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A BUSCA DO GRAAL
A BUSCA DO GRAAL

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Thomas sabia que o capitão estava certo. Os ingleses tinham matado milhares em Caen, depois queimaram fazendas, moinhos e aldeias numa grande área a leste e ao norte. Era uma maneira cruel de fazer guerra, mas podia levar o inimigo a sair de suas fortalezas e dar combate. Sem dúvida era por isso que o conde de Coutances estava sitiando as terras de Evecque, na esperança de que Sir Guillaume fosse atraído para fora de seus muros de pedra para defendê-las. Só que Sir Guillaume tinha apenas nove homens e não podia ter a esperança de enfrentar o conde numa batalha aberta.

— Temos negócios em Caen — admitiu Thomas —, se é que conseguiremos chegar lá.

O capitão meteu o dedo numa narina e depois deu um peteleco em alguma coisa, jogando-a ao mar.

— Procure o Troi Fers — disse.

— O quê?

— Troi Fers — repetiu. — É um navio, e esse é o nome dele. É francês. Ele não é grande, não é maior do que aquela banheira pequena. — Apontou para um barco de pesca pequeno, o casco alcatroado, do qual dois homens lançavam redes com pesos no mar picado perto dos Casquets. — Um homem chamado Peter Feio dirige o Troi Fers. Ele poderia levar vocês a Caen, ou talvez a Carteret ou Cherburgo. Eu não disse nada a vocês.

— Claro que não — disse Thomas.

Ele supunha que o capitão queria dizer que Peter Feio comandava um barco chamado Les Trois Frères. Olhou para o barco de pesca e se perguntou que tipo de vida era tirar o seu sustento daquele mar agitado com uma rede. Era mais fácil, sem dúvida, contrabandear lã para a Normandia e vinho ao voltar para as ilhas.

Durante toda a manhã eles seguiram para o sul até que finalmente acharam terra. Uma pequena ilha ficava a leste, distante, e uma maior, Guernsey, a oeste, e das duas erguiam-se pilares de fumaça de fogões que prometiam abrigo e comida quente, mas embora aquela promessa flutuasse no céu o vento voltou, a maré virou e o Ursula levou o resto do dia para entrar no porto, onde ancorou sob o gigantesco vulto do castelo construído sobre a ilha rochosa. Thomas, Robbie e o padre Pascal foram levados em terra num barco a remo e encontraram uma trégua do vento frio numa taberna com um fogo aceso numa ampla lareira, ao lado da qual comeram cozido de peixe e pão preto regados a cerveja aguada. Dormiram em sacos com enchimento de palha que eram moradia de piolhos.

Passaram-se quatro dias até Peter Feio, cujo nome verdadeiro era Pierre Savon, entrar no porto e mais dois dias até que estivesse pronto para partir de novo, com uma carga de lã sobre a qual não haveria pagamento de direitos. Ele teve prazer em aceitar passageiros, apesar de só por um preço que deixou Robbie e Thomas sentindo-se roubados. O padre Pascal foi transportado de graça, por ser normando e padre, o que significava, segundo Pierre o Feio, que Deus o amara duas vezes e por isso não deveria afundar Les Trois Frères enquanto o padre Pascal estivesse a bordo.

Deus devia amar mesmo o padre, porque enviou um vento oeste brando, céus claros e mares calmos, de modo que Les Trois Frères parecia voar na sua viagem para o rio Orne. Eles subiram para Caen com a maré, chegando de manhã, e assim que chegaram em terra o padre Pascal abençoou Thomas e Robbie e depois suspendeu a batina surrada e começou a caminhar para leste, em direção a Paris. Thomas e Robbie, levando pesadas trouxas de malha, armas, flechas e mudas de roupa, seguiram para o sul, atravessando a cidade.

Caen não parecia melhor do que quando Thomas a deixara no ano anterior depois de ter sido devastada por arqueiros ingleses que, desrespeitando ordens do rei para que parassem o ataque, atravessaram em massa o rio e mataram centenas de homens e mulheres dentro da cidade. Robbie olhava perplexo para a destruição na Île St. Jean, a parte mais nova de Caen, a que mais sofrera com o saque inglês. Poucas das casas incendiadas tinham sido reconstruídas, e havia costelas, crânios e ossos longos à mostra na lama do rio na margem da maré que baixava. As lojas estavam quase vazias, embora alguns habitantes do interior estivessem na cidade vendendo alimentos em carroças, e Thomas comprou peixe seco, pão e um queijo duro como pedra. Algumas pessoas olhavam de soslaio para a vara de seu arco, mas ele lhes garantia que era escocês e, com isso, aliado da França.

— Eles têm arcos bons na Escócia, não têm? — perguntou a Robbie.

— Claro que temos.

— Então por que vocês não os usaram em Durham?

— Não tínhamos uma quantidade suficiente — disse Robbie. — Além do mais, preferimos matar vocês, seus bastardos, de perto. Para termos a certeza de que morreram, entende? — Ele olhou boquiaberto para uma jovem que carregava um balde de leite. — Estou apaixonado.

— Se tem peitos, você se apaixona — disse Thomas. — Vamos andando.

Ele levou Robbie para a casa de Sir Guillaume na cidade, o lugar em que conhecera Eleanor, e apesar de o timbre de Sir Guillaume, de três falcões, ainda estar entalhado em pedra acima da porta, agora havia um novo estandarte balançando sobre a casa: uma bandeira mostrando um javali corcunda com grandes presas.

— De quem é essa bandeira? — Thomas tinha atravessado a pequena praça para falar com um tanoeiro que martelava um anel de ferro para encaixá-lo nos flancos de um novo barril.

— É do conde de Coutances — disse o tanoeiro —, e o bastardo já aumentou os nossos aluguéis. E eu não me importo se você trabalha para ele. — Ele endireitou o corpo e franziu o cenho ao olhar para a vara do arco. — Você é inglês?

— Écossais — disse Thomas.

— Ah! — O tanoeiro ficou intrigado e inclinou-se mais para perto de Thomas. — É verdade, monsieur — perguntou —, que vocês pintam a cara de azul nas batalhas?

— Sempre — disse Thomas —, e o traseiro também.

— Formidable! — disse o tanoeiro, impressionado.

— O que é que ele está dizendo? — perguntou Robbie.

— Nada.

Thomas apontou para o carvalho plantado no centro da pequena praça. Umas poucas folhas enrugadas ainda pendiam dos galhos.

— Fui enforcado naquela árvore — disse a Robbie.

— É, e eu sou o papa de Avignon. — Robbie ergueu sua trouxa. — Perguntou a ele onde podemos comprar cavalos?

— Os cavalos são caros — disse Thomas —, e achei que poderíamos nos poupar o trabalho de comprá-los.

— Somos andarilhos agora?

— É verdade — disse Thomas.

Ele guiou Robbie para sair da ilha, atravessando a ponte onde tantos arqueiros tinham morrido no ataque alucinado e depois atravessando a cidade velha. Esta fora menos danificada do que a Île St. Jean, porque ninguém tentara defender as ruas estreitas, enquanto o castelo, que jamais caíra frente aos ingleses, sofrera apenas de balas de canhão que pouco tinham feito exceto lascar as pedras em torno da porta. Um estandarte vermelho e amarelo tremulava na defesa do castelo e soldados, usando o mesmo libré colorido, interpelaram Thomas e Robbie quando eles saíam da cidade velha. Thomas respondeu dizendo que eram soldados escoceses à procura de emprego pelo conde de Coutances.

— Pensei que ele estivesse aqui — mentiu Thomas —, mas soubemos que está em Evecque.

— E sem resultado algum — disse o comandante dos guardas. Era um homem barbudo cujo elmo tinha uma grande racha, sugerindo que ele o retirara de um morto. — Ele está mijando naqueles muros já faz dois meses e não resolveu nada, mas se vocês quiserem morrer em Evecque, rapazes, eu lhes desejo boa sorte.

Eles passaram a pé ao longo dos muros da Abbaye aux Dames e Thomas teve outra vez uma súbita visão de Jeanette. Ela fora sua amante, mas depois conhecera Edward Woodstock, o príncipe de Gales, e que chance Thomas poderia ter depois disso? Foi ali, na Abbaye aux Dames, que Jeanette e o príncipe viveram durante o breve cerco de Caen. Onde estaria Jeanette agora? Thomas gostaria de saber. De volta à Bretanha? Ainda procurando o filho pequeno? Será que alguma vez pensou nele? Ou será que lamentava ter fugido do príncipe de Gales por acreditar que a batalha da Picardia seria perdida? Talvez, àquela altura, estivesse casada de novo. Thomas desconfiava que ela levara uma pequena fortuna em jóias ao fugir do exército inglês, e uma viúva rica, com pouco mais de vinte anos de idade, dava uma esposa atraente.

— O que acontecerá — indagou Robbie interrompendo os pensamentos dele — se descobrirem que você não é escocês?

Thomas ergueu os dois dedos da mão direita que puxavam a corda do arco.

— Eles cortam estes dois.

— Só isso?

— São as primeiras coisas que eles cortam.

Continuaram a andar para o sul, passando por uma região de pequenos morros íngremes, campos compactos, bosques espessos e sendas enlameadas. Thomas nunca estivera em Evecque e, embora não ficasse longe de Caen, alguns dos camponeses a quem eles perguntavam nunca tinham ouvido falar nela, mas quando Thomas perguntava para onde os soldados estavam indo durante o inverno eles apontavam para o sul. Os dois passaram a primeira noite numa choça sem telhado, um lugar que evidentemente fora abandonado quando os ingleses chegaram no verão e atravessaram a Normandia, devastando-a.

Acordaram ao amanhecer e Thomas atirou duas flechas numa árvore, só para manter a prática. Estava cortando o tronco em volta das pontas de aço para extraí-las, quando Robbie apanhou o arco.

— Pode me ensinar a usá-lo? — perguntou.

— O que eu posso lhe ensinar — disse Thomas — vai levar cinco minutos. Mas para o resto será preciso a vida inteira. Comecei a atirar flechas quando tinha sete anos e só depois dos dez estava começando a ser bom nisso.

— Não pode ser tão difícil assim — protestou Robbie. — Já matei um veado com um arco.

— Era um arco de caça — disse Thomas. Ele deu a Robbie uma das flechas e apontou para um salgueiro que teimosamente conservara as folhas. — Acerte o tronco.

Robbie riu.

— Eu não posso errar! — O salgueiro não chegava a trinta passos de distância.

— Pois então atire.

Robbie puxou o arco, olhando uma vez para Thomas quando percebeu o quanto de força era necessário para envergar a grande vara de teixo. Ela era duas vezes mais dura do que os arcos de caça, mais curtos, que ele usara na Escócia.

— Jesus! — disse baixinho enquanto puxava a corda à altura do nariz e percebia que o braço esquerdo tremia ligeiramente com a tensão da arma, mas olhou ao longo da flecha para verificar a mira e estava prestes a soltar quando Thomas ergueu a mão.

— Você ainda não está pronto.

— Claro que estou — disse Robbie, apesar de as palavras saírem como grunhidos, porque o arco exigia uma grande força para ficar na posição de armado.

— Você não está pronto — disse Thomas — porque há oito centímetros de flecha aparecendo na frente do arco. Você tem de puxá-lo até a ponta da flecha tocar em sua mão esquerda.

— Ah, meu doce Jesus — disse Robbie, e respirou fundo, cobrou ânimo e puxou até que a corda passou do seu nariz, do seu olho e quase tocou a orelha direita. A ponta de aço da flecha tocou-lhe a mão esquerda, mas agora ele já não podia mirar ao olhar ao longo da flecha. Franziu o cenho ao perceber a dificuldade que aquilo representava e então compensou chegando o arco para a direita. O braço esquerdo tremia com a tensão e, incapaz de manter a flecha armada, ele soltou, e depois contorceu-se quando a corda de cânhamo fustigou ao longo do lado interno do seu antebraço esquerdo. As penas da flecha soltaram um lampejo branco ao passarem a uns trinta centímetros de distância do tronco do salgueiro. Robbie soltou um palavrão, perplexo, e então entregou o arco a Thomas.

— Então o truque da coisa — disse ele — é aprender a mirar?

— O truque — disse Thomas — é não mirar. É uma coisa que simplesmente acontece. Você olha para o alvo e deixa a flecha voar.

Alguns arqueiros, os preguiçosos, só puxavam até à altura do olho, e isso fazia com que eles fossem precisos, mas faltava força às flechas. Os bons arqueiros, os arqueiros que derrotavam exércitos ou derrubavam reis vestindo armaduras vistosas, puxavam a corda até o limite.

— Ensinei uma mulher a atirar no verão passado — disse Thomas, pegando o arco de volta —, e ela aprendeu bem. Bem mesmo. Acertou uma lebre a setenta passos.

— Uma mulher!

— Eu a deixei usar uma corda mais comprida — disse Thomas —, de modo que o arco não precisava de tanta força, mas ainda assim ela era boa.

Ele se lembrou da alegria de Jeanette quando a lebre caiu na grama, guinchando, a flecha espetada no quarto traseiro. Jeanette. Por que estava pensando tanto nela?

Seguiram caminhando por um mundo orlado de branco de geada. As poças tinham congelado e as cercas vivas, desfolhadas, eram contornadas por uma forte geada branca que diminuía à medida que o sol subia. Eles atravessaram dois rios, subiram através de bosques de faia em direção a um platô que, uma vez lá, revelou-se um lugar selvagem de gramado raso que nunca sofrera a ação de um arado. Alguns arbustos de tojo rompiam a grama, mas, fora isso, a estrada cortava uma falsa planície sob um céu vazio. Thomas pensara que a charneca não seria mais do que uma faixa estreita de terreno elevado e que dali a pouco eles voltariam a penetrar nos vales cobertos de florestas, mas a estrada continuou e ele sentiu-se ainda mais como uma lebre numa região montanhosa calcária sob o olhar fixo de um búteo. Robbie sentia a mesma coisa, e os dois saíram da estrada para caminhar onde o tojo oferecia uma certa proteção, ainda que intermitente.

Thomas estava sempre olhando para a frente e para trás. Aquela era uma região de cavalos, um terreno elevado de gramado firme, onde cavaleiros podiam seguir a pleno galope e onde não havia bosques ou ravinas onde dois homens a pé pudessem esconder-se. E o planalto parecia se estender para sempre.

Ao meio-dia eles chegaram a um círculo de pedras em pé, cada uma da altura de um homem e fortemente incrustada de líquen. O círculo tinha vinte metros de diâmetro e uma das pedras tinha caído. Ambos apoiaram as costas nela enquanto faziam uma refeição de pão e queijo.

— A festa de casamento do diabo, hein? — disse Robbie.

— Você se refere às pedras?

— Nós temos dessas pedras na Escócia. — Robbie girou o corpo e afastou fragmentos de conchas de caracóis da pedra caída. — Elas são pessoas transformadas em pedra pelo diabo.

— Em Dorset — disse Thomas — o povo diz que Deus as transformou em pedra.

Robbie franziu o cenho diante daquela idéia.

— Por que Deus faria isso?

— Por dançarem no sábado.

— Elas apenas iriam para o inferno por causa disso — disse Robbie. Depois, sem outra coisa para fazer, esfregou a grama com o calcanhar. — Nós escavamos as pedras quando temos tempo. À procura de ouro, sabe?

— Você já encontrou ouro?

— Às vezes achamos, nos montes de terra que cobrem túmulos. Pelo menos, jarros e contas. Porcarias, na verdade. Sempre jogamos fora. E achamos pedras de elfos, claro.

Ele se referia às misteriosas pontas de pedra de flechas que se diziam disparadas por cordas de arco dos elfos. Ele se espreguiçou, desfrutando o fraco calor do sol que agora chegara ao ponto máximo ao qual subiria no céu de um inverno que ia em meio.

— Estou com saudade da Escócia.

— Nunca estive lá.

— É a terra de Deus — disse Robbie, convincente, e ainda falava sobre as maravilhas da Escócia quando Thomas caiu delicadamente no sono. Cochilou mas logo acordou porque Robbie lhe deu um toque com o pé.

— Temos companhia.

Thomas ficou de pé ao lado dele e viu quatro cavalarianos a cerca de dois quilômetros para o norte. Jogou-se ao gramado, puxou a trouxa e retirou dela um feixe de flechas, e depois encaixou a corda nas pontas da vara.

— Talvez eles não tenham visto a gente — disse ele, otimista.

— Viram — comentou Robbie, e Thomas voltou a trepar na pedra para ver que os cavalarianos tinham saído da estrada; agora estavam parados, e um deles ficou em pé nos estribos para ter uma visão melhor dos dois estranhos que estavam no círculo de pedra. Thomas conseguiu ver que usavam cotas de malha por baixo dos casacos.

— Eu posso acertar três deles — disse dando palmadinhas no arco —, se você cuidar do quarto.

— Ah, seja bondoso para com um pobre escocês — disse Robbie sacando a espada do tio. — Deixe dois para mim. Lembre-se que eu tenho de ganhar dinheiro.

Ele podia estar enfrentando uma luta com quatro cavalarianos na Normandia, mas ainda era um prisioneiro de Lorde Outhwaite e, por isso, obrigado a pagar seu resgate, que tinha sido fixado em meras duzentas libras. O de seu tio era de dez mil, e na Escócia o clã dos Douglas estaria cortando uma volta para levantar tal quantia.

Os cavalarianos ainda observavam Thomas e Robbie, sem dúvida se perguntando quem e o que podiam ser. Mas não deviam estar com medo; afinal, usavam cotas de malha e estavam armados, ao passo que os dois estranhos estavam a pé, e homens a pé eram quase sempre camponeses, e estes não representavam ameaça alguma a cavalarianos com cotas de malha.

— Uma patrulha de Evecque? — perguntou Robbie a si mesmo, em voz alta.

— Provavelmente.

O conde de Coutances deveria ter homens vasculhando o interior à procura de alimentos. Ou talvez os cavalarianos fossem reforços que seguiam para ajudar o conde, mas fossem quem fossem iriam considerar que qualquer estranho naquela região era uma presa, por causa das armas.

— Eles estão vindo — disse Robbie quando os quatro cavalarianos espalharam-se para formar uma linha. Deviam ter presumido que os dois estranhos fossem tentar fugir e por isso formavam a linha para envolvê-los.

— Os quatro cavaleiros, hein? — disse Robbie. — Nunca me lembro do que o quarto cavaleiro representa.

— Morte, guerra, peste e fome — disse Thomas colocando a primeira flecha na corda.

— É a fome que eu sempre esqueço — disse Robbie.

Os quatro cavalarianos estavam a uma distância de oitocentos metros, espadas desembainhadas, vindo a galope curto sobre o belo e compacto gramado. Thomas segurava o arco voltado para baixo, para que eles não ficassem prontos para as flechas. Agora ouvia o tropel e pensou nos quatro cavaleiros do Apocalipse, o temível quarteto de cavaleiros cujo aparecimento iria ser o presságio do fim dos tempos e a última grande luta entre o céu e o inferno. A guerra apareceria num cavalo cor de sangue, a fome estaria num garanhão preto, a peste assolaria o mundo numa montaria branca, enquanto a morte cavalgaria um cavalo pálido. Thomas teve uma súbita lembrança do pai, sentando-se com as costas eretas, cabeça para trás, entoando em latim: “et ecce equus pallidus”. O padre Ralph costumava dizer aquelas palavras para irritar sua governanta e amante, mãe de Thomas, que, apesar de não saber nada de latim, compreendia que as palavras se referiam à morte e ao inferno e achava, e corretamente, como aconteceu, que o padre seu amante estava atraindo inferno e morte para Hookton.

— Veja um cavalo pálido — disse Thomas. Robbie dirigiu-lhe um olhar de interrogação. — “Eu vi um cavalo pálido” — citou Thomas — “e o nome do seu cavaleiro era Morte, e o Inferno o acompanhava.”

— O inferno é outro dos cavaleiros? — perguntou Robbie.

— Inferno é o que esses bastardos vão ter — disse Thomas e ergueu o arco e puxou a corda para trás e sentiu uma súbita raiva e ódio no coração pelos quatro homens, e então o arco vibrou, a nota emitida pela corda seca e grave, e antes que o som morresse ele já estava pegando outra flecha do lugar em que espetara doze na grama, de ponta para baixo. Puxou a corda para trás e os quatro cavalarianos ainda galopavam direto para eles quando Thomas mirou no cavaleiro da esquerda. Ele soltou, apanhou uma terceira flecha, e agora o som das patas na grama endurecida pela geada era tão alto quanto os tambores escoceses em Durham, e o segundo homem, a contar da direita, agitava-se para a esquerda e para a direita, caiu para trás, uma flecha projetando-se do peito, e o cavaleiro à sua esquerda estava tombado para trás sobre a patilha da sela, e os outros dois, finalmente compreendendo o perigo que corriam, deram uma guinada para anular a mira de Thomas. Pedaços de terra e grama eram atirados para cima pelas patas dos cavalos enquanto eles se viravam e se afastavam. Se os dois cavaleiros ilesos tivessem alguma gota de juízo, sairiam em disparada como se o Inferno e a Morte estivessem em seus calcanhares, voltando por onde tinham vindo, numa tentativa desesperada de escapar das flechas, mas em vez disso, com a raiva de homens que tinham sido desafiados pelo que acreditavam ser um inimigo inferior, giraram seus cavalos em direção à presa deles, e Thomas disparou a terceira flecha. Os primeiros dois homens estavam fora de combate, um deles caído da sela e o outro inclinado em cima do cavalo que apenas mordiscava a grama empalidecida pelo inverno. A terceira flecha voou forte e direta em direção à vítima, mas o cavalo ergueu a cabeça e a flecha resvalou no lado do crânio, o sangue brilhante sobre couro preto: o cavalo contorceu-se para afastar-se, sentindo a dor, e o cavaleiro, despreparado para a virada, agitou-se para manter o equilíbrio, mas Thomas não teve tempo de observá-lo porque o quarto cavaleiro estava dentro do círculo de pedra e partia em sua direção. O homem tinha uma vasta capa preta que se agitava atrás quando ele girou o cavalo cinza pálido e soltou um grito de desafio enquanto esticava o braço com a espada para usar a ponta como uma lança no peito de Thomas, mas este estava com a quarta flecha na corda e o homem compreendeu, de repente, que tinha se atrasado uma fração de segundo. “Non!”, gritou ele, e Thomas nem chegou a puxar o arco até o fim, mas disparou com a corda puxada pela metade e a flecha ainda teve força suficiente para enterrar-se na cabeça do homem, rachando o cavalete do nariz e penetrando fundo no crânio. Ele estremeceu, a espada caiu, Thomas sentiu o deslocamento de ar quando o cavalo do homem passou por ele como um trovão e então o cavaleiro caiu para trás, por cima da anca do garanhão.

O terceiro homem, o que fora derrubado da sela do cavalo preto, caíra no centro do círculo de pedra e agora se aproximava de Robbie. Thomas apanhou uma flecha da grama.

— Não! — gritou Robbie. — Ele é meu.

Thomas afrouxou a corda.

— Chian bâtard — disse o homem para Robbie.

Ele era muito mais velho do que o escocês e devia ter achado que Robbie não passava de um garoto, porque teve um meio sorriso quando avançou rápido para enfiar a espada. Robbie deu um passo para trás, escorou o golpe, e as lâminas tiniram como sinos no ar puro.

— Bâtard! — gritou o homem e tornou a atacar.

Robbie recuou uma vez mais, cedendo terreno até quase atingir o anel de pedra, e seu recuo preocupou a Thomas, que tornou a puxar a corda, mas então Robbie escorou o golpe com tanta rapidez e reagiu tão depressa, que agora era o francês quem recuava numa súbita e desesperada pressa.

— Seu inglês bastardo — disse Robbie.

Ele brandiu a espada por baixo e o homem abaixou a dele para escorar o golpe, e Robbie apenas chutou-a para o lado e investiu de modo que a lâmina de seu tio enfiou-se no pescoço do homem.

— Seu inglês bastardo — vociferou Robbie, liberando a lâmina num borrifar de sangue brilhante.

— Porco inglês bastardo! — Ele liberou a espada e golpeou outra vez para enterrar o gume no que restava do pescoço do homem.

Thomas ficou vendo o homem cair. O sangue brilhava sobre a grama.

— Ele não era inglês — disse Thomas.

— É só uma mania quando eu luto — disse Robbie. — Foi assim que meu tio me treinou. — Ele caminhou até a vítima. — Ele está morto?

— Você quase o decapitou — disse Thomas. — O que acha?

— Acho que vou pegar o dinheiro dele — disse Robbie e ajoelhou-se ao lado do morto.

Um dos dois primeiros homens a serem atingidos pelas flechas de Thomas ainda estava vivo. A respiração borbulhava na sua garganta e aparecia rosada e espumosa em seus lábios. Era o homem que tinha caído para trás na sela e gemeu quando Thomas derrubou-o no chão.

— Ele vai sobreviver? — Robbie se aproximara para ver o que Thomas estava fazendo.

— Por Cristo, não! — disse Thomas e sacou a faca.

— Meu Deus! — Robbie recuou quando a garganta do homem foi cortada. — Você tinha de fazer isso?

— Não quero que o conde de Coutances saiba que somos só nós dois — disse Thomas. — Quero que ele fique com um medo dos diabos de nós. Quero que pense que os cavaleiros do diabo estão caçando seus homens.

Eles revistaram os quatro corpos, e depois de uma perseguição complicada, conseguiram recuperar os quatro cavalos. Dos corpos e dos alforjes tiraram quase dezoito libras de dinheiro francês desvalorizado, em moedas de prata, dois anéis, três boas adagas, quatro espadas, uma bela cota de malha que Robbie requisitou para substituir a dele, e uma corrente de ouro que os dois cortaram ao meio com uma das espadas capturadas. Depois Thomas usou as duas piores espadas para servir de estacas a fim de amarrar dois dos cavalos à margem da estrada, e sobre os cavalos amarrou dois dos corpos, fazendo com que se mantivessem na sela, inclinados para o lado com olhares vazios e a pele branca manchada de sangue. Os outros dois corpos, sem as cotas de malha, foram colocados na estrada e em suas bocas mortas Thomas colocou gravetos de tojo. Aquele gesto nada significava, mas quem achasse os corpos pensaria em algo estranho, até mesmo satânico.

— Vai deixar os bastardos preocupados — explicou Thomas.

— Quatro homens mortos devem deixar eles nervosíssimos — disse Robbie.

— Eles vão ficar mortos de medo se acharem que o diabo está solto — disse Thomas.

O conde de Coutances iria fazer chacota se soubesse que apenas dois homens tinham vindo a título de reforço para Sir Guillaume d’Evecque, mas não poderia ignorar quatro corpos e os indícios de um ritual fantástico. E não poderia ignorar a morte.

Finalidade para a qual, depois que os corpos foram arrumados, Thomas apanhou a grande capa preta, o dinheiro e as armas, o melhor dos garanhões e o cavalo pálido.

Porque o cavalo pálido pertencia à Morte.

E com Thomas, ele podia provocar pesadelos.

Notas:
* Camponeses da classe mais baixa que, durante as comemorações religiosas, fantasiavam-se para conseguir dinheiro para a igreja de sua localidade (Oxford, 1963). (N. do E.)
**No original, trébuchet. Antes de ser, também, a denominação de uma arma de fogo, trabuco foi uma máquina de guerra na Idade Média, similar à catapulta. (N. do T.)


UM ÚNICO ESTRONDO CURTO de um trovão soou quando Thomas e Robbie se aproximavam de Evecque. Eles não sabiam a que distância estavam, mas seguiam por uma região onde todas as fazendas e todos os chalés tinham sido destruídos, o que dizia a Thomas que eles deviam estar dentro das fronteiras do solar. Robbie, ao ouvir o trovão, pareceu intrigado, porque o céu logo acima deles estava claro embora houvesse nuvens escuras ao sul.

— Está frio demais para trovejar — disse ele.

— Talvez na França seja diferente.

Saíram da estrada e seguiram uma trilha de fazenda que ondeava por bosques e desapareceu ao lado de uma construção incendiada da qual ainda subia uma leve fumaça. Fazia pouco sentido pôr fogo em quintas como aquela, e Thomas duvidava que o conde de Coutances tivesse ordenado a destruição logo no início, mas o longo desafio de Sir Guillaume e o espírito sanguinário da maioria dos soldados iriam assegurar que o saque e os incêndios aconteceriam de qualquer maneira. Thomas fizera o mesmo na Bretanha. Ele ouvira os gritos e protestos de famílias que tinham de ver seus lares serem incendiados e depois tocara fogo no sapé. Era a guerra. Os escoceses faziam isso com os ingleses, os ingleses com os escoceses, e ali o conde de Coutances estava fazendo aquilo com o seu próprio arrendatário.

Um segundo estouro de trovão soou e, assim que o eco desapareceu, Thomas viu um grande véu de fumaça no céu a leste. Apontou para ele, e Robbie, reconhecendo o cheiro de fogueiras de acampamentos e percebendo a necessidade de silêncio, limitou-se a um gesto afirmativo com a cabeça. Eles deixaram os cavalos num bosque cerrado de pés novos de aveleira e subiram um morro alto coberto de árvores. O sol poente estava atrás deles, projetando suas sombras compridas sobre as folhas mortas. Um pica-pau, cabeça vermelha e asas com barras brancas, voava alto e baixo acima de suas cabeças enquanto eles atravessavam a linha da crista do morro para ver a aldeia e o solar de Evecque lá embaixo.

Thomas nunca vira o solar de Sir Guillaume antes. Ele tinha imaginado que seria como o de Sir Giles Marriott, com apenas um grande salão parecido com um galpão e uns poucos puxados cobertos de sapé, mas Evecque era muito mais parecido com um pequeno castelo. No canto mais perto de onde Thomas estava, ele tinha até uma torre: uma torre quadrada e não muito alta, mas ameada de maneira adequada e com seu estandarte de três falcões atacando a presa desfraldado, para mostrar que Sir Guillaume ainda não estava derrotado. O detalhe salvador do solar, porém, era o seu fosso, que era largo e estava coberto por uma camada grossa de escuma de um verde vivo. Os muros altos do solar subiam a prumo da água e tinham poucas janelas, que mesmo assim eram apenas frestas estreitas. O telhado era de sapé e caído para dentro, para um pequeno pátio. Os sitiantes, cujas tendas e abrigos ficavam na aldeia ao norte do solar, tinham conseguido tocar fogo no telhado em determinado momento, mas os poucos defensores de Sir Guillaume deviam ter conseguido extinguir as chamas, porque apenas uma pequena parte do sapé estava faltando ou escurecida. Nenhum daqueles defensores podia ser visto naquele momento, embora alguns devessem estar olhando pelas frestas que apareciam como pequenas manchas pretas em contraste com a pedra cinza. O único dano visível ao solar eram algumas pedras quebradas em um canto da torre, onde parecia que algum animal gigante tinha mordiscado as pedras, e era provável que se tratasse do trabalho da springald que o padre Pascal mencionara, mas a besta gigante, evidentemente, tinha enguiçado outra vez, e de forma irremediável, porque Thomas conseguia vê-la em dois gigantescos pedaços no campo ao lado da igrejinha de pedra da aldeia. Ela tinha causado muito pouco dano antes de sua haste principal quebrar, e Thomas se perguntou se o lado leste, escondido, do prédio tinha sofrido mais danos. A entrada do solar devia ficar naquele lado distante e Thomas desconfiava que os principais equipamentos para o sítio também estivessem lá.

Só uns vinte sitiantes estavam visíveis, a maioria não fazendo nada mais ameaçador do que ficar sentada do lado de fora das casas da aldeia, embora meia dúzia de homens estivesse reunida em torno do que parecia uma pequena mesa no adro da igreja. Nenhum dos homens do conde estava a menos de cento e cinqüenta passos do solar, o que sugeria que os defensores tinham conseguido matar alguns inimigos com bestas, e o resto aprendera a manter-se à distância da guarnição.

A aldeia em si era pequena, não muito maior do que Down Mapperley e, como a aldeia de Dorset, tinha uma azenha. Havia doze tendas ao sul das casas e o dobro disso de pequenos abrigos de turfa. Thomas tentou calcular quantos homens podiam estar abrigados na aldeia, nas tendas e nas choças de turfa e concluiu que o conde devia, no momento, ter cerca de 120 homens.

— O que vamos fazer? — perguntou Robbie.

— Por enquanto, nada. Só observar.

Foi uma vigília enfadonha, porque era pouca a atividade abaixo deles. Algumas mulheres levavam baldes de água da acéquia, outras cozinhavam em fogueiras ao ar livre ou recolhiam roupas que tinham sido estendidas para secar em cima de alguns arbustos à beira dos campos. O estandarte do conde de Coutances, exibindo o javali preto num campo branco semeado de flores azuis, tremulava num mastro improvisado do lado de fora da maior casa da aldeia. Seis outros estandartes pendiam acima dos telhados de sapé, mostrando que outros senhores tinham ido compartilhar o saque. Meia dúzia de escudeiros ou pajens exercitavam alguns corcéis na campina atrás do acampamento, mas fora isso os atacantes de Evecque pouco faziam exceto esperar. O trabalho de um cerco era enfadonho. Thomas se lembrava dos dias ociosos do lado de fora de La Roche-Derrien, embora aquelas longas horas tivessem sido interrompidas pelo terror e pela agitação do assalto ocasional. Aqueles homens, incapazes de assaltar os muros de Evecque por causa do fosso, só podiam esperar e ter a esperança de fazer a guarnição passar fome a ponto de se render ou então induzi-la a fazer uma surtida queimando fazendas. Talvez estivessem esperando uma longa peça de madeira seca ao ar para consertar o braço partido da springald abandonada.

Então, justo no momento em que Thomas chegava à conclusão de que já tinha visto o bastante, o grupo de homens que estivera reunido em torno do que ele pensara ser uma mesa baixa ao lado da cerca do adro, saiu correndo de repente para a igreja.

— Em nome de Deus, o que é aquilo? — perguntou Robbie, e Thomas viu que não tinha sido em torno de uma mesa que eles tinham estado reunidos, mas de um imenso pote numa pesada armação de madeira.

— É um canhão — disse Thomas, incapaz de esconder o espanto.

Naquele exato momento o canhão disparou e o grande pote de metal e sua enorme base de madeira desapareceram numa crescente explosão de fumaça suja e, pelo canto dos olhos, ele viu um pedaço de pedra sair voando do canto danificado do solar. Mil pássaros levantaram vôo de cercas vivas, sapés e árvores quando o surdo trovejar do canhão rolou morro acima e passou por ele em grande velocidade. Aquele potente som seco era o trovão que eles tinham ouvido antes, à tarde. O conde de Coutances conseguira encontrar um canhão e o estava usando para tirar nacos do solar. Os ingleses tinham usado canhões em Caen no verão passado, apesar de nem todos os canhões do exército, nem todos os melhores esforços dos artilheiros italianos, terem danificado o castelo de Caen. De fato, à medida que a fumaça dissolvia-se lentamente do acampamento, Thomas viu que aquele tiro tinha causado pouco impacto no solar. O barulho pareceu mais violento do que a própria bala, mas ele imaginava que se os artilheiros do conde pudessem disparar pedras em número suficiente a estrutura de alvenaria acabaria cedendo, e a torre desabaria para dentro do fosso, propiciando um caminho de escombros que ligaria as duas margens da água. Pedra a pedra, fragmento a fragmento, talvez três ou quatro tiros por dia, e com isso os sitiantes iriam solapar a torre, improvisando uma passagem para entrar em Evecque.

Um homem rolou um pequeno barril para fora da igreja, mas um outro acenou para que ele voltasse, e o barril foi levado de volta para dentro. A igreja devia ser o paiol deles, pensou Thomas, e o homem tinha sido mandado de volta porque os artilheiros tinham disparado o último projétil do dia e só iriam recarregar de manhã. E isso sugeriu uma idéia, mas ele a afastou por considerá-la impraticável e louca.

— Já viu o suficiente? — perguntou a Robbie.

— Eu nunca vi um canhão — disse Robbie olhando para o distante vaso lá embaixo, como esperando que ele fosse disparado outra vez, mas Thomas sabia que não era provável que os artilheiros voltassem a dispará-lo aquela noite.

Era muito demorado carregar um canhão e, depois que a pólvora negra estivesse acondicionada na sua barriga e o projétil colocado pela boca, o canhão tinha de ser fechado com marga úmida. A marga reteria a explosão que iria projetar o projétil e precisava de tempo para secar antes que o canhão fosse disparado, de modo que não era provável que houvesse um outro tiro antes do amanhecer.

— Parece dar mais trabalho do que resultado — disse Robbie, mal-humorado, depois que Thomas deu a explicação. — Então você acha que eles não vão disparar outra vez?

— Vão esperar até de manhã.

— Então já vi o suficiente — disse Robbie, e os dois rastejaram de volta pelas faias até passarem pela crista do morro, e desceram para os cavalos amarrados e seguiram anoitecer adentro. Havia uma meia-lua, fria e alta, e a noite estava muito fria, tão fria que eles decidiram que deviam arriscar acender uma fogueira, embora fizessem o possível para ocultá-la refugiando-se num barranco profundo, de paredes de pedra, onde improvisaram um telhado de galhos cobertos de turfa cortada às pressas. O fogo bruxuleava através de buracos no telhado para projetar nas paredes rochosas uma luz vermelha, mas Thomas duvidava que algum dos sitiantes fosse patrulhar os bosques no escuro. Ninguém entrava à noite, de modo próprio, em bosques cerrados, porque todos os tipos de animais, monstros e fantasmas rondavam as florestas, e esse pensamento fez Thomas se lembrar daquela viagem que ele fizera com Jeanette no verão quando os dois dormiram uma noite atrás de outra na floresta. Tinha sido uma época feliz, e a lembrança o fez sentir pena de si mesmo e então, como sempre, sentir-se culpado pelo que acontecera a Eleanor, e ele estendeu as mãos para a pequena fogueira.

— Existem homens verdes na Escócia? — perguntou a Robbie.

— Quer dizer nas florestas? Existem duendes. São bastardinhos malvados.

Robbie fez o sinal-da-cruz e, para o caso de isso não ser o bastante, inclinou-se e tocou no punho de ferro da espada de seu tio.

Thomas estava pensando em duendes e outras criaturas, coisas que espreitavam nas florestas à noite. Será que ele queria realmente voltar a Evecque naquela noite?

— Você percebeu — disse a Robbie — que ninguém no acampamento de Coutances parecia muito perturbado com o fato de quatro de seus cavalarianos não terem regressado? Nós não vimos ninguém sair à procura deles, vimos?

Robbie refletiu sobre aquilo e deu de ombros.

— Talvez os cavalarianos não tivessem saído do acampamento.

— Saíram — disse Thomas com uma confiança que não sentia de todo, e por um momento perguntou-se, com ar de culpa, se os quatro cavalarianos nada teriam a ver com Evecque, mas lembrou-se que os cavaleiros tinham começado a luta. — Eles devem ter vindo de Evecque — disse ele —, e a esta altura o pessoal de lá já devia estar preocupado.

— E daí?

— Daí que... será que colocaram mais sentinelas no acampamento esta noite?

Robbie deu de ombros.

— Isso tem importância?

— Estou pensando — disse Thomas — que tenho de avisar a Sir Guillaume que nós estamos aqui, e não sei como conseguir isso senão fazendo um barulho enorme.

— Você podia escrever uma mensagem — sugeriu Robbie — e colocá-la numa flecha?

Thomas olhou fixo para ele.

— Não tenho pergaminho — disse ele, paciente — e não tenho tinta, e você já tentou disparar uma flecha envolta em pergaminho? Provavelmente ela iria voar como um pássaro morto. Eu teria de ficar ao lado do fosso e seria melhor atirar a flecha de lá.

Robbie encolheu os ombros.

— Então o que vamos fazer?

— Fazer barulho. Anunciar nossa presença. — Thomas fez uma pausa. — Estou achando que o canhão vai acabar derrubando a torre se não fizermos alguma coisa.

— O canhão? — perguntou Robbie, e olhou para Thomas. — Doce Jesus! — disse ele depois de um certo tempo, enquanto pensava nas dificuldades. — Esta noite?

— Assim que Coutances e seus homens souberem que estamos aqui — disse Thomas —, vão dobrar as sentinelas, mas aposto que os bastardos estão quase dormindo esta noite.

— É isso, e bem cobertos para se aquecerem, se tiverem algum senso — disse Robbie. Ele franziu o cenho. — Mas aquele canhão parecia um belo jarro grande. Como é que se quebra ele?

— Eu estava pensando na pólvora negra na igreja — disse Thomas.

— Pôr fogo nela?

— Há muitas fogueiras nos acampamentos na aldeia — disse Thomas, e imaginou o que aconteceria se eles fossem capturados no acampamento inimigo, mas não fazia sentido preocupar-se com isso. Se era para inutilizar o canhão, era melhor atacar antes que o conde de Coutances ficasse sabendo que um inimigo viera assediá-lo, e isso fazia daquela noite a oportunidade ideal.

— Você não precisa ir — disse Thomas a Robbie. — Não são amigos seus que estão no interior do solar.

— Poupe o fôlego — disse Robbie com sarcasmo. Ele tornou a franzir o cenho. — O que é que vai acontecer depois?

— Depois? — Thomas raciocinou. — Depende de Sir Guillaume. Se ele não receber resposta alguma do rei, irá querer romper o cerco. Por isso ele tem de saber que estamos aqui.

— Por quê?

— Para o caso de ele precisar da nossa ajuda. Ele mandou nos chamar, não mandou? Pelo menos, mandou me chamar. Por isso nós entramos fazendo barulho. Vamos nos tornar uma praga. Vamos fazer com que o conde de Coutances tenha alguns pesadelos.

— Nós dois?

— Você e eu — disse Thomas, e o fato de dizê-lo o fez perceber que Robbie se tornara um amigo. — Acho que você e eu podemos provocar confusão — acrescentou ele com um sorriso.

E eles iriam começar naquela noite. Naquela noite triste e fria, sob uma lua bem delineada, iriam conjurar o primeiro de seus pesadelos.

Eles seguiram a pé, e, apesar da meia-lua, estava escuro sob as árvores. Thomas começou a se preocupar com quais poderiam ser os demônios, duendes e espectros que assombravam aqueles bosques normandos. Jeanette lhe dissera que na Bretanha havia nains e gorics que espreitavam a caça no escuro, enquanto em Dorset era o Homem Verde que batia os pés e rosnava nas árvores atrás do monte Lipp, e os pescadores falavam das almas dos homens que tinham morrido afogados, que às vezes se arrastavam pela costa e gemiam pelas mulheres que tinham deixado. Na véspera do Dia de Finados, o diabo e os mortos dançavam sobre o Castelo Maiden, e em outras noites havia fantasmas mais modestos na aldeia e em torno dela, no alto do monte, na torre da igreja e em qualquer ponto para o qual se olhasse, motivo pelo qual ninguém saía de casa à noite sem um pedaço de ferro ou um pedaço de visco ou, quando nada, um pedaço de pano que tivesse sido tocado pela hóstia sagrada. O pai de Thomas odiava essa superstição, mas quando o seu povo erguia as mãos para o sacramento e ele via um pedaço de pano amarrado nas palmas não se recusava a atendê-los.

E Thomas tinha lá as suas superstições. Ele só apanhava o arco, sempre, com a mão esquerda; a primeira flecha a ser disparada de um arco recém-encordoado tinha de ser batida de leve por três vezes contra a haste, uma vez para o Pai, outra para o Filho e uma terceira para o Espírito Santo; ele não usava roupas brancas e calçava a bota esquerda antes da direita. Durante muito tempo trouxera uma pata de cachorro pendurada no pescoço e depois a jogara fora na convicção de que ela dava azar, mas agora, depois da morte de Eleanor, ele se perguntava se não deveria ter ficado com ela. Pensando em Eleanor, sua mente desviou-se de novo para a beleza mais morena de Jeanette. Será que Jeanette se lembrava dele? Depois tentou não pensar nela, porque pensar num antigo amor poderia dar azar, e ele tocou o tronco de uma árvore ao passar, para purgar o pensamento.

Thomas procurava pelo brilho vermelho das fogueiras dos acampamentos que estivessem se extinguindo do outro lado das árvores, o que lhe diria que eles estavam perto de Evecque, mas a única luz era o prateado da lua emaranhado nos galhos altos. Nains e gorics, o que eram? Jeanette nunca lhe contara, dissera apenas que eram espíritos que assombravam o interior. Ali na Normandia deviam ter algo semelhante. Ou talvez tivessem bruxas? Ele tocou em outra árvore. Sua mãe acreditava firmemente em bruxas e seu pai o ensinara a dizer um padre-nosso se alguma vez ficasse perdido. As bruxas, acreditava o padre Ralph, atacavam crianças perdidas, e mais tarde, muito mais tarde, o pai de Thomas lhe contou que as bruxas começavam sua invocação do diabo dizendo o padre-nosso de trás para a frente, e Thomas, é claro, tentara aquilo, embora nunca tivesse a coragem de terminar a oração inteira. Olam a son arebil des, começava o padre-nosso, e ele ainda sabia dizê-lo, até mesmo conseguindo as difíceis inversões de temptationem e supersubstantialem, apesar de ter o cuidado de nunca terminar a oração inteira, se houvesse um fedor de enxofre, um estalar de chama e o terror do diabo descendo em asas pretas com olhos de fogo.

— O que está murmurando? — perguntou Robbie.

— Estou tentando dizer supersubstantialem de trás para a frente — disse Thomas.

Robbie riu de boca fechada.

— Você é um sujeito estranho, Thomas.

— Melait nats bus repus — disse Thomas.

— Isso é francês? — disse Robbie. — Porque eu tenho que aprender.

— Vai aprender — prometeu Thomas, e então, finalmente, percebeu fogueiras por entre as árvores e os dois ficaram calados enquanto subiam a longa encosta até a crista entre as faias, de onde dava para ver Evecque lá embaixo.

Do solar não se via luz alguma. Um luar limpo e frio brilhava sobre o fosso de escuma verde, que parecia liso como gelo — talvez fosse gelo mesmo? — e a lua branca projetava uma sombra preta para dentro do canto danificado da torre, enquanto um brilho de luz de fogueira aparecia no lado oposto do solar, confirmando a suspeita de Thomas de que havia uma parte do sítio em frente à entrada do prédio. Ele calculou que os homens do conde tinham cavado trincheiras das quais pudessem inundar a entrada com setas de bestas enquanto outros homens tentavam cobrir o fosso no ponto em que a ponte levadiça não estivesse arriada. Thomas lembrou-se das setas de bestas sendo cuspidas dos muros de La Roche-Derrien e estremeceu. Fazia um frio terrível. Em breve, pensou Thomas, o orvalho viraria geada, prateando o mundo. Tal como Robbie, ele usava uma camisa de lã por baixo de uma jaqueta de couro e uma cota de malha por cima da qual vestia uma capa, e ainda assim tremia e desejava estar de volta ao abrigo do barranco, onde uma fogueira estava acesa.

— Não vejo ninguém — disse Robbie.

Thomas também não, mas continuou a procurar por sentinelas. Quem sabe o frio estivesse mantendo todo mundo sob um teto? Procurou pelas sombras perto das fogueiras de acampamento que agonizavam, ficou observando à espera de qualquer movimento na escuridão em torno da igreja e também não viu ninguém. Sem dúvida havia sentinelas nas obras de sítio em frente à entrada do solar, mas com toda certeza elas estariam vigiando para o caso de qualquer defensor tentar escapulir pelos fundos do solar. Mas quem iria atravessar um fosso a nado numa noite tão fria como aquela? E àquela altura os sitiantes deveriam estar enfarados e sua vigilância estaria relaxada. Ele viu uma nuvem de contornos prateados deslizando para mais perto da lua.

— Quando a nuvem cobrir a lua — disse a Robbie —, nós vamos.

— E que Deus nos abençoe — disse Robbie com fervor, fazendo o sinal-da-cruz.

A nuvem parecia andar muito devagar, até que finalmente cobriu a lua e a paisagem bruxuleante desbotou para um tom cinza e preto. Ainda havia uma luz pálida, vaga, mas Thomas duvidou que a noite fosse ficar mais escura, e por isso ergueu-se, sacudiu os gravetos da capa e seguiu em direção à aldeia por uma trilha que tinha sido aberta na encosta leste da crista do morro. Ele achava que a trilha fora aberta por porcos que eram levados para a engorda comendo nozes de faia no bosque e lembrou-se que os porcos de Hookton vagavam pelo cascalho comendo cabeças de peixe e que sua mãe sempre reclamara que aquilo contaminava o gosto do toucinho deles. Toucinho com gosto de peixe, como ela chamava, e fazia uma comparação desvantajosa com o toucinho de sua cidade natal, Weald, em Kent. Aquele, ela sempre dissera, era o verdadeiro toucinho, alimentado com nozes de faia e bolota, o melhor que havia. Thomas tropeçou num tufo de grama. Era difícil seguir a trilha, porque de repente a noite ficara muito mais escura, talvez porque eles estivessem em terreno mais baixo.

Ele estava pensando em toucinho, e o tempo todo eles estavam chegando mais perto da aldeia, e subitamente Thomas ficou com medo. Ele não vira sentinela alguma, mas e cachorros? Uma cadela latindo à noite, e ele e Robbie poderiam ser homens mortos. Ele não levara o arco, mas de repente desejou que o tivesse levado — embora não soubesse o que poderia fazer com ele. Matar um cachorro? Pelo menos a trilha agora estava facilmente visível, devido às fogueiras do acampamento, e os dois caminharam confiantes, como se fossem moradores da aldeia.

— Você deve fazer isso o tempo todo — disse Thomas, baixinho.

— Isso?

— Quando faz incursões do outro lado da fronteira.

— Nada disso, nós ficamos em campo aberto. Vamos atrás de gado e cavalos.

Eles agora estavam entre os abrigos e pararam de falar. O som de um profundo ressonar veio de uma pequena choça de turfa e um cachorro invisível ganiu mas sem latir. Um homem estava sentado do lado de fora de uma tenda, presumivelmente para proteger quem quer que estivesse dormindo lá dentro, mas ele próprio dormia. Um vento fraco agitava os galhos em um pomar perto da igreja e o rio fazia um barulho de esparrinhar ao mergulhar sobre o pequeno açude ao lado do moinho. Uma mulher riu baixinho em uma das casas onde alguns homens começaram a cantar. A melodia era nova para Thomas e as vozes graves abafaram o som do portão do adro da igreja, que rangeu quando ele o empurrou para abri-lo. A igreja tinha um pequeno campanário de madeira e Thomas ouvia o vento sussurrando no sino.

— É você, Georges? — perguntou um homem em voz alta, do alpendre.

— Non.

Thomas falou mais ríspido do que pretendia, e o tom de sua voz fez com que o homem saísse das sombras negras do arco do alpendre. Pensando que tivesse provocado encrenca, Thomas levou a mão às costas para agarrar o punho da adaga.

— Desculpe, senhor. — O homem confundira Thomas com um oficial ou até mesmo com alguém mais importante. — Estou esperando um substituto, senhor.

— É provável que ele ainda esteja dormindo — disse Thomas.

O homem espreguiçou-se, dando um bocejo enorme.

— O bastardo não acorda nunca. — A sentinela era pouco mais do que uma sombra no escuro, mas Thomas pressentiu que era um sujeito grande. — E aqui faz frio — continuou o homem. — Meu Deus, como é frio. O Guy e os homens dele já voltaram?

— Um dos cavalos perdeu uma ferradura — disse Thomas.

— Então foi isso! E eu pensava que eles tivessem achado aquela cervejaria em Saint-Germain. Cristo e os anjos, mas aquela garota de um olho só! O senhor já viu ela?

— Ainda não — disse Thomas.

Ele ainda segurava a adaga, uma das armas que os arqueiros chamavam de misericórdia, porque era usada para acabar com o sofrimento de soldados derrubados de seus cavalos e feridos. A lâmina era fina e flexível o bastante para deslizar entre as junções das armaduras e arrancar a vida que estava por baixo, mas ele relutava em sacá-la. A sentinela não desconfiou de nada, e sua única ofensa era estender aquela conversa.

— A igreja está aberta? — perguntou Thomas.

— Claro. Por que não estaria?

— Temos de rezar — disse Thomas.

— Tem de ser uma consciência culpada que faz os homens rezarem à noite, hein? — A sentinela estava afável.

— Muitas garotas caolhas — disse Thomas.

Robbie, que não falava francês, ficou de lado e olhou fixo para a grande sombra negra do canhão.

— Um pecado do qual vale a pena se arrepender — disse o homem reprimindo o riso, mas empertigou-se. — O senhor pode esperar aqui enquanto eu acordo o Georges? É só um instante.

— Demore o tempo que quiser — disse Thomas, magnânimo —, vamos ficar aqui até amanhecer. Se quiser, pode deixar o Georges dormir. Nós dois ficamos de sentinela.

— O senhor é um santo em carne e osso — disse o homem, e tirou o cobertor que estava no alpendre antes de afastar-se com um animado “boa noite”.

Thomas, depois que o homem foi embora, entrou no alpendre, onde foi logo chutando um barril vazio que rolou com grande barulho. Soltou um palavrão e ficou imóvel, mas ninguém bradou da aldeia para pedir uma explicação para o barulho.

Robbie agachou-se ao lado dele. A escuridão estava impenetrável no alpendre, mas eles tatearam com as mãos para descobrir meia dúzia de barris vazios. Eles fediam a ovos podres e Thomas imaginou que já tinham contido pólvora negra. Sussurrou para Robbie os pontos essenciais da conversa que tivera com a sentinela.

— Mas o que não sei — continuou — é se ele vai acordar o Georges ou não. Acho que não vai, mas não tenho certeza.

— Quem ele pensa que somos?

— Provavelmente dois soldados — disse Thomas.

Ele empurrou os barris vazios para o lado, ergueu-se e tateou à procura da corda que erguia o trinco da porta da igreja. Encontrou-a, depois encolheu-se, estremecendo, quando as dobradiças rangeram. Thomas ainda não conseguia ver nada, mas a igreja tinha o mesmo fedor que os barris vazios.

— Precisamos de um pouco de luz — sussurrou.

Seus olhos acostumaram-se aos poucos com o escuro e ele viu um brilho fraquíssimo de luz aparecendo na grande janela leste sobre o altar. Não havia nem mesmo uma pequena chama queimando acima do santuário onde as hóstias eram guardadas, talvez porque fosse perigoso demais com toda aquela pólvora armazenada na nave da igreja. Thomas achou a pólvora com facilidade, ao esbarrar na pilha de barris que estava logo do lado de dentro da porta. Havia pelo menos uns quarenta, cada qual mais ou menos do tamanho de um balde de água, e Thomas calculou que o canhão usava um ou talvez dois barris para cada tiro. Digamos três ou quatro tiros por dia. Neste caso, havia ali o estoque de pólvora para duas semanas.

— Precisamos de um pouco de luz — repetiu, voltando-se, mas Robbie não respondeu. — Onde está você? — Thomas falou entre os dentes, mas outra vez não houve resposta e então ouviu uma bota dar uma batida seca num dos barris vazios no alpendre e viu a sombra de Robbie aparecer num lampejo no luar enevoado do cemitério.

Thomas esperou. Uma fogueira de acampamento estava em estado latente, não muito depois da cerca viva de espinhos que mantinha o gado longe dos túmulos da aldeia, e ele viu uma sombra agachar-se ao lado das chamas agonizantes e então houve um súbito clarão, como um relâmpago de estio, e Robbie jogou-se para trás. Thomas, ofuscado e alarmado pelo clarão, não conseguia ver nada. Tinha ido até a porta da igreja e esperava ouvir o grito de um dos homens que estavam na aldeia, mas em vez disso ouviu apenas o ranger do portão e as passadas do escocês.

— Usei um barril vazio — disse Robbie —, só que ele não estava tão vazio quanto eu pensava. Ou então a pólvora entranhou na madeira.

Ele estava de pé no alpendre e o barril estava em suas mãos; usara-o para avivar algumas brasas. O resíduo de pólvora se inflamara, queimando-lhe as sobrancelhas, e agora havia fogo saltando no interior do barril.

— O que é que eu faço com isso? — perguntou.

— Cristo! — Thomas imaginou a igreja explodindo. — Me dá aqui — disse ele. Pegou o barril, que estava quente, e correu com ele para dentro da igreja, o trajeto iluminado pelas chamas, e atirou a madeira em chamas bem entre duas pilhas de barris cheios. — Agora vamos sair daqui — disse a Robbie.

— Você procurou a caixa de coleta para os pobres? — disse Robbie. — Se vamos destruir a igreja, seria bom levar a caixa de esmolas.

— Vamos! — Thomas agarrou o braço de Robbie e arrastou-o pelo alpendre.

— É um desperdício deixar a caixa — disse Robbie.

— Não existe porcaria de caixa de esmolas nenhuma — disse Thomas. — A aldeia está cheia de soldados, seu idiota!

Eles correram, esquivando-se entre sepulturas e passando pelo bulboso canhão, que jazia em seu berço de madeira. Subiram numa cerca que preenchia uma brecha na cerca viva de espinhos e passaram correndo pelo vulto enorme da springald quebrada e pelos abrigos com telhado de turfa, sem se importarem se faziam barulho, e dois cachorros começaram a latir, depois um terceiro uivou para eles, e um homem saltou do lado da entrada de uma das tendas grandes.

— Qui va là? — gritou, e começou a armar sua besta, mas Thomas e Robbie já tinham passado por ele e estavam em campo aberto, onde tropeçavam na turfa irregular. A lua saiu de trás da nuvem e Thomas via o seu bafo sair como um nevoeiro.

— Halte! — gritou o homem.

Thomas e Robbie pararam. Não porque o homem lhes dera a ordem, mas porque uma luz vermelha estava enchendo o mundo. Eles se voltaram e olharam. A sentinela que os interpelara logo esqueceu-se deles, enquanto a noite ficava escarlate.

Thomas não tinha certeza quanto ao que tinha esperado. Uma lança de chamas cortando o céu? Um grande barulho, como um trovão? Em vez disso, o barulho foi quase suave, como uma tomada de respiração de um gigante, e uma suave chama escapou das janelas da igreja como se as portas do inferno tivessem acabado de ser abertas e as chamas da morte estivessem enchendo a nave, mas aquele grande brilho vermelho durou apenas um instante antes de o telhado da igreja ser levantado e Thomas viu, distintamente, os caibros pretos espalharem-se como costelas cortadas a machado.

— Meu doce Jesus Cristo! — blasfemou ele.

— Deus do céu! — disse Robbie, de olhos arregalados.

Agora as chamas, a fumaça e o ar ferviam acima do caldeirão da igreja destelhada, e novos barris ainda explodiam, um atrás do outro, cada qual lançando uma onda de fogo e fumaça para o céu. Nem Thomas nem Robbie sabiam, mas a pólvora precisara ser agitada, porque o salitre, que era mais pesado, escoava para o fundo dos barris e o carvão, mais leve, ficava em cima, e isso significava que grande parte da pólvora demorava a pegar fogo, mas as explosões estavam servindo para misturar a pólvora que restava e que vibrava com brilho e uma cor escarlate para cuspir uma nuvem vermelha por cima da aldeia.

Todos os cachorros de Evecque latiam ou uivavam, e homens, mulheres e crianças saíam rastejando da cama para ver o brilho infernal. O barulho das explosões rolava pelas planícies e ecoava nos muros do solar e assustou centenas de pássaros, fazendo com que saíssem de seus poleiros nos bosques. Destroços caíam no fosso, levantando cacos afiados de gelo fino que refletia o incêndio, de modo que parecia que o solar estivesse cercado por um lago chamejante.

— Jesus — disse Robbie, perplexo, e então os dois continuaram a correr em direção às faias no lado leste, elevado, do pasto.

Thomas começou a rir enquanto eles subiam aos tropeções pela trilha até as árvores.

— Eu vou para o inferno por causa disso — disse ele parando em meio às faias e fazendo o sinal-da-cruz.

— Por incendiar uma igreja? — Robbie estava sorrindo, os olhos refletindo o brilho das chamas. — Você devia ver o que nós fizemos com os frades agostinianos em Hexham! Cristo, metade da Escócia vai para o inferno por causa daquilo.

Eles ficaram observando o incêndio por alguns instantes, e depois embrenharam-se na escuridão do bosque. O amanhecer não ia demorar. Havia uma claridade no leste, onde um cinza-claro, pálido como a morte, orlava o céu.

— Temos de penetrar mais na floresta — disse Thomas —, temos de nos esconder.

Porque a caça aos sabotadores estava prestes a começar, e à primeira luz, enquanto a fumaça ainda lançava um grande manto sobre Evecque, o conde de Coutances mandou vinte cavalarianos e uma matilha procurar os homens que tinham destruído seu depósito de pólvora, mas o dia estava frio, o terreno estava duro de geada e o pequeno cheiro da presa desaparecia logo. No dia seguinte, na sua petulância, o conde ordenou que suas forças fizessem um ataque. Eles tinham preparado gabiãos — grandes tubos de fibra de salgueiro entrelaçada que eram cheios de terra e pedras —, e o plano era encher o fosso com os gabiãos e depois avançar em massa pela ponte daí resultante a fim de assaltar a porta fortificada. A porta não contava com a ponte levadiça, que tinha sido derrubada no início do cerco para deixar um arco aberto e convidativo só bloqueado por uma baixa barricada de pedra.

Os auxiliares do conde disseram-lhe que não havia gabiãos suficientes, que o fosso era mais profundo do que ele pensara, que o momento não era propício, que Vênus estava no ascendente e Marte estava em declínio, e que ele, em suma, devia esperar até que as estrelas lhe fossem favoráveis, e que a guarnição estava com mais fome e mais desesperada, mas o conde perdera prestígio e, de qualquer forma, ordenou o assalto e seus homens fizeram o possível. Eles estariam protegidos enquanto segurassem os gabiãos, porque os cestos cheios de terra eram à prova de qualquer seta de besta, mas depois que os gabiãos fossem atirados no fosso, os atacantes estariam expostos aos seis besteiros de Sir Guillaume que estavam protegidos atrás do baixo muro de pedra que tinha sido construído cortando o arco da entrada do solar, onde antes estivera a ponte levadiça. O conde tinha besteiros seus, e eles estavam protegidos por paveses, escudos de corpo inteiro levados por um segundo homem para proteger o arqueiro enquanto este armava penosamente a corda da besta, mas os homens que jogavam os gabiãos não teriam proteção alguma a partir do momento em que suas cargas fossem atiradas, e oito deles morreram antes que os demais percebessem que o fosso era na verdade demasiado profundo e que não havia gabiãos em número suficiente. Dois portadores de paveses e um besteiro ficaram gravemente feridos antes que o conde aceitasse a idéia de que estava perdendo tempo e chamasse os atacantes de volta. Depois amaldiçoou Sir Guillaume com os quatorze diabos corcundas de St. Cândace antes de se embriagar.

Thomas e Robbie sobreviveram. No dia seguinte àquele em que incendiaram a pólvora do conde, Thomas matou um veado, e um dia depois Robbie descobriu uma lebre em decomposição numa brecha de uma cerca viva, e quando puxou o corpo dela descobriu um laço que devia ter sido armado por um dos inquilinos de Sir Guillaume que tinha sido morto ou expulso pelos homens do conde. Robbie lavou o laço num riacho e armou-o em outra cerca viva. Na manhã seguinte achou uma lebre morrendo sufocada no laço que se fechava.

Eles não ousavam dormir no mesmo lugar duas noites seguidas, mas havia abrigo bastante nas fazendas desertas e destruídas pelo fogo. Passaram a maior parte das semanas seguintes no interior ao sul de Evecque, onde os vales eram mais profundos, as montanhas mais íngremes e os bosques mais espessos. Ali havia muitos lugares para se esconder, e foi naquele ambiente complicado que eles tornaram o pesadelo do conde mais assustador. No acampamento dos sitiantes começaram a circular histórias de um homem alto, vestido de preto, montando um cavalo pálido, e sempre que o homem no cavalo pálido aparecia alguém morria. A morte seria causada por uma flecha comprida, uma flecha inglesa, mas o homem a cavalo não tinha arco, apenas uma vara que levava, em cima, o crânio de um veado, e todo mundo sabia quem era a criatura que andava no cavalo pálido e o que um crânio numa vara indicava. Os homens que tinham visto a aparição contavam para as mulheres da família no acampamento do conde, e as mulheres da família contavam ao capelão do conde, e o conde dizia que elas estavam sonhando, mas os cadáveres eram verdadeiros. Quatro irmãos, vindos da longínqua Lyons para ganhar dinheiro servindo no sítio, empacotaram seus pertences e foram embora. Outros ameaçavam fazer o mesmo. A morte estava de tocaia em Evecque.

O capelão do conde dizia que as pessoas tinham sido afetadas pela lua e penetrou, a cavalo, na perigosa região sul, cantando em voz alta orações e espalhando água benta, e quando o capelão escapou ileso o conde disse a seus homens que eles tinham sido uns bobos, que não havia Morte montada num cavalo pálido, e no dia seguinte dois homens morreram, só que dessa vez estavam no leste. As histórias aumentavam cada vez que eram contadas. O cavaleiro agora estava acompanhado de cães gigantescos, cujos olhos brilhavam, e o cavaleiro nem precisava aparecer para explicar qualquer infortúnio. Se um cavalo tropeçasse, se um homem quebrasse um osso, se uma mulher derramasse comida, se a corda de uma besta arrebentasse, a culpa era do homem misterioso que montava o cavalo pálido.

O moral dos sitiantes despencou. Havia sussurros de juízo final e seis soldados foram para o sul procurar emprego na Gasconha. Os que ficaram resmungavam que estavam fazendo o trabalho do diabo, e nada que o conde de Coutances fazia parecia devolver o ânimo aos seus homens. Ele tentou derrubar árvores para impedir que o arqueiro misterioso atirasse no acampamento, mas havia árvores demais e machados de menos, e as flechas ainda chegavam. Escreveu uma carta ao bispo de Caen, que escreveu uma bênção num pedaço de velino e mandou-o de volta, mas isso não teve efeito algum sobre o cavaleiro de roupa preta cujo aparecimento era um presságio de morte, e por isso o conde, que acreditava fervorosamente estar fazendo a obra de Deus e tinha medo de fracassar no caso de provocar sua ira, apelou para Ele, pedindo ajuda.

Escreveu para Paris.

Louis Bessières, cardeal arcebispo de Livorno, uma cidade que ele só vira uma vez, quando viajara a Roma (na volta fizera um desvio para que não fosse obrigado a ver Livorno uma segunda vez), caminhava lentamente pelo Quai des Orfèvres, na Île de la Cité, em Paris. Dois criados iam à sua frente, usando varas para abrir caminho para o cardeal, que parecia não estar prestando atenção ao padre magro, de covas profundas, que falava com ele muito agitado. Em vez disso, o cardeal examinava os artigos oferecidos nas ourivesarias que se alinhavam ao longo da margem que levava o nome do ramo de atividade deles: Cais dos Ourives. Admirou um colar de rubis e chegou a examinar a possibilidade de comprá-lo, mas então descobriu um defeito em uma das pedras.

— Lamentável — murmurou ele, e deslocou-se para a loja seguinte. — Primoroso! — exclamou sobre um saleiro de prata adornado com quatro painéis nos quais retratos da vida no campo estavam esmaltados em azul, vermelho, amarelo e preto. Um homem arava em um dos painéis e espalhava sementes no seguinte, uma mulher cortava a safra no terceiro, enquanto no último os dois sentavam-se à mesa admirando um brilhante pão. — Primorosíssimo — disse o cardeal, entusiasmado —, não acha que ele é uma beleza?

Bernard de Taillebourg praticamente nem olhou para o saleiro.

— O diabo está trabalhando contra nós, eminência — falou, irritado.

— O diabo está sempre trabalhando contra nós, Bernard — disse o cardeal em tom de reprovação. — É o serviço dele. Haveria algo profundamente errado no mundo se o diabo não estivesse trabalhando contra nós.

Ele acariciou o saleiro, passando os dedos sobre as delicadas curvas dos painéis e concluiu que a forma da base não estava certa. Algo imperfeito ali, pensou ele, um desleixo no desenho e, com um sorriso para o dono da loja, recolocou-o na mesa e seguiu em frente. O sol brilhava; havia até um pouco de calor no ar de inverno e um brilho no Sena. Um homem sem pernas, com blocos de madeira nos cotocos, atravessou a estrada em muletas e estendeu a mão suja para o cardeal, cujos criados avançaram para o homem com suas varas.

— Não! Não! — bradou o cardeal e meteu a mão na bolsa à procura de algumas moedas. — Que Deus o abençoe, meu filho — disse ele.

O cardeal Bessières gostava de dar esmolas, gostava da gratidão que cobria de ternura a fisionomia dos pobres, e em especial gostava da expressão de alívio quando ele detinha os criados um segundo antes que usassem as varas. Às vezes o cardeal fazia uma pausa, uma fração mais demorada, e também gostava disso. Mas aquele era um dia quente, ensolarado, roubado de um inverno cinza, e por isso ele estava com um espírito de bondade.

Passado o Sabot d’Or, uma taberna para escrivães, ele se afastou do rio e entrou num emaranhado de becos que serpenteavam pelos labirínticos prédios do palácio real. O parlamento, fosse como fosse, reunia-se ali, e os advogados andavam às pressas pelas passagens escuras como se fossem ratos, mas aqui e ali, furando a obscuridade, belos prédios erguiam-se para o sol. O cardeal adorava aqueles becos e tinha a impressão de que lojas desapareciam da noite para o dia, como num passe de mágica, para serem substituídas por outras. Aquela lavanderia estivera sempre ali? E por que ele nunca reparara na padaria? E sem dúvida existira um luthier ao lado do sanitário público? Um peleiro pendurava casacos de pele de urso num cabide, e o cardeal fez uma pausa para apalpar as peles. De Taillebourg ainda tagarelava, mas ele praticamente não o escutava.

Logo depois do peleiro havia um arco vigiado por homens em libré azul e dourado. Eles usavam peitorais polidos, elmos com plumas, e seguravam piques com lâminas brilhando de tanto polimento. Poucas pessoas passavam por eles, mas os guardas apressaram-se a recuar e fizeram uma mesura quando o cardeal passou. Ele lhes fez um aceno benevolente que sugeria uma bênção e seguiu por uma passagem úmida até um pátio. Tudo aquilo agora era área real e os cortesãos dirigiam ao cardeal mesuras respeitosas, porque ele era mais do que um cardeal, era também o legado papal junto ao trono da França. Era embaixador de Deus, e Bessières encarnava o papel, porque era um homem alto, de físico forte e troncudo, o suficiente para inspirar um grande respeito à maioria dos homens sem o traje escarlate. Era bem-apessoado e sabia disso, vaidoso e, o que fingia desconhecer, ambicioso, o que escondia do mundo mas não de si mesmo. Afinal, um cardeal arcebispo tinha apenas mais um trono no qual subir antes de chegar aos degraus de cristal do mais alto trono de todos, e Bernard de Taillebourg parecia o improvável instrumento que poderia dar a Louis Bessières a tríplice coroa pela qual ele ansiava.

E por isso o cardeal penosamente voltou sua atenção para o dominicano quando os dois saíram do pátio e subiram a escada para a Sainte-Chapelle.

— Fale-me — Bessières interrompeu o que quer que de Taillebourg estivera falando — sobre o seu criado. Ele lhe obedeceu?

Interrompido de modo tão grosseiro, o dominicano levou uns segundos para ajustar as idéias e depois sacudiu a cabeça.

— Ele me obedeceu em tudo.

— Mostrou humildade?

— Fez o possível.

— Ah! Então ele ainda tem orgulho?

— O orgulho está arraigado nele — disse de Taillebourg —, mas ele lutou contra.

— E não o abandonou?

— Não, eminência.

— Então ele voltou para Paris?

— É claro — disse de Taillebourg, ríspido, e então percebeu o tom que usara. — Ele está no mosteiro, eminência.

— Eu gostaria de saber se deveríamos tornar a mostrar a ele a galeria subterrânea — sugeriu o cardeal enquanto caminhava lentamente para o altar. Ele adorava a Sainte-Chapelle, adorava a luz que jorrava entre os altos pilares finos. Aquilo, segundo ele, era o mais próximo do céu que um homem chegava na Terra: um lugar de beleza flexível, brilho esmagador e graça encantadora. Ele gostaria de ter pensado em encomendar um pouco de canto, porque o som das vozes de eunucos penetrando na forma abobadada das pedras da capela podia levar um homem para muito perto do êxtase. Padres corriam para o altar principal, sabendo o que o cardeal tinha ido ver.

— Eu acho — continuou ele — que alguns instantes na galeria subterrânea podem levar um homem a buscar a graça de Deus.

De Taillebourg abanou a cabeça.

— Ele já esteve lá, eminência.

— Leve-o de novo. — Havia agora uma rispidez na voz do cardeal. — Mostre a ele os instrumentos. Mostre a ele uma alma na roda ou sob o fogo. Mas faça isso hoje. Podemos ter de mandar vocês dois para longe.

— Para longe? — De Taillebourg parecia surpreso.

O cardeal não explicou. Em vez disso, ajoelhou-se diante do altar principal e tirou o chapéu púrpura. Raramente, e só com relutância, ele tirava o chapéu em público, porque estava desagradavelmente cônscio de que estava ficando careca, mas naquele momento era necessário. Necessário e inspirador de respeito, porque um dos padres tinha aberto o relicário embaixo do altar e retirado a almofada púrpura com borda de renda e borlas douradas, que agora apresentou ao cardeal. E sobre a almofada estava a coroa. Ela era tão velha, tão frágil, tão preta e tão quebradiça, que o cardeal prendeu a respiração enquanto estendia as mãos para pegá-la. A própria Terra parecia parar o seu movimento, todos os sons ficaram em silêncio, até o céu ficou parado enquanto ele estendia as mãos, tocava e levantava a coroa, que era tão leve que parecia não ter peso algum.

Era a coroa de espinhos.

Era exatamente a coroa que tinha sido colocada à força na cabeça de Cristo, onde ficara embebida com o Seu suor e Seu sangue, e os olhos do cardeal encheram-se de lágrimas enquanto ele a erguia até os lábios e a beijava com delicadeza. Os gravetos, entrelaçados para formar um diadema espinhoso, eram longos e finos. Estavam frágeis como os ossos das patas de uma cambaxirra, mas os espinhos ainda estavam afiados, tão afiados quanto no dia em que tinham sido pressionados na cabeça do Salvador para fazer o sangue escorrer por Sua preciosa face, e o cardeal levantou a coroa bem alto, usando as duas mãos, e ficou maravilhado com a leveza dela enquanto a arriava na sua cabeleira que agora rareava, para deixá-la repousar ali. Depois, de mãos postas, ergueu o olhar para o crucifixo de ouro sobre o altar.

Ele sabia que o clero da Sainte-Chapelle não gostava que ele fosse lá e usasse a coroa de espinhos. Eles tinham reclamado ao arcebispo de Paris, e este se queixara ao rei, mas Bessières ainda ia, porque tinha poderes para isso. Ele tinha o poder delegado do papa, e a França precisava do apoio do papa. A Inglaterra estava sitiando Calais, Flandres guerreava no norte, toda a Gasconha estava agora jurando outra vez fidelidade a Eduardo da Inglaterra e a Bretanha, que estava se revoltando contra o seu legítimo duque francês, fervilhava de arqueiros ingleses. A França estava sendo atacada e só o papa poderia convencer as potências da cristandade a irem em seu socorro.

E era provável que o papa fizesse isso, porque o próprio Santo Padre era francês. Clemente nascera no Limousin e tinha sido chanceler da França antes de ser eleito para o trono de São Pedro e instalar-se no imponente palácio papal de Avignon. E lá, em Avignon, Clemente dava ouvidos aos romanos que tentavam convencê-lo a levar o papado de volta para a Cidade Eterna. Eles sussurravam e tramavam, subornavam e tornavam a sussurrar, e Bessières temia que Clemente um dia cedesse àquelas vozes lisonjeiras.

Mas se Louis Bessières se tornasse papa não se falaria mais sobre Roma. Roma era uma ruína, um esgoto pestilento cercado por estados insignificantes sempre em guerra uns com os outros, e lá o Vigário de Deus na Terra jamais estaria a salvo. Mas, apesar de Avignon ser um bom refúgio para o papado, a cidade não era perfeita, porque ela e seu condado de Venaissin pertenciam ao reino de Nápoles, e o papa, de acordo com o ponto de vista de Louis Bessières, não devia ser um locatário.

Nem devia o papa viver numa cidade provinciana. Roma certa vez governara o mundo, e por isso o papa ficava bem em Roma, mas em Avignon? O cardeal, os espinhos tão leves sobre a testa, ergueu os olhos para o grande azul e púrpura da vidraça que mostrava a paixão acima do altar; ele sabia qual era a cidade que merecia o papado. Só uma. E Louis Bessières estava certo de que quando fosse papa poderia convencer o rei da França a ceder a Île de la Cité ao Santo Padre, e com isso o cardeal Bessières levaria o papado para o norte e daria a ele um novo e glorioso refúgio. O palácio seria o seu lar, a Catedral de Notre Dame seria a sua nova São Pedro, e aquela gloriosa Sainte-Chapelle, o seu santuário particular, onde a coroa de espinhos seria a sua relíquia. Talvez, pensou, os espinhos devessem ser incorporados à tríplice coroa do papa. Ele gostava dessa idéia e imaginava-se rezando ali em sua ilha particular. Os ourives e os pedintes, os advogados e as prostitutas, as lavanderias e os luthiers seriam mandados pelas pontes para o resto de Paris e a Île de la Cité se tornaria um lugar santo. E então o Vigário de Cristo teria o poder da França sempre ao seu lado, e com isso o reino de Deus iria espalhar-se. O infiel seria abatido e haveria paz na Terra.

Mas como se tornar papa? Havia uma dúzia de homens que queriam suceder a Clemente, mas de todos aqueles rivais só Bessières sabia da existência dos Vexille, e só ele sabia que certa vez eles tinham possuído o Santo Graal e que talvez ainda o possuíssem.

E era por isso que Bessières tinha mandado de Taillebourg à Escócia. O dominicano retornara de mãos vazias, mas ficara sabendo de algumas coisas.

— Com que então você não acha que o Graal esteja na Inglaterra? — perguntou Bessières, mantendo a voz baixa para que os padres da Sainte-Chapelle não ouvissem a conversa.

— Ele pode estar escondido lá — pelo tom de voz, de Taillebourg parecia desalentador —, mas não está em Hookton. Guy Vexille vasculhou a aldeia quando a atacou. Nós procuramos de novo, e a aldeia não é mais que uma ruína.

— Ainda acha que Sir Guillaume o levou para Evecque?

— Acho possível, eminência — disse de Taillebourg. E então, resguardando-se: — Não é provável, mas possível.

— O cerco vai mal. Eu estava enganado a respeito de Coutances. Ofereci a ele mil anos a menos no purgatório se ele capturasse Evecque até o Dia de São Timóteo, mas ele não tem o vigor para forçar um sítio. Fale-me sobre esse filho bastardo.

De Taillebourg fez um gesto que indicava rejeição.

— Ele não é nada. Ele duvida até que o Graal exista. Tudo o que quer é ser soldado.

— Um arqueiro, foi o que você me disse?

— Um arqueiro — confirmou de Taillebourg.

— Acho que você está errado a respeito dele. Coutances me escreveu dizendo que o trabalho deles está sendo atrapalhado por um arqueiro. Um arqueiro que atira flechas compridas, do tipo inglês.

De Taillebourg não disse nada.

— Um arqueiro — insistiu o cardeal — que provavelmente destruiu todo o estoque de pólvora de Coutances. Era o único estoque na Normandia! Se quisermos mais, terá de ser levado de Paris.

O cardeal ergueu a coroa da cabeça e colocou-a sobre a almofada. Depois, lentamente, reverentemente, apertou o dedo indicador contra um dos espinhos e os padres que assistiam inclinaram-se para a frente. Temiam que ele estivesse tentando roubar um dos espinhos, mas o cardeal estava apenas tirando sangue. Ele tremeu quando o espinho rompeu-lhe a pele, levou o dedo à boca e chupou-o. Havia um pesado anel de ouro no dedo e, escondido por baixo do rubi, que engenhosamente girava numa dobradiça, estava um espinho que ele roubara oito meses antes. Às vezes, na privacidade de seu quarto de dormir, ele arranhava a testa com o espinho e imaginava ser o representante de Deus na Terra. E Guy Vexille era a chave para aquela ambição.

— O que você vai fazer — ordenou a de Taillebourg depois que o gosto de sangue desapareceu — é mostrar a galeria subterrânea a Guy Vexille outra vez, para lembrá-lo do tipo de inferno que o aguarda se ele falhar. Depois vá com ele para Evecque.

— Vossa Eminência mandaria Vexille a Evecque? — De Taillebourg não conseguiu esconder a surpresa.

— Ele é implacável e cruel — disse o cardeal enquanto se levantava e colocava o chapéu — e você me diz que ele é nosso. Por isso vamos gastar dinheiro e dar a ele pólvora negra e homens suficientes para esmagar Evecque e trazer Sir Guillaume para a galeria subterrânea.

Ele ficou olhando enquanto a coroa de espinhos era levada de volta ao seu relicário. E em breve, pensou, nesta capela, neste lugar de luz e glória, receberia um prêmio maior. Iria receber um tesouro para levar toda a cristandade e suas riquezas ao seu trono de ouro. Ele teria o Graal.

Thomas e Robbie estavam imundos; as roupas tinham crostas de sujeira; suas cotas de malha estavam cheias de gravetos espetados, de folhas mortas e terra; os cabelos não tinham sido cortados e estavam gordurosos e sem brilho. À noite, eles tremiam, o frio penetrando-lhes a alma, mas durante o dia nunca tinham se sentido tão vivos, porque jogavam um jogo de vida e morte nos pequenos vales e bosques emaranhados em volta de Evecque. Robbie, usando uma envolvente capa preta e levando o crânio na vara, cavalgava o cavalo branco para levar homens de Coutances para uma emboscada, onde Thomas matava. Às vezes Thomas apenas feria, mas raramente errava, porque estava atirando a pouca distância, obrigado a isso pelo emaranhado dos bosques, e o jogo fazia-o lembrar-se das canções que os arqueiros gostavam de cantar e das histórias que as mulheres deles contavam sobre os acampamentos do exército. Eram canções e histórias de gente comum, que nunca era cantada pelos trovadores, e falavam de um fora-da-lei chamado Robin Hood. Era Hood ou Hude, Thomas não tinha certeza, porque nunca vira o nome escrito, mas sabia que Hood era um herói inglês que tinha vivido há algumas centenas de anos e seu inimigo tinha sido a nobreza inglesa que falava francês. Hood os combatera com uma arma inglesa, o arco de guerra, e sem dúvida a nobreza da atualidade considerava as histórias subversivas, motivo pelo qual nenhum trovador as cantava nos grandes salões. Às vezes Thomas pensava que poderia, ele mesmo, transcrevê-las, só que ninguém escrevia em inglês, nunca. Todos os livros que Thomas já vira estavam em latim ou em francês. Mas por que as canções sobre Hood não podiam ser transformadas em livro? Em certas noites, ele contava as histórias de Hood a Robbie, enquanto os dois tremiam de frio no precário abrigo que pudessem ter encontrado, mas o escocês achava as histórias enfadonhas.

— Prefiro as histórias do rei Artur — disse ele.

— Vocês têm essas histórias na Escócia? — perguntou Thomas, surpreso.

— Claro que temos! — afirmou Robbie. — Artur era escocês.

— Não seja idiota! — disse Thomas, ofendido.

— Ele era escocês — insistiu Robbie — e matava os porcarias dos ingleses.

— Ele era inglês — disse Thomas — e é provável que nunca tenha ouvido falar na porcaria dos escoceses.

— Vá para o inferno! — vociferou Robbie.

— Eu te levarei até lá primeiro — disse Thomas com veemência, e pensou que se algum dia escrevesse as histórias de Hood iria fazer com que o lendário arqueiro fosse até o norte e espetasse alguns escoceses com algumas belas flechas inglesas.

Na manhã seguinte os dois estavam com vergonha dos acessos de raiva que tiveram.

— É porque eu estou com fome — disse Robbie. — Sempre fico de mau humor quando estou com fome.

— Você está sempre com fome — disse Thomas.

Robbie deu uma risada, e depois colocou a sela sobre o cavalo branco. O animal tremia. Nenhum dos cavalos tinha comido bem e os dois estavam fracos, de modo que Thomas e Robbie estavam sendo cautelosos, não querendo ser encurralados em campo aberto onde os melhores cavalos do conde podiam correr mais do que os dois cansados corcéis. Pelo menos o frio diminuíra, mas grandes ondas de chuva vinham do oceano ocidental, e durante uma semana choveu forte e nenhum arco inglês podia ser armado num tempo daqueles. O conde de Coutances estaria, sem dúvida, começando a acreditar que a água benta de seu capelão afastara o cavalo pálido de Evecque e por isso poupou seus homens, mas seus inimigos também foram poupados, porque não chegara mais pólvora para o canhão e agora as campinas em torno da casa cercada pelo fosso estavam tão alagadas que as trincheiras ficaram inundadas e os sitiantes patinhavam na lama. Cavalos pegavam podridão do casco e homens ficavam nos abrigos, tremendo de febre.

A cada amanhecer, Thomas e Robbie cavalgavam primeiro para os bosques ao sul de Evecque e lá, no lado do solar onde o conde não tinha aberto trincheiras e tinha apenas um pequeno posto de sentinela, colocavam-se à beira dos bosques e acenavam. Eles tinham recebido um aceno de resposta na terceira manhã em que fizeram sinal para a guarnição, mas depois disso nada aconteceu até a semana da chuva. Então, na manhã seguinte à discussão sobre o rei Artur, Thomas e Robbie acenaram para o solar e dessa vez viram um homem aparecer no telhado. Ele ergueu uma besta e disparou bem para o alto. O quadrelo não tinha sido mirado no posto de sentinela, e se os homens ali de guarda chegaram a ver o vôo dele nada fizeram, mas Thomas o viu cair no pasto, onde chapinhou numa poça e deslizou pela grama molhada.

Naquele dia eles não saíram a cavalo. Em vez disso, esperaram até o anoitecer, até que a escuridão tivesse caído, e então Thomas e Robbie rastejaram até o pasto e, de quatro, vasculharam a espessa grama molhada e o estrume de vaca. Aquilo pareceu durar horas, mas finalmente Robbie encontrou a seta e descobriu que havia um pacote encerado enrolado na haste curta.

— Está vendo? — disse Robbie quando eles estavam de volta ao abrigo e tremiam ao lado de um fogo fraco. — É possível fazer isso.

Ele fez um gesto para a mensagem enrolada no quadrelo. Para fazer a seta voar, a mensagem tinha sido presa à haste com um cordão de algodão que havia encolhido e que Thomas teve de cortar para soltá-lo. Depois desenrolou o pergaminho encerado e levou-o para perto da fogueira para que ele pudesse ler a mensagem, que tinha sido escrita com carvão.

— É de Sir Guillaume — disse Thomas — e ele quer que a gente vá a Caen.

— Caen?

— E deveremos procurar um... — Thomas franziu o cenho e aproximou mais das chamas a carta com sua caligrafia ininteligível —, deveremos procurar um comandante de navio mercante chamado Pierre Villeroy.

— Será que é o Peter Feio? — interpôs Robbie.

— Não — disse Thomas aproximando a vista do pergaminho —, o navio desse homem se chama Pentecost, e se ele não estiver lá devemos procurar Jean Lapoullier ou Guy Vergon.

Thomas estava segurando a mensagem tão perto da fogueira, que ela começou a ficar marrom e enroscar enquanto ele lia as últimas palavras em voz alta.

— Diga a Villeroy que eu quero o Pentecost pronto até o Dia de São Clemente e que ele deve tomar providências para dez passageiros que vão para Dunquerque. Espere com ele e nós o encontraremos em Caen. Acenda uma fogueira nos bosques hoje à noite para mostrar que recebeu esta mensagem.

Naquela noite eles acenderam uma fogueira nos bosques. Ela queimou por um curto espaço de tempo, depois a chuva chegou e o fogo apagou, mas Thomas estava certo de que a guarnição devia ter visto as chamas.

E ao amanhecer, molhados, cansados e imundos, eles estavam de volta a Caen.

Thomas e Robbie percorreram os cais da cidade, mas não havia sinal de Pierre Villeroy ou de seu navio, o Pentecost, embora um taberneiro calculasse que Villeroy não estava longe.

— Ele levou um carregamento de pedras para Cabourg — disse o homem a Thomas — e achava que estaria de volta hoje ou amanhã, e as condições do tempo não devem ter feito ele se atrasar. — Olhou de soslaio para a vara do arco. — Isso daí é um maldito arco? — Ele se referia a um arco inglês.

— Arco de caça de Argentan — disse Thomas, despreocupado, e a mentira satisfez ao dono da taberna, porque havia alguns homens em toda comunidade francesa que sabiam usar o longo arco de caça, mas eram muito poucos e nunca o suficiente para formar o tipo de exército que tornava as encostas dos morros vermelhas de sangue nobre.

— Se Villeroy voltar hoje — disse o homem —, estará bebendo na minha taberna hoje à noite.

— Você o mostraria para mim? — perguntou Thomas.

— Não se pode deixar de notar o Pierre — disse o homem rindo —, porque é um gigante! Um gigante careca, com uma barba na qual a gente pode criar camundongos e uma pele marcada pela bexiga. Você vai reconhecer o Pierre sem a minha ajuda.

Thomas calculava que Sir Guillaume iria estar com pressa quando chegasse a Caen e não iria querer perder tempo convencendo cavalos a entrarem no Pentecost, e por isso passou o dia regateando preços pelos dois garanhões e naquela noite, cheio de dinheiro, ele e Robbie voltaram para a taberna. Não havia sinal de um gigante barbudo, careca, mas estava chovendo, os dois estavam gelados e concluíram que seria melhor esperar, e por isso pediram um cozido de enguia, pão e vinho quente. Um cego tocava harpa a um canto da taberna, e depois começou a cantar sobre marinheiros, focas e os estranhos animais marinhos que se levantavam do fundo do oceano para uivar para a lua minguante. Então a comida chegou e, justo no momento em que Thomas ia prová-la, um homem corpulento, de nariz quebrado, atravessou a taberna e plantou-se beligerantemente em frente a Thomas. Apontou para o arco.

— Isso é um arco inglês — disse ele, categórico.

— É um arco de caça de Argentan — disse Thomas.

Ele sabia que era perigoso carregar uma arma tão chamativa, e no último verão, quando ele e Jeanette foram a pé da Bretanha até a Normandia, ele disfarçara o arco em vara de peregrino, mas naquela visita ele fora mais descuidado.

— É apenas um arco de caça — repetiu ele, tranqüilo, e encolheu-se porque o cozido de enguia estava muito quente.

— O que é que esse bastardo quer? — perguntou Robbie.

O homem ouviu.

— Você é inglês.

— Eu falo como um inglês? — perguntou Thomas.

— E como é que ele fala? — O homem apontou para Robbie. — Ou será que agora ele perdeu a língua?

— Ele é escocês.

— Ah, estou certo que é, e eu sou o porcaria do duque da Normandia.

— Você é o maldito de um chato — disse Thomas, falando com suavidade, e jogou a sopeira na cara do homem e, com os pés, empurrou a mesa contra a virilha dele. — Dá o fora! — disse então a Robbie.

— Cristo, eu adoro uma briga! — disse Robbie. Meia dúzia de amigos do homem escaldado avançavam do outro lado da taberna e Thomas lançou um banco nas pernas deles, derrubou dois, e Robbie brandiu a espada contra um outro.

— Eles são ingleses! — gritou do chão o homem escaldado. — Eles são malditos! — Os ingleses eram odiados em Caen.

— Ele está te chamando de inglês — disse Thomas a Robbie.

— Eu vou fazer ele engolir o meu mijo — rosnou Robbie dando um pontapé na cabeça do homem, e depois bateu em outro homem com o punho da espada e bradava seu grito de guerra escocês enquanto avançava contra os sobreviventes.

Thomas havia apanhado às pressas a bagagem deles e seu arco e abriu uma porta.

— Venha! — gritou ele.

— Me chamem de inglês, seus beberrões! — desafiou Robbie. Sua espada mantinha os atacantes afastados, mas Thomas sabia que eles iriam tomar coragem e avançar, e era quase certo que Robbie teria de matar um deles para escapar, e então haveria um clamor público e eles teriam sorte se não acabassem pendurados numas cordas na defesa do castelo, e por isso arrastou Robbie para trás, passando pela porta da taberna.

— Corra!

— Eu estava gostando — insistiu Robbie e tentou voltar para dentro da taberna, mas Thomas puxou-o com força e atingiu com o ombro um homem que ia entrando no beco.

— Corra! — Thomas tornou a gritar e empurrou Robbie em direção da Île. Eles fugiram para um beco, atravessaram correndo uma pequena praça e finalmente foram jogar-se ao chão nas sombras do alpendre da igreja de St. Jean. Seus perseguidores procuraram durante alguns minutos, mas a noite estava fria e a paciência dos caçadores era limitada. — Eles eram seis — disse Thomas.

— Nós estávamos ganhando! — disse Robbie com truculência.

— E amanhã — disse Thomas —, quando deveremos procurar Pierre Villeroy ou um dos outros, você preferiria estar numa prisão em Caen?

— Eu não esmurro um homem desde a briga em Durham — disse Robbie. — Não como devia.

— E a briga com os hogglers em Dorchester?

— Nós estávamos muito bêbados. Isso não vale. — Ele começou a rir. — Seja como for, foi você quem começou.

— Eu?

— Foi — disse Robbie —, você atirou o cozido de enguia bem na cara dele! O cozido todo.

— Eu só estava tentando salvar a sua vida — assinalou Thomas. — Cristo! Você estava falando inglês em Caen! Eles odeiam os ingleses!

— E devem odiar mesmo — disse Robbie —, e devem mesmo, mas o que é que eu devo fazer aqui? Ficar de boca calada? Diabo! O inglês também é a minha língua. Deus sabe por que ela é chamada de inglês.

— Porque é inglês — disse Thomas —, e o rei Artur a falava.

— Meu doce Jesus! — disse Robbie e tornou a rir. — Que diabo, eu bati naquele sujeito com tanta força que quando acordar ele não vai saber que dia é hoje.

Eles encontraram abrigo em uma das muitas casas que ainda estavam abandonadas depois da selvageria do assalto inglês no verão. Os donos da casa estavam muito longe ou o mais provável era que seus ossos estivessem na grande cova comum do cemitério da igreja ou atolados no leito do rio.

Na manhã seguinte eles voltaram aos cais. Thomas lembrou-se de ter vadeado a forte corrente enquanto os besteiros atiravam dos navios atracados. Os quadrelos espirravam pequenas fontes de água e, por nem pensar em deixar que a corda de seu arco ficasse molhada, ele não pudera responder aos disparos. Agora ele e Robbie andavam pelos cais para descobrir que o Pentecost aparecera como por mágica durante a noite. Era um navio do tamanho normal daqueles que podiam subir o rio, um navio com a capacidade de atravessar até a Inglaterra com uma vintena de homens e cavalos a bordo, mas agora estava em seco, já que a maré baixa o encalhara na lama. Thomas e Robbie atravessaram na ponta dos pés a estreita prancha de embarque para ouvir um monstruoso roncar vindo de uma pequena e fétida cabine na popa. Thomas achou que o próprio convés vibrava todas as vezes que o homem respirava e ficou imaginando como uma criatura que emitia um som daqueles reagiria ao ser acordado, mas naquele exato momento uma menina que mais parecia abandonada, pálida como nevoeiro matutino e magra como uma flecha, subiu pela escotilha e colocou algumas peças de roupa no convés e levou um dedo aos lábios. Ela parecia muito frágil e, ao levantar a camisola para puxar meias com força, mostrou pernas que pareciam gravetos. Thomas duvidava que ela pudesse ter mais de treze anos.

— Ele está dormindo — sussurrou ela.

— Foi o que eu ouvi — disse Thomas.

— Shh! — Ela tornou a levar o dedo aos lábios e depois colocou uma grossa blusa de lã por cima da camisola, colocou os pés magros em botas enormes e enrolou-se num grande casaco de couro. Pôs um chapéu de lã seboso sobre os cabelos louros e apanhou uma sacola que parecia feita de pano de vela velho e puído.

— Vou comprar comida — disse ela baixinho — e tem fogo para fazer no pique de vante. Vocês vão achar uma pederneira e aço na prateleira. Não o acordem!

Com aquele aviso, ela saiu do navio na ponta dos pés, envolta em seu grande casaco e metida nas botas, e Thomas, perplexo com a profundidade e o volume dos roncos, decidiu que discrição era o melhor caminho. Foi até o pique de vante, onde encontrou um braseiro de ferro sobre uma chapa de pedra. Lenha já havia sido colocada no braseiro e, depois de abrir a escotilha acima para servir de chaminé, tirou centelhas da pederneira. Os gravetos estavam úmidos, mas depois de algum tempo o fogo pegou e ele colocou mais pedaços de madeira, de modo que quando a menina voltou havia uma chama respeitável.

— Eu sou Yvette — disse ela, aparentemente sem curiosidade por saber quem eram Thomas e Robbie. — Mulher do Pierre — explicou ela, e depois apanhou uma enorme panela escurecida na qual quebrou doze ovos. — Vocês também querem comer? — perguntou ela a Thomas.

— Gostaríamos.

— Vocês podem comprar ovos comigo — disse ela fazendo um gesto com a cabeça para a sacola de pano de vela —, e tem um pouco de presunto e pão ali. Ele gosta de presunto.

Thomas olhou para os ovos que embranqueciam no fogo.

— Aqueles são todos para o Pierre?

— Ele tem fome de manhã — explicou ela. — Por isso por que você não corta o presunto? Ele gosta de fatias grossas.

De repente o navio estalou e balançou ligeiramente na lama.

— Ele está acordado — disse Yvette tirando um prato de peltre da prateleira. Ouviu-se um gemido vindo do convés, depois passadas, e Thomas saiu de costas do pique de vante e voltou-se para se ver diante do maior homem que ele já vira.

Pierre Villeroy era trinta centímetros mais alto do que o arco de Thomas. Tinha um peito que parecia um barril, uma cabeça lisa, careca, um rosto terrivelmente marcado pela varíola que tivera quando criança e uma barba na qual uma lebre poderia perder-se. Ele piscou para Thomas.

— Veio para trabalhar? — grunhiu ele.

— Não, eu lhe trouxe uma mensagem.

— Só que nós temos de começar logo — disse Villeroy numa voz que parecia ribombar de alguma caverna profunda.

— Uma mensagem de Sir Guillaume d’Evecque — explicou Thomas.

— Eu tenho de aproveitar a maré baixa, entende? — disse Villeroy. — Tenho três banheiras de musgo no porão. Sempre usei musgo. Meu pai usava. Outros usam cânhamo em tiras, mas eu não gosto, não gosto nada. Nada funciona a metade do que um musgo fresco funciona. Ele gruda, entende? E combina melhor com o piche. — A fisionomia feroz rompeu-se de repente num sorriso com falhas nos dentes. — Mon caneton! — declarou quando Yvette surgiu com o prato dele com um monte de comida.

Yvette, o patinho dele, serviu a Thomas e Robbie dois ovos para cada um, e depois mostrou dois martelos e dois estranhos instrumentos de ferro que pareciam cinzéis cegos.

— Nós estamos calafetando as juntas — explicou Villeroy —, de modo que eu vou esquentar o piche e vocês dois podem enfiar musgo entre as pranchas. — Ele levou à boca, com os dedos, uma porção de gema de ovo. — Temos de fazer isso enquanto o navio estiver encalhado entre as marés.

— Mas lhe trouxemos uma mensagem — insistiu Thomas.

— Eu sei que trouxeram. De Sir Guillaume. O que significa que ele quer o Pentecost para uma viagem, e o que Sir Guillaume quer ele consegue, porque tem sido bom para mim, tem, sim, mas o Pentecost não vale nada para ele se afundar, vale? Ele não serve de nada no fundo do mar, com todos os marinheiros afogados, serve? Ele tem de ser calafetado. A minha querida e eu quase morremos afogados ontem, não foi, meu patinho?

— Ele estava fazendo água — concordou Yvette.

— Ele navegava gorgolejando, isso, sim — declarou Villeroy em voz alta —, de Cabourg até aqui, e por isso, se Sir Guillaume quer ir para algum lugar, é melhor vocês dois começarem a trabalhar!

Ele sorriu para eles por cima da imensa barba, que agora estava com traços de gema de ovo.

— Ele quer ir para Dunquerque — disse Thomas.

— Ele está planejando fugir para lá, não é? — refletiu Villeroy em voz alta. — Ele vai atravessar aquele fosso, montar no cavalo dele e dar o fora antes que o conde de Coutances saiba em que ano nós estamos.

— Por que Dunquerque? — quis saber Yvette.

— Ele vai se unir aos ingleses, é claro — disse Villeroy sem qualquer traço de ressentimento por aquela presumida traição de Sir Guillaume. — O senhor dele voltou-se contra ele, os bispos estão mijando na boca dele e dizem que o rei está envolvido nisso, de modo que é melhor ele mudar de lado agora. Dunquerque? Ele vai se juntar ao cerco de Calais. — Ele meteu mais ovos e presunto na boca. — Pois quando é que Sir Guillaume quer partir?

— No Dia de São Clemente — disse Thomas.

— Quando é isso?

Nenhum deles sabia. Thomas sabia que dia do ano era a festa de São Clemente, mas não sabia quantos dias faltavam, e essa ignorância lhe deu uma desculpa para evitar o que ele tinha a certeza de ser um serviço repugnantemente sujo, frio e úmido.

— Vou descobrir — disse ele — e volto para ajudá-lo.

— Eu vou com você — ofereceu-se Robbie.

— Você fica aqui — disse Thomas, severo. — Monsieur Villeroy tem um serviço para você.

— Um serviço? — Robbie não tinha entendido a conversa anterior.

— Não é nada demais — assegurou-lhe Thomas. — Você vai gostar!

Robbie ficou desconfiado.

— E aonde você vai?

— À igreja, Robbie Douglas — disse Thomas —, vou à igreja.


OS INGLESES tinham capturado Caen no verão anterior e ocuparam a cidade só o tempo suficiente para estuprar suas mulheres e saquear suas riquezas. Eles tinham deixado Caen castigada, sangrando e chocada, mas Thomas havia ficado depois que o exército fora embora. Ele adoecera e o dr. Mordecai tratara dele na casa de Sir Guillaume. Quando Thomas melhorou a ponto de poder andar, Sir Guillaume o levou até a Abbaye aux Hommes para conhecer o irmão Germain, o chefe do escritório da abadia e um homem de uma cultura como Thomas jamais vira. Sem dúvida o irmão Germain iria saber quando era o Dia de São Clemente, mas aquele não era o único motivo pelo qual Thomas estava indo até a abadia. Ele chegara à conclusão de que se havia um homem que podia compreender o estranho texto no livro de notas de seu pai, esse homem era o velho monge, e a idéia de que talvez naquela manhã Thomas fosse descobrir uma resposta para o mistério do Graal dava nele uma agonia agitada. Aquilo o surpreendeu. Muitas vezes ele duvidara da existência do Graal, e com uma freqüência ainda maior desejava que a taça deixasse de ser um problema seu, mas agora, de repente, sentia a emoção viva da busca. E mais, ficara repentinamente dominado pela solenidade da busca, a tal ponto que se deteve em sua caminhada e olhou fixo para a luz cintilante refletida pelo rio e tentou lembrar-se da visão que tivera de fogo e ouro na noite do norte inglês. Que loucura duvidar, pensou de repente. Claro que o Graal existia! Só estava esperando ser encontrado e, assim, trazer felicidade a um mundo despedaçado.

— Olha a frente!

Thomas foi despertado com um susto do seu sonho por um homem que empurrava um pesado carrinho de mão cheio de ostras. Um cachorro pequeno estava amarrado ao carrinho e avançou para Thomas, tentando em vão morder-lhe os calcanhares antes de soltar um grito quando a corda o arrastou para a frente. Thomas praticamente não prestou atenção ao homem nem ao cachorro. Em vez disso, pensava que o Graal devia esconder-se dos indignos dando-lhes dúvidas. Para encontrá-lo, então, tudo o que ele tinha de fazer era acreditar nele e talvez solicitar uma ajudazinha do irmão Germain.

Um porteiro dirigiu-lhe a palavra no portão da abadia, e imediatamente depois sofreu um acesso de tosse. O homem dobrou-se na cintura, fez esforço para respirar, então endireitou o corpo devagar e assoou o nariz nos dedos.

— Eu peguei a minha morte — disse ele resfolegando —, foi isso, peguei a minha morte. — Puxou uma bola de catarro da garganta e cuspiu-a na direção dos mendigos que estavam ao lado no portão. — O escritório é por ali — disse ele —, depois da clausura.

Thomas seguiu para a sala iluminada pela luz do sol, onde vinte monges estavam de pé ao lado de carteiras altas, inclinadas. Uma pequena fogueira queimava numa lareira central, ostensivamente para evitar que a tinta congelasse, mas a sala de pé-direito alto ainda estava fria o bastante para que a respiração dos monges saísse como uma névoa acima dos pergaminhos. Estavam todos copiando livros e a câmara de pedra estalava e arranhava com o som das penas. Dois noviços socavam pó para tintas em uma mesa lateral, um outro raspava uma pele de ovelha, e um quarto afiava a ponta de penas de ganso, todos temerosos do irmão Germain, que estava sentado num tablado onde trabalhava em seu manuscrito. Germain era idoso e pequeno, frágil e curvado, com finos cabelos brancos, olhos míopes leitosos e uma expressão de mau humor. O rosto estivera a apenas seis centímetros de seu trabalho, até que ele ouviu as passadas de Thomas e então ergueu os olhos de repente. Embora não pudesse enxergar direito, pelo menos observou que o visitante que não se anunciara tinha uma espada do lado.

— O que é que um soldado vem fazer na casa de Deus? — vociferou o irmão Germain. — Veio acabar o que os ingleses começaram no verão passado?

— Vim procurar o senhor, irmão — disse Thomas. O raspar das penas havia cessado abruptamente, já que os monges tentavam ouvir a conversa.

— Trabalhem! — disse o irmão Germain com rispidez. — Trabalhem! Vocês ainda não se transportaram para o céu! Vocês têm deveres, dediquem-se a eles!

Penas retiniam em tinteiros, e o arranhar e o socar e o raspar recomeçaram. O irmão pareceu alarmado quando Thomas subiu no tablado.

— Eu o conheço? — indagou, ríspido.

— Nós nos conhecemos no verão passado. Sir Guillaume me trouxe para falar com o senhor.

— Sir Guillaume! — O irmão Germain, perplexo, depôs a pena na mesa. — Sir Guillaume? Duvido muito que vamos tornar a vê-lo! Ha! Engaiolado por Coutances, foi o que ouvi dizer, e isso é bom. Sabe o que ele fez?

— Coutances?

— Sir Guillaume, seu bobo! Ele se voltou contra o rei na Picardia! Voltou-se contra o rei. Tornou-se um traidor. Ele sempre foi um tolo, sempre arriscando o pescoço, mas agora vai ter sorte se ficar com a cabeça. O que é isso?

Thomas havia desembrulhado o livro e agora colocou-o na mesa.

— Eu tinha a esperança, irmão — disse ele com humildade —, que o senhor pudesse tornar claro o...

— Você quer que eu o leia, hein? Você mesmo nunca aprendeu, e agora pensa que não tenho nada melhor para fazer do que ler alguma bobagem para que você possa determinar o valor dele?

Às vezes pessoas que não sabiam ler ficavam de posse de livros e os levavam ao mosteiro para mandá-los avaliar, na esperança, ainda que sabidamente não haja esperança, de que alguma coletânea de conselhos piedosos pudesse revelar-se um raro livro de teologia, astrologia ou filosofia.

— Como foi que disse que se chamava? — perguntou o irmão Germain.

— Eu não disse, mas eu me chamo Thomas.

O nome não representava lembrança alguma para o irmão Germain, mas também ele já não estava interessado, porque imergira no livro, movimentando os lábios em palavras à meia voz, virando páginas com longos dedos brancos, maravilhado, e então folheou de volta à primeira página e leu o latim em voz alta.

— Calix meus inebrians.

Ele disse as palavras à meia voz, como se elas fossem sagradas, e depois fez o sinal-da-cruz e virou para a página seguinte, que estava na estranha língua hebraica, e ficou ainda mais agitado.

— “Para o meu filho” — disse ele em voz alta, evidentemente traduzindo — “que é filho do Tirshatha e neto de Hachaliah.” — Ele dirigiu os olhos míopes para o rosto de Thomas. — É você?

— Eu?

— Você é neto de Hachaliah? — perguntou Germain e, apesar da visão deficiente, devia ter percebido a perplexidade no rosto de Thomas. — Ah, não importa! — disse ele, impaciente. — Você sabe o que é isso?

— Histórias — disse Thomas. — Histórias sobre o Graal.

— Histórias! Histórias! Vocês, soldados, parecem crianças. Broncos, cruéis, sem instrução e gananciosos por histórias. Você sabe o que é este texto?

— É hebraico, não é?

— “É hebraico, não é?” — arremedou o irmão Germain, zombando de Thomas. — Claro que é hebraico, até mesmo um bobo que estudou na Universidade de Paris saberia isso, mas é o texto mágico deles. É a caligrafia que os judeus usam para fazer seus encantos, sua magia negra. — Ele olhou atentamente para uma das páginas. — Aqui, está vendo? O nome do diabo, Abracadabra! — Ele franziu o cenho por alguns segundos. — O autor alega que Abracadabra pode ser trazido para este mundo invocando-se seu nome acima do Graal. Parece plausível.

O irmão Germain tornou a fazer o sinal-da-cruz para afastar o diabo e ergueu os olhos para Thomas.

— Onde conseguiu isto? — Ele fez a pergunta com rispidez, mas não esperou resposta. — Você é ele, não é?

— Ele?

— O Vexille que Sir Guillaume trouxe para falar comigo — disse o irmão Germain em tom acusador e tornou a fazer o sinal-da-cruz. — Você é inglês! — Ele fez com que isso parecesse ainda pior. — Para quem vai levar este livro?

— Primeiro quero entendê-lo — disse Thomas, confuso com a pergunta.

— Entendê-lo! Você? — zombou o irmão Germain. — Não, não. Você tem de deixá-lo comigo, rapaz, para que eu possa fazer uma cópia dele, e depois o livro deverá ir para Paris, para os dominicanos de lá. Eles mandaram um homem para perguntar sobre você.

— Sobre mim? — Agora Thomas estava ainda mais confuso.

— Sobre a família Vexille. Parece que uma de suas pragas lutou ao lado do rei no verão passado e agora ele submeteu-se à Igreja. A Inquisição teve... — o irmão Germain fez uma pausa, evidentemente procurando a palavra certa — ... umas conversas com ele.

— Com o Guy? — perguntou Thomas. Ele sabia que Guy era seu primo, sabia que Guy lutara do lado francês na Picardia e sabia que Guy tinha matado seu pai à procura do Graal, mas não sabia mais do que isso.

— Quem mais? E agora, afirmam eles, Guy Vexille está reconciliado com a Igreja — disse o irmão Germain enquanto virava as páginas. — Reconciliado com a Igreja, hein! Será que um lobo pode deitar-se com ovelhas? Quem escreveu isto?

— Meu pai.

— Então você é neto de Hachaliah — disse o irmão Germain com reverência e fechou as magras mãos sobre o livro. — Obrigado por trazê-lo para mim — disse ele.

— Pode me dizer o que dizem os trechos em hebraico? — perguntou Thomas, desconcertado pelas últimas palavras do irmão Germain.

— Dizer a você? Claro que posso dizer, mas não vai significar coisa alguma. Você sabe quem foi Hachaliah? Você conhece bem o Tirshatha? Claro que não. As respostas de nada adiantariam para você! Mas eu lhe agradeço por ter me trazido o livro. — Ele puxou um pedaço de pergaminho para perto dele, apanhou a pena e molhou-a na tinta. — Se levar este bilhete ao sacristão, ele lhe dará uma recompensa. Agora tenho de trabalhar.

Ele assinou o bilhete e estendeu-o em direção a Thomas.

Thomas estendeu a mão para o livro.

— Não posso deixá-lo aqui — disse ele.

— Não pode deixá-lo aqui! Claro que pode! Uma coisa dessas pertence à Igreja. Além do mais, tenho de fazer uma cópia. — O irmão Germain cruzou as mãos sobre o livro e curvou-se sobre ele. — Você vai deixá-lo aqui — disse ele quase rosnando.

Thomas havia pensado que o irmão Germain fosse um amigo ou pelo menos que não fosse um inimigo, e até mesmo as palavras duras do velho monge sobre a traição de Sir Guillaume não tinham alterado aquela opinião. Germain dissera que o livro tinha de ir para Paris, para os dominicanos, mas Thomas agora compreendia que Germain era aliado daqueles homens da Inquisição, os quais por sua vez tinham Guy Vexille do lado deles. E Thomas compreendia também que aqueles homens poderosos estavam à procura do Graal com uma avidez que ele não avaliara até aquele momento, e o caminho deles para o Graal passava por ele e aquele livro. Aqueles homens eram seus inimigos, e isso significava que o irmão Germain também era seu inimigo, e que tinha sido um engano terrível levar o livro à abadia. Sentiu um medo súbito e estendeu a mão para o livro.

— Eu tenho de ir embora — insistiu.

O irmão Germain tentou segurar o livro, mas seus braços, que pareciam dois gravetos, não podiam competir com a força de Thomas que fora dada pelo arco. Mesmo assim, agarrou-se ao livro, teimoso, ameaçando rasgar a macia capa de couro.

— Para onde você vai? — perguntou o irmão Germain e tentou enganar Thomas com uma promessa falsa. — Se o deixar comigo — disse ele —, farei uma cópia e lhe mandarei o livro quando ela estiver terminada.

Thomas estava indo para o norte, para Dunquerque, e por isso citou um lugar na direção oposta.

— Estou indo para La Roche-Derrien — disse ele.

— Uma guarnição inglesa? — O irmão Germain ainda tentou puxar o livro e depois gritou quando Thomas lhe deu um tapa nas mãos. — Você não pode levar isso para os ingleses!

— Eu o estou levando para La Roche-Derrien — disse Thomas, finalmente recuperando o livro. Dobrou a macia capa de couro sobre as páginas e puxou um pouco da espada quando viu vários dos monges mais jovens descerem dos bancos altos, parecendo querer detê-lo. A visão da lâmina dissuadiu-os da idéia de cometer qualquer violência. Ficaram apenas olhando enquanto ele se retirava.

O porteiro ainda estava tossindo, e encostou-se no arco e tentou recuperar a respiração enquanto lágrimas escorriam-lhe dos olhos.

— Pelo menos não é lepra — conseguiu dizer para Thomas —, sei que não é lepra. Meu irmão teve lepra e não tossia. Pelo menos, não tossia muito.

— Quando é o Dia de São Clemente? — Thomas lembrou-se de perguntar.

— Depois de amanhã, e se eu viver até lá é porque Deus me ama.

Ninguém seguiu Thomas, mas naquela tarde, enquanto ele e Robbie estavam mergulhados até a virilha em água fria do rio que subia e enfiando musgo grosso no entabuamento do Pentecost, uma patrulha de soldados em libré vermelho e amarelo perguntou a Pierre Villeroy se ele tinha visto um inglês vestindo cota de malha e uma capa preta.

— É aquele ali embaixo — disse Villeroy apontando para Thomas, e depois soltou uma risada. — Se eu vir um inglês — prosseguiu —, vou mijar na boca dele até ele morrer afogado.

— Em vez disso, leve ele ao castelo — disse o chefe da patrulha, e depois liderou seus homens para interrogar a tripulação do navio seguinte.

Villeroy esperou até que os soldados ficassem a uma distância em que não pudessem ouvir.

— Por esta — disse ele a Thomas — você me deve mais duas fileiras de calafetação.

— Jesus Cristo! — blasfemou Thomas.

— Ora, Ele foi um carpinteiro de muita competência — observou Villeroy através de um bocado da torta de maçã feita por Yvette —, mas Ele também era o filho de Deus, não era? Por isso não precisava fazer serviços subalternos como calafetar, e assim não adianta pedir a Sua ajuda. Pois enfie bem o musgo, rapaz, enfie bem.

Sir Guillaume havia defendido o solar contra os seus atacantes durante quase três meses e não duvidava de que poderia defendê-lo indefinidamente desde que o conde de Coutances não levasse mais pólvora para a aldeia, mas Sir Guillaume sabia que a sua fase na Normandia acabara. O conde de Coutances era o seu senhor feudal, Sir Guillaume controlava terra dele, assim como o conde controlava terra do rei, e se um homem era declarado traidor pelo seu senhor feudal, e se o rei apoiava a declaração, esse homem não tinha futuro, a menos que achasse um outro senhor que devesse lealdade a um rei diferente. Sir Guillaume tinha escrito ao rei e apelado a amigos com influência na corte, mas não recebera resposta alguma. O sítio continuara, e por isso Sir Guillaume tinha de abandonar o solar. Aquilo o deixava triste porque Evecque era a sua cidade. Conhecia cada centímetro daqueles pastos, sabia onde encontrar os chifres de veado descartados na muda, sabia onde as jovens lebres jaziam tremendo no capim alto e sabia onde os lúcios procriavam como demônios nos córregos mais fundos. Era o seu lar, mas um homem declarado traidor não tinha lar, e por isso, na véspera do Dia de São Clemente, quando os seus sitiantes estavam mergulhados numa úmida escuridão de inverno, ele fugiu.

Nunca duvidara de sua capacidade de fugir. O conde de Coutances era um homem obtuso, sem imaginação, de meia-idade, cuja experiência da guerra sempre fora a de servir a senhores maiores. O conde era avesso a riscos e dado a um acesso de ameaças sempre que o mundo fugia à sua compreensão, o que acontecia com freqüência. Era claro que o conde não entendia por que grandes homens em Paris o estimulavam a sitiar Evecque, mas via a oportunidade de ficar rico e por isso obedecia a eles, muito embora desconfiasse de Sir Guillaume. Sir Guillaume estava na casa dos trinta e passara metade da vida lutando, em geral por conta própria, e na Normandia era chamado o senhor do mar e da terra, porque lutava nos dois com entusiasmo e eficiência. Ele já fora bem-apessoado, de expressão dura e cabelos dourados, mas Guy Vexille, conde de Astarac, lhe arrancara um dos olhos e deixara cicatrizes que tornaram a expressão de Sir Guillaume ainda mais dura. Ele era um homem temível, um lutador, mas na hierarquia de reis, príncipes, duques e condes era um ser menor e suas terras justificavam a tentação de declará-lo um traidor.

Havia doze homens, três mulheres e oito cavalos no interior do solar, o que significava que cada cavalo, exceto um, teria de levar duas pessoas. Depois do anoitecer, quando a chuva caía suavemente nos campos encharcados de Evecque, Sir Guillaume ordenou que pranchas fossem colocadas sobre o espaço onde a ponte levadiça deveria estar, e depois os cavalos, com vendas nos olhos, foram levados, um a um, pela perigosa ponte. Os sitiantes, aconchegados para fugir do frio e da chuva, não viram nem ouviram coisa alguma, apesar de as sentinelas nas trincheiras mais avançadas terem sido colocadas ali exatamente para impedir qualquer tentativa de fuga.

As vendas foram retiradas dos olhos dos cavalos, os fugitivos montaram e seguiram para o norte. Foram interpelados apenas uma vez por uma sentinela que lhes ordenou dizer quem eram.

— Que diabo, quem você pensa que somos? — retorquiu Sir Guillaume, e o tom selvagem de sua voz convenceu a sentinela a não fazer mais perguntas. Ao amanhecer, eles estavam em Caen e o conde de Coutances ainda não fazia a mínima idéia disso. Só quando uma das sentinelas viu as pranchas indo de uma margem à outra do fosso, foi que os sitiantes perceberam que o inimigo tinha ido embora, e mesmo assim o conde perdeu tempo revistando o solar. Encontrou mobília, palha e panelas, mas nada de tesouros.

Uma hora depois cem homens com capas pretas chegaram a Evecque. O líder não levava estandarte algum, e seus escudos não tinham emblemas. Eles pareciam calejados de tanto combater, como homens que ganhavam a vida alugando suas lanças e espadas a quem pagasse mais, e pararam seus cavalos ao lado da ponte improvisada sobre o fosso de Evecque, e dois deles, um dos quais era padre, atravessaram para o pátio.

— O que é que foi levado? — perguntou o padre com rispidez.

O conde de Coutances voltou-se irritado para o homem que usava as vestes dominicanas.

— Quem é você?

— O que foi que seus homens saquearam daqui? — tornou a perguntar o padre, sombrio e irritado.

— Nada — garantiu o conde.

— Então onde está a guarnição?

— A guarnição? Fugiu.

Bernard de Taillebourg bufava de raiva. Guy Vexille, ao lado dele, ergueu os olhos para a torre que agora desfraldara o estandarte do conde.

— Quando foi que eles fugiram? — perguntou ele. — E para onde foram?

O conde empertigou-se diante do tom.

— Quem é você? — perguntou ele, porque Vexille não usava emblema nenhum no casaco preto.

— Seu par — disse Vexille friamente — e sua majestade, o rei, vai querer saber para onde eles foram.

Ninguém sabia, embora algumas perguntas acabassem esclarecendo que alguns dos sitiantes tinham percebido pessoas a cavalo indo para o norte na noite fria, e isso significava, sem dúvida, que Sir Guillaume e seus homens tinham seguido para Caen. E se o Graal tivesse estado escondido em Evecque, também teria ido para o norte, e por isso de Taillebourg ordenou que seus homens tornassem a montar os cavalos cansados.

Eles chegaram a Caen no início da tarde, mas àquela altura o Pentecost já estava na metade da viagem pelo rio até o mar, soprado para o norte por um vento variável que quase não proporcionava avanço contra o final da maré enchente. Pierre Villeroy resmungava contra a inutilidade de tentar navegar contra a maré, mas Sir Guillaume insistia, porque esperava que seus inimigos aparecessem a qualquer momento. Ele agora só tinha dois soldados com ele, porque os demais não quiseram acompanhar sua excelência a uma nova vassalagem. Nem mesmo Sir Guillaume sentia entusiasmo por aquela lealdade forçada.

— Você pensa que eu quero lutar por Eduardo da Inglaterra? — resmungou ele para Thomas. — Mas que escolha eu tenho? O meu próprio senhor voltou-se contra mim. Por isso vou jurar vassalagem ao seu Eduardo, e pelo menos vou continuar vivo.

Era por isso que ele estava indo para Dunquerque, a fim de que pudesse fazer a curta viagem até as linhas de cerco inglesas em torno de Calais e fazer o juramento de obedecer ao rei Eduardo.

Os cavalos tiveram de ser abandonados no cais, de modo que tudo o que Sir Guillaume levara para bordo do Pentecost era sua armadura, algumas peças de roupa e três sacolas de couro de dinheiro, que ele jogou no convés antes de dar um abraço em Thomas. E depois Thomas voltara-se para o seu velho amigo, Will Skeat, que olhara para ele sem reconhecê-lo e depois desviara o olhar. Thomas, prestes a falar, refreou-se. Skeat usava um morrião, e os cabelos, agora brancos como neve, caíam lisos por baixo da castigada aba de metal. O rosto estava magro como nunca, com rugas profundas, e com um olhar vago como se ele tivesse acabado de acordar e não soubesse onde estava. Ele também estava envelhecido. Não podia ter mais de quarenta e cinco anos, e no entanto aparentava sessenta, embora ao menos estivesse vivo. Quando Thomas o viu pela última vez, ele estava gravemente ferido com um corte feito por uma espada que deixara o cérebro aberto, e tinha sido um milagre ter sobrevivido o tempo suficiente para chegar à Normandia e às hábeis atenções de Mordecai, o médico judeu que agora estava sendo ajudado a subir pela precária prancha de embarque.

Thomas deu outro passo em direção ao velho amigo, que uma vez mais olhou para ele sem reconhecê-lo.

— Will? — disse Thomas, intrigado. — Will?

E ao som da voz de Thomas uma luz surgiu nos olhos de Skeat.

— Thomas! — exclamou ele. — Meu Deus, é você! — Ele caminhou em direção a Thomas, cambaleando ligeiramente, e os dois se abraçaram. — Por Deus, Thomas, é maravilhoso ouvir uma voz inglesa. O inverno todo eu só ouvi tagarelice estrangeira. Meu Deus, rapaz, você parece mais velho.

— Eu estou mais velho — disse Thomas. — Mas como é que você está, Will?

— Eu estou vivo, Tom, estou vivo, apesar de às vezes eu me perguntar se não teria sido melhor morrer. Estou fraco como um filhote de gato. — A fala era levemente arrastada, como se ele tivesse bebido demais, mas ele estava visivelmente sóbrio.

— Eu não devia chamar você só de Will, agora, não é? — perguntou Thomas —, porque você agora é Sir William.

— Sir William! Eu? — Skeat soltou uma gargalhada. — Você só diz besteira, rapaz, como sempre. Sempre esperto demais, hein, Tom?

Skeat não se lembrava da batalha da Picardia, não se lembrava de que o rei lhe concedera o título de Cavaleiro antes da primeira carga francesa. Às vezes Thomas se perguntava se aquele ato tinha sido puro desespero na tentativa de levantar o ânimo dos arqueiros, porque sem dúvida o rei tinha visto como era imensa a inferioridade numérica do seu exército pequeno e doente e não acreditava que seus homens fossem sobreviver. Mas eles sobreviveram, e venceram, embora para Skeat o custo tivesse sido terrível. Ele tirou o morrião para coçar a cachola, e um dos lados do couro cabeludo foi revelado como uma horrorosa e enrugada cicatriz encaroçada, rosa e branca.

— Fraco como um filhote de gato — repetiu Skeat — e faz semanas que não disparo um arco.

Mordecai insistiu em que Skeat tinha de repousar. Depois cumprimentou Thomas, enquanto Villeroy soltava as amarras de atracação e usava um remo de galera para empurrar o Pentecost para a corrente do rio. Mordecai queixou-se do frio, das privações do sítio e dos horrores de estar a bordo de um navio, e depois sorriu o sábio e velho sorriso.

— Você está com bom aspecto, Thomas. Para um homem que já foi enforcado, está com um aspecto indecentemente bom. Como vai a sua urina?

— Clara e doce.

— Seu amigo Sir William agora... — Mordecai fez um gesto com a cabeça em direção à cabine de proa, onde Skeat tinha sido deitado numa pilha de peles de ovelha —, a urina dele está muito turva. Acho que você não me fez favor algum em mandá-lo para que eu tratasse dele.

— Ele está vivo.

— Eu não sei por quê.

— E eu o mandei porque o senhor é o melhor.

— Você me deixa lisonjeado.

Mordecai cambaleou levemente porque o navio balançou numa pequena onda do rio que ninguém mais percebeu, mas ele ficou alarmado; se fosse cristão, sem dúvida teria afastado o perigo iminente com o sinal-da-cruz. Em vez disso, olhou preocupado para a vela esfarrapada como se temesse que ela desabasse e o esmagasse.

— Detesto navios — disse ele em tom de lamentação. — São coisas desumanas. Pobre Skeat. Admito que ele parece estar se recuperando, mas não posso me jactar de que fiz alguma coisa, exceto lavar o ferimento e impedir que colocassem amuletos de pão mofado e água benta na cabeça dele. Acho que religião e medicina não combinam bem. O Skeat vive, acho, porque a pobre da Eleanor fez o que era certo quando ele foi ferido.

Eleanor colocara o pedaço de crânio que quebrara em cima do cérebro exposto, fizera um cataplasma de musgo e teia de aranha e depois envolvera o ferimento em ataduras.

— Eu lamentei o que aconteceu a Eleanor.

— Eu também — disse Thomas. — Ela estava grávida. Nós íamos nos casar.

— Ela era uma doçura, uma doçura.

— Sir Guillaume deve estar zangado?

Mordecai balançou a cabeça de um lado para o outro.

— Quando ele recebeu a sua carta? Isso foi antes do sítio, é claro. — Ele franziu o cenho tentando se lembrar. — Zangado? Eu acho que não. Ele resmungou, foi só. Ele gostava de Eleanor, é claro, mas ela era filha de uma criada, não... — Ele fez uma pausa. — Ora, é triste. Mas, como você disse, seu amigo Sir William sobreviveu. O cérebro é uma coisa estranha, Thomas. Ele compreende, acho eu, embora não consiga se lembrar. A fala é arrastada, e isso poderia ter sido esperado, mas o mais estranho de tudo é que ele não reconhece ninguém com os olhos. Eu entro numa sala e ele me ignora, aí eu falo e ele me reconhece. Nós todos adquirimos o hábito de falar quando chegamos perto dele. Você vai se acostumar com isso. — Mordecai sorriu. — Mas é um prazer vê-lo.

— Então o senhor vai para Calais conosco? — perguntou Thomas.

— Meu Deus, não! Calais? — Ele estremeceu. — Mas eu não podia ficar na Normandia. Desconfio que o conde de Coutances, ludibriado por Sir Guillaume, iria adorar fazer um exemplo de um judeu, de modo que de Dunquerque eu tornarei a seguir para o sul. Primeiro para Montpellier, acho. Meu filho está estudando medicina lá. E de Montpellier? Eu poderia ir para Avignon.

— Avignon?

— O papa é muito hospitaleiro com os judeus — disse Mordecai, estendendo a mão para a amurada do navio quando o Pentecost tremeu sob uma pequena rajada de vento —, e nós precisamos de hospitalidade.

Mordecai dera a entender que a reação de Sir Guillaume à morte de Eleanor fora insensível, mas isso não ficou evidente quando Sir Guillaume conversou com Thomas sobre a filha morta, enquanto o Pentecost saía da foz do rio e as ondas frias estendiam-se até o horizonte cinzento. Sir Guillaume, o rosto maltratado duro e fechado, parecia próximo às lágrimas enquanto ouvia como Eleanor tinha morrido.

— Sabe alguma coisa mais sobre os homens que a mataram? — perguntou quando Thomas acabou sua narrativa. Thomas só podia repetir o que Lorde Outhwaite lhe contara depois da batalha, sobre o padre francês chamado de Taillebourg e seu estranho criado.

— De Taillebourg — disse Sir Guillaume, abatido —, outro homem para matar, hein? — Ele fez o sinal-da-cruz. — Ela era ilegítima — ele falava sobre Eleanor não para Thomas, mas para o vento — mas era uma jovem doce. Todos os meus filhos estão mortos agora. — Ele olhou para o oceano, os cabelos compridos sujos agitando-se com a brisa. — Você e eu temos de matar tantos homens — ele agora se dirigia a Thomas — e encontrar o Graal.

— Outras pessoas estão à procura dele — disse Thomas.

— Pois então temos de encontrá-lo antes delas — resmungou Sir Guillaume. — Mas primeiro vamos a Calais, eu presto minha vassalagem a Eduardo e depois nós lutamos.

Ele se voltou e fez uma careta em direção aos seus dois soldados, como se refletisse como suas fortunas e seus seguidores tinham sido reduzidos pelo destino, e então viu Robbie e sorriu.

— Eu gosto do seu escocês.

— Ele sabe lutar — disse Thomas.

— É por isso que eu gosto dele. E ele também quer matar de Taillebourg?

— Nós três queremos matá-lo.

— Então que Deus ajude o bastardo, porque nós vamos dar suas tripas para os cães — resmungou Sir Guillaume. — Mas ele tem de ser avisado de que você está nas linhas de sítio de Calais, hein? Para que venha procurar por nós, ele tem de saber onde você está.

Para chegar a Calais, o Pentecost precisava ir para leste e norte, mas assim ao largo da costa ele simplesmente chapinhava em vez de navegar. Um fraco vento sudoeste o levara para fora da foz do rio, mas depois, muito antes dele ficar fora do alcance da vista da costa normanda, a brisa desapareceu e a grande vela esfarrapada batia e panejava na verga. O navio balançava como um barril numa longa onda fraca que veio do oeste, onde nuvens negras amontoavam-se como uma cadeia de montanhas carregada de tristeza. O dia de inverno acabou cedo, o final de sua luz fria um soturno lampejo atrás das nuvens. Uns poucos pontos de fogo apareciam na terra que escurecia.

— A maré vai nos levar para o canal — disse Villeroy, desalentador — e depois vai nos trazer para baixo de novo. Depois para cima e para baixo e para cima e para baixo até que Deus ou São Nicolau nos mande vento.

A maré levou-os pelo Canal da Mancha, como Villeroy havia predito, e depois os trouxe de volta de novo. Thomas, Robbie e os dois soldados de Sir Guillaume se revezavam na descida ao fundo do casco cheio de pedras e no levantar de baldes de água.

— É claro que ele faz água — disse Villeroy a Mordecai, que estava preocupado —, todos os navios fazem água. Ele deixaria a água passar como numa peneira se eu não o calafetasse a intervalos de poucos meses. Enfie com força o musgo e reze para São Lalau. Evita que a gente morra toda afogada.

A noite estava negra. As poucas luzes na costa cintilavam numa bruma úmida. O mar quebrava fracamente contra o casco, e a vela pendia inútil. Durante algum tempo, um barco pesqueiro ficou perto, uma lanterna acesa no convés, e Thomas ouviu o canto baixo enquanto os homens lançavam uma rede, e depois remaram para leste até sua luzinha tremeluzente desaparecer na névoa.

— Um vento oeste vai chegar — disse Villeroy. — Ele sempre vem. Oeste, vindo das terras perdidas.

— Terras perdidas? — perguntou Thomas.

— Lá — disse Villeroy apontando para o oeste negro. — Se você for até o ponto mais distante aonde o homem pode navegar, você vai encontrar as terras perdidas e ver uma montanha mais alta do que o céu, onde Artur dorme com os seus cavaleiros. — Villeroy fez o sinal-da-cruz. — E no alto dos rochedos sob a montanha, podem-se ver as almas dos marinheiros afogados chamando por suas mulheres. Lá é frio, sempre frio, frio e com um denso nevoeiro.

— Uma vez meu pai viu aquelas terras — disse Yvette.

— Ele disse que viu — comentou Villeroy —, mas ele era um bebedor fora do comum.

— Ele disse que o mar estava cheio de peixes — continuou Yvette, como se o marido não tivesse falado — e as árvores eram muito pequenas.

— Ele bebia cidra — esclareceu Villeroy. — Pomares inteiros desceram pela garganta dele, seu pai sabia manobrar um navio. Bêbado ou sóbrio, era um marinheiro.

Thomas estava olhando fixo para a escuridão no oeste, imaginando uma viagem à terra em que o rei Artur e seus cavaleiros dormiam sob o nevoeiro e onde as almas dos afogados chamavam por suas amantes perdidas.

— Hora de achicar o navio — disse Villeroy, e Thomas desceu ao porão e colheu a água em baldes até que os braços ficaram doendo de cansados, e depois foi para o pique de vante e dormiu no casulo de peles de ovelhas que Villeroy mantinha ali, porque, dizia ele, no mar fazia mais frio do que em terra e um homem devia morrer afogado quente.

O amanhecer chegou devagar, filtrando-se no leste como uma mancha cinzenta. O remo de ginga estalava nas suas cordas, nada fazendo enquanto o navio balançava nas ondas sem vento. A costa normanda ainda estava à vista, um risco acinzentado ao sul, e à medida que a luz invernal aumentava Thomas viu três pequenos navios a remo afastando-se da costa. Os três seguiram canal acima até ficarem a leste do Pentecost; Thomas presumiu que fossem pescadores e desejou que o navio de Villeroy tivesse remos e, com isso, pudesse fazer algum progresso naquela frustrante mansidão. Havia um par de remos de galera amarrados ao convés, mas Yvette disse que eles só eram úteis no porto.

— O navio é pesado demais para remar por muito tempo — disse ela —, especialmente quando está cheio.

— Cheio?

— Nós transportamos carga — disse Yvette. O homem dela estava dormindo na cabine da popa, os roncos parecendo fazer vibrar o navio todo. — Nós seguimos a costa pra cima e pra baixo — disse Yvette — com lã e vinho, bronze e ferro, pedras para construção e peles.

— Você gosta disso?

— Eu adoro. — Ela sorriu para ele e seu rosto jovem, que tinha estranhamente um formato cuneiforme, adquiria uma beleza quando ela fazia aquilo. — Mas a minha mãe — continuou ela — ia me mandar ficar a serviço do bispo. Limpar e lavar, cozinhar e limpar até as mãos ficarem bem gastas pelo trabalho, mas Pierre me disse que eu poderia viver livre como um pássaro no barco dele, e vivemos mesmo, vivemos mesmo.

— Só vocês dois? — O Pentecost parecia um navio grande para apenas duas pessoas, ainda que uma delas fosse um gigante.

— Ninguém mais navega com a gente — disse Yvette. — Dá azar ter uma mulher num navio. Meu pai sempre dizia isso.

— Ele era pescador?

— Um bom pescador — disse Yvette —, mas mesmo assim morreu afogado. Foi apanhado nos Casquets numa noite ruim. — Ela ergueu os olhos para Thomas, grave. — Sabe, ele viu mesmo as terras perdidas.

— Eu acredito em você.

— Ele navegou lá para o norte e depois para oeste, e disse que os homens das terras do norte conhecem bem as áreas de pesca das terras perdidas, e tem peixe até onde a vista pode alcançar. Ele disse que a gente podia caminhar por cima do mar, tamanha era a camada de peixes, e um dia ele ia andando devagar no nevoeiro e viu a terra e viu as árvores como selva e viu as almas mortas na costa. Elas eram pretas, disse ele, como se tivessem sido chamuscadas pelos fogos do inferno, e ele se apavorou, fez meia-volta e foi embora de lá. Ele levou dois meses para chegar até lá e um mês e meio para voltar para casa, e todo o peixe dele apodreceu, porque ele não quis ir a terra e defumar eles.

— Eu acredito em você — repetiu Thomas, embora não tivesse mesmo certeza de que acreditava.

— E eu acho que se eu morrer afogada — disse Yvette — eu e o Pierre iremos para as terras perdidas juntos e ele não vai ter de se sentar nos rochedos e chamar por mim.

Ela disse aquilo com muita naturalidade, e depois foi preparar o café da manhã para o homem dela, cujo roncar acabara de cessar.

Sir Guillaume surgiu da cabine de proa. Piscou diante da luz do dia de inverno, depois foi até a popa e mijou por cima da amurada enquanto olhava para os três barcos que saíam remando do rio e agora estavam a uns dois quilômetros a leste do Pentecost.

— Então você falou com o irmão Germain? — perguntou ele a Thomas.

— Quem dera que não tivesse falado.

— Ele é um estudioso — disse Sir Guillaume erguendo as calças justas e dando o nó da cintura —, o que significa que não tem colhões. Não precisa. Ele é esperto, veja bem, esperto, mas nunca esteve do nosso lado, Thomas.

— Eu pensei que ele fosse seu amigo.

— Quando eu tinha dinheiro e poder, Thomas — disse Sir Guillaume —, eu tive muitos amigos, mas o irmão Germain nunca foi um deles. Ele sempre foi um bom filho da Igreja e eu nunca devia ter apresentado você a ele.

— Por que não?

— Assim que soube que você era um Vexille, ele comunicou a nossa conversa ao bispo, o bispo contou ao arcebispo, o arcebispo contou ao cardeal e o cardeal contou a quem quer que lhe dá suas migalhas, e de repente a Igreja ficou agitada com relação aos Vexille e com o fato de sua família, em determinada época, ter possuído o Graal. E foi justo nessa ocasião que Guy Vexille reapareceu, de modo que a Inquisição o pegou. — Ele fez uma pausa, olhando para o horizonte, e fez o sinal-da-cruz. — É o que o seu de Taillebourg é, eu aposto a minha vida. Ele é dominicano, e a maioria dos inquisidores é de cães de Deus. — Ele voltou o seu único olho para Thomas. — Por que eles os chamam de cães de Deus?

— É uma brincadeira — disse Thomas — de origem no latim. Domini canis: o cão de Deus.

— Isso não me faz rir — disse Sir Guillaume, tristonho. — Se um daqueles bastardos pegar você, é ferro em brasa nos olhos e gritos durante a noite. Ouvi dizer que eles pegaram Guy Vexille e espero que o maltratem.

— Então Guy Vexille é um prisioneiro? — Thomas estava surpreso. O irmão Germain dissera que seu primo estava reconciliado com a Igreja.

— Foi o que eu soube. Soube que ele estava cantando salmos na roda da Inquisição. E sem dúvida contou a eles que seu pai tinha possuído o Graal, que ele, Guy, tinha ido até Hookton para procurar o cálice, e tinha fracassado. Mas quem mais foi até Hookton? Eu fui, e por isso acho que Coutances recebeu ordens de procurar por mim, me prender e levar-me para Paris. E enquanto isso mandaram homens à Inglaterra para descobrir o que pudessem.

— E para matar Eleanor — disse Thomas, desolado.

— Pelo que eles irão pagar — disse Sir Guillaume.

— E agora — disse Thomas — eles mandaram homens até aqui.

— O quê? — perguntou Sir Guillaume, assustado.

Thomas apontou para os três barcos pesqueiros que agora remavam diretamente em direção ao Pentecost. Eles estavam longe demais para que ele visse quem ou o que estava a bordo, mas algo sobre a aproximação deliberada o deixou alarmado. Yvette, indo à popa levando pão, presunto e queijo, viu Thomas e Sir Guillaume olhando fixo e juntou-se a eles, e depois soltou uma imprecação que só uma filha de pescador teria aprendido e correu para a cabine de popa e gritou pelo marido, chamando-o para o convés.

Os olhos de Yvette estavam acostumados ao mar e ela sabia que aqueles não eram barcos pesqueiros. Para início de conversa, tinham homens demais a bordo, e depois de um certo tempo o próprio Thomas conseguiu ver aqueles homens, e seus olhos, que estavam mais acostumados a procurar inimigos entre as folhas verdes, viram que alguns deles usavam cotas de malha, e sabia que ninguém navegava no mar trajando cotas de malha sem a intenção de matar.

— Eles devem ter bestas. — Villeroy agora estava no convés, amarrando os cordões para o pescoço de uma imensa capa de couro e olhando dos barcos que se aproximavam para as nuvens, como se pudesse ver um sopro de vento vindo dos céus. O mar ainda oscilava em grandes ondas, mas a água estava lisa como metal batido e não havia frisos provocados pelo vento riscando os longos flancos das ondas.

— Bestas — repetiu Villeroy, desolado.

— Quer que eu me renda? — perguntou Sir Guillaume a Villeroy. O tom de voz era agressivo, indicando que a pergunta não passava de sarcasmo.

— Não me cabe dizer a vossa excelência o que fazer — o tom de voz de Villeroy tinha o mesmo sarcasmo —, mas os seus homens podiam trazer algumas das pedras maiores lá do porão.

— Que resultado isso vai ter? — perguntou Sir Guillaume.

— Vou jogar elas em cima dos bastardos quando eles tentarem abordar. Aqueles barquinhos? Uma pedra vai atravessar direitinho os fundos deles e depois aqueles bastardos vão estar tentando nadar com cotas de malha amarradas ao peito. — Villeroy sorriu. — É difícil nadar quando se está envolto em ferro.

As pedras foram levadas, e Thomas preparou as flechas e o arco. Robbie vestira a sua cota de malha e estava com a espada do tio do lado. Os dois soldados de Sir Guillaume estavam com ele no poço do navio, o local em que qualquer tentativa de abordagem seria feita, porque ali a amurada do navio ficava mais perto do mar. Thomas foi para a popa mais alta, onde Will Skeat juntou-se a ele e, embora não reconhecesse Thomas, viu o arco e estendeu a mão.

— Sou eu, Will — disse Thomas.

— Eu sei que é você — disse Skeat. Ele mentira e estava constrangido. — Me deixa experimentar o arco, rapaz.

Thomas entregou-lhe a grande vara preta e ficou observando, com tristeza, enquanto Skeat não conseguia puxá-la nem mesmo até a metade. Skeat devolveu com um gesto brusco o arco a Thomas, com uma expressão de constrangimento.

— Não sou mais o que era — murmurou.

— Voltará a ser, Will.

Skeat cuspiu por cima da amurada.

— O rei me concedeu realmente o título de cavaleiro?

— Concedeu.

— Às vezes eu penso que me lembro da batalha, Tom, e depois ela desaparece. Como um nevoeiro.

Skeat olhou para os três barcos que se aproximavam, que tinham se espalhado para formar uma linha. Os remadores puxavam com força e Thomas via besteiros em pé na proa e na popa de cada barco.

— Já disparou uma flecha de um navio? — perguntou Skeat.

— Nunca.

— Você está se mexendo, e eles estão se mexendo. Isso torna a coisa difícil. Mas vá devagar, rapaz, vá devagar.

Um homem gritou do barco mais próximo, mas os perseguidores ainda estavam muito longe, e o que quer que o homem tivesse dito perdeu-se no ar.

— São Nicolau, Santa Úrsula — rezou Villeroy —, mandem vento pra nós, e mandem bastante.

— Ele vai disparar contra nós — disse Skeat, porque um besteiro na proa do barco que estava ao centro tinha levantado a sua arma. Parecia apontá-la bem para o alto, depois disparou e a seta bateu com força impressionante na popa do Pentecost. Sir Guillaume, ignorando a ameaça, subiu na amurada e agarrou o brandal para manter o equilíbrio.

— São homens de Coutances — disse ele a Thomas, e este viu que alguns dos homens no barco que estava mais próximo usavam o libré verde e preto que tinha sido o uniforme dos sitiantes de Evecque. Mais bestas soaram e duas das setas entraram nas pranchas da popa e duas outras passaram zunindo por Sir Guillaume para penetrarem na vela impotente, mas a maioria caiu no mar. Este podia estar calmo, mas os besteiros ainda estavam tendo muita dificuldade para mirar suas armas dos pequenos barcos.

E os três barcos atacantes eram pequenos. Cada um transportava oito ou dez remadores e mais ou menos o mesmo número de arqueiros ou soldados. As três embarcações tinham sido evidentemente escolhidas pela velocidade à base dos remos, mas perto do Pentecost elas pareciam miniaturas, o que faria com que qualquer tentativa de abordar o navio maior fosse muito perigosa, embora um dos três barcos parecesse decidido a encostar o navio de Villeroy.

— O que eles vão fazer — disse Sir Guillaume — é deixar que aqueles dois barcos nos mandem uma chuva de quadrelos enquanto aquele bastardo — ele fez um gesto em direção ao barco que remava com força para se aproximar do Pentecost — coloca seus homens a bordo.

Mais setas de bestas bateram contra o casco. Mais dois quadrelos furaram a vela e um outro atingiu o mastro logo acima de um crucifixo castigado pelo tempo, que estava pregado na madeira alcatroada. A imagem de Cristo, branca como um osso, perdera o braço esquerdo e Thomas se perguntou se aquilo era um mau agouro, e depois tentou esquecer enquanto puxava o grande arco e disparava uma flecha. Só lhe restavam trinta e quatro flechas, mas aquela não era a hora de poupá-las e por isso, enquanto a primeira ainda estava no ar, ele soltou uma segunda e os besteiros não tinham acabado de armar suas cordas quando a primeira flecha rasgou o braço de um remador e a segunda tirou um naco da proa do barco, e depois uma terceira flecha passou chiando acima da cabeça dos remadores para cair no mar. Os remadores se agacharam, e então um deles arquejou e caiu para a frente com uma flecha nas costas, e no instante seguinte um soldado foi atingido na coxa e caiu em cima de dois dos remadores e houve um súbito caos a bordo, que volteou acentuadamente e se afastou, com os remos batendo uns nos outros. Thomas abaixou o grande arco.

— Eu te ensinei bem — disse Will Skeat com fervor. — Ah, Tom, você sempre foi um bastardo letal.

O barco se afastou. As flechas de Thomas tinham sido muito mais certeiras do que as setas das bestas, porque ele estivera atirando de uma embarcação muito maior e mais estável do que os estreitos e sobrecarregados barcos a remo. Só um dos homens a bordo daqueles barcos menores tinha sido morto, mas a freqüência das primeiras flechas de Thomas tinha incutido o temor a Deus nos remadores, que não podiam ver de onde vinham os projéteis, mas apenas ouvir o chiado de penas e os gritos dos feridos. Agora os outros dois barcos passaram à frente do terceiro e os besteiros apontaram suas armas.

Thomas tirou uma flecha da sacola e preocupou-se com o que iria acontecer quando ele não tivesse mais flechas, mas justo naquele momento um remoinho de ondulações mostrou que um vento vinha chegando pelo mar. Um vento leste, vejam só, o mais improvável de todos os ventos naquele mar, mas mesmo assim veio do leste e a grande vela marrom do Pentecost encheu-se e depois voltou a murchar, depois tornou a encher-se, e de repente o navio se afastava de seus perseguidores e a água gorgolejava pelos flancos. Os homens de Coutances remavam com força.

— Abaixem-se! — gritou Sir Guillaume e Thomas jogou-se no chão atrás da balaustrada enquanto uma rajada de setas de bestas cravava-se no casco do Pentecost ou subia bem alto para rasgar a vela esfarrapada. Villeroy gritou para que Yvette manobrasse o remo de ginga e depois prendeu a vela grande antes de mergulhar na cabine de popa para apanhar uma enorme e evidentemente antiga besta, que armou com uma comprida alavanca de ferro. Colocou uma seta enferrujada no sulco e depois disparou-a contra o perseguidor mais próximo.

— Bastardos! — gritou ele. — Suas mães eram cabras! Eram cabras putas! Cabras putas bexiguentas! Bastardos!

Ele tornou a engatilhar a arma, colocou outro projétil enferrujado e disparou-o, mas a seta mergulhou no mar. O Pentecost ganhava velocidade e já estava fora do alcance das bestas.

O vento aumentou e o Pentecost afastou-se ainda mais de seus perseguidores. Os três barcos a remo tinham seguido, no início, canal acima, na expectativa de que a maré enchente e um possível vento oeste levassem o Pentecost até eles, mas com o vento vindo do leste, os remadores não tinham como acompanhar a presa e, com isso, os três barcos ficaram para trás e, por fim, abandonaram a perseguição. Mas assim que eles desistiram dois novos perseguidores apareceram na foz do rio Orne. Dois navios, ambos grandes e equipados com grandes velas quadradas como a vela mestra do Pentecost, saíam para o mar.

— O da frente é o Saint-Esprit — disse Villeroy. Até mesmo àquela distância da foz do rio ele podia distinguir os dois navios. — E o outro é o Marie. Ele navega como uma porca grávida, mas o Saint-Esprit vai nos alcançar.

— O Saint-Esprit? — Pelo tom de voz de Sir Guillaume, ele estava perplexo. — Jean Lapoullier?

— Quem mais?

— Eu pensei que ele fosse amigo!

— Ele foi seu amigo — disse Villeroy — enquanto vossa excelência tinha terra e dinheiro, mas o que é que vossa excelência tem agora?

Sir Guillaume remoeu a verdade daquela pergunta por alguns instantes.

— Então por que você está me ajudando?

— Porque eu sou maluco — disse Villeroy com alegria — e porque vossa excelência vai me pagar muito bem.

Sir Guillaume grunhiu ao ouvir aquele truísmo.

— Só se nós não seguirmos na direção errada — disse ele depois de um certo intervalo.

— A direção certa — assinalou Villeroy — é para longe do Saint-Esprit e a favor do vento, de modo que vamos continuar na direção oeste.

Eles se mantiveram em direção a oeste o dia todo. Seguiram a uma boa velocidade, mas ainda assim o grande Saint-Esprit diminuía lentamente a distância. Pela manhã ele tinha sido uma mancha no horizonte; ao meio-dia Thomas podia ver a pequena plataforma no galope do mastro onde, como Villeroy lhe dissera, besteiros deveriam estar posicionados; e quando a tarde ia em meio ele pôde ver os olhos pretos e brancos pintados na proa do navio. O vento leste aumentara o dia todo, até ficar soprando forte e frio, agitando as cristas das ondas, que transformava em raias brancas. Sir Guillaume sugeriu que seguissem para o norte, talvez chegando até a costa inglesa, mas Villeroy alegou não conhecer a linha da costa e disse que não tinha certeza de que pudesse encontrar abrigo por lá, se o tempo piorasse.

— E nesta época do ano ele pode mudar com a rapidez do humor de uma mulher — acrescentou Villeroy, e como para provar que ele estava certo eles entraram em violentas rajadas de granizo que chiavam no mar e açoitavam o navio e reduziram a visibilidade a uns poucos metros. Sir Guillaume voltou a insistir numa rota para o norte, sugerindo que mudassem o rumo enquanto o navio estava escondido na borrasca, mas Villeroy, teimoso, recusou, e Thomas achou que o grandalhão temia ser abordado por navios ingleses que não tinham prazer maior do que capturar embarcações francesas.

Uma outra borrasca passou por eles, violenta, a chuva saltando a um palmo do convés e o granizo fazendo uma cobertura branca, meio líquida, no flanco leste de cada driça e escota. Villeroy temia que a sua vela fosse rasgada ao meio, mas não tinha coragem de reduzir a lona porque sempre que as rajadas passavam, deixando o mar branco e frenético, o Saint-Esprit estava sempre à vista e sempre um pouco mais perto.

— Ele é veloz — disse Villeroy, reconhecendo de má vontade — e Lapoullier sabe manobrá-lo.

Mas o curto dia de inverno estava passando e a noite iria oferecer ao Pentecost uma oportunidade de escapar. Os perseguidores sabiam disso e deviam estar rezando para que o navio deles ganhasse um pouco mais de velocidade; enquanto o crepúsculo caía, ele diminuía a diferença centímetro a centímetro, mas ainda assim o Pentecost mantinha a liderança. Eles agora estavam num ponto de onde já não se via terra, dois navios em um oceano revolto que escurecia, e então, quando a noite estava quase completa, a primeira flecha incendiária saltou da proa do Saint-Esprit.

Ela fora disparada por uma besta. As chamas cortavam a noite, subindo em arco e depois mergulhando para cair na esteira do Pentecost.

— Responda com uma flecha — grunhiu Sir Guillaume.

— Está muito longe — disse Thomas.

Uma boa besta sempre podia ter um alcance maior do que uma vara de teixo, embora no tempo que se levava para recarregar a besta o arqueiro inglês tivesse corrido para ficar no raio de alcance e disparado doze flechas. Mas Thomas não podia fazer isso naquela escuridão que aumentava, nem tinha coragem de desperdiçar flechas. Só podia esperar e observar enquanto uma segunda seta em chamas subia rápido contra as nuvens. Ela também caiu aquém do alvo.

— Elas não voam tão bem — disse Will Skeat.

— O que foi que você disse, Will? — Thomas não ouvira com clareza.

— Eles envolvem a haste em pano, e isso as torna mais lentas. Já disparou alguma flecha incendiária, Tom?

— Nunca.

— Ela reduz o raio de alcance em cinqüenta passos — disse Skeat, observando uma terceira flecha mergulhar no mar — e faz o diabo com a precisão.

— Aquela chegou mais perto — disse Sir Guillaume.

Villeroy tinha colocado um barril no convés e o estava enchendo com água do mar. Yvette, enquanto isso, subira com agilidade pelo cordame para empoleirar-se no travessão, do qual a única verga pendia do galope do mastro, e agora içava baldes de lona com água, que usava para encharcar a vela.

— Nós podemos usar flechas incendiárias? — perguntou Sir Guillaume. — Essa coisa aí deve ter raio de alcance. — Ele fez um gesto com a cabeça na direção da monstruosa besta de Villeroy.

Thomas traduziu a pergunta para Will Skeat, cujo francês ainda era rudimentar.

— Flechas incendiárias? — O rosto de Skeat enrugou-se enquanto ele raciocinava. — É preciso ter piche, Tom — disse ele em dúvida —, e é preciso encharcar a lã com ele e depois prender com força o pano de lã na seta, mas tem que desfiar um pouco as bordas, para que o fogo queime direitinho. O fogo tem que vir bem de dentro do pano, e não apenas nas bordas, porque isso não vai durar, e quando o pano estiver queimando forte e profundamente você dispara a flecha antes que o fogo penetre na haste.

— Não — traduziu Thomas para Sir Guillaume —, não podemos.

Sir Guillaume soltou imprecações e depois afastou-se depressa quando a primeira flecha incendiária espetou-se no Pentecost, mas a seta bateu baixo na popa, tão baixo que o balanço seguinte de uma onda apagou as chamas com um chiado audível.

— Temos de poder fazer alguma coisa! — disse Sir Guillaume, irritado.

— Nós podemos ter paciência — disse Villeroy. Ele estava de pé no remo de popa.

— Posso usar o seu arco? — perguntou Sir Guillaume ao corpulento marinheiro, e quando Villeroy confirmou com um gesto da cabeça, engatilhou a enorme besta e disparou um quadrelo em direção ao Saint-Esprit. Ele grunhiu enquanto puxava a alavanca para tornar a engatilhar a arma, impressionado com a força que era necessária. Uma besta engatilhada por uma alavanca era, em geral, muito mais fraca do que as bestas armadas com um parafuso sem fim e uma catraca, mas o arco de Villeroy era maciço. As setas de Sir Guillaume deviam ter atingido o navio perseguidor, mas estava escuro demais para dizer se houvera algum dano. Thomas duvidava, porque a proa do Saint-Esprit era alta e as amuradas eram sólidas. Sir Guillaume estava apenas enfiando metal em pranchas de madeira, mas os mísseis incendiários do Saint-Esprit começavam a ameaçar o Pentecost. Três ou quatro bestas inimigas estavam disparando agora, e Thomas e Robbie ocupavam-se em apagar as setas em chamas com água, e então um quadrelo aceso atingiu a vela e um fogo rastejante começou a brilhar na lona, mas Yvette conseguiu apagá-lo justo no momento em que Villeroy empurrou com força o remo de ginga. Thomas ouviu a longa haste do remo estalar sob a pressão e sentiu o navio dar um bordo enquanto virava para o sul.

— O Saint-Esprit nunca foi tão rápido sem estar a favor do vento — disse Villeroy —, e ele chapinha num mar desencontrado.

— E nós somos mais rápidos? — perguntou Thomas.

— Isso nós vamos descobrir — disse Villeroy.

— Por que não tentamos descobrir isso antes? — Sir Guillaume fizera a pergunta com rispidez.

— Porque não tínhamos espaço no mar — respondeu placidamente Villeroy, enquanto uma seta em chamas cortou o ar por cima do convés da popa como um meteoro. — Mas agora estamos bem longe do cabo.

Ele queria dizer que eles estavam em segurança a oeste da península normanda e ao sul deles ficavam agora os braços de mar cheios de rochas, entre a Normandia e a Bretanha. O giro significava que a distância ficou reduzida de repente, pois o Saint-Esprit continuava em direção oeste e Thomas disparou um punhado de flechas contra os vultos tênues de homens em armaduras no poço do navio perseguidor. Yvette havia descido para o convés e puxava cordas e, quando ficou satisfeita com a nova posição da vela, tornou a subir para o seu ninho de águia, no exato momento em que mais duas setas incendiárias penetraram na lona e Thomas viu as chamas subirem pela vela enquanto Yvette alçava baldes. Thomas disparou outra flecha para o alto da noite escura, de modo que ela mergulhou no convés inimigo e Sir Guillaume disparava as setas de besta mais pesadas, com a rapidez que lhe era possível, mas nenhum dos dois homens foi recompensado por um grito de dor. Então a distância tornou a aumentar e Thomas tirou a corda do arco. O Saint-Esprit estava fazendo a volta para seguir o Pentecost em direção sul e, por alguns instantes, como que desapareceu no escuro, mas então uma outra flecha incendiária subiu do seu convés e na sua repentina luz Thomas viu que o navio dera a volta e estava outra vez na esteira do Pentecost. A vela de Villeroy ainda queimava, dando ao Saint-Esprit um sinal que ele não podia deixar de seguir, e os besteiros perseguidores dispararam três setas juntas, as chamas tremeluzindo famintas na noite, e Yvette arquejava desesperadamente usando os baldes, mas a vela estava em chamas agora, e o navio reduzia a velocidade à medida que a lona perdia força e então, como uma bênção, ouviu um chiado penetrante e uma borrasca desabou, vinda do leste.

O granizo caía com uma violência extraordinária, matraqueando na vela chamuscada e tamborilando no convés, e Thomas pensou que aquilo não acabaria nunca, mas parou da mesma forma repentina com que começara, e todos os que estavam a bordo do Pentecost olharam para a popa, esperando que a próxima seta incendiária subisse do convés do Saint-Esprit, mas quando a chama finalmente cortou os céus errou muito o alvo, longe demais para que sua luz iluminasse o Pentecost, e Villeroy grunhiu.

— Eles imaginavam que nós fôssemos girar de volta para oeste naquela borrasca — disse ele, divertido —, mas estavam sendo espertos demais para o próprio bem deles.

O Saint-Esprit tentara passar a frente do Pentecost e enfrentá-lo, pensando que Villeroy fosse tornar a colocar seu navio a favor do vento, mas os perseguidores tinham errado no cálculo e agora estavam bem longe, a norte e a oeste da presa.

Mais flechas incendiárias brilharam no escuro, mas agora estavam sendo disparadas em todas as direções, na esperança de que a fraca luz de uma delas provocasse um fraco reflexo do casco do Pentecost, mas o navio de Villeroy afastava-se cada vez mais, puxado pelo que restava da vela chamuscada. Não fosse a borrasca, pensou Thomas, não havia dúvida de que eles teriam sido ultrapassados e capturados, e ele se perguntou se a mão de Deus o estava protegendo de algum modo porque ele possuía o livro sobre o Graal. Então o sentimento de culpa o assaltou; a culpa de duvidar da existência do Graal; de desperdiçar o dinheiro de Lorde Outhwaite em vez de gastá-lo na busca do Graal; e depois, a maior culpa e a pena pelas mortes perdulárias de Eleanor e do padre Hobbe, e por isso ele se pôs de joelhos no convés e olhou para o crucifixo que tinha apenas um braço. Perdoai-me, Senhor, rezou ele, perdoai-me.

— As velas custam dinheiro — disse Villeroy.

— Você vai ganhar uma vela nova, Pierre — prometeu Sir Guillaume.

— E vamos rezar para que o que sobrou dessa nos leve a algum lugar — disse Villeroy, mal-humorado.

Lá para o norte uma última flecha incendiária fez um risco vermelho no escuro, e depois não houve mais luz, apenas a infindável escuridão de um mar agitado no qual o Pentecost sobrevivia sob a vela em frangalhos.

O amanhecer encontrou-os num nevoeiro e com uma brisa intermitente que balançava uma vela tão enfraquecida que Villeroy e Yvette a dobraram em duas para que o vento tivesse mais do que buracos chamuscados contra os quais soprar, e quando eles a reajustaram o Pentecost moveu-se com dificuldade para sul e para oeste e todos a bordo agradeceram a Deus pelo nevoeiro, porque ele os escondia dos piratas que rondavam o golfo entre a Normandia e a Bretanha. Villeroy não tinha certeza sobre onde eles estavam, apesar de estar certo de que a costa normanda ficava a leste e que toda a terra naquela direção era feudo do conde de Coutances, e por isso eles mantiveram o rumo para o sul e o oeste, com Yvette empoleirada na proa, para ficar vigiando a presença freqüente dos recifes.

— Essas águas geram rochas — resmungou Villeroy.

— Neste caso, vá para águas mais profundas — sugeriu Sir Guillaume.

O grandalhão cuspiu no mar.

— Águas mais profundas geram piratas ingleses saídos das ilhas.

Eles avançavam para o sul, com o vento morrendo e o mar se acalmando. Ainda fazia frio, mas não havia mais granizo, e, quando um sol frágil começou a dissolver as névoas que se esgarçavam, Thomas sentou-se ao lado de Mordecai na proa.

— Tenho uma pergunta a lhe fazer — disse ele.

— Meu pai me aconselhou a nunca entrar num navio — respondeu Mordecai. Seu rosto comprido estava pálido, e a barba, que de modo geral ele escovava com muito cuidado, toda emaranhada. Ele tremia, apesar de uma capa improvisada de pele de carneiro. — Você sabia que os marinheiros flamengos dizem que é possível acalmar uma tempestade atirando um judeu ao mar?

— É mesmo?

— Foi o que me disseram — disse Mordecai. — Se eu estivesse a bordo de um navio flamengo, poderia receber de bom grado a morte por afogamento como alternativa para esta existência. O que é isso?

Thomas havia desembrulhado o livro que o seu pai lhe legara.

— Minha pergunta — disse ele ignorando a pergunta de Mordecai — é quem é Hachaliah?

— Hachaliah? — Mordecai repetiu o nome e abanou a cabeça. — Você acha que os flamengos levam judeus a bordo dos navios deles a título de precaução? Pareceria uma coisa sensata, apesar de cruel. Por que morrer, quando um judeu pode morrer?

Thomas abriu o livro na primeira página do texto em hebraico, onde o irmão Germain decifrara o nome Hachaliah.

— Tome — disse ele entregando o livro ao médico. — Hachaliah.

Mordecai olhou para a página.

— Neto de Hachaliah — traduziu ele em voz alta — e filho de Tirshatha. É claro! É uma confusão sobre Jonas e o grande peixe.

— Hachaliah? — perguntou Thomas, olhando fixo para a página com a estranha escrita.

— Não, meu caro rapaz! — disse Mordecai. — A superstição sobre os judeus e as tempestades é uma confusão sobre Jonas, uma simples confusão ignorante. — Ele olhou para a página. — Você é filho do Tirshatha?

— Eu sou o filho bastardo de um padre — disse Thomas.

— E o seu pai escreveu isto?

— Escreveu.

— Para você?

Thomas balançou a cabeça.

— Acho que sim.

— Neste caso, você é filho do Tirshatha e neto de Hachaliah — disse Mordecai, e depois sorriu. — Ah! É claro! Neemias. Minha memória está quase tão fraca quanto a do pobre Skeat, não está? Imagine esquecer que Hachaliah era o pai de Neemias.

Thomas ainda não entendera nada.

— Neemias?

— E ele era o Tirshatha, claro que era. Extraordinário, não?, como os judeus prosperam em estados estrangeiros e depois eles se cansam de nós e nós somos acusados de todas as pequenas coisas que acontecem. Aí, o tempo passa e nós somos readmitidos nos nossos cargos. O Tirshatha, Thomas, era o governador da Judéia sob o domínio dos persas. Neemias era o Tirshatha, não o rei, é claro, só governador por algum tempo, sob o governo de Artaxerxes.

A erudição de Mordecai era impressionante, mas nada esclarecedora. Por que iria o padre Ralph identificar-se com Neemias, que devia ter vivido centenas de anos antes de Cristo, antes do Graal? A única resposta que Thomas podia encontrar era a de costume, sobre a loucura de seu pai. Mordecai virava as páginas de pergaminho e encolhia-se, estremecendo, quando uma estalava.

— Como as pessoas ficam ansiosas por milagres — disse ele. Tocou numa página com um dedo manchado por todos os remédios que ele socara e mexera. — “Uma taça de ouro na mão do Senhor que deixou embriagada a Terra toda.” Ora, o que é que isso pode significar?

— Ele está falando sobre o Graal — disse Thomas.

— Eu tinha compreendido isso, Thomas — brincou Mordecai com ele, delicado —, mas estas palavras não foram escritas sobre o Graal. Elas se referem à Babilônia. Parte das lamentações de Jeremias. — Ele virou outra página. — O povo gosta de mistério. Ele não quer que nada seja explicado, porque quando as coisas são explicadas não resta esperança alguma. Tenho visto gente morrendo e sei que não há nada a fazer, e sou solicitado a me retirar porque dali a pouco o padre vai chegar com o seu prato coberto por um pano, e todos rezam por um milagre que nunca acontece. E a pessoa morre, e eu sou acusado, não Deus ou o padre, mas eu! — Ele deixou o livro cair-lhe no colo, onde as páginas se agitavam ao vento fraco. — Estas são apenas histórias do Graal, e algumas escrituras estranhas que poderiam referir-se a ele. Um livro, na verdade, de meditações. — Franziu o cenho. — Seu pai acreditava mesmo que o Graal existia?

Thomas estava para dar uma afirmativa vigorosa, mas se deteve, lembrando-se. Na maior parte do tempo, seu pai tinha sido um homem irônico, divertido e inteligente, mas em outras ocasiões fora uma criatura alucinada, que gritava, lutando com Deus e desesperada na tentativa de entender os mistérios sagrados.

— Eu acho — disse Thomas, cauteloso — que ele acreditava mesmo no Graal.

— Claro que acreditava — disse Mordecai de repente —, que besteira a minha! É claro que seu pai acreditava no Graal, porque ele acreditava que o tinha em seu poder!

— Acreditava? — perguntou Thomas. Ele agora estava muitíssimo confuso.

— Neemias foi mais do que o Tirshatha da Judéia — disse o médico —, ele era o escanção, o copeiro, o serviçal encarregado de servir o vinho de Artaxerxes. Ele diz isso no começo dos seus escritos. “Eu fui o copeiro do rei.” Aqui. — Ele apontou para uma linha na escrita em hebraico. — “Eu fui copeiro do rei.” Palavras de seu pai, Thomas, tiradas da história de Neemias.

Thomas olhou para o texto e viu que Mordecai estava certo. Aquele era o depoimento de seu pai. Ele tinha sido o copeiro do maior de todos os reis, do próprio Deus, de Cristo, e a frase confirmava os sonhos de Thomas. O padre Ralph tinha sido o copeiro. Ele possuíra o Graal. Este existia. Thomas teve um estremecimento.

— Eu acho — disse Mordecai falando com delicadeza — que seu pai acreditava possuir o Graal, mas isso parece improvável.

— Improvável! — protestou Thomas.

— Sou apenas um judeu — disse Mordecai, afável —, de modo que não posso saber muita coisa sobre o salvador da humanidade. E há quem diga que eu nem devia falar dessas coisas, mas pelo que entendo Jesus não era rico. Estou certo?

— Ele era pobre — disse Thomas.

— Pois então estou certo, ele não era um homem rico, e no fim da vida ele comparece a um seder.

— Um seder?

— A festa da Páscoa, Thomas. E no seder ele come pão e bebe vinho, e o Graal, diga se eu estiver errado, foi o prato com o pão ou o cálice de vinho, certo?

— Certo.

— Certo — ecoou Mordecai e olhou a sua esquerda, onde um pequeno barco de pesca seguia pelo mar agitado. Não houvera sinal do Saint-Esprit a manhã toda, e nenhum dos barcos menores pelos quais eles passavam mostrara qualquer interesse pelo Pentecost. — Mas se Jesus era pobre — prosseguiu Mordecai —, que tipo de prato de seder ele usaria? Um prato feito de ouro? Um prato com a borda de jóias? Ou uma peça de cerâmica comum?

— O que quer que ele tenha usado — disse Thomas — Deus poderia transformar.

— Ah, sim, é claro, já ia me esquecendo — disse Mordecai. Ele parecia desapontado, mas depois sorriu e entregou o livro a Thomas. — Quando chegarmos aonde quer que estejamos indo — disse ele —, poderei anotar traduções do hebraico para você, e espero que ajude.

— Thomas! — gritou Sir Guillaume da popa. — Precisamos de braços descansados para tirar água!

A calafetação não tinha sido terminada, e o Pentecost estava fazendo água a uma velocidade alarmante, e por isso Thomas desceu para o fundo do casco. Ele passava os baldes cheios para Robbie, que jogava a água pela lateral do navio. Sir Guillaume estava insistindo com Villeroy para que fosse para norte e leste outra vez, numa tentativa de passar por Caen e chegar a Dunquerque, mas Villeroy não estava satisfeito com a sua vela pequena e menos satisfeito ainda com o casco fazendo água.

— Tenho de parar em algum lugar muito em breve — grunhiu ele —, e o senhor vai ter de me comprar uma vela.

Eles não ousavam parar na Normandia. Era do conhecimento geral, em toda a província, que Sir Guillaume tinha sido declarado traidor, e se o Pentecost fosse revistado — e naquela costa onde havia contrabando era provável que o fosse — Sir Guillaume seria descoberto. Isso deixava a Bretanha sobrando, e Sir Guillaume estava ansioso por chegar a Saint-Malo ou Saint-Brieuc, mas Thomas protestou do fundo do casco, dizendo que ele e Will Skeat seriam considerados inimigos pelas autoridades bretãs que, naquelas cidades, deviam lealdade ao duque Charles, que lutava contra os rebeldes apoiados pelos ingleses que reconheciam o duque Jean como o verdadeiro governante da Bretanha.

— Então, para onde você iria? — perguntou Sir Guillaume. — Inglaterra?

— Nunca chegaremos à Inglaterra — disse Villeroy, desanimado, olhando para a vela.

— As ilhas? — sugeriu Thomas, pensando em Guernsey ou Jersey.

— As ilhas! — Sir Guillaume gostou da idéia.

Dessa vez foi Villeroy quem protestou.

— Não posso — disse ele, com indelicadeza, e explicou que o Pentecost era um navio de Guernsey e ele tinha sido um dos homens que ajudaram a capturá-lo. — Eu levo ele para as ilhas — disse ele —, e eles vão tomar ele de volta e eu com ele.

— Pelo amor de Deus! — rosnou Sir Guillaume. — Então para onde vamos?

— Você pode ir a Tréguier? — perguntou Will Skeat, e todos ficaram tão surpresos pelo fato de ele falar que por instantes ninguém respondeu.

— Tréguier? — perguntou Villeroy depois de um intervalo, e depois balançou a cabeça. — É possível.

— Por que Tréguier? — perguntou Sir Guillaume.

— A última notícia que eu tive foi de que ela estava em mãos dos ingleses — disse Skeat.

— Ainda está — confirmou Villeroy.

— E nós temos amigos lá — continuou Skeat.

E inimigos, pensou Thomas. Tréguier não era apenas o porto bretão mais próximo em mãos dos ingleses, mas também o porto mais próximo de La Roche-Derrien, para onde Sir Geoffrey Carr, o Espantalho, tinha ido. E Thomas dissera ao irmão Germain que estava indo para a mesma cidadezinha, e aquilo significaria, sem dúvida alguma, que de Taillebourg ficaria sabendo disso e iria para lá. E talvez Jeanette também estivesse por lá, e de repente, apesar de Thomas dizer durante semanas que não voltaria, sentia uma vontade louca de chegar a La Roche-Derrien.

Porque era lá na Bretanha que ele tinha amigos, antigas amantes, e inimigos que ele queria matar.


Terceira Parte

BRETANHA, PRIMAVERA DE 1347

O Copeiro do Rei


JEANETTE CHENIER, condessa da Armórica, perdera o marido, os pais, a fortuna, a casa, o filho e o amante real, tudo isso antes de completar seus vinte anos de idade.

O marido sucumbira a uma flecha inglesa e morrera em agonia, chorando como uma criança.

Os pais tinham morrido de disenteria, e suas roupas de cama foram queimadas antes de eles serem enterrados perto do altar da igreja de St. Renan. Tinham deixado para Jeanette, a única filha que restara, uma pequena fortuna em ouro, uma empresa de transporte de vinho e a grande casa comercial à margem do rio em La Roche-Derrien.

Jeanette gastara grande parte da fortuna equipando navios e homens para combater os odiados ingleses que tinham matado seu marido, mas os ingleses ganharam, e assim sua fortuna desaparecera.

Jeanette implorara ajuda a Charles de Blois, duque da Bretanha e parente de seu falecido marido, e fora assim que ela perdera o filho. Charles, de três anos de idade, que recebera o nome em homenagem ao duque, tinha sido tirado dela. Ela fora chamada de prostituta por ser filha de um mercador, portanto indigna de ser uma aristocrata. Charles de Blois, para mostrar a Jeanette o quanto ele a desprezava, a estuprara. O filho dela, agora o conde da Armórica, estava sendo criado por um dos fiéis partidários de Charles de Blois, para garantir que as extensas terras do menino ficassem prometidas sob juramento à casa de Blois. Assim, Jeanette, que perdera sua fortuna na tentativa de fazer com que o duque Charles fosse o indiscutível governante da Bretanha, adquirira um novo ódio e encontrara um novo amante, Thomas de Hookton. Ela fugira com ele para o norte, para o exército inglês na Normandia e, lá, atraíra a atenção de Eduardo de Woodstock, príncipe de Gales, e por isso Jeanette abandonara Thomas. Mas depois, temendo que os ingleses fossem massacrados pelos franceses na Picardia e que os vitoriosos franceses a fossem punir pela escolha do amante, tornara a fugir. Estivera enganada sobre a batalha, os ingleses tinham vencido, mas ela não podia voltar. Os reis, e os filhos dos reis, não recompensavam caprichos, e por isso Jeanette Chenier, viúva condessa da Armórica, voltara a La Roche-Derrien para descobrir que havia perdido a casa.

Quando saiu de La Roche-Derrien, ela estava muito endividada, e Monsieur Belas, um advogado, apossou-se da casa para pagar as dívidas. Jeanette, ao voltar, tinha dinheiro suficiente para pagar tudo o que devia, porque o príncipe de Gales tinha sido generoso com jóias, mas Belas não quis sair da casa. A lei estava do lado dele. Alguns dos ingleses que ocuparam La Roche-Derrien mostraram solidariedade para com Jeanette, mas não interferiram na decisão do tribunal e não teria tido muita importância se o tivessem feito, porque todo mundo sabia que os ingleses não ficariam muito tempo na pequena cidade. O duque Charles estava reunindo um novo exército em Rennes, e La Roche-Derrien era o mais isolado e distante de todos os baluartes ingleses na Bretanha. Quando o duque Charles tomasse a cidade, iria recompensar Monsieur Belas, seu agente, e desprezar Jeanette Chenier, que ele chamara de prostituta porque ela não era de berço nobre.

Assim, Jeanette, impossibilitada de requerer a devolução de sua casa, encontrou uma outra, muito menor, perto da porta sul de La Roche-Derrien, e confessou seus pecados ao padre da igreja de St. Renan, que disse que ela havia pecado além dos limites do homem e talvez além dos limites de Deus também; o padre prometeu-lhe a absolvição se ela pecasse com ele. Ergueu a batina, tentou agarrá-la e soltou um berro quando Jeanette lhe deu um pontapé. Mas ela continuou a ir à missa na igreja de St. Renan, porque era a igreja de sua infância e seus pais estavam enterrados embaixo do quadro que retratava Cristo levantando-se do túmulo com uma luz dourada em torno da cabeça, e o padre não tinha coragem de recusar-lhe o sacramento, embora não ousasse mais encará-la.

Jeanette perdera os criados quando fugiu para o norte com Thomas, mas contratou uma menina de quatorze anos para ser a cozinheira e o irmão idiota da menina para apanhar água e lenha. As jóias do príncipe, calculava Jeanette, iriam durar um ano, e até lá alguma coisa iria aparecer. Ela era jovem, era realmente bonita, estava cheia de ódio, o filho ainda era refém e ela era inspirada pelo ódio. Algumas pessoas da cidade temiam que ela estivesse louca, porque estava muito mais magra do que quando deixara La Roche-Derrien, mas os cabelos ainda eram negros como o corvo, a pele era macia como a seda rara que só os mais ricos podiam comprar, e os olhos eram grandes e brilhantes. Homens iam pedir seus favores, mas eram avisados de que não poderiam tornar a falar com ela a menos que lhe levassem o coração murcho de Belas, o advogado, e o membro viril murcho de Charles de Blois.

— Tragam os dois em relicários — dizia a eles —, mas quero o meu filho vivo.

Sua raiva repelia homens e alguns deles espalharam a história de que ela era aluada, talvez uma bruxa. O padre de St. Renan confidenciou a outros membros do clero na cidade que Jeanette procurara tentá-lo e falava em tom sinistro em requisitar a Inquisição, mas os ingleses não iriam permitir aquilo, porque o rei da Inglaterra recusava-se a deixar que os torturadores de Deus exercessem suas artes negras em suas possessões.

— Já existem reclamações suficientes — dizia Dick Totesham, comandante da guarnição inglesa em La Roche-Derrien — sem trazer malditos frades para provocar encrenca.

Totesham e sua guarnição sabiam que Charles de Blois estava recrutando um exército que iria atacar La Roche-Derrien antes de marchar em frente para sitiar os outros baluartes ingleses na Bretanha, e por isso trabalhavam com afinco para tornar os muros da cidade mais altos e construir novos reparos do lado de fora dos antigos. Camponeses da região eram obrigados a trabalhar na base do chicote. Eram forçados a empurrar carrinhos de mão cheios de barro e pedra, enfiavam madeiras no solo para fazer paliçadas e cavavam trincheiras. Odiavam os ingleses por obrigá-los a trabalhar de graça, mas os ingleses não se importavam, porque tinham de se defender, e Totesham implorava a Westminster para que mandasse mais homens, e na festa de São Félix, em meados de janeiro, uma tropa de arqueiros galeses desembarcou em Tréguier, que era o pequeno porto a uma hora e meia a pé de La Roche-Derrien, mas os únicos outros reforços foram alguns cavaleiros e soldados que estavam com pouca sorte e tinham ido para a pequena cidade na esperança de saques e prisioneiros. Alguns daqueles cavaleiros vinham de Flandres, atraídos por falsos rumores sobre a riqueza a ser conseguida na Bretanha, e outros seis soldados chegaram do norte da Inglaterra, liderados por um homem malvado, expressão cruel, que levava um chicote e uma pesada carga de ressentimentos, e eles foram os últimos reforços de La Roche-Derrien antes de o Pentecost chegar ao rio.

A guarnição de La Roche-Derrien era pequena, ao passo que o exército do duque Charles era grande e ficava ainda maior. Espiões a soldo dos ingleses falavam de besteiros genoveses que chegavam a Rennes em companhias formadas por cem homens, e de soldados vindo a cavalo da França para jurar fidelidade a Charles de Blois. O exército dele inchava, e o rei da Inglaterra, aparentemente descuidado quanto a suas guarnições na Bretanha, não lhes enviava ajuda alguma. O que significava que La Roche-Derrien, a menor de todas as cidades-fortalezas inglesas na Bretanha e a que mais perto estava do inimigo, estava condenada.

Thomas sentiu-se estranhamente perturbado quando o Pentecost deslizou entre as baixas pontas rochosas que assinalavam a foz do rio Jaudy. Seria um fracasso, perguntava-se, voltar àquela cidade pequena? Ou o próprio Deus o enviara porque era ali que os inimigos do Graal estariam à procura de Thomas? Foi por isso que Thomas pensou no misterioso de Taillebourg e seu criado. Ou talvez, disse a si mesmo, ele estivesse nervoso devido à expectativa de rever Jeanette. A história dos dois estava muito emaranhada, havia ódio demais misturado com o amor, e no entanto ele queria realmente vê-la e estava preocupado com a possibilidade de ela não querer vê-lo. Em vão tentou imaginar um retrato do rosto dela enquanto a maré alta levava o Pentecost para a foz do rio, onde alcas abriam suas asas felpudas para secar em cima de rochedos ornados de espuma branca. Uma foca ergueu a cabeça reluzente, olhou indignada para Thomas e depois voltou para as profundezas. Os barrancos do rio ficaram mais próximos, trazendo um cheiro de terra. Havia pedras grandes e grama descorada e pequenas árvores curvadas pelo vento, enquanto nos baixios havia sinuosas armadilhas para peixes, feitas de estacas de salgueiro entrelaçadas. Uma garotinha, que não devia ter mais de seis anos, usava uma pedra para tirar lapas das rochas.

— Aquilo é um jantar pobre — observou Will Skeat.

— É sim, Will, é sim.

— Ah, Tom! — Skeat sorriu, reconhecendo-lhe a voz —, você nunca comeu lapas no jantar!

— Comi! — protestou Thomas. — E no desjejum também.

— Um homem que fala latim e francês? Comendo lapas? — Skeat sorriu. — Você sabe escrever, não é verdade, Tom?

— Tão bem quanto um padre, Will.

— Acho que devíamos mandar uma carta a sua excelência — disse Skeat, referindo-se ao conde de Northampton — e pedir que os meus homens sejam despachados para cá. Só que ele não vai fazer isso sem dinheiro, vai?

— Ele te deve dinheiro — disse Thomas.

Skeat olhou para Thomas com o cenho franzido.

— Deve?

— Seus homens têm servido a ele nos últimos meses. Ele tem que pagar por isso.

Skeat abanou a cabeça.

— O conde nunca custou a pagar por bons soldados. Posso apostar que ele tem mantido a bolsa deles cheia, e se eu os quiser aqui terei de convencê-lo a liberá-los, e vou ter de pagar as passagens também.

Os homens de Skeat estavam contratados para lutar pelo conde de Northampton, o qual, depois de uma campanha na Bretanha, juntara-se ao rei na Normandia e agora o servia perto de Calais.

— Vou ter de pagar o transporte de homens e cavalos, Thomas — prosseguiu Skeat —, e a menos que as coisas tenham mudado desde que me acertaram na cabeça, isso não vai ser barato. Não vai ser barato. E por que o conde iria querer que eles fossem embora de Calais? Eles vão brigar a mais não poder quando a primavera chegar.

A pergunta fazia sentido, refletiu Thomas, porque sem dúvida haveria embates violentos perto de Calais quando o inverno acabasse. Pelo que Thomas sabia, a cidade não havia caído, mas os ingleses a tinham cercado e dizia-se que o rei francês estava reunindo um grande exército que iria atacar os sitiantes na primavera.

— Vai haver um bocado de luta aqui quando a primavera chegar — disse Thomas com um meneio de cabeça em direção à margem do rio, que agora estava muito perto. Os campos para lá da beira eram maninhos, mas pelo menos os celeiros e as casas de fazenda ainda estavam de pé, porque aquelas terras alimentavam a guarnição de La Roche-Derrien e por isso tinham sido poupadas do saque, estupro e incêndio que haviam crepitado pelo resto do ducado.

— Vai haver luta aqui — concordou Skeat —, mas muito mais em Calais. Acha que devemos ir para lá, Tom?

Thomas não disse nada. Ele achava que Skeat já não podia comandar um bando de soldados e arqueiros. Seu velho amigo estava sujeito demais a esquecimentos ou a repentinos acessos de confusão e melancolia, e aqueles ataques eram agravados pelos momentos em que Skeat parecia ter voltado ao que era — só que ele nunca era exatamente o velho Will Skeat que tinha sido tão rápido na guerra, selvagem na decisão e esperto em combate. Ele agora se repetia, ficava confuso e se intrigava com freqüência — como acontecia naquele momento em relação a um barco de patrulha com a bandeira da Inglaterra, com a cruz vermelha sobre um campo branco, que seguia rio abaixo em direção ao Pentecost. Skeat olhou de cenho franzido para a pequena embarcação.

— É inimigo?

— Está com a nossa bandeira, Will.

— Está?

Um homem em cota de malha levantou-se na proa do barco a remo e gritou para o Pentecost.

— Quem são vocês?

— Sir William Skeat! — respondeu Thomas, gritando, usando o nome que seria muitíssimo bem recebido na Bretanha.

Houve uma pausa, talvez devido a incredulidade.

— Quer dizer Will Skeat?

— O rei deu a ele o título de cavaleiro — disse Thomas ao homem.

— Eu mesmo estou sempre me esquecendo disso — disse Skeat.

Os remadores da proa remaram ao contrário para que o barco de patrulha girasse na maré e ficasse ao lado do Pentecost.

— O que é que vocês estão levando? — perguntou o homem.

— O navio está vazio! — berrou Thomas.

O homem ergueu os olhos para a vela esfarrapada, chamuscada e dobrada.

— Tiveram problemas?

— Ao largo da Normandia.

— Já era hora daqueles bastardos serem mortos de uma vez por todas — resmungou o homem e fez um gesto na direção de rio acima, para onde as casas de Tréguier manchavam o céu com a sua fumaça de lenha.

— Atraquem ao lado do Edward — ordenou. — Há uma taxa portuária que terão de pagar. Seis xelins.

— Seis xelins? — explodiu Villeroy quando lhe contaram. — Seis malditos xelins! Será que eles pensam que tiramos dinheiro do fundo do mar com as redes?

E assim Thomas e Will Skeat voltaram para Tréguier, onde a catedral perdera a torre depois que os bretões que apoiavam Charles de Blois dispararam bestas contra os ingleses do alto dela. Em represália, os ingleses tinham derrubado a torre e mandado as pedras para Londres. A pequena cidade portuária era escassamente habitada agora, porque não tinha muros e às vezes homens de Charles de Blois faziam ataques-relâmpago aos armazéns atrás do cais. Navios pequenos podiam subir o rio até La Roche-Derrien, mas o Pentecost tinha um calado muito grande, e por isso atracou ao lado do navio de pesca inglês e então doze homens vestindo gibão com a cruz vermelha subiram a bordo para cobrar a taxa portuária e procurar contrabando, ou mesmo uma boa propina para convencê-los a ignorar o que pudessem descobrir. Fosse como fosse, não encontraram produtos nem propina. O comandante deles, um homem gordo com uma ferida purulenta na testa, confirmou que Richard Totesham ainda estava no comando em La Roche-Derrien.

— Ele está lá — disse o gordo — e Sir Thomas Dagworth está no comando em Brest.

— Dagworth! — Skeat parecia satisfeito. — Ele é bom. Dick Totesham também — acrescentou dirigindo-se a Thomas, mas pareceu intrigado quando Sir Guillaume surgiu da cabine de proa.

— É Sir Guillaume — disse Thomas em voz baixa.

— Claro que é — disse Skeat.

Sir Guillaume largou os alforjes no convés e o tilintar das moedas atraiu um olhar esperançoso por parte do homem gordo. Sir Guillaume encarou-o e puxou um pouco a espada da bainha.

— Acho que vou indo — disse o gordo.

— Eu acho que vai — disse Skeat com um muxoxo.

Robbie levantou sua bagagem para colocá-la no convés e olhou pelo poço do Edward, para onde quatro jovens estripavam arenques e jogavam os restos para o alto, e as gaivotas os pegavam no ar. As jovens amarravam o peixe estripado em longas varas que seriam colocadas nos defumadores no final do cais.

— São todas assim tão bonitas? — perguntou Robbie.

— Mais ainda — disse Thomas, imaginando como o escocês conseguia ver o rosto das jovens sob os chapéus que elas usavam.

— Vou gostar da Bretanha — disse Robbie.

Havia dívidas a pagar antes que eles pudessem partir. Sir Guillaume pagou a Villeroy e acrescentou dinheiro suficiente para comprar uma nova vela.

— Seria bom — aconselhou ao grandalhão — você evitar Caen durante algum tempo.

— Vamos seguir para a Gasconha — disse Villeroy. — Sempre há comércio na Gasconha. Talvez a gente chegue até Portugal.

— Talvez — disse Mordecai com timidez — você deixe que eu vá junto?

— Você? — Sir Guillaume voltou-se para o médico. — Você odeia essas porcarias de navios.

— Preciso ir para o sul — disse Mordecai, cansado —, para Montpellier antes de tudo. Quanto mais ao sul se vai, mais amáveis são as pessoas. Eu preferiria sofrer um mês de mar e frio a enfrentar os homens do duque Charles.

— Passagem até a Gasconha — Sir Guillaume deu uma moeda de ouro a Villeroy — para um amigo meu.

Villeroy olhou para Yvette, que deu de ombros, e isso convenceu o grandalhão a aceitar.

— É um prazer, doutor — disse ele.

E assim eles se despediram de Mordecai e então Thomas, Robbie, Will Skeat e Sir Guillaume mais seus dois soldados desembarcaram. Um barco iria subir o rio para La Roche-Derrien, mas só mais tarde naquele dia, e por isso os dois soldados foram deixados com a bagagem enquanto Thomas conduzia os outros pela trilha estreita que seguia a margem oeste do rio. Eles usavam cotas de malha e levavam armas, porque os camponeses locais não simpatizavam com os ingleses, mas os únicos homens pelos quais passaram foram doze trabalhadores sujos que tiravam com forcados estrume de duas carroças. Os homens pararam para ver os soldados passarem, mas nada disseram.

— E a essa hora, amanhã — comentou Thomas —, Charles de Blois vai ficar sabendo que chegamos.

— Vai ficar tremendo nas botas — disse Skeat com um sorriso.

Começou a chover quando eles chegaram à ponte que levava aos portões de La Roche-Derrien. Thomas parou sob o arco protetor da barbacã na margem oposta à cidade e apontou rio acima para o cais em ruínas onde ele e os outros arqueiros de Skeat tinham entrado às escondidas em La Roche-Derrien na noite em que ela sucumbiu aos ingleses.

— Lembra-se daquele lugar, Will? — perguntou.

— Claro que me lembro — respondeu Skeat, embora parecesse incerto, e Thomas não disse mais nada.

Atravessaram a ponte de pedra e seguiram às pressas pela rua até a casa ao lado da taberna que sempre fora o quartel-general de Richard Totesham, e o próprio Totesham descia da sela quando eles chegaram. Voltou-se e olhou os recém-chegados de cenho carregado, e então reconheceu Will Skeat e olhou fixo para o velho amigo, como se tivesse visto um fantasma. Skeat olhou para ele sem esboçar reação alguma, e a falta de reconhecimento perturbou Totesham.

— Will? — perguntou o comandante da guarnição. — Will? É você, Will?

Uma expressão de prazer animou a fisionomia de Skeat.

— Dick Totesham! Imagine só, encontrar logo você!

Totesham ficou intrigado com o fato de Skeat ter se surpreendido por encontrá-lo numa guarnição que ele comandava, mas então viu o vazio no olhar do velho amigo e franziu o cenho.

— Você está bem, Will?

— Recebi um golpe na cabeça — disse Skeat —, mas um médico juntou os pedaços de novo. As coisas ficam embaçadas aqui e ali, só embaçadas.

Os dois apertaram-se as mãos. Eram homens que tinham nascido sem um tostão e tornaram-se soldados, depois conquistaram a confiança de seus patrões e ganharam os lucros com os resgates pagos por prisioneiros e com as propriedades saqueadas, até ficarem ricos o bastante para formar seus próprios bandos, que alugavam ao rei ou a um nobre e, assim, ficaram ainda mais ricos, já que assolavam mais terras inimigas. Quando os trovadores cantavam sobre uma batalha, citavam o rei como o herói combatente e louvavam as proezas de duques, condes, barões e cavaleiros, mas eram homens como Totesham e Skeat que lutavam a maior parte das batalhas da Inglaterra.

Totesham deu uns tapinhas bem-humorados no ombro de Skeat.

— Me diga que você trouxe seus homens, Will.

— Deus sabe onde eles estão — disse Skeat. — Há meses que não os vejo.

— Eles estão do lado de fora de Calais — esclareceu Thomas.

— Meu Deus. — Totesham fez o sinal-da-cruz. Ele era um homem atarracado, de cabelos grisalhos e rosto largo, que mantinha a guarnição de La Roche-Derrien junta pela simples força de caráter, mas sabia que tinha muito poucos homens. Pouquíssimos homens. — Eu tenho cento e trinta e cinco homens sob minhas ordens — disse ele a Skeat —, e a metade está doente. E há cinqüenta ou sessenta mercenários que poderão ficar ou não até Charles de Blois chegar. É claro que os moradores da cidade vão lutar do nosso lado, pelo menos a maioria.

— A maioria vai? — interrompeu Thomas, impressionado com a afirmativa. Quando os ingleses capturaram a cidade no ano anterior, os habitantes lutaram ferozmente para defender seus muros e, ao serem derrotados, foram submetidos a estupros e saques. Agora apoiavam a guarnição?

— Os negócios vão bem — explicou Totesham. — Eles nunca foram tão ricos! Navios para a Gasconha, para Portugal, para Flandres e para a Inglaterra. Estão ganhando dinheiro. Não querem que a gente vá embora, de modo que sim, alguns irão lutar do nosso lado, e isso vai ajudar, mas não é como ter homens treinados.

As outras tropas inglesas na Bretanha estavam muito a oeste, de modo que quando Charles de Blois chegasse com o exército dele Totesham teria de defender a pequena cidade durante duas ou três semanas antes que pudesse esperar algum socorro e, mesmo com a ajuda dos habitantes, duvidava que pudesse fazer aquilo. Enviara uma solicitação ao rei em Calais pedindo que fossem mandados mais homens para La Roche-Derrien. “Nós estamos sem ajuda” escrevera seu secretário enquanto Totesham ditava, “e nossos inimigos se reúnem perto daqui.” Totesham, ao ver Will Skeat, presumira que os homens de Skeat tinham chegado em resposta ao seu pedido e não conseguiu esconder a decepção.

— Você quer escrever pessoalmente ao rei? — perguntou Totesham a Will.

— O Tom aqui pode escrever por mim.

— Peça que seus homens sejam mandados para cá — insistiu Totesham. — Eu preciso de mais trezentos ou quatrocentos arqueiros, mas os seus cinqüenta ou sessenta ajudariam.

— Tommy Dagworth não pode lhe mandar ninguém? — perguntou Skeat.

— Ele está com tantas dificuldades quanto eu. Terra demais para defender, muito poucos homens, e o rei não quer saber de cedermos um único acre a Charles de Blois.

— Pois então, por que é que ele não manda reforços? — perguntou Sir Guillaume.

— Porque não tem homens sobrando — disse Totesham —, o que não é motivo para que a gente não peça.

Totesham levou-os para dentro de casa, onde um fogo ardia numa grande lareira e os criados serviram jarras de vinho quente e pratos de pão e de carne de porco fria. Um bebê estava deitado num berço de madeira ao lado do fogo e Totesham enrubesceu quando admitiu que a criança era dele.

— Recém-casado — disse a Skeat, depois mandou que uma criada levasse o bebê embora antes que começasse a chorar.

Ele se encolheu quando Skeat tirou o chapéu para revelar seu couro cabeludo com cicatrizes e com uma borda grossa. Insistiu em ouvir a história de Will, e quando lhe contaram agradeceu a Sir Guillaume a ajuda que o francês dera ao amigo. Thomas e Robbie tiveram uma recepção mais fria, o segundo por ser escocês e o primeiro porque Totesham se lembrava de Thomas do ano anterior.

— Você era uma peste — disse Totesham, indelicado —, você e a condessa da Armórica.

— Ela está aqui? — perguntou Thomas.

— Ela voltou, sim. — Totesham parecia cauteloso.

— Nós podemos voltar à casa dela, Will — disse Thomas a Skeat.

— Não podem, não — disse Totesham com firmeza. — Ela perdeu a casa. A casa foi vendida para pagamento de dívidas, e ela tem protestado contra isso desde então, mas o imóvel foi vendido de forma honesta. E o advogado que a comprou nos pagou uma quitação, para ser deixado em paz, e eu não quero que ele seja perturbado, de modo que vocês dois podem achar acomodações no Two Foxes. Depois venham jantar aqui. — O convite foi feito a Will Skeat e a Sir Guillaume, e intencionalmente não a Thomas ou a Robbie.

Thomas não se importou. Ele e Robbie encontraram um quarto para dividir na taberna chamada Two Foxes, e, enquanto Robbie provava pela primeira vez a cerveja bretã, Thomas foi à igreja de St. Renan, que era uma das menores de La Roche-Derrien, mas também uma das mais ricas, porque o pai de Jeanette estabelecera uma renda para ela. Ele construíra um campanário e pagara para que belas pinturas fossem feitas em suas paredes, embora quando Thomas chegou a St. Renan estivesse muito escuro para ver o Salvador caminhando sobre o mar da Galiléia ou as almas despencando para o chamejante inferno. A única luz na igreja vinha de algumas velas acesas no altar, onde um relicário de prata continha a língua de St. Renan, mas Thomas sabia que havia um outro tesouro embaixo do altar, uma coisa quase tão rara quanto a silenciosa língua de um santo, e ele queria consultá-lo. Era um livro, um presente do pai de Jeanette, e Thomas ficara impressionado por encontrá-lo ali, não apenas porque o livro sobrevivera à queda da cidade — embora, na verdade, não fossem muitos os soldados que iriam procurar livros para saquear —, mas também por existir qualquer livro numa pequena igreja de uma cidade bretã. Livros eram raros, e aquele era o tesouro de St. Renan: uma bíblia. A maior parte do Novo Testamento estava faltando, evidentemente porque alguns soldados tinham arrancado aquelas páginas para usar nas latrinas, mas todo o Antigo Testamento permanecera. Thomas foi passando em meio às senhoras idosas, vestidas de preto, que se ajoelhavam e rezavam na nave, e encontrou o livro embaixo do altar e soprou a poeira e as teias de aranha, e depois colocou-o ao lado das velas. Uma das mulheres disse entre dentes que ele estava sendo profano, mas Thomas ignorou-a.

Ele virou as páginas duras, às vezes parando para admirar uma maiúscula pintada. Havia uma bíblia na igreja de S. Pedro em Dorchester, e seu pai possuíra uma, e Thomas devia ter visto uma dúzia em Oxford, mas vira poucas outras e, enquanto pesquisava as páginas, ficava maravilhado com o tempo que devia ter sido preciso para copiar um livro tão extenso. Mais mulheres reclamaram de sua anexação do altar e, para acalmá-las, ele se afastou alguns passos e sentou-se de pernas cruzadas com o pesado livro no colo. Agora estava muito longe das velas, e achava difícil ler o manuscrito, que em sua maioria tinha sido malfeito. As maiúsculas eram bonitas, sugerindo que tinham sido feitas por uma mão habilidosa, mas a maior parte do texto era indecifrável, e a tarefa não era nada facilitada pela sua ignorância quanto ao trecho que devia procurar no imenso livro. Começou pelo fim do Antigo Testamento, mas não encontrou o que queria, e por isso folheou para trás, as páginas enormes estalando enquanto ele as virava. Ele sabia que aquilo que procurava não estava nos Salmos, de modo que virou aquelas páginas depressa, depois tornou a reduzir o ritmo, procurando palavras no texto mal escrito e então, de repente, os nomes saltaram da página. “Neemias Athersatha filius Achelai”, “Neemias, o Governador, filho de Hachaliah”. Leu o trecho inteiro, mas não achou o que procurava, e por isso folheou ainda mais para trás, página dura por página dura, sabendo que estava perto, e lá, finalmente, estava ele.

“Ego enim eram pincerna regis.”

Ele olhou para a frase e depois leu-a em voz alta:

— Ego enim eram pincerna regis. “Porque eu era o copeiro do rei.”

Mordecai pensara que o livro do padre Ralph fosse uma súplica a Deus para tornar o Graal uma realidade, mas Thomas não concordava. Seu pai não queria ser o copeiro. Não, o livro era uma maneira de desvelar e a um só tempo encobrir a verdade. Seu pai lhe deixara uma pista. Vá de Hachaliah para o Tirshatha e conclua que o governador era também o servidor de vinho: Ego enim eram pincerna regis. “Era”, refletiu Thomas. Será que aquilo significava que seu pai perdera o Graal? Era mais provável que ele soubesse que Thomas só iria ler o livro depois de sua morte. Mas Thomas estava certo de uma coisa: as palavras confirmavam que o Graal existia, de fato, e que seu pai tinha sido seu relutante depositário. Eu era o escanção do rei; que este cálice saia das minhas mãos; o cálice me deixa embriagado. O cálice existia e Thomas sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Olhou para as velas no altar e seus olhos toldaram-se de lágrimas. Eleanor tinha razão. O Graal existia e esperava ser descoberto para endireitar o mundo e levar Deus ao homem e o homem a Deus e paz à Terra. Ele existia. Era o Graal.

— Meu pai — disse uma mulher — deu esse livro à igreja.

— Eu sei — disse ele. Thomas fechou a bíblia e voltou-se para olhar para Jeanette. E ficou quase com medo de vê-la, porque ela poderia estar menos bonita do que ele se lembrava ou talvez porque temesse que a visão dela provocasse ódio. Afinal, ela o abandonara. Mas em vez disso sentiu lágrimas nos olhos quando viu o rosto dela.

— Merle — disse baixinho, usando o apelido dela. Significava melro.

— Thomas. — A voz era indistinta, e então ela fez um gesto rápido com a cabeça em direção a uma mulher idosa vestida de preto e usando um véu também preto. — Madame Verlon — disse Jeanette —, que fica nervosa por qualquer coisa, me disse que um soldado inglês estava roubando a bíblia.

— E por isso você veio lutar contra o soldado? — perguntou Thomas. Uma vela pingou à sua direita, a chama bruxuleando com a rapidez do coração de um passarinho.

Jeanette deu de ombros.

— O padre daqui é um covarde e não iria enfrentar um arqueiro inglês. Portanto, quem mais poderia vir?

— Madame Verlon pode ficar tranqüila — disse Thomas enquanto tornava a colocar a bíblia embaixo do altar.

— Ela também disse — a voz de Jeanette tremia — que o homem que roubava a bíblia tinha um enorme arco preto. — Dava assim a entender que ela fora ali pessoalmente em vez de mandar buscar ajuda. Ela adivinhara que era Thomas.

— Pelo menos você não teve que vir de longe — disse Thomas, fazendo um gesto para a porta lateral que dava para o quintal da casa do pai de Jeanette. Ele fingia não saber que ela perdera a casa.

A cabeça dela voltou à posição anterior.

— Não moro mais lá — disse ela, concisa.

Uma dúzia de mulheres estava escutando e elas recuaram, nervosas, quando Thomas seguiu em direção a elas.

— Então talvez a senhora, madame — disse ele a Jeanette —, vá me permitir que a acompanhe até em casa?

Ela confirmou com um gesto brusco da cabeça. Seus olhos pareciam muito brilhantes e grandes à luz das velas. Ela estava mais magra, pensou Thomas, ou talvez fosse a escuridão da igreja que lançasse sombras sobre as faces. Usava um chapéu amarrado sob o queixo e uma grande capa preta que varria as lajotas de pedra enquanto ela o seguia em direção à porta oeste.

— Se lembra de Belas? — perguntou ela.

— Eu me lembro do nome — disse Thomas. — Não era um advogado?

— Ele é advogado — disse Jeanette. — É feito de fel, uma criatura de limo, um vigarista. Qual foi aquela palavra em inglês que você me ensinou? Um beberrão. Ele é um beberrão. Quando voltei para cá, ele tinha comprado a casa, alegando que ela fora vendida para pagar minhas dívidas. Mas ele havia comprado as dívidas! Prometeu cuidar dos meus negócios, esperou que eu fosse embora, e tirou minha casa. E agora que voltei, ele não me deixa pagar o que eu devia. Diz ele que já está pago. Eu disse que compraria a casa pagando mais do que o que ele pagara, mas ele se limita a rir de mim.

Thomas segurou a porta para ela passar. A chuva cuspia na rua.

— Você não quer a casa — disse ele —, se Charles de Blois voltar. Quando isso acontecer, você já deverá ter ido embora.

— Você continua me dizendo o que fazer, Thomas? — perguntou ela, mas, como para atenuar a dureza de suas palavras, deu o braço a ele. Ou talvez tenha passado a mão pelo cotovelo dele porque a rua era íngreme e estava escorregadia. — Acho que vou ficar aqui.

— Se você não tivesse fugido dele — disse Thomas —, Charles iria casá-la com um de seus soldados. Se a encontrar aqui, é o que ele fará. Ou coisa pior.

— Ele já está com o meu filho, já me estuprou. O que mais pode fazer? Não — ela agarrou com força o braço de Thomas —, eu vou ficar na minha casinha perto da porta sul, e quando ele entrar na cidade vou enfiar um quadrelo de besta na barriga dele.

— Estou surpreso que não tenha enfiado um quadrelo na barriga do Belas.

— E ser enforcada pela morte de um advogado? — retrucou Jeanette com uma risada curta e áspera. — Não, vou guardar minha vida para a vida de Charles de Blois, e toda a Bretanha e a França vão ficar sabendo que ele foi morto por uma mulher.

— A menos que ele devolva o seu filho?

— Ele não vai devolver! — disse ela, enfática. — Ele não respondeu a nenhum apelo. — Ela queria dizer, Thomas estava certo, que o príncipe de Gales, talvez o próprio rei, tinha escrito a Charles de Blois, mas os apelos tinham dado em nada. E por que seria de outra forma? A Inglaterra era o inimigo mais ferrenho de Charles. — Tudo tem a ver com terras, Thomas — disse, aborrecida —, terras e dinheiro.

Ela queria dizer que o seu filho, que aos três anos de idade era o conde de Armórica, era o legítimo herdeiro de grandes áreas do oeste da Bretanha que naquele momento estavam sob ocupação inglesa. Se o menino jurasse vassalagem ao duque Jean, que era o candidato de Eduardo da Inglaterra para governar a Bretanha, a reivindicação de Charles de Blois da soberania do ducado ficaria seriamente enfraquecida, e por isso Charles pegara a criança e iria ficar com o garoto até que este atingisse uma idade em que pudesse jurar vassalagem.

— Onde está Charles? — perguntou Thomas. Uma das ironias da vida de Jeanette era o filho ter recebido o nome em homenagem ao tio-avô, numa tentativa de obter os favores dele.

— Está na Torre de Roncelets — disse Jeanette —, que fica ao sul de Rennes. Ele está sendo criado pelo senhor de Roncelets. — Voltou-se para Thomas. — Já faz quase um ano que não o vejo!

— A Torre de Roncelets — disse Thomas. — É um castelo?

— Eu não vi. Acho que é uma torre. Sim, um castelo.

— Tem certeza que ele está lá?

— Não tenho certeza de nada — disse Jeanette, aborrecida —, mas recebi uma carta que dizia que Charles estava lá, e não tenho motivos para duvidar disso.

— Quem escreveu a carta?

— Não sei, não estava assinada. — Ela caminhou um instante em silêncio, a mão quente no braço dele. — Foi o Belas — disse, por fim. — Não tenho certeza, mas deve ter sido. Ele estava me irritando, me atormentando. Não basta ele estar com a minha casa e Charles de Blois estar com o meu filho, o Belas quer que eu sofra. Ou então quer que eu vá a Roncelets sabendo que eu seria devolvida a Charles de Blois. Tenho certeza que foi o Belas. Ele me odeia.

— Por quê?

— O que é que você acha? — perguntou ela, zombeteira. — Tenho uma coisa que ele quer, uma coisa que todos os homens querem, mas não vou dar isso a ele.

Eles continuaram a andar pelas ruas escuras. De algumas tabernas chegava o som de cantorias, e em algum lugar uma mulher gritou com o seu homem. Um cachorro latiu e foi silenciado. A chuva batia no sapé, pingava das abas dos telhados e deixava escorregadia a rua lamacenta. Um brilho vermelho foi aparecendo devagar à frente, aumentando à medida que eles se aproximavam, até que Thomas viu a chama de dois braseiros aquecendo os guardas que estavam na porta sul e ele se lembrou de que ele, Jack e Sam tinham aberto aquele portão para deixar o exército inglês entrar.

— Uma vez eu lhe prometi — disse ele — que iria trazer o Charles de volta.

— Você e eu, Thomas — disse Jeanette —, fizemos promessas demais. — Ela ainda parecia deprimida.

— Devo começar a cumprir algumas das minhas — disse Thomas. — Mas para chegar a Roncelets preciso de cavalos.

— Posso fornecer os cavalos — disse Jeanette parando diante de uma entrada escura. — Eu moro aqui — continuou ela, e então o olhou de frente. Ele era alto, mas ela era quase da mesma altura. — O conde de Roncelets é famoso como guerreiro. Você não deve morrer para cumprir uma promessa que nunca devia ter feito.

— Mas foi feita — disse Thomas.

Ela sacudiu a cabeça.

— É verdade.

Houve uma longa pausa. Thomas ouvia os passos de uma sentinela em cima do muro.

— Eu... — começou ele.

— Não — disse ela, rápida.

— Eu não...

— Uma outra hora. Tenho de me acostumar com o fato de você estar aqui. Estou cansada dos homens, Thomas. Desde a Picardia... — Fez uma pausa, e Thomas pensou que ela não diria mais nada, mas então ela deu de ombros. — Desde a Picardia tenho vivido como uma freira.

Ele beijou-lhe a testa.

— Eu te amo — disse ele com sinceridade, mas mesmo assim surpreso por ter expressado o pensamento em voz alta.

Por um instante, ela não falou. A luz refletida dos braseiros dava um brilho vermelho aos seus olhos.

— O que houve com aquela garota? — perguntou ela. — Aquela coisinha pálida que tanto protegia você?

— Eu não consegui protegê-la — disse Thomas —, e ela morreu.

— Os homens são uns bastardos — disse, e voltou-se e puxou a corda que erguia a tranca da porta. Fez uma pausa. — Mas é um prazer ter você aqui — disse ela sem olhar para trás, e então a porta foi fechada, a tranca encaixou-se no lugar, e ela desapareceu.

Sir Geoffrey Carr tinha começado a pensar que sua incursão à Bretanha era um erro. Durante muito tempo não houve sinal de Thomas de Hookton, e quando o arqueiro chegou não se esforçou por procurar tesouro algum. Era um mistério, e o tempo todo as dívidas de Sir Geoffrey aumentavam. Mas então, finalmente, o Espantalho descobriu que planos Thomas de Hookton estava fazendo. A nova informação levou Sir Geoffrey à casa de Monsieur Belas.

A chuva caía forte em La Roche-Derrien. Era um dos invernos mais chuvosos de que se tinha memória. A trincheira depois do muro da cidade que tinha sido reforçado estava inundada, de modo que parecia um fosso, e muitas das campinas alagadas do rio Jaudy pareciam lagos. As ruas da cidade estavam pegajosas de tanta lama, as botas dos homens tinham camadas grossas de lodo e as mulheres iam ao mercado usando uns incômodos tamancos de madeira que escorregavam traiçoeiramente nas ruas mais íngremes e ainda assim a lameira sujava as bainhas dos vestidos e das capas. As únicas coisas boas numa chuva daquelas eram a proteção que ela oferecia contra incêndios e, para os ingleses, o conhecimento de que tornaria difícil qualquer cerco da cidade. As máquinas usadas nos sítios — catapultas, trabucos ou canhões — precisavam de uma base sólida, não um atoleiro, e homens não podiam fazer um assalto através de um pântano. Dizia-se que Richard Totesham rezava para que chovesse ainda mais e dava graças por todas as manhãs que nasciam cinzentas, carregadas e úmidas.

— Um inverno chuvoso, Sir Geoffrey — Belas saudou o Espantalho e depois inspecionou o visitante de forma dissimulada. Um rosto pálido e feio, pensou, e, embora os trajes de Sir Geoffrey fossem de ótima qualidade, também tinham sido feitos para um homem mais gordo, o que sugeria que o inglês perdera peso há pouco tempo ou, o que era mais provável, as roupas tinham sido tiradas de um homem que ele matara em combate. Um chicote enrolado pendia do cinto, o que parecia um equipamento estranho, mas o advogado nunca tivera a pretensão de entender os soldados.

— Um inverno muito chuvoso — continuou Belas acenando ao Espantalho para que se sentasse.

— É um inverno desagradavelmente chuvoso — vociferou Sir Geoffrey para disfarçar o nervosismo. — Nada, a não ser chuva, frio e frieiras.

Ele estava nervoso porque não tinha certeza se aquele advogado magro e vigilante era tão a favor de Charles de Blois quanto o indicavam os rumores nas tavernas, e ele tinha sido obrigado a deixar Beggar e Dickon no pátio lá embaixo e sentia-se vulnerável sem a companhia protetora deles, em especial considerando-se que o advogado tinha um criado corpulento que vestia um gibão de couro e possuía uma espada comprida do lado.

— Pierre me protege — disse Belas. Ele tinha visto Sir Geoffrey olhando para o grandalhão. — Ele me protege dos inimigos que todos os advogados honestos fazemos. Por favor, Sir Geoffrey, sente-se.

Ele tornou a fazer um gesto em direção a uma cadeira. Um pequeno fogo queimava na lareira, a fumaça desaparecendo por uma chaminé recém-construída. O advogado tinha no rosto uma expressão de tanta fome quanto a de um arminho e faces tão pálidas quanto a barriga de uma cobra-d’água. Vestia uma túnica preta, e uma capa preta com bordas de pele preta e um chapéu preto com abas que cobriam as orelhas, embora tivesse levantado uma das abas para ouvir melhor a voz do Espantalho.

— Parlez-vous français? — perguntou ele.

— Não.

— Brezoneg a ouzit? — perguntou o advogado e, quando viu a muda incompreensão no rosto do Espantalho, deu de ombros. — O senhor não fala bretão?

— Acabei de dizer, não? Eu não falo francês.

— Francês e bretão não são a mesma língua, Sir Geoffrey.

— Não são inglês — disse Sir Geoffrey em tom beligerante.

— De fato, não são. Infelizmente, eu não falo inglês bem, mas aprendo depressa. Afinal de contas, é a língua dos nossos novos senhores.

— Senhores? — perguntou o Espantalho. — Ou inimigos?

Belas deu de ombros.

— Eu sou um homem de, como diria?, de negócios. Um homem de negócios. Acho que não é possível ser assim e não fazer inimigos. — Tornou a encolher os ombros, como se falasse de coisas triviais, e então recostou-se na cadeira. — Mas o senhor veio tratar de negócios, Sir Geoffrey? O senhor tem uma propriedade a transferir, talvez? Um contrato para fazer?

— Jeanette Chenier, condessa da Armórica — disse Sir Geoffrey abruptamente.

Belas ficou surpreso, mas não demonstrou. Ficou alerta. Sabia muito bem que Jeanette queria vingança e estava sempre atento às maquinações dela, mas agora fingia indiferença.

— Conheço essa senhora — admitiu.

— Ela conhece o senhor. E não gosta do senhor, Monsieur Belas — disse Sir Geoffrey, fazendo com que sua pronúncia parecesse uma zombaria. — Ela não gosta do senhor nem um pouquinho. E gostaria de ter os seus colhões numa frigideira e acender um fogo forte embaixo deles.

Belas dirigiu a atenção aos papéis que estavam sobre a sua mesa, como se o visitante estivesse sendo enfadonho.

— Eu lhe disse, Sir Geoffrey, que um advogado inevitavelmente faz inimigos. Não é nada que possa preocupar. A lei me protege.

— A lei que vá para o inferno, Belas. — Sir Geoffrey era categórico. Seus olhos, curiosamente pálidos, observavam o advogado, que fingia estar ocupado fazendo ponta numa pena. — Suponha que a mulher receba o filho de volta — prosseguiu o Espantalho. — Suponha que a mulher leve o filho à presença de Eduardo da Inglaterra e faça com que o menino jure vassalagem ao duque Jean. A lei não vai impedir que eles cortem os seus colhões, vai? Um, dois, corta, corta, e alimente o fogo, advogado.

— Uma eventualidade dessas — disse Belas com aparente enfado — não pode ter repercussão alguma em mim.

— Então o seu inglês não é fraco, hein? — zombou Sir Geoffrey. — Eu não finjo conhecer a lei, monsieur, mas conheço as pessoas. Se a condessa pegar o filho dela, ela irá a Calais e falará com o rei.

— E daí? — perguntou Belas, ainda fingindo-se de despreocupado.

— Três meses — Sir Geoffrey ergueu três dedos —, talvez quatro, para que o seu Charles de Blois possa chegar até aqui. E ela poderá estar em Calais dentro de quatro semanas e voltar para cá com a folha de pergaminho do rei dentro de oito semanas, e a essa altura ela será valiosa. O filho tem o que o rei quer e o rei dará a ela o que ela quiser, e o que ela quer são os seus colhões. Ela vai arrancá-los com os pequenos dentes brancos e depois irá esfolá-lo vivo, monsieur, e a lei não irá ajudá-lo. Contra o rei, não vai.

Belas estivera fingindo que lia um pergaminho, que então soltou, a folha enrolando-se com um estalo. Olhou para o Espantalho e deu de ombros.

— Duvido, Sir Geoffrey, que o que o senhor descreve venha a acontecer. O filho da condessa não está aqui.

— Mas suponha, monsieur, só suponha, que um grupo de homens esteja se preparando para ir a Roncelets para buscar o diabinho?

Belas fez uma pausa. Tinha ouvido um boato de que uma incursão daquelas estava sendo planejada, mas duvidara da veracidade do boato, porque histórias assim tinham sido contadas mais de vinte vezes e não tinham dado em nada. Mas algo no tom de Sir Geoffrey indicava que daquela vez devia haver algum pingo de verdade.

— Um grupo de homens — respondeu Belas, inexpressivo.

— Um grupo de homens — confirmou o Espantalho — que planeja ir até Roncelets e ficar esperando até que o queridinho seja levado para fora para a sua mijada matutina e então pegá-lo, trazê-lo de volta para cá e colocar os seus colhões na frigideira.

Belas desenrolou o pergaminho e fingiu tornar a lê-lo.

— Não há nada de surpreendente, Sir Geoffrey — disse ele, despreocupado —, no fato de madame Chenier conspirar para o retorno do filho. Isso já é de esperar. Mas por que o senhor vem me incomodar com isso? Que mal isso pode me causar? — Ele mergulhou no tinteiro a pena que acabara de ter a ponta feita. — E como é que o senhor sabe a respeito dessa incursão planejada?

— Porque eu faço as perguntas certas, não faço? — respondeu o Espantalho.

Na verdade, o Espantalho tinha ouvido rumores de que Thomas planejava uma incursão contra Rostrenen, mas outros homens da cidade tinham jurado que Rostrenen fora saqueada tantas vezes que agora um pardal morreria de fome lá. Por isso, imaginara o Espantalho, o que é que Thomas estava realmente fazendo? Sir Geoffrey estava certo de que Thomas estava à procura do tesouro, o mesmo tesouro que o levara até Durham, mas por que iria esse tesouro estar em Rostrenen? O que é que havia lá? Sir Geoffrey abordara um dos delegados de Richard Totesham numa taberna e pagara cerveja para o homem e perguntara a respeito de Rostrenen, e o homem dera uma risada e abanara a cabeça.

— O senhor não vai acreditar nesse absurdo — disse ele a Sir Geoffrey.

— Absurdo?

— Eles não vão a Rostrenen. Eles vão a Roncelets. Bem, nós não temos certeza disso — continuara o homem —, mas a condessa da Armórica está metida até o pescoço nessa história, de modo que isso significa que tem de ser Roncelets. E quer um conselho meu, Sir Geoffrey? Não se meta nisso. Não é à toa que chamam Roncelets de ninho de vespas.

Sir Geoffrey, mais confuso do que nunca, fez mais algumas perguntas e aos poucos foi percebendo que o Thesaurus que Thomas procurava não eram grossas moedas de ouro, nem sacos de couro cheios de jóias, mas terras: as propriedades bretãs do conde da Armórica, e se o filhinho de Jeanette jurasse vassalagem ao duque Jean, a causa inglesa na Bretanha receberia um impulso. Era um tesouro, por assim dizer, um tesouro político: não tão prazeroso quanto o ouro, mas ainda assim valioso. Exatamente o que a terra tinha a ver com Durham, o Espantalho não sabia. Talvez Thomas tivesse ido até lá para procurar algumas escrituras? Ou uma doação feita por um duque anterior? Algum absurdo criado por um advogado, e não tinha importância; o que importava era que Thomas estava viajando para capturar um menino que poderia trazer força política para o rei da Inglaterra, e Sir Geoffrey se perguntara, então, como poderia beneficiar-se do menino, e por algum tempo brincou com a idéia maluca de raptar o menino e levá-lo para Calais, mas então percebera que havia um lucro muito mais certo de obter simplesmente denunciando Thomas. Que era o motivo pelo qual ele ali estava, e Belas, segundo ele suspeitava, estava interessado, mas o advogado também fingia que a incursão contra Roncelets não era de sua conta, e por isso o Espantalho decidiu que estava na hora de forçar a mão do advogado. Levantou-se e tirou a jaqueta ensopada de chuva.

— O senhor não está interessado, monsieur? — perguntou. — Pois bem. O senhor conhece o seu metiê melhor do que eu, mas eu sei quantos homens vão a Roncelets e sei quem os lidera e posso lhe dizer quando eles irão.

A pena já não se movia e pingos de tinta caíam de sua ponta para manchar o pergaminho, mas Belas não percebeu, enquanto a voz desagradável do Espantalho continuava.

— É claro que eles não disseram a Totesham o que vão fazer, porque oficialmente ele não vai concordar. O que ele pode ou não pode fazer, eu não sei, de modo que acha que eles vão incendiar algumas fazendas perto de Rostrenen, o que pode ser que eles façam, pode ser que não, mas seja lá o que dizem ou seja lá o que o senhor Totesham pode acreditar, eu sei que eles vão a Roncelets.

— Como é que o senhor sabe? — perguntou Belas calmamente.

— Eu sei! — disse Sir Geoffrey em tom áspero.

Belas largou a pena.

— Sente-se — ordenou ele ao Espantalho — e diga-me o que deseja.

— Duas coisas — disse Sir Geoffrey enquanto tornava a sentar-se. — Vim para esta maldita cidade para ganhar dinheiro, mas temos colhido migalhas, monsieur, migalhas.

Muito pouco, porque as tropas inglesas passaram meses saqueando a Bretanha, e não havia fazendas num raio de um dia a cavalo que não tivessem sido incendiadas e roubadas, enquanto que ir mais longe no interior era arriscar-se e encontrar fortes patrulhas inimigas. Do lado de fora dos muros de suas fortalezas, a Bretanha era uma imensidão de emboscadas, perigos e ruínas, e o Espantalho descobrira logo que se tratava de um ambiente onde seria difícil ganhar uma fortuna.

— Então dinheiro é a primeira coisa que o senhor quer — disse Belas com azedume. — E a segunda?

— Refúgio — disse Sir Geoffrey.

— Refúgio?

— Quando Charles de Blois tomar a cidade — disse o Espantalho —, quero estar no seu pátio.

— Não consigo pensar por quê — disse Belas secamente —, mas é claro que será um prazer recebê-lo. E quanto ao dinheiro? — Ele lambeu os lábios. — Primeiro vamos ver a qualidade de sua informação.

— E se ela for boa? — perguntou o Espantalho.

Belas refletiu por um instante.

— Setenta écus? — sugeriu ele. — Oitenta, talvez?

— Setenta écus? — O Espantalho fez uma pausa para converter aquilo em libras, e vociferou: — Só dez libras! Não! Quero cem libras, e em moeda cunhada na Inglaterra.

Mas chegaram a um acordo em sessenta libras esterlinas, a serem pagas quando Belas tivesse provas de que Sir Geoffrey dizia a verdade, e que a verdade era que Thomas de Hookton ia liderar homens até Roncelets, e que eles iriam partir na véspera da Festa de São Valentim, que deveria acontecer dali a pouco mais de duas semanas.

— Por que demorar tanto? — quis saber Belas.

— Ele quer mais homens. Ele agora só tem doze e está tentando convencer outros a seguirem com ele. Está dizendo a eles que existe ouro em Roncelets.

— Se o senhor quer dinheiro — perguntou Belas, mordaz —, por que não vai com ele?

— Porque em vez disso eu vim falar com o senhor — respondeu Sir Geoffrey.

Belas recostou-se na cadeira e juntou as mãos pelas pontas dos dedos pálidos e compridos.

— E isso é tudo o que o senhor quer? — perguntou ele ao inglês. — Algum dinheiro e refúgio?

O Espantalho levantou-se, curvando a cabeça sob as vigas baixas do teto da sala.

— O senhor me paga uma vez — disse ele — e depois me paga outra vez.

— Talvez — disse Belas, evasivo.

— Eu lhe dou o que o senhor quer — disse Sir Geoffrey — e o senhor me paga.

Ele foi até a porta e então parou, porque Belas o chamara de volta.

— O senhor disse Thomas de Hookton? — perguntou Belas, e havia um inegável interesse no seu tom de voz.

— Thomas de Hookton — confirmou o Espantalho.

— Obrigado — disse Belas, e olhou para um pergaminho que acabara de desenrolar e pareceu que ele encontrara o nome de Thomas escrito nele, porque seu dedo confirmou e ele sorriu. — Obrigado — repetiu e, para espanto de Sir Geoffrey, apanhou uma pequena bolsa de um baú ao lado da escrivaninha e empurrou-a em direção do Espantalho. — Por essa notícia, Sir Geoffrey, eu lhe agradeço.

Sir Geoffrey, de volta ao pátio, descobriu que tinha recebido dez libras em ouro inglês. Dez libras apenas por mencionar o nome de Thomas? Ele desconfiou que havia muito mais a saber sobre os planos de Thomas, mas pelo menos agora ele tinha ouro no bolso, de modo que a visita ao advogado fora lucrativa e havia a promessa de mais ouro do advogado.

Mas ainda caía aquela porcaria de chuva.

Thomas convenceu Richard Totesham de que em vez de escrever um novo apelo ao rei eles deveriam apelar para o conde de Northampton, que agora estava entre os líderes do exército que sitiava Calais. A carta lembrava a sua excelência sua grande vitória em capturar La Roche-Derrien e salientava que aquela realização poderia ter sido em vão se a guarnição não fosse reforçada. Richard Totesham ditou a maioria das palavras e Will Skeat fez uma cruz ao lado do seu nome no fim da carta que afirmava, com exatidão, que Charles de Blois estava reunindo um novo e poderoso exército em Rennes.

“Mestre Totesham”, escreveu Thomas, “que envia a Vossa Excelência humildes saudações, calcula que o exército de Charles já conta com mil soldados, o dobro dessa quantidade de besteiros e outros homens, enquanto em nossa guarnição mal temos cem homens em plena saúde. Por outro lado seu parente Sir Thomas Dagworth, que está a uma distância de uma semana de marcha, não pode reunir mais de seiscentos ou setecentos homens.”

Sir Thomas Dagworth, o comandante inglês na Bretanha, era casado com a irmã do conde de Northampton e Totesham tinha esperança de que só o orgulho familiar convenceria o conde a evitar uma derrota na Bretanha, e se Northampton mandasse os arqueiros de Skeat, apenas os arqueiros e não os soldados, aquilo iria dobrar o número de arqueiros nos muros de La Roche-Derrien e dar a Totesham uma chance de resistir a um sítio. Mande os arqueiros, pedia a carta, com seus arcos, suas flechas, mas sem os cavalos, e Totesham os devolveria a Calais depois que Charles de Blois fosse rechaçado.

— Ele não vai acreditar nisso — resmungou Totesham —, vai pensar que eu vou querer ficar com eles, e por isso providencie para que ele saiba que se trata de uma promessa solene. Diga-lhe que juro por Nossa Senhora e por São Jorge que os arqueiros voltarão.

A descrição do exército de Charles de Blois era bem verdadeira. Espiões a soldo dos ingleses mandaram avisar que de fato Charles estava ansioso que seus inimigos ficassem sabendo, porque quanto maior fosse a inferioridade numérica da guarnição de La Roche-Derrien, menores seriam as esperanças dela. Charles já estava com quase quatro mil homens, toda semana chegavam mais, e seus engenheiros tinham contratado nove grandes máquinas de sítio para atirar pedras contra os muros das cidades e fortalezas inglesas no seu ducado. La Roche-Derrien seria atacada em primeiro lugar, e poucos eram os que lhe davam uma esperança de durar mais do que um mês.

— Espero que não seja verdade — disse Totesham a Thomas em tom amargurado, depois que a carta foi escrita — que você tem planos para Roncelets?

— Roncelets? — Thomas fingiu não ter ouvido falar na cidade. — Roncelets não, senhor, mas Rostrenen.

Totesham olhou para Thomas com antipatia.

— Não há nada em Rostrenen — disse com frieza o comandante da guarnição.

— Ouvi dizer que lá existe comida, senhor — disse Thomas.

— Ao passo que — continuou Totesham como se Thomas não tivesse falado — dizem que o filho da condessa da Armórica está preso em Roncelets.

— É mesmo, senhor? — perguntou Thomas, dissimulado.

— E se o que você quer é fornicar — Totesham ignorou as mentiras de Thomas —, posso recomendar o bordel atrás da capela de São Brieuc.

— Nós vamos a Rostrenen — insistiu Thomas.

— E nenhum de meus homens vai com você — disse Totesham, o que significava nenhum que recebesse salário dele, embora isso ainda deixasse de fora os mercenários.

Sir Guillaume tinha concordado em acompanhar Thomas, apesar de estar em dúvida quanto às perspectivas de sucesso. Comprara cavalos para si e para seus dois soldados, mas reconhecia que eram de má qualidade.

— Se houver uma perseguição vinda de Roncelets — disse ele —, vamos levar uma surra. Por isso leve bastante gente para fazer uma briga decente.

O primeiro instinto de Thomas tinha sido seguir com apenas um número reduzido de pessoas, mas poucos homens em cavalos ruins seriam uma isca fácil. Mais homens tornavam a expedição mais segura.

— E por falar nisso, por que é que você vai? — perguntou Sir Guillaume. — Só para entrar nas saias da viúva?

— Porque eu fiz uma promessa a ela — disse Thomas, e era verdade, embora a razão sugerida por Sir Guillaume fosse mais verdadeira. — E porque — prosseguiu Thomas — preciso fazer com que os meus inimigos saibam que estou aqui.

— Você se refere a de Taillebourg? — perguntou Sir Guillaume. — Ele já sabe.

— Você acha?

— O irmão Germain deve ter contado a ele — disse Sir Guillaume, confiante —, caso em que acho que o seu dominicano já está em Rennes. Ele virá atrás de você daqui a pouco.

— Se eu atacar Roncelets — disse Thomas —, eles vão ouvir falar sobre mim. Aí poderei ter a certeza de que virão.

Chegada a festa da Purificação da Virgem Maria, ele sabia que poderia contar com Robbie, com Sir Guillaume e seus dois soldados, além de haver encontrado outros sete que foram atraídos pelos rumores da riqueza de Roncelets ou pela perspectiva de bom conceito junto a Jeanette. Robbie queria partir de imediato, mas Will Skeat, da mesma forma que Sir Guillaume, aconselhou Thomas a levar um grupo maior.

— Isto aqui não é como o norte da Inglaterra — disse Skeat —, a gente não pode correr para a fronteira. Se você for apanhado, Thomas, vai precisar de uma dúzia de bons homens para brigar com escudos e quebrar cabeças. Acho que devia ir com você.

— Não — apressou-se a dizer Thomas.

Skeat tinha seus momentos de lucidez, mas com demasiada freqüência ficava confuso e desmemoriado, apesar de agora tentar ajudar Thomas ao recomendar outros homens para participarem da incursão. A maioria recusava o convite: a Torre de Roncelets ficava muito longe, alegavam eles, ou o senhor de Roncelets era poderoso demais e os riscos para os atacantes eram demasiado grandes. Alguns tinham medo de ofender Totesham, o qual, temendo perder alguém de sua guarnição, decretara que nenhuma incursão deveria ir a mais de um dia a cavalo da cidade. Sua cautela significava que era pouco o que havia para saquear, e só os mercenários mais pobres, desesperados por qualquer coisa que pudessem transformar em dinheiro, se ofereceram para acompanhar Thomas.

— Doze homens são o bastante — insistiu Robbie. — Meu doce Cristo, eu já participei de muitas incursões contra a Inglaterra. Uma vez meu irmão e eu tiramos um gado de Lorde Percy com apenas três outros homens, e Percy colocou o condado todo atrás de nós. Entre rápido e saia mais depressa ainda. Doze homens chegam.

Thomas estava quase convencido pelas palavras ardentes de Robbie, mas preocupava-se com o fato de as chances ainda estarem muito desiguais e os cavalos em condições muito ruins para permitir que eles entrassem depressa e saíssem mais rapidamente.

— Eu quero mais homens — disse ele a Robbie.

— Se continuar agitado — disse-lhe Robbie —, os inimigos vão saber de suas intenções. Eles estarão à nossa espera.

— Não vão saber onde esperar — disse Thomas — nem o que pensar.

Ele espalhara vários rumores sobre a finalidade da incursão e esperava que o inimigo ficasse totalmente confuso.

— Mas nós partiremos em breve — prometeu ele a Robbie.

— Meu doce Deus, a quem falta perguntar? — perguntou Robbie. — Vamos partir agora!

Mas naquele mesmo dia chegou um navio a Tréguier e mais três soldados flamengos foram para a guarnição. Thomas descobriu-os na noite daquele dia numa taberna à margem do rio. Os três reclamaram, dizendo que tinham estado nas linhas inglesas em Calais, mas que lá havia muito pouca luta e, com isso, eram poucas as perspectivas de prisioneiros ricos. Queriam tentar a sorte na Bretanha, e por isso tinham ido para La Roche-Derrien. Thomas falou com o líder deles, um homem magro, com uma boca retorcida e sem dois dedos na mão direita, que ouviu, grunhiu um sinal de que entendera e disse que iria pensar no assunto. Na manhã seguinte todos os três flamengos foram à taberna Two Foxes e disseram que estavam dispostos a participar.

— Viemos aqui para lutar — disse o líder, que se chamava Lodewijk —, e por isso iremos.

— Pois então, vamos partir! — insistiu Robbie com Thomas.

Thomas gostaria de recrutar ainda mais homens, mas sabia que já tinha esperado bastante.

— Nós vamos — disse ele a Robbie, e foi procurar Will Skeat. Fez com que o homem mais velho prometesse ficar de olho em Jeanette. Ela gostava de Skeat e confiava nele, e Thomas tinha confiança bastante para deixar com ela o livro de notas de seu pai.

— Voltaremos daqui a seis ou sete dias — disse ele.

— Que Deus o acompanhe — disse Jeanette. Ela agarrou-se a Thomas por um instante. — Que Deus o acompanhe — repetiu — e traga meu filho.

Na madrugada seguinte, num nevoeiro que emperolava suas longas cotas de malha, os quinze cavaleiros partiram.


LODEWIJK — ele insistia em que era Sir Lodewijk, mas seus dois companheiros davam risadas abafadas sempre que ele o dizia — recusava-se a falar francês, alegando que aquele idioma deixava sua língua amarga.

— Os franceses — afirmava — são um povo sujo. Sujo. O termo é bom, ja? Sujo?

— O termo é bom — concordou Thomas.

Jan e Pieter, os companheiros de Sir Lodewijk, falavam apenas num flamengo gutural salpicado de um punhado de palavrões ingleses que deviam ter aprendido em Calais.

— O que é que se passa em Calais? — perguntou Thomas a Sir Lodewijk enquanto cavalgavam para o sul.

— Nada. A cidade está... como se diz? — Sir Lodewijk fez um movimento circular com a mão.

— Cercada.

— Ja, a cidade está cercada. Pelos ingleses, ja? E por... — Ele fez uma pausa, na dúvida quanto à palavra desejada, e então apontou para um trecho de terreno alagado que ficava a leste da estrada. — Por aquilo.

— Pântanos.

— Ja! Por pântanos. E os danados dos franceses estão no... — Uma vez mais ficou sem palavras, de modo que num gesto brusco apontou o dedo protegido por malha para o céu ameaçador.

— Terreno mais alto? — adivinhou Thomas.

— Ja! Danado de terreno alto. Não tão danado de alto, eu acho, mas mais alto. E eles... — Ele colocou a mão sobre os olhos, como para fazer sombra sobre eles.

— Ficam olhando?

— Ja! Eles ficam olhando uns para os outros. De modo que não acontece nada, mas eles e nós ficamos danados de molhados. Molhados pra cachorro, ja?

Eles ficaram molhados mais tarde naquela manhã, quando as chuvas vieram do oceano. Grandes cortinas cinzentas açoitavam as fazendas desertas e as charnecas dos terrenos elevados, onde as árvores estavam permanentemente curvadas para o leste. Quando Thomas foi à Bretanha pela primeira vez, aquela era uma área produtiva com fazendas, pomares, moinhos e pastagens, mas agora estava devastada. As árvores frutíferas, sem tratamento, estavam grossas de tantos piscos-chilreiros, os campos estavam sufocados por ervas daninhas, e os pastos enredados em grama de ponta. Aqui e ali algumas pessoas tentavam arrancar um sustento, mas estavam constantemente sendo obrigadas a ir para La Roche-Derrien para trabalhar nos reparos, e seus produtos e seu gado eram sempre roubados por patrulhas inglesas. Se alguns daqueles bretões notaram os quinze cavaleiros, tiveram o cuidado de esconder-se, e por isso parecia que Thomas e seus companheiros cavalgavam por uma região deserta.

Eles seguiam com um cavalo de reserva. Deveriam ter levado mais, porque só os três flamengos estavam montados em bons garanhões. Em geral, as viagens marítimas exerciam efeitos nocivos aos cavalos, mas Sir Lodewijk deixou claro que a viagem deles tinha sido de uma rapidez fora do comum.

— Ventos danados, ja? — Ele girou a mão e emitiu um som de sopro para sugerir a força dos ventos que tinham feito com que os corcéis chegassem em tão boas condições. — Rápido! Rápido pra danar!

Os flamengos não só estavam bem montados, mas bem equipados. Jan e Pieter usavam belos casacões de malha, enquanto Sir Lodewijk estava com o peito, as coxas e um dos braços protegidos por boas armaduras que estavam amarradas por cima de uma cota de malha forrada de couro. Os três usavam casacos pretos com uma larga listra branca descendo na frente e nas costas, e todos tinham escudos sem ornamento algum, apesar de o manto do cavalo de Sir Lodewijk exibir um emblema mostrando uma faca da qual pingava sangue. Ele tentou explicar o motivo, mas o inglês dele não deu, e Thomas ficou com a vaga impressão de que era a marca de uma guilda comercial de Bruges.

— Açougueiros? — sugeriu ele a Robbie. — Foi isso o que ele disse? Açougueiros?

— Açougueiros não fazem guerra. Exceto contra os porcos — disse Robbie. Ele estava de ótimo humor. Fazer incursões estava no seu sangue, e ele ouvira histórias nas tabernas de La Roche-Derrien sobre o saque que podia ser roubado se o homem estivesse disposto a infringir o regulamento de Richard Totesham e afastar-se da cidade mais do que um dia de viagem. — O problema no norte da Inglaterra é que se uma coisa vale a pena ser roubada, ela está por trás de grandes muros. Nós nos arrumamos pegando algumas cabeças de gado de vez em quando, e há um ano roubamos um belo cavalo do meu Lorde Percy, mas não há ouro e prata para se roubar. Nada que se pudesse chamar de saque de verdade. Os vasos usados nas missas são todos de madeira, peltre ou barro, e as caixas de esmolas estão mais duras que os pobres. E se a gente se afastar muito para o sul, os bastardos estarão à nossa espera na volta para casa. Odeio arqueiros ingleses.

— Eu sou um arqueiro inglês.

— Você é diferente — disse Robbie, e estava sendo sincero, porque estava intrigado com Thomas.

A maioria dos arqueiros tinha nascido no interior, filhos de pequenos proprietários rurais, ferreiros ou bailios, enquanto uns poucos eram filhos de operários, mas nenhum, segundo a experiência de Robbie, era bem-nascido, o que, evidentemente, Thomas era, porque falava francês e latim, sentia-se à vontade em companhia de senhores, e outros arqueiros acatavam sua opinião. Robbie podia parecer um lutador escocês selvagem, mas era filho de um cavalheiro e sobrinho do Cavaleiro de Liddesdale, e por isso considerava os arqueiros seres inferiores que, num universo preparado de forma adequada, poderiam ser derrubados e mortos como caça. Mas ele gostava de Thomas.

— Você é diferente — voltou a dizer. — Veja bem, quando o meu resgate for pago e eu chegar em casa são e salvo, vou voltar para te matar.

Thomas soltou uma gargalhada, mas foi uma gargalhada forçada. Ele estava nervoso. Atribuiu o nervosismo à situação estranha de chefiar uma incursão. Aquilo tinha sido idéia sua, foram suas promessas que levaram a maioria daqueles homens na longa viagem. Ele alegara que Roncelets, por estar tão longe de qualquer baluarte inglês, ficava em território que não tinha sido saqueado. Roubassem a criança, prometera ele, e depois poderiam saquear o quanto quisessem ou, pelo menos, até que o inimigo acordasse e organizasse uma perseguição, e aquela promessa convencera homens a segui-lo, e a responsabilidade daquilo pesava sobre Thomas. Ele também não gostava de se preocupar. Afinal, sua ambição era ser o líder de um bando de guerra, como Will Skeat tinha sido antes da contusão, e que esperança tinha ele de ser um bom líder se se preocupava com uma pequena incursão como aquela? No entanto se preocupava, e se preocupava ainda mais com a possibilidade de não ter previsto tudo que poderia dar errado; e os homens que tinham se juntado a ele não serviam de consolo, porque, à exceção de seus amigos e dos recém-chegados flamengos, eles eram os mais pobres e os menos bem equipados de todos os aventureiros que tinham ido para La Roche-Derrien em busca de riqueza. Um deles, um soldado brigão do oeste da Bretanha, ficou bêbado no primeiro dia e Thomas descobriu que ele tinha dois odres para levar água cheios de uma forte bebida feita de maçã. Ele rompeu os dois odres, e o enraivecido bretão sacou da espada e atacou Thomas, mas estava bêbado demais para enxergar com nitidez. Um joelho na virilha e um golpe em sua cabeça o derrubaram. Thomas tirou o cavalo do homem e deixou-o gemendo na lama, o que significava que estava reduzido agora a quatorze homens.

— Isso vai ajudar — disse Sir Guillaume, alegre.

Thomas não disse nada. Achou que merecia que zombassem dele.

— Não, eu estou sendo sincero! Você derruba um homem um dia e poderá derrubá-lo de novo. Sabe por que alguns homens são maus líderes?

— Por quê?

— Eles querem que os outros gostem deles.

— Isso é mau? — perguntou Thomas.

— Os homens querem admirar os seus líderes, querem temê-los, e acima de tudo querem que ele tenha sucesso. O que é que gostarem dele tem alguma coisa a ver com qualquer desses detalhes? Se o líder for um homem bom, o pessoal vai gostar dele, e se não for, não vai gostar, e se ele for um homem bom e um mau líder é melhor morrer. Está vendo? Eu tenho muita sabedoria.

Sir Guillaume riu. Ele podia estar com azar, seu solar perdido e sua fortuna acabada, mas ele estava seguindo para uma luta, e aquilo o animava.

— O lado bom dessa chuva — disse ele — é que o inimigo não vai esperar que você viaje nela. Isso é tempo para se ficar em casa.

— Eles vão saber que nós saímos de La Roche-Derrien — disse Thomas. Ele tinha certeza de que Charles de Blois tinha tantos espiões na cidade quanto os ingleses tinham em Rennes.

— Ele ainda não deve saber — disse Sir Guillaume. — Nós estamos viajando mais depressa do que qualquer mensageiro pode viajar. De qualquer modo, apesar de saberem que deixamos La Roche-Derrien, eles não sabem para onde vamos.

Eles seguiram para o sul na esperança de que o inimigo pensasse que planejavam saquear as fazendas perto de Guingamp e, quando o primeiro dia ia avançado, desviaram-se para leste e subiram para uma região descampada. As aveleiras estavam em flor e gralhas chamavam do alto dos olmos desfolhados, sinais de que o ano estava se afastando do inverno. Acamparam numa fazenda deserta, protegidos por baixos muros de pedra chamuscados, e antes de o último lampejo de crepúsculo desaparecer, tiveram uma boa notícia quando Robbie, remexendo pelas ruínas do celeiro, descobriu uma sacola de couro semi-enterrada ao lado do muro irregular. A chuva exorbitante levara embora a terra que estava em cima da sacola, que continha uma pequena salva de prata e três punhados de moedas. Quem enterrara o dinheiro devia ter achado as moedas muito pesadas para carregar ou então tivera medo de ser roubado durante seu exílio da casa.

— Nós, como se diz? — Sir Lodewijk fez com a mão um gesto como se estivesse cortando uma torta em pedaços.

— Dividimos?

— Ja! Nós dividimos?

— Não — disse Thomas. Não tinha sido aquilo o combinado. Ele teria preferido ter dividido, porque era assim que Will Skeat tinha tratado dos espólios, mas os homens que andavam com ele queriam guardar tudo o que encontrassem.

Sir Lodewijk empertigou-se.

— É como nós fazemos, ja? Nós dividimos.

— Nós não dividimos — disse Sir Guillaume, ríspido —, ficou combinado assim.

Ele falou em francês, e Sir Lodewijk reagiu como se tivesse sido agredido, mas compreendeu perfeitamente e limitou-se a fazer meia-volta e afastar-se.

— Diga ao seu amigo escocês para vigiar as costas dele — disse Sir Guillaume a Thomas.

— Lodewijk não é tão mau assim — disse Thomas —, o senhor só não gosta dele porque ele é flamengo.

— Eu odeio os flamengos — concordou Sir Guillaume. — São uns porcos maçantes, broncos. Como os ingleses.

A pequena discussão com os flamengos não supurou. Na manhã seguinte Sir Lodewijk e seus companheiros estavam animados e, como os cavalos estavam muito mais descansados e em melhores condições do que quaisquer outros, eles se ofereceram, com muito inglês mal falado e esmerados sinais com as mãos, para seguir na frente como batedores, e o dia todo seus casacos preto-e-branco apareceram e desapareceram muito à frente, e todas as vezes eles acenavam para que o grupo principal avançasse, sinalizando que não havia perigo. Quanto mais penetravam em território inimigo, maior era o risco, mas a vigilância dos flamengos significou que tinham feito um bom progresso. Eles avançavam por uma trilha sinuosa de ambos os lados da estrada principal que ia de leste a oeste ao longo da espinha dorsal da Bretanha, uma estrada margeada por bosques cerrados, que escondiam os incursores das poucas pessoas que viajavam pela estrada. Viram apenas dois tropeiros com seu gado magricela e um padre levando um bando de peregrinos que caminhavam descalços, agitavam ramos em frangalhos e entoavam um canto fúnebre. Nada a arrecadar ali.

No dia seguinte seguiram para o sul novamente. Estavam entrando agora numa região na qual as fazendas tinham escapado dos atacantes ingleses, e em virtude disso as pessoas não tinham medo de homens a cavalo e os pastos estavam cheios de ovelhas e seus filhotes recém-nascidos, muitos dos quais tinham sido feitos em sangrentos pedaços, porque os homens da Bretanha estavam ocupados demais caçando uns aos outros, e por isso as raposas trabalhavam e as ovelhas morriam. Cães pastores latiram para os homens em cotas de malha cinza, e dessa vez Thomas já não mandou os flamengos seguirem na frente, mas ele e Sir Guillaume lideravam os cavaleiros e, quando eram interpelados, respondiam em francês, dizendo-se partidários de Charles de Blois.

— Onde fica Roncelets? — perguntavam a toda hora, e a princípio não acharam ninguém que soubesse, mas à medida que a manhã avançava descobriram um homem que pelo menos tinha ouvido falar no lugar, e depois um outro que disse que uma vez o pai dele estivera lá e que ele achava que ficava depois da crista da montanha, da floresta e do rio, e então um terceiro, que lhes forneceu informações precisas. A torre, disse ele, não estava a mais de meio dia de viagem, no extremo de uma longa crista coberta de floresta que corria entre dois rios. Ele mostrou onde eles deviam vadear o rio mais próximo, disse-lhes que seguissem a crista da cadeia de montanhas em direção sul e depois curvou a cabeça em agradecimento pela moeda que Thomas lhe deu.

Eles atravessaram o rio, subiram a crista e seguiram para o sul. Thomas percebeu que deviam estar perto de Roncelets quando pararam para passar a terceira noite, mas não insistiu porque reconheceu que seria melhor chegar à torre ao amanhecer, e assim eles acamparam sob faias, tremendo porque não ousavam acender uma fogueira, e Thomas dormiu muito mal, porque estava ouvindo coisas estranhas estalando e se arrastando no interior da floresta, e temia que aqueles ruídos pudessem ser feitos por patrulhas enviadas pelo senhor de Roncelets. No entanto nenhuma patrulha os encontrou. Thomas duvidava que houvesse quaisquer patrulhas, exceto na sua imaginação, mas mesmo assim não conseguiu dormir e muito cedo, enquanto os outros ressonavam, andou às cegas por entre as árvores até o flanco da crista que descia íngreme e olhou fixo para a noite, na esperança de ver um bruxulear de luz emitido das ameias da Torre de Roncelets. Não viu nada, mas ouviu ovelhas emitindo um balido de lamentação declive abaixo e imaginou que uma raposa tinha se metido entre as ovelhas e as estava matando.

— O pastor não está fazendo o seu trabalho.

Alguém falou em francês e Thomas se voltou, pensando que se tratasse de um dos soldados de Sir Guillaume, mas viu, à fraca luz da lua, que era Sir Lodewijk.

— Eu pensei que você não falasse francês — disse Thomas.

— Às vezes falo — disse Sir Lodewijk e caminhou para colocar-se ao lado de Thomas e então, sorrindo, bateu um porrete improvisado contra a barriga de Thomas e, quando Thomas ficou sem respiração e se curvou, o flamengo bateu com o galho quebrado na cabeça dele e depois chutou-o no peito. O ataque foi repentino, inesperado e avassalador. Thomas lutava para recuperar o fôlego, quase caiu dobrado em dois, cambaleando, e tentou endireitar o corpo e agarrar os olhos de Sir Lodewijk, mas o porrete atingiu-o num ruidoso golpe do lado da cabeça e Thomas foi ao chão.

Os três cavalos dos flamengos tinham sido amarrados a árvores a uma pequena distância dos outros. Ninguém achara aquilo estranho e ninguém observara que os animais tinham sido deixados selados e ninguém acordou quando os cavalos foram desamarrados e levados para longe. Só Sir Guillaume se mexera quando Sir Lodewijk apanhava suas peças de armadura.

— Já está amanhecendo? — perguntou ele.

— Ainda não — respondeu Sir Lodewijk num francês afável, e depois levou as armaduras e as armas para a beira da floresta, onde Jan e Pieter amarravam os pulsos e os calcanhares de Thomas. Eles o penduraram de barriga para baixo nas costas de um dos cavalos, prenderam-no à barrigueira do animal e depois levaram-no em direção leste.

Sir Guillaume acordou de fato vinte minutos depois. Os pássaros enchiam as árvores de cantos e o sol era uma sugestão de luz no leste enevoado.

Thomas tinha desaparecido. Sua cota de malha, a sacola de flechas, a espada, o elmo, a capa, a sela e o grande arco preto estavam todos lá, mas Thomas e os três flamengos tinham desaparecido.

Thomas foi levado para a Torre de Roncelets, uma fortaleza quadrada, sem adornos, que se erguia de um afloramento de rocha acima de uma curva do rio. Uma ponte, feita com a mesma pedra cinza da torre, levava a estrada principal até Nantes, do outro lado do rio, e nenhum comerciante podia atravessar a ponte com seus produtos sem pagar direitos ao senhor de Roncelets, cujo estandarte de duas asnas pretas sobre um campo amarelo tremulava dos altos reparos da torre. Seus homens usavam as listras pretas e amarelas no libré e eram inevitavelmente chamados de guêpes, vespas. Àquela distância, na região leste da Bretanha, os habitantes falavam francês e não bretão, e a torre deles tinha o apelido de Guêpier, o vespeiro, embora naquela manhã de fins de inverno a maioria dos soldados da aldeia usasse librés pretos lisos, e não as listras que lembravam as vespas do senhor de Roncelets. Os recém-chegados foram acomodados nos pequenos chalés que ficavam entre a Guêpier e a ponte, e foi num daqueles chalés que Sir Lodewijk e seus dois companheiros voltaram a juntar-se aos seus camaradas.

— Ele está lá no castelo — Sir Lodewijk fez um gesto com a cabeça em direção à torre — e que Deus o ajude.

— Sem problemas? — perguntou um homem.

— Sem problema nenhum — disse Sir Lodewijk. Ele havia sacado uma faca e soltava as listras brancas que tinham sido costuradas no seu casaco. — Ele facilitou a coisa para nós. Um inglês idiota, hein?

— E por que é que eles o procuram?

— Deus sabe, e quem se importa? Tudo o que importa é que eles o pegaram e o diabo irá recebê-lo em breve. — Sir Lodewijk deu um bocejo enorme. — Há mais doze deles lá na floresta, de modo que vamos procurá-los.

Cinqüenta cavalarianos saíram da aldeia em direção oeste. O som das patas dos cavalos e das barbelas e das armaduras de couro que estalavam era alto, mas desapareceu rapidamente quando eles entraram no bosque cerrado da crista. Um par de pica-peixes, de um azul surpreendente, seguiu rio acima e desapareceu nas sombras. Longas ervas daninhas ondulavam na corrente onde um faiscar de prata mostrava que os salmões estavam voltando. Uma jovem carregava um balde de leite pela rua da aldeia e chorava porque durante a noite fora estuprada por um dos soldados de libré preto e sabia que era inútil reclamar, porque ninguém iria protegê-la ou mesmo fazer um protesto em seu nome. O padre da aldeia a viu, percebeu por que ela chorava e inverteu seu caminho para não ter de ficar cara a cara com ela. A bandeira preta e amarela sobre os reparos da Guêpier drapejou numa fraca lufada de vento e depois pendeu imóvel. Dois jovens com falcões encapuzados pousados nos braços saíram da torre a cavalo e viraram em direção sul. A grande porta rangeu ao fechar-se depois que eles passaram, e o barulho da pesada barra de trava encaixando-se nos suportes foi ouvido em toda a aldeia.

Thomas também ouviu. O barulho vibrou através da rocha sobre a qual a Guêpier fora construída e reverberara subindo a escada em espiral até o comprido e vazio aposento para onde ele tinha sido levado. Duas janelas iluminavam a câmara, mas a parede era tão grossa e os vãos eram tão profundos, que Thomas, acorrentado entre as janelas, não conseguia olhar por nenhuma delas. Uma lareira vazia ficava na parede oposta, as pedras do chapéu da chaminé manchadas de preto. As largas tábuas do chão estavam arranhadas e gastas por um número demasiado de botas cheias de pregos, e Thomas concluiu que aquilo tinha sido um quarto para soldados. Provavelmente ainda era, mas agora precisavam do aposento para usá-lo como a prisão. Os soldados tinham com certeza recebido ordem de sair. Thomas fora carregado para lá e acorrentado à argola de ferro chumbada na parede entre as duas janelas. Os grilhões circundavam-lhe os pulsos e os mantinham em suas costas, ligados à argola de ferro na parede por quase um metro de corrente. Ele testara a argola, vendo se podia deslocá-la ou mesmo romper um elo, mas tudo o que conseguiu foi machucar os pulsos. Uma mulher soltou uma risada em algum lugar da torre. Pés soaram na escada em espiral do lado de fora da porta, mas ninguém entrou no aposento e as passadas desapareceram aos poucos.

Thomas ficou imaginando por que a argola de ferro tinha sido chumbada na parede. Ela parecia uma coisa estranha para existir tão alto na torre, onde nenhum cavalo precisaria ser amarrado. Talvez ela tivesse sido colocada ali quando o castelo foi construído. Certa vez, ele tinha visto homens transportando pedras para o alto de uma torre de igreja, e eles tinham usado uma roldana presa a uma argola como aquela. Era melhor pensar na argola e em pedras e em pedreiros construindo a torre, do que matutar sobre a sua idiotice ao ser capturado com tanta facilidade, ou ficar se perguntando o que estaria para lhe acontecer, embora, é claro, ele pensasse mesmo naquilo e em ponto algum de sua imaginação a resposta era animadora. Tornou a forçar a argola, esperando que ela estivesse ali há muito tempo e que o reboco que a acolhia tivesse ficado fraco, mas tudo o que conseguiu foi arranhar a pele dos pulsos nas bordas afiadas dos grilhões. A mulher tornou a dar uma risada e ouviu-se a voz de uma criança.

Um pássaro voou para uma das janelas, bateu asas por alguns instantes e desapareceu de novo, evidentemente rejeitando o aposento como local para construir um ninho. Thomas fechou os olhos e recitou, baixinho, a oração do Graal, a mesma oração que Cristo rezara em Getsêmane: “Pater, si vis, transfer calicem istum a me.” Pai, se for tua vontade, afasta de mim este cálice. Thomas repetiu a oração várias vezes, desconfiando de que se tratava de um esforço em vão. Deus, que não havia poupado seu próprio filho da agonia do Gólgota, por que iria poupar Thomas? No entanto, que esperança tinha ele sem a oração? Sentia vontade de chorar por sua ingenuidade ao pensar que poderia ir até ali e de alguma maneira retirar o menino daquela cidadela que fedia a fumaça de lenha, estrume de cavalo e gordura rançosa. Tinha sido tudo muito estúpido, e ele sabia que não tinha feito aquilo pelo Graal, mas para impressionar Jeanette. Era um bobo, um bobalhão, e como um boboca caíra na armadilha do inimigo e sabia que ninguém pagaria resgate por ele. Que valor podia ter? Mas já que era assim, por que ainda estava vivo? Porque eles queriam alguma coisa que ele possuía, e naquele exato momento a porta do aposento foi aberta e Thomas abriu os olhos.

Um homem, usando a batina preta de um monge, levou dois cavaletes para dentro do aposento. Ele tinha cabelos sem tonsura, sugerindo que era um criado leigo de um mosteiro.

— Quem é você? — perguntou Thomas.

O homem, que era baixo e mancava ligeiramente, não deu resposta, mas apenas colocou os dois cavaletes no centro do chão e, um momento depois, levou cinco tábuas que colocou sobre os cavaletes para fazer uma mesa. Um segundo homem de cabelos sem tonsura, igualmente vestindo uma batina preta, entrou no aposento e olhou para Thomas.

— Quem é você? — tornou a perguntar Thomas, mas o segundo homem era tão calado quanto o primeiro. Ele era um homem grande, com saliências ossudas sobre os olhos e faces covadas, e inspecionou Thomas como se estivesse analisando um boi na hora do abate.

— Vai acender a fogueira? — perguntou o primeiro homem.

— Daqui a pouco — disse o segundo homem e tirou uma faca de lâmina curta de uma bainha que estava no seu cinto e aproximou-se de Thomas.

— Não se mexa — grunhiu ele — e assim você não vai se machucar.

— Quem é você?

— Ninguém que você conheça e ninguém que um dia venha a conhecer — disse o homem. Agarrou a gola do gibão de lã de Thomas e, com um golpe violento, rasgou-o na frente. A lâmina tocou, mas não cortou a pele de Thomas. Thomas recuou, mas o homem simplesmente o seguiu, golpeando e puxando o pano rasgado até que o peito de Thomas ficou desnudo. Depois cortou as mangas e arrancou o gibão, de modo que Thomas ficou nu da cintura para cima. Então o homem apontou para o pé direito de Thomas.

— Levante-o — ordenou ele. Thomas hesitou e o homem suspirou. — Posso obrigar você a isso — disse ele — e vai doer, ou você mesmo pode fazê-lo e aí não vai doer.

Ele tirou as duas botas de Thomas e depois cortou a cintura do calção.

— Não! — protestou Thomas.

— Poupe o fôlego — disse o homem, e serrou, puxou e rasgou com a lâmina até cortar o calção e poder arrancá-lo, para deixar Thomas tremendo e nu. Então o homem apanhou as botas e as roupas rasgadas e levou-as para fora.

O outro homem levava coisas para dentro do aposento e colocava-as em cima da mesa. Havia um livro e um vaso, presumivelmente de tinta, porque o homem colocou duas penas de ganso ao lado do livro e uma pequena faca de cabo de marfim para afiar as pontas. Depois colocou um crucifixo em cima da mesa, duas velas grandes como as que enfeitavam o altar de uma igreja, três atiçadores, um par de torqueses e um instrumento curioso que Thomas não conseguia ver bem. Por último, colocou duas cadeiras atrás da mesa e um balde de madeira ao alcance de Thomas.

— Sabe para que serve isso, não sabe? — perguntou, derrubando o balde com o pé.

— Quem é você? Por favor!

— Nós não queremos que você suje o chão, não é?

O homem maior voltou para o aposento carregando um pouco de gravetos e um cesto de lenha.

— Pelo menos, vai ficar aquecido — disse a Thomas com evidente satisfação. Ele tinha um pequeno vaso de barro cheio de brasas brilhantes, que usou para acender os gravetos, depois empilhou as achas de lenha menores e estendeu as mãos para as chamas que aumentavam. — Bem quentinho — disse ele —, e isso é uma bênção no inverno. Nunca vi um inverno igual a este! Chuva! Devíamos estar construindo uma arca.

Bem ao longe, um sino tocou duas vezes. O fogo começou a estalar e um pouco da fumaça vazou para dentro do aposento, talvez porque a chaminé estivesse fria.

— O que ele gosta mesmo — disse o homem grande que preparara a lareira — é de um braseiro.

— Quem? — perguntou Thomas.

— Ele sempre gosta de um braseiro, mas eu disse a ele que num chão de madeira, não dá.

— Quem? — perguntou Thomas.

— Eu não quero tacar fogo em tudo! Eu disse a ele que um braseiro, num piso de madeira, não dá, de modo que tivemos que usar a lareira. — O grandalhão ficou observando o fogo por alguns instantes. — Parece que está queimando direito, não está?

Ele colocou meia dúzia de achas maiores na fogueira e recuou. Dirigiu um olhar indiferente para Thomas, abanou a cabeça como se o prisioneiro não tivesse mais como ser ajudado, e os dois homens se retiraram do aposento.

A lenha estava seca, de modo que as chamas eram altas, determinadas e violentas. Mais fumaça vazou em golfadas para o aposento e saiu pelas janelas. Thomas, num súbito acesso de raiva, puxou os grilhões com toda a sua força de arqueiro para arrancar a argola da parede, mas tudo o que conseguiu foi fazer com que os grilhões cortassem mais fundo os pulsos que sangravam. Olhou para o teto, que era simplesmente feito de tábuas sobre vigas, presumivelmente o piso da câmara de cima. Ele não tinha ouvido passos lá em cima, mas então ouviu o som de passos logo do lado de fora da porta e recuou para a parede.

Uma mulher e uma criança pequena entraram. Thomas agachou-se para esconder a nudez, e a mulher riu do seu recato. A criança também riu, e em segundos Thomas percebeu que o menino era o filho de Jeanette, Charles, que olhava para ele com interesse, curiosidade, mas não reconhecimento. A mulher era alta, de cabelos louros, muito bonita e estava visivelmente grávida. Usava um vestido azul-claro que estava amarrado acima da barriga inchada e tinha enfeites de renda branca e pequenas presilhas de pérolas. O chapéu era uma espiral azul com um pequeno véu que ela afastou dos olhos para poder ver Thomas melhor. Thomas ergueu os joelhos para se esconder, mas a mulher, ousada, atravessou o aposento para olhar bem para ele.

— É uma pena — disse ela.

— Pena? — perguntou Thomas.

Ela não deu esclarecimentos.

— Você é inglês mesmo? — perguntou ela e pareceu irritada quando Thomas não respondeu. — Eles estão armando uma roda lá embaixo, inglês. Sarilhos e cordas para esticá-lo. Já viu um homem depois de ter sido esticado? Ele desmonta. É divertido, mas não para ele, acho eu.

Thomas continuou a ignorá-la, olhando para o menino que tinha um rosto redondo, cabelos pretos e os ardentes olhos pretos de Jeanette, sua mãe.

— Você se lembra de mim, Charles? — perguntou Thomas, mas o menino limitou-se a olhar para ele, sem reação. — Sua mãe lhe manda lembranças — disse Thomas e viu a surpresa nos olhos do garoto.

— Mama? — perguntou Charles, que tinha quase quatro anos.

A mulher agarrou a mão de Charles e arrastou-o para longe, como se Thomas fosse portador de alguma doença contagiosa.

— Quem é você? — perguntou ela, irritada.

— Sua mãe te adora, Charles — disse Thomas ao menino de olhos arregalados.

— Quem é você? — insistiu a mulher, e então voltou-se quando a porta foi aberta.

Um frade dominicano entrou. Ele tinha um aspecto macilento, era magro e alto, com curtos cabelos grisalhos e uma fisionomia ameaçadora. Ele franziu o cenho quando viu a mulher e o menino.

— A senhora não devia estar aqui — disse ele, ríspido.

— O senhor se esquece, padre, de quem manda aqui — retorquiu a mulher grávida.

— Seu marido — disse o padre com firmeza —, e ele não vai querer a senhora aqui, de modo que a senhora vai se retirar.

O padre manteve a porta aberta, e a mulher, que Thomas deduziu ser lady Roncelets, hesitou por um instante e retirou-se, com andar altivo. Charles olhou para trás só uma vez e foi arrastado para fora do aposento justo antes de outro dominicano entrar, este um homem mais moço, baixo e careca, com uma toalha dobrada pendurada em um dos braços e uma bacia com água nas mãos. Ele foi seguido por dois criados vestindo túnicas, que caminharam de mãos postas e olhos baixos para se colocarem ao lado da lareira. O primeiro padre, o macilento, fechou a porta, e ele e seu colega padre caminharam até a mesa.

— Quem é você? — perguntou Thomas ao padre macilento, embora desconfiasse de que sabia a resposta. Ele tentava se lembrar daquela nevoenta manhã em Durham, quando vira de Taillebourg lutar com o irmão de Robbie. Achou que era o mesmo homem, o padre que matara Eleanor ou então ordenara sua morte, mas não tinha certeza.

Os dois padres o ignoraram. O homem mais baixo colocou a água e a toalha sobre a mesa, e então os dois se ajoelharam.

— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo — disse o mais velho, fazendo o sinal-da-cruz —, amém.

Ele se levantou, abriu os olhos e olhou para Thomas, que ainda estava agachado no assoalho de tábuas arranhadas.

— Você é Thomas de Hookton — disse ele, formalmente —, filho bastardo do padre Ralph, padre daquela cidade?

— Quem é você?

— Responda, por favor — disse o dominicano.

Thomas ergueu os olhos para encarar o homem e reconheceu a terrível força do padre e percebeu que não ousaria ceder àquela força. Ele tinha de resistir desde o início e por isso não disse nada.

O padre suspirou diante daquela demonstração de mesquinha teimosia.

— Você é Thomas de Hookton — declarou —, Lodewijk diz que é. E, neste caso, seja bem-vindo, Thomas. Meu nome é Bernard de Taillebourg e sou um frade da ordem dominicana e, pela graça de Deus e por vontade do Santo Padre, um Inquisidor da fé. Meu irmão em Cristo — e de Taillebourg fez um gesto na direção do padre mais moço, que se instalara à mesa, onde abriu o livro e apanhou uma das penas — é o padre Cailloux, que também é um Inquisidor da fé.

— Você é um bastardo — disse Thomas olhando fixo para de Taillebourg —, você é um bastardo assassino.

Ele poderia ter poupado o fôlego, porque de Taillebourg não demonstrou reação alguma.

— Levante-se, por favor — ordenou o padre.

— Um bastardo assassino, sem mãe — disse Thomas sem se mexer.

De Taillebourg fez um gesto curto e os dois criados acorreram e pegaram Thomas pelos braços e o forçaram a ficar em pé e, quando ele ameaçou desabar, o maior esbofeteou-o com força no rosto, fazendo doer o machucado deixado pelo golpe que Sir Lodewijk lhe dera antes do amanhecer. De Taillebourg esperou até que os homens voltassem para o lado da lareira.

— Eu estou encarregado pelo cardeal Bessières — disse ele em tom inexpressivo — para descobrir o paradeiro de uma relíquia, e fomos informados de que você pode nos ajudar neste caso, um caso de tamanha importância que temos poderes da Igreja e de Deus Todo-Poderoso para garantir que você nos diga a verdade. Compreende o que isso significa, Thomas?

— Você matou minha mulher — disse Thomas —, e um dia, padre, você vai torrar no inferno e os demônios vão dançar em cima do seu traseiro murcho.

Uma vez mais de Taillebourg não mostrou reação alguma. Ele não estava usando a sua cadeira, mas estava em pé e magro como uma flecha atrás da mesa na qual apoiava as pontas dos compridos e pálidos dedos.

— Nós sabemos — disse ele — que seu pai pode ter possuído o Graal e sabemos que ele lhe deu um livro no qual escreveu sua narrativa daquele preciosíssimo objeto. Digo-lhe que estamos a par dessas coisas, para que você não desperdice o nosso tempo ou o seu sofrimento negando-as. No entanto vamos precisar saber mais, e é por isso que estamos aqui. Você me compreende, Thomas?

— O diabo vai mijar na sua boca, padre, e cagar nas suas narinas.

De Taillebourg pareceu ligeiramente aborrecido, como se a crueza de Thomas fosse cansativa.

— A Igreja nos dá autoridade para interrogá-lo, Thomas — continuou ele com voz calma —, mas na sua infinita misericórdia ela também nos ordena que não derramemos sangue. Podemos usar a dor, na verdade é nosso dever empregar a dor, mas tem de ser dor sem derramamento de sangue. Isso significa que podemos usar o fogo — seus dedos longos e pálidos tocaram um dos atiçadores — e podemos apertá-lo e podemos esticá-lo, e Deus irá nos perdoar, porque isso será feito em Seu nome e a Seu santíssimo serviço.

— Amém — disse o irmão Cailloux e, como os dois criados, fez o sinal-da-cruz. De Taillebourg empurrou todos os três atiçadores para a beira da mesa e o criado mais baixo atravessou o aposento correndo, pegou os atiçadores e mergulhou-os no fogo.

— Não empregamos a dor de forma leviana — disse de Taillebourg — ou aleatória, mas com devoto pesar, com piedade e com uma preocupação lacrimosa pela sua alma imortal.

— Você é um assassino — disse Thomas —, e a sua alma vai queimar no inferno.

— Agora — continuou de Taillebourg, ao que parecia ignorando os insultos de Thomas — vamos começar com o livro. Você disse ao irmão Germain, em Caen, que seu pai o escreveu. É verdade?

E assim foi o começo. Um suave interrogatório no início, ao qual Thomas não deu respostas porque estava dominado por um ódio a de Taillebourg, ódio alimentado pela lembrança do corpo pálido e ensangüentado de Eleanor, mas era um interrogatório insistente e ininterrupto, e a ameaça de uma dor horrível estava nos três atiçadores que esquentavam no fogo. Assim, Thomas convenceu-se de que Bernard de Taillebourg sabia de algumas coisas e haveria muito pouco prejuízo se ele contasse outras. Além do mais, o dominicano era muito razoável e muito paciente. Ele suportou a raiva de Thomas, ignorou as ofensas, expressou repetidas vezes não estar disposto a empregar a tortura e disse que só queria a verdade, por mais inadequada que fosse, e por isso, depois de uma hora, Thomas começou a responder às perguntas. Por que sofrer, perguntava a si mesmo, quando não tinha o que o dominicano queria? Ele não sabia onde estava o Graal, não estava nem certo de que o Graal existisse, e, assim, hesitante no início e depois mais disposto, ele falou.

Havia um livro, sim, e grande parte dele estava escrita em línguas e sinais estranhos, e Thomas alegou não ter idéia do que significavam aqueles trechos misteriosos. Quanto ao resto, ele admitiu saber latim e concordou que tinha lido aquelas partes do livro, mas classificou-as como vagas, repetitivas e inúteis.

— Eram apenas histórias — disse ele.

— Que tipo de histórias?

— Um homem recuperou a visão depois de olhar para o Graal e depois, quando ficou desapontado com a aparência do Graal, tornou a perder a visão.

— Deus seja louvado por isso — interveio o padre Cailloux, molhou a pena na tinta e anotou o milagre.

— O que mais? — perguntou de Taillebourg.

— Histórias de soldados vencendo batalhas por causa do Graal, histórias de curas — disse Thomas.

— Você acredita nelas?

— Nas histórias? — Thomas fingiu refletir e depois sacudiu a cabeça. — Se Deus nos deu o Graal, padre — disse ele —, não há dúvida de que ele deverá fazer milagres.

— Seu pai possuía o Graal?

— Eu não sei.

Então de Taillebourg perguntou-lhe sobre o padre Ralph e Thomas disse que seu pai tinha andado pela praia de cascalho de Hookton, lamentando-se dos seus pecados e às vezes pregando para os animais selvagens do mar e do céu.

— Está nos dizendo que ele era louco? — perguntou de Taillebourg.

— Ele estava louco com Deus — disse Thomas.

— Louco com Deus — repetiu de Taillebourg, como se as palavras o deixassem intrigado. — Você está dando a entender que ele era um santo?

— Acho que muitos santos devem ter sido como ele — respondeu Thomas, cauteloso —, mas ele também zombava muito das superstições.

— O que é que você quer dizer?

— Ele gostava muito de São Guinefort — disse Thomas — e o invocava sempre que surgia algum problema menos importante.

— É zombaria fazer isso? — perguntou de Taillebourg.

— São Guinefort era um cachorro — disse Thomas.

— Eu sei o que São Guinefort era — disse de Taillebourg, irritado —, mas você está dizendo que Deus não poderia usar um cachorro para cumprir suas finalidades sagradas?

— Estou dizendo que meu pai não acreditava que um cachorro pudesse ser santo, e por isso zombava.

— Ele zombava do Graal?

— Nunca — respondeu Thomas com sinceridade —, nem uma única vez.

— E no livro dele — de Taillebourg voltou, de repente, ao tema anterior — ele conta como o Graal veio a cair em suas mãos?

Fazia alguns minutos que Thomas percebera que havia alguém em pé do lado de fora da porta. De Taillebourg a fechara, mas a tranca tinha sido erguida em silêncio e a porta empurrada para ficar ligeiramente entreaberta. Alguém estava lá, ouvindo, e Thomas presumiu que fosse a senhora de Roncelets.

— Ele nunca afirmou que o Graal estivesse em seu poder — rebateu Thomas —, mas disse que o Graal pertencera à família dele em determinada época.

— Possuído, em determinada época — disse de Taillebourg —, pelos Vexille.

— É — respondeu e teve a certeza de que a porta se mexera uma fração.

A pena do padre Cailloux riscava o pergaminho. Tudo que Thomas dizia estava sendo anotado e ele se lembrou de um pregador franciscano itinerante numa feira em Dorchester gritando para as pessoas presentes que cada pecado por elas cometido estava sendo registrado num grande livro no céu, e quando elas morressem e fossem a julgamento perante Deus, o livro seria aberto e seus pecados lidos em voz alta, e George Adyn fizera a multidão gargalhar ao dizer em altos brados que não havia tinta suficiente na cristandade para registrar o que seu irmão estava fazendo com Dorcas Churchill em Puddletown. Os pecados, retrucara irritado o franciscano, eram registrados em letras de fogo, o mesmo fogo que iria torrar os adúlteros nas profundezas do inferno.

— E quem é Hachaliah? — perguntou de Taillebourg.

Thomas ficou surpreso com a pergunta e hesitou. Depois tentou parecer intrigado.

— Quem?

— Hachaliah — repetiu de Taillebourg, paciente.

— Eu não sei — disse Thomas.

— Eu acho que sabe — declarou de Taillebourg em voz baixa.

Thomas olhou para o rosto forte, ossudo, do padre. Aquele rosto o fez lembrar-se do de seu pai, porque tinha a mesma determinação implacável, uma subjetividade teimosa que dava a entender que aquele homem não iria importar-se com o que outras pessoas pensassem do seu comportamento, porque ele só se justificava perante Deus.

— O irmão Germain mencionou esse nome — disse Thomas com cautela —, mas o que ele significa eu não sei.

— Não acredito em você — insistiu de Taillebourg.

— Padre — disse Thomas com firmeza —, eu não sei o que ele significa. Perguntei ao irmão Germain e ele se recusou a me dizer. Disse que aquilo estava muito acima da inteligência de alguém como eu para entender.

De Taillebourg olhou fixo para Thomas em silêncio. O fogo estalava com um som cavernoso na chaminé e o criado grandalhão mexeu nos atiçadores quando uma das achas caiu.

— O prisioneiro diz que não sabe — ditou de Taillebourg para o padre Cailloux sem desviar o olhar de Thomas. Os criados colocaram mais lenha na fogueira e de Taillebourg deixou Thomas olhar para os atiçadores e preocupar-se com eles por um instante antes de retomar o interrogatório.

— Então — perguntou o dominicano — onde o livro está agora?

— Em La Roche-Derrien — foi logo dizendo Thomas.

— Em que lugar de La Roche-Derrien?

— Com a minha bagagem — disse Thomas — que eu deixei com um velho amigo, Will Skeat.

Aquilo não era verdade. Ele deixara o livro aos cuidados de Jeanette, mas não queria expô-la a perigo. Will Skeat, mesmo com a memória danificada, podia cuidar de si mesmo melhor do que a Blackbird.

— Sir William Skeat — acrescentou Thomas.

— Sir William sabe o que o livro é? — perguntou de Taillebourg.

— Ele nem mesmo sabe ler! Não, não sabe.

Houve outras perguntas, dezenas delas. De Taillebourg queria saber a história da vida de Thomas, por que ele abandonara Oxford, por que se tornara um arqueiro, quando fora a última vez em que se confessara, o que tinha feito em Durham. O que o rei da Inglaterra sabia sobre o Graal? O que o bispo de Durham sabia? As perguntas continuaram sem parar, até que Thomas ficou fraco de fome e de permanecer em pé, mas de Taillebourg parecia incansável. Enquanto anoitecia e a luz que vinha das duas janelas empalidecia e escurecia, ele ainda insistia. Os dois criados há muito que demonstravam irritação, enquanto o padre Cailloux continuava franzindo o cenho e olhando para as janelas como a dar a entender que a hora de uma refeição já passara há muito tempo, mas de Taillebourg não sentia fome. Ele apenas pressionava e pressionava. Com quem Thomas viajara para Londres? O que fizera ele em Dorset? Ele tinha procurado o Graal em Hookton? O irmão Cailloux enchia uma página atrás da outra com as respostas de Thomas e, como o anoitecer progredisse, teve de acender as velas para que pudesse enxergar para escrever. As chamas da lareira projetavam sombras dos pés da mesa e Thomas balançava de fadiga quando, por fim, de Taillebourg sacudiu a cabeça.

— Hoje à noite, Thomas, vou pensar em todas as suas respostas e rezar por elas — disse ele — e de manhã nós continuamos.

— Água — disse Thomas com voz rachada — eu preciso de água.

— Você vai receber comida e bebida — disse de Taillebourg.

Um dos criados tirou os atiçadores do fogo. O padre Cailloux fechou o livro e lançou para Thomas um olhar que parecia conter um pouco de compaixão. Um cobertor foi trazido, e com ele veio uma refeição de peixe defumado, feijão, pão e água, e uma das mãos de Thomas foi liberada dos grilhões para que ele pudesse comer. Dois guardas, ambos vestindo casacos pretos lisos, ficaram vendo ele comer, e quando ele terminou recolocaram os grilhões no seu pulso e ele sentiu um pino sendo empurrado pelo engate para prendê-lo. Aquilo lhe deu esperança, e quando ficou sozinho tentou alcançar o pino com os dedos, mas os dois grilhões eram braceletes grossos e ele não conseguiu alcançar o fecho. Ele não tinha saída.

Ele se recostou na parede, encolhido no cobertor e olhando para o fogo que morria. Nenhum calor atravessava o aposento e Thomas tremia incontrolavelmente. Contorcia os dedos tentando alcançar o fecho dos grilhões, mas era impossível e, de repente, gemeu involuntariamente ao prever o sofrimento. Naquele dia tinha sido poupado da tortura, mas isso significava que escapara dela por completo? Achava que merecia escapar, porque na maioria das vezes dissera a verdade. Dissera a de Taillebourg que não sabia onde estava o Graal, que nem tinha certeza de que ele existisse, que raramente ouvira seu pai falar nele e que preferia ser um arqueiro do exército do rei da Inglaterra a ser um homem à procura do Graal. Mais uma vez sentiu uma tremenda vergonha por ter sido capturado com tanta facilidade. Devia estar voltando para La Roche-Derrien àquela altura, cavalgando para casa, para as tabernas, as risadas, a cerveja e a companhia simples de soldados. Havia lágrimas em seus olhos e ele sentia vergonha disso também. Vindas do interior do castelo ouviram-se risadas e ele achou que ouvia o som de uma harpa.

Então a porta se abriu.

Ele só conseguiu ver que um homem entrara no aposento. O visitante vestia uma enorme capa preta que fazia com que parecesse uma sombra sinistra enquanto atravessava a câmara até a mesa, onde parou e olhou para Thomas. As achas de lenha agonizantes estavam atrás do homem, contornando de vermelho sua figura alta envolta na capa, mas iluminando Thomas.

— Eu soube que ele não queimou você hoje? — disse o homem.

Thomas não disse nada, limitando-se a encolher-se debaixo do cobertor.

— Ele gosta de queimar as pessoas — disse o visitante. — Gosta mesmo. Eu já vi. Ele treme enquanto a carne cria bolhas.

Ele foi até a lareira, apanhou um dos atiçadores e enfiou-o nas brasas sem chama antes de empilhar novas achas de lenha sobre as chamas que morriam. A madeira seca queimou depressa e, à luz brilhante, Thomas conseguiu ver o homem pela primeira vez. Tinha um rosto estreito, amarelado, um nariz comprido, um queixo forte, e cabelos pretos puxados para trás a partir de uma testa alta. Era um rosto bom, inteligente e sério, e então ficou nas sombras quando o homem se afastou da lareira.

— Eu sou seu primo — disse ele.

Uma pontada de ódio atravessou Thomas.

— Você é Guy Vexille?

— Eu sou o conde de Astarac — disse Vexille. Ele caminhou devagar em direção a Thomas. — Você estava na batalha perto da floresta de Crécy?

— Estava.

— Um arqueiro?

— Exato.

— E no fim da batalha — disse Guy Vexille — você gritou três palavras em latim.

— Calix meus inebrians — disse Thomas.

Guy Vexille empoleirou-se na borda da mesa e ficou olhando para Thomas muito tempo. Seu rosto estava na sombra, de modo que Thomas não podia ver-lhe a expressão, só o fraco brilho dos olhos.

— Calix meus inebrians — disse Vexille, por fim. — É o lema secreto da nossa família. Não o que nós mostramos no nosso timbre. Sabe qual é ele?

— Não.

— Pie repone te — disse Guy Vexille.

— Confie no piedoso — traduziu Thomas.

— Você é estranhamente bem instruído para um arqueiro — disse Vexille. Ele se pôs de pé e andou de um lado para o outro enquanto falava. — Nós exibimos “pie repone te”, mas o nosso verdadeiro lema é “Calix meus inebrians”. Somos os guardiães secretos do Graal. Nossa família está com ele há gerações, ele nos foi confiado por Deus, e seu pai o roubou.

— Você o matou — disse Thomas.

— E tenho orgulho disso — disse Guy Vexille, e de repente interrompeu-se e voltou-se para Thomas. — Era você o arqueiro no alto do morro naquele dia?

— Era.

— Você atira bem, Thomas.

— Aquele foi o primeiro dia em que matei um homem — disse Thomas — e foi um engano.

— Um engano?

— Eu matei o homem errado.

Guy Vexille sorriu, depois voltou para perto da lareira e tirou o atiçador para ver a ponta de um vermelho opaco. Tornou a empurrá-lo para dentro da lareira.

— Eu matei seu pai — disse ele — e matei sua mulher em Durham e matei o padre que evidentemente era seu amigo.

— Você era o criado de Bernard de Taillebourg? — perguntou Thomas, perplexo. Ele odiara Guy Vexille por causa da morte de seu pai. Agora tinha mais duas mortes a acrescentar àquele ódio.

— Eu era o criado dele, sim — confirmou Vexille. — Foi a penitência que de Taillebourg me impôs, o castigo da humildade. Mas agora sou um soldado outra vez e estou encarregado de recuperar o Graal.

Thomas abraçou com força os joelhos embaixo do cobertor.

— Se o Graal tem tanto poder assim — perguntou —, por que nossa família é tão desprovida de poder?

Guy Vexille pensou na pergunta por um instante mas depois deu de ombros.

— Porque andávamos às turras — disse ele —, porque éramos pecadores, porque não éramos dignos. Mas vamos mudar isso, Thomas. Vamos recuperar a nossa força e a nossa virtude.

Guy Vexille inclinou-se para o fogo, tirou o atiçador das chamas e brandiu-o como se fosse uma espada, de modo que o atiçador emitiu um chiado e a ponta em brasa riscou um arco de luz no aposento em penumbra.

— Você já pensou, Thomas, em me ajudar? — perguntou.

— Ajudar você?

Vexille andou perto de Thomas. Ele ainda agitava o atiçador em largos golpes como se fosse uma foice, fazendo com que a luz parecesse uma estrela cadente para deixar linhas transparentes de fumaça no aposento escuro.

— Seu pai — continuou ele — era o irmão mais velho. Sabia disso? Se você fosse filho legítimo, seria o conde de Astarac. — Ele abaixou a ponta do atiçador, que ficou perto do rosto de Thomas, tão perto que Thomas sentiu o calor causticante. — Junte-se a mim — disse Guy Vexille, veemente —, me diga o que sabe, ajude-me a recuperar o livro e vá comigo em busca do Graal. — Ele se agachou para que seu rosto ficasse à mesma altura do de Thomas. — Traga a glória para a nossa família, Thomas — disse ele baixinho —, uma glória tamanha que você e eu poderíamos governar toda a cristandade e, com o poder do Graal, liderar uma cruzada contra os infiéis que os deixará estrebuchando em agonia. Você e eu, Thomas! Nós somos os senhores ungidos, os guardiães do Graal, e se nos dermos as mãos durante gerações as pessoas irão falar de nós como os maiores santos guerreiros que a Igreja já teve. — A voz dele era grave, tranqüila, quase musical. — Quer me ajudar, Thomas?

— Não — disse Thomas.

O atiçador chegou mais perto do olho direito de Thomas, tão perto que parecia um grande sol maligno, mas Thomas não se afastou. Não achava que o primo fosse enfiar o atiçador em seu olho, mas achou, sim, que Guy Vexille queria que ele se encolhesse, de modo que ficou imóvel.

— Seus amigos fugiram hoje — disse Vexille. — Cinqüenta de nós saíram para pegá-los, mas eles deram um jeito e escaparam da gente. Eles penetraram bem fundo nos bosques.

— Ótimo.

— Mas tudo o que podem fazer é bater em retirada para La Roche-Derrien, e lá serão encurralados. Quando a primavera chegar, Thomas, vamos fechar aquela armadilha.

Thomas não disse nada. O atiçador esfriou e escureceu, e finalmente Thomas ousou piscar os olhos.

— Como todos os Vexille — disse Guy, afastando o atiçador e pondo-se de pé —, o que você tem de valente tem de bobo. Sabe onde está o Graal?

— Não.

Guy Vexille olhou fixo para ele, julgando a resposta, e deu de ombros.

— Acha que o Graal existe, Thomas?

Thomas fez uma pausa e deu a resposta que negara o dia inteiro a de Taillebourg.

— Acho.

— Tem razão — disse Vexille —, tem razão. Ele existe mesmo. Nós o tínhamos e seu pai o roubou, e você é a chave para encontrá-lo.

— Eu não sei de nada a respeito dele! — protestou Thomas.

— Mas de Taillebourg não vai acreditar nisso — disse Vexille largando o atiçador em cima da mesa. — De Taillebourg quer o Graal como um homem faminto quer pão. Sonha com ele. Geme enquanto dorme e chora por ele. — Vexille fez uma pausa e sorriu. — Quando a dor ficar forte demais para ser suportada, Thomas, e vai ficar, e quando você estiver desejando estar morto, e vai desejar, diga a de Taillebourg que você se arrepende e que vai se tornar meu vassalo. A dor vai acabar, e você viverá.

Tinha sido Vexille, concluiu Thomas, que estivera escutando do outro lado da porta. E amanhã ele iria escutar outra vez. Thomas fechou os olhos. Pater, rezou ele, si vis, Transfer calicem istem a me. Ele tornou a abrir os olhos.

— Por que matou Eleanor? — perguntou.

— Por que não?

— Esta é uma resposta ridícula — vociferou Thomas.

A cabeça de Vexille projetou-se para trás como se ele tivesse sido atingido.

— Porque ela sabia que nós existíamos — disse ele —, foi por isso.

— Existiam?

— Ela sabia que estávamos na Inglaterra, sabia o que queríamos — disse Vexille. — Sabia que tínhamos falado com o irmão Collimore. Se o rei da Inglaterra ficasse sabendo que estávamos procurando o Graal no reino dele, ele teria nos detido. Teria nos prendido. Teria feito conosco o que estamos fazendo com você.

— Acha que Eleanor poderia denunciar vocês ao rei? — perguntou Thomas, incrédulo.

— Acho que era melhor que ninguém soubesse por que estávamos lá — disse Guy Vexille. — Mas sabe de uma coisa, Thomas? Aquele velho monge não sabia nos dizer nada, exceto que você existia. Todo aquele esforço, aquela longa viagem, as matanças, o tempo escocês, só para ficar sabendo a seu respeito! Ele não sabia onde o Graal estava, não conseguia imaginar onde seu pai poderia tê-lo escondido, mas sabia que você existia, desde então nós temos andado à sua procura. O padre de Taillebourg quer interrogá-lo, Thomas, quer fazer você gritar de dor até que diga a ele o que eu desconfio que você não saberá dizer, mas não quero o seu sofrimento. Quero a sua amizade.

— E eu quero você morto — disse Thomas.

Vexille abanou a cabeça, triste, e em seguida curvou-se para ficar bem perto de Thomas.

— Primo — disse calmamente —, um dia você vai se ajoelhar para mim. Um dia você vai colocar as mãos entre as minhas e vai jurar vassalagem e nós trocaremos o beijo de senhor e vassalo e, assim, você se tornará meu vassalo e nós cavalgaremos juntos, sob a cruz, para a glória. Seremos como irmãos, isso eu prometo.

Ele beijou os dedos e tocou com a ponta o rosto de Thomas, e o toque foi quase uma carícia.

— Eu prometo, irmão — sussurrou Vexille —, agora, boa noite.

— Maldito seja, Guy Vexille — vociferou Thomas.

— Calix meus inebrians — disse Vexille, e retirou-se.


AO AMANHECER, Thomas estava tremendo. Cada passo ouvido no castelo fazia com que se encolhesse. Do lado de fora das janelas profundas, galos novos cocoricavam, pássaros cantavam, e ele tinha a impressão, por uma razão que não identificava, de que havia bosques espessos perto da Torre de Roncelets e se perguntou se um dia voltaria a ver folhas verdes. Um criado mal-humorado levou-lhe uma refeição matinal de pão, queijo duro e água e, enquanto comia, seus grilhões foram soltos e um guarda de libré com a figura de uma vespa o vigiava, mas os grilhões tornaram a ser presos em seus pulsos assim que ele acabou. O balde foi levado embora para ser esvaziado, e colocaram outro em seu lugar.

Bernard de Taillebourg chegou pouco depois e, enquanto os criados reavivavam o fogo e o padre Cailloux se instalava à mesa improvisada, o dominicano alto saudou Thomas com delicadeza.

— Dormiu bem? O desjejum foi adequado? Hoje está mais frio, não? Eu nunca vi um inverno mais chuvoso. O rio transbordou em Rennes, pela primeira vez em vários anos! Todos aqueles porões estão debaixo dágua.

Thomas, com frio e amedrontado, não respondeu, mas de Taillebourg não ficou ofendido. Em vez disso, esperou o padre Cailloux molhar a pena na tinta e ordenou ao criado mais alto que tirasse o cobertor de Thomas.

— Agora — disse ele quando o prisioneiro ficou nu —, vamos aos negócios. Vamos falar sobre o livro de notas de seu pai. Quem mais sabe da existência do livro?

— Ninguém — disse Thomas — exceto o irmão Germain, e você o conhece.

De Taillebourg franziu o cenho.

— Mas, Thomas, alguém deve ter dado o livro a você! E é claro que essa pessoa sabe da existência dele! Quem o entregou a você?

— Um advogado em Dorchester — mentiu Thomas com naturalidade.

— Um nome, por favor, me dê um nome.

— John Rowley — disse Thomas inventando o nome.

— Soletre, por favor — disse de Taillebourg, e depois que Thomas obedeceu, o Inquisidor andou de um lado para outro, numa frustração aparente. — Esse Rowley deve ter ficado sabendo o que era o livro, sem dúvida...

— O livro estava envolto na capa do meu pai, num embrulho de outras roupas velhas. Ele não olhou.

— Ele poderia ter olhado.

— John Rowley — disse Thomas, tecendo a sua invenção — é velho e gordo. Não vai sair procurando o Graal. Além do mais, ele achava que meu pai era maluco, e por isso por que iria estar interessado num livro dele? Tudo o que interessa a Rowley é cerveja, hidromel e tortas de carne de carneiro.

Os três atiçadores se esquentavam outra vez no fogo. Começara a chover e as lufadas de vento frio às vezes sopravam pingos pelas janelas abertas. Thomas lembrou-se do aviso de seu primo, durante a noite, de que de Taillebourg gostava de provocar dor, mas a voz do dominicano era mansa e razoável, e Thomas achou que tinha sobrevivido ao pior. Ele suportara um dia de interrogatório por parte de Bernard de Taillebourg, e suas respostas pareciam ter deixado satisfeito o resoluto dominicano, que agora se dedicava a fechar os claros da história de Thomas. Ele queria saber a respeito da lança de São Jorge, e Thomas contou que a arma ficara pendurada na igreja de Hookton e tinha sido roubada e que ele a recuperara na batalha à beira da floresta de Crécy. Será que Thomas acreditava tratar-se da verdadeira lança?, perguntou de Taillebourg, e Thomas abanou a cabeça.

— Eu não sei — disse ele —, mas meu pai acreditava que era.

— E seu primo roubou a lança da igreja de Hookton?

— Roubou.

— Presumivelmente — cogitou de Taillebourg — para que ninguém concluísse que ele tinha ido à Inglaterra à procura do Graal. A lança foi um disfarce.

Ele pensou naquilo, e Thomas, não sentindo a necessidade de fazer um comentário, nada disse.

— A lança tinha lâmina? — perguntou de Taillebourg.

— Uma lâmina comprida.

— No entanto, certamente, se era a lança que matou o dragão — observou de Taillebourg —, a lâmina teria derretido no sangue do animal?

— Será? — perguntou Thomas.

— Claro que sim! — insistiu de Taillebourg, olhando para Thomas como se ele estivesse maluco. — Sangue de dragão é fundido! Fundido e inflamável.

Ele deu de ombros como para reconhecer que a lança era irrelevante para a sua procura. A pena do padre Cailloux arranhava enquanto ele tentava acompanhar o ritmo do interrogatório e os dois criados estavam de pé ao lado do fogo, praticamente sem tentar disfarçar seu enfado enquanto de Taillebourg procurava um novo assunto a explorar. Ele escolheu Will Skeat por alguma razão e perguntou sobre o ferimento que ele sofrera e sobre os lapsos de memória. Thomas tinha certeza mesmo de que Skeat não sabia ler?

— Ele não sabe ler! — disse Thomas.

Ele parecia agora estar assegurando a de Taillebourg e aquilo era uma medida de sua confiança. Começara o dia anterior com insultos e ódio, mas agora estava ajudando ansiosamente o dominicano a chegar ao fim do interrogatório. Ele havia escapado com vida.

— O Skeat não sabe ler — disse de Taillebourg enquanto andava de um lado para o outro. — Eu acho que isso não é de surpreender. Quer dizer que ele não vai estar consultando o livro que você deixou sob a guarda dele?

— Eu terei sorte se ele não usar as páginas para limpar a bunda. É a única utilidade que Will Skeat tem para papel ou pergaminho.

De Taillebourg teve um sorriso protocolar e ergueu os olhos para o teto. Ficou calado por muito tempo, mas finalmente lançou para Thomas um olhar intrigado.

— Quem é Hachaliah?

A pergunta pegou Thomas de surpresa, e ele deve ter demonstrado isso.

— Não sei — conseguiu dizer depois de uma pausa.

De Taillebourg observou Thomas. O aposento ficou tenso de repente; os criados ficaram plenamente alertas e o padre Cailloux já não escrevia mais, antes olhava para Thomas. De Taillebourg sorriu.

— Vou lhe dar uma última chance, Thomas — disse ele com sua voz grave. — Quem é Hachaliah?

Thomas sabia que tinha de sustentar aquilo descaradamente. Passe por isso, pensou ele, e o interrogatório estará terminado.

— Eu nunca tinha ouvido falar nele — disse, esforçando-se ao máximo para parecer sincero — antes de o irmão Germain mencionar o nome dele.

O motivo pelo qual de Taillebourg escolhera Hachaliah como o ponto fraco das defesas de Thomas era um mistério, mas fora um golpe de astúcia, porque se o dominicano pudesse provar que Thomas sabia quem era Hachaliah, poderia provar que Thomas havia traduzido pelo menos um dos trechos do livro em hebraico. Poderia provar que Thomas havia mentido durante todo o interrogatório, e abriria áreas de revelação totalmente novas. Por isso de Taillebourg o pressionou, e quando Thomas continuou com as negativas o padre gesticulou para os criados. O padre Cailloux se encolheu.

— Eu já lhe disse — disse Thomas, nervoso —, eu não sei mesmo quem é Hachaliah.

— Mas o meu dever perante Deus — disse de Taillebourg enquanto pegava o primeiro dos atiçadores em brasa do criado alto — é me certificar de que você não está dizendo mentiras. — Ele olhou para Thomas com o que parecia ser pena. — Eu não quero machucá-lo, Thomas. Só quero a verdade. Por isso, me diga: quem é Hachaliah?

Thomas engoliu.

— Eu não sei — disse ele, e repetiu com voz mais alta: — Eu não sei!

— Eu acho que sabe — disse de Taillebourg, e então a dor começou.

— Em nome do Pai — rezou de Taillebourg enquanto encostava o ferro na pele nua da perna de Thomas —, do Filho e do Espírito Santo.

Os dois criados seguraram Thomas para que ele não se mexesse, e a dor foi pior do que ele poderia ter acreditado, e ele tentou fugir dela contorcendo-se, mas não conseguiu se mexer e suas narinas encheram-se do fedor de carne queimada e ainda assim ele não queria responder à pergunta, por achar que ao revelar suas mentiras ele iria abrir-se para mais castigos. Em algum lugar de sua cabeça que berrava ele acreditava que se insistisse na mentira de Taillebourg teria de acreditar nele e pararia de usar o fogo, mas numa competição de paciência entre torturador e torturado, o prisioneiro não tinha chance. Um segundo atiçador foi esquentado e a ponta riscou descendo pelas costelas de Thomas.

— Quem é Hachaliah? — perguntou de Taillebourg.

— Eu já disse...

O ferro em brasa foi encostado no seu peito e desceu até a barriga, para deixar uma linha de carne viva queimando, enrugada, e o ferimento foi instantaneamente cauterizado, de modo que não deixou sangue e o grito de Thomas ecoou do teto alto. O terceiro atiçador estava esperando e o primeiro estava sendo reaquecido, para que a dor não precisasse parar, e então Thomas foi virado sobre a barriga queimada e o estranho aparelho que ele não tinha podido identificar quando fora posto em cima da mesa, foi colocado em cima de um nó de um dedo da mão esquerda e ele percebeu que era um torno de ferro, que funcionava à base de um parafuso de borboleta, e de Taillebourg apertou o parafuso e a dor fez Thomas contrair-se e gritar outra vez. Ele perdeu a consciência, mas o padre Cailloux o reanimou com a toalha e água fria.

— Quem é Hachaliah? — perguntou de Taillebourg.

Que pergunta idiota, pensou Thomas. Como se a resposta fosse importante!

— Eu não sei!

Ele chorou as palavras e rezou para que de Taillebourg acreditasse nele, mas a dor voltou e os melhores momentos, exceto o simples esquecimento, eram quando Thomas perdia e recuperava a consciência, e parecia que o sofrimento era um sonho — um pesadelo, mas ainda assim apenas um sonho — e os piores momentos eram quando ele percebia que não se tratava de um sonho e que o seu mundo estava reduzido a agonia, pura agonia, e então de Taillebourg infligia mais dor, ou apertando o parafuso para esmagar um dedo ou então encostando o ferro em brasa na sua carne.

— Diga-me, Thomas — disse o dominicano, delicado —, diga, e a dor vai acabar. Ela vai acabar se você me disser. Por favor, Thomas, acha que eu gosto disso? Em nome de Deus, eu odeio isso. Pois então, por favor, me diga.

E Thomas disse. Hachaliah era o pai do Tirshatha, e o Tirshatha era o pai de Neemias.

— E Neemias — perguntou de Taillebourg — era o quê?

— Era o copeiro do rei — disse Thomas soluçando.

— Por que os homens mentem para Deus? — perguntou de Taillebourg.

Ele recolocou em cima da mesa o torno de apertar dedos, enquanto os três atiçadores continuavam no fogo.

— Por quê? — tornou a perguntar. — A verdade é sempre descoberta, Deus garante isso. Por isso, Thomas, afinal de contas você sabia mais do que alegava e teremos de descobrir suas outras mentiras. Mas vamos conversar primeiro sobre Hachaliah. Você acha que essa citação do livro de Esdras é a maneira de seu pai para proclamar que ele tem o Graal em seu poder?

— Acho — disse Thomas —, acho, acho, acho.

Ele estava agachado contra a parede, as mãos quebradas presas às costas, o corpo uma massa de dor, mas talvez o sofrimento acabasse se ele confessasse tudo.

— Mas o irmão Germain me disse que o trecho sobre Hachaliah no livro de seu pai — disse de Taillebourg — está escrito em hebraico. Você sabe hebraico, Thomas?

— Não.

— Então, quem traduziu o trecho para você?

— O irmão Germain.

— E o irmão Germain lhe disse quem era Hachaliah? — perguntou de Taillebourg.

— Não — disse Thomas em tom de lamúria.

Não adiantava mentir, porque sem dúvida o dominicano iria verificar com o velho monge, mas a resposta abriu uma nova pergunta que, por sua vez, iria revelar outras situações nas quais Thomas havia mentido. Thomas sabia disso, mas agora era tarde demais para resistir.

— Então, quem lhe contou? — perguntou de Taillebourg.

— Um doutor — disse Thomas baixinho.

— Um doutor — repetiu o dominicano. — Isso não me ajuda, Thomas. Quer que eu torne a usar o fogo? Que doutor? Um doutor em teologia? Um médico? E se você pediu a esse misterioso doutor para explicar o significado do trecho, ele não ficou curioso em descobrir por que você queria saber?

E assim Thomas confessou que tinha sido Mordecai, e admitiu que Mordecai consultara o livro de notas, e de Taillebourg deu um murro na mesa na primeira demonstração de raiva que tivera em todas as longas horas de interrogatório.

— Você mostrou o livro a um judeu? — Ele fez a pergunta rosnando, um tom de incredulidade na voz. — A um judeu? Em nome de Deus e de todos os preciosos santos, o que é que você estava pensando? A um judeu! A um homem da raça que matou o nosso querido Salvador! Se os judeus acharem o Graal, seu idiota, eles criarão o Anticristo! Você vai sofrer por essa traição! Tem de sofrer! — Ele atravessou o aposento, arrancou um atiçador do fogo e o levou para onde Thomas se achava agachado contra a parede. — A um judeu! — gritou de Taillebourg, e passou a ponta em brasa do atiçador pela perna de Thomas. — Seu nojento! — disse ele com rispidez, acima dos gritos de Thomas. — Você é um traidor de Deus, um traidor de Cristo, um traidor da Igreja! Você não é melhor do que Judas Iscariotes!

A dor continuou. As horas continuaram. A Thomas parecia que nada mais restava, a não ser a dor. Ele mentira quando não havia dor, e agora todas as suas respostas anteriores estavam sendo confirmadas contra o grau de agonia que ele podia suportar sem perder a consciência.

— Então onde está o Graal? — perguntou de Taillebourg.

— Eu não sei — disse Thomas, e depois, mais alto: — Eu não sei!

Ele ficou vendo o ferro em brasa aproximar-se da sua carne, e àquela altura já gritava antes mesmo de senti-lo encostar-se na pele.

Os gritos de nada adiantavam, porque a tortura continuava. E continuava. E Thomas falava, contando tudo o que sabia, e chegou até a ficar tentado a fazer como Guy Vexille sugerira e pedir a de Taillebourg que o deixasse jurar vassalagem ao seu primo, mas então, no terror rubro do seu tormento, pensou em Eleanor e ficou calado.

No quarto dia, quando ele tremia, quando até mesmo um movimento da mão de Bernard de Taillebourg era suficiente para fazê-lo chorar e pedir misericórdia, o senhor de Roncelets entrou no aposento. Ele era um homem alto com curtos cabelos eriçados e um nariz quebrado e sem dois dentes na frente. Vestia o seu libré com a vespa, as duas asnas pretas em campo amarelo, e teve um sorriso zombeteiro diante do corpo cheio de cicatrizes e quebrado de Thomas.

— O senhor não trouxe a roda cá para cima, padre. — Ele parecia decepcionado.

— Não foi necessário — disse de Taillebourg.

O senhor de Roncelets cutucou Thomas com um pé protegido por cota de malha.

— O senhor disse que o bastardo é um arqueiro inglês?

— É.

— Pois então corte os dedos que ele usa para disparar o arco — disse Roncelets, violento.

— Não posso derramar sangue — disse de Taillebourg.

— Por Deus, mas eu posso. — Roncelets puxou uma faca do cinto.

— Ele está sob minha responsabilidade! — vociferou de Taillebourg. — Está nas mãos de Deus, e o senhor não vai tocar nele. Não vai derramar o sangue dele!

— Este castelo é meu, padre — grunhiu Roncelets.

— E a sua alma está nas minhas mãos — retorquiu de Taillebourg.

— Ele é um arqueiro! Um arqueiro inglês! Ele veio aqui para capturar o menino Chenier! Isso é assunto meu!

— Os dedos foram esmagados pelo torno — disse de Taillebourg —, de modo que ele já não é um arqueiro.

Roncelets acalmou-se com a notícia. Tornou a cutucar Thomas.

— Ele é uma titica, padre, é isso que ele é. Uma titica podre.

Cuspiu em Thomas, cuspiu não porque o odiasse, mas porque detestava todos os arqueiros que tinham destronado o cavaleiro do lugar que era dele por direito, de rei do campo de batalha.

— O que é que o senhor vai fazer com ele? — perguntou.

— Rezar pela alma dele — disse de Taillebourg sem rodeios, e depois que o senhor de Roncelets saiu fez exatamente o que dissera. Era evidente que o interrogatório estava encerrado, porque ele tirou um pequeno vidro de óleo santo e deu a Thomas os ritos finais da Igreja, tocando o óleo na testa e no peito queimado, e depois disse as orações para os moribundos.

— Sana me, Domine — entoou de Taillebourg, os dedos suaves na testa de Thomas — quoniam conturbata sunt ossa mea. Curai-me, Senhor, porque meus ossos estão contorcidos de dor.

E depois que aquilo acabou, Thomas foi levado pelas escadas do castelo para uma masmorra enterrada numa cova do rochedo sobre o qual Guêpier fora construído. O chão era de pedra preta nua, tão úmido quanto frio. Os grilhões foram retirados, já que ele estava trancado na cela, e ele pensou que deveria enlouquecer, porque seu corpo estava doendo por inteiro e os dedos estavam esmagados e ele não era mais um arqueiro, porque como é que poderia puxar uma corda com as mãos quebradas? Então veio a febre e ele chorou enquanto tremia e suava, e à noite, quando estava semi-adormecido, tagarelava em seus pesadelos; e tornava a chorar quando acordava, porque não tinha resistido à tortura, mas contara tudo a de Taillebourg. Ele era um fracassado, perdido no escuro, morrendo.

Então um dia, ele não sabia há quantos dias tinha sido levado para os porões de Guêpier, os dois criados de Bernard de Taillebourg foram buscá-lo. Vestiram-lhe uma camisa de lã grossa, enfiaram-lhe um calção de lã, sujo, sobre as pernas imundas, e subiram com ele para o pátio do castelo e jogaram-no na parte traseira de uma carroça de transporte de estrume mas que estava vazia. A porta da torre rangeu ao abrir-se e, acompanhado por vinte soldados vestindo o libré do senhor de Roncelets e ofuscado pela pálida luz do sol, Thomas deixou o Guêpier. Ele praticamente não sabia o que estava acontecendo, limitou-se a ficar deitado nas tábuas sujas, encolhido de dor, o fedor da carga normal da carroça acre nas narinas, querendo morrer. A febre não passara, e ele tremia de fraqueza.

— Para onde estão me levando? — perguntou, mas ninguém respondeu; talvez ninguém tivesse ouvido, porque sua voz estava muito fraca. Chovia. A carroça seguia barulhenta para o norte e os aldeões benziam-se, Thomas mergulhava e saía do estupor. Achava que estava morrendo e supunha que o estivessem levando para o cemitério, e tentou gritar para o carroceiro que ele ainda estava vivo, mas em vez disso era o irmão Germain que respondia num tom de voz lamurioso, dizendo que ele devia ter deixado o livro com ele, em Caen.

— A culpa é sua — dizia o velho monge, e Thomas concluiu que estava sonhando.

Em seguida percebeu um toque de trombeta. A carroça havia parado, e ele ouviu o adejar de um pano e ergueu o olhar para ver que um dos cavalarianos agitava uma bandeira branca. Thomas se perguntou se não seria a sua mortalha. Eles enrolavam um bebê quando este chegava ao mundo e embrulhavam um cadáver quando era levado, e Thomas soluçou porque não queria ser enterrado. Então ouviu vozes inglesas e percebeu que estava sonhando quando mãos fortes o levantaram dos restos de estrume. Quis gritar, mas estava muito fraco, e aí toda a percepção o deixou e ele ficou inconsciente.

Quando acordou, se achava escuro e ele estava em outra carroça, esta limpa, e havia cobertores sobre ele e um colchão de palha embaixo. A carroça tinha uma coberta de couro sobre arcos de madeira para evitar a chuva e a luz do sol.

— Vocês vão me enterrar agora? — perguntou Thomas.

— Está falando bobagem — disse um homem, e Thomas reconheceu a voz de Robbie.

— Robbie?

— Eu mesmo.

— Robbie?

— Seu pobre bastardo — disse Robbie e acariciou a testa de Thomas. — Seu pobre, pobre bastardo.

— Onde estou?

— Você está indo para casa, Thomas — disse Robbie —, está indo para casa.

Para La Roche-Derrien.

Tinham pago resgate por ele. Uma semana depois do seu desaparecimento e dois dias depois que o resto do grupo que fizera a incursão voltara para La Roche-Derrien, um mensageiro fora até a guarnição sob uma bandeira de trégua. Levava uma carta de Bernard de Taillebourg dirigida a Sir William Skeat. Entregue o livro do padre Ralph, dizia a carta, e Thomas de Hookton será devolvido a seus amigos. Will Skeat mandou que a mensagem fosse traduzida e lida para ele, mas não sabia nada sobre livro algum, e por isso perguntou a Sir Guillaume se ele fazia alguma idéia do que o padre queria, e Sir Guillaume falou com Robbie, o qual, por sua vez, falou com Jeanette e no dia seguinte uma resposta foi mandada de volta para Roncelets.

Depois houve uma demora de quinze dias, porque o irmão Germain teve de ser levado da Normandia para Rennes. De Taillebourg insistia nessa precaução, porque o irmão Germain tinha visto o livro e poderia confirmar que o que fosse trocado por Thomas era realmente o livro de notas do padre Ralph.

— E era mesmo — disse Robbie.

Thomas olhou para o teto. Teve um vago sentimento de que fora um erro trocá-lo pelo livro, ainda que estivesse grato por estar vivo, voltar para casa e estar entre os amigos.

— Foi o livro certo — continuou Robbie com prazer indecente —, mas nós acrescentamos alguma coisa a ele. — Ele sorriu para Thomas. — Primeiro copiamos tudo, claro, e depois acrescentamos umas besteiras para enganá-los. Para confundi-los, entende? E aquele velho monge encarquilhado nem percebeu. Apenas agarrou o livro como um cão faminto que ganhou um osso.

Thomas estremeceu. Ele se sentia como se lhe tivessem tirado o orgulho, a força e até mesmo a masculinidade. Tinha sido extremamente humilhado, reduzido a uma coisa trêmula, lamurienta, que se contorcia. Lágrimas escorreram de seus olhos, embora ele não emitisse som algum. As mãos doíam, o corpo doía, tudo doía. Nem mesmo sabia onde estava, só que tinha sido levado de volta para La Roche-Derrien e carregado por uma escada íngreme para aquele pequeno quarto sob as vigas íngremes de um telhado, onde as paredes tinham recebido um reboco malfeito e um crucifixo pendia da cabeceira da cama. Uma janela com um anteparo de osso opaco deixava passar uma luz marrom suja.

Robbie continuou contando a ele sobre as falsas anotações que eles tinham acrescentado ao livro do padre Ralph. A idéia tinha sido dele, disse, e Jeanette copiara o livro todo primeiro, mas depois disso Robbie deixara sua imaginação à solta.

— Escrevi uma parte em escocês — jactou-se —, dizendo que o Graal está, na verdade, na Escócia. Vou fazer os bastardos revistarem a urze, hein?

Ele soltou uma gargalhada, mas viu que Thomas não estava prestando atenção. Mesmo assim continuou falando, até que uma outra pessoa entrou no quarto e enxugou as lágrimas das faces de Thomas. Era Jeanette.

— Thomas? — perguntou ela. — Thomas?

Ele queria dizer que tinha visto o filho dela e falado com ele, mas não encontrou palavras. Guy Vexille dissera que Thomas iria querer morrer enquanto estivesse sendo torturado, e isso fora verdade, mas Thomas estava surpreso ao descobrir que ainda era verdade. Tire o orgulho de um homem, pensou, e você o deixa sem nada. A pior recordação não era a dor, nem a humilhação de implorar para que a dor parasse, mas a gratidão que sentira para com de Taillebourg quando a dor realmente parou. Esse, sim, era o detalhe mais vergonhoso de todos.

— Thomas? — tornou a perguntar Jeanette. Ela se ajoelhou ao lado da cama e acariciou-lhe o rosto. — Está tudo bem — disse baixinho —, você agora está a salvo. Estamos na minha casa. Ninguém irá maltratá-lo aqui.

— Eu deveria — disse uma nova voz, e Thomas tremeu de medo, e virou-se para ver que quem falara era Mordecai. Mordecai? O velho médico devia estar em algum lugar do sul, que estava quente. — Eu posso ter de recuperar os ossos de seus dedos das mãos e dos pés — disse o médico —, e isso vai ser doloroso. — Ele colocou sua maleta no chão. — Olá, Thomas. Eu odeio navios. Nós esperamos pela vela nova e depois, quando eles tinham acabado de costurá-la no lugar, chegaram à conclusão de que havia pouca calefação entre as pranchas, e quando isso foi corrigido eles concluíram que o cordame precisava de conserto, e por isso o infeliz do navio ainda está parado lá. Marinheiros! Tudo o que eles fazem é falar sobre navegar. Mesmo assim, eu não devo reclamar, porque me deu tempo para inventar alguma matéria nova para o livro de notas de seu pai, e eu gostei muito de fazê-lo! Agora eu soube que você precisa de mim. Meu caro Thomas, o que foi que fizeram com você?

— Eles me machucaram — disse Thomas, e aquelas foram as primeiras palavras que pronunciava desde que chegara à casa de Jeanette.

— Neste caso, precisamos remendá-lo — disse Mordecai com muita calma.

Ele ergueu o cobertor de cima do corpo cheio de cicatrizes de Thomas e, apesar de Jeanette encolher-se de horror, Mordecai apenas sorriu.

— Já vi coisas piores feitas pelos dominicanos — disse ele —, muito piores.

E assim Thomas foi novamente tratado por Mordecai, e o tempo era medido pelas nuvens que passavam do lado de fora da janela opaca, pelo sol subindo cada vez mais alto no céu e pelo barulho dos pássaros pegando palha do telhado para fazer seus ninhos. Houve dois dias de uma dor horrível quando Mordecai levou um corretor de ossos para tornar a quebrar e encanar os dedos das mãos e dos pés de Thomas, mas aquela dor passou depois de uma semana e as queimaduras pelo corpo cicatrizaram e a febre foi embora. Dia após dia Mordecai examinava a urina e dizia que estava clareando.

— Você tem a força de um touro, meu jovem Thomas.

— Eu tenho a estupidez de um touro — disse Thomas.

— Só impertinência — disse Mordecai —, só juventude e impertinência.

— Quando eles... — Thomas começou e encolheu-se ao lembrar-se do que de Taillebourg tinha feito. — Quando eles conversaram comigo — disse ele mudando de assunto —, eu lhes disse que o senhor tinha visto o livro.

— Eles não podem ter gostado disso — disse Mordecai. Tinha tirado um rolo de cordão de um bolso da túnica e agora enlaçava uma das pontas da linha em uma ponta de madeira que se projetava de um caibro do telhado que não tinha sido aparado. — Eles não podem ter gostado da idéia de um judeu ficar curioso a respeito do Graal. Sem dúvida, acharam que eu ia querer usá-lo como um urinol.

Apesar da irreverência, Thomas sorriu.

— Desculpe, Mordecai.

— Por falar de mim com eles? Que escolha você tinha? As pessoas sempre falam sob tortura, Thomas, e é por isso que a tortura é tão útil. É por isso que a tortura será usada enquanto o sol continuar a girar em volta da Terra. E você acha que eu agora corro um perigo maior do que antes? Sou judeu, Thomas, judeu. E agora, o que é que eu faço com isto?

Referia-se ao cordão, que agora pendia do caibro e que ele evidentemente queria prender ao chão, mas não havia nenhum ponto óbvio onde amarrá-lo.

— O que é isso? — perguntou Thomas.

— Um remédio — disse Mordecai, olhando impotente para o cordão e depois para o chão. — Sempre fui um desajeitado para essas coisas. Um martelo e um prego, não acha?

— Um grampo — sugeriu Thomas.

O menino idiota que era criado de Jeanette foi enviado com instruções cuidadosas e conseguiu encontrar o grampo que Mordecai pediu a Thomas que pregasse no chão de madeira, mas Thomas ergueu a mão direita torta, com os dedos dobrados como garras e disse que não podia fazer aquilo, de modo que Mordecai, sem habilidade, prendeu o grampo e depois amarrou o cordão e ajustou-o, deixando-o bem esticado do chão ao teto.

— O que terá de fazer — disse ele admirando seu trabalho manual — é tangê-lo como se fosse a corda de um arco.

— Não posso — disse Thomas em pânico, tornando a erguer as mãos contorcidas.

— O que é que você é? — perguntou Mordecai.

— O que é que eu sou?

— Ignore as respostas capciosas. Sei que é inglês e presumo que seja um cristão, mas o que é que você é?

— Eu era um arqueiro — disse Thomas com amargura.

— E ainda é — disse Mordecai, impiedoso —, e se não for um arqueiro, não será nada. Por isso tanja este cordão! E continue tangendo até que seus dedos possam fechar-se sobre ele. Treine. Treine. Que outra maneira você tem para passar o tempo?

E assim Thomas treinou e depois de uma semana conseguia apertar dois dedos contra o polegar e fazer o cordão reverberar como a corda de uma harpa, e depois de mais outra semana ele o tangia com tanto vigor que o cordão acabou por se partir devido à pressão. Sua força estava voltando e as queimaduras tinham cicatrizado, deixando vergões enrugados onde o atiçador tinha marcado a pele, mas as feridas na memória não cicatrizaram. Ele não queria falar sobre o que tinham feito com ele, porque não queria recordar; em vez disso, treinava tangendo o cordão até ele arrebentar, e depois aprendeu a empunhar um varapau e lutar batalhas de mentira no pátio da casa com Robbie. E, como os dias ficaram mais compridos enquanto saíam do inverno, fazia caminhadas para fora da cidade. Havia um moinho numa leve elevação que não ficava muito longe da porta leste da cidade, e no princípio ele praticamente não conseguiu subir porque os dedos dos pés tinham sido quebrados no torno e os pés pareciam protuberâncias duras, mas quando abril já enchera as campinas de primaveras, ele estava andando com confiança. Will Skeat saía muito com ele, e, embora o homem mais velho nunca falasse muito, a companhia era agradável. Quando falava, era para resmungar contra o tempo e reclamar que não tivera notícia alguma do conde de Northampton.

— Acha que a gente devia escrever de novo a sua excelência, Tom?

— Quem sabe ele não recebeu a primeira carta?

— Eu nunca gostei de coisas escritas — disse Skeat —, não é normal. Você pode escrever para ele?

— Posso tentar — disse Thomas, mas embora pudesse tanger uma corda de arco e empunhar um varapau ou mesmo uma espada, não conseguia manobrar a pena. Tentou, mas as letras saíam malfeitas e sem controle, e no fim um dos escreventes do chefe da guarnição incumbiu-se da tarefa embora Totesham achasse que a mensagem não adiantaria nada.

— Charles de Blois estará aqui antes de conseguirmos qualquer reforço — disse ele.

Totesham estava estremecido com Thomas, que lhe desobedecera ao ir até Roncelets, mas o castigo do arqueiro tinha sido muito maior do que o que Totesham teria desejado. Na verdade, sentia pena do rapaz.

— Quer levar a carta ao conde? — perguntou ele a Thomas.

Thomas sabia que estavam lhe oferecendo uma fuga, mas abanou a cabeça.

— Eu fico — disse, e a carta foi confiada ao comandante de um navio mercante que iria partir no dia seguinte.

A carta era um gesto inútil e Totesham sabia disso, porque sua guarnição estava, quase com toda certeza, condenada. Cada dia trazia notícias da chegada de reforços para Charles de Blois, e os grupos de incursões do inimigo estavam agora chegando perto dos muros de La Roche-Derrien e hostilizando os grupos de pilhagem que vasculhavam o interior à procura de qualquer cabeça de gado, bodes e ovelhas que pudessem ser levados para a cidade para serem abatidos e colocados em salmoura. Sir Guillaume gostava muito daquelas incursões para saquear. Desde que perdera Evecque, tornara-se fatalista, e tão selvagem que o inimigo já aprendera a desconfiar do gibão azul com os três falcões amarelos. No entanto, num anoitecer, ao voltar para casa depois de um longo dia que rendera apenas dois bodes, ele estava rindo quando foi procurar Thomas.

— Meu inimigo juntou-se a Charles — disse ele. — O conde de Coutances, que Deus condene sua alma podre. Eu matei um dos homens dele hoje de manhã, e só desejo que tivesse sido o conde.

— Por que ele está aqui? — perguntou Thomas. — Ele não é bretão.

— Filipe da França está enviando homens para ajudar o sobrinho dele — disse Sir Guillaume —, e por que o rei da Inglaterra não envia homens para enfrentá-lo? Ele acha que Calais é mais importante?

— Acha.

— Calais — disse Sir Guillaume, enojado — é o cu da França. — Ele tirou um pedaço de carne que estava entre os dentes. — E os seus amigos estavam cavalgando hoje — continuou.

— Meus amigos?

— Os vespas.

— Roncelets — disse Thomas.

— Nós enfrentamos meia dúzia dos bastardos numa aldeia bárbara — disse Sir Guillaume — e eu traspassei uma lança numa barriga preto e amarelo. Depois ele ficou tossindo.

— Tossindo?

— É o tempo chuvoso, Thomas — explicou Sir Guillaume —, que faz um homem pegar uma tosse. Por isso eu o deixei em paz, matei outro dos bastardos, depois voltei e curei a tosse. Cortei a cabeça dele.

Robbie seguia com Sir Guillaume e, como ele, juntava moedas tiradas de patrulhas inimigas mortas, embora Robbie também saísse na esperança de um encontro com Guy Vexille. Ele agora sabia aquele nome, porque Thomas lhe contara que tinha sido Guy Vexille que matara seu irmão pouco antes da batalha fora de Durham, e Robbie tinha ido à igreja de São Renan, colocado a mão sobre o crucifixo que estava no altar e jurado vingança.

— Vou matar Guy Vexille e de Taillebourg — jurou ele.

— Eles são meus — insistia Thomas.

— Só se eu não os pegar primeiro — prometia Robbie.

Robbie arranjara uma namorada bretã, de olhos castanhos, chamada Oana, que odiava sair do lado dele e o acompanhava sempre que ele caminhava com Thomas. Um dia, quando eles partiram para o moinho, ela apareceu com o grande arco preto de Thomas.

— Eu não posso usar isso! — disse Thomas, com medo do arco.

— Então, para o que é que você serve? — perguntou Robbie e, com paciência, estimulou Thomas a puxar o arco e elogiou-o porque a força voltara. Os três levavam o arco para o moinho e Thomas disparava flechas contra a torre de madeira. Os disparos eram fracos no início, porque ele mal podia puxar a corda até a metade do caminho, e quanto mais força imprimia, mais traiçoeiros seus dedos pareciam e mais errada ficava a mira. Mas quando as andorinhas e os taperuçus apareceram como por mágica nos telhados da cidade, ele já conseguia puxar a corda por completo, até a orelha, e acertar uma flecha através dos braceletes de madeira de Oana a cem passos de distância.

— Você está curado — disse Mordecai quando Thomas lhe contou a novidade.

— Graças a você — disse Thomas, embora soubesse que não era apenas Mordecai, como também não tinha sido apenas a amizade de Will Skeat ou de Sir Guillaume ou de Robbie Douglas que o tinham ajudado a recuperar-se. Bernard de Taillebourg tinha ferido Thomas, mas aqueles ferimentos de Deus, sem sangue, não tinham sido infligidos só no seu corpo, mas na sua alma, e fora numa escura noite de primavera, quando o relâmpago cintilava no leste, que Jeanette subira para o sótão da casa dela. Ela só saíra de perto de Thomas depois que os galos da cidade saudaram o novo amanhecer, e se Mordecai compreendera por que Thomas estava sorrindo no dia seguinte, ele nada disse, mas percebeu que a partir daquele momento a recuperação de Thomas fora rápida.

Daquele dia em diante Thomas e Jeanette conversavam todas as noites. Ele lhe falou sobre Charles e da expressão no rosto do menino quando Thomas mencionara a mãe dele; Jeanette queria saber tudo a respeito daquela expressão e ficava preocupada com o fato de que ela nada significasse e que o filho a houvesse esquecido, mas acabou acreditando em Thomas quando ele disse que o menino quase chorara quando teve notícias dela.

— Você disse a ele que eu o amava? — perguntou ela.

— Disse — afirmou Thomas, e Jeanette ficou calada, lágrimas nos olhos, e Thomas tentou tranqüilizá-la, mas ela abanou a cabeça como se não houvesse nada que Thomas pudesse dizer que a consolasse. — Desculpe — disse ele.

— Você tentou — disse Jeanette.

Eles se perguntavam como o inimigo ficara sabendo que Thomas estava chegando, e Jeanette disse estar certa de que Belas, o advogado, tinha alguma coisa a ver com aquilo.

— Eu sei que ele escreve para Charles de Blois — disse ela —, e aquele homem horrível, como é que você o chamava?, épouvantail?

— O Espantalho.

— Esse mesmo — confirmou Jeanette —, l’épouvantail. Ele conversa com o Belas.

— O Espantalho conversa com o Belas? — perguntou Thomas, surpreso.

— Ele agora mora lá. Ele e seus homens moram nos depósitos. — Ela fez uma pausa. — Por que ele está na cidade?

Outros dos mercenários tinham escapulido para procurar emprego onde houvesse alguma esperança de vitória, em vez de ficar e suportar a derrota com que Charles de Blois ameaçava.

— Ele não pode voltar para a terra dele — disse Thomas —, porque tem muitas dívidas. Enquanto estiver aqui, estará protegido contra os credores.

— Mas por que La Roche-Derrien?

— Porque eu estou aqui — disse Thomas. — Ele acha que eu poderei levá-lo a um tesouro.

— O Graal?

— Ele não sabe disso — disse Thomas, mas estava errado, porque no dia seguinte, enquanto ele estava sozinho no moinho e atirando flechas num alvo comprido e estreito que fincara a cento e cinqüenta passos de distância, o Espantalho e seus seis soldados saíram a cavalo pela porta leste da cidade. Saíram da estrada de Pontrieux, passaram em fila por uma abertura na cerca viva e subiram a pequena ladeira em direção ao moinho. Estavam todos com cotas de malha e todos levavam espadas, exceto Beggar que, eclipsando seu cavalo, levava uma maça.

Sir Geoffrey sofreou o cavalo perto de Thomas, que o ignorou para disparar uma flecha que passou de raspão pelo alvo. O Espantalho deixou as voltas de seu chicote escorrerem para o chão.

— Olhe para mim — ordenou a Thomas.

Thomas continuou ignorando-o. Tirou uma flecha do cinto e encaixou-a na corda, e então jogou a cabeça para o lado quando viu o chicote serpentear em sua direção. A ponta de metal tocou-lhe os cabelos, mas não causou dano algum.

— Mandei que olhasse para mim — vociferou Sir Geoffrey.

— Quer uma flecha na cara? — perguntou Thomas.

Sir Geoffrey inclinou-se sobre o arção anterior da sela, o rosto vermelho contorcido num espasmo de raiva.

— Você é um arqueiro — ele apontou o cabo do chicote para Thomas — e eu sou um cavaleiro. Se eu o abater, não haverá um juiz vivo que me condene.

— E se eu meter uma flecha no seu olho — disse Thomas —, o diabo vai me agradecer por eu lhe mandar um companheiro.

Beggar grunhiu e esporeou o cavalo, mas o Espantalho fez um gesto mandando o homem de volta.

— Sei o que você quer — disse ele.

Thomas puxou a corda para trás, corrigiu instintivamente a mira para compensar o fraco vento que ondulava o capim da pradaria e disparou. A flecha fez o alvo tremer.

— Você não faz idéia do que eu quero — respondeu o arqueiro.

— Eu pensei que fosse ouro — disse o Espantalho —, depois pensei que fosse terra, mas nunca entendi por que ouro ou terra iriam levá-lo a Durham.

Ele fez uma pausa enquanto Thomas disparava outra flecha que passou silvando a um palmo do alvo distante.

— Mas agora eu sei — terminou ele —, agora finalmente eu sei.

— O que é que você sabe? — perguntou Thomas, com escárnio.

— Sei que foi a Durham para falar com os religiosos porque está à procura do maior tesouro da Igreja. Você está procurando o Graal.

Thomas deixou a corda do arco afrouxar e ergueu os olhos para Sir Geoffrey.

— Todos nós estamos à procura do Graal — disse Thomas, ainda com escárnio.

— Onde ele está? — rosnou Sir Geoffrey.

Thomas soltou uma gargalhada. Admirava-se de que o Espantalho soubesse a respeito do Graal, mas imaginou que os mexericos na guarnição talvez tivessem feito com que todos em La Roche-Derrien ficassem sabendo.

— Os melhores interrogadores da Igreja me perguntaram isso — disse ele, erguendo uma mão encolhida —, e eu não lhes disse. Por que diria a você?

— Acho que um homem que está à procura do Graal — disse o Espantalho — não se fecha numa guarnição que tem apenas um ou dois meses de vida.

— Neste caso, talvez eu não esteja procurando o Graal — disse Thomas e disparou outra flecha contra o alvo, mas a haste estava empenada e a flecha oscilou em pleno vôo e caiu longe. Acima dele, as grandes pás do moinho, enroladas em suas vergas e presas com cordas, rangeram quando uma lufada de vento tentou girá-las.

Sir Geoffrey enrolou o chicote.

— Você fracassou na primeira vez que saiu daqui. O que vai acontecer se tornar a sair? O que vai acontecer se partir atrás do Graal? E com certeza estará de partida em breve, antes de Charles de Blois chegar. Por isso, quando viajar, vai precisar de ajuda.

Thomas, incrédulo, concluiu que o Espantalho fora oferecer ajuda, ou talvez Sir Geoffrey estivesse pedindo ajuda. Ele estava em La Roche-Derrien por apenas um motivo, tesouro, e não estava mais próximo dele do que estivera quando abordara Thomas do lado de fora de Durham.

— Você não pode se arriscar a fracassar outra vez — continuou o Espantalho —, de modo que da próxima vez leve combatentes de verdade com você.

— Acha que eu levaria você? — perguntou Thomas, perplexo.

— Eu sou inglês — disse o Espantalho, indignado —, e se o Graal existe eu o quero na Inglaterra. Não numa porcaria de lugar estrangeiro.

O som de uma espada arrastando-se numa bainha fez com que o Espantalho e seus soldados girassem o corpo nas selas. Jeanette e Robbie tinham ido para a pradaria com Oana ao lado de Robbie; Jeanette estava com sua besta engatilhada, enquanto Robbie, como se não se preocupasse com coisa alguma no mundo, cortava as pontas de cardos com a espada de seu tio. Sir Geoffrey tornou a voltar-se para Thomas.

— O que você não precisa é de um maldito escocês — disse ele, irritado — nem de uma puta francesa. Se procura o Graal, arqueiro, procure-o com ingleses leais! É o que o rei iria querer, não é?

Uma vez mais, Thomas não respondeu. Sir Geoffrey pendurou o chicote num gancho preso ao cinto e sacudiu as rédeas. Os sete homens saíram a meio galope morro abaixo, passando perto de Robbie como desafiando-o a atacá-los, mas o escocês ignorou-os.

— O que é que aquele bastardo queria?

Thomas atirou contra o alvo, raspando-o com as penas da flecha.

— Acho que ele queria me ajudar a procurar o Graal.

— Ajudar você! — exclamou Robbie. — Ajudar você a procurar o Graal? Uma ova. Quer é roubá-lo. Aquele bastardo seria capaz de roubar o leite dos seios da Virgem Maria.

— Robbie! — disse Jeanette, chocada, e então apontou a besta para o alvo.

— Observe-a — disse Thomas a Robbie. — Ela vai fechar os olhos quando disparar. Sempre faz isso.

— Vá para o inferno — disse Jeanette, mas, incapaz de evitar, fechou os olhos ao puxar o gatilho. A seta saiu do entalhe e milagrosamente tirou um pedaço de uns quinze centímetros do topo do alvo. Jeanette olhou para Thomas com ar triunfante. — Sei atirar melhor do que você de olhos fechados.

Robbie estivera em cima dos muros da cidade, tinha visto o Espantalho abordar Thomas e, por isso fora ajudar, mas agora, depois de Sir Geoffrey ter ido embora, eles ficaram sentados ao sol, as costas apoiadas na base de madeira do moinho. Jeanette olhava para o muro da cidade que ainda mostrava as cicatrizes onde a brecha feita pelos ingleses tinha sido consertada com uma pedra de cor mais clara.

— Você é mesmo de berço nobre? — perguntou a Thomas.

— De berço bastardo — respondeu o arqueiro.

— Mas de um nobre?

— Ele era o conde de Astarac — disse Thomas, mas logo deu uma risada, porque era estranho pensar que o padre Ralph, o louco padre Ralph que pregara para as gaivotas na praia de Hookton, tinha sido conde.

— E qual é o emblema de Astarac? — perguntou Jeanette.

— Um yale segurando uma taça — disse ele, e mostrou a Jeanette o pedaço de prata desbotado na vara preta de seu arco gravada com a estranha criatura que tinha chifres, patas fendidas, garras, presas e um rabo de leão.

— Vou mandar fazer um estandarte para você — disse Jeanette.

— Um estandarte? Por quê?

— Um homem deve exibir o seu emblema — disse Jeanette.

— E você devia ir embora de La Roche-Derrien — retorquiu Thomas.

Ele sempre tentava convencê-la a deixar a cidade, mas ela insistia em ficar. Jeanette agora duvidava que algum dia teria o filho de volta, e por isso estava decidida a matar Charles de Blois com uma de suas setas de besta, que eram feitas de teixo compacto com pontas de ferro e providas não de penas, mas de peças duras de couro inseridas em fendas feitas em forma de cruz no teixo e depois presas com cordão e cola. Era por isso que ela treinava com tanta assiduidade, para a chance de eliminar o homem que a estuprara e tirara o seu filho.

A Páscoa chegou antes do inimigo. Fazia calor. As cercas vivas estavam cheias de ninhos e as campinas ecoavam com o grito das perdizes, e no dia seguinte à Páscoa, quando as pessoas comiam o que restara da festa que quebrara o jejum da Quaresma, a temida notícia finalmente chegou de Rennes.

Charles de Blois tinha iniciado a marcha.

Mais de quatro mil homens deixaram Rennes sob o estandarte com o arminho do duque da Bretanha. Dois mil eram besteiros, a maioria trajando o libré verde e vermelho de Gênova e usando no braço direito o emblema da cidade com o Santo Graal. Eram mercenários, contratados e apreciados pela sua destreza. Marchavam com eles mil elementos de infantaria, os homens que iriam cavar as trincheiras e assaltar os muros quebrados das fortalezas inglesas. Em seguida vinham mais de mil cavaleiros e soldados, a maioria franceses, que formavam o resistente cerne com armadura do exército do duque Charles. Eles marchavam em direção a La Roche-Derrien, mas o verdadeiro objetivo da campanha não era a captura da cidade, de valor desprezível, mas sim atrair Sir Thomas Dagworth e seu pequeno exército para uma batalha regular na qual os cavaleiros e os soldados, montados em seus grandes cavalos protegidos por armaduras, seriam lançados para abrir com violência um caminho pelas fileiras inglesas.

Um comboio de carroças pesadas levava nove máquinas de cerco, que precisavam da atenção de mais de cem engenheiros que sabiam montar e fazer funcionar os gigantescos aparelhos que podiam lançar pedras do tamanho de um barril de cerveja mais longe do que um arco podia disparar uma flecha. Um artilheiro florentino tinha oferecido seis de suas estranhas máquinas a Charles, mas o duque as recusara. Canhões eram peças raras, dispendiosas e, acreditava ele, temperamentais, enquanto que os velhos aparelhos mecânicos funcionavam muito bem se estivessem lubrificados com sebo, e Charles não via motivos para abandoná-los.

Mais de cinco mil homens partiram de Rennes, mas muitos mais chegaram aos campos do lado de fora de La Roche-Derrien. Gente do interior que odiava os ingleses entrou para o exército a fim de se vingar por todas as cabeças de gado, produtos agrícolas, propriedades e virgindades que suas famílias tinham perdido para os estrangeiros. Alguns estavam armados com nada mais do que picaretas ou machados, mas quando chegasse a hora de assaltar a cidade aqueles homens irados seriam úteis.

O exército chegou a La Roche-Derrien e Charles de Blois ouviu a última das portas da cidade bater ao ser fechada. Ele enviou um mensageiro para exigir a rendição da guarnição, sabendo que a proposta seria recusada, e enquanto suas tendas eram armadas ele mandou que outros cavalarianos patrulhassem o lado oeste, nas estradas que levavam a Finisterra, o fim do mundo. Eles ficaram lá para avisá-lo sobre quando o exército de Sir Thomas Dagworth marchasse para ajudar a cidade, se é que marcharia mesmo. Os espiões de Charles tinham dito a ele que Dagworth não seria capaz de reunir nem mil homens.

— E quantos deles serão arqueiros? — perguntou ele.

— No máximo quinhentos, excelência.

O homem que respondeu era um padre, um dos muitos que serviam na comitiva de Charles. O duque era conhecido como um homem piedoso e gostava de empregar padres como conselheiros, secretários e, naquele caso, chefe dos espiões.

— No máximo quinhentos — repetiu o padre —, mas na verdade muito menos, excelência.

— Menos? Como assim?

— Febre em Finisterra — respondeu o padre com um sorriso irônico. — Deus é bom para nós.

— Amém. E quantos arqueiros estão na guarnição da cidade?

— Sessenta homens saudáveis, excelência — o padre estava com o mais recente relatório de Belas —, só sessenta.

Charles fez uma careta. Já tinha sido derrotado por arqueiros ingleses, mesmo quando estivera com tamanha superioridade numérica que a derrota parecia impossível e, em conseqüência, estava sempre precavido quanto a flechas compridas, mas era também um homem inteligente e refletira bastante sobre o problema do arco de guerra inglês. Achava que era possível derrotar aquela arma, e nessa campanha mostraria como isso podia ser feito. A inteligência, a mais desprezada das qualidades de um soldado, iria triunfar, e Charles de Blois, a quem os franceses chamavam de duque e governante da Bretanha, era, sem dúvida alguma, um homem inteligente. Lia e escrevia em seis línguas, falava latim melhor do que a maioria dos padres e era um mestre em retórica. Sua própria aparência era a de um homem inteligente, com o rosto fino e pálido, os olhos azuis muito vivos, a barba e o bigode louros. Estivera lutando contra os seus rivais pelo ducado quase toda a sua vida adulta, mas agora finalmente conquistara o predomínio. O rei da Inglaterra, cercando Calais, não reforçava suas guarnições na Bretanha, enquanto o rei da França, que era seu tio, tinha sido generoso em lhe ceder soldados, o que significava que afinal o duque Charles tinha superioridade numérica sobre os inimigos. Terminado o verão, assim esperava, ele seria o senhor de todos os seus domínios ancestrais. De qualquer modo aconselhou a si mesmo que não se deixasse dominar pelo excesso de confiança.

— Até mesmo quinhentos arqueiros — pensou —, até mesmo quinhentos e sessenta arqueiros podem ser perigosos.

Ele tinha uma voz precisa, pedante e seca, e os padres de sua comitiva muitas vezes achavam que ele falava como um sacerdote.

— Os genoveses vão inundá-los de setas, excelência — garantiu um padre.

— Deus o queira — disse Charles com ar piedoso, embora o próprio Deus, segundo ele, fosse precisar de um pouco de ajuda da inteligência humana.

Na manhã seguinte, debaixo de um sol de fim de primavera, Charles cavalgou em volta de La Roche-Derrien, apesar de se manter longe o bastante para que nenhuma flecha inglesa pudesse alcançá-lo. Os defensores tinham pendurado estandartes nos muros da cidade. Algumas bandeiras exibiam a cruz de São Jorge inglesa, outras, o emblema do arminho branco do duque de Montfort que se parecia muito com o de Charles. Muitas das bandeiras continham palavras que eram verdadeiros insultos dirigidos a ele. Uma delas mostrava o arminho branco do duque com uma flecha inglesa atravessando-lhe a barriga ensangüentada, e uma outra era evidentemente um retrato de Charles sendo pisoteado por um grande cavalo preto, mas a maioria das bandeiras continha exortações piedosas pedindo a ajuda de Deus ou exibindo a cruz para mostrar aos atacantes com quem devia estar a solidariedade divina. A maioria das cidades sitiadas também teria desfraldado estandartes de seus defensores nobres, mas La Roche-Derrien tinha poucos nobres, ou pelo menos poucos que exibissem seus emblemas, e nenhum do mesmo nível dos aristocratas que estavam no exército de Charles. Os três falcões de Evecque eram exibidos no muro, mas todo mundo sabia que Sir Guillaume tivera seus direitos cassados e não tinha mais do que três ou quatro adeptos. Uma bandeira mostrava um coração vermelho num campo claro, e um padre da comitiva de Charles achou que era o emblema da família Douglas na Escócia, um absurdo para ele, porque nenhum escocês estaria lutando ao lado dos ingleses. Ao lado do coração vermelho estava um estandarte mais brilhante, mostrando um mar de linhas onduladas azul e branco.

— Aquele é... — começou a perguntar Charles, depois parou, franzindo o cenho.

— O emblema da Armórica, excelência — respondeu o senhor de Roncelets. Naquele dia, enquanto circundava a cidade, o duque Charles estivera acompanhado de seus grandes senhores para que os defensores vissem seus estandartes e ficassem com um temor reverencial. A maioria era de senhores da Bretanha; o visconde Rochan e o visconde Morgat seguiam logo atrás do duque, depois vinham os senhores de Châteaubriant e de Roncelets, Laval, Guingamp, Rougé, Dinan, Redon e Malestroit, todos montando corcéis de batalha imponentes, enquanto que da Normandia o conde de Coutances e os senhores de Valognes e Carteret tinham levado seus contratados para lutarem em favor do sobrinho do rei deles.

— Pensei que a Armórica tivesse morrido — observou um dos lordes normandos.

— Ele tem um filho — respondeu Roncelets.

— E uma viúva — disse o conde de Guingamp. — Foi essa puta traidora quem desfraldou o estandarte.

— Mas é uma bela puta traidora — disse o visconde Rohan, e os senhores riram, porque todos sabiam como tratar viúvas rebeldes e bonitas.

Charles fez uma careta ao ouvir a risada inconveniente deles.

— Quando tomarmos a cidade — ordenou com frieza —, a viúva condessa da Armórica não será molestada. Deverá ser trazida à minha presença.

Ele tinha estuprado Jeanette uma vez, e iria estuprá-la outra vez, e quando aquele prazer tivesse sido satisfeito, iria casá-la com um de seus soldados, que iria ensiná-la a se comportar e a não falar tanto. Ele agora fez o cavalo parar, para ficar olhando enquanto mais estandartes eram pendurados nos reparos, todos eles insultos dirigidos a ele e à sua casa.

— É uma guarnição atarefada — disse ele, seco.

— Cidadãos atarefados — vociferou o visconde Rohan. — Malditos traidores atarefados.

— Cidadãos? — Charles parecia intrigado. — Por que os cidadãos iriam apoiar os ingleses?

— Comércio — respondeu Roncelets, sucinto.

— Comércio?

— Eles estão ficando ricos — grunhiu Roncelets — e estão gostando.

— O bastante para lutar contra o senhor deles? — perguntou Charles, incrédulo.

— Uma ralé desleal — disse Roncelets, taxativo.

— Uma ralé — disse Charles — que teremos de levar à pobreza.

Ele usou as esporas, só parando o cavalo quando viu outro estandarte de um nobre, dessa vez mostrando um yale exibindo um cálice. Até aquele momento, não tinha visto um único estandarte que prometesse um vultoso resgate se o seu senhor fosse capturado, mas aquele emblema era um mistério.

— De quem é aquele? — perguntou ele.

Ninguém sabia, mas então um rapaz esguio, montando um grande cavalo preto alto, respondeu lá do fim da comitiva do duque.

— O emblema de Astarac, excelência, e pertence a um impostor.

O homem que respondera tinha vindo da França com cem cavalarianos usando um libré todo preto e estava acompanhado de um dominicano que tinha uma expressão amedrontadora. Charles de Blois tinha prazer em ter os homens de libré preto no seu exército, porque eram todos soldados vigorosos e experientes, mas se sentia um tanto nervoso em relação a eles. Eram vigorosos e experientes demais.

— Um impostor? — repetiu e esporeou o cavalo para que seguisse em frente. — Neste caso, não precisamos nos preocupar com ele.

Havia três portas dando para a terra e uma quarta, abrindo-se para a ponte, de frente para o rio. Charles planejava cercar cada uma daquelas portas, para que a guarnição ficasse encurralada como raposas em suas tocas fechadas.

— O exército — decretou quando os senhores voltaram para a tenda ducal, que tinha sido montada perto do moinho que se erguia no pequeno morro a leste da cidade — será dividido em quatro partes, e cada uma delas se posicionará diante de cada uma das portas.

Os senhores ouviram e um padre anotou os pronunciamentos, para que a História tivesse um registro autêntico do gênio marcial do duque.

Cada uma das quatro divisões do exército de Charles iria ter superioridade numérica sobre qualquer força de socorro que Sir Thomas Dagworth pudesse reunir, mas, para ficar ainda mais garantido, Charles ordenou que os quatro acampamentos se cercassem de obras de terra, a fim de que os ingleses fossem obrigados a atacar passando por trincheiras, encostas, paliçadas e cercas de espinhos. Os obstáculos iriam esconder os homens de Charles dos arqueiros e dar aos besteiros genoveses cobertura enquanto recarregassem suas armas. O terreno entre os quatro acampamentos deveria ficar livre de cercas e outros obstáculos para deixar que houvesse apenas uma imensidão de grama e pântano.

— O arqueiro inglês — disse Charles a seus senhores — não é um homem que lute cara a cara. Ele mata de longe e esconde-se atrás de cercas, frustrando os nossos cavalos. Nós iremos virar essa tática contra ele.

A tenda era grande, branca e arejada, e o cheiro no seu interior era de grama pisada e de suor de homens. Do lado de fora das paredes de lona chegava o barulho surdo de batidas enquanto os engenheiros usavam martelos de madeira para montar o maior dos grandes aparelhos de sítio.

— Nossos homens — decretou ainda Charles — deverão ficar dentro de suas defesas. Com isso, vamos fazer quatro fortalezas que ficarão em frente às quatro portas da cidade, e se os ingleses enviarem uma força de socorro esses homens terão de atacar nossas fortalezas. Arqueiros não conseguem matar quem eles não vêem. — Fez uma pausa para certificar-se de que aquelas palavras simples eram compreendidas. — Arqueiros — tornou a dizer — não conseguem matar quem eles não vêem. Lembrem-se disso! Nossas bestas estarão atrás de barreiras de terra, estaremos protegidos por cercas e escondidos por paliçadas, e o inimigo estará em campo aberto, onde poderá ser abatido.

Houve murmúrios de concordância, porque o que o duque dizia fazia sentido. Arqueiros não podiam matar homens invisíveis. Até mesmo o aterrador dominicano que chegara com os soldados vestidos de preto parecia ter ficado impressionado.

Os sinos anunciando o meio-dia tocaram na cidade. Um deles, o mais alto, estava rachado e emitia uma nota dissonante.

— La Roche-Derrien — continuou o duque — não tem importância. Se ela cair, ou não, não fará diferença. O que importa é forçarmos o exército do inimigo a sair para nos atacar. É provável que Dagworth venha proteger La Roche-Derrien. Quando ele chegar, nós o esmagaremos, e depois que ele tiver sido derrotado só restarão as guarnições inglesas, e nós as pegaremos uma a uma. Findo o verão, toda a Bretanha será nossa.

Ele falava devagar e com simplicidade, sabendo que era melhor explicar bem a campanha para os homens que, embora fossem fortes como aríetes, não eram famosos como pensadores.

— E quando a Bretanha for nossa — continuou — haverá presentes de terra, de solares e de baluartes.

Houve um grunhido muito mais alto de aprovação e os homens que ouviam sorriram, porque haveria mais do que terra, solares e castelos como recompensas pela vitória. Haveria ouro, prata e mulheres. Mulheres em quantidade. O grunhido transformou-se em risadas quando os homens perceberam que estavam todos pensando na mesma coisa.

— Mas é aqui — a voz de Charles chamou a platéia à ordem — que nós tornamos possível a nossa vitória, e nós o fazemos negando ao arqueiro inglês os seus alvos. Um arqueiro não pode matar homens que ele não consegue ver! — Ele fez nova pausa, olhando para a platéia, e viu que todos balançavam a cabeça enquanto a verdade simples daquela afirmativa finalmente penetrava-lhes o crânio.— Nós estaremos, todos, em nossas fortalezas, uma das quatro fortalezas, e quando o exército inglês vier para desafogar o cerco irá atacar uma dessas fortalezas. Esse exército inglês será pequeno. Menos de mil homens! Suponham então que ele comece atacando o forte que eu vou construir aqui. O que é que os demais dos senhores vão fazer?

Esperou uma resposta, e, depois de um certo tempo, o senhor de Roncelets, tão em dúvida quanto um aluno dando uma resposta ao seu mestre, franziu o cenho e fez uma sugestão.

— Viemos ajudar vossa excelência?

Os outros senhores sacudiram a cabeça e deram um sorriso de concordância.

— Não! — disse Charles, irritado. — Não! Não! Não! — Esperou um instante para ter a certeza de que eles tinham entendido aquela palavra simples. — Se os senhores saírem de suas fortalezas — explicou —, irão oferecer ao arqueiro inglês um alvo. É isso que ele quer! Ele vai querer nos tentar a sair de trás dos nossos muros para nos abater com suas flechas. Por isso, o que é que nós fazemos? Ficamos atrás dos nossos muros. Ficamos atrás dos nossos muros.

Será que eles tinham entendido? Aquilo era a chave da vitória. Mantenham os homens escondidos, e os ingleses têm de perder. O exército de Sir Thomas Dagworth seria obrigado a assaltar muros de terra e cercas de espinhos, e os besteiros iriam espetá-los em quadrelos, e quando os ingleses estivessem tão reduzidos que só restassem algumas centenas em pé o duque liberaria seus soldados para massacrar os remanescentes.

— Os senhores não saem de suas fortalezas — insistiu, determinado. — Aquele que sair perderá o direito à minha generosidade.

A ameaça trouxe os ouvintes do duque de volta à realidade.

— Se até mesmo um de seus homens deixar a proteção dos muros — continuou Charles —, vamos providenciar para que os senhores não sejam incluídos na distribuição de terras quando a campanha terminar. Ficou claro, cavalheiros? Ficou claro?

Ficou claro. Era simples.

Charles de Blois iria construir quatro fortalezas para se oporem às quatro portas da cidade, e os ingleses, quando viessem, seriam obrigados a assaltar aqueles muros recém-erguidos. E mesmo o menor dos quatro fortes do duque teria mais defensores do que os ingleses tinham de atacantes, e os defensores estariam protegidos, suas armas seriam letais, e os ingleses morreriam. Com isso, a Bretanha passaria para a casa de Blois.

Inteligência. Ela ganharia guerras e construiria reputações. E depois que Charles tivesse mostrado como derrotar os ingleses ali, iria derrotá-los em toda a França.

Porque Charles sonhava com uma coroa mais pesada do que a coroa aberta de duque da Bretanha. Sonhava com a França, mas o começo teria de ser ali, nos campos alagados em torno de La Roche-Derrien, onde ensinaria ao arqueiro inglês qual era o lugar dele.

No inferno.

As nove máquinas de cerco eram todas trabucos, o maior deles capaz de atirar uma pedra pesando o dobro de um homem adulto, a uma distância de quase trezentos passos. Todos os nove tinham sido feitos em Regensburg, na Baviera, e os engenheiros experientes que acompanhavam as altas máquinas eram, todos, bávaros que entendiam as complicações das armas. Os dois maiores trabucos tinham um braço lançador com mais de dezesseis metros de comprimento, e mesmo os dois menores, instalados na margem distante do Jaudy para ameaçar a ponte e sua barbacã, tinham braços que mediam onze metros.

Os dois maiores, que se chamavam Infernal e Fazedor de Viúvas, foram colocados ao pé do morro onde imperava o moinho. A rigor, cada um deles era uma máquina simples, apenas um braço comprido montado num eixo como uma balança de gigante ou uma gangorra para crianças, só que uma das extremidades da gangorra tinha o triplo do comprimento da outra. A ponta mais curta era sobrecarregada com uma enorme caixa de madeira cheia de pesos de chumbo, enquanto a mais longa, a que atirava o projétil, ficava presa a um grande guincho que a arriava até o chão e, com isso, levantava as dez toneladas de contrapesos de chumbo. O projétil de pedra era colocado numa funda de couro com cerca de cinco metros de comprimento, presa ao braço mais longo. Liberado, o braço com o contrapeso caía com força e o braço mais longo lançava-se com força para o alto. A funda subia ainda mais depressa, e a pedra era solta do seu berço de couro para descrever uma curva no céu e desabar em cima do alvo. Simples. O difícil era manter o mecanismo lubrificado com sebo, construir um guincho forte o bastante para arriar o braço longo até o chão, fazer um caixote com resistência suficiente para bater repetidas vezes e não derramar as dez toneladas de pesos de chumbo e, o mais difícil de tudo, projetar um dispositivo com força suficiente para manter o braço longo arriado contra o peso do chumbo mas capaz de liberar o braço com segurança. Esses eram os detalhes nos quais os bávaros eram peritos e pelos quais eram pagos com muita generosidade.

Muita gente dizia que a perícia dos bávaros era redundante. Os canhões eram muito menores e atiravam seus mísseis com muito mais força, mas o duque Charles usara a inteligência para uma comparação e concluíra em favor da tecnologia mais antiga. Os canhões eram lentos e sujeitos a explosões que matavam os dispendiosos artilheiros. Eram também dolorosamente lentos, porque a folga entre o projétil e o cano do canhão tinha de ser vedada para conter a força da pólvora, e por isso era necessário envolver a bala do canhão em marga molhada, exigindo tempo para secar antes que a pólvora pudesse ser acesa, mas até os artilheiros mais experientes, vindos da Itália, não conseguiam disparar uma arma mais de três ou quatro vezes por dia. E quando um canhão disparava cuspia uma bala que pesava apenas poucos quilos. Embora fosse verdade que a pequena bala voava a uma velocidade tão grande que nem era possível vê-la, os trabucos, mais antigos, podiam atirar um projétil com vinte ou trinta vezes mais de peso, três ou quatro vezes por hora. La Roche-Derrien, decidira o duque, seria martelada à maneira antiga, e por isso a cidadezinha foi cercada por nove trabucos. Além do Infernal e do Fazedor de Viúvas, havia ainda o Lança-Pedras, o Esmagador, o Coveiro, o Chicote de Pedra, o Odiento, o Destruidor e o Mão de Deus.

Cada trabuco era construído sobre uma plataforma feita com vigas de madeira e protegido por uma paliçada alta e resistente o bastante para deter qualquer flecha. Alguns camponeses que tinham entrado para o exército foram treinados para ficar perto das paliçadas e prontos para jogar água em quaisquer flechas incendiárias que os ingleses pudessem usar para destruir as cercas e com isso deixar expostos os engenheiros dos trabucos. Outros camponeses cavavam as valas e erguiam as barreiras de terra que formavam as quatro fortalezas do duque. Onde era possível, eles usavam valas já existentes ou incorporavam as grossas cercas de espinhos às defesas. Fizeram barreiras de estacas pontudas e cavaram fossos para quebrar patas de cavalos. As quatro partes do exército do duque cercaram-se de muitas defesas e, dia após dia, à medida que os muros subiam e os trabucos tomavam forma com as peças transportadas nos carroções, o duque mandava seus homens treinarem a formação de suas linhas de combate. Os besteiros genoveses guarneciam os muros semi-acabados, enquanto atrás deles os cavaleiros e os soldados desfilavam a pé. Alguns homens resmungavam, dizendo que aqueles treinos eram uma perda de tempo, mas outros percebiam como o duque queria lutar e aprovavam. Os arqueiros ingleses seriam frustrados pelos muros, valas e paliçadas, e as bestas iriam eliminá-los um a um, e por fim o inimigo seria obrigado a atacar passando pelos muros de terra e pelas valas alagadas, para serem massacrados pelos soldados que os aguardavam.

Depois de uma semana de um trabalho de castigar as costas, os trabucos foram montados e as caixas de contrapeso tinham sido cheias com grandes lingotes de chumbo. Agora os engenheiros tinham de demonstrar uma habilidade ainda mais sutil, a arte de lançar as grandes pedras, uma atrás da outra, concentrando-se no mesmo ponto do muro para que as defesas fossem derrubadas e se abrisse um caminho para dentro da cidade. Então, depois que o exército de socorro fosse derrotado, os homens do duque poderiam assaltar La Roche-Derrien e passar na espada seus habitantes traidores.

Os engenheiros bávaros escolheram as primeiras pedras com cuidado, depois encurtaram o comprimento das fundas para alterar o raio de alcance das máquinas. Era uma bela manhã de primavera. Francelhos voavam alto, ranúnculos pontilhavam os campos, trutas subiam para pegar as efeméridas, o alho selvagem florescia de branco e pombos voavam pelas novas folhas dos verdes bosques. Era a época mais bonita do ano, e o duque Charles, cujos espiões lhe disseram que o exército inglês de Sir Thomas Dagworth ainda não deixara a Bretanha ocidental, previa o triunfo.

— Os bávaros — disse ele a um de seus assistentes padres — podem começar.

O trabuco chamado Infernal disparou primeiro. Foi puxada uma alavanca que retirou um grosso pino de metal de um grampo preso no longo braço da viga do Infernal. Dez toneladas de chumbo caíram com um estrondo que foi ouvido em Tréguier, o braço comprido deu um salto para cima e a funda girou na ponta do braço com o barulho de uma súbita rajada de vento e uma pedra traçou um arco no céu. Ela pareceu parar um instante, um grande pedaço de pedra no céu cheio de francelhos, e depois, como um raio, caiu.

A matança começara.


A PRIMEIRA PEDRA, atirada pelo Infernal, caiu sobre o telhado da casa de um tintureiro perto da igreja de São Brieuc e arrancou a cabeça de um soldado inglês e a da mulher do tintureiro. Pela guarnição correu a piada de que os dois corpos foram esmagados tão juntinhos que continuariam copulando por toda a eternidade. A pedra assassina, do tamanho de um barril, errara as defesas do leste por não mais do que sete metros. Os engenheiros bávaros fizeram uns ajustes na funda, e a pedra seguinte caiu bem rente ao muro, espirrando sujeira e esgoto da fossa. A terceira acertou o muro em cheio e então uma pancada surda anunciou que o Fazedor de Viúvas acabara de atirar seu primeiro projétil e assim, um atrás do outro, Lança-Pedra, Esmagador, Coveiro, Chicote de Pedra, Odiento, Destruidor e Mão de Deus deram suas contribuições.

Richard Totesham fez o possível para anular o assalto dos trabucos. Era evidente que Charles tentava abrir quatro brechas, uma de cada lado da cidade, e por isso Totesham ordenou que fossem feitos sacos imensos e que os enchessem de palha, e os sacos foram colocados para calçar os muros, que ainda eram protegidos por vigas de madeira. Aquelas precauções serviram para reduzir o ritmo do processo de abrir as brechas, mas os bávaros mandavam seus mísseis bem dentro da cidade, e nada podia ser feito para proteger as casas daquelas pedras que mergulhavam. Alguns habitantes alegavam que Totesham devia construir um trabuco e tentar quebrar as máquinas do inimigo, mas ele duvidava que houvesse tempo, e em vez disso foi montada uma besta gigantesca com mastreação de navios que tinha sido levada rio acima de Tréguier antes do sítio começar. Tréguier estava deserta agora. Como não tinha muros, seus habitantes tinham ido para La Roche-Derrien à procura de abrigo, fugido para o mar em seus navios ou passado para o lado de Charles.

A springald de Totesham tinha dez metros de largura e disparava uma seta de dois metros e meio de comprimento impulsionada por uma corda feita de couro trançado. Era armada por meio de um sarilho de navio. Foram precisos quatro dias para fazer a arma e justo na primeira vez que tentaram usá-la a verga quebrou. Foi um mau agouro, e houve outro ainda pior no dia seguinte, quando um cavalo que puxava uma carroça de despejos noturnos livrou-se dos arreios e escoiceou uma criança na cabeça. A criança morreu. Mais tarde naquele dia uma pedra de uma das catapultas menores do outro lado do rio despencou sobre a casa de Richard Totesham e derrubou metade do andar superior e por muito pouco não lhe matava o filho pequeno. Mais de uma vintena de mercenários tentou desertar da guarnição naquela noite e alguns deles deviam ter fugido, outros juntaram-se ao exército de Charles, e um, que ia levando uma mensagem para Sir Thomas Dagworth escondida numa bota, foi capturado e decapitado. Na manhã seguinte, a cabeça, com a carta presa entre os dentes, foi lançada para dentro da cidade pelo trabuco chamado Mão de Deus e o moral da guarnição despencou ainda mais.

— Não tenho muita certeza — disse Mordecai a Thomas — se se pode confiar nos presságios.

— Claro que se pode.

— Eu gostaria de ouvir suas razões. Mas primeiro mostre-me sua urina.

— Você disse que eu estava curado — protestou Thomas.

— O preço da saúde, meu caro Thomas, é a eterna vigilância. Mije para mim.

Thomas obedeceu, Mordecai ergueu o líquido contra o sol, molhou um dedo nele e tocou a língua com ele.

— Maravilha! — disse ele. — Clara, pura e não muito salina. É um bom presságio, não é?

— Isso é um sintoma — disse Thomas —, não um presságio.

— Ah. — Mordecai sorriu diante da correção.

Eles estavam no pequeno quintal atrás da cozinha da casa de Jeanette, onde o médico observava as andorinhas-de-casa levando lama para os novos ninhos embaixo dos beirais do telhado.

— Ilustre-me, Thomas — disse ele com outro sorriso —, quanto aos presságios.

— Quando nosso Senhor foi crucificado — disse Thomas — fez-se escuridão durante o dia e uma cortina do templo rasgou-se em duas.

— Está me dizendo que os presságios estão escondidos no próprio cerne da sua fé?

— E da sua também, sem dúvida? — perguntou Thomas.

Mordecai encolheu-se de medo quando uma pedra despencou em alguma parte da cidade. O barulho reverberou, depois ouviu-se um outro choque estilhaçante quando um telhado enfraquecido cedeu. Cachorros uivaram e uma mulher gritou.

— Eles estão fazendo isso de propósito — disse Mordecai.

— É claro — disse Thomas.

O inimigo estava não só mandando pedras para caírem sobre as pequenas casas apertadas da cidade, mas às vezes usava os trabucos para jogarem as carcaças em decomposição de gado bovino, suíno e caprino para espalhar sujeira e fedor pelas ruas.

Mordecai esperou até que a mulher parasse de gritar.

— Acho que não acredito em presságios — disse ele. — Temos um pouco de azar na cidade e todo mundo pensa que estamos condenados, mas como é que sabemos que não há algum azar afligindo o inimigo?

Thomas não disse nada. Pássaros se envolviam num bate-boca no telhado de sapé sem perceber que um gato estava à espreita embaixo da cumeeira.

— O que é que você quer, Thomas? — perguntou Mordecai.

— Quero?

— O que é que você quer?

Thomas fez uma careta e estendeu a mão direita com os dedos tortos.

— Que estes fiquem direitos.

— E eu queria ser jovem de novo — disse Mordecai com impaciência. — Seus dedos estão reparados. Estão tortos, mas reparados. Agora diga-me o que é que você quer.

— O que eu quero — disse Thomas — é matar os homens que mataram Eleanor. Trazer o filho de Jeanette de volta. E depois, ser um arqueiro. Só isso. Um arqueiro. — Ele queria o Graal também, mas não gostava de falar sobre isso com Mordecai.

Mordecai puxou a barba.

— Matar os homens que mataram Eleanor? — meditou em voz alta. — Eu acho que você vai fazer isso. O filho de Jeanette? Talvez faça isso também, embora eu não compreenda por que você quer agradá-la. Não quer se casar com Jeanette, quer?

— Casar com ela! — Thomas deu uma risada. — Não!

— Ótimo.

— Ótimo? — Agora Thomas se ofendera.

— Sempre gostei de conversar com alquimistas — disse Mordecai — e muitas vezes os vi misturar enxofre com mercúrio. Existe uma teoria segundo a qual todos os metais são compostos dessas duas substâncias, sabia? As proporções variam, é claro, mas o meu ponto de vista, meu caro Thomas, é que se você colocar mercúrio e enxofre num vaso e depois aquecer este vaso, o mais freqüente é o resultado ser calamitoso. — Ele imitou uma explosão com as mãos. — Isso, acho eu, acontece com você e Jeanette. Além do mais, não consigo imaginá-la casada com um arqueiro. Com um rei? Sim. Com um duque? Talvez. Com um conde? Claro. Mas com um arqueiro? — Ele abanou a cabeça. — Não há nada de errado em ser um arqueiro, Thomas. Neste mundo malvado, é uma habilidade útil. — Ficou calado por alguns segundos. — Meu filho está estudando para ser médico.

Thomas sorriu.

— Eu sinto uma reprovação.

— Uma reprovação?

— Seu filho vai ser um curador, e eu sou um matador.

Mordecai abanou a cabeça.

— Benjamim está estudando para ser médico, mas ele preferiria ser soldado. Ele quer ser um matador.

— Então, por quê... — Thomas parou porque a resposta era óbvia.

— Os judeus não podem portar armas — disse Mordecai —, eis o porquê. Não, eu não pretendia manifestar uma reprovação. Acho que para um soldado, Thomas, você é um homem bom.

Ele fez uma pausa e franziu o cenho, porque outra pedra de um dos trabucos maiores batera contra um prédio não muito longe e, depois que o barulho que ecoava diminuiu, ele ficou esperando pelos gritos. Não se ouviu grito algum.

— Seu amigo Will também é um homem bom — continuou Mordecai —, mas eu receio que ele já não seja um arqueiro.

Thomas sacudiu a cabeça. Will Skeat estava curado, mas não recuperado.

— Às vezes penso que teria sido melhor... — começou Thomas.

— Se ele tivesse morrido? — Mordecai terminou o pensamento. — Não deseje a morte de ninguém, Thomas, porque ela já chega cedo bastante sem um desejo. Sir William vai voltar para a Inglaterra, sem dúvida, e o seu conde cuidará dele.

O destino de todos os soldados idosos, pensou Thomas. Voltar para casa e morrer por conta da caridade da família a que serviram.

— Então eu irei para o sítio de Calais quando tudo isso acabar — disse Thomas — e ver se os arqueiros do Will precisam de um novo chefe.

Mordecai sorriu.

— Não vai procurar o Graal?

— Não sei onde ele está — disse Thomas.

— E o livro de seu pai? — perguntou Mordecai. — Não ajudou?

Thomas andara lendo atentamente a cópia que Jeanette fizera. Ele achava que seu pai devia ter usado algum tipo de código, embora por mais que tentasse não conseguisse desvendar o segredo do código. Ou então, em suas digressões, o livro era simplesmente um sintoma da mente perturbada do padre Ralph. Mas Thomas estava certo de uma coisa. Seu pai acreditava ter possuído o Graal.

— Vou procurar o Graal — disse Thomas —, mas às vezes acho que a única maneira de ser bem-sucedido é não procurá-lo.

Ele ergueu o olhar, assustado, porque ouviu-se um repentino barulho de uma luta desordenada no telhado. O gato fizera uma investida e quase perdera o equilíbrio quando os pássaros espalharam-se para cima.

— Mais um presságio? — sugeriu Mordecai olhando para os pássaros que fugiam. — Sem dúvida, um bom presságio.

— Além do mais — disse Thomas —, o que é que você sabe sobre o Graal?

— Eu sou judeu. O que é que eu sei sobre qualquer coisa? — perguntou Mordecai com ar de inocência. — O que aconteceria, Thomas, se você achasse o Graal? — Ele não esperou a resposta. Em vez disso, continuou: — Pensa que o mundo vai se tornar um lugar melhor? Que o mundo só está precisando do Graal? Só isso? — Ainda não houve resposta. — Ele é uma coisa parecida com “Abracadabra”, é isso? — disse Mordecai com tristeza.

— O diabo? — Thomas estava chocado.

— Abracadabra não é o diabo! — respondeu Mordecai, igualmente chocado. — É simplesmente um encantamento. Alguns judeus bobocas acreditam que se você o escrever na forma de um triângulo e pendurá-lo ao pescoço, vai ficar livre de sezão! Que absurdo! A única cura para sezão é uma cataplasma quente de estrume de vaca, mas o povo deposita confiança em amuletos e, o que lamento, também em presságios, mas eu não acho que Deus trabalhe através de um ou se revele através do outro.

— O seu Deus — disse Thomas — está muito longe.

— Receio que sim.

— O meu está perto — disse Thomas — e Ele se revela.

— Então você é um felizardo — disse Mordecai.

A roca e o fuso de Jeanette estavam no banco ao lado dele e ele colocou a roca sob o braço esquerdo e tentou fiar um fio da lã enrolado em torno da cabeça da roca, mas não conseguiu nada.

— Você é um felizardo — repetiu ele —, e espero que quando as tropas de Charles invadirem, o seu Deus esteja por perto. Quanto a nós, os demais, suponho que estejamos condenados.

— Se eles invadirem — disse Thomas — refugie-se numa igreja ou tente fugir pelo rio.

— Eu não sei nadar.

— Neste caso, a igreja é a melhor esperança.

— Eu duvido — disse Mordecai, largando a roca. — O que o Totesham devia fazer é render-se — disse ele, com tristeza. — Deixar todos nós irmos embora.

— Ele não vai fazer isso.

Mordecai deu de ombros.

— Então, temos que morrer.

No entanto, no dia seguinte, ele recebeu uma chance de fugir quando Totesham disse que quem não quisesse sofrer as privações do sítio poderia deixar a cidade pela porta sul, mas assim que ela foi aberta uma força de soldados de Charles, todos com cotas de malha e com os rostos escondidos pelas viseiras cinzentas dos elmos, bloqueou a estrada. Não mais de cem pessoas tinham decidido ir embora, todas elas mulheres e crianças, mas os soldados de Charles estavam lá para dizer que elas não teriam permissão para abandonar La Roche-Derrien. Não interessava aos sitiantes ter menos bocas para a guarnição alimentar, e por isso os homens de cinza barraram a estrada, e os soldados de Totesham fecharam a porta e as mulheres e as crianças ficaram empacadas o dia inteiro.

Ao anoitecer, os trabucos pararam de funcionar pela primeira vez desde que a pedra matara a mulher do tintureiro e o amante e, no estranho silêncio, chegou um mensageiro vindo do acampamento de Charles. Um trombeteiro e uma bandeira branca anunciaram que ele queria uma trégua e Totesham ordenou que um trombeteiro inglês respondesse ao bretão e que uma bandeira branca fosse agitada acima da porta sul. O mensageiro bretão esperou até que um homem de posto elevado chegasse aos muros e então fez um gesto em direção às mulheres e às crianças.

— Essa gente — disse ele — não pode ter permissão para atravessar nossas linhas. Elas vão morrer de fome aqui.

— É essa a piedade que o seu senhor tem do povo dele? — retrucou o enviado de Totesham. Ele era um padre inglês que falava bretão e francês.

— Ele tem tamanha piedade deles — respondeu o mensageiro — que quer livrá-los dos grilhões da Inglaterra. Diga ao seu senhor que ele tem até o Ângelus desta noite para entregar a cidade. Se fizer isso, terá permissão para retirar-se com todas as suas armas, estandartes, cavalos, famílias, criados e pertences.

Era uma oferta generosa, mas o padre nem mesmo a examinou.

— Vou dizer a ele — disse o padre —, mas só se você disser ao seu senhor que nós temos comida para um ano e armas suficientes para matar todos vocês duas vezes.

O mensageiro fez uma mesura, o padre retribuiu o cumprimento e a parlamentação acabou. Os trabucos recomeçaram seu trabalho e, ao cair da noite, Totesham ordenou que as portas da cidade fossem abertas e os fugitivos tiveram permissão para voltar para dentro, sob os apupos daqueles que não tinham fugido.

Thomas, como todo homem de La Roche-Derrien, fazia plantão nas defesas. Era um trabalho enfadonho, porque Charles de Blois tinha um cuidado muito grande para que nenhuma de suas forças se desviasse para dentro do raio de alcance dos arqueiros ingleses, mas era um tanto divertido observar os grandes trabucos. Eles eram arriados tão devagar, que parecia que os imensos braços praticamente não se mexiam, mas aos poucos, quase imperceptivelmente, a grande caixa de madeira com seus pesos de chumbo erguia-se por trás da paliçada protetora e o braço comprido desaparecia de vista. Depois, quando o braço comprido tinha sido arriado ao máximo, nada acontecia durante muito tempo, presumivelmente porque os engenheiros estavam carregando a funda e então, quando parecia que nada iria acontecer, o contrapeso caía, a paliçada tremia, pássaros assustados levantavam-se velozes do gramado e o braço comprido vergastava para cima, dava uma sacudidela violenta, a funda se projetava e uma pedra fazia um arco no ar. Então chegava o som, o monstruoso choque do contrapeso ao cair, seguido um segundo depois pelo baque da pedra nas defesas rompidas. Mais sacos cheios de palha eram atirados para dentro da brecha que aumentava, mas os projéteis ainda causavam os seus danos e por isso Totesham ordenou que seus homens começassem a erguer novos muros atrás das brechas que iam ficando maiores.

Alguns homens, inclusive Thomas e Robbie, queriam fazer uma surtida. Junte sessenta homens, argumentavam eles, e deixe-os sair da cidade à primeira luz do dia. Eles poderiam dominar facilmente um ou dois trabucos, ensopar as máquinas de óleo e piche e jogar tições em chamas no emaranhado de cordas e madeira, mas Totesham não permitiu. Alegou que sua guarnição era muito pequena e ele não queria perder nem mesmo meia dúzia de homens antes de precisar combater os soldados de Charles nas brechas.

Mesmo assim, perdia homens. Quando a terceira semana de sítio chegou, Charles de Blois terminara suas obras defensivas e as quatro posições do seu exército estavam todas protegidas atrás de paredes de terra, cercas, paliçadas e valas. Tinha eliminado quaisquer obstáculos na área entre seus acampamentos, para que quando um exército de socorro chegasse seus arqueiros não tivessem onde se esconder. Agora, com seus acampamentos fortificados e os trabucos abrindo buracos cada vez maiores nos muros de La Roche-Derrien, ele mandou que os besteiros avançassem para molestar as defesas. Eles chegaram aos pares, um homem com a besta e seu companheiro segurando um pavês, um escudo tão alto, largo e resistente que podia proteger os dois. Os paveses eram pintados, alguns com palavrões horríveis, mas a maioria com insultos em francês, inglês e, em certos casos, porque os besteiros eram genoveses, em italiano. Os quadrelos deles castigavam o muro, passavam assobiando perto das cabeças dos defensores e chocavam-se no telhado das casas atrás dos muros. Às vezes, os genoveses disparavam setas incendiárias e Totesham tinha seis esquadrões de homens que não faziam nada a não ser perseguir incêndios nos telhados de sapé e, quando não estavam extinguindo chamas, tiravam água do rio Jaudy e encharcavam os telhados que ficavam mais perto das defesas e, por isso, corriam mais risco de serem atingidos pelos besteiros.

Os arqueiros ingleses respondiam com flechadas, mas os besteiros, em sua maioria, estavam escondidos atrás de seus paveses e, quando disparavam, expunham-se por apenas um segundo. Mesmo assim alguns morriam, mas eles também derrubavam arqueiros que estavam nos muros da cidade. Jeanette muitas vezes unia-se a Thomas na defesa sul e disparava suas setas de um ameado ao lado da porta. Uma besta podia ser disparada de uma posição ajoelhada, de modo que ela não expunha muito do seu corpo ao perigo, enquanto Thomas tinha que ficar em pé para disparar uma flecha.

— Você não devia estar aqui — dizia ele todas as vezes, e ela repetia as palavras dele só mexendo os lábios, sem emitir som algum, e depois se curvava para armar o arco.

— Você se lembra — perguntou ela — do primeiro cerco?

— Quando você atirava em mim?

— Vamos esperar que eu agora tenha mais pontaria — disse ela, e apoiou o arco no muro, mirou e apertou o gatilho. A seta acertou num pavês que já estava espetado com flechas inglesas adornadas de penas. Atrás dos besteiros estava o muro de terra do acampamento mais próximo, acima do qual apareciam as deselegantes vigas de dois trabucos e, depois delas, as vistosas bandeiras de alguns dos senhores de Charles. Jeanette reconheceu os estandartes de Rohan, Laval, Malestroit e Roncelets, e a primeira visão daquele estandarte semelhante a uma vespa a enchera de raiva e ela chorara ao pensar no filho na distante torre de Roncelets.

— Eu queria que eles assaltassem agora — disse ela — e que eu pudesse acertar uma seta em Roncelets e também em Blois.

— Eles não atacarão enquanto não derrotarem Dagworth — disse Thomas.

— Você acha que ele vem?

— Acho que é por isso que eles estão aqui — disse Thomas fazendo com a cabeça um gesto em direção a um besteiro que acabara de sair de trás de seu escudo. O homem recuou, abaixando-se, um segundo antes da flecha de Thomas passar chiando por ele. Thomas tornou a se acocorar.

— Charles sabe que pode nos derrotar quando quiser — disse ele —, mas o que ele realmente quer é esmagar Dagworth.

Porque quando Sir Thomas Dagworth fosse esmagado, não restaria mais nenhum exército de campo inglês na Bretanha e as fortalezas cairiam inevitavelmente, uma a uma, e Charles conquistaria o seu ducado.

Então, um mês depois de Charles ter chegado, quando as cercas em torno de suas fortalezas estavam brancas com as flores dos pilriteiros e as pétalas das macieiras estavam sendo sopradas pelo vento e as margens do rio estavam espessas com íris e as papoulas estavam de um vermelho brilhante no centeio que crescia, viu-se uma nuvem de fumaça no céu do sudoeste. Os vigias nos muros de La Roche-Derrien viram batedores partindo do acampamento inimigo e sabiam que a fumaça devia vir de fogueiras em acampamentos, o que significava que um exército estava vindo. Alguns temiam que pudesse ser um reforço para o inimigo, mas outros garantiam que na verdade só amigos estariam se aproximando pelo sudoeste. O que Richard Totesham e os outros que sabiam a verdade não revelaram foi que qualquer força de auxílio seria pequena, muito menor do que o exército de Charles, e estaria se dirigindo para uma armadilha que Charles preparara.

Porque a manobra de Charles funcionara e Sir Thomas Dagworth mordera a isca.

Charles de Blois convocou seus senhores e comandantes para a grande tenda ao lado do moinho. Era sábado, a força inimiga estava a pouca distância e, inevitavelmente, havia gente impetuosa nas suas fileiras que queria vestir a armadura, erguer as lanças e sair a cavalo para ser morta pelos arqueiros ingleses. Havia uma abundância de idiotas, pensou Charles, e então liquidou as esperanças deles ao deixar claro que ninguém, exceto os batedores, poderia sair de nenhum dos quatro acampamentos.

— Ninguém! — Ele deu um murro na mesa quase derrubando o tinteiro do escrevente que anotava suas palavras. — Ninguém vai sair! Entenderam todos?

Ele olhou de uma cara para outra e tornou a pensar em como eram idiotas os seus senhores.

— Nós vamos ficar atrás das nossas fortificações — disse ele —, e eles virão até nós. Eles virão e serão mortos.

Alguns entre os senhores pareceram descontentes, porque praticamente não havia glória em lutar atrás de barreiras de terra e valas úmidas quando um homem poderia estar galopando um corcel de guerra, mas Charles de Blois estava inflexível e até mesmo os mais ricos de seus senhores temiam a sua ameaça de que quem lhe desobedecesse não participaria da distribuição de terras e riquezas que se seguiria à conquista da Bretanha.

Charles pegou uma folha de pergaminho.

— Nossos batedores chegaram perto das colunas de Sir Thomas Dagworth — disse em sua voz precisa — e agora temos uma estimativa correta de quantos eles são.

Sabendo que todos os que estavam na tenda queriam saber da força do inimigo, ele fez uma pausa, porque queria conferir um certo drama àquele anúncio, mas não pôde deixar de sorrir ao revelar os números.

— Nossos inimigos — disse ele — nos ameaçam com trezentos soldados e quatrocentos arqueiros.

Houve uma pausa enquanto os números eram assimilados, e depois veio uma explosão de gargalhadas. Até mesmo Charles, em geral muito pálido, inflexível e severo, juntou-se a eles. Era risível! Na verdade, era impertinente! Bravo, talvez, mas de extrema loucura. Charles de Blois tinha quatro mil homens e centenas de camponeses voluntários que, embora não estivessem realmente acampados dentro das defesas de terra dele, mereciam a sua confiança quanto a ajudar a massacrar um inimigo. Ele tinha dois mil dos melhores besteiros da Europa, tinha mil cavaleiros com armaduras, muitos deles grandes campeões de torneios famosos, e Sir Thomas Dagworth estava se aproximando com setecentos homens? A cidade poderia contribuir com outros cem ou duzentos, mas mesmo nas suas hipóteses mais esperançosas os ingleses não poderiam reunir mais de mil homens, e Charles tinha quatro vezes aquela quantidade.

— Eles virão, cavalheiros — disse ele a seus agitados senhores —, e vão morrer aqui.

Havia duas estradas pelas quais eles poderiam aproximar-se. Uma vinha do oeste e era o caminho mais direto, mas levava à margem mais distante do rio Jaudy e Charles não achava que Dagworth fosse usá-la. A outra rodeava a cidade sitiada para se aproximar vinda do sudeste, e ia direto para o maior dos quatro acampamentos de Charles, o do leste, onde ele estava no comando em pessoa e onde os maiores trabucos martelavam os muros de La Roche-Derrien.

— Permitam que lhes conte, cavalheiros — Charles acabou com a diversão dos comandantes —, o que acredito que Sir Thomas vai fazer. O que eu faria se tivesse a infelicidade de estar no lugar dele. Acredito que vai enviar uma força pequena mas barulhenta para se aproximar de nós pela estrada de Lannion — esta era a estrada que vinha do oeste, à direita — e irá enviá-la durante a noite, para tentar nos levar a acreditar que ele irá atacar o nosso acampamento do outro lado do rio. Ele deverá esperar que reforcemos aquele acampamento e então, ao amanhecer, o ataque verdadeiro virá do leste. Ele espera que a maior parte do nosso exército fique presa do outro lado do rio e ele possa chegar ao amanhecer e destruir os três acampamentos desta margem. Isto, cavalheiros, é o que ele provavelmente vai tentar, e vai fracassar. Vai fracassar, porque nós temos uma regra clara e rígida que não será descumprida! Ninguém sai do acampamento! Ninguém! Fiquem atrás dos seus muros! Nós lutamos a pé, formamos nossas linhas de batalha e deixamos que eles nos ataquem. Nossos besteiros irão dizimar os arqueiros deles, e então nós, cavalheiros, destruiremos os soldados deles. Mas ninguém sai dos acampamentos! Ninguém! Nós não vamos nos tornar alvos para os arcos deles. Entenderam?

O senhor de Châteaubriant quis saber o que deveria fazer se estivesse em seu acampamento no sul e houvesse um combate em um outro forte.

— Eu fico só olhando? — perguntou ele, incrédulo.

— O senhor fica só olhando — disse o duque Charles com frieza. — O senhor não deixa seu acampamento. Entendeu? Arqueiros não podem matar o que não vêem! Fique escondido!

O senhor de Roncelets salientou que o céu estava claro e que a lua estava quase cheia.

— Dagworth não é bobo — continuou ele — e vai saber que construímos essas fortalezas e desbastamos a área para impedir que eles tivessem proteção. Por isso, por que ele não vai atacar à noite?

— À noite? — perguntou Charles.

— Assim, os nossos besteiros não poderão ver os alvos, mas os ingleses vão ter luz da lua suficiente para enxergar o caminho pelas nossas fortificações.

Era um bom argumento que Charles reconheceu com um brusco sacudir de cabeça.

— Fogueiras — disse ele.

— Fogueiras? — perguntou alguém.

— Armem fogueiras agora! Grandes fogueiras! Quando eles chegarem, acendam as fogueiras. Transformem a noite em dia!

Os homens riram, gostando da idéia. Não era lutando a pé que senhores e cavaleiros adquiriam suas reputações, mas todos entendiam que Charles estivera pensando em como derrotar os temíveis arqueiros ingleses e suas idéias faziam sentido, ainda que a eles fosse oferecida uma chance de glória praticamente nula, mas Charles lhes oferecia um consolo.

— Eles vão se dispersar, cavalheiros — disse ele —, e quando isso acontecer vou mandar meu trombeteiro dar sete toques. Sete! E quando ouvirem a trombeta, os senhores poderão sair de seus acampamentos e persegui-los.

Houve grunhidos de aprovação, porque os sete toques de trombeta iriam liberar os homens com armaduras, em seus cavalos enormes, para abater os remanescentes da força de Dagworth.

— Lembrem-se! — Mais uma vez, Charles deu um murro na mesa para chamar a atenção de seus homens. — Lembrem-se! Os senhores não saem dos acampamentos enquanto a trombeta não tocar! Fiquem atrás das trincheiras, fiquem atrás dos muros, deixem que o inimigo vá até os senhores, e nós venceremos. — Ele sacudiu a cabeça num sinal de que tinha encerrado. — E agora, cavalheiros, nossos padres irão ouvir confissões. Limpemos nossa alma, para que Deus possa nos recompensar com a vitória.

A vinte e quatro quilômetros dali, no refeitório sem telhado de um mosteiro saqueado e abandonado, reunia-se um grupo muito menor de homens. O comandante era um homem de cabelos grisalhos vindo de Suffolk, atarracado e mal-humorado, que sabia que estava diante de um desafio enorme se quisesse ajudar La Roche-Derrien. Sir Thomas Dagworth ouviu um cavaleiro bretão contar o que seus batedores tinham descoberto: que os homens de Charles de Blois ainda estavam nos quatro acampamentos colocados em frente às quatro portas da cidade. O maior deles, onde estava desfraldado o grande estandarte de Charles com um arminho branco, ficava a leste.

— Ele foi construído em torno do moinho — informou o cavaleiro.

— Eu me lembro desse moinho — disse Sir Thomas. Passou os dedos pela curta barba grisalha, um hábito seu quando estava pensando. — É lá que devemos atacar — decidiu, mas disse isso tão baixinho que poderia estar falando consigo mesmo.

— É ali que eles estão mais fortes — avisou um homem.

— Então nós vamos desviar a atenção deles. — Sir Thomas despertou de seus sonhos. — John — ele se voltou para um homem que vestia uma cota de malha esfrangalhada — pegue todos os criados do acampamento. Pegue os cozinheiros, os escreventes, os cavalariços, todos os que não forem combatentes. Depois pegue todas as carroças e todos os cavalos de tração e faça uma aproximação pela estrada de Lannion. Você a conhece?

— Posso descobrir.

— Parta antes da meia-noite. Faça bastante barulho, John! Pode levar o meu trombeteiro e alguns tambores. Faça com que eles pensem que o exército inteiro está chegando pelo oeste. Quero que eles enviem homens para o acampamento do oeste muito antes do amanhecer.

— E os demais? — perguntou o cavaleiro bretão.

— Nós marcharemos à meia-noite — disse Sir Thomas — e iremos para o leste até chegarmos à estrada de Guingamp.

Aquela estrada chegava a La Roche-Derrien para quem vinha do sudeste. Como a pequena força de Sir Thomas marchara do oeste, ele esperava que a estrada de Guingamp fosse exatamente a última que Charles esperasse que ele fosse usar.

— Vai ser uma marcha silenciosa — ordenou — e iremos a pé, todos nós! Arqueiros na frente, soldados atrás, e vamos atacar o forte leste deles no escuro.

Ao atacar no escuro, Sir Thomas esperava enganar os besteiros, impedindo que eles enxergassem o alvo e, ainda melhor, pegar o inimigo dormindo.

E assim seus planos foram feitos: ele faria um ataque simulado no oeste e atacaria do leste. E era exatamente isso que Charles de Blois esperava que ele fizesse.

A noite caiu. Os ingleses marcharam, os homens de Charles se armaram e a cidade ficou aguardando.

Thomas ouvia os armeiros no acampamento de Charles. Escutava os martelos fechando os rebites das armaduras e o esfregar de pedras em lâminas. As fogueiras nas quatro fortalezas não se extinguiram como de costume, mas eram alimentadas para se manterem fortes e com chamas altas, de modo que a luz se refletia nas tiras de aço que prendiam as armações dos grandes trabucos cujo vulto era visto contra o brilho das fogueiras. Das defesas, Thomas via homens se movimentando no acampamento inimigo mais próximo. A intervalos de poucos minutos, uma fogueira ficava mais viva quando os armeiros usavam foles para atiçar as chamas.

Uma criança chorou numa casa perto dali. Um cachorro ganiu. A maioria dos membros da pequena guarnição de Totesham estava nas defesas e uma boa quantidade de gente da cidade também estava lá. Ninguém tinha muita certeza quanto ao motivo pelo qual tinham ido para os muros, porque o exército de socorro ainda devia estar bem longe, mas poucas pessoas quiseram ir dormir. Esperavam que alguma coisa fosse acontecer, e por isso aguardavam. O dia do juízo final, pensou Thomas, seria parecido com aquele, com homens e mulheres esperando que os céus se abrissem e os anjos descessem e os túmulos se abrissem para que os mortos virtuosos subissem aos céus. Seu pai, lembrou-se ele, sempre quisera ser enterrado voltado para o oeste, mas do lado leste do cemitério, a fim de que ao ressuscitar ficasse vendo seus paroquianos saindo da terra. “Eles vão precisar da minha ajuda”, dissera o padre Ralph, e Thomas providenciara para que tudo fosse feito como ele queria. Os paroquianos de Hookton, enterrados de modo a que se sentassem estariam olhando para o leste, em direção à glória da segunda vinda de Cristo, encontrariam o seu pároco diante deles, restituindo-lhes a confiança.

Thomas aceitaria algum grau de restituição de confiança naquela noite. E estava com Sir Guillaume e seus dois soldados e eles observavam os preparativos do inimigo de um baluarte no canto sudeste da cidade, perto de onde a torre da igreja de São Barnabé oferecia um lugar vantajoso. Os restos da gigantesca springald de Totesham tinham sido usados para fazer uma ponte frágil do baluarte para uma janela da torre da igreja, e depois de se passar pela janela havia uma escada que subia para um buraco aberto por uma das pedras do Fazedor de Viúvas no parapeito da torre. Thomas devia ter feito o trajeto meia dúzia de vezes antes da meia-noite, porque do parapeito era possível olhar por cima da paliçada e ver o maior dos acampamentos de Charles. Foi enquanto ele estava na torre que Robbie chegou à defesa abaixo dele.

— Quero que dê uma olhada nisto — disse Robbie em voz alta e exibiu um escudo que acabara de ser pintado. — Gostou?

Thomas olhou para baixo e, à luz da lua, viu alguma coisa vermelha.

— O que é isso? — perguntou ele. — Uma mancha de sangue?

— Seu bastardo inglês cego — disse Robbie —, isto é o coração vermelho de Douglas!

— Ah! Daqui parece alguma coisa que secou no escudo.

Mas Robbie estava orgulhoso do seu escudo. Admirou-o à luz da lua.

— Tinha um sujeito pintando um novo diabo na parede da igreja de S. Goran — disse ele — e eu paguei para ele fazer isto.

— Espero que não tenha pagado caro demais — disse Thomas.

— Você está é com inveja. — Robbie encostou o escudo no parapeito antes de esgueirar-se pela ponte improvisada até a torre. Desapareceu pela janela e reapareceu ao lado de Thomas. — O que é que eles estão fazendo? — perguntou, olhando para o leste.

— Jesus! — Thomas blasfemou, porque alguma coisa estava finalmente acontecendo. Ele estava olhando para além dos grandes vultos negros do Infernal e do Fazedor de Viúvas, para o acampamento do leste, onde homens, centenas de homens, formavam uma linha de batalha. Thomas partira do pressuposto de que qualquer luta só iria começar depois que amanhecesse, mas agora parecia que Charles de Blois estava se preparando para lutar no coração negro da noite.

— Meu doce Jesus — disse Sir Guillaume, chamado para o alto da torre, ecoando a surpresa de Thomas.

— Os bastardos estão esperando uma luta — disse Robbie, porque os homens de Charlie estavam se alinhando ombro a ombro. Estavam de costas para a cidade e a lua se refletia nas ombreiras que cobriam os ombros dos cavaleiros e tocava as lâminas de lanças e machados, deixando-os brancos.

— O Dagworth deve estar chegando — disse Sir Guillaume.

— À noite? — perguntou Robbie.

— Por que não? — retorquiu Sir Guillaume, e depois gritou para um de seus soldados lá embaixo para que fosse contar a Totesham o que estava acontecendo. — Acorde-o — vociferou, quando o homem quis saber o que deveria fazer se o comandante da guarnição estivesse dormindo. — É claro que ele não está dormindo — acrescentou ele para Thomas. — Totesham pode ser uma droga de inglês, mas é um bom soldado.

Totesham não estava dormindo, mas também não estava ciente de que o inimigo estava formado para combate e, depois de atravessar a precária ponte para a torre da igreja de São Barnabé, olhou para as tropas de Charles com a expressão agressiva de sempre.

— Acho que vamos ter que dar uma mãozinha — disse ele.

— Pensei que não aprovasse surtidas além do muro — observou Sir Guillaume, que se irritara com aquela restrição.

— Esta é a batalha que vai nos salvar — disse Totesham. — Se perdermos esta luta, a cidade cairá, e por isso temos de fazer o possível para vencê-la. — Ele parecia desolado, mas depois deu de ombros e voltou-se para a escada da torre. — Que Deus nos ajude — disse baixinho enquanto descia para as sombras.

Ele sabia que o exército de socorro de Sir Thomas Dagworth seria pequeno e temia que fosse muito menor do que ele poderia imaginar, mas quando atacasse o acampamento inimigo a guarnição tinha de estar preparada para ajudar. Ele não queria alertar o inimigo para a possibilidade de uma surtida a partir das portas castigadas, e por isso não tocou os sinos da igreja para reunir os soldados, mas enviou homens por todas as ruas para convocar os arqueiros e soldados para a praça do mercado, do lado de fora da igreja de S. Brieuc. Thomas voltou para a casa de Jeanette e vestiu sua cota de malha, que Robbie trouxera do ataque a Roncelets, e depois colocou o cinto da espada, tendo trabalho com a fivela porque seus dedos ainda estavam desajeitados para coisas meticulosas como aquela. Pendurou a sacola de flechas no ombro esquerdo, tirou o arco preto da capa de linho, pôs uma corda sobressalente no morrião e colocou o morrião na cabeça. Estava pronto.

E o mesmo acontecia com Jeanette, pelo que pôde ver. Ela vestia uma cota de malha e um elmo, e Thomas olhou para ela boquiaberto.

— Você não pode participar da surtida! — disse ele.

— Participar da surtida? — Ela parecia surpresa. — Quando vocês todos saírem da cidade, Thomas, quem vai vigiar os muros?

— Oh! — Ele se sentiu um bobo.

Ela sorriu, aproximou-se dele e deu-lhe um beijo.

— Vá — disse ela — e que Deus o acompanhe.

Thomas foi para o mercado. A guarnição estava se reunindo lá, mas o número de seus componentes era desesperadamente pequeno. Um taberneiro rolou um barril de cerveja para a praça, colocou-lhe uma torneira e deixou que os homens se servissem. Um ferreiro amolava espadas e machados à luz de uma tocha que queimava do lado de fora do alpendre da igreja de S. Brieuc, e sua pedra soava em longas lâminas de aço, o som estranhamente triste na noite. Fazia calor. Morcegos voavam em volta da igreja e mergulhavam nas emaranhadas sombras lançadas pela lua, de uma casa arruinada pelo tiro certeiro de um trabuco. Mulheres levavam comida para os soldados e Thomas lembrou-se que no ano anterior aquelas mesmas mulheres tinham gritado enquanto os ingleses entravam desordenadamente na cidade. Tinha sido uma noite de estupro, roubo e assassinato, mas agora os habitantes da cidade não queriam que os ocupantes fossem embora, e a praça do mercado ficava cada vez mais cheia de gente, à medida que homens da cidade levavam armas improvisadas para ajudar a surtida. A maioria estava armada de machados que usavam para cortar lenha, embora alguns tivessem espadas ou lanças, e alguns até possuíssem armaduras de couro ou cotas de malha. Eles tinham uma grande vantagem numérica sobre a guarnição e pelo menos iriam fazer com que a surtida parecesse contar com um número de respeito.

— Jesus Cristo. — Uma voz rouca falou atrás de Thomas. — Em nome de Cristo, o que é aquilo?

Thomas voltou-se e viu a figura esguia de Sir Geoffrey Carr olhando para o escudo de Robbie, que estava apoiado nos degraus de uma cruz de pedra no centro do mercado. Robbie também se voltou para olhar para o Espantalho, que liderava seus seis homens.

— Parece um monte de excremento esmagado — disse o Espantalho. A voz era arrastada e era evidente que ele passara o anoitecer em uma das muitas tabernas da cidade.

— É meu — disse Robbie.

Sir Geoffrey chutou o escudo.

— Isso daí é a porcaria do coração de Douglas, rapaz?

— É o meu emblema — disse Robbie exagerando o sotaque escocês —, se é a isso que está se referindo.

Homens de todos os lados tinham parado para ouvir.

— Eu sabia que você era escocês — disse o Espantalho, parecendo ainda mais bêbado —, mas não sabia que era o maldito de um Douglas. E que diabo um Douglas está fazendo aqui? — O Espantalho ergueu a voz para atrair os homens reunidos. — De que lado a porcaria da Escócia está, hein? De que lado? E os malditos Douglas têm lutado contra nós desde que foram expelidos pelo cu do diabo!

O Espantalho cambaleou, depois tirou o chicote do cinto e deixou as voltas se desenrolarem.

— Meu doce Jesus — gritou ele —, essa maldita família tem deixado bons ingleses pobres. Eles são uns malditos ladrões! Espiões!

Robbie arrastou sua espada para soltá-la, e o chicote vibrou, mas Sir Guillaume empurrou Robbie da frente antes que a ponta em forma de garra pudesse cortar-lhe o rosto, e então a espada de Sir Guillaume foi sacada e Thomas estava em pé ao lado de Robbie nos degraus da cruz.

— Robbie Douglas — berrou Sir Guillaume — é meu amigo.

— E meu — disse Thomas.

— Já chega! — Furioso, Richard Totesham abriu caminho na multidão. — Já chega!

O Espantalho apelou para Totesham.

— Ele é o maldito de um escocês!

— Meu Deus, homem — vociferou Totesham —, temos franceses, galeses, flamengos, irlandeses e bretões nesta guarnição. Que diferença isso faz?

— Ele é um Douglas! — insistiu o Espantalho, bêbado. — Ele é inimigo!

— Ele é meu amigo! — gritou Thomas, dispondo-se a lutar com quem quisesse ficar do lado de Sir Geoffrey.

— Chega! — A raiva de Totesham era grande o bastante para encher todo o mercado. — Já temos briga suficiente nas mãos sem nos comportarmos como crianças! Você responde por ele? — perguntou ele a Thomas.

— Respondo. — Foi Will Skeat quem respondeu. Abriu caminho no meio da multidão e passou um braço no ombro de Robbie. — Eu respondo por ele, Dick.

— Neste caso, Douglas ou não — disse Totesham —, ele não é meu inimigo. — Ele se voltou e afastou-se. — Meu doce Jesus!

O Espantalho ainda estava irritado. Tinha ficado pobre por causa dos Douglas, e ainda estava — o risco que correra indo atrás de Thomas não compensara, porque ainda não tinha encontrado tesouro algum —, e agora todos os seus inimigos pareciam unidos em Thomas e Robbie. Tornou a cambalear, e depois cuspiu na direção de Robbie. — Ponho fogo em homens que usam o coração de Douglas — disse ele. — Ponho fogo neles!

— E põe mesmo — disse Thomas baixinho.

— Põe fogo neles? — perguntou Robbie.

— Em Durham — disse Thomas, o olhar fixo nos olhos de Sir Geoffrey — ele queimou três prisioneiros.

— Você fez o quê? — perguntou Robbie.

O Espantalho, apesar de bêbado, ficou repentinamente cônscio da intensidade da raiva de Robbie, e cônscio também de que não conquistara a solidariedade dos homens que estavam no mercado, que preferiam a opinião de Will Skeat à dele. Enrolou o chicote, cuspiu na direção de Robbie e afastou-se com passos incertos.

Agora era Robbie que queria brigar.

— Ei, você! — gritou ele.

— Deixa pra lá — disse Thomas. — Esta noite, não, Robbie.

— Ele pôs fogo em três homens? — perguntou Robbie.

— Esta noite, não — repetiu Thomas e empurrou Robbie com força para trás, a ponto de o escocês cair sentado nos degraus da cruz.

Robbie olhava fixo para o Espantalho que se retirava.

— Ele é um homem morto — disse ele, sério. — Eu lhe digo, Thomas, esse bastardo é um homem morto.

— Nós todos somos homens mortos — disse Sir Guillaume com calma, porque o inimigo estava pronto para eles e com uma esmagadora superioridade numérica.

E Sir Thomas Dagworth se aproximava da armadilha que eles tinham preparado.

John Hammond, auxiliar de Sir Thomas Dagworth, liderou o ataque simulado que vinha do oeste pela estrada de Lannion. Tinha sessenta homens, a mesma quantidade de mulheres, doze carroças e trinta cavalos, e usava-os para fazer o barulho que fosse possível, assim que chegaram a um ponto do qual dava para ver mais a oeste dos acampamentos do duque Charles.

Fogueiras delineavam os entrincheiramentos e a luz delas aparecia nas pequeninas frestas entre as madeiras da paliçada. Parecia haver uma grande quantidade de fogueiras no acampamento, e acenderam-se muitas outras assim que a pequena força de Hammond começou a bater potes e panelas, bater com varas nas árvores e soprar suas trombetas. Os tambores batiam freneticamente, mas nenhum pânico ficou demonstrado nas defesas de terra. Alguns soldados inimigos apareceram por lá, olharam por uns instantes pela estrada iluminada pelo luar onde os homens e mulheres de Hammond eram sombras debaixo das árvores, depois voltaram-se e foram embora. Hammond ordenou que seu pessoal fizesse mais barulho ainda, e seus seis arqueiros, os únicos soldados de verdade em sua força de mentira, chegaram mais perto do acampamento e dispararam suas flechas por cima das paliçadas, mas ainda assim não houve reação imediata. Hammond esperava ver homens vindo em grande quantidade do outro lado do rio, cujas margens, segundo os espiões de Sir Thomas, estavam ligadas por barcos, mas ninguém parecia estar se deslocando entre os acampamentos inimigos. O ataque simulado, ao que parecia, fracassara.

— Se ficarmos aqui — disse um homem —, eles vão nos crucificar.

— E vão mesmo — concordou Hammond com veemência. — Vamos voltar pela estrada um pouco, só um pouco. Voltar para onde haja mais sombra.

A noite começara muito mal, com o fracasso do assalto simulado, mas os homens de Sir Thomas, os verdadeiros atacantes, tinham feito um progesso melhor do que esperavam e chegaram em frente ao flanco leste do acampamento do duque Charles não muito tempo depois que o grupo de mentira começou sua diversão barulhenta a uns cinco quilômetros a oeste. Os homens de Sir Thomas agacharam-se na margem de um bosque e olharam para o outro lado da terra devastada, para o vulto dos entrincheiramentos mais próximos. A estrada, pálida à luz da lua, ia vazia até uma grande porta de madeira, onde era engolida pelo forte improvisado.

Sir Thomas tinha dividido seus homens em dois grupos que iriam atacar cada um dos lados da porta de madeira. Não haveria nada de sutil no ataque, apenas uma investida pelo escuro e depois um ataque muro acima e matar quem fosse apanhado do outro lado.

— Que Deus lhes dê alegria — disse Sir Thomas a seus homens enquanto caminhava em frente à linha. Sacou da espada e acenou para que o grupo avançasse.

Eles iriam aproximar-se com o máximo de silêncio possível, e Sir Thomas ainda esperava que fosse causar surpresa, mas a luz das fogueiras do lado de lá das defesas parecia ter uma claridade fora do comum, e ele teve uma sensação desanimadora de que o inimigo estava pronto para recebê-lo. No entanto ninguém apareceu no muro de terra e nenhum quadrelo de besta assobiou no escuro, e então ele teve a ousadia de deixar suas esperanças aumentarem e chegou à vala e atravessou-a pisando no fundo lamacento e espadanando água. Havia arqueiros à esquerda e à direita, todos subindo desajeitados pela encosta da paliçada. Ainda nenhum disparo de bestas, nenhum toque de trombeta, nenhum inimigo por perto. Os arqueiros estavam na cerca agora, e ela se mostrou mais fraca do que à distância, porque as toras não estavam inteiramente enfiadas no chão e podiam ser derrubadas a pontapés, sem muito esforço. As defesas não eram impressionantes, na verdade parecia não haver defesas, porque nenhum inimigo os interpelou enquanto os soldados de Sir Thomas atravessavam a vala, espalhando água, as espadas brilhando ao luar. Os arqueiros acabaram de demolir a paliçada e Sir Thomas passou pisando as madeiras derrubadas e desceu pelo barranco para o acampamento de Charles.

Só que ele não estava dentro do acampamento, mas sim num amplo espaço aberto que levava a outro barranco e outra vala e outra paliçada. O local era um labirinto! Mas ainda assim nenhuma seta voou no escuro, e seus arqueiros corriam na frente outra vez, apesar de alguns soltarem palavrões quando tropeçavam em buracos cavados para pegar patas de cavalos. As fogueiras brilhavam atrás da paliçada seguinte. Onde estavam as sentinelas? Sir Thomas ergueu seu escudo com o símbolo da bainha da folha de trigo e olhou para a esquerda, e viu que seu segundo grupo passava pelo primeiro talude e deslocava-se em grande número em direção ao segundo. Seus arqueiros puxaram a nova paliçada e, como a primeira, ela desabou com facilidade. Ninguém falava, ninguém gritava ordens, ninguém apelava a São Jorge por uma ajuda, estavam apenas fazendo sua obrigação, mas sem dúvida o inimigo tinha de ouvir as madeiras caindo. Mas a segunda paliçada estava no chão e Sir Thomas acotovelou-se com os arqueiros para passar pela nova brecha e havia uma campina em frente e uma cerca lá no fim, e depois daquela cerca havia as tendas inimigas e aquele moinho no alto com as lonas das pás enroladas e os vultos monstruosos dos dois maiores trabucos, todos iluminados pelas fortes fogueiras. Tão perto agora! E Sir Thomas sentiu uma violenta onda de felicidade, porque conseguira agir de surpresa e o inimigo era dele, e naquele exato momento ouviu o som das bestas.

As setas vieram do seu flanco direito, de um barranco de terra que passava entre o segundo entrincheiramento e a cerca. Arqueiros caíam xingando. Sir Thomas voltou-se em direção aos besteiros que estavam escondidos, e mais setas vieram da espessa cerca em frente e ele percebeu que não havia surpreendido ninguém, que o inimigo estivera à sua espera, e que seus homens gritavam agora, mas pelo menos os primeiros arqueiros estavam respondendo aos disparos. Os longos arcos ingleses brilhavam ao luar, mas Sir Thomas não conseguia ver nenhum alvo e concluiu que os arqueiros atiravam às cegas.

— Para mim! — gritou ele. — Dagworth! Dagworth! Escudos!

Talvez uns seis soldados ouviram e obedeceram, fazendo um aglomerado que unia os escudos que se sobrepunham parcialmente e depois correram desajeitados em direção à cerca. Se penetrarmos por ali, pensou Sir Thomas, pelo menos alguns dos besteiros ficarão visíveis. Arqueiros atiravam para a frente e para o lado, confusos com as setas do inimigo. Sir Thomas arriscou uma olhadela para o outro lado da estrada e viu que seus outros homens estavam sendo atacados da mesma forma.

— Temos de atravessar a cerca — gritou —, atravessar a cerca! Arqueiros! Atravessem a cerca!

Uma seta de besta espetou-se no seu escudo e o fez girar um pouco o corpo. Uma outra passou sibilando acima dele. Um arqueiro contorcia-se na grama, a barriga furada por um quadrelo.

Agora havia outros homens gritando. Alguns invocavam São Jorge, outros amaldiçoavam o diabo, alguns gritavam por suas mulheres ou mães. O inimigo colocara suas bestas em formação cerrada e despejava as setas da escuridão. Um arqueiro cambaleou para trás, um quadrelo no ombro. Um outro gritou de dar pena, atingido na virilha. Um soldado caiu de joelhos, gritando: “Jesus!”, e agora Sir Thomas ouvia o inimigo gritar ordens e insultos.

— A cerca! — berrou ele. Atravessar a cerca, pensou, e talvez os arqueiros finalmente tenham alvos nítidos. — Atravessem a cerca! — gritou, e alguns de seus arqueiros acharam uma brecha tapada apenas com tapumes de vime, derrubaram as barreiras a pontapés e passaram por ela.

A noite parecia viva de tantas setas, violenta como elas, e um homem gritou para que Sir Thomas olhasse para trás. Ele se virou e viu que o inimigo enviara dezenas de besteiros para cortar-lhe a retirada e que uma nova força empurrava os homens de Sir Thomas para o centro do acampamento. Tinha sido uma armadilha, pensou, uma maldita armadilha. Charles quisera que ele entrasse no acampamento, ele aceitara e agora os homens de Charles enroscavam-se à sua volta. Por isso, lute, disse a si mesmo, lute!

— Atravessem a cerca! — berrou Sir Thomas. — Atravessem a maldita cerca!

Ele se esquivava pelos corpos de seus homens, atravessou a brecha e procurou um inimigo para matar, mas em vez disso viu que os soldados de Charles tinham formado uma linha de combate, todos com armaduras, viseiras arriadas e escudos erguidos. Alguns arqueiros atiravam neles agora, as longas flechas penetrando em escudos, barrigas, peitos e pernas, mas o número de arqueiros era muito pequeno, e os besteiros, ainda escondidos por cercas, muros ou paveses, estavam matando os arqueiros ingleses.

— Reagrupem-se no moinho! — gritou Sir Thomas, porque aquele era o marco mais destacado. Ele queria reunir seus homens, formá-los em fileiras e começar a lutar de forma adequada, mas as bestas apertavam o cerco, centenas delas, e seus homens, amedrontados, espalhavam-se para as tendas e os abrigos.

Sir Thomas praguejou de plena frustração. Os sobreviventes do outro grupo de assalto estavam com ele agora, mas todos os homens estavam enredados nas tendas, tropeçando em cordas, e as setas de bestas ainda disparavam pela escuridão, rasgando a lona enquanto acertavam na moribunda força de Sir Thomas.

— Formem aqui! Formem aqui! — berrava ele, escolhendo um espaço aberto entre três tendas, e talvez uns vinte ou trinta homens correram em sua direção, mas os besteiros os viram e despejaram suas setas nos becos escuros entre as tendas, e então os soldados inimigos chegaram, escudos erguidos, e os arqueiros ingleses tornaram a se espalhar, tentando achar um lugar vantajoso para tomar fôlego, achar alguma proteção e procurar alvos. Os grandes estandartes dos senhores franceses e bretões estavam sendo levados à frente e Sir Thomas, reconhecendo que cometera o erro de cair naquela armadilha e fora compreensivelmente derrotado, sentiu uma onda de raiva.

— Matem os bastardos! — gritou ele e liderou seus homens contra o inimigo mais próximo, as espadas tiniram no escuro, e pelo menos, agora que era um corpo-a-corpo, os besteiros não podiam atirar contra os soldados ingleses. Em vez disso, os genoveses estavam caçando os odiados arqueiros ingleses, mas alguns destes tinham encontrado um estacionamento de carroças e, protegidos pelos veículos, finalmente reagiam.

Mas Sir Thomas não tinha abrigo e não tinha vantagem alguma. Tinha uma pequena força e o inimigo, uma grande força, e seus homens estavam sendo obrigados a recuar pela simples pressão dos números. Escudos chocavam-se com escudos, espadas martelavam elmos, lanças passavam por baixo de escudos para penetrar em botas, um bretão brandiu um machado derrubando dois ingleses e deixando entrar uma onda de homens usando o emblema de arminho branco que gritaram de triunfo e derrubaram ainda mais ingleses. Um soldado soltou um grito quando machados penetraram na malha que lhe cobria as coxas, e então um outro machado abateu-se contra o seu elmo e ele se calou. Sir Thomas cambaleou para trás, aparando um golpe de espada, e viu alguns de seus homens correndo para os espaços escuros entre as tendas à procura de refúgio. As viseiras deles estavam abaixadas e eles praticamente não conseguiam ver para onde iam ou o inimigo que vinha para matá-los. Ele cortou com a espada um homem com um elmo com protetor de nariz, golpeou com a lâmina para trás, batendo num escudo com listras amarelas e pretas, deu um passo para trás para fazer espaço para um outro golpe e então seus pés foram enredados pelas cordas de retenção de uma tenda e ele caiu de costas na lona.

O cavaleiro com o elmo com protetor de nariz ficou em pé olhando para ele, a armadura brilhando à luz da lua e a espada encostada na garganta de Sir Thomas.

— Eu me rendo — disse Sir Thomas depressa, repetiu a rendição em francês.

— E você é? — perguntou o cavaleiro.

— Sir Thomas Dagworth — disse Sir Thomas com amargor e estendeu a espada para o inimigo, que pegou a arma e ergueu a viseira com focinho.

— Eu sou o visconde Morgat — disse o cavaleiro — e aceito sua rendição.

Ele fez uma mesura para Sir Thomas, devolveu a espada e estendeu a mão para ajudar o inglês a se levantar. A luta continuava, mas agora era esporádica, enquanto os franceses e os bretões caçavam os sobreviventes, matavam os feridos que não valiam um pedido de resgate e martelavam as próprias carroças com setas de bestas para matar os arqueiros ingleses que ainda se protegiam lá.

O visconde Morgat escoltou Sir Thomas até o moinho, onde o apresentou a Charles de Blois. Uma grande fogueira ardia a poucos metros dali, e à luz dela Charles estava de pé embaixo das velas das pás enroladas com o gibão manchado de sangue, porque ele ajudara a derrotar o bando de soldados de Sir Thomas. Ele embainhou a espada, ainda suja de sangue, tirou o elmo enfeitado com plumas e olhou para o prisioneiro que por duas vezes o derrotara em combate.

— Eu me compadeço de você — disse Charles com frieza.

— E eu congratulo vossa excelência — disse Sir Thomas.

— A vitória pertence a Deus — disse Charles —, não a mim — e no entanto ao mesmo tempo sentiu um súbito regozijo, porque tinha conseguido! Ele derrotara o exército de campo inglês na Bretanha e agora, tão certo quanto o abençoado amanhecer segue-se à mais escura das noites, o ducado passaria às suas mãos. — A vitória pertence apenas a Deus — repetiu, piedoso, e lembrou-se que era, agora, muito cedo na manhã de domingo, e voltou-se para um padre para dizer que mandasse cantar um Te Deum dando graças por aquela grande vitória.

E o padre sacudiu a cabeça, olhos arregalados, embora o duque ainda não lhe tivesse falado coisa alguma, e então resfolegou, e Charles viu que havia uma flecha de um comprimento fora do comum na barriga do homem, e então outra haste com penas brancas penetrou no flanco do moinho e um grunhido rouco, quase bestial, veio do escuro.

Porque embora Sir Thomas tivesse sido capturado e seu exército derrotado por completo, a batalha, ao que parecia, ainda não terminara.


RICHARD TOTESHAM assistia à luta entre os homens de Sir Thomas e as forças de Charles do alto da torre da porta leste. Ele não conseguia ver muita coisa daquele ponto, porque as paliçadas em cima do entrincheiramento, os dois grandes trabucos e o moinho obscureciam uma grande parte da batalha, embora estivesse abundantemente claro que ninguém saía dos outros três acampamentos franceses para ajudar Charles na fortaleza dele, que era a maior de todas.

— Era de pensar que buscassem auxiliar-se uns aos outros — disse a Will Skeat, que estava de pé ao seu lado.

— É você, Dick? — exclamou Will Skeat.

— Sou eu, sim, Will — disse Totesham, paciente. Ele viu que Skeat estava vestindo uma cota de malha e tinha uma espada ao lado, e pôs a mão no ombro do velho amigo. — Ora, você não vai lutar esta noite, Will, vai?

— Se vai ter briga — disse Skeat —, eu gostaria de ajudar.

— Deixe isso para os jovens, Will — insistiu Totesham —, deixe isso para os jovens. Você fica e protege a cidade para mim. Está bem?

Skeat confirmou com a cabeça e Totesham voltou-se para olhar para o acampamento do inimigo. Era impossível dizer que lado estava ganhando, porque os únicos soldados que ele conseguia ver pertenciam ao inimigo e estavam de costas para ele, embora de vez em quando uma flecha que voava refletisse o clarão da fogueira como prova de que os homens de Sir Thomas ainda lutavam, mas Totesham considerava um mau sinal o fato de não haver tropas vindo das outras fortalezas para ajudar Charles de Blois. Aquilo dava a entender que o duque não precisava de ajuda, o que, por sua vez, sugeria que Sir Thomas Dagworth precisava, e por isso Totesham debruçou-se no parapeito interno.

— Abram a porta! — gritou ele.

Ainda estava escuro. Faltavam duas ou mais horas para o amanhecer, mas a lua estava brilhante e as fogueiras do acampamento inimigo projetavam uma luz berrante. Totesham desceu rápido a escada das defesas enquanto homens tiravam os barris cheios de pedras que tinham formado uma barricada do lado de dentro da entrada, e depois erguiam a grande tranca que não tinha sido mexida durante um mês. As portas rangeram ao se abrirem e os homens que esperavam ovacionaram. Totesham desejou que eles tivessem ficado calados, porque não queria alertar o inimigo para o fato de que a guarnição ia fazer uma surtida, mas agora era tarde demais, e por isso achou a sua tropa de soldados e liderou-os para juntar-se à onda de soldados e habitantes da cidade que se despejou pela porta.

Thomas foi ao ataque ao lado de Robbie e Sir Guillaume e seus dois soldados. Will Skeat, apesar da promessa a Totesham, quis ir com eles, mas Thomas o empurrou para as defesas e pediu que ficasse assistindo à luta de lá.

— Você ainda não está em condições, Will — insistiu Thomas.

— Você é quem manda, Tom — concordou Skeat, submisso, e subiu a escada. Thomas, assim que passou pela porta, olhou para trás e viu Skeat na torre da porta. Ergueu a mão, mas Skeat não o viu ou, se viu, não o reconheceu.

Era uma sensação estranha estar do lado de fora das portas que estavam trancadas há tanto tempo. O ar era mais puro, sem o fedor do esgoto da cidade. Os atacantes pegaram a estrada que seguia reta por trezentos passos antes de desaparecer embaixo da paliçada que protegia as plataformas de madeira sobre as quais Infernal e Fazedor de Viúvas estavam montados. Aquela paliçada era mais alta do que um homem alto, e alguns dos arqueiros levavam escadas para ultrapassar o obstáculo, mas Thomas concluiu que as paliçadas tinham sido feitas às pressas e talvez caíssem com um bom empurrão. Ele correu, ainda desajeitado com os dedos dos pés retorcidos. Esperava que as bestas começassem a atirar a qualquer momento, mas nenhuma seta saiu do entrincheiramento de Charles; o inimigo, ao que Thomas supôs, estava ocupado com os homens de Dagworth.

Então, os primeiros dos arqueiros de Totesham alcançaram a paliçada e as escadas foram levantadas, mas, tal como Thomas imaginara, todo um pedaço da pesada cerca desabou com um estalo quando homens puseram seu peso nas escadas. As barreiras e paliçadas não tinham sido construídas para impedir a entrada de homens, mas para proteger os besteiros, embora estes ainda não soubessem que uma surtida havia partido da cidade, e por isso a barreira estava sem defesa.

Quatrocentos ou quinhentos homens atravessaram a paliçada caída. A maioria não era de soldados treinados, mas gente da cidade que ficara enraivecida com a queda de projéteis do inimigo em cima de suas casas. Suas mulheres e seus filhos tinham sido mutilados e mortos pelos trabucos e os homens de La Roche-Derrien queriam vingança, assim como queriam manter a prosperidade causada pela ocupação inglesa, e por isso gritavam enquanto se derramavam pelo acampamento inimigo.

— Arqueiros! — gritou Totesham com voz de trovão. — Arqueiros, aqui! Arqueiros!

Sessenta ou setenta arqueiros correram para obedecer, fazendo uma linha ao sul das plataformas onde estavam montados os dois maiores trabucos. O resto da surtida atacava o inimigo que já não estava formado em sua linha de combate, mas espalhara-se em pequenos grupos que estavam tão concentrados em completar a vitória sobre Sir Thomas Dagworth que não tinham vigiado a retaguarda. Agora eles se voltaram, alarmados, quando um rugir animal anunciou a chegada da guarnição.

— Matem os bastardos! — gritou um habitante da cidade em bretão.

— Matem! — berrou uma voz inglesa.

— Nada de prisioneiros! — gritou outro homem, e apesar de Totesham, temendo a perda de resgates, gritar que era preciso fazer prisioneiros, ninguém o ouviu no barulho selvagem que os atacantes faziam.

Os soldados de Charles formaram instintivamente uma linha, mas Totesham, preparado para ela, tinha reunido seus arqueiros e agora lhes ordenava que atirassem: os arcos começaram a sua música do diabo e as flechas sibilavam no escuro para se enfiarem em malha, carne e osso. Os arqueiros eram poucos, mas disparavam a pouca distância, não podiam errar, e os homens de Charles encolhiam-se atrás dos escudos enquanto os projéteis atingiam o alvo, mas as flechas perfuravam escudos com facilidade, e os soldados se dispersaram e espalharam-se para procurar abrigo entre as tendas.

— Cacem-nos! Cacem-nos! — Totesham liberou seus arqueiros para a matança.

Menos de cem dos homens de Sir Thomas Dagworth ainda estavam lutando e a maioria deles eram os arqueiros que tinham caído no terreno destinado às carroças. Outros tinham sido feitos prisioneiros, muitos estavam mortos, enquanto grande parte tentava fugir pelos entrincheiramentos e paliçadas, mas estes, ao ouvirem o grande alarido atrás deles, voltaram. Os homens de Charles estavam espalhados: muitos ainda caçavam os remanescentes do primeiro ataque e aqueles que tinham tentado resistir à surtida de Totesham estavam mortos ou fugindo para as sombras. Os homens de Totesham chegavam agora ao centro do acampamento com a selvageria de uma tempestade. Os habitantes da cidade estavam cheios de raiva. Não havia sutileza no seu assalto, só uma sede de vingança enquanto passavam pelos dois grandes trabucos. As primeiras cabanas que encontraram foram os abrigos dos engenheiros bávaros que, não querendo participar da carnificina que estava liquidando os sobreviventes do assalto de Sir Thomas Dagworth, tinham permanecido em seus alojamentos, e foi ali que eles morreram. Os habitantes da cidade não faziam idéia de quem eram as suas vítimas, só de que elas eram o inimigo e por isso eram abatidas com machados, picaretas e martelos. O engenheiro-chefe tentou proteger o filho de onze anos, mas os dois morreram juntos sob um furor de golpes, e enquanto isso os soldados ingleses e flamengos passavam correndo.

Thomas disparara o seu arco com os outros arqueiros, mas agora procurava Robbie, que ele vira pela primeira vez perto dos dois grandes trabucos. O Fazedor de Viúvas tinha sido arriado, pronto para lançar o primeiro projétil ao amanhecer, e Thomas tropeçou num resistente pino de metal que se erguia a um metro da viga e funcionava como âncora para a funda. Ele praguejou, porque o metal lhe machucara as canelas, e depois trepou na armação do trabuco e disparou uma flecha por cima da cabeça dos homens que abatiam os bávaros. Ele estivera mirando no inimigo ainda reunido aos pés do moinho e viu um homem cair antes de os vistosos escudos serem erguidos. Atirou de novo e percebeu que suas mãos feridas estavam fazendo o que sempre tinham feito, e fazendo muito bem, e por isso tirou uma terceira flecha da sacola e meteu-a num escudo iluminado pintado com um arminho branco, e então os soldados ingleses e seus aliados estavam subindo o morro e toldando a sua mira, de modo que ele pulou do trabuco e retomou a busca por Robbie.

O inimigo defendia o moinho com denodo, e a maioria dos homens de Totesham tinha se desviado em direção às tendas, onde tinham mais esperança de encontrar butim. Os homens da cidade, seus algozes bávaros mortos, iam atrás, com machados sujos de sangue. Um homem de armadura saiu de trás de uma tenda e investiu contra um homem com uma espada, fazendo-o dobrar-se à altura da cintura, e Thomas não pensou, mas encaixou uma flecha na corda, puxou e soltou. A flecha passou pela fresta da viseira do homem com perfeição, como se Thomas estivesse atirando contra os troncos de árvore em casa, e sangue envernizado pelo luar, brilhando como uma jóia, escorreu das frestas da viseira enquanto o homem caía de costas na lona.

Thomas continuou a correr, passando por cima de corpos, contornando tendas quase derrubadas. Não era lugar para um arco, tudo estava muito atravancado, e por isso ele pendurou a vara de teixo no ombro e sacou a espada. Abaixou-se para entrar numa tenda, passou por cima de um banco caído, ouviu um grito e voltou-se, espada erguida, e viu uma mulher no chão, meio escondida por roupas de cama, abanando a cabeça para ele. Ele a deixou lá, saiu para a noite iluminada pelas fogueiras e viu um inimigo mirando uma besta nos soldados ingleses que atacavam o moinho. Deu dois passos e golpeou o homem por trás, à altura dos rins, e a vítima arqueou a espinha ferida, contorceu-se e estremeceu. Thomas, puxando a espada para soltá-la, ficou tão aterrorizado pelo barulho que o moribundo fazia, que golpeou repetidas vezes, cortando o homem caído, que estrebuchava, para fazê-lo calar-se.

— Ele está morto! Cristo, rapaz, ele está morto! — gritou Robbie para ele, e depois agarrou-lhe a manga do gibão e puxou-o em direção ao moinho. Thomas tirou o arco do ombro e acertou dois homens que usavam o emblema do arminho branco em seus gibãos. Eles tentavam fugir, descendo pelo lado de trás do morro. Um cachorro passou veloz pelo rebordo da ladeira, tendo nas mandíbulas algo vermelho que pingava. Havia duas grandes fogueiras em cima do morro, flanqueando o moinho, e um soldado caiu de costas numa delas, levado até lá pelo golpe de uma flecha inglesa. Fagulhas explodiram para cima quando ele caiu, e então ele começou a gritar enquanto sua carne era torrada dentro da armadura. Tentou sair cambaleando das chamas, mas um homem da cidade empurrou-o de volta com o cabo de uma lança e riu dos gritos desesperados do homem. O barulho do choque de espadas, escudos e machados era enorme, enchia a noite, mas no estranho caos havia uma área tranqüila atrás do moinho. Robbie tinha visto um homem esgueirar-se por uma pequena porta e puxou Thomas naquela direção.

— Ele está se escondendo ou fugindo! — gritou Robbie. — Deve ter dinheiro!

Thomas não sabia muito bem do que Robbie estava falando, mas mesmo assim acompanhou-o; só teve tempo de colocar o arco no ombro e sacar da espada uma segunda vez antes de Robbie derrubar a porta com o ombro coberto por malha e mergulhar na escuridão.

— Venha cá, seu bastardo inglês! — berrou ele.

— Você quer ser morto? — gritou Thomas para ele. — Você está lutando em favor dos malditos ingleses!

Robbie praguejou ao ouvir aquele lembrete, e então Thomas viu uma sombra à sua direita, apenas uma sombra, e brandiu a espada naquela direção. Ela tilintou contra uma outra espada e Robbie estava gritando no poeirento escuro e o homem gritava com eles em francês e Thomas recuou, mas Robbie golpeou com a espada uma vez, duas, e a lâmina cortou osso e carne e ouviu-se um barulho quando um homem de armadura caiu na mó superior.

— Que diabo ele estava me dizendo? — quis saber Robbie.

— Ele estava tentando se render.

Uma voz falou, vinda do outro lado do moinho, e Thomas e Robbie voltaram-se rápido na direção do som, as espadas batendo contra a confusão de madeira de barrotes, vigas, rodas denteadas e eixos, e então o homem invisível tornou a falar.

— Epa, rapazes, epa! Eu sou inglês.

Ouviu-se um baque surdo quando uma flecha atingiu a parede externa. As velas enroladas davam puxões nas cordas que as prendiam e faziam com que a maquinaria de madeira estalasse e tremesse. Mais flechas cravaram-se nas tábuas.

— Eu sou um prisioneiro — disse o homem.

— Agora não é mais — disse Thomas.

— Acho que não. — O homem trepou pelas mós e abriu a porta e Thomas viu que ele era um homem de meia-idade e de cabelos grisalhos. — O que está acontecendo? — perguntou o homem.

— Nós estamos estripando os diabos — disse Robbie.

— Deus queira que estejam. — O homem voltou-se e estendeu a mão para Robbie. — Eu sou Sir Thomas Dagworth e agradeço a vocês dois.

Ele sacou da espada e abaixou-se para sair para a noite enluarada, e Robbie olhou firme para Thomas.

— Você ouviu isso?

— Ele agradeceu — disse Thomas.

— É, mas ele disse que era Sir Thomas Dagworth!

— Então, talvez seja.

— E então, que diabo estava fazendo aqui? — perguntou Robbie antes de segurar o homem que ele tinha matado e, com muito esforço e com o tilintar de armadura contra pedra e madeira, arrastou-o para a porta, onde as fogueiras proporcionavam iluminação. O homem havia tirado o elmo e a espada de Robbie lhe rachara o crânio, mas sob o sangue havia o brilho de ouro e Robbie arrastou uma corrente de debaixo do peitoral do homem.

— Ele deve ter sido um homem importante — disse Robbie, observando a corrente de ouro, e sorriu para Thomas. — Nós vamos dividir mais tarde, hein?

— Dividir?

— Nós somos amigos, não somos? — perguntou Robbie, e enfiou o ouro embaixo de sua cota de malha antes de jogar o corpo de volta para o moinho. — Uma armadura valiosa aquela — disse ele. — Vamos voltar depois que tudo acabar e esperar que nenhum bastardo a tenha roubado.

Havia agora um horror confuso e sangrento no acampamento. Sobreviventes do ataque de Sir Thomas Dagworth ainda lutavam, notadamente os arqueiros no terreno das carroças, mas, à medida que a guarnição da cidade precipitava-se pelas tendas, libertava prisioneiros ou tirava outros sobreviventes dos lugares escuros onde tinham estado escondidos. Os besteiros de Charles, que poderiam ter detido o ataque da guarnição, em sua maioria estavam lutando contra os arqueiros ingleses no terreno das carroças. Os genoveses usavam seus imensos paveses como abrigo, mas os novos atacantes vinham por trás e os besteiros não tinham onde se esconder enquanto as longas flechas sibilavam pela noite. Os arcos de guerra cantavam sua melodia do diabo, dez flechas voando para cada quadrelo disparado, e os besteiros não podiam resistir à matança. Eles fugiram.

Os arqueiros vitoriosos, reforçados, àquela altura, pelos homens que tinham se escondido entre as carroças, voltaram-se para os abrigos e tendas onde uma brincadeira mortal de esconde-esconde estava sendo encenada nas avenidas às escuras entre as paredes de lona, mas então um arqueiro galês descobriu que o inimigo podia ser expulso se tocassem fogo nas tendas. Em pouco tempo havia fumaça e chamas sendo vomitadas por todo o acampamento e soldados inimigos corriam dos incêndios para as flechas e lâminas dos incendiários.

Charles de Blois se retirara do moinho, reconhecendo que sua posição em cima do morro fazia com que ele chamasse atenção, e tentara reunir alguns cavaleiros em frente de sua suntuosa tenda, mas uma onda avassaladora de habitantes da cidade atropelara aqueles cavaleiros e Charles ficou olhando, horrorizado, enquanto açougueiros, tanoeiros, carpinteiros de rodas e instaladores de colmo massacravam seus superiores com machados, cutelos de açougueiros e foices. Ele se retirara às pressas para dentro de sua tenda, mas agora um de seus servidores puxou-o, sem cerimônia, para a entrada dos fundos.

— Por aqui, excelência.

Charles livrou-se da mão do homem.

— Aonde podemos ir? — perguntou ele em tom de lamentação.

— Nós iremos para o campo sul, excelência, e vamos buscar homens para nos ajudar.

Charles fez um gesto afirmativo com a cabeça, refletindo que ele mesmo deveria ter dado a ordem naquele sentido e lamentando sua insistência para que nenhum de seus homens deixasse seus acampamentos. Bem mais da metade do seu exército estava nos outros três acampamentos, todos perto dali e todos ansiosos por lutar e mais do que capazes de acabar com aquela turba desorganizada, e no entanto eles estavam obedecendo às suas ordens e mantendo-se quietos enquanto o acampamento dele era passado na espada.

— Onde está o meu trombeteiro? — perguntou ele.

— Senhor? Eu estou aqui, excelência! Estou aqui. — O trombeteiro sobrevivera milagrosamente à luta e permanecera perto de seu senhor.

— Dê os sete toques — ordenou Charles.

— Aqui, não! — disse um padre, ríspido, e quando Charles pareceu ofendido, deu uma rápida explicação. — Vai atrair o inimigo, excelência. Depois de dois toques, eles vão cair em cima de nós como cães de caça!

Charles reconheceu a sabedoria do conselho com um curto gesto da cabeça. Doze cavaleiros estavam com ele naquele momento e faziam uma força de respeito naquela noite de combate desigual. Um deles deu uma espiada da tenda e viu labaredas cortando o céu e percebeu que as tendas do duque seriam incendiadas dali a pouco.

— Temos de ir embora, excelência — insistiu —, temos de procurar nossos cavalos.

Eles saíram da tenda, andando depressa pelo trecho de grama batida onde as sentinelas do duque costumavam ficar, e então uma flecha veio adejando do escuro para resvalar num peitoral. Gritos ficaram subitamente altos e uma onda de homens veio da direita e por isso Charles recuou para a sua esquerda, o que o levou de volta morro acima, em direção ao moinho iluminado pelas fogueiras, e então um grito anunciou que ele tinha sido avistado e as primeiras flechas cortaram morro acima.

— Trombeteiro! — gritou Charles. — Sete toques! Sete toques!

Charles e seus homens, impedidos de chegarem até seus cavalos, agora estavam de costas para a base do moinho, que estava espetado com dezenas de flechas com penas brancas. Uma outra flecha espetou um homem à altura da cintura, perfurando sua cota de malha, furando a barriga e a malha das costas, para espetá-lo nas tábuas do moinho, e então uma voz inglesa gritou para que os arqueiros parassem de atirar.

— É o duque deles! — berrou o homem —, é o duque deles! Queremos ele vivo! Parem de atirar! Abaixem os arcos!

A notícia de que Charles de Blois estava encurralado no moinho provocou um grunhido por parte dos atacantes. As flechas pararam de voar e os soldados batidos e sangrando de Charles que defendiam o morro olharam para baixo e viram, logo depois da luz das duas fogueiras do moinho, uma massa de criaturas escuras rondando como lobos.

— Que Deus nos ajude — disse um padre com terror na voz.

— Trombeteiro! — disse Charles de Blois com brusquidão.

— Senhor — respondeu o trombeteiro.

Ele tinha encontrado o bocal de seu instrumento misteriosamente entupido de terra. O homem devia ter caído, embora ele não se lembrasse disso. Sacudiu os últimos grãos de terra do bocal de prata e levou a trombeta à boca e o primeiro toque soou doce e alto na noite. O duque sacou da espada. Ele tinha apenas que defender o moinho o tempo suficiente para que os reforços viessem dos outros acampamentos e varrer aquela impertinente ralé para o inferno. A segunda nota da trombeta soou.

Thomas ouviu a trombeta, voltou-se e viu o brilho de prata ao lado do moinho, depois viu o reflexo da luz das chamas caindo da campânula do instrumento quando o trombeteiro ergueu-o em direção à lua pela terceira vez. Thomas não tinha ouvido ordem nenhuma para parar de disparar flechas, e por isso puxou a corda de seu arco, torceu a mão esquerda uma fração para cima e soltou. A flecha disparou por cima da cabeça dos soldados ingleses e atingiu o trombeteiro no exato momento em que ele tomava fôlego para o terceiro toque, e o ar saiu chiando e borbulhando de seu pulmão perfurado enquanto ele caía de lado na turfa. As coisas escuras que rondavam na base do morro viram o homem cair e, de repente, atacaram.

Nenhuma ajuda chegou a Charles das três fortalezas restantes. Eles tinham ouvido dois toques de trombeta, mas apenas dois, e imaginaram que Charles devia estar ganhando; além do mais, tinham ordens dele, estritas e constantemente repetidas, para que ficassem onde estavam, sob pena de serem prejudicados quando as terras conquistadas fossem distribuídas entre os vencedores. Por isso ali ficaram, vendo a fumaça sair das labaredas e perguntando-se o que se passava no grande acampamento do leste.

Acontecia o caos. Aquela luta, reconhecia Thomas, era parecida com o ataque a Caen: não planejada, desordenada e extremamente brutal. Os ingleses e seus aliados tinham ficado irritados, nervosos, esperando a derrota, enquanto os homens de Charles tinham esperado a vitória — na verdade, tinham conquistado a vitória inicial —, mas agora o nervosismo inglês estava se transformando num assalto, enlouquecido, sangrento, rancoroso e os franceses e bretões estavam sendo aterrorizados. Ouviu-se um barulho dissonante quando soldados ingleses chocaram-se com os homens de Charles que defendiam o moinho. Thomas quis participar daquela luta, mas de repente Robbie deu um puxão na manga de sua cota de malha.

— Olhe! — Robbie apontava para as tendas em chamas.

Robbie tinha visto três homens a cavalo com casacos pretos lisos e com eles, a pé, um dominicano. Thomas viu as túnicas brancas e pretas e seguiu Robbie através das tendas, pisando uma peça de lona azul e branca que tinha sido derrubada, passando por um estandarte caído, correndo entre duas fogueiras e depois atravessando um espaço aberto que rodopiava com fumaça e retalhos de tecidos que voavam em chamas. Uma mulher, com um vestido quase arrancado do corpo, gritou e atravessou correndo na frente deles e um homem espalhou fogo com as botas enquanto a perseguia até dentro de uma cabana com telhado de turfa. Por um instante, eles perderam o padre de vista, e depois Robbie tornou a ver as túnicas pretas e brancas: o dominicano tentava montar num cavalo sem sela que os homens de casaco preto seguravam para ele. Thomas puxou o arco, disparou a flecha e viu-a enterrar-se até as penas no peito do cavalo; o animal empinou, patas amarelas debatendo-se, e o dominicano caiu de costas. Os homens de casaco preto fugiram a galope da ameaça do arco e o padre, abandonado, voltou-se e viu seus perseguidores e Thomas reconheceu de Taillebourg, o torturador de Deus. Thomas berrou um desafio e tornou a armar o arco, mas de Taillebourg correu para algumas tendas que restavam. Um besteiro genovês surgiu de repente, os viu, ergueu sua arma e Thomas soltou a corda. A flecha cortou a garganta do homem, derramando sangue pela túnica vermelho e verde. A mulher gritou dentro do abrigo, depois foi abruptamente silenciada enquanto Thomas seguia Robbie para onde o inquisidor tinha desaparecido por entre as tendas. A aba da porta de uma delas ainda balançava e Robbie, espada desembainhada, empurrou a lona para o lado e curvou-se para entrar no que se revelou ser uma capela.

De Taillebourg estava em pé junto ao altar com o frontal branco da Páscoa. Um crucifixo estava em cima do altar entre duas velas bruxuleantes. O acampamento lá fora era um tumulto de gritos, dor e flechas, de cavalos choramingando e homens gritando, mas estava estranhamente calmo na capela improvisada.

— Seu bastardo. — Thomas sacou da espada e avançou contra o dominicano. — Seu maldito, fedorento, cara de excremento, pedaço de merda sacerdotal.

Bernard de Taillebourg estava com uma das mãos sobre o altar. Ele ergueu a outra para fazer o sinal-da-cruz.

— Dominus vobiscum — disse ele na sua voz grave. Uma flecha raspou o teto da tenda com um som agudo de arranhar, uma outra atravessou uma parede lateral e caiu atrás do altar.

— O Vexille está com você? — perguntou Thomas.

— Que Deus o abençoe, Thomas — disse de Taillebourg. Ele estava com uma expressão ameaçadora, resoluta, olhos duros, e fez o sinal-da-cruz em direção a Thomas, e então recuou quando Thomas ergueu a espada.

— O Vexille está com você? — tornou a perguntar Thomas.

— Você o está vendo? — perguntou o dominicano, correndo os olhos pela capela, e depois sorriu. — Não, Thomas, ele não está aqui. Ele foi para a escuridão. Foi buscar ajuda, e você não pode me matar.

— Me dê um motivo — disse Robbie —, porque você matou meu irmão, seu bastardo.

De Taillebourg olhou para o escocês. Ele não reconheceu Robbie, mas viu a raiva e deu a ele a mesma bênção que dera a Thomas.

— Você não pode me matar — disse ele depois de fazer o sinal-da-cruz — porque eu sou padre, meu filho, porque eu sou ungido de Deus, e sua alma será condenada por todos os tempos se você até mesmo tocar em mim.

A reação de Thomas foi dar uma estocada com a espada contra a barriga de Bernard de Taillebourg, obrigando o padre a recuar rápido contra o altar. Um homem gritou do lado de fora, o som falhando e diminuindo, acabando num soluçar. Uma criança chorou inconsolável, a respiração sendo feita com grandes arfadas, e um cachorro latiu desvairadamente. A luz das tendas em chamas era avermelhada contra as paredes de lona da capela.

— Você é um bastardo — disse Thomas — e eu não me importo se matar você pelo que você me fez.

— O que eu fiz! — A raiva de de Taillebourg brilhou como as fogueiras lá de fora. — Eu não fiz nada! — Ele agora falava em francês. — Seu primo implorou para que eu o poupasse do pior, e foi o que fiz. Um dia, disse ele, você ficaria do lado dele! Um dia você iria passar para o lado do Graal! Um dia ficaria do lado de Deus, e por isso eu o poupei, Thomas. Eu lhe deixei os olhos! Eu não queimei os seus olhos!

— Eu terei prazer em matá-lo — disse Thomas, embora na verdade estivesse nervoso por estar atacando um padre. O céu estaria vendo e a pena do anjo encarregado dos registros estaria escrevendo letras de fogo num grande livro.

— E Deus te ama, meu filho — disse de Taillebourg com delicadeza —, Deus te ama. E Deus castiga a quem ele ama.

— O que é que ele está dizendo? — interrompeu Robbie.

— Ele está dizendo que se nós o matarmos — disse Thomas — nossas almas serão condenadas.

— Até que outro padre retire a condenação — disse Robbie. — Não tem um pecado sobre a Terra que algum padre não perdoe se o preço estiver certo. Por isso pare de falar com o bastardo e mate-o. — Ele avançou contra de Taillebourg, espada erguida, mas Thomas o conteve.

— Onde está o livro de meu pai? — perguntou Thomas ao padre.

— O seu primo está com ele — respondeu de Taillebourg. — Eu juro, o seu primo está com ele.

— Pois então, onde está meu primo?

— Eu lhe disse, ele foi buscar ajuda — disse de Taillebourg — e agora você também tem de ir, Thomas. Você tem que me deixar aqui para rezar.

Thomas quase obedeceu, mas aí lembrou-se de sua patética gratidão para com aquele homem quando ele parara a tortura, e a lembrança daquela gratidão foi tão vergonhosa, tão dolorosa, que de repente ele estremeceu e, quase sem pensar, brandiu a espada contra o padre.

— Não! — gritou de Taillebourg, o braço esquerdo cortado até o osso no ponto em que ele tentara defender-se da espada de Thomas.

— Sim — disse Thomas, e a raiva o estava consumindo, enchendo-o, e ele golpeou de novo, e Robbie estava ao seu lado, dando estocadas com a espada, e Thomas golpeou uma terceira vez, mas com um gesto tão largo que a espada ficou presa no teto da tenda.

De Taillebourg cambaleava.

— Vocês não podem me matar! — gritou ele. — Eu sou padre!

Ele berrou a última palavra e ainda gritava quando Robbie cortou-lhe o pescoço com a espada de Sir William Douglas. Thomas desprendeu sua espada. De Taillebourg, a frente da batina ensopada de sangue, olhava para ele perplexo, e então o padre tentou falar e não conseguiu, e o sangue se espalhava pelo trançado de sua vestimenta com uma rapidez extraordinária. Ele caiu de joelhos, ainda tentando falar, e o golpe de espada de Thomas pegou-o no outro lado do pescoço, e mais sangue jorrou para lançar pingos sobre o frontal branco do altar. De Taillebourg ergueu os olhos, dessa vez com perplexidade no rosto, e então o último golpe de Thomas matou o dominicano, arrancando a traquéia do pescoço. Robbie teve de dar um pulo para trás para evitar o borrifo de sangue. O padre contorceu-se e na agonia da morte sua mão esquerda puxou o frontal ensopado de sangue, arrancando-o do altar, derrubando velas e crucifixo. Ele fez um ruído de chocalhar, contorceu-se e ficou imóvel.

— Isso foi bom — disse Robbie na escuridão repentina quando as velas se apagaram. — Eu odeio padres. Sempre quis matar um.

— Eu tinha um amigo que era padre — disse Thomas fazendo o sinal-da-cruz —, mas ele foi assassinado, pelo meu primo ou por este bastardo.

Ele sacudiu o corpo de Bernard de Taillebourg com o pé, curvou-se e limpou a lâmina da espada na bainha da vestimenta do padre.

Robbie foi até a porta da tenda.

— Meu pai acha que o inferno está cheio de padres — falou.

— Neste caso, tem mais um indo lá para baixo — disse Thomas.

Apanhou o seu arco, e ele e Robbie voltaram para a escuridão, onde os gritos e as flechas fustigavam a noite. Eram tantas as tendas e cabanas em chamas, que era como se fosse dia, e no brilho avermelhado Thomas viu uma besteira ajoelhada entre dois cavalos amarrados e horrorizados. A besta estava apontada para o alto do morro, para onde tantos ingleses lutavam. Thomas encaixou uma flecha na corda do seu arco, puxou, e no último segundo, quando estava prestes a enfiar a flecha na espinha da besteira, reconheceu o estampado azul e branco sobre o gibão e desviou a mira, e a flecha atingiu a besta e arrancou-a das mãos de Jeanette.

— Você vai ser morta! — gritou ele para ela, irritado.

— Aquele é o Charles! — Ela apontou para o alto do morro, igualmente zangada com ele.

— As únicas bestas estão com o inimigo — disse ele. — Quer ser morta por um arqueiro? — Ele pegou o arco dela pela manivela e jogou-o nas sombras. — E que diabo está fazendo aqui?

— Vim matá-lo! — disse ela apontando outra vez para Charles de Blois que, com seus servidores, resistia a um assalto desesperado. Ele estava com oito cavaleiros sobreviventes a seu lado e todos estavam lutando com selvageria, embora estivessem numa imensa inferioridade numérica e todos estivessem feridos. Thomas levou Jeanette morro acima, bem a tempo de ver um soldado inglês, alto, arremeter contra Charles, que aparou o golpe com o escudo e enfiou sua espada por baixo da borda do escudo para atingir o inglês na coxa. Um outro homem atacou e foi derrubado por um machado, um terceiro puxou um dos servidores de Charles para fora do morro e golpeou o elmo do homem. Parecia haver uns vinte ingleses tentando chegar até Charles, indo com os escudos de encontro às armas de seus servidores, arremetendo com espadas e golpeando com grandes machados de guerra.

— Dêem espaço a ele! — berrou uma voz autoritária. — Dêem espaço a ele! Recuem! Recuem! Deixem ele se render!

Com relutância, os atacantes recuaram. Charles estava com a viseira levantada e havia sangue em seu rosto pálido e mais sangue na espada. Um padre estava de joelhos ao seu lado.

— Renda-se! — gritou um homem para o duque, que pareceu entender porque, impetuoso, abanou a cabeça num gesto de recusa, mas então Thomas encaixou uma flecha na corda, puxou e apontou-a para o rosto de Charles. Charles viu a ameaça e hesitou.

— Renda-se! — gritou outro homem.

— Só a um homem de posição! — declarou Charles em francês.

— Quem tem posição aqui? — perguntou Thomas em inglês, e depois repetiu em francês. Um dos soldados de Charles que restavam caiu devagar, primeiro de joelhos, depois de bruços, com um barulho de armadura.

Um cavaleiro avançou das fileiras inglesas. Era um bretão, um dos auxiliares de Totesham, e anunciou seu nome para provar a Charles que era um homem de berço nobre e então estendeu a mão e Charles de Blois, sobrinho do rei da França e pretendente ao ducado da Bretanha, adiantou-se desajeitado e apresentou a espada. Uma imensa ovação fez-se ouvir, e os homens que estavam no morro separaram-se para deixar o duque e seu captor se afastarem. Charles esperava receber a espada de volta e pareceu surpreso quando o bretão não se prontificou a devolvê-la, e o derrotado duque desceu o morro constrangido, ignorando o inglês triunfante, mas de repente parou porque uma figura de cabelos pretos se metera à sua frente.

Era Jeanette.

— Lembra-se de mim? — perguntou ela.

Charles olhou-a de alto a baixo e encolheu-se como se tivesse sido agredido quando reconheceu o emblema no gibão dela. E tornou a encolher-se quando viu a raiva nos olhos dela. Não disse nada.

Jeanette sorriu.

— Estuprador — disse ela, e cuspiu pela viseira dele, que estava aberta. O duque fez um gesto rápido com a cabeça, mas era tarde demais, e Jeanette tornou a cuspir no seu rosto. Ele tremeu de raiva. Ela o estava desafiando a agredi-la, mas ele se conteve e Jeanette, impossibilitada de fazer o mesmo, cuspiu uma terceira vez.

— Ver — disse ela com desdém e afastou-se ao som de uma irônica ovação.

— O que é ver? — perguntou Robbie.

— Verme — disse Thomas, e sorriu para Jeanette. — Muito bem, senhora.

— Eu ia chutar o maldito do saco dele — disse ela —, mas me lembrei de que ele estava de armadura.

Thomas soltou uma gargalhada e desviou-se para o lado quando Richard Totesham ordenou que meia dúzia de soldados escoltasse Charles de volta para La Roche-Derrien. À exceção de capturar o rei da França, ele era o prisioneiro mais valioso que se podia conseguir na guerra. Thomas ficou olhando enquanto ele se afastava. Charles de Blois iria juntar-se agora ao rei da Escócia como prisioneiro da Inglaterra, e os dois teriam de levantar uma fortuna se quisessem ter seus resgates pagos.

— Ainda não acabou! — gritou Totesham. Ele tinha visto a multidão de homens que zombavam indo atrás do duque capturado e apressou-se a afastá-los. — Não acabou! Terminem o trabalho!

— Cavalos! — bradou Sir Thomas Dagworth. — Peguem os cavalos deles!

A luta no acampamento de Charles fora vencida, mas não terminara. O assalto vindo da cidade chegara como uma tempestade e atravessara por completo o centro da linha de combate do duque Charles que tinha sido cuidadosamente preparada, e o que restava de sua força estava agora dividido em pequenos grupos. Dezenas já estavam mortos, e outros fugiam para a escuridão.

— Arqueiros! — ouviu-se alguém gritar. — Arqueiros, aqui comigo!

Dúzias de arqueiros correram para os fundos do acampamento, onde os franceses e bretões em fuga tentavam chegar às outras fortalezas, e os arcos derrubaram os fugitivos sem piedade.

— Tirem tudo deles! — gritou Totesham. — Tirem tudo deles!

Um tipo primitivo de organização surgira no teatro de carnificina quando a guarnição e os habitantes da cidade, aumentados pelos sobreviventes da força de Sir Thomas Dagworth, caçavam pelo acampamento em chamas para levar quaisquer sobreviventes para onde os arqueiros esperavam. Era um trabalho lento, não porque o inimigo estivesse oferecendo qualquer resistência de fato, mas porque homens estavam sempre parando para saquear tendas e abrigos. Mulheres e crianças eram levadas para fora, para a luz da lua, e seus homens eram mortos. Prisioneiros que valiam um resgate vultoso eram abatidos na confusão e no escuro. O visconde Rohan foi abatido, como também o foram os senhores de Laval e de Châteaubriant, de Dinan e de Redon.

Uma luz cinzenta cintilou no leste, o primeiro sinal do amanhecer. No acampamento destruído pelo fogo ouvia-se uma choradeira.

— Acabamos com eles? — Richard Totesham, finalmente, encontrara Sir Thomas Dagworth. Os dois estavam nas defesas do acampamento, de onde olhavam para a fortaleza inimiga do sul.

— Não podemos deixá-los sentados lá — disse Sir Thomas, e estendeu a mão. — Obrigado, Dick.

— Por cumprir minha obrigação? — respondeu Totesham, desconcertado. — Pois então vamos varrer os bastardos dos outros acampamentos, hein?

Uma trombeta deu o toque de reunir para os ingleses.

Charles de Blois dissera aos seus combatentes que um arqueiro não podia atirar num homem que ele não visse, e era verdade, mas os homens no acampamento sul, que formavam a segunda maior porção do exército de Charles, aglomeravam-se na defesa externa numa tentativa de ver o que acontecia no acampamento do leste em volta do moinho. Eles tinham acendido fogueiras para proporcionar iluminação aos seus besteiros, mas aquelas fogueiras agora serviam para delineá-los enquanto eles ficavam em pé na barreira de terra, que não tinha paliçada, e os arqueiros ingleses, com um alvo daqueles, não podiam errar. Os arqueiros estavam na área limpa entre os acampamentos, encobertos pela sombra do vulto gigantesco dos longos entrincheiramentos, e suas flechas saíam vibrando da noite para atingir os franceses e bretões que observavam com atenção. Besteiros tentaram responder, mas formavam o mais fácil dos alvos, porque poucos possuíam cotas de malha, e então, com um rugido, os soldados ingleses atacaram as defesas e a matança recomeçou. Habitantes da cidade, ansiosos por saques, acompanharam a carga, e os arqueiros, vendo a trincheira sem defensores, correram para juntar-se a eles.

Thomas deu uma parada na defesa de terra para disparar uma dúzia de flechas contra o inimigo em pânico que construíra aquele acampamento no local em que no ano anterior ficara o acampamento de sítio inglês. Ele perdera Sir Guillaume de vista e, embora tivesse dito a Jeanette que voltasse para a cidade, ela ainda estava com ele, mas agora armada com uma espada que tirara de um bretão morto.

— Você não devia estar aqui — disse, ríspido.

— Vespas! — retrucou ela, e apontou para uma dúzia de soldados usando os casacos pretos e amarelos do senhor de Roncelets.

O inimigo ali oferecia pouca resistência. Eles não tinham sabido do desastre sofrido por Charles e foram surpreendidos pelo súbito ataque que saíra da escuridão. Os besteiros sobreviventes agora batiam em retirada, em pânico, entrando nas tendas, e os ingleses, uma vez mais, tiravam lenha em brasa das grandes fogueiras e jogavam-na nos telhados de lona para queimarem forte e berrante na escuridão que antecedia o amanhecer. Os arqueiros ingleses e galeses tinham pendurado os arcos no ombro e, impiedosos, abriam caminho pela fila de tendas com machados, espadas e porretes. Era outro massacre, alimentado pela perspectiva de saque, e alguns dos franceses e bretões, em vez de enfrentarem a massa de homens enlouquecidos que berravam, montaram em seus cavalos e fugiram para o leste, em direção à fina luz cinzenta que agora deixava vazar um toque de vermelho ao longo do horizonte.

Thomas e Robbie dirigiram-se para os homens usando as listras semelhantes a vespas de Roncelets. Aqueles homens tinham tentado oferecer uma resistência ao lado de um trabuco que tinha pintado o nome de Chicote de Pedra em sua grande armação, mas foram flanqueados por arqueiros e agora tentavam fugir e no caos não sabiam para onde ir. Dois deles correram em direção a Thomas e este espetou um na sua espada, enquanto Robbie deixava o outro tonto com um golpe violento no elmo, e depois uma onda de arqueiros empurrou os homens de preto e amarelo para o lado e Thomas embainhou a espada molhada e tirou do ombro o arco antes de investir para dentro de uma tenda que não fora incendiada e estava ao lado de um mastro com o estandarte preto e amarelo desfraldado e, lá, entre uma cama e uma arca que estava aberta, estava o senhor de Roncelets em pessoa. Ele e um escudeiro transferiam, com as mãos em concha, moedas da arca para pequenos sacos, e os dois se voltaram quando Thomas e Robbie entraram e o senhor de Roncelets apanhou depressa uma espada que estava na cama, no exato momento em que Thomas puxava a corda do arco. O escudeiro lançou-se sobre Robbie, mas Thomas soltou a flecha e o escudeiro foi sacudido para trás como puxado por uma corda fortíssima e o sangue do ferimento na testa derramou-se vermelho no chão da tenda. O escudeiro sacudiu-se espasmodicamente duas vezes e depois ficou imóvel, e o senhor de Roncelets ainda estava a três passos de distância de Thomas quando a segunda flecha foi colocada na corda.

— Vamos, excelência — disse Thomas —, me dê um motivo para mandá-lo para o inferno.

O senhor de Roncelets parecia um lutador. Tinha cabelos curtos eriçados, um nariz quebrado e falta de dentes, mas não havia beligerância nele agora. Ouvia os gritos da derrota em toda a sua volta, sentia o cheiro da carne queimada dos homens presos entre as tendas e via a flecha no arco de Thomas apontada para o seu rosto, e simplesmente ofereceu a espada em rendição instantânea.

— Você tem posição de destaque? — perguntou ele a Robbie. Ele não reconhecera Thomas e, de qualquer modo, partia do pressuposto de que quem usasse um arco tinha de ser uma pessoa sem título de nobreza.

Robbie não entendeu a pergunta, que tinha sido feita em francês, e por isso Thomas respondeu por ele.

— Ele é um senhor escocês — disse Thomas exagerando a posição de Robbie.

— Então eu me rendo a ele — disse Roncelets irritado e jogou a espada aos pés de Robbie.

— Meu Deus — disse Robbie sem compreender o diálogo —, ele ficou com medo depressa!

Thomas liberou com cuidado a pressão da corda do arco e ergueu os dedos tortos na mão direita.

— Foi bom o senhor se render — disse ele a Roncelets. — Lembra-se de que o senhor quis decepar estes dedos?

Ele não conseguiu reprimir o sorriso quando primeiro o reconhecimento e depois o medo abjeto apareceram na expressão do rosto de Roncelets.

— Jeanette! — gritou Thomas, a pequena vitória conquistada. — Jeanette!

Jeanette entrou pela aba da tenda e com ela, vejam só, estava Will Skeat.

— Que diabo você está fazendo aqui? — perguntou Thomas, irritado.

— Você não ia querer que um velho amigo fosse impedido de entrar numa briga, ia, Tom? — perguntou Skeat com um sorriso e Thomas pensou que naquele sorriso ele via o verdadeiro caráter do amigo.

— Você é um velho maluco — resmungou Thomas, e depois apanhou a espada do senhor de Roncelets e entregou-a a Jeanette. — Ele é nosso prisioneiro — disse ele — e seu também.

— Nosso? — Jeanette estava intrigada.

— Ele é o senhor de Roncelets — disse Thomas sem poder evitar outro sorriso —, e eu não tenho dúvidas de que podemos extrair dele um resgate. E não me refiro àquele dinheiro vivo — ele apontou para a arca aberta —, que de qualquer modo já é nosso.

Jeanette olhou fixo para Roncelets e aos poucos foi percebendo que se o senhor de Roncelets era seu prisioneiro, seu filho estava praticamente devolvido a ela. Ela estourou numa gargalhada e deu um beijo em Thomas.

— Com que então, Thomas, você cumpre mesmo suas promessas.

— E você, vigie-o bem — disse Thomas —, porque o resgate dele vai deixar todos nós ricos. Robbie, você, eu e Will. Vamos todos ficar ricos. — Ele sorriu para Skeat. — Você fica com ela, Will? Toma conta dele?

— Fico — concordou Will.

— Quem é ela? — perguntou o senhor de Roncelets a Thomas.

— A condessa da Armórica — respondeu Jeanette por ele e riu de novo quando viu a expressão de choque no rosto de Roncelets.

— Levem-no para a cidade. — Thomas agachou-se para sair da tenda. Lá fora encontrou dois habitantes da cidade procurando butim entre as tendas mais próximas.

— Vocês dois! — gritou, ríspido, para eles —, vão ajudar a vigiar um prisioneiro. Levem-no para a cidade, e serão bem recompensados. Vigiem bem! — Thomas puxou os dois homens para dentro da tenda. Ele achava que o senhor de Roncelets não conseguiria escapar se Jeanette, Skeat e os dois homens o estivessem vigiando. — Apenas vigiem-no — disse a eles — e levem-no para a casa que era sua. — A última observação foi dirigida a Jeanette.

— Para a casa que era minha? — Ela estava intrigada.

— Você queria matar alguém hoje à noite — disse Thomas — e não pode matar Charles de Blois. Então por que não vai matar Belas?

Ele riu da expressão no rosto dela, e depois ele e Robbie fecharam com força a tampa da arca e cobriram-na com cobertores tirados da cama, na esperança de escondê-la por alguns instantes, e voltaram para a luta.

Durante toda a batalha iluminada por fogueiras Thomas vira de relance homens de casacos pretos lisos, e sabia que Guy Vexille devia estar por perto, mas não conseguira vê-lo. Agora gritos e o barulho de lâminas se entrechocando vinham do lado sul do acampamento e Thomas e Robbie correram para ver o que era aquela agitação. Viram que um grupo de homens a cavalo, usando casacos pretos, rechaçava vinte soldados ingleses.

— Vexille! — berrou Thomas. — Vexille!

— É ele? — perguntou Robbie.

— De qualquer modo, são homens dele — disse Thomas.

Ele calculava que seu primo estivera no acampamento do leste com de Taillebourg e que tinha ido até lá na esperança de levar uma força para ajudar Charles, mas chegara tarde demais e agora seus homens participavam de um combate de retaguarda para proteger outros homens que fugiam.

— Onde está ele? — perguntou Robbie.

Thomas não conseguia ver o primo. Tornou a gritar.

— Vexille! Vexille!

E lá estava ele. O Arlequim, conde de Astarac, com armadura de chapas, viseira erguida, montando um corcel de batalha preto e segurando um escudo preto, liso. Ele viu Thomas e ergueu a espada numa saudação irônica. Thomas tirou o arco do ombro, mas Guy Vexille viu a ameaça, voltou-se para se afastar e os cavalarianos cercaram-no para protegê-lo.

— Vexille!

Thomas gritou e correu em direção ao primo. Robbie lançou um aviso e Thomas agachou-se enquanto um cavalariano brandia uma espada contra ele, e então jogou-se contra o cavalo, sentindo o cheiro de couro e suor, e um outro cavalariano bateu nele, quase o derrubando.

— Vexille! — berrou ele. E tornou a ver Guy Vexille, só que agora seu primo estava voltando, galopando em sua direção, e Thomas puxou a corda do arco, mas Vexille ergueu a mão direita para mostrar que havia embainhado a espada, e o gesto fez Thomas abaixar o arco preto.

Guy Vexille, a viseira erguida e o rosto bonito iluminado pelas fogueiras, sorriu.

— Eu estou com o livro, Thomas.

Thomas não disse nada, mas apenas tornou a erguer o arco.

Guy Vexille abanou a cabeça, num gesto de reprovação.

— Não há necessidade disso, Thomas. Junte-se a mim.

— No inferno, seu bastardo — disse Thomas. Aquele era o homem que tinha matado seu pai, matara Eleanor, matara o padre Hobbe, e Thomas puxou a flecha toda para trás e Vexille pegou uma pequena faca que estivera escondida na mão que segurava o escudo e calmamente curvou-se para a frente e cortou a corda do arco. A corda partida fez com que o arco pulasse com violência na mão de Thomas e a flecha foi cuspida sem causar dano. A corda tinha sido cortada com tanta rapidez que Thomas não tivera tempo de reagir.

— Um dia você se juntará a mim, Thomas — disse Vexille, e então viu que os arqueiros ingleses tinham finalmente percebido a presença de seus homens e começavam a fazer baixas, e por isso ele girou o cavalo, gritou para que seus homens batessem em retirada e saiu galopando.

— Jesus! — blasfemou Thomas, frustrado.

— Calix meus inebrians! — gritou Guy Vexille, e depois desapareceu entre os homens que galopavam para o sul. Uma rajada de flechas inglesas foi atrás deles, mas nenhuma atingiu Vexille.

— Bastardo! — xingou Robbie na direção da figura que fugia.

Ouviu-se um grito de mulher vindo das tendas em chamas.

— O que foi que ele lhe disse? — perguntou Robbie.

— Ele queria que eu me unisse a ele — disse Thomas com amargura. Ele jogou fora a corda cortada e tirou a sobressalente de sob seu morrião. Os dedos desajeitados mexeram-se enquanto procurava reencordoar o arco, mas ele conseguiu na segunda tentativa. — E disse também que está com o livro.

— É, mas muito bem, o que é que isso vai adiantar para ele? — indagou Robbie.

A luta acabara e ele ajoelhou-se junto a um cadáver bem-vestido e começou a procurar moedas. Sir Thomas Dagworth mandava, aos gritos, que homens se reunissem na margem oeste do acampamento para assaltar a fortaleza seguinte, onde alguns dos defensores, percebendo que a batalha estava perdida, já estavam fugindo. Sinos de igreja tocavam em La Roche-Derrien, celebrando a entrada de Charles de Blois na cidade, como prisioneiro.

Thomas olhou para o ponto em que o primo desaparecera. Ele estava envergonhado, porque uma pequena parte dele, uma parte pequena e traiçoeira, ficara tentada a aceitar a oferta. Juntar-se ao primo, voltar a pertencer a uma família, procurar o Graal e utilizar seu poder. A vergonha era amarga, como a vergonha da gratidão que ele sentira para com de Taillebourg quando a tortura acabara.

— Bastardo! — gritou inutilmente. — Bastardo.

— Bastardo! — Foi a voz de Sir Guillaume que se meteu na de Thomas. Sir Guillaume, com seus dois soldados, cutucava um prisioneiro nas costas com uma espada. O preso usava uma armadura e a espada resvalava nela a cada cutucada. — Bastardo! — vociferou Sir Guillaume de novo, e então viu Thomas. — É o Coutances! Coutances! — Ele arrancou o elmo do prisioneiro. — Olhe para ele!

O conde de Coutances era um homem de aparência melancólica, careca como um ovo, que fazia o possível para manter a dignidade. Sir Guillaume tornou a cutucá-lo.

— Eu lhe digo, Thomas — ele falou em francês — que a mulher e as filhas deste bastardo vão ter que se prostituir para levantar esse resgate! Elas vão ter que trepar com todos os homens da Normandia para comprar a volta deste bastardo sem caráter! — Ele voltou a cutucar o conde de Coutances. — Eu vou espremer você até a última gota! — vociferou Sir Guillaume e, exultante, fez o prisioneiro seguir em frente.

A mulher gritou outra vez.

Naquela noite muitas mulheres haviam gritado, mas alguma coisa naquele som despertou a atenção de Thomas, e ele se voltou, alarmado. O grito foi ouvido uma terceira vez, e Thomas começou a correr.

— Robbie! — gritou ele. — Venha comigo!

Thomas atravessou correndo os restos de uma tenda incendiada, as botas levantando centelhas e brasas. Contornou um braseiro que expelia fumaça, quase tropeçou num homem ferido que vomitava num elmo virado para cima, correu por um beco entre cabanas de armeiros onde bigornas, foles, martelos, tenazes e barris cheios de rebites e anéis para cotas de malha estavam espalhados sobre a grama. Um homem com avental de ferreiro e sangue escorrendo de um ferimento na cabeça meteu-se cambaleando na sua frente e Thomas empurrou-o para o lado para correr em direção ao estandarte preto e amarelo que ainda tremulava do lado de fora da tenda em chamas do senhor de Roncelets.

— Jeanette! — chamou ele. — Jeanette!

Mas Jeanette estava presa. Ela estava sendo segura por um homem enorme que lhe imprensara a espinha contra o guincho do trabuco chamado Chicote de Pedra, que ficava logo depois da tenda do senhor de Roncelets. O homem ouviu Thomas gritar e voltou-se para olhar, sorrindo. Era Beggar, todo barba e dentes podres, e ele empurrou Jeanette com força quando ela lutou para escapar dele.

— Segure ela, Beggar! — gritou Sir Geoffrey Carr. — Segure a puta!

— A belezinha não vai a lugar nenhum — disse Beggar —, não vai a lugar nenhum, querida — e tentou levantar a cota de malha dela, mas a cota era pesada e complicada demais e Jeanette debatia-se com muita violência.

O senhor de Roncelets, ainda sem sua espada, estava sentado na armação do Chicote de Pedra. Estava com uma marca vermelha no rosto, indicando que tinha sido agredido, e Sir Geoffrey Carr, com cinco outros soldados, estava em pé ao lado dele. O Espantalho olhou com ar desafiador para Thomas.

— Ele é meu prisioneiro! — disse ele, incisivo.

— Ele nos pertence — disse Thomas —, nós o pegamos.

— Escute, rapaz — disse o Espantalho, a voz ainda arrastada pela bebida — sou um cavaleiro e você é um monte de merda. Está entendendo? — Ele cambaleou ligeiramente enquanto se aproximava de Thomas. — Eu sou um cavaleiro — disse outra vez, mais alto — e você não é nada! — O rosto vermelho, tornado sinistro pelas chamas, estava contorcido numa expressão de escárnio. — Você não é nada! — gritou outra vez, e girou o corpo para se certificar de que seus homens estavam vigiando o senhor de Roncelets. Um prisioneiro tão rico assim iria resolver todos os problemas de Sir Geoffrey, e ele estava decidido a agarrar-se a ele e ficar com o resgate. — Ela não pode fazer um prisioneiro — disse ele apontando a espada para Jeanette —, porque tem tetas, e você não pode prendê-lo, porque é um monte de merda. Mas eu sou um cavaleiro! Um cavaleiro! — Ele dirigiu o termo com veemência para Thomas, que, incitado pelos insultos, armou o arco. A corda nova estava ligeiramente comprida demais e ele sentiu a falta de potência na vara preta por causa disso, mas concluiu que, para o que ele queria, havia força suficiente.

— Beggar! — gritou o Espantalho —, se ele disparar aquele arco, mate a puta.

— Mato a beleza — disse Beggar. Ele babava saliva, que escorria pela enorme barba enquanto acariciava os anéis de malha sobre os seios de Jeanette. Ela ainda lutava, mas ele a mantinha dolorosamente curvada para trás em cima do guincho, e ela praticamente não conseguia se mexer.

Thomas manteve o arco armado. Ele viu que o longo braço do trabuco tinha sido arriado até o chão, embora os engenheiros devessem ter sido interrompidos antes de poderem carregar uma pedra, porque a grande funda de couro estava vazia. Uma pilha de pedras erguia-se à direita, e um súbito movimento nela fez com que Thomas visse que havia um homem ferido reclinado contra as pedras. O homem tentava ficar em pé, mas não conseguia. Havia sangue em seu rosto.

— Will? — perguntou Thomas.

— Tom! — Will Skeat tentou esforçar-se para ficar de pé outra vez. — É você, Tom!

— O que foi que aconteceu? — perguntou Thomas.

— Eu não sou o que era, Tom — disse Skeat. Os dois habitantes da cidade que tinham ajudado a vigiar o senhor de Roncelets estavam mortos aos pés de Skeat, e o próprio Skeat parecia estar morrendo. Estava pálido, fraco, e cada respiração era um grande esforço. Havia lágrimas em seu rosto. — Eu tentei lutar — disse ele em tom de lamentação —, tentei mesmo, mas já não sou o que era.

— Quem atacou vocês? — perguntou Thomas, mas Skeat parecia incapaz de responder.

— Will estava apenas tentando me proteger — gritou Jeanette, e então gritou quando Beggar empurrou-a com tanta força para trás que por fim ela foi obrigada a subir no guincho e Beggar conseguiu levantar-lhe as saias de malhas. Ele disse palavras desconexas, de tanta excitação, no momento em que Sir Geoffrey berrou de raiva.

— É o bastardo do Douglas!

Thomas soltou a corda. Com uma corda nova no arco, ele gostava de disparar algumas flechas para verificar como a fibra de cânhamo iria se comportar, mas agora ele não tinha tempo para essas minúcias. Limitou-se a soltar a flecha e ela penetrou no emaranhado da barba de Beggar para cortar-lhe a garganta, a ponta larga da flecha dividindo a traquéia com a precisão de uma faca de açougueiro, e Jeanette gritou quando o sangue esguichou no seu gibão e no seu rosto. O Espantalho berrou de raiva e correu para Thomas, que cravou a vara do arco, com ponta de osso, na cara vermelha e depois largou a arma enquanto sacava da espada. Robbie passou por ele correndo e arremeteu com a espada de seu tio contra a barriga do Espantalho, mas mesmo bêbado Sir Geoffrey era rápido e conseguiu escorar o golpe e contra-atacar. Dois de seus soldados corriam para ajudar — os outros vigiavam o senhor de Roncelets —, e Thomas viu os dois homens chegando. Deslocou-se para a esquerda, esperando colocar a grande armação do Chicote de Pedra entre si e os homens que usavam o emblema de Sir Geoffrey com o machado preto, mas Sir Geoffrey quase o abateu e Thomas deu um golpe desesperado para trás com a espada que acabara de sacar, batendo na espada do Espantalho com uma força que deixou o braço de Thomas dormente. O golpe empurrou o Espantalho para trás, ele se recuperou e deu um salto à frente e Thomas ficou defendendo-se desesperadamente enquanto o Espantalho desferia uma chuva de golpes nele. Thomas não era espadachim e estava apanhando a ponto de ser levado a ficar de joelhos, e Robbie não podia ajudá-lo porque estava rechaçando os dois seguidores de Sir Geoffrey, e então ouviu-se um forte estrondo, uma explosão que soava como se as portas do inferno tivessem acabado de abrir-se, e o chão tremeu enquanto o Espantalho gritava em agonia extrema. Seu uivo, que levava sangue, cortou os ares.

Jeanette havia puxado a alavanca que soltava o braço longo. Dez toneladas de contrapeso tinham desabado no chão e o grosso pino de metal que segurava a funda levantara-se com força entre as pernas de Sir Geoffrey e abrira um buraco sangrento que ia da virilha até a barriga. Ele devia ter sido lançado a meio caminho da cidade pelo braço do trabuco, mas em vez disso a ponta do pino ficara presa nas suas entranhas e ele estava preso na base do braço, onde se contorcia em agonia, o sangue escorrendo para o chão.

Seus homens, vendo o chefe morrendo, recuaram. Por que lutar por um homem que não podia oferecer recompensa alguma? Robbie ficou boquiaberto enquanto o Espantalho se contorcia e estrebuchava, e de algum modo o moribundo conseguiu libertar-se do grande pino de ferro e caiu, arrastando intestinos e borrifando sangue. Bateu no chão com um barulho surdo, repicou espalhando sangue, mas continuou vivo. Os olhos contraíam-se e a boca estava puxada para trás num rosnar.

— Maldito Douglas — ainda conseguiu dizer, arquejando, antes de Robbie se aproximar dele, erguer a espada de seu tio e arriá-la com força uma única vez, bem entre os olhos do Espantalho.

O senhor de Roncelets vira tudo acontecer, sem acreditar. Agora Jeanette segurava uma espada junto ao seu rosto, desafiando-o a fugir, e ele, em silêncio, abanou a cabeça para mostrar que não tinha intenção alguma de arriscar a vida entre os homens bêbados, selvagens, que berravam, que tinham surgido da noite para destruir o maior exército que o ducado da Bretanha já reunira.

Thomas foi até onde estava Sir William Skeat, mas o seu velho amigo estava morto. Ele tinha sido ferido no pescoço e sangrara até morrer na pilha de pedras. Sua aparência estava estranhamente tranqüila. Um primeiro facho do sol do novo dia atravessou a borda do mundo para iluminar o sangue brilhante no alto do braço do Chicote de Pedra enquanto Thomas fechava os olhos de seu mentor.

— Quem matou Will Skeat? — perguntou Thomas aos homens de Sir Geoffrey, e Dickon, o jovem, apontou para os destroços de malha, carne, entranhas e ossos que tinham sido o Espantalho.

Thomas inspecionou as mossas em sua espada. Ele tinha de aprender a usar uma espada, pensou, senão iria morrer pela espada, e depois ergueu os olhos para os homens de Sir Geoffrey.

— Vão ajudar o ataque ao forte seguinte — disse a eles. Eles olharam para ele com olhos arregalados. — Andem! — disse ele, ríspido, e, espantados, os homens correram em direção ao oeste.

Thomas apontou a espada para o senhor de Roncelets.

— Leve-o de volta para a cidade — disse ele a Robbie — e proteja-o bem.

— E você? — perguntou Robbie.

— Vou enterrar Will — disse Thomas. — Ele era meu amigo. — Ele achou que deveria derramar algumas lágrimas por Will Skeat, mas não havia uma única lágrima. Pelo menos agora. Embainhou a espada e sorriu para Robbie.

— Você pode voltar para casa, Robbie.

— Posso? — Robbie parecia intrigado.

— De Taillebourg está morto. Roncelets vai pagar o seu resgate a lorde Outhwaite. Você pode ir para Eskdale, ir para casa, voltar a matar ingleses.

Robbie abanou a cabeça.

— Guy Vexille está vivo.

— Quem vai matar ele sou eu.

— E eu — disse Robbie. — Você se esquece de que ele matou meu irmão. Fico até ele morrer.

— Se vocês um dia o encontrarem — disse Jeanette baixinho.

O sol iluminava a fumaça dos acampamentos em chamas e projetava longas sombras pela área onde os últimos componentes do exército de Charles abandonaram suas trincheiras e fugiram para Rennes. Eles tinham chegado em grande esplendor e agora escapuliam em abjeta derrota.

Thomas foi até as tendas dos engenheiros e encontrou uma picareta, um enxadão e uma pá. Cavou uma sepultura ao lado do Chicote de Pedra e colocou Skeat no chão úmido e tentou fazer uma oração, mas não conseguiu pensar em nenhuma, e depois lembrou-se da moeda para o barqueiro e foi até a tenda do senhor de Roncelets, afastou a lona chamuscada da arca e apanhou uma moeda de ouro e voltou para o túmulo. Pulou para dentro, ao lado do amigo, e colocou a moeda debaixo da língua de Skeat. O barqueiro iria encontrá-la e ficaria sabendo, ao ver o ouro, que Sir William Skeat era um homem especial.

— Deus te abençoe, Will — disse Thomas, saiu desajeitado da sepultura e encheu-a de terra, embora sempre fizesse uma pausa na esperança de que os olhos de Will se abrissem, mas claro que não se abriram e por fim Thomas chorou enquanto despejava terra sobre o rosto pálido do amigo. O sol já ia alto quando ele acabou, e mulheres e crianças chegavam da cidade à procura de despojos. Um francelho voou alto e Thomas sentou-se na arca de moedas e esperou Robbie voltar da cidade.

Ele achou que iria para o sul. Para Astarac. Iria procurar o livro de notas de seu pai e resolver o mistério do texto. Os sinos de La Roche-Derrien tocavam em homenagem à vitória, uma vitória grandiosa, e Thomas ficou sentado entre os mortos e percebeu que não teria paz enquanto não encontrasse o fardo de seu pai. Calix meus inebrians. Transfer calicem istem a me. Ego enim eram pincerna regis.

Quisesse o cargo ou não, ele era o copeiro do rei e iria para o sul.


Nota Histórica

O LIVRO COMEÇA com a batalha da Cruz de Neville. O nome da batalha tem origem na cruz de pedra que Lorde Neville ergueu para assinalar a vitória, embora seja possível que já existisse uma outra cruz no local, substituída depois pelo memorial de Lorde Neville. A batalha, travada por um grande exército escocês contra uma pequena força heterogênea reunida às pressas pelo arcebispo de York e pelos senhores do Norte, foi um desastre para os escoceses. O rei deles, David II, foi capturado tal como descrito em O andarilho, encurralado debaixo de uma ponte. Ele conseguiu quebrar os dentes de alguns de seus captores, mas depois foi subjugado. Passou um longo tempo no castelo de Bamburgh recuperando-se do ferimento no rosto e em seguida foi levado para Londres e colocado na Torre com a maioria dos outros aristocratas escoceses capturados naquele dia, inclusive Sir William Douglas, o Cavaleiro de Liddesdale. Os dois condes escoceses que anteriormente tinham jurado vassalagem a Eduardo foram decapitados, depois esquartejados, e os pedaços dos corpos foram expostos por todo o reino como um aviso contra a traição. Mais tarde, naquele mesmo ano, Charles de Blois, sobrinho do rei da França e pretenso duque da Bretanha, juntou-se a David II na Torre de Londres. Foi uma notável vitória dupla por parte dos ingleses que irão, em mais uma década, acrescentar o próprio rei da França ao arrastão.

Os escoceses invadiram a Inglaterra a pedido dos franceses, de quem eram aliados, e é provável que David II realmente acreditasse que o exército da Inglaterra estivesse todo no norte da França. Mas a Inglaterra havia previsto esse tipo de problema e certos senhores do Norte foram encarregados de ficar em casa e estar preparados para levantar forças se os escoceses um dia marchassem. A espinha dorsal dessas forças era, é claro, o arqueiro, e essa é a grande fase do arco e flecha inglês (e, em grau menor, escocês). A arma usada era o arco longo (nome que foi cunhado muito mais tarde), que era um arco de teixo com pelo menos um metro e oitenta centímetros de comprimento, com uma potência de puxada de mais de cinqüenta quilos (mais do dobro do peso dos modernos arcos de competição). É um mistério o fato de só a Inglaterra poder reunir exércitos de campo de arqueiros letais que, na verdade, tornaram-se os reis dos campos de batalha europeus, mas a resposta mais provável é que o domínio do arco longo era um entusiasmo inglês, praticado como esporte em centenas de aldeias. Com o tempo, promulgaram-se leis tornando obrigatória a prática do arco e flecha, presumivelmente porque o entusiasmo estava diminuindo. Ele era, sem dúvida, uma arma de uso extremamente difícil, requerendo uma força tremenda, e os franceses, apesar de tentarem adotar a arma em suas fileiras, nunca dominaram o arco longo. Os escoceses estavam acostumados com aqueles arqueiros e tinham aprendido a nunca atacá-los montados em cavalos, mas na verdade não havia uma resposta para o arco longo até que as armas de fogo começassem a ser usadas no campo de batalha.

Os prisioneiros eram importantes. Um homem como Sir William Douglas só seria libertado mediante o pagamento de um vultoso resgate, apesar de Sir William receber um livramento condicional antes do tempo para ajudar a negociar o resgate do rei da Escócia. Quando fracassou, ele voltou, obediente, à sua prisão na Torre de Londres. Os resgates por homens como Charles de Blois e o rei David II eram vultosíssimos e poderiam levar anos para serem negociados e levantados. No caso de David, o resgate foi de £66.000, uma quantia que tem de ser multiplicada pelo menos cem vezes para chegarmos a uma aproximação do seu valor atual. Os escoceses foram autorizados a pagá-lo em dez prestações, e vinte nobres tiveram de ser entregues como reféns para garantir o pagamento antes que David fosse libertado em 1357, quando, ironicamente, suas simpatias tinham se tornado inteiramente pró-ingleses. Sir Thomas Dagworth foi oficialmente o captor de Charles de Blois e vendeu-o a Eduardo III pela quantia muito menor de £3.500, mas sem dúvida era melhor ter aquele dinheiro nas mãos do que esperar enquanto um resgate maior era arrecadado na França e na Bretanha. O captor do rei David foi um inglês chamado John Coupland, que também vendeu seu prisioneiro para Eduardo, no caso de Coupland em troca de um título de cavaleiro e terras.

A derrota de Charles em La Roche-Derrien é um dos grandes triunfos ingleses do período que não foram alardeados. Charles tinha enfrentado arqueiros antes e concluíra, com toda razão, que a maneira de derrotá-los era fazer com que eles atacassem posições bem protegidas. O que o arqueiro não via ele não podia matar. A tática funcionou contra o assalto de Sir Thomas Dagworth, mas aí veio da cidade a frenética surtida de Richard Totesham e, como Charles insistira em que as quatro partes do exército ficassem atrás de seus entrincheiramentos protetores, ele foi dominado e depois as outras partes de seu exército foram derrotadas. A derrota e a captura dele foram um imenso choque para seus aliados, os franceses, que não estavam conseguindo levantar o cerco de Calais. Devo registrar minha dívida para com Jonathan Sumption, cujo livro, Trial by Battle, foi de utilidade especial para mim. Os erros no romance são todos meus, é claro, embora no interesse de diminuir o peso da minha sacola de correspondência eu deva salientar gentilmente que a catedral de Durham só tinha duas torres em 1347 e que coloquei a referência a Hachaliah no livro de Esdras, em vez de no de Neemias, porque estava usando a Vulgata, e não a King James Bible.

 

 

Tradução de
LUIZ CARLOS DO NASCIMENTO SILVA

18ª EDIÇÃO


2015


CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C835h


Cornwell, Bernard, 1944-

O herege [recurso eletrônico] / Bernard Cornwell ; tradução Luiz Carlos do Nascimento Silva. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Record, 2015.


recurso digital : il. (A busca do Graal ; 3)


Tradução de: Heretic

Sequência de: O andarilho


ISBN 978-85-01-10229-4


1. Ficção inglesa.

2. Livros eletrônicos.

I. Silva, Luiz Carlos do Nascimento.

II. Título.

III. Série.

15-27244

CDD: 823

CDU: 821.111-3


Título original inglês

HERETIC

Copyright © 2003 by Bernard Cornwell


Projeto gráfico da versão impressa: Porto+Martinez

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo
ou em parte, através de quaisquer meios.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens e acontecimentos nela retratados são fruto da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas reais, acontecimentos e lugares será mera coincidência.


Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa para o Brasil adquiridos pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução


O HEREGE
é dedicado a
Dorothy Carroll
que sabe o por quê


Prólogo

CALAIS, 1347

A ESTRADA vinha das montanhas ao sul e atravessava os pântanos à beira-mar. Era uma estrada péssima. Uma insistente chuva de verão a deixara como uma faixa de lama pegajosa que endurecia ao secar quando o sol saía, mas era a única estrada que levava das colinas de Sangatte aos portos de Calais e Gravelines. Em Nieulay, uma aldeia sem distinção alguma, ela atravessava o rio Ham numa ponte de pedra. O Ham praticamente não merecia o título de rio. Era um curso de água que escorria pelos charcos infestados de febre, até desaparecer entre os alagadiços da costa. Ele era tão curto, que um homem podia vadeá-lo da fonte até o mar em pouco mais de uma hora, e era tão raso que se podia atravessá-lo na maré baixa sem molhar a cintura. Ele drenava os pântanos onde os bambus eram grossos e garças caçavam rãs por entre o capim, e era alimentado por um labirinto de rios menores onde os aldeões de Nieulay, Hammes e Guîmes armavam suas armadilhas de vime para pegar enguias.

Nieulay e sua ponte de pedra poderiam ter esperado passar a História dormitando, não fosse o fato de a cidade de Calais ficar a apenas um pouco mais de três quilômetros ao norte e, no verão de 1347, um exército de trinta mil ingleses estar sitiando o porto e seu acampamento aglomerar-se entre os imponentes muros da cidade e os pântanos. A estrada que vinha das colinas e atravessava o Ham em Nieulay era a única rota que uma força de resgate francesa poderia usar, e no auge do verão, quando os habitantes de Calais estavam quase morrendo de fome, Filipe de Valois, rei da França, levou seu exército para Sangatte.

Vinte mil franceses alinhavam-se nas colinas, os estandartes abundantes ao vento que soprava do mar. A auriflama, o sagrado galhardete de guerra da França, estava lá. Era uma bandeira comprida, com três caudas pontudas, uma ondulação vermelho-sangue de preciosa seda, e se a bandeira tinha uma cor viva era porque era nova. A antiga auriflama estava na Inglaterra, um troféu apanhado na larga montanha verde entre Wadicourt e Crécy no verão anterior. Mas a nova bandeira era tão sagrada quanto a antiga, e em torno dela tremulavam os estandartes dos grandes senhores da França: os estandartes de Bourbon, de Montmorency e do conde de Armagnac. Bandeiras menos importantes eram vistas entre as nobres, mas todas proclamavam que os maiores guerreiros do reino de Filipe tinham ido combater os ingleses. No entanto, entre eles e o inimigo estavam o rio Ham e a ponte em Nieulay, que era defendida por uma torre de pedra, em volta da qual os ingleses haviam cavado trincheiras, as quais tinham enchido de arqueiros e soldados. Do outro lado daquela força estava o rio, depois os pântanos, e no terreno mais elevado, perto do alto muro de Calais e seu fosso duplo, havia uma cidade improvisada, de casas e tendas, onde vivia o exército inglês. E um exército como nunca se vira na França. O acampamento dos sitiantes era maior do que a própria Calais. Até onde a vista alcançava havia ruas margeadas por lonas, com casas de madeira e cercados para cavalos, e entre eles havia soldados e arqueiros. A auriflama bem que poderia ter ficado enrolada.

— Nós podemos tomar a torre, majestade. — Sir Geoffrey de Charny, soldado valente como qualquer outro no exército de Filipe, fez um gesto para baixo da montanha, no ponto em que a guarnição inglesa de Nieulay estava isolada do lado francês do rio.

— Com que finalidade? — perguntou Filipe.

Ele era um homem fraco, hesitante em combate, mas a pergunta era pertinente. Se a torre caísse e, com isso, a ponte de Nieulay ficasse em seu poder, de que serviria ela? A ponte simplesmente levava a um exército inglês ainda maior, que já se dispunha em ordem de batalha na terra firme à beira do acampamento.

Os cidadãos de Calais, com fome e sem esperança, viram os estandartes franceses na crista sul e responderam pendurando as bandeiras deles em suas defesas. Eles exibiam imagens da Virgem, retratos de S. Denis da França e, no alto da cidadela, a bandeira real azul e amarelo, para dizer a Filipe que seus súditos ainda viviam, ainda lutavam. Mas a brava exibição não conseguia esconder o fato de que tinham ficado sitiados por onze meses. Eles precisavam de ajuda.

— Tome a torre, majestade — insistiu Sir Geoffrey — e depois ataque o outro lado da ponte! Meu bom Cristo, se os malditos nos virem conseguir uma única vitória, poderão perder o ânimo!

Um grunhido de concordância veio dos senhores reunidos.

O rei estava menos otimista. Era verdade que a guarnição de Calais ainda resistia, e que os ingleses praticamente não tinham danificado os muros da cidade, ainda menos encontrado um meio de atravessar os fossos gêmeos. Mas também os franceses não haviam conseguido levar suprimento algum para a cidade sitiada. O povo de lá não precisava de estímulo, precisava de comida. Um jato de fumaça surgiu do outro lado do acampamento e, poucos segundos depois, o som de um canhão ecoou pelos pântanos. O projétil devia ter atingido o muro, mas Filipe estava muito longe para ver o efeito.

— Uma vitória aqui irá estimular a guarnição — insistiu lorde de Montmorency — e implantar o desespero nos corações ingleses.

Mas por que iriam os ingleses perder o ânimo se a torre de Nieulay caísse? Filipe achava que aquilo iria apenas enchê-los de vontade de defender a estrada no lado oposto da ponte, mas também entendia que ele não poderia manter seus cães contidos quando um inimigo odiado estava à vista, e por isso deu a permissão.

— Tomem a torre — disse —, e que Deus lhes conceda a vitória.

O rei permaneceu onde estava enquanto os senhores reuniam homens e se armavam. O vento que vinha do mar trazia um cheiro de sal, mas também um odor de decomposição talvez proveniente de algas que apodreciam nos longos alagadiços que recebiam a maré. Aquilo deixou Filipe melancólico. Seu novo astrólogo recusara-se a atendê-lo durante semanas, alegando estar febril, mas Filipe soubera que ele gozava de boa saúde, o que significava que devia ter visto algum grande desastre nas estrelas e simplesmente receava contar ao rei. Gaivotas gritavam sob as nuvens. Bem lá ao longe, no mar, uma vela desbotada enfunava-se em direção à Inglaterra, enquanto outro navio ancorava ao largo das praias ocupadas pelos ingleses e, em pequenos barcos, transferia homens para terra, a fim de aumentarem as fileiras inimigas. Filipe olhou para trás, para a estrada, e viu um grupo de cerca de quarenta ou cinqüenta cavaleiros ingleses cavalgando em direção à ponte. Ele fez o sinal-da-cruz, rezando para que os cavaleiros fossem encurralados pelo seu ataque. Ele odiava os ingleses. Odiava.

O duque de Bourbon havia delegado a organização do assalto a Sir Geoffrey de Charny e Edouard de Beaujeu, e isso era bom. O rei confiava em que os dois seriam sensatos. Ele não duvidava de que pudessem tomar a torre, embora ainda não soubesse do que aquilo adiantaria; mas achava que era melhor do que deixar seus nobres mais afoitos usarem as lanças numa carga alucinada pela ponte, para sofrerem uma derrota total nos pântanos. Ele sabia que nada lhes traria maior prazer do que um ataque daqueles. Eles pensavam que a guerra era um jogo, e cada derrota os deixava mais ansiosos por jogarem. Tolos, pensou ele, e tornou a fazer o sinal-da-cruz, perguntando-se que funesta profecia o astrólogo estava escondendo dele. O que precisamos, pensou ele, é de um milagre. Algum grande sinal de Deus. Então estremeceu, assustado, porque um timbaleiro acabara de tocar o seu grande timbale. Uma trombeta soou.

A música não pressagiava o avanço. Eram, isso sim, os músicos que faziam o aquecimento, prontos para o ataque. Edouard de Beaujeu estava à direita, onde reunira mais de mil besteiros e outros tantos soldados, e era evidente que ele queria atacar os ingleses por um flanco, enquanto Sir Geoffrey de Charny e pelo menos quinhentos soldados atacavam montanha abaixo, contra as trincheiras dos ingleses. Sir Geoffrey percorria as fileiras mandando, em voz alta, que cavaleiros e soldados desmontassem. Eles obedeceram, relutantes. Acreditavam que a essência da guerra era a carga da cavalaria, mas Sir Geoffrey sabia que cavalos de nada adiantavam contra uma torre de pedra protegida por trincheiras, e por isso insistia em que lutassem a pé.

— Escudos e espadas — gritou —, nada de lanças. A pé! A pé!

Sir Geoffrey aprendera a duras penas que os cavalos eram lamentavalmente vulneráveis às flechas inglesas, enquanto que homens a pé podiam avançar agachados, atrás de escudos compridos. Alguns dos homens de berço nobre recusavam-se a desmontar, mas ele não lhes deu importância. Um número ainda maior de soldados franceses apressava-se para participar da carga.

O pequeno grupo de cavaleiros ingleses tinha atravessado a ponte agora. Parecia que pretendiam cavalgar pela estrada para desafiarem toda a linha de batalha francesa, mas em vez disso detiveram seus cavalos e olharam para a horda agrupada na crista do monte. O rei, observando-os, viu que eram comandados por um grão-senhor. Ele sabia disso devido ao tamanho do pavilhão do homem, enquanto que pelo menos uma dúzia dos outros cavaleiros levava as bandeiras quadradas de galhardetes em suas lanças. Um grupo rico, pensou ele, que valia uma pequena fortuna em resgates. Ele esperava que cavalgassem até a torre e, com isso, ficassem encurralados.

O duque de Bourbon voltou para perto de Filipe com o cavalo a trote. O duque vestia uma armadura que tinha sido raspada com areia, vinagre e arame até ficar branca de tanto brilho. O elmo, ainda pendurado no arção anterior da sela, tinha em cima penas tingidas de azul. Ele se recusara a desmontar de seu corcel, equipado com uma testeira de aço para proteger-lhe o rosto e um caparazão de malha brilhante para proteger-lhe o corpo dos arqueiros ingleses que, sem dúvida, estavam colocando as cordas nos arcos nas trincheiras.

— A auriflama, majestade — disse o duque. Devia ser um pedido, mas de algum modo parecia uma ordem.

— A auriflama? — O rei fingiu não entender.

— Posso ter a honra, majestade, de levá-la na batalha?

O rei suspirou.

— Vocês têm em relação ao inimigo uma superioridade numérica de dez para um — disse ele — e por isso praticamente não precisam da auriflama. Deixe-a aqui. O inimigo já deve tê-la visto.

E o inimigo iria ver o que a auriflama enrolada significava. Ela instruía os franceses a não fazer prisioneiros, a matar todos, embora não houvesse dúvida de que qualquer cavaleiro inglês rico ainda seria capturado em vez de morto, porque um cadáver não rendia resgate. Ainda assim, a bandeira de três tiras, enrolada, deveria incutir o terror nos corações ingleses.

— Ela vai ficar aqui — insistiu o rei.

O duque iniciou um protesto, mas naquele exato momento uma trombeta soou e os besteiros iniciaram a descida. Eles vestiam túnicas verde e vermelho, com o emblema do cálice de Gênova no braço esquerdo, e cada qual era acompanhado por um infante segurando um pavês, um escudo enorme que iria proteger o besteiro enquanto ele recarregava sua desajeitada arma. A uns oitocentos metros de distância, à margem do rio, ingleses corriam da torre para as trincheiras de terra que tinham sido cavadas há tantos meses, que agora estavam cobertas com uma camada espessa de capim e algas.

— Você vai perder a sua batalha — disse o rei para o duque que, esquecendo o estandarte escarlate, girou o seu grande corcel protegido por armadura em direção aos homens de Sir Geoffrey.

— Montjoie St. Denis!

O duque soltou o grito de guerra da França e os timbaleiros bateram seus grandes timbales e uma dúzia de trombeteiros clamou seu desafio para os ares. Ouviram-se estalos quando viseiras foram abaixadas. Os besteiros já estavam no sopé da encosta, espalhando-se para a direita a fim de envolver o flanco inglês. Então as primeiras flechas voaram: flechas inglesas, de penas brancas, adejando sobre a terra verde, e o rei, inclinando-se à frente em sua sela, viu que do lado do inimigo os arqueiros eram muito poucos. Em geral, sempre que os malditos ingleses combatiam, seus arqueiros estavam em superioridade numérica em relação a seus cavaleiros e soldados, no mínimo de três para um, mas o posto avançado de Nieulay parecia estar guarnecido, em sua maioria, por soldados.

— Que Deus os acompanhe! — gritou o rei para seus soldados.

Ele fora tomado por um súbito entusiasmo, porque sentia o cheiro da vitória.

As trombetas tornaram a soar, e agora a onda metálica de soldados despejou-se encosta abaixo. Berravam o grito de guerra e o som tinha a concorrência dos tambores, que martelavam as peles de cabra esticadas, e dos trombeteiros que tocavam como se pudessem derrotar os ingleses apenas com o som.

— Deus e São Denis! — gritava o rei.

Os quadrelos agora voavam. Cada dardo curto de ferro era dotado de alhetas de couro, e estas faziam um chiado enquanto riscavam o ar em direção às trincheiras de terra. Centenas de dardos voavam, e depois os genoveses foram para trás dos enormes escudos para manejar as lingüetas que tornavam a curvar os dardos reforçados com aço. Algumas flechas inglesas enfiavam-se nos paveses, mas então os arqueiros voltaram-se para o ataque de Sir Geoffrey. Colocaram flechas com ponta de estilete nas cordas, flechas que tinham na ponta sete ou dez centímetros de haste de aço que podia furar malha como se fosse pano. Eles puxavam e soltavam, puxavam e soltavam, e as flechas penetravam em escudos e nas fileiras cerradas francesas. Um dos homens foi atingido na coxa e cambaleou, e os soldados o cercaram e tornaram a cerrar fileiras. Um arqueiro inglês, de pé para disparar seu arco, foi atingido no ombro por uma seta de besta e sua flecha subiu alucinada.

— Montjoie St. Denis!

Os soldados berravam seu desafio enquanto a carga chegava ao terreno plano na base da encosta. As flechas entravam nos escudos com uma força desesperadora, mas os franceses mantinham a formação cerrada, escudo sobrepondo-se a escudo, e os besteiros chegavam mais perto para mirar nos arqueiros ingleses, que eram obrigados a ficar de pé em suas trincheiras para disparar suas armas. Um dardo trespassou um morrião de ferro e perfurou um crânio inglês. O homem caiu para o lado, o sangue escorrendo-lhe pela face. Uma rajada de flechas saiu do alto da torre e os dardos de bestas que respondiam bateram nas pedras enquanto os soldados ingleses, vendo que suas flechas não tinham detido o inimigo, ficaram em pé, espadas desembainhadas, para enfrentar a carga.

— São Jorge! — gritavam eles, e então os atacantes franceses estavam na primeira trincheira e golpeavam os ingleses abaixo deles. Alguns franceses descobriram passagens estreitas que cortavam a trincheira e correram por elas para atacar os defensores pelas costas. Os arqueiros postados nas duas trincheiras mais recuadas tinham alvos fáceis, porém o mesmo acontecia com os besteiros genoveses que saíam de trás de seus paveses para despejar uma chuva de ferro sobre o inimigo. Alguns ingleses, sentindo a matança iminente, estavam deixando suas trincheiras para correr em direção ao Ham. Edouard de Beaujeu, liderando os besteiros, viu os fugitivos e gritou para que os genoveses largassem as bestas e participassem do ataque. Eles sacaram espadas ou machados e lançaram-se em grande quantidade sobre o inimigo.

— Matem! — gritava Edouard de Beaujeu. Ele montava um corcel e, a espada desembainhada, esporeou o animal para que avançasse. — Matem!

Os ingleses a postos na trincheira avançada estavam condenados. Eles lutavam para proteger-se da massa de soldados franceses, mas as espadas, os machados e as lanças desciam com força. Alguns tentaram render-se, mas a auriflama estava erguida e aquilo significava que não deveria haver prisioneiros, de modo que os franceses encharcaram a lama pegajosa do fundo da trincheira com sangue inglês. Os defensores das trincheiras da retaguarda estavam todos correndo agora, mas os poucos cavaleiros franceses, aqueles que eram orgulhosos demais para lutar a pé, forçaram a passagem por entre seus próprios soldados e soltaram o grito de guerra enquanto lançavam seus grandes cavalos contra os fugitivos à margem do rio. Garanhões giravam enquanto espadas cortavam. Um arqueiro perdeu a cabeça na margem do rio que, de repente, ficou vermelho. Um soldado gritou ao ser pisoteado por um corcel, e depois golpeou com uma lança. Um cavaleiro inglês ergueu as mãos, oferecendo uma manopla como sinal de rendição e foi derrubado por trás, a espinha perfurada por uma espada, e depois um outro cavalariano acertou-lhe o rosto com um machado.

— Matem-nos! — berrava o duque de Bourbon, a espada molhada. — Matem-nos! — Ele viu um grupo de arqueiros fugindo em direção à ponte e gritou para seus seguidores: — Comigo! Comigo! Montjoie St. Denis!

Os arqueiros, quase trinta, tinham fugido em direção à ponte, mas quando chegaram ao grupo de casas de telhado de bambu à margem do rio, ouviram o tropel e voltaram-se, alarmados. Por um instante, parecia que entrariam em pânico de novo, mas um homem os conteve.

— Atirem nos cavalos, rapazes! — disse ele, e os arqueiros puxaram as cordas, soltaram, e as flechas com penas brancas penetraram nos corcéis. O garanhão do duque de Bourbon cambaleou para o lado quando duas flechas atravessaram sua armadura de malha e couro, e depois caiu enquanto outros dois cavalos eram derrubados, as patas agitando-se no ar. Os outros cavalarianos, por instinto, fizeram meia-volta, procurando alvos mais fáceis. O escudeiro do duque cedeu o cavalo ao seu amo e depois morreu quando uma segunda rajada inglesa chegou chiando da aldeia. O duque, em vez de perder tempo tentando montar no cavalo do escudeiro, afastou-se andando com dificuldade com sua preciosa armadura, que o tinha protegido as flechas. À frente dele, em torno da base da torre de Nieulay, os sobreviventes das trincheiras inglesas haviam formado uma parede de escudos que agora estava cercada por franceses vingativos.

— Nada de prisioneiros! — gritou um cavaleiro francês. — Nada de prisioneiros!

O duque pediu que seus homens o ajudassem a montar.

Dois dos soldados do duque desmontaram para ajudar seu líder a montar o novo cavalo, e naquele exato momento ouviram o troar de patas. Voltaram-se e viram um grupo de cavaleiros ingleses que atacavam, vindo da aldeia.

— Meu bom Jesus!

O duque estava metade na sela e metade fora dela, a espada na bainha, e começou a cair para trás quando os homens que o ajudavam sacaram suas espadas. Que diabo, de onde tinham surgido aqueles ingleses? Então, seus outros soldados, no desespero de proteger o seu senhor, arriaram as viseiras e voltaram-se para enfrentar o desafio. O duque, esparramando-se na turfa, ouviu o estridor de cavaleiros vestindo armaduras.

Os ingleses eram o grupo de homens que o rei francês tinha visto. Eles haviam feito uma parada na aldeia para assistir ao massacre nas trincheiras e estavam para atravessar de volta a ponte quando os homens do duque de Bourbon se aproximaram. Chegaram perto demais: um desafio que não podia ser ignorado. Por isso, o senhor inglês liderou seus cavaleiros numa carga que penetrou no grupo de homens do duque de Bourbon. Os franceses não se haviam preparado para o ataque, e os ingleses investiram com a disposição adequada, joelho tocando joelho, e as longas lanças de freixo, levadas erguidas enquanto atacavam, de repente baixaram para a posição de matar e atravessaram malha e couro. O líder inglês usava um manto azul atravessado por uma tira branca diagonal na qual estavam pintadas três estrelas vermelhas. Leões amarelos ocupavam o campo azul que de repente ficou preto com o sangue inimigo quando ele golpeou com a espada para cima, na axila desprotegida de um soldado francês. O homem tremeu de dor, tentou golpear com a espada, mas então um outro inglês meteu uma maça na sua viseira, que amassou com o golpe e projetou sangue de umas doze rachaduras. Um cavalo jarretado berrou e caiu.

— Fiquem juntos! — gritava para seus homens o inglês com o manto vistoso. — Fiquem juntos!

O cavalo dele empinou, agitando as patas para um francês que fora derrubado da montaria. Aquele homem caiu, elmo e crânio esmagados por uma ferradura, e aí o cavaleiro viu o duque em pé, indefeso, ao lado de um cavalo; reconheceu o valor da armadura do homem, que brilhava, e girou seu cavalo na direção dele. O duque desviou com o escudo o golpe da espada, brandiu a dele, que vibrou contra a armadura da perna do inimigo, e de repente o cavalariano foi embora.

Um outro inglês tinha puxado o cavalo do seu líder para longe. Uma massa de cavaleiros franceses descia a montanha. O rei os mandara na esperança de capturar o senhor inglês e seus homens, e ainda mais franceses, impossibilitados de participar do ataque à torre porque um número demasiado de seus companheiros se reunia para ajudar a matar o que restava da guarnição, agora atacavam a ponte.

— Voltem! — berrou o líder inglês, mas a rua da aldeia e a estreita ponte estavam bloqueadas por fugitivos e ameaçadas por franceses. Ele poderia abrir caminho à força, mas isso significaria matar seus próprios arqueiros e perder alguns de seus cavaleiros no pânico caótico, de modo que, em vez disso, olhou para o outro lado da estrada e viu uma trilha que corria junto ao rio. Pensou que ela poderia levar à praia e, lá, talvez ele pudesse dobrar e seguir para o leste e voltar para as linhas inglesas.

Os cavaleiros ingleses cutucaram forte com as esporas. A trilha era estreita, só dois cavaleiros podiam cavalgar juntos; de um lado estava o rio Ham e, do outro, um trecho de terreno alagadiço, mas a trilha era firme e os ingleses seguiram por ela até alcançar um trecho de terreno mais alto, onde puderam se reunir. Mas não poderiam escapar. O pequeno trecho de terreno mais elevado era quase uma ilha, que só podia ser atingido pela trilha e estava cercado por um atoleiro de junco e lama. Eles estavam encurralados.

Cem cavaleiros franceses estavam prontos para segui-los pela trilha, mas os ingleses tinham desmontado e feito uma parede com os escudos, e a idéia de forçar a passagem por aquela barreira de aço convenceu os franceses a regressar à torre, onde o inimigo era mais vulnerável. Arqueiros ainda disparavam das defesas, mas os besteiros genoveses reagiam, e agora os franceses lançaram-se contra os soldados ingleses formados aos pés da fortificação.

Os franceses atacaram a pé. O terreno estava escorregadio por causa da chuva de verão, e os pés revestidos com cota de malha transformavam-no em lama enquanto os soldados na dianteira berravam seu grito de guerra e atiravam-se contra os ingleses que estavam em inferioridade numérica. Aqueles ingleses tinham colado seus escudos uns nos outros e empurravam-nos para a frente a fim de enfrentar a carga. Houve um entrechoque de aço e madeira, um grito quando uma lâmina enfiou-se por baixo da beira de um escudo e achou carne. Os homens da segunda fileira inglesa, que era a retaguarda deles, brandiram maças e espadas por sobre a cabeça de seus companheiros.

— São Jorge! — ergueu-se um grito. — São Jorge! — E os soldados inclinavam-se à frente a fim de tirar os mortos e os moribundos de seus escudos. — Matem os bastardos!

— Matem-nos! — gritou Sir Geoffrey de Charny em resposta, e os franceses voltaram, aos tropeções devido às cotas de malha e às armaduras, passando pelos feridos e mortos, e dessa vez os escudos ingleses não estavam com as bordas encostadas umas nas outras, e os franceses encontraram brechas. Espadas batiam em armaduras, atravessavam malhas, batiam em elmos. Uns poucos defensores que restavam tentavam fugir para o outro lado do rio, mas os besteiros genoveses os perseguiram, e foi uma simples questão de segurar dentro d’água um homem vestindo uma armadura, até que ele morresse afogado, e depois saquear-lhe o corpo. Uns poucos fugitivos ingleses saíram cambaleantes na outra margem, indo para onde uma linha de combate inglesa formada por arqueiros agrupava-se para repelir qualquer ataque vindo do outro lado do Ham.

Lá na torre, um francês com um machado de batalha golpeava repetidas vezes um inglês, abrindo a ombreira que protegia o ombro direito, cortando a malha que estava por baixo, batendo no homem a ponto de fazê-lo acocorar-se, e ainda assim os golpes continuaram até que o machado tivesse aberto o peito do inimigo e houvesse um esvaziar de costelas brancas entre a carne moída e a armadura cortada. Sangue e lama formavam uma pasta sob os pés. Para cada inglês havia três inimigos, e a porta da torre tinha sido deixada destrancada, para dar aos homens que estavam fora um lugar para o qual pudessem recuar, mas em vez disso foram os franceses que forçaram a entrada. Os últimos defensores que se encontravam fora da torre foram abatidos e mortos, enquanto que lá dentro os atacantes começavam a subir as escadas lutando.

Os degraus voltavam-se para a direita à medida que subiam. Aquilo significava que os defensores podiam usar o braço direito sem problemas, enquanto os atacantes ficavam sempre prejudicados pelo grande pilar central da escada, mas um cavaleiro francês com uma lança curta fez a primeira investida e eviscerou um inglês com a lâmina antes de outro defensor matá-lo com um golpe de espada por cima da cabeça do moribundo. Ali, as viseiras foram erguidas, porque estava escuro na torre e não era possível enxergar com os olhos meio cobertos de aço. Com isso, os ingleses golpeavam olhos franceses. Soldados puxavam os mortos dos degraus, deixando uma trilha de entranhas, e então mais dois homens atacaram escada acima, escorregando em fezes. Aparavam golpes ingleses, enfiavam as espadas em virilhas, e ainda mais franceses entravam pela torre. Um grito horrível encheu o poço da escada e depois outro corpo ensangüentado foi jogado para baixo e para fora do caminho: outros três degraus ficaram livres e os franceses tornaram a avançar subindo.

— Montjoie St. Denis!

Um inglês, segurando um martelo de ferreiro, desceu a escada e bateu em elmos franceses, matando um homem ao esmagar-lhe o crânio e fazendo os outros recuarem até que um cavaleiro teve a idéia de agarrar uma besta e avançar sorrateiramente escada acima até conseguir uma visão livre de empecilhos. O dardo atravessou a boca do inglês e ergueu a parte posterior do crânio. Os franceses avançaram de novo, com gritos de ódio e vitória, pisoteando o moribundo com os pés sujos de dejetos e levando suas espadas ao alto da torre. Lá, doze homens tentaram empurrá-los de volta escada abaixo, mas ainda havia mais franceses subindo. Eles forçaram os atacantes que iam à frente contra as espadas dos defensores e os homens que vinham em seguida passaram desajeitados por cima dos moribundos e dos mortos para aniquilar o que restava da guarnição. Todos os homens foram abatidos. Um arqueiro viveu o suficiente para ter os dedos decepados, depois os olhos arrancados, e ainda estava gritando quando foi atirado da torre sobre as espadas que aguardavam lá embaixo.

Os franceses ovacionaram. A torre era uma capela mortuária, mas o estandarte da França iria ser hasteado em suas defesas. As trincheiras tinham-se tornado sepulturas para os ingleses. Homens vitoriosos começaram a tirar as roupas dos mortos à procura de moedas, quando soou uma trombeta.

Ainda havia alguns ingleses no lado francês do rio: cavaleiros encurralados num pedaço de terreno mais firme.

De modo que a matança ainda não acabara.

O ST. JAMES ANCOROU ao largo da praia ao sul de Calais e transferiu os passageiros para terra em barcos a remo. Três dos passageiros, todos em cotas de malha, tinham tanta bagagem que pagaram a dois tripulantes do St. James para levá-la para as ruas do acampamento inglês, onde eles procuravam o conde de Northampton. Algumas casas tinham dois pavimentos, e sapateiros, armeiros, ferreiros, fruteiros, padeiros e açougueiros tinham, todos, pendurado cartazes nos andares superiores. Havia bordéis e igrejas, tendas de cartomantes e tabernas construídas entre as tendas e as casas. Crianças brincavam nas ruas. Algumas tinham pequenos arcos e atiravam flechas sem ponta contra cachorros irritados. As moradias dos nobres estavam com seus estandartes pendurados no lado de fora e guardas com cotas de malha postados junto às portas. Um cemitério espalhava-se pântanos adentro, as covas úmidas cheias de homens, mulheres e crianças que haviam sucumbido à febre que assolava os pântanos de Calais.

Os três homens acharam a moradia do conde, que era um grande prédio de madeira perto do pavilhão onde tremulava a bandeira real. Dois deles, o mais jovem e o mais velho, ficaram com a bagagem enquanto o terceiro, o mais alto, dirigiu-se a pé até Nieulay. Tinham dito a ele que o conde liderara alguns cavaleiros numa incursão em direção ao exército francês.

— Milhares de bastardos — informara o intendente do conde — sem fazer nada lá em cima, só de dedo no nariz, de modo que sua excelência quer desafiar alguns deles. Ele está ficando entediado. — Olhou para a grande arca de madeira que os dois homens vigiavam. — E o que é que tem aí dentro?

— Meleca — dissera o homem alto. Depois levou ao ombro um longo arco preto, apanhou uma sacola de flechas e saiu.

O nome dele era Thomas. Às vezes, Thomas de Hookton. Outras vezes era Thomas, o Bastardo, e, se quisesse ser muito formal, podia chamar-se Thomas Vexille, embora raramente fizesse isso. Os Vexille eram uma família nobre gascã e Thomas de Hookton era filho ilegítimo de um Vexille fugitivo, que não o deixara nem nobre nem Vexille. E, sem dúvida alguma, nem gascão. Ele era um arqueiro inglês.

Thomas atraía olhares enquanto caminhava pelo acampamento. Ele era alto. Cabelos pretos apareciam sob a borda do elmo de ferro. Era jovem, mas o rosto fora curtido pela guerra. Tinha faces cavadas, vigilantes olhos pretos e um nariz comprido que fora quebrado numa briga e posto no lugar de forma errada. A cota de malha perdera o brilho devido a viagens, e debaixo dela usava uma jaqueta de couro, calções pretos e botas de montaria de cano longo, sem esporas. Uma espada embainhada em couro preto pendia de seu flanco direito, um embornal estava pendurado nas costas e uma sacola branca de flechas no quadril direito. Ele mancava muito de leve, sugerindo que devia ter sido ferido em combate, embora na verdade a contusão tivesse sido provocada por um religioso, em nome de Deus. As cicatrizes daquela tortura estavam escondidas agora, exceto quanto ao dano às mãos, que tinham ficado tortas e encaroçadas, mas ele ainda podia disparar um arco. Ele tinha 23 anos e era um matador.

Ele passou pelos acampamentos dos arqueiros. A maioria tinha troféus pendurados. Ele viu uma couraça de armadura francesa de aço maciço, que havia sido perfurada por uma flecha, pendurada bem alto para alardear o que os arqueiros faziam com cavaleiros. Um outro grupo de tendas exibia uns vinte rabos de cavalo pendurados num poste. Uma cota de malha enferrujada tinha sido enchida de palha, pendurada numa árvore nova e furada por flechas. Para além das tendas ficava uma área pantanosa que fedia a esgoto. Thomas seguiu em frente, observando a disposição de tropas francesas nos planaltos do sul. Eles eram bem numerosos, pensou, muito mais do que os que apareceram para ser massacrados entre Wadicourt e Crécy. Para cada francês morto, pensou, surgiam mais dois. Ele agora via a ponte à sua frente e a pequena aldeia depois dela, e atrás dele chegavam homens vindos do acampamento para formar uma linha de combate e defender a ponte, porque os franceses estavam atacando o pequeno posto avançado inglês na margem mais distante. Thomas os via descendo em grande número pela encosta, e também viu um pequeno grupo de cavaleiros que presumiu serem o conde e seus homens. Atrás dele, o barulho abafado pela distância, um canhão inglês disparou um projétil de pedra contra os castigados muros de Calais. O som rolou por cima dos pântanos e desapareceu, para ser substituído pelo entrechocar de armas vindo das trincheiras inglesas.

Thomas não se apressou. Aquela briga não era dele. Mesmo assim, tirou o arco das costas e encordoou-o, e percebeu como aquele ato se tornara fácil. O arco era velho e estava ficando cansado. A negra vara de teixo, antigamente reta, agora se achava ligeiramente curva. Tinha acompanhado a corda, como diziam os arqueiros, e ele viu que era preciso fazer uma nova arma. Mas reconheceu que o velho arco, que ele pintara de preto e no qual prendera uma placa de prata mostrando um estranho animal segurando um cálice, ainda tinha nele a alma de alguns franceses.

Ele não viu os cavaleiros ingleses investindo contra o flanco do ataque francês, porque os casebres de Nieulay escondiam a breve luta. Viu, sim, a ponte encher-se de fugitivos que atrapalhavam uns aos outros na pressa de escapar da fúria francesa, e por cima da cabeça deles ele viu os cavaleiros seguirem em direção ao mar, na margem mais distante do rio. Ele foi atrás deles pelo lado inglês do rio, saindo da estrada aterrada para saltar de tufo para tufo, às vezes espirrando água ao passar por poças, ou patinhando pela lama que tentava roubar-lhe as botas. E então viu-se à beira do rio e viu a maré cor de lama avançar em remoinho terra adentro, enquanto o mar subia de nível. O vento fedia a sal e decomposição.

E então, ele viu o conde. O conde de Northampton era o senhor de Thomas, o homem a quem ele servia, apesar de a rédea do conde ser frouxa e sua bolsa, generosa. O conde observava os franceses vitoriosos, sabendo que iriam atacá-lo, e um de seus soldados tinha desmontado e tentava encontrar uma trilha firme bastante para permitir que os cavalos com armaduras chegassem ao rio. Outros doze de seus soldados estavam ajoelhados ou em pé fechando a trilha de aproximação dos franceses, prontos para enfrentar uma carga com escudos e espadas. E lá na aldeia, onde a matança da guarnição inglesa terminara, os franceses voltavam-se, sedentos, para os homens encurralados.

Thomas entrou no rio. Manteve o arco elevado, porque uma corda molhada não esticava, e vadeou contra o puxar da maré. A água chegava-lhe na cintura, e depois ele saiu com dificuldade para a margem lamacenta e correu para onde os soldados esperavam para receber os primeiros atacantes franceses. Thomas ajoelhou-se bem junto deles, no pântano; espalhou as flechas na lama e pegou uma.

Uns vinte franceses estavam se aproximando. Doze estavam montados, e os cavaleiros mantinham-se na trilha, mas em seus flancos soldados desmontados patinhavam pelos pântanos e Thomas não se preocupou com eles, porque iriam demorar a chegar em terra firme, e em vez disso começou a disparar contra os cavaleiros montados.

Ele atirava sem pensar. Sem mirar. Aquilo era a sua vida, sua perícia e seu orgulho. Pegar um arco, mais alto do que um homem, feito de teixo, e usá-lo para disparar flechas de freixo, com penas de ganso na extremidade e armadas com ponta de estilete. Como o grande arco era puxado até a orelha, de nada adiantava tentar mirar com o olho. Eram anos de prática que permitiam saber aonde iriam suas flechas, e Thomas as disparava em ritmo alucinado, uma flecha a cada três ou quatro segundos, e as penas brancas cortavam o ar em direção ao outro lado do pântano, e as compridas pontas de aço atravessavam cotas de malha e couro e penetravam em barrigas, peitos e coxas franceses. Elas atingiam o alvo com o som de um machado de açougueiro caindo sobre carne, e faziam com que os cavalarianos parassem. Os dois que lideravam o grupo estavam morrendo, um terceiro estava com uma flecha no alto da coxa, e os homens que vinham atrás não podiam passar pelos feridos que estavam na frente porque a trilha era estreita demais, e por isso Thomas começou a atirar contra os soldados desmontados. A força do impacto de uma flecha era suficiente para jogar um homem para trás. Se um francês erguia um escudo para proteger a parte superior do corpo, Thomas mandava uma flecha nas pernas, e se o arco dele estava velho, ainda era perverso. Thomas estivera navegando mais de uma semana e sentia a dor nos músculos das costas enquanto puxava a corda. Mesmo puxar o arco enfraquecido era o equivalente a levantar do chão um homem adulto, e toda aquela potência era transferida para a flecha. Um cavaleiro tentou avançar pela lama, mas o seu pesado corcel patinhou no terreno encharcado; Thomas escolheu uma flecha para penetrar carne, com uma ponta grossa, que furasse as entranhas e os vasos sanguíneos, e disparou-a a baixa altura, viu o cavalo estremecer, apanhou uma furadora do chão e disparou-a contra um soldado que estava com a viseira levantada. Thomas não olhou para ver se qualquer uma das flechas tinha atingido o alvo, disparou e apanhou outro projétil, depois tornou a disparar, e a corda do arco raspou o braçal de osso que ele usava no pulso esquerdo. Ele nunca se preocupara em proteger o pulso antes, gostando do calor deixado pela corda, mas o dominicano torturara o seu antebraço esquerdo e o deixara encrespado com cicatrizes, de modo que agora a bainha de osso protegia a pele.

O dominicano tinha morrido.

Faltavam seis flechas. Os franceses estavam recuando, mas não vencidos. Gritavam por besteiros e por mais soldados e Thomas, respondendo, pôs na boca os dois dedos que usava para puxar a corda e soltou um assobio estridente. Duas notas, alta e baixa, repetidas três vezes, depois uma pausa e ele tornou a assobiar as duas notas e viu arqueiros que corriam para o rio. Alguns eram os homens que tinham se retirado de Nieulay e outros vinham da linha de combate, porque reconheceram o sinal de que um colega arqueiro precisava de ajuda.

Thomas apanhou as seis flechas e voltou-se para ver que os primeiros dos cavaleiros do conde tinham encontrado uma passagem para o rio e estavam conduzindo seus animais pesadamente protegidos por armaduras pela maré que se agitava. Minutos iriam passar antes que todos eles chegassem ao outro lado, mas arqueiros seguiam patinhando em direção à margem mais distante, agora, e os que estavam mais perto de Nieulay já atiravam contra um grupo de besteiros levado às pressas para a luta inacabada. Mais cavalarianos desciam das colinas de Sangatte, com raiva pelo fato de os cavaleiros ingleses estarem fugindo. Dois deles galoparam para dentro do pântano, onde os cavalos começaram a entrar em pânico no terreno traiçoeiro. Thomas encaixou uma das últimas flechas na corda, e então concluiu que o pântano estava derrotando os dois homens e uma flecha seria supérflua.

Uma voz veio de um ponto logo atrás dele.

— É o Thomas, não é?

— Excelência. — Thomas tirou o elmo, rápido, e voltou-se, ainda de joelhos.

— Você é bom com esse arco, não é? — O conde falava com ironia.

— Prática, excelência.

— Uma mente maldosa ajuda — disse o conde, fazendo um gesto para que Thomas se levantasse.

O conde era um homem de baixa estatura, atarracado, com um rosto castigado pelo tempo, que os arqueiros dele gostavam de dizer que parecia o traseiro de um touro, mas também reconheciam que ele era um lutador, um homem bom e tão resistente quanto qualquer um de seus homens. Ele era amigo do rei, mas também amigo de quem quer que usasse o seu emblema. Não era homem de mandar outros para o combate a menos que os chefiasse, e ele desmontara e retirara o elmo para que a sua retaguarda o reconhecesse e ficasse sabendo que ele partilhava do perigo deles.

— Pensei que você estivesse na Inglaterra — disse a Thomas.

— Eu estava — respondeu ele, agora falando francês, porque sabia que o conde sentia-se mais à vontade naquela língua —, e depois estive na Bretanha.

— E agora está me salvando. — O conde sorriu, revelando os claros onde perdera os dentes. — Acho que você vai querer uma garrafa de cerveja por causa disso, não?

— Tudo isso, excelência?

O conde soltou uma gargalhada.

— Nós bancamos os bobos, não? — Ele observava os franceses que, agora que uma centena ou mais de arqueiros ingleses estavam dispostos em linha na margem do rio, pensavam duas vezes antes de lançar um novo ataque. — Pensamos que poderíamos tentar quarenta deles para uma batalha de honra perto da aldeia, e então metade do exército deles desceu da montanha. Você me traz notícias de Will Skeat?

— Ele morreu, excelência. Morreu no combate em La Roche-Derrien.

O conde vacilou e depois fez o sinal-da-cruz.

— Pobre Will. Deus sabe o quanto eu gostava dele. Nunca houve um soldado melhor. — Olhou para Thomas. — E a outra coisa? Você o trouxe para mim?

Ele se referia ao Graal.

— Eu lhe trago ouro, senhor — disse Thomas —, mas não ele.

O conde deu uma batidinha no braço de Thomas.

— Nós vamos conversar, mas não aqui. — Ele olhou para os homens e ergueu a voz: — Voltem, agora! Voltem!

A retaguarda desmontada, os cavalos já levados para um lugar seguro através da maré que subia, seguiu depressa para o rio e o atravessou. Thomas foi atrás e o conde, a espada desembainhada, foi o último homem a vadear a água que ficava mais profunda. Os franceses, privados da presa valiosa, zombaram da sua retirada.

E o combate daquele dia acabara.

O EXÉRCITO FRANCÊS não permaneceu ali. Eles tinham matado a guarnição de Nieulay, mas até mesmo os mais sanguinários entre eles sabiam que não podiam fazer mais do que aquilo. Havia ingleses demais. Milhares de arqueiros estavam rezando para que os franceses atravessassem o rio e dessem combate a eles, de modo que em vez disso os homens de Filipe retiraram-se marchando, deixando as trincheiras de Nieulay cheias com os mortos e a crista de Sangatte, varrida pelo vento, vazia, e no dia seguinte a cidade de Calais se rendeu. O primeiro instinto do rei Eduardo foi matar todos os habitantes, colocá-los em fila ao lado do fosso e cortar as cabeças de seus corpos macilentos, mas seus grandes senhores protestaram que os franceses iriam fazer o mesmo com qualquer cidade ocupada pelos ingleses que eles capturassem na Gasconha ou em Flandres, e por isso o rei, com relutância, reduziu a exigência a apenas seis vidas.

Seis homens, faces encovadas e vestindo os mantos de penitentes, com laços de forca em volta do pescoço, foram levados da cidade. Eram todos cidadãos importantes, mercadores ou cavaleiros, homens de posses e posição, o tipo de gente que havia desafiado Eduardo da Inglaterra durante onze meses. Eles levavam as chaves das portas da cidade sobre almofadas que depuseram diante do rei, depois prostraram-se em frente à plataforma de madeira onde estavam sentados o rei e a rainha da Inglaterra e os grandes magnatas do reino. Os seis homens pediram por suas vidas, mas Eduardo estava zangado. Eles o tinham desafiado, e por isso o carrasco foi chamado, porém uma vez mais os grandes senhores alegaram que ele estava provocando represálias, e a própria rainha ajoelhou-se diante do marido e pediu que os seis homens fossem poupados. Eduardo resmungou, fez uma pausa enquanto os seis mantinham-se imóveis sob o tablado, e então permitiu que continuassem vivos.

Foram levados alimentos para os cidadãos que estavam famintos, mas nenhum outro sinal de misericórdia foi mostrado. Eles foram expulsos, sem permissão para levar coisa alguma, exceto as roupas que vestiam, e até elas foram revistadas para ter-se a certeza de que nenhuma moeda ou jóia fosse contrabandeada para fora das linhas inglesas. Uma cidade vazia, com casas para oito mil pessoas, com armazéns e lojas e tabernas e cais, e uma cidadela e fossos, pertencia à Inglaterra.

— Uma porta para a França — disse o conde de Northampton, entusiasmado.

Ele ficou com uma casa que pertencera a um dos seis, um homem que agora caminhava pela Picardia com a família como um pedinte. Era uma luxuosa casa de pedra, abaixo da cidadela, com vista para o cais, que, agora, estava lotado de navios ingleses.

— Vamos encher a cidade com gente boa inglesa — disse o conde. — Quer morar aqui, Thomas?

— Não, excelência — disse Thomas.

— Nem eu — admitiu o conde. — Ela não passa de um chiqueiro num pântano. Mesmo assim, é nossa. Pois então, meu jovem Thomas, o que é que você quer?

Era de manhã, três dias depois da rendição da cidade, e a riqueza confiscada de Calais estava sendo distribuída aos vencedores. O conde ficara ainda mais rico do que esperava, porque o grande baú que Thomas trouxera da Bretanha estava cheio de moedas de ouro e prata capturadas no acampamento de Charles de Blois depois da batalha de La Roche-Derrien. Um terço daquilo pertencia ao senhor de Thomas e os homens do conde tinham contado as moedas, separando um terço da cota do conde para o rei.

Thomas havia contado sua história. Disse que, seguindo instruções do conde, ele tinha ido à Inglaterra para investigar o passado de seu falecido pai, à procura de uma pista para o Graal. Não encontrara coisa alguma, exceto um livro no qual seu pai, que era padre, escrevera sobre o Graal, mas o padre Ralph tinha uma inteligência que vagava e sonhos que pareciam verdadeiros, e Thomas nada entendera dos escritos, que foram tirados dele pelo dominicano que o torturou. Mas o livro tinha sido copiado antes de o dominicano roubá-lo e agora, no novo aposento do conde iluminado pela luz do sol, um jovem padre inglês tentava entender a cópia.

— O que quero — disse Thomas ao conde — é chefiar arqueiros.

— Só Deus sabe se haverá algum lugar para onde chefiá-los — respondeu o conde, pesaroso. — O Eduardo fala em atacar Paris, mas isso não vai acontecer. Vai haver uma trégua, Thomas. Iremos jurar amizade eterna, e depois voltar para casa e afiar nossas espadas.

Ouviu-se um estalar de pergaminho quando o padre virou outra página. O padre Ralph escrevera em latim, grego, hebraico e francês, e era evidente que o padre entendia todas. De vez em quando ele fazia uma anotação num pedaço de pergaminho à medida que ia lendo. Barris de cerveja estavam sendo descarregados no cais, com o ribombar dos grandes tonéis parecendo trovoadas. A bandeira do rei da Inglaterra, leopardos e flor-de-lis, tremulava na cidadela capturada acima da francesa, que estava hasteada de cabeça para baixo, em sinal de escárnio. Dois homens, companheiros de Thomas, estavam à entrada do aposento, à espera de que o conde os incluísse.

— Só Deus sabe que tipo de emprego haverá para os arqueiros — prosseguiu o conde —, a menos que seja proteger muros de fortalezas. É isso que você quer?

— Eu só sou bom nisso, excelência. Atirar com um arco. — Thomas falava em francês normando, a língua da aristocracia da Inglaterra e a língua que seu pai lhe ensinara. — E eu tenho dinheiro, excelência.

Ele queria dizer que agora podia recrutar arqueiros, equipá-los com cavalos e levá-los a serviço do conde, que nada custaria ao conde, mas este poderia ficar com a terça parte de tudo que eles saqueassem.

Foi assim que Will Skeat, de origem plebéia, fez o seu nome. O conde gostava de homens assim, lucrava com eles, e fez um gesto afirmativo com a cabeça.

— Mas chefiá-los para onde? — perguntou ele. — Odeio tréguas.

De sua mesa ao lado da janela, o jovem padre interveio.

— O rei preferiria que o Graal fosse encontrado.

— O nome dele é John Buckingham — disse o conde, referindo-se ao padre —, e é camareiro da receita do Tesouro, o que pode não lhe dizer muita coisa, jovem Thomas, mas significa que ele serve ao rei e é provável que venha a ser arcebispo de Canterbury antes de completar trinta anos de idade.

— Dificilmente — disse o padre.

— E é claro que o rei quer que o Graal seja encontrado — falou o conde —, e nós todos queremos. Eu quero ver essa coisa na Abadia de Westminster! Quero que o rei da maldita França rasteje na porcaria dos joelhos para rezar a ele. Quero que peregrinos de toda a cristandade nos tragam ouro. Pelo amor Deus, Thomas, essa porcaria de coisa existe? Seu pai o tinha?

— Não sei, excelência — respondeu Thomas.

— Você não serve para grande coisa — resmungou o conde.

John Buckingham olhou para suas anotações.

— Você tem um primo, Guy Vexille?

— Tenho — disse Thomas.

— E ele está à procura do Graal?

— Ele faz isso procurando por mim — disse Thomas. — E não sei onde o Graal está.

— Mas ele estava procurando pelo Graal antes de saber que você existia — assinalou o jovem padre —, o que me parece que ele tem alguma informação que nos foi negada. Eu aconselharia, excelência, procurarmos esse Guy Vexille.

— Seríamos dois cachorros correndo atrás um do outro — interveio Thomas com amargor.

O conde fez um sinal para que Thomas ficasse calado. O padre voltou a olhar para suas anotações.

— E, por mais opacos que estes escritos sejam — disse ele, em tom de censura — há um fio de luz. Eles parecem confirmar que o Graal esteve em Astarac. Que estava escondido lá.

— E foi roubado de novo! — protestou Thomas.

— Quando se perde algo de valor — perguntou Buckingham, paciente — por onde se começa a busca? No lugar em que o objeto foi visto pela última vez. Onde fica Astarac?

— Na Gasconha — respondeu Thomas —, no feudo de Berat.

— Ah! — exclamou o conde, mas depois calou-se.

— E você foi a Astarac? — perguntou Buckingham. Ele podia ser jovem, mas tinha uma autoridade que provinha de mais alguma coisa do que o cargo junto ao tesoureiro do rei.

— Não.

— Pois então, sugiro que vá — disse o padre — e veja o que pode apurar. E se fizer bastante alarde durante a busca, é bem possível que seu primo vá à sua procura, e você possa encontrá-lo e descobrir o que ele sabe.

O padre sorriu, como que para indicar que tinha resolvido o problema.

Fez-se silêncio, exceto quanto a um dos cães de caça do conde coçando-se a um canto do aposento, e no cais um marinheiro soltou uma torrente de palavrões que poderiam ter feito corar as faces do diabo.

— Não posso capturar o Guy sozinho — protestou Thomas —, e Berat não jurou vassalagem ao nosso rei.

— Oficialmente — observou Buckingham —, Berat jura vassalagem ao conde de Toulouse, que hoje significa ao rei da França. O conde de Berat é, sem dúvida alguma, um inimigo.

— Nenhuma trégua foi assinada até agora — disse o conde, hesitante.

— E eu desconfio que vai levar dias para ser assinada — concordou Buckingham.

O conde olhou para Thomas.

— E você quer arqueiros?

— Eu gostaria de ficar com os homens de Will Skeat, excelência.

— E não há dúvida de que eles irão servi-lo — disse o conde —, mas você não pode comandar soldados, Thomas.

Ele queria dizer que Thomas, sem berço nobre e ainda jovem, poderia ter autoridade para comandar arqueiros, mas soldados, que se consideravam de categoria mais elevada, ficariam ressentidos com a sua liderança. Will Skeat, que nascera em classe mais baixa do que a de Thomas, conseguira, mas Will era muito mais velho e muito mais experiente.

— Eu posso comandar soldados — anunciou um dos dois homens que estavam junto à parede.

Thomas apresentou os dois. O que falara era um homem mais velho, com cicatrizes, sem um olho, resistente como malha. Seu nome era Sir Guillaume d’Evecque, lorde de Evecque, e ele já tivera um feudo na Normandia até que seu rei se voltara contra ele, e agora era um guerreiro sem terras e amigo de Thomas. O outro, mais jovem, também era amigo. Era Robbie Douglas, um escocês que tinha sido preso em Durham no ano anterior.

— Pelos ossos de Cristo — disse o conde quando soube da situação de Robbie —, mas a esta altura você já deve ter conseguido o seu resgate, não?

— Consegui, excelência — admitiu Robbie —, e depois perdi.

— Perdeu!

Robbie baixou os olhos para o chão, de modo que Thomas explicou numa palavra curta.

— Dados.

O conde pareceu enojado, e depois voltou-se outra vez para Sir Guillaume.

— Eu ouvi falar no senhor — disse ele, e aquilo era um cumprimento — e sei que pode liderar soldados, mas a quem o senhor serve?

— A homem nenhum, excelência.

— Neste caso, não pode comandar soldados — disse o conde, mordaz, e ficou esperando.

Sir Guillaume hesitou. Era um homem orgulhoso, tinha 35 anos de idade, experiência em guerras, e uma reputação que começara a ser feita ao lutar contra os ingleses. Mas agora não possuía terra alguma, não tinha um senhor, e como tal era um pouco mais do que um andarilho, e por isso, depois de uma pausa, caminhou até o conde e ajoelhou-se diante dele e ergueu as mãos como se estivesse rezando. O conde envolveu as mãos de Guillaume com as suas.

— Promete servir a mim — perguntou ele —, ser meu vassalo, não servir a mais ninguém?

— Prometo — disse Sir Guillaume, enfático, e o conde ergueu-o e os dois homens beijaram-se nos lábios.

— Eu me sinto honrado — disse o conde, dando uma batida no ombro de Sir Guillaume, depois tornou a voltar-se para Thomas. — Então, você pode levantar uma força adequada. Vai precisar de quanto? Cinqüenta homens? A metade de arqueiros.

— Cinqüenta homens no feudo distante? — disse Thomas. — Eles não vão durar um mês, excelência.

— Mas vão, sim — disse o conde e explicou a sua reação anterior, de surpresa, diante da notícia de que Astarac ficava no condado de Berat. — Há muitos anos, jovem Thomas, antes de você ser desmamado, nós tínhamos uma propriedade na Gasconha. Nós a perdemos, mas nunca a entregamos oficialmente, de modo que há, em Berat, três ou quatro praças fortes sobre as quais eu tenho um direito legítimo.

John Buckingham, lendo as anotações do padre Ralph outra vez, ergueu uma sobrancelha para indicar que o direito, na melhor das hipóteses, era tênue, mas nada disse.

— Vão, e tomem um daqueles castelos — disse o conde —, façam ataques relâmpagos, juntem dinheiro, e homens irão juntar-se a vocês.

— E homens virão contra nós — observou Thomas, com tranqüilidade.

— E Guy Vexille será um deles — disse o conde —, de modo que esta é a sua oportunidade. Aceite-a, Thomas, e saia daqui antes que se faça a trégua.

Thomas hesitou por uns instantes. O que o conde sugeria parecia quase uma loucura. Ele iria levar uma força para o extremo sul do território francês, capturar uma fortaleza, defendê-la, ter a esperança de capturar seu primo, achar Astarac, explorá-la, perseguir o Graal. Só um louco aceitaria uma missão daquelas, mas a alternativa era apodrecer com todos os outros arqueiros desempregados.

— Vou fazer isso, excelência — disse ele.

— Ótimo. Retirem-se, todos vocês! — O conde levou Thomas até a porta, mas assim que Robbie e Sir Guillaume estavam na escada, puxou Thomas de volta para uma conversa em particular. — Não leve o escocês com você — disse o conde.

— Não, excelência? Ele é meu amigo.

— Ele é um maldito de um escocês e eu não confio neles. São todos uns malditos ladrões e mentirosos. Pior do que os porcarias dos franceses. Quem o mantém prisioneiro?

— Lorde Outhwaite.

— E lorde Outhwaite deixou que ele viajasse com você? Estou surpreso. Pouco importa, mande o seu amigo escocês de volta para Outhwaite e deixe-o apodrecer até que a família levante o dinheiro para o resgate. Mas não quero um porcaria de escocês tirando o Graal da Inglaterra. Está entendendo?

— Estou, excelência.

— Ótimo — disse o conde e deu um tapa nas costas de Thomas. — Agora vá, e tenha sucesso.

Vá e morra, era o mais provável. Vá numa missão infrutífera, porque Thomas não acreditava que o Graal existisse. Ele queria que existisse, queria acreditar nas palavras do pai, mas seu pai às vezes era um louco, outras vezes malicioso, e Thomas tinha uma ambição, que era ser um líder tão bom quanto Will Skeat. Ser arqueiro. No entanto, a missão infrutífera lhe dava uma oportunidade de reunir homens, chefiá-los e perseguir o seu sonho. Por isso, iria atrás do Graal e veria o que acontecia.

Ele se dirigiu ao acampamento inglês e bateu num tambor. A paz estava chegando, mas Thomas de Hookton estava reunindo homens e indo à guerra.

 

 


C O N T I N U A