafio.
- Todos ficam quietos durante a bênção da noite. - Kyna revirou os olhos.
Enquanto as duas crianças brigavam, Brighid olhou impotente para Cuchulainn. O guerreiro encontrou brevemente seu olhar e Brighid pensou por um momento que uma sombra
de bom humor tinha cintilado nos olhos dele.
- Kyna, deixei o capão amarrado com as cabras - disse ele casualmente.
Parecendo um filhote de passarinho, a menina imediatamente voltou sua atenção para Cuchulainn.
- Mas ele não gosta muito das cabras. São pequenas demais e o incomodam.
Brighid sabia exatamente como o capão de Cuchulainn se sentia.
- Melhor eu ir vê-lo - disse Kyna com determinação.
Cuchulainn ergueu um ombro.
- Como quiser.
- Liam, você leva os coelhos para Ciara - ordenou Kyna, atirando o cesto que estava carregando para o garoto antes de sair correndo. Então gritou por cima do ombro:
- Provavelmente é o mais perto que vai chegar de apanhar um coelho!
Liam fez cara feia.
- Consigo ficar quieto.
- Para apanhar coelhos é preciso ser rápido também - disse Cuchulainn. - Não é verdade, caçadora?
- Definitivamente - disse Brighid.
- Então olhe só! Olhe para mim. Consigo ser rápido!
Enquanto apanhava os coelhos esfolados e planava rapidamente para longe deles, o cesto apertado no peito estreito, Brighid teve que admitir que o garoto realmente
se movia com velocidade impressionante. Nunca ficaria quieto, mas era realmente rápido.
- Pelo sopro da Deusa, essas crianças são incômodas! Como não deixaram você louco? - perguntou Brighid, olhando o garoto.
- Você aprende a ignorá-los. Depois de um tempo, é como se nem estivessem aqui.
O olhar de Brighid voltou para Cuchulainn. Ele estava agachado limpando a lâmina num montinho de musgo gelado. A voz estava novamente morta e distante. Ele se levantou
e embainhou a lâmina. Depois, sem outra palavra, caminhou de volta para o acampamento.
Quando Brighid se acomodou confortavelmente perto da fogueira que ardia brilhante e aceitou uma tigela do cozido espesso de um jovem entusiasmado, pensou que mesmo
que Partholon fosse próspera e vicejante, havia muitas coisas que os partholonianos poderiam aprender com os neofomorianos - especialmente sobre como viajar com
conforto. O povo alado possuía pouco, sua terra era desolada e hostil, mas ela raramente experimentara um acampamento tão acolhedor e harmonioso.
O vento frio e incessante fora bem bloqueado pela configuração vigorosa das tendas de pele de cabra, que se ajustavam compactas num círculo aconchegante ao redor
do fogo ardente de Ciara. De vez em quando alguém alimentava o fogo com outro pedaço do que uma das mulheres aladas disse ser uma mistura de líquen seco e esterco
de cabra. O combustível explicava o vago aroma que pairava com a fumaça, mas era muito menos ofensivo do que ela teria imaginado - e cumpria seu trabalho. O fogo
ardia quente e firme.
O jantar fora preparado com a mesma rapidez e eficiência com que as tendas, e num espaço de tempo incrivelmente curto todos estavam sentados perto da fogueira ou
dentro do calor das tendas abertas, compartilhando um saboroso cozido. Brighid mastigava pensativa um pedaço de coelho e olhou ao redor do acampamento incomumente
calmo. As crianças pareciam cansadas, percebeu a caçadora com sobressalto. Não fazia muito tempo que estavam esvoaçando por ali, cuidando das cabras e tagarelando
sem parar enquanto espalhavam tapetes de pele de cabra dentro das tendas. Agora era como se alguém tivesse desligado o entusiasmo infantil.
Sem ser óbvia, Brighid dirigiu os olhos para a esquerda, onde Liam insistira em sentar porque era, no fim das contas, seu aprendiz. Quando ele tinha parado de tagarelar?,
indagou-se ela. Quando todos pararam de tagarelar? Talvez Cuchulainn não tivesse ido tão longe quanto ela pensava - parecia que ela também tinha a habilidade de
ignorar o falatório incessante.
- Pegue... - Cuchulainn lhe jogou um odre ao entrar no círculo, sentando de pernas cruzadas à sua direita. - Você trouxe. Deve beber um pouco. - Ele assentiu em
agradecimento ao garoto que lhe entregou uma tigela fumegante.
- É estranho quando não estão falando constantemente - disse Brighid, baixando a voz para que não fosse carregada acima do crepitar e estalar da fogueira.
- Fizeram um longo caminho hoje, duas vezes mais longe do que eu esperava. Qualquer outra criança teria parado horas atrás. - O olhar de Cuchulainn viajou ao redor
do círculo silencioso e ele quase sorriu. - Suspeito que finalmente estão exaustos.
- Graças à Deusa - murmurou Brighid, dando um longo gole no excelente vinho tinto.
- Suspeito que estarão prontos para partir novamente ao raiar do dia.
- Suspeito que tenha razão - disse Brighid. O guerreiro parecia mais relaxado do que antes, ou talvez só estivesse cansado também. Será que manter todos a distância
tinha cobrado seu preço sobre Cuchulainn, já que tinha passado a maior parte da vida atraindo pessoas para si?
- Talvez tenhamos sorte e pulem a contação de histórias - disse Cuchulainn entre colheradas de cozido.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Fala das infames histórias sobre certa caçadora?
Cuchulainn resmungou e ergueu o queixo na direção de Liam, que tinha terminado de comer e estava bocejando sonolento.
- Não pode dizer que não entende o quanto podem ser persuasivos quando querem algo.
Brighid bufou, mas teve o cuidado de não olhar para o menino, temendo que qualquer demonstração de atenção o fizesse começar a tagarelar novamente sobre o quanto
poderia ficar quieto.
- Bem - murmurou ela. - Posso admitir saber um pouco do que está dizendo... - principiou ela, mas um farfalhar do lado oposto do círculo lhe chamou a atenção.
Brighid não teve tempo de falar com muitos dos híbridos adultos. Todos andavam muito envolvidos com a montagem do acampamento, e os adultos ficavam particularmente
ocupados com seus rebanhos de crianças. Fora uma ou duas palavras passageiras, tinha passado o tempo na companhia de Cuchulainn e Ciara. E, acrescentou silenciosamente,
os entusiasmadíssimos Liam e Kyna. Mas reconheceu facilmente os dois adultos, que agora estavam de pé, como sendo os gêmeos Curran e Nevin.
- Falei cedo demais - disse Cuchulainn com azedume. - Quando aqueles dois se levantam, significa que teremos histórias.
Brighid sentiu que ele se preparava para partir; então, antes que pudesse impedir-se, estendeu a mão e a colocou sobre seu ombro.
- Fique - pediu, surpresa com o estranho som rouco da voz. Era como se o impulso para manter Cuchulainn ali tivesse vindo bem do fundo e a voz refletisse aquele
poço de emoções.
Cuchulainn virou a cabeça e buscou seu olhar.
- Se sair, uma das crianças pode vir tomar seu lugar. Então estarei completamente cercada - sussurrou, subitamente sentindo-se exposta e vulnerável demais.
- Arrã - respondeu ele asperamente, mas se reacomodou ao lado dela.
- Nossa jornada enfim começou - disse Nevin.
- Esperamos muito por esse dia. - Curran pegou a meada das palavras do irmão. - Nossas mães no reino espiritual exultam.
- Elas sorriem porque seu grande desejo está se tornando real - disse Nevin. - Sentem a presença delas, crianças? - O homem alado sorriu para os rostinhos voltados
em sua direção, e as crianças assentiram sonolentas.
- O amor delas está no vento - disse Curran. - Ele eleva nossas asas.
- E nossos corações - completou Nevin. - Enquanto o vento soprar, nunca nos esqueceremos do amor delas, ou do sacrifício.
Brighid não conseguiu deixar de ficar intrigada com a performance dos gêmeos. Eram verdadeiros bardos. As vozes não eram apenas poderosas, mas possuíam aquela indescritível
nota de magia que separava claramente um bardo do resto da população. Achava ser capaz de escutar suas vozes ricas e cheias de emoção para sempre, e ficou decepcionada
porque os gêmeos tinham passado todos aqueles dias no Castelo MacCallan sem que ninguém no clã soubesse daquele dom. Bufou de leve consigo mesma. Isso certamente
mudaria quando retornassem. Bardos sempre eram uma adição bem-vinda a qualquer clã.
- Esta noite devemos descansar bastante para o próximo dia - disse Curran.
- Então nossa história será bem curta.
- Mas muito apreciada. - O sorriso de Curran faiscou brilhantemente através da fogueira para surpresa da caçadora. - Com sua permissão, Brighid. Contaremos a história
de como rastreou a pequena Fand e a salvou da morte certa.
As crianças, cansadas, se agitaram, e Brighid ouviu murmúrios deliciados dos pequenos sentados perto da filhote de lobo esparramada perto da fogueira. Ao seu lado,
Liam voltou à vida e sacudiu-se contente, encarando a caçadora com olhos grandes e adoradores.
- Que bom que fiquei - grunhiu Cuchulainn baixinho. - Gosto dessa também.
- Agora que fomos abençoados com a presença da caçadora, talvez Brighid tenha a gentileza de nos contar sua própria versão do salvamento de Fand.
A cara feia de Brighid imediatamente trocou Cuchulainn por Ciara. O que ela estava pensando? Brighid não era um bardo, e nem queria contar uma história ridícula
sobre si mesma para um bando de crianças já incomodamente encantadas. De qualquer forma, não tinha realmente salvado a maldita filhote, só tinha levado Cuchulainn
à toca. Foi Brenna quem garantiu que... Os olhos da caçadora encontraram os da xamã, então Brighid sentiu um profundo choque de entendimento. Ciara olhava para ela
com uma fixa expressão serena e encorajadora.
- Pode nos contar a verdadeira história, Brighid? - perguntou a xamã.
Dez
- NÃO SOU UM bardo, mas se querem a história verdadeira, contarei.
Estava contente porque a voz não traiu o tumulto em seu interior. Seu estômago estava apertado e o coração ribombava como se ela tivesse corrido o dia inteiro atrás
de uma presa ilusória. Podia sentir os olhos de Cuchulainn sobre si, então se permitiu uma rápida olhada no guerreiro. As sobrancelhas dele estavam erguidas e a
surpresa curvava um lado dos lábios. Brighid desviou o olhar com afobação. Ele provavelmente pensava que Brighid se gabaria do quanto fora difícil rastrear as pegadas
de dois dias de idade do filhote da mãe loba morta. A caçadora respirou fundo e esperou ter realmente os instintos de uma xamã. No momento estava seguindo esses
instintos, e era como acompanhar uma trilha fria através de um bosque escuro durante uma tempestade.
- Bom, parece que já conhecem a história de como Cuchulainn descobriu o corpo da mãe loba morta quando nós estávamos caçando, e que Cuchulainn me desafiou a rastrear
os vestígios da loba de volta à toca para ver se algum dos filhotes poderia ser salvo. - Brighid calou-se e sua atenta audiência assentiu entusiasmada, fazendo ruidozinhos
de concordância. - Mas o que não sabem é por que Cuchulainn queria encontrar o filhote, ou quem realmente salvou Fand. - Brighid ignorou o guerreiro ao seu lado,
mesmo que pudesse sentir que o corpo curvado subitamente se tensionava. - Tudo porque Cuchulainn queria a atenção de uma moça - uma mulher que agia como se não estivesse
nem um pouquinho interessada nele. - Brighid sorriu e umas poucas crianças deram risadinhas.
"Brenna era a curandeira do clã MacCallan. Também era minha amiga - acrescentou Brighid numa voz com a qual teve o cuidado de manter livre de tristeza ou pesar.
Contaria a história, mas não como se fosse um lamento, chorando por Brenna. Contaria como um jubiloso tributo à curandeira.
A caçadora endireitou os ombros e atirou para trás os cabelos.
- Falei que Brenna era esperta?
Cabecinhas se sacudiram de um lado para o outro.
- Bom, ela era esperta o bastante para dizer não a certo guerreiro arrogante que pensava que podia estalar os dedos e ter qualquer mulher que desejasse. - Brighid
apontou a cabeça para Cuchulainn, tendo o cuidado de não fitá-lo. - Então, quando Cuchulainn tirou Fand da toca - e deixe-me avisar, a filhote estava num estado
lastimável -, pensou que a maneira perfeita de convencer a curandeira a passar algum tempo com ele seria levar até ela um animalzinho adorável que precisava de tratamento.
- A caçadora bufou e sacudiu a cabeça com indignação exagerada. - Não que Fand fosse muito adorável. Precisavam vê-la na época. Era patética. Pequenininha, esquelética
e coberta de esterco de lobo.
Brighid não reagiu às ondas de tensão que irradiavam de Cuchulainn. Em vez disso, mirou no olhar brilhante das crianças sentadas perto de Fand. Ela revirou os olhos
e enrugou o nariz, fazendo as crianças rirem.
- Em vez de fazer a espertíssima Brenna desmaiar de desejo, a aparição da filhotinha suja e semimorta só a aborreceu, e acho que também a fez questionar o bom-senso
de Cuchulainn. - Mais risadas flutuaram com a fumaça cor de névoa da fogueira. - Mas Brenna era tão gentil quanto esperta e bonita, e ficou com pena da lobinha.
Mostrou a Cuchulainn como alimentar Fand e ficou de olho nos dois, persuadindo o guerreiro a ser um perfeito papai lobo. Lembro de como ela descreveu a aparência
dos dois naquela primeira manhã depois de Cuchulainn passar a noite inteira tentando manter a filhote viva. Brenna riu muito, dizendo que quase teve que tapar o
nariz por causa do cheiro. - Brighid fez nova pausa, deixando as risadas suaves e sonolentas das crianças cessarem. - Mas acho que o plano de Cuchulainn funcionou,
pois Brenna não demorou a aceitar seu pedido, e eles ficaram oficialmente compromissados. E esta é a verdadeira história de como Fand foi salva. Não fui eu, mas
o amor de Cuchulainn por Brenna, e a bondade da curandeira, que salvaram a filhote.
As crianças irromperam em aplausos espontâneos. Brighid respirou fundo e virou-se para encarar Cuchulainn. O guerreiro tinha ficado tão pálido que as manchas escuras
debaixo dos olhos pareciam feridas. Ele a encarava, e parecia que o rosto tinha se congelado num esgar hostil e doloroso.
- Isso foi cruel. - Ele expeliu as palavras entre os dentes. Num movimento fluido, levantou-se e entrou a largas passadas na escuridão.
- Para a cama agora! - A voz de Ciara silenciou os aplausos e as crianças obedientemente começaram a desaparecer no calor das tendas, dando boa-noite umas às outras,
e à caçadora.
Brighid pulou de surpresa quando os bracinhos de Liam a envolveram e apertaram com força inesperada.
- Foi uma história maravilhosa, Brighid! Boa noite! - Ele correu num agitar de asas, mal dando à caçadora tempo de dar boa-noite também.
- Fez a coisa certa.
Brighid ergueu os olhos para a xamã, que pareceu se materializar da orla da fogueira.
- Duvido que Cuchulainn vá concordar com você - disse Brighid.
Ciara prosseguiu como se Brighid não tivesse falado.
- Siga-o. Não o deixe ficar sozinho agora.
- Mas ele...
Os olhos da xamã faiscaram com uma luz cor de chama.
- Ele não está inteiro. Caso se importe com a alma do guerreiro, siga-o.
Flexionando os poderosos músculos equinos, Brighid se levantou e deixou a fogueira. Rumando na direção que achava que Cuchulainn tinha tomado, considerava as palavras
de Ciara. Claro que se importava com a alma de Cuchulainn. Ele tinha sido noivo de sua amiga, e era irmão da sua chefe de clã. Devia se importar com ele, assim como
desejaria ajudar sua alma despedaçada. A centaura se deteve perante a súbita constatação - era isso! O que ela pressentiu naquela primeira noite quando ela e Cuchulainn
discutiram sobre os neofomorianos - a comichão em sua mente. Sabia então que alguma coisa além do pesar estava afetando Cuchulainn. Era sua alma despedaçada, e algo
dentro dela - aquele algo evasivo e indefinível que herdara de sua mãe xamã - tinha reconhecido a perda do guerreiro.
Pela Deusa, não queria nada disso! Não tinha experiência. Tinha rejeitado o caminho de xamã quando deixou a manada Dhianna. Mas as escolhas que fora forçada a fazer
não eram culpa de Cuchulainn, e se houvesse alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse fazer para ajudá-lo, seus problemas não deveriam comprometer aquele auxílio.
Mas além de tudo isso Cuchulainn estava em dor, e Brighid nunca fora capaz de ficar assistindo a ninguém sofrer. Gostaria de não ter nascido assim. Isso lhe causara
mais do que um simples probleminha. A centaura bufou, zombando de si mesma. Essa era a mitigação suprema. Sua compaixão a fizera deixar a amada Planície dos Centauros
e a família, e também romper com a tradição.
Fora a escolha certa. Estava seguindo o caminho certo para sua vida. Agora encontraria Cuchulainn, o deixaria saber que não estava sozinho, e depois faria a única
coisa que o treinamento de caçadora a preparara a fazer. Diria a ele que ficaria com a primeira ronda para que ele pudesse ter um pouco do merecido sono. Simples.
Claro. Exatamente como preferia que a vida fosse.
Mas onde estava Cuchulainn? Pela Deusa, estava escuro além do círculo de tendas e da luz amiga da fogueira. Frio e escuro. Brighid estremeceu quando o vento insaciável
lambeu sua pele. Ficaria danada de contente quando voltasse para Partholon e o calor do Castelo MacCallan.
Um som abafado à direita a fez parar imediatamente enquanto ouvia com os sentidos apurados de uma caçadora. O som veio novamente, então ela virou para a direita,
quase tropeçando em Fand, que rosnou baixinho.
- Não me faça chutá-la - disse Brighid à filhote quase crescida. Fand se safou, lançando um olhar na caçadora que era parcialmente contrito e parcialmente um aviso.
Ao menos Brighid sabia que Cuchulainn estava por perto. A filhote nunca ficava longe dele. Claro que a reação quase agressiva também dizia que Cuchulainn devia estar
aborrecido o bastante para induzir a loba a rosnar para uma amiga.
Ela quase não o viu. Se a lua não tivesse lançado sua luz fraca através do véu de nuvens altas no mesmo momento em que Cuchulainn ergueu o rosto marcado por lágrimas,
Brighid teria passado direto por ele. Mas as lágrimas o entregaram. Maldição! Não esperava que ele estivesse chorando! Tinha esperado por raiva - que ele berrasse
com ela e acabasse com aquilo. Compreendia isso. Conseguia lidar com isso. Mas quando ele se voltou em sua direção, Brighid sentiu algo totalmente inesperado acontecer.
Sentiu um espelhamento da dor dele, algo causado não apenas pelos laços que compartilhavam no clã ou mesmo pela amizade. Estava reagindo com a empatia de uma xamã,
e esse conhecimento quase a despedaçou. Brighid queria se afastar, negar o propósito herdado que fluía por suas veias, mas não podia. Seria covardia, e Brighid Dhianna,
a caçadora de MacCallan, não era covarde.
- Cuchulainn - murmurou, estendendo a mão para lhe tocar o ombro.
Ele recuou como se o toque o queimasse.
- Me causar sofrimento deixa você feliz?
- Não.
- Então por quê? - O guerreiro não soava zangado. Soava derrotado.
- Precisa seguir adiante, Cuchulainn. Tem que encontrar uma maneira de viver sem ela. E não conseguirá fazer isso evitando qualquer menção a ela.
- Como sabe disso? - A raiva estava começando a apagar a apatia de sua voz. - Como saberia qualquer coisa sobre isso?
- Você não é o único homem que já perdeu um ente amado. O pesar não é exclusividade sua, Cuchulainn! - Ela considerou rapidamente contar a ele sua própria história.
Mas seu instinto dizia para não se focar nela. Estava decididamente fora de seu elemento, então tudo o que podia fazer era seguir o instinto. - Olhe ao seu redor.
Quantos dos híbridos não perderam amantes, pais ou filhos para o suicídio e a loucura? Como a morte de Brenna pode ser mais trágica que isso? Nas últimas duas luas
você esteve cercado por pessoas que superaram perdas que teriam dizimado qualquer outra raça, porém eles fizeram mais do que sobreviver. Eles ainda encontram alegria
na vida. Você viu por si mesmo. Como isso não tocou você? Talvez Brenna tivesse razão quando o chamou de autocentrado.
Com os reflexos velozes de um guerreiro bem treinado, a adaga de Cuchulainn estava desembainhada e pressionada na garganta da centaura. Mas ela não fugiu dele. Sustentou
seu olhar arregalado e cheio de dor.
- Este não é você, Cuchulainn. O homem que conheço nunca levantaria armas contra um membro de seu clã.
Cuchulainn piscou duas vezes, e depois cambaleou para trás.
- O que estou fazendo? - Com um rosnado, ele arremessou a adaga no chão e esfregou ambas as mãos sobre as coxas como se estivesse tentando erradicar uma mancha.
- Perdi quem sou - disse numa voz destituída de emoção. - Às vezes penso que morri com Brenna.
Um calafrio de alerta estremeceu o corpo da centaura.
- Não está morto, Cuchulainn. Está despedaçado.
Cuchulainn se curvou cansado e recuperou a adaga.
- E as duas coisas não dão no mesmo?
- Não, meu amigo. Uma envolve o corpo, a outra, o espírito. E receio que seu problema está no reino espiritual.
O som de sua risada era sem humor.
- Isso é algo que eu soube durante quase a vida inteira.
- Isso é diferente. - Brighid suspirou, frustrada. - Maldição, estou fazendo um péssimo trabalho! - Esfregou a mão pela testa, desejando que a cabeça não estivesse
pulsando em compasso com as batidas do coração. - Acho que está com a alma despedaçada, Cuchulainn. É por isso que não se sente como você mesmo e não é capaz de
se curar da morte de Brenna.
Cuchulainn estreitou os olhos.
- Isso é mais daquela bobagem de afinidade xamãnica que você diz ter herdado da sua mãe?
- Não! Sim... Não sei! - Ela esfregou a testa novamente. - Pela Deusa, você faz minha cabeça doer, Cuchulainn. A verdade é que sei tanto sobre assuntos xamãnicos
quanto você! Mas confio nos meus instintos. Como caçadora, nunca me falharam. Agora eles me dizem que a morte de Brenna danificou seu espírito, então seu espírito
deve ser curado para que você se recupere.
- E se eu não quiser me recuperar? - disse ele lentamente. - Talvez eu devesse ter morrido com ela, Brighid.
Tudo dentro da centaura ficou paralisado. Sua resposta poderia mudar a vontade de o guerreiro viver ou morrer. Epona, ajude-me a dizer a coisa certa, rogou em silêncio.
E, como uma vela reluzindo num cômodo sem uso, Brighid de repente soube o que dizer: - Talvez devesse estar morto - talvez não. Não sei, mas acho que sei como você
pode decidir com certeza. - Brighid teve o cuidado de soar calma e prática, como se discutisse se deveriam caçar um veado ou um javali.
- Como? - A voz dele estava abalada.
- Bom, é bem simples. Você não tem sido você mesmo. Então, como admitiu, não confia no próprio julgamento. Mas se consertar sua alma despedaçada, será capaz de confiar
nos próprios instintos novamente. Então se escolher a morte, saberá que a escolha é válida.
- Você faz parecer fácil, mas não faço ideia de como consertar algo que eu nem sabia que estava quebrado.
- Nem eu. Só sei o que observei da minha mãe, e isso foi há muitos anos. - Ela não precisava do instinto de herança xamã para saber que era melhor não mencionar
que ela e Ciara tinham discutido o estado do espírito dele naquele mesmo dia. - Mas me lembro que ela ajudava aqueles cujas almas estavam despedaçadas a ficarem
inteiros novamente.
- Não quero nenhum xamã bisbilhotando meu espírito, despedaçado ou não.
- E que tal eu?
- Você?
Brighid deu de ombros.
- Como você disse, tenho essa "bobagem de afinidade xamãnica" que herdei da minha mãe. Mas decididamente não sou xamã. Então o quanto eu realmente poderia bisbilhotar?
Um ruído de risada verdadeira escapou de Cuchulainn, que por um instante soou como o guerreiro jovem e libertino que ela uma vez conheceu.
- A pergunta não deveria ser quanto conserto conseguiria realmente fazer?
- Acho que a pergunta deve ser: o quanto confia em mim? - retrucou Brighid.
- Você se provou confiável muitas vezes, caçadora. Se eu a fiz acreditar o contrário, é por culpa minha, não sua.
- Então confia em mim para tentar consertar sua alma?
O guerreiro hesitou. O rosto não estava mais destituído de expressão, e Brighid podia enxergar claramente as emoções que guerreavam dentro dele. Por fim, Cuchulainn
buscou-lhe o olhar.
- Sim.
Brighid não achava que ouvir qualquer outra palavra já a tivesse deixado com tanta vontade de correr na direção oposta. Em vez disso, inclinou a cabeça num rápido
aceno de confirmação.
- O que eu faço agora? - perguntou Cuchulainn, com olhar atravessado.
- Me prometa que não fará nada para se machucar até seu espírito estar inteiro novamente.
- E se você não puder consertá-la?
Brighid aspirou o ar com tensão.
- Se eu não puder consertá-lo, então sua promessa não será válida. Estaria livre para fazer o que desejar.
- Então tem minha palavra.
Cuchulainn estendeu o braço e Brighid agarrou seu antebraço à maneira de os guerreiros fazerem um juramento. O aperto foi forte e Cuchulainn parecia bem vivo. Esperava
desesperadamente que seus instintos não a tivessem levando a firmar um pacto de suicídio com o irmão de sua melhor amiga.
- Para onde vamos agora? - perguntou Cuchulainn.
- Vamos voltar para o acampamento. Fico com a primeira ronda junto à fogueira. Vá dormir um pouco. Acordo você quando a lua estiver no alto do céu.
- E o que isso tem a ver com consertar minha alma despedaçada?
- Nadinha - murmurou ela. - Mas me dará tempo para pensar na confusão na qual nos meti.
Enquanto andavam lado a lado até o acampamento, Brighid ouviu Cuchulainn dando risadinhas. Podia muito bem estar ajudando no suicídio dele, mas ao menos o estava
divertindo.
Sua família tinha razão quanto a uma coisa. Os humanos eram mesmo criaturas estranhas.
Onze
BRIGHID ALIMENTOU O fogo com o combustível de musgo e estrume de cabra e resmungou uma aprovação silenciosa ao calor que se irradiou da chama. A noite estava fria
e o vento era brutal, mas dentro do círculo apertado de tendas havia calor, luz e um bocado de conforto. A caçadora imaginava silenciosamente se a força do fogo
se devia à afinidade de Ciara com os espíritos das chamas ou à mistura certa de esterco de cabra.
- Um pouco dos dois - disse Ciara, aproximando-se da caçadora.
- Está praticando leitura da mente em mim?
A mulher alada sorriu.
- Não, claro que não, mas sempre fui boa em ler expressões. Seu rosto não esconde a pergunta em sua mente. - Ela apontou para a pilha arrumada de combustível. -
Queima bem e dura bastante. Mas a verdade é que minha presença intensifica seus atributos naturais. Se eu não estivesse no acampamento, ainda seria bom combustível.
- Você seria boa companhia numa caçada de inverno - disse Brighid.
A risada de Ciara fez as chamas saltarem e crepitarem.
- Fazer fogo seria a única maneira de ser útil numa caçada. Sou tremendamente inepta para rastrear, e não suporto matar qualquer vida. Nem gosto de colher grãos
ou arrancar cebolas silvestres da terra. Descobriria que sou uma pobre companheira de caçada.
Brighid bufou:
- É como me sinto sobre tentar ser uma xamã. Inepta é uma maneira excelente de me descrever. Me sinto um peixe tentando se aninhar numa árvore.
Ciara ficou com expressão triste e suspirou profundamente.
- Se ele não ouvir você, então está mais perdido do que acreditei.
Brighid relanceou com intensidade a tenda na qual Cuchulainn tinha desaparecido recentemente.
- Venha comigo - disse ela, afastando-se da tenda do guerreiro. Mesmo assim, baixou a voz: - Ele me ouviu.
Os olhos de Ciara se arregalaram com um sorriso. Brighid ergueu a mão.
- Não fique toda satisfeita comigo. Sim, ele concordou em fazer isso para que se torne inteiro novamente e decida com a mente clara se deve se matar.
- Quando a alma não estiver mais despedaçada, o guerreiro não escolherá a morte.
- Como pode ter tanta certeza?
- Sinto aqui. - Ciara alojou a mão esguia sobre o coração. - Quando Cuchulainn estiver inteiro, amará outra vez.
Brighid não queria destruir a ilusão otimista da xamã, então ficou em silêncio. Conhecia Cuchulainn melhor do que Ciara. Podia imaginá-lo curado e retornando à vida
como um dos guerreiros mais respeitados de Partholon, mas amando outra vez? Pensou na maneira como ele olhava para Brenna e a alegria que irradiava dele. A alma
de Cuchulainn poderia se curar. O coração era outro assunto.
- Mas devemos dar um passo por vez. Não deve apressar o processo e exceder a si mesma - disse Ciara.
- E qual é exatamente nosso próximo passo?
- Refere-se ao seu próximo passo.
- Não, falo do nosso. Estou totalmente fora do meu elemento. É como a caçada para você, lembra? Farei isso porque é preciso, mas tem que me guiar a cada passo.
As crianças chamavam a centaura e a xamã conforme as duas caminhavam lentamente ao redor do acampamento circular. Logo descobriram ser impossível conversar sem constantes
interrupções animadas.
- Não deveria verificar o perímetro externo? - perguntou Ciara, sorrindo ironicamente quando mais outra voz sonolenta de criança flutuou na noite.
- Dessa vez você leu mesmo a minha mente - disse Brighid, pensando que o vento e a escuridão seriam menos incômodos que a agitação de setenta crianças.
O vento bateu frio e áspero no rosto de Brighid no momento em que deixaram o abrigo coeso das tendas. A luz da lua ainda estava fraca e distante, só iluminava o
vazio lúgubre dos Ermos.
- Pela Deusa, que lugar miserável! - A caçadora estremeceu e esfregou os braços.
- É verdade que é hostil, mas há certo calor e beleza aqui. - Ciara vasculhou o chão ao redor até encontrar um ramo fino numa estranha cor desbotada que mal atingia
o jarrete de um centauro. Ciara se agachou e o fincou delicadamente no chão duro e rochoso até ficar de pé sozinho, como um broto anêmico. Depois sussurrou algo
que Brighid não conseguia ouvir e assoprou o ramo. Ele reagiu explodindo numa quente chama branca que tremulou loucamente ao vento, mas não demonstrava sinais de
faiscar ou se ofuscar. Ciara se sentou, estendendo as asas para bloquear o pior do vento, e aprisionou um pouco do calor da chama. Acenou para que Brighid se sentasse
perto dela, e a caçadora dobrou os joelhos graciosamente, meneando a cabeça em assombro com a pureza da chama que era quase prateada de tão branca.
- O que é isso? Nunca vi nada queimar nessa cor antes.
- É de um carvalho. Não - disse ela antes que Brighid terminasse de formular a pergunta na mente -, não nasce nos Ermos. O vento traz do sul, e algo nesse nosso
clima um tanto inclemente as muda de verde para branco. - Ela sorriu para o ramo ardente. - Gosto de fingir que os pequenos galhos secos são presentes de Partholon
para nós. Foi através de um deles que o espírito das chamas falou comigo pela primeira vez.
- Um carvalho - a mais venerada das árvores -, usado para divinação, cura e proteção - disse Brighid, ecoando o conhecimento que recebera da mãe quando ainda era
jovem o bastante para acreditar em acompanhar a família e a tradição.
- Exatamente. - A voz soava sonhadora e juvenil enquanto a xamã fitava a luz branca. - Um carvalho verdadeiro e vivo é uma das coisas que mais anseio ver quando
finalmente entrarmos em Partholon.
O idealismo de Ciara fez o estômago de Brighid apertar. O que aconteceria com aquela alegria quando ela se confrontasse com a verdade de Partholon? Ela não compreendia
que só suas asas seriam razão suficiente para que fosse odiada e temida?
- Mas não estamos aqui para conversar sobre árvores e Partholon. - Ciara arrancou o olhar da chama. - Estamos aqui para conversar sobre Cuchulainn e a maneira de
ajudá-lo. Primeiro, antes de passar quaisquer detalhes sobre resgate de almas, gostaria de saber suas ideias. Conte-me - se não tivesse a mim para guiá-la - o que
faria?
- Coisa nenhuma! - bufou Brighid. - Eu nem teria percebido que a alma dele estava despedaçada se não tivesse me contado.
As sobrancelhas de Ciara se ergueram.
- Verdade? Nada dentro de você sussurrou que havia algo de errado com o guerreiro além do pesar natural pela perda da amada?
Brighid franziu o cenho.
- Não sei... talvez... Pressenti mesmo alguma coisa - admitiu com relutância.
- E se eu não estivesse aqui, teria ignorado a intuição que lhe dizia que seu amigo precisava de sua ajuda?
- Não. Provavelmente não. - Brighid agitava as mãos com aflição. - Mas não saberia o que fazer! Assim como não sei o que fazer agora.
- Você deu o primeiro passo. Pare, centre-se e ouça aquela voz interior. Aquela voz do instinto e do espírito que foi soprada à vida por Epona quando você nasceu,
que ainda carrega a magia do toque da Deusa. - Ciara sorriu encorajadora. - O que diz seu instinto, Brighid?
- Meu instinto de caçadora me diz que Cuchulainn precisa de um golpe na cabeça - resmungou Brighid.
- Então não deve pensar com seu instinto de caçadora. Ouça com mais atenção. Encontre a voz da xamã que está em seu sangue.
Brighid olhou com severidade para Ciara.
- Por que insiste tanto que tenho esses instintos?
- Já disse, caçadora. Eu pressinto, e raramente estou enganada. Na verdade, meu palpite é que você usa a xamã dentro de você, e usa com bastante frequência.
- O que quer dizer?
- Seu dom é uma afinidade com os espíritos dos animais, não é? - Sem esperar resposta, Ciara prosseguiu: - Os instintos que a ajudam a ser uma caçadora tão talentosa
são os mesmos que a ajudarão a curar a alma de Cuchulainn. Se é perturbador pensar nesse gesto como algo de uma xamã, não pode simplesmente considerar a missão como
simplesmente outra caçada?
A centaura piscou de surpresa.
- Quer dizer que tudo o que eu preciso fazer é rastrear os pedaços da alma de Cuchulainn?
- Talvez... - Ela exibiu um sorrisinho enigmático para Brighid. - Ouça seu interior com atenção e me conte.
Contendo a vontade de sacolejar a mulher alada, Brighid respirou fundo e se concentrou. A alma de Cuchulainn estava despedaçada. Como poderia consertá-la? Em vez
de erguer as mãos e gritar que não tinha ideia nenhuma, respirou outra vez. Pense, ordenou-se. Transforme isso numa caçada. A presa seria diferente - em vez de um
cervo ou javali, eu estaria rastreando um espírito, o que significa que devo ir onde os espíritos residem - ao Outro Mundo, o Reino dos Espíritos. A caçadora estremeceu
novamente, mas dessa vez não tinha a ver com o frio e o vento.
- Tenho que rastrear a alma partida de Cuchulainn no Reino dos Espíritos - disse Brighid com muito mais confiança do que sentia. - E trazê-la de volta. De alguma
maneira.
- Sim - concordou Ciara -, mas precisa compreender que seu objetivo difere do de uma caçada. Não pode atacar ou capturar. Uma xamã nunca deve coagir, ameaçar ou
forçar qualquer alma a retornar. Ao fazer isso, estaria interferindo no livre-arbítrio do indivíduo.
Brighid suspirou e olhou de soslaio para a chama prateada.
- Então não é apenas questão de encontrar os pedaços quebrados do espírito de Cuchulainn?
- Não. Pense em si mesma como uma guia, ou mais precisamente como uma mediadora entre o guerreiro e sua alma retraída. É por isso que é importante que Cuchulainn
concorde com o resgate. Sem sua aprovação, a alma nunca se tornará inteira.
- Importa que a única razão para Cuchulainn ter concordado com isso seja ter consciência clara quando se matar? - perguntou Brighid sardonicamente.
O sorriso bondoso de Ciara não vacilou.
- Assim que o espírito estiver inteiro novamente, o guerreiro não se matará - e parte de Cuchulainn já sabe disso.
- Espero que esteja certa quanto a isso, xamã.
- Confie em mim - disse Ciara.
Brighid encontrou o olhar firme da xamã. Poucos dias antes nunca teria imaginado confiar em híbrido nenhum, mas com ou sem asas Ciara exalava honestidade e bondade.
Ela era confiável. A caçadora curvou devagarinho a cabeça em respeito à mulher alada, assim como Brighid vira tantos centauros admitirem confiança em sua mãe.
- Escolho confiar em você, xamã - disse Brighid.
- Obrigada - suspirou Ciara, visivelmente tocada pela demonstração de respeito da centaura.
- Então, qual é meu primeiro passo nessa caçada espiritual? - perguntou Brighid.
- Você deu o primeiro passo. Antes que se possa tentar o resgate da alma, deve haver uma ponte de carinho e compreensão entre você e o guerreiro. Você é amiga dele.
Simplesmente reforce o laço que já existe entre vocês.
Brighid bufou:
- Isso é bem difícil de fazer com Cuchulainn tão retraído e irritado quanto um lince.
- Então deve explicar por que ele deve estar aberto a você. É seu trabalho fazer a jornada e se expor aos rigores espirituais do Outro Mundo. A parte dele no processo
é permitir que você acesse o espírito dele - neste mundo, assim como no outro.
- Cuchulainn não vai gostar disso.
- O guerreiro é um homem inteligente. Gostando ou não, compreenderá a necessidade disso.
Brighid queria dizer que também não gostava disso. A ideia de mexer com o espírito de outra pessoa era como uma invasão do pior tipo. E, inesperadamente, pensou
no quanto seria mais fácil se pudesse falar com a mãe, mas foi um desejo que calou quase com a mesma rapidez com que pensou nele.
- Então me fale. Sou amiga dele. E daí?
- Para resgatar a alma dele, precisará fazer uma viagem profunda ao Reino dos Espíritos, e isso é algo que não poderá fazer em segurança enquanto viajamos. Não gostaria
de ver seu corpo e seu espírito deslocados. Sou uma xamã experiente, e mesmo assim relutaria em fazer a jornada ao Outro Mundo antes de estarmos assentados em Partholon.
Em vez disso, o que deve fazer agora é firmar a fundação da sua missão. - Ela se calou e exibiu um rápido sorriso para Brighid. - Ou, como você diria, sua caçada.
Quando retornar ao Castelo MacCallan, e seu corpo estiver em segurança em seu lar, então siga o Caminho do Xamã até o Outro Mundo.
Aliviada por não ter que fazer qualquer viagem espiritual num futuro próximo, Brighid sentiu a tensão nervosa no corpo relaxar.
- Nesse meio-tempo pense em Cuchulainn a cada noite antes de dormir, pois é durante nossas horas de sono que estamos mais próximos do Outro Mundo. Envie pensamentos
positivos sobre ele nos seus sonhos. Comece a imaginá-lo como era antes - inteiro e feliz.
Brighid assentiu:
- Posso fazer isso.
- Também precisará de uma pedra apanhadora de alma. Esta pedra é sempre um presente do reino espiritual. Às vezes vem diretamente de Epona. Às vezes é trazida ao
xamã por seu aliado animal.
- Mas não sou xamã, e não tenho nenhum aliado animal!
Ciara deu de ombros.
- Talvez não precise de uma de presente. Só estou sugerindo que fique aberta à possibilidade.
- Ótimo. Se uma pedra cair do céu na minha cabeça, eu garanto que a apanharei e guardarei.
Ciara riu.
- Tenha cuidado. Geralmente o reino espiritual leva nossos gracejos a sério.
Mais boas notícias, pensou a caçadora.
- E enquanto estiver esperando por pedras, talvez também devesse ficar de olhos abertos para seu aliado animal.
- Meu aliado animal?
- É só uma ideia. Mesmo que não seja xamã, sua afinidade com os espíritos dos animais é forte, então não seria impossível que fosse presenteada com um guia animal
do reino espiritual.
Pensando no corvo tão intimamente aliado à sua mãe, Brighid fechou a cara.
- Caço animais e depois os mato. Isso não é exatamente estar aliada a eles - disse Brighid sucintamente.
- Você não mata animais pelo prazer disso, ou como um gesto arrogante e autogratificante do ego. Faz o que deve para alimentar seu povo. Não respeita cada animal
que mata, não agradece a Epona por sua generosidade a cada caçada?
- Claro - disse a caçadora.
- O reino espiritual sabe disso - talvez melhor do que você, caçadora.
Brighid meneou a cabeça e esfregou os braços novamente quando outro calafrio percorreu seu corpo.
- Isso não faz com que se sinta... não sei como explicar... violada?
- Isso?
- Isso! Isso! O Outro Mundo - o Reino dos Espíritos. Não é como ter alguém, um grupo de pessoas, vigiando constantemente cada movimento seu?
A xamã inclinou a cabeça para o lado, considerando.
- Não é uma violação porque o Reino dos Espíritos raramente avança onde não é bem-vindo.
- Pode não avançar, mas sei por experiência própria que quando os avisos desse reino são ignorados ou rejeitados, geralmente há um preço muito alto a se pagar -
disse Brighid solenemente.
- E a vida não é assim? Se alguém recebe um dom, seja afinidade com parte do reino espiritual, seja talento para a música ou modelar couro, que é ignorado, não existe
sempre um preço a ser pago? - Ciara se calou e pressionou os lábios numa linha apertada antes de continuar, numa voz triste e pesada: - Eu tinha uma irmã. Ela era
a artista mais talentosa de nosso povo, mas quando se tornou adulta, rejeitou sua habilidade. Dizia que havia muita feiura ao redor e dentro dela - recusava-se a
encontrar beleza em qualquer lugar, mesmo nas histórias do passado. No dia em que parou de pintar, acho que sua alma começou a morrer. Por fim, o corpo a acompanhou.
- Lamento por sua perda, Ciara - murmurou Brighid.
- Obrigada, caçadora. Mas não dividi a história de minha irmã com você para evocar sua pena. Simplesmente peço que aprenda com ela.
- Entendi.
Ficaram sentadas em silêncio, cada uma perdida nos próprios pensamentos. A luz prateada entre elas flutuou com o vento, lançando sombras móveis sobre as asas de
Ciara. Sob a luz da chama de sua própria criação, Ciara parecia pertencer mais ao outro mundo que a este. Devia ser ela a fazer essa coisa de resgate de alma, não
Brighid. Ciara deixou de olhar a chama, e Brighid ficou surpresa por ver linhas de preocupação enrugando a testa dela.
- Me permite perguntar uma coisa que nada tem a ver com o guerreiro e a alma dele? - perguntou Ciara de repente.
Brighid assentiu, esperando que a perceptiva mulher alada não fizesse perguntas sobre sua família.
O olhar de Ciara pairou nas silenciosas montanhas além do pequeno círculo de luz.
- Você passou pelas montanhas. Qual foi sua impressão? O que elas a fizeram sentir?
Brighid começava a dizer que elas não a fizeram sentir nada, exceto um frio de gelar os ossos e uma ansiedade pelo fim da jornada. Mas depois lembrou-se da visita
do corvo, e do pressentimento de ser observada.
- Não sei se me fizeram sentir algo em particular, mas admito que estava distraída quando cruzei a passagem. A única coisa que posso dizer com alguma certeza é que
não gosto delas nem mais nem menos do que dessa sua terra desolada. - Mas em vez do suave sorriso de resposta que esperava, a centaura observou o ar de preocupação
de Ciara aumentar. - O que foi, xamã?
- Não sei dizer. Talvez não seja nada além de as montanhas sempre terem representado uma barreira para tudo aquilo que meu povo aprendeu que é bom, e eu sempre ter
sentido desprezo por elas. Mas recentemente comecei a me indagar se não é algo mais... Elas me deixam... - Ela falou com hesitação, procurando pelas palavras certas
enquanto fitava a escuridão. - Cautelosa. Quanto mais próxima - quanto mais me aproximo delas -, mais cautelosa e nervosa me sinto.
- O que o reino espiritual lhe diz a respeito deste pressentimento?
Ciara sacudiu a cabeça, fazendo as asas se mexerem inquietas.
- Nada além do que eu saiba logicamente. Que as Montanhas Trier são um lugar frio e hostil, cheio de morte e sonhos perdidos.
- Morte e sonhos perdidos?
Os olhos de Ciara buscaram os da caçadora novamente.
- Muitos no meu povo escolheram usar as montanhas como lugar para acabar com a vida.
Brighid fez uma careta ao se lembrar da caminhada pelos íngremes sulcos vermelhos e fendas estreitas que pareciam se abrir para outro mundo. As Montanhas Trier definitivamente
forneciam amplas oportunidades de suicídio.
- Almas inquietas... - Brighid não percebeu ter falado em voz alta até Ciara assentir.
- Talvez seja isso o que eu sinto - as almas inquietas e insones do meu povo.
- Mesmo assim, ficarei de olhos atentos ao sul. Como você disse, seus instintos raramente falham - disse Brighid, não gostando da arrepiante sensação de alerta que
as palavras de Ciara evocaram dentro dela.
Por fim o rosto da xamã se clareou ao sorrir.
- É bom que tenha os olhos aguçados de uma caçadora - certamente tem muito ao que se atentar... Uma pedra da alma, um aliado animal e agora um pressentimento invisível
de inquietação que nem mesmo uma xamã consegue identificar.
- Bom, gosto de me manter ocupada.
- É boa coisa que faz. - Ciara riu alto.
- É de crer que sim - murmurou a caçadora, imaginando no que tinha se metido desta vez.
Doze
O DIA AMANHECEU completamente deprimente. O frio do inverno podia estar ausente do vento que soprava constantemente do sudeste, mas a garoa estável que ele carregava
era fria o bastante para que as crianças se enrolassem nas grossas capas impermeáveis que abrigavam seus rostinhos. Desmontaram as tendas com rapidez, fizeram o
desjejum e estavam prontas para seguir Cuchulainn novamente com um entusiasmo que não parecia arrefecer com o clima.
Brighid estava muito agradecida pelos capuzes abafarem o tagarelar e a cantoria. Não estava com humor para crianças felizes. Estava com dor de cabeça. Tinha acordado
com ela e sabia por quê. Era aquele maldito sonho.
Depois que ela e Ciara terminaram de conversar, Brighid patrulhou o perímetro externo do acampamento duas vezes antes de retornar ao calor do círculo de tendas e
à fogueira. Não querendo despertar sequer uma única criança, teve o cuidado de ficar quieta enquanto alimentava o fogo, e depois se acomodou para manter guarda sobre
o acampamento sonolento. Como caçadora, estava acostumada a dividir sua atenção. Podia facilmente seguir o rastro de um cervo ao longo de um riacho sinuoso enquanto
planejava a caçada do próximo dia. Então enquanto alimentava o fogo e circulava ocasionalmente o acampamento, ouvidos atentos a qualquer coisa fora do normal, sua
mente seguia o rastro deixado por Ciara. A xamã dissera que Brighid precisava imaginar Cuchulainn como era antes, inteiro e feliz, e Brighid tinha assegurado a Ciara
que era capaz disso - e era. Na verdade era mais fácil do que pensar no guerreiro como era agora.
A caçadora alimentou o fogo com outro pedaço de combustível e deixou a mente vagar. No dia em que conheceu Cuchulainn, ele estava trabalhando na limpeza dos escombros
centenários do coração do Castelo MacCallan e tinha ficado instantaneamente enfurecido quando Brighid se apresentou como parte da manada Dhianna. Ela bufou baixinho,
lembrando do modo arrogante com que ele questionara seus motivos para se unir ao Castelo MacCallan, e como ela tinha revidado ao questionamento com seu próprio sarcasmo.
Elphame se interpusera como mediadora em várias ocasiões, e ainda assim tinham rosnado e analisado um ao outro como lobos de matilhas inimigas.
Brighid meneou a cabeça e riu baixinho consigo mesma. Custara rastrear Elphame na noite em que desapareceu, e depois carregar sua irmã ferida e o próprio guerreiro
no lombo durante o retorno intempestivo ao castelo para que Cuchulainn começasse a confiar nela. Os lábios carnudos de Brighid se ergueram. Não o teria perdoado
tão fácil pela desconfiança, mas era um bocado difícil não gostar do guerreiro quando apelava para o charme. Ele era, como a irmã geralmente o chamava, um paquerador
incorrigível.
As mulheres eram atraídas por ele como abelhas por flores perfumadas, embora comparar um homem viril com uma flor fosse ridículo. Ele era alto, o porte atlético
de um guerreiro próximo à excelência. A caçadora geralmente não considerava humanos atraentes - eram tipicamente pequenos demais para atrair seu interesse, mesmo
que sua beleza lhe garantisse a atenção dos machos em geral, fossem humanos ou centauros... ou neofomorianos, acrescentou em silêncio, recordando as olhadas apreciativas
que recebera de Curran e Nevin. Mas notara Cuchulainn. Como não poderia? Como a irmã, ele possuía uma aura que era imensurável. Embora diferentemente de Elphame,
o corpo fosse completamente humano, ele se portava com uma confiança e um orgulho que diziam ao mundo: Pode vir! Dou conta de qualquer coisa! E não era uma ostentação
vazia. Cuchulainn era um guerreiro incrivelmente talentoso - mais forte, rápido e talentoso com uma claymore que qualquer guerreiro que já tivesse conhecido, e isso
incluía os centauros.
Mas a confiança dele era abrandada pelo senso de humor. Cuchulainn sabia rir de si mesmo - um atributo que evitava que sua arrogância se tornasse grosseira e insuportável.
A risada dele... O sorriso de Brighid se alargou. Ele costumava rir com uma animação marota!
Foi a lembrança da risada marota que ficou com Brighid enquanto a noite desvanecia - enquanto acordava o sonolento Cuchulainn para que assumisse seu lugar na vigia
do acampamento -, e enquanto se acomodava no confinamento estreito da tenda que compartilhava com o guerreiro e logo caía no sono em meio aos cobertores ainda aquecidos
pelo corpo e perfume de Cuchulainn.
Começou como muitos de seus sonhos começavam - com ela observando o vento soprar as pontas do capim alto de sua amada Planície dos Centauros. Em seu sonho era começo
de primavera e a planície estava colorida com flores silvestres em magnífica floração. O verde-claro das campinas transbordava em explosões de lavanda, água-marinha
e açafrão. No sonho ela sentia a brisa leve acariciar seu rosto, tão diferente do vento ofensivo dos frígidos Ermos. Na Planície dos Centauros o vento confortava,
e trazia consigo as fragrâncias sedutoras da grama verdejante e das flores silvestres. Brighid respirou fundo e deixou seu eu no sonho mergulhar nos perfumes e sons
de seu lar.
No vento ela ouviu a risada. Veio de trás de Brighid, que instintivamente se virou na direção do som. Sorriu, notando que estava sonhando com um dos seus lugares
favoritos, uma área de mata que não ficava longe do assentamento de verão da família. Ela seguiu a risada ao longo do Riacho Sand, que corria musicalmente em meio
à sombreada alameda de carvalhos, freixos e lódãos. Brighid trotou contornando a curva gentil do riacho e parou abruptamente. Sentado na margem, com os pés descalços
na água límpida, estava Cuchulainn. Ele estava rindo.
Brighid devia ter feito algum som não intencional de surpresa, pois ele girou a cintura e olhou para ela por cima do ombro.
- Brighid! Imaginei que a veria por aqui. - Ele acenou para que ela se aproximasse. - Venha. A água está fria, mas é tão límpida e agradável que vale o arrepio.
- Cuchulainn, o que está fazendo aqui? - As palavras tombaram da boca ao se aproximar dele.
Ele ergueu os olhos e riu com animação.
- Não faço ideia! - Depois se pôs de pé e floreou uma reverência cavalheiresca na direção dela, exibindo aquele velho sorriso libertino. - Vem se sentar ao meu lado,
formosa caçadora? - perguntou, empregando o sotaque carregado do oeste de Partholon.
Brighid tentou esconder o próprio sorriso com um bufo.
- Se parar de agir como se tivesse esquecido que sou metade equina.
- Será que um homem não pode demonstrar simples apreciação pela beleza feminina, mesmo que ela seja parte cavalo?
Brighid se obrigou a encará-lo com zombeteira severidade.
- Centauros não são cavalos.
- Aceito a correção, minha bela caçadora!
- Ora, sente-se logo. Pela Deusa, tinha me esquecido do quanto você pode ser chato!
Cuchulainn deu uma risadinha enquanto se estatelava, reclinado sobre os cotovelos e prendendo um longo pedaço de capim na boca. Cautelosa, Brighid se acomodou ao
lado dele.
- Relaxe, não vou mordê-la. - Ele sorriu, maroto. - Provavelmente não a beijarei também, embora esteja considerando a ideia.
- Cuchulainn!
- Você parece exatamente como Elphame quando fala assim - disse ele. - O que não é necessariamente um cumprimento. Sabe como minha irmã fica irritável.
Ela meneou a cabeça.
- Comporte-se. É o meu sonho.
- Estamos em seu sonho, hein? Bom, isso explica o que estou fazendo aqui. Devia estar pensando em mim antes de dormir e, como uma xamã, me conjurou aqui. O que quer
comigo, Brighid? Suas intenções são honradas? - Ele agitou as sobrancelhas. A expressão chocada de Brighid fez com que ele arrancasse o capim da boca, atirando a
cabeça para trás em outra gargalhada animada.
E lá estava - a risada querida, contagiante e totalmente feliz com que ele costumava irromper pelo Castelo MacCallan com regularidade, fazendo as mulheres virarem
a cabeça quando paravam, ouviam e sorriam com pensamentos secretos, e fazendo os homens se juntarem ansiosos a Cuchulainn em qualquer renovação que Elphame o tivesse
incumbido, não importava o quanto fosse imunda e difícil. Pela Deusa, ele parecia jovem, relaxado e muito feliz. Depois, com um choque surpreendente, as palavras
dele se registraram.
Ela tinha conjurado Cuchulainn. Como uma maldita xamã. Mas o que tinha conjurado? Ciara dissera que é durante o sono que se fica mais próximo do Outro Mundo. Será
que aquela aparição no sonho era mais do que uma imagem criada pela própria mente?
- O quê? - perguntou Cuchulainn, ainda rindo baixinho. - Desde quando se tornou tão séria para não poder brincar com um camarada?
- Não, não... Não é isso - gaguejou Brighid, sem saber o que dizer. Então cuspiu a primeira coisa que lhe veio à mente: - É tão bom ver você!
- Ah, aí, viu? Meu charme não é totalmente desperdiçado com você - disse ele, mascando o talo do capim novamente.
Brighid bufou:
- Não precisava ser tão convencido. Estou surpresa por ter sentido saudades de você - com charme e tudo.
- Arrã - bufou ele de volta. - Caçadora, você é uma criatura confusa - decididamente bonita, mas confusa.
Brighid ergueu a sobrancelha.
- Bom, foi você quem disse que sentiu saudades, como isso poderia ser possível? Estamos trabalhando lado a lado há dias limpando aquela ruína que minha irmã chama
de castelo. - Ele piscou para ela. - Ou esta é sua maneira sutil de me dizer que gostaria de passar mais tempo comigo? - Ele fez uma grande exibição de suspiro.
- Vá com calma comigo, caçadora, sou apenas um homem.
O brando incômodo de Brighid se transformou em algo que era quase medo.
- Brighid? - Ele inclinou-se à frente e tocou-lhe o braço com gentileza. - Eu a ofendi? Pensei que soubesse que eu só estava brincando.
- Não... Eu... - Ela se debateu. O que deveria dizer? Fitou o homem sentado perto dela. Era descuidado, gentil e carismático - tudo que o Cuchulainn que estava no
momento vigiando o acampamento dos neofomorianos não era. E ela tinha uma sensação tão certa quanto seu conhecimento dos hábitos dos animais de que ele não era invenção
de sua imaginação sonhadora. Ele era a parte de Cuchulainn que fora despedaçada com a morte de Brenna, e essa parte parecia estar presa numa época antes do trágico
evento. Brighid vasculhou desesperadamente dentro de si mesma. O que deveria dizer a ele?
- Brighid? O que foi?
- Cuchulainn, sabe que estamos num sonho?
O guerreiro assentiu.
- No mundo real não estamos mais no Castelo MacCallan - disse devagarinho.
Cuchulainn se sentou ereto e tirou o capim dos dentes.
- Mas isso não é possível. Esta noite mesmo trabalhamos juntos na limpeza dos aposentos do chefe para fazer uma surpresa para El. - O sorriso dele só hesitou um
pouco. - Não podemos estar viajando. Estamos ocupados trabalhando.
- Quem? - perguntou calmamente. - Quem está ocupado trabalhando nos aposentos de El, Cuchulainn?
- Andou bebendo o estoque de vinho tinto da minha irmã, Brighid? - perguntou ele com um humor que era obviamente forçado. - Basicamente somos nós três: você, Brenna
e eu.
Brighid respirou fundo.
- Cuchulainn, o que você está lembrando... aconteceu faz tempo... há mais de dois ciclos completos da lua, desde que...
- Não! - Com um movimento veloz e desajeitado, o guerreiro se levantou. - Não... - Ele se afastou dela.
- Cuchulainn, espere! - Brighid tentou alcançá-lo, mas tudo o que ela tocou foi a escuridão da tenda, enquanto seus olhos se abriam para a noite que desvanecia.
Foi quando a dor de cabeça começou. A garoa gelada da manhã não fez nada para dissipá-la. Brighid tinha tentado encontrar o olhar de Ciara e puxá-la de lado. Precisava
conversar com a xamã sobre o sonho. Mas a xamã estava ocupada reunindo as cabras encharcadas.
- Está num ritmo rápido para um dia tão miserável.
A voz áspera de Cuchulainn a arrancou dos pensamentos. Ela olhou ao redor e sentiu-se como se despertando de outro sonho.
- Desculpe-me - disse brevemente. - Não percebi que tinha me afastado do resto deles.
Um resmungo foi a única resposta. Ela esperava que Cuchulainn se afastasse cavalgando, mas conforme Brighid desacelerava o passo, o capão de Cuchulainn permaneceu
ao seu lado. O cabelo de Cuchulainn estava molhado e muito comprido. Parecia uma das cabras quase selvagens com as quais Ciara passara a manhã brigando.
- Precisa de um corte de cabelo - disse ela.
Os olhos dele se arregalaram de surpresa antes de se estreitarem na expressão chapada e cínica que lhe atacara o rosto nos últimos meses.
- Não me importo com meu cabelo.
Hã, a mente de Brighid girou. Ele ficou visivelmente abalado com um comentário normal, pessoal. E algo de repente fez sentido. Todos ficaram cheios de dedos perto
de Cuchulainn desde a morte de Brenna, tratando-o como se fosse um ovo delicado que precisava ser protegido. Até os híbridos eram cautelosos com ele - não esperavam
que ficasse para o jantar ou para as histórias -, deixando que escapasse para sua tenda para que refletisse sozinho. Não era surpresa que a parte alegre dele tivesse
se retraído. Se tivesse escolha, também não desejaria ficar junto da nuvem negra na qual Cuchulainn se tornara.
- É óbvio. Seu cabelo está horrível - retrucou ela. - Também precisa se barbear e de uma muda de... - ela apontou para o kilt manchado que mal se via debaixo da
pele de cabra que ele jogara sobre os ombros - seja lá como chame isso que está vestindo.
- Os aspectos mais delicados da toalete masculina não estiveram em primeiro lugar na minha mente nos últimos ciclos da lua. - A voz estava grossa de sarcasmo.
- Talvez gostasse de reconsiderar essa sua maldita atitude, garoto. - A caçadora usou a palavra de propósito. Certo, provavelmente era apenas um ou dois anos mais
velha, mas revestiu-se em sua idade como numa rica capa e endereçou ao guerreiro um olhar presunçoso. - Amanhã, a esta hora, estaremos entrando na Passagem Guardião.
As crianças, por mais reconhecidamente importunas que sejam, merecem nossa ajuda na chegada a Partholon. Nossa ajuda, Cuchulainn. Isso não significa bancarmos a
caçadora e o guerreiro sofredor. - Ela revirou os olhos e meneou a cabeça. - Olhe para você! Sua irmã mal o reconheceria.
- Caçadora, estou avisando. Não estou com humor para...
- Me poupe! - Ela o interrompeu, jogando o cabelo para trás e curvando os lábios. - Tente lembrar que não estamos fazendo isso por mim ou por você. É por elas. -
Ela apontou o polegar por cima do ombro para a massa de crianças que os seguia. - Recomponha-se e não as desaponte.
- Acham que é um bom lugar para a refeição do meio-dia? - Ciara correu até eles num agitar de asas escuras e molhadas. Se pressentia a tensão entre a centaura e
o guerreiro, sua expressão alegre e franca não demonstrava sinais disso.
- Sim - respondeu Cuchulainn num tom entrecortado.
- Tudo bem por mim - disse Brighid.
- Ótimo! Avisarei as crianças. Mas não devemos ficar parados por muito tempo. Estamos tão animados com a possibilidade de entrar na Passagem Guardião amanhã. Não
queremos nos atrasar no planejamento.
A mulher alada afastou-se depressa e Brighid pôde ouvi-la chamando as crianças para arrumar e organizar a breve pausa. A caçadora decidiu parar. Endireitando os
ombros, virou-se para o guerreiro, pronta para guerrear. Mas em vez de cinismo e raiva, Cuchulainn apenas parecia muito velho para sua idade e muito, muito cansado.
- Então estou assim tão mal? - perguntou.
- Mais do que mal - disse Brighid.
- Isso é parte da coisa de consertar a alma que tem que fazer?
A caçadora deu de ombros.
- Talvez sim. Talvez não. Não sei exatamente o que estou fazendo.
- Bem, você está sendo realmente irritante.
- E você não está sendo melhor do que isso - respondeu ela.
Cuchulainn lançou-lhe um olhar pensativo.
- Isso faz de nós uma equipe?
- Quer dizer que juntos não somos tão irritantes, ou, no seu caso, tão patéticos? - perguntou Brighid.
- Acho que precisa trabalhar na maneira de lidar com pacientes.
- Provavelmente. Geralmente mato meus "pacientes".
- Isso seria um problema - disse Cuchulainn.
- Sim, mas é apenas um deles - respondeu Brighid.
Treze
A GAROA CONTINUOU pelo dia inteiro, e até mesmo as crianças pareciam subjugadas e comparativamente quietas quando montaram o acampamento naquela noite. Quando Ciara
completou a oração da noite com "... Preencha-me com o abençoado poder da nossa Deusa, toque-me com sua força flamejante", Brighid pensou que nunca se sentira tão
aliviada por ouvir quaisquer palavras na vida.
O calor confortável da fogueira aprimorada pela xamã funcionou como um encanto mágico. Logo panelas estavam fervendo com cozido suplementado com vários gansos-das-neves
fibrosos que Brighid tinha abatido não muito antes de pararem para a noite. A caçadora descansava ao lado da fogueira, o aroma mofado do combustível misturado ao
do cozido deixando-a num estado relaxado e satisfeito. Pela Deusa, estava cansada! O sonho da noite anterior definitivamente não tinha lhe dado muito descanso. A
caçadora estava acostumada a ficar vários dias sem dormir - às vezes as caçadas eram exaustivas, e a resistência de um centauro sempre era maior que a de um humano.
Mas uma noite pairando no Outro Mundo a desgastara como se estivesse caçando ininterruptamente por uma semana.
- Aqui, coma isso. Você parece tão mal quanto alega que estou. - Cuchulainn lhe entregou uma tigela de cozido fumegante e se acomodou ao lado dela.
Brighid piscou os olhos sonolentos.
- É seguro?
- Acha que envenenaria você? Teria que arrastar sua carcaça de volta para Partholon.
Brighid cheirou o cozido com apreensão.
- Provavelmente não é forte o bastante para me arrastar - murmurou ela.
- Não me subestime - respondeu ele.
Brighid buscou-lhe os olhos. Havia algo por trás da insipidez. Não que parecesse o Cuchulainn com quem falara na noite anterior - o jovem guerreiro feliz e despreocupado
cujo carisma atraía os outros -, mas tinha certeza de ter visto uma faísca qualquer, e aquela faísca de repente abrandou sua exaustão. Ele estava conversando com
ela. Na verdade, estava provocando-a. Devia ser um passo na direção certa.
- Gostei do ganso, Brighid! - Como num hábito irritante, Liam tomou lugar ao lado dela com um sorriso travesso. - Kyna acha que ganso tem gosto de gordura, mas acho
que não.
- Bom, gordura faz bem - respondeu Brighid vagamente enquanto buscava algo adulto e sábio para dizer ao garoto.
- Eu sabia! - disse ele com alegria, atacando sua tigela de cozido.
- Faz bem? Gordura? - falou Cuchulainn baixinho.
- Quer trocar de lugar comigo e sentar perto dele? - sussurrou Brighid em resposta.
- Arrã - pigarreou Cuchulainn, ficando muito ocupado com sua própria refeição.
- Foi o que pensei - murmurou ela, que depois se concentrou no próprio cozido enquanto deixava o calor das tendas arrumadas em círculo e os sons suaves das crianças
cansadas a inundarem. Quando Cuchulainn lhe passou o odre, Brighid assentiu em agradecimento e deu um longo gole, sentindo o líquido forte e tinto espalhar calor
por seu corpo.
Estava para dizer a Cuchulainn que ficasse com a primeira ronda para que ela pudesse se retirar para a tenda, antes que se envergonhasse caindo no sono sentada,
quando Nevin e Curran se ergueram. Sussurros de antecipação surgiram e depois se aquietaram enquanto os gêmeos contadores de histórias esperavam pacientemente que
as crianças se acomodassem.
- Nossa jornada à terra de nossas ancestrais continua - disse Curran, olhando de um rosto para outro.
- Hoje sentimos a satisfação de nossas ancestrais nas lágrimas jubilosas que nos enviaram do céu - disse Nevin.
Brighid bufou baixinho consigo mesma. Se aquela garoa miserável eram lágrimas de júbilo, então desejava que as malditas ancestrais refreassem a alegria. Sentiu olhos
sobre si, então olhou para o outro lado da fogueira, onde Ciara correspondeu-lhe ao olhar com um sorriso que dizia que a xamã estava lendo sua expressão novamente.
A caçadora logo desviou o olhar.
- Banhados em aprovação ancestral, nossa história de hoje evoca uma época bem antiga - anunciou Curran.
- Começa num lugar de lendas, celebrado pela beleza, sabedoria e integridade das mulheres educadas lá - continuou Nevin.
Aquilo atiçou a curiosidade de Brighid, que despertou a si mesma da sonolência. Deviam estar falando do Templo da Musa - não havia um único lugar em Partholon mais
celebrado por sua rica história de ensino superior ou pelas mulheres talentosas que estudaram ali.
- Digam, crianças - pediu Curran -, quais os nomes das nove mágicas deusas encarnadas que vivem no Templo da Musa?
- Érato! - A voz de Liam berrou ansiosa ao lado dela. - Ela é a Musa do amor!
Brighid ignorou o olhar embevecido que recebeu, assim como as risadas dos híbridos adultos. Felizmente Kyna logo gritou o nome da deusa seguinte: - Calíope! A Musa
da poesia épica.
E depois os outros sete nomes e títulos se seguiram, anunciados por vozes jovens e ansiosas: - A Musa da história é Clio.
- Euterpe, Musa da poesia lírica.
- Melpômene, a Musa da tragédia.
- Polímnia, Musa da música, oratória e matemática!
- Minha avó! - Uma menininha alada disse pulando, asas flutuando agitadas. - Tália, Musa da comédia!
- Urânia é minha tia-avó, e ela é a Musa da astronomia e astrologia! - disse um rapaz que Brighid reconheceu ser Gareth.
- E não se esqueçam da avó de Ciara, Terpsícore, Musa da dança - avisou Kyna.
- Não esqueceríamos Terpsícore, criança - disse Curran.
- Ela é o assunto da história desta noite - prosseguiu Nevin.
O anúncio foi acompanhado por palmas e sons deliciados das crianças. Brighid olhou para Ciara. A mulher alada estava sorrindo contente junto com os outros neofomorianos.
Quanto tempo havia se passado desde a morte de Terpsícore? Ou, por falar nisso, quanto tempo se passara desde que a mãe de Ciara, a filha da Musa Encarnada, tinha
cometido suicídio? Com assombro, Brighid percebeu que não fazia ideia alguma da idade de Ciara. Sabia que um dos atributos que os híbridos herdaram dos pais demoníacos
era uma expectativa de vida incomumente longa. O companheiro híbrido de Elphame, Lochlan, não parecia ser mais velho do que um homem na flor da juventude, porém
tinha vivido quase 125 anos. A xamã parecia mal ter vivido 20 anos, mas devia ser mais velha. Portava-se com a mesma confiança que a própria mãe de Brighid exalava.
As palavras de Curran refrearam a mente errante de Brighid com os fios da história: - Cada uma das nove deusas era adorável à sua própria maneira, mas Terpsícore
era uma beleza rara mesmo entre as divinas. Lembro-me bem dela na minha infância. Sua beleza não era baseada apenas na perfeição do rosto ou do corpo.
Como se fossem um único ser, Nevin pegou a meada da história com primor: - A beleza de Terpsícore estava na graça mágica com que se movia. Mesmo quando a fragilidade
do corpo envelhecido a afastou das orações dançantes à sua Deusa, ela nunca perdeu aquela maneira singular de movimento que a marcava claramente como uma abençoada.
Corpo envelhecido?, indagou-se Brighid, já intrigada. Há muito se acreditava em Partholon que depois da derrota na batalha no Templo da Musa, as deusas encarnadas
e suas acólitas tinham sido mortas pela horda fomoriana. A caçadora pensou na beleza surpreendente das pinturas e esculturas deixadas para trás no assentamento dos
neofomorianos. Seus olhos vagaram pelo círculo de pessoas aladas, notando as joias de osso delicadamente entalhadas que muitas crianças carregavam e o talhe excelente
das peles grosseiramente curtidas. Os historiadores definitivamente terão que reescrever algumas coisas. O pensamento fez com que seus lábios se contraíssem. Esta
era apenas mais uma numa longa lista de surpresas para Partholon.
- Ah, mas nós nos adiantamos - disse Curran. - Terpsícore foi a primeira de nossas ancestrais a morrer, mas não antes de deixar um legado de vida ao trazer a morte.
- Não faz sentido nenhum...
O resmungo de Cuchulainn ecoou nos pensamentos de Brighid, mas ela fez cara feia e silenciou o guerreiro, não querendo perder nada da história.
- Era um dia de verão como qualquer outro no Templo da Musa. As árvores espalhavam seu frescor verde pelos lustrosos salões de aprendizado de mármore. Enquanto as
mulheres iam de templo em templo estudando a dança, a poesia e as estrelas, a doce essência das madressilvas douradas perfumava as passagens. Passarinhos coloridíssimos
se arremessavam em meio aos afrescos do teto que pareciam ter vida.
- Heras-esmeralda e cordões de flores vívidas cascateavam como cortinas dos tetos dos templos. - Nevin sorriu para as crianças que ouviam tão atentamente quanto
a caçadora. - Mesmo nas salas dedicadas ao aprendizado da medicina e do cuidado com os doentes, havia conforto e alegria. O Templo da Musa é um lugar de grande beleza.
- É também um lugar de paz - continuou Curran. - Diferentes da protetora de Partholon, Epona, as Musas não são deusas da guerra, assim seus templos são mal equipados
para serem usados como fortalezas para qualquer coisa mais violenta que a guerra contra a ignorância. Terpsícore andava entretendo as jovens acólitas que tinham
caído doentes com uma varíola debilitante. Aqueles que a conheceram compreendem que a deusa encarnada usava seus talentos para levar alegria aos outros e honrar
sua deusa, mesmo que isso a colocasse em risco. Então não é surpresa que ela também ficasse doente.
A expressão de Nevin obscureceu quando sua voz adentrou impecavelmente na pausa do irmão: - E aqueles que a conheceram sabem que no dia da grande batalha, quando
teve uma oportunidade de escapar dos demônios invasores, em vez de fugir e se salvar, ela escolheu ficar com aqueles que estavam mais doentes do que ela.
- Como minha tia-avó, Urânia! - gritou Gareth.
- E minha avó! - disse outra criança.
- E a minha!
Vozinhas ecoaram na noite. Os contadores de história aguardaram, assentindo pacientemente para cada criança até Brighid querer berrar para que todas ficassem quietas
para que ela pudesse escutar o resto da história. Mas logo todas entraram mais uma vez num silêncio atento, então Curran falou novamente: - Os demônios invadiram
o Templo da Musa. Os bravos centauros e os guerreiros partholonianos não puderam conter o exército invasor. Muitas mulheres foram capturadas, deusas encarnadas e
suas alunas - mulheres que eram as mais talentosas e belas de Partholon. Os demônios as arruinaram e usaram para saciar seus próprios desejos distorcidos.
O queixo de Brighid se ergueu e seus olhos se lançaram apressados ao redor do círculo, perturbada com a dura honestidade do conto, mas ninguém mais parecia chocado
ou angustiado, e Nevin mal se calou durante o tempo de uma respiração antes de prosseguir: - A beleza incomparável de Terpsícore chamou a atenção do líder inimigo,
Nuada, e naquela noite ele ordenou que ela dançasse. Pensou que ela dançava para ele, mas para quem ela realmente dançou?
- Para sua Deusa! - Foi a resposta entusiasmada do grupo.
- É verdade, enquanto girava na adorável dança que devia celebrar uma cerimônia partholoniana de casamento, foi vagando pelo acampamento dos demônios, tocando todos
quanto podia, deixando em seu rastro a doença, em vez da bênção cerimonial de sua Deusa.
- Sabemos disso - disse Nevin, a voz se erguendo mais uma vez - porque mesmo infectada com aquela horrível varíola e grávida de um demônio, ela sobreviveu.
- Sobreviveu o bastante para ensinar à filha as práticas de sua Deusa, e, por sua vez, essa filha sobreviveu o bastante para passar aquele precioso aprendizado às
filhas.
Curran calou-se, então ele e Nevin se voltaram para Ciara.
Curran se curvou para a xamã, a neta da deusa encarnada Terpsícore.
- As mulheres de Terpsícore são labaredas formosas. É uma triste verdade que algumas delas tenham queimado tão vivamente e tão rápido.
Dessa vez os dois se curvaram em respeito a Ciara e falaram juntos: - Nos honraria esta noite, Ciara, com uma dança de suas ancestrais?
As crianças deixaram escapar um suspiro coletivo de prazer; quando a xamã se levantou, Brighid ouviu o arrastar de pezinhos e o reagrupamento de corpos alados. O
que estão aprontando?
Ciara inclinou a cabeça num cumprimento aos gêmeos contadores de histórias. Então se despojou da capa, tirou negligentemente a calça e livrou-se das botas de sola
grossa semelhantes a mocassins. Aproximou-se da fogueira apenas numa túnica de algodão cru. Os olhos de Brighid se arregalaram. Os pés de Ciara não terminavam em
garras! Em vez disso, ela possuía pernas perfeitas e lisas e pés humanos delicadamente arqueados.
- Esta noite agradeço à deusa Terpsícore pela força de minha avó, e a Epona por nossa vitória sobre a escuridão. Dedico esta dança como uma celebração, lembrando
daqueles que amamos e daqueles que morreram e assim nos presentearam com um legado de vida.
Brighid podia ter jurado que a xamã falava isso diretamente a Cuchulainn.
De algum lugar no círculo veio a batida de um tambor, que foi logo ecoada por outra e mais outra. Depois o gorjeio claro e alto de uma flauta se juntou à batida
marcante. Era óbvio que tanto rebuliço e reorganização se referia à correria das crianças para buscar os instrumentos.
Como o estender de um véu escuro e vivo, as asas de Ciara se desdobraram e ela começou a dançar. Antes daquela noite, se pedissem que Brighid descrevesse a xamã,
teria usado palavras como miúda e delicada, mas à medida que Ciara rodopiava e saltava, traçando padrões intrincados no ar com mãos e braços graciosos, a caçadora
percebeu o quanto estivera enganada. Ciara possuía musculatura feminina magra e longilínea, aprimorada numa surpreendente perfeição de graça e flexibilidade. Não
era nem pequena nem suave, embora parecesse uma sílfide com sua pele luminosa e os cabelos e as asas escuros. Mas uma mulher delicada não seria capaz de ordenar
o corpo a executar as façanhas de puro atletismo que Ciara completava tão facilmente.
Impressionada e arrebatada, Brighid não conseguia tirar os olhos da apresentação da mulher alada. A dança era graciosa e sensual. Brighid reconheceu muitos dos movimentos
que Ciara executava como passos que toda criança partholoniana conhecia - até os centauros adaptaram muitos dos passos das danças comemorativas do país para seus
corpos equinos. Mas a caçadora nunca tinha visto nada como a apresentação que Ciara estava oferecendo. Ela não apenas se movia conforme a música - a mulher alada
se transformava na música. Parecia brilhar. A princípio, Brighid pensou que era apenas o lustro do suor cintilando na pele sob a luz tremulante do fogo, mas logo
percebeu que era a própria Ciara - quanto mais a mulher alada dançava, mais cintilava. No clímax da música, quando girou numa velocidade vertiginosa, o cabelo escuro
crepitou e faiscou numa luz lustrosa e sobrenatural.
- Nunca vi nada assim - sussurrou Brighid para Cuchulainn, sem tirar os olhos de Ciara. Como ele não respondeu com seu típico resmungo, ela o olhou de esguelha.
Cuchulainn estava encarando a dançarina, o rosto um modelo de misteriosa veemência. Brighid tentou identificar a expressão. Seria desejo? Obsessão? Era certo que
transparecia mais animação do que tinha visto naquele rosto desde...
Palmas e vivas tumultuadas interromperam seus pensamentos e seu olhar retornou para Ciara, que estava fazendo mesuras e sorrindo radiante para seu apreciativo público.
Buscou brevemente o olhar de Brighid e acenou antes de retomar seu lugar em meio às crianças que aplaudiam.
- Um legado de vida... - disse Nevin.
- ... a partir da morte - completou Curran. - Amanhã continuaremos a acompanhar esse legado de volta a Partholon, e o futuro que nossas ancestrais sonharam para
nós.
Curran e Nevin curvaram-se impecavelmente, e os híbridos adultos começaram a rodear as crianças. Dessa vez, quando Liam se atirou em seus braços, a caçadora estava
um pouco mais preparada.
- Boa noite, caçadora! - disse ele depois de abraçá-la apertado.
- Durma bem - respondeu distraída para as asas que se afastavam. Sua mente não estava na criança. Voltou-se novamente para Cuchulainn. O guerreiro estava muito imóvel,
encarando a fogueira. O rosto era novamente uma máscara sem expressão, mas os olhos ainda não tinham feito completamente a transição para o vazio. Estavam estreitados
em contemplação, como se atormentado com um problema opressivo.
Devia perguntar o que ele estava pensando, mas, pela Deusa, não queria! Não queria se intrometer... não queria bisbilhotar... e então, com um pequeno e abismado
sobressalto, percebeu que também não queria saber que Cuchulainn desejava Ciara.
Catorze
- NÓS TRÊS DEVEMOS conversar sobre a melhor maneira de lidar com o dia de amanhã - disse Cuchulainn.
- Nós três? - Brighid ergueu uma sobrancelha, o que ele não notou porque o olhar permanecia fixo na xamã alada.
- Você, eu, Ciara - disse ele.
- Acho que deveríamos incluir todos os adultos - ouviu-se dizendo Brighid.
Cuchulainn finalmente virou-se para olhá-la, um leve franzido na testa erguendo um canto da boca.
- Não é prático nos reunirmos com todos os adultos. Estão ocupados colocando as crianças na cama. E já discuti como seria entrar em Partholon com todos eles - muitas
vezes durante as duas últimas luas.
- Mas agora estamos entrando através da Passagem Guardião e do próprio Castelo Guardião. Isso muda as coisas.
O franzido na testa de Cuchulainn se aprofundou.
- Não o bastante para justificar o atrapalhar da noite.
Brighid bufou:
- Atrapalhar? Não está exagerando?
- Você quer colocá-las na cama ou lidar com setenta crianças que não dormiram direito amanhã?
- Não demoraria muito conversar com os adultos num grupo - insistiu Brighid. - Precisam estar preparados para o fato de que uma deles está mantida prisioneira lá.
O rosto de Cuchulainn obscureceu.
- Eles sabem disso.
- Sim, mas acho que devemos conversar com eles sobre isso. Novamente.
- Por que está sendo tão difícil? - perguntou Cuchulainn.
- Por que está sendo tão teimoso? - disparou Brighid.
- Algum problema? - Ciara sorriu com doçura para ambos.
- Não! - rosnaram Brighid e Cuchulainn juntos.
- Ótimo. Acho que devemos conversar sobre amanhã - disse Ciara.
- Concordo - disse Cuchulainn, lançando uma olhada na caçadora.
Brighid o ignorou e falou diretamente com Ciara: - Será importante que crianças e adultos fiquem juntos. Ninguém deve disparar na frente ou ficar para trás.
- É exatamente o que tenho dito nas últimas duas luas - interrompeu Cuchulainn. - E também os lembre de conter o... - o guerreiro fez uma pausa, e quase parecia
estar lutando contra um sorriso: - ... entusiasmo. - Então a expressão ficou séria e as linhas em seu rosto se aprofundaram. - O povo de Partholon sabe que vocês
existem, não só porque Fallon foi aprisionada no Castelo Guardião. Como Escolhida de Epona, minha mãe terá garantido que a notícia da descoberta e iminente chegada
de vocês tenha se alastrado pelo país. Partholon estará preparada para vocês - em teoria. Mas entre ouvir falar sobre crianças aladas e ver o grupo... - Ele ergueu
um ombro.
- São duas coisas inteiramente diferentes - completou Brighid por ele, pensando novamente nas surpresinhas aladas que logo invadiriam Partholon. Os humanos não faziam
ideia do que os esperava. Ela relanceou Cuchulainn. Seu rosto tinha retomado a costumeira máscara de inexpressividade. Mas os olhos ainda não estavam estranhamente
brilhantes e concentrados demais em Ciara?
Algo arrepiou a espinha de Brighid, crispando-lhe a pele e fazendo-a sentir-se sobrenaturalmente ciente dos vastos Ermos que cercavam o pequeno acampamento.
- Então está acertado. - Ela se levantou inquieta. - Amanhã ficamos bem juntos - todos nós de olho nas crianças. Nenhuma dispersão, nenhuma exploração.
- E entramos em Partholon. - Ciara sussurrou a palavra como numa oração.
- Com cautela - Brighid falou aquilo com mais força do que pretendia.
- O que foi, caçadora? - perguntou Ciara. - Foi alertada de algo que está por vir?
- Não! - respondeu Brighid um tanto apressada. Não tinha sido alertada de nada - só tinha sido pega totalmente desprevenida pela reação de Cuchulainn à dança de
Ciara. E agora a xamã a estudava com aqueles olhos perceptivos. Brighid se levantou e trocou o peso do corpo com inquietação. - Não - repetiu numa voz mais controlada.
- Só estou cansada. E não tenho qualquer tipo de premonições - isso é área do Cuchulainn, não minha.
A cabeça do guerreiro investigou ao redor antes que ele estreitasse os olhos.
- Não tenho mais premonições.
- Isso não é necessariamente boa coisa - revidou Brighid o olhar diretamente.
- Está cansada, caçadora - falou Ciara em meio ao silêncio carregado de tensão. - Será que não prefere dormir primeiro?
Brighid assentiu sucintamente.
- Então lhe desejo boa noite. Falarei com os outros adultos sobre amanhã. Cuchulainn fica com a primeira guarda.
Brighid assentiu novamente. Sem falar com Cuchulainn, retirou-se para a tenda que compartilhavam e se acomodou nas peles grossas. Fechou os olhos e respirou fundo.
O que havia de errado com ela?
Estava zangada até o íntimo. E isso não tinha razão de ser. Cuchulainn tinha reagido a Ciara. O que havia de errado nisso? Nada. Seria maravilhoso se Cuchulainn
conseguisse amar novamente. Na verdade, seria um milagre.
Quando a alma não estiver mais despedaçada, o guerreiro não escolherá a morte. Quando Cuchulainn estiver inteiro, amará outra vez.
Quando Ciara falou essas palavras, Brighid tinha pensado ser impossível que Cuchulainn voltasse a amar outra vez - não tinha considerado que Ciara falava de si mesma.
Brighid rearrumou com inquietação as longas pernas equinas. Cuchulainn era seu amigo. Tinha concordado em ajudá-lo com o pedaço estilhaçado da alma porque se importava
com ele. Queria que ele voltasse a ser inteiro. Ainda não tinha feito a jornada de resgate da alma, porém Cuchulainn já parecia mais animado. Tinha caçoado dela
e notado que parecia cansada. Devia estar satisfeita por ele também demonstrar interesse por Ciara. A mulher alada era bela e gentil. Elphame aprovaria.
Estava contente por ele, disse consigo mesma com firmeza. Só tinha sido pega de surpresa. Era só isso. E estava cansada. O sonho da noite anterior tinha drenado
sua energia. E obviamente gasto sua paciência também. Precisava dormir. Então voltaria a ser como era outra vez.
Brighid respirou fundo e se concentrou em relaxar a tensão do corpo. A exaustão a arrastou e o sono veio fácil. O último pensamento coerente foi o de que faria um
esforço consciente para aceitar o relacionamento que estava se formando entre o amigo e Ciara. Cuchulainn merecia ser feliz...
O sonho começou num lampejo de movimento.
- Corra comigo, Brighid! - gritou Cuchulainn enquanto passava por ela no capão. O sorriso que exibiu por cima do ombro era provocador. - Ou ao menos tente me alcançar,
velhota!
Automaticamente Brighid se concentrou e disparou, cortando o chão macio da Planície dos Centauros com seus cascos. As passadas longas logo comiam a distância entre
ela e o cavalo de Cuchulainn. Estava bem no rastro dele. Cuchulainn se deitava sobre o pescoço do capão, atiçando-o. Sentindo a aproximação dela, o cavalo encontrou
nova explosão de velocidade. Com um sorriso ardoroso, Brighid ampliou as passadas, facilmente mantendo-se lado a lado com o animal.
Cuchulainn deixou de prestar atenção no capão apenas o suficiente para lhe sorrir.
- Mostro a você quem é velhota! - gritou Brighid ao vento. Então recorreu à vasta força dos centauros. Passou voando por cavalo e cavaleiro como se fossem uma equipe
de garoto e pônei.
Brighid corria pela pura alegria de correr.
A pradaria passava com tamanha velocidade que era como se flutuasse num mar de relva. O vento estava morno, mas de encontro à sua pele afogueada era um bálsamo fresco.
Os poderosos músculos equinos das pernas ardiam, mas era uma sensação que ela recebia com prazer. A respiração ficou profunda à medida que os pulmões, que eram mais
fortes que os de um humano, se enchiam e expandiam para sustentar um corpo que era a perfeita mistura da beleza humana com a força equina.
Pela Deusa, tinha esquecido o quanto adorava correr pelo solo de sua terra natal! Partholon era um país próspero, bonito, mas não apelava à sua alma como a Planície
dos Centauros. Era como se pudesse correr para sempre, esquecendo tudo... todos...
Talvez se corresse bastante pudesse encontrar uma maneira de retornar ao lar e reconciliar suas crenças com as da família. Se fizesse isso, talvez ficasse livre
da incômoda sensação de viver como forasteira, uma criança que não fora trocada ao nascer, mas ao encontrar a garota humana depois do acidente.
As passadas ligeiras de Brighid falsearam.
Não pensaria naquilo. Não podia pensar naquilo - não num sonho. E de qualquer forma, não deveria estar concentrada em ajudar Cuchulainn? Franziu o cenho e desacelerou.
Onde estava o guerreiro? Brighid olhou para trás por cima do ombro. A pradaria estava vazia, exceto pelo capim alto, que ondulava sedutoramente, chamando-a com suas
secretas melodias sussurrantes.
Brighid parou de súbito. Ótimo. Devia estar ajudando Cuchulainn, mas ficou tão envolvida no próprio sonho que de alguma forma o perdera. Soprou um suspiro frustrado.
Pense em Cuchulainn! Brighid fechou os olhos, bloqueando a visão de sua amada pradaria, e pensou no guerreiro - ou, mais especificamente, pensou na parte descuidada
e feliz da alma de Cuchulainn que visitou seus sonhos.
Ouviu uma risada e salpicos d'água antes de abrir os olhos.
- Caçadora! Queria que decidisse onde ficaremos. Dá tonturas ser arrastado de um lugar para outro.
Brighid piscou os olhos. Tinha ido da pradaria para a floresta no espaço de uma respiração. O dia ainda estava quente, mas a luz indireta do sol era filtrada pela
copa verde, então a grossa greda de folhas do chão da floresta estava manchada e brumosa. Demorou um tempo para que a visão dela se ajustasse. Mais salpicos vieram
do outro lado do monte de rochas cobertas de musgo, logo adiante. Totalmente confusa, trotou em frente e o lago alimentado por cachoeiras ficou à vista. Cuchulainn
estava no meio, a água cobrindo-o até a cintura. O peito estava nu e ele parecia jovem e encharcado com o cabelo úmido emplastrado na cabeça.
Brighid estava para rir quando reconheceu onde estavam. Era a piscina de banho que ela, Elphame e Brenna descobriram durante as primeiras reformas do Castelo MacCallan.
As três tinham tomado banho ali com frequência e Brenna lhe contara que aquele era um local especial de encontro para ela e Cuchulainn. O estômago de Brighid apertou.
Brenna tinha sido morta ali.
- Devia saber que desvendei seus motivos. Estava com medo de perder a corrida para mim, então sonhou conosco aqui.
- Perder a corrida? Com você e aquele seu capão gordo? - zombou ela, usando o aborrecimento para encobrir a tensão desconfortável que zumbia dentro dela. - Ridículo.
- Ah, está bem. Isso só deixa uma razão para que sonhe conosco aqui. - Ele estendeu os braços, palmas abertas, convidando-a para um abraço molhado. - Queria que
eu ficasse nu.
Brighid lhe deu uma olhada, enojada.
- Cuchulainn, você está iludido.
- Ei, o sonho é seu.
- E você não está nu. Ou não ficará por muito tempo. - Apontou para as roupas que estavam jogadas ao acaso sobre as rochas. - Vista-se. - Com uma chicotada do rabo,
virou-se de costas para ele. - Alguém já lhe disse que se preocupa demais com sexo? - comentou ela acima dos ruídos da saída dele da piscina.
- Talvez El tenha dito isso uma vez ou duas. Ela está enganada, claro - disse enquanto usava o kilt para secar o corpo.
- Verdade? - disse Brighid com sarcasmo.
- Verdade. Ela não compreende que minha paixão pela vida e minha paixão por mulheres são pedaços de um todo. Eu escolhi viver a vida em plenitude, desfrutando toda
sua riqueza e beleza. Mulheres, ou sexo, como você colocou, são uma parte natural de vivenciar a plenitude de uma vida bem vivida.
As palavras arrepiaram a espinha de Brighid.
- Se deixasse de desejar mulheres, o que isso significaria? - perguntou-lhe.
- Que a Deusa me ajude! Significaria que estou morto! - Ele riu animadamente. - Pode se virar agora, caçadora.
Brighid virou-se para encará-lo, um franzir de preocupação enrugando a testa.
- Sério, Cuchulainn. Está me dizendo que seu amor por mulheres é um reflexo do quanto ama a vida?
- Sim. - Ele usou a ponta do kilt para secar o rosto. - Por que todas essas perguntas?
- É o meu sonho. Posso perguntar o que quero - murmurou ela, perturbada.
- Arrã! - resmungou o guerreiro. - Você me surpreende, Brighid. Pensei que relaxasse um pouquinho no sono. Mas acho que isso prova que sonhos são na verdade meros
reflexos da vida.
- O que isso quer dizer?
Cuchulainn deu de ombros.
- Você é sempre tão tensa. Lembra uma sentinela que está eternamente de guarda.
- Que coisa absurda de se dizer! - esbravejou Brighid.
- Aceite... - Cuchulainn se esparramou no chão, as costas recostadas no rochedo coberto de musgo - ... você nunca relaxa.
- Cuchulainn, não estamos falando de mim. Estamos falando de você.
- Tudo bem, tudo bem. - Ele ergueu as mãos numa rendição zombeteira e sorriu. - Mas ao menos gostaria de saber por que está tão obstinada a falar sobre mim.
- Porque é você que fica aparecendo nos meus sonhos! - revelou ela.
- E acha que sei o porquê? - Ele deu uma risadinha. - Não tenho nada a ver com isso. Admito que você possui uma rara beleza, Brighid, mas se fosse para entrar de
propósito nos sonhos de uma dama, acredito que minha escolha seria menos... - hesitou, os olhos cintilando de modo travesso enquanto percorriam seu corpo equino
- ... peluda.
Brighid enrijeceu.
- Não sou peluda.
Cuchulainn riu de novo.
- Devia ver a expressão no seu rosto! É como se eu tivesse dito que os cervos criaram asas e que agora terá que rastreá-los no ar.
- Não posso rastrear algo que voa - respondeu ela automaticamente.
Como uma vela derretida, o sorriso franco que era parte tão natural de Cuchulainn desapareceu.
- Eu... Eu preciso ir agora. - Ficou de pé e olhou ao redor como se não tivesse certeza de onde estava.
- O que foi, Cuchulainn? - Mas não precisava perguntar - sabia o que havia de errado com ele.
O fragmento alegre da alma de Cuchulainn que estava diante dela estava recordando.
- Não... - Mesmo enquanto balançava a cabeça em negação, seguia lenta e inexplicavelmente para longe da piscina na direção da trilhazinha áspera que seguia através
da floresta até a estrada para o Castelo MacCallan. Cuchulainn deu dois passos pesados antes de parar. Quando olhou novamente para Brighid, o rosto estava tão pálido
que, pela primeira vez, ele parecia mais espírito que homem. - Isso é apenas um sonho. Pela manhã acordarei no Castelo MacCallan. Estamos preparando os aposentos
do chefe para Elphame. Você, Brenna e eu.
Brighid se aproximou do espírito despedaçado de Cuchulainn devagar. O espaço diante dele era uma parte bem comum da floresta - apenas um caminhozinho através de
uma alameda de plantas em forma de guarda-chuva e flores silvestres. Mas ela reconheceu o lugar. Foi onde a híbrida louca, Fallon, havia matado Brenna enquanto a
pequena curandeira esperava por Cuchulainn. Há duas luas Brighid tinha liderado o grupo de resgate a partir daquele mesmo ponto. Seguira os rastros de Fallon, adentrando
bastante na floresta até os vestígios da criatura desaparecerem porque a híbrida usara suas asas para apanhar correntes de ar e planar. Como Brighid explicara ao
guerreiro perturbado naquele dia, uma caçadora não podia rastrear algo que voava...
- Meu amigo, nós... - começou Brighid.
- Não! - Cuchulainn a cortou. Afastou-se dela, depois sua expressão horrorizada mudou. Forçou uma risada nos lábios pálidos que estavam retorcidos mais numa careta
do que num sorriso. - Isso é um engano... Não visitei seu sonho... Fiquei preso no seu pesadelo...
- Cuchulainn! - Brighid estendeu a mão para ele num gesto que pretendia chamá-lo de volta, mas Cuchulainn se esquivou, recuando ainda mais adentro da floresta.
- Não. Não posso. É hora de acordar, caçadora...
O corpo do guerreiro desbotava à medida que se misturava às sombras das árvores.
- Caçadora...
Os olhos de Brighid abriram.
- Cuchulainn, espere! - Ela estendeu a mão e desta vez conseguiu agarrá-lo.
Agindo por instinto, Cuchulainn girou puxando a adaga de arremesso do cinto e colocando-se depressa numa posição defensiva, a lâmina erguida em prontidão. Quando
percebeu o que atacou sua perna, baixou a adaga.
- Pela Deusa, Brighid! Quase consegue ser esfaqueada!
- Desculpe - murmurou ela, lutando para se orientar. O que tinha acontecido? Onde estavam agora?
- Quer me soltar?
Ela olhou para sua mão, que ainda estava apertando o couro macio da bota dele.
- Brighid? - Cuchulainn se agachou, espiando na tenda a silhueta inclinada da caçadora. - Sente-se mal?
- Estamos com os híbridos, não muito longe da Passagem Guardião? - A voz dela soava estranhamente sem fôlego, como se tivesse acabado de concluir uma maratona. -
E estamos acordados.
- Sim, claro, para as duas perguntas! O que há de errado com você?
Brighid soltou-lhe a perna, esfregou os olhos, depois afastou para trás a longa massa loiro-prateada dos cabelos.
- Um pesadelo. Só um pesadelo. Você me acordou quando passou por aqui.
Ainda grogue, desvencilhou-se das peles grossas e escapou da pequena tenda. Sacudiu-se como se tirando água da pelagem antes de olhar o céu.
- Deveria ter me acordado antes. A lua já passou do ápice.
Cuchulainn lhe deu uma última olhada de escrutínio antes de encolher os ombros.
- Estava vindo mesmo acordá-la. - Passou por ela e sentou dentro da tenda, arrancando as botas sujas de viagem. - O fogo precisa ser alimentado. Tudo o mais está
quieto e supervisionado.
- Falou com Ciara. Os adultos estão preparados para amanhã?
- Ciara e eu conversamos brevemente. Está tudo bem.
Brighid tentou ver a expressão de Cuchulainn dentro da tenda escura. A voz não dava qualquer indício de emoção. Ele soava cansado, tão interessado em Ciara quanto
em abastecer o fogo.
Mas parte de sua alma dissera com clareza que seu amor pelas mulheres e o amor pela vida estavam entrelaçados. Sabendo disso, não era preciso possuir os instintos
de uma xamã para saber que seria um passo positivo de cura para Cuchulainn demonstrar interesse numa mulher - alada ou não.
- Então conversou com Ciara?
Cuchulainn resmungou uma afirmativa e depois ficou em silêncio.
Brighid revirou os olhos.
- E ela acha que o acampamento está pronto para entrar em Partholon?
Outro resmungo afirmativo.
A caçadora ficou do lado de fora da tenda escutando os sons de Cuchulainn acomodando-se nas peles. Deveria lhe dizer algo. Encorajá-lo a conversar com Ciara com
mais frequência. Deixá-lo saber...
- Brighid, por que está aí espiando?
A voz rude a fez pular de culpa:
- Não estou espiando!
- Então o que é? - Ele enunciou cada palavra cuidadosamente, como se ela fosse uma das crianças aladas.
- A dança de Ciara foi bem bonita - comentou, sentindo-se desajeitada e óbvia.
- Ela recebeu muitos dons da Deusa - disse ele.
- Acho que nunca vi uma dança executada tão bem - continuou Brighid.
Cuchulainn resmungou.
- E você?
- Foi um tributo adequado a Epona e Terpsícore.- As palavras terminaram num bocejo.
- Foi bonito - disse Brighid.
- Como você já disse. - Cuchulainn bocejou novamente. - Brighid, esta é mais uma das suas tentativas de cura da alma?
- Não tenho certeza - disse ela com tristeza.
- Posso dormir enquanto decide?
- Sim. Descanse bem, Cuchulainn.
Brighid se retirou para a fogueira. Enquanto alimentava a labareda que ardia baixo, chamou-se por várias variações criativas para idiota atrapalhada, fracassada
e desmiolada.
Quinze
- É ESTRANHO O quanto estão quietas - disse Brighid a Cuchulainn.
O guerreiro deu uma olhada por cima dos ombros para o grupo calado de viajantes em miniatura.
- Nunca as vi assim - disse ele.
- Não cantaram durante a manhã inteira.
- E mal falaram uma palavra durante a refeição do meio-dia.
- Acha que estão assustadas? - perguntou Brighid. Ficava com uma sensação de vazio no estômago ao pensar nas crianças tão assustadas a ponto de silenciarem a animação
natural.
- Não precisam ter medo. Não deixaremos nada de mal acontecer com elas - disse Cuchulainn em poucas palavras.
- Você sabe disso e eu sei disso, mas talvez devêssemos avisar a elas - disse Brighid.
Cuchulainn resmungou e fez cara feia.
- Não quero preocupá-las.
Ela bufou e inclinou a cabeça para a multidão silenciosa.
- Estão quietas. Elas nunca ficam quietas. Acho que podemos presumir com segurança que já estão preocupadas.
- Você provavelmente tem razão.
Como Cuchulainn não disse mais nada, ela insistiu: - Deveríamos conversar com elas. Antes que fiquem frente a frente com os guerreiros do Castelo Guardião.
- Concordo. Vamos reuni-las na boca da Passagem Guardião. Pode falar com elas lá - disse ele.
- Eu? - As sobrancelhas dela se ergueram. - Não vou falar com elas!
- Mas acabou de dizer... - começou ele, mas Brighid o cortou com movimento rápido da mão.
- Não! Não eu. Elas só me conhecem há poucos dias. Você conviveu com elas. As crianças o idolatram, confiam em você. Se disser alguma coisa, acreditarão em você.
Sou apenas a centaura caçadora - você é o guerreiro delas, o Cuchulainn.
Cuchulainn franziu a testa.
- Se não acredita que é verdade, pergunte a Ciara - disse ela.
A ruga se aprofundou, mas Cuchulainn permaneceu em silêncio. Como um grande urso zangado, pensou Brighid. Estar com a parte alegre em seus sonhos fez com que percebesse
o quanto sentia falta do velho Cuchulainn. O guerreiro estava tão soturno, silencioso e...
- ... Tenso - disse Brighid em voz alta, encontrando o olhar questionador de Cuchulainn. - Isso mesmo, você está tenso demais. E você disse que eu nunca relaxo.
- A caçadora bufou. - Você é que entendeu tudo errado.
- Do que está falando? Não falei que nunca relaxa.
- Sim, falou sim. Na noite passada.
- Mal conversamos na noite passada.
- Na verdade, conversamos um bocado. E na noite anterior também. - Brighid respirou fundo, esperando que os instintos estivessem guiando sua língua porque ela realmente
não tinha ideia do porquê de repente decidiu contar a Cuchulainn sobre os sonhos. - Você me visitou. Duas vezes. Nos meus sonhos.
Cuchulainn enrijeceu, seu rosto era uma máscara cuidadosa de indiferença.
- Não era eu.
- Ah, era definitivamente você. Ou, mais corretamente, era o você que existia antes da morte de Brenna.
O rosto inexpressivo do guerreiro empalideceu.
- Então encontrou aquilo - a parte despedaçada da minha alma. - Ele a olhou de relance, mal encontrando seu olhar. - Não devia trazer aquilo para cá? Mandar aquilo
retornar? Qualquer coisa?
- Antes de tudo, Cuchulainn, não é aquilo. - Ela meneou a cabeça. - Parece errado chamá-lo assim. É você.
- Eu sou eu.
- Não - disse ela calmamente. - Não, Cuchulainn, não é não. O que você é agora é apenas um pedaço de você.
O guerreiro resmungou, mantendo os olhos focados na trilha rochosa à frente deles.
Brighid suspirou:
- E o homem que me visitou nos sonhos era apenas parte de você também. - Ela se calou, sem saber como contar, então deixou escapar um suspiro frustrado. Não sabia
o que era certo ou errado. Ajude-me, Epona, rezou em silêncio. Não me deixe lhe provocar mais dor. - O Cuchulainn dos meus sonhos acha que ainda está no Castelo
MacCallan. Acredita que é a noite seguinte ao início da preparação dos aposentos de Elphame.
Com isso, a expressão vazia de Cuchulainn vacilou e a voz se tornou dura com o sentimento represado: - Ele acha que Brenna ainda está viva?
Brighid sorriu com tristeza.
- Não exatamente. Uma parte dele sabe que não - só está negando isso. Sem a força que você tem dentro de si agora, ele é apenas um jovem animado e amante de diversão
- completamente incapaz de lidar com desapontamento, tristeza ou dor. Não está inteiro - é só uma parte sua fragmentada.
- E sem ele não posso suportar viver a vida.
- Você precisa querer essa sua parte de volta, Cuchulainn. Não posso alcançá-lo sozinha. Toda vez que tento, ele escapa - disse ela.
- Talvez essa parte minha não queira voltar para a realidade. Não posso culpá-lo. Se eu pudesse rejeitar a morte de Brenna, eu faria o mesmo.
- Faria? - perguntou Brighid. - Acho que não. Aquela sua parte cheia de vida não apenas rejeitou a morte de Brenna, também escolheu esquecer o amor que encontrou
com ela. É o que deseja, Cuchulainn? Esquecer Brenna completamente?
- Claro que não! - explodiu ele. - Sabe muito bem disso.
- Então precisa tentar com mais afinco!
- Estou fazendo tudo o que posso! - rosnou ele.
O agitar de asas anunciou a chegada de Ciara, então Brighid fechou bem a boca. A xamã olhou da caçadora para Cuchulainn.
- Vocês dois discutem como se estivessem casados há anos - disse ela.
- Que a Deusa me livre! - exclamou Brighid.
O resmungo de Cuchulainn tinha animação consideravelmente maior que o comum. A mulher alada riu.
- Vocês até protestam como um casal. Mas não vim aqui falar sobre o relacionamento de vocês. Estamos nos aproximando da entrada da passagem. Antes de começarmos
a travessia até Partholon, deveríamos tirar um momento para suplicar auxílio e proteção a Epona.
- Como sabe que estamos perto da passagem? Esteve aqui antes? - perguntou Brighid.
- Claro que não. Só sei disso por causa das histórias de nossas mães. - Ela abriu a mão, apontando num gesto vasto o cenário ao redor deles. - Nos contaram que as
rochas ficam mais vermelhas, mais sangrentas, quando se está perto da Passagem Guardião. Nossas ancestrais nos avisaram para que ficássemos longe do leste. Para
fugirmos das rochas escarlates e da passagem que as cuspia de Partholon.
Cuchulainn olhou ao redor, aborrecido por estar ocupado discutindo com Brighid para não notar a mudança nas rochas dentadas que flanqueavam as montanhas. Ele sabia
que a intensidade na cor significava que a passagem estava próxima.
- Faz sentido - dizia Brighid pensativa. - Claro que as mulheres avisariam que ficassem bem longe da Passagem Guardião. Temeriam pela captura de vocês.
- E pelas nossas mortes - disse Ciara tranquilamente.
- Será diferente agora - afirmou Cuchulainn.
O sorriso brilhante e sincero de Ciara retornou.
- Claro que será! Temos vocês dois, e o sacrifício de sua irmã. Vai ficar tudo bem.
Cuchulainn resmungou, desejando que ela não parecesse tão ingenuamente confiante. Partholon tinha passado mais de uma centena de anos odiando os fomorianos. Seria
necessário mais do que a palavra da irmã e a presença de um guerreiro e uma caçadora para conquistar um povo que ainda lembrava muito bem da chacina perpetrada por
demônios alados.
- Cuchulainn e eu estávamos justamente falando sobre a travessia. Achamos que Cuchulainn deve conversar com as crianças - tranquilizá-las - antes de seguirmos adiante.
O sorriso de Ciara ficou radiante.
- Elas adorariam, Cuchulainn! Vou avisá-las. - A mulher alada apertou o braço do guerreiro antes de sair apressada.
- Aparentemente foi a decisão certa - disse Brighid com forçada indiferença. O sorriso de Ciara e a maneira íntima de tocar Cuchulainn eram bons, disse a si mesma;
Cuchulainn precisa do toque de uma mulher para sentir a plenitude da vida.
- Ali - disse o guerreiro, parando seu capão. Apontou para um talho entre duas rochas vermelho-escuras. Nenhuma vegetação crescia ao redor. As laterais eram escarpadas
e o vento uivava assustador através do buraco. - É a entrada para a Passagem Guardião e o caminho para Partholon.
Cuchulainn parou na boca da passagem encarando os neofomorianos que o observavam com atenção. Olhou para o céu. O sol tinha passado da posição do meio-dia, mas ainda
estava alto no céu cinza-azulado. Seria o tempo exato para alcançarem o Castelo Guardião antes do anoitecer. Seu olhar buscou a multidão silenciosa. Percebeu que
provavelmente era imaginação, mas até as cabras pareciam submissas.
- Vá em frente - sussurrou Brighid, chegando perto dele. - Estão esperando, e estamos ficando sem tempo.
Ele a encarou com cara feia, mesmo sabendo que o que ela dizia era verdade. De fato, a caçadora estava se provando perturbadoramente certa a respeito de muitas coisas.
A parte despedaçada da minha alma tem visitado os sonhos dela. Saber disso ainda o impressionava. Então ela estava certa quanto a isso também. É por isso que não
consigo superar a morte de Brenna. É por isso que me sinto tão vazio e perdido. O que significava que se ela estava certa sobre isso, provavelmente estava certa
sobre se curar quando sua alma estivesse inteira mais uma vez. Então poderia viver sem Brenna. Talvez até aprendesse a ser feliz novamente.
Era o que queria?
- Cuchulainn! - sussurrou Brighid.
Pela Deusa! Estava devaneando enquanto o grupo inteiro o fitava, esperando que ele falasse. Com a alma partida ou não, precisava se recompor - figurativamente, se
não literalmente.
Limpando a garganta, Cuchulainn deu um passo à frente.
- Saíram-se muito bem na nossa jornada. A caçadora e eu estamos muito orgulhosos da força e resistência de vocês.
Houve um farfalhar alegre de asas e os olhos brilhantes das crianças sorriram para ele. Cuchulainn encontrou aqueles olhares, focando de criança em criança, fazendo
cada uma sentir que ele tinha escolhido as palavras especificamente para ela: - Sabem que Fallon ficou louca e matou Brenna?
As crianças responderam com um assentimento vigoroso das cabecinhas.
- E que Fallon está aprisionada no Castelo Guardião, esperando sua execução. - Ele mal parou para que assentissem. - Então devem estar preparados para que os guerreiros
no castelo desconfiem de vocês. - Em vez das negativas e dos vários graus de reações preocupadas que esperava, as crianças ficaram silenciosas outra vez. Os olhos
não o abandonavam. - Mas não quero que sintam medo.
Brighid estava estudando as crianças enquanto Cuchulainn falava, mas suas últimas palavras atraíram seu olhar. Ele soava tão gentil - tão parecido com o velho Cuchulainn
-, o homem que era mais do que apenas um guerreiro talentoso. Ele possuía muito mais por dentro, razão pela qual Brenna finalmente se permitira amá-lo. E Brighid
surpreendeu-se ao pensar que, por ainda soar tão gentil, apesar de parecer tão cansado da vida, compreendia por que a amiga fora incapaz de ignorar Cuchulainn.
- Estarei com vocês - prosseguia Cuchulainn -, assim como Brighid. Mas vocês têm mais do que isso - mais do que nossa proteção poderia sequer conseguir. Vocês têm
a bondade interior que os guerreiros do Castelo Guardião enxergarão. - Cuchulainn respirou fundo e passou a mão pelos cabelos despenteados. - Sei disso porque já
fui como eles - pior, na verdade. Quando vim até vocês, estava querendo culpá-los pela morte de Brenna. Queria encontrar criaturas bárbaras nas quais descontar meu
ódio. - A expressão dura se suavizou. - Mas encontrei vocês. E... - O guerreiro fraquejou, passando a mão pelo rosto quando as emoções que manteve sob controle durante
semanas o dominaram. - E eu...
- Não se preocupe, Cuchulainn! - Uma vozinha ecoou da frente do grupo quando Kyna pulou de pé. - Nós entendemos. Você não nos conhecia na época.
- É, você não nos conhecia na época - ecoou Liam.
Então, como uma maré quebrando barreiras, todas as crianças estavam de pé correndo na direção do guerreiro solitário. Brighid bufou e recuou depressa quando elas
o engolfaram, afagando-o com suas mãozinhas e oferecendo palavras infantis de conforto. Cuchulainn ficou em pé por um momento, um gigante em meio a silhuetinhas
aladas, olhando impotente para o grupo. E então, com um profundo suspiro, agachou e abriu os braços para elas. Incrédula, Brighid observou lágrimas silenciosas fazerem
trilhas úmidas pelo rosto de Cuchulainn.
- E assim começa - disse Ciara.
A caçadora não sabia se era bom ou mau sinal que a habilidade assustadora de Ciara de aparecer sorrateira tivesse começado a lhe parecer normal.
- O que está começando? - perguntou Brighid.
- A cura. Ele está se permitindo sentir novamente.
- A parte da alma dele que está quebrada tem me visitado nos sonhos - disse Brighid, mantendo a voz bem baixa para que apenas a xamã pudesse ouvir.
- Isso não me surpreende. Você e ele possuem uma ligação forte. Seria fácil para Cuchulainn ouvir seu chamado, e natural que respondesse.
Brighid se voltou para Ciara.
- E quanto a você e ele? Que tipo de ligação vocês dois possuem?
Ciara sorriu.
- Não sei se chamaria isso de ligação. Cuchulainn aprecia a graça e a beleza feminina - só isso.
Brighid estreitou os olhos diante da resposta petulante.
- Não o magoe.
A risada de Ciara foi encantadora e musical.
- Não precisa se preocupar com que eu magoe seu guerreiro, caçadora, e algum dia, em breve, perceberá isso. - Ainda rindo, a xamã bateu as mãos e pôs o grupo de
crianças em ordem: - Vamos pedir a bênção de Epona.
As crianças dispersaram e Ciara passou por elas, sorrindo para Cuchulainn ao tomar o lugar do guerreiro no centro do círculo. Cuchulainn assentiu respeitosamente
para Ciara antes de se afastar e ficar de pé ao lado de Brighid. Secou o rosto, e depois passou as mãos úmidas de lágrimas pelos cabelos.
- Você está bem? - perguntou ela.
Ele a encarou e encolheu os ombros timidamente.
- Não planejava ficar emotivo.
- Acho que era exatamente o que as crianças precisavam.
Ele ergueu as sobrancelhas.
- E eu? Era exatamente o que eu precisava também?
Quando Brighid abriu a boca para responder, Ciara ergueu o rosto ao céu e evocou o nome da Deusa: - Abençoada Epona!
O nome da Deusa estremeceu pelo corpo de Brighid - como calor e gelo preenchendo-a ao mesmo tempo. A caçadora ofegou, e quando falou, as palavras vieram mais de
Epona do que dela mesma: - Sim, o que você precisa está aqui também. Verá isso na hora certa.
Cuchulainn encarou a centaura. O poder em suas palavras era quase visível no ar entre eles. Como quando Elphame é tocada pela Deusa.
De repente, como uma pintura ganhando vida, os braços e as asas de Ciara se ergueram acima da cabeça e ela rezou numa voz que era doce e límpida: Entramos hoje em
Partholon
com a força de Epona;
através da luz do seu sol,
da radiância da sua lua,
do esplendor do seu fogo,
da agilidade do seu vento,
da profundidade do seu mar
e da estabilidade do seu chão.
Caminhamos com nossa Deusa
nos cercando e tocando,
nos protegendo e amando.
Salve Epona!
- Salve Epona! - berraram as crianças - Salve Epona!
Cuchulainn podia sentir o calor da magia às suas costas, mas não se virou para unir-se à xamã e seu povo em louvor. Só continuou a encarar a caçadora, hipnotizado
pela luz branco-prateada que coloria suas palavras e se assentava ao redor do seu corpo como um véu diáfano. Brighid retribuiu o olhar, os olhos violeta cheios de
assombro.
- Falei as palavras dela - sussurrou Brighid para Cuchulainn.
- Eu sei. Ainda posso ver a mão da Deusa sobre você - disse ele.
Brighid estremeceu, e então a presença de Epona desvaneceu.
- Por quê? - A voz de Brighid estava rouca de emoção. - Por que Epona usou a mim e não Ciara para falar com você? Não sou xamã, Cuchulainn!
- Não sei, Brighid. Não finjo entender os desígnios de Epona.
Mas algo se agitou bem no íntimo do guerreiro. O leve sopro de uma ideia, mais insubstancial que névoa, sussurrou por sua alma despedaçada: Se eu pudesse, escolheria
Brighid para me falar as palavras de Epona.
Talvez estivesse começando a compreender os desígnios de Epona...
Dezesseis
EMBORA FOSSE MAIS amplo e fácil de atravessar que a entrada secreta que Lochlan e seu povo tinham descoberto, cruzar a Passagem Guardião estava longe de ser fácil.
Adentrar o grande ventre de cor escarlate fora como caminhar numa caverna, ou, pensou Brighid com inquietação, uma tumba ensopada de sangue. A passagem variava em
largura, desde uma estreiteza pela qual um único cavalo mal conseguia passar a áreas de espaço mais amplo que poderia incluir vários guerreiros montados. Mas estreita
ou ampla, a passagem era um desafio. Serpeava como uma garganta retorcida. Rochas dentadas entulhavam o chão, que era feito de xisto - escorregadio e difícil o bastante
para que Brighid se concentrasse em não pisar em falso. E era difícil para ela se concentrar. Ainda estava brigando com o choque. Era inacreditável que Epona tivesse
falado através dela. Mas não havia engano. As palavras que Brighid dissera a Cuchulainn não eram suas - e o poder que ondulara por seu corpo era resultado do toque
de Epona.
Queria que Elphame estivesse com eles. A amiga empunhava o poder da Deusa com facilidade, naturalidade. El podia aconselhá-la, ou, melhor ainda, se El estivesse
ali, então Epona provavelmente a teria usado como canal, em vez de uma caçadora que não tinha vontade de ser a boca de uma deusa.
Brighid franziu o cenho e olhou rapidamente ao redor, preocupada que alguém ouvisse seus pensamentos blasfemantes. Não pretendia ser infiel a Epona. Mas mal conseguia
lidar com os problemas de sua própria vida. Seria uma má escolha para o dom do toque de uma deusa, era imperfeita demais.
- As rochas estão mudando de cor. Devemos ter cruzado a metade do caminho - disse Cuchulainn.
A passagem tinha se alargado e os dois caminhavam lado a lado. Brighid ergueu os olhos para as paredes íngremes que os flanqueavam. A cor de sangue estava dando
espaço para veios marmóreos de cinza.
- Dessa vez não estava ocupado discutindo com você, então notei a mudança de cor - disse ele com um leve sorriso. - Quando todo o vermelho desaparecer, teremos chegado
ao Castelo Guardião.
- Não tinha percebido que as rochas mudaram de cor outra vez - disse Brighid, contente por ter algo inofensivo sobre o que conversar.
- É estranho. Há tanto vermelho nas Montanhas Trier, exceto na área ao redor do Castelo Guardião. Lá tudo é cinza. Treinei lá por quatro anos, e durante todo o tempo
em que permaneci nunca me acostumei à severidade do castelo e da área ao redor.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Ah, eu sei, guerreiros deveriam florescer em cenário austero. O lema oficial é de que isso é encorajador no aprimoramento da concentração na arte da esgrima e
nas exigências físicas da batalha. - Cuchulainn resmungou: - Achei tudo chato e deprimente, encorajador apenas para me fazer trabalhar com afinco para que eu fosse
recompensado com visitas frequentes à minha casa, onde existiam benefícios estéticos mais agradáveis. - Ele deu uma rápida risada. - Suponho que devo a base das
minhas lendárias habilidades com a espada à minha aversão juvenil à paisagem sombria.
Brighid inclinou a cabeça e deu-lhe um olhar apreciativo.
- Isso parece algo que o velho Cuchulainn diria.
Cuchulainn suspirou:
- Eu sei. Eu... - Ele remexeu os ombros. - Depois que falou dos sonhos, eu me senti diferente. - Ergueu os olhos para ela. - Você tornou a ideia de uma alma despedaçada
mais tangível. E se eu acreditar nisso, talvez consiga consertá-la. Quero dizer, nós, talvez nós possamos consertá-la. - Calou-se novamente. - Daria praticamente
qualquer coisa para me sentir normal de novo. Tinha começado a acreditar que a única maneira de escapar dessa dor interminável seria desistir da minha vida. Hoje,
pela primeira vez desde a morte de Brenna, acho que pode existir uma maneira de viver novamente.
O rosto de Brighid corou num fluxo de alívio.
- Estou contente, Cuchulainn. - Foi tudo que conseguiu exprimir.
- Cuchulainn! Brighid! - Ciara chamou e eles pararam, esperando que a mulher alada os alcançasse. - Sei que estamos com pouco tempo, mas as crianças gostariam de
uma pausa. Estão cansadas hoje.
- Seria bom dar uma breve parada. Mas uma é tudo o que podemos ter. Pode avisar a elas que já passamos da metade do caminho, isso deve sustentar a força delas -
disse Cuchulainn.
O sorriso de dentes afiados de Ciara cintilou brilhante e feliz.
- Então avise você, Cuchulainn. Vindo de você, sei que vai reanimá-las.
- Vá em frente - disse Brighid depressa. - Vou explorar mais adiante. Notei o rastro de bodes selvagens. Seria bom se pudéssemos entrar no Castelo Guardião com mais
do que apenas bocas famintas para alimentar.
- Boa ideia - disse Cuchulainn. Quando a caçadora se virou para partir, ele lhe tocou o braço. - Seja cuidadosa. As rochas são escorregadias. Meu capão quase caiu
várias vezes hoje.
Brighid encobriu a surpresa com o toque e as palavras com um delicado erguer das sobrancelhas e um franzir da testa.
- Não sou seu capão gordo e desmiolado. - Ela atirou o cabelo para trás e saiu trotando.
- Ele não é gordo! - gritou-lhe Cuchulainn, sorrindo.
- Você é protetor com ela, Cuchulainn - disse Ciara tranquilamente.
O olhar dele se voltou para a mulher atraente ao seu lado. Era simplesmente uma das mulheres mais bonitas que já tinha visto. E não tinha notado realmente sua delicadeza
até ela dançar na noite anterior. Então sua mente processou as palavras dela, e a reação foi automática: - Sim, sou protetor com ela. Brighid é parte do clã MacCallan.
Mas isso não significa que a caçadora não sabe cuidar de si mesma. Ela é uma excelente guerreira também.
O sorriso de Ciara se ampliou.
- E você respeita isso nela.
- Claro - respondeu ele.
- Ótimo. Estou contente por ela ter você como amigo. No futuro, ela precisará dos amigos por perto.
Os olhos de Cuchulainn se estreitaram.
- O que está me dizendo, xamã? Viu perigo para a caçadora?
- Meu dom não é o da premonição. Pelo que entendi, quando era tocado pelo reino espiritual, seu dom de premonição era forte. Muitas vezes soube de eventos antes
que acontecessem.
Cuchulainn resmungou um "sim" áspero. Se o que ela dizia sobre Brighid não fosse tão preocupante, teria cortado logo aquela conversa. Bonita ou não, Ciara era uma
xamã. E Cuchulainn não queria assunto com o mundo espiritual ou seus emissários. Era bem difícil lidar com Brighid e toda a história de alma despedaçada. Mas isso
era diferente. Brighid era como ele. Também não se sentia confortável mexendo com o reino espiritual.
Ciara não ficou abalada com a resposta rude e o comportamento instantaneamente defensivo.
- Minhas premonições nunca foram tão claras quanto as suas. Só tenho pressentimentos vagos, e às vezes o instinto me leva a dizer ou fazer coisas, as razões só ficam
claras no futuro. Tive um pressentimento sobre a caçadora - que a devoção dos amigos terá papel importante nas areias mutáveis de sua vida.
- Então ela está com problemas?
- Não sei dizer. Só posso pressentir que ela precisará dos amigos, ou ao menos de um amigo em especial, bem ao lado dela.
Cuchulainn assentiu num movimento rígido e controlado da cabeça.
- Lembrarei disso, xamã.
- Fico contente. - O sorriso contagiante de Ciara estava de volta. - Comecei a me importar muito com sua caçadora. Ela é uma centaura admirável.
Cuchulainn resmungou novamente:
- Venha, vamos voltar para as crianças. Elas ficarão contentíssimas em ouvir que estamos quase nas fronteiras de Partholon.
Cuchulainn desmontou e guiou o capão até as crianças. Mas sua mente não estava no que diria a elas. Sua mente estava na caçadora loiro-prateada. Ficaria de olho
para que nada lhe acontecesse. Sua irmã o amarraria de cabeça pra baixo e o estriparia se deixasse algum mal acontecer à amiga.
Um calafrio passou por sua pele. Não. Nada aconteceria a Brighid. Ele garantiria isso.
Pedregulhos deslizaram pela lateral da parede íngreme à direita. A caçadora fez cara feia. Escarpado demais. As paredes da passagem eram perfuradas com trilhas estreitas
que serpeavam nas fendas, formando vãos cavernosos ao longo de encostas traiçoeiras. Os bodes estavam lá em cima - seu instinto lhe dizia -, assim como as pegadas
e os tufos de pelo que ela estava rastreando. Mas não conseguia chegar neles. Era extraordinariamente frustrante.
A caçadora trotou obstinada pela passagem, explorando cada trilha lateral enquanto os olhos vasculhavam as paredes procurando um acesso nos vãos e cristas superiores.
Mais pedregulhos choveram da parede íngreme, só que desta vez foram acompanhadas por um oof! abafado.
Não era um ruído caprino. Brighid parou. Seus olhos sagazes perscrutaram as sombras que se alongavam debaixo de cada afloramento de rocha vermelho-acinzentada, até
encontrar uma forma familiar. Ela suspirou. Esta era apenas uma das muitas razões por que caçadoras geralmente escolhiam não ter filhos. Crianças eram incômodas.
- Estou vendo você, Liam. Desça daí. Agora!
A cabeça dele despontou na beira de uma das bordas mais largas. Na melancolia da passagem, seu sorriso parecia infantilmente luminoso e impetuoso.
- Estou flanqueando você há bastante tempo, e você nem notou! É porque estive praticando minhas habilidades de caçadora!
Brighid bufou. Não tinha notado o menino porque se permitira ficar preocupada com os problemas de Cuchulainn, o inesperado toque de Epona e a escolta de um rebanho
de crianças aladas para um país que não queria saber delas.
- Excelente. Bom trabalho - disse ela sem jeito, abrigando os olhos do sol com a mão enquanto examinava o lado oeste da passagem. - Agora desça. É hora de você voltar
e ficar com o resto das crianças.
Nem um pouco desencorajado, Liam inclinou-se ainda mais sobre a borda, parecendo um filhote de passarinho espiando da beira do ninho.
- Ainda não posso voltar. Tenho que ajudá-la!
O estômago apertou e Brighid gesticulou para que o menino recuasse. Odiava alturas. Só de olhá-lo empoleirado na beira, ela ficava indiretamente desconfortável.
- Liam - disse com severidade. - Não fique na beira. Você pode cair.
- Não se preocupe, mestra! Não tenho medo. E posso voar. - As asas cinzentas se desdobraram e ele se atirou para a frente, equilibrando-se quando pegou as correntes
de ar e mantendo-se ereto.
- Bom. Ótimo - disse Brighid apressada, ainda gesticulando para que ele recuasse da beira e tentando ignorar que ele a chamara de mestra - o título oficial que uma
aprendiz usava com a professora. - Vejo que seu equilíbrio é muito bom.
- E estou ficando quieto! - gritou ele.
- Ah, com certeza. Então acho que fez o bastante por hoje. Desça e corra até os outros.
O sorriso de Liam desinflou junto com as asas.
- Mas não pegamos nenhum bode selvagem ainda.
- Bom, uma das primeiras lições que uma caçadora aprende é que nem sempre se pega o bode. - O que ela estava fazendo? Tagarelando. Tagarelices saíam de sua boca.
- Verdade? - perguntou Liam, estudando-a atentamente.
Brighid suspirou:
- Os bodes estão lá em cima. Eu estou aqui embaixo. Portanto, o fato é que não pegarei nenhum bode hoje.
O sorriso radiante e afiado de Liam voltou com força total.
- Posso fazer os bodes descerem!
- Não, você precisa descer e... - Começou a dizer, mas calou a boca. Fazia sentido. Ele estava lá em cima. Os bodes estavam lá em cima. Ela dificilmente subiria
- mesmo que conseguisse, não escalaria aquelas paredes escorregadias e íngremes.
- Sim! Sim! - O garoto saltitou ansioso. - Posso trazer os bodes até você.
Brighid inclinou a cabeça para o lado, considerando.
- Acha que pode encontrá-los?
- Sim! Sim! - Liam olhou para ela e disse num sussurro exagerado: - Quando o vento sopra certo, consigo ouvi-los. Tenho audição muito, muito boa. E também consigo
cheirá-los, têm cheiro forte. - Ele recomeçou a saltitar e depois, num óbvio esforço, acalmou-se. - Estão naquela direção - apontou mais à frente.
Sim, parecia vagamente insano, e era definitivamente uma maneira nada ortodoxa de caçar bodes monteses, mas podia funcionar.
- Tudo bem. Mas só se me prometer que fará exatamente o que eu mandar.
- Prometo! Prometo! - As asas do menino se abriram e ele flutuou pela borda, pulando e dançando alegremente.
- Liam! - A voz de Brighid era severa e o menino congelou. - Uma caçadora aprende logo a controlar seus sentimentos. Especialmente no meio de uma caçada. - Claro
que ele não era mulher, nem centauro nem caçadora... Brighid meneou a cabeça, mais consigo mesma do que para o garoto que a observava com tanta atenção. - Isso é
o que quero que faça: com cuidado e em silêncio, siga a trilha que você encontrou, tentando ouvir o som dos bodes e procurando sinais de que tenham passado pelo
mesmo caminho.
- Terei cuidado e ficarei quieto. Fingirei que sou uma caçadora. - Liam arregalou os olhos e ergueu um dos pezinhos de garra, olhando para ele pensativamente. -
E fingirei que tenho cascos mágicos que não fazem nenhum ruído claudicante quando ando.
Brighid teve que se impedir de revirar os olhos. O menino achava que era um centauro. Possuía asas e garras, e estava fingindo ter cascos. Cascos mágicos, aliás.
Ele era muito imaginativo, o que não faria bem para seu desenvolvimento futuro. Faria? Parecia que quanto mais tempo passava com as crianças, menos sabia sobre elas.
Simplesmente não faziam muito sentido.
- Só finja ficar quieto. Tudo o que precisa fazer é encontrar os bodes. Quando encontrar, volte até mim - quietinho. Quando eu disser que estou pronta, então pare
de fingir que possui cascos mágicos. Pule e berre atrás deles. Mas fique longe da beira, ou fará com que corram montanha adentro. - E faria o estômago de Brighid
enjoar ver o menininho alado pendurado na beira de um abismo íngreme enquanto bodes corriam desvairados. - Você tem que ir por trás deles e depois berrar.
- Entendi. - Liam acenou com a cabeça para cima e para baixo, para cima e para baixo. - Você quer que eu os enxote até você.
- Sim. Exatamente. Estarei acompanhando daqui, debaixo de você na passagem, devagar. Se tivermos sorte, os bodes correrão para longe de você e descerão. - Em teoria,
parecia um bom plano. Ela certamente fugiria de um menino berrando, saltitando e batendo asas. - E diretamente para mim.
- E então você pega um para o jantar! - disse ele triunfante.
- É o que espero.
- Se isso acontecer, serei oficialmente seu aprendiz?
- Veremos - desconversou Brighid. - Ser aprendiz de uma caçadora é um procedimento complexo.
Liam mordiscou o lábio.
- Entendo. - Então sorriu. - Mas farei o meu melhor. Você vai ver. Serei a perfeita caçadora!
- Fazer o seu melhor é sempre a melhor escolha - disse Brighid inutilmente.
E então, num agitar de asas nada centáureas, o menino partiu com o rosto apontado para o vento.
- Tenha cuidado e fique longe da beirada! - gritou-lhe Brighid.
Dezessete
AO MENOS A criança estava quieta. Exceto por um jorro ocasional de pedregulhos que seus pretensos cascos mágicos deslocavam, a caçadora precisava admitir que Liam
estava se movendo silenciosamente na trilha estreita acima dela. Não havia nenhuma risadinha, nenhum bater de asas, nenhuma tempestade de perguntas. Talvez manter
as crianças ocupadas fosse a chave para controlá-las. Brighid ergueu os olhos a tempo de ver a ponta de uma asa desaparecer acima dela conforme as laterais da passagem
desviavam acentuadamente para a direita e Liam seguia o rastro dos bodes ao longo da curva.
Não, ela sabia muito bem. Não estava no controle do menino. Ele estava solto em seu próprio mundo imaginário, onde era uma centaura caçadora mágica. Era pura sorte
que parte de sua pretensão incluísse silêncio temporário. Será que ela era assim quando era pequena? Cheia de fantasias e imaginação enquanto tagarelava incessantemente
e saltitava por aí? A caçadora suspirou. Nem se lembrava de ser tão jovem - era como se tivesse nascido velha, sobrecarregada pelas responsabilidades da tradição
e as expectativas da sua mãe.
A brisa rodopiou por ela, parecendo de repente vários graus mais fria. Brighid estremeceu e ergueu os olhos para o sol poente. Há quanto tempo ela e Liam estava
caçando? A lateral escarpada da passagem era quase completamente feita de pedra cinza naquela seção da trilha cavernosa. Não era de espantar que estivesse mais escuro
ali. Ao menos o vermelho avivava a obscuridade indefinida. O cinza parecia sugar a luz desvanecedora do sol como se as próprias paredes quisessem roubar o espírito
do dia.
A caçadora estremeceu novamente e sentiu o pelo fino da nuca se arrepiar. Seus olhos investigaram as paredes de rocha cinzenta. Para onde tinha ido o garoto? Não
conseguia ver além da curva acentuada. Maldição! Ele não devia estar tão à frente dela. Parou e ficou ouvindo o vento. Aquilo era o balido de bodes? Achava que talvez
sim, então se concentrou mais...
O grito vindo de cima fez com que Brighid puxasse uma flecha da aljava pendurada em suas costas e empunhasse o arco tão rápido que, se alguém estivesse assistindo,
só veria o borrão loiro-prateado do movimento experiente. Ela mirou o arco no som e o fôlego prendeu na garganta.
Circulando acima dela estava uma águia prateada com asas de pontas douradas. Como se esperando por sua completa atenção, a águia desceu planando nas correntes de
ar, dobrando as asas e mergulhando diretamente em Brighid. A caçadora se sentiu uma estátua, congelada com o arco ajustado em posição, incapaz de fazer nada senão
encarar a bela ave que passeava no ar. O olho dourado da águia capturou o olhar de Brighid, e em suas profundezas aquilinas a centaura enxergou o reflexo de sua
própria alma.
Brighid sentiu a conexão. Liberdade... força... coragem... uma buscadora de justiça... uma guerreira... poder usado para o que é certo. As palavras explodiram na
consciência da centaura numa voz clara e familiar. Pertenço a você, e você, a mim. Já era hora de reconhecer nossa ligação, irmã. A águia grasnou novamente enquanto
planava acima do corpo de Brighid, tão perto que o vento debaixo das asas fazia o cabelo de Brighid se agitar.
E como uma mosca preta inoportuna, algo picou em cheio e com força as costas equinas de Brighid.
Um presente. Algo que ficou escondido por longo tempo... Assim como nossa ligação e o poder que é sua herança.
Completamente desequilibrada, Brighid girou e buscou pela ave dourada, a pele equina ainda doendo da picada. Será que tinha sido arranhada pela maldita ave?
Olhe para baixo.
O olhar de Brighid baixou e ela viu a pedra. A cor verde-azulada se destacava no embotado caminho ardósia, um oásis de cor num deserto cinza. A centaura a apanhou,
intrigada com seu colorido esplêndido e a sensação macia e quente contra sua pele. Lembrava-lhe alguma coisa...
Ele precisa de você.
- Ele? - perguntou Brighid ao ar.
A voz em sua cabeça de repente era um grito: Liam!
Liam? Brighid disparou num galope controlado, guardando a pedra turquesa dentro do bolso interno do colete. Enquanto prosseguia apressada, podia sentir seu rígido
formato redondo pressionando acentuadamente a maciez de seu seio.
As paredes e o vento crescente abafavam o som de seus cascos enquanto deslizava ao redor da curva abrupta, os olhos trocando incansavelmente o chão traiçoeiro à
frente pelas laterais íngremes das paredes rochosas. Não havia sinal do menino alado.
- Liam! - chamou ela. O nome do menino ricocheteou assustadoramente nas paredes e voltou até ela como uma lembrança quase esquecida.
Pela Deusa! Ela estava com um mau pressentimento! Nunca devia ter permitido que a criança se separasse do resto do grupo. Ela e Cuchulainn tinham concordado com
a importância de ficarem juntos. Quem sabia quantos perigos escondidos as montanhas pedregosas guardavam? E havia a águia e a voz que lhe avisara que Liam precisava
dela. O que, pelo peitoral prateado da Deusa, significava isso tudo?
E onde estava o menino? Quanto tinha avançado? Não tinha ideia de que ele podia se mover tão rápido. Brighid saltou um monte de rochas e cascalho, tropeçou, depois
recuperou o equilíbrio. Rangendo os dentes e amaldiçoando silenciosamente a maldita aspereza da trilha, aumentou a velocidade.
Mais uma vez a passagem desviou acentuadamente para a direita. Ela derrapou pela curva, quase perdendo o equilíbrio quando os cascos deslizaram pelo chão de rocha
escorregadia. Ali a passagem era mais larga, abrindo-se na extensão de vários centauros. Rochedos cinza pontilhavam perigosamente o chão, tanto que Brighid teve
que desacelerar para abrir caminho entre eles.
Ela pressentia. Alguém a observava. Instintivamente ergueu o arco à altura dos olhos e foi inundada de alívio. Mais adiante estava a forma inconfundível da cabecinha
de Liam e as pontas das asas sobressaindo no abismo. Quando ele viu a caçadora olhando na sua direção, o menino lhe acenou alegremente. Brighid suspirou e baixou
o arco. Liam estava longe demais para ouvi-la, então ela ergueu o braço e sinalizou para que ele fosse até ela.
Qual era o problema da maldita ave? Liam estava bem. Ou aquela voz não tinha vindo da águia? Ela olhou cautelosa para a passagem sombria. Quem sabia que malignidade
espreitava daquelas montanhas? Ciara tinha pressentido algo que a deixara receosa. Talvez os espíritos inquietos de seu povo estivessem vagando por ali. Parecia
provável que gostariam de causar problemas. A pedra turquesa apertava seu seio. Estaria ela imaginando seu calor?
Brighid afastou a confusão da mente. Depois. Quando as crianças estivessem seguras no Castelo MacCallan, então teria tempo para pensar na estranheza daquele dia
e nos vislumbres do reino espiritual que tivera frequentemente durante aquela jornada.
Um presente...
A pele da caçadora ardeu como se outra pedra tivesse caído do céu. A compreensão a fez respirar fundo. Ciara lhe dissera para ter cuidado com o que pedia ao reino
espiritual... A pedra verde-azulada apertava quente seu seio, disparando um fluxo de conhecimento por seu corpo.
Era um apanhador de almas, presente do seu guia espiritual. A ideia a deixou tonta.
Depois! Ela repetia firmemente consigo mesma. A caçadora se sacudiu e olhou para a parede cinza, tentando ver Liam enquanto surgia e desaparecia nas sombras profundas.
Por enquanto apenas esqueceria os bodes selvagens e devolveria Liam ao resto do grupo. Estava ficando tarde; ficariam preocupados com ela, e a ausência do menino
provavelmente já teria sido descoberta. Brighid fez uma careta, imaginando a cena com Cuchulainn quando retornasse com Liam trinando sobre ser seu aprendiz e ajudá-la
nas caçadas.
Ela apertou os olhos diante do movimento ao longo da borda. Liam de repente estava visível, sua forma alada silhuetada claramente no profundo céu cinza-azulado conforme
se esgueirava até Brighid.
A caçadora abriu a boca para gritar para que tomasse cuidado, mesmo que fosse óbvio que a criança estava tão confortável escalando as alturas quanto os esquivos
bodes. Mas não teve chance de falar as palavras.
O dia explodiu em violência.
Brighid ouviu a vibração familiar de uma flecha sendo disparada. Instintivamente, lançou-se à frente.
- Liam! Abaixe-se!
O garoto ficou petrificado, as asas abertas enquanto se equilibrava na beirada. Era uma estátua de pânico. Um alvo fácil. A flecha preta perfurou sua asa direita.
- Não! - gritou Brighid, mas a palavra foi drenada pelo grito de dor da criança. O menino se dobrou. A asa ferida estava tombada na beira do abismo, junto com quase
toda a parte superior do corpo de Liam. Ah, Deusa! Ele vai cair! Os cascos da caçadora batiam no xisto cinza arrancando faíscas conforme cortava o labirinto de rochedos,
sentindo mais do que vendo o caminho, porque não conseguia tirar os olhos de Liam. Rezava fervorosa e silenciosamente para Epona para que não houvesse mais flechas
- que o menino não despencasse para a morte.
- Espere! Estou indo! Não se mexa! - gritou-lhe.
O grasnido da águia soou do alto da parede oposta da passagem. Brighid arrancou o olhar de Liam para ver a águia mergulhando como uma flecha dourada no guerreiro
vestido de preto. O homem largou o arco e usou as duas mãos para cobrir a cabeça, tentando se esquivar das garras da ave.
- Ele é apenas uma criança, seu tolo! - berrou. Brighid viu a cabeça do guerreiro se virar na sua direção e o corpo dele saltar em óbvia surpresa, mas não tinha
mais tempo para ele - teria que confiar que a águia o impediria de disparar outra flecha. Liam precisava dela.
Parou deslizando debaixo do menino.
- Vai ficar tudo bem - gritou-lhe enquanto vasculhava freneticamente a parede de rocha à procura da estreita trilha dos bodes. Os soluços de Liam ecoavam ao redor
dela. Ali! A meia-altura de um equino, parede acima, havia uma trilha grosseiramente escavada. Ela conteve uma praga ao se aproximar. A maldita trilha só possuía
dois palmos de largura! A centaura a seguiu com os olhos. Sim, ficava mais larga - mas talvez apenas outro palmo de largura. Nunca seria capaz de escalar a trilha.
Apesar de toda força e agilidade, era fisicamente impossível. Precisava de um corpo humano para escalar a parede.
Brighid olhou o menino e o estômago revirou. Liam tinha conseguido se arrastar para longe da beira, mas a asa ferida ainda pendia frouxa pela lateral da parede rochosa,
sujando a rocha cinzenta com manchas escarlate.
Chame o guerreiro. A voz estava dentro de sua cabeça novamente. Use sua conexão e chame por ele.
Brighid não precisou olhar para cima. Ouvia os gritos zangados do arqueiro e os guinchos predatórios da águia. Sabia que a voz vinha da ave - sua aliada espiritual.
- Brighid! - Seu nome era um soluço.
- Estou aqui, Liam. - A caçadora pressionou as mãos na lateral da passagem, olhando para o menino ferido. - Você vai ficar bem. Apenas seja corajoso por mais um
tempinho. Pode ser corajoso por mim, não é?
Liam começou a assentir com a cabeça, mas irrompeu num gemido.
- Dói - disse ele, mordendo o lábio para impedir-se de soluçar.
- Eu sei, meu corajoso, eu sei. Mas vou buscar ajuda.
- Não me deixe!
- Não deixarei - garantiu-lhe. - Não preciso.
Os olhos de Liam encontraram o olhar firme da centaura.
- Magia?
- Magia - disse ela. Ah, Deusa, esperava que sim. Fechou os olhos e fez a única coisa que podia - Brighid seguiu seu instinto. Ele viera até ela em sonhos... Sonhos
eram apenas outra parte da consciência... Sempre lá, apenas mais elusivo do que quando se está acordado...
Pensou no amigo, o guerreiro feliz com a risada pronta e a habilidade de atrair pessoas como abelhas para flores silvestres.
Maldição, Cuchulainn! Preciso de sua ajuda! Venha até mim!
Era sua imaginação, ou tinha mesmo ouvido o sussurro da risada de Cuchulainn?
Ciara corria devagar ao lado do capão de Cuchulainn. Com as asas escuras estendidas, usava a caminhada esvoaçante dos fomorianos para manter facilmente o passo com
o cavalo grande.
- Liam não está com os animais, e nenhum dos adultos o vê desde a última parada - disse ela. - Parece ter desaparecido.
Cuchulainn resmungou com contragosto e franziu o cenho para a extensão da passagem que se abria adiante.
- Faço ideia de onde o garoto deve ter ido.
O alívio de Ciara era óbvio.
- Eu nem pensei nisso! Sim, ele deve ter seguido a caçadora.
- Eu não ficaria tão satisfeito. Brighid é muito desagradável quando está zangada. - Era irritadiça mesmo quando não estava zangada, acrescentou Cuchulainn para
si mesmo. - O menino está para aprender uma lição sobre como é ser realmente aprendiz de uma caçadora velha e grosseira.
- Velha? - Ciara riu. - Brighid é jovem e atraente.
Cuchulainn resmungou:
- Ela é velha por dentro. Velha e irritadiça.
Foi no meio da risada de Ciara que ele sentiu. Puxou o capão numa parada repentina. Uma sensação de júbilo, de alegria juvenil desatada lampejou por ele, fazendo-o
ofegar de surpresa.
- Cuchulainn, o que...
O guerreiro não ouviu mais a mulher alada. Com a precipitação de alegria veio algo mais, algo que Cuchulainn não experimentava há muitas fases da lua. Saber o que
estava acontecendo assentou um pesadelo em sua mente quando a visão o atingiu. Viu Brighid através de olhos subitamente ofuscados. As mãos dela estavam pressionadas
na lateral da passagem e sangue descia pelas paredes de pedra ao redor dela. Maldição, Cuchulainn! Preciso de sua ajuda! Venha até mim! As palavras retiniram em
sua cabeça.
- Brighid! - gritou ele. A visão desapareceu. Com isso, a sensação passageira de alegria evaporou e o mundo ao redor dele retornou num rompante.
Ciara estava apertando seu braço e olhando seu rosto.
- O que viu? O que há de errado com Brighid?
- Ela está me chamando. - Cuchulainn se desvencilhou de Ciara. - Diga aos adultos que mantenham as crianças por perto e tenham cuidado.
- Não se preocupe conosco. Vá até ela.
Em vez de responder, Cuchulainn afundou os calcanhares nos flancos do capão e mostrou-lhe a direção.
Dezoito
O VENTO LAMENTOSO tinha cessado. Os gemidinhos de dor de Liam e os murmúrios de encorajamento de Brighid pareciam de repente incomumente altos na passagem ecoante,
então foi fácil para ela ouvir Cuchulainn antes de vê-lo.
- Obrigada, Deusa. - A respiração de Brighid veio à tona numa torrente. - Você está indo bem, meu corajoso. - Ela sorriu para Liam.
- Quero ser corajoso. Caçadoras são corajosas - disse o menino.
- Está sendo uma excelente caçadora, Liam. - O que mais poderia dizer? Se fingir ser um centauro o ajudava a suportar a dor do ferimento e o impedia de tombar da
beirada, então ele podia muito bem continuar fingindo.
Antes que Brighid se voltasse para encontrar Cuchulainn, dispensou uma olhada no lado oposto da passagem. Estava vazia. Não havia nenhum guerreiro de roupa preta
segurando um arco preto. Nenhuma águia dourada mergulhando em ataque. Para onde tinham ido? Não podiam ser alucinações, nem mesmo aparições fantasmagóricas. O ferimento
de Liam era evidência de que não os tinha imaginado.
O capão de Cuchulainn disparou pela área alargada da passagem. Quando ele viu Brighid parada tão perto da parede - tão perturbadoramente semelhante à visão ensopada
em sangue -, o som mortal de sua claymore sendo desembainhada retiniu com intensidade metálica de encontro à rocha.
- É Liam! - gritou ela, apontando para a forma pequena e curvada parada precariamente na beirada.
A expressão dura e pronta para batalha do guerreiro se transformou e suavizou visivelmente. Cuchulainn refreou rapidamente o capão ao redor dos rochedos que os separavam
e galopou para junto de Brighid.
- Pela Deusa! O que aconteceu aqui?
- Não fique zangado comigo, Cuchulainn - disse Liam em tom de lamento.
- Diga que não está zangado com ele - sussurrou Brighid.
Cuchulainn fez cara feia, mas gritou para o garoto: - Não estou zangado, Liam.
- Cuchulainn está aqui para ajudar, meu corajoso - disse Brighid. - Apenas continue quieto e ele vai descê-lo. - Ela se virou para Cuchulainn, falando rápido e mantendo
a voz baixa: - Um arqueiro o acertou. - Apontou para o lugar recentemente vago pelo guerreiro em roupa escura. - Dali. Ele se foi agora. Não sei para onde.
- Ele viu que você estava com o menino?
Brighid meneou a cabeça.
- Não, só depois que já tinha acertado nele. Pareceu chocado ao me ver. - A caçadora teve o cuidado de evitar qualquer menção a águias douradas e vozes em sua cabeça.
O olhar de Cuchulainn se estreitou.
- Como o arqueiro estava vestido?
- De preto - disse ela. - Foi tudo que consegui enxergar daqui.
- Viu a flecha?
Ela assentiu:
- Preta. Era escura como... - Ela prendeu o fôlego diante da súbita conclusão. - Ele era um guerreiro guardião.
- Sim.
- O que ele estava pensando? Podia ter matado Liam.
- Provavelmente estava pensando que estava protegendo Partholon de um demônio alado.
- Mas eles sabem que estamos trazendo as crianças para Partholon!
- Não têm como saber que estamos vindo pela Passagem Guardião. - Cuchulainn desmontou e caminhou até a parede escarpada, estudando a trilha estreita que subia angulosa
pela lateral. - O que todos sabiam é que estávamos guiando as crianças por uma passagem secreta bem a oeste daqui. - Ele vasculhou o alforje à procura das luvas
de couro. - O guerreiro só estava cumprindo seu dever.
Brighid bufou, mas a voz de Liam interrompeu seu revide: - É fogo - falou à centaura e ao guerreiro.
- Eu sei, meu corajoso. Deve ser como fogo. - Ela automaticamente tranquilizou o menino.
- Não. - Ele ergueu a cabeça e apontou debilmente para a parede oposta. - Lá... é fogo.
Os olhos deles seguiram o dedo do menino. Mais adiante na passagem, no mesmo lado em que o arqueiro disparara em Liam, chamas amareladas dançavam no céu que escurecia.
- O que é? - perguntou Cuchulainn ao garoto. - Consegue ver?
Mordendo os lábios, Liam se pôs mais ereto. Brighid abriu a boca para dizer ao menino que ficasse parado, mas a mão firme de Cuchulainn em seu braço a impediu. Liam
lutou por mais um momento, depois, com um gemidinho, sentou-se, a asa pendendo torta sobre o colo.
- É como uma fogueira, só que é a maior fogueira que eu já vi. E não há nada ao redor.
- Bom trabalho, Liam. Aguente firme. Estarei logo aí. - Cuchulainn se encaminhou para a parede, colocando as luvas. Então disse a Brighid: - É o sinal do guerreiro
guardião. As piras são acesas para chamar os guerreiros. Significa que a passagem foi violada.
- Mas não estamos combatendo os guerreiros de Partholon!
- Não, ainda não. Me empurre. Preciso descê-lo. Não vão demorar a chegar aqui.
- Não gosto disso - murmurou Brighid, curvando-se para fazer um apoio para o pé do guerreiro com as mãos cruzadas. Cuchulainn pisou e ela o ergueu para a trilha.
- Tome cuidado - disse a ele. - É estreito.
Ele resmungou algo ininteligível.
Enquanto Cuchulainn escalava a parede escarpada, a atenção de Brighid trocou nervosamente o guerreiro pelo menino ferido que esperava pacientemente no fim da passagem
ampla. O arqueiro era um dos famosos guerreiros guardiões. Deveria ter imaginado - teria percebido quem era caso seus pensamentos não estivessem cheios com crianças
quebradas e pássaros falantes. Nunca tinha ido ao Castelo Guardião, mas sabia que os guerreiros estabelecidos lá eram sempre vigilantes, e que vestiam preto para
demonstrar o eterno lamento pelos erros do passado.
Mais de cem anos atrás, os guerreiros guardiões tinham se tornado complacentes. Partholon estava em paz, e era assim há séculos. A raça demoníaca dos fomorianos
não passava de história antiga, reduzida aos pesadelos das crianças. Ninguém supunha que os demônios estavam se preparando há gerações para retornar a Partholon
como conquistadores e senhores. Os guerreiros guardiões não estavam preparados para o massacre demoníaco e foram facilmente invadidos, permitindo que a morte e o
mal irrompessem em Partholon.
Os uniformes pretos que vestiam agora eram a jura visível a Partholon de que a vigilância dos guerreiros nunca falharia novamente. Eram formidáveis, e Brighid não
apreciava a ideia de lutar com eles. Especialmente quando seus únicos aliados eram um guerreiro deprimido e uma criança ferida.
Seu irmão diria que não tinham nenhuma chance. Raramente concordava com o irmão, mas desta vez era definitivamente uma exceção.
Um grito às suas costas a fez girar. Ciara estava na dianteira dos neofomorianos que adentravam a passagem. Seu rosto adorável estava contorcido numa expressão de
choque e horror enquanto erguia os olhos para Liam. Seu grito logo foi ecoado pelo grupo atormentado que a cercava.
Brighid se aproximou rápido de Ciara.
- Liam está bem. - A caçadora ergueu a voz para que pudesse ser ouvida acima dos gritos das crianças. - Ele foi ferido, mas Cuchulainn vai descê-lo. Agora, por que
não fazemos uma parada, enquanto Ciara acende uma fogueira para aquecer todo mundo?
Ciara ficou muda, fitando Liam por cima do ombro de Brighid.
- Ciara! - sibilou Brighid. - Faça a maldita fogueira e se recomponha.
A mulher alada saiu do atordoamento e, com um aceno de cabeça para Brighid, pediu que trouxessem combustível para o fogo.
Os olhos da caçadora vasculharam o grupo de crianças angustiadas até encontrar um rosto familiar.
- Kyna, não me lembro do nome da sua curandeira. Será que pode me ajudar?
A menininha piscou com lágrimas nos olhos e secou as bochechas molhadas.
- Nara. - A menina olhou ao redor na ponta dos pés, até avistar uma figura adulta que estava vindo até Brighid desde a retaguarda do grupo. - Lá está ela.
- Obrigada, Kyna. - Mantê-las ocupadas, lembrou Brighid consigo mesma. - E, Kyna, preciso da sua ajuda. Será que você e algumas crianças podem se encarregar do cavalo
de Cuchulainn? Talvez escová-lo para que fique pronto para viajar novamente em breve? - Patéticos ganidos caninos lembraram a caçadora de algo mais que merecia cuidados.
- E tenha cuidado especial com Fand. Sabe como ela fica quando Cuchulainn está ocupado demais para tranquilizá-la - acrescentou Brighid.
- Claro, Brighid! - assentiu Kyna com vigor, e imediatamente começou a dar ordens a diversas crianças.
- Sou Nara, a curandeira. - A neofomoriana era alta, magra, com cabelo loiro pálido e olhos num estranho tom de verde-musgo.
A atenção de Brighid ainda vagava agitada. Continuava imaginando hordas de guerreiros vestidos de preto descendo sobre eles com arcos esticados. Falou depressa com
a curandeira, tomando o cuidado de manter a voz baixa para que as crianças não ouvissem: - A asa de Liam foi perfurada por uma flecha. Não faz muito tempo que aconteceu,
mas mesmo daqui de baixo posso dizer que ele perdeu mais sangue do que seria aceitável. Eu não consegui subir lá para estancar o sangramento, e ele estava fraco
demais para conseguir descer sozinho. - Ela olhou nos olhos da curandeira. - Ele está com muita dor.
A curandeira tocou o braço da centaura.
- Posso ajudá-lo.
Brighid olhou para o topo da parede rochosa. Cuchulainn estava lá, agachado ao lado do menino. O guerreiro tinha tirado a camisa e estava rasgando-a em tiras para
amarrar a asa de Liam ao flanco.
- Ajudarei o guerreiro a descer o menino - disse Nevin, chamando a atenção de Brighid de volta ao chão.
- Eu também - disse Curran.
- Não, preciso de vocês dois aqui - disse a caçadora incisivamente. - Nara, ajude Cuchulainn com Liam, e depressa.
A curandeira assentiu e, com asas abertas, encaminhou-se pela trilha íngreme com facilidade. Brighid se voltou para os gêmeos.
- Liam foi atingido por um dos guerreiros guardiões - disse diretamente. - O sinal de fogo foi aceso. Os guerreiros estão a caminho daqui. - A primeira reação de
Brighid foi ordenar que os gêmeos armassem os adultos e os trouxessem para a dianteira do grupo, mas a ideia de seres alados recebendo partholonianos com armas fez
seu estômago apertar. Esta não era a maneira certa - não podia ser a maneira deles. Se escolhessem receber os guerreiros guardiões armados, como pareceriam diferentes
dos ancestrais demoníacos? A caçadora respirou fundo. Epona, por favor, permita que eu faça a coisa certa.
- Avisem aos outros adultos. Faça com que fiquem espalhados entre as crianças. Digam para que fiquem sentados, misturados com os pequenos. - Os gêmeos assentiram
devagar.
- Compreendemos. Não somos nossos pais.
- Não, não são. E isso não será o início de outra guerra - disse ela com firmeza.
Dezenove
AS CRIANÇAS TINHAM retomado o estado estranhamente quieto que Brighid estava começando a entender como a reação deles ao medo. Não se queixavam nem choravam como
a maioria das crianças. Ficavam bem imóveis e atentas. A caçadora os respeitava por isso, e agradeceu a Epona pela maturidade deles. Estavam controladas e silenciosas,
sentadas pacientemente num semicírculo ao redor da fogueira acesa às pressas por Ciara, observando Nara manter a asa de Liam cuidadosamente imobilizada enquanto
Cuchulainn carregava o menino borda abaixo.
Brighid teve que se forçar a não gritar para que Cuchulainn se apressasse, então ficou andando de lá para cá inquieta, mantendo os treinados olhos aguçados passagem
abaixo. Ela e Cuchulainn precisavam ir na frente até o Castelo Guardião e confrontar os guerreiros, explicando por que tinham decidido usar aquela passagem e deixando
claro que os neofomorianos não eram uma força invasora dos Ermos - eram um grupo de crianças e adultos esperançosos que receberam da chefe do clã MacCallan a promessa
de um lar.
Os guerreiros guardiões certamente já sabiam de grande parte do assunto. A mãe de Cuchulainn tinha alastrado a notícia dos filhos destituídos de Partholon pelo país.
Se não abertamente aceitos pelo povo, os neofomorianos deveriam ao menos ser esperados. Etain era a Escolhida de Epona, e Elphame era reverenciada como alguém tocada
pela Deusa. A aceitação delas ao menos garantiria que o povo partholoniano não levantasse armas contra os híbridos. Fazer isso seria um ato de desafio contra a própria
Epona.
Porém, Liam fora atacado.
- Nara, fiz uma cama para ele perto do fogo - avisou Ciara.
Brighid deixou a silenciosa contemplação da passagem vazia para ver Cuchulainn chegando à fogueira com um pálido Liam em seus braços. O menino gemeu quando Cuchulainn
o deitou na grossa pilha de peles. Nara pediu água fervente e começou a misturar ervas enquanto murmurava tranquilizando o menino.
Cuchulainn veio para junto de Brighid.
- Devemos interceptar os guerreiros e esclarecer a situação antes que isso fique pior - disse Cuchulainn.
- Concordo. Quero falar com o guerreiro que tomou uma criança por um demônio.
- Repreender um guerreiro da Passagem Guardião não é a maneira de esclarecer a situação.
- Repreender é o mínimo que eu gostaria de fazer com ele - retrucou ela de cara feia.
Cuchulainn começou a resmungar uma reprimenda quando um lampejo de movimento acima do ombro da centaura fez seu corpo enrijecer. Brighid girou e respirou fundo.
O fim da passagem não estava mais vazio. Dúzias de guerreiros vestidos de negro se aproximavam deles em silêncio.
- Fique do meu lado. Não puxe seu arco - avisou ele.
- Cuchulainn? - O sussurro de Ciara era uma pergunta trêmula.
O guerreiro dispensou uma olhada rápida à xamã.
- Vai ficar tudo bem. - Então seu olhar firme passou de criança em criança, e ele repetiu devagar: - Vai ficar tudo bem.
Olhos grandes o encararam fixamente, brilhantes com confiança e fé.
Sentindo a responsabilidade de aquele jovem idealismo assentar-se com peso sobre ele, Cuchulainn acenou a cabeça para Brighid, então centaura e humano avançaram
juntos para encontrar a linha de guerreiros negros.
- Conhece algum deles? - perguntou Brighid baixinho.
- Ainda não sei dizer. Deveria. Treinei aqui, mas isso foi há muitos anos... - Suas palavras cessaram quando a linha que se aproximava parou de se mover. Um único
e alto guerreiro destacou-se dos outros.
Brighid deu uma olhada em Cuchulainn, e ficou aliviada por ver que a expressão austera do rosto tinha relaxado. Ele interceptou o guerreiro negro e estendeu o braço
para o tradicional cumprimento de camaradas.
- Mestre Fagan, é bom vê-lo - disse Cuchulainn com genuína cordialidade.
O guerreiro hesitou apenas um momento antes de agarrar o antebraço de Cuchulainn e retribuir o cumprimento.
- É bom vê-lo, Cuchulainn MacCallan. Fomos informados de sua missão aos Ermos. Quando o sinal de fogo foi aceso, esperava descobrir você e não uma horda invasora.
Cuchulainn deu uma risada.
- Uma horda invasora? Dificilmente. Estou apenas guiando crianças de volta à terra de suas ancestrais.
O guerreiro mais velho estudou o grupo de seres alados silenciosos.
- Foi o que ouvimos dizer. Mas esperávamos que você os guiasse por uma passagem menor que foi descoberta no oeste. Me pergunto por que mudou seus planos de viagem.
- A passagem a oeste era nossa intenção original - antes da nevasca de duas luas atrás. A neve deixou a travessia traiçoeira demais para as crianças, então decidimos
trazê-las pela Passagem Guardião.
- É uma infelicidade não termos sido avisados de sua mudança de planos. Soube que um dos fomorianos foi ferido por um dos meus homens.
- Ele não feriu um fomoriano. Disparou numa criança, não num demônio. Há uma distinta diferença entre os dois. - A voz de Brighid era dura, e ela pensou - com satisfação
- que soava tão soberba quanto a mãe.
Fagan inclinou a cabeça para trás e estudou a centaura por trás de seu nariz longo.
- Você deve ser a centaura Dhianna que deixou a manada e se juntou aos MacCallan.
Os olhos de Brighid se estreitaram perigosamente, mas antes que pudesse falar, Cuchulainn fez apresentações apressadas: - Mestre Fagan, esta é a caçadora do clã
MacCallan, Brighid Dhianna.
- Posso supor que a águia pertença a você, caçadora? - perguntou Fagan.
Brighid ignorou o arregalar surpreso dos olhos de Cuchulainn.
- A águia não me pertence, mas fiquei grata porque Epona a chamou em meu auxílio. Ela salvou a vida do menino.
Fagan lhe deu outra olhada longa e contemplativa.
- Seria uma tragédia matar uma criança inocente. Se a criança é, de fato, inocente.
- Esta criança em particular é meu aprendiz - disse Brighid com firmeza. - Então, quando você questiona a honra dele, questiona a minha.
- Entendido, caçadora - disse o mestre espadachim, sustentando o olhar de Brighid sem piscar.
Brighid não gostou do tom de voz, mas antes que pudesse lhe dizer isso, Cuchulainn estava fazendo um gesto amplo e magnânimo com o braço.
- Venha, mestre! Deixe-me apresentá-lo aos neofomorianos e suas crianças.
Relutantemente, o mestre espadachim deixou de encarar a caçadora. Com óbvia descrença, perguntou: - Neofomorianos?
Brighid ficou satisfeita por ver o rosto de Cuchulainn endurecer e o tom de voz perder a cordialidade: - Esses não são os demônios que nossos ancestrais combateram
e baniram. São inocentes daqueles feitos. Seria de esperar que um homem tão sábio quanto meu antigo mestre fosse capaz de não prejulgá-los.
- E seria de esperar que o guerreiro que perdeu recentemente sua prometida para a loucura dessas criaturas fosse mais cuidadoso em quem depositar sua confiança.
- Não se esqueça, Fagan, que não sou mais um jovem novato estudando ao seu dispor. O assassinato da minha prometida aconteceu antes do sacrifício da minha irmã,
que dissipou todos os vestígios dos demônios do sangue dos híbridos.
Desta vez foram as palavras de Brighid que quebraram a tensão fervente: - Mestre Fagan, você conhece Cuchulainn. Também sabe o que ele perdeu. Se ele os perdoou
e aceitou, isso não fala a favor deles? Faria menos do que demonstrar respeito pelo amor que Cuchulainn tem por eles?
Os olhos de Cuchulainn encontraram os dela. Parecia tão surpreso quanto Brighid se sentia com as próprias palavras. O amor não era uma emoção da qual falava abertamente
- simplesmente não era o jeito dela. Mas sentia a propriedade do que tinha dito, com um conhecimento instintivo no qual começava a confiar com cada vez mais facilidade.
Cuchulainn realmente amava os neofomorianos. Eles provavelmente tinham salvado a vida dele.
E quanto aos sentimentos dela? Tinha acabado de proclamar ao Mestre Espadachim dos Guerreiros Guardiões que o pequeno Liam, um menino híbrido, era seu aprendiz.
Será que tinha se apaixonado por pelo menos uma das crianças?
Nunca se considerou maternal - era exatamente o contrário, na verdade. Mas conhecia bastante do mundo para compreender que o sangue não criava automaticamente uma
mãe ou uma família. O amor, sim. E a confiança. E a bravura. E a honestidade. Liam tinha todas essas coisas em excesso. Ele também, decidiu irrevogavelmente, tinha
a ela.
- Vá na frente, caçadora - disse Fagan, com um súbito sorriso que transformou o rosto rude. - Deixe-me ver os chamados neofomorianos que parecem ter enfeitiçado
não apenas meu pupilo favorito, mas também uma famosa caçadora.
Brighid inclinou a cabeça numa pequena reverência de aquiescência, mas seus olhos faiscaram para os guerreiros negros que enchiam a passagem e permaneciam obviamente
armados e de guarda.
- Nunca encontrei um guerreiro guardião antes, mas segundo as histórias que ouvi, me surpreende que fiquem armados contra um grupo de crianças - disse a caçadora
com sarcasmo pouco velado.
- Guerreiros guardiões não assustam crianças - disse Fagan.
Brighid levantou uma sobrancelha com zombaria.
Em resposta ao leve movimento do braço de Fagan, o exército entrou numa posição mais relaxada.
- Minha guarda, venha a mim! - berrou Fagan, e seis guerreiros se destacaram da dianteira da linha para se juntarem a eles.
O sorriso de Brighid era feroz.
- Eu também fiquei nervosa quando encontrei as crianças pela primeira vez. Claro, sou apenas uma mera caçadora e não o Mestre Espadachim dos Guerreiros Guardiões.
- Qual a primeira lição que aprendeu como meu pupilo, Cuchulainn? - disparou Fagan a pergunta para Cuchulainn sem quebrar contato visual com Brighid.
- Permanecer sempre vigilante - respondeu Cuchulainn automaticamente.
- Minha guarda fica comigo - disse Fagan.
Brighid bufou:
- Como quiser, mestre Fagan - disse Cuchulainn. -Mas diga que fiquem com as armas embainhadas. Não há necessidade de que sua vigilância assuste as crianças.
Fagan deu uma ordem rápida aos homens lúgubres. Sem dar mais nenhuma palavra, os três, seguidos de perto pela guarda de elite do mestre espadachim, caminharam em
direção às crianças silenciosas.
Os olhos de Brighid e Cuchulainn se encontraram brevemente com ar de diversão mútua.
- Talvez queira se preparar, mestre - disse Cuchulainn.
As sobrancelhas de Fagan desapareceram na linha do espesso cabelo grisalho.
- Um guerreiro guardião está sempre preparado.
- Sob condições normais, seria de pensar que sim - disse Cuchulainn.
- Mas essas - disse Brighid, compartilhando um ar secreto com Cuchulainn - não são circunstâncias normais.
Eles se aproximaram da fogueira. Nara estava ajoelhada ao lado de Liam. Não precisaram ver o rosto dela para ler a concentração tensa de seu corpo. As mãos se moviam
rápido, e Brighid viu de relance uma agulha de osso curvada conforme se erguia da asa rasgada e depois baixava outra vez. O estômago da caçadora estremeceu quando
percebeu que Nara estava costurando as beiradas rasgadas da asa de Liam. A curandeira escondia a maior parte do corpo do menino com o seu, mas Brighid conseguia
ver que Liam estava bem imóvel, e por um momento sentiu um medo atroz. Será que Liam tinha perdido a consciência? Será que o ferimento era mais sério do que ela
acreditava?
- Ele está dormindo, caçadora - disse Nara sem tirar a concentração do menino. - Dei a ele uma bebida para aliviar a dor e fazê-lo dormir. Não vai acordar senão
amanhã.
- Obrigada - disse Brighid, surpresa por a voz soar tão normal, já que se sentia alguém devastada. Então a caçadora se voltou para Fagan. Numa voz baixa e zangada,
disse: - Esta é a criança que seu caçador acertou. Dê uma olhada no que acha ser um demônio. - Antes que Cuchulainn pudesse detê-la, a centaura agarrou o braço de
Fagan e o arrastou rudemente ao redor do corpo de Nara para que ele tivesse uma clara visão de Liam. Os seis guerreiros da guarda de Fagan avançaram ameaçadoramente,
então a caçadora voltou-se para eles.
- Puxem as armas perto dessas crianças e responderão à minha fúria!
Cuchulainn veio para junto dela.
- E à fúria do clã MacCallan.
Fagan fez um movimento de contenção e os seis homens recuaram com cautela. Mas quando começaram a se afastar, a voz dura de Brighid os deteve: - Não, aproximem-se
de seu mestre. Vocês também devem ver o que desejam destruir.
Hesitantemente, os homens rodearam Nara e espiaram Liam. A criança parecia frágil, pálida e enfraquecida. O rosto redondo estava manchado de lágrimas e terra, e
o cabelo loiro tinha caído sobre os olhos fechados. Uma asa escura estava bem dobrada junto ao corpinho. A outra estava estendida sobre o colo de Nara. O rasgo era
dentado, como se a flecha tivesse arrancado um pedaço irregular em vez de simplesmente perfurar a asa. Sangue gotejava livremente do talho, mesmo com Nara costurando
bem apertado a ferida.
- Se o sangramento não cessar, terei que cauterizar - disse Nara, ainda mantendo a atenção concentrada no paciente -, mas espero que não. Danificaria permanentemente
as membranas da asa em crescimento. Ele é jovem demais para suportar o fardo de ser aleijado.
- Ele vai se curar? - fez Cuchulainn a pergunta quando ficou óbvio que Brighid não conseguia encontrar voz.
- Só a Deusa sabe. Mas ele é jovem e forte - disse Nara, enfim erguendo os olhos do paciente para olhar nos de Fagan. A voz era amigável: - Tem filhos, guerreiro?
- Não. Não fui afortunado - respondeu Fagan.
O olhar da curandeira vagou para os outros seis homens, todos similarmente vestidos de preto.
- Algum de vocês é pai?
Quatro dos seis assentiram lentamente.
- Filhos ou filhas? - perguntou a curandeira num tom conversacional, caloroso.
Os quatro homens olharam para o mestre, que assentiu. Seus homens responderam depressa: - Tenho dois filhos.
- Tenho uma filha.
- Três filhas e um filho.
- Tenho três filhos.
Nara sorriu para cada homem ao responder:
- Foram ricamente abençoados. Digam-me, algum de vocês já cometeu um erro?
Os homens não falaram, mas cada um deles assentiu.
- Não seria terrivelmente doloroso se seus filhos fossem culpados por seus erros?
- Seria - disse o pai de três filhos. Os outros homens assentiram devagarinho.
- Rezo para Epona que nunca conheçam essa dor - disse com honestidade. Então a curandeira voltou seus distintivos olhos verdes para Fagan.
- Guerreiro, acredita que uma criança deva pagar o preço pelos pecados de seu pai? - Não existia malícia em seu tom, apenas um questionamento gentil.
- Não - disse Fagan. - Eu não.
- Então vamos esperar que este menino se cure, porque, do contrário, isso será exatamente o que vai acontecer - ele pagará o preço pelos pecados de um avô que nunca
conheceu.
- Vamos suplicar a Epona que Liam se cure e fique inteiro novamente em breve. - A voz musical de Ciara atraiu o olhar de cada guerreiro. A xamã caminhou com graciosidade
até o grupo de homens e depois, com um movimento fluido, fez uma profunda mesura diante de Fagan. - É bom vê-los, guerreiros guardiões. Sou Ciara, neta da Deusa
Encarnada Terpsícore. Também sou a xamã dos neofomorianos, e os cumprimento em nome do meu povo.
Claramente abalado com a apresentação, os olhos de Fagan se arregalaram quando a bela mulher alada se levantou e sorriu-lhe radiante.
- Eu... Nós não esperávamos... - Ele sacudiu a cabeça, como se para clareá-la. - Todos os guerreiros guardiões são versados na história da Guerra Fomoriana. Foi
relatado que a Encarnada de Terpsícore morreu depois de espalhar a praga da varíola no exército demônio.
- Minha avó, de fato, infectou os demônios com a varíola, mas sobreviveu a ela. Também sobreviveu ao nascimento da minha mãe - disse numa voz clara e doce. - Muitas
das Musas Encarnadas e suas acólitas sobreviveram com ela.
- São notícias inesperadas - disse Fagan.
- Não gostaria de conhecer alguns dos descendentes das nove Musas?
- Eu... - Ele olhou para Cuchulainn.
- As coisas nem sempre são como se espera, mestre Fagan - disse Cuchulainn tranquilamente. - Acho que deve conhecer as crianças.
- Ah! Você é um mestre! - exclamou Ciara. - Qual é a sua arma?
- É a espada.
- As crianças vão ficar deleitadas - disse ela com uma risada jubilosa. Então se voltou para o grupo silencioso sentado pacientemente, os olhos brilhantes fixos
nos estranhos.
Brighid mal podia acreditar que as crianças estavam sendo tão comportadas. Notou muito farfalhar de asas e quase conseguia enxergar a energia nervosa deles. Mas
nenhum deles estava tagarelando ou saltitando. A caçadora sentiu uma onda de orgulho.
A voz de Ciara se ergueu, e com isso Brighid concluiu que a trégua temporária da animação das crianças logo estaria encerrada. Ela deu uma olhada nos inocentes guerreiros.
Bom, ao menos quatro deles já eram pais e talvez estivessem preparados...
A xamã fez um grandioso floreio de dançarina e anunciou: - Que os descendentes das nove Musas levantem e sejam os primeiros a conhecerem Fagan, o Mestre Espadachim
dos Guerreiros Guardiões!
Ah, Deusa, pensou Brighid, agora ela conseguiu. A caçadora se abraçou quando as crianças, todas gritando juntas, pularam de pé como passarinhos engaiolados de repente
libertados.
Com suprema satisfação, Brighid observou Fagan dar um passo automático para trás. Ela procurou o olhar de Cuchulainn e descobriu o guerreiro observando Fagan com
um sorriso sabido. Cuchulainn olhou de relance para ela, que teve que lutar para não rir alto. Felizmente, Ciara bateu palmas e as crianças se aquietaram.
- Elas ficam agitadas quando conhecem pessoas novas - desculpou-se Ciara.
- Não existem outros adultos além de você e a curandeira? - perguntou Fagan.
- Ah, sim. Mas não muitos. - Ciara fitou a multidão de crianças. - Adultos, por favor, apresentem-se - pediu ela.
Espalhados pelo grupo, os neofomorianos adultos se ergueram.
Fagan meneou a cabeça ao contar.
- Mas isso não pode estar certo. São muito poucos.
- São 22 neofomorianos adultos - disse Cuchulainn. - Isso é tudo.
- E quantas crianças são?
- Setenta.
Fagan se voltou para ele com incredulidade:
- Como pode haver tão poucos adultos e tantas crianças?
- Mestre, se nos oferecer santuário esta noite no Castelo Guardião, ficaremos felizes em explicar tudo - disse Cuchulainn.
Fagan olhou do ex-aluno para o menino pálido com a asa rasgada e depois para a massa de crianças que aguardavam ansiosas.
- O Castelo Guardião oferecerá a você e aos neofomorianos... - ele se atrapalhou um pouquinho com o nome do povo - ... santuário.
Vinte
- PREFERIA CARREGÁ-LO EU mesma - disse Brighid à curandeira pela quinta ou sexta vez. Estava caminhando ao lado da maca improvisada de Liam, que foi atada entre
duas das cabras domesticadas. Sempre que o corpo de Liam era sacolejado, a caçadora fazia uma careta.
- É melhor para a asa dele ficar deitado reto e imóvel.
Brighid franziu o cenho com preocupação.
- Caçadora. - Nara tocou o braço da centaura com gentileza. - O sangramento parou. O menino vai se recuperar.
Brighid viu a verdade nos olhos da curandeira e permitiu-se certa medida de alívio.
- Brighid! - A voz profunda de Cuchulainn ribombou até ela desde seu lugar na dianteira da lenta coluna de pessoas.
- Pode ficar tranquila de que Liam será bem cuidado. Vai dormir a noite inteira e acordar pela manhã tremendamente desapontado por ter perdido o primeiro encontro
com os guerreiros guardiões - disse a curandeira.
Brighid bufou com uma risada:
- Terei que lembrá-lo de que foi o primeiro a se encontrar com os guerreiros. - Antes de sair de junto do garoto, inclinou-se e afastou-lhe o cabelo do rosto. Não
sabia por que tinha feito isso, só sabia que lhe parecia certo tocá-lo - garantir para si mesma que ele estava quente e respirando.
Como um garoto tão pequeno poderia causar uma preocupação tão grande?
Crianças... Não era de espantar que os pais, que antes eram jovens e saudáveis, pudessem ficar tão cansados e distraídos.
Deu uma última olhada em Liam antes de sair trotando até Cuchulainn. Estudou a mistura de guerreiros e crianças enquanto seguia caminho até a dianteira do grupo.
As crianças tagarelavam sem cessar por toda parte. Estavam viajando pela passagem sob escolta dos guerreiros guardiões nas duas últimas horas e as perguntas das
crianças não cessavam. Eram como bolas brilhantes de curiosidade impetuosa envoltas em asas. Brighid achava que o som de suas vozes felizes misturadas às respostas
muito menos animadas dos guerreiros era altamente satisfatório.
Aqueles guerreiros não levantariam armas contra as crianças. Não depois de marchar com elas e vê-las como indivíduos. Verdade, disse ela, contendo outro sorriso,
poderiam correr caso se deparassem com uma criança alada numa passagem escura, mas definitivamente não a atingiriam.
- Brighid! - chamou Cuchulainn de novo, gesticulando para que ela se aproximasse dele.
A caçadora aumentou o passo, alcançando o capão de Cuchulainn com facilidade. Brighid notou com uma nova onda de divertimento que Fagan e Cuchulainn tinham se afastado
bastante do grupo principal para se distanciarem das crianças questionadoras.
- O Castelo Guardião é logo depois da próxima curva. Fagan mandou mensageiros na frente para preparar o castelo - disse Cuchulainn.
- Cuchulainn descreveu os abrigos singulares que os híbridos carregam consigo. O pátio do Castelo Guardião deve ser lugar mais do que adequado para que montem o
acampamento esta noite - disse Fagan.
Todos os vestígios de humor sumiram, e Brighid deu uma olhada desdenhosa no mestre espadachim.
- Está tão relutante em aceitar os neofomorianos nos seus alojamentos para visitantes que deixaria crianças no frio?
Cuchulainn começou a responder, mas a mão erguida de Fagan a interrompeu.
- Entendeu mal, caçadora. O Castelo Guardião não possui acomodações luxuosas para visitantes. Somos um castelo militar. Nosso único propósito é a defesa de Partholon.
Simplesmente pensei que as crianças ficariam mais confortáveis dentro de suas próprias tendas, que podem ser erguidas dentro da segurança e do calor dos muros do
castelo. Minha oferta de santuário é genuína.
- Assim como a flecha que cortou a asa de Liam - retrucou Brighid.
Em vez de reagir às palavras de Brighid com raiva, o mestre espadachim lhe deu uma olhada longa e pensativa.
- Sua raiva é compreensível, caçadora. As crianças são afortunadas por terem encontrado uma protetora tão feroz.
O olhar duro de Brighid não vacilou.
- São apenas crianças, mestre Fagan.
- E você se comprometeu a levá-las em segurança até sua chefe de clã.
- Estamos comprometidos nisso - disse Cuchulainn com firmeza.
- Entendido - disse Fagan. - Não importa o que vocês dois pensem, respeito a promessa e a diligência com que a estão cumprindo.
O mestre espadachim olhou por cima do ombro para os guerreiros que ainda marchavam em formação, embora grupinhos de crianças falantes, risonhas e perguntadoras estivessem
espalhados pelas fileiras. A voz áspera de Fagan ribombou numa risada seca, que ele rapidamente limpou da garganta.
- Quando soubemos que os descendentes dos fomorianos tinham sobrevivido à guerra e sido descobertos nos Ermos, imediatamente coloquei os guerreiros guardiões em
alerta máximo - prosseguiu ele. - Cautelosos, esperamos para ver se Partholon precisaria de nossos braços. Depois a assassina, Fallon, chegou ao nosso castelo. -
Sua mandíbula trincou enquanto escolhia com cuidado as palavras: - Ela é bem louca, uma criatura vil cheia de ódio. Sabem que o companheiro dela escolheu ficar junto
dela na prisão. Keir não é louco, mas Fallon o envenenou. Ele é triste, uma criatura retraída que não merece confiança. Os dois foram nossa apresentação ao que vocês
chamam de neofomorianos. Como poderíamos esperar qualquer coisa, exceto mais criaturas como aqueles dois? Mas essas crianças aladas. - Fagan ergueu as mãos e as
deixou cair nos lados. - A gentil curandeira... - ele meneou a cabeça como se em descrença e passou a mão pela testa - ... e a bela xamã alada. - Meneou a cabeça
novamente. - Não esperávamos nada assim. Acredito que Partholon ficará tão surpreso quanto meus guerreiros e eu ficamos hoje.
- Ninguém imaginava as crianças, Fagan - disse Cuchulainn. - E os adultos são seres honrados que só desejam retornar à terra de suas ancestrais e viver em paz.
- O futuro se provará... - o velho mestre espadachim se calou quando uma torrente de risadinhas irrompeu atrás dele - ... interessante.
Acompanharam a curva na passagem e pararam de imediato quando o Castelo Guardião assomou diante deles. Sob a luz fraca do sol poente, parecia um grande fantasma
cinza. Um maciço portão de ferro selava a passagem, e os muros grossos do castelo, entalhados na própria montanha, bloqueavam a entrada final em Partholon.
- Ooooh! É tão grande! - A exclamação de Kyna espalhou-se facilmente pela multidão silenciosa. Vários dos guerreiros não conseguiram evitar responder com uma risadinha.
- Gosto da cor - disse outra vozinha. - Me lembra os dias chuvosos.
- Não gosto de dias chuvosos. Seria melhor se alguém pintasse figuras bonitas nas paredes. Talvez flores e meninas - disse Kyna, e sua ideia desencadeou outra avalanche
de tagarelice infantil.
Fagan logo ergueu o braço, acenando para que a guarda do portão erguesse a tranca de ferro. Os homens começaram a conduzir as crianças para dentro das paredes do
castelo.
Uma vez dentro do Castelo Guardião, Brighid e Cuchulainn ficaram de lado, encorajando as crianças a seguirem entre fileiras de guerreiros negros para dentro do pátio
interno. Fagan os deixou temporariamente para que pudesse reunir os outros mestres de armas. Cuchulainn explicou a Brighid que a supervisão do Castelo Guardião não
era como a de um típico castelo de clã. A posição de chefe era dividida entre os vários mestres de armas, já que a função do castelo era unicamente defesa e treinamento.
Brighid o ouvia, mas mantinha vigilância nos arqueiros que se alinhavam nos muros do castelo. Sentiu a presença opressiva deles no momento em que atravessou o portão
de ferro.
- Fagan é confiável - garantiu-lhe Cuchulainn. - Ele nos ofereceu santuário. Não quebrará sua promessa de proteção.
- Não estou tão preocupada com Fagan quanto com eles. - Ela ergueu o queixo para a silenciosa parede de guerreiros.
- Olhe com mais atenção. Leia os rostos deles.
Brighid tirou a atenção dos arcos e espadas e se concentrou nos rostos dos guerreiros, e sentiu um sobressalto de surpresa. Os homens e mulheres do Castelo Guardião
estavam olhando com fascinação para as crianças.
- Estão intrigados com elas - disse Cuchulainn baixinho.
- Porque pensavam que eram monstros - retrucou na defensiva.
- Não era o que pensávamos antes de conhecê-las?
A caçadora abriu a boca para negar, mas descobriu que só podia bufar seu descontentamento: - Se uma caçadora saturada pode aceitar uma criança alada como aprendiz,
talvez os guerreiros do Castelo Guardião possam ver nelas mais do que inimigos também - disse Cuchulainn.
- Parece que sua alma está se sentindo melhor - resmungou ela. Não gostava de ser lembrada da proclamação pública de que fizera oficialmente de Liam seu aprendiz.
Estava certa de que isso voltaria para atormentá-la.
- Estou melhor. Não inteiro, mas melhor. - Seus olhos varreram a multidão. - Não perguntou como cheguei até você hoje.
- Não houve tempo. Presumi que não estaria muito atrás de nós e que ouviria a mim ou Liam, ou que saberia que algo estava errado.
- Realmente a ouvi, mas na minha cabeça.
- Sua cabeça? Não entendi... - Mas então compreendeu. - Você foi tocado pelo mundo espiritual. Recebeu uma premonição.
Os lábios dele se retorceram numa paródia de sorriso.
- Mais especificamente, acredito que a parte da minha alma que anda visitando seus sonhos me tocou e me deu o que seria um bom empurrão lá na passagem.
As sobrancelhas de Brighid se ergueram.
- Aquilo... ele... eu. - Cuchulainn suspirou fundo. - Seja lá como eu deva chamar a outra parte de mim, não ficou. E não entendo por que não ficou. Teria sido tão
mais fácil se tivesse ficado. Você não teria que fazer qualquer jornada ao Outro Mundo, e poderia se livrar do fardo de ser responsável pela minha saúde espiritual.
A caçadora deu de ombros.
- Não é exatamente um fardo, Cuchulainn. Na verdade comecei a pensar nisso como a caçada por uma presa incomum. Só tenho que encontrar a parte ausente da sua alma
e trazê-la de volta.
- Então anda rastreando por ela?
O divertimento que cintilou nos olhos verde-azulados lembrou Brighid do despreocupado Cuchulainn que aparecia em seus sonhos. Ele vai se curar! De repente acreditou
nisso com um feroz ímpeto de felicidade. Mas não deixaria que Cuchulainn soubesse o quanto tinha andado preocupada com ele - não queria que ele olhasse para trás
e ficasse preso em considerações e recordações tristes. Então manteve rédea firme na satisfação, e arqueou uma das sobrancelhas.
- Uma caçadora bem-treinada aceita qualquer serviço de rastreamento por seu clã, não importa o quanto seja odioso ou desagradável - declarou numa voz bem sofrida.
Felizmente Fagan os interrompeu, antes que Cuchulainn pensasse numa resposta bem irritante: - Os mestres de armas gostariam de ver vocês dois e a líder dos híbridos
- disse Fagan.
- No Grande Salão? - perguntou Cuchulainn.
Fagan assentiu.
- Chamarei Ciara e os encontrarei lá - disse Cuchulainn.
Claro que ele se voluntaria para chamar Ciara. Brighid fez cara feia enquanto observava o amigo vagar pela multidão de crianças e guerreiros para encontrar a xamã.
Ele está se curando, e para Cuchulainn a vida não está realmente inteira sem uma linda mulher. A ideia devia agradá-la - era mais uma prova de que Cuchulainn seria
ele mesmo novamente.
- Caçadora?
- Desculpe, mestre Fagan - disse Brighid, logo recolocando os pensamentos em ordem e acompanhando o guerreiro ao longo da margem do pátio. - Esta é a minha primeira
viagem ao Castelo Guardião. Me sinto distraída pela... - o olhar passeou pela linha silenciosa de arqueiros estacionada ao longo da muralha externa do castelo -
... arquitetura.
- Sempre vigilantes, caçadora. Somos sempre vigilantes - disse ele com um sorriso duro.
Como a centaura não respondeu com um sorriso semelhante, o mestre espadachim parou e buscou seu olhar.
- Dou a minha palavra de que seus neofomorianos são o que parecem, nenhum deles corre perigo por parte dos guerreiros guardiões.
- São exatamente o que parecem, mas não são meus neofomorianos - retrucou Brighid.
- Bom, um deles certamente é seu. - O sorriso cansado de Fagan retornou, e ele deu uma risadinha enquanto a guiava novamente pela parede do pátio. - Uma centaura
caçadora aceitando um menino como aprendiz, e o menino tem asas.
Brighid apertou os lábios e não disse nada. O maldito mestre espadachim estava certo. Seu jovem aprendiz possuía asas - e só uma delas estava em ordem no momento.
E ela pensava que a vida seria mais fácil quando se unisse ao Castelo MacCallan.
Vinte e Um
HAVIA TRÊS OUTROS mestres de armas esperando por eles no Grande Salão. Estavam sentados em três das quatro cadeiras parecidas com tronos em cima de uma plataforma
de pedra. Fagan deixou Brighid para tomar seu lugar na cadeira com a figura de uma claymore esculpida no encosto alto e régio. Cuchulainn e Ciara chegaram, então
Fagan começou as apresentações: - Deixem-me apresentar nossos mestres de armas. - Ele apontou primeiro para uma mulher de meia-idade, magra e de feições afiladas
que estava sentada numa cadeira decorada com cavalos arrojados. - Glenna é nossa mestra de cavalaria. - A mulher assentiu, os olhos inteligentes fixos com curiosidade
e sagacidade em Ciara.
- Bain é nosso recém-nomeado mestre de combate - disse Fagan. De constituição poderosa, Bain era claramente o mais jovem dos quatro. O espesso cabelo preto intocado
por qualquer vestígio de cinza.
- E Ailis é nossa mestra arqueira. - A mulher assentiu de leve em reconhecimento à apresentação de Fagan. Era de idade indeterminada - a pele era envelhecida, mas
o corpo era firme e musculoso. O cabelo loiro fora cortado curto, acentuando a linha forte do queixo e as maçãs altas. Todos os mestres estavam vestidos de preto
como os guerreiros, mas o ar de comando preso a eles os diferia.
Cuchulainn deu um passo adiante e fez uma reverência formal.
- É bom vê-lo novamente, Cuchulainn MacCallan. - A voz da mestra de cavalaria era agradavelmente feminina e cheia de cordialidade. Brighid se viu estudando Glenna
com mais atenção, imaginando o quanto tinha conhecido Cuchulainn quando ele estudava no castelo.
- É bom vê-la, mestra Glenna - disse Cuchulainn gentilmente, depois se curvou para cada um dos outros dois mestres. Embora os mestres fossem cuidadosamente polidos,
era óbvio que a atenção de todos estava concentrada na mulher alada que permanecia silenciosa ao lado de Cuchulainn.
- Fico satisfeito em apresentar a caçadora de MacCallan, Brighid Dhianna - disse Cuchulainn.
Brighid se curvou formalmente para cada mestre.
- E também gostaria de apresentar Ciara, xamã dos neofomorianos e neta da Musa Encarnada Terpsícore.
Ciara deu um passo à frente e afundou graciosa numa mesura profunda e formal.
- Estou honrada em conhecer cada um de vocês, e agradeço pela oferta de santuário ao meu povo.
- Você é líder e também xamã de seu povo? - perguntou Glenna.
Ciara se levantou e voltou seu sorriso brilhante à mestra de cavalaria.
- Não, mestra Glenna. O líder de nosso povo é Lochlan, que agora está casado com Elphame, a chefe MacCallan. Só estou temporariamente na posição dele, e ficarei
contente em abdicar dela quando nos reunirmos a Lochlan em nosso novo lar.
- Onde está o restante dos fomorianos adultos? - A voz de Bain, embora plácida e cuidadosamente destituída de emoção, fez a pergunta soar como uma acusação.
O sorriso de Ciara não vacilou, e ela retribuiu o olhar firme do jovem mestre.
- A raça fomoriana não existe mais, mestre Bain. O último deles pereceu há mais de cem anos. Meu povo se denomina neofomoriano porque rompemos com os costumes de
nossos ancestrais demoníacos. - O olhar buscou cada um dos mestres de armas, e a voz tomou um tom musical: - Pensem nisso, mestres. Existimos por causa do amor,
o amor que nossas ancestrais sentiam tão profundamente por nós para que tenham desejado viver fora de seu lar. E por causa da fé, a fé que existia dentro de nossas
mães e avós de que seus filhos alados eram mais humanos que demônios. E da esperança de que Epona um dia nos permitiria voltar para casa. Como uma raça nascida no
amor, na fé e na esperança não seria diferente dos demônios que a geraram?
- Pode ser que sim - disse Ailis -, mas nossa experiência com seu povo nos mostrou que há pouca diferença entre os "novos" e os "velhos" fomorianos.
O sorriso de Ciara embotou, mas sua expressão permaneceu franca e nada defensiva.
- Você fala de Fallon e Keir. Eles não representam meu povo, como Cuchulainn e Brighid, e acho que até mesmo o mestre Fagan, poderão dizer. Fallon escolheu a loucura,
e nem mesmo o sacrifício de Elphame pode lavar a mancha demoníaca de sua alma depois de abraçá-la. Keir é seu companheiro. Não pode evitar ser tocado pela escuridão
dentro dela. São versões tristes e deformadas do que nossas ancestrais sonharam para nós.
- Nos pede para ignorar que eles são do seu povo? - perguntou Bain, a voz quase faiscando.
- Peço apenas que não nos julguem baseados nos erros deles.
Antes que Bain pudesse responder, Cuchulainn falou: - Fallon assassinou a mulher que era minha prometida. Tenho todos os motivos para desconfiar de Ciara e seu povo,
mas nas duas últimas luas comecei a conhecê-los e a confiar neles. Deem a eles a oportunidade, e acredito que concordarão comigo.
A mestra arqueira virou-se abruptamente para Brighid.
- Caçadora, soube que aceitou um desses neofomorianos como seu aprendiz.
Brighid ergueu o queixo.
- Aceitei.
- Isso parece bem incomum.
- Eles são pessoas bem incomuns, mestra Ailis - afirmou Brighid.
- Veremos... - murmurou a mestra arqueira.
- Fagan nos contou que há mais crianças que adultos. Pode nos explicar isso? - disparou Glenna a pergunta a Ciara.
Mais uma vez, a mulher alada não hesitou em responder: - Os outros adultos estão mortos. Alguns deles escolheram acabar com a própria vida quando a loucura no sangue
deles se tornou insuportável. Alguns, como Fallon, aceitaram livremente a loucura. Esses nós afastamos do nosso assentamento. Pereceram nos Ermos.
- E você diz que essa loucura foi limpa do sangue de vocês?
Brighid ouviu a descrença no tom da mestra arqueira, e sentiu a própria raiva se agitar. Ciara precisava se manter calma e educadíssima. Não acontecia o mesmo com
a caçadora: - O sacrifício da minha chefe de clã os lavou do sangue demoníaco - disse Brighid. - Sabem disso. Acredito que receberam notícias disso da própria Escolhida
de Epona. Estão questionando a palavra de Etain?
- Não duvidamos da palavra da Escolhida - disse Glenna, apressada.
- Então é a palavra de minha irmã que questionam?
Brighid ficou satisfeita por ouvir o desafio na voz de Cuchulainn.
- A veracidade de sua irmã está bem comprovada. Ela foi tocada por Epona antes de nascer - afirmou Glenna, o tom muito mais conciliatório.
- Então não deve mais existir perguntas quanto à permanência da loucura no sangue dos neofomorianos. Questionar isso seria questionar a honra de minha mãe e minha
irmã.
- E a do resto do clã MacCallan - acrescentou Brighid.
Fagan, que ficara em silêncio observando a interação entre os outros mestres e os convidados inesperados, enfim falou no silêncio tenso que se seguiu às palavras
de Cuchulainn e Brighid: - Por quanto tempo pede nosso santuário, xamã?
Ciara respondeu com um leve sorriso:
- Apenas por esta noite, mestre Fagan.
- Uma noite? Será que as crianças não precisam descansar mais do que isso?
O sorriso mágico de Ciara se alargou.
- Estamos ansiosos para entrar em Partholon, mestre. É como se a presença jubilosa de nossas ancestrais nos compelisse. Estamos esperando há mais de cem anos para
retornar à nossa terra natal, e estamos impacientes para esperar sequer mais um dia.
- Então que seja uma noite de santuário - disse Fagan.
O sorriso de Ciara varreu os quatro mestres, tocando cada um deles como o calor de uma chama amiga.
- O mestre espadachim e seus guerreiros já conheceram as crianças. O restante de vocês não gostaria de conhecê-las também?
Glenna foi a primeira a se levantar.
- Eu gostaria, xamã. Estou curiosa para ver esses seres que conquistaram tão fácil a proteção de Cuchulainn MacCallan.
- Não diria que Cuchulainn foi conquistado tão fácil, mestra Glenna. - A risada de Ciara flutuou entre eles enquanto os outros mestres de armas se levantavam e desciam
da plataforma para acompanhar a xamã na saída da sala. - Na verdade, as crianças são... bem... tão diligentes e obstinadas quanto formigas operárias quando se focam
em alguma coisa, ou, no caso de Cuchulainn, em alguém. - Mais da risada de Ciara iluminou a sala. - Venham ver por si mesmos.
Brighid e Cuchulainn seguiam atrás do grupo.
- Vê por que ela dá uma xamã tão boa e eu não? Eu os teria descrito como irritantes e insaciáveis, como as moscas pretas mordedeiras dos pantanais - murmurou Brighid
para Cuchulainn.
- Ou pulgas - disse Cuchulainn baixinho. - Pulgas são pequenas, incômodas e incansáveis.
Brighid sorriu para Cuchulainn, notando que apesar de ainda possuir olheiras de cansaço, a expressão era animada e ele caminhava ao lado dela com o passo ágil e
fácil de um jovem guerreiro.
A voz de Ciara flutuava até eles. Brighid podia ouvi-la explicando como cada neofomoriano adulto era responsável por um grupo de crianças e agia como pai para aquele
grupo, houvesse laços de sangue envolvidos ou não. Imersa em conversa com os mestres, Ciara saiu do Grande Salão para o pátio interno. Brighid tocou o braço de Cuchulainn,
impedindo-o de acompanhar o grupo.
- Vamos deixar que sigam sem nós. Acho que faria bem aos mestres experimentar a força total da curiosidade das crianças, sem nossa presença para fragmentar a atenção
deles.
Os lábios de Cuchulainn se ergueram.
- Não sabia que possuía tamanha capacidade para crueldade, caçadora.
Brighid sorriu. Mas a resposta dela foi drenada pelo som de um berro pavoroso: - Não!
Como se fossem um, caçadora e guerreiro correram para o pátio. O imenso quadrado descoberto estava cheio de crianças aladas e guardas vestidos de preto. Os dois
grupos tinham se mesclado enquanto as tendas eram erguidas, mas todo o trabalho cessou ao som do berro horrível: - Não as crianças! Não podem ser as crianças!
Os gritos cheios de ódio vinham de cima, e todas as cabeças se levantaram, olhando a terrível forma alada silhuetada na janela gradeada de uma sala da torre.
- Fallon. - A voz de Cuchulainn tinha ficado fria e morta novamente.
- Abraçando o inimigo! Abraçando o inimigo! Vocês dormiram com a prostituta de Partholon! - As palavras estavam cheias de loucura e asco.
Várias crianças choramingaram, o que pareceu derreter os guerreiros congelados.
- Levem a criatura para uma sala interna! - ordenou Fagan.
Meia dúzia de guerreiros pulou para obedecer o mestre. Conforme passaram correndo por Brighid, Cuchulainn foi logo atrás deles. Trincando o queixo, a caçadora manteve
passo com ele.
- Talvez não seja boa ideia - avisou-lhe Brighid.
Cuchulainn não deu resposta, e Brighid não teve tempo de incomodá-lo mais. Foi necessária toda a concentração para transitar pelos corredores sinuosos sem esbarrar
ocasionalmente num homem ou numa mulher. A caçadora franziu a testa e ficou atrás de Cuchulainn. Os corredores do Castelo Guardião definitivamente não tinham sido
feitos com centauros em mente.
Acabou parando na entrada da torre, bufando de frustração diante da escadaria de pedra estreita e espiralada por onde Cuchulainn tinha desaparecido. Se fosse lá
em cima, teria muito bem que descer de costas - uma proposta potencialmente perigosa, além de embaraçosa. Ela esperaria.
Graças à Deusa, não teve que ficar andando de um lado para outro na entrada da torre por muito tempo. Ouviu o arrastar de pés, além do retinir e chacoalhar de correntes
e vozes abafadas ao longe. Então a gargalhada começou. O som dela subiu pela espinha de Brighid e deixou os pelinhos da nuca arrepiados. Loucura. A gargalhada estava
impregnada de loucura. Brighid a tinha ouvido antes, quando Fallon confrontou Elphame no Castelo MacCallan. Aquilo abalara Brighid até o íntimo na época, e não tinha
menos efeito sobre ela agora.
Um guerreiro vestido de preto apareceu. A espada estava desembainhada e ele segurava a ponta de uma corrente. Então outro guerreiro se tornou visível. Também estava
armado e segurando uma extensão firme de corrente pesada.
Fallon apareceu na escadaria. Brighid ficou completamente paralisada. Assimilava as mudanças em Fallon como se categorizando uma nova espécie que em breve pudesse
ser requisitada a caçar. A criatura estava dolorosamente magra, exceto pelo abdômen distendido. O cabelo branco-prateado estava num desalinho selvagem ao redor de
um rosto que pertencia a pesadelos. Fallon não mais parecia ser mais humana que fomoriana. Mesmo depois de amarrada e surrada no Castelo MacCallan, ela era bela,
mas agora aquela beleza fora distorcida e embotada, e o rosto pálido e lívido fora revertido nas imagens ferozes e esqueléticas dos textos de história. As asas,
embora bem amarradas ao corpo por círculos de cordas, farfalhavam e lutavam para se abrirem. E seu cheiro estava todo errado. Ela estava secretando um aroma pungente
e almiscarado que estava inflamado de ódio e fúria. Automaticamente, Brighid puxou a adaga quando os olhos vermelhos da criatura faiscaram nela e Fallon desnudou
os caninos mortais.
- Outra prostituta de MacCallan! - cuspiu ela. - Eu devia saber que onde o irmão de Elphame estivesse, lá estaria a centaura também, exatamente como no dia em que
me capturaram injustamente. - Fallon girou a cabeça para olhar para trás, num movimento semelhante ao de um inseto. Mais gargalhadas loucas saíram de sua boca ao
arreganhar os dentes. - Mas você estava atrasado demais, não é, guerreiro? Devo dizer como era o gosto do sangue da sua doce Brenna?
Da escadaria, Cuchulainn avançou, atirando-se sobre Fallon, mas foi contido por três dos guerreiros guardiões quando o grupo inteiro se derramou no corredor. Brighid
foi rápido para perto de Cuchulainn, afastando os guerreiros negros. No lugar deles, bloqueou o amigo e usou o poder de seu corpo de centauro para impedi-lo de alcançar
Fallon.
- Cuchulainn! Você concordou em deixá-la viver até dar à luz a criança! - gritou Keir. Ainda estava de pé na arcada da escadaria, também transformado pelo aprisionamento
de Fallon. Os olhos estavam bem fundos na cabeça, o cabelo estava frouxo e desbotado. Ainda parecia humano, mas tinha envelhecido notavelmente. As asas não estavam
presas como as de Fallon, mas ele as mantinha apertadas às costas largas. Também não estava acorrentado, mas um único guerreiro vinha atrás dele, arma desembainhada
e de prontidão.
- Isso mesmo. Não se esqueça de que carrego uma criança! - sibilou Fallon, esfregando o abdômen com os dedos que tinham se tornado semelhantes a garras.
- Não esqueceremos! - rosnou-lhe Brighid, ainda contendo Cuchulainn com esmero. - Estaremos aqui para dar as boas-vindas ao nascimento da sua criança porque isso
marcará o dia da sua morte.
A expressão dissimulada de Fallon se transformou e mudou. Ela cambaleou como se de repente estivesse fraca demais para ficar de pé por si mesma. Keir correu até
ela, envolvendo-a com os braços quando ela desabou sobre ele.
- Nossa criança! Não deixe que falem da nossa criança, meu querido! - soluçou ela.
- Levem-na daqui - disse Brighid, sentindo bile subir pela garganta diante da atitude dramática da criatura.
Os guerreiros arrastaram as duas criaturas aladas pelo corredor, deixando Cuchulainn e Brighid observando até desaparecerem numa escadaria que descia para o interior
do castelo.
- Tinha me esquecido da maldade e do ódio dela - disse Cuchulainn numa voz baixa e tensa. - Como pude esquecer?
- Uma criatura assim é inimaginável. - Brighid meneou a cabeça com descrença. - Não é de admirar que os guerreiros guardiões estivessem dispostos a disparar em qualquer
coisa com asas. Não posso culpá-los depois de ver no que Fallon se transformou.
- Ela é uma fomoriana.
- É a última de sua espécie. Depois que der à luz, nós a executaremos e o mal dessa raça morrerá com ela - disse Brighid.
- É o que gostaria de saber... - disse Cuchulainn, ainda olhando o corredor.
Brighid observou seu rosto. Tinha endurecido novamente naquela máscara impenetrável e insensível que ela não via há dias. Pousou a mão no ombro dele - um gesto de
amizade que se obrigou a demonstrar. Cuchulainn tinha se tornado um estranho frio e perigoso, mas Brighid mirou seu olhar morto.
- Não a deixe arrastá-lo de volta ao passado, Cuchulainn. Se ela o fizer, ela vence. Não deixe o ódio dela vencer.
- Devemos retornar para as crianças - disse Cuchulainn. Ele se virou abruptamente, desvencilhando-se do calor da mão de Brighid, e sem qualquer outra palavra refez
o caminho até o pátio.
Vinte e Dois
DE CERTA FORMA, a perturbação de Fallon tinha sido uma boa coisa para os neofomorianos. Não que Brighid gostasse das crianças tão visivelmente angustiadas, mas ainda
estava para conhecer um guerreiro que conseguisse continuar distante e impassível à visão de crianças impotentes que precisavam ser tranquilizadas. E estava óbvio
que as crianças precisavam ser tranquilizadas.
Quando Brighid e Cuchulainn retornaram ao pátio, foi para encontrar grupinhos de crianças com olhos arregalados e assustados ao redor dos neofomorianos adultos e,
Brighid notou com surpresa, ao redor dos guerreiros vestidos de preto que as escoltaram pela passagem. As crianças aladas não estavam chorando ou demonstrando qualquer
sinal de histeria infantil, mas havia nelas um silêncio terrível e assustador enquanto se mantinham perto do adulto mais próximo.
A reação dos guerreiros guardiões - arcos de prontidão, corpos diante das crianças - aliviou a mente de Brighid imensamente. Não importavam as dúvidas dos mestres
do Castelo Guardião, os guerreiros pareciam aceitar a inocência das crianças, tanto que já estavam sendo protetores.
- Acabou. Ela foi levada para o calabouço - disse Cuchulainn ao se aproximar de Fagan e dos outros mestres perto do centro do pátio. Ele se dirigiu ao mestre espadachim:
- Por que ela já não fica mantida lá?
- Geralmente fica - explicou Fagan. - Mas as celas internas são frias e úmidas - tremendamente insalubre - e ela está grávida. Deixamos que pegue ar fresco e se
exercite por causa disso.
- Ela não merece essas coisas - irritou-se Cuchulainn.
- Claro que não. Mas está sendo mantida viva pelo bem da criança. Se causarmos a morte dela ou o aborto do bebê, não estaremos contradizendo a razão pela qual nos
foi trazida?
- Ela é má. - A voz de Cuchulainn estava baixa e perigosa. - E precisa ser destruída, tendo ou não aquela cria demoníaca que carrega consigo.
Brighid aproximou-se rápido de Cuchulainn. Desta vez a mão que colocou sobre o ombro dele não teve o toque gentil de uma amiga.
- Basta, Cuchulainn! - exclamou ela, puxando-o para que a encarasse.
Cuchulainn recuou, olhos estreitados, mas antes que pudesse rosnar em resposta, Brighid fez um gesto rígido de impedimento.
- Pare e pense antes de falar. Está assustando as crianças. E elas já estão bem apavoradas.
O olhar de Cuchulainn se inflamou ao olhar para as crianças. Aquelas que tinham ouvido o encaravam com expressões que variavam entre confusão e medo - e algumas
delas, as mais crescidas, o observavam com mágoa nos olhos arregalados.
Brighid se aproximou dele e falou com tranquilidade:
- O que elas não precisam, acima de tudo, é o fardo da incerteza de imaginar que o seu herói guerreiro talvez as odeie. Elas poderiam ser facilmente consideradas
crias de demônios. Será que quer vê-las destruídas também?
O olhar de Cuchulainn vagou pelas crianças conforme Brighid falava. Ela pôde identificar o instante em que suas palavras penetraram o muro de raiva. Os ombros largos
tombaram e Cuchulainn passou uma das mãos, inseguro, pela testa.
- Temos muito trabalho a fazer - disse Ciara em meio ao silêncio desconfortável. - As crianças estão famintas e cansadas.
- Sim, claro - disse Cuchulainn numa voz anormal, polida. - Não devemos perder tempo. Gareth! Cullon! - Ele chamou os nomes de dois dos meninos mais velhos. Hesitou,
depois acrescentou: - Kyna! Ajudem-me a acomodar os animais enquanto as tendas estão sendo erguidas. - O farfalhar de asas respondeu aos chamados quando as três
crianças e a filhote de lobo quase crescida correram para acompanhar o guerreiro carrancudo.
Então, como se a partida de Cuchulainn fosse um sinal de ação, os híbridos, com a ajuda de suas escoltas, retomaram a tarefa de levantar acampamento. Brighid sorriu
tranquilamente para as crianças que continuavam olhando para ela, imaginando silenciosamente quando se tornara advogada dos pequenos e também curandeira involuntária
para os espiritualmente enfermos.
Ciara se materializou silenciosamente ao lado da caçadora.
- É apenas um revés temporário.
- Como pode ter tanta certeza?
- O guerreiro começou a sentir a centelha da vida outra vez. Seu corpo, seu coração, até seu espírito, lembram como é estar inteiro e conhecem a alegria de viver
de verdade. Não será algo do qual poderá fugir facilmente.
Brighid encontrou os olhos da mulher alada. Queria perguntar a Ciara se com isso queria dizer que Cuchulainn estava se apaixonando por ela, e ela por ele, mas as
palavras não vinham. Soavam como palavras ridiculamente idiotas e de mulherzinha, em sua mente. O quanto não soariam pior se faladas em voz alta? E por que isso
era da sua conta? Não era. Não realmente. Que Elphame solucionasse a vida amorosa do irmão. Brighid tinha assumido a tarefa de ajudá-lo a consertar o espírito. Isso
era tudo.
O sorriso de Ciara se aqueceu, e Brighid teve a perturbadora sensação de que a mulher alada estava lendo sua mente. Outra vez.
- Ciara! - Mestre Fagan abria caminho em meio à turba de crianças e guerreiros atarefados. Trazia consigo uma mulher bem-formada, de meia-idade, que ele logo apresentou
como Kathryn, a cozinheira-chefe do castelo, antes de desaparecer por trás do turbilhão de atividade. A mulher volumosa fitava as crianças com fascinação e choque.
- Trouxemos provisões conosco - assegurou-lhe Ciara, mas a cozinheira dispensou a oferta implícita da xamã.
- Convidados que recebem santuário no Castelo Guardião não alimentam a si mesmos - disse Kathryn com rispidez. - Basta simplesmente acrescentarmos algumas panelas
no fogo. - Ela coçou o queixo duplo. - Exatamente quantas crianças são?
- Setenta - respondeu Brighid, desfrutando do ar de horror da cozinheira. - E 22 adultos, mais Cuchulainn e eu.
- É um número bem sólido. Pela Grande Deusa! Quantas boquinhas! - Ela se balançou sobre os calcanhares, plantando as mãos na cintura grossa.
Foi então que os guerreiros guardiões começaram a acender as tochas que descansavam pacificamente nos candeeiros de parede dispostos ao redor do pátio interno. A
área se encheu com o calor confortável das chamas dançantes.
Brighid ergueu uma sobrancelha para a cozinheira.
- Está anoitecendo e não conheço o território, mas isso pouco importa. Devo conseguir rastrear e matar algo. Embora provavelmente não seja rápido o bastante para
alimentá-los no jantar.
- O Castelo Guardião está muito bem abastecido! - bufou Kathryn.
- Não consideraria a oferta de Brighid como um presente? - perguntou Ciara.
Os olhos curiosos da cozinheira alternavam-se entre fitar as crianças e a adorável xamã alada.
- Um presente?
- Sim, da nossa caçadora para a sua.
Kathryn olhou de Ciara para Brighid, obviamente tentando decidir se podia aceitar a oferta sem desonrar o castelo. Brighid percebeu o olhar da cozinheira e assentiu
em encorajamento.
- Imagino que um cervo de presente para a refeição da manhã não seria inapropriado. Mas você não estaria presenteando nossa caçadora - estaria presenteando o castelo
em geral. Nossa caçadora nos deixou vários dias atrás.
Surpresa, a mente de Brighid buscou depressa por um nome.
- Sua caçadora não é Deirdre da manada Ulstan?
- Sim, e sentimos muito a falta dela - disse Kathryn. - Embora isso não signifique que estamos necessitados. - A cozinheira esticou a espinha com óbvio orgulho.
- Nossos guerreiros não estão para o padrão de uma caçadora, mas não deixariam o castelo nem seus convidados famintos.
Tinham ficado sem nenhuma caçadora? Como era possível? Não, ela não tinha visto nenhuma centaura por ali, mas uma caçadora nem sempre estava no castelo. É claro
que não seria estranho para ela estar fora rastreando caça, mesmo até bem depois do anoitecer. Brighid meneou a cabeça como se para clareá-la.
- Não entendo. Sua caçadora os abandonou? Sem chamar outra para ficar em seu lugar?
- A partida dela foi inesperada. Um dia, ela recebeu um mensageiro centauro trazendo uma mensagem da Planície dos Centauros. No dia seguinte, tinha ido embora.
- Quando ela volta?
- Em breve, espero. Mas ela não disse quando. - Kathryn encolheu os ombros para a pergunta. - Como eu disse, sentimos falta dela, mas estamos nos adaptando bem.
Minhas panelas não ficaram vazias. Nem ficarão.
- Seria um prazer presentear o Castelo Guardião com a presa de uma caçadora - disse Brighid formalmente, contendo as emoções beligerantes que o anúncio de Kathryn
tinha causado.
A cozinheira hesitou apenas um momento mais antes de lhe fazer uma mesura.
- Aceito seu presente generoso, caçadora do clã MacCallan.
- Vou ao trabalho - disse Brighid.
Ela assentiu para Ciara e a cozinheira e fez uma saída rápida. Agradeceu silenciosamente à Deusa pelo motivo para escapar do caos controlado da arrumação do acampamento.
Precisava de tempo para pensar no que a súbita ausência da caçadora do castelo poderia significar.
Uma caçadora não largava suas responsabilidades e abandonava o castelo, aldeia ou manada sem primeiro preparar provisões para sua ausência. Verdade, ela tinha deixado
o Castelo MacCallan às pressas, mas a caça nas florestas abandonadas era pateticamente fácil de abater. Mesmo um guerreiro estúpido poderia disparar uma flecha num
cervo que fica olhando parado como um bezerro domesticado. Não teria deixado o castelo se não fosse assim - não sem primeiro chamar os serviços de outra caçadora.
Mas uma mensagem chegara para Deirdre, e a caçadora abandonara o castelo imediatamente. Por quê?
Um mau pressentimento estremeceu a espinha de Brighid. Aquilo cheirava a política e intriga dos centauros. O que estaria acontecendo na Planície dos Centauros para
que uma caçadora ignorasse suas responsabilidades?
O mau pressentimento se transformou em dedos de gelo.
Só a doença ou morte súbita de um sumo xamã causaria tamanha reação.
Não! Deirdre provavelmente recebera uma mensagem da própria manada. Um problema de família... Algo pessoal demais para se comunicar.
Mesmo assim, isso não encaixava. Uma caçadora garantiria provisões para seu povo, mesmo durante momentos de emergência familiar. Devia ser algo bem pior... Bem mais
perturbador...
- Caçadora? Quer deixar o castelo?
Acima dela ecoou a voz profunda nas grossas paredes cinzentas. Brighid parou e olhou às cegas ao redor. Imensas portas de ferro lhe bloqueavam o caminho. Pela Deusa!
Nem percebera que tinha alcançado a entrada do castelo. Correntes sustentavam o ferrolho maciço que mantinha as portas seguramente trancadas. Ela olhou para o sentinela
lá em cima e encobriu seu embaraço com aborrecimento.
- E por que eu estaria aqui esperando que você abrisse as portas se não desejasse sair? Quer cervo fresco de manhã ou não?
- Claro, caçadora! - gritou o guarda, acenando em tom de desculpas enquanto fazia seus homens girarem a roda que puxaria o ferrolho.
- Não vou demorar - disse Brighid com rispidez. - Fiquem de olho por mim.
- Sim, caçadora - gritou ele depois que saiu trotando pela abertura estreita. Mas Brighid não foi muito além dos muros grossos antes de parar e respirar fundo.
Partholon...
Por um momento, a confusão dentro dela se aquietou. Mesmo rastreando num território estranho, seus cascos mais uma vez estariam pisando o solo de Partholon. Enfim
tinham deixado os Ermos para trás. Seus aguçados olhos de centaura sorveram da terra que o anoitecer estava lavando em luz fraca.
Como era de esperar, a terra adjacente ao castelo era limpa para que o inimigo não pudesse surpreender os guerreiros guardiões. Mas o chão debaixo dos cascos era
notavelmente mais macio que o solo rochoso e desolado do outro lado das montanhas. A floresta de pinheiros misturada com alguns ocasionais carvalhos teimosos começava
quase a 12 cavalos dos muros do castelo. Brighid desceu a meio-galope a estrada ampla, ansiosa para entrar na floresta verde. Não era compacta como as florestas
ao redor do Castelo MacCallan, mas as árvores eram fortes, retas e verdes. Ela respirou bem fundo. Podia jurar que o ar ali era mais limpo também.
Era como estar em casa, percebeu com um pequeno sobressalto. Não o lar de sua infância, na Planície dos Centauros. Era como o lar de sua escolha quando adulta...
Seu próprio caminho. Parecia-lhe certo.
A caçadora cheirou a brisa fresca e, quando sentiu a limpa fragrância líquida da água, saiu da estrada. Andando quieta sob o crepúsculo, seguiu o instinto, e a caçada
fez sua mágica em seus nervos desgastados. Brighid abraçou com gosto o bálsamo familiar da vida escolhida. Como se fossem escamas, livrou-se do estresse e da preocupação
dos últimos dias.
Brighid desacelerou, cheirando o ar verde novamente. Mudou ligeiramente de direção, seguindo mais para a esquerda. Encontraria o riacho lá. Sabia disso. Podia sentir.
E haveria cervos lá, matando a sede ao seu modo tímido uma última vez antes de irem dormir à noite. Já podia senti-los. Havia vários, não muito adiante.
Pela Deusa, era bom ficar sozinha caçando para um castelo novamente! Precisava da paz e da solidão que a caçada lhe dava - mesmo que fosse uma prorrogação temporária.
A verdade era que sentia falta da simplicidade da vida que esculpira para si mesma no Castelo MacCallan. Anos lidando com as manipulações políticas dentro da família
a fizeram desejar uma maneira diferente de viver, e afundar-se no rigoroso treinamento de caçadora lhe ensinara que preferia o silêncio da terra ao tumulto das pessoas
- fossem humanos, centauros ou neofomorianos.
Brighid movia-se com fluidez em meio aos pinheiros. Podia ouvir o som musical da água ao tombar pelas pedras e correr alegremente para Partholon. Ela sorriu. Sabia
como a água se sentia. Estava tremendamente feliz por voltar para casa.
Sob a luz turva, percebeu o reflexo cristalino da água corrente, então reduziu o passo, puxando uma flecha da aljava com um movimento experiente e silencioso.
Ela estava certa. Havia vários deles. Brighid contou rapidamente. Três corças. Duas obviamente prenhas, uma mais magra e volumosa que as outras - provavelmente dera
à luz o filhote recentemente. Parado um pouco afastado das três fêmeas estava um único gamo. Sua pequena galhada musgosa dizia que ele era jovem demais para ter
ganho os próprios direitos de procriação naquela primavera, mas a atenção concentrada com que observava as corças dizia que ele era velho o bastante para ser obstinadamente
esperançoso.
Com um movimento que era tão mortal quanto gracioso, Brighid mirou e depois disparou uma única flecha. O zunido do arco fez a cabeça do jovem gamo recuar e seu corpo
ficar tenso - bem a tempo para a flecha transpassar certeira a base do pescoço, emergindo pela parede do peito. O cervo cambaleou dois passos para trás, depois,
enquanto as corças desapareciam na floresta que escurecia, ele desabou sobre os joelhos, tombou para o lado e ficou imóvel.
Brighid soltou o ar que estava segurando e caminhou lentamente até o gamo caído. Automaticamente murmurou uma oração de agradecimento a Epona pelo abatimento. Sua
oração era cheia de respeito e apreciação enquanto se concentrava nos momentos finais da vida do jovem gamo: Invoco a ti, ó grande caçadora do céu de verão,
Epona, minha Deusa benfeitora e inspiração.
Agradeço pelo presente deste abençoado cervo.
Apresses a jornada dele até ti.
Que ele seja aceito, cuidado, recompensado.
Ele é meu irmão e amigo.
Olhes favoravelmente para a caça,
para teu povo e as caçadoras,
como tem feito por eras incontáveis.
Deixes os antigos espíritos animais da natureza descansarem
sabendo que recebem a reverência, a honra,
o agradecimento de quem os caça...
Brighid ficou de pé acima do corpo do gamo morto e curvou a cabeça.
... assim como eu reverencio, honro e agradeço a ti,
minha amada Deusa.
Ficou em silêncio por mais um momento, e respirou fundo e purificadoramente por três vezes antes de se abaixar para puxar a flecha do gamo. Quando a soltou, o peito
do cervo explodiu para fora, encharcando-a de sangue coalhado. Brighid cambaleou para trás, buscando a espada curta que sempre carregava na cintura.
Até perceber o que tinha explodido do peito do jovem gamo. Rodeando-a, numa confusão de penas pretas e sangue, estava um único corvo que lhe era bem familiar.
Vinte e Três
- MÃE! - ELA LIMPOU o sangue do rosto com as costas da mão e estreitou os olhos para a ave que a rodeava. - Não sei que jogo está fazendo, mas pare! Até você sabe
que não deve interferir com uma caçadora. Não precisa aprovar minha carreira escolhida, mas, pela Deusa, deve respeitá-la!
A ave preta circulou mais baixo, até que, num alvoroço de asas, aterrissou no corpo coberto de sangue coalhado do cervo morto.
- Deixe-me em paz - disse-lhe Brighid.
- Volte para casa, filha. - A voz da mãe encheu-lhe a mente.
- Estou voltando para casa. Para o Castelo MacCallan. Minha casa, mãe. Minha casa!
- Essa não é sua casa, sua potra tola!
- Não. - A voz de Brighid era de aço. - Não sou criança. Não mais. Tomo minhas próprias decisões.
- Sua manada precisa de você.
- Minha manada ou seu orgulho?
- Insolência!
- Verdade! - contrapôs Brighid. Deu dois passos adiante e encarou a ave preta. - Jamais serei manipulada por você outra vez. Sou caçadora jurada ao clã MacCallan.
Esse é o caminho que escolhi.
- O caminho que escolheu, mas não seu destino...
A voz da mãe desapareceu enquanto, grasnando, a ave abriu suas asas de ébano e, batendo ao vento, ergueu-se repentinamente no ar da noite, desaparecendo na escuridão
expectante.
Irritada, Brighid relanceou o corpo do cervo. Só que agora o ferimento da flecha estava limpo. Nada de peito explodido. Nada de sangue coalhado salpicando a floresta
ou - ela tocou o rosto e sentiu que estava limpo - a si mesma.
- Truques e manipulações de uma xamã - murmurou entre os dentes trincados. Esqueça. Concentre-se na tarefa em mãos. Brighid se abaixou para destripar o cervo, preparando-o
para a curta viagem de volta ao Castelo Guardião. Tentou se perder na familiaridade da tarefa, mas não adiantou. A serenidade da floresta fora despedaçada, assim
como a prorrogação pacífica que encontrara. Por toda parte ao seu redor, ela sentia olhos vigilantes e observadores.
Estava completamente escuro quando os guardas abriram as portas grossas do Castelo Guardião. Mãos ansiosas cumprimentaram Brighid e a aliviaram do cervo enquanto
pessoas a elogiavam e agradeciam. Brighid aceitou a demonstração efusiva de gratidão com desconforto. Aquilo a deixou ainda mais consciente do estado triste no qual
uma irmã caçadora deixara seu castelo. Sua mãe devia estar prestando atenção aos hábitos de centauras errantes em vez de concentrar seu tempo e energia numa filha
rebelde.
Brighid fechou a cara. Não que fosse realmente rebelde. Pela Deusa, por que deixar a manada era uma questão tão abrangente? Sim, era uma tradição dos Dhianna que
a filha mais velha da sumo xamã substituísse a mãe na liderança da manada, mas isso nem sempre acontecia. Houve épocas em que a sumo xamã não teve filhas, ou em
que ela morreu sem produzir uma herdeira. Por que a mãe dela não enxergava que sua sucessão era uma dessas épocas?
Não era como se Brighid não tivesse outros irmãos. Sim, a irmã tinha demonstrado pouca promessa de liderança. Niam era dourada, bela e perpetuamente feliz porque
sua mente era tão vazia quanto a de uma égua parideira. Mas o irmão de Brighid... O maior desejo de Bregon se realizaria quando substituísse a mãe. Machos não eram
proibidos de se tornarem sumos xamãs. A posição de Sumo Xamã de Partholon sempre era ocupada por um macho. Era o centauro que se casava com a Escolhida de Epona
e que ao lado dela liderava Partholon. Bregon receberia com prazer o poder que ser Sumo Xamã dos Dhianna lhe daria, e talvez até acreditaria ter conquistado o que
sempre lutou para conseguir a vida inteira - o amor da mãe.
As sobrancelhas dela se uniram. Pensar no irmão mais novo sempre lhe dava dor de cabeça. Nunca foram próximos. Pelo menos não desde...
- Brighid! Que bom, chegou a tempo para jantar.
A caçadora endireitou os ombros e deixou Ciara arrastá-la para o pátio. Outra maldita xamã... Outra enxerida, intrometida...
- Estava esperando você. Há um lugar guardado para você junto ao fogo. - A xamã lhe deu uma olhada preocupada. - Alguma coisa errada? Você parece...
- Não! Nada errado. - Brighid fez o rosto relaxar e sorriu para a mulher alada. Não deixaria a mãe envenenar a crescente amizade com Ciara. Aquela xamã não era sua
mãe. Não estava espionando; estava preocupada. - Mas estou faminta. Aprecio que tenha esperado por mim.
Entraram no pátio grande e quadrado, e o sorriso rígido de Brighid se tornou autêntico. As tendas estavam dispostas num círculo alegre, embora não tão comprimidas
como quanto estavam nos Ermos. Ali já estavam abrigados do vento mordente da noite pelos muros do Castelo Guardião. Crianças estavam sentadas por toda parte, conversando
com os guerreiros guardiões em exclamações animadas entre mordidas no cozido fumegante e em pedaços de pão aromático.
- Então os guerreiros não desapareceram com a noite -disse Brighid.
- Ah, não. - Ciara riu baixinho. - Parece que os grandes guerreiros do Castelo Guardião foram feitos reféns.
- Reféns?
- Sim. Da curiosidade.
Brighid bufou:
- Ou estão morrendo lentamente de tanto conversar e já perderam a capacidade de escapar.
Ciara riu novamente.
- Não fala sério.
- Falo sim. Não tem ideia do quanto essas vozinhas podem ser perigosas para os não iniciados.
- Quer dizer que um deles pode até fazer uma caçadora aceitar um novo aprendiz? - A xamã sorriu de propósito para Brighid.
- É exatamente o que quero dizer.
Ciara tocou de leve o braço da caçadora.
- Liam está descansando confortavelmente na enfermaria do castelo. Nara ficará com ele durante a noite. Ela me garantiu que ele poderá viajar pela manhã, mas terá
que ser numa padiola.
- Obrigada... Eu... - Brighid se calou e engoliu o nó que repentinamente surgira em sua garganta. - Descobri que desenvolvi afeição pelo menino. - A caçadora parou
de repente. Meneando a cabeça, disse: - Não sei o que há de errado comigo. Anunciei formalmente que Liam era meu aprendiz antes de pedir aos pais dele.
Ela suspirou, completamente incomodada consigo mesma. Já era bem ruim ter quebrado a tradição ao aceitar um aprendiz macho - um aprendiz com asas que decididamente
nem era centauro. Também tinha desconsiderado totalmente o protocolo adequado. Para uma criança tão jovem quanto Liam, os pais deviam ser consultados para se obter
aprovação. Claro, ela era jovem quando começou o treinamento de caçadora, e a mãe definitivamente não dera aprovação - não que isso tivesse impedido Brighid, mas...
- Fique tranquila. Os pais de Liam estão mortos. Se Lochlan estivesse aqui, você poderia pedir a permissão dele, o que eu acho que ele certamente daria. - Ela encolheu
os ombros macios, fazendo as asas farfalharem. - Estou agindo como líder na ausência dele, e fico contente em dar meu consentimento para que Liam seja seu aprendiz.
- Eu devia ter pensado nisso mesmo assim. Não sei por que...
- Seja um pouco mais branda consigo mesma. Aceitou o menino sob circunstâncias incomuns - estava enfrentando os guerreiros que tentaram matá-lo. Acho que até o protocolo
das caçadoras pode ser afrouxado em casos como esse. Venha - disse Ciara. - Coma e descanse. Esta noite poderá dormir profundamente, sabendo que um exército de guerreiros
nos protege.
Brighid bufou e murmurou:
- Fala dos mesmos guerreiros que dispararam no meu aprendiz?
- Isso foi antes - disse Ciara, fazendo um gesto para englobar o acampamento onde os guerreiros guardiões e as crianças aladas se misturavam -, quando não nos conheciam.
Pode relaxar esta noite, caçadora. A única maldade que pressinto dentro dessas paredes vem de um dos nossos, mas ela está seguramente trancada dentro do interior
deste grande castelo.
Silenciosamente, Brighid seguiu Ciara até o círculo amigável da luz do fogo. A xamã a levou para um espaço vazio do tamanho de um centauro. Com um suspiro que estava
perto de ser um gemido, Brighid dobrou os joelhos e reclinou-se na pele grossa que alguém fora atencioso o bastante de lhe preparar. Aceitou agradecida uma tigela
quente de cozido e um pedaço de pão fresco da mulher que a serviu. Era uma comida simples, mas saborosa e satisfatória. Comida excelente para guerreiros, pensou
ela. Guerreiros e crianças famintas em crescimento. Enquanto comia, observava a luz do fogo brincar no rosto das crianças. Nunca conhecera um grupo de pessoas -
especialmente pessoas que tivessem superado tantas dificuldades - tão cheias de alegria.
E os guerreiros guardiões! Aqueles soldados sérios, bem-treinados, homens e mulheres que viviam para proteger Partholon, estavam sorrindo e respondendo à enxurrada
de perguntas infantis.
Ao menos naquela noite, a esperança cintilava ao redor da fogueira. Talvez já tivesse passado tempo suficiente para que as feridas da guerra tivessem sarado. Talvez
Partholon aceitasse essas crianças deserdadas de mães há muito mortas.
A risada familiar de Kyna atraiu seu olhar. Fand estava estendida ao lado dela, lambendo os dedos da menininha, além do rosto, fazendo a criança se derreter em risadinhas.
Brighid não pôde deixar de sorrir. Que estranha mistura faziam: uma filhote de lobo que não deveria ter sobrevivido à morte da mãe, crianças aladas cujos nascimentos
deveriam ser a morte das mães, uma centaura que tinha escapado da mãe...
Não - Brighid reprimiu os pensamentos negativos. Não tinha fugido. Tinha partido e encontrado um novo povo. Pertencia ao clã MacCallan. Tanto que a chefe do clã
tinha mandado Brighid naquela missão para trazer seu amado irmão em segurança para casa. Brighid completaria a incumbência da chefe de seu clã - e descobriria uma
maneira de fazer com que a alma teimosa de Cuchulainn se reunisse a ele nesse mundo. Andava fazendo um claro progresso. Precisava se lembrar de que Cuchulainn ficara
devastado com a perda e...
... E onde estava aquele maldito homem?
Os olhos aguçados da caçadora vasculharam aqueles reunidos em volta da fogueira. A preocupação apertou seu estômago. E se ele tivesse decidido não esperar pelo nascimento
da criança de Fallon para executar a sentença de morte?
O guerreiro seria destituído de sua posição e expulso do clã MacCallan.
Brighid buscou a silhueta alada de Ciara e a descobriu perto da própria tenda, envolvida numa animada conversa com duas guerreiras. Rigidamente, a caçadora foi até
Ciara. Não esperou por uma pausa na conversa. Desculpando-se apressadamente, puxou a xamã alada de lado.
- Cuchulainn?
- Imaginava quando você notaria a ausência dele - disse Ciara.
- Onde ele está? - Brighid lutou para manter a voz baixa e disse a si mesma que não seria bom causar uma cena por agarrar e sacudir a mulher alada.
- Eu o ouvi perguntando a Fagan onde ficavam as sepulturas do castelo. Presumo que esteja lá.
- Presume! Quer dizer que não sabe?
- Verifique por si mesma. - Ciara acenou com a cabeça para uma passagem larga e relvada que cruzava com o pátio quadrado. - Fagan o mandou naquela direção não muito
antes de você retornar da caçada.
Antes que Brighid pudesse disparar atrás dele, a mão da xamã a deteve.
- Ele não vai matar Fallon. Os pensamentos dele estão em outro lugar.
- Ah, agora consegue ler os pensamentos dele também?
- Não. Não posso ler os pensamentos dele nem os seus. Mas sei que a honra de Cuchulainn o impede da matar Fallon. Devia saber disso também.
Fechando a cara, Brighid se desvencilhou e correu pela passagem iluminada por tochas. A maldita xamã estava certa. Agora que pensava no assunto, sabia que Cuchulainn
nunca desonraria a ele ou ao clã descumprindo a sentença de sua chefe. Mesmo assim, Cuchulainn não devia ficar sozinho com suas emoções sombrias. Não depois do incidente
com Fallon. Ele apenas se retrairia em sua concha rígida. Ciara sabia disso!
A passagem dava numa área que parecia uma horta. Uma mulher agachada cortando raminhos precoces de hortelã deu uma olhada curiosa na centaura.
- Estou procurando o local das sepulturas do castelo - disse Brighid.
- Siga o muro, caçadora. Quando o caminho se dividir, pegue a ramificação para o leste. É fácil encontrar as sepulturas junto da parede, na parte elevada que tem
vista para o resto do castelo.
Brighid assentiu em agradecimento. Exceto pelos sentinelas permanentemente presentes no topo dos muros grossos, aquela parte do castelo era deserta. As tochas do
caminho de ronda lá em cima lançavam uma luz pálida e opaca. Quando a parede terminou à direita, Brighid sentiu o chão abaixo dela se erguer até chegar ao cume num
canto arredondado. A área era elevada e pequenos outeiros tinham sido amontoados ao longo de todo o muro. Não existiam efígies ou tumbas esculpidas. Em vez disso,
os guerreiros guardiões tinham escolhido deixar seus mortos descansar dentro de covas.
Curiosa, Brighid reduziu o passo e se aproximou do primeiro monte respeitosamente. Ao lado dele fora colocado um portal arqueado, cuja pedra cinza era belamente
entalhada com nós de formas intricadas.
- Fagan disse que no verão ficam cobertos com flores silvestres azuis.
A voz profunda de Cuchulainn a surpreendeu.
- Poderia me dar algum aviso? Qual o problema com você e Ciara? Gostam de me matar de susto?
- Desculpe - disse Cuchulainn rispidamente. - Pensei que soubesse que eu estava aqui.
- Sabia que estava aqui, mas não aqui. - Apontou para o canto de onde ele tinha saído da escuridão, ao lado de um dos outeiros maiores. - E por que exatamente está
aqui?
- Por causa deles.
Cuchulainn afastou-se para o lado. A porta da sepultura estava decorada com um único desenho entalhado que Brighid imediatamente reconheceu como sendo o Nó da Curandeira
- aquele com um imenso carvalho entrelaçado por nós. Seus galhos erguiam-se altos no céu. Suas raízes se infiltravam fundo na terra. Porém todos estavam entremeados,
significando a interligação de todas as coisas: terra, céu, vida, morte. E de repente ela percebeu o que tinha atraído Cuchulainn até ali.
- A família de Brenna - disse ela. - Tinha me esquecido de que ela viveu no Castelo Guardião. Estou envergonhada de dizer que tinha até esquecido de que os pais
dela estão mortos.
- Nunca perguntei sobre a morte deles, ou sobre o acidente que a deformou. Estava curioso, quis perguntar, mas olhar para trás não me parecia tão importante quanto
me concentrar no nosso futuro. Parecia que tínhamos a eternidade para revelar o passado... - As palavras de Cuchulainn se esvaíram e ele tocou o símbolo da árvore.
- Sabia que foi o acidente de Brenna que provocou a morte dos pais dela?
- Não - murmurou Brighid, sentindo uma onda de tristeza pela amiga falecida. - Brenna não falava do acidente. Nem sabia que os pais estavam mortos até vocês dois
ficarem formalmente comprometidos e você pedir a permissão de Elphame para anunciar os proclamas porque Brenna não possuía parentes vivos.
- Eu também não sabia. Assim como não sabia que a mãe de Brenna tinha sido curandeira também. Fagan me contou a história. Brenna estava com dez anos, não muito mais
velha que Kyna. Estava ajudando a mãe a preparar emplastros para uma tosse bem nojenta que estava circulando pelo castelo. Fagan disse que ela era uma menina esperta,
alegre - mas que sempre estava sonhando acordada e raramente prestava atenção nas palavras da mãe. - Cuchulainn fez uma pausa, engolindo em seco ao se lembrar da
mulher séria e tímida na qual a criança extrovertida se tornara. Só tinha visto vislumbres da criança ainda dentro dela - especialmente depois que ela aceitara seu
amor.
- Não precisa me contar nada disso, Cuchulainn - disse Brighid. - Não se for difícil demais.
O olhar dele prendeu no dela, ardente e intenso.
- Sim, eu preciso! Você é a única aqui para quem posso contar, e talvez se eu falar isso em voz alta, um pouco da dor vá embora.
Brighid assentiu, compreendendo-lhe a necessidade de se expurgar.
- Brenna misturou os baldes. Devia colocar água em um e óleo no outro. Era um dia frio, e ela ficou perto demais da lareira. A ponta do xale que ela amarrou ao redor
da cabeça pegou fogo. Brenna gritou e a mãe instintivamente apanhou o balde que deveria conter água e o atirou no xale.
- Ah, Deusa... - ofegou Brighid, horrorizada com a imagem da mãe colocando a própria filha em chamas.
- A mãe dela se culpou. Brenna era sua única filha, e sua única filha estava morrendo de maneira horrível por causa do que ela tinha feito. Fagan disse que ela enlouqueceu.
Naquele mesmo dia, se encharcou em óleo e se incendiou. Deixou uma carta dizendo que tinha escolhido se juntar à filha.
Brighid sentiu a cabeça sacudindo de um lado para outro, repetidas vezes.
- O pai dela caiu em depressão profunda. Não comia. Não bebia. Não dormia. Recusava-se a visitar Brenna. Numa manhã não muito depois do suicídio da esposa, encontraram-no
morto.
- Pobre Brenna, pobre criança. Ter sobrevivido àquele fogo terrível, e depois se recuperar apenas para descobrir que os pais estavam mortos - disse Brighid. Ela
estremeceu. - Que conhecimento horrível de se ter quando criança - que sua mãe... e seu pai...
- Morreram de alma despedaçada - completou Cuchulainn por ela. Então buscou o olhar de Brighid. - Foi o que aconteceu com ele. Sei disso. Estava acontecendo comigo.
- Estava?
Cuchulainn correu os dedos de leve sobre o símbolo de curandeira na porta da tumba.
- Estava - disse com firmeza. - Não vai acontecer comigo. Não posso deixar. Pode imaginar a dor que Brenna sentiria por mim por me encontrar no Outro Mundo, e por
si mesma quando percebesse que causou a morte de dois homens que amou? - Ele meneou a cabeça. - Não. Você vai ter que fazer a parte quebrada da minha alma retornar.
- Acho que não posso realmente obrigá-lo a fazer nada, Cuchulainn. Ele se parece demais com você - só que decididamente mais feliz. Você precisa convidá-lo a retornar,
e garantir que ele acredite que o convite é verdadeiro.
Cuchulainn resmungou:
- Vou trabalhar nisso.
- Você tem que continuar até chegarmos ao Castelo MacCallan. É quando farei a jornada ao Outro Mundo. Que a Deusa nos ajude!
- Então, mais uns poucos dias - disse ele. Depois acariciou o nó de curandeira por uma última vez. - Estou pronto para voltar.
Ele se referia ao Castelo MacCallan ou à vida? Quando ele parou para olhar as sepulturas por uma última vez, Brighid ficou em silêncio respeitoso. Isso era algo
no que Cuchulainn teria que trabalhar. Ela podia ajudá-lo a encontrar o pedaço estilhaçado da alma, mas o resto era com ele.
- Flores silvestres azuis.
Brighid ergueu o olhar, surpresa com a risada na voz dele.
- Por que as flores silvestres azuis são engraçadas?
Os olhos estavam cheios de lágrimas contidas, mas Cuchulainn estava sorrindo.
- Brenna adorava flores silvestre azuis. Dizia que a faziam lembrar-se dos meus olhos. Ela até colecionava coisas do tom exato dos meus olhos muito antes de me conhecer.
- Sério?
- Ela as mantinha num altar para Epona. Havia uma pena de um pássaro azul, uma pedra de turquesa no mesmo tom, ela possuía até uma pérola que...
Uma pedra de turquesa no mesmo tom. No bolso do colete, Brighid sentia o peso da pedra azul pressionando seu seio.
- O que aconteceu com a pedra de turquesa? - interrompeu-o ela.
- Coloquei a pedra e o resto das coisas do altar com ela, na tumba.
Lentamente a caçadora enfiou a mão no bolso e apanhou a pedra. Colocando-a deitada na palma, estendeu-a para Cuchulainn. Assim que a viu, o rosto do guerreiro empalideceu.
Com dedos trêmulos, ele a apanhou e revirou várias vezes, estudando-a.
- Onde conseguiu isso? - A voz dele estava grossa de emoção.
Resignada, Brighid falou em voz alta o que mal admitia a si mesma: - Uma águia dourada, que acho que seja meu guia espiritual, a largou sobre mim. A-acho que deve
ser minha pedra apanhadora de almas - terminou, apressada.
- Veio do reino espiritual? - perguntou ele com voz abalada.
- É a mesma pedra que sepultou com o corpo de Brenna?
- Sim, tenho certeza - murmurou ele, encarando a pedra.
- Então definitivamente veio do reino espiritual.
- Acha que isso significa que Brenna está aqui de alguma forma, nos observando?
- Não sei responder isso, Cuchulainn. Mas acho que significa que seu espírito deve ficar inteiro novamente, e que eu devo ajudar para que isso aconteça.
Cuchulainn devolveu-lhe a pedra, que ela escondeu no bolso do colete.
- Somos uma dupla confusa, caçadora - disse Cuchulainn.
- Certamente, meu amigo.
O resmungo de resposta de Cuchulainn estava entre uma risada e um soluço. Brighid logo mudou de assunto: - Ciara acha que não precisamos vigiar o acampamento esta
noite. Disse que a única maldade que pressente vem de Fallon. Ela confia nos guerreiros guardiões.
- Então vamos apenas dizer que estamos cuidando da fogueira. Estamos dentro desses muros, mas ainda numa parte fria do mundo. Prefiro o segundo turno - disse Cuchulainn.
Os olhos de Brighid encontraram os dele num perfeito entendimento.
- Então eu fico com o primeiro. Assim a fogueira nunca correrá o perigo de apagar.
- De acordo.
Conforme caminhavam de volta para o acampamento, Brighid sentiu o calor da pedra de turquesa perto do coração. Surpreendentemente, isso a confortou.
Vinte e Quatro
BRIGHID NÃO QUERIA sonhar. Não no Castelo Guardião, lar de muitas histórias horríveis. Enquanto se acomodava confortavelmente nas peles que ainda estavam quentes
do corpo de Cuchulainn... que ainda cheiravam a ele... a caçadora tomou rédea firme sobre sua mente.
Não esta noite, ordenou a si mesma. Respirou de forma purificadora por três vezes e se concentrou. Não esta noite! Fortaleceu o pensamento com cada tantinho do inato
instinto xamãnico no seu sangue e o mandou voando para o Outro Mundo - dirigido diretamente à alma despedaçada de Cuchulainn. Amanhã, sob os céus abertos de Partholon,
estaria melhor preparada para lidar com a parte carismática faltante de Cuchulainn. Hoje a história trágica da vida de Brenna estava muito recente, e o castelo que
a cercava era muito cheio de fantasmas.
Caiu no sono esperando que a felicidade que Brenna encontrara ao fim da vida tivesse compensado a dor e a tragédia da infância.
A princípio, Brighid não percebeu que estava sonhando. Só estava feliz por estar de volta ao Castelo MacCallan. Lar! E tudo era desconcertantemente real. Era cedo,
ainda não tinha amanhecido, então o pátio principal estava deserto. A estátua da famosa ancestral MacCallan, Rhiannon, despejava água musical numa graciosa fonte
de mármore cercada por bancos e samambaias envasadas. O teto - recém-restaurado por mãos MacCallan - fora deixado parcialmente aberto para o céu, tanto que a luz
que antecede o amanhecer se misturava harmoniosamente com os candeeiros das paredes, criando um brilho rosado suave.
A cena era familiar e cara. Normalmente Brighid acordava antes da maioria do castelo, fazia o desjejum e caçava cedo. Sorriu diante da beleza das poderosas colunas
de mármore do pátio, maravilhando-se novamente com o delicado trabalho de nós que entrelaçava a égua empinada de MacCallan com animais da floresta das cercanias.
Por hábito, ela fez seu caminho pelo espaçoso coração do castelo até o salão principal.
A fragrância tentadora de pão recém-assado flutuou pelo salão que servia tanto como sala de jantar quanto câmara de reunião geral. O salão geralmente estava vazio
assim tão cedo - diferentemente da cozinha. Mas Brighid estava acostumada a fazer o desjejum sozinha. Apreciava a solidão e a chance de ordenar os pensamentos para
a caçada do dia. Através da parede de vidro chanfrado entre o Grande Salão e o pátio principal, Brighid ficou surpresa por entrever alguém já sentado para o desjejum.
Provavelmente uma das cozinheiras tirando um descanso mais do que necessário. Não importava, ela gostava da equipe da cozinha e não se incomodaria com a companhia.
A caçadora entrou no salão e parou chocada. Brenna estava sentada onde costumava ser seu lugar de costume à mesa de pinho polido da chefe do clã. Brighid sentiu
uma vontade súbita de piscar e esfregar os olhos, mas não havia como confundir a curandeira. O espesso cabelo escuro pendia sobre o ombro direito, obscurecendo parcialmente
a gelosia de cicatrizes profundas que lhe cobria a parte direita do corpo.
- Estou sonhando. - Foi o que escapuliu dos lábios dormentes de Brighid.
- Está, minha amiga.
Brenna olhou para a centaura e sorriu, então Brighid sentiu o coração apertar. Aquele familiar e querido sorriso torto! Lágrimas encheram os olhos da caçadora, transbordando
e correndo pelas faces abaixo.
- Oh, Brighid, não! Por favor, não faça isso.
Brighid secou rápido as faces.
- Lamento, Brenna. Não esperava... Nem mesmo percebi que estava sonhando até agora. E senti saudades.
- Também senti saudades, Brighid.
A caçadora secou o rosto novamente e respirou fundo antes de se aproximar do espírito da pequena curandeira. Brenna parecia a mesma! Tão real! Brighid se repreendeu
mentalmente. Brenna era real - só era espírito em vez de corpo.
- Sem mais lágrimas? - pediu Brenna.
- Sem mais lágrimas.
- Bom. Nosso tempo é curto demais para ser desperdiçado. - Brenna suspirou e deixou o olhar vagar saudosamente pelo Grande Salão. - Ficou tão bonito - exatamente
como imaginei que ficaria quando Elphame o descrevia para nós.
- Você não... - hesitou Brighid, incerta de como estruturar a pergunta - ... esteve aqui desde... - Ela se calou, sem jeito.
- Quer saber se ando assombrando o Castelo MacCallan? - Brenna riu, um som tímido e doce. - Não. Esta noite é especial. Me senti compelida a vir aqui... e conversar
com você... - Os olhos tomaram um ar distante, como se ela pudesse ver algo belo através das paredes de pedra. Então Brenna riu outra vez e os olhos se voltaram
para a amiga. - O Castelo MacCallan já possui um fantasma. Não precisa de outro.
- Não sabia que existia um limite - disse Brighid.
- Não existe. Mas não seria bom para mim, ou para o clã MacCallan, se eu permanecesse por aqui. É importante que todos nós sigamos em frente.
- Fala de Cuchulainn.
- Sim, falo de Cuchulainn. - Quando Brenna falou seu nome, a voz se suavizou numa carícia verbal. - Mas não só dele. El, você, eu - todos nós temos nossos destinos.
Encontrei o meu, e não seria justo se eu ficasse no caminho, impedindo que vocês encontrassem os seus.
As palavras de Brenna arrepiaram Brighid.
- Há algo que eu deva saber, Brenna?
- Não vim aos seus sonhos como arauto da perdição. Você está destinada a ter uma longa vida, minha amiga caçadora. Só quero ter certeza de que seja longa e feliz.
Brighid piscou surpresa.
Brenna sorriu.
- Não esperava por isso, não é?
- Pensei que estivesse aqui por causa de Cuchulainn.
- Estou, de certa forma. O que quero que saiba ajudará vocês dois.
- O que é, Brenna?
- A pedra de turquesa foi meu presente para você. Use-a para curar Cuchulainn.
- Usarei, Brenna. Ele já está melhor. Visitou a sepultura dos seus pais hoje, depois que mestre Fagan contou o que aconteceu à sua família. Ele jurou que não...
- Brighid calou-se, horrorizada com o que quase deixara escapulir. Onde estava sua mente? Será que nunca controlaria sua língua habitualmente honesta demais?
A forma espiritual da curandeira estendeu e pousou uma das mãos, fria e quase sem peso, sobre o braço de Brighid.
- Pode dizer, minha amiga. A morte curou essa velha ferida. O passado não pode me causar dor.
- Cuchulainn jurou que se recuperaria para que você não fosse responsável pela morte de outro homem que ama - murmurou Brighid.
- Bom. Se descobrir sobre meu passado fez isso por ele, só desejo que ele soubesse disso antes. Talvez já tivesse começado a sarar.
Ela endireitou os ombros e empurrou o cabelo para trás. Brighid só conseguiu ficar olhando. As cicatrizes terríveis que davam ao lado direito do rosto uma aparência
derretida tinham desaparecido, deixando a pele intacta e espantosamente bela.
- Oh! - Brenna levou a mão à face macia. - Sumiram. É estranho. Não assumo sempre a forma física, mas quando o faço, às vezes as cicatrizes estão aqui, outras vezes
não. Acho que isso não importa muito.
- Foi como Danann esculpiu sua imagem, sem cicatrizes - disse Brighid. - Disse que nem percebeu o que fazia, só fez o que a memória lhe ditou.
O sorriso de Brenna foi radiante.
- Sempre achei que aquele velho centauro era mais espírito do que corpo. - Então os olhos da pequena curandeira assumiram um ar distante e seu corpo tremulou e se
tornou menos substancial.
- Brenna?
O espírito piscou e trouxe a atenção de volta para a caçadora.
- Não tenho muito tempo de sobra. A coisa mais importante que vim contar é que quero sua promessa de que manterá a mente aberta.
- Para o quê?
- Para tudo que parecer impossível.
- Brenna, não pode ser um pouquinho mais específica?
- Posso, mas você não está pronta para isso. Ainda. E de qualquer forma, é algo que precisa descobrir sozinha. Não posso ajudar mais do que já ajudei. Apenas me
dê sua palavra, por favor.
Brighid franziu a testa.
- Tudo bem. Tem minha palavra.
Brenna parecia aliviada.
- Obrigada, Brighid.
- Quer que eu diga alguma coisa a Cuchulainn por você? - perguntou Brighid às pressas, preocupada, porque, como um belo desenho sendo apagado lentamente, a forma
da amiga estava desaparecendo.
- Pode falar sobre esta visita, mas não agora. Não é o momento certo. - A voz de Brenna estava assumindo o aspecto efêmero de um eco.
- Espere! Quando será o momento certo?
- Você vai saber. Por livre vontade, e sem hesitação, deixo-o com você, minha amiga. Lembre-se disso... por livre vontade... Durma agora, Brighid, e que seu futuro
seja ricamente abençoado... - O espírito desvaneceu em nada.
Brighid dormiu profundamente. Pelo resto da noite, apenas sonhou com o aroma fresco dos pinheiros numa caçada de manhã bem cedo.
As crianças tinham comido a refeição da manhã, constituída de sanduíches de veado e pedaços de queijo de cabra, e, com a ajuda dos guerreiros guardiões, tinham desmontado
o acampamento antes de o sol parecer disposto a espiar acima do horizonte. Brighid não podia culpá-los. Estava com pressa de se colocar a caminho também. Não que
o Castelo Guardião não tivesse sido hospitaleiro, mas estava mais do que pronta para trocar os grossos muros cinzentos pela antiga floresta que cobria a parte nordeste
de Partholon. A caçadora precisava pensar no sonho, e ponderar sobre a mensagem da visitante inesperada.
Os neofomorianos estavam alinhados como guerreiros atrás de Cuchulainn e Brighid, esperando quase pacientemente enquanto terminavam a tarefa de agradecer aos anfitriões.
- Apreciamos muito o empréstimo da carroça - estava dizendo Ciara aos quatro mestres, que dispensaram o agradecimento.
Como bem deviam. É por culpa deles que o menino precisa ser carregado na carroça, pensou Brighid, olhando para Liam, que estava reclinado confortavelmente sobre
peles e travesseiros de penugens - todos presentes do guerreiro guardião que o feriu. O rosto do garoto estava pálido, mas ele estava bem acordado, e quando viu
que Brighid olhava em sua direção, sorriu-lhe de forma travessa. Ela lhe sorriu de volta, mas murmurou a palavra descanse. Liam assentiu, mas o sorriso feliz ficou
em seu rosto e seus olhos grandes e curiosos assimilavam tudo ao redor. Como tinham previsto, o menino ficou bastante aborrecido por ter perdido o que chamava de
"toda a diversão" com os guerreiros guardiões, e só foi apaziguado pela notícia de que Brighid o tinha proclamado formalmente como aprendiz.
Brighid bufou baixinho consigo mesma. O pequeno diabrete tinha dito que sempre soube que estava destinado a ser uma caçadora, só estava esperando que Brighid admitisse.
Pela Deusa, o que faria com aquele menino?
- Seu aprendiz parece muito bem esta manhã - disse Cuchulainn, acompanhando o olhar dela e assentindo em resposta ao sorriso e aceno de Liam.
- Não me lembre - resmungou Brighid.
- Não lembrá-la de que ele parece bem? - Cuchulainn ergueu as sobrancelhas.
- Não, não me lembre que ele é meu aprendiz. O menino acha que é uma centaura caçadora.
Cuchulainn inclinou a cabeça para o lado e coçou o queixo num gesto exagerado de consideração.
- Ele está confuso quanto ao gênero ou à espécie?
- Quanto a ambos - resmungou Brighid.
Cuchulainn riu, um som pleno, sincero e jubiloso. Se aceitar um aprendiz tão incomum tinha estimulado a gargalhada tão franca e contagiante de Cuchulainn, Brighid
pensou que talvez até valesse a pena.
- Os mestres gostariam de se juntar a nós na nossa cerimônia de bênção matinal - disse Ciara. Seus belos olhos escuros cintilavam enquanto sorria com doçura para
o sorridente Cuchulainn.
- Excelente. - Cuchulainn retribuiu o sorriso da mulher alada. - Acho que seria bom que testemunhassem um dos seus rituais para Epona.
Brighid observou a conversa amigável com uma pontinha de irritação. Claro que Ciara se materializaria no instante em que Cuchulainn risse. Era óbvio que os dois
possuíam algum tipo de ligação. Mas observar os dois sorrindo feito bobos um para o outro era por demais incômodo. Também fazia Brighid se sentir mais do que apenas
invisível.
- Eu gostaria de oferecer nosso agradecimento à Deusa fora dos muros do Castelo Guardião - no solo de Partholon - disse Ciara.
- Excelente ideia. Vá na frente, estaremos logo atrás de você.
Ciara sorriu novamente, dessa vez para os dois, antes de correr para levar consigo os mestres até a frente do castelo. Cuchulainn estalou a língua para o capão e
o colocou em movimento com a pressão do joelho. Brighid foi com ele.
- Não acha que uma cerimônia fora dos muros do castelo seja uma boa ideia? - perguntou Cuchulainn.
Brighid lançou-lhe uma rápida olhada de esguelha.
- É ótimo.
- Então qual é o problema?
- Nenhum.
- Gostaria que não fizesse isso - murmurou ele.
- Fazer o quê?
- Se fechar assim. Me repreendeu bastante por causa disso, mas agora está fazendo a mesma coisa.
Desta vez ela deixou o olhar dele se fixar no seu. Os olhos turquesa pareciam afetuosos e preocupados.
- Sinto muito - resmungou ela.
- Sem problemas. É por isso que fazemos uma boa equipe. Nenhum de nós é perfeito.
Cuchulainn lhe apertou o ombro e, de repente, algo além da irritação se agitou dentro dela. Era quente e escorregadio, e se alojou bem nas suas entranhas, fazendo-a
respirar de maneira rápida e surpresa.
- Agora quer me contar qual é o problema?
- Estava pensando na viagem - mentiu ela. - É enlouquecedor levarmos pelo menos mais quatro ou cinco dias sabendo que chegaríamos lá em metade do tempo se tivéssemos
carroças e cavalos.
- Bom, discutiremos isso com Fagan. Poderiam nos oferecer umas duas carroças, mas não é um castelo típico. Partholon lhes dá provisões em pagamento à vigilância.
O castelo não negocia produtos, então não guardam carroças para transporte. - Ele deu de ombros. - Sabe que se ofereceram para mandar uma mensagem ao Castelo Laragon
pedindo que nos mandassem carroças suficientes.
Brighid meneou a cabeça, querendo colocar no lugar certo a parte de sua mente que tinha ficado frouxa.
- Quando as carroças chegassem aqui, estaríamos na metade do caminho para o Castelo MacCallan - respondeu distraída.
- Então viajamos com o que temos. Coragem, Brighid! Talvez se surpreenda com a velocidade com que os próximos dias passarão. E não me importo de admitir que estou
muito feliz por finalmente deixarmos os Ermos... - ele baixou a voz - ... e o Castelo Guardião. Não o acho nem um pouco menos opressivo do que nos meus dias de estudante,
e os fantasmas do passado também me parecem... - Ele hesitou, procurando a palavra certa.
- Vivos?
- Sim, vivos - concordou ele.
Ela assentiu e resmungou uma vaga afirmação. A Deusa sabia que ela andava muito imersa em visitas fantasmagóricas ultimamente.
- Isso vai ser interessante - mudou Cuchulainn de assunto abruptamente, apontando o queixo na direção de Ciara e dos quatros mestres. - Ela estava bem contida quando
fez a oração da noite e acendeu a fogueira. Não espero a mesma performance na primeira vez em que entrar em Partholon.
- Arrã - retrucou Brighid, imaginando o quanto Cuchulainn gostava da xamã. Será que estava se apaixonando por ela, ou só estava enlevado com seu charme exótico?
Será que era à aceitação do relacionamento deles que Brenna tinha se referido na noite anterior ao fazer Brighid jurar que manteria a mente aberta no futuro? Não...
isso não encaixava. Brenna tinha dito para manter a mente aberta com relação ao impossível. Uma vez que o guerreiro estivesse curado, apaixonar-se por Ciara não
parecia impossível. Na verdade, era lógico. Sua irmã tinha se casado com o líder do povo de Ciara. Os neofomorianos se assentariam no Castelo MacCallan, onde Cuchulainn
escolhera viver também. Seria um arranjo bem cômodo.
Então por que essa ideia deixava Brighid tão perturbada? Era quase como se estivesse com ciúme da xamã. Ridículo. Completa e tremendamente ridículo. Por que sentiria
ciúme? Ele era seu amigo. Não era como se Cuchulainn fosse um centauro, e ela e Ciara estivessem competindo pela atenção dele.
A súbita exclamação de assombro às suas costas invadiu os pensamentos perturbadores de Brighid. Os grandes portões de ferro do Castelo Guardião foram completamente
abertos e Partholon se estendia diante deles, verde e mágica sob a luz suave do céu rosado da manhã.
Ciara correu pela estrada ampla e batida até alcançar o limite da floresta. Ficou imóvel e depois caminhou decidida para o leste até ficar diante de um solitário
carvalho cujos galhos estavam cobertos com o verde brilhante das folhas de primavera. Ela ficou de joelhos, pressionando as palmas na terra e curvando a cabeça.
As crianças não esperaram por um sinal. Com um grito alegre, correram para formar o familiar círculo ao redor da xamã ajoelhada. Brighid e Cuchulainn se aproximaram
dos quatro mestres, que ficaram um pouco afastados do círculo. Com um leve movimento, Cuchulainn apontou para o castelo lá atrás. Brighid olhou por cima do ombro.
Os amplos muros estavam cheios de guerreiros negros, todos observando em silêncio. Então Ciara começou a falar, e todos os olhos foram atraídos para sua silhueta
alada: Deusa magnífica e amada,
hoje tua gente foi ricamente abençoada.
No instante em que Ciara disse a palavra deusa, o ar ao redor dela cintilou. Não com a luz mansa e natural que Elphame invocava, ou mesmo com o brilho dourado de
chamas das outras cerimônias de Ciara. Naquela manhã, a xamã alada resplandeceu numa luz vibrante e poderosa que crepitou e pulsou como fogo. Conforme continuava
a falar, o fulgor da luz crescia, e Ciara estendeu os braços, afastados dos flancos, palmas abertas, abraçando com entusiasmo a presença viva da deusa: Mãe dos animais,
que ouve nossos pedidos,
Epona, Grande Deusa, faço minha aclamação.
Guardiã dos cavalos fortes e destemidos,
Epona, Grande Deusa, receba minha veneração.
Abençoa-nos com paz e liberdade,
presenteia-nos com misericórdia e felicidade,
e sempre que eu pedir tua bênção,
também aceito o fardo com propriedade.
Inesperadamente, Brighid sentiu correr pela pele um arrepio que contrastava intensamente com o calor flamejante que se irradiava de Ciara. Todos os dons da Deusa
têm um preço... sussurrou a memória de sua mãe. Ela sabia disso - não contava como certo os presentes de Epona. Lembre-se, disse a si mesma, pensando no quanto o
poder tinha corrompido e transformado sua mãe, lembre-se de que com grandes bênçãos vêm grandes responsabilidades.
Epona, Mãe Deusa, contigo nós hoje celebramos,
através de teu poder a Partholon enfim retornamos.
Por longos anos, nos guardaste como rico tesouro,
em nosso exílio, mantiveste vivo em nós o bom agouro.
Ciara se levantou e os neofomorianos se ergueram com ela. Não obstruíram a visão da brilhante xamã alada, como se não passassem de uma moldura que acentuava a beleza
de uma obra-prima. As asas de Ciara se abriram e as mãos graciosas e os braços delicadamente torneados se ergueram para traçar padrões míticos na magia que lambia
o ar ao redor dela como elos de chamas.
Epona estava presente. O poder da Deusa era denso, tangível e inesquecível. Ninguém que testemunhou a entrada dos neofomorianos em Partholon jamais diria o contrário.
Brighid tirou os olhos de Ciara para olhar Cuchulainn. Ele fitava a xamã sem piscar. A caçadora olhou dele para os outros mestres. Eles também estavam fitando a
mulher alada. A mestra de cavalaria, Glenna, tinha se ajoelhado. Lágrimas corriam despercebidas de seus olhos. Brighid relanceou sobre o ombro para o muro do castelo.
Muitos dos guerreiros estavam se ajoelhando e curvando a cabeça em reverência.
Deusa radiante, tua promessa foi cumprida.
Nunca mais teus filhos estarão num confim.
Com tua mão uma nova morada será erguida.
E pela chama de teu amor, nosso exílio chega ao fim.
Ciara jogou os braços acima da cabeça e, como o tivesse invocado ao céu, o sol irrompeu sobre a linha florestal a leste, chamejando numa glória feroz e jubilosa
que falava eloquentemente da presença de Epona entre eles.
- Salve Epona! - gritou Ciara.
- Salve Epona! - ecoaram os neofomorianos sua xamã.
- Salve Epona! - uniu-se Brighid a Cuchulainn e aos guerreiros do Castelo Guardião no grito jubiloso.
E então, miraculosamente, uma voz foi ouvida acima das deles quando a elevação na estrada larga foi salpicada de carroças e mais carroças lideradas por uma estonteante
ruiva numa empinada égua prateada. O mesmo fogo crepitou no ar ao redor delas, só que mais suave. Não menos poderoso, era mais concentrado e controlado, com uma
aura de maturidade e experiência.
- Salve Epona! - gritou novamente a mulher, a voz magicamente ampliada pela Deusa.
Com um berro de alegria, Ciara correu até a mulher e se ajoelhou diante dela. A mulher desceu com graça da égua e, sem hesitação, tomou a xamã nos braços.
Brighid podia ouvir os murmúrios dos guerreiros e mestres, murmúrios que se tornaram gritos de saudação quando reconheceram a nova visitante. Cuchulainn estalou
a língua para o capão grandalhão.
- Vem comigo cumprimentar minha mãe? - perguntou a Brighid.
Brighid o encarou com surpresa, ao que ele deu de ombros.
- Não a conhece? Pensei que ela tivesse visitado o Castelo MacCallan logo depois que parti.
- Ela visitou, e sim, tive a honra de conhecer sua mãe - respondeu Brighid.
- Bom, então venha comigo - disse ele, incitando o capão com os joelhos.
A caçadora trotou ao lado dele.
- Pensei que preferisse apresentar Ciara à sua mãe sozinho.
As sobrancelhas do guerreiro se uniram.
- Por que pensou isso? Não é exatamente um lugar privado. - Ele apontou com a mão o grupo de crianças correndo até sua mãe, a Deusa Encarnada, e a égua prateada.
Sentindo-se mais do que tola, Brighid apertou os lábios. Parecia uma menininha petulante.
- De qualquer forma, precisarei de sua ajuda para resgatá-la - disse Cuchulainn.
Brighid olhou da ofuscante Amada de Epona para a longa fila de carroças que se estendia pela estrada atrás dela.
- Como ela sabia que estávamos aqui e que precisávamos de carroças? Não havia como uma mensagem ter chegado ao Templo de Epona no espaço de uma noite - comentou
Brighid.
- Há uma coisa que precisa aprender sobre minha mãe - junto com aquela égua e a Deusa, ela literalmente sabe de tudo. Ou ao menos, como costuma me dizer, ela sabe
de tudo que é importante.
Enquanto avançavam pelo grupo de crianças que riam, falavam e cantavam, Brighid fez um agradecimento silencioso e quase blasfemador a Epona por sua própria mãe não
saber de tudo - fosse importante ou não.
Vinte e Cinco
- SEMPRE ACHEI QUE estar na companhia de crianças faz o tempo passar mais rápido.
Brighid bufou com mais do que seu sarcasmo costumeiro, fazendo Etain jogar para trás a cabeça de cabelos gloriosos e rir com uma animação genuína. Brighid tentou
manter uma expressão séria, mas logo desistiu. Era impossível não rir com Etain.
- Acho que elas nos mantêm ocupados, já que nunca parece haver tempo suficiente para... para... mais nada quando estão por perto, então parecem fazer o tempo passar
mais rápido - cedeu Brighid.
- Pronto. Sabia que a faria admitir que os últimos dois dias passaram voando.
Era verdade. Se mantivessem o passo acelerado, ao anoitecer chegariam ao Castelo MacCallan.
Agora, a Alta Sacerdotisa de Partholon sorria, parecendo mais uma jovem noiva do que uma mulher que tinha visto a passagem de sessenta primaveras. A Amada de Epona
riu novamente.
- Voando! Palavra bem escolhida. Sempre que vejo uma das crianças correndo com aquele surpreendente passo esvoaçante, desejo criar asas e me juntar a ela.
Brighid só conseguiu encarar Etain em choque. Seria blasfêmia imaginar a Amada de Epona com asas fomorianas?
- Ah, eu sei. Seu ar me lembra muito meu marido. Você deve ser outro centauro que não suporta alturas.
- Alturas e pernas equinas não são compatíveis.
A égua prateada de Etain bufou forte pelas narinas, como se estivesse ouvindo e concordando com a centaura. Na verdade, a égua provavelmente estava escutando - e
compreendendo - lembrou-se Brighid. Era a encarnação equina de Epona, e muito, muito mais do que um simples cavalo.
Etain acariciou o pescoço lustroso da égua com carinho.
- Não, não a levarei para perto de penhasco nenhum, minha bela. Lembro-me bem de como se rebelou da última vez. - A Alta Sacerdotisa relanceou Brighid e baixou a
voz num nível exageradamente conspiratório: - Pode-se dizer que a Escolhida tem muito medo de alturas. Pode-se dizer, mas nunca diga isso alto demais. Ela costuma
ser verdadeiramente destemida.
Brighid sorriu para a bela sacerdotisa.
- Considerarei isso nosso segredo.
- Então você, minha bela caçadora, terá o agradecimento eterno de Epona! - O tom de Etain era provocativo e leve, mas apenas por simplesmente mencionar o nome da
Deusa o ar ao redor dela ficou repleto do doce aroma de lavanda e borboletas violáceas apareceram, rodeando a sacerdotisa, e depois desapareceram na densa floresta.
Brighid apenas sorriu e observou, assimilando tudo. Etain era simplesmente incrível. E agora ela sabia de onde Cuchulainn, ou ao menos a parte de seu espírito que
não era nada além de alegria, tinha herdado um senso tão forte de felicidade. A paixão de Etain pela vida era contagiante. Viajar com a escolhida de Epona nos últimos
dois dias fora uma experiência muito mais prazerosa do que Brighid tinha previsto quando a Alta Sacerdotisa de Partholon chegou inesperadamente no portão do Castelo
Guardião com sua frota de carroças, criadas e guerreiros palacianos, que tinham sido temporariamente relegados ao trabalho de condutores de carroça.
A verdade era que Brighid, a princípio, se sentira um tanto nervosa e desconfortável por estar perto de Etain. Não teve a oportunidade de conhecer a Escolhida de
Epona durante a curta visita de Etain ao Castelo MacCallan. Etain tinha passado a maior parte do tempo fechada com a filha e o companheiro de Elphame, Lochlan. Brighid
estivera ocupada caçando para o número subitamente maior de bocas a serem alimentadas. Não que sua impressão da Alta Sacerdotisa de Partholon tivesse sido negativa
- de fato, fora justamente o contrário. Brighid ficara pasma com a presença da Amada de Epona, e impressionada com o óbvio amor que ela demonstrava por Elphame.
Brighid sabia como era ter uma mãe poderosa, então ficou surpresa com o carinho que Etain demonstrava pela filha e por Lochlan. Por várias manhãs, Brighid tinha
visto Etain rezando sozinha na tumba de Brenna, em óbvio pesar pelo amor perdido do filho.
E agora via a devoção que Etain demonstrava por Cuchulainn. Brighid observou de perto Cuchulainn se aproximar da mãe, esperando a reação de Etain às mudanças físicas
que o lamento provocara no filho. A mãe de Brighid a teria repreendido, provavelmente em público, por se permitir parecer menos do que perfeita. Etain simplesmente
abrira os braços para abraçá-lo, depois riu e secou o que chamou de lágrimas de alegria por ver o filho amado outra vez.
Etain tinha que notar a diferença em Cuchulainn. Não importava que fosse óbvio que Cuchulainn estivesse tentando exibir uma fachada alegre. O guerreiro provavelmente
tinha sorrido e falado mais nos últimos dois dias do que nos últimos dois ciclos da lua. Fez um grande esforço para esconder a dor, mas não havia dúvida de que a
Alta Sacerdotisa estava completamente ciente de que a alma do filho estava despedaçada e de que ele chegara perigosamente perto de desistir da vida. Brighid ficou
esperando que Etain o reprovasse, ou que deixasse escapar de propósito pequenos comentários sobre como ele deveria estar fazendo isso... ou pensando aquilo... ou
demonstrar que estava desapontada com ele por estar arruinado e destroçado por algo que estava terminado e encerrado. Mas isso não aconteceu. Etain amava o filho,
inteiramente e sem julgamentos e condições.
Como a vida de Brighid não teria sido diferente se sua própria mãe tivesse demonstrado como amar os filhos e ainda ser Sumo Xamã da manada Dhianna?
- Que ar sério, mesmo para você, caçadora - disse Etain.
Brighid se obrigou a sorrir para a mulher que aprendera a amar e também respeitar.
- Só estava pensando na... - Ela hesitou, surpresa com o súbito desejo de contar a verdade a Etain.
- Na? - instigou a Amada de Epona.
Brighid notou que mesmo a égua prateada tinha levantado as orelhas delicadas como se também estivesse esperando que Brighid terminasse a frase.
- Só estava pensando na minha infância - murmurou Brighid. - É difícil falar disso.
Os olhos verdes de Etain eram sábios e gentis. Em vez de questioná-la ainda mais, ela simplesmente assentiu e continuou a cavalgar tranquilamente ao lado da caçadora.
Lentamente, Brighid voltou a relaxar. As cercanias a ajudaram a aliviar a tensão acionada automaticamente por pensar na mãe. Ela e Etain estavam encabeçando a longa
fila de carroças, que estavam cheias de neofomorianos rindo e cantando. Estavam sozinhas no momento. Cuchulainn tinha cavalgado de volta para verificar uma das carroças
que aparentemente estava com uma roda frouxa, e Ciara estava...
Só a Deusa sabia onde Ciara estava. Todos os neofomorianos estavam animados com a beleza de Partholon e a abundante vastidão da floresta oriental, mas desde que
pisara naquele chão Ciara tinha ficado completamente apaixonada. Era como se ela estivesse privada de água por dias e Partholon fosse um fresco riacho de salvação.
Etain dissera que a xamã alada era um condutor espiritual para seu povo, então era natural que a entrada em Partholon a afetasse mais dramaticamente do que os outros.
Brighid notou que a Alta Sacerdotisa tinha carinho especial por Ciara, e que Etain encorajava a xamã a explorar a nova terra.
E os rituais de bênção da manhã e da noite! Brighid sentiu uma onda de alegria só por pensar neles. Etain e Ciara tinham atuado juntas. Mais uma vez, a Amada de
Epona demonstrara ser uma Alta Sacerdotisa gentil e graciosa. Poderia ter facilmente excluído a xamã alada, ou ser arrogante e fazer com que suas habilidades parecessem
imaturas ou irrelevantes. Em vez disso, Etain compartilhara as palavras ritualísticas de algumas das bênçãos mais antigas de Partholon, entremeando sua voz calma
e experiente com a da jovem xamã. Até elogiara Ciara excessiva e publicamente quando a moça usou a afinidade com os espíritos do fogo para acender a fogueira.
A benevolência e o amor de Etain pelas pessoas, fossem humanos, centauros ou mesmo fomorianos híbridos, eram um profundo comprometimento entre ela e sua Deusa. Ela
era verdadeiramente a encarnação do amor de Epona.
Brighid sentia-se tão atraída quanto impressionada com Etain, mas a caçadora pouco falava. Só observava e fazia anotações mentais. Observava e esperava que Cuchulainn
demonstrasse à mãe que estava começando a ter sentimentos especiais por Ciara. Brighid esperava que Etain ficasse extasiada ao saber da afeição do filho. Mas nada
desse tipo aconteceu. Cuchulainn passou pouquíssimo tempo com Ciara. Era sempre gentil, mas definitivamente não fazia questão de passar qualquer tempo extra a sós
com ela e, pelo que Brighid podia dizer, só tinha falado sobre ela com a mãe com os termos polidos que teria usado se referindo a qualquer xamã.
Claro, nenhum deles tinha tempo para muita privacidade ou muitas conversas pessoais prolongadas. Brighid não estava exagerando quando disse que as crianças deixavam
pouco tempo para qualquer coisa que não fosse cuidar delas. Enquanto estavam nos Ermos, tanto de suas vidas tinha sido gasto com a sobrevivência que os pequenos
não tiveram liberdade para aprontar muitas travessuras. A viagem pelas florestas partholonianas era uma história diferente, de fato. Brighid estava feliz por conseguirem
tomar estradinhas raramente utilizadas e contornar as cidades grandes e a maioria das aldeias. A caçadora estremecia por dentro quando pensava na horda de crianças
aladas entusiasmadas, questionadoras e irrequietas chegando às sonolentas e inocentes aldeias de Partholon. As crianças não compreendiam que nem todos estavam tão
contentes por conhecê-las quanto elas estavam por conhecer Partholon.
- Acho que não lhe disse isso, mas você me lembra muito Elphame - disse Etain, quebrando o silêncio tranquilo que recaíra entre as duas.
Completamente surpresa, Brighid a encarou com olhos arregalados.
- Ah, não fique tão chocada. Vocês duas se tornaram amigas íntimas, não é?
- Sim, mas... - Brighid engoliu em seco, nervosa. - Sim, Elphame e eu nos tornamos amigas íntimas.
- Você sabe que você e Brenna foram as primeiras amigas que ela teve fora da família.
Brighid hesitou, pensando antes de deixar escapar algo inapropriado: - Acho que El nunca nos disse - para Brenna e para mim - nessas palavras, mas sabíamos disso
sem que nos dissesse nada. - A caçadora respirou fundo e buscou os olhos da sacerdotisa. - Acho que poucas pessoas queriam se aproximar de uma deusa viva.
- Era o que El dizia. Mais vezes do que pude contar. Mas você estava disposta a se aproximar dela. Por quê?
- Ela me aceitou como sou - disse Brighid sem hesitação. - Foi por isso que Brenna se tornou amiga dela tão rápido também. Não que El não visse as cicatrizes de
Brenna - era impossível não ver. Assim como era impossível não ver que me juntar ao clã MacCallan era uma fuga para mim. Não que as cicatrizes ou uma família extremada
não importassem para sua filha, mas é que ela as aceitou. Facilmente. Sem condições.
- E em troca vocês a aceitaram - Elphame -, não a deusa que o resto do mundo vê.
- Ah, eu vi a deusa. Ainda vejo. E Brenna também. Mas em grande parte enxergamos a pessoa. E Elphame é uma mistura dos dois - mulher e deusa, centauro e humano.
E agora é amiga e também chefe do clã. - Brighid suspirou, frustrada com as palavras inadequadas. - Faz sentido? Quando digo isso, parece... não sei... que não é
o suficiente.
- Sei exatamente o que quer dizer, criança - disse Etain. - É por isso que disse que você me lembra ela. Você e Elphame enxergam o mundo do mesmo jeito. As duas
mulheres fortes, lógicas, que não toleram baboseiras e não perdem tempo com pretensões e desculpas. Gosto de você, caçadora. Gosto que seja amiga da minha filha.
E acredito que em breve lhe terei um débito de gratidão.
- Fico honrada, minha senhora - disse Brighid sem jeito, com um nó de emoção alojado no fundo da garganta. - Mas não me deve nada. Não guardo recibo pela amizade
com sua filha.
- O débito não é por Elphame. É por Cuchulainn.
- Cuchulainn? Mas nem fiz nada realmente... - Os cândidos olhos turquesa de Etain encontraram os de Brighid, que apertou os lábios, encerrando o protesto. - Claro
que sabia que a alma dele foi despedaçada.
- Soube no dia em que aconteceu.
- O dia em que Brenna morreu - disse Brighid.
Etain assentiu:
- Tem sido enlouquecedoramente frustrante para mim - saber da dor do meu filho e não ser capaz de usar meus poderes para consertar isso... Tornar isso mais fácil
para ele.
Brighid abriu a boca para questionar Etain, mas não conseguiu emitir as palavras. Como questionar a Amada de Epona?
- Brighid, sou a Alta Sacerdotisa de Partholon, a Encarnada Escolhida por Epona, mas também sou uma mãe e uma mulher que ri, chora e ama como qualquer outra mulher.
Não precisa ficar com medo de me fazer perguntas.
Brighid olhou a mulher bela e régia que cavalgava ao seu lado e ficou, mais uma vez, pasma com a honestidade e acessibilidade de Etain. Não era surpresa que o povo
de Partholon lhe fosse tão devoto. Brighid respirou fundo antes de falar: - Por que não pode consertar Cuchulainn? Por que não pode recuperar sua alma despedaçada?
- perguntou com calma.
Etain suspirou:
- Antes de tudo, não sou xamã. Sim, posso viajar ao Outro Mundo - faço isso com regularidade, mas faço isso para estar na presença de Epona e cumprir os assuntos
da Deusa. Raramente interajo com os espíritos que habitam os diferentes reinos. Não que não tenha morrido de vontade de procurar pela alma despedaçada de Cuchulainn.
Essa foi minha reação inicial quando descobri o que tinha acontecido a ele. - O sorriso da sacerdotisa foi pequeno e se entortou de lado. - Epona tinha uma visão
diferente sobre o que eu deveria fazer. - Olhou para Brighid e encolheu os ombros envoltos num luxuoso tecido dourado. - Tenho tendência de querer resgatar meus
filhos, mesmo que não sejam mais crianças. Minha lógica me diz que não é bom para eles. Meu coração diz algo totalmente diferente. Sou grata por minha Deusa ficar
perto do meu coração, mesmo quando me obriga a me ater à lógica.
Brighid franziu a testa.
- Então Epona a impediu de consertar Cuchulainn?
- A princípio. Depois percebi que não era uma dor da qual uma mãe poderia proteger o filho. Ele precisava lamentar por seu amor perdido, mesmo que este pesar estivesse
rasgando sua alma em pedaços. O pesar é parte do processo de cura. E creio que tenha testemunhado a alternativa por si mesma.
Brighid piscou surpresa.
- Fala da parte despedaçada da alma de Cuchulainn?
- Sim. Ele visita seus sonhos, não é?
Brighid bufou:
- Cuchulainn disse que você sabia de tudo.
Etain riu.
- Só de tudo que é importante.
- Sim - admitiu ela -, ele visita meus sonhos.
- E o que descobriu sobre ele, exceto que é um tremendo libertino? - Os olhos de Etain cintilaram.
- Que ele é obstinado na busca de prazer e...
- ... E?
- E encantador, carismático e maroto - murmurou.
Etain sorriu.
- Isso ele é mesmo. Mas o que descobriu sobre ele que não é tão encantador?
- Que está em completa negação. Não consegue, ou não quer, enfrentar qualquer dificuldade emocional. No momento em que menciono Brenna ou tento conversar sobre o
que está realmente acontecendo no mundo - comparado ao mundo imaginário e feliz para o qual se retirou - ele desaparece.
- Exatamente. Se eu tivesse interferido e acalentado Cuchulainn depois da morte de Brenna, e feito o que meu coração me implorava para fazer - protegê-lo da dor
e envolvê-lo no poder que tenho de duplicar o amor de Epona - ele nunca teria sofrido e viveria eternamente como a parte despedaçada de sua alma está agora, incapaz
de enfrentar a realidade. Teria se tornado um homem fraco e emocionalmente vazio que teria uma vida triste fugindo dos problemas. Ele precisava viver o lamento.
- Compreendo. Mas ele já passou por isso. Até já começou a trabalhar sua dor.
- Razão pela qual a recuperação da alma será um sucesso - disse Etain, logo sacudindo a cabeça quando Brighid começou a protestar. - Esse não é o trabalho de uma
mãe. Nem um trabalho para Ciara. Ele precisa de você para isso, Brighid. E mais, Epona decretou que é parte do seu destino.
Brighid se sobressaltou com as palavras da Deusa Encarnada.
- Epona falou de mim? - Não percebeu ter falado em voz alta até Etain respondê-la: - Claro. Por que isso a surpreende? A presença de Epona é muito forte em sua família.
- Mas minha família... - Brighid se afligiu, sem saber o que dizer sobre as crenças radicais da manada Dhianna de que centauros e humanos não deviam interagir.
- Brighid, não precisa sentir tanta culpa. Epona deu ao seu povo o livre-arbítrio - ao seu povo inteiro. Mesmo àqueles que foram ricamente abençoados por ela. Junto
com o presente do livre-arbítrio, vem a possibilidade dos erros. Fique tranquila de que a Deusa sabe que seu coração está livre do ódio. Epona não considera uma
filha responsável pelos pecados da mãe.
Brighid tentou falar, mas não conseguia. O alívio que a inundava era quase demais para suportar. Epona não a culpava. Não fora marcada ou rejeitada pela Deusa.
Então Etain tocou o braço de Brighid, e no tumulto de suas emoções fluiu um bálsamo relaxante de gentileza e amor. A caçadora respirou profunda e tremulamente.
- Obrigada - disse a Etain, falando à mulher e à Deusa que ela representava.
- Não deixe que isso a assombre, criança. - Com as palavras de Etain, sobreveio um rodopio no ar e de repente, dentro da mente, Brighid ouviu o eco de um pensamento,
tão impregnado de poder e acolhimento que seus olhos se encheram de lágrimas: Saiba que estou com você, minha preciosa.
Brighid ofegou. Então o ar rodopiante e a voz sussurrante se foram.
- Eu... eu acho que Epona - gaguejou Brighid. - Ela... ela...
- O toque dela é de tirar o fôlego, não é? - comentou Etain com emoção, como se não tivesse sentido a presença da Deusa por grande parte da vida.
Brighid piscou e esfregou as mãos pelas faces molhadas.
- Sim - sussurrou. - É, sim.
- Tome, criança. - Etain se virou e vasculhou um dos alforjes cor de manteiga amarrados atrás dela e puxou dois lenços de seda. Entregou um à caçadora e manteve
o outro consigo para que pudesse secar delicadamente os próprios olhos. - Sempre estou preparada para uma boa choradeira. Isso limpa a alma.
Brighid secou o rosto, ainda assombrada com a voz que soara em sua mente. Epona tinha falado com ela! Ela! E não estava sendo rejeitada por causa das escolhas da
mãe.
- Melhor agora? - perguntou Etain.
- Acho que sim - respondeu.
- Ótimo! Devo voltar e procurar Ciara. Ela precisa avisar às crianças que podem se cobrir de enfeites. Nunca faz mal exibirmos o nosso melhor.
- Espere! - chamou Brighid, e a égua prateada parou no meio do movimento. - Não sei como recuperar uma alma.
Etain lhe sorriu.
- Está se saindo muito bem. Já o chamou até você em seus sonhos.
- Mas não recentemente. Ele parou de visitar meus sonhos na noite em que chegamos ao Castelo Guardião.
- Não me preocuparia com isso. Ele virá novamente. Quando estiver em casa, com seu clã por perto, prepare-se para sua jornada espiritual, do mesmo jeito que usa
seus poderes para rastrear novas presas.
- Você... você sabe disso? - Assim que as palavras escaparam, Brighid se sentiu ridiculamente tola. Outra vez. Claro que a Escolhida de Epona reconheceria sua afinidade
com os espíritos dos animais.
- Usar dons oferecidos pela Deusa não é nada do que se envergonhar - disse Etain com firmeza.
- Não estou envergonhada do dom - insistiu Brighid, ansiosa para que Etain entendesse. - Estive envergonhada pelo modo como minha família usa seus dons. Não queria
ser como... - Ela se calou. O olhar da sacerdotisa era gentil, maternal, compreensivo.
- Prossiga, minha criança. Pode dizer.
- Não queria ser como minha mãe - revelou Brighid num repente.
- Já considerou que é possível para você ser como ela por ter sido tão agraciada de dons, e ser diferente dela na maneira como escolheu usar esses dons?
- Sim! É por isso que só uso minha afinidade com os espíritos dos animais. O resto - eu nem tinha percebido que possuía mais até recentemente.
- Mas você realmente possui mais do que uma simples afinidade com os espíritos dos animais. Será que sua rejeição não é uma vitória para sua mãe?
- Nunca pensei dessa forma. - Brighid quase conseguia ouvir a voz áspera da mãe: Ou me sucede devidamente como sumo xamã, ou não será nada.
- Talvez deva pensar nisso. E não se preocupe sobre não ser capaz de encontrar o espírito de Cuchulainn. Quando estiver pronta, ele virá até você.
- E depois? - perguntou Brighid de repente, a mente girando com as palavras de Etain.
- Você saberá, criança. Saberá o que vai trazê-lo de volta. Estou certa disso. Tenho fé nas suas habilidades, Brighid. - Etain sorriu, girou a égua de modo a direcioná-la
à longa fila de carroças e saiu trotando vistosamente, deixando Brighid com um lenço de seda e perguntas não respondidas.
Vinte e Seis
ELA GOSTAVA DO caráter da luz que se infiltrava pela floresta quando o sol estava nascendo ou, como agora, estava quase pronto para se pôr. A conexão entre amanhecer
e anoitecer era como uma moeda com duas faces. Semelhantes, porém distintas. Similares, porém diferentes. Havia simplicidade e correção ao se pensar nos dois como
reflexos um do outro... começo e encerramento... e depois começo novamente... como outra parte do grande ciclo da vida. A ideia trouxe paz a Brighid, e era uma das
muitas razões pelas quais preferia caçar durante a mudança do dia.
- Brighid!
A caçadora suspirou:
- Brighid!
Ela girou a cabeça, tentando aliviar um pouco da tensão que estava se assentando no pescoço.
- Melhor ir vê-lo. Sabe que não vai deixá-la em paz -avisou Cuchulainn.
- Ele está machucado. Precisa descansar e ficar onde está - disse Brighid com firmeza.
- Brrrrighiiiiid!
Envolta em seda dourada e drapejada de joias, Etain definitivamente parecia a faceta da Escolhida de Epona conforme trotava até se juntar ao filho e à caçadora na
dianteira da fila.
- Seu aprendiz está chamando você.
- Sei disso - rosnou Brighid entre os dentes trincados, tentando com dificuldade manter um tom civilizado.
- Aceite o conselho de uma mãe. Ignorá-lo não vai afastá-lo - disse a Amada de Epona. A égua Escolhida bufou com firmeza pelas narinas num gesto de concordância.
- Vá lá falar com ele - disse Cuchulainn. - É a única maneira de ter um pouco de paz. Só o lembre de que estamos quase lá. Logo ele terá muito mais no que pensar
além de você.
- É fácil falar - resmungou Brighid. - Não tem um aprendiz alado chato berrando seu nome dia e noite.
- Ele só está inquieto. Ficará melhor quando puder se locomover sozinho - disse Etain.
- Hã - bufou Brighid. - Não o conheceu antes. Era tão chato quanto. - Cerrando o queixo, saiu da posição adiantada e foi a meio-galope até a primeira carroça, certa
de ter ouvido a risada musical de Etain ecoar atrás de si.
Como florzinhas acompanhando o sol, todas as cabecinhas na primeira carroça se voltaram na direção dela. Brighid encontrou o olhar do condutor de aparência cansada.
Ele assentiu educadamente, mesmo que os olhos dissessem que preferia estar em qualquer lugar, mesmo no coração de uma batalha, a estar confinado com um bando de
crianças tagarelando, rindo e gorjeando.
Brighid lhe deu um sorriso compreensivo.
- Brighid! Brighid! Brighid! - Liam começou a saltitar enquanto se agarrava à beirada da estrutura da carroça, mas um aviso severo de Nara, que estava sentada ao
lado do condutor da carroça, bastou para que ele ficasse bem quietinho. Todo o corpo, pensou Brighid, exceto pela boca: - Posso chegar com você? Eu devia chegar
com você. Sou seu aprendiz. Devia estar com você. Não acha? Não é o certo?
Brighid não sabia se queria gritar ou gemer. Como as mães conseguiam?
- Liam! Basta. - Ela ergueu a mão e o menino ficou abençoadamente silencioso. Então ela voltou sua atenção à curandeira neofomoriana. - Ele está bem para cavalgar?
A curandeira tentou sem sucesso conter o sorriso.
- Não pode ir longe, nem rápido. Mas, sim, está bem para cavalgar.
Brighid olhou para Liam. Os olhos dele estavam arregalados de surpresa, mas os lábios estavam bem apertados.
- Se eu deixar que me monte, deve se comportar com a dignidade de uma centaura caçadora. Consegue fazer isso?
- Sim! Sim! Si... - Inacreditavelmente, o menino parou no meio da palavra. Com cuidado, empertigou-se, prendendo a asa enfaixada bem junto ao corpo, e assentiu.
Apenas uma vez.
Antes que Brighid pudesse pensar melhor no assunto, encostou à lateral da carroça.
- Ajudem-no - pediu às crianças que estavam sentadas ao redor dele. Todos falando juntos, levantaram-no sobre o lombo equino. - Segure-se - avisou, colocando uma
das mãos para trás para lhe segurar a perna. Esperava que Liam não caísse, mas caso acontecesse, poderia ao menos evitar que ele atingisse o chão. Talvez.
- Me segurar no quê? - perguntou Liam, com a voz de um menininho.
- Coloque as mãos nos meus ombros - disse ela, depois suspirou e acrescentou: - Se ficar com medo, pode me abraçar pela cintura.
Depois de breve hesitação, ela sentiu mãozinhas quentes nos ombros.
- Não estou com medo - disse Liam. - Você não me deixaria cair.
Sem ter uma resposta pronta para aquela fé cega, Brighid entrou num meio-galope macio, logo se juntando a Cuchulainn e à mãe na dianteira do grupo.
- Nem uma palavra - avisou Brighid a Cuchulainn quando o guerreiro abriu a boca.
- É bom vê-lo tão bem, Liam - disse Etain, com um sorriso maternal. - Deve estar em forma para caçar em breve.
Brighid podia sentir Liam se agitar de prazer com as palavras de Etain, mas quando o menino falou, as palavras foram educadas e breves: - Obrigado, deusa.
Satisfeita, Brighid apertou-lhe a perninha antes de afrouxar a pressão, depois sorriu consigo mesma quando Liam apertou-lhe os ombros em resposta e murmurou: - Viu,
sou um bom centauro.
- Lá - disse Cuchulainn, apontando para onde uma trilhazinha pedregosa se bifurcava para se ligar a uma estrada muito mais larga que era obviamente bem transitada.
- Essa é a estrada que corre entre o castelo e Loth Tor.
- Finalmente. Eu estava começando a achar que ficaríamos sem a luz do dia antes de alcançá-la - disse Brighid, trotando para a estrada bem batida e virando à direita.
- O castelo está perto? - perguntou Liam.
- Muito - respondeu ela. - Hoje você estará dormindo no Castelo MacCallan.
- Vão gostar de nós? - perguntou o menino numa vozinha.
Brighid olhou para ele por cima do ombro. Liam era tão jovem. Os olhos a observavam, esperando pela resposta como se ela guardasse as chaves para todos os mistérios
do universo.
- Claro que vão gostar de vocês - respondeu com firmeza. Ao virar a cabeça, buscou os olhos de Cuchulainn e não ficou tranquilizada com a olhada contida que ele
lhe deu.
- Vai dar tudo certo. Você vai ver. - A voz de Etain estava cheia da sua confiança habitual, e a égua prateada bufou em concordância.
Brighid olhou além de Cuchulainn para sua mãe. A Deusa Encarnada estava sorrindo para Liam. Não parecia nem um pouco preocupada. A caçadora relanceou Cuchulainn
outra vez. O guerreiro lhe deu um meio-sorriso e encolheu os ombros.
- Tudo que é importante? - sussurrou Brighid para ele.
- Sim - disse Etain sem olhar para nenhum dos dois. - Absolutamente tudo que é importante.
Liam murmurou:
- Ela sabe mesmo de tudo.
Cuchulainn grunhiu, e Brighid resolveu voltar sua atenção para a estrada que escurecia.
Um agitar de asas anunciou a chegada de Ciara, e a xamã flutuou no espaço entre Cuchulainn e Brighid.
- Eles estão prontos. - Seu sorriso tremeu e seus olhos foram atraídos pela estrada à frente. - Acho que estou nervosa - disse ela com uma risadinha.
- Todos nós nos sentimos um pouquinho nervosos quando retornamos ao lar depois de uma longa ausência, mas é um nervosismo de alegria - disse Etain com carinho. -
Lembre-se, esta é sua terra natal. As orações e o sangue de suas ancestrais fizeram disso uma certeza. Tudo vai ficar bem. Você verá.
- Pode acreditar nela. A Deusa conta a ela tudo o que é importante - falou Liam numa voz abismada e incomumente séria que fez os adultos sorrirem. - Bom, conta sim
- disse Liam, e depois - felizmente - ele ficou ocupado demais olhando os carvalhos ao redor para tagarelar.
A caravana de mais de uma dúzia de carroças, todas cheias de neofomorianos, acompanhou a caçadora, o guerreiro, a xamã e a Deusa Encarnada pela estrada que seria
a última etapa da jornada. Os quatro líderes andaram numa expectativa silenciosa, cada um deles imerso nos próprios pensamentos. Quando Fand saltitou ao lado do
capão de Cuchulainn, Brighid relanceou o guerreiro. Ele parecia tenso e soturno. Se estivessem sozinhos, ela o teria lembrado de que só estava voltando para casa,
não rumando para uma batalha. Mas ela relutava em falar diante de Ciara, sem saber se chamar a atenção para a contenda que acontecia dentro dele embaraçaria ou mesmo
aborreceria Cuchulainn. E parte dela compreendia que esse retorno ao lar era um tipo de batalha para o amigo. Logo ele estaria lutando para recobrar a alma e a vida
- e era no Castelo MacCallan que ambas foram irrevogavelmente alteradas.
A estrada fez uma curva familiar para o oeste, subiu e de repente saiu da floresta de pinheiros para as terras bem cuidadas do castelo. O sol estava se pondo sobre
o oceano por trás do castelo, servindo de iluminação perfeita para o imponente edifício que já estava completamente iluminado por dentro. As paredes de cor creme
estavam tingidas nas cores arrojadas do céu do anoitecer, então parecia que a luz do fogo dançava dentro e fora, dando as boas-vindas com o calor das chamas.
- É tão bonito - sussurrou Liam.
- É bonito, perfeito... - A voz de Ciara ficou embargada e ela não conseguiu prosseguir.
- E é o lar de vocês - completou Etain.
Lar... Ecoou o coração de Brighid. Não eram as extensas campinas de sua infância, mas rever o castelo a fazia se sentir assentada e segura.
- Fizeram muita coisa nas últimas duas luas - disse Cuchulainn, esforçando-se para manter a voz sem tom e vazia, como se tivesse medo de que se deixasse qualquer
sentimento vazar em suas palavras, não seria capaz de conter a onda que o subjugaria. - As quatro torres estão completas, e grande parte do caminho de ronda.
Um grito os cumprimentou do muro externo do castelo.
- Vamos avisar Elphame que estamos aqui, minha bela? - disse Etain, dando palmadinhas no pescoço da égua prateada.
Compreendendo perfeitamente, e sem a necessidade de mais nenhuma orientação da condutora, a égua galopou veloz por vários passos e depois se empinou graciosamente,
proclamando um agudo cumprimento que foi inequivocamente ampliado pelo poder da presença de Epona.
A resposta do castelo foi imediata:
- Salve, Epona! - gritou o sentinela, e um momento depois o portão de ferro recém-instalado foi erguido e vultos saíram correndo pela abertura.
Com um grito alegre, Elphame disparou na frente. As duas poderosas pernas equinas a tornavam mais rápida e forte que o resto de seu povo, por isso ela se distanciou
com facilidade, alcançando o grupo de viajantes antes mesmo do companheiro alado.
Cuchulainn deslizou do cavalo bem a tempo de abrir os braços para a irmã que se atirou neles.
- Cuchulainn! - Ela o abraçou apertado, enterrando o rosto no ombro dele.
- Shhh - murmurou ele, acariciando-lhe a cabeça. - Não chore, minha irmã. Não chore...
Elphame se afastou um pouquinho para que pudesse lhe tomar o rosto nas mãos e beijá-lo profundamente.
- Senti tantas saudades.
- E eu também.
- E quanto à sua mãe? - perguntou Etain em meio às próprias lágrimas.
Elphame deixou os braços do irmão e se aproximou da Deusa Encarnada e da égua prateada.
- Ah, mamãe... - seus olhos brilhavam de alegria - ... quem não sentiria saudades de você?
A égua se curvou de modo que Etain só precisou descer graciosamente do seu lombo macio para tomar a filha nos braços.
- Não chore, minha preciosa. Seu irmão retornou, e tudo vai ficar bem.
Elphame beijou a mãe nas duas faces. Depois se voltou para Brighid e, sorrindo, estava para abraçá-la entusiasmada também quando percebeu que Brighid carregava alguma
coisa... alguém, nas costas. Os olhos da chefe do clã se arregalaram quando a cena se expandiu para incluir mais do que o irmão e a mãe.
- Oh, Deusa... - ofegou Elphame.
Sem olhar para trás, Ciara se adiantou, sabendo que seu povo a seguiria. Quando parou diante de Elphame, ela se ajoelhou e colocou as mãos, com punhos cruzados,
sobre o coração, num antigo gesto de respeito e homenagem.
- Deusa, nunca existirão palavras adequadas com as quais agradecê-la pelo sacrifício que fez. Ao aceitar a loucura de nossos ancestrais, libertou a humanidade dentro
de nós. Você nos salvou. - A voz apaixonada da xamã encheu os terrenos do castelo.
Brighid observava o rosto da chefe do clã com atenção. Teria sido a única a notar a sombra que tremulou nos olhos de Elphame, sombria e maligna? Então Lochlan se
aproximou de um lado da companheira, e Etain, a Amada de Epona, aproximou-se do outro lado da filha. Elphame pareceu ganhar força com a presença deles e empertigar
mais o corpo. Como sombras se retirando da luz, a escuridão em seu olhar clareou. Elphame estendeu a mão, pegou a de Ciara, e a pôs de pé.
- Não é a mim que tem um débito de gratidão - disse Elphame. - Sem a força de Epona, a maldição não teria sido retirada de seu povo.
- E seu débito com Epona já foi pago muitas vezes pela fidelidade de suas ancestrais - disse Etain.
- Então não temos devedores aqui, só amigos e camaradas - completou Elphame.
Então Lochlan deu um passo adiante e sua voz profunda ressoou pelo clã: - Elphame, minha chefe e meu amor, e clã MacCallan... - ele olhou para trás de sua companheira,
sorrindo para os humanos e centauros agrupados às costas deles - ... esta é Ciara, xamã dos neofomorianos, neta da Encarnada Terpsícore, sequestrada pelos demônios
há mais de cem anos.
Elphame retribuiu a mesura elegante de Ciara com um inclinar régio da cabeça.
- Chefe, meu senhor Lochlan, e clã MacCallan, este é o meu povo, que agora também é seu povo - o povo que sua chefe salvou - os neofomorianos. - Com um floreio gracioso
e abrangente, Ciara deu um passo para o lado para que Elphame tivesse uma visão irrestrita de crianças e adultos alados que ainda estavam ajoelhados, enchendo aquela
parte do terreno como um bando de aves exóticas.
Os olhos de Elphame passearam pelo grupo silencioso, e enquanto seu olhar tocava cada um deles, rosto após rosto irrompia em sorrisos hesitantes. Então uma vozinha
falou na dianteira do grupo: - Estamos muito felizes por estarmos aqui, deusa! - E então uma torrente de vozes se uniu à dela: - Sim, deusa!
- Ah, sim!
- É tão verde aqui!
- Tudo cresce!
Elphame ergueu a mão e a enxurrada de entusiasmo infantil foi silenciada.
- Primeiro - disse lentamente -, não sou uma deusa. Fui apenas tocada por uma. Podem me chamar de chefe, ou minha senhora, ou mesmo Elphame. Entenderam?
Muitas cabecinhas perspicazes assentiram com ardor.
- Bom. Agora já esclarecemos isso. - O rosto de Elphame se abriu num sorriso jubiloso. - Levantem-se, neofomorianos, e sejam bem-vindos ao Castelo MacCallan - seu
novo lar!
Pegando a deixa da chefe, o clã MacCallan se adiantou, cumprimentando crianças e adultos até que logo os grupos estavam tão misturados que Brighid não conseguia
mais dizer onde o clã MacCallan terminava e as asas dos neofomorianos começavam.
- Este é alguém especial que eu deva conhecer? - Elphame perguntou a Brighid.
Antes que ela pudesse responder, Liam gorjeou um rápido "sim!".
Brighid desceu a mão para a perna do menino e a apertou. Com uma obediência que a caçadora começava a achar surpreendente, o menino se aquietou imediatamente.
- Elphame, gostaria de apresentá-la formalmente a meu novo aprendiz, Liam.
Para seu crédito, um leve retorcer dos lábios foi tudo o que traiu a surpresa e - Brighid tinha certeza - o divertimento da sua chefe de clã.
- Prazer em conhecê-lo, Liam. Um clã sempre pode fazer uso de... - Elphame hesitou, mas a um discreto meio-aceno de cabeça de Brighid, concluiu: - .... outra boa
caçadora.
- Obrigado, minha senhora! O Castelo MacCallan vai precisar de uma caçadora extra com todos nós aqui agora.
Brighid achou que Liam soou bem maduro, e teria acreditado que ele tinha de repente envelhecido vários anos se não o sentisse se contorcer com um entusiasmo mal
contido.
- É uma coisa muito sábia de se dizer, Liam - disse Elphame sem nenhum sinal do sorriso que Brighid sabia que ela devia estar lutando para esconder - sabia porque
a amiga estava atentamente evitando encontrar os olhos de Brighid. - Vejo por que Brighid o escolheu para ser seu aprendiz.
- Ah, ela não me escolheu - disse Liam com seriedade. - Eu a escolhi. Desde a primeira vez em que a vi, disse a ela que eu devia ser uma centaura caçadora, assim
como ela.
Elphame pressionou a mão nos lábios, como se considerasse seriamente as palavras do menino. Limpou a garganta com cuidado antes de responder: - Sabe, você me lembra
meu irmão. Ele sabia desde tenra idade exatamente o que seria.
Brighid podia sentir Liam respirando bem fundo para sustentar o que ela tinha certeza de que seria uma longa enxurrada de animadíssimo palavreado infantil quando
viu Nara se aproximando deles.
- Elphame, conheça Nara, a curandeira dos neofomorianos - apresentou Brighid depressa.
Nara fez uma mesura respeitosa à chefe do clã.
- Estamos muito felizes por estarmos aqui, minha senhora.
Elphame sorriu.
- Estou feliz por acrescentar uma curandeira e outra jovem caçadora às nossas fileiras.
Nara franziu a testa para sua jovem incumbência.
- Esta caçadora já cavalgou bastante por hoje.
- Acho que todos nós - disse Brighid baixinho enquanto ajudava Liam a desmontar com relutância de suas costas.
- Está absolutamente certa, Brighid - disse Elphame. Ela bateu palmas, chamando a atenção da multidão. - A ceia está servida. Vamos ao castelo e à excelente refeição
de nossa cozinheira.
As crianças responderam com um grito jubiloso, e logo foram acompanhadas pelo clã MacCallan pela imensa abertura dos portões. Elphame ficou ao lado de Brighid, observando
a última das carroças que era puxada para dentro dos muros do castelo.
- Lochlan me disse quantas crianças eram. Estávamos nos preparando e nos planejando para elas. Mas vê-los... todos reunidos... bom, é muito diferente de falar -
disse Elphame.
Brighid bufou:
- Ao menos ele preparou você.
Elphame sorriu para a amiga e depois a abraçou calorosamente.
- Senti falta de sua língua honesta, Brighid.
Vinte e Sete
COM UM SUSPIRO de alívio, Brighid alongou e girou o pescoço, sentindo os nós tensos dos ombros relaxarem. Pisando cuidadosamente para que seus cascos fizessem o
mínimo de barulho, saiu do pátio principal agora vazio, atravessando as portas abertas dos muros internos. Que a Deusa fosse louvada, agora estava enfim sozinha!
E as crianças, todas as setenta, inclusive seu precoce aprendiz, estavam confortavelmente acomodados na recém-restaurada caserna dos guerreiros. O jantar fora uma
exaustiva mistura de caos e controle, e Brighid pensou que provavelmente seria eternamente grata às mulheres do clã MacCallan. Elas tinham se espalhado entre as
crianças e não pareciam se importar com o tagarelar interminável e o questionamento incessante. Na verdade, refletiu Brighid silenciosamente, houve muita risada
e poucas olhadas abismadas ou desconfiadas. Claro que isso fazia sentido. Diferentemente dos guerreiros guardiões, o clã MacCallan teve mais de dois ciclos completos
da lua para se preparar para a chegada dos neofomorianos.
E também havia Lochlan, o companheiro escolhido pela chefe do clã. Ele era um nobre exemplo de seu povo. Estivera enganada por desconfiar dele, Brighid reconhecia
isso agora. Era óbvio que a maioria do clã MacCallan não fora tão reticente em aceitá-lo. Brighid meneou a cabeça. Através das crianças híbridas, passara a aceitar
a bondade inerente aos neofomorianos e era capaz de enxergar Lochlan com novos olhos.
Mas não via de maneira diferente apenas os neofomorianos. Uma parte dela começara a se agitar... bradar. Não queria pensar nisso, muito menos admitir, mas não era
covarde. Era de sua natureza enfrentar as coisas de frente. Ela estava mudando. Agora que estava em casa, de volta ao único lugar no mundo em que se sentia mais
aceita, mais segura, a diferença dentro dela era inegável.
Isso a intrigava quase tanto quanto preocupava.
Os muros externos do Castelo MacCallan assomaram de repente diante dela, que logo reorientou os pensamentos, sorrindo para o recém-construído caminho de ronda que
corria ao longo do interior das paredes de pedra lisa. Por insistência de Elphame, a ampla escadaria e os degraus altos foram construídos sob especificações bem
amplas para acomodar o volume de um centauro. Adequado aos centauros - aquilo definitivamente descrevia o Castelo MacCallan. Brighid imaginou brevemente se visitar
um castelo como o MacCallan, onde os centauros não eram apenas respeitados por suas habilidades de caça, mas eram realmente aceitos como parte do clã, parte da família
da chefe do clã, mudaria as visões isolacionistas de sua manada.
Provavelmente não. A manada Dhianna se mantinha isolada, ferozmente orgulhosa por não se dignar a se misturar com humanos. Uma visita ao Castelo MacCallan não mudaria
o que estava marcado dentro deles há...
Há quanto tempo? Com um sobressalto, Brighid percebeu que a última vez em que a manada Dhianna deixara a Planície dos Centauros por mais do que uma breve transação
fora durante a Guerra Fomoriana, e aquilo terminara desastrosamente para a manada. Mais de metade dos guerreiros centauros que lutaram na grande batalha no Templo
da Musa foram exterminados. Muitos ficaram terrivelmente feridos e mancaram de volta para as planícies jurando nunca partir novamente.
Ela era a primeira da manada a escolher deixar a Planície dos Centauros em mais de cem anos. Pela Deusa, era um pensamento intimidante!
- É bom vê-la, Brighid! - A voz do sentinela ecoou da atalaia.
Brighid deu tapinhas na balaustrada da ampla escadaria, assentiu com a cabeça e resmungou como se estivesse parada ali estudando o trabalho e não parada perdida
em pensamentos deprimentes com a manada Dhianna. Ignorando as sombras do passado, subiu até a atalaia e retribuiu a saudação formal do sentinela: - Estamos contentes
por tê-la em casa, caçadora.
- É bom estar em casa. - Ela sorriu em cumprimento e depois cobriu a curta distância até a beirada do muro. - Bela noite - disse ela, olhando para a floresta escura
e silenciosa e para o céu sem nuvens que estava iluminado com incontáveis estrelas.
- Tem sido uma primavera seca. É por isso que conseguimos concluir muito do trabalho no castelo. - O sentinela deu uma risadinha. - Claro que Wynne e o resto das
cozinheiras já estão reclamando que teremos que carregar água para a horta se não tivermos chuva logo, mas esse tempo me agrada - mesmo sob a ameaça de carregar
água.
Brighid sorriu distraída. Sua atenção foi atraída por um anel de tochas perto dos limites da floresta. O sentinela seguiu seu olhar.
- A tumba de Brenna. - A voz dele ficou séria.
Brighid gemeu e assentiu com a cabeça, lembrando-se: - O monumento foi concluído.
- Sim, só faz três noites que as tochas permanentes foram acesas pela primeira vez. Agora são acesas todas as noites. São apagadas a cada amanhecer.
- Três noites? - O estômago de Brighid se apertou. Três noites atrás Brenna a visitara no sonho. O que foi que o pequeno espírito dissera? Que se sentira compelida
a visitá-la naquela noite? - Até onde vai o caminho de ronda? - perguntou abruptamente ao sentinela.
- Já foi concluído mais de metade em torno do muro do castelo. - Ele apontou para a direita. - Vá em frente e veja por si mesma. Há tochas colocadas por toda parte.
- Ele sorriu. - Não precisa ter medo de tropeçar, caçadora.
- Bom, isso é reconfortante - murmurou, desejando boa noite ao sentinela e caminhando ao longo do robusto passadiço de madeira, aborrecida por parecer ser de conhecimento
comum que ela não gostava de alturas. Na atalaia seguinte, ela se aproximou do balcão e apoiou os antebraços na balaustrada de pedra lisa. De lá tinha uma visão
clara da tumba de Brenna. Uma estrutura simples e elegante fora erguida sobre ela - um teto abobadado suspenso por quatro colunas. Em cada uma das colunas foram
colocados castiçais entalhados nos quais as tochas ardiam, iluminando o grande sarcófago de mármore e espalhando fachos suaves de luz sobre o contorno da efígie
de Brenna.
- Me pergunto se ela gostou - falou Elphame baixinho ao sair das sombras.
Brighid considerou um reflexo de quantas vezes Ciara tinha se materializado silenciosamente ao seu lado nos últimos dias não ter pulado de susto - ou caído do balcão.
Mas fechou os olhos brevemente e respirou fundo para acalmar o coração disparado.
- El, será que poderia fazer algum barulho?
Ela se espremeu ao lado da caçadora.
- Eu a assustei?
A caçadora foi para o lado para que a amiga tivesse mais espaço e lhe deu uma olhada desagradável.
Elphame sorriu.
- Lamento.
Então as duas olharam a tumba.
- Parece tranquilo, mesmo daqui - disse Brighid.
- Ainda não está concluído. Comecei a procurar por um artista para pintar o teto com o nó da curandeira. E eu quero expandir mais as flores silvestres azuis para
que cubram aquela parte dos terrenos do castelo. Cuchulainn disse que eram as flores favoritas dela.
- Porque são da cor dos olhos dele - disse Brighid.
Surpresa, Elphame sorriu para a amiga.
- Nunca pensei nisso antes, mas aposto que está certa.
- Acho que Brenna gostaria do que fez para lembrá-la. - Enquanto falava, Brighid sentia a justiça daquelas palavras, bem no fundo daquela parte que começara a se
agitar recentemente.
- Acho que está certa. Ela foi importante demais para se tornar um pedaço esquecido do passado.
- Não será. Temos setenta crianças aladas que transmitirão sua história. Os neofomorianos parecem ter uma memória longa. - Brighid ergueu uma sobrancelha contemplativamente.
- E acho que não precisa mais procurar por um artista. Lochlan mencionou quantos híbridos são descendentes das deusas encarnadas das Musas?
- Não me lembro dele dizendo nada específico sobre qualquer das mães, exceto a dele - disse El. - Fiquei tão surpresa quanto o resto do clã por descobrir que a xamã
era neta de Terpsícore.
- Espere para ver o talento que esteve escondido nos Ermos por todos esses anos. As paredes no Grande Salão estavam cobertas com pinturas espetaculares. Até as pernas
das mesas eram entalhadas com flores desabrochando. Você, minha chefe amiga, herdou um grupo de artistas.
- Que notícia excelente. Por que será que Lochlan não mencionou isso?
Antes de conhecer os neofomorianos, Brighid teria suspeitado do silêncio de Lochlan, enxergando motivos velados e evasão dissimulada nessa omissão. Agora já sabia
bem. Sorriu para a amiga.
- Homens - sejam humanos, híbridos ou centauros - são essencialmente semelhantes. Costumam falar muito pouco sobre os assuntos importantes e demais sobre o óbvio.
Elphame riu.
- Isso, minha amiga caçadora, é verdade. - Ela se inclinou sobre a pedra do castelo e estudou a centaura. - Então, o que me diz sobre seu aprendiz?
Brighid deu um suspiro sofrido.
- É óbvio que o menino está confuso.
- E? - instigou Elphame.
- E por alguma razão maluca, acho que me importo com ele. Ele é... - Ela suspirou novamente. - Ele é encantador. E não tem pais.
- Ele precisa de você - disse Elphame.
- Suponho que precisa de mim, e de alguma forma talvez eu precise dele também. Ou ao menos assumir responsabilidade me pareceu certo depois que ele foi ferido.
- O que aconteceu?
- Os guerreiros guardiões não estavam tão ansiosos para recepcionar os neofomorianos quanto o clã MacCallan. Tudo o que sabiam sobre os híbridos era o que tinham
aprendido com Fallon. Ela... se deteriorou ainda mais. - Brighid meneou a cabeça. - Ela zombou de Cuchulainn. Foi medonho e perturbador.
- Eu devia ter ignorado a criança e a matado. Por Cuchulainn. Por Brenna. Por todos nós.
- Não! - Brighid se voltou para a chefe. - Você fez a coisa certa. Qualquer coisa além disso teria sido incivilizado e injusto. - O olhar da caçadora voltou para
a tumba da amiga. - Fallon matou Brenna - e isso foi um ato terrível. Mas ela cometeu o crime por desejo de salvar seu povo. Por escolher o único caminho que pensou
estar livre para ela, foi recompensada com loucura, prisão e, logo, a morte.
- Está dizendo que ela deve ser perdoada? - perguntou Elphame, incrédula.
- Não perdoada. Mas talvez compreendida e digna de pena. - Brighid pressionou as mãos sobre a balaustrada. - Algumas coisas na vida não podem ser devidamente colocadas
nos lados do bem ou do mal. Geralmente estamos no meio de um gesto de equilíbrio, onde a balança felizmente pende para o bem e se afasta do mal. Mas às vezes o mal
veste o rosto de amigos e da família. E o bem parece ser um forasteiro.
Elphame a estudou.
- Sente-se bem, Brighid?
Ela buscou o olhar límpido da chefe do clã.
- Estou aliviada por estar em casa.
- Senti sua falta. Com você e Cuchulainn longe ao mesmo tempo... - Elphame inspirou de maneira entrecortada - ... espero que isso não aconteça novamente.
- Não tenho intenção de ir a lugar nenhum que não seja para caçar - no rico solo de MacCallan.
- Bom. Agora se conseguirmos convencer Cuchulainn de que deve ficar. - Elphame se voltou para encarar a amiga. - Obrigada por trazer meu irmão de volta para mim.
Sempre lhe serei grata.
- Não precisa me agradecer, El. Ele é meu amigo também, e pertence a este lugar. Com você - com o clã MacCallan. Aqui ele pode se curar.
Elphame suspirou:
- Ele parece tão velho e cansado. Diria que foi difícil para ele voltar para cá.
- Sim, mas também é onde ele precisa estar. É hora de esse exílio autoimposto acabar - disse Brighid.
Elphame meneou a cabeça.
- Foi tão estranho ele partir assim. Cuchulainn não foge dos problemas, e sempre encontrou força na família.
- Cuchulainn partiu porque perdeu parte de si mesmo - explicou Brighid. - A parte de sua alma que era alegre e amava a vida não conseguiu suportar a dor de perder
Brenna. Ela se despedaçou e permaneceu no Outro Mundo. É por isso que Cuchulainn tem agido estranho. É por isso que tem sido tão difícil para ele se curar.
- Oh, Deusa! - Elphame ofegou. - O que faremos? Precisamos de um resgate de alma. - Olhou desesperada ao redor. - Mamãe! Ela pode consertar isso! Temos que...
A mão de Brighid sobre seu braço interrompeu o desvario de Elphame.
- Sua mãe já sabe. Haverá um resgate de alma, só que ela não pode executá-lo.
As sobrancelhas de Elphame se uniram.
- Então quem? Papai? Ele está vindo?
- Não, El. - Brighid respirou fundo. - Seu pai também não vai executar o resgate de alma. Eu vou.
Elphame piscou.
- Você?
Brighid encolheu os ombros, sentindo-se decididamente desconfortável.
- É o que parece. Sua mãe aceitou. Cuchulainn aceitou.
- Mas você não é xamã.
- Não, mas aparentemente isso não faz diferença. Eu... eu tenho... - Brighid se calou, tentando decidir como revelar. - Tenho poder no meu sangue. Sua mãe chama
de dom. Ainda estou aprendendo sobre isso. Eu acho... - ela respirou fundo novamente, sentindo-se um pouco como se estivesse vadeando uma piscina de água gelada
- ... acho que é o mesmo dom que minha mãe tem em seu sangue. Sabe que sou filha de Mairearad Dhianna.
Elphame assentiu:
- Sou a filha mais velha de Mairearad Dhianna.
Elphame ofegou.
- E deixou a manada para se tornar caçadora! Durante todo esse tempo presumi que fosse apenas uma das filhas caçulas da sumo xamã. - Elphame meneou a cabeça, um
leve sorriso entortando os lábios. - Aposto que sua partida causou um bocado de... - Calou-se. - É por isso que nos entendemos tão bem. Nós duas somos filhas que
escolheram romper com a tradição. Eu deveria suceder minha mãe como Escolhida de Epona. Você deveria suceder a sua como Sumo Xamã dos Dhianna. Pouco surpreende que
a Deusa tenha cruzado nossos caminhos.
- Só que sua mãe apoia e aceita sua decisão. A minha não. Ela não é como Etain. - Brighid fitou a noite. - Quando deixei minha mãe, estava determinada a deixar uma
vida indesejável para trás, o que incluía o poder no meu sangue que me amarrava a ela. Achava que precisava rejeitá-lo e reprimi-lo para provar que eu era diferente
- que eu estava comprometida com outro destino. - Brighid esfregou o rosto. Queria se explicar para Elphame, precisava. Mas era difícil. Seria sempre tão difícil
assim falar sobre si mesma e sua vida antes de chegar ao Castelo MacCallan? - Mas há partes de meus poderes, ou dons - como sua mãe diz - que não consegui rejeitar.
Sabe que sou uma mestra caçadora. Talvez tão perita em encontrar e capturar presas que poderia ambicionar ser caçadora-chefe de Partholon.
- Sim, claro. Sempre me maravilhei com suas habilidades, assim como o resto do nosso clã. Somos afortunados por reclamá-la como nossa.
- É porque meu dom é uma afinidade com os espíritos dos animais - falou Brighid apressada quando a amiga começou a protestar: - Não estou dizendo que não tenho as
habilidades de uma caçadora. Claro que tenho. Passei pelo treinamento. Compreendo os hábitos dos animais e posso rastrear qualquer coisa que se mova sobre a terra.
Mas tenho mais do que as habilidades normais de uma caçadora. Sinto os espíritos do cervo e do alce, do javali e do urso. Eu os conheço de uma maneira que só é possível
por causa dos poderes que me foram oferecidos por Epona.
Ficaram em silêncio as duas amigas, ambas admirando a floresta sonolenta, considerando o peso das palavras de Brighid.
- Se eu tivesse mais experiência com o mundo espiritual, teria adivinhado a verdade. Agora que você me diz, parece óbvio. - Elphame olhou para Brighid. - Mamãe sabe,
não é?
- Sua mãe sabe de tudo - disse Brighid com um sorriso.
- Tudo que é importante - acrescentou Elphame.
- Não, estou começando a achar que ela sabe de tudo. - As duas mulheres riram placidamente.
- Assim é mamãe - disse Elphame. - Ela é assustadora, surpreendente e maravilhosa.
Brighid hesitou por um momento, depois disse: - Hoje ela me disse que eu a faço se lembrar de você.
Elphame sorriu.
- Isso não me surpreende.
- Preciso dizer que depois de viajar com ela e conhecê-la melhor fiquei com inveja de você, El. Só posso imaginar como seria ter uma mãe que me amasse de maneira
abnegada.
Elphame entortou a cabeça e encarou a amiga.
- É um presente sem preço - disse simplesmente.
- Um que nunca conhecerei.
- Não precisa nascer filha de alguém para se compartilhar do amor dessa pessoa.
Agora era a vez de Brighid piscar surpresa com a chefe. Elphame sorriu.
- Mamãe tem duas filhas, mas já disse várias vezes que gostaria que Epona lhe tivesse concedido mais outras.
A caçadora sentiu uma torrente quente de emoção. Aceitação. Assim era ser verdadeiramente aceita, amada e honrada por si mesma. E Elphame não estava com ciúme dela,
nem zangada, nem chocada. Estava claramente contente com a perspectiva de compartilhar o amor da mãe com Brighid. Era um milagre.
Então a culpa inundou Brighid. Ela possuía uma mãe. Verdade, Mairearad era egoísta e manipuladora, e claramente se importava mais consigo mesma do que com os filhos,
mas era sua mãe mesmo assim. Era possível possuir duas mães ao mesmo tempo?
Não era. Pela Deusa, queria que fosse possível. Mas não era.
- Brighid - murmurou Elphame, tocando-lhe o braço. - Não deixe isso dilacerar você. Não pode aceitar o amor de uma mãe sem rejeitar a outra?
- Não seria traição? - perguntou Brighid, tentando, sem sucesso, evitar que a voz tremesse.
- Não, irmã. Você não é capaz de traição. Esqueça isso.
- Tentarei... - sussurrou. Desviando o rosto, secou as lágrimas que tinham escorrido pelas faces. Então um agitar de movimento atraiu sua atenção. Brighid refocou
a visão. Dois vultos se moviam entre as tochas que iluminavam a sepultura de Brenna. Um era de homem, o outro de uma filhote de lobo.
- É Cuchulainn - sussurrou Elphame.
O guerreiro se encaminhou até a cabeça da tumba de Brenna. Ficou paralisado, depois afagou a face de pedra com a mão. Curvou-se lentamente. Brighid achou que ele
beijaria os lábios da efígie, mas Cuchulainn simplesmente pousou a testa sobre o mármore imaculado. Depois se virou, tropeçando na escuridão, com a loba seguindo-o
em silêncio.
- Rejeitava o poder de xamã no meu sangue - murmurou Brighid. - Então encontrei seu irmão nos Ermos - despedaçado e desesperado, e de alguma forma compreendi que
eu podia ajudá-lo. Mas isso é tudo o que eu realmente compreendo. Não sei o porquê, mas Epona fez de você e seu irmão uma parte do meu destino.
Elphame se virou para ela.
- Nossa Deusa é sábia. Não há ninguém a quem mais confiaria meu irmão senão você.
- Espero ser digna de sua confiança.
- Você é, minha irmã. - Elphame sorriu, e os pelos na nuca de Brighid se eriçaram quando partículas de poder rodopiaram repentina e inesperadamente no ar que as
envolvia.
Vinte e Oito
O CÔMODO FORA arejado e preparado para ela. Tinha sido construído como um anexo à caserna dos guerreiros, uma extensão do cômodo longo e estreito que agora abrigava
os neofomorianos. Elphame ordenou que uma parede grossa fosse construída entre a caserna tradicional e o alojamento da caçadora, e insistiu para que o cômodo espaçoso
tivesse uma entrada independente. Brighid não sentia necessidade de tanto alvoroço, mas a chefe do clã ignorou seus protestos e criou um aposento digno da caçadora
de MacCallan. Era privado e bem equipado. E, Brighid notou com prazer, nos dias em que esteve fora, alguém havia pendurado uma tapeçaria retratando a Planície dos
Centauros, plena de flores silvestres de primavera e pontilhada com bisões escuros, ao longo de uma das paredes.
- Que a Deusa a abençoe! - murmurou Brighid, sabendo que fora Elphame quem cobrira as paredes de Brighid com cenas de sua infância. Elphame a compreendia bem.
Uma das criadas fora bem solícita por acender o fogo na lareira, assim como as luzes do conjunto de altos candelabros que pareciam sentinelas de ferro ao redor do
quarto. O cômodo longo e estreito fora mobiliado com uma grande penteadeira, uma mesa bem sólida - construída para proporções centáureas - e um enorme colchão recheado
de penugem, que repousava diretamente sobre o chão de mármore.
Brighid aspirou fundo, adorando o cheiro familiar das velas de MacCallan, que eram feitas esmagando-se as folhas oleosas da lavanda local com a cera. Então sorriu.
Que a Deusa abençoasse Wynne e seu bando de cozinheiras! Sobre a mesa havia um cesto cheio de carne fria, queijo, pão, frutas secas e - o melhor de tudo - um odre
- ela o destampou e tomou um longo e profundo gole - do excelente vinho tinto dos próprios vinhedos de Etain.
Brighid enfiou um pedaço de queijo na boca. Conheciam seus hábitos. Sabiam que ela gostava de beliscar à noite e que às vezes se levantava antes mesmo das cozinheiras.
Queriam ter certeza de que ela teria provisões. Importavam-se com ela.
Vivia ali há não mais que três ciclos completos da lua, porém cada aroma, cada rosto, cada gesto, falava-lhe de segurança e aceitação. Acho que finalmente encontrei
meu lar.
Era uma experiência única e maravilhosa ter um castelo cheio de pessoas que se preocupavam com ela e se importavam com seu conforto. O que sua mãe pensaria se pudesse
ver isso? Brighid meneou a cabeça. A mãe nunca veria isso, mesmo que estivesse de pé naquele mesmo quarto. Mairearad Dhianna só conseguia enxergar sombras, nunca
a luz que as produzia. Encontraria defeitos no clã MacCallan e menosprezaria a afeição deles por Brighid.
Por que estava pensando na mãe? Aquela parte de sua vida estava encerrada.
Era porque estava cansada demais. A viagem fora exaustiva. Precisava dormir. Voltaria a ser ela mesma pela manhã. No dia seguinte garantiria que os neofomorianos
fossem assentados - havia o falatório da construção de uma aldeia para eles no platô ao sul do castelo. Talvez devesse levar Liam lá.
Ela suspirou, soprando metodicamente as velas perfumadas, até a única luz vir do fogo tremulante da lareira. O que faria com Liam? Ela o declarara seu aprendiz.
Teria que começar a treiná-lo. Rastreamento, pensou ela com satisfação, colocá-lo para explorar rastros diferentes - identificar... seguir... nomear... categorizar.
Era o rastreamento que mais exigia anos de treinamento para ser dominado pelas aprendizes de caçadora. Brighid o manteria ocupado.
Se tivesse sorte, Liam perderia o interesse.
Ignorando o calombo rígido da pedra de turquesa no bolso do seio, a caçadora descartou o colete e despejou água fresca do jarro na bacia que aguardava no topo da
penteadeira. Usando uma grossa toalha de linho que encontrou pendurada num gancho com formato de adaga, refrescou-se e depois suspirou profundamente ao se acomodar
na cama. Dormiria bem naquela noite. Amanhã consideraria todas as ramificações da pedra de turquesa, do resgate de alma e da maldita águia dourada que convenientemente
esquecera de mencionar, exceto para Cuchulainn. Amanhã ainda estaria em tempo...
Não tinha percebido que sonhava. Estava simplesmente contente, navegando numa nuvem de serenidade. Não existia nenhuma criança em seu sonho... nenhuma amiga falecida...
e de certo nenhum maldito homem, de alma despedaçada ou não.
O som da porta fechando com estrondo e a sensação de uma mão áspera sacudindo-a para que acordasse dissipou seu contentamento como fumaça ao vento.
- Brighid! Acorde!
A caçadora abriu um olho. O fogo tinha se queimado em brasas ardentes, mas o homem segurava uma vela na mão. Ela abriu o outro olho.
- Cuchulainn? - A voz estava grossa de sono.
- Pronto, sabia que estaria acordada - disse ele, que se pôs a acender as velas que ela tinha apagado recentemente.
Brighid se sentou e afastou o longo cabelo prateado do rosto.
- Já é de manhã?
Concluída a tarefa de acender as velas, Cuchulainn se agachou diante da lareira, alimentando o fogo com lenha e recuperando-lhe a vida. Olhou para ela por cima do
ombro. Os olhos desviaram para os seios nus antes de retornarem ao rosto dela.
- Não. Não é de manhã. Vista-se. - Ele ficou de costas para ela e recomeçou a atiçar o fogo.
As faces de Brighid ficaram quentes quando ela se levantou da cama e recuperou o colete. Mas mesmo enquanto o colocava, sua mente estava em disparada. O que havia
de errado com ela? Centauros geralmente ficavam nus. Não havia vergonha em expor os seios. E mesmo completamente vestida com o tradicional colete de couro adornado
de miçangas, os seios geralmente ficavam parcialmente visíveis. Por que estava corando como uma menina? Cuchulainn tinha invadido seus aposentos, acordando-a e fazendo
com que se sentisse... nua. Isso era ridículo.
- Cuchulainn, o que foi? - inquiriu Brighid. - Estou cansada. E não dei permissão para que entrasse aqui e... - ela apontou para as velas acesas e a lareira - ...
despertasse tudo.
Cuchulainn ficou de pé e a encarou. O cabelo despenteado estava bagunçado como a juba de uma grande fera. Ele juntou as mãos, cruzando os dedos num aperto tão forte
que branqueou as juntas, depois as levou à testa e fechou os olhos, como se pretendesse suplicar com uma oração.
- Cuchulainn? - Agora Brighid estava preocupada. O homem diante dela parecia cansado e destroçado.
- Me ajude - pediu ele, mantendo os olhos fechados. - Não consigo mais. Não posso viver assim por mais um dia.
- Claro que ajudo você. Já conversamos sobre isso.
- Nada mais de conversas. - Ele abriu os olhos. - É agora ou nada.
Brighid sentiu uma pontinha de pânico.
- Cuchulainn, seja racional. Agora não é a hora.
- Tem que ser. - Ele desprendeu as mãos num gesto violento. - Não consigo ficar aqui sem ser eu mesmo.
- Sabe que isso não vai mudar sua dor, Cuchulainn. Não fará com que ela desapareça.
- Sei disso! - Ele correu os dedos pelo cabelo e andou de um lado para outro diante da lareira. - Tenho que aprender a viver sem ela, mas não posso fazer isso se
não estiver inteiro, e não suporto ficar aqui - em casa - onde eu a conheci, amei e perdi. Estou respirando, então estou vivendo, mas não de verdade. Eu... eu não
consigo explicar direito. Só precisa acreditar que estou pronto. Ou você me ajuda esta noite, ou pela manhã terei ido embora.
- Fugir não soluciona nada.
- Sei disso também! - Cuchulainn esfregou a testa, depois ergueu os olhos para ela. - Me ajude, Brighid. Por favor.
- Não sei se consigo fazer isso! - gritou ela.
Ele quase sorriu.
- É só isso que a preocupa? Tem medo de não conseguir apanhar a parte de mim que está faltando?
- O que quer dizer com "é só isso que a preocupa"? Claro que isso me preocupa! Cuchulainn, não sou xamã - disse ela com clareza e nitidez, como se ele fosse uma
criança estúpida.
- Mas aquilo... - Ele se calou com um franzir da testa. - Quero dizer, ele, ou eu, ou seja lá como chame aquela parte que me falta.
- Ele - disse Brighid.
- Ele já veio até você. Virá novamente.
- Você parece ter certeza.
Então Cuchulainn sorriu de verdade.
- Tenho certeza, caçadora. Nós gostamos de você - ele e eu. Você é irritadiça e fechada demais, mas ainda assim gostamos de você. Ele virá até você. Apenas chame.
Brighid ignorou a maneira como as palavras dele a deixaram agitada por dentro. Claro que Cuchulainn gostava dela. Eram amigos - camaradas -, membros do mesmo clã.
- Ou me ajuda, ou vem comigo explicar à minha irmã e minha mãe que estarei de partida logo pela manhã.
Brighid fez cara feia para ele.
- Isso me soa vagamente como uma ameaça.
- Não é vago e não é uma ameaça. É uma clara chantagem.
Brighid buscou seus olhos turquesa novamente, toda a zombaria desaparecida da voz.
- Estou com medo, Cuchulainn.
- De quê?
- De falhar... de conseguir.
Surpreendendo-a, Cuchulainn assentiu devagarinho: - É o reino espiritual. Você não quer ir lá. Compreendo isso, e lamento ter que pedir que faça isso por mim. Se
houvesse outra maneira...
- Não - apressou-se em dizer. - Não é a viagem que me aborrece. Estou com medo do que eu possa descobrir lá - terminou Brighid a frase num sussurro.
O rosto de Cuchulainn empalideceu, mas ele não abandonou o olhar dela.
- Sabe o que vai descobrir. É apenas eu, Brighid. Despedaçado ou não - com corpo ou não -, é apenas eu.
- Isso está me transformando, Cuchulainn. Eu posso sentir.
- Eu sei... Eu... - O queixo dele enrijeceu. - Me perdoe por pedir isso a você.
Brighid olhou nos olhos dele e de repente se sentiu envergonhada de si mesma. Cuchulainn estava implorando pela vida. Ela precisava deixar de lado seus temores infantis
e concluir aquele trabalho. Carregava o sangue de uma xamã poderosa nas veias, como sempre carregou a vida inteira. A única diferença agora era que ela teria que
mergulhar nessa herança e usá-la em sua vantagem.
- Não há o que perdoar. Estou sendo tola. Vamos acabar com isso.- Brighid olhou ao redor do quarto. - Aumente o fogo da lareira, mas acho melhor apagar essas velas.
Cuchulainn rapidamente se moveu de vela em vela, depois retornou à lareira e acrescentou mais madeira ao fogo, cutucando e atiçando até as chamas dançarem e crepitarem.
Depois ficou de pé, esfregando as mãos com nervosismo.
- E agora?
Brighid tinha vontade de gritar com Cuchulainn. Sabia tanto quanto ele - não tinha a menor ideia do que fazer em seguida. Mas a expressão nos olhos dele a conteve.
Cuchulainn estava contando com ela. Não sabia o porquê, mas estava destinada a ajudá-lo. Ela suspirou.
- Precisamos nos deitar - disse, retirando-se para o colchão macio. A centaura dobrou as pernas e se reclinou, quase na mesma posição em que estava quando ele invadiu
o quarto. Olhou para ele. Ainda estava parado diante da lareira. - Cuchulainn, não precisa viajar ao Outro Mundo comigo, mas tem que ficar relaxado e pronto para
aceitar o retorno de sua alma. Acho que é mais fácil de se fazer deitado.
- Onde?
Ela revirou os olhos e apontou para o espaço vazio ao lado dela.
- Vou recuperar um pedaço da sua alma. Não precisa ter medo de se deitar perto de mim.
- Não estou com medo. Só... - Ele passou os dedos pelo cabelo bagunçado. - Pela Deusa, estou nervoso. Não sei o que fazer!
- Tente se deitar.
Ele assentiu, resmungou, e então foi a largas passadas para o outro lado do colchão da caçadora. Deitou-se, cruzando e depois descruzando as mãos.
- Não sei o que fazer com minhas mãos - disse sem olhar para ela.
- Não me importa o que faça com elas, desde que fique parado.
- Me desculpe - disse ele.
Brighid virou a cabeça para poder encará-lo.
- Isto é o que vou fazer: vou relaxar e me levar para o mesmo lugar ao qual vou quando estou me preparando para uma caçada. Depois avançarei mais fundo no... bom,
onde quer que a trilha me leve.
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas.
- A única maneira de eu conseguir fazer isso é comparando com uma caçada - explicou ela exasperada.
Ele começou a erguer as mãos, como se defendendo-se de um ataque, mas então parou e as manteve bem apertadas aos flancos.
- Faça como quiser fazer - disse ele cautelosamente.
- Ah, pare com isso! - retrucou ela.
- Parar com o quê?
Brighid se ergueu num dos cotovelos e apontou o queixo para seus braços rígidos e o corpo imóvel.
- Está agindo como se nunca tivesse se deitado com uma mulher antes.
Desta vez só uma sobrancelha se ergueu e os lábios se curvaram como se Cuchulainn estivesse tentando esconder um sorriso.
- É assim que prefere me relaxar?
Brighid fez cara feia.
- Claro que não. - Não pensaria em como estar com ele ali, tão perto, fazia seu estômago apertar. Não pensaria, e certamente não mencionaria aquilo. Reclinou-se
novamente no amontoado dos lençóis. - Mas você está parecendo você mesmo agora.
- Você é ardilosa, caçadora.
- Apenas feche os olhos e se concentre em ficar aberto. Lembre-se, não posso obrigar sua alma a voltar. Ele precisa querer vir, e você precisa aceitá-lo.
- Estou pronto.
Pela Deusa, ela esperava estar pronta também.
Vinte e Nove
ELA VASCULHOU O bolso do colete e puxou a pedra de turquesa. Apertando-a bem no punho cerrado, fechou os olhos. Pense que é uma caçada, ordenou-se. Não é assim tão
diferente. Hoje estou rastreando um espírito despedaçado em vez de um animal. Brighid respirou profunda e lentamente e se concentrou. Como fazia todos os dias antes
de uma nova caçada, imaginou uma luz poderosa se originando bem na base da espinha, e, quando expirou, o poder fluiu ao redor dela. Em seguida, quando inspirou,
imaginou-se aspirando a luz e deixando-a preencher seu corpo; depois expirou outra vez, novamente preenchendo o espaço ao redor com a luz brilhante e poderosa.
Enquanto continuava se concentrando, imaginou onde começaria a caçada - e por um momento hesitou. Onde estava sua presa? Geralmente lançaria seus pensamentos à floresta
próxima, procurando a centelha esvoaçante que podia sentir tão distintamente diferente para cada animal. Encontrar a aura da criatura sempre lhe mostrava onde procurar
a presa. Mas Cuchulainn aparecia exatamente como ele mesmo - não tinha ideia de qual poderia ser a cor do seu espírito, ou mesmo se possuía alguma luz. Consequentemente
não tinha pista de onde seria o hábitat de Cuchulainn.
Deveria interromper a meditação e perguntar a ele quais os seus lugares favoritos? Não... Ele tinha vindo até ela antes. Não precisara procurar por Cuchulainn. Ele
visitara seu lugar favorito - a Planície dos Centauros. Sentindo-se subitamente mais confiante, Brighid focou a mente no lar de sua infância.
Não sabia que o espírito tinha deixado o corpo até sentir a brisa morna nas faces. Antes mesmo de abrir os olhos, sabia estar lá - a brisa lhe dizia. Cheirava a
capim alto e liberdade.
Brighid sorriu e abriu os olhos. Tinha retornado à mata próxima ao assentamento de verão da família. Podia ouvir o Riacho Sand rolando preguiçosamente pela alameda
sombreada de carvalhos, freixos e lódãos diretamente à frente dela.
No sonho, tinha ouvido a risada de Cuchulainn, e aquilo a guiara até ele, então ficou quieta, ouvindo a brisa acariciadora. Escutando apenas o trinado de pássaros,
suspirou frustrada.
Rastreá-lo, lembrou a si mesma. A caçadora estudou o chão. Nada. Como poderia rastrear um espírito?
Peça ajuda, criança...
A voz de Etain sussurrou no vento. Brighid se assustou e olhou ao redor. Não viu ninguém, mas seus instintos diziam que não estava sozinha. A presença de Etain estava
observando, e Brighid não conseguia decidir se isso a fazia se sentir melhor ou mesmo mais nervosa. Pare de se preocupar e pense!, ordenou a si mesma.
Peça ajuda...
Ela endireitou os ombros e, sentindo-se um pouco tola, a caçadora gritou ao vento: - Estou fora do meu elemento nesta caçada em particular, e bem que gostaria de
alguma ajuda!
O guincho familiar veio de cima, então ela ergueu o rosto, abrigando os olhos do sol forte de primavera. A águia dourada circulava acima de sua cabeça. Brighid sentiu
uma torrente de animação. A ave devia ser realmente seu aliado espiritual.
Desta vez nenhuma palavra se formou em sua cabeça, mas a águia inclinou a asa e mudou de direção, afastando-se do Riacho Sand e adentrando a planície relvada. Sem
hesitação, Brighid trotou atrás dela, tentando não se perder na experiência sensual de passar pelo capim ondulante. A planície falava ao seu sangue. Podia correr
ali para sempre. Dividindo a atenção entre o chão e a águia, aumentou o passo, passando de trote a galope e sentindo um prazer feroz na flexão dos músculos equinos
e na maneira satisfatória com que os cascos atingiam a terra rica.
Teria passado galopando por ele se não tivesse ouvido chamarem seu nome. Cuchulainn estava parado numa pequena elevação. Mãos na cintura, observou-a parar e depois
galopar de volta até ele.
- Vejo que tirou o capão de mim. Por quê? Com medo de que eu a vencesse na corrida desta vez? - Então seu olhar vagou de propósito nos excelentes músculos equinos
da parte traseira. - Está mais devagar, velhota? Parece um bocado... saudável. Anda comendo bastante?
Brighid abriu a boca em choque. Aquele patife a estava chamando de velha e gorda?
Cuchulainn jogou a cabeça para trás e deixou a risada rolar, o que fez a caçadora o encarar com cara muito feia.
- Ah, Deusa! - Ele apertou o flanco, ofegando entre gargalhadas. - Devia ver sua cara!
- Devia ver a sua. Parece ridículo rindo como um palhaço de aldeia - resmungou.
Ainda dando risadinhas, Cuchulainn se atirou no chão, parecendo travesso e terrivelmente jovem, especialmente quando contrastava esse guerreiro despreocupado com
o homem abatido e cansado do mundo cujo corpo descansava ao seu lado no Castelo MacCallan.
- O que vamos fazer hoje, Brighid? Voltar para o riacho e pescar? Ou, se fizer meu cavalo aparecer, podemos rastrear alguns bisões. Sempre quis caçar bisões. Diga,
o temperamento deles é tão maligno como meu pai diz?
Em vez de responder, a caçadora o estudou. Estava enganada quando pensou que Cuchulainn não possuía luz própria. Como não conseguira ver antes? O guerreiro brilhava
como um jovem deus dourado. Estava transbordando de vida e alegria.
Cuchulainn precisava dessa parte de si mesmo, e o jovem deus precisava da força do guerreiro maduro que ficara com seu corpo e escolhera se agarrar à vida e tentar
sobreviver à dor da perda.
Inabalado com o silêncio, Cuchulainn sorriu para ela.
- Ótimo. Faremos o que quiser fazer. É o seu sonho.
- Agora é hora de voltar para casa, Cuchulainn - disse ela.
O guerreiro deu de ombros e se ergueu com agilidade.
- A decisão é sua - o sonho é seu. Claro que não há bisão nenhum por lá, mas os cervos são incrivelmente suicidas. Quer ver quem abate um primeiro?
- Nada de caçada. Nada de sonhos. Nada de fingimentos. É hora de voltar para casa.
Cuchulainn bufou um pouco de ar numa risada meio estrangulada.
- Não sei do que está falando, Brighid. Como eu disse antes, o sonho é seu. Só vim participar do passeio.
- Pare com isso - explodiu ela, surpreendendo os dois com a veemência. - Essa charada desonra a memória dela. Compreendo o sofrimento. Compreendo a perda. Mas não
compreendo a desonra.
O rosto de Cuchulainn perdeu um pouco do brilho dourado.
- Nada disso faz sentido.
- Basta, Cuchulainn. Você se lembra, sei que se lembra. É hora de encarar o mundo real. Lá não estamos reconstruindo os aposentos de Elphame. Isso foi há quase três
ciclos da lua. Os aposentos de sua irmã estão prontos. Muito do castelo foi reconstruído, mas você não estava lá para ver. Esteve nos Ermos num exílio autoimposto,
sofrendo por Brenna.
Ele meneou a cabeça.
- Está enganada.
- Não - disse exausta. - Queria estar enganada. Queria desfazer tudo. Mas não posso. Você amava Brenna, mas ela foi morta.
- Por que está fazendo isso?
Brighid continuou como se ele não tivesse falado: - Quando Brenna morreu, sua alma se despedaçou. Desde então uma parte de você estava vivendo, respirando e tentando
lidar com o pesar, a culpa e a dor. Tentando prosseguir com a vida cotidiana. E posso lhe dizer que tem sido bem difícil para ele porque a parte de seu espírito
que ama a vida - que está cheia de alegria, esperança e felicidade - está aqui - murmurou. - Isso é o que você é, Cuchulainn. Um pedaço de um todo. Olhe dentro de
si mesmo. Está incompleto e sabe disso.
Cuchulainn continuava sacudindo a cabeça de um lado para outro.
- Não...
Afastou-se dela um passo, mas Brighid foi rápida, cobrindo o espaço entre eles, colocando a mão, refreadora, sobre seu ombro, surpresa por ele parecer tão real,
tão sólido e cálido.
- Não desta vez... - disse-lhe. Brighid vasculhou o bolso e pegou a pedra de turquesa. Estendeu-a para ele na palma da mão aberta. - De quem é isso, Cuchulainn?
O rosto dele perdeu o resto da cor. Ele encarou a pedra.
- De quem é isso? - repetiu ela.
- É a pedra de Brenna. - A voz tinha perdido todo o entusiasmo da juventude e ele soava como o guerreiro que estava no Castelo MacCallan. - Ela disse que era um
presente de Epona. - Ergueu os olhos para Brighid, com a expressão de um menino perdido. - Ela disse que era da mesma cor dos meus olhos.
- É sim, meu amigo - confirmou Brighid.
- Eu amava Brenna - disse devagarinho.
Brighid assentiu:
- Sim, e ela amava você.
- Brenna está morta.
- Sim. - Brighid não sabia o que esperava, mas a calma resignação que se assentou no rosto de Cuchulainn a surpreendeu.
Ele estava fitando a pedra outra vez.
- Eu me lembro.
- Sabia que lembraria. - Brighid lhe apertou o ombro. - Está pronto para voltar para casa agora?
Cuchulainn ergueu os olhos assombrados.
- Por que deveria?
- Ele precisa de você. Você precisa dele. E é o certo a se fazer, Cuchulainn.
- Por que ele não vem para cá? Aqui é bom. Nada de dor. Nada de morte. Nada de...
- Viu Brenna por aqui? - interrompeu ela.
O corpo dele enrijeceu.
- Não. Ainda não. Mas se eu ficar inteiro de novo, talvez ela venha.
- Ela não vem, Cuchulainn. Este lugar não é real - nem mesmo para os padrões do Outro Mundo. É defeituoso, falso, imaginário. Nada aqui existe de verdade.
- Como sabe? - A voz dele beirava o desespero.
- Tem que confiar em mim, Cuchulainn. Nunca enganaria você. O homem cujo corpo está deitado ao meu lado no Castelo MacCallan sabe disso. Você também não sabe?
O olhar dele se fixou no de Brighid, que podia vê-lo considerando. Lentamente, Cuchulainn assentiu com a cabeça.
- Confio em você. O bastante para saber que me dará uma resposta honesta para uma última pergunta: o que há para mim quando eu retornar, além do sofrimento, da dor
e dos pedaços de uma vida dilacerada?
A importância da resposta pressionava a alma dela. Ah, me ajude... Etain... Epona... Alguém. Sua mente procurava freneticamente por uma resposta lógica e benfeita
que tornasse o amigo inteiro novamente. Deveria mencionar a irmã? As pessoas do clã MacCallan? Que tal as crianças às quais obviamente se afeiçoara?
Pare de pensar, criança, e sinta. Encontrará a resposta certa.
As palavras em sua cabeça eram inegavelmente de Etain. Às cegas, como um homem se afogando, agarrou-se nelas, arrojando pelos destroços de sua mente. Quando falou,
a resposta veio do coração: - Você vai amar novamente. É por isso que deve retornar. Acho que talvez já esteja um pouco apaixonado. - Os olhos de Brighid se encheram
de lágrimas conforme as emoções a sobrepujavam. - Não será fácil, e vem de um lugar inesperado... - Ela pensou na bela Ciara e percebeu que "inesperado" era definitivamente
uma amenidade, mas respirou fundo e continuou falando ao guerreiro chocado: - Não alego saber muito sobre o amor, mas sei que pode fazer a vida valer a pena. Confie
em mim, Cuchulainn. Sua vida logo estará repleta de amor e valerá a pena viver novamente.
Conforme falava, uma mudança aconteceu no guerreiro. A tristeza nos olhos turquesa permanecia, mas o desespero sumiu, e quando Cuchulainn sorriu, o rosto inteiro
se aqueceu.
Pela Deusa, ele era lindo!
A mão ainda repousava no ombro dele. Sem desviar os olhos dos dela, Cuchulainn cobriu-lhe a mão e levou-a aos lábios. Imensuravelmente chocada, Brighid só conseguia
encará-lo. O olhar dele era intenso, e parecia que o azul de seus olhos tinha escurecido. Quando falou, a voz se aprofundou: - Você se tornou sumo xamã, Brighid?
Ela meneou a cabeça, imaginando como podia se sentir dormente e quente ao mesmo tempo.
Cuchulainn riu suavemente, um som sublimemente masculino que reverberou fundo dentro de Brighid.
- Eu diria que um humano amar uma centaura que não consegue se transformar talvez seja mais do que inesperado, mas confio em você, minha bela caçadora. E agora estou
pronto para voltar para casa.
Cuchulainn acreditava que ela era a mulher por quem estava se apaixonando! Brighid abriu a boca para negar - para explicar -, para corrigir o engano e...
Traga-o para casa, criança.
A voz de Etain em sua mente fez sua boca se fechar e as faces esquentarem. A sacerdotisa estava certa, claro. Agora não era hora de explicar para Cuchulainn que
estava enganado. Agora era hora de levá-lo para casa. Explicações não seriam necessárias uma vez que estivesse reunido ao corpo. Cuchulainn talvez não estivesse
pronto para admitir que podia amar Ciara, mas sabia que a atração estava lá. Assim como sabia que não existia nada entre os dois.
- Vamos indo, Brighid?
Ela piscou e reordenou os pensamentos. Cuchulainn estava bem perto dela, e ainda lhe segurava a mão. Sorriu, parecendo subitamente tímido. Ah, Deusa! Ele realmente
acreditava que estavam se apaixonando. Sentiu o coração se comprimir e o estômago apertar, e apenas por um momento se deixou imaginar como seria ter aquele guerreiro
como seu, esquecer que ele era um homem inacessível. Descobriu que isso não era tão difícil de imaginar. Talvez por causa do pai centauro, talvez por causa do fato
de a mãe ser a Escolhida de Epona, por qualquer que fosse a razão, aquele homem avivava sentimentos dentro dela que nenhum outro homem, fosse humano ou centauro,
jamais agitou.
Era apenas um sonho - passageiro e impossível -, mas que a tentava... intrigava... E ela deixou assim. Por um momento, deixou assim.
Aspire-o, e traga-o para casa.
A voz de Etain a surpreendeu, e Brighid sentiu o rosto esquentar novamente. Devia estar resgatando a alma de Cuchulainn, mas em vez disso estava se entregando a
ridículas fantasias infantis. E tudo isso enquanto a mãe dele estava observando.
Cuchulainn riu suavemente e entrelaçou os dedos com os dela.
- O que é? Você parece horrorizada.
- Eu... eu preciso levá-lo para casa - revelou.
Ele assentiu:
- Estou pronto. E agora? - perguntou, soando misteriosamente como o Cuchulainn que tinha invadido seu quarto.
- Devo aspirar você. - A voz dela era quase inaudível.
Cuchulainn pigarreou e a mão apertou a dela. Brighid achava que ele de repente parecia obviamente nervoso.
- Acho que só existe uma maneira de fazer isso.
- Como? - perguntou ela, mas já sabia como.
- Me beije, Brighid. Sorva minha alma. Me leve de volta à terra dos vivos.
O estômago se apertou e era como se o coração fosse explodir do peito.
Cuchulainn sorriu.
- Agora parece que você gostaria de fugir.
- Não, eu só... eu só... - gaguejou ela.
As sobrancelhas dele se ergueram.
- Não nos beijamos? Nunca?
Brighid meneou a cabeça.
Ele suspirou:
- Claro que não. Parte de mim está aqui - parte está lá. E ainda estou sofrendo por Brenna... - Cuchulainn passou a mão que não segurava a dela pelo cabelo. - Imagino
que essa coisa entre nós não tenha sido fácil para você. - Então se aproximou ainda mais e tocou-lhe a face. - Peço desculpas por estar tão dilacerado. Por tornar
as coisas ainda mais difíceis do que já são. Me beije, Brighid, para que eu possa sarar por nós dois.
Cuchulainn era um homem alto, com os músculos aprimorados e os ombros largos de um guerreiro. Só teve que inclinar um pouco a cabeça para ir de encontro aos lábios
dele. Brighid parou de pensar. A luz dourada de Cuchulainn estava de volta e, mesmo de olhos fechados, ela conseguia ver sua radiância, brilhante e ardente. O beijo
a surpreendeu pela hesitação. Os lábios dele eram quentes, o sabor dele recordava as pradarias que os cercavam - acolhedoras e sensuais. Abriu a boca e deixou os
braços envolverem-no conforme o beijo se aprofundava. O corpo dele era firme. Cuchulainn parecia não apenas preencher o espaço dentro de seus braços, mas a alma
dele parecia envolvê-la, assim como as mãos que moldavam seu rosto. As línguas se encontraram, então Brighid sentiu um tremor indescritível de desejo varrer sua
pele e se alojar por dentro. As mãos dele deixaram seu rosto para explorar os cabelos. Quando Cuchulainn gemeu de encontro aos lábios dela, o som masculino e ofegante
lhe pareceu uma carícia.
Eu o quero. Eu o quero por inteiro.
No instante em que o pensamento passou pela mente, Brighid sentiu a mudança. A luz dourada que se infiltrava pelas pálpebras fechadas desapareceu. A brisa morna
e perfumada se foi. A única coisa que permanecia era Cuchulainn. Os lábios dele nos dela - as mãos dele em seus cabelos -, o corpo dele se esforçando para encontrar
o dela.
Brighid abriu os olhos. Estava de volta ao quarto no Castelo MacCallan. Estavam na cama dela, voltados um para o outro. Cuchulainn a beijava. Seu corpo ficou tenso,
então os olhos do guerreiro se abriram. Ele interrompeu o beijo abruptamente. As mãos deixaram os cabelos no mesmo instante em que ela o desvencilhou de seus braços.
Mortificada por estar respirando tão pesado, queria sair da cama e correr para fora do quarto, especialmente porque o guerreiro não fez qualquer movimento para se
afastar dela. Com a mão trêmula, Brighid afastou o cabelo do rosto. Os lábios pareciam úmidos e inchados. Hesitante, buscou os olhos dele. Estavam tão azuis quanto
a pedra de turquesa que ela ainda apertava na mão, e igualmente impossíveis de ler.
- Está de volta? - perguntou, surpresa por soar tão normal.
- Sim. - A voz dele estava áspera. Cuchulainn se sentou e olhou para as mãos e os braços, como se fossem novos, e depois passou os dedos pelo cabelo. Parou, sentindo
como estavam longos e emaranhados, depois tocou o rosto, que estava áspero e barbado. - É uma sensação estranha. Sei que deixei o cabelo crescer e que preciso me
barbear. Ou ao menos uma parte de mim sabe. A outra parte de mim está surpresa.
- Acho que a sensação de estar desconectado não vai durar muito - disse Brighid, levantando-se depressa da cama e se aproximando da mesa na qual o odre pendia sobre
o cesto de comida. Obrigou a mão a abri-lo, deixando a turquesa rolar da palma, notando que a pedra deixara um entalhe quase que perfeitamente redondo na pele. Mexendo-se
automaticamente, Brighid pegou o vinho, ansiosa para fazer alguma coisa com as mãos, e tomou um longo gole. Cuchulainn ainda estava sentado na cama, mas tinha parado
de estudar a si mesmo. Infelizmente, agora toda a atenção estava concentrada nela. - Precisa comer e beber para se firmar. Eu também. - Ela se virou para a comida,
partindo um pedaço de pão aromático e mastigando-o entre os goles de vinho.
Podia sentir os olhos dele nela. Tomou outro gole longo, sem olhar para ele, e disse: - Lamento pelo engano que houve lá.
- Engano?
Brighid o ouviu deixar a cama e se aproximar. Ocupou-se cortando um pedaço grosso de queijo.
- O engano quanto a nós dois. Você - ele - presumiu que eu estava falando de um amor entre nós dois. Você, o você inteiro, sabe que é ridículo. Não estava falando
de mim, estava me referindo a Ciara. - Brighid deu uma olhada nele, mas logo desviou os olhos.
- Não é amor o que sinto por Ciara. - A voz dele era cuidadosamente neutra.
- Amor provavelmente é uma palavra muito forte. Suponho que seja desejo, ou atração, ou... - ela hesitou, encolhendo os ombros - ... qualquer outra coisa mais precisa,
mas amor me pareceu a palavra certa na hora.
Cuchulainn tomou o odre dela e bebeu. Secou a boca com as costas da mão e disse: - Não sinto desejo por Ciara. Claro que notei que ela é bonita, mas é onde minha
atenção terminou.
- Ah! - Brighid não tinha ideia do que dizer.
Com relutância, buscou o olhar dele. Fisicamente, Cuchulainn não parecia mudado. Pelo menos, não muito. Talvez se portasse mais ereto, como se o que estivesse pressionando
seus ombros largos tivesse sido removido. Não diminuíram as rugas encrespando os cantos dos olhos, e o cabelo, que era arenoso demais para combinar com o tom avermelhado
da juba ardente da irmã, ainda estava salpicado de grisalho prematuro. A diferença notável estava em seus olhos. Não estavam mais assombrados e vazios. E era como
se enxergassem dentro de sua alma.
- Meus sentimentos por Ciara não me trouxeram para casa. Foram meus sentimentos por você.
- Somos amigos, membros do mesmo clã. Caçamos juntos e...
O toque da mão dele sobre seu braço interrompeu seu jorro de palavras.
- Não negue o que aconteceu entre nós.
- Nos beijamos. Só isso.
A mão lentamente deixou o braço para lhe tocar a face.
- Por que está tremendo?
- Não sei - respondeu ela.
- Acho que sabe.
- Não pode existir nada entre nós que não seja amizade, Cuchulainn - disse Brighid, desejando que a voz não estivesse trêmula.
Cuchulainn lhe acariciou o rosto. Depois deixou os dedos deslizarem de leve pela lateral do pescoço.
- É exatamente o que minha mente diz também.
- Então não deveria estar me tocando assim - sussurrou ela.
- O problema, minha bela caçadora, é que no momento acho difícil pensar com a mente. - Ele se aproximou de Brighid, que pôde sentir o calor de seu corpo. - Entenda,
o que você me restaurou estava cheio de paixão e alegria pela vida, e neste momento esta parte de mim se sente jovem, forte e muito, muito determinada.
Brighid forçou a voz a permanecer estável: - Mas essa parte sua vai retroceder, retornar ao devido lugar. E então onde isso nos deixaria, Cuchulainn?
Ele piscou, a mão se afastou do corpo dela. Cuchulainn deu um passo para trás. Brighid podia ver a luta dentro dele quando o queixo cerrou e a respiração foi controlada.
- Devo partir - disse ele abruptamente. Antes de sair, olhou para a mesa - para a pedra de turquesa deixada ali. Com um movimento desajeitado, apanhou-a e se afastou.
Parou à porta e abaixou a cabeça. - Perdoe-me, Brighid - disse sem olhar para ela. Então abriu a porta e se foi.
Brighid fechou os olhos e tentou acalmar o tremor em sua alma.
Trinta
CUCHULAINN NÃO ESPERAVA dormir, mas retornou aos aposentos para ter privacidade. Para pensar, apresentar-se a... si mesmo. E compreender o que tinha acontecido entre
ele e Brighid.
Sentou-se na beira da cama e encarou a luz do fogo que morria. Pela Deusa, era uma sensação bizarra! Sabia dos eventos que tinham acontecido nos últimos ciclos da
lua. Lembrava-se de amar Brenna e da tragédia de sua morte. Lembrava-se de viajar aos Ermos e ficar preso na neve com os neofomorianos. Conseguia recordar tudo o
que tinha acontecido com eles na jornada para Partholon e o retorno ao Castelo MacCallan. Porém uma parte dele se maravilhava com as recordações como se fossem histórias
estranhas contadas por um bardo visitante.
A coisa mais estranha era se sentir inexplicavelmente leve de alegria. O pensamento fez com que suas mãos tremessem enquanto bebericava lentamente da taça de excelente
vinho tinto que servira a si mesmo. Não era o tipo de alegria que conhecera com o toque de Brenna - ou o entusiasmo juvenil que sentiu ao sorver da vida e saber
que o mundo esperava por ele. Era mais a possibilidade de alegria do que a emoção desenfreada em si. Era algo que pensou que nunca experimentaria novamente, e a
parte dele que fora privada disso não se sentia tão viva desde o dia terrível em que Brenna foi morta.
Ainda sofria por Brenna. Ela era seu amor perdido. Parte dele sempre sentiria falta e até ansiaria por ela, mas sabia que devia seguir em frente. Ele sabia que podia
viver - e até amar - novamente...
Brighid...
A caçadora tinha mexido muito com ele. Seria por ter literalmente tocado uma parte de sua alma? Estaria certa ao dizer que tão logo ficasse acostumado a estar inteiro
outra vez seus sentimentos por ela voltariam ao lugar adequado? Qual era exatamente esse lugar adequado?
Em seus 24 anos, seduzira muitas mulheres, mas só se apaixonara por uma. Seu amor por Brenna tinha sido novo, jovem e fácil. A vida juntos teria sido plena - os
filhos, muitos. Teria ficado contente em envelhecer ao lado dela. Ela teria sido a única para ele. A primeira e última mulher que teria amado.
E nunca teria conhecido a chama que foi inflamada quando tocou Brighid. Quando ela o beijou, sua alma se regozijou. Sentiu-se consumido por ela, queria possuí-la.
O desejo foi insistente e sufocante. Só a recordação do sabor dela, da sensação do corpo dela junto ao seu, era impressionante. Não era como nada que tivesse experimentado
antes, tão devastador que ao se tocarem Brighid se tornou seu mundo, como se ele tivesse sido criado para amá-la.
Claro que era apenas efeito colateral do resgate da sua alma.
Contudo, eles não podiam ser amantes. Brighid Dhianna era uma centaura. Uma centaura.
Ficou de pé e andou de lá para cá na tentativa de aliviar a energia que pulsava por seu corpo. Claro, não era impossível para um centauro e um humano se apaixonarem
e se amarem. Ele era produto de tal união. Mas essa era uma situação singular. Seus pais eram consortes porque Epona sempre destinava um sumo xamã centauro a ser
parceiro da Encarnada Escolhida. E um sumo xamã centauro possuía a capacidade de se metamorfosear na forma humana para que esse amor fosse plenamente consumado.
Brighid nem era xamã - uma sumo xamã? Definitivamente, não. Ser agraciado com tamanho poder era uma coisa rara e fantástica.
Ela é a filha mais velha de uma sumo xamã. Se não tivesse abandonado a manada, seria de esperar que um dia tomasse o lugar da mãe... O pensamento o perturbou.
- Mas ela escolheu a vida de uma caçadora! - argumentou em voz alta consigo mesmo. - Centauras caçadoras não amam homens humanos. E não podem se transformar.
Então por que Brighid reagira ao seu toque com uma paixão tão feroz que pareceu consumi-lo?
No que estava pensando? Tinha sido consumido. Brighid sorvera sua alma e depois a devolvera ao seu corpo. Isso era tudo o que tinha acontecido. Precisava ser tudo
o que tinha acontecido.
Só existia uma palavra para qualquer coisa entre eles - impossível.
Engoliu o resto do vinho, depois deixou a taça sobre a mesinha de cabeceira. Sentindo-se de repente completamente exausto, esticou-se sobre os lençóis espessos recheados
de penugens que cobriam sua cama. Enquanto o sono o arrastava, ainda podia sentir o sabor dela nos lábios.
Cuchulainn gostava de acordar cedo. Era um hábito que criara raízes durante seu treinamento de guerreiro. Geralmente estava de pé, aprimorando suas habilidades,
antes que muitos de seus colegas tivessem começado a despertar. Então acordar cedo na manhã seguinte não tinha nada a ver com o fato de Brighid geralmente deixar
o castelo ao amanhecer. Não estava tentando uma chance de encontrar a caçadora. Só estava retomando um hábito confortável.
Estava apressado lavando o rosto em seu quarto de banho particular quando viu seu reflexo no espelho de parede. Parecia um velho nodoso. O cabelo estava longo, embaraçado
e bagunçado. Fez cara feia para o próprio reflexo. Há quanto tempo havia branco em seus cabelos? A barba estava áspera. Esfregou o queixo. E pinicava. Cuchulainn
deu uma olhada no kilt. Estava manchado e esfarrapado. Deu um longo suspiro. Não era de espantar que Brighid estivesse com um olhar tão assustado na noite passada,
que o tivesse rejeitado tão rápido. Não era apenas humano - era um humano de aparência patética. Ele fungou. Até cheirava mal.
Primeiro, tomaria banho. Depois faria a barba e... Cuchulainn meneou a cabeça para a bagunça que era seu cabelo. Precisava ser lavado e cortado. Os guerreiros de
Partholon geralmente usavam o cabelo comprido, mas ele nunca gostou daquela bagunça. Quando era mais novo, teve muitas discussões com a mãe por causa disso. Dissera-lhe
inúmeras vezes que não era menos guerreiro com menos cabelo - então se dispôs a provar isso a ela. Quando suas habilidades se tornaram quase lendárias, ela capitulou,
e Cuchulainn até conseguiu convencê-la a cortá-lo ela mesma de vez em quando...
Sorriu para seu reflexo desmazelado. Sua mãe estava no momento alojada logo descendo o corredor. Depois do banho e da barba feita, talvez devesse ser um filho prestativo
e acompanhá-la no desjejum.
Cantarolando consigo mesmo, começou a se despir.
A porta para a suíte de hóspedes abriu antes que Cuchulainn pudesse bater nela. Uma jovem loira impressionante, vestida num robe quase transparente de um diáfano
tecido rosa, riu de seu punho erguido.
- Sua mãe estava à sua espera - contou ela.
- Claro que estava - disse ele. Então se sentiu retribuindo o sorriso paquerador da moça. - É bom ver que mamãe ainda gosta de se cercar de beleza.
As faces da moça coraram num tom atraente de rosa que combinava perfeitamente com o vestido, então a moça se curvou numa ágil mesura, que ofereceu ao guerreiro uma
clara visão dos seios formosos. Cuchulainn automaticamente espiou, com um olhar longo e ardente que fez seu corpo enrijecer.
Ele ainda estava, afinal, vivo.
- Cuchulainn! Entre... entre - chamou Etain de dentro do quarto.
Ele piscou para a criada antes que ela ficasse de lado para que ele pudesse cumprimentar a mãe. Etain estava sentada numa cadeira opulentamente estofada com veludo
dourado. Outra jovem atraente escovava a massa de caracóis ruivos salpicados de prateado da sacerdotisa. Cuchulainn sorriu para ela, notando que tinha coberto as
paredes da suíte de convidados com tapeçarias retratando ela mesma, com seios desnudos, cavalgando a égua Escolhida enquanto jovens criadas saltitavam salpicando
seu caminho com pétalas de rosas. Etain também enchera a suíte até quase transbordar com mobília luxuosa e uma cama com dossel de seda sobre - claro - um tablado.
A mãe nunca deixava de viajar num estilo digno da Amada de Epona. A parte de sua alma que esteve ausente por tanto tempo se agitou, e Cuchulainn sentiu uma súbita
onda de amor pela mulher ostentosa e poderosa que era sua mãe. Rindo alegremente, caminhou a passos largos até ela, puxou-a para seus braços e a beijou profundamente.
A risada musical se juntou à dele quando Etain o abraçou.
Então ela se afastou e o olhou nos olhos. O sorriso se alargou quando pousou a mão sobre a face recém-barbeada.
- É tão bom vê-lo inteiro outra vez, meu filho.
- Você sabia, claro - disse ele.
- Sim. - Etain se calou e fez um gesto breve e gracioso com a mão, dispensando as criadas. - Soube no dia em que aconteceu - prosseguiu quando ficaram sozinhos.
Ela o beijou no rosto e acariciou o cabelo comprido. - Eu teria ajudado se pudesse, mas certas coisas estão além do alcance mesmo de uma mãe.
- Queria que tivesse conhecido Brenna.
- Epona me falava dela com frequência. Sua prometida era uma moça excepcional. Ela foi - e é - muito cara à Deusa.
Cuchulainn fechou os olhos para a amargura da dor.
- Obrigado, mãe.
Ela lhe deu tapinhas no rosto.
- Deixe-a ir, meu querido. Pense nela, lembre-se dela, mas deixe-a ir. É hora de você prosseguir com sua vida.
Cuchulainn assentiu:
- Como sempre, você está certa.
- Claro que estou. - Etain ficou na ponta dos pés e novamente o beijou com suavidade no rosto. Então bagunçou os cabelos dele. - Mandei que as criadas trouxessem
minha tesoura. Vamos começar?
Ele sorriu para ela.
- É bom que eu nunca tenha tentado esconder nada de você. Certamente deixaria minha vida um bocado difícil.
Etain ergueu uma sobrancelha, lembrando a Cuchulainn sua irmã.
- Sabe que é blasfêmia esconder segredos da mãe.
- Blasfêmia? - Ele riu, mas se deixou levar à cadeira dourada. Com a tesoura numa mão, Etain começou a trabalhar no cabelo, suspirando enquanto penteava a massa
espessa.
- Imagino que não vou convencê-lo a deixá-lo longo. Eu poderia só aparar um pouquinho aqui e ali...
Os olhos se encontraram no espelho da penteadeira. Etain suspirou novamente e começou a cortar. Sob o toque familiar, Cuchulainn relaxou, deixando sua memória recordar
todos os momentos da juventude em que a mãe tinha, por vontade própria, deixado os assuntos da Deusa de lado para cuidar dele, e também de Elphame e seus irmãos
gêmeos, Arianrhod e Finegas. Seu pai também, o Sumo Xamã de Partholon, nunca deixou de considerar as necessidades dos filhos uma prioridade.
Em que tipo de homem teria se transformado caso tivesse sido criado sem pais? Pobre Brenna - ter que enfrentar a parte mais difícil da vida sem o amor da mãe e do
pai.
O pai de Brighid estava morto também, lembrou-se ele com uma sensação de surpresa. Morrera anos atrás. Estranho que Cuchulainn só agora pensasse nisso. Brighid o
repreendera por permitir que o sofrimento o fizesse desistir da vida. Tinha falado disso por experiência própria, mas quando ele a desafiou, Brighid só falou das
perdas às quais os neofomorianos tinham sobrevivido. Estranho que a caçadora raramente falasse da família. Sim, sua manada era conhecida pelas crenças radicais,
mas a mãe era uma sumo xamã. Era certo que uma mãe tão poderosa tivesse um efeito profundo e duradouro sobre a filha. Porém Brighid tinha rompido com a tradição
e deixado a família. Ele imaginava o porquê...
- Você a viu esta manhã? - A voz suave da mãe parecia vir direto de seus pensamentos. Cuchulainn se sobressaltou, e ela lhe socou o ombro. - Fique quieto ou ficará
ainda menos apresentável do que quando chegou todo desleixado e desgrenhado.
Ele pigarreou.
- Quem?
A mãe o olhou por cima do nariz régio.
Ele suspirou:
- Não, não vi Brighid esta manhã. Vim direto para cá.
- Depois de tomar banho e se barbear - graças à Deusa.
Ele resmungou:
- O resgate da alma é um ato muito íntimo - começou ela num calmo tom de conversa. - Para que a alma retorne com sucesso ao corpo, a xamã deve construir uma ponte
de carinho e compreensão entre si mesma e o paciente. Se não estou enganada, você e Brighid tinham uma forte amizade antes que a parte despedaçada de sua alma começasse
a visitá-la.
- Sim - respondeu ele.
- Foi Brighid quem rastreou Elphame na noite em que ela se machucou e quase foi morta por um javali?
- Sim.
- E foi Brighid quem o levou até o corpo de Brenna?
- Foi - disse ele. - Mamãe, não...
Ela ergueu a mão para deter as palavras dele.
- Espere. Deixe-me falar e depois pode fazer todas as perguntas que quiser.
Cuchulainn assentiu ligeiramente, sentindo-se ansioso e também nervoso. O que sua mãe sabia sobre o que acontecera naquela noite? Estava se preparando para repreendê-lo
por estar apaixonado por Brighid?
Estava apaixonado?
- Então você e ela já tinham estabelecido uma amizade. Se não estou enganada, você tem bastante respeito pela caçadora.
- Você raramente está enganada, mamãe.
Ela sorriu para o reflexo dele.
- Isso é verdade. Agora me deixe compartilhar com você outra verdade. Depois que acontece a cura da alma, o paciente... - Ela meneou a cabeça quando Cuchulainn fez
cara feia. - Não, não há nada de errado em ser um paciente. Seu espírito estava partido e precisando de tratamento. Isso faz de você um paciente. Não há vergonha
nisso. Agora posso continuar?
Cuchulainn assentiu, ainda odiando que aquilo soasse como se fosse um inválido.
- Depois que acontece o resgate da alma, o paciente, que seria você, fica espiritualmente mudado.
Cuchulainn se sentou mais ereto e piscou de surpresa.
A voz da mãe perdeu o distanciamento clínico, e a mão pousou calorosa e maternal sobre seu ombro.
- Pode notar que se sente sensibilizado, além de energizado. Sua percepção da realidade pode talvez se expandir. - Quando sentiu sob a mão que ele ficava tenso,
a mãe lhe deu tapinhas gentis. - O efeito pode ser temporário, mas geralmente não é. E ficará para sempre ligado à xamã que trouxe sua alma para casa.
- Mas Brighid não é xamã.
- É verdade que ela não fez a jornada ao Outro Mundo para beber do Cálice de Epona, mas a centaura carrega poderes xamânicos dentro dela. Se não fosse assim, nunca
teria sido capaz de trazer sua parte perdida para casa.
Cuchulainn encontrou o olhar da mãe no espelho.
- Pergunte - disse ela.
- Brighid poderia se tornar sumo xamã?
- Só Epona pode responder isso, Cuchulainn.
- Aceito seu palpite, mãe. - Ele tentou sorrir para ela, mas a tensão que se irradiava pelo corpo esticou o rosto em linhas duras e sérias.
- Então meu palpite é de que Brighid poderia, mas que não seria uma jornada fácil, e que isso talvez a levasse a uma vida de extrema solidão. - Etain passou o pente
pelo cabelo dele, o alisando e arrumando enquanto falava: - Sabe que a manada dela possui visões radicais, talvez até perigosas?
- Sim - respondeu ele sucintamente.
- Se ela quisesse se tornar sumo xamã, teria que assumir seu lugar como líder da manada Dhianna. Brighid escolheu um caminho diferente, e acredito que encontrou
certa paz e alegria nele. Se desviasse desse caminho, seria atirada de volta no mundo do qual partiu intencionalmente, mesmo que suas crenças difiram drasticamente
das deles. Seria uma vida muito solitária para ela.
- E se ela não estivesse sozinha?
Inabalada pela pergunta, sua mãe continuou a pentear-lhe o cabelo cuidadosa e metodicamente.
Inabalado pelo silêncio dela, Cuchulainn insistiu: - E se ela tivesse alguém ao lado dela que estivesse disposto a preencher esse espaço solitário - a apoiar suas
crenças? Alguém que a respeita e...
- E a ama?
Cuchulainn se virou para que pudesse olhar diretamente para a mãe.
- O que estou sentindo é apenas resultado do resgate da alma?
- O que está sentindo, meu filho?
- Eu me sinto tão atraído por Brighid que mal consigo suportar ficar longe dela! Teria corrido para encontrá-la esta manhã... - ele deu uma risada sem graça - ...
se não tivesse percebido que parecia um eremita selvagem da montanha.
- Centauros são seres mágicos e sedutores - disse Etain de maneira descompromissada. - São apaixonados e belos. A alma de um humano aprimorada pela força de um equino
é algo que pode produzir uma atração muito poderosa.
- Mãe! Precisa me dizer. O que estou sentindo é uma obsessão temporária porque ela tocou minha alma ou é algo mais?
- Só você e Brighid podem decidir isso. Pelo que sei, não posso predizer o amor. A ligação causada pelo resgate da alma raramente é algo mais profundo que compreensão
e respeito. - Ela lhe sorriu. - Parece que você sente consideravelmente mais pela caçadora.
- Consideravelmente - murmurou ele.
- Bastante para se sentir disposto a pedir que ela mude de vida e de futuro para que vocês dois possam se deitar juntos?
- Não sei!
A sacerdotisa tocou a face do filho.
- Queria que seu pai estivesse aqui.
- Ele não diria que fiquei louco?
- Talvez. - Etain riu.
Cuchulainn pôs a mão sobre a dela.
- Não sei o que fazer.
- Claro que não. Não pode decidir isso sozinho - não exatamente. Converse com Brighid. Você já dividiu sua alma com ela, seria muito mais difícil dividir os segredos
do seu coração?
- Parece que está acontecendo rápido demais. Logo depois de Brenna.
- O mundo está girando rápido, Cuchulainn. Sinto uma grande inquietação se aproximando. Talvez agora seja o momento apropriado para ações rápidas. - Ela passou as
mãos pelo cabelo dele e lhe deu uma olhada apreciativa, depois sorriu novamente. - Está pronto.
Cuchulainn se virou para o espelho, afastando o cabelo recém-cortado da testa. Então tomou a mão da mãe e a beijou.
- Obrigado.
Etain lhe apertou a mão e lhe deu um empurrãozinho na direção da porta.
- Vá encontrar seu futuro, meu filho. E saiba que seja lá o que escolher, minha bênção e a de Epona vão com você.
Trinta e Um
AO AMANHECER, QUANDO Brighid limpou a mente para se concentrar na procura da luz de um javali, a primeira luz que resplandeceu no seu subconsciente foi dourada e
não estava situada na floresta próxima. Vinha dos aposentos que Elphame tinha preparado para o irmão durante sua ausência.
Não! Brighid fechou os olhos da mente, ignorando a luz dourada que a chamava. Encontre a luz vermelho-sangue de um javali. O poder de procura dentro dela abandonou
Cuchulainn e o Castelo MacCallan - seguiu para a floresta. Infiltrou-se pelas luzes cintilantes das almas dos animais, pequenas e grandes, até se concentrar numa
única coluna vermelha. Automaticamente, o infalível senso de direção de Brighid mirou no javali. A nordeste do castelo. Não muito longe de onde Elphame tinha sido
atacada por uma daquelas feras muitas luas atrás. Brighid sabia onde precisava ir.
Pegou um odre de água e uma porção generosa de pão e carne que sobrara da noite anterior, abasteceu a aljava com flechas, prendeu a espada longa às costas, ajustou
a espada curta na bainha ao redor de sua cintura, enfiou as adagas de arremesso nos bolsos escondidos do colete. Então se encaminhou em silêncio para o portão frontal.
Como fizeram muitas vezes antes, os sentinelas a saudaram, abrindo as portas de ferro e desejando-lhe sorte na caçada matinal. Brighid estava tão decidida a sair
do castelo que mal se deu ao trabalho de retribuir a saudação dos sentinelas antes de disparar num galope veloz. Mesmo depois de bem escondida dentro dos bosques
do norte, pouco reduziu o passo.
Era tão bom exigir de si mesma, manter a mente tão ocupada desviando-se de árvores e arbustos, ravinas e rochas, para que não pudesse pensar... Não pudesse recordar.
Correu por longo tempo antes que a sanidade retornasse.
Quando finalmente desacelerou, e depois parou, percebeu que tinha passado do território do javali. Brighid secou o suor do rosto e se reorientou. Não estava muito
longe. Cheirou a leve brisa e pegou o inconfundível cheiro limpo de água corrente. Quando encontrasse o riacho, bastava acompanhá-lo até o lamaçal do javali. Então
abateria o animal com um disparo certeiro, o esfolaria e levaria a carne ao castelo. Simples. Claro. Descomplicado. Exatamente como gostava de sua vida.
E exatamente o oposto do que sua vida costumava ser. Quando saiu em direção à presa novamente, fez isso devagar. Era hora de pensar. Ali, rodeada pela floresta que
conhecia tão bem, se infiltraria nas complexidades da noite anterior. Trabalharia aquilo na mente - descobriria como poderia continuar vivendo no Castelo MacCallan
com Cuchulainn e o conhecimento do que tinha acontecido entre eles. Faria isso porque precisava encontrar uma maneira de fazer aquilo funcionar - voltar no tempo
e fazer com que as coisas fossem simples entre os dois novamente. Não queria deixar o Castelo MacCallan. A ideia a deixava imensuravelmente triste.
Claro que não queria partir - mudar-se logo depois de ter começado a firmar raízes -, mas talvez devesse, temporariamente. O Castelo Guardião estava sem caçadora.
Podia honestamente dizer que eles precisavam da presença dela até a própria caçadora retornar. Era provável que não fosse se demorar muito. A caçadora do Castelo
Guardião certamente não desertaria de seu posto por mais do que um ciclo da lua. Mas mesmo poucos dias bastariam para que Cuchulainn...
O quê?
- Parasse de pensar com paixão - disse em voz alta aos antigos pinheiros.
Era como ele tinha explicado na noite passada. Sua mente sabia que não devia tocá-la com tamanho desejo, mas sua paixão e sua alegria pela vida lhe tinham sido recentemente
restauradas. A voz delas tinha afogado o som da razão. Fazia sentido. Ela conhecia a parte de Cuchulainn que fora despedaçada. Era todo coração, paixão e impetuosidade.
Ele realmente não podia evitar. Brighid estava lá, devolvendo-lhe a alma... beijando-o... Ele se sentia vivo e inteiro, e uma parte dele acreditava que os dois estavam
se apaixonando. Existiam razões críveis para o comportamento dele, mas e quanto ao dela?
Brighid esfregou a mão pelo rosto e escolheu passar por cima de um tronco caído. Quando olhava logicamente para o resgate de alma, não havia nada de errado com seu
comportamento. Não pretendera iludir Cuchulainn com o relacionamento deles. Houvera uma má interpretação que, quando se olhava com franqueza, sem laços emocionais,
tinha funcionado bem. A alma despedaçada de Cuchulainn retornara ao corpo. Ela tinha executado a complicada tarefa de uma xamã, e obtivera sucesso.
Infelizmente, isso não era tudo.
Laços emocionais... Se fossem visíveis, Brighid não duvidava de que estaria coberta deles, como uma bola de lã esperando para ser tricotada numa vestimenta. Mas
suas emoções não eram visíveis, e Cuchulainn não era o único que podia esconder sentimentos. Mas não mentiria para si mesma. Não ali, no meio da floresta que considerava
sagrada. Não tinha pretendido que Cuchulainn interpretasse mal o relacionamento deles, mas quando o fez, ela ficou contente. E quando ele a beijou, sentiu-se cheia
com mais do que a alma dele. Ela o desejava. A recordação de seu toque, seu cheiro, seu sabor ainda fazia seu estômago apertar com uma tensão que era definitivamente
sexual.
Pela Deusa, o que faria?
Mesmo que o desejo dele fosse mais do que uma reação temporária a um evento extraordinário, os fatos continuavam os mesmos. Cuchulainn era um humano. Brighid era
uma centaura.
Sim, sabia que os homens humanos a consideravam atraente, sedutora até. E apesar de nunca ter pensado neles numa maneira especificamente sexual, não era nenhuma
virgem tolinha. Sabia como a anatomia humana funcionava. Poderia dar satisfação a Cuchulainn com as mãos e a boca. Brighid ficou paralisada. No que estava pensando?
Qualquer centauro da manada Dhianna, e de muitas outras manadas que compartilhavam a Planície dos Centauros, consideraria a mera ideia de uma caçadora agradar um
homem humano um comportamento repelente, abominável. Isso a tornaria ainda mais pária do que já era.
- Mas não acho a ideia de agradá-lo abominável - falou Brighid alto, depois escondeu o rosto nas mãos. Estaria se tornando alguma horrível aberração da natureza?
Ou... Ah, Deusa! Será que tinha se apaixonado por Cuchulainn?
Ainda não tinha certeza do que era pior.
Se o amasse, isso certamente explicaria por que sua reação ao que pensou ser o desejo crescente de Cuchulainn por Ciara tinha sido inteiramente negativa. Não tinha
preconceitos contra a mulher alada - estava com ciúme dela! E também havia a facilidade com que chamou a alma despedaçada para seus sonhos. Com um gemido, lembrou-se
das provocações lascivas quase contínuas de Cuchulainn. Será que alguma parte do guerreiro reconhecia seus sentimentos mais íntimos? Era possível - ele esteve em
seus sonhos, o que significava que tivera certo acesso ao seu subconsciente. Não é?
Não sabia muito sobre esse... esse mundo de espíritos e emoções. Tentar compreendê-lo era como tentar capturar fumaça e sombras! Tinha certeza de muito pouco, exceto
de que a evidência mais comprometedora contra ela era o beijo, ou mais precisamente sua reação ao beijo. O toque dele fez com que esquecesse quem e o que eram. Humano...
centaura... nada disso importou quando os lábios deles se encontraram e ela o absorveu.
Gemeu novamente. Etain estava lá! De certa maneira, a Alta Sacerdotisa estivera com ela durante o resgate da alma - encorajando e aconselhando. Será que sabia o
que o toque do filho fizera Brighid sentir? O calor tomou o rosto da caçadora.
Pense logicamente! O consorte de Etain, criado para ela por Epona, era um centauro. Etain não ficaria chocada por descobrir que uma centaura desejava um humano.
E devia saber que o filho era um guerreiro apaixonado. Todos sabiam que antes de Cuchulainn se apaixonar por Brenna, raramente dormia sozinho. Etain não julgaria
Brighid severamente por desfrutar do beijo que restaurou a alma do filho ao corpo.
Mas o que a Escolhida de Epona pensaria se soubesse que o desejo da caçadora por seu filho não tinha terminado ali?
Não fazia sentido pensar nisso. Aquilo precisava parar ali.
Então Brighid tomou sua decisão. Se Cuchulainn ainda achasse que a desejava, conseguiria com Elphame a permissão para uma estada temporária no Castelo Guardião.
Quando Brighid retornasse, as paixões do guerreiro estariam novamente sob controle, e ele, sem dúvida, teria encontrado uma mulher humana ansiosa para dividir a
cama.
Na verdade, havia uma chance excelente de que quando voltasse hoje ao castelo Cuchulainn já tivesse voltado a si e provavelmente estivesse preocupado com a reação
dela ao vê-lo. Brighid se concentraria em tranquilizá-lo. Garantiria que o que tinha se passado na noite anterior não afetaria a amizade deles. Simplesmente fingiria
que não sentira nada mais do que um desejo passageiro enquanto estavam envolvidos no ato íntimo do resgate da alma. Talvez até rissem daquilo juntos tomando uma
taça do excelente vinho de Etain.
A ideia de prosseguir com tamanho fingimento a deixava enjoada. Odiava desonestidade. Era contra sua natureza mentir. Mas de jeito nenhum perderia o lar e a paz
que encontrara no Castelo MacCallan por causa de um amor impossível.
Um graveto estalou e a caçadora instintivamente desacelerou os movimentos e testou o vento que soprava suave em seu rosto. Fez uma careta - javali. Essas feras sempre
fediam a lama e raiva. Puxou uma flecha da aljava e sentiu o silêncio da caçada encobrir seus pensamentos tumultuados. Isso era algo que ela sabia ser capaz de controlar.
Poderia acertar o javali, agradecer a Epona pelo sustento daquela vida e depois ficar bastante ocupada esfolando e arrastando a carne para o castelo, para ficar
obcecada com Cuchulainn. Tinha tomado sua decisão. Não poderia haver futuro com o guerreiro, então protegeria a si mesma e seu lugar no Castelo MacCallan. Negaria
seus sentimentos por ele. Um dia a negação se tornaria verdade.
Como previra, o javali tinha feito um lamaçal perto da margem do pequeno riacho. Com o silêncio assustador de uma caçadora experiente aprimorado pelo poder inerente
ao seu sangue, Brighid se esgueirou mais perto sem que o javali detectasse um único sinal ou cheiro dela. Quando ficou sentado meio de pé, Brighid ajustou a flecha
e fez mira. A flecha chiou e disparou para seu leito sangrento, e, ao perfurar o javali, a floresta explodiu num berro sobrenatural de dor. A caçadora avançou correndo
antes de o som morrer. Adentrou o riacho até onde o corpo do javali deveria estar e ofegou de horror.
O corvo jazia no chão lamacento com uma flecha sangrenta perfurando o peito.
- Mãe! - gritou ela, desabando nas pernas dianteiras ao lado da ave que se debatia.
Vingue-me! As palavras berraram na mente de Brighid, e então a ave ficou imóvel, os olhos se tornando leitosos com a morte. A mão de Brighid não tremeu ao se esticar
para tocar as penas ensopadas de sangue da ave negra. No instante em que os dedos fizeram contato com o corvo, seu corpo desapareceu, e Brighid se descobriu ajoelhada
ao lado do javali morto.
- Ah, Epona, o que isso significa? O que aconteceu?
Não houve resposta da Deusa, e, sentindo-se perdida e sozinha, Brighid se obrigou a curvar a cabeça e dizer as palavras tradicionais para honrar o espírito do javali
abatido. Enquanto esfolava o corpo e o preparava para ser carregado ao Castelo MacCallan, foi tomada por uma sensação terrível e inexprimível de temor.
Trinta e Dois
- BRIGHID! BRIGHID! BRIGHID! Estava esperando você! - começou Liam a tagarelar tão logo ela passou pelos portões frontais do castelo.
- O menino ficou esperando por você a manhã inteira! - gritou o sentinela.
Brighid tentou espantar a sensação de inquietação que a acompanhou desde a floresta. Lançou um sorriso tenso para o homem lá em cima.
- Mas ele ficou esperando quieto?
A gargalhada vigorosa do sentinela foi resposta bastante.
- Não sabia que precisava ficar quieto dentro do castelo - murmurou Liam quando começou a caminhar atrás de Brighid. Seus olhos ficaram grandes e redondos ao inspecionar
a carcaça bem embrulhada que ela prendera com firmeza nas cordas que arrastava atrás de si. - O que conseguiu?
- Você me diz - respondeu ela. - Não! - Falou com severidade quando Liam começou a levantar a aba do couro no qual o javali estava embrulhado. - Use seu olfato.
- Mas eu... - começou ele, mas uma olhada dela o silenciou. - Vou usar meu olfato.
- Bom. Tem todo o caminho até a cozinha.
- Gosto da cozinha. Lá sempre cheira bem, e gosto de Wynne. Ela é muito bonita com todo aquele cabelo ruivo e... - Outra olhada incisiva de Brighid o fez comprimir
os lábios. - Vou cheirar o animal.
Brighid respondia aos olás amigáveis dos membros do clã enquanto seguia o caminho gramado até a entrada dos fundos da cozinha. Não se preocupava em encontrar Cuchulainn
inesperadamente. Sabia que ele não estava dentro dos muros do castelo. Como sabia disso ela não entendia muito bem - mas podia sentir a ausência dele.
Mais boas notícias, pensou, sentindo que estava chegando ao fim de sua tolerância com sinais misteriosos do mundo espiritual. A centaura cerrou o queixo. Só queria
ser uma caçadora - viver, caçar e ter uma vida segura e previsível.
Quando atravessou o portão para a horta da cozinha, notou várias das crianças aladas mais velhas inclinadas sobre fileiras aparentemente murchas de ervas e legumes,
cavando, arrancando mato e regando. Só teve um instante para imaginar como eles tinham convencido a superprotetora Wynne a permitir que entrassem em sua preciosa
horta, pois a voz de Liam borbulhou como uma fonte incontrolável: - Cheira como... como... como... - Liam deu outra fungada longa e audível - ... como lama e raiva!
Brighid parou e se voltou para olhá-lo.
- O que disse?
Ele esfregou os pés de garra na grama.
- Cheira como lama e raiva.
- Como sabe disso?
Liam olhou para ela com olhos grandes e deu de ombros, encolhendo-se um pouquinho quando o movimento fez a asa enfaixada mexer.
- Não sei. É apenas como me parece o cheiro. Está errado?
- Não. Está exatamente certo. Javalis sempre cheiram a lama e raiva. - Antes que ele começasse a saltitar em vitória, Brighid lhe segurou o braço. - Fique parado
e feche os olhos.
Bastante surpreendentemente, o menino obedeceu. Paralisou-se e fechou os olhos. Brighid olhou ao redor. As crianças aladas estavam tão ocupadas cutucando e mimando
as plantas que mal lhe dispensaram uma olhada. No momento, ao menos, ela e Liam tinham certa privacidade.
- Inspire bem fundo e expire devagar. Três vezes - disse, observando-o com atenção.
Ele fez como ordenado.
- Agora imagine um javali na floresta.
- Não sei como um javali se parece - disse ele com hesitação.
- Não importa. Não precisa visualizar o animal. Apenas pense no cheiro dele. Consegue fazer isso?
Liam assentiu vigorosamente.
- Enquanto pensa no cheiro dele, imagine a floresta e imagine que está procurando por um animal que cheira a lama e raiva. Me diga o que vê.
A testa de Liam se enrugou enquanto se concentrava. Depois as sobrancelhas se ergueram.
- Vejo uma luz brilhante tingida de vermelho!
Brighid não conseguia acreditar. O menino possuía a alma de uma caçadora. Sorriu. Tinha um aprendiz alado que parecia mais centauro que fomoriano, e estava apaixonada
por um humano. Seu riso se transformou em gargalhada. E queria uma vida descomplicada? Era óbvio que Epona tinha outros planos para ela.
Liam a espiou com um dos olhos quase abertos.
- Disse algo engraçado?
- Não, meu jovem aprendiz. Disse exatamente a coisa certa. Outra vez. Só estou rindo da vida.
- Por quê? - perguntou ele, abrindo os dois olhos.
- Porque às vezes ou é rir ou chorar. Prefiro rir. E você?
Liam sorriu.
- Rir!
- Hã, aí está você! - Wynne estava parada, mãos nos quadris, pernas separadas, na entrada dos fundos da cozinha. O sorriso da cozinheira lampejou. - Posso dizer
com honestidade, caçadora, que estou muito contente por ter voltado para casa, que é o seu lugar.
A risada de Brighid ainda dançava nos olhos.
- Obrigada, Wynne. - Ela apontou o queixo na direção das ocupadas crianças aladas. - Só estava imaginando como conseguiram abrir caminho para sua horta sagrada.
- As crianças parecem entender umas coisinhas sobre plantas e ervas, então pensei em manter essas mãozinhas ocupadas. Além disso, tem sido uma primavera longa e
seca e minhas plantas precisam de mimo extra. - Seu olhar imperioso supervisionou a horta e as crianças. - Mas não se preocupe. Estou de olho nelas.
Cabecinhas se viraram com sorrisos radiantes. Brighid ficou surpresa por ver o rosto de Wynne se suavizar em resposta.
- Você gosta de crianças - disse, mais do que um pouco chocada.
Os olhares esmeralda de Wynne se voltaram para a caçadora e seus lábios carnudos se ergueram.
- Não posso negar. Gosto da vida que os pequenos trazem ao castelo.
- Hã - resmungou Brighid, pensando que Wynne não gostaria muito disso se tivesse ficado sozinha com setenta deles.
- Não use esse tom comigo, mocinha, não quando vejo quem tem seguido você por aí. - Wynne apontou para Liam.
Brighid pigarreou.
- Wynne, já conheceu meu aprendiz?
- Não, mas ouvi falar dele. - Deu no menino uma olhada apreciativa. - Outra boa caçadora é sempre bem-vinda à cozinha.
- Ele será uma boa caçadora - disse Brighid, fazendo o peito de Liam inflar. - Um dia - acrescentou antes que o menino explodisse.
- Que bom, jovem Liam - disse Wynne, deixando a verga da porta para se aproximar deles. - O que trouxe para mim?
- Javali! - disse Liam com orgulho.
- É mesmo? - Wynne bateu palmas. - Um javali! Pela Deusa, é bom ter você em casa, Brighid! Leve para dentro, leve para dentro. - Seu tom alegre logo se transformou
no de um guerreiro em comando. - Mas olhe onde está pisando! Tome cuidado com os brotos de hortelã e manjericão. Este tempo seco horrível praticamente matou minha
horta de tão murcha. - Como a caçadora e o menino se mexeram devagar demais, Wynne bateu impaciente com o pé. - Não queria que virassem lesmas! Tragam a fera para
cá. Nunca se é cedo demais para o jantar.
- Devemos andar com cuidado ou depressa? - perguntou Brighid.
- Ambos, claro!
Sorrindo do jeito mandão de Wynne, Brighid puxou a carcaça para a cozinha, absorvendo a cordialidade dos cumprimentos entusiasmados dados pelo exército de moças.
Os saborosos aromas e a atividade alvoroçada afastaram da mente dela os últimos vestígios de inquietação provocados pela visão do corvo caído. Pela Deusa, adorava
essa parte da sua vida! Sentia ser correto suprir o clã - e ser parte de uma unidade familiar. Liam era um elemento inesperado, mas o menino possuía um dom. Podia
realmente ver espíritos de animais. Então apenas o entrelaçaria na trama de sua vida.
E Cuchulainn? Ele era igualmente inesperado. Talvez houvesse uma maneira de cerzi-lo em sua vida também.
Não. Estava sendo tola. Cuchulainn já era parte de sua vida. Era irmão da chefe do clã e seu amigo. Esse era o papel que o destino relegara a ele. Simples. Lógico.
Previsível. Do jeito que Brighid gostava.
Mas não existiria a menor possibilidade de que ele pudesse ser mais?
- Brighid? Podemos ir também? - A pergunta ansiosa de Liam interrompeu seus pensamentos confusos.
- Ir?
- É, é. - Wynne fez rápidos gestos de enxotamento com as mãos. - Vão embora. Não temos tempo para desviar de vocês.
Brighid bufou para a cozinheira, mas antes de desaparecer pela porta dos fundos arrancou algo que ainda estava preso à grande carcaça.
- Venha, Liam. - Ela rumou para a porta. - Ficar no caminho de uma cozinheira ocupada pode ser mais perigoso que rastrear feras. - Lá na horta, jogou o que estava
segurando para o aprendiz, que o apanhou direitinho. - Falando em rastrear, sabe o que é isso?
Liam cheirou, antes de responder:
- Um casco.
- De?
- Javali, claro - disse ele.
- Agora sabe disso. Pode cheirá-lo, e sabe que eu o arranquei da carcaça. Mas saberia como é a pegada de um javali se a visse na floresta?
Liam encarou a horrível relíquia da caçada de Brighid.
- Não sei.
- Bom, vamos descobrir. - Parou assim que deixaram a horta da cozinha. - Como está a asa?
- Está boa - garantiu-lhe. - Não estou nem um pouco cansado.
Brighid estreitou os olhos.
- O que Nara diria se eu lhe fizesse a mesma pergunta?
- A mesma coisa, prometo. - Diante do olhar de dúvida dela, acrescentou: - Pergunte você mesma. Ela está lá fora com os outros.
- Lá fora? Onde?
- Onde Wynne disse, lembra? Naquela direção... - ele apontou para o sul - ... fora do castelo. Todos lá estão montando acampamento e tentando decidir onde construir
os prédios novos. Eu estaria lá também, mas achei que devia esperar você.
- Fez bem - respondeu distraída. Seus sentidos já alcançavam o platô gramado a sudeste do castelo. Fácil, claramente, sentiu a brilhante luz dourada que era o espírito
de Cuchulainn. Pare com isso. Não pode viver aqui e evitar vê-lo. - Sim, vamos nos juntar aos outros. E lhe darei a primeira lição de rastreamento. - Brighid relanceou
o menino. Ele estava com boa aparência e parecia se mover com mais facilidade. Mas a asa ainda estava bem enfaixada às costas e ele parecia mais pálido do que ela
gostaria. A centaura suspirou e estendeu-lhe a mão. - Venha. Suba.
O sorriso dele prendeu seu coração. Brighid o ergueu no lombo e sentiu uma das mãozinhas cálidas segurar no seu ombro. Sabia sem olhar que a outra mão segurava o
pedaço sangrento de casco. O peso dele era leve e fácil de suportar, e Brighid descobriu que gostava da sensação da mãozinha sobre seu ombro e da maneira como Liam
tagarelava sobre javalis e cascos com a mesma animação que ela sentiu quando era uma jovem aprendiz. Nem se importou com os sorrisos surpresos e as olhadas dos sentinelas
ao sair trotando pelos portões frontais.
- Podemos ir mais rápido? - perguntou Liam, encostando o queixo em seu ombro e falando diretamente ao ouvido.
Brighid provavelmente devia ter dito que não, que o ferimento ainda estava sensível demais para ser remexido, mas sentiu a sedução que vinha da luz dourada. Certamente
surpreenderia a todos se aparecesse galopando com um risonho Liam escarranchado às costas. Ninguém esperaria tal comportamento dela.
Talvez fosse hora de explorar um pouco o inesperado.
- Segure firme - disse por cima do ombro e lançou-se adiante. Claro que manteve uma das mãos na perna do menino para firmá-lo, mas estava contente por sentir a criança
se acomodar numa posição firme e segurá-la forte. Não ficou sacudindo a cabeça nem batendo os braços incomodamente. Na verdade, o menino grudou como um carrapato,
persistente, imagem que a fez sorrir. Quando passou pela curva do terreno e o platô ao sul se descortinou diante dela, Brighid ignorou os trabalhadores e ampliou
as passadas, desviando de cá para lá entre grupinhos de humanos, centauros e neofomorianos, sendo recompensada com um grito de entusiasmo de Liam.
Não desacelerou até divisar a silhueta distinta de Elphame. A chefe do clã era parte do pequeno grupo parado perto do penhasco que tombava drasticamente na costa
bem lá embaixo. As cabeças estavam curvadas sobre uma imensa mesa de madeira colocada debaixo de um toldo que servia de proteção contra o vento do mar encrespado.
Brighid reconheceu a silhueta alta e alada de Lochlan e também o velho centauro artífice, Danann. Ao lado dele estava um guerreiro de ombros largos e cabelos âmbar
que fazia seu coração apertar no peito.
Assim que viu Cuchulainn, não precisou dizer a si mesma com severidade que fosse até lá e acabasse logo com aquele primeiro encontro. A verdade era que se sentia
atraída por ele, como se a luz dourada fosse um farol a guiá-la para casa. A caçadora galopou até o pequeno grupo num tumulto de cascos estrondosos e risadinhas
infantis. Parou do lado de Elphame, que riu de surpresa.
- Brighid, Liam, estava imaginando quando viriam se juntar a nós - disse Elphame, olhos cintilando de humor.
- Brighid pegou um javali! Ele cheira a lama e raiva. E eu ganhei o casco! - Liam ergueu o toco sangrento como um troféu.
- Lama e raiva, hein? Isso não me surpreende. Não gosto muito de javalis - disse Elphame.
O braço de Lochlan enlaçou a cintura de Elphame, que automaticamente se recostou no parceiro.
- Até que gosto deles. Não é verdade, meu coração? - Ele e Elphame compartilharam um olhar íntimo, lembrando que fora o ataque de um javali que os colocara juntos
pela primeira vez.
- Bom, eu gosto de comê-los - disse Danann. O velho centauro se aproximou para apertar o antebraço de Brighid com cordialidade. - É bom vê-la, caçadora. Não a cumprimentei
na noite passada.
- É bom vê-lo, artífice. - Brighid apontou para o terreno diante deles, cheio de membros do clã e neofomorianos, todos ocupados erguendo tendas. - Com essa horda
é fácil deixar de ver alguém. - Ela tomou fôlego fortificante e finalmente se permitiu olhar diretamente para Cuchulainn. Abriu a boca para desejar bom dia ao amigo,
mas a visão dele fez com que as palavras ficassem presas na garganta.
Ele estava tão diferente do Cuchulainn que irrompera no seu quarto na noite anterior que o cumprimento despreocupado que tinha preparado desapareceu de sua mente.
Deusa! Cuchulainn parecia vibrante e poderoso - como o guerreiro que tinha sido; só que agora o marotismo que sempre pareceu ser parte dele fora transformada na
maturidade de um homem. Onde estava o Cuchulainn sofrido e dilacerado com quem tinha viajado e compartilhado alojamento nos Ermos? Como seu cumprimento irreverente,
ele também tinha desaparecido. Em seu lugar estava um guerreiro cujo cabelo fora lavado e cortado curto. A barba avermelhada que cobria o rosto se fora. As rugas
que tinham se formado nos cantos dos olhos ainda estavam lá, mas ele tinha perdido o ar cansado e abatido. E a observava com atenção, com aqueles perspicazes olhos
turquesa e lábios que começavam a se erguer.
- Está me olhando como se não me reconhecesse. Eu não estava tão mal assim, não é?
O primeiro pensamento coerente dela foi o de que ele não parecia nada nervoso por estar perto dela. A voz profunda estava cheia de bom humor e o sorriso parecia
travesso.
Elphame respondeu enquanto Brighid ainda estava tentando encontrar a voz: - É óbvio que Brighid está sendo educada, então eu digo. Sim... - Ela socou o braço do
irmão de brincadeira. - Você estava péssimo.
- Bom, eu gosto do seu cabelo curto - concordou Liam às costas de Brighid. - Gosto do da Brighid longo, e do seu, curto. Claro que o de Brighid é mais bonito.
Cuchulainn riu animado e se aproximou para tirar o menino do lombo da centaura.
- Vou contar um segredo. - Colocando Liam no chão, perto de Brighid, inclinou-se e, com um sussurro exagerado, disse: - Gosto do cabelo dela longo e também acho
que é mais bonito que o meu. - Então os olhos buscaram os dela com calor e intensidade que estavam em contradição direta com o tom leve das palavras.
Brighid sentia que alguém tinha tirado todo o ar de seus pulmões.
- Ah, Cuchulainn. - Elphame revirou os olhos. - Você é incorrigível. - Mas a felicidade no rosto da irmã mostrava claramente como estava satisfeita por mais uma
vez ter razão para provocar seu irmão favorito. - Venha, Brighid, vamos deixar esses homens que eu coloco você a par do que decidimos para a aldeia dos neofomorianos.
- Mas Brighid tem que me ensinar sobre os rastros - disse Liam.
- Essa é sua primeira lição - disse Brighid com firmeza. - Quando sua chefe de clã pede que a acompanhe, você muda seus planos e obedece. - O menino imediatamente
pareceu decepcionado, fazendo com que a caçadora tivesse que se conter para não passar a mão em consolo por seu cabelo macio. Não podia esperar que ele crescesse
se o mimasse, e Liam precisava entender que a palavra de Elphame era lei para os MacCallan. - A segunda lição é uma que deve aprender sozinho. Pegue o casco e vá
até o limite da floresta. Espane as agulhas de pinheiro até o chão macio da floresta ficar exposto, depois o aperte com força no chão. Aprenda o formato. Toque o
entalhe que se formar. Memorize tudo sobre ele. Estou contando com você para me ajudar a rastrear o próximo javali.
O rosto de Liam se iluminou imediatamente.
- Não vou desapontá-la! - E se foi, correndo pelo platô gramado até a linha de pinheiros.
- Ele está sarando rápido - disse Cuchulainn.
- Sim, é um menino forte - respondeu, sem olhar para ele.
- Montado nas suas costas, me pareceu mais feliz do que nunca - contou-lhe Lochlan.
O olhar de Brighid se voltou para o homem alado.
- Devia ter esperado para lhe pedir permissão para aceitá-lo como meu aprendiz. Me perdoe pela transgressão.
O sorriso de Lochlan foi caloroso.
- Caçadora, acredito que agora seja o momento perfeito para que muitas das tradições sejam transgredidas. Mas se precisa da minha permissão, saiba que a concedo
prontamente. Com ou sem minha bênção, é óbvio que o menino pertence a você.
- Não poderia estar mais de acordo, Lochlan. É hora de fazermos nossas próprias tradições - disse Cuchulainn, ainda olhando firmemente a caçadora.
- Bom - disse Elphame com satisfação. - Então não vai se importar de explicar a Lochlan e Danann as ideias que discutimos sobre onde a casa comunal e as cabanas
devem ser construídas. - Sem esperar pela resposta do irmão, entrelaçou o braço com familiaridade no de Brighid e guiou a caçadora para longe deles.
Brighid ainda conseguia sentir o olhar de Cuchulainn sobre si.
As mulheres caminharam juntas, ficando no lado próximo ao mar do platô movimentado. Foi só quando estavam bem longe do alcance de audição do grupo que Elphame falou:
- Como serei capaz de agradecê-la por curar Cuchulainn?
- Não me deve agradecimento nenhum - apressou-se em dizer. - Só estou aliviada por ter funcionado. Na noite passada, ele ainda parecia... - hesitou Brighid, penando
para escolher a coisa certa a dizer. - Ele ainda parecia abalado. Pode não se parecer muito com ele mesmo por algum tempo - explicou com cautela, esperando dar a
Elphame uma explicação racional para os olhares demorados de Cuchulainn.
Elphame lhe deu um rápido abraço.
- Aceito ele exatamente como está. Claro que ainda sente saudades de Brenna. Provavelmente sentirá para sempre, mas agora está pronto para seguir em frente. Está
inteiro outra vez. Você me devolveu meu irmão. Se houver qualquer coisa que eu possa fazer por você, sabe que só precisa pedir, minha irmã.
- Talvez precise pedir que me deixe voltar ao Castelo Guardião - temporariamente, claro.
As sobrancelhas de Brighid se juntaram.
- Não entendi. Acabou de voltar para casa. Como pode querer partir tão cedo?
- Não é que eu queira partir - explicou Brighid conforme retomavam a caminhada pelo platô. - É que a caçadora do Castelo Guardião voltou à Planície dos Centauros
de repente, sem deixar uma substituta. Não pude deixar de notar que a necessidade de uma caçadora era grande. Pensei que pudesse, talvez, oferecer auxílio. Com sua
permissão - acrescentou.
Elphame ficou por um momento sem falar. Apenas estudou a amiga. Depois olhou para Cuchulainn por cima do ombro de Brighid, que girou e viu o corpo forte silhuetado
no céu claro de primavera. Estava virado na direção dela, simplesmente parado. E olhando.
- Arrã - disse Elphame, puxando abruptamente o braço da amiga e continuando o passeio.
- Então - continuou Brighid, tentando esconder o desconforto. - Se eu precisar partir, temporariamente, teria sua permissão?
- Está fugindo? - perguntou Elphame.
Brighid começou a negar, depois fechou a boca. Olhou a amiga nos olhos. Não queria mentir para sua líder, mas percebeu que não conseguiria mentir para a amiga.
- Sim. Acho que estou.
A testa de Elphame enrugou.
- Quero perguntar uma coisa, mas quero que saiba que pode responder com honestidade sem prejudicar nossa relação. Tem minha palavra como amiga, e também como chefe
do clã, quanto a isso.
Com o estômago apertado, Brighid assentiu.
- O fato de Cuchulainn desejá-la lhe causa repulsa? - Quando Brighid ofegou de maneira chocada, Elphame falou depressa: - Quero dizer, seria compreensível se isso
a deixasse desconfortável. É difícil ignorar totalmente os ensinamentos da nossa infância. A manada Dhianna não se mistura com humanos, então não seria surpreendente
se...
- Não! - interrompeu-a Brighid. - Pela Deusa, não! Humanos não me causam repulsa. Cuchulainn não me causa repulsa. Mas o que a faz pensar que ele me deseja?
- Tenho olhos. Conheço meu irmão. Você é muito bonita, Brighid, e meu irmão sempre se interessou por mulheres bonitas.
- Não sou humana - respondeu prontamente.
Elphame ignorou a objeção com um movimento impaciente da mão.
- Os homens a acham bonita e desejável, assim como os centauros. Deve saber disso. E é óbvio que Cuchulainn a deseja. Ele não está tentando esconder a atração. -
Elphame sacudiu o braço da amiga como se para lhe incutir algum bom-senso. - Vocês dois viveram algo muito íntimo. Não tenho certeza dos detalhes de como uma xamã
traz uma alma de volta à terra dos vivos, mas sei que deve ter se unido a Cuchulainn, espírito com espírito, para que o resgate tenha dado certo. E definitivamente
deu certo.
- El. - Brighid respirou fundo e guiou a amiga para mais perto da beira do penhasco, onde o som das ondas quebrando garantiria que não fosse ouvida. - Cuchulainn
não me repele. Nem um pouco.
Elphame arregalou os olhos e sorriu.
- Você o deseja também! Um dia vai ter que me contar o que acontece durante um resgate de alma.
- Elphame - não seja inocente e romântica. Coloque isso em perspectiva. O que Cuchulainn está sentindo por mim é simplesmente o resíduo de uma experiência incomumente
íntima. - Brighid deu uma olhada severa na amiga. - E não! Não vou contar detalhes.
El suspirou:
- Acho que poderia perguntar a Cuchulainn...
- Deusa, não! - Então a caçadora estreitou os olhos ao perceber que a amiga só estava provocando. - Isso não é assunto para gracejos.
- Me desculpe - disse Elphame com sinceridade.
Brighid fez cara feia.
- Como eu estava tentando explicar, Cuchulainn apenas pensa que me deseja por causa do que experimentamos juntos. Isso vai acabar. É por isso que seria melhor se
eu me ausentasse do Castelo MacCallan por enquanto. Para que tenha tempo de voltar a ser ele mesmo.
- Compreendo suas razões. São bem lógicas e realistas. - Elphame sorriu, astuta. - E isso não leva em conta a teimosia do meu irmão.
- Claro que sim.
Elphame riu.
- Lembra de quando Cuchulainn percebeu que seus sentimentos por Brenna eram sérios?
- Sim. As atitudes dele era incômodas demais para serem esquecidas. Bancou o completo idiota perseguindo a pobre menina insistentemente até ela... - Brighid de repente
ficou sem palavras.
Elphame ergueu uma sobrancelha.
- Então não levou em conta a teimosia dele. Também não pude deixar de notar que você disse que os sentimentos de Cuchulainn eram causados pelo resgate da alma. Mas
você não mencionou muito sobre seus próprios sentimentos.
- Seu irmão e eu somos amigos. Gosto dele e o respeito - mentiu ela.
- Vocês são amigos que se importam um com o outro e se respeitam. Junte a isso sua beleza e a lendária paixão dos centauros. - Elphame ergueu a voz e falou acima
do bufo sarcástico da amiga: - Some o talento inegável do meu irmão com as mulheres, e depois misture tudo com uma experiência íntima e tocante. Me parece que a
não ser que tenha repulsa por humanos, tudo poderia ser muito mais do que uma paixão temporária.
Brighid fitou o oceano espumado. Estava incrivelmente emocionada pelo que Elphame estava dizendo. A amiga estava deixando claro que aceitaria qualquer tipo de relacionamento
que Brighid tivesse com Cuchulainn. O coração disparou no peito. Se ao menos...
- Não é tão fácil... - disse por fim.
- O amor raramente é - disse Elphame.
- El, não posso amá-lo! Não posso me transformar.
- Depois do que acabou de viver no reino espiritual, não preciso lembrar que o amor tem mais a ver com a alma do que com o corpo.
- Então me expressei mal - disse Brighid com cansaço. - O problema não é que não posso amá-lo. O problema é que se isso acontecer, estarei para sempre desejando
algo absoluta e completamente impossível.
- Olhe, sei que não gosta de falar disso, mas sua mãe é... - Elphame se calou diante do ar de choque da amiga. - Lamento, Brighid. Não queria lhe causar dor ao falar
da sua família.
- Não é isso. - Brighid passou a mão trêmula pelo rosto. - É Brenna.
- Brenna?
- Ela... ela veio até mim num sonho. Aqui, no Castelo MacCallan. Ah, Deusa! Não percebi até agora...
- O que foi, Brighid?
A caçadora apertou a mão sobre o coração, que batia selvagem dentro do peito.
- Ela queria minha promessa de que manteria a mente aberta para coisas que pareciam impossíveis. Usou exatamente essa palavra, El.
Os olhos de Elphame estavam marejados de lágrimas.
- Brenna parecia feliz?
A caçadora assentiu e seus olhos também se encheram de lágrimas.
- Ela disse mais alguma coisa?
Brighid assentiu devagar.
- Disse que eu poderia contar a Cuchulainn sobre a visita, mas não imediatamente, que eu saberia o momento certo. E também disse que... - Hesitou, as emoções embargando
as palavras.
Elphame segurou a mão da amiga.
- Ah, El... Ela disse que estava deixando Cuchulainn para mim. Por livre vontade e sem hesitação. Eu... eu pensei que estivesse falando do resgate de alma. Nunca
pensei... não percebi...
- Ela estava dizendo que você tinha a bênção dela para amá-lo - disse Elphame.
- Acho que sim.
Elphame passou as mãos pelas faces.
- Ainda acha que deve fugir para o Castelo Guardião?
Brighid sorriu para a amiga em meio às lagrimas.
- Não posso. Fiz uma promessa de ficar aberta para o impossível. Tenho que ficar e enfrentar isso.
- Bom, meu irmão certamente qualificaria isso como impossível.
- E nisso você, Brenna e eu estamos de perfeito acordo.
Trinta e Três
- ENTÃO O QUE vai fazer a respeito dele? - perguntou Elphame, fungando feliz e secando os olhos.
- Não sei ao certo. Imagino que só ficarei aberta para a possibilidade de... - hesitou Brighid, sentindo-se desajeitada, desconfortável e extraordinariamente fora
de seu elemento.
- Vai ficar aberta para a possibilidade de ter um relacionamento com meu irmão.
- Sim.
- Bom, ele vai ficar contente por ouvir isso.
Brighid ofegou.
- Não vou contar a ele!
- Mas...
- E nem você. Por favor.
- Certo. Fico fora disso.
- Podemos mudar de assunto agora?
- Se insiste - disse Elphame.
- Insisto.
- Apenas saiba que estou aqui se precisar conversar comigo. Como sua amiga, e sua chefe de clã, ou como irmã de Cuchulainn caso ele não se comporte.
- Mudando de assunto? - lembrou-lhe Brighid.
- Só queria que soubesse.
- Obrigada, agora sei. - Brighid sorriu com carinho para a amiga. - E ainda quero mudar de assunto.
- Imagino que queira saber o que estamos planejando para a aldeia dos neofomorianos.
- Claro.
- Quer voltar às plantas para que eu possa mostrar o que Cuchulainn e eu esboçamos hoje de manhã? - Os olhos de Elphame cintilaram com a possibilidade de levar a
caçadora de volta ao irmão.
- Por que não me mostra daqui? - perguntou Brighid com indiferença.
Elphame deu um suspiro exagerado, mas começou a apontar e explicar que ela e Cuchulainn tinham decidido - mais uma vez - romper com a tradição. Por causa da falta
de uma estrutura familiar típica, construiriam um único prédio parecido com uma caserna para abrigar a maioria das crianças. A estrutura se situaria não muito longe
do muro sul do castelo. Irradiando-se dela haveria algumas pequenas cabanas, onde os adultos, e as crianças mais velhas também, poderiam ter privacidade. O resto
do platô seria semeado e cultivado com várias plantações, que os neofomorianos poderiam cuidar e usar para comércio e pagar o dízimo ao Castelo MacCallan.
- Minha esperança é de que com o tempo o que aconteceu entre você e Liam aconteça com mais crianças e o clã - continuou Elphame.
- Espera que as crianças amolem o clã até a morte?
Elphame riu.
- Você sabe muito bem. O menino lhe pertence. Espero que muitas das crianças encontrem um lugar no coração e nos lares do meu povo. Mas quero ter o cuidado de não
forçá-los. Tem que acontecer naturalmente, e isso pode levar algum tempo.
- Exatamente como seu irmão e eu - murmurou Brighid.
El sorriu.
- Não exatamente, mas entendo o que quer dizer. - Elphame hesitou, depois o sorriso desbotou. - Esteve ocupada, então sei que não notou, mas perdemos vários membros
do clã MacCallan.
- Como?
- O primeiro grupo partiu no mesmo dia em que você. Não gostei, mas isso não me surpreendeu. Eu os liberei do juramento e disse que se mais alguém no clã quisesse
se juntar a eles, bastava dar um passo à frente. - Elphame meneou a cabeça com tristeza. - Ainda me entristece pensar nisso, mas eu os compreendo. O que estamos
propondo, que aceitem o retorno de um povo que carrega o sangue dos inimigos jurados de Partholon, é uma coisa radical.
- Também carregam o sangue das mulheres partholonianas - mulheres inocentes que perderam seus lares e suas vidas, cujas crianças merecem receber uma chance - disse
Brighid.
- Nem todos creem nisso. Algumas pessoas acreditam que qualquer coisa com asas é um demônio, a despeito do que vive em seu coração.
Brighid bufou:
- Estou contente por essa gente ter ido embora. Estamos bem livres delas. Você é a MacCallan. Deviam ter confiado que você nunca os colocaria em risco.
- Também me uni a um homem que carrega a marca desse pai demônio no sangue.
- E que provou lealdade a você! - falou Brighid com fúria, mesmo se lembrando da própria desconfiança com Lochlan. Mas não tinha deixado que suas dúvidas a fizessem
desertar sua chefe de clã. Aqueles que partiram estavam enganados. Deviam ter ficado perto de Elphame e ficado de olho para ter certeza de que ela não estava em
perigo.
- Ele provou lealdade, e ainda prova - tanto a mim quanto ao clã MacCallan, mas talvez isso não seja suficiente para superar mais de um século de ódio. - Elphame
fixou os olhos nos de Brighid. - Sabe que o preconceito não é lógico, por isso que é tão difícil de ser superado. - Suspirou. - E outros mais partiram depois desse
primeiro grupinho.
- Quantos mais?
- Na manhã seguinte, uma dúzia de homens e três mulheres partiram.
- Mais 15 pessoas? Simplesmente assim? - Brighid estalou os dedos, incrédula.
- Disseram que agora que o momento se aproximava eles também não tinham estômago para aceitar os neofomorianos. - A voz de Elphame soava desanimada.
- Mas você lhes deu a oportunidade de partir. Escolheram ficar. Estavam jurados a você.
- Agora são renegados. - Elphame pronunciou a palavra como se tivessem um sabor amargo.
Brighid encarou a chefe, completamente chocada, conforme a expressão da amiga se transformava. O rosto de Elphame enrijeceu. Os olhos se tornaram obscuros, e Brighid
sentiu o eco de uma presença que era sombria e arraigada em intenções malignas.
- El! - gritou, segurando o braço da amiga. Deusa! A pele dela estava fria.
Elphame trincou o queixo, fechou os olhos e respirou bem fundo. Os lábios se moveram numa oração quase silenciosa, e Brighid pôde ver o brilho do poder de Epona
tremular no ar ao redor delas. O cabelo da amiga se ergueu, rodopiando num vento quase invisível de energia que, num crepitar audível, se assentou na pele de Elphame.
A mão de Brighid formigou onde foi tocada pela Deusa.
- El? - perguntou Brighid, desta vez mais hesitante.
A chefe do clã ofegou e abriu os olhos. Quando divisou a amiga, as sombras dentro dela tinham, mais uma vez, se retirado.
- Ela se agita - explicou antes que Brighid conseguisse decidir se deveria ou não perguntar. - Especialmente quando algo me deixa zangada, ou quando me sinto desesperada.
A loucura sempre está dentro de mim, espreitando em silêncio... esperando. Só o amor e a verdade, junto com o toque poderoso de Epona, a mantêm acuada.
- Fé e fidelidade - sussurrou Brighid o lema do clã MacCallan.
- Fé e fidelidade - ecoou Elphame.
Brighid queria perguntar mais, e estava tentando formular as palavras certas quando ambas foram distraídas pela entrada de um homem a cavalo no platô. Embora a área
fervilhasse com som e atividade, havia algo no homem que lhes atraiu a atenção. Ele parou na frente de Cuchulainn. Brighid podia ouvir seus gritos, mas não conseguia
compreender as palavras.
- Venha comigo - disse Elphame, sem esperar que o irmão levantasse o braço para sinalizar onde ela estava. As poderosas pernas equinas eram tão rápidas que na corrida
Brighid teve que se esforçar para acompanhar a velocidade da chefe. Quando as duas alcançaram Cuchulainn, ele já tinha montado no cavalo do homem e estava rumando
na direção do castelo.
- Uma centaura acaba de chegar da planície. Tem uma mensagem urgente para Brighid.
Juntos, Elphame, Brighid, Lochlan e Cuchulainn dispararam ao castelo.
- Ela espera no pátio principal - avisou o sentinela quando alcançaram o portão aberto do castelo.
Com o estômago apertando de tensão, Brighid desacelerou. A centaura ficou adiante de todos, como se estivesse consumida olhando a fonte da MacCallan ancestral. Brighid
estava surpresa por poder ouvir a respiração difícil da centaura, e a surpresa se tornou assombro quando percebeu que a pelagem da centaura estava coberta de manchas
de espuma branca e o corpo tremia. Nunca se ouviu falar de um centauro demonstrando sinais tão óbvios de fadiga. Devia ter corrido sem parar por dias para ter ficado
naquele estado. Então a centaura se virou, e Brighid ofegou.
- Niam! - Ela correu até a irmã, que tropeçou e quase caiu em seus braços. - O que aconteceu?
- Graças a Epona você está aqui - disse em meio a arfadas tortuosas. - É a mamãe. Ela está morta.
O choque das palavras da irmã implodiu na mente de Brighid, que sentiu a cabeça sacudindo de cá para lá, de lá para cá, como se não pudesse controlá-la.
- Me ajudem a levá-la para o Grande Salão. - A voz de Elphame interrompeu o ruído alvo de descrença que ecoava na cabeça de Brighid.
De repente Niam não estava mais em seus braços, mas sendo meio conduzida, meio carregada por vários homens do clã MacCallan, junto com sua chefe e o parceiro, para
o Grande Salão. Brighid só conseguiu ficar ali parada, acompanhando-os com o olhar, completamente incapaz de se mexer.
Uma mão forte e quente escorregou por seu cotovelo, e a presença de Cuchulainn se registrou.
- Lembre-se de respirar - avisou a ela.
Brighid aspirou o ar como uma mulher se afogando, piscou e finalmente conseguiu focar naqueles olhos turquesa.
- Fique comigo - disse ela.
- Não vou a lugar nenhum que não seja lá dentro com você - disse-lhe.
Ainda segurando-lhe o braço, saiu caminhando com ela. Brighid tropeçou, mas Cuchulainn a ajudou a manter o equilíbrio. Através do toque dele, podia sentir o calor
de sua luz dourada fluindo dentro e fora dela, envolvendo-a com a força de um guerreiro.
Entraram no Grande Salão juntos e se aproximaram depressa do longo e baixo banco para centauros sobre o qual Niam tinha desabado. Wynne veio correndo da cozinha
carregando um odre pesado, que passou para Elphame. A chefe o desarrolhou e o levou aos lábios de Niam quando as mãos trêmulas da centaura não puderam sustentá-lo.
- Beba devagar. Primeiro água, depois lhe daremos vinho e alguma coisa para comer. - Elphame falou num tom calmo e tranquilo com Niam. Enquanto a centaura bebia,
Elphame se dirigiu para um dos homens do clã de olhos arregalados. - Chame minha mãe - ordenou. E depois se dirigiu a outro: - Traga toalhas e cobertores. Muitos.
Brighid sentiu uma pontada de pânico ao se ajoelhar ao lado da irmã. Subia vapor da parte equina coberta de espuma do corpo de Niam, que tremia e se contorcia espasmodicamente.
O torso humano estava pegajoso e corado num escarlate incomum. O cabelo loiro estava escuro de suor e emplastrado na cabeça delicada. Ela tinha corrido perigosamente
além do ponto da exaustão.
De repente Niam afastou o odre de água da boca, engasgou e tossiu. Brighid afastou o cabelo úmido do rosto da irmã, murmurando com ela: - Shhh, você está aqui agora.
Concentre-se em ficar calma... em resfriar o calor do seu corpo.
- Não! Brighid, você tem que escutar!
Niam agarrou-lhe a mão, e Brighid quase gritou com o calor que irradiava da irmã.
- Depois, Niam. Quando estiver descansada.
- Não, agora! - falou a centaura em um frenesi, e então mais tosses violentas a consumiram.
- Deixe-a falar.
Brighid ergueu a cabeça ao som da voz de Etain. As pessoas que se aglomeraram no Grande Salão se dividiram para que a Escolhida da Deusa pudesse se aproximar. O
rosto da sacerdotisa estava sereno, mas quando Brighid lhe encontrou os olhos, viu dentro deles uma terrível tristeza que fez seu coração gelar.
Minha irmã vai morrer.
Brighid se voltou para a irmã e segurou a mão avermelhada entre as suas, tentando injetar força nela.
- Estou escutando, Niam - disse Brighid.
- Mamãe morreu esta manhã, mas o acidente aconteceu há quatro dias. Ela caiu num poço para bisão. As estacas a perfuraram. - Niam fechou os olhos e estremeceu com
o horror da recordação. - Sabia que ela estava morrendo. Todos nós sabíamos. Tinha que avisar você.
- Não! Não! não pode ser. Não caçamos bisões com poços. Não usamos estacas. - Brighid meneou a cabeça, sentindo-se inundada em confusão.
- Não era uma armadilha de centauros. Era um poço feito por humanos.
Um calafrio terrível de mau pressentimento sacudiu o sangue de Brighid.
- Mas humanos não caçam na Planície dos Centauros, não sem a permissão do sumo xamã da manada. - O que a manada Dhianna nunca dava.
- Passaram dos limites e caçaram ilegalmente, provocando a morte da nossa mãe.
Niam teve que parar novamente para tossir. Dessa vez, quando arfou buscando ar, os lábios ficaram úmidos com saliva tingida de sangue.
- A morte dela deixou Bregon louco. Antes de eu deixar a planície, ele já tinha jurado levantar o Cálice de Sumo Xamã e liderar a manada Dhianna contra os humanos
que ousaram colocar os pés na Planície dos Centauros.
Horrorizada, Brighid só conseguia encarar a irmã. O irmão estava disposto a começar uma guerra por causa de um acidente terrível?
Niam apertou as mãos da irmã.
- Não é só a manada Dhianna. Desde que se espalhou pela planície a notícia de que as criaturas aladas estavam sendo aceitas de volta a Partholon, os xamãs de outras
manadas se juntaram a nós. Eles querem fazer uma guerra, Brighid.
Niam se calou, arquejando dolorosamente, e Brighid a sustentou enquanto o sangue vertia pelo peito da irmã e corria em filetes carmesim pelo chão.
- Mamãe não me mandou aqui. Ela queria a guerra. Vivia repetindo a Bregon que a vingasse. Eu precisava impedir isso. Tinha que vir até você.
Niam não precisava explicar como sabia que a mãe tinha morrido. A verdade se assentou sobre Brighid conforme a mente rememorava o corvo abatido e as palavras cheias
de ódio de seu arquejo de morte.
Vingue-me!
Quando seu espírito deixou o corpo, Mairearad Dhianna teria enviado a mesma mensagem para cada filho, esperando que nem mesmo sua morte encerrasse a influência manipuladora
que considerava o verdadeiro laço da maternidade. Mesmo ao fim da vida, a mãe ainda estava tramando... tentando forçá-los a se curvar à sua vontade. No caso do irmão
de Brighid, Mairearad parecia ter sido vitoriosa.
- Descanse agora, Niam. - Brighid pegou o pano de linho que Elphame lhe passou em silêncio e limpou o sangue do rosto da irmã. - Vamos resolver isso. Shhh.
Niam meneou a cabeça e deu um pequeno meio-soluço, meio-sorriso.
- Você sempre pensou que eu fosse estúpida. - Quando Brighid começou a negar, Niam apenas apertou mais a mão da irmã e continuou falando: - Isso agora não importa
mais, mas queria que soubesse que eu não era o que você pensava - só não era forte como você. Não conseguia enfrentá-la, então a fiz acreditar que não merecia a
atenção dela. - Os lábios tremeram quando Niam tentou sorrir. - E enganei todos. Ninguém me notava, especialmente Bregon. Ninguém pensou que seria eu a vir até você.
- Com força surpreendente, Niam largou a mão da irmã para que pudesse agarrar Brighid pelos ombros. - Precisa retornar. Mesmo aqueles que foram mais corrompidos
pela mamãe não ousariam se opor ao poder da Sumo Xamã Dhianna. Pegue o cálice. Garanta que mamãe não ganhe. Coloque um fim nessa loucura.
A tosse seguinte de Niam foi um soluço sangrento, e ela desabou no banco. Em meio ao sangue que estava escorrendo continuamente do nariz e do canto da boca, ela
sorriu para a irmã.
- Sempre a invejei, Brighid. Você escapou dela. Mas talvez agora eu finalmente tenha escapado dela também...
Os olhos de Niam reviraram tanto que exibiram a parte branca, e o corpo dela se convulsionou tão violentamente que Brighid foi jogada para longe. Num nevoeiro de
desespero, Brighid observou Etain. Os braços da Deusa Encarnada estavam abertos e, ao falar, uma pura luz branca emergiu de suas palmas, engolfando Niam.
Niam, irmã de nossa amada Brighid, em nome da nossa Grande Deusa peço que deixe essa casca quebrada
que já não lhe serve mais.
Peço em nome de Epona,
Deusa de tudo que é selvagem e livre,
que transcenda essa dor...
que descanse no seio da Terra de Verão de Epona.
Filha da deusa, eu a liberto!
Etain pressionou suas mãos cintilantes sobre o flanco ofegante da centaura, e o corpo de Niam ficou imóvel. Com uma pequena arfada, aliviada, a irmã de Brighid respirou
pela última vez.
Trinta e Quatro
NO SILÊNCIO ESPANTADO, a voz de Elphame soou calma e autoritária: - Lochlan, chame Ciara. Conte a ela o que aconteceu. Mande os adultos manterem as crianças longe
do castelo até eu avisar que podem retornar.
O homem alado só hesitou o bastante para tocar o ombro de Brighid e murmurar "Lamento por sua perda, caçadora", então se foi.
- Mamãe - prosseguiu Elphame. - Poderia...
Antes que terminasse a pergunta, a Escolhida de Epona já estava respondendo: - Claro. Levem-na para mim. - Mas como Lochlan, antes de deixar o salão aproximou-se
de Brighid, que estava ajoelhada no chão, perto do corpo da irmã, cabeça abaixada. A Deusa Encarnada ergueu uma das camadas de seu robe de seda e o usou para secar
o sangue e as lágrimas do rosto de Brighid. Curvou-se e beijou a caçadora em cada face, como uma mãe faria com a filha.
- Epona sabe de sua dor, criança, e a Deusa chora com você.
Então Etain saiu apressada, sua voz clara ecoando desde o pátio principal ao chamar as criadas.
Danann, o artífice centauro, com a ajuda de vários homens, levou o corpo de Niam para os aposentos de Etain.
Quando Cuchulainn e Elphame ficaram sozinhos com Brighid, ele se agachou para ficar no nível dos olhos dela. Ouviu o passo dos cascos da irmã sobre o chão de mármore
ao se aproximar dele.
- Brighid. - Cuchulainn baixou a voz para que ficasse calma como a da mãe, mesmo embora suas emoções estivessem afloradas e sangrando. Compreendia muito bem o ar
chocado e sofrido. - Brighid - repetiu, e ela enfim moveu os olhos para ele. - Venha com El e comigo. Vamos deixar este local de morte.
- Mas é o meu lar - disse atordoada.
- Ainda é seu lar - apressou-se Elphame em dizer. - Sempre será seu lar. Cuchulainn não quer que deixe o Castelo MacCallan. Apenas este salão. - Elphame pegou a
mão frouxa da amiga. - Vamos para seu quarto e deixar a limpeza daqui com Wynne e minha mãe.
Brighid encarou Elphame, os olhos arregalados de choque.
- É o que quer que eu faça?
- Sim - disse El.
Brighid assentiu duas vezes com a cabeça num movimento esquisito e anormal. Ainda apertando forte a mão de Elphame, levantou-se.
- Cuchulainn? - A voz estava hesitante e suave.
- Estou aqui. - Ele lhe segurou a outra mão com firmeza. - El e eu não deixaremos que passe por isso sozinha.
Ela ergueu os olhos para ele.
- Precisa me perdoar. No momento não posso fingir que não preciso de você perto de mim.
Cuchulainn levou a mão salpicada de sangue aos lábios.
- Ao seu lado é exatamente onde quero ficar.
- Não conseguiria se livrar de nenhum de nós - afirmou Elphame.
Sustentada por amor e lealdade, Brighid caminhou com passos pesados e sonâmbulos até seus aposentos. Quando Elphame e Cuchulainn lhe soltaram as mãos, ficou parada
no quarto, esperando pelo que aconteceria em seguida. De repente pareceu que era incapaz de continuar avançando sozinha.
- Estou com sangue por toda parte - disse, surpresa por como a voz soava estranha.
- Eu cuido disso - disse Elphame, indo até o jarro e a bacia colocados sobre a mesa. - Cuchulainn, traga Nara.
Em resposta ao olhar rebelde do irmão, Elphame lhe agarrou o braço e puxou para perto, sussurrando: - Brighid não vai agradecer mais tarde quando lembrar que ficou
aqui olhando enquanto eu limpava o corpo dela do sangue da irmã.
Cuchulainn fechou a boca e assentiu em entendimento.
Enquanto a irmã despejava água limpa na bacia, ele segurou a mão de Brighid novamente. Olhou naqueles olhos cheios de dor e se lembrou de como ela esteve ao lado
dele quando descobriram o corpo de Brenna, e então, como se a mente só agora realmente processasse tudo, percebeu que Brighid sempre esteve ao lado dele naqueles
dias desesperançados após a morte de Brenna enquanto Elphame estava em coma e era como se todos que ele amava o tivessem desertado. Brighid não, mas ele esteve distraído
demais pelo sofrimento e depois pelo egoísmo para perceber.
Mas percebia agora, e também não a deixaria sozinha.
- Vou buscar Nara. Mas não me demoro. Elphame vai ficar com você até eu voltar.
- Mas você volta?
- Sempre. - Cuchulainn levou a mão dela aos lábios, então saiu a largas passadas do quarto.
Antes que Brighid pudesse sentir sua ausência, Elphame estava novamente ao seu lado. Com um pano úmido e palavras tranquilizadoras, a amiga limpou os respingos de
sangue do corpo dela. Dias depois, Brighid nem lembraria o que Elphame tinha lhe dito. Só saberia do toque gentil das mãos de Elphame e a sensação fresca da água
limpa ao lavar o sangue de Niam.
- Venha, deite-se.
Brighid agarrou-se à voz da amiga. Obedecendo como se não possuísse vontade própria, deixou Elphame guiá-la ao seu grosso colchão. Em movimentos lentos, dobrou os
joelhos e deixou o corpo tombar. Elphame pegou uma escova larga e macia no topo da penteadeira de Brighid e, enquanto cantarolava sem palavras uma canção de ninar,
escovava o longo cabelo loiro-prateado da caçadora. Foi em meio àquele gesto simples e amoroso que Brighid voltou a si mesma.
Respirou fundo. Os pensamentos lamacentos escoaram pelos dejetos da dor, se assentaram e enfim clarearam. Logo ela se reorientou.
O primeiro pensamento coerente foi o de que estava inteira. A alma não tinha se despedaçado. Imaginou brevemente como sabia disso com tamanha certeza, e a resposta
veio com simplicidade. Seu sangue lhe dizia. Seu coração lhe dizia. O instinto de xamã inerente à sua alma lhe dizia.
Seu pensamento seguinte foi como uma faca fria perfurando seu corpo. Minha mãe está morta. Soava impossível, mas seu coração - e agora a mente - sabia que era verdade.
E então, como um desfiladeiro repleto de recordações, sua memória foi varrida por imagens dolorosas.
A irmã estava morta. Ela deu a vida por mim. Estava enganada sobre ela, e agora é tarde demais para consertar isso. Nunca poderei endireitar nada.
- Caso se culpe pela morte dela, estará tão enganada quanto Cuchulainn esteve por se culpar pela morte de Brenna. - Elphame continuou a escovar o cabelo de Brighid
enquanto falava.
- Como não me culpar?
- Sua irmã escolheu dar a vida para que você - e através de você, o resto de Partholon - fosse prevenida. Não a culpou, ela deixou isso claro. Caso se culpe quando
ela mesma não o fez, estará desrespeitando a memória dela.
Brighid inspirou de maneira entrecortada.
- Niam foi forte e corajosa.
- Sim... Ela foi, sim.
- Ninguém nunca escovou meu cabelo - disse Brighid.
- Quando eu era criança, mamãe costumava escovar meu cabelo sempre que eu estava me sentindo muito solitária. Nunca entendi o porquê, mas sempre pareceu ajudar.
- A voz falhou num soluço. - Eu... eu não sabia o que fazer para que você se sentisse melhor.
Brighid virou a cabeça para conseguir olhar a amiga.
- Fez a coisa certa.
Ouviram duas batidas rápidas na porta, que então se abriu. Num farfalhar de asas agitadas, Nara adentrou o quarto, seguida por Cuchulainn. A curandeira estava carregando
uma panela fumegante numa das mãos e uma pesada sacola de couro na outra.
- Avive o fogo, guerreiro - ordenou, passando a panela para Cuchulainn. - Isso precisa ferver.
Com gestos práticos, ela sentou no chão ao lado do colchão de Brighid. Com mãos infinitamente gentis, tocou rapidamente os pontos de pulso nas têmporas, no pescoço
e nos punhos da caçadora, depois passou as mãos com delicadeza sobre o corpo equino de Brighid.
- Não estou ferida - avisou-lhe Brighid.
Nara ergueu os olhos enquanto vasculhava a sacola de couro, puxando maços de ervas secas.
- Não estava preocupada com um ferimento físico, caçadora - disse Nara. - E agora estou menos preocupada com seu espírito, embora ainda queira que beba minha infusão.
- A curandeira ficou de pé e se aproximou da mesa, misturando ervas num pequeno coador de trama fina.
Brighid começou a sacudir a cabeça, lembrando-se das poções de Brenna. Não queria dormir - tinha certeza de que deveria estar fazendo alguma coisa. Mas antes que
pudesse se mexer, Elphame estava de novo ao lado dela.
- Mamãe está cuidando de Niam. Não há mais nada para você fazer hoje.
- Devo ficar com ela. Tenho que... - Brighid ficou sem palavras e só conseguiu encarar a amiga.
- A Escolhida de Epona está untando o corpo da sua irmã. Ela e as criadas estão recitando orações para guiar o espírito dela até Epona. Wynne e as cozinheiras estão
limpando o Grande Salão. Logo chamarei as crianças e elas retornarão para encher o castelo com vida e alegria.
- Mas o que posso fazer, El?
Elphame tomou a mão de Brighid.
- Pode dormir e se recuperar para que a mente fique clara para tomar decisões que honrem o sacrifício de sua irmã.
- É tudo o que posso fazer? - Mesmo aos seus ouvidos, ela soava derrotada.
- É o bastante por enquanto - assegurou-lhe Elphame.
- Sabia que ela estava morta - disse Brighid, a voz mais resignada do que triste.
- Niam? - perguntou Elphame.
A caçadora meneou a cabeça.
- Não. Minha mãe. Ela veio até mim hoje de manhã quando matei o javali. Ela disse... - Brighid se calou, engolindo o nó na garganta. - O espírito dela berrou para
que eu a vingasse. Pensei... - Brighid fez outra pausa, respirando bem fundo. - Pensei que era apenas outro dos truques dela, apenas outra tentativa de me atrair
para um lugar onde pudesse me mudar... me controlar... me usar. - Brighid meneou a cabeça. - Mas bem no fundo eu sabia que ela estava morta. Não quis encarar isso.
Mas deveria. Se eu tivesse voltado para a Planície dos Centauros naquele momento, talvez tivesse encontrado Niam e a detido antes que ela... - A voz falhou, e Brighid
não conseguiu prosseguir.
- Não! - Cuchulainn se ajoelhou, tocando-lhe o rosto, secando-lhe as lágrimas. - Não faça isso consigo mesma, Brighid. Não poderia ter mudado o destino da sua irmã
tanto quanto eu não poderia mudar o de Brenna. Deixe-a ir, minha bela e forte caçadora. Deixe Niam ir.
- Beba isto. - Nara entregou a Brighid um caneco fumegante que cheirava a lavanda e especiarias.
Ansiando de repente pelo esquecimento, Brighid esvaziou o caneco, sem se importar que as ervas perfumadas não mascarassem bem o amargor da infusão.
- Agora durma, pois quando acordar a mente estará clara - disse Nara. - Não posso curar seu coração, mas posso lhe dar um corpo descansado para decisões sábias enquanto
seu espírito chora.
- Nara - chamou Brighid a curandeira antes que ela pudesse se esgueirar silenciosa para fora do quarto. - Não deixe Liam se preocupar comigo. Diga a ele que vai
ficar tudo bem.
Pela primeira vez, a curandeira sorriu.
- Não se aflija, caçadora. Deixarei a mente de sua criança tranquila.
- Também devo ir - disse Elphame, beijando Brighid na face. - Não se preocupe com nada. Mamãe e eu cuidaremos da pira. Descanse. Volto logo para ver como você está.
As pálpebras de Brighid já estavam começando a ficar pesadas quando seu olhar procurou o de Cuchulainn.
- Não vou embora - afirmou ele.
- Bom. - Os olhos se fecharam. Então, com um arfar, ela os forçou a abrir.
- O que foi? - perguntou Cuchulainn, afastando-lhe o cabelo do rosto.
- Estou com medo de dormir. E se parte do espírito dela vier aos meus sonhos, como o seu fez?
Cuchulainn sabia que era à alma distorcida da mãe que Brighid se referia.
- Isso não vai acontecer - disse ele, acomodando-se no colchão recheado de plumas para que pudesse puxar o torso dela para seus braços. - Não vou deixar.
Brighid descansou a cabeça no peito dele e tentou lutar contra a droga.
- Como? Como pode detê-la?
- Estive nos seus sonhos antes. Estarei lá outra vez, e vou garantir que nada a magoe. - Ele beijou o topo da cabeça dela. - Durma, minha bela caçadora, e eu vigio
você.
Incapaz de lutar mais, Brighid se deixou arrastar pelo sono para a escuridão.
Trinta e Cinco
QUANDO ABRIU OS olhos novamente, estava escuro, exceto pelo fogo queimando baixo na lareira. Por um momento ficou sem se mexer - Brighid apenas recordou.
A mãe estava morta. A irmã estava morta. O irmão estava disposto a começar uma guerra sangrenta de vingança.
Hesitante, testou o conhecimento dentro dela. A morte da mãe a fazia sentir alívio, que imediatamente foi acompanhado por um ataque de culpa. Brighid se recompôs
mentalmente. Não tinha razão para se sentir culpada. Mairearad Dhianna tinha sido sua mãe, mas também uma centaura manipuladora e de espírito mesquinho. O poder
a corrompera até acabar por usar mal os dons concedidos por Epona, além de usar e descartar até os próprios filhos. O mundo seria um lugar mais leve sem a presença
sombria de Mairearad Dhianna, e Brighid não choraria por algo que era na verdade mais ganho que perda.
Mas saber da morte de Niam era profundamente diferente. Isso a deixava machucada e triste. Durante todos aqueles anos, estivera cega para o verdadeiro caráter da
irmã. Houve uma época durante a infância em que Brighid fora próxima ao irmão, mas nem então, antes de os anos de divergência começarem, tinha prestado muita atenção
na irmãzinha. Acreditava que Niam era uma casca bonita - insensata quanto a qualquer coisa que não se relacionasse a beleza, entretenimento e luxos. Niam estava
certa. Tinha enganado a todos - mesmo a mãe poderosa. No fim, demonstrara ter mais coração que qualquer um deles. Brighid se certificaria de que a memória da irmã
fosse venerada, e que a força dela fosse contada e recontada nas baladas cantadas ao redor das fogueiras de MacCallan por anos e anos a fio. Brighid só esperava
estar lá para escutá-las. As escolhas do irmão poderiam tornar isso impossível.
Uma sombra se desvencilhou de perto da lareira, fazendo o coração de Brighid martelar selvagemente. Seria uma aparição? Será que o espírito da mãe fora até ali para
lhe entregar outra mensagem cheia de ódio? A caçadora estava se preparando para repudiar o ataque sobrenatural quando a sombra se tornou um homem.
- Vai querer beber isso. Nara disse que estaria com sede quando finalmente acordasse. - Cuchulainn lhe entregou uma taça cheia de água fresca.
Aliviada, as mãos só tremeram um pouquinho enquanto tomava a taça e bebia sedenta. Cuchulainn avivou o fogo e depois rodou pelo cômodo, acendendo vários dos candelabros,
efetivamente afugentando as sombras do quarto. Depois apanhou o cesto de comida e vinho da mesa e o levou até Brighid, sentando-se no colchão ao lado dela.
A caçadora desembrulhou um sanduíche frio de pão e queijo fatiado grosso do cesto e o devorou contente.
- Parece que não como há dias - disse ela entre as mordidas.
Cuchulainn sorriu e limpou algumas migalhas do queixo dela.
- E não comeu.
Ela estreitou os olhos ao perceber que o rosto dele estava sombreado com o que devia ser o restolho de um dia.
- Por quanto tempo dormi?
- Não passa muito do raiar do segundo dia desde a morte da sua irmã - disse ele gentilmente. - Fiquei preocupado achando que seu sono fosse anormal, mas Nara me
garantiu que você acordaria quando seu espírito estivesse pronto.
Lentamente, Brighid ergueu a mão para tocar a aspereza do rosto com barba por fazer.
- Ficou aqui esse tempo todo?
- Avisei que não deixaria você. - Sem tirar o olhar do dela, amparou uma das mãos de Brighid na sua, inclinou um pouco a cabeça e beijou-lhe a palma.
- Cuchulainn... - começou ela, afastando a mão do rosto dele. - Essa coisa entre nós... não precisa ser mais do que amizade - disse sem jeito.
- Não? - A risada foi baixa e fez os olhos turquesa cintilarem.
- Você deveria saber que depois de um resgate de alma...
- A xamã e o paciente estão ligados - completou por ela. - Sim, sei disso. Mas geralmente essa ligação não é mais do que respeito e compreensão. Geralmente. - Cuchulainn
tomou-lhe a mão e a beijou novamente. Ele a manteve presa, palma virada, sobre o coração enquanto continuava falando: - A xamã e o paciente não são atraídos por
desejo, ou caso sejam, ele logo se esvai. - Podia sentir as batidas do coração de encontro ao calor da palma de Brighid. - Lembra de quando acordamos e você estava
me beijando... soprando minha alma de volta ao meu corpo?
Brighid assentiu, silenciada pela voz profunda e o azul impossível dos olhos dele.
- Eu lhe disse que minha mente compreendia que eu não devia desejá-la, mas que minha paixão estava dominando a lógica desse entendimento. Você me falou que minha
paixão desapareceria. Não desapareceu, minha bela caçadora. Agora onde isso nos deixa?
- Não sei - sussurrou ela.
- No Grande Salão, depois do horror da morte da sua irmã, você pediu que eu a perdoasse porque não conseguia fingir que não precisava de mim ao seu lado.
- Eu me lembro.
- Você estava em choque, paralisada de sofrimento e confusão. Agora que seus pensamentos estão claros, tenho que perguntar mais uma vez se ainda precisa de mim ao
seu lado.
É impossível, a mente lhe dizia. Então um eco da memória reverberou a voz doce de Brenna: A coisa mais importante que vim contar é que quero sua promessa de que
manterá a mente aberta... para tudo que parecer impossível.
- Preciso. Sei que é impossível, mas preciso - disse Brighid num ímpeto, antes que o bom-senso e a lógica pudessem impedir suas palavras.
- Era o que eu precisava ouvir. Agora tudo o que precisamos fazer é descobrir como superar o impossível.
- Ah, só isso? - disse Brighid com um toque de seu humor cáustico normal.
Cuchulainn sorriu com charme.
- Minha mãe parece achar que é possível. E você sabe que ela sabe tudo que é importante.
- Sua mãe? - Brighid meneou a cabeça e apanhou o odre. - Falou com sua mãe sobre nós?
Ele ergueu um ombro.
- Acha que eu precisei?
- Pela Deusa! Alguma vez conseguiu esconder alguma coisa dela? - Sentiu-se ruborizada de vergonha ao lembrar que Etain estivera com ela durante a jornada para resgatar
a alma de Cuchulainn. Então o rubor se transformou em prazer. Etain, a Escolhida de Epona e Alta Sacerdotisa de Partholon, os aprovava!
- Ninguém esconde nada da minha mãe. - Cuchulainn riu da expressão impressionada de Brighid. - Vai se acostumar com isso.
- Talvez... Não sei... - Ela deixou de olhar o rosto dele enquanto os pensamentos se redirecionavam. - Deve ser uma grande bênção ter uma mãe que ama você incondicionalmente.
O rosto do guerreiro ficou imediatamente sério.
- É. - Ele segurou-lhe a mão novamente. - Decidiu o que vai fazer?
Ela assentiu, os olhos se voltando lentamente para encontrar os dele.
- Sabia o que devia fazer desde o momento em que vi Niam. - A centaura suspirou. - Antes disso, na verdade. Acho que soube a vida inteira. Só estava tentando fugir
disso.
A mão dele apertou a dela.
- Você não foge das coisas, Brighid.
- Como mais chamaria isso?
- Sobrevivência, coragem, independência. Chamaria de qualquer uma destas coisas. Só covardes e tolos fogem. - O tom dele era ácido. - Eu sei bem. Fugi do sofrimento
pela morte de Brenna.
Brighid tentou sorrir.
- Você não é covarde.
A explosão de gargalhada deixou a alma dela consideravelmente mais leve.
- E com sorte alcancei meu limite de atos tolos.
Brighid olhou para as mãos dos dois unidas e ergueu uma sobrancelha. Ambos riram.
Foi exatamente quando Elphame bateu delicadamente na porta e espiou o quarto. Seus olhos se arregalaram ao vê-los, sentados juntos no colchão da centaura com comida
espalhada ao redor, de mãos dadas e rindo.
- Ora, é bom ver que meu irmão está servindo para alguma coisa. - As palavras eram provocadoras, mas os olhos cintilavam de satisfação.
- El! Bem na hora. Junte-se a nós - disse Cuchulainn.
- Na verdade, vim buscar você - buscar vocês dois. Papai está aqui.
- Bom - disse Cuchulainn, ficando de pé e espanando migalhas do kilt. - Se alguém pode explicar o que está acontecendo com os centauros, esse alguém é nosso pai.
- Ele estendeu a mão para Brighid, que a segurou, levantando-se com relutância para ficar de pé ao lado dele. Cuchulainn sorriu. - Não se preocupe. Vai gostar dele.
- Não estou preocupada quanto a gostar de Midhir! Pela Deusa, Cuchulainn, seu pai é o Sumo Xamã de toda Partholon!
- Não precisa ficar nervosa, Brighid. Nosso pai vai gostar de você - assegurou Elphame, dando uma olhada frustrada no irmão. - Papai é maravilhoso. Verá.
Para Brighid era como se estivesse num sonho quando os três se encaminharam pelo castelo para a entrada dos fundos dos aposentos de família. Antes de entrarem na
ala familiar, a caçadora parou e encarou o sol que tinha acabado de se levantar sobre o muro leste do castelo.
- Onde está Niam?- perguntou calmamente.
- Depois que mamãe untou o corpo, ordenei que fosse mantida na salinha da enfermaria. A pira funerária já foi construída na margem sul dos terrenos do castelo. Pensei
que gostaria dela voltada na direção da Planície dos Centauros - explicou Elphame.
Brighid assentiu.
- Depois de falarmos com Midhir, gostaria de acender a pira.
- Claro. Avisarei ao clã que se preparem.
- O clã? - perguntou Brighid de maneira patética.
- Seu clã. Não a deixariam ficar ao lado da pira de sua irmã sozinha.
Brighid não disse nada, apenas deixou escapar um longo suspiro. Os olhos estavam tristes e resignados. Então ela endireitou os ombros.
- Vamos falar com seu pai. - Ela abriu caminho pelo castelo, os cascos fazendo um som solitário e abafado no chão de mármore liso.
A primeira coisa que Brighid notou no opulento quarto de hóspedes foi que a cama que geralmente estava assentada sobre um imenso estrado circular tinha sido trocada
por um grande catre centáureo. A segunda coisa que notou foi o centauro imponente que estava atrás da cadeira de Etain, falando em voz baixa com a Escolhida enquanto
era devidamente penteada para o dia. Era alto e possuía o porte compacto e magnífico de um guerreiro centauro maduro. Sua pelagem era de baio escuro, escurecendo
para preto nos jarretes. O espesso cabelo escuro era comprido, amarrado às costas com uma tira de couro. Assim que entraram, Etain dispensou as criadas com um aceno
e se levantou para cumprimentá-los. Tomou as mãos de Brighid nas suas, e a caçadora sentiu uma onda de acolhimento e conforto passar pelo toque gentil da Alta Sacerdotisa.
- Sabia que se recuperaria e estaria mais forte do que antes - disse ela, estudando a caçadora com atenção. - E agora me deixe apresentá-la ao meu amado. - Deu um
passo para o lado e o centauro veio para perto dela. - Midhir, meu amor, esta é Brighid Dhianna, a caçadora de MacCallan.
Brighid levou o punho cerrado ao peito e se abaixou graciosamente numa profunda reverência de respeito que os centauros exibiam ao sumo xamã.
- Estava ansioso para conhecê-la, Brighid Dhianna. - A voz de Midhir era profunda e poderosa, lembrando muito a de Cuchulainn, assim como as linhas fortes e bonitas
do rosto e os ombros largos. - A morte da sua mãe foi um choque, e a perda de sua irmã, uma tragédia. - Então se voltou para o filho e o puxou para seu abraço. -
Faz muito tempo que não o vejo, meu filho. - Sorriu com tristeza para Cuchulainn. - Sua perda também foi grande. Sofri com sua dor e a fragmentação da sua alma -
e exulto agora que está inteiro novamente.
- Tem que agradecer a Brighid por isso - disse Cuchulainn, depois de retribuir o abraço caloroso do pai.
- Acho que antes de tudo terminar todos nós estaremos muito gratos a essa jovem caçadora - disse Midhir.
Brighid pensou que tudo terminar soava perturbadoramente fatídico.
- Que notícias tem da manada Dhianna? - perguntou Cuchulainn.
- Não são boas. Não soube de nada.
Elphame ofegou surpresa.
- Nada, papai?
O sumo xamã meneou a cabeça, o rosto tão soturno quanto a voz profunda: - Os Dhianna cortaram as linhas de comércio com Partholon, assim como as manadas Ulstan e
Medbhia. Sei que se reuniram bem na parte sudoeste da planície.
- As terras de inverno dos Dhianna.
- Sim, e não consigo notícias das atividades deles. Os sumos xamãs das manadas aparentemente se uniram e estão gastando um bocado de poder para manter suas atividades
secretas, embora não seja necessária muita conjectura para concluir que devem estar, no mínimo, se armando contra forasteiros. Tudo o que recebo do Outro Mundo são
imagens desconexas de raiva, morte, paranoia - tudo estranhamente envolto em fumaça e numa luz confusa na cor de fogo. - O grande xamã meneou a cabeça e parecia
visivelmente perturbado. - Fumaça e sombras... Não consigo nada mais claro que um vislumbre ocasional de um centauro solitário. - Midhir se calou e os olhos se arregalaram
num súbito entendimento. - Ele é um guerreiro jovem e dourado, que me lembra muito você, Brighid.
- É meu irmão, Bregon. - Brighid sentiu um enjoo no estômago.
- Sim, agora percebo. Ele é o ímpeto por trás das ações deles. - Os olhos gentis buscaram os de Brighid. - O que sua mãe começou, ele está tentando terminar.
- Pode me dizer se ele se tornou sumo xamã? - perguntou Brighid.
- Não sinto esse poder nele. Ainda não. Mas o sangue xamã corre grosso nas veias da sua manada.
- Papai, o que os mensageiros centauros dizem sobre a atividade da manada? - perguntou Elphame.
- Isso é o mais perturbador - disse Etain, enroscando o braço no do marido. - Não temos nenhuma notícia. Nenhum deles retornou da Planície dos Centauros.
- Várias caçadoras também deixaram seus postos, evitando a mim ou qualquer um dos meus guerreiros - disse Midhir com raiva.
O que ele deixou de dizer permaneceu suspenso no ar ao redor deles. Um centauro não mentiria para o Sumo Xamã de Partholon. Não importava a aliança do centauro,
o laço de respeito por Midhir não permitiria tal coisa. Estava óbvio que os centauros que estavam se juntando à revolta de Bregon estavam deixando Partholon criteriosamente
para que não fossem confrontados pelo Sumo Xamã de todos os centauros. E o fato de nenhum dos leais mensageiros de Midhir ter retornado da Planície dos Centauros
significava que estavam sendo mantidos lá contra vontade. Ou que tinham sido mortos.
Centauro contra centauro... Centauro contra humano... Eram nesses pensamentos apavorantes que a mente tumultuada de Brighid nadava. Isso era responsabilidade dela.
Era uma centaura Dhianna. Com a morte da mãe, a liderança da manada pesava em seus ombros, e o peso disso parecia pressionar sua alma. Não importava agora que tivesse
ansiado, e depois escolhido, outro caminho na vida. Brighid engoliu o gosto amargo do destino que subiu grosso na garganta.
- Midhir, me ajudaria a viajar ao Outro Mundo para beber do Cálice de Epona e assim me tornar uma sumo xamã? - perguntou com dureza.
Trinta e Seis
- ELE NÃO PODE. - A voz clara de Etain foi uma fagulha que chiou no silêncio que se seguiu ao pedido de Brighid.
- O que quer dizer com ele não pode? - perguntou Cuchulainn. - Um sumo xamã sempre guia outro na busca para encontrar o Cálice de Epona.
- Devia ter prestado mais atenção aos seus professores quando tentaram ensiná-lo sobre o Outro Mundo, meu filho - disse Midhir, dissolvendo a dureza das palavras
com um rápido sorriso.
- Mairearad devia ter guiado Brighid na jornada ao Outro Mundo - disse Etain.
- Mas minha mãe está morta.
- Ela ainda pode guiá-la - disse Etain com tranquilidade.
- Não! Não aceito a orientação dela. Não seria sem um preço, que seria muito custoso - para minha alma e também para a manada Dhianna.
- O guia espiritual deve ser alguém intimamente ligado a você, por sangue ou casamento - explicou Midhir. - Embora eu seja o Sumo Xamã de Partholon, não posso usurpar
essa posição.
- Terei que encontrar o cálice por conta própria - disse ela devagar. Ao falar as palavras, sentiu um arrepio de desespero com a perspectiva da provação perigosa
e solitária diante dela. - Meu irmão é o único parente de sangue que me restou, e é a posição dele que assumirei se me tornar sumo xamã. Ele não me ajudaria a tomá-la
dele. - Isso é impossível, falou Brighid consigo mesma. Tornar-me uma sumo xamã é bem difícil. Sozinha, terei pouca chance de sucesso. Mas não tenho escolha, e devo
me acostumar a ser sozinha. Se eu conseguir, retornarei a uma vida de solidão.
- Então seu guia deve ser seu consorte - disse Cuchulainn.
Todos os olhos se voltaram para o guerreiro, mas a atenção dele estava concentrada em Brighid.
- Admito que, como meu pai já disse, não prestava atenção nas minhas lições sobre o Outro Mundo. Todos sabem que nunca quis lidar com esse reino, mas parece que
meu destino segue nessa direção. Tentei rejeitá-lo - mas não pode ser rejeitado. Até fugi dele - não serei tolo de fazer isso de novo. Não posso guiá-la, mas o que
posso fazer é lhe dar minha promessa de que não deixarei que siga esse caminho misterioso sozinha. Minha força será sua, se precisar. Meu braço da espada sempre
se erguerá para protegê-la. Talvez juntos possamos concluir essa busca e reclamar seu direito de nascença.
Brighid mal podia acreditar no que estava ouvindo. Será que ele não tinha entendido que...?
- Mas você não é meu consorte! - proferiu ela.
- Serei se me aceitar.
Brighid meneou a cabeça, imaginando se todos conseguiam ouvir as batidas aflitas do seu coração.
- Não precisa fazer isso só para me ajudar. Não estou com medo de viajar ao Outro Mundo sozinha - mentiu. - Um casamento não é algo que se faz para ajudar um amigo
em necessidade.
O sorriso de Cuchulainn era íntimo e perspicaz. Ele deu um passo para junto dela e tomou-lhe a mão.
- Temos sido amigos. Porém, minha bela caçadora, nos tornamos muito mais. Minha alma me diz que estou disposto a me arriscar num casamento com você. O que sua alma
lhe diz?
Brighid meneou a cabeça.
- O que minha alma diz não é importante se eu não puder me tornar sumo xamã. Pense, Cuchulainn! Se eu não puder me transformar, você estaria preso a alguém que não
pode ser realmente sua esposa.
A mão dele apertou a dela, e mesmo que a pergunta seguinte fosse dirigida a Etain, o olhar de Cuchulainn não deixou o de Brighid.
- Mãe, se meu pai perdesse a habilidade de se transformar e nunca pudesse ir até você sob a forma humana novamente, ainda seria esposa dele?
- Claro. Não é a forma do seu pai que me prende a ele - respondeu Etain com firmeza.
- Mas eles tiveram anos juntos - disse Brighid. - Tiveram filhos e compartilharam a vida e a cama por décadas.
- Estou disposto a apostar que conseguiremos também - disse Cuchulainn.
- Está disposto a apostar sua vida e seu futuro?
- Estou, porque estou disposto a fazer algo que não me permiti fazer até agora - vou escutar meu próprio espírito. Estou cansado de fugir do meu destino. - Encolheu
os ombros e sorriu para ela. - Também acredito que você será uma excelente sumo xamã. Então, Brighid Dhianna, o que sua alma diz?
Ela olhou naqueles olhos turquesa e se sentiu perdida - e munida.
- Me diz que isso é um sonho impossível, mas um sonho que não quero que acabe.
O sorriso de Cuchulainn estava repleto de promessas. Beijou-a rápido e depois se virou, ficando num dos joelhos diante de Elphame.
- Elphame, como chefe do clã MacCallan peço sua permissão para tornar sua caçadora minha consorte. - Sorriu, e por um momento pareceu bastante o guerreiro libertino
de sua juventude. - Pediria permissão ao irmão dela, mas acredito que, considerando-se tudo, isso seria um tanto imprudente.
Em vez de retribuir o sorriso de Cuchulainn e automaticamente oferecer sua bênção, a expressão de Elphame ficou tensa e séria.
- Você mesmo disse, Cuchulainn. Evitou o Outro Mundo e o Reino dos Espíritos. Vai ajudar ou atrapalhar Brighid? Essa parceria guarda mais do que um vínculo vitalício.
Se este casamento for a escolha errada, toda Partholon sofrerá as ramificações. - Elphame olhou do irmão para a mãe. - Não posso dar minha permissão a Cuchulainn,
a menos que Epona aprove esta união. - Ela ignorou o resmungo de aborrecimento do irmão e também o afiado olhar questionador de Brighid, e continuou a suplicar a
Etain: - Pediria a bênção de Epona para eles? Se a Deusa a conceder, ficarei contente em dar minha permissão.
- Elphame, o que... - começou a dizer Cuchulainn, mas a mãe o interrompeu: - Você é uma chefe sábia e responsável, Elphame. Estou orgulhosa de você. - Etain chamou
com o dedo o filho carrancudo. - Venha. - E enquanto ele se colocava de pé, ela estendeu a mão para Brighid. - E você também, criança.
Sentindo o estômago apertar de nervoso, Brighid segurou a mão de Etain. Cuchulainn pegou a outra.
A Amada de Epona sorriu para eles.
- Vocês também devem se dar as mãos, para completar o círculo.
A carranca de Cuchulainn se suavizou quando entrelaçou os dedos com os de Brighid. Apertou-lhe a mão, que ela segurou com firmeza. Então a Alta Sacerdotisa ergueu
o rosto e invocou a presença da Deusa: Minha Epona, Deusa de estonteante beleza
para quem as estrelas são joias radiantes
e a terra teu sagrado monopólio,
tecelã de destinos
e protetora de tudo que é selvagem e livre.
Como sua escolhida, amada e tocada por ti,
pergunto agora se concedes
tua bênção sobre esta união.
Mostra-nos teu sinal, visão ou palavra,
tua sabedoria e tua vontade.
Imediatamente o ar acima do círculo formado pelas mãos dadas começou a rodopiar e cintilar. Duas formas se moldaram dento da claridade. Brighid ofegou ao reconhecer
o torso de Cuchulainn, nu e musculoso, brilhando com sua luz dourada. E então outro torso tomou forma na névoa de faíscas de diamante. Cintilava com uma brilhante
luz prateada. Era seu próprio corpo nu envolto pelos braços fortes de Cuchulainn. Quando os lábios das aparições se encontraram, Brighid foi preenchida pelo calor
líquido da paixão recém-despertada. Ouviu Cuchulainn respirar fundo, e soube que ele tinha sentido a união de seus espíritos também. Então o ar espiralou, girando
numa massa de faíscas luminosas antes que a visão se dissipasse com o som do vento encharcado de chuva.
Etain sorriu.
- Tem a bênção da Deusa, meu filho.
Cuchulainn ergueu e beijou com firmeza a mão de Brighid antes de quebrar o círculo, e voltou a se ajoelhar diante de Elphame.
- Agora, minha irmã, tenho sua permissão para tornar sua caçadora minha consorte?
Elphame sorriu para seu amado irmão.
- Com satisfação, Cuchulainn.
Cuchulainn ficou de pé e abraçou a irmã, erguendo-a e fazendo-a rir. Brighid ainda se sentia ruborizada pela visão hipnótica, e um bocado estupefata quando o Sumo
Xamã de Partholon e a Escolhida de Epona a parabenizaram calorosamente e lhe deram as boas-vindas à família.
- Mãe, nos daria a honra de conduzir nossa troca de votos? - perguntou Cuchulainn.
- Claro, meu querido. - Etain sorriu com carinho para o filho.
- Tem que ser hoje. - Brighid achou que a voz soou destoada e séria demais. Não que não quisesse celebrar, rir e se alegrar com a surpresa mágica e singular com
que Epona lhe presenteara, mas sua mente de caçadora estava bem ciente de que o caminho que ela e Cuchulainn deviam seguir seria difícil, e os rastros já estavam
ficando frios.
Cuchulainn voltou para junto dela e lhe tocou o rosto com gentileza.
- Então que seja hoje.
Brighid sorriu, grata por Cuchulainn parecer compreender - por não ficar contrariado com seus modos bruscos e nada românticos.
- E a pira de Niam precisa ser acesa - continuou Brighid.
- Sim, é como deve ser. Faremos do dia de hoje a celebração de uma vida que se encerra com honra e amor, e a do início de outra, enraizada no mesmo. É o ciclo da
Grande Deusa. A vida não pode existir sem a morte, uma não pode ser cumprida sem a outra - disse Etain com solenidade. - Mas, antes, vamos fazer nosso desjejum e
fortalecer nossos corpos para o dia que está por vir.
- Ao Grande Salão, então - disse Elphame.
O Grande Salão estava barulhento e lotado - quase transbordando com silhuetinhas aladas e o clã MacCallan. O ar estava espesso e doce com o cheiro do pão fresco
e do açúcar escuro e empelotado que as crianças já apreciavam acrescentar ao mingau matinal. Brighid parou à entrada arqueada. O salão parecia tão vivo, tão diferente
de como lhe parecera dois dias antes, quando a irmã dera seu último suspiro. Mas ainda podia ver Niam ali, caída sobre o banco longo e baixo para centauros, vomitando
sangue e dando seu aviso medonho.
Antes que as sombras do passado pudessem subjugá-la, uma criaturinha alada se destacou de uma mesa próxima e correu até ela.
- Brighid! - Embora o topo da cabeça não ultrapassasse seu peito equino, Liam a abraçou com uma força surpreendente.
Ela se curvou, bagunçou-lhe os cabelos, e lhe deu uns tapinhas nas costas.
- Ah, Brighid. - Liam inclinou a cabeça para olhar para ela. Os olhos estavam grandes e luminosos com as lágrimas que tentava bravamente conter. - Estava tão preocupado
com você! Queria vê-la, mas ninguém deixou.
- Estou bem agora. - Afagou a cabeça dele, pensando que os cabelos eram macios como a penugem de pato. - Só precisava descansar.
- Lamento por sua irmã. Curran e Nevin já começaram a nos contar histórias de como ela foi corajosa.
O coração de Brighid se apertou dolorosamente.
- Estão certos. Ela foi muito corajosa.
- Venha, Liam, pode se sentar conosco e contar tudo o que andou fazendo nos últimos dois dias. - Cuchulainn ergueu o menino sobre o lombo de Brighid, ganhando uma
olhada atravessada da prometida. Ele piscou para a caçadora, que bufou, e Liam se lançou numa explicação ofegante de todas as pegadas diferentes que tinha descoberto.
Conforme se encaminhava pelo Grande Salão até a mesa principal, Brighid foi detida várias vezes por palavras gentis e condolências sinceras. A primeira reação foi
de desconforto. Raramente acumulava tamanha atenção concentrada, mas ainda não estava na metade do salão quando se sentiu relaxar. Importavam-se com ela. Sua família,
o clã MacCallan, a rodeava com amor e preocupação. Brighid absorveu isso. Se lembraria daquilo para que mais tarde, quando estivesse longe dali, pudesse reviver
como era ser aceita e estar em paz.
Quando se juntaram a Lochlan e Ciara na mesa da chefe, Brighid ficou sentada bem quieta enquanto a vida se movia ao redor dela. Liam tagarelava sem cessar. Elphame
e Etain discutiam a cerimônia da lua cheia para qual faltavam alguns dias, e a Amada de Epona gentilmente incluiu Ciara na conversa. Cuchulainn estava conversando
com Lochlan sobre como expandir a caserna para as crianças, já que fora decidido que até se ter notícia de que o conflito com os centauros estava encerrado os neofomorianos
deveriam se abrigar dentro dos muros protetores do Castelo MacCallan.
Tudo era tão natural - tão normal. E Brighid não podia deixar de comparar aquilo com as refeições matinais que eram "normais" para ela antes de partir da Planície
dos Centauros. Mairearad Dhianna dispunha de uma mesa suntuosa, mas a qualidade da comida sempre empalidecia se comparada à intriga e os jogos de poder que cercavam
a sumo xamã. A mãe servia manipulação e agressão passiva como prato principal, e Brighid se lembrava claramente de como sempre ficava de guarda durante as refeições
quando a mãe estava presente. Quem seria o alvo de Mairearad? Seria um ataque aberto, ou seriam insinuações veladas e comentários aparentemente inofensivos que serviam
para cortar e destruir a vontade, a independência e a liberdade...
Brighid estava retornando a tudo aquilo. Pouco importaria que Mairearad tivesse partido. Depois de quase cinco décadas como Sumo Xamã dos Dhianna, seu fantasma não
abdicaria facilmente de seu domínio.
Sobressaltou-se um pouquinho quando Cuchulainn colocou a mão cálida na dela. Ele não interrompeu a conversa com Lochlan. Não fez qualquer encenação espalhafatosa
de intimidade com a orgulhosa caçadora. Ninguém sabia que as mãos deles estavam unidas e que o toque dele a aquecia.
O guerreiro a compreendia.
Como isso aconteceu? Parece que estou num mundo afastado dos meus primórdios, porém, de alguma forma, aqui, com este homem, encontrei meus verdadeiros lar e família.
Por favor, não me deixe perder isso, Epona.
Tinham encontrado um lugar bonito para a pira funerária de Niam. O enorme monte de lenha de pinheiro fora erguido numa nesga de terra situada na área mais ao sul
das terras do castelo. Sobressaía como um dedo esguio sobre o oceano torvelinhante lá embaixo, como se a pira de Niam devesse ser um facho para embarcações perdidas.
O corpo da centaura estava no topo do monte, e fora envolto numa pesada mortalha bordada com intricados nós de poder, como seria feito com o corpo de um guerreiro.
Brighid se aproximou da pira com Cuchulainn e Elphame a flanqueá-la. Etain, Midhir e Lochlan já estavam presentes, parados perto do monte. A Amada de Epona segurava
uma tocha flamejante numa das mãos. Como parente mais próxima de Niam, o acendimento da pira era responsabilidade de Brighid, mas em vez de tomar a tocha de Etain,
ela se virou para o grupo que se reunira ao redor deles. O clã MacCallan se estendia diante dela. Humanos e centauros, todos bem-vestidos, e a manhã morna e sem
nuvens estava viva com o lima brilhante e o azul-safira do tartã MacCallan. Espalhadas entre os membros do clã estavam as silhuetinhas aladas respeitosamente silenciosas
com seus olhos grandes focados na caçadora. Ela vasculhou a multidão até encontrar os gêmeos contadores de histórias. Quando falou, a voz estava forte e clara: -
O nome dela era Niam Dhianna. A beleza era seu escudo. Assim se manteve a salvo das manipulações e da intriga, escondendo-se até ser necessária. Só gostaria de ter
possuído sabedoria para ver além de seu ardil, e gostaria que seu corpo fosse tão forte quanto seu coração era valente. Peço que se lembrem dela comigo. Não deixem
que a história dela morra com seu corpo. - Nevin e Curran curvaram a cabeça em reconhecimento, e Brighid se calou, respirando fundo para se acalmar. Quando ergueu
novamente a cabeça, seus olhos encontraram facilmente a xamã alada. - Ciara, peço que fique junto de mim na pira da minha irmã.
A xamã pareceu surpresa, mas foi rápido para junto de Brighid.
- Sua afinidade é com o espírito do fogo, e você carrega consigo a centelha da Deusa Encarnada Terpsícore. Niam amava a beleza e a dança. Mas a escolhi para chamar
o espírito do fogo e libertar o corpo dela desta Terra não apenas por causa da beleza exterior que você e sua avó representam. Pelo pouco tempo que a conheço, aprendi
a apreciar sua habilidade de enxergar dentro da alma das pessoas. Se eu tivesse aprendido essa habilidade tão bem como você, talvez tivesse compreendido o valor
de Niam antes de perdê-la. Então peço que use o espírito das chamas para acender a pira da minha irmã.
- Eu aceito, Brighid Dhianna. Você me dá uma grande honra.
Em silêncio, o grupo se afastou com Brighid da pira, deixando a xamã alada sozinha. Ciara se virou para o sul, encarando a pira. Curvou a cabeça, obviamente se concentrando.
Então com a graça de uma dançarina, aproximou-se do monte com movimentos lentos e elegantes que fluíam suavemente como água sobre pedregulhos. O longo cabelo escuro
rodopiava ao redor dela, como se uma cortina se partindo para permitir acesso a outro reino. Enquanto falava, ela traçava padrões delicados com as mãos, acendendo
fagulhinhas brilhantes no ar ao redor: Ó Epona, eu te invoco,
Deusa de tudo que é selvagem e livre,
mas hoje é à formosa e nebulosa Deusa da Lua Decaída
a quem me dirijo.
Forte e pesarosa, Deusa dos Reinos Distantes,
esteja conosco neste momento de perda.
A voz da xamã alada era hipnótica - uma perfeita mistura de música e magia: Há tempo para a vida
e tempo para a morte.
Tua terra de verão é morna, agradável e bela,
com todos os males ausentes e a juventude renovada.
Jubiloso é caminhar com a Deusa nos seus campos de trevos.
Então nos permita exultar, pois Niam repousa no seio de Epona,
segura, feliz, repleta.
Ela dançava cada vez mais perto da pira. Erguendo as mãos acima da cabeça, as asas escuras começaram a se abrir, estendendo-se em volta dela como um véu vivo.
Ó espírito do fogo,
concede o alívio da dor.
Com tua chama purificadora,
cura aqueles que permanecem nesse reino,
apressa e purifica a alma desta
que nos é amada
no belo reino da nossa Deusa.
Eu te invoco...
Acenda-se!
Das palmas de Ciara choveram faíscas prateadas, colocando a pira em chamas com uma gloriosa luz branca que fez Brighid proteger os olhos por causa da luminosidade.
Exclamações de assombro soaram da multidão que observava o fogo arder alto e brilhante. Quando o corpo de Niam foi consumido, Brighid sentiu o calor reparador que
se irradiou da pira. Afastou o abatimento daquele lugar triste dentro de sua alma que andava tão escuro e frio desde que o corvo tinha berrado com ela usando a voz
da mãe agonizante.
Olhou para Cuchulainn. Ele tirou os olhos das chamas para encontrar os dela.
- Já honramos a morte. Está pronto para dar o próximo passo comigo e honrar a vida? - perguntou ela ao guerreiro.
- Já me basta de morte, minha bela caçadora. - Baixou a voz para que as palavras só chegassem aos ouvidos dela: - Estou mais do que pronto para honrar a vida.
A expressão tensa de Brighid suavizou um pouquinho.
- Obrigada, Cuchulainn. - Ela olhou para Etain, mas como de costume com a Amada de Epona, poucas palavras bastavam para que entendesse.
- Querem que seja aqui e agora - disse Etain.
- Queremos - assentiu Brighid.
- Então que assim seja. - Etain se adiantou, substituindo Ciara diante do fogo ardente. No instante em que a Amada de Epona ergueu uma das mãos esguias, a multidão
ficou absolutamente silenciosa.
- Hoje a morte foi purificada com chamas e orações. Agora celebraremos o ciclo completo da vida através da pureza desse sagrado ritual de casamento. Cuchulainn e
Brighid, por favor, se apresentem.
A multidão se agitou num farfalhar surpreso quando o guerreiro e a caçadora se juntaram a Etain.
Etain sorriu. Falou diretamente aos dois, mas projetou a voz para que se espalhasse pelas terras do castelo: - Vocês começam uma longa jornada hoje. De certa forma,
é uma jornada familiar e antiga - a união de duas pessoas que se amam e se comprometem um ao outro. E, de certa forma, vocês começam a busca por algo totalmente
novo e único - um amor que se constrói mais em espírito que em corpo, que depende tanto da coragem quanto da cooperação do Outro Mundo para a consumação. - O sorriso
aumentou e aqueceu. - Já sabem que contam com a bênção de Epona. Saibam que possuem a minha também.
Etain assentiu ao filho, que se virou para encarar Brighid. Cuchulainn estendeu as mãos para ela, que sem hesitação pressionou as palmas nas dele. Os olhares se
encontraram e sustentaram.
- Eu, Cuchulainn MacCallan, aceito você, Brighid Dhianna, em casamento neste dia. Admito protegê-la do fogo mesmo que o sol desabe, da água mesmo que o mar se enfureça,
e da terra mesmo que estremeça em desordem. E honrarei seu nome como se fosse o meu. - A voz profunda soou forte e verdadeira.
- Eu, Brighid Dhianna, aceito você, Cuchulainn MacCallan, em casamento neste dia - começou a dizer Brighid, interrogando-se do fato de sua voz soar tão calma quando
tudo dentro dela tremia. - Admito que nem fogo ou chama nos afastará, nem lago ou mar nos afogará, e que nenhuma montanha nos separará. E honrarei seu nome como
se fosse o meu.
- E assim foi dito - disse Cuchulainn.
- E assim será feito - falou Brighid as palavras que completavam o ritual.
Cuchulainn a puxou com delicadeza pelas mãos para que ela ficasse um passo mais perto dele. Antes que os lábios se encontrassem, ele murmurou: - Agora estamos realmente
nessa juntos, minha bela caçadora.
A aclamação jovial que ecoou quando se beijaram fez com que se assustassem e se separassem. Todas as crianças aladas estavam gritando, batendo palmas e pulando com
muito farfalhar de asas e acenos de mão.
- Crianças... - suspirou Brighid e meneou a cabeça, embora não pudesse evitar o sorriso no rosto. - Nunca conseguem ficar quietas.
- Não é verdade? - disse Cuchulainn, unindo a mão à dela outra vez.
Trinta e Sete
O CLÃ MACCALLAN definitivamente não estava tão entusiasmado com relação ao casamento quanto as crianças. Não foram rudes. Não se afastaram do novo casal - deram
as felicitações devidas. Faziam os sons e movimentos certos, mas Brighid notou que poucos membros do clã realmente a olhavam nos olhos. Era a única fêmea da espécie
entre os MacCallan, mas vários centauros tinham se unido ao clã. Nenhum deles falou com ela, embora tivesse notado que Cuchulainn se aproximou de cada um, que felicitaram
o guerreiro - mas com pouco entusiasmo.
E assim começa. Acostume-se. Vai ser muito pior com a manada.
Estremeceu, sem querer pensar tão adiante assim. A noite que estava por vir já era bem amedrontadora.
Deixou-se levar para longe do grupinho que se reuniu ao redor de Cuchulainn: a irmã, os pais e Lochlan. Foi bem fácil escapulir. Afinal, poucos humanos estavam falando
com ela. Andando com passos pesados, foi se postar diante da pira ainda ardente da irmã.
Deusa, no que fui me meter?
- Está muito quieta - comentou Cuchulainn.
Brighid lhe deu uma olhada culpada, sem saber o que dizer - ou o que não dizer.
- Me conte - pediu ele. - Sempre fomos honestos um com o outro. - O sorriso foi rápido e encantador. - Mesmo quando não gostávamos muito um do outro.
- A única razão para não gostar de você era porque você era arrogante demais - contou-lhe Brighid.
- Eu? - Cuchulainn apontou o peito numa inocência zombeteira. - Acho que me confundiu com minha irmã.
Brighid bufou, mas sorriu para ele.
O guerreiro, que era agora seu marido, tomou-lhe a mão.
- Me conte o que está pensando.
- Estou imaginando no que me meti - revelou ela.
Cuchulainn riu.
- Sei exatamente o que quer dizer.
Ela franziu o cenho.
- Lamenta o que fizemos?
A risada imediatamente cessou.
- Não, Brighid. Não lamento.
Ela suspirou e olhou para as mãos dadas de ambos.
- O clã não aprova.
- Acho que o clã está mais surpreso do que expressando desaprovação. Fizemos algo que nunca foi feito antes. O único centauro e humano que já se casaram foram o
Sumo Xamã e a Amada de Epona. As pessoas - e os centauros - precisarão de tempo para se acostumarem conosco.
- Caso um dia se acostumem.
- Ficaria muito aborrecida se algumas pessoas nunca nos aprovassem?
- Sim. Mais do que imaginei. Comecei a pensar no Castelo MacCallan como meu lar, e descobri que me aborrece muito pensar em ser rejeitada novamente.
- Só estão surpresos, talvez até chocados. Acho que acabarão por se acostumar conosco. Vai ver.
- Isso é parte do problema - disse ela. - Não terei tempo para ver.
- Devemos partir em breve?
Brighid respirou fundo.
- Hoje.
Cuchulainn abriu a boca, depois a fechou. Ela o viu cerrar o queixo, mas em vez de discutir, ele apenas assentiu.
- Eu preciso - nós precisamos - corrigiu ela diante do olhar incisivo de Cuchulainn. - Não sei o quanto você sabe sobre a busca pelo Cálice do Sumo Xamã... - Brighid
se calou. Cuchulainn parecia desconfortável. Ele correu os dedos pelo cabelo e deu um curto bufo de irritação.
- Não sei nada sobre isso. Durante toda a vida me concentrei em dominar coisas que pudesse ver... sentir... vencer com a força do meu corpo ou da minha espada. É
uma frustrante ironia que agora toda minha árdua perícia pareça não ter serventia nenhuma.
- Exceto por compreender os espíritos dos animais, eu também evitei o Outro Mundo. Assim como o resgate de alma, sei pouco mais do que você sobre os assuntos do
reino espiritual. O Outro Mundo sempre me significou minha mãe - e passei a vida evitando o domínio dela, então o evitei também. Mas sei um pouco sobre a Busca do
Sumo Xamã porque ela pretendia que eu bebesse do cálice. Ela me instruiu, provavelmente pensando que poderia me tentar com a sedução do poder. Mas fracassou. Nunca
tocaria o cálice segundo os termos da minha mãe.
- Vai beber do cálice, Brighid. Mas será segundo seus próprios termos - disse Cuchulainn.
O olhar de Brighid voltou para a pira funerária da irmã.
- Usarei o que minha mãe me contou, mas farei como no resgate da sua alma - tentarei pensar que isso é uma caçada.
- Vamos rastrear o Cálice?
- Tentaremos - disse ela. - Mas não podemos começar daqui. A Busca do Sumo Xamã é três terços espírito, um terço corpo. Devemos nos afastar do castelo para ficarmos
fisicamente separados deste mundo e dos problemas daqueles que o povoam: homens, centauros e fomorianos, sejam novos ou não. Assim que estivermos mais isolados,
entrar no Outro Mundo será... - os lábios se retorceram no que ela sabia ser a paródia de um sorriso enquanto encarava a pilha de lenha de pinheiro queimada - ...
bom, não direi que será mais fácil, mas ao menos se nos separarmos de tudo o Outro Mundo talvez nos fique mais disponível.
- Acho que faz sentido - disse Cuchulainn. - E quer começar hoje?
- Não quero! - berrou ela, depois tomou maior controle das emoções. - Não quero - repetiu com mais calma. - Mas não consigo pensar em nada senão em acompanhar a
maré dos eventos até o final, e me parece que a maré está vindo numa inundação iminente. Durante todo o tempo que minha mãe esteve ferida e agonizando, meu irmão
deve ter procurado pelo cálice, provavelmente com certo auxílio e orientação dela. Ele conta com muitos dias de avanço, e com a ajuda de uma sumo xamã. Temos que
alcançá-lo.
- Também temos a bênção de Epona. Duvido que ele tenha - disse Cuchulainn.
- Ter a bênção da Deusa não significa que receberei o cálice antes de Bregon, isso se eu o receber.
- Temos que alcançá-lo - concordou Cuchulainn com dureza. - Partimos hoje.
- Cuchulainn - disse ela quando ele começou a se afastar, detendo-o. - Se houvesse outra maneira, sabe que eu a acataria. Este lugar... este clã... tem sido mais
do que um lar na minha vida.
- E sempre será um lar para nós. Elphame vai garantir isso.
- Mas não poderei viver aqui, não se eu me tornar a Sumo Xamã dos Dhianna. Terei que ficar com a manada, ao menos até as coisas se assentarem. E mesmo depois. Uma
sumo xamã não deixa a manada por muito tempo.
- Sabia disso quando me casei com você, Brighid - disse Cuchulainn.
- E está disposto a deixar seu lar por mim?
- Não penso nisso como deixar meu lar por você. Penso nisso como construir um segundo lar com você. - Ele sorriu e levou-lhe a mão aos lábios. - E retornaremos ao
Castelo MacCallan, nem que seja para deixar nossos filhos brincarem com os primos.
Brighid sentiu uma excitação nervosa com essas palavras.
- Você é seguro demais de si mesmo.
Cuchulainn sorriu.
- Sou mesmo, mas sou ainda mais seguro de você, minha bela caçadora.
Nos olhos dele, Brighid viu a verdade nas palavras ditas. Podia ficar dependente da confiança, fé e honestidade dele. Antes que pudesse parar para se convencer a
desistir, deu-lhe um beijo rápido, sendo recompensada com seu sorriso radiante.
- Não fique tão convencido. Farei com que conte a El que estamos de partida - disse Brighid, tentando esconder como o toque dele a deixava ofegante.
O sorriso de Cuchulainn não titubeou.
- Excelente ideia. E enquanto faço isso, vá contando o mesmo a Liam. - Ele lhe beijou a mão outra vez, então saiu andando na direção da irmã.
Brighid vasculhou o terreno do castelo. Liam estava ao lado do artífice Danann, conversando com exclamações animadas com o velho e paciente centauro.
- Maldição... - murmurou. Endireitando os ombros, encaminhou-se até o menino. Acabaria logo com isso. Rápido. Não havia razão para adiar.
- ... E então vi a mancha vermelha brilhante que era cheia de raiva e soube que era o javali, e Brighid me contou que eu tinha acertado que era mesmo um javali porque
cheirava a lama e raiva, e então ela... - Ele interrompeu o recital interminável quando viu sua caçadora. - Brighid! Brighid! Eu estava contando ao Danann sobre
o javali e como rastreei o cheiro dele, e ele falou que eu fiz mesmo um bom trabalho, e então eu estava dizendo que...
A mão erguida de Brighid encerrou a tagarelice, graças à Deusa.
- Com licença, Danann, mas preciso conversar em particular com meu aprendiz.
O velho centauro sorriu com indulgência para o menino.
- Eu me curvo à sua mestra, criança. - Então voltou o sorriso para Brighid. - E ainda tenho que felicitá-la, caçadora. Cuchulainn é um guerreiro poderoso e um bom
homem. Meu desejo é que vocês dois tenham muitos anos de felicidade juntos.
- O-obrigada! - gaguejou Brighid, pega de surpresa pela gentileza do velho artífice.
Ele se curvou respeitosamente e a deixou sozinha com o menino.
- Estou tão contente que tenha se casado com Cuchulainn! - chilreou Liam. - Ele é muito forte e honrado, e acho que pode ser quase tão bom no arco quanto você.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Quase tão bom no arco quanto eu?
Liam sorriu com travessura.
- Bom, quase. Mas ninguém é tão bom quanto você, mestra!
Ele era simplesmente adorável. Pela Deusa, não queria deixar o menino! Queria ainda menos magoá-lo.
- Um dia você será tão bom quanto eu, Liam.
O rosto do menino se iluminou de alegria.
- Acha mesmo?
- Acho - afirmou solenemente. - Mas, antes, você tem muito a aprender, e muitas dificuldades a enfrentar.
- Vou me esforçar. Eu prometo.
- Sei que vai, Liam. Já estou orgulhosa da caçadora que se tornou. - Enquanto o menino saltitava e sorria com o elogio, Brighid percebeu que não eram palavras vazias.
O menino possuía um dom. Não, óbvio que não era um centauro, mas se queria se intitular uma caçadora, que mal havia nisso? Podia aprender as habilidades da caça.
Ficaria orgulhosa de reclamar como sua uma criança tão corajosa e leal.
Mas não estava ali para elogiá-lo. Estava ali para contar que estava de partida.
- Liam, você sabe que minha irmã morreu me trazendo notícias.
Ele cessou com os pulinhos diante do tom sério de Brighid e assentiu: - Sim, sei disso.
- A notícia que ela trouxe não era boa. Minha mãe está morta.
- Oh! Lamento, Brighid - disse o menino, piscando depressa os olhos.
Ah, Deusa! Por favor, nada de choro, pensou, e prosseguiu apressada: - A morte da minha mãe causou vários problemas na minha manada. Sou a filha mais velha, e minha
mãe era nossa sumo xamã. Sabe o que isso significa?
Liam enrugou a testa, pensando.
- Que deveria ser a próxima sumo xamã?
- Sim.
- Mas não pode! Você é uma caçadora!
- Eu sei. Nunca quis ser sumo xamã. Foi por isso que deixei minha manada. Nunca quis ser nada além de caçadora. - Brighid sorriu com carinho. - Assim como você.
Mas às vezes não temos exatamente o que queremos.
Liam começou a balançar a cabeça de um lado para outro, e Brighid se curvou para abarcar aqueles ombrinhos com as mãos.
- Tenho que ir à Planície dos Centauros e colocar as coisas em ordem. Tenho que assumir o lugar da minha mãe, senão coisas terríveis vão acontecer.
- Vou com você!
Brighid apertou os ombros dele, sentindo o corpinho tremendo sob suas mãos.
- Não pode.
- Mas não quero ficar longe de você - murmurou ele, tentando desesperadamente não chorar.
Brighid sentiu o peito ficar quente e pesado. Não era mãe, não sabia o que dizer para minimizar a mágoa. Nunca tinha sido confortada pela própria mãe. Como poderia
lidar com isso? Seria melhor se agisse de forma sucinta, ou zangada. Talvez assim Liam não ficasse tão triste sem ela.
Não. Aquilo soava com o que Mairearad Dhianna faria com uma criança: usar a raiva em vez de enfrentar a dor do amor. Brighid não seria como a mãe. Não repetiria
os erros dela.
Tocou o rosto do menino com carinho.
- Também não quero ficar longe de você, Liam. E faço agora uma promessa. Quando eu colocar a manada Dhianna em ordem, mando buscá-lo. Sempre terá um lar comigo.
Uma lagrimazinha escorreu e correu pela face dele.
- Mas então o que faço até lá?
- Se sua mestra permitir, ficaríamos honrados com sua companhia no Templo de Epona - disse Etain.
Brighid ergueu os olhos e viu Etain e Midhir se aproximarem. A Deusa Encarnada se agachou ao lado do menino e passou a mão macia pelo rosto, secando-lhe a lágrima.
- Temos uma caçadora lá também - disse Etain.
- Mas talvez ela não ache que eu possa ser caçadora. Talvez pense que sou apenas um menino com asas - disse Liam, mordendo o lábio ao tentar conter o choro.
- Você é aprendiz da caçadora de MacCallan. - A voz profunda de Midhir retumbou acima do menino. - Se alguém questionar seu direito a seguir o caminho de caçadora,
terá que questionar a mim.
Liam encarou o imponente centauro, os olhos arregalados dizendo claramente que duvidava que alguém sequer ousasse questionar Midhir. Então seu olhar procurou Brighid
outra vez.
- Farei o que minha mestra quiser que eu faça - respondeu ele, e a voz só tremeu um pouquinho.
- Acho que ficar no Templo de Epona é uma ideia excelente - disse Brighid. - Moira, a caçadora-chefe de Partholon, está lá. - Brighid olhou Midhir de relance, que
assentiu encorajador. - Garanto que ela vai ajudá-lo a estudar rastreamento até eu chamá-lo. - Então Brighid bagunçou os cabelos do menino. - E lembre-se, o Templo
de Epona faz fronteira com a Planície dos Centauros.
- Então não ficaremos muito longe?
- Não. Não ficaremos muito longe.
Brighid apertou com firmeza a mão do menino, e juntos ele começaram a retornar ao castelo.
Trinta e Oito
BRIGHID QUERIA PEGAR a estrada antes do meio-dia, mas o sol estava começando seu caminho pela parte oeste do céu quando finalmente deixaram o Castelo MacCallan.
Tomaram a estrada larga e recém-restaurada que levava do portão frontal a Loth Tor, a aldeiazinha aninhada na base do platô. Ela e Cuchulainn a princípio falaram
pouco. Brighid estabeleceu o ritmo. Cuchulainn cavalgava ao lado dela em seu grande capão, guiando uma montaria extra, que substituiria seu cavalo quando cansasse,
o que inevitavelmente aconteceria. Nenhum cavalo normal manteria o ritmo com a caçadora por muito tempo. E a estrada que tinham iniciado seria longa e cansativa.
Cuchulainn deixou Brighid seguir um pouquinho à frente, embora mantivesse o capão bem próximo da centaura. Tinha sido difícil deixar o Castelo MacCallan. Não como
da última vez, quando estava despedaçado por causa da morte de Brenna de tal modo que só seguia os movimentos da vida. Era uma ironia que dessa vez sua alma estivesse
curada e que fosse recém-casado, mas a partida fora muito mais torturante. A irmã estava estoica. Não houve choradeira. El não tentou convencê-los a ficar mais uma
noite - compreendia a necessidade de se apressarem. Mas nos olhos dela Cuchulainn tinha visto a tristeza que perdê-lo novamente tão cedo causava. Compreendia aquilo;
sentia o mesmo. Etain tinha sido, claro, amorosa e lhes dera a bênção de Epona. Fora ideia de seu pai levar o cavalo extra para que Brighid não tivesse que reduzir
o passo. Também tinha sugerido o destino inicial - os Outeiros Azuis.
- Tem razão! Não teria pensado nisso, mas é uma entrada física natural para o Mundo Inferior - dissera Brighid, com mais animação do que demonstrara desde que tinham
se separado na pira da irmã.
O pai dele tinha assentido e dado nela o que Cuchulainn chamava de olhada xamã - uma olhada séria e também gentil.
- Mas tome cuidado, Brighid. Não vai encontrar o cálice no Mundo Inferior. Estará num nível superior do reino espiritual.
- Mas todos os reinos espirituais estão interligados - dissera a caçadora.
Midhir assentira novamente.
- Estão. Só lembre que... - A voz sumira e Midhir suspirara frustrado ao conter o impulso de auxiliar a centaura. - Não devo dizer mais nada, apesar de querer lhe
dar mais orientação.
- Compreendo - logo lhe assegurara Brighid. - Eu... - Ela hesitou um momento antes de acrescentar: - Cuchulainn e eu devemos descobrir nosso próprio caminho. Mas
isso ajuda muito. Nos dá uma direção clara na qual viajar, em vez de apenas rumarmos para a planície e rezarmos para de alguma forma encontrar o cálice ao longo
do caminho. Eu agradeço.
Cuchulainn franziu a testa ao pensar novamente na partida deles. Era dolorosamente óbvio que Brighid estava mantendo as emoções sob forte controle. Ela e a irmã
só tinham sussurrado algumas poucas palavras de despedida uma à outra e se abraçado. Brighid mal falara com Etain. Mas tinha visto o olhar sofrido no belo rosto
da esposa quando finalmente saíram do castelo. O corpo geralmente gracioso se movia com rigidez, como se os cascos estivessem atolados em lama.
Passaram pela aldeiazinha de Loth Tor, mal hesitando para retribuírem as saudações dadas, e então a caçadora entrou num galope vertiginoso que obrigou Cuchulainn
a se firmar bem na sela e se concentrar em persuadir o capão a acompanhar. Aborrecido, percebeu que Elphame estava certa ao insistir para que Fand fosse deixada
no Castelo MacCallan. Sentiria falta da filhote. Ela se tornara parte dele nas últimas luas. A presença dela era acolhedora e familiar, mas a loba tinha se afeiçoado
bastante às crianças híbridas, especialmente à menininha Kyna, então Cuchulainn estava bem seguro de que mesmo depois que a desamarrassem a filhote uivante permaneceria
no castelo. Ao menos esperava que ela não tentasse segui-los. Fand não os alcançaria - ou se alcançasse, não havia como a jovem loba manter o ritmo cansativo que
a caçadora estava impondo. Era um passo que deveria cortar o tempo de chegada aos Outeiros Azuis em pelo menos um dia inteiro. Também era um ritmo que não possibilitava
conversa, e Cuchulainn imaginava se isso não seria em parte o motivo para Brighid o ter escolhido.
Tinha se casado com ela. Era sua esposa - sua consorte. Se tivessem mantido a cerimônia particular, apenas entre os dois, e simplesmente pronunciassem as palavras
perante Epona, a união seria legalmente válida pelo prazo de um ano. Mas ele rejeitou essa condição quando pediu que o ritual fosse testemunhado por sua mãe. Casamentos
presididos pela Alta Sacerdotisa de Partholon eram uniões vitalícias. Claro que duas pessoas não eram obrigadas a ficar juntas caso uma delas, ou ambas, desejasse
realmente se separar do outro, mas o rompimento do compromisso vitalício era raro.
Observou a bela caçadora aumentando o passo. No que Brighid estava pensando? Só a ideia de perder a irmã e a mãe no espaço de um dia o arrepiava até os ossos. Deveria
tentar conversar com ela sobre isso? Pensou em como se sentiu depois que Brenna foi morta. Tinha se recusado a falar dela. Tinha fugido das recordações dela. Mas
também estivera dilacerado... despedaçado. Brighid estava inteira. Então não precisaria desabafar? Recordar?
Seus pensamentos tinham eclipsado tanto a concentração que a mente de Cuchulainn não registrou o escurecer do céu ou a redução no ritmo de Brighid até o capão trocar
o galope inalterável por um trote chacoalhante. Reorientando-se, Cuchulainn instigou seu grande cavalo a emparelhar com a esposa.
Brighid o olhou de relance.
- Já está quase escuro. Pensei que poderíamos começar a procurar um lugar para acampar. - Ela hesitou, sem se fixar no olhar questionador de Cuchulainn. - Ou podemos
simplesmente reduzir nosso ritmo e seguir em frente. A estrada é ampla e bem demarcada. Talvez encontremos uma aldeia. Vim da Planície dos Centauros por esta estrada,
mas minha viagem foi... - Os olhos dela se estreitaram numa recordação dolorosa. Não se permitira pensar na fuga acelerada de sua antiga vida. Direcionara-se rumo
à promessa de um futuro e não deixou nada interferir no seu caminho. Agora estava seguindo para um novo futuro, só que esse estava mais cheio de dor e perigo do
que de promessa e contentamento.
- Tudo bem, Brighid.
A voz profunda de Cuchulainn soava tão normal, tão corriqueira, tão contraditória ao que estava acontecendo dentro da cabeça dela. Ele era apenas um homem, falando
com uma mulher. Não um guerreiro humano num casamento bizarro com uma centaura caçadora. Não um homem acompanhando sua companheira numa busca fútil que poderia carregá-los
às cegas para águas mais profundas caso fosse bem-sucedida, ou que os deixaria encalhados em frangalhos nas águas rasas do fracasso caso malsucedida. Era apenas
um homem - o homem que se importava com ela e a aceitava. Isso a acalmou e ancorou suas emoções aflitivas. Talvez não devesse - talvez estivesse sendo tola -, mas
aquilo ajudava.
- Brighid - repetiu ele. - Podemos continuar viajando. A lua está quase cheia e vai ser fácil seguir pela estrada depois que ela se erguer. Mas o dia foi longo.
- Ele sorriu. - Honestamente, prefiro acampar e recomeçar descansado ao amanhecer.
Ela retribuiu o sorriso com gratidão, sentindo o gelo que estava mantendo suas emoções contidas durante todo o dia começar a derreter.
- Sabe se existe alguma aldeia nos arredores?
- Em grande parte, não existe nada até o Castelo McNamara que não seja vinhedos e florestas. - Cuchulainn ergueu o queixo para a direita da estrada. - Podemos subir
até o topo do platô. Ainda deve ser relvado lá em cima, um lugar decente para acampar.
- Vá na frente - disse Brighid, aliviada por poder segui-lo descuidadamente pelo menos um pouquinho.
Desacelerando consideravelmente, Cuchulainn guiou o capão por uma brecha nas árvores que delimitavam a estrada. Quase imediatamente o terreno começou a inclinar,
angulando cada vez mais para cima até finalmente saírem da dispersão de carvalhos e pinheiros no platô que por fim abria espaço para penhascos imponentes sobre o
Mar de B'an. O sol já tinha se posto, mas o horizonte no oceano ainda estava manchado com as cores queimadas deixadas pelo sol poente. Por um momento apenas ficaram
parados observando o fim de outro dia. Então Cuchulainn desmontou e jogou as rédeas da montaria extra para Brighid.
- Eu recolho lenha se você desempacotar os suprimentos. Acho que não precisamos erguer a tenda hoje. O céu parece claro e está bem quente.
Antes que Brighid pudesse responder, Cuchulainn e o capão amarelo desapareceram em meio às árvores. Ao menos desempacotar e armar um acampamento temporário a manteria
ocupada. Ela estava faminta. Quando tinha comido pela última vez? Naquela manhã, antes de acender a pira de Niam e se casar com Cuchulainn. Tudo aquilo tinha acontecido
só naquela manhã?
Ah, Deusa. Brighid parou de repente no meio do ato de desatar um pacote. Esta é a noite do meu casamento. Os pensamentos deixaram seus dedos lentos e desajeitados.
Respire, só respire. Ela soltou o último pacote e deu na égua um afago rápido e superficial antes de amarrá-la, depois começou a puxar os suprimentos dos pacotes,
agradecendo Etain em silêncio quando descobriu os generosos odres de saboroso vinho tinto.
Estava tomando um longo gole de um dos odres quando Cuchulainn largou um carregamento de galhos secos perto dela.
- Já fiz você começar a beber, e ainda nem temos um dia inteiro de casados - disse ele, sorrindo maroto.
- Só estou com sede - disse ela.
A risada dele foi quase um rosnado.
- Quer um pouco? - perguntou ela.
- Com certeza - assim que eu tirar a sela do capão e acomodá-lo. Acho que estou com sede também. - Sorriu para ela e conduziu o capão até o local onde a égua já
estava pastando.
Nervosa e desconfortável, Brighid se ocupou montando a fogueira. Quando Cuchulainn voltou, ela já estava com fatias grossas de carne de porco fritando e pão e queijo
dispostos sobre um cobertor.
- Pela Deusa, o cheiro é bom!
Brighid se obrigou a relaxar e sorrir para ele.
- Não acreditaria nos mantimentos embrulhados nesses pacotes. Não precisarei caçar por dias.
- Coisa da Wynne - disse Cuchulainn.
- Não o vinho. - Brighid lhe jogou o odre. - Isso parece ser toque da sua mãe.
Cuchulainn destampou o odre e bebeu. Então suspirou de prazer: - Que Epona abençoe minha mãe pelo amor ao bom vinho.
- E sua disposição em compartilhar.
Cuchulainn grunhiu em concordância antes de tomar outro gole. Então suspirou e se reclinou perto da caçadora. Em pouco tempo, ambos estavam colocando carne de porco
quente no pão e apreciando o sabor acentuado do queijo envelhecido. Cuchulainn estava quase terminando sua terceira porção, sentindo-se relaxado e repleto, quando
deu uma meia-risada de recordação.
- Esses sanduíches sempre me lembram El.
- El? Por quê? - perguntou Brighid, limpando a boca com outro longo gole no vinho delicioso.
- Bom, ela era uma solitária - gostava de sair sozinha, especialmente nos anos antes de estudar no Templo da Musa. Mamãe não a restringia, deixava que explorasse
o mundo, até permitiu que chegasse às margens do Pântano Ufasach, sob uma única condição.
- Que você a acompanhasse?
Cuchulainn sorriu.
- Adivinhou. - Ele ergueu o pequeno pedaço que era tudo o que sobrava de seu último sanduíche. - Este era o favorito dela sempre que acampávamos. Acho que foi atrás
de Wynne para garantir que fosse incluído nos nossos suprimentos.
- Gentileza dela pensar nisso - disse Brighid.
- Ela é assim. Lembra-se dos pequenos detalhes - sempre - disse Cuchulainn, a voz e o rosto suavizando ao pensar na irmã.
- Então vocês sempre foram próximos? Mesmo quando pequenos?
Cuchulainn assentiu:
- Sempre. Éramos apenas nós até os gêmeos nascerem, quando eu estava com 6 anos e Elphame, 7. - Ele encolheu os ombros. - E eles tinham um ao outro.
- Como você e El tinham um ao outro - disse Brighid.
- Sim. - O sorriso não alcançou a tristeza nos olhos.
- Lamento ter afastado você dela - disse Brighid, devagar.
- Não me afastou de lugar nenhum. Me casei com você por vontade própria. Quero que jamais pense o contrário. E isso... - ele abarcou distraidamente tudo ao redor
- ... não é sua culpa. Nem você nem eu queríamos deixar o Castelo MacCallan, mas era a coisa certa a ser feita. Era o que nós precisávamos fazer.
Brighid quase deixou escapar que era o que ela precisava fazer, não ele, mas a disposição teimosa do queixo dele fez com que ela bebericasse o odre quase esgotado
e ficasse quieta.
- Então me conte como era quando você era pequena - pediu Cuchulainn, acenando para que ela lhe passasse o vinho. - Meu palpite é de que você era bem parecida com
El - gostava de sair por aí sozinha.
Em vez de responder imediatamente, Brighid alimentou o fogo com mais galhos e ambos ficaram em silêncio enquanto a madeira estourava e estalava.
- Brighid. - Ele falou o nome e esperou que ela o fitasse. - Você me fez conversar quando eu só queria rastejar para um buraco escuro e lamber minhas feridas. Não
me deixou desistir da vida.
- E agora é a sua vez de fazer o mesmo por mim?
- Não sei. Talvez. Agora só gostaria que minha esposa fosse capaz de conversar tranquilamente comigo sobre o passado.
Esposa... A palavra pesava no ar noturno. Brighid tomou outro longo gole de vinho, acolhendo seu calor e a capacidade de afrouxar as amarras que mantinham seu passado
cuidadosamente no lugar.
- É difícil - começou com hesitação. - Não estou acostumada a falar nisso.
- Bom, leve o tempo que quiser. Temos a noite inteira. - Cuchulainn enfiou o resto do pão com carne na boca e ajeitou a sela que estava usando como encosto, aproveitando
o mesmo movimento para ficar mais perto de Brighid. Parecendo confortável e acomodado, recostou-se, ficando a pouca distância dela. - Somos apenas nós. Fand nem
está aqui para ouvir.
- Ou aborrecer latindo - disse Brighid.
- Lobos não latem. Eles uivam.
- Seja lá como se chame, a filhote é incômoda.
- Uma das razões pelas quais eu a deixei no castelo. E as crianças gostam dela. Vão mantê-la ocupada.
- Elas são igualmente incômodas.
Cuchulainn riu.
- Nem vou pensar em negar isso.
Brighid sorriu, capturada pela risada contagiante.
- Assim como a filhote, elas nunca param de fazer barulho.
O guerreiro deu uma risada e se alongou.
- Há definitivamente coisas boas em ficarmos assim sozinhos. Uma é que nossos ouvidos não são bombardeados constantemente com as vozes dos pequenos - sejam alados
ou peludos.
Ela suspirou e tomou outro gole do odre.
- Nesse ponto estamos em completo acordo.
O vinho e o bom humor de Cuchulainn fizeram sua mágica. Ela não estava se sentindo tão autoconsciente e nervosa; na verdade, estava relaxada e um pouco sonolenta.
Então começou a falar: - Tem razão. Eu era bem sozinha quando criança, mas não por ser solitária. Era porque parecia que todos ao meu redor queriam algo de mim.
Era mais fácil ficar sozinha.
- Todos? - instigou Cuchulainn quando Brighid ficou calada. - Até seu irmão e sua irmã?
- Como Elphame, sou a mais velha. Niam era vários anos mais nova, então nunca fomos próximas. A preocupação dela era ter luxos e admirar a si mesma em qualquer superfície
reflexiva. Minha preocupação era evitar nossa mãe. - A testa de Brighid se enrugou. - Não compreendia na época que o que ela estava fazendo era sua própria maneira
de evitar a mamãe.
- Era sempre assim com sua mãe? - perguntou ele.
Brighid suspirou:
- Praticamente até onde me lembro, apesar de que quando eu era bem pequena e meu pai ainda estava vivo, ela era menos controladora e mais... - Brighid penou para
encontrar a palavra - ... mais normal. Depois que ele morreu, foi como se a frieza que ela sempre tinha encoberto assumisse completamente.
- E seu irmão?
- Bregon e eu éramos mais próximos em idade, como você e El. Éramos próximos quando crianças, mesmo que ele ficasse confuso por eu não querer passar meu tempo com
mamãe. Ele a idolatrava. Por sua vez, ela o ignorava. Sempre esperei que ele fosse se zangar com ela, enxergar como era aproveitadora, mas isso nunca aconteceu.
Bregon começou a ficar ressentido comigo. Especialmente depois que... - Ela parou de falar, como se as palavras tivessem se esgotado. Brighid encarou o fogo, recordando.
No crepitar das chamas quase podia ouvir a vozinha assustada do passado, ver o terrível pôr do sol vermelho do dia distante.
O toque de Cuchulainn sobre seu braço a fez pular, e os olhos se voltaram para ele, arregalados e escuros no rosto subitamente pálido.
- O que aconteceu?
Brighid abriu a boca, e as palavras que permaneceram caladas por anos brotaram: - Eu estava quase no fim do meu treinamento como caçadora. Eu estava há quase meio
dia de distância do acampamento da manada. Ninguém sabia que eu estava lá. Quando vi os vestígios da carroça, pensei em usá-las num exercício de treinamento. Eu
os seguiria para ver onde me levariam, enquanto lia a história que contavam. Eu já era extraordinariamente boa em rastrear animais. - Brighid ergueu os ombros em
tom de desculpas. - Estava aproveitando minha afinidade com os espíritos dos animais, embora não estivesse inteiramente consciente disso. Mas estava particularmente
interessada na carroça. Era puxada por animais, mas não era tecnicamente um animal. Pensei que seria mais difícil de ler. Além disso, tinha deixado a estrada e estava
cortando uma área de mata da planície, que era pedregosa e difícil de rastrear. Então começou a chover. Bem leve, mas lembro que gostei do elemento adicional de
dificuldade. Quando as impressões de cascos se misturaram com as da carroça, foi fácil dizer que eram rastros de centauros. Cinco deles.
Brighid encontrou os olhos de Cuchulainn e deu uma risada seca e destituída de humor.
- Queria uma história para ler nos rastros - algo difícil - e foi exatamente o que ganhei. Só que não era a leitura que era difícil. Isso estava claro, ao menos
para mim. Imagino que Ciara diria que eu devia agradecer à habilidade que corre inata em meu sangue por tamanha clareza. Naquele dia não me senti muito disposta
a agradecimentos. - Ela parou de falar, e levou o odre outra vez aos lábios.
- Que história os rastros contaram? - perguntou Cuchulainn com delicadeza.
Brighid o fitou, depois desviou o olhar de volta para o fogo.
- Me contaram que cinco centauros tinham perseguido a carroça. Que os cavalos que a puxavam tinham entrado em pânico e que os centauros tinham conduzido de propósito
o grupo amedrontado na direção do limite das árvores e do penhasco que o riacho e o tempo erodiram. Depois não precisei mais ler os rastros porque a ouvi. Segui
o som dos gritos enquanto escorregava pela borda do penhasco até onde a carroça tinha tombado, arremessando a condutora e também os rolos de tecido de colorido vivo
que ela levava para negociar com a manada. Lembro que grande parte dos tecidos estava tingida nas ricas cores de joias - vermelho, azul, verde-esmeralda -, então
quando a encontrei, a princípio pensei que a parte inferior do corpo estivesse envolta em metros de linho cor de rubi.
Brighid meneou a cabeça, os olhos distantes, vendo aquele dia do passado.
- A carroça tinha rolado por cima dela, esmagando-lhe o corpo bem abaixo das costelas. Ela estava lá no chão, com a chuva se misturando ao seu sangue, mas ainda
estava viva. Estava chorando. Quando me viu, tentou se arrastar para longe, me implorou que não a machucasse mais. Falei que não queria machucá-la. Acho que não
acreditou em mim, mas quando se mexeu, o sangramento ficou pior. Muito pior. Era como se algo dentro dela tivesse estourado e vazado. Ela sabia que estava morrendo
e não queria ficar sozinha, mesmo que isso significasse dar seu último suspiro nos braços de uma centaura. - Brighid deixou o fogo para encarar o guerreiro ao seu
lado, que estava tão silencioso e atento. - Ah, Cuchulainn, era apenas uma menina. Disse que tinha escapulido da caravana de mercadores e ido negociar sozinha com
a manada Ulster para provar aos pais que podia fazer o trabalho de um adulto, mas se perdeu. Então os centauros - rapazes, ela disse, a cercaram e assustaram os
cavalos, rindo e berrando enquanto a carregavam para o penhasco. Depois a deixaram sozinha na chuva para morrer.
Brighid tomou outro longo gole do odre, afastando o tremor da voz. Era importante contar a história com clareza - que Cuchulainn entendesse tudo: - Ela se agarrou
em mim. Não havia nada que eu pudesse fazer senão abraçá-la e ficar com ela até o fim. A menina ficava falando, repetindo e repetindo: "Diga à mamãe que não fique
zangada comigo. Diga que lamento por estar atrasada." Depois cuidei rápido do corpo. A chuva estava mais pesada, e eu não queria perder os rastros deles.
- Você os seguiu? - perguntou Cuchulainn.
Brighid assentiu:
- Sim, segui meu irmão e os amigos de volta para nossa casa. No coração, eu sabia que eram os rastros dele desde o momento em que os encontrei. Mas não queria acreditar...
não queria pensar que... - O corpo estremeceu, e Brighid falou entre os dentes: - Eu o rastreei até em casa e o observei gargalhar e festejar, como se nada tivesse
acontecido. Quando o arrastei até a presença da minha mãe e o confrontei com o que tinha feito, Bregon disse que a estúpida menina humana devia ter controlado melhor
os animais. Foi o que ele disse, Cuchulainn. Na frente da minha mãe, a sumo xamã da nossa manada - a centaura que devia ser exemplo de honra e honestidade.
- Ela não fez nada? - A voz de Cuchulainn estava áspera de emoção.
- Ela não disse nada. Mas fez muito mais do que isso. A partir daquele dia, a atitude e os gestos com meu irmão mudaram. Não o ignorava mais - foi para o outro lado
do extremo. Minha mãe o mimava e estragava acintosamente. Os amigos dele também foram recompensados com seus favores. - Os lábios de Brighid se curvaram de desgosto,
deixando claro que tipo de favores a mãe dela concedia aos amigos do irmão caçula.
- Voltei no dia seguinte para pegar o corpo da menina. Pretendia encontrar os pais dela... devolvê-la à mãe por quem morreu chamando... mas tudo o que encontrei
foi um corpo queimado. Minha mãe nunca confessaria, mas eu sabia que era obra dela. Não demorou muito para que eu abandonasse a manada Dhianna. Desde então, vaguei
pela planície, ficando o mais longe possível da minha manada. Quando ouvi que Elphame queria voluntários para reconstruir o Castelo MacCallan, rumei para o norte
e deixei o chamado me levar até ela.
- Deusa... - arfou Cuchulainn a palavra.
Brighid passou a mão trêmula pelo rosto.
- Deveria ter contado antes a você. Deveria ter contado antes a alguém... Eu só não... - Brighid encarou aflita o rosto dele como se pudesse encontrar redenção ali.
- Tudo no que conseguia pensar era em fugir daquela vida. Mudar meu futuro e tentar não olhar para trás. Mas compreendo. Agora que sabe, talvez... talvez não seja
capaz de ficar comigo... talvez não queira se importar comigo e...
- Pare! - A voz de Cuchulainn foi severa ao lhe agarrar o braço. - Não vou deixar você. O que eles fizeram não é sua culpa. O que eles são hoje não é sua culpa.
Pela Deusa, acha que vou deixar que volte para isso sozinha?
- Não sei o que pensar. Nunca contei a ninguém. Achei que nunca conseguiria. E agora contei a você. Meu marido. Meu marido que é um homem. - A respiração dela sibilou
num soluço. - Em que sonho estávamos vivendo quando pensamos que podíamos ficar juntos? Como isso pode sequer funcionar?
Num instante, Cuchulainn tinha se colocado de joelhos diante dela. Estendeu as mãos e a puxou para seus braços. Brighid ficou rígida, sentindo a estranheza do torso
pressionado ao dela - a sensação incomum do corpo musculoso de Cuchulainn que era apenas humano e não combinava com o corpo equino de um centauro. Ele lhe ignorou
a rigidez e não afrouxou o abraço. Quando falou, inclinou a cabeça para que a voz fosse um sussurro quente ao ouvido dela: - Vai funcionar porque estamos ligados,
nós dois. Porque de alguma forma, miraculosamente, Epona fez sua alma para combinar com a minha. Não somos definidos pelo corpo apenas, Brighid. Você e eu sabemos
disso muito bem.
- Parece impossível - disse ela.
- Não. Não é impossível - só é difícil.
Brighid se afastou, e dessa vez Cuchulainn afrouxou o abraço para que ela pudesse olhar-lhe nos olhos.
- Como pode ter tanta certeza? Sou de um mundo diferente. Somos de espécies diferentes. Nem podemos consumar nossa união esta noite.
- Meu pai é um centauro, Brighid. Não esqueça que tenho o sangue dele correndo grosso nas minhas veias. Temos mais semelhanças do que diferenças.
- Seu corpo é humano.
- Isso é. - Ele suspirou e se sentou sobre os calcanhares, deixando as mãos deslizarem pelos braços dela. - Isso lhe causa repulsa?
Brighid franziu a testa, ouvindo o eco das palavras de Elphame na voz dele.
- Claro que não! Como pôde sequer me perguntar isso? Não teria me casado com você se me causasse repulsa.
- Existem muitas razões diferentes para se casar. A atração física nem sempre é uma delas - disse ele. - Você se casou comigo. Isso não significa automaticamente
que se sente atraída por mim.
A ruga na testa dela aumentou.
- Me sinto atraída por você. Não é como a maioria dos homens.
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas.
- Posso garantir que sou bastante parecido com a maioria dos homens.
Brighid sentiu as faces arderem.
- Não quero dizer que você não... hã... não...
- Sim... - Ele prolongou a palavra. - Prossiga. Não sou o quê?
A testa franzida se transformou numa expressão zangada. Cuchulainn não estava tornando a situação nada fácil para ela.
- Os homens em geral parecem muito pequenos.
As sobrancelhas dele desapareceram completamente na linha capilar. Brighid meneou a cabeça, tentando descobrir uma maneira de explicar sem soar arrogante ou ofensiva.
- Lembra-se do dia em que nos conhecemos? Você estava com El e Brenna no pátio principal do Castelo MacCallan. Tinham acabado de descobrir a fonte.
- Lembro - respondeu ele. - Você disse que era da manada Dhianna e eu talvez tenha reagido mal ao anúncio.
- Talvez? - bufou Brighid. - Você queria que El me expulsasse. Estava sendo defensivo e superprotetor com sua irmã. - Antes que Cuchulainn pudesse protestar, ela
prosseguiu apressada: - E eu o achei intrigante. Não era um homem fraco, pequeno. Era um guerreiro, e tudo que você falava ou fazia continha tanta confiança e poder
que nunca pensei em você só como homem. Desde a primeira vez, pensei em você como guerreiro, sem o rótulo de "centauro" ou "humano".
- Então não me odiou à primeira vista?
- Não. Só não gostei de você. - A expressão satisfeita de Cuchulainn a fez sorrir. - Mas parte de mim concordava com você. Se eu fosse outro membro da minha manada,
teria sido prudente não confiar em mim.
- Aprendi a confiar em você.
- E eu em você.
- Não vê que é isso, Brighid? Nosso relacionamento é baseado na confiança e no respeito, que se transformaram em amizade. - Ele soltou devagar uma das mãos e delicadamente,
apenas usando a ponta dos dedos, refez o caminho pelo braço até o ombro arredondado. Sentiu a pele dela se arrepiar sob seus dedos e a ouviu respirar fundo. - E
depois essa amizade se transformou. Nem sei ao certo quando. - Numa carícia longa e lenta, deslizou a mão pelo ombro até encontrar a maciez da base do pescoço. Lá
deixou que o polegar traçasse um padrão leve e sensual a longo da clavícula delicada. - Lembro que a parte da minha alma que a visitava nos sonhos provocava e brincava
com você. Achou que eu estava zombando... fingindo que a desejava... - O polegar voltou para a curva do pescoço e sentiu o pulso batendo rápido e forte sob a maciez
da pele. - Não era fingimento. Você é a criatura mais bela que já vi. E não me importa que forma seu corpo assuma. Sempre desejarei você.
Trinta e Nove
TUDO O QUE Brighid conseguiu fazer foi encará-lo. Estava presa na carícia lenta e íntima. Apesar de toda a força do corpo dela, aquele único toque gentil bastava
para desarmá-la completamente.
- Posso fazer uma pergunta? - pediu Cuchulainn, deslizando o polegar para cima e para baixo na pele sensível do pescoço.
- Sim - murmurou ela.
- Depois que nos beijamos no seu quarto, quando soprou minha alma de volta no meu corpo, alguma vez pensou em me tocar?
- Sim.
- O que pensou?
Brighid umedeceu os lábios com a língua, vendo os olhos dele se fixarem famintos em sua boca.
- Pensei em suas mãos no meu corpo, e imaginei como seria tocar você também.
- Se me tocasse agora, não teria que imaginar - disse ele.
Hesitante, Brighid ergueu a mão que ele estivera segurando até pouco tempo e tocou-lhe os cabelos.
- Estou contente que tenha cortado o cabelo outra vez - disse ela. - Gosto dele curto.
- Então sempre o manterei curto.
Brighid tocou a face, mas logo retirou a mão. Então, com uma risadinha autoconsciente, tocou-a novamente, esfregando as costas dos nós dos dedos na aspereza da barba
de um dia.
- Centauros não têm pelo facial - disse.
- Eu sei. Falei muitas vezes ao meu pai que o invejava por não ter que se preocupar em fazer a barba.
- É estranho. - Os olhos se ergueram depressa em busca dos de Cuchulainn. - Não um estranho ruim, só um estranho diferente.
Ele sorriu.
- Já me disse que não lhe causo repulsa. Não vai me aborrecer por dizer que há coisas no meu corpo que lhe parecem estranhas. Não quero que tenha medo de me contar
o que está pensando.
- Concordo. Mas tem que me contar o que está pensando também.
- No momento estou pensando que sua pele é tão macia e lisa que parece água - água quente. Posso sentir seu calor daqui. Lógico que sei que é porque você é uma centaura
e seu corpo gera mais calor que o meu. Mas quando fico assim perto de você, a lógica abandona a minha mente e tudo no que consigo pensar é que quero ser consumido
por seu calor.
Brighid sabia que ele podia sentir como suas palavras faziam o pulso dela pular sob seus dedos. A voz de Cuchulainn era tão sedutora quanto o toque, e Brighid não
conseguiu impedir que a mão descesse para o peito dele. Cuchulainn estava vestindo uma simples camisa de linho branco e um kilt feito do familiar tartã MacCallan,
cuja ponta estava atirada sobre o ombro direito. A mão desviou para o simples broche redondo que a mantinha no lugar. Antes que os pensamentos desordenados a impedissem,
Brighid desvencilhou a outra mão e desprendeu o broche. Com cuidado, puxou o tartã dos ombros dele. Em seguida desatou a frente da camisa, de modo que caiu aberta,
expondo o peito musculoso.
Exceto pelo polegar que continuava a lhe acariciar o pescoço, Cuchulainn permanecia bem imóvel enquanto ela espalmava as mãos pelo peito nu e subia para os ombros,
de onde afastou a camisa. Com movimentos rápidos das mãos, logo Cuchulainn estava nu da cintura para cima. Ele estremeceu.
- Está com frio? - perguntou Brighid, a voz pouco mais alta que um sussurro.
- Não! - Ele meio que riu, meio que gemeu a palavra.
Ela procurou pelos olhos de Cuchulainn e viu que aquelas profundezas turquesa tinham se escurecido no azul-celeste de um oceano turbulento.
- Gosto da sensação do seu peito. É firme e poderoso. - Calou-se, correndo a ponta dos dedos com resolução pelos mamilos expostos, o que o fez sugar rápido o ar.
- Ah! - murmurou ela a palavra. - Seu sangue centauro está aparecendo. Sabia... - ela continuou a circular os mamilos dele com a ponta dos dedos - ... que os mamilos
são uma das partes mais sensíveis do corpo de um centauro - ou centaura?
- Não, eu... - O corpo dele se sacudiu e as palavras se transformaram num gemido quando Brighid se curvou para lamber um dos mamilos.
Quando Brighid ergueu a cabeça, Cuchulainn buscou seus lábios, ficando de joelhos para que pudesse pressionar nela o peito nu. Brighid abriu a boca de bom grado
e acolheu a língua de Cuchulainn. Ele tinha dito que o calor de seu corpo o atraía, porém a pele nua de Cuchulainn também lhe parecia atraentemente cálida e firme.
Explorou as costas largas enquanto ambos descobriam os segredos da boca um do outro. Em seguida, a aspereza da palma dele estava debaixo do seu colete pressionando
o seio nu, fazendo com que fosse a vez de ela gemer e lutar para respirar conforme Cuchulainn provocava o botão do mamilo. Quando os lábios dele se aproximaram do
seio, Brighid arqueou o corpo, fechando os olhos e pensando em nada que não fossem os lábios, a língua e os dentes de Cuchulainn.
Quando as bocas se uniram novamente, ela se desvencilhou do colete, pressionando os seios acalorados no peito dele. Os dois corpos estavam escorregadios de suor.
Pela Deusa, como o queria! Mais do que já tinha desejado alguém. Ele a fazia se sentir viva, líquida, querer mais e mais. A mão deslizou pelas costas até a cintura,
depois mais além. Os olhos se arregalaram de surpresa com a sensação esquisita do volume firme das nádegas.
O que estava fazendo? Tinha realmente esquecido que Cuchulainn não era um centauro - esquecido que havia pouco que pudesse fazer para saciar o fogo enfurecido que
o toque dele acendia nela.
Sentindo a mudança imediata no corpo dela, Cuchulainn interrompeu o beijo e afastou-se para olhá-la nos olhos. O que viu ali fez com que passasse a mão trêmula pelo
cabelo enquanto fazia um óbvio esforço para acalmar a respiração.
- Esqueci que você não... que não pode porque só é um... que nós... - gaguejou Brighid até ficar em silêncio diante do claro ar de mágoa que lampejou no rosto dele.
- Lamento. Não pensei - respondeu Cuchulainn, a voz tão desafinada e inexpressiva quanto o rosto tinha ficado de repente.
- Não, Cuchulainn. Quis dizer que...
Ele não a deixou terminar. Preferiu se colocar de pé e apanhar a camisa do chão, vestindo-a com movimentos rápidos e desajeitados.
- O fogo está quase apagado. Vamos precisar de mais lenha. Vou buscar. - Sem olhar para ela, encaminhou-se para a floresta.
Brighid apertou a mão sobre o peito, no qual o coração se debatia como um pássaro engaiolado, e amaldiçoou a si mesma com sinceridade e fluência. Maravilhoso! Como
se a situação já não fosse bastante difícil - agora tinha insultado Cuchulainn.
Cuchulainn se demorou antes de voltar ao acampamento. Sentia-se um tolo. Pior que um tolo, na verdade - um tolo excitado e frustrado. O que, afinal, pensava que
estava fazendo? Pensava mesmo que faria amor com uma centaura caçadora? Não. Esse não era o problema. Ele nem tinha pensado. A pele... o calor... o sabor e o perfume
dela... tudo tinha funcionado como um encanto hipnótico que o impedia de pensar. Só queria que ela se acostumasse ao toque dele - como se fosse potra selvagem que
precisasse ser domada. Tolo era uma palavra muito simples para descrevê-lo. Brighid não era nenhuma potra. Era uma caçadora apaixonada que precisava do poder de
um centauro que satisfizesse aquela paixão.
Mas ele era apenas um humano, como ela deixara bem claro.
E agora? A única coisa que ele sabia com certeza era que não a abandonaria. Vasculhou o coração. Não estava ficando com ela só porque fizera sua promessa diante
da mãe, do clã e da Deusa. Queria ficar com ela. De verdade. Além do desejo físico, havia a lealdade que fora fundamentada na amizade e no respeito - como dissera
a Brighid - e que se transformara em algo mais... algo mais intenso. Ele amava a caçadora. Era simples assim. E complicado assim.
E era tão diferente do que tinha acontecido com Brenna.
Brenna... Pensar nela ainda tinha o poder de entristecê-lo. Ele a amara - ainda a amava, mas era uma sensação diferente do amor por Brighid. A parte física fora
fácil com Brenna, ao menos tinha sido fácil superar a timidez dela. Mas, admitia a si mesmo, nunca foi tão fácil conversar com ela como com Brighid.
A compaixão o atraíra para Brenna. O respeito o atraíra para Brighid. Respeito e paixão. Desde o primeiro instante, a caçadora tinha disparado algo dentro dele.
Mesmo quando costumava desconfiar e discutir com ela, sempre se sentiu atraído. Só nunca tinha se permitido pensar nisso - admitir isso. E agora estava casado com
ela e não conseguia pensar em outra coisa. E não podia fazer nada a respeito.
Brighid dissera que o relacionamento era impossível. Talvez ela estivesse certa.
Se Cuchulainn tivesse demorado mais, teria saído à procura dele. Porém Brighid se sentiu aliviada quando ele veio pisando pesado da floresta com os braços cheios
de lenha. Ela estava andando de cá para lá, tentando imaginar o que diria a ele. Então, quando ele enfim estava lá, sentiu a boca secar e as palavras evaporarem.
Sem falar, Cuchulainn alimentou o fogo e depois empilhou o resto da lenha perto de onde deixara a sela e os pacotes. Em silêncio, remexeu um dos alforjes maiores
e apanhou um cobertor de lã, no qual se enrolou como um casulo. Com um suspiro, acomodou-se de lado, encarando o fogo. Incrédula, Brighid o observou fechar os olhos.
O maldito do homem estava indo dormir!
- Cuchulainn, quero explicar... - começou, mas ele a interrompeu: - Não há necessidade - disse, sem abrir os olhos. - Nós dois estamos cansados. Está tarde. Amanhã
será um dia longo e cansativo. Durma um pouco, Brighid. Podemos conversar depois.
E foi dormir, simplesmente assim. Brighid pensou seriamente em atirar algo nele - algo pesado, como um dos pedaços de madeira que ele demorou tanto tempo recolhendo.
Ou, ainda mais satisfatório, talvez devesse chutá-lo. Bem forte.
Por fim, sua natureza de caçadora tomou controle e ela não fez nada daquilo. A verdade era que ele estava certo. O dia seguinte seria longo e extenuante, e ela precisava
dormir. Já que Cuchulainn não a abandonara, e aparentemente não planejava fazer isso tão cedo, poderiam conversar sobre o que tinha acontecido entre eles depois.
Então voltou para seu próprio lugar perto do fogo - não muito longe de onde o marido dormia - e se acomodou para a noite. Sabia que não teria nenhum problema para
dormir. Uma caçadora estava acostumada a se desligar do mundo e pegar no sono quando e onde pudesse. Brighid bloqueou a frustração e a confusão da mente, fechou
os olhos e deixou o cansaço do dia puxá-la para a escuridão.
No seu sonho, a escuridão do sono redemoinhou, clareou e se tornou névoa. A névoa acariciou-lhe a pele, despertando suas terminações nervosas conforme pulsava pela
carne nua do torso. Como um amante experiente, provocou-lhe os seios, fazendo os mamilos enrijecerem e doerem. Brighid gemeu e arqueou-se aflita de encontro à neblina...
e a névoa se solidificou, transformando-se em lábios, língua e boca. Os braços automaticamente envolveram seu amante. Mesmo antes de conseguir vê-lo, reconheceu
a sensação de Cuchulainn e, em algum lugar na mente sonolenta, estava surpresa por ele já lhe parecer tão familiar de encontro ao seu corpo. A cabeça se afastou
dos seios e Cuchulainn sorriu lentamente.
- Para onde nos trouxe agora? - perguntou ele.
- Não sei. Estou sonhando.
- Sim, está sonhando. - Os olhos dele chamejaram. - Vim antes aos seus sonhos, só que desta vez não vou tirar as mãos de você - disse com impetuosidade. - Seja lá
o que aconteça quando estamos acordados, nos seus sonhos eu a tocarei, abraçarei e farei minha.
Em seguida a boca de Cuchulainn estava na dela, insistente e sensual. Brighid se entregou a ele, deixando que atormentasse e mordiscasse sua língua enquanto as mãos
se ocupavam com os seios. Gemeu de encontro à boca dele, precisando do toque e do sabor de Cuchulainn. Estava dormindo - era só um sonho -, então não havia motivo
para se apegar às inibições e medos do mundo real. Abraçando o abandono do sonho erótico, deixou que as mãos examinassem o corpo dele, descobrindo a rígida excitação
que se estendia ao seu toque.
Conte a ele..., a voz suave sussurrou na mente dela. Abra seu coração para ele.
- Cuchulainn - disse de encontro aos lábios dele. - Quero você. Quero você por inteiro. Por favor, saiba disso.
Ele lhe tomou o rosto nas mãos e sorriu.
- Você me tem, minha bela caçadora. Por inteiro.
Quando se beijaram novamente, foi como se Brighid se fundisse nele. Não eram mais centaura e humano - eram apenas sensação e espírito - e o choque e a glória da
união inflamou-se nela com tamanha intensidade que Brighid despertou, tremendo de emoção em consequência do prazer.
Os olhos imediatamente encontraram Cuchulainn. Ainda estava deitado de lado, encarando o fogo, como estava quando ela caiu no sono. Não conseguia ver o rosto dele,
mas a respiração estava profunda e regular. Queria tocá-lo, queria acordá-lo, mas achou melhor se reacomodar e fechar os olhos.
Amanhã à noite será diferente, prometeu a si mesma.
Antes de dormir, seu último pensamento estava na esperança de que Cuchulainn viesse aos seus sonhos outra vez - mesmo que nos sonhos ele fosse apenas parte de sua
própria imaginação.
Cuchulainn esperou até ouvir a respiração dela mudar, dizendo-lhe que tinha caído no sonho novamente. Então girou de modo a poder olhar para ela. Tinham acordado
ao mesmo tempo.
Pela Deusa, o sonho mexera com ele! Quando se materializou da neblina, tudo que tinha conseguido enxergar era o torso nu de Brighid. A cortina prateada dos cabelos
caía sobre os ombros, partindo-se apenas para expor os mamilos sensíveis dos seios que ele atraíra para seu toque... sua boca. Pareceu-lhe tão fácil, tão certo tomá-la
em seus braços. E Brighid o tocara - por inteiro. Sentia o corpo enrijecer e pesar com a recordação. Depois, na neblina de calor úmido da paixão, ouvira uma voz
feminina pedindo a Brighid que falasse o que sentia no coração, e a caçadora revelou seu desejo por ele. Quando se beijaram, era como se ela aspirasse sua alma novamente
- só que desta vez a experiência fora intensamente física. O espasmo do orgasmo o despertara - no mesmo instante em que ouviu Brighid arfar e acordar.
Seria possível que tivessem vivenciado o mesmo sonho? Será que as almas deles tinham realmente se encontrado naquele reino nebuloso do sono? Teria ela realmente
se entregado a ele?
Impossível...
Quarenta
O CHEIRO DE carne de porco frita a deixou salivando antes que esfregasse os olhos sonolentos. O céu estava clareando com o anúncio do amanhecer e o ar já estava
esquentando com a chegada da manhã. Viu as costas de Cuchulainn, que se mantinha curvado sobre o fogo, mexendo a carne chiante. Brighid se levantou, se sacudiu e
se alongou. Ao se aproximar de Cuchulainn, notou que o capão já estava selado e que, exceto por alguns utensílios de cozer, tudo estava empacotado e pronto para
a viagem.
- Bom dia - cumprimentou ele, sem olhar para Brighid.
- Bom dia. Não acredito que dormi enquanto você empacotava e preparava o desjejum.
Cuchulainn ergueu os olhos e lhe deu um breve meio-sorriso, que só guardava a sombra da cordialidade costumeira. O tom foi cuidadosamente neutro: - Você nem se mexeu.
Espero que tenha dormido tão bem quanto parecia.
Brighid o olhou nos olhos, lembrando do sonho erótico e seu prefácio.
- Dormi bem. - Foi tudo o que disse.
- Bom - comentou apressado. Cuchulainn se voltou para o fogo e arrumou a carne de porco entre duas fatias grossas de pão e queijo, que entregou a ela. - Importa-se
de comer enquanto viajamos? Acho que hoje devemos andar do amanhecer até o anoitecer. Não fizemos exatamente um dia inteiro ontem.
- Concordo - disse ela.
- Bom - repetiu. Deixando seu sanduíche sobre o alforje que deixara aberto, apagou a fogueira.
- Cuchulainn?
Ele deu uma rápida olhada por cima do ombro.
- Vai ser esquisito assim entre nós o dia inteiro?
Os lábios dele se retorceram.
- Parece provável.
- Posso fazer alguma coisa para mudar isso agora?
- Provavelmente não - respondeu ele, que se voltou para o fogo.
Brighid suspirou. Ainda nem tinha amanhecido e era como se um longo dia tivesse se passado. E aquela sensação persistiu pelas intermináveis horas da manhã até o
meio-dia. Ao menos o passo fatigante que se obrigou a impor deixava pouca oportunidade para conversa, mesmo que tivesse apreciado o ensejo de conversar com Cuchulainn.
Costumava ser tão fácil para eles - irônico que agora que eram casados tudo parecesse tão complicado.
Porém o silêncio entre eles lhe deu tempo para pensar. O sonho permaneceu com ela, tanto que os pensamentos com Cuchulainn estavam coloridos num aspecto erótico
que ela sabia ser tolo e irrealista. Então se recordou da impressão do corpo firme junto ao seu e da explosão de sensações que inundaram o sonho...
- Vamos parar aqui para que eu troque de montaria. O capão está esgotado. - A voz profunda de Cuchulainn se sobrepôs ao tropel dos cascos.
Brighid piscou, saindo do estado de transe induzido pela viagem interminável. O sol estava começando a descer em direção ao oceano, e a pequena aldeia da qual se
aproximavam parecia alegre e acolhedora sobre a luz brilhante da tarde.
- Sabe onde estamos? - perguntou ela.
- A pouco mais de meio dia de cavalgada pesada do Castelo McNamara.
- O que significa que se mantivermos esse ritmo estaremos às margens dos Outeiros Azuis amanhã à noite.
- Consegue manter esse ritmo?
Brighid o viu examinar seu corpo e teve certeza de que Cuchulainn notava a camada de suor que começava a escurecer o loiro de seus flancos. Ergueu a sobrancelha
e deu uma olhada incisiva no capão. A pelagem do cavalo estava encharcada e manchas de espuma branca pontilhavam o peito e os flancos.
- Acho melhor se preocupar com sua montaria. Estou bem.
Cuchulainn resmungou:
- Por isso estou mudando para o baio. O garotão aqui cansou. - Então sorriu para ela, o humor irônico tocando os olhos. - Você sabe que provavelmente poderia deixar
qualquer cavalo para trás.
- Claro que poderia - respondeu, dando-lhe uma olhada lenta e sagaz. - Caçadoras são conhecidas também pela força e resistência, além da beleza e paixão. - De propósito,
curvou os lábios enquanto observava, com divertimento, os olhos de Cuchulainn se arregalarem com o flerte. Pronto, pensou, vamos ver o que ele faz agora.
- Vejo que não preciso me preocupar com você, já que tem bastante energia para ser sarcástica.
Novamente ela exibiu aquele sorriso lento e sonhador.
- Eu não estava sendo sarcástica.
Antes que Cuchulainn pudesse responder, Brighid largou o galope para que pudessem entrar na aldeia num passo mais reduzido. Para um assentamento tão pequeno, ficou
surpresa com o número de pessoas aglomerando as ruas ao redor do mercado aberto. A aldeia era arrumada e próspera, mas Brighid não se recordava nem um pouco dela
na sua corrida cega para deixar a Planície dos Centauros. Notou que não havia outros centauros visíveis e que várias pessoas a encaravam abertamente.
- Se lembro bem, há uma estalagem bem ali na esquina. - Cuchulainn apontou para a esquerda. - Podemos pegar uma tigela de cozido quente para cada um, eu troco de
montaria e depois partimos.
Ela concordou, preocupada com os olhares que estava atraindo. Sabia que era uma caçadora bonita. Era um fato e nada tinha a ver com vaidade e ego. Estava acostumada
a ser admirada - principalmente por homens. Mas aquelas olhadas pareciam diferentes. Não eram apreciativas nem convidativas. Eram especulativas, estreitas, desconfiadas.
Quando pararam diante da estalagenzinha lotada, a pele de Brighid estava arrepiada. Teve que se obrigar a manter a mão longe do arco que sempre estava preso às costas.
Cuchulainn desmontou com um resmungo e se alongou.
- Cuido do capão e passo sua sela para o baio enquanto você entra e nos arranja o cozido. - Diante do olhar questionador, Brighid acrescentou: - Vai poupar tempo.
Ele deu de ombros e assentiu, caminhando até a estalagem com uma graça fácil e confiante. Enquanto soltava o cinturão suado do capão, Brighid pôde ouvir uma voz
feminina deliciada gritar o nome de Cuchulainn, o que logo foi acompanhado por vários cumprimentos.
- Como se dessem a um herói as boas-vindas ao lar - murmurou Brighid com o capão, que ainda bufava. Ela suspirou e puxou a sela, levando o cavalo exausto ao cocho,
onde ele afundou o focinho e bebeu bastante da água fresca e límpida. Sob circunstâncias normais, teria acompanhado o animal, atirando um pouco d'água sobre si mesma,
mas se sentia observada e instintivamente achou melhor não fazer qualquer gesto que pudesse ser interpretado como bestial.
Brighid era uma caçadora, não um equino descuidado.
Estava exatamente colocando a sela sobre a nova montaria quando Cuchulainn saiu pela porta. Brighid ergueu os olhos, franzindo o cenho para o andar vivaz e o brilho
perturbador nos olhos.
Como era que Elphame costumava chamá-lo? Um libertino incorrigível.
- Pronto, me deixe fazer isso. - Cuchulainn tirou a sela das mãos dela e a colocou no lombo largo do baio. - O cozido já vem. Ou podemos entrar e comer.
Brighid deu uma olhada desprezível na porta estreita.
- Não tem tamanho para centauros.
- Há bastante espaço lá dentro - disse ele.
- Prefiro um espaço mais aberto. - Ignorando a pergunta no olhar dele, Brighid se pôs a amarrar os alforjes no capão amarelo, verificando novamente a respiração
do cavalo... qualquer coisa para evitar os olhos de Cuchulainn.
Estaria sendo sensível demais? Estaria imaginando a tensão ao redor dela? Antes que pudesse decidir, uma loira gorducha e atraente veio apressada da estalagem. Estava
trazendo uma bandeja de madeira carregada com duas tigelas de cozido fumegante, pão e fruta, além de taças transbordando com o que parecia ser sidra com especiarias.
Rindo de maneira coquete, deu uma piscadinha para Cuchulainn. Brighid admirou o trabalho de equilíbrio que ela executava - com todas as piscadinhas e risadinhas,
não derramou uma única gota de comida ou bebida. A moça era realmente talentosa.
- Como não voltou a entrar, achei que gostaria que eu trouxesse sua refeição, meu senhor Cuchulainn. - Ela pestanejou de maneira ridícula.
Brighid sentiu o queixo cerrando.
- Foi gentileza sua. - Cuchulainn sorriu distraído para a mulher enquanto dava uma última puxada no cinturão. - Acho que vamos comer...
- Bem aqui - interrompeu Brighid, apontando para o pequeno pátio. - Pode deixar a bandeja aí. Estamos com pressa de voltar para a estrada.
Os olhos da loira se voltaram para a caçadora, que viu a moça tomar conhecimento dela e rapidamente desconsiderá-la. Pôs a bandeja no chão, mas não sem garantir
que oferecesse a Cuchulainn uma vista profunda do busto amplo. Brighid estreitou os olhos para o marido, que obviamente estava satisfeito com o cenário adicional.
A caçadora estava contemplando como seria satisfatório se pudesse chutar a loira naquele traseiro tão redondo quando dois homens apareceram na entrada, canecas de
estanho com cerveja nas mãos.
- Cuchulainn! É sempre um prazer vê-lo - disse o mais alto dos dois.
Cuchulainn assentiu com agrado antes de pegar uma tigela de cozido da bandeja e passá-la para Brighid.
- Por que não entra e se junta a nós? - perguntou o homem mais baixo e avermelhado. Então seus olhos encontraram Brighid e lá ficaram. Lambeu os lábios cor de fígado.
- Podemos arranjar espaço.
Brighid sentiu certo prazer no fato de que a voz de Cuchulainn ficou dissonante diante do óbvio interesse do homem por ela: - Receio que não temos tempo.
- Não é surpresa que esteja com pressa. Ouvi falar que há problemas na Planície dos Centauros - comentou o homem baixo. Não parecia conseguir tirar os olhos de Brighid.
Ela fez cara feia, mas percebeu que seu olhar zangado não servia de nada. O homem não estava olhando para seu rosto.
- São aqueles malditos centauros Dhianna. Aquela manada nunca conseguiu agir certo, não desde a Guerra Fomoriana - resmungou o primeiro homem. - Como se fossem os
únicos a sofrer perdas. Talvez pudesse ensiná-los uma coisa ou duas, Cuchulainn.
Brighid sentiu o estômago apertar quando sua reação inicial foi sair em defesa da sua manada. Mas segurou bem o queixo. Não podia defendê-los. Não mereciam. Mas
isso não significava que era fácil ouvir a calúnia daquele homem. E ergueu os olhos para Cuchulainn, então soube que ele conseguia ler o tumulto e a mágoa contidos
ali. Ouviu novamente a voz dele, ecoando da noite anterior... Estamos ligados, nós dois. Porque de alguma forma, miraculosamente, Epona fez sua alma para combinar
com a minha.
E ela sabia que era verdade. Não importava o que pudesse acontecer entre eles, suas almas se completavam.
Cuchulainn voltou a encarar os homens, mas desta vez não estava sorrindo.
- Engraçado que tenham mencionado a manada Dhianna. Eu estava para apresentá-los à minha companheira de viagem, Brighid Dhianna.
Brighid gostou quando os homens e a loira gorducha de repente pareceram bem desconfortáveis. Ela inclinou a cabeça num rápido reconhecimento à apresentação de Cuchulainn.
- É um prazer conhecê-los - cumprimentou, afastando boa parte do sarcasmo da voz.
- Claro que não é apenas minha companheira de viagem. Também é a caçadora do Castelo MacCallan. - Cuchulainn se calou e com propósito aproximou-se dela num passo.
Quando o olhar buscou o de Brighid, a expressão mudou e perdeu o aspecto perigoso, ficando acolhedora com franca afeição. - E desde ontem, ela é minha esposa.
A loira explodiu numa rajada de risadinhas ofegantes.
- Ah, senhor Cuchulainn! Você gosta mesmo de fazer piada.
Brighid nivelou o olhar na mulher.
- Ele não está fazendo piada.
- Mas é impossível! - retrucou o homem baixo, que finalmente conseguira tirar os olhos dos seios da caçadora.
- Pretende me insultar duvidando da minha palavra? - A voz de Cuchulainn estava baixa e perigosa.
- Não!
- Claro que não!
- Eu... eu preciso voltar para nossos outros fregueses - disse a loira, lançando olhadas nervosas em Brighid por cima do ombro enquanto fugia, em meio a muita sacudidela
de carne, para a escada e desaparecia dentro da estalagem.
- Pois bem - disse o homem alto, sem olhar diretamente para o guerreiro nem para a caçadora. - Boa sorte na jornada.
- Sim. - O homem avermelhado secou o suor do lábio superior. - Que a sorte os acompanhe.
Os dois homens se retiraram depressa para dentro da estalagem, onde os sons de conversa tranquila morreram, e logo Brighid viu vários pares de olhos arregalados
e chocados espiando pela única janela.
Queria esquecer o resto da comida e disparar daquela aldeia, mas quando relanceou Cuchulainn, este já estava reclinado na beira do pátio, limpando vagarosamente
o fundo da tigela com um pedaço grosso de pão.
Se ele não ia deixar que os olhares e os murmúrios chocados o aborrecessem, ela também não deixaria. Comeram o resto da refeição devagar, e só depois que acabaram
com cada gota de sidra e comeram cada pedacinho da fruta foi que Cuchulainn largou umas moedas sobre a bandeja e montou o baio. Lado a lado, saíram trotando da estalagem.
- Acho que nos saímos bem nessa - disse Cuchulainn com satisfação.
- Ah, com certeza. Nem sei por que cheguei a pensar que as pessoas ficariam chocadas com a notícia do nosso casamento - disse Brighid no mesmo tom indiferente.
Cuchulainn virou a cabeça para encará-la - e ambos riram.
Quarenta e Um
A RISADA QUEBROU o derradeiro dos silêncios desconfortáveis de Cuchulainn. Desta vez, quando Brighid entrou no ritmo de viagem, ele manteve a montaria ao lado dela.
- Devia fazer isso com mais frequência - comentou ele.
- Fazer o quê? Ofender e chocar grupinhos de pessoas?
Ele sorriu.
- Falo de rir. Você não ri muito.
- Acho que ri mais desde que cheguei ao Castelo MacCallan do que em qualquer momento da minha vida. - Brighid sorriu para ele. - Sabia que sua risada foi uma das
coisas que mais senti falta quando sua alma estava despedaçada?
- Foi um momento sombrio da minha vida. Acho que não percebi como era sombrio até estar inteiro novamente.
Brighid estudou seu perfil forte, sem querer lembrar quão perto Cuchulainn esteve de acabar com a vida. A ideia lhe entristecia na época - agora lhe dava náuseas.
- Você me surpreendeu lá na aldeia - disse Brighid, precisando mudar de assunto.
- Surpreendi? - O sorriso estava de volta. - Porque anunciei que era uma centaura Dhianna?
- Não, não exatamente. Ontem mesmo você jurou honrar meu nome como se fosse o seu. Você não é um homem que faria tais votos com leviandade.
- Tem razão, minha bela caçadora.
Os lábios dela se ergueram diante do costumeiro tratamento carinhoso.
- Fiquei surpresa por ter anunciado nosso casamento.
- Achou que era algo que eu esconderia?
- Não tinha pensado nisso ainda, mas ouvi-lo dizer foi... hã... agradável. Queria que soubesse disso.
- Sinto orgulho de que seja minha esposa, Brighid. As coisas aconteceram tão rápido, acho que não fiz as coisas adequadamente.
- Que coisas? - Brighid enrugou a testa em questionamento.
- Isso de adulá-la - cortejá-la. - A voz se aprofundou e os olhos turquesa procuraram os dela. - Esse ritual de galanteio.
- Ah! - A maneira como Cuchulainn a olhava fez com que recordasse do sonho erótico. Brighid conteve a agitação que ameaçava embaralhar suas palavras. Pela Deusa,
ele era tão bonito! - Estava se saindo bem na noite passada.
Viu o queixo dele enrijecer, mas Cuchulainn não se esquivou do assunto.
- Devíamos ter conversado quando voltei ao acampamento. A verdade é que você feriu meu orgulho, e eu não consegui lidar bem com isso.
- A verdade - apressou-se Brighid em dizer - é que fiquei chocada e não consegui lidar bem com isso.
- Chocada?
- Esqueci que você não era um centauro.
- Esqueceu? - Cuchulainn tentou sem sucesso não sorrir.
- Então pode imaginar como foi um choque para mim sentir seu...
- Traseiro? - completou ele.
- Exatamente.
- Arrã. - Cuchulainn a estudou, obviamente tentando decidir o que dizer e o que não dizer. - Então só estava surpresa. Não estava desapontada e...
- Se perguntar outra vez se sinto repulsa por você, vou usar parte desse corpo de centauro do qual parece gostar tanto para chutá-lo em cheio nesse seu traseiro
humano.
- Isso seria difícil de fazer enquanto estou sentado nesta sela.
- Uma das primeiras virtudes que uma caçadora aprende é a paciência. - Brighid lhe sorriu com doçura.
- Devia ter beijado você enquanto a estalagem inteira estava observando - disse Cuchulainn, sorrindo para ela.
- Sim - retrucou Brighid, jogando o cabelo loiro-prateado por cima do ombro. - Devia mesmo.
Quando alcançaram o riacho, o crepúsculo estava tingindo os vinhedos à beira da estrada com as cores do anoitecer.
- Os cavalos estão fatigados - já é quase noite. Acho que já avançamos bastante por hoje - disse Cuchulainn.
Brighid concordou e diminuiu o galope para um trote, e por fim, com um suspiro, reduziu para uma caminhada. Até o eco dos cascos atravessando a pontezinha arqueada
soava cansado. Notou que os dois cavalos ergueram as orelhas ao som de água corrente.
- Podemos acampar ali embaixo. - Apontou para a margem do riacho. Era raso e adornado por delicados salgueiros-chorões e capim aquático verde-esmeralda.
- Qualquer lugar que não se mova me parece bom agora - disse Cuchulainn.
Brighid notou as sombras debaixo dos olhos dele e a barba de dois dias. O guerreiro parecia definitivamente cansado.
- Se pegar lenha e cuidar dos cavalos, pego a carne de porco e o vinho.
- De acordo - disse ele.
Brighid pensou no quanto trabalhavam bem juntos enquanto descarregava os alforjes e apanhava os utensílios de cozinha. Desde que a tensão entre eles terminara, o
dia tinha sido um prazer. Sim, estavam viajando num passo difícil, mas Cuchulainn ficou ao lado dela, conversando e rindo, e depois, quando a noite caiu e estavam
cansados demais para conversar, apenas ficou ali, ao lado dela. Cuchulainn era um bom companheiro - um bom homem -, e apesar das diferenças óbvias, eles se entendiam
bem.
Cuchulainn largou um carregamento de galhos quebrados no meio do anel de rochas que ela recolheu para marcar a fogueira.
- Estou levando os cavalos para o riacho. - Cheirou a si mesmo, fazendo-a sorrir. - E acho que vou para o riacho também.
- Boa ideia. Você está cheirando como um cavalo.
A risada dele flutuou até ela na brisa morna da noite. As coisas estavam diferentes entre eles naquela noite. Mais fáceis. A ligação entre eles estava solidificada.
Quando ele voltou com os cavalos do riacho, Brighid tirou os olhos das fatias fritas de carne de porco para sorrir para Cuchulainn e o estômago apertou. O cabelo
dele estava molhado. Ele tinha vestido uma camisa de linho limpa. Um kilt novo estava enrolado descuidadamente ao redor da cintura. E o rosto estava barbeado. Cuchulainn
sorriu e esfregou o queixo.
- Dizem que você prefere homens barbeados.
- Só existe um homem que eu prefiro - respondeu, sustentando-lhe o olhar. - E gosto dele exatamente como é - barbeado ou não. - Brighid lhe jogou o odre. - É minha
vez no riacho.
Cuchulainn a observou sair da luz do fogo e entrar na luminosidade gentil da lua precoce, pensando que ela devia ser a criatura mais graciosa em toda Partholon.
Devia estar cuidando da carne de porco, mas pôde vê-la tirar o colete e entrar no riacho. Não conseguia tirar os olhos dela. Brighid encontrou o mesmo ponto no qual
ele tinha se banhado, uma área represada por castores numa piscina de bom tamanho. A água lhe cobria a cernelha. Viu quando Brighid se virou para olhá-lo. Sob o
luar prateado, parecia uma deusa do lago - parte humana, parte divina. Ela fez seu corpo parecer quente e pesado, e sua alma parecer incrivelmente leve.
Ela lhe pertencia, e ele, a ela. E qualquer um que não gostasse disso que se danasse.
Falaram pouco enquanto comiam, mas o silêncio não era desconfortável. Sentaram-se perto um do outro, então quando passavam o odre pra lá e pra cá era fácil os corpos
roçarem um no outro. Palavras não eram necessárias para o que estava acontecendo entre eles - só olhares e toques.
Quando terminaram de comer, em vez de se reclinar de lado sobre a sela como na noite anterior, Cuchulainn foi até um dos alforjes. Curiosa, Brighid viu a luz do
fogo reluzir no que quer que ele tivesse na mão. Mas Cuchulainn não foi até ela de imediato. Curvou a cabeça, deixando notar a tensão nos ombros. Em seguida, respirou
fundo e reassumiu o lugar ao lado dela.
- Tenho algo para você. Pretendia lhe dar na noite passada, mas... - Cuchulainn encolheu os ombros. - A noite passada...
- A noite passada não terminou como deveria - disse ela. - Esta noite será diferente.
- Esta noite deve receber isso. - Cuchulainn segurou o cordão de prata e deixou a pedra de turquesa pender.
- É a pedra de Brenna - arfou Brighid, tomando a pedra azul-esverdeada na mão.
- Agora é sua. Ela lhe deu. Achei que gostaria de usá-la. - Cuchulainn passou o cordão pela cabeça dela de modo que a pedra ficou suspensa entre os seios. - Não
senti a presença dela desde que morreu, mas quero acreditar que ela nos aprovaria.
Brighid fechou os olhos, tentando atravessar a enxurrada de emoções misturadas.
- Ela veio até mim, Cuchulainn.
- O quê?
- No meu sonho, como você fez quando sua alma estava despedaçada. Nos encontramos no Castelo MacCallan. Ela me contou que tinha me dado a pedra de turquesa e também
disse que não assombraria o Castelo MacCallan. - Brighid abriu os olhos e fitou o marido em meio a lágrimas. - Disse que não seria bom para ninguém fazer isso.
- O que mais ela disse? - O rosto estava muito rígido, a voz estava sob cuidadoso controle, mas Brighid conseguia ouvir a dor nas palavras dele.
- Disse que estava feliz, que tinha cumprido seu destino. - Brighid conseguiu exibir um fraco meio-sorriso. - As cicatrizes tinham sumido, Cuchulainn.
Ele abaixou a cabeça, mas Brighid conseguiu ver as lágrimas que caíam, cintilantes, sobre o verde e azul do kilt.
- Ela não conversou comigo por muito tempo. Só me fez dar minha promessa, depois se foi.
- Sua promessa? - Cuchulainn ergueu a cabeça e secou as faces com as costas da mão.
- Ela me fez jurar que eu manteria a mente aberta para o impossível. - A voz de Brighid tornou-se quase um sussurro.
Uma única lágrima escorreu pelo rosto de Cuchulainn.
- Então ela sabia sobre nós.
A caçadora assentiu:
- E ela aprovava. Deixou você para mim, de livre vontade e sem qualquer hesitação. - A risada de Brighid soou embargada. - Foi na noite em que estávamos no Castelo
Guardião. Pensei que Brenna estivesse falando do resgate da sua alma. Só ontem percebi que ela sabia que eu o amava, antes que eu mesma descobrisse.
- E quando descobriu?
- Na primeira vez em que nos beijamos. - Com delicadeza, Brighid limpou a lágrima do rosto dele. - Não sou ela, Cuchulainn. Não sou tão boa como ela era, nem tão
gentil, nem tão compassiva. Mas sou leal e fiel. E amo você de verdade.
- Brenna se foi - disse ele, a garganta embargada de emoção. - Não me casei com você por querer que fosse como ela.
- Então por que foi, Cuchulainn?
Ele lhe tomou e beijou a mão.
- Porque você guarda um pedaço da minha alma, minha bela caçadora. E para me manter inteiro, preciso ficar perto de você.
Cuchulainn a beijou com o sal das lágrimas misturado ao intoxicante sabor masculino. Brighid sorveu dele e imaginou se um dia seria capaz de ter o bastante.
- Sonhei com você na noite passada - revelou Cuchulainn, a boca se movendo pelo vão do pescoço dela.
- Sonhei com você também - admitiu Brighid, as mãos ocupadas em desamarrar os cordões da camisa dele.
- Fui até você na névoa.
Brighid parou, os dedos ainda nos cordões da camisa.
- E você estava nu.
Cuchulainn afastou os lábios da pele dela e buscou-lhe os olhos.
- Uma voz feminina mandou que falasse o que estava no seu coração.
- E eu contei que o queria. Por inteiro. - A mão tocou o rosto dele. - Foi mais do que um sonho.
- Sim.
- A voz da mulher. Acho que era a Deusa - disse ela.
Cuchulainn sorriu.
- Acho que tem razão.
- Quero vê-lo novamente. Como estava na noite passada.
- Nu?
Ela assentiu.
- Não sou nenhuma virgem bobinha. Não vou fingir que não tive minha cota de amantes centauros, mas nunca vi um homem nu antes. Não tão de perto. Não assim. Digo,
exceto pela noite passada no meu... no nosso sonho. - Ela respirou fundo. - Quero ver você.
- Arrã - resmungou ele.
Brighid ergueu a sobrancelha.
- Está sendo tímido ou não quer ficar despido comigo?
- Nenhum dos dois. Eu só... - hesitou Cuchulainn, depois correu a mão pelo cabelo e exibiu para ela um sorrisinho desgostoso. - Isso também é novo para mim. Já tive
amantes, você sabe disso, muitas amantes. Mas nenhuma delas era uma centaura. Não sei ao certo...
Cuchulainn se calou quando ela pressionou os dedos sobre seus lábios.
- Que tal se nós dois parássemos de pensar tanto?
O sorriso que iluminou o rosto dele transformou o amante hesitante no jovem guerreiro libertino.
- Faz sentido. O amor tem mesmo pouco a ver com pensar.
Ainda sorrindo, Cuchulainn levantou-se e, num gesto rápido e experiente, desprendeu o kilt da cintura e o puxou para ficar nu diante dela.
Brighid engoliu em seco. O olhar vagou do rosto dele para a larga expansão do peito, que era bonito e familiar - normal. Cuchulainn poderia se passar facilmente
por um centauro. O torso portava o poder e a graça de um centauro. Mas ele não era centauro, disse a si mesma, não era e nunca seria. Acostume-se. Aceite-o como
ele é, assim como ele claramente a aceitou. Brighid conteve a respiração e baixou o olhar.
As pernas eram longas e musculosas. Já tinha visto boa parte delas antes. Cuchulainn geralmente usava kilt e as deixava expostas dos joelhos para baixo. Mas Brighid
nunca tinha visto as coxas nem o relevo musculoso que cobria as nádegas e afundava fluidamente na cintura. E nunca tinha visto a masculinidade exposta.
- Queria que dissesse algo - disse Cuchulainn.
Brighid deixou o ar escapar num suspiro.
- Não é tão ruim quanto pensei.
- Puxa, isso é muito lisonjeiro!
Brighid segurou-lhe o punho.
- Não sou muito boa nisso - suspirou. - O que estou tentando dizer é que você não é tão assustador quanto pensei. Nu, quero dizer.
- Assustador? Está com medo de mim?
- Um pouco. Só não estava muito certa do que esperar. A noite passada foi só sensação e calor. Nada estava muito claro. - Os olhos buscaram a parte abaixo da cintura.
- Hoje tudo está muito claro.
- E isso a deixa com medo de mim - constatou ele, girando a mão de modo a entrelaçar os dedos nos dela.
- Agora que está aqui, de verdade, diante de mim, acho que medo não é a palavra certa para o que estou sentindo. - hesitante, Brighid lhe tocou a coxa e deixou os
dedos brincarem na rigidez do músculo enquanto observava o corpo dele se agitar e reagir.
- Qual a palavra certa para o que está sentindo? - A voz de Cuchulainn soava tensa.
Brighid deslizou a mão de modo a acariciar o abdômen firme e plano.
- Fascinação... - murmurou. - Seu corpo me fascina. Há muito tempo, mais tempo do que estava disposta a admitir para mim mesma. - Quando Brighid tomou o membro rígido
nas mãos, Cuchulainn arfou e atraiu o olhar dela. - Se quiser que eu pare, tem que me dizer.
- Não quero que pare - ofegou ele.
Brighid não queria parar. Saber que seu toque, a mais leve lambida ou carícia, podia afetá-lo tão profundamente fazia com que se sentisse poderosa e apaixonada.
Era algo que estava além de ser centaura ou humana. Explorar o corpo de Cuchulainn fazia com que se deleitasse na própria feminilidade. Afagou-lhe a espantosa e
fascinante extensão rígida envolta por pele com textura de seda. Quando o levou ao clímax com as mãos, depois com a boca, descobriu um tipo diferente de paixão daquela
que tinha vivido com amantes centauros. Conheceu a alegria do prazer de seu amado, deliciando-se na maneira com que a satisfação dele tocava o mais íntimo de seu
próprio ser.
Naquela noite dormiram sem sonhos, de mãos dadas, corpos tão unidos que na escuridão era difícil dizer onde homem e mulher terminavam e onde a centaura começava.
Quarenta e Dois
QUANDO O BAIO tropeçou pela terceira vez, Cuchulainn puxou as rédeas. Brighid tinha que observar as próprias passadas. Os músculos sobrecarregados pareciam preocupantemente
frouxos e ela temia possuir pouco mais controle sobre si mesma do que os pobres cavalos possuíam sobre suas pernas equinas. Concentrou-se na redução gradual das
passadas e parou bem devagar para que não se envergonhasse tombando em cheio. Puxando o ar de maneira cuidadosa e controlada, girou de volta para onde Cuchulainn
estava parado junto do cavalo trêmulo.
- Ele não consegue ir mais longe. É determinado - vai tentar, mas acabaria morrendo. Vou deixá-lo aqui. Ele vai descansar e acabará encontrando o caminho para o
Castelo McNamara. Ou talvez uma das pequenas casas de fazenda o recolha - disse Cuchulainn.
Brighid limpou o suor do rosto.
- O capão está em melhor forma, e logo encontraremos um lugar para acampar.
- É verdade, ele ainda não está a ponto de desabar, mas acho que seria prudente irmos mais devagar.
- Concordo - respondeu ela, tendo o cuidado de esconder o alívio da voz. Não queria que Cuchulainn soubesse o quanto ela mesma estava perto de desabar.
Brighid olhou ao redor enquanto Cuchulainn retirava a sela do cavalo exausto. Vinham num ritmo puxado desde o amanhecer, escolhendo evitar o Castelo McNamara e os
luxos que poderiam receber lá. Preferiram poupar tempo cruzando as terras férteis e entrando na floresta bem mantida ao lado sul do Rio Calman, que os levou - enfim
- para os Outeiros Azuis. Agora, enquanto a noite caía, Brighid estava cercada de lembretes do motivo pelo qual o lugar se chamava assim. Os montes arredondados
estavam cobertos com antigas árvores cujas folhas grossas pareciam de um verde-azulado esfumaçado sob a luz fraca. Como os olhos de Cuchulainn, pensou ela. Espero
que seja um bom augúrio.
Maldição, estava cansada! Sentia-se trêmula e tonta, e de repente compreendeu muito bem como Niam tinha morrido de tanto correr. Brighid também estava chegando perto
do fim das forças. Talvez devessem acampar na clareira mais próxima e deixar para procurar um lugar para buscar pelo Cálice de Epona amanhã - depois que tivessem
dormido.
A pedra de turquesa suspensa entre os seios ficou desconfortavelmente aquecida e a águia teve que repetir o chamado por três vezes até seu guincho se registrar na
mente exausta de Brighid. Quando ela finalmente olhou para cima, enxergou a ave circulando numa espiral estreita acima de sua cabeça, um distinto facho dourado e
prateado no céu do anoitecer. No momento em que seus olhos se depararam com a águia, a ave interrompeu o círculo e planou preguiçosamente rumo ao sul, mantendo-se
baixo sobre as árvores.
Venha...
A pele de Brighid se arrepiou quando o chamado silencioso passou por sua mente.
- Cuchulainn, temos que ir.
- O que foi? - perguntou ele, dando um tapinha no traseiro do baio antes de pular cansado sobre seu confiável capão amarelado.
- Acho que sei como encontrar nosso local de acampamento.
Estreitando os olhos, Cuchulainn acompanhou o olhar dela rumo ao céu.
- Aquele não é o corvo da sua mãe, é?
- Não - murmurou ela. - É a minha águia.
Brighid seguiu a ave com Cuchulainn logo atrás. Ouviu o "arrã" abafado e não precisou ver o rosto dele para saber que ele estava fazendo cara feia para o céu. Talvez
devesse lembrá-lo de que era melhor começar a se acostumar à presença do reino espiritual na vida deles. Mas estava cansada demais - além disso, geralmente costumava
concordar com a desconfiança dele.
A águia chamou novamente, colocando a atenção oscilante de Brighid em foco outra vez. A caçadora se obrigou a entrar num trote pesado e ouviu o capão fungar cansado
enquanto penava para acompanhar o passo dela. Brighid só precisava se concentrar em colocar um casco antes do outro e em seguir a ave dourada que os levava cada
vez mais para fundo nos Outeiros Azuis, conduzindo-os numa trilha sinuosa que cortava as colinas arredondadas e cheias de árvores. A ave voava e voava, totalmente
esquecida de que os conduzia numa rota que ignorava as poucas estradas de comércio e de que logo estaria escuro demais para que vissem qualquer coisa - mesmo uma
ave dourada.
Brighid escalou mais uma das colinas pouco elevadas e teve que lutar para se manter de pé enquanto deslizava pelo surpreendentemente íngreme lado oposto. Quando
alcançou o fim do declive, ficou parada, respirando com dificuldade, agradecida por não ter pisado em falso de exaustão. Na condição em que estava, seria coisa simples
quebrar uma das pernas equinas - uma coisa simples com consequências desastrosas.
- Sente-se bem? - O capão de Cuchulainn parou ao lado dela, e o guerreiro num instante tinha desmontado do cavalo para lhe esfregar as pernas.
- Não estou machucada - assegurou-lhe, passando em seguida a mão trêmula pelo rosto e tentando sorrir. - Diria que o dia de hoje está parecendo um sonho, mas ultimamente
meus sonhos têm sido muito melhores do que isso.
A águia a chamou novamente, então Brighid franziu o cenho para o céu - depois ficou surpresa ao ver a águia empoleirada no galho mais alto de uma árvore próxima.
Em breve, caçadora... Vamos nos encontrar outra vez.
Ergueu-se com mais um grito, atingindo o ar da noite com suas asas imensas. Depois pareceu evaporar no céu.
- Aquela ave acabou de desaparecer? - perguntou Cuchulainn.
Porém Brighid não estava olhando a ave, mas sim o lugar para onde ela os guiara. Estavam à margem de uma pequena clareira circundada, à semelhança de uma ferradura,
por todos os lados, com exceção de um, por um círculo de colinas. Ela avançou sobre pernas trêmulas até a ponta mais distante da clareira, o lado que não estava
fechado por colinas cobertas de folhagem verde, e mesmo com a luz vaga e obscura do anoitecer conseguiu enxergar que o chão desaparecia e o terreno desabava e descia
até se estender no que era...
- A Planície dos Centauros - disse Cuchulainn, parando ao lado dela.
- Não percebi que estávamos assim tão perto - comentou Brighid, forçando a vista para divisar na crescente escuridão a campina ondulante que fora seu lar. - Então
a águia estava nos levando para cá.
- Na verdade, acho que provavelmente estava nos trazendo para cá.
Cuchulainn apontou por cima do ombro esquerdo de Brighid, que acompanhou o dedo para se deparar com o que a princípio considerou apenas mais um outeiro, que na verdade
era a grande boca de uma caverna. Um córrego corria de seu interior e tombava na beira da clareira. O estômago de Brighid apertou. - É uma entrada para o Mundo Inferior.
Como seu pai disse.
- Não esta noite. - Cuchulainn se encaminhou de volta ao capão e começou a puxar a sela e os pacotes do lombo do cavalo suado enquanto falava. - Hoje é apenas o
abrigo de um acampamento pronto. Nenhum de nós tem condições de viajar para canto nenhum - seja no mundo físico ou no Reino dos Espíritos. - Olhou por cima do ombro
quando não ouviu resposta, notando a posição teimosa dos ombros de Brighid. - Quer se arriscar a encarar o espírito da sua mãe esta noite?
- Não.
- Nem eu. Então dormiremos esta noite. Amanhã nos preocupamos com o Outro Mundo.
Brighid assentiu, tremendamente aliviada por Cuchulainn estar ali para impor lógica e sanidade numa jornada que não era nem lógica nem sã. Brighid sabia que o tempo
era curto - que talvez Bregon tivesse conseguido beber do Cálice de Epona -, porém a névoa de exaustão que estava em seu corpo e sua mente lhe dizia que buscar o
cálice naquela noite seria fútil, talvez até perigoso.
- Vou buscar lenha - avisou ela.
Antes que pudesse se arrastar até as árvores, Cuchulainn parou diante dela. Tomou-lhe a mão e a levou aos lábios.
- Você me faz lembrar Niam esta noite - disse, estudando-a com preocupação.
- Niam? - Brighid sacudiu a cabeça, confusa. - Eu não...
- Seus olhos estão fundos. A pele está avermelhada e você está andando como se fosse cair a qualquer momento.
- Niam se excedeu por pelo menos mais dois dias. Provavelmente não parou para comer nem para dormir. E não era uma caçadora. Não estava acostumada a se esforçar
fisicamente. Eu...
- Você está exausta - interrompeu ele novamente. - Leve o capão para o córrego. Deixe que se refresque. Refresque-se você também. Vou apanhar lenha.
Brighid começou a protestar, mas as palavras seguintes a detiveram: - Por favor, me deixe fazer isso por você.
Na noite anterior, Cuchulainn tinha se entregado a ela sem restrições e com tamanha intimidade que a surpreendia que o homem que tremia ao seu toque fosse o mesmo
guerreiro que ensanguentara a espada ao seu lado. Não poderia aprender a deixá-lo ter o mesmo acesso a ela? Cuchulainn não estava pedindo para fazer amor, mas estava
amando-a mesmo assim. Permitir a ele a intimidade de cuidar dela não seria apenas outro tipo de entrega?
Brighid o beijou, deixando os lábios se demorarem nos dele.
- Levo o capão para o córrego.
Cuchulainn sorriu e tocou-lhe o rosto. Depois entrou na floresta, que escurecia. Brighid levou o cavalo exausto até o córrego e o deixou beber à vontade antes de
massageá-lo, arrastá-lo e enfim observá-lo se ajeitar para pastar com cansaço. Depois ficou debaixo da queda d'água cristalina, deixando-a lavar o suor e a sujeira
de seu corpo enquanto fitava a distante negrura que escondia a terra de sua infância. Parecia apropriado que sua primeira visão da planície estivesse amortalhada
na escuridão.
- Para que tormento você está nos conduzindo, Bregon? - sussurrou. - Por que não pode simplesmente deixá-la morrer?
Cuchulainn encontrou Brighid parada perto da beira da clareira, fitando a escuridão. Sentiu um arrepio de desconforto. Não era o primeiro presságio que sentia naquele
dia.
Desde que entraram nos Outeiros Azuis, sentia-se inquieto. A princípio acreditou que era um sintoma da exaustão. Sua caçadora não estava exagerando quando se gabou
da própria resistência. Impusera um ritmo que seria impossível para um único cavalo e montador equipararem. Não pela primeira vez, fez uma prece de agradecimento
à sugestão do pai de trocar de montarias.
Mas agora concluía que a inquietação pouco tinha a ver com a jornada fatigante. Antes de Brenna ser morta, Cuchulainn teria ignorado qualquer insinuação de intuição
ou pressentimento que não pudesse ser explicado por algo tão mundano como a exaustão. A morte trágica de Brenna lhe ensinara que era imprudente e também perigoso
ignorar pressentimentos de qualquer tipo. Tinha aprendido uma lição dolorosa - e a aprendera muito bem. Diferentemente do dia em que Brenna foi morta, seria vigilante
e prudente ao proteger Brighid. Não permitiria que outro amor lhe fosse arrebatado. Não conseguiria sobreviver. Se alguma coisa acontecesse com Brighid, sua alma
se fragmentaria em tantos pedacinhos que seria impossível reconstituí-la novamente.
Por isso manteve a espada por perto e os sentidos alertas enquanto fazia uma fogueira na boca da caverna, descarregava os pacotes e esquentava a comida com que esperava
reanimar Brighid. Como ela não saía do lugar perto da beira da clareira, sua inquietação aumentou. Ao falar, a voz estava intencionalmente grosseira: - Pensei que
não gostasse de altura.
Brighid não respondeu a princípio, mas depois sua pelagem equina estremeceu. A centaura de pedra que parecia ser respirou fundo, tornando-se carne viva mais uma
vez. Brighid se voltou para ele. Os olhos estavam escuros e sombreados de cansaço e preocupação, mas ela sorriu e conseguiu imprimir um tom provocador: - Como é
que todos sabem que não gosto de alturas?
Cuchulainn deu de ombros e ergueu as sobrancelhas.
- Pensei que fosse uma coisa bem conhecida sobre centauros. - Ergueu o odre e o sacudiu para que ela pudesse ouvir o sacolejo pesado. - Tenho vinho.
Com um suspiro, Brighid caminhou devagar até a caverna e pegou o odre. Bebendo, olhou ao redor. A abertura era espaçosa. O topo terminava muito acima da sua cabeça,
mas o interior não correspondia à promessa de espaço da entrada. As paredes lisas cor de areia pareciam ter sido formadas por uma colher gigante escavando uma prova
do pequeno outeiro, porém se afunilavam num túnel ao fundo que mal era grande o bastante para o límpido córrego. A fogueira de Cuchulainn lambia as paredes com chamas,
transformando o marrom em dourado e laranja. Enquanto olhava, as cores se misturaram e borraram, parecendo por um momento que as paredes ao redor deles tinham se
incendiado. Brighid ouviu um silvo, acompanhado de um rugido crepitante que não poderia ter vindo da fogueira controlada. Sentiu o calor castigando sua pele, então
fechou os olhos para evitar-lhe a fúria.
- Brighid! - Cuchulainn estava ao seu lado, afagando-lhe o rosto e afastando para trás os cabelos ainda úmidos. - O que foi?
A centaura sacudiu a cabeça, piscando para clarear a visão.
- Eu... só estou cansada. Preciso dormir.
Cuchulainn a conduziu à fogueira, onde tinha arrumado os cobertores num colchão improvisado. Quando Brighid se reclinou, deixando as pernas tombarem e se dobrarem
debaixo dela, entregou-lhe um pedaço quente de carne envolto em fatias grossas de pão e queijo.
- Coma primeiro. Depois pode dormir.
Brighid assentiu e mastigou a comida automaticamente, mesmo se sentindo estranhamente alheia ao calor que o alimento espalhava por seu corpo. Ela e Cuchulainn não
conversaram, mas os olhos se encontraram com frequência - os dele cheios de preocupação, os dela, de exaustão.
- Amanhã - afirmou Brighid ao terminar de comer. Cuchulainn tirou os olhos da madeira com que alimentava o fogo, a expressão uma indagação. - Amanhã devemos começar
a busca pelo Cálice de Epona.
- Então que seja amanhã. Agora quero que tire todos os pensamentos sobre o Outro Mundo da mente. Durma, Brighid. - Ajoelhou-se ao lado dela e a beijou com carinho.
- Talvez eu durma até bem depois do amanhecer - avisou, aspirando o perfume e o toque dele.
- Não importa em que hora acorde. Estarei aqui - murmurou Cuchulainn.
Brighid fechou os olhos e rendeu a mente e o corpo à embriaguez do sono.
Quarenta e Três
SE ALGUÉM TIVESSE perguntado a Brighid se queria sonhar naquela noite, ela teria respondido com um sonoro "Não!". Só queria dormir - dar ao corpo tempo de se reenergizar
para que quando fosse exigido novamente os poços profundos de seu poder estivessem bastante abastecidos e disponíveis mais uma vez.
Não, não tinha nenhum interesse em sonhos naquela noite.
Então, quando se sentiu sendo puxada do corpo, ficou mais aborrecida do que alarmada ou amedrontada. Irritada, abriu os olhos e descobriu-se olhando para seu corpo
inerte. Cuchulainn ainda estava acordado e sentado vigilante ao lado dela, fitando melancólico a fogueira. Parecia cansado. As linhas no rosto, que se suavizaram
depois que lhe recuperou a alma, estavam de volta. Brighid automaticamente estendeu a mão, mas em vez de tocá-lo se viu sendo erguida mais e mais, através do teto
da caverna e adentro do céu da noite.
A caçadora ofegou e engoliu uma terrível sensação de tontura. Oh, Deusa! O que estava acontecendo com ela?
Fique em paz, minha criança. Não tema.
A voz de Epona! O coração de Brighid martelou dolorosamente num peito que claramente era mais espírito que corpo. Procurou aflita ao redor, mas não enxergou nada
além da lua altaneira, perfeitamente redonda e cor de manteiga no límpido céu da noite. Enquanto estava lá suspensa, tentando controlar as sensações misturadas de
deslumbramento e pânico, sentiu seu corpo espiritual começar a se mover. Devagar a princípio, flutuou para o norte. Abaixo dela, os Outeiros Azuis estavam escuros
e silenciosos. Em seguida sua velocidade aumentou, como se apenas um instante houvesse se passado. Estava do outro lado do Rio Calman. O Castelo McNamara chispou
por ela e os vinhedos ficaram borrados lá embaixo. Brighid queria desacelerar, controlar a terrível velocidade da jornada, mas seu espírito estava nas mãos da Deusa
- e estava óbvio que Epona estava com pressa.
A lua cintilava na líquida expansão negra do Mar de B'an. Brighid focou os olhos na vastidão que permanecia inalterada, não importava o quão rápido seu espírito
se acelerasse. Isso ajudou a reprimir a tontura da qual não conseguia exatamente se livrar, mas foi só quando seu espírito desacelerou notadamente que ela se permitiu
olhar da água para a terra. A caçadora ofegou surpresa.
Abaixo dela, o Castelo MacCallan estava cheio de vida. Tochas ardiam nas ameias e nos muros internos. Embora fosse tarde, os sentinelas caminhavam atentamente pelo
passadiço recém-reconstruído. A visão de seu lar adotado era prazerosa e dolorosa ao mesmo tempo. Adorava revê-lo, mas isso também a entristecia. Lembrava-lhe muito
bem o quanto ela e Cuchulainn prefeririam estar ali e não dormindo numa caverna solitária à margem da Planície dos Centauros.
O destino decretou outra coisa, criança.
A voz da Deusa tranquilizou-lhe a mente como uma carícia gentil, tanto que Brighid sentiu a melancolia ceder. Em seguida a caçadora sacudiu a cabeça, envergonhada
de si mesma. Quem era ela para questionar o destino e a vontade da Deusa? Brenna aceitara seu destino de bom grado. Niam abraçara o dela com honra. Poderia Brighid
fazer menos?
Pode questionar, criança, assim como também pode escolher. Acredito que escolherá sensatamente quando chegar a hora.
Brighid baixou a cabeça, submissa pela confiança nas palavras da Deusa.
Agora observe para que tenha o conhecimento necessário quando chegar a hora...
O corpo desabou numa velocidade que fez seus olhos turvarem, até Brighid parar num solavanco. Piscando para clarear a visão, percebeu que estava planando perto do
teto do Grande Salão. Abaixo, sentados nos lugares de costume à mesa do chefe do clã, estavam Elphame e Lochlan. A única outra pessoa no salão era a cozinheira-chefe,
Wynne. Estava de pé diante da mesa. Entre eles, sobre o tampo da mesa, havia um montinho de ervas recém-colhidas. Elphame estava distraída apalpando a larga folha
verde de uma das plantas, que Brighid achava ser manjericão.
Quando Ciara entrou apressada no Grande Salão, a atenção de todos abandonou as ervas.
O sorriso de Ciara era franco e curioso ao se aproximar da mesa e fazer uma mesura graciosa.
- Mandou me chamar?
- Sim - disse Elphame. - Sei que é tarde, mas foi só agora que Wynne nos contou. E eu queria falar com você sobre isso imediatamente.
- Isso? - perguntou Ciara.
- As ervas que as crianças andam cuidando - disse Elphame, apontando para a pilha perfumada.
A testa de Ciara se enrugou quando as sobrancelhas se juntaram.
- As crianças fizeram alguma coisa errada? Geralmente são muito boas com plantas. Pensei que não causariam nenhum problema na horta da cozinha. Mas se estragaram
alguma coisa, farei com que...
- Elas não estragaram as plantinhas, xamã - revelou Wynne, interrompendo o pedido de desculpas de Ciara. - Elas as fizeram crescer.
Obviamente confusa, Ciara olhou a pilha de ervas, a cozinheira, depois as ervas novamente.
- Não entendi.
Só Brighid notou que Etain tinha entrado no salão e ouvia a conversa com interesse.
- Bom, também não entendi, mas sei o que vejo com meus próprios olhos e toco com minhas próprias mãos. No espaço de três dias em que as crianças têm cuidado delas
cresceram mais do que teriam crescido em três semanas. As crianças fizeram as ervas crescerem - afirmou.
- Mas elas já não estavam crescendo? Tudo o que as crianças fizeram foi aguá-las e arrancar o mato.
- Acho que as crianças fizeram muito mais do que isso - ecoou a voz de Etain da entrada.
- Mamãe. - Elphame olhou aliviada para a Alta Sacerdotisa e acenou para que ela se aproximasse. - Estava mesmo para mandar chamá-la.
Etain sorriu para a filha, mas manteve grande parte da atenção focada em Ciara.
- Toque as plantas, xamã. E veja se elas conseguem lhe contar o que Wynne já sabe.
Hesitante, Ciara pôs as mãos esguias sobre a pilha de ervas. Fechou os olhos e respirou profunda e purificadoramente por várias vezes. Em seguida a boca formou um
"O" de surpresa e Ciara ofegou. Quando abriu os olhos, Brighid pôde ver que estavam cheios de lágrimas contidas.
- Conte às minhas filhas o que descobriu, Ciara - pediu Etain.
- As crianças fizeram mesmo as plantas crescerem! Ah, Deusa! - Tomada de emoção, a mulher alada curvou a cabeça e pressionou a mão na boca.
- Mamãe, o que foi? O que aconteceu? - perguntou Elphame.
- Epona deu aos neofomorianos um grande dom - explicou Etain.
- Elas nasceram da morte e da destruição, conviveram com a loucura e a perda - disse Ciara em meio a lágrimas de júbilo. - E agora nossa grande Deusa nos concedeu
a habilidade de cultivar vida.
- Isso não aconteceu agora - revelou Etain à xamã. - Elas sempre tiveram o dom - vocês sempre tiveram o dom. Como acha que conseguiram produzir vida e se prender
ao amor e à esperança sem ceder ao desespero completo na desolação dos Ermos?
- É, de fato, um grande dom - disse Elphame, tomando a mão do marido e olhando para o rosto amado. - E fomos ricamente abençoados por tê-los aqui conosco.
- Vocês são nosso lar, meu coração. Não existe qualquer outro lugar onde escolheríamos estar - disse Lochlan.
- Pense no que isso significa, Elphame! - entusiasmou-se Ciara. - Podemos ser úteis na produção de comida, não apenas para o Castelo MacCallan, mas também para comércio
e...
Brighid perdeu o resto das palavras de Ciara quando seu espírito subiu pelo teto do Grande Salão para o céu da noite. Desta vez, quando o chão borrou e seu espírito
disparou para o sul, os pensamentos de Brighid estavam preocupados demais com o que tinha acabado de testemunhar para que sua cabeça girasse e ficasse tonta.
Epona dera aos neofomorianos a habilidade de fomentar vida da terra. Pouco era de surpreender que Liam tivesse tamanha aptidão para compreender os espíritos dos
animais - ele tinha sido agraciado com afinidade com a terra e o cultivo. Para compreender os espíritos dos animais era um pulo.
Brighid estava feliz por eles. Eram um povo que tinha superado o grande mal e exibido o grande bem. Foi por isso que receberam a capacidade de cultivar, renovar
e germinar.
Lembre disso quando acordar, criança.
O espírito da caçadora se reassentou no corpo e Brighid ouviu as palavras de Etain ecoarem na memória: Conte às minhas filhas o que descobriu... A sacerdotisa tinha
dito filhas, não filha.
Devia saber que Brighid estava lá. Nenhuma surpresa, pensou a caçadora, sonolenta. Etain parecia possuir olhos e ouvidos por toda parte.
A caçadora dormiu, sem sonhos, pelo resto da noite.
O aroma sedutor de veado assado penetrou seu manto de sono e Brighid finalmente abriu os olhos, piscando por causa da luz forte do meio-dia. Cuchulainn cuidava de
um pernil borbulhante que espetara sobre o fogo. Os olhos se ergueram quando ela se mexeu. Ele a observou se alongar, e Brighid notou o alívio suavizar-lhe o rosto.
- Bom dia - disse ela. - O cheiro está maravilhoso.
- Boa tarde - replicou ele, que usou uma das adagas de arremesso para fatiar um pedaço de carne do pernil e depois espetá-lo. Sorrindo, caminhou até Brighid, deu-lhe
um beijo e entregou-lhe o bocado. - Seja bem-vinda.
Brighid mordiscou a carne quente e ergueu uma sobrancelha.
- Está tentando roubar meu trabalho?
- Dificilmente. Se eu fosse a caçadora de MacCallan, o clã provavelmente passaria fome. Gastei grande parte da manhã e quatro flechas para abater esse cervo novinho
e meio estúpido.
Ela sorriu.
- A falta de inteligência dele definitivamente não afetou desfavoravelmente o sabor.
- Provavelmente porque era estúpido demais para correr - resmungou ele.
Brighid deu uma gargalhada.
- Viu, já é melhor caçadora do que pensava.
- Não sou, mas colhi algumas batatas precoces e cebolas silvestres. - Cuchulainn cutucou com a ponta da bota o que ela teria tomado por rochas margeando a fogueira.
- Precisa comer o máximo que puder hoje. Até eu sei que uma jornada ao reino espiritual pode parecer durar apenas algumas horas quando na verdade se tornam dias.
- Então não está tentando me deixar gorda e feia para os outros homens? - perguntou Brighid, querendo apagar as sombras nos olhos preocupados dele.
- Estou tentando mantê-la viva.
- Cuchulainn, aconteceu alguma coisa?
- Não... sim... não tenho certeza - disse ele, passando agitado a mão pelo cabelo. - Me sinto inquieto desde que entramos nos outeiros. E este lugar... - apontou
para a caverna - ... me deixa nervoso.
- Mas não teve um pressentimento específico?
- Não. E eu tentei. Tentei ouvir com aquele meu outro sentido. - Cuchulainn suspirou: - Nada. Não sei se é por causa da minha falta de aptidão ou se é porque não
existe nada de específico.
- Talvez o pressentimento seja para lembrá-lo de ficar vigilante.
Cuchulainn começou a retrucar que era claro que seria vigilante - então lembrou-se de que nem sempre tinha sido assim. Fora alertado da morte de Brenna e não fez
nada para evitá-la.
- Talvez... O reino espiritual é um mistério para mim. - Olhou para Brighid e forçou-se a sorrir. - Mas sei o suficiente para garantir que esteja bem alimentada
antes de nossa visita. - Cortou outro pedaço de carne e o deu a ela.
- Visita - isso soa muito melhor do que jornada ou busca - disse ela. - Devo contar que visitei o Castelo MacCallan na noite passada nos meus sonhos.
Os olhos dele se fixaram nos dela.
- Brenna?
Brighid meneou a cabeça e conteve o ciúme que a atenção rápida e o tom tenso a fizeram sentir.
- Não, não foi nada como quando você ou Brenna vinham aos meus sonhos. Na noite passada, meu espírito estava desperto e consciente. Observei a mim mesma sair do
corpo e viajar até MacCallan. E ouvi a voz de Epona.
- O Sono Mágico - disse Cuchulainn, pensativo. - Minha mãe o descreveu muitas vezes. É a maneira como Epona geralmente se comunica com ela e permite que veja eventos
importantes no momento em que acontecem. - Em seguida seu olhar contemplativo tornou-se alarmado. - Estão todos bem no castelo?
- Muito bem - garantiu-lhe. - Mas acho que realmente testemunhei um evento importante. Aparentemente os neofomorianos guardam mais do que bondade e tenacidade. Epona
os presenteou com habilidade de nutrir coisas vivas. E de acordo com relato de Wynne, essa habilidade permite que acelerem o crescimento das plantas.
- Isso deve deixar Wynne feliz.
- Isso agradou a todos, inclusive sua mãe. - Brighid fez uma pausa. - Mas não entendi por que meu testemunho era importante.
- Talvez Epona queira que saibamos que está tudo bem com o clã para não nos dirigirmos ao Outro Mundo com preocupações que nos distraiam.
- Talvez... Sua mãe alguma vez comentou sobre ser vista numa dessas jornadas de Sono Mágico?
- Não que eu lembre. Eles a viram na noite passada?
- Ninguém agiu como se tivesse, apenas sua mãe disse uma coisa que me fez imaginar isso.
Cuchulainn sorriu e puxou com cuidado uma batata quente das brasas.
- Sabe que é impossível esconder qualquer coisa da minha mãe.
- Qualquer coisa importante - acrescentou Brighid.
- Confie em mim, geralmente parece que ela sabe de tudo.
Conversaram sobre o lar, o clã e os efeitos do dom inesperado dos neofomorianos enquanto comiam a nutritiva refeição de veado, batatas e cebolas silvestres, e Brighid
sentiu a força retornando. Depois ficou debaixo da gentil queda de água fria da caverna e fitou a beleza da Planície dos Centauros. A terra chamava sua alma. Podia
encontrar integração e conforto no Castelo MacCallan, mas sabia que ele nunca teria a capacidade de emocioná-la como a terra vasta de seu nascimento. Era fim de
primavera e em alguns lugares o capim já teria crescido acima da cernelha. Os azuis, rosa e vermelhos vivos das flores silvestres de primavera teriam aberto espaço
para as compridas flores brancas rendadas conhecidas como pingos de neve e as altas margaridas de miolo marrom que podiam ser encontradas em campos inesperadamente
ativos com os zumbidos de época de verão das abelhas. Brighid ergueu a mão para abrigar os olhos do clarão do sol de meio-dia e achou que conseguia divisar pontos
pretos no horizonte que poderiam ser bisões. Em seguida, a caçadora franziu o cenho para o que mais estava sendo registrado por seus olhos aguçados.
- Seca. - Cuchulainn estava de pé acima dela na beira da clareira e também estava olhando as pradarias ondulantes.
- Foi uma primavera seca em MacCallan, mas não fazia ideia de que estava afetando tão drasticamente as planícies. - Os olhos aguçados se estreitaram conforme Brighid
descartava a névoa romântica pela qual sua visão estava espiando para que enxergasse as pradarias sob nova perspectiva. - Deveria estar verde, tão rica e viva que
ao longe deveria parecer um cenário pintado na cor das esmeraldas. - Meneou a cabeça, sentindo o estômago apertar num mau pressentimento. - Mas está com o marrom
do outono.
- Não a vejo tão seca há anos, talvez desde que consigo me lembrar - comentou Cuchulainn.
- O que começou a Guerra Fomoriana?
A testa de Cuchulainn fez uma ruga.
- O ataque ao Castelo MacCallan, claro.
Brighid meneou a cabeça, sentindo a amargura do mau pressentimento na garganta.
- Antes disso. Décadas antes disso. Por que vieram para Partholon?
Os olhos turquesa se arregalaram com entendimento.
- Foram expulsos de suas terras por uma grande seca.
- É um mau agouro, Cuchulainn. Eu sinto isso, no fundo da minha alma. Acho que é hora de levar essa caçada ao fim.
- Concordo.
- Bom. Então vou contar o que minha mãe me ensinou sobre a Busca pelo Cálice de Epona.
Quarenta e Quatro
- SE CONTINUAR PARECENDO tão deprimido, vai me deixar nervosa - avisou Brighid a Cuchulainn.
- Sinto muito. Passei tanto tempo da minha vida evitando o Outro Mundo que é difícil entrar nele por boa vontade.
- Então não pense que está entrando no Outro Mundo. Estamos seguindo um rastro, lembra? Já caçamos juntos, Cuchulainn. Isso não será diferente.
- Exceto pelos espíritos e o fato de que não estaremos nos nossos corpos.
Brighid fez cara feia.
- Tudo bem! - Ele levantou as mãos em rendição. - Estamos numa caçada.
- Ótimo. Vamos revisar o que sabemos mais uma vez. - Brighid ergueu a mão para contar nos dedos. - Primeiro, preparamos o labirinto.
Os olhos de Cuchulainn procuraram o círculo espiralado de pedras que tinham montado no centro da caverna. As pedras se desenrolavam suavemente da espiral até o pequeno
túnel e o córrego.
- Ainda não gosto disso - disse Cuchulainn, encarando claustrofobicamente o buraco apertado no fundo da caverna.
- Também não gosto muito disso, mas se encaixa com tudo que seu pai e minha mãe disseram sobre o começo da jornada espiritual. Midhir nos direcionou para cá porque
os outeiros sempre foram associados ao Mundo Inferior. Minha mãe me disse muitas vezes que usar um labirinto era uma forma fácil de começar uma jornada espiritual,
e também de retornar ao fim de uma.
- Só estamos seguindo um rastro - repetiu Cuchulainn.
- É só o que estamos fazendo - concordou Brighid. - Mas quero que se lembre de que o labirinto é o caminho de volta para esse reino.
- Lembrarei - disse ele, cerrando o queixo. - Mas não retorno sem você, deve se lembrar disso.
Brighid buscou o olhar de Cuchulainn.
- É, voltarmos juntos ou nada.
Cuchulainn fez cara feia, mas o brilho travesso estava de volta aos olhos turquesa.
- Prefiro essa parte de voltarmos juntos.
- Pare de se preocupar - disse ela.
- Próximo.
- Depois... - Brighid estendeu o segundo dedo - ... você me encontra nos meus sonhos.
O guerreiro suspirou:
- Você fala como se isso acontecesse todos os dias.
- Cuchulainn, em menos de meio ciclo da lua você entrou nos meus sonhos quatro vezes.
Ele sorriu.
- Acho que não pode contar com a última.
Brighid lhe deu uma olhada inflexível.
- Na verdade, essa conta ainda mais. Compartilhamos o mesmo sonho e nenhum de nós estava com a alma despedaçada, o que significa que nossos espíritos se encontraram
em algum lugar do Outro Mundo. Só precisamos repetir o que já fizemos. - Cuchulainn ergueu as sobrancelhas e arrancou um sorrisinho dela. - Menos o sexo - acrescentou.
- Então encontro você nos seus sonhos.
- Essa seria a melhor para começarmos.
- Agora o seu tom, sua maneira de me olhar me lembraram meu pai - disse Cuchulainn.
Brighid ergueu um dos cantos da boca.
- Isso é para fazer com que eu me sinta melhor quanto à jornada ou está me dizendo que nosso casamento está em risco?
Cuchulainn sorriu.
- Não está se concentrando.
- Terceiro... - Brighid estendeu outro dedo - ... quando nossos espíritos estiverem juntos, seguirmos pelo labirinto, a começar pelo centro, rodando e rodando até
a entrada do túnel.
- Então caímos no Mundo Inferior. - Todo traço de humor tinha deixado a voz de Cuchulainn.
- Sim, mas só porque é lá que uma Jornada Xamãnica tipicamente começa. Não ficaremos lá. Seu pai disse que o Cálice de Epona não se encontra no Mundo Inferior, e
minha mãe costumava indicar o mesmo. Acredito que o Cálice de Epona esteja no mais alto reino dos espíritos - o Mundo Superior - o reino onde a Deusa geralmente
é encontrada. - Brighid lhe tomou a mão. - Lembre-se, Cuchulainn, existem três níveis no reino espiritual - o Mundo Inferior, o Mundo Médio e o Mundo Superior. Não
podemos nos perder nos dois primeiros. Vá sempre subindo o caminho e não deixe nada persuadi-lo a ignorar nosso propósito.
- Lembrarei. Estou pronto.
- Cuchulainn, há várias coisas que minha mãe deixou bem claras sobre essa jornada. A primeira é enganosamente simples porque qualquer criancinha aprende isso quando
começa a praticar rituais e testar sua aptidão para o reino espiritual.
- Deixe os problemas da vida no reino físico. Não os carregue consigo para o Outro Mundo - disse Cuchulainn. - Sei disso tão bem quanto você.
- Você sabe - só estou lembrando você de seguir a regra - disse Brighid com seriedade. - Por nós dois.
- Por nós dois - repetiu ele, beijando-lhe a mão. - Vou apagar o fogo e garantir que o capão fique bem.
Brighid assentiu e lhe exibiu um sorriso que deveria encobrir o medo e a dúvida que espreitavam por trás da fachada confiante. Enquanto Cuchulainn organizava o acampamento,
ela caminhava de um lado ao outro da extensão da caverna, repassando os detalhes pequenos e desconexos da jornada espiritual de sumo xamã que sua mãe lhe borrifara
ao longo da infância. Uma coisa que a mãe dissera ficava rodopiando sem cessar na cabeça de Brighid: Antes de beber do cálice, você deve encarar seu maior aliado
e seu inimigo mais poderoso - e os dois são ao mesmo tempo um.
Não sabia ao que a mãe estava se referindo na época, e com certeza não tinha recebido nenhuma informação iluminada que esclarecesse o enigma agora. Só lhe restaria
dar o pulo e confiar em si mesma, na Deusa e no homem ao seu lado.
- Está tudo pronto - disse Cuchulainn, adentrando a caverna. - Ainda é o princípio da noite, com sorte estaremos de volta antes do amanhecer.
- Não conte com isso. O tempo passa diferente no Outro Mundo.
- Então vamos começar logo.
Cuchulainn estendeu a mão para Brighid, que se juntou a ele no catre que arrumaram cuidadosamente no centro do labirinto de pedras. Ao lado deles estava um odre
cheio e um embrulho de pão e queijo. A primeira coisa que deviam fazer quando retornassem era comer e beber para que seus corpos se reestabelecessem no reino físico.
- Estamos esquecendo alguma coisa. - Brighid olhou ao redor da caverna até encontrar o que precisava na bainha de Cuchulainn. Puxou com cuidado a lâmina reluzente
e voltou para o marido no centro do labirinto. Ele ergueu uma sobrancelha.
- Eu me sentiria melhor se você segurasse isso. Sei que não pode levá-la fisicamente conosco, mas todas as coisas possuem alma. Talvez o espírito de sua espada se
digne a nos acompanhar.
- Aliviaria minha mente se ela o fizesse - comentou Cuchulainn, fechando a mão no punho familiar.
Deitaram-se no catre, encaixando os corpos. Brighid suspirou, contente que a falta de jeito físico que antes existira entre eles tivesse desaparecido. Pressionou
a cabeça no peito largo. Antes de fechar os olhos, tocou a pedra de turquesa alojada entre os seios.
- Apenas respire, Cuchulainn. Relaxe o corpo e faça sua alma acompanhar a batida de seu coração até mim - murmurou.
- Estarei lá. Não a deixarei sozinha.
Brighid o beijou antes de fechar os olhos e começar a respiração profunda e purificadora que a induziria ao estado de transe. Era um exercício simples para ela.
Usava-o com frequência para seguir os rastros espirituais dos animais. Então entrou em estado meditativo rápido. Só que desta vez, em vez de focar a concentração
na presa escolhida, a caçadora bloqueou tudo, exceto a batida do coração de Cuchulainn.
Os tambores xamãnicos são a maneira mais fácil de encontrar uma abertura para o Outro Mundo. Tudo na vida pulsa com eles. Escute e encontrará uma abertura para o
espírito da terra.
A mãe tinha dito essas palavras para uma Brighid muito jovem que reclamara quando Mairearad demorou muito tempo para escolher um simples tambor. Brighid lembrava-se
de estar ansiosa para deixar a multidão e o calor do mercado ao ar livre, e ao menos uma vez a mãe não a repreendeu pela reclamação. Preferiu explicar à filha por
que a escolha do tambor era importante para uma sumo xamã.
Na época, Brighid desconsiderara as palavras da mãe, ficando apenas grata porque de alguma forma tinha evitado uma reprimenda. Agora estava usando a memória para
começar sua própria busca. Não possuíam um tambor, e mesmo que possuíssem um Cuchulainn não desejaria ficar nesse reino batendo nele enquanto Brighid entrava no
Outro Mundo sozinha. Ponderou sobre as palavras da mãe, tentando encontrar um meio-termo. Mairearad tinha dito que tudo na vida pulsa ao som dos tambores... vida...
a pulsação da vida... e de repente Brighid soube com clareza. O coração do marido seria a cadência vital que ela seguiria até o Outro Mundo.
Então pressionou a cabeça ao peito dele e deixou a forte cadência guiá-la.
Tump-tump... tump-tump... tump-tump... tump-tump...
Era mais mágica que um tambor, mais primitiva e real, e Brighid a acompanharia com satisfação até os confins da Terra.
Quando o espírito dela saiu do corpo, foi uma sensação diferente da vivenciada nos sonhos ou mesmo no Sono Mágico. Seu espírito estava rodeado pelo calor da pulsação
de Cuchulainn, e Brighid ficou por um momento parada ao lado dos corpos deles, ouvindo com a alma.
- Estava certa. Não foi tão difícil quanto pensei - disse Cuchulainn. Estava de pé ao lado dela, o corpo iluminado por um delicado brilho dourado. Na mão, ele apertava
uma cintilante espada branca.
- Ela veio com você - disse Brighid.
- Acho que a segurei tão forte que ela teve pouca escolha - disse o guerreiro. Em seguida, Cuchulainn ergueu a outra mão para lhe tocar o rosto. Brighid sentiu a
carícia como uma brisa morna sobre seu espírito. - Você fica incrivelmente linda assim, toda prateada e reluzente.
- Você está dourado - disse Brighid, tocando-lhe o ombro com delicadeza.
Ele olhou para sua própria forma espiritual e grunhiu. Depois ergueu os olhos.
- Vamos.
- Temos que seguir o labirinto. Sempre à direita na jornada para lá, e à esquerda quando retornarmos - disse ela, tomando a direção apropriada e começando a espiral
circular.
Conforme seguiam a trilha de pedras, Brighid notou que as paredes da caverna mudaram, escureceram numa caverna tão vasta que quando alcançaram o que costumava ser
um pequeno buraco no fundo se viram de pé diante de uma áspera porta rochosa na qual estava escrito awen.
- Inspiração - murmurou Brighid. - É o que significa na língua antiga dos xamãs.
- Sua mãe contou isso?
Brighid sentiu a alma estremecer de animação.
- Não. Ninguém me contou. Apenas compreendi.
- Então é por aqui que vamos. - Cuchulainn abriu a porta e ergueu a espada de forma protetora. Mas antes que pudesse dar um passo adiante, Brighid tocou-lhe o braço.
- Tenho que seguir na frente a partir daqui, Cuchulainn.
Seu assentimento foi pouco mais do que um movimento da cabeça, mas Cuchulainn ficou de lado para deixá-la preceder pela entrada. Brighid arfou, depois desapareceu.
- Brighid! - chamou ele, segurando a espada diante de si e preparando-se para mergulhar atrás dela na escuridão.
Então uma risada borbulhou lá de baixo.
- Não é nada mal, apenas relaxe e siga o ensejo.
Acompanharia o ensejo porque ela estava lá embaixo, mas dificilmente relaxaria. Cerrando os dentes e apertando bem a espada, passou pela entrada e seu corpo caiu.
Foi espiralando suavemente para a direita, lembrando-lhe das poucas vezes em que nevara o suficiente para que o chão do templo da mãe ficasse coberto pela brancura
escorregadia e ele, El e os gêmeos construíssem trenós infantis e descessem por qualquer superfície que fosse ao menos inclinada.
Quando os pés tocaram o chão, Cuchulainn levou um momento para se reorientar. Desta vez ele e Brighid estavam parados diante de um portal redondo. Brighid lhe tocou
o braço novamente.
- Tenha cuidado. Esta é a entrada para o Mundo Inferior. É o nosso destino.
Sem esperar por resposta, atravessou o portal e emergiu num mar de nevoeiro. A névoa cinza lambeu seu corpo espiritual, fazendo-a tremer. Ouviu o resmungo surpreso
de Cuchulainn e logo deu um passo atrás para entrelaçar os dedos nos dele.
- Pela mão da Deusa! Foi onde nos encontramos no nosso último sonho - sibilou Cuchulainn.
- Brighid... - A voz desencarnada veio da névoa e arrepiou a espinha da centaura. - Brighid... - repetiu a voz.
- Não devemos ficar aqui. - A voz de Cuchulainn refletia a tensão dele.
- Espere, Cuchulainn. Conheço essa voz.
A névoa diante deles se partiu e Niam apareceu.
- Niam! - gritou Brighid, avançando automaticamente para cumprimentá-la, mas a irmã deu um passo para trás, ao mesmo tempo que Cuchulainn segurava o braço da esposa.
- Irmã, não deve entrar no Mundo Inferior nessa jornada. - Depois Niam sorriu e o rosto iluminou-se, fazendo o coração de Brighid apertar. - Só estou aqui para fazer
uma pergunta. A resposta decidirá se deve prosseguir ou se deve retornar ao mundo físico. - Mas em vez de fazer a pergunta, Niam se voltou para o guerreiro ao lado
da irmã. - E o que fará se minha irmã não beber do Cálice de Sumo Xamã? Dirá que o casamento foi um erro e voltará ao conforto de seu castelo, para aqueles que o
amam?
- Não me conheceu em vida, então não vou ficar ofendido com a pergunta. Não creio que queira me insultar; por causa disso, responderei. Quer Brighid beba ou não
do Cálice de Epona, nosso casamento não vai terminar. Aonde ela for, eu irei. Ficarei ao lado dela se o fogo tentar nos queimar, se os mares tentarem nos afogar,
se a terra estremecer em desordem. E honrarei o nome dela como se fosse o meu até a morte e, se Epona permitir, muito além.
- Só porque sua resposta mais parece um juramento? - perguntou o espírito de Niam, impassível com a resposta do guerreiro.
- Porque ao fazer o juramento entreguei a ela meu coração. Para mim, é tudo a mesma coisa.
Niam enfim sorriu, parecendo muito com a irmã mais velha.
- Apesar de ser apenas um humano, talvez seja digno dela. - Então o olhar abandonou o guerreiro e se focou novamente na irmã. - Por que deseja se tornar sumo xamã,
Brighid?
Tomada de surpresa pela pergunta da irmã, Brighid só conseguiu piscar e encarar a centaura adorável que fora tão frágil durante a vida e que agora, morta, parecia
muito forte e confiante.
- Responda agora, Brighid Dhianna! - A boca de Niam formou as palavras, mas a voz soou estranha e poderosa. Mas fez Brighid falar: - Quero me tornar sumo xamã porque
estou cansada de tentar escapar das responsabilidades com as quais nasci. Muitas tragédias, desde a morte de uma menina há muito tempo, até sua morte recentemente,
aconteceram porque me recusei a encarar meu destino.
- Qual é seu destino?
- Acabar com a praga que o reinado da minha mãe espalhou.
- E quanto aos seus desejos pessoais?
Brighid ergueu o queixo.
- Eu pertenço a Cuchulainn e ele, a mim - quer eu tenha ou não a capacidade de me transformar.
Niam sorriu e a voz voltou ao normal: - Quando falei de desejos pessoais, não me referia ao seu marido, irmã. Como sumo xamã, você deterá grande poder. Que me diz
disso?
Desta vez, Brighid pensou antes de responder. Sempre gostou da sensação de sentir os espíritos dos animais. Dependia dessa habilidade e a usava para o bem. E lembrou-se
do ímpeto de agitação que sorver o espírito de Cuchulainn lhe trouxera. Não apenas beijá-lo pela primeira vez, mas possuir o poder de guiar o espírito dele de volta
ao corpo. Poderia se opor a Ciara, Cuchulainn, e até mesmo Etain, mas sabia que no fundo da alma se deliciava com o poder que fervia em seu sangue.
Procurou pelos olhos de Niam devagar.
- Acho que terei que ser muito cuidadosa para utilizar com sabedoria tamanho poder - ouvir mais à Deusa e à minha própria consciência do que às emoções e desejos.
O sorriso da irmã foi radiante.
- Então que Epona os abençoe com seu cálice. - Niam fez um amplo floreio com o braço, e à direita da caçadora e do guerreiro a névoa se revolveu e borbulhou antes
de se entreabrir para expor um lance de degraus de pedra cinza que subiam e desapareciam em meio a mais cinza.
Brighid se virou para se despedir da irmã, mas a névoa já tinha se fechado, obscurecendo a silhueta da centaura. A caçadora aprumou os ombros e disse a Cuchulainn:
- Vamos subir.
Quarenta e Cinco
OS DEGRAUS ERAM largos o bastante para permitirem que Cuchulainn os subisse ao lado de Brighid. Quando entraram na névoa outra vez, ele manteve a espada de prontidão.
Talvez isso não devesse confortá-la, mas confortava.
Por fim a escada de pedra terminou e um vento morno varreu o rosto deles, dissipando a névoa para revelar que estavam de pé numa plataforma com vista para um brilhante
rio de luz. Os olhos de Brighid e Cuchulainn foram compulsivamente atraídos para as águas cintilantes. Enquanto observavam, o líquido marulhante rodopiou e cenas
do passado de cada um tomaram forma fantasmagórica dentro das profundezas cristalinas.
Cuchulainn quando menino, levantando sua primeira espada verdadeira... Brighid correndo com abandono selvagem por um mar de capim alto... Cuchulainn segurando Elphame
nos braços enquanto Brighid carregava ambos no lombo até a segurança do Castelo MacCallan... Brighid curvada sobre os rastros em forma de garra, lendo a história
da morte de Brenna...
- Pare! - gritou Brighid, segurando os ombros de Cuchulainn e girando-o para que ficasse de frente para ela. - Não olhe para o rio!
- O que foi? - A voz dele estava rouca, mostrando que Cuchulainn estava profundamente mexido.
- É o Mundo Médio. - Diante do olhar vazio, Brighid quis praguejar e ralhar com ele por não prestar atenção direito às lições sobre o Outro Mundo. Terá que aprender
mais tarde. Mas agora não era hora de ralhar com ele, então preferiu explicar: - O Mundo Médio é o lugar das jornadas no tempo e espaço. O rio nos mostrará seu passado,
meu passado, o passado do nosso mundo, até mesmo o de outros mundos e lugares que nos são estranhos. Seria fácil se perder aqui - aconteceu com muitos. Mas não podemos
deixar que o rio capture nossas almas, Cuchulainn. Devemos prosseguir.
- Ele pode me mostrar Brenna, a morte dela, ou até a última vez em que estivemos juntos em vida.
- Pode - disse Brighid, ignorando a dor que as palavras dele lhe causavam. - Se realmente quiser, pode ficar aqui perdido nas águas do passado. Não vou odiá-lo por
isso. Até o liberaria do juramento que me fez. - Então Brighid respirou fundo e não deixou que a aflição ou o anseio matizasse suas palavras. A voz era a de uma
caçadora forte em suas convicções e confiante em si mesma. - Mas saiba disso, Cuchulainn. Quero que tome sua decisão e quero que seja agora. Escolha Brenna e o passado
de vocês, ou a mim e nosso futuro. Eu também a amava, mas não dividirei meu marido com um fantasma.
Cuchulainn se sobressaltou como se tivesse recebido um golpe, depois piscou e olhou ao redor como se apenas agora compreendesse realmente onde estavam. Quando seus
olhos tocaram a superfície atraente do rio, desviou depressa o rosto.
- Escolho você e nosso futuro. Escolhi isso quando nos casamos e não pretendo ficar livre desse juramento nem agora nem nunca. Por mais que este Reino dos Espíritos
torne o passado sedutor.
- Então vamos - disse ela, sem querer dar voz ao alívio que as palavras dele a fizeram sentir.
- Para onde?
A caçadora apontou o queixo para a direita.
- Por ali.
Cuchulainn se virou e viu uma porta aberta que levava para o interior negro do que obviamente era um monte funerário, cujo exterior estava coberto por grama e flores.
Grandes lajes de pedra branca achatada delimitavam a porta. Cuchulainn ficou de lado para que Brighid o precedesse, mantendo atentamente os olhos na caçadora e não
no rio prateado que cintilava sedutoramente à margem de sua visão.
Quando Brighid entrou no monte escuro, o som do guincho zangado de um corvo ecoou atrás deles, e com uma intuição que parecia sobrenaturalmente aprimorada pelo poder
do reino espiritual Brighid soube que sua mãe de alguma forma tinha orquestrado a tentação do Mundo Médio a Cuchulainn.
O que significava que devia ser importante que o guerreiro a acompanhasse - se Cuchulainn fosse insignificante, não seria alvo de Mairearad.
- Tudo bem? Por que paramos? - A voz de Cuchulainn soou na escuridão atrás dela.
- Está tudo bem, Cuchulainn. - Mesmo que ele não pudesse enxergar no escuro, Brighid apontou com a cabeça um fraco facho de luz mais à frente. - Vamos seguir aquela
luz.
Andaram depressa e logo se viram no limiar de outra porta, que era iluminada pelo luar. Juntos, transpuseram a porta para o Mundo Superior.
Diante deles se estendia uma densa floresta. Mesmo sob o luar, podiam ver que as árvores, a grama e as flores estavam pintadas com cores estranhamente vivas. Três
caminhos saíam da entrada onde estavam, cada um desaparecendo nas profundezas verdejantes da floresta.
- Qual deles seguimos? - perguntou Cuchulainn.
Brighid clareou a mente e tentou sentir o caminho, depois suspirou frustrada por não se sentir guiada por nenhum deles em particular. De fato, ao estudar cada um
deles com mais atenção, percebeu que estava enganada. Não que nenhum dos caminhos não a chamasse. A verdade era que todos eles a atraíam. A música que fluía de cada
um deles era encantadora e mágica, fazendo-a querer nada mais do que se livrar da rede de responsabilidades na qual aquela busca tentava enrodilhá-la. Poderia ficar
ali e seguir aqueles caminhos por uma eternidade. Poderia correr por eles, assim como saía em disparada pela Planície dos Centauros na juventude. Estaria livre,
feliz e rodeada por música, depois...
- Brighid!
A centaura piscou e meneou a cabeça, tentando livrar a mente do chamado sedutor da música.
- Brighid! Não pode me deixar!
Os olhos dela clarearam no mesmo instante em que a música parou. Cuchulainn a encarava com olhos arregalados. Tinha enfiado a ponta da espada no chão entre eles
e com ambas as mãos segurava Brighid, que tentava se desvencilhar e sair em disparada por qualquer um dos três caminhos.
- Eu... eu estou aqui. Estou de volta - respondeu ela, a voz ficando mais forte conforme continuava falando: - Foi a música. Ouviu a música me chamando?
- Não ouvi nada além do guincho de um corvo. - A voz dele estava inflamada. - Nada mais, Brighid. Você não fez som nenhum. Primeiro não se mexia, não respirava,
não me respondia. Seus olhos estavam vazios. Depois começou a avançar como se fosse uma morta-viva. Mesmo quando a agarrei para que não se afastasse, você agia como
se eu não estivesse aqui - ou talvez fosse você quem não estivesse mais aqui.
- Estou de volta. - Tocou-lhe o rosto com carinho, estremecendo por saber que a mãe tentara enfeitiçá-la também. - Você me chamou de volta.
- Sempre chamarei você de volta de onde quer que vá. - Com relutância, deixou que as mãos soltassem as dela. Cuchulainn puxou a espada do chão e passou a mão pelo
cabelo. - Mas agradeceria se não sumisse novamente.
Ela sorriu antes de voltar a atenção para os três caminhos. Desta vez, quando a música encantadora sussurrou, Brighid resistiu, recusando-se a ceder à sedução. E
conforme resistia, a música se transformou até não ser mais do que o eco do grito zangado de um pássaro. Então sentiu a pedra que pendia entre seus seios esquentar.
Instintivamente, fechou a mão sobre a turquesa e palavras estranhas e inexpressivas passaram por sua mente quando o espírito da pedra falou com ela: Lembre-se de
quando me recebeu.
- A águia - murmurou Brighid. Então sorriu e falou as palavras com confiança: - Chamo por meu guia espiritual, a águia dourada!
O grito ecoou do céu enluarado quando a ave veio em disparada, circulou Brighid uma vez e depois se empoleirou regiamente no galho mais baixo de um dos antigos carvalhos
à beira da densa floresta.
Brighid curvou a cabeça para a ave e cutucou um pasmo Cuchulainn para que fizesse o mesmo.
- Obrigada por atender ao meu chamado - agradeceu Brighid.
A águia dourada inclinou a cabeça para estudar a caçadora.
Quer continuar a jornada? A pergunta ressoou claramente na mente de Brighid. Pelo canto dos olhos, viu Cuchulainn se sobressaltar surpreso, então compreendeu que
ele também podia ouvir a ave.
- Quero.
Então me diga, caçadora, qual desses três caminhos escolheria?
- Nenhum deles. - Brighid não hesitou, apenas deu a resposta que lhe pareceu mais verdadeira em sua alma. Se a criatura de sua mãe tentara impeli-la por aqueles
caminhos, deveria negar-se a ir, mesmo que a logística de entrar na floresta por outro caminho parecesse impossível. Era como se, no curto espaço de tempo em que
ficaram parados diante da antiga floresta, as árvores tivessem engrossado e o que a princípio parecera um carpete macio de grama tivesse se transformado numa barreira
de arbustos e sarças. O único jeito de entrar na floresta era claramente um dos três caminhos - todos os quais ela acabara de rejeitar.
Escolheu com sabedoria. Acompanhe-me, caçadora, e torne-se quem está destinada a ser.
A águia deixou a árvore, voando impossivelmente baixo entre dois carvalhos imensos direto para dentro da floresta agourenta.
- Talvez eu deva ir na frente desta vez - disse Cuchulainn.
Brighid concordou, aliviada por Cuchulainn não ter discutido ou questionado por que estavam seguindo a águia através daquela bagunça em vez de entrarem na floresta
através dos caminhos claramente marcados.
O guerreiro ergueu a espada e retalhou os espinhos de aparência perigosa. Brighid o ouviu rosnar de surpresa. Ela espiou por cima do ombro dele e viu que quando
a luz branca da espada tocava a barreira espinhosa as plantas desapareciam em pequenas nuvens de fumaça verde. Cuchulainn a olhou de relance, sorriu e adentrou a
floresta atrás da ave. Resoluta, Brighid o acompanhou, notando que, mais uma vez, a águia os guiava intencionalmente para longe de qualquer trilha preestabelecida
- como fizera quando os guiou através dos Outeiros Azuis.
A floresta abria caminho para Cuchulainn com crescente facilidade. Logo ele não precisou mais usar a espada, e os dois seguiram a águia facilmente. O que a princípio
parecera impenetrável, tinha se transformado por completo. Ainda era exuberante em árvores antigas, mas o leito florestal estava limpo, plano e acarpetado com uma
greda de folhas aromáticas. Viajar por ali era um deslumbramento, não uma dificuldade.
De repente Cuchulainn parou de caminhar.
- Pela Deusa... - murmurou. - Olhe aquilo.
Acompanhando o olhar do guerreiro, Brighid ofegou. Bem à esquerda de onde estavam, o chão da floresta se abria subitamente como a bocarra de uma fera grande e misteriosa.
Cada um dos três caminhos que a chamavam com a música sedutora de sua mãe terminava naquele buraco espantoso. Brighid sabia que nem o teria visto. A música a cegaria
e ela teria caído naquele poço. Só a Deusa sabia onde ele terminava, mas certamente não levava ao Cálice de Epona. Se Brighid tivesse escolhido um dos três caminhos
fáceis, sua busca teria se encerrado ali.
Às vezes escolher o que parece impossível é a única maneira de encontrar o caminho para o futuro.
A voz da águia soou na mente dela novamente conforme suas asas farfalhavam no ar acima da cabeça deles, conduzindo-os para bem longe do poço. Eles seguiram a ave.
Não tinham caminhado muito quando a floresta cedeu espaço para uma clareira relvada, brilhante com a luz prateada da lua. No centro havia uma bacia de pedra, que
estava coberta com entalhes de nós e runas antigos, todos entrelaçados na forma graciosa da silhueta da Deusa com os braços erguidos sobre a cabeça, de modo a parecer
que as mãos de Epona estavam tocando a água que borbulhava da fonte. Sobre a beira da bacia estava um reluzente cálice dourado com o nó triplo das éguas de Epona
a decorá-lo. A águia circulou a clareira três vezes antes de se empoleirar no único carvalho que sombreava a fonte borbulhante.
- É o Cálice de Epona - disse Brighid numa voz abafada e reverente.
- Vá, meu amor. Pegue o que é seu por direito.
- Só se vier comigo - respondeu ela.
Cuchulainn a beijou com carinho.
- Onde quer que vá, lá eu estarei também.
Juntos caminharam até a bacia, mas, conforme se aproximavam, Cuchulainn instintivamente desacelerou os passos e deixou Brighid seguir na frente. Ele a vigiaria e
protegeria, mas não podia compartilhar do que ela estava prestes a vivenciar.
Brighid foi lentamente até a bacia. Mas em vez de encher imediatamente o cálice e beber, concentrou sua atenção na água. Ela borbulhava a partir do centro da bacia,
cintilando como luz líquida. Brighid afundou a mão na água. Parecia viva. Quando ergueu a mão, a água que escorreu se assemelhava a contas de luar caindo de seus
dedos. Então ela fitou a bacia, cuja superfície estremeceu, como se uma rajada de vento tempestuoso a tivesse açoitado. Os olhos de Brighid se arregalaram. Na água
ela viu o reflexo do irmão tomar forma. Ele também estava diante da bacia. Enquanto ela observava, Bregon espiou as profundezas da água, exatamente como Brighid
tinha feito. Mas ele não tocou a água, seu rosto não registrava o espanto que preenchera Brighid ao entrar no bosque de Epona.
- Inimigo - aliado... Não tenho tempo para isso! - A voz de Bregon ecoou assustadora do passado refletido. - O que mais importa é que fui bem treinado e que usarei
meu poder por minha manada. - Sem mais palavras, as mãos dele se fecharam possessivamente ao redor do Cálice de Epona. Bregon o afundou na água, levou-o aos lábios
e bebeu avidamente. Quando terminou de beber, jogou o cálice na bacia, atirou a cabeça para trás e gritou vitorioso.
Embora seu estômago parecesse contraído e enjoado, Brighid continuou assistindo ao irmão dar as costas para a bacia e desaparecer na floresta. Então seu fôlego ficou
preso na garganta. Quando olhou novamente a bacia, o leve contorno do espírito ainda permanecia lá. Outra silhueta do centauro se formou no meio do bosque, depois
os contornos cintilantes de outro e mais outro apareceram próximo às árvores. Deusa! Todos eram Bregon! Seu corpo estava quase que completamente transparente em
cada uma das aparições, fazendo com que Brighid só conseguisse identificar vagamente a forma quando se focava no fraco cintilar prateado que contornava o corpo.
Todos os espíritos do irmão estavam encarando silenciosamente o mais substancial deles, o centauro que estava ao lado da bacia. A cabeça estava curvada e, enquanto
os outros olhavam, ele recuperou o cálice descartado e o recolocou no lugar. Deixou de encarar o reflexo e olhou diretamente nos olhos da irmã. O rosto fantasmagórico
estava banhado em lágrimas.
Então ele e os outros desapareceram.
Brighid sabia que tinha testemunhado o irmão bebendo do Cálice de Epona. Ele era o sumo xamã agora - estava certa disso. Tão certa quanto estava de ter visto no
reflexo do passado na bacia o despedaçamento da alma de Bregon. Uma súbita onda de tristeza obscureceu a preocupação que Brighid sentia pela manada. Bregon deixara
tanto da alma para trás! Cuchulainn só tinha vivenciado uma única perda do espírito, o que lhe transformara numa triste casca de si mesmo, tão desolado e desesperançado
que pensou em acabar com a própria vida. Não conseguia imaginar o que estaria acontecendo ao irmão. Como poderia viver tão fragmentado?
Brighid suspirou e deixou os dedos deslizarem sobre a água viva novamente. Tudo isso era tão errado. Como o veneno de uma mulher podia viver após sua morte para
destruir a geração seguinte?
- Está atrasada, irmã.
Com um sobressalto, Brighid girou o corpo. O irmão estava diante dela. Não o fragmento triste e desconsolado que tinha acabado de lamentar. O centauro que a encarava
irradiava poder - um poder que ela ainda não tinha provado.
Quarenta e Seis
BRIGHID SE REVESTIU com o manto de fria indiferença que usara por grande parte da vida. O sorriso foi educado e desinteressado.
- Olá, Bregon.
Os olhos dele se estreitaram em fendas.
- Largue suas pretensões e vá embora, irmã. Não há razão para que beba do Cálice de Epona. Você escolheu outro caminho para sua vida. Nossa mãe ficou satisfeita
com sua escolha. Eu fiquei satisfeito com sua escolha. Volte para a floresta das pessoas que ama tanto. Nossa manada não precisa de você.
- Nossa mãe era uma centaura triste e ardilosa cuja sede de poder fez com que nunca ficasse satisfeita com nada, Bregon. O dia em que aceitar isso será o dia em
que ficará livre do fantasma dela.
- Então sabe que ela está morta.
- Sim, eu sei. Niam me contou.
Os lábios de Bregon se retorceram de escárnio à menção da irmã.
- Ela morreu para me trazer a notícia - prosseguiu Brighid.
A expressão presunçosa deixou o rosto de Bregon.
- Niam? Está morta?
- Nossa irmã correu até morrer. Acabar com o ódio que nossa mãe alimentou significava mais para ela do que a própria vida.
Bregon passou as mãos pelo rosto, mas ao voltar a encará-la Brighid teve o primeiro vislumbre real do estranho de alma dura no qual o irmão se tornara.
- Niam sempre foi tola e fraca. Viveu assim. Morreu assim.
- Não é tolice nem fraqueza dar sua vida por outra - disse Brighid.
- É se o valiosíssimo esforço não serve de nada - zombou ele.
- Olhe à sua volta, Bregon. É por causa de Niam que estou aqui. - A voz dela se intensificou ao atirar as palavras contra ele. - É por causa de Niam que beberei
do Cálice de Epona. E é por causa de Niam que retornarei à Planície dos Centauros para assumir a posição que meu nascimento me garante - Sumo Xamã da manada Dhianna.
- Não, irmã. Acho que não. - Quando Bregon falou, seus olhos se tornaram dissimulados e ele avançou na direção do Cálice de Epona.
Com a graça de um mestre guerreiro, Cuchulainn se pôs tranquilamente entre o irmão de Brighid e o cálice.
- Eu pensaria melhor, Bregon - avisou Cuchulainn, a voz enganosamente impassível.
Bregon pulou de surpresa. Em seguida, sua expressão exibiu divertimento.
- Um homem?
- Veja, Brighid, justo quando eu estava começando a duvidar da inteligência do seu irmão ele consegue me maravilhar com seus aguçados poderes de observação - disse
Cuchulainn com cordialidade.
Brighid não conseguiu conter uma risada, cujo som enfureceu Bregon: - Como ousa falar comigo dessa maneira, homenzinho insolente!
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas, como se Bregon o tivesse divertido ao invés de insultar.
- É verdade que sou apenas um homem, mas isto... - ele brandiu a reluzente espada branca - ... costuma suprir minha falta de cascos.
- Está no Outro Mundo agora, seu tolo. Espadas são armas do mundo físico. Aqui você precisa de poder concedido pelos espíritos. Poder como este. - Bregon agitou
as mãos no ar, como se estivesse apanhando insetos invisíveis. Depois murmurou algumas palavras ininteligíveis e atirou o nada invisível em Cuchulainn. Por instinto,
o guerreiro ergueu a espada e uma bola de luz estalou e explodiu de encontro à espada branca.
- Mas isso não é possível! - esbravejou Bregon. - Ela não deveria protegê-lo! É uma espada!
Cuchulainn repuxou os lábios num rosnado.
- É o espírito de uma espada. Quem está sendo tolo agora, Bregon? Por que razão uma espada seria tangível no Reino dos Espíritos? - Como o centauro apenas o encarava
sem falar, Cuchulainn respondeu a própria pergunta: - Minha espada tem poder aqui porque está me ajudando a cumprir um juramento que é válido em todos os reinos.
- Um juramento? O que...
- Bregon, conheça Cuchulainn MacCallan, filho de Midhir e Etain. Ele é meu marido - anunciou Brighid.
O rosto de Bregon ficou frouxo de choque.
- Você se casou com este homem?
- Casou - respondeu Cuchulainn, que começou a avançar na direção de Bregon. - E mesmo no Outro Mundo minha espada protegerá a vida dela porque jurei que isso me
é mais caro que minha própria vida. - Parou quando a ponta da espada pressionou o peito do centauro. - Agora deve partir antes que eu faça algo que sugeriria que
não estou honrando o nome dela como honro o meu.
Bregon se afastou devagar de Cuchulainn, que o deixou ir, tendo o cuidado de manter a espada de prontidão. Só antes de alcançar a borda da floresta o centauro voltou
a olhar para onde a irmã estava ao lado da bacia.
- Não desistirei daquilo pelo que lutei para conquistar - disse.
- Escutei você, Bregon. Agora me escute. Colocarei um fim no ódio e na divergência que minha mãe semeou durante sua vida infeliz. Eu lhe juro. Pode escolher ficar
comigo ou contra mim. Mas se ficar contra mim, vou apartá-lo da manada, como eu faria com qualquer traidor.
- Já fiz minha escolha. Quando você entrar na Planície dos Centauros, melhor ir com mais do que esse homenzinho. - Bregon cuspiu na direção dela, depois desapareceu
na floresta.
Cuchulainn ficou perto da margem da floresta, mantendo seus olhos aguçados nas formas e sombras que oscilavam lá dentro.
- Brighid, eu respiraria muito mais aliviado se você bebesse do cálice agora e nós voltássemos à caverna.
- Só mais um momento - avisou a ele. - Preciso ter certeza de que... - As palavras sumiram quando os dedos tocaram a lateral do cálice. Tinha que ter certeza do
quê? Não sabia - só sabia que não era seu irmão e que não pegaria a taça, a usaria insensivelmente e a descartaria.
É a sua vez agora, criança amada.
Brighid deixou de admirar o cálice. Uma mulher, vestida num rico vestido de samito, estava caminhando na direção dela através da clareira. Parecia deslizar sobre
uma piscina de raios de luar. Ao se aproximar de Brighid, a mulher mudou de forma, transformando-se da bela donzela loira numa dama de meia-idade cujo corpo era
forte e proveitoso, depois numa velha anciã com cabelo de cor de neve. Mas sua transformação não parou aí - num instante era uma mulher, em seguida era uma elegante
égua prateada, depois uma poderosa centaura que carregava o arco de uma caçadora na mão direita, então criou asas e tomou a forma de uma menina neofomoriana.
Ofegante de assombro, Brighid desviou o olhar e fez uma profunda reverência à Deusa.
- Salve, Epona! Deusa de tudo o que é selvagem e livre. Vim até seu bosque porque...
- Criança - disse a Deusa numa voz surpreendentemente gentil. - Sei por que veio.
Brighid ergueu os olhos. Epona assumira a forma de uma mulher na flor da juventude. Ainda estava trajada no vestido de samito branco, que se moldava às curvas generosas
exibindo a beleza voluptuosa que era o Feminino Divino.
- Claro que sabe por que vim. La-lamento, não pretendia... - Desta vez, Brighid se interrompeu. Fechou os olhos e tentou controlar o tremor dentro de si. Quando
os reabriu, disse: - Epona, peço permissão para beber do seu cálice e assumir a responsabilidade de sumo xamã para a manada Dhianna.
Epona a estudou com atenção.
- Você viu seu irmão no reflexo da bacia.
Não era uma pergunta, mas Brighid assentiu.
- Sim, Deusa.
- Notou que ele não pediu minha bênção? Pegou, bebeu e depois partiu.
- Não sou meu irmão, Deusa.
Os lábios carnudos de Epona se ergueram.
- Você possui a aparência de sua mãe, mas não o coração. Escolheu um caminho diferente.
- Espero que sim, Epona.
O olhar da Deusa se deslocou para o canto distante do bosque e o sorriso que se esboçava nos lábios se alargou.
- Ah, Cuchulainn! Pode se aproximar de mim.
Cuchulainn tinha se ajoelhado no momento em que Epona se materializou no bosque, portanto se levantou e se aproximou da Grande Deusa com o coração martelando dolorosamente
no peito.
- Salve, Epona! - disse, fazendo uma grande reverência.
- Estou satisfeita por vê-lo aqui no meu bosque sagrado, Cuchulainn. Sendo filho da minha amada encarnada, fiquei desapontada por ter rejeitado os dons que lhe concedi
por amor à sua mãe.
- Perdão, Deusa. Custou-me um longo tempo amadurecer.
Epona assentiu, pensativa:
- Uma resposta sábia e verdadeira. - A Deusa apontou para a espada reluzente que ele ainda segurava na mão. - Teria derramado o sangue de Bregon aqui no meu bosque?
Cuchulainn respondeu sem hesitação:
- Para proteger Brighid, sim, eu teria.
- Mesmo que com isso conquistasse meu desagrado?
- Só podia esperar que quisesse que eu honrasse o voto que fiz a Brighid, testemunhado por você e minha mãe, e que por causa desse voto fosse misericordiosa e me
perdoasse por impurificar seu bosque sagrado. - Cuchulainn se curvou novamente com humildade diante da Grande Deusa.
Epona ficou em silêncio, estudando o guerreiro. Quando falou, a voz era pensativa: - Acredito que lhe concedi os dons errados. Um guerreiro consideraria visões e
pressentimentos preordenados como algo contra o que deveria lutar. Pouco surpreende que tenha sido uma condição desconfortável para seu espírito. Tomo de volta os
meus dons, Cuchulainn. - Ao falar, Epona fez um gesto de invocação com a mão, então Cuchulainn arfou e cambaleou. - Em troca lhe concedo o dom da clarividência.
- A Deusa afundou a mão na bacia e depois aspergiu três gotas d'água no guerreiro. - De agora em diante, você possui a habilidade de ver de uma maneira sagrada as
formas de todas as coisas em espírito. Conhecerá a verdadeira alma que preenche o invólucro do corpo. Verá através da escuridão da vida.
Cuchulainn se prostrou de joelhos, dominado pela onda de poder que invadiu seu corpo.
- Use seu dom com sabedoria, Cuchulainn MacCallan, filho da minha amada escolhida. Nunca deixe sua espada acabar com a vida de alguém cujo espírito é redimível.
- Tentarei ser sábio, Grande Deusa - disse Cuchulainn com voz embargada.
A Deusa sorriu e tocou-lhe a cabeça. Depois se voltou para a caçadora.
- Por que hesitou em beber do meu cálice depois que seu irmão deixou meu bosque?
- Na infância, minha mãe me contou várias coisas sobre a busca para beber do seu cálice. Esqueci muito do que ela disse - e ela parou de falar comigo sobre o Outro
Mundo quando percebeu que eu não seguiria o caminho dela.
- Mas existe algo que ela disse que você nunca esqueceu - disse a Deusa.
- Sim. Minha mãe me contou que antes que eu bebesse do cálice deveria enfrentar meu maior aliado e meu mais poderoso inimigo.
- E os dois são ao mesmo tempo um - completou a Deusa.
- Sim. Tudo o que enfrentei no seu bosque foi meu irmão - e não creio que ele seja meu maior aliado, embora possa ser meu pior inimigo.
- Ele não é nenhum dos dois - revelou Epona. Então apontou para a bacia. - Veja dentro das águas, Brighid Dhianna, e encontrará o que procura.
Resoluta, Brighid se voltou novamente para a bacia e espiou a água. O líquido vivo rodopiou e depois ficou imóvel e vítreo, refletindo seu rosto com perfeição. Ela
olhou mais fundo, inclinando-se sobre a bacia, e seu corpo teve um sobressalto. Estava olhando para o próprio reflexo, porém, dentro dele, podia ver claramente o
rosto da mãe. E de súbito compreendeu. Seu maior aliado e mais poderoso inimigo eram ela mesma. Se aceitasse o poder de uma sumo xamã, também estaria absorvendo
o que corrompera sua mãe - e essa capacidade para a corrupção espreitava dentro dela. Nascera ali, junto com seus dons espirituais.
- Pode deixar o conhecimento paralisá-la - disse a Deusa. - Ou pode aceitar que ela é uma parte sua e se manter vigilante contra a fraqueza dela, que também é sua,
abraçando também as forças dela.
Brighid deixou de olhar a bacia e procurou pelos olhos de Epona.
- Por que permite que aqueles que podem ser corrompidos bebam do seu cálice?
A Deusa lhe sorriu com carinho.
- Concedi aos meus filhos o livre-arbítrio. É o maior dom de todos, mas com a liberdade vem a dor e o mal, assim como o amor e a coragem. Um grande bem não é possível
sem um grande mal. Um não pode existir sem o outro. E, criança... - ela tocou o rosto de Brighid com uma carícia maternal que encheu de lágrimas os olhos da centaura
- ... só porque há uma chance de corrupção, não significa que esta chance terá frutos. Lembre-se de que sempre acreditei no bem dentro de você, Brighid.
- Obrigada - murmurou a centaura à Deusa. Em seguida, Brighid fechou a mão ao redor da haste grossa do Cálice, afundou-o na bacia e, enquanto a Grande Deusa e Cuchulainn
observavam, ela bebeu das águas vivas.
O poder inundou o corpo de Brighid, e dentro do caos vertiginoso ela sentiu a mente se desemaranhar e desdobrar. Era ao mesmo tempo uma parte da Terra e dos céus,
da lua, do sol e das estrelas. Viu que tudo era, de fato, imbuído de alma e que todos estavam interligados. Os conceitos de real e irreal se estenderam e inverteram
dentro de Brighid, que compreendeu com uma nova consciência que o reino espiritual e o mundo físico nada mais eram do que pontos num galho flexível que podia ser
dobrado, curvado e remoldado de modo que os entroncamentos finais de realidade e irrealidade pudessem se encontrar e se tornar um só.
É assim que me transformarei para me deitar com Cuchulainn. Simplesmente inverterei a realidade... O pensamento emergiu de sua mente tumultuada e a firmou no chão.
Brighid piscou para clarear a visão e estava mais uma vez de pé no bosque da Deusa, ao lado da bacia sagrada, segurando o Cálice de Epona.
- Brighid? - Cuchulainn estava ao seu lado, parecendo preocupado e, pensou ela, um tanto pálido.
- Está tudo bem. - Ela sorriu tranquilizando-o. Depois se curvou numa profunda reverência diante da Deusa. - Obrigada por seu grande presente, Epona.
A Deusa tomou o queixo de Brighid na mão e ergueu o rosto da centaura.
- Acredito que o usará com sabedoria, criança. - Então sorriu para os dois. - Agora devem retornar. Estavam certos por agirem depressa. O tempo é curto e vocês têm
muito a fazer. - Epona bateu as mãos e o chão debaixo dos pés de Brighid e Cuchulainn cedeu. Ambos caíram flutuando numa gentil espiral que girava para a esquerda.
Atrás deles, a voz poderosa de Epona embalou seus espíritos e os manteve nadando em acolhimento e amor: Saibam que minha bênção vai com vocês, meus filhos...
Quarenta e Sete
VOLTAR PARA OS corpos definitivamente não foi a experiência delicada que tinha sido partir. Brighid se viu engasgando, tossindo e lutando para não vomitar.
- Tome, beba isso. Vai ajudar.
Cuchulainn estava segurando o odre de vinho nos lábios dela. Brighid o obedeceu, bebendo avidamente. Quando o calor do vinho se espalhou por seu corpo, sentiu o
tremor cessar e a náusea recuar.
- Sua vez - ofegou ela, devolvendo-lhe o odre para que Cuchulainn pudesse beber à vontade.
- Meu pai - disse ele, parando para beber. - Ele sempre ficava pálido depois de uma jornada espiritual, e isso costumava me assustar quando eu era menino. Mas ele
me explicou que não era tão ruim desde que comesse e bebesse logo depois que o espírito retornasse.
Enquanto Cuchulainn falava, Brighid desenrolou o pão e o queijo, arrancou um pedaço dos dois e os entregou a Cuchulainn. Ele sorriu em agradecimento.
- Da próxima vez que eu vir papai, direi a ele que "não é tão ruim" nem chega perto de descrever como é ser atirado de volta ao corpo.
- Estou grata que por causa dele você tenha pensado em deixar tudo isso pronto para nós. - Brighid mordeu o pão e depois franziu a testa. Cheirou o queijo. Então
olhou para Cuchulainn, que estava fazendo o mesmo.
- Está velho - disse ele.
- O pão ficou fedorento e o queijo está meio coberto de bolor.
Os olhos deles se encontraram e se arregalaram em entendimento.
- Deixei o veado pendurado numa árvore.
Cuchulainn deu mais um gole no vinho, depois se levantou cambaleando. Brighid se ergueu, odiando a maneira como as pernas tremiam e os poderosos músculos equinos
se contorciam. Cuchulainn lhe entregou o odre.
- Beba mais um pouco disso. Vou ver o veado. - Saiu cambaleante da caverna.
Brighid estava fraca demais para discutir com ele. Preferiu limpar o bolor do queijo e dar várias mordidas rápidas, além de se obrigar a mastigar um pedaço do pão
fedorento. Quando sentiu que as pernas poderiam carregá-la, seguiu Cuchulainn para fora da caverna. Era uma noite límpida e morna. Brighid recordava-se. Era de manhã
cedo quando começaram a jornada espiritual, mas era como se tivessem deixado o corpo por poucos minutos. Mas o fato era que o pão estava fedorento e o queijo...
Brighid estava admirando a noite e de repente sua mente registrou o que estava vendo.
- A carne está completamente rançosa, e o danado do capão se soltou da amarra e fugiu. A primeira coisa que teremos que fazer pela manhã... - Cuchulainn se calou,
notando a expressão chocada no rosto de Brighid. - O que foi?
- A lua. Está no quarto minguante.
Os dois fitaram a lasca de luz em forma de crescente suspensa no céu escuro.
- Mas estava cheia justo na noite passada. Não estava?
Brighid assentiu:
- Estava cheia na noite antes de entrarmos no Outro Mundo. Lembro disso porque ela iluminava tudo com clareza.
- Durante sua viagem de Sono Mágico até MacCallan - disse ele.
- Dez dias, Cuchulainn. São pelo menos dez dias da lua cheia até a fase do quarto minguante.
Cuchulainn passou a mão pelo cabelo.
- Não é de admirar que eu me sinta tão péssimo.
- Cuchulainn, devem ter se passado dias desde que Bregon deixou o bosque. Não temos como saber por quanto tempo ficamos na presença da Deusa.
Ele lhe tomou a mão.
- É verdade. Não temos como saber agora - e não há nada que possamos fazer quanto a Bregon e os outros centauros da sua manada esta noite. - Quanto Brighid começou
a falar, Cuchulainn meneou a cabeça. - Não - disse ele com firmeza. - Seria tolice nossa fazer alguma coisa esta noite que não fosse comer, dormir e recompor nossos
corpos e espíritos. Pela manhã, rastrearei o capão e poderemos decidir o que fazer daqui em diante.
- Já sei o que devemos fazer - revelou Brighid. - As palavras de Bregon foram orgulhosas e presunçosas. Não preciso de um exército para tomar meu lugar por direito
como Sumo Xamã dos Dhianna. Assim que a manada souber que bebi do Cálice de Epona, me aceitará.
- E os centauros que forem leais a Bregon?
- Haverá alguns, mas muito menos do que você acredita. - Por fim, Brighid sorriu. - Você verá, meu marido guerreiro, que nenhuma centaura jamais negaria aliança
à filha primogênita da sumo xamã.
Cuchulainn correspondeu ao sorriso.
- Então aqueles que ficarem contra você estarão escolhendo longas vidas de solidão.
- Exatamente.
Ele passou o braço pelo dela, então se encaminharam lentamente para a caverna, apoiando-se um pouco um no outro e às vezes tropeçando.
- Isso me deixa mais esperançoso. Talvez a transição para sua liderança não seja um evento tão traumático como prevíamos.
- Talvez - disse ela, pensativa. - Mas ainda temos que lidar com meu irmão. Bregon deixou claro que não vai desistir fácil da posição que usurpou.
- Então simplesmente teremos que mostrar a ele que não há escolha. - A voz de Cuchulainn soou dura.
- Cuchulainn, vi algo mais quando a bacia me mostrou Bregon bebendo do cálice. Quando ele deixou o bosque, filetes espectrais de seu espírito ficaram para trás no
Outro Mundo. A alma dele ficou despedaçada, Cuchulainn, terrivelmente. - Ela tocou o rosto do marido. - Prometa que vai se lembrar de que ele não está inteiro quando
confrontá-lo.
- Prometo - disse ele, beijando-lhe a mão. - Mas precisa compreender que não importa quanta pena eu sinta por ele, não permitirei que a machuque.
- Não creio que ele vá realmente me machucar, Cuchulainn. Ainda me lembro da criança doce que ele costumava ser, cuja coisa que mais queria era o amor e a aprovação
da mãe.
- Ele não é mais criança. Mas não se preocupe, minha bela caçadora, sempre me lembrarei de que ele é seu irmão. - Cuchulainn beijou-lhe a mão mais uma vez e depois
começaram a tatear pela boca da caverna à procura dos utensílios para acender o fogo que ele deixara à mão. - Acho que se cozinharmos a carne seca que sobrou nos
nossos pacotes teremos um caldo decente no qual molhar esse pão velho.
- Vou limpar o bolor do resto do queijo - disse Brighid.
- Agradeço a Epona pelo amor de minha mãe por vinho, ao menos temos bastante dele.
Acenderam depressa o fogo e organizaram uma refeição decente, conversando tranquilamente sobre as experiências no Outro Mundo, especialmente o assombro que ambos
sentiram na presença da Grande Deusa. Brighid observava Cuchulainn falar, pensando novamente no quanto era abençoada por ter um companheiro tão valente e leal. Então,
num pequeno sobressalto, percebeu que agora possuía o poder para se transformar e se unir completamente a ele. Foi esse pensamento que deixou seus lábios erguidos
num sorriso, mesmo ao perder a batalha para o corpo exausto e, logo imitada por Cuchulainn, cair num sono profundo e reparador.
Quando Brighid abriu os olhos, a caverna estava começando a ser iluminada pela luz nebulosa que era o anúncio do novo dia. Alongou-se, tomando cuidado para não acordar
o guerreiro que dormia tão em paz ao seu lado, e se levantou, testando o corpo para ver se ainda estava tão fraco e duvidoso como na noite anterior. Não, pensou
ela com alegria, me sinto maravilhosa!
Ela deixou a caverna e se encaminhou depressa à queda-d'água. Tirando o colete, ficou nua debaixo da rajada fria. Erguendo o rosto para a corrente cristalina, abriu
a boca e bebeu água. Pela Deusa, sentia-se incrivelmente viva! A pele formigava debaixo da carícia da água, mas era mais do que isso - Brighid sentia uma consciência
do mundo ao redor que nunca tinha experimentado antes. Era como se até aquela manhã as árvores, as rochas e a própria terra em si dormissem - e agora tudo tinha
despertado com ela.
Rindo suavemente, saiu de baixo da queda-d'água e fitou a Planície dos Centauros. Ainda não havia luz suficiente para enxergar definições no capim agitado e na terra
levemente ondulada. Ainda estava recoberta pela escuridão, mas o céu tinha começado a avermelhar em antecipação ao sol, então os olhos de Brighid sorveram a visão
indistinta da manhã.
- Casa... - murmurou ela alto a palavra, e o espírito dentro de seu corpo se sobressaltou diante da admissão. - Estou indo para casa.
Brighid ignorou o colete deixado sobre a rocha ao lado da queda-d'água. Sentia-se poderosa, bela e repleta de paixão por um propósito. Quando entrou na caverna,
Cuchulainn se remexeu, revirou e abriu lentamente os olhos. Vendo-a silhuetada no céu que anunciava o amanhecer, sorriu e se ergueu num cotovelo.
- Parada aí toda nua e molhada, você poderia ser uma das fadas que escaparam do Outro Mundo - disse ele, a voz ainda rouca de sono.
- Isso não me surpreende - disse Brighid, atirando os braços acima da cabeça como se pudesse abraçar o dia. - Me sinto tão diferente esta manhã - como se não fosse
completamente deste mundo.
Cuchulainn se sentou completamente.
- Você está diferente, minha bela caçadora, você é uma sumo xamã.
Brighid buscou o olhar dele, tomando o cuidado de ver se existia qualquer reserva ou retraimento à espreita ali. Depois sorriu, porque apenas enxergava Cuchulainn
e o amor que sentia por ela refletido no olhar do marido.
- Acha que as pessoas vão parar de me chamar de caçadora agora?
- Isso a deixaria triste?
- Sim... deixaria, sim. Bem no fundo do meu ser, sempre serei uma caçadora.
- Então... - ele girou o braço num floreio galante - ... para mim, você sempre será minha bela caçadora.
- Espero que sim, Cuchulainn. Realmente espero que sim. - Quando ele começou a se levantar, Brighid meneou a cabeça. - Não. Não venha até mim ainda. Quero que fique
aí.
Cuchulainn inclinou a cabeça e a observou.
- O que está tramando?
- Eu... eu não tenho certeza. Apenas me dê um instante.
- Não vou a lugar nenhum, caçadora - respondeu ele, apoiando-se novamente no cotovelo e tomando um gole do odre.
Brighid abaixou a cabeça e fechou os olhos. Então se expandiu com a nova consciência que desabrochara no bosque da Deusa. Sua mente rodopiou...
Tudo estava, de fato, imbuído de vida.... interligado... O reino espiritual e o mundo físico não passavam de pontos num galho flexível que podia ser dobrado, curvado
e remoldado de modo que os entroncamentos finais da realidade e da irrealidade pudessem se encontrar e se tornar um só. Centauro... homem... mulher... águia... árvore...
pradaria... todos eram repletos de espírito e tocados pela Deusa. Era uma coisa simples, na verdade, essa mudança de forma e moldagem da matéria...
Brighid ergueu a cabeça e sorriu feliz para o marido.
- Quero que fique bem quieto. Sei que consigo fazer isso, mas preciso de sua palavra de que não fragmentará minha atenção.
A expressão de Cuchulainn ficou tensa e séria.
- Brighid, voltamos justo na noite passada. Acho que deveria esperar antes de tentar...
O olhar dela calou suas palavras.
- Acredita em mim? - perguntou Brighid.
- Sim.
- Você me deseja?
- Claro. - Cuchulainn então assentiu. - Compreendo, meu amor. Tem minha promessa de que não fragmentarei sua atenção.
Ela lhe deu um sorriso rápido de gratidão antes de voltar a atenção para dentro de si. Ajude-me, Epona, guie-me, auxilie-me. Mal provei meus novos poderes - eu os
sinto, mas não tenho treinamento... Não sei... Ela respirou fundo. Não posso fazer isso sem seu toque amoroso.
De repente as palavras inundaram sua mente. A centaura baixou a cabeça e deu voz à magia que invadia sua alma: Sou o vento que sopra sobre o mar;
sou a onda das profundezas;
sou o rugir do oceano;
sou o gamo da floresta;
sou a águia sobre o penhasco;
sou um raio de sol
e a mais verde das plantas.
Conforme o ritmo e o volume da voz aumentavam, Brighid começou a erguer os braços, palmas viradas para cima, dedos bem abertos. Ela não gritou, mas o poder em suas
palavras era tamanho que arrepiou os pelos na nuca de Cuchulainn.
Então um brilho lhe cobriu o corpo. Ela cintilava. A radiância que dançava sobre a pele parecia se mexer, mas não era a luz que estava se mexendo. Era a pele da
caçadora, ondulando e se liquefazendo. Brighid fechou os olhos e ergueu simultaneamente os braços e a cabeça em compasso com suas palavras: Sou o javali selvagem
e o salmão no rio;
sou o lago na planície;
sou a palavra de conhecimento
e a ponta da espada;
sou o encanto além dos confins da Terra
e posso mudar de forma como uma deusa!
Ao gritar o último verso, seu corpo explodiu numa chuva de luz e seu berro mudo de agonia ecoou pelas paredes da caverna.
Apesar do juramento, o grito de Brighid fez Cuchulainn ficar de pé e correr até ela. Mas ele parou de repente quando viu a mulher. Ela estava ajoelhada no exato
lugar em que Brighid estava antes. A cabeça estava abaixada e o cabelo úmido lhe cobria o rosto. Uma das mãos se apoiava no chão e a outra ainda estava erguida acima
da cabeça. Ela respirava com dificuldade e o corpo nu cintilava com uma camada reluzente de suor. Com um gemido, ela ergueu a cabeça e jogou para trás o cabelo.
- Queria que alguém tivesse me avisado o quanto isso dói. - A voz de Brighid soou rouca.
- Pela Deusa! Brighid! - Cuchulainn fez um movimento na direção dela, depois se conteve como se estivesse com medo de se aproximar.
Brighid espiou através de uma cortina de cabelos prateados.
- Se me disser que está com medo de me tocar, juro que vou ficar muito aborrecida.
- Claro que não estou com medo de tocá-la. Só... - Cuchulainn praguejou e diminuiu o espaço entre eles. Inclinou-se e apertou-lhe as mãos com cuidado, ajudando-a
a se levantar. - Só não queria machucá-la - disse enfim.
- Não vai me machucar. - Brighid olhou para o corpo e os olhos se arregalaram. - Não fazia ideia de como isso seria estranho.
Cuchulainn passou o braço pela cintura dela.
- Talvez devesse se sentar no catre.
Brighid concordou e tropeçou por alguns passos. Depois parou e voltou a olhar para as pernas.
- Estou tão pequena!
Achou que a risada de Cuchulainn soava um pouco histérica.
- Você não está pequena - olhe para si mesma -, está quase tão alta quanto eu.
- Espere, me largue e me deixe... quero dizer, preciso... - Ela suspirou diante da expressão perplexa do marido. - Cuchulainn, quero ficar sozinha sobre meus dois
pés por um momento para poder me acostumar a esta nova eu.
- Ah! Claro - disse Cuchulainn, desenlaçando com cuidado um dos braços da cintura e o outro, do cotovelo dela.
Deu um passo para longe. Brighid se aprumou e depois olhou para si mesma novamente. O torso estava inalterado, mas ela era um ser totalmente diferente da cintura
para baixo. O poderoso corpo equino fora trocado por duas pernas longas e esguias. Ela olhou para trás e teve que piscar para não se sentir tonta e desorientada.
- Deusa! Não tem nada aqui atrás! - exclamou ela.
Dessa vez a risada do guerreiro soou mais normal.
- Claro que tem! Você tem nádegas bem atraentes.
Ela procurou pelo olhar dele.
- Minha forma lhe parece atraente?
- Muito - disse Cuchulainn. - Não que eu não a achasse bonita como uma caçadora também - acrescentou depressa.
- Já sei que me acha atraente como centaura. Este corpo é novo para mim. Naturalmente, me perguntei se...
- Não precisa se perguntar, Brighid. Você é uma mulher magnífica. Sob essa luz, você parece uma deusa de pele acetinada que de alguma forma caiu do céu da manhã.
- Cuchulainn estendeu a mão e deixou uma mecha de cabelo prateado deslizar entre seus dedos. - E sou o mais sortudo dos homens por ter descoberto você.
Brighid viu o desejo nos olhos dele e saber disso disparou uma agitação quente em sua barriga. Ela sorriu e deixou o olhar voltar para o próprio corpo. Estendeu
uma das pernas com cuidado. Mexendo os dedos, esticou a perna à frente do quadril.
- Pernas... dedos... É tudo tão comum, porém tão extraordinário.
- Acho que é completamente extraordinário. - A voz de Cuchulainn estava tomada de emoção. - Você conseguiu, Brighid! Dominou o que apenas uma sumo xamã pode controlar
- o poder de se transformar.
- Nós conseguimos - disse ela. - Se não estivesse comigo, nunca teria alcançado o bosque de Epona. E agora preciso de sua ajuda em mais uma coisa.
- Qualquer coisa, minha bela caçadora.
- Me mostre como é se tornar uma só carne com você.
Sem dizer nada, Cuchulainn lhe tomou a mão e a guiou ao catre, que não tinham retirado do meio do labirinto. Conforme caminhavam pela caverna, os passos dela se
tornaram mais seguros e, mesmo sentindo falta do poder de sua forma natural, Brighid era capaz de apreciar a graciosidade em seu corpo de mulher. Deitou-se ao lado
do marido e, cheia de curiosidade e deslumbramento, deixou as mãos acariciarem o próprio corpo nu, aprendendo como ele reagia ao toque e descobrindo os lugarezinhos
secretos que eram especialmente sensíveis.
- Minha pele é tão macia. Isso me surpreende - disse Brighid. - Não tinha ideia de que seria assim. - Ela sorriu para Cuchulainn, que tinha se apoiado sobre o cotovelo
e a observava explorar a si mesma.
- Você me deixa sem fôlego - disse ele com voz rouca.
- Não perca o fôlego - murmurou ela, pegando-lhe a mão e guiando-a até sua coxa. - Se não puder respirar, como vai me falar dos prazeres desse novo corpo?
Cuchulainn gemeu o nome dela e sussurrou de encontro aos seus lábios: - Eu vou mostrar.
Mas não apenas mostrou. Enquanto a tocava com as mãos e a boca, falava com Brighid, perguntando qual carícia ela preferia e onde e como seu toque a agradava. As
mãos, calejadas pelos anos de manejo da espada, pareciam sensuais sobre a suavidade de sua pele, e Brighid descobriu que nunca se cansaria da sensação daquela aspereza
envolvendo a maciez das suas nádegas. Quando a boca de Cuchulainn buscou seu âmago e a provou por completo, Brighid não desviou o olhar, apenas o observou finalmente
descobrir o que ela soube antes dele - a alegria do prazer de um amante.
Quando estava escorregadia e pronta, Cuchulainn a penetrou com delicadeza, dando-lhe tempo para se alongar e recebê-lo. E então eles uniram as mãos e iniciaram o
eterno dar e receber da relação amorosa. Brighid se arqueou para ir de encontro a ele, deliciando-se por saber que seus corpos finalmente eram capazes de experimentar
o que suas almas já conheciam - a união de dois seres. Quando Cuchulainn gritou-lhe o nome e derramou sua semente dentro dela, Brighid o manteve apertado e se deixou
levar com ele por uma onda de sensações.
Quarenta e Oito
- VOLTAR AO NORMAL é muito mais fácil - disse Brighid, retorcendo a cauda e batendo os cascos como se estivesse preocupada que algo talvez não tivesse se transformado
de volta à forma equina.
- É impressionante - comentou Cuchulainn. - Todos esses anos e nunca vi meu pai se transformar uma única vez. - Ele exibiu um sorriso torto, maroto. - Apesar de
que em algumas das vezes em que invadi os aposentos da minha mãe ele estivesse lá na forma humana. - Deu uma risadinha. - Nunca deixou de me surpreender. Na última
vez, eu estava com uns 10 ou 11 anos, e não consegui vê-lo muito bem. Lembro de ter pensado que era algum estranho que tinha enlouquecido e estava tentando violentá-la,
então brandi minha espada de madeira nem um pouco perigosa e berrei para que ele tirasse as mãos da Deusa Encarnada.
- E o que ele fez? - perguntou Brighid, sorrindo.
- Ele olhou para mim e disse: "Mais tarde, garoto, sua mãe e eu estamos um tanto ocupados agora." - Cuchulainn meneou a cabeça. - Mas isso não foi o pior. Meu berreiro
fez os guardas palacianos da minha mãe surgirem correndo - não negligenciariam uma tentativa de estupro à Escolhida de Epona. Seguiram-se momentos embaraçosos que
meu pai não considerou nem um pouco engraçados. Nem um pouco. Quando o "mais tarde" chegou, ele me pôs sentado e teve uma conversa longa e bem detalhada sobre maridos,
esposas e relações amorosas em geral. Também me explicou em detalhes por que ele tinha que se transformar, e por que era um momento muito íntimo entre ele e minha
mãe quando isso acontecia.
Brighid tentou, sem sucesso, abafar uma risada.
- Parece que foi uma conversa bem esquisita.
- Não foi uma conversa. Ele falou - eu escutei. Depois ele me perguntou se eu tinha alguma pergunta.
- Você tinha?
Cuchulainn bufou:
- Está brincando? Eu estava completamente envergonhado, e a única coisa na qual eu conseguia pensar era por que alguém iria querer fazer aquelas coisas que ele estava
descrevendo - e mesmo que fizesse - por que minha mãe toleraria aquilo.
A risada de Brighid se transformou numa inesperada risadinha feminina.
- Pare, está me matando!
Cuchulainn sorriu, envolveu-lhe a cintura com um braço e deu-lhe um sonoro beijo.
- Lembro particularmente de uma das coisas que meu pai explicou sobre a transformação durante aquele sermão esquisito.
Brighid ergueu uma das sobrancelhas prateadas.
- Ele disse que um sumo xamã só consegue manter outra forma por um tempo limitado.
Brighid assentiu:
- É conhecimento comum que um sumo xamã deve retornar à forma natural no prazo de uma noite.
- Também é conhecimento comum que uma vez que o sumo xamã retornou à forma natural é necessário pelo menos um dia para que o corpo se reenergize?
- Não. - Brighid parecia surpresa. - Essa parte não é bem conhecida. - Ela deixou escapar um suspiro longo e frustrado. - Há tanta coisa que não sei, Cuchulainn.
Sinto a mudança dentro de mim, e sinto o mundo ao meu redor de maneira diferente. Mas sei muito pouco sobre como exercer este novo poder.
- Tenha calma consigo mesma. A maioria dos sumos xamãs se preparou por anos, e também são guiados por outro sumo xamã.
- Esse é o problema. Não tenho um mentor.
- Um passo de cada vez, minha bela caçadora, um passo de cada vez. Primeiro você reclama seu direito de nascença. Depois encontra um mentor. Acontece que seu marido
tem ligações com certo sumo xamã, e posso prometer que ele ficaria mais do que satisfeito em ser mentor da nora. - Cuchulainn lhe sorriu.
Brighid envolveu os ombros largos com seu braço e brincou com o ouvido dele.
- Quem diria que um homem seria uma coisa tão boa de se ter por perto?
Ele riu e a beijou.
- Não conte às outras caçadoras - todas vão querer um.
Brighid mordiscou o pescoço de Cuchulainn, que deu um latido. Os dois riram.
Depois Cuchulainn ficou sério e tocou-lhe a face.
- Eu estava falando sério sobre o que meu pai disse, Brighid. O corpo de um sumo xamã fica esgotado depois da transformação, então tome cuidado hoje. Não exija demais
de si mesma e não espere demais do seu corpo.
- Só vou caçar um cervo. Poderia fazer isso mesmo como mulher - eu acho - acrescentou com uma risada rápida.
- Cace seu cervo com cuidado. Quando você o fisgar e trouxer para cá, já terei encontrado o maldito capão.
- Posso ajudar a encontrar seu maldito capão - disse Brighid.
- Tenho certeza de que poderia rastreá-lo na metade do tempo, minha bela e talentosa caçadora, mas precisamos de carne fresca, então não vou atrapalhar sua experiência.
- Não preciso ir com você, Cuchulainn. Só tenho que... - Ela revirou os olhos quando a expressão entretida do marido se tornou cautelosa e tensa. - Cuchulainn -
disse com severidade -, você está casado com uma sumo xamã. Tem que se acostumar comigo invocando auxílio do Outro Mundo. - Brighid deu de ombros e sorriu com um
tanto de acanhamento. - Eu mesma tenho que me acostumar.
Cuchulainn suspirou e levou a mão dela aos lábios.
- Está bem. E sim, minha bela caçadora, agradeceria sua ajuda.
- Só me dê um momento e não...
- Eu sei - disse ele rindo -, não distrair você.
Brighid lhe deu uma olhada exasperada antes de fechar os olhos e se firmar com três respirações profundas e regulares. Depois pensou no capão de Cuchulainn - a montaria
vigorosa e bem treinada da qual o marido dependia... e rapidamente, muito mais rapidamente do que estava acostumada, aquele inato senso extra que sempre a ajudara
a rastrear animais correu por seu corpo numa onda de poder devastador. Quase imediatamente foi atraída para um lugar não muito distante da caverna onde uma luz espiritual
azul-escura ardia firmemente. O capão. Pela Deusa, foi fácil! Depois outra luz espiritual, menor, bem próxima ao capão, lhe chamou a atenção, e ao se concentrar
nela, imaginando a origem daquela enérgica aura dourada, de repente compreendeu o que estava vendo e quis rir alto. Quase interrompeu o transe naquele instante para
poder contar a Cuchulainn, mas a influência de outras luzes espirituais a atraiu.
Com uma sensação de assombro, pensou no cervo que planejava caçar, e tracinhos luminosos de cor acastanhada tremeluziram ao longo dos outeiros e pela Planície dos
Centauros. Bom, pensou ela com alegria, certamente não teria problemas para encontrar um veado.
Então algo tremulou bem à margem de sua visão espiritual. Estava vindo do norte. Uma incandescência esmeralda tão brilhante que sua luz era ofuscante, por isso o
espírito dela teve um sobressalto, interrompendo o transe meditativo no qual tinha entrado com tanta facilidade. Os olhos dela se abriram e Brighid sentiu um cansaço
estranho pesar sobre seu corpo e sua alma. Cuchulainn a observava com atenção, a preocupação obscurecendo seus olhos. Por instinto, seu primeiro pensamento foi tranquilizá-lo,
portanto tirou da mente o mistério da luz verde. Mais tarde, depois que eu tiver comido e não estiver tão cansada, pensarei no que isso significa... provavelmente
era apenas o brilho verde das florestas ao norte...
Sacudiu-se mentalmente e tocou com carinho o rosto do marido.
- Cuchulainn, uso minha afinidade com espíritos animais para rastrear caça há anos. Não é nada com que se preocupar. Só estou um pouco cansada, mas estou bem.
- Eu sei... É justo. - Cuchulainn se sacudiu e sorriu. - Está certa. Estou sendo tolo. Achou meu cavalo perdido?
- Sim, e ele não está longe daqui. Rume para o noroeste e vai encontrar uma trilha de cervos. Siga-a até uma clareira e um lago. É onde ele está. Está a no máximo
uma hora de caminhada leve daqui. - Então sorriu para o marido e acrescentou: - E não é só o seu capão que vai encontrar na clareira.
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas.
- Não vai me dizer o que mais está lá?
- Vou dar uma pista. Ela é peluda e muito, muito incômoda.
- Fand? - perguntou de imediato.
- Ninguém mais.
Cuchulainn explodiu numa gargalhada.
Brighid deu um suspiro exagerado.
Ainda sorrindo, Cuchulainn pendurou a rédea sobre o ombro.
- Vou capturar minhas feras e encontro você aqui na volta.
- Vou trazer o jantar.
- Vou trazer vinho e companhia.
A risada de Brighid o acompanhou enquanto caminhava rumo ao noroeste, escalando a encosta moderada do outeiro arredondado. Quando chegou ao topo da pequena colina,
virou-se e observou a esposa apanhar o arco e pendurar a aljava de flechas no ombro.
- Te amo, Brighid! - gritou, meneando a cabeça por causa da própria tolice romântica. Ela estava perto demais da queda-d'água para ouvi-lo, e mesmo de longe podia
ver que o ar concentrado de uma caçadora estava de novo no rosto dela. No momento, a única coisa na qual prestaria atenção seria o cheiro ou o rastro de um cervo.
- Essa é minha bela caçadora - murmurou consigo mesmo. Era poderosa, sensual e inteligente. Com ela ao seu lado, Cuchulainn acreditava que não existia nada que os
dois não pudessem realizar. Naquela noite comeriam e restaurariam a energia que os últimos dias tinham drenado deles. Amanhã entrariam na Planície dos Centauros.
Garantiria que ela chegasse à manada Dhianna e assumisse sua posição por direito como sumo xamã. Então poderiam reparar os equívocos e o ódio que a liderança da
mãe dela tinha alimentado. Humanos e centauros podiam viver felizes juntos. Seus pais eram prova disto - ele e Brighid eram prova disso. E os neofomorianos não eram
ameaça para ninguém em Partholon. Não havia necessidade das manadas dos centauros guerrearem contra eles. Não eram os demônios que dizimaram os guerreiros de Partholon
- tanto centauros quanto humanos - há tanto tempo. Juntos, ele e Brighid só teriam que fazer a manada enxergar a razão.
Cuchulainn deixou o olhar avaliar a Planície dos Centauros. Mesmo amarronzada pela seca, a terra ainda era bonita. Era ampla e livre. Nas poucas vezes em que viajara
às planícies com seu pai, tinha ficado intrigado com a vastidão delas. Talvez fosse resultado do sangue de seu pai centauro, mas a ideia de passar o resto da vida
nas pradarias lhe dava uma sensação de satisfação. Não tinha dúvida de que encontraria contentamento e um lar ali com Brighid ao seu lado.
Assobiando alegremente, pensando no quanto seria bom ver sua filhote de lobo, amarrou a rédea ao ombro e rumou para o noroeste.
Brighid parou à margem da Planície dos Centauros e respirou profunda e jubilosamente. Tinha valido a pena. Sim, havia cervos muito mais próximos à caverna do que
nas planícies, mas Cuchulainn ficaria fora por pelo menos umas duas horas. Teria bastante tempo para rastrear, matar e destripar um cervo, e voltar para a caverna
antes mesmo que Cuchulainn retornasse, ou ao menos era como tinha racionalizado sua decisão para ignorar o cansaço no corpo e descer os últimos outeiros para caçar
um veado nas planícies.
Cansada ou não, era bom sentir os cascos no solo rico de sua terra natal! Tinha escolhido uma vida diferente e deixara seu lar acreditando que nunca retornaria -
e tinha feito isso funcionar dentro da mente. Mas agora podia admitir que seu espírito nunca ficou confortável com a escolha. Dentro dela sempre existiu uma ânsia
para retornar, uma agitação inquieta que agora percebia ser a sumo xamã adormecida.
Não mais, prometeu a si mesma. De agora em diante usarei os dons concedidos por Epona e assumirei a posição para a qual nasci.
Decidiu depressa não retomar o transe meditativo para localizar uma manada de cervos. Essa era sua terra natal. Se não pudesse caçar um veado ali, não merecia ser
chamada de caçadora. Seu olhar aguçado varreu o terreno diante dela. À margem da visão podia enxergar o familiar pontilhado verde e um declive no horizonte que significava
uma área de mata. Sempre havia pequenos riachos ou córregos que serpeavam pelas planícies, rodeadas por alamedas arenosas e árvores resistentes. Mesmo nas épocas
de seca, a água das fontes subterrâneas alimentava a área das matas. Os cervos geralmente se congregavam onde havia água. E era lá que iria caçar.
Forçou o corpo a um galope leve, sorrindo ao sentir o vento e o capim passando por ela.
Quando alcançou a margem da mata, estava quase pronta para admitir que a decisão de caçar nas planícies tinha sido apressada - se não um erro absoluto. O suor ensopava
seu corpo, e ela sentia dificuldade de se concentrar. Tinha cruzado com vários rastros diferentes de centauros, embora não tivesse se encontrado com nenhum. Podia
ver os pontos escuros dos bisões não muito distantes a leste, mas não tinha encontrado nenhum rastro de cervo, o que era decididamente estranho. E mesmo que uma
aldeia de centauros estivesse por perto, deveriam existir cervos suficientes ao redor da área da mata - e Brighid não conhecia nenhuma aldeia tão próxima às fronteiras
de Partholon. O esplendor de caçar em sua terra natal estava desbotando. Se não achasse sinal ou pista de cervos logo, teria que usar seus poderes espirituais para
localizar um. Só de pensar nisso, gemia de exaustão.
As pradarias começaram a abrir espaço para os carvalhos que predominavam nas matas, e Brighid se deixou seguir numa caminhada apática.
Só queria encontrar o cervo e voltar para o acampamento. Pensou com gratidão que Cuchulainn a estaria esperando lá.
Mais tarde não conseguiria decidir se tinha sido seu cansaço ou a furtividade deles, mas não ouviu nem viu nada antes da corda apertar seu pescoço. As mãos imediatamente
tentaram desfazer o nó, então Brighid sentiu outra corda apanhar sua perna traseira. O equilíbrio lhe foi tirado com brutalidade, fazendo-a atingir o chão com tanta
força que o ar escapou dos pulmões. A cabeça acertou uma rocha e a escuridão a engolfou.
Quarenta e Nove
A CONSCIÊNCIA VOLTOU num ímpeto doloroso. Mãos fortes a seguravam pelos pés. Sentia-se surrada e machucada, e a cabeça doía com uma dor quente e latejante que palpitava
em compasso com seu coração disparado.
- Fique em pé sozinha! - disse uma voz áspera. - Arrastá-la até aqui foi bem difícil. Vou ficar destroçado se tiver que mantê-la de pé também.
Arrastada? Fui arrastada?
Com as mãos atadas às costas, Brighid lutou súbita e violentamente. Meio cega de dor, tentou chutar com suas poderosas pernas traseiras - e a garganta se fechou.
Quanto mais lutava, mais a corda apertava sua garganta.
- Fique quieta ou vai morrer sufocada! - ribombou a voz.
Tremendo, Brighid se obrigou a ficar quieta e a corda em seu pescoço afrouxou o bastante para deixá-la sorver o ar e tossir espasmodicamente.
- Não lute e ficará bem. Lute e não conseguirá respirar.
Tremendo, Brighid piscou para clarear a visão e o tempo pareceu desacelerar. Era como se estivesse se movendo dentro d'água enquanto tentava compreender as contradições
do que via. Estava de pé no meio de uma tenda centáurea - esse tanto era fácil de entender. Era uma das imensas tendas de cinco lados feitas de pele de bisão belamente
tingida e elaboradamente decorada que sua mãe insistia para que fosse erguida e estivesse preparada com cada luxo muito antes de sua chegada a qualquer lugar que
estivesse visitando. A abertura estava diretamente à frente de Brighid, que pela aba semidobrada podia ver que estava escuro. Por quanto tempo tinha ficado inconsciente?
A mente penava para clarear. Tudo estava errado e ela era incapaz de compreender o que tinha lhe acontecido.
A tenda era familiar, mas o interior não era ricamente guarnecido com os colchões grossos e as mesas baixinhas que os centauros preferiam. As únicas decorações eram
vários candelabros espalhados que lançavam uma luz fraca pela tenda. O resto da tenda estava vazio - exceto pelos quatro centauros que cercavam Brighid. Ela tentou
desvencilhar as mãos novamente, mas estavam bem presas às costas. Podia sentir as cordas no pescoço e no corpo. Num nevoeiro de descrença, viu que estava de pé,
com o torso amarrado, entre os dois postes centrais da tenda. As pernas dianteiras estavam presas. Duas cordas estavam enlaçadas ao redor do pescoço. Cada uma delas
estava atada num nó ao redor de cada uma das pernas traseiras - podia senti-las arranhando dolorosamente logo acima dos cascos. As amarras garantiam que não se mexesse.
A contenção entre perna e pescoço deixava suas pernas traseiras impotentes. Estava efetivamente imobilizada. Brighid ergueu os olhos para o centauro que estava mais
próximo, cujo desdém de superioridade fez o tempo, o som e a sensação de afogamento retornarem ao ritmo normal.
- Completamente acordada agora, minha beleza? - zombou ele. - Bom. Não há razão para machucar seu pescoço bonito - isso seria danificar mais do que já foi danificado.
- Ele deu uma risadinha e os outros três centauros riram também.
Um trovão estrondou ao longe e um raio relampejou na abertura da tenda, ajudando-a a identificar os outros centauros. Era o bando de Bregon. Pensava neles assim
desde o dia em que mataram a menina. Iam para toda parte com o irmão, acompanhando-o em tudo o que fazia. Como as ovelhas patéticas que são, pensou ela.
- Gorman. - A voz de Brighid se ergueu para imitar perfeitamente o tom mais furioso da mãe. - Solte-me imediatamente, seu covarde!
Outro raio lampejou, e pela margem da visão Brighid viu outro dos centauros, Hagan, se encolher diante do som familiar da voz dela. Os outros dois eram irmãos, Bowyn
e Mannis, cujos olhos se arregalaram quando ela falou. Mas Brighid manteve a atenção em Gorman, o melhor amigo de Bregon, seu parceiro em tudo que fazia.
- Você soa como ela. Até se parece com ela. Mas não é ela. - Gorman cuspiu na grama. - Você nunca foi tão forte quanto Mairearad. Nunca será.
- Defina força, Gorman - rebateu Brighid, escondendo a exaustão da voz e da mente. - É a habilidade de manipular e usar os outros? Ou sua definição de força depende
das cordas? Não, espere. Agora lembro que você gosta de aterrorizar menininhas. Pena que teve que se esgueirar e me amarrar. Não havia nenhuma carroça disponível
para jogarem por cima de mim?
- A força - disse ele sombriamente, dando um passo adiante para salpicar cuspe no rosto dela ao falar - é definida pelo vitorioso!
- Onde está meu irmão? - perguntou Brighid, recusando-se a reagir à bravata dele.
- Seu irmão está garantindo que Partholon saiba que os fomorianos foram soltos no mundo outra vez.
- Ficou louco? Não existe fomoriano nenhum.
- Verdade? Então como chama aquelas criaturas aladas que você e o filho de Midhir trouxeram para Partholon?
- Eu os chamo da mesma coisa que Midhir e a Escolhida de Epona os chamam - neofomorianos. Sabem que Elphame retirou a maldição deles. Já não são mais uma raça demoníaca.
- Enquanto falava, testou as amarras dos punhos, procurando uma maneira de libertar as mãos. - Isso é ridículo. Exijo ver meu irmão.
- Paciência, minha bela. Bregon anda muito ocupado e não pôde recebê-la apropriadamente em sua chegada. - Gorman riu, e os outros três centauros que assistiam deram
risadinhas nervosas. - Ele nos pediu para mantê-la... ocupada... até poder se juntar a nós.
Brighid sentiu o rosto gelar.
- Bregon não deve saber o que fizeram comigo.
Gorman deu de ombros.
- Ele ordenou que a impedíssemos de alcançar a manada antes que fosse tarde demais. Deixou os meios conosco. Isso... - ele apontou para os postes cruzados e as cordas
que a estrangulariam caso tentasse lutar - ... foi ideia minha.
- Já é tarde demais. Provei do Cálice de Epona. Sou a Sumo Xamã dos Dhianna.
- Sim, sabemos disso. Bregon nos contou. Felizmente nenhum de nós pensou em contar aos nossos camaradas. Que pena que as fêmeas da manada só vão descobrir quando
for tarde demais.
- Está louco - disse Brighid a Gorman, depois teve o cuidado de virar a cabeça para que da próxima vez em que a tenda fosse iluminada com o relâmpago encontrasse
os olhos do centauro baio que tinha ficado mais afastado nas sombras. - Traga meu irmão, Hagan. Não importa o que tenha acontecido entre nós, mas Bregon não vai
ver com bons olhos o tratamento dispensado à irmã. - Então estreitou os olhos e encheu a voz com todo o poder que pôde drenar do espírito exausto. - E mesmo que
Bregon estivesse disposto a isso, ele sabe, como eu sei, da raiva que tomaria Epona por tratarem assim sua sumo xamã!
Hagan se encolheu e abriu a boca para falar, mas Gorman o cortou: - E o que sua preciosa Epona fez quando sua própria mãe foi transpassada pela barriga e ficou morrendo
em agonia? - O rosto de Gorman estava vermelho da paixão das emoções. - Nada! Sua Deusa deixou Mairearad sofrer e morrer. Aparentemente Epona não se importa mais
com o que acontece com suas centauras sumos xamãs.
Brighid voltou o olhar lenta e deliberadamente para ele.
- Você blasfema e volta as costas para a Grande Deusa. Juro que vai pagar por isso.
Um trovão rosnou na noite e raios caíram como se Epona tivesse ouvido e reconhecido o juramento de sua xamã. Descuidado, Gorman debochou: - Veremos quem vai pagar
pelo quê, Brighid Dhianna. Afinal, foi você quem ajudou a trazer os demônios de volta para Partholon. Talvez o povo que você preferiu à sua própria manada não lhe
abra os braços com tanto entusiasmo quando perceberem o que fez.
- Os neofomorianos não são demônios, seu tolo! São um tipo de gente que cultiva a vida, não a morte. E é isso que toda a Partholon saberá.
Os olhos de Gorman ficaram dissimulados.
- Acho que está se esquecendo de um fomoriano em particular. - Ele pronunciou a palavra com cuidado.
Brighid estreitou os olhos.
- Fallon está presa no Castelo Guardião, esperando pelo nascimento da criança e pela execução. Pagará pela loucura, mesmo que o que ela fez tenha sido apenas resultado
do amor profundo por seu povo. Ela é uma aberração. O resto dos neofomorianos não é como ela.
- Então está dizendo que não a ajudariam a fugir e depois se reuniriam em ataques pequenos, porém mortais, contra Partholon?
- Claro que não.
- Mas e se fizessem? E se uma criatura alada que veio do sudoeste - a área exata do Castelo MacCallan - conseguisse invadir o Castelo Guardião e libertasse a fomoriana
insana, deixando sangue e morte em seu rastro? O que os guerreiros guardiões fariam?
- Que jogo de suposições ridículo. Isso nunca aconteceria. Os neofomorianos não querem nada além de viver em paz em Partholon. Não fariam nada para estragar isso.
A risada de Gorman preencheu a tenda, quase afogando o estrondo do trovão seguinte. Bowyn e Mannis sorriram, os dentes faiscaram brancos no piscar do relâmpago.
- Ela sabe tão pouco sobre isso quanto Bregon falou - disse Mannis.
Os olhos de Brighid procuraram por ele.
- Você tem língua? Pensei que você e seu irmão apenas fossem porta-vozes de Bregon. Se ele não está presente para alimentá-los com palavras, nunca imaginaria que
vocês dois... - ela deixou o olhar enojado incluir Bowyn - ... pudessem falar por si mesmos.
- Você sempre se achou muito melhor do que nós - disse Bowyn com raiva.
- Não melhor, apenas mais humana - disse Brighid.
- Não quer saber o que é o "isso"? - interrompeu Gorman, atraindo a atenção dela.
- Não me importa o que você tem a dizer, Gorman.
- Verdade? Talvez importe. "Isso" é mudar de forma. Bregon nos disse que o povo de Partholon sabe tão pouco sobre isso quanto sua própria irmã recém-declarada sumo
xamã. E que ele usaria a ignorância deles a seu favor.
- O que você... - Com um estremecimento de horror, Brighid compreendeu. O "fomoriano" que ajudaria Fallon a escapar seria Bregon. - Ah, Deusa! Não!
- Ah, Deusa! Sim! - zombou Gorman. - Mas não pense que foi Bregon quem pensou no plano.
- Mairearad. - Brighid murmurou o nome da mãe, lembrando-se do berro rude do corvo clamando vingança.
- Claro que foi Mairearad. Mesmo agonizando, ela era brilhante. Orquestrou a vingança da própria morte. Mandou Bregon entrar no Castelo Guardião à noite e sozinho,
e encontrar a fomoriana. Depois deve matar todos que o viram entrar sob a forma verdadeira, transformar-se num fomoriano e deixar a criatura escapar - só então deveria
deixar qualquer guerreiro que o visse viver.
- Porque não o veriam. Veriam um fomoriano - concluiu Brighid, sacudindo a cabeça em horror, lembrando da gentileza que os guerreiros guardiões tinham demonstrado
pelas crianças. Mas isso não importaria, não se acreditassem que Partholon estava sendo atacada pela raça da qual foram encarregados de defendê-la.
- Sim. - Gorman deu uma risada. - E seguirão o rastro de um fomoriano que os levará até o Castelo MacCallan. O que acha que o clã MacCallan vai fazer quando os guerreiros
guardiões cercarem o castelo?
- Não desistirão das crianças - murmurou ela, mais consigo mesma do que para Gorman. - Lutarão para protegê-las.
- Estamos contando com isso - rosnou Gorman.
- Por quê? Aquelas pessoas não lhe fizeram nada. Por que quer destruir o clã MacCallan?
- Pela mesma razão que você deveria. Eles mataram sua mãe.
- Isso é loucura. É impossível que o clã MacCallan tenha ferido minha mãe.
- Ela morreu num poço cavado por humanos. - Gorman foi depressa até um canto escuro da tenda ampla e apanhou um pedaço de pano do chão. Parou diante de Brighid e
empurrou o pano ensanguentado no rosto dela. - Era isso o que os humanos estavam vestindo. Você reconhece?
Era o tartã dos MacCallan. O estômago de Brighid se apertou ao se lembrar de Elphame contando sobre os membros do clã que escolheram romper com os juramentos e deixar
o castelo, tornando-se inaceitáveis para qualquer outro clã. Deviam ter se encaminhado para a vasta Planície dos Centauros, provavelmente pensando em recomeçar,
talvez até fundar o próprio clã.
Em vez disso, iniciaram uma guerra.
- Essas pessoas não eram parte do clã MacCallan. Vários membros do clã quebraram juramento e partiram - devem ser eles. Onde estão? Eu os reconhecerei se os vir.
- Você não os reconheceria agora, nem mesmo com sua excelente visão de caçadora - respondeu Bowyn com sarcasmo.
- Vocês os mataram!
- Matamos. Foi o começo da vingança da sua mãe.
- Isso tem que acabar antes que o mundo seja inundado em sangue - disse Brighid.
- Que inunde! - gritou Gorman. - Enquanto você estava tagarelando com sua Deusa negligente, Bregon estava cuidando dos assuntos da sua mãe. Já foi para o Castelo
Guardião, e deve chegar a qualquer momento com a notícia de seu sucesso sangrento. As engrenagens estão girando até um ponto em que não há mais volta, e é impossível
para você detê-las.
Os olhos de Brighid ficaram frios.
- Jamais me diga o que é impossível, seu bajulador patético! O que sabe sobre o impossível? Tudo o que fez durante a vida inteira foi seguir um centauro que é pouco
mais do que um potro petulante e desejar uma fêmea que sabia mais sobre ódio e manipulação que amor. Tenho pena de você, Gorman.
- Você tem pena de mim! - berrou ele, atirando cuspe no rosto dela. - Vamos ver em breve quem será digno de pena.
Um trovão rosnou de maneira ameaçadora e um relâmpago reluziu lá fora, iluminando a tenda com uma luz surreal e intermitente. Respirando pesado, Gorman se aproximou
de Brighid e afundou a mão nos cabelos dela, puxando-lhe a cabeça dolorosamente para trás.
- Bregon teve mais a relatar sobre o Outro Mundo que a notícia de que finalmente conseguiu provar o cálice. - Com um único movimento violento, arrancou o colete
do peito dela, expondo-lhe os seios. - Também disse uma coisa que consideramos muito chocante. Ele nos contou que você tinha se casado com um humano. Será que é
mesmo verdade? - Com a outra mão, ergueu o seio dela de modo que a cabeça pudesse alcançá-lo com facilidade. Quando a língua se projetou para lamber o mamilo, Brighid
recuou tão violentamente que o mundo começou a escurecer conforme a corda cortava seu fornecimento de ar.
Então dois outros pares de mãos pressionaram o outro lado do seu corpo à medida que Bowyn e Mannis a mantinham ereta para que a corda afrouxasse e a respiração lhe
voltasse em arfadas ofegantes. Numa névoa cinza, parecia que os olhos dos três centauros ardiam com uma luz anormal. Os rostos estavam corados e a respiração se
aprofundava. Onde as mãos quentes a tocavam, Brighid podia sentir a luxúria queimar sobre ela.
- Responda a ele - disse Bowyn, a voz grosseira e ofegante. - Casou com um humano?
- Casei - respondeu Brighid entre os dentes, lutando contra o pânico. - Cuchulainn MacCallan é meu marido e consorte, e quando eu liderar a manada Dhianna será com
ele ao meu lado.
- Isso nunca vai acontecer! - berrou Gorman.
- Talvez ela tenha vivido muito tempo sem um amante centauro, e tenha esquecido o que é paixão de verdade - ofegou Bowyn em meio a arfadas cada vez mais densas.
A mão se fechou sobre o outro seio, e enquanto apertava e projetava o mamilo, Bowyn mordeu o ombro dela com tanta força que seus dentes arrancaram sangue.
A risadinha baixa de Gorman soou perto da orelha de Brighid enquanto a língua subia e descia por seu pescoço.
- Talvez esteja certo, Bowyn.
Brighid podia sentir Mannis se acomodando atrás dela, as mãos e os dentes se revezando dolorosamente entre apalpar e mordiscar suas ancas. Seus olhos procuraram
freneticamente por Hagan, mas o centauro tinha desaparecido na noite tempestuosa.
- Se fizerem isso, juro pela Deusa Epona que não descansarei até cada um de vocês estar morto! - sibilou Brighid. Lutava contra a escuridão que continuava a estreitar
sua visão, concentrando-se no calor que começara a se espalhar da pedra de turquesa pendurada entre seus seios nus.
- E como vai cumprir esse juramento? - murmurou Gorman, a respiração quente vindo rápida e pesada sobre a pele dela enquanto mordiscava e lambia o monte do seio.
- Seu pequenino marido humano vai nos rastrear e nos matar de susto com sua força devastadora?
- Ele não vai precisar fazer isso. Ele vai matá-los esta noite bem onde estão - disse Cuchulainn da abertura da tenda.
Cinquenta
O SOM MORTAL da espada de Cuchulainn sendo retirada da bainha foi ecoada pelo rosnado baixo e ameaçador de um lobo. Quando o guerreiro se mexeu, Fand atacou. Bowyn
foi o primeiro a cair, gritando quando a loba se arremessou por debaixo do corpo de Brighid para pegar suas pernas traseiras. Com um poderoso rasgo dos dentes de
Fand, Bowyn estava com o jarrete rompido e se debatendo no próprio sangue sobre o chão relvado.
Cuchulainn não se movia como um homem. Movia-se como um espírito maligno - silencioso, onisciente, mortal. Com uma velocidade que fazia a espada se tornar um borrão
branco-prateado, ele girou e se arremessou sobre o caído Bowyn, cortando-lhe a garganta num certeiro arco escarlate. A última respiração do centauro escapou pela
boca aberta numa arfada gargarejante.
O guerreiro encurralou Mannis sem fazer um ruído. O centauro estava se afastando das ancas de Brighid, o corpo ainda intumescido com sua luxúria obscena, quando
Cuchulainn atacou. Ele o espetou no peito, puxou a espada e girou, arrastando junto com a lâmina a barriga equina e destripando-o.
- Não será fácil me matar - disse Gorman, erguendo a espada longa que recuperara enquanto o homem mantinha seus companheiros ocupados.
A única resposta de Cuchulainn foi avançar implacável na direção do centauro. Não falou nem desacelerou as passadas. Com velocidade que fora refinada como a ponta
de sua lâmina, Cuchulainn mergulhou primorosamente debaixo da espada de Gorman, mas em vez de se lançar num golpe assassino, cortou o jarrete dianteiro do centauro.
Gorman sibilou de dor e tropeçou para trás - justo no caminho da loba. Fand não era silenciosa como um guerreiro, mas era tão mortal quanto. Um trovão acobertou
o berro de Gorman e, por sua vez, o relâmpago iluminou a carne arrancada pendurada no jarrete traseiro. Ele desabou e Cuchulainn o encurralou.
- Não! - berrou Brighid.
O corpo de Cuchulainn parou num sobressalto. O rosto que virou para a esposa era um que Brighid só tinha visto uma vez, quando lutaram lado a lado contra Fallon
e os fomorianos equivocados que tentaram protegê-la. Mas sua máscara de guerreiro salpicada de sangue não a assustou nem repeliu. Sabia que sua própria visão era
um reflexo da mesma veemência fria.
- Me solte - disse ela.
- Fand! Cuide dele - ordenou Cuchulainn. A loba se esgueirou até ficar perto dos quartos sangrentos do centauro, caninos expostos.
Cuchulainn embainhou a espada e puxou a adaga do cinto. Com movimentos firmes e ágeis, cortou as cordas do corpo da esposa.
Sem pedir, Brighid desembainhou a espada dele, e então, com o torso nu e segurando a lâmina diante de si, aproximou-se de Gorman.
Ele ergueu o rosto, os olhos vidrados de dor e medo.
- Não me mate! Faço qualquer coisa! - implorou.
- Não fale comigo - rosnou ela entre os dentes. Sem olhar para o guerreiro de pé ao seu lado, Brighid perguntou: - Cuchulainn, Epona lhe deu o dom de ver a alma.
O que vê dentro da alma desse centauro?
Brighid ouviu a inspiração desafinada e soube que esse era o primeiro momento em que Cuchulainn usava o dom recém-ofertado pela Deusa.
- Vejo podridão e escuridão.
Sem qualquer hesitação, Brighid cravou a espada do marido no coração do centauro. Quase no mesmo movimento, puxou de volta a espada e a devolveu a Cuchulainn.
- Preciso sair daqui - disse ela.
Cuchulainn assentiu depressa. Antes de segui-la pela aba aberta da tenda, parou para apanhar o colete rasgado, o arco e a aljava de flechas que foram largados num
dos cantos da tenda.
- Fand! Venha.
O guerreiro e a loba saíram na noite para descobrirem que Brighid tinha cambaleado vários passos para longe da tenda. Tinha caído de joelhos e vomitava violentamente.
Fand se deitou perto dela, ganindo preocupada. Cuchulainn lhe acariciou as costas, segurou-lhe os cabelos, murmurando palavras ininteligíveis de conforto, tudo afogado
pelo estrépito ensurdecedor dos trovões, acompanhados pelo fulgor ofuscante dos relâmpagos. Brighid ergueu a cabeça.
- Não há chuva - disse, limpando a boca com as costas da mão.
- Não, amor - afirmou Cuchulainn com carinho. - Não há chuva.
A caçadora respirou fundo várias vezes.
- Também não sinto cheiro de chuva no ar. É uma tempestade seca. Pela Deusa, sempre odiei essa coisa maldita! São perigosas - trazem raios mortais e a chance de...
- Com um ar horrorizado, Brighid se levantou. Se reorientando depressa, virou-se de modo que o vento soprasse diretamente sobre seu rosto enquanto olhava para o
sul, ao longo da Planície dos Centauros. - Ah, Deusa, não!
Cuchulainn lhe acompanhou o olhar arregalado. O horizonte estava em chamas. Enquanto ficavam olhando com um assombro horrorizado, um raio serpeou ao chão, incendiando
uma seção mais próxima das pradarias.
- Temos que sair da planície. Agora - disse, vestindo o colete e prendendo o arco e a aljava nos lugares apropriados às suas costas. - Um incêndio em campo aberto
é enganador. Pode nos engolfar rápido.
- O capão não está longe daqui.
- Espere - disse Brighid antes que Cuchulainn saísse em disparada. - Me ajude a cortar dois pedaços da tenda.
Cuchulainn não a questionou, apenas se aproximou da tenda e começou a cortar a pele grossa.
- Grande o suficiente para nos cobrir - disse Brighid, pegando a beirada cortada e puxando para que se rasgasse mais depressa.
- Nos cobrir? - Cuchulainn parou de cortar.
- Se não conseguirmos fugir do fogo, temos que encontrar um canal, ou, melhor, uma mata com um riacho. Entramos no leito do rio e nos cobrimos com as peles. Se tivermos
sorte, o fogo vai passar por cima de nós.
- E se não tivermos sorte?
- Ficamos sufocados ou morremos queimados.
Cuchulainn resmungou e recomeçou a cortar os pedaços da lateral da tenda com energia renovada. Quando os dois pedaços da tenda desabaram, nem Brighid nem Cuchulainn
olharam para os restos silenciosos e sangrentos que estavam lá dentro.
O capão estava amarrado perto da tenda. Cuchulainn abriu seu alforje e atirou um odre de água para Brighid. Ela bebeu avidamente enquanto Cuchulainn enrolava e depois
amarrava um dos pedaços da tenda no lombo dela, e o outro atrás de sua sela. Quando estava pronto, virou-se para a caçadora. Ela estava com a cabeça abaixada, afagando
Fand e murmurando palavras carinhosas para a filhote choramingante.
Cuchulainn não se permitiu pensar no que encontrara na tenda e no que quase acontecera com a esposa. Não podia. Se pensasse, estaria perdido. O estômago estava apertado
e quente, e ele ainda sentia a clareza sobrenatural que sempre lhe recaía durante uma batalha. Precisaria da força de um guerreiro para guiá-los pelo que havia à
frente. Mas foi impossível não se aproximar de Brighid e erguer-lhe o rosto. Segurando-o entre as mãos, Cuchulainn sentiu o tremor que passou pelo corpo dela quando
seus olhos se encontraram.
- Você chegou a tempo - sussurrou Brighid. - Obrigada.
Ele não conseguia falar. Só conseguiu beijá-la com uma intensidade que beirava a violência. Brighid lhe correspondeu a paixão, envolvendo-o em seus braços e se embriagando
nele.
Um relâmpago cortou o céu, interrompendo o beijo.
- Temos que cavalgar pesado. O vento está a favor do fogo - disse Brighid.
- De volta aos outeiros?
- Não. Lá não há água suficiente para deter o fogo, e nós não conseguiríamos subir rápido o bastante para fugir.
- Para o leste, então. Os afluentes do Rio Calman adentram a planície entre os outeiros e o Castelo Woulff. Meu pai e eu costumávamos pescar lá quando eu era pequeno.
Brighid assentiu.
- Vamos esperar que a seca não os tenha drenado.
- Se for o caso, teremos que alcançar o rio - disse Cuchulainn, montando no capão.
Talvez ele consiga alcançar. O capão é vigoroso e está bem descansado. Eu não.
- Brighid. - Cuchulainn se virou na sela, e seus olhares se encontraram sob o lampejo do raio seguinte. - Nunca deixarei você. Ou vivemos ou morremos - juntos.
Brighid sabia que ele falava a verdade. Aquele homem nunca a abandonaria, nem mesmo para se salvar. Então que a Deusa me ajude a evitar nossa morte.
- Vá na frente. Seguirei logo atrás de você - disse ela.
O guerreiro fincou os calcanhares nos flancos do capão e dispararam rumo ao nordeste com a filhote correndo atrás deles.
A fuga da Planície dos Centauros parecia uma descida a um Mundo Inferior que tinha sido abandonado pela Deusa. Os trovões e os raios serviam para iluminar vinhetas
de uma realidade apavorante. Animais da planície passavam correndo por eles - cervos, raposas e outros mamíferos pequenos, como coelhos, pulavam histéricos no caminho
deles antes de desviarem. E com os animais vinha a fumaça. A princípio era apenas um breve sabor amargo na brisa vinda do sul, mas conforme a noite se alongava o
ar se tornou mais denso até Cuchulainn refrear o capão e rasgar a camisa em tiras longas de linho que ensopou na água de um dos odres.
- Quando ficar muito ruim, amarre isso na frente do nariz e da boca. Talvez ajude.
Ofegando em busca de ar, Brighid assentiu. Os dois beberam sedentos do odre.
- Queria que fosse vinho - disse ela, em meio a acessos de tosse.
Cuchulainn sorriu.
- Em breve. O templo da minha mãe não fica longe dos afluentes do Calman.
- Imagino que não preciso perguntar se ela estará lá para nos receber. - Brighid tentou manter o tom ameno, mas ainda estava lutando para controlar a respiração,
e os lampejos intermitentes dos relâmpagos mostravam claramente o quanto seu corpo equino tremia.
- Mamãe provavelmente estará com dançarinas e uma procissão preparada para nos receber - respondeu Cuchulainn, tentando imitar o tom ameno, mas guiando o capão para
perto dela. O rosto estava tenso e os olhos preocupados ao analisarem a caçadora. - Vamos descansar aqui. Temos algum tempo.
- Não temos tempo nenhum - disse Brighid. Fand se aproximou ofegando, então Brighid se abaixou, despejando água na mão para que a loba lambesse. - Aí está uma menina
corajosa - disse à loba. Depois Brighid relanceou Cuchulainn. - Vá na frente. Sigo atrás.
Cuchulainn assentiu depressa e apontou a cabeça do capão para o norte outra vez, incitando o cavalo num galope constante. De repente os raios se ramificaram na noite
com claridade, iluminando distintamente a forma de um centauro solitário correndo quase em paralelo a eles. Sob a luz branca, a pelagem brilhou dourada e prateada,
uma cópia exata da irmã.
- Me dê seu arco - disse Cuchulainn.
- Não. Se tem que ser feito, eu faço. - Ainda num galope, Brighid ajustou o arco e esperou o próximo raio cair. Quando ele veio, ela mirou e deixou voar uma flecha,
que se enterrou no flanco de Bregon, fazendo-o tropeçar e cair pesado no chão.
Numa corrida ligeira, o capão de Cuchulainn alcançou Bregon antes de Brighid, então o guerreiro desceu do lombo do cavalo, sacando a espada e pressionando-a no peito
ofegante do centauro com tanta força que rasgou a pele. O relâmpago seguinte iluminou as gotas escarlate que escorriam pelo peito pálido como se fossem uma pintura
incompleta.
- Isso é só para que você não duvide de que minha espada funciona neste reino - rosnou Cuchulainn.
- Não o mate, Cuchulainn - disse Brighid com tranquilidade, colocando a mão trêmula sobre o braço do marido. - Ainda não, pelo menos.
Mas seu irmão estava ignorando o guerreiro. Estava era olhando as queimaduras de cordas e as marcas de dentes que deixaram marcas vermelhas e inflamadas no corpo
da irmã.
- O que aconteceu com você?
O rosnado de Cuchulainn era comparável ao rugido baixo e raivoso da loba.
- Os centauros que você deixou para trás fizeram o que você ordenou. Eles a capturaram. Eles a amarraram com cordas de modo que se asfixiasse caso se mexesse. Depois
começaram a estuprá-la. - A cada palavra, Cuchulainn apertava a espada com mais firmeza no peito de Bregon e mais sangue vertia sob a lâmina afiada. - Eu garanti
que não cumprissem suas ordens.
- Não - disse Bregon às tontas, os olhos arregalados de choque. - Só deviam detê-la até eu voltar.
- Até ser tarde demais para impedir a guerra! - berrou Brighid. - Como foi capaz, Bregon? Como pôde provocar tanto derramamento de sangue e ódio? O ódio de nossa
mãe não bastou para abastecê-lo por uma vida inteira?
Um tremor passou pelo corpo dele.
- Só queria deixá-la feliz.
- Isso era tarefa impossível para qualquer um, Bregon. - Então o ar penalizado de seus olhos endureceu. - Você fez? Libertou Fallon?
Bregon fechou os olhos e assentiu.
- Abra os olhos e encare o homem que vai matar você! - ordenou Cuchulainn.
Novamente, a mão de Brighid tocou de leve o braço do marido, que num óbvio esforço se impediu de enfiar o resto da lâmina no peito de Bregon.
- Para onde Fallon foi? - perguntou ela.
- Para as montanhas. É tudo que sei. - Bregon estremeceu outra vez. - Ela era assustadora. - A expressão de choque estava retrocedendo e a arrogância que lembrava
a da mãe estava se esgueirando em seu tom de voz. - Como pode defender aquelas criaturas? São malignas. Mesmo grávida, ela rasgou e dilacerou os guardas com as mãos
e os dentes para se libertar. Tomar a forma deles, mesmo que temporariamente, foi uma experiência medonha.
- Eles não são como Fallon! Os neofomorianos são gentis e carinhosos. - Brighid meneou a cabeça com desgosto, sentindo-se tremendamente enjoada e tão cansada que
era uma luta formar cada palavra. - Você sempre foi assim, Bregon, incapaz de ver além das suas necessidades e dos seus desejos imediatos.
- Não acredito que aquelas criaturas aladas devam viver.
- A escolha não é sua! E os guerreiros guardiões? Quantos você matou? E quantos mais Fallon matou?
- E o clã MacCallan? - perguntou Cuchulainn entre os dentes cerrados.
- Eles mataram minha mãe! - berrou Bregon.
- Seu jovem tolo, os homens que estavam na Planície dos Centauros tinham rompido com o clã - contou-lhe Cuchulainn. - Por que mais estariam tentando construir vida
nova?
- E ninguém matou nossa mãe, Bregon. Foi um acidente - um acidente que teria sido evitado se ela tivesse dado àquele pequeno grupo de pessoas permissão para que
se assentassem numa parte pequena de nossas terras.
- Eles não tinham o direito de estar lá! Violaram as terras da manada!
- Não! - Brighid fez um gesto violento de interrupção com a mão, mas o movimento súbito e violento deixou sua cabeça zonza. - A praga do ódio que nossa mãe espalhou
acaba agora. Virá conosco até o Templo de Epona. Lá contará a Etain o que fez e deixará que ela decida sua punição.
- Não vou! - A respiração dele começou a vir em arfadas fortes e rasas enquanto os olhos vasculhavam ao redor, como se procurassem ajuda na escuridão fumacenta que
os cercava.
- Se eu tiver que cortar seu jarrete e arrastá-lo atrás do cavalo, não hesitarei - disse Cuchulainn.
A pele de Brighid começou a formigar antes que o som os alcançasse. Então o rugido aumentou. Era como um trovão, só que mais vivo - mais intenso. A terra debaixo
deles começou a vibrar.
- Bisões - disse Brighid, encarando incrédula o irmão. - Você tem afinidade com os animais também.
O irmão retribuiu o olhar com firmeza.
- Temos algumas coisas em comum, irmã.
- O que está acontecendo? - perguntou Cuchulainn.
- Uma debandada de bisões. Monte no cavalo - disse apressada, tendo o cuidado de evitar o pânico na voz. - Lidamos com ele mais tarde.
Cuchulainn não se mexeu, apenas manteve a espada no peito sangrento do centauro.
- Vamos perdê-lo.
- Talvez, mas ele não pode se esconder de Epona.
Com um resmungo frustrado, Cuchulainn recuou. No instante em que a espada não estava mais sobre seu peito, Bregon se levantou. Virou-se para a irmã.
- Perdoe-me! - gritou, caindo na direção dela.
Automaticamente, Brighid ergueu os braços para ampará-lo, mas em vez de abraçá-la, as mãos dele se esgueiraram, puxando a pele de bisão enrolada das suas costas.
Antes que Cuchulainn pudesse reagir, Bregon girou, fundindo-se à fumaça como um espírito loiro.
Cuchulainn montou no capão, que estava pateando inquieto para o lado, orelhas erguidas na escuridão estrondosa, com a intenção de ir atrás de Bregon.
- Deixe-o ir - disse Brighid, decidida. - Ele não vale sua vida. - Num grande esforço, Brighid apanhou Fand e a ajeitou à frente da sela de Cuchulainn. - Segure-a
ou será pisoteada! - Era preciso gritar mais alto que o barulho crescente. - Mantenha pulso firme no cavalo. Ele vai entrar em pânico, mas você estará em segurança
desde que esteja montado nele.
Uma enorme sombra escura passou por eles em disparada.
Brighid buscou os olhos turquesa do marido e sorriu. Ela estava perto do fim. A transformação, depois o rapto e a fuga do incêndio tinham esgotado até as reservas
mais profundas da força da caçadora. Não seria capaz de acompanhar os bisões amedrontados, mas não permitiria que sua última memória em vida fosse de lágrimas e
lamentações.
- Eu te amo, Cuchulainn - disse Brighid, fazendo o rosto do marido abrandar.
- E eu te amo, minha bela caçadora.
Outra fera passou correndo por eles, então Brighid respirou fundo antes de dar um tapa no traseiro do capão e gritar: - Agora vamos!
Cinquenta e Um
CAPÃO E CENTAURA dispararam juntos e foram absorvidos na massa de criaturas apavoradas. O cheiro delas atingiu Cuchulainn - almíscar misturado com fumaça e pânico.
Não conseguia ouvir nada além do estrondo dos cascos. Tentava freneticamente guiar o capão de modo a manter-se ao lado de Brighid, mas era impossível. O oceano de
bisões os separou, até que tudo o que Cuchulainn conseguia enxergar era o cabelo loiro-prateado flutuando atrás de Brighid. Depois ele foi empurrado muito mais à
frente e a perdeu por completo.
O medo explodiu dentro dele. Não podia perdê-la! Devagar, conseguiu girar o cavalo para que aos poucos cortassem a massa das criaturas desvairadas. O cavalo era
mais ágil que os bisões pesadões, então logo alcançaram a margem da manada. Cuchulainn fez o cavalo reduzir para um trote contínuo e vasculhou as feras escuras à
procura de algum sinal da pelagem prateada de Brighid.
Então a manada se diluiu e, conforme alguns retardatários passavam, um novo som lhe alcançou os ouvidos. Era um crepitar e estourar característico que foi acompanhado
por um whoosh sinistro no ar. Cuchulainn virou a cabeça e uma súbita corrente de ar ascendente limpou a fumaça, fazendo o capão relinchar para escapar quando uma
parede de chamas se materializou. Dentro do fogo alaranjado Cuchulainn podia ver um jovem filhote de bisão e sua mãe serem consumidos.
Girou o cavalo e começou a ziguezaguear pelo caminho de capim pisoteado deixado pela manada.
- Brighid! - gritou, os olhos procurando um ponto prateado na planície vazia.
Teria passado por ela se Fand não tivesse começado a choramingar e se retorcer freneticamente para se libertar. Brighid estava caída sobre os joelhos e inclinada
à cintura, apoiando as mãos no chão e arfando em busca de ar.
Cuchulainn correu e desceu do capão ao lado dela.
Brighid ergueu a cabeça para encará-lo, olhos arregalados e vidrados.
- Não - murmurou. - Você devia estar a salvo.
- Eu disse que não a deixaria. - Virando-se depressa para o cavalo, apanhou a água e levou o odre aos lábios dela. Brighid bebeu e depois começou a tossir.
O sibilar e o crepitar do fogo fizeram a cabeça dela girar de um lado para o outro.
- Saia daqui! - berrou.
- Só se vier comigo - respondeu ele.
- Não adianta. - Ela apontou para a perna dianteira direita, que estava dobrada no ângulo errado sobre o chão. - Está quebrada. Rápido, Cuchulainn. Me deixe!
- Não deixo! Onde você for, eu vou - se morrer, eu morro! Não vou perdê-la, Brighid. Eu não conseguiria sobreviver.
- Por favor, não faça isso - pediu ela, cansada.
Então os olhos de Cuchulainn se arregalaram.
- Transforme-se!
- Cuchulainn, eu...
- Você consegue! Precisa. Transforme-se para que o capão possa nos carregar daqui. Se não conseguir, morremos aqui.
Viva, criança...
A voz gentil e familiar de Epona passou por sua mente, acalmando-a e tranquilizando-a. Brighid abaixou a cabeça e começou a murmurar as palavras enquanto se preparava
para a dor da transformação.
A pele mal tinha parado de cintilar com a transformação quando Cuchulainn a ergueu sobre o lombo do capão. O fogo estava tão próximo que o calor chamuscava a pele
deles e fagulhas choviam ao redor.
- Vai nos alcançar - ofegou Brighid ao ouvido dele.
Cuchulainn inclinou-se à frente e afundou os calcanhares no capão, que alongou as passadas, mas não conseguiam se afastar do monstro chamejante que os perseguia.
Brighid fechou os olhos e apertou a pedra de turquesa pendurada em seu pescoço.
Preciso novamente de você, meu amigo alado.
O grito da águia soou acima das chamas faiscantes e as asas poderosas bateram para longe a fumaça que os rodeava quando a ave os circulou uma vez e depois mergulhou
como uma estrela cadente à direita deles.
Venha...
Cuchulainn puxou as rédeas do capão para a direita e seguiu a ave voadora até a margem do rio.
A água era rasa - pouco ultrapassava os jarretes do capão. E não estavam sozinhos. Juntaram-se a um sortimento estranho de cervos e coiotes, todos encolhidos na
água e olhando com fascinação hipnótica a aproximação da parede de chamas. Quando Fand pulou na margem e mergulhou na direção deles, nem mesmo um tímido cervo dispensou-lhe
uma olhada.
- Tire a pele do capão! - gritou Brighid acima do trovão de chamas. - Deixe-o ir. Ele pode correr mais depressa sem nós.
Brighid cerrou os dentes com a dor na perna quando Cuchulainn a ajudou a descer do lombo do cavalo. Equilibrou-se numa perna só na água lamacenta enquanto ele puxava
a sela, os pacotes e a pele de bisão, e enxotava o capão para longe. Então Cuchulainn abaixou-se com Brighid dentro da água e chamou Fand. Envoltos nos braços um
do outro e com a loba apertada entre eles, Cuchulainn os cobriu com a pele do bisão e o mundo se tornou negro.
Perderam toda a sensação de tempo, só sabiam do calor e do som terrível e ensurdecedor do fogo consumidor. A água ao redor deles sibilava e evaporava. Brighid se
abraçou a Cuchulainn e tentou controlar o pânico instintivo que a fazia querer fugir daquela opressiva pele de bisão. A perna quebrada latejava dolorosamente e o
corpo parecia horrivelmente fraco, e, apesar do calor, Brighid começou a estremecer, sabendo que o choque estava se assentando sobre ela. Isso poderia me matar tanto
quanto o fogo. Era um pensamento desprendido, e Brighid sabia que devia lutar para ficar consciente e acordada... mas era tão mais fácil dormir... e estava tão frio...
Então ela ouviu a cantoria. Os lábios se ergueram ao reconhecer as vozes das crianças aladas e recordar que era a canção que cantaram no dia em que partiram dos
Ermos: Saudações, sol de Epona,
que viaja no alto dos céus.
Com seus passos fortes
em seu voo altaneiro,
você é a feliz mãe da estrelas.
- Está ouvindo? - sussurrou Brighid a pergunta a Cuchulainn.
- Estou - disse ele, a voz baixa. - Ouço, mesmo que as crianças não estejam aqui.
- Não estão... - a voz de Brighid estava embargada com as lágrimas - ... mas o amor delas está. Gorman estava errado, Epona ainda se importa com o que acontece com
suas sumos xamãs. - Ao ouvir a canção desencarnada de louvor, Brighid sentiu a força do amor encher seu corpo e se expandir conforme mergulhava e se concentrava
na melodia, que os cobriu num protetor toque maternal.
Você afunda no perigoso oceano
sem dano e sem ferimento.
Você se ergue no silêncio da onda
como uma jovem chefe desabrochando...
e vamos amá-la por todos os dias de nossas vidas!
- Terminou - disse Brighid baixinho quando a cantoria acabou. - O fogo se consumiu. Posso sentir - a raiva se foi.
Devagarinho, Cuchulainn ergueu a grossa pele e olhou para o amanhecer estranho de uma terra muito transformada. Ficou de pé e ergueu Brighid, com Fand acompanhando
bem de perto, e a carregou do leito do rio que tinha secado até pouco mais do que uma poça e estava entulhada com corpos chamuscados de animais. Subiu a margem esquerda
até ficar em meio aos cadáveres pretos de árvores. A série de afluentes que adentravam a Planície dos Centauros a partir do rio principal enfim bloqueara o fogo,
e o verde que ainda cobria as colinas atrás dos últimos canais parecia bizarramente deslocado num mundo preto e cinza. Antes que ele pudesse se voltar para o sul
e o que restava da Planície dos Centauros, Brighid falou: - Deixe-me ficar de pé. Quero voltar ao normal.
Cuchulainn a colocou de pé no chão. Quando Brighid recuperou o equilíbrio, Cuchulainn deu meio passo para trás, depois protegeu os olhos da luz brilhante da transformação
que engolfou o corpo dela. De volta à forma natural, Brighid equilibrou-se desengonçada sobre três pernas, mas buscou o olhar dele com resolução.
- Estou pronta para ver agora.
Juntos, os dois se voltaram para o sul. Brighid mal conseguia compreender o que estava vendo. O sol estava raiando na margem leste do horizonte, lançando tons rosa
e dourados alegres no céu sobre um mar de ruínas. A planície tinha sumido. No lugar dela existiam cinzas ainda fumegantes que se entulhavam em grotescas formações
queimadas. As árvores eram indistinguíveis dos corpos. Nada se mexia, exceto pelas colunas de fumaça.
- Ah, Deusa! - Brighid apertou a mão sobre a boca para não soluçar alto. Conseguiria alguma coisa sobreviver a isso?
- Sim, criança. - A voz de Etain soou alta e doce às costas deles.
Viraram-se para se deparar com a Deusa Encarnada, então Brighid se surpreendeu. Etain estava montada na égua prateada na margem enegrecida. Midhir estava à sua esquerda.
À direita estavam Elphame, Lochlan e Ciara. E espalhados atrás deles estavam todas as crianças aladas.
- Agora me diga, minha filha, como alguma coisa sobreviveria a essa devastação? - perguntou Etain a Brighid.
Os olhos da caçadora foram da Deusa Encarnada para Elphame, depois para Ciara e as crianças estranhamente caladas para, por fim, procurarem os olhos turquesa do
marido. Com um ímpeto de clareza, Brighid enfim compreendeu - e naquele momento a caçadora se transformou inteiramente na Sumo Xamã.
- Com esperança e amor, tudo pode sobreviver - disse ela, e as palavras soaram com um poder aprimorado pela Deusa, de modo que não foram carregadas apenas até as
crianças, mas se espalharam como ondulações num lago pela Planície dos Centauros.
Etain sorriu em aprovação.
De repente, além das crianças, começou uma gritaria, então guerreiros vestidos de negro apareceram com arcos e espadas em punho. Brighid sentiu Cuchulainn tenso
ao seu lado e abriu a boca para gritar um alerta, mas Etain ergueu um braço vestido em seda e o sol cintilou na palma de sua mão como se ela tivesse chamado seus
raios.
- Esperem, guerreiros guardiões! - ordenou sem olhar para o exército que se aproximava. - Não permiti que os seguissem até aqui para uma retribuição inapropriada.
Estão aqui para testemunhar um renascimento. Fiquem quietos e observem. - Então sua voz mudou, suavizou-se, e Etain enfim olhou para trás, mas não para os guerreiros.
A Alta Sacerdotisa sorriu para as crianças. - Venham.
O grupo desceu a elevação verde e cruzou a linha do fogo sem hesitação. Quando chegaram perto de Brighid e Cuchulainn, pararam. Brighid queria cumprimentar os amigos,
Elphame, Ciara e a figurinha alada de Liam, mas um formigamento sobrenatural estava novamente sobre sua pele e parecia que seu sangue cantarolava numa súbita onda
de desejo silencioso - algo que estava além do alcance da sua mente e do seu espírito - mas algo que queria... precisava ter.
- Leve-os, Brighid, Sumo Xamã da manada Dhianna. É seu amor e a esperança deles que recuperará a alma desta terra - disse Etain.
- Posso me apoiar em você? - perguntou Brighid a Cuchulainn.
- Sempre, minha bela caçadora.
Com o braço envolvendo os ombros largos, mancou barranco abaixo, cruzou o rio esturricado, e, com o farfalhar das asas que a seguiam, Brighid, Cuchulainn e os neofomorianos
entraram na planície destruída.
Brighid se voltou para as crianças e sua xamã.
- Podem me ajudar a fazê-la crescer outra vez? - perguntou.
- Sim, Brighid!
- Claro, caçadora!
- Sim!
- Sim!
Ela sorriu conforme as vozes ecoavam pela quietude morta da terra queimada.
- Então se juntem a mim.
Estendeu a mão e Liam veio correndo. Ciara se aproximou e tomou a mão de Liam. Depois Kyna saltitou para apertar a mão de Cuchulainn e exibir um sorriso radiante.
E, um por um, os neofomorianos se deram as mãos e se espalharam num semicírculo, encarando a destruição nas terras ao sul.
- Eu... Eu não sei... - gaguejou Brighid.
Ciara capturou-lhe o olhar e exibiu aquele sorriso jubiloso que era tão cheio de amor e gentileza.
- Sim, você consegue, Brighid. Apenas deixe seu coração falar.
E então Brighid abriu a boca e deixou o coração se despejar: Graciosa Deusa Epona!
Guardiã de tudo que é selvagem e livre,
pedimos tua bênção sobre esta planície.
Era um lugar de ódio e conflito,
mas foi purificado pelo fogo.
Que agora seja reconstruído
como um lugar de alegria e amor!
Um lugar de refúgio e paz,
um lugar de encantamento!
Selvagem e livre como a Deusa que o criou...
Brighid se calou quando Ciara, logo acompanhada pelas crianças, começou a cantarolar uma melodia ritmada e sem palavras que lembrava o vento varrendo o capim alto
de pleno verão. Ao mesmo tempo, um brilho esmeralda começou a emanar de todos os neofomorianos. A mão de Cuchulainn apertou a dela quando a voz de Epona, cheia de
amor e alegria, soprou por eles como um vento mágico vindo do fundo do coração deles: - Consagro você, Brighid Dhianna, como Guardiã da Planície dos Centauros. Está
vinculada a ela pelo sangue, pelo amor e pela esperança - e agora por minha sagrada confiança!
Tomada de emoção, Brighid curvou a cabeça em reconhecimento, recompondo-se antes de poder completar a oração. Quando voltou a falar, a voz estava densa com o amor
e a felicidade que a inundavam: Ó graciosa Deusa!
Divina protetora de tudo que é selvagem e livre,
estejas sempre presente
nesta terra de beleza!
Salve Epona!
Que assim seja!
Ao falar as últimas palavras da oração, o brilho esmeralda que pairava sobre as crianças de repente explodiu, como um redemoinho colorido que possuía o poder de
apagar o passado, e rodopiou pela planície, removendo as feias cinzas negras e a fumaça para de repente expor o belo renascimento que já estava despontando debaixo
do rico solo.
Com lágrimas correndo livres pelo rosto, Brighid observou sua terra natal renascida. E então, antes que pudesse compreender a enormidade do que as crianças abençoadas
pela Deusa tinham feito, uma agitação surgiu na terra recém-nascida quando os centauros apareceram de repente. Eram guiados por um macho loiro-prateado cujo cabelo
fora arrancado do corpo pelo fogo e cuja pele estava empolada e queimada.
Brighid continuou parada no centro da linha de mãos dadas enquanto ele e os outros centauros se encaminhavam lentamente até ela. Conforme se aproximavam, reconheceu
vários deles, especialmente as fêmeas, como sendo membros da manada Dhianna, mas o foco de sua atenção continuava no irmão.
Bregon parou a poucos passos diante dela. Lenta e deliberadamente, executou uma profunda reverência de respeito prestada apenas a centauros sumos xamãs.
- Perdoe-me, Brighid. - Quando ergueu o rosto, as faces cobertas de fuligem estavam banhadas de lágrimas. Então Bregon se pôs de joelhos. Mantendo os olhos na irmã,
começou a falar numa voz profunda e sincera: Pela profunda paz do ar corrente, eu me vinculo a ti.
Pela profunda paz do fogo crepitante, eu me vinculo a ti.
Pela profunda paz da terra serena, eu me vinculo a ti.
Pelos quatro elementos, eu estou vinculado a ti, Brighid Dhianna, Sumo Xamã e Guardiã da Planície dos Centauros, e pelo espírito de nossa manada selo este vínculo.
Assim foi dito, então assim seja feito.
Pasma, Brighid só conseguia encarar o irmão e os outros membros da manada Dhianna que tinham se ajoelhado quando Bregon pronunciou as antigas palavras de vínculo.
- Deve aceitá-los ou não - disse Cuchulainn baixinho. - A decisão é sua.
- Levantem-se, centauros Dhianna. Sua sumo xamã os aceita.
Com um grito de alegria, os centauros se ergueram - todos, exceto o irmão - que curvou novamente a cabeça e chorou abertamente.
Houve certa agitação na fila à direita de Brighid quando Ciara largou as mãos das crianças a cada lado seu. Com aquela graça que lhe era tão singular, a xamã alada
se aproximou de Bregon. Ergueu o rosto dele e o encarou nos olhos. Brighid viu o sobressalto no corpo dele e tentou mancar adiante, mas a mão de Cuchulainn a impediu.
- Espere - murmurou.
Lentamente, Ciara secou as lágrimas do rosto de Bregon e depois lhe ofereceu a mão. O centauro a aceitou e se inclinou para ficar de pé outra vez. Mantendo a mão
dele consigo, a xamã alada se voltou para as crianças.
- Este é o irmão de Brighid - disse-lhes. - Venham lhe dar as boas-vindas.
Imediatamente a represa arrebentou e corpinhos alados se atulharam ao redor do centauro queimado, saltitando e fazendo seu costumeiro sortimento de perguntas intermináveis.
- Olhe para ele, Cuchulainn, e me diga o que vê dentro da alma - pediu Brighid.
O guerreiro observou o irmão da esposa, e depois seus olhos buscaram os dela.
- Vejo redenção, minha bela caçadora.
Epílogo BEM AO NORTE, nas profundezas das Montanhas Trier, Fallon, em gravidez avançada, recostou-se no braço do companheiro quando entraram no talho escuro da formação
rochosa através da qual tinham visto um único fio de fumaça.
Lá dentro, o fogo ardia no centro da caverna. Perante os recém-chegados, as asas das criaturas reunidas se agitaram e se ergueram perigosamente. Caninos e garras
cintilaram, mesmo sob a luz fraca do fogo minguado.
Ela sabia! Sabia que nem todos tinham perecido! Não era possível que seres tão fortes, tão cheios de vontade de viver estivessem todos mortos. Não... Eles estavam
ali, esperando por ela... Exatamente como sonhara... Exatamente como esperava.
- Quem é você? - rosnou um deles.
Fallon se desvencilhou do braço de Keir e se empertigou, exibindo a saliência viva que avolumava seu abdômen.
- Sou a salvação de vocês!

Em vez de seguir as regras restritivas de sua família, Brighid, uma centaura, escolhe partir em busca da sorte, fazendo novos amigos e criando laços com humanos e outros seres de sua espécie. Para sua surpresa, a Grande Deusa despertou nela o poder divino do Xamã. Enquanto se divide entre aceitar uma dádiva com a qual jamais sonhou e o medo de assumir um amor proibido, Brighid tem a premonição de uma tragédia que poderá destruir todos a quem sempre amou...

 


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ATRAVÉS DO SANGUE de uma deusa agonizante, seu povo será salvo.
Há mais de um século, mulheres começaram a desaparecer da terra verde e próspera chamada Partholon. A princípio os desaparecimentos eram esporádicos, aparentemente
aleatórios. Só quando uma horda invasora atacou o Castelo MacCallan, massacrou os bravos guerreiros do clã e escravizou suas mulheres é que a terrível verdade foi
descoberta. Os fomorianos, uma raça de demônios alados, estavam usando mulheres humanas para gerar uma nova raça de monstros. De nada significava para as criaturas
vampíricas que dar à luz fetos mutantes provocasse a morte das mães relutantes. As mulheres humanas eram incubadoras - suas mortes não eram mais do que um meio maligno
para um fim medonho.
A fúria da deusa Epona foi terrível, tanto que através de sua escolhida, a deusa encarnada Rhiannon, e seu consorte, o centauro ClanFintan, os povos de Partholon
se uniram para derrotar os fomorianos. A raça demoníaca foi destruída, mas os povos de Partholon não perceberam que o legado da guerra era mais do que morte e maldade.
Nos Ermos, bem longe do coração de Partholon, crianças aladas nasceram de mães humanas que miraculosamente sobreviveram. Parte demônio, parte humano, o pequeno grupo
de seres híbridos lutou para construir uma vida nos Ermos. Agarraram-se com firmeza à humanidade, mesmo que a recusa ao chamado do sangue sombrio dos pais lhes causasse
dor... Dor que lentamente lhes consumia a vontade, até a loucura se tornar o único repouso.
- Através do sangue de uma deusa agonizante, seu povo será salvo.
Mas Epona não se esquecera das mulheres que nunca perderam a esperança e permaneceram fiéis à Deusa, embora não pudessem voltar a Partholon com seus filhos alados.
A Grande Deusa sussurrou a profecia aos seus filhos destituídos, e a promessa de salvação soprou esperança na raça de meio-demônios.
Um século se passou lentamente e o povo alado esperou pela resposta às suas preces. Partholon se recuperou e prosperou novamente, e a Guerra Fomoriana se tornou
uma lembrança enterrada na história.
E então uma criança nasceu, parte humana e parte centauro. Tocada pela mão poderosa de Epona, o bebê recebeu o nome de Elphame. Através dos sonhos, a menina chamava
Lochlan, o líder dos meio-demônios alados que aguardavam nos Ermos. A criança se tornou adulta, e Lochlan seguiu os vestígios de seus sonhos até o Castelo MacCallan,
onde Elphame despertou mais do que as pedras de uma antiga ruína.
- Através do sangue de uma deusa agonizante, seu povo será salvo.
Por amor a Lochlan e confiança em sua Deusa, Elphame cumpriu a profecia, sacrificando uma parte de sua própria humanidade junto com o coração de seu irmão ao salvar
a raça de fomorianos híbridos. Agora essa nova linhagem de seres estava finalmente voltando para casa. Mas a luta só tinha começado. Lembre-se, não era fácil trilhar
o Caminho da Deusa...
Um
ELPHAME ESTAVA EXATAMENTE onde a caçadora imaginou que estaria - não que fosse necessário o talento de uma centaura caçadora para rastrear a chefe do clã. O hábito
d'A MacCallan de visitar aquele ponto específico dos rochedos no penhasco se tornara bem conhecido. Daquele ponto privilegiado, na mais alta das rochas imensas e
desgastadas pelo tempo, Elphame podia se sentar e olhar para o norte, na direção das Montanhas Trier, que eram apenas uma linha roxa dentilhada sobressaindo no horizonte.
Ficava fitando aquela linha distante, tentando enxergar os Ermos mais além.
Brighid se aproximou de Elphame em silêncio, relutante em perturbá-la. Mesmo depois de viver e trabalhar perto de Elphame por mais de dois ciclos completos da lua,
Brighid ainda se comovia com a visão do ser único que se tornara sua amiga e também sua chefe de clã. Nascida a filha mais velha da Deusa Encarnada de Partholon
e do xamã centauro que era seu consorte, Elphame era humana só até a cintura; suas duas pernas eram mais equinas que humanas. Eram tremendamente poderosas e cobertas
por uma bela pelagem reluzente, terminando em dois cascos de ébano.
Mas as diferenças físicas não eram tudo que distinguia Elphame. Ela carregava consigo os poderes concedidos por Epona. Comunicava-se com o Reino dos Espíritos através
da afinidade com a magia de terra. Elphame podia ouvir os espíritos das pedras do Castelo MacCallan. Também possuía uma conexão especial com Epona, tanto que Brighid
geralmente sentia a presença da Deusa benfeitora de Partholon quando Elphame invocava a bênção matutina ou agradecia à Deusa ao fim de um dia particularmente produtivo.
E, claro, todos tinham testemunhado o favor de Epona quando Elphame invocou a força e o amor de uma Deusa para derrotar a loucura dos fomorianos...
Brighid estremeceu, não querendo se lembrar daquele dia medonho. Era suficiente saber que sua chefe de clã era uma miraculosa mistura de centauro e humana, deusa
e mortal.
- Teve sucesso na caçada matinal? - perguntou Elphame, sem se virar para olhar a caçadora.
- Bastante. - Brighid não ficou surpreendida com a chefe pressentindo sua presença. Os poderes sobrenaturais de Elphame eram aguçados e acurados. - A floresta que
cerca o Castelo MacCallan não é vasculhada propriamente há mais de cem anos. A caça praticamente salta diante de minhas flechas, implorando para ser escolhida.
Os lábios carnudos de Elphame se ergueram numa alusão de sorriso.
- Cervo suicida? Isso me soa um prato realmente único.
Brighid bufou:
- Não conte a Wynne. Aquela cozinheira exigirá que eu escolha o temperamento dos animais com mais cuidado para que seus cozidos tenham sabor mais perfeito.
A MacCallan tirou o olhar das montanhas distantes e sorriu.
- Seu segredo está a salvo comigo.
Fitando os olhos de Elphame, Brighid foi surpreendida pela tristeza contida ali. Só os lábios dela sorriam. A MacCallan não mostrava esse rosto assombrado para o
público em geral - era um raro privilégio ter consentimento para tal intimidade. Por um momento, Brighid temeu que a loucura fomoriana emboscada no interior do sangue
da amiga tivesse despertado, mas logo desconsiderou a ideia. Brighid não enxergava ódio ou fúria dentro dos olhos de Elphame, via apenas profunda tristeza. Tinha
pouca dúvida quanto à fonte dela. Elphame estava feliz ao lado de Lochlan. O clã estava saudável e próspero. Sua chefe devia estar contente. E Brighid sabia que
Elphame estava, exceto por um detalhe.
- Está preocupada com ele. - Brighid estudou o perfil forte de Elphame quando seu olhar se voltou novamente para o horizonte.
- Claro que estou preocupada com ele! - Ela pressionou os lábios numa linha fina. Quando falou outra vez, a voz estava triste e resignada: - Sinto muito. Não pretendia
descontar em você, mas ando preocupada com ele desde a morte de Brenna. Ele a amava muito.
- Todos nós amávamos a pequena curandeira - disse Brighid.
Elphame suspirou:
- É porque ela era especial. O coração dela era incrivelmente grande.
- Você teme que Cuchulainn não se recupere da perda.
Elphame fitou as montanhas distantes.
- Não seria tão ruim se ele estivesse aqui, se eu pudesse conversar com ele e saber como está passando. - Meneou a cabeça. - Mas não podia impedi-lo de partir. Ele
disse que tudo aqui o lembrava Brenna, que nunca aprenderia a viver sem ela aqui. Quando partiu, era apenas um fantasma de si mesmo. Não... - ela reconsiderou a
comparação - ... não um fantasma de si mesmo. Era mais como uma sombra do que costumava ser...
A voz de Elphame sumiu. Brighid ficou ao lado da chefe, que se debatia em silêncio de preocupação com o irmão, e os próprios pensamentos da caçadora se puseram a
recordar a pequena curandeira, Brenna. Assim como Brighid, viera até o Castelo MacCallan procurando por uma nova vida e um novo começo, mas a curandeira desfigurada
encontrara muito mais. Encontrara o amor nos braços do irmão guerreiro da chefe, que era capaz de enxergar a beleza do coração que existia por trás das terríveis
cicatrizes de queimadura. Brighid recordou o quão espetacularmente feliz a amiga estava - até o momento de sua morte prematura. Que sua morte tivesse dado início
aos eventos que levaram à salvação de um povo pouco servia para curar a ferida deixada por sua ausência. E agora Cuchulainn estava nos Ermos para guiar de volta
a Partholon o próprio povo que acarretou a morte de sua amada.
- Foi por insistência dele - disse Elphame baixinho, como se pudesse pressentir o caminho dos pensamentos de Brighid. - Não culpou os outros fomorianos pela morte
de Brenna. Compreendeu que a assassina estava sob controle da loucura contra a qual todos lutavam.
Brighid assentiu:
- Cuchulainn só culpou a si mesmo. Talvez trazer os fomorianos híbridos para casa sirva como ato de conclusão. Lochlan disse que muitos em seu povo ainda são crianças.
Talvez elas ajudem na cura de Cuchulainn.
- Recuperar-se sem o toque de uma curandeira é um processo difícil - murmurou Elphame. - Só odeio pensar que está sofrendo e sem... - Ela se interrompeu com uma
risada seca.
- O quê? - perguntou Brighid.
- Sei que parece tolice, afinal Cuchulainn é um guerreiro renomado por sua força e coragem, mas odeio pensar que ele está sem a família por perto enquanto está sofrendo.
- Especialmente sem a irmãzona?
Os lábios de Elphame se retorceram.
- Sim, especialmente a irmãzona. - Ela suspirou novamente. - Partiu há muito tempo. Achei que estaria de volta a essa altura.
- Você sabe que o relatório do Castelo Guardião dizia que uma grande nevasca de primavera assolou as montanhas e fechou a passagem para os Ermos. Cuchulainn teria
que esperar até o próximo degelo e, então, teria que viajar devagar, tendo cuidado para não sobrecarregar a força das crianças. Deve ser paciente - avisou Brighid.
- A paciência nunca foi uma de suas virtudes, meu coração.
A voz profunda veio de trás delas. A caçadora e sua chefe se viraram para observar o homem alado terminar sua aproximação silenciosa. Brighid imaginava se um dia
se acostumaria ao fato de tal ser existir. Parte fomoriano e parte humano, Lochlan nascera uma anomalia. Mais humano que demônio, ele e seus semelhantes tinham sido
criados em segredo pelas mães humanas na adversidade dos Ermos, ao norte das Montanhas Trier. Era alto e delgadamente musculoso. Suas feições eram definidas e atrativamente
humanas, mas a luminescência da pele indicava sua herança sombria. E também existiam as asas. Agora estavam em repouso, bem dobradas às costas, apenas com a face
externa cor de tempestade visível. Mas Brighid as vira bem abertas, em terrível magnificência. Era uma visão que a caçadora não se esqueceria com facilidade.
- Bom dia, caçadora - disse ele calorosamente ao se aproximar delas. - Wynne me disse que você retornou essa manhã com uma caça espetacular e que teremos filés de
cervo para a refeição da noite.
Brighid inclinou a cabeça num breve aceno, reconhecendo o elogio ao se afastar para que Lochlan pudesse cumprimentar a esposa.
- Senti sua falta de manhã - disse ele, pegando a mão de Elphame para beijá-la com carinho.
- Sinto muito. Não conseguia dormir e não quis acordá-lo, então... - Ela encolheu os ombros.
- Está impaciente pelo retorno de seu irmão, e isso a deixa inquieta - afirmou ele.
- Sei que ele é um guerreiro, e sei que estou pensando com o coração de uma irmã no lugar da mente de uma chefe, mas estou preocupada com ele.
- Sou um guerreiro, mas se perdesse você, perderia minha alma. Ser um guerreiro não impede um homem de sofrer. Cuchulainn também tem feito parte de meus pensamentos
ultimamente. - Lochlan fez uma pausa, escolhendo as palavras com cuidado. - Talvez um de nós devesse ir atrás dele.
- Quero ir. Até pensei nisso, mas não posso partir. - A frustração de Elphame inundou-lhe a voz. - O clã é muito novo, e ainda há muito trabalho a ser feito na reconstrução
do castelo.
- Eu irei. - Brighid falou num tom simplesmente prático.
- Você? - perguntou Elphame.
A caçadora assentiu e deu de ombros.
- A floresta está tão repleta de caça que até mesmo os guerreiros humanos podem facilmente manter o castelo abastecido. Ao menos por enquanto - acrescentou com um
sorriso. - E será necessária a habilidade de uma caçadora para seguir a trilha que Cuchulainn tomou pelas montanhas. - Ela olhou explicitamente para Lochlan. - Não
é?
- É um caminho obscuro, e, mesmo que eu saiba que Cuchulainn e os outros o terão demarcado, ainda seria difícil de ser encontrado e seguido - concordou ele.
- Além disso, a caça é escassa nos Ermos. Ao menos poderei aliviar o fardo da fome enquanto se preparam para a viagem. - Brighid sorriu para sua chefe. - Uma caçadora
é sempre companhia bem-vinda, especialmente quando há bocas famintas para se alimentar.
- Uma amiga também é sempre uma companhia bem-vinda - disse Elphame, a voz ficando embargada de emoção. - Obrigada. Você deu um alívio enorme à minha mente.
- Cuchulainn provavelmente vai me considerar uma pobre substituta para a irmã - disse Brighid a grosso modo, para encobrir as próprias emoções. Importava-se com
Elphame como se importaria com um membro da própria família. Não, corrigiu silenciosamente a caçadora, foi da minha família que escapei ao me juntar ao clã MacCallan.
É muito mais fácil me importar com Elphame.
- Ele não vai pensar uma coisa dessas. - Elphame riu.
- Desenharei um mapa que torne seu caminho mais claro - disse Lochlan. Então pousou a mão com leveza sobre o ombro da caçadora. - Obrigada por fazer isso, Brighid.
Ela olhou nos olhos do homem alado e conteve a vontade de encolher-se ao seu toque. A maioria do clã estava lentamente aceitando Lochlan como consorte de Elphame.
Ele era meio-fomoriano, mas provara sua lealdade à chefe e ao clã. Porém Brighid não conseguia sufocar a sensação incômoda que estar na presença dele sempre despertava.
- Parto logo pela manhã - disse a caçadora com resolução.
Brighid odiava neve. Não que fosse um desconforto físico. Como acontecia com todo centauro, o calor natural de seu corpo só não a isolava eficientemente das mudanças
climáticas mais severas. Odiava a neve em sua essência. Ela amortalhava a terra num manto de umidade dormente. As criaturas silvestres se entocavam ou fugiam para
terras mais quentes. Concordava com os animais. Levara cinco dias para viajar ao norte desde o Castelo MacCallan, atravessando a densa floresta até a boca da passagem
obscura que Lochlan esboçara em seu mapa detalhado. Cinco dias. Brighid bufou de desgosto. Poderia muito bem ser um humano cavalgando em círculos num cavalo imbecil.
Tinha esperado viajar o dobro da distância em metade do tempo.
- Maldita neve - murmurou, a voz soando estranha nas paredes das montanhas avultosas. - Deve ser essa aqui. - Ela estudou a formação rochosa singularmente talhada
à procura de algum sinal de que o pequeno grupo de Cuchulainn tivesse entrado ali. Brighid achava que Cuchulainn teria marcado o caminho, embora fosse improvável
existir outro agrupamento de rochas vermelhas que se parecessem exatamente com a boca aberta de um gigante, com direito a língua estendida e dentes serrilhados.
Seus cascos faziam ruídos úmidos e abafados conforme se aproximava do túnel escancarado.
De repente, o ar foi tomado pelo som agitado de asas fortes e uma forma preta se lançou para pousar na rocha em forma de língua.
Brighid parou abruptamente e apertou os dentes. O corvo entortou a cabeça e grasnou para ela. A caçadora fez cara feia.
- Vá embora, pássaro miserável! - gritou, agitando os braços.
Sereno, o corvo a encarou com seu olhar frio e negro. Depois, lenta e distintamente, bateu por três vezes na lateral da rocha com o bico antes de abrir as asas e
se lançar ao ar primorosamente, esvoaçando tão baixo que agitou os cabelos de Brighid, que se obrigou a não se abaixar. Franzindo a testa, a caçadora se aproximou
da rocha. Os pés da ave tinham deixado marcas em forma de garras na neve, de modo que o vermelho da rocha ficava visível em linhas cor de ferrugem que contrastavam
com o quadro de inverno. Ela estendeu a mão e espanou a área, sem sentir surpresa quando o talho do caminho de Cuchulainn se tornou visível, apontando para dentro
da boca do túnel.
Brighid meneou a cabeça.
- Não quero sua ajuda, mãe. - Misteriosamente, a voz arremeteu de volta das paredes do túnel. - O preço que você cobra por isso sempre foi alto demais.
O grasnado do corvo foi trazido por um vento que de súbito, como que por mágica, parecia quente, carregado de perfumes e sons da Planície dos Centauros. Brighid
fechou os olhos para conter uma onda de saudade. O verde das campinas ondulantes era mais do que uma cor - acolhia perfume e textura quando a brisa morna soprava
por elas. Era primavera na Planície dos Centauros, completamente diferente daquele mundo frio e branco das montanhas. O capim estaria chegando na metade do jarrete,
pontilhado com a orgulhosa exibição das flores silvestres azuis, brancas e roxas. Brighid respirou fundo e sentiu o gostinho de casa.
- Pare! - Abriu os olhos. - É um blefe, mãe. A liberdade é a única coisa que a Planície dos Centauros não me oferece!
O chamado do corvo esvaiu e morreu, levando consigo o cálido vento com sabor de lar. Brighid estremeceu. Não deveria ficar surpresa com a mãe enviando um guia espiritual.
A sensação de expectativa que tinha sentido durante todo o dia fora instigada por mais do que a aproximação da entrada para a passagem da montanha. Brighid devia
ter pressentido a mão da mãe. Não, corrigiu-se Brighid, ela tinha pressentido - deveria ter reconhecido.
Fiz minha escolha. Sou a caçadora do clã MacCallan - um membro jurado do clã. Não me arrependo da minha escolha.
A caçadora ergueu os ombros e entrou no túnel, desvencilhando-se física e mentalmente dos efeitos persistentes da presença da mãe. Ficou subitamente contente porque
a passagem estava coberta com neve suficiente para exigir toda sua concentração e bastante de sua vasta força física para que caminhasse. Não queria pensar na mãe,
nem na beleza familiar da terra natal que decidira deixar para sempre.
O dia ainda estava no começo. De acordo com Lochlan, conseguiria se livrar das partes mais traiçoeiras da trilha antes que escurecesse. Se tudo corresse bem, no
dia seguinte encontraria o acampamento fomoriano e Cuchulainn. Acertou o passo, tomando cuidado para não pisar em falso e prender o casco numa fenda escondida na
neve. Brighid se concentrou no trajeto. Não pensou na mãe nem na vida que abandonara. Ignorou a culpa e a solidão que acompanharam cada decisão. Tinha feito a escolha
certa. Estava certa disso. Mas só porque tinha escolhido com sabedoria não significava que tivesse tomado o caminho mais fácil.
Ao se arrastar por uma curva estreita e escorregadia na trilha traiçoeira, sorriu numa ironia amarga. O caminho físico que decidira tomar estava rapidamente se provando
quase tão difícil quanto o caminho de vida que tinha escolhido.
Distraída com sua confusão interna e seus desafios externos, os sentidos perspicazes da caçadora só registraram os olhos observadores no subconsciente, como uma
breve sensação de inquietude. Uma sensação negligenciada por acreditar serem vestígios de irritação com a interferência do emissário espiritual da mãe.
Imperturbáveis na escuridão, os olhos cintilaram na cor de sangue velho conforme continuavam a observar e esperar.
Dois
O MALDITO VENTO era interminável. Cuchulainn achava que essa era a coisa que mais desgostava nos Ermos. Podia suportar o frio, ao menos em doses limitadas. Podia
até achar a terra descampada e as estranhas plantas rasteiras incomuns e interessantes. Mas o maldito vento era um tormento constante. Uivava incessantemente e irritava
a pele exposta até deixá-la áspera de tão esfolada. O guerreiro estremeceu e puxou o capuz da capa debruada de pele sobre a cabeça. A noite estava se aproximando
com rapidez, e, apesar de estar nos Ermos há menos de dois ciclos inteiros da lua, já tinha aprendido a respeitar o quanto era perigoso ficar em local aberto ao
pôr do sol, mesmo que por pouco tempo.
Cuchulainn parou e se agachou para estudar as distintas reentrâncias de cascos na neve. Os rastros eram recentes. O vento açoitador não teve tempo de obscurecê-las.
O carneiro montês não podia estar muito longe.
A jovem loba deu uma choramingo abafado ao pressionar o focinho frio no flanco de Cuchulainn. Distraído, ele afagou a loba.
- Com frio e fome também, não é, Fand?
A loba choramingou novamente e esfregou o nariz molhado debaixo do queixo dele. Abruptamente Cuchulainn se ergueu e apertou os cordões da capa.
- Razão ainda maior para pegar o carneiro. Venha, ele não está muito à nossa frente. Vamos andar logo isso.
O choramingo da loba parou conforme avançavam. Embora ainda não totalmente crescida, era completamente devotada ao pai adotivo. Aonde Cuchulainn fosse, Fand acompanhava.
Cuchulainn acertou o passo, imaginando os gritos felizes das crianças quando levasse a caça para o acampamento. Por um brevíssimo instante, os pensamentos do guerreiro
se abrandaram. As crianças foram realmente inesperadas. Não que não soubesse que elas existiam. Tinham sido o ímpeto de sua missão. Era sua tarefa viajar aos Ermos
e guiar as crianças dos fomorianos híbridos, ou neofomorianos, como gostavam de ser chamados, para Partholon, o lar de suas mães humanas há muito falecidas. Mas
pensar numa coisa e fazê-la de fato geralmente era tão dissimilar quanto a severidade dos Ermos e a prosperidade verde de Partholon.
Os neofomorianos, em termos gerais, foram uma surpresa atrás da outra.
Quando Cuchulainn pensava em como seria o verdadeiro encontro com os fomorianos híbridos, sua mente de guerreiro os imaginava como bárbaros, provavelmente perigosos.
Que Lochlan fosse civilizado não fazia diferença. Por mais improvável que tivesse parecido a princípio, Epona o criara para ser o consorte da irmã de Cuchulainn.
Claro que Lochlan seria diferente, mas Cuchulainn sabia muito bem que os fomorianos híbridos eram capazes de grande selvageria.
Tinham sobrevivido na dureza dos Ermos por mais de um século. E, mesmo com a loucura extirpada recentemente do sangue, ainda eram descendentes de demônios. A irmã
insistira no retorno dos híbridos a Partholon, já que aquela terra era parte da herança deles. Ela era sua chefe de clã e seria obedecida, mas Cuchulainn também
era um guerreiro experiente. Não conduziria inimigos para Partholon. Por isso, seria cauteloso e prudente. Essa era uma das razões para ter insistido em viajar sem
outros guerreiros humanos. Sozinho poderia descobrir a verdade, e sozinho poderia voltar para alertar Partholon, se necessário.
Conforme ele e os gêmeos híbridos, Curran e Nevin, seguiam do Castelo MacCallan através da floresta ao norte até a passagem escondida nas Montanhas Trier, Cuchulainn
aguardou, observou os gêmeos e nutriu a ferida aberta que era seu pesar. Acordar a cada manhã capaz de se obrigar a executar as ações de um novo dia era um pequeno
milagre. Olhando para trás, a jornada aos Ermos fora um longo e doloroso borrão. Curran e Nevin eram companheiros de viagem silenciosos. Não pareciam mostrar qualquer
predileção por violência. Não reclamaram do ritmo que ele impôs, nem reagiram aos seus modos grosseiros e retraídos. Cuchulainn dizia a si mesmo que o comportamento
benigno deles não significava nada. Pretendia avaliar a reação dos outros fomorianos à sua notícia quando chegasse ao acampamento, e depois faria o melhor por Partholon.
Então Cuchulainn viajou para o norte, lutando contra o pesar dentro de si e imaginando demônios do lado de fora. Não tinha ferimentos físicos dos quais se recuperar,
mas a ferida que a morte de Brenna deixara em sua alma era um buraco aberto e invisível. A passagem do tempo ainda não tinha começado a amenizar a agudeza de sua
dor. Nunca se recuperaria realmente disso. Apenas sobreviveria. Havia uma distinta diferença.
Sua mente se desvencilhou da dor provocada por pensar em Brenna. Não que a perda não estivesse sempre com ele. Brenna nunca estava longe de seus pensamentos, mas
ele tinha descoberto que se cedesse ao desespero, pensando no que "poderia ter sido", as brasas ardentes da dor logo se transformariam numa ânsia quente e flamejante.
Era uma ânsia que nunca seria saciada. Brenna se fora. Este era um fato inalterável. Era bem melhor não pensar - não sentir - absolutamente nada.
Apenas apanhe o carneiro. Mate-o. Retorne ao acampamento. Ordenou que a mente parasse com suas andanças inquietas.
Cuchulainn fez uma curva. Ele e a jovem loba calmamente abriram caminho entre as rochas cobertas de neve que se aninhavam na encosta norte das Montanhas Trier. Estava
contente porque a neve diminuíra visivelmente. Dias atrás nem teria conseguido seguir o carneiro até a base das montanhas. Se tivessem sorte e não viesse outra nevasca,
talvez a passagem ficasse limpa o suficiente para a viagem em poucos dias. Claro que teria de ter certeza. As crianças eram resistentes e dispostas, mas eram, apesar
de toda a ansiedade e precocidade, apenas crianças.
Eram incomuns, porém. Nunca se esqueceria de sua primeira visão - nem da reação das crianças ao primeiro humano que viam. Era uma tarde nublada e sombria. O céu
estava pesado com a nevasca que selaria a passagem e os prenderia nos Ermos. Ele, Curran e Nevin saíram das montanhas e cruzaram a pequena distância desde a passagem
até o pequeno vale que abrigava o acampamento dos neofomorianos. Foi um jovem sentinela chamado Gareth quem os avistou e, como todo bom guarda, correu para alertar
o acampamento. Mas em vez de receber o pequeno grupo com armas erguidas e cautela, os neofomorianos dispararam do acampamento com braços abertos e sorrisos de boas-vindas.
Crianças! Pela Deusa, não esperava tantas crianças. Rindo e cantando uma bela melodia que Cuchulainn ficou chocado ao reconhecer como uma antiga canção partholoniana
de louvor a Epona, os híbridos abraçaram os gêmeos. Depois a atenção logo se voltou para ele - o único humano no meio deles.
- Este é Cuchulainn - dissera Nevin.
- É o irmão da deusa Elphame que nos salvou - completou Curran por ele.
A cantoria alegre cessou imediatamente. O grupo de pessoas aladas o encarava. Cuchulainn recordava ter pensado que parecia um bando de aves reluzentes e belas. Depois
a multidão se abriu para deixar uma figura esguia passar. A primeira coisa que notou foi que a pele dela tinha a estranha luminescência pálida dos outros fomorianos
híbridos, mas o cabelo, as asas e os olhos eram bem mais escuros. E então ele viu as lágrimas que lavavam suas maçãs do rosto. Os olhos amendoados e escuros estavam
brilhantes. Seu olhar se fixou no de Cuchulainn, que enxergou compaixão e profunda tristeza. Ele queria desviar o olhar. Não queria que as emoções dela o comovessem.
Sua própria dor ainda era muito profunda, muito recente. Mas quando virou a cabeça para interromper o olhar fixo, a mulher alada se pôs graciosamente de joelhos.
E então, como se fosse um pedregulho atirado num lago, a multidão de gente alada, tanto adultos quanto crianças, seguiu seu exemplo e se colocou de joelhos.
- Perdoe-nos. Somos responsáveis pela morte de sua irmã. - A doce voz da mulher alada estava repleta da mesma tristeza que Cuchulainn lia em seus olhos.
- Minha irmã não está morta. - A voz de Cuchulainn estava dissonante e tão desprovida de emoção que soou estranha até aos seus ouvidos.
A mulher reagiu com óbvio choque:
- Mas a maldição foi retirada. Todos nós sentimos a ausência dos demônios em nosso sangue.
- Vocês interpretaram mal a profecia - explicou Cuchulainn em sua voz ríspida e vazia. - Não exigia a morte física de minha irmã. Em vez de sua vida, a profecia
a levou ao sacrifício de uma parte de sua humanidade. Ela está viva. E só pela graça de Epona não está louca.
Ainda de joelhos, a mulher olhou de Cuchulainn para Curran e Nevin.
- O que ele diz é verdade - afirmou Curran. - Elphame bebeu do sangue de Lochlan e assim aceitou a loucura de nosso povo. Derrotou a perversidade de nossos pais
através do poder de Epona, mas a loucura vive dentro do sangue dela.
- Lochlan? Ele sobreviveu? - perguntou ela.
- Sim. Está casado com Elphame - disse Nevin.
- Keir e Fallon?
- Eles escolheram outro caminho - respondeu Nevin apressadamente.
Cuchulainn se sentiu transpassado por gelo. Fallon tinha escolhido o caminho da loucura e, ao fazê-lo, assassinou Brenna. Mas antes que pudesse ser executada por
seu crime, revelou que estava grávida. Elphame tinha aprisionado Fallon no Castelo Guardião para aguardar o nascimento da criança. Keir era seu companheiro e escolhera
ficar com ela.
Ciara observou o rosto do guerreiro humano com atenção. Reconhecia o ar anestesiado e desesperançado que era a sombra deixada por uma perda tremenda. Não tinha perdido
a irmã, mas carregava consigo uma tristeza terrível. Tinha acontecido muita coisa que todos precisariam saber, mas não agora - não neste momento. Mais tarde, disse
a si mesma. Mais tarde descobriria o que poderia ser feito para aliviar a dor do guerreiro, e também ouviria a história de Fallon e Keir. No momento o mais importante
era que aquele homem era o irmão de sua salvadora. Isso bastava para que tivessem com ele um débito de gratidão.
Ela sorriu, enchendo as palavras com a alegria que era parte de sua alma: - Então agradeceremos a Epona por sua irmã estar viva, Cuchulainn.
- Faça o que achar que deve - disse ele com voz morta. - Minha irmã pediu que os levasse de volta a Partholon e ao castelo de nosso clã. Seu povo virá comigo?
Ela cobriu a boca com as mãos. Por toda parte ao seu redor, Ciara ouviu exclamações de alegria e surpresa. Não conseguia falar. Uma exultação ofegante cresceu dentro
dela. Era isso! Essa era a realização do sonho que suas mãe e avós nutriram e mantiveram vivas em cada um deles. Depois, explodindo em meio ao círculo de adultos
ajoelhados, surgiu uma onda de risadas e entusiasmo quando uma horda de crianças, incapazes de conter a animação, se aglomerou no espaço vazio que cercava o guerreiro
e seu cavalo. Os adultos ficaram de pé e se aproximaram, repreendendo seus pequenos encargos e tentando, em vão, restaurar alguma impressão de ordem e dignidade
nas boas-vindas ao guerreiro.
As crianças se amontoaram ao redor de Cuchulainn, os olhos bem arregalados. Com as asas abertas, empurravam uns aos outros como num ninho lotado de filhotes de cuco.
De repente, ele se sentiu um solitário e sobrecarregado pardal.
- Partholon! Nós vamos para Partholon!
- Vamos conhecer a deusa!
- A terra é mesmo quente e verde?
- Você não tem asas mesmo?
- Posso tocar no seu cavalo?
O grande capão de Cuchulainn bufou e deu dois passos rápidos para trás, para longe de uma menininha alada que estava sobre a ponta dos pés tentando tocar-lhe o focinho.
- Crianças, chega! - A voz soou severa, mas a mulher alada, cujos olhos cintilavam, sorria ao falar: - Cuchulainn vai pensar que as lições de cortesia que nossas
avós ensinaram foram esquecidas.
Imediatamente os pequenos seres alados abaixaram a cabeça e murmuraram desculpas. A menininha que estava tentando tocar o cavalo abaixou a cabeça também, mas Cuchulainn
pôde ver que ela estava andando de lado, a mão meio erguida, ainda tentando uma carícia escondida. O capão bufou e recuou mais um passo. A menina acompanhou. Exatamente
como Elphame quando era pequena, pensou Cuchulainn com ternura. Sempre querendo alcançar coisas que não podia. E pela primeira vez desde a morte de Brenna, Cuchulainn
quase riu.
- Sim, criança - disse ele acima da cabecinha loira. - Pode tocá-lo. Apenas vá devagar, ele não está acostumado com crianças.
A cabecinha se inclinou e a criança presenteou Cuchulainn com um tremendo sorriso de gratidão. Os afiados dentes caninos brilharam em estranho contraste com sua
aparência inocente.
- O nome dela é Kyna.
A mulher alada veio para junto da criança. Deu a Kyna um aceno de cabeça em sinal de encorajamento, então Cuchulainn aumentou a pressão sobre o capão, mantendo-o
com firmeza no lugar para que a menina pudesse afagar com cuidado o peito luzidio. O restante das crianças observava e sussurrava umas com as outras.
- Sou Ciara, neta da Musa Encarnada Terpsícore. Você é muito bem-vindo aqui, Cuchulainn. - Ela também exibiu um radiante sorriso com seus dentes afiados. - Acredito
que as crianças tenham respondido sua pergunta por todos nós. Esperamos há mais de cem anos por esse dia. Sim, será um grande prazer acompanhá-lo até Partholon.
Um pandemônio saudou sua proclamação. Os adultos exultaram e as crianças dançaram como se possuíssem molas além de asas. Com medo de que alguém fosse pisoteado,
Cuchulainn foi forçado a desmontar, o que provocou outra saraivada de perguntas das crianças, que queriam tocar suas costas para ter certeza de que não estava escondendo
asas debaixo da capa. Ciara e os outros adultos tiveram grande trabalho para acalmar o grupo agitado de pequeninos que saltitavam, dançavam e gargalhavam.
Tentando manter o verniz de observador imparcial, Cuchulainn tinha observado em silêncio a cacofonia de júbilo. Era óbvio que as pessoas aladas buscavam pela liderança
de Ciara. Ela tinha se desculpado rindo da recepção entusiasmadíssima enquanto ordenava que uma das cabanas fosse preparada e o apresentava a vários adultos sorridentes.
Mas quando Cuchulainn perguntou se ela tinha sido declarada líder durante a ausência de Lochlan, Ciara apenas riu e disse que era a mesma que fora quando Lochlan
estava com eles - apenas uma simples xamã para seu povo.
As palavras dela foram completamente inesperadas. Xamã? Onde estavam os bárbaros demônios híbridos que ele esperava observar com cautela e julgar com severidade?
Cuchulainn recordou o quanto se sentiu estupefato parado ali naquele primeiro dia. Então a pequena Kyna berrou. Ele deu o bote, puxando a claymore pelo pomo. Agachado,
pronto para a batalha, acompanhou o dedo apontado da criança para descobrir que Fand finalmente saíra da moita onde estava escondida para se esgueirar até ele. Cuchulainn
logo embainhou a espada e se ajoelhou para tranquilizar a filhote nervosa, enquanto ouvia as perguntas disparadas por Kyna. Sentiu-se observado por Ciara e ergueu
a cabeça para se deparar com seus olhos escuros estudando-o intencionalmente.
- Não tem inimigos aqui, Cuchulainn, exceto aqueles batalhando dentro de você - murmurara ela.
Antes que pudesse responder, o céu se abriu e flocos de neve imensos e úmidos começaram a cair.
Com Fand e o imenso capão temporariamente esquecidos, Kyna tinha puxado a capa de Cuchulainn pedindo atenção.
- Me veja apanhar a neve com a língua!
Ainda agachado ao lado da filhote de lobo, Cuchulainn observou a menininha abrir os braços e estender as asas cor de pomba. Com a inata inocência da infância, Kyna
espichou a língua, girou e pulou, tentando apanhar os flocos elusivos. Logo estava na companhia de dúzias de outras crianças, rodeando Cuchulainn nas eternas risada
e alegria da juventude. Por um instante inesperado, ele sentiu a dor sufocante de perder Brenna se rearranjar, acalmar e ficar quase suportável.
Cuchulainn achava que se lembraria daquele momento para o resto da vida. Embora não percebesse, pensar nas crianças relaxava a forte tristeza que reclamava seu rosto
bonito desde a morte de Brenna. Quase se parecia consigo mesmo outra vez, o Cuchulainn que era ligeiro para sorrir e rir, que estava cheio de vida e esperança com
a promessa de um futuro pleno e feliz.
Naquele momento, com um uivo baixo, Fand se agachou no chão, atraindo os pensamentos de Cuchulainn de volta ao presente e mudando o foco de sua atenção para a trilha
adiante. Cuchulainn seguiu em frente silenciosamente. Preparando uma flecha, espiou ao redor do rochedo seguinte para ver o carneiro montês branco pateando pela
neve numa mancha de líquen amarelo. Respirando longa e lentamente, ajustou a flecha, mas antes que pudesse puxar e apontar, ouviu a vibração característica de um
arco sendo disparado. O carneiro tombou, uma flecha tremendo bem cravada na base do pescoço.
O rosnado de Fand se transformou num latido de saudação quando a centaura caçadora saiu de trás do abrigo das pedras.
Três
- PEGOU MINHA PRESA, caçadora. - As palavras de Cuchulainn eram ríspidas, mas ele sorriu e apertou o antebraço da centaura num cumprimento. Estava surpreso com o
prazer que sentiu ao ver Brighid. Com ela veio a visão do Castelo MacCallan. Até aquele momento não tinha percebido o quanto começara a ansiar por seu lar. E então,
nos calcanhares da recordação, veio uma onda de dor renovada. Brenna não estaria lá. Tudo o que restava dela era um monumento esculpido com sua imagem e uma tumba
fria.
- Peguei sua presa? - Os incomuns olhos violeta da caçadora cintilaram. - Se me lembro corretamente, da última vez em que caçamos juntos, não acertou nada e preferiu
trazer sua presa viva. - Brighid retribuiu o sorriso de Cuchulainn, mesmo que desbotado numa careta estranha. Apertou-lhe o antebraço com entusiasmo antes de fazer
cara feia para a jovem loba que estava saltitando ao redor de seus jarretes. - Vejo que a criatura ainda está viva.
- Fand é excelente companhia. - Ele acenou para que a filhote jubilante deixasse a caçadora em paz. Fand o ignorou.
- Ainda não aprendeu a ter modos. - Brighid sacudiu um casco distraidamente para afastar a filhote desassossegada, que concluiu que era uma brincadeira e começou
a morder seu jarrete.
Cuchulainn rosnou baixinho, soando notavelmente como um lobo, e, parecendo triste, Fand parou seu falso ataque e achatou a barriga no chão para fitar o guerreiro
com olhos emotivos.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Parece que cheguei na hora certa. É óbvio que precisa de um pouco de companhia civilizada.
- Refere-se a você?
A caçadora assentiu:
- Não há nada mais civilizado que um centauro.
Brighid esperou pela resposta depreciativa de Cuchulainn, que não veio. Em vez disso, o guerreiro guardou a flecha de volta na aljava e começou a andar na direção
do carneiro.
- Minha irmã mandou você, não é?
- Me voluntariei. Não gosto de vê-la preocupada. E...
Cuchulainn girou e a interrompeu: - Elphame está bem?
Brighid ouviu o pânico pouco velado na voz do guerreiro e se apressou em tranquilizá-lo: - Ela está muito bem. A renovação do castelo prossegue. O clã está feliz
e saudável. O primeiro novo membro do clã MacCallan nasceu dentro dos muros do castelo. E, como eu estava para explicar, as presas na floresta são tão numerosas
que até os humanos podem caçá-las. Então achei que poderia matar dois pássaros com uma única flecha. - Ela sorriu, erguendo o arco vazio. - Assim aliviaria a preocupação
de minha chefe quanto ao irmão andarilho, e também caçaria algo mais desafiador que cervos praticamente domesticados.
Enquanto falava, estudava o rosto de Cuchulainn. O pânico se dissipara, deixando-o parecer cansado e aliviado, e então, conforme Brighid observava, até essas pequenas
emoções sumiram do rosto, até parecer que ele estava usando uma máscara inexpressiva. Cuchulainn tinha perdido peso. Os olhos estavam sombreados por manchas escuras,
com novas linhas recobrindo os cantos. Aquilo eram fios brancos nos cabelos cor de areia? Ele se curvou para puxar a flecha do corpo do carneiro, dando-lhe a chance
de uma boa olhada. Sim, de fato, o grisalho cintilava por suas têmporas. O homem diante dela parecia uma década mais velho do que há dois ciclos da lua.
- Tome - disse Brighid, girando a cintura para puxar duas longas cordas de couro de uma das sacolas de viagem presas em seu lombo. - Amarre isso nas pernas. Eu arrasto.
Cuchulainn devolveu a flecha depois de limpá-la na neve.
- Meu capão não está longe daqui.
Brighid bufou:
- Espero que o acampamento não esteja longe daqui. Vi pouco dos Ermos, mas já não aprecio a ideia de passar a noite no descampado. Não nesse maldito vento.
Por um instante, pensou ver um lampejo de divertimento nos olhos dele, mas tudo o que Cuchulainn disse ao olhar para a corda foi: - O acampamento também não fica
longe. Mas devemos nos apressar. As noites são frias.
Metodicamente, Cuchulainn se agachou ao lado do quarto traseiro do carneiro e começou a amarrar-lhe as pernas.
Elphame fora prudente em se preocupar. Era óbvio que o Cuchulainn que a irmã conhecia e amava estava desaparecendo por baixo do peso do lamento e da culpa. Brighid
só podia imaginar o quanto a visão magoaria sua chefe. Odiava ver o que a morte de Brenna fizera a ele, que era um verdadeiro amigo.
Sorriu com tristeza às costas do guerreiro. A amizade deles era improvável. Cuchulainn conhecia muito bem as crenças segregacionistas de sua família com relação
a humanos e centauros e se mostrou cauteloso antes de confiar em Brighid. E, francamente, a caçadora achava Cuchulainn um mulherengo arrogante. A princípio, se puseram
a analisar um ao outro como feras incansáveis protegendo território. Mas quando a caçadora observou o guerreiro libertino se apaixonar pela recém-nomeada curandeira
do clã, enxergou o verdadeiro Cuchulainn - o homem compassivo e leal que vivia na pele do guerreiro arrojado. E, por sua vez, ganhou a confiança dele. Primeiro ajudando-o
a rastrear Elphame depois de sofrer uma queda horrível, e por fim, lamentavelmente, lutando ao seu lado quando capturaram a híbrida Fallon, depois de matar Brenna.
- A morte de Brenna é um fardo pesado de suportar - disse Brighid solenemente.
A cabeça de Cuchulainn estava abaixada, concentrado que ele estava enquanto terminava de apertar as cordas, mas Brighid pôde ver as costas dele se enrijecerem. O
guerreiro se levantou devagar e buscou o olhar sagaz da caçadora.
- Sim. - Ele cuspiu a palavra.
Brighid não se amedrontou com a raiva na voz dele. Sabia por experiência própria que a raiva era parte do processo de cura do luto.
- Sua irmã plantou aquelas flores silvestres azuis que Brenna tanto gostava ao redor do túmulo. O clã fala do quanto a tumba é bonita, e no quanto Brenna faz falta.
- Pare - disse Cuchulainn por entre os dentes cerrados.
- Brenna não terá partido completamente enquanto nos lembrarmos dela, Cuchulainn.
- Não terá partido completamente! - Cuchulainn riu sem humor. Atirou as cordas que estava segurando no chão e abriu os braços, palmas erguidas, olhando ao redor.
- Então mostre para mim. Não a vejo. Não a ouço. Não posso tocá-la. Para mim, caçadora, ela partiu completamente.
- Brenna odiaria vê-lo assim, Cuchulainn.
- Brenna não está aqui!
- Cuchulainn... - principiou a caçadora, mas a voz ríspida do guerreiro a interrompeu: - Esqueça, Brighid.
Ela enfrentou-lhe o olhar com sinceridade: - Esquecerei por enquanto, mas você não pode continuar assim. Não eternamente.
- Tem razão sobre isso. Nada continua eternamente, caçadora. - Abruptamente, Cuchulainn se curvou e apanhou as cordas de couro. Entregando uma para ela, puxou a
outra por cima do ombro. - Por aqui. - Ele apontou o queixo para o caminho pelo qual viera. - Precisamos nos apressar. A noite cairá logo.
Imitando os movimentos de Cuchulainn, Brighid pôs a corda sobre o ombro e juntos arrastaram o corpo do carneiro. Enquanto olhava para o perfil cansado do amigo,
ela considerava que o sofrimento já tinha feito a noite cair sobre a alma ferida de Cuchulainn. Será que alguma coisa, talvez o amor da irmã tocada pela deusa, poderia
levar a luz da felicidade à vida dele outra vez?
Falaram pouco enquanto rumavam diligentemente na direção do sol poente. Juntos esfolaram rapidamente o carneiro, que foi cingido à padiola de couro que Cuchulainn
tinha atado aos quartos do capão. Havia várias perguntas que Brighid queria fazer, mas os modos do guerreiro eram tão retraídos, suas poucas palavras tão bruscas
que ela não descobriu muito além de que o assentamento dos fomorianos híbridos tinha sido encontrado com facilidade, que existia quase uma centena deles, e que estavam
ansiosos para retornar a Partholon. Quando perguntou como eles eram, Cuchulainn apenas disse: "São somente pessoas", e se recolheu ao silêncio novamente. Brighid
concluiu que conversar com ele era como abraçar um porco-espinho. Não compensava o trabalho. Ela era uma caçadora. Observaria os híbridos por si mesma, assim como
faria com qualquer criatura dos Ermos, e depois formaria sua própria opinião.
E sempre guardaria em mente que eram descendentes de uma raça de demônios.
- Gosta de crianças?
Brighid ergueu as sobrancelhas diante da estranha pergunta, sem ter certeza de ter ouvido Cuchulainn corretamente.
- Crianças?
Ele grunhiu e assentiu.
- Não sei. Particularmente não gosto nem desgosto delas. Crianças geralmente não figuram na vida de uma caçadora, a não ser quando se conta que temos que considerá-las
como bocas a mais para alimentar. Por que pergunta?
- Estamos quase no acampamento. Existem... - ele fez uma pausa e a olhou de esguelha - ... crianças lá.
- Eu antecipava as crianças. Lochlan contou a todos nós lá do castelo sobre elas. Você sabe disso. Você estava lá.
- Lochlan não nos contou exatamente tudo - disse Cuchulainn enigmaticamente.
- Isso não me surpreende. - Brighid bufou.
O guerreiro lhe deu uma olhada velada.
- Você não parece confiar em Lochlan.
- Você confia?
- Ele salvou a vida da minha irmã - disse Cuchulainn simplesmente.
Brighid assentiu devagar:
- Sim, salvou. Mas foi a vinda de Lochlan para Partholon que pôs a vida dela em risco, para começar.
Cuchulainn não disse nada. Já tinha pensado e repensado no quanto a presença de Lochlan mudara a vida de todos. Mas achava difícil culpar o consorte da irmã, o que
não significava que estivesse inteiramente disposto a abraçar o homem alado. Só significava que Cuchulainn estava mais disposto a culpar a si mesmo pelos eventos
que culminaram no sacrifício da irmã e na morte de Brenna. Deveria saber. Saberia se tivesse ouvido os avisos do reino espiritual. Mas Cuchulainn sempre dera as
costas ao uso de espíritos e magia e ao poder misterioso da deusa, mesmo quando se tornou óbvio desde tenra idade que herdara os dons espirituais de seu pai xamã.
Cuchulainn era um guerreiro. Foi tudo o que sempre quis ser. Sua afinidade com a espada era o único dom que desejava.
Sua teimosia tinha selado a perdição de sua amada.
- Pensei que tivesse dito que estávamos quase no acampamento. Não vejo nada adiante além de mais terra vazia e lúgubre.
Cuchulainn trouxe seus pensamentos de volta para a centaura de pelagem prateada que trotava ao seu lado.
- Olhe com mais atenção, caçadora - disse ele.
Brighid fez cara feia. Poderiam ter se tornado amigos, mas o guerreiro ainda possuía um talento especial para irritá-la.
Cuchulainn quase sorriu.
- Não se sinta mal. Também não vi de primeira. Se não fosse por Curran e Nevin, eu provavelmente teria tropeçado às cegas em sua margem.
- Eu não... - A princípio o cenário parecia uma planície coberta de neve e sem árvores. Xisto vermelho, da mesma cor dos grandes rochedos que flanqueavam as Montanhas
Trier, revestia o chão. Mas então sua visão percebeu uma mudança quase imperceptível. - É um desfiladeiro. Pela Deusa! A terra é tão descampada e similar que um
lado combina com o outro quase que perfeitamente.
- É uma ilusão de ótica, algo que as mães humanas dos neofomorianos pensaram em usar a seu favor há mais de um século quando estavam desesperadas para encontrar
um lugar seguro para construir o assentamento.
- Neofomorianos?
- É como eles se chamam - explicou Cuchulainn.
Brighid bufou:
- O caminho termina aqui.
Ele apontou para o traseiro de Fand, que desaparecia numa curva, e pôs seu capão num meio-galope suave, refreando bem antes que a trilha desaparecesse abaixo deles.
Brighid foi ficar ao lado de Cuchulainn e respirou fundo diante da visão lá embaixo. O desfiladeiro se abria como se um gigante tivesse apanhado um machado e cortado
um pedaço enorme da terra fria e rochosa. A parede na qual estavam era mais alta que o lado oposto do cânion. A queda abrupta devia ter pelo menos sessenta metros.
Um riozinho corria pelo meio do vale. E aninhado na parede norte do cânion, que era mais branda, estava um agrupamento de construções redondas. Brighid conseguia
distinguir figuras distantes e se esforçou para ver asas enquanto os autoproclamados neofomorianos se movimentavam entre casas de formato circular, currais e estruturas
baixas e atarracadas que ela imaginou serem abrigos de animais.
Podia sentir-se observada por Cuchulainn.
- As mulheres humanas escolheram bem. Há abrigo nas paredes do cânion e suprimento de água à mão. Até consigo ver algumas coisas que podem se passar por árvores.
Se eu estivesse com elas, este teria sido o lugar que eu recomendaria. - Na verdade, se Brighid estivesse com elas, teria recomendado que cortassem a garganta de
seus bebês monstruosos e retornassem para Partholon, lugar ao qual as mulheres pertenciam. Mas esse era um pensamento que a caçadora preferiu manter consigo mesma.
- É uma região implacável. Fui surpreendido por terem sobrevivido tão bem. Esperava... - As palavras morreram como se Cuchulainn lamentasse ter falado demais.
Brighid o encarava com franca curiosidade.
Cuchulainn pigarreou e direcionou a cabeça do capão para a descida íngreme.
- Cuidado onde pisa. O xisto é escorregadio.
Brighid seguiu Cuchulainn, indagando-se das mudanças nele. Eram por causa da morte de Brenna ou alguma coisa acontecera ali nos Ermos? Mesmo que não fosse amigo
dela, a caçadora devia à chefe descobrir.
Quatro
O PRIMEIRO HÍBRIDO que Brighid viu estava fazendo algo totalmente inesperado. Estava rindo. A caçadora o ouviu antes de vê-lo. A risada ecoou até encontrá-los na
trilha, pontuada por rosnados zombeteiros e grunhidos juvenis.
- Eles gostam de Fand - murmurou Cuchulainn em explicação.
O guerreiro e a caçadora finalmente chegaram ao nível do chão e caminharam ao redor de um afloramento rochoso para ver um homem alado esparramado de costas no meio
da trilha. Com a língua espichada e a boca aberta como que sorrindo, as patas da jovem filhote de lobo estavam firmemente plantadas no peito dele.
- Fand me derrubou, Cuchulainn. Está crescendo tão rápido que logo será uma loba de verdade - disse ele, rindo e coçando a filhote. Quando ergueu o olhar e viu a
centaura ao lado de Cuchulainn, seus olhos se arregalaram de choque.
- Fand, aqui! - ordenou Cuchulainn. Dessa vez a loba decidiu obedecer, deixando o peito do híbrido e saltitando de volta ao mestre.
O homem alado se levantou depressa, espanando a terra e a neve da túnica, sempre mantendo os olhos arregalados fixos em Brighid.
- Gareth, esta é...
A voz animada de Gareth o cortou:
- A caçadora Brighid! É ela, não é?
- Sim, Gareth. Esta é a caçadora de MacCallan, Brighid Dhianna.
Gareth executou uma reverência apressada e desajeitada, e Brighid percebeu que ele era apenas um rapaz alto e magro que a encarava com franco e estupefato deleite.
- É um prazer conhecê-la, Brighid! - exclamou Gareth, a voz tremendo ao dizer seu nome.
Brighid pôde ouvir o suspiro de Cuchulainn e conteve um sorriso.
- É um prazer conhecê-lo, Gareth - respondeu ela à saudação.
- Espere até eu contar aos outros! Não vão acreditar. Você é ainda mais bonita do que Curran e Nevin descreveram.
Gareth começou a correr, depois parou, virou-se e fez uma tímida reverência para Brighid. A caçadora poderia jurar que as faces do rapaz estavam vermelhas com um
rubor de vergonha.
- Perdoe-me, caçadora. Avisarei aos outros que temos uma visita. Mais uma! - Então virou-se e, com as asas abertas, simplesmente voou trilha abaixo.
- Garoto bobo - murmurou Cuchulainn.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Sou ainda mais bonita do que Curran e Nevin descreveram?
Cuchulainn ergueu as mãos num gesto de plácida frustração.
- Os gêmeos contam histórias à noite. Você é o assunto favorito.
- Eu? Como é possível? Curran e Nevin mal me conhecem.
- Aparentemente fizeram excelente uso do pouco tempo que passaram no Castelo MacCallan. Ouviram e observaram. E muito. Você sabe como o clã gosta de falar, e quanto
mais falam, mais os feitos crescem. Você não apenas rastreou Elphame à noite numa floresta até descobrir onde tinha caído. Você fez isso debaixo de uma tempestade
fustigante - disse ele.
- Não fiz nada assim. A tempestade começou quando estávamos voltando para casa. E ainda não estava completamente escuro quando encontramos Elphame. - Brighid tentou
soar aborrecida, mas não conseguiu evitar o sorriso que brincou nos cantos dos seus lábios.
- E depois tem a história de Fand - disse Cuchulainn, remexendo-se na sela como se de repente se sentisse desconfortável.
As sobrancelhas de Brighid se ergueram.
- E quem contou a eles sobre isso, Cuchulainn?
Cuchulainn deu de ombros e apertou os joelhos no capão para que seguisse o caminho de Gareth.
- Me perguntaram. E podem ser muito persistentes quando querem saber algo.
- Refere-se a Curran e Nevin? - perguntou Brighid para as costas largas.
- Não. Me refiro às crianças.
Então um ruído chamou a atenção da audição aguçada da caçadora. Achou que parecia o tagarelar de muitos pássaros.
As orelhas do cavalo de Cuchulainn se inclinaram para a frente.
- Lembre que eu avisei sobre as crianças - falou ele por cima do ombro.
Brighid franziu a testa com severidade para as costas do guerreiro. Avisar? Ele não tinha avisado nada - simplesmente perguntou se ela gostava de crianças. Pelo
reino mais sombrio do Mundo Inferior, o que estava acontecendo ali?
Eles fizeram outra curva no caminho e a trilha se abriu. Brighid andou rápido para ficar ao lado de Cuchulainn. A estrada se alargava e levava direto ao coração
do assentamento pequeno e organizado, que no momento estava repleto com corpinhos alados tagarelando de maneira agitada. Quando a viram, a conversa das crianças
foi imediatamente substituída por uma exclamação coletiva que lembrou a Brighid o arrulhar de pombos.
- Oh, minha boa deusa! - murmurou a caçadora. - Existem tantas delas.
- Tentei dizer a você - disse Cuchulainn baixinho. - Prepare-se. São tão enérgicas quanto são pequenas.
- Mas como pode existir tantas? - Seus olhos varriam o grupo enquanto tentava uma contagem acurada... dez... vinte... quarenta. Havia ao menos quarenta crianças.
- Pensei que tivesse dito que eram menos de cem híbridos no total. Eles têm nascimentos múltiplos?
- Não. Geralmente não. A maioria dessas crianças já não tem mais os pais - disse o guerreiro soturnamente.
- Mas...
- Mais tarde - disse Cuchulainn. - Explico tudo mais tarde. Não ficarão paradas por muito tempo.
- O que elas vão fazer? - perguntou Brighid com cautela.
O guerreiro lhe ofereceu um brevíssimo sorriso.
- Nada do que se possa defender, acredite.
O grupo expectante se abriu e Cuchulainn viu a cabeça escura de Ciara.
- Venha. É melhor conhecê-los de frente.
Lado a lado, Cuchulainn e Brighid pararam diante do grupo no mesmo instante em que uma adorável mulher alada adiantou-se para cumprimentá-los.
Cuchulainn fez apresentações apressadas: - Ciara, esta é a caçadora de MacCallan, Brighid Dhianna. Brighid, Ciara é a xamã dos neofomorianos. - Ele apontou para
os dois homens alados que seguiram Ciara em meio às crianças. - E você deve se lembrar de Curran e Nevin.
Os gêmeos acenaram com a cabeça, sorrindo abertamente. Brighid ficou imediatamente impressionada com o quanto pareciam bem. Da última vez em que os vira, as asas
estavam terrivelmente rasgadas. Agora pareciam inteiras e saudáveis, com apenas pálidas linhas rosa marcando as membranas delicadas. Um dos gêmeos falou, mas Brighid
não fazia ideia se era Curran ou Nevin: - É bom vê-la novamente, caçadora.
- Estamos todos muito satisfeitos por ter vindo, Brighid Dhianna, famosa caçadora dos MacCallan - disse Ciara.
Brighid tentou não se deixar distrair com a horda de crianças que a observava, mesmo que seus olhos fossem atraídos por seus rostinhos. Todas com tamanhos e formas
diferentes, sorriam exibindo dentes afiados enquanto as asas tremiam com animação mal contida. Cachorrinhos, pensou ela. Pareciam uma massa agitada de cachorrinhos
saudáveis, felizes e alados.
Desviando o olhar das crianças, assentiu educadamente, primeiro para Ciara e depois para os gêmeos.
- A MacCallan achou que poderiam precisar de uma caçadora para aliviar o fardo de alimentar seu povo durante a jornada. Fiquei contente em ser de préstimo a ela
- disse Brighid.
- E agora compreendo porque sonhei com uma águia prateada com asas de pontas douradas nas últimas noites - disse Ciara, olhando do cabelo branco-prateado da caçadora
para o brilho dourado de sua pelagem equina.
Brighid manteve o rosto cuidadosamente neutro, mas a menção ao sonho da xamã era como um soco em seu estômago. Mesmo ali, nos longínquos Ermos, não conseguia escapar
de sua infância.
- Oooh, você é ainda mais bonita do que imaginei!
Os olhos da caçadora buscaram e encontraram a falante em miniatura - uma menininha parada perto de Ciara. Os cabelos e as asas eram de um incomum cinza-prateado,
como o peito de um pombo. Os olhos grandes brilhavam com inteligência.
- Obrigada - respondeu Brighid.
- Esta é Kyna - disse Cuchulainn.
À menção de seu nome, a criança equilibrou-se animada na ponta dos pés.
- Cuchulainn, posso chegar mais perto? Por favor! Por favoooor!
Cuchulainn olhou indagadoramente para a caçadora. Sem saber o que fazer, Brighid encolheu os ombros.
- Então venha - disse Cuchulainn. Quando a criança correu adiante, com várias outras em seu encalço, Cuchulainn ergueu a mão e avisou com severidade: - Lembrem-se
dos modos!
A corrida precipitada de Kyna perdeu velocidade instantaneamente, e as crianças que vinham atrás se empurrando quase trombaram nela. Brighid teve que ter o cuidado
de não rir quando a menina acotovelou um dos amigos e declarou "Lembre-se dos modos!", soando precisamente como Cuchulainn. Ela dobrou as asinhas e caminhou muito
mais controlada até parar diante de Brighid.
- Você é a famosa caçadora sobre quem Cuchulainn nos contou histórias, não é? - O rosto da menininha brilhava com mais do que a luminescência característica da pele
dos fomorianos. Era uma coisinha linda, de aparência sobrenatural, cintilando de inteligência e curiosidade.
- Bom, sou a caçadora Brighid. Entretanto, não sei o quanto sou famosa - disse, fixando em Cuchulainn um olhar de brando aborrecimento.
- Ah, nós sabemos! Ouvimos tudo a seu respeito!
- Verdade? Precisam compartilhar comigo essas histórias - disse Brighid.
- Agora não - disse Cuchulainn com brusquidão. - Agora temos que cuidar do jantar. - Ele desmontou e começou a desamarrar os nós que prendiam a carne fresca atrás
da sela.
- Pegou outro cervo, Cuchulainn? - perguntou Kyna, saltitando.
- Dessa vez foi um carneiro montês branco, Ky. E pode agradecer à caçadora por isso. Foi ela quem abateu o animal - disse ele, simplesmente transferindo a atenção
da criança de volta a Brighid.
Dúzias de pares de olhinhos arregalados se reconcentraram na caçadora.
Brighid deu de ombros.
- Só o venci no disparo.
- Não, você é especial. Já sabemos - disse Kyna. - Posso... posso tocar você?
Brighid olhou desamparada para Cuchulainn, que de repente estava ocupadíssimo entregando a carne embrulhada para Curran e Nevin.
- Por favor? - pediu a criança. - Eu sempre quis conhecer um centauro.
- Sim, acho que tudo bem - respondeu a caçadora com impotência.
Kyna se aproximou de Brighid e então estendeu com reverência a mão para tocar o luzidio pelo dourado da caçadora.
- É macio como água. E seu cabelo é tão bonito, exatamente como Cuchulainn disse. Acho que ele tem razão. É bom que mantenha seu cabelo longo, embora a maioria das
caçadoras o use curto.
- Eu... Eu nunca achei que precisava cortá-lo - gaguejou Brighid, completamente abismada com o comentário da criança. Cuchulainn tinha falado sobre o cabelo dela?
- Bom. Deve mantê-lo assim.
- Quero ser uma caçadora quando crescer! - gritou uma voz do grupo.
Kyna revirou os olhos e meneou a cabeça.
- Não pode ser uma caçadora, Liam. Você não é centauro e nem é fêmea.
Brighid viu o rosto de uma das crianças maiores desabar, e sentiu um nó de pânico quando os olhos dela se encheram de lágrimas.
- Mas ainda pode ser um caçador, Liam - disse Brighid. - Alguns centauros aceitam treinar humanos nas perícias de uma caçadora. - Assim que falou, percebeu seu erro
ridículo. O menino alado definitivamente não era humano. Provavelmente choraria de verdade agora. E se ele fizesse os outros começarem a chorar também? Mas Liam
não notou nada de errado no que ela disse. Seu sorriso afiado era radiante.
- Fala sério? Poderia me ensinar? - O menino correu até ela, e logo sua mãozinha cálida estava afagando seu flanco sedoso.
Ensiná-lo? Não tinha intenção de ensinar a ele nem a ninguém - especialmente alguém cuja cabeça nem chegava ao seu ombro. O pânico de Brighid aumentou. Só estava
querendo evitar que a criança chorasse.
- Se ela vai ensinar a Liam, quero que me ensine também! - Outra criança se separou do grupo e foi até Brighid, a adoração brilhando em seus grandes olhos azuis.
- Eu também! - disse uma menininha com cabelo da cor de margaridas.
Brighid não tinha ideia de como acontecera, mas se viu cercada por criaturinhas aladas que tagarelavam sobre suas vidas como caçadoras. Mãozinhas quentes afagavam
suas pernas e flancos enquanto Kyna fazia perguntas intermináveis sobre como Brighid mantinha o cabelo longe dos olhos quando caçava, e com o que enxaguava o cabelo
para deixá-lo tão brilhante, e se usava o mesmo enxágue na sua parte cavalo, e...
Brighid preferia ter sido atirada numa alcateia de lobos raivosos, ao menos poderia chutá-los para ficar livre e escapar.
- Talvez devêssemos dar tempo à caçadora para que descarregue suas sacolas e encha a barriga antes de perguntarmos mais sobre ela. - A voz firme de Ciara interrompeu
o falatório estridente e infantil.
As mãozinhas se afastaram com relutância do corpo da centaura.
Destemida, Kyna ainda berrou animada:
- Brighid pode ficar na nossa cabana?
Para imenso alívio de Brighid, Cuchulainn falou: - Acho que seria melhor se a caçadora se abrigasse comigo. Ela é parte do meu clã, lembra?
- Sim, eu me lembro - murmurou Kyna, chutando um torrão de terra com seus pés descalços que, Brighid notou, terminavam em garras notavelmente afiadas.
São anomalias, pensou a caçadora. Não são realmente humanos, nem obviamente fomorianos. Como poderão sequer encontrar lugar em Partholon?
- Cuchulainn, por que não mostra a Brighid sua cabana? Mandarei chamar quando for a hora da refeição da noite.
Cuchulainn surpreendeu Brighid ao jogar as rédeas de seu capão para a pequena Kyna.
- Cuide dele para mim.
- Claro que cuido, Cuchulainn! Sabe que sou a favorita dele. - A criança deu uma risadinha. - Tchau, Brighid. Vejo você na refeição da noite - disse antes de estalar
a língua e puxar meticulosamente as rédeas do grande capão. O cavalo bufou pelo nariz no cabelo da criança e depois se arrastou docilmente atrás dela.
- O resto de vocês, vamos andando! Vocês têm tarefas para terminar antes de comermos - disse Ciara às crianças.
Em grupos de dois e três, sumiram como peixes assustados, dando adeus a Brighid e Cuchulainn.
- Acho que se comportaram melhor desta vez - disse Ciara ao guerreiro.
- Bom, ao menos tivemos muito menos pulos e dança - respondeu Cuchulainn.
- Melhor do que o quê? - perguntou Brighid.
Ciara sorriu.
- Melhor do que quando conheceram Cuchulainn.
Brighid bufou:
- Você ri, mas estamos falando sério - retrucou Cuchulainn.
- Eu não ri. Zombei de descrença. Há uma distinta diferença - disse a caçadora, espanando uma marca de mão suja que fora deixada em sua pelagem dourada.
- Vai se acostumar com elas - disse Ciara. Ao ver a expressão no rosto da centaura, riu.
Brighid pensou nunca ter ouvido um som tão adorável e musical.
Cuchulainn pigarreou em reprovação.
- Agora é minha vez de zombar.
- Ah, Cuchulainn, está se dando muito bem com as crianças. Elas adoram você! - afirmou Ciara.
- Não estou interessado na adoração delas. Só quero garantir que cheguem em segurança no Castelo MacCallan - respondeu Cuchulainn com rispidez, o rosto endurecendo
numa máscara vazia e insensível.
- Claro - disse Ciara, o sorriso sempre constante.
Era interessante, pensou Brighid, observar a familiaridade com que a mulher alada falava com Cuchulainn. E como ignorava a maneira com que ele ficava frio e retraído.
- Deixo você com Cuchulainn. Ele conhece as coisas por aqui. Se precisar de alguma coisa, ele saberá se podemos oferecer. Não temos muito aqui, Brighid, mas dividimos
o que temos com prazer.
- Obrigada - disse Brighid, automaticamente respondendo à franqueza e cordialidade de Ciara.
- Cuchulainn, a refeição da noite será na casa comunal, como sempre, depois da cerimônia da bênção do anoitecer. Por favor, leve Brighid. E seria bom se dessa vez
você ficasse para compartilhar a refeição conosco. - Ciara cumprimentou Brighid educadamente com a cabeça antes de se afastar graciosamente.
Cinco
CUCHULAINN GESTICULOU PARA que Brighid entrasse primeiro na pequena construção. Ela atravessou a grossa pele animal que servia de porta e ficou agradavelmente surpresa
por sentir o ar quente e parado, em vez do vento frio constante. A cabana era circular e as paredes eram feitas do xisto vermelho que era tão abundante nos Ermos.
Era seguramente reforçada com uma mistura de lama e areia. Havia uma lareira que envolvia quase metade do cômodo curvado. Duas janelinhas estavam cobertas, então
havia pouca luz, mas estava claro o bastante para que Brighid visse que o telhado era incomum. Parecia ser uma rede entrelaçada com junco ou galhos finos. Sobre
o revestimento havia uma substância que Brighid não conseguia identificar. Tinha sido bem pressionada na trama, mas agora parecia ser duro e seco.
- É musgo - disse Cuchulainn. - Eles o cortam do chão e, enquanto ainda está maleável, o pressionam na rede de bulbos entrelaçados. Quando morre, enrijece até ficar
como rocha, só que mais leve. Nada consegue passar através disso.
- O que é isso no chão? - Brighid se curvou e apanhou um punhado de capim curto e perfumado.
- Chamam de urze anã. Só cresce até a altura do jarrete, mas é farta, especialmente em áreas de cânion como essa. Dá uma boa isolação. O chão aqui é danado de frio
e duro. - Cuchulainn apontou para o outro lado do cômodo, oposto à rede de pele animal esticada que servia de cama. - Pode deixar suas sacolas aqui. Ciara mandará
peles para que durma. Deve ficar bem confortável e quente - e de qualquer forma estaremos de partida em poucos dias.
- Cuchulainn, o que está acontecendo aqui?
- Estou me preparando para guiar os híbridos de volta a Partholon, claro. A neve derreteu quase o bastante para que a passagem se abra novamente - como sabe melhor
do que eu - concluiu ele sucintamente.
Brighid meneou a cabeça.
- Não foi o que eu quis dizer. Contei pelo menos quarenta crianças. E só vi três adultos. O que está acontecendo aqui? - repetiu ela devagar.
Cuchulainn tirou a capa e passou a mão pelo cabelo, que estava atipicamente longo e revolto.
- Não tenho muita certeza - disse ele.
- Não tem?
Cuchulainn fez cara feia para ela.
- Isso mesmo. Eles não são o que você pensa. A única coisa que sei por certo é que os neofomorianos são diferentes.
- Claro que são diferentes! - Brighid queria sacudir Cuchulainn. - São uma mistura de humano e fomoriano. Nunca houve raça como a deles.
Cuchulainn se aproximou da lareira. Remexendo o borralho refulgente para atiçá-lo, alimentou-o com blocos de turfa seca da pilha próxima e as brasas queimaram num
fogo vivaz e crepitante. Depois Cuchulainn se virou e deu em Brighid uma olhada cansada e resignada.
- Descarregue suas sacolas. Relaxe. Não é muito, mas contarei o que sei.
Enquanto Cuchulainn a ajudava a descarregar, Brighid o observava com atenção. Pesar e culpa o tinham envelhecido e endurecido, mas havia algo mais nele, algo que
provocava uma comichão em sua mente, mas era algo que não conseguia entender bem.
Será que os híbridos tinham lançado um encanto nele? Cuchulainn fugia do reino espiritual e teria pouca proteção contra um ataque mágico. Embora Brighid não possuísse
o treinamento e a experiência da mãe, não era estranha aos poderes do mundo espiritual. Nem era estranha aos modos pelos quais os poderes concedidos pela Deusa podiam
ser distorcidos e mal utilizados. Silenciosamente, prometeu a si mesma que mais tarde, quando estivesse livre para se concentrar, tentaria detectar qualquer energia
malévola pairando ao redor do assentamento. Até lá, poderia fazer o que fazia de melhor - encontrar um rastro e segui-lo.
- Tome - disse ela, jogando ao guerreiro um gordo odre da última sacola. - Sua irmã mandou isso.
Cuchulainn destampou o odre, cheirou o líquido, gemeu de prazer e tomou um longo gole. Limpou a boca com as costas de uma das mãos e se acomodou no catre.
- Faz bastante tempo que não provo o vinho do Templo de Epona. Minha mãe diria que não há desculpa para viver como um selvagem.
- Foi exatamente o que sua irmã disse.
O sorriso de Cuchulainn pareceu quase normal por um instante.
- Sinto saudades dela.
- Ela sente saudades também.
Ele assentiu e tomou outro gole do delicioso vinho tinto.
- Cuchulainn, por que existem tão poucos híbridos adultos? - perguntou Brighid calmamente.
Ele encontrou-lhe os olhos.
- Aqui está o que sei. Contei 22 adultos híbridos - 12 fêmeas, uma das quais acabou de anunciar que está grávida, e dez machos. E existem setenta crianças com idades
variadas entre bebês e adolescentes. Ciara e os outros dizem que todos os demais estão mortos.
- Como? - A cabeça de Brighid girava com a disparidade dos números.
- Foi a loucura. Ciara disse que era mais difícil de resistir quanto mais velhos ficavam. Dos híbridos originais, nascidos de mães humanas, só restam Lochlan, Nevin,
Curran, Keir e Fallon. - Cuchulainn calou-se, trincando os dentes. - Deles, Fallon está louca.
Brighid assentiu:
- Os carcereiros no Castelo Guardião disseram que ela continua louca. O sacrifício de Elphame não a tocou.
- Foi tarde demais. Ela já tinha aceitado a perversidade do pai quando Elphame bebeu o sangue de Lochlan e assumiu a loucura deles. Aparentemente não existe reversão
depois que ela surge. - O estômago dele se apertou ao se lembrar da cena horrorosa em que Elphame cortou os próprios pulsos, forçando Lochlan a compartilhar seu
sangue para salvar a vida dela. Com o sangue dos híbridos, ela tinha assumido dentro de si a loucura de uma raça de demônios. - Isso deveria ter enlouquecido El
também. Só pelo poder de Epona é que ela permanece sã, mesmo que a loucura permaneça adormecida em seu sangue.
- Mas aceitar a loucura não matou sua irmã, e não matou Fallon. Como matou os outros adultos?
- Suicídio. Ciara disse que quando um híbrido não consegue mais suportar a dor de resistir ao mal dentro de si, prefere o suicídio a uma vida de violência e ódio.
A caçadora inclinou a cabeça e fixou nele um olhar incrédulo.
- Então o que ela está dizendo é que alguém que está decidido a aceitar o ódio e o mal tem a capacidade de fazer o último sacrifício de tirar a própria vida?
- Sim. Como um último ato de humanidade.
- E você acredita nisso tudo?
Em vez da raiva com que Brighid esperava que ele respondesse, a expressão de Cuchulainn se tornou introspectiva. Ele tomou outro gole do odre.
- A princípio não acreditei em nada disso. Andei por aí armado por dias, esperando que demônios alados pulassem em mim detrás de cada rocha. - Ele ergueu as sobrancelhas
e um pouco do antigo brilho iluminou seus olhos. - Os demônios não apareceram. Mas pode adivinhar o que realmente pulou em mim?
Brighid bufou uma risada rápida.
- Se tivesse me deixado na cabana com elas, acho que as chamaria de demônios. Demônios muito pequenos, mas nada menos assustadores.
- As crianças estão por toda parte. São tantas, mas tão poucos adultos, que é uma luta constante cuidar delas e mantê-las alimentadas. Não que sejam indefesas -
ao menos não tanto como crianças humanas, ou mesmo centauras, seriam nessa idade. São fortes e inteligentes. Apesar da apresentação um tanto exuberante quando recebem
estranhos, são incrivelmente bem-comportadas. - Cuchulainn buscou e sustentou o olhar afiado de Brighid. - E são os seres mais felizes que já conheci.
- Não há nada de novo no fato de crianças serem felizes, Cuchulainn. Até sua filhote bobalhona corre e saltita por aí. É como são as crianças antes que as responsabilidades
do mundo invadam seus sonhos irreais para o futuro.
Cuchulainn ouviu o tom amargo na voz da caçadora e imaginou o que acontecera em sua infância para colocar aquilo ali.
- Mas antes do sacrifício de Elphame, as crianças dos neofomorianos não tinham nenhum período de inocência despreocupada. Desde o dia do nascimento, não lutavam
apenas para sobreviver, mas tinham que travar uma guerra constante com os sussurros sombrios dentro do próprio sangue enquanto observavam os pais sucumbirem ao mal
e morrerem.
- Se foi isso realmente o que aconteceu.
- Estou cansado, Brighid. - Cuchulainn passou a mão pela testa. - Não vim para cá como um herói que os levaria de volta para seu antigo lar. Vim aqui cheio de ódio.
Brighid acenou lentamente com a cabeça.
- Eu sei.
- Elphame não sabia. Ao menos, espero que não. Não queria que ela pensasse que eu trairia sua confiança. - Cuchulainn sacudiu a cabeça e ergueu a mão para detê-la
quando quis falar. - Não, não digo que vim aqui com a intenção de massacrar os híbridos. Mas estava procurando culpá-los e encontrar um campo de batalha no qual
vingar Brenna.
- Isso não traria Brenna de volta, Cuchulainn.
- Não, não traria. E em vez de um campo de batalha ou uma raça de demônios, encontrei um povo imbuído de felicidade. - Ele esfregou a testa novamente. - A felicidade
está por toda parte. Estou cercado por ela. Mas não consigo mais senti-la.
Brighid sentiu um arroubo de simpatia por ele. Vivendo num rosto que era velho demais para sua idade, Cuchulainn parecia perdido e sozinho.
- Você precisa ir para casa, Cuchulainn.
- Preciso...
As palavras de Cuchulainn foram interrompidas por sons de tapinhas na pele da porta, seguidas pela cabeça radiante de Kyna.
- Ciara me mandou chamar você. - Ela sorriu para Cuchulainn. Depois seus olhos brilhantes e o sorriso faiscaram para Brighid. - E você também, caçadora. A bênção
da noite está para começar. Não quer perdê-la, quer?
- Já estamos indo, Ky - respondeu Cuchulainn.
A cabeça da criança desapareceu.
- Bênção da noite? - perguntou Brighid.
- Eles reverenciam Epona todos os dias, tanto no nascer como no pôr do sol. É um pouco como estar de volta ao templo da minha mãe.
- Exceto pela terra fria e triste, a ausência das riquezas de Partholon e a presença de hordas de crianças aladas - disse Brighid.
Cuchulainn atirou o odre de volta para a caçadora e apanhou a capa.
- Exatamente. - Ele parou diante dela a caminho da porta. - Estou contente que esteja aqui, Brighid.
- Eu também, Cuchulainn. Eu também.
A longa e baixa construção retangular que Brighid tinha tomado por abrigo para animais quando viu o assentamento do alto era na verdade o local de reunião geral
e, Cuchulainn explicou, servia como Grande Salão para os híbridos. Foi para lá que Kyna, pulando e dançando, os guiou, e depois, com um grande sorriso e a promessa
de sentar-se perto deles durante a refeição, correu para um dos grupos de crianças que aguardavam.
Embora Cuchulainn tivesse preparado Brighid para o número de crianças, a centaura descobriu-se boquiaberta como um potrinho inexperiente. Eram tantas! As crianças
aladas estavam por toda parte. Era como se o assentamento inteiro tivesse se reunido diante da casa comunal num círculo grande e frouxo. As crianças se amontoaram
em grupos, cada uma rodeando um adulto que falava atentamente e mantinha vigilância sobre seus encarregados. O sol já tinha quase sumido no distante horizonte ocidental,
e o vento incessante se tornara ainda mais frio e mordaz, mas nenhuma criança chorava ou reclamava. Não corriam ao redor na dança indisciplinada típica dos pequenos.
Simplesmente esperavam com paciência, mesmo os menorzinhos com suas asinhas e grandes olhos brilhantes. Claro que encaravam Brighid abertamente. Mas, quando ela
encontrava o olhar de uma criança, era correspondida com um amplo sorriso afiado. Várias acenaram. Ela notou o menino Liam, imediatamente, já que ele fez questão
de chamar-lhe a atenção executando uma reverência bem adulta e enviar-lhe um olhar de pura adoração. Como se ela realmente fosse sua mentora, pensou com um gemido
silencioso.
O que afinal faria com uma pequena sombra alada?
A porta da casa comunal se abriu e Ciara saiu. Ela se encaminhou apressada ao centro do círculo. O olhar da mulher alada repassou o grupo até pousar em Brighid.
Seu sorriso se tornou radiante.
- É um dia abençoado que se encerra! - proclamou ela.
As crianças exclamaram com alegria enquanto as cabeças assentiam em vigorosa concordância. Todos os olhos se voltaram para a caçadora.
- Até hoje só conhecíamos a nobre raça dos centauros pelas recordações das nossas mães e avós, pelas histórias que nos foram contadas. Mas hoje fomos honrados com
a presença da famosa caçadora MacCallan, Brighid Dhianna. Vamos agradecer a nossa deusa por mais um novo dia e pela nova bênção com a qual nos presenteou.
Sentindo o peso de todos aqueles olhos juvenis, Brighid queria se esconder, melhor ainda, fugir. Felizmente, quando Ciara ergueu as mãos e voltou o rosto para o
oeste, todas as crianças e adultos se viraram com ela, focando os olhos no horizonte. Mas quando a voz clara de Ciara ecoou forte e doce, invocando o eterno ritual
da bênção noturna de Epona, Brighid descobriu que a curiosidade e a surpresa atraíam seus olhos para a forma delicada da mulher alada.
Ó Epona, Deusa de beleza e de magnificência,
Deusa de jovialidade e força jubilosa.
Neste pôr do sol damos início ao nosso agradecimento
voltados para o oeste, a direção da água,
banhados nas bênçãos de outro dia.
Hoje te agradecemos por guiar até nós a caçadora,
descendente de uma nobre raça.
Envolta em honra.
Rica em tradição.
Ciara estava parada com os braços erguidos e a cabeça jogada para trás. As asas escuras se abriram e ergueram-se ao redor dela, ondulando suavemente no vento frio
da noite. Brighid suspirou de surpresa. O corpo da mulher alada foi delineado pela névoa cintilante que durante as últimas duas luas se tornara tão familiar para
Brighid. Era o mesmo poder reluzente que vira inúmeras vezes quando Elphame invocava o nome de Epona.
- Você não esperava por isso, não é? - sussurrou Cuchulainn.
Brighid só conseguia menear a cabeça e continuava a encarar a híbrida tocada pela deusa.
Ó Deusa dos nossos corações,
protetora de tudo que é selvagem e livre,
nós te agradecemos por tua brilhante presença
e por teu poder que flui na água...
Braços ainda erguidos, Ciara virou-se para a direita, e o grupo acompanhou seu movimento.
Na terra...
Ela se virou para a direita novamente.
No ar...
Novamente, o grupo a acompanhou no círculo sagrado virando-se para fitar o sul.
E no fogo.
Depois Ciara e o grupo fecharam o círculo virando novamente para o oeste. No momento em que o sol afundou na terra, ela ergueu a voz com júbilo, abriu os braços
e gritou: Acendam-se, luzes divinas!
Brighid ofegou quando duas tochas fincadas diante da porta da casa comunal se incendiaram numa luz brilhante e incandescente.
Este é um dia de recompensa e alegria,
digno de ser celebrado,
assim como em épocas muito antigas
nossas mães nos ensinaram
a honrá-la, ó Deusa.
Sua luz sempre guiará
aqueles que se perderam na escuridão.
Todos saúdem Epona!
- Todos saúdem Epona! - gritou o grupo, e o círculo se rompeu quando crianças sorridentes seguiram em meio a conversas e risadinhas para a casa comunal.
Brighid sentiu como se os cascos estivessem enraizados no chão frio.
- Pelo sopro sagrado da Deusa, ela possui magia de fogo! - Suas palavras explodiram em Cuchulainn. - Por que não me contou?
- Nas duas últimas luas, descobri que algumas coisas devem ser vistas para que sejam plenamente apreciadas. Venha, caçadora. - Muito à maneira como teria feito com
a irmã, Cuchulainn enlaçou o braço no de Brighid e levou a espantada centaura à casa comunal. - Eu disse que compreendê-los não é tão fácil quanto possa parecer.
Seis
- TAMBÉM NÃO PODIA me contar sobre isso? - murmurou Brighid conforme entrava na casa comunal.
- Não tive tempo - respondeu ele baixinho. - E acho que só falar não teria sido adequado.
Era uma construção bonita. Mais retangulares que circulares, as duas paredes maiores sustentavam lareiras imensas nas quais o fogo crepitava vivaz ao redor de enormes
panelas borbulhantes que, pelo aroma maravilhoso que pairava pelo salão, deviam estar cheias de cozido bem temperado. Longas fileiras de mesas de cavalete eram feitas
de tábuas aplainadas pousadas seguramente sobre pilares de pedra, que tinham sido entalhados para parecerem botões em flor. Mas o que chamou a atenção de Brighid
foram as paredes da grande construção. Por fora pareciam as paredes da cabana de Cuchulainn, mas por dentro tinham sido meticulosamente alisadas e cobertas com cenas
pintadas de maneira tão adorável que rivalizavam com quaisquer das estimadas peças de arte que agraciavam as paredes de mármore e os corredores sagrados do Templo
de Epona.
A cena central era estonteante. Uma égua prateada, silhuetada na luz dourada de um sol nascente, arqueava o pescoço orgulhoso e presidia regiamente o salão. Os olhos
da égua eram sábios - seu olhar, benevolente. Ao redor dela, vinhetas de Partholon tinham ganhado vida nas mãos de um mestre. Lá estava o Templo de Epona, radioso
com paredes peroladas e majestosas colunas esculpidas. Os terrenos elegantes do Templo da Musa estavam repletos de mulheres trajadas em seda, congeladas no tempo,
que rodeavam cada uma das nove deusas encarnadas, ouvindo com enlevo as lições diárias. Havia até uma cena onde dois centauros corriam por capim à altura da cernelha,
o que Brighid facilmente reconheceu como sendo a Planície dos Centauros. Emoldurando cada uma das cenas, havia nós intricados que escondiam pássaros, flores e animais
nativos de uma terra muito mais hospitaleira que os Ermos.
- É realmente impressionante - disse Brighid.
- Que bom que gostou - disse Ciara. Com um gesto elegante da mão, apontou para uma área onde uma das mesas fora arrumada longe das outras. O banco de um dos lados
tinha sido removido para acomodar o corpo equino de Brighid. O outro lado permanecia adaptado aos diminutos traseiros humanos. - Espero que fique confortável. Pensei
que Cuchulainn e eu pudéssemos ficar com você, aqui longe dos outros, para que não seja inundada por perguntas dos pequenos. - Ciara os levou aos assentos, enquanto
Liam e Kyna se apressavam com bandejas de comida fumegante. - Bom, com duas possíveis exceções - murmurou Ciara à caçadora.
Brighid observou as crianças ansiosas com suspeita. Os olhares indagadores a deixavam mais desconfortável que uma alcateia de coiotes famintos. No momento em que
sentou à mesa, Liam se adiantou e serviu-lhe uma generosa porção de cozido cheio de pedaços de batata, carne e cevada, e um acompanhamento de verduras quentes que
cheirava muito como espinafre.
- As verduras são especialmente para você, Brighid. - A agitação nervosa de Liam chegava a transbordar sobre eles. - São uma verdadeira iguaria assim tão cedo na
primavera. Eu, hã, quero dizer, nós esperamos que goste.
- Tenho certeza de que sim. Tudo está com um cheiro maravilhoso. - Brighid sorriu com hesitação para o garoto. Ele praticamente saiu da pele de tanto prazer.
- Fand pode comer na nossa mesa, Cuchulainn? - pediu Kyna ao guerreiro, que se servia das verduras que ela oferecia.
- Claro, mas certifique-se de que ela fique debaixo da mesa. Não sobre ela - avisou Cuchulainn.
- Deixem as bandejas e vão comer - instruiu Ciara quando as duas crianças demonstraram que ficariam contentes em ficar paradas ali a noite inteira observando cada
movimento que Brighid fazia ao tentar comer sob o intenso escrutínio. Elas obedeceram, mas com relutância, ainda disparando olhadas curiosas sobre os ombros para
a bela centaura.
- As crianças estão enamoradas por você, caçadora - disse Ciara com um sorriso.
Cuchulainn relanceou Brighid.
- É um alívio que estejam obcecadas por outra pessoa - disse em meio às colheradas de cozido.
Ciara riu.
- Ah, não pense que se esqueceram de você, guerreiro.
Cuchulainn fez cara feia e voltou a atenção para sua tigela.
Brighid comeu em silêncio, deixando os olhos se perderem nas cenas incríveis que enchiam as paredes.
- Vejo que está surpresa com nossa arte - disse Ciara.
O olhar de Brighid se voltou para ela.
- Sim - disse com franqueza. - Estou.
O sorriso caloroso de Ciara não falseou.
- Não ficaria se conhecesse a história de nosso nascimento.
- Sei um pouco - que seu povo veio de um grupo de mulheres roubadas de Partholon pelos fomorianos durante a guerra há mais de cem anos. Quando os fomorianos perceberam
que estavam perdendo a guerra, escaparam pelas Montanhas Trier com tantas mulheres humanas quanto conseguiram capturar. Planejaram se esconder lá e ficarem fortes
novamente, reforçando-se com uma nova geração de demônios nascidos de mulheres humanas. Por fim, retornariam para atacar Partholon outra vez.
- Sim, este tanto é verdade. O que mais sabe?
Brighid ergueu um ombro.
- Só o que Lochlan nos contou. Que os fomorianos escaparam dos guerreiros partholonianos, mas não conseguiram escapar da praga despejada sobre eles pelo ultraje
de Epona com a violação de suas mulheres. Os demônios ficaram doentes e enfraqueceram. Então um grupo de mulheres grávidas, liderado pela mãe de Lochlan, atacou
seus captores, os matou e vasculhou as montanhas, ajudando os outros grupos de mulheres a se erguerem contra seus captores também.
Ciara assentiu e tomou o fio da história: - O plano delas eram retornar a Partholon. Sabiam que a gravidez significava uma sentença de morte. Nenhuma mulher humana
jamais sobrevivera ao nascimento de uma criança gerada por um demônio. Era o desejo delas retornar aos lares, onde poderiam morrer cercadas pelos entes amados.
O belo rosto de Ciara se iluminou ao contar a história e Brighid ouvia, hipnotizada pela voz melodiosa da xamã.
- Mas o impossível aconteceu. Quando começaram a jornada para Partholon, Morrigan MacCallan entrou em trabalho de parto e sobreviveu ao nascimento. Deu à luz um
menino que tinha asas e também uma centelha de humanidade. Estimou o filho com o amor selvagem de uma mãe e o batizou de Lochlan. E depois outra mulher sobreviveu
ao nascimento do bebê. E outra. E mais outra. - Ciara fez uma pausa, sustentando o olhar de Brighid. - O que as mulheres deveriam fazer? Alguns diriam que deveriam
matar ou abandonar seus filhos e retornar para as vidas que as aguardavam na amada Partholon. Os bebês eram, afinal, descendentes de demônios. Mas aquelas mães não
os enxergavam assim. Em vez disso, viam sua verdadeira humanidade. Então Epona guiou as jovens mães até aqui, ao nosso cânion, onde construíram novas vidas a partir
dos sonhos de seu antigo mundo. E aqui ficamos por mais de cem anos, esperando para realizar o sonho daquelas mães de retornar ao mundo que amavam com uma profundidade
de espírito menor apenas que o amor aos filhos.
- E Epona ofereceu à mãe de Lochlan a Profecia, que ele cumpriu após sonhar com Elphame e seguir aquele sonho até Partholon - disse Brighid apressada, sem olhar
para Cuchulainn. Não queria falar dos eventos que levaram Fallon a seguir Lochlan até o Castelo MacCallan. A mulher tinha se desesperado com o cumprimento da Profecia
porque sabia que Lochlan estava apaixonado por Elphame. Então Fallon matou Brenna para atrair Elphame para longe da segurança do clã. - Disso eu sei, mas não explica
nada disso. - A centaura apontou para as pinturas adoráveis.
- Ah, mas explica. Veja, o maior grupo de mulheres grávidas foi capturado durante a grande batalha no Templo da Musa.
Os olhos de Brighid se arregalaram em compreensão.
- Então muitos de vocês são descendentes das deusas encarnadas das Musas, ou de suas acólitas.
- Isso mesmo. Você já sabe que sou neta da deusa encarnada Terpsícore, musa da dança. Este salão está cheio de descendentes de todas as nove Musas das deusas. Nossas
mães e avós conheciam a magia das Musas e nos transmitiram esse conhecimento. O maior desejo delas era que o milagre de Partholon não morresse nos Ermos. A beleza
ao seu redor agora não faz sentido?
- Sem dúvida - murmurou Brighid. Por Partholon inteira, o Templo da Musa era conhecido por suas várias escolas de aprendizado e as mulheres excepcionais que viviam
e treinavam lá. A própria Escolhida de Epona era sempre educada pelas deusas encarnadas da Musa. A caçadora considerou as palavras de Ciara. A situação apresentava
muito mais camadas do que ela previa. E camadas significavam coisas que raramente eram como se apresentavam à primeira vista.
- Sua mãe era filha da deusa encarnada da dança, e seu pai?
A tristeza cruzou o rosto expressivo da mulher alada.
- Ele era filho de uma acólita devotada a Calíope que foi capturada pelos fomorianos, violentada e engravidada aos 13 anos de idade. De fato, apenas uma criança...
- A voz de Ciara se esgotou.
- Onde estão seus pais agora? - forçou-se Brighid a perguntar.
Antes de responder, Ciara olhou para Cuchulainn. O guerreiro retornou o olhar firmemente, com olhos que mais uma vez estavam chapados e inexpressivos. Ela se voltou
lentamente para Brighid. Quando falou, a voz estava encoberta de pesar: - Meus pais cometeram suicídio há mais de duas décadas. Escolheram morrer nos braços um do
outro antes de sucumbirem ao mal que estava sufocando a humanidade deles. Como desejavam, espalhei as cinzas deles ao sul. - Os olhos de Ciara penetraram Brighid
quase tão completamente quanto as palavras seguintes: - Sou a xamã de meu povo. Treinada por minha mãe, que seguiu os costumes da mãe dela, a Amada de Terpsícore.
Não mentiria para você, caçadora. Pressinto que tem conhecimento do Caminho Xamãnico. Não consegue discernir a verdade em minhas palavras?
Brighid sentiu mais do que viu Cuchulainn se endireitar no assento. Ela não tinha contado a ninguém - nem a Cuchulainn, nem à irmã dele. Como Ciara sabia?
- Xamãs podem mentir - disse Brighid. - Sei disso por experiência própria.
- Sim, podem. - O rosto franco e honesto de Ciara estava tingido de tristeza. - Mas eu não minto.
- Todos eles cometeram suicídio - disse Brighid.
- Nem todos. A maioria. Os outros... - Ciara desviou o olhar. Entrelaçou os dedos das mãos. Os nós ficaram brancos da pressão com que ela se reprimia. - A loucura
reclamou os outros, que logo depois morreram também.
- É doloroso para você falar disso - disse Brighid.
- Sim, muitíssimo. - Ciara se obrigou a separar as mãos e pressionar as palmas na madeira lisa da mesa. - Precisa entender o que aconteceu conosco quando Elphame
cumpriu a Profecia e retirou a loucura de nosso sangue. Durante todos esses longos anos, lutamos contra o mal dentro de nós, mesmo que isso tenha nos causado dor
e que cada batalha nos custasse um pedaço da nossa humanidade. E de repente aquele mal imenso e abrangente sumiu. - A respiração de Ciara ficou contida enquanto
ela revivia o momento: - O que restou dentro de nós é o que lutamos tanto para manter. Nossa bondade. Nossa humanidade. Queremos seguir em frente - nos transformar
na gente que nossas mães humanas acreditavam que éramos há tanto tempo. Quando recordo os horrores do passado e aqueles que foram derrotados antes de a salvação
chegar, é como se eu estivesse desconstruindo a fortaleza de bondade dentro da minha mente. O pesar e a tristeza pairam nos cantos escuros. A desilusão se aloja,
e viver de recordações não serve para nada que não seja barrar as portas e selar a dor. - Ela não voltou a encarar Cuchulainn, mas Brighid sentia que Ciara estava
mais falando para ele do que para ela. - Lidar com a tragédia faz o sofrimento se tornar um pendente de gelo que começa tão pequeno e inofensivo quanto uma lasca
fria. Mas lentamente, conforme o inverno da lamentação prossegue, uma camada após outra se acumula numa inquebrável adaga de dor. - Ciara endireitou as costas e
virou as mãos, de modo que repousassem de palmas para cima num gesto de franqueza e súplica. - Me teste, caçadora. Sei que tem a habilidade de discernir qualquer
falsidade em minhas palavras. Eu recebo com prazer seu escrutínio.
Brighid ignorou Cuchulainn, que tinha parado de comer e a encarava com uma expressão mista de surpresa e repulsa. Respirou bem fundo e concentrou seus poderes apurados
de observação - poderes que eram, como Ciara dissera, aprimorados pela rica herança xamã que lhe pertencia por direito de nascença - na mulher alada. Como quando
procurava uma presa para seu clã, a caçadora cheirava mais do que o ar. Aspirava a essência espiritual daquilo que procurava. E o que procurava ali na casa comunal
era o rastro sombrio deixado pelo mal e pelas mentiras.
Ciara permanecia parada e serena, esperando pacientemente que a caçadora vasculhasse seu espírito e visse o que vivia ali.
- Você não está escondendo nada de nós - disse Brighid, enfim.
O sorriso de Ciara agora era radiante.
- Não, caçadora. Não estou escondendo nada de vocês. Mas se for acalmar sua mente, convido você a viajar comigo numa verdadeira jornada espiritual ao Mundo Superior,
e garantirei diante da própria Epona que minhas palavras são verdadeiras.
Brighid sentiu um punho gelado se fechar sobre seu coração. Usar seus poderes inatos para alimentar o clã ou saber a verdade sobre Ciara e assim manter os MacCallan
a salvo era uma coisa. Para ela não era diferente de transpassar o coração de um nobre cervo com uma flecha. Não era agradável, mas era algo que devia fazer para
cumprir o caminho que escolhera para sua vida. Mas não viajaria numa jornada espiritual. Sabia muito bem quem encontraria.
- Não - disse ela, um bocado apressada. - Não será necessário, Ciara.
- Você tem o poder dentro de si, mas não faz a Jornada Sagrada?
- Não. Sou uma caçadora, não uma xamã.
Ciara abriu a boca, depois mudou de ideia e simplesmente assentiu: - Cada um deve encontrar o próprio caminho.
Cuchulainn se levantou tão abruptamente que quase derrubou o banco.
- É hora de me retirar.
Ciara não fez tentativa de esconder o desapontamento: - Mas já vão começar a contar histórias. As crianças ficarão perguntando por você.
- Hoje não - respondeu sucintamente.
- Eu também devo pedir para me retirar mais cedo. Minha viagem até aqui foi longa e cansativa - anunciou Brighid, levantando-se com graça e circulando a mesa para
parar ao lado de Cuchulainn.
O desapontamento de Ciara logo se tornou um olhar gentil de compreensão.
- Claro. Descanse bem, Brighid.
Antes de se virarem para sair, Cuchulainn anunciou em sua voz tensa: - Amanhã quero explorar a passagem. Acho que pode estar limpa o bastante para começarmos nossa
jornada em breve.
- Que ideia excelente! Pretendo ir com você - disse Ciara.
Cuchulainn resmungou. Sem esperar pela caçadora, saiu intempestivo pela porta, deixando Brighid sorrir e acenar despedidas tímidas para as crianças desapontadas.
Tochas estavam acesas por toda parte do assentamento, e não demorou muito para que os olhos sagazes de Brighid distinguissem as costas curvadas conforme Cuchulainn
caminhava ligeiro entre as cabanas. Ela o alcançou com facilidade.
- Você possui poderes xamânicos - disse ele sem encará-la.
- Sim. Embora eu preferisse que não, possuo a habilidade de fazer a Jornada Sagrada e de me comunicar com o reino espiritual. Está no meu sangue... - ela fez uma
pausa e relanceou seu perfil rígido - ... por parte de minha mãe. Ela é Mairearad Dhianna.
As palavras dela o detiveram.
- Você é filha da Sumo Xamã da manada Dhianna?
- Sou.
- Qual filha?
Brighid dispôs o rosto em cuidadosas linhas neutras.
- A mais velha.
Ele meneou a cabeça com descrença.
- Mas é tradição de sua manada que substitua sua mãe como sumo xamã.
- Eu quebrei a tradição.
- Porém carrega o poder dentro de si - acusou ele.
- Sim! Você faz parecer como se eu acabasse de anunciar que carrego comigo uma praga rara. Seu pai é um sumo xamã também. Não sabe nem um pouquinho como é ter o
poder e escolher não trilhar o caminho exato que deveria seguir?
O queixo de Cuchulainn se contraiu e descontraiu.
- Você já sabe a resposta, Brighid. Não quero assunto com o reino espiritual.
A caçadora lançou as mãos no ar com frustração.
- Há outras maneiras de se lidar com os poderes que tocam nossas vidas que não seja rejeitá-los completamente.
- Não para mim. - Ele rosnou as palavras entre os dentes.
- Sua irmã é a filha mais velha da Escolhida de Epona. A tradição estabelece que ela deve substituir a mãe como A Amada de Epona, porém todos que a conhecem compreendem
que seu destino é ser A MacCallan. Ela não deu as costas ao poder herdado por seu sangue. Ela usa sua afinidade com magia de terra para trazer vida ao Castelo MacCallan.
Como ela, escolhi não seguir a tradição, mas não rejeitei completamente os dons da minha herança.
Cuchulainn estava em silêncio, encarando-a como se fosse uma pária. Brighid suspirou, mantendo a raiva crescente sob controle por lembrar que não era contra ela
que ele batalhava - era consigo mesmo.
- Minha afinidade é com os espíritos dos animais.
Os olhos dele se estreitaram.
- É por isso que suas habilidades como caçadora são tão vastas.
Brighid bufou:
- Gosto de pensar que uso minha afinidade para ampliar, não para criar minhas habilidades.
- Não vejo diferença entre as duas coisas.
- Tenha muito cuidado, Cuchulainn. Lembre-se que sou a caçadora do seu clã. Não vou tolerar suas calúnias. - A voz de Brighid estava bem controlada, mas os olhos
brilhavam de raiva.
Cuchulainn hesitou apenas por um instante, antes de assentir devagar: - Você está certa por me lembrar, caçadora. Por favor, aceite minhas desculpas.
- Aceito - disse ela sucintamente.
- Prefere se abrigar em outro lugar? - perguntou ele.
Brighid bufou novamente, deixando um pouco da tensão relaxar nos ombros: - É me mandando para uma cabana cheia de crianças que planeja me torturar por minha transgressão
no reino espiritual?
- Não - disse ele às pressas. - Só pensei que talvez não...
- Vamos apenas dormir.
- Concordo - disse ele.
Caminharam em silêncio. Brighid podia sentir a confusão dentro do guerreiro soturno que andava ao lado dela. Era uma flecha curvada esperando para arrebentar. Quando
falou de repente, a voz soou como se vinda de uma tumba: - Teria usado seus poderes para salvá-la, não é?
Brighid o olhou depressa, mas Cuchulainn evitou seus olhos.
- Claro que teria, mas meu dom não é o da predestinação. Já lhe disse que simplesmente tenho afinidade com... - Sua voz cessou ao perceber o que ele estava realmente
dizendo. Fora prevenido sobre a morte de Brenna com uma premonição de perigo. Um aviso que rejeitou apenas porque sempre rejeitou qualquer coisa do reino espiritual.
Ela parou e pôs a mão sobre o ombro dele, virando-o de maneira que a encarasse.
- Não importa o quanto culpe a si mesmo, ou a mim, ou à sua irmã, Brenna continuará morta.
- Não estou culpando você ou Elphame.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Eu... Eu não consigo me livrar disso!
- Disso? - perguntou ela.
- Da dor de perdê-la.
Ela sentiu sob a mão a tensão nos músculos do ombro dele. O que poderia dizer? Não era boa para lidar com emoções puras. Era uma das razões pelas quais escolhera
ser uma caçadora. Queria deixar o tumulto emocional e sua antiga vida para trás. Os animais eram simples. Não discutiam, manipulavam ou mentiam. Cuchulainn precisava
conversar com um xamã, não com uma caçadora. Mas o guerreiro não procuraria um xamã. Por ordem de eliminação, ela era tudo o que ele possuía.
- Não sei o que dizer, Cuchulainn - disse com honestidade. - Mas me parece que você não pode fugir desse tipo de dor. Precisa enfrentá-la. Então você decide se quer
se curar e seguir em frente, ou se quer viver como um morto-vivo. Eu sei o que Brenna preferiria para você.
Ele a fitou com olhos velhos e cansados, levando um dedo ao meio da testa.
- Eu também sei. Fico pensando que se eu a deixar bem zangada, ela ao menos virá me repreender nos meus sonhos. - A risada seca e sem graça soava mais como um soluço.
- Ela não vem. Não virá. Rejeitei o mundo espiritual, e é lá que ela está.
Brighid observava sua agonia com impotência.
- Precisa descansar, Cuchulainn.
Ele concordou e, como um homem sonâmbulo, retomou o caminho até a cabana deles. Ele lembrava a Brighid um animal ferido. Precisava de um milagre para se curar, ou
de alguém que o tirasse daquele sofrimento.
Sete
O FOGO DA lareira queimou até virar brasa cintilante, mas os olhos aguçados de Brighid precisavam de pouquíssima luz. Achava que ele finalmente dormira. De seu lado
na cabana, observara o guerreiro se debater para dormir. Era como se o corpo lutasse contra o relaxamento como outra maneira de se punir. Não era surpresa que parecesse
tão cansado. O que Cuchulainn precisava era de um copo dos notórios chás de Brenna para fazê-lo descansar. A caçadora deu um longo e lento suspiro. Não, o que Cuchulainn
precisava era de Brenna.
Ela estava cansada também. O que dissera a Ciara sobre precisar se retirar mais cedo era verdade. Rearrumou os membros equinos dobrados e enroscou-se mais confortavelmente
de lado, aspirando a leve e agradável fragrância da urze anã que cobria o chão da cabana. Suas pálpebras estavam pesadas, mas ela resistiu à vontade de dormir. Ainda
não. Havia algo que precisava ver primeiro. E agora que Cuchulainn estava dormindo, poderia começar.
Observando as brasas cintilantes cor de ferrugem, relaxou o corpo enquanto aprofundava e desacelerava a respiração. Não entraria no estado de transe que levava à
Jornada Sagrada, mas precisava da concentração focada da meditação, que era apenas o primeiro passo para o mundo espiritual.
Mas Brighid não viajaria muito longe. Não permitiria isso. Nunca permitia.
Tendo como pano de fundo as brasas cintilantes, a caçadora se imaginou como quando estivera mais cedo à beira do precipício do cânion e tivera o primeiro vislumbre
do assentamento híbrido mais abaixo. Viu o acampamento bem organizado e as construções benfeitas. Então observou novamente, desta vez com os sentidos além dos olhos.
A cena ondulou, como um sopro agitando a água, e as cores mudaram. Os maçantes cinza e ferrugem dos Ermos se transformaram e de repente foram inundados por um brilhante
halo verde - uma cor que irradiava vida, saúde e a promessa de primavera. Brighid se permitiu adentrar mais no transe e expandiu os sentidos. O halo verde se intensificou,
e sua visão espiritual se tornou mais clara. A luz na verdade vinha de dúzias de esferas reluzentes que tremulavam brilhantes em contraponto às cores sombrias dos
Ermos.
Antes que pudesse intensificar a concentração, sentiu algo mais, mas pressentia que a sensação não vinha do assentamento. Em sua visão surgiu uma consciência incômoda
de algo atrás dela. Imaginou-se girando, e as montanhas oscilaram e tornaram-se vermelhas, como se estivessem banhadas em sangue. Surpresa, Brighid rompeu a concentração
e se viu novamente fitando os restos do fogo na lareira.
O que aquilo tudo significava? Desejava possuir o conhecimento da mãe. Pense!, ordenou a si mesma. O acampamento híbrido fora pintado num verde etéreo. Não existia
nenhuma conotação negativa com aquela cor. No mundo espiritual, representava o mesmo que no mundo físico - crescimento, prosperidade e recomeço da vida. Tinha visto
qualquer matiz escuro dentro do halo verde? Não... Brighid verificou a memória da meditação. Ciara estava dizendo a verdade. Ela não estava escondendo nenhum mal
- ao menos nenhum mal que Brighid pudesse descobrir.
Então os pensamentos dela se voltaram para o breve vislumbre que teve das montanhas. A aura delas estava definitivamente escarlate. E a sensação que se irradiava
delas era diferente, mais complexa, tingida de escuridão. Ela franziu a testa e remexeu inquieta as pernas dobradas. A cadeia de montanhas fora batizada Trier, que
era a palavra na língua antiga para a cor vermelha, por causa das rochas vermelhas e das pequenas plantas de folhas avermelhadas que acarpetavam as colinas mais
baixas durante os meses mais quentes. Será que era isso que sua visão tinha refletido? Que as montanhas eram adequadamente batizadas e que mesmo em espírito eram
vermelhas? Ou seria algo mais profundo que isso? No reino espiritual, a cor vermelha carregava um simbolismo complexo e conflitante. Significava paixão, mas também
representava ódio. Profetizava nascimento, e também morte.
Simplesmente não tinha certeza - olhou para a forma sonolenta e inquieta de Cuchulainn -, não tinha certeza sobre nada ali, exceto que permaneceria alerta e cautelosa
contra qualquer coisa que ameaçasse o clã. Brighid fechou os olhos, mas o sono não vinha fácil. Ficou ouvindo o som fantasmagórico de asas e vendo o horizonte mergulhado
na cor escarlate do sangue.
Ainda era muito cedo pela manhã. O dia amanhecera brilhante e fresco, com uma mudança quase imperceptível do vento incessante vindo do frígido norte para uma corrente
noroeste, mas gentil, que trazia consigo o distinto e atraente aroma do mar. Cuchulainn e Brighid se juntaram a Ciara na cerimônia de bênção matinal, e depois do
desjejum os três refizeram a trilha que Brighid e Cuchulainn tomaram no dia anterior, a caminho da boca da passagem escondida da montanha.
Mas algo não estava certo. Ciara sentia bem no fundo do espírito. Quanto mais perto chegavam das montanhas, mais intensa era a sensação de algo errado. Era mais
do que sua eterna antipatia pela barreira rochosa que os separava de Partholon e tudo que era bom, verde e fértil. Hoje ela sentia um aviso se esgueirando por sua
pele e se alojando dentro dela como a picada de uma aranha venenosa. Queria acreditar que era só sua imaginação, só o fato de que as Montanhas Trier simbolizavam
tanta negação. Mas ela não era uma moça comum. Ciara era a xamã de seu povo, não precisava estar numa Jornada Sagrada para reconhecer a mensagem do reino espiritual.
Precisava escapar das montanhas e da inquietação que elas pareciam invocar. Então poderia se retirar para sua cabana e se abrir para a Jornada Sagrada. Lá Ciara
poderia chamar seus guias espirituais para que a ajudassem a interpretar o aviso que a abalara até a alma. Percebeu que estava prestes a fugir das sombras das montanhas
quando a voz de Cuchulainn interrompeu seu tumulto interno e a ancorou novamente no mundo físico: - Derreteu um bocado. Se o tempo firmar, e todos os sinais indicam
que sim, a trilha ficará transitável nos próximos dias - disse Cuchulainn pensativamente, acenando com a cabeça enquanto estreitava os olhos para a trilha ainda
salpicada de neve que seguia por duas margens escarpadas de rocha vermelha e diretamente para as montanhas.
- Acha mesmo? - Ciara forçou a voz a não trair o medo que as palavras dele fizeram espiralar nela.
- Não vejo por que não. Será, claro, uma jornada difícil. Mas você mesma disse que o inverno acabou. - Ele acenou com a cabeça para a passagem estreita. - Ao menos
não teremos mais nenhuma neve para bloquear o caminho.
A caçadora observou Ciara e Cuchulainn espiarem o rasgo escuro nas antigas paredes de rocha. Ela cruzou os braços sobre o peito e meneou a cabeça.
- Vocês dois devem estar totalmente loucos.
O guerreiro fez cara feia, mas a mulher alada simplesmente voltou o olhar para a caçadora.
- Sobre o que você está falando? - perguntou Cuchulainn.
- Sobre o que eu estou falando? Melhor perguntar a vocês mesmos.
- Explique-se, caçadora - rosnou Cuchulainn.
Brighid enrugou os lábios.
- Pela Deusa, é simples! Não pode conduzir setenta crianças por esta passagem. Nem dentro de alguns dias, nem em alguns ciclos da lua.
Cuchulainn abriu a boca para gritar, mas a voz calma de Ciara interrompeu seu desvario: - O que quer dizer, Brighid?
- Que é claramente perigoso demais. Talvez fosse diferente quando Cuchulainn veio por aqui duas luas atrás, mas hoje seria uma jornada difícil até para um grupo
de adultos. É impossível para crianças.
- Nossas crianças são especiais - disse Ciara com calma. - Não são crianças normais.
- Mesmo assim, não deixam de ser crianças. Não importa que sejam fortes, as pernas não são tão longas. Eu as observei. Algumas mal conseguem planar, o que significa
que os adultos ou as crianças mais velhas teriam que carregar as menores. Isso duplicaria o perigo e a dificuldade - falou Brighid com praticidade, na voz lógica
e insensível de uma caçadora discutindo o rastro de uma caça.
- Tem certeza? Mesmo se os levássemos em pequenos grupos? - perguntou Cuchulainn.
- Em grupos pequenos seria melhor, mas ainda perigoso. A viagem seria lenta, então seriam forçados a passar a noite na passagem. E isso seria uma noite sem fogo.
- Brighid relanceou a xamã que tão facilmente empunhava o poder de chamas. - O fogo enfraqueceria a neve que já está derretendo nas paredes da passagem.
- Avalanche - disse Cuchulainn. O guerreiro sacudiu a cabeça com desgosto. Não tinha pensando naquilo, mas deveria. - Mas grupos pequenos funcionariam?
Brighid ergueu um ombro.
- Suponho que sim.
Os olhos escuros da xamã buscaram os dela.
- Se fossem suas crianças, arriscaria levá-las pela passagem, mesmo em grupos pequenos?
- Não.
- Se você não levaria suas crianças, não levarei as minhas - decretou Ciara.
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas diante da rapidez da decisão da mulher alada, mas era o povo dela e era uma escolha que ela devia fazer.
- Então teremos que esperar até o ápice do verão para levar as crianças, quando não houver mais neve nas paredes da passagem - disse ele devagar. Já podia sentir
o peso do desapontamento das crianças quando descobrissem que esperariam pela viagem para a terra de seus sonhos por mais várias passagens da lua.
- Não necessariamente - disse Brighid.
- Mas você acabou de dizer... - resmungou Cuchulainn.
- Eu disse que esta passagem era perigosa demais para as crianças. Mas esta não é a única passagem para Partholon.
Cuchulainn pulou de surpresa.
- A Passagem Guardião!
- Exatamente. - A caçadora parecia satisfeita consigo mesma.
- Nem tinha considerado isso, mas você tem razão. Faz mais sentido. É mais ampla, bem demarcada e bem guarnecida. Provavelmente já está até transitável.
- É vigiada por guerreiros do Castelo Guardião. - A voz macia de Ciara tremeu de leve. - O único encargo deles é impedir que os fomorianos entrem em Partholon.
- Vocês não são nossos inimigos. O sacrifício de minha irmã promete isso - resmungou Cuchulainn.
- Mas é onde ela foi aprisionada.
O corpo de Cuchulainn se sacudiu como se alguém o tivesse golpeado. O ela a quem Ciara falava era Fallon, a híbrida louca que tinha assassinado Brenna. Depois que
Fallon foi capturada, Elphame a sentenciou à morte por ter tirado a vida da curandeira, mas a híbrida estava grávida, e nem mesmo Cuchulainn estava disposto a sacrificar
uma criança que estava por nascer para pagar o débito que a mãe devia. Então Fallon fora levada ao Castelo Guardião para ficar presa até o nascimento da criança.
Era lá que por fim seria executada.
- Sim. - Cuchulainn salientou a palavra. - Fallon está presa lá.
- Então as pessoas não pensarão que somos como ela? - perguntou Ciara, os olhos luminosos de sensibilidade. - Não vão nos odiar?
- Vocês não são responsáveis pelas ações de Fallon - disse Brighid. - Ela escolheu a loucura e a violência. Nenhum de vocês fez isso.
- Os guerreiros são homens e mulheres honrados. Tratarão vocês com justiça - afirmou Cuchulainn.
Brighid deu uma olhada nele, considerando a ironia da situação. Ali estava Cuchulainn, assegurando Ciara de algo contra o que ele mesmo lutara. Esteve pronto para
tratar os neofomorianos injustamente - já tinha lhe admitido isso. Mas a bondade deles era óbvia, mesmo para um guerreiro pesaroso. Se Cuchulainn podia enxergar
além das asas e do sangue demoníaco, seriam os guerreiros guardiões capazes de fazer o mesmo? Brighid esperava desesperadamente que sim.
- Se fossem minhas crianças, levá-las pela Passagem Guardião seria o único caminho até Partholon - disse a caçadora.
Ciara olhou da caçadora para o guerreiro.
- Se acredita que é o melhor, então é pela Passagem Guardião que entraremos em Partholon.
Cuchulainn grunhiu e olhou para o leste.
- O que acha? É uma viagem de aproximadamente dois dias? - perguntou Brighid, seguindo-lhe o olhar.
- Com crianças? Eu diria que é melhor dobrar isso.
- Pensei que conhecesse melhor as crianças, Cuchulainn.
Antes que Cuchulainn pudesse responder à mulher alada, Brighid bufou: - Vocês terão ampla oportunidade de nos mostrar o quão especiais são os pequenos. Quando todos
vocês estarão prontos para a viagem?
- Quando quiserem. Estamos prontos desde que a neve começou a derreter. E estamos esperando por essa viagem há mais de cem anos.
- Partiremos ao raiar do dia - disse Cuchulainn.
- Então que seja ao raiar do dia - disse Ciara com firmeza. - Devemos voltar depressa para que eu possa avisar aos outros.
Com essas palavras, Ciara estendeu as asas e pairou veloz pelo chão rochoso na corrida deslizante que seu povo herdara dos pais. Ouviu o bater de cascos conforme
a centaura e o capão de Cuchulainn galopavam atrás dela. Sentiu a tensão dentro dela se aliviar quando decidiram seguir pela Passagem Guardião em vez da trilha escondida,
mas a sufocante sensação de que havia algo errado não se dissipou até estarem bem fora das sombras das montanhas e novamente no terreno plano e áspero dos Ermos.
A mente da xamã redemoinhava enquanto suas pernas trabalhavam ritmicamente. Por que recebera um aviso? A resposta óbvia era que o reino espiritual concordava com
a caçadora - a trilha escondida era muito perigosa para as crianças atravessarem. Mas a resposta parecia simplista demais para uma reação tão intensa. A caçadora
reconhecera facilmente o perigo, e Ciara já acreditava que o julgamento da centaura era honesto e acurado. Teria dado ouvidos a ela, assim como Cuchulainn, sem qualquer
indicação do reino espiritual. Parecia perda de tempo para os espíritos enviar um alerta desnecessário. Uma coisa que compreendia muito bem graças à sua experiência
com o mundo dos espíritos era que eles nunca desperdiçavam seus poderes e que seus avisos nunca deveriam ser considerados desnecessários.
Ela devia encontrar tempo para fazer a Jornada Sagrada e descobrir o que o outro reino estava tentando contar a ela. Era sempre prudente dar atenção aos avisos dos
espíritos.
Oito
- NÃO ACHEI QUE conseguiriam - disse Brighid baixinho conforme ela e Cuchulainn se aproximavam do coração do assentamento, onde cada membro dos neofomorianos tinha
se reunido. Desde a menorzinha das crianças aladas até a bela Ciara, todos esperavam ansiosos pela centaura e o guerreiro que os conduziriam à terra que só conheciam
por pinturas, histórias e sonhos de mulheres há muito falecidas.
- É o raiar do dia e estamos prontos - disse Ciara. - Só estávamos esperando por vocês dois.
Brighid notou o óbvio brilho de orgulho nos olhos da mulher alada, mas achava difícil culpá-la. As crianças estavam alinhadas como pequenos guerreiros, cada uma
com um pacote amarrado às costas. Os adultos estavam bem mais carregados, e a caçadora contou cinco deles que levavam faixas de couro cruzando o peito nas quais
descansavam as crianças menores. A maioria das provisões para a viagem estava bem empilhada em padiolas que, Brighid bufou de surpresa, estavam atadas a cabras de
pelo desgrenhado. Eles estavam definitivamente prontos para a viagem.
Cuchulainn encontrou a voz primeiro: - Muito bem. - Ele assentiu para as crianças sorridentes, mas não retribuiu os sorrisos. - Nosso caminho primeiro segue para
o leste, antes de virarmos para o sul e entrarmos em Partholon. - Ele montou no cavalo e, estalando a língua, trotou em direção ao sol nascente.
Brighid foi para junto dele e sobressaltou-se um pouco quando o grupo atrás deles irrompeu num viva ensurdecedor. Uma vozinha deu início a uma antiga canção entoada
por gerações de crianças de Partholon em saudação ao sol de Epona: Saudações, sol de Epona,
que viaja no alto dos céus.
Com seus passos fortes
em seu voo altaneiro,
você é a feliz mãe da estrelas.
Logo outra criança se pôs a cantar, e depois mais outra e outra, até a manhã ecoar com o som feliz de vozes infantis elevadas em louvor à Deusa: Você afunda no perigoso
oceano
sem dano e sem ferimento.
Você se ergue no silêncio da onda
como uma jovem chefe desabrochando...
- Será uma jornada danada de longa - disse Brighid com um suspiro.
- Pode apostar - afirmou Cuchulainn. - Mas poderia ser pior.
- Como?
- Poderiam estar cavalgando você.
Brighid não podia dizer com certeza por causa do ruído retumbante de setenta crianças, mas achava que o guerreiro talvez estivesse dando uma risadinha.
Conforme o meio-dia se transformava em tarde e depois noite, Brighid concluiu sem qualquer dúvida que os Ermos eram o lugar mais deprimente que teve o desprazer
de visitar. Só levaram algumas horas para alcançar as montanhas. Uma vez dentro das sombras das gigantes completamente vermelhas, Cuchulainn tinha virado o grupo
para leste e pelo resto da manhã seguiram em paralelo à cadeia de montanhas.
O olhar de Brighid varria a paisagem. Feia, pensou enquanto assimilava o xisto saliente e a vegetação baixa e fina que se passava por folhagem. Além de ser feio,
o lugar a deixava com os nervos à flor da pele. Parecia plano e fácil de transpor, mas na verdade o terreno escondia barrancos repentinos semelhantes a feridas talhadas
no chão. O xisto entulhava o cenário frio e rígido. Seria muito fácil um casco pisar em falso. Um erro, mesmo naquele passo lento, e seria fácil quebrar a perna.
As montanhas não eram melhores que a terra que delimitavam. Vermelhas e intimidadoras, pareciam sentinelas silenciosas, o que, estranhamente, não era uma conotação
positiva. Mas talvez as montanhas devessem ser intimidadoras e impor pavor. Brighid tinha pouca experiência em terrenos assim. A única referência que poderia usar
para comparação eram os Outeiros Azuis, as colinas brandas e ondulantes que separavam a margem noroeste da Planície dos Centauros do resto de Partholon. Os outeiros
não se qualificavam como montanhas de verdade, mesmo que parecessem impressionantes quando comparadas à planeza e livre abertura da Planície dos Centauros. Mas em
nada se comparavam à gigante barreira vermelha da cadeia Trier. Os Outeiros Azuis eram redondos e tão cobertos de árvores compactas e vicejantes que de longe pareciam
possuir uma brumosa cor safira. Enquanto os outeiros eram acolhedores e cheios de verde e vida selvagem, as Montanhas Trier eram exatamente o oposto. Brighid olhava
as grosseiras Trier com inquietude, mais uma vez contente por Cuchulainn e Ciara terem dado ouvidos ao seu conselho e desistido de levar as crianças pela perigosa
passagem escondida.
Atrás dela, a risada compartilhada por duas meninas esvoaçou no vento incessantemente inquieto. A caçadora não precisava olhar para trás para saber o que veria.
Com asinhas estendidas quase se arrastando pelo chão, as meninas estariam com as cabeças juntas, rindo deliciadas com... com... Brighid bufou. Só a Deusa sabia com
o quê! Estava além de Brighid compreender como aquelas crianças conseguiam encontrar alegria e felicidade primitivas se tudo aquilo que as cercava - tudo que sempre
conheceram - eram os tristes Ermos e uma luta pela vida que seria amedrontadora para um centauro adulto. E eram meras crianças! Isso a surpreendia tanto quanto confundia.
- Você parece tão pensativa quanto o guerreiro - disse Ciara.
Brighid relanceou a mulher alada que ajustara seu passo deslizante com a caminhada firme da caçadora.
- Isso não pode ser elogio. - Brighid inclinou a cabeça de maneira sardônica para as costas eretíssimas de Cuchulainn. - Não posso imaginar um companheiro de viagem
mais deprimente.
O guerreiro mantivera-se persistentemente adiante do grupo de modo que, mesmo que guiasse quase cem viajantes sociáveis, passou a maior parte do dia sozinho. Falou
o mínimo possível e raramente interagia com eles. Ao meio-dia Brighid tinha desistido de tentar estabelecer conversa e concluiu - com relutância - que preferia viajar
perto do júbilo das crianças à nuvem escura que encobria Cuchulainn.
O sorriso de Ciara era tão caloroso quanto a voz: - Não foi nem elogio nem insulto. Foi simplesmente uma observação, caçadora.
Brighid reconheceu as palavras da mulher alada com um leve aceno de cabeça.
- Na verdade, não estava pensando em Cuchulainn. Estava pensando nas crianças. Estão indo bem. Muito melhor do que antecipei - admitiu.
O sorriso de Ciara se alargou.
- Eu disse que eram especiais.
Mais risadas alegres esvoaçaram até elas no vento. Brighid bufou: - São aberrações!
O ar radiante de Ciara imediatamente embotou, e Brighid percebeu sua difamação nada intencional.
- Agora sou eu quem deve se explicar. Não pretendi causar insulto - disse apressada. - Admito que não passei muito tempo com crianças - a vida de uma caçadora raramente
inclui um parceiro e filhos. Mas o pouco que sei sobre elas não me levou a esperar tamanho... - Ela se calou, procurando pela palavra certa antes de concluir: -
Otimismo.
O rosto de Ciara relaxou novamente em sua expressão familiar e sincera.
- Seria difícil para elas não estarem cheias de otimismo. Todos os seus sonhos estão se tornando realidade - nossos sonhos estão se tornando realidade.
Como sempre, a caçadora falou o que lhe vinha à mente: - Não pode crer que retornar a Partholon será coisa fácil.
- O fácil é relativo, não acha?
Brighid ergueu uma sobrancelha questionadora.
- Considere, caçadora, como seria se seu povo estivesse vivendo há mais de cem anos numa terra perigosa e estéril com demônios nas próprias almas - demônios que
lenta e metodicamente destruíam você e todos que você amava. E então, incrivelmente, você sobreviveu a isso. O que não pareceria fácil depois de uma vida assim?
- Ciara, Partholon é uma terra linda e próspera, mas deve se lembrar de que existem muitos tipos de perigo e muitas maneiras de se destruir uma alma.
Ciara sustentou-lhe o olhar.
- Com a ajuda de Epona, sobreviveremos a essa transição.
Brighid estudou as costas rígidas de Cuchulainn. Às vezes a sobrevivência parecia ser mais cruel que um fim rápido e indolor.
Ciara acompanhou o olhar da caçadora, e, como se lesse sua mente, disse: - A alma do guerreiro está despedaçada.
Os olhos de Brighid pularam de volta para a mulher alada, mas não disse nada.
- Posso perguntar uma coisa, caçadora?
- Pode perguntar. Não posso prometer responder - disse Brighid sucintamente.
Os lábios de Ciara se ergueram.
- Não é minha intenção bisbilhotar - ou ofender. Mas como xamã é difícil observar o sofrimento de alguém sem tentar... - Ela hesitou, remexendo os ombros com inquietação.
- Ele não vai aceitar sua ajuda - disse Brighid com franqueza.
- Percebi isso. Mas sempre há como uma xamã ser de auxílio mesmo que a pessoa não esteja disposta. - Diante do olhar estreito de Brighid, Ciara riu. - Garanto que
não escondo motivos, e não gostaria de me intrometer na privacidade do guerreiro. - Então sua expressão ficou séria. - Mas ele tem sofrido tanto que não posso ficar
parada sem ao menos tentar oferecer-lhe algum alívio.
Brighid sentiu a verdade das palavras de Ciara se assentar bem fundo nela.
- Faça sua pergunta, xamã.
- Como Cuchulainn era antes da morte da amada?
A caçadora ergueu as sobrancelhas, abismada com a pergunta. Tinha esperado que Ciara perguntasse sobre Brenna e sua morte, ou mesmo sobre como Cuchulainn tinha reagido
ao assassinato, mas Brighid não esperava que a mulher alada perguntasse sobre antes.
Reagindo à óbvia surpresa de Brighid, Ciara baixou a voz para ter certeza de que nenhuma de suas palavras fosse carregada pelo vento: - Às vezes, quando o destino
é muito cruel e o trauma das tragédias pessoais, das doenças ou das crises é mais do que se pode suportar, a alma de uma pessoa literalmente se fragmenta - se desintegra
- e pedaços dela se perdem no Reino dos Espíritos, deixando a pessoa com a sensação de que está quebrada... perdida... inteiramente ausente. A princípio é um mecanismo
de defesa para nos ajudar a sobreviver a algo que do contrário nos destruiria. Mas mesmo assim a pessoa está... - Ela lutou para colocar seu entendimento nas palavras.
- Está danificada? - sugeriu Brighid.
- Exatamente. - Ciara sorriu com apreciação. - Você tem os instintos de uma xamã, Brighid.
A expressão da centaura se achatou e seus olhos violeta se estreitaram.
- Está enganada.
Ciara não se abalou nem se amedrontou com o olhar da caçadora.
- Descobrirá que raramente me engano. Talvez seja por causa da minha afinidade com o fogo, que sempre pensei como algo purificador e não destruidor, mas meus instintos
não me falham. Mesmo antes de conhecê-la, sonhei com a chegada de uma águia prateada, um dos guias espirituais mais poderosos.
- Não tenho um guia espiritual. Não sou xamã. - A voz de Brighid era gélida.
- Veremos, caçadora - disse Ciara calmamente, antes de redirecionar o assunto ao guerreiro: - Como você disse, uma alma despedaçada pode deixar a pessoa danificada.
E se os pedaços da alma não se juntam... Imagine uma ferida invisível que se recusa a fechar e depois começa a inflamar e apodrecer. É o que acontece.
- E você consegue consertar isso? - perguntou Brighid incisiva, forçando-se a ignorar as sensações misturadas de irritação e pânico que os comentários de Ciara evocaram.
- Nem sempre. Às vezes a alma não quer se curar.
- O que acontece então?
- Geralmente suicídio. Às vezes a pessoa continua presa à vida, mas só um fantasma do que era antes - explicou Ciara com tristeza.
- Saber que tipo de homem Cuchulainn era antes de perder Brenna ajudaria a consertá-lo? - perguntou Brighid, mas seus instintos, quisesse admiti-los ou não, já espelhavam
a resposta de Ciara antes que a xamã alada falasse.
Ciara suspirou:
- Talvez. Uma alma despedaçada é bem difícil de ser curada quando o paciente aceita ajuda abertamente. Sem a cooperação de Cuchulainn, há pouco que eu possa fazer,
exceto tentar contatar aquela parte dele que se perdeu e convencer a alma danificada a escolher a vida e a cura, em vez do desespero e da morte.
Brighid assentiu, recordando de sua infância e das vezes em que a mãe fora capaz de salvar da tristeza a vida de outro centauro. A mãe curava almas despedaçadas,
concluiu a caçadora, envergonhada por nunca ter pensado nisso antes. Houve época em que Brighid via a mãe como um exemplo radiante de tudo o que era bom. Mas isso
foi antes de Mairearad ficar obcecada com o poder que sua posição oferecia. Brighid tinha parado de enxergar a mãe como curandeira espiritual há muito tempo, e aquele
pensamento de repente inundou Brighid de tristeza. Cuchulainn, lembrou a si mesma. Isso diz respeito a Cuchulainn, não a mim e à manada Dhianna. Ela era parte do
clã MacCallan agora, e Cuchulainn era mais irmão do que o dela fora por anos.
Engolindo um nó na garganta, a caçadora falou: - Cuchulainn era um libertino. Elphame geralmente o chamava de incorrigível, e estava certa. Era um tremendo paquerador.
Não se percebe agora, mas o sorriso parecia natural ao seu rosto, e ele ria com uma sinceridade que eu costumava achar inteiramente marota e ridiculamente encantadora
- o que negarei ter dito, se repetir isso para ele.
O próprio sorriso de Ciara se alargou.
- Prossiga, eu nem pensaria em repetir nada disso. Do que mais se lembra? Apenas fale a primeira coisa que vier à sua mente.
- As mulheres o amavam, e ele as amava - revelou Brighid, que bufou, recordou o quanto o guerreiro estava confuso quando tentou se aproximar de Brenna pela primeira
vez. - Exceto Brenna. Ela o rejeitou abertamente quando tentou cortejá-la. - Brighid deu uma risada. - Lembro de quantas besteiras fez tentando ganhar a afeição
da curandeira. Foi notavelmente inepto. De fato, uma vez eu o comparei a um touro no cio, demarcando o território ao redor da moça com toda a delicadeza de uma fera
ruidosa.
A explosão da gargalhada de Ciara fez a cabeça do guerreiro se virar brevemente na direção delas. As duas mulheres ficaram inocentemente silenciosas até ele reassumir
sua pose de estátua. Mesmo assim, Brighid teve o cuidado de manter a voz baixa quando continuou: - Ele não sabia como galantear uma mulher que lhe dizia não, não
e não. Cuchulainn era um homem que poucas mulheres rejeitariam.
Ciara piscou surpresa.
- Brenna o rejeitou?
- Ela não confiava nos homens. Só estava acostumada a ser rejeitada e banida.
- Por quê?
- Brenna ficou terrivelmente desfigurada num acidente na infância. Pensei que soubesse. Curran e Nevin não contaram histórias sobre ela?
- Não, não diretamente. É óbvio o quanto é doloroso para o guerreiro ouvir ou falar de seu amor perdido. Minha ideia era a de uma curandeira bonita e talentosa.
- Ela era - mas também era muito mais.
- Aparentemente há muito mais em Cuchulainn também, se o libertino que costumava ser possuía a capacidade de ver além do físico para encontrar o amor que estava
escondido.
As palavras de Ciara soaram como um grande enaltecimento, mas sua expressão era tensa e séria.
- Isso é uma coisa ruim, xamã?
- Complica as coisas.
- Explique - pediu Brighid.
Ciara afastou uma mecha de cabelo escuro do rosto e demorou-se para responder.
- O amor vem de várias formas. Por exemplo, o amor que sentimos por nossa família - mesmo dentro desta dinâmica, o amor difere. Tem irmãos? - perguntou ela de repente.
Pega desarmada pela pergunta, a voz de Brighid estava tensa ao expelir um sucinto "Sim" através de lábios tensos.
- Então compreende a diferença entre o amor que se sente por um irmão ou uma irmã e o amor que tem pelos pais.
A caçadora assentiu depressa, esperando que Ciara não prosseguisse naquela linha de questionamento. Não precisava ter se preocupado, a voz da xamã assumira um caráter
quase melodioso quando se pôs a explicar as nuanças do amor: - Assim como dentro da nossa família, o amor entre um homem e uma mulher pode assumir muitas formas
também. Alguns amam apaixonada e impetuosamente, e como um fogo que arde quente demais, o amor se consome rápido e geralmente deixa borralho frio para trás. Outros
não sentem a paixão intensa, o amor é como brasa fumegando ano após ano, mantendo suas vidas aquecidas e satisfatórias. Existe amor que é quase exclusivamente da
mente, do coração ou do corpo. É raro, mas às vezes todos os três se misturam.
- Todos os três se misturavam com Cuchulainn e Brenna.
- E é mais difícil se recuperar desse.
- Tentará ajudá-lo mesmo assim? - perguntou Brighid.
- Claro, mas...
- Mas o quê? - indagou Brighid.
- Mas não sou o que ele precisa. Cuchulainn se retraiu dentro de si mesmo. Precisa do auxílio de um xamã que se importe com ele num nível muito mais pessoal. - Ela
suspirou de leve. - Respeito o guerreiro, e talvez no devido tempo consiga me tornar íntima para alcançar suas emoções mais profundas, mas creio que a necessidade
de Cuchulainn é muito imediata.
- O pai dele é o Sumo Xamã de toda Partholon. Não poderia ajudar Cuchulainn?
Ciara pressionou os lábios e meneou a cabeça.
- Por que não? Midhir é um grande xamã.
- Lembra dos diferentes tipos de amor?
Brighid assentiu com impaciência.
- Para se curar da perda de Brenna, Cuchulainn precisa de uma intimidade com o xamã que é diferente daquela da ligação entre pai e filho. Ele precisa de alguém que
possa alcançar mais do amante e menos do filho - disse Ciara.
Brighid franziu a testa.
- Isso não faz sentido nenhum. O único xamã em quem Cuchulainn poderia chegar a confiar é o pai. Não existe mais ninguém - exceto você.
- Não existe? - Ciara sorriu de maneira enigmática. - Posso sentir a mão de nossa Deusa sobre o guerreiro. Não acredito que Epona vá deixá-lo privado de auxílio,
mas os desígnios da Deusa são sempre misteriosos e difíceis de serem totalmente compreendidos por nós. Até outro xamã surgir, tentarei aliviar o sofrimento do guerreiro.
As palavras de Ciara fizeram os pelos na nuca de Brighid se arrepiarem, e quando falou, a voz soou mais áspera do que pretendia: - Esperar por um "talvez" ou "e
se" é ridículo. Faça o que puder para ajudar Cuchulainn. Mas eu não contaria nada a ele.
Ciara curvou a cabeça numa gentil concordância.
Nove
O ACAMPAMENTO DAQUELA primeira noite se organizou com surpreendente eficiência conforme as crianças trabalhavam rápida e habilmente em grupinhos supervisionados
pelos adultos e os adolescentes mais velhos. As traves das padiolas foram logo transformadas nos esqueletos das tendas, e depois cobertos com peles de cabra esticadas.
Os abrigos improvisados se ergueram num círculo fechado ao redor de uma área plana e rochosa que Ciara escolhera com cuidado. A aba de cada tenda foi deixada aberta.
- Compreendo a formação de círculo - murmurou Brighid com Cuchulainn, que veio para junto da centaura, que estava esfolando a meia dúzia de lebres que tinha capturado
enquanto as tendas eram erguidas. - Mas por que deixar a frente das tendas aberta? Parece que estão convidando esse frio maldito para congelá-los durante o sono.
- Observe - resmungou Cuchulainn, pegando um coelho e desembainhando a faca.
Antes que a caçadora pudesse dizer a Cuchulainn como era irritante a companhia introvertida na qual se tornara, a voz de Ciara soou com clareza no dia que terminava:
- É hora! Tragam o combustível.
Com gritinhos de alegria e mais tagarelice que Brighid acreditava ser saudável para os nervos de alguém, as crianças aladas flutuaram até as padiolas. Enchendo os
braços com o que pareciam grandes torrões de terra cinza dura, rodopiaram ao redor da xamã, que apontou para uma área no meio da rocha achatada. Exultantes, as crianças
largaram a carga numa pilha crescente. Quando o monte estava quase à sua cintura, Ciara gesticulou para as crianças pararem. Elas ficaram num silêncio satisfeito
enquanto formavam junto com os neofomorianos adultos um círculo frouxo ao redor da xamã.
A caçadora enviou a Cuchulainn um olhar questionador, mas ele só repetiu a ordem de "observe".
Brighid fez cara feia, mas os olhos foram atraídos para Ciara, que sorriu para seu povo antes de se virar para o oeste. Seguindo seu exemplo, o círculo farfalhou
e virou-se também para o sol poente. As mãos de Brighid, que estavam esfolando com eficiência uma lebre atrás da outra, pararam quando Ciara falou: Gentil Epona,
Deusa abençoada, outro dia tu encerras,
transformando o calor do céu na noite escura.
Voltados na direção do fogo, enviamos nossas rezas,
abriga-nos da escuridão que agora se afigura.
As asas de Ciara se abriram e o ar ao redor dela cintilou com a presença tangível de Epona. Ela ergueu os braços, e a voz ficou ampliada e repleta de felicidade,
confiança e do poder do toque de uma deusa: Chamas dançantes da luz de Epona,
força fulgurante de fogo purificador
que em necessidade não nos abandona,
auxiliem nesse momento de clamor.
Tua visão é um resplandecer,
dom da chama, ó ardente flor,
preencha-me com o divino poder,
toca-me com todo o teu fulgor.
Ciara estendeu as mãos abertas na direção do monte. Instantaneamente a pilha se incendiou. Chamas ardiam alegremente, lançando bruxuleantes sombras aladas sobre
as tendas conforme os adultos chamavam suas crianças e o círculo se dispersava. O alarido de panelas anunciava que logo estariam prontos para a presa da caçadora,
mas Brighid não conseguia arrancar os olhos da xamã.
Ciara permaneceu onde estava ao fim da invocação, parada tão perto do fogo que Brighid pensou que sua roupa provavelmente se incendiaria. A cabeça estava abaixada
e os olhos estavam fechados, mas Brighid podia ver que os lábios se moviam silenciosamente. Por um longo momento, Ciara ficou parada ali feito estátua em sua concentração.
Depois, devagar, ergueu a cabeça e abriu os olhos, encontrando o olhar curioso da caçadora com o seu, límpido e sincero. Brighid foi a primeira a desviar o olhar.
- Sabe, poderia me falar mais do que "observe" ou "você verá" quando faço perguntas sobre... - Brighid apontou vagamente a fogueira e o acampamento.
- Acho que deve ter a mesma experiência que eu tive - disse Cuchulainn.
- Que é?
- Surpresa. Não. - Cuchulainn ergueu uma das mãos sujas com sangue de coelho, interrompendo o bufo de aborrecimento da caçadora. - Não faço isso para ser irritante.
Quero sua reação honesta a eles - a isso. - Ele lhe buscou o olhar. - Confio nos seus instintos, caçadora, mais do que confio nos meus.
Brighid abriu e depois fechou a boca. Era um bocado difícil conversar com Cuchulainn. Num momento estava distante e evasivo, no momento seguinte era tranquilamente
honesto e quase o Cuchulainn que ela costumava conhecer. Era como se ele tivesse se tornado um retrato incompleto de si mesmo. Suas reações estavam desligadas e
ele sabia disso. A alma do guerreiro está despedaçada.
- Talvez seus instintos ainda sejam confiáveis. Talvez só precise chamá-los de volta e começar a acreditar em si mesmo novamente - disse Brighid a duras penas. Sentia-se
fora de seu elemento, tentando aconselhar o guerreiro. Preferia levá-lo para uma longa caçada e fazê-lo se cansar até a exaustão na perseguição de uma presa esquiva
a aconselhá-lo nas questões da alma. E pela reação silenciosa às suas palavras e a falta de expressão no rosto quando voltou a esfolar a lebre, Cuchulainn provavelmente
preferia que ela lhe golpeasse na cabeça para acabar logo com aquilo. Mas ela sabia que o que havia de errado com Cuchulainn não poderia ser consertado pelo mundo
físico tanto quanto sabia que se ele não encontrasse uma forma de cura, continuaria a decair. Aquilo magoaria Elphame, mas Brighid não queria que sua chefe e amiga
conhecesse a dor de perder um membro da família. Brighid conhecia muito bem a dor desse tipo de perda.
Relanceou o guerreiro. O rosto estava ajustado no que estava se tornando sua expressão típica de rígido retraimento. Talvez fosse a conversa que teve com Ciara,
mas o contraste entre o Cuchulainn de agora e o Cuchulainn de duas luas atrás de repente deixou Brighid deprimida. Lembrou-se claramente de como ele costumava rir
e gracejar com facilidade, como sua própria presença podia avivar uma reunião. Mesmo quando o conheceu e o considerou tremendamente arrogante, tinha invejado a aura
dinâmica que ele irradiava.
- Pare de me olhar assim. - A voz de Cuchulainn era tão inexpressiva quanto o rosto.
- Cuchulainn, odeio que você...
- Ciara disse que estamos prontos para os coelhos agora! - Como um redemoinho alado, Kyna veio rodopiando até eles, Liam em seu rastro.
- Posso ir com você caçar na próxima vez? Eu posso ajudar. Posso mesmo. De verdade. - Os olhos de Liam piscavam entusiasmados enquanto ele saltitava em um pé e em
outro.
Brighid disse à testa que não se franzisse. Era exatamente por isso que uma caçadora raramente tinha filhos. Eles interrompiam quando não deviam e faziam barulho
demais.
- Para se caçar lebres, deve-se ficar muito quieto, Liam - disse com severidade.
- Ah, eu fico! Consigo ficar! Eu fico quieto. Olhe só, eu fico quieto - assegurou-lhe, ainda dançando em um pé ou outro.
- Você nunca fica quieto, Liam - disse Kyna com desgosto.
- Fico sim!
- Não fica não!
- Fiquei quieto durante a bênção da noite - disse Liam. As asas farfalharam quando ele cerrou os punhos e ergueu o queixo em desafio.
- Todos ficam quietos durante a bênção da noite. - Kyna revirou os olhos.
Enquanto as duas crianças brigavam, Brighid olhou impotente para Cuchulainn. O guerreiro encontrou brevemente seu olhar e Brighid pensou por um momento que uma sombra
de bom humor tinha cintilado nos olhos dele.
- Kyna, deixei o capão amarrado com as cabras - disse ele casualmente.
Parecendo um filhote de passarinho, a menina imediatamente voltou sua atenção para Cuchulainn.
- Mas ele não gosta muito das cabras. São pequenas demais e o incomodam.
Brighid sabia exatamente como o capão de Cuchulainn se sentia.
- Melhor eu ir vê-lo - disse Kyna com determinação.
Cuchulainn ergueu um ombro.
- Como quiser.
- Liam, você leva os coelhos para Ciara - ordenou Kyna, atirando o cesto que estava carregando para o garoto antes de sair correndo. Então gritou por cima do ombro:
- Provavelmente é o mais perto que vai chegar de apanhar um coelho!
Liam fez cara feia.
- Consigo ficar quieto.
- Para apanhar coelhos é preciso ser rápido também - disse Cuchulainn. - Não é verdade, caçadora?
- Definitivamente - disse Brighid.
- Então olhe só! Olhe para mim. Consigo ser rápido!
Enquanto apanhava os coelhos esfolados e planava rapidamente para longe deles, o cesto apertado no peito estreito, Brighid teve que admitir que o garoto realmente
se movia com velocidade impressionante. Nunca ficaria quieto, mas era realmente rápido.
- Pelo sopro da Deusa, essas crianças são incômodas! Como não deixaram você louco? - perguntou Brighid, olhando o garoto.
- Você aprende a ignorá-los. Depois de um tempo, é como se nem estivessem aqui.
O olhar de Brighid voltou para Cuchulainn. Ele estava agachado limpando a lâmina num montinho de musgo gelado. A voz estava novamente morta e distante. Ele se levantou
e embainhou a lâmina. Depois, sem outra palavra, caminhou de volta para o acampamento.
Quando Brighid se acomodou confortavelmente perto da fogueira que ardia brilhante e aceitou uma tigela do cozido espesso de um jovem entusiasmado, pensou que mesmo
que Partholon fosse próspera e vicejante, havia muitas coisas que os partholonianos poderiam aprender com os neofomorianos - especialmente sobre como viajar com
conforto. O povo alado possuía pouco, sua terra era desolada e hostil, mas ela raramente experimentara um acampamento tão acolhedor e harmonioso.
O vento frio e incessante fora bem bloqueado pela configuração vigorosa das tendas de pele de cabra, que se ajustavam compactas num círculo aconchegante ao redor
do fogo ardente de Ciara. De vez em quando alguém alimentava o fogo com outro pedaço do que uma das mulheres aladas disse ser uma mistura de líquen seco e esterco
de cabra. O combustível explicava o vago aroma que pairava com a fumaça, mas era muito menos ofensivo do que ela teria imaginado - e cumpria seu trabalho. O fogo
ardia quente e firme.
O jantar fora preparado com a mesma rapidez e eficiência com que as tendas, e num espaço de tempo incrivelmente curto todos estavam sentados perto da fogueira ou
dentro do calor das tendas abertas, compartilhando um saboroso cozido. Brighid mastigava pensativa um pedaço de coelho e olhou ao redor do acampamento incomumente
calmo. As crianças pareciam cansadas, percebeu a caçadora com sobressalto. Não fazia muito tempo que estavam esvoaçando por ali, cuidando das cabras e tagarelando
sem parar enquanto espalhavam tapetes de pele de cabra dentro das tendas. Agora era como se alguém tivesse desligado o entusiasmo infantil.
Sem ser óbvia, Brighid dirigiu os olhos para a esquerda, onde Liam insistira em sentar porque era, no fim das contas, seu aprendiz. Quando ele tinha parado de tagarelar?,
indagou-se ela. Quando todos pararam de tagarelar? Talvez Cuchulainn não tivesse ido tão longe quanto ela pensava - parecia que ela também tinha a habilidade de
ignorar o falatório incessante.
- Pegue... - Cuchulainn lhe jogou um odre ao entrar no círculo, sentando de pernas cruzadas à sua direita. - Você trouxe. Deve beber um pouco. - Ele assentiu em
agradecimento ao garoto que lhe entregou uma tigela fumegante.
- É estranho quando não estão falando constantemente - disse Brighid, baixando a voz para que não fosse carregada acima do crepitar e estalar da fogueira.
- Fizeram um longo caminho hoje, duas vezes mais longe do que eu esperava. Qualquer outra criança teria parado horas atrás. - O olhar de Cuchulainn viajou ao redor
do círculo silencioso e ele quase sorriu. - Suspeito que finalmente estão exaustos.
- Graças à Deusa - murmurou Brighid, dando um longo gole no excelente vinho tinto.
- Suspeito que estarão prontos para partir novamente ao raiar do dia.
- Suspeito que tenha razão - disse Brighid. O guerreiro parecia mais relaxado do que antes, ou talvez só estivesse cansado também. Será que manter todos a distância
tinha cobrado seu preço sobre Cuchulainn, já que tinha passado a maior parte da vida atraindo pessoas para si?
- Talvez tenhamos sorte e pulem a contação de histórias - disse Cuchulainn entre colheradas de cozido.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Fala das infames histórias sobre certa caçadora?
Cuchulainn resmungou e ergueu o queixo na direção de Liam, que tinha terminado de comer e estava bocejando sonolento.
- Não pode dizer que não entende o quanto podem ser persuasivos quando querem algo.
Brighid bufou, mas teve o cuidado de não olhar para o menino, temendo que qualquer demonstração de atenção o fizesse começar a tagarelar novamente sobre o quanto
poderia ficar quieto.
- Bem - murmurou ela. - Posso admitir saber um pouco do que está dizendo... - principiou ela, mas um farfalhar do lado oposto do círculo lhe chamou a atenção.
Brighid não teve tempo de falar com muitos dos híbridos adultos. Todos andavam muito envolvidos com a montagem do acampamento, e os adultos ficavam particularmente
ocupados com seus rebanhos de crianças. Fora uma ou duas palavras passageiras, tinha passado o tempo na companhia de Cuchulainn e Ciara. E, acrescentou silenciosamente,
os entusiasmadíssimos Liam e Kyna. Mas reconheceu facilmente os dois adultos, que agora estavam de pé, como sendo os gêmeos Curran e Nevin.
- Falei cedo demais - disse Cuchulainn com azedume. - Quando aqueles dois se levantam, significa que teremos histórias.
Brighid sentiu que ele se preparava para partir; então, antes que pudesse impedir-se, estendeu a mão e a colocou sobre seu ombro.
- Fique - pediu, surpresa com o estranho som rouco da voz. Era como se o impulso para manter Cuchulainn ali tivesse vindo bem do fundo e a voz refletisse aquele
poço de emoções.
Cuchulainn virou a cabeça e buscou seu olhar.
- Se sair, uma das crianças pode vir tomar seu lugar. Então estarei completamente cercada - sussurrou, subitamente sentindo-se exposta e vulnerável demais.
- Arrã - respondeu ele asperamente, mas se reacomodou ao lado dela.
- Nossa jornada enfim começou - disse Nevin.
- Esperamos muito por esse dia. - Curran pegou a meada das palavras do irmão. - Nossas mães no reino espiritual exultam.
- Elas sorriem porque seu grande desejo está se tornando real - disse Nevin. - Sentem a presença delas, crianças? - O homem alado sorriu para os rostinhos voltados
em sua direção, e as crianças assentiram sonolentas.
- O amor delas está no vento - disse Curran. - Ele eleva nossas asas.
- E nossos corações - completou Nevin. - Enquanto o vento soprar, nunca nos esqueceremos do amor delas, ou do sacrifício.
Brighid não conseguiu deixar de ficar intrigada com a performance dos gêmeos. Eram verdadeiros bardos. As vozes não eram apenas poderosas, mas possuíam aquela indescritível
nota de magia que separava claramente um bardo do resto da população. Achava ser capaz de escutar suas vozes ricas e cheias de emoção para sempre, e ficou decepcionada
porque os gêmeos tinham passado todos aqueles dias no Castelo MacCallan sem que ninguém no clã soubesse daquele dom. Bufou de leve consigo mesma. Isso certamente
mudaria quando retornassem. Bardos sempre eram uma adição bem-vinda a qualquer clã.
- Esta noite devemos descansar bastante para o próximo dia - disse Curran.
- Então nossa história será bem curta.
- Mas muito apreciada. - O sorriso de Curran faiscou brilhantemente através da fogueira para surpresa da caçadora. - Com sua permissão, Brighid. Contaremos a história
de como rastreou a pequena Fand e a salvou da morte certa.
As crianças, cansadas, se agitaram, e Brighid ouviu murmúrios deliciados dos pequenos sentados perto da filhote de lobo esparramada perto da fogueira. Ao seu lado,
Liam voltou à vida e sacudiu-se contente, encarando a caçadora com olhos grandes e adoradores.
- Que bom que fiquei - grunhiu Cuchulainn baixinho. - Gosto dessa também.
- Agora que fomos abençoados com a presença da caçadora, talvez Brighid tenha a gentileza de nos contar sua própria versão do salvamento de Fand.
A cara feia de Brighid imediatamente trocou Cuchulainn por Ciara. O que ela estava pensando? Brighid não era um bardo, e nem queria contar uma história ridícula
sobre si mesma para um bando de crianças já incomodamente encantadas. De qualquer forma, não tinha realmente salvado a maldita filhote, só tinha levado Cuchulainn
à toca. Foi Brenna quem garantiu que... Os olhos da caçadora encontraram os da xamã, então Brighid sentiu um profundo choque de entendimento. Ciara olhava para ela
com uma fixa expressão serena e encorajadora.
- Pode nos contar a verdadeira história, Brighid? - perguntou a xamã.
Dez
- NÃO SOU UM bardo, mas se querem a história verdadeira, contarei.
Estava contente porque a voz não traiu o tumulto em seu interior. Seu estômago estava apertado e o coração ribombava como se ela tivesse corrido o dia inteiro atrás
de uma presa ilusória. Podia sentir os olhos de Cuchulainn sobre si, então se permitiu uma rápida olhada no guerreiro. As sobrancelhas dele estavam erguidas e a
surpresa curvava um lado dos lábios. Brighid desviou o olhar com afobação. Ele provavelmente pensava que Brighid se gabaria do quanto fora difícil rastrear as pegadas
de dois dias de idade do filhote da mãe loba morta. A caçadora respirou fundo e esperou ter realmente os instintos de uma xamã. No momento estava seguindo esses
instintos, e era como acompanhar uma trilha fria através de um bosque escuro durante uma tempestade.
- Bom, parece que já conhecem a história de como Cuchulainn descobriu o corpo da mãe loba morta quando nós estávamos caçando, e que Cuchulainn me desafiou a rastrear
os vestígios da loba de volta à toca para ver se algum dos filhotes poderia ser salvo. - Brighid calou-se e sua atenta audiência assentiu entusiasmada, fazendo ruidozinhos
de concordância. - Mas o que não sabem é por que Cuchulainn queria encontrar o filhote, ou quem realmente salvou Fand. - Brighid ignorou o guerreiro ao seu lado,
mesmo que pudesse sentir que o corpo curvado subitamente se tensionava. - Tudo porque Cuchulainn queria a atenção de uma moça - uma mulher que agia como se não estivesse
nem um pouquinho interessada nele. - Brighid sorriu e umas poucas crianças deram risadinhas.
"Brenna era a curandeira do clã MacCallan. Também era minha amiga - acrescentou Brighid numa voz com a qual teve o cuidado de manter livre de tristeza ou pesar.
Contaria a história, mas não como se fosse um lamento, chorando por Brenna. Contaria como um jubiloso tributo à curandeira.
A caçadora endireitou os ombros e atirou para trás os cabelos.
- Falei que Brenna era esperta?
Cabecinhas se sacudiram de um lado para o outro.
- Bom, ela era esperta o bastante para dizer não a certo guerreiro arrogante que pensava que podia estalar os dedos e ter qualquer mulher que desejasse. - Brighid
apontou a cabeça para Cuchulainn, tendo o cuidado de não fitá-lo. - Então, quando Cuchulainn tirou Fand da toca - e deixe-me avisar, a filhote estava num estado
lastimável -, pensou que a maneira perfeita de convencer a curandeira a passar algum tempo com ele seria levar até ela um animalzinho adorável que precisava de tratamento.
- A caçadora bufou e sacudiu a cabeça com indignação exagerada. - Não que Fand fosse muito adorável. Precisavam vê-la na época. Era patética. Pequenininha, esquelética
e coberta de esterco de lobo.
Brighid não reagiu às ondas de tensão que irradiavam de Cuchulainn. Em vez disso, mirou no olhar brilhante das crianças sentadas perto de Fand. Ela revirou os olhos
e enrugou o nariz, fazendo as crianças rirem.
- Em vez de fazer a espertíssima Brenna desmaiar de desejo, a aparição da filhotinha suja e semimorta só a aborreceu, e acho que também a fez questionar o bom-senso
de Cuchulainn. - Mais risadas flutuaram com a fumaça cor de névoa da fogueira. - Mas Brenna era tão gentil quanto esperta e bonita, e ficou com pena da lobinha.
Mostrou a Cuchulainn como alimentar Fand e ficou de olho nos dois, persuadindo o guerreiro a ser um perfeito papai lobo. Lembro de como ela descreveu a aparência
dos dois naquela primeira manhã depois de Cuchulainn passar a noite inteira tentando manter a filhote viva. Brenna riu muito, dizendo que quase teve que tapar o
nariz por causa do cheiro. - Brighid fez nova pausa, deixando as risadas suaves e sonolentas das crianças cessarem. - Mas acho que o plano de Cuchulainn funcionou,
pois Brenna não demorou a aceitar seu pedido, e eles ficaram oficialmente compromissados. E esta é a verdadeira história de como Fand foi salva. Não fui eu, mas
o amor de Cuchulainn por Brenna, e a bondade da curandeira, que salvaram a filhote.
As crianças irromperam em aplausos espontâneos. Brighid respirou fundo e virou-se para encarar Cuchulainn. O guerreiro tinha ficado tão pálido que as manchas escuras
debaixo dos olhos pareciam feridas. Ele a encarava, e parecia que o rosto tinha se congelado num esgar hostil e doloroso.
- Isso foi cruel. - Ele expeliu as palavras entre os dentes. Num movimento fluido, levantou-se e entrou a largas passadas na escuridão.
- Para a cama agora! - A voz de Ciara silenciou os aplausos e as crianças obedientemente começaram a desaparecer no calor das tendas, dando boa-noite umas às outras,
e à caçadora.
Brighid pulou de surpresa quando os bracinhos de Liam a envolveram e apertaram com força inesperada.
- Foi uma história maravilhosa, Brighid! Boa noite! - Ele correu num agitar de asas, mal dando à caçadora tempo de dar boa-noite também.
- Fez a coisa certa.
Brighid ergueu os olhos para a xamã, que pareceu se materializar da orla da fogueira.
- Duvido que Cuchulainn vá concordar com você - disse Brighid.
Ciara prosseguiu como se Brighid não tivesse falado.
- Siga-o. Não o deixe ficar sozinho agora.
- Mas ele...
Os olhos da xamã faiscaram com uma luz cor de chama.
- Ele não está inteiro. Caso se importe com a alma do guerreiro, siga-o.
Flexionando os poderosos músculos equinos, Brighid se levantou e deixou a fogueira. Rumando na direção que achava que Cuchulainn tinha tomado, considerava as palavras
de Ciara. Claro que se importava com a alma de Cuchulainn. Ele tinha sido noivo de sua amiga, e era irmão da sua chefe de clã. Devia se importar com ele, assim como
desejaria ajudar sua alma despedaçada. A centaura se deteve perante a súbita constatação - era isso! O que ela pressentiu naquela primeira noite quando ela e Cuchulainn
discutiram sobre os neofomorianos - a comichão em sua mente. Sabia então que alguma coisa além do pesar estava afetando Cuchulainn. Era sua alma despedaçada, e algo
dentro dela - aquele algo evasivo e indefinível que herdara de sua mãe xamã - tinha reconhecido a perda do guerreiro.
Pela Deusa, não queria nada disso! Não tinha experiência. Tinha rejeitado o caminho de xamã quando deixou a manada Dhianna. Mas as escolhas que fora forçada a fazer
não eram culpa de Cuchulainn, e se houvesse alguma coisa, qualquer coisa, que pudesse fazer para ajudá-lo, seus problemas não deveriam comprometer aquele auxílio.
Mas além de tudo isso Cuchulainn estava em dor, e Brighid nunca fora capaz de ficar assistindo a ninguém sofrer. Gostaria de não ter nascido assim. Isso lhe causara
mais do que um simples probleminha. A centaura bufou, zombando de si mesma. Essa era a mitigação suprema. Sua compaixão a fizera deixar a amada Planície dos Centauros
e a família, e também romper com a tradição.
Fora a escolha certa. Estava seguindo o caminho certo para sua vida. Agora encontraria Cuchulainn, o deixaria saber que não estava sozinho, e depois faria a única
coisa que o treinamento de caçadora a preparara a fazer. Diria a ele que ficaria com a primeira ronda para que ele pudesse ter um pouco do merecido sono. Simples.
Claro. Exatamente como preferia que a vida fosse.
Mas onde estava Cuchulainn? Pela Deusa, estava escuro além do círculo de tendas e da luz amiga da fogueira. Frio e escuro. Brighid estremeceu quando o vento insaciável
lambeu sua pele. Ficaria danada de contente quando voltasse para Partholon e o calor do Castelo MacCallan.
Um som abafado à direita a fez parar imediatamente enquanto ouvia com os sentidos apurados de uma caçadora. O som veio novamente, então ela virou para a direita,
quase tropeçando em Fand, que rosnou baixinho.
- Não me faça chutá-la - disse Brighid à filhote quase crescida. Fand se safou, lançando um olhar na caçadora que era parcialmente contrito e parcialmente um aviso.
Ao menos Brighid sabia que Cuchulainn estava por perto. A filhote nunca ficava longe dele. Claro que a reação quase agressiva também dizia que Cuchulainn devia estar
aborrecido o bastante para induzir a loba a rosnar para uma amiga.
Ela quase não o viu. Se a lua não tivesse lançado sua luz fraca através do véu de nuvens altas no mesmo momento em que Cuchulainn ergueu o rosto marcado por lágrimas,
Brighid teria passado direto por ele. Mas as lágrimas o entregaram. Maldição! Não esperava que ele estivesse chorando! Tinha esperado por raiva - que ele berrasse
com ela e acabasse com aquilo. Compreendia isso. Conseguia lidar com isso. Mas quando ele se voltou em sua direção, Brighid sentiu algo totalmente inesperado acontecer.
Sentiu um espelhamento da dor dele, algo causado não apenas pelos laços que compartilhavam no clã ou mesmo pela amizade. Estava reagindo com a empatia de uma xamã,
e esse conhecimento quase a despedaçou. Brighid queria se afastar, negar o propósito herdado que fluía por suas veias, mas não podia. Seria covardia, e Brighid Dhianna,
a caçadora de MacCallan, não era covarde.
- Cuchulainn - murmurou, estendendo a mão para lhe tocar o ombro.
Ele recuou como se o toque o queimasse.
- Me causar sofrimento deixa você feliz?
- Não.
- Então por quê? - O guerreiro não soava zangado. Soava derrotado.
- Precisa seguir adiante, Cuchulainn. Tem que encontrar uma maneira de viver sem ela. E não conseguirá fazer isso evitando qualquer menção a ela.
- Como sabe disso? - A raiva estava começando a apagar a apatia de sua voz. - Como saberia qualquer coisa sobre isso?
- Você não é o único homem que já perdeu um ente amado. O pesar não é exclusividade sua, Cuchulainn! - Ela considerou rapidamente contar a ele sua própria história.
Mas seu instinto dizia para não se focar nela. Estava decididamente fora de seu elemento, então tudo o que podia fazer era seguir o instinto. - Olhe ao seu redor.
Quantos dos híbridos não perderam amantes, pais ou filhos para o suicídio e a loucura? Como a morte de Brenna pode ser mais trágica que isso? Nas últimas duas luas
você esteve cercado por pessoas que superaram perdas que teriam dizimado qualquer outra raça, porém eles fizeram mais do que sobreviver. Eles ainda encontram alegria
na vida. Você viu por si mesmo. Como isso não tocou você? Talvez Brenna tivesse razão quando o chamou de autocentrado.
Com os reflexos velozes de um guerreiro bem treinado, a adaga de Cuchulainn estava desembainhada e pressionada na garganta da centaura. Mas ela não fugiu dele. Sustentou
seu olhar arregalado e cheio de dor.
- Este não é você, Cuchulainn. O homem que conheço nunca levantaria armas contra um membro de seu clã.
Cuchulainn piscou duas vezes, e depois cambaleou para trás.
- O que estou fazendo? - Com um rosnado, ele arremessou a adaga no chão e esfregou ambas as mãos sobre as coxas como se estivesse tentando erradicar uma mancha.
- Perdi quem sou - disse numa voz destituída de emoção. - Às vezes penso que morri com Brenna.
Um calafrio de alerta estremeceu o corpo da centaura.
- Não está morto, Cuchulainn. Está despedaçado.
Cuchulainn se curvou cansado e recuperou a adaga.
- E as duas coisas não dão no mesmo?
- Não, meu amigo. Uma envolve o corpo, a outra, o espírito. E receio que seu problema está no reino espiritual.
O som de sua risada era sem humor.
- Isso é algo que eu soube durante quase a vida inteira.
- Isso é diferente. - Brighid suspirou, frustrada. - Maldição, estou fazendo um péssimo trabalho! - Esfregou a mão pela testa, desejando que a cabeça não estivesse
pulsando em compasso com as batidas do coração. - Acho que está com a alma despedaçada, Cuchulainn. É por isso que não se sente como você mesmo e não é capaz de
se curar da morte de Brenna.
Cuchulainn estreitou os olhos.
- Isso é mais daquela bobagem de afinidade xamãnica que você diz ter herdado da sua mãe?
- Não! Sim... Não sei! - Ela esfregou a testa novamente. - Pela Deusa, você faz minha cabeça doer, Cuchulainn. A verdade é que sei tanto sobre assuntos xamãnicos
quanto você! Mas confio nos meus instintos. Como caçadora, nunca me falharam. Agora eles me dizem que a morte de Brenna danificou seu espírito, então seu espírito
deve ser curado para que você se recupere.
- E se eu não quiser me recuperar? - disse ele lentamente. - Talvez eu devesse ter morrido com ela, Brighid.
Tudo dentro da centaura ficou paralisado. Sua resposta poderia mudar a vontade de o guerreiro viver ou morrer. Epona, ajude-me a dizer a coisa certa, rogou em silêncio.
E, como uma vela reluzindo num cômodo sem uso, Brighid de repente soube o que dizer: - Talvez devesse estar morto - talvez não. Não sei, mas acho que sei como você
pode decidir com certeza. - Brighid teve o cuidado de soar calma e prática, como se discutisse se deveriam caçar um veado ou um javali.
- Como? - A voz dele estava abalada.
- Bom, é bem simples. Você não tem sido você mesmo. Então, como admitiu, não confia no próprio julgamento. Mas se consertar sua alma despedaçada, será capaz de confiar
nos próprios instintos novamente. Então se escolher a morte, saberá que a escolha é válida.
- Você faz parecer fácil, mas não faço ideia de como consertar algo que eu nem sabia que estava quebrado.
- Nem eu. Só sei o que observei da minha mãe, e isso foi há muitos anos. - Ela não precisava do instinto de herança xamã para saber que era melhor não mencionar
que ela e Ciara tinham discutido o estado do espírito dele naquele mesmo dia. - Mas me lembro que ela ajudava aqueles cujas almas estavam despedaçadas a ficarem
inteiros novamente.
- Não quero nenhum xamã bisbilhotando meu espírito, despedaçado ou não.
- E que tal eu?
- Você?
Brighid deu de ombros.
- Como você disse, tenho essa "bobagem de afinidade xamãnica" que herdei da minha mãe. Mas decididamente não sou xamã. Então o quanto eu realmente poderia bisbilhotar?
Um ruído de risada verdadeira escapou de Cuchulainn, que por um instante soou como o guerreiro jovem e libertino que ela uma vez conheceu.
- A pergunta não deveria ser quanto conserto conseguiria realmente fazer?
- Acho que a pergunta deve ser: o quanto confia em mim? - retrucou Brighid.
- Você se provou confiável muitas vezes, caçadora. Se eu a fiz acreditar o contrário, é por culpa minha, não sua.
- Então confia em mim para tentar consertar sua alma?
O guerreiro hesitou. O rosto não estava mais destituído de expressão, e Brighid podia enxergar claramente as emoções que guerreavam dentro dele. Por fim, Cuchulainn
buscou-lhe o olhar.
- Sim.
Brighid não achava que ouvir qualquer outra palavra já a tivesse deixado com tanta vontade de correr na direção oposta. Em vez disso, inclinou a cabeça num rápido
aceno de confirmação.
- O que eu faço agora? - perguntou Cuchulainn, com olhar atravessado.
- Me prometa que não fará nada para se machucar até seu espírito estar inteiro novamente.
- E se você não puder consertá-la?
Brighid aspirou o ar com tensão.
- Se eu não puder consertá-lo, então sua promessa não será válida. Estaria livre para fazer o que desejar.
- Então tem minha palavra.
Cuchulainn estendeu o braço e Brighid agarrou seu antebraço à maneira de os guerreiros fazerem um juramento. O aperto foi forte e Cuchulainn parecia bem vivo. Esperava
desesperadamente que seus instintos não a tivessem levando a firmar um pacto de suicídio com o irmão de sua melhor amiga.
- Para onde vamos agora? - perguntou Cuchulainn.
- Vamos voltar para o acampamento. Fico com a primeira ronda junto à fogueira. Vá dormir um pouco. Acordo você quando a lua estiver no alto do céu.
- E o que isso tem a ver com consertar minha alma despedaçada?
- Nadinha - murmurou ela. - Mas me dará tempo para pensar na confusão na qual nos meti.
Enquanto andavam lado a lado até o acampamento, Brighid ouviu Cuchulainn dando risadinhas. Podia muito bem estar ajudando no suicídio dele, mas ao menos o estava
divertindo.
Sua família tinha razão quanto a uma coisa. Os humanos eram mesmo criaturas estranhas.
Onze
BRIGHID ALIMENTOU O fogo com o combustível de musgo e estrume de cabra e resmungou uma aprovação silenciosa ao calor que se irradiou da chama. A noite estava fria
e o vento era brutal, mas dentro do círculo apertado de tendas havia calor, luz e um bocado de conforto. A caçadora imaginava silenciosamente se a força do fogo
se devia à afinidade de Ciara com os espíritos das chamas ou à mistura certa de esterco de cabra.
- Um pouco dos dois - disse Ciara, aproximando-se da caçadora.
- Está praticando leitura da mente em mim?
A mulher alada sorriu.
- Não, claro que não, mas sempre fui boa em ler expressões. Seu rosto não esconde a pergunta em sua mente. - Ela apontou para a pilha arrumada de combustível. -
Queima bem e dura bastante. Mas a verdade é que minha presença intensifica seus atributos naturais. Se eu não estivesse no acampamento, ainda seria bom combustível.
- Você seria boa companhia numa caçada de inverno - disse Brighid.
A risada de Ciara fez as chamas saltarem e crepitarem.
- Fazer fogo seria a única maneira de ser útil numa caçada. Sou tremendamente inepta para rastrear, e não suporto matar qualquer vida. Nem gosto de colher grãos
ou arrancar cebolas silvestres da terra. Descobriria que sou uma pobre companheira de caçada.
Brighid bufou:
- É como me sinto sobre tentar ser uma xamã. Inepta é uma maneira excelente de me descrever. Me sinto um peixe tentando se aninhar numa árvore.
Ciara ficou com expressão triste e suspirou profundamente.
- Se ele não ouvir você, então está mais perdido do que acreditei.
Brighid relanceou com intensidade a tenda na qual Cuchulainn tinha desaparecido recentemente.
- Venha comigo - disse ela, afastando-se da tenda do guerreiro. Mesmo assim, baixou a voz: - Ele me ouviu.
Os olhos de Ciara se arregalaram com um sorriso. Brighid ergueu a mão.
- Não fique toda satisfeita comigo. Sim, ele concordou em fazer isso para que se torne inteiro novamente e decida com a mente clara se deve se matar.
- Quando a alma não estiver mais despedaçada, o guerreiro não escolherá a morte.
- Como pode ter tanta certeza?
- Sinto aqui. - Ciara alojou a mão esguia sobre o coração. - Quando Cuchulainn estiver inteiro, amará outra vez.
Brighid não queria destruir a ilusão otimista da xamã, então ficou em silêncio. Conhecia Cuchulainn melhor do que Ciara. Podia imaginá-lo curado e retornando à vida
como um dos guerreiros mais respeitados de Partholon, mas amando outra vez? Pensou na maneira como ele olhava para Brenna e a alegria que irradiava dele. A alma
de Cuchulainn poderia se curar. O coração era outro assunto.
- Mas devemos dar um passo por vez. Não deve apressar o processo e exceder a si mesma - disse Ciara.
- E qual é exatamente nosso próximo passo?
- Refere-se ao seu próximo passo.
- Não, falo do nosso. Estou totalmente fora do meu elemento. É como a caçada para você, lembra? Farei isso porque é preciso, mas tem que me guiar a cada passo.
As crianças chamavam a centaura e a xamã conforme as duas caminhavam lentamente ao redor do acampamento circular. Logo descobriram ser impossível conversar sem constantes
interrupções animadas.
- Não deveria verificar o perímetro externo? - perguntou Ciara, sorrindo ironicamente quando mais outra voz sonolenta de criança flutuou na noite.
- Dessa vez você leu mesmo a minha mente - disse Brighid, pensando que o vento e a escuridão seriam menos incômodos que a agitação de setenta crianças.
O vento bateu frio e áspero no rosto de Brighid no momento em que deixaram o abrigo coeso das tendas. A luz da lua ainda estava fraca e distante, só iluminava o
vazio lúgubre dos Ermos.
- Pela Deusa, que lugar miserável! - A caçadora estremeceu e esfregou os braços.
- É verdade que é hostil, mas há certo calor e beleza aqui. - Ciara vasculhou o chão ao redor até encontrar um ramo fino numa estranha cor desbotada que mal atingia
o jarrete de um centauro. Ciara se agachou e o fincou delicadamente no chão duro e rochoso até ficar de pé sozinho, como um broto anêmico. Depois sussurrou algo
que Brighid não conseguia ouvir e assoprou o ramo. Ele reagiu explodindo numa quente chama branca que tremulou loucamente ao vento, mas não demonstrava sinais de
faiscar ou se ofuscar. Ciara se sentou, estendendo as asas para bloquear o pior do vento, e aprisionou um pouco do calor da chama. Acenou para que Brighid se sentasse
perto dela, e a caçadora dobrou os joelhos graciosamente, meneando a cabeça em assombro com a pureza da chama que era quase prateada de tão branca.
- O que é isso? Nunca vi nada queimar nessa cor antes.
- É de um carvalho. Não - disse ela antes que Brighid terminasse de formular a pergunta na mente -, não nasce nos Ermos. O vento traz do sul, e algo nesse nosso
clima um tanto inclemente as muda de verde para branco. - Ela sorriu para o ramo ardente. - Gosto de fingir que os pequenos galhos secos são presentes de Partholon
para nós. Foi através de um deles que o espírito das chamas falou comigo pela primeira vez.
- Um carvalho - a mais venerada das árvores -, usado para divinação, cura e proteção - disse Brighid, ecoando o conhecimento que recebera da mãe quando ainda era
jovem o bastante para acreditar em acompanhar a família e a tradição.
- Exatamente. - A voz soava sonhadora e juvenil enquanto a xamã fitava a luz branca. - Um carvalho verdadeiro e vivo é uma das coisas que mais anseio ver quando
finalmente entrarmos em Partholon.
O idealismo de Ciara fez o estômago de Brighid apertar. O que aconteceria com aquela alegria quando ela se confrontasse com a verdade de Partholon? Ela não compreendia
que só suas asas seriam razão suficiente para que fosse odiada e temida?
- Mas não estamos aqui para conversar sobre árvores e Partholon. - Ciara arrancou o olhar da chama. - Estamos aqui para conversar sobre Cuchulainn e a maneira de
ajudá-lo. Primeiro, antes de passar quaisquer detalhes sobre resgate de almas, gostaria de saber suas ideias. Conte-me - se não tivesse a mim para guiá-la - o que
faria?
- Coisa nenhuma! - bufou Brighid. - Eu nem teria percebido que a alma dele estava despedaçada se não tivesse me contado.
As sobrancelhas de Ciara se ergueram.
- Verdade? Nada dentro de você sussurrou que havia algo de errado com o guerreiro além do pesar natural pela perda da amada?
Brighid franziu o cenho.
- Não sei... talvez... Pressenti mesmo alguma coisa - admitiu com relutância.
- E se eu não estivesse aqui, teria ignorado a intuição que lhe dizia que seu amigo precisava de sua ajuda?
- Não. Provavelmente não. - Brighid agitava as mãos com aflição. - Mas não saberia o que fazer! Assim como não sei o que fazer agora.
- Você deu o primeiro passo. Pare, centre-se e ouça aquela voz interior. Aquela voz do instinto e do espírito que foi soprada à vida por Epona quando você nasceu,
que ainda carrega a magia do toque da Deusa. - Ciara sorriu encorajadora. - O que diz seu instinto, Brighid?
- Meu instinto de caçadora me diz que Cuchulainn precisa de um golpe na cabeça - resmungou Brighid.
- Então não deve pensar com seu instinto de caçadora. Ouça com mais atenção. Encontre a voz da xamã que está em seu sangue.
Brighid olhou com severidade para Ciara.
- Por que insiste tanto que tenho esses instintos?
- Já disse, caçadora. Eu pressinto, e raramente estou enganada. Na verdade, meu palpite é que você usa a xamã dentro de você, e usa com bastante frequência.
- O que quer dizer?
- Seu dom é uma afinidade com os espíritos dos animais, não é? - Sem esperar resposta, Ciara prosseguiu: - Os instintos que a ajudam a ser uma caçadora tão talentosa
são os mesmos que a ajudarão a curar a alma de Cuchulainn. Se é perturbador pensar nesse gesto como algo de uma xamã, não pode simplesmente considerar a missão como
simplesmente outra caçada?
A centaura piscou de surpresa.
- Quer dizer que tudo o que eu preciso fazer é rastrear os pedaços da alma de Cuchulainn?
- Talvez... - Ela exibiu um sorrisinho enigmático para Brighid. - Ouça seu interior com atenção e me conte.
Contendo a vontade de sacolejar a mulher alada, Brighid respirou fundo e se concentrou. A alma de Cuchulainn estava despedaçada. Como poderia consertá-la? Em vez
de erguer as mãos e gritar que não tinha ideia nenhuma, respirou outra vez. Pense, ordenou-se. Transforme isso numa caçada. A presa seria diferente - em vez de um
cervo ou javali, eu estaria rastreando um espírito, o que significa que devo ir onde os espíritos residem - ao Outro Mundo, o Reino dos Espíritos. A caçadora estremeceu
novamente, mas dessa vez não tinha a ver com o frio e o vento.
- Tenho que rastrear a alma partida de Cuchulainn no Reino dos Espíritos - disse Brighid com muito mais confiança do que sentia. - E trazê-la de volta. De alguma
maneira.
- Sim - concordou Ciara -, mas precisa compreender que seu objetivo difere do de uma caçada. Não pode atacar ou capturar. Uma xamã nunca deve coagir, ameaçar ou
forçar qualquer alma a retornar. Ao fazer isso, estaria interferindo no livre-arbítrio do indivíduo.
Brighid suspirou e olhou de soslaio para a chama prateada.
- Então não é apenas questão de encontrar os pedaços quebrados do espírito de Cuchulainn?
- Não. Pense em si mesma como uma guia, ou mais precisamente como uma mediadora entre o guerreiro e sua alma retraída. É por isso que é importante que Cuchulainn
concorde com o resgate. Sem sua aprovação, a alma nunca se tornará inteira.
- Importa que a única razão para Cuchulainn ter concordado com isso seja ter consciência clara quando se matar? - perguntou Brighid sardonicamente.
O sorriso bondoso de Ciara não vacilou.
- Assim que o espírito estiver inteiro novamente, o guerreiro não se matará - e parte de Cuchulainn já sabe disso.
- Espero que esteja certa quanto a isso, xamã.
- Confie em mim - disse Ciara.
Brighid encontrou o olhar firme da xamã. Poucos dias antes nunca teria imaginado confiar em híbrido nenhum, mas com ou sem asas Ciara exalava honestidade e bondade.
Ela era confiável. A caçadora curvou devagarinho a cabeça em respeito à mulher alada, assim como Brighid vira tantos centauros admitirem confiança em sua mãe.
- Escolho confiar em você, xamã - disse Brighid.
- Obrigada - suspirou Ciara, visivelmente tocada pela demonstração de respeito da centaura.
- Então, qual é meu primeiro passo nessa caçada espiritual? - perguntou Brighid.
- Você deu o primeiro passo. Antes que se possa tentar o resgate da alma, deve haver uma ponte de carinho e compreensão entre você e o guerreiro. Você é amiga dele.
Simplesmente reforce o laço que já existe entre vocês.
Brighid bufou:
- Isso é bem difícil de fazer com Cuchulainn tão retraído e irritado quanto um lince.
- Então deve explicar por que ele deve estar aberto a você. É seu trabalho fazer a jornada e se expor aos rigores espirituais do Outro Mundo. A parte dele no processo
é permitir que você acesse o espírito dele - neste mundo, assim como no outro.
- Cuchulainn não vai gostar disso.
- O guerreiro é um homem inteligente. Gostando ou não, compreenderá a necessidade disso.
Brighid queria dizer que também não gostava disso. A ideia de mexer com o espírito de outra pessoa era como uma invasão do pior tipo. E, inesperadamente, pensou
no quanto seria mais fácil se pudesse falar com a mãe, mas foi um desejo que calou quase com a mesma rapidez com que pensou nele.
- Então me fale. Sou amiga dele. E daí?
- Para resgatar a alma dele, precisará fazer uma viagem profunda ao Reino dos Espíritos, e isso é algo que não poderá fazer em segurança enquanto viajamos. Não gostaria
de ver seu corpo e seu espírito deslocados. Sou uma xamã experiente, e mesmo assim relutaria em fazer a jornada ao Outro Mundo antes de estarmos assentados em Partholon.
Em vez disso, o que deve fazer agora é firmar a fundação da sua missão. - Ela se calou e exibiu um rápido sorriso para Brighid. - Ou, como você diria, sua caçada.
Quando retornar ao Castelo MacCallan, e seu corpo estiver em segurança em seu lar, então siga o Caminho do Xamã até o Outro Mundo.
Aliviada por não ter que fazer qualquer viagem espiritual num futuro próximo, Brighid sentiu a tensão nervosa no corpo relaxar.
- Nesse meio-tempo pense em Cuchulainn a cada noite antes de dormir, pois é durante nossas horas de sono que estamos mais próximos do Outro Mundo. Envie pensamentos
positivos sobre ele nos seus sonhos. Comece a imaginá-lo como era antes - inteiro e feliz.
Brighid assentiu:
- Posso fazer isso.
- Também precisará de uma pedra apanhadora de alma. Esta pedra é sempre um presente do reino espiritual. Às vezes vem diretamente de Epona. Às vezes é trazida ao
xamã por seu aliado animal.
- Mas não sou xamã, e não tenho nenhum aliado animal!
Ciara deu de ombros.
- Talvez não precise de uma de presente. Só estou sugerindo que fique aberta à possibilidade.
- Ótimo. Se uma pedra cair do céu na minha cabeça, eu garanto que a apanharei e guardarei.
Ciara riu.
- Tenha cuidado. Geralmente o reino espiritual leva nossos gracejos a sério.
Mais boas notícias, pensou a caçadora.
- E enquanto estiver esperando por pedras, talvez também devesse ficar de olhos abertos para seu aliado animal.
- Meu aliado animal?
- É só uma ideia. Mesmo que não seja xamã, sua afinidade com os espíritos dos animais é forte, então não seria impossível que fosse presenteada com um guia animal
do reino espiritual.
Pensando no corvo tão intimamente aliado à sua mãe, Brighid fechou a cara.
- Caço animais e depois os mato. Isso não é exatamente estar aliada a eles - disse Brighid sucintamente.
- Você não mata animais pelo prazer disso, ou como um gesto arrogante e autogratificante do ego. Faz o que deve para alimentar seu povo. Não respeita cada animal
que mata, não agradece a Epona por sua generosidade a cada caçada?
- Claro - disse a caçadora.
- O reino espiritual sabe disso - talvez melhor do que você, caçadora.
Brighid meneou a cabeça e esfregou os braços novamente quando outro calafrio percorreu seu corpo.
- Isso não faz com que se sinta... não sei como explicar... violada?
- Isso?
- Isso! Isso! O Outro Mundo - o Reino dos Espíritos. Não é como ter alguém, um grupo de pessoas, vigiando constantemente cada movimento seu?
A xamã inclinou a cabeça para o lado, considerando.
- Não é uma violação porque o Reino dos Espíritos raramente avança onde não é bem-vindo.
- Pode não avançar, mas sei por experiência própria que quando os avisos desse reino são ignorados ou rejeitados, geralmente há um preço muito alto a se pagar -
disse Brighid solenemente.
- E a vida não é assim? Se alguém recebe um dom, seja afinidade com parte do reino espiritual, seja talento para a música ou modelar couro, que é ignorado, não existe
sempre um preço a ser pago? - Ciara se calou e pressionou os lábios numa linha apertada antes de continuar, numa voz triste e pesada: - Eu tinha uma irmã. Ela era
a artista mais talentosa de nosso povo, mas quando se tornou adulta, rejeitou sua habilidade. Dizia que havia muita feiura ao redor e dentro dela - recusava-se a
encontrar beleza em qualquer lugar, mesmo nas histórias do passado. No dia em que parou de pintar, acho que sua alma começou a morrer. Por fim, o corpo a acompanhou.
- Lamento por sua perda, Ciara - murmurou Brighid.
- Obrigada, caçadora. Mas não dividi a história de minha irmã com você para evocar sua pena. Simplesmente peço que aprenda com ela.
- Entendi.
Ficaram sentadas em silêncio, cada uma perdida nos próprios pensamentos. A luz prateada entre elas flutuou com o vento, lançando sombras móveis sobre as asas de
Ciara. Sob a luz da chama de sua própria criação, Ciara parecia pertencer mais ao outro mundo que a este. Devia ser ela a fazer essa coisa de resgate de alma, não
Brighid. Ciara deixou de olhar a chama, e Brighid ficou surpresa por ver linhas de preocupação enrugando a testa dela.
- Me permite perguntar uma coisa que nada tem a ver com o guerreiro e a alma dele? - perguntou Ciara de repente.
Brighid assentiu, esperando que a perceptiva mulher alada não fizesse perguntas sobre sua família.
O olhar de Ciara pairou nas silenciosas montanhas além do pequeno círculo de luz.
- Você passou pelas montanhas. Qual foi sua impressão? O que elas a fizeram sentir?
Brighid começava a dizer que elas não a fizeram sentir nada, exceto um frio de gelar os ossos e uma ansiedade pelo fim da jornada. Mas depois lembrou-se da visita
do corvo, e do pressentimento de ser observada.
- Não sei se me fizeram sentir algo em particular, mas admito que estava distraída quando cruzei a passagem. A única coisa que posso dizer com alguma certeza é que
não gosto delas nem mais nem menos do que dessa sua terra desolada. - Mas em vez do suave sorriso de resposta que esperava, a centaura observou o ar de preocupação
de Ciara aumentar. - O que foi, xamã?
- Não sei dizer. Talvez não seja nada além de as montanhas sempre terem representado uma barreira para tudo aquilo que meu povo aprendeu que é bom, e eu sempre ter
sentido desprezo por elas. Mas recentemente comecei a me indagar se não é algo mais... Elas me deixam... - Ela falou com hesitação, procurando pelas palavras certas
enquanto fitava a escuridão. - Cautelosa. Quanto mais próxima - quanto mais me aproximo delas -, mais cautelosa e nervosa me sinto.
- O que o reino espiritual lhe diz a respeito deste pressentimento?
Ciara sacudiu a cabeça, fazendo as asas se mexerem inquietas.
- Nada além do que eu saiba logicamente. Que as Montanhas Trier são um lugar frio e hostil, cheio de morte e sonhos perdidos.
- Morte e sonhos perdidos?
Os olhos de Ciara buscaram os da caçadora novamente.
- Muitos no meu povo escolheram usar as montanhas como lugar para acabar com a vida.
Brighid fez uma careta ao se lembrar da caminhada pelos íngremes sulcos vermelhos e fendas estreitas que pareciam se abrir para outro mundo. As Montanhas Trier definitivamente
forneciam amplas oportunidades de suicídio.
- Almas inquietas... - Brighid não percebeu ter falado em voz alta até Ciara assentir.
- Talvez seja isso o que eu sinto - as almas inquietas e insones do meu povo.
- Mesmo assim, ficarei de olhos atentos ao sul. Como você disse, seus instintos raramente falham - disse Brighid, não gostando da arrepiante sensação de alerta que
as palavras de Ciara evocaram dentro dela.
Por fim o rosto da xamã se clareou ao sorrir.
- É bom que tenha os olhos aguçados de uma caçadora - certamente tem muito ao que se atentar... Uma pedra da alma, um aliado animal e agora um pressentimento invisível
de inquietação que nem mesmo uma xamã consegue identificar.
- Bom, gosto de me manter ocupada.
- É boa coisa que faz. - Ciara riu alto.
- É de crer que sim - murmurou a caçadora, imaginando no que tinha se metido desta vez.
Doze
O DIA AMANHECEU completamente deprimente. O frio do inverno podia estar ausente do vento que soprava constantemente do sudeste, mas a garoa estável que ele carregava
era fria o bastante para que as crianças se enrolassem nas grossas capas impermeáveis que abrigavam seus rostinhos. Desmontaram as tendas com rapidez, fizeram o
desjejum e estavam prontas para seguir Cuchulainn novamente com um entusiasmo que não parecia arrefecer com o clima.
Brighid estava muito agradecida pelos capuzes abafarem o tagarelar e a cantoria. Não estava com humor para crianças felizes. Estava com dor de cabeça. Tinha acordado
com ela e sabia por quê. Era aquele maldito sonho.
Depois que ela e Ciara terminaram de conversar, Brighid patrulhou o perímetro externo do acampamento duas vezes antes de retornar ao calor do círculo de tendas e
à fogueira. Não querendo despertar sequer uma única criança, teve o cuidado de ficar quieta enquanto alimentava o fogo, e depois se acomodou para manter guarda sobre
o acampamento sonolento. Como caçadora, estava acostumada a dividir sua atenção. Podia facilmente seguir o rastro de um cervo ao longo de um riacho sinuoso enquanto
planejava a caçada do próximo dia. Então enquanto alimentava o fogo e circulava ocasionalmente o acampamento, ouvidos atentos a qualquer coisa fora do normal, sua
mente seguia o rastro deixado por Ciara. A xamã dissera que Brighid precisava imaginar Cuchulainn como era antes, inteiro e feliz, e Brighid tinha assegurado a Ciara
que era capaz disso - e era. Na verdade era mais fácil do que pensar no guerreiro como era agora.
A caçadora alimentou o fogo com outro pedaço de combustível e deixou a mente vagar. No dia em que conheceu Cuchulainn, ele estava trabalhando na limpeza dos escombros
centenários do coração do Castelo MacCallan e tinha ficado instantaneamente enfurecido quando Brighid se apresentou como parte da manada Dhianna. Ela bufou baixinho,
lembrando do modo arrogante com que ele questionara seus motivos para se unir ao Castelo MacCallan, e como ela tinha revidado ao questionamento com seu próprio sarcasmo.
Elphame se interpusera como mediadora em várias ocasiões, e ainda assim tinham rosnado e analisado um ao outro como lobos de matilhas inimigas.
Brighid meneou a cabeça e riu baixinho consigo mesma. Custara rastrear Elphame na noite em que desapareceu, e depois carregar sua irmã ferida e o próprio guerreiro
no lombo durante o retorno intempestivo ao castelo para que Cuchulainn começasse a confiar nela. Os lábios carnudos de Brighid se ergueram. Não o teria perdoado
tão fácil pela desconfiança, mas era um bocado difícil não gostar do guerreiro quando apelava para o charme. Ele era, como a irmã geralmente o chamava, um paquerador
incorrigível.
As mulheres eram atraídas por ele como abelhas por flores perfumadas, embora comparar um homem viril com uma flor fosse ridículo. Ele era alto, o porte atlético
de um guerreiro próximo à excelência. A caçadora geralmente não considerava humanos atraentes - eram tipicamente pequenos demais para atrair seu interesse, mesmo
que sua beleza lhe garantisse a atenção dos machos em geral, fossem humanos ou centauros... ou neofomorianos, acrescentou em silêncio, recordando as olhadas apreciativas
que recebera de Curran e Nevin. Mas notara Cuchulainn. Como não poderia? Como a irmã, ele possuía uma aura que era imensurável. Embora diferentemente de Elphame,
o corpo fosse completamente humano, ele se portava com uma confiança e um orgulho que diziam ao mundo: Pode vir! Dou conta de qualquer coisa! E não era uma ostentação
vazia. Cuchulainn era um guerreiro incrivelmente talentoso - mais forte, rápido e talentoso com uma claymore que qualquer guerreiro que já tivesse conhecido, e isso
incluía os centauros.
Mas a confiança dele era abrandada pelo senso de humor. Cuchulainn sabia rir de si mesmo - um atributo que evitava que sua arrogância se tornasse grosseira e insuportável.
A risada dele... O sorriso de Brighid se alargou. Ele costumava rir com uma animação marota!
Foi a lembrança da risada marota que ficou com Brighid enquanto a noite desvanecia - enquanto acordava o sonolento Cuchulainn para que assumisse seu lugar na vigia
do acampamento -, e enquanto se acomodava no confinamento estreito da tenda que compartilhava com o guerreiro e logo caía no sono em meio aos cobertores ainda aquecidos
pelo corpo e perfume de Cuchulainn.
Começou como muitos de seus sonhos começavam - com ela observando o vento soprar as pontas do capim alto de sua amada Planície dos Centauros. Em seu sonho era começo
de primavera e a planície estava colorida com flores silvestres em magnífica floração. O verde-claro das campinas transbordava em explosões de lavanda, água-marinha
e açafrão. No sonho ela sentia a brisa leve acariciar seu rosto, tão diferente do vento ofensivo dos frígidos Ermos. Na Planície dos Centauros o vento confortava,
e trazia consigo as fragrâncias sedutoras da grama verdejante e das flores silvestres. Brighid respirou fundo e deixou seu eu no sonho mergulhar nos perfumes e sons
de seu lar.
No vento ela ouviu a risada. Veio de trás de Brighid, que instintivamente se virou na direção do som. Sorriu, notando que estava sonhando com um dos seus lugares
favoritos, uma área de mata que não ficava longe do assentamento de verão da família. Ela seguiu a risada ao longo do Riacho Sand, que corria musicalmente em meio
à sombreada alameda de carvalhos, freixos e lódãos. Brighid trotou contornando a curva gentil do riacho e parou abruptamente. Sentado na margem, com os pés descalços
na água límpida, estava Cuchulainn. Ele estava rindo.
Brighid devia ter feito algum som não intencional de surpresa, pois ele girou a cintura e olhou para ela por cima do ombro.
- Brighid! Imaginei que a veria por aqui. - Ele acenou para que ela se aproximasse. - Venha. A água está fria, mas é tão límpida e agradável que vale o arrepio.
- Cuchulainn, o que está fazendo aqui? - As palavras tombaram da boca ao se aproximar dele.
Ele ergueu os olhos e riu com animação.
- Não faço ideia! - Depois se pôs de pé e floreou uma reverência cavalheiresca na direção dela, exibindo aquele velho sorriso libertino. - Vem se sentar ao meu lado,
formosa caçadora? - perguntou, empregando o sotaque carregado do oeste de Partholon.
Brighid tentou esconder o próprio sorriso com um bufo.
- Se parar de agir como se tivesse esquecido que sou metade equina.
- Será que um homem não pode demonstrar simples apreciação pela beleza feminina, mesmo que ela seja parte cavalo?
Brighid se obrigou a encará-lo com zombeteira severidade.
- Centauros não são cavalos.
- Aceito a correção, minha bela caçadora!
- Ora, sente-se logo. Pela Deusa, tinha me esquecido do quanto você pode ser chato!
Cuchulainn deu uma risadinha enquanto se estatelava, reclinado sobre os cotovelos e prendendo um longo pedaço de capim na boca. Cautelosa, Brighid se acomodou ao
lado dele.
- Relaxe, não vou mordê-la. - Ele sorriu, maroto. - Provavelmente não a beijarei também, embora esteja considerando a ideia.
- Cuchulainn!
- Você parece exatamente como Elphame quando fala assim - disse ele. - O que não é necessariamente um cumprimento. Sabe como minha irmã fica irritável.
Ela meneou a cabeça.
- Comporte-se. É o meu sonho.
- Estamos em seu sonho, hein? Bom, isso explica o que estou fazendo aqui. Devia estar pensando em mim antes de dormir e, como uma xamã, me conjurou aqui. O que quer
comigo, Brighid? Suas intenções são honradas? - Ele agitou as sobrancelhas. A expressão chocada de Brighid fez com que ele arrancasse o capim da boca, atirando a
cabeça para trás em outra gargalhada animada.
E lá estava - a risada querida, contagiante e totalmente feliz com que ele costumava irromper pelo Castelo MacCallan com regularidade, fazendo as mulheres virarem
a cabeça quando paravam, ouviam e sorriam com pensamentos secretos, e fazendo os homens se juntarem ansiosos a Cuchulainn em qualquer renovação que Elphame o tivesse
incumbido, não importava o quanto fosse imunda e difícil. Pela Deusa, ele parecia jovem, relaxado e muito feliz. Depois, com um choque surpreendente, as palavras
dele se registraram.
Ela tinha conjurado Cuchulainn. Como uma maldita xamã. Mas o que tinha conjurado? Ciara dissera que é durante o sono que se fica mais próximo do Outro Mundo. Será
que aquela aparição no sonho era mais do que uma imagem criada pela própria mente?
- O quê? - perguntou Cuchulainn, ainda rindo baixinho. - Desde quando se tornou tão séria para não poder brincar com um camarada?
- Não, não... Não é isso - gaguejou Brighid, sem saber o que dizer. Então cuspiu a primeira coisa que lhe veio à mente: - É tão bom ver você!
- Ah, aí, viu? Meu charme não é totalmente desperdiçado com você - disse ele, mascando o talo do capim novamente.
Brighid bufou:
- Não precisava ser tão convencido. Estou surpresa por ter sentido saudades de você - com charme e tudo.
- Arrã - bufou ele de volta. - Caçadora, você é uma criatura confusa - decididamente bonita, mas confusa.
Brighid ergueu a sobrancelha.
- Bom, foi você quem disse que sentiu saudades, como isso poderia ser possível? Estamos trabalhando lado a lado há dias limpando aquela ruína que minha irmã chama
de castelo. - Ele piscou para ela. - Ou esta é sua maneira sutil de me dizer que gostaria de passar mais tempo comigo? - Ele fez uma grande exibição de suspiro.
- Vá com calma comigo, caçadora, sou apenas um homem.
O brando incômodo de Brighid se transformou em algo que era quase medo.
- Brighid? - Ele inclinou-se à frente e tocou-lhe o braço com gentileza. - Eu a ofendi? Pensei que soubesse que eu só estava brincando.
- Não... Eu... - Ela se debateu. O que deveria dizer? Fitou o homem sentado perto dela. Era descuidado, gentil e carismático - tudo que o Cuchulainn que estava no
momento vigiando o acampamento dos neofomorianos não era. E ela tinha uma sensação tão certa quanto seu conhecimento dos hábitos dos animais de que ele não era invenção
de sua imaginação sonhadora. Ele era a parte de Cuchulainn que fora despedaçada com a morte de Brenna, e essa parte parecia estar presa numa época antes do trágico
evento. Brighid vasculhou desesperadamente dentro de si mesma. O que deveria dizer a ele?
- Brighid? O que foi?
- Cuchulainn, sabe que estamos num sonho?
O guerreiro assentiu.
- No mundo real não estamos mais no Castelo MacCallan - disse devagarinho.
Cuchulainn se sentou ereto e tirou o capim dos dentes.
- Mas isso não é possível. Esta noite mesmo trabalhamos juntos na limpeza dos aposentos do chefe para fazer uma surpresa para El. - O sorriso dele só hesitou um
pouco. - Não podemos estar viajando. Estamos ocupados trabalhando.
- Quem? - perguntou calmamente. - Quem está ocupado trabalhando nos aposentos de El, Cuchulainn?
- Andou bebendo o estoque de vinho tinto da minha irmã, Brighid? - perguntou ele com um humor que era obviamente forçado. - Basicamente somos nós três: você, Brenna
e eu.
Brighid respirou fundo.
- Cuchulainn, o que você está lembrando... aconteceu faz tempo... há mais de dois ciclos completos da lua, desde que...
- Não! - Com um movimento veloz e desajeitado, o guerreiro se levantou. - Não... - Ele se afastou dela.
- Cuchulainn, espere! - Brighid tentou alcançá-lo, mas tudo o que ela tocou foi a escuridão da tenda, enquanto seus olhos se abriam para a noite que desvanecia.
Foi quando a dor de cabeça começou. A garoa gelada da manhã não fez nada para dissipá-la. Brighid tinha tentado encontrar o olhar de Ciara e puxá-la de lado. Precisava
conversar com a xamã sobre o sonho. Mas a xamã estava ocupada reunindo as cabras encharcadas.
- Está num ritmo rápido para um dia tão miserável.
A voz áspera de Cuchulainn a arrancou dos pensamentos. Ela olhou ao redor e sentiu-se como se despertando de outro sonho.
- Desculpe-me - disse brevemente. - Não percebi que tinha me afastado do resto deles.
Um resmungo foi a única resposta. Ela esperava que Cuchulainn se afastasse cavalgando, mas conforme Brighid desacelerava o passo, o capão de Cuchulainn permaneceu
ao seu lado. O cabelo de Cuchulainn estava molhado e muito comprido. Parecia uma das cabras quase selvagens com as quais Ciara passara a manhã brigando.
- Precisa de um corte de cabelo - disse ela.
Os olhos dele se arregalaram de surpresa antes de se estreitarem na expressão chapada e cínica que lhe atacara o rosto nos últimos meses.
- Não me importo com meu cabelo.
Hã, a mente de Brighid girou. Ele ficou visivelmente abalado com um comentário normal, pessoal. E algo de repente fez sentido. Todos ficaram cheios de dedos perto
de Cuchulainn desde a morte de Brenna, tratando-o como se fosse um ovo delicado que precisava ser protegido. Até os híbridos eram cautelosos com ele - não esperavam
que ficasse para o jantar ou para as histórias -, deixando que escapasse para sua tenda para que refletisse sozinho. Não era surpresa que a parte alegre dele tivesse
se retraído. Se tivesse escolha, também não desejaria ficar junto da nuvem negra na qual Cuchulainn se tornara.
- É óbvio. Seu cabelo está horrível - retrucou ela. - Também precisa se barbear e de uma muda de... - ela apontou para o kilt manchado que mal se via debaixo da
pele de cabra que ele jogara sobre os ombros - seja lá como chame isso que está vestindo.
- Os aspectos mais delicados da toalete masculina não estiveram em primeiro lugar na minha mente nos últimos ciclos da lua. - A voz estava grossa de sarcasmo.
- Talvez gostasse de reconsiderar essa sua maldita atitude, garoto. - A caçadora usou a palavra de propósito. Certo, provavelmente era apenas um ou dois anos mais
velha, mas revestiu-se em sua idade como numa rica capa e endereçou ao guerreiro um olhar presunçoso. - Amanhã, a esta hora, estaremos entrando na Passagem Guardião.
As crianças, por mais reconhecidamente importunas que sejam, merecem nossa ajuda na chegada a Partholon. Nossa ajuda, Cuchulainn. Isso não significa bancarmos a
caçadora e o guerreiro sofredor. - Ela revirou os olhos e meneou a cabeça. - Olhe para você! Sua irmã mal o reconheceria.
- Caçadora, estou avisando. Não estou com humor para...
- Me poupe! - Ela o interrompeu, jogando o cabelo para trás e curvando os lábios. - Tente lembrar que não estamos fazendo isso por mim ou por você. É por elas. -
Ela apontou o polegar por cima do ombro para a massa de crianças que os seguia. - Recomponha-se e não as desaponte.
- Acham que é um bom lugar para a refeição do meio-dia? - Ciara correu até eles num agitar de asas escuras e molhadas. Se pressentia a tensão entre a centaura e
o guerreiro, sua expressão alegre e franca não demonstrava sinais disso.
- Sim - respondeu Cuchulainn num tom entrecortado.
- Tudo bem por mim - disse Brighid.
- Ótimo! Avisarei as crianças. Mas não devemos ficar parados por muito tempo. Estamos tão animados com a possibilidade de entrar na Passagem Guardião amanhã. Não
queremos nos atrasar no planejamento.
A mulher alada afastou-se depressa e Brighid pôde ouvi-la chamando as crianças para arrumar e organizar a breve pausa. A caçadora decidiu parar. Endireitando os
ombros, virou-se para o guerreiro, pronta para guerrear. Mas em vez de cinismo e raiva, Cuchulainn apenas parecia muito velho para sua idade e muito, muito cansado.
- Então estou assim tão mal? - perguntou.
- Mais do que mal - disse Brighid.
- Isso é parte da coisa de consertar a alma que tem que fazer?
A caçadora deu de ombros.
- Talvez sim. Talvez não. Não sei exatamente o que estou fazendo.
- Bem, você está sendo realmente irritante.
- E você não está sendo melhor do que isso - respondeu ela.
Cuchulainn lançou-lhe um olhar pensativo.
- Isso faz de nós uma equipe?
- Quer dizer que juntos não somos tão irritantes, ou, no seu caso, tão patéticos? - perguntou Brighid.
- Acho que precisa trabalhar na maneira de lidar com pacientes.
- Provavelmente. Geralmente mato meus "pacientes".
- Isso seria um problema - disse Cuchulainn.
- Sim, mas é apenas um deles - respondeu Brighid.
Treze
A GAROA CONTINUOU pelo dia inteiro, e até mesmo as crianças pareciam subjugadas e comparativamente quietas quando montaram o acampamento naquela noite. Quando Ciara
completou a oração da noite com "... Preencha-me com o abençoado poder da nossa Deusa, toque-me com sua força flamejante", Brighid pensou que nunca se sentira tão
aliviada por ouvir quaisquer palavras na vida.
O calor confortável da fogueira aprimorada pela xamã funcionou como um encanto mágico. Logo panelas estavam fervendo com cozido suplementado com vários gansos-das-neves
fibrosos que Brighid tinha abatido não muito antes de pararem para a noite. A caçadora descansava ao lado da fogueira, o aroma mofado do combustível misturado ao
do cozido deixando-a num estado relaxado e satisfeito. Pela Deusa, estava cansada! O sonho da noite anterior definitivamente não tinha lhe dado muito descanso. A
caçadora estava acostumada a ficar vários dias sem dormir - às vezes as caçadas eram exaustivas, e a resistência de um centauro sempre era maior que a de um humano.
Mas uma noite pairando no Outro Mundo a desgastara como se estivesse caçando ininterruptamente por uma semana.
- Aqui, coma isso. Você parece tão mal quanto alega que estou. - Cuchulainn lhe entregou uma tigela de cozido fumegante e se acomodou ao lado dela.
Brighid piscou os olhos sonolentos.
- É seguro?
- Acha que envenenaria você? Teria que arrastar sua carcaça de volta para Partholon.
Brighid cheirou o cozido com apreensão.
- Provavelmente não é forte o bastante para me arrastar - murmurou ela.
- Não me subestime - respondeu ele.
Brighid buscou-lhe os olhos. Havia algo por trás da insipidez. Não que parecesse o Cuchulainn com quem falara na noite anterior - o jovem guerreiro feliz e despreocupado
cujo carisma atraía os outros -, mas tinha certeza de ter visto uma faísca qualquer, e aquela faísca de repente abrandou sua exaustão. Ele estava conversando com
ela. Na verdade, estava provocando-a. Devia ser um passo na direção certa.
- Gostei do ganso, Brighid! - Como num hábito irritante, Liam tomou lugar ao lado dela com um sorriso travesso. - Kyna acha que ganso tem gosto de gordura, mas acho
que não.
- Bom, gordura faz bem - respondeu Brighid vagamente enquanto buscava algo adulto e sábio para dizer ao garoto.
- Eu sabia! - disse ele com alegria, atacando sua tigela de cozido.
- Faz bem? Gordura? - falou Cuchulainn baixinho.
- Quer trocar de lugar comigo e sentar perto dele? - sussurrou Brighid em resposta.
- Arrã - pigarreou Cuchulainn, ficando muito ocupado com sua própria refeição.
- Foi o que pensei - murmurou ela, que depois se concentrou no próprio cozido enquanto deixava o calor das tendas arrumadas em círculo e os sons suaves das crianças
cansadas a inundarem. Quando Cuchulainn lhe passou o odre, Brighid assentiu em agradecimento e deu um longo gole, sentindo o líquido forte e tinto espalhar calor
por seu corpo.
Estava para dizer a Cuchulainn que ficasse com a primeira ronda para que ela pudesse se retirar para a tenda, antes que se envergonhasse caindo no sono sentada,
quando Nevin e Curran se ergueram. Sussurros de antecipação surgiram e depois se aquietaram enquanto os gêmeos contadores de histórias esperavam pacientemente que
as crianças se acomodassem.
- Nossa jornada à terra de nossas ancestrais continua - disse Curran, olhando de um rosto para outro.
- Hoje sentimos a satisfação de nossas ancestrais nas lágrimas jubilosas que nos enviaram do céu - disse Nevin.
Brighid bufou baixinho consigo mesma. Se aquela garoa miserável eram lágrimas de júbilo, então desejava que as malditas ancestrais refreassem a alegria. Sentiu olhos
sobre si, então olhou para o outro lado da fogueira, onde Ciara correspondeu-lhe ao olhar com um sorriso que dizia que a xamã estava lendo sua expressão novamente.
A caçadora logo desviou o olhar.
- Banhados em aprovação ancestral, nossa história de hoje evoca uma época bem antiga - anunciou Curran.
- Começa num lugar de lendas, celebrado pela beleza, sabedoria e integridade das mulheres educadas lá - continuou Nevin.
Aquilo atiçou a curiosidade de Brighid, que despertou a si mesma da sonolência. Deviam estar falando do Templo da Musa - não havia um único lugar em Partholon mais
celebrado por sua rica história de ensino superior ou pelas mulheres talentosas que estudaram ali.
- Digam, crianças - pediu Curran -, quais os nomes das nove mágicas deusas encarnadas que vivem no Templo da Musa?
- Érato! - A voz de Liam berrou ansiosa ao lado dela. - Ela é a Musa do amor!
Brighid ignorou o olhar embevecido que recebeu, assim como as risadas dos híbridos adultos. Felizmente Kyna logo gritou o nome da deusa seguinte: - Calíope! A Musa
da poesia épica.
E depois os outros sete nomes e títulos se seguiram, anunciados por vozes jovens e ansiosas: - A Musa da história é Clio.
- Euterpe, Musa da poesia lírica.
- Melpômene, a Musa da tragédia.
- Polímnia, Musa da música, oratória e matemática!
- Minha avó! - Uma menininha alada disse pulando, asas flutuando agitadas. - Tália, Musa da comédia!
- Urânia é minha tia-avó, e ela é a Musa da astronomia e astrologia! - disse um rapaz que Brighid reconheceu ser Gareth.
- E não se esqueçam da avó de Ciara, Terpsícore, Musa da dança - avisou Kyna.
- Não esqueceríamos Terpsícore, criança - disse Curran.
- Ela é o assunto da história desta noite - prosseguiu Nevin.
O anúncio foi acompanhado por palmas e sons deliciados das crianças. Brighid olhou para Ciara. A mulher alada estava sorrindo contente junto com os outros neofomorianos.
Quanto tempo havia se passado desde a morte de Terpsícore? Ou, por falar nisso, quanto tempo se passara desde que a mãe de Ciara, a filha da Musa Encarnada, tinha
cometido suicídio? Com assombro, Brighid percebeu que não fazia ideia alguma da idade de Ciara. Sabia que um dos atributos que os híbridos herdaram dos pais demoníacos
era uma expectativa de vida incomumente longa. O companheiro híbrido de Elphame, Lochlan, não parecia ser mais velho do que um homem na flor da juventude, porém
tinha vivido quase 125 anos. A xamã parecia mal ter vivido 20 anos, mas devia ser mais velha. Portava-se com a mesma confiança que a própria mãe de Brighid exalava.
As palavras de Curran refrearam a mente errante de Brighid com os fios da história: - Cada uma das nove deusas era adorável à sua própria maneira, mas Terpsícore
era uma beleza rara mesmo entre as divinas. Lembro-me bem dela na minha infância. Sua beleza não era baseada apenas na perfeição do rosto ou do corpo.
Como se fossem um único ser, Nevin pegou a meada da história com primor: - A beleza de Terpsícore estava na graça mágica com que se movia. Mesmo quando a fragilidade
do corpo envelhecido a afastou das orações dançantes à sua Deusa, ela nunca perdeu aquela maneira singular de movimento que a marcava claramente como uma abençoada.
Corpo envelhecido?, indagou-se Brighid, já intrigada. Há muito se acreditava em Partholon que depois da derrota na batalha no Templo da Musa, as deusas encarnadas
e suas acólitas tinham sido mortas pela horda fomoriana. A caçadora pensou na beleza surpreendente das pinturas e esculturas deixadas para trás no assentamento dos
neofomorianos. Seus olhos vagaram pelo círculo de pessoas aladas, notando as joias de osso delicadamente entalhadas que muitas crianças carregavam e o talhe excelente
das peles grosseiramente curtidas. Os historiadores definitivamente terão que reescrever algumas coisas. O pensamento fez com que seus lábios se contraíssem. Esta
era apenas mais uma numa longa lista de surpresas para Partholon.
- Ah, mas nós nos adiantamos - disse Curran. - Terpsícore foi a primeira de nossas ancestrais a morrer, mas não antes de deixar um legado de vida ao trazer a morte.
- Não faz sentido nenhum...
O resmungo de Cuchulainn ecoou nos pensamentos de Brighid, mas ela fez cara feia e silenciou o guerreiro, não querendo perder nada da história.
- Era um dia de verão como qualquer outro no Templo da Musa. As árvores espalhavam seu frescor verde pelos lustrosos salões de aprendizado de mármore. Enquanto as
mulheres iam de templo em templo estudando a dança, a poesia e as estrelas, a doce essência das madressilvas douradas perfumava as passagens. Passarinhos coloridíssimos
se arremessavam em meio aos afrescos do teto que pareciam ter vida.
- Heras-esmeralda e cordões de flores vívidas cascateavam como cortinas dos tetos dos templos. - Nevin sorriu para as crianças que ouviam tão atentamente quanto
a caçadora. - Mesmo nas salas dedicadas ao aprendizado da medicina e do cuidado com os doentes, havia conforto e alegria. O Templo da Musa é um lugar de grande beleza.
- É também um lugar de paz - continuou Curran. - Diferentes da protetora de Partholon, Epona, as Musas não são deusas da guerra, assim seus templos são mal equipados
para serem usados como fortalezas para qualquer coisa mais violenta que a guerra contra a ignorância. Terpsícore andava entretendo as jovens acólitas que tinham
caído doentes com uma varíola debilitante. Aqueles que a conheceram compreendem que a deusa encarnada usava seus talentos para levar alegria aos outros e honrar
sua deusa, mesmo que isso a colocasse em risco. Então não é surpresa que ela também ficasse doente.
A expressão de Nevin obscureceu quando sua voz adentrou impecavelmente na pausa do irmão: - E aqueles que a conheceram sabem que no dia da grande batalha, quando
teve uma oportunidade de escapar dos demônios invasores, em vez de fugir e se salvar, ela escolheu ficar com aqueles que estavam mais doentes do que ela.
- Como minha tia-avó, Urânia! - gritou Gareth.
- E minha avó! - disse outra criança.
- E a minha!
Vozinhas ecoaram na noite. Os contadores de história aguardaram, assentindo pacientemente para cada criança até Brighid querer berrar para que todas ficassem quietas
para que ela pudesse escutar o resto da história. Mas logo todas entraram mais uma vez num silêncio atento, então Curran falou novamente: - Os demônios invadiram
o Templo da Musa. Os bravos centauros e os guerreiros partholonianos não puderam conter o exército invasor. Muitas mulheres foram capturadas, deusas encarnadas e
suas alunas - mulheres que eram as mais talentosas e belas de Partholon. Os demônios as arruinaram e usaram para saciar seus próprios desejos distorcidos.
O queixo de Brighid se ergueu e seus olhos se lançaram apressados ao redor do círculo, perturbada com a dura honestidade do conto, mas ninguém mais parecia chocado
ou angustiado, e Nevin mal se calou durante o tempo de uma respiração antes de prosseguir: - A beleza incomparável de Terpsícore chamou a atenção do líder inimigo,
Nuada, e naquela noite ele ordenou que ela dançasse. Pensou que ela dançava para ele, mas para quem ela realmente dançou?
- Para sua Deusa! - Foi a resposta entusiasmada do grupo.
- É verdade, enquanto girava na adorável dança que devia celebrar uma cerimônia partholoniana de casamento, foi vagando pelo acampamento dos demônios, tocando todos
quanto podia, deixando em seu rastro a doença, em vez da bênção cerimonial de sua Deusa.
- Sabemos disso - disse Nevin, a voz se erguendo mais uma vez - porque mesmo infectada com aquela horrível varíola e grávida de um demônio, ela sobreviveu.
- Sobreviveu o bastante para ensinar à filha as práticas de sua Deusa, e, por sua vez, essa filha sobreviveu o bastante para passar aquele precioso aprendizado às
filhas.
Curran calou-se, então ele e Nevin se voltaram para Ciara.
Curran se curvou para a xamã, a neta da deusa encarnada Terpsícore.
- As mulheres de Terpsícore são labaredas formosas. É uma triste verdade que algumas delas tenham queimado tão vivamente e tão rápido.
Dessa vez os dois se curvaram em respeito a Ciara e falaram juntos: - Nos honraria esta noite, Ciara, com uma dança de suas ancestrais?
As crianças deixaram escapar um suspiro coletivo de prazer; quando a xamã se levantou, Brighid ouviu o arrastar de pezinhos e o reagrupamento de corpos alados. O
que estão aprontando?
Ciara inclinou a cabeça num cumprimento aos gêmeos contadores de histórias. Então se despojou da capa, tirou negligentemente a calça e livrou-se das botas de sola
grossa semelhantes a mocassins. Aproximou-se da fogueira apenas numa túnica de algodão cru. Os olhos de Brighid se arregalaram. Os pés de Ciara não terminavam em
garras! Em vez disso, ela possuía pernas perfeitas e lisas e pés humanos delicadamente arqueados.
- Esta noite agradeço à deusa Terpsícore pela força de minha avó, e a Epona por nossa vitória sobre a escuridão. Dedico esta dança como uma celebração, lembrando
daqueles que amamos e daqueles que morreram e assim nos presentearam com um legado de vida.
Brighid podia ter jurado que a xamã falava isso diretamente a Cuchulainn.
De algum lugar no círculo veio a batida de um tambor, que foi logo ecoada por outra e mais outra. Depois o gorjeio claro e alto de uma flauta se juntou à batida
marcante. Era óbvio que tanto rebuliço e reorganização se referia à correria das crianças para buscar os instrumentos.
Como o estender de um véu escuro e vivo, as asas de Ciara se desdobraram e ela começou a dançar. Antes daquela noite, se pedissem que Brighid descrevesse a xamã,
teria usado palavras como miúda e delicada, mas à medida que Ciara rodopiava e saltava, traçando padrões intrincados no ar com mãos e braços graciosos, a caçadora
percebeu o quanto estivera enganada. Ciara possuía musculatura feminina magra e longilínea, aprimorada numa surpreendente perfeição de graça e flexibilidade. Não
era nem pequena nem suave, embora parecesse uma sílfide com sua pele luminosa e os cabelos e as asas escuros. Mas uma mulher delicada não seria capaz de ordenar
o corpo a executar as façanhas de puro atletismo que Ciara completava tão facilmente.
Impressionada e arrebatada, Brighid não conseguia tirar os olhos da apresentação da mulher alada. A dança era graciosa e sensual. Brighid reconheceu muitos dos movimentos
que Ciara executava como passos que toda criança partholoniana conhecia - até os centauros adaptaram muitos dos passos das danças comemorativas do país para seus
corpos equinos. Mas a caçadora nunca tinha visto nada como a apresentação que Ciara estava oferecendo. Ela não apenas se movia conforme a música - a mulher alada
se transformava na música. Parecia brilhar. A princípio, Brighid pensou que era apenas o lustro do suor cintilando na pele sob a luz tremulante do fogo, mas logo
percebeu que era a própria Ciara - quanto mais a mulher alada dançava, mais cintilava. No clímax da música, quando girou numa velocidade vertiginosa, o cabelo escuro
crepitou e faiscou numa luz lustrosa e sobrenatural.
- Nunca vi nada assim - sussurrou Brighid para Cuchulainn, sem tirar os olhos de Ciara. Como ele não respondeu com seu típico resmungo, ela o olhou de esguelha.
Cuchulainn estava encarando a dançarina, o rosto um modelo de misteriosa veemência. Brighid tentou identificar a expressão. Seria desejo? Obsessão? Era certo que
transparecia mais animação do que tinha visto naquele rosto desde...
Palmas e vivas tumultuadas interromperam seus pensamentos e seu olhar retornou para Ciara, que estava fazendo mesuras e sorrindo radiante para seu apreciativo público.
Buscou brevemente o olhar de Brighid e acenou antes de retomar seu lugar em meio às crianças que aplaudiam.
- Um legado de vida... - disse Nevin.
- ... a partir da morte - completou Curran. - Amanhã continuaremos a acompanhar esse legado de volta a Partholon, e o futuro que nossas ancestrais sonharam para
nós.
Curran e Nevin curvaram-se impecavelmente, e os híbridos adultos começaram a rodear as crianças. Dessa vez, quando Liam se atirou em seus braços, a caçadora estava
um pouco mais preparada.
- Boa noite, caçadora! - disse ele depois de abraçá-la apertado.
- Durma bem - respondeu distraída para as asas que se afastavam. Sua mente não estava na criança. Voltou-se novamente para Cuchulainn. O guerreiro estava muito imóvel,
encarando a fogueira. O rosto era novamente uma máscara sem expressão, mas os olhos ainda não tinham feito completamente a transição para o vazio. Estavam estreitados
em contemplação, como se atormentado com um problema opressivo.
Devia perguntar o que ele estava pensando, mas, pela Deusa, não queria! Não queria se intrometer... não queria bisbilhotar... e então, com um pequeno e abismado
sobressalto, percebeu que também não queria saber que Cuchulainn desejava Ciara.
Catorze
- NÓS TRÊS DEVEMOS conversar sobre a melhor maneira de lidar com o dia de amanhã - disse Cuchulainn.
- Nós três? - Brighid ergueu uma sobrancelha, o que ele não notou porque o olhar permanecia fixo na xamã alada.
- Você, eu, Ciara - disse ele.
- Acho que deveríamos incluir todos os adultos - ouviu-se dizendo Brighid.
Cuchulainn finalmente virou-se para olhá-la, um leve franzido na testa erguendo um canto da boca.
- Não é prático nos reunirmos com todos os adultos. Estão ocupados colocando as crianças na cama. E já discuti como seria entrar em Partholon com todos eles - muitas
vezes durante as duas últimas luas.
- Mas agora estamos entrando através da Passagem Guardião e do próprio Castelo Guardião. Isso muda as coisas.
O franzido na testa de Cuchulainn se aprofundou.
- Não o bastante para justificar o atrapalhar da noite.
Brighid bufou:
- Atrapalhar? Não está exagerando?
- Você quer colocá-las na cama ou lidar com setenta crianças que não dormiram direito amanhã?
- Não demoraria muito conversar com os adultos num grupo - insistiu Brighid. - Precisam estar preparados para o fato de que uma deles está mantida prisioneira lá.
O rosto de Cuchulainn obscureceu.
- Eles sabem disso.
- Sim, mas acho que devemos conversar com eles sobre isso. Novamente.
- Por que está sendo tão difícil? - perguntou Cuchulainn.
- Por que está sendo tão teimoso? - disparou Brighid.
- Algum problema? - Ciara sorriu com doçura para ambos.
- Não! - rosnaram Brighid e Cuchulainn juntos.
- Ótimo. Acho que devemos conversar sobre amanhã - disse Ciara.
- Concordo - disse Cuchulainn, lançando uma olhada na caçadora.
Brighid o ignorou e falou diretamente com Ciara: - Será importante que crianças e adultos fiquem juntos. Ninguém deve disparar na frente ou ficar para trás.
- É exatamente o que tenho dito nas últimas duas luas - interrompeu Cuchulainn. - E também os lembre de conter o... - o guerreiro fez uma pausa, e quase parecia
estar lutando contra um sorriso: - ... entusiasmo. - Então a expressão ficou séria e as linhas em seu rosto se aprofundaram. - O povo de Partholon sabe que vocês
existem, não só porque Fallon foi aprisionada no Castelo Guardião. Como Escolhida de Epona, minha mãe terá garantido que a notícia da descoberta e iminente chegada
de vocês tenha se alastrado pelo país. Partholon estará preparada para vocês - em teoria. Mas entre ouvir falar sobre crianças aladas e ver o grupo... - Ele ergueu
um ombro.
- São duas coisas inteiramente diferentes - completou Brighid por ele, pensando novamente nas surpresinhas aladas que logo invadiriam Partholon. Os humanos não faziam
ideia do que os esperava. Ela relanceou Cuchulainn. Seu rosto tinha retomado a costumeira máscara de inexpressividade. Mas os olhos ainda não estavam estranhamente
brilhantes e concentrados demais em Ciara?
Algo arrepiou a espinha de Brighid, crispando-lhe a pele e fazendo-a sentir-se sobrenaturalmente ciente dos vastos Ermos que cercavam o pequeno acampamento.
- Então está acertado. - Ela se levantou inquieta. - Amanhã ficamos bem juntos - todos nós de olho nas crianças. Nenhuma dispersão, nenhuma exploração.
- E entramos em Partholon. - Ciara sussurrou a palavra como numa oração.
- Com cautela - Brighid falou aquilo com mais força do que pretendia.
- O que foi, caçadora? - perguntou Ciara. - Foi alertada de algo que está por vir?
- Não! - respondeu Brighid um tanto apressada. Não tinha sido alertada de nada - só tinha sido pega totalmente desprevenida pela reação de Cuchulainn à dança de
Ciara. E agora a xamã a estudava com aqueles olhos perceptivos. Brighid se levantou e trocou o peso do corpo com inquietação. - Não - repetiu numa voz mais controlada.
- Só estou cansada. E não tenho qualquer tipo de premonições - isso é área do Cuchulainn, não minha.
A cabeça do guerreiro investigou ao redor antes que ele estreitasse os olhos.
- Não tenho mais premonições.
- Isso não é necessariamente boa coisa - revidou Brighid o olhar diretamente.
- Está cansada, caçadora - falou Ciara em meio ao silêncio carregado de tensão. - Será que não prefere dormir primeiro?
Brighid assentiu sucintamente.
- Então lhe desejo boa noite. Falarei com os outros adultos sobre amanhã. Cuchulainn fica com a primeira guarda.
Brighid assentiu novamente. Sem falar com Cuchulainn, retirou-se para a tenda que compartilhavam e se acomodou nas peles grossas. Fechou os olhos e respirou fundo.
O que havia de errado com ela?
Estava zangada até o íntimo. E isso não tinha razão de ser. Cuchulainn tinha reagido a Ciara. O que havia de errado nisso? Nada. Seria maravilhoso se Cuchulainn
conseguisse amar novamente. Na verdade, seria um milagre.
Quando a alma não estiver mais despedaçada, o guerreiro não escolherá a morte. Quando Cuchulainn estiver inteiro, amará outra vez.
Quando Ciara falou essas palavras, Brighid tinha pensado ser impossível que Cuchulainn voltasse a amar outra vez - não tinha considerado que Ciara falava de si mesma.
Brighid rearrumou com inquietação as longas pernas equinas. Cuchulainn era seu amigo. Tinha concordado em ajudá-lo com o pedaço estilhaçado da alma porque se importava
com ele. Queria que ele voltasse a ser inteiro. Ainda não tinha feito a jornada de resgate da alma, porém Cuchulainn já parecia mais animado. Tinha caçoado dela
e notado que parecia cansada. Devia estar satisfeita por ele também demonstrar interesse por Ciara. A mulher alada era bela e gentil. Elphame aprovaria.
Estava contente por ele, disse consigo mesma com firmeza. Só tinha sido pega de surpresa. Era só isso. E estava cansada. O sonho da noite anterior tinha drenado
sua energia. E obviamente gasto sua paciência também. Precisava dormir. Então voltaria a ser como era outra vez.
Brighid respirou fundo e se concentrou em relaxar a tensão do corpo. A exaustão a arrastou e o sono veio fácil. O último pensamento coerente foi o de que faria um
esforço consciente para aceitar o relacionamento que estava se formando entre o amigo e Ciara. Cuchulainn merecia ser feliz...
O sonho começou num lampejo de movimento.
- Corra comigo, Brighid! - gritou Cuchulainn enquanto passava por ela no capão. O sorriso que exibiu por cima do ombro era provocador. - Ou ao menos tente me alcançar,
velhota!
Automaticamente Brighid se concentrou e disparou, cortando o chão macio da Planície dos Centauros com seus cascos. As passadas longas logo comiam a distância entre
ela e o cavalo de Cuchulainn. Estava bem no rastro dele. Cuchulainn se deitava sobre o pescoço do capão, atiçando-o. Sentindo a aproximação dela, o cavalo encontrou
nova explosão de velocidade. Com um sorriso ardoroso, Brighid ampliou as passadas, facilmente mantendo-se lado a lado com o animal.
Cuchulainn deixou de prestar atenção no capão apenas o suficiente para lhe sorrir.
- Mostro a você quem é velhota! - gritou Brighid ao vento. Então recorreu à vasta força dos centauros. Passou voando por cavalo e cavaleiro como se fossem uma equipe
de garoto e pônei.
Brighid corria pela pura alegria de correr.
A pradaria passava com tamanha velocidade que era como se flutuasse num mar de relva. O vento estava morno, mas de encontro à sua pele afogueada era um bálsamo fresco.
Os poderosos músculos equinos das pernas ardiam, mas era uma sensação que ela recebia com prazer. A respiração ficou profunda à medida que os pulmões, que eram mais
fortes que os de um humano, se enchiam e expandiam para sustentar um corpo que era a perfeita mistura da beleza humana com a força equina.
Pela Deusa, tinha esquecido o quanto adorava correr pelo solo de sua terra natal! Partholon era um país próspero, bonito, mas não apelava à sua alma como a Planície
dos Centauros. Era como se pudesse correr para sempre, esquecendo tudo... todos...
Talvez se corresse bastante pudesse encontrar uma maneira de retornar ao lar e reconciliar suas crenças com as da família. Se fizesse isso, talvez ficasse livre
da incômoda sensação de viver como forasteira, uma criança que não fora trocada ao nascer, mas ao encontrar a garota humana depois do acidente.
As passadas ligeiras de Brighid falsearam.
Não pensaria naquilo. Não podia pensar naquilo - não num sonho. E de qualquer forma, não deveria estar concentrada em ajudar Cuchulainn? Franziu o cenho e desacelerou.
Onde estava o guerreiro? Brighid olhou para trás por cima do ombro. A pradaria estava vazia, exceto pelo capim alto, que ondulava sedutoramente, chamando-a com suas
secretas melodias sussurrantes.
Brighid parou de súbito. Ótimo. Devia estar ajudando Cuchulainn, mas ficou tão envolvida no próprio sonho que de alguma forma o perdera. Soprou um suspiro frustrado.
Pense em Cuchulainn! Brighid fechou os olhos, bloqueando a visão de sua amada pradaria, e pensou no guerreiro - ou, mais especificamente, pensou na parte descuidada
e feliz da alma de Cuchulainn que visitou seus sonhos.
Ouviu uma risada e salpicos d'água antes de abrir os olhos.
- Caçadora! Queria que decidisse onde ficaremos. Dá tonturas ser arrastado de um lugar para outro.
Brighid piscou os olhos. Tinha ido da pradaria para a floresta no espaço de uma respiração. O dia ainda estava quente, mas a luz indireta do sol era filtrada pela
copa verde, então a grossa greda de folhas do chão da floresta estava manchada e brumosa. Demorou um tempo para que a visão dela se ajustasse. Mais salpicos vieram
do outro lado do monte de rochas cobertas de musgo, logo adiante. Totalmente confusa, trotou em frente e o lago alimentado por cachoeiras ficou à vista. Cuchulainn
estava no meio, a água cobrindo-o até a cintura. O peito estava nu e ele parecia jovem e encharcado com o cabelo úmido emplastrado na cabeça.
Brighid estava para rir quando reconheceu onde estavam. Era a piscina de banho que ela, Elphame e Brenna descobriram durante as primeiras reformas do Castelo MacCallan.
As três tinham tomado banho ali com frequência e Brenna lhe contara que aquele era um local especial de encontro para ela e Cuchulainn. O estômago de Brighid apertou.
Brenna tinha sido morta ali.
- Devia saber que desvendei seus motivos. Estava com medo de perder a corrida para mim, então sonhou conosco aqui.
- Perder a corrida? Com você e aquele seu capão gordo? - zombou ela, usando o aborrecimento para encobrir a tensão desconfortável que zumbia dentro dela. - Ridículo.
- Ah, está bem. Isso só deixa uma razão para que sonhe conosco aqui. - Ele estendeu os braços, palmas abertas, convidando-a para um abraço molhado. - Queria que
eu ficasse nu.
Brighid lhe deu uma olhada, enojada.
- Cuchulainn, você está iludido.
- Ei, o sonho é seu.
- E você não está nu. Ou não ficará por muito tempo. - Apontou para as roupas que estavam jogadas ao acaso sobre as rochas. - Vista-se. - Com uma chicotada do rabo,
virou-se de costas para ele. - Alguém já lhe disse que se preocupa demais com sexo? - comentou ela acima dos ruídos da saída dele da piscina.
- Talvez El tenha dito isso uma vez ou duas. Ela está enganada, claro - disse enquanto usava o kilt para secar o corpo.
- Verdade? - disse Brighid com sarcasmo.
- Verdade. Ela não compreende que minha paixão pela vida e minha paixão por mulheres são pedaços de um todo. Eu escolhi viver a vida em plenitude, desfrutando toda
sua riqueza e beleza. Mulheres, ou sexo, como você colocou, são uma parte natural de vivenciar a plenitude de uma vida bem vivida.
As palavras arrepiaram a espinha de Brighid.
- Se deixasse de desejar mulheres, o que isso significaria? - perguntou-lhe.
- Que a Deusa me ajude! Significaria que estou morto! - Ele riu animadamente. - Pode se virar agora, caçadora.
Brighid virou-se para encará-lo, um franzir de preocupação enrugando a testa.
- Sério, Cuchulainn. Está me dizendo que seu amor por mulheres é um reflexo do quanto ama a vida?
- Sim. - Ele usou a ponta do kilt para secar o rosto. - Por que todas essas perguntas?
- É o meu sonho. Posso perguntar o que quero - murmurou ela, perturbada.
- Arrã! - resmungou o guerreiro. - Você me surpreende, Brighid. Pensei que relaxasse um pouquinho no sono. Mas acho que isso prova que sonhos são na verdade meros
reflexos da vida.
- O que isso quer dizer?
Cuchulainn deu de ombros.
- Você é sempre tão tensa. Lembra uma sentinela que está eternamente de guarda.
- Que coisa absurda de se dizer! - esbravejou Brighid.
- Aceite... - Cuchulainn se esparramou no chão, as costas recostadas no rochedo coberto de musgo - ... você nunca relaxa.
- Cuchulainn, não estamos falando de mim. Estamos falando de você.
- Tudo bem, tudo bem. - Ele ergueu as mãos numa rendição zombeteira e sorriu. - Mas ao menos gostaria de saber por que está tão obstinada a falar sobre mim.
- Porque é você que fica aparecendo nos meus sonhos! - revelou ela.
- E acha que sei o porquê? - Ele deu uma risadinha. - Não tenho nada a ver com isso. Admito que você possui uma rara beleza, Brighid, mas se fosse para entrar de
propósito nos sonhos de uma dama, acredito que minha escolha seria menos... - hesitou, os olhos cintilando de modo travesso enquanto percorriam seu corpo equino
- ... peluda.
Brighid enrijeceu.
- Não sou peluda.
Cuchulainn riu de novo.
- Devia ver a expressão no seu rosto! É como se eu tivesse dito que os cervos criaram asas e que agora terá que rastreá-los no ar.
- Não posso rastrear algo que voa - respondeu ela automaticamente.
Como uma vela derretida, o sorriso franco que era parte tão natural de Cuchulainn desapareceu.
- Eu... Eu preciso ir agora. - Ficou de pé e olhou ao redor como se não tivesse certeza de onde estava.
- O que foi, Cuchulainn? - Mas não precisava perguntar - sabia o que havia de errado com ele.
O fragmento alegre da alma de Cuchulainn que estava diante dela estava recordando.
- Não... - Mesmo enquanto balançava a cabeça em negação, seguia lenta e inexplicavelmente para longe da piscina na direção da trilhazinha áspera que seguia através
da floresta até a estrada para o Castelo MacCallan. Cuchulainn deu dois passos pesados antes de parar. Quando olhou novamente para Brighid, o rosto estava tão pálido
que, pela primeira vez, ele parecia mais espírito que homem. - Isso é apenas um sonho. Pela manhã acordarei no Castelo MacCallan. Estamos preparando os aposentos
do chefe para Elphame. Você, Brenna e eu.
Brighid se aproximou do espírito despedaçado de Cuchulainn devagar. O espaço diante dele era uma parte bem comum da floresta - apenas um caminhozinho através de
uma alameda de plantas em forma de guarda-chuva e flores silvestres. Mas ela reconheceu o lugar. Foi onde a híbrida louca, Fallon, havia matado Brenna enquanto a
pequena curandeira esperava por Cuchulainn. Há duas luas Brighid tinha liderado o grupo de resgate a partir daquele mesmo ponto. Seguira os rastros de Fallon, adentrando
bastante na floresta até os vestígios da criatura desaparecerem porque a híbrida usara suas asas para apanhar correntes de ar e planar. Como Brighid explicara ao
guerreiro perturbado naquele dia, uma caçadora não podia rastrear algo que voava...
- Meu amigo, nós... - começou Brighid.
- Não! - Cuchulainn a cortou. Afastou-se dela, depois sua expressão horrorizada mudou. Forçou uma risada nos lábios pálidos que estavam retorcidos mais numa careta
do que num sorriso. - Isso é um engano... Não visitei seu sonho... Fiquei preso no seu pesadelo...
- Cuchulainn! - Brighid estendeu a mão para ele num gesto que pretendia chamá-lo de volta, mas Cuchulainn se esquivou, recuando ainda mais adentro da floresta.
- Não. Não posso. É hora de acordar, caçadora...
O corpo do guerreiro desbotava à medida que se misturava às sombras das árvores.
- Caçadora...
Os olhos de Brighid abriram.
- Cuchulainn, espere! - Ela estendeu a mão e desta vez conseguiu agarrá-lo.
Agindo por instinto, Cuchulainn girou puxando a adaga de arremesso do cinto e colocando-se depressa numa posição defensiva, a lâmina erguida em prontidão. Quando
percebeu o que atacou sua perna, baixou a adaga.
- Pela Deusa, Brighid! Quase consegue ser esfaqueada!
- Desculpe - murmurou ela, lutando para se orientar. O que tinha acontecido? Onde estavam agora?
- Quer me soltar?
Ela olhou para sua mão, que ainda estava apertando o couro macio da bota dele.
- Brighid? - Cuchulainn se agachou, espiando na tenda a silhueta inclinada da caçadora. - Sente-se mal?
- Estamos com os híbridos, não muito longe da Passagem Guardião? - A voz dela soava estranhamente sem fôlego, como se tivesse acabado de concluir uma maratona. -
E estamos acordados.
- Sim, claro, para as duas perguntas! O que há de errado com você?
Brighid soltou-lhe a perna, esfregou os olhos, depois afastou para trás a longa massa loiro-prateada dos cabelos.
- Um pesadelo. Só um pesadelo. Você me acordou quando passou por aqui.
Ainda grogue, desvencilhou-se das peles grossas e escapou da pequena tenda. Sacudiu-se como se tirando água da pelagem antes de olhar o céu.
- Deveria ter me acordado antes. A lua já passou do ápice.
Cuchulainn lhe deu uma última olhada de escrutínio antes de encolher os ombros.
- Estava vindo mesmo acordá-la. - Passou por ela e sentou dentro da tenda, arrancando as botas sujas de viagem. - O fogo precisa ser alimentado. Tudo o mais está
quieto e supervisionado.
- Falou com Ciara. Os adultos estão preparados para amanhã?
- Ciara e eu conversamos brevemente. Está tudo bem.
Brighid tentou ver a expressão de Cuchulainn dentro da tenda escura. A voz não dava qualquer indício de emoção. Ele soava cansado, tão interessado em Ciara quanto
em abastecer o fogo.
Mas parte de sua alma dissera com clareza que seu amor pelas mulheres e o amor pela vida estavam entrelaçados. Sabendo disso, não era preciso possuir os instintos
de uma xamã para saber que seria um passo positivo de cura para Cuchulainn demonstrar interesse numa mulher - alada ou não.
- Então conversou com Ciara?
Cuchulainn resmungou uma afirmativa e depois ficou em silêncio.
Brighid revirou os olhos.
- E ela acha que o acampamento está pronto para entrar em Partholon?
Outro resmungo afirmativo.
A caçadora ficou do lado de fora da tenda escutando os sons de Cuchulainn acomodando-se nas peles. Deveria lhe dizer algo. Encorajá-lo a conversar com Ciara com
mais frequência. Deixá-lo saber...
- Brighid, por que está aí espiando?
A voz rude a fez pular de culpa:
- Não estou espiando!
- Então o que é? - Ele enunciou cada palavra cuidadosamente, como se ela fosse uma das crianças aladas.
- A dança de Ciara foi bem bonita - comentou, sentindo-se desajeitada e óbvia.
- Ela recebeu muitos dons da Deusa - disse ele.
- Acho que nunca vi uma dança executada tão bem - continuou Brighid.
Cuchulainn resmungou.
- E você?
- Foi um tributo adequado a Epona e Terpsícore.- As palavras terminaram num bocejo.
- Foi bonito - disse Brighid.
- Como você já disse. - Cuchulainn bocejou novamente. - Brighid, esta é mais uma das suas tentativas de cura da alma?
- Não tenho certeza - disse ela com tristeza.
- Posso dormir enquanto decide?
- Sim. Descanse bem, Cuchulainn.
Brighid se retirou para a fogueira. Enquanto alimentava a labareda que ardia baixo, chamou-se por várias variações criativas para idiota atrapalhada, fracassada
e desmiolada.
Quinze
- É ESTRANHO O quanto estão quietas - disse Brighid a Cuchulainn.
O guerreiro deu uma olhada por cima dos ombros para o grupo calado de viajantes em miniatura.
- Nunca as vi assim - disse ele.
- Não cantaram durante a manhã inteira.
- E mal falaram uma palavra durante a refeição do meio-dia.
- Acha que estão assustadas? - perguntou Brighid. Ficava com uma sensação de vazio no estômago ao pensar nas crianças tão assustadas a ponto de silenciarem a animação
natural.
- Não precisam ter medo. Não deixaremos nada de mal acontecer com elas - disse Cuchulainn em poucas palavras.
- Você sabe disso e eu sei disso, mas talvez devêssemos avisar a elas - disse Brighid.
Cuchulainn resmungou e fez cara feia.
- Não quero preocupá-las.
Ela bufou e inclinou a cabeça para a multidão silenciosa.
- Estão quietas. Elas nunca ficam quietas. Acho que podemos presumir com segurança que já estão preocupadas.
- Você provavelmente tem razão.
Como Cuchulainn não disse mais nada, ela insistiu: - Deveríamos conversar com elas. Antes que fiquem frente a frente com os guerreiros do Castelo Guardião.
- Concordo. Vamos reuni-las na boca da Passagem Guardião. Pode falar com elas lá - disse ele.
- Eu? - As sobrancelhas dela se ergueram. - Não vou falar com elas!
- Mas acabou de dizer... - começou ele, mas Brighid o cortou com movimento rápido da mão.
- Não! Não eu. Elas só me conhecem há poucos dias. Você conviveu com elas. As crianças o idolatram, confiam em você. Se disser alguma coisa, acreditarão em você.
Sou apenas a centaura caçadora - você é o guerreiro delas, o Cuchulainn.
Cuchulainn franziu a testa.
- Se não acredita que é verdade, pergunte a Ciara - disse ela.
A ruga se aprofundou, mas Cuchulainn permaneceu em silêncio. Como um grande urso zangado, pensou Brighid. Estar com a parte alegre em seus sonhos fez com que percebesse
o quanto sentia falta do velho Cuchulainn. O guerreiro estava tão soturno, silencioso e...
- ... Tenso - disse Brighid em voz alta, encontrando o olhar questionador de Cuchulainn. - Isso mesmo, você está tenso demais. E você disse que eu nunca relaxo.
- A caçadora bufou. - Você é que entendeu tudo errado.
- Do que está falando? Não falei que nunca relaxa.
- Sim, falou sim. Na noite passada.
- Mal conversamos na noite passada.
- Na verdade, conversamos um bocado. E na noite anterior também. - Brighid respirou fundo, esperando que os instintos estivessem guiando sua língua porque ela realmente
não tinha ideia do porquê de repente decidiu contar a Cuchulainn sobre os sonhos. - Você me visitou. Duas vezes. Nos meus sonhos.
Cuchulainn enrijeceu, seu rosto era uma máscara cuidadosa de indiferença.
- Não era eu.
- Ah, era definitivamente você. Ou, mais corretamente, era o você que existia antes da morte de Brenna.
O rosto inexpressivo do guerreiro empalideceu.
- Então encontrou aquilo - a parte despedaçada da minha alma. - Ele a olhou de relance, mal encontrando seu olhar. - Não devia trazer aquilo para cá? Mandar aquilo
retornar? Qualquer coisa?
- Antes de tudo, Cuchulainn, não é aquilo. - Ela meneou a cabeça. - Parece errado chamá-lo assim. É você.
- Eu sou eu.
- Não - disse ela calmamente. - Não, Cuchulainn, não é não. O que você é agora é apenas um pedaço de você.
O guerreiro resmungou, mantendo os olhos focados na trilha rochosa à frente deles.
Brighid suspirou:
- E o homem que me visitou nos sonhos era apenas parte de você também. - Ela se calou, sem saber como contar, então deixou escapar um suspiro frustrado. Não sabia
o que era certo ou errado. Ajude-me, Epona, rezou em silêncio. Não me deixe lhe provocar mais dor. - O Cuchulainn dos meus sonhos acha que ainda está no Castelo
MacCallan. Acredita que é a noite seguinte ao início da preparação dos aposentos de Elphame.
Com isso, a expressão vazia de Cuchulainn vacilou e a voz se tornou dura com o sentimento represado: - Ele acha que Brenna ainda está viva?
Brighid sorriu com tristeza.
- Não exatamente. Uma parte dele sabe que não - só está negando isso. Sem a força que você tem dentro de si agora, ele é apenas um jovem animado e amante de diversão
- completamente incapaz de lidar com desapontamento, tristeza ou dor. Não está inteiro - é só uma parte sua fragmentada.
- E sem ele não posso suportar viver a vida.
- Você precisa querer essa sua parte de volta, Cuchulainn. Não posso alcançá-lo sozinha. Toda vez que tento, ele escapa - disse ela.
- Talvez essa parte minha não queira voltar para a realidade. Não posso culpá-lo. Se eu pudesse rejeitar a morte de Brenna, eu faria o mesmo.
- Faria? - perguntou Brighid. - Acho que não. Aquela sua parte cheia de vida não apenas rejeitou a morte de Brenna, também escolheu esquecer o amor que encontrou
com ela. É o que deseja, Cuchulainn? Esquecer Brenna completamente?
- Claro que não! - explodiu ele. - Sabe muito bem disso.
- Então precisa tentar com mais afinco!
- Estou fazendo tudo o que posso! - rosnou ele.
O agitar de asas anunciou a chegada de Ciara, então Brighid fechou bem a boca. A xamã olhou da caçadora para Cuchulainn.
- Vocês dois discutem como se estivessem casados há anos - disse ela.
- Que a Deusa me livre! - exclamou Brighid.
O resmungo de Cuchulainn tinha animação consideravelmente maior que o comum. A mulher alada riu.
- Vocês até protestam como um casal. Mas não vim aqui falar sobre o relacionamento de vocês. Estamos nos aproximando da entrada da passagem. Antes de começarmos
a travessia até Partholon, deveríamos tirar um momento para suplicar auxílio e proteção a Epona.
- Como sabe que estamos perto da passagem? Esteve aqui antes? - perguntou Brighid.
- Claro que não. Só sei disso por causa das histórias de nossas mães. - Ela abriu a mão, apontando num gesto vasto o cenário ao redor deles. - Nos contaram que as
rochas ficam mais vermelhas, mais sangrentas, quando se está perto da Passagem Guardião. Nossas ancestrais nos avisaram para que ficássemos longe do leste. Para
fugirmos das rochas escarlates e da passagem que as cuspia de Partholon.
Cuchulainn olhou ao redor, aborrecido por estar ocupado discutindo com Brighid para não notar a mudança nas rochas dentadas que flanqueavam as montanhas. Ele sabia
que a intensidade na cor significava que a passagem estava próxima.
- Faz sentido - dizia Brighid pensativa. - Claro que as mulheres avisariam que ficassem bem longe da Passagem Guardião. Temeriam pela captura de vocês.
- E pelas nossas mortes - disse Ciara tranquilamente.
- Será diferente agora - afirmou Cuchulainn.
O sorriso brilhante e sincero de Ciara retornou.
- Claro que será! Temos vocês dois, e o sacrifício de sua irmã. Vai ficar tudo bem.
Cuchulainn resmungou, desejando que ela não parecesse tão ingenuamente confiante. Partholon tinha passado mais de uma centena de anos odiando os fomorianos. Seria
necessário mais do que a palavra da irmã e a presença de um guerreiro e uma caçadora para conquistar um povo que ainda lembrava muito bem da chacina perpetrada por
demônios alados.
- Cuchulainn e eu estávamos justamente falando sobre a travessia. Achamos que Cuchulainn deve conversar com as crianças - tranquilizá-las - antes de seguirmos adiante.
O sorriso de Ciara ficou radiante.
- Elas adorariam, Cuchulainn! Vou avisá-las. - A mulher alada apertou o braço do guerreiro antes de sair apressada.
- Aparentemente foi a decisão certa - disse Brighid com forçada indiferença. O sorriso de Ciara e a maneira íntima de tocar Cuchulainn eram bons, disse a si mesma;
Cuchulainn precisa do toque de uma mulher para sentir a plenitude da vida.
- Ali - disse o guerreiro, parando seu capão. Apontou para um talho entre duas rochas vermelho-escuras. Nenhuma vegetação crescia ao redor. As laterais eram escarpadas
e o vento uivava assustador através do buraco. - É a entrada para a Passagem Guardião e o caminho para Partholon.
Cuchulainn parou na boca da passagem encarando os neofomorianos que o observavam com atenção. Olhou para o céu. O sol tinha passado da posição do meio-dia, mas ainda
estava alto no céu cinza-azulado. Seria o tempo exato para alcançarem o Castelo Guardião antes do anoitecer. Seu olhar buscou a multidão silenciosa. Percebeu que
provavelmente era imaginação, mas até as cabras pareciam submissas.
- Vá em frente - sussurrou Brighid, chegando perto dele. - Estão esperando, e estamos ficando sem tempo.
Ele a encarou com cara feia, mesmo sabendo que o que ela dizia era verdade. De fato, a caçadora estava se provando perturbadoramente certa a respeito de muitas coisas.
A parte despedaçada da minha alma tem visitado os sonhos dela. Saber disso ainda o impressionava. Então ela estava certa quanto a isso também. É por isso que não
consigo superar a morte de Brenna. É por isso que me sinto tão vazio e perdido. O que significava que se ela estava certa sobre isso, provavelmente estava certa
sobre se curar quando sua alma estivesse inteira mais uma vez. Então poderia viver sem Brenna. Talvez até aprendesse a ser feliz novamente.
Era o que queria?
- Cuchulainn! - sussurrou Brighid.
Pela Deusa! Estava devaneando enquanto o grupo inteiro o fitava, esperando que ele falasse. Com a alma partida ou não, precisava se recompor - figurativamente, se
não literalmente.
Limpando a garganta, Cuchulainn deu um passo à frente.
- Saíram-se muito bem na nossa jornada. A caçadora e eu estamos muito orgulhosos da força e resistência de vocês.
Houve um farfalhar alegre de asas e os olhos brilhantes das crianças sorriram para ele. Cuchulainn encontrou aqueles olhares, focando de criança em criança, fazendo
cada uma sentir que ele tinha escolhido as palavras especificamente para ela: - Sabem que Fallon ficou louca e matou Brenna?
As crianças responderam com um assentimento vigoroso das cabecinhas.
- E que Fallon está aprisionada no Castelo Guardião, esperando sua execução. - Ele mal parou para que assentissem. - Então devem estar preparados para que os guerreiros
no castelo desconfiem de vocês. - Em vez das negativas e dos vários graus de reações preocupadas que esperava, as crianças ficaram silenciosas outra vez. Os olhos
não o abandonavam. - Mas não quero que sintam medo.
Brighid estava estudando as crianças enquanto Cuchulainn falava, mas suas últimas palavras atraíram seu olhar. Ele soava tão gentil - tão parecido com o velho Cuchulainn
-, o homem que era mais do que apenas um guerreiro talentoso. Ele possuía muito mais por dentro, razão pela qual Brenna finalmente se permitira amá-lo. E Brighid
surpreendeu-se ao pensar que, por ainda soar tão gentil, apesar de parecer tão cansado da vida, compreendia por que a amiga fora incapaz de ignorar Cuchulainn.
- Estarei com vocês - prosseguia Cuchulainn -, assim como Brighid. Mas vocês têm mais do que isso - mais do que nossa proteção poderia sequer conseguir. Vocês têm
a bondade interior que os guerreiros do Castelo Guardião enxergarão. - Cuchulainn respirou fundo e passou a mão pelos cabelos despenteados. - Sei disso porque já
fui como eles - pior, na verdade. Quando vim até vocês, estava querendo culpá-los pela morte de Brenna. Queria encontrar criaturas bárbaras nas quais descontar meu
ódio. - A expressão dura se suavizou. - Mas encontrei vocês. E... - O guerreiro fraquejou, passando a mão pelo rosto quando as emoções que manteve sob controle durante
semanas o dominaram. - E eu...
- Não se preocupe, Cuchulainn! - Uma vozinha ecoou da frente do grupo quando Kyna pulou de pé. - Nós entendemos. Você não nos conhecia na época.
- É, você não nos conhecia na época - ecoou Liam.
Então, como uma maré quebrando barreiras, todas as crianças estavam de pé correndo na direção do guerreiro solitário. Brighid bufou e recuou depressa quando elas
o engolfaram, afagando-o com suas mãozinhas e oferecendo palavras infantis de conforto. Cuchulainn ficou em pé por um momento, um gigante em meio a silhuetinhas
aladas, olhando impotente para o grupo. E então, com um profundo suspiro, agachou e abriu os braços para elas. Incrédula, Brighid observou lágrimas silenciosas fazerem
trilhas úmidas pelo rosto de Cuchulainn.
- E assim começa - disse Ciara.
A caçadora não sabia se era bom ou mau sinal que a habilidade assustadora de Ciara de aparecer sorrateira tivesse começado a lhe parecer normal.
- O que está começando? - perguntou Brighid.
- A cura. Ele está se permitindo sentir novamente.
- A parte da alma dele que está quebrada tem me visitado nos sonhos - disse Brighid, mantendo a voz bem baixa para que apenas a xamã pudesse ouvir.
- Isso não me surpreende. Você e ele possuem uma ligação forte. Seria fácil para Cuchulainn ouvir seu chamado, e natural que respondesse.
Brighid se voltou para Ciara.
- E quanto a você e ele? Que tipo de ligação vocês dois possuem?
Ciara sorriu.
- Não sei se chamaria isso de ligação. Cuchulainn aprecia a graça e a beleza feminina - só isso.
Brighid estreitou os olhos diante da resposta petulante.
- Não o magoe.
A risada de Ciara foi encantadora e musical.
- Não precisa se preocupar com que eu magoe seu guerreiro, caçadora, e algum dia, em breve, perceberá isso. - Ainda rindo, a xamã bateu as mãos e pôs o grupo de
crianças em ordem: - Vamos pedir a bênção de Epona.
As crianças dispersaram e Ciara passou por elas, sorrindo para Cuchulainn ao tomar o lugar do guerreiro no centro do círculo. Cuchulainn assentiu respeitosamente
para Ciara antes de se afastar e ficar de pé ao lado de Brighid. Secou o rosto, e depois passou as mãos úmidas de lágrimas pelos cabelos.
- Você está bem? - perguntou ela.
Ele a encarou e encolheu os ombros timidamente.
- Não planejava ficar emotivo.
- Acho que era exatamente o que as crianças precisavam.
Ele ergueu as sobrancelhas.
- E eu? Era exatamente o que eu precisava também?
Quando Brighid abriu a boca para responder, Ciara ergueu o rosto ao céu e evocou o nome da Deusa: - Abençoada Epona!
O nome da Deusa estremeceu pelo corpo de Brighid - como calor e gelo preenchendo-a ao mesmo tempo. A caçadora ofegou, e quando falou, as palavras vieram mais de
Epona do que dela mesma: - Sim, o que você precisa está aqui também. Verá isso na hora certa.
Cuchulainn encarou a centaura. O poder em suas palavras era quase visível no ar entre eles. Como quando Elphame é tocada pela Deusa.
De repente, como uma pintura ganhando vida, os braços e as asas de Ciara se ergueram acima da cabeça e ela rezou numa voz que era doce e límpida: Entramos hoje em
Partholon
com a força de Epona;
através da luz do seu sol,
da radiância da sua lua,
do esplendor do seu fogo,
da agilidade do seu vento,
da profundidade do seu mar
e da estabilidade do seu chão.
Caminhamos com nossa Deusa
nos cercando e tocando,
nos protegendo e amando.
Salve Epona!
- Salve Epona! - berraram as crianças - Salve Epona!
Cuchulainn podia sentir o calor da magia às suas costas, mas não se virou para unir-se à xamã e seu povo em louvor. Só continuou a encarar a caçadora, hipnotizado
pela luz branco-prateada que coloria suas palavras e se assentava ao redor do seu corpo como um véu diáfano. Brighid retribuiu o olhar, os olhos violeta cheios de
assombro.
- Falei as palavras dela - sussurrou Brighid para Cuchulainn.
- Eu sei. Ainda posso ver a mão da Deusa sobre você - disse ele.
Brighid estremeceu, e então a presença de Epona desvaneceu.
- Por quê? - A voz de Brighid estava rouca de emoção. - Por que Epona usou a mim e não Ciara para falar com você? Não sou xamã, Cuchulainn!
- Não sei, Brighid. Não finjo entender os desígnios de Epona.
Mas algo se agitou bem no íntimo do guerreiro. O leve sopro de uma ideia, mais insubstancial que névoa, sussurrou por sua alma despedaçada: Se eu pudesse, escolheria
Brighid para me falar as palavras de Epona.
Talvez estivesse começando a compreender os desígnios de Epona...
Dezesseis
EMBORA FOSSE MAIS amplo e fácil de atravessar que a entrada secreta que Lochlan e seu povo tinham descoberto, cruzar a Passagem Guardião estava longe de ser fácil.
Adentrar o grande ventre de cor escarlate fora como caminhar numa caverna, ou, pensou Brighid com inquietação, uma tumba ensopada de sangue. A passagem variava em
largura, desde uma estreiteza pela qual um único cavalo mal conseguia passar a áreas de espaço mais amplo que poderia incluir vários guerreiros montados. Mas estreita
ou ampla, a passagem era um desafio. Serpeava como uma garganta retorcida. Rochas dentadas entulhavam o chão, que era feito de xisto - escorregadio e difícil o bastante
para que Brighid se concentrasse em não pisar em falso. E era difícil para ela se concentrar. Ainda estava brigando com o choque. Era inacreditável que Epona tivesse
falado através dela. Mas não havia engano. As palavras que Brighid dissera a Cuchulainn não eram suas - e o poder que ondulara por seu corpo era resultado do toque
de Epona.
Queria que Elphame estivesse com eles. A amiga empunhava o poder da Deusa com facilidade, naturalidade. El podia aconselhá-la, ou, melhor ainda, se El estivesse
ali, então Epona provavelmente a teria usado como canal, em vez de uma caçadora que não tinha vontade de ser a boca de uma deusa.
Brighid franziu o cenho e olhou rapidamente ao redor, preocupada que alguém ouvisse seus pensamentos blasfemantes. Não pretendia ser infiel a Epona. Mas mal conseguia
lidar com os problemas de sua própria vida. Seria uma má escolha para o dom do toque de uma deusa, era imperfeita demais.
- As rochas estão mudando de cor. Devemos ter cruzado a metade do caminho - disse Cuchulainn.
A passagem tinha se alargado e os dois caminhavam lado a lado. Brighid ergueu os olhos para as paredes íngremes que os flanqueavam. A cor de sangue estava dando
espaço para veios marmóreos de cinza.
- Dessa vez não estava ocupado discutindo com você, então notei a mudança de cor - disse ele com um leve sorriso. - Quando todo o vermelho desaparecer, teremos chegado
ao Castelo Guardião.
- Não tinha percebido que as rochas mudaram de cor outra vez - disse Brighid, contente por ter algo inofensivo sobre o que conversar.
- É estranho. Há tanto vermelho nas Montanhas Trier, exceto na área ao redor do Castelo Guardião. Lá tudo é cinza. Treinei lá por quatro anos, e durante todo o tempo
em que permaneci nunca me acostumei à severidade do castelo e da área ao redor.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Ah, eu sei, guerreiros deveriam florescer em cenário austero. O lema oficial é de que isso é encorajador no aprimoramento da concentração na arte da esgrima e
nas exigências físicas da batalha. - Cuchulainn resmungou: - Achei tudo chato e deprimente, encorajador apenas para me fazer trabalhar com afinco para que eu fosse
recompensado com visitas frequentes à minha casa, onde existiam benefícios estéticos mais agradáveis. - Ele deu uma rápida risada. - Suponho que devo a base das
minhas lendárias habilidades com a espada à minha aversão juvenil à paisagem sombria.
Brighid inclinou a cabeça e deu-lhe um olhar apreciativo.
- Isso parece algo que o velho Cuchulainn diria.
Cuchulainn suspirou:
- Eu sei. Eu... - Ele remexeu os ombros. - Depois que falou dos sonhos, eu me senti diferente. - Ergueu os olhos para ela. - Você tornou a ideia de uma alma despedaçada
mais tangível. E se eu acreditar nisso, talvez consiga consertá-la. Quero dizer, nós, talvez nós possamos consertá-la. - Calou-se novamente. - Daria praticamente
qualquer coisa para me sentir normal de novo. Tinha começado a acreditar que a única maneira de escapar dessa dor interminável seria desistir da minha vida. Hoje,
pela primeira vez desde a morte de Brenna, acho que pode existir uma maneira de viver novamente.
O rosto de Brighid corou num fluxo de alívio.
- Estou contente, Cuchulainn. - Foi tudo que conseguiu exprimir.
- Cuchulainn! Brighid! - Ciara chamou e eles pararam, esperando que a mulher alada os alcançasse. - Sei que estamos com pouco tempo, mas as crianças gostariam de
uma pausa. Estão cansadas hoje.
- Seria bom dar uma breve parada. Mas uma é tudo o que podemos ter. Pode avisar a elas que já passamos da metade do caminho, isso deve sustentar a força delas -
disse Cuchulainn.
O sorriso de dentes afiados de Ciara cintilou brilhante e feliz.
- Então avise você, Cuchulainn. Vindo de você, sei que vai reanimá-las.
- Vá em frente - disse Brighid depressa. - Vou explorar mais adiante. Notei o rastro de bodes selvagens. Seria bom se pudéssemos entrar no Castelo Guardião com mais
do que apenas bocas famintas para alimentar.
- Boa ideia - disse Cuchulainn. Quando a caçadora se virou para partir, ele lhe tocou o braço. - Seja cuidadosa. As rochas são escorregadias. Meu capão quase caiu
várias vezes hoje.
Brighid encobriu a surpresa com o toque e as palavras com um delicado erguer das sobrancelhas e um franzir da testa.
- Não sou seu capão gordo e desmiolado. - Ela atirou o cabelo para trás e saiu trotando.
- Ele não é gordo! - gritou-lhe Cuchulainn, sorrindo.
- Você é protetor com ela, Cuchulainn - disse Ciara tranquilamente.
O olhar dele se voltou para a mulher atraente ao seu lado. Era simplesmente uma das mulheres mais bonitas que já tinha visto. E não tinha notado realmente sua delicadeza
até ela dançar na noite anterior. Então sua mente processou as palavras dela, e a reação foi automática: - Sim, sou protetor com ela. Brighid é parte do clã MacCallan.
Mas isso não significa que a caçadora não sabe cuidar de si mesma. Ela é uma excelente guerreira também.
O sorriso de Ciara se ampliou.
- E você respeita isso nela.
- Claro - respondeu ele.
- Ótimo. Estou contente por ela ter você como amigo. No futuro, ela precisará dos amigos por perto.
Os olhos de Cuchulainn se estreitaram.
- O que está me dizendo, xamã? Viu perigo para a caçadora?
- Meu dom não é o da premonição. Pelo que entendi, quando era tocado pelo reino espiritual, seu dom de premonição era forte. Muitas vezes soube de eventos antes
que acontecessem.
Cuchulainn resmungou um "sim" áspero. Se o que ela dizia sobre Brighid não fosse tão preocupante, teria cortado logo aquela conversa. Bonita ou não, Ciara era uma
xamã. E Cuchulainn não queria assunto com o mundo espiritual ou seus emissários. Era bem difícil lidar com Brighid e toda a história de alma despedaçada. Mas isso
era diferente. Brighid era como ele. Também não se sentia confortável mexendo com o reino espiritual.
Ciara não ficou abalada com a resposta rude e o comportamento instantaneamente defensivo.
- Minhas premonições nunca foram tão claras quanto as suas. Só tenho pressentimentos vagos, e às vezes o instinto me leva a dizer ou fazer coisas, as razões só ficam
claras no futuro. Tive um pressentimento sobre a caçadora - que a devoção dos amigos terá papel importante nas areias mutáveis de sua vida.
- Então ela está com problemas?
- Não sei dizer. Só posso pressentir que ela precisará dos amigos, ou ao menos de um amigo em especial, bem ao lado dela.
Cuchulainn assentiu num movimento rígido e controlado da cabeça.
- Lembrarei disso, xamã.
- Fico contente. - O sorriso contagiante de Ciara estava de volta. - Comecei a me importar muito com sua caçadora. Ela é uma centaura admirável.
Cuchulainn resmungou novamente:
- Venha, vamos voltar para as crianças. Elas ficarão contentíssimas em ouvir que estamos quase nas fronteiras de Partholon.
Cuchulainn desmontou e guiou o capão até as crianças. Mas sua mente não estava no que diria a elas. Sua mente estava na caçadora loiro-prateada. Ficaria de olho
para que nada lhe acontecesse. Sua irmã o amarraria de cabeça pra baixo e o estriparia se deixasse algum mal acontecer à amiga.
Um calafrio passou por sua pele. Não. Nada aconteceria a Brighid. Ele garantiria isso.
Pedregulhos deslizaram pela lateral da parede íngreme à direita. A caçadora fez cara feia. Escarpado demais. As paredes da passagem eram perfuradas com trilhas estreitas
que serpeavam nas fendas, formando vãos cavernosos ao longo de encostas traiçoeiras. Os bodes estavam lá em cima - seu instinto lhe dizia -, assim como as pegadas
e os tufos de pelo que ela estava rastreando. Mas não conseguia chegar neles. Era extraordinariamente frustrante.
A caçadora trotou obstinada pela passagem, explorando cada trilha lateral enquanto os olhos vasculhavam as paredes procurando um acesso nos vãos e cristas superiores.
Mais pedregulhos choveram da parede íngreme, só que desta vez foram acompanhadas por um oof! abafado.
Não era um ruído caprino. Brighid parou. Seus olhos sagazes perscrutaram as sombras que se alongavam debaixo de cada afloramento de rocha vermelho-acinzentada, até
encontrar uma forma familiar. Ela suspirou. Esta era apenas uma das muitas razões por que caçadoras geralmente escolhiam não ter filhos. Crianças eram incômodas.
- Estou vendo você, Liam. Desça daí. Agora!
A cabeça dele despontou na beira de uma das bordas mais largas. Na melancolia da passagem, seu sorriso parecia infantilmente luminoso e impetuoso.
- Estou flanqueando você há bastante tempo, e você nem notou! É porque estive praticando minhas habilidades de caçadora!
Brighid bufou. Não tinha notado o menino porque se permitira ficar preocupada com os problemas de Cuchulainn, o inesperado toque de Epona e a escolta de um rebanho
de crianças aladas para um país que não queria saber delas.
- Excelente. Bom trabalho - disse ela sem jeito, abrigando os olhos do sol com a mão enquanto examinava o lado oeste da passagem. - Agora desça. É hora de você voltar
e ficar com o resto das crianças.
Nem um pouco desencorajado, Liam inclinou-se ainda mais sobre a borda, parecendo um filhote de passarinho espiando da beira do ninho.
- Ainda não posso voltar. Tenho que ajudá-la!
O estômago apertou e Brighid gesticulou para que o menino recuasse. Odiava alturas. Só de olhá-lo empoleirado na beira, ela ficava indiretamente desconfortável.
- Liam - disse com severidade. - Não fique na beira. Você pode cair.
- Não se preocupe, mestra! Não tenho medo. E posso voar. - As asas cinzentas se desdobraram e ele se atirou para a frente, equilibrando-se quando pegou as correntes
de ar e mantendo-se ereto.
- Bom. Ótimo - disse Brighid apressada, ainda gesticulando para que ele recuasse da beira e tentando ignorar que ele a chamara de mestra - o título oficial que uma
aprendiz usava com a professora. - Vejo que seu equilíbrio é muito bom.
- E estou ficando quieto! - gritou ele.
- Ah, com certeza. Então acho que fez o bastante por hoje. Desça e corra até os outros.
O sorriso de Liam desinflou junto com as asas.
- Mas não pegamos nenhum bode selvagem ainda.
- Bom, uma das primeiras lições que uma caçadora aprende é que nem sempre se pega o bode. - O que ela estava fazendo? Tagarelando. Tagarelices saíam de sua boca.
- Verdade? - perguntou Liam, estudando-a atentamente.
Brighid suspirou:
- Os bodes estão lá em cima. Eu estou aqui embaixo. Portanto, o fato é que não pegarei nenhum bode hoje.
O sorriso radiante e afiado de Liam voltou com força total.
- Posso fazer os bodes descerem!
- Não, você precisa descer e... - Começou a dizer, mas calou a boca. Fazia sentido. Ele estava lá em cima. Os bodes estavam lá em cima. Ela dificilmente subiria
- mesmo que conseguisse, não escalaria aquelas paredes escorregadias e íngremes.
- Sim! Sim! - O garoto saltitou ansioso. - Posso trazer os bodes até você.
Brighid inclinou a cabeça para o lado, considerando.
- Acha que pode encontrá-los?
- Sim! Sim! - Liam olhou para ela e disse num sussurro exagerado: - Quando o vento sopra certo, consigo ouvi-los. Tenho audição muito, muito boa. E também consigo
cheirá-los, têm cheiro forte. - Ele recomeçou a saltitar e depois, num óbvio esforço, acalmou-se. - Estão naquela direção - apontou mais à frente.
Sim, parecia vagamente insano, e era definitivamente uma maneira nada ortodoxa de caçar bodes monteses, mas podia funcionar.
- Tudo bem. Mas só se me prometer que fará exatamente o que eu mandar.
- Prometo! Prometo! - As asas do menino se abriram e ele flutuou pela borda, pulando e dançando alegremente.
- Liam! - A voz de Brighid era severa e o menino congelou. - Uma caçadora aprende logo a controlar seus sentimentos. Especialmente no meio de uma caçada. - Claro
que ele não era mulher, nem centauro nem caçadora... Brighid meneou a cabeça, mais consigo mesma do que para o garoto que a observava com tanta atenção. - Isso é
o que quero que faça: com cuidado e em silêncio, siga a trilha que você encontrou, tentando ouvir o som dos bodes e procurando sinais de que tenham passado pelo
mesmo caminho.
- Terei cuidado e ficarei quieto. Fingirei que sou uma caçadora. - Liam arregalou os olhos e ergueu um dos pezinhos de garra, olhando para ele pensativamente. -
E fingirei que tenho cascos mágicos que não fazem nenhum ruído claudicante quando ando.
Brighid teve que se impedir de revirar os olhos. O menino achava que era um centauro. Possuía asas e garras, e estava fingindo ter cascos. Cascos mágicos, aliás.
Ele era muito imaginativo, o que não faria bem para seu desenvolvimento futuro. Faria? Parecia que quanto mais tempo passava com as crianças, menos sabia sobre elas.
Simplesmente não faziam muito sentido.
- Só finja ficar quieto. Tudo o que precisa fazer é encontrar os bodes. Quando encontrar, volte até mim - quietinho. Quando eu disser que estou pronta, então pare
de fingir que possui cascos mágicos. Pule e berre atrás deles. Mas fique longe da beira, ou fará com que corram montanha adentro. - E faria o estômago de Brighid
enjoar ver o menininho alado pendurado na beira de um abismo íngreme enquanto bodes corriam desvairados. - Você tem que ir por trás deles e depois berrar.
- Entendi. - Liam acenou com a cabeça para cima e para baixo, para cima e para baixo. - Você quer que eu os enxote até você.
- Sim. Exatamente. Estarei acompanhando daqui, debaixo de você na passagem, devagar. Se tivermos sorte, os bodes correrão para longe de você e descerão. - Em teoria,
parecia um bom plano. Ela certamente fugiria de um menino berrando, saltitando e batendo asas. - E diretamente para mim.
- E então você pega um para o jantar! - disse ele triunfante.
- É o que espero.
- Se isso acontecer, serei oficialmente seu aprendiz?
- Veremos - desconversou Brighid. - Ser aprendiz de uma caçadora é um procedimento complexo.
Liam mordiscou o lábio.
- Entendo. - Então sorriu. - Mas farei o meu melhor. Você vai ver. Serei a perfeita caçadora!
- Fazer o seu melhor é sempre a melhor escolha - disse Brighid inutilmente.
E então, num agitar de asas nada centáureas, o menino partiu com o rosto apontado para o vento.
- Tenha cuidado e fique longe da beirada! - gritou-lhe Brighid.
Dezessete
AO MENOS A criança estava quieta. Exceto por um jorro ocasional de pedregulhos que seus pretensos cascos mágicos deslocavam, a caçadora precisava admitir que Liam
estava se movendo silenciosamente na trilha estreita acima dela. Não havia nenhuma risadinha, nenhum bater de asas, nenhuma tempestade de perguntas. Talvez manter
as crianças ocupadas fosse a chave para controlá-las. Brighid ergueu os olhos a tempo de ver a ponta de uma asa desaparecer acima dela conforme as laterais da passagem
desviavam acentuadamente para a direita e Liam seguia o rastro dos bodes ao longo da curva.
Não, ela sabia muito bem. Não estava no controle do menino. Ele estava solto em seu próprio mundo imaginário, onde era uma centaura caçadora mágica. Era pura sorte
que parte de sua pretensão incluísse silêncio temporário. Será que ela era assim quando era pequena? Cheia de fantasias e imaginação enquanto tagarelava incessantemente
e saltitava por aí? A caçadora suspirou. Nem se lembrava de ser tão jovem - era como se tivesse nascido velha, sobrecarregada pelas responsabilidades da tradição
e as expectativas da sua mãe.
A brisa rodopiou por ela, parecendo de repente vários graus mais fria. Brighid estremeceu e ergueu os olhos para o sol poente. Há quanto tempo ela e Liam estava
caçando? A lateral escarpada da passagem era quase completamente feita de pedra cinza naquela seção da trilha cavernosa. Não era de espantar que estivesse mais escuro
ali. Ao menos o vermelho avivava a obscuridade indefinida. O cinza parecia sugar a luz desvanecedora do sol como se as próprias paredes quisessem roubar o espírito
do dia.
A caçadora estremeceu novamente e sentiu o pelo fino da nuca se arrepiar. Seus olhos investigaram as paredes de rocha cinzenta. Para onde tinha ido o garoto? Não
conseguia ver além da curva acentuada. Maldição! Ele não devia estar tão à frente dela. Parou e ficou ouvindo o vento. Aquilo era o balido de bodes? Achava que talvez
sim, então se concentrou mais...
O grito vindo de cima fez com que Brighid puxasse uma flecha da aljava pendurada em suas costas e empunhasse o arco tão rápido que, se alguém estivesse assistindo,
só veria o borrão loiro-prateado do movimento experiente. Ela mirou o arco no som e o fôlego prendeu na garganta.
Circulando acima dela estava uma águia prateada com asas de pontas douradas. Como se esperando por sua completa atenção, a águia desceu planando nas correntes de
ar, dobrando as asas e mergulhando diretamente em Brighid. A caçadora se sentiu uma estátua, congelada com o arco ajustado em posição, incapaz de fazer nada senão
encarar a bela ave que passeava no ar. O olho dourado da águia capturou o olhar de Brighid, e em suas profundezas aquilinas a centaura enxergou o reflexo de sua
própria alma.
Brighid sentiu a conexão. Liberdade... força... coragem... uma buscadora de justiça... uma guerreira... poder usado para o que é certo. As palavras explodiram na
consciência da centaura numa voz clara e familiar. Pertenço a você, e você, a mim. Já era hora de reconhecer nossa ligação, irmã. A águia grasnou novamente enquanto
planava acima do corpo de Brighid, tão perto que o vento debaixo das asas fazia o cabelo de Brighid se agitar.
E como uma mosca preta inoportuna, algo picou em cheio e com força as costas equinas de Brighid.
Um presente. Algo que ficou escondido por longo tempo... Assim como nossa ligação e o poder que é sua herança.
Completamente desequilibrada, Brighid girou e buscou pela ave dourada, a pele equina ainda doendo da picada. Será que tinha sido arranhada pela maldita ave?
Olhe para baixo.
O olhar de Brighid baixou e ela viu a pedra. A cor verde-azulada se destacava no embotado caminho ardósia, um oásis de cor num deserto cinza. A centaura a apanhou,
intrigada com seu colorido esplêndido e a sensação macia e quente contra sua pele. Lembrava-lhe alguma coisa...
Ele precisa de você.
- Ele? - perguntou Brighid ao ar.
A voz em sua cabeça de repente era um grito: Liam!
Liam? Brighid disparou num galope controlado, guardando a pedra turquesa dentro do bolso interno do colete. Enquanto prosseguia apressada, podia sentir seu rígido
formato redondo pressionando acentuadamente a maciez de seu seio.
As paredes e o vento crescente abafavam o som de seus cascos enquanto deslizava ao redor da curva abrupta, os olhos trocando incansavelmente o chão traiçoeiro à
frente pelas laterais íngremes das paredes rochosas. Não havia sinal do menino alado.
- Liam! - chamou ela. O nome do menino ricocheteou assustadoramente nas paredes e voltou até ela como uma lembrança quase esquecida.
Pela Deusa! Ela estava com um mau pressentimento! Nunca devia ter permitido que a criança se separasse do resto do grupo. Ela e Cuchulainn tinham concordado com
a importância de ficarem juntos. Quem sabia quantos perigos escondidos as montanhas pedregosas guardavam? E havia a águia e a voz que lhe avisara que Liam precisava
dela. O que, pelo peitoral prateado da Deusa, significava isso tudo?
E onde estava o menino? Quanto tinha avançado? Não tinha ideia de que ele podia se mover tão rápido. Brighid saltou um monte de rochas e cascalho, tropeçou, depois
recuperou o equilíbrio. Rangendo os dentes e amaldiçoando silenciosamente a maldita aspereza da trilha, aumentou a velocidade.
Mais uma vez a passagem desviou acentuadamente para a direita. Ela derrapou pela curva, quase perdendo o equilíbrio quando os cascos deslizaram pelo chão de rocha
escorregadia. Ali a passagem era mais larga, abrindo-se na extensão de vários centauros. Rochedos cinza pontilhavam perigosamente o chão, tanto que Brighid teve
que desacelerar para abrir caminho entre eles.
Ela pressentia. Alguém a observava. Instintivamente ergueu o arco à altura dos olhos e foi inundada de alívio. Mais adiante estava a forma inconfundível da cabecinha
de Liam e as pontas das asas sobressaindo no abismo. Quando ele viu a caçadora olhando na sua direção, o menino lhe acenou alegremente. Brighid suspirou e baixou
o arco. Liam estava longe demais para ouvi-la, então ela ergueu o braço e sinalizou para que ele fosse até ela.
Qual era o problema da maldita ave? Liam estava bem. Ou aquela voz não tinha vindo da águia? Ela olhou cautelosa para a passagem sombria. Quem sabia que malignidade
espreitava daquelas montanhas? Ciara tinha pressentido algo que a deixara receosa. Talvez os espíritos inquietos de seu povo estivessem vagando por ali. Parecia
provável que gostariam de causar problemas. A pedra turquesa apertava seu seio. Estaria ela imaginando seu calor?
Brighid afastou a confusão da mente. Depois. Quando as crianças estivessem seguras no Castelo MacCallan, então teria tempo para pensar na estranheza daquele dia
e nos vislumbres do reino espiritual que tivera frequentemente durante aquela jornada.
Um presente...
A pele da caçadora ardeu como se outra pedra tivesse caído do céu. A compreensão a fez respirar fundo. Ciara lhe dissera para ter cuidado com o que pedia ao reino
espiritual... A pedra verde-azulada apertava quente seu seio, disparando um fluxo de conhecimento por seu corpo.
Era um apanhador de almas, presente do seu guia espiritual. A ideia a deixou tonta.
Depois! Ela repetia firmemente consigo mesma. A caçadora se sacudiu e olhou para a parede cinza, tentando ver Liam enquanto surgia e desaparecia nas sombras profundas.
Por enquanto apenas esqueceria os bodes selvagens e devolveria Liam ao resto do grupo. Estava ficando tarde; ficariam preocupados com ela, e a ausência do menino
provavelmente já teria sido descoberta. Brighid fez uma careta, imaginando a cena com Cuchulainn quando retornasse com Liam trinando sobre ser seu aprendiz e ajudá-la
nas caçadas.
Ela apertou os olhos diante do movimento ao longo da borda. Liam de repente estava visível, sua forma alada silhuetada claramente no profundo céu cinza-azulado conforme
se esgueirava até Brighid.
A caçadora abriu a boca para gritar para que tomasse cuidado, mesmo que fosse óbvio que a criança estava tão confortável escalando as alturas quanto os esquivos
bodes. Mas não teve chance de falar as palavras.
O dia explodiu em violência.
Brighid ouviu a vibração familiar de uma flecha sendo disparada. Instintivamente, lançou-se à frente.
- Liam! Abaixe-se!
O garoto ficou petrificado, as asas abertas enquanto se equilibrava na beirada. Era uma estátua de pânico. Um alvo fácil. A flecha preta perfurou sua asa direita.
- Não! - gritou Brighid, mas a palavra foi drenada pelo grito de dor da criança. O menino se dobrou. A asa ferida estava tombada na beira do abismo, junto com quase
toda a parte superior do corpo de Liam. Ah, Deusa! Ele vai cair! Os cascos da caçadora batiam no xisto cinza arrancando faíscas conforme cortava o labirinto de rochedos,
sentindo mais do que vendo o caminho, porque não conseguia tirar os olhos de Liam. Rezava fervorosa e silenciosamente para Epona para que não houvesse mais flechas
- que o menino não despencasse para a morte.
- Espere! Estou indo! Não se mexa! - gritou-lhe.
O grasnido da águia soou do alto da parede oposta da passagem. Brighid arrancou o olhar de Liam para ver a águia mergulhando como uma flecha dourada no guerreiro
vestido de preto. O homem largou o arco e usou as duas mãos para cobrir a cabeça, tentando se esquivar das garras da ave.
- Ele é apenas uma criança, seu tolo! - berrou. Brighid viu a cabeça do guerreiro se virar na sua direção e o corpo dele saltar em óbvia surpresa, mas não tinha
mais tempo para ele - teria que confiar que a águia o impediria de disparar outra flecha. Liam precisava dela.
Parou deslizando debaixo do menino.
- Vai ficar tudo bem - gritou-lhe enquanto vasculhava freneticamente a parede de rocha à procura da estreita trilha dos bodes. Os soluços de Liam ecoavam ao redor
dela. Ali! A meia-altura de um equino, parede acima, havia uma trilha grosseiramente escavada. Ela conteve uma praga ao se aproximar. A maldita trilha só possuía
dois palmos de largura! A centaura a seguiu com os olhos. Sim, ficava mais larga - mas talvez apenas outro palmo de largura. Nunca seria capaz de escalar a trilha.
Apesar de toda força e agilidade, era fisicamente impossível. Precisava de um corpo humano para escalar a parede.
Brighid olhou o menino e o estômago revirou. Liam tinha conseguido se arrastar para longe da beira, mas a asa ferida ainda pendia frouxa pela lateral da parede rochosa,
sujando a rocha cinzenta com manchas escarlate.
Chame o guerreiro. A voz estava dentro de sua cabeça novamente. Use sua conexão e chame por ele.
Brighid não precisou olhar para cima. Ouvia os gritos zangados do arqueiro e os guinchos predatórios da águia. Sabia que a voz vinha da ave - sua aliada espiritual.
- Brighid! - Seu nome era um soluço.
- Estou aqui, Liam. - A caçadora pressionou as mãos na lateral da passagem, olhando para o menino ferido. - Você vai ficar bem. Apenas seja corajoso por mais um
tempinho. Pode ser corajoso por mim, não é?
Liam começou a assentir com a cabeça, mas irrompeu num gemido.
- Dói - disse ele, mordendo o lábio para impedir-se de soluçar.
- Eu sei, meu corajoso, eu sei. Mas vou buscar ajuda.
- Não me deixe!
- Não deixarei - garantiu-lhe. - Não preciso.
Os olhos de Liam encontraram o olhar firme da centaura.
- Magia?
- Magia - disse ela. Ah, Deusa, esperava que sim. Fechou os olhos e fez a única coisa que podia - Brighid seguiu seu instinto. Ele viera até ela em sonhos... Sonhos
eram apenas outra parte da consciência... Sempre lá, apenas mais elusivo do que quando se está acordado...
Pensou no amigo, o guerreiro feliz com a risada pronta e a habilidade de atrair pessoas como abelhas para flores silvestres.
Maldição, Cuchulainn! Preciso de sua ajuda! Venha até mim!
Era sua imaginação, ou tinha mesmo ouvido o sussurro da risada de Cuchulainn?
Ciara corria devagar ao lado do capão de Cuchulainn. Com as asas escuras estendidas, usava a caminhada esvoaçante dos fomorianos para manter facilmente o passo com
o cavalo grande.
- Liam não está com os animais, e nenhum dos adultos o vê desde a última parada - disse ela. - Parece ter desaparecido.
Cuchulainn resmungou com contragosto e franziu o cenho para a extensão da passagem que se abria adiante.
- Faço ideia de onde o garoto deve ter ido.
O alívio de Ciara era óbvio.
- Eu nem pensei nisso! Sim, ele deve ter seguido a caçadora.
- Eu não ficaria tão satisfeito. Brighid é muito desagradável quando está zangada. - Era irritadiça mesmo quando não estava zangada, acrescentou Cuchulainn para
si mesmo. - O menino está para aprender uma lição sobre como é ser realmente aprendiz de uma caçadora velha e grosseira.
- Velha? - Ciara riu. - Brighid é jovem e atraente.
Cuchulainn resmungou:
- Ela é velha por dentro. Velha e irritadiça.
Foi no meio da risada de Ciara que ele sentiu. Puxou o capão numa parada repentina. Uma sensação de júbilo, de alegria juvenil desatada lampejou por ele, fazendo-o
ofegar de surpresa.
- Cuchulainn, o que...
O guerreiro não ouviu mais a mulher alada. Com a precipitação de alegria veio algo mais, algo que Cuchulainn não experimentava há muitas fases da lua. Saber o que
estava acontecendo assentou um pesadelo em sua mente quando a visão o atingiu. Viu Brighid através de olhos subitamente ofuscados. As mãos dela estavam pressionadas
na lateral da passagem e sangue descia pelas paredes de pedra ao redor dela. Maldição, Cuchulainn! Preciso de sua ajuda! Venha até mim! As palavras retiniram em
sua cabeça.
- Brighid! - gritou ele. A visão desapareceu. Com isso, a sensação passageira de alegria evaporou e o mundo ao redor dele retornou num rompante.
Ciara estava apertando seu braço e olhando seu rosto.
- O que viu? O que há de errado com Brighid?
- Ela está me chamando. - Cuchulainn se desvencilhou de Ciara. - Diga aos adultos que mantenham as crianças por perto e tenham cuidado.
- Não se preocupe conosco. Vá até ela.
Em vez de responder, Cuchulainn afundou os calcanhares nos flancos do capão e mostrou-lhe a direção.
Dezoito
O VENTO LAMENTOSO tinha cessado. Os gemidinhos de dor de Liam e os murmúrios de encorajamento de Brighid pareciam de repente incomumente altos na passagem ecoante,
então foi fácil para ela ouvir Cuchulainn antes de vê-lo.
- Obrigada, Deusa. - A respiração de Brighid veio à tona numa torrente. - Você está indo bem, meu corajoso. - Ela sorriu para Liam.
- Quero ser corajoso. Caçadoras são corajosas - disse o menino.
- Está sendo uma excelente caçadora, Liam. - O que mais poderia dizer? Se fingir ser um centauro o ajudava a suportar a dor do ferimento e o impedia de tombar da
beirada, então ele podia muito bem continuar fingindo.
Antes que Brighid se voltasse para encontrar Cuchulainn, dispensou uma olhada no lado oposto da passagem. Estava vazia. Não havia nenhum guerreiro de roupa preta
segurando um arco preto. Nenhuma águia dourada mergulhando em ataque. Para onde tinham ido? Não podiam ser alucinações, nem mesmo aparições fantasmagóricas. O ferimento
de Liam era evidência de que não os tinha imaginado.
O capão de Cuchulainn disparou pela área alargada da passagem. Quando ele viu Brighid parada tão perto da parede - tão perturbadoramente semelhante à visão ensopada
em sangue -, o som mortal de sua claymore sendo desembainhada retiniu com intensidade metálica de encontro à rocha.
- É Liam! - gritou ela, apontando para a forma pequena e curvada parada precariamente na beirada.
A expressão dura e pronta para batalha do guerreiro se transformou e suavizou visivelmente. Cuchulainn refreou rapidamente o capão ao redor dos rochedos que os separavam
e galopou para junto de Brighid.
- Pela Deusa! O que aconteceu aqui?
- Não fique zangado comigo, Cuchulainn - disse Liam em tom de lamento.
- Diga que não está zangado com ele - sussurrou Brighid.
Cuchulainn fez cara feia, mas gritou para o garoto: - Não estou zangado, Liam.
- Cuchulainn está aqui para ajudar, meu corajoso - disse Brighid. - Apenas continue quieto e ele vai descê-lo. - Ela se virou para Cuchulainn, falando rápido e mantendo
a voz baixa: - Um arqueiro o acertou. - Apontou para o lugar recentemente vago pelo guerreiro em roupa escura. - Dali. Ele se foi agora. Não sei para onde.
- Ele viu que você estava com o menino?
Brighid meneou a cabeça.
- Não, só depois que já tinha acertado nele. Pareceu chocado ao me ver. - A caçadora teve o cuidado de evitar qualquer menção a águias douradas e vozes em sua cabeça.
O olhar de Cuchulainn se estreitou.
- Como o arqueiro estava vestido?
- De preto - disse ela. - Foi tudo que consegui enxergar daqui.
- Viu a flecha?
Ela assentiu:
- Preta. Era escura como... - Ela prendeu o fôlego diante da súbita conclusão. - Ele era um guerreiro guardião.
- Sim.
- O que ele estava pensando? Podia ter matado Liam.
- Provavelmente estava pensando que estava protegendo Partholon de um demônio alado.
- Mas eles sabem que estamos trazendo as crianças para Partholon!
- Não têm como saber que estamos vindo pela Passagem Guardião. - Cuchulainn desmontou e caminhou até a parede escarpada, estudando a trilha estreita que subia angulosa
pela lateral. - O que todos sabiam é que estávamos guiando as crianças por uma passagem secreta bem a oeste daqui. - Ele vasculhou o alforje à procura das luvas
de couro. - O guerreiro só estava cumprindo seu dever.
Brighid bufou, mas a voz de Liam interrompeu seu revide: - É fogo - falou à centaura e ao guerreiro.
- Eu sei, meu corajoso. Deve ser como fogo. - Ela automaticamente tranquilizou o menino.
- Não. - Ele ergueu a cabeça e apontou debilmente para a parede oposta. - Lá... é fogo.
Os olhos deles seguiram o dedo do menino. Mais adiante na passagem, no mesmo lado em que o arqueiro disparara em Liam, chamas amareladas dançavam no céu que escurecia.
- O que é? - perguntou Cuchulainn ao garoto. - Consegue ver?
Mordendo os lábios, Liam se pôs mais ereto. Brighid abriu a boca para dizer ao menino que ficasse parado, mas a mão firme de Cuchulainn em seu braço a impediu. Liam
lutou por mais um momento, depois, com um gemidinho, sentou-se, a asa pendendo torta sobre o colo.
- É como uma fogueira, só que é a maior fogueira que eu já vi. E não há nada ao redor.
- Bom trabalho, Liam. Aguente firme. Estarei logo aí. - Cuchulainn se encaminhou para a parede, colocando as luvas. Então disse a Brighid: - É o sinal do guerreiro
guardião. As piras são acesas para chamar os guerreiros. Significa que a passagem foi violada.
- Mas não estamos combatendo os guerreiros de Partholon!
- Não, ainda não. Me empurre. Preciso descê-lo. Não vão demorar a chegar aqui.
- Não gosto disso - murmurou Brighid, curvando-se para fazer um apoio para o pé do guerreiro com as mãos cruzadas. Cuchulainn pisou e ela o ergueu para a trilha.
- Tome cuidado - disse a ele. - É estreito.
Ele resmungou algo ininteligível.
Enquanto Cuchulainn escalava a parede escarpada, a atenção de Brighid trocou nervosamente o guerreiro pelo menino ferido que esperava pacientemente no fim da passagem
ampla. O arqueiro era um dos famosos guerreiros guardiões. Deveria ter imaginado - teria percebido quem era caso seus pensamentos não estivessem cheios com crianças
quebradas e pássaros falantes. Nunca tinha ido ao Castelo Guardião, mas sabia que os guerreiros estabelecidos lá eram sempre vigilantes, e que vestiam preto para
demonstrar o eterno lamento pelos erros do passado.
Mais de cem anos atrás, os guerreiros guardiões tinham se tornado complacentes. Partholon estava em paz, e era assim há séculos. A raça demoníaca dos fomorianos
não passava de história antiga, reduzida aos pesadelos das crianças. Ninguém supunha que os demônios estavam se preparando há gerações para retornar a Partholon
como conquistadores e senhores. Os guerreiros guardiões não estavam preparados para o massacre demoníaco e foram facilmente invadidos, permitindo que a morte e o
mal irrompessem em Partholon.
Os uniformes pretos que vestiam agora eram a jura visível a Partholon de que a vigilância dos guerreiros nunca falharia novamente. Eram formidáveis, e Brighid não
apreciava a ideia de lutar com eles. Especialmente quando seus únicos aliados eram um guerreiro deprimido e uma criança ferida.
Seu irmão diria que não tinham nenhuma chance. Raramente concordava com o irmão, mas desta vez era definitivamente uma exceção.
Um grito às suas costas a fez girar. Ciara estava na dianteira dos neofomorianos que adentravam a passagem. Seu rosto adorável estava contorcido numa expressão de
choque e horror enquanto erguia os olhos para Liam. Seu grito logo foi ecoado pelo grupo atormentado que a cercava.
Brighid se aproximou rápido de Ciara.
- Liam está bem. - A caçadora ergueu a voz para que pudesse ser ouvida acima dos gritos das crianças. - Ele foi ferido, mas Cuchulainn vai descê-lo. Agora, por que
não fazemos uma parada, enquanto Ciara acende uma fogueira para aquecer todo mundo?
Ciara ficou muda, fitando Liam por cima do ombro de Brighid.
- Ciara! - sibilou Brighid. - Faça a maldita fogueira e se recomponha.
A mulher alada saiu do atordoamento e, com um aceno de cabeça para Brighid, pediu que trouxessem combustível para o fogo.
Os olhos da caçadora vasculharam o grupo de crianças angustiadas até encontrar um rosto familiar.
- Kyna, não me lembro do nome da sua curandeira. Será que pode me ajudar?
A menininha piscou com lágrimas nos olhos e secou as bochechas molhadas.
- Nara. - A menina olhou ao redor na ponta dos pés, até avistar uma figura adulta que estava vindo até Brighid desde a retaguarda do grupo. - Lá está ela.
- Obrigada, Kyna. - Mantê-las ocupadas, lembrou Brighid consigo mesma. - E, Kyna, preciso da sua ajuda. Será que você e algumas crianças podem se encarregar do cavalo
de Cuchulainn? Talvez escová-lo para que fique pronto para viajar novamente em breve? - Patéticos ganidos caninos lembraram a caçadora de algo mais que merecia cuidados.
- E tenha cuidado especial com Fand. Sabe como ela fica quando Cuchulainn está ocupado demais para tranquilizá-la - acrescentou Brighid.
- Claro, Brighid! - assentiu Kyna com vigor, e imediatamente começou a dar ordens a diversas crianças.
- Sou Nara, a curandeira. - A neofomoriana era alta, magra, com cabelo loiro pálido e olhos num estranho tom de verde-musgo.
A atenção de Brighid ainda vagava agitada. Continuava imaginando hordas de guerreiros vestidos de preto descendo sobre eles com arcos esticados. Falou depressa com
a curandeira, tomando o cuidado de manter a voz baixa para que as crianças não ouvissem: - A asa de Liam foi perfurada por uma flecha. Não faz muito tempo que aconteceu,
mas mesmo daqui de baixo posso dizer que ele perdeu mais sangue do que seria aceitável. Eu não consegui subir lá para estancar o sangramento, e ele estava fraco
demais para conseguir descer sozinho. - Ela olhou nos olhos da curandeira. - Ele está com muita dor.
A curandeira tocou o braço da centaura.
- Posso ajudá-lo.
Brighid olhou para o topo da parede rochosa. Cuchulainn estava lá, agachado ao lado do menino. O guerreiro tinha tirado a camisa e estava rasgando-a em tiras para
amarrar a asa de Liam ao flanco.
- Ajudarei o guerreiro a descer o menino - disse Nevin, chamando a atenção de Brighid de volta ao chão.
- Eu também - disse Curran.
- Não, preciso de vocês dois aqui - disse a caçadora incisivamente. - Nara, ajude Cuchulainn com Liam, e depressa.
A curandeira assentiu e, com asas abertas, encaminhou-se pela trilha íngreme com facilidade. Brighid se voltou para os gêmeos.
- Liam foi atingido por um dos guerreiros guardiões - disse diretamente. - O sinal de fogo foi aceso. Os guerreiros estão a caminho daqui. - A primeira reação de
Brighid foi ordenar que os gêmeos armassem os adultos e os trouxessem para a dianteira do grupo, mas a ideia de seres alados recebendo partholonianos com armas fez
seu estômago apertar. Esta não era a maneira certa - não podia ser a maneira deles. Se escolhessem receber os guerreiros guardiões armados, como pareceriam diferentes
dos ancestrais demoníacos? A caçadora respirou fundo. Epona, por favor, permita que eu faça a coisa certa.
- Avisem aos outros adultos. Faça com que fiquem espalhados entre as crianças. Digam para que fiquem sentados, misturados com os pequenos. - Os gêmeos assentiram
devagar.
- Compreendemos. Não somos nossos pais.
- Não, não são. E isso não será o início de outra guerra - disse ela com firmeza.
Dezenove
AS CRIANÇAS TINHAM retomado o estado estranhamente quieto que Brighid estava começando a entender como a reação deles ao medo. Não se queixavam nem choravam como
a maioria das crianças. Ficavam bem imóveis e atentas. A caçadora os respeitava por isso, e agradeceu a Epona pela maturidade deles. Estavam controladas e silenciosas,
sentadas pacientemente num semicírculo ao redor da fogueira acesa às pressas por Ciara, observando Nara manter a asa de Liam cuidadosamente imobilizada enquanto
Cuchulainn carregava o menino borda abaixo.
Brighid teve que se forçar a não gritar para que Cuchulainn se apressasse, então ficou andando de lá para cá inquieta, mantendo os treinados olhos aguçados passagem
abaixo. Ela e Cuchulainn precisavam ir na frente até o Castelo Guardião e confrontar os guerreiros, explicando por que tinham decidido usar aquela passagem e deixando
claro que os neofomorianos não eram uma força invasora dos Ermos - eram um grupo de crianças e adultos esperançosos que receberam da chefe do clã MacCallan a promessa
de um lar.
Os guerreiros guardiões certamente já sabiam de grande parte do assunto. A mãe de Cuchulainn tinha alastrado a notícia dos filhos destituídos de Partholon pelo país.
Se não abertamente aceitos pelo povo, os neofomorianos deveriam ao menos ser esperados. Etain era a Escolhida de Epona, e Elphame era reverenciada como alguém tocada
pela Deusa. A aceitação delas ao menos garantiria que o povo partholoniano não levantasse armas contra os híbridos. Fazer isso seria um ato de desafio contra a própria
Epona.
Porém, Liam fora atacado.
- Nara, fiz uma cama para ele perto do fogo - avisou Ciara.
Brighid deixou a silenciosa contemplação da passagem vazia para ver Cuchulainn chegando à fogueira com um pálido Liam em seus braços. O menino gemeu quando Cuchulainn
o deitou na grossa pilha de peles. Nara pediu água fervente e começou a misturar ervas enquanto murmurava tranquilizando o menino.
Cuchulainn veio para junto de Brighid.
- Devemos interceptar os guerreiros e esclarecer a situação antes que isso fique pior - disse Cuchulainn.
- Concordo. Quero falar com o guerreiro que tomou uma criança por um demônio.
- Repreender um guerreiro da Passagem Guardião não é a maneira de esclarecer a situação.
- Repreender é o mínimo que eu gostaria de fazer com ele - retrucou ela de cara feia.
Cuchulainn começou a resmungar uma reprimenda quando um lampejo de movimento acima do ombro da centaura fez seu corpo enrijecer. Brighid girou e respirou fundo.
O fim da passagem não estava mais vazio. Dúzias de guerreiros vestidos de negro se aproximavam deles em silêncio.
- Fique do meu lado. Não puxe seu arco - avisou ele.
- Cuchulainn? - O sussurro de Ciara era uma pergunta trêmula.
O guerreiro dispensou uma olhada rápida à xamã.
- Vai ficar tudo bem. - Então seu olhar firme passou de criança em criança, e ele repetiu devagar: - Vai ficar tudo bem.
Olhos grandes o encararam fixamente, brilhantes com confiança e fé.
Sentindo a responsabilidade de aquele jovem idealismo assentar-se com peso sobre ele, Cuchulainn acenou a cabeça para Brighid, então centaura e humano avançaram
juntos para encontrar a linha de guerreiros negros.
- Conhece algum deles? - perguntou Brighid baixinho.
- Ainda não sei dizer. Deveria. Treinei aqui, mas isso foi há muitos anos... - Suas palavras cessaram quando a linha que se aproximava parou de se mover. Um único
e alto guerreiro destacou-se dos outros.
Brighid deu uma olhada em Cuchulainn, e ficou aliviada por ver que a expressão austera do rosto tinha relaxado. Ele interceptou o guerreiro negro e estendeu o braço
para o tradicional cumprimento de camaradas.
- Mestre Fagan, é bom vê-lo - disse Cuchulainn com genuína cordialidade.
O guerreiro hesitou apenas um momento antes de agarrar o antebraço de Cuchulainn e retribuir o cumprimento.
- É bom vê-lo, Cuchulainn MacCallan. Fomos informados de sua missão aos Ermos. Quando o sinal de fogo foi aceso, esperava descobrir você e não uma horda invasora.
Cuchulainn deu uma risada.
- Uma horda invasora? Dificilmente. Estou apenas guiando crianças de volta à terra de suas ancestrais.
O guerreiro mais velho estudou o grupo de seres alados silenciosos.
- Foi o que ouvimos dizer. Mas esperávamos que você os guiasse por uma passagem menor que foi descoberta no oeste. Me pergunto por que mudou seus planos de viagem.
- A passagem a oeste era nossa intenção original - antes da nevasca de duas luas atrás. A neve deixou a travessia traiçoeira demais para as crianças, então decidimos
trazê-las pela Passagem Guardião.
- É uma infelicidade não termos sido avisados de sua mudança de planos. Soube que um dos fomorianos foi ferido por um dos meus homens.
- Ele não feriu um fomoriano. Disparou numa criança, não num demônio. Há uma distinta diferença entre os dois. - A voz de Brighid era dura, e ela pensou - com satisfação
- que soava tão soberba quanto a mãe.
Fagan inclinou a cabeça para trás e estudou a centaura por trás de seu nariz longo.
- Você deve ser a centaura Dhianna que deixou a manada e se juntou aos MacCallan.
Os olhos de Brighid se estreitaram perigosamente, mas antes que pudesse falar, Cuchulainn fez apresentações apressadas: - Mestre Fagan, esta é a caçadora do clã
MacCallan, Brighid Dhianna.
- Posso supor que a águia pertença a você, caçadora? - perguntou Fagan.
Brighid ignorou o arregalar surpreso dos olhos de Cuchulainn.
- A águia não me pertence, mas fiquei grata porque Epona a chamou em meu auxílio. Ela salvou a vida do menino.
Fagan lhe deu outra olhada longa e contemplativa.
- Seria uma tragédia matar uma criança inocente. Se a criança é, de fato, inocente.
- Esta criança em particular é meu aprendiz - disse Brighid com firmeza. - Então, quando você questiona a honra dele, questiona a minha.
- Entendido, caçadora - disse o mestre espadachim, sustentando o olhar de Brighid sem piscar.
Brighid não gostou do tom de voz, mas antes que pudesse lhe dizer isso, Cuchulainn estava fazendo um gesto amplo e magnânimo com o braço.
- Venha, mestre! Deixe-me apresentá-lo aos neofomorianos e suas crianças.
Relutantemente, o mestre espadachim deixou de encarar a caçadora. Com óbvia descrença, perguntou: - Neofomorianos?
Brighid ficou satisfeita por ver o rosto de Cuchulainn endurecer e o tom de voz perder a cordialidade: - Esses não são os demônios que nossos ancestrais combateram
e baniram. São inocentes daqueles feitos. Seria de esperar que um homem tão sábio quanto meu antigo mestre fosse capaz de não prejulgá-los.
- E seria de esperar que o guerreiro que perdeu recentemente sua prometida para a loucura dessas criaturas fosse mais cuidadoso em quem depositar sua confiança.
- Não se esqueça, Fagan, que não sou mais um jovem novato estudando ao seu dispor. O assassinato da minha prometida aconteceu antes do sacrifício da minha irmã,
que dissipou todos os vestígios dos demônios do sangue dos híbridos.
Desta vez foram as palavras de Brighid que quebraram a tensão fervente: - Mestre Fagan, você conhece Cuchulainn. Também sabe o que ele perdeu. Se ele os perdoou
e aceitou, isso não fala a favor deles? Faria menos do que demonstrar respeito pelo amor que Cuchulainn tem por eles?
Os olhos de Cuchulainn encontraram os dela. Parecia tão surpreso quanto Brighid se sentia com as próprias palavras. O amor não era uma emoção da qual falava abertamente
- simplesmente não era o jeito dela. Mas sentia a propriedade do que tinha dito, com um conhecimento instintivo no qual começava a confiar com cada vez mais facilidade.
Cuchulainn realmente amava os neofomorianos. Eles provavelmente tinham salvado a vida dele.
E quanto aos sentimentos dela? Tinha acabado de proclamar ao Mestre Espadachim dos Guerreiros Guardiões que o pequeno Liam, um menino híbrido, era seu aprendiz.
Será que tinha se apaixonado por pelo menos uma das crianças?
Nunca se considerou maternal - era exatamente o contrário, na verdade. Mas conhecia bastante do mundo para compreender que o sangue não criava automaticamente uma
mãe ou uma família. O amor, sim. E a confiança. E a bravura. E a honestidade. Liam tinha todas essas coisas em excesso. Ele também, decidiu irrevogavelmente, tinha
a ela.
- Vá na frente, caçadora - disse Fagan, com um súbito sorriso que transformou o rosto rude. - Deixe-me ver os chamados neofomorianos que parecem ter enfeitiçado
não apenas meu pupilo favorito, mas também uma famosa caçadora.
Brighid inclinou a cabeça numa pequena reverência de aquiescência, mas seus olhos faiscaram para os guerreiros negros que enchiam a passagem e permaneciam obviamente
armados e de guarda.
- Nunca encontrei um guerreiro guardião antes, mas segundo as histórias que ouvi, me surpreende que fiquem armados contra um grupo de crianças - disse a caçadora
com sarcasmo pouco velado.
- Guerreiros guardiões não assustam crianças - disse Fagan.
Brighid levantou uma sobrancelha com zombaria.
Em resposta ao leve movimento do braço de Fagan, o exército entrou numa posição mais relaxada.
- Minha guarda, venha a mim! - berrou Fagan, e seis guerreiros se destacaram da dianteira da linha para se juntarem a eles.
O sorriso de Brighid era feroz.
- Eu também fiquei nervosa quando encontrei as crianças pela primeira vez. Claro, sou apenas uma mera caçadora e não o Mestre Espadachim dos Guerreiros Guardiões.
- Qual a primeira lição que aprendeu como meu pupilo, Cuchulainn? - disparou Fagan a pergunta para Cuchulainn sem quebrar contato visual com Brighid.
- Permanecer sempre vigilante - respondeu Cuchulainn automaticamente.
- Minha guarda fica comigo - disse Fagan.
Brighid bufou:
- Como quiser, mestre Fagan - disse Cuchulainn. -Mas diga que fiquem com as armas embainhadas. Não há necessidade de que sua vigilância assuste as crianças.
Fagan deu uma ordem rápida aos homens lúgubres. Sem dar mais nenhuma palavra, os três, seguidos de perto pela guarda de elite do mestre espadachim, caminharam em
direção às crianças silenciosas.
Os olhos de Brighid e Cuchulainn se encontraram brevemente com ar de diversão mútua.
- Talvez queira se preparar, mestre - disse Cuchulainn.
As sobrancelhas de Fagan desapareceram na linha do espesso cabelo grisalho.
- Um guerreiro guardião está sempre preparado.
- Sob condições normais, seria de pensar que sim - disse Cuchulainn.
- Mas essas - disse Brighid, compartilhando um ar secreto com Cuchulainn - não são circunstâncias normais.
Eles se aproximaram da fogueira. Nara estava ajoelhada ao lado de Liam. Não precisaram ver o rosto dela para ler a concentração tensa de seu corpo. As mãos se moviam
rápido, e Brighid viu de relance uma agulha de osso curvada conforme se erguia da asa rasgada e depois baixava outra vez. O estômago da caçadora estremeceu quando
percebeu que Nara estava costurando as beiradas rasgadas da asa de Liam. A curandeira escondia a maior parte do corpo do menino com o seu, mas Brighid conseguia
ver que Liam estava bem imóvel, e por um momento sentiu um medo atroz. Será que Liam tinha perdido a consciência? Será que o ferimento era mais sério do que ela
acreditava?
- Ele está dormindo, caçadora - disse Nara sem tirar a concentração do menino. - Dei a ele uma bebida para aliviar a dor e fazê-lo dormir. Não vai acordar senão
amanhã.
- Obrigada - disse Brighid, surpresa por a voz soar tão normal, já que se sentia alguém devastada. Então a caçadora se voltou para Fagan. Numa voz baixa e zangada,
disse: - Esta é a criança que seu caçador acertou. Dê uma olhada no que acha ser um demônio. - Antes que Cuchulainn pudesse detê-la, a centaura agarrou o braço de
Fagan e o arrastou rudemente ao redor do corpo de Nara para que ele tivesse uma clara visão de Liam. Os seis guerreiros da guarda de Fagan avançaram ameaçadoramente,
então a caçadora voltou-se para eles.
- Puxem as armas perto dessas crianças e responderão à minha fúria!
Cuchulainn veio para junto dela.
- E à fúria do clã MacCallan.
Fagan fez um movimento de contenção e os seis homens recuaram com cautela. Mas quando começaram a se afastar, a voz dura de Brighid os deteve: - Não, aproximem-se
de seu mestre. Vocês também devem ver o que desejam destruir.
Hesitantemente, os homens rodearam Nara e espiaram Liam. A criança parecia frágil, pálida e enfraquecida. O rosto redondo estava manchado de lágrimas e terra, e
o cabelo loiro tinha caído sobre os olhos fechados. Uma asa escura estava bem dobrada junto ao corpinho. A outra estava estendida sobre o colo de Nara. O rasgo era
dentado, como se a flecha tivesse arrancado um pedaço irregular em vez de simplesmente perfurar a asa. Sangue gotejava livremente do talho, mesmo com Nara costurando
bem apertado a ferida.
- Se o sangramento não cessar, terei que cauterizar - disse Nara, ainda mantendo a atenção concentrada no paciente -, mas espero que não. Danificaria permanentemente
as membranas da asa em crescimento. Ele é jovem demais para suportar o fardo de ser aleijado.
- Ele vai se curar? - fez Cuchulainn a pergunta quando ficou óbvio que Brighid não conseguia encontrar voz.
- Só a Deusa sabe. Mas ele é jovem e forte - disse Nara, enfim erguendo os olhos do paciente para olhar nos de Fagan. A voz era amigável: - Tem filhos, guerreiro?
- Não. Não fui afortunado - respondeu Fagan.
O olhar da curandeira vagou para os outros seis homens, todos similarmente vestidos de preto.
- Algum de vocês é pai?
Quatro dos seis assentiram lentamente.
- Filhos ou filhas? - perguntou a curandeira num tom conversacional, caloroso.
Os quatro homens olharam para o mestre, que assentiu. Seus homens responderam depressa: - Tenho dois filhos.
- Tenho uma filha.
- Três filhas e um filho.
- Tenho três filhos.
Nara sorriu para cada homem ao responder:
- Foram ricamente abençoados. Digam-me, algum de vocês já cometeu um erro?
Os homens não falaram, mas cada um deles assentiu.
- Não seria terrivelmente doloroso se seus filhos fossem culpados por seus erros?
- Seria - disse o pai de três filhos. Os outros homens assentiram devagarinho.
- Rezo para Epona que nunca conheçam essa dor - disse com honestidade. Então a curandeira voltou seus distintivos olhos verdes para Fagan.
- Guerreiro, acredita que uma criança deva pagar o preço pelos pecados de seu pai? - Não existia malícia em seu tom, apenas um questionamento gentil.
- Não - disse Fagan. - Eu não.
- Então vamos esperar que este menino se cure, porque, do contrário, isso será exatamente o que vai acontecer - ele pagará o preço pelos pecados de um avô que nunca
conheceu.
- Vamos suplicar a Epona que Liam se cure e fique inteiro novamente em breve. - A voz musical de Ciara atraiu o olhar de cada guerreiro. A xamã caminhou com graciosidade
até o grupo de homens e depois, com um movimento fluido, fez uma profunda mesura diante de Fagan. - É bom vê-los, guerreiros guardiões. Sou Ciara, neta da Deusa
Encarnada Terpsícore. Também sou a xamã dos neofomorianos, e os cumprimento em nome do meu povo.
Claramente abalado com a apresentação, os olhos de Fagan se arregalaram quando a bela mulher alada se levantou e sorriu-lhe radiante.
- Eu... Nós não esperávamos... - Ele sacudiu a cabeça, como se para clareá-la. - Todos os guerreiros guardiões são versados na história da Guerra Fomoriana. Foi
relatado que a Encarnada de Terpsícore morreu depois de espalhar a praga da varíola no exército demônio.
- Minha avó, de fato, infectou os demônios com a varíola, mas sobreviveu a ela. Também sobreviveu ao nascimento da minha mãe - disse numa voz clara e doce. - Muitas
das Musas Encarnadas e suas acólitas sobreviveram com ela.
- São notícias inesperadas - disse Fagan.
- Não gostaria de conhecer alguns dos descendentes das nove Musas?
- Eu... - Ele olhou para Cuchulainn.
- As coisas nem sempre são como se espera, mestre Fagan - disse Cuchulainn tranquilamente. - Acho que deve conhecer as crianças.
- Ah! Você é um mestre! - exclamou Ciara. - Qual é a sua arma?
- É a espada.
- As crianças vão ficar deleitadas - disse ela com uma risada jubilosa. Então se voltou para o grupo silencioso sentado pacientemente, os olhos brilhantes fixos
nos estranhos.
Brighid mal podia acreditar que as crianças estavam sendo tão comportadas. Notou muito farfalhar de asas e quase conseguia enxergar a energia nervosa deles. Mas
nenhum deles estava tagarelando ou saltitando. A caçadora sentiu uma onda de orgulho.
A voz de Ciara se ergueu, e com isso Brighid concluiu que a trégua temporária da animação das crianças logo estaria encerrada. Ela deu uma olhada nos inocentes guerreiros.
Bom, ao menos quatro deles já eram pais e talvez estivessem preparados...
A xamã fez um grandioso floreio de dançarina e anunciou: - Que os descendentes das nove Musas levantem e sejam os primeiros a conhecerem Fagan, o Mestre Espadachim
dos Guerreiros Guardiões!
Ah, Deusa, pensou Brighid, agora ela conseguiu. A caçadora se abraçou quando as crianças, todas gritando juntas, pularam de pé como passarinhos engaiolados de repente
libertados.
Com suprema satisfação, Brighid observou Fagan dar um passo automático para trás. Ela procurou o olhar de Cuchulainn e descobriu o guerreiro observando Fagan com
um sorriso sabido. Cuchulainn olhou de relance para ela, que teve que lutar para não rir alto. Felizmente, Ciara bateu palmas e as crianças se aquietaram.
- Elas ficam agitadas quando conhecem pessoas novas - desculpou-se Ciara.
- Não existem outros adultos além de você e a curandeira? - perguntou Fagan.
- Ah, sim. Mas não muitos. - Ciara fitou a multidão de crianças. - Adultos, por favor, apresentem-se - pediu ela.
Espalhados pelo grupo, os neofomorianos adultos se ergueram.
Fagan meneou a cabeça ao contar.
- Mas isso não pode estar certo. São muito poucos.
- São 22 neofomorianos adultos - disse Cuchulainn. - Isso é tudo.
- E quantas crianças são?
- Setenta.
Fagan se voltou para ele com incredulidade:
- Como pode haver tão poucos adultos e tantas crianças?
- Mestre, se nos oferecer santuário esta noite no Castelo Guardião, ficaremos felizes em explicar tudo - disse Cuchulainn.
Fagan olhou do ex-aluno para o menino pálido com a asa rasgada e depois para a massa de crianças que aguardavam ansiosas.
- O Castelo Guardião oferecerá a você e aos neofomorianos... - ele se atrapalhou um pouquinho com o nome do povo - ... santuário.
Vinte
- PREFERIA CARREGÁ-LO EU mesma - disse Brighid à curandeira pela quinta ou sexta vez. Estava caminhando ao lado da maca improvisada de Liam, que foi atada entre
duas das cabras domesticadas. Sempre que o corpo de Liam era sacolejado, a caçadora fazia uma careta.
- É melhor para a asa dele ficar deitado reto e imóvel.
Brighid franziu o cenho com preocupação.
- Caçadora. - Nara tocou o braço da centaura com gentileza. - O sangramento parou. O menino vai se recuperar.
Brighid viu a verdade nos olhos da curandeira e permitiu-se certa medida de alívio.
- Brighid! - A voz profunda de Cuchulainn ribombou até ela desde seu lugar na dianteira da lenta coluna de pessoas.
- Pode ficar tranquila de que Liam será bem cuidado. Vai dormir a noite inteira e acordar pela manhã tremendamente desapontado por ter perdido o primeiro encontro
com os guerreiros guardiões - disse a curandeira.
Brighid bufou com uma risada:
- Terei que lembrá-lo de que foi o primeiro a se encontrar com os guerreiros. - Antes de sair de junto do garoto, inclinou-se e afastou-lhe o cabelo do rosto. Não
sabia por que tinha feito isso, só sabia que lhe parecia certo tocá-lo - garantir para si mesma que ele estava quente e respirando.
Como um garoto tão pequeno poderia causar uma preocupação tão grande?
Crianças... Não era de espantar que os pais, que antes eram jovens e saudáveis, pudessem ficar tão cansados e distraídos.
Deu uma última olhada em Liam antes de sair trotando até Cuchulainn. Estudou a mistura de guerreiros e crianças enquanto seguia caminho até a dianteira do grupo.
As crianças tagarelavam sem cessar por toda parte. Estavam viajando pela passagem sob escolta dos guerreiros guardiões nas duas últimas horas e as perguntas das
crianças não cessavam. Eram como bolas brilhantes de curiosidade impetuosa envoltas em asas. Brighid achava que o som de suas vozes felizes misturadas às respostas
muito menos animadas dos guerreiros era altamente satisfatório.
Aqueles guerreiros não levantariam armas contra as crianças. Não depois de marchar com elas e vê-las como indivíduos. Verdade, disse ela, contendo outro sorriso,
poderiam correr caso se deparassem com uma criança alada numa passagem escura, mas definitivamente não a atingiriam.
- Brighid! - chamou Cuchulainn de novo, gesticulando para que ela se aproximasse dele.
A caçadora aumentou o passo, alcançando o capão de Cuchulainn com facilidade. Brighid notou com uma nova onda de divertimento que Fagan e Cuchulainn tinham se afastado
bastante do grupo principal para se distanciarem das crianças questionadoras.
- O Castelo Guardião é logo depois da próxima curva. Fagan mandou mensageiros na frente para preparar o castelo - disse Cuchulainn.
- Cuchulainn descreveu os abrigos singulares que os híbridos carregam consigo. O pátio do Castelo Guardião deve ser lugar mais do que adequado para que montem o
acampamento esta noite - disse Fagan.
Todos os vestígios de humor sumiram, e Brighid deu uma olhada desdenhosa no mestre espadachim.
- Está tão relutante em aceitar os neofomorianos nos seus alojamentos para visitantes que deixaria crianças no frio?
Cuchulainn começou a responder, mas a mão erguida de Fagan a interrompeu.
- Entendeu mal, caçadora. O Castelo Guardião não possui acomodações luxuosas para visitantes. Somos um castelo militar. Nosso único propósito é a defesa de Partholon.
Simplesmente pensei que as crianças ficariam mais confortáveis dentro de suas próprias tendas, que podem ser erguidas dentro da segurança e do calor dos muros do
castelo. Minha oferta de santuário é genuína.
- Assim como a flecha que cortou a asa de Liam - retrucou Brighid.
Em vez de reagir às palavras de Brighid com raiva, o mestre espadachim lhe deu uma olhada longa e pensativa.
- Sua raiva é compreensível, caçadora. As crianças são afortunadas por terem encontrado uma protetora tão feroz.
O olhar duro de Brighid não vacilou.
- São apenas crianças, mestre Fagan.
- E você se comprometeu a levá-las em segurança até sua chefe de clã.
- Estamos comprometidos nisso - disse Cuchulainn com firmeza.
- Entendido - disse Fagan. - Não importa o que vocês dois pensem, respeito a promessa e a diligência com que a estão cumprindo.
O mestre espadachim olhou por cima do ombro para os guerreiros que ainda marchavam em formação, embora grupinhos de crianças falantes, risonhas e perguntadoras estivessem
espalhados pelas fileiras. A voz áspera de Fagan ribombou numa risada seca, que ele rapidamente limpou da garganta.
- Quando soubemos que os descendentes dos fomorianos tinham sobrevivido à guerra e sido descobertos nos Ermos, imediatamente coloquei os guerreiros guardiões em
alerta máximo - prosseguiu ele. - Cautelosos, esperamos para ver se Partholon precisaria de nossos braços. Depois a assassina, Fallon, chegou ao nosso castelo. -
Sua mandíbula trincou enquanto escolhia com cuidado as palavras: - Ela é bem louca, uma criatura vil cheia de ódio. Sabem que o companheiro dela escolheu ficar junto
dela na prisão. Keir não é louco, mas Fallon o envenenou. Ele é triste, uma criatura retraída que não merece confiança. Os dois foram nossa apresentação ao que vocês
chamam de neofomorianos. Como poderíamos esperar qualquer coisa, exceto mais criaturas como aqueles dois? Mas essas crianças aladas. - Fagan ergueu as mãos e as
deixou cair nos lados. - A gentil curandeira... - ele meneou a cabeça como se em descrença e passou a mão pela testa - ... e a bela xamã alada. - Meneou a cabeça
novamente. - Não esperávamos nada assim. Acredito que Partholon ficará tão surpreso quanto meus guerreiros e eu ficamos hoje.
- Ninguém imaginava as crianças, Fagan - disse Cuchulainn. - E os adultos são seres honrados que só desejam retornar à terra de suas ancestrais e viver em paz.
- O futuro se provará... - o velho mestre espadachim se calou quando uma torrente de risadinhas irrompeu atrás dele - ... interessante.
Acompanharam a curva na passagem e pararam de imediato quando o Castelo Guardião assomou diante deles. Sob a luz fraca do sol poente, parecia um grande fantasma
cinza. Um maciço portão de ferro selava a passagem, e os muros grossos do castelo, entalhados na própria montanha, bloqueavam a entrada final em Partholon.
- Ooooh! É tão grande! - A exclamação de Kyna espalhou-se facilmente pela multidão silenciosa. Vários dos guerreiros não conseguiram evitar responder com uma risadinha.
- Gosto da cor - disse outra vozinha. - Me lembra os dias chuvosos.
- Não gosto de dias chuvosos. Seria melhor se alguém pintasse figuras bonitas nas paredes. Talvez flores e meninas - disse Kyna, e sua ideia desencadeou outra avalanche
de tagarelice infantil.
Fagan logo ergueu o braço, acenando para que a guarda do portão erguesse a tranca de ferro. Os homens começaram a conduzir as crianças para dentro das paredes do
castelo.
Uma vez dentro do Castelo Guardião, Brighid e Cuchulainn ficaram de lado, encorajando as crianças a seguirem entre fileiras de guerreiros negros para dentro do pátio
interno. Fagan os deixou temporariamente para que pudesse reunir os outros mestres de armas. Cuchulainn explicou a Brighid que a supervisão do Castelo Guardião não
era como a de um típico castelo de clã. A posição de chefe era dividida entre os vários mestres de armas, já que a função do castelo era unicamente defesa e treinamento.
Brighid o ouvia, mas mantinha vigilância nos arqueiros que se alinhavam nos muros do castelo. Sentiu a presença opressiva deles no momento em que atravessou o portão
de ferro.
- Fagan é confiável - garantiu-lhe Cuchulainn. - Ele nos ofereceu santuário. Não quebrará sua promessa de proteção.
- Não estou tão preocupada com Fagan quanto com eles. - Ela ergueu o queixo para a silenciosa parede de guerreiros.
- Olhe com mais atenção. Leia os rostos deles.
Brighid tirou a atenção dos arcos e espadas e se concentrou nos rostos dos guerreiros, e sentiu um sobressalto de surpresa. Os homens e mulheres do Castelo Guardião
estavam olhando com fascinação para as crianças.
- Estão intrigados com elas - disse Cuchulainn baixinho.
- Porque pensavam que eram monstros - retrucou na defensiva.
- Não era o que pensávamos antes de conhecê-las?
A caçadora abriu a boca para negar, mas descobriu que só podia bufar seu descontentamento: - Se uma caçadora saturada pode aceitar uma criança alada como aprendiz,
talvez os guerreiros do Castelo Guardião possam ver nelas mais do que inimigos também - disse Cuchulainn.
- Parece que sua alma está se sentindo melhor - resmungou ela. Não gostava de ser lembrada da proclamação pública de que fizera oficialmente de Liam seu aprendiz.
Estava certa de que isso voltaria para atormentá-la.
- Estou melhor. Não inteiro, mas melhor. - Seus olhos varreram a multidão. - Não perguntou como cheguei até você hoje.
- Não houve tempo. Presumi que não estaria muito atrás de nós e que ouviria a mim ou Liam, ou que saberia que algo estava errado.
- Realmente a ouvi, mas na minha cabeça.
- Sua cabeça? Não entendi... - Mas então compreendeu. - Você foi tocado pelo mundo espiritual. Recebeu uma premonição.
Os lábios dele se retorceram numa paródia de sorriso.
- Mais especificamente, acredito que a parte da minha alma que anda visitando seus sonhos me tocou e me deu o que seria um bom empurrão lá na passagem.
As sobrancelhas de Brighid se ergueram.
- Aquilo... ele... eu. - Cuchulainn suspirou fundo. - Seja lá como eu deva chamar a outra parte de mim, não ficou. E não entendo por que não ficou. Teria sido tão
mais fácil se tivesse ficado. Você não teria que fazer qualquer jornada ao Outro Mundo, e poderia se livrar do fardo de ser responsável pela minha saúde espiritual.
A caçadora deu de ombros.
- Não é exatamente um fardo, Cuchulainn. Na verdade comecei a pensar nisso como a caçada por uma presa incomum. Só tenho que encontrar a parte ausente da sua alma
e trazê-la de volta.
- Então anda rastreando por ela?
O divertimento que cintilou nos olhos verde-azulados lembrou Brighid do despreocupado Cuchulainn que aparecia em seus sonhos. Ele vai se curar! De repente acreditou
nisso com um feroz ímpeto de felicidade. Mas não deixaria que Cuchulainn soubesse o quanto tinha andado preocupada com ele - não queria que ele olhasse para trás
e ficasse preso em considerações e recordações tristes. Então manteve rédea firme na satisfação, e arqueou uma das sobrancelhas.
- Uma caçadora bem-treinada aceita qualquer serviço de rastreamento por seu clã, não importa o quanto seja odioso ou desagradável - declarou numa voz bem sofrida.
Felizmente Fagan os interrompeu, antes que Cuchulainn pensasse numa resposta bem irritante: - Os mestres de armas gostariam de ver vocês dois e a líder dos híbridos
- disse Fagan.
- No Grande Salão? - perguntou Cuchulainn.
Fagan assentiu.
- Chamarei Ciara e os encontrarei lá - disse Cuchulainn.
Claro que ele se voluntaria para chamar Ciara. Brighid fez cara feia enquanto observava o amigo vagar pela multidão de crianças e guerreiros para encontrar a xamã.
Ele está se curando, e para Cuchulainn a vida não está realmente inteira sem uma linda mulher. A ideia devia agradá-la - era mais uma prova de que Cuchulainn seria
ele mesmo novamente.
- Caçadora?
- Desculpe, mestre Fagan - disse Brighid, logo recolocando os pensamentos em ordem e acompanhando o guerreiro ao longo da margem do pátio. - Esta é a minha primeira
viagem ao Castelo Guardião. Me sinto distraída pela... - o olhar passeou pela linha silenciosa de arqueiros estacionada ao longo da muralha externa do castelo -
... arquitetura.
- Sempre vigilantes, caçadora. Somos sempre vigilantes - disse ele com um sorriso duro.
Como a centaura não respondeu com um sorriso semelhante, o mestre espadachim parou e buscou seu olhar.
- Dou a minha palavra de que seus neofomorianos são o que parecem, nenhum deles corre perigo por parte dos guerreiros guardiões.
- São exatamente o que parecem, mas não são meus neofomorianos - retrucou Brighid.
- Bom, um deles certamente é seu. - O sorriso cansado de Fagan retornou, e ele deu uma risadinha enquanto a guiava novamente pela parede do pátio. - Uma centaura
caçadora aceitando um menino como aprendiz, e o menino tem asas.
Brighid apertou os lábios e não disse nada. O maldito mestre espadachim estava certo. Seu jovem aprendiz possuía asas - e só uma delas estava em ordem no momento.
E ela pensava que a vida seria mais fácil quando se unisse ao Castelo MacCallan.
Vinte e Um
HAVIA TRÊS OUTROS mestres de armas esperando por eles no Grande Salão. Estavam sentados em três das quatro cadeiras parecidas com tronos em cima de uma plataforma
de pedra. Fagan deixou Brighid para tomar seu lugar na cadeira com a figura de uma claymore esculpida no encosto alto e régio. Cuchulainn e Ciara chegaram, então
Fagan começou as apresentações: - Deixem-me apresentar nossos mestres de armas. - Ele apontou primeiro para uma mulher de meia-idade, magra e de feições afiladas
que estava sentada numa cadeira decorada com cavalos arrojados. - Glenna é nossa mestra de cavalaria. - A mulher assentiu, os olhos inteligentes fixos com curiosidade
e sagacidade em Ciara.
- Bain é nosso recém-nomeado mestre de combate - disse Fagan. De constituição poderosa, Bain era claramente o mais jovem dos quatro. O espesso cabelo preto intocado
por qualquer vestígio de cinza.
- E Ailis é nossa mestra arqueira. - A mulher assentiu de leve em reconhecimento à apresentação de Fagan. Era de idade indeterminada - a pele era envelhecida, mas
o corpo era firme e musculoso. O cabelo loiro fora cortado curto, acentuando a linha forte do queixo e as maçãs altas. Todos os mestres estavam vestidos de preto
como os guerreiros, mas o ar de comando preso a eles os diferia.
Cuchulainn deu um passo adiante e fez uma reverência formal.
- É bom vê-lo novamente, Cuchulainn MacCallan. - A voz da mestra de cavalaria era agradavelmente feminina e cheia de cordialidade. Brighid se viu estudando Glenna
com mais atenção, imaginando o quanto tinha conhecido Cuchulainn quando ele estudava no castelo.
- É bom vê-la, mestra Glenna - disse Cuchulainn gentilmente, depois se curvou para cada um dos outros dois mestres. Embora os mestres fossem cuidadosamente polidos,
era óbvio que a atenção de todos estava concentrada na mulher alada que permanecia silenciosa ao lado de Cuchulainn.
- Fico satisfeito em apresentar a caçadora de MacCallan, Brighid Dhianna - disse Cuchulainn.
Brighid se curvou formalmente para cada mestre.
- E também gostaria de apresentar Ciara, xamã dos neofomorianos e neta da Musa Encarnada Terpsícore.
Ciara deu um passo à frente e afundou graciosa numa mesura profunda e formal.
- Estou honrada em conhecer cada um de vocês, e agradeço pela oferta de santuário ao meu povo.
- Você é líder e também xamã de seu povo? - perguntou Glenna.
Ciara se levantou e voltou seu sorriso brilhante à mestra de cavalaria.
- Não, mestra Glenna. O líder de nosso povo é Lochlan, que agora está casado com Elphame, a chefe MacCallan. Só estou temporariamente na posição dele, e ficarei
contente em abdicar dela quando nos reunirmos a Lochlan em nosso novo lar.
- Onde está o restante dos fomorianos adultos? - A voz de Bain, embora plácida e cuidadosamente destituída de emoção, fez a pergunta soar como uma acusação.
O sorriso de Ciara não vacilou, e ela retribuiu o olhar firme do jovem mestre.
- A raça fomoriana não existe mais, mestre Bain. O último deles pereceu há mais de cem anos. Meu povo se denomina neofomoriano porque rompemos com os costumes de
nossos ancestrais demoníacos. - O olhar buscou cada um dos mestres de armas, e a voz tomou um tom musical: - Pensem nisso, mestres. Existimos por causa do amor,
o amor que nossas ancestrais sentiam tão profundamente por nós para que tenham desejado viver fora de seu lar. E por causa da fé, a fé que existia dentro de nossas
mães e avós de que seus filhos alados eram mais humanos que demônios. E da esperança de que Epona um dia nos permitiria voltar para casa. Como uma raça nascida no
amor, na fé e na esperança não seria diferente dos demônios que a geraram?
- Pode ser que sim - disse Ailis -, mas nossa experiência com seu povo nos mostrou que há pouca diferença entre os "novos" e os "velhos" fomorianos.
O sorriso de Ciara embotou, mas sua expressão permaneceu franca e nada defensiva.
- Você fala de Fallon e Keir. Eles não representam meu povo, como Cuchulainn e Brighid, e acho que até mesmo o mestre Fagan, poderão dizer. Fallon escolheu a loucura,
e nem mesmo o sacrifício de Elphame pode lavar a mancha demoníaca de sua alma depois de abraçá-la. Keir é seu companheiro. Não pode evitar ser tocado pela escuridão
dentro dela. São versões tristes e deformadas do que nossas ancestrais sonharam para nós.
- Nos pede para ignorar que eles são do seu povo? - perguntou Bain, a voz quase faiscando.
- Peço apenas que não nos julguem baseados nos erros deles.
Antes que Bain pudesse responder, Cuchulainn falou: - Fallon assassinou a mulher que era minha prometida. Tenho todos os motivos para desconfiar de Ciara e seu povo,
mas nas duas últimas luas comecei a conhecê-los e a confiar neles. Deem a eles a oportunidade, e acredito que concordarão comigo.
A mestra arqueira virou-se abruptamente para Brighid.
- Caçadora, soube que aceitou um desses neofomorianos como seu aprendiz.
Brighid ergueu o queixo.
- Aceitei.
- Isso parece bem incomum.
- Eles são pessoas bem incomuns, mestra Ailis - afirmou Brighid.
- Veremos... - murmurou a mestra arqueira.
- Fagan nos contou que há mais crianças que adultos. Pode nos explicar isso? - disparou Glenna a pergunta a Ciara.
Mais uma vez, a mulher alada não hesitou em responder: - Os outros adultos estão mortos. Alguns deles escolheram acabar com a própria vida quando a loucura no sangue
deles se tornou insuportável. Alguns, como Fallon, aceitaram livremente a loucura. Esses nós afastamos do nosso assentamento. Pereceram nos Ermos.
- E você diz que essa loucura foi limpa do sangue de vocês?
Brighid ouviu a descrença no tom da mestra arqueira, e sentiu a própria raiva se agitar. Ciara precisava se manter calma e educadíssima. Não acontecia o mesmo com
a caçadora: - O sacrifício da minha chefe de clã os lavou do sangue demoníaco - disse Brighid. - Sabem disso. Acredito que receberam notícias disso da própria Escolhida
de Epona. Estão questionando a palavra de Etain?
- Não duvidamos da palavra da Escolhida - disse Glenna, apressada.
- Então é a palavra de minha irmã que questionam?
Brighid ficou satisfeita por ouvir o desafio na voz de Cuchulainn.
- A veracidade de sua irmã está bem comprovada. Ela foi tocada por Epona antes de nascer - afirmou Glenna, o tom muito mais conciliatório.
- Então não deve mais existir perguntas quanto à permanência da loucura no sangue dos neofomorianos. Questionar isso seria questionar a honra de minha mãe e minha
irmã.
- E a do resto do clã MacCallan - acrescentou Brighid.
Fagan, que ficara em silêncio observando a interação entre os outros mestres e os convidados inesperados, enfim falou no silêncio tenso que se seguiu às palavras
de Cuchulainn e Brighid: - Por quanto tempo pede nosso santuário, xamã?
Ciara respondeu com um leve sorriso:
- Apenas por esta noite, mestre Fagan.
- Uma noite? Será que as crianças não precisam descansar mais do que isso?
O sorriso mágico de Ciara se alargou.
- Estamos ansiosos para entrar em Partholon, mestre. É como se a presença jubilosa de nossas ancestrais nos compelisse. Estamos esperando há mais de cem anos para
retornar à nossa terra natal, e estamos impacientes para esperar sequer mais um dia.
- Então que seja uma noite de santuário - disse Fagan.
O sorriso de Ciara varreu os quatro mestres, tocando cada um deles como o calor de uma chama amiga.
- O mestre espadachim e seus guerreiros já conheceram as crianças. O restante de vocês não gostaria de conhecê-las também?
Glenna foi a primeira a se levantar.
- Eu gostaria, xamã. Estou curiosa para ver esses seres que conquistaram tão fácil a proteção de Cuchulainn MacCallan.
- Não diria que Cuchulainn foi conquistado tão fácil, mestra Glenna. - A risada de Ciara flutuou entre eles enquanto os outros mestres de armas se levantavam e desciam
da plataforma para acompanhar a xamã na saída da sala. - Na verdade, as crianças são... bem... tão diligentes e obstinadas quanto formigas operárias quando se focam
em alguma coisa, ou, no caso de Cuchulainn, em alguém. - Mais da risada de Ciara iluminou a sala. - Venham ver por si mesmos.
Brighid e Cuchulainn seguiam atrás do grupo.
- Vê por que ela dá uma xamã tão boa e eu não? Eu os teria descrito como irritantes e insaciáveis, como as moscas pretas mordedeiras dos pantanais - murmurou Brighid
para Cuchulainn.
- Ou pulgas - disse Cuchulainn baixinho. - Pulgas são pequenas, incômodas e incansáveis.
Brighid sorriu para Cuchulainn, notando que apesar de ainda possuir olheiras de cansaço, a expressão era animada e ele caminhava ao lado dela com o passo ágil e
fácil de um jovem guerreiro.
A voz de Ciara flutuava até eles. Brighid podia ouvi-la explicando como cada neofomoriano adulto era responsável por um grupo de crianças e agia como pai para aquele
grupo, houvesse laços de sangue envolvidos ou não. Imersa em conversa com os mestres, Ciara saiu do Grande Salão para o pátio interno. Brighid tocou o braço de Cuchulainn,
impedindo-o de acompanhar o grupo.
- Vamos deixar que sigam sem nós. Acho que faria bem aos mestres experimentar a força total da curiosidade das crianças, sem nossa presença para fragmentar a atenção
deles.
Os lábios de Cuchulainn se ergueram.
- Não sabia que possuía tamanha capacidade para crueldade, caçadora.
Brighid sorriu. Mas a resposta dela foi drenada pelo som de um berro pavoroso: - Não!
Como se fossem um, caçadora e guerreiro correram para o pátio. O imenso quadrado descoberto estava cheio de crianças aladas e guardas vestidos de preto. Os dois
grupos tinham se mesclado enquanto as tendas eram erguidas, mas todo o trabalho cessou ao som do berro horrível: - Não as crianças! Não podem ser as crianças!
Os gritos cheios de ódio vinham de cima, e todas as cabeças se levantaram, olhando a terrível forma alada silhuetada na janela gradeada de uma sala da torre.
- Fallon. - A voz de Cuchulainn tinha ficado fria e morta novamente.
- Abraçando o inimigo! Abraçando o inimigo! Vocês dormiram com a prostituta de Partholon! - As palavras estavam cheias de loucura e asco.
Várias crianças choramingaram, o que pareceu derreter os guerreiros congelados.
- Levem a criatura para uma sala interna! - ordenou Fagan.
Meia dúzia de guerreiros pulou para obedecer o mestre. Conforme passaram correndo por Brighid, Cuchulainn foi logo atrás deles. Trincando o queixo, a caçadora manteve
passo com ele.
- Talvez não seja boa ideia - avisou-lhe Brighid.
Cuchulainn não deu resposta, e Brighid não teve tempo de incomodá-lo mais. Foi necessária toda a concentração para transitar pelos corredores sinuosos sem esbarrar
ocasionalmente num homem ou numa mulher. A caçadora franziu a testa e ficou atrás de Cuchulainn. Os corredores do Castelo Guardião definitivamente não tinham sido
feitos com centauros em mente.
Acabou parando na entrada da torre, bufando de frustração diante da escadaria de pedra estreita e espiralada por onde Cuchulainn tinha desaparecido. Se fosse lá
em cima, teria muito bem que descer de costas - uma proposta potencialmente perigosa, além de embaraçosa. Ela esperaria.
Graças à Deusa, não teve que ficar andando de um lado para outro na entrada da torre por muito tempo. Ouviu o arrastar de pés, além do retinir e chacoalhar de correntes
e vozes abafadas ao longe. Então a gargalhada começou. O som dela subiu pela espinha de Brighid e deixou os pelinhos da nuca arrepiados. Loucura. A gargalhada estava
impregnada de loucura. Brighid a tinha ouvido antes, quando Fallon confrontou Elphame no Castelo MacCallan. Aquilo abalara Brighid até o íntimo na época, e não tinha
menos efeito sobre ela agora.
Um guerreiro vestido de preto apareceu. A espada estava desembainhada e ele segurava a ponta de uma corrente. Então outro guerreiro se tornou visível. Também estava
armado e segurando uma extensão firme de corrente pesada.
Fallon apareceu na escadaria. Brighid ficou completamente paralisada. Assimilava as mudanças em Fallon como se categorizando uma nova espécie que em breve pudesse
ser requisitada a caçar. A criatura estava dolorosamente magra, exceto pelo abdômen distendido. O cabelo branco-prateado estava num desalinho selvagem ao redor de
um rosto que pertencia a pesadelos. Fallon não mais parecia ser mais humana que fomoriana. Mesmo depois de amarrada e surrada no Castelo MacCallan, ela era bela,
mas agora aquela beleza fora distorcida e embotada, e o rosto pálido e lívido fora revertido nas imagens ferozes e esqueléticas dos textos de história. As asas,
embora bem amarradas ao corpo por círculos de cordas, farfalhavam e lutavam para se abrirem. E seu cheiro estava todo errado. Ela estava secretando um aroma pungente
e almiscarado que estava inflamado de ódio e fúria. Automaticamente, Brighid puxou a adaga quando os olhos vermelhos da criatura faiscaram nela e Fallon desnudou
os caninos mortais.
- Outra prostituta de MacCallan! - cuspiu ela. - Eu devia saber que onde o irmão de Elphame estivesse, lá estaria a centaura também, exatamente como no dia em que
me capturaram injustamente. - Fallon girou a cabeça para olhar para trás, num movimento semelhante ao de um inseto. Mais gargalhadas loucas saíram de sua boca ao
arreganhar os dentes. - Mas você estava atrasado demais, não é, guerreiro? Devo dizer como era o gosto do sangue da sua doce Brenna?
Da escadaria, Cuchulainn avançou, atirando-se sobre Fallon, mas foi contido por três dos guerreiros guardiões quando o grupo inteiro se derramou no corredor. Brighid
foi rápido para perto de Cuchulainn, afastando os guerreiros negros. No lugar deles, bloqueou o amigo e usou o poder de seu corpo de centauro para impedi-lo de alcançar
Fallon.
- Cuchulainn! Você concordou em deixá-la viver até dar à luz a criança! - gritou Keir. Ainda estava de pé na arcada da escadaria, também transformado pelo aprisionamento
de Fallon. Os olhos estavam bem fundos na cabeça, o cabelo estava frouxo e desbotado. Ainda parecia humano, mas tinha envelhecido notavelmente. As asas não estavam
presas como as de Fallon, mas ele as mantinha apertadas às costas largas. Também não estava acorrentado, mas um único guerreiro vinha atrás dele, arma desembainhada
e de prontidão.
- Isso mesmo. Não se esqueça de que carrego uma criança! - sibilou Fallon, esfregando o abdômen com os dedos que tinham se tornado semelhantes a garras.
- Não esqueceremos! - rosnou-lhe Brighid, ainda contendo Cuchulainn com esmero. - Estaremos aqui para dar as boas-vindas ao nascimento da sua criança porque isso
marcará o dia da sua morte.
A expressão dissimulada de Fallon se transformou e mudou. Ela cambaleou como se de repente estivesse fraca demais para ficar de pé por si mesma. Keir correu até
ela, envolvendo-a com os braços quando ela desabou sobre ele.
- Nossa criança! Não deixe que falem da nossa criança, meu querido! - soluçou ela.
- Levem-na daqui - disse Brighid, sentindo bile subir pela garganta diante da atitude dramática da criatura.
Os guerreiros arrastaram as duas criaturas aladas pelo corredor, deixando Cuchulainn e Brighid observando até desaparecerem numa escadaria que descia para o interior
do castelo.
- Tinha me esquecido da maldade e do ódio dela - disse Cuchulainn numa voz baixa e tensa. - Como pude esquecer?
- Uma criatura assim é inimaginável. - Brighid meneou a cabeça com descrença. - Não é de admirar que os guerreiros guardiões estivessem dispostos a disparar em qualquer
coisa com asas. Não posso culpá-los depois de ver no que Fallon se transformou.
- Ela é uma fomoriana.
- É a última de sua espécie. Depois que der à luz, nós a executaremos e o mal dessa raça morrerá com ela - disse Brighid.
- É o que gostaria de saber... - disse Cuchulainn, ainda olhando o corredor.
Brighid observou seu rosto. Tinha endurecido novamente naquela máscara impenetrável e insensível que ela não via há dias. Pousou a mão no ombro dele - um gesto de
amizade que se obrigou a demonstrar. Cuchulainn tinha se tornado um estranho frio e perigoso, mas Brighid mirou seu olhar morto.
- Não a deixe arrastá-lo de volta ao passado, Cuchulainn. Se ela o fizer, ela vence. Não deixe o ódio dela vencer.
- Devemos retornar para as crianças - disse Cuchulainn. Ele se virou abruptamente, desvencilhando-se do calor da mão de Brighid, e sem qualquer outra palavra refez
o caminho até o pátio.
Vinte e Dois
DE CERTA FORMA, a perturbação de Fallon tinha sido uma boa coisa para os neofomorianos. Não que Brighid gostasse das crianças tão visivelmente angustiadas, mas ainda
estava para conhecer um guerreiro que conseguisse continuar distante e impassível à visão de crianças impotentes que precisavam ser tranquilizadas. E estava óbvio
que as crianças precisavam ser tranquilizadas.
Quando Brighid e Cuchulainn retornaram ao pátio, foi para encontrar grupinhos de crianças com olhos arregalados e assustados ao redor dos neofomorianos adultos e,
Brighid notou com surpresa, ao redor dos guerreiros vestidos de preto que as escoltaram pela passagem. As crianças aladas não estavam chorando ou demonstrando qualquer
sinal de histeria infantil, mas havia nelas um silêncio terrível e assustador enquanto se mantinham perto do adulto mais próximo.
A reação dos guerreiros guardiões - arcos de prontidão, corpos diante das crianças - aliviou a mente de Brighid imensamente. Não importavam as dúvidas dos mestres
do Castelo Guardião, os guerreiros pareciam aceitar a inocência das crianças, tanto que já estavam sendo protetores.
- Acabou. Ela foi levada para o calabouço - disse Cuchulainn ao se aproximar de Fagan e dos outros mestres perto do centro do pátio. Ele se dirigiu ao mestre espadachim:
- Por que ela já não fica mantida lá?
- Geralmente fica - explicou Fagan. - Mas as celas internas são frias e úmidas - tremendamente insalubre - e ela está grávida. Deixamos que pegue ar fresco e se
exercite por causa disso.
- Ela não merece essas coisas - irritou-se Cuchulainn.
- Claro que não. Mas está sendo mantida viva pelo bem da criança. Se causarmos a morte dela ou o aborto do bebê, não estaremos contradizendo a razão pela qual nos
foi trazida?
- Ela é má. - A voz de Cuchulainn estava baixa e perigosa. - E precisa ser destruída, tendo ou não aquela cria demoníaca que carrega consigo.
Brighid aproximou-se rápido de Cuchulainn. Desta vez a mão que colocou sobre o ombro dele não teve o toque gentil de uma amiga.
- Basta, Cuchulainn! - exclamou ela, puxando-o para que a encarasse.
Cuchulainn recuou, olhos estreitados, mas antes que pudesse rosnar em resposta, Brighid fez um gesto rígido de impedimento.
- Pare e pense antes de falar. Está assustando as crianças. E elas já estão bem apavoradas.
O olhar de Cuchulainn se inflamou ao olhar para as crianças. Aquelas que tinham ouvido o encaravam com expressões que variavam entre confusão e medo - e algumas
delas, as mais crescidas, o observavam com mágoa nos olhos arregalados.
Brighid se aproximou dele e falou com tranquilidade:
- O que elas não precisam, acima de tudo, é o fardo da incerteza de imaginar que o seu herói guerreiro talvez as odeie. Elas poderiam ser facilmente consideradas
crias de demônios. Será que quer vê-las destruídas também?
O olhar de Cuchulainn vagou pelas crianças conforme Brighid falava. Ela pôde identificar o instante em que suas palavras penetraram o muro de raiva. Os ombros largos
tombaram e Cuchulainn passou uma das mãos, inseguro, pela testa.
- Temos muito trabalho a fazer - disse Ciara em meio ao silêncio desconfortável. - As crianças estão famintas e cansadas.
- Sim, claro - disse Cuchulainn numa voz anormal, polida. - Não devemos perder tempo. Gareth! Cullon! - Ele chamou os nomes de dois dos meninos mais velhos. Hesitou,
depois acrescentou: - Kyna! Ajudem-me a acomodar os animais enquanto as tendas estão sendo erguidas. - O farfalhar de asas respondeu aos chamados quando as três
crianças e a filhote de lobo quase crescida correram para acompanhar o guerreiro carrancudo.
Então, como se a partida de Cuchulainn fosse um sinal de ação, os híbridos, com a ajuda de suas escoltas, retomaram a tarefa de levantar acampamento. Brighid sorriu
tranquilamente para as crianças que continuavam olhando para ela, imaginando silenciosamente quando se tornara advogada dos pequenos e também curandeira involuntária
para os espiritualmente enfermos.
Ciara se materializou silenciosamente ao lado da caçadora.
- É apenas um revés temporário.
- Como pode ter tanta certeza?
- O guerreiro começou a sentir a centelha da vida outra vez. Seu corpo, seu coração, até seu espírito, lembram como é estar inteiro e conhecem a alegria de viver
de verdade. Não será algo do qual poderá fugir facilmente.
Brighid encontrou os olhos da mulher alada. Queria perguntar a Ciara se com isso queria dizer que Cuchulainn estava se apaixonando por ela, e ela por ele, mas as
palavras não vinham. Soavam como palavras ridiculamente idiotas e de mulherzinha, em sua mente. O quanto não soariam pior se faladas em voz alta? E por que isso
era da sua conta? Não era. Não realmente. Que Elphame solucionasse a vida amorosa do irmão. Brighid tinha assumido a tarefa de ajudá-lo a consertar o espírito. Isso
era tudo.
O sorriso de Ciara se aqueceu, e Brighid teve a perturbadora sensação de que a mulher alada estava lendo sua mente. Outra vez.
- Ciara! - Mestre Fagan abria caminho em meio à turba de crianças e guerreiros atarefados. Trazia consigo uma mulher bem-formada, de meia-idade, que ele logo apresentou
como Kathryn, a cozinheira-chefe do castelo, antes de desaparecer por trás do turbilhão de atividade. A mulher volumosa fitava as crianças com fascinação e choque.
- Trouxemos provisões conosco - assegurou-lhe Ciara, mas a cozinheira dispensou a oferta implícita da xamã.
- Convidados que recebem santuário no Castelo Guardião não alimentam a si mesmos - disse Kathryn com rispidez. - Basta simplesmente acrescentarmos algumas panelas
no fogo. - Ela coçou o queixo duplo. - Exatamente quantas crianças são?
- Setenta - respondeu Brighid, desfrutando do ar de horror da cozinheira. - E 22 adultos, mais Cuchulainn e eu.
- É um número bem sólido. Pela Grande Deusa! Quantas boquinhas! - Ela se balançou sobre os calcanhares, plantando as mãos na cintura grossa.
Foi então que os guerreiros guardiões começaram a acender as tochas que descansavam pacificamente nos candeeiros de parede dispostos ao redor do pátio interno. A
área se encheu com o calor confortável das chamas dançantes.
Brighid ergueu uma sobrancelha para a cozinheira.
- Está anoitecendo e não conheço o território, mas isso pouco importa. Devo conseguir rastrear e matar algo. Embora provavelmente não seja rápido o bastante para
alimentá-los no jantar.
- O Castelo Guardião está muito bem abastecido! - bufou Kathryn.
- Não consideraria a oferta de Brighid como um presente? - perguntou Ciara.
Os olhos curiosos da cozinheira alternavam-se entre fitar as crianças e a adorável xamã alada.
- Um presente?
- Sim, da nossa caçadora para a sua.
Kathryn olhou de Ciara para Brighid, obviamente tentando decidir se podia aceitar a oferta sem desonrar o castelo. Brighid percebeu o olhar da cozinheira e assentiu
em encorajamento.
- Imagino que um cervo de presente para a refeição da manhã não seria inapropriado. Mas você não estaria presenteando nossa caçadora - estaria presenteando o castelo
em geral. Nossa caçadora nos deixou vários dias atrás.
Surpresa, a mente de Brighid buscou depressa por um nome.
- Sua caçadora não é Deirdre da manada Ulstan?
- Sim, e sentimos muito a falta dela - disse Kathryn. - Embora isso não signifique que estamos necessitados. - A cozinheira esticou a espinha com óbvio orgulho.
- Nossos guerreiros não estão para o padrão de uma caçadora, mas não deixariam o castelo nem seus convidados famintos.
Tinham ficado sem nenhuma caçadora? Como era possível? Não, ela não tinha visto nenhuma centaura por ali, mas uma caçadora nem sempre estava no castelo. É claro
que não seria estranho para ela estar fora rastreando caça, mesmo até bem depois do anoitecer. Brighid meneou a cabeça como se para clareá-la.
- Não entendo. Sua caçadora os abandonou? Sem chamar outra para ficar em seu lugar?
- A partida dela foi inesperada. Um dia, ela recebeu um mensageiro centauro trazendo uma mensagem da Planície dos Centauros. No dia seguinte, tinha ido embora.
- Quando ela volta?
- Em breve, espero. Mas ela não disse quando. - Kathryn encolheu os ombros para a pergunta. - Como eu disse, sentimos falta dela, mas estamos nos adaptando bem.
Minhas panelas não ficaram vazias. Nem ficarão.
- Seria um prazer presentear o Castelo Guardião com a presa de uma caçadora - disse Brighid formalmente, contendo as emoções beligerantes que o anúncio de Kathryn
tinha causado.
A cozinheira hesitou apenas um momento mais antes de lhe fazer uma mesura.
- Aceito seu presente generoso, caçadora do clã MacCallan.
- Vou ao trabalho - disse Brighid.
Ela assentiu para Ciara e a cozinheira e fez uma saída rápida. Agradeceu silenciosamente à Deusa pelo motivo para escapar do caos controlado da arrumação do acampamento.
Precisava de tempo para pensar no que a súbita ausência da caçadora do castelo poderia significar.
Uma caçadora não largava suas responsabilidades e abandonava o castelo, aldeia ou manada sem primeiro preparar provisões para sua ausência. Verdade, ela tinha deixado
o Castelo MacCallan às pressas, mas a caça nas florestas abandonadas era pateticamente fácil de abater. Mesmo um guerreiro estúpido poderia disparar uma flecha num
cervo que fica olhando parado como um bezerro domesticado. Não teria deixado o castelo se não fosse assim - não sem primeiro chamar os serviços de outra caçadora.
Mas uma mensagem chegara para Deirdre, e a caçadora abandonara o castelo imediatamente. Por quê?
Um mau pressentimento estremeceu a espinha de Brighid. Aquilo cheirava a política e intriga dos centauros. O que estaria acontecendo na Planície dos Centauros para
que uma caçadora ignorasse suas responsabilidades?
O mau pressentimento se transformou em dedos de gelo.
Só a doença ou morte súbita de um sumo xamã causaria tamanha reação.
Não! Deirdre provavelmente recebera uma mensagem da própria manada. Um problema de família... Algo pessoal demais para se comunicar.
Mesmo assim, isso não encaixava. Uma caçadora garantiria provisões para seu povo, mesmo durante momentos de emergência familiar. Devia ser algo bem pior... Bem mais
perturbador...
- Caçadora? Quer deixar o castelo?
Acima dela ecoou a voz profunda nas grossas paredes cinzentas. Brighid parou e olhou às cegas ao redor. Imensas portas de ferro lhe bloqueavam o caminho. Pela Deusa!
Nem percebera que tinha alcançado a entrada do castelo. Correntes sustentavam o ferrolho maciço que mantinha as portas seguramente trancadas. Ela olhou para o sentinela
lá em cima e encobriu seu embaraço com aborrecimento.
- E por que eu estaria aqui esperando que você abrisse as portas se não desejasse sair? Quer cervo fresco de manhã ou não?
- Claro, caçadora! - gritou o guarda, acenando em tom de desculpas enquanto fazia seus homens girarem a roda que puxaria o ferrolho.
- Não vou demorar - disse Brighid com rispidez. - Fiquem de olho por mim.
- Sim, caçadora - gritou ele depois que saiu trotando pela abertura estreita. Mas Brighid não foi muito além dos muros grossos antes de parar e respirar fundo.
Partholon...
Por um momento, a confusão dentro dela se aquietou. Mesmo rastreando num território estranho, seus cascos mais uma vez estariam pisando o solo de Partholon. Enfim
tinham deixado os Ermos para trás. Seus aguçados olhos de centaura sorveram da terra que o anoitecer estava lavando em luz fraca.
Como era de esperar, a terra adjacente ao castelo era limpa para que o inimigo não pudesse surpreender os guerreiros guardiões. Mas o chão debaixo dos cascos era
notavelmente mais macio que o solo rochoso e desolado do outro lado das montanhas. A floresta de pinheiros misturada com alguns ocasionais carvalhos teimosos começava
quase a 12 cavalos dos muros do castelo. Brighid desceu a meio-galope a estrada ampla, ansiosa para entrar na floresta verde. Não era compacta como as florestas
ao redor do Castelo MacCallan, mas as árvores eram fortes, retas e verdes. Ela respirou bem fundo. Podia jurar que o ar ali era mais limpo também.
Era como estar em casa, percebeu com um pequeno sobressalto. Não o lar de sua infância, na Planície dos Centauros. Era como o lar de sua escolha quando adulta...
Seu próprio caminho. Parecia-lhe certo.
A caçadora cheirou a brisa fresca e, quando sentiu a limpa fragrância líquida da água, saiu da estrada. Andando quieta sob o crepúsculo, seguiu o instinto, e a caçada
fez sua mágica em seus nervos desgastados. Brighid abraçou com gosto o bálsamo familiar da vida escolhida. Como se fossem escamas, livrou-se do estresse e da preocupação
dos últimos dias.
Brighid desacelerou, cheirando o ar verde novamente. Mudou ligeiramente de direção, seguindo mais para a esquerda. Encontraria o riacho lá. Sabia disso. Podia sentir.
E haveria cervos lá, matando a sede ao seu modo tímido uma última vez antes de irem dormir à noite. Já podia senti-los. Havia vários, não muito adiante.
Pela Deusa, era bom ficar sozinha caçando para um castelo novamente! Precisava da paz e da solidão que a caçada lhe dava - mesmo que fosse uma prorrogação temporária.
A verdade era que sentia falta da simplicidade da vida que esculpira para si mesma no Castelo MacCallan. Anos lidando com as manipulações políticas dentro da família
a fizeram desejar uma maneira diferente de viver, e afundar-se no rigoroso treinamento de caçadora lhe ensinara que preferia o silêncio da terra ao tumulto das pessoas
- fossem humanos, centauros ou neofomorianos.
Brighid movia-se com fluidez em meio aos pinheiros. Podia ouvir o som musical da água ao tombar pelas pedras e correr alegremente para Partholon. Ela sorriu. Sabia
como a água se sentia. Estava tremendamente feliz por voltar para casa.
Sob a luz turva, percebeu o reflexo cristalino da água corrente, então reduziu o passo, puxando uma flecha da aljava com um movimento experiente e silencioso.
Ela estava certa. Havia vários deles. Brighid contou rapidamente. Três corças. Duas obviamente prenhas, uma mais magra e volumosa que as outras - provavelmente dera
à luz o filhote recentemente. Parado um pouco afastado das três fêmeas estava um único gamo. Sua pequena galhada musgosa dizia que ele era jovem demais para ter
ganho os próprios direitos de procriação naquela primavera, mas a atenção concentrada com que observava as corças dizia que ele era velho o bastante para ser obstinadamente
esperançoso.
Com um movimento que era tão mortal quanto gracioso, Brighid mirou e depois disparou uma única flecha. O zunido do arco fez a cabeça do jovem gamo recuar e seu corpo
ficar tenso - bem a tempo para a flecha transpassar certeira a base do pescoço, emergindo pela parede do peito. O cervo cambaleou dois passos para trás, depois,
enquanto as corças desapareciam na floresta que escurecia, ele desabou sobre os joelhos, tombou para o lado e ficou imóvel.
Brighid soltou o ar que estava segurando e caminhou lentamente até o gamo caído. Automaticamente murmurou uma oração de agradecimento a Epona pelo abatimento. Sua
oração era cheia de respeito e apreciação enquanto se concentrava nos momentos finais da vida do jovem gamo: Invoco a ti, ó grande caçadora do céu de verão,
Epona, minha Deusa benfeitora e inspiração.
Agradeço pelo presente deste abençoado cervo.
Apresses a jornada dele até ti.
Que ele seja aceito, cuidado, recompensado.
Ele é meu irmão e amigo.
Olhes favoravelmente para a caça,
para teu povo e as caçadoras,
como tem feito por eras incontáveis.
Deixes os antigos espíritos animais da natureza descansarem
sabendo que recebem a reverência, a honra,
o agradecimento de quem os caça...
Brighid ficou de pé acima do corpo do gamo morto e curvou a cabeça.
... assim como eu reverencio, honro e agradeço a ti,
minha amada Deusa.
Ficou em silêncio por mais um momento, e respirou fundo e purificadoramente por três vezes antes de se abaixar para puxar a flecha do gamo. Quando a soltou, o peito
do cervo explodiu para fora, encharcando-a de sangue coalhado. Brighid cambaleou para trás, buscando a espada curta que sempre carregava na cintura.
Até perceber o que tinha explodido do peito do jovem gamo. Rodeando-a, numa confusão de penas pretas e sangue, estava um único corvo que lhe era bem familiar.
Vinte e Três
- MÃE! - ELA LIMPOU o sangue do rosto com as costas da mão e estreitou os olhos para a ave que a rodeava. - Não sei que jogo está fazendo, mas pare! Até você sabe
que não deve interferir com uma caçadora. Não precisa aprovar minha carreira escolhida, mas, pela Deusa, deve respeitá-la!
A ave preta circulou mais baixo, até que, num alvoroço de asas, aterrissou no corpo coberto de sangue coalhado do cervo morto.
- Deixe-me em paz - disse-lhe Brighid.
- Volte para casa, filha. - A voz da mãe encheu-lhe a mente.
- Estou voltando para casa. Para o Castelo MacCallan. Minha casa, mãe. Minha casa!
- Essa não é sua casa, sua potra tola!
- Não. - A voz de Brighid era de aço. - Não sou criança. Não mais. Tomo minhas próprias decisões.
- Sua manada precisa de você.
- Minha manada ou seu orgulho?
- Insolência!
- Verdade! - contrapôs Brighid. Deu dois passos adiante e encarou a ave preta. - Jamais serei manipulada por você outra vez. Sou caçadora jurada ao clã MacCallan.
Esse é o caminho que escolhi.
- O caminho que escolheu, mas não seu destino...
A voz da mãe desapareceu enquanto, grasnando, a ave abriu suas asas de ébano e, batendo ao vento, ergueu-se repentinamente no ar da noite, desaparecendo na escuridão
expectante.
Irritada, Brighid relanceou o corpo do cervo. Só que agora o ferimento da flecha estava limpo. Nada de peito explodido. Nada de sangue coalhado salpicando a floresta
ou - ela tocou o rosto e sentiu que estava limpo - a si mesma.
- Truques e manipulações de uma xamã - murmurou entre os dentes trincados. Esqueça. Concentre-se na tarefa em mãos. Brighid se abaixou para destripar o cervo, preparando-o
para a curta viagem de volta ao Castelo Guardião. Tentou se perder na familiaridade da tarefa, mas não adiantou. A serenidade da floresta fora despedaçada, assim
como a prorrogação pacífica que encontrara. Por toda parte ao seu redor, ela sentia olhos vigilantes e observadores.
Estava completamente escuro quando os guardas abriram as portas grossas do Castelo Guardião. Mãos ansiosas cumprimentaram Brighid e a aliviaram do cervo enquanto
pessoas a elogiavam e agradeciam. Brighid aceitou a demonstração efusiva de gratidão com desconforto. Aquilo a deixou ainda mais consciente do estado triste no qual
uma irmã caçadora deixara seu castelo. Sua mãe devia estar prestando atenção aos hábitos de centauras errantes em vez de concentrar seu tempo e energia numa filha
rebelde.
Brighid fechou a cara. Não que fosse realmente rebelde. Pela Deusa, por que deixar a manada era uma questão tão abrangente? Sim, era uma tradição dos Dhianna que
a filha mais velha da sumo xamã substituísse a mãe na liderança da manada, mas isso nem sempre acontecia. Houve épocas em que a sumo xamã não teve filhas, ou em
que ela morreu sem produzir uma herdeira. Por que a mãe dela não enxergava que sua sucessão era uma dessas épocas?
Não era como se Brighid não tivesse outros irmãos. Sim, a irmã tinha demonstrado pouca promessa de liderança. Niam era dourada, bela e perpetuamente feliz porque
sua mente era tão vazia quanto a de uma égua parideira. Mas o irmão de Brighid... O maior desejo de Bregon se realizaria quando substituísse a mãe. Machos não eram
proibidos de se tornarem sumos xamãs. A posição de Sumo Xamã de Partholon sempre era ocupada por um macho. Era o centauro que se casava com a Escolhida de Epona
e que ao lado dela liderava Partholon. Bregon receberia com prazer o poder que ser Sumo Xamã dos Dhianna lhe daria, e talvez até acreditaria ter conquistado o que
sempre lutou para conseguir a vida inteira - o amor da mãe.
As sobrancelhas dela se uniram. Pensar no irmão mais novo sempre lhe dava dor de cabeça. Nunca foram próximos. Pelo menos não desde...
- Brighid! Que bom, chegou a tempo para jantar.
A caçadora endireitou os ombros e deixou Ciara arrastá-la para o pátio. Outra maldita xamã... Outra enxerida, intrometida...
- Estava esperando você. Há um lugar guardado para você junto ao fogo. - A xamã lhe deu uma olhada preocupada. - Alguma coisa errada? Você parece...
- Não! Nada errado. - Brighid fez o rosto relaxar e sorriu para a mulher alada. Não deixaria a mãe envenenar a crescente amizade com Ciara. Aquela xamã não era sua
mãe. Não estava espionando; estava preocupada. - Mas estou faminta. Aprecio que tenha esperado por mim.
Entraram no pátio grande e quadrado, e o sorriso rígido de Brighid se tornou autêntico. As tendas estavam dispostas num círculo alegre, embora não tão comprimidas
como quanto estavam nos Ermos. Ali já estavam abrigados do vento mordente da noite pelos muros do Castelo Guardião. Crianças estavam sentadas por toda parte, conversando
com os guerreiros guardiões em exclamações animadas entre mordidas no cozido fumegante e em pedaços de pão aromático.
- Então os guerreiros não desapareceram com a noite -disse Brighid.
- Ah, não. - Ciara riu baixinho. - Parece que os grandes guerreiros do Castelo Guardião foram feitos reféns.
- Reféns?
- Sim. Da curiosidade.
Brighid bufou:
- Ou estão morrendo lentamente de tanto conversar e já perderam a capacidade de escapar.
Ciara riu novamente.
- Não fala sério.
- Falo sim. Não tem ideia do quanto essas vozinhas podem ser perigosas para os não iniciados.
- Quer dizer que um deles pode até fazer uma caçadora aceitar um novo aprendiz? - A xamã sorriu de propósito para Brighid.
- É exatamente o que quero dizer.
Ciara tocou de leve o braço da caçadora.
- Liam está descansando confortavelmente na enfermaria do castelo. Nara ficará com ele durante a noite. Ela me garantiu que ele poderá viajar pela manhã, mas terá
que ser numa padiola.
- Obrigada... Eu... - Brighid se calou e engoliu o nó que repentinamente surgira em sua garganta. - Descobri que desenvolvi afeição pelo menino. - A caçadora parou
de repente. Meneando a cabeça, disse: - Não sei o que há de errado comigo. Anunciei formalmente que Liam era meu aprendiz antes de pedir aos pais dele.
Ela suspirou, completamente incomodada consigo mesma. Já era bem ruim ter quebrado a tradição ao aceitar um aprendiz macho - um aprendiz com asas que decididamente
nem era centauro. Também tinha desconsiderado totalmente o protocolo adequado. Para uma criança tão jovem quanto Liam, os pais deviam ser consultados para se obter
aprovação. Claro, ela era jovem quando começou o treinamento de caçadora, e a mãe definitivamente não dera aprovação - não que isso tivesse impedido Brighid, mas...
- Fique tranquila. Os pais de Liam estão mortos. Se Lochlan estivesse aqui, você poderia pedir a permissão dele, o que eu acho que ele certamente daria. - Ela encolheu
os ombros macios, fazendo as asas farfalharem. - Estou agindo como líder na ausência dele, e fico contente em dar meu consentimento para que Liam seja seu aprendiz.
- Eu devia ter pensado nisso mesmo assim. Não sei por que...
- Seja um pouco mais branda consigo mesma. Aceitou o menino sob circunstâncias incomuns - estava enfrentando os guerreiros que tentaram matá-lo. Acho que até o protocolo
das caçadoras pode ser afrouxado em casos como esse. Venha - disse Ciara. - Coma e descanse. Esta noite poderá dormir profundamente, sabendo que um exército de guerreiros
nos protege.
Brighid bufou e murmurou:
- Fala dos mesmos guerreiros que dispararam no meu aprendiz?
- Isso foi antes - disse Ciara, fazendo um gesto para englobar o acampamento onde os guerreiros guardiões e as crianças aladas se misturavam -, quando não nos conheciam.
Pode relaxar esta noite, caçadora. A única maldade que pressinto dentro dessas paredes vem de um dos nossos, mas ela está seguramente trancada dentro do interior
deste grande castelo.
Silenciosamente, Brighid seguiu Ciara até o círculo amigável da luz do fogo. A xamã a levou para um espaço vazio do tamanho de um centauro. Com um suspiro que estava
perto de ser um gemido, Brighid dobrou os joelhos e reclinou-se na pele grossa que alguém fora atencioso o bastante de lhe preparar. Aceitou agradecida uma tigela
quente de cozido e um pedaço de pão fresco da mulher que a serviu. Era uma comida simples, mas saborosa e satisfatória. Comida excelente para guerreiros, pensou
ela. Guerreiros e crianças famintas em crescimento. Enquanto comia, observava a luz do fogo brincar no rosto das crianças. Nunca conhecera um grupo de pessoas -
especialmente pessoas que tivessem superado tantas dificuldades - tão cheias de alegria.
E os guerreiros guardiões! Aqueles soldados sérios, bem-treinados, homens e mulheres que viviam para proteger Partholon, estavam sorrindo e respondendo à enxurrada
de perguntas infantis.
Ao menos naquela noite, a esperança cintilava ao redor da fogueira. Talvez já tivesse passado tempo suficiente para que as feridas da guerra tivessem sarado. Talvez
Partholon aceitasse essas crianças deserdadas de mães há muito mortas.
A risada familiar de Kyna atraiu seu olhar. Fand estava estendida ao lado dela, lambendo os dedos da menininha, além do rosto, fazendo a criança se derreter em risadinhas.
Brighid não pôde deixar de sorrir. Que estranha mistura faziam: uma filhote de lobo que não deveria ter sobrevivido à morte da mãe, crianças aladas cujos nascimentos
deveriam ser a morte das mães, uma centaura que tinha escapado da mãe...
Não - Brighid reprimiu os pensamentos negativos. Não tinha fugido. Tinha partido e encontrado um novo povo. Pertencia ao clã MacCallan. Tanto que a chefe do clã
tinha mandado Brighid naquela missão para trazer seu amado irmão em segurança para casa. Brighid completaria a incumbência da chefe de seu clã - e descobriria uma
maneira de fazer com que a alma teimosa de Cuchulainn se reunisse a ele nesse mundo. Andava fazendo um claro progresso. Precisava se lembrar de que Cuchulainn ficara
devastado com a perda e...
... E onde estava aquele maldito homem?
Os olhos aguçados da caçadora vasculharam aqueles reunidos em volta da fogueira. A preocupação apertou seu estômago. E se ele tivesse decidido não esperar pelo nascimento
da criança de Fallon para executar a sentença de morte?
O guerreiro seria destituído de sua posição e expulso do clã MacCallan.
Brighid buscou a silhueta alada de Ciara e a descobriu perto da própria tenda, envolvida numa animada conversa com duas guerreiras. Rigidamente, a caçadora foi até
Ciara. Não esperou por uma pausa na conversa. Desculpando-se apressadamente, puxou a xamã alada de lado.
- Cuchulainn?
- Imaginava quando você notaria a ausência dele - disse Ciara.
- Onde ele está? - Brighid lutou para manter a voz baixa e disse a si mesma que não seria bom causar uma cena por agarrar e sacudir a mulher alada.
- Eu o ouvi perguntando a Fagan onde ficavam as sepulturas do castelo. Presumo que esteja lá.
- Presume! Quer dizer que não sabe?
- Verifique por si mesma. - Ciara acenou com a cabeça para uma passagem larga e relvada que cruzava com o pátio quadrado. - Fagan o mandou naquela direção não muito
antes de você retornar da caçada.
Antes que Brighid pudesse disparar atrás dele, a mão da xamã a deteve.
- Ele não vai matar Fallon. Os pensamentos dele estão em outro lugar.
- Ah, agora consegue ler os pensamentos dele também?
- Não. Não posso ler os pensamentos dele nem os seus. Mas sei que a honra de Cuchulainn o impede da matar Fallon. Devia saber disso também.
Fechando a cara, Brighid se desvencilhou e correu pela passagem iluminada por tochas. A maldita xamã estava certa. Agora que pensava no assunto, sabia que Cuchulainn
nunca desonraria a ele ou ao clã descumprindo a sentença de sua chefe. Mesmo assim, Cuchulainn não devia ficar sozinho com suas emoções sombrias. Não depois do incidente
com Fallon. Ele apenas se retrairia em sua concha rígida. Ciara sabia disso!
A passagem dava numa área que parecia uma horta. Uma mulher agachada cortando raminhos precoces de hortelã deu uma olhada curiosa na centaura.
- Estou procurando o local das sepulturas do castelo - disse Brighid.
- Siga o muro, caçadora. Quando o caminho se dividir, pegue a ramificação para o leste. É fácil encontrar as sepulturas junto da parede, na parte elevada que tem
vista para o resto do castelo.
Brighid assentiu em agradecimento. Exceto pelos sentinelas permanentemente presentes no topo dos muros grossos, aquela parte do castelo era deserta. As tochas do
caminho de ronda lá em cima lançavam uma luz pálida e opaca. Quando a parede terminou à direita, Brighid sentiu o chão abaixo dela se erguer até chegar ao cume num
canto arredondado. A área era elevada e pequenos outeiros tinham sido amontoados ao longo de todo o muro. Não existiam efígies ou tumbas esculpidas. Em vez disso,
os guerreiros guardiões tinham escolhido deixar seus mortos descansar dentro de covas.
Curiosa, Brighid reduziu o passo e se aproximou do primeiro monte respeitosamente. Ao lado dele fora colocado um portal arqueado, cuja pedra cinza era belamente
entalhada com nós de formas intricadas.
- Fagan disse que no verão ficam cobertos com flores silvestres azuis.
A voz profunda de Cuchulainn a surpreendeu.
- Poderia me dar algum aviso? Qual o problema com você e Ciara? Gostam de me matar de susto?
- Desculpe - disse Cuchulainn rispidamente. - Pensei que soubesse que eu estava aqui.
- Sabia que estava aqui, mas não aqui. - Apontou para o canto de onde ele tinha saído da escuridão, ao lado de um dos outeiros maiores. - E por que exatamente está
aqui?
- Por causa deles.
Cuchulainn afastou-se para o lado. A porta da sepultura estava decorada com um único desenho entalhado que Brighid imediatamente reconheceu como sendo o Nó da Curandeira
- aquele com um imenso carvalho entrelaçado por nós. Seus galhos erguiam-se altos no céu. Suas raízes se infiltravam fundo na terra. Porém todos estavam entremeados,
significando a interligação de todas as coisas: terra, céu, vida, morte. E de repente ela percebeu o que tinha atraído Cuchulainn até ali.
- A família de Brenna - disse ela. - Tinha me esquecido de que ela viveu no Castelo Guardião. Estou envergonhada de dizer que tinha até esquecido de que os pais
dela estão mortos.
- Nunca perguntei sobre a morte deles, ou sobre o acidente que a deformou. Estava curioso, quis perguntar, mas olhar para trás não me parecia tão importante quanto
me concentrar no nosso futuro. Parecia que tínhamos a eternidade para revelar o passado... - As palavras de Cuchulainn se esvaíram e ele tocou o símbolo da árvore.
- Sabia que foi o acidente de Brenna que provocou a morte dos pais dela?
- Não - murmurou Brighid, sentindo uma onda de tristeza pela amiga falecida. - Brenna não falava do acidente. Nem sabia que os pais estavam mortos até vocês dois
ficarem formalmente comprometidos e você pedir a permissão de Elphame para anunciar os proclamas porque Brenna não possuía parentes vivos.
- Eu também não sabia. Assim como não sabia que a mãe de Brenna tinha sido curandeira também. Fagan me contou a história. Brenna estava com dez anos, não muito mais
velha que Kyna. Estava ajudando a mãe a preparar emplastros para uma tosse bem nojenta que estava circulando pelo castelo. Fagan disse que ela era uma menina esperta,
alegre - mas que sempre estava sonhando acordada e raramente prestava atenção nas palavras da mãe. - Cuchulainn fez uma pausa, engolindo em seco ao se lembrar da
mulher séria e tímida na qual a criança extrovertida se tornara. Só tinha visto vislumbres da criança ainda dentro dela - especialmente depois que ela aceitara seu
amor.
- Não precisa me contar nada disso, Cuchulainn - disse Brighid. - Não se for difícil demais.
O olhar dele prendeu no dela, ardente e intenso.
- Sim, eu preciso! Você é a única aqui para quem posso contar, e talvez se eu falar isso em voz alta, um pouco da dor vá embora.
Brighid assentiu, compreendendo-lhe a necessidade de se expurgar.
- Brenna misturou os baldes. Devia colocar água em um e óleo no outro. Era um dia frio, e ela ficou perto demais da lareira. A ponta do xale que ela amarrou ao redor
da cabeça pegou fogo. Brenna gritou e a mãe instintivamente apanhou o balde que deveria conter água e o atirou no xale.
- Ah, Deusa... - ofegou Brighid, horrorizada com a imagem da mãe colocando a própria filha em chamas.
- A mãe dela se culpou. Brenna era sua única filha, e sua única filha estava morrendo de maneira horrível por causa do que ela tinha feito. Fagan disse que ela enlouqueceu.
Naquele mesmo dia, se encharcou em óleo e se incendiou. Deixou uma carta dizendo que tinha escolhido se juntar à filha.
Brighid sentiu a cabeça sacudindo de um lado para outro, repetidas vezes.
- O pai dela caiu em depressão profunda. Não comia. Não bebia. Não dormia. Recusava-se a visitar Brenna. Numa manhã não muito depois do suicídio da esposa, encontraram-no
morto.
- Pobre Brenna, pobre criança. Ter sobrevivido àquele fogo terrível, e depois se recuperar apenas para descobrir que os pais estavam mortos - disse Brighid. Ela
estremeceu. - Que conhecimento horrível de se ter quando criança - que sua mãe... e seu pai...
- Morreram de alma despedaçada - completou Cuchulainn por ela. Então buscou o olhar de Brighid. - Foi o que aconteceu com ele. Sei disso. Estava acontecendo comigo.
- Estava?
Cuchulainn correu os dedos de leve sobre o símbolo de curandeira na porta da tumba.
- Estava - disse com firmeza. - Não vai acontecer comigo. Não posso deixar. Pode imaginar a dor que Brenna sentiria por mim por me encontrar no Outro Mundo, e por
si mesma quando percebesse que causou a morte de dois homens que amou? - Ele meneou a cabeça. - Não. Você vai ter que fazer a parte quebrada da minha alma retornar.
- Acho que não posso realmente obrigá-lo a fazer nada, Cuchulainn. Ele se parece demais com você - só que decididamente mais feliz. Você precisa convidá-lo a retornar,
e garantir que ele acredite que o convite é verdadeiro.
Cuchulainn resmungou:
- Vou trabalhar nisso.
- Você tem que continuar até chegarmos ao Castelo MacCallan. É quando farei a jornada ao Outro Mundo. Que a Deusa nos ajude!
- Então, mais uns poucos dias - disse ele. Depois acariciou o nó de curandeira por uma última vez. - Estou pronto para voltar.
Ele se referia ao Castelo MacCallan ou à vida? Quando ele parou para olhar as sepulturas por uma última vez, Brighid ficou em silêncio respeitoso. Isso era algo
no que Cuchulainn teria que trabalhar. Ela podia ajudá-lo a encontrar o pedaço estilhaçado da alma, mas o resto era com ele.
- Flores silvestres azuis.
Brighid ergueu o olhar, surpresa com a risada na voz dele.
- Por que as flores silvestres azuis são engraçadas?
Os olhos estavam cheios de lágrimas contidas, mas Cuchulainn estava sorrindo.
- Brenna adorava flores silvestre azuis. Dizia que a faziam lembrar-se dos meus olhos. Ela até colecionava coisas do tom exato dos meus olhos muito antes de me conhecer.
- Sério?
- Ela as mantinha num altar para Epona. Havia uma pena de um pássaro azul, uma pedra de turquesa no mesmo tom, ela possuía até uma pérola que...
Uma pedra de turquesa no mesmo tom. No bolso do colete, Brighid sentia o peso da pedra azul pressionando seu seio.
- O que aconteceu com a pedra de turquesa? - interrompeu-o ela.
- Coloquei a pedra e o resto das coisas do altar com ela, na tumba.
Lentamente a caçadora enfiou a mão no bolso e apanhou a pedra. Colocando-a deitada na palma, estendeu-a para Cuchulainn. Assim que a viu, o rosto do guerreiro empalideceu.
Com dedos trêmulos, ele a apanhou e revirou várias vezes, estudando-a.
- Onde conseguiu isso? - A voz dele estava grossa de emoção.
Resignada, Brighid falou em voz alta o que mal admitia a si mesma: - Uma águia dourada, que acho que seja meu guia espiritual, a largou sobre mim. A-acho que deve
ser minha pedra apanhadora de almas - terminou, apressada.
- Veio do reino espiritual? - perguntou ele com voz abalada.
- É a mesma pedra que sepultou com o corpo de Brenna?
- Sim, tenho certeza - murmurou ele, encarando a pedra.
- Então definitivamente veio do reino espiritual.
- Acha que isso significa que Brenna está aqui de alguma forma, nos observando?
- Não sei responder isso, Cuchulainn. Mas acho que significa que seu espírito deve ficar inteiro novamente, e que eu devo ajudar para que isso aconteça.
Cuchulainn devolveu-lhe a pedra, que ela escondeu no bolso do colete.
- Somos uma dupla confusa, caçadora - disse Cuchulainn.
- Certamente, meu amigo.
O resmungo de resposta de Cuchulainn estava entre uma risada e um soluço. Brighid logo mudou de assunto: - Ciara acha que não precisamos vigiar o acampamento esta
noite. Disse que a única maldade que pressente vem de Fallon. Ela confia nos guerreiros guardiões.
- Então vamos apenas dizer que estamos cuidando da fogueira. Estamos dentro desses muros, mas ainda numa parte fria do mundo. Prefiro o segundo turno - disse Cuchulainn.
Os olhos de Brighid encontraram os dele num perfeito entendimento.
- Então eu fico com o primeiro. Assim a fogueira nunca correrá o perigo de apagar.
- De acordo.
Conforme caminhavam de volta para o acampamento, Brighid sentiu o calor da pedra de turquesa perto do coração. Surpreendentemente, isso a confortou.
Vinte e Quatro
BRIGHID NÃO QUERIA sonhar. Não no Castelo Guardião, lar de muitas histórias horríveis. Enquanto se acomodava confortavelmente nas peles que ainda estavam quentes
do corpo de Cuchulainn... que ainda cheiravam a ele... a caçadora tomou rédea firme sobre sua mente.
Não esta noite, ordenou a si mesma. Respirou de forma purificadora por três vezes e se concentrou. Não esta noite! Fortaleceu o pensamento com cada tantinho do inato
instinto xamãnico no seu sangue e o mandou voando para o Outro Mundo - dirigido diretamente à alma despedaçada de Cuchulainn. Amanhã, sob os céus abertos de Partholon,
estaria melhor preparada para lidar com a parte carismática faltante de Cuchulainn. Hoje a história trágica da vida de Brenna estava muito recente, e o castelo que
a cercava era muito cheio de fantasmas.
Caiu no sono esperando que a felicidade que Brenna encontrara ao fim da vida tivesse compensado a dor e a tragédia da infância.
A princípio, Brighid não percebeu que estava sonhando. Só estava feliz por estar de volta ao Castelo MacCallan. Lar! E tudo era desconcertantemente real. Era cedo,
ainda não tinha amanhecido, então o pátio principal estava deserto. A estátua da famosa ancestral MacCallan, Rhiannon, despejava água musical numa graciosa fonte
de mármore cercada por bancos e samambaias envasadas. O teto - recém-restaurado por mãos MacCallan - fora deixado parcialmente aberto para o céu, tanto que a luz
que antecede o amanhecer se misturava harmoniosamente com os candeeiros das paredes, criando um brilho rosado suave.
A cena era familiar e cara. Normalmente Brighid acordava antes da maioria do castelo, fazia o desjejum e caçava cedo. Sorriu diante da beleza das poderosas colunas
de mármore do pátio, maravilhando-se novamente com o delicado trabalho de nós que entrelaçava a égua empinada de MacCallan com animais da floresta das cercanias.
Por hábito, ela fez seu caminho pelo espaçoso coração do castelo até o salão principal.
A fragrância tentadora de pão recém-assado flutuou pelo salão que servia tanto como sala de jantar quanto câmara de reunião geral. O salão geralmente estava vazio
assim tão cedo - diferentemente da cozinha. Mas Brighid estava acostumada a fazer o desjejum sozinha. Apreciava a solidão e a chance de ordenar os pensamentos para
a caçada do dia. Através da parede de vidro chanfrado entre o Grande Salão e o pátio principal, Brighid ficou surpresa por entrever alguém já sentado para o desjejum.
Provavelmente uma das cozinheiras tirando um descanso mais do que necessário. Não importava, ela gostava da equipe da cozinha e não se incomodaria com a companhia.
A caçadora entrou no salão e parou chocada. Brenna estava sentada onde costumava ser seu lugar de costume à mesa de pinho polido da chefe do clã. Brighid sentiu
uma vontade súbita de piscar e esfregar os olhos, mas não havia como confundir a curandeira. O espesso cabelo escuro pendia sobre o ombro direito, obscurecendo parcialmente
a gelosia de cicatrizes profundas que lhe cobria a parte direita do corpo.
- Estou sonhando. - Foi o que escapuliu dos lábios dormentes de Brighid.
- Está, minha amiga.
Brenna olhou para a centaura e sorriu, então Brighid sentiu o coração apertar. Aquele familiar e querido sorriso torto! Lágrimas encheram os olhos da caçadora, transbordando
e correndo pelas faces abaixo.
- Oh, Brighid, não! Por favor, não faça isso.
Brighid secou rápido as faces.
- Lamento, Brenna. Não esperava... Nem mesmo percebi que estava sonhando até agora. E senti saudades.
- Também senti saudades, Brighid.
A caçadora secou o rosto novamente e respirou fundo antes de se aproximar do espírito da pequena curandeira. Brenna parecia a mesma! Tão real! Brighid se repreendeu
mentalmente. Brenna era real - só era espírito em vez de corpo.
- Sem mais lágrimas? - pediu Brenna.
- Sem mais lágrimas.
- Bom. Nosso tempo é curto demais para ser desperdiçado. - Brenna suspirou e deixou o olhar vagar saudosamente pelo Grande Salão. - Ficou tão bonito - exatamente
como imaginei que ficaria quando Elphame o descrevia para nós.
- Você não... - hesitou Brighid, incerta de como estruturar a pergunta - ... esteve aqui desde... - Ela se calou, sem jeito.
- Quer saber se ando assombrando o Castelo MacCallan? - Brenna riu, um som tímido e doce. - Não. Esta noite é especial. Me senti compelida a vir aqui... e conversar
com você... - Os olhos tomaram um ar distante, como se ela pudesse ver algo belo através das paredes de pedra. Então Brenna riu outra vez e os olhos se voltaram
para a amiga. - O Castelo MacCallan já possui um fantasma. Não precisa de outro.
- Não sabia que existia um limite - disse Brighid.
- Não existe. Mas não seria bom para mim, ou para o clã MacCallan, se eu permanecesse por aqui. É importante que todos nós sigamos em frente.
- Fala de Cuchulainn.
- Sim, falo de Cuchulainn. - Quando Brenna falou seu nome, a voz se suavizou numa carícia verbal. - Mas não só dele. El, você, eu - todos nós temos nossos destinos.
Encontrei o meu, e não seria justo se eu ficasse no caminho, impedindo que vocês encontrassem os seus.
As palavras de Brenna arrepiaram Brighid.
- Há algo que eu deva saber, Brenna?
- Não vim aos seus sonhos como arauto da perdição. Você está destinada a ter uma longa vida, minha amiga caçadora. Só quero ter certeza de que seja longa e feliz.
Brighid piscou surpresa.
Brenna sorriu.
- Não esperava por isso, não é?
- Pensei que estivesse aqui por causa de Cuchulainn.
- Estou, de certa forma. O que quero que saiba ajudará vocês dois.
- O que é, Brenna?
- A pedra de turquesa foi meu presente para você. Use-a para curar Cuchulainn.
- Usarei, Brenna. Ele já está melhor. Visitou a sepultura dos seus pais hoje, depois que mestre Fagan contou o que aconteceu à sua família. Ele jurou que não...
- Brighid calou-se, horrorizada com o que quase deixara escapulir. Onde estava sua mente? Será que nunca controlaria sua língua habitualmente honesta demais?
A forma espiritual da curandeira estendeu e pousou uma das mãos, fria e quase sem peso, sobre o braço de Brighid.
- Pode dizer, minha amiga. A morte curou essa velha ferida. O passado não pode me causar dor.
- Cuchulainn jurou que se recuperaria para que você não fosse responsável pela morte de outro homem que ama - murmurou Brighid.
- Bom. Se descobrir sobre meu passado fez isso por ele, só desejo que ele soubesse disso antes. Talvez já tivesse começado a sarar.
Ela endireitou os ombros e empurrou o cabelo para trás. Brighid só conseguiu ficar olhando. As cicatrizes terríveis que davam ao lado direito do rosto uma aparência
derretida tinham desaparecido, deixando a pele intacta e espantosamente bela.
- Oh! - Brenna levou a mão à face macia. - Sumiram. É estranho. Não assumo sempre a forma física, mas quando o faço, às vezes as cicatrizes estão aqui, outras vezes
não. Acho que isso não importa muito.
- Foi como Danann esculpiu sua imagem, sem cicatrizes - disse Brighid. - Disse que nem percebeu o que fazia, só fez o que a memória lhe ditou.
O sorriso de Brenna foi radiante.
- Sempre achei que aquele velho centauro era mais espírito do que corpo. - Então os olhos da pequena curandeira assumiram um ar distante e seu corpo tremulou e se
tornou menos substancial.
- Brenna?
O espírito piscou e trouxe a atenção de volta para a caçadora.
- Não tenho muito tempo de sobra. A coisa mais importante que vim contar é que quero sua promessa de que manterá a mente aberta.
- Para o quê?
- Para tudo que parecer impossível.
- Brenna, não pode ser um pouquinho mais específica?
- Posso, mas você não está pronta para isso. Ainda. E de qualquer forma, é algo que precisa descobrir sozinha. Não posso ajudar mais do que já ajudei. Apenas me
dê sua palavra, por favor.
Brighid franziu a testa.
- Tudo bem. Tem minha palavra.
Brenna parecia aliviada.
- Obrigada, Brighid.
- Quer que eu diga alguma coisa a Cuchulainn por você? - perguntou Brighid às pressas, preocupada, porque, como um belo desenho sendo apagado lentamente, a forma
da amiga estava desaparecendo.
- Pode falar sobre esta visita, mas não agora. Não é o momento certo. - A voz de Brenna estava assumindo o aspecto efêmero de um eco.
- Espere! Quando será o momento certo?
- Você vai saber. Por livre vontade, e sem hesitação, deixo-o com você, minha amiga. Lembre-se disso... por livre vontade... Durma agora, Brighid, e que seu futuro
seja ricamente abençoado... - O espírito desvaneceu em nada.
Brighid dormiu profundamente. Pelo resto da noite, apenas sonhou com o aroma fresco dos pinheiros numa caçada de manhã bem cedo.
As crianças tinham comido a refeição da manhã, constituída de sanduíches de veado e pedaços de queijo de cabra, e, com a ajuda dos guerreiros guardiões, tinham desmontado
o acampamento antes de o sol parecer disposto a espiar acima do horizonte. Brighid não podia culpá-los. Estava com pressa de se colocar a caminho também. Não que
o Castelo Guardião não tivesse sido hospitaleiro, mas estava mais do que pronta para trocar os grossos muros cinzentos pela antiga floresta que cobria a parte nordeste
de Partholon. A caçadora precisava pensar no sonho, e ponderar sobre a mensagem da visitante inesperada.
Os neofomorianos estavam alinhados como guerreiros atrás de Cuchulainn e Brighid, esperando quase pacientemente enquanto terminavam a tarefa de agradecer aos anfitriões.
- Apreciamos muito o empréstimo da carroça - estava dizendo Ciara aos quatro mestres, que dispensaram o agradecimento.
Como bem deviam. É por culpa deles que o menino precisa ser carregado na carroça, pensou Brighid, olhando para Liam, que estava reclinado confortavelmente sobre
peles e travesseiros de penugens - todos presentes do guerreiro guardião que o feriu. O rosto do garoto estava pálido, mas ele estava bem acordado, e quando viu
que Brighid olhava em sua direção, sorriu-lhe de forma travessa. Ela lhe sorriu de volta, mas murmurou a palavra descanse. Liam assentiu, mas o sorriso feliz ficou
em seu rosto e seus olhos grandes e curiosos assimilavam tudo ao redor. Como tinham previsto, o menino ficou bastante aborrecido por ter perdido o que chamava de
"toda a diversão" com os guerreiros guardiões, e só foi apaziguado pela notícia de que Brighid o tinha proclamado formalmente como aprendiz.
Brighid bufou baixinho consigo mesma. O pequeno diabrete tinha dito que sempre soube que estava destinado a ser uma caçadora, só estava esperando que Brighid admitisse.
Pela Deusa, o que faria com aquele menino?
- Seu aprendiz parece muito bem esta manhã - disse Cuchulainn, acompanhando o olhar dela e assentindo em resposta ao sorriso e aceno de Liam.
- Não me lembre - resmungou Brighid.
- Não lembrá-la de que ele parece bem? - Cuchulainn ergueu as sobrancelhas.
- Não, não me lembre que ele é meu aprendiz. O menino acha que é uma centaura caçadora.
Cuchulainn inclinou a cabeça para o lado e coçou o queixo num gesto exagerado de consideração.
- Ele está confuso quanto ao gênero ou à espécie?
- Quanto a ambos - resmungou Brighid.
Cuchulainn riu, um som pleno, sincero e jubiloso. Se aceitar um aprendiz tão incomum tinha estimulado a gargalhada tão franca e contagiante de Cuchulainn, Brighid
pensou que talvez até valesse a pena.
- Os mestres gostariam de se juntar a nós na nossa cerimônia de bênção matinal - disse Ciara. Seus belos olhos escuros cintilavam enquanto sorria com doçura para
o sorridente Cuchulainn.
- Excelente. - Cuchulainn retribuiu o sorriso da mulher alada. - Acho que seria bom que testemunhassem um dos seus rituais para Epona.
Brighid observou a conversa amigável com uma pontinha de irritação. Claro que Ciara se materializaria no instante em que Cuchulainn risse. Era óbvio que os dois
possuíam algum tipo de ligação. Mas observar os dois sorrindo feito bobos um para o outro era por demais incômodo. Também fazia Brighid se sentir mais do que apenas
invisível.
- Eu gostaria de oferecer nosso agradecimento à Deusa fora dos muros do Castelo Guardião - no solo de Partholon - disse Ciara.
- Excelente ideia. Vá na frente, estaremos logo atrás de você.
Ciara sorriu novamente, dessa vez para os dois, antes de correr para levar consigo os mestres até a frente do castelo. Cuchulainn estalou a língua para o capão e
o colocou em movimento com a pressão do joelho. Brighid foi com ele.
- Não acha que uma cerimônia fora dos muros do castelo seja uma boa ideia? - perguntou Cuchulainn.
Brighid lançou-lhe uma rápida olhada de esguelha.
- É ótimo.
- Então qual é o problema?
- Nenhum.
- Gostaria que não fizesse isso - murmurou ele.
- Fazer o quê?
- Se fechar assim. Me repreendeu bastante por causa disso, mas agora está fazendo a mesma coisa.
Desta vez ela deixou o olhar dele se fixar no seu. Os olhos turquesa pareciam afetuosos e preocupados.
- Sinto muito - resmungou ela.
- Sem problemas. É por isso que fazemos uma boa equipe. Nenhum de nós é perfeito.
Cuchulainn lhe apertou o ombro e, de repente, algo além da irritação se agitou dentro dela. Era quente e escorregadio, e se alojou bem nas suas entranhas, fazendo-a
respirar de maneira rápida e surpresa.
- Agora quer me contar qual é o problema?
- Estava pensando na viagem - mentiu ela. - É enlouquecedor levarmos pelo menos mais quatro ou cinco dias sabendo que chegaríamos lá em metade do tempo se tivéssemos
carroças e cavalos.
- Bom, discutiremos isso com Fagan. Poderiam nos oferecer umas duas carroças, mas não é um castelo típico. Partholon lhes dá provisões em pagamento à vigilância.
O castelo não negocia produtos, então não guardam carroças para transporte. - Ele deu de ombros. - Sabe que se ofereceram para mandar uma mensagem ao Castelo Laragon
pedindo que nos mandassem carroças suficientes.
Brighid meneou a cabeça, querendo colocar no lugar certo a parte de sua mente que tinha ficado frouxa.
- Quando as carroças chegassem aqui, estaríamos na metade do caminho para o Castelo MacCallan - respondeu distraída.
- Então viajamos com o que temos. Coragem, Brighid! Talvez se surpreenda com a velocidade com que os próximos dias passarão. E não me importo de admitir que estou
muito feliz por finalmente deixarmos os Ermos... - ele baixou a voz - ... e o Castelo Guardião. Não o acho nem um pouco menos opressivo do que nos meus dias de estudante,
e os fantasmas do passado também me parecem... - Ele hesitou, procurando a palavra certa.
- Vivos?
- Sim, vivos - concordou ele.
Ela assentiu e resmungou uma vaga afirmação. A Deusa sabia que ela andava muito imersa em visitas fantasmagóricas ultimamente.
- Isso vai ser interessante - mudou Cuchulainn de assunto abruptamente, apontando o queixo na direção de Ciara e dos quatros mestres. - Ela estava bem contida quando
fez a oração da noite e acendeu a fogueira. Não espero a mesma performance na primeira vez em que entrar em Partholon.
- Arrã - retrucou Brighid, imaginando o quanto Cuchulainn gostava da xamã. Será que estava se apaixonando por ela, ou só estava enlevado com seu charme exótico?
Será que era à aceitação do relacionamento deles que Brenna tinha se referido na noite anterior ao fazer Brighid jurar que manteria a mente aberta no futuro? Não...
isso não encaixava. Brenna tinha dito para manter a mente aberta com relação ao impossível. Uma vez que o guerreiro estivesse curado, apaixonar-se por Ciara não
parecia impossível. Na verdade, era lógico. Sua irmã tinha se casado com o líder do povo de Ciara. Os neofomorianos se assentariam no Castelo MacCallan, onde Cuchulainn
escolhera viver também. Seria um arranjo bem cômodo.
Então por que essa ideia deixava Brighid tão perturbada? Era quase como se estivesse com ciúme da xamã. Ridículo. Completa e tremendamente ridículo. Por que sentiria
ciúme? Ele era seu amigo. Não era como se Cuchulainn fosse um centauro, e ela e Ciara estivessem competindo pela atenção dele.
A súbita exclamação de assombro às suas costas invadiu os pensamentos perturbadores de Brighid. Os grandes portões de ferro do Castelo Guardião foram completamente
abertos e Partholon se estendia diante deles, verde e mágica sob a luz suave do céu rosado da manhã.
Ciara correu pela estrada ampla e batida até alcançar o limite da floresta. Ficou imóvel e depois caminhou decidida para o leste até ficar diante de um solitário
carvalho cujos galhos estavam cobertos com o verde brilhante das folhas de primavera. Ela ficou de joelhos, pressionando as palmas na terra e curvando a cabeça.
As crianças não esperaram por um sinal. Com um grito alegre, correram para formar o familiar círculo ao redor da xamã ajoelhada. Brighid e Cuchulainn se aproximaram
dos quatro mestres, que ficaram um pouco afastados do círculo. Com um leve movimento, Cuchulainn apontou para o castelo lá atrás. Brighid olhou por cima do ombro.
Os amplos muros estavam cheios de guerreiros negros, todos observando em silêncio. Então Ciara começou a falar, e todos os olhos foram atraídos para sua silhueta
alada: Deusa magnífica e amada,
hoje tua gente foi ricamente abençoada.
No instante em que Ciara disse a palavra deusa, o ar ao redor dela cintilou. Não com a luz mansa e natural que Elphame invocava, ou mesmo com o brilho dourado de
chamas das outras cerimônias de Ciara. Naquela manhã, a xamã alada resplandeceu numa luz vibrante e poderosa que crepitou e pulsou como fogo. Conforme continuava
a falar, o fulgor da luz crescia, e Ciara estendeu os braços, afastados dos flancos, palmas abertas, abraçando com entusiasmo a presença viva da deusa: Mãe dos animais,
que ouve nossos pedidos,
Epona, Grande Deusa, faço minha aclamação.
Guardiã dos cavalos fortes e destemidos,
Epona, Grande Deusa, receba minha veneração.
Abençoa-nos com paz e liberdade,
presenteia-nos com misericórdia e felicidade,
e sempre que eu pedir tua bênção,
também aceito o fardo com propriedade.
Inesperadamente, Brighid sentiu correr pela pele um arrepio que contrastava intensamente com o calor flamejante que se irradiava de Ciara. Todos os dons da Deusa
têm um preço... sussurrou a memória de sua mãe. Ela sabia disso - não contava como certo os presentes de Epona. Lembre-se, disse a si mesma, pensando no quanto o
poder tinha corrompido e transformado sua mãe, lembre-se de que com grandes bênçãos vêm grandes responsabilidades.
Epona, Mãe Deusa, contigo nós hoje celebramos,
através de teu poder a Partholon enfim retornamos.
Por longos anos, nos guardaste como rico tesouro,
em nosso exílio, mantiveste vivo em nós o bom agouro.
Ciara se levantou e os neofomorianos se ergueram com ela. Não obstruíram a visão da brilhante xamã alada, como se não passassem de uma moldura que acentuava a beleza
de uma obra-prima. As asas de Ciara se abriram e as mãos graciosas e os braços delicadamente torneados se ergueram para traçar padrões míticos na magia que lambia
o ar ao redor dela como elos de chamas.
Epona estava presente. O poder da Deusa era denso, tangível e inesquecível. Ninguém que testemunhou a entrada dos neofomorianos em Partholon jamais diria o contrário.
Brighid tirou os olhos de Ciara para olhar Cuchulainn. Ele fitava a xamã sem piscar. A caçadora olhou dele para os outros mestres. Eles também estavam fitando a
mulher alada. A mestra de cavalaria, Glenna, tinha se ajoelhado. Lágrimas corriam despercebidas de seus olhos. Brighid relanceou sobre o ombro para o muro do castelo.
Muitos dos guerreiros estavam se ajoelhando e curvando a cabeça em reverência.
Deusa radiante, tua promessa foi cumprida.
Nunca mais teus filhos estarão num confim.
Com tua mão uma nova morada será erguida.
E pela chama de teu amor, nosso exílio chega ao fim.
Ciara jogou os braços acima da cabeça e, como o tivesse invocado ao céu, o sol irrompeu sobre a linha florestal a leste, chamejando numa glória feroz e jubilosa
que falava eloquentemente da presença de Epona entre eles.
- Salve Epona! - gritou Ciara.
- Salve Epona! - ecoaram os neofomorianos sua xamã.
- Salve Epona! - uniu-se Brighid a Cuchulainn e aos guerreiros do Castelo Guardião no grito jubiloso.
E então, miraculosamente, uma voz foi ouvida acima das deles quando a elevação na estrada larga foi salpicada de carroças e mais carroças lideradas por uma estonteante
ruiva numa empinada égua prateada. O mesmo fogo crepitou no ar ao redor delas, só que mais suave. Não menos poderoso, era mais concentrado e controlado, com uma
aura de maturidade e experiência.
- Salve Epona! - gritou novamente a mulher, a voz magicamente ampliada pela Deusa.
Com um berro de alegria, Ciara correu até a mulher e se ajoelhou diante dela. A mulher desceu com graça da égua e, sem hesitação, tomou a xamã nos braços.
Brighid podia ouvir os murmúrios dos guerreiros e mestres, murmúrios que se tornaram gritos de saudação quando reconheceram a nova visitante. Cuchulainn estalou
a língua para o capão grandalhão.
- Vem comigo cumprimentar minha mãe? - perguntou a Brighid.
Brighid o encarou com surpresa, ao que ele deu de ombros.
- Não a conhece? Pensei que ela tivesse visitado o Castelo MacCallan logo depois que parti.
- Ela visitou, e sim, tive a honra de conhecer sua mãe - respondeu Brighid.
- Bom, então venha comigo - disse ele, incitando o capão com os joelhos.
A caçadora trotou ao lado dele.
- Pensei que preferisse apresentar Ciara à sua mãe sozinho.
As sobrancelhas do guerreiro se uniram.
- Por que pensou isso? Não é exatamente um lugar privado. - Ele apontou com a mão o grupo de crianças correndo até sua mãe, a Deusa Encarnada, e a égua prateada.
Sentindo-se mais do que tola, Brighid apertou os lábios. Parecia uma menininha petulante.
- De qualquer forma, precisarei de sua ajuda para resgatá-la - disse Cuchulainn.
Brighid olhou da ofuscante Amada de Epona para a longa fila de carroças que se estendia pela estrada atrás dela.
- Como ela sabia que estávamos aqui e que precisávamos de carroças? Não havia como uma mensagem ter chegado ao Templo de Epona no espaço de uma noite - comentou
Brighid.
- Há uma coisa que precisa aprender sobre minha mãe - junto com aquela égua e a Deusa, ela literalmente sabe de tudo. Ou ao menos, como costuma me dizer, ela sabe
de tudo que é importante.
Enquanto avançavam pelo grupo de crianças que riam, falavam e cantavam, Brighid fez um agradecimento silencioso e quase blasfemador a Epona por sua própria mãe não
saber de tudo - fosse importante ou não.
Vinte e Cinco
- SEMPRE ACHEI QUE estar na companhia de crianças faz o tempo passar mais rápido.
Brighid bufou com mais do que seu sarcasmo costumeiro, fazendo Etain jogar para trás a cabeça de cabelos gloriosos e rir com uma animação genuína. Brighid tentou
manter uma expressão séria, mas logo desistiu. Era impossível não rir com Etain.
- Acho que elas nos mantêm ocupados, já que nunca parece haver tempo suficiente para... para... mais nada quando estão por perto, então parecem fazer o tempo passar
mais rápido - cedeu Brighid.
- Pronto. Sabia que a faria admitir que os últimos dois dias passaram voando.
Era verdade. Se mantivessem o passo acelerado, ao anoitecer chegariam ao Castelo MacCallan.
Agora, a Alta Sacerdotisa de Partholon sorria, parecendo mais uma jovem noiva do que uma mulher que tinha visto a passagem de sessenta primaveras. A Amada de Epona
riu novamente.
- Voando! Palavra bem escolhida. Sempre que vejo uma das crianças correndo com aquele surpreendente passo esvoaçante, desejo criar asas e me juntar a ela.
Brighid só conseguiu encarar Etain em choque. Seria blasfêmia imaginar a Amada de Epona com asas fomorianas?
- Ah, eu sei. Seu ar me lembra muito meu marido. Você deve ser outro centauro que não suporta alturas.
- Alturas e pernas equinas não são compatíveis.
A égua prateada de Etain bufou forte pelas narinas, como se estivesse ouvindo e concordando com a centaura. Na verdade, a égua provavelmente estava escutando - e
compreendendo - lembrou-se Brighid. Era a encarnação equina de Epona, e muito, muito mais do que um simples cavalo.
Etain acariciou o pescoço lustroso da égua com carinho.
- Não, não a levarei para perto de penhasco nenhum, minha bela. Lembro-me bem de como se rebelou da última vez. - A Alta Sacerdotisa relanceou Brighid e baixou a
voz num nível exageradamente conspiratório: - Pode-se dizer que a Escolhida tem muito medo de alturas. Pode-se dizer, mas nunca diga isso alto demais. Ela costuma
ser verdadeiramente destemida.
Brighid sorriu para a bela sacerdotisa.
- Considerarei isso nosso segredo.
- Então você, minha bela caçadora, terá o agradecimento eterno de Epona! - O tom de Etain era provocativo e leve, mas apenas por simplesmente mencionar o nome da
Deusa o ar ao redor dela ficou repleto do doce aroma de lavanda e borboletas violáceas apareceram, rodeando a sacerdotisa, e depois desapareceram na densa floresta.
Brighid apenas sorriu e observou, assimilando tudo. Etain era simplesmente incrível. E agora ela sabia de onde Cuchulainn, ou ao menos a parte de seu espírito que
não era nada além de alegria, tinha herdado um senso tão forte de felicidade. A paixão de Etain pela vida era contagiante. Viajar com a escolhida de Epona nos últimos
dois dias fora uma experiência muito mais prazerosa do que Brighid tinha previsto quando a Alta Sacerdotisa de Partholon chegou inesperadamente no portão do Castelo
Guardião com sua frota de carroças, criadas e guerreiros palacianos, que tinham sido temporariamente relegados ao trabalho de condutores de carroça.
A verdade era que Brighid, a princípio, se sentira um tanto nervosa e desconfortável por estar perto de Etain. Não teve a oportunidade de conhecer a Escolhida de
Epona durante a curta visita de Etain ao Castelo MacCallan. Etain tinha passado a maior parte do tempo fechada com a filha e o companheiro de Elphame, Lochlan. Brighid
estivera ocupada caçando para o número subitamente maior de bocas a serem alimentadas. Não que sua impressão da Alta Sacerdotisa de Partholon tivesse sido negativa
- de fato, fora justamente o contrário. Brighid ficara pasma com a presença da Amada de Epona, e impressionada com o óbvio amor que ela demonstrava por Elphame.
Brighid sabia como era ter uma mãe poderosa, então ficou surpresa com o carinho que Etain demonstrava pela filha e por Lochlan. Por várias manhãs, Brighid tinha
visto Etain rezando sozinha na tumba de Brenna, em óbvio pesar pelo amor perdido do filho.
E agora via a devoção que Etain demonstrava por Cuchulainn. Brighid observou de perto Cuchulainn se aproximar da mãe, esperando a reação de Etain às mudanças físicas
que o lamento provocara no filho. A mãe de Brighid a teria repreendido, provavelmente em público, por se permitir parecer menos do que perfeita. Etain simplesmente
abrira os braços para abraçá-lo, depois riu e secou o que chamou de lágrimas de alegria por ver o filho amado outra vez.
Etain tinha que notar a diferença em Cuchulainn. Não importava que fosse óbvio que Cuchulainn estivesse tentando exibir uma fachada alegre. O guerreiro provavelmente
tinha sorrido e falado mais nos últimos dois dias do que nos últimos dois ciclos da lua. Fez um grande esforço para esconder a dor, mas não havia dúvida de que a
Alta Sacerdotisa estava completamente ciente de que a alma do filho estava despedaçada e de que ele chegara perigosamente perto de desistir da vida. Brighid ficou
esperando que Etain o reprovasse, ou que deixasse escapar de propósito pequenos comentários sobre como ele deveria estar fazendo isso... ou pensando aquilo... ou
demonstrar que estava desapontada com ele por estar arruinado e destroçado por algo que estava terminado e encerrado. Mas isso não aconteceu. Etain amava o filho,
inteiramente e sem julgamentos e condições.
Como a vida de Brighid não teria sido diferente se sua própria mãe tivesse demonstrado como amar os filhos e ainda ser Sumo Xamã da manada Dhianna?
- Que ar sério, mesmo para você, caçadora - disse Etain.
Brighid se obrigou a sorrir para a mulher que aprendera a amar e também respeitar.
- Só estava pensando na... - Ela hesitou, surpresa com o súbito desejo de contar a verdade a Etain.
- Na? - instigou a Amada de Epona.
Brighid notou que mesmo a égua prateada tinha levantado as orelhas delicadas como se também estivesse esperando que Brighid terminasse a frase.
- Só estava pensando na minha infância - murmurou Brighid. - É difícil falar disso.
Os olhos verdes de Etain eram sábios e gentis. Em vez de questioná-la ainda mais, ela simplesmente assentiu e continuou a cavalgar tranquilamente ao lado da caçadora.
Lentamente, Brighid voltou a relaxar. As cercanias a ajudaram a aliviar a tensão acionada automaticamente por pensar na mãe. Ela e Etain estavam encabeçando a longa
fila de carroças, que estavam cheias de neofomorianos rindo e cantando. Estavam sozinhas no momento. Cuchulainn tinha cavalgado de volta para verificar uma das carroças
que aparentemente estava com uma roda frouxa, e Ciara estava...
Só a Deusa sabia onde Ciara estava. Todos os neofomorianos estavam animados com a beleza de Partholon e a abundante vastidão da floresta oriental, mas desde que
pisara naquele chão Ciara tinha ficado completamente apaixonada. Era como se ela estivesse privada de água por dias e Partholon fosse um fresco riacho de salvação.
Etain dissera que a xamã alada era um condutor espiritual para seu povo, então era natural que a entrada em Partholon a afetasse mais dramaticamente do que os outros.
Brighid notou que a Alta Sacerdotisa tinha carinho especial por Ciara, e que Etain encorajava a xamã a explorar a nova terra.
E os rituais de bênção da manhã e da noite! Brighid sentiu uma onda de alegria só por pensar neles. Etain e Ciara tinham atuado juntas. Mais uma vez, a Amada de
Epona demonstrara ser uma Alta Sacerdotisa gentil e graciosa. Poderia ter facilmente excluído a xamã alada, ou ser arrogante e fazer com que suas habilidades parecessem
imaturas ou irrelevantes. Em vez disso, Etain compartilhara as palavras ritualísticas de algumas das bênçãos mais antigas de Partholon, entremeando sua voz calma
e experiente com a da jovem xamã. Até elogiara Ciara excessiva e publicamente quando a moça usou a afinidade com os espíritos do fogo para acender a fogueira.
A benevolência e o amor de Etain pelas pessoas, fossem humanos, centauros ou mesmo fomorianos híbridos, eram um profundo comprometimento entre ela e sua Deusa. Ela
era verdadeiramente a encarnação do amor de Epona.
Brighid sentia-se tão atraída quanto impressionada com Etain, mas a caçadora pouco falava. Só observava e fazia anotações mentais. Observava e esperava que Cuchulainn
demonstrasse à mãe que estava começando a ter sentimentos especiais por Ciara. Brighid esperava que Etain ficasse extasiada ao saber da afeição do filho. Mas nada
desse tipo aconteceu. Cuchulainn passou pouquíssimo tempo com Ciara. Era sempre gentil, mas definitivamente não fazia questão de passar qualquer tempo extra a sós
com ela e, pelo que Brighid podia dizer, só tinha falado sobre ela com a mãe com os termos polidos que teria usado se referindo a qualquer xamã.
Claro, nenhum deles tinha tempo para muita privacidade ou muitas conversas pessoais prolongadas. Brighid não estava exagerando quando disse que as crianças deixavam
pouco tempo para qualquer coisa que não fosse cuidar delas. Enquanto estavam nos Ermos, tanto de suas vidas tinha sido gasto com a sobrevivência que os pequenos
não tiveram liberdade para aprontar muitas travessuras. A viagem pelas florestas partholonianas era uma história diferente, de fato. Brighid estava feliz por conseguirem
tomar estradinhas raramente utilizadas e contornar as cidades grandes e a maioria das aldeias. A caçadora estremecia por dentro quando pensava na horda de crianças
aladas entusiasmadas, questionadoras e irrequietas chegando às sonolentas e inocentes aldeias de Partholon. As crianças não compreendiam que nem todos estavam tão
contentes por conhecê-las quanto elas estavam por conhecer Partholon.
- Acho que não lhe disse isso, mas você me lembra muito Elphame - disse Etain, quebrando o silêncio tranquilo que recaíra entre as duas.
Completamente surpresa, Brighid a encarou com olhos arregalados.
- Ah, não fique tão chocada. Vocês duas se tornaram amigas íntimas, não é?
- Sim, mas... - Brighid engoliu em seco, nervosa. - Sim, Elphame e eu nos tornamos amigas íntimas.
- Você sabe que você e Brenna foram as primeiras amigas que ela teve fora da família.
Brighid hesitou, pensando antes de deixar escapar algo inapropriado: - Acho que El nunca nos disse - para Brenna e para mim - nessas palavras, mas sabíamos disso
sem que nos dissesse nada. - A caçadora respirou fundo e buscou os olhos da sacerdotisa. - Acho que poucas pessoas queriam se aproximar de uma deusa viva.
- Era o que El dizia. Mais vezes do que pude contar. Mas você estava disposta a se aproximar dela. Por quê?
- Ela me aceitou como sou - disse Brighid sem hesitação. - Foi por isso que Brenna se tornou amiga dela tão rápido também. Não que El não visse as cicatrizes de
Brenna - era impossível não ver. Assim como era impossível não ver que me juntar ao clã MacCallan era uma fuga para mim. Não que as cicatrizes ou uma família extremada
não importassem para sua filha, mas é que ela as aceitou. Facilmente. Sem condições.
- E em troca vocês a aceitaram - Elphame -, não a deusa que o resto do mundo vê.
- Ah, eu vi a deusa. Ainda vejo. E Brenna também. Mas em grande parte enxergamos a pessoa. E Elphame é uma mistura dos dois - mulher e deusa, centauro e humano.
E agora é amiga e também chefe do clã. - Brighid suspirou, frustrada com as palavras inadequadas. - Faz sentido? Quando digo isso, parece... não sei... que não é
o suficiente.
- Sei exatamente o que quer dizer, criança - disse Etain. - É por isso que disse que você me lembra ela. Você e Elphame enxergam o mundo do mesmo jeito. As duas
mulheres fortes, lógicas, que não toleram baboseiras e não perdem tempo com pretensões e desculpas. Gosto de você, caçadora. Gosto que seja amiga da minha filha.
E acredito que em breve lhe terei um débito de gratidão.
- Fico honrada, minha senhora - disse Brighid sem jeito, com um nó de emoção alojado no fundo da garganta. - Mas não me deve nada. Não guardo recibo pela amizade
com sua filha.
- O débito não é por Elphame. É por Cuchulainn.
- Cuchulainn? Mas nem fiz nada realmente... - Os cândidos olhos turquesa de Etain encontraram os de Brighid, que apertou os lábios, encerrando o protesto. - Claro
que sabia que a alma dele foi despedaçada.
- Soube no dia em que aconteceu.
- O dia em que Brenna morreu - disse Brighid.
Etain assentiu:
- Tem sido enlouquecedoramente frustrante para mim - saber da dor do meu filho e não ser capaz de usar meus poderes para consertar isso... Tornar isso mais fácil
para ele.
Brighid abriu a boca para questionar Etain, mas não conseguiu emitir as palavras. Como questionar a Amada de Epona?
- Brighid, sou a Alta Sacerdotisa de Partholon, a Encarnada Escolhida por Epona, mas também sou uma mãe e uma mulher que ri, chora e ama como qualquer outra mulher.
Não precisa ficar com medo de me fazer perguntas.
Brighid olhou a mulher bela e régia que cavalgava ao seu lado e ficou, mais uma vez, pasma com a honestidade e acessibilidade de Etain. Não era surpresa que o povo
de Partholon lhe fosse tão devoto. Brighid respirou fundo antes de falar: - Por que não pode consertar Cuchulainn? Por que não pode recuperar sua alma despedaçada?
- perguntou com calma.
Etain suspirou:
- Antes de tudo, não sou xamã. Sim, posso viajar ao Outro Mundo - faço isso com regularidade, mas faço isso para estar na presença de Epona e cumprir os assuntos
da Deusa. Raramente interajo com os espíritos que habitam os diferentes reinos. Não que não tenha morrido de vontade de procurar pela alma despedaçada de Cuchulainn.
Essa foi minha reação inicial quando descobri o que tinha acontecido a ele. - O sorriso da sacerdotisa foi pequeno e se entortou de lado. - Epona tinha uma visão
diferente sobre o que eu deveria fazer. - Olhou para Brighid e encolheu os ombros envoltos num luxuoso tecido dourado. - Tenho tendência de querer resgatar meus
filhos, mesmo que não sejam mais crianças. Minha lógica me diz que não é bom para eles. Meu coração diz algo totalmente diferente. Sou grata por minha Deusa ficar
perto do meu coração, mesmo quando me obriga a me ater à lógica.
Brighid franziu a testa.
- Então Epona a impediu de consertar Cuchulainn?
- A princípio. Depois percebi que não era uma dor da qual uma mãe poderia proteger o filho. Ele precisava lamentar por seu amor perdido, mesmo que este pesar estivesse
rasgando sua alma em pedaços. O pesar é parte do processo de cura. E creio que tenha testemunhado a alternativa por si mesma.
Brighid piscou surpresa.
- Fala da parte despedaçada da alma de Cuchulainn?
- Sim. Ele visita seus sonhos, não é?
Brighid bufou:
- Cuchulainn disse que você sabia de tudo.
Etain riu.
- Só de tudo que é importante.
- Sim - admitiu ela -, ele visita meus sonhos.
- E o que descobriu sobre ele, exceto que é um tremendo libertino? - Os olhos de Etain cintilaram.
- Que ele é obstinado na busca de prazer e...
- ... E?
- E encantador, carismático e maroto - murmurou.
Etain sorriu.
- Isso ele é mesmo. Mas o que descobriu sobre ele que não é tão encantador?
- Que está em completa negação. Não consegue, ou não quer, enfrentar qualquer dificuldade emocional. No momento em que menciono Brenna ou tento conversar sobre o
que está realmente acontecendo no mundo - comparado ao mundo imaginário e feliz para o qual se retirou - ele desaparece.
- Exatamente. Se eu tivesse interferido e acalentado Cuchulainn depois da morte de Brenna, e feito o que meu coração me implorava para fazer - protegê-lo da dor
e envolvê-lo no poder que tenho de duplicar o amor de Epona - ele nunca teria sofrido e viveria eternamente como a parte despedaçada de sua alma está agora, incapaz
de enfrentar a realidade. Teria se tornado um homem fraco e emocionalmente vazio que teria uma vida triste fugindo dos problemas. Ele precisava viver o lamento.
- Compreendo. Mas ele já passou por isso. Até já começou a trabalhar sua dor.
- Razão pela qual a recuperação da alma será um sucesso - disse Etain, logo sacudindo a cabeça quando Brighid começou a protestar. - Esse não é o trabalho de uma
mãe. Nem um trabalho para Ciara. Ele precisa de você para isso, Brighid. E mais, Epona decretou que é parte do seu destino.
Brighid se sobressaltou com as palavras da Deusa Encarnada.
- Epona falou de mim? - Não percebeu ter falado em voz alta até Etain respondê-la: - Claro. Por que isso a surpreende? A presença de Epona é muito forte em sua família.
- Mas minha família... - Brighid se afligiu, sem saber o que dizer sobre as crenças radicais da manada Dhianna de que centauros e humanos não deviam interagir.
- Brighid, não precisa sentir tanta culpa. Epona deu ao seu povo o livre-arbítrio - ao seu povo inteiro. Mesmo àqueles que foram ricamente abençoados por ela. Junto
com o presente do livre-arbítrio, vem a possibilidade dos erros. Fique tranquila de que a Deusa sabe que seu coração está livre do ódio. Epona não considera uma
filha responsável pelos pecados da mãe.
Brighid tentou falar, mas não conseguia. O alívio que a inundava era quase demais para suportar. Epona não a culpava. Não fora marcada ou rejeitada pela Deusa.
Então Etain tocou o braço de Brighid, e no tumulto de suas emoções fluiu um bálsamo relaxante de gentileza e amor. A caçadora respirou profunda e tremulamente.
- Obrigada - disse a Etain, falando à mulher e à Deusa que ela representava.
- Não deixe que isso a assombre, criança. - Com as palavras de Etain, sobreveio um rodopio no ar e de repente, dentro da mente, Brighid ouviu o eco de um pensamento,
tão impregnado de poder e acolhimento que seus olhos se encheram de lágrimas: Saiba que estou com você, minha preciosa.
Brighid ofegou. Então o ar rodopiante e a voz sussurrante se foram.
- Eu... eu acho que Epona - gaguejou Brighid. - Ela... ela...
- O toque dela é de tirar o fôlego, não é? - comentou Etain com emoção, como se não tivesse sentido a presença da Deusa por grande parte da vida.
Brighid piscou e esfregou as mãos pelas faces molhadas.
- Sim - sussurrou. - É, sim.
- Tome, criança. - Etain se virou e vasculhou um dos alforjes cor de manteiga amarrados atrás dela e puxou dois lenços de seda. Entregou um à caçadora e manteve
o outro consigo para que pudesse secar delicadamente os próprios olhos. - Sempre estou preparada para uma boa choradeira. Isso limpa a alma.
Brighid secou o rosto, ainda assombrada com a voz que soara em sua mente. Epona tinha falado com ela! Ela! E não estava sendo rejeitada por causa das escolhas da
mãe.
- Melhor agora? - perguntou Etain.
- Acho que sim - respondeu.
- Ótimo! Devo voltar e procurar Ciara. Ela precisa avisar às crianças que podem se cobrir de enfeites. Nunca faz mal exibirmos o nosso melhor.
- Espere! - chamou Brighid, e a égua prateada parou no meio do movimento. - Não sei como recuperar uma alma.
Etain lhe sorriu.
- Está se saindo muito bem. Já o chamou até você em seus sonhos.
- Mas não recentemente. Ele parou de visitar meus sonhos na noite em que chegamos ao Castelo Guardião.
- Não me preocuparia com isso. Ele virá novamente. Quando estiver em casa, com seu clã por perto, prepare-se para sua jornada espiritual, do mesmo jeito que usa
seus poderes para rastrear novas presas.
- Você... você sabe disso? - Assim que as palavras escaparam, Brighid se sentiu ridiculamente tola. Outra vez. Claro que a Escolhida de Epona reconheceria sua afinidade
com os espíritos dos animais.
- Usar dons oferecidos pela Deusa não é nada do que se envergonhar - disse Etain com firmeza.
- Não estou envergonhada do dom - insistiu Brighid, ansiosa para que Etain entendesse. - Estive envergonhada pelo modo como minha família usa seus dons. Não queria
ser como... - Ela se calou. O olhar da sacerdotisa era gentil, maternal, compreensivo.
- Prossiga, minha criança. Pode dizer.
- Não queria ser como minha mãe - revelou Brighid num repente.
- Já considerou que é possível para você ser como ela por ter sido tão agraciada de dons, e ser diferente dela na maneira como escolheu usar esses dons?
- Sim! É por isso que só uso minha afinidade com os espíritos dos animais. O resto - eu nem tinha percebido que possuía mais até recentemente.
- Mas você realmente possui mais do que uma simples afinidade com os espíritos dos animais. Será que sua rejeição não é uma vitória para sua mãe?
- Nunca pensei dessa forma. - Brighid quase conseguia ouvir a voz áspera da mãe: Ou me sucede devidamente como sumo xamã, ou não será nada.
- Talvez deva pensar nisso. E não se preocupe sobre não ser capaz de encontrar o espírito de Cuchulainn. Quando estiver pronta, ele virá até você.
- E depois? - perguntou Brighid de repente, a mente girando com as palavras de Etain.
- Você saberá, criança. Saberá o que vai trazê-lo de volta. Estou certa disso. Tenho fé nas suas habilidades, Brighid. - Etain sorriu, girou a égua de modo a direcioná-la
à longa fila de carroças e saiu trotando vistosamente, deixando Brighid com um lenço de seda e perguntas não respondidas.
Vinte e Seis
ELA GOSTAVA DO caráter da luz que se infiltrava pela floresta quando o sol estava nascendo ou, como agora, estava quase pronto para se pôr. A conexão entre amanhecer
e anoitecer era como uma moeda com duas faces. Semelhantes, porém distintas. Similares, porém diferentes. Havia simplicidade e correção ao se pensar nos dois como
reflexos um do outro... começo e encerramento... e depois começo novamente... como outra parte do grande ciclo da vida. A ideia trouxe paz a Brighid, e era uma das
muitas razões pelas quais preferia caçar durante a mudança do dia.
- Brighid!
A caçadora suspirou:
- Brighid!
Ela girou a cabeça, tentando aliviar um pouco da tensão que estava se assentando no pescoço.
- Melhor ir vê-lo. Sabe que não vai deixá-la em paz -avisou Cuchulainn.
- Ele está machucado. Precisa descansar e ficar onde está - disse Brighid com firmeza.
- Brrrrighiiiiid!
Envolta em seda dourada e drapejada de joias, Etain definitivamente parecia a faceta da Escolhida de Epona conforme trotava até se juntar ao filho e à caçadora na
dianteira da fila.
- Seu aprendiz está chamando você.
- Sei disso - rosnou Brighid entre os dentes trincados, tentando com dificuldade manter um tom civilizado.
- Aceite o conselho de uma mãe. Ignorá-lo não vai afastá-lo - disse a Amada de Epona. A égua Escolhida bufou com firmeza pelas narinas num gesto de concordância.
- Vá lá falar com ele - disse Cuchulainn. - É a única maneira de ter um pouco de paz. Só o lembre de que estamos quase lá. Logo ele terá muito mais no que pensar
além de você.
- É fácil falar - resmungou Brighid. - Não tem um aprendiz alado chato berrando seu nome dia e noite.
- Ele só está inquieto. Ficará melhor quando puder se locomover sozinho - disse Etain.
- Hã - bufou Brighid. - Não o conheceu antes. Era tão chato quanto. - Cerrando o queixo, saiu da posição adiantada e foi a meio-galope até a primeira carroça, certa
de ter ouvido a risada musical de Etain ecoar atrás de si.
Como florzinhas acompanhando o sol, todas as cabecinhas na primeira carroça se voltaram na direção dela. Brighid encontrou o olhar do condutor de aparência cansada.
Ele assentiu educadamente, mesmo que os olhos dissessem que preferia estar em qualquer lugar, mesmo no coração de uma batalha, a estar confinado com um bando de
crianças tagarelando, rindo e gorjeando.
Brighid lhe deu um sorriso compreensivo.
- Brighid! Brighid! Brighid! - Liam começou a saltitar enquanto se agarrava à beirada da estrutura da carroça, mas um aviso severo de Nara, que estava sentada ao
lado do condutor da carroça, bastou para que ele ficasse bem quietinho. Todo o corpo, pensou Brighid, exceto pela boca: - Posso chegar com você? Eu devia chegar
com você. Sou seu aprendiz. Devia estar com você. Não acha? Não é o certo?
Brighid não sabia se queria gritar ou gemer. Como as mães conseguiam?
- Liam! Basta. - Ela ergueu a mão e o menino ficou abençoadamente silencioso. Então ela voltou sua atenção à curandeira neofomoriana. - Ele está bem para cavalgar?
A curandeira tentou sem sucesso conter o sorriso.
- Não pode ir longe, nem rápido. Mas, sim, está bem para cavalgar.
Brighid olhou para Liam. Os olhos dele estavam arregalados de surpresa, mas os lábios estavam bem apertados.
- Se eu deixar que me monte, deve se comportar com a dignidade de uma centaura caçadora. Consegue fazer isso?
- Sim! Sim! Si... - Inacreditavelmente, o menino parou no meio da palavra. Com cuidado, empertigou-se, prendendo a asa enfaixada bem junto ao corpo, e assentiu.
Apenas uma vez.
Antes que Brighid pudesse pensar melhor no assunto, encostou à lateral da carroça.
- Ajudem-no - pediu às crianças que estavam sentadas ao redor dele. Todos falando juntos, levantaram-no sobre o lombo equino. - Segure-se - avisou, colocando uma
das mãos para trás para lhe segurar a perna. Esperava que Liam não caísse, mas caso acontecesse, poderia ao menos evitar que ele atingisse o chão. Talvez.
- Me segurar no quê? - perguntou Liam, com a voz de um menininho.
- Coloque as mãos nos meus ombros - disse ela, depois suspirou e acrescentou: - Se ficar com medo, pode me abraçar pela cintura.
Depois de breve hesitação, ela sentiu mãozinhas quentes nos ombros.
- Não estou com medo - disse Liam. - Você não me deixaria cair.
Sem ter uma resposta pronta para aquela fé cega, Brighid entrou num meio-galope macio, logo se juntando a Cuchulainn e à mãe na dianteira do grupo.
- Nem uma palavra - avisou Brighid a Cuchulainn quando o guerreiro abriu a boca.
- É bom vê-lo tão bem, Liam - disse Etain, com um sorriso maternal. - Deve estar em forma para caçar em breve.
Brighid podia sentir Liam se agitar de prazer com as palavras de Etain, mas quando o menino falou, as palavras foram educadas e breves: - Obrigado, deusa.
Satisfeita, Brighid apertou-lhe a perninha antes de afrouxar a pressão, depois sorriu consigo mesma quando Liam apertou-lhe os ombros em resposta e murmurou: - Viu,
sou um bom centauro.
- Lá - disse Cuchulainn, apontando para onde uma trilhazinha pedregosa se bifurcava para se ligar a uma estrada muito mais larga que era obviamente bem transitada.
- Essa é a estrada que corre entre o castelo e Loth Tor.
- Finalmente. Eu estava começando a achar que ficaríamos sem a luz do dia antes de alcançá-la - disse Brighid, trotando para a estrada bem batida e virando à direita.
- O castelo está perto? - perguntou Liam.
- Muito - respondeu ela. - Hoje você estará dormindo no Castelo MacCallan.
- Vão gostar de nós? - perguntou o menino numa vozinha.
Brighid olhou para ele por cima do ombro. Liam era tão jovem. Os olhos a observavam, esperando pela resposta como se ela guardasse as chaves para todos os mistérios
do universo.
- Claro que vão gostar de vocês - respondeu com firmeza. Ao virar a cabeça, buscou os olhos de Cuchulainn e não ficou tranquilizada com a olhada contida que ele
lhe deu.
- Vai dar tudo certo. Você vai ver. - A voz de Etain estava cheia da sua confiança habitual, e a égua prateada bufou em concordância.
Brighid olhou além de Cuchulainn para sua mãe. A Deusa Encarnada estava sorrindo para Liam. Não parecia nem um pouco preocupada. A caçadora relanceou Cuchulainn
outra vez. O guerreiro lhe deu um meio-sorriso e encolheu os ombros.
- Tudo que é importante? - sussurrou Brighid para ele.
- Sim - disse Etain sem olhar para nenhum dos dois. - Absolutamente tudo que é importante.
Liam murmurou:
- Ela sabe mesmo de tudo.
Cuchulainn grunhiu, e Brighid resolveu voltar sua atenção para a estrada que escurecia.
Um agitar de asas anunciou a chegada de Ciara, e a xamã flutuou no espaço entre Cuchulainn e Brighid.
- Eles estão prontos. - Seu sorriso tremeu e seus olhos foram atraídos pela estrada à frente. - Acho que estou nervosa - disse ela com uma risadinha.
- Todos nós nos sentimos um pouquinho nervosos quando retornamos ao lar depois de uma longa ausência, mas é um nervosismo de alegria - disse Etain com carinho. -
Lembre-se, esta é sua terra natal. As orações e o sangue de suas ancestrais fizeram disso uma certeza. Tudo vai ficar bem. Você verá.
- Pode acreditar nela. A Deusa conta a ela tudo o que é importante - falou Liam numa voz abismada e incomumente séria que fez os adultos sorrirem. - Bom, conta sim
- disse Liam, e depois - felizmente - ele ficou ocupado demais olhando os carvalhos ao redor para tagarelar.
A caravana de mais de uma dúzia de carroças, todas cheias de neofomorianos, acompanhou a caçadora, o guerreiro, a xamã e a Deusa Encarnada pela estrada que seria
a última etapa da jornada. Os quatro líderes andaram numa expectativa silenciosa, cada um deles imerso nos próprios pensamentos. Quando Fand saltitou ao lado do
capão de Cuchulainn, Brighid relanceou o guerreiro. Ele parecia tenso e soturno. Se estivessem sozinhos, ela o teria lembrado de que só estava voltando para casa,
não rumando para uma batalha. Mas ela relutava em falar diante de Ciara, sem saber se chamar a atenção para a contenda que acontecia dentro dele embaraçaria ou mesmo
aborreceria Cuchulainn. E parte dela compreendia que esse retorno ao lar era um tipo de batalha para o amigo. Logo ele estaria lutando para recobrar a alma e a vida
- e era no Castelo MacCallan que ambas foram irrevogavelmente alteradas.
A estrada fez uma curva familiar para o oeste, subiu e de repente saiu da floresta de pinheiros para as terras bem cuidadas do castelo. O sol estava se pondo sobre
o oceano por trás do castelo, servindo de iluminação perfeita para o imponente edifício que já estava completamente iluminado por dentro. As paredes de cor creme
estavam tingidas nas cores arrojadas do céu do anoitecer, então parecia que a luz do fogo dançava dentro e fora, dando as boas-vindas com o calor das chamas.
- É tão bonito - sussurrou Liam.
- É bonito, perfeito... - A voz de Ciara ficou embargada e ela não conseguiu prosseguir.
- E é o lar de vocês - completou Etain.
Lar... Ecoou o coração de Brighid. Não eram as extensas campinas de sua infância, mas rever o castelo a fazia se sentir assentada e segura.
- Fizeram muita coisa nas últimas duas luas - disse Cuchulainn, esforçando-se para manter a voz sem tom e vazia, como se tivesse medo de que se deixasse qualquer
sentimento vazar em suas palavras, não seria capaz de conter a onda que o subjugaria. - As quatro torres estão completas, e grande parte do caminho de ronda.
Um grito os cumprimentou do muro externo do castelo.
- Vamos avisar Elphame que estamos aqui, minha bela? - disse Etain, dando palmadinhas no pescoço da égua prateada.
Compreendendo perfeitamente, e sem a necessidade de mais nenhuma orientação da condutora, a égua galopou veloz por vários passos e depois se empinou graciosamente,
proclamando um agudo cumprimento que foi inequivocamente ampliado pelo poder da presença de Epona.
A resposta do castelo foi imediata:
- Salve, Epona! - gritou o sentinela, e um momento depois o portão de ferro recém-instalado foi erguido e vultos saíram correndo pela abertura.
Com um grito alegre, Elphame disparou na frente. As duas poderosas pernas equinas a tornavam mais rápida e forte que o resto de seu povo, por isso ela se distanciou
com facilidade, alcançando o grupo de viajantes antes mesmo do companheiro alado.
Cuchulainn deslizou do cavalo bem a tempo de abrir os braços para a irmã que se atirou neles.
- Cuchulainn! - Ela o abraçou apertado, enterrando o rosto no ombro dele.
- Shhh - murmurou ele, acariciando-lhe a cabeça. - Não chore, minha irmã. Não chore...
Elphame se afastou um pouquinho para que pudesse lhe tomar o rosto nas mãos e beijá-lo profundamente.
- Senti tantas saudades.
- E eu também.
- E quanto à sua mãe? - perguntou Etain em meio às próprias lágrimas.
Elphame deixou os braços do irmão e se aproximou da Deusa Encarnada e da égua prateada.
- Ah, mamãe... - seus olhos brilhavam de alegria - ... quem não sentiria saudades de você?
A égua se curvou de modo que Etain só precisou descer graciosamente do seu lombo macio para tomar a filha nos braços.
- Não chore, minha preciosa. Seu irmão retornou, e tudo vai ficar bem.
Elphame beijou a mãe nas duas faces. Depois se voltou para Brighid e, sorrindo, estava para abraçá-la entusiasmada também quando percebeu que Brighid carregava alguma
coisa... alguém, nas costas. Os olhos da chefe do clã se arregalaram quando a cena se expandiu para incluir mais do que o irmão e a mãe.
- Oh, Deusa... - ofegou Elphame.
Sem olhar para trás, Ciara se adiantou, sabendo que seu povo a seguiria. Quando parou diante de Elphame, ela se ajoelhou e colocou as mãos, com punhos cruzados,
sobre o coração, num antigo gesto de respeito e homenagem.
- Deusa, nunca existirão palavras adequadas com as quais agradecê-la pelo sacrifício que fez. Ao aceitar a loucura de nossos ancestrais, libertou a humanidade dentro
de nós. Você nos salvou. - A voz apaixonada da xamã encheu os terrenos do castelo.
Brighid observava o rosto da chefe do clã com atenção. Teria sido a única a notar a sombra que tremulou nos olhos de Elphame, sombria e maligna? Então Lochlan se
aproximou de um lado da companheira, e Etain, a Amada de Epona, aproximou-se do outro lado da filha. Elphame pareceu ganhar força com a presença deles e empertigar
mais o corpo. Como sombras se retirando da luz, a escuridão em seu olhar clareou. Elphame estendeu a mão, pegou a de Ciara, e a pôs de pé.
- Não é a mim que tem um débito de gratidão - disse Elphame. - Sem a força de Epona, a maldição não teria sido retirada de seu povo.
- E seu débito com Epona já foi pago muitas vezes pela fidelidade de suas ancestrais - disse Etain.
- Então não temos devedores aqui, só amigos e camaradas - completou Elphame.
Então Lochlan deu um passo adiante e sua voz profunda ressoou pelo clã: - Elphame, minha chefe e meu amor, e clã MacCallan... - ele olhou para trás de sua companheira,
sorrindo para os humanos e centauros agrupados às costas deles - ... esta é Ciara, xamã dos neofomorianos, neta da Encarnada Terpsícore, sequestrada pelos demônios
há mais de cem anos.
Elphame retribuiu a mesura elegante de Ciara com um inclinar régio da cabeça.
- Chefe, meu senhor Lochlan, e clã MacCallan, este é o meu povo, que agora também é seu povo - o povo que sua chefe salvou - os neofomorianos. - Com um floreio gracioso
e abrangente, Ciara deu um passo para o lado para que Elphame tivesse uma visão irrestrita de crianças e adultos alados que ainda estavam ajoelhados, enchendo aquela
parte do terreno como um bando de aves exóticas.
Os olhos de Elphame passearam pelo grupo silencioso, e enquanto seu olhar tocava cada um deles, rosto após rosto irrompia em sorrisos hesitantes. Então uma vozinha
falou na dianteira do grupo: - Estamos muito felizes por estarmos aqui, deusa! - E então uma torrente de vozes se uniu à dela: - Sim, deusa!
- Ah, sim!
- É tão verde aqui!
- Tudo cresce!
Elphame ergueu a mão e a enxurrada de entusiasmo infantil foi silenciada.
- Primeiro - disse lentamente -, não sou uma deusa. Fui apenas tocada por uma. Podem me chamar de chefe, ou minha senhora, ou mesmo Elphame. Entenderam?
Muitas cabecinhas perspicazes assentiram com ardor.
- Bom. Agora já esclarecemos isso. - O rosto de Elphame se abriu num sorriso jubiloso. - Levantem-se, neofomorianos, e sejam bem-vindos ao Castelo MacCallan - seu
novo lar!
Pegando a deixa da chefe, o clã MacCallan se adiantou, cumprimentando crianças e adultos até que logo os grupos estavam tão misturados que Brighid não conseguia
mais dizer onde o clã MacCallan terminava e as asas dos neofomorianos começavam.
- Este é alguém especial que eu deva conhecer? - Elphame perguntou a Brighid.
Antes que ela pudesse responder, Liam gorjeou um rápido "sim!".
Brighid desceu a mão para a perna do menino e a apertou. Com uma obediência que a caçadora começava a achar surpreendente, o menino se aquietou imediatamente.
- Elphame, gostaria de apresentá-la formalmente a meu novo aprendiz, Liam.
Para seu crédito, um leve retorcer dos lábios foi tudo o que traiu a surpresa e - Brighid tinha certeza - o divertimento da sua chefe de clã.
- Prazer em conhecê-lo, Liam. Um clã sempre pode fazer uso de... - Elphame hesitou, mas a um discreto meio-aceno de cabeça de Brighid, concluiu: - .... outra boa
caçadora.
- Obrigado, minha senhora! O Castelo MacCallan vai precisar de uma caçadora extra com todos nós aqui agora.
Brighid achou que Liam soou bem maduro, e teria acreditado que ele tinha de repente envelhecido vários anos se não o sentisse se contorcer com um entusiasmo mal
contido.
- É uma coisa muito sábia de se dizer, Liam - disse Elphame sem nenhum sinal do sorriso que Brighid sabia que ela devia estar lutando para esconder - sabia porque
a amiga estava atentamente evitando encontrar os olhos de Brighid. - Vejo por que Brighid o escolheu para ser seu aprendiz.
- Ah, ela não me escolheu - disse Liam com seriedade. - Eu a escolhi. Desde a primeira vez em que a vi, disse a ela que eu devia ser uma centaura caçadora, assim
como ela.
Elphame pressionou a mão nos lábios, como se considerasse seriamente as palavras do menino. Limpou a garganta com cuidado antes de responder: - Sabe, você me lembra
meu irmão. Ele sabia desde tenra idade exatamente o que seria.
Brighid podia sentir Liam respirando bem fundo para sustentar o que ela tinha certeza de que seria uma longa enxurrada de animadíssimo palavreado infantil quando
viu Nara se aproximando deles.
- Elphame, conheça Nara, a curandeira dos neofomorianos - apresentou Brighid depressa.
Nara fez uma mesura respeitosa à chefe do clã.
- Estamos muito felizes por estarmos aqui, minha senhora.
Elphame sorriu.
- Estou feliz por acrescentar uma curandeira e outra jovem caçadora às nossas fileiras.
Nara franziu a testa para sua jovem incumbência.
- Esta caçadora já cavalgou bastante por hoje.
- Acho que todos nós - disse Brighid baixinho enquanto ajudava Liam a desmontar com relutância de suas costas.
- Está absolutamente certa, Brighid - disse Elphame. Ela bateu palmas, chamando a atenção da multidão. - A ceia está servida. Vamos ao castelo e à excelente refeição
de nossa cozinheira.
As crianças responderam com um grito jubiloso, e logo foram acompanhadas pelo clã MacCallan pela imensa abertura dos portões. Elphame ficou ao lado de Brighid, observando
a última das carroças que era puxada para dentro dos muros do castelo.
- Lochlan me disse quantas crianças eram. Estávamos nos preparando e nos planejando para elas. Mas vê-los... todos reunidos... bom, é muito diferente de falar -
disse Elphame.
Brighid bufou:
- Ao menos ele preparou você.
Elphame sorriu para a amiga e depois a abraçou calorosamente.
- Senti falta de sua língua honesta, Brighid.
Vinte e Sete
COM UM SUSPIRO de alívio, Brighid alongou e girou o pescoço, sentindo os nós tensos dos ombros relaxarem. Pisando cuidadosamente para que seus cascos fizessem o
mínimo de barulho, saiu do pátio principal agora vazio, atravessando as portas abertas dos muros internos. Que a Deusa fosse louvada, agora estava enfim sozinha!
E as crianças, todas as setenta, inclusive seu precoce aprendiz, estavam confortavelmente acomodados na recém-restaurada caserna dos guerreiros. O jantar fora uma
exaustiva mistura de caos e controle, e Brighid pensou que provavelmente seria eternamente grata às mulheres do clã MacCallan. Elas tinham se espalhado entre as
crianças e não pareciam se importar com o tagarelar interminável e o questionamento incessante. Na verdade, refletiu Brighid silenciosamente, houve muita risada
e poucas olhadas abismadas ou desconfiadas. Claro que isso fazia sentido. Diferentemente dos guerreiros guardiões, o clã MacCallan teve mais de dois ciclos completos
da lua para se preparar para a chegada dos neofomorianos.
E também havia Lochlan, o companheiro escolhido pela chefe do clã. Ele era um nobre exemplo de seu povo. Estivera enganada por desconfiar dele, Brighid reconhecia
isso agora. Era óbvio que a maioria do clã MacCallan não fora tão reticente em aceitá-lo. Brighid meneou a cabeça. Através das crianças híbridas, passara a aceitar
a bondade inerente aos neofomorianos e era capaz de enxergar Lochlan com novos olhos.
Mas não via de maneira diferente apenas os neofomorianos. Uma parte dela começara a se agitar... bradar. Não queria pensar nisso, muito menos admitir, mas não era
covarde. Era de sua natureza enfrentar as coisas de frente. Ela estava mudando. Agora que estava em casa, de volta ao único lugar no mundo em que se sentia mais
aceita, mais segura, a diferença dentro dela era inegável.
Isso a intrigava quase tanto quanto preocupava.
Os muros externos do Castelo MacCallan assomaram de repente diante dela, que logo reorientou os pensamentos, sorrindo para o recém-construído caminho de ronda que
corria ao longo do interior das paredes de pedra lisa. Por insistência de Elphame, a ampla escadaria e os degraus altos foram construídos sob especificações bem
amplas para acomodar o volume de um centauro. Adequado aos centauros - aquilo definitivamente descrevia o Castelo MacCallan. Brighid imaginou brevemente se visitar
um castelo como o MacCallan, onde os centauros não eram apenas respeitados por suas habilidades de caça, mas eram realmente aceitos como parte do clã, parte da família
da chefe do clã, mudaria as visões isolacionistas de sua manada.
Provavelmente não. A manada Dhianna se mantinha isolada, ferozmente orgulhosa por não se dignar a se misturar com humanos. Uma visita ao Castelo MacCallan não mudaria
o que estava marcado dentro deles há...
Há quanto tempo? Com um sobressalto, Brighid percebeu que a última vez em que a manada Dhianna deixara a Planície dos Centauros por mais do que uma breve transação
fora durante a Guerra Fomoriana, e aquilo terminara desastrosamente para a manada. Mais de metade dos guerreiros centauros que lutaram na grande batalha no Templo
da Musa foram exterminados. Muitos ficaram terrivelmente feridos e mancaram de volta para as planícies jurando nunca partir novamente.
Ela era a primeira da manada a escolher deixar a Planície dos Centauros em mais de cem anos. Pela Deusa, era um pensamento intimidante!
- É bom vê-la, Brighid! - A voz do sentinela ecoou da atalaia.
Brighid deu tapinhas na balaustrada da ampla escadaria, assentiu com a cabeça e resmungou como se estivesse parada ali estudando o trabalho e não parada perdida
em pensamentos deprimentes com a manada Dhianna. Ignorando as sombras do passado, subiu até a atalaia e retribuiu a saudação formal do sentinela: - Estamos contentes
por tê-la em casa, caçadora.
- É bom estar em casa. - Ela sorriu em cumprimento e depois cobriu a curta distância até a beirada do muro. - Bela noite - disse ela, olhando para a floresta escura
e silenciosa e para o céu sem nuvens que estava iluminado com incontáveis estrelas.
- Tem sido uma primavera seca. É por isso que conseguimos concluir muito do trabalho no castelo. - O sentinela deu uma risadinha. - Claro que Wynne e o resto das
cozinheiras já estão reclamando que teremos que carregar água para a horta se não tivermos chuva logo, mas esse tempo me agrada - mesmo sob a ameaça de carregar
água.
Brighid sorriu distraída. Sua atenção foi atraída por um anel de tochas perto dos limites da floresta. O sentinela seguiu seu olhar.
- A tumba de Brenna. - A voz dele ficou séria.
Brighid gemeu e assentiu com a cabeça, lembrando-se: - O monumento foi concluído.
- Sim, só faz três noites que as tochas permanentes foram acesas pela primeira vez. Agora são acesas todas as noites. São apagadas a cada amanhecer.
- Três noites? - O estômago de Brighid se apertou. Três noites atrás Brenna a visitara no sonho. O que foi que o pequeno espírito dissera? Que se sentira compelida
a visitá-la naquela noite? - Até onde vai o caminho de ronda? - perguntou abruptamente ao sentinela.
- Já foi concluído mais de metade em torno do muro do castelo. - Ele apontou para a direita. - Vá em frente e veja por si mesma. Há tochas colocadas por toda parte.
- Ele sorriu. - Não precisa ter medo de tropeçar, caçadora.
- Bom, isso é reconfortante - murmurou, desejando boa noite ao sentinela e caminhando ao longo do robusto passadiço de madeira, aborrecida por parecer ser de conhecimento
comum que ela não gostava de alturas. Na atalaia seguinte, ela se aproximou do balcão e apoiou os antebraços na balaustrada de pedra lisa. De lá tinha uma visão
clara da tumba de Brenna. Uma estrutura simples e elegante fora erguida sobre ela - um teto abobadado suspenso por quatro colunas. Em cada uma das colunas foram
colocados castiçais entalhados nos quais as tochas ardiam, iluminando o grande sarcófago de mármore e espalhando fachos suaves de luz sobre o contorno da efígie
de Brenna.
- Me pergunto se ela gostou - falou Elphame baixinho ao sair das sombras.
Brighid considerou um reflexo de quantas vezes Ciara tinha se materializado silenciosamente ao seu lado nos últimos dias não ter pulado de susto - ou caído do balcão.
Mas fechou os olhos brevemente e respirou fundo para acalmar o coração disparado.
- El, será que poderia fazer algum barulho?
Ela se espremeu ao lado da caçadora.
- Eu a assustei?
A caçadora foi para o lado para que a amiga tivesse mais espaço e lhe deu uma olhada desagradável.
Elphame sorriu.
- Lamento.
Então as duas olharam a tumba.
- Parece tranquilo, mesmo daqui - disse Brighid.
- Ainda não está concluído. Comecei a procurar por um artista para pintar o teto com o nó da curandeira. E eu quero expandir mais as flores silvestres azuis para
que cubram aquela parte dos terrenos do castelo. Cuchulainn disse que eram as flores favoritas dela.
- Porque são da cor dos olhos dele - disse Brighid.
Surpresa, Elphame sorriu para a amiga.
- Nunca pensei nisso antes, mas aposto que está certa.
- Acho que Brenna gostaria do que fez para lembrá-la. - Enquanto falava, Brighid sentia a justiça daquelas palavras, bem no fundo daquela parte que começara a se
agitar recentemente.
- Acho que está certa. Ela foi importante demais para se tornar um pedaço esquecido do passado.
- Não será. Temos setenta crianças aladas que transmitirão sua história. Os neofomorianos parecem ter uma memória longa. - Brighid ergueu uma sobrancelha contemplativamente.
- E acho que não precisa mais procurar por um artista. Lochlan mencionou quantos híbridos são descendentes das deusas encarnadas das Musas?
- Não me lembro dele dizendo nada específico sobre qualquer das mães, exceto a dele - disse El. - Fiquei tão surpresa quanto o resto do clã por descobrir que a xamã
era neta de Terpsícore.
- Espere para ver o talento que esteve escondido nos Ermos por todos esses anos. As paredes no Grande Salão estavam cobertas com pinturas espetaculares. Até as pernas
das mesas eram entalhadas com flores desabrochando. Você, minha chefe amiga, herdou um grupo de artistas.
- Que notícia excelente. Por que será que Lochlan não mencionou isso?
Antes de conhecer os neofomorianos, Brighid teria suspeitado do silêncio de Lochlan, enxergando motivos velados e evasão dissimulada nessa omissão. Agora já sabia
bem. Sorriu para a amiga.
- Homens - sejam humanos, híbridos ou centauros - são essencialmente semelhantes. Costumam falar muito pouco sobre os assuntos importantes e demais sobre o óbvio.
Elphame riu.
- Isso, minha amiga caçadora, é verdade. - Ela se inclinou sobre a pedra do castelo e estudou a centaura. - Então, o que me diz sobre seu aprendiz?
Brighid deu um suspiro sofrido.
- É óbvio que o menino está confuso.
- E? - instigou Elphame.
- E por alguma razão maluca, acho que me importo com ele. Ele é... - Ela suspirou novamente. - Ele é encantador. E não tem pais.
- Ele precisa de você - disse Elphame.
- Suponho que precisa de mim, e de alguma forma talvez eu precise dele também. Ou ao menos assumir responsabilidade me pareceu certo depois que ele foi ferido.
- O que aconteceu?
- Os guerreiros guardiões não estavam tão ansiosos para recepcionar os neofomorianos quanto o clã MacCallan. Tudo o que sabiam sobre os híbridos era o que tinham
aprendido com Fallon. Ela... se deteriorou ainda mais. - Brighid meneou a cabeça. - Ela zombou de Cuchulainn. Foi medonho e perturbador.
- Eu devia ter ignorado a criança e a matado. Por Cuchulainn. Por Brenna. Por todos nós.
- Não! - Brighid se voltou para a chefe. - Você fez a coisa certa. Qualquer coisa além disso teria sido incivilizado e injusto. - O olhar da caçadora voltou para
a tumba da amiga. - Fallon matou Brenna - e isso foi um ato terrível. Mas ela cometeu o crime por desejo de salvar seu povo. Por escolher o único caminho que pensou
estar livre para ela, foi recompensada com loucura, prisão e, logo, a morte.
- Está dizendo que ela deve ser perdoada? - perguntou Elphame, incrédula.
- Não perdoada. Mas talvez compreendida e digna de pena. - Brighid pressionou as mãos sobre a balaustrada. - Algumas coisas na vida não podem ser devidamente colocadas
nos lados do bem ou do mal. Geralmente estamos no meio de um gesto de equilíbrio, onde a balança felizmente pende para o bem e se afasta do mal. Mas às vezes o mal
veste o rosto de amigos e da família. E o bem parece ser um forasteiro.
Elphame a estudou.
- Sente-se bem, Brighid?
Ela buscou o olhar límpido da chefe do clã.
- Estou aliviada por estar em casa.
- Senti sua falta. Com você e Cuchulainn longe ao mesmo tempo... - Elphame inspirou de maneira entrecortada - ... espero que isso não aconteça novamente.
- Não tenho intenção de ir a lugar nenhum que não seja para caçar - no rico solo de MacCallan.
- Bom. Agora se conseguirmos convencer Cuchulainn de que deve ficar. - Elphame se voltou para encarar a amiga. - Obrigada por trazer meu irmão de volta para mim.
Sempre lhe serei grata.
- Não precisa me agradecer, El. Ele é meu amigo também, e pertence a este lugar. Com você - com o clã MacCallan. Aqui ele pode se curar.
Elphame suspirou:
- Ele parece tão velho e cansado. Diria que foi difícil para ele voltar para cá.
- Sim, mas também é onde ele precisa estar. É hora de esse exílio autoimposto acabar - disse Brighid.
Elphame meneou a cabeça.
- Foi tão estranho ele partir assim. Cuchulainn não foge dos problemas, e sempre encontrou força na família.
- Cuchulainn partiu porque perdeu parte de si mesmo - explicou Brighid. - A parte de sua alma que era alegre e amava a vida não conseguiu suportar a dor de perder
Brenna. Ela se despedaçou e permaneceu no Outro Mundo. É por isso que Cuchulainn tem agido estranho. É por isso que tem sido tão difícil para ele se curar.
- Oh, Deusa! - Elphame ofegou. - O que faremos? Precisamos de um resgate de alma. - Olhou desesperada ao redor. - Mamãe! Ela pode consertar isso! Temos que...
A mão de Brighid sobre seu braço interrompeu o desvario de Elphame.
- Sua mãe já sabe. Haverá um resgate de alma, só que ela não pode executá-lo.
As sobrancelhas de Elphame se uniram.
- Então quem? Papai? Ele está vindo?
- Não, El. - Brighid respirou fundo. - Seu pai também não vai executar o resgate de alma. Eu vou.
Elphame piscou.
- Você?
Brighid encolheu os ombros, sentindo-se decididamente desconfortável.
- É o que parece. Sua mãe aceitou. Cuchulainn aceitou.
- Mas você não é xamã.
- Não, mas aparentemente isso não faz diferença. Eu... eu tenho... - Brighid se calou, tentando decidir como revelar. - Tenho poder no meu sangue. Sua mãe chama
de dom. Ainda estou aprendendo sobre isso. Eu acho... - ela respirou fundo novamente, sentindo-se um pouco como se estivesse vadeando uma piscina de água gelada
- ... acho que é o mesmo dom que minha mãe tem em seu sangue. Sabe que sou filha de Mairearad Dhianna.
Elphame assentiu:
- Sou a filha mais velha de Mairearad Dhianna.
Elphame ofegou.
- E deixou a manada para se tornar caçadora! Durante todo esse tempo presumi que fosse apenas uma das filhas caçulas da sumo xamã. - Elphame meneou a cabeça, um
leve sorriso entortando os lábios. - Aposto que sua partida causou um bocado de... - Calou-se. - É por isso que nos entendemos tão bem. Nós duas somos filhas que
escolheram romper com a tradição. Eu deveria suceder minha mãe como Escolhida de Epona. Você deveria suceder a sua como Sumo Xamã dos Dhianna. Pouco surpreende que
a Deusa tenha cruzado nossos caminhos.
- Só que sua mãe apoia e aceita sua decisão. A minha não. Ela não é como Etain. - Brighid fitou a noite. - Quando deixei minha mãe, estava determinada a deixar uma
vida indesejável para trás, o que incluía o poder no meu sangue que me amarrava a ela. Achava que precisava rejeitá-lo e reprimi-lo para provar que eu era diferente
- que eu estava comprometida com outro destino. - Brighid esfregou o rosto. Queria se explicar para Elphame, precisava. Mas era difícil. Seria sempre tão difícil
assim falar sobre si mesma e sua vida antes de chegar ao Castelo MacCallan? - Mas há partes de meus poderes, ou dons - como sua mãe diz - que não consegui rejeitar.
Sabe que sou uma mestra caçadora. Talvez tão perita em encontrar e capturar presas que poderia ambicionar ser caçadora-chefe de Partholon.
- Sim, claro. Sempre me maravilhei com suas habilidades, assim como o resto do nosso clã. Somos afortunados por reclamá-la como nossa.
- É porque meu dom é uma afinidade com os espíritos dos animais - falou Brighid apressada quando a amiga começou a protestar: - Não estou dizendo que não tenho as
habilidades de uma caçadora. Claro que tenho. Passei pelo treinamento. Compreendo os hábitos dos animais e posso rastrear qualquer coisa que se mova sobre a terra.
Mas tenho mais do que as habilidades normais de uma caçadora. Sinto os espíritos do cervo e do alce, do javali e do urso. Eu os conheço de uma maneira que só é possível
por causa dos poderes que me foram oferecidos por Epona.
Ficaram em silêncio as duas amigas, ambas admirando a floresta sonolenta, considerando o peso das palavras de Brighid.
- Se eu tivesse mais experiência com o mundo espiritual, teria adivinhado a verdade. Agora que você me diz, parece óbvio. - Elphame olhou para Brighid. - Mamãe sabe,
não é?
- Sua mãe sabe de tudo - disse Brighid com um sorriso.
- Tudo que é importante - acrescentou Elphame.
- Não, estou começando a achar que ela sabe de tudo. - As duas mulheres riram placidamente.
- Assim é mamãe - disse Elphame. - Ela é assustadora, surpreendente e maravilhosa.
Brighid hesitou por um momento, depois disse: - Hoje ela me disse que eu a faço se lembrar de você.
Elphame sorriu.
- Isso não me surpreende.
- Preciso dizer que depois de viajar com ela e conhecê-la melhor fiquei com inveja de você, El. Só posso imaginar como seria ter uma mãe que me amasse de maneira
abnegada.
Elphame entortou a cabeça e encarou a amiga.
- É um presente sem preço - disse simplesmente.
- Um que nunca conhecerei.
- Não precisa nascer filha de alguém para se compartilhar do amor dessa pessoa.
Agora era a vez de Brighid piscar surpresa com a chefe. Elphame sorriu.
- Mamãe tem duas filhas, mas já disse várias vezes que gostaria que Epona lhe tivesse concedido mais outras.
A caçadora sentiu uma torrente quente de emoção. Aceitação. Assim era ser verdadeiramente aceita, amada e honrada por si mesma. E Elphame não estava com ciúme dela,
nem zangada, nem chocada. Estava claramente contente com a perspectiva de compartilhar o amor da mãe com Brighid. Era um milagre.
Então a culpa inundou Brighid. Ela possuía uma mãe. Verdade, Mairearad era egoísta e manipuladora, e claramente se importava mais consigo mesma do que com os filhos,
mas era sua mãe mesmo assim. Era possível possuir duas mães ao mesmo tempo?
Não era. Pela Deusa, queria que fosse possível. Mas não era.
- Brighid - murmurou Elphame, tocando-lhe o braço. - Não deixe isso dilacerar você. Não pode aceitar o amor de uma mãe sem rejeitar a outra?
- Não seria traição? - perguntou Brighid, tentando, sem sucesso, evitar que a voz tremesse.
- Não, irmã. Você não é capaz de traição. Esqueça isso.
- Tentarei... - sussurrou. Desviando o rosto, secou as lágrimas que tinham escorrido pelas faces. Então um agitar de movimento atraiu sua atenção. Brighid refocou
a visão. Dois vultos se moviam entre as tochas que iluminavam a sepultura de Brenna. Um era de homem, o outro de uma filhote de lobo.
- É Cuchulainn - sussurrou Elphame.
O guerreiro se encaminhou até a cabeça da tumba de Brenna. Ficou paralisado, depois afagou a face de pedra com a mão. Curvou-se lentamente. Brighid achou que ele
beijaria os lábios da efígie, mas Cuchulainn simplesmente pousou a testa sobre o mármore imaculado. Depois se virou, tropeçando na escuridão, com a loba seguindo-o
em silêncio.
- Rejeitava o poder de xamã no meu sangue - murmurou Brighid. - Então encontrei seu irmão nos Ermos - despedaçado e desesperado, e de alguma forma compreendi que
eu podia ajudá-lo. Mas isso é tudo o que eu realmente compreendo. Não sei o porquê, mas Epona fez de você e seu irmão uma parte do meu destino.
Elphame se virou para ela.
- Nossa Deusa é sábia. Não há ninguém a quem mais confiaria meu irmão senão você.
- Espero ser digna de sua confiança.
- Você é, minha irmã. - Elphame sorriu, e os pelos na nuca de Brighid se eriçaram quando partículas de poder rodopiaram repentina e inesperadamente no ar que as
envolvia.
Vinte e Oito
O CÔMODO FORA arejado e preparado para ela. Tinha sido construído como um anexo à caserna dos guerreiros, uma extensão do cômodo longo e estreito que agora abrigava
os neofomorianos. Elphame ordenou que uma parede grossa fosse construída entre a caserna tradicional e o alojamento da caçadora, e insistiu para que o cômodo espaçoso
tivesse uma entrada independente. Brighid não sentia necessidade de tanto alvoroço, mas a chefe do clã ignorou seus protestos e criou um aposento digno da caçadora
de MacCallan. Era privado e bem equipado. E, Brighid notou com prazer, nos dias em que esteve fora, alguém havia pendurado uma tapeçaria retratando a Planície dos
Centauros, plena de flores silvestres de primavera e pontilhada com bisões escuros, ao longo de uma das paredes.
- Que a Deusa a abençoe! - murmurou Brighid, sabendo que fora Elphame quem cobrira as paredes de Brighid com cenas de sua infância. Elphame a compreendia bem.
Uma das criadas fora bem solícita por acender o fogo na lareira, assim como as luzes do conjunto de altos candelabros que pareciam sentinelas de ferro ao redor do
quarto. O cômodo longo e estreito fora mobiliado com uma grande penteadeira, uma mesa bem sólida - construída para proporções centáureas - e um enorme colchão recheado
de penugem, que repousava diretamente sobre o chão de mármore.
Brighid aspirou fundo, adorando o cheiro familiar das velas de MacCallan, que eram feitas esmagando-se as folhas oleosas da lavanda local com a cera. Então sorriu.
Que a Deusa abençoasse Wynne e seu bando de cozinheiras! Sobre a mesa havia um cesto cheio de carne fria, queijo, pão, frutas secas e - o melhor de tudo - um odre
- ela o destampou e tomou um longo e profundo gole - do excelente vinho tinto dos próprios vinhedos de Etain.
Brighid enfiou um pedaço de queijo na boca. Conheciam seus hábitos. Sabiam que ela gostava de beliscar à noite e que às vezes se levantava antes mesmo das cozinheiras.
Queriam ter certeza de que ela teria provisões. Importavam-se com ela.
Vivia ali há não mais que três ciclos completos da lua, porém cada aroma, cada rosto, cada gesto, falava-lhe de segurança e aceitação. Acho que finalmente encontrei
meu lar.
Era uma experiência única e maravilhosa ter um castelo cheio de pessoas que se preocupavam com ela e se importavam com seu conforto. O que sua mãe pensaria se pudesse
ver isso? Brighid meneou a cabeça. A mãe nunca veria isso, mesmo que estivesse de pé naquele mesmo quarto. Mairearad Dhianna só conseguia enxergar sombras, nunca
a luz que as produzia. Encontraria defeitos no clã MacCallan e menosprezaria a afeição deles por Brighid.
Por que estava pensando na mãe? Aquela parte de sua vida estava encerrada.
Era porque estava cansada demais. A viagem fora exaustiva. Precisava dormir. Voltaria a ser ela mesma pela manhã. No dia seguinte garantiria que os neofomorianos
fossem assentados - havia o falatório da construção de uma aldeia para eles no platô ao sul do castelo. Talvez devesse levar Liam lá.
Ela suspirou, soprando metodicamente as velas perfumadas, até a única luz vir do fogo tremulante da lareira. O que faria com Liam? Ela o declarara seu aprendiz.
Teria que começar a treiná-lo. Rastreamento, pensou ela com satisfação, colocá-lo para explorar rastros diferentes - identificar... seguir... nomear... categorizar.
Era o rastreamento que mais exigia anos de treinamento para ser dominado pelas aprendizes de caçadora. Brighid o manteria ocupado.
Se tivesse sorte, Liam perderia o interesse.
Ignorando o calombo rígido da pedra de turquesa no bolso do seio, a caçadora descartou o colete e despejou água fresca do jarro na bacia que aguardava no topo da
penteadeira. Usando uma grossa toalha de linho que encontrou pendurada num gancho com formato de adaga, refrescou-se e depois suspirou profundamente ao se acomodar
na cama. Dormiria bem naquela noite. Amanhã consideraria todas as ramificações da pedra de turquesa, do resgate de alma e da maldita águia dourada que convenientemente
esquecera de mencionar, exceto para Cuchulainn. Amanhã ainda estaria em tempo...
Não tinha percebido que sonhava. Estava simplesmente contente, navegando numa nuvem de serenidade. Não existia nenhuma criança em seu sonho... nenhuma amiga falecida...
e de certo nenhum maldito homem, de alma despedaçada ou não.
O som da porta fechando com estrondo e a sensação de uma mão áspera sacudindo-a para que acordasse dissipou seu contentamento como fumaça ao vento.
- Brighid! Acorde!
A caçadora abriu um olho. O fogo tinha se queimado em brasas ardentes, mas o homem segurava uma vela na mão. Ela abriu o outro olho.
- Cuchulainn? - A voz estava grossa de sono.
- Pronto, sabia que estaria acordada - disse ele, que se pôs a acender as velas que ela tinha apagado recentemente.
Brighid se sentou e afastou o longo cabelo prateado do rosto.
- Já é de manhã?
Concluída a tarefa de acender as velas, Cuchulainn se agachou diante da lareira, alimentando o fogo com lenha e recuperando-lhe a vida. Olhou para ela por cima do
ombro. Os olhos desviaram para os seios nus antes de retornarem ao rosto dela.
- Não. Não é de manhã. Vista-se. - Ele ficou de costas para ela e recomeçou a atiçar o fogo.
As faces de Brighid ficaram quentes quando ela se levantou da cama e recuperou o colete. Mas mesmo enquanto o colocava, sua mente estava em disparada. O que havia
de errado com ela? Centauros geralmente ficavam nus. Não havia vergonha em expor os seios. E mesmo completamente vestida com o tradicional colete de couro adornado
de miçangas, os seios geralmente ficavam parcialmente visíveis. Por que estava corando como uma menina? Cuchulainn tinha invadido seus aposentos, acordando-a e fazendo
com que se sentisse... nua. Isso era ridículo.
- Cuchulainn, o que foi? - inquiriu Brighid. - Estou cansada. E não dei permissão para que entrasse aqui e... - ela apontou para as velas acesas e a lareira - ...
despertasse tudo.
Cuchulainn ficou de pé e a encarou. O cabelo despenteado estava bagunçado como a juba de uma grande fera. Ele juntou as mãos, cruzando os dedos num aperto tão forte
que branqueou as juntas, depois as levou à testa e fechou os olhos, como se pretendesse suplicar com uma oração.
- Cuchulainn? - Agora Brighid estava preocupada. O homem diante dela parecia cansado e destroçado.
- Me ajude - pediu ele, mantendo os olhos fechados. - Não consigo mais. Não posso viver assim por mais um dia.
- Claro que ajudo você. Já conversamos sobre isso.
- Nada mais de conversas. - Ele abriu os olhos. - É agora ou nada.
Brighid sentiu uma pontinha de pânico.
- Cuchulainn, seja racional. Agora não é a hora.
- Tem que ser. - Ele desprendeu as mãos num gesto violento. - Não consigo ficar aqui sem ser eu mesmo.
- Sabe que isso não vai mudar sua dor, Cuchulainn. Não fará com que ela desapareça.
- Sei disso! - Ele correu os dedos pelo cabelo e andou de um lado para outro diante da lareira. - Tenho que aprender a viver sem ela, mas não posso fazer isso se
não estiver inteiro, e não suporto ficar aqui - em casa - onde eu a conheci, amei e perdi. Estou respirando, então estou vivendo, mas não de verdade. Eu... eu não
consigo explicar direito. Só precisa acreditar que estou pronto. Ou você me ajuda esta noite, ou pela manhã terei ido embora.
- Fugir não soluciona nada.
- Sei disso também! - Cuchulainn esfregou a testa, depois ergueu os olhos para ela. - Me ajude, Brighid. Por favor.
- Não sei se consigo fazer isso! - gritou ela.
Ele quase sorriu.
- É só isso que a preocupa? Tem medo de não conseguir apanhar a parte de mim que está faltando?
- O que quer dizer com "é só isso que a preocupa"? Claro que isso me preocupa! Cuchulainn, não sou xamã - disse ela com clareza e nitidez, como se ele fosse uma
criança estúpida.
- Mas aquilo... - Ele se calou com um franzir da testa. - Quero dizer, ele, ou eu, ou seja lá como chame aquela parte que me falta.
- Ele - disse Brighid.
- Ele já veio até você. Virá novamente.
- Você parece ter certeza.
Então Cuchulainn sorriu de verdade.
- Tenho certeza, caçadora. Nós gostamos de você - ele e eu. Você é irritadiça e fechada demais, mas ainda assim gostamos de você. Ele virá até você. Apenas chame.
Brighid ignorou a maneira como as palavras dele a deixaram agitada por dentro. Claro que Cuchulainn gostava dela. Eram amigos - camaradas -, membros do mesmo clã.
- Ou me ajuda, ou vem comigo explicar à minha irmã e minha mãe que estarei de partida logo pela manhã.
Brighid fez cara feia para ele.
- Isso me soa vagamente como uma ameaça.
- Não é vago e não é uma ameaça. É uma clara chantagem.
Brighid buscou seus olhos turquesa novamente, toda a zombaria desaparecida da voz.
- Estou com medo, Cuchulainn.
- De quê?
- De falhar... de conseguir.
Surpreendendo-a, Cuchulainn assentiu devagarinho: - É o reino espiritual. Você não quer ir lá. Compreendo isso, e lamento ter que pedir que faça isso por mim. Se
houvesse outra maneira...
- Não - apressou-se em dizer. - Não é a viagem que me aborrece. Estou com medo do que eu possa descobrir lá - terminou Brighid a frase num sussurro.
O rosto de Cuchulainn empalideceu, mas ele não abandonou o olhar dela.
- Sabe o que vai descobrir. É apenas eu, Brighid. Despedaçado ou não - com corpo ou não -, é apenas eu.
- Isso está me transformando, Cuchulainn. Eu posso sentir.
- Eu sei... Eu... - O queixo dele enrijeceu. - Me perdoe por pedir isso a você.
Brighid olhou nos olhos dele e de repente se sentiu envergonhada de si mesma. Cuchulainn estava implorando pela vida. Ela precisava deixar de lado seus temores infantis
e concluir aquele trabalho. Carregava o sangue de uma xamã poderosa nas veias, como sempre carregou a vida inteira. A única diferença agora era que ela teria que
mergulhar nessa herança e usá-la em sua vantagem.
- Não há o que perdoar. Estou sendo tola. Vamos acabar com isso.- Brighid olhou ao redor do quarto. - Aumente o fogo da lareira, mas acho melhor apagar essas velas.
Cuchulainn rapidamente se moveu de vela em vela, depois retornou à lareira e acrescentou mais madeira ao fogo, cutucando e atiçando até as chamas dançarem e crepitarem.
Depois ficou de pé, esfregando as mãos com nervosismo.
- E agora?
Brighid tinha vontade de gritar com Cuchulainn. Sabia tanto quanto ele - não tinha a menor ideia do que fazer em seguida. Mas a expressão nos olhos dele a conteve.
Cuchulainn estava contando com ela. Não sabia o porquê, mas estava destinada a ajudá-lo. Ela suspirou.
- Precisamos nos deitar - disse, retirando-se para o colchão macio. A centaura dobrou as pernas e se reclinou, quase na mesma posição em que estava quando ele invadiu
o quarto. Olhou para ele. Ainda estava parado diante da lareira. - Cuchulainn, não precisa viajar ao Outro Mundo comigo, mas tem que ficar relaxado e pronto para
aceitar o retorno de sua alma. Acho que é mais fácil de se fazer deitado.
- Onde?
Ela revirou os olhos e apontou para o espaço vazio ao lado dela.
- Vou recuperar um pedaço da sua alma. Não precisa ter medo de se deitar perto de mim.
- Não estou com medo. Só... - Ele passou os dedos pelo cabelo bagunçado. - Pela Deusa, estou nervoso. Não sei o que fazer!
- Tente se deitar.
Ele assentiu, resmungou, e então foi a largas passadas para o outro lado do colchão da caçadora. Deitou-se, cruzando e depois descruzando as mãos.
- Não sei o que fazer com minhas mãos - disse sem olhar para ela.
- Não me importa o que faça com elas, desde que fique parado.
- Me desculpe - disse ele.
Brighid virou a cabeça para poder encará-lo.
- Isto é o que vou fazer: vou relaxar e me levar para o mesmo lugar ao qual vou quando estou me preparando para uma caçada. Depois avançarei mais fundo no... bom,
onde quer que a trilha me leve.
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas.
- A única maneira de eu conseguir fazer isso é comparando com uma caçada - explicou ela exasperada.
Ele começou a erguer as mãos, como se defendendo-se de um ataque, mas então parou e as manteve bem apertadas aos flancos.
- Faça como quiser fazer - disse ele cautelosamente.
- Ah, pare com isso! - retrucou ela.
- Parar com o quê?
Brighid se ergueu num dos cotovelos e apontou o queixo para seus braços rígidos e o corpo imóvel.
- Está agindo como se nunca tivesse se deitado com uma mulher antes.
Desta vez só uma sobrancelha se ergueu e os lábios se curvaram como se Cuchulainn estivesse tentando esconder um sorriso.
- É assim que prefere me relaxar?
Brighid fez cara feia.
- Claro que não. - Não pensaria em como estar com ele ali, tão perto, fazia seu estômago apertar. Não pensaria, e certamente não mencionaria aquilo. Reclinou-se
novamente no amontoado dos lençóis. - Mas você está parecendo você mesmo agora.
- Você é ardilosa, caçadora.
- Apenas feche os olhos e se concentre em ficar aberto. Lembre-se, não posso obrigar sua alma a voltar. Ele precisa querer vir, e você precisa aceitá-lo.
- Estou pronto.
Pela Deusa, ela esperava estar pronta também.
Vinte e Nove
ELA VASCULHOU O bolso do colete e puxou a pedra de turquesa. Apertando-a bem no punho cerrado, fechou os olhos. Pense que é uma caçada, ordenou-se. Não é assim tão
diferente. Hoje estou rastreando um espírito despedaçado em vez de um animal. Brighid respirou profunda e lentamente e se concentrou. Como fazia todos os dias antes
de uma nova caçada, imaginou uma luz poderosa se originando bem na base da espinha, e, quando expirou, o poder fluiu ao redor dela. Em seguida, quando inspirou,
imaginou-se aspirando a luz e deixando-a preencher seu corpo; depois expirou outra vez, novamente preenchendo o espaço ao redor com a luz brilhante e poderosa.
Enquanto continuava se concentrando, imaginou onde começaria a caçada - e por um momento hesitou. Onde estava sua presa? Geralmente lançaria seus pensamentos à floresta
próxima, procurando a centelha esvoaçante que podia sentir tão distintamente diferente para cada animal. Encontrar a aura da criatura sempre lhe mostrava onde procurar
a presa. Mas Cuchulainn aparecia exatamente como ele mesmo - não tinha ideia de qual poderia ser a cor do seu espírito, ou mesmo se possuía alguma luz. Consequentemente
não tinha pista de onde seria o hábitat de Cuchulainn.
Deveria interromper a meditação e perguntar a ele quais os seus lugares favoritos? Não... Ele tinha vindo até ela antes. Não precisara procurar por Cuchulainn. Ele
visitara seu lugar favorito - a Planície dos Centauros. Sentindo-se subitamente mais confiante, Brighid focou a mente no lar de sua infância.
Não sabia que o espírito tinha deixado o corpo até sentir a brisa morna nas faces. Antes mesmo de abrir os olhos, sabia estar lá - a brisa lhe dizia. Cheirava a
capim alto e liberdade.
Brighid sorriu e abriu os olhos. Tinha retornado à mata próxima ao assentamento de verão da família. Podia ouvir o Riacho Sand rolando preguiçosamente pela alameda
sombreada de carvalhos, freixos e lódãos diretamente à frente dela.
No sonho, tinha ouvido a risada de Cuchulainn, e aquilo a guiara até ele, então ficou quieta, ouvindo a brisa acariciadora. Escutando apenas o trinado de pássaros,
suspirou frustrada.
Rastreá-lo, lembrou a si mesma. A caçadora estudou o chão. Nada. Como poderia rastrear um espírito?
Peça ajuda, criança...
A voz de Etain sussurrou no vento. Brighid se assustou e olhou ao redor. Não viu ninguém, mas seus instintos diziam que não estava sozinha. A presença de Etain estava
observando, e Brighid não conseguia decidir se isso a fazia se sentir melhor ou mesmo mais nervosa. Pare de se preocupar e pense!, ordenou a si mesma.
Peça ajuda...
Ela endireitou os ombros e, sentindo-se um pouco tola, a caçadora gritou ao vento: - Estou fora do meu elemento nesta caçada em particular, e bem que gostaria de
alguma ajuda!
O guincho familiar veio de cima, então ela ergueu o rosto, abrigando os olhos do sol forte de primavera. A águia dourada circulava acima de sua cabeça. Brighid sentiu
uma torrente de animação. A ave devia ser realmente seu aliado espiritual.
Desta vez nenhuma palavra se formou em sua cabeça, mas a águia inclinou a asa e mudou de direção, afastando-se do Riacho Sand e adentrando a planície relvada. Sem
hesitação, Brighid trotou atrás dela, tentando não se perder na experiência sensual de passar pelo capim ondulante. A planície falava ao seu sangue. Podia correr
ali para sempre. Dividindo a atenção entre o chão e a águia, aumentou o passo, passando de trote a galope e sentindo um prazer feroz na flexão dos músculos equinos
e na maneira satisfatória com que os cascos atingiam a terra rica.
Teria passado galopando por ele se não tivesse ouvido chamarem seu nome. Cuchulainn estava parado numa pequena elevação. Mãos na cintura, observou-a parar e depois
galopar de volta até ele.
- Vejo que tirou o capão de mim. Por quê? Com medo de que eu a vencesse na corrida desta vez? - Então seu olhar vagou de propósito nos excelentes músculos equinos
da parte traseira. - Está mais devagar, velhota? Parece um bocado... saudável. Anda comendo bastante?
Brighid abriu a boca em choque. Aquele patife a estava chamando de velha e gorda?
Cuchulainn jogou a cabeça para trás e deixou a risada rolar, o que fez a caçadora o encarar com cara muito feia.
- Ah, Deusa! - Ele apertou o flanco, ofegando entre gargalhadas. - Devia ver sua cara!
- Devia ver a sua. Parece ridículo rindo como um palhaço de aldeia - resmungou.
Ainda dando risadinhas, Cuchulainn se atirou no chão, parecendo travesso e terrivelmente jovem, especialmente quando contrastava esse guerreiro despreocupado com
o homem abatido e cansado do mundo cujo corpo descansava ao seu lado no Castelo MacCallan.
- O que vamos fazer hoje, Brighid? Voltar para o riacho e pescar? Ou, se fizer meu cavalo aparecer, podemos rastrear alguns bisões. Sempre quis caçar bisões. Diga,
o temperamento deles é tão maligno como meu pai diz?
Em vez de responder, a caçadora o estudou. Estava enganada quando pensou que Cuchulainn não possuía luz própria. Como não conseguira ver antes? O guerreiro brilhava
como um jovem deus dourado. Estava transbordando de vida e alegria.
Cuchulainn precisava dessa parte de si mesmo, e o jovem deus precisava da força do guerreiro maduro que ficara com seu corpo e escolhera se agarrar à vida e tentar
sobreviver à dor da perda.
Inabalado com o silêncio, Cuchulainn sorriu para ela.
- Ótimo. Faremos o que quiser fazer. É o seu sonho.
- Agora é hora de voltar para casa, Cuchulainn - disse ela.
O guerreiro deu de ombros e se ergueu com agilidade.
- A decisão é sua - o sonho é seu. Claro que não há bisão nenhum por lá, mas os cervos são incrivelmente suicidas. Quer ver quem abate um primeiro?
- Nada de caçada. Nada de sonhos. Nada de fingimentos. É hora de voltar para casa.
Cuchulainn bufou um pouco de ar numa risada meio estrangulada.
- Não sei do que está falando, Brighid. Como eu disse antes, o sonho é seu. Só vim participar do passeio.
- Pare com isso - explodiu ela, surpreendendo os dois com a veemência. - Essa charada desonra a memória dela. Compreendo o sofrimento. Compreendo a perda. Mas não
compreendo a desonra.
O rosto de Cuchulainn perdeu um pouco do brilho dourado.
- Nada disso faz sentido.
- Basta, Cuchulainn. Você se lembra, sei que se lembra. É hora de encarar o mundo real. Lá não estamos reconstruindo os aposentos de Elphame. Isso foi há quase três
ciclos da lua. Os aposentos de sua irmã estão prontos. Muito do castelo foi reconstruído, mas você não estava lá para ver. Esteve nos Ermos num exílio autoimposto,
sofrendo por Brenna.
Ele meneou a cabeça.
- Está enganada.
- Não - disse exausta. - Queria estar enganada. Queria desfazer tudo. Mas não posso. Você amava Brenna, mas ela foi morta.
- Por que está fazendo isso?
Brighid continuou como se ele não tivesse falado: - Quando Brenna morreu, sua alma se despedaçou. Desde então uma parte de você estava vivendo, respirando e tentando
lidar com o pesar, a culpa e a dor. Tentando prosseguir com a vida cotidiana. E posso lhe dizer que tem sido bem difícil para ele porque a parte de seu espírito
que ama a vida - que está cheia de alegria, esperança e felicidade - está aqui - murmurou. - Isso é o que você é, Cuchulainn. Um pedaço de um todo. Olhe dentro de
si mesmo. Está incompleto e sabe disso.
Cuchulainn continuava sacudindo a cabeça de um lado para outro.
- Não...
Afastou-se dela um passo, mas Brighid foi rápida, cobrindo o espaço entre eles, colocando a mão, refreadora, sobre seu ombro, surpresa por ele parecer tão real,
tão sólido e cálido.
- Não desta vez... - disse-lhe. Brighid vasculhou o bolso e pegou a pedra de turquesa. Estendeu-a para ele na palma da mão aberta. - De quem é isso, Cuchulainn?
O rosto dele perdeu o resto da cor. Ele encarou a pedra.
- De quem é isso? - repetiu ela.
- É a pedra de Brenna. - A voz tinha perdido todo o entusiasmo da juventude e ele soava como o guerreiro que estava no Castelo MacCallan. - Ela disse que era um
presente de Epona. - Ergueu os olhos para Brighid, com a expressão de um menino perdido. - Ela disse que era da mesma cor dos meus olhos.
- É sim, meu amigo - confirmou Brighid.
- Eu amava Brenna - disse devagarinho.
Brighid assentiu:
- Sim, e ela amava você.
- Brenna está morta.
- Sim. - Brighid não sabia o que esperava, mas a calma resignação que se assentou no rosto de Cuchulainn a surpreendeu.
Ele estava fitando a pedra outra vez.
- Eu me lembro.
- Sabia que lembraria. - Brighid lhe apertou o ombro. - Está pronto para voltar para casa agora?
Cuchulainn ergueu os olhos assombrados.
- Por que deveria?
- Ele precisa de você. Você precisa dele. E é o certo a se fazer, Cuchulainn.
- Por que ele não vem para cá? Aqui é bom. Nada de dor. Nada de morte. Nada de...
- Viu Brenna por aqui? - interrompeu ela.
O corpo dele enrijeceu.
- Não. Ainda não. Mas se eu ficar inteiro de novo, talvez ela venha.
- Ela não vem, Cuchulainn. Este lugar não é real - nem mesmo para os padrões do Outro Mundo. É defeituoso, falso, imaginário. Nada aqui existe de verdade.
- Como sabe? - A voz dele beirava o desespero.
- Tem que confiar em mim, Cuchulainn. Nunca enganaria você. O homem cujo corpo está deitado ao meu lado no Castelo MacCallan sabe disso. Você também não sabe?
O olhar dele se fixou no de Brighid, que podia vê-lo considerando. Lentamente, Cuchulainn assentiu com a cabeça.
- Confio em você. O bastante para saber que me dará uma resposta honesta para uma última pergunta: o que há para mim quando eu retornar, além do sofrimento, da dor
e dos pedaços de uma vida dilacerada?
A importância da resposta pressionava a alma dela. Ah, me ajude... Etain... Epona... Alguém. Sua mente procurava freneticamente por uma resposta lógica e benfeita
que tornasse o amigo inteiro novamente. Deveria mencionar a irmã? As pessoas do clã MacCallan? Que tal as crianças às quais obviamente se afeiçoara?
Pare de pensar, criança, e sinta. Encontrará a resposta certa.
As palavras em sua cabeça eram inegavelmente de Etain. Às cegas, como um homem se afogando, agarrou-se nelas, arrojando pelos destroços de sua mente. Quando falou,
a resposta veio do coração: - Você vai amar novamente. É por isso que deve retornar. Acho que talvez já esteja um pouco apaixonado. - Os olhos de Brighid se encheram
de lágrimas conforme as emoções a sobrepujavam. - Não será fácil, e vem de um lugar inesperado... - Ela pensou na bela Ciara e percebeu que "inesperado" era definitivamente
uma amenidade, mas respirou fundo e continuou falando ao guerreiro chocado: - Não alego saber muito sobre o amor, mas sei que pode fazer a vida valer a pena. Confie
em mim, Cuchulainn. Sua vida logo estará repleta de amor e valerá a pena viver novamente.
Conforme falava, uma mudança aconteceu no guerreiro. A tristeza nos olhos turquesa permanecia, mas o desespero sumiu, e quando Cuchulainn sorriu, o rosto inteiro
se aqueceu.
Pela Deusa, ele era lindo!
A mão ainda repousava no ombro dele. Sem desviar os olhos dos dela, Cuchulainn cobriu-lhe a mão e levou-a aos lábios. Imensuravelmente chocada, Brighid só conseguia
encará-lo. O olhar dele era intenso, e parecia que o azul de seus olhos tinha escurecido. Quando falou, a voz se aprofundou: - Você se tornou sumo xamã, Brighid?
Ela meneou a cabeça, imaginando como podia se sentir dormente e quente ao mesmo tempo.
Cuchulainn riu suavemente, um som sublimemente masculino que reverberou fundo dentro de Brighid.
- Eu diria que um humano amar uma centaura que não consegue se transformar talvez seja mais do que inesperado, mas confio em você, minha bela caçadora. E agora estou
pronto para voltar para casa.
Cuchulainn acreditava que ela era a mulher por quem estava se apaixonando! Brighid abriu a boca para negar - para explicar -, para corrigir o engano e...
Traga-o para casa, criança.
A voz de Etain em sua mente fez sua boca se fechar e as faces esquentarem. A sacerdotisa estava certa, claro. Agora não era hora de explicar para Cuchulainn que
estava enganado. Agora era hora de levá-lo para casa. Explicações não seriam necessárias uma vez que estivesse reunido ao corpo. Cuchulainn talvez não estivesse
pronto para admitir que podia amar Ciara, mas sabia que a atração estava lá. Assim como sabia que não existia nada entre os dois.
- Vamos indo, Brighid?
Ela piscou e reordenou os pensamentos. Cuchulainn estava bem perto dela, e ainda lhe segurava a mão. Sorriu, parecendo subitamente tímido. Ah, Deusa! Ele realmente
acreditava que estavam se apaixonando. Sentiu o coração se comprimir e o estômago apertar, e apenas por um momento se deixou imaginar como seria ter aquele guerreiro
como seu, esquecer que ele era um homem inacessível. Descobriu que isso não era tão difícil de imaginar. Talvez por causa do pai centauro, talvez por causa do fato
de a mãe ser a Escolhida de Epona, por qualquer que fosse a razão, aquele homem avivava sentimentos dentro dela que nenhum outro homem, fosse humano ou centauro,
jamais agitou.
Era apenas um sonho - passageiro e impossível -, mas que a tentava... intrigava... E ela deixou assim. Por um momento, deixou assim.
Aspire-o, e traga-o para casa.
A voz de Etain a surpreendeu, e Brighid sentiu o rosto esquentar novamente. Devia estar resgatando a alma de Cuchulainn, mas em vez disso estava se entregando a
ridículas fantasias infantis. E tudo isso enquanto a mãe dele estava observando.
Cuchulainn riu suavemente e entrelaçou os dedos com os dela.
- O que é? Você parece horrorizada.
- Eu... eu preciso levá-lo para casa - revelou.
Ele assentiu:
- Estou pronto. E agora? - perguntou, soando misteriosamente como o Cuchulainn que tinha invadido seu quarto.
- Devo aspirar você. - A voz dela era quase inaudível.
Cuchulainn pigarreou e a mão apertou a dela. Brighid achava que ele de repente parecia obviamente nervoso.
- Acho que só existe uma maneira de fazer isso.
- Como? - perguntou ela, mas já sabia como.
- Me beije, Brighid. Sorva minha alma. Me leve de volta à terra dos vivos.
O estômago se apertou e era como se o coração fosse explodir do peito.
Cuchulainn sorriu.
- Agora parece que você gostaria de fugir.
- Não, eu só... eu só... - gaguejou ela.
As sobrancelhas dele se ergueram.
- Não nos beijamos? Nunca?
Brighid meneou a cabeça.
Ele suspirou:
- Claro que não. Parte de mim está aqui - parte está lá. E ainda estou sofrendo por Brenna... - Cuchulainn passou a mão que não segurava a dela pelo cabelo. - Imagino
que essa coisa entre nós não tenha sido fácil para você. - Então se aproximou ainda mais e tocou-lhe a face. - Peço desculpas por estar tão dilacerado. Por tornar
as coisas ainda mais difíceis do que já são. Me beije, Brighid, para que eu possa sarar por nós dois.
Cuchulainn era um homem alto, com os músculos aprimorados e os ombros largos de um guerreiro. Só teve que inclinar um pouco a cabeça para ir de encontro aos lábios
dele. Brighid parou de pensar. A luz dourada de Cuchulainn estava de volta e, mesmo de olhos fechados, ela conseguia ver sua radiância, brilhante e ardente. O beijo
a surpreendeu pela hesitação. Os lábios dele eram quentes, o sabor dele recordava as pradarias que os cercavam - acolhedoras e sensuais. Abriu a boca e deixou os
braços envolverem-no conforme o beijo se aprofundava. O corpo dele era firme. Cuchulainn parecia não apenas preencher o espaço dentro de seus braços, mas a alma
dele parecia envolvê-la, assim como as mãos que moldavam seu rosto. As línguas se encontraram, então Brighid sentiu um tremor indescritível de desejo varrer sua
pele e se alojar por dentro. As mãos dele deixaram seu rosto para explorar os cabelos. Quando Cuchulainn gemeu de encontro aos lábios dela, o som masculino e ofegante
lhe pareceu uma carícia.
Eu o quero. Eu o quero por inteiro.
No instante em que o pensamento passou pela mente, Brighid sentiu a mudança. A luz dourada que se infiltrava pelas pálpebras fechadas desapareceu. A brisa morna
e perfumada se foi. A única coisa que permanecia era Cuchulainn. Os lábios dele nos dela - as mãos dele em seus cabelos -, o corpo dele se esforçando para encontrar
o dela.
Brighid abriu os olhos. Estava de volta ao quarto no Castelo MacCallan. Estavam na cama dela, voltados um para o outro. Cuchulainn a beijava. Seu corpo ficou tenso,
então os olhos do guerreiro se abriram. Ele interrompeu o beijo abruptamente. As mãos deixaram os cabelos no mesmo instante em que ela o desvencilhou de seus braços.
Mortificada por estar respirando tão pesado, queria sair da cama e correr para fora do quarto, especialmente porque o guerreiro não fez qualquer movimento para se
afastar dela. Com a mão trêmula, Brighid afastou o cabelo do rosto. Os lábios pareciam úmidos e inchados. Hesitante, buscou os olhos dele. Estavam tão azuis quanto
a pedra de turquesa que ela ainda apertava na mão, e igualmente impossíveis de ler.
- Está de volta? - perguntou, surpresa por soar tão normal.
- Sim. - A voz dele estava áspera. Cuchulainn se sentou e olhou para as mãos e os braços, como se fossem novos, e depois passou os dedos pelo cabelo. Parou, sentindo
como estavam longos e emaranhados, depois tocou o rosto, que estava áspero e barbado. - É uma sensação estranha. Sei que deixei o cabelo crescer e que preciso me
barbear. Ou ao menos uma parte de mim sabe. A outra parte de mim está surpresa.
- Acho que a sensação de estar desconectado não vai durar muito - disse Brighid, levantando-se depressa da cama e se aproximando da mesa na qual o odre pendia sobre
o cesto de comida. Obrigou a mão a abri-lo, deixando a turquesa rolar da palma, notando que a pedra deixara um entalhe quase que perfeitamente redondo na pele. Mexendo-se
automaticamente, Brighid pegou o vinho, ansiosa para fazer alguma coisa com as mãos, e tomou um longo gole. Cuchulainn ainda estava sentado na cama, mas tinha parado
de estudar a si mesmo. Infelizmente, agora toda a atenção estava concentrada nela. - Precisa comer e beber para se firmar. Eu também. - Ela se virou para a comida,
partindo um pedaço de pão aromático e mastigando-o entre os goles de vinho.
Podia sentir os olhos dele nela. Tomou outro gole longo, sem olhar para ele, e disse: - Lamento pelo engano que houve lá.
- Engano?
Brighid o ouviu deixar a cama e se aproximar. Ocupou-se cortando um pedaço grosso de queijo.
- O engano quanto a nós dois. Você - ele - presumiu que eu estava falando de um amor entre nós dois. Você, o você inteiro, sabe que é ridículo. Não estava falando
de mim, estava me referindo a Ciara. - Brighid deu uma olhada nele, mas logo desviou os olhos.
- Não é amor o que sinto por Ciara. - A voz dele era cuidadosamente neutra.
- Amor provavelmente é uma palavra muito forte. Suponho que seja desejo, ou atração, ou... - ela hesitou, encolhendo os ombros - ... qualquer outra coisa mais precisa,
mas amor me pareceu a palavra certa na hora.
Cuchulainn tomou o odre dela e bebeu. Secou a boca com as costas da mão e disse: - Não sinto desejo por Ciara. Claro que notei que ela é bonita, mas é onde minha
atenção terminou.
- Ah! - Brighid não tinha ideia do que dizer.
Com relutância, buscou o olhar dele. Fisicamente, Cuchulainn não parecia mudado. Pelo menos, não muito. Talvez se portasse mais ereto, como se o que estivesse pressionando
seus ombros largos tivesse sido removido. Não diminuíram as rugas encrespando os cantos dos olhos, e o cabelo, que era arenoso demais para combinar com o tom avermelhado
da juba ardente da irmã, ainda estava salpicado de grisalho prematuro. A diferença notável estava em seus olhos. Não estavam mais assombrados e vazios. E era como
se enxergassem dentro de sua alma.
- Meus sentimentos por Ciara não me trouxeram para casa. Foram meus sentimentos por você.
- Somos amigos, membros do mesmo clã. Caçamos juntos e...
O toque da mão dele sobre seu braço interrompeu seu jorro de palavras.
- Não negue o que aconteceu entre nós.
- Nos beijamos. Só isso.
A mão lentamente deixou o braço para lhe tocar a face.
- Por que está tremendo?
- Não sei - respondeu ela.
- Acho que sabe.
- Não pode existir nada entre nós que não seja amizade, Cuchulainn - disse Brighid, desejando que a voz não estivesse trêmula.
Cuchulainn lhe acariciou o rosto. Depois deixou os dedos deslizarem de leve pela lateral do pescoço.
- É exatamente o que minha mente diz também.
- Então não deveria estar me tocando assim - sussurrou ela.
- O problema, minha bela caçadora, é que no momento acho difícil pensar com a mente. - Ele se aproximou de Brighid, que pôde sentir o calor de seu corpo. - Entenda,
o que você me restaurou estava cheio de paixão e alegria pela vida, e neste momento esta parte de mim se sente jovem, forte e muito, muito determinada.
Brighid forçou a voz a permanecer estável: - Mas essa parte sua vai retroceder, retornar ao devido lugar. E então onde isso nos deixaria, Cuchulainn?
Ele piscou, a mão se afastou do corpo dela. Cuchulainn deu um passo para trás. Brighid podia ver a luta dentro dele quando o queixo cerrou e a respiração foi controlada.
- Devo partir - disse ele abruptamente. Antes de sair, olhou para a mesa - para a pedra de turquesa deixada ali. Com um movimento desajeitado, apanhou-a e se afastou.
Parou à porta e abaixou a cabeça. - Perdoe-me, Brighid - disse sem olhar para ela. Então abriu a porta e se foi.
Brighid fechou os olhos e tentou acalmar o tremor em sua alma.
Trinta
CUCHULAINN NÃO ESPERAVA dormir, mas retornou aos aposentos para ter privacidade. Para pensar, apresentar-se a... si mesmo. E compreender o que tinha acontecido entre
ele e Brighid.
Sentou-se na beira da cama e encarou a luz do fogo que morria. Pela Deusa, era uma sensação bizarra! Sabia dos eventos que tinham acontecido nos últimos ciclos da
lua. Lembrava-se de amar Brenna e da tragédia de sua morte. Lembrava-se de viajar aos Ermos e ficar preso na neve com os neofomorianos. Conseguia recordar tudo o
que tinha acontecido com eles na jornada para Partholon e o retorno ao Castelo MacCallan. Porém uma parte dele se maravilhava com as recordações como se fossem histórias
estranhas contadas por um bardo visitante.
A coisa mais estranha era se sentir inexplicavelmente leve de alegria. O pensamento fez com que suas mãos tremessem enquanto bebericava lentamente da taça de excelente
vinho tinto que servira a si mesmo. Não era o tipo de alegria que conhecera com o toque de Brenna - ou o entusiasmo juvenil que sentiu ao sorver da vida e saber
que o mundo esperava por ele. Era mais a possibilidade de alegria do que a emoção desenfreada em si. Era algo que pensou que nunca experimentaria novamente, e a
parte dele que fora privada disso não se sentia tão viva desde o dia terrível em que Brenna foi morta.
Ainda sofria por Brenna. Ela era seu amor perdido. Parte dele sempre sentiria falta e até ansiaria por ela, mas sabia que devia seguir em frente. Ele sabia que podia
viver - e até amar - novamente...
Brighid...
A caçadora tinha mexido muito com ele. Seria por ter literalmente tocado uma parte de sua alma? Estaria certa ao dizer que tão logo ficasse acostumado a estar inteiro
outra vez seus sentimentos por ela voltariam ao lugar adequado? Qual era exatamente esse lugar adequado?
Em seus 24 anos, seduzira muitas mulheres, mas só se apaixonara por uma. Seu amor por Brenna tinha sido novo, jovem e fácil. A vida juntos teria sido plena - os
filhos, muitos. Teria ficado contente em envelhecer ao lado dela. Ela teria sido a única para ele. A primeira e última mulher que teria amado.
E nunca teria conhecido a chama que foi inflamada quando tocou Brighid. Quando ela o beijou, sua alma se regozijou. Sentiu-se consumido por ela, queria possuí-la.
O desejo foi insistente e sufocante. Só a recordação do sabor dela, da sensação do corpo dela junto ao seu, era impressionante. Não era como nada que tivesse experimentado
antes, tão devastador que ao se tocarem Brighid se tornou seu mundo, como se ele tivesse sido criado para amá-la.
Claro que era apenas efeito colateral do resgate da sua alma.
Contudo, eles não podiam ser amantes. Brighid Dhianna era uma centaura. Uma centaura.
Ficou de pé e andou de lá para cá na tentativa de aliviar a energia que pulsava por seu corpo. Claro, não era impossível para um centauro e um humano se apaixonarem
e se amarem. Ele era produto de tal união. Mas essa era uma situação singular. Seus pais eram consortes porque Epona sempre destinava um sumo xamã centauro a ser
parceiro da Encarnada Escolhida. E um sumo xamã centauro possuía a capacidade de se metamorfosear na forma humana para que esse amor fosse plenamente consumado.
Brighid nem era xamã - uma sumo xamã? Definitivamente, não. Ser agraciado com tamanho poder era uma coisa rara e fantástica.
Ela é a filha mais velha de uma sumo xamã. Se não tivesse abandonado a manada, seria de esperar que um dia tomasse o lugar da mãe... O pensamento o perturbou.
- Mas ela escolheu a vida de uma caçadora! - argumentou em voz alta consigo mesmo. - Centauras caçadoras não amam homens humanos. E não podem se transformar.
Então por que Brighid reagira ao seu toque com uma paixão tão feroz que pareceu consumi-lo?
No que estava pensando? Tinha sido consumido. Brighid sorvera sua alma e depois a devolvera ao seu corpo. Isso era tudo o que tinha acontecido. Precisava ser tudo
o que tinha acontecido.
Só existia uma palavra para qualquer coisa entre eles - impossível.
Engoliu o resto do vinho, depois deixou a taça sobre a mesinha de cabeceira. Sentindo-se de repente completamente exausto, esticou-se sobre os lençóis espessos recheados
de penugens que cobriam sua cama. Enquanto o sono o arrastava, ainda podia sentir o sabor dela nos lábios.
Cuchulainn gostava de acordar cedo. Era um hábito que criara raízes durante seu treinamento de guerreiro. Geralmente estava de pé, aprimorando suas habilidades,
antes que muitos de seus colegas tivessem começado a despertar. Então acordar cedo na manhã seguinte não tinha nada a ver com o fato de Brighid geralmente deixar
o castelo ao amanhecer. Não estava tentando uma chance de encontrar a caçadora. Só estava retomando um hábito confortável.
Estava apressado lavando o rosto em seu quarto de banho particular quando viu seu reflexo no espelho de parede. Parecia um velho nodoso. O cabelo estava longo, embaraçado
e bagunçado. Fez cara feia para o próprio reflexo. Há quanto tempo havia branco em seus cabelos? A barba estava áspera. Esfregou o queixo. E pinicava. Cuchulainn
deu uma olhada no kilt. Estava manchado e esfarrapado. Deu um longo suspiro. Não era de espantar que Brighid estivesse com um olhar tão assustado na noite passada,
que o tivesse rejeitado tão rápido. Não era apenas humano - era um humano de aparência patética. Ele fungou. Até cheirava mal.
Primeiro, tomaria banho. Depois faria a barba e... Cuchulainn meneou a cabeça para a bagunça que era seu cabelo. Precisava ser lavado e cortado. Os guerreiros de
Partholon geralmente usavam o cabelo comprido, mas ele nunca gostou daquela bagunça. Quando era mais novo, teve muitas discussões com a mãe por causa disso. Dissera-lhe
inúmeras vezes que não era menos guerreiro com menos cabelo - então se dispôs a provar isso a ela. Quando suas habilidades se tornaram quase lendárias, ela capitulou,
e Cuchulainn até conseguiu convencê-la a cortá-lo ela mesma de vez em quando...
Sorriu para seu reflexo desmazelado. Sua mãe estava no momento alojada logo descendo o corredor. Depois do banho e da barba feita, talvez devesse ser um filho prestativo
e acompanhá-la no desjejum.
Cantarolando consigo mesmo, começou a se despir.
A porta para a suíte de hóspedes abriu antes que Cuchulainn pudesse bater nela. Uma jovem loira impressionante, vestida num robe quase transparente de um diáfano
tecido rosa, riu de seu punho erguido.
- Sua mãe estava à sua espera - contou ela.
- Claro que estava - disse ele. Então se sentiu retribuindo o sorriso paquerador da moça. - É bom ver que mamãe ainda gosta de se cercar de beleza.
As faces da moça coraram num tom atraente de rosa que combinava perfeitamente com o vestido, então a moça se curvou numa ágil mesura, que ofereceu ao guerreiro uma
clara visão dos seios formosos. Cuchulainn automaticamente espiou, com um olhar longo e ardente que fez seu corpo enrijecer.
Ele ainda estava, afinal, vivo.
- Cuchulainn! Entre... entre - chamou Etain de dentro do quarto.
Ele piscou para a criada antes que ela ficasse de lado para que ele pudesse cumprimentar a mãe. Etain estava sentada numa cadeira opulentamente estofada com veludo
dourado. Outra jovem atraente escovava a massa de caracóis ruivos salpicados de prateado da sacerdotisa. Cuchulainn sorriu para ela, notando que tinha coberto as
paredes da suíte de convidados com tapeçarias retratando ela mesma, com seios desnudos, cavalgando a égua Escolhida enquanto jovens criadas saltitavam salpicando
seu caminho com pétalas de rosas. Etain também enchera a suíte até quase transbordar com mobília luxuosa e uma cama com dossel de seda sobre - claro - um tablado.
A mãe nunca deixava de viajar num estilo digno da Amada de Epona. A parte de sua alma que esteve ausente por tanto tempo se agitou, e Cuchulainn sentiu uma súbita
onda de amor pela mulher ostentosa e poderosa que era sua mãe. Rindo alegremente, caminhou a passos largos até ela, puxou-a para seus braços e a beijou profundamente.
A risada musical se juntou à dele quando Etain o abraçou.
Então ela se afastou e o olhou nos olhos. O sorriso se alargou quando pousou a mão sobre a face recém-barbeada.
- É tão bom vê-lo inteiro outra vez, meu filho.
- Você sabia, claro - disse ele.
- Sim. - Etain se calou e fez um gesto breve e gracioso com a mão, dispensando as criadas. - Soube no dia em que aconteceu - prosseguiu quando ficaram sozinhos.
Ela o beijou no rosto e acariciou o cabelo comprido. - Eu teria ajudado se pudesse, mas certas coisas estão além do alcance mesmo de uma mãe.
- Queria que tivesse conhecido Brenna.
- Epona me falava dela com frequência. Sua prometida era uma moça excepcional. Ela foi - e é - muito cara à Deusa.
Cuchulainn fechou os olhos para a amargura da dor.
- Obrigado, mãe.
Ela lhe deu tapinhas no rosto.
- Deixe-a ir, meu querido. Pense nela, lembre-se dela, mas deixe-a ir. É hora de você prosseguir com sua vida.
Cuchulainn assentiu:
- Como sempre, você está certa.
- Claro que estou. - Etain ficou na ponta dos pés e novamente o beijou com suavidade no rosto. Então bagunçou os cabelos dele. - Mandei que as criadas trouxessem
minha tesoura. Vamos começar?
Ele sorriu para ela.
- É bom que eu nunca tenha tentado esconder nada de você. Certamente deixaria minha vida um bocado difícil.
Etain ergueu uma sobrancelha, lembrando a Cuchulainn sua irmã.
- Sabe que é blasfêmia esconder segredos da mãe.
- Blasfêmia? - Ele riu, mas se deixou levar à cadeira dourada. Com a tesoura numa mão, Etain começou a trabalhar no cabelo, suspirando enquanto penteava a massa
espessa.
- Imagino que não vou convencê-lo a deixá-lo longo. Eu poderia só aparar um pouquinho aqui e ali...
Os olhos se encontraram no espelho da penteadeira. Etain suspirou novamente e começou a cortar. Sob o toque familiar, Cuchulainn relaxou, deixando sua memória recordar
todos os momentos da juventude em que a mãe tinha, por vontade própria, deixado os assuntos da Deusa de lado para cuidar dele, e também de Elphame e seus irmãos
gêmeos, Arianrhod e Finegas. Seu pai também, o Sumo Xamã de Partholon, nunca deixou de considerar as necessidades dos filhos uma prioridade.
Em que tipo de homem teria se transformado caso tivesse sido criado sem pais? Pobre Brenna - ter que enfrentar a parte mais difícil da vida sem o amor da mãe e do
pai.
O pai de Brighid estava morto também, lembrou-se ele com uma sensação de surpresa. Morrera anos atrás. Estranho que Cuchulainn só agora pensasse nisso. Brighid o
repreendera por permitir que o sofrimento o fizesse desistir da vida. Tinha falado disso por experiência própria, mas quando ele a desafiou, Brighid só falou das
perdas às quais os neofomorianos tinham sobrevivido. Estranho que a caçadora raramente falasse da família. Sim, sua manada era conhecida pelas crenças radicais,
mas a mãe era uma sumo xamã. Era certo que uma mãe tão poderosa tivesse um efeito profundo e duradouro sobre a filha. Porém Brighid tinha rompido com a tradição
e deixado a família. Ele imaginava o porquê...
- Você a viu esta manhã? - A voz suave da mãe parecia vir direto de seus pensamentos. Cuchulainn se sobressaltou, e ela lhe socou o ombro. - Fique quieto ou ficará
ainda menos apresentável do que quando chegou todo desleixado e desgrenhado.
Ele pigarreou.
- Quem?
A mãe o olhou por cima do nariz régio.
Ele suspirou:
- Não, não vi Brighid esta manhã. Vim direto para cá.
- Depois de tomar banho e se barbear - graças à Deusa.
Ele resmungou:
- O resgate da alma é um ato muito íntimo - começou ela num calmo tom de conversa. - Para que a alma retorne com sucesso ao corpo, a xamã deve construir uma ponte
de carinho e compreensão entre si mesma e o paciente. Se não estou enganada, você e Brighid tinham uma forte amizade antes que a parte despedaçada de sua alma começasse
a visitá-la.
- Sim - respondeu ele.
- Foi Brighid quem rastreou Elphame na noite em que ela se machucou e quase foi morta por um javali?
- Sim.
- E foi Brighid quem o levou até o corpo de Brenna?
- Foi - disse ele. - Mamãe, não...
Ela ergueu a mão para deter as palavras dele.
- Espere. Deixe-me falar e depois pode fazer todas as perguntas que quiser.
Cuchulainn assentiu ligeiramente, sentindo-se ansioso e também nervoso. O que sua mãe sabia sobre o que acontecera naquela noite? Estava se preparando para repreendê-lo
por estar apaixonado por Brighid?
Estava apaixonado?
- Então você e ela já tinham estabelecido uma amizade. Se não estou enganada, você tem bastante respeito pela caçadora.
- Você raramente está enganada, mamãe.
Ela sorriu para o reflexo dele.
- Isso é verdade. Agora me deixe compartilhar com você outra verdade. Depois que acontece a cura da alma, o paciente... - Ela meneou a cabeça quando Cuchulainn fez
cara feia. - Não, não há nada de errado em ser um paciente. Seu espírito estava partido e precisando de tratamento. Isso faz de você um paciente. Não há vergonha
nisso. Agora posso continuar?
Cuchulainn assentiu, ainda odiando que aquilo soasse como se fosse um inválido.
- Depois que acontece o resgate da alma, o paciente, que seria você, fica espiritualmente mudado.
Cuchulainn se sentou mais ereto e piscou de surpresa.
A voz da mãe perdeu o distanciamento clínico, e a mão pousou calorosa e maternal sobre seu ombro.
- Pode notar que se sente sensibilizado, além de energizado. Sua percepção da realidade pode talvez se expandir. - Quando sentiu sob a mão que ele ficava tenso,
a mãe lhe deu tapinhas gentis. - O efeito pode ser temporário, mas geralmente não é. E ficará para sempre ligado à xamã que trouxe sua alma para casa.
- Mas Brighid não é xamã.
- É verdade que ela não fez a jornada ao Outro Mundo para beber do Cálice de Epona, mas a centaura carrega poderes xamânicos dentro dela. Se não fosse assim, nunca
teria sido capaz de trazer sua parte perdida para casa.
Cuchulainn encontrou o olhar da mãe no espelho.
- Pergunte - disse ela.
- Brighid poderia se tornar sumo xamã?
- Só Epona pode responder isso, Cuchulainn.
- Aceito seu palpite, mãe. - Ele tentou sorrir para ela, mas a tensão que se irradiava pelo corpo esticou o rosto em linhas duras e sérias.
- Então meu palpite é de que Brighid poderia, mas que não seria uma jornada fácil, e que isso talvez a levasse a uma vida de extrema solidão. - Etain passou o pente
pelo cabelo dele, o alisando e arrumando enquanto falava: - Sabe que a manada dela possui visões radicais, talvez até perigosas?
- Sim - respondeu ele sucintamente.
- Se ela quisesse se tornar sumo xamã, teria que assumir seu lugar como líder da manada Dhianna. Brighid escolheu um caminho diferente, e acredito que encontrou
certa paz e alegria nele. Se desviasse desse caminho, seria atirada de volta no mundo do qual partiu intencionalmente, mesmo que suas crenças difiram drasticamente
das deles. Seria uma vida muito solitária para ela.
- E se ela não estivesse sozinha?
Inabalada pela pergunta, sua mãe continuou a pentear-lhe o cabelo cuidadosa e metodicamente.
Inabalado pelo silêncio dela, Cuchulainn insistiu: - E se ela tivesse alguém ao lado dela que estivesse disposto a preencher esse espaço solitário - a apoiar suas
crenças? Alguém que a respeita e...
- E a ama?
Cuchulainn se virou para que pudesse olhar diretamente para a mãe.
- O que estou sentindo é apenas resultado do resgate da alma?
- O que está sentindo, meu filho?
- Eu me sinto tão atraído por Brighid que mal consigo suportar ficar longe dela! Teria corrido para encontrá-la esta manhã... - ele deu uma risada sem graça - ...
se não tivesse percebido que parecia um eremita selvagem da montanha.
- Centauros são seres mágicos e sedutores - disse Etain de maneira descompromissada. - São apaixonados e belos. A alma de um humano aprimorada pela força de um equino
é algo que pode produzir uma atração muito poderosa.
- Mãe! Precisa me dizer. O que estou sentindo é uma obsessão temporária porque ela tocou minha alma ou é algo mais?
- Só você e Brighid podem decidir isso. Pelo que sei, não posso predizer o amor. A ligação causada pelo resgate da alma raramente é algo mais profundo que compreensão
e respeito. - Ela lhe sorriu. - Parece que você sente consideravelmente mais pela caçadora.
- Consideravelmente - murmurou ele.
- Bastante para se sentir disposto a pedir que ela mude de vida e de futuro para que vocês dois possam se deitar juntos?
- Não sei!
A sacerdotisa tocou a face do filho.
- Queria que seu pai estivesse aqui.
- Ele não diria que fiquei louco?
- Talvez. - Etain riu.
Cuchulainn pôs a mão sobre a dela.
- Não sei o que fazer.
- Claro que não. Não pode decidir isso sozinho - não exatamente. Converse com Brighid. Você já dividiu sua alma com ela, seria muito mais difícil dividir os segredos
do seu coração?
- Parece que está acontecendo rápido demais. Logo depois de Brenna.
- O mundo está girando rápido, Cuchulainn. Sinto uma grande inquietação se aproximando. Talvez agora seja o momento apropriado para ações rápidas. - Ela passou as
mãos pelo cabelo dele e lhe deu uma olhada apreciativa, depois sorriu novamente. - Está pronto.
Cuchulainn se virou para o espelho, afastando o cabelo recém-cortado da testa. Então tomou a mão da mãe e a beijou.
- Obrigado.
Etain lhe apertou a mão e lhe deu um empurrãozinho na direção da porta.
- Vá encontrar seu futuro, meu filho. E saiba que seja lá o que escolher, minha bênção e a de Epona vão com você.
Trinta e Um
AO AMANHECER, QUANDO Brighid limpou a mente para se concentrar na procura da luz de um javali, a primeira luz que resplandeceu no seu subconsciente foi dourada e
não estava situada na floresta próxima. Vinha dos aposentos que Elphame tinha preparado para o irmão durante sua ausência.
Não! Brighid fechou os olhos da mente, ignorando a luz dourada que a chamava. Encontre a luz vermelho-sangue de um javali. O poder de procura dentro dela abandonou
Cuchulainn e o Castelo MacCallan - seguiu para a floresta. Infiltrou-se pelas luzes cintilantes das almas dos animais, pequenas e grandes, até se concentrar numa
única coluna vermelha. Automaticamente, o infalível senso de direção de Brighid mirou no javali. A nordeste do castelo. Não muito longe de onde Elphame tinha sido
atacada por uma daquelas feras muitas luas atrás. Brighid sabia onde precisava ir.
Pegou um odre de água e uma porção generosa de pão e carne que sobrara da noite anterior, abasteceu a aljava com flechas, prendeu a espada longa às costas, ajustou
a espada curta na bainha ao redor de sua cintura, enfiou as adagas de arremesso nos bolsos escondidos do colete. Então se encaminhou em silêncio para o portão frontal.
Como fizeram muitas vezes antes, os sentinelas a saudaram, abrindo as portas de ferro e desejando-lhe sorte na caçada matinal. Brighid estava tão decidida a sair
do castelo que mal se deu ao trabalho de retribuir a saudação dos sentinelas antes de disparar num galope veloz. Mesmo depois de bem escondida dentro dos bosques
do norte, pouco reduziu o passo.
Era tão bom exigir de si mesma, manter a mente tão ocupada desviando-se de árvores e arbustos, ravinas e rochas, para que não pudesse pensar... Não pudesse recordar.
Correu por longo tempo antes que a sanidade retornasse.
Quando finalmente desacelerou, e depois parou, percebeu que tinha passado do território do javali. Brighid secou o suor do rosto e se reorientou. Não estava muito
longe. Cheirou a leve brisa e pegou o inconfundível cheiro limpo de água corrente. Quando encontrasse o riacho, bastava acompanhá-lo até o lamaçal do javali. Então
abateria o animal com um disparo certeiro, o esfolaria e levaria a carne ao castelo. Simples. Claro. Descomplicado. Exatamente como gostava de sua vida.
E exatamente o oposto do que sua vida costumava ser. Quando saiu em direção à presa novamente, fez isso devagar. Era hora de pensar. Ali, rodeada pela floresta que
conhecia tão bem, se infiltraria nas complexidades da noite anterior. Trabalharia aquilo na mente - descobriria como poderia continuar vivendo no Castelo MacCallan
com Cuchulainn e o conhecimento do que tinha acontecido entre eles. Faria isso porque precisava encontrar uma maneira de fazer aquilo funcionar - voltar no tempo
e fazer com que as coisas fossem simples entre os dois novamente. Não queria deixar o Castelo MacCallan. A ideia a deixava imensuravelmente triste.
Claro que não queria partir - mudar-se logo depois de ter começado a firmar raízes -, mas talvez devesse, temporariamente. O Castelo Guardião estava sem caçadora.
Podia honestamente dizer que eles precisavam da presença dela até a própria caçadora retornar. Era provável que não fosse se demorar muito. A caçadora do Castelo
Guardião certamente não desertaria de seu posto por mais do que um ciclo da lua. Mas mesmo poucos dias bastariam para que Cuchulainn...
O quê?
- Parasse de pensar com paixão - disse em voz alta aos antigos pinheiros.
Era como ele tinha explicado na noite passada. Sua mente sabia que não devia tocá-la com tamanho desejo, mas sua paixão e sua alegria pela vida lhe tinham sido recentemente
restauradas. A voz delas tinha afogado o som da razão. Fazia sentido. Ela conhecia a parte de Cuchulainn que fora despedaçada. Era todo coração, paixão e impetuosidade.
Ele realmente não podia evitar. Brighid estava lá, devolvendo-lhe a alma... beijando-o... Ele se sentia vivo e inteiro, e uma parte dele acreditava que os dois estavam
se apaixonando. Existiam razões críveis para o comportamento dele, mas e quanto ao dela?
Brighid esfregou a mão pelo rosto e escolheu passar por cima de um tronco caído. Quando olhava logicamente para o resgate de alma, não havia nada de errado com seu
comportamento. Não pretendera iludir Cuchulainn com o relacionamento deles. Houvera uma má interpretação que, quando se olhava com franqueza, sem laços emocionais,
tinha funcionado bem. A alma despedaçada de Cuchulainn retornara ao corpo. Ela tinha executado a complicada tarefa de uma xamã, e obtivera sucesso.
Infelizmente, isso não era tudo.
Laços emocionais... Se fossem visíveis, Brighid não duvidava de que estaria coberta deles, como uma bola de lã esperando para ser tricotada numa vestimenta. Mas
suas emoções não eram visíveis, e Cuchulainn não era o único que podia esconder sentimentos. Mas não mentiria para si mesma. Não ali, no meio da floresta que considerava
sagrada. Não tinha pretendido que Cuchulainn interpretasse mal o relacionamento deles, mas quando o fez, ela ficou contente. E quando ele a beijou, sentiu-se cheia
com mais do que a alma dele. Ela o desejava. A recordação de seu toque, seu cheiro, seu sabor ainda fazia seu estômago apertar com uma tensão que era definitivamente
sexual.
Pela Deusa, o que faria?
Mesmo que o desejo dele fosse mais do que uma reação temporária a um evento extraordinário, os fatos continuavam os mesmos. Cuchulainn era um humano. Brighid era
uma centaura.
Sim, sabia que os homens humanos a consideravam atraente, sedutora até. E apesar de nunca ter pensado neles numa maneira especificamente sexual, não era nenhuma
virgem tolinha. Sabia como a anatomia humana funcionava. Poderia dar satisfação a Cuchulainn com as mãos e a boca. Brighid ficou paralisada. No que estava pensando?
Qualquer centauro da manada Dhianna, e de muitas outras manadas que compartilhavam a Planície dos Centauros, consideraria a mera ideia de uma caçadora agradar um
homem humano um comportamento repelente, abominável. Isso a tornaria ainda mais pária do que já era.
- Mas não acho a ideia de agradá-lo abominável - falou Brighid alto, depois escondeu o rosto nas mãos. Estaria se tornando alguma horrível aberração da natureza?
Ou... Ah, Deusa! Será que tinha se apaixonado por Cuchulainn?
Ainda não tinha certeza do que era pior.
Se o amasse, isso certamente explicaria por que sua reação ao que pensou ser o desejo crescente de Cuchulainn por Ciara tinha sido inteiramente negativa. Não tinha
preconceitos contra a mulher alada - estava com ciúme dela! E também havia a facilidade com que chamou a alma despedaçada para seus sonhos. Com um gemido, lembrou-se
das provocações lascivas quase contínuas de Cuchulainn. Será que alguma parte do guerreiro reconhecia seus sentimentos mais íntimos? Era possível - ele esteve em
seus sonhos, o que significava que tivera certo acesso ao seu subconsciente. Não é?
Não sabia muito sobre esse... esse mundo de espíritos e emoções. Tentar compreendê-lo era como tentar capturar fumaça e sombras! Tinha certeza de muito pouco, exceto
de que a evidência mais comprometedora contra ela era o beijo, ou mais precisamente sua reação ao beijo. O toque dele fez com que esquecesse quem e o que eram. Humano...
centaura... nada disso importou quando os lábios deles se encontraram e ela o absorveu.
Gemeu novamente. Etain estava lá! De certa maneira, a Alta Sacerdotisa estivera com ela durante o resgate da alma - encorajando e aconselhando. Será que sabia o
que o toque do filho fizera Brighid sentir? O calor tomou o rosto da caçadora.
Pense logicamente! O consorte de Etain, criado para ela por Epona, era um centauro. Etain não ficaria chocada por descobrir que uma centaura desejava um humano.
E devia saber que o filho era um guerreiro apaixonado. Todos sabiam que antes de Cuchulainn se apaixonar por Brenna, raramente dormia sozinho. Etain não julgaria
Brighid severamente por desfrutar do beijo que restaurou a alma do filho ao corpo.
Mas o que a Escolhida de Epona pensaria se soubesse que o desejo da caçadora por seu filho não tinha terminado ali?
Não fazia sentido pensar nisso. Aquilo precisava parar ali.
Então Brighid tomou sua decisão. Se Cuchulainn ainda achasse que a desejava, conseguiria com Elphame a permissão para uma estada temporária no Castelo Guardião.
Quando Brighid retornasse, as paixões do guerreiro estariam novamente sob controle, e ele, sem dúvida, teria encontrado uma mulher humana ansiosa para dividir a
cama.
Na verdade, havia uma chance excelente de que quando voltasse hoje ao castelo Cuchulainn já tivesse voltado a si e provavelmente estivesse preocupado com a reação
dela ao vê-lo. Brighid se concentraria em tranquilizá-lo. Garantiria que o que tinha se passado na noite anterior não afetaria a amizade deles. Simplesmente fingiria
que não sentira nada mais do que um desejo passageiro enquanto estavam envolvidos no ato íntimo do resgate da alma. Talvez até rissem daquilo juntos tomando uma
taça do excelente vinho de Etain.
A ideia de prosseguir com tamanho fingimento a deixava enjoada. Odiava desonestidade. Era contra sua natureza mentir. Mas de jeito nenhum perderia o lar e a paz
que encontrara no Castelo MacCallan por causa de um amor impossível.
Um graveto estalou e a caçadora instintivamente desacelerou os movimentos e testou o vento que soprava suave em seu rosto. Fez uma careta - javali. Essas feras sempre
fediam a lama e raiva. Puxou uma flecha da aljava e sentiu o silêncio da caçada encobrir seus pensamentos tumultuados. Isso era algo que ela sabia ser capaz de controlar.
Poderia acertar o javali, agradecer a Epona pelo sustento daquela vida e depois ficar bastante ocupada esfolando e arrastando a carne para o castelo, para ficar
obcecada com Cuchulainn. Tinha tomado sua decisão. Não poderia haver futuro com o guerreiro, então protegeria a si mesma e seu lugar no Castelo MacCallan. Negaria
seus sentimentos por ele. Um dia a negação se tornaria verdade.
Como previra, o javali tinha feito um lamaçal perto da margem do pequeno riacho. Com o silêncio assustador de uma caçadora experiente aprimorado pelo poder inerente
ao seu sangue, Brighid se esgueirou mais perto sem que o javali detectasse um único sinal ou cheiro dela. Quando ficou sentado meio de pé, Brighid ajustou a flecha
e fez mira. A flecha chiou e disparou para seu leito sangrento, e, ao perfurar o javali, a floresta explodiu num berro sobrenatural de dor. A caçadora avançou correndo
antes de o som morrer. Adentrou o riacho até onde o corpo do javali deveria estar e ofegou de horror.
O corvo jazia no chão lamacento com uma flecha sangrenta perfurando o peito.
- Mãe! - gritou ela, desabando nas pernas dianteiras ao lado da ave que se debatia.
Vingue-me! As palavras berraram na mente de Brighid, e então a ave ficou imóvel, os olhos se tornando leitosos com a morte. A mão de Brighid não tremeu ao se esticar
para tocar as penas ensopadas de sangue da ave negra. No instante em que os dedos fizeram contato com o corvo, seu corpo desapareceu, e Brighid se descobriu ajoelhada
ao lado do javali morto.
- Ah, Epona, o que isso significa? O que aconteceu?
Não houve resposta da Deusa, e, sentindo-se perdida e sozinha, Brighid se obrigou a curvar a cabeça e dizer as palavras tradicionais para honrar o espírito do javali
abatido. Enquanto esfolava o corpo e o preparava para ser carregado ao Castelo MacCallan, foi tomada por uma sensação terrível e inexprimível de temor.
Trinta e Dois
- BRIGHID! BRIGHID! BRIGHID! Estava esperando você! - começou Liam a tagarelar tão logo ela passou pelos portões frontais do castelo.
- O menino ficou esperando por você a manhã inteira! - gritou o sentinela.
Brighid tentou espantar a sensação de inquietação que a acompanhou desde a floresta. Lançou um sorriso tenso para o homem lá em cima.
- Mas ele ficou esperando quieto?
A gargalhada vigorosa do sentinela foi resposta bastante.
- Não sabia que precisava ficar quieto dentro do castelo - murmurou Liam quando começou a caminhar atrás de Brighid. Seus olhos ficaram grandes e redondos ao inspecionar
a carcaça bem embrulhada que ela prendera com firmeza nas cordas que arrastava atrás de si. - O que conseguiu?
- Você me diz - respondeu ela. - Não! - Falou com severidade quando Liam começou a levantar a aba do couro no qual o javali estava embrulhado. - Use seu olfato.
- Mas eu... - começou ele, mas uma olhada dela o silenciou. - Vou usar meu olfato.
- Bom. Tem todo o caminho até a cozinha.
- Gosto da cozinha. Lá sempre cheira bem, e gosto de Wynne. Ela é muito bonita com todo aquele cabelo ruivo e... - Outra olhada incisiva de Brighid o fez comprimir
os lábios. - Vou cheirar o animal.
Brighid respondia aos olás amigáveis dos membros do clã enquanto seguia o caminho gramado até a entrada dos fundos da cozinha. Não se preocupava em encontrar Cuchulainn
inesperadamente. Sabia que ele não estava dentro dos muros do castelo. Como sabia disso ela não entendia muito bem - mas podia sentir a ausência dele.
Mais boas notícias, pensou, sentindo que estava chegando ao fim de sua tolerância com sinais misteriosos do mundo espiritual. A centaura cerrou o queixo. Só queria
ser uma caçadora - viver, caçar e ter uma vida segura e previsível.
Quando atravessou o portão para a horta da cozinha, notou várias das crianças aladas mais velhas inclinadas sobre fileiras aparentemente murchas de ervas e legumes,
cavando, arrancando mato e regando. Só teve um instante para imaginar como eles tinham convencido a superprotetora Wynne a permitir que entrassem em sua preciosa
horta, pois a voz de Liam borbulhou como uma fonte incontrolável: - Cheira como... como... como... - Liam deu outra fungada longa e audível - ... como lama e raiva!
Brighid parou e se voltou para olhá-lo.
- O que disse?
Ele esfregou os pés de garra na grama.
- Cheira como lama e raiva.
- Como sabe disso?
Liam olhou para ela com olhos grandes e deu de ombros, encolhendo-se um pouquinho quando o movimento fez a asa enfaixada mexer.
- Não sei. É apenas como me parece o cheiro. Está errado?
- Não. Está exatamente certo. Javalis sempre cheiram a lama e raiva. - Antes que ele começasse a saltitar em vitória, Brighid lhe segurou o braço. - Fique parado
e feche os olhos.
Bastante surpreendentemente, o menino obedeceu. Paralisou-se e fechou os olhos. Brighid olhou ao redor. As crianças aladas estavam tão ocupadas cutucando e mimando
as plantas que mal lhe dispensaram uma olhada. No momento, ao menos, ela e Liam tinham certa privacidade.
- Inspire bem fundo e expire devagar. Três vezes - disse, observando-o com atenção.
Ele fez como ordenado.
- Agora imagine um javali na floresta.
- Não sei como um javali se parece - disse ele com hesitação.
- Não importa. Não precisa visualizar o animal. Apenas pense no cheiro dele. Consegue fazer isso?
Liam assentiu vigorosamente.
- Enquanto pensa no cheiro dele, imagine a floresta e imagine que está procurando por um animal que cheira a lama e raiva. Me diga o que vê.
A testa de Liam se enrugou enquanto se concentrava. Depois as sobrancelhas se ergueram.
- Vejo uma luz brilhante tingida de vermelho!
Brighid não conseguia acreditar. O menino possuía a alma de uma caçadora. Sorriu. Tinha um aprendiz alado que parecia mais centauro que fomoriano, e estava apaixonada
por um humano. Seu riso se transformou em gargalhada. E queria uma vida descomplicada? Era óbvio que Epona tinha outros planos para ela.
Liam a espiou com um dos olhos quase abertos.
- Disse algo engraçado?
- Não, meu jovem aprendiz. Disse exatamente a coisa certa. Outra vez. Só estou rindo da vida.
- Por quê? - perguntou ele, abrindo os dois olhos.
- Porque às vezes ou é rir ou chorar. Prefiro rir. E você?
Liam sorriu.
- Rir!
- Hã, aí está você! - Wynne estava parada, mãos nos quadris, pernas separadas, na entrada dos fundos da cozinha. O sorriso da cozinheira lampejou. - Posso dizer
com honestidade, caçadora, que estou muito contente por ter voltado para casa, que é o seu lugar.
A risada de Brighid ainda dançava nos olhos.
- Obrigada, Wynne. - Ela apontou o queixo na direção das ocupadas crianças aladas. - Só estava imaginando como conseguiram abrir caminho para sua horta sagrada.
- As crianças parecem entender umas coisinhas sobre plantas e ervas, então pensei em manter essas mãozinhas ocupadas. Além disso, tem sido uma primavera longa e
seca e minhas plantas precisam de mimo extra. - Seu olhar imperioso supervisionou a horta e as crianças. - Mas não se preocupe. Estou de olho nelas.
Cabecinhas se viraram com sorrisos radiantes. Brighid ficou surpresa por ver o rosto de Wynne se suavizar em resposta.
- Você gosta de crianças - disse, mais do que um pouco chocada.
Os olhares esmeralda de Wynne se voltaram para a caçadora e seus lábios carnudos se ergueram.
- Não posso negar. Gosto da vida que os pequenos trazem ao castelo.
- Hã - resmungou Brighid, pensando que Wynne não gostaria muito disso se tivesse ficado sozinha com setenta deles.
- Não use esse tom comigo, mocinha, não quando vejo quem tem seguido você por aí. - Wynne apontou para Liam.
Brighid pigarreou.
- Wynne, já conheceu meu aprendiz?
- Não, mas ouvi falar dele. - Deu no menino uma olhada apreciativa. - Outra boa caçadora é sempre bem-vinda à cozinha.
- Ele será uma boa caçadora - disse Brighid, fazendo o peito de Liam inflar. - Um dia - acrescentou antes que o menino explodisse.
- Que bom, jovem Liam - disse Wynne, deixando a verga da porta para se aproximar deles. - O que trouxe para mim?
- Javali! - disse Liam com orgulho.
- É mesmo? - Wynne bateu palmas. - Um javali! Pela Deusa, é bom ter você em casa, Brighid! Leve para dentro, leve para dentro. - Seu tom alegre logo se transformou
no de um guerreiro em comando. - Mas olhe onde está pisando! Tome cuidado com os brotos de hortelã e manjericão. Este tempo seco horrível praticamente matou minha
horta de tão murcha. - Como a caçadora e o menino se mexeram devagar demais, Wynne bateu impaciente com o pé. - Não queria que virassem lesmas! Tragam a fera para
cá. Nunca se é cedo demais para o jantar.
- Devemos andar com cuidado ou depressa? - perguntou Brighid.
- Ambos, claro!
Sorrindo do jeito mandão de Wynne, Brighid puxou a carcaça para a cozinha, absorvendo a cordialidade dos cumprimentos entusiasmados dados pelo exército de moças.
Os saborosos aromas e a atividade alvoroçada afastaram da mente dela os últimos vestígios de inquietação provocados pela visão do corvo caído. Pela Deusa, adorava
essa parte da sua vida! Sentia ser correto suprir o clã - e ser parte de uma unidade familiar. Liam era um elemento inesperado, mas o menino possuía um dom. Podia
realmente ver espíritos de animais. Então apenas o entrelaçaria na trama de sua vida.
E Cuchulainn? Ele era igualmente inesperado. Talvez houvesse uma maneira de cerzi-lo em sua vida também.
Não. Estava sendo tola. Cuchulainn já era parte de sua vida. Era irmão da chefe do clã e seu amigo. Esse era o papel que o destino relegara a ele. Simples. Lógico.
Previsível. Do jeito que Brighid gostava.
Mas não existiria a menor possibilidade de que ele pudesse ser mais?
- Brighid? Podemos ir também? - A pergunta ansiosa de Liam interrompeu seus pensamentos confusos.
- Ir?
- É, é. - Wynne fez rápidos gestos de enxotamento com as mãos. - Vão embora. Não temos tempo para desviar de vocês.
Brighid bufou para a cozinheira, mas antes de desaparecer pela porta dos fundos arrancou algo que ainda estava preso à grande carcaça.
- Venha, Liam. - Ela rumou para a porta. - Ficar no caminho de uma cozinheira ocupada pode ser mais perigoso que rastrear feras. - Lá na horta, jogou o que estava
segurando para o aprendiz, que o apanhou direitinho. - Falando em rastrear, sabe o que é isso?
Liam cheirou, antes de responder:
- Um casco.
- De?
- Javali, claro - disse ele.
- Agora sabe disso. Pode cheirá-lo, e sabe que eu o arranquei da carcaça. Mas saberia como é a pegada de um javali se a visse na floresta?
Liam encarou a horrível relíquia da caçada de Brighid.
- Não sei.
- Bom, vamos descobrir. - Parou assim que deixaram a horta da cozinha. - Como está a asa?
- Está boa - garantiu-lhe. - Não estou nem um pouco cansado.
Brighid estreitou os olhos.
- O que Nara diria se eu lhe fizesse a mesma pergunta?
- A mesma coisa, prometo. - Diante do olhar de dúvida dela, acrescentou: - Pergunte você mesma. Ela está lá fora com os outros.
- Lá fora? Onde?
- Onde Wynne disse, lembra? Naquela direção... - ele apontou para o sul - ... fora do castelo. Todos lá estão montando acampamento e tentando decidir onde construir
os prédios novos. Eu estaria lá também, mas achei que devia esperar você.
- Fez bem - respondeu distraída. Seus sentidos já alcançavam o platô gramado a sudeste do castelo. Fácil, claramente, sentiu a brilhante luz dourada que era o espírito
de Cuchulainn. Pare com isso. Não pode viver aqui e evitar vê-lo. - Sim, vamos nos juntar aos outros. E lhe darei a primeira lição de rastreamento. - Brighid relanceou
o menino. Ele estava com boa aparência e parecia se mover com mais facilidade. Mas a asa ainda estava bem enfaixada às costas e ele parecia mais pálido do que ela
gostaria. A centaura suspirou e estendeu-lhe a mão. - Venha. Suba.
O sorriso dele prendeu seu coração. Brighid o ergueu no lombo e sentiu uma das mãozinhas cálidas segurar no seu ombro. Sabia sem olhar que a outra mão segurava o
pedaço sangrento de casco. O peso dele era leve e fácil de suportar, e Brighid descobriu que gostava da sensação da mãozinha sobre seu ombro e da maneira como Liam
tagarelava sobre javalis e cascos com a mesma animação que ela sentiu quando era uma jovem aprendiz. Nem se importou com os sorrisos surpresos e as olhadas dos sentinelas
ao sair trotando pelos portões frontais.
- Podemos ir mais rápido? - perguntou Liam, encostando o queixo em seu ombro e falando diretamente ao ouvido.
Brighid provavelmente devia ter dito que não, que o ferimento ainda estava sensível demais para ser remexido, mas sentiu a sedução que vinha da luz dourada. Certamente
surpreenderia a todos se aparecesse galopando com um risonho Liam escarranchado às costas. Ninguém esperaria tal comportamento dela.
Talvez fosse hora de explorar um pouco o inesperado.
- Segure firme - disse por cima do ombro e lançou-se adiante. Claro que manteve uma das mãos na perna do menino para firmá-lo, mas estava contente por sentir a criança
se acomodar numa posição firme e segurá-la forte. Não ficou sacudindo a cabeça nem batendo os braços incomodamente. Na verdade, o menino grudou como um carrapato,
persistente, imagem que a fez sorrir. Quando passou pela curva do terreno e o platô ao sul se descortinou diante dela, Brighid ignorou os trabalhadores e ampliou
as passadas, desviando de cá para lá entre grupinhos de humanos, centauros e neofomorianos, sendo recompensada com um grito de entusiasmo de Liam.
Não desacelerou até divisar a silhueta distinta de Elphame. A chefe do clã era parte do pequeno grupo parado perto do penhasco que tombava drasticamente na costa
bem lá embaixo. As cabeças estavam curvadas sobre uma imensa mesa de madeira colocada debaixo de um toldo que servia de proteção contra o vento do mar encrespado.
Brighid reconheceu a silhueta alta e alada de Lochlan e também o velho centauro artífice, Danann. Ao lado dele estava um guerreiro de ombros largos e cabelos âmbar
que fazia seu coração apertar no peito.
Assim que viu Cuchulainn, não precisou dizer a si mesma com severidade que fosse até lá e acabasse logo com aquele primeiro encontro. A verdade era que se sentia
atraída por ele, como se a luz dourada fosse um farol a guiá-la para casa. A caçadora galopou até o pequeno grupo num tumulto de cascos estrondosos e risadinhas
infantis. Parou do lado de Elphame, que riu de surpresa.
- Brighid, Liam, estava imaginando quando viriam se juntar a nós - disse Elphame, olhos cintilando de humor.
- Brighid pegou um javali! Ele cheira a lama e raiva. E eu ganhei o casco! - Liam ergueu o toco sangrento como um troféu.
- Lama e raiva, hein? Isso não me surpreende. Não gosto muito de javalis - disse Elphame.
O braço de Lochlan enlaçou a cintura de Elphame, que automaticamente se recostou no parceiro.
- Até que gosto deles. Não é verdade, meu coração? - Ele e Elphame compartilharam um olhar íntimo, lembrando que fora o ataque de um javali que os colocara juntos
pela primeira vez.
- Bom, eu gosto de comê-los - disse Danann. O velho centauro se aproximou para apertar o antebraço de Brighid com cordialidade. - É bom vê-la, caçadora. Não a cumprimentei
na noite passada.
- É bom vê-lo, artífice. - Brighid apontou para o terreno diante deles, cheio de membros do clã e neofomorianos, todos ocupados erguendo tendas. - Com essa horda
é fácil deixar de ver alguém. - Ela tomou fôlego fortificante e finalmente se permitiu olhar diretamente para Cuchulainn. Abriu a boca para desejar bom dia ao amigo,
mas a visão dele fez com que as palavras ficassem presas na garganta.
Ele estava tão diferente do Cuchulainn que irrompera no seu quarto na noite anterior que o cumprimento despreocupado que tinha preparado desapareceu de sua mente.
Deusa! Cuchulainn parecia vibrante e poderoso - como o guerreiro que tinha sido; só que agora o marotismo que sempre pareceu ser parte dele fora transformada na
maturidade de um homem. Onde estava o Cuchulainn sofrido e dilacerado com quem tinha viajado e compartilhado alojamento nos Ermos? Como seu cumprimento irreverente,
ele também tinha desaparecido. Em seu lugar estava um guerreiro cujo cabelo fora lavado e cortado curto. A barba avermelhada que cobria o rosto se fora. As rugas
que tinham se formado nos cantos dos olhos ainda estavam lá, mas ele tinha perdido o ar cansado e abatido. E a observava com atenção, com aqueles perspicazes olhos
turquesa e lábios que começavam a se erguer.
- Está me olhando como se não me reconhecesse. Eu não estava tão mal assim, não é?
O primeiro pensamento coerente dela foi o de que ele não parecia nada nervoso por estar perto dela. A voz profunda estava cheia de bom humor e o sorriso parecia
travesso.
Elphame respondeu enquanto Brighid ainda estava tentando encontrar a voz: - É óbvio que Brighid está sendo educada, então eu digo. Sim... - Ela socou o braço do
irmão de brincadeira. - Você estava péssimo.
- Bom, eu gosto do seu cabelo curto - concordou Liam às costas de Brighid. - Gosto do da Brighid longo, e do seu, curto. Claro que o de Brighid é mais bonito.
Cuchulainn riu animado e se aproximou para tirar o menino do lombo da centaura.
- Vou contar um segredo. - Colocando Liam no chão, perto de Brighid, inclinou-se e, com um sussurro exagerado, disse: - Gosto do cabelo dela longo e também acho
que é mais bonito que o meu. - Então os olhos buscaram os dela com calor e intensidade que estavam em contradição direta com o tom leve das palavras.
Brighid sentia que alguém tinha tirado todo o ar de seus pulmões.
- Ah, Cuchulainn. - Elphame revirou os olhos. - Você é incorrigível. - Mas a felicidade no rosto da irmã mostrava claramente como estava satisfeita por mais uma
vez ter razão para provocar seu irmão favorito. - Venha, Brighid, vamos deixar esses homens que eu coloco você a par do que decidimos para a aldeia dos neofomorianos.
- Mas Brighid tem que me ensinar sobre os rastros - disse Liam.
- Essa é sua primeira lição - disse Brighid com firmeza. - Quando sua chefe de clã pede que a acompanhe, você muda seus planos e obedece. - O menino imediatamente
pareceu decepcionado, fazendo com que a caçadora tivesse que se conter para não passar a mão em consolo por seu cabelo macio. Não podia esperar que ele crescesse
se o mimasse, e Liam precisava entender que a palavra de Elphame era lei para os MacCallan. - A segunda lição é uma que deve aprender sozinho. Pegue o casco e vá
até o limite da floresta. Espane as agulhas de pinheiro até o chão macio da floresta ficar exposto, depois o aperte com força no chão. Aprenda o formato. Toque o
entalhe que se formar. Memorize tudo sobre ele. Estou contando com você para me ajudar a rastrear o próximo javali.
O rosto de Liam se iluminou imediatamente.
- Não vou desapontá-la! - E se foi, correndo pelo platô gramado até a linha de pinheiros.
- Ele está sarando rápido - disse Cuchulainn.
- Sim, é um menino forte - respondeu, sem olhar para ele.
- Montado nas suas costas, me pareceu mais feliz do que nunca - contou-lhe Lochlan.
O olhar de Brighid se voltou para o homem alado.
- Devia ter esperado para lhe pedir permissão para aceitá-lo como meu aprendiz. Me perdoe pela transgressão.
O sorriso de Lochlan foi caloroso.
- Caçadora, acredito que agora seja o momento perfeito para que muitas das tradições sejam transgredidas. Mas se precisa da minha permissão, saiba que a concedo
prontamente. Com ou sem minha bênção, é óbvio que o menino pertence a você.
- Não poderia estar mais de acordo, Lochlan. É hora de fazermos nossas próprias tradições - disse Cuchulainn, ainda olhando firmemente a caçadora.
- Bom - disse Elphame com satisfação. - Então não vai se importar de explicar a Lochlan e Danann as ideias que discutimos sobre onde a casa comunal e as cabanas
devem ser construídas. - Sem esperar pela resposta do irmão, entrelaçou o braço com familiaridade no de Brighid e guiou a caçadora para longe deles.
Brighid ainda conseguia sentir o olhar de Cuchulainn sobre si.
As mulheres caminharam juntas, ficando no lado próximo ao mar do platô movimentado. Foi só quando estavam bem longe do alcance de audição do grupo que Elphame falou:
- Como serei capaz de agradecê-la por curar Cuchulainn?
- Não me deve agradecimento nenhum - apressou-se em dizer. - Só estou aliviada por ter funcionado. Na noite passada, ele ainda parecia... - hesitou Brighid, penando
para escolher a coisa certa a dizer. - Ele ainda parecia abalado. Pode não se parecer muito com ele mesmo por algum tempo - explicou com cautela, esperando dar a
Elphame uma explicação racional para os olhares demorados de Cuchulainn.
Elphame lhe deu um rápido abraço.
- Aceito ele exatamente como está. Claro que ainda sente saudades de Brenna. Provavelmente sentirá para sempre, mas agora está pronto para seguir em frente. Está
inteiro outra vez. Você me devolveu meu irmão. Se houver qualquer coisa que eu possa fazer por você, sabe que só precisa pedir, minha irmã.
- Talvez precise pedir que me deixe voltar ao Castelo Guardião - temporariamente, claro.
As sobrancelhas de Brighid se juntaram.
- Não entendi. Acabou de voltar para casa. Como pode querer partir tão cedo?
- Não é que eu queira partir - explicou Brighid conforme retomavam a caminhada pelo platô. - É que a caçadora do Castelo Guardião voltou à Planície dos Centauros
de repente, sem deixar uma substituta. Não pude deixar de notar que a necessidade de uma caçadora era grande. Pensei que pudesse, talvez, oferecer auxílio. Com sua
permissão - acrescentou.
Elphame ficou por um momento sem falar. Apenas estudou a amiga. Depois olhou para Cuchulainn por cima do ombro de Brighid, que girou e viu o corpo forte silhuetado
no céu claro de primavera. Estava virado na direção dela, simplesmente parado. E olhando.
- Arrã - disse Elphame, puxando abruptamente o braço da amiga e continuando o passeio.
- Então - continuou Brighid, tentando esconder o desconforto. - Se eu precisar partir, temporariamente, teria sua permissão?
- Está fugindo? - perguntou Elphame.
Brighid começou a negar, depois fechou a boca. Olhou a amiga nos olhos. Não queria mentir para sua líder, mas percebeu que não conseguiria mentir para a amiga.
- Sim. Acho que estou.
A testa de Elphame enrugou.
- Quero perguntar uma coisa, mas quero que saiba que pode responder com honestidade sem prejudicar nossa relação. Tem minha palavra como amiga, e também como chefe
do clã, quanto a isso.
Com o estômago apertado, Brighid assentiu.
- O fato de Cuchulainn desejá-la lhe causa repulsa? - Quando Brighid ofegou de maneira chocada, Elphame falou depressa: - Quero dizer, seria compreensível se isso
a deixasse desconfortável. É difícil ignorar totalmente os ensinamentos da nossa infância. A manada Dhianna não se mistura com humanos, então não seria surpreendente
se...
- Não! - interrompeu-a Brighid. - Pela Deusa, não! Humanos não me causam repulsa. Cuchulainn não me causa repulsa. Mas o que a faz pensar que ele me deseja?
- Tenho olhos. Conheço meu irmão. Você é muito bonita, Brighid, e meu irmão sempre se interessou por mulheres bonitas.
- Não sou humana - respondeu prontamente.
Elphame ignorou a objeção com um movimento impaciente da mão.
- Os homens a acham bonita e desejável, assim como os centauros. Deve saber disso. E é óbvio que Cuchulainn a deseja. Ele não está tentando esconder a atração. -
Elphame sacudiu o braço da amiga como se para lhe incutir algum bom-senso. - Vocês dois viveram algo muito íntimo. Não tenho certeza dos detalhes de como uma xamã
traz uma alma de volta à terra dos vivos, mas sei que deve ter se unido a Cuchulainn, espírito com espírito, para que o resgate tenha dado certo. E definitivamente
deu certo.
- El. - Brighid respirou fundo e guiou a amiga para mais perto da beira do penhasco, onde o som das ondas quebrando garantiria que não fosse ouvida. - Cuchulainn
não me repele. Nem um pouco.
Elphame arregalou os olhos e sorriu.
- Você o deseja também! Um dia vai ter que me contar o que acontece durante um resgate de alma.
- Elphame - não seja inocente e romântica. Coloque isso em perspectiva. O que Cuchulainn está sentindo por mim é simplesmente o resíduo de uma experiência incomumente
íntima. - Brighid deu uma olhada severa na amiga. - E não! Não vou contar detalhes.
El suspirou:
- Acho que poderia perguntar a Cuchulainn...
- Deusa, não! - Então a caçadora estreitou os olhos ao perceber que a amiga só estava provocando. - Isso não é assunto para gracejos.
- Me desculpe - disse Elphame com sinceridade.
Brighid fez cara feia.
- Como eu estava tentando explicar, Cuchulainn apenas pensa que me deseja por causa do que experimentamos juntos. Isso vai acabar. É por isso que seria melhor se
eu me ausentasse do Castelo MacCallan por enquanto. Para que tenha tempo de voltar a ser ele mesmo.
- Compreendo suas razões. São bem lógicas e realistas. - Elphame sorriu, astuta. - E isso não leva em conta a teimosia do meu irmão.
- Claro que sim.
Elphame riu.
- Lembra de quando Cuchulainn percebeu que seus sentimentos por Brenna eram sérios?
- Sim. As atitudes dele era incômodas demais para serem esquecidas. Bancou o completo idiota perseguindo a pobre menina insistentemente até ela... - Brighid de repente
ficou sem palavras.
Elphame ergueu uma sobrancelha.
- Então não levou em conta a teimosia dele. Também não pude deixar de notar que você disse que os sentimentos de Cuchulainn eram causados pelo resgate da alma. Mas
você não mencionou muito sobre seus próprios sentimentos.
- Seu irmão e eu somos amigos. Gosto dele e o respeito - mentiu ela.
- Vocês são amigos que se importam um com o outro e se respeitam. Junte a isso sua beleza e a lendária paixão dos centauros. - Elphame ergueu a voz e falou acima
do bufo sarcástico da amiga: - Some o talento inegável do meu irmão com as mulheres, e depois misture tudo com uma experiência íntima e tocante. Me parece que a
não ser que tenha repulsa por humanos, tudo poderia ser muito mais do que uma paixão temporária.
Brighid fitou o oceano espumado. Estava incrivelmente emocionada pelo que Elphame estava dizendo. A amiga estava deixando claro que aceitaria qualquer tipo de relacionamento
que Brighid tivesse com Cuchulainn. O coração disparou no peito. Se ao menos...
- Não é tão fácil... - disse por fim.
- O amor raramente é - disse Elphame.
- El, não posso amá-lo! Não posso me transformar.
- Depois do que acabou de viver no reino espiritual, não preciso lembrar que o amor tem mais a ver com a alma do que com o corpo.
- Então me expressei mal - disse Brighid com cansaço. - O problema não é que não posso amá-lo. O problema é que se isso acontecer, estarei para sempre desejando
algo absoluta e completamente impossível.
- Olhe, sei que não gosta de falar disso, mas sua mãe é... - Elphame se calou diante do ar de choque da amiga. - Lamento, Brighid. Não queria lhe causar dor ao falar
da sua família.
- Não é isso. - Brighid passou a mão trêmula pelo rosto. - É Brenna.
- Brenna?
- Ela... ela veio até mim num sonho. Aqui, no Castelo MacCallan. Ah, Deusa! Não percebi até agora...
- O que foi, Brighid?
A caçadora apertou a mão sobre o coração, que batia selvagem dentro do peito.
- Ela queria minha promessa de que manteria a mente aberta para coisas que pareciam impossíveis. Usou exatamente essa palavra, El.
Os olhos de Elphame estavam marejados de lágrimas.
- Brenna parecia feliz?
A caçadora assentiu e seus olhos também se encheram de lágrimas.
- Ela disse mais alguma coisa?
Brighid assentiu devagar.
- Disse que eu poderia contar a Cuchulainn sobre a visita, mas não imediatamente, que eu saberia o momento certo. E também disse que... - Hesitou, as emoções embargando
as palavras.
Elphame segurou a mão da amiga.
- Ah, El... Ela disse que estava deixando Cuchulainn para mim. Por livre vontade e sem hesitação. Eu... eu pensei que estivesse falando do resgate de alma. Nunca
pensei... não percebi...
- Ela estava dizendo que você tinha a bênção dela para amá-lo - disse Elphame.
- Acho que sim.
Elphame passou as mãos pelas faces.
- Ainda acha que deve fugir para o Castelo Guardião?
Brighid sorriu para a amiga em meio às lagrimas.
- Não posso. Fiz uma promessa de ficar aberta para o impossível. Tenho que ficar e enfrentar isso.
- Bom, meu irmão certamente qualificaria isso como impossível.
- E nisso você, Brenna e eu estamos de perfeito acordo.
Trinta e Três
- ENTÃO O QUE vai fazer a respeito dele? - perguntou Elphame, fungando feliz e secando os olhos.
- Não sei ao certo. Imagino que só ficarei aberta para a possibilidade de... - hesitou Brighid, sentindo-se desajeitada, desconfortável e extraordinariamente fora
de seu elemento.
- Vai ficar aberta para a possibilidade de ter um relacionamento com meu irmão.
- Sim.
- Bom, ele vai ficar contente por ouvir isso.
Brighid ofegou.
- Não vou contar a ele!
- Mas...
- E nem você. Por favor.
- Certo. Fico fora disso.
- Podemos mudar de assunto agora?
- Se insiste - disse Elphame.
- Insisto.
- Apenas saiba que estou aqui se precisar conversar comigo. Como sua amiga, e sua chefe de clã, ou como irmã de Cuchulainn caso ele não se comporte.
- Mudando de assunto? - lembrou-lhe Brighid.
- Só queria que soubesse.
- Obrigada, agora sei. - Brighid sorriu com carinho para a amiga. - E ainda quero mudar de assunto.
- Imagino que queira saber o que estamos planejando para a aldeia dos neofomorianos.
- Claro.
- Quer voltar às plantas para que eu possa mostrar o que Cuchulainn e eu esboçamos hoje de manhã? - Os olhos de Elphame cintilaram com a possibilidade de levar a
caçadora de volta ao irmão.
- Por que não me mostra daqui? - perguntou Brighid com indiferença.
Elphame deu um suspiro exagerado, mas começou a apontar e explicar que ela e Cuchulainn tinham decidido - mais uma vez - romper com a tradição. Por causa da falta
de uma estrutura familiar típica, construiriam um único prédio parecido com uma caserna para abrigar a maioria das crianças. A estrutura se situaria não muito longe
do muro sul do castelo. Irradiando-se dela haveria algumas pequenas cabanas, onde os adultos, e as crianças mais velhas também, poderiam ter privacidade. O resto
do platô seria semeado e cultivado com várias plantações, que os neofomorianos poderiam cuidar e usar para comércio e pagar o dízimo ao Castelo MacCallan.
- Minha esperança é de que com o tempo o que aconteceu entre você e Liam aconteça com mais crianças e o clã - continuou Elphame.
- Espera que as crianças amolem o clã até a morte?
Elphame riu.
- Você sabe muito bem. O menino lhe pertence. Espero que muitas das crianças encontrem um lugar no coração e nos lares do meu povo. Mas quero ter o cuidado de não
forçá-los. Tem que acontecer naturalmente, e isso pode levar algum tempo.
- Exatamente como seu irmão e eu - murmurou Brighid.
El sorriu.
- Não exatamente, mas entendo o que quer dizer. - Elphame hesitou, depois o sorriso desbotou. - Esteve ocupada, então sei que não notou, mas perdemos vários membros
do clã MacCallan.
- Como?
- O primeiro grupo partiu no mesmo dia em que você. Não gostei, mas isso não me surpreendeu. Eu os liberei do juramento e disse que se mais alguém no clã quisesse
se juntar a eles, bastava dar um passo à frente. - Elphame meneou a cabeça com tristeza. - Ainda me entristece pensar nisso, mas eu os compreendo. O que estamos
propondo, que aceitem o retorno de um povo que carrega o sangue dos inimigos jurados de Partholon, é uma coisa radical.
- Também carregam o sangue das mulheres partholonianas - mulheres inocentes que perderam seus lares e suas vidas, cujas crianças merecem receber uma chance - disse
Brighid.
- Nem todos creem nisso. Algumas pessoas acreditam que qualquer coisa com asas é um demônio, a despeito do que vive em seu coração.
Brighid bufou:
- Estou contente por essa gente ter ido embora. Estamos bem livres delas. Você é a MacCallan. Deviam ter confiado que você nunca os colocaria em risco.
- Também me uni a um homem que carrega a marca desse pai demônio no sangue.
- E que provou lealdade a você! - falou Brighid com fúria, mesmo se lembrando da própria desconfiança com Lochlan. Mas não tinha deixado que suas dúvidas a fizessem
desertar sua chefe de clã. Aqueles que partiram estavam enganados. Deviam ter ficado perto de Elphame e ficado de olho para ter certeza de que ela não estava em
perigo.
- Ele provou lealdade, e ainda prova - tanto a mim quanto ao clã MacCallan, mas talvez isso não seja suficiente para superar mais de um século de ódio. - Elphame
fixou os olhos nos de Brighid. - Sabe que o preconceito não é lógico, por isso que é tão difícil de ser superado. - Suspirou. - E outros mais partiram depois desse
primeiro grupinho.
- Quantos mais?
- Na manhã seguinte, uma dúzia de homens e três mulheres partiram.
- Mais 15 pessoas? Simplesmente assim? - Brighid estalou os dedos, incrédula.
- Disseram que agora que o momento se aproximava eles também não tinham estômago para aceitar os neofomorianos. - A voz de Elphame soava desanimada.
- Mas você lhes deu a oportunidade de partir. Escolheram ficar. Estavam jurados a você.
- Agora são renegados. - Elphame pronunciou a palavra como se tivessem um sabor amargo.
Brighid encarou a chefe, completamente chocada, conforme a expressão da amiga se transformava. O rosto de Elphame enrijeceu. Os olhos se tornaram obscuros, e Brighid
sentiu o eco de uma presença que era sombria e arraigada em intenções malignas.
- El! - gritou, segurando o braço da amiga. Deusa! A pele dela estava fria.
Elphame trincou o queixo, fechou os olhos e respirou bem fundo. Os lábios se moveram numa oração quase silenciosa, e Brighid pôde ver o brilho do poder de Epona
tremular no ar ao redor delas. O cabelo da amiga se ergueu, rodopiando num vento quase invisível de energia que, num crepitar audível, se assentou na pele de Elphame.
A mão de Brighid formigou onde foi tocada pela Deusa.
- El? - perguntou Brighid, desta vez mais hesitante.
A chefe do clã ofegou e abriu os olhos. Quando divisou a amiga, as sombras dentro dela tinham, mais uma vez, se retirado.
- Ela se agita - explicou antes que Brighid conseguisse decidir se deveria ou não perguntar. - Especialmente quando algo me deixa zangada, ou quando me sinto desesperada.
A loucura sempre está dentro de mim, espreitando em silêncio... esperando. Só o amor e a verdade, junto com o toque poderoso de Epona, a mantêm acuada.
- Fé e fidelidade - sussurrou Brighid o lema do clã MacCallan.
- Fé e fidelidade - ecoou Elphame.
Brighid queria perguntar mais, e estava tentando formular as palavras certas quando ambas foram distraídas pela entrada de um homem a cavalo no platô. Embora a área
fervilhasse com som e atividade, havia algo no homem que lhes atraiu a atenção. Ele parou na frente de Cuchulainn. Brighid podia ouvir seus gritos, mas não conseguia
compreender as palavras.
- Venha comigo - disse Elphame, sem esperar que o irmão levantasse o braço para sinalizar onde ela estava. As poderosas pernas equinas eram tão rápidas que na corrida
Brighid teve que se esforçar para acompanhar a velocidade da chefe. Quando as duas alcançaram Cuchulainn, ele já tinha montado no cavalo do homem e estava rumando
na direção do castelo.
- Uma centaura acaba de chegar da planície. Tem uma mensagem urgente para Brighid.
Juntos, Elphame, Brighid, Lochlan e Cuchulainn dispararam ao castelo.
- Ela espera no pátio principal - avisou o sentinela quando alcançaram o portão aberto do castelo.
Com o estômago apertando de tensão, Brighid desacelerou. A centaura ficou adiante de todos, como se estivesse consumida olhando a fonte da MacCallan ancestral. Brighid
estava surpresa por poder ouvir a respiração difícil da centaura, e a surpresa se tornou assombro quando percebeu que a pelagem da centaura estava coberta de manchas
de espuma branca e o corpo tremia. Nunca se ouviu falar de um centauro demonstrando sinais tão óbvios de fadiga. Devia ter corrido sem parar por dias para ter ficado
naquele estado. Então a centaura se virou, e Brighid ofegou.
- Niam! - Ela correu até a irmã, que tropeçou e quase caiu em seus braços. - O que aconteceu?
- Graças a Epona você está aqui - disse em meio a arfadas tortuosas. - É a mamãe. Ela está morta.
O choque das palavras da irmã implodiu na mente de Brighid, que sentiu a cabeça sacudindo de cá para lá, de lá para cá, como se não pudesse controlá-la.
- Me ajudem a levá-la para o Grande Salão. - A voz de Elphame interrompeu o ruído alvo de descrença que ecoava na cabeça de Brighid.
De repente Niam não estava mais em seus braços, mas sendo meio conduzida, meio carregada por vários homens do clã MacCallan, junto com sua chefe e o parceiro, para
o Grande Salão. Brighid só conseguiu ficar ali parada, acompanhando-os com o olhar, completamente incapaz de se mexer.
Uma mão forte e quente escorregou por seu cotovelo, e a presença de Cuchulainn se registrou.
- Lembre-se de respirar - avisou a ela.
Brighid aspirou o ar como uma mulher se afogando, piscou e finalmente conseguiu focar naqueles olhos turquesa.
- Fique comigo - disse ela.
- Não vou a lugar nenhum que não seja lá dentro com você - disse-lhe.
Ainda segurando-lhe o braço, saiu caminhando com ela. Brighid tropeçou, mas Cuchulainn a ajudou a manter o equilíbrio. Através do toque dele, podia sentir o calor
de sua luz dourada fluindo dentro e fora dela, envolvendo-a com a força de um guerreiro.
Entraram no Grande Salão juntos e se aproximaram depressa do longo e baixo banco para centauros sobre o qual Niam tinha desabado. Wynne veio correndo da cozinha
carregando um odre pesado, que passou para Elphame. A chefe o desarrolhou e o levou aos lábios de Niam quando as mãos trêmulas da centaura não puderam sustentá-lo.
- Beba devagar. Primeiro água, depois lhe daremos vinho e alguma coisa para comer. - Elphame falou num tom calmo e tranquilo com Niam. Enquanto a centaura bebia,
Elphame se dirigiu para um dos homens do clã de olhos arregalados. - Chame minha mãe - ordenou. E depois se dirigiu a outro: - Traga toalhas e cobertores. Muitos.
Brighid sentiu uma pontada de pânico ao se ajoelhar ao lado da irmã. Subia vapor da parte equina coberta de espuma do corpo de Niam, que tremia e se contorcia espasmodicamente.
O torso humano estava pegajoso e corado num escarlate incomum. O cabelo loiro estava escuro de suor e emplastrado na cabeça delicada. Ela tinha corrido perigosamente
além do ponto da exaustão.
De repente Niam afastou o odre de água da boca, engasgou e tossiu. Brighid afastou o cabelo úmido do rosto da irmã, murmurando com ela: - Shhh, você está aqui agora.
Concentre-se em ficar calma... em resfriar o calor do seu corpo.
- Não! Brighid, você tem que escutar!
Niam agarrou-lhe a mão, e Brighid quase gritou com o calor que irradiava da irmã.
- Depois, Niam. Quando estiver descansada.
- Não, agora! - falou a centaura em um frenesi, e então mais tosses violentas a consumiram.
- Deixe-a falar.
Brighid ergueu a cabeça ao som da voz de Etain. As pessoas que se aglomeraram no Grande Salão se dividiram para que a Escolhida da Deusa pudesse se aproximar. O
rosto da sacerdotisa estava sereno, mas quando Brighid lhe encontrou os olhos, viu dentro deles uma terrível tristeza que fez seu coração gelar.
Minha irmã vai morrer.
Brighid se voltou para a irmã e segurou a mão avermelhada entre as suas, tentando injetar força nela.
- Estou escutando, Niam - disse Brighid.
- Mamãe morreu esta manhã, mas o acidente aconteceu há quatro dias. Ela caiu num poço para bisão. As estacas a perfuraram. - Niam fechou os olhos e estremeceu com
o horror da recordação. - Sabia que ela estava morrendo. Todos nós sabíamos. Tinha que avisar você.
- Não! Não! não pode ser. Não caçamos bisões com poços. Não usamos estacas. - Brighid meneou a cabeça, sentindo-se inundada em confusão.
- Não era uma armadilha de centauros. Era um poço feito por humanos.
Um calafrio terrível de mau pressentimento sacudiu o sangue de Brighid.
- Mas humanos não caçam na Planície dos Centauros, não sem a permissão do sumo xamã da manada. - O que a manada Dhianna nunca dava.
- Passaram dos limites e caçaram ilegalmente, provocando a morte da nossa mãe.
Niam teve que parar novamente para tossir. Dessa vez, quando arfou buscando ar, os lábios ficaram úmidos com saliva tingida de sangue.
- A morte dela deixou Bregon louco. Antes de eu deixar a planície, ele já tinha jurado levantar o Cálice de Sumo Xamã e liderar a manada Dhianna contra os humanos
que ousaram colocar os pés na Planície dos Centauros.
Horrorizada, Brighid só conseguia encarar a irmã. O irmão estava disposto a começar uma guerra por causa de um acidente terrível?
Niam apertou as mãos da irmã.
- Não é só a manada Dhianna. Desde que se espalhou pela planície a notícia de que as criaturas aladas estavam sendo aceitas de volta a Partholon, os xamãs de outras
manadas se juntaram a nós. Eles querem fazer uma guerra, Brighid.
Niam se calou, arquejando dolorosamente, e Brighid a sustentou enquanto o sangue vertia pelo peito da irmã e corria em filetes carmesim pelo chão.
- Mamãe não me mandou aqui. Ela queria a guerra. Vivia repetindo a Bregon que a vingasse. Eu precisava impedir isso. Tinha que vir até você.
Niam não precisava explicar como sabia que a mãe tinha morrido. A verdade se assentou sobre Brighid conforme a mente rememorava o corvo abatido e as palavras cheias
de ódio de seu arquejo de morte.
Vingue-me!
Quando seu espírito deixou o corpo, Mairearad Dhianna teria enviado a mesma mensagem para cada filho, esperando que nem mesmo sua morte encerrasse a influência manipuladora
que considerava o verdadeiro laço da maternidade. Mesmo ao fim da vida, a mãe ainda estava tramando... tentando forçá-los a se curvar à sua vontade. No caso do irmão
de Brighid, Mairearad parecia ter sido vitoriosa.
- Descanse agora, Niam. - Brighid pegou o pano de linho que Elphame lhe passou em silêncio e limpou o sangue do rosto da irmã. - Vamos resolver isso. Shhh.
Niam meneou a cabeça e deu um pequeno meio-soluço, meio-sorriso.
- Você sempre pensou que eu fosse estúpida. - Quando Brighid começou a negar, Niam apenas apertou mais a mão da irmã e continuou falando: - Isso agora não importa
mais, mas queria que soubesse que eu não era o que você pensava - só não era forte como você. Não conseguia enfrentá-la, então a fiz acreditar que não merecia a
atenção dela. - Os lábios tremeram quando Niam tentou sorrir. - E enganei todos. Ninguém me notava, especialmente Bregon. Ninguém pensou que seria eu a vir até você.
- Com força surpreendente, Niam largou a mão da irmã para que pudesse agarrar Brighid pelos ombros. - Precisa retornar. Mesmo aqueles que foram mais corrompidos
pela mamãe não ousariam se opor ao poder da Sumo Xamã Dhianna. Pegue o cálice. Garanta que mamãe não ganhe. Coloque um fim nessa loucura.
A tosse seguinte de Niam foi um soluço sangrento, e ela desabou no banco. Em meio ao sangue que estava escorrendo continuamente do nariz e do canto da boca, ela
sorriu para a irmã.
- Sempre a invejei, Brighid. Você escapou dela. Mas talvez agora eu finalmente tenha escapado dela também...
Os olhos de Niam reviraram tanto que exibiram a parte branca, e o corpo dela se convulsionou tão violentamente que Brighid foi jogada para longe. Num nevoeiro de
desespero, Brighid observou Etain. Os braços da Deusa Encarnada estavam abertos e, ao falar, uma pura luz branca emergiu de suas palmas, engolfando Niam.
Niam, irmã de nossa amada Brighid, em nome da nossa Grande Deusa peço que deixe essa casca quebrada
que já não lhe serve mais.
Peço em nome de Epona,
Deusa de tudo que é selvagem e livre,
que transcenda essa dor...
que descanse no seio da Terra de Verão de Epona.
Filha da deusa, eu a liberto!
Etain pressionou suas mãos cintilantes sobre o flanco ofegante da centaura, e o corpo de Niam ficou imóvel. Com uma pequena arfada, aliviada, a irmã de Brighid respirou
pela última vez.
Trinta e Quatro
NO SILÊNCIO ESPANTADO, a voz de Elphame soou calma e autoritária: - Lochlan, chame Ciara. Conte a ela o que aconteceu. Mande os adultos manterem as crianças longe
do castelo até eu avisar que podem retornar.
O homem alado só hesitou o bastante para tocar o ombro de Brighid e murmurar "Lamento por sua perda, caçadora", então se foi.
- Mamãe - prosseguiu Elphame. - Poderia...
Antes que terminasse a pergunta, a Escolhida de Epona já estava respondendo: - Claro. Levem-na para mim. - Mas como Lochlan, antes de deixar o salão aproximou-se
de Brighid, que estava ajoelhada no chão, perto do corpo da irmã, cabeça abaixada. A Deusa Encarnada ergueu uma das camadas de seu robe de seda e o usou para secar
o sangue e as lágrimas do rosto de Brighid. Curvou-se e beijou a caçadora em cada face, como uma mãe faria com a filha.
- Epona sabe de sua dor, criança, e a Deusa chora com você.
Então Etain saiu apressada, sua voz clara ecoando desde o pátio principal ao chamar as criadas.
Danann, o artífice centauro, com a ajuda de vários homens, levou o corpo de Niam para os aposentos de Etain.
Quando Cuchulainn e Elphame ficaram sozinhos com Brighid, ele se agachou para ficar no nível dos olhos dela. Ouviu o passo dos cascos da irmã sobre o chão de mármore
ao se aproximar dele.
- Brighid. - Cuchulainn baixou a voz para que ficasse calma como a da mãe, mesmo embora suas emoções estivessem afloradas e sangrando. Compreendia muito bem o ar
chocado e sofrido. - Brighid - repetiu, e ela enfim moveu os olhos para ele. - Venha com El e comigo. Vamos deixar este local de morte.
- Mas é o meu lar - disse atordoada.
- Ainda é seu lar - apressou-se Elphame em dizer. - Sempre será seu lar. Cuchulainn não quer que deixe o Castelo MacCallan. Apenas este salão. - Elphame pegou a
mão frouxa da amiga. - Vamos para seu quarto e deixar a limpeza daqui com Wynne e minha mãe.
Brighid encarou Elphame, os olhos arregalados de choque.
- É o que quer que eu faça?
- Sim - disse El.
Brighid assentiu duas vezes com a cabeça num movimento esquisito e anormal. Ainda apertando forte a mão de Elphame, levantou-se.
- Cuchulainn? - A voz estava hesitante e suave.
- Estou aqui. - Ele lhe segurou a outra mão com firmeza. - El e eu não deixaremos que passe por isso sozinha.
Ela ergueu os olhos para ele.
- Precisa me perdoar. No momento não posso fingir que não preciso de você perto de mim.
Cuchulainn levou a mão salpicada de sangue aos lábios.
- Ao seu lado é exatamente onde quero ficar.
- Não conseguiria se livrar de nenhum de nós - afirmou Elphame.
Sustentada por amor e lealdade, Brighid caminhou com passos pesados e sonâmbulos até seus aposentos. Quando Elphame e Cuchulainn lhe soltaram as mãos, ficou parada
no quarto, esperando pelo que aconteceria em seguida. De repente pareceu que era incapaz de continuar avançando sozinha.
- Estou com sangue por toda parte - disse, surpresa por como a voz soava estranha.
- Eu cuido disso - disse Elphame, indo até o jarro e a bacia colocados sobre a mesa. - Cuchulainn, traga Nara.
Em resposta ao olhar rebelde do irmão, Elphame lhe agarrou o braço e puxou para perto, sussurrando: - Brighid não vai agradecer mais tarde quando lembrar que ficou
aqui olhando enquanto eu limpava o corpo dela do sangue da irmã.
Cuchulainn fechou a boca e assentiu em entendimento.
Enquanto a irmã despejava água limpa na bacia, ele segurou a mão de Brighid novamente. Olhou naqueles olhos cheios de dor e se lembrou de como ela esteve ao lado
dele quando descobriram o corpo de Brenna, e então, como se a mente só agora realmente processasse tudo, percebeu que Brighid sempre esteve ao lado dele naqueles
dias desesperançados após a morte de Brenna enquanto Elphame estava em coma e era como se todos que ele amava o tivessem desertado. Brighid não, mas ele esteve distraído
demais pelo sofrimento e depois pelo egoísmo para perceber.
Mas percebia agora, e também não a deixaria sozinha.
- Vou buscar Nara. Mas não me demoro. Elphame vai ficar com você até eu voltar.
- Mas você volta?
- Sempre. - Cuchulainn levou a mão dela aos lábios, então saiu a largas passadas do quarto.
Antes que Brighid pudesse sentir sua ausência, Elphame estava novamente ao seu lado. Com um pano úmido e palavras tranquilizadoras, a amiga limpou os respingos de
sangue do corpo dela. Dias depois, Brighid nem lembraria o que Elphame tinha lhe dito. Só saberia do toque gentil das mãos de Elphame e a sensação fresca da água
limpa ao lavar o sangue de Niam.
- Venha, deite-se.
Brighid agarrou-se à voz da amiga. Obedecendo como se não possuísse vontade própria, deixou Elphame guiá-la ao seu grosso colchão. Em movimentos lentos, dobrou os
joelhos e deixou o corpo tombar. Elphame pegou uma escova larga e macia no topo da penteadeira de Brighid e, enquanto cantarolava sem palavras uma canção de ninar,
escovava o longo cabelo loiro-prateado da caçadora. Foi em meio àquele gesto simples e amoroso que Brighid voltou a si mesma.
Respirou fundo. Os pensamentos lamacentos escoaram pelos dejetos da dor, se assentaram e enfim clarearam. Logo ela se reorientou.
O primeiro pensamento coerente foi o de que estava inteira. A alma não tinha se despedaçado. Imaginou brevemente como sabia disso com tamanha certeza, e a resposta
veio com simplicidade. Seu sangue lhe dizia. Seu coração lhe dizia. O instinto de xamã inerente à sua alma lhe dizia.
Seu pensamento seguinte foi como uma faca fria perfurando seu corpo. Minha mãe está morta. Soava impossível, mas seu coração - e agora a mente - sabia que era verdade.
E então, como um desfiladeiro repleto de recordações, sua memória foi varrida por imagens dolorosas.
A irmã estava morta. Ela deu a vida por mim. Estava enganada sobre ela, e agora é tarde demais para consertar isso. Nunca poderei endireitar nada.
- Caso se culpe pela morte dela, estará tão enganada quanto Cuchulainn esteve por se culpar pela morte de Brenna. - Elphame continuou a escovar o cabelo de Brighid
enquanto falava.
- Como não me culpar?
- Sua irmã escolheu dar a vida para que você - e através de você, o resto de Partholon - fosse prevenida. Não a culpou, ela deixou isso claro. Caso se culpe quando
ela mesma não o fez, estará desrespeitando a memória dela.
Brighid inspirou de maneira entrecortada.
- Niam foi forte e corajosa.
- Sim... Ela foi, sim.
- Ninguém nunca escovou meu cabelo - disse Brighid.
- Quando eu era criança, mamãe costumava escovar meu cabelo sempre que eu estava me sentindo muito solitária. Nunca entendi o porquê, mas sempre pareceu ajudar.
- A voz falhou num soluço. - Eu... eu não sabia o que fazer para que você se sentisse melhor.
Brighid virou a cabeça para conseguir olhar a amiga.
- Fez a coisa certa.
Ouviram duas batidas rápidas na porta, que então se abriu. Num farfalhar de asas agitadas, Nara adentrou o quarto, seguida por Cuchulainn. A curandeira estava carregando
uma panela fumegante numa das mãos e uma pesada sacola de couro na outra.
- Avive o fogo, guerreiro - ordenou, passando a panela para Cuchulainn. - Isso precisa ferver.
Com gestos práticos, ela sentou no chão ao lado do colchão de Brighid. Com mãos infinitamente gentis, tocou rapidamente os pontos de pulso nas têmporas, no pescoço
e nos punhos da caçadora, depois passou as mãos com delicadeza sobre o corpo equino de Brighid.
- Não estou ferida - avisou-lhe Brighid.
Nara ergueu os olhos enquanto vasculhava a sacola de couro, puxando maços de ervas secas.
- Não estava preocupada com um ferimento físico, caçadora - disse Nara. - E agora estou menos preocupada com seu espírito, embora ainda queira que beba minha infusão.
- A curandeira ficou de pé e se aproximou da mesa, misturando ervas num pequeno coador de trama fina.
Brighid começou a sacudir a cabeça, lembrando-se das poções de Brenna. Não queria dormir - tinha certeza de que deveria estar fazendo alguma coisa. Mas antes que
pudesse se mexer, Elphame estava de novo ao lado dela.
- Mamãe está cuidando de Niam. Não há mais nada para você fazer hoje.
- Devo ficar com ela. Tenho que... - Brighid ficou sem palavras e só conseguiu encarar a amiga.
- A Escolhida de Epona está untando o corpo da sua irmã. Ela e as criadas estão recitando orações para guiar o espírito dela até Epona. Wynne e as cozinheiras estão
limpando o Grande Salão. Logo chamarei as crianças e elas retornarão para encher o castelo com vida e alegria.
- Mas o que posso fazer, El?
Elphame tomou a mão de Brighid.
- Pode dormir e se recuperar para que a mente fique clara para tomar decisões que honrem o sacrifício de sua irmã.
- É tudo o que posso fazer? - Mesmo aos seus ouvidos, ela soava derrotada.
- É o bastante por enquanto - assegurou-lhe Elphame.
- Sabia que ela estava morta - disse Brighid, a voz mais resignada do que triste.
- Niam? - perguntou Elphame.
A caçadora meneou a cabeça.
- Não. Minha mãe. Ela veio até mim hoje de manhã quando matei o javali. Ela disse... - Brighid se calou, engolindo o nó na garganta. - O espírito dela berrou para
que eu a vingasse. Pensei... - Brighid fez outra pausa, respirando bem fundo. - Pensei que era apenas outro dos truques dela, apenas outra tentativa de me atrair
para um lugar onde pudesse me mudar... me controlar... me usar. - Brighid meneou a cabeça. - Mas bem no fundo eu sabia que ela estava morta. Não quis encarar isso.
Mas deveria. Se eu tivesse voltado para a Planície dos Centauros naquele momento, talvez tivesse encontrado Niam e a detido antes que ela... - A voz falhou, e Brighid
não conseguiu prosseguir.
- Não! - Cuchulainn se ajoelhou, tocando-lhe o rosto, secando-lhe as lágrimas. - Não faça isso consigo mesma, Brighid. Não poderia ter mudado o destino da sua irmã
tanto quanto eu não poderia mudar o de Brenna. Deixe-a ir, minha bela e forte caçadora. Deixe Niam ir.
- Beba isto. - Nara entregou a Brighid um caneco fumegante que cheirava a lavanda e especiarias.
Ansiando de repente pelo esquecimento, Brighid esvaziou o caneco, sem se importar que as ervas perfumadas não mascarassem bem o amargor da infusão.
- Agora durma, pois quando acordar a mente estará clara - disse Nara. - Não posso curar seu coração, mas posso lhe dar um corpo descansado para decisões sábias enquanto
seu espírito chora.
- Nara - chamou Brighid a curandeira antes que ela pudesse se esgueirar silenciosa para fora do quarto. - Não deixe Liam se preocupar comigo. Diga a ele que vai
ficar tudo bem.
Pela primeira vez, a curandeira sorriu.
- Não se aflija, caçadora. Deixarei a mente de sua criança tranquila.
- Também devo ir - disse Elphame, beijando Brighid na face. - Não se preocupe com nada. Mamãe e eu cuidaremos da pira. Descanse. Volto logo para ver como você está.
As pálpebras de Brighid já estavam começando a ficar pesadas quando seu olhar procurou o de Cuchulainn.
- Não vou embora - afirmou ele.
- Bom. - Os olhos se fecharam. Então, com um arfar, ela os forçou a abrir.
- O que foi? - perguntou Cuchulainn, afastando-lhe o cabelo do rosto.
- Estou com medo de dormir. E se parte do espírito dela vier aos meus sonhos, como o seu fez?
Cuchulainn sabia que era à alma distorcida da mãe que Brighid se referia.
- Isso não vai acontecer - disse ele, acomodando-se no colchão recheado de plumas para que pudesse puxar o torso dela para seus braços. - Não vou deixar.
Brighid descansou a cabeça no peito dele e tentou lutar contra a droga.
- Como? Como pode detê-la?
- Estive nos seus sonhos antes. Estarei lá outra vez, e vou garantir que nada a magoe. - Ele beijou o topo da cabeça dela. - Durma, minha bela caçadora, e eu vigio
você.
Incapaz de lutar mais, Brighid se deixou arrastar pelo sono para a escuridão.
Trinta e Cinco
QUANDO ABRIU OS olhos novamente, estava escuro, exceto pelo fogo queimando baixo na lareira. Por um momento ficou sem se mexer - Brighid apenas recordou.
A mãe estava morta. A irmã estava morta. O irmão estava disposto a começar uma guerra sangrenta de vingança.
Hesitante, testou o conhecimento dentro dela. A morte da mãe a fazia sentir alívio, que imediatamente foi acompanhado por um ataque de culpa. Brighid se recompôs
mentalmente. Não tinha razão para se sentir culpada. Mairearad Dhianna tinha sido sua mãe, mas também uma centaura manipuladora e de espírito mesquinho. O poder
a corrompera até acabar por usar mal os dons concedidos por Epona, além de usar e descartar até os próprios filhos. O mundo seria um lugar mais leve sem a presença
sombria de Mairearad Dhianna, e Brighid não choraria por algo que era na verdade mais ganho que perda.
Mas saber da morte de Niam era profundamente diferente. Isso a deixava machucada e triste. Durante todos aqueles anos, estivera cega para o verdadeiro caráter da
irmã. Houve uma época durante a infância em que Brighid fora próxima ao irmão, mas nem então, antes de os anos de divergência começarem, tinha prestado muita atenção
na irmãzinha. Acreditava que Niam era uma casca bonita - insensata quanto a qualquer coisa que não se relacionasse a beleza, entretenimento e luxos. Niam estava
certa. Tinha enganado a todos - mesmo a mãe poderosa. No fim, demonstrara ter mais coração que qualquer um deles. Brighid se certificaria de que a memória da irmã
fosse venerada, e que a força dela fosse contada e recontada nas baladas cantadas ao redor das fogueiras de MacCallan por anos e anos a fio. Brighid só esperava
estar lá para escutá-las. As escolhas do irmão poderiam tornar isso impossível.
Uma sombra se desvencilhou de perto da lareira, fazendo o coração de Brighid martelar selvagemente. Seria uma aparição? Será que o espírito da mãe fora até ali para
lhe entregar outra mensagem cheia de ódio? A caçadora estava se preparando para repudiar o ataque sobrenatural quando a sombra se tornou um homem.
- Vai querer beber isso. Nara disse que estaria com sede quando finalmente acordasse. - Cuchulainn lhe entregou uma taça cheia de água fresca.
Aliviada, as mãos só tremeram um pouquinho enquanto tomava a taça e bebia sedenta. Cuchulainn avivou o fogo e depois rodou pelo cômodo, acendendo vários dos candelabros,
efetivamente afugentando as sombras do quarto. Depois apanhou o cesto de comida e vinho da mesa e o levou até Brighid, sentando-se no colchão ao lado dela.
A caçadora desembrulhou um sanduíche frio de pão e queijo fatiado grosso do cesto e o devorou contente.
- Parece que não como há dias - disse ela entre as mordidas.
Cuchulainn sorriu e limpou algumas migalhas do queixo dela.
- E não comeu.
Ela estreitou os olhos ao perceber que o rosto dele estava sombreado com o que devia ser o restolho de um dia.
- Por quanto tempo dormi?
- Não passa muito do raiar do segundo dia desde a morte da sua irmã - disse ele gentilmente. - Fiquei preocupado achando que seu sono fosse anormal, mas Nara me
garantiu que você acordaria quando seu espírito estivesse pronto.
Lentamente, Brighid ergueu a mão para tocar a aspereza do rosto com barba por fazer.
- Ficou aqui esse tempo todo?
- Avisei que não deixaria você. - Sem tirar o olhar do dela, amparou uma das mãos de Brighid na sua, inclinou um pouco a cabeça e beijou-lhe a palma.
- Cuchulainn... - começou ela, afastando a mão do rosto dele. - Essa coisa entre nós... não precisa ser mais do que amizade - disse sem jeito.
- Não? - A risada foi baixa e fez os olhos turquesa cintilarem.
- Você deveria saber que depois de um resgate de alma...
- A xamã e o paciente estão ligados - completou por ela. - Sim, sei disso. Mas geralmente essa ligação não é mais do que respeito e compreensão. Geralmente. - Cuchulainn
tomou-lhe a mão e a beijou novamente. Ele a manteve presa, palma virada, sobre o coração enquanto continuava falando: - A xamã e o paciente não são atraídos por
desejo, ou caso sejam, ele logo se esvai. - Podia sentir as batidas do coração de encontro ao calor da palma de Brighid. - Lembra de quando acordamos e você estava
me beijando... soprando minha alma de volta ao meu corpo?
Brighid assentiu, silenciada pela voz profunda e o azul impossível dos olhos dele.
- Eu lhe disse que minha mente compreendia que eu não devia desejá-la, mas que minha paixão estava dominando a lógica desse entendimento. Você me falou que minha
paixão desapareceria. Não desapareceu, minha bela caçadora. Agora onde isso nos deixa?
- Não sei - sussurrou ela.
- No Grande Salão, depois do horror da morte da sua irmã, você pediu que eu a perdoasse porque não conseguia fingir que não precisava de mim ao seu lado.
- Eu me lembro.
- Você estava em choque, paralisada de sofrimento e confusão. Agora que seus pensamentos estão claros, tenho que perguntar mais uma vez se ainda precisa de mim ao
seu lado.
É impossível, a mente lhe dizia. Então um eco da memória reverberou a voz doce de Brenna: A coisa mais importante que vim contar é que quero sua promessa de que
manterá a mente aberta... para tudo que parecer impossível.
- Preciso. Sei que é impossível, mas preciso - disse Brighid num ímpeto, antes que o bom-senso e a lógica pudessem impedir suas palavras.
- Era o que eu precisava ouvir. Agora tudo o que precisamos fazer é descobrir como superar o impossível.
- Ah, só isso? - disse Brighid com um toque de seu humor cáustico normal.
Cuchulainn sorriu com charme.
- Minha mãe parece achar que é possível. E você sabe que ela sabe tudo que é importante.
- Sua mãe? - Brighid meneou a cabeça e apanhou o odre. - Falou com sua mãe sobre nós?
Ele ergueu um ombro.
- Acha que eu precisei?
- Pela Deusa! Alguma vez conseguiu esconder alguma coisa dela? - Sentiu-se ruborizada de vergonha ao lembrar que Etain estivera com ela durante a jornada para resgatar
a alma de Cuchulainn. Então o rubor se transformou em prazer. Etain, a Escolhida de Epona e Alta Sacerdotisa de Partholon, os aprovava!
- Ninguém esconde nada da minha mãe. - Cuchulainn riu da expressão impressionada de Brighid. - Vai se acostumar com isso.
- Talvez... Não sei... - Ela deixou de olhar o rosto dele enquanto os pensamentos se redirecionavam. - Deve ser uma grande bênção ter uma mãe que ama você incondicionalmente.
O rosto do guerreiro ficou imediatamente sério.
- É. - Ele segurou-lhe a mão novamente. - Decidiu o que vai fazer?
Ela assentiu, os olhos se voltando lentamente para encontrar os dele.
- Sabia o que devia fazer desde o momento em que vi Niam. - A centaura suspirou. - Antes disso, na verdade. Acho que soube a vida inteira. Só estava tentando fugir
disso.
A mão dele apertou a dela.
- Você não foge das coisas, Brighid.
- Como mais chamaria isso?
- Sobrevivência, coragem, independência. Chamaria de qualquer uma destas coisas. Só covardes e tolos fogem. - O tom dele era ácido. - Eu sei bem. Fugi do sofrimento
pela morte de Brenna.
Brighid tentou sorrir.
- Você não é covarde.
A explosão de gargalhada deixou a alma dela consideravelmente mais leve.
- E com sorte alcancei meu limite de atos tolos.
Brighid olhou para as mãos dos dois unidas e ergueu uma sobrancelha. Ambos riram.
Foi exatamente quando Elphame bateu delicadamente na porta e espiou o quarto. Seus olhos se arregalaram ao vê-los, sentados juntos no colchão da centaura com comida
espalhada ao redor, de mãos dadas e rindo.
- Ora, é bom ver que meu irmão está servindo para alguma coisa. - As palavras eram provocadoras, mas os olhos cintilavam de satisfação.
- El! Bem na hora. Junte-se a nós - disse Cuchulainn.
- Na verdade, vim buscar você - buscar vocês dois. Papai está aqui.
- Bom - disse Cuchulainn, ficando de pé e espanando migalhas do kilt. - Se alguém pode explicar o que está acontecendo com os centauros, esse alguém é nosso pai.
- Ele estendeu a mão para Brighid, que a segurou, levantando-se com relutância para ficar de pé ao lado dele. Cuchulainn sorriu. - Não se preocupe. Vai gostar dele.
- Não estou preocupada quanto a gostar de Midhir! Pela Deusa, Cuchulainn, seu pai é o Sumo Xamã de toda Partholon!
- Não precisa ficar nervosa, Brighid. Nosso pai vai gostar de você - assegurou Elphame, dando uma olhada frustrada no irmão. - Papai é maravilhoso. Verá.
Para Brighid era como se estivesse num sonho quando os três se encaminharam pelo castelo para a entrada dos fundos dos aposentos de família. Antes de entrarem na
ala familiar, a caçadora parou e encarou o sol que tinha acabado de se levantar sobre o muro leste do castelo.
- Onde está Niam?- perguntou calmamente.
- Depois que mamãe untou o corpo, ordenei que fosse mantida na salinha da enfermaria. A pira funerária já foi construída na margem sul dos terrenos do castelo. Pensei
que gostaria dela voltada na direção da Planície dos Centauros - explicou Elphame.
Brighid assentiu.
- Depois de falarmos com Midhir, gostaria de acender a pira.
- Claro. Avisarei ao clã que se preparem.
- O clã? - perguntou Brighid de maneira patética.
- Seu clã. Não a deixariam ficar ao lado da pira de sua irmã sozinha.
Brighid não disse nada, apenas deixou escapar um longo suspiro. Os olhos estavam tristes e resignados. Então ela endireitou os ombros.
- Vamos falar com seu pai. - Ela abriu caminho pelo castelo, os cascos fazendo um som solitário e abafado no chão de mármore liso.
A primeira coisa que Brighid notou no opulento quarto de hóspedes foi que a cama que geralmente estava assentada sobre um imenso estrado circular tinha sido trocada
por um grande catre centáureo. A segunda coisa que notou foi o centauro imponente que estava atrás da cadeira de Etain, falando em voz baixa com a Escolhida enquanto
era devidamente penteada para o dia. Era alto e possuía o porte compacto e magnífico de um guerreiro centauro maduro. Sua pelagem era de baio escuro, escurecendo
para preto nos jarretes. O espesso cabelo escuro era comprido, amarrado às costas com uma tira de couro. Assim que entraram, Etain dispensou as criadas com um aceno
e se levantou para cumprimentá-los. Tomou as mãos de Brighid nas suas, e a caçadora sentiu uma onda de acolhimento e conforto passar pelo toque gentil da Alta Sacerdotisa.
- Sabia que se recuperaria e estaria mais forte do que antes - disse ela, estudando a caçadora com atenção. - E agora me deixe apresentá-la ao meu amado. - Deu um
passo para o lado e o centauro veio para perto dela. - Midhir, meu amor, esta é Brighid Dhianna, a caçadora de MacCallan.
Brighid levou o punho cerrado ao peito e se abaixou graciosamente numa profunda reverência de respeito que os centauros exibiam ao sumo xamã.
- Estava ansioso para conhecê-la, Brighid Dhianna. - A voz de Midhir era profunda e poderosa, lembrando muito a de Cuchulainn, assim como as linhas fortes e bonitas
do rosto e os ombros largos. - A morte da sua mãe foi um choque, e a perda de sua irmã, uma tragédia. - Então se voltou para o filho e o puxou para seu abraço. -
Faz muito tempo que não o vejo, meu filho. - Sorriu com tristeza para Cuchulainn. - Sua perda também foi grande. Sofri com sua dor e a fragmentação da sua alma -
e exulto agora que está inteiro novamente.
- Tem que agradecer a Brighid por isso - disse Cuchulainn, depois de retribuir o abraço caloroso do pai.
- Acho que antes de tudo terminar todos nós estaremos muito gratos a essa jovem caçadora - disse Midhir.
Brighid pensou que tudo terminar soava perturbadoramente fatídico.
- Que notícias tem da manada Dhianna? - perguntou Cuchulainn.
- Não são boas. Não soube de nada.
Elphame ofegou surpresa.
- Nada, papai?
O sumo xamã meneou a cabeça, o rosto tão soturno quanto a voz profunda: - Os Dhianna cortaram as linhas de comércio com Partholon, assim como as manadas Ulstan e
Medbhia. Sei que se reuniram bem na parte sudoeste da planície.
- As terras de inverno dos Dhianna.
- Sim, e não consigo notícias das atividades deles. Os sumos xamãs das manadas aparentemente se uniram e estão gastando um bocado de poder para manter suas atividades
secretas, embora não seja necessária muita conjectura para concluir que devem estar, no mínimo, se armando contra forasteiros. Tudo o que recebo do Outro Mundo são
imagens desconexas de raiva, morte, paranoia - tudo estranhamente envolto em fumaça e numa luz confusa na cor de fogo. - O grande xamã meneou a cabeça e parecia
visivelmente perturbado. - Fumaça e sombras... Não consigo nada mais claro que um vislumbre ocasional de um centauro solitário. - Midhir se calou e os olhos se arregalaram
num súbito entendimento. - Ele é um guerreiro jovem e dourado, que me lembra muito você, Brighid.
- É meu irmão, Bregon. - Brighid sentiu um enjoo no estômago.
- Sim, agora percebo. Ele é o ímpeto por trás das ações deles. - Os olhos gentis buscaram os de Brighid. - O que sua mãe começou, ele está tentando terminar.
- Pode me dizer se ele se tornou sumo xamã? - perguntou Brighid.
- Não sinto esse poder nele. Ainda não. Mas o sangue xamã corre grosso nas veias da sua manada.
- Papai, o que os mensageiros centauros dizem sobre a atividade da manada? - perguntou Elphame.
- Isso é o mais perturbador - disse Etain, enroscando o braço no do marido. - Não temos nenhuma notícia. Nenhum deles retornou da Planície dos Centauros.
- Várias caçadoras também deixaram seus postos, evitando a mim ou qualquer um dos meus guerreiros - disse Midhir com raiva.
O que ele deixou de dizer permaneceu suspenso no ar ao redor deles. Um centauro não mentiria para o Sumo Xamã de Partholon. Não importava a aliança do centauro,
o laço de respeito por Midhir não permitiria tal coisa. Estava óbvio que os centauros que estavam se juntando à revolta de Bregon estavam deixando Partholon criteriosamente
para que não fossem confrontados pelo Sumo Xamã de todos os centauros. E o fato de nenhum dos leais mensageiros de Midhir ter retornado da Planície dos Centauros
significava que estavam sendo mantidos lá contra vontade. Ou que tinham sido mortos.
Centauro contra centauro... Centauro contra humano... Eram nesses pensamentos apavorantes que a mente tumultuada de Brighid nadava. Isso era responsabilidade dela.
Era uma centaura Dhianna. Com a morte da mãe, a liderança da manada pesava em seus ombros, e o peso disso parecia pressionar sua alma. Não importava agora que tivesse
ansiado, e depois escolhido, outro caminho na vida. Brighid engoliu o gosto amargo do destino que subiu grosso na garganta.
- Midhir, me ajudaria a viajar ao Outro Mundo para beber do Cálice de Epona e assim me tornar uma sumo xamã? - perguntou com dureza.
Trinta e Seis
- ELE NÃO PODE. - A voz clara de Etain foi uma fagulha que chiou no silêncio que se seguiu ao pedido de Brighid.
- O que quer dizer com ele não pode? - perguntou Cuchulainn. - Um sumo xamã sempre guia outro na busca para encontrar o Cálice de Epona.
- Devia ter prestado mais atenção aos seus professores quando tentaram ensiná-lo sobre o Outro Mundo, meu filho - disse Midhir, dissolvendo a dureza das palavras
com um rápido sorriso.
- Mairearad devia ter guiado Brighid na jornada ao Outro Mundo - disse Etain.
- Mas minha mãe está morta.
- Ela ainda pode guiá-la - disse Etain com tranquilidade.
- Não! Não aceito a orientação dela. Não seria sem um preço, que seria muito custoso - para minha alma e também para a manada Dhianna.
- O guia espiritual deve ser alguém intimamente ligado a você, por sangue ou casamento - explicou Midhir. - Embora eu seja o Sumo Xamã de Partholon, não posso usurpar
essa posição.
- Terei que encontrar o cálice por conta própria - disse ela devagar. Ao falar as palavras, sentiu um arrepio de desespero com a perspectiva da provação perigosa
e solitária diante dela. - Meu irmão é o único parente de sangue que me restou, e é a posição dele que assumirei se me tornar sumo xamã. Ele não me ajudaria a tomá-la
dele. - Isso é impossível, falou Brighid consigo mesma. Tornar-me uma sumo xamã é bem difícil. Sozinha, terei pouca chance de sucesso. Mas não tenho escolha, e devo
me acostumar a ser sozinha. Se eu conseguir, retornarei a uma vida de solidão.
- Então seu guia deve ser seu consorte - disse Cuchulainn.
Todos os olhos se voltaram para o guerreiro, mas a atenção dele estava concentrada em Brighid.
- Admito que, como meu pai já disse, não prestava atenção nas minhas lições sobre o Outro Mundo. Todos sabem que nunca quis lidar com esse reino, mas parece que
meu destino segue nessa direção. Tentei rejeitá-lo - mas não pode ser rejeitado. Até fugi dele - não serei tolo de fazer isso de novo. Não posso guiá-la, mas o que
posso fazer é lhe dar minha promessa de que não deixarei que siga esse caminho misterioso sozinha. Minha força será sua, se precisar. Meu braço da espada sempre
se erguerá para protegê-la. Talvez juntos possamos concluir essa busca e reclamar seu direito de nascença.
Brighid mal podia acreditar no que estava ouvindo. Será que ele não tinha entendido que...?
- Mas você não é meu consorte! - proferiu ela.
- Serei se me aceitar.
Brighid meneou a cabeça, imaginando se todos conseguiam ouvir as batidas aflitas do seu coração.
- Não precisa fazer isso só para me ajudar. Não estou com medo de viajar ao Outro Mundo sozinha - mentiu. - Um casamento não é algo que se faz para ajudar um amigo
em necessidade.
O sorriso de Cuchulainn era íntimo e perspicaz. Ele deu um passo para junto dela e tomou-lhe a mão.
- Temos sido amigos. Porém, minha bela caçadora, nos tornamos muito mais. Minha alma me diz que estou disposto a me arriscar num casamento com você. O que sua alma
lhe diz?
Brighid meneou a cabeça.
- O que minha alma diz não é importante se eu não puder me tornar sumo xamã. Pense, Cuchulainn! Se eu não puder me transformar, você estaria preso a alguém que não
pode ser realmente sua esposa.
A mão dele apertou a dela, e mesmo que a pergunta seguinte fosse dirigida a Etain, o olhar de Cuchulainn não deixou o de Brighid.
- Mãe, se meu pai perdesse a habilidade de se transformar e nunca pudesse ir até você sob a forma humana novamente, ainda seria esposa dele?
- Claro. Não é a forma do seu pai que me prende a ele - respondeu Etain com firmeza.
- Mas eles tiveram anos juntos - disse Brighid. - Tiveram filhos e compartilharam a vida e a cama por décadas.
- Estou disposto a apostar que conseguiremos também - disse Cuchulainn.
- Está disposto a apostar sua vida e seu futuro?
- Estou, porque estou disposto a fazer algo que não me permiti fazer até agora - vou escutar meu próprio espírito. Estou cansado de fugir do meu destino. - Encolheu
os ombros e sorriu para ela. - Também acredito que você será uma excelente sumo xamã. Então, Brighid Dhianna, o que sua alma diz?
Ela olhou naqueles olhos turquesa e se sentiu perdida - e munida.
- Me diz que isso é um sonho impossível, mas um sonho que não quero que acabe.
O sorriso de Cuchulainn estava repleto de promessas. Beijou-a rápido e depois se virou, ficando num dos joelhos diante de Elphame.
- Elphame, como chefe do clã MacCallan peço sua permissão para tornar sua caçadora minha consorte. - Sorriu, e por um momento pareceu bastante o guerreiro libertino
de sua juventude. - Pediria permissão ao irmão dela, mas acredito que, considerando-se tudo, isso seria um tanto imprudente.
Em vez de retribuir o sorriso de Cuchulainn e automaticamente oferecer sua bênção, a expressão de Elphame ficou tensa e séria.
- Você mesmo disse, Cuchulainn. Evitou o Outro Mundo e o Reino dos Espíritos. Vai ajudar ou atrapalhar Brighid? Essa parceria guarda mais do que um vínculo vitalício.
Se este casamento for a escolha errada, toda Partholon sofrerá as ramificações. - Elphame olhou do irmão para a mãe. - Não posso dar minha permissão a Cuchulainn,
a menos que Epona aprove esta união. - Ela ignorou o resmungo de aborrecimento do irmão e também o afiado olhar questionador de Brighid, e continuou a suplicar a
Etain: - Pediria a bênção de Epona para eles? Se a Deusa a conceder, ficarei contente em dar minha permissão.
- Elphame, o que... - começou a dizer Cuchulainn, mas a mãe o interrompeu: - Você é uma chefe sábia e responsável, Elphame. Estou orgulhosa de você. - Etain chamou
com o dedo o filho carrancudo. - Venha. - E enquanto ele se colocava de pé, ela estendeu a mão para Brighid. - E você também, criança.
Sentindo o estômago apertar de nervoso, Brighid segurou a mão de Etain. Cuchulainn pegou a outra.
A Amada de Epona sorriu para eles.
- Vocês também devem se dar as mãos, para completar o círculo.
A carranca de Cuchulainn se suavizou quando entrelaçou os dedos com os de Brighid. Apertou-lhe a mão, que ela segurou com firmeza. Então a Alta Sacerdotisa ergueu
o rosto e invocou a presença da Deusa: Minha Epona, Deusa de estonteante beleza
para quem as estrelas são joias radiantes
e a terra teu sagrado monopólio,
tecelã de destinos
e protetora de tudo que é selvagem e livre.
Como sua escolhida, amada e tocada por ti,
pergunto agora se concedes
tua bênção sobre esta união.
Mostra-nos teu sinal, visão ou palavra,
tua sabedoria e tua vontade.
Imediatamente o ar acima do círculo formado pelas mãos dadas começou a rodopiar e cintilar. Duas formas se moldaram dento da claridade. Brighid ofegou ao reconhecer
o torso de Cuchulainn, nu e musculoso, brilhando com sua luz dourada. E então outro torso tomou forma na névoa de faíscas de diamante. Cintilava com uma brilhante
luz prateada. Era seu próprio corpo nu envolto pelos braços fortes de Cuchulainn. Quando os lábios das aparições se encontraram, Brighid foi preenchida pelo calor
líquido da paixão recém-despertada. Ouviu Cuchulainn respirar fundo, e soube que ele tinha sentido a união de seus espíritos também. Então o ar espiralou, girando
numa massa de faíscas luminosas antes que a visão se dissipasse com o som do vento encharcado de chuva.
Etain sorriu.
- Tem a bênção da Deusa, meu filho.
Cuchulainn ergueu e beijou com firmeza a mão de Brighid antes de quebrar o círculo, e voltou a se ajoelhar diante de Elphame.
- Agora, minha irmã, tenho sua permissão para tornar sua caçadora minha consorte?
Elphame sorriu para seu amado irmão.
- Com satisfação, Cuchulainn.
Cuchulainn ficou de pé e abraçou a irmã, erguendo-a e fazendo-a rir. Brighid ainda se sentia ruborizada pela visão hipnótica, e um bocado estupefata quando o Sumo
Xamã de Partholon e a Escolhida de Epona a parabenizaram calorosamente e lhe deram as boas-vindas à família.
- Mãe, nos daria a honra de conduzir nossa troca de votos? - perguntou Cuchulainn.
- Claro, meu querido. - Etain sorriu com carinho para o filho.
- Tem que ser hoje. - Brighid achou que a voz soou destoada e séria demais. Não que não quisesse celebrar, rir e se alegrar com a surpresa mágica e singular com
que Epona lhe presenteara, mas sua mente de caçadora estava bem ciente de que o caminho que ela e Cuchulainn deviam seguir seria difícil, e os rastros já estavam
ficando frios.
Cuchulainn voltou para junto dela e lhe tocou o rosto com gentileza.
- Então que seja hoje.
Brighid sorriu, grata por Cuchulainn parecer compreender - por não ficar contrariado com seus modos bruscos e nada românticos.
- E a pira de Niam precisa ser acesa - continuou Brighid.
- Sim, é como deve ser. Faremos do dia de hoje a celebração de uma vida que se encerra com honra e amor, e a do início de outra, enraizada no mesmo. É o ciclo da
Grande Deusa. A vida não pode existir sem a morte, uma não pode ser cumprida sem a outra - disse Etain com solenidade. - Mas, antes, vamos fazer nosso desjejum e
fortalecer nossos corpos para o dia que está por vir.
- Ao Grande Salão, então - disse Elphame.
O Grande Salão estava barulhento e lotado - quase transbordando com silhuetinhas aladas e o clã MacCallan. O ar estava espesso e doce com o cheiro do pão fresco
e do açúcar escuro e empelotado que as crianças já apreciavam acrescentar ao mingau matinal. Brighid parou à entrada arqueada. O salão parecia tão vivo, tão diferente
de como lhe parecera dois dias antes, quando a irmã dera seu último suspiro. Mas ainda podia ver Niam ali, caída sobre o banco longo e baixo para centauros, vomitando
sangue e dando seu aviso medonho.
Antes que as sombras do passado pudessem subjugá-la, uma criaturinha alada se destacou de uma mesa próxima e correu até ela.
- Brighid! - Embora o topo da cabeça não ultrapassasse seu peito equino, Liam a abraçou com uma força surpreendente.
Ela se curvou, bagunçou-lhe os cabelos, e lhe deu uns tapinhas nas costas.
- Ah, Brighid. - Liam inclinou a cabeça para olhar para ela. Os olhos estavam grandes e luminosos com as lágrimas que tentava bravamente conter. - Estava tão preocupado
com você! Queria vê-la, mas ninguém deixou.
- Estou bem agora. - Afagou a cabeça dele, pensando que os cabelos eram macios como a penugem de pato. - Só precisava descansar.
- Lamento por sua irmã. Curran e Nevin já começaram a nos contar histórias de como ela foi corajosa.
O coração de Brighid se apertou dolorosamente.
- Estão certos. Ela foi muito corajosa.
- Venha, Liam, pode se sentar conosco e contar tudo o que andou fazendo nos últimos dois dias. - Cuchulainn ergueu o menino sobre o lombo de Brighid, ganhando uma
olhada atravessada da prometida. Ele piscou para a caçadora, que bufou, e Liam se lançou numa explicação ofegante de todas as pegadas diferentes que tinha descoberto.
Conforme se encaminhava pelo Grande Salão até a mesa principal, Brighid foi detida várias vezes por palavras gentis e condolências sinceras. A primeira reação foi
de desconforto. Raramente acumulava tamanha atenção concentrada, mas ainda não estava na metade do salão quando se sentiu relaxar. Importavam-se com ela. Sua família,
o clã MacCallan, a rodeava com amor e preocupação. Brighid absorveu isso. Se lembraria daquilo para que mais tarde, quando estivesse longe dali, pudesse reviver
como era ser aceita e estar em paz.
Quando se juntaram a Lochlan e Ciara na mesa da chefe, Brighid ficou sentada bem quieta enquanto a vida se movia ao redor dela. Liam tagarelava sem cessar. Elphame
e Etain discutiam a cerimônia da lua cheia para qual faltavam alguns dias, e a Amada de Epona gentilmente incluiu Ciara na conversa. Cuchulainn estava conversando
com Lochlan sobre como expandir a caserna para as crianças, já que fora decidido que até se ter notícia de que o conflito com os centauros estava encerrado os neofomorianos
deveriam se abrigar dentro dos muros protetores do Castelo MacCallan.
Tudo era tão natural - tão normal. E Brighid não podia deixar de comparar aquilo com as refeições matinais que eram "normais" para ela antes de partir da Planície
dos Centauros. Mairearad Dhianna dispunha de uma mesa suntuosa, mas a qualidade da comida sempre empalidecia se comparada à intriga e os jogos de poder que cercavam
a sumo xamã. A mãe servia manipulação e agressão passiva como prato principal, e Brighid se lembrava claramente de como sempre ficava de guarda durante as refeições
quando a mãe estava presente. Quem seria o alvo de Mairearad? Seria um ataque aberto, ou seriam insinuações veladas e comentários aparentemente inofensivos que serviam
para cortar e destruir a vontade, a independência e a liberdade...
Brighid estava retornando a tudo aquilo. Pouco importaria que Mairearad tivesse partido. Depois de quase cinco décadas como Sumo Xamã dos Dhianna, seu fantasma não
abdicaria facilmente de seu domínio.
Sobressaltou-se um pouquinho quando Cuchulainn colocou a mão cálida na dela. Ele não interrompeu a conversa com Lochlan. Não fez qualquer encenação espalhafatosa
de intimidade com a orgulhosa caçadora. Ninguém sabia que as mãos deles estavam unidas e que o toque dele a aquecia.
O guerreiro a compreendia.
Como isso aconteceu? Parece que estou num mundo afastado dos meus primórdios, porém, de alguma forma, aqui, com este homem, encontrei meus verdadeiros lar e família.
Por favor, não me deixe perder isso, Epona.
Tinham encontrado um lugar bonito para a pira funerária de Niam. O enorme monte de lenha de pinheiro fora erguido numa nesga de terra situada na área mais ao sul
das terras do castelo. Sobressaía como um dedo esguio sobre o oceano torvelinhante lá embaixo, como se a pira de Niam devesse ser um facho para embarcações perdidas.
O corpo da centaura estava no topo do monte, e fora envolto numa pesada mortalha bordada com intricados nós de poder, como seria feito com o corpo de um guerreiro.
Brighid se aproximou da pira com Cuchulainn e Elphame a flanqueá-la. Etain, Midhir e Lochlan já estavam presentes, parados perto do monte. A Amada de Epona segurava
uma tocha flamejante numa das mãos. Como parente mais próxima de Niam, o acendimento da pira era responsabilidade de Brighid, mas em vez de tomar a tocha de Etain,
ela se virou para o grupo que se reunira ao redor deles. O clã MacCallan se estendia diante dela. Humanos e centauros, todos bem-vestidos, e a manhã morna e sem
nuvens estava viva com o lima brilhante e o azul-safira do tartã MacCallan. Espalhadas entre os membros do clã estavam as silhuetinhas aladas respeitosamente silenciosas
com seus olhos grandes focados na caçadora. Ela vasculhou a multidão até encontrar os gêmeos contadores de histórias. Quando falou, a voz estava forte e clara: -
O nome dela era Niam Dhianna. A beleza era seu escudo. Assim se manteve a salvo das manipulações e da intriga, escondendo-se até ser necessária. Só gostaria de ter
possuído sabedoria para ver além de seu ardil, e gostaria que seu corpo fosse tão forte quanto seu coração era valente. Peço que se lembrem dela comigo. Não deixem
que a história dela morra com seu corpo. - Nevin e Curran curvaram a cabeça em reconhecimento, e Brighid se calou, respirando fundo para se acalmar. Quando ergueu
novamente a cabeça, seus olhos encontraram facilmente a xamã alada. - Ciara, peço que fique junto de mim na pira da minha irmã.
A xamã pareceu surpresa, mas foi rápido para junto de Brighid.
- Sua afinidade é com o espírito do fogo, e você carrega consigo a centelha da Deusa Encarnada Terpsícore. Niam amava a beleza e a dança. Mas a escolhi para chamar
o espírito do fogo e libertar o corpo dela desta Terra não apenas por causa da beleza exterior que você e sua avó representam. Pelo pouco tempo que a conheço, aprendi
a apreciar sua habilidade de enxergar dentro da alma das pessoas. Se eu tivesse aprendido essa habilidade tão bem como você, talvez tivesse compreendido o valor
de Niam antes de perdê-la. Então peço que use o espírito das chamas para acender a pira da minha irmã.
- Eu aceito, Brighid Dhianna. Você me dá uma grande honra.
Em silêncio, o grupo se afastou com Brighid da pira, deixando a xamã alada sozinha. Ciara se virou para o sul, encarando a pira. Curvou a cabeça, obviamente se concentrando.
Então com a graça de uma dançarina, aproximou-se do monte com movimentos lentos e elegantes que fluíam suavemente como água sobre pedregulhos. O longo cabelo escuro
rodopiava ao redor dela, como se uma cortina se partindo para permitir acesso a outro reino. Enquanto falava, ela traçava padrões delicados com as mãos, acendendo
fagulhinhas brilhantes no ar ao redor: Ó Epona, eu te invoco,
Deusa de tudo que é selvagem e livre,
mas hoje é à formosa e nebulosa Deusa da Lua Decaída
a quem me dirijo.
Forte e pesarosa, Deusa dos Reinos Distantes,
esteja conosco neste momento de perda.
A voz da xamã alada era hipnótica - uma perfeita mistura de música e magia: Há tempo para a vida
e tempo para a morte.
Tua terra de verão é morna, agradável e bela,
com todos os males ausentes e a juventude renovada.
Jubiloso é caminhar com a Deusa nos seus campos de trevos.
Então nos permita exultar, pois Niam repousa no seio de Epona,
segura, feliz, repleta.
Ela dançava cada vez mais perto da pira. Erguendo as mãos acima da cabeça, as asas escuras começaram a se abrir, estendendo-se em volta dela como um véu vivo.
Ó espírito do fogo,
concede o alívio da dor.
Com tua chama purificadora,
cura aqueles que permanecem nesse reino,
apressa e purifica a alma desta
que nos é amada
no belo reino da nossa Deusa.
Eu te invoco...
Acenda-se!
Das palmas de Ciara choveram faíscas prateadas, colocando a pira em chamas com uma gloriosa luz branca que fez Brighid proteger os olhos por causa da luminosidade.
Exclamações de assombro soaram da multidão que observava o fogo arder alto e brilhante. Quando o corpo de Niam foi consumido, Brighid sentiu o calor reparador que
se irradiou da pira. Afastou o abatimento daquele lugar triste dentro de sua alma que andava tão escuro e frio desde que o corvo tinha berrado com ela usando a voz
da mãe agonizante.
Olhou para Cuchulainn. Ele tirou os olhos das chamas para encontrar os dela.
- Já honramos a morte. Está pronto para dar o próximo passo comigo e honrar a vida? - perguntou ela ao guerreiro.
- Já me basta de morte, minha bela caçadora. - Baixou a voz para que as palavras só chegassem aos ouvidos dela: - Estou mais do que pronto para honrar a vida.
A expressão tensa de Brighid suavizou um pouquinho.
- Obrigada, Cuchulainn. - Ela olhou para Etain, mas como de costume com a Amada de Epona, poucas palavras bastavam para que entendesse.
- Querem que seja aqui e agora - disse Etain.
- Queremos - assentiu Brighid.
- Então que assim seja. - Etain se adiantou, substituindo Ciara diante do fogo ardente. No instante em que a Amada de Epona ergueu uma das mãos esguias, a multidão
ficou absolutamente silenciosa.
- Hoje a morte foi purificada com chamas e orações. Agora celebraremos o ciclo completo da vida através da pureza desse sagrado ritual de casamento. Cuchulainn e
Brighid, por favor, se apresentem.
A multidão se agitou num farfalhar surpreso quando o guerreiro e a caçadora se juntaram a Etain.
Etain sorriu. Falou diretamente aos dois, mas projetou a voz para que se espalhasse pelas terras do castelo: - Vocês começam uma longa jornada hoje. De certa forma,
é uma jornada familiar e antiga - a união de duas pessoas que se amam e se comprometem um ao outro. E, de certa forma, vocês começam a busca por algo totalmente
novo e único - um amor que se constrói mais em espírito que em corpo, que depende tanto da coragem quanto da cooperação do Outro Mundo para a consumação. - O sorriso
aumentou e aqueceu. - Já sabem que contam com a bênção de Epona. Saibam que possuem a minha também.
Etain assentiu ao filho, que se virou para encarar Brighid. Cuchulainn estendeu as mãos para ela, que sem hesitação pressionou as palmas nas dele. Os olhares se
encontraram e sustentaram.
- Eu, Cuchulainn MacCallan, aceito você, Brighid Dhianna, em casamento neste dia. Admito protegê-la do fogo mesmo que o sol desabe, da água mesmo que o mar se enfureça,
e da terra mesmo que estremeça em desordem. E honrarei seu nome como se fosse o meu. - A voz profunda soou forte e verdadeira.
- Eu, Brighid Dhianna, aceito você, Cuchulainn MacCallan, em casamento neste dia - começou a dizer Brighid, interrogando-se do fato de sua voz soar tão calma quando
tudo dentro dela tremia. - Admito que nem fogo ou chama nos afastará, nem lago ou mar nos afogará, e que nenhuma montanha nos separará. E honrarei seu nome como
se fosse o meu.
- E assim foi dito - disse Cuchulainn.
- E assim será feito - falou Brighid as palavras que completavam o ritual.
Cuchulainn a puxou com delicadeza pelas mãos para que ela ficasse um passo mais perto dele. Antes que os lábios se encontrassem, ele murmurou: - Agora estamos realmente
nessa juntos, minha bela caçadora.
A aclamação jovial que ecoou quando se beijaram fez com que se assustassem e se separassem. Todas as crianças aladas estavam gritando, batendo palmas e pulando com
muito farfalhar de asas e acenos de mão.
- Crianças... - suspirou Brighid e meneou a cabeça, embora não pudesse evitar o sorriso no rosto. - Nunca conseguem ficar quietas.
- Não é verdade? - disse Cuchulainn, unindo a mão à dela outra vez.
Trinta e Sete
O CLÃ MACCALLAN definitivamente não estava tão entusiasmado com relação ao casamento quanto as crianças. Não foram rudes. Não se afastaram do novo casal - deram
as felicitações devidas. Faziam os sons e movimentos certos, mas Brighid notou que poucos membros do clã realmente a olhavam nos olhos. Era a única fêmea da espécie
entre os MacCallan, mas vários centauros tinham se unido ao clã. Nenhum deles falou com ela, embora tivesse notado que Cuchulainn se aproximou de cada um, que felicitaram
o guerreiro - mas com pouco entusiasmo.
E assim começa. Acostume-se. Vai ser muito pior com a manada.
Estremeceu, sem querer pensar tão adiante assim. A noite que estava por vir já era bem amedrontadora.
Deixou-se levar para longe do grupinho que se reuniu ao redor de Cuchulainn: a irmã, os pais e Lochlan. Foi bem fácil escapulir. Afinal, poucos humanos estavam falando
com ela. Andando com passos pesados, foi se postar diante da pira ainda ardente da irmã.
Deusa, no que fui me meter?
- Está muito quieta - comentou Cuchulainn.
Brighid lhe deu uma olhada culpada, sem saber o que dizer - ou o que não dizer.
- Me conte - pediu ele. - Sempre fomos honestos um com o outro. - O sorriso foi rápido e encantador. - Mesmo quando não gostávamos muito um do outro.
- A única razão para não gostar de você era porque você era arrogante demais - contou-lhe Brighid.
- Eu? - Cuchulainn apontou o peito numa inocência zombeteira. - Acho que me confundiu com minha irmã.
Brighid bufou, mas sorriu para ele.
O guerreiro, que era agora seu marido, tomou-lhe a mão.
- Me conte o que está pensando.
- Estou imaginando no que me meti - revelou ela.
Cuchulainn riu.
- Sei exatamente o que quer dizer.
Ela franziu o cenho.
- Lamenta o que fizemos?
A risada imediatamente cessou.
- Não, Brighid. Não lamento.
Ela suspirou e olhou para as mãos dadas de ambos.
- O clã não aprova.
- Acho que o clã está mais surpreso do que expressando desaprovação. Fizemos algo que nunca foi feito antes. O único centauro e humano que já se casaram foram o
Sumo Xamã e a Amada de Epona. As pessoas - e os centauros - precisarão de tempo para se acostumarem conosco.
- Caso um dia se acostumem.
- Ficaria muito aborrecida se algumas pessoas nunca nos aprovassem?
- Sim. Mais do que imaginei. Comecei a pensar no Castelo MacCallan como meu lar, e descobri que me aborrece muito pensar em ser rejeitada novamente.
- Só estão surpresos, talvez até chocados. Acho que acabarão por se acostumar conosco. Vai ver.
- Isso é parte do problema - disse ela. - Não terei tempo para ver.
- Devemos partir em breve?
Brighid respirou fundo.
- Hoje.
Cuchulainn abriu a boca, depois a fechou. Ela o viu cerrar o queixo, mas em vez de discutir, ele apenas assentiu.
- Eu preciso - nós precisamos - corrigiu ela diante do olhar incisivo de Cuchulainn. - Não sei o quanto você sabe sobre a busca pelo Cálice do Sumo Xamã... - Brighid
se calou. Cuchulainn parecia desconfortável. Ele correu os dedos pelo cabelo e deu um curto bufo de irritação.
- Não sei nada sobre isso. Durante toda a vida me concentrei em dominar coisas que pudesse ver... sentir... vencer com a força do meu corpo ou da minha espada. É
uma frustrante ironia que agora toda minha árdua perícia pareça não ter serventia nenhuma.
- Exceto por compreender os espíritos dos animais, eu também evitei o Outro Mundo. Assim como o resgate de alma, sei pouco mais do que você sobre os assuntos do
reino espiritual. O Outro Mundo sempre me significou minha mãe - e passei a vida evitando o domínio dela, então o evitei também. Mas sei um pouco sobre a Busca do
Sumo Xamã porque ela pretendia que eu bebesse do cálice. Ela me instruiu, provavelmente pensando que poderia me tentar com a sedução do poder. Mas fracassou. Nunca
tocaria o cálice segundo os termos da minha mãe.
- Vai beber do cálice, Brighid. Mas será segundo seus próprios termos - disse Cuchulainn.
O olhar de Brighid voltou para a pira funerária da irmã.
- Usarei o que minha mãe me contou, mas farei como no resgate da sua alma - tentarei pensar que isso é uma caçada.
- Vamos rastrear o Cálice?
- Tentaremos - disse ela. - Mas não podemos começar daqui. A Busca do Sumo Xamã é três terços espírito, um terço corpo. Devemos nos afastar do castelo para ficarmos
fisicamente separados deste mundo e dos problemas daqueles que o povoam: homens, centauros e fomorianos, sejam novos ou não. Assim que estivermos mais isolados,
entrar no Outro Mundo será... - os lábios se retorceram no que ela sabia ser a paródia de um sorriso enquanto encarava a pilha de lenha de pinheiro queimada - ...
bom, não direi que será mais fácil, mas ao menos se nos separarmos de tudo o Outro Mundo talvez nos fique mais disponível.
- Acho que faz sentido - disse Cuchulainn. - E quer começar hoje?
- Não quero! - berrou ela, depois tomou maior controle das emoções. - Não quero - repetiu com mais calma. - Mas não consigo pensar em nada senão em acompanhar a
maré dos eventos até o final, e me parece que a maré está vindo numa inundação iminente. Durante todo o tempo que minha mãe esteve ferida e agonizando, meu irmão
deve ter procurado pelo cálice, provavelmente com certo auxílio e orientação dela. Ele conta com muitos dias de avanço, e com a ajuda de uma sumo xamã. Temos que
alcançá-lo.
- Também temos a bênção de Epona. Duvido que ele tenha - disse Cuchulainn.
- Ter a bênção da Deusa não significa que receberei o cálice antes de Bregon, isso se eu o receber.
- Temos que alcançá-lo - concordou Cuchulainn com dureza. - Partimos hoje.
- Cuchulainn - disse ela quando ele começou a se afastar, detendo-o. - Se houvesse outra maneira, sabe que eu a acataria. Este lugar... este clã... tem sido mais
do que um lar na minha vida.
- E sempre será um lar para nós. Elphame vai garantir isso.
- Mas não poderei viver aqui, não se eu me tornar a Sumo Xamã dos Dhianna. Terei que ficar com a manada, ao menos até as coisas se assentarem. E mesmo depois. Uma
sumo xamã não deixa a manada por muito tempo.
- Sabia disso quando me casei com você, Brighid - disse Cuchulainn.
- E está disposto a deixar seu lar por mim?
- Não penso nisso como deixar meu lar por você. Penso nisso como construir um segundo lar com você. - Ele sorriu e levou-lhe a mão aos lábios. - E retornaremos ao
Castelo MacCallan, nem que seja para deixar nossos filhos brincarem com os primos.
Brighid sentiu uma excitação nervosa com essas palavras.
- Você é seguro demais de si mesmo.
Cuchulainn sorriu.
- Sou mesmo, mas sou ainda mais seguro de você, minha bela caçadora.
Nos olhos dele, Brighid viu a verdade nas palavras ditas. Podia ficar dependente da confiança, fé e honestidade dele. Antes que pudesse parar para se convencer a
desistir, deu-lhe um beijo rápido, sendo recompensada com seu sorriso radiante.
- Não fique tão convencido. Farei com que conte a El que estamos de partida - disse Brighid, tentando esconder como o toque dele a deixava ofegante.
O sorriso de Cuchulainn não titubeou.
- Excelente ideia. E enquanto faço isso, vá contando o mesmo a Liam. - Ele lhe beijou a mão outra vez, então saiu andando na direção da irmã.
Brighid vasculhou o terreno do castelo. Liam estava ao lado do artífice Danann, conversando com exclamações animadas com o velho e paciente centauro.
- Maldição... - murmurou. Endireitando os ombros, encaminhou-se até o menino. Acabaria logo com isso. Rápido. Não havia razão para adiar.
- ... E então vi a mancha vermelha brilhante que era cheia de raiva e soube que era o javali, e Brighid me contou que eu tinha acertado que era mesmo um javali porque
cheirava a lama e raiva, e então ela... - Ele interrompeu o recital interminável quando viu sua caçadora. - Brighid! Brighid! Eu estava contando ao Danann sobre
o javali e como rastreei o cheiro dele, e ele falou que eu fiz mesmo um bom trabalho, e então eu estava dizendo que...
A mão erguida de Brighid encerrou a tagarelice, graças à Deusa.
- Com licença, Danann, mas preciso conversar em particular com meu aprendiz.
O velho centauro sorriu com indulgência para o menino.
- Eu me curvo à sua mestra, criança. - Então voltou o sorriso para Brighid. - E ainda tenho que felicitá-la, caçadora. Cuchulainn é um guerreiro poderoso e um bom
homem. Meu desejo é que vocês dois tenham muitos anos de felicidade juntos.
- O-obrigada! - gaguejou Brighid, pega de surpresa pela gentileza do velho artífice.
Ele se curvou respeitosamente e a deixou sozinha com o menino.
- Estou tão contente que tenha se casado com Cuchulainn! - chilreou Liam. - Ele é muito forte e honrado, e acho que pode ser quase tão bom no arco quanto você.
Brighid ergueu uma sobrancelha.
- Quase tão bom no arco quanto eu?
Liam sorriu com travessura.
- Bom, quase. Mas ninguém é tão bom quanto você, mestra!
Ele era simplesmente adorável. Pela Deusa, não queria deixar o menino! Queria ainda menos magoá-lo.
- Um dia você será tão bom quanto eu, Liam.
O rosto do menino se iluminou de alegria.
- Acha mesmo?
- Acho - afirmou solenemente. - Mas, antes, você tem muito a aprender, e muitas dificuldades a enfrentar.
- Vou me esforçar. Eu prometo.
- Sei que vai, Liam. Já estou orgulhosa da caçadora que se tornou. - Enquanto o menino saltitava e sorria com o elogio, Brighid percebeu que não eram palavras vazias.
O menino possuía um dom. Não, óbvio que não era um centauro, mas se queria se intitular uma caçadora, que mal havia nisso? Podia aprender as habilidades da caça.
Ficaria orgulhosa de reclamar como sua uma criança tão corajosa e leal.
Mas não estava ali para elogiá-lo. Estava ali para contar que estava de partida.
- Liam, você sabe que minha irmã morreu me trazendo notícias.
Ele cessou com os pulinhos diante do tom sério de Brighid e assentiu: - Sim, sei disso.
- A notícia que ela trouxe não era boa. Minha mãe está morta.
- Oh! Lamento, Brighid - disse o menino, piscando depressa os olhos.
Ah, Deusa! Por favor, nada de choro, pensou, e prosseguiu apressada: - A morte da minha mãe causou vários problemas na minha manada. Sou a filha mais velha, e minha
mãe era nossa sumo xamã. Sabe o que isso significa?
Liam enrugou a testa, pensando.
- Que deveria ser a próxima sumo xamã?
- Sim.
- Mas não pode! Você é uma caçadora!
- Eu sei. Nunca quis ser sumo xamã. Foi por isso que deixei minha manada. Nunca quis ser nada além de caçadora. - Brighid sorriu com carinho. - Assim como você.
Mas às vezes não temos exatamente o que queremos.
Liam começou a balançar a cabeça de um lado para outro, e Brighid se curvou para abarcar aqueles ombrinhos com as mãos.
- Tenho que ir à Planície dos Centauros e colocar as coisas em ordem. Tenho que assumir o lugar da minha mãe, senão coisas terríveis vão acontecer.
- Vou com você!
Brighid apertou os ombros dele, sentindo o corpinho tremendo sob suas mãos.
- Não pode.
- Mas não quero ficar longe de você - murmurou ele, tentando desesperadamente não chorar.
Brighid sentiu o peito ficar quente e pesado. Não era mãe, não sabia o que dizer para minimizar a mágoa. Nunca tinha sido confortada pela própria mãe. Como poderia
lidar com isso? Seria melhor se agisse de forma sucinta, ou zangada. Talvez assim Liam não ficasse tão triste sem ela.
Não. Aquilo soava com o que Mairearad Dhianna faria com uma criança: usar a raiva em vez de enfrentar a dor do amor. Brighid não seria como a mãe. Não repetiria
os erros dela.
Tocou o rosto do menino com carinho.
- Também não quero ficar longe de você, Liam. E faço agora uma promessa. Quando eu colocar a manada Dhianna em ordem, mando buscá-lo. Sempre terá um lar comigo.
Uma lagrimazinha escorreu e correu pela face dele.
- Mas então o que faço até lá?
- Se sua mestra permitir, ficaríamos honrados com sua companhia no Templo de Epona - disse Etain.
Brighid ergueu os olhos e viu Etain e Midhir se aproximarem. A Deusa Encarnada se agachou ao lado do menino e passou a mão macia pelo rosto, secando-lhe a lágrima.
- Temos uma caçadora lá também - disse Etain.
- Mas talvez ela não ache que eu possa ser caçadora. Talvez pense que sou apenas um menino com asas - disse Liam, mordendo o lábio ao tentar conter o choro.
- Você é aprendiz da caçadora de MacCallan. - A voz profunda de Midhir retumbou acima do menino. - Se alguém questionar seu direito a seguir o caminho de caçadora,
terá que questionar a mim.
Liam encarou o imponente centauro, os olhos arregalados dizendo claramente que duvidava que alguém sequer ousasse questionar Midhir. Então seu olhar procurou Brighid
outra vez.
- Farei o que minha mestra quiser que eu faça - respondeu ele, e a voz só tremeu um pouquinho.
- Acho que ficar no Templo de Epona é uma ideia excelente - disse Brighid. - Moira, a caçadora-chefe de Partholon, está lá. - Brighid olhou Midhir de relance, que
assentiu encorajador. - Garanto que ela vai ajudá-lo a estudar rastreamento até eu chamá-lo. - Então Brighid bagunçou os cabelos do menino. - E lembre-se, o Templo
de Epona faz fronteira com a Planície dos Centauros.
- Então não ficaremos muito longe?
- Não. Não ficaremos muito longe.
Brighid apertou com firmeza a mão do menino, e juntos ele começaram a retornar ao castelo.
Trinta e Oito
BRIGHID QUERIA PEGAR a estrada antes do meio-dia, mas o sol estava começando seu caminho pela parte oeste do céu quando finalmente deixaram o Castelo MacCallan.
Tomaram a estrada larga e recém-restaurada que levava do portão frontal a Loth Tor, a aldeiazinha aninhada na base do platô. Ela e Cuchulainn a princípio falaram
pouco. Brighid estabeleceu o ritmo. Cuchulainn cavalgava ao lado dela em seu grande capão, guiando uma montaria extra, que substituiria seu cavalo quando cansasse,
o que inevitavelmente aconteceria. Nenhum cavalo normal manteria o ritmo com a caçadora por muito tempo. E a estrada que tinham iniciado seria longa e cansativa.
Cuchulainn deixou Brighid seguir um pouquinho à frente, embora mantivesse o capão bem próximo da centaura. Tinha sido difícil deixar o Castelo MacCallan. Não como
da última vez, quando estava despedaçado por causa da morte de Brenna de tal modo que só seguia os movimentos da vida. Era uma ironia que dessa vez sua alma estivesse
curada e que fosse recém-casado, mas a partida fora muito mais torturante. A irmã estava estoica. Não houve choradeira. El não tentou convencê-los a ficar mais uma
noite - compreendia a necessidade de se apressarem. Mas nos olhos dela Cuchulainn tinha visto a tristeza que perdê-lo novamente tão cedo causava. Compreendia aquilo;
sentia o mesmo. Etain tinha sido, claro, amorosa e lhes dera a bênção de Epona. Fora ideia de seu pai levar o cavalo extra para que Brighid não tivesse que reduzir
o passo. Também tinha sugerido o destino inicial - os Outeiros Azuis.
- Tem razão! Não teria pensado nisso, mas é uma entrada física natural para o Mundo Inferior - dissera Brighid, com mais animação do que demonstrara desde que tinham
se separado na pira da irmã.
O pai dele tinha assentido e dado nela o que Cuchulainn chamava de olhada xamã - uma olhada séria e também gentil.
- Mas tome cuidado, Brighid. Não vai encontrar o cálice no Mundo Inferior. Estará num nível superior do reino espiritual.
- Mas todos os reinos espirituais estão interligados - dissera a caçadora.
Midhir assentira novamente.
- Estão. Só lembre que... - A voz sumira e Midhir suspirara frustrado ao conter o impulso de auxiliar a centaura. - Não devo dizer mais nada, apesar de querer lhe
dar mais orientação.
- Compreendo - logo lhe assegurara Brighid. - Eu... - Ela hesitou um momento antes de acrescentar: - Cuchulainn e eu devemos descobrir nosso próprio caminho. Mas
isso ajuda muito. Nos dá uma direção clara na qual viajar, em vez de apenas rumarmos para a planície e rezarmos para de alguma forma encontrar o cálice ao longo
do caminho. Eu agradeço.
Cuchulainn franziu a testa ao pensar novamente na partida deles. Era dolorosamente óbvio que Brighid estava mantendo as emoções sob forte controle. Ela e a irmã
só tinham sussurrado algumas poucas palavras de despedida uma à outra e se abraçado. Brighid mal falara com Etain. Mas tinha visto o olhar sofrido no belo rosto
da esposa quando finalmente saíram do castelo. O corpo geralmente gracioso se movia com rigidez, como se os cascos estivessem atolados em lama.
Passaram pela aldeiazinha de Loth Tor, mal hesitando para retribuírem as saudações dadas, e então a caçadora entrou num galope vertiginoso que obrigou Cuchulainn
a se firmar bem na sela e se concentrar em persuadir o capão a acompanhar. Aborrecido, percebeu que Elphame estava certa ao insistir para que Fand fosse deixada
no Castelo MacCallan. Sentiria falta da filhote. Ela se tornara parte dele nas últimas luas. A presença dela era acolhedora e familiar, mas a loba tinha se afeiçoado
bastante às crianças híbridas, especialmente à menininha Kyna, então Cuchulainn estava bem seguro de que mesmo depois que a desamarrassem a filhote uivante permaneceria
no castelo. Ao menos esperava que ela não tentasse segui-los. Fand não os alcançaria - ou se alcançasse, não havia como a jovem loba manter o ritmo cansativo que
a caçadora estava impondo. Era um passo que deveria cortar o tempo de chegada aos Outeiros Azuis em pelo menos um dia inteiro. Também era um ritmo que não possibilitava
conversa, e Cuchulainn imaginava se isso não seria em parte o motivo para Brighid o ter escolhido.
Tinha se casado com ela. Era sua esposa - sua consorte. Se tivessem mantido a cerimônia particular, apenas entre os dois, e simplesmente pronunciassem as palavras
perante Epona, a união seria legalmente válida pelo prazo de um ano. Mas ele rejeitou essa condição quando pediu que o ritual fosse testemunhado por sua mãe. Casamentos
presididos pela Alta Sacerdotisa de Partholon eram uniões vitalícias. Claro que duas pessoas não eram obrigadas a ficar juntas caso uma delas, ou ambas, desejasse
realmente se separar do outro, mas o rompimento do compromisso vitalício era raro.
Observou a bela caçadora aumentando o passo. No que Brighid estava pensando? Só a ideia de perder a irmã e a mãe no espaço de um dia o arrepiava até os ossos. Deveria
tentar conversar com ela sobre isso? Pensou em como se sentiu depois que Brenna foi morta. Tinha se recusado a falar dela. Tinha fugido das recordações dela. Mas
também estivera dilacerado... despedaçado. Brighid estava inteira. Então não precisaria desabafar? Recordar?
Seus pensamentos tinham eclipsado tanto a concentração que a mente de Cuchulainn não registrou o escurecer do céu ou a redução no ritmo de Brighid até o capão trocar
o galope inalterável por um trote chacoalhante. Reorientando-se, Cuchulainn instigou seu grande cavalo a emparelhar com a esposa.
Brighid o olhou de relance.
- Já está quase escuro. Pensei que poderíamos começar a procurar um lugar para acampar. - Ela hesitou, sem se fixar no olhar questionador de Cuchulainn. - Ou podemos
simplesmente reduzir nosso ritmo e seguir em frente. A estrada é ampla e bem demarcada. Talvez encontremos uma aldeia. Vim da Planície dos Centauros por esta estrada,
mas minha viagem foi... - Os olhos dela se estreitaram numa recordação dolorosa. Não se permitira pensar na fuga acelerada de sua antiga vida. Direcionara-se rumo
à promessa de um futuro e não deixou nada interferir no seu caminho. Agora estava seguindo para um novo futuro, só que esse estava mais cheio de dor e perigo do
que de promessa e contentamento.
- Tudo bem, Brighid.
A voz profunda de Cuchulainn soava tão normal, tão corriqueira, tão contraditória ao que estava acontecendo dentro da cabeça dela. Ele era apenas um homem, falando
com uma mulher. Não um guerreiro humano num casamento bizarro com uma centaura caçadora. Não um homem acompanhando sua companheira numa busca fútil que poderia carregá-los
às cegas para águas mais profundas caso fosse bem-sucedida, ou que os deixaria encalhados em frangalhos nas águas rasas do fracasso caso malsucedida. Era apenas
um homem - o homem que se importava com ela e a aceitava. Isso a acalmou e ancorou suas emoções aflitivas. Talvez não devesse - talvez estivesse sendo tola -, mas
aquilo ajudava.
- Brighid - repetiu ele. - Podemos continuar viajando. A lua está quase cheia e vai ser fácil seguir pela estrada depois que ela se erguer. Mas o dia foi longo.
- Ele sorriu. - Honestamente, prefiro acampar e recomeçar descansado ao amanhecer.
Ela retribuiu o sorriso com gratidão, sentindo o gelo que estava mantendo suas emoções contidas durante todo o dia começar a derreter.
- Sabe se existe alguma aldeia nos arredores?
- Em grande parte, não existe nada até o Castelo McNamara que não seja vinhedos e florestas. - Cuchulainn ergueu o queixo para a direita da estrada. - Podemos subir
até o topo do platô. Ainda deve ser relvado lá em cima, um lugar decente para acampar.
- Vá na frente - disse Brighid, aliviada por poder segui-lo descuidadamente pelo menos um pouquinho.
Desacelerando consideravelmente, Cuchulainn guiou o capão por uma brecha nas árvores que delimitavam a estrada. Quase imediatamente o terreno começou a inclinar,
angulando cada vez mais para cima até finalmente saírem da dispersão de carvalhos e pinheiros no platô que por fim abria espaço para penhascos imponentes sobre o
Mar de B'an. O sol já tinha se posto, mas o horizonte no oceano ainda estava manchado com as cores queimadas deixadas pelo sol poente. Por um momento apenas ficaram
parados observando o fim de outro dia. Então Cuchulainn desmontou e jogou as rédeas da montaria extra para Brighid.
- Eu recolho lenha se você desempacotar os suprimentos. Acho que não precisamos erguer a tenda hoje. O céu parece claro e está bem quente.
Antes que Brighid pudesse responder, Cuchulainn e o capão amarelo desapareceram em meio às árvores. Ao menos desempacotar e armar um acampamento temporário a manteria
ocupada. Ela estava faminta. Quando tinha comido pela última vez? Naquela manhã, antes de acender a pira de Niam e se casar com Cuchulainn. Tudo aquilo tinha acontecido
só naquela manhã?
Ah, Deusa. Brighid parou de repente no meio do ato de desatar um pacote. Esta é a noite do meu casamento. Os pensamentos deixaram seus dedos lentos e desajeitados.
Respire, só respire. Ela soltou o último pacote e deu na égua um afago rápido e superficial antes de amarrá-la, depois começou a puxar os suprimentos dos pacotes,
agradecendo Etain em silêncio quando descobriu os generosos odres de saboroso vinho tinto.
Estava tomando um longo gole de um dos odres quando Cuchulainn largou um carregamento de galhos secos perto dela.
- Já fiz você começar a beber, e ainda nem temos um dia inteiro de casados - disse ele, sorrindo maroto.
- Só estou com sede - disse ela.
A risada dele foi quase um rosnado.
- Quer um pouco? - perguntou ela.
- Com certeza - assim que eu tirar a sela do capão e acomodá-lo. Acho que estou com sede também. - Sorriu para ela e conduziu o capão até o local onde a égua já
estava pastando.
Nervosa e desconfortável, Brighid se ocupou montando a fogueira. Quando Cuchulainn voltou, ela já estava com fatias grossas de carne de porco fritando e pão e queijo
dispostos sobre um cobertor.
- Pela Deusa, o cheiro é bom!
Brighid se obrigou a relaxar e sorrir para ele.
- Não acreditaria nos mantimentos embrulhados nesses pacotes. Não precisarei caçar por dias.
- Coisa da Wynne - disse Cuchulainn.
- Não o vinho. - Brighid lhe jogou o odre. - Isso parece ser toque da sua mãe.
Cuchulainn destampou o odre e bebeu. Então suspirou de prazer: - Que Epona abençoe minha mãe pelo amor ao bom vinho.
- E sua disposição em compartilhar.
Cuchulainn grunhiu em concordância antes de tomar outro gole. Então suspirou e se reclinou perto da caçadora. Em pouco tempo, ambos estavam colocando carne de porco
quente no pão e apreciando o sabor acentuado do queijo envelhecido. Cuchulainn estava quase terminando sua terceira porção, sentindo-se relaxado e repleto, quando
deu uma meia-risada de recordação.
- Esses sanduíches sempre me lembram El.
- El? Por quê? - perguntou Brighid, limpando a boca com outro longo gole no vinho delicioso.
- Bom, ela era uma solitária - gostava de sair sozinha, especialmente nos anos antes de estudar no Templo da Musa. Mamãe não a restringia, deixava que explorasse
o mundo, até permitiu que chegasse às margens do Pântano Ufasach, sob uma única condição.
- Que você a acompanhasse?
Cuchulainn sorriu.
- Adivinhou. - Ele ergueu o pequeno pedaço que era tudo o que sobrava de seu último sanduíche. - Este era o favorito dela sempre que acampávamos. Acho que foi atrás
de Wynne para garantir que fosse incluído nos nossos suprimentos.
- Gentileza dela pensar nisso - disse Brighid.
- Ela é assim. Lembra-se dos pequenos detalhes - sempre - disse Cuchulainn, a voz e o rosto suavizando ao pensar na irmã.
- Então vocês sempre foram próximos? Mesmo quando pequenos?
Cuchulainn assentiu:
- Sempre. Éramos apenas nós até os gêmeos nascerem, quando eu estava com 6 anos e Elphame, 7. - Ele encolheu os ombros. - E eles tinham um ao outro.
- Como você e El tinham um ao outro - disse Brighid.
- Sim. - O sorriso não alcançou a tristeza nos olhos.
- Lamento ter afastado você dela - disse Brighid, devagar.
- Não me afastou de lugar nenhum. Me casei com você por vontade própria. Quero que jamais pense o contrário. E isso... - ele abarcou distraidamente tudo ao redor
- ... não é sua culpa. Nem você nem eu queríamos deixar o Castelo MacCallan, mas era a coisa certa a ser feita. Era o que nós precisávamos fazer.
Brighid quase deixou escapar que era o que ela precisava fazer, não ele, mas a disposição teimosa do queixo dele fez com que ela bebericasse o odre quase esgotado
e ficasse quieta.
- Então me conte como era quando você era pequena - pediu Cuchulainn, acenando para que ela lhe passasse o vinho. - Meu palpite é de que você era bem parecida com
El - gostava de sair por aí sozinha.
Em vez de responder imediatamente, Brighid alimentou o fogo com mais galhos e ambos ficaram em silêncio enquanto a madeira estourava e estalava.
- Brighid. - Ele falou o nome e esperou que ela o fitasse. - Você me fez conversar quando eu só queria rastejar para um buraco escuro e lamber minhas feridas. Não
me deixou desistir da vida.
- E agora é a sua vez de fazer o mesmo por mim?
- Não sei. Talvez. Agora só gostaria que minha esposa fosse capaz de conversar tranquilamente comigo sobre o passado.
Esposa... A palavra pesava no ar noturno. Brighid tomou outro longo gole de vinho, acolhendo seu calor e a capacidade de afrouxar as amarras que mantinham seu passado
cuidadosamente no lugar.
- É difícil - começou com hesitação. - Não estou acostumada a falar nisso.
- Bom, leve o tempo que quiser. Temos a noite inteira. - Cuchulainn enfiou o resto do pão com carne na boca e ajeitou a sela que estava usando como encosto, aproveitando
o mesmo movimento para ficar mais perto de Brighid. Parecendo confortável e acomodado, recostou-se, ficando a pouca distância dela. - Somos apenas nós. Fand nem
está aqui para ouvir.
- Ou aborrecer latindo - disse Brighid.
- Lobos não latem. Eles uivam.
- Seja lá como se chame, a filhote é incômoda.
- Uma das razões pelas quais eu a deixei no castelo. E as crianças gostam dela. Vão mantê-la ocupada.
- Elas são igualmente incômodas.
Cuchulainn riu.
- Nem vou pensar em negar isso.
Brighid sorriu, capturada pela risada contagiante.
- Assim como a filhote, elas nunca param de fazer barulho.
O guerreiro deu uma risada e se alongou.
- Há definitivamente coisas boas em ficarmos assim sozinhos. Uma é que nossos ouvidos não são bombardeados constantemente com as vozes dos pequenos - sejam alados
ou peludos.
Ela suspirou e tomou outro gole do odre.
- Nesse ponto estamos em completo acordo.
O vinho e o bom humor de Cuchulainn fizeram sua mágica. Ela não estava se sentindo tão autoconsciente e nervosa; na verdade, estava relaxada e um pouco sonolenta.
Então começou a falar: - Tem razão. Eu era bem sozinha quando criança, mas não por ser solitária. Era porque parecia que todos ao meu redor queriam algo de mim.
Era mais fácil ficar sozinha.
- Todos? - instigou Cuchulainn quando Brighid ficou calada. - Até seu irmão e sua irmã?
- Como Elphame, sou a mais velha. Niam era vários anos mais nova, então nunca fomos próximas. A preocupação dela era ter luxos e admirar a si mesma em qualquer superfície
reflexiva. Minha preocupação era evitar nossa mãe. - A testa de Brighid se enrugou. - Não compreendia na época que o que ela estava fazendo era sua própria maneira
de evitar a mamãe.
- Era sempre assim com sua mãe? - perguntou ele.
Brighid suspirou:
- Praticamente até onde me lembro, apesar de que quando eu era bem pequena e meu pai ainda estava vivo, ela era menos controladora e mais... - Brighid penou para
encontrar a palavra - ... mais normal. Depois que ele morreu, foi como se a frieza que ela sempre tinha encoberto assumisse completamente.
- E seu irmão?
- Bregon e eu éramos mais próximos em idade, como você e El. Éramos próximos quando crianças, mesmo que ele ficasse confuso por eu não querer passar meu tempo com
mamãe. Ele a idolatrava. Por sua vez, ela o ignorava. Sempre esperei que ele fosse se zangar com ela, enxergar como era aproveitadora, mas isso nunca aconteceu.
Bregon começou a ficar ressentido comigo. Especialmente depois que... - Ela parou de falar, como se as palavras tivessem se esgotado. Brighid encarou o fogo, recordando.
No crepitar das chamas quase podia ouvir a vozinha assustada do passado, ver o terrível pôr do sol vermelho do dia distante.
O toque de Cuchulainn sobre seu braço a fez pular, e os olhos se voltaram para ele, arregalados e escuros no rosto subitamente pálido.
- O que aconteceu?
Brighid abriu a boca, e as palavras que permaneceram caladas por anos brotaram: - Eu estava quase no fim do meu treinamento como caçadora. Eu estava há quase meio
dia de distância do acampamento da manada. Ninguém sabia que eu estava lá. Quando vi os vestígios da carroça, pensei em usá-las num exercício de treinamento. Eu
os seguiria para ver onde me levariam, enquanto lia a história que contavam. Eu já era extraordinariamente boa em rastrear animais. - Brighid ergueu os ombros em
tom de desculpas. - Estava aproveitando minha afinidade com os espíritos dos animais, embora não estivesse inteiramente consciente disso. Mas estava particularmente
interessada na carroça. Era puxada por animais, mas não era tecnicamente um animal. Pensei que seria mais difícil de ler. Além disso, tinha deixado a estrada e estava
cortando uma área de mata da planície, que era pedregosa e difícil de rastrear. Então começou a chover. Bem leve, mas lembro que gostei do elemento adicional de
dificuldade. Quando as impressões de cascos se misturaram com as da carroça, foi fácil dizer que eram rastros de centauros. Cinco deles.
Brighid encontrou os olhos de Cuchulainn e deu uma risada seca e destituída de humor.
- Queria uma história para ler nos rastros - algo difícil - e foi exatamente o que ganhei. Só que não era a leitura que era difícil. Isso estava claro, ao menos
para mim. Imagino que Ciara diria que eu devia agradecer à habilidade que corre inata em meu sangue por tamanha clareza. Naquele dia não me senti muito disposta
a agradecimentos. - Ela parou de falar, e levou o odre outra vez aos lábios.
- Que história os rastros contaram? - perguntou Cuchulainn com delicadeza.
Brighid o fitou, depois desviou o olhar de volta para o fogo.
- Me contaram que cinco centauros tinham perseguido a carroça. Que os cavalos que a puxavam tinham entrado em pânico e que os centauros tinham conduzido de propósito
o grupo amedrontado na direção do limite das árvores e do penhasco que o riacho e o tempo erodiram. Depois não precisei mais ler os rastros porque a ouvi. Segui
o som dos gritos enquanto escorregava pela borda do penhasco até onde a carroça tinha tombado, arremessando a condutora e também os rolos de tecido de colorido vivo
que ela levava para negociar com a manada. Lembro que grande parte dos tecidos estava tingida nas ricas cores de joias - vermelho, azul, verde-esmeralda -, então
quando a encontrei, a princípio pensei que a parte inferior do corpo estivesse envolta em metros de linho cor de rubi.
Brighid meneou a cabeça, os olhos distantes, vendo aquele dia do passado.
- A carroça tinha rolado por cima dela, esmagando-lhe o corpo bem abaixo das costelas. Ela estava lá no chão, com a chuva se misturando ao seu sangue, mas ainda
estava viva. Estava chorando. Quando me viu, tentou se arrastar para longe, me implorou que não a machucasse mais. Falei que não queria machucá-la. Acho que não
acreditou em mim, mas quando se mexeu, o sangramento ficou pior. Muito pior. Era como se algo dentro dela tivesse estourado e vazado. Ela sabia que estava morrendo
e não queria ficar sozinha, mesmo que isso significasse dar seu último suspiro nos braços de uma centaura. - Brighid deixou o fogo para encarar o guerreiro ao seu
lado, que estava tão silencioso e atento. - Ah, Cuchulainn, era apenas uma menina. Disse que tinha escapulido da caravana de mercadores e ido negociar sozinha com
a manada Ulster para provar aos pais que podia fazer o trabalho de um adulto, mas se perdeu. Então os centauros - rapazes, ela disse, a cercaram e assustaram os
cavalos, rindo e berrando enquanto a carregavam para o penhasco. Depois a deixaram sozinha na chuva para morrer.
Brighid tomou outro longo gole do odre, afastando o tremor da voz. Era importante contar a história com clareza - que Cuchulainn entendesse tudo: - Ela se agarrou
em mim. Não havia nada que eu pudesse fazer senão abraçá-la e ficar com ela até o fim. A menina ficava falando, repetindo e repetindo: "Diga à mamãe que não fique
zangada comigo. Diga que lamento por estar atrasada." Depois cuidei rápido do corpo. A chuva estava mais pesada, e eu não queria perder os rastros deles.
- Você os seguiu? - perguntou Cuchulainn.
Brighid assentiu:
- Sim, segui meu irmão e os amigos de volta para nossa casa. No coração, eu sabia que eram os rastros dele desde o momento em que os encontrei. Mas não queria acreditar...
não queria pensar que... - O corpo estremeceu, e Brighid falou entre os dentes: - Eu o rastreei até em casa e o observei gargalhar e festejar, como se nada tivesse
acontecido. Quando o arrastei até a presença da minha mãe e o confrontei com o que tinha feito, Bregon disse que a estúpida menina humana devia ter controlado melhor
os animais. Foi o que ele disse, Cuchulainn. Na frente da minha mãe, a sumo xamã da nossa manada - a centaura que devia ser exemplo de honra e honestidade.
- Ela não fez nada? - A voz de Cuchulainn estava áspera de emoção.
- Ela não disse nada. Mas fez muito mais do que isso. A partir daquele dia, a atitude e os gestos com meu irmão mudaram. Não o ignorava mais - foi para o outro lado
do extremo. Minha mãe o mimava e estragava acintosamente. Os amigos dele também foram recompensados com seus favores. - Os lábios de Brighid se curvaram de desgosto,
deixando claro que tipo de favores a mãe dela concedia aos amigos do irmão caçula.
- Voltei no dia seguinte para pegar o corpo da menina. Pretendia encontrar os pais dela... devolvê-la à mãe por quem morreu chamando... mas tudo o que encontrei
foi um corpo queimado. Minha mãe nunca confessaria, mas eu sabia que era obra dela. Não demorou muito para que eu abandonasse a manada Dhianna. Desde então, vaguei
pela planície, ficando o mais longe possível da minha manada. Quando ouvi que Elphame queria voluntários para reconstruir o Castelo MacCallan, rumei para o norte
e deixei o chamado me levar até ela.
- Deusa... - arfou Cuchulainn a palavra.
Brighid passou a mão trêmula pelo rosto.
- Deveria ter contado antes a você. Deveria ter contado antes a alguém... Eu só não... - Brighid encarou aflita o rosto dele como se pudesse encontrar redenção ali.
- Tudo no que conseguia pensar era em fugir daquela vida. Mudar meu futuro e tentar não olhar para trás. Mas compreendo. Agora que sabe, talvez... talvez não seja
capaz de ficar comigo... talvez não queira se importar comigo e...
- Pare! - A voz de Cuchulainn foi severa ao lhe agarrar o braço. - Não vou deixar você. O que eles fizeram não é sua culpa. O que eles são hoje não é sua culpa.
Pela Deusa, acha que vou deixar que volte para isso sozinha?
- Não sei o que pensar. Nunca contei a ninguém. Achei que nunca conseguiria. E agora contei a você. Meu marido. Meu marido que é um homem. - A respiração dela sibilou
num soluço. - Em que sonho estávamos vivendo quando pensamos que podíamos ficar juntos? Como isso pode sequer funcionar?
Num instante, Cuchulainn tinha se colocado de joelhos diante dela. Estendeu as mãos e a puxou para seus braços. Brighid ficou rígida, sentindo a estranheza do torso
pressionado ao dela - a sensação incomum do corpo musculoso de Cuchulainn que era apenas humano e não combinava com o corpo equino de um centauro. Ele lhe ignorou
a rigidez e não afrouxou o abraço. Quando falou, inclinou a cabeça para que a voz fosse um sussurro quente ao ouvido dela: - Vai funcionar porque estamos ligados,
nós dois. Porque de alguma forma, miraculosamente, Epona fez sua alma para combinar com a minha. Não somos definidos pelo corpo apenas, Brighid. Você e eu sabemos
disso muito bem.
- Parece impossível - disse ela.
- Não. Não é impossível - só é difícil.
Brighid se afastou, e dessa vez Cuchulainn afrouxou o abraço para que ela pudesse olhar-lhe nos olhos.
- Como pode ter tanta certeza? Sou de um mundo diferente. Somos de espécies diferentes. Nem podemos consumar nossa união esta noite.
- Meu pai é um centauro, Brighid. Não esqueça que tenho o sangue dele correndo grosso nas minhas veias. Temos mais semelhanças do que diferenças.
- Seu corpo é humano.
- Isso é. - Ele suspirou e se sentou sobre os calcanhares, deixando as mãos deslizarem pelos braços dela. - Isso lhe causa repulsa?
Brighid franziu a testa, ouvindo o eco das palavras de Elphame na voz dele.
- Claro que não! Como pôde sequer me perguntar isso? Não teria me casado com você se me causasse repulsa.
- Existem muitas razões diferentes para se casar. A atração física nem sempre é uma delas - disse ele. - Você se casou comigo. Isso não significa automaticamente
que se sente atraída por mim.
A ruga na testa dela aumentou.
- Me sinto atraída por você. Não é como a maioria dos homens.
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas.
- Posso garantir que sou bastante parecido com a maioria dos homens.
Brighid sentiu as faces arderem.
- Não quero dizer que você não... hã... não...
- Sim... - Ele prolongou a palavra. - Prossiga. Não sou o quê?
A testa franzida se transformou numa expressão zangada. Cuchulainn não estava tornando a situação nada fácil para ela.
- Os homens em geral parecem muito pequenos.
As sobrancelhas dele desapareceram completamente na linha capilar. Brighid meneou a cabeça, tentando descobrir uma maneira de explicar sem soar arrogante ou ofensiva.
- Lembra-se do dia em que nos conhecemos? Você estava com El e Brenna no pátio principal do Castelo MacCallan. Tinham acabado de descobrir a fonte.
- Lembro - respondeu ele. - Você disse que era da manada Dhianna e eu talvez tenha reagido mal ao anúncio.
- Talvez? - bufou Brighid. - Você queria que El me expulsasse. Estava sendo defensivo e superprotetor com sua irmã. - Antes que Cuchulainn pudesse protestar, ela
prosseguiu apressada: - E eu o achei intrigante. Não era um homem fraco, pequeno. Era um guerreiro, e tudo que você falava ou fazia continha tanta confiança e poder
que nunca pensei em você só como homem. Desde a primeira vez, pensei em você como guerreiro, sem o rótulo de "centauro" ou "humano".
- Então não me odiou à primeira vista?
- Não. Só não gostei de você. - A expressão satisfeita de Cuchulainn a fez sorrir. - Mas parte de mim concordava com você. Se eu fosse outro membro da minha manada,
teria sido prudente não confiar em mim.
- Aprendi a confiar em você.
- E eu em você.
- Não vê que é isso, Brighid? Nosso relacionamento é baseado na confiança e no respeito, que se transformaram em amizade. - Ele soltou devagar uma das mãos e delicadamente,
apenas usando a ponta dos dedos, refez o caminho pelo braço até o ombro arredondado. Sentiu a pele dela se arrepiar sob seus dedos e a ouviu respirar fundo. - E
depois essa amizade se transformou. Nem sei ao certo quando. - Numa carícia longa e lenta, deslizou a mão pelo ombro até encontrar a maciez da base do pescoço. Lá
deixou que o polegar traçasse um padrão leve e sensual a longo da clavícula delicada. - Lembro que a parte da minha alma que a visitava nos sonhos provocava e brincava
com você. Achou que eu estava zombando... fingindo que a desejava... - O polegar voltou para a curva do pescoço e sentiu o pulso batendo rápido e forte sob a maciez
da pele. - Não era fingimento. Você é a criatura mais bela que já vi. E não me importa que forma seu corpo assuma. Sempre desejarei você.
Trinta e Nove
TUDO O QUE Brighid conseguiu fazer foi encará-lo. Estava presa na carícia lenta e íntima. Apesar de toda a força do corpo dela, aquele único toque gentil bastava
para desarmá-la completamente.
- Posso fazer uma pergunta? - pediu Cuchulainn, deslizando o polegar para cima e para baixo na pele sensível do pescoço.
- Sim - murmurou ela.
- Depois que nos beijamos no seu quarto, quando soprou minha alma de volta no meu corpo, alguma vez pensou em me tocar?
- Sim.
- O que pensou?
Brighid umedeceu os lábios com a língua, vendo os olhos dele se fixarem famintos em sua boca.
- Pensei em suas mãos no meu corpo, e imaginei como seria tocar você também.
- Se me tocasse agora, não teria que imaginar - disse ele.
Hesitante, Brighid ergueu a mão que ele estivera segurando até pouco tempo e tocou-lhe os cabelos.
- Estou contente que tenha cortado o cabelo outra vez - disse ela. - Gosto dele curto.
- Então sempre o manterei curto.
Brighid tocou a face, mas logo retirou a mão. Então, com uma risadinha autoconsciente, tocou-a novamente, esfregando as costas dos nós dos dedos na aspereza da barba
de um dia.
- Centauros não têm pelo facial - disse.
- Eu sei. Falei muitas vezes ao meu pai que o invejava por não ter que se preocupar em fazer a barba.
- É estranho. - Os olhos se ergueram depressa em busca dos de Cuchulainn. - Não um estranho ruim, só um estranho diferente.
Ele sorriu.
- Já me disse que não lhe causo repulsa. Não vai me aborrecer por dizer que há coisas no meu corpo que lhe parecem estranhas. Não quero que tenha medo de me contar
o que está pensando.
- Concordo. Mas tem que me contar o que está pensando também.
- No momento estou pensando que sua pele é tão macia e lisa que parece água - água quente. Posso sentir seu calor daqui. Lógico que sei que é porque você é uma centaura
e seu corpo gera mais calor que o meu. Mas quando fico assim perto de você, a lógica abandona a minha mente e tudo no que consigo pensar é que quero ser consumido
por seu calor.
Brighid sabia que ele podia sentir como suas palavras faziam o pulso dela pular sob seus dedos. A voz de Cuchulainn era tão sedutora quanto o toque, e Brighid não
conseguiu impedir que a mão descesse para o peito dele. Cuchulainn estava vestindo uma simples camisa de linho branco e um kilt feito do familiar tartã MacCallan,
cuja ponta estava atirada sobre o ombro direito. A mão desviou para o simples broche redondo que a mantinha no lugar. Antes que os pensamentos desordenados a impedissem,
Brighid desvencilhou a outra mão e desprendeu o broche. Com cuidado, puxou o tartã dos ombros dele. Em seguida desatou a frente da camisa, de modo que caiu aberta,
expondo o peito musculoso.
Exceto pelo polegar que continuava a lhe acariciar o pescoço, Cuchulainn permanecia bem imóvel enquanto ela espalmava as mãos pelo peito nu e subia para os ombros,
de onde afastou a camisa. Com movimentos rápidos das mãos, logo Cuchulainn estava nu da cintura para cima. Ele estremeceu.
- Está com frio? - perguntou Brighid, a voz pouco mais alta que um sussurro.
- Não! - Ele meio que riu, meio que gemeu a palavra.
Ela procurou pelos olhos de Cuchulainn e viu que aquelas profundezas turquesa tinham se escurecido no azul-celeste de um oceano turbulento.
- Gosto da sensação do seu peito. É firme e poderoso. - Calou-se, correndo a ponta dos dedos com resolução pelos mamilos expostos, o que o fez sugar rápido o ar.
- Ah! - murmurou ela a palavra. - Seu sangue centauro está aparecendo. Sabia... - ela continuou a circular os mamilos dele com a ponta dos dedos - ... que os mamilos
são uma das partes mais sensíveis do corpo de um centauro - ou centaura?
- Não, eu... - O corpo dele se sacudiu e as palavras se transformaram num gemido quando Brighid se curvou para lamber um dos mamilos.
Quando Brighid ergueu a cabeça, Cuchulainn buscou seus lábios, ficando de joelhos para que pudesse pressionar nela o peito nu. Brighid abriu a boca de bom grado
e acolheu a língua de Cuchulainn. Ele tinha dito que o calor de seu corpo o atraía, porém a pele nua de Cuchulainn também lhe parecia atraentemente cálida e firme.
Explorou as costas largas enquanto ambos descobriam os segredos da boca um do outro. Em seguida, a aspereza da palma dele estava debaixo do seu colete pressionando
o seio nu, fazendo com que fosse a vez de ela gemer e lutar para respirar conforme Cuchulainn provocava o botão do mamilo. Quando os lábios dele se aproximaram do
seio, Brighid arqueou o corpo, fechando os olhos e pensando em nada que não fossem os lábios, a língua e os dentes de Cuchulainn.
Quando as bocas se uniram novamente, ela se desvencilhou do colete, pressionando os seios acalorados no peito dele. Os dois corpos estavam escorregadios de suor.
Pela Deusa, como o queria! Mais do que já tinha desejado alguém. Ele a fazia se sentir viva, líquida, querer mais e mais. A mão deslizou pelas costas até a cintura,
depois mais além. Os olhos se arregalaram de surpresa com a sensação esquisita do volume firme das nádegas.
O que estava fazendo? Tinha realmente esquecido que Cuchulainn não era um centauro - esquecido que havia pouco que pudesse fazer para saciar o fogo enfurecido que
o toque dele acendia nela.
Sentindo a mudança imediata no corpo dela, Cuchulainn interrompeu o beijo e afastou-se para olhá-la nos olhos. O que viu ali fez com que passasse a mão trêmula pelo
cabelo enquanto fazia um óbvio esforço para acalmar a respiração.
- Esqueci que você não... que não pode porque só é um... que nós... - gaguejou Brighid até ficar em silêncio diante do claro ar de mágoa que lampejou no rosto dele.
- Lamento. Não pensei - respondeu Cuchulainn, a voz tão desafinada e inexpressiva quanto o rosto tinha ficado de repente.
- Não, Cuchulainn. Quis dizer que...
Ele não a deixou terminar. Preferiu se colocar de pé e apanhar a camisa do chão, vestindo-a com movimentos rápidos e desajeitados.
- O fogo está quase apagado. Vamos precisar de mais lenha. Vou buscar. - Sem olhar para ela, encaminhou-se para a floresta.
Brighid apertou a mão sobre o peito, no qual o coração se debatia como um pássaro engaiolado, e amaldiçoou a si mesma com sinceridade e fluência. Maravilhoso! Como
se a situação já não fosse bastante difícil - agora tinha insultado Cuchulainn.
Cuchulainn se demorou antes de voltar ao acampamento. Sentia-se um tolo. Pior que um tolo, na verdade - um tolo excitado e frustrado. O que, afinal, pensava que
estava fazendo? Pensava mesmo que faria amor com uma centaura caçadora? Não. Esse não era o problema. Ele nem tinha pensado. A pele... o calor... o sabor e o perfume
dela... tudo tinha funcionado como um encanto hipnótico que o impedia de pensar. Só queria que ela se acostumasse ao toque dele - como se fosse potra selvagem que
precisasse ser domada. Tolo era uma palavra muito simples para descrevê-lo. Brighid não era nenhuma potra. Era uma caçadora apaixonada que precisava do poder de
um centauro que satisfizesse aquela paixão.
Mas ele era apenas um humano, como ela deixara bem claro.
E agora? A única coisa que ele sabia com certeza era que não a abandonaria. Vasculhou o coração. Não estava ficando com ela só porque fizera sua promessa diante
da mãe, do clã e da Deusa. Queria ficar com ela. De verdade. Além do desejo físico, havia a lealdade que fora fundamentada na amizade e no respeito - como dissera
a Brighid - e que se transformara em algo mais... algo mais intenso. Ele amava a caçadora. Era simples assim. E complicado assim.
E era tão diferente do que tinha acontecido com Brenna.
Brenna... Pensar nela ainda tinha o poder de entristecê-lo. Ele a amara - ainda a amava, mas era uma sensação diferente do amor por Brighid. A parte física fora
fácil com Brenna, ao menos tinha sido fácil superar a timidez dela. Mas, admitia a si mesmo, nunca foi tão fácil conversar com ela como com Brighid.
A compaixão o atraíra para Brenna. O respeito o atraíra para Brighid. Respeito e paixão. Desde o primeiro instante, a caçadora tinha disparado algo dentro dele.
Mesmo quando costumava desconfiar e discutir com ela, sempre se sentiu atraído. Só nunca tinha se permitido pensar nisso - admitir isso. E agora estava casado com
ela e não conseguia pensar em outra coisa. E não podia fazer nada a respeito.
Brighid dissera que o relacionamento era impossível. Talvez ela estivesse certa.
Se Cuchulainn tivesse demorado mais, teria saído à procura dele. Porém Brighid se sentiu aliviada quando ele veio pisando pesado da floresta com os braços cheios
de lenha. Ela estava andando de cá para lá, tentando imaginar o que diria a ele. Então, quando ele enfim estava lá, sentiu a boca secar e as palavras evaporarem.
Sem falar, Cuchulainn alimentou o fogo e depois empilhou o resto da lenha perto de onde deixara a sela e os pacotes. Em silêncio, remexeu um dos alforjes maiores
e apanhou um cobertor de lã, no qual se enrolou como um casulo. Com um suspiro, acomodou-se de lado, encarando o fogo. Incrédula, Brighid o observou fechar os olhos.
O maldito do homem estava indo dormir!
- Cuchulainn, quero explicar... - começou, mas ele a interrompeu: - Não há necessidade - disse, sem abrir os olhos. - Nós dois estamos cansados. Está tarde. Amanhã
será um dia longo e cansativo. Durma um pouco, Brighid. Podemos conversar depois.
E foi dormir, simplesmente assim. Brighid pensou seriamente em atirar algo nele - algo pesado, como um dos pedaços de madeira que ele demorou tanto tempo recolhendo.
Ou, ainda mais satisfatório, talvez devesse chutá-lo. Bem forte.
Por fim, sua natureza de caçadora tomou controle e ela não fez nada daquilo. A verdade era que ele estava certo. O dia seguinte seria longo e extenuante, e ela precisava
dormir. Já que Cuchulainn não a abandonara, e aparentemente não planejava fazer isso tão cedo, poderiam conversar sobre o que tinha acontecido entre eles depois.
Então voltou para seu próprio lugar perto do fogo - não muito longe de onde o marido dormia - e se acomodou para a noite. Sabia que não teria nenhum problema para
dormir. Uma caçadora estava acostumada a se desligar do mundo e pegar no sono quando e onde pudesse. Brighid bloqueou a frustração e a confusão da mente, fechou
os olhos e deixou o cansaço do dia puxá-la para a escuridão.
No seu sonho, a escuridão do sono redemoinhou, clareou e se tornou névoa. A névoa acariciou-lhe a pele, despertando suas terminações nervosas conforme pulsava pela
carne nua do torso. Como um amante experiente, provocou-lhe os seios, fazendo os mamilos enrijecerem e doerem. Brighid gemeu e arqueou-se aflita de encontro à neblina...
e a névoa se solidificou, transformando-se em lábios, língua e boca. Os braços automaticamente envolveram seu amante. Mesmo antes de conseguir vê-lo, reconheceu
a sensação de Cuchulainn e, em algum lugar na mente sonolenta, estava surpresa por ele já lhe parecer tão familiar de encontro ao seu corpo. A cabeça se afastou
dos seios e Cuchulainn sorriu lentamente.
- Para onde nos trouxe agora? - perguntou ele.
- Não sei. Estou sonhando.
- Sim, está sonhando. - Os olhos dele chamejaram. - Vim antes aos seus sonhos, só que desta vez não vou tirar as mãos de você - disse com impetuosidade. - Seja lá
o que aconteça quando estamos acordados, nos seus sonhos eu a tocarei, abraçarei e farei minha.
Em seguida a boca de Cuchulainn estava na dela, insistente e sensual. Brighid se entregou a ele, deixando que atormentasse e mordiscasse sua língua enquanto as mãos
se ocupavam com os seios. Gemeu de encontro à boca dele, precisando do toque e do sabor de Cuchulainn. Estava dormindo - era só um sonho -, então não havia motivo
para se apegar às inibições e medos do mundo real. Abraçando o abandono do sonho erótico, deixou que as mãos examinassem o corpo dele, descobrindo a rígida excitação
que se estendia ao seu toque.
Conte a ele..., a voz suave sussurrou na mente dela. Abra seu coração para ele.
- Cuchulainn - disse de encontro aos lábios dele. - Quero você. Quero você por inteiro. Por favor, saiba disso.
Ele lhe tomou o rosto nas mãos e sorriu.
- Você me tem, minha bela caçadora. Por inteiro.
Quando se beijaram novamente, foi como se Brighid se fundisse nele. Não eram mais centaura e humano - eram apenas sensação e espírito - e o choque e a glória da
união inflamou-se nela com tamanha intensidade que Brighid despertou, tremendo de emoção em consequência do prazer.
Os olhos imediatamente encontraram Cuchulainn. Ainda estava deitado de lado, encarando o fogo, como estava quando ela caiu no sono. Não conseguia ver o rosto dele,
mas a respiração estava profunda e regular. Queria tocá-lo, queria acordá-lo, mas achou melhor se reacomodar e fechar os olhos.
Amanhã à noite será diferente, prometeu a si mesma.
Antes de dormir, seu último pensamento estava na esperança de que Cuchulainn viesse aos seus sonhos outra vez - mesmo que nos sonhos ele fosse apenas parte de sua
própria imaginação.
Cuchulainn esperou até ouvir a respiração dela mudar, dizendo-lhe que tinha caído no sonho novamente. Então girou de modo a poder olhar para ela. Tinham acordado
ao mesmo tempo.
Pela Deusa, o sonho mexera com ele! Quando se materializou da neblina, tudo que tinha conseguido enxergar era o torso nu de Brighid. A cortina prateada dos cabelos
caía sobre os ombros, partindo-se apenas para expor os mamilos sensíveis dos seios que ele atraíra para seu toque... sua boca. Pareceu-lhe tão fácil, tão certo tomá-la
em seus braços. E Brighid o tocara - por inteiro. Sentia o corpo enrijecer e pesar com a recordação. Depois, na neblina de calor úmido da paixão, ouvira uma voz
feminina pedindo a Brighid que falasse o que sentia no coração, e a caçadora revelou seu desejo por ele. Quando se beijaram, era como se ela aspirasse sua alma novamente
- só que desta vez a experiência fora intensamente física. O espasmo do orgasmo o despertara - no mesmo instante em que ouviu Brighid arfar e acordar.
Seria possível que tivessem vivenciado o mesmo sonho? Será que as almas deles tinham realmente se encontrado naquele reino nebuloso do sono? Teria ela realmente
se entregado a ele?
Impossível...
Quarenta
O CHEIRO DE carne de porco frita a deixou salivando antes que esfregasse os olhos sonolentos. O céu estava clareando com o anúncio do amanhecer e o ar já estava
esquentando com a chegada da manhã. Viu as costas de Cuchulainn, que se mantinha curvado sobre o fogo, mexendo a carne chiante. Brighid se levantou, se sacudiu e
se alongou. Ao se aproximar de Cuchulainn, notou que o capão já estava selado e que, exceto por alguns utensílios de cozer, tudo estava empacotado e pronto para
a viagem.
- Bom dia - cumprimentou ele, sem olhar para Brighid.
- Bom dia. Não acredito que dormi enquanto você empacotava e preparava o desjejum.
Cuchulainn ergueu os olhos e lhe deu um breve meio-sorriso, que só guardava a sombra da cordialidade costumeira. O tom foi cuidadosamente neutro: - Você nem se mexeu.
Espero que tenha dormido tão bem quanto parecia.
Brighid o olhou nos olhos, lembrando do sonho erótico e seu prefácio.
- Dormi bem. - Foi tudo o que disse.
- Bom - comentou apressado. Cuchulainn se voltou para o fogo e arrumou a carne de porco entre duas fatias grossas de pão e queijo, que entregou a ela. - Importa-se
de comer enquanto viajamos? Acho que hoje devemos andar do amanhecer até o anoitecer. Não fizemos exatamente um dia inteiro ontem.
- Concordo - disse ela.
- Bom - repetiu. Deixando seu sanduíche sobre o alforje que deixara aberto, apagou a fogueira.
- Cuchulainn?
Ele deu uma rápida olhada por cima do ombro.
- Vai ser esquisito assim entre nós o dia inteiro?
Os lábios dele se retorceram.
- Parece provável.
- Posso fazer alguma coisa para mudar isso agora?
- Provavelmente não - respondeu ele, que se voltou para o fogo.
Brighid suspirou. Ainda nem tinha amanhecido e era como se um longo dia tivesse se passado. E aquela sensação persistiu pelas intermináveis horas da manhã até o
meio-dia. Ao menos o passo fatigante que se obrigou a impor deixava pouca oportunidade para conversa, mesmo que tivesse apreciado o ensejo de conversar com Cuchulainn.
Costumava ser tão fácil para eles - irônico que agora que eram casados tudo parecesse tão complicado.
Porém o silêncio entre eles lhe deu tempo para pensar. O sonho permaneceu com ela, tanto que os pensamentos com Cuchulainn estavam coloridos num aspecto erótico
que ela sabia ser tolo e irrealista. Então se recordou da impressão do corpo firme junto ao seu e da explosão de sensações que inundaram o sonho...
- Vamos parar aqui para que eu troque de montaria. O capão está esgotado. - A voz profunda de Cuchulainn se sobrepôs ao tropel dos cascos.
Brighid piscou, saindo do estado de transe induzido pela viagem interminável. O sol estava começando a descer em direção ao oceano, e a pequena aldeia da qual se
aproximavam parecia alegre e acolhedora sobre a luz brilhante da tarde.
- Sabe onde estamos? - perguntou ela.
- A pouco mais de meio dia de cavalgada pesada do Castelo McNamara.
- O que significa que se mantivermos esse ritmo estaremos às margens dos Outeiros Azuis amanhã à noite.
- Consegue manter esse ritmo?
Brighid o viu examinar seu corpo e teve certeza de que Cuchulainn notava a camada de suor que começava a escurecer o loiro de seus flancos. Ergueu a sobrancelha
e deu uma olhada incisiva no capão. A pelagem do cavalo estava encharcada e manchas de espuma branca pontilhavam o peito e os flancos.
- Acho melhor se preocupar com sua montaria. Estou bem.
Cuchulainn resmungou:
- Por isso estou mudando para o baio. O garotão aqui cansou. - Então sorriu para ela, o humor irônico tocando os olhos. - Você sabe que provavelmente poderia deixar
qualquer cavalo para trás.
- Claro que poderia - respondeu, dando-lhe uma olhada lenta e sagaz. - Caçadoras são conhecidas também pela força e resistência, além da beleza e paixão. - De propósito,
curvou os lábios enquanto observava, com divertimento, os olhos de Cuchulainn se arregalarem com o flerte. Pronto, pensou, vamos ver o que ele faz agora.
- Vejo que não preciso me preocupar com você, já que tem bastante energia para ser sarcástica.
Novamente ela exibiu aquele sorriso lento e sonhador.
- Eu não estava sendo sarcástica.
Antes que Cuchulainn pudesse responder, Brighid largou o galope para que pudessem entrar na aldeia num passo mais reduzido. Para um assentamento tão pequeno, ficou
surpresa com o número de pessoas aglomerando as ruas ao redor do mercado aberto. A aldeia era arrumada e próspera, mas Brighid não se recordava nem um pouco dela
na sua corrida cega para deixar a Planície dos Centauros. Notou que não havia outros centauros visíveis e que várias pessoas a encaravam abertamente.
- Se lembro bem, há uma estalagem bem ali na esquina. - Cuchulainn apontou para a esquerda. - Podemos pegar uma tigela de cozido quente para cada um, eu troco de
montaria e depois partimos.
Ela concordou, preocupada com os olhares que estava atraindo. Sabia que era uma caçadora bonita. Era um fato e nada tinha a ver com vaidade e ego. Estava acostumada
a ser admirada - principalmente por homens. Mas aquelas olhadas pareciam diferentes. Não eram apreciativas nem convidativas. Eram especulativas, estreitas, desconfiadas.
Quando pararam diante da estalagenzinha lotada, a pele de Brighid estava arrepiada. Teve que se obrigar a manter a mão longe do arco que sempre estava preso às costas.
Cuchulainn desmontou com um resmungo e se alongou.
- Cuido do capão e passo sua sela para o baio enquanto você entra e nos arranja o cozido. - Diante do olhar questionador, Brighid acrescentou: - Vai poupar tempo.
Ele deu de ombros e assentiu, caminhando até a estalagem com uma graça fácil e confiante. Enquanto soltava o cinturão suado do capão, Brighid pôde ouvir uma voz
feminina deliciada gritar o nome de Cuchulainn, o que logo foi acompanhado por vários cumprimentos.
- Como se dessem a um herói as boas-vindas ao lar - murmurou Brighid com o capão, que ainda bufava. Ela suspirou e puxou a sela, levando o cavalo exausto ao cocho,
onde ele afundou o focinho e bebeu bastante da água fresca e límpida. Sob circunstâncias normais, teria acompanhado o animal, atirando um pouco d'água sobre si mesma,
mas se sentia observada e instintivamente achou melhor não fazer qualquer gesto que pudesse ser interpretado como bestial.
Brighid era uma caçadora, não um equino descuidado.
Estava exatamente colocando a sela sobre a nova montaria quando Cuchulainn saiu pela porta. Brighid ergueu os olhos, franzindo o cenho para o andar vivaz e o brilho
perturbador nos olhos.
Como era que Elphame costumava chamá-lo? Um libertino incorrigível.
- Pronto, me deixe fazer isso. - Cuchulainn tirou a sela das mãos dela e a colocou no lombo largo do baio. - O cozido já vem. Ou podemos entrar e comer.
Brighid deu uma olhada desprezível na porta estreita.
- Não tem tamanho para centauros.
- Há bastante espaço lá dentro - disse ele.
- Prefiro um espaço mais aberto. - Ignorando a pergunta no olhar dele, Brighid se pôs a amarrar os alforjes no capão amarelo, verificando novamente a respiração
do cavalo... qualquer coisa para evitar os olhos de Cuchulainn.
Estaria sendo sensível demais? Estaria imaginando a tensão ao redor dela? Antes que pudesse decidir, uma loira gorducha e atraente veio apressada da estalagem. Estava
trazendo uma bandeja de madeira carregada com duas tigelas de cozido fumegante, pão e fruta, além de taças transbordando com o que parecia ser sidra com especiarias.
Rindo de maneira coquete, deu uma piscadinha para Cuchulainn. Brighid admirou o trabalho de equilíbrio que ela executava - com todas as piscadinhas e risadinhas,
não derramou uma única gota de comida ou bebida. A moça era realmente talentosa.
- Como não voltou a entrar, achei que gostaria que eu trouxesse sua refeição, meu senhor Cuchulainn. - Ela pestanejou de maneira ridícula.
Brighid sentiu o queixo cerrando.
- Foi gentileza sua. - Cuchulainn sorriu distraído para a mulher enquanto dava uma última puxada no cinturão. - Acho que vamos comer...
- Bem aqui - interrompeu Brighid, apontando para o pequeno pátio. - Pode deixar a bandeja aí. Estamos com pressa de voltar para a estrada.
Os olhos da loira se voltaram para a caçadora, que viu a moça tomar conhecimento dela e rapidamente desconsiderá-la. Pôs a bandeja no chão, mas não sem garantir
que oferecesse a Cuchulainn uma vista profunda do busto amplo. Brighid estreitou os olhos para o marido, que obviamente estava satisfeito com o cenário adicional.
A caçadora estava contemplando como seria satisfatório se pudesse chutar a loira naquele traseiro tão redondo quando dois homens apareceram na entrada, canecas de
estanho com cerveja nas mãos.
- Cuchulainn! É sempre um prazer vê-lo - disse o mais alto dos dois.
Cuchulainn assentiu com agrado antes de pegar uma tigela de cozido da bandeja e passá-la para Brighid.
- Por que não entra e se junta a nós? - perguntou o homem mais baixo e avermelhado. Então seus olhos encontraram Brighid e lá ficaram. Lambeu os lábios cor de fígado.
- Podemos arranjar espaço.
Brighid sentiu certo prazer no fato de que a voz de Cuchulainn ficou dissonante diante do óbvio interesse do homem por ela: - Receio que não temos tempo.
- Não é surpresa que esteja com pressa. Ouvi falar que há problemas na Planície dos Centauros - comentou o homem baixo. Não parecia conseguir tirar os olhos de Brighid.
Ela fez cara feia, mas percebeu que seu olhar zangado não servia de nada. O homem não estava olhando para seu rosto.
- São aqueles malditos centauros Dhianna. Aquela manada nunca conseguiu agir certo, não desde a Guerra Fomoriana - resmungou o primeiro homem. - Como se fossem os
únicos a sofrer perdas. Talvez pudesse ensiná-los uma coisa ou duas, Cuchulainn.
Brighid sentiu o estômago apertar quando sua reação inicial foi sair em defesa da sua manada. Mas segurou bem o queixo. Não podia defendê-los. Não mereciam. Mas
isso não significava que era fácil ouvir a calúnia daquele homem. E ergueu os olhos para Cuchulainn, então soube que ele conseguia ler o tumulto e a mágoa contidos
ali. Ouviu novamente a voz dele, ecoando da noite anterior... Estamos ligados, nós dois. Porque de alguma forma, miraculosamente, Epona fez sua alma para combinar
com a minha.
E ela sabia que era verdade. Não importava o que pudesse acontecer entre eles, suas almas se completavam.
Cuchulainn voltou a encarar os homens, mas desta vez não estava sorrindo.
- Engraçado que tenham mencionado a manada Dhianna. Eu estava para apresentá-los à minha companheira de viagem, Brighid Dhianna.
Brighid gostou quando os homens e a loira gorducha de repente pareceram bem desconfortáveis. Ela inclinou a cabeça num rápido reconhecimento à apresentação de Cuchulainn.
- É um prazer conhecê-los - cumprimentou, afastando boa parte do sarcasmo da voz.
- Claro que não é apenas minha companheira de viagem. Também é a caçadora do Castelo MacCallan. - Cuchulainn se calou e com propósito aproximou-se dela num passo.
Quando o olhar buscou o de Brighid, a expressão mudou e perdeu o aspecto perigoso, ficando acolhedora com franca afeição. - E desde ontem, ela é minha esposa.
A loira explodiu numa rajada de risadinhas ofegantes.
- Ah, senhor Cuchulainn! Você gosta mesmo de fazer piada.
Brighid nivelou o olhar na mulher.
- Ele não está fazendo piada.
- Mas é impossível! - retrucou o homem baixo, que finalmente conseguira tirar os olhos dos seios da caçadora.
- Pretende me insultar duvidando da minha palavra? - A voz de Cuchulainn estava baixa e perigosa.
- Não!
- Claro que não!
- Eu... eu preciso voltar para nossos outros fregueses - disse a loira, lançando olhadas nervosas em Brighid por cima do ombro enquanto fugia, em meio a muita sacudidela
de carne, para a escada e desaparecia dentro da estalagem.
- Pois bem - disse o homem alto, sem olhar diretamente para o guerreiro nem para a caçadora. - Boa sorte na jornada.
- Sim. - O homem avermelhado secou o suor do lábio superior. - Que a sorte os acompanhe.
Os dois homens se retiraram depressa para dentro da estalagem, onde os sons de conversa tranquila morreram, e logo Brighid viu vários pares de olhos arregalados
e chocados espiando pela única janela.
Queria esquecer o resto da comida e disparar daquela aldeia, mas quando relanceou Cuchulainn, este já estava reclinado na beira do pátio, limpando vagarosamente
o fundo da tigela com um pedaço grosso de pão.
Se ele não ia deixar que os olhares e os murmúrios chocados o aborrecessem, ela também não deixaria. Comeram o resto da refeição devagar, e só depois que acabaram
com cada gota de sidra e comeram cada pedacinho da fruta foi que Cuchulainn largou umas moedas sobre a bandeja e montou o baio. Lado a lado, saíram trotando da estalagem.
- Acho que nos saímos bem nessa - disse Cuchulainn com satisfação.
- Ah, com certeza. Nem sei por que cheguei a pensar que as pessoas ficariam chocadas com a notícia do nosso casamento - disse Brighid no mesmo tom indiferente.
Cuchulainn virou a cabeça para encará-la - e ambos riram.
Quarenta e Um
A RISADA QUEBROU o derradeiro dos silêncios desconfortáveis de Cuchulainn. Desta vez, quando Brighid entrou no ritmo de viagem, ele manteve a montaria ao lado dela.
- Devia fazer isso com mais frequência - comentou ele.
- Fazer o quê? Ofender e chocar grupinhos de pessoas?
Ele sorriu.
- Falo de rir. Você não ri muito.
- Acho que ri mais desde que cheguei ao Castelo MacCallan do que em qualquer momento da minha vida. - Brighid sorriu para ele. - Sabia que sua risada foi uma das
coisas que mais senti falta quando sua alma estava despedaçada?
- Foi um momento sombrio da minha vida. Acho que não percebi como era sombrio até estar inteiro novamente.
Brighid estudou seu perfil forte, sem querer lembrar quão perto Cuchulainn esteve de acabar com a vida. A ideia lhe entristecia na época - agora lhe dava náuseas.
- Você me surpreendeu lá na aldeia - disse Brighid, precisando mudar de assunto.
- Surpreendi? - O sorriso estava de volta. - Porque anunciei que era uma centaura Dhianna?
- Não, não exatamente. Ontem mesmo você jurou honrar meu nome como se fosse o seu. Você não é um homem que faria tais votos com leviandade.
- Tem razão, minha bela caçadora.
Os lábios dela se ergueram diante do costumeiro tratamento carinhoso.
- Fiquei surpresa por ter anunciado nosso casamento.
- Achou que era algo que eu esconderia?
- Não tinha pensado nisso ainda, mas ouvi-lo dizer foi... hã... agradável. Queria que soubesse disso.
- Sinto orgulho de que seja minha esposa, Brighid. As coisas aconteceram tão rápido, acho que não fiz as coisas adequadamente.
- Que coisas? - Brighid enrugou a testa em questionamento.
- Isso de adulá-la - cortejá-la. - A voz se aprofundou e os olhos turquesa procuraram os dela. - Esse ritual de galanteio.
- Ah! - A maneira como Cuchulainn a olhava fez com que recordasse do sonho erótico. Brighid conteve a agitação que ameaçava embaralhar suas palavras. Pela Deusa,
ele era tão bonito! - Estava se saindo bem na noite passada.
Viu o queixo dele enrijecer, mas Cuchulainn não se esquivou do assunto.
- Devíamos ter conversado quando voltei ao acampamento. A verdade é que você feriu meu orgulho, e eu não consegui lidar bem com isso.
- A verdade - apressou-se Brighid em dizer - é que fiquei chocada e não consegui lidar bem com isso.
- Chocada?
- Esqueci que você não era um centauro.
- Esqueceu? - Cuchulainn tentou sem sucesso não sorrir.
- Então pode imaginar como foi um choque para mim sentir seu...
- Traseiro? - completou ele.
- Exatamente.
- Arrã. - Cuchulainn a estudou, obviamente tentando decidir o que dizer e o que não dizer. - Então só estava surpresa. Não estava desapontada e...
- Se perguntar outra vez se sinto repulsa por você, vou usar parte desse corpo de centauro do qual parece gostar tanto para chutá-lo em cheio nesse seu traseiro
humano.
- Isso seria difícil de fazer enquanto estou sentado nesta sela.
- Uma das primeiras virtudes que uma caçadora aprende é a paciência. - Brighid lhe sorriu com doçura.
- Devia ter beijado você enquanto a estalagem inteira estava observando - disse Cuchulainn, sorrindo para ela.
- Sim - retrucou Brighid, jogando o cabelo loiro-prateado por cima do ombro. - Devia mesmo.
Quando alcançaram o riacho, o crepúsculo estava tingindo os vinhedos à beira da estrada com as cores do anoitecer.
- Os cavalos estão fatigados - já é quase noite. Acho que já avançamos bastante por hoje - disse Cuchulainn.
Brighid concordou e diminuiu o galope para um trote, e por fim, com um suspiro, reduziu para uma caminhada. Até o eco dos cascos atravessando a pontezinha arqueada
soava cansado. Notou que os dois cavalos ergueram as orelhas ao som de água corrente.
- Podemos acampar ali embaixo. - Apontou para a margem do riacho. Era raso e adornado por delicados salgueiros-chorões e capim aquático verde-esmeralda.
- Qualquer lugar que não se mova me parece bom agora - disse Cuchulainn.
Brighid notou as sombras debaixo dos olhos dele e a barba de dois dias. O guerreiro parecia definitivamente cansado.
- Se pegar lenha e cuidar dos cavalos, pego a carne de porco e o vinho.
- De acordo - disse ele.
Brighid pensou no quanto trabalhavam bem juntos enquanto descarregava os alforjes e apanhava os utensílios de cozinha. Desde que a tensão entre eles terminara, o
dia tinha sido um prazer. Sim, estavam viajando num passo difícil, mas Cuchulainn ficou ao lado dela, conversando e rindo, e depois, quando a noite caiu e estavam
cansados demais para conversar, apenas ficou ali, ao lado dela. Cuchulainn era um bom companheiro - um bom homem -, e apesar das diferenças óbvias, eles se entendiam
bem.
Cuchulainn largou um carregamento de galhos quebrados no meio do anel de rochas que ela recolheu para marcar a fogueira.
- Estou levando os cavalos para o riacho. - Cheirou a si mesmo, fazendo-a sorrir. - E acho que vou para o riacho também.
- Boa ideia. Você está cheirando como um cavalo.
A risada dele flutuou até ela na brisa morna da noite. As coisas estavam diferentes entre eles naquela noite. Mais fáceis. A ligação entre eles estava solidificada.
Quando ele voltou com os cavalos do riacho, Brighid tirou os olhos das fatias fritas de carne de porco para sorrir para Cuchulainn e o estômago apertou. O cabelo
dele estava molhado. Ele tinha vestido uma camisa de linho limpa. Um kilt novo estava enrolado descuidadamente ao redor da cintura. E o rosto estava barbeado. Cuchulainn
sorriu e esfregou o queixo.
- Dizem que você prefere homens barbeados.
- Só existe um homem que eu prefiro - respondeu, sustentando-lhe o olhar. - E gosto dele exatamente como é - barbeado ou não. - Brighid lhe jogou o odre. - É minha
vez no riacho.
Cuchulainn a observou sair da luz do fogo e entrar na luminosidade gentil da lua precoce, pensando que ela devia ser a criatura mais graciosa em toda Partholon.
Devia estar cuidando da carne de porco, mas pôde vê-la tirar o colete e entrar no riacho. Não conseguia tirar os olhos dela. Brighid encontrou o mesmo ponto no qual
ele tinha se banhado, uma área represada por castores numa piscina de bom tamanho. A água lhe cobria a cernelha. Viu quando Brighid se virou para olhá-lo. Sob o
luar prateado, parecia uma deusa do lago - parte humana, parte divina. Ela fez seu corpo parecer quente e pesado, e sua alma parecer incrivelmente leve.
Ela lhe pertencia, e ele, a ela. E qualquer um que não gostasse disso que se danasse.
Falaram pouco enquanto comiam, mas o silêncio não era desconfortável. Sentaram-se perto um do outro, então quando passavam o odre pra lá e pra cá era fácil os corpos
roçarem um no outro. Palavras não eram necessárias para o que estava acontecendo entre eles - só olhares e toques.
Quando terminaram de comer, em vez de se reclinar de lado sobre a sela como na noite anterior, Cuchulainn foi até um dos alforjes. Curiosa, Brighid viu a luz do
fogo reluzir no que quer que ele tivesse na mão. Mas Cuchulainn não foi até ela de imediato. Curvou a cabeça, deixando notar a tensão nos ombros. Em seguida, respirou
fundo e reassumiu o lugar ao lado dela.
- Tenho algo para você. Pretendia lhe dar na noite passada, mas... - Cuchulainn encolheu os ombros. - A noite passada...
- A noite passada não terminou como deveria - disse ela. - Esta noite será diferente.
- Esta noite deve receber isso. - Cuchulainn segurou o cordão de prata e deixou a pedra de turquesa pender.
- É a pedra de Brenna - arfou Brighid, tomando a pedra azul-esverdeada na mão.
- Agora é sua. Ela lhe deu. Achei que gostaria de usá-la. - Cuchulainn passou o cordão pela cabeça dela de modo que a pedra ficou suspensa entre os seios. - Não
senti a presença dela desde que morreu, mas quero acreditar que ela nos aprovaria.
Brighid fechou os olhos, tentando atravessar a enxurrada de emoções misturadas.
- Ela veio até mim, Cuchulainn.
- O quê?
- No meu sonho, como você fez quando sua alma estava despedaçada. Nos encontramos no Castelo MacCallan. Ela me contou que tinha me dado a pedra de turquesa e também
disse que não assombraria o Castelo MacCallan. - Brighid abriu os olhos e fitou o marido em meio a lágrimas. - Disse que não seria bom para ninguém fazer isso.
- O que mais ela disse? - O rosto estava muito rígido, a voz estava sob cuidadoso controle, mas Brighid conseguia ouvir a dor nas palavras dele.
- Disse que estava feliz, que tinha cumprido seu destino. - Brighid conseguiu exibir um fraco meio-sorriso. - As cicatrizes tinham sumido, Cuchulainn.
Ele abaixou a cabeça, mas Brighid conseguiu ver as lágrimas que caíam, cintilantes, sobre o verde e azul do kilt.
- Ela não conversou comigo por muito tempo. Só me fez dar minha promessa, depois se foi.
- Sua promessa? - Cuchulainn ergueu a cabeça e secou as faces com as costas da mão.
- Ela me fez jurar que eu manteria a mente aberta para o impossível. - A voz de Brighid tornou-se quase um sussurro.
Uma única lágrima escorreu pelo rosto de Cuchulainn.
- Então ela sabia sobre nós.
A caçadora assentiu:
- E ela aprovava. Deixou você para mim, de livre vontade e sem qualquer hesitação. - A risada de Brighid soou embargada. - Foi na noite em que estávamos no Castelo
Guardião. Pensei que Brenna estivesse falando do resgate da sua alma. Só ontem percebi que ela sabia que eu o amava, antes que eu mesma descobrisse.
- E quando descobriu?
- Na primeira vez em que nos beijamos. - Com delicadeza, Brighid limpou a lágrima do rosto dele. - Não sou ela, Cuchulainn. Não sou tão boa como ela era, nem tão
gentil, nem tão compassiva. Mas sou leal e fiel. E amo você de verdade.
- Brenna se foi - disse ele, a garganta embargada de emoção. - Não me casei com você por querer que fosse como ela.
- Então por que foi, Cuchulainn?
Ele lhe tomou e beijou a mão.
- Porque você guarda um pedaço da minha alma, minha bela caçadora. E para me manter inteiro, preciso ficar perto de você.
Cuchulainn a beijou com o sal das lágrimas misturado ao intoxicante sabor masculino. Brighid sorveu dele e imaginou se um dia seria capaz de ter o bastante.
- Sonhei com você na noite passada - revelou Cuchulainn, a boca se movendo pelo vão do pescoço dela.
- Sonhei com você também - admitiu Brighid, as mãos ocupadas em desamarrar os cordões da camisa dele.
- Fui até você na névoa.
Brighid parou, os dedos ainda nos cordões da camisa.
- E você estava nu.
Cuchulainn afastou os lábios da pele dela e buscou-lhe os olhos.
- Uma voz feminina mandou que falasse o que estava no seu coração.
- E eu contei que o queria. Por inteiro. - A mão tocou o rosto dele. - Foi mais do que um sonho.
- Sim.
- A voz da mulher. Acho que era a Deusa - disse ela.
Cuchulainn sorriu.
- Acho que tem razão.
- Quero vê-lo novamente. Como estava na noite passada.
- Nu?
Ela assentiu.
- Não sou nenhuma virgem bobinha. Não vou fingir que não tive minha cota de amantes centauros, mas nunca vi um homem nu antes. Não tão de perto. Não assim. Digo,
exceto pela noite passada no meu... no nosso sonho. - Ela respirou fundo. - Quero ver você.
- Arrã - resmungou ele.
Brighid ergueu a sobrancelha.
- Está sendo tímido ou não quer ficar despido comigo?
- Nenhum dos dois. Eu só... - hesitou Cuchulainn, depois correu a mão pelo cabelo e exibiu para ela um sorrisinho desgostoso. - Isso também é novo para mim. Já tive
amantes, você sabe disso, muitas amantes. Mas nenhuma delas era uma centaura. Não sei ao certo...
Cuchulainn se calou quando ela pressionou os dedos sobre seus lábios.
- Que tal se nós dois parássemos de pensar tanto?
O sorriso que iluminou o rosto dele transformou o amante hesitante no jovem guerreiro libertino.
- Faz sentido. O amor tem mesmo pouco a ver com pensar.
Ainda sorrindo, Cuchulainn levantou-se e, num gesto rápido e experiente, desprendeu o kilt da cintura e o puxou para ficar nu diante dela.
Brighid engoliu em seco. O olhar vagou do rosto dele para a larga expansão do peito, que era bonito e familiar - normal. Cuchulainn poderia se passar facilmente
por um centauro. O torso portava o poder e a graça de um centauro. Mas ele não era centauro, disse a si mesma, não era e nunca seria. Acostume-se. Aceite-o como
ele é, assim como ele claramente a aceitou. Brighid conteve a respiração e baixou o olhar.
As pernas eram longas e musculosas. Já tinha visto boa parte delas antes. Cuchulainn geralmente usava kilt e as deixava expostas dos joelhos para baixo. Mas Brighid
nunca tinha visto as coxas nem o relevo musculoso que cobria as nádegas e afundava fluidamente na cintura. E nunca tinha visto a masculinidade exposta.
- Queria que dissesse algo - disse Cuchulainn.
Brighid deixou o ar escapar num suspiro.
- Não é tão ruim quanto pensei.
- Puxa, isso é muito lisonjeiro!
Brighid segurou-lhe o punho.
- Não sou muito boa nisso - suspirou. - O que estou tentando dizer é que você não é tão assustador quanto pensei. Nu, quero dizer.
- Assustador? Está com medo de mim?
- Um pouco. Só não estava muito certa do que esperar. A noite passada foi só sensação e calor. Nada estava muito claro. - Os olhos buscaram a parte abaixo da cintura.
- Hoje tudo está muito claro.
- E isso a deixa com medo de mim - constatou ele, girando a mão de modo a entrelaçar os dedos nos dela.
- Agora que está aqui, de verdade, diante de mim, acho que medo não é a palavra certa para o que estou sentindo. - hesitante, Brighid lhe tocou a coxa e deixou os
dedos brincarem na rigidez do músculo enquanto observava o corpo dele se agitar e reagir.
- Qual a palavra certa para o que está sentindo? - A voz de Cuchulainn soava tensa.
Brighid deslizou a mão de modo a acariciar o abdômen firme e plano.
- Fascinação... - murmurou. - Seu corpo me fascina. Há muito tempo, mais tempo do que estava disposta a admitir para mim mesma. - Quando Brighid tomou o membro rígido
nas mãos, Cuchulainn arfou e atraiu o olhar dela. - Se quiser que eu pare, tem que me dizer.
- Não quero que pare - ofegou ele.
Brighid não queria parar. Saber que seu toque, a mais leve lambida ou carícia, podia afetá-lo tão profundamente fazia com que se sentisse poderosa e apaixonada.
Era algo que estava além de ser centaura ou humana. Explorar o corpo de Cuchulainn fazia com que se deleitasse na própria feminilidade. Afagou-lhe a espantosa e
fascinante extensão rígida envolta por pele com textura de seda. Quando o levou ao clímax com as mãos, depois com a boca, descobriu um tipo diferente de paixão daquela
que tinha vivido com amantes centauros. Conheceu a alegria do prazer de seu amado, deliciando-se na maneira com que a satisfação dele tocava o mais íntimo de seu
próprio ser.
Naquela noite dormiram sem sonhos, de mãos dadas, corpos tão unidos que na escuridão era difícil dizer onde homem e mulher terminavam e onde a centaura começava.
Quarenta e Dois
QUANDO O BAIO tropeçou pela terceira vez, Cuchulainn puxou as rédeas. Brighid tinha que observar as próprias passadas. Os músculos sobrecarregados pareciam preocupantemente
frouxos e ela temia possuir pouco mais controle sobre si mesma do que os pobres cavalos possuíam sobre suas pernas equinas. Concentrou-se na redução gradual das
passadas e parou bem devagar para que não se envergonhasse tombando em cheio. Puxando o ar de maneira cuidadosa e controlada, girou de volta para onde Cuchulainn
estava parado junto do cavalo trêmulo.
- Ele não consegue ir mais longe. É determinado - vai tentar, mas acabaria morrendo. Vou deixá-lo aqui. Ele vai descansar e acabará encontrando o caminho para o
Castelo McNamara. Ou talvez uma das pequenas casas de fazenda o recolha - disse Cuchulainn.
Brighid limpou o suor do rosto.
- O capão está em melhor forma, e logo encontraremos um lugar para acampar.
- É verdade, ele ainda não está a ponto de desabar, mas acho que seria prudente irmos mais devagar.
- Concordo - respondeu ela, tendo o cuidado de esconder o alívio da voz. Não queria que Cuchulainn soubesse o quanto ela mesma estava perto de desabar.
Brighid olhou ao redor enquanto Cuchulainn retirava a sela do cavalo exausto. Vinham num ritmo puxado desde o amanhecer, escolhendo evitar o Castelo McNamara e os
luxos que poderiam receber lá. Preferiram poupar tempo cruzando as terras férteis e entrando na floresta bem mantida ao lado sul do Rio Calman, que os levou - enfim
- para os Outeiros Azuis. Agora, enquanto a noite caía, Brighid estava cercada de lembretes do motivo pelo qual o lugar se chamava assim. Os montes arredondados
estavam cobertos com antigas árvores cujas folhas grossas pareciam de um verde-azulado esfumaçado sob a luz fraca. Como os olhos de Cuchulainn, pensou ela. Espero
que seja um bom augúrio.
Maldição, estava cansada! Sentia-se trêmula e tonta, e de repente compreendeu muito bem como Niam tinha morrido de tanto correr. Brighid também estava chegando perto
do fim das forças. Talvez devessem acampar na clareira mais próxima e deixar para procurar um lugar para buscar pelo Cálice de Epona amanhã - depois que tivessem
dormido.
A pedra de turquesa suspensa entre os seios ficou desconfortavelmente aquecida e a águia teve que repetir o chamado por três vezes até seu guincho se registrar na
mente exausta de Brighid. Quando ela finalmente olhou para cima, enxergou a ave circulando numa espiral estreita acima de sua cabeça, um distinto facho dourado e
prateado no céu do anoitecer. No momento em que seus olhos se depararam com a águia, a ave interrompeu o círculo e planou preguiçosamente rumo ao sul, mantendo-se
baixo sobre as árvores.
Venha...
A pele de Brighid se arrepiou quando o chamado silencioso passou por sua mente.
- Cuchulainn, temos que ir.
- O que foi? - perguntou ele, dando um tapinha no traseiro do baio antes de pular cansado sobre seu confiável capão amarelado.
- Acho que sei como encontrar nosso local de acampamento.
Estreitando os olhos, Cuchulainn acompanhou o olhar dela rumo ao céu.
- Aquele não é o corvo da sua mãe, é?
- Não - murmurou ela. - É a minha águia.
Brighid seguiu a ave com Cuchulainn logo atrás. Ouviu o "arrã" abafado e não precisou ver o rosto dele para saber que ele estava fazendo cara feia para o céu. Talvez
devesse lembrá-lo de que era melhor começar a se acostumar à presença do reino espiritual na vida deles. Mas estava cansada demais - além disso, geralmente costumava
concordar com a desconfiança dele.
A águia chamou novamente, colocando a atenção oscilante de Brighid em foco outra vez. A caçadora se obrigou a entrar num trote pesado e ouviu o capão fungar cansado
enquanto penava para acompanhar o passo dela. Brighid só precisava se concentrar em colocar um casco antes do outro e em seguir a ave dourada que os levava cada
vez mais para fundo nos Outeiros Azuis, conduzindo-os numa trilha sinuosa que cortava as colinas arredondadas e cheias de árvores. A ave voava e voava, totalmente
esquecida de que os conduzia numa rota que ignorava as poucas estradas de comércio e de que logo estaria escuro demais para que vissem qualquer coisa - mesmo uma
ave dourada.
Brighid escalou mais uma das colinas pouco elevadas e teve que lutar para se manter de pé enquanto deslizava pelo surpreendentemente íngreme lado oposto. Quando
alcançou o fim do declive, ficou parada, respirando com dificuldade, agradecida por não ter pisado em falso de exaustão. Na condição em que estava, seria coisa simples
quebrar uma das pernas equinas - uma coisa simples com consequências desastrosas.
- Sente-se bem? - O capão de Cuchulainn parou ao lado dela, e o guerreiro num instante tinha desmontado do cavalo para lhe esfregar as pernas.
- Não estou machucada - assegurou-lhe, passando em seguida a mão trêmula pelo rosto e tentando sorrir. - Diria que o dia de hoje está parecendo um sonho, mas ultimamente
meus sonhos têm sido muito melhores do que isso.
A águia a chamou novamente, então Brighid franziu o cenho para o céu - depois ficou surpresa ao ver a águia empoleirada no galho mais alto de uma árvore próxima.
Em breve, caçadora... Vamos nos encontrar outra vez.
Ergueu-se com mais um grito, atingindo o ar da noite com suas asas imensas. Depois pareceu evaporar no céu.
- Aquela ave acabou de desaparecer? - perguntou Cuchulainn.
Porém Brighid não estava olhando a ave, mas sim o lugar para onde ela os guiara. Estavam à margem de uma pequena clareira circundada, à semelhança de uma ferradura,
por todos os lados, com exceção de um, por um círculo de colinas. Ela avançou sobre pernas trêmulas até a ponta mais distante da clareira, o lado que não estava
fechado por colinas cobertas de folhagem verde, e mesmo com a luz vaga e obscura do anoitecer conseguiu enxergar que o chão desaparecia e o terreno desabava e descia
até se estender no que era...
- A Planície dos Centauros - disse Cuchulainn, parando ao lado dela.
- Não percebi que estávamos assim tão perto - comentou Brighid, forçando a vista para divisar na crescente escuridão a campina ondulante que fora seu lar. - Então
a águia estava nos levando para cá.
- Na verdade, acho que provavelmente estava nos trazendo para cá.
Cuchulainn apontou por cima do ombro esquerdo de Brighid, que acompanhou o dedo para se deparar com o que a princípio considerou apenas mais um outeiro, que na verdade
era a grande boca de uma caverna. Um córrego corria de seu interior e tombava na beira da clareira. O estômago de Brighid apertou. - É uma entrada para o Mundo Inferior.
Como seu pai disse.
- Não esta noite. - Cuchulainn se encaminhou de volta ao capão e começou a puxar a sela e os pacotes do lombo do cavalo suado enquanto falava. - Hoje é apenas o
abrigo de um acampamento pronto. Nenhum de nós tem condições de viajar para canto nenhum - seja no mundo físico ou no Reino dos Espíritos. - Olhou por cima do ombro
quando não ouviu resposta, notando a posição teimosa dos ombros de Brighid. - Quer se arriscar a encarar o espírito da sua mãe esta noite?
- Não.
- Nem eu. Então dormiremos esta noite. Amanhã nos preocupamos com o Outro Mundo.
Brighid assentiu, tremendamente aliviada por Cuchulainn estar ali para impor lógica e sanidade numa jornada que não era nem lógica nem sã. Brighid sabia que o tempo
era curto - que talvez Bregon tivesse conseguido beber do Cálice de Epona -, porém a névoa de exaustão que estava em seu corpo e sua mente lhe dizia que buscar o
cálice naquela noite seria fútil, talvez até perigoso.
- Vou buscar lenha - avisou ela.
Antes que pudesse se arrastar até as árvores, Cuchulainn parou diante dela. Tomou-lhe a mão e a levou aos lábios.
- Você me faz lembrar Niam esta noite - disse, estudando-a com preocupação.
- Niam? - Brighid sacudiu a cabeça, confusa. - Eu não...
- Seus olhos estão fundos. A pele está avermelhada e você está andando como se fosse cair a qualquer momento.
- Niam se excedeu por pelo menos mais dois dias. Provavelmente não parou para comer nem para dormir. E não era uma caçadora. Não estava acostumada a se esforçar
fisicamente. Eu...
- Você está exausta - interrompeu ele novamente. - Leve o capão para o córrego. Deixe que se refresque. Refresque-se você também. Vou apanhar lenha.
Brighid começou a protestar, mas as palavras seguintes a detiveram: - Por favor, me deixe fazer isso por você.
Na noite anterior, Cuchulainn tinha se entregado a ela sem restrições e com tamanha intimidade que a surpreendia que o homem que tremia ao seu toque fosse o mesmo
guerreiro que ensanguentara a espada ao seu lado. Não poderia aprender a deixá-lo ter o mesmo acesso a ela? Cuchulainn não estava pedindo para fazer amor, mas estava
amando-a mesmo assim. Permitir a ele a intimidade de cuidar dela não seria apenas outro tipo de entrega?
Brighid o beijou, deixando os lábios se demorarem nos dele.
- Levo o capão para o córrego.
Cuchulainn sorriu e tocou-lhe o rosto. Depois entrou na floresta, que escurecia. Brighid levou o cavalo exausto até o córrego e o deixou beber à vontade antes de
massageá-lo, arrastá-lo e enfim observá-lo se ajeitar para pastar com cansaço. Depois ficou debaixo da queda d'água cristalina, deixando-a lavar o suor e a sujeira
de seu corpo enquanto fitava a distante negrura que escondia a terra de sua infância. Parecia apropriado que sua primeira visão da planície estivesse amortalhada
na escuridão.
- Para que tormento você está nos conduzindo, Bregon? - sussurrou. - Por que não pode simplesmente deixá-la morrer?
Cuchulainn encontrou Brighid parada perto da beira da clareira, fitando a escuridão. Sentiu um arrepio de desconforto. Não era o primeiro presságio que sentia naquele
dia.
Desde que entraram nos Outeiros Azuis, sentia-se inquieto. A princípio acreditou que era um sintoma da exaustão. Sua caçadora não estava exagerando quando se gabou
da própria resistência. Impusera um ritmo que seria impossível para um único cavalo e montador equipararem. Não pela primeira vez, fez uma prece de agradecimento
à sugestão do pai de trocar de montarias.
Mas agora concluía que a inquietação pouco tinha a ver com a jornada fatigante. Antes de Brenna ser morta, Cuchulainn teria ignorado qualquer insinuação de intuição
ou pressentimento que não pudesse ser explicado por algo tão mundano como a exaustão. A morte trágica de Brenna lhe ensinara que era imprudente e também perigoso
ignorar pressentimentos de qualquer tipo. Tinha aprendido uma lição dolorosa - e a aprendera muito bem. Diferentemente do dia em que Brenna foi morta, seria vigilante
e prudente ao proteger Brighid. Não permitiria que outro amor lhe fosse arrebatado. Não conseguiria sobreviver. Se alguma coisa acontecesse com Brighid, sua alma
se fragmentaria em tantos pedacinhos que seria impossível reconstituí-la novamente.
Por isso manteve a espada por perto e os sentidos alertas enquanto fazia uma fogueira na boca da caverna, descarregava os pacotes e esquentava a comida com que esperava
reanimar Brighid. Como ela não saía do lugar perto da beira da clareira, sua inquietação aumentou. Ao falar, a voz estava intencionalmente grosseira: - Pensei que
não gostasse de altura.
Brighid não respondeu a princípio, mas depois sua pelagem equina estremeceu. A centaura de pedra que parecia ser respirou fundo, tornando-se carne viva mais uma
vez. Brighid se voltou para ele. Os olhos estavam escuros e sombreados de cansaço e preocupação, mas ela sorriu e conseguiu imprimir um tom provocador: - Como é
que todos sabem que não gosto de alturas?
Cuchulainn deu de ombros e ergueu as sobrancelhas.
- Pensei que fosse uma coisa bem conhecida sobre centauros. - Ergueu o odre e o sacudiu para que ela pudesse ouvir o sacolejo pesado. - Tenho vinho.
Com um suspiro, Brighid caminhou devagar até a caverna e pegou o odre. Bebendo, olhou ao redor. A abertura era espaçosa. O topo terminava muito acima da sua cabeça,
mas o interior não correspondia à promessa de espaço da entrada. As paredes lisas cor de areia pareciam ter sido formadas por uma colher gigante escavando uma prova
do pequeno outeiro, porém se afunilavam num túnel ao fundo que mal era grande o bastante para o límpido córrego. A fogueira de Cuchulainn lambia as paredes com chamas,
transformando o marrom em dourado e laranja. Enquanto olhava, as cores se misturaram e borraram, parecendo por um momento que as paredes ao redor deles tinham se
incendiado. Brighid ouviu um silvo, acompanhado de um rugido crepitante que não poderia ter vindo da fogueira controlada. Sentiu o calor castigando sua pele, então
fechou os olhos para evitar-lhe a fúria.
- Brighid! - Cuchulainn estava ao seu lado, afagando-lhe o rosto e afastando para trás os cabelos ainda úmidos. - O que foi?
A centaura sacudiu a cabeça, piscando para clarear a visão.
- Eu... só estou cansada. Preciso dormir.
Cuchulainn a conduziu à fogueira, onde tinha arrumado os cobertores num colchão improvisado. Quando Brighid se reclinou, deixando as pernas tombarem e se dobrarem
debaixo dela, entregou-lhe um pedaço quente de carne envolto em fatias grossas de pão e queijo.
- Coma primeiro. Depois pode dormir.
Brighid assentiu e mastigou a comida automaticamente, mesmo se sentindo estranhamente alheia ao calor que o alimento espalhava por seu corpo. Ela e Cuchulainn não
conversaram, mas os olhos se encontraram com frequência - os dele cheios de preocupação, os dela, de exaustão.
- Amanhã - afirmou Brighid ao terminar de comer. Cuchulainn tirou os olhos da madeira com que alimentava o fogo, a expressão uma indagação. - Amanhã devemos começar
a busca pelo Cálice de Epona.
- Então que seja amanhã. Agora quero que tire todos os pensamentos sobre o Outro Mundo da mente. Durma, Brighid. - Ajoelhou-se ao lado dela e a beijou com carinho.
- Talvez eu durma até bem depois do amanhecer - avisou, aspirando o perfume e o toque dele.
- Não importa em que hora acorde. Estarei aqui - murmurou Cuchulainn.
Brighid fechou os olhos e rendeu a mente e o corpo à embriaguez do sono.
Quarenta e Três
SE ALGUÉM TIVESSE perguntado a Brighid se queria sonhar naquela noite, ela teria respondido com um sonoro "Não!". Só queria dormir - dar ao corpo tempo de se reenergizar
para que quando fosse exigido novamente os poços profundos de seu poder estivessem bastante abastecidos e disponíveis mais uma vez.
Não, não tinha nenhum interesse em sonhos naquela noite.
Então, quando se sentiu sendo puxada do corpo, ficou mais aborrecida do que alarmada ou amedrontada. Irritada, abriu os olhos e descobriu-se olhando para seu corpo
inerte. Cuchulainn ainda estava acordado e sentado vigilante ao lado dela, fitando melancólico a fogueira. Parecia cansado. As linhas no rosto, que se suavizaram
depois que lhe recuperou a alma, estavam de volta. Brighid automaticamente estendeu a mão, mas em vez de tocá-lo se viu sendo erguida mais e mais, através do teto
da caverna e adentro do céu da noite.
A caçadora ofegou e engoliu uma terrível sensação de tontura. Oh, Deusa! O que estava acontecendo com ela?
Fique em paz, minha criança. Não tema.
A voz de Epona! O coração de Brighid martelou dolorosamente num peito que claramente era mais espírito que corpo. Procurou aflita ao redor, mas não enxergou nada
além da lua altaneira, perfeitamente redonda e cor de manteiga no límpido céu da noite. Enquanto estava lá suspensa, tentando controlar as sensações misturadas de
deslumbramento e pânico, sentiu seu corpo espiritual começar a se mover. Devagar a princípio, flutuou para o norte. Abaixo dela, os Outeiros Azuis estavam escuros
e silenciosos. Em seguida sua velocidade aumentou, como se apenas um instante houvesse se passado. Estava do outro lado do Rio Calman. O Castelo McNamara chispou
por ela e os vinhedos ficaram borrados lá embaixo. Brighid queria desacelerar, controlar a terrível velocidade da jornada, mas seu espírito estava nas mãos da Deusa
- e estava óbvio que Epona estava com pressa.
A lua cintilava na líquida expansão negra do Mar de B'an. Brighid focou os olhos na vastidão que permanecia inalterada, não importava o quão rápido seu espírito
se acelerasse. Isso ajudou a reprimir a tontura da qual não conseguia exatamente se livrar, mas foi só quando seu espírito desacelerou notadamente que ela se permitiu
olhar da água para a terra. A caçadora ofegou surpresa.
Abaixo dela, o Castelo MacCallan estava cheio de vida. Tochas ardiam nas ameias e nos muros internos. Embora fosse tarde, os sentinelas caminhavam atentamente pelo
passadiço recém-reconstruído. A visão de seu lar adotado era prazerosa e dolorosa ao mesmo tempo. Adorava revê-lo, mas isso também a entristecia. Lembrava-lhe muito
bem o quanto ela e Cuchulainn prefeririam estar ali e não dormindo numa caverna solitária à margem da Planície dos Centauros.
O destino decretou outra coisa, criança.
A voz da Deusa tranquilizou-lhe a mente como uma carícia gentil, tanto que Brighid sentiu a melancolia ceder. Em seguida a caçadora sacudiu a cabeça, envergonhada
de si mesma. Quem era ela para questionar o destino e a vontade da Deusa? Brenna aceitara seu destino de bom grado. Niam abraçara o dela com honra. Poderia Brighid
fazer menos?
Pode questionar, criança, assim como também pode escolher. Acredito que escolherá sensatamente quando chegar a hora.
Brighid baixou a cabeça, submissa pela confiança nas palavras da Deusa.
Agora observe para que tenha o conhecimento necessário quando chegar a hora...
O corpo desabou numa velocidade que fez seus olhos turvarem, até Brighid parar num solavanco. Piscando para clarear a visão, percebeu que estava planando perto do
teto do Grande Salão. Abaixo, sentados nos lugares de costume à mesa do chefe do clã, estavam Elphame e Lochlan. A única outra pessoa no salão era a cozinheira-chefe,
Wynne. Estava de pé diante da mesa. Entre eles, sobre o tampo da mesa, havia um montinho de ervas recém-colhidas. Elphame estava distraída apalpando a larga folha
verde de uma das plantas, que Brighid achava ser manjericão.
Quando Ciara entrou apressada no Grande Salão, a atenção de todos abandonou as ervas.
O sorriso de Ciara era franco e curioso ao se aproximar da mesa e fazer uma mesura graciosa.
- Mandou me chamar?
- Sim - disse Elphame. - Sei que é tarde, mas foi só agora que Wynne nos contou. E eu queria falar com você sobre isso imediatamente.
- Isso? - perguntou Ciara.
- As ervas que as crianças andam cuidando - disse Elphame, apontando para a pilha perfumada.
A testa de Ciara se enrugou quando as sobrancelhas se juntaram.
- As crianças fizeram alguma coisa errada? Geralmente são muito boas com plantas. Pensei que não causariam nenhum problema na horta da cozinha. Mas se estragaram
alguma coisa, farei com que...
- Elas não estragaram as plantinhas, xamã - revelou Wynne, interrompendo o pedido de desculpas de Ciara. - Elas as fizeram crescer.
Obviamente confusa, Ciara olhou a pilha de ervas, a cozinheira, depois as ervas novamente.
- Não entendi.
Só Brighid notou que Etain tinha entrado no salão e ouvia a conversa com interesse.
- Bom, também não entendi, mas sei o que vejo com meus próprios olhos e toco com minhas próprias mãos. No espaço de três dias em que as crianças têm cuidado delas
cresceram mais do que teriam crescido em três semanas. As crianças fizeram as ervas crescerem - afirmou.
- Mas elas já não estavam crescendo? Tudo o que as crianças fizeram foi aguá-las e arrancar o mato.
- Acho que as crianças fizeram muito mais do que isso - ecoou a voz de Etain da entrada.
- Mamãe. - Elphame olhou aliviada para a Alta Sacerdotisa e acenou para que ela se aproximasse. - Estava mesmo para mandar chamá-la.
Etain sorriu para a filha, mas manteve grande parte da atenção focada em Ciara.
- Toque as plantas, xamã. E veja se elas conseguem lhe contar o que Wynne já sabe.
Hesitante, Ciara pôs as mãos esguias sobre a pilha de ervas. Fechou os olhos e respirou profunda e purificadoramente por várias vezes. Em seguida a boca formou um
"O" de surpresa e Ciara ofegou. Quando abriu os olhos, Brighid pôde ver que estavam cheios de lágrimas contidas.
- Conte às minhas filhas o que descobriu, Ciara - pediu Etain.
- As crianças fizeram mesmo as plantas crescerem! Ah, Deusa! - Tomada de emoção, a mulher alada curvou a cabeça e pressionou a mão na boca.
- Mamãe, o que foi? O que aconteceu? - perguntou Elphame.
- Epona deu aos neofomorianos um grande dom - explicou Etain.
- Elas nasceram da morte e da destruição, conviveram com a loucura e a perda - disse Ciara em meio a lágrimas de júbilo. - E agora nossa grande Deusa nos concedeu
a habilidade de cultivar vida.
- Isso não aconteceu agora - revelou Etain à xamã. - Elas sempre tiveram o dom - vocês sempre tiveram o dom. Como acha que conseguiram produzir vida e se prender
ao amor e à esperança sem ceder ao desespero completo na desolação dos Ermos?
- É, de fato, um grande dom - disse Elphame, tomando a mão do marido e olhando para o rosto amado. - E fomos ricamente abençoados por tê-los aqui conosco.
- Vocês são nosso lar, meu coração. Não existe qualquer outro lugar onde escolheríamos estar - disse Lochlan.
- Pense no que isso significa, Elphame! - entusiasmou-se Ciara. - Podemos ser úteis na produção de comida, não apenas para o Castelo MacCallan, mas também para comércio
e...
Brighid perdeu o resto das palavras de Ciara quando seu espírito subiu pelo teto do Grande Salão para o céu da noite. Desta vez, quando o chão borrou e seu espírito
disparou para o sul, os pensamentos de Brighid estavam preocupados demais com o que tinha acabado de testemunhar para que sua cabeça girasse e ficasse tonta.
Epona dera aos neofomorianos a habilidade de fomentar vida da terra. Pouco era de surpreender que Liam tivesse tamanha aptidão para compreender os espíritos dos
animais - ele tinha sido agraciado com afinidade com a terra e o cultivo. Para compreender os espíritos dos animais era um pulo.
Brighid estava feliz por eles. Eram um povo que tinha superado o grande mal e exibido o grande bem. Foi por isso que receberam a capacidade de cultivar, renovar
e germinar.
Lembre disso quando acordar, criança.
O espírito da caçadora se reassentou no corpo e Brighid ouviu as palavras de Etain ecoarem na memória: Conte às minhas filhas o que descobriu... A sacerdotisa tinha
dito filhas, não filha.
Devia saber que Brighid estava lá. Nenhuma surpresa, pensou a caçadora, sonolenta. Etain parecia possuir olhos e ouvidos por toda parte.
A caçadora dormiu, sem sonhos, pelo resto da noite.
O aroma sedutor de veado assado penetrou seu manto de sono e Brighid finalmente abriu os olhos, piscando por causa da luz forte do meio-dia. Cuchulainn cuidava de
um pernil borbulhante que espetara sobre o fogo. Os olhos se ergueram quando ela se mexeu. Ele a observou se alongar, e Brighid notou o alívio suavizar-lhe o rosto.
- Bom dia - disse ela. - O cheiro está maravilhoso.
- Boa tarde - replicou ele, que usou uma das adagas de arremesso para fatiar um pedaço de carne do pernil e depois espetá-lo. Sorrindo, caminhou até Brighid, deu-lhe
um beijo e entregou-lhe o bocado. - Seja bem-vinda.
Brighid mordiscou a carne quente e ergueu uma sobrancelha.
- Está tentando roubar meu trabalho?
- Dificilmente. Se eu fosse a caçadora de MacCallan, o clã provavelmente passaria fome. Gastei grande parte da manhã e quatro flechas para abater esse cervo novinho
e meio estúpido.
Ela sorriu.
- A falta de inteligência dele definitivamente não afetou desfavoravelmente o sabor.
- Provavelmente porque era estúpido demais para correr - resmungou ele.
Brighid deu uma gargalhada.
- Viu, já é melhor caçadora do que pensava.
- Não sou, mas colhi algumas batatas precoces e cebolas silvestres. - Cuchulainn cutucou com a ponta da bota o que ela teria tomado por rochas margeando a fogueira.
- Precisa comer o máximo que puder hoje. Até eu sei que uma jornada ao reino espiritual pode parecer durar apenas algumas horas quando na verdade se tornam dias.
- Então não está tentando me deixar gorda e feia para os outros homens? - perguntou Brighid, querendo apagar as sombras nos olhos preocupados dele.
- Estou tentando mantê-la viva.
- Cuchulainn, aconteceu alguma coisa?
- Não... sim... não tenho certeza - disse ele, passando agitado a mão pelo cabelo. - Me sinto inquieto desde que entramos nos outeiros. E este lugar... - apontou
para a caverna - ... me deixa nervoso.
- Mas não teve um pressentimento específico?
- Não. E eu tentei. Tentei ouvir com aquele meu outro sentido. - Cuchulainn suspirou: - Nada. Não sei se é por causa da minha falta de aptidão ou se é porque não
existe nada de específico.
- Talvez o pressentimento seja para lembrá-lo de ficar vigilante.
Cuchulainn começou a retrucar que era claro que seria vigilante - então lembrou-se de que nem sempre tinha sido assim. Fora alertado da morte de Brenna e não fez
nada para evitá-la.
- Talvez... O reino espiritual é um mistério para mim. - Olhou para Brighid e forçou-se a sorrir. - Mas sei o suficiente para garantir que esteja bem alimentada
antes de nossa visita. - Cortou outro pedaço de carne e o deu a ela.
- Visita - isso soa muito melhor do que jornada ou busca - disse ela. - Devo contar que visitei o Castelo MacCallan na noite passada nos meus sonhos.
Os olhos dele se fixaram nos dela.
- Brenna?
Brighid meneou a cabeça e conteve o ciúme que a atenção rápida e o tom tenso a fizeram sentir.
- Não, não foi nada como quando você ou Brenna vinham aos meus sonhos. Na noite passada, meu espírito estava desperto e consciente. Observei a mim mesma sair do
corpo e viajar até MacCallan. E ouvi a voz de Epona.
- O Sono Mágico - disse Cuchulainn, pensativo. - Minha mãe o descreveu muitas vezes. É a maneira como Epona geralmente se comunica com ela e permite que veja eventos
importantes no momento em que acontecem. - Em seguida seu olhar contemplativo tornou-se alarmado. - Estão todos bem no castelo?
- Muito bem - garantiu-lhe. - Mas acho que realmente testemunhei um evento importante. Aparentemente os neofomorianos guardam mais do que bondade e tenacidade. Epona
os presenteou com habilidade de nutrir coisas vivas. E de acordo com relato de Wynne, essa habilidade permite que acelerem o crescimento das plantas.
- Isso deve deixar Wynne feliz.
- Isso agradou a todos, inclusive sua mãe. - Brighid fez uma pausa. - Mas não entendi por que meu testemunho era importante.
- Talvez Epona queira que saibamos que está tudo bem com o clã para não nos dirigirmos ao Outro Mundo com preocupações que nos distraiam.
- Talvez... Sua mãe alguma vez comentou sobre ser vista numa dessas jornadas de Sono Mágico?
- Não que eu lembre. Eles a viram na noite passada?
- Ninguém agiu como se tivesse, apenas sua mãe disse uma coisa que me fez imaginar isso.
Cuchulainn sorriu e puxou com cuidado uma batata quente das brasas.
- Sabe que é impossível esconder qualquer coisa da minha mãe.
- Qualquer coisa importante - acrescentou Brighid.
- Confie em mim, geralmente parece que ela sabe de tudo.
Conversaram sobre o lar, o clã e os efeitos do dom inesperado dos neofomorianos enquanto comiam a nutritiva refeição de veado, batatas e cebolas silvestres, e Brighid
sentiu a força retornando. Depois ficou debaixo da gentil queda de água fria da caverna e fitou a beleza da Planície dos Centauros. A terra chamava sua alma. Podia
encontrar integração e conforto no Castelo MacCallan, mas sabia que ele nunca teria a capacidade de emocioná-la como a terra vasta de seu nascimento. Era fim de
primavera e em alguns lugares o capim já teria crescido acima da cernelha. Os azuis, rosa e vermelhos vivos das flores silvestres de primavera teriam aberto espaço
para as compridas flores brancas rendadas conhecidas como pingos de neve e as altas margaridas de miolo marrom que podiam ser encontradas em campos inesperadamente
ativos com os zumbidos de época de verão das abelhas. Brighid ergueu a mão para abrigar os olhos do clarão do sol de meio-dia e achou que conseguia divisar pontos
pretos no horizonte que poderiam ser bisões. Em seguida, a caçadora franziu o cenho para o que mais estava sendo registrado por seus olhos aguçados.
- Seca. - Cuchulainn estava de pé acima dela na beira da clareira e também estava olhando as pradarias ondulantes.
- Foi uma primavera seca em MacCallan, mas não fazia ideia de que estava afetando tão drasticamente as planícies. - Os olhos aguçados se estreitaram conforme Brighid
descartava a névoa romântica pela qual sua visão estava espiando para que enxergasse as pradarias sob nova perspectiva. - Deveria estar verde, tão rica e viva que
ao longe deveria parecer um cenário pintado na cor das esmeraldas. - Meneou a cabeça, sentindo o estômago apertar num mau pressentimento. - Mas está com o marrom
do outono.
- Não a vejo tão seca há anos, talvez desde que consigo me lembrar - comentou Cuchulainn.
- O que começou a Guerra Fomoriana?
A testa de Cuchulainn fez uma ruga.
- O ataque ao Castelo MacCallan, claro.
Brighid meneou a cabeça, sentindo a amargura do mau pressentimento na garganta.
- Antes disso. Décadas antes disso. Por que vieram para Partholon?
Os olhos turquesa se arregalaram com entendimento.
- Foram expulsos de suas terras por uma grande seca.
- É um mau agouro, Cuchulainn. Eu sinto isso, no fundo da minha alma. Acho que é hora de levar essa caçada ao fim.
- Concordo.
- Bom. Então vou contar o que minha mãe me ensinou sobre a Busca pelo Cálice de Epona.
Quarenta e Quatro
- SE CONTINUAR PARECENDO tão deprimido, vai me deixar nervosa - avisou Brighid a Cuchulainn.
- Sinto muito. Passei tanto tempo da minha vida evitando o Outro Mundo que é difícil entrar nele por boa vontade.
- Então não pense que está entrando no Outro Mundo. Estamos seguindo um rastro, lembra? Já caçamos juntos, Cuchulainn. Isso não será diferente.
- Exceto pelos espíritos e o fato de que não estaremos nos nossos corpos.
Brighid fez cara feia.
- Tudo bem! - Ele levantou as mãos em rendição. - Estamos numa caçada.
- Ótimo. Vamos revisar o que sabemos mais uma vez. - Brighid ergueu a mão para contar nos dedos. - Primeiro, preparamos o labirinto.
Os olhos de Cuchulainn procuraram o círculo espiralado de pedras que tinham montado no centro da caverna. As pedras se desenrolavam suavemente da espiral até o pequeno
túnel e o córrego.
- Ainda não gosto disso - disse Cuchulainn, encarando claustrofobicamente o buraco apertado no fundo da caverna.
- Também não gosto muito disso, mas se encaixa com tudo que seu pai e minha mãe disseram sobre o começo da jornada espiritual. Midhir nos direcionou para cá porque
os outeiros sempre foram associados ao Mundo Inferior. Minha mãe me disse muitas vezes que usar um labirinto era uma forma fácil de começar uma jornada espiritual,
e também de retornar ao fim de uma.
- Só estamos seguindo um rastro - repetiu Cuchulainn.
- É só o que estamos fazendo - concordou Brighid. - Mas quero que se lembre de que o labirinto é o caminho de volta para esse reino.
- Lembrarei - disse ele, cerrando o queixo. - Mas não retorno sem você, deve se lembrar disso.
Brighid buscou o olhar de Cuchulainn.
- É, voltarmos juntos ou nada.
Cuchulainn fez cara feia, mas o brilho travesso estava de volta aos olhos turquesa.
- Prefiro essa parte de voltarmos juntos.
- Pare de se preocupar - disse ela.
- Próximo.
- Depois... - Brighid estendeu o segundo dedo - ... você me encontra nos meus sonhos.
O guerreiro suspirou:
- Você fala como se isso acontecesse todos os dias.
- Cuchulainn, em menos de meio ciclo da lua você entrou nos meus sonhos quatro vezes.
Ele sorriu.
- Acho que não pode contar com a última.
Brighid lhe deu uma olhada inflexível.
- Na verdade, essa conta ainda mais. Compartilhamos o mesmo sonho e nenhum de nós estava com a alma despedaçada, o que significa que nossos espíritos se encontraram
em algum lugar do Outro Mundo. Só precisamos repetir o que já fizemos. - Cuchulainn ergueu as sobrancelhas e arrancou um sorrisinho dela. - Menos o sexo - acrescentou.
- Então encontro você nos seus sonhos.
- Essa seria a melhor para começarmos.
- Agora o seu tom, sua maneira de me olhar me lembraram meu pai - disse Cuchulainn.
Brighid ergueu um dos cantos da boca.
- Isso é para fazer com que eu me sinta melhor quanto à jornada ou está me dizendo que nosso casamento está em risco?
Cuchulainn sorriu.
- Não está se concentrando.
- Terceiro... - Brighid estendeu outro dedo - ... quando nossos espíritos estiverem juntos, seguirmos pelo labirinto, a começar pelo centro, rodando e rodando até
a entrada do túnel.
- Então caímos no Mundo Inferior. - Todo traço de humor tinha deixado a voz de Cuchulainn.
- Sim, mas só porque é lá que uma Jornada Xamãnica tipicamente começa. Não ficaremos lá. Seu pai disse que o Cálice de Epona não se encontra no Mundo Inferior, e
minha mãe costumava indicar o mesmo. Acredito que o Cálice de Epona esteja no mais alto reino dos espíritos - o Mundo Superior - o reino onde a Deusa geralmente
é encontrada. - Brighid lhe tomou a mão. - Lembre-se, Cuchulainn, existem três níveis no reino espiritual - o Mundo Inferior, o Mundo Médio e o Mundo Superior. Não
podemos nos perder nos dois primeiros. Vá sempre subindo o caminho e não deixe nada persuadi-lo a ignorar nosso propósito.
- Lembrarei. Estou pronto.
- Cuchulainn, há várias coisas que minha mãe deixou bem claras sobre essa jornada. A primeira é enganosamente simples porque qualquer criancinha aprende isso quando
começa a praticar rituais e testar sua aptidão para o reino espiritual.
- Deixe os problemas da vida no reino físico. Não os carregue consigo para o Outro Mundo - disse Cuchulainn. - Sei disso tão bem quanto você.
- Você sabe - só estou lembrando você de seguir a regra - disse Brighid com seriedade. - Por nós dois.
- Por nós dois - repetiu ele, beijando-lhe a mão. - Vou apagar o fogo e garantir que o capão fique bem.
Brighid assentiu e lhe exibiu um sorriso que deveria encobrir o medo e a dúvida que espreitavam por trás da fachada confiante. Enquanto Cuchulainn organizava o acampamento,
ela caminhava de um lado ao outro da extensão da caverna, repassando os detalhes pequenos e desconexos da jornada espiritual de sumo xamã que sua mãe lhe borrifara
ao longo da infância. Uma coisa que a mãe dissera ficava rodopiando sem cessar na cabeça de Brighid: Antes de beber do cálice, você deve encarar seu maior aliado
e seu inimigo mais poderoso - e os dois são ao mesmo tempo um.
Não sabia ao que a mãe estava se referindo na época, e com certeza não tinha recebido nenhuma informação iluminada que esclarecesse o enigma agora. Só lhe restaria
dar o pulo e confiar em si mesma, na Deusa e no homem ao seu lado.
- Está tudo pronto - disse Cuchulainn, adentrando a caverna. - Ainda é o princípio da noite, com sorte estaremos de volta antes do amanhecer.
- Não conte com isso. O tempo passa diferente no Outro Mundo.
- Então vamos começar logo.
Cuchulainn estendeu a mão para Brighid, que se juntou a ele no catre que arrumaram cuidadosamente no centro do labirinto de pedras. Ao lado deles estava um odre
cheio e um embrulho de pão e queijo. A primeira coisa que deviam fazer quando retornassem era comer e beber para que seus corpos se reestabelecessem no reino físico.
- Estamos esquecendo alguma coisa. - Brighid olhou ao redor da caverna até encontrar o que precisava na bainha de Cuchulainn. Puxou com cuidado a lâmina reluzente
e voltou para o marido no centro do labirinto. Ele ergueu uma sobrancelha.
- Eu me sentiria melhor se você segurasse isso. Sei que não pode levá-la fisicamente conosco, mas todas as coisas possuem alma. Talvez o espírito de sua espada se
digne a nos acompanhar.
- Aliviaria minha mente se ela o fizesse - comentou Cuchulainn, fechando a mão no punho familiar.
Deitaram-se no catre, encaixando os corpos. Brighid suspirou, contente que a falta de jeito físico que antes existira entre eles tivesse desaparecido. Pressionou
a cabeça no peito largo. Antes de fechar os olhos, tocou a pedra de turquesa alojada entre os seios.
- Apenas respire, Cuchulainn. Relaxe o corpo e faça sua alma acompanhar a batida de seu coração até mim - murmurou.
- Estarei lá. Não a deixarei sozinha.
Brighid o beijou antes de fechar os olhos e começar a respiração profunda e purificadora que a induziria ao estado de transe. Era um exercício simples para ela.
Usava-o com frequência para seguir os rastros espirituais dos animais. Então entrou em estado meditativo rápido. Só que desta vez, em vez de focar a concentração
na presa escolhida, a caçadora bloqueou tudo, exceto a batida do coração de Cuchulainn.
Os tambores xamãnicos são a maneira mais fácil de encontrar uma abertura para o Outro Mundo. Tudo na vida pulsa com eles. Escute e encontrará uma abertura para o
espírito da terra.
A mãe tinha dito essas palavras para uma Brighid muito jovem que reclamara quando Mairearad demorou muito tempo para escolher um simples tambor. Brighid lembrava-se
de estar ansiosa para deixar a multidão e o calor do mercado ao ar livre, e ao menos uma vez a mãe não a repreendeu pela reclamação. Preferiu explicar à filha por
que a escolha do tambor era importante para uma sumo xamã.
Na época, Brighid desconsiderara as palavras da mãe, ficando apenas grata porque de alguma forma tinha evitado uma reprimenda. Agora estava usando a memória para
começar sua própria busca. Não possuíam um tambor, e mesmo que possuíssem um Cuchulainn não desejaria ficar nesse reino batendo nele enquanto Brighid entrava no
Outro Mundo sozinha. Ponderou sobre as palavras da mãe, tentando encontrar um meio-termo. Mairearad tinha dito que tudo na vida pulsa ao som dos tambores... vida...
a pulsação da vida... e de repente Brighid soube com clareza. O coração do marido seria a cadência vital que ela seguiria até o Outro Mundo.
Então pressionou a cabeça ao peito dele e deixou a forte cadência guiá-la.
Tump-tump... tump-tump... tump-tump... tump-tump...
Era mais mágica que um tambor, mais primitiva e real, e Brighid a acompanharia com satisfação até os confins da Terra.
Quando o espírito dela saiu do corpo, foi uma sensação diferente da vivenciada nos sonhos ou mesmo no Sono Mágico. Seu espírito estava rodeado pelo calor da pulsação
de Cuchulainn, e Brighid ficou por um momento parada ao lado dos corpos deles, ouvindo com a alma.
- Estava certa. Não foi tão difícil quanto pensei - disse Cuchulainn. Estava de pé ao lado dela, o corpo iluminado por um delicado brilho dourado. Na mão, ele apertava
uma cintilante espada branca.
- Ela veio com você - disse Brighid.
- Acho que a segurei tão forte que ela teve pouca escolha - disse o guerreiro. Em seguida, Cuchulainn ergueu a outra mão para lhe tocar o rosto. Brighid sentiu a
carícia como uma brisa morna sobre seu espírito. - Você fica incrivelmente linda assim, toda prateada e reluzente.
- Você está dourado - disse Brighid, tocando-lhe o ombro com delicadeza.
Ele olhou para sua própria forma espiritual e grunhiu. Depois ergueu os olhos.
- Vamos.
- Temos que seguir o labirinto. Sempre à direita na jornada para lá, e à esquerda quando retornarmos - disse ela, tomando a direção apropriada e começando a espiral
circular.
Conforme seguiam a trilha de pedras, Brighid notou que as paredes da caverna mudaram, escureceram numa caverna tão vasta que quando alcançaram o que costumava ser
um pequeno buraco no fundo se viram de pé diante de uma áspera porta rochosa na qual estava escrito awen.
- Inspiração - murmurou Brighid. - É o que significa na língua antiga dos xamãs.
- Sua mãe contou isso?
Brighid sentiu a alma estremecer de animação.
- Não. Ninguém me contou. Apenas compreendi.
- Então é por aqui que vamos. - Cuchulainn abriu a porta e ergueu a espada de forma protetora. Mas antes que pudesse dar um passo adiante, Brighid tocou-lhe o braço.
- Tenho que seguir na frente a partir daqui, Cuchulainn.
Seu assentimento foi pouco mais do que um movimento da cabeça, mas Cuchulainn ficou de lado para deixá-la preceder pela entrada. Brighid arfou, depois desapareceu.
- Brighid! - chamou ele, segurando a espada diante de si e preparando-se para mergulhar atrás dela na escuridão.
Então uma risada borbulhou lá de baixo.
- Não é nada mal, apenas relaxe e siga o ensejo.
Acompanharia o ensejo porque ela estava lá embaixo, mas dificilmente relaxaria. Cerrando os dentes e apertando bem a espada, passou pela entrada e seu corpo caiu.
Foi espiralando suavemente para a direita, lembrando-lhe das poucas vezes em que nevara o suficiente para que o chão do templo da mãe ficasse coberto pela brancura
escorregadia e ele, El e os gêmeos construíssem trenós infantis e descessem por qualquer superfície que fosse ao menos inclinada.
Quando os pés tocaram o chão, Cuchulainn levou um momento para se reorientar. Desta vez ele e Brighid estavam parados diante de um portal redondo. Brighid lhe tocou
o braço novamente.
- Tenha cuidado. Esta é a entrada para o Mundo Inferior. É o nosso destino.
Sem esperar por resposta, atravessou o portal e emergiu num mar de nevoeiro. A névoa cinza lambeu seu corpo espiritual, fazendo-a tremer. Ouviu o resmungo surpreso
de Cuchulainn e logo deu um passo atrás para entrelaçar os dedos nos dele.
- Pela mão da Deusa! Foi onde nos encontramos no nosso último sonho - sibilou Cuchulainn.
- Brighid... - A voz desencarnada veio da névoa e arrepiou a espinha da centaura. - Brighid... - repetiu a voz.
- Não devemos ficar aqui. - A voz de Cuchulainn refletia a tensão dele.
- Espere, Cuchulainn. Conheço essa voz.
A névoa diante deles se partiu e Niam apareceu.
- Niam! - gritou Brighid, avançando automaticamente para cumprimentá-la, mas a irmã deu um passo para trás, ao mesmo tempo que Cuchulainn segurava o braço da esposa.
- Irmã, não deve entrar no Mundo Inferior nessa jornada. - Depois Niam sorriu e o rosto iluminou-se, fazendo o coração de Brighid apertar. - Só estou aqui para fazer
uma pergunta. A resposta decidirá se deve prosseguir ou se deve retornar ao mundo físico. - Mas em vez de fazer a pergunta, Niam se voltou para o guerreiro ao lado
da irmã. - E o que fará se minha irmã não beber do Cálice de Sumo Xamã? Dirá que o casamento foi um erro e voltará ao conforto de seu castelo, para aqueles que o
amam?
- Não me conheceu em vida, então não vou ficar ofendido com a pergunta. Não creio que queira me insultar; por causa disso, responderei. Quer Brighid beba ou não
do Cálice de Epona, nosso casamento não vai terminar. Aonde ela for, eu irei. Ficarei ao lado dela se o fogo tentar nos queimar, se os mares tentarem nos afogar,
se a terra estremecer em desordem. E honrarei o nome dela como se fosse o meu até a morte e, se Epona permitir, muito além.
- Só porque sua resposta mais parece um juramento? - perguntou o espírito de Niam, impassível com a resposta do guerreiro.
- Porque ao fazer o juramento entreguei a ela meu coração. Para mim, é tudo a mesma coisa.
Niam enfim sorriu, parecendo muito com a irmã mais velha.
- Apesar de ser apenas um humano, talvez seja digno dela. - Então o olhar abandonou o guerreiro e se focou novamente na irmã. - Por que deseja se tornar sumo xamã,
Brighid?
Tomada de surpresa pela pergunta da irmã, Brighid só conseguiu piscar e encarar a centaura adorável que fora tão frágil durante a vida e que agora, morta, parecia
muito forte e confiante.
- Responda agora, Brighid Dhianna! - A boca de Niam formou as palavras, mas a voz soou estranha e poderosa. Mas fez Brighid falar: - Quero me tornar sumo xamã porque
estou cansada de tentar escapar das responsabilidades com as quais nasci. Muitas tragédias, desde a morte de uma menina há muito tempo, até sua morte recentemente,
aconteceram porque me recusei a encarar meu destino.
- Qual é seu destino?
- Acabar com a praga que o reinado da minha mãe espalhou.
- E quanto aos seus desejos pessoais?
Brighid ergueu o queixo.
- Eu pertenço a Cuchulainn e ele, a mim - quer eu tenha ou não a capacidade de me transformar.
Niam sorriu e a voz voltou ao normal: - Quando falei de desejos pessoais, não me referia ao seu marido, irmã. Como sumo xamã, você deterá grande poder. Que me diz
disso?
Desta vez, Brighid pensou antes de responder. Sempre gostou da sensação de sentir os espíritos dos animais. Dependia dessa habilidade e a usava para o bem. E lembrou-se
do ímpeto de agitação que sorver o espírito de Cuchulainn lhe trouxera. Não apenas beijá-lo pela primeira vez, mas possuir o poder de guiar o espírito dele de volta
ao corpo. Poderia se opor a Ciara, Cuchulainn, e até mesmo Etain, mas sabia que no fundo da alma se deliciava com o poder que fervia em seu sangue.
Procurou pelos olhos de Niam devagar.
- Acho que terei que ser muito cuidadosa para utilizar com sabedoria tamanho poder - ouvir mais à Deusa e à minha própria consciência do que às emoções e desejos.
O sorriso da irmã foi radiante.
- Então que Epona os abençoe com seu cálice. - Niam fez um amplo floreio com o braço, e à direita da caçadora e do guerreiro a névoa se revolveu e borbulhou antes
de se entreabrir para expor um lance de degraus de pedra cinza que subiam e desapareciam em meio a mais cinza.
Brighid se virou para se despedir da irmã, mas a névoa já tinha se fechado, obscurecendo a silhueta da centaura. A caçadora aprumou os ombros e disse a Cuchulainn:
- Vamos subir.
Quarenta e Cinco
OS DEGRAUS ERAM largos o bastante para permitirem que Cuchulainn os subisse ao lado de Brighid. Quando entraram na névoa outra vez, ele manteve a espada de prontidão.
Talvez isso não devesse confortá-la, mas confortava.
Por fim a escada de pedra terminou e um vento morno varreu o rosto deles, dissipando a névoa para revelar que estavam de pé numa plataforma com vista para um brilhante
rio de luz. Os olhos de Brighid e Cuchulainn foram compulsivamente atraídos para as águas cintilantes. Enquanto observavam, o líquido marulhante rodopiou e cenas
do passado de cada um tomaram forma fantasmagórica dentro das profundezas cristalinas.
Cuchulainn quando menino, levantando sua primeira espada verdadeira... Brighid correndo com abandono selvagem por um mar de capim alto... Cuchulainn segurando Elphame
nos braços enquanto Brighid carregava ambos no lombo até a segurança do Castelo MacCallan... Brighid curvada sobre os rastros em forma de garra, lendo a história
da morte de Brenna...
- Pare! - gritou Brighid, segurando os ombros de Cuchulainn e girando-o para que ficasse de frente para ela. - Não olhe para o rio!
- O que foi? - A voz dele estava rouca, mostrando que Cuchulainn estava profundamente mexido.
- É o Mundo Médio. - Diante do olhar vazio, Brighid quis praguejar e ralhar com ele por não prestar atenção direito às lições sobre o Outro Mundo. Terá que aprender
mais tarde. Mas agora não era hora de ralhar com ele, então preferiu explicar: - O Mundo Médio é o lugar das jornadas no tempo e espaço. O rio nos mostrará seu passado,
meu passado, o passado do nosso mundo, até mesmo o de outros mundos e lugares que nos são estranhos. Seria fácil se perder aqui - aconteceu com muitos. Mas não podemos
deixar que o rio capture nossas almas, Cuchulainn. Devemos prosseguir.
- Ele pode me mostrar Brenna, a morte dela, ou até a última vez em que estivemos juntos em vida.
- Pode - disse Brighid, ignorando a dor que as palavras dele lhe causavam. - Se realmente quiser, pode ficar aqui perdido nas águas do passado. Não vou odiá-lo por
isso. Até o liberaria do juramento que me fez. - Então Brighid respirou fundo e não deixou que a aflição ou o anseio matizasse suas palavras. A voz era a de uma
caçadora forte em suas convicções e confiante em si mesma. - Mas saiba disso, Cuchulainn. Quero que tome sua decisão e quero que seja agora. Escolha Brenna e o passado
de vocês, ou a mim e nosso futuro. Eu também a amava, mas não dividirei meu marido com um fantasma.
Cuchulainn se sobressaltou como se tivesse recebido um golpe, depois piscou e olhou ao redor como se apenas agora compreendesse realmente onde estavam. Quando seus
olhos tocaram a superfície atraente do rio, desviou depressa o rosto.
- Escolho você e nosso futuro. Escolhi isso quando nos casamos e não pretendo ficar livre desse juramento nem agora nem nunca. Por mais que este Reino dos Espíritos
torne o passado sedutor.
- Então vamos - disse ela, sem querer dar voz ao alívio que as palavras dele a fizeram sentir.
- Para onde?
A caçadora apontou o queixo para a direita.
- Por ali.
Cuchulainn se virou e viu uma porta aberta que levava para o interior negro do que obviamente era um monte funerário, cujo exterior estava coberto por grama e flores.
Grandes lajes de pedra branca achatada delimitavam a porta. Cuchulainn ficou de lado para que Brighid o precedesse, mantendo atentamente os olhos na caçadora e não
no rio prateado que cintilava sedutoramente à margem de sua visão.
Quando Brighid entrou no monte escuro, o som do guincho zangado de um corvo ecoou atrás deles, e com uma intuição que parecia sobrenaturalmente aprimorada pelo poder
do reino espiritual Brighid soube que sua mãe de alguma forma tinha orquestrado a tentação do Mundo Médio a Cuchulainn.
O que significava que devia ser importante que o guerreiro a acompanhasse - se Cuchulainn fosse insignificante, não seria alvo de Mairearad.
- Tudo bem? Por que paramos? - A voz de Cuchulainn soou na escuridão atrás dela.
- Está tudo bem, Cuchulainn. - Mesmo que ele não pudesse enxergar no escuro, Brighid apontou com a cabeça um fraco facho de luz mais à frente. - Vamos seguir aquela
luz.
Andaram depressa e logo se viram no limiar de outra porta, que era iluminada pelo luar. Juntos, transpuseram a porta para o Mundo Superior.
Diante deles se estendia uma densa floresta. Mesmo sob o luar, podiam ver que as árvores, a grama e as flores estavam pintadas com cores estranhamente vivas. Três
caminhos saíam da entrada onde estavam, cada um desaparecendo nas profundezas verdejantes da floresta.
- Qual deles seguimos? - perguntou Cuchulainn.
Brighid clareou a mente e tentou sentir o caminho, depois suspirou frustrada por não se sentir guiada por nenhum deles em particular. De fato, ao estudar cada um
deles com mais atenção, percebeu que estava enganada. Não que nenhum dos caminhos não a chamasse. A verdade era que todos eles a atraíam. A música que fluía de cada
um deles era encantadora e mágica, fazendo-a querer nada mais do que se livrar da rede de responsabilidades na qual aquela busca tentava enrodilhá-la. Poderia ficar
ali e seguir aqueles caminhos por uma eternidade. Poderia correr por eles, assim como saía em disparada pela Planície dos Centauros na juventude. Estaria livre,
feliz e rodeada por música, depois...
- Brighid!
A centaura piscou e meneou a cabeça, tentando livrar a mente do chamado sedutor da música.
- Brighid! Não pode me deixar!
Os olhos dela clarearam no mesmo instante em que a música parou. Cuchulainn a encarava com olhos arregalados. Tinha enfiado a ponta da espada no chão entre eles
e com ambas as mãos segurava Brighid, que tentava se desvencilhar e sair em disparada por qualquer um dos três caminhos.
- Eu... eu estou aqui. Estou de volta - respondeu ela, a voz ficando mais forte conforme continuava falando: - Foi a música. Ouviu a música me chamando?
- Não ouvi nada além do guincho de um corvo. - A voz dele estava inflamada. - Nada mais, Brighid. Você não fez som nenhum. Primeiro não se mexia, não respirava,
não me respondia. Seus olhos estavam vazios. Depois começou a avançar como se fosse uma morta-viva. Mesmo quando a agarrei para que não se afastasse, você agia como
se eu não estivesse aqui - ou talvez fosse você quem não estivesse mais aqui.
- Estou de volta. - Tocou-lhe o rosto com carinho, estremecendo por saber que a mãe tentara enfeitiçá-la também. - Você me chamou de volta.
- Sempre chamarei você de volta de onde quer que vá. - Com relutância, deixou que as mãos soltassem as dela. Cuchulainn puxou a espada do chão e passou a mão pelo
cabelo. - Mas agradeceria se não sumisse novamente.
Ela sorriu antes de voltar a atenção para os três caminhos. Desta vez, quando a música encantadora sussurrou, Brighid resistiu, recusando-se a ceder à sedução. E
conforme resistia, a música se transformou até não ser mais do que o eco do grito zangado de um pássaro. Então sentiu a pedra que pendia entre seus seios esquentar.
Instintivamente, fechou a mão sobre a turquesa e palavras estranhas e inexpressivas passaram por sua mente quando o espírito da pedra falou com ela: Lembre-se de
quando me recebeu.
- A águia - murmurou Brighid. Então sorriu e falou as palavras com confiança: - Chamo por meu guia espiritual, a águia dourada!
O grito ecoou do céu enluarado quando a ave veio em disparada, circulou Brighid uma vez e depois se empoleirou regiamente no galho mais baixo de um dos antigos carvalhos
à beira da densa floresta.
Brighid curvou a cabeça para a ave e cutucou um pasmo Cuchulainn para que fizesse o mesmo.
- Obrigada por atender ao meu chamado - agradeceu Brighid.
A águia dourada inclinou a cabeça para estudar a caçadora.
Quer continuar a jornada? A pergunta ressoou claramente na mente de Brighid. Pelo canto dos olhos, viu Cuchulainn se sobressaltar surpreso, então compreendeu que
ele também podia ouvir a ave.
- Quero.
Então me diga, caçadora, qual desses três caminhos escolheria?
- Nenhum deles. - Brighid não hesitou, apenas deu a resposta que lhe pareceu mais verdadeira em sua alma. Se a criatura de sua mãe tentara impeli-la por aqueles
caminhos, deveria negar-se a ir, mesmo que a logística de entrar na floresta por outro caminho parecesse impossível. Era como se, no curto espaço de tempo em que
ficaram parados diante da antiga floresta, as árvores tivessem engrossado e o que a princípio parecera um carpete macio de grama tivesse se transformado numa barreira
de arbustos e sarças. O único jeito de entrar na floresta era claramente um dos três caminhos - todos os quais ela acabara de rejeitar.
Escolheu com sabedoria. Acompanhe-me, caçadora, e torne-se quem está destinada a ser.
A águia deixou a árvore, voando impossivelmente baixo entre dois carvalhos imensos direto para dentro da floresta agourenta.
- Talvez eu deva ir na frente desta vez - disse Cuchulainn.
Brighid concordou, aliviada por Cuchulainn não ter discutido ou questionado por que estavam seguindo a águia através daquela bagunça em vez de entrarem na floresta
através dos caminhos claramente marcados.
O guerreiro ergueu a espada e retalhou os espinhos de aparência perigosa. Brighid o ouviu rosnar de surpresa. Ela espiou por cima do ombro dele e viu que quando
a luz branca da espada tocava a barreira espinhosa as plantas desapareciam em pequenas nuvens de fumaça verde. Cuchulainn a olhou de relance, sorriu e adentrou a
floresta atrás da ave. Resoluta, Brighid o acompanhou, notando que, mais uma vez, a águia os guiava intencionalmente para longe de qualquer trilha preestabelecida
- como fizera quando os guiou através dos Outeiros Azuis.
A floresta abria caminho para Cuchulainn com crescente facilidade. Logo ele não precisou mais usar a espada, e os dois seguiram a águia facilmente. O que a princípio
parecera impenetrável, tinha se transformado por completo. Ainda era exuberante em árvores antigas, mas o leito florestal estava limpo, plano e acarpetado com uma
greda de folhas aromáticas. Viajar por ali era um deslumbramento, não uma dificuldade.
De repente Cuchulainn parou de caminhar.
- Pela Deusa... - murmurou. - Olhe aquilo.
Acompanhando o olhar do guerreiro, Brighid ofegou. Bem à esquerda de onde estavam, o chão da floresta se abria subitamente como a bocarra de uma fera grande e misteriosa.
Cada um dos três caminhos que a chamavam com a música sedutora de sua mãe terminava naquele buraco espantoso. Brighid sabia que nem o teria visto. A música a cegaria
e ela teria caído naquele poço. Só a Deusa sabia onde ele terminava, mas certamente não levava ao Cálice de Epona. Se Brighid tivesse escolhido um dos três caminhos
fáceis, sua busca teria se encerrado ali.
Às vezes escolher o que parece impossível é a única maneira de encontrar o caminho para o futuro.
A voz da águia soou na mente dela novamente conforme suas asas farfalhavam no ar acima da cabeça deles, conduzindo-os para bem longe do poço. Eles seguiram a ave.
Não tinham caminhado muito quando a floresta cedeu espaço para uma clareira relvada, brilhante com a luz prateada da lua. No centro havia uma bacia de pedra, que
estava coberta com entalhes de nós e runas antigos, todos entrelaçados na forma graciosa da silhueta da Deusa com os braços erguidos sobre a cabeça, de modo a parecer
que as mãos de Epona estavam tocando a água que borbulhava da fonte. Sobre a beira da bacia estava um reluzente cálice dourado com o nó triplo das éguas de Epona
a decorá-lo. A águia circulou a clareira três vezes antes de se empoleirar no único carvalho que sombreava a fonte borbulhante.
- É o Cálice de Epona - disse Brighid numa voz abafada e reverente.
- Vá, meu amor. Pegue o que é seu por direito.
- Só se vier comigo - respondeu ela.
Cuchulainn a beijou com carinho.
- Onde quer que vá, lá eu estarei também.
Juntos caminharam até a bacia, mas, conforme se aproximavam, Cuchulainn instintivamente desacelerou os passos e deixou Brighid seguir na frente. Ele a vigiaria e
protegeria, mas não podia compartilhar do que ela estava prestes a vivenciar.
Brighid foi lentamente até a bacia. Mas em vez de encher imediatamente o cálice e beber, concentrou sua atenção na água. Ela borbulhava a partir do centro da bacia,
cintilando como luz líquida. Brighid afundou a mão na água. Parecia viva. Quando ergueu a mão, a água que escorreu se assemelhava a contas de luar caindo de seus
dedos. Então ela fitou a bacia, cuja superfície estremeceu, como se uma rajada de vento tempestuoso a tivesse açoitado. Os olhos de Brighid se arregalaram. Na água
ela viu o reflexo do irmão tomar forma. Ele também estava diante da bacia. Enquanto ela observava, Bregon espiou as profundezas da água, exatamente como Brighid
tinha feito. Mas ele não tocou a água, seu rosto não registrava o espanto que preenchera Brighid ao entrar no bosque de Epona.
- Inimigo - aliado... Não tenho tempo para isso! - A voz de Bregon ecoou assustadora do passado refletido. - O que mais importa é que fui bem treinado e que usarei
meu poder por minha manada. - Sem mais palavras, as mãos dele se fecharam possessivamente ao redor do Cálice de Epona. Bregon o afundou na água, levou-o aos lábios
e bebeu avidamente. Quando terminou de beber, jogou o cálice na bacia, atirou a cabeça para trás e gritou vitorioso.
Embora seu estômago parecesse contraído e enjoado, Brighid continuou assistindo ao irmão dar as costas para a bacia e desaparecer na floresta. Então seu fôlego ficou
preso na garganta. Quando olhou novamente a bacia, o leve contorno do espírito ainda permanecia lá. Outra silhueta do centauro se formou no meio do bosque, depois
os contornos cintilantes de outro e mais outro apareceram próximo às árvores. Deusa! Todos eram Bregon! Seu corpo estava quase que completamente transparente em
cada uma das aparições, fazendo com que Brighid só conseguisse identificar vagamente a forma quando se focava no fraco cintilar prateado que contornava o corpo.
Todos os espíritos do irmão estavam encarando silenciosamente o mais substancial deles, o centauro que estava ao lado da bacia. A cabeça estava curvada e, enquanto
os outros olhavam, ele recuperou o cálice descartado e o recolocou no lugar. Deixou de encarar o reflexo e olhou diretamente nos olhos da irmã. O rosto fantasmagórico
estava banhado em lágrimas.
Então ele e os outros desapareceram.
Brighid sabia que tinha testemunhado o irmão bebendo do Cálice de Epona. Ele era o sumo xamã agora - estava certa disso. Tão certa quanto estava de ter visto no
reflexo do passado na bacia o despedaçamento da alma de Bregon. Uma súbita onda de tristeza obscureceu a preocupação que Brighid sentia pela manada. Bregon deixara
tanto da alma para trás! Cuchulainn só tinha vivenciado uma única perda do espírito, o que lhe transformara numa triste casca de si mesmo, tão desolado e desesperançado
que pensou em acabar com a própria vida. Não conseguia imaginar o que estaria acontecendo ao irmão. Como poderia viver tão fragmentado?
Brighid suspirou e deixou os dedos deslizarem sobre a água viva novamente. Tudo isso era tão errado. Como o veneno de uma mulher podia viver após sua morte para
destruir a geração seguinte?
- Está atrasada, irmã.
Com um sobressalto, Brighid girou o corpo. O irmão estava diante dela. Não o fragmento triste e desconsolado que tinha acabado de lamentar. O centauro que a encarava
irradiava poder - um poder que ela ainda não tinha provado.
Quarenta e Seis
BRIGHID SE REVESTIU com o manto de fria indiferença que usara por grande parte da vida. O sorriso foi educado e desinteressado.
- Olá, Bregon.
Os olhos dele se estreitaram em fendas.
- Largue suas pretensões e vá embora, irmã. Não há razão para que beba do Cálice de Epona. Você escolheu outro caminho para sua vida. Nossa mãe ficou satisfeita
com sua escolha. Eu fiquei satisfeito com sua escolha. Volte para a floresta das pessoas que ama tanto. Nossa manada não precisa de você.
- Nossa mãe era uma centaura triste e ardilosa cuja sede de poder fez com que nunca ficasse satisfeita com nada, Bregon. O dia em que aceitar isso será o dia em
que ficará livre do fantasma dela.
- Então sabe que ela está morta.
- Sim, eu sei. Niam me contou.
Os lábios de Bregon se retorceram de escárnio à menção da irmã.
- Ela morreu para me trazer a notícia - prosseguiu Brighid.
A expressão presunçosa deixou o rosto de Bregon.
- Niam? Está morta?
- Nossa irmã correu até morrer. Acabar com o ódio que nossa mãe alimentou significava mais para ela do que a própria vida.
Bregon passou as mãos pelo rosto, mas ao voltar a encará-la Brighid teve o primeiro vislumbre real do estranho de alma dura no qual o irmão se tornara.
- Niam sempre foi tola e fraca. Viveu assim. Morreu assim.
- Não é tolice nem fraqueza dar sua vida por outra - disse Brighid.
- É se o valiosíssimo esforço não serve de nada - zombou ele.
- Olhe à sua volta, Bregon. É por causa de Niam que estou aqui. - A voz dela se intensificou ao atirar as palavras contra ele. - É por causa de Niam que beberei
do Cálice de Epona. E é por causa de Niam que retornarei à Planície dos Centauros para assumir a posição que meu nascimento me garante - Sumo Xamã da manada Dhianna.
- Não, irmã. Acho que não. - Quando Bregon falou, seus olhos se tornaram dissimulados e ele avançou na direção do Cálice de Epona.
Com a graça de um mestre guerreiro, Cuchulainn se pôs tranquilamente entre o irmão de Brighid e o cálice.
- Eu pensaria melhor, Bregon - avisou Cuchulainn, a voz enganosamente impassível.
Bregon pulou de surpresa. Em seguida, sua expressão exibiu divertimento.
- Um homem?
- Veja, Brighid, justo quando eu estava começando a duvidar da inteligência do seu irmão ele consegue me maravilhar com seus aguçados poderes de observação - disse
Cuchulainn com cordialidade.
Brighid não conseguiu conter uma risada, cujo som enfureceu Bregon: - Como ousa falar comigo dessa maneira, homenzinho insolente!
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas, como se Bregon o tivesse divertido ao invés de insultar.
- É verdade que sou apenas um homem, mas isto... - ele brandiu a reluzente espada branca - ... costuma suprir minha falta de cascos.
- Está no Outro Mundo agora, seu tolo. Espadas são armas do mundo físico. Aqui você precisa de poder concedido pelos espíritos. Poder como este. - Bregon agitou
as mãos no ar, como se estivesse apanhando insetos invisíveis. Depois murmurou algumas palavras ininteligíveis e atirou o nada invisível em Cuchulainn. Por instinto,
o guerreiro ergueu a espada e uma bola de luz estalou e explodiu de encontro à espada branca.
- Mas isso não é possível! - esbravejou Bregon. - Ela não deveria protegê-lo! É uma espada!
Cuchulainn repuxou os lábios num rosnado.
- É o espírito de uma espada. Quem está sendo tolo agora, Bregon? Por que razão uma espada seria tangível no Reino dos Espíritos? - Como o centauro apenas o encarava
sem falar, Cuchulainn respondeu a própria pergunta: - Minha espada tem poder aqui porque está me ajudando a cumprir um juramento que é válido em todos os reinos.
- Um juramento? O que...
- Bregon, conheça Cuchulainn MacCallan, filho de Midhir e Etain. Ele é meu marido - anunciou Brighid.
O rosto de Bregon ficou frouxo de choque.
- Você se casou com este homem?
- Casou - respondeu Cuchulainn, que começou a avançar na direção de Bregon. - E mesmo no Outro Mundo minha espada protegerá a vida dela porque jurei que isso me
é mais caro que minha própria vida. - Parou quando a ponta da espada pressionou o peito do centauro. - Agora deve partir antes que eu faça algo que sugeriria que
não estou honrando o nome dela como honro o meu.
Bregon se afastou devagar de Cuchulainn, que o deixou ir, tendo o cuidado de manter a espada de prontidão. Só antes de alcançar a borda da floresta o centauro voltou
a olhar para onde a irmã estava ao lado da bacia.
- Não desistirei daquilo pelo que lutei para conquistar - disse.
- Escutei você, Bregon. Agora me escute. Colocarei um fim no ódio e na divergência que minha mãe semeou durante sua vida infeliz. Eu lhe juro. Pode escolher ficar
comigo ou contra mim. Mas se ficar contra mim, vou apartá-lo da manada, como eu faria com qualquer traidor.
- Já fiz minha escolha. Quando você entrar na Planície dos Centauros, melhor ir com mais do que esse homenzinho. - Bregon cuspiu na direção dela, depois desapareceu
na floresta.
Cuchulainn ficou perto da margem da floresta, mantendo seus olhos aguçados nas formas e sombras que oscilavam lá dentro.
- Brighid, eu respiraria muito mais aliviado se você bebesse do cálice agora e nós voltássemos à caverna.
- Só mais um momento - avisou a ele. - Preciso ter certeza de que... - As palavras sumiram quando os dedos tocaram a lateral do cálice. Tinha que ter certeza do
quê? Não sabia - só sabia que não era seu irmão e que não pegaria a taça, a usaria insensivelmente e a descartaria.
É a sua vez agora, criança amada.
Brighid deixou de admirar o cálice. Uma mulher, vestida num rico vestido de samito, estava caminhando na direção dela através da clareira. Parecia deslizar sobre
uma piscina de raios de luar. Ao se aproximar de Brighid, a mulher mudou de forma, transformando-se da bela donzela loira numa dama de meia-idade cujo corpo era
forte e proveitoso, depois numa velha anciã com cabelo de cor de neve. Mas sua transformação não parou aí - num instante era uma mulher, em seguida era uma elegante
égua prateada, depois uma poderosa centaura que carregava o arco de uma caçadora na mão direita, então criou asas e tomou a forma de uma menina neofomoriana.
Ofegante de assombro, Brighid desviou o olhar e fez uma profunda reverência à Deusa.
- Salve, Epona! Deusa de tudo o que é selvagem e livre. Vim até seu bosque porque...
- Criança - disse a Deusa numa voz surpreendentemente gentil. - Sei por que veio.
Brighid ergueu os olhos. Epona assumira a forma de uma mulher na flor da juventude. Ainda estava trajada no vestido de samito branco, que se moldava às curvas generosas
exibindo a beleza voluptuosa que era o Feminino Divino.
- Claro que sabe por que vim. La-lamento, não pretendia... - Desta vez, Brighid se interrompeu. Fechou os olhos e tentou controlar o tremor dentro de si. Quando
os reabriu, disse: - Epona, peço permissão para beber do seu cálice e assumir a responsabilidade de sumo xamã para a manada Dhianna.
Epona a estudou com atenção.
- Você viu seu irmão no reflexo da bacia.
Não era uma pergunta, mas Brighid assentiu.
- Sim, Deusa.
- Notou que ele não pediu minha bênção? Pegou, bebeu e depois partiu.
- Não sou meu irmão, Deusa.
Os lábios carnudos de Epona se ergueram.
- Você possui a aparência de sua mãe, mas não o coração. Escolheu um caminho diferente.
- Espero que sim, Epona.
O olhar da Deusa se deslocou para o canto distante do bosque e o sorriso que se esboçava nos lábios se alargou.
- Ah, Cuchulainn! Pode se aproximar de mim.
Cuchulainn tinha se ajoelhado no momento em que Epona se materializou no bosque, portanto se levantou e se aproximou da Grande Deusa com o coração martelando dolorosamente
no peito.
- Salve, Epona! - disse, fazendo uma grande reverência.
- Estou satisfeita por vê-lo aqui no meu bosque sagrado, Cuchulainn. Sendo filho da minha amada encarnada, fiquei desapontada por ter rejeitado os dons que lhe concedi
por amor à sua mãe.
- Perdão, Deusa. Custou-me um longo tempo amadurecer.
Epona assentiu, pensativa:
- Uma resposta sábia e verdadeira. - A Deusa apontou para a espada reluzente que ele ainda segurava na mão. - Teria derramado o sangue de Bregon aqui no meu bosque?
Cuchulainn respondeu sem hesitação:
- Para proteger Brighid, sim, eu teria.
- Mesmo que com isso conquistasse meu desagrado?
- Só podia esperar que quisesse que eu honrasse o voto que fiz a Brighid, testemunhado por você e minha mãe, e que por causa desse voto fosse misericordiosa e me
perdoasse por impurificar seu bosque sagrado. - Cuchulainn se curvou novamente com humildade diante da Grande Deusa.
Epona ficou em silêncio, estudando o guerreiro. Quando falou, a voz era pensativa: - Acredito que lhe concedi os dons errados. Um guerreiro consideraria visões e
pressentimentos preordenados como algo contra o que deveria lutar. Pouco surpreende que tenha sido uma condição desconfortável para seu espírito. Tomo de volta os
meus dons, Cuchulainn. - Ao falar, Epona fez um gesto de invocação com a mão, então Cuchulainn arfou e cambaleou. - Em troca lhe concedo o dom da clarividência.
- A Deusa afundou a mão na bacia e depois aspergiu três gotas d'água no guerreiro. - De agora em diante, você possui a habilidade de ver de uma maneira sagrada as
formas de todas as coisas em espírito. Conhecerá a verdadeira alma que preenche o invólucro do corpo. Verá através da escuridão da vida.
Cuchulainn se prostrou de joelhos, dominado pela onda de poder que invadiu seu corpo.
- Use seu dom com sabedoria, Cuchulainn MacCallan, filho da minha amada escolhida. Nunca deixe sua espada acabar com a vida de alguém cujo espírito é redimível.
- Tentarei ser sábio, Grande Deusa - disse Cuchulainn com voz embargada.
A Deusa sorriu e tocou-lhe a cabeça. Depois se voltou para a caçadora.
- Por que hesitou em beber do meu cálice depois que seu irmão deixou meu bosque?
- Na infância, minha mãe me contou várias coisas sobre a busca para beber do seu cálice. Esqueci muito do que ela disse - e ela parou de falar comigo sobre o Outro
Mundo quando percebeu que eu não seguiria o caminho dela.
- Mas existe algo que ela disse que você nunca esqueceu - disse a Deusa.
- Sim. Minha mãe me contou que antes que eu bebesse do cálice deveria enfrentar meu maior aliado e meu mais poderoso inimigo.
- E os dois são ao mesmo tempo um - completou a Deusa.
- Sim. Tudo o que enfrentei no seu bosque foi meu irmão - e não creio que ele seja meu maior aliado, embora possa ser meu pior inimigo.
- Ele não é nenhum dos dois - revelou Epona. Então apontou para a bacia. - Veja dentro das águas, Brighid Dhianna, e encontrará o que procura.
Resoluta, Brighid se voltou novamente para a bacia e espiou a água. O líquido vivo rodopiou e depois ficou imóvel e vítreo, refletindo seu rosto com perfeição. Ela
olhou mais fundo, inclinando-se sobre a bacia, e seu corpo teve um sobressalto. Estava olhando para o próprio reflexo, porém, dentro dele, podia ver claramente o
rosto da mãe. E de súbito compreendeu. Seu maior aliado e mais poderoso inimigo eram ela mesma. Se aceitasse o poder de uma sumo xamã, também estaria absorvendo
o que corrompera sua mãe - e essa capacidade para a corrupção espreitava dentro dela. Nascera ali, junto com seus dons espirituais.
- Pode deixar o conhecimento paralisá-la - disse a Deusa. - Ou pode aceitar que ela é uma parte sua e se manter vigilante contra a fraqueza dela, que também é sua,
abraçando também as forças dela.
Brighid deixou de olhar a bacia e procurou pelos olhos de Epona.
- Por que permite que aqueles que podem ser corrompidos bebam do seu cálice?
A Deusa lhe sorriu com carinho.
- Concedi aos meus filhos o livre-arbítrio. É o maior dom de todos, mas com a liberdade vem a dor e o mal, assim como o amor e a coragem. Um grande bem não é possível
sem um grande mal. Um não pode existir sem o outro. E, criança... - ela tocou o rosto de Brighid com uma carícia maternal que encheu de lágrimas os olhos da centaura
- ... só porque há uma chance de corrupção, não significa que esta chance terá frutos. Lembre-se de que sempre acreditei no bem dentro de você, Brighid.
- Obrigada - murmurou a centaura à Deusa. Em seguida, Brighid fechou a mão ao redor da haste grossa do Cálice, afundou-o na bacia e, enquanto a Grande Deusa e Cuchulainn
observavam, ela bebeu das águas vivas.
O poder inundou o corpo de Brighid, e dentro do caos vertiginoso ela sentiu a mente se desemaranhar e desdobrar. Era ao mesmo tempo uma parte da Terra e dos céus,
da lua, do sol e das estrelas. Viu que tudo era, de fato, imbuído de alma e que todos estavam interligados. Os conceitos de real e irreal se estenderam e inverteram
dentro de Brighid, que compreendeu com uma nova consciência que o reino espiritual e o mundo físico nada mais eram do que pontos num galho flexível que podia ser
dobrado, curvado e remoldado de modo que os entroncamentos finais de realidade e irrealidade pudessem se encontrar e se tornar um só.
É assim que me transformarei para me deitar com Cuchulainn. Simplesmente inverterei a realidade... O pensamento emergiu de sua mente tumultuada e a firmou no chão.
Brighid piscou para clarear a visão e estava mais uma vez de pé no bosque da Deusa, ao lado da bacia sagrada, segurando o Cálice de Epona.
- Brighid? - Cuchulainn estava ao seu lado, parecendo preocupado e, pensou ela, um tanto pálido.
- Está tudo bem. - Ela sorriu tranquilizando-o. Depois se curvou numa profunda reverência diante da Deusa. - Obrigada por seu grande presente, Epona.
A Deusa tomou o queixo de Brighid na mão e ergueu o rosto da centaura.
- Acredito que o usará com sabedoria, criança. - Então sorriu para os dois. - Agora devem retornar. Estavam certos por agirem depressa. O tempo é curto e vocês têm
muito a fazer. - Epona bateu as mãos e o chão debaixo dos pés de Brighid e Cuchulainn cedeu. Ambos caíram flutuando numa gentil espiral que girava para a esquerda.
Atrás deles, a voz poderosa de Epona embalou seus espíritos e os manteve nadando em acolhimento e amor: Saibam que minha bênção vai com vocês, meus filhos...
Quarenta e Sete
VOLTAR PARA OS corpos definitivamente não foi a experiência delicada que tinha sido partir. Brighid se viu engasgando, tossindo e lutando para não vomitar.
- Tome, beba isso. Vai ajudar.
Cuchulainn estava segurando o odre de vinho nos lábios dela. Brighid o obedeceu, bebendo avidamente. Quando o calor do vinho se espalhou por seu corpo, sentiu o
tremor cessar e a náusea recuar.
- Sua vez - ofegou ela, devolvendo-lhe o odre para que Cuchulainn pudesse beber à vontade.
- Meu pai - disse ele, parando para beber. - Ele sempre ficava pálido depois de uma jornada espiritual, e isso costumava me assustar quando eu era menino. Mas ele
me explicou que não era tão ruim desde que comesse e bebesse logo depois que o espírito retornasse.
Enquanto Cuchulainn falava, Brighid desenrolou o pão e o queijo, arrancou um pedaço dos dois e os entregou a Cuchulainn. Ele sorriu em agradecimento.
- Da próxima vez que eu vir papai, direi a ele que "não é tão ruim" nem chega perto de descrever como é ser atirado de volta ao corpo.
- Estou grata que por causa dele você tenha pensado em deixar tudo isso pronto para nós. - Brighid mordeu o pão e depois franziu a testa. Cheirou o queijo. Então
olhou para Cuchulainn, que estava fazendo o mesmo.
- Está velho - disse ele.
- O pão ficou fedorento e o queijo está meio coberto de bolor.
Os olhos deles se encontraram e se arregalaram em entendimento.
- Deixei o veado pendurado numa árvore.
Cuchulainn deu mais um gole no vinho, depois se levantou cambaleando. Brighid se ergueu, odiando a maneira como as pernas tremiam e os poderosos músculos equinos
se contorciam. Cuchulainn lhe entregou o odre.
- Beba mais um pouco disso. Vou ver o veado. - Saiu cambaleante da caverna.
Brighid estava fraca demais para discutir com ele. Preferiu limpar o bolor do queijo e dar várias mordidas rápidas, além de se obrigar a mastigar um pedaço do pão
fedorento. Quando sentiu que as pernas poderiam carregá-la, seguiu Cuchulainn para fora da caverna. Era uma noite límpida e morna. Brighid recordava-se. Era de manhã
cedo quando começaram a jornada espiritual, mas era como se tivessem deixado o corpo por poucos minutos. Mas o fato era que o pão estava fedorento e o queijo...
Brighid estava admirando a noite e de repente sua mente registrou o que estava vendo.
- A carne está completamente rançosa, e o danado do capão se soltou da amarra e fugiu. A primeira coisa que teremos que fazer pela manhã... - Cuchulainn se calou,
notando a expressão chocada no rosto de Brighid. - O que foi?
- A lua. Está no quarto minguante.
Os dois fitaram a lasca de luz em forma de crescente suspensa no céu escuro.
- Mas estava cheia justo na noite passada. Não estava?
Brighid assentiu:
- Estava cheia na noite antes de entrarmos no Outro Mundo. Lembro disso porque ela iluminava tudo com clareza.
- Durante sua viagem de Sono Mágico até MacCallan - disse ele.
- Dez dias, Cuchulainn. São pelo menos dez dias da lua cheia até a fase do quarto minguante.
Cuchulainn passou a mão pelo cabelo.
- Não é de admirar que eu me sinta tão péssimo.
- Cuchulainn, devem ter se passado dias desde que Bregon deixou o bosque. Não temos como saber por quanto tempo ficamos na presença da Deusa.
Ele lhe tomou a mão.
- É verdade. Não temos como saber agora - e não há nada que possamos fazer quanto a Bregon e os outros centauros da sua manada esta noite. - Quanto Brighid começou
a falar, Cuchulainn meneou a cabeça. - Não - disse ele com firmeza. - Seria tolice nossa fazer alguma coisa esta noite que não fosse comer, dormir e recompor nossos
corpos e espíritos. Pela manhã, rastrearei o capão e poderemos decidir o que fazer daqui em diante.
- Já sei o que devemos fazer - revelou Brighid. - As palavras de Bregon foram orgulhosas e presunçosas. Não preciso de um exército para tomar meu lugar por direito
como Sumo Xamã dos Dhianna. Assim que a manada souber que bebi do Cálice de Epona, me aceitará.
- E os centauros que forem leais a Bregon?
- Haverá alguns, mas muito menos do que você acredita. - Por fim, Brighid sorriu. - Você verá, meu marido guerreiro, que nenhuma centaura jamais negaria aliança
à filha primogênita da sumo xamã.
Cuchulainn correspondeu ao sorriso.
- Então aqueles que ficarem contra você estarão escolhendo longas vidas de solidão.
- Exatamente.
Ele passou o braço pelo dela, então se encaminharam lentamente para a caverna, apoiando-se um pouco um no outro e às vezes tropeçando.
- Isso me deixa mais esperançoso. Talvez a transição para sua liderança não seja um evento tão traumático como prevíamos.
- Talvez - disse ela, pensativa. - Mas ainda temos que lidar com meu irmão. Bregon deixou claro que não vai desistir fácil da posição que usurpou.
- Então simplesmente teremos que mostrar a ele que não há escolha. - A voz de Cuchulainn soou dura.
- Cuchulainn, vi algo mais quando a bacia me mostrou Bregon bebendo do cálice. Quando ele deixou o bosque, filetes espectrais de seu espírito ficaram para trás no
Outro Mundo. A alma dele ficou despedaçada, Cuchulainn, terrivelmente. - Ela tocou o rosto do marido. - Prometa que vai se lembrar de que ele não está inteiro quando
confrontá-lo.
- Prometo - disse ele, beijando-lhe a mão. - Mas precisa compreender que não importa quanta pena eu sinta por ele, não permitirei que a machuque.
- Não creio que ele vá realmente me machucar, Cuchulainn. Ainda me lembro da criança doce que ele costumava ser, cuja coisa que mais queria era o amor e a aprovação
da mãe.
- Ele não é mais criança. Mas não se preocupe, minha bela caçadora, sempre me lembrarei de que ele é seu irmão. - Cuchulainn beijou-lhe a mão mais uma vez e depois
começaram a tatear pela boca da caverna à procura dos utensílios para acender o fogo que ele deixara à mão. - Acho que se cozinharmos a carne seca que sobrou nos
nossos pacotes teremos um caldo decente no qual molhar esse pão velho.
- Vou limpar o bolor do resto do queijo - disse Brighid.
- Agradeço a Epona pelo amor de minha mãe por vinho, ao menos temos bastante dele.
Acenderam depressa o fogo e organizaram uma refeição decente, conversando tranquilamente sobre as experiências no Outro Mundo, especialmente o assombro que ambos
sentiram na presença da Grande Deusa. Brighid observava Cuchulainn falar, pensando novamente no quanto era abençoada por ter um companheiro tão valente e leal. Então,
num pequeno sobressalto, percebeu que agora possuía o poder para se transformar e se unir completamente a ele. Foi esse pensamento que deixou seus lábios erguidos
num sorriso, mesmo ao perder a batalha para o corpo exausto e, logo imitada por Cuchulainn, cair num sono profundo e reparador.
Quando Brighid abriu os olhos, a caverna estava começando a ser iluminada pela luz nebulosa que era o anúncio do novo dia. Alongou-se, tomando cuidado para não acordar
o guerreiro que dormia tão em paz ao seu lado, e se levantou, testando o corpo para ver se ainda estava tão fraco e duvidoso como na noite anterior. Não, pensou
ela com alegria, me sinto maravilhosa!
Ela deixou a caverna e se encaminhou depressa à queda-d'água. Tirando o colete, ficou nua debaixo da rajada fria. Erguendo o rosto para a corrente cristalina, abriu
a boca e bebeu água. Pela Deusa, sentia-se incrivelmente viva! A pele formigava debaixo da carícia da água, mas era mais do que isso - Brighid sentia uma consciência
do mundo ao redor que nunca tinha experimentado antes. Era como se até aquela manhã as árvores, as rochas e a própria terra em si dormissem - e agora tudo tinha
despertado com ela.
Rindo suavemente, saiu de baixo da queda-d'água e fitou a Planície dos Centauros. Ainda não havia luz suficiente para enxergar definições no capim agitado e na terra
levemente ondulada. Ainda estava recoberta pela escuridão, mas o céu tinha começado a avermelhar em antecipação ao sol, então os olhos de Brighid sorveram a visão
indistinta da manhã.
- Casa... - murmurou ela alto a palavra, e o espírito dentro de seu corpo se sobressaltou diante da admissão. - Estou indo para casa.
Brighid ignorou o colete deixado sobre a rocha ao lado da queda-d'água. Sentia-se poderosa, bela e repleta de paixão por um propósito. Quando entrou na caverna,
Cuchulainn se remexeu, revirou e abriu lentamente os olhos. Vendo-a silhuetada no céu que anunciava o amanhecer, sorriu e se ergueu num cotovelo.
- Parada aí toda nua e molhada, você poderia ser uma das fadas que escaparam do Outro Mundo - disse ele, a voz ainda rouca de sono.
- Isso não me surpreende - disse Brighid, atirando os braços acima da cabeça como se pudesse abraçar o dia. - Me sinto tão diferente esta manhã - como se não fosse
completamente deste mundo.
Cuchulainn se sentou completamente.
- Você está diferente, minha bela caçadora, você é uma sumo xamã.
Brighid buscou o olhar dele, tomando o cuidado de ver se existia qualquer reserva ou retraimento à espreita ali. Depois sorriu, porque apenas enxergava Cuchulainn
e o amor que sentia por ela refletido no olhar do marido.
- Acha que as pessoas vão parar de me chamar de caçadora agora?
- Isso a deixaria triste?
- Sim... deixaria, sim. Bem no fundo do meu ser, sempre serei uma caçadora.
- Então... - ele girou o braço num floreio galante - ... para mim, você sempre será minha bela caçadora.
- Espero que sim, Cuchulainn. Realmente espero que sim. - Quando ele começou a se levantar, Brighid meneou a cabeça. - Não. Não venha até mim ainda. Quero que fique
aí.
Cuchulainn inclinou a cabeça e a observou.
- O que está tramando?
- Eu... eu não tenho certeza. Apenas me dê um instante.
- Não vou a lugar nenhum, caçadora - respondeu ele, apoiando-se novamente no cotovelo e tomando um gole do odre.
Brighid abaixou a cabeça e fechou os olhos. Então se expandiu com a nova consciência que desabrochara no bosque da Deusa. Sua mente rodopiou...
Tudo estava, de fato, imbuído de vida.... interligado... O reino espiritual e o mundo físico não passavam de pontos num galho flexível que podia ser dobrado, curvado
e remoldado de modo que os entroncamentos finais da realidade e da irrealidade pudessem se encontrar e se tornar um só. Centauro... homem... mulher... águia... árvore...
pradaria... todos eram repletos de espírito e tocados pela Deusa. Era uma coisa simples, na verdade, essa mudança de forma e moldagem da matéria...
Brighid ergueu a cabeça e sorriu feliz para o marido.
- Quero que fique bem quieto. Sei que consigo fazer isso, mas preciso de sua palavra de que não fragmentará minha atenção.
A expressão de Cuchulainn ficou tensa e séria.
- Brighid, voltamos justo na noite passada. Acho que deveria esperar antes de tentar...
O olhar dela calou suas palavras.
- Acredita em mim? - perguntou Brighid.
- Sim.
- Você me deseja?
- Claro. - Cuchulainn então assentiu. - Compreendo, meu amor. Tem minha promessa de que não fragmentarei sua atenção.
Ela lhe deu um sorriso rápido de gratidão antes de voltar a atenção para dentro de si. Ajude-me, Epona, guie-me, auxilie-me. Mal provei meus novos poderes - eu os
sinto, mas não tenho treinamento... Não sei... Ela respirou fundo. Não posso fazer isso sem seu toque amoroso.
De repente as palavras inundaram sua mente. A centaura baixou a cabeça e deu voz à magia que invadia sua alma: Sou o vento que sopra sobre o mar;
sou a onda das profundezas;
sou o rugir do oceano;
sou o gamo da floresta;
sou a águia sobre o penhasco;
sou um raio de sol
e a mais verde das plantas.
Conforme o ritmo e o volume da voz aumentavam, Brighid começou a erguer os braços, palmas viradas para cima, dedos bem abertos. Ela não gritou, mas o poder em suas
palavras era tamanho que arrepiou os pelos na nuca de Cuchulainn.
Então um brilho lhe cobriu o corpo. Ela cintilava. A radiância que dançava sobre a pele parecia se mexer, mas não era a luz que estava se mexendo. Era a pele da
caçadora, ondulando e se liquefazendo. Brighid fechou os olhos e ergueu simultaneamente os braços e a cabeça em compasso com suas palavras: Sou o javali selvagem
e o salmão no rio;
sou o lago na planície;
sou a palavra de conhecimento
e a ponta da espada;
sou o encanto além dos confins da Terra
e posso mudar de forma como uma deusa!
Ao gritar o último verso, seu corpo explodiu numa chuva de luz e seu berro mudo de agonia ecoou pelas paredes da caverna.
Apesar do juramento, o grito de Brighid fez Cuchulainn ficar de pé e correr até ela. Mas ele parou de repente quando viu a mulher. Ela estava ajoelhada no exato
lugar em que Brighid estava antes. A cabeça estava abaixada e o cabelo úmido lhe cobria o rosto. Uma das mãos se apoiava no chão e a outra ainda estava erguida acima
da cabeça. Ela respirava com dificuldade e o corpo nu cintilava com uma camada reluzente de suor. Com um gemido, ela ergueu a cabeça e jogou para trás o cabelo.
- Queria que alguém tivesse me avisado o quanto isso dói. - A voz de Brighid soou rouca.
- Pela Deusa! Brighid! - Cuchulainn fez um movimento na direção dela, depois se conteve como se estivesse com medo de se aproximar.
Brighid espiou através de uma cortina de cabelos prateados.
- Se me disser que está com medo de me tocar, juro que vou ficar muito aborrecida.
- Claro que não estou com medo de tocá-la. Só... - Cuchulainn praguejou e diminuiu o espaço entre eles. Inclinou-se e apertou-lhe as mãos com cuidado, ajudando-a
a se levantar. - Só não queria machucá-la - disse enfim.
- Não vai me machucar. - Brighid olhou para o corpo e os olhos se arregalaram. - Não fazia ideia de como isso seria estranho.
Cuchulainn passou o braço pela cintura dela.
- Talvez devesse se sentar no catre.
Brighid concordou e tropeçou por alguns passos. Depois parou e voltou a olhar para as pernas.
- Estou tão pequena!
Achou que a risada de Cuchulainn soava um pouco histérica.
- Você não está pequena - olhe para si mesma -, está quase tão alta quanto eu.
- Espere, me largue e me deixe... quero dizer, preciso... - Ela suspirou diante da expressão perplexa do marido. - Cuchulainn, quero ficar sozinha sobre meus dois
pés por um momento para poder me acostumar a esta nova eu.
- Ah! Claro - disse Cuchulainn, desenlaçando com cuidado um dos braços da cintura e o outro, do cotovelo dela.
Deu um passo para longe. Brighid se aprumou e depois olhou para si mesma novamente. O torso estava inalterado, mas ela era um ser totalmente diferente da cintura
para baixo. O poderoso corpo equino fora trocado por duas pernas longas e esguias. Ela olhou para trás e teve que piscar para não se sentir tonta e desorientada.
- Deusa! Não tem nada aqui atrás! - exclamou ela.
Dessa vez a risada do guerreiro soou mais normal.
- Claro que tem! Você tem nádegas bem atraentes.
Ela procurou pelo olhar dele.
- Minha forma lhe parece atraente?
- Muito - disse Cuchulainn. - Não que eu não a achasse bonita como uma caçadora também - acrescentou depressa.
- Já sei que me acha atraente como centaura. Este corpo é novo para mim. Naturalmente, me perguntei se...
- Não precisa se perguntar, Brighid. Você é uma mulher magnífica. Sob essa luz, você parece uma deusa de pele acetinada que de alguma forma caiu do céu da manhã.
- Cuchulainn estendeu a mão e deixou uma mecha de cabelo prateado deslizar entre seus dedos. - E sou o mais sortudo dos homens por ter descoberto você.
Brighid viu o desejo nos olhos dele e saber disso disparou uma agitação quente em sua barriga. Ela sorriu e deixou o olhar voltar para o próprio corpo. Estendeu
uma das pernas com cuidado. Mexendo os dedos, esticou a perna à frente do quadril.
- Pernas... dedos... É tudo tão comum, porém tão extraordinário.
- Acho que é completamente extraordinário. - A voz de Cuchulainn estava tomada de emoção. - Você conseguiu, Brighid! Dominou o que apenas uma sumo xamã pode controlar
- o poder de se transformar.
- Nós conseguimos - disse ela. - Se não estivesse comigo, nunca teria alcançado o bosque de Epona. E agora preciso de sua ajuda em mais uma coisa.
- Qualquer coisa, minha bela caçadora.
- Me mostre como é se tornar uma só carne com você.
Sem dizer nada, Cuchulainn lhe tomou a mão e a guiou ao catre, que não tinham retirado do meio do labirinto. Conforme caminhavam pela caverna, os passos dela se
tornaram mais seguros e, mesmo sentindo falta do poder de sua forma natural, Brighid era capaz de apreciar a graciosidade em seu corpo de mulher. Deitou-se ao lado
do marido e, cheia de curiosidade e deslumbramento, deixou as mãos acariciarem o próprio corpo nu, aprendendo como ele reagia ao toque e descobrindo os lugarezinhos
secretos que eram especialmente sensíveis.
- Minha pele é tão macia. Isso me surpreende - disse Brighid. - Não tinha ideia de que seria assim. - Ela sorriu para Cuchulainn, que tinha se apoiado sobre o cotovelo
e a observava explorar a si mesma.
- Você me deixa sem fôlego - disse ele com voz rouca.
- Não perca o fôlego - murmurou ela, pegando-lhe a mão e guiando-a até sua coxa. - Se não puder respirar, como vai me falar dos prazeres desse novo corpo?
Cuchulainn gemeu o nome dela e sussurrou de encontro aos seus lábios: - Eu vou mostrar.
Mas não apenas mostrou. Enquanto a tocava com as mãos e a boca, falava com Brighid, perguntando qual carícia ela preferia e onde e como seu toque a agradava. As
mãos, calejadas pelos anos de manejo da espada, pareciam sensuais sobre a suavidade de sua pele, e Brighid descobriu que nunca se cansaria da sensação daquela aspereza
envolvendo a maciez das suas nádegas. Quando a boca de Cuchulainn buscou seu âmago e a provou por completo, Brighid não desviou o olhar, apenas o observou finalmente
descobrir o que ela soube antes dele - a alegria do prazer de um amante.
Quando estava escorregadia e pronta, Cuchulainn a penetrou com delicadeza, dando-lhe tempo para se alongar e recebê-lo. E então eles uniram as mãos e iniciaram o
eterno dar e receber da relação amorosa. Brighid se arqueou para ir de encontro a ele, deliciando-se por saber que seus corpos finalmente eram capazes de experimentar
o que suas almas já conheciam - a união de dois seres. Quando Cuchulainn gritou-lhe o nome e derramou sua semente dentro dela, Brighid o manteve apertado e se deixou
levar com ele por uma onda de sensações.
Quarenta e Oito
- VOLTAR AO NORMAL é muito mais fácil - disse Brighid, retorcendo a cauda e batendo os cascos como se estivesse preocupada que algo talvez não tivesse se transformado
de volta à forma equina.
- É impressionante - comentou Cuchulainn. - Todos esses anos e nunca vi meu pai se transformar uma única vez. - Ele exibiu um sorriso torto, maroto. - Apesar de
que em algumas das vezes em que invadi os aposentos da minha mãe ele estivesse lá na forma humana. - Deu uma risadinha. - Nunca deixou de me surpreender. Na última
vez, eu estava com uns 10 ou 11 anos, e não consegui vê-lo muito bem. Lembro de ter pensado que era algum estranho que tinha enlouquecido e estava tentando violentá-la,
então brandi minha espada de madeira nem um pouco perigosa e berrei para que ele tirasse as mãos da Deusa Encarnada.
- E o que ele fez? - perguntou Brighid, sorrindo.
- Ele olhou para mim e disse: "Mais tarde, garoto, sua mãe e eu estamos um tanto ocupados agora." - Cuchulainn meneou a cabeça. - Mas isso não foi o pior. Meu berreiro
fez os guardas palacianos da minha mãe surgirem correndo - não negligenciariam uma tentativa de estupro à Escolhida de Epona. Seguiram-se momentos embaraçosos que
meu pai não considerou nem um pouco engraçados. Nem um pouco. Quando o "mais tarde" chegou, ele me pôs sentado e teve uma conversa longa e bem detalhada sobre maridos,
esposas e relações amorosas em geral. Também me explicou em detalhes por que ele tinha que se transformar, e por que era um momento muito íntimo entre ele e minha
mãe quando isso acontecia.
Brighid tentou, sem sucesso, abafar uma risada.
- Parece que foi uma conversa bem esquisita.
- Não foi uma conversa. Ele falou - eu escutei. Depois ele me perguntou se eu tinha alguma pergunta.
- Você tinha?
Cuchulainn bufou:
- Está brincando? Eu estava completamente envergonhado, e a única coisa na qual eu conseguia pensar era por que alguém iria querer fazer aquelas coisas que ele estava
descrevendo - e mesmo que fizesse - por que minha mãe toleraria aquilo.
A risada de Brighid se transformou numa inesperada risadinha feminina.
- Pare, está me matando!
Cuchulainn sorriu, envolveu-lhe a cintura com um braço e deu-lhe um sonoro beijo.
- Lembro particularmente de uma das coisas que meu pai explicou sobre a transformação durante aquele sermão esquisito.
Brighid ergueu uma das sobrancelhas prateadas.
- Ele disse que um sumo xamã só consegue manter outra forma por um tempo limitado.
Brighid assentiu:
- É conhecimento comum que um sumo xamã deve retornar à forma natural no prazo de uma noite.
- Também é conhecimento comum que uma vez que o sumo xamã retornou à forma natural é necessário pelo menos um dia para que o corpo se reenergize?
- Não. - Brighid parecia surpresa. - Essa parte não é bem conhecida. - Ela deixou escapar um suspiro longo e frustrado. - Há tanta coisa que não sei, Cuchulainn.
Sinto a mudança dentro de mim, e sinto o mundo ao meu redor de maneira diferente. Mas sei muito pouco sobre como exercer este novo poder.
- Tenha calma consigo mesma. A maioria dos sumos xamãs se preparou por anos, e também são guiados por outro sumo xamã.
- Esse é o problema. Não tenho um mentor.
- Um passo de cada vez, minha bela caçadora, um passo de cada vez. Primeiro você reclama seu direito de nascença. Depois encontra um mentor. Acontece que seu marido
tem ligações com certo sumo xamã, e posso prometer que ele ficaria mais do que satisfeito em ser mentor da nora. - Cuchulainn lhe sorriu.
Brighid envolveu os ombros largos com seu braço e brincou com o ouvido dele.
- Quem diria que um homem seria uma coisa tão boa de se ter por perto?
Ele riu e a beijou.
- Não conte às outras caçadoras - todas vão querer um.
Brighid mordiscou o pescoço de Cuchulainn, que deu um latido. Os dois riram.
Depois Cuchulainn ficou sério e tocou-lhe a face.
- Eu estava falando sério sobre o que meu pai disse, Brighid. O corpo de um sumo xamã fica esgotado depois da transformação, então tome cuidado hoje. Não exija demais
de si mesma e não espere demais do seu corpo.
- Só vou caçar um cervo. Poderia fazer isso mesmo como mulher - eu acho - acrescentou com uma risada rápida.
- Cace seu cervo com cuidado. Quando você o fisgar e trouxer para cá, já terei encontrado o maldito capão.
- Posso ajudar a encontrar seu maldito capão - disse Brighid.
- Tenho certeza de que poderia rastreá-lo na metade do tempo, minha bela e talentosa caçadora, mas precisamos de carne fresca, então não vou atrapalhar sua experiência.
- Não preciso ir com você, Cuchulainn. Só tenho que... - Ela revirou os olhos quando a expressão entretida do marido se tornou cautelosa e tensa. - Cuchulainn -
disse com severidade -, você está casado com uma sumo xamã. Tem que se acostumar comigo invocando auxílio do Outro Mundo. - Brighid deu de ombros e sorriu com um
tanto de acanhamento. - Eu mesma tenho que me acostumar.
Cuchulainn suspirou e levou a mão dela aos lábios.
- Está bem. E sim, minha bela caçadora, agradeceria sua ajuda.
- Só me dê um momento e não...
- Eu sei - disse ele rindo -, não distrair você.
Brighid lhe deu uma olhada exasperada antes de fechar os olhos e se firmar com três respirações profundas e regulares. Depois pensou no capão de Cuchulainn - a montaria
vigorosa e bem treinada da qual o marido dependia... e rapidamente, muito mais rapidamente do que estava acostumada, aquele inato senso extra que sempre a ajudara
a rastrear animais correu por seu corpo numa onda de poder devastador. Quase imediatamente foi atraída para um lugar não muito distante da caverna onde uma luz espiritual
azul-escura ardia firmemente. O capão. Pela Deusa, foi fácil! Depois outra luz espiritual, menor, bem próxima ao capão, lhe chamou a atenção, e ao se concentrar
nela, imaginando a origem daquela enérgica aura dourada, de repente compreendeu o que estava vendo e quis rir alto. Quase interrompeu o transe naquele instante para
poder contar a Cuchulainn, mas a influência de outras luzes espirituais a atraiu.
Com uma sensação de assombro, pensou no cervo que planejava caçar, e tracinhos luminosos de cor acastanhada tremeluziram ao longo dos outeiros e pela Planície dos
Centauros. Bom, pensou ela com alegria, certamente não teria problemas para encontrar um veado.
Então algo tremulou bem à margem de sua visão espiritual. Estava vindo do norte. Uma incandescência esmeralda tão brilhante que sua luz era ofuscante, por isso o
espírito dela teve um sobressalto, interrompendo o transe meditativo no qual tinha entrado com tanta facilidade. Os olhos dela se abriram e Brighid sentiu um cansaço
estranho pesar sobre seu corpo e sua alma. Cuchulainn a observava com atenção, a preocupação obscurecendo seus olhos. Por instinto, seu primeiro pensamento foi tranquilizá-lo,
portanto tirou da mente o mistério da luz verde. Mais tarde, depois que eu tiver comido e não estiver tão cansada, pensarei no que isso significa... provavelmente
era apenas o brilho verde das florestas ao norte...
Sacudiu-se mentalmente e tocou com carinho o rosto do marido.
- Cuchulainn, uso minha afinidade com espíritos animais para rastrear caça há anos. Não é nada com que se preocupar. Só estou um pouco cansada, mas estou bem.
- Eu sei... É justo. - Cuchulainn se sacudiu e sorriu. - Está certa. Estou sendo tolo. Achou meu cavalo perdido?
- Sim, e ele não está longe daqui. Rume para o noroeste e vai encontrar uma trilha de cervos. Siga-a até uma clareira e um lago. É onde ele está. Está a no máximo
uma hora de caminhada leve daqui. - Então sorriu para o marido e acrescentou: - E não é só o seu capão que vai encontrar na clareira.
Cuchulainn ergueu as sobrancelhas.
- Não vai me dizer o que mais está lá?
- Vou dar uma pista. Ela é peluda e muito, muito incômoda.
- Fand? - perguntou de imediato.
- Ninguém mais.
Cuchulainn explodiu numa gargalhada.
Brighid deu um suspiro exagerado.
Ainda sorrindo, Cuchulainn pendurou a rédea sobre o ombro.
- Vou capturar minhas feras e encontro você aqui na volta.
- Vou trazer o jantar.
- Vou trazer vinho e companhia.
A risada de Brighid o acompanhou enquanto caminhava rumo ao noroeste, escalando a encosta moderada do outeiro arredondado. Quando chegou ao topo da pequena colina,
virou-se e observou a esposa apanhar o arco e pendurar a aljava de flechas no ombro.
- Te amo, Brighid! - gritou, meneando a cabeça por causa da própria tolice romântica. Ela estava perto demais da queda-d'água para ouvi-lo, e mesmo de longe podia
ver que o ar concentrado de uma caçadora estava de novo no rosto dela. No momento, a única coisa na qual prestaria atenção seria o cheiro ou o rastro de um cervo.
- Essa é minha bela caçadora - murmurou consigo mesmo. Era poderosa, sensual e inteligente. Com ela ao seu lado, Cuchulainn acreditava que não existia nada que os
dois não pudessem realizar. Naquela noite comeriam e restaurariam a energia que os últimos dias tinham drenado deles. Amanhã entrariam na Planície dos Centauros.
Garantiria que ela chegasse à manada Dhianna e assumisse sua posição por direito como sumo xamã. Então poderiam reparar os equívocos e o ódio que a liderança da
mãe dela tinha alimentado. Humanos e centauros podiam viver felizes juntos. Seus pais eram prova disto - ele e Brighid eram prova disso. E os neofomorianos não eram
ameaça para ninguém em Partholon. Não havia necessidade das manadas dos centauros guerrearem contra eles. Não eram os demônios que dizimaram os guerreiros de Partholon
- tanto centauros quanto humanos - há tanto tempo. Juntos, ele e Brighid só teriam que fazer a manada enxergar a razão.
Cuchulainn deixou o olhar avaliar a Planície dos Centauros. Mesmo amarronzada pela seca, a terra ainda era bonita. Era ampla e livre. Nas poucas vezes em que viajara
às planícies com seu pai, tinha ficado intrigado com a vastidão delas. Talvez fosse resultado do sangue de seu pai centauro, mas a ideia de passar o resto da vida
nas pradarias lhe dava uma sensação de satisfação. Não tinha dúvida de que encontraria contentamento e um lar ali com Brighid ao seu lado.
Assobiando alegremente, pensando no quanto seria bom ver sua filhote de lobo, amarrou a rédea ao ombro e rumou para o noroeste.
Brighid parou à margem da Planície dos Centauros e respirou profunda e jubilosamente. Tinha valido a pena. Sim, havia cervos muito mais próximos à caverna do que
nas planícies, mas Cuchulainn ficaria fora por pelo menos umas duas horas. Teria bastante tempo para rastrear, matar e destripar um cervo, e voltar para a caverna
antes mesmo que Cuchulainn retornasse, ou ao menos era como tinha racionalizado sua decisão para ignorar o cansaço no corpo e descer os últimos outeiros para caçar
um veado nas planícies.
Cansada ou não, era bom sentir os cascos no solo rico de sua terra natal! Tinha escolhido uma vida diferente e deixara seu lar acreditando que nunca retornaria -
e tinha feito isso funcionar dentro da mente. Mas agora podia admitir que seu espírito nunca ficou confortável com a escolha. Dentro dela sempre existiu uma ânsia
para retornar, uma agitação inquieta que agora percebia ser a sumo xamã adormecida.
Não mais, prometeu a si mesma. De agora em diante usarei os dons concedidos por Epona e assumirei a posição para a qual nasci.
Decidiu depressa não retomar o transe meditativo para localizar uma manada de cervos. Essa era sua terra natal. Se não pudesse caçar um veado ali, não merecia ser
chamada de caçadora. Seu olhar aguçado varreu o terreno diante dela. À margem da visão podia enxergar o familiar pontilhado verde e um declive no horizonte que significava
uma área de mata. Sempre havia pequenos riachos ou córregos que serpeavam pelas planícies, rodeadas por alamedas arenosas e árvores resistentes. Mesmo nas épocas
de seca, a água das fontes subterrâneas alimentava a área das matas. Os cervos geralmente se congregavam onde havia água. E era lá que iria caçar.
Forçou o corpo a um galope leve, sorrindo ao sentir o vento e o capim passando por ela.
Quando alcançou a margem da mata, estava quase pronta para admitir que a decisão de caçar nas planícies tinha sido apressada - se não um erro absoluto. O suor ensopava
seu corpo, e ela sentia dificuldade de se concentrar. Tinha cruzado com vários rastros diferentes de centauros, embora não tivesse se encontrado com nenhum. Podia
ver os pontos escuros dos bisões não muito distantes a leste, mas não tinha encontrado nenhum rastro de cervo, o que era decididamente estranho. E mesmo que uma
aldeia de centauros estivesse por perto, deveriam existir cervos suficientes ao redor da área da mata - e Brighid não conhecia nenhuma aldeia tão próxima às fronteiras
de Partholon. O esplendor de caçar em sua terra natal estava desbotando. Se não achasse sinal ou pista de cervos logo, teria que usar seus poderes espirituais para
localizar um. Só de pensar nisso, gemia de exaustão.
As pradarias começaram a abrir espaço para os carvalhos que predominavam nas matas, e Brighid se deixou seguir numa caminhada apática.
Só queria encontrar o cervo e voltar para o acampamento. Pensou com gratidão que Cuchulainn a estaria esperando lá.
Mais tarde não conseguiria decidir se tinha sido seu cansaço ou a furtividade deles, mas não ouviu nem viu nada antes da corda apertar seu pescoço. As mãos imediatamente
tentaram desfazer o nó, então Brighid sentiu outra corda apanhar sua perna traseira. O equilíbrio lhe foi tirado com brutalidade, fazendo-a atingir o chão com tanta
força que o ar escapou dos pulmões. A cabeça acertou uma rocha e a escuridão a engolfou.
Quarenta e Nove
A CONSCIÊNCIA VOLTOU num ímpeto doloroso. Mãos fortes a seguravam pelos pés. Sentia-se surrada e machucada, e a cabeça doía com uma dor quente e latejante que palpitava
em compasso com seu coração disparado.
- Fique em pé sozinha! - disse uma voz áspera. - Arrastá-la até aqui foi bem difícil. Vou ficar destroçado se tiver que mantê-la de pé também.
Arrastada? Fui arrastada?
Com as mãos atadas às costas, Brighid lutou súbita e violentamente. Meio cega de dor, tentou chutar com suas poderosas pernas traseiras - e a garganta se fechou.
Quanto mais lutava, mais a corda apertava sua garganta.
- Fique quieta ou vai morrer sufocada! - ribombou a voz.
Tremendo, Brighid se obrigou a ficar quieta e a corda em seu pescoço afrouxou o bastante para deixá-la sorver o ar e tossir espasmodicamente.
- Não lute e ficará bem. Lute e não conseguirá respirar.
Tremendo, Brighid piscou para clarear a visão e o tempo pareceu desacelerar. Era como se estivesse se movendo dentro d'água enquanto tentava compreender as contradições
do que via. Estava de pé no meio de uma tenda centáurea - esse tanto era fácil de entender. Era uma das imensas tendas de cinco lados feitas de pele de bisão belamente
tingida e elaboradamente decorada que sua mãe insistia para que fosse erguida e estivesse preparada com cada luxo muito antes de sua chegada a qualquer lugar que
estivesse visitando. A abertura estava diretamente à frente de Brighid, que pela aba semidobrada podia ver que estava escuro. Por quanto tempo tinha ficado inconsciente?
A mente penava para clarear. Tudo estava errado e ela era incapaz de compreender o que tinha lhe acontecido.
A tenda era familiar, mas o interior não era ricamente guarnecido com os colchões grossos e as mesas baixinhas que os centauros preferiam. As únicas decorações eram
vários candelabros espalhados que lançavam uma luz fraca pela tenda. O resto da tenda estava vazio - exceto pelos quatro centauros que cercavam Brighid. Ela tentou
desvencilhar as mãos novamente, mas estavam bem presas às costas. Podia sentir as cordas no pescoço e no corpo. Num nevoeiro de descrença, viu que estava de pé,
com o torso amarrado, entre os dois postes centrais da tenda. As pernas dianteiras estavam presas. Duas cordas estavam enlaçadas ao redor do pescoço. Cada uma delas
estava atada num nó ao redor de cada uma das pernas traseiras - podia senti-las arranhando dolorosamente logo acima dos cascos. As amarras garantiam que não se mexesse.
A contenção entre perna e pescoço deixava suas pernas traseiras impotentes. Estava efetivamente imobilizada. Brighid ergueu os olhos para o centauro que estava mais
próximo, cujo desdém de superioridade fez o tempo, o som e a sensação de afogamento retornarem ao ritmo normal.
- Completamente acordada agora, minha beleza? - zombou ele. - Bom. Não há razão para machucar seu pescoço bonito - isso seria danificar mais do que já foi danificado.
- Ele deu uma risadinha e os outros três centauros riram também.
Um trovão estrondou ao longe e um raio relampejou na abertura da tenda, ajudando-a a identificar os outros centauros. Era o bando de Bregon. Pensava neles assim
desde o dia em que mataram a menina. Iam para toda parte com o irmão, acompanhando-o em tudo o que fazia. Como as ovelhas patéticas que são, pensou ela.
- Gorman. - A voz de Brighid se ergueu para imitar perfeitamente o tom mais furioso da mãe. - Solte-me imediatamente, seu covarde!
Outro raio lampejou, e pela margem da visão Brighid viu outro dos centauros, Hagan, se encolher diante do som familiar da voz dela. Os outros dois eram irmãos, Bowyn
e Mannis, cujos olhos se arregalaram quando ela falou. Mas Brighid manteve a atenção em Gorman, o melhor amigo de Bregon, seu parceiro em tudo que fazia.
- Você soa como ela. Até se parece com ela. Mas não é ela. - Gorman cuspiu na grama. - Você nunca foi tão forte quanto Mairearad. Nunca será.
- Defina força, Gorman - rebateu Brighid, escondendo a exaustão da voz e da mente. - É a habilidade de manipular e usar os outros? Ou sua definição de força depende
das cordas? Não, espere. Agora lembro que você gosta de aterrorizar menininhas. Pena que teve que se esgueirar e me amarrar. Não havia nenhuma carroça disponível
para jogarem por cima de mim?
- A força - disse ele sombriamente, dando um passo adiante para salpicar cuspe no rosto dela ao falar - é definida pelo vitorioso!
- Onde está meu irmão? - perguntou Brighid, recusando-se a reagir à bravata dele.
- Seu irmão está garantindo que Partholon saiba que os fomorianos foram soltos no mundo outra vez.
- Ficou louco? Não existe fomoriano nenhum.
- Verdade? Então como chama aquelas criaturas aladas que você e o filho de Midhir trouxeram para Partholon?
- Eu os chamo da mesma coisa que Midhir e a Escolhida de Epona os chamam - neofomorianos. Sabem que Elphame retirou a maldição deles. Já não são mais uma raça demoníaca.
- Enquanto falava, testou as amarras dos punhos, procurando uma maneira de libertar as mãos. - Isso é ridículo. Exijo ver meu irmão.
- Paciência, minha bela. Bregon anda muito ocupado e não pôde recebê-la apropriadamente em sua chegada. - Gorman riu, e os outros três centauros que assistiam deram
risadinhas nervosas. - Ele nos pediu para mantê-la... ocupada... até poder se juntar a nós.
Brighid sentiu o rosto gelar.
- Bregon não deve saber o que fizeram comigo.
Gorman deu de ombros.
- Ele ordenou que a impedíssemos de alcançar a manada antes que fosse tarde demais. Deixou os meios conosco. Isso... - ele apontou para os postes cruzados e as cordas
que a estrangulariam caso tentasse lutar - ... foi ideia minha.
- Já é tarde demais. Provei do Cálice de Epona. Sou a Sumo Xamã dos Dhianna.
- Sim, sabemos disso. Bregon nos contou. Felizmente nenhum de nós pensou em contar aos nossos camaradas. Que pena que as fêmeas da manada só vão descobrir quando
for tarde demais.
- Está louco - disse Brighid a Gorman, depois teve o cuidado de virar a cabeça para que da próxima vez em que a tenda fosse iluminada com o relâmpago encontrasse
os olhos do centauro baio que tinha ficado mais afastado nas sombras. - Traga meu irmão, Hagan. Não importa o que tenha acontecido entre nós, mas Bregon não vai
ver com bons olhos o tratamento dispensado à irmã. - Então estreitou os olhos e encheu a voz com todo o poder que pôde drenar do espírito exausto. - E mesmo que
Bregon estivesse disposto a isso, ele sabe, como eu sei, da raiva que tomaria Epona por tratarem assim sua sumo xamã!
Hagan se encolheu e abriu a boca para falar, mas Gorman o cortou: - E o que sua preciosa Epona fez quando sua própria mãe foi transpassada pela barriga e ficou morrendo
em agonia? - O rosto de Gorman estava vermelho da paixão das emoções. - Nada! Sua Deusa deixou Mairearad sofrer e morrer. Aparentemente Epona não se importa mais
com o que acontece com suas centauras sumos xamãs.
Brighid voltou o olhar lenta e deliberadamente para ele.
- Você blasfema e volta as costas para a Grande Deusa. Juro que vai pagar por isso.
Um trovão rosnou na noite e raios caíram como se Epona tivesse ouvido e reconhecido o juramento de sua xamã. Descuidado, Gorman debochou: - Veremos quem vai pagar
pelo quê, Brighid Dhianna. Afinal, foi você quem ajudou a trazer os demônios de volta para Partholon. Talvez o povo que você preferiu à sua própria manada não lhe
abra os braços com tanto entusiasmo quando perceberem o que fez.
- Os neofomorianos não são demônios, seu tolo! São um tipo de gente que cultiva a vida, não a morte. E é isso que toda a Partholon saberá.
Os olhos de Gorman ficaram dissimulados.
- Acho que está se esquecendo de um fomoriano em particular. - Ele pronunciou a palavra com cuidado.
Brighid estreitou os olhos.
- Fallon está presa no Castelo Guardião, esperando pelo nascimento da criança e pela execução. Pagará pela loucura, mesmo que o que ela fez tenha sido apenas resultado
do amor profundo por seu povo. Ela é uma aberração. O resto dos neofomorianos não é como ela.
- Então está dizendo que não a ajudariam a fugir e depois se reuniriam em ataques pequenos, porém mortais, contra Partholon?
- Claro que não.
- Mas e se fizessem? E se uma criatura alada que veio do sudoeste - a área exata do Castelo MacCallan - conseguisse invadir o Castelo Guardião e libertasse a fomoriana
insana, deixando sangue e morte em seu rastro? O que os guerreiros guardiões fariam?
- Que jogo de suposições ridículo. Isso nunca aconteceria. Os neofomorianos não querem nada além de viver em paz em Partholon. Não fariam nada para estragar isso.
A risada de Gorman preencheu a tenda, quase afogando o estrondo do trovão seguinte. Bowyn e Mannis sorriram, os dentes faiscaram brancos no piscar do relâmpago.
- Ela sabe tão pouco sobre isso quanto Bregon falou - disse Mannis.
Os olhos de Brighid procuraram por ele.
- Você tem língua? Pensei que você e seu irmão apenas fossem porta-vozes de Bregon. Se ele não está presente para alimentá-los com palavras, nunca imaginaria que
vocês dois... - ela deixou o olhar enojado incluir Bowyn - ... pudessem falar por si mesmos.
- Você sempre se achou muito melhor do que nós - disse Bowyn com raiva.
- Não melhor, apenas mais humana - disse Brighid.
- Não quer saber o que é o "isso"? - interrompeu Gorman, atraindo a atenção dela.
- Não me importa o que você tem a dizer, Gorman.
- Verdade? Talvez importe. "Isso" é mudar de forma. Bregon nos disse que o povo de Partholon sabe tão pouco sobre isso quanto sua própria irmã recém-declarada sumo
xamã. E que ele usaria a ignorância deles a seu favor.
- O que você... - Com um estremecimento de horror, Brighid compreendeu. O "fomoriano" que ajudaria Fallon a escapar seria Bregon. - Ah, Deusa! Não!
- Ah, Deusa! Sim! - zombou Gorman. - Mas não pense que foi Bregon quem pensou no plano.
- Mairearad. - Brighid murmurou o nome da mãe, lembrando-se do berro rude do corvo clamando vingança.
- Claro que foi Mairearad. Mesmo agonizando, ela era brilhante. Orquestrou a vingança da própria morte. Mandou Bregon entrar no Castelo Guardião à noite e sozinho,
e encontrar a fomoriana. Depois deve matar todos que o viram entrar sob a forma verdadeira, transformar-se num fomoriano e deixar a criatura escapar - só então deveria
deixar qualquer guerreiro que o visse viver.
- Porque não o veriam. Veriam um fomoriano - concluiu Brighid, sacudindo a cabeça em horror, lembrando da gentileza que os guerreiros guardiões tinham demonstrado
pelas crianças. Mas isso não importaria, não se acreditassem que Partholon estava sendo atacada pela raça da qual foram encarregados de defendê-la.
- Sim. - Gorman deu uma risada. - E seguirão o rastro de um fomoriano que os levará até o Castelo MacCallan. O que acha que o clã MacCallan vai fazer quando os guerreiros
guardiões cercarem o castelo?
- Não desistirão das crianças - murmurou ela, mais consigo mesma do que para Gorman. - Lutarão para protegê-las.
- Estamos contando com isso - rosnou Gorman.
- Por quê? Aquelas pessoas não lhe fizeram nada. Por que quer destruir o clã MacCallan?
- Pela mesma razão que você deveria. Eles mataram sua mãe.
- Isso é loucura. É impossível que o clã MacCallan tenha ferido minha mãe.
- Ela morreu num poço cavado por humanos. - Gorman foi depressa até um canto escuro da tenda ampla e apanhou um pedaço de pano do chão. Parou diante de Brighid e
empurrou o pano ensanguentado no rosto dela. - Era isso o que os humanos estavam vestindo. Você reconhece?
Era o tartã dos MacCallan. O estômago de Brighid se apertou ao se lembrar de Elphame contando sobre os membros do clã que escolheram romper com os juramentos e deixar
o castelo, tornando-se inaceitáveis para qualquer outro clã. Deviam ter se encaminhado para a vasta Planície dos Centauros, provavelmente pensando em recomeçar,
talvez até fundar o próprio clã.
Em vez disso, iniciaram uma guerra.
- Essas pessoas não eram parte do clã MacCallan. Vários membros do clã quebraram juramento e partiram - devem ser eles. Onde estão? Eu os reconhecerei se os vir.
- Você não os reconheceria agora, nem mesmo com sua excelente visão de caçadora - respondeu Bowyn com sarcasmo.
- Vocês os mataram!
- Matamos. Foi o começo da vingança da sua mãe.
- Isso tem que acabar antes que o mundo seja inundado em sangue - disse Brighid.
- Que inunde! - gritou Gorman. - Enquanto você estava tagarelando com sua Deusa negligente, Bregon estava cuidando dos assuntos da sua mãe. Já foi para o Castelo
Guardião, e deve chegar a qualquer momento com a notícia de seu sucesso sangrento. As engrenagens estão girando até um ponto em que não há mais volta, e é impossível
para você detê-las.
Os olhos de Brighid ficaram frios.
- Jamais me diga o que é impossível, seu bajulador patético! O que sabe sobre o impossível? Tudo o que fez durante a vida inteira foi seguir um centauro que é pouco
mais do que um potro petulante e desejar uma fêmea que sabia mais sobre ódio e manipulação que amor. Tenho pena de você, Gorman.
- Você tem pena de mim! - berrou ele, atirando cuspe no rosto dela. - Vamos ver em breve quem será digno de pena.
Um trovão rosnou de maneira ameaçadora e um relâmpago reluziu lá fora, iluminando a tenda com uma luz surreal e intermitente. Respirando pesado, Gorman se aproximou
de Brighid e afundou a mão nos cabelos dela, puxando-lhe a cabeça dolorosamente para trás.
- Bregon teve mais a relatar sobre o Outro Mundo que a notícia de que finalmente conseguiu provar o cálice. - Com um único movimento violento, arrancou o colete
do peito dela, expondo-lhe os seios. - Também disse uma coisa que consideramos muito chocante. Ele nos contou que você tinha se casado com um humano. Será que é
mesmo verdade? - Com a outra mão, ergueu o seio dela de modo que a cabeça pudesse alcançá-lo com facilidade. Quando a língua se projetou para lamber o mamilo, Brighid
recuou tão violentamente que o mundo começou a escurecer conforme a corda cortava seu fornecimento de ar.
Então dois outros pares de mãos pressionaram o outro lado do seu corpo à medida que Bowyn e Mannis a mantinham ereta para que a corda afrouxasse e a respiração lhe
voltasse em arfadas ofegantes. Numa névoa cinza, parecia que os olhos dos três centauros ardiam com uma luz anormal. Os rostos estavam corados e a respiração se
aprofundava. Onde as mãos quentes a tocavam, Brighid podia sentir a luxúria queimar sobre ela.
- Responda a ele - disse Bowyn, a voz grosseira e ofegante. - Casou com um humano?
- Casei - respondeu Brighid entre os dentes, lutando contra o pânico. - Cuchulainn MacCallan é meu marido e consorte, e quando eu liderar a manada Dhianna será com
ele ao meu lado.
- Isso nunca vai acontecer! - berrou Gorman.
- Talvez ela tenha vivido muito tempo sem um amante centauro, e tenha esquecido o que é paixão de verdade - ofegou Bowyn em meio a arfadas cada vez mais densas.
A mão se fechou sobre o outro seio, e enquanto apertava e projetava o mamilo, Bowyn mordeu o ombro dela com tanta força que seus dentes arrancaram sangue.
A risadinha baixa de Gorman soou perto da orelha de Brighid enquanto a língua subia e descia por seu pescoço.
- Talvez esteja certo, Bowyn.
Brighid podia sentir Mannis se acomodando atrás dela, as mãos e os dentes se revezando dolorosamente entre apalpar e mordiscar suas ancas. Seus olhos procuraram
freneticamente por Hagan, mas o centauro tinha desaparecido na noite tempestuosa.
- Se fizerem isso, juro pela Deusa Epona que não descansarei até cada um de vocês estar morto! - sibilou Brighid. Lutava contra a escuridão que continuava a estreitar
sua visão, concentrando-se no calor que começara a se espalhar da pedra de turquesa pendurada entre seus seios nus.
- E como vai cumprir esse juramento? - murmurou Gorman, a respiração quente vindo rápida e pesada sobre a pele dela enquanto mordiscava e lambia o monte do seio.
- Seu pequenino marido humano vai nos rastrear e nos matar de susto com sua força devastadora?
- Ele não vai precisar fazer isso. Ele vai matá-los esta noite bem onde estão - disse Cuchulainn da abertura da tenda.
Cinquenta
O SOM MORTAL da espada de Cuchulainn sendo retirada da bainha foi ecoada pelo rosnado baixo e ameaçador de um lobo. Quando o guerreiro se mexeu, Fand atacou. Bowyn
foi o primeiro a cair, gritando quando a loba se arremessou por debaixo do corpo de Brighid para pegar suas pernas traseiras. Com um poderoso rasgo dos dentes de
Fand, Bowyn estava com o jarrete rompido e se debatendo no próprio sangue sobre o chão relvado.
Cuchulainn não se movia como um homem. Movia-se como um espírito maligno - silencioso, onisciente, mortal. Com uma velocidade que fazia a espada se tornar um borrão
branco-prateado, ele girou e se arremessou sobre o caído Bowyn, cortando-lhe a garganta num certeiro arco escarlate. A última respiração do centauro escapou pela
boca aberta numa arfada gargarejante.
O guerreiro encurralou Mannis sem fazer um ruído. O centauro estava se afastando das ancas de Brighid, o corpo ainda intumescido com sua luxúria obscena, quando
Cuchulainn atacou. Ele o espetou no peito, puxou a espada e girou, arrastando junto com a lâmina a barriga equina e destripando-o.
- Não será fácil me matar - disse Gorman, erguendo a espada longa que recuperara enquanto o homem mantinha seus companheiros ocupados.
A única resposta de Cuchulainn foi avançar implacável na direção do centauro. Não falou nem desacelerou as passadas. Com velocidade que fora refinada como a ponta
de sua lâmina, Cuchulainn mergulhou primorosamente debaixo da espada de Gorman, mas em vez de se lançar num golpe assassino, cortou o jarrete dianteiro do centauro.
Gorman sibilou de dor e tropeçou para trás - justo no caminho da loba. Fand não era silenciosa como um guerreiro, mas era tão mortal quanto. Um trovão acobertou
o berro de Gorman e, por sua vez, o relâmpago iluminou a carne arrancada pendurada no jarrete traseiro. Ele desabou e Cuchulainn o encurralou.
- Não! - berrou Brighid.
O corpo de Cuchulainn parou num sobressalto. O rosto que virou para a esposa era um que Brighid só tinha visto uma vez, quando lutaram lado a lado contra Fallon
e os fomorianos equivocados que tentaram protegê-la. Mas sua máscara de guerreiro salpicada de sangue não a assustou nem repeliu. Sabia que sua própria visão era
um reflexo da mesma veemência fria.
- Me solte - disse ela.
- Fand! Cuide dele - ordenou Cuchulainn. A loba se esgueirou até ficar perto dos quartos sangrentos do centauro, caninos expostos.
Cuchulainn embainhou a espada e puxou a adaga do cinto. Com movimentos firmes e ágeis, cortou as cordas do corpo da esposa.
Sem pedir, Brighid desembainhou a espada dele, e então, com o torso nu e segurando a lâmina diante de si, aproximou-se de Gorman.
Ele ergueu o rosto, os olhos vidrados de dor e medo.
- Não me mate! Faço qualquer coisa! - implorou.
- Não fale comigo - rosnou ela entre os dentes. Sem olhar para o guerreiro de pé ao seu lado, Brighid perguntou: - Cuchulainn, Epona lhe deu o dom de ver a alma.
O que vê dentro da alma desse centauro?
Brighid ouviu a inspiração desafinada e soube que esse era o primeiro momento em que Cuchulainn usava o dom recém-ofertado pela Deusa.
- Vejo podridão e escuridão.
Sem qualquer hesitação, Brighid cravou a espada do marido no coração do centauro. Quase no mesmo movimento, puxou de volta a espada e a devolveu a Cuchulainn.
- Preciso sair daqui - disse ela.
Cuchulainn assentiu depressa. Antes de segui-la pela aba aberta da tenda, parou para apanhar o colete rasgado, o arco e a aljava de flechas que foram largados num
dos cantos da tenda.
- Fand! Venha.
O guerreiro e a loba saíram na noite para descobrirem que Brighid tinha cambaleado vários passos para longe da tenda. Tinha caído de joelhos e vomitava violentamente.
Fand se deitou perto dela, ganindo preocupada. Cuchulainn lhe acariciou as costas, segurou-lhe os cabelos, murmurando palavras ininteligíveis de conforto, tudo afogado
pelo estrépito ensurdecedor dos trovões, acompanhados pelo fulgor ofuscante dos relâmpagos. Brighid ergueu a cabeça.
- Não há chuva - disse, limpando a boca com as costas da mão.
- Não, amor - afirmou Cuchulainn com carinho. - Não há chuva.
A caçadora respirou fundo várias vezes.
- Também não sinto cheiro de chuva no ar. É uma tempestade seca. Pela Deusa, sempre odiei essa coisa maldita! São perigosas - trazem raios mortais e a chance de...
- Com um ar horrorizado, Brighid se levantou. Se reorientando depressa, virou-se de modo que o vento soprasse diretamente sobre seu rosto enquanto olhava para o
sul, ao longo da Planície dos Centauros. - Ah, Deusa, não!
Cuchulainn lhe acompanhou o olhar arregalado. O horizonte estava em chamas. Enquanto ficavam olhando com um assombro horrorizado, um raio serpeou ao chão, incendiando
uma seção mais próxima das pradarias.
- Temos que sair da planície. Agora - disse, vestindo o colete e prendendo o arco e a aljava nos lugares apropriados às suas costas. - Um incêndio em campo aberto
é enganador. Pode nos engolfar rápido.
- O capão não está longe daqui.
- Espere - disse Brighid antes que Cuchulainn saísse em disparada. - Me ajude a cortar dois pedaços da tenda.
Cuchulainn não a questionou, apenas se aproximou da tenda e começou a cortar a pele grossa.
- Grande o suficiente para nos cobrir - disse Brighid, pegando a beirada cortada e puxando para que se rasgasse mais depressa.
- Nos cobrir? - Cuchulainn parou de cortar.
- Se não conseguirmos fugir do fogo, temos que encontrar um canal, ou, melhor, uma mata com um riacho. Entramos no leito do rio e nos cobrimos com as peles. Se tivermos
sorte, o fogo vai passar por cima de nós.
- E se não tivermos sorte?
- Ficamos sufocados ou morremos queimados.
Cuchulainn resmungou e recomeçou a cortar os pedaços da lateral da tenda com energia renovada. Quando os dois pedaços da tenda desabaram, nem Brighid nem Cuchulainn
olharam para os restos silenciosos e sangrentos que estavam lá dentro.
O capão estava amarrado perto da tenda. Cuchulainn abriu seu alforje e atirou um odre de água para Brighid. Ela bebeu avidamente enquanto Cuchulainn enrolava e depois
amarrava um dos pedaços da tenda no lombo dela, e o outro atrás de sua sela. Quando estava pronto, virou-se para a caçadora. Ela estava com a cabeça abaixada, afagando
Fand e murmurando palavras carinhosas para a filhote choramingante.
Cuchulainn não se permitiu pensar no que encontrara na tenda e no que quase acontecera com a esposa. Não podia. Se pensasse, estaria perdido. O estômago estava apertado
e quente, e ele ainda sentia a clareza sobrenatural que sempre lhe recaía durante uma batalha. Precisaria da força de um guerreiro para guiá-los pelo que havia à
frente. Mas foi impossível não se aproximar de Brighid e erguer-lhe o rosto. Segurando-o entre as mãos, Cuchulainn sentiu o tremor que passou pelo corpo dela quando
seus olhos se encontraram.
- Você chegou a tempo - sussurrou Brighid. - Obrigada.
Ele não conseguia falar. Só conseguiu beijá-la com uma intensidade que beirava a violência. Brighid lhe correspondeu a paixão, envolvendo-o em seus braços e se embriagando
nele.
Um relâmpago cortou o céu, interrompendo o beijo.
- Temos que cavalgar pesado. O vento está a favor do fogo - disse Brighid.
- De volta aos outeiros?
- Não. Lá não há água suficiente para deter o fogo, e nós não conseguiríamos subir rápido o bastante para fugir.
- Para o leste, então. Os afluentes do Rio Calman adentram a planície entre os outeiros e o Castelo Woulff. Meu pai e eu costumávamos pescar lá quando eu era pequeno.
Brighid assentiu.
- Vamos esperar que a seca não os tenha drenado.
- Se for o caso, teremos que alcançar o rio - disse Cuchulainn, montando no capão.
Talvez ele consiga alcançar. O capão é vigoroso e está bem descansado. Eu não.
- Brighid. - Cuchulainn se virou na sela, e seus olhares se encontraram sob o lampejo do raio seguinte. - Nunca deixarei você. Ou vivemos ou morremos - juntos.
Brighid sabia que ele falava a verdade. Aquele homem nunca a abandonaria, nem mesmo para se salvar. Então que a Deusa me ajude a evitar nossa morte.
- Vá na frente. Seguirei logo atrás de você - disse ela.
O guerreiro fincou os calcanhares nos flancos do capão e dispararam rumo ao nordeste com a filhote correndo atrás deles.
A fuga da Planície dos Centauros parecia uma descida a um Mundo Inferior que tinha sido abandonado pela Deusa. Os trovões e os raios serviam para iluminar vinhetas
de uma realidade apavorante. Animais da planície passavam correndo por eles - cervos, raposas e outros mamíferos pequenos, como coelhos, pulavam histéricos no caminho
deles antes de desviarem. E com os animais vinha a fumaça. A princípio era apenas um breve sabor amargo na brisa vinda do sul, mas conforme a noite se alongava o
ar se tornou mais denso até Cuchulainn refrear o capão e rasgar a camisa em tiras longas de linho que ensopou na água de um dos odres.
- Quando ficar muito ruim, amarre isso na frente do nariz e da boca. Talvez ajude.
Ofegando em busca de ar, Brighid assentiu. Os dois beberam sedentos do odre.
- Queria que fosse vinho - disse ela, em meio a acessos de tosse.
Cuchulainn sorriu.
- Em breve. O templo da minha mãe não fica longe dos afluentes do Calman.
- Imagino que não preciso perguntar se ela estará lá para nos receber. - Brighid tentou manter o tom ameno, mas ainda estava lutando para controlar a respiração,
e os lampejos intermitentes dos relâmpagos mostravam claramente o quanto seu corpo equino tremia.
- Mamãe provavelmente estará com dançarinas e uma procissão preparada para nos receber - respondeu Cuchulainn, tentando imitar o tom ameno, mas guiando o capão para
perto dela. O rosto estava tenso e os olhos preocupados ao analisarem a caçadora. - Vamos descansar aqui. Temos algum tempo.
- Não temos tempo nenhum - disse Brighid. Fand se aproximou ofegando, então Brighid se abaixou, despejando água na mão para que a loba lambesse. - Aí está uma menina
corajosa - disse à loba. Depois Brighid relanceou Cuchulainn. - Vá na frente. Sigo atrás.
Cuchulainn assentiu depressa e apontou a cabeça do capão para o norte outra vez, incitando o cavalo num galope constante. De repente os raios se ramificaram na noite
com claridade, iluminando distintamente a forma de um centauro solitário correndo quase em paralelo a eles. Sob a luz branca, a pelagem brilhou dourada e prateada,
uma cópia exata da irmã.
- Me dê seu arco - disse Cuchulainn.
- Não. Se tem que ser feito, eu faço. - Ainda num galope, Brighid ajustou o arco e esperou o próximo raio cair. Quando ele veio, ela mirou e deixou voar uma flecha,
que se enterrou no flanco de Bregon, fazendo-o tropeçar e cair pesado no chão.
Numa corrida ligeira, o capão de Cuchulainn alcançou Bregon antes de Brighid, então o guerreiro desceu do lombo do cavalo, sacando a espada e pressionando-a no peito
ofegante do centauro com tanta força que rasgou a pele. O relâmpago seguinte iluminou as gotas escarlate que escorriam pelo peito pálido como se fossem uma pintura
incompleta.
- Isso é só para que você não duvide de que minha espada funciona neste reino - rosnou Cuchulainn.
- Não o mate, Cuchulainn - disse Brighid com tranquilidade, colocando a mão trêmula sobre o braço do marido. - Ainda não, pelo menos.
Mas seu irmão estava ignorando o guerreiro. Estava era olhando as queimaduras de cordas e as marcas de dentes que deixaram marcas vermelhas e inflamadas no corpo
da irmã.
- O que aconteceu com você?
O rosnado de Cuchulainn era comparável ao rugido baixo e raivoso da loba.
- Os centauros que você deixou para trás fizeram o que você ordenou. Eles a capturaram. Eles a amarraram com cordas de modo que se asfixiasse caso se mexesse. Depois
começaram a estuprá-la. - A cada palavra, Cuchulainn apertava a espada com mais firmeza no peito de Bregon e mais sangue vertia sob a lâmina afiada. - Eu garanti
que não cumprissem suas ordens.
- Não - disse Bregon às tontas, os olhos arregalados de choque. - Só deviam detê-la até eu voltar.
- Até ser tarde demais para impedir a guerra! - berrou Brighid. - Como foi capaz, Bregon? Como pôde provocar tanto derramamento de sangue e ódio? O ódio de nossa
mãe não bastou para abastecê-lo por uma vida inteira?
Um tremor passou pelo corpo dele.
- Só queria deixá-la feliz.
- Isso era tarefa impossível para qualquer um, Bregon. - Então o ar penalizado de seus olhos endureceu. - Você fez? Libertou Fallon?
Bregon fechou os olhos e assentiu.
- Abra os olhos e encare o homem que vai matar você! - ordenou Cuchulainn.
Novamente, a mão de Brighid tocou de leve o braço do marido, que num óbvio esforço se impediu de enfiar o resto da lâmina no peito de Bregon.
- Para onde Fallon foi? - perguntou ela.
- Para as montanhas. É tudo que sei. - Bregon estremeceu outra vez. - Ela era assustadora. - A expressão de choque estava retrocedendo e a arrogância que lembrava
a da mãe estava se esgueirando em seu tom de voz. - Como pode defender aquelas criaturas? São malignas. Mesmo grávida, ela rasgou e dilacerou os guardas com as mãos
e os dentes para se libertar. Tomar a forma deles, mesmo que temporariamente, foi uma experiência medonha.
- Eles não são como Fallon! Os neofomorianos são gentis e carinhosos. - Brighid meneou a cabeça com desgosto, sentindo-se tremendamente enjoada e tão cansada que
era uma luta formar cada palavra. - Você sempre foi assim, Bregon, incapaz de ver além das suas necessidades e dos seus desejos imediatos.
- Não acredito que aquelas criaturas aladas devam viver.
- A escolha não é sua! E os guerreiros guardiões? Quantos você matou? E quantos mais Fallon matou?
- E o clã MacCallan? - perguntou Cuchulainn entre os dentes cerrados.
- Eles mataram minha mãe! - berrou Bregon.
- Seu jovem tolo, os homens que estavam na Planície dos Centauros tinham rompido com o clã - contou-lhe Cuchulainn. - Por que mais estariam tentando construir vida
nova?
- E ninguém matou nossa mãe, Bregon. Foi um acidente - um acidente que teria sido evitado se ela tivesse dado àquele pequeno grupo de pessoas permissão para que
se assentassem numa parte pequena de nossas terras.
- Eles não tinham o direito de estar lá! Violaram as terras da manada!
- Não! - Brighid fez um gesto violento de interrupção com a mão, mas o movimento súbito e violento deixou sua cabeça zonza. - A praga do ódio que nossa mãe espalhou
acaba agora. Virá conosco até o Templo de Epona. Lá contará a Etain o que fez e deixará que ela decida sua punição.
- Não vou! - A respiração dele começou a vir em arfadas fortes e rasas enquanto os olhos vasculhavam ao redor, como se procurassem ajuda na escuridão fumacenta que
os cercava.
- Se eu tiver que cortar seu jarrete e arrastá-lo atrás do cavalo, não hesitarei - disse Cuchulainn.
A pele de Brighid começou a formigar antes que o som os alcançasse. Então o rugido aumentou. Era como um trovão, só que mais vivo - mais intenso. A terra debaixo
deles começou a vibrar.
- Bisões - disse Brighid, encarando incrédula o irmão. - Você tem afinidade com os animais também.
O irmão retribuiu o olhar com firmeza.
- Temos algumas coisas em comum, irmã.
- O que está acontecendo? - perguntou Cuchulainn.
- Uma debandada de bisões. Monte no cavalo - disse apressada, tendo o cuidado de evitar o pânico na voz. - Lidamos com ele mais tarde.
Cuchulainn não se mexeu, apenas manteve a espada no peito sangrento do centauro.
- Vamos perdê-lo.
- Talvez, mas ele não pode se esconder de Epona.
Com um resmungo frustrado, Cuchulainn recuou. No instante em que a espada não estava mais sobre seu peito, Bregon se levantou. Virou-se para a irmã.
- Perdoe-me! - gritou, caindo na direção dela.
Automaticamente, Brighid ergueu os braços para ampará-lo, mas em vez de abraçá-la, as mãos dele se esgueiraram, puxando a pele de bisão enrolada das suas costas.
Antes que Cuchulainn pudesse reagir, Bregon girou, fundindo-se à fumaça como um espírito loiro.
Cuchulainn montou no capão, que estava pateando inquieto para o lado, orelhas erguidas na escuridão estrondosa, com a intenção de ir atrás de Bregon.
- Deixe-o ir - disse Brighid, decidida. - Ele não vale sua vida. - Num grande esforço, Brighid apanhou Fand e a ajeitou à frente da sela de Cuchulainn. - Segure-a
ou será pisoteada! - Era preciso gritar mais alto que o barulho crescente. - Mantenha pulso firme no cavalo. Ele vai entrar em pânico, mas você estará em segurança
desde que esteja montado nele.
Uma enorme sombra escura passou por eles em disparada.
Brighid buscou os olhos turquesa do marido e sorriu. Ela estava perto do fim. A transformação, depois o rapto e a fuga do incêndio tinham esgotado até as reservas
mais profundas da força da caçadora. Não seria capaz de acompanhar os bisões amedrontados, mas não permitiria que sua última memória em vida fosse de lágrimas e
lamentações.
- Eu te amo, Cuchulainn - disse Brighid, fazendo o rosto do marido abrandar.
- E eu te amo, minha bela caçadora.
Outra fera passou correndo por eles, então Brighid respirou fundo antes de dar um tapa no traseiro do capão e gritar: - Agora vamos!
Cinquenta e Um
CAPÃO E CENTAURA dispararam juntos e foram absorvidos na massa de criaturas apavoradas. O cheiro delas atingiu Cuchulainn - almíscar misturado com fumaça e pânico.
Não conseguia ouvir nada além do estrondo dos cascos. Tentava freneticamente guiar o capão de modo a manter-se ao lado de Brighid, mas era impossível. O oceano de
bisões os separou, até que tudo o que Cuchulainn conseguia enxergar era o cabelo loiro-prateado flutuando atrás de Brighid. Depois ele foi empurrado muito mais à
frente e a perdeu por completo.
O medo explodiu dentro dele. Não podia perdê-la! Devagar, conseguiu girar o cavalo para que aos poucos cortassem a massa das criaturas desvairadas. O cavalo era
mais ágil que os bisões pesadões, então logo alcançaram a margem da manada. Cuchulainn fez o cavalo reduzir para um trote contínuo e vasculhou as feras escuras à
procura de algum sinal da pelagem prateada de Brighid.
Então a manada se diluiu e, conforme alguns retardatários passavam, um novo som lhe alcançou os ouvidos. Era um crepitar e estourar característico que foi acompanhado
por um whoosh sinistro no ar. Cuchulainn virou a cabeça e uma súbita corrente de ar ascendente limpou a fumaça, fazendo o capão relinchar para escapar quando uma
parede de chamas se materializou. Dentro do fogo alaranjado Cuchulainn podia ver um jovem filhote de bisão e sua mãe serem consumidos.
Girou o cavalo e começou a ziguezaguear pelo caminho de capim pisoteado deixado pela manada.
- Brighid! - gritou, os olhos procurando um ponto prateado na planície vazia.
Teria passado por ela se Fand não tivesse começado a choramingar e se retorcer freneticamente para se libertar. Brighid estava caída sobre os joelhos e inclinada
à cintura, apoiando as mãos no chão e arfando em busca de ar.
Cuchulainn correu e desceu do capão ao lado dela.
Brighid ergueu a cabeça para encará-lo, olhos arregalados e vidrados.
- Não - murmurou. - Você devia estar a salvo.
- Eu disse que não a deixaria. - Virando-se depressa para o cavalo, apanhou a água e levou o odre aos lábios dela. Brighid bebeu e depois começou a tossir.
O sibilar e o crepitar do fogo fizeram a cabeça dela girar de um lado para o outro.
- Saia daqui! - berrou.
- Só se vier comigo - respondeu ele.
- Não adianta. - Ela apontou para a perna dianteira direita, que estava dobrada no ângulo errado sobre o chão. - Está quebrada. Rápido, Cuchulainn. Me deixe!
- Não deixo! Onde você for, eu vou - se morrer, eu morro! Não vou perdê-la, Brighid. Eu não conseguiria sobreviver.
- Por favor, não faça isso - pediu ela, cansada.
Então os olhos de Cuchulainn se arregalaram.
- Transforme-se!
- Cuchulainn, eu...
- Você consegue! Precisa. Transforme-se para que o capão possa nos carregar daqui. Se não conseguir, morremos aqui.
Viva, criança...
A voz gentil e familiar de Epona passou por sua mente, acalmando-a e tranquilizando-a. Brighid abaixou a cabeça e começou a murmurar as palavras enquanto se preparava
para a dor da transformação.
A pele mal tinha parado de cintilar com a transformação quando Cuchulainn a ergueu sobre o lombo do capão. O fogo estava tão próximo que o calor chamuscava a pele
deles e fagulhas choviam ao redor.
- Vai nos alcançar - ofegou Brighid ao ouvido dele.
Cuchulainn inclinou-se à frente e afundou os calcanhares no capão, que alongou as passadas, mas não conseguiam se afastar do monstro chamejante que os perseguia.
Brighid fechou os olhos e apertou a pedra de turquesa pendurada em seu pescoço.
Preciso novamente de você, meu amigo alado.
O grito da águia soou acima das chamas faiscantes e as asas poderosas bateram para longe a fumaça que os rodeava quando a ave os circulou uma vez e depois mergulhou
como uma estrela cadente à direita deles.
Venha...
Cuchulainn puxou as rédeas do capão para a direita e seguiu a ave voadora até a margem do rio.
A água era rasa - pouco ultrapassava os jarretes do capão. E não estavam sozinhos. Juntaram-se a um sortimento estranho de cervos e coiotes, todos encolhidos na
água e olhando com fascinação hipnótica a aproximação da parede de chamas. Quando Fand pulou na margem e mergulhou na direção deles, nem mesmo um tímido cervo dispensou-lhe
uma olhada.
- Tire a pele do capão! - gritou Brighid acima do trovão de chamas. - Deixe-o ir. Ele pode correr mais depressa sem nós.
Brighid cerrou os dentes com a dor na perna quando Cuchulainn a ajudou a descer do lombo do cavalo. Equilibrou-se numa perna só na água lamacenta enquanto ele puxava
a sela, os pacotes e a pele de bisão, e enxotava o capão para longe. Então Cuchulainn abaixou-se com Brighid dentro da água e chamou Fand. Envoltos nos braços um
do outro e com a loba apertada entre eles, Cuchulainn os cobriu com a pele do bisão e o mundo se tornou negro.
Perderam toda a sensação de tempo, só sabiam do calor e do som terrível e ensurdecedor do fogo consumidor. A água ao redor deles sibilava e evaporava. Brighid se
abraçou a Cuchulainn e tentou controlar o pânico instintivo que a fazia querer fugir daquela opressiva pele de bisão. A perna quebrada latejava dolorosamente e o
corpo parecia horrivelmente fraco, e, apesar do calor, Brighid começou a estremecer, sabendo que o choque estava se assentando sobre ela. Isso poderia me matar tanto
quanto o fogo. Era um pensamento desprendido, e Brighid sabia que devia lutar para ficar consciente e acordada... mas era tão mais fácil dormir... e estava tão frio...
Então ela ouviu a cantoria. Os lábios se ergueram ao reconhecer as vozes das crianças aladas e recordar que era a canção que cantaram no dia em que partiram dos
Ermos: Saudações, sol de Epona,
que viaja no alto dos céus.
Com seus passos fortes
em seu voo altaneiro,
você é a feliz mãe da estrelas.
- Está ouvindo? - sussurrou Brighid a pergunta a Cuchulainn.
- Estou - disse ele, a voz baixa. - Ouço, mesmo que as crianças não estejam aqui.
- Não estão... - a voz de Brighid estava embargada com as lágrimas - ... mas o amor delas está. Gorman estava errado, Epona ainda se importa com o que acontece com
suas sumos xamãs. - Ao ouvir a canção desencarnada de louvor, Brighid sentiu a força do amor encher seu corpo e se expandir conforme mergulhava e se concentrava
na melodia, que os cobriu num protetor toque maternal.
Você afunda no perigoso oceano
sem dano e sem ferimento.
Você se ergue no silêncio da onda
como uma jovem chefe desabrochando...
e vamos amá-la por todos os dias de nossas vidas!
- Terminou - disse Brighid baixinho quando a cantoria acabou. - O fogo se consumiu. Posso sentir - a raiva se foi.
Devagarinho, Cuchulainn ergueu a grossa pele e olhou para o amanhecer estranho de uma terra muito transformada. Ficou de pé e ergueu Brighid, com Fand acompanhando
bem de perto, e a carregou do leito do rio que tinha secado até pouco mais do que uma poça e estava entulhada com corpos chamuscados de animais. Subiu a margem esquerda
até ficar em meio aos cadáveres pretos de árvores. A série de afluentes que adentravam a Planície dos Centauros a partir do rio principal enfim bloqueara o fogo,
e o verde que ainda cobria as colinas atrás dos últimos canais parecia bizarramente deslocado num mundo preto e cinza. Antes que ele pudesse se voltar para o sul
e o que restava da Planície dos Centauros, Brighid falou: - Deixe-me ficar de pé. Quero voltar ao normal.
Cuchulainn a colocou de pé no chão. Quando Brighid recuperou o equilíbrio, Cuchulainn deu meio passo para trás, depois protegeu os olhos da luz brilhante da transformação
que engolfou o corpo dela. De volta à forma natural, Brighid equilibrou-se desengonçada sobre três pernas, mas buscou o olhar dele com resolução.
- Estou pronta para ver agora.
Juntos, os dois se voltaram para o sul. Brighid mal conseguia compreender o que estava vendo. O sol estava raiando na margem leste do horizonte, lançando tons rosa
e dourados alegres no céu sobre um mar de ruínas. A planície tinha sumido. No lugar dela existiam cinzas ainda fumegantes que se entulhavam em grotescas formações
queimadas. As árvores eram indistinguíveis dos corpos. Nada se mexia, exceto pelas colunas de fumaça.
- Ah, Deusa! - Brighid apertou a mão sobre a boca para não soluçar alto. Conseguiria alguma coisa sobreviver a isso?
- Sim, criança. - A voz de Etain soou alta e doce às costas deles.
Viraram-se para se deparar com a Deusa Encarnada, então Brighid se surpreendeu. Etain estava montada na égua prateada na margem enegrecida. Midhir estava à sua esquerda.
À direita estavam Elphame, Lochlan e Ciara. E espalhados atrás deles estavam todas as crianças aladas.
- Agora me diga, minha filha, como alguma coisa sobreviveria a essa devastação? - perguntou Etain a Brighid.
Os olhos da caçadora foram da Deusa Encarnada para Elphame, depois para Ciara e as crianças estranhamente caladas para, por fim, procurarem os olhos turquesa do
marido. Com um ímpeto de clareza, Brighid enfim compreendeu - e naquele momento a caçadora se transformou inteiramente na Sumo Xamã.
- Com esperança e amor, tudo pode sobreviver - disse ela, e as palavras soaram com um poder aprimorado pela Deusa, de modo que não foram carregadas apenas até as
crianças, mas se espalharam como ondulações num lago pela Planície dos Centauros.
Etain sorriu em aprovação.
De repente, além das crianças, começou uma gritaria, então guerreiros vestidos de negro apareceram com arcos e espadas em punho. Brighid sentiu Cuchulainn tenso
ao seu lado e abriu a boca para gritar um alerta, mas Etain ergueu um braço vestido em seda e o sol cintilou na palma de sua mão como se ela tivesse chamado seus
raios.
- Esperem, guerreiros guardiões! - ordenou sem olhar para o exército que se aproximava. - Não permiti que os seguissem até aqui para uma retribuição inapropriada.
Estão aqui para testemunhar um renascimento. Fiquem quietos e observem. - Então sua voz mudou, suavizou-se, e Etain enfim olhou para trás, mas não para os guerreiros.
A Alta Sacerdotisa sorriu para as crianças. - Venham.
O grupo desceu a elevação verde e cruzou a linha do fogo sem hesitação. Quando chegaram perto de Brighid e Cuchulainn, pararam. Brighid queria cumprimentar os amigos,
Elphame, Ciara e a figurinha alada de Liam, mas um formigamento sobrenatural estava novamente sobre sua pele e parecia que seu sangue cantarolava numa súbita onda
de desejo silencioso - algo que estava além do alcance da sua mente e do seu espírito - mas algo que queria... precisava ter.
- Leve-os, Brighid, Sumo Xamã da manada Dhianna. É seu amor e a esperança deles que recuperará a alma desta terra - disse Etain.
- Posso me apoiar em você? - perguntou Brighid a Cuchulainn.
- Sempre, minha bela caçadora.
Com o braço envolvendo os ombros largos, mancou barranco abaixo, cruzou o rio esturricado, e, com o farfalhar das asas que a seguiam, Brighid, Cuchulainn e os neofomorianos
entraram na planície destruída.
Brighid se voltou para as crianças e sua xamã.
- Podem me ajudar a fazê-la crescer outra vez? - perguntou.
- Sim, Brighid!
- Claro, caçadora!
- Sim!
- Sim!
Ela sorriu conforme as vozes ecoavam pela quietude morta da terra queimada.
- Então se juntem a mim.
Estendeu a mão e Liam veio correndo. Ciara se aproximou e tomou a mão de Liam. Depois Kyna saltitou para apertar a mão de Cuchulainn e exibir um sorriso radiante.
E, um por um, os neofomorianos se deram as mãos e se espalharam num semicírculo, encarando a destruição nas terras ao sul.
- Eu... Eu não sei... - gaguejou Brighid.
Ciara capturou-lhe o olhar e exibiu aquele sorriso jubiloso que era tão cheio de amor e gentileza.
- Sim, você consegue, Brighid. Apenas deixe seu coração falar.
E então Brighid abriu a boca e deixou o coração se despejar: Graciosa Deusa Epona!
Guardiã de tudo que é selvagem e livre,
pedimos tua bênção sobre esta planície.
Era um lugar de ódio e conflito,
mas foi purificado pelo fogo.
Que agora seja reconstruído
como um lugar de alegria e amor!
Um lugar de refúgio e paz,
um lugar de encantamento!
Selvagem e livre como a Deusa que o criou...
Brighid se calou quando Ciara, logo acompanhada pelas crianças, começou a cantarolar uma melodia ritmada e sem palavras que lembrava o vento varrendo o capim alto
de pleno verão. Ao mesmo tempo, um brilho esmeralda começou a emanar de todos os neofomorianos. A mão de Cuchulainn apertou a dela quando a voz de Epona, cheia de
amor e alegria, soprou por eles como um vento mágico vindo do fundo do coração deles: - Consagro você, Brighid Dhianna, como Guardiã da Planície dos Centauros. Está
vinculada a ela pelo sangue, pelo amor e pela esperança - e agora por minha sagrada confiança!
Tomada de emoção, Brighid curvou a cabeça em reconhecimento, recompondo-se antes de poder completar a oração. Quando voltou a falar, a voz estava densa com o amor
e a felicidade que a inundavam: Ó graciosa Deusa!
Divina protetora de tudo que é selvagem e livre,
estejas sempre presente
nesta terra de beleza!
Salve Epona!
Que assim seja!
Ao falar as últimas palavras da oração, o brilho esmeralda que pairava sobre as crianças de repente explodiu, como um redemoinho colorido que possuía o poder de
apagar o passado, e rodopiou pela planície, removendo as feias cinzas negras e a fumaça para de repente expor o belo renascimento que já estava despontando debaixo
do rico solo.
Com lágrimas correndo livres pelo rosto, Brighid observou sua terra natal renascida. E então, antes que pudesse compreender a enormidade do que as crianças abençoadas
pela Deusa tinham feito, uma agitação surgiu na terra recém-nascida quando os centauros apareceram de repente. Eram guiados por um macho loiro-prateado cujo cabelo
fora arrancado do corpo pelo fogo e cuja pele estava empolada e queimada.
Brighid continuou parada no centro da linha de mãos dadas enquanto ele e os outros centauros se encaminhavam lentamente até ela. Conforme se aproximavam, reconheceu
vários deles, especialmente as fêmeas, como sendo membros da manada Dhianna, mas o foco de sua atenção continuava no irmão.
Bregon parou a poucos passos diante dela. Lenta e deliberadamente, executou uma profunda reverência de respeito prestada apenas a centauros sumos xamãs.
- Perdoe-me, Brighid. - Quando ergueu o rosto, as faces cobertas de fuligem estavam banhadas de lágrimas. Então Bregon se pôs de joelhos. Mantendo os olhos na irmã,
começou a falar numa voz profunda e sincera: Pela profunda paz do ar corrente, eu me vinculo a ti.
Pela profunda paz do fogo crepitante, eu me vinculo a ti.
Pela profunda paz da terra serena, eu me vinculo a ti.
Pelos quatro elementos, eu estou vinculado a ti, Brighid Dhianna, Sumo Xamã e Guardiã da Planície dos Centauros, e pelo espírito de nossa manada selo este vínculo.
Assim foi dito, então assim seja feito.
Pasma, Brighid só conseguia encarar o irmão e os outros membros da manada Dhianna que tinham se ajoelhado quando Bregon pronunciou as antigas palavras de vínculo.
- Deve aceitá-los ou não - disse Cuchulainn baixinho. - A decisão é sua.
- Levantem-se, centauros Dhianna. Sua sumo xamã os aceita.
Com um grito de alegria, os centauros se ergueram - todos, exceto o irmão - que curvou novamente a cabeça e chorou abertamente.
Houve certa agitação na fila à direita de Brighid quando Ciara largou as mãos das crianças a cada lado seu. Com aquela graça que lhe era tão singular, a xamã alada
se aproximou de Bregon. Ergueu o rosto dele e o encarou nos olhos. Brighid viu o sobressalto no corpo dele e tentou mancar adiante, mas a mão de Cuchulainn a impediu.
- Espere - murmurou.
Lentamente, Ciara secou as lágrimas do rosto de Bregon e depois lhe ofereceu a mão. O centauro a aceitou e se inclinou para ficar de pé outra vez. Mantendo a mão
dele consigo, a xamã alada se voltou para as crianças.
- Este é o irmão de Brighid - disse-lhes. - Venham lhe dar as boas-vindas.
Imediatamente a represa arrebentou e corpinhos alados se atulharam ao redor do centauro queimado, saltitando e fazendo seu costumeiro sortimento de perguntas intermináveis.
- Olhe para ele, Cuchulainn, e me diga o que vê dentro da alma - pediu Brighid.
O guerreiro observou o irmão da esposa, e depois seus olhos buscaram os dela.
- Vejo redenção, minha bela caçadora.
Epílogo BEM AO NORTE, nas profundezas das Montanhas Trier, Fallon, em gravidez avançada, recostou-se no braço do companheiro quando entraram no talho escuro da formação
rochosa através da qual tinham visto um único fio de fumaça.
Lá dentro, o fogo ardia no centro da caverna. Perante os recém-chegados, as asas das criaturas reunidas se agitaram e se ergueram perigosamente. Caninos e garras
cintilaram, mesmo sob a luz fraca do fogo minguado.
Ela sabia! Sabia que nem todos tinham perecido! Não era possível que seres tão fortes, tão cheios de vontade de viver estivessem todos mortos. Não... Eles estavam
ali, esperando por ela... Exatamente como sonhara... Exatamente como esperava.
- Quem é você? - rosnou um deles.
Fallon se desvencilhou do braço de Keir e se empertigou, exibindo a saliência viva que avolumava seu abdômen.
- Sou a salvação de vocês!

 

 

                                                                  P.C. Cast

 

 

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