Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
“O Caçador de Fadas”
Livro II
A BUSCA PELO REI
O grande pesadelo
Seus dedos tamborilavam sobre a mesa de madeira. Não era irritação ou nervosismo. Era algo mesclado entre tédio e desgaste intelectual. A sua volta muitas vozes, canto e dança. Elfos falavam e alguns gritavam, animados pela bebida.
No centro da roda formada por elfos e fadas, o Segundo Guardião Acheron refestelava-se em elixir proibido nas imediações do castelo do Rei Isac. Driana sorriu pesarosa, lidando com seus próprios pensamentos conturbados. Rei? Que Rei? O Rei assassinado pela própria Rainha? O Rei que fora tolo o bastante para ser enganado durante duas décadas, e graças à própria estupidez, causar o problema atual que assolava a vida de Driana? Se Rei Isac não houvesse sido estúpido o bastante para acreditar em Santha no passado, o futuro de Driana não seria tão nebuloso. Estava no Vilarejo das Fadas, após dois dias de trote lento dos cavalos pelas montanhas em volta do castelo real. Outra fada da clausura não perderia seu tempo reclamando de tão pouco. Há essa hora estaria chorando a prisão definitiva de Eleonora, sua melhor amiga, em uma clausura que duraria um ano, até a escolha dos Guardiões, e se não fosse escolhida, uma prisão para a vida toda. E choraria uma a uma, suas amigas e suas asas nascendo e sendo a sentença de morte de fadas que almejavam apenas a liberdade. Eleonora, Joan e Alma. Seu coração ficou apertado pensando em suas melhores amigas. Não possuíam o mesmo sangue, mas possuíam um laço insolúvel: a amizade. Os gritos aumentaram e ela reteve o ar quando uma das fadas tropeçou na cadeira onde estava sentada e seguiu rindo, atrelada aos braços de um elfo pequeno e gordo. Riso feliz. Como ela queria poder rir outra vez... Era uma fugitiva. Rainha Santha assassinara o Rei, e a culpa recaiu sobre as quatro fadas da clausura. E Driana era uma delas. Por isso sua fuga era necessária. Dispersaram-se por intromissão de Reina, mãe do Primeiro Guardião Egan, que graças aos anos de esposa de um Conselheiro, sabia como funcionava a cabeça dos Conselheiros e fora capaz de imaginar que as fadas seriam perseguidas por Guardiões. Por isso era vital que cada qual seguisse um rumo, e se mantivesse escondida, até a verdade vir à tona. Caso a verdade pudesse vir à superfície. Normalmente a mentira é sempre mais fácil de crer, por conter elementos menos chocantes. Pois no caso das fadas da clausura a verdade era por si só tamanhamente bizarra que não valia um segundo olhar. Driana precisava admitir que fosse mais fácil crer na mentira. Parecia menos irreal. Ignorando a música e a alegria a sua volta, Driana empurrou para o lado o copo de barro onde o elixir proibido borbulhava e pegou a pesada faca da caça que deixara sobre a mesa de madeira, pois pesava em seu cinturão. Segurando-a pelo cabo, começou a enfiar a ponta na madeira da mesa, alterando os dedos. Era uma brincadeira perigosa, mas a possibilidade de ferir-se era remota. Às vezes pensar demais era uma maldição. Suas amigas haviam seguido caminhos diferentes e ela lamentava não ter notícias. Deveria ter ficado escondida no castelo, mas sua mente não concebia a possibilidade de permanecer imóvel, sem ajudar. Ao menos seguindo Acheron, poderia saber em primeira mão como andava a perseguição e tentar atrapalhar no que conseguisse. Olhando para trás, Driana encontrou a imagem de Acheron no centro da festa, e pensou em como aquele elfo era indulgente. Grande demais, alto demais, forte demais. Cabeludo demais. Burro demais. Quando percebesse que a fada Driana não estava em fuga, ele acabaria unindo-se aos demais Guardiões e seria uma maior força atrás de suas frágeis amigas. Um arrepio correu sua espinha ao imaginar as gigantescas mãos de Acheron em volta do delicado pescoço de Joan... Ou então, uma luta entre sua força arrasadora e os gritos esguichados e perigosos de Alma, que não tendia a ser boazinha todo o tempo... Ele soltou um brado de alegria, provavelmente induzida pelo álcool, e olhou em sua direção, erguendo a caneca como um cumprimento. Por dentro, Driana quase amoleceu. Em alguns momentos, ele era tão ingênuo, tolo, e crédulo que a irritava e ao mesmo tempo encantava. Justamente ela que nunca teve o dom de ser crédula. Sua inteligência era aguçada demais para lhe permitir certas tolices. Afastou os olhos da imagem do Guardião, e fixou-os na lâmina afiadíssima da faca. Grande sorte terem chegado a Vila das Fadas justamente durante a comemoração de um casamento entre uma Fada Verde com um elfo. Fadas Verdes era a raça mais incomum entre as fadas, por possuírem pigmentação esverdeada em toda pele, cabelos e olhos. Encontrar uma é deveras difícil, casar-se com ela então, impossível, pois elas tendiam a serem solitárias e assexuadas, algumas chegando a possuir o dom de se reproduzirem sem a necessidade de um macho. O feito do elfo que conquistara o coração da Fada Verde era comemorado com uma festa animada que unira toda a vila, pois ter uma Fada Verde vivendo em suas terras é sinal de prosperidade e a felicidade era de todos não apenas do noivo apaixonado. Claro que Acheron não poderia resistir a uma festa, mesmo que estivesse em uma caçada importante às assassinas do Rei. Segundo ele, e este argumento era um dos que valia a pena anotar para não esquecer, pois era uma das grandes pérolas que ouvira sair da boca do elfo: a caçada poderia esperar, pois a fada era pequena e frágil e dificilmente andaria mais rápido que seu cavalo treinado para corridas! Ela lutou para não revirar os olhos de descaso. Esperava sinceramente que ele houvesse dito isso como uma desculpa esfarrapada para justificar sua vontade de beber e aproveitar a festa, e não como algo que realmente permeasse sua mente. A segunda opção era tão inconcebível para Driana quanto era incompreensível porque um ser preferiria horas de dança e bebidas a uma noite de sono. Muitas vezes Eleonora a chamava de chata. Driana pegou-se pensando se ela teria razão ou não. Quando adormecia era o único momento em que sua mente se acalmava e poderia descansar. Acordada sua mente jamais desligava. Era quase compulsivo ouvir, entender e ter ideias. Como agora. Se ela jogasse a faca na direção de um elfo que carregava um barril de elixir proibido nas costas, ele tropeçaria e derrubaria a bebida fumegante sobre uma fada grandalhona, de longas asas alaranjadas. Ela se assustaria e tropeçaria em Acheron, e pela posição em que o troglodita dançava, acabaria caindo no chão, exatamente sobre a foice pontiaguda que um elfo esquecera recostada contra a mesa. Sua cabeça seria perfurada e sua morte instantânea. E a culpa não seria de ninguém além dele mesmo. Por conta dessas possibilidades que Driana sentia-se tão inibida. Não era chata. Era reclusa de sua própria mente. Não era assassina. Poder livrar-se dos problemas facilmente não queria dizer que sua índole permitisse isso. Driana ouviu um ‘Eia” gritado em seu ouvido e quase pulou da cadeira, e mais que isso, quase acertou o próprio dedo. -Cuidado, garoto, essa é brincadeira de gente grande!– Acheron gritou em meio a uma risada, jogando-se na cadeira de madeira ao seu lado, uma caneca nas mãos e um rosado inconfundível nas faces bronzeadas. Estava bêbado como um gambá. E também fedia como um. Sua cabeleira longa e loura era uma bagunça e um nó sem fim. Uma crina de cavalo, pensou, amargurada. -Alguns diriam que a sua brincadeira também é para elfos adultos.– Ela ironizou olhando de modo azedo para a caneca. -Hum, não se preocupe, Jô. Dou conta de mim mesmo. Amanhã cedinho estarei de pé e pronto para outra. E você? Ainda continuará com essa carranca séria ao amanhecer? Driana sabia que Acheron não esperava de fato uma resposta. -Penso em como será a partida para a Nascente do Rio Branco. Não me agrada acampar por essas terras.– Ela jogou a isca esperando que ele mordesse o anzol. -Por quê? Já esteve nessas bandas? – Acheron não estava de fato interessado, pois a bebida forte turvava sua mente. Era um bom momento para colocar ideias em sua cabeça oca. Fazê-lo crer que as ideias partiram de sua própria mente! -Todo mundo mágico sabe que a Nascente é um lugar que deve ser evitado. -Hum, bobagem. Sei o que dizem. Pura crendice.– Ele desdenhou. -E o que dizem? – Questionou interessada. Acheron bebeu mais um pouco da bebida e arrotou. Foi um som desagradável, e o um halito que Driana dispensaria ter aspirado. -Dizem que a Nascente revela todos os segredos. Eu sei que é verdade. Já vi acontecer – ele contou em tom de segredo – não existe melhor lugar para levar uma fada mentirosa...– Ele mesmo riu de sua piada, sem saber que o assunto era sério. Driana sentiu-se imediatamente ofendida. Primeiro, por supor que tal machismo em relação ao seu sexo era inconcebível. E segundo, pois ela própria era uma fada mentirosa! -Não tem medo que seus segredos sejam revelados, Acheron? – Perguntou, destilando veneno, na esperança de descobrir algum pobre do passado do elfo que pudesse usar no futuro em uma barganha. Sorte sua Acheron estar bêbado demais para notar seu tom mais suave, quase meloso. Às vezes precisava se policiar para não soar romântica demais, ou feminina demais. -Segredos? Não guardo segredos. Sou senhor da minha vida, garoto. Não devo nada a ninguém. Mentiras são para os ratos. Porque eu mentiria? – Ele foi sincero, e ela sorriu. Era um sorriso de quem apreciava saber que havia neste mundo uma criatura capaz de não ter segredos. Quem sabe a verdade fosse própria das mentes singelas? Muitas vezes Driana achava que mentir era a melhor solução quando se é tão criativa. Enfeitar um pouco a realidade, para ocupar a mente com algo divertido, talvez? No entanto, neste exato momento de sua vida a mentira era necessária para a sobrevivência. Acheron seguiu bebendo, sem reparar no rapazola que estava perdido em pensamentos. Em determinado momento, aflito com aquela brincadeira perigosa, Acheron segurou sua mão, impedindo-o de continuar. Jogou a faca na mesa e Driana não disse nada. O toque de sua mão a deixou muda. Nunca estivera muito próxima a elfos. Somente Tubã, amigo de infância, criado no Ministério do Rei ao seu lado, e era o único elfo macho com quem convivia. Mas Tubã não lhe despertava interesse como macho. Surpresa pelo pensamento inesperado recriminou-se. Tão pouco Acheron chamava sua atenção como elfo! Sem notar a expressão de Driana mudar, Acheron desviou os olhos dos seus: - Ei, fada!– Ele rapidamente esqueceu-se de Driana, chamando atenção de uma fadinha mirrada e gorduchinha. A fada estava tão corada quanto Acheron, uma taça na mão, e não ocultou risinhos contentes ao ser notada pelo Guardião. -Me diga querida Dorotéia, onde um elfo cansado pode encontrar um leito para passar uma noite? – Ele guinchou com seu vozeirão e a fada farfalhou suas curtas asas, num voo raso até eles. Mal afastou os pé do chão, e Driana invejou-a duplamente. Primeiro, por desfrutar da liberdade de ter suas asas e segundo... Por motivos óbvios demais para sua mente privilegiada se aventurar em ponderações que a levaria a sentir medo de si mesma e de suas vontades. -Eu fico com a estrebaria.– Driana disse antes mesmo que ele perguntasse. Como se não pudesse adivinhar suas frases feitas, satirizou em sua mente. Acheron lhe presenteou com um sorriso preguiçoso. Gostava do garoto por conta disso. Não precisava falar, pois o entendimento sempre era rápido. -Beba, garoto. Um pouco de elixir deve adoçar sua língua – ele riu e partiu, levando pela fada consigo. Driana acompanhou a imagem com pesar. Acheron apertava as carnes opulentas da fada e a fêmea ria, enquanto se contorcia e se roçava no elfo. Esperando que Acheron tivesse razão, Driana pegou a caneca esquecida sobre a mesa e provou o elixir proibido. Era uma bebida banida das imediações do Reino, mas amplamente consumida nos vilarejos. Diziam as más linhas que os ingredientes secretos, e na sua maioria mágicos, nublava a mente e confundia os sentidos. Que seu efeito poderia ser devastador sobre um elfo ou fada de bom juízo. Depois de provar um gole, e limpar a boca com a manga da túnica, Driana fez uma careta de desgosto. Quanta tolice. Vinho fedido com algo apimentado, talvez especiarias. Somente alguém de mente tacanha para se impressionar com isso. Driana deixou a mesa, guardou a faca no cinturão de couro e ajeitou a túnica. Puxando as calças, pois eram longas, saiu andando em meio à festa. Elfos e fadas riam e comemoravam, mas Driana não tinha nada para festejar. Na solidão da noite, chegou à estrebaria e ajeitou-se junto aos cavalos. Outra vez sua mente pensou em alternativas menos sofridas para livrar-se de Acheron. A cela do cavalo, por exemplo. Acheron sempre descuidava dos tratos com os cavalos, relegando-os a Jô, o garoto que o acompanhava para ajuda-lo nesses simplórios cuidados do dia a dia. E esse garoto no momento era o disfarce de Driana. Ela poderia deixar a cela frouxa, não poderia? Agoniada com esses pensamentos insistentes que a perseguiam em sossego, virou-se de lado nas palhas e fechou os olhos, rezando para adormecer e parar de pensar, por um segundo que fosse Driana queria parar de pensar tanto...
Servo de ninguém
A criatura dormia sobre o feno, com expressão de pura paz. Acheron tentou não fazer muito barulho enquanto catava seus pertences espalhados pela estrebaria e socá-los dentro de uma bolsa de couro.
Era um alívio saber que seu ajudante era tão capaz de levar-se por prazeres mundanos, como o próprio Acheron era facilmente levado! Em seu sono, o rapazola moveu-se e começou a sussurrar. Acheron alargou o sorriso ouvindo o nome “Lora” escapar em suspiros. Pelo visto não havia sido apenas ele a sucumbir ao elixir proibido e aos cuidados de uma fada carinhosa. Sentia-se menos tolo sabendo que Jô era tão normal quanto ele. O rapaz era muito esperto, e por vezes tendia a demonstrar superioridade ao falar com ele, e com outros. Ontem mesmo, ao chegarem a Vila das Fadas, durante a conversa amistosa e toda a hospitalidade que receberam, o garoto mantinha-se distante, como se fosse bom demais para estar entre seres tão simples. Como se considerasse todos eles estúpidos demais para merecerem sua atenção. Acheron ignorou os sonhos do rapaz, e começou a cuidar do cavalo. No começo precisou do rapaz para conduzir o trato do seu cavalo. Era um Guardião, mas era preguiçoso quanto aos cuidados domésticos. Alguém para cozinhar e limpar, alguém para lembra-lo de coisas básicas, como lavar roupas e paradas para dormir. Quando em uma missão Acheron tendia a não perder tempo consigo mesmo. Com exceção de algumas paradas para comer, beber e se divertir. Ele era cético quanto a essa caçada. Mas não precisava pensar nisso agora. Um olhar para Jô e ele maneou a cabeça. Era um rapaz pequeno, de pé o topo de sua cabeça mal alcançava seu ombro. E o topo da cabeça do rapaz lhe era um mistério, pois usava um gorro de duende que impedia de ver seus cabelos. Pelas sobrancelhas negras, suponha ser moreno. Possuía olhos arregalados, azuis escuros, que oscilavam entre um azul profundo e um azul claro, dependia da posição do sol. Traços muito angelicais para assegurar masculinidade. Sua sorte era ser tão jovem e contar com o frescor da juventude, ou teria dificuldades para cativar a atenção de uma fêmea. Em alguns momentos suas mãos ossudas e seu pescoço suave eram tão delicados que quase causava aflição em Acheron ao vê-lo carregar sacos pesados e puxar as rédeas do cavalo. Um olhar espichado para o gorro marrom de duende que o rapaz usava e Acheron pegouse meditando que deveriam ser piolhos a causa de tamanho zelo com a própria cabeça. E se esta era a causa do uso insistente de um gorro de duende, conhecido por grudar-se a cabeça e não soltar a menos que o ser mágico usasse de poções, não seria Acheron a tentar desfazer-se da peça de vestuário. Só de pensar em piolhos em seus longos cabelos, sentia um tremor por dentro. Não era vaidade que o fazia manter cabelos em sua cintura. Era sua descendência. Sua gente. Ser um dos últimos de uma geração quase extinta de elfos não queria dizer que baixaria a guarda e deixaria os velhos costumes morrerem. Um dia teria filhos e essas crianças aprenderiam a seguir os costumes de seu povo e ensinariam para seus filhos e filhas e desse modo, mesmo que o sangue se perdesse, ainda assim, os costumes se manteriam intactos. -Lora...– O sussurro baixo e insistente fez Acheron pegar um cajado, que Jô carregava para cima e para baixo, como sua arma de luta, o que por si só era patético ao ver de Acheron que duvidava que a criatura pudesse defender-se em uma luta e cutucou-o no pé até ver o garoto se remexer irritado, tentando desfazer-se da insistência de quem o acordava. -Deixe-me em paz, Lora.– Jô insistiu e sentou-se irritadíssimo, olhando em volta, notando onde estava. -Eu disse que acordaria cedo, garoto.– Acheron retrucou, largando seu cajado e apontando para os cavalos.– Levante-se! Tem muito trabalho para ser feito e quero partir antes do nascer do sol! Por um segundo Driana não compreendeu onde estava. Tinha total certeza que ainda estava em seu quarto coletivo no Ministério do Rei, sendo infernizada por Eleonora em uma manhã de domingo, quando raramente não eram vigiadas e poderiam dormir mais que algumas poucas horas por noite. Eleonora sempre era a primeira a acordar e querer ver o sol nascer. Uma praga tentando tirá-la da cama cedo, quando tudo que Driana sonhava era aproveitar a rara oportunidade de dormir mais um pouquinho... Sorte sua ter chamado pela amiga usando seu apelido. E maior sorte ainda, Acheron não ser um primor de inteligência. Um erguer de sobrancelha e Acheron entendeu que o garoto pensava algo depreciativo sobre ele. E pensava mesmo. Levantando-se e limpando as palhas que estavam presas na roupa, Driana olhou-o de algo a baixo. Vestido, pronto e limpo. Melhor dizendo, limpo era questão de ponto de vista. Se houvesse uma oportunidade, Driana gostaria de caçar os milhares de piolhos que deveriam se esconder naquela juba que Acheron considerava e tratava como cabelos. -Rápido, garoto. Quer que eu faça seu trabalho? – Acheron reclamou como sempre incomodado pelo olhar do rapazola. Era como se o analisasse e não gostasse do que via. -Vou me limpar. Eu sim aprecio um pouco de água e sabão...– Ela resmungou se afastando. Acheron ouviu. É claro que ouviu. Armazenou mais este desaforo para que no futuro pudesse lhe dar o troco. O rapaz era atrevido demais para que mal saíra dos cueiros e não sabia lidar com uma espada em mãos. -Tome – Acheron gritou e num reflexo ágil jogou parte da pesada armadura em sua direção. Driana mal teve tempo para segurar, o corpo se curvando perigosamente perto do chão, na tentativa de não derrubar a preciosa armadura do Guardião. Mesmo ela, era capaz de reconhecer o direito legítimo de existir de uma armadura mágica. Acheron jogou o restante e ela saiu da estrebaria trocando os pés, mal conseguindo levar tamanho peso. Maldito! Furiosa, Driana avistou uma fada em seu trajeto para o poço de água que havia perto da estrebaria e a jovem apontou um trecho de veia de água que corria dentro das imediações da Vila. Era a mesma fada gordinha com quem Acheron passara a noite. A fada seguiu ao seu lado, levando consigo uma trouxa de roupas para lavar. Ela não tocava os pés no chão, usava as asas. E novamente Driana a invejou. Mantendo-se longe da fada, temendo que pudessem reconhecer nela o cheiro de fêmea, Driana escovou e lustrou o ouro da armadura durante muito tempo. A armadura de Acheron era menos enfeitada que as armaduras dos outros nove Guardiões. Uma proteção que cobria o lado esquerdo do seu peito, e o ombro. Contava com duas peças longas que protegiam os punhos e mãos, e o mesmo com os tornozelos e pés. Quando vestia a armadura Acheron lembrava um animal selvagem. Sua cabeleira loura e displicente, os pelos exagerados na lateral do rosto, pois ele não tinha barba, mas mantinha longas costeletas. Era um homem peludo. E pela satisfação e cantarolar da outra fada, essas eram características que muito agradavam uma fada. Enjoada desses pensamentos, terminou o trabalho, lavou-se o melhor que pode sem tirar as roupas e retornou. O caminho até a estrebaria, sob o sol que nascera há pouco tempo, secou rapidamente suas roupas. Driana não disse nada ao jogar sua armadura no chão, perto dos pertences de Acheron. Era raro encontrar um Guardião que não tivesse chiliques por conta de falta de zelo com sua armadura, mas Acheron era assim, naturalmente despreocupado com tudo. Driana coçou sob a toca que usava, lamentando não poder livrar-se daquilo. Seus cabelos eram longos, negros e sedosos e ela ansiava por lava-los livrando-se da constante coceira. Acheron teve a certeza que aquela cabecinha cheia de pensamentos estava também coberta de piolhos e torceu o nariz: -Mantenha esses piolhos bem longe de mim, garoto.– Avisou. -Eu não tenho piolhos!– Driana disse chocada em sua vaidade. -Não é o que parece. Essa touca, essa coceira toda... Eu lhe aviso, e escute bem o que dito, se eu pegar piolhos, você estará em uma grande enrascada, moleque. Engolindo uma resposta que deixaria toda a cabeleira de Acheron em pé, Driana começou a cuidar dos cavalos e simplesmente o ignorou. Confessava que nunca antes tivera contato com cavalos. Jamais subira sobre um, ou cuidara de seus tratos. Mas sua mente era capaz de ver uma única vez e jamais esquecer. Somente de olhar os Guardiões selarem seus cavalos, Driana já sabia fazer. -Vamos – Acheron mandou, empurrando-a em seu caminho, passando por ela sem delicadeza alguma – Quero estar na Nascente antes do anoitecer. -Eu não compreendo. Porque acha que a fada fugitiva estará na Nascente? – Perguntou irritadíssima ao subir com dificuldade e sem nenhuma elegância no lombo do animal. -Eu não acho.– Ele afirmou, levando o cavalo com tanta facilidade que Driana o invejou. -Eu insisto. Porque a Nascente? – Perguntou petulante. Acheron olhou para trás e encarou o rapazola. Poderia lhe responder, claro que poderia. Mas a tentação de frustra-lo era grande demais para resistir: -Porque eu quero. Agora cale a boca e mantenha os olhos abertos. Não quero saber de resgata-lo de algum buraco.– Avisou com falso mal humor. As terras em torno da Vila das Fadas eram esburacadas e repletas de pedras e seres mágicos rastejantes. Por conta disso tantos buracos. Eram esconderijos de cobras, filhotes de lagartos e muito raramente de ovos de dragão. Quase extintos, os dragões eram raridade mesmo no mundo mágico. Arcando com a indignação de não ter sua resposta, Driana fechou a expressão e se recusou a falar com ele pela hora seguinte. Não viu o sorriso na face de Acheron, mas se visse saberia do prazer que ele sentia em frustrar seu acompanhante de viagem. Sua decisão de manter silêncio em represaria ao pouco caso com que Acheron a tratava durou pouco. Uma ideia surgiu em sua mente, e quando isso acontecia, Driana perdia o controle sobre suas decisões. -Acheron? – Chamou com voz mansa, para não irrita-lo. Um resmungo foi sua única resposta. Driana fitou as costas do Guardião, e seguiu falando: -Você conhece a lenda do surgimento do mundo mágico?
Querendo mentir
Mesmo uma mula sem intelecto como Acheron demonstraria interesse diante desse assunto! Um pequeno sorriso presunçoso bailou na face de Driana quando notou que fisgara seu peixe.
Ele tolheu as rédeas do cavalo e trotou mais lento, emparelhando ambos os animais. -Existe uma lenda sobre isso? – Perguntou-lhe. -Você não sabia? – Fingiu surpresa. É claro que não havia lenda algum, era apenas uma invenção para tentar manipular sua
mente e plantar uma semente que germinaria mais tarde. Se é que aquele solo era produtivo... -Não. Conte-me dessa lenda, Jô. Driana sorriu. -Bem... Diz à lenda que uma humana fugiu do seu Rei, sendo acusada de um crime que
não cometeu. – Ele pareceu incomodado com o assunto, mas ela seguiu falando – Não importava sua inocência, ela foi culpada e julgada e seu crime merecia punição de morte. Vários humanos tentaram apelar e provar sua inocência, mas a Rainha era mais forte, era má e decidida a destruir a jovem. Não deu outra. Ela fugiu para proteger sua vida. Para proteger sua existência.– Fez uma pausa dramática para causar ansiedade.– Seu nome era Elisa – mentiu outra vez – Era muito bela. E havia um humano que a amava. Ele deu sua vida para que ela escapasse. Elisa jamais soube de sua morte. Ela escondeu-se nas montanhas. Montanhas de árvores e lagos. Relvas e pássaros. Animais e criaturas sem nome. Passou muito medo, muita fome, muita sede. Muitos meses de sofrimento... Até que um dia, ela foi encontrada. Não pelos humanos. Mas pela natureza. Passou a agir e sobreviver como se fosse um dos animais. Comovido de seu sofrimento, o Rei de toda natureza, aquilo que não vemos, mas sentimos quando olhamos para as flores, para a o verde, para o céu azul... Esse ser carregado de poder apaixonou-se pela humana e decidiu torna-la parte de si. Era o único modo de salvá-la da loucura e poder toca-la, pois seu poder era tão grande que se ousasse toca-la a mataria.
Outra pausa dramática. Acheron não afastava os olhos de Driana. -Está acompanhando minha história, Guardião? -Sim– ele respondeu, como alguém que está sendo hipnotizado. -Elisa foi tocada por um poder tão maior que ela... Seu corpo humano deixou de existir e
ela passou a ser uma essência superior. Mas faltava a ela o desejo de ser apenas um ser, sem carne e sem ossos. Ela sentia tristeza por não ter sua vida humana. Então, apaixonado, o pai de toda a natureza devolveu-lhe o corpo humano, e ela passou a desfrutar dos dois mundos. Carregava poder, pois assim ele poderia encontra-la e toca-la como amante, e também possuía seu corpo, para interagir com aqueles que a amavam.
-Ele a transformou em uma fada? – Acheron perguntou interessado. Como uma criança que acompanha uma linda história de ninar, pensou Driana. -Exato. Os anos passaram, e o amor cresceu novamente no coração de Elisa. E ela
escolheu um humano. O pai de toda a natureza não possuía egoísmo e a deixou livre para esse amor. Foi quando nasceu a primeira cria. Sangue humano e sangue mágico. Era um elfo. Depois uma fada. Então, a vida começou a seguir e seguir... E tantas raças se misturaram, tantos biótipos diferentes... E chegamos até aqui. – Olhou em volta, como quem sente saudade de um tempo passado.
Com o canto do olho mediu as reações de Acheron. Era peculiar avaliar algo sonhador na face tão rude e máscula de um homem criado para proteger e matar se necessário. Acheron era tão bruto da cabeça aos pés que qualquer suavidade parecia deslocado em sua face. -Quer saber o que aconteceu com a Rainha que tramou contra Elisa e causou sua fuga? Ele apenas acenou concordando. -Ela destruiu seu povo. Levou-os para a guerra e o sofrimento. Anos de mentira, privações e dor. Os humanos eventualmente devem ter notado que a Rainha era mentirosa, mas era tarde demais para eles. Poucos sobreviveram, e estes poucos povoaram o mundo todo. Por isso não somos um grande mundo, e sim pequenos mundos. Por isso as criaturas mágicas não podem se revelar. Por isso alguns humanos, também guardam segredos. -Essa história não pode ser verdadeira – ele desconversou como quem acorda de um sonho. -E porque não? Você sabe de onde viemos? – Desafiou-o. -Eu sei de onde eu vim– ele afirmou resoluto. -E essa é a resposta para uma indagação tão profunda? Uma linhagem não explica toda uma existência – insistiu. -Crer que uma criminosa possa ter dado origem ao mundo mágico também não explica muita coisa.– Foi severo – além disso, o que sei já me basta. Engolindo uma resposta mal criada, Driana perguntou: -E de onde vem, Acheron? De onde você vem? – Perguntou, tentando sufocar o pensamento que gritava em sua mente sobre ter curiosidade a respeito dele. Acheron olhou para frente e por alguns instantes, imaginou que ele não responderia. -Nasci filho de um Rei – ele explicou.– Não gosto de falar disso. -É mesmo? – desdenhou– Acho difícil acreditar que o filho de um Rei possa ser um simples Guardião! -Quando nasci meu pai não era mais Rei. Ele foi morto quando as terras distantes e geladas foram invadidas. Não falo daqui. De outra parte do mundo. Onde tudo é frio e o inverno perdura por todo um ano. Eu mal tinha nascido e minha mãe foi escravizada por aquele que tomou o poder. Anos mais tarde fui levado para ser treinado junto aos escravos. Misturado aos demais, meu nome e minha linhagem passou a ser desconhecida.– Ele contou com frieza na voz. Mesmo assim, os olhos de Driana pegaram o movimento de suas mãos graúdas. Ele apertava as rédeas com força. Como se assim pudesse dar vazão ao seu ódio. -Escravo? Foi escravo?– A palavra escapou de sua boca e ele olhou em seus olhos. -Quando fiz doze anos, usei de minha posição de escravo para me aproximar do Rei e mata-lo. Matei muitos elfos que o protegiam, e os demais escravos se rebelaram ao ver minha luta. Eu sempre assustei meus inimigos usando minha espada e minhas mãos.– Ele olhou para as próprias mãos com algo perigoso no olhar. -Venceram? – Era uma pergunta tola, mas ela não conseguiu pensar em uma articulação mais apropriada. -Sim, mas não há vitoria quando o sangue mancha suas mãos. Alguns ficaram para reerguer o reino, outros partiram. Quando constatei que minha mãe não vivia mais, parti. Segui os elfos que desejavam uma nova vida. -Quantos anos tinha quando chegou ao Reino de Isac? -Dezesseis.– Ele baixou os olhos e ela sentiu um aperto no coração. -Quantos anos têm agora?– Insistiu. Um sorriso sádico e ele maneou a cabeça: -Não é capaz de adivinhar? -Nenhum Guardião recebe uma armadura antes dos vinte anos. Mas você parece ter mais. Trinta? -Nem tanto, nem tão pouco – ele satirizou e ela sorriu. Melhor não dizer a ele que poderia adivinhar sua idade. Vinte e seis, ou vinte e oito? Acheron tinha uma pulseira no punho, onde havia vinte e oito tiras de couro trançadas, e se ele era tão supersticioso, como parecia ser, deveria ser uma tira para cada ano de sua vida. -Não deve ter sido fácil adaptar-se a outra vida. Conviver com outros costumes. Ser submisso depois de ter nascido com sangue real.– Jogou verde, para saber mais sobre ele. -A pele de um elfo vindo das terras geladas não se adapta a essa região. Muitos não sobreviveram. Os anos calejaram minha pele. Se houvesse me visto quando cheguei... Era mais pálido que você, matusquela. Tudo fazia sentido. Driana sentiu muita vergonha de ter pensando mal de seu hábito de manter cabelos longos e características tão singulares. Era uma referência ao seu povo. Algo digno de elogios e não deboche. A pele de Acheron era muito queimada pelo sol. E ele carregava uma argola na orelha esquerda. Agora ela via esses trejeitos com outros olhos. -E os piolhos e os carrapatos também faziam parte da sua tradição?– Ela perguntou para fazê-lo sorrir.– Trouxe-os consigo? -Temo que não. Não havia nem um, nem outro, de onde eu vim.– Garantiu-lhe. -Nunca pensou em voltar? – Perguntou sem rodeios. Não obteve a resposta esperada. -Sua vez, garoto. Eu sei que não é nascido no castelo. De onde você é? -Hum? – Ela pensou em fazer-se de boba e fugir do assunto. -Estar no Castelo no momento da minha partida, não quer dizer que nasceu no castelo. De onde você veio e o que fazia nas terras do Rei Isac? -Eu sempre estive no castelo...– Ela começou a falar. -Mentira. Nunca o vi nas imediações.– Ele corrigiu-o na mesma hora.– Sei de tudo que acontece nos limites das terras do Rei a quem sirvo. Não tente mentir. Não tem ideia do que faço com os mentirosos. Driana sentiu um arrepio subir sua espinha. Engoliu em seco. -Eu nunca entrei nas imediações do castelo. Mas sempre andei por perto. Servia a um senhor do comércio. Um duende velho e mal visto no castelo. Por isso não quis dizer de onde vinha. Muitos não gostam dele. -O velho duende Baltazar? – Ele perguntou surpreso – O trapaceiro. Ainda me deve dinheiro por esse cavalo de meia pataca. Prometeu-me um cavalo de qualidade e desapareceu com meu ouro, deixando esse animal como retorno.– Lamentou. Driana sentiu alívio imediato ao notar que Acheron conhecia alguém com essas características. A maior parte dos duendes tende a ser trapaceiro e mal visto entre elfos. Sendo assim, foi uma jogada pensada. -Eu trabalhava para ele. Por necessidade.– Achou que o assunto acabaria por ali. -E de onde é? É elfo, e não duende. Embora... Seja um elfo estranho.– Fez questão de apontar esse defeito. Ainda bem, pensou Driana. Sua vaidade de fêmea agradecia ser considerada como um macho estranho em aparência. Detestaria saber que se saía melhor como elfo, do que como fada! -Meu pai me criou até os meus dois anos - ela contou e essa era uma verdade.– Me criou sozinho. Disseram-me que trabalhava com metal. Mas não me pergunte sua profissão, não me lembro de nada. Quando a vida ficou difícil demais me entregou aos cuidados do...– Ela parou antes de contar mais do que deviera -... Duende Baltazar. A história verdadeira, era que seu pai a deixou no Ministério do Rei, sabendo que embora fosse ser privada da liberdade, teria alimento e proteção e quem sabe a chance de ser escolhida para um casamento. Driana não lembrava exatamente de toda situação do seu abandono. Lembrava apenas do que os carcereiros e carcereiras da clausura contavam a cerca do seu abandono. -A vida de um órfão é sempre sacrificante – ele concordou, pensando em seu passado. Driana finalmente havia conseguido levar a conversa para o caminho que desejava seguir. Por isso, falou: -O que você pensa sobre as fugitivas?
Refúgio dos inocentes
-Não preciso ter opinião sobre elas – ele foi taxativo – Preciso encontrar a fada Driana e entregá-la aos Conselheiros. Essa é minha missão. -Simples assim? – Perguntou surpresa com sua mente ser tão limitada. Acheron grudou os olhos sobre o rapaz. Nunca era tão simples assim! -Rainha Santha foi clara quanto ao seu testemunho. As quatro fadas atacaram e assassinaram o Rei. Eleonora é a assassina. As demais são cúmplices. Encontrar Driana é minha missão. Julga-la e condena-la é missão dos Conselheiros. Fazia sentido, pensou Driana. -É também missão dos Guardiões. Sei muito bem que os Conselheiros não podem decidir nada sozinhos! Está omitindo sua posição desde já! -Sou um Guardião. Não omito minha posição. Mas não decido individualmente. Somos um coletivo e é desse modo que deve ser. Não tente mudar minha cabeça, garoto. Não gosto disso. Surpresa por ele ter notado o que fazia, Driana pensou um instante na melhor estratégia a seguir. Remexeu-se sobre o cavalo, sentindo o efeito de dias sobre o lombo do animal. Saber tratar dos animais não minimizava os efeitos da cavalgada em sua carne. Infelizmente seu traseiro não se acostumava com a cela e não se importava se a lógica de sua mente entendia ou não o funcionamento do mesmo. -Diz que os Guardiões são uma unidade.– Ela começou a falar. -Eu não disse isso – ele contrariou.– Decidimos em grupo. É diferente. -Não. Não é diferente, se não pode decidir por si mesmo, é porque não é um individuo e sim uma unidade. Um grupo sem vontade e sem capacidade de decidir por si só. -Seguir regras não faz de mim um idiota.– Ele negou, sem encontrar fortes argumentos para lidar com a fala mansa do rapaz. -Depende das regras. Causar danos ou permitir que causem danos a qualquer criatura inocente, por ser incapaz de seguir a própria mente, faz de você um completo imbecil.– Ela disse com pouco caso. -Viver ao dado de Baltazar fritou seus miolos, Jô – ele fez o cavalo trotar mais rápido – Regras são necessárias para a sobrevivência de um povo! -As mesmas regras que não puderam garantir a sobrevivência de seu próprio povo? – Ela instigou. O cavalo de Acheron pinoteou e ela puxou as rédeas de seu próprio cavalo um pouco assustada de ter a raiva de Acheron voltada para si. Não podia esquecer que Acheron a via como um elfo. E elfos costumam resolver suas brigas com lutas e não com palavras. Ainda mais os machos criados para a guerra! -Não foram as regras que causara a destruição do meu povo. Fora as pessoas más.– Era uma explicação tão inocente que o coração de Driana se apertou. Às vezes a simplicidade das palavras mostra mais sobre fragilidade e vulnerabilidade do que os mais profundos monólogos. -Eu discordo. Talvez as regras em demasia, ou o seguimento cego de todas elas, que tenham causado magoa e dor, até que o ódio pudesse nascer e florescer nos corações, causando a revolta. Talvez... -Talvez você fale demais para quem é pago para carregar espadas e limpar bosta de cavalo! – Ele jogou em sua cara, levando o cavalo para longe. Ótimo, Driana conseguira deixar a fera furiosa. Seu plano era colocar ideias em sua mente, esperando que num futuro próximo, Acheron pudesse ao menos ouvir sobre o assunto! -Eu acredito que as criaturas devem ser livres ao menos para pensar!– Ela gritou, não largando o osso de modo algum! -Pensar? Pensar em sonhos? O mundo que descreve, garoto, é um mundo de sonhos! A vida real é regada a sangue e morte e neste instante precisamos punir as assassinas antes que a ordem se perca e mais fadas e elfos sejam mortos! -Verdade? Quatro fadas insignificantes? Sem asas, sem poder, sem esperanças? Fadas da clausura, que na sua maioria nunca conheceram sequer as imediações do castelo? O que fadas desprotegidas podem contra o poder de Guardiões? -Defende as assassinas? – Ele perguntou surpreso. Notando seu engano, Driana negou com um movimento da cabeça. -É claro que não! Eu defendo a lógica da situação. Como as fadas fugiram? Alguém esclareceu este detalhe? Como elas puderam fugir da cena do crime, se não possuem asas? Acheron pensou um segundo, mas nada respondeu. -Seja franco comigo, qual a real possibilidade de poderes não desenvolvidos serem capazes de ludibriar uma fada adulta, e experiente como a Rainha Santha? Use a cabeça, elfo! -Eu acho que quem usa demais a cabeça é você. Essa conversa não tem sentido. Driana observou-o manter o trote rápido, bem longe dela. Era hora de ceder. -Porque acredita cegamente na instituição formada pelos Guardiões? De onde você vem existem Guardiões? -Não - ele respondeu de má vontade, sem olhar para trás.– Mas quem sabe se existissem... Acheron calou-se e Driana não pode fingir não saber o que ele diria. Se existissem Guardiões para guardar e proteger seu povo, talvez não houvessem passado por tantas desgraças e ainda houvesse felicidade na vida de Acheron. -Como é escolhido um Guardião? – Perguntou, mudando drasticamente o assunto para não quebrar o frágil elo de companheirismo que crescia entre ambos. Era esse elo que futuramente poderia ajuda-la a manipular Acheron e conduzi-lo para o caminho que desejasse. Uma risada rouca e viril foi sua resposta, então um olhar curioso para trás e ele tornou a falar, na voz um toque de humor: -Interessado em testar sua capacidade de luta, garoto? -De modo algum– ela negou. A expressão do menino era engraçada e Acheron abrandou a expressão. Não era saudável brigar com um companheiro de viagem. Ainda mais um que lhe trouxessem boas lembranças. -Existem duas formas de chamar atenção sobre si e ser escolhido para o treinamento de Guardião.– Começou a contar.– A mais fácil é nascer descendente de Guardião. Egan, o Primeiro Guardião, é filho de Túlio que no passado ocupava esse cargo. Sua descendência lhe garantiu o poder, mas seu talento e capacidade o fizeram ser aceito de fato. Mas é inegável que ajuda muito ter sido treinado a vida toda para isso. -E a segunda forma de ser aceito Guardião? - Sabia a resposta, mas queria ouvir dele. Medir seus sentimentos. Não havia ressentimentos ao falar de Egan, e sua situação privilegiada. O que era raro. A inveja é própria do ser vivo. -Merecimento. Poucos chegam a isso. Acheron era do tipo que preferia o silêncio a conversar. -E quantos de vocês são Guardiões por merecimento? - Insistiu. -Fala demais, Jô. Cansa meus ouvidos.– Ele encerrou a conversa. Driana lutou para não responder a altura. Seu traseiro reclamou da dor, e ela se remexeu na cela mais uma vez. Se ao menos suas asas nascessem... Perdeu-se em pensamentos tentando achar uma solução para seu traseiro e o desconforto da cela. Acheron fingia não notar que o rapaz não parava quieto sobre a cela do cavalo. Dava-lhe nos nervos. Mas um Guardião deve saber controlar os nervos. Nada de demonstrar sua irritação. Era metade do dia quando eles chegaram a uma clareira e Acheron conduziu o cavalo por entre as árvores apeando. Driana quase chorou de alívio. Apeou também e passou a cuidar dos animais enquanto o Guardião se jogava sob a sombra de uma árvore para descansar. -Estou com fome.– Ele disse como uma ordem. Driana precisou contar até mil para não responder a altura. Era seu ajudante. Cuidar de sua comida era parte do seu trabalho. Lutando contra a dor entre as pernas, pois estava completamente assada do atrito com a cela do cavalo, Driana andou estranhamente enquanto arrumava tudo para o maior conforto de seu senhor. Um bom ajudante não fala, não ouve e não enxerga nada além dos desejos de seu senhor. Guardando o rancor para si, preparou tudo e quando se aproximou para servi-lo, Acheron ria de sua situação: -Existe um córrego atrás daquelas pedras – apontou o lugar – Jogue um pouco de água fresca nas assaduras. Vai ajudar com a dor. Ele sabia. Que ódio, pensou Driana. Que ódio! -Poderia aproveitar e banhar-se, Acheron. Um pouco de água e sabão não farão sua pele enrugar. -Um banho por semana está de bom tamanho. Aposto como sou mais limpo que você. -Eu duvido – ela disse com amargor enquanto se afastava. O som do riso de Acheron acompanhou-a enquanto cuidava da comiga e servia-se para comer. Fato raro em sua vida, mas Acheron despertava-lhe tanta raiva, que ela quase se esquecia de sua missão e de seu verdadeiro interesse em acompanha-lo. Queria tirar esse elfo do caminho correto. Era esse seu interesse. Desvia-lo de seus planos e quem sabe, usando de sua inteligência, trazer para o lado das fadas uma besta fera criada para a luta? Sim, um protetor Guardião seria a salvação de suas irmãs! Olhando para ele, pegou Acheron fazendo o mesmo. Ele estreitou os olhos como quem pondera sobre os pensamentos do seu ajudante. O garoto era estranho, pensava Acheron. Lembrava-lhe outro menino, um escravo que crescera ao seu lado, como prisioneiro. Tinham doze anos, e ele não sobreviveu a rebelião. Os anos fizera Acheron esquecer-se dele, e até mesmo de seu nome, mas lidar com Jô despertara lhe essas lembranças adormecidas. Adormecidas e perigosas, pois lhe fazia pensar em sua vida perdida. Em seu passado. Nas terras distantes que talvez jamais voltasse a ver... -Existe amizade entre os Guardiões? – Driana perguntou de onde estava. Acheron pensou um pouco na resposta. -Creio que sim. -Crê? Como é possível não saber se são amigos ou não? – Estranhou. -Vivemos lado a lado, servindo ao nosso Rei. Em primeiro lugar o dever, e neste caso, não existe amizade, apenas obrigação – ele foi taxativo. Displicente, um braço atrás da cabeça, o prato apoiado nos músculos da barriga, a outra mão empunhando o talher. Acheron era tão livre de amarras, tão entregue ao seu físico... De um modo que Driana jamais conseguiria ser. Era isso, pensou Driana. A grande diferença entre eles: Acheron era carne e instintos. Ela era toda feita de pensamento e ponderação. Um faz, o outro pensa. -Isso não responde minha pergunta – continuou comendo, estava faminta, mas não perdeu um olhar. -Hum– ele respondeu com um som que lembrava mais um rugido. Boca cheia, mastigando sem pressa.– O que você define como amizade, garoto? -Não sei. A amizade pode ser definida de muitos modos. Para você, o que é amizade? Acheron rugiu um palavrão e terminado seu prato, deixou-o no chão perto de si. -Você faz muitas perguntas. E faz muitas voltas. Diz sem querer dizer, e isso me irrita. Eu quero dormir. Faça seu trabalho e me acorde quando os cavalos estiverem prontos para seguir. Era uma ordem, mas também era uma fuga. Um suspiro de raiva e Driana observou-o atentamente. Aquele elfo não era apenas grandalhão. Era uma muralha por dentro também. Sua aparente simplicidade escondia decisões férreas. Para mudar sua cabeça, precisaria de uma machadinha, pois abrir seus miolos era a única forma de plantar uma ideia naquele solo infértil! Furiosa pela ineficácia de seu plano, Driana cumpriu suas ordens e foi procurar alívio para suas assaduras na água do córrego. Ao regressar Driana trazia consigo mais uma alternativa. Se Acheron era burro demais para ter ideias próprias, então, ela precisava tira-lo definitivamente da perseguição. E não se referia a causar-lhe danos. Não, o dom de Driana era uma benção, mas também uma maldição. Na vida prática não ofertava grande utilidade, pois sua índole honesta a impedia de por em prática metade dos seus pensamentos. Mas se ela fosse tão esperta quanto achava que era, poderia conseguir descobrir os pontos fracos físicos de Acheron e usar isso contra ele. A bebida era um fraco, mas seu corpo gigante se recuperava bem dos seus efeitos. Ele mascava fumo, mas não com um vicio tão grande que precisasse disso o tempo todo. Gostava das fêmeas, mas não possuía dificuldades de consegui-las, pois por alguma estúpida razão todas ficavam felizes em agrada-lo. Então, além do seu passado, que aparentemente estava resolvido em sua cabeça, o que poderia deixar Acheron fraco? Talvez uma chantagem. Mas qual segredo esse grandalhão aparvalhado poderia carregar? Seus pensamentos vislumbraram a Nascente do Rio Branco. Era perigoso que uma mentirosa se aproximasse destas águas... Mas desse modo poderia sondar se Acheron possuía ou não algum segredo cabeludo. Cabeludo como ele. Desdenhosa de sua figura adormecida, Driana não percebeu que corria os olhos sobre ele. Da cabeça aos pés. A cabeleira loura e longa era um exagero para seu padrão de beleza. Gostava de elfos bem cuidados. Caprichosos. Arrumados. Mesmo assim, aqueles cabelos eram símbolo de um povo e ela precisava respeitar. Acheron possuía traços faciais peculiares. Nariz longo e grosso. Globos oculares largos, com ossos saltados e definidos. Olhos claros, com pouca cor, algo azul ou verde, era impossível dizer sem aproximar-se e ficar a centímetros. Seus lábios eram largos e grossos, e ele possuía uma arcada dentaria proporcional. Era um homem grandão, de ossos protuberantes. As orelhas sobressaiam pelas laterais, em meio a tanto cabelo. Longas e pontudas suas orelhas eram sempre empertigadas. Essas orelhas pareciam sempre em alerta. Acheron dissera ser de outra terra distante. Com costumes diferentes. Seu porte, seu tamanho e sua força não eram comuns aos elfos que conhecia. Ele parecia um gigante. Quem sabe, suas orelhas possuíssem maior poder que apenas enfeitar sua cabeça oca? Para testar a teoria, ousou um passo em sua direção. Pisou propositalmente em um galho, mas nada aconteceu. Uma careta de desgosto, e chegou a conclusão que não havia nada de especial neste elfo bronco. Mesmo assim insistiu em olhar. Um impulso que não podia refrear. Vestia uma pele de carneiro, provavelmente dos Campos dos Humanos, e mal lhe cobria todo o tronco. Os braços poderosamente repletos de músculos e pelos louros estavam à mostra, um deles adornado pela pulseira de couro em tiras e o outro, com ataduras feitas em pele de animal, talvez uma raposa. Era provável que escondesse uma cicatriz, pois ela via um pedaço de pele enrugada logo adiante ao fim do couro. Nos dedos nada de especial, com exceção das unhas encardidas. Outro olhar de desprezo e ela observou seus pés. Botas de couro marrom, trançadas sobre a pele cobriam até os tornozelos. A calça de tecido comum era justa e desgastada e culminava em um cinturão de metal e couro. Aquele elfo realmente gostava de usar peles. Um caçador nato. Não, um caçador por natureza, que preferia aproveitar cada pedaço de sua caça. Nada de desperdícios mundanos. Acheron matava para comer, quando necessário e não para se vestir, por conta disso aproveitava o couro de cada animal que precisasse abater. Uma índole boa. Era o que lhe faltava. Precisar usar e enganar um elfo de bom coração. Seus olhos caíram sobre os entalhes no cinturão. Ele carregava a espada, carregava um saco de pano que continha um pouco de ouro, e alguns adornos que ela não conhecia. Talvez símbolos de seu povo. Intrigada, Driana fixou os olhos nessa peça e então mais abaixo. Corou violentamente, ao notar o que exatamente examinava com tanto interesse! Era um elfo, e ela sabia como era a anatomia de um macho! Elfos e humanos eram muito parecidos nesse quesito. E Driana lera um livro sobre anatomia de humanos quando estava no Ministério do Rei e usurpara um velho livro de uma das carcereiras. Pelo visto Acheron era grandalhão em tudo... Horrorizada com esse tipo de pensamento, Driana afastou-se para cuidar dos cavalos. Por ela deixaria o bruto dormir o dia todo. Isso os atrasaria ainda mais. No entanto, ele suspeitaria de suas intenções se tramasse algo tão simples. Acheron fingiu não notar seus movimentos. Suas orelhas sempre tão sensíveis haviam captado o movimento discreto perto de si. O alarme de perigo soo em cada poro do seu corpo. Mas ele imaginou ser o moleque atrevido que cuidava de seu trabalho. Quando o movimento cessou, aguardou para ouvir o que Jô faria. Secretamente torceu para não ser necessário usar sua espada. O garoto não tinha sua total confiança. Por mais que tentasse, Acheron sentia uma pulga atrás da orelha quando pensava em Jô. Em princípio, tão prestativo e dedicado. Agora, tão desbocado e cheio de ideias. Acheron esperou para ver o que faria. O garoto foi cuidar de seu trabalho e era um alívio. Preferia não ter que se decepcionar com alguém tão jovem. Abriu os olhos e procurou pela imagem. Jô lutava com um dos cavalos, para conseguir encilhá-lo. Acheron lutou para não rir. Era uma distração e tanto ver o rapaz tentar ser útil, quando não possuía aptidão alguma para o trabalho braçal. Tornou a fechar os olhos e voltou para seu sono tranquilo agora que suas suspeitas não condiziam com a realidade.
Corra para bem longe
Durante toda a tarde não trocaram nenhuma palavra. Driana ofertava espaço para que Acheron não se irritasse ainda mais com sua insistência e repudiasse tudo que viesse a dizer no futuro.
Estavam nas imediações da Nascente. Nervosa, olhava em torno o tempo todo. A Nascente do Rio Branco revelava segredos. E ela possuía um grande segredo. Dois grandes segredos. Primeiro de tudo, era a fugitiva que Acheron procurava. Segundo não era um menino.
Acheron não era a criatura mais inteligente da face da terra, mas mesmo ele, ficaria furioso em ser enganado com tanta facilidade! Talvez a matasse antes de entrega-la para julgamento! Se fosse aprisionada, Driana tinha certeza que ao saber de sua prisão, as demais fugitivas se revelariam. Eleonora, Joan e Alma jamais a deixariam pagar sozinha por um crime! O Rio Branco fora batizado com esse nome por possuir águas esbranquiçadas. O fundo do rio era coberto por minérios de cores claras e por conta disso, sua aparência era branca. Para os humanos que se beneficiavam do desvio do rio, no Campo dos Humanos, como os seres mágicos chamavam as cidades, era apenas um rio como qualquer outro. Para as fadas e elfos, e demais criaturas mágicas, era uma fonte de energização. -Acha que o Rei sabia que tramavam sua morte? – Perguntou para quebrar o pesado silêncio. -Você não consegue manter a boca fechada, não é mesmo? – Acheron perguntou sem olhar em sua direção. -Como é possível que ninguém soubesse de um plano tão audaz? – Insistiu. Driana sabia que estava sendo chata. Era consciente que muitas vezes era chata. Mesmo quando achava que não era suas amigas tendiam a alerta-la sobre o fato de estar sendo insistente e desagradável. Mas sem elas como termômetro, era inevitável escorregar. -Tem uma teoria sobre isso, garoto? Vai falar disso eu querendo ouvir ou não? -Na verdade...– Driana aumentou o trote do cavalo, batendo os pés em seus flancos e engoliu os gemidos quando a dor em seu traseiro aumentou. Emparelhou os cavalos, animada em poder falar do assunto: -Minha teoria é simples: A fada Eleonora é muito parecida com a Rainha Santha. Eu as vi, em momentos individuais, claro, e pude constatar a semelhança assombrosa entre as duas. A fada da clausura data de vinte anos, e a Rainha subiu ao poder faz o mesmo tempo. De tal modo, me vem na mente a seguinte indagação: Qual será a aparência das asas da fada da clausura quando nascerem? Serão idênticas as da Rainha? Terá Santha sido infiel ao Rei? Traído as leis do Ministério do Rei, quando era apenas uma fada sem perspectivas? Seria essa uma razão forte o bastante para tramar contra a vida do rei e contra as fadas injustiçadas? Usá-las como escudo, ludibriar os olhos de todos e esconder seus crimes, antes que as asas de Eleonora despontem? -Tem uma imaginação muito fértil – ele sorriu descrente – É muito mais simples crer no que parece: as fadas tramaram a fuga da clausura e antes de fazê-lo, vingaram-se do Rei e da Rainha. Ponto final. -Ponto final – ela desdenhou em voz baixa, mas ele ouviu.– Não sente vontade de ver as asas da fada Eleonora? Ao menos dar uma chance da verdade vir à tona? Acheron parou o animal e fitou o rapaz. Neste momento Driana teve a certeza absoluta que havia ido longe demais. O Guardião pareceu prestes a colocar um ponto final naquela insistência toda e tirar satisfações com o ajudante, mas desistiu ao avistar movimento na Floresta em torno deles. Não foi preciso palavras. Ele não farejou perigo real, por isso não usou da armadura. Mesmo assim empunhou a espada, enquanto aguardava o intruso se revelar. Dividida entre alívio e medo, Driana pegou o cajado nas mãos, sabendo que não poderia se defender, mesmo assim, sentia-se mais segura empunhando algum tipo de arma. Podia notar os pelos dos braços de Acheron eriçados, como os pelos de um animal ao pressentir o perigo. Ele era todo instinto animal. Sem ar, Driana sentia-se sem ar enquanto o observava preparar-se para a luta. O momento não durou mais que alguns segundos. Para alívio total de ambos, o movimento entre as árvores mostrou não ser nada sério. Duas fadinhas correram de um arbusto ao outro, e pararam, rindo ao avista-los. Elas cochicharam entre si e voltaram a correr entre as árvores. Acheron não tentou se aproximar. A experiência mandava que esperasse. Driana engoliu em seco, esperando também. Não demorou mais que alguns segundos para que um elfo surgisse do mesmo lugar. Atrás dele duas fadas adultas, com túnicas semelhantes e asas protuberantes. Era uma família e não bandidos. -Acheron, Segundo Guardião do Rei. Apresente-se – ele avisou, e não havia a menor dúvida sobre o que aconteceria em caso de negativa. -Marcell, do Vale dos Desesperados.– O elfo disse com simplicidade retirando de sobre a cabeça o chapéu que usava. Reconhecia o poder e direito de um Guardião e não ousava desafia-lo. -Quantos são? – Acheron perguntou sério. Compenetrado. Driana não conseguia desgrudar os olhos de sobre ele. -Um elfo e duas fadas. Minhas esposas. E três crianças. Duas fadas infantas e uma padecendo do nascimento das asas. Por isso acampamos na Floresta. Para que nenhum elfo pudesse fareja-la. -Suas filhas? -Sim– Marcell contou – Seguíamos para a Nascente do Rio Branco. Foi uma viagem muito longa. Não esperávamos que as asas fossem nascer agora. Foi uma completa surpresa. Soubemos de elfos que seguiam na mesma direção. Sou o único com poder de luta. Temi por minhas fêmeas e filhas. Não poderia proteger a todas. Por isso nos escondemos até o nascimento final das asas – ele disse com a pouca dignidade que lhe restava. Era difícil para um elfo admitir que não pudesse proteger a própria família. -Sigo para a Nascente. Traga sua família. Está sobre a minha proteção até que as asas tenham nascido e possa seguir viagem sem riscos a integridade de sua família – Acheron alertou. Não era uma oferta. Era sua essência. Era Guardião, não apenas de um Rei e de um reinado. Era Guardião de todo aquele que precisasse de proteção. O elfo baixou a cabeça em um aceno de agradecimento e as duas fadas adultas juntaram as meninas, enquanto ele buscava sua filha mais velha. Minutos mais tarde trazia apoiada em seu ombro uma fada praticamente desfalecida. -Ela não pode andar – ele disse apenado. Acheron notou isso desde que percebeu o sangue que manchava as roupas simples da fada. Abatida, pálida e sem forças, a fada não parecia capaz de qualquer reação. Seu corpo todo arrebatado pela dor lacerante. O elfo tinha razão em temer outros elfos. O cheiro de uma fada padecendo do nascimento das asas era afrodisíaco para um macho. Lutando para não se abalar, como aconteceria com outros, Acheron ordenou que Jô apeasse do cavalo. Imóvel, chocada, e em pânico ao ver o estado da jovem, Driana não obedeceu. Confessava que boa parte de sua vida estivera ocupada com pensamentos, livros e teorias e quando as asas das fadas nasciam, no Ministério do Rei, ela nunca se dava ao trabalho de ver como acontecia. Saber a teoria lhe bastava. Suas amigas sempre contavam com era horrível esse momento, mas ela nunca presenciou. Acheron gritou a ordem novamente, e ela saltou para fora do cavalo, assustada pelo grito. Marcell agradeceu e colocou a fada sobre a cela. Era necessário que alguém segurasse a fada, ou ela cairia, e por isso seu pai subiu com ela no lombo do animal. -Leve as trouxas de pertences das crianças – Acheron ordenou apontando as crianças pequenas que carregavam seus próprios pertences. Acheron não desceu do cavalo. Tamanha era sua prática e força, não precisou disso. Curvou-se na cela e puxou as trouxas que uma das fadas adultas carregava, prendendo-a na cela de seu cavalo. Depois, fez o mesmo puxando as duas fadinhas para cima do cavalo. As duas fadas adultas possuíam asas, e estavam na vantagem sobre elfos e crianças. Elas bateram suas asas de leve e planaram quando os animais começaram a andar. Driana acabou ficando para trás em um passo lento. Sem asas e sem força, lutava para conseguir levar tanto peso. Bastante tempo mais tarde uma conversa singela começou entre as fadas e então Acheron participou. Driana chegou a estacar no mesmo lugar, passada com a ousadia. Ele conversava e ria animadamente, conforme o elfo e sua família ganhavam confiança para conversar normalmente com alguém de tanto poder quanto um Guardião. Com ela, não gostava de conversar? Cínico! Horas mais tarde, os gemidos da fada impediram-nos de continuar. Foi preciso parar e coloca-la sobre a relva na beira da estrada de chão. Sua mãe, uma das fadas mais velhas seguroua em seus braços e apenas embalou-a enquanto seus gritos de desespero cortavam o coração de quem assistia. A fada sofria a muitos dias, conforme contava seu pai. Seu nome era Jully e era uma fada gordinha, como era o gosto de Acheron. Driana olhava para ele, e então, para o ato de afastar-se deles, e manter-se a distância. Ele olhava para longe, evitando ter que ver o que acontecia. O cheiro da fada o perturbava e ele era forte demais para ser contido caso perdesse o controle de seus instintos sexuais. Driana dividiu atenção entre ele e a fada. Apenada aproximo-se e ofereceu o cantil com água. A fada tinha cabelos curtinhos e encaracolados, e os olhos escuros. Ela bebeu avidamente da água e quando sua mãe a deitou na relva, e afastou a túnica de suas costas, Driana afastou-se em pânico. As asas nasciam. Diante de seus olhos a carne se rompia e as asas emergiam. Magia pura, a anatomia da fada permitia que ambas as asas surgissem. Molhadas de sangue, as asas finalmente irromperam. A fada berrou por segundos, então, tudo ficou silencioso. Com as mãos tremulas a outra fada adulta aproximou-se e pegou o cantil das mãos de Driana e aproximou-se jogando água sobre as asas que pareciam ser de cor azulada. Aos poucos as asas se moveram e todos se afastaram. Asas muito largas e curtas, em alguns tons de azul. A fada se moveu, e olhou em volta. A dor parecia ter desaparecido e ela sorriu. Um sorriso diferente. Algo que Driana ainda não entendia. -Eu posso voar...? – Ela sussurrou como quem pede permissão. Devia respeito ao Guardião, principalmente por ser seu salvador. -Não – Acheron disse de longe, seu vozeirão acabando com as esperanças da fada – Seu cheiro está muito forte. Algum elfo pode tentar abatê-la em seu voo. Era uma verdade inquestionável. -Sigamos viagem – ele avisou, e todos tomaram caminho de volta para a estrada. A jovem não parecia sofrer tanto agora que suas fadas haviam surgido. Enfeitiçada pelo milagre da existência de uma fada, Driana mal podia afastar os olhos dela. Acheron a surpreendeu ao aproximar-se e arrasta-lo pela gola da túnica em direção ao seu cavalo. -Se eu o pegar mexendo com a fada lhe acerto uma que jamais voltará a pensar em fêmeas – ele avisou em tom seco, com raiva de estar passando tanta vontade e a ainda ver o elfo mirrado engraçar-se com a fada. Desacostumada de ser tratada com tanta rudeza, Driana puxou a gola da roupa e seguiu emburrada ao lado do cavalo de Acheron. Que aquele Guardião estúpido pensasse que era macho! Melhor do que suspeitar que era uma fada mentirosa e fugitiva!
Secreto coração
Ouvir as histórias de Marcell e suas esposas ajudou há passar o tempo e ocupar sua mente. Era bom não precisar pensar e apenas sorrir. Acheron estava tão falante que a irritava profundamente.
Com ela, era mal humorado e cheio de rugidos de indignação, com os estranhos que encontraram na estrada desfazia-se em simpatia. Por dentro, Driana remoia se suas amigas teriam razão quando lhe diziam para ser menos séria, menos chata e, sobretudo menos obcecada por respostas. Que sua mania de esperar das outras pessoas a mesma posição e inteligência era algo muito cansativo. Que elas conviviam com ela por falta de opção, como sempre brincava Eleonora. O amor não escolhe e não vê barreiras, mas se assim o fizesse, Eleonora vivia dizendo que escolheria amar uma amiga menos tacanha. Suada, exausta e sedenta, Driana quase se jogou no chão de alívio quando os cavalos pararam e Acheron desceu do cavalo animado. O parvo realmente apreciava a Nascente do Rio Branco. -Venham, devemos nos banhar – Marcell disse para sua família, orgulhoso de ter conseguido chegar ali. -Porque vieram até aqui? – Driana perguntou e uma das esposas, a menos brava, e que parecia mais acessível respondeu: -As meninas menores nunca vieram a Nascente. Mas a grande verdade... Meu marido acredita que minha enteada tenha um amor secreto. Teme que ela escolha a pessoa errada e fuja. É um elfo sem valor e sem moral. Marcell não deseja enfrentar a filha e perder seu amor. Se a Nascente revelar seus planos de fuga... Eu não sei o que vai acontecer. Quanta tolice, pensou Driana. A jovem fada não parecia carregar segredos, seu posicionamento físico era de alguém orgulhoso de si mesmo, de sua família e de sua linhagem. Não era a posição de alguém que carrega segredos vergonhosos. Driana aproximou-se de Acheron, e observou-o percorrer o caminho íngreme entre as árvores, levando todos consigo. Cortava os galhos de árvores e alargava a passagem para que as fêmeas passassem sem sofrimento. Driana reteve o ar quando entendeu o que era a Nascente. Um paredão gigantesco de pedra esbranquiçada, por onde um ínfimo filete de água escorria. Quase pingos de água. Esse filete corria para uma pequena poça que seguia entre as pedras menores, e levava a água para a esquerda. Acheron seguiu esse caminho, novamente abrindo espaço entre a vegetação, e Driana outra vez precisou reter o ar quando avistou. Em algum ponto o córrego fino escondeu-se sob as pedras e então ressurgiu diretamente em um pequeno lago de águas profundamente brancas. Esse laguinho vertia para pedras maiores, e Driana aproximou-se dessas pedras espiando para baixo. Uma cachoeira. Engoliu em seco. Uma gigantesca cachoeira, com metros e metros de altura, que profunda e potente escorria água abundante para o Rio Branco. As fadas falavam sem parar, principalmente as crianças. Acheron continuou mantendo-se a distância enquanto as fadinhas eram despidas e suas mães entravam no lago cuidadosamente, para que elas não se afogassem. As águas até então brancas criaram padrões disformes. Driana aproximou-se da margem, hipnotizada pelo milagre de ver a vida dos outros. Imagens que não faziam sentidos para ela. Mas que revelavam muito sobre as duas fadas adultas. As meninas simplesmente brincavam na água, eram inocentes demais para pensar em segredos. O elfo, marido e pai das fadas mantinham-se longe, observando seriamente a filha mais velha, que apreciava a diversão da família inocente aos pensamentos preocupados de seu progenitor. Driana esperou ansiosa pelo momento em que a pequena família se afastou da água e foi à vez da fada recém-agraciada com suas asas mergulhar. Ela ria, e batia as asas na água, brincando e aproveitando o primeiro momento de liberdade total que experimentava. Se percebeu que sua família observava atentamente os segredos que se formariam na água ou não, pareceu indiferente. Driana sabia que nada em especial surgiria e o alívio da família foi tamanho que ela sorriu. Quando olhou para Acheron sentiu uma fisgada de medo. O modo selvagem como olhava a fada era de dar medo. O lado selvagem do elfo atiçado pelo cheiro da fêmea recém-desabrochada para a sexualidade. Um momento complicado, pois a fada deixava a infância, e tornava-se madura e pronta para a procriação. A fada também não parecia indiferente ao macho elfo tão perto dela. Apesar de serem criaturas pensantes, o momento do nascimento das asas era puramente libido e não pensamento. Driana não compreendia esse sentimento, mas sentiu novamente um incomodo, por estar presenciando isso. Sua amiga Eleonora estaria passando por isso nesse exato momento? Passaram quase três dias desde a fuga. Era possível que as asas ainda não houvessem nascido. Era um momento penoso para a fada. Dias de sofrimento. Raras vezes o nascimento era rápido e pouco sofrido. Na sua maioria, as fadas sofriam dias de agonia e padecimento de sua carne. Driana reteve o ar quando a fada saiu da água. Juntou-se a sua família e todos se moveram para perto da clareira, para preparar alimento e descansar da longa viagem. Um arrepio correu a espinha de Driana, vestida como Jô, e ela se afastou para que Acheron passasse. Sozinhos na beira do lago, Acheron olhou para seu ajudante com o conto do olho: -Aproveite a água. Pretendo atravessar A Floresta dos Dois Dias ainda esta noite – ele alertou. -Hum, me banhei mais cedo...– O rapaz desconversou, declinando da oportunidade de um banho refrescante, o que era anormal em seu ajudante. Acheron o mediu de alto a baixo. Não queria entrar na água e revelar seus segredos? Isso não era um bom sinal. -Entre na água, rapaz. É uma ordem. -Eu prefiro esperar aqui – Driana fugiu do confronto, olhando para trás de si, insistentemente. Acheron não era nem de longe um elfo inteligente o bastante para ter dificuldades em ser enganado. Ele acreditava cegamente que era um menino. Então, porque não abusar dessa mentira? Olhava com tanta insistência para a fada recém-desabrochada para a sexualidade que Acheron sorriu malicioso: -Eu lhe disse e repito, toque na fada e lhe arranco as orelhas, garoto – era uma ameaça verdadeira – Cumpro uma missão em nome da Rainha, e não quero trabalho extra tendo de salvar sua pele de um pai furioso e com razão de causa! Elfo preguiçoso, pensou Driana, afastando-se para junto da família que comia longe da margem do lago. Propositalmente sentou lado da fada que parecia apreciar a atenção do elfozinho da sua idade. Enquanto comia, ela observava Acheron. Ele despiu as roupas, mantendo o mínimo, as calças, e mergulhou. Sorrateira, arrumou uma desculpa qualquer e aproximou-se da margem. A água continuava límpida e clara, sem sombras ou imagens. Sem segredos? Isso era possível? Um elfo que não guardasse segredos? Nada errado ou proibido em sua mente, corpo, ou ações? Com as sobrancelhas curvadas de preocupação não percebeu que era observada, até enxergar um pedaço de fruto ser posto diante dos seus olhos. Era a fada que lhe oferecia alimento, tentando agrada-la, pois achava que era um elfo e não uma fêmea. Driana corou envergonhada e juntou-se novamente a família que conversava sobre vários assuntos. Mesmo de longe, ela observava Acheron. Tão livre de amarras. Tão exposto e ao mesmo tempo tão forte. Como isso era possível? Mesmo antes de ser uma mentirosa e precisar guardar segredos para salvar a vida de suas amigas, Driana sempre manteve uma parte de si protegida do conhecimento alheio. Não conseguia se expor. Não conseguia falar o que sentia. Simplesmente guardava em seu íntimo tudo que lhe causava medo, angustia ou amor. Como Acheron conseguia não ter segredos? Como?
Querendo briga
Profundamente invejosa das asas das fadas, Driana respirou aliviada quando a família separou-se deles. Era possível avistar a Floresta dos Dois Dias com suas árvores amareladas e altas, caules grossos, que serviam de toca para as mais inacreditáveis criaturas.
Acheron não se importava com o risco, mas ela sim. -Eu não quero ser pessimista, mas o risco de atravessar a Floresta dos Dois Dias não compensa. -Ainda bem que não perguntei sua opinião – ele disse sorrindo. -Eu preciso saber... Existe alguma pista real que o faça desejar seguir esse caminho? Porque não me agrada nada ficar preso na Floresta infinitamente! -Eu não vou lhe contar das minhas pistas– Acheron disse ofendido – Mas posso lhe garantir que não ficaremos presos indefinidamente na Floresta dos Dois Dias. -É mesmo? Pelo que sei a Floresta é mágica. Aquele que não a percorrer em exatos dois dias, ficará preso indefinidamente no mesmo percurso, nas mesmas vivencias, para todo o resto de sua vida ou, o que raramente acontece, até ser resgatado com vida! E existe apenas um caminho para sair da Floresta! E, não menos importante, devo lembrá-lo que a Floresta tenta sabotar quem ousa percorrê-la! Seria muito mais fácil e prático cortar caminho pela Floresta dos Desejos, então atravessar o Rio Branco e finalmente chegar... Seja lá onde você pensa em chegar. – Num súbito arremeto de lembrança Driana perguntou – você não acha que a fada se escondeu na Vila dos Desesperados, acha? Alma estava escondida nesse vilarejo. Seria um desastre se a encontrassem no meio do caminho por engano! -Não. De modo algum. É uma fada comum, e chamaria muita atenção entre criaturas tão estranhas – ele disse seguro de si. -Porque seguir por aqui? Eu preciso saber! -Sim, você precisa saber. E é exatamente por isso que não lhe contarei nada! O sorriso debochado e contente de Acheron era contagiante. Queria brincar com seus sentimentos. Ela mal acreditava em sua ousadia! -Está perdendo tempo. Duvido que a fada fosse tola a ponto de seguir por uma Floresta tão perigosa. -Não existe perigo algum na Floresta dos Dois Dias. Basta ser rápido e atravessa-la sem ninguém atrapalhando com perguntas e argumentos que não cessão jamais. O único risco dessa travessia é de passar o resto da minha vida tendo que ouvir sua voz e suas perguntas incessantes, garoto. Ofendida, Driana não retrucou. Acheron estava parado sobre seu cavalo. A pata do animal estava próxima a uma pedra pontiaguda. Se ela fizesse o mínimo de barulho para assusta-lo, pisaria em falso e derrubaria seu dono no chão. Na queda Acheron bateria a cabeça, pois o chão era coberto de pedras afiadas. Um plano perfeito. Que jamais colocaria em prática. Era uma covarde. Insatisfeita, Driana olhou para Acheron com atenção. Evitava olhar para seus olhos, pois vinha notando que gostava demais de fazer isso. Talvez se perder com Acheron na Floresta dos Dois Dias não fosse uma ideia tão ruim assim. Com sua inteligência poderia facilmente vencer o encanto da Floresta e sair quando bem entendesse. Mas Acheron... Bem, se o levasse a se perder, tudo estaria resolvido! Com um pequeno sorriso de vitória na face, ela levou seu cavalo a ficar ao lado do cavalo de Acheron e disse com tom superior: -Tem razão. Não há perigo algum na Floresta. Pelo contrário. Será uma aventura inesquecível. Acheron quase temeu suas verdadeiras intenções ao dizer isso. -Acheron? O Guardião sentiu vontade de não responder. Aquele rapaz possuía uma incapacidade completa de manter-se quieto. Era tão chato que muitas vezes fazia-o lutar contra o impulso de pegar sua espada e ensina-lo a marra a ser quieto. -Fale – disse com paciência. Não gostava do trato doméstico de uma viagem tão longa e a comida do rapaz era suculenta. Não queria privar-se da boa vida. Mesmo que o preço para isso era aturar a chatice de um rapazola insolente. -Alguma vez você viu as fadas fugitivas? – Perguntou-lhe, testando o terreno da conversa. A resposta não veio imediatamente, pois os cavalos invadiam o solo primitivo da Floresta dos Dois Dias e como era de esperar as árvores em volta barraram a passagem. Era impossível voltar e desistir do caminho. Acheron não se abalou. Havia enfrentado muitas vezes essas estradas. Mas para Driana era tudo uma grande novidade assustadora. Como se nada estivesse acontecendo a sua volta, Acheron conduziu seu cavalo calmamente pela estradinha de terra e começou a contar: -Sim, eu conheço as quatro fadas. -Mesmo? – Surpreendeu-se – Quando você as viu? -E quem não as viu? As quatro fadas rebeldes são conhecidas por todos os Guardiões. São um grande problema desde pequenas. -Rebeldes? E de que modos fadas da clausura são rebeldes? São aprisionadas!– Indignouse. -Não essas quatro fadas. Elas nunca se comportaram. Com ajuda de Tubã, irmão de criação do Primeiro Guardião, as quatro fadas sempre causaram as maiores confusões. -Sabe que elas seriam trancafiadas para o resto das suas vidas, sem ver a luz do dia quando completassem vinte anos? Que por ironia, pela primeira vez em suas vidas são livres... Mesmo que fugitivas? -Não sou eu quem faz as leis – ele alertou em tom de aviso. Não gostava do caminho que a conversa seguia. -Já percebeu como os seres vivos tem a capacidade de fugirem da responsabilidade de seus atos, sejam humanos, ou mágicos? Sempre com frases feitas, que delegam culpa para terceiros? -Me perguntou se conheço as fadas. Não se eu quem sou o carcereiro delas!– Ele irritou-se profundamente com sua insistência. -E as fadas? O conhecem? Ela sabia bem da resposta. É claro que não. Pessoalmente não. À distância sim. Ele não falava uma mentira ao dizer que elas viviam aprontando. Por conta de Eleonora e Tubã, Joan sempre se envolvia nas enrascadas, e sobrava para Alma e Driana ajudar a livra-los do problema ou encobrir seus crimes! -Imagino que sim. Elas sempre espiam os treinamentos dos Guardiões.– Ele avisou. Driana ficou envergonhada por saber que os Guardiões eram cientes que elas espiavam seus treinamentos. -E você? Reparou em alguma delas? O modo sujo como Acheron olhou em sua direção a deixou tensa. -Eu sempre reparo em fadas.– Seu sorriso era pura malícia. -Alguma delas em especial? - Guardou o orgulho para si e continuou tentando lhe arrancar informações. -Sim. Já reparei em uma delas. A mais bonita. -Mesmo? A assassina do rei, talvez? – Entrou em seu jogo. -Não. Eleonora é namorada de Tubã. Também é interesse do Primeiro Guardião. Muita confusão para aquele que tentasse olhar para ela. Driana armazenou a informação de que Egan apreciava Eleonora. Sua amiga exultaria em saber disso! Por outro lado, precisou morder a língua para não desmenti-lo e dizer que Eleonora era amiga de Tubã, e não sou namorada como os Guardiões pensavam! -Sobram mais três fadas. Joan, a fada de poder ilusão. Alma, de voz hipnotizante e potente. E... Driana, a fada da esperteza. Qual delas lhe atrai atenção? -Seus dons não me interessam. Prefiro a beleza da fada e não seu poder. Claro que sim, pensou Driana. Como se isso pudesse surpreendê-la! -E qual delas considera mais bonita? -Francamente? Nenhuma delas.– Admitiu.– Magricelas demais. -Magricelas? – A palavra brotou de sua boca, em um arremeto de indignação feminina que Acheron não percebeu. -Gosto de carnes – ele admitiu com pura libido no olhar. O que poderia lhe responder? As carcereiras serviam tão pouca comida para os órfãos do Ministério do Rei que seria impossível qualquer uma delas ser cheia de carnes! Controlando a ofensa, Driana olhou para o lado. -Mas disse que reparava em uma delas – Driana não desistiu de obter a resposta. -Sim, a fada de cabelos vermelhos me faz lembrar a crina do meu antigo cavalo. Ele também era ruivo. Foi o melhor cavalo que tive. Nossa, quanto romantismo. Driana tinha certeza que Joan ficaria encantada com a comparação. -E as demais? – Insistiu. -Sabe que você me enganou, garoto? Achei que fosse um menino bobo e que não pensasse em fêmeas ainda. Mas agora vejo que é muito interessado no assunto. Controle seus ímpetos. Não vou resgatar a honra de nenhuma fada em seu nome. Naquele instante, Driana soube que havia subestimado a burrice de Acheron. Ou ela era uma atriz esplêndida, ou ele era realmente muito estúpido. Ou as duas coisas coincidindo, concluiu. Sentindo uma pontada de dor na cabeça, ela insistiu: -E a fada que persegue? O que acha dela? -Nunca pensei muito sobre ela.– Admitiu– Pequena demais, séria demais, sempre carrancuda. Não gosto de quem fala demais. Prefiro o silêncio. Driana lutou para não gritar de raiva. Depois desse comentário qualquer culpa que pudesse sentir em engana-lo esvaiu-se. Quando deixaram o lombo dos cavalos, para contornarem um tronco caído no mesmo da estradinha, Driana teve a oportunidade perfeita de atrasa-lo. Um enorme formigueiro erguia-se próximo a uma árvore. Seu cavalo estava perigosamente próximo. Com um carinho no pescoço do animal, como quem pede desculpas, Driana soltou um pouco a rédea e o cavalo pastou mais adiante, perto do perigo. A culpa era tão grande que ao ver Acheron cheio de atenção com seu animal, tão cuidadoso, acabou mudando de ideia. Tentou buscar o cavalo e trazê-lo para perto, mas era tarde. Ele atolou uma das patas em um buraco perto do formigueiro e as gigantescas formigas comearam a surgir e atacar. -Não! Não façam isso!– Ela gritou e tentou puxar o animal de volta e salvá-lo. Acheron percebeu o que acontecia e deixou seu animal para ajuda-la. Faltou força para Driana livrar o animal do perigo, mas não faltou para Acheron. Com um potente puxão das rédeas o cavalo estava livre e salvo. Na luta pela sobrevivência, Driana desequilibrou-se e caiu deitada sobre o formigueiro. Seus olhos arregalados de medo, pois suas mãos se enterraram dentro da terra airada. Poderia ter gritado, mas sua mente não conseguiu registrar isso a tempo. Milhares de formigas cobriam seu corpo rapidamente e ela debateu-se em completo desespero e quanto mais se movia, maior o movimento dos insetos sobre sua pele. Quando as mordidas começaram, ela emudeceu completamente. Cada pequeno espaço de pele que pudessem encontrar, em cada centímetro de carne. Driana foi picada de alto a baixo. A tortura pareceu durar horas, mas não aconteceu por mais que segundos. Depois de livrar o cavalo, Acheron surpreendeu-se com o garoto desequilibrando-se e caindo sobre o imenso formigueiro. Levou apenas alguns segundos para agarra-lo por um dos braços que se debatia e puxa-lo para longe do perigo. Infelizmente as formigas não desistiam tão facilmente. Conhecidas por picarem suas vítimas até a morte, as formigas vermelhas e graúdas cobriam cada porção de pele. Acheron sabia como afastá-las. Deixou o menino caído na estrada e pegou uma das partes de sua armadura. Vestiu o punho e apontou na direção de Jô. A luz que irradiou do poder mágico de sua armadura afastou imediatamente os insetos. Corriam para qualquer canto onde pudessem esconder seus corpos da luz. No chão, o rapaz não se movia mais. Por um segundo Acheron temeu o pior, mas pelo arfar o peito, soube que respirava. Desvirou-o e soltou um palavrão ao ver o estado deplorável do garoto. A face inchada, coberta por pus e feridas. Sorte que usava aquela estúpida touca de duende, ou sua cabeça estaria coberta de feridas também. Jô chorava baixinho e ele ajudou-o a levantar. -Vamos, não podemos nos atrasar.– Disse preocupado. O lamento de dor cortou seu coração. Como deixar uma criatura penar de dor por conta de uma caçada? Driana agarrou-se ao pescoço de Acheron quando foi erguida nos braços e carregada para longe do formigueiro. Ele encontrou uma clareira entre as árvores, e a colocou na grama. Desapareceu por alguns minutos e quando voltou trazia os dois cavalos pelas rédeas. Driana chorou por dentro ao pensar que desejara esse mal para o pobre cavalo, e agora, a vítima era ela. Bem feito, pensou. Bem merecido! Imóvel, pois não conseguia mover-se pela dor, tentou ver o que Acheron fazia. Ele trazia folhas largas das árvores, folhas amareladas e largava ao seu lado. Pegou uma das mãos de Driana e esfregou as folhas. -Faça desse modo. O veneno das picadas vai sumir em algumas horas.– Ele disse apenado. – Esfregue no corpo todo. Vou tentar encontrar um modo de nos adiantarmos e não ficarmos presos aqui. Ao menos alcançara seu intento de atrasa-los. Chorando, Driana sentou-se e começou a esfregar as folha na face, no pescoço, mas mãos. Aproveitou que Acheron não estava próximo e esfregou no corpo todo. Livrou os cabelos da prisão da touca de duende e seus cabelos longos e negros cobriram seus ombros e costas. Nua da cintura para cima esfregou as folhas nas costas, e nos seios, onde o inchaço era devastador. A dor foi diminuindo, mas o inchaço não. A franja longa cobria seus olhos, e ela afastava-as com impaciência, lágrimas e cabelos se misturando. Vestiu-se e estava prendendo os cabelos de volta na touca quando Acheron chegou. Por um segundo ele não a pegou no flagrante: -Como está a dor? – Perguntou-lhe oferecendo água num cantil. -A dor está passando...– Sussurrou com os lábios endurecidos pelo inchaço. -Pelo menos eu sei que agora irá se calar – ele tentou fazer graça. Driana não pensou em nada para lhe responder. Estava doendo e a culpa era toda sua! Sim, doía terrivelmente, e não era uma dor apenas no corpo. Doía não saber notícias de suas amigas. Cresceram juntas, e ela nunca passou um dia longe de nenhuma delas! Sempre estiveram próximas! Sempre! Acheron achou que o choro do rapaz era de dor e não tentou consola-lo. Em suas mãos um problema bem maior. A mágica da Floresta dos Dois Dias era poderosa. Ficariam presos a uma repetição sem fim. A cada dois dias, tudo voltaria ao começo. Principalmente, Jô seria atacado pelas formigas num ciclo sem fim. Acheron nunca correu riscos dentro desta Floresta. Era a primeira vez que isso acontecia. E sua mente não conseguia encontrar uma solução para sair dali a tempo. A única forma possível era deixar o garoto para trás, e voltar para busca-lo quando completasse sua missão. Faltava-lhe egoísmo para tanto. Além do mais... Ele não estava muito ansioso para encontrar a fada fugitiva. Não admitiria para ninguém, pois era antiético de sua parte estar tardando propositalmente a caçada, mas Acheron não acreditava na causa da Rainha Santha e seu fiel acompanhante Lucius. Não que duvidasse do crime ou da culpa das fadas. De modo algum. Elas eram culpadas e mereciam punição. Assim como ele próprio fora culpado de assassinato e mereceria ter sido punido quando se rebelou contra a escravidão e vingou a morte de seu pai. Atentara contra o rei de seu povo, por vingança e por desejo de liberdade e isso fora a muitos anos atrás. Aquelas fadas eram coitadas, criadas para a clausura. Como ele, que vivera como escravo, brutalizado e trancafiado, poderia culpa-las por colocarem um fim ao martírio e partirem em busca de salvação? Não, ele não as julgava. E não tinha pressa em vê-las aprisionadas. De qualquer modo não cabia a ele a decisão. Olhou para o garoto que parecia se acalmar. A pele amarelava rapidamente. Era assim mesmo. As folhas das árvores daquela Floresta eram curativas. Aproveitaria o tempo livre para colher algumas delas. Era bom ter algumas guardadas para um imprevisto. Acheron maneou a cabaça, afastando os pensamentos complicados. Evitava isso. Pensar demais em assuntos que não poderia resolver. Vivia em paz e gostava daquele lugar. Se começasse a olhar em demasia para os problemas do reino, acabaria por se rebelar outra vez. Queria e precisava de paz. Vinha, inclusive pensando em escolher uma fada. Sorriu pensando nas perguntas de Jô. Não quisera lhe contar, mas Tubã infernizava a vida dos Guardiões, tentando convencer um a um, que escolher uma de suas amigas, seria um ato inteligente. Sempre recomendava a Acheron, que escolhesse a fada Joan. A mais calma, doce e singela. Simples como ele. Capaz de sorrir e cuidar de um marido. Que evitasse Eleonora, seu amor platônico, e Alma, uma fada muito ansiosa. E sobretudo, que fugisse de Driana, a fada arrogante e sagaz demais para seu próprio bem. Uma vez ou outra pensou em olhar com mais atenção para a fada Driana, mas ela estava sempre emburrada e caminhando rápido, e ele não gostava da ideia de passar todos os dias da sua vida ao lado de uma fêmea carrancuda, que se escondia da luz do sol enfurnada em saletas de estudo e leitura. Acheron gostava da ideia de escolher uma das fadas. Qualquer fada, na verdade. Queria se casar e ter uma família. Era um desejo nascido há pouco tempo. O desejo de ter mais do que feitos e mortes nas costas. Ter alguém para cuidar. Ele engoliu em seco e jogou um pelego sobre o chão, jogando-se sobre ele para descansar um pouco. Se não havia o que fazer... O melhor era guardar as forças para enfrentar o que vinha a seguir. Cobriu os olhos com o antebraço e se entregou a um profundo cochilo.
Vento, água e terra
Driana estava ofendida por Acheron simplesmente dormir como se nada houvesse acontecido. Ela estava amarela, inchada e dolorida em cada pedacinho do corpo e precisava conversar. Precisava também usar o banheiro.
A única vantagem de acampar na natureza é poder ignorar as convenções. Sorrateira para não acorda-lo, levantou e mancou para o meio do mato. Aliviar-se vinha sendo um grande problema.
O cheiro dos excrementos de fêmeas e machos são totalmente diferentes em odor e essência. Singulares. Então, precisava procurar locais afastados de Acheron, pois ele era incapaz de notar a fêmea que habitava por de baixo das roupas de menino, mas seria capaz de farejar o cheiro de uma fada a quilômetros!
Acheron... Ela sorriu enquanto encontrava uma moita discreta e com toda a dificuldade de quem foi picado milhares de vezes por um formigueiro inteiro, livrou-se da parte de baixo da roupa e fez suas necessidades.
Driana estava conseguindo realizar todas as suas metas, mesmo que de um modo torto. Era um garoto, e se saia muito bem nesse papel, e conseguira atrasar a saída da Floresta dos Dois Dias. Olhando em volta, principalmente para cima, enquanto se aliviava, Driana já sabia como sair dali.
Para ela, era fácil. Poderia demorar, mas aconteceria. Quanto a Acheron... Bem... Ela não poderia fazer muita coisa por ele. Sua mente não poderia ignorar outra rota de fuga mais prática, menos demorada e que Acheron poderia ser incluído. Bastava observar a Floresta em detalhes para saber como funcionava. Não era complexo demais para alguém como ela. Driana aprumou-se e regressou a passos lentos de volta para o local onde Acheron estava. Encontrou-o de pé, preparando-se para partir: -Aí esta você – ele disse sem olhar muito em sua direção – Vejo que consegue andar. Isso é bom. Podermos seguir viagem. -Está doendo muito. Eu não vou – ela disse para atrapalhar ainda mais.– Vá na frente. Tentarei alcança-lo quando a dor passar... Acheron parou de arrumar seus pertences e olhou-o da cabeça aos pés. -Tire esse gorro estúpido da cabeça. Vai rasgar sua pele, garoto– ele mandou, notando que o gorro de duende não alargara em um milímetro sequer e com a face completamente inchada de Jô, poderia cortar e ferir sua pele, pois era encantado. -Estou bem assim. Porque não vai embora de uma vez e me deixa em paz? – Reclamou, se jogando no chão, embaixo de uma das imensas árvores de folhas amarelas. -Sabe o que eu acho? Que você é um atraso.– Acheron seguiu reclamando – Não fosse por sua causa e suas perguntas incessantes não estaríamos presos nesse lugar. Eu deveria virar as costas e deixa-lo para trás. Era o que eu deveria fazer! -Eu estava certo sobre os perigos de andar nessa Floresta, Acheron!– Ela resmungou com voz pesada e esfregou uma das mãos na bochecha, onde coçava. -Os perigos dessa Floresta não se julgam com palavras. Se fosse mais atento, não correria risco algum– ele foi propositalmente franco. -Eu já disse: deixe-me para trás! Vá de uma vez! Siga sua busca estúpida atrás de uma fada inocente! O que está esperando? Minha permissão? – Ela teria gritado se conseguisse articular os lábios e abrir a boca para que isso acontecesse! -É exatamente isso que estou fazendo. Indo embora.– Acheron esperava que o rapaz desistisse de ser cabeça dura. Por minhas amigas, pensou Driana ao vê-lo andar pela Floresta. Engolir o orgulho por suas amigas. Ela podia fazer isso. É claro que podia. Sentou-se e gritou, ignorando a dor: -Não me deixe aqui sozinho! Meu corpo todo dói... Era chantagem emocional. Acheron não era razão e sim instintos, e parte desses instintos vinham atrelados a um profundo emocional. Ele cuidava dos seres fracos. Era um impulso mais forte que ele. Acheron deixou cair no chão o saco de couro onde levava seus pertences e voltou. Driana teria sorrido satisfeita consigo mesma, se não estivesse toda dolorida. Acheron curvou-se em sua direção, um dos joelhos apoiado no chão, e segurou seu queixo. Driana não esperava por isso. Reteve o ar e arregalou os belos olhos azuis, enquanto Acheron analisava seu rosto. Assim tão perto, ela finalmente descobriu a cor exata dos olhos do Segundo Guardião. Eram verdes. Verdes e brilhantes. Olhos sinceros, sem escudos, sem mentiras. Olhos límpidos e que ao fixarem nos seus, pareciam lhe fazer perguntas. -Está bem menos inchado – ele disse com zombaria na voz, virando sua face para o lado, para ver suas orelhas. Ao lembrar que as orelhas de uma fada são menos pontudas que as de um elfo, Driana apressou-se a puxar o rosto para trás e mudar o foco da atenção de Acheron. -Podemos achar a saída mais tarde não podemos? Eu sei que posso pensar em alguma coisa para nos tirar daqui... -Eu sei que pode – ele concordou, se afastando. O rapaz era muito delicado e por mais que soubesse que era um elfo que aguentava um pouco de sofrimento, ainda assim, se compadecia dele. -Mas não é sua obrigação. Sou um Guardião e não posso permitir que isso aconteça. Vou dar um jeito de nos tirar daqui. Quando idealismo. Salvar fadas inocentes não seria um modo de mostrar sua bravura? Quem sabe, em algum momento daquela louca jornada, pudesse lhe perguntar sobre isso. Até onde iria o senso de dever de Acheron? Uma hora se passou sem que a pele de Driana mostrasse melhora alguma. Começava a escurecer quando ela pensou ter ouvido vozes. Abriu os olhos para encontrar Acheron perto de si, um dedo sobre os lábios pedindo que fizesse silêncio. -Acheron? – Sussurrou, levantando e recebendo das mãos do Guardião o cajado que levava consigo em um singela tentativa de defesa. -Encontrei um acampamento não muito longe daqui. São elfos e duendes – ele sussurrou de volta, e o halito quente banhou a face de Driana, e por mais que ela se esforçasse para não pensar sobre isso, não era tão desagradável quanto gostaria de se convencer... -Isso não é nada bom– deduziu. Acheron era a criatura mais acolhedora e fácil de agradar que Driana tivera o prazer de conhecer. Acolhia qualquer ser vivo como se fosse seu melhor amigo de infância. Então, sua reticência somente poderia significar perigo. -Eles estão com a família de Marcell e eu não o vi entre eles.– Disse seco. -Oh, não!– Ela esqueceu que era o garoto Jô e seu sussurro foi tão feminino que poderia ter levantado desconfianças, caso Acheron estivesse prestando atenção a ela.– E a fada? Eles a pegaram? Acheron não havia pensado na fada com suas recentres asas, e Driana enxergou o medo nos olhos do guerreiro. Se aqueles elfos fossem tão sanguinários como Acheron pensava que eram, e houvesse posto as mãos na fada recém-desabrochada... Pobre criatura estaria em uma situação difícil de lidar. -Fique entre as árvores. Não quero que lute a menos que eu precise.– Ele avisou quando começaram a andar. Driana pensou em lhe perguntar como era possível que achasse que precisaria de sua ajuda. Mesmo quando bem, ela não daria conta de lidar com uma criança segurando um galho de árvore nas mãos... Quanto mais elfos treinados na luta e com espadas! Tremendo como bambu verde, ela seguiu-o. -Sua armadura – sussurrou, lembrando-se disso no último instante. -Não.– Ele negou. -Ponha a armadura – ela mandou outra vez – Quer ser morto e ficar enterrado nessa terra sem começo e sem fim? -Não desgasto minha armadura à toa – ele disse. -Ponha a armadura!– Ela disse entre dentes, furiosa e amedrontada. -Não – ele disse baixo, mas a voz era de aviso. -Agora!– Ela o cutucou nas costas com o cajado e Acheron virou-se para trás. Sua expressão selvagem a fez imóvel. Não foi preciso mais nenhuma negativa. Tornaram a andar e ela manteve a boca fechada e principalmente evitou encostar nele com o cajado. Não duvidava do perigo real: irritar Acheron ao extremo era mais perigoso do que enfrentar bandidos sanguinários em meio a uma Floresta misteriosa e escura, tendo em mãos apenas um cajado ridículo que sequer sabia usar! Ao menos dos bandidos ela poderia correr... E ter alguma esperança de sobreviver! Driana observou calada o precário acampamento que estava escondido entre as árvores. Acheron retirou a espada do cinturão e moveu o cabo de uma mão para a outra, até satisfazer-se com o peso da arma e ameaçar um passo adiante. -Espere – ela sussurrou, seus olhos vendo tudo de um modo diferente do que acontecia com ele. Tocou seu ombro para conter a impaciência do lutador que havia dentro do Guardião. Conter a fera que no fundo, queria sair e lutar. -Veja como estão distribuídos – ela alertou – Duas barracas perto das árvores. Uma perto do rio... -O rio não passa por essas bandas– ele avisou, contrariado. -Passa. Eu ouço o som de água. Se você parasse de rugir e ficasse quieto também ouvira. É o Rio Branco. Não passa nessas terras, mas passa próximo. É possível que algum simplório desvio traga água para cá. Se a barraca está apartada das demais é por duas possíveis razões.– Olhou-o para saber se prestava atenção a ela ou não – A primeira, e mais provável, é que nessa barraca fique quem cozinha e lava as roupas. E a segunda razão é que os reféns estão afastados dos algozes. Talvez sendo vigiados por seguidores de menor importância. -Duendes – ele deduziu – Elfos usam duendes escravizados para este tipo de serviço sujo... -Sim, os elfos fazem isso – ela disse em tom de cansaço – Mas veja, se você atacar primeiro a barraca dos reféns, dará tempo para a revanche daqueles que podem lutar com você, ou ao menos fazer algum estrago nas vítimas. Agora... Se você os pegar de surpresa... Ficará mais fácil livrar os inocentes de criaturas de menor poder de luta. -Tem sua razão – ele disse apreciando seu modo de pensar. -Tente não fazer muito barulho – ela sugeriu. Um pequeno som de desapresso ao seu comentário e Acheron andou entre as árvores seguindo aquele plano elaborado por Jô. A noite caia muito rápido e por conta da copa das árvores e da magia que protegia a Floresta de olhares curiosos, o escuro era total. Mais uma vez Driana lamentou ter um dom tão pouco prático. E mais do que isso... Onde estavam suas asas quando precisava delas? Eleonora era muito mais jovem que ela! E suas asas nasciam antes das suas! Alma era mais velha em alguns meses, mas Driana estava exatamente no centro disso. Precisava de suas asas. E precisava logo! Ouviu sons, e apurou os ouvidos tentando descobrir o que acontecia. Gritos de mulher começaram a surgir na escuridão e Driana pensou rápido. Precisava de luz! Acheron precisava de luz para lutar. Precisava enxergar o que fazia, pois era grande demais para não ver onde colocava sua espada! Tremendo um acidente contra as vítimas inocentes, Driana remexeu nas coisas de Acheron que jaziam perto de seus pés até encontrar um pedaço da armadura. Era uma das partes que cobria o braço. Ele fizera alguma coisa com isso, e ela brilhou e essa luz inesperada afastou todas as formigas. Quem sabe, poderia fazer o mesmo agora? Com o pedaço de armadura nas mãos e o cajado na outra, Driana avançou em direção a barraca de onde ouvia os gritos. Tinha certeza que ao pressentir o perigo, a armadura se revelaria. Convencida disso, ela engatinhou por baixo do couro velho que revestia a barraca e entrou. Acheron lutava contra um elfo enorme, quase tão grande quanto ele, e outros menores jaziam pelo chão, abatidos. Ela se encolheu em seu canto quando um elfo careca na cabeça, porém coberto de pelos no restante do corpo avançou pelas costas. Acheron pressentiu sua presença e livrou-se dele com tanta facilidade que a surpreendeu. Acheron deu conta do último elfo e sua espada foi girada na direção da próxima criatura viva que ainda restava na barraca, seu instinto de luta era tão grande que demorou quase um segundo para reconhecer um aliado e não um inimigo, e por conta desse segundo, Driana quase desmaiou de medo. Acheron estava prestes a gritar com Driana por conta da desobediência quando se lembrou dos reféns. Fora da barraca, tudo seguia como a mente de Driana previu. Apenas um fator era inesperado. Quando vários elfos surgiram correndo das árvores, Acheron mal acreditou. -Um Guardião!– A voz de um dos elfos ergueu-se acima do brado de guerra dos demais – Mantenham-no vivo! Sei que posso conseguir um bom preço pela cabeça de um Guardião! Driana sabia que este tipo de comércio existia. Seres, tanto humanos, quanto mágicos, que comercializavam seres vivos. Mas ver e ouvir com seus próprios olhos e ouvidos era deveras repugnante. A luta recomeçou e ela se escondeu. Agarrada naquele pedaço de armadura, não conseguia fazê-la ascender, como Acheron fizera mais cedo. Não importava o quanto esfregasse ou sacudisse, ela não se manifestava. Em determinado momento sentiu um puxão e foi jogada contra o tronco de uma árvore por um elfo bandido. Apavorada defendeu-se como pode. Usou a armadura para acertava a cabeça do elfo com toda força. Bem, para isso a armadura servia! Depois de abater seu primeiro perseguidor, Driana achou por bem não ficar ali. Esgueirou-se para a barraca das vítimas e entrou. Estavam todos amarrados. Marcell estava lá. Pobre elfo, estava abatido, ferido e amarrado também. A fada recém-desabrochada com o nascimento das asas estava chorando, mas não parecia ter sido tocada. Para mercenários o preço de uma fada em pleno cio deveria ser mais tentador que a própria satisfação física. Sorte da fada. Sorte das fadinhas menores também, que provavelmente seriam vendidas para a escravidão. Livres, ela fez sinal para que todos ficassem em silêncio. Foi preciso que as fadas maiores levassem Marcell, pois ele não podia andar. Driana fez com que saíssem por uma fenda na barraca, diretamente para as árvores. Deveria ter ido com eles, mas o impulso de voltar e ajudar Acheron era incontrolável Quando regressou para o centro da luta, foi tomada de um susto tremendo. Acheron estava arfando, com a espada nas mãos, no centro de vários elfos armados. Ele olhava para todos com a certeza que não poderia vencer sozinho. Suor grudava em sua carne e os olhos claros mostravam fúria, selvageria e instinto primitivo de sobrevivência. Com um grito de fúria ele largou a espada no chão e abriu ambos os braços. Ela sentindo um puxão nas mãos e era a armadura escapando de seus dedos. Nunca viu isso acontecer, nunca presenciou o domínio de um Guardião sobre sua armadura. A peça voo na direção de Acheron, assim como o restante de armadura encontrou-o em meio a árvores e elfos. As peças cobriram seu corpo com perfeição e ele dobrou os dedos das mãos, abrindo-as e fechando, agora cobertas por metal. A espada regressou aos seus dedos por pura magia. E a luta retomou em novo ritmo. Era quase impossível qualquer criatura vencer um Guardião fardado com sua armadura. Era uma luta injusta e Driana não percebeu que seu corpo tremia e suas vísceras estavam emboladas em um nó no estomago, enquanto seus olhos estavam fixos em cada movimento dos músculos do Guardião. Sua expressão facial, sua braveza, sua porção animal, herdada das terras distantes, herdadas de seu povo e de sua genética diferenciada. Acheron era animal. Era macho. Era terra e fogo. Ele lutava com o solo, pés que corriam a terra, mãos que socavam os adversários, espada que corria sobre carne. Ela podia farejar o elfo. Era mais do que apenas uma luta. Apavorada, Driana descobriu que sua porção fêmea escolhia um elfo. E isso não poderia acontecer. Quando a luta acabou, ela sentiu os joelhos fraquejarem. Ouvira falar de raros casos em que uma fêmea escolhe seu macho e não o contrário. Normalmente o cheiro da fêmea hipnotiza os sentidos do elfo, e não o contrário. E isso tende a acontecer apenas durante o cio. E o cio surge aos vinte anos, depois do nascimento das asas. Nunca antes! Ou não era nada disso. Enquanto Acheron olhava em torno procurando qualquer outro opositor que pudesse ter sobrado, Driana sentiu essa verdade bater em sua face com toda a força. Não era o cio o responsável pela compulsão que a tomava, era outra coisa. Era um sentimento que não conhecia. Era um sentimento que nunca lhe foi apresentado. Ela não sabia nomear. Queria aquele elfo. Queria e seu corpo todo tremia. Assustada ela correu para as árvores, para se esconder junto da família que salvaram. Ganhar tempo para acalmar seu corpo e seu coração. Ganhar tempo para enterrar esse sentimento monstruoso bem fundo em sua alma, para que Acheron não percebesse...
Carniça
Acheron nunca deixava um trabalho pela metade. Enterrou os corpos dos elfos e duendes e depois de algumas horas, encontrou com a família que acampava longe do local onde estiveram aprisionados.
Sua única motivação em enterrar aqueles vermes, era impedir que o cheiro atraísse outros seres interessados em sangue e carne em decomposição. Pelo visto permaneceria muito tempo naquela Floresta, e não precisava de mais lutas.
Exausto, andou lentamente em direção as vozes. O garoto Jô havia levado-os para o local onde esconderam os cavalos em meio às árvores. Esperto de sua parte, o que não o surpreendia. Se estivesse realmente interessado em encontrar a fada fugitiva, poderia usar a inteligência de Jô como arma contra a inteligência da fada acusada de cumplicidade em assassinato. Acreditava piamente que o menino em nada perdia em comparativo a esperteza da fada! Seria um método extremamente eficaz para cumprir sua missão rapidamente e livrar-se desse fardo pesado. Mas não tinha a menor pressa em ver um ser injustiçado pelo próprio nascimento ser punido por tentar sobreviver. Havia muitas questões sociais e morais envolvidas naquela acusação de crime para que Acheron se desse ao luxo de tentar entender ou julgar a quem pertencia à razão. Encontrou tudo sobre controle. Jô era um bom ajudante, precisava lembrar-se disso quando estivesse brigando com o rapaz. Menos inchado, porém muito amarelado, Jô estava conversando com uma das fadas adultas quando ele aproximou-se. Foi o primeiro a nota-lo, pois era o mais atento a qualquer movimento em torno de si. Driana captou a imagem do elfo que regressava, mas afastou os olhos imediatamente. Algumas horas de afastamento permitiram se acalmar e refletir sobre o que sentia. E ela detestou as conclusões a que chegara. Por isso preferiu ignorar a si mesma, e afastar esses pensamentos da mente. Acheron deixou a armadura no chão, sobre a relva, e Driana sabia que era sua obrigação guarda-las. Ele não precisava pedir, ela sabia o que tinha que fazer. Apressou-se a pegar as peças e precisou dizer a si mesma para se acalmar, pois o metal estava quente. Aquecido pelo corpo de Acheron. Quando se virou de costas, para procurar pelo saco de couro onde a armadura deveria ser guardada, discretamente, aspirou o cheiro de suor que impregnara no metal. Era um cheiro potente e precisou lutar contra um estremecimento. Estava tão envolvida com seus sentimentos que saltou assustada quando Acheron chegou por trás e pousou a mão em seu ombro. -É feito de ossos de passarinho, Jô – ele brincou, referindo-se a sua estrutura óssea delicada, e seu sorriso amoleceu as pernas de Driana. Um aperto firme em sua carne e ele afastou a mão. -Como eles estão? – Perguntou-lhe. As crianças e a fada mais jovem dormiam. As duas fadas mais velhas cuidavam de Marcell, perto da fogueira, onde o cheiro de alimento exalava. -Bem. Nenhum ferimento irreparável. Creio que o mais acertado seria levá-los para o Vilarejo Sem Fim. Eles conseguirão ajuda para atravessar o Rio Branco e chegar em casa. Espero que isso não atrase muito os seus planos de ir, seja lá aonde pretende chegar... A amargura na sua voz era para mascarar outras emoções. -Seu plano é bom. Mas esqueceu de um pequeno detalhe. Estamos presos aqui. Como farei para tirar todas essas pessoas dessa Floresta? Não sei como salvar a mim mesmo! -As fadas possuem asas – ela lembrou-o – A fada mais jovem pode levar as duas crianças. A fada mais velha levará Marcell, pois é mais robusta, e a fada mais magricela...– sem notar usava linguajar parecido com de Acheron – pode ajuda-lo e atravessar a copa das árvores. -E você? Quem o carregará em suas asas? – Ele perguntou com tom profundo. Driana fitou seus olhos. Não deveria fazer isso, mas era irresistível. Quis dizer-lhe que mesmo que ficasse presa definitivamente, chegaria um momento em que suas asas viriam à tona e seria livre para voar e libertar-se. -Eu dou meu jeito - Ela deu de ombros. Acheron não duvidava disso. -Nunca mais pegue minha armadura – ele avisou em tom baixo – Não sabe do perigo que separar uma armadura de seu Guardião, sem permissão prévia? - Ele mudou de assunto drasticamente. -Perigo? Não aconteceu nada.– Ela disse surpresa. -Eu me pergunto por quê. Uma armadura luta contra a separação. Deveria estar morto, garoto. É isso que acontece com quem ousa tocar na armadura de um Guardião sem sua permissão. -Permissão? – Estranhou. Conhecia a teoria sobre as armaduras, não a prática. -Quando uma armadura escolhe seu Guardião, passa a fazer parte da sua carne, e de seu sangue. Não podem ser separados. A armadura aceita ir com outra pessoa, desde que essa pessoa seja aceita pelo Guardião. -Sempre existem exceções para tudo – ela defendeu-se – Ou talvez sua armadura não seja tão fiel assim a você...– Desdenhou. -Faça a trouxa de pertences de todos eles. Vamos partir nos primeiros raios de sol.– Ignorou sua alfinetada, mas não desfez a expressão de repreensão. -Mas eu lhe disse... As fadas podem voar.– Foi um patético aviso. -Sim, mas eu não deixo para trás ninguém que esteja sob minha proteção. -Isso só prova que é ainda mais burro do que eu julgava – ousou dizer mesmo notando o perigo de provocar uma fera - Eu saio daqui. Não preciso de ajuda. Sei como fazer. -E de que modo você sabe? – Duvidou de suas palavras. -Eu observo as coisas a minha volta. Observei como funciona essa Floresta. Existe um padrão. E eu já sei como fazer acontecer. -Diga como e eu penso no seu caso. -Eu não digo. É segredo meu. Leve-os, eu o alcanço no Vilarejo Sem Fim. Era mentira, pensou Driana. Ao reconhecer o risco de permanecer ao lado da porção elfo de Acheron, estava decidida a segui-lo de longe, atrapalhando sua jornada sem ser vista. Essa decisão lhe trazia certa melancolia. -Acontece, rapazote, que a copa dessas árvores não permitem o voo de qualquer criatura. Elas se fecham e derrubam quem ousar tentar fugir – explicou com parcimônia e satisfação em pegar Jô em sua teoria. Driana revirou os olhos, e ele descobriu que o garoto o achava realmente tolo. -Eu já pensei nisso também.– Avisou em voz entediada – Quer comer? Tem sopa. Apontou a panela que precariamente estava sobre o fogo. Acheron entendeu que era um modo de livrar-se da sua companhia. Incomodava saber que o menino Jô não gostava da sua companhia do mesmo modo que ele apreciava ouvi-lo falar. Driana cuidou dos pertences de Acheron, e quando finalmente sentou para descansar, procurou por um espelhinho que carregava escondido em um bolso da túnica. Para sua sorte não estava completamente quebrado e pode se enxergar. O amarelo da pele havia praticamente desaparecido, e na escuridão quase total, com exceção da luz das estrelas, mal podia ver a cor estranha. Sem o inchaço, ela sentiu-se novamente uma fada e não um ser estranho. Todos estavam adormecidos, por isso, Driana sentiu-se livre para retirar a touca e alisar os cabelos longos. Seu couro cabeludo estava doendo, e sua testa apresentava uma linha avermelhada onde a touca apertava e aderia a sua pele. Andando para longe, entre as árvores, Driana esticou os braços para cima, alongando-se. A dor das picadas havia ido embora, e precisava agradecer ao Guardião por conta disso. Pena que seu orgulho exagerado não permitisse que fizesse isso com a mesma simplicidade que outras fadas fariam. Acheron acordou de seu cochilo e olhou em volta, para checar que tudo estava bem. Quando amanhecesse ele precisava saber a história de Marcell. Como havia sido aprisionado e por quem, pois infelizmente tinha o hábito de vencer seus opositores e depois fazer as perguntas necessárias. Exausto da luta recente, correu os olhos pelas formas deitadas no chão, adormecidos. Entre as árvores uma figura chamou sua atenção. Era uma fada. Ele sentiu o cheiro de fêmea e se moveu. Pretendia levantar, mas a fada notou-o acordar, olhou para trás, a face parcialmente escondida pela noite, impedindo-o de ver seus traços e então correu para as árvores. Ele viu os longos cabelos negros, as formas delicadas mal cobertas pela túnica. O relevo dos seios, dos quadris, das coxas. A fada usava apenas a túnica e ele admirou as pernas e os braços. Mas foi tudo muito rápido. Quando levantou e correu em sua direção, a fada havia desaparecido. Procurou-a por alguns instantes e desistiu. Acheron levou um susto ao ver Jô bem na sua frente. -O que está acontecendo? O garoto continuava amarelado, com a estúpida touca de duendes na cabeça e usava todas as roupas. Acheron maneou a cabeça enquanto regressava para o pelego onde estava deitado até pouco tempo atrás. -Um pesadelo – ele resmungou irritado. Era a abstinência de sexo. Não era de passar muitos dias sem companhia feminina. Melhor não falar demais sobre isso com um elfo jovem, carregado de hormônios e pouca experiência sexual. Ainda mais que no acampamento havia uma fada em situação parecida. Driana deixou-o dormir e respirou aliviada. Por pouco não fora pega em flagrante! Sorrindo, sentou no chão e olhou para ele. Como era possível ser tão bobo assim? Seu sorriso era imenso. E não é que Acheron corria atrás de fadas magricelas?
O nascer do sol trouxe consigo o compromisso de procurar uma escapatória daquele lugar. -Eu já disse. Sei como sair. Você precisa fazer o que eu disse – ela reclamou pela milésima vez.– Ou todos ficaremos aqui indefinidamente. -E o que devo fazer? – Acheron perguntou no limite da irritação. Saber que aquele moleque entendia mais do que ele sobre tudo era revoltante. -É muito simples. Todos esses troncos de árvores são interligados entre si. Não sei como nunca percebeu, principalmente por ter feito esse trajeto outras vezes... - Alegou com descaso. Tédio intelectual. Era assim que normalmente Alma a descrevia. Entediada com a simplicidade alheia.– Cada um deles é morada de um ser mágico. Eu vi algumas destas criaturas andando pela Floresta. Saem apenas à noite e muito brevemente. São ariscos e muito rápidos. Use isso... – Ela jogou para ele a parte da armadura que cobria o braço– e puxe um deles para fora. O tronco ficará sem magia. As fadas podem subir por ele, e alcançar voo por essa brecha. Mesmo que as demais árvores tentem impedir, nada poderá ser feito. -Eu já disse para não mexer na minha armadura – ele disse entre dentes vestindo a peça de metal. O ajuste foi perfeito, mas não houve o clímax da noite passada. Era apenas um pedaço, seu poder era mais sutil. Menos explosivo. Um erguer de sobrancelha e ela disse lutando para não rir dele: -Quer escolher a árvore? – Perguntou-lhe. -Por que não faz isso? Tenho certeza que já analisou a melhor delas, sabichão. -Exatamente - concordou apontando uma das mais altas árvores. Enquanto Acheron aproximava-se para fazer o que mandava, Driana pegou uma corda. Marcell e sua família esperavam afastados, ansiosos pelo momento da partida. Acheron deu um soco potente no tronco da árvore e Driana sentiu o coração disparar. Sons desagradáveis surgiram e ouviram algo se mexer. Mais um soco e uma fenda surgiu na base do tronco. Era magia pura. Driana chegou bem perto, e falou bem próxima ao ouvido de Acheron: -Ponha a mão aí dentro e puxe. O halito quente desestabilizou-o e seu olhar zangado a fez se afastar. Acheron não queria colocar sua mão dentro daquela nojeira. Detestava sujar sua armadura. Um zelo patriarcal com seu único bem e orgulho na vida. Ele debateu-se para segurar a criatura, e bateu o corpo varias vezes contra o tronco até conseguir puxa-la. Era pequeno como um duende, mas era vermelho, fino e possuía além de braços e pernas muitas antenas espalhadas por todo o corpo. -Mas que merda é essa? – Ele perguntou enojado. -Não solte! – Ela gritou, usando a corda para prender o ser que guinchava em sua língua.– Eu disse para não soltar!– Reclamou. -Eu não soltei! – Ele gritou bem na sua cara. Driana calou-se e prendeu a criatura. O cheiro era forte e o bicho somente ficou quieto quando ela colocou um pano em sua cabeça tapando seus olhos. -Pronto. Podem ir.– Disse satisfeita consigo mesma. -E você? – Ele perguntou.– Não tem asas, garoto. Ainda não, pensou Driana, ocultando um sorriso. -Disse e repito: Eu me viro. Acheron não discutiria. Tinha seus próprios planos. Ajudou a fada mais jovem a segurar as irmãs e prende-las contra o corpo usando restos de tecido, para que nenhuma caísse ou se soltasse. A fada alcançou voo, e ainda era um tanto desajeitada. Uma a uma as fadas subiram. Acheron levou consigo apenas a armadura. O restante ficou para trás. Ele quase desistiu ao ser içado para o céu. Primeiro de tudo não queria deixar o garoto sozinho e segundo, estar preso na Floresta dos dois dias lhe conferia um álibi para seu fracasso em encontrar a fada fugitiva. Driana manteve os olhos no Guardião até o último vislumbre da sua imagem. Sabia como era difícil para um elfo aceitar ajuda de uma fada. Para ela, uma grande tolice tanto orgulho. Mas devido a história antiga do mundo, quando elfos e fadas foram obrigados a lutar entre si, criou-se certa barreira entre os seres de sexos diferentes. Os carcereiros do Ministério do Rei não gostavam que soubessem dessas coisas, mas Driana sempre conseguia surrupiar um livro ou outro, e quando não conseguia, Tubã lhe trazia livros proibidos. Em um destes exemplares antigos, ela ficou conhecendo os detalhes íntimos dessa luta dentro da mesma raça. Séculos atrás, quando um Rei chamado Ulder, jovem e tolo, ao ser rejeitado por uma fada de beleza incomparável, ordenara que todas as fadas deveriam ter suas asas cerradas. Segundo ele, as asas de uma fada eram um símbolo de poder que fazia com que o sexo frágil se rebelasse as ordens dos machos. Por conta desta ordem, elfos e fadas lutaram, e como jamais foi declarado uma vitória, pois Rei Ulder foi misteriosamente assassinado em seu trono, e a luta obteve seu fim, permaneceu a sensação que algo estava quebrado entre elfos e fadas. Mais tarde, durante outra luta no mundo mágico, apesar de aliados, fadas e elfos tornaram a se estranhar. Por conta da fuga das fadas, ao abandonarem a luta levando para longe do perigo com suas asas, seus filhos e filhas. Muitas se esconderam nos Campos dos Humanos. Outras procuraram outras regiões mágicas para recomeçar a vida. E a magoa perdurava e atravessava os séculos. Estava impregnado no inconsciente dos elfos que as fadas eram superiores, pois poderiam voar. E estava impregnado no inconsciente das fadas, que os elfos sempre usariam de sua força física para tentar impedi-las de voarem. Uma tolice, pois a seu ver, ambos os sexos dependiam uns dos outros, tanto para a perpetuação da raça, quanto para o convício harmonioso. De qualquer modo, o orgulho de Acheron estava reduzido a pó. Ela sorriu e maneou a cabeça. Ele sobreviveria a um pouco de resignação! Com um suspiro de pesar, Driana olhou para a criatura que jazia no chão, amarrada. Agachou-se e retirou o pedaço de pano que lhe cobria a face. -Eu sinto muito, não desejava causar-lhe sofrimento– disse, pois sabia que a criatura apesar de estranha, entendia muito bem o que dizia – Você é inteligente, eu sei que é. A organização do seu povo é impressionante. Demorei bastante para entender que se movem por labirintos e passagens sob as raízes das árvores, provavelmente por tuneis. E demorei também para perceber que não existe magia alguma na Floresta. São vocês, pequenos, que atrasam os viajantes, não é? São vocês que fazem as copas das árvores se revoltarem e servirem de barreira para as asas de uma fada, não é? A criatura respondeu por rugidos e quando entendeu a língua complexa, sem nunca antes ter ouvido aquelas palavras, Driana soube que seu momento de revelação se aproximava. Seu dom se fortalecia. Era um claro sinal que o momento do nascimento das asas se aproximava! Era isso não era? Claro que era! Se convencer disso era um modo quase infantil de fortalecer sua esperança. -Eu preciso sair daqui. E você pode me mostrar o caminho não é? Eu posso deixa-lo amarrado, e encontrar o caminho sozinha. Mas prefiro sua hospitalidade– apontou a árvore de onde ele saíra – O que me diz? Outra série de rugidos e ela sorriu. -É claro que escolhe me ajudar– ela levantou do chão depois de soltar a corda que o prendia – Não adianta correr, eu não vou conseguir alcança-lo. E se eu me perder... Bem, você já sabe que encontrarei o caminho sozinha. Mas ficarei com muita, mas muita raiva. O ser mágico, que ela ainda não conseguira decifrar qual a raça exata, entendeu direitinho o que dizia. Em séculos nenhum ser mágico descobriu o segredo da Floresta. Jamais elfo ou fada descobriu que não havia magia alguma na Floresta dos Dois Dias, e sim uma organização muito precisa e coesa de criaturas inteligentíssimas, que sobreviviam dessa mentirinha a muitos e muitos séculos. A criatura entrou pelo buraco do tronco da árvore e Driana encolheu-lhe para fazer o mesmo. Como imaginava a árvore era oca por dentro. Uma espécie de buraco levava para o fundo, e uma espécie de escadinha esculpida dentro do tronco, levava para a copa da árvore. Driana seguiu o pequenino para baixo e então pelo túnel estreito. Era tão estreito que ela precisou se ajoelhar e andar de quatro. Durante muito tempo foi desse modo. Ela respirou aliviada quando dobraram uma curva no túnel e chegaram a um buraco mais largo. Desse ponto em diante o túnel ganhou maior espaço e ela soube que estavam embaixo da terra, provavelmente a muitos metros sob a terra. Era um pouco assustador e claustrofóbico, mas ela se concentrou em caminhar rápido e acompanhar as passadas da criatura. Poucas horas mais tarde ela pensou estar vendo um ponto de luz. Era um ponto de luz muito sutil, mas que aos poucos se transformou em um clarão. Aliviada por estar saindo daquele labirinto de tuneis, Driana caiu na grama verde, nas margens do rio e olhou para o céu. -Eu tenho que elogiar o método de sobrevivência do seu povo – ela disse para a criatura, enquanto respirava pesado, precisando do ar limpo, pois suas narinas estavam impregnadas pelo ar carregado de terra – Gostaria de voltar um dia, e conhecer um pouco mais sobre a forma de sociedade que criaram aqui. Ela recebeu uma resposta que a agradou e sorriu: -Os cavalos ficaram para trás. Agora são de vocês. Cuide deles, por favor. Não posso voltar e busca-los, pois estou em uma missão importante de sobrevivência. E eu sei que disso, você me entende. Era uma despedida, Driana suspeitava que a pele avermelhada da criatura não suportava muito tempo o contato do sol forte. Descansou alguns minutos e levantou. Foi até a margem do Rio Branco, em um trecho menos violento, onde as águas eram mais calmas, por conta das pedras que atrapalhavam a pressão da água, e lavou a face e bebeu muita água, pois estava sedenta. Era hora de seguir e encontrar Acheron. Espreita-lo nas sombras e atrasa-lo em sua jornada. Com a limitação óbvia de seu cérebro atrofiado por tantos músculos, pensou irônica, o Guardião seria tão previsível, que ela apostaria sua vida em como o encontraria o Vilarejo Sem Fim sendo pajeado por fadas, comendo e bebendo sem pressa alguma. Era impossível crer que sua vida mudara tanto em apenas quatro dias. Longe de suas amigas, longe de seus livros, longe de tudo que considerava seguro. Por um lado, precisava admitir, o peso da clausura havia saído de seus ombros, e era libertador olhar para frente e imaginar o que a vida lhe reservaria. Por outro lado... Temia pela vida de suas melhores amigas. Joan tão delicadinha, e sensível, não saberia defender-se de Guardiões. Faltar-lhe-ia malícia para enganar e fugir. Ela seria pega sumariamente. A Guardiã Zoé, era muito selvagem. O que não faria com uma fada gentil e fisicamente fraca? E Alma? Como poderia se esconder por muito tempo com aquela voz esguichada? Com o nascimento de suas asas se aproximando esse problema se acentuaria e ela nunca passaria despercebida! Eleonora era uma questão a parte. Ela era acusada de assassinato. Sua pena seria a morte sumaria! Não haveria defesa. Nem apelação! Tubã era fugitivo, mas seu nome não estava atrelado à morte do Rei. Era apenas acusado de facilitar a fuga. E era tão protegido por seu pai adotivo, pai do Primeiro Guardião, que nenhuma pena seria aplicada contra ele! Distraída com seus pensamentos, Driana tropeçou em uma pedra no chão e precisou sentar para retirar a bota e massagear o dedão ferido. Uma sombra inesperada cobriu o sol e Driana olhou para cima, para descobrir a causa da intromissão: -Onde estão os meus cavalos? A voz potente não a assustou, mas surpreendeu. -Eu disse que sairia da Floresta. Não falei que conseguiria trazer os cavalos – explicou como se nada fosse nada. -Levante, a caminhada até o vilarejo é longa – ele mandou irritadíssimo. -Porque está aqui? Onde está Marcell e sua família? – Perguntou, colocando a bota e correndo em seu encalço. -Pedi que me deixassem aqui. Com asas é mais rápido chegar ao Vilarejo e sou muito pesado. Driana pensou em avisar que a armadura também pesava, mas era o calcanhar de Aquiles de Acheron, e ele parecia bastante irritado para ser provocado! -Não me esperou por causa dos cavalos! Eu jamais conseguiria fugir da Floresta dos Dois Dias e ainda leva-los comigo! -Eu lhe disse, mas parece que você somente fala, e não escuta – Ele parou e encarou o garoto que pulava a sua volta como um mosquito irritante – Não deixo ninguém para trás. Sou um Guardião. -Está bem, mas isso o atrasa em sua busca pela fada Joan!– Ela jogou verde, para saber se ele prestava mesmo atenção a missão recebida ou estava de gaiato nessa enrascada toda. -Hum, ela deve estar em algum buraco e eu a encontrarei. É questão de tempo. -O nome da fada não é Joan – ela reclamou – Você ao menos sabe o nome da fada que está perseguindo? -Joan, Driana, Alma ou Eleonora. Tanto faz o nome. Agora me deixe andar quieto. Odeio andar a pé. -Não quer saber como escapei? – Perguntou-lhe, tão feliz em estar perto de Acheron outra vez que seu coração salvava dentro do peito. -Quero. Vai me contar se eu perguntar? – Ele jogou de volta. -Não – ela sorriu ainda mais.– Um dia, talvez eu conte. -Neste dia eu lhe perguntarei.– Ele também sorriu. Esperava que um dia eles pudessem conversar sobre tudo. Esse desejo foi tão forte que a deixou muda por alguns instantes. Acheron voltou por causa de um simples ajudante. Ele não virava as costas para as pessoas. Era um ser evoluído como poucos. Quando pensava que ele era tolo e burro, na verdade desmerecia o elfo por despertar-lhe tantos sentimentos. Para quem se achava tão esperta... Apaixonar-se pelo seu perseguidor, seria no mínimo um paradoxo. Mas pensar em paixão ou amor era um erro completo. Conhecia esse Guardião a quatro dias. O amor não nasce tão rápido. E se contrariando a lógica, ousar nascer, é questão de tempo para esvair-se em decepção e desaparecer. Então, porque perder seu tempo pensando em algo que é fadado ao fim?
Amigos inimigos
Driana devorou o prato de comida em questão de minutos. Carne assada e legumes. Mas poderia ser pedra e areia, e mesmo assim devoraria com a mesma voracidade. Acheron estava no segundo prato quando ela terminou o seu. Marcell e sua família o receberam como reis em sua humilde pensão no Vilarejo Sem Fim.
Na verdade, a pensão e taverna pertenciam a primeira esposa de Marcell, mãe da fada recém-desabrochada e de uma das fadas menores. Marcell casara-se com a segunda fada, e mudara-se para a Vila dos Desesperados.
Não era comum elfos escolherem duas fadas. Mas nesse caso, em particular, a razão era muito simples. A primeira esposa desejava seguir casada com outro elfo. E casamentos mágicos não podem ser dissolvidos perante a lei.
Cada qual seguia casado, mas a distância, para não tumultuar a vida do outro. Civilidade e amor. Driana apreciava o modo de pensar daquela família. -Coma – disse a fada jovial, e de asas novas – coma mais um pouco, fui eu mesma quem fez – ela empurrou mais pão em sua direção. Acheron sorriu enquanto bebia vinho. A fada paquerava seu ajudante. O rapaz corava e não sabia como agir. Era esperado. A idade faz isso com um rapaz. -Obrigada – Driana pegou o pão e comeu sem erguer os olhos. Mal podia esperar pela hora de irem embora. Aquela fada a deixava constrangida e culpada. Temia uma abordagem mais... Direta. Algo que pudesse revelar seu disfarce. -Despeça-se da fada - Acheron cochichou achando muito divertido sua situação – Quero ir a um lugar antes de partirmos. O Vilarejo Sem Fim era conhecido pela sua mágica poderosa. Uma vez morador, estava protegido. Mas as visitas... Era outra história. Muitos relatos e visitantes que se perdiam e nunca mais eram encontrados. Algo sobre a terra engolir ou o céu desabar sobre as cabeças. Para Driana era mais alguma crendice boba, como acontecia com A Floresta dos Dois Dias. Despediram-se da família de Marcell e seguiram em busca de cavalos. Apenas um, pois Acheron estava com seus recursos contados. Uma mentira bastante audaz, pois ela sabia que tinha ouro escondido em seus bolsos. Mas um cavalo só os atrasaria, sendo assim, era perfeito demais para que reclamasse! -Está brincando comigo não é? – Driana perguntou quando ele parou o cavalo recémadquirido em frente a uma taverna.– Eu não acredito nisso! -O que foi? Uma boa noite de sono em uma cama não lhe agrada? A mim agrada e muito. Peça vinho e comida, é por minha conta, matusquela – Acheron ria dele, e lhe deu um peteleco camarada na cabeça. Driana ferveu por dentro. Sua verdadeira vontade era correr e jogar-se em suas costas derrubando o gigante o chão e acerta-lo tantas vezes quanto possível! Sem ouro para cavalos? Mas com ouro para pagar por...? Engolindo essa desfeita, e remoendo se ele escolheria mais fadas gordas, seguiu em seu encalço. Como era de esperar, a primeira fada recheada de carnes que encontrou, foi a primeira que ele atacou em apertos, risos e vinho. Começava a escurecer e a noite dos elfos era animada nas tavernas. De um canto, na penumbra, Driana observava calada e ofendida. A fada era loura, cabelos crespos e nada ajeitados. Uma pinta na bochecha era seu maior charme, juntamente com as covinhas que surgiam cada vez que o elfo a fazia rir com suas piadas sujas sussurradas ao pé do ouvido. Driana reparou nos braços da fada, onde pelos louros estavam eriçados, e soube que o encanto que o Guardião vinha lhe despertando como fêmea não era exclusividade sua. Era isso que acontecia com as fadas que cruzavam seu caminho. Acheron podia ser lento ou burro, mas também era um dos melhores exemplares de macho alfa de todo reino e pelo visto era conhecido entre as fadas de tavernas. Ele disse algo no ouvido da fada que jogou a cabeça para trás e aprumou as asas, que balançaram agitadas em suas costas, asas amarelas, curtas e redondas. A fada olhou pelo salão até avistar o menino Jô. Então riu e acenou concordando com algo que Acheron dizia. Driana detestou com todas as suas forças ser alvo da conversa dos dois! Alguém de maior sensibilidade mágica, um mago talvez, poderia visualizar a aura negra em torno de Driana, desde que fora obrigada a assistir o ritual nada discreto de acasalamento entre Acheron e sua acompanhante! A fada se afastou, gingando seu gigantesco quadril e suas dobras excessivas em torno de toda a cintura, e foi juntar-se a um grupo de outras fadas que esperavam clientes na taverna. Quando regressou para a mesa onde Acheron bebia calmamente seu elixir proibido, trazia uma fada pequena e sorridente pela mão. Driana achou que fosse vomitar. Acheron queria duas fadas? Duas? Não bastava uma? Era necessário duas? Sua indignação esmoreceu quando assistiu o Guardião levantar e andar em sua direção levando as duas fadas. -Vamos subir.– Ele disse-lhe com tom de diversão– tome, é um presente por ter sido esperto o bastante para nos livrar da Floresta dos Dois Dias. Não desperdice meu dinheiro e não me faça passar vergonha.– Avisou e a fada sorridente ficou diante de Driana. Por um segundo ela não compreendeu o que era o seu presente. Então o entendimento penetrou em sua mente e ela sentiu o horror tomar conta de si. Sabia que não adiantava negar. Seria ainda mais estranho, por isso pegou a garrafa de barro que continha elixir proibido e seguiu pelas escadas logo atrás do casal. O quarto escolhido para a diversão de Acheron era no fim do corredor. Ele não ficou para ver se o garoto entraria com sua companhia ou não. A fada que seguia Driana entrou e a puxou pela mão. -Eu peguei para você – Driana disse com sua melhor expressão de rapaz. Lisonjeada a fada pegou a garrafa e começou a beber. Driana ouviu o som de risos e quando olhou para um dos lados descobriu que os quartos eram divididos por apenas uma cortina. Provavelmente no passado era apenas um grande quarto. Sem conseguir afastar os olhos da cortina, e aguçando os ouvidos para ouvir o que diziam do outro lado do tecido, Driana seguiu incentivando a fada que a acompanhava a beber mais e mais. O elixir era uma bebida poderosa para quem não possuísse grande hábito com a bebida ou era fraco para as ervas que continha na fórmula. Dez minutos mais tarde a fada enrolava a língua e se deitava na cama. Precavida, Driana aproximou-se e girou-a, retirando sua túnica e a cobrindo com o lençol. Que pensasse ter correspondido ao preço pago! No quarto ao lado, o riso e as piadas picantes havia cedido lugar aos gritos e gemidos. Driana estava sentada na beira da cama, tensa, imóvel, lábios cerrados, ouvindo tudo calada, tendo que aceitar placidamente o que acontecia. Em determinado momento o grito da fada foi tão alto e visceral que Driana precisou ver o que acontecia. Cuidadosa para não ser vista, aproximou-se da cortina e puxou um pedaço do tecido para o lado. A cama estava ocupada pela metade. A fada não havia chegado a deitar na cama. No entanto, parecia ter tentado. De lado, a fada gritava enquanto suas mãos agarravam qualquer punhado de pele do Guardião que pudesse alcançar. Ele a jogou de tal modo que a fada soltou-o em busca de achar apoio na cama, enquanto seu quadril era erguido de um modo extremamente selvagem. Ela mordeu o lençol, enquanto sua mão agarrava o mesmo, e tinha os olhos fechados, boca entreaberta, e toda a face contorcida em prazer. Seus seios fartos saltavam para todos os lados, sua barriga também. As coxas largas e roliças acomodavam pouco do elfo, pois ele era duas vezes maior e mais alto que ela. Driana sentiu o sangue correr mais rápido observando a mão enorme agarrar o seio da fada e amassar a carne com aqueles dedos longos e pesados. Finalmente, tomou coragem e olhou para ele. Acheron havia retirado a túnica e baixado a calça, no mais continuava vestido. Seus cabelos estavam bagunçados, mas isso não era novidade. Sua expressão era selvagem. Uma fera sanguinária dominando sua caça. Olhos abertos. Testa franzida. Sobrancelhas juntas. Seu nariz enrugado a cada pesada fungada em busca de ar. Suor lavando a pele, e molhando as costeletas e os cabelos que grudavam em seus ombros, braços e peito. E que ombros, braços e peito! Ele era todo bronzeado, músculos travados, saltados, cobertos por veias e relevos. Os muitos pelos louros distribuídos por seu peito e braços estavam eriçados. Seu peitoral tenso. Mamilos masculinos duros. Quadris estreitos e tencionados, nádegas coordenadas em movimentos tão rápidos quanto agressivos. No instante em que seus olhos teriam a grande revelação sobre o encaixe entre elfo e fada, Acheron achou por bem mudar a posição e a fada foi puxada para si. Sentada, ela enlaçou as pernas em seu quadril, e Driana não soube o que de fato acontecia no encaixe entre eles. A fada gritava tanto que por um instante ela se perguntou se estaria doendo. Quando os gritos por mais começaram e Acheron devorou a boca da fêmea, Driana soltou o tecido e virou-se de costas. Como se o simples ato de repudiar a imagem pudesse impedi-los de continuar. Com um sentimento estranho no coração, Driana arrancou a touca da cabeça e arrastou os pés em direção a cama. Sentou-se outra vez na pontinha do colchão de penas, para não encostar-se à fada adormecida e bêbada, e tampou os ouvidos. Não queria ouvir! Mesmo assim, o som chegou aos seus tímpanos e principalmente ao seu cérebro. O quase rugido do elfo ao alcançar o ápice do ato à fez tremer de raiva, ciúme e desejo. Sangue corria tão rápido em suas veias que desejou poder bater suas asas e voar para longe e nunca mais em sua vida olhar para a face daquele elfo desavergonhado! Mas suas asas não haviam nascido e ela não poderia fazer nada além de fingir ter passado uma noite de prazer nos braço de uma fada de taverna. O que ela esperava? Acheron sequer suspeitava que fosse uma fada! Como poderia estar ressentida disso? Certos sentimentos não possuem lógica. A posse, a obsessão, o ciúme. O silêncio do outro lado da cortina foi total. Minutos depois ouviu som de passos e movimentos. Aquele selvagem deveria estar inquieto outra vez. Sua mente privilegiada pode refazer seus passos apenas seguindo as dicas dadas pelos sons. Andou pelo quarto. Pegou a garrafa de elixir proibido. Bebeu alguns goles. Voltou para a cama. Deitou-se e tentou relaxar. Ao contrário de Driana, o Guardião adormeceu e não acordou pelo restante da noite, em um sono tranquilo de quem vive pela justiça e não carrega culpas. Driana por sua vez passou a noite amedrontada de que a fada acordasse e descobrisse a mentira, e indignada por ter presenciado Acheron nos braços de outra fêmea. Com ódio de tudo e todos deitou na cama, de costas para a outra fada, e tentou em vão dormir.
Jeitosinha
Driana não conseguia relaxar. Estava seguindo a pé atrás do Guardião Acheron. Seu cavalo havia sido perdido na Floresta dos Dois Dias, e agora seguia a pé atrás de seu amo, enquanto o Guardião seguia em seu cavalo.
Guardião, ela pensou irônica. Se aquele não era o elfo mais burro que encontrara na vida, estava entre os três primeiros. Como era possível uma carcaça tão perfeita conter tão pouco conteúdo?
Acheron era valente e bom com armas. Seus olhos mal podiam crer em tanta vitalidade ao lutar e vencer os adversários, como acontecera no dia anterior quando foram atacados ainda na Floresta dos Dois Dias.
Pena que sem a espada nas mãos, Acheron era apenas um elfo grandalhão. Entediada, ela fincou os olhos nas costas reluzentes de suor. O maldito elfo insistia em deixar a armadura dependurada no lombo do cavalo enquanto seguia sob o sol, sem camisa.
Não que isso a perturbasse... Mas ela sentia a aproximação do nascimento das asas, e sua libido estava começando a ser subjugada por sua porção fêmea. Seu dom estava consideravelmente mais afiado, o que a fazia crer que seu momento se aproximava. Em breve nem mesmo a burrice latejante de Acheron conseguiria ignorar que era uma fêmea e não um elfo de aparência estranha e feminina que o seguia e ajudava naqueles longos dias de caçada.
-Tem certeza que a fada foi por aqui, Acheron? – Driana gritou lá de trás, para que o brutamontes a ouvisse. Estava de mau humor desde a noite passada e a culpa era somente dele! -Sim– ele respondeu, com um rápido olhar em sua direção. O sol corou o bronzeado de sua pele, e os cabelos louros longos e dourados, e ela quase esqueceu o que pensava. Olhos claros, rosto quadrado, criado para personificar o perfeito macho. Sua mente critica sabia que elfos assim existiam, assim como fadas perfeitas também existiam, e era apenas um ideal de beleza sensualidade, e não algo real e valioso. Mesmo assim, ela lutou para se concentrar em seus próprios pensamentos enquanto ignorava um pingo de suor que descia do pescoço másculo e rolava sobre a carne suculenta do peito, cruzando sobre o mamilo masculino, escondendo-se entre os gomos de seu abdômen e finalmente se perdendo no cós da calça justa, moldada pelo cinturão de couro onde pendia a espada. -Tem absoluta certeza que confiar na indicação de uma fada de taverna é algo inteligente de fazer? – Insistiu. Acheron havia perdido algumas horas em uma taverna e saíra de lá com novidades sobre o paradeiro da fada desaparecida, ou seja, ela mesma. -Viram uma fada fugindo para esses lados – ele alegou puxando as rédeas do cavalo e girando para retomar o caminho de trás, vindo atrás de Driana, pois sentia que seu ajudante, o pequeno elfo que se nomeara Jô tinha ideias sobre o paradeiro da fada. -E poderia ser qualquer fada – ela disse ignorando sua presença no alto do cavalo – Pelo que ouvi dizer... A fada Driana é inteligentíssima. Capaz das maiores artimanhas e planos audazes – enalteceu a si mesma– porque ela seguiria a pé e correndo para que todos vissem? E porque vir tão longe para uma Floresta tão perigosa se as suas asas estão para nascer? -As asas estão para nascer? Como sabe disso?– Ele perguntou curioso, tentando lembrarse de quando essa informação havia sido passada para eles. -Eu imagino que sim. Ela tem quase vinte anos não tem? – Driana corrigiu-se rapidamente. -Sim, isso é verdade, a idade de uma fada clausura nunca é exata, mas as carcereiras estimam que esteja aproximando-se dos vinte anos – ele logo esqueceu a questão. Nessas horas Driana perguntava-se sinceramente se o Guardião era lento, burro ou crédulo. Qualquer uma das hipóteses era inaceitável. -O que eu digo é que parece menos provável que uma fada sozinha seguisse para Saul. -Eu acredito na informação que recebi, garoto. A fada é de confiança, mesmo que ganhe a vida em uma taverna – ele sorriu sonhador e Driana fechou os olhos contando até dez para conter uma resposta amarga. É claro que era de confiança. Aquele monte de músculos era capaz de confundir prestação de serviço com amizade! -Eu apenas acho tolice seguir para Saul – insistiu. -É mesmo? E é por isso eu sou o Guardião e você é um ajudante? Eu tomo as decisões, garoto. Coloque-se em seu lugar.– Ele se irritou. Sim, mais de uma vez Acheron se irritava mortalmente ferido em seu orgulho pelo rapazola que apenas erguia uma sobrancelha de descaso em sua direção e deixava claro que o Guardião era um imbecil de pensamento lento, enquanto ele era sagaz e capaz de encontrar uma agulha no palheiro. Se bem que quando ouviu o rapaz, eles seguiam uma trilha bem melhor e não haviam perdido tempo em trajetos errôneos. Orgulhoso, e decidido a não dar o braço a torcer, Acheron acelerou o trote do cavalo e seguiu a frente, deixando Driana revoltava atrás de si. Carregando sua trouxa de pertences nas costas, Driana andou atrás do Guardião que deveria encontrá-la e levá-la para julgamento. Ao menos o tolo seguia para o caminho errado, pensou sorrindo. Cada vez mais longe, se houvesse um bendito caminho errado para seguir, Acheron encontraria e seguiria por ele, todo contente e orgulhoso de seu feito! Esse era Acheron capaz de fazê-la sorrir mesmo quando a preocupação e o medo deveriam dominar seus dias e a fazia pensar onde estaria suas amigas e como estariam. Indignada pela noite passada e sonolenta, pois a noite fora passada em claro remoendo seus ciúmes, Driana esperava descobrir um pouco mais sobre Acheron: -Porque as gordas? – Gritou lá de trás, onde o sol castigava seu corpo franzino. Andar no calor era demais para quem não era acostumada ao trabalho pesado. Não era tola, e notara que Acheron aliviara seu fardo, levando junto a si no cavalo a armadura e parte dos pertences, mesmo assim, seu corpo reclamava de tanto esforço. Ele virou a cabeça para trás, olhando-a como se estivesse louca. -Eu pensei que alguma diversão fosse aliviar seu mau humor, criatura. Porque não é capaz de sorrir e falar bobagens como qualquer outro elfo? – Ele perguntou mais em um desabafo do que qualquer outra coisa. -Estou perguntando uma futilidade. Isso é um comentário amável e bobo. Não é? Ignorando sua ironia, Acheron retomou o olhar sobre o caminho que seguiam, mas não parou de falar: -Escolhi uma fada jeitosinha para lhe fazer companhia, Jô. Acaso não o agradou?– Perguntou-lhe Driana revirou os olhos de raiva. -Escolheu a fada mais barata da taverna!– Acusou-o, ressentida. -Claro que sim– ele sorria. É claro que ria dela!– Escolhi a mais jovem e inexperiente. Acredite garoto, você não saberia o que fazer com uma fêmea experiente. Lhe fiz um favor. Além disso, não desperdiço meu ouro oferecendo pérolas a porcos. Um riso irônico e Driana respondeu: -Parece que prefere as porcas. Deita-se com todas as fadas gordas que encontra no caminho? Não era comum em Driana julgar as pessoas pela aparência. Era o ciúme gritando palavras amargas por sua boca. O veneno em sua voz intrigou Acheron. Ele diminuiu o trote do cavalo e fitou seu ajudante: -Não fale assim de uma fada. A fêmea tem o direito de ter a forma que desejar. E cabe ao macho respeitar. -Quanta tolice – ela deu de ombros. -É um garoto ainda, não entende nada de sexo. Mas é bom que vá aprendendo. As fêmeas possuem o encanto que nos falta. Um elfo não é nada sem uma fada. Não importa o que lhe ensinaram sobre rinchas entre fêmeas e machos. A fada é bonita de qualquer modo. Seu cheiro, suas formas... Veja beleza em uma fada, e ela fará sua vida mais bonita.– Havia algo sonhador em sua face. -Gordas, Acheron, porque apenas as gordas? Sua pergunta saiu entre dentes. Precisava dessa resposta. Era magrinha e quase sem formas. Precisava saber que maldita razão o fazia desejar apenas as fadas recheadas de carnes, quando ela própria não era uma delas! -Em meu povo, na sua maioria, as mulheres são mais altas e largas. Não gordas– ele explicou, dividindo esse segredo – Por aqui não é fácil encontrar fêmeas com essas características. Então... Eu prefiro as mais recheadas. Algum problema nisso? -Os elfos de sua raça somente consegue copular com fadas grandes? – Perguntou assustada com essa possibilidade. -Copular? Que tipo de linguajar é esse? – Ele desdenhou, maneando a cabeça. - Fala de um modo muito complicado para um elfo. Precisa aprender a agir e não somente falar, garoto. Eu prefiro uma fada larga. -Mas é anatomicamente diferente dos outros elfos? É isso? Precisa ser uma fada grande... Em tudo? – Ela insistiu as raias da obsessão. -Não sou diferente de outros elfos!– Ele disse parando o cavalo e encarando-o – Nunca repita isso! Quer acabar com minha boa fama!? -Boa fama? Acha que ninguém jamais pensou tal coisa? Parece no mínimo estranho. Talvez sua raça possua alguma deformidade...– Alfinetou. -Ou sua cabeça é cheia de minhocas e em vez de pensar em fadas, pensa demais em elfos ele retribuiu a ofensa. Não deixava de ser uma verdade, pensou Driana. Seu erguer de sobrancelha foi tão óbvio e irritante que Acheron precisou regressar o trajeto para não apear do cavalo, retirar o cinto e lanhar o traseiro do elfo impertinente até aprender a obedecê-lo e respeitá-lo. -De qualquer modo, você deveria pensar duas vezes antes de seguir pistas de uma fada que aceitou seu ouro. E mesmo que falasse a verdade... Poderia ser qualquer fugitiva. Boatos são sempre boatos. Um quarto de verdade e três quartos de invenção. Acheron não respondeu nada. O que dizer? Que preferia estar errado para ganhar tempo? Seria perfeito se voltasse para o castelo com a fada errada. Não era conhecido por sua inteligência, e sim pela força. Seu engano seria rapidamente perdoado e outro Guardião nomeado. Em algumas semanas as piadas a cerca do seu engano acabariam e ele seria um Guardião livre daquela tarefa ingrata. Isso se ele conseguisse calar a boca do ajudante que insistia em coloca-lo na trilha certa para alcançar a fada fugitiva! Incapaz de desistir de sanar uma dúvida, Driana correu até estar ao lado do cavalo e perguntou: -Acha que uma fada comum não gostaria de se deitar com você? Por isso prefere as... Recheadas? – Repetiu a estúpida palavra que Acheron usara para definir o biótipo das fadas de sua escolha. -Sou plenamente capaz de satisfazer uma fada. Agora cale a boca ou vou desconfiar desse interesse todo – ele avisou com um olhar mortal em sua direção. Acertara em um ponto delicado. Acheron tinha problemas com fadas menores. Era claro como o dia! Então era isso, o grande Guardião Acheron preferia as gordinhas, pois elas o preferiam! Um alívio. Sempre há uma esperança, nesses casos, a solução pode ser encontrada. Agora para gostos pessoais... -Eu gosto de fadas mais cheias de curvas – ele cortou o fluxo dos seus pensamentos - Eu gosto de verdade. Agrada-me ver e tocar. É só isso. Pare de pensar nisso, e criar teorias a meu respeito, Jô. Não tem nada além de gosto na minha escolha. Decepcionada, Driana acenou e baixou a cabeça. -De qualquer modo, eu não iria para Saul, se pudesse escolher. Preciso protestar contra essa decisão!– avisou – Dizem que a Floresta de Saul é realmente perigosa. E eu não duvido disso. -Mesmo? Porque não? Não conseguiu provar que a mágica da Floresta dos Dois Dias é fajuta? Porque não tenta provar o mesmo sobre Saul? – Ele desafiou-a. -Porque é de conhecimento geral que em Saul vivem os piores tipos de criatura. Não é magia, Acheron. É caráter. -Teme o caráter alheio? - Ele perguntou direto, sem rodeios. -Às vezes sim– admitiu – As cosias que uma pessoa pode fazer por poder me assusta. – Admitiu. -Acredita mesmo que a Rainha Santha causou tudo isso? Que ela é a assassina? Surpresa por Acheron se lembrar de suas palavras, Driana, em seu papel de elfo Jô concordou: -Acha que a Rainha é alguém valoroso? Você que tanto já viu do mundo, que conheceu o pior tipo de criatura, e suponho eu, também o melhor tipo? O que você pensa do Rei Isac e de sua Rainha? -Rei Isac sempre foi justo, embora não aprovasse todas as suas decisões e leis.– Ele admitiu– Rainha Santha sempre foi arrogante. Tive pouco contato com ela. Mas sei de alguns Guardiões com quem ela foi um pouco mais... Próxima.– Ele disse com malícia. -Eu não acredito nisso. Ela já tem um amante. Lucius – deixou escapar. -Como sabe de tantos detalhes a cerca da Rainha? – Acheron desconfiou. -Baltazar, o duende a quem servia... Ele era muito bem relacionado na Vila das Fadas, e eu ouvia suas conversas secretas – mentiu, pigarreando para disfarçar. Sorte sua que Acheron não primasse pela esperteza imediata. Ou apenas... O Guardião tendia a acreditar nas pessoas. Maneando a cabeça, afastou a culpa e seguiu falando: -Acha que Santha seria capaz de um crime contra seu Rei? -Eu acho que sim. Mas o que eu acho não importa. Um pouco de amargor na voz elfo Guardião a alertou para o perigo de insistir na conversa. Seria tolice esperar que ele abrisse mão de sua honra e dedicação ao seu rei em nome de uma história tão inacreditável quando era a situação do nascimento de sua amiga Eleonora. Desta vez, Driana calou-se e não voltou a falar até chegarem a divisa entre o Vilarejo Sem Fim, e a margem do Rio Branco. Aquela era a melhor região para a travessia. Um trilho de pedras se erguia acima das águas violentas, e tornava metade do percurso acessível sem que fosse necessário mergulhar e nadar. Acheron preparou o cavalo e desgostosa, Driana seguiu-o. Era um caminho estreito, e ela seguiu logo atrás do cavalo. Acheron ia à frente, levando o animal. Driana invejou a agilidade de elfo e do animal. Eles sabiam onde pisar, e como se equilibrarem. Talvez fosse natural para seres movidos pelo corpo e pela natureza. Pois ela, movida pelos pensamentos, mal conseguia manter-se de pé sobre as pedras escorregadias. Em determinado momento escorregou e um dos pés entalou em uma fenda. A armadura que ela levava dentro do saco de couro balançou perigosamente em seu ombro, e ela guinchou de medo de cair. Seu medo de perder a armadura era tamanho, que se agarrou ao saco como se sua vida dependesse disso. Longe de ela enfrentar a ira de Acheron por perder sua armadura! -Você está bem? – Ele gritou com a voz bem mais alta que o barulho da água. -Estou!– Mentiu, puxando o pé e rezando para conseguir se soltar. Como por milagre seu pé soltou e ela se ergueu. Olhou para trás e engoliu o medo. A água batia com força contra as pedras, e ela sentia toda a frágil estrutura balançando. Quando mais no centro do rio, maior o impacto. Implorando para que nada acontecesse, avistou Acheron pular na água e ajudar o cavalo a fazer o mesmo. Ficou paralisada ao descobrir que o trilho de pedras chegava ao fim exatamente onde as águas se tornavam mais violentas. Como foi que ela não viu isso antes de começar a andar? Estava louca? Apavorada ficou imóvel, vendo o Guardião vencer a correnteza com muita facilidade. O cavalo chegou à margem oposta e Acheron pareceu comemorar o fato. Até perceber que seu ajudante não estava na margem do rio junto dele. Mesmo naquela distância foi impossível ignorar que o garoto estava em pânico. -Deixe a armadura e venha! - Ele gritou. -Não!– Driana negou de volta. Ela dava conta, disse a si mesma. É claro que dava conta. O medo é uma voz insana insistindo em nos convencer que o inimigo existe e é voraz. Mas ela sabia com sua mente sã que o inimigo lhe era indiferente e se ela vencesse a força bruta das águas, tudo ficaria bem. Racionalmente falando, era fácil. -Venha de uma vez, Jô! É só pular na água!– Ele mandou. -Eu sei! Eu já vou!– Ela gritou de volta, impaciente. Equilibrou a armadura no ombro e o novo grito de Acheron quase a desconcertou: -Largue essa maldita armadura e pule na água antes que eu tenha que buscá-lo também! Essa possibilidade causou-lhe arrepios. Sim, tinha um medo maior de deixa-lo furioso do que de pular na água. Será que era hora de dizer a Acheron que não sabia nadar? -O que está esperando? - Ele gritou outra vez e ela se debateu sobre as pedras, gritando de volta: -Estou indo! Estou indo! Mas que droga!– Apavorada, largou o saco com a armadura sobre as pedras, pois de modo algum conseguiria carregar tanto peso e ainda vencer as águas. Nunca antes havia nadado em rio. Jamais. Mas sabia como fazer. Varias vezes presenciou Joan e Eleonora nadando em lagos e rios, quando fugiam do Ministério do Rei e passavam as tardes escondidas, aproveitando o pouco de liberdade que conseguiam. Eram movimentos sequenciados e repetitivos. Qualquer um conseguiria. Convencida disso sufocou o medo e pulou. Seu peso foi jogado para baixo. Água entrou em todos os orifícios descobertos do seu corpo e descobriu que não conseguia respirar, gritar ou emergir. Debateu-se desesperada na ânsia de escapar, mas a única coisa que conseguiu foi afundar cada vez mais. Abriu os olhos sob as águas e tentou segurar em alguma pedra, na tentativa de ter segurança e subir, mas conseguiu apenas escorregar ainda mais. De longe, Acheron assistiu o garoto pular na água e desaparecer. Então, seus braços se debatendo na água. Não houve tempo para pensar antes que se jogasse nas águas e nadasse em sua direção. Não era um exímio nadador em águas mornas, mas sua força física era grande vantagem contra a força das águas. Driana estava a segundos de perder a consciência quando um braço cingiu sua cintura e a arrastou para cima. Não tinha a menor ideia do quão próxima ao desfalecimento chegara. Puxou o ar com força, e tossiu sem parar. Água ainda jorrava sobre sua face, principalmente enquanto Acheron a arrastava consigo para a margem. Tudo aconteceu em segundos, talvez minutos, no entanto, parecia ter passado horas. Quando Acheron deitou-a na grama verde, Driana virou de lado tossindo por tudo que valia. Cuspiu muita água e seguiu tossindo por algum tempo. De joelhos ao seu lado Acheron afastou a túnica que cobria sua barriga e estava a um passo de subi-la por seu torço para livra-lo do peso excessivo da água para que respirasse melhor, quando Driana lembrou-se que era Jô e que não poderia ser vista nua. -Estou bem!– Ela fugiu do contato, encolhendo-se em uma bola, abraçando os joelhos.– Estou bem... -Não sabe nadar? Eu não creio que tenha pulado se não sabe nadar!– Ele brigou, incrédulo por isso ter acontecido. -Obedeci as suas ordens! Eu pulei porque você mandou!– Defendeu-se pateticamente. -Se eu soubesse que não sabe nadar, nunca teria pedido que pulasse! Garoto estúpido.– Lembrou-se de algo e olhou para o rio – Veja, minha armadura ficou para trás. Eu juro, vou lhe deixar na primeira vila que encontrar. Pra mim chega. Chega de conversas que não tem fim! Cheda do seu mau humor inesgotável e das suas cobranças! Vou me livrar de você, garoto. Pode esperar! Driana observou-o levantar, e pegar as rédeas do cavalo, amarrando-o a um tronco de árvore. Seu andar era cansado, todo molhado. Sua cabeleira grudada no corpo, arfando pelo esforço demasiado de lutar contra a correnteza levando o cavalo pelas rédeas e depois, regressar para salvar o garoto que se afogava. Era fácil entender sua explosão de raiva. A própria Driana não estava muito satisfeita com a própria fraqueza e estupidez de achar que escaparia de uma situação dessas apenas sabendo analisar o passo a passo da natação! Típico dela, achar que sabia demais. Acheron fixou o olhar no saco sobre as pedras, onde a armadura estava guardada. De costas, Acheron exigiu a presença e retorno da armadura. Como era de esperar, sem a necessidade da luta, foi recusado seu pedido. Driana observou-o respirar fundo varias vezes antes de tomar a iniciativa de nadar outra vez. Agora sim, Acheron ficaria realmente furioso com ela! Mais calma, sentou-se na grama e observou-o chegar perto das pedras e pegar o saco de couro com facilidade. Ele nadava com a mesma perícia com que lutava. Era um homem de carne e ossos. Ela era feita de pensamentos e razão. Acheron era feito para a vida. Ela para os sonhos. Dois mundos opostos e separados por realidade e fantasia. Entristecida consigo, sentiu as lágrimas correrem dos olhos. Não queria chorar, mas sentiase uma inútil. Suas amigas estavam perdidas precisando de ajuda, tentando sobreviver, e ela estava ali sem serventia além de irritar um bom elfo que apenas tentava cumprir sua missão, tendo que lidar com seus sentimentos e obrigações e ainda cuidar de um rapaz desmiolado que causava mais problemas do que solução. Usando o braço, secou as lágrimas da face e fungou, engolindo o choro. Seu excesso de conversa incomodava Acheron. Era uma chata que causava tédio e indignação em alguém tão bom como o Segundo Guardião. Faltou sensibilidade para Acheron notar que seu ajudante chorava por culpa e menosprezo. Furioso por ter todo aquele trabalho, jogou a armadura no chão e retirou as calças, e as botas para que secassem no sol. Não olhou na sua direção. Não falou com ela. Simplesmente ignorou sua existência medíocre. E era assim que Driana sentia-se: medíocre.
Pensamentos e confusões
Acheron não era do tipo de pessoa que guarda profundas mágoas. Mesmo assim nos três dias seguintes pouco falou com seu ajudante. Estava irritado com o comportamento estranho e omisso do rapaz e quanto mais simpatia nutria por ele, menos suportava suas atitudes.
Se por um lado era maduro e coeso, capaz de escapar da Floresta dos Dois Dias com maestria, por outro era tolo e inconsequente a ponto de saltar em um rio violento sem saber nadar. A grande verdade, Acheron nunca foi muito civilizado a cerca de sentimentos. Sempre foi passional. Sentiu medo de perder a amizade do rapaz Jô e isso o deixava furioso, pois não pretendia se apegar a ninguém. Jô se mantinha calado e pouco chamava atenção sobre si. Em algumas horas parecia triste por ter desagradado seu senhor, em outras, parecia resignado por não ter sua confiança. E em outros, como agora, parecia apenas amedrontado demais para tentar uma abordagem. Que fosse desse modo, pensava Acheron. Três dias de sossego e silêncio eram muito melhor do que exagero de palavras e uma voz cansativa martelando em sua mente teorias que um Guardião não poderia ousar acreditar. Acampamentos na Floresta muito agradavam Acheron. Gostava do contato com a natureza e se pudesse escolher, viveria no mato e não preso nas imediações do castelo. No entanto, ser um Guardião lhe atribuía obrigações. Os treinamentos constantes, o ensinar outros elfos mais jovens para quem sabe, no futuro serem substituídos por elfos de maior força e esperteza. Cuidar e zelar pelo Rei e suas leis. Ou neste caso, pela Rainha. Não era possível virar as costas e viver no mato. Por isso, no fundo, apreciava esses dias diferentes. Dias de respirar ar puro e ver a vida em sua plena glória. Um pequeno sorriso na face de Acheron alertou sobre seus pensamentos. Ele achava graça de pensar que em quanto para ele acampar na Floresta era um momento de reclusão emocional e de expansão dos sentidos, para o rapazola Jô era um momento de puro sofrimento. O rapaz penava para exercer as mais simples atividades. Esforçado não deixava de executá-las, mas fazia tudo com uma expressão de tanto sofrimento que lhe dava pena. Como agora. Sentado na relva, sob a sombra de uma árvore, Jô tinha abraçado os joelhos e deitado a cabeça coberta por aquela estúpida touca de duende sobre os braços. Impossível dizer se estava cochilando ou chorando. Talvez, respirando aliviado pelo trabalho pesado ter minguado. Acheron fez proposital barulho para chamar sua atenção e o garoto ergueu a cabeça e o olhar magoado em sua direção: -Encontrou alguma coisa? – Driana perguntou a voz um pouco hesitante. Não queria enfurecê-lo outra vez. -Sim, achei o rastro da fada fugitiva – disse satisfeito. -É mesmo? Pensei que a fada estivesse longe.– Admitiu. Pela completa ausência de pistas e sendo Acheron um exímio caçador de animais, supôs que estivessem no caminho errado para encontrar a suposta fada fugitiva. -A fada escondeu-se em uma caverna. É bastante longe daqui. Conseguiu camuflar seu cheiro. Mas eu a farejei. Está relaxada, acha que ninguém a encontrará em seu esconderijo perfeito. Duvido que note minha aproximação. Irei a noite. Ela não terá como fugir. Prepare um bom jantar, Jô, pois preciso de todas as minhas forças. -Por causa de uma única fada? – Ela ironizou, levantando para cumprir suas ordens. Estava abatida por ter causado aborrecimentos para Acheron. Era sem serventia e capacidade de salvar a si mesma e isso a deixava muito magoada. -Não. Infelizmente farejei o cheiro de elfos. Estão próximos. -Mais luta? Não é possível ter paz nessa vida? – Ela resmungou, mexendo na panela e na cumbuca que usava para misturar farinha, água e outros ingredientes que resultariam em um almoço. -Desta vez não é uma luta. Reconheci o cheiro. São conhecidos de longa data – ele esticou o corpo na grama, aproveitando o pouco de paz que ainda lhe restava. -Mas não são amigos – deduziu pelo seu modo de falar. -São caçadores de recompensa. São seus amigos dependendo de que lado você está.– Ele sorriu. Aquele sorriso arrastado que encantava seus olhos. Um sorriso cheio de satisfação. -Pobre fada – ela disse pensando em si mesma. Só de pensar em cruzar com caçadores de recompensa, ficava apavorada. Seria impossível enganar elfos acostumados a caçar fugitivos. Melhor manter-se longe deles e se possível afastar Acheron da fada. -Pobre mesmo – ele respondeu com simpatia – Nenhuma criatura merece ser caçado quando está com a razão. Driana quase derrubou as cosias que carregava. Se não o fez foi por pouco. -Quer dizer que acredita na inocência da fada Driana? – Seu coração saltou em seu peito. Por um segundo pensou em se ajoelhar e agradecer ao céus por essa benção. Contar tudo para Acheron e pedir sua ajuda. Ele era tão justo, honesto e forte. Poderia socorrê-la nesse momento. E ela precisava tanto de socorro. Precisava tanto de alguém para segurá-la e ajuda-la. Nunca antes em sua vida se importou em ser sozinha, pois havia suas amigas para ampara-la e fazê-la forte. Mas agora... Estava tão solitária e assustada e Acheron era uma rocha ao seu lado. -Acredito que ninguém mereça ser aprisionado. Eu fui culpado pelas mortes que causei, e ela é culpada pela morte que causou. Mas isso não faz de nenhum de nós assassinos cruéis. A vida nos levou a isso. -Você não pensa em deixá-la livre? Não interferir? – Sugeriu, sentindo parte da esperança minguar. -Não posso. Sou um Guardião. Tenho minhas responsabilidades. Se eu abandonar uma missão terei que partir e recomeçar minha vida outra vez. Driana não estava pronta para uma admissão dessa natureza. Não deveria lhe pedir que abandonasse suas convicções outra vez. -Acha que... Quando voltar ao castelo, ainda precisará de um ajudante? A pergunta era estúpida, mas gostaria de continuar perto de Acheron, mesmo que vivendo uma mentira insustentável a longo prazo. -Se o ajudante em questão mantiver a boca fechada a maior parte do tempo...– Ele disse sorrindo e ela sorriu de volta. Jô baixou a cabeça e se dedicou ao preparo do alimento. Detestava o que faria para impedir Acheron de seguir, mas era necessário. Melhor afasta-lo da fada. Com algumas folhas colhidas no caminho, folhas especiais que ela sabia muito bem o efeito devastador que causavam no intestino de um elfo ou fada, preparou o guisado para Acheron. Colocou o dobro do necessário, pois ele era tão grandalhão que precisaria de uma dose de cavalo. Mais tarde o Segundo Guardião comeu sem suspeitar de nada. Culpada, Driana sentou-se afastada e esperou pelo momento em que as folhas fariam efeito. Esperou em vão. O único efeito era um arroto ou outro e ele reclamando que estava um tanto indisposto. Deveria estar agachado em alguma moita se esvaindo em excrementos e não andando pelo acampamento, vestindo seu cinturão, a espada em punho, pronto para partir! Aquele elfo era um cavalo e nada o derrubava? Desamparada esperou-o sair para segui-lo. -Eu juro – ela ouviu a voz de Acheron, quando ele notou que era seguido – Que se dessa vez você me atrapalhar...– A ameaça ficou no ar. Assustada, achou por bem não continuar a segui-lo. Voltou e permaneceu quieta esperando-o voltar. Seria mais fácil ajudar a fada a fugir quando Acheron estivesse bêbado e adormecido. Afinal, ela havia surrupiado uma garrafa de elixir proibido da taverna por alguma nobre razão não é mesmo? Sorrindo para si mesma, esperou o retorno do Guardião mais tonto da face da terra. Driana esperava que tudo corresse bem. Acheron encontraria a fada fugitiva, acharia um modo de aprisioná-la e arrastá-la com ele de volta para o acampamento. Já podia imaginar, pelo modo acomodado de agir do segundo Guardião, que amarraria as mãos e pés da fada e se suas asas fossem nascidas, também seriam aprisionadas. Lhe faltaria crueldade para cerrá-las, como tantos outros fariam em sua posição de caçador. O que na situação atual da fada, era uma grande vantagem. Bastaria que Driana aguardasse e não demonstrasse seu nervosismo. Ficaria quieta e esperaria anoitecer. Então um sugestivo comentário sobre beber um gole de elixir proibido para comemorar seu feito esplêndido. Inflar o ego do Guardião feroz. Afinal, Acheron estava sozinho na Floresta de Saul, sem ninguém para admirar seu grande feito de aprisionar uma fada pobre e inocente, e sobretudo, vulnerável. Porque não comemorar, não é? Motivos não faltavam, pensou irônica. Elixir após elixir, Acheron adormeceria como um porco. O álcool não duraria muito tempo no corpanzil daquele monstro de músculos e força, pois nem mesmo as potentes folhas laxativas lhe fizeram efeito. Mesmo que não durasse o efeito do elixir, ainda assim, dormiria por algum tempo. Seria o tempo necessário para desamarrar as asas da fada e incentiva-la a voar. Talvez lhe pedisse para lhe acertar um tapa ou soco, para reforçar a veracidade da fuga. Embora que Acheron não era tão sagaz a ponto de necessitar de uma encenação muito elaborada para que acreditasse! Na manhã seguinte, notaria a ausência da fada, e já seria tarde demais. Ela estaria longe de seu alcance. Com esse plano em ação, Driana ganharia tempo e não precisaria lidar com mais esse inconveniente. Horas mais tarde, Driana ainda aguardava o retorno de Acheron. Começava a ficar impaciente. Cada segundo mais preocupada e impaciente. Onde estava Acheron que não regressava? Teria cometido algum desatino contra a fada? Por mais bondoso que fosse, era um guerreiro e acidentes acontecem quando se usa uma espada, e luta-se pela sobrevivência. A fada poderia ter sido violenta e uma luta travada. Driana jamais se perdoaria se uma fada morresse por sua causa! Tempos depois ouviu movimento entre as árvores e seu coração saltitou dentro do peito. Ou era ele aproximando-se com seu jeito desajeitado de chamar atenção por onde andava, ou era uma manada de búfalos. Ambos primavam pela mesma discrição! Nem um, nem outro. Elfos surgiram do meio das árvores e mato. Sua surpresa foi tanta, que permaneceu imóvel. Ainda bem, era esperado que um elfo não fugisse de outro. Uma fêmea sim, seria aceitável que tentasse fugir do desconhecido. Uma fada temeria sua integridade. Mas um elfo jamais consideraria risco encontrar outros de sua raça em seu caminho. Eram sete elfos em seu total. Cada qual com um tamanho e forma diferente. O menor foi quem tomou a palavra. Deveria ser o porta-voz, o líder. Vestia roupas de couro, tal como os outros, a única diferença, era um manto nos ombros, delatando sua hierarquia de maior poder dentro do grupo. O elfo possuía orelhas aparadas. Cicatrizadas, porém cortadas em suas pontas. Veja bem, lhe fora privado de possuir orelhas pontudas, o que o diferenciava das fêmeas. Era um deboche comum entre inimigos. Causar mágoa e dor para toda uma vida em seu inimigo, rebaixado a total humilhação. No entanto, com aquele macho em especial, tal técnica não parecia ter surgido efeito, pois sua expressão era de orgulho e provocação. Ele tomou a voz, aproximando-se. Sua voz era empostada e bem colocada. Driana levantou-se, e olhou bem para ele, analisando sua cor marrom, seu tom escuro, e seus traços específicos em olhos e bochechas, tentando descobrir de onde ele seria. Não havia vestígios nele de amabilidade. Lutando para não gaguejar, Driana disse: -Chamo-me Jô. Venho da Vila das Fadas, arredores do Castelo de Rei Isac e Rainha Santha. Estou na companhia do Segundo Guardião Acheron. Os elfos não manifestaram reação inicialmente. Então, o burburinho de opiniões surgiu entre eles. O líder, incomodado com tal comportamento, fixou o olhar em seus companheiros, calando a conversa paralela. Então, fixou sua atenção de volta ao pequeno elfo Jô. Aquilo era um acampamento, disso não havia dúvidas. Em um canto o saco de couro que continha a armadura. Com a espada em mãos, o elfo andou até lá, por isso Jô não ousou tentar defender a armadura. Seria tolice que ele tentasse afanar e revender a armadura, pois ela obedeceria apenas ao seu Guardião, e sendo assim, seria perca total de tempo e energia roubá-la. Isso, se a armadura não se voltasse contra ele, como Acheron dissera que acontecia quando o Guardião não autorizava o uso por outro ser. Usando a ponta da espada, ele afastou as bandas do saco e olhou atentamente o conteúdo. Virou-se para os demais, ao chegar a uma conclusão, e disse: -É uma armadura. Existe um Guardião nesta Floresta. Nosso lugar foi tomado.– Virandose para Jô, apontou a espada, em uma clara ameaça. Driana permaneceu imóvel, pois ao ver do outro, era um menino bobo, que não oferecia risco algum aos seus comparsas. Porque Driana faria qualquer coisa que pudesse mudar essa primeira impressão? -É verdade o que digo. Sirvo a um Guardião. Ele deve estar de volta a qualquer momento. Não sei se deveriam estar aqui quando regressar. Acheron pode considerar uma ofensa. -Que ofensa pode considerar um Guardião? Nossa presença é amável. Não estamos aqui para guerra. Jamais nos colocaríamos entre um Guardião e sua missão. -Então sabe da missão dos Guardiões? – Perguntou Driana. Sim, ela gaguejava. Era impossível evitar. Era até mesmo pertinente e esperado que um menino simples e fraco temesse caçadores de recompensa. -Sabemos da missão dos Guardiões. Estamos aqui pela mesma razão. Disse que o Guardião que o provem chama-se Acheron. A fera albina? Das montanhas geladas? -Não sei se ele gostaria de ser chamado deste modo. De longe não é tão fera quanto parece e de perto, não é tão branco como dizem. Acheron é um Guardião. Respeite-o, ou terá que lidar com sua fúria e eu bem vi o que ele faz com elfos que não lhe tem respeito. -Sim, sei do que fala. Ouvimos boatos sobre um abate na Floresta dos Dois Dias. Esses boatos correm como rastilho de pólvora. Não é da nossa ossada o que faz o Guardião. E de fato, não nos interessa atrair sua vingança. Iremos esperar seu retorno do seu senhor. Se trouxer as fadas fugitivas, iremos embora. Se não trouxer, seguiremos nossa busca. -Porque buscam as fadas? – Perguntou Driana tempos depois. Cada qual tomou um canto na clareira, procurando abrigo. Um deles revirou as brasas da fogueira, provavelmente faminto, pensando em alimento. Querendo agradá-los e não levantar qualquer suspeita sobre sua figura, não atrair demasiada atenção, Driana começou a cuidar disso. Catou o que ainda havia de comida pronta, oferecendo-lhes. Não era muito. Um deles retirou um arco e flechas das vestes e desapareceu na Floresta, provavelmente atrás de uma caça. E que restaria a ela se curvar a sua obrigação de cozinhar e servir. Era esperado que um ajudante de Guardião não possuísse melindres a cerca de cozinhar e limpar, ou obedecer ordens. Sua situação não era favorável. Aqueles elfos a caçavam. Se suspeitassem quem era de fato, estaria perdida. -Lutamos por ouro. Se encontrarmos as quatro fadas antes dos Guardiões seremos muito bem recompensados. -Mesmo que precisem lutar contra um Guardião? - Driana mantinha-se a distância, mas não resistiu a necessidade pungente de saber como as mentes funcionavam. Um deles riu, sendo seguido por todos os outros. -Acha mesmo, rapaz, que os Guardiões lutam contra caçadores de recompensa? Ou que caçadores lutam contra Guardiões? -E porque não? Duvido que desse conta de uma Guardião, quanto mais de dez Guardiões! – Seu tom era superior, e arrependeu-se tão logo fechou a boca. Não era esperto de sua parte questionar a lucidez de certos elfos que poderiam extinguir sua vida com um simples movimento da espada! -Um Guardião sabe que deve se manter a distância. Não é uma questão de poder, mas sim respeito. Um Guardião, mesmo sem armadura, pode destruir a todos nós em questão de minutos. Mas jamais dará conta da vingança de um povo. E somos o povo, menino Jô. Somos parte do povo. A parte esquecida, abandonada e relegava a fome e miséria. O que fazemos, é para a sobrevivência de nossa gente. Se Acheron encontrar a fada... Iremos embora. Se não tiver sorte, é nossa vez de tentar. -Simples assim? Acham que são donos da vida alheia? O líder nada disse. Continuou olhando para os outros e novamente o riso começou. Ótimo, pensou azeda. Mais sete elfos sem cérebro para rir dela! Talvez fosse sua sina. Desconfiava que fosse da raça masculina a incapacidade de pensar. Então porque ela se daria ao trabalho de falar e explicar? Resumindo: o que esperavam dela, era que fosse obediente e rápido no preparo da comida. Mais tarde quando o elfo retornou com a caça, Driana limpou, cozinhou e serviu. Depois, afastou-se para um canto, longe dos olhares. A noite chegou profunda e escura, tenebrosa e assustadora. Uma parte de si ficava contente de não estar só. Ao menos tinha companhia para enfrentar os perigos da noite. A Floresta de Saul não era lugar para um passeio agradável ao ar livre. Estar acampada em Saul e nada ter acontecido, unicamente devia-se ao fato das criaturas noturnas temerem o poder dos Guardiões e suas armaduras. Se não fosse dessa forma já teria sido atacada. Secretamente contava os minutos para Acheron voltar. Sentia falta da sua presença protetora. Sentia nervosismo de pensar na situação que ele poderia estar passando. Temia os caçadores de recompensas, elfos completamente mercenários. Rezando secretamente para que Acheron não demorasse, Driana tornou a sentar-se em um canto, abraçar os joelhos e tentar não ser notada, apesar de aguçar os ouvidos para não perder nenhum detalhe da conversa entre os caçadores... Acheron não demorou a encurralar a fada. A pobrezinha estava na caverna, no fundo de uma rocha escura, gelada e úmida. Depois de um caminho íngreme, conseguiu pegar a fada de surpresa. Havia uma fogueira acesa, mas não fornecia nem metade do calor que necessitava para protegê-la do frio do ambiente. Difícil saber se a jovem tremia de medo ou frio, mas tremia. Seu corpo todo em colapso nervoso. Faces pálidas, olhos arregalados. Os longos cabelos escuros molhados pela umidade da caverna, seus lábios quase roxos de frio. Acheron estendeu uma das mãos em sua direção, enquanto tentava alcançar a fada que se escondera contra as pedras, apavorada. -Não pode fugir de mim– ele avisou – não vou feri-la. Não usarei minha espada. Se entregue espontaneamente e não lhe farei mal algum– alegou. -Eu não posso – ela disse com voz falhada, sem som– Por favor, me deixe em paz... -É uma fada fugitiva. Eu sei que está com medo. Será levada para o castelo, Driana. Será julgada e punida – ele notou a fada afastar os olhos, como quem pensa em algo – mas seu crime não é tão sério quanto o de sua amiga Eleonora. Os Conselheiros serão generosos se for sincera sobre sua participação. Intercederei por você. Venha, não tenha medo de mim. A fada estava muito pensativa. Aos poucos se moveu e deu um passo em sua direção. Antes que ela pudesse mudar de ideia, Acheron a puxou e então, a aprisionou entre seus braços. A fada gritou, por descobrir que havia sido enganada por sua fala proteção, e foi imobilizada. Seus punhos amarrados e suas pernas presas por cordas. Acheron tentou ser gentil, mas era complicado na sua atual situação. A fada não parecia ferida, então, a jogou sobre o ombro e retomou o difícil caminho para fora da caverna e então por dentro da Floresta de Saul. A fada ficou quieta, o que o incomodou, pois esperava mais de uma fada de tanta inteligência quanto Driana. Lembrava-se muito bem das características da fêmea, e sabia o quanto era bonita. Mas fazia algum tempo que não a via e a privação física deixa as pessoas menos atraentes. Talvez por isso lhe parecesse tão diferente da imagem que guardava em sua lembrança. Inocente ao próprio engano, Acheron retornou ao acampamento. Ao descobrir que seu ajudante não estava sozinho, Acheron soube que o pior ainda o aguardava. Não bastava ter que encontrar uma inocente e levá-la para a morte? Precisava lidar com caçadores? Houve um silêncio enorme quando o imenso Guardião surgiu. Ele levou a fada amarrada para longe dos demais, sem dizer palavra alguma. Seu ajudante correu ao seu encalço, como quem implora ajuda. Havia tanto medo nos olhos do jovem Jô que Acheron desejou dizer-lhe que tudo estava bem. -Sirva comida e água. Parece que ela não come a muitos dias– ele disse seco, afastando-se de Jô. Somente Acheron para preocupar-se com o bem estar de um prisioneiro. Jô obedeceu suas ordens, sem no entanto afastar os olhos do Guardião. -Duque – ele disse o nome com algo de desgosto na voz– há quanto tempo não perco meu precioso tempo lidando com sua presença. Jô quase derrubou a cumbuca com mingau que levava de um ponto ao outro do acampamento, surpreendida pela acidez na voz do elfo, e sua postura enraivecida. -Acheron, meu Guardião preferido.– Duque, o líder ergueu-se e encarou o Guardião tão maior que ele – Faz tempo que não tenho a oportunidade de enganá-lo. Sinto saudades dos velhos tempos. -Perde seu tempo. Não negociarei com você novamente.– Acheron ignorou a ofensa. No passado havia sido enganado pelo Duque, o nome que se intitulara o elfo mercenário. -Leve seus seguidores para outro lugar. Não é bem vindo aqui – avisou. -É o que pretendo fazer quando amanhecer – ele garantiu, com um sorriso presunçoso – encontrou uma das fadas. Resta mais três. Não devemos lutar quando há espaço para todos nessa luta. -Engana-se. Existe um Guardião na busca de cada uma das fadas. Jamais encontrará as fadas antes dos Guardiões.– A presunção agora era de Acheron - Passe a noite, aproveite minha hospitalidade. Mas amanhã cedo deve partir, ou precisarei leva-lo embora eu mesmo. Jô observou os dois machos medirem-se fixamente. Duque, o líder dos mercenários quase cedeu ao impulso de lutar contra o Guardião. Seu orgulho, no entanto não subjulgava sua esperteza. -É uma bela fada. Obterá alguma diversão antes de entregá-la para julgamento? – Duque perguntou com olhos cumpridos para a fêmea. Embora ela possuísse asas marrons e redondas, de tamanho comum, e não estivesse mais no cio, ou seja, houvesse sido agraciada com suas asas a muitos dias, talvez semanas atrás, ainda assim, era fêmea e despertava o interesse imediato dos machos. -Não. Ninguém toca na fêmea – ele foi taxativo.– Jô!– Gritou seu nome sem no entanto olhar em sua direção – Leve a fada para a barraca e fique com ela. Eu dormirei ao relento. Jô não considerou a possibilidade de questioná-lo. Ajudou a fada a andar, tão difícil era fazê-lo com os pés amarrados, e na barraca ajudou-a a deitar. -Fique quieta – ela sussurrou logo depois de fechar a barraca de couro curtido, que ajudava a proteger não só a imagem, mas também resguardava o som. Ajoelhou-se perto da fada e sussurrou: -Não diga nada. Apenas ouça e veja – retirou a touca de duende da cabeça, revelando sua feminilidade – Sei que não é a fada Driana. Eu sou essa fada. Acheron enganou-se. Por isso vou ajudá-la a fugir. Não tema. Nada lhe acontecerá. -Eu soube que ele estava enganado quando me chamou pelo nome errado – ela tremia – Achei que fosse um engano e me safaria. Mas são caçadores mercenários lá fora... Nunca me deixarão ir... -Eu farei de tudo para ajudá-la, confie em mim. Tenho interesse em atrasar as buscas e salvar a mim mesma. Não importa seu crime. Não me interessa saber o motivo que a faz ser uma fugitiva. Eu vou libertá-la. Não desfaça o mal entendido, por favor. Eu imploro! A fada nada respondeu. Estava exausta e Driana deixou-a descansar, enquanto sentava ao seu lado e velava seu sono, olhos pregados na entrada da barraca.
Traiçoeira
O amanhecer não trouxe a partida dos Caçadores de Recompensa. Pelo contrário, Driana encontrou-os em uma animada conversa sobre um duende chamado Baltazar, que era atualmente procurado por afanar bens de um elfo importante, morador da Floresta dos Desejos.
-Jô trabalhava para Baltazar. Foi o duende que o criou – Acheron contava e Duque olhou o garoto da cabeça aos pés, enquanto alisava o cabo de uma faca, que Acheron tentava lhe revender. -Isso é estranho. Não me lembro do velho Baltazar carregar um garoto em suas viagens. Muito menos confio nessa generosidade vinda de um duende.
Acheron também olhou na direção do rapaz e maneou a cabeça: -É de esperar que uma raposa velha como Baltazar não queira que saibam de sua generosidade. O garoto é boa companhia e muito útil. -Mesmo? Posso conseguir um bom lote de ouro por um elfo jovem, e prestativo – Duque sugeriu– Um trabalhador que agrade ao padrão de um Guardião, sem dúvida, pode ser negociado a um alto preço. O que me diz? Vinte moedas? Acheron tornou a olhar para o garoto e Driana ficou imóvel, incrédula. -Eu preciso de ajuda com o cavalo. Procure-me no castelo. Podemos renegociar seu preço – ele deu de ombros. -Não valorize demais seu ajudante – Duque alertou ainda desconfiado sobre o rapaz – essa raça sempre revela ter duas caras. Acheron não levou em consideração suas palavras, mesmo assim, Driana sentiu um arrepio de medo. Duque mantinha os olhos sobre ela, e não podia ignorar sua mente que formulava teorias a cerca das intenções do mercenário. Preferiu sumir logo de suas vistas, e rezar que Acheron despachasse logo aqueles machos de moral desconfiável. -Minha situação está cada vez pior – ela cochichou para a fada Jana, a fada aprisionada por engano de Acheron, quando voltou para a barraca, saindo do campo de visão dos elfos. Sentou ao seu lado dentro da barraca e baixou a cabeça entre as mãos. -Não posso consolar você.– A fada deu de ombros e Driana sorriu, lutando contra as lágrimas. -Eles vão perceber que não sou elfo. É questão de tempo. O líder está desconfiado de mim. Eu sinto isso! -O Guardião não deixará que lhe façam mal. Precisa entregá-la intocada para ser julgada no castelo – Jana lembrou-a disso e Driana lutou para não rir histericamente. -Fico contente em saber disso. Mas e minhas amigas? O que serão delas? Vão se entregar quando souberem que fui pega. Logo eu! Como é possível que eu não tenha conseguido manterme a salvo? Reina tinha certeza que eu conseguiria! Como sou estúpida! Como sou...– Calou-se abruptamente quando a barraca foi invadida por Duque. -Acheron proibiu que tenha contato com a fada aprisionada.– Jô levantou-se em posição de defesa. -Meu assunto não é com a fada. É com você.– Ele disse acenando para que saísse da barraca estreita. Com um olhar de medo, amplamente correspondido por Jana, seguiu-o. Acheron não estava em nenhum lugar que seus olhos poderiam encontrar, por isso seguiu o elfo até um local escondido entre as árvores. -O que você quer de mim? – Perguntou com os braços cruzados, e expressão fechada. -Está mentindo sobre Baltazar. Eu consigo provas disso, rapaz, e o Guardião irá cobrar-lhe essa mentira com sangue. Está ciente disso? -Não sei do que fala – desafiou-o. -Caso soubesse...– Ele sorriu de modo desagradável– poderia achar mais agradável me ajudar, e não precisar lidar com a fúria de um Guardião traído. Claro, eu posso ajuda-lo com ouro e proteção, para que não siga sozinho depois que abandonar o Guardião. -Porque eu faria isso? Acheron não duvida de mim. Ele não acredita em você. Ajudando-o, aí sim, estarei assumindo culpa. De modo algum trairei Acheron. Baltazar me criou. Essa é a única verdade que importa. -Não. Você mente. Vejo a mentira em seus olhos. Um bom mentiroso sabe reconhecer outro igual. Feche comigo, e me ajude a roubar a fada das mãos do Guardião.– Mandou. -Acheron não acreditará em você. Além do mais, não me importo com o que diz. Não vou trair o Guardião! Driana pretendia afastar-se, mas Duque agarrou seu braço com força, e forçou o ar, farejando a sua volta. -Tem algo errado em você, rapaz. Ainda não sei o que é, mas tem algo estranho. E quando eu descobrir o que é... - Ele sorriu com tanta malvadeza na face que Driana desejou desaparecer e nunca mais precisar olhar para ele - ...estará nas minhas mãos, passarinho. E você não vai gostar do que eu faço com quem não me ajuda. Driana estava a um passo de chorar, quando pensou ter ouvido um barulho entre as árvores. Se bem conhecia a nada discreta técnica de aproximação de Acheron, poderia apostar que era ele rondando a floresta, quem sabe procurando descobrir os segredos do trapaceiro Duque. Por isso, arriscou-se: -Eu já disse!– Gritou – Não vou trair o Guardião! Me deixe ir!– Debateu-se para ser solta. Duque não esperava por isso, e quando o Guardião surgiu de entre as árvores, Driana soube que Duque seria um inimigo conquistado para a vida toda. -Está tentando corromper meu ajudante? – A pergunta foi feita em voz dura. -Estávamos tendo uma conversa entre amigos.– Duque respondeu com uma expressão traiçoeira que enojou Driana. -Ele queria que eu soltasse a fada. Enganasse você, Acheron. Ele tem um plano para passar a perna nos Guardiões! Estava me ameaçando. Disse que arrumaria provas falsas que minto sobre o duende Baltazar e por conta disso você me odiaria.– Ela estava logo atrás de Acheron, e por isso falava bem perto de seu ouvido, como uma serpente traiçoeira, enganando uma inocente ovelha com sua lábia primorosa. Com isso acabava com futuras suspeitas sobre sua mentira. -Não posso dizer que isso me surpreende – a voz de Acheron era calma, mas Driana reconhecia o perigo. Uma fera quando está calma, nem sempre é um bom sinal. Satisfeita consigo mesma, e por ter se livrado daquele problema, Driana sorriu. Acheron não viu seu sorriso, mas Duque viu. O olhar do elfo era de morte. Se tivesse a oportunidade, estrangularia o elfo mais jovem com as próprias mãos! -Se não estiverem longe dessa Floresta até o final do dia, considerarei a necessidade de vestir minha armadura e levá-los pessoalmente para fora daqui. Nunca compactuei com os crimes que comete, se o suporto até hoje é por ordens externas a minha vontade.– Ele ameaçou. -Isso não será necessário. Duque fez uma mesura debochada e se afastou. -E você, volte para junto da fada. Descumpriu minhas ordens.– Acheron disse entre dentes, furioso. -Desculpe. Desculpe-me, isso não acontecerá outra vez, Guardião – disse submissa, correndo para o acampamento. Sozinho, Acheron ficou um instante para trás. Nada poderia explicar o aperto em seu coração quando pensou que Duque iria fazer mal ao menino. Estava se afeiçoando a Jô. Como um irmão menor, o garoto entrava em seu coração. Ao menos encontrou a fada fugitiva e poderia voltar para casa. Mas não tão rápido, disse a si mesmo. Um dos elfos que acompanhava Duque deixara escapar que um outro acampamento de elfos estava estabelecido a uns dois dias de caminhada de onde estavam. Eram elfos em viagem. Seria uma boa oportunidade achar um caminho errado que sem querer – ele sorriu a esse pensamento – o levasse para junto dos demais elfos. Alguns dias de distração, e ganharia mais tempo. Quem sabe, tempo para a fada achar sozinha um novo modo de fugir? Desejava que escapasse. Mas não poderia se arriscar a compactuar com isso. Muito menos entregá-la para os caçadores de recompensa. A pobre fada seria revirada do avesso e agredida tantas e tantas vezes que a punição de morte pelo seu crime seria até um alivio. Acheron permaneceu afastado de todos, mas manteve os dois olhos bem abertos, esperando que Duque e sua gente partisse. Dentro da barraca, Driana estava a um passo do desespero. -Porque você estava naquela caverna? Tem suas asas. Não tem? – Perguntou-lhe, ajoelhada na sua frente. -Sim, tenho minhas asas, mas esperava minha gente me buscar. Eu não cometi crime algum. Fui aprisionada e levada à força para ser vendida quando minhas asas nasceram.– Ela baixou a cabeça, e Driana teve pena ao pensar em todos os sofrimentos que deveria ter passado – Eu fugi na primeira oportunidade, para que meu dono não conseguisse me achar. Soube que minha família estava a minha procura e trocamos mensagens. Eu os esperava na caverna. Nunca imaginei que seria apanhada no lugar de outra fada fugitiva!– Disse assustada. -Acontece, que se eu a soltar agora você acabará sendo aprisionada pelos caçadores de recompensa, é só questão de tempo para que isso aconteça! E eles pensam que você é Driana, a cúmplice do assassinato do rei. Seu preço será enorme! -E o que vai ser de mim? – Jana perguntou com pânico na face. -Só tem um jeito de acabar com esse engano, sem que você fuja e podendo contar com a proteção do Guardião. Acheron nunca devolveria uma fada que foi raptada e vendida. Ele a protegerá até que a encontrem. Para isso, só tem um jeito.– Disse pesarosa – Driana precisa aparecer. Acheron precisa encontrar a verdadeira fada fugitiva, para saber que se enganou em relação a você. -Eu não entendo– Jana disse – Confia que o Guardião seja tão generoso a ponto de me ajudar? -Sim, ele o fará – garantiu-lhe. -Então, porque não lhe conta quem é? – Perguntou intrigada. -É muito tarde para isso. Engano Acheron há muito tempo. Ele nunca vai me perdoar. Além disso, ele presa seu dever de Guardião. Sua história não é feliz, Jana. Acheron não possui mais nada na vida além de seu lugar junto ao reino. Se ele tomar as dores das fadas da clausura, estará definitivamente sozinho no mundo outra vez, e eu não quero isso para ele. Sei que posso lidar com a situação de um modo menos drástico. -Como? Se entregando? -De modo algum. Nunca colocaria minhas amigas em risco!– Levantou e andou pela barraca com olhos brilhantes de quem formou uma teoria na mente – Vou mostrar a ele a fada verdadeira. É só o que farei. -Mas se Acheron encontrar a verdadeira Driana, não a deixará partir. Ele é tão forte! Você nunca conseguiria vencê-lo em uma luta! -Uma luta física, você quer dizer–ela sorriu– eu já sei o que fazer! Acredite, eu vou vencer o Guardião sem mover um dedo para lutar! Sim, sua mente sabia muito bem o que fazer. Aprendera a conhecer os gostos e as fraquezas do grandalhão. Um frisson de expectativa e ansiedade correu por sua espinha dorsal e Driana corou diante da audácia de sua mente. Sim, ela mostraria ao Segundo Guardião quem era a verdadeira Driana, a fada da clausura!
Acheron reparou que seu ajudante se mantinha longe dos demais elfos. Começava a desconfiar de seu excesso de desejo de privacidade. Ele próprio, nessa idade, aproveitava qualquer oportunidade para conviver com elfos de maior poder e conhecimento de lutas.
Era um devorador de qualquer informação sobre técnicas de luta. O que não explicava nada. Jô era um garoto de pensamentos. Ele fora um garoto escravo, que tinha em seu sangue o chamado da espada e da liberdade através do suor do corpo, quando necessário fosse vencer o inimigo.
Eram pedra e areia, e de um modo estranho, era assim que deveria ser. Jô regressou para dentro da barraca e Acheron tentou ignorar as palavras de Duque sobre seu ajudante. Era um garoto estranho. Disso não havia sombra de dúvidas. Até onde ia a importância dessa estranheza, ele não sabia. Até onde deveria se importar com as estranhezas de seu ajudante? Deixando esses pensamentos de lado, Acheron procurou-o na barraca. Encontrou-o aos cochichos com a fada Driana. Acheron não olhou para a fada. Relutava olhar para ela. Culpa afiada impedia que olhasse para a fêmea. -Vou aproveitar que a caverna onde achei essa fada esconde-se atrás de uma cachoeira, e vou me banhar – ele anunciou. Jô ergueu uma sobrancelha sendo propositalmente irônico e Acheron sorriu: -Não ouse dizer nada. Eu nunca disse que não gostava de tomar banho. Disse que não via necessidade de fazer isso todos os dias – Disse com voz de ameaça. -Lembre-se de se livrar dos carrapatos e dos piolhos. Ou eles criarão vida própria e dominarão todo o mundo mágico - ela atiçou. Um olhar de falsa indignação e Acheron partiu. -São amigos – Jana disse surpresa – Como podem ser amigos? -Eu não sei.– Ela disse culpada – eu gosto dele. Gosto do jeito de Acheron. Não queria mentir tanto para ele! -Gosta dele? Você está dizendo que...? Oh.– Surpresa, Jana nem continuou a frase. -Não diga isso.– Ela pediu, com o mesmo sentimento. Não era normal que estivesse tão interessada em seu perseguidor. -Eu vou atrás de Acheron. Vou soltá-la, se esconda na Floresta. Mas fique de olho, deve voltar e estar amarrada antes de Acheron retornar ou meu plano não surtirá efeito. -Vão demorar? – Jana perguntou frágil, cansada de tanto padecer. -Sim, para meu plano surtir efeito preciso esperar escurecer um pouco. E depois...– Corou muito, pois em sua mente o plano era muito claro - ...Acheron ficará fora de sintonia por um tempo. É quando eu regresso e ficaremos aqui, esperando-o como se nunca houvéssemos feito outra coisa além de aguardar o retorno do Guardião. É um plano simples. -Ele é um Guardião – Jana avisou – Nenhum plano é simples quando é necessário enganar um Guardião! -Sim, eu seu disso.– No seu caso ainda pior, pois o que tinha em mente colocaria seu corpo e coração em risco definitivo.– Espero que fique bem, Jana. -Eu lhe digo o mesmo – Jana foi solta a observou-a partir. Eram fadas incriminadas injustamente. Ambas estavam no mesmo barco, sofrendo do mesmo mal. Era justo que se unissem. Fora da barraca, Driana parou um instante e respirou fundo. Pedia proteção da natureza para sua alma e coração. O pensamento em suas melhores amigas. Eleonora, Joan e Alma eram sua vida. Faria de tudo para salvá-las. Mesmo que esse tudo fosse contra sua moral e suas decisões de vida. Magoar e enganar Acheron. Era doloroso saber que não importava como tentasse se justificar por isso no futuro, o Guardião jamais a perdoaria. Jana havia lhe contado onde ficava a caverna, e não teve dificuldades para encontrar o lugar. As roupas de Acheron estavam na margem do lado, onde a cachoeira desembocava. Seus olhos visualizaram o local por onde poderia entrar na caverna. Era preciso escalar as pedras. Sua mente arquitetou o modo certo de fazer isso. Vendo-o mergulhar e nadar, Driana andou entre as árvores da margem e escondeu em um canto a touca de duende e as roupas que usava. Vestiu uma túnica limpa, de algodão. Era curta e fina, muito feminina. Carregava a peça de roupa escondida consigo em sua trouxa de pertences e não imaginou que lhe seria tão útil como estava sendo nesse momento de estratégia. Inocente ao seu plano, Acheron desgastava toda sua energia reprimida em braçadas potentes. Mergulhos para limpar o corpo, o cabelo e a alma. Lavar as preocupações que assombravam sua mente. O rapazola que o acompanhava vivia reclamando do suposto cheiro ruim que exalava. Não era sujeita, era cheiro de elfo. Seu cheiro natural, e Jô era melindroso demais. Emergindo, ele sacudiu a cabeça, tal como faria um animal selvagem ao emergir de um mergulho. Sua porção fera estava enaltecida desde que tivera que reprimir a raiva que nutria por Duque e o seu bando. Era bom desgastar tanta energia em algum exercício antes que sua mente começasse a pensar besteiras. Longe dos olhos de Acheron, ela entrou na caverna e observou atentamente a imagem a sua volta. Jana havia deixado para trás alguns pertences. Um pelego de pele macia jazia num canto, completamente esquecido. Engolindo em seco, pois seu pulso estava acelerado e mal conseguia raciocinar com clareza, Driana pegou-o e arrastou para perto da fogueira apagada. Levou alguns minutos para ascender o fogo e espalhar a fumaça pela caverna. Logo esse cheiro escaparia para fora também. Não havia nada de toalhas, roupas ou conforto. Mas ela não precisava disso. Suas mãos tremiam, por isso esfregou-as nas coxas, como que tentando acalmar suas terminações nervosas. Como se ignorar a grande decisão tomada, pudesse apagar suas consequências para todos os envolvidos! Acheron jamais a perdoaria por isso. Jamais. E ela? Perdoar-se-ia algum dia? Parada, de pé, fitando as paredes de pedra, íngremes e geladas, Driana perguntou-se como poderia mentir para si mesma. Nunca seu coração foi tocado por nenhum amor. Nem mesmo amor platônico de infância. Nada. Ela nunca amou. Nunca sentiu nada parecido com o sentimento que a inundava. Não conseguia pensar em um elfo mais apropriado para esse momento. Por certo, uma fada deve esperar o cio para deitar-se com um elfo pela primeira vez em sua vida. É o correto. Mas ela sentia o corpo quente somente de pensar no que faria! Também nunca ouvira dizer que era obrigatório aguardar o nascimento das asas. As fadas tendiam a esperar, pois após o nascimento das asas era mais fácil casar com um elfo. Driana não esperava casar-se com Acheron, ou qualquer outro. Nunca pensou nisso de fato. Quando pensava em casamento era unicamente um pensamento atrelado ao desejo de escapar da clausura. Nunca uma vontade real, um desejo de futuro. Não conseguia imaginar-se casada. O mero pensamento lhe parecia estranho. Acheron mexia com seu coração e com seus sentidos e se ela abandonasse as defesas de sua mente, e deixasse seus instintos assumirem, admitiria que desejava muito ter êxito em seu plano. Desejava o que aconteceria dentro daquela caverna, e essa era uma verdade que não podia mais ignorar. Seu plano era deveras simplório. Atocaiar o elfo perto da cocheira, fugir um pouco para que ele não acreditasse ser uma tocaia bem armada contra ele. Então, refugiar-se na caverna, de onde não poderia fugir. Acheron era caçador, era fera, precisava sentir que sua caça se debatia, e lutava até o final. Ele precisava disso para crer na veracidade da captura. E Driana lhe daria isso. A veracidade de sua essência. Ele descobriria que era Driana, a fada cúmplice do assassinato do Rei. Sua primeira intenção seria levá-la consigo, e fazer uma troca, libertando a fada Jana. Antes que isso acontecesse, Driana pretendia seduzi-lo. Até onde seus planos a levariam não era uma incógnita, pois não era muito difícil para uma fada cativar a atenção do elfo. Acheron era um apreciador das fêmeas, e se deixava seduzir facilmente por qualquer uma. E embora não fosse seu padrão de beleza, pretendia conseguir enredá-lo e levá-lo ao leito. Depois de copular, e nesse momento um suspiro escapou de seus lábios diante desse pensamento, pretendia esperar que adormecesse para então, em surdina, escapulir. Voltaria ao acampamento vestido de Jô e quando Acheron retornasse furioso com a nova fuga de Driana, o rapazola Jô apenas sairia do seu caminho e guardaria para si as lembranças e sentimentos despertados por seus olhos perigosamente verdes... Era isso, pensou. Podia fazer isso, toda fêmea possui o dom da conquista, e não permitiria que a insegurança e inexperiência a deixasse amedrontada. Era seu dever fazer isso, mantendo Acheron longe da fada Jana, que não tinha culpa de nada, e não fazia parte da história da fada Driana. Em alguns momentos, ela precisava pensar em si mesma como um terceiro elemento, pois do contrário, enlouqueceria! Uma vez tendo visto Driana com seus próprios olhos, Acheron libertaria a outra fada e seguiria viagem. Era o que precisava. Que Acheron libertasse a fada que nada tinha a ver com seus problemas e a ajudasse a estar segura. Então, seguiriam viagem como se nada houvesse acontecido. E quem sabe depois, quando estivessem salvas, Driana pudesse contar tudo a ele e pedir seu perdão? Triste com esse pensamento baixou os olhos, e olhou para as próprias mãos. Quem sabe Acheron há perdoasse um dia?
Verdade ou desafio?
Acheron saiu da água satisfeito em ter ocupado a mente e o corpo em outra coisa que não fosse pensamentos. Admitia, não gostava de pensar demais. Era cansativo lembrar-se do passado, lembrar-se de tristezas, e remoer dores há muito tempo apagadas do coração.
Caçar a fada Driana fizera com que o passado voltasse à tona em sua mente. As lembranças do tempo de escravidão, da perda irreparável de seus familiares e do trono que era seu por direito, abandonado em nome de uma vida de buscas. Buscar seu lugar no mundo, um lugar onde a dor pudesse ser menor.
A perda da liberdade emocional, pois crescera sabendo que sua vida jamais seria como deveria ter sido. A felicidade que o aguardava desde o ventre de sua mãe lhe fora roubada e esse tipo de sentimento jamais abandona uma criatura viva.
Muito arrependimento por mortes e lutas. Muitas pessoas queridas deixadas para trás em sua busca por um lugar no mundo, depois do seu verdadeiro lar ter sido destruído e arruinado. Era um bebê quando foi levado de sua mãe e criado na escravidão. Não conhecera o amor materno ou paterno, e muito menos tivera a oportunidade de conhecer o reino de sua família antes de ser tomado e destruído. Crescera em um mundo fedorento, cheirando a sangue e desgraça e fora nesse ambiente que aprendeu a lutar. Seu corpo fora moldado pelo exercício físico dos trabalhos de escravo, carregando pedras, construindo muralhas e levantando proteção para aquele que mais desejava destruir. Aos doze anos, Acheron descobriu que poderia matar facilmente. Aconteceu por acaso. A morte nunca lhe passou pela mente, apesar do ódio e do desejo de vingança. Um dia, preso junto aos outros escravos, durante a noite, haviam sido visitados por soldados do novo Rei. Eles levaram consigo jovens fadas, ainda crianças, para serem abusadas e vendidas entre eles. Acheron conseguiu uma brecha para segui-los, sem ser visto, e quando estavam em a Floresta, refestelando-se na virtude das pobres meninas, usando de apenas uma velha espada, Acheron, munido de todo o ódio e desejo de vingança reprimidos por todos os anos de sua jovem existência, dera conta de mais de dez soldados armados e capazes. Ele levou as meninas de volta, de volta para a escravidão, pois apesar de tudo, não sobreviveriam na Floresta sem ajuda, e ao retornar, descobriu que seu feito não era comum. Um escravo, Lourenzo, o mais antigo deles, havia lhe contato sobre como homens de poder igual ao seu poderiam salvar os menos afortunados e capazes de lutar por si mesmos. Cheio de desejo de liberdade, o Acheron do passado absorvera cada palavra, durante dias e longas noites, ouvira cada ensinamento, prestara atenção a cada dica, até que no final do inverno daquele ano, quando a montanha era coberta de neve e os rios inteiramente congelados, mas não nevava com tanta severidade, Acheron tomou a frente em um combate por liberdade. Fora escolhido, juntamente com outros rapazes da escravidão, para proteger o Rei durante as comemorações do final do ano. E foi em meio a música de tambor e estouro de explosões de luz, de gritos de comemoração e troca de presentes, que Acheron liderou a rebelião. Atacou e venceu soldados, tomando espaço, até chegar junto ao Rei, onde sem pensar ou se lamuriar, havia matado por gosto pela primeira vez em sua vida. A primeira e única vez que sentiu prazer em ter o sangue alheio em suas mãos. Admitia, e queria esquecer esse sentimento, mas fora por gosto. O Rei não possuía herdeiros e suas fadas esposas, não estavam dispostas a lutar pelo trono, pois também eram prisioneiras, sendo assim, quando os demais escravos se rebelaram sob o comando de Lourenzo, os escravizados tomaram o poder. Acheron desejava apenas saber de sua mãe. Mas não eram boas as notícias para ele. Era o herdeiro do trono, mas quis ofertá-lo a Lourenzo, que o ensinara o sabor de lutar pelo justo e pela liberdade. Os dias passaram, as comemorações pela liberdade findaram e o reino precisava ser reconstruído. Era a hora de Acheron partir e fugir das lembranças e do sofrimento. Sua chegada do Monte das Fadas, nome dado pelos humanos a grande montanha, Acheron conheceu o Reino do Rei Isac. À primeira vista o lugar perfeito para viver calmamente. O reino lidava com uma paz que parecia não esmorecer mesmo diante das piores dificuldades. O rei era justo e piedoso e afeiçoou-se imediatamente aos sobreviventes das terras geladas, que pediam paragem. Alguns não resistiram ao sol forte, às peles albinas cedendo diante dos raios de sol, e seus corpos debilitados pela guerra, sucumbiram. Outros, como Acheron adaptaram-se rapidamente. Acheron foi o único que desejou ficar. E dizer adeus definitivamente para sua gente foi muito difícil. Sozinho em uma nova terra, Acheron foi levado pelo Guardião Túlio, pai de Egan, para ser treinado. Sua luta era diferenciada e em pouco tempo seus atributos foram reconhecidos e seu potencial aceito e acolhido. Anos de dedicação para então, ter a oportunidade de ser escolhido por uma das armaduras. Era sabido que a cada quarenta anos, os Guardiões deveriam passar adiante sua armadura. Havia outros modos de conseguir sua armadura, mas eram raros os elfos que tinham essa oportunidade. Quando um Guardião morre, sua armadura permanece em luto até ser despertada pelo poder interior de um elfo merecedor daquela honra. Mas quando o Guardião atinge quarenta anos de dedicação, seu corpo físico não mais suporta usar a armadura. Por isso, em regiões civilizadas como o Reino de Isac, criaram rituais específicos para que esse momento de separação não destrua ambos, armadura e guerreiro. Era de praxe que o Guardião escolhesse um possível sucessor. Ser escolhido pelo Guardião garantia metade do caminho percorrido ao coração da armadura. Túlio possuía um filho sendo treinado desde o nascimento sendo assim sua armadura possuía um possível dono. Mas Acheron teve a sorte de ser acolhido pelos demais Guardiões, e a armadura de um deles, morto em combate, poderia escolhê-lo se tivesse sorte e capacidade. Desse modo, anos mais tarde, essa previsão se consolidou e foi proclamado Segundo Guardião. Honrava esse título e finalmente sua vida voltou a ter uma diretriz. Por isso lutava contra o desejo de ajudar as fadas fugitivas, pois seu idealismo o levava a isso. Por medo de ter que recomeçar sua vida do zero outra vez, Acheron preferia se omitir. Medo, o pior sentimento que um ser pode sentir. Por conta disso, além de culpa, se corroia na vergonha de sucumbir à própria fraqueza. Nu, Acheron sacudiu a longa juba, livrando-se do excesso de água antes de vestir a calça. A lua se anunciava no céu, mas ele ainda não queria voltar. Ter de enfrentar o olhar de recriminação de Jô por ter aprisionado a pobre coitada da fada da clausura. Ter que lidar com seu desejo insano de libertá-la. Sentindo que as preocupações estavam de volta e pouco a pouco tomavam sua mente outra vez, Acheron olhou em volta, para a mata fechada. Em torno da margem da cachoeira havia uma planície de grama e mato baixo, e era ali que ele deixara seus pertences, perto das rochas. Seus olhos claros, sempre tão sensíveis à luz do sol, no escuro da noite se tornavam mais abeis e ele avistou um vulto entre as pedras. Não esperava precisar empunhar sua espada. Normalmente quando um Guardião se aventura por florestas perigosas como a de Saul, sabe de antemão que precisará lutar. Mesmo assim, gostaria de ter o poder de evitar confrontos. Com a espada em mãos, Acheron seguiu o vulto. Ficou parado, imóvel, para não assustar a criatura que o espreitava. E foi quando conseguiu ver o que era. Uma fada. Não via suas asas, mas era uma fada. Por de trás de uma rocha mais alta, a fadinha o observava. Era morena, pele clara, e parecia pequena como um duende. A fada se moveu muito rápida e ganhou distância e foi por isso que Acheron apressou suas passadas. Seguiu-a por entre as rochas, mas não era fácil alcançá-la, pois conseguia se esgueirar por brechas e cantos que ele, com seu tamanho todo, não conseguia, e pela forma como explorava esses lugares, ela sabia previamente que teria êxito e vantagem em relação ao elfo! Acheron suava, e subia as rochas com habilidade, quando a viu entrar pela brecha que levaria por trás da cachoeira, onde havia a caverna. Por um minuto considerou que a fada houvesse escapado do acampamento e voltado para seu esconderijo por isso rosnou furioso pelo esforço dobrado em recapturá-la. Acheron encontrou a caverna aparentemente vazia. Em um canto, bem ao fundo, onde era mais íngreme e escuro, ele avistou a fada. Pequenina, magrinha, cabelos longos, lisos e negros, com uma franja longa sobre a testa e olhos, a fada tremia dentro da singela túnica que vestia. Túnica de algodão, comumente usada no Ministério do Rei. Acheron andou em sua direção e ela não tentou escapar. Ambas as mãos apoiadas na rocha atrás de si, enquanto seu corpo tentava suportar a tensão da espera. Driana respirava forte, arfante, primeiro pelo esforço de fugir dele, segundo pelo medo. Sabia que seu plano estava surtindo efeito e se conscientizava que era a fada Driana e Acheron era um Guardião, e por mais que pudesse crer na exatidão de seu elaborado plano ainda assim, corria um risco imensurável! Acheron aproximou-se devagar, olhos fixos nela. Como uma presa, pensou Driana, entendendo que como caçador nato, um ser integrado com a natureza, Acheron lidava com ela do mesmo modo que lidaria com uma caça sendo abatida. A fada possuía olhos profundamente azuis, bochechas rosadas e lábios cheios. Pescoço e clavícula finos, singelos, e frágeis. Braços e mãos delicadas. A túnica cobria seu corpo, escondendo suas curvas, mas seus pezinhos descalços não negavam sua magreza e estrutura delicada. Acheron sentiu uma punção de simpatia, como se a conhecesse a muito e muito tempo. Algo profundo que o compelia a aproximar-se e segurá-la em seus braços, protegendo-a de todos que tentassem feri-la. Driana manteve os olhos fixos no elfo. Esperava que sozinho Acheron chegasse à conclusão de quem era. A túnica era usada no Ministério do Rei. Uma fada fugindo, com roupas usadas na clausura? Mais óbvio que isso impossível! Até mesmo Acheron teria capacidade de entender logo de cara, pensou maldosa. Mas pelo visto, estava enganada, e Acheron precisaria de mais um incentivo para notar o que ela exibia tão espontaneamente. -Não me machuque – ela sussurrou nada surpresa de precisar alertá-lo para a verdade. Acheron era um elfo lindo demais. Mas também era um pouco ingênuo, para não usar outra palavra menos sutil...– Eu não fiz nada. Por favor, Guardião, não me leve de volta! O melhor mesmo era ser bem clara quanto a sua procedência, ou Acheron demoraria séculos para ligar sua figura a da fada fugitiva verdadeira! Seu sussurro fez sentido e Acheron baixou a espada, e com mais um passo em sua direção, encurralou-a definitivamente. -Fada Driana? – Ele perguntou incrédulo. Acreditava ter apanhado a fada da clausura, não esperava por essa reviravolta! -Por favor, Guardião, não me faça nada contra mim!– Estendeu uma das mãos como quem se protege. Seu medo não era uma mentira completa. Estava desafiando um Guardião. E seu medo era genuíno. Quando Acheron descobrisse suas mentiras, o modo como vinha enganando-o, e usando de sua boa fé, nesse momento, Driana estaria perdida. No mínimo a rechaçaria para todo sempre. -Aprisionei uma fada que deveria ser você! Diga, tem cúmplices espalhados por essa Floresta? – Ele disse incrédulo. -Estou sozinha aqui, eu... Encontrei esse lugar. Por favor, me deixe aqui. Não me leve de volta. Eu não fiz nada! Sou inocente! Minhas amigas são inocentes! Fugimos para sobreviver! Para ganhar tempo e as asas de Eleonora nascerem sem interrupções! Ela é filha de Rainha Santha! Foi tudo uma armadilha para encobrir o assassinato do rei! Creia em mim, eu nunca lhe mentiria, Guardião. Sei meu lugar nesse momento, sou apenas uma fada da clausura... Acheron aceitaria esse argumento se a sua vida não estivesse em risco. Recomeçar uma nova vida a essa altura era impensável. Não queria recomeçar tudo de novo. Acharia um modo de ajuda-la sem se comprometer. Como Driana esperava, o Guardião seguiu avançando em sua direção. Ao menos ele deixou a espada no chão antes de avançar. Sinal que não pretendia atacá-la e feri-la. Não era surpresa, Acheron não era cruel, era alguém com o coração puro e repleto de generosidade. -Não – ela gritou quando ele tentou pegá-la.– Não, por favor, me deixe! Deixe-me ir! Ela escapou por um triz e sufocou uma insuportável vontade de rir. Estava nervosíssima e por conta disso sentia vontade de rir histericamente. Acheron a alcançou entre as pedras, e a pegou por trás. Driana não estava preparada para isso. Sabia que ele a seguraria e sua ideia era seduzi-lo e parte disso era o contato físico, mesmo assim, não estava preparada para sentir o corpo do elfo no seu. Os braços a agarraram, e se cruzaram diante dos dela, imobilizando-a. Era um aperto mortal que não desejava ferir, mas também não permitia rota de fuga. Ela se mexeu, e ele precisou apertar. Os corpos um pouco curvados, a pesada respiração de Acheron em seu pescoço, pois ele precisava curvar o corpo para segurá-la. O peitoral entalhado em pedra contra suas costas, as coxas poderosamente esculpidas pelo treinamento puxado de Guardião, o cheiro de elfo macho impregnando suas narinas... Driana não esperava por isso. O efeito sobre ela, sobre suas emoções. Sua mente ficou nublada e incapaz de pensar com clareza, muito menos lembrar porque estava fugindo dele! -Quieta – ele disse em seu ouvido, com sua voz forte, rosnada, e um pouco assustadora – Eu não vou machucá-la, Driana. Eu não pretendo causar-lhe dor alguma. É minha obrigação entrega-la viva para ser julgada. -Eu sou inocente – ela disse tremula da cabeça aos pés – Eleonora é inocente. Acredite em mim, Guardião! Somos inocentes! Seus gritos eram femininos e Driana não tinha noção do quanto mudava quando não se propunha a usar roupas de menino ou agir como um. Sempre apegada ao mundo da mente e não do corpo, não entendia a diferença entre a Driana vestida de garoto, e a Driana usando de seus apelos femininos para despertar os instintos sexuais de um macho. Acheron via apenas a delicadeza e a feminilidade. Mas ela não entendia esse tipo de coisa. Ainda não entendia, pensou. Algo lhe dizia que até o final daquela noite, aprenderia uma lição inesquecível que mudaria sua vida para sempre! -Me solte!– Ela berrou quando Acheron começou a arrastá-la para trás, consigo. -Eu mandei ficar quieta!– ele gritou em seu ouvido e ela ficou imóvel. Não admitiria jamais, mas suas pernas estavam bambas e a culpa não era nem de longe do medo. Era por causa dele. Por causa da porção macho que a agarrava com tanta intimidade. -Eu só quero ser livre– apelou para seu inconsciente de ex-escravo – Acheron, Guardião, me ajude, me deixe ir... Seria estranho se ela nem ao menos tentasse escapar ou desmotiva-lo. Nem mesmo ele poderia dizer não estranhar seu conformismo ao ser presa! Acheron não ouvia uma palavra que ela dizia. Seu cheiro de fêmea estava impregnando em suas narinas e era impossível raciocinar diante desse afrodisíaco feminino. Sentia-se próximo a fada, por conta da história de vida e de sua situação de fuga. E mais do que isso, Driana o atraía como um imã. Essa busca insana por sua captura o tornou próximo, pois precisava pensar sobre ela o tempo todo. Mesmo quando atrasava propositalmente a caçada, ainda assim era pensando na fada! Driana sentiu a mudança entre eles, e desta vez não adiantava tentar raciocinar sobre isso. O corpo do elfo endureceu contra o seu, e cada músculo flexionado na expectativa de possuir a fêmea. Não pretendia tocar na fada, mesmo assim, seu corpo reagia a sua presença. -Suas asas estão nascendo?– A pergunta foi feita em tom baixo, em tom profundamente perigoso. -Ainda não. Não posso fugir de você... Não tenho forças para isso, Guardião...– era uma verdade perfeita, exagerada para sensibilizá-lo. Acheron não confiava nas palavras dela. Por isso, soltou uma das mãos e baixou a túnica, olhando suas costas lisas e macias. Nenhum sinal do nascimento de asas. Driana era casta, e sem pretensões de desabrochar para o cio. O que era estranho, pois sentia seu cheiro de fada, a farejava com todo a capacidade de um macho. -Está no cio? – ele perguntou correndo a mão por suas costas. Driana abriu a boca, mas não respondeu. A sensação de seu toque era tão intensa que ficou muda. Acheron a puxou para mais perto, uma das mãos agarrando-a pelo estomago enquanto a outra segurou seu pescoço pela frente, imobilizando-a contra seu corpo. -Não – ela sussurrou. -Sinto seu cheiro, fada – ele rosnou em sua orelha – Está sentindo as dores do nascimento das asas? -Não. Acheron, não faça isso...– Ela sussurrou quase sem voz, pois ele deslizava aquela mão gigantesca por seu colo. -Pretendo e vou entrega-la intocada para ser julgada pelos Conselheiros e Guardiões. Se for punida, deverá pagar por seu crime. Mas essa punição não vira de mim. Vamos sair daqui – ele se conscientizou do que fazia. Tomar ciência dos próprios atos, não o impedira de seguir. Sua mão desceu sobre o peito da fada, alisando o seio pequeno e jovem. O bico estava rijo e ele correu os dedos pela carne, sempre descendo. Driana se contorceu quando aquela mão gigante pousou em sua barriga alisando seu ventre e seguindo sempre para baixo, sobre o tecido. Mesmo com a barreira da túnica, Acheron alisou o vale entre suas pernas, esticando os dedos entre suas pernas, tentando sentir entre suas dobras íntimas. Driana tremeu da cabeça aos pés, o corpo excitado e rendido, entregando-se a uma profunda expectativa que nunca pensou que um dia pudesse sentir nos braços de um elfo. Sobretudo, um elfo proibido para uma fada fugitiva. Acheron apertou entre suas pernas, sentido o calor e a umidade que a fada liberava, enquanto cheirava seu pescoço, sua nuca e seus cabelos delicados e lisos como seda. Driana quase esmoreceu diante da ameaça velada. Sentiu o desejo imensurável de fugir não por medo de ser entregue a Rainha, mas sim, porque seu plano parecia prestes a ter sucesso absoluto e ela sentiu o medo crescer dentro de si. Medo de provocar o elfo a um ponto impossível de retornar e ser tomada como fêmea. Medo do que significava o ato sexual ente macho e fêmea. Principalmente, medo de fazer isso com Acheron, pois sentia que subestimava seus sentimentos por ele. Tomada por esse medo, Driana usou do encanto que Acheron sentia por sua porção fêmea, e pisou em seu pé com toda a força que conseguiu juntar. Se ele não estivesse tão ocupado lidando com o desejo, não conseguiria ter enganado-o tão facilmente. Driana correu pela caverna, e com um olhar de relance para as peles espalhadas no cão, onde pretendia levar o Guardião para uma noite de luxúria, e seguiu correndo. Acheron quase a pegou antes de sair da caverna. Por ser pequena, conseguiu abaixar-se no último segundo e fugir. Correu pelas pedras e saltou para o chão. Seus pés correram sobre a grama e mato ralo, e estava segura que a desistência do seu plano não lhe causaria mais danos, pois se livraria dele a tempo. Ledo engano. Driana gritou quando foi agarrada e derrubada no chão forrado por mato e grama. Debateu-se aos berros, pedindo por liberdade, mas era puro cinismo da sua parte. Queria tudo, menos que o elfo parasse e a soltasse! Acheron cobriu seu corpo com o seu, aquietando seus movimentos desesperados. Driana desejou esconder a face na grama para que não visse sua expressão voraz de paixão, mas não o fez. O cheiro de mato não era nem de longe mais forte que o cheiro da sexualidade do elfo. Esse cheiro era insuportável. Seu corpo pulsava loucamente, exigindo satisfação para tanta necessidade.
Fêmeas e machos
Essa urgência era dividida com Acheron. O cheiro da fêmea lhe dava o consentimento que não pedia. Nunca foi um elfo de duvidar das intenções e desejos de sua parceria. Mas ele não conhecia aquela fada.
Poucas vezes estivera próximo a ela, e nunca trocaram mais que alguns olhares distantes. Quem sabe, no fundo, a grande razão de não se aproximarem, era a possível explosão que aconteceria entre eles, caso o fizessem.
Dizem que os animais sabem quando o perigo ronda, e Acheron supunha, que seu sexto sentido sentia o perigo que Driana representava em sua vida. A fada não gritava mais. Reconhecia a paixão, e não ousava dizer não. Era assim que deveria ser quando dois animais se encontram para copular. E a razão não tem nada a ver com isso. Acheron esfregou o rosto em sua nuca, aspirando o cheiro forte dos cabelos limpos e com cheiro de flor. Ela cheirava a flor. Não era um cheiro doce, era um cheiro diferente. Driana ofereceu o cangote, empurrando as costas para cima, querendo desesperadamente sentir seu toque. E não se decepcionou. O primeiro toque molhado dos lábios em sua pele arrancou-lhe um gemido sofrido. Ele desceu a boca para baixo, mordiscando e molhando sua pele, enquanto a prendia com o peso do corpo no chão. Driana conteve um grito de pura luxúria quando ele usou ambas as mãos para rasgar sua túnica, arrancando-a do seu corpo. Estava de joelhos sobre ela, e observou o corpo nu que se revelava ao seu olhar. Driana não ousou pensar em vergonha ou constrangimento. Não havia espaço para esses sentimentos estando nas mãos de Acheron! O elfo correu ambas as mãos pelas suas costas, descendo sempre, contornando e apertando as carnes de suas nádegas, enquanto se movia e forçava uma perna entre as suas, afastando-as em um pingo sequer de gentileza. Era um estranho fascínio que a fazia apreciar o modo bruto de Acheron. Ele não era agressivo, longe disso, era rude e pouco gentil, pois era sua natureza primitiva que o compelia a agir desse modo. O Guardião devorou sua pele outra vez, sua porção fera desfrutando do gosto da pele, tanto quanto desfrutava do cheiro. Outra vez deitado sobre a fêmea, Acheron deslizou uma das mãos por baixo, agarrando um dos seios miúdos e rijos de desejo. Driana não pensava, apenas gemia. Nunca imaginou que um torpor pudesse ser tão profundo a ponto de zerar sua mente e apagar todos os pensamentos e ponderações. Como uma folha ao vento, sem letras, sem história, Driana apenas se contorcia sob os carinhos selvagens do elfo. Driana passou uma das mãos sobre a de Acheron, que estava apoiando o peso de seu corpo, ao lado da cabeça da fada. Entrelaçou os dedos nos dele, apertando-o com toda sua força, como quem pede um pouco de carinho e não apenas paixão. Acheron soltou esse aperto, para usar ambas as mãos para baixar a calça, e afastar as pernas da fada. Driana abriu os olhos assustada quando sentiu o primeiro contato da intimidade masculina contra si. Seu medo não durou mais que um segundo, pois Acheron não lhe deu tempo para voltar atrás. Ela gritou muito quando a união aconteceu. Confirmava suas suspeitas. Acheron não possuía anatomia diferente dos demais elfos, no então, então muito maior em força e tamanho. A invasão foi tão forte, tão profunda e quente que a deixou em brasas. Seus gritos misturavam dor, prazer e surpresa. Um medo irracional. Tentando se segurar em algo, mesmo que não precisasse, Driana fincou os dedos na terra e no mato, como se eles pudessem lhe oferecer alguma segurança em meio ao furacão que a levava para as alturas, sob o comando de Acheron. Acheron confirmou a castidade da fada, mas não pensou muito nisso. Era tão bom o que acontecia entre eles que seu único intento era prolongar ao máximo possível. Possuiu a fada com pressa, raiva e força. Os movimentos não chegavam ao fim, e Driana estava derretida em torno do elfo. A cada estocada, o corpo pequeno era lançado contra a grama, e ela tentou escapar, algo inconsciente, pois não queria se afastar de modo algum! Um afã de fuga, pois seu subconsciente lhe dizia aos gritos que seu coração estava correndo riscos ao permitir que o elfo a conquistasse também no aspecto físico! Acheron enlaçou os dedos nos seus, em ambas as mãos, e ela sentiu o coração aquecido pelo carinho. Mas foi somente até notar que desse modo ele a imobilizava. Driana soltou um urro de prazer quando ele começou de fato a possuir seu corpo. Ele não parava. Era muito forte, muito intenso. O cheiro de ambos se embolava e levava a libido de ambos a um ponto insuportável. Acheron mordeu suas costas, na curva entre a coluna e as nádegas, e ela mal pode suportar a sensação. O que era medo e surpresa, havia se transformado em necessidade e expectativa. Seu corpo estava tenso, esperando por algo que crescia em seu ventre e ameaçava enlouquecê-la. Acheron usou as coxas para fechar as pernas da fada, tornando-a ainda mais apertada. Driana abriu os olhos e olhou em volta, a noite caia pesada em torno deles, e se não fosse a lua alta, não poderia enxergar nada. A floreta calma e silenciosa, enquanto os dois eram pura adrenalina. Os gemidos e urros de prazer do elfo, seus próprios gritos, eram o único som que inundava seu ouvido. E quando Acheron mordiscou sua orelha, que Driana jamais imaginava ser tão sensível, algo rachou dentro de seu corpo, e ela silenciou enquanto a sensação explodia dentro de si. Seu primeiro orgasmo foi tão forte que exauriu suas forças. Acheron acompanhou-a segundos mais tarde, com um rosnado de pura satisfação masculina. Driana deveria estar pensando que tudo saiu errado. Mas os pensamentos haviam fugido de sua mente. Acheron soltou as mãos das suas, e com uma delas, acariciou seu pescoço, puxando-a para trás, para que viesse para seus braços. Driana deixou-se levar, e quando foi lega no colo, não se moveu para impedir. O segundo Guardião seguiu seus instintos e não a razão que tentava alertá-lo para a burrada que fizera. Não importavam as obrigações naquele momento. Era noite, eram macho e fêmea, e ele zumbia de paixão por ela. Na manhã seguinte, por certo, ambos se arrependeriam daquela loucura, mas naquela noite, tudo era perfeito e incrível demais para ser renegado e ignorado. Levou-a para a caverna, pois não queria voltar sozinho para o acampamento e também não poderia levá-la consigo neste estado. Não poderia admitir para Jô o engano de ter possuído a fada que deveria aprisionar. Precisava primeiro convencer o garoto a não causar-lhe problemas e guardar o segredo a cerca do seu erro. Do jeito que Jô era dedicado a convencê-lo a ajudar a fada... Por certo comemoraria sua decisão. Driana soltou um longo suspiro de agradecimento quando foi colocada sobre o pelego de peles. Acheron deitou-a gentilmente, os dedos espalhando seus cabelos negros por sobre as peles, adorando sentir a suavidade entre os dedos. -Não se angustie, fada – ele disse baixo, bem perto de seu rosto – Vou encontrar um modo de ajudá-la. Não tenha medo de mim. Driana nada respondeu. Acheron se afastou para ascender às chamas da fogueira, para que além de calor, pudessem contar com alguma claridade e ela sorriu observando-o andar nu pelo lugar. Suas palavras aqueciam seu coração. Mas não eram palavras que pudessem ser sustentadas quando amanhecesse. Sua decisão de ajudá-la esmoreceria no primeiro raio de sol, quando a realidade viesse cobrar-lhe essa decisão. Ainda mais, porque Acheron não sabia da missa a metade. Angustiada, pensou em seu plano. Tão simples a decisão de enganá-lo... Mas isso fora antes de tudo que aconteceu entre eles. Não queria ir. Não queria deixá-lo e voltar a ser o jovem Jô. Reparou que estava nua e que isso era novo para ela, a liberdade incondicional de seu próprio corpo. Nunca antes se sentiu livre de constrangimento nem mesmo diante de suas amigas. Sempre foi retraída com a nudez. Acheron retornou com sua imagem recortada contra a luz avermelhada da fogueira. Era impressionante que houvesse dado conta de um elfo tão grande. Olhou-o da cabeça aos pés sem pensar nas consequências. Não sabia quando teria outra oportunidade de fazer isso! Seu corpo era todo trabalhado em músculos. Pelos louros cobriam pernas, braços e virilhas. Os cabelos longos e louros, secos depois de tanto exercício, eram bonitos, e não feios como ela insistia em deprecia-los. A face do elfo era uma máscara de paixão, esculpida em perigo e voracidade. Não sentia mais tanto medo, mesmo assim, algum receio das atitudes que ele poderia ter era inevitável. Acheron olhava para as pernas da fada. Eram curtas, bem torneadas e desembocavam em coxas e quadril redondos. Não era nem de longe cheia como as fadas que ele estava acostumado a procurar, mas era a mais bela com quem esteve em muito tempo. Sua barriga tão lisa, umbigo tão mínimo. Os seios eram empinados e adornados por mamilos rosados, como botões de rosa. Sua pele tão clara, e corada, como suas bochechas, que avermelhavam a cada segundo, diante do seu olhar. -Falavam tantas coisas a seu respeito – ele disse juntando-se a ela sobre as peles, uma das mãos pousando em sua barriga, espalmada, sentindo o tremular de seu ventre, pois lhe despertava borboletas nas entranhas, em um frisson inexplicável de necessidade sexual.– Enalteciam sua inteligência e eu não duvido que seja a criatura mais inteligente do Monte das Fadas.– Acheron acariciou seu rosto com a mão livre e aproximou os lábios de seu pescoço. Driana fechou os olhos, enquanto delirava nas emoções despertadas em seu corpo inexperiente. -Mas ninguém falou que sua pele é delicada como uma pétala de rosa. Ou como seus olhos são inocentes. Muito menos... Que seu cheiro é tão delicioso. Eram elogios pouco eloquentes para quem apreciava mais a mente do que o físico. Mas Driana precisava admitir, estava lisonjeada e aquecida por dentro, exultante por Acheron a considerar bonita! -Não tramei contra o rei – ela disse tocando seu braço, atraindo os olhos verdes do elfo para os seus. Acheron não disfarçava o olhar prolongado para suas curvas, sobretudo entre pernas. -Nenhuma criatura viva deveria ser obrigada a cometer um crime para salvar a si mesma. Nascemos livres, não deveriam tentar colocar arreios nas criaturas livres. Muito menos... As que nascem com asas – ele foi franco. Driana sentiu uma felicidade tão grande dentro de si que não soube explicar. Acheron entendia essa liberdade. Que uma fada nasce com asas e não deve ser proibida de provar dessa liberdade inexplicável. -Minhas amigas e eu nunca tramamos contra o rei... Acheron a calou com um toque sob dos dedos sobre seus lábios. -Amanhã – ele prometeu com a voz seca, rouca e firme – Amanhã. Eles falariam disso amanhã. Driana fingiu acreditar, e deitou-se sobre as peles. Era um convite irrecusável. Acheron mordiscou seu queixo, e desceu para os seios. Com mais calma e menos desespero pode reconhecer a fragilidade das formas e temer feri-la. Os suspiros de Driana enquanto ele umedecia seus mamilos com beijos e chupões fez eco dentro da caverna de pedras. A boca de Acheron praticamente dava conta de engolir um seio inteiro, e ele fez uso disso, para arrancar-lhe gemidos cada vez mais altos. Enquanto a excitava, deslizou os dedos por sua barriga até infiltrá-los entre suas pernas. Úmida, não ofereceu resistência ao ser tocada. Seus dedos encontraram caminho em seu recanto e ela se contorceu para aceitar a pressão de dois longos dedos dentro de si. Acheron queria lhe dar prazer, pois temia não ser capaz de se conter uma segunda vez, e esperar que alcançasse seu próprio gozo. Driana segurou o pulso do Guardião como quem diz que não suporta tanto prazer, mas ele apenas redobrou a velocidade, fazendo-a erguer os quadris em busca de mais. Driana tentou escapar, o sentimento era forte demais, não aguentava tanto, por isso tentou escapar e conseguiu virar de lado, Acheron a deixou ir, mas a segurou quando tentou sentar, provavelmente querendo correr para longe. Aquela fada fugia demais, pensou divertido, obrigando-a a sentar-se em seu colo. Esparramou suas pernas e tornou a carícia com os dedos. Driana agarrou-se aos seus braços, de costas para ele, sentindo os toques nos seios e pescoço, pois ele a beijava em todos os lugares, menos nos lábios. Seu corpo se curvou para frente, não aguentando tanto prazer. Seus espasmos não paravam e quando a sensação esmoreceu um pouco, Acheron a recolocou sobre as peles, afastando suas pernas e encaixando-se ali pela segunda vez naquela noite. Driana acolheu-o em seus braços, face a face e arquejou quando foi penetrada outra vez. Bem mais lento e menos bruto. Mas não menos gostoso. Enlaçou os braços nos ombros do Guardião, as mãos em seus cabelos longos, agarrando-os como faria a uma crina de cavalo, com medo de cair do lombo de um cavalo em um galope selvagem. Acheron era isso. Puro instinto selvagem e a tomava como um animal toma uma fêmea no cio e esse pensamento serviu apenas para ferver ainda mais o sangue de Driana. -Mais!– Ela gritou em determinado momento – Acheron, por favor, eu não aguento... Não... Oh, não...– Seus apelos não surtiram efeito, ele mordeu seus seios, e seguiu avançando, erguendo uma de suas pernas, para assim, obter maior acesso. Cada batida do corpo masculino dentro do seu arrancava um grito de Driana. Não haveria palavras no mundo que fossem suficientes para exemplificar o que ela sentia. O efeito daquele corpo dentro do seu era devastador e Driana afastou o pensamento que a questionava se seria assim com qualquer outro elfo, ou era especial por ser Acheron. O Segundo Guardião gostava muito do que estava acontecendo entre eles. Tanto que ao ver a fada gozar mais uma vez, dessa vez agarrada aos seus cabelos, se moveu, e a fez virar de costas. Driana arrebitou o traseiro, pois sabia muito bem o que ele faria e queria também. Como da primeira vez, Acheron a possuiu, trazendo-a de quatro, o que a surpreendeu um pouco. Não durou muito tempo. Driana mal se aguentava nas próprias pernas e braços e surpreendeu-se com o prazer renovado, sendo atraída para ele como se fosse a primeira vez que a tocava naquela noite. Quando Acheron gritou em seu ouvido e a lavou por dentro com seu gozo, ela tremeu da cabeça aos pés, sendo grata pela vontade dele em deitar e descansar. Se Acheron quisesse, ela continuaria a noite toda, mesmo exausta. -Eu a deflorei – ele disse em seu ouvido, ambos deitados de lado – Nunca antes falamos ou convivemos, mas eu a tomei sem medir as consequências do meu ato. Adquiri responsabilidades para com você, fada – sua voz em seu ouvido causou-lhe um arrepio e ela fechou os olhos, lutando para não se magoar. Acheron estava tão errado! Não era a primeira vez que se falavam. Ela era o menino Jô que o enganava a dias! E não adquiria responsabilidade alguma, pois era ela quem planejara usar de seu próprio corpo como arma para livrar-se dele e salvar a fada Jana de pagar por crimes que pertenciam a ela e suas amigas, Joan, Alma e Eleonora. -Mais um bom motivo para livrar-se de mim, entregando-me para ser julgada por um crime que não cometi – ela disse irônica, e ele sorriu. Afastou a franja de sua testa e olhou em seus olhos com profundidade. -Talvez eu faça isso – ele provocou.– Talvez. Driana não pode evitar um sorriso. Buscou contato junto ao corpo grandalhão. Acheron a apertou contra si, e ela fechou os olhos. Quando amanhecesse e Acheron acordasse, a fada Driana teria desaparecido. Algumas horas mais tarde, Acheron dormia pesadamente, roncando em seu ouvido e o som era adorável. Deveria estar perdidamente apaixonada para apreciar um som desagradável como este! Era a grande verdade, estava apaixonada pelo elfo. E por causa disso esse plano descabido lhe parecerá tão eficaz! Como aconteceu, não sabia explicar. Mas aconteceu. Infelizmente as circunstâncias de seu infeliz nascimento a fizeram ser uma das fadas da clausura e não poderia fugir de seu destino. Muito menos abandonar suas melhores amigas, suas irmãs de coração, e viver um amor proibido. Driana se mexeu cuidadosamente para não acordá-lo. Tão satisfeito e exausto como estava, nunca perceberia que ela andava pela caverna e partia. Não lhe restou alternativa que não fosse sair nua da caverna. Ficou aliviada que a noite estivesse alta e a mata fosse fechada, pois longe dos braços de Acheron, seu constrangimento e seus traumas voltavam em peso. Ela encontrou as roupas do rapaz Jô escondidas no canto onde as deixou. Vestiu-se rapidamente e com profunda lástima vestiu o gorro de duende, escondendo os cabelos, e desse modo, sufocando a fada Driana dentro de si. Voltou para o acampamento correndo, mas sua verdadeira vontade era correr para bem longe e esconder-se para chorar. Chorar até seu coração estar livre do amor. Livre da culpa. Livre de tudo. Uma hora mais tarde, entrava na barraca onde a fada Jana deveria estar. Não demorou muito a fada apareceu. Driana estava em um canto, aguardando-a. Lutava contra o choro. -Você está bem? – fada Jana lhe perguntou apiedada. -Não. Mas vou ficar – disse com sinceridade – Quando estiver a salvo com minhas amigas e nós quatro formos livres, nesse momento eu ficarei bem. – divagou, limpando as lágrimas das faces, enquanto levantava e tomava uma atitude, concluindo seu tão elaborado e eficaz plano de exibir a fada Driana para os olhos do Guardião, salvando assim a fada Jana que não fazia parte dessa complicada situação - Preciso amarra-la outra vez. Acheron... Ele estará de volta a qualquer momento. -Você gosta dele não gosta? – A fada perguntou enquanto era amarrada, confiando sem pestanejar em Driana. -Driana gosta de Acheron.– foi sua vez de dizer com ironia na voz - Eu? Não. Sou um elfo. Meu nome é Jô.– Disse a si mesma e Jana apenas acenou concordando. Era bom que não se esquecesse do seu disfarce, pois depois da noite passada nos braços do elfo, era bem capaz de baixar a guarda e causar uma tragédia! Como esperava, pouco tempo depois ouvia o canto dos pássaros na copa das árvores anunciando mais um dia de sol na Floresta de Saul e ouviu também os passos de Acheron no acampamento, anunciando sua chegada...
Venda nos olhos
Driana manteve-se afastada do Guardião. Durante toda a manhã ele chutou objetos e gritou sua raiva em palavrões e atitudes grosseiras. Nada que o ajudante Jô fizesse estava bom o bastante para ele. Reclamou do almoço, reclamou das roupas mal lavadas, reclamou até de coisas que Jô não poderia entender ou corrigir.
-Traga a fada – ele lhe disse em determinado momento, mal olhando em sua direção. Encolhida e assustada, Driana obedeceu. Levou Jana até o meio do acampamento. Acheron apontou para o chão, e o rapaz sentou-se
ao lado da fada, esperando que ele se manifestasse: -Ontem à noite encontrei a verdadeira fada Driana – ele contou, sem conseguir esconder o orgulho ferido. -Mas esta aqui não é a fada Driana? – Obrigou-se a perguntar, pois era o que o menino faria, caso fosse mesmo um rapaz e não apenas um personagem. -Não. Foi um engano. Não é a fada que procuro. Quero saber quem é.– Ele mandou, os olhos fixos na fada.– Diga seu nome e porque estava em fuga quando a encontrei. Apesar de parecida com Driana, seu cheiro não lhe chamava atenção. Não era a fada que desejava! Jana lhe contou sobre ter sido roubada e vendida como escrava. Contou sobre ter fugido e também, de saber que sua gente buscava por ela na Floresta de Saul e que neste exato momento deveriam estar angustiados sem notícias suas. -Que seja desse modo. Solte-a. está livre – ele disse com raiva controlada, descontando sua frieza e fúria no garoto, sem saber que de fato era o alvo certo. -Mas Acheron...– Driana obrigou-se a dizer – Existem caçadores de recompensa atrás da fada Driana. Eles não acreditaram no engano, pensaram que Jana é a fugitiva. Você a confundiu com a fada Driana e por causa disso ela está marcada. Se não a entregar para sua gente, será aprisionada e morta. Era a mais pura verdade. Era o que lhe faltava para piorar sua situação! Acuado, Acheron levantou e saiu da barraca sem lhe dar satisfações do que pretendia fazer. Precisando saber o que passava em sua mente, mesmo que brincasse com o perigo, Driana o seguiu, falando sem parar: -Eu não entendo como a fada pode ter fugido de um Guardião. Você estava com ela? É impossível que tenha escapado! Bem vi como é capaz de vencer facilmente um opositor. Principalmente uma fada indefesa! Acheron andou pelo acampamento e devotou sua atenção ao cavalo, onde a cela necessitava cuidado, visto que seu ajudante muito falava, e pouco fazia. Fingiu não ouvir a pergunta de Jô Não ignorava, claro que estava ouvindo. Apenas não desejava de modo algum falar do assunto. E sua forma de deixar claro que o assunto não prosseguiria era ignorando Jô. O rapazola pulava a sua volta, como um esquilo inconveniente, e não era a primeira vez, que Acheron pensava no garoto desta forma. Era extremamente irritante quando se propunha a arrancar-lhe uma informação que não desejasse partilhar. -A fada esperou que eu adormecesse, então fugiu.– Finalmente confessou. -Como assim: a fada esperou que adormecesse para fugir? Se ela estava amarrada, era impossível que fugisse, mesmo que você houvesse de fato adormecido. Eu não entendo como isso pode ter acontecido! É claro que Driana sabia como tinha acontecido! Queria ouvir sua versão da história, como Acheron via o acontecido. Não estava propriamente se martirizando por exigir ouvir dele o que já sabia. Mas ela precisava de detalhes. Algo mórbido em seu subconsciente, que a obrigava a querer saber exatamente como Acheron se sentia naquele momento. O Guardião respirou fundo e seguiu cuidando do cavalo, talvez ignorando ou apenas postergando, para não ter que responder imediatamente. Não poderia fugir para sempre. O rapaz sabia o que tinha acontecido, e principalmente, sabia que algo estranho se passara, e iria infernizar sua miserável vida de Guardião caçador de fugitivos, até obter uma resposta satisfatória. -Não amarrei ou amordacei a fada – confidenciou com a face contrariada e as palavras secas. -Como assim? Não amarrou ou amordaçou a fada? Deixou uma fada com suas asas completamente livre? É claro que ela fugiria! É uma fada sendo perseguida por assassinato do rei! Porque cargas d’água imaginou que ela ficaria placidamente ao seu lado esperando o momento de ser entregue para a morte? Outra vez, o segundo Guardião preferiu o silêncio. -Vamos, Acheron, você precisa me contar. Sabe que não pode esconder um assunto desses para sempre! Eu vou acabar descobrindo de um modo ou de outro! Conte-me como foi que a fada Driana conseguiu fugir? -Você quer mesmo saber como Driana fugiu?– Havia magoa e rancor em sua voz.– Eu lhe digo. A fada é uma mentirosa dissimulada e me enganou. Achei que seu cheiro... Achei que fosse uma reação verdadeira, mas era apenas um plano para escapar de mim. Ele parou como quem não quer continuar a falar. -Não me diga...– Disse Jô– Não me diga que ousou tocar na fada! - Seu tom de horror era proposital para incentivá-lo a falar mais. -Sim– disse Acheron – ousei tocar na fada fugitiva. -Como pode? Ela não é apenas uma fugitiva! Driana, assim como as demais fadas da clausura são responsabilidade dos Guardiões! Deve entregá-la para ser julgada. Conservá-la intacta é parte do seu dever! Pois se for considerada inocente das acusações, voltará para a clausura. E neste caso ao saberem que a deflorou, será considerado um traidor ou no mínimo, será punido por desobediência! Agiu errado, Acheron. Agiu contra as regras do Rei! A fada da clausura deve ser mantida casta, para que tenha uma chance de ser escolhida em casamento. Se a pobre criatura for inocentada, como será o restante dos seus dias? Não terá a mínima chance de ser escolhida em casamento e passará toda sua vida na clausura? Foi muito errado o que fez, Acheron. Muito errado! Jô era como uma praga incentivando sua raiva. Queria e precisava que ele explodisse e mostrasse o que de fato pensava. O que lhe ia de fato ao coração. -Entenda de uma vez, rapaz – Acheron disse com azedume na voz.–A fada não voltará para a clausura. Tão pouco será julgada. Essa fada é o demônio. Quando falavam de sua inteligência não estavam enaltecendo-a. É a mais pura das verdades. Seus pensamentos são mais rápidos que os meus. A fada me enganou e me teve enrolado aos seus pés pelo tempo que quis. Sabia desde o começo que me enganaria. Ainda não sei se foi uma emboscada, ou ela realmente não sabia que eu encontraria seu esconderijo, e isso foi uma coincidência. O fato é que ela me seduziu e me enganou. Driana detestou ouvir o tom da voz de Acheron. Ele se menosprezava por ser menos ardiloso que a fada Driana. Como poderia se menosprezar por ser honesto e sincero? -A fada o seduziu? Uma fada casta o seduziu? – Debochou, pois ele esperaria que um garoto fizesse isso. -Não. A fada de inteligência maior que a nossa. Eu deveria saber que seu cheiro era muito forte para uma fada que não estava no cio. Deixei-me enganar. Deixei-me levar por seu cheiro. Acreditei piamente que estivesse no cio por minha causa. No fim, a fada venceu. Acabei dormindo como um porco e ela pode fugir livremente, sem empecilhos. -Deixa-me ver se entendi o que você está me contando... – Jô foi propositalmente malvado – Está dizendo que a fada o enganou, planejou, seduziu, copulou, aproveitou-se de você, e depois simplesmente esperou que adormecesse para ir embora? E que você não foi capaz de impedi-la? -Sim, é o que estou dizendo – ele confirmou realmente humilhado. -Tem certeza que era você mesmo? O grande, o poderoso, o selvagem, o maior farejador entre todos os elfos, o mais voraz dos Guardiões, aquele que ninguém jamais ousaria desafiar, foi enganado por uma fadinha? Ao menos diga que a pobre criatura já tem suas asas! Assim, ao me convencerei que esta foi à única razão que o tenha motivado a não procurar por ela por toda essa floresta em vez de retornar com o rabo entre as pernas, de cabeça baixa, como você acabou de fazer! Acheron parou tudo que fazia e virou-se para ver seu ajudante. O modo como olhou para Jô quase fez Driana desejar sair correndo e se esconder de sua fúria. Mas aguentou firme. Agora que começara a provocar o Guardião para testa-lo, iria até o final! -Que essa fada ingrata pene sozinha nesta Floresta. Não quero saber dela. Que os caçadores de recompensa a encontrem. – Ele disse com amargura. Recalque por ter sido enganado. -Mas, Acheron, se ela foi tão esperta a ponto de enganar um Guardião... É provável que faça o mesmo com os caçadores, sendo eles mercenários ou não. Essa afirmação foi tão forte, tão doida, que Acheron jogou a cela no chão, e deu-lhe as costas, afastando-se. Não queria sequer argumentar com o rapaz. Para ele a indigesta conversa havia chegado ao fim. -E a fada Jana? – Jô gritou-lhe a distância, correndo atrás dele, como um carrapato que não o deixaria em paz tão cedo. -Levarei a fada de encontrou aos seus familiares. Quando estiver segura, seguirei caminho. – Ele respondeu de má vontade. -Como assim, seguirá caminho? A fada da clausura está nesta Floresta. Deve segui-la, não é? -Sim, é o que farei. Ela está por aqui, mas não permanecerá muito tempo escondida por esses lados. Se é tão inteligente quanto parece – havia ironia em sua voz – sabe que tenho duas razões para procurá-la e que não descansarei enquanto não colocar minhas mãos naquele pescoçinho fino... O modo como Acheron torceu as mãos fez Driana engolir em seco, imaginado-o fazer mesmo com ela! -Duas razões? – Perguntou Jô, nada agradado do rumo que a conversa seguia. -Não seja tolo, rapaz. Acha mesmo que o que ela me fez ficará assim? Que me enganou e eu não farei nada sobre isso? Quando puser minhas mãos sobre a fada... Acheron não seguiu a frase, mas seu olhar dizia exatamente o que pretendia fazer com a fada. -Eu espero – disse Jô abusando do fato de Acheron não notar quem de verdade ela era.– Espero de verdade, que a fada tenha feito valer a pena a noite, ou você se sentirá ainda mais idiota quando todos ficarem sabendo disso! -Porque acha que mais pessoas saberão da minha vergonha? - Acheron deu um passo em sua direção com aviso na voz – tem planos de fazer fofocas sobre mim? Olhava para o rapaz de cima, do alto de toda sua estrutura física privilegiada, e precavidamente, Jô baixou os olhos. Longe dela que Acheron notasse a semelhanças exageradas entre a fada Driana e o garoto Jô. Era muito tolo da parte dele não notar. Driana não podia levar isso em consideração. Acheron era por muitos considerado um tolo. Conhecendo-o melhor, mudava de opinião ao seu respeito concluindo que não era exatamente um tolo. Era um crédulo. Driana começava a ver que estar apaixonada fazia com que não conseguisse pensar mal dele, embora que em alguns momentos importantes era difícil se convencer que havia mesmo algo dentro daquela cabeça oca coberta por cabelos. Era muito, mas muito difícil... -Acha que a fada não contará a todos sobre sua atitude? Será o primeiro argumento dela em favor de si mesma. Como acreditar em acusações feitas contra uma fada que até mesmo um Guardião acha que pode abusar? Seu nome será arrastado na lama por ter se deitado com ela. Creia e se prepare para isso. Incomodado com essa verdade, Acheron não quis falar disso. -Prepare a fada Jana para voltarmos à estrada – mandou, encerrando a conversa. -Faça isso, Acheron, leve a fada Jana para junto dos seus familiares. Depois procure a fada Driana, quem sabe ela não o presenteie enganando-o outra vez? Rindo o garoto se afastou. Acheron não fez nada, pois era esperado que um jovem fosse zombar de um elfo de sua posição e experiência enganado por uma fada casta. Ainda mais uma fada da clausura! Uma fada sem asas! Quando Acheron pusesse as mãos na fada, com certeza ela pagaria por essa ofensa. Não pagaria do modo esperando. Não lhe relaria um dedo. Pretendia que pagasse de outro modo. Ainda não sabia como, mas acharia um modo de fazê-la pagar por tanta humilhação. Por certo alguns dias na Floresta de Saul, amargando ter sido enganando pela primeira vez em sua vida por uma fada, o fariam pensar em uma estratégia para se vingar. Entregá-la a Santha, ele não faria. Não, de modo algum. Depois da noite dividida na caverna, nunca a entregaria para ser julgada. Se não pretendia fazer isso antes, agora seria impossível. Acharia um modo de tornar essa fada abusada irreconhecível. Talvez levá-la por um tempo para o campo dos humanos, até que todos se esquecessem dela e de suas amigas. Alguma solução encontraria, mas definitivamente não cumpriria a missão que lhe foi dada. A fada despertou seus sentimentos mais íntimos, e o desejo de encontrar uma companheira. E por essa, apostava que a fada da clausura, mesmo com toda sua inteligência, não poderia ter previsto! Era experiente e sabia muito bem que a fada não era ruim. Não era maldosa ou ardilosa, embora sentisse raiva, não podia culpá-la pelo senso de sobrevivência. Mesmo assim, naquele momento a raiva falava mais alto que qualquer outro sentimento!
Acheron não estava para conversa. Disse que partiriam naquele mesmo dia, e isso de fato aconteceu. Horas mais tarde, levantaram acampamento, e mesmo a fada Jana que não tinha nada a ver com a caçada, estava encarregada de carregar parte dos utensílios típicos de um acampamento.
Jana não estava se importando com o trabalho, estava tão feliz com a liberdade recémadquirida e com sua inocência provada diante de um Guardião que trabalhava sorrindo. Jana tentou carregar o saco de couro onde era guardada a armadura do Guardião, mas foi rejeitada pela armadura de um modo nada agradável.
Lançada no chão, as peças de metal a rejeitaram e retornaram para junto de Jô, que precisou se conformar em carregar mais esse peso. Pela primeira vez Driana deu razão a Acheron quando lhe dizia que as armaduras escolhem aqueles que podem ou não tocá-las. De cara amarrada, por remorso, Driana seguiu atrás do cavalo de Acheron, enquanto Jana levitava usando as asas para levar a si mesma por todo o percurso. Vez ou outra elevava o voo e quase se perdia entre as copas das árvores. Então retornava e ficava ao seu lado, sem, no entanto tocar o chão. O clima tenso marcava a caminhada. Acheron em seu cavalo, sem dignar atenção alguma para as fadas. Horas mais tarde, quando começava a escurecer, chegaram a uma clareira de mato amarelado, coberto de flores pequenas e cheirosas, e ausência total de água. Nada de córregos ou veios perdidos de algum curso de rio. Acheron sabia que era um péssimo lugar para ficar. Havia marcas distintas de um acampamento recente, o que era estranho, pois viajantes evitariam acampar em um local afastado de água. Aproveitando que Acheron observava o local, sem prestar atenção a elas, Jana revoo baixo, e sussurrou no ouvido de Driana: -Espere, Driana. Preste atenção e ouça.– Disse sorrindo. -O que eu deveria estar ouvindo? -O silêncio. Não estranha tanta silêncio em uma Floresta tão perigosa? É quase noite. Porque tanto silêncio se as criaturas saem para caçar? – Ela alargou ainda mais o sorriso – São os meus irmãos. Preste atenção e olhe em volta. O Guardião jamais os notará. Driana fixou os olhos em torno, analisando cada pequena imagem a sua volta. Depois de alguns segundos, sua mente privilegiada conseguiu identificar a que Jana se referia. Reparou que nem tudo que era verde era folha. Nem tudo que era colorido, era flor. Alguns elfos misturados à natureza. Misturados de tal modo que era impossível para um ser normal identificá-los, a menos que desejassem se revelar. Fazia parte de cada pedaço de madeira, cada tronco de árvore, cada folha. -Não são elfos comuns– Driana sussurrou de volta– elfos não possuem poderes mágicos! Mesmo com armaduras, não possuiriam esse tipo de poder!– Estava maravilhada. -De modo algum, minha família vem de uma terra distante. Como o Guardião – olhou para Acheron – ele também não nasceu nessa terra, e não é como os demais elfos que conhece. -Sei sobre a descendência genética de Acheron. Ele me contou. Mas eu quero saber dos seus amigos – disse curiosa, interessadíssima em conhecer mais sobre novas raças. -Minha família veio de outras terras, muito distante daqui. Quando nasci já havia uma grande mistura em nossa raça. Mas meu pai e irmãos são inteiramente perfeitos e ainda conservam as mesmas características dos nossos antepassados. Não me perguntou qual é meu bom, não é Driana? – Sorria ao perguntar. -Sim, agora reparo que não pensei nisso. Não lhe perguntei o seu dom. -Eu não tenho dom. Minha raça não possui dons. As fadas nascem com asas. Os elfos nascem se camuflando quando desejam. Não há dons. Surpresa, Driana observou-a afastar-se e voar em torno de Acheron. Jana pousou a mão no ombro do Guardião, enquanto voava baixinho ao seu lado. Ele olhou-a e Jana riu antes de voar para longe e revelar sua família para os olhos surpresos do Segundo Guardião. Driana observou-o com ciúmes. Não queria que Acheron reparasse em outra fada. Não queria que ele estivesse com outra, pois sentia como se lhe pertencesse. Depois de terem feito amor, seu coração não aceitaria que outra o tivesse. De modo algum. Frustrada, Driana chegou a triste conclusão que seu plano perfeito de enganar o Guardião, causara-lhe um problema tremendo e duradouro. Ganhava tempo para proteger suas amigas e em troca como paga por suas atitudes torpes, perdia o coração. Precisava enfrentar a realidade. Além de atrasar as buscas propositalmente, também precisaria afastá-lo de todas as fadas que ousassem cruzar o seu caminho. E isso seria uma dura jornada, pois Acheron tinha o dom de localizar fadas e conseguir parceiras de cama com um simples estalar de dedos! E ela, mais do que ninguém, entendia muito bem a razão. Sentindo um arrepio de paixão cruzar seu corpo, lutou contra o sentimento, temendo que Acheron pudesse farejá-la outra vez. Afastou-se e se manteve longe mesmo curiosa para conhecer a família de Jana. Melhor esperar o coração se acalmar e o corpo esfriar, para não correr o risco dos elfos, menos burros que Acheron – e valia salientar que qualquer um era menos tapado que o Guardião – pudessem notar seu disfarce e alertá-lo.
Jô
Nem mesmo a companhia intrigante e contagiante dos elfos da família de Jana conseguiu esmorecer a expressão fechada e irritada de Acheron. Era de esperar que depois de ter sido enganado com tanta facilidade e usado de modo tão vulgar, no mínimo ele estivesse furioso.
Driana não queria admitir que estava surpresa com seu excesso de recalque masculino. Esperava que se esquecesse da fada trapaceira, ela mesma, na manhã seguinte. Sentiria um pouco de raiva e indignação e estaria pronto para outra! Não esperava tanta penitência por tão pouco.
Para Driana a entrega da noite passada significava muito. Significava uma vida toda de ignorância a cerca do amor. De como é possível amar incondicionalmente e em tão pouco tempo. Mas para o elfo deveria ter significado menos que nada.
Sentada perto da fogueira, ao lado de Jana e dois de seus irmãos, Driana afastou os olhos do Guardião que cuidava do cavalo com zelo demasiado, perdido em seus pensamentos, e prestou atenção ao cochicho de Jana:
-Pare de olhar para o Guardião ou levantara suspeitas sobre seu gênero. – Ela sorriu – Está olhando para ele com olhos de fêmea. Não é uma boa ideia, até mesmo ele é capaz de notar o interesse de uma fada. -Eu sei – admitiu – Não consigo evitar.– Disse triste. Baixou a cabeça e Jana pousou a mão em sua coxa, num aperto de solidariedade feminina. -Eu conheci o amor depois de ter tido minhas asas. Depois de ter sido... - Ela pareceu não querer lembrar-se de tudo que lhe aconteceu, muito menos falar em voz alta que havia sido estuprada -... Eu fui tratada como um animal. Fui usada e maltratada. Mas em meio a tudo isso, eu conheci alguém especial.– Contou, e sorriu para os irmãos – ele me ajudou a fugir... Mas não teve a mesma sorte que eu. Apesar da dor, tive que fugir. Fiquei com medo de ter o mesmo destino. -Eu sinto muito – Driana não soube o que lhe dizer.– Nestas horas o que prevalece é o instinto de sobrevivência. Agiria do mesmo modo que você, Jana. -Não sinta. A morte é uma forma de liberdade para aqueles que vivem em uma prisão durante toda sua vida. – Suspirou pesarosa– Além disso, eu não fiquei para ver se de fato ele está morto. Ainda guardo no meu coração uma esperança. Mas como dizia, não provei da relação entre fêmea e macho fora do cio. De fato, nem sabia que era possível. -É claro que é possível – um de seus irmãos disse – O cio é o momento mais apropriado. Mas não é o único. Dizemos isso para as fadas se guardarem até o nascimento das asas – ele riu enquanto bebia seu elixir proibido - Se é o seu caso, Jô, não se preocupe, é normal.
Driana ficou surpresa pela frase. O elfo riu, piscou e disse: -Qualquer um nota que é fada. Não acredito que um Guardião tenha se deixado enganar desse modo! -Acheron não deixou, eu o enganei sem permissão – ela fez graça, aliviada por não ter que mentir para eles. -Hum– disse o outro irmão de Jana – Parece que ele quer ser enganado. -Talvez – ela concordou – De qualquer modo não sei o que há errado comigo. Tenho quase vinte anos! Minhas asas deveriam nascer a qualquer momento! Mas não sinto sinal algum... -Você era uma das fadas da clausura, não era? – Jana perguntou – então, quem lhe disse que tem quase vinte anos? Sua idade pode ser outra. Pode ser mais jovem, ou ainda, mais velha. Driana nunca havia pensado nisso. Fora levada para o Ministério do Rei quando já era maior. Não era um bebê. Sim, poderia ter havido um erro quanto a sua idade! -Mas e se eu tiver mais que vinte anos? Eu posso ter algum problema não posso? Talvez minhas asas jamais nasçam! -O mais provável é que esteja ansiosa demais. De onde venho as asas de uma fada nunca nascem precisamente aos vinte anos. É comum fadas com mais idade ainda aguardarem o nascimento.– Jana sorriu e bebeu um pouco de elixir da caneca que seu irmão segurava, mudando de assunto.– Estou tão feliz de estar com minha família. Houve um tempo em que achei que morreria sem nunca vê-los outra vez! Sou tão grata a você, Driana, por ter me salvo! -Eu não fiz nada. Por minha causa quase foi levada para o castelo e julgada por outro crime!– Disse corando. -Sim, mas se não houvesse acontecido esse mal entendido, o Guardião jamais tomaria partido da minha causa. Sem sua proteção, eu jamais poderia encontrar minha família e ser livre outra vez. Ainda estaria esperando na caverna, com medo e correndo risco de vida. Driana estava prestes a dizer que isso não era verdade, e que trouxera ainda mais complicações para sua vida que já era tão difícil quando notou que Acheron mudava a postura. -Eu já volto – disse para eles e se levantou. Correu até ele e ficou perto. Conhecia cada ação do guerreiro. Ele estava impaciente. Talvez houvesse farejado algo. -O que foi, Acheron? – Perguntou-lhe sem rodeios. -Duque – ele disse sério – Sinto o cheiro daquele verme. -Ah, não. Ele deve estar atrás da fada Jana, achando que é Driana. Achei que ele tinha desistido para não enfrentá-lo! -Duque nunca desiste.– Ele disse sério. -O que vai fazer? Enfrentá-lo? – estava com medo. Pela expressão do Guardião, ele não estava nem um pouco contente em precisar lutar contra o bando de caçadores de recompensa. -Espero que não.– Acheron não queria muita conversa com Jô Estava assim desde que foi enganado. Seguindo-o de perto, ouviu-o contar suas suspeitas e planejar sobre a melhor abordagem. Jana estava assustada e pediu-lhe silenciosamente que conversasse com ela. Pelo canto dos olhos, Acheron notou que seu ajudante se juntava a fada para uma conversa particular. Desconfiado que o rapaz pudesse causar problemas, achou um modo de ouvir o que diziam. -Eu não acredito! Achei que não corresse mais nenhum risco!– Jana disse a beira do choro – O que vai ser de mim se eles me pegarem? Nada os fará crer que não sou a fada que procuram! -Não fique nervosa. Nada vai lhe acontecer. Eu a coloquei nessa enrascada e vou tirá-la disso!– Jô disse compadecida. De seu esconderijo, Acheron franziu a testa, sem compreender o que isso queria dizer. -E como pretende me ajudar? – Jana perguntou. -Só tem um modo de você se livrar dos caçadores de recompensa. O mesmo modo que a livrou do Guardião – disse revoltada. -Está pensando em...? – Jana cobriu os lábios, chocada. -Não chega a tanto – ela negou, maneando a cabeça veemente.– Mas está certa sobre uma coisa. A fada Driana vai ter que aparecer outra vez. Acheron perdeu o fôlego por um instante. -E como vai ser isso? – Jana perguntou aos cochichos. -Essa noite. Dessa noite não passa. Driana vai ter que aparecer para os caçadores de recompensa e desfazer esse mal entendido – disse cheia de certeza. -Mas isso é perigoso! Eles não serão tão fáceis de ludibriar quanto o Guardião! -Ninguém nesse mundo é tão fácil de ludibriar quanto Acheron – ela disse com ternura. Ternura que Acheron não compreendeu ou notou. Seu ajudante conhecia a fada da clausura. Provavelmente vinha causando problemas de propósito, para que não a alcançasse! Traído por Jô. Com um sentimento de abandono dentro de si, Acheron se escondeu quando Jô e Jana andaram para perto da fogueira. Essa noite, Acheron, o elfo fácil de enganar, ensinaria uma lição para o garoto. Uma lição inesquecível! Mal podia esperar pelo momento em que Jô o levaria até a fada Driana. Quando pusesse suas mãos sobre os dois traidores, o chão da Floresta de Saul iria tremer. Disso ele tinha a mais absoluta certeza!
Quando a noite caiu, Driana sentiu-se segura para agir. Conhecia o modo de pensar do segundo Guardião, e ele preferia utilizar da luz do sol da amanhã para confrontar os inimigos. Era atípico, pois normalmente os guerreiros preferiam a noite como camuflagem para seus ataques, mas Driana havia percebido que os olhos de Acheron nunca haviam se adaptado a luminosidade do Monte das Fadas, e por causa disso na noite, ele perdia ainda mais da capacidade de vislumbrar detalhes. Ao menos com a luz da manhã, ele ficava na vantagem natural da claridade.
Depois de conferir que ele dormia pesadamente, Driana deixou o acampamento, depois de despedir-se rapidamente de Jana e seus dois irmãos. Era mais seguro que apenas eles soubessem quem era. Os outros dois elfos, pai e irmão mais velho, poderiam não ser tão acessíveis a essa verdade. Jô escondeu-se na mata e encontrou um lugar perfeito para trocar as roupas. Acheron esperou que o rapaz saísse fortuitamente, para segui-lo. Em determinado momento perdeu-o de vista por um instante. Permaneceu escondido esperando que aparecesse. A mata fechada causou dificuldade em identificar movimento. Não era um caçador da noite. Era do dia, e seus olhos claros não se adaptavam a escuridão total. Minutos mais tarde, quando impaciente quase abdicava de seguir o rapaz e sim optava por confrontá-lo, avistou um vulto na noite. Era um vulto delicado e preciso, e ele reconheceu as curvas de mulher por baixo da túnica que antes pertencia à fada Jana. O garoto Jô tivera a audácia de pegar roupas de sua protegida para ofertar a fada da clausura? E todo aquele tempo de angústia, a fada estivera escondida na Floresta de Saul, pertinho deles? Realmente, Acheron começava a dar razão a todas as pessoas que cruzaram seu caminho ao longo dos anos e o chamaram de burro. No mínimo era ingênuo demais. Seguiu a fada mantendo muita distância. Era barulhento demais e ela esquiva demais. Uma combinação perigosa. Driana seguiu seu trajeto, ignorando completamente que era seguida. Acheron estava coberto de razão ao alegar que sentia o cheiro de Duque. O infame mantinha acampamento longe, porém mantinha-se perto, vigiando cada movimento deles. Encontrou dois comparsas do mercenário vigiando entre as árvores. Eras tolos, e Duque não acreditaria na palavra de ambos, mesmo que jurassem de pé juntos terem visto a fada da clausura. Restava-lhe enfrentar o perigo real. Duque mantinha os olhos fixos no acampamento. Esperava do fundo do coração que não houvessem notado sua fuga. Havia sido cuidadosa, mas nunca era garantido quando se tratava de mercenários experientes. Ela não sabia, e em sua arrogância exacerbada, jamais pensaria ser possível, mas o elfo era capaz de pensar tanto quanto ela. Não era um dom, era experiência de anos de planos bem elaborados e caçadas bem sucedidas. Era provável que ele houvesse notado o que pretendia desde o instante em que Driana se fez visível. Entre as árvores, foi propositalmente barulhenta. Seu plano era levá-lo para longe e quando estivesse perto da cachoeira, e da caverna onde seduzira Acheron apenas uma noite atrás, escaparia e o deixaria para trás. O grande problema de planos bem elaborados é que sempre dão errado. Driana descobriu isso na noite passada quando venceu Acheron, mas perdeu seu coração para o elfo. E nessa noite esperava ganhar, e não perder a vida ou a liberdade! Duque fez seu jogo. Seguiu a fada por muito tempo floresta adentro. A fadinha era pequena e ágil, mas ele era mais. Muitos anos lutando pela própria sobrevivência e lidando com elfos e fadas que faziam o mesmo, lhe garantiram muita agilidade de corpo e mente. Por isso Duque era tão perigoso. Por ser capaz de prever os passos de seu inimigo. Lhe deu toda a corda que Driana precisava para se enforcar. A fada não obtivera suas asas ainda, por conta disso, era inofensiva, e por mais inteligente que fosse, sem o seu dom completo, era vulnerável. Duque a seguiu pela noite toda. Driana estava exausta quando finalmente conseguiu despistá-lo. Não esperava que fosse tão difícil. Suada, ela escondeu-se entre as pedras e permaneceu muito tempo em uma fenda entre rochas, esperando que ele cansasse e fosse embora. Um triângulo formado, mas ela não sabia. Escondida, entre dois elfos que a seguiam. Cada qual com um intento diferente. Acheron perdeu o rastro da fada, mas não do elfo. Muitos anos lidando com Duque. Talvez fosse a hora de dar um basta nisso. Às vezes a vida precisa de certa desordem para seguir, e por conta disso, os Guardiões faziam vistas grossas aos caçadores de recompensa. Eram apenas dez Guardiões e não poderiam abandonar o Castelo. Sendo assim, os caçadores de recompensa exerciam um importante papel dentro da sociedade, limpando as imediações de bandidos e fugitivos. Acheron aprovava a profissão e não os métodos usados especialmente por Duque. Conhecera alguns caçadores de boa índole, mas Duque não era um deles. Amanhecia quando Driana convenceu-se que era hora de partir, era seguro e poderia trocar as roupas e voltar a ser o garoto Jô. Estava a passos do esconderijo de suas roupas, quando foi pega por trás. Braços fortes a apertaram e mãos escamosas agarraram sobre seus seios, enquanto um punhal era colocado abaixo de seu queixo, a lâmina rente ao seu pescoço. -Quietinha, fugitiva – Duque disse com sua voz asquerosa.– Acabou. Está pronta para ser julgada por seus crimes? Espero que sim, pois eu sou um juiz muito severo. Ele riu da própria piada e apertou seu peito com força. Lutando para não gemer de dor, ela ficou quieta, para não ser ferida. O medo mandava que gritasse, mas sua mente consciente pedia que se acalmasse e pensasse em uma solução. -Sem asas, sem dom...– Ele riu outra vez, largando seu seio para agarrar seus longos cabelos e puxar sua cabeça com toda força - ...Mas com muita beleza e delicadeza. Será um banquete. Faz muito tempo que não tenho uma fada tão bonita. Será culpa da clausura? Sinto o cheiro do medo da reclusão? – Ele aspirou o cheiro de sua pele e lambeu perto do seu ouvido, obrigando-a a tentar fugir. Um puxão a fez parar e reclamar da dor. -Acheron é uma fera. Mas não é difícil de enganar – ele disse com zombaria na voz – seu único defeito é ser tão estúpido durante a maior parte do tempo. -Não fale assim dele!– Ela reclamou e sua resposta foi ser arrastada pelos cabelos floresta adentro. -Eu soube que aquele garoto não era um simples ajudante no instante que coloquei meus olhos sobre ele! Confesso, demorei em entender o que acontecia. Nada como um dia após o outro para apurar nossos olhos e clarear nossa mente, não é? Driana foi arrastada pelos cabelos, com o punhal ora machucando seu pescoço, ora ferindo a pele abaixo das costelas. Duque mantinha seus comparsas em um lugar reservado, longe do acampamento do Guardião. Estavam sozinhos, pois ele ordenara que os demais seguissem cada passo do Guardião e dos outros elfos que se juntaram a ele. Francamente, o único desejo de Duque era estar sozinho com a fada. Driana foi lançada no chão de terra, pois o elfo sanguinário escolhera um local bastante acidentado para levantar acampamento. -Sabe, fada, eu aprecio seu modo de pensar – ele disse com ironia, enquanto a girava no chão e amarrava suas mãos. Driana gritou quando ele baixou sua túnica para analisar a pele de suas costas. Aquela mão nojenta correu por sua pele e sentiu as formas limpas. Nada de asas, ou de nascimento de asas. Ele girou-a outra vez e ela agradeceu aos céus que não insistisse em tocá-la e sim amarrasse seus pés. -E aprecio ainda mais ter seguido meus instintos. Eu não vou levá-la para o castelo. Não fique preocupada – ele gentilmente passou uma das mãos por sua face e Driana afastou-se com ódio – Não sou tão burro quanto Acheron. -E o que vai fazer comigo? Vai me vender como fez com Jana? – Perguntou amargurada. -De modo algum, você é valiosa demais para ser vendida – ele negou, andando em torno dela, que seguia no chão – Vou usa-la para atrair as outras fugitivas. Faltam três não é? Pois bem, quando tiver as quatro em mãos, aí sim, eu as levarei para o castelo. -E pensa fazer isso se valendo dos seus comparsas inúteis que não servem para nada além de beber e ferir fadas frágeis? Tão inúteis que deixaram uma fada fraca como Jana fugir? -Eu sempre consigo o que desejo – Ele disse com veneno na voz, baixando o corpo e falando bem em seu ouvido. Seu hálito era podre e ela estremeceu só de imaginar o que Jana não passou nas mãos daquele verme. -Não dessa vez– ela negou – Não vai me manter prisioneira muito tempo. Eu vou fugir e procurar Acheron. Contar dos seus planos. Ele vai pegá-lo e aí de você quando isso acontecer!– Ameaçou. -E como pretende fazer isso? – Ele riu – Acha que tem o domínio sobre o Guardião? -O que você acha? – Ela disse com malícia.– Eu tenho o Guardião em minhas mãos e não preciso de asas para isso.– Alfinetou, ofendida por ser amarrada daquele modo. Duque mediu sua expressão para saber se blefava. A fada lhe dizia com palavras praticamente explícitas que seduzira o elfo Guardião. Sendo assim, não adiantava contar com sua castidade como forma de chantagem. Ela não tinha mais razões para se reguardar. Estava perdida para a escolha dos elfos. E seu valor de venda baixava consideravelmente. Metade do encanto se perdia. -Veremos se o que diz é verdade – ele ameaçou – quando chegar a hora, descobriremos se Acheron vira salvá-la ou não. -Enlouqueceu? – Driana gritou quando ele se afastou, encerando a conversa – Vai desafiar um Guardião para a luta? Duque virou-se, abriu ambos os braços e fez uma mesura de deboche. Ele tinha planos, e Driana sabia disso. -O que você fez contra Acheron? – ela gritou se debatendo. Queria se soltar e esganar aquele mercenário! -Contra Acheron? Nada. Eu não fiz absolutamente nada. Quem fez foi o menino Jô – ele riu e ela soube que não conseguiria mais lhe arrancar nenhuma palavra. Driana manteve-se imóvel por alguns segundos. Duque tinha planos para pegar Acheron desprevenido, e ela não duvidava que conseguisse. Apesar de forte e praticamente invencível, Acheron era muito influenciável. Muito absorto. Se ela não estivesse com tanto medo teria notado que em sua mente já não pensava no Guardião como alguém tolo, e sim, ingênuo para criar planos desonestos. Preferia a honestidade, e enfrentava as adversidades de cara limpa. Ao contrário dela que era uma mentirosa e dissimulada. Acalmando os nervos e focando a mente no que acontecia e em suas possibilidades, Driana pensou na vantagem de estarem apenas os dois juntos. Apenas um elfo para lutar. E mesmo que fosse esperto, ainda assim, era um só. Conquistar e dividir, pensou Driana. Tateou as pontas dos dedos no chão, procurando algo que pudesse usar. Era um solo de terra batida, com pedras que feriam sua carne. Acheron pretendia esperar que Duque se afastasse da fada para interferir. Pegar o bandido desprevenido para ter uma luta calma e rápida. Estava a um passo de invadir o lugar e resgatá-la, quando surpresa notou que ela soltava as cordas que prendiam suas mãos. Ele não viu os detalhes, mas Driana usou uma pedra pontiaguda para romper as cordas. Não era uma questão de força, e sim de precisão analítica. Definir o melhor ângulo e atacar a parte mais frágil da corda e não o nó. Livre, soltou os pés e estava prestes a fugir, quando Duque percebeu sua fuga. O elfo era ágil, e ela mal teve tempo de ver de onde ele vinha, antes de ser agarrada outra vez. Duque mantinha as unhas longas, negras e afiadas exatamente para isso. Agarrar e imobilizar suas vítimas. Driana gritou de dor, quando as fincou em seus antebraços. Seu corpo vergou de dor e ela não teria conseguido se livrar se estivesse totalmente sozinha e dependendo de si mesma. Driana não tece tempo de ver o vulto que atacava Duque, pois caiu no chão. Suas mãos tentaram parar o sangue que vertia de sua pele, mas não era nada comparado ao pânico de ver Acheron e Duque se engalfinharem bem diante de seu olhar. Acheron levava vantagem, pois as feridas que Duque tentava abrir em sua pele não tinham o poder de abalar tanta força e presteza. Em determinado momento Duque fincou as unhas potentes sobre a pulseira que Acheron carregava no pulso e Driana cobriu os lábios apavorada, com medo de ser uma ferida fatal, pois era conhecedora da anatomia e sabia das importantes veias que corriam pelo braço, sobretudo pelo pulso. Acheron segurou a mão do outro elfo, e foi dobrando o braço do elfo, sem desgrudar os olhos dele. Duque arregalou os olhos, pois era inevitável que seu osso seria quebrado. Acheron foi até o final e ela ouviu o som desagradável de algo quebrando. Os gritos do elfo não fizeram Acheron parar. Lançou-o no chão e com a espada finalizou a luta. Driana afastou os olhos para não ver. Acheron enxergou a fada num ato de horror não assistir a morte do elfo Duque. Sua franja cobria seus olhos e os cabelos impediam que visse sua expressão de completo horror. Não se envergonhou de fazer seu trabalho. Duque era um assassino e estuprador e tantos outros defeitos que seria impossível listar em apenas uma frase. Milhares de crimes que por omissão dos Guardiões, seguia sem punição. Livre do algoz, Driana conscientizou-se que estava nas mãos de Acheron. Os olhos azuis da fada fixaram-se nele. Acheron afastou-se do corpo do elfo e também comprou seu olhar. Como se Driana pretendesse ficar para se explicar pela noite passada! Num repente, levantou e começou a correr. Nunca daria conta de fugir do Guardião, mas podia tentar enganá-lo outra vez, e despistá-lo dentro da floresta. Afinal fazia isso há dias, e ele não percebera que era uma fada e não um elfo jovem. Acheron seguiu-a sem pressa de correr. Uma grande vantagem de conhecer seu inimigo é saber como irá agir. Era um caçador nato, e sabia por experiência que as caças tendem sempre a repetir padrões anteriores. E agora ele conhecia os padrões de Driana. Ela tentaria despistá-lo entre as árvores. Mas ele a levaria para um lugar onde poderia pegá-la facilmente. Driana correu pela sua vida. Seus cabelos revoavam, mas ela não percebeu. A túnica atrapalhava, por isso segurava a barra para cima, libertando as pernas para a corrida. Acheron acompanhava a distância o vulto entre as árvores. Com seu tamanho todo bastava uma corrida simples, para que emparelhasse com ela. Mas deixaria que acreditasse estar na vantagem. Driana ficou na dúvida sobre onde deveria ir. Se seguisse para a cachoeira, Acheron saberia das suas intenções. E jamais conseguiria livrar-se dele usando o mesmo golpe. Sentindose a criatura mais inteligente do mundo, Driana correu na direção do desfiladeiro. Quando alcançou a parte mais alta, toda gramada e coberta por árvores, Driana parou. Sim, o esconderijo perfeito. Era muito simples, iria descer em escalada até o ponto mais escondido do desfiladeiro, sentar e esperar que Acheron desistisse de procurá-la. Ele detestava lutar durante a noite, sendo assim, estaria livre para voltar e torcer para que não houvesse notado a falta de Jô. Muitas vezes Joan, sua amiga mais doce e quieta lhe dizia que o fato de ser inteligente a tornava tola para a realidade da vida. Que saber como fazer algo, não a tornava hábil para sair-se bem. Mas Driana não acreditava nisso. Confiante, começou a descer pela borda do desfiladeiro, e foi descendo com relativa facilidade. Em determinado momento seu pé escorregou e ela não teve tempo para medo. Caiu sentada em uma rocha. Com o corpo dolorido, arrastou-se para o lado até encontrar uma saliência de terra sobre as rochas. Era seguro e espaçoso, e havia árvores para protegê-la do sol e também ocultar sua presença. Depois, era só escalar de volta e estaria tudo bem. Afinal não tinha planos de olhar para baixo e assistir a queda livre que a aguardava caso houvesse rolado em vez de cair sentada. Acheron mal acreditou que a fada houvesse mesmo descido o desfiladeiro. Correu para tentar impedir aquela loucura e lembrá-la que sem suas asas, era tudo, menos um passarinho livre para enfrentar o desfiladeiro! Apavorado sobre uma queda, descobriu que a esquilinha escaladora de desfiladeiros estava escondida em um canto relativamente seguro. Ele maneou a cabeça incrédulo. Sua presença chamou atenção e Driana olhou para cima, conscientizando-se que havia sido descoberta. Achando estar protegida e que Acheron não conseguiria chegar mais perto que isso, levantou-se e gritou para ele: -Diga-me, Guardião, como é a vista aí de cima? – Provocou. -A vista é encantadora – ele gritou de volta, curvado para enxergá-la lá embaixo – Principalmente por que me pergunto se você tem ideia como vai sair daí sem ajuda! -Sairei do mesmo modo que desci!– Ela revidou sorrindo – Acho que vai ter que desistir, Acheron, não pretendo sair daqui tão cedo!– Ria dele. Muito contente em olhar para ele. Em falar com ele. Em permitir que sua mente relembrasse do amor partilhado em seus braços. Seus olhos brilhavam de luxúria e ele sabia. Era de longe a relação mais estranha que tivera com uma fada, e também a mais intensa. -Acontece, que eu pretendo descer – ele gritou de volta. -Duvido!– Ela revidou– é muito alto e perigoso para um elfo grandalhão e desajeitado como você...– Suas palavras ficaram perdidas no meio do caminho, pois Acheron começava mesmo a descer – Não faça isso! Enlouqueceu? Ele nada respondeu. Consciente que estava enganada, pois ele era muito ágil e descia facilmente, Driana começou a tentar escalar a parede oposta, para tentar subir antes que fosse alcançada. Foi quando descobriu que Joan estava coberta de razão. Saber fazer algo, não a qualificava para ser hábil na execução. Não conseguia firmeza para içar o corpo para cima e dar impulso. Faltava força em suas pernas, nas mãos e braços. Tremula pelo esforço, desistiu e aproximou-se da borda, para ver se poderia descer mais. De modo algum, estava ilhada. Desaforado Acheron pulou o último trecho que faltava e ficou diante dela, com toda sua postura arrogante: -Vejo uma fada em apuros – ele disse sugestivo. -Isso é ridículo. Eu me sinto ridícula.– ela disse indignada – eu não consigo ter força nem para salvar a mim mesma. Acha mesmo que ajudei a assassinar o rei? -Não cabe a eu julgar. Eu sei que é capaz de trair e enganar, e isso me basta.– Ele acusou. -Fala da noite que passamos juntos? – Ela deu de ombros, falsamente desinteressada – Eu fui atacada por você. O que eu faria? Tive que fugir. Não me culpe por reagir ao seu ataque! -Sim, fale mais – ele disse aproximando-se perigosamente. A expressão na face de Acheron era perigo puro. Mas ela não sentiu medo, pelo contrário, lutou contra um sorriso. Não deveria ter esse sentimento. Mas não conseguia evitar. -Conte mais das suas mentiras bem elaboradas.– Ele sugeriu irônico. -Eu não minto porque quero. Estou sendo obrigada a mentir, é diferente.– Defendeu-se. -E o garoto? – Ele perguntou. Driana mal acreditou no que ouvia. Achava que a essa altura o Guardião soubesse de tudo. Bem, deveria saber que não. Sempre que se dispunha a crer que Acheron possuía miolos, ele vinha a jogava suas esperanças por terra. -Que garoto? – Ele fez de desentendida. -Jô. Ele o acoberta em sua fuga. Provavelmente esteve me atrasando durante dias.– Ele acusou. -O rapaz me ajudou sim, por pena, não por interesse. Não seja severo com ele – defendeu seu disfarce, pois nutria esperanças de voltar a utilizá-lo tão logo se livrasse de Acheron. Tão perto, não havia para onde correr e fugir. Driana sentiu as rochas contra as costas e descobriu que não queria fugir. Acheron ergueu uma das mãos e tocou seu braço, onde estava machucada. Ambos os braços manchados com sangue. -Está ferida – ele disse com voz mansa e Driana se rendeu ao toque. -Sim, mas não sinto dor – admitiu. -Culpa da emoção. Quando se acalmar a dor vai ser difícil de lidar – ele explicou e Driana deixou que seguisse tocando seu braço, até alcançar seu pulso. Foi quando se lembrou dos ferimentos de Acheron. -Duque feriu seu pulso. Eu vi quando aconteceu – ela disse soltando-se como quem pergunta se ele está bem ou não. -Não, ele não feriu – ele negou e puxou a pulseira de couro para que ela viesse o que escondia embaixo dela. -O que é isso? – Perguntou surpresa. -Um ferimento antigo – ele explicou. Carne apodrecida e cicatrizada, de alguma profunda queimadura. -Eu não sinto nada nessa região – contou – Mas você vai sentir.– Ele avisou. Driana acenou concordando. Acheron havia sofrido tanto na vida. Assim como ela vinha sofrendo. Com o peso da fuga em suas costas, pela primeira vez em dias, Driana sentiu vontade de sentar e chorar. E foi o que fez. Escorregou até estar sentada e esconder o rosto nos braços que foram apoiados sobre os joelhos. -Vai me levar para o castelo? – Perguntou baixinho. -Eu lhe prometi que não.– Do alto de sua impressionante altura, Acheron prometeu. -Eu não acredito. Disse o que eu queria ouvir no calor do momento. Além do mais – ela olhou para cima, com toda a vulnerabilidade que normalmente escondia das pessoas – Eu nunca acreditei em elfos ou fadas que trabalhassem a mando do rei e da Rainha. Por que com você seria diferente? -Porque não sou como eles. -Não é o que vejo. Fala de justiça e liberdade, mas me caça como se eu fosse um animal. Seu rei falava de lealdade e justiça, mas trancafiava as fadas pobres e desvalidas para uma vida toda de sofrimento. Os Guardiões falam de missão e leis, mas deixam caçadores de recompensa como Duque, livres para abusar e aprisionar fadas e elfos livres. É tudo conversa. Vai me entregar para ser julgada. É questão de tempo. Tão logo consiga me aprisionar, estarei perdida. -Eu já a aprisionei – lembrou-a disso. Acheron baixou o corpo, ficando de cócoras, na altura da sua face, olhos nos olhos. -Não, você não me aprisionou. Estamos os dois livres. Quero ver como vai subir e me levar ao mesmo tempo. Se chegarmos os dois lá em cima, então você terá me aprisionado.– Ameaçou. Acheron não escondeu um sorriso satisfeito. Um sorriso sem vergonha. A inteligência aguçada da fada o desafiava e excitava. -Eu te peguei, fada – foi taxativo.– Dessa vez não vai escapar de mim facilmente. Driana engoliu em seco e mal pode conter o acelerado do coração quando Acheron aproximou os lábios dos seus. Nunca se beijaram. Francamente, ela nunca beijou ninguém. Perder sua castidade não a fizera conhecer o sabor de um beijo, pois na noite passada juntos, ele não tocou seus lábios. Percorrera seu corpo todo com toques e beijos, mas não tocara seus lábios. Culpa da loucura do momento, ou da falta de sentimentos entre eles naquele instante de loucura selvagem. Passado o frenesi da pele e da luxúria, eles se conheciam, se apreciavam e nascia o desejo por um beijo. -Me dê seu beijo, fada– ele mandou. Driana precisou de toda sua força de vontade para manear a cabeça negar: -Não.– Afastou o rosto – não lhe dou meu beijo. Era uma frase patética. Entre eles havia algo muito grande acontecendo. Acheron não se importou com sua negativa. Mas também não forçou o beijo. Arrastou a gola ampla da túnica que a fada usava e Driana deixou-o revelar seu ombro nu. Acheron aspirou o cheiro da fada, e deu-lhe o beijo que tanto desejava, mas não em sua boca, e sim no pescoço. Driana se esqueceu de tudo enquanto era tocada pelo Guardião. Em segundos estava nua. A túnica jogada displicente em um canto qualquer do estreito pedaço de terra e rochas onde estavam. Driana sentiu um engasgo de emoção quando Acheron rasgou um pedaço da própria roupa, e usou duas tiras para enfaixar seus antebraços, onde estava machucada. Como uma simples fada pode resistir a um elfo tão doce e carinhoso? E como alguém poderia imaginar que ele fosse assim? Que na intimidade de um casal, Acheron fosse tão gentil quando no dia a dia com outros elfos e em seu trabalho era quase selvagem? Driana quis lhe oferecer seu beijo, em retribuição a tanto cuidado, mas se conteve. Quando partisse outra vez e o enganasse, Acheron não a perdoaria. Ou então, seriam separados para circunstâncias do nascimento de Driana. Era uma fada da clausura. Uma fugitiva indômita. Qualquer relação entre eles estava fadada ao fracasso. E quando isso acontecesse e seu coração estivesse recuperado do sofrimento e da dor, Driana conheceria outro elfo e tentaria se apaixonar, e quando isso acontecesse lhe ofereceria seu beijo, como uma forma desesperada de tentar se apaixonar e esquecer Acheron.
Esplendor e amanhecer
Na noite anterior havia pressa, e uma paixão inexplicável e desconhecida, que conduzia os movimentos e os reduzia a dois animais copulando no meio da noite. Agora, era tudo diferente. Sabia quem eram, conheciam as diferenças que os separavam. Eram cientes da dificuldade em se entrosarem, pois cada qual tinha seus ideais e não abriria mão deles por nada. Longe da aflição da noite passada, quando tudo era novidade, e o medo misturava-se a ansiedade, Driana e Acheron estavam descobrindo um novo recomeço. Era tudo muito diferente quando se sabe o que quer, é diferente quando o corpo não assumia as rédeas sozinho e agora mente e coração unia-se na decisão de fazer amor. Acheron deitou a fada com muito cuidado. Não queria que pensasse que ele era uma fera indomável, incapaz de ser gentil. Havia algo selvagem dentro dele, isso era inegável, e com toda a inteligência de Driana, dificilmente não notaria seus modos rudes e pouco civilizados. Muitas vezes agia mais como animal, do que como ser pensante. Era sua essência e nada poderia mudá-lo. Mesmo assim, gostaria que ela soubesse que apesar de seus instintos, ele era sim capaz de gestos de delicadeza. Driana não se importava se fosse bruto. Para ser franca, começava a apreciar seu modo de agir. As veze pensar demais atrapalha. Driana sabia disso há muito tempo. E na presença de Acheron isso se tornava tão óbvio e gritante que ela preferia um pouco de rudeza, ao excesso de zelo. Acheron correu ambas as mãos por seus ombros. Tomou cuidado para não tocar os ferimentos, segurou pelos braços e pelas palmas de suas mãos. Era mais um roçar de dedos. Que arrepiou seu corpo da cabeça aos pés. Era curioso o fato de não precisarem falar sobre o ato. Nada de convites ou pedidos. Nada de discussões a cerca do ato sexual. Simples como respirar, era a certeza que fariam isso em qualquer situação onde pudessem ficar sozinhos e o resto não era discutível! Como bichio ele sabia o que podia ou não agradar uma fêmea, e no fim, era o que importava. Queria agradar aquela fada fujona a qualquer custo! Talvez, seu inconsciente esperasse que dessa forma, sendo agradada, ela voltaria para ele. Quem sabe a pele e o desejo pudessem sempre obrigá-la a voltar para seus braços? Mesmo que ele não pudesse aprisioná-la, porque em seu desejo mais intimo Acheron não desejava entregá-la para ser punida por não acreditar na causa da Rainha, ainda assim ele garantia um modo de trazê-la de volta por livre e espontânea vontade. Sedução pura. Algo animal, algo de pele. Driana remexeu-se inquieta, pois ele alisava a palma de suas mãos, e retornava o carinho seguindo por seus braços, ombros e a clavícula. Driana olhou para baixo, para seus seios, os dedos de Acheron desciam sobre eles. Seus montes eram pequenos, não eram tão graúdos, mas estavam inchados de ansiedade. As pontas dos dedos de Acheron eram quase mais largas do que seus mamilos. Bico pequeno, macio e rosado, que ficou imediatamente irritado e eriçado diante do toque atrevido. Acheron esfregou de leve ambos, e ela não pode mais olhar, pois as sensações eram deliciosas demais para privar-se de olhar para Acheron. Queria sentir e assistir o que ele fazia com seu corpo. Descobrir se era recíproco. Não era possível que apenas ela sentisse tanta atração! Seu cheiro de fêmea impregnava de tal forma, que ele quase não se controlou. As pontas dos dedos seguiram descendo pelo seu estomago plano, pois Acheron não tinha ideia de fixar-se em um ponto só e sim aproveitar cada curva, cada relevo, cada pequeno detalhe do corpo mignon da fada. Queria provar da fada completamente. Os dedos tocaram mais abaixo, cada vez mais abaixo, roçou o umbigo, e encontrou finalmente o vale entre pernas. Driana era estreita, não era uma fada larga como ele tinha o hábito de possuir. Por isso, usou apenas a ponta do dedo indicador, e já era quase demais. Esfregou sobre o clitóris, debaixo para cima, e de cima para baixo, não era de caçar movimentos, e sim, ir direito ao ponto. Mais tarde, com o desejo menos irrefreável, rodilharia os dedos por sua intimidade, para lhe dar ainda mais carinho, mais por hora, seria explorador. Seguiu o dedo para baixo, umedecia em sua entrada e então subia outra vez, esfregando um pouco mais. Cada vez mais, e ela gemia. Havia muita carne do elfo a sua volta. Muito músculo, muita virilidade para agarrar. Sua mão estava pousada no peito do elfo, tateando todos os músculos, enquanto Acheron roçava de leve os lábios em um de seus mamilos. De surpresa, ele subiu e tentou lhe roubar um beijo. Apesar de estar tomada pelo desejo, ela foi mais esperta e virou a face no último segundo, impedindo-o de alcançar seu objetivo. Seus lábios tocaram apenas seu queixo, e foi difícil não lhe oferecer seu beijo. Foi muito difícil não sucumbir, quando ele atacou seu pescoço com a mesma intensidade com que seus dedos se moviam lá embora, em sua intimidade. Acheron acelerava o toque um pouquinho mais, cada vez mais, brincando de excitá-la, pois não era ainda para enlouquecê-la, mas enlouquecia. Roçou aquele dedo sem parar, para deixá-la ansiosa, pois não queria acabar tão logo com a brincadeira dos dois. Quem sabe se fosse capaz de enlouquecê-la de paixão, pudesse no futuro ter algum poder sobre ela? Driana agarrou os cabelos longos e selvagens do elfo, sabia que seu seus puxões não eram percebidos. É claro que doía. E era para doer mesmo, para dizer-lhe que precisava de sua atenção e de seu olhar. No entanto, um pouco de dor somente aumentava a expectativa de Acheron quanto ao que faria coma fada! Acheron tornou o toque mais incisivo, e Driana tentou pará-lo, movê-lo, quem sabe deitálo para ficar sobre ele, e foi então que a fera deu um rugido dentro de Acheron e seu rosnado era de aviso. Ainda não era hora de tomar a fada com toda afã que sentia. Por isso segurou-a pelos braços, mantendo-os contra o chão, para que não se movesse. Driana não precisou de um segundo aviso. Era tão quente ser dominada que sua única atitude foi fechar os olhos, ficar quieta, e gemer. Num impulso, ele desceu a boca entre suas pernas, se era assim que a fada queria, sem grande gentileza, era assim que ele faria! Tocou primeiramente no centro, onde sua abertura escorria sua excitação, despertando uma fera que também morava dentro de Driana. Na noite passada Acheron havia feito isso, mas nem em seus piores pesadelos, achou que isso pudesse se repetir. Achou que esse tipo de emoção fosse comum numa primeira vez, onde tudo é novidade e extremos. A língua era larga, aveludada e potente. Acheron todo era grande, e sua língua não poderia ser diferente. Ele esfregou em um ritmo diferente do que fizera antes com o dedo. Lambidas longas e pesadas, subindo a língua para atingir toda região, lambendo de um lado ao outro, como uma fera degustando de sua caça. Era um pensamento quase animalesco, mas facilmente Acheron poderia lhe morder e arrancar-lhe um pedaço, pois sua boca conseguia facilmente abocanhar toda região escondida entre as pernas da fada. O clitóris endurecido, sobressalente, um pontinho destacando-se entre as dobras lisas e rosadas. Uma pena que a fada fosse tão pequena e lhe conferisse tanto encanto, pois não era racional o modo como a desejava. Continuou tocando-a, não queria parar, o gosto o inebriava, não era apenas o cheiro da fada que o enfeitiçava. Seu gosto também era irretocável, e condizia perfeitamente com seu paladar. Um gosto peculiar, pois a fada ainda não estava no cio, ou acreditava que não estivesse, então, Acheron se excitava ainda mais pensando em como seria quando estivesse padecendo do nascimento das asas, que também marcava o início do cio feminino. Imaginava como seria ainda mais arrebatador desfrutar deste momento em seus braços. Seu gosto era forte, era apenas um gosto doce, peculiar e único. Com os lábios abertos, sugou tudo, e Driana sufocou os gritos, para não enaltecê-lo, para não deixá-lo ainda mais orgulhoso de seus feitos. No entanto seus dedos agarraram os cabelos louros, e fincaram-se no couro cabeludo, como se assim pudesse obrigá-lo a parar, e permitir que ela recuperasse sua mente sã. Mais um pouco, ele ainda queria fazer isso mais um pouco. Não iria parar, somente porque a fada achava que isso era o certo. Driana precisava entender que não possuía domínio sobre ele. Era passado o tempo em que uma fada ou elfo possuiria poder sobre ele. Seguia regras de um rei, mas se o fazia, era por desejo próprio e não por obrigação. Em uma clara provocação o elfo parou. Driana abriu os olhos sem crer em sua ousadia em frustrá-la justamente naquele momento! Estava tão pertinho de sentir o mesmo prazer da primeira vez em que se amaram! Acheron ficou de joelhos e fitou sua face. O sem vergonha sorria para ela, e no fundo, ria dela. Segurou suas mãos pequenas, livrando os próprios cabelos dos apertos de seus dedos. Driana sentiu o impulso de lhe bater na cara para que aprendesse a não rir dela, mas a única coisa que fez, contrariando sua lógica, foi esticar os dois braços para o lado, oferecendo-lhe o corpo, sem pudor e sem segundas intenções. Apenas entrega. Acheron levantou, despiu as roupas, primeiro o cinturão pesado que adornava sua cintura, depois as botas e então as calças. Despiu-se completamente e ficou de pé, nu e claramente disposto a tomar seu juízo. Driana sentiu uma vontade incontrolável de fugir. Era bem capaz de conseguir escalar aquelas rochas só para se livrar dele, mas não era medo em si, era um sentimento irracional, como se o seu corpo, sua carne, e sua mente estivessem ciente que aquela relação de amor e ódio entre eles evoluiria e traria dor e prazer na mesma proporção. Era medo da dependência. Era isso. Em poucas palavras, o grande receio de Driana era a dependência emocional! Era diferente, era um sentimento que gritava que Acheron poderia tomá-la de tal forma que não haveria volta. Dependendo do quanto ele mexesse com seu coração, nem mesmo o amor por suas a amigas e a lealdade a elas, poderia sobreviver intacto. Assustada com este pensamento ingrato, Driana afastou os olhos, assistindo a luminosidade atrás dele. O céu era azul, o sol era forte, a brisa lavava os cabelos longos do elfo de um lado ao outro, arrancava as folhas das árvores e as levava consigo mundo a fora, numa poética ilusão de efemeridade... O vento lhe trazia o cheiro de elfo, o cheiro de macho, e acabava com seus sentidos e sua resistência, e Driana se conscientizava que não havia fuga naquele espaço limitado e mesmo que houvesse, Driana definitivamente não moveria um dedo para encontrar escapatória! Acheron retornou para junto dela, era um provocador, de joelhos entre suas pernas, usou a ponto do membro para atiçá-la. Vê-lo se tocar daquela forma era tão excitante como se fosse ela quem estivesse fazendo. Observou calada ele esfregar a glande, triangular e larga como um cogumelo, roçando-o em seu clitóris, movimento para baixo e para cima, como fizera com o dedo momentos atrás. Mas era muito diferente, agora era muito diferente. Ela estava alta, envolvida de um modo intenso demais para expressar. Qualquer coisa que Acheron quisesse, ela faria. Acheron fez que ia entrar, e ela reteve o ar esperando a invasão. Mas ele não entrou. Retornou o movimento, repetindo sem parar um quase vai e vem, só que contra seu ponto mais sensível. Ela estava a um passo de explodir. Acheron levou uma das mãos ao seu seio e apertou com força, Driana tentou fugir com o quadril, mas ele segurou com a outra mão, e mais um pouco daquela esfregação toda e ela estaria aos berros, se contorcendo de prazer sob suas carícias. Acheron não continuou. Tinha outras metas na cabeça. Hoje, ele tinha outras ideias. Acheron parou, se moveu, fechando suas pernas de um modo lento, e Driana esperou para ver o que ele pretendia. Nesse campo, Acheron era mais experiente. Entendia desse assunto de um modo profundo, coisas que ela apenas conhecia na teoria, e para ele, era assunto de muita prática. Sufocando os pensamentos ciumentos, Driana esperou que ele sentasse ao seu lado, reclinado contra a murada de rochas atrás dos dois, e fizesse um carinho em seu rosto, segurando em seu queixo enquanto dizia: -Venha aqui, fada. É a sua vez. Driana sorriu e fez o que ele pediu. Estava a um passo de beijar o pescoço do elfo quando foi apartada e ele avisou: -Não se faça de boba, fada. Sabe muito bem o que eu quero – a voz era rouca e forte. -Acontece que eu também quero uma coisa...– Ela disse com voz frágil, falhada e fina, pois o desejo subjulgava suas cordas vocais. Acheron libertou-a para que Driana fizesse o que desejava. A fada abocanhou seu pescoço, enquanto ambas as mãos passeavam por seus ombros, braços e peito. Driana apertou cada músculo, cada relevo, cada pedaço da carne rija que encontrou, enquanto sorvia o gosto da pele do elfo, com beijos, mordidas e lambidas por todo o peito. Correu a língua pela barriga definida contornando os gomos de músculos que desenhavam a carne morena do elfo. Olhou para ele, para ver a face repleta de desejo, certificando-se que estava agradando. Agora que conhecia a anatomia do corpo de um elfo bem de perto, e não apenas em teoria, e conhecia os caminhos do sexo, nada lhe era segredo e faria bom uso de toda esperteza que possuía como ferramenta para agradá-lo e tornar-se inesquecível em sua memória! Sua mão envolveu o membro masculino e apertou. Era largo o bastante para não conseguir fechar todos os dedos em torno. Longo, grosso e rijo. A cabeça triangular e larga. Apesar da aparência rude, coberto de veias e de pelos, aquela monstruosidade era macia ao toque. E era também a razão para que Acheron sempre deva preferência para fadas de corpo mais largo. Nem sempre um tamanho destes é aprazível. Pelo contrário, conforto era a última das palavras que lhe vinha à mente ao segurar e tocá-lo. Lambeu o gosto salgado da pele e então, o levou na boca. Acheron não era discreto em suas paixões e deixava claro com gemidos, apertões e puxões o quanto estava gostando. Ela gemia, algo sufocado, a cada puxão de cabelo, a cada apertão das mãos fortes em suas coxas e peitos e acelerou o ritmo, levando-o em sua boca com determinação e exigência. Acheron cravou os olhos na face delicada da fada, sobretudo nos lábios que o envolviam tão sedutoramente. Gostava de assistir suas amantes, e Driana era um espetáculo de beleza e concentração. Ele sorriu, e precisou agarrá-la para que parasse. A danada não iria parar a menos que fosse forçada, pois era sempre dedicada a tudo que se propunha a fazer. Tão dedicada que ele estragaria o momento. Queria possuí-la e marcá-la como sua. Não queria apenas brincadeiras entre os dois. Quem sabe mais tarde, pois agora, ele desejava tudo por inteiro. Puxou-a para si, e agarrou suas nádegas com ambas as mãos, subindo-a até estar com a face a centímetros de sua intimidade. Driana não teve condições de dizer nada. Acheron deslizou a língua outra vez em sua intimidade, ela estando de joelhos, a pélvis empurrada em sua direção, de frente para ele. Nessa posição, ele teve acesso completo para tomá-la com força. Driana espalmou as mãos nas rochas atrás dele, e de frente para ela, serpenteando o corpo, rebolando enquanto era sugada e sorvida com gosto. Sua intenção era preparar aquele vale pequeno para recebê-lo sem dor. Na noite em que fizeram amor pela primeira vez à adrenalina e o risco eram mais do que afrodisíacos potentes, eram fogo puro correndo nas veias, mas agora, eles eram essência de desejo e não de perigo. Driana fechou os olhos com força, se concentrando apenas em sentir. Seu corpo tremeu sobre ele, e ela tentou refrear a paixão. Tentou segurar, e não chegar lá outra vez. Mas não pode evitar. Foi inesperado, ela recolheu o quadril para longe, por isso Acheron segurou com mais força em suas nádegas, mantendo-a no lugar enquanto a bebia com a língua. Driana estava voltando daquele vale de prazer quando Acheron a conduziu. Era ele quem dominava o ato. Disso não havia dúvidas. Empurrou-a para trás, e Driana gemeu de prazer quando ele a fez pairar sobre seu pênis. Era a hora mais esperada e ela sorriu, um sorriso naturalmente satisfeito, de fêmea que tem sem elfo nas mãos. Atrevida, encaixou-o bem devagar e foi descendo até recebê-lo o mais fundo possível. Sentiu-se alargada por dentro, e jogou a cabeça para trás, desfrutando da sensação de abundância. Durante alguns segundos foi desse modo, até Driana curvar o corpo para frente, serpenteando o peito sobre ele, e beijando-o no queixo. Seus lábios beijaram todo o maxilar, as bochechas e o canto da boca, enquanto deslizava para cima e para baixo de um modo lento. Acheron arriscou outra tentativa de beijo e ela escapou, empurrando a cabeça para baixo, para beijar os mamilos masculinos. Indignado com a rejeição, Acheron a empurrou para cima e manteve-a imóvel, segurando-a com ambas as mãos pela barriga e coxas. De olhos arregalados Driana teve que recebê-lo sem reclamar. Movimentos de quadril acelerados, com tanta energia quanto era possível em um elfo do seu tamanho e agilidade. O membro batia dentro de si com velocidade, força e potência e ela manteve os lábios abertos, gritando sons quase desesperados, enquanto o prazer a varia de um modo inexplicável. Acheron admirava a face bonita, repleta de prazer sexual, os cabelos longos e escuros, balançando a sua volta, os seios deliciosos, a junção entre os corpos... Ele gemeu e soltou-a, e por isso Driana se curvou outra vez, empurrando o quadril para trás, tirando-o de dentro de si por alguns segundos, para se acalmar. Foi o tempo de beijar o peito forte, roçar a face nos pelos, nos músculos e soerguer o corpo para esfregar os seios na boca do elfo. Acheron mordeu, chupou e lambeu enquanto as mãos enormes vagavam e encontravam seu recanto, bolinando-a mais uma vez, antes de penetrá-la novamente. Ela gritou, e escondeu o rosto em seu peito, enquanto era possuída sem permissão. Em determinado momento, o membro masculino inchou dentro do seu corpo e ela precisou erguer o corpo. Empurrou o torço para trás, e manteve-o dentro de si, empurrando seus braços que tentavam prendê-la mais uma vez, pois queria algo diferente. Não deixou que escapasse, ou se movesse. Ditou o ritmo, esfregando o clitóris em sua virilha masculina enquanto deixava o pênis preso dentro de si. Não era uma posição que pudesse suportar muito tempo, e nem precisou. O prazer cresceu de tal modo que Driana achou que estivesse vendo estrelas, por isso abriu os olhos e encarou o céu acima de si, entorpecida pelo sentimento que Acheron lhe despertava. Driana não viu, mas em suas costas, as mesmas que seus cabelos acariciavam a cada movimento rápido e íntimo, uma linha escura se formava no centro das costas. Exatamente no centro da coluna, desde o pescoço, até o vale entre as nádegas. Uma linha escura, negra e larga que apareceu abruptamente e então desapareceu, enquanto ela se contorcia sobre o elfo, gozando mais uma vez, a mais forte de todas. Driana afastou os cabelos para o lado, em uma cascata sedosa, e curvou o corpo para beijar qualquer parte do elfo que pudesse encontrar no caminho. Tudo para dizer a ele como estava feliz. Acheron envolveu-a com os braços e a fez girar, ignorando seu grito de surpresa, e dor, pois ainda estavam ligados e ele não era fácil de acomodar! Acheron segurou-a pelo pescoço, imóvel, daquele modo pouco gentil que revirava as entranhas de Driana, e ao decidir o que queria a puxou pelos braços para que ficasse de costas para ele, e de frente para o abismo. -Acheron...– Ela pensou em reclamar, ao ficar de quatro para ele, seus olhos fitando a imensidão vazia diante dos seus olhos. Acheron puxou suas pernas, para que não ficasse exatamente de quatro, e sim algo entre deitada e de joelhos, com uma das pernas esticadas, enquanto a possuía com um rosnado. Dessa vez não era para agradar a fada e sim agradar a si mesmo. Agarrou suas costas e ela curvou-se para baixo, sentindo os seios esfregarem na relva que cobria aquele pedaço de terra e rochas. Mal conseguia conter a fúria que crescia em seu corpo a cada movimento. Era a fúria da paixão e não havia como contê-la. Uma de suas mãos segurou na beirada do desfiladeiro, agarrando terra e mato e a outra ficou reta, para fora, sendo banhada pela brisa. Se Acheron se empolgasse demais, ela estaria em sérios apuros, pois a queda seria fatal. O risco, o cheiro do elfo, tudo isso contribuiu para que ela se pegasse gritando de prazer mais uma vez. Acheron segurou seu corpo no lugar, e empurrou os quadris uma última vez, rosnando seu prazer em um grito de dominação selvagem. Curvou-se para morder sua pele, marcando-a suavemente com seus dentes, e percebeu a marca que ia e vinha, escurecendo e se apagando, tornando-se visível e sumindo, e apesar da descrença sobre o que via, Acheron não pode evitar empurrar com mais força. Era o cio que se aproximava. Não era uma marca comum, como de outras fadas. Acheron foi parando de se mover, e antes de soltá-la, escorregou uma das mãos pela marca, desde o pescoço até as nádegas, como uma reverência as asas que estariam nascendo muito em breve. Suado e exausto, pensou em lhe dar essa alegria e lhe contar que embora não fosse do modo tradicional, suas asas se anunciavam. Mas desistiu de fazê-lo, pois a fada merecia a ignorância. Quem sabe se não soubesse disso, pudesse pegá-la desprevenida quando as dores começassem? Qualquer vantagem que pudesse ter em relação à mente astuta de Driana era lucro. Ele sentou-se e encostou a cabeça na pedra atrás de si. Precisava respirar um pouco e se acalmar. A fada estava começando a entrar no processo de nascimento das asas, mas ainda não sabia. Em breve estaria no cio, e possuí-la seria perigoso. Uma tentação, mas também um perigo. Ele nunca conheceu ou soube de um caso de uma fada que tivesse emprenhado antes do nascimento das asas. Mas depois de passar pelo cio, a maior parte das fadas engravidava. E a situação já era complicada o bastante sem precisar ter que defender mais um inocente envolvido naquele emaranhado de mentiras, dúvidas e manipulações! -Hum, acho que você me entortou para sempre – ela reclamou se movendo e reclamando do desconforto. -Engraçado como não ouvi uma só queixa sua enquanto estava nos meus braços...– Ele estendeu uma das mãos em sua direção, convidando-a para vir até ele. Driana aceitou o convite e engatinhou, entregando-se ao seu abraço. -O que estamos fazendo? – Ela sussurrou no ouvido de Acheron. Estavam nus e suados, e exprimidos em um pedaço de terra suspenso por rochas. Um lugar apropriado para alguém estar completamente desesperado em tentar se salvar, jamais esperaria que elfo e fada estivessem fazendo amor sob a sobra da pouca vegetação que os defendia do sol forte. Um rosnado de reclamação foi sua resposta. Acheron não queria falar sobre o que faziam. Era consciente do risco e do problema que se envolvia estando nos braços da fada. Acheron estava sobre seu corpo, todo o corpo quente, suas costas largas cobertas por suor e folhas minúsculas que caiam da árvore perto de onde estavam. Mas eles não ligavam para conforto naquele momento de loucura. Fizeram amor desesperado e alucinado e agora calmos, esqueciam-se do mundo e das responsabilidades. E isso, por si só, era ainda mais perigoso do que o local onde estavam. -Tem medo? – Acheron perguntou de volta, se movendo, a face apoiada no braço. Driana precisou olhar para cima, pois estava com a cabeça em seu peito. -De cair? – Desconversou e ele riu. Não queria falar sobre seus sentimentos íntimos. -Sim, de cair – ele aceitou sua fuga e Driana escondeu o rosto em seu peito rindo baixinho. -Não. Eu não tenho medo de altura.– Uma lembrança doce em sua mente a fez olhar para ele novamente– Minha amiga Alma tem medo de altura. Sempre nos perguntamos como seria quando suas asas nascessem. Uma fada com medo de altura? Como ela pensa voar desse modo? -Talvez alçar voo seja uma questão de escolha– ele argumentou, e queria dizer bem mais do que isso. Talvez uma metáfora sobre a decisão de liberdade estar nas mãos de cada ser vivo, e dada suas escolhas, ser levado em direção ao seu sonho, ou afastado definitivamente dele. -Hum, duvido. Uma vez com asas, é impossível resistir – ela se afastou e sentou-se. Talvez falasse por códigos. O excesso de poder pode ser tão devastador quanto à incapacidade de lutar. Driana rastejou até a beirada do desfiladeiro e ficou sentada olhando para baixo, encantada. Acheron fixou os olhos nas costas da fada. Eram lisas e delicadas. Ele apostava como levaria alguns dias, talvez poucas semanas para algum sinal de nascimento. -A pele sempre escurece antes do nascimento – ele disse de surpresa. Driana olhou-o com curiosidade no olhar. Um olhar azul profundo e encantador. -Já vi muitas fadas antes e depois do nascimento. Semanas antes a pele começa a escurecer. É algo muito sutil. Nem a própria fada nota. -E a minha pele? Como está? – Tinha uma singela esperança. -Seu momento vai demorar - ele preferiu mentir. -Eu sei.– Admitiu, cabisbaixa. Era uma linda visão. De perfil, os seios eram duas taças bonitas e adornadas por bicos claros. Cintura fina, quadris redondos na proporção adequada para uma fêmea pequena em formas e tamanho. Seus cabelos lisos, a franja sobre a testa, e aquela expressão de inocência tão grande que quase enganava seus olhos. -As asas são sinônimo de liberdade – Driana disse – mas para uma fada da clausura, as asas representam um martírio agregado a mais sofrimento. É como carregar em si um desejo palpável de liberdade. Ter asas, e jamais voar. De certa forma, ao sermos acusadas injustamente... Tivemos a chance de escapar disso. Penso se a vida de fugitiva não é mil vezes melhor do que a vida da clausura. Se não fosse a tristeza de estar apartada das minhas amigas, eu iria preferir essa vida. -E quem não preferiria? - ele foi franco. Driana sorriu. Um pouco tímida voltou para perto de Acheron e cruzou os braços sobre seu peito, pousando o queixo ali. -Deveríamos nos vestir e escalar essa rocha. Voltar para a vida real – sugeriu. -Faremos isso – ele disse desconversando. -Está furioso porque o enganei naquela noite? – Sabia muito bem a resposta. -Estou. Mas não posso culpá-la por tirar proveito quando todos sabem que não sou a criatura mais inteligente do mundo. Afinal seu dom é oposto ao meu. Eu vou força-la fisicamente sempre que tiver a chance, porque sei que é seu ponto fraco. E você me enganará sempre que puder. -Exato. Eu não fui totalmente má com você. Eu poderia ter feito coisa bem pior para me livrar da sua presença...– ficou contente com sua complacência.– Me pergunto se estaria tão calmo caso nosso envolvimento fosse possível. Acheron nada respondeu. Se eles pudessem ficar juntos? Sim, ele brigaria muito com ela por ser enganado. Mas o caso dos dois não era possível, e cada segundo era precioso. -Engana-se, fada. Estou furioso com você – ele disse empurrando-a para o lado e colocando-se entre suas pernas. Driana riu enquanto retribuía sua pegada. Apertou a carne dos ombros largos e agarrou seus cabelos bagunçados, louros e longos. -Espero que não tenha piolhos, Guardião – ela disse arfante, como uma pista. Dizia-lhe quem era. Contava-lhe de sua mentira, para que ele fingisse não saber que era Jô. Tudo seria bem mais simples desse modo. Mas Acheron não reparou no comentário, ou não entendeu. Conformada, Driana gemeu, e aceitou o corpo do elfo no seu, acompanhando-o nos movimentos longos e firmes. Acheron ficou de joelhos e manteve seus quadris imóveis enquanto a possuía sem a delicadeza que outros elfos pudessem querer empregar ao ato. Delirando nas sensações, Driana gritou por mais e mais e deixou que a selvageria de Acheron a contagiasse. Pelo menos em seus braços o mundo era cheio de cor e formas e sua mente ficava estranhamente calma e vazia de pensamentos exacerbados. Nos braços de Acheron, sentia-se uma fada comum e sem um passado de perdas e sofrimentos. Sentia-se tão feliz e segura...
O matusquela
Na metade do dia a paixão esfriou e o sol escaldante obrigou-os a se vestirem e tomarem uma decisão. Acheron sabia exatamente como fazer para tirar os dois daquele lugar, e Driana confiava em sua decisão.
-Eleonora deve estar padecendo do nascimento das asas nesse instante – ela dizia amenidades enquanto Acheron terminava de se vestir, sem suspeitar que ela própria em breve passaria pelo mesmo – Espero de todo coração que não seja muito sofrido para ela. Lora sempre foi tão sensível para a dor física. -Ela vai aguentar – ele ironizou. -Você não conhece Lora – ela disse para contrariá-lo – Jamais seria capaz de seduzir o rei. Ela é tão... Arteira. Não é uma sedutora. Ainda não. Quem sabe quando suas asas nascerem, e ela padecer do cio, possa ser sedutora. Mas agora? Não. É só uma menina ainda. Uma menina que adora estripulias e brincadeiras de meninos! Seu coração é de uma menina doce e solitária. Ela sempre foi doente de paixão pelo Guardião Egan. Sempre foi revoltada com a clausura, não nego, mas nunca pensaria em morte para livrar-se dela! Bem da verdade, sempre tentou desestimular as traquinagens que Tubã armava para tentar acabar com o risco da clausura em nossas vidas. -Mas tramavam uma fuga. Não pode negar. Tubã tramava um meio de ajudá-la a fugir. -Sim, acho que sim. Mas qual fada da clausura nunca pensou em fugir? Qual prisioneiro, seja ele escravo ou penitente da clausura, nunca sonhou com uma fuga que lhe consentisse a liberdade?
Acheron pensou em contar-lhe do seu desejo de ajudá-la. Mas era muito cedo. -Acheron– Driana levantou e andou até ele. Tocou seu antebraço, sobre o músculo saliente. O Guardião era todo coberto por músculos e o toque era delicioso.– Porque não me ajuda a encontrar minhas amigas, e aguarda junto de nós, o nascimento das asas de Lora? Deixe que seus olhos vejam a verdade. Ela terá asas idênticas as da Rainha Santha. Isso é no mínimo, um fator intrigante dado ao fato que Santha deveria ter se casado casta, pois era da clausura, e a idade de Eleonora não confere uma gestação pós-bodas com o rei. Acheron terminou de colocar a espada no cinto e olhou bem nos olhos da fada que zumbia no seu ouvido tentando convertê-lo ao status de traidor. -Se Eleonora é inocente, porque não tenta provar sua inocência? Porque foge como alguém que carrega culpa? – Ele perguntou de volta e Driana afastou-se dele. -É inútil. Sou tão tola quanto você. Quase esqueço que é um Guardião e sua cabeça está feita contra todas nós.– Disse decepcionada. Soou mais como uma ofensa. De expressão fechada, Acheron aproximou-se do paredão de rocha e curvou um pouco o corpo para baixo: -Suba nas minhas costas – ele mandou. -Isso é ultrajante – ela disse ofendida por ter que depender dele. -Você fala demais – ele disse azedo, nada delicadamente alertando-a que estava sendo chata. Sim, ela sabia disso. Acheron vivia dizendo isso, mesmo sem saber que dizia a ela. Era consolador saber que mesmo vestida de mulher e com seus predicados femininos, passada a paixão e a euforia da copula, Acheron voltava a achá-la chata. Ao menos não era induzido por seus predicados. Quanta ironia, pensou, subindo em suas costas. -Segure firme, fada sem asas – ele brincou, empurrando-a para cima, e trancando suas pernas em sua cintura. Driana agarrou em seu pescoço e aguentou os trancos da subida com o resto da dignidade que lhe restava. Acheron não pedia licença ou se desculparia por qualquer brutalidade inesperada. Afinal, a culpada de estarem ali era ela mesma! Um pouco invejosa da facilidade que o elfo tinha em escalar e salvar a si mesmo de qualquer imprevisto, enquanto ela era fraca diante dos exercícios do corpo, Driana ficou quieta, para não atrapalhá-lo em nada. Fora de perigo, restou aos dois a realidade da Floresta de Saul. Quando seus pés tocaram o chão, Driana afastou-se imediatamente. Assim, frente a frente, era tão pequena e delicada que custava crer que fosse uma criminosa. Seus olhos pediam, ou melhor, imploravam que a ajudasse. Um pedido em vão. Acheron segurou seus pulsos e ela o seguiu, sem escolha. Não tinha coragem de lutar contra ele, não depois de tê-lo visto quebrar os ossos de um elfo forte como Duque usando apenas uma das mãos! Silenciosos percorreram um bom pedaço do caminho quando foram interceptados. Driana mal acreditou no azar, ou na sorte. Era o bando de Duque, provavelmente caçando vingança pela perda do seu líder. O brado de guerra dos elfos foi acompanhado do barulho ensurdecedor de espadas se chocando. Acheron era uma fera lutando e Driana se escondeu entre as árvores, observando-o dar conta dos muitos elfos que o atacavam. Eles não eram tão grandes, nem tão fortes, mas eram capazes de atrasar o Guardião. Depois de se convencer que Acheron daria conta dessa luta, Driana aproveitou essa oportunidade para fugir. No entanto, não foi a única a fugir. Quando percebeu que a luta seria perdida, um dos elfos caçadores de recompensa correu para as árvores, e entocou-se no mato em uma fuga com segundas intenções. Driana correu pela floresta de volta para o esconderijo onde mantinha os pertences de Jô, seu disfarce. Suava, e estava sem ar quando retornou ao acampamento. A fada Jana e seus familiares estavam almoçando e ela aceitou o alimento sem dizer nada. Jana não fez perguntas sobre a noite passada fora do acampamento. Muito menos sobre o paradeiro do Segundo Guardião. Incapaz de falar espontaneamente sobre o que acontecia, tendo que lidar com a nova culpa e a preocupação por ter o abandonado sozinho em meio a luta, a fada da clausura estava quieta em seu canto, sentada sobre o tronco de uma velha árvore derrubada, lembrando-se dos momentos divididos com ele. Sobre o prazer reencontrado nos braços peludos do Guardião. Por isso, distraída não percebeu que Acheron estava de volta até ouvir seu grito. Ele gritava o nome do ajudante que o traiu. -Você! – ele gritou aproximando-se furioso, com uma expressão que facilmente indicava sua vontade estrangular o rapaz. Driana tentou sair de perto, mas ele o agarrou pela gola da roupa e arrastou para o centro do acampamento. Driana caiu de joelhos quando foi solta. -Eu sei que trama a favor da fada da clausura!– Ele acusou.– Você me enganou, garoto, e eu não tolero traidores. Por um louco segundo ela pensou em jogar em sua cara que o tratamento dado a um traidor com quem se deitasse, era completamente diferente do tratamento dispensado a um simples ajudante! Acheron não esperou resposta, agarrou seu gorro e levantou-o. Apavorada do gorro soltar de sua cabeça apesar da magia que o mantinha preso, Driana debateu-se. Acheron a tratava exatamente como faria com um empregado que o desagradasse. Olhos nos olhos, e ela baixou os seus, pavor puro dele descobrir quem era na verdade. Quisera lhe contar, mas o momento havia passado e o risco de enfurecê-lo ainda mais não a atraia nenhum um pouco! -É cúmplice das fadas fugitivas? – Ele perguntou rente a sua face, o halito quente ameaçando despertar seus instintos de fêmea. Driana fechou os olhos com força e lutou contra os pensamentos excitantes. -Não – negou com voz tremula. -É cúmplice da fada Driana? – Insistiu. -Não!– Debateu-se e foi segura com mais força, mas pelo menos seus braços estavam livres para segurar o gorro e dessa forma crer que poderia evitar uma desgraça maio. -Tem ajudado na fuga da fada da clausura!– Acheron jogou em sua cara - quer que acredite que está falando a verdade, garoto? Então comece a falar e reze para me convencer! -Eu...– Era melhor inventar uma boa história ou precisaria contar a verdade. -Não teste minha paciência, rapaz – ele disse entre dentes – Não vai querer que eu desconte em você toda a raiva que estou sentindo daquela fada dissimulada! Fale de uma vez! -O que... O que a fada fez dessa vez? – Fingiu interesse. Acheron não respondeu, os olhos verdes tão claros estavam avermelhados de ódio. Ou apenas de cansaço. Ela não saberia dizer se era adrenalina da raiva ou do esforço na recente luta. -Não me diga que a fada enganou-o outra vez! – Ela alfinetou, tocando na ferida – Eu não creio nisso! Foi seduzido outra vez por uma fada sem asas! O riso do rapazola alimentou a fogueira da raiva e Acheron largou-o no chão, afastando-se. -Como isso aconteceu? – Driana foi atrás dele. -Está envolvido no assassinato do Rei? – Acheron virou-se no susto e cobrou-lhe essa resposta. -Não! É claro que não!– Deu um passo para trás. -Sua justificativa para estar no castelo nunca me convenceu. Mentiu sobre Baltazar? -Está paranoico, Guardião – Driana pensou rápido e formulou na mente um plano elaborado demais - Eu precisava de trabalho. O lógico era procurar no castelo. Que culpa eu tenho se as fadas cometeram um crime bem nessa época? -Está mentindo outra vez. Disse que acredita na inocência delas! Tem me enlouquecido com seus discursos sobre a santidade dessas fadas assassinas! Não se faça de bobo agora! Eu quero a verdade! É claro que sim, pensou Driana. Bela hora para Acheron resolver ter um ataque de esperteza! Pelo visto ele sofria de memória seletiva. -Tenho direito a minha opinião! Eu não sou cúmplice de crime algum! Eu só...– ela fingiu pensar, mas era apenas um draminha para convencê-lo de sua inocência. E deu certo. Muita curiosidade no olhar de Acheron. -Eu tropecei com a fada aqui na Floresta de Saul.– Contou – Jana me disse que achava que tinha uma fada escondida pelos lados da cachoeira... Eu fiquei curioso – explicou– sempre fui curioso... Queria saber se era uma das fadas! Eu não contei nada por que... Por que... Não era da minha conta! -Não é da sua conta? – Mais um passo na sua direção e Driana se encolheu ainda mais. -A missão é sua! Sou pago para carregar sua armadura e cuidar dos cavalos! Fazer sua comida e lavar suas roupas! Eu não fiz nada para atrapalhar sua caçada! -Mas também não fez nada para ajudar – ele acusou. -Sim, também não fiz nada para ajudar – concordou. Acheron mediu o garoto da cabeça aos pés. Jô fugia do confronto e não olhava para seu rosto. Fugia. Como os covardes, lhe escondia algo. -Tem se deitado com a fada? Driana ficou horrorizada com a pergunta. Cínico! Era casta quando ele a tomou! -Pensei que tivesse dito que a fada era casta!– Lembrou-o disso. -Ela não é de confiança – lembrou o garoto desse detalhe– não se esqueça disso, matusquela, a fada é mentirosa, ardilosa e falsa. Fuja dela e se salve de suas manipulações. Magoada com as ofensas, maneou a cabeça concordando. Acheron se afastou movendo um dos ombros, pois durante a luta havia levado um golpe naquela região e estava levemente dolorido. Gritou uma ordem enviesada, pedindo por uma compressa. E pela urgência na voz do Guardião, Driana não considerou a possibilidade não atendê-lo. Acheron não esperava que a fada o abandonasse durante a luta. Ela não se importava com seu bem estar. A fada tinha metas. Salvar as amigas e ser livre. Simples assim. Faria de tudo para alcançar seus objetivos, até mesmo passar por cima dos sentimentos daquele Guardião que considerava tolo e burro. Driana foi cuidar de seus afazeres e Acheron fez o mesmo. Se ele não queria perceber quem era, e Driana estava convencida que Acheron se esforçava para não ver a verdade sobre Jô, não seria ela a contar. O dia passou em um silêncio contemplativo. A família de Jana se mantinha a parte, com receio do Guardião que estava tão furioso. A noite foi passada igualmente em silêncio. Driana dormiu ao relento, ou melhor, tentou dormir. Passou a noite acordada, olhos fixos na figura solitária do Guardião que sentado ao redor da fogueira, estava pensativo e contemplativo. No primeiro raio de sol da manhã seguinte, levantaram acampamento e seguiram viagem. De volta a caçada contra a fada Driana. Driana esperava que daquela vez Acheron nutrisse raiva por pouco tempo, mas quando a semana acabou e outra começou, ela começou a se preocupar de verdade. Quieto, enraivecido e magoado, o Guardião não perdia muito tempo conversando com ela. Poucas palavras de ordens diárias e não voltaria a falar com o garoto que supostamente agira pelas suas costas. No sétimo dia de silêncio forçado, o garoto Jô levou-lhe um prato de comida e quando pretendia se afastar, foi surpreendida por uma conversa inesperada. -Vamos seguir caminho para a Vila dos Desesperados. Driana pensou imediatamente em Alma. -Por quê? – Perguntou no mesmo instante. -Você sabe muito bem a razão. Eu vou ajudar o Guardião Solon a aprisionar a fada Alma. Não desperdiçarei tantos dias de privação por nada. -Mas, Acheron, seu amigo não vai se ofender? – Tentou desmotivá-lo. -De modo algum. Guardiões são leais. Vai entender a minha situação – ele satirizou. -Está bem, você quem sabe, sigo suas ordens. Apesar de não me agradar em nada ver o seu tempo perdido desse modo. -Nosso tempo – voltou a dizer com acidez, enquanto comia com apetite. -Não. Seu tempo. Eu faço o que manda e recebo por isso – disse com magoa. -Ela está por aqui? – Acheron fixou os olhos em seu ajudante. -Porque me pergunta? Eu não sei de nada! Não vejo a fada faz dias! Por sua causa, que a afugentou! -Ela está ou não rondando por aqui? – Insistiu. -Não vi a fada. Eu penso que sua ideia é um pouco... Imprópria – poupou o uso da palavra ‘estúpida’, pois estava se tornando rotineiro associar essa palavra as atitudes de Acheron. -É mesmo? – Ele estava sendo propositalmente cínico. -Veja, eu penso o seguinte - sentou-se ao lado de Acheron, e ao ser olhada com tanta raiva afastou-se um pouco, ficando a alguns palmos de distância.– Alma é uma fada que dificilmente será notada entre as criaturas diversificadas da Vila dos Desesperados. E existem muitas criaturas e muitos buracos onde procurar. O Guardião Solon vai levar muito tempo e com sua ajuda... Veja, serão dois Guardiões desperdiçando tempo. Recomendo que siga para o Vale dos Humanos e procure Joan. Ela é mais doce e menos articulada para fugir – não era uma mentira completa, pois Joan não era tão boa em fingir quanto ela própria – Sendo assim, você poderá encontrá-la e mostrar serviço. Ninguém pensará que falhou por não ter conseguido segurar a fada Driana e que é um inútil que só faz comer, dormir, beber e correr atrás de fadas... Esperava conseguir levá-lo por caminhos distantes. O Vale dos Humanos ficava a uns dez dias a cavalo. -Sim, tem razão em tudo que disse. Mas tenho uma ideia bem melhor – ele provocou. -Verdade? – Fingiu surpresa. -Eu pego a fada Alma, para que Driana saia da toca. Duas fadas da clausura, uma para cada Guardião. Solon cumprirá sua missão e eu também. Não é um plano perfeito? Sim, seria perfeito se ele não estivesse contando seu plano para o inimigo! -É impressão minha ou novamente está desconversando, levantando e se afastando emburrado. Jana a consolou e não passou despercebido a Acheron que falavam dele. Estava convencido que o garoto era cúmplice de Driana. O pequeno traidor de uma figa! Arrumaria um jeito de fazê-lo se entregar em seu crime. Por hora, manter o garoto sob suas vistas era sua melhor opção. crivado de carrapatos? – Perguntou
Estúpido gorro
Dois dias mais tarde, Driana andava no final da longa fila que se formava entre eles. Na frente, Acheron e seu cavalo. A fada Jana seguia voando baixo, mas naquele momento havia sumido entre as copas das árvores, seus irmãos e seu pai seguindo logo atrás do cavalo e em último, seguia Driana.
Exausta, mal aguentava carregar tanto peso. Estava a um passo de um desmaio quando Jana voltou rindo e entusiasma. -Vejam! Vejam! Seus gritos fizeram todos os rostos se voltarem para o alto. Driana aproveitou para deixar no chão o peso todo que carregava e protegeu os olhos com a palma da mão, pois o sol era fortíssimo naquela hora da manhã. Jana manteve-se planando a uns quatro ou cinto metros do solo, olhando e apontando para o céu. Segundos depois uma revoada surgiu. Eram fadas que voavam em grupo na direção oposta deles. Ao notar que possuíam plateia, algumas voaram baixo, exibindo suas asas para os elfos que as observavam com apreciação. Uma fada mais gordinha voo bem baixo e ofereceu uma boa imagem de suas asas vermelhas. Driana lutou contra o impulso de pegar uma pedra e acertá-la, antes que Acheron se encantasse com suas formas corpulentas. O elfo pareceu achar graça da atenção recebida e a fadinha ascendeu para o céu corada e rindo muito. Seu bando seguiu viagem e Driana permaneceu observando-as com saudosismo. Queria tanto ter suas asas! A viagem seguiu, mas ela ficou para trás. Sentou no chão por alguns instantes. Suas pernas estavam dormentes e seus pés cheios de bolhas. A túnica do menino Jô escondia as ataduras em seus antebraços, mas não podiam camuflar a dor. Sentia sede, e estava calorenta. Jana pousou os pés no chão e aproximou-se, baixando o corpo até estar na mesma altura que ela: -Deve dizer a Acheron que está machucada. Ele vai entender porque mente. É um bom elfo. Ele vai ajudá-la com as acusações de assassinato. -Não, ele não vai. E eu não sei se quero que ele ajude – admitiu – Acheron tem um lugar só seu nesse mundo. Perdeu a vida que lhe era de direito, mas encontrou um lugar onde o respeitam e precisam dele. Se me apoiar, isso tudo será perdido. Prefiro a culpa de abusar de sua burrice, do que a culpa de abusar de sua bondade. -Não seria bondade se ele gosta de você. É uma doação mutua de sentimentos.– Jana argumentou. -Acha mesmo? Você não viu o jeito dele para a fada oferecida a um segundo atrás? – Disse irônica, levantando e obrigando o corpo a carregar o saco de couro com a armadura– Acheron quer a fada Driana. Só isso. É um desafio. Quando souber onde me achar, o encanto acaba. Pesarosa dessa verdade, Driana voltou a andar. -Eu posso carrega-la um pouco – Jana ofereceu, voltando a voar baixo. -Em absoluto.– negou – Melhor não ter que lidar com aquilo que me é negado. Amargurada pelas asas que se recusavam a nascer, seguiu a pé por mais algumas horas. Quando Acheron anunciou que parariam para comer e descansar, ela quase chorou de alivio. Precisava achar um lugar para descansar algumas horas, mas primeiro faria a comida e serviria a todos. Jana bem que tentou ajuda-la, mas os gritos de Acheron impediram. Ele estava com raiva de Jô e o punia fazendo-o trabalhar como um condenado. Mais uma semana daquele jeito, e Driana iria preferir se entregar de bom grado para a Rainha Santha. Acheron havia assumido uma caminhada forte, passo rápido, que os elfos seguiam sem problema, e a fada também, com suas asas e presteza. A única pessoa abalada era o rapaz Jô. Quando todos estavam satisfeitos, e saciados, ela deitou no mato, escondida dos olhos de Acheron e tentou descansar um momento. Pretendia um rápido descanso, mas foi tomada de um sono profundo. Quando Acheron decidiu seguir viagem não encontrou o garoto. Só lhe faltava essa! Jô ter fugido para alertar Driana de seus planos! Jô despertou assustadíssima com os gritos de Acheron chamando seu nome. Desesperada em irrita-lo ainda mais levantou, e correu de volta. Sua expressão de sono, não deixava dúvidas de onde estivera. A bochecha amassada e marcada pelo mato e seus olhos carregados de olheiras era um indicio que pensava mal sobre ele. Orgulho não permitiu a Acheron perdoar o garoto e permitirlhe um pouco de descanso. Aflita em agrada-lo, Driana correu para pegar a armadura e seguir a comitiva. Alguns passos mais tarde, ela coçou o espaço atrás da orelha, entre o cabelo e o ouvido. A comichão passou e ela seguiu andando. Desatenta não sentiu que algo pequeno e ardiloso escondia-se na gola de sua roupa. O pequeno ser retomou seu lugar atrás da orelha, protegido pelo gorro de duende e a orelha e voltou a picar a pele, sugando o sangue da fada. Era lento e cuidadoso. De corpo alongado, e fino, lembrava muito um pequeno graveto de árvore. Cabeça achatada e patas longas e afiadas, que se prendiam em pelos e não na carne. Seu único dente, no entanto, crava-se na pele, e sugava o sangue do seu hospedeiro. Substâncias anestésicas impediam que sentisse a dor. Vez ou outra Driana sentia coceira e voltava a coçar o mesmo lugar. Mas era só isso. A conversa entre Acheron e os outros elfos a distraiu por algum tempo. Quase se esqueceu da caminhada penosa ouvindo os causos engraçados contados pelos elfos. Escurecia quando eles pararam novamente. Sem pensar muito, Driana cumpriu suas obrigações e voltou a deitar no primeiro canto que encontrou. Adormeceu pesadamente. Acheron fingiu não perceber a exaustão do garoto. Ele era fingido e deveria ser apenas uma manobra para suavizar e manipular seus sentimentos. Desconfiando dele, Acheron aproximou-se e cutucou-o com o pé, na altura das canelas. O garoto sequer se moveu. Estava apagado de exaustão. Culpado, Acheron tentou puxar aquele estúpido gorro, mas não soltou da cabeça de Jô. Analisando assim de perto as feições do menino, teve certeza que lhe eram familiares aqueles traços. Conhecia alguém parecido com ele. Mas quem seria? Talvez algum irmão de Guardião? Solon possuía doze irmãos. Talvez um dos garotos que vivia correndo atrás do irmão pelos campos de treinamento? Sim, era possível. Desistiu de sumir com o gorro e afastou-se. Driana acordou e olhou em volta, com a sensação que era observada de perto. A exaustão obrigou-a a voltar a dormir. Não conseguia ficar acordada. Quando escureceu, um duende minúsculo andou pelo acampamento e aproximou-se. Com cuidado para não ser visto, retirou de sua pele o pequeno Schill, inseto chupador de sangue de fada, e o fez cuspir todo o conteúdo armazenado em seu estômago dentro de um cantil, apertando seu corpo fino e de carcaça espera. Então, recolocou-o no espaço atrás da orelha da fada fugitiva, e olhou para a escuridão da noite. Ninguém notou nada diferente, e quando amanheceu, Driana e Acheron seguiram viagem outra vez, sem suspeitar de nada. É claro que ele estava preocupado com o silêncio vindo do ajudante. Mesmo nos piores momentos Jô era incapaz de manter a boca fechada. A travessia de um córrego trouxe maior desconfiança. Não reclamou de seu medo de água, ou fez qualquer tipo de brincadeira ofensiva sobre Acheron necessitar de um banho. Tão pouco perguntou por que mudava o curso da travessia. Acheron suspeitava estar sendo seguido. A mudança do trajeto era uma tentativa vã de despistar quem estivesse seguindo-os e evitar um novo confronto. Não fugia da luta, pelo contrário, com a raiva que guardava dentro si poderia até apreciar um pouco de atividade física pesada, mas pensava na família de elfos que o acompanhava. Dois eram apenas meninos sem experiência de luta. Melhor evitar confrontos. Mesmo assim, há exatos dois dias que a suspeita crescia. Com a inteligência e sagacidade do menino, também teria notado. Mas não, estava recluso em seus próprios pensamentos. Pálido, abatido, calado. Cansado de supor o que se passava na mente do garoto, Acheron apeou do cavalo e ordenou: -Deixe a armadura no chão.– Mandou com voz firme. Jô o obedeceu, com olhos que não se fixavam em imagem alguma. Driana não conseguia pensar com clareza. A mente vazia, apática, esquálida. Aproveitando o corego de águas cristalinas e rasas, Jana despiu a túnica e se divertiu na água. Driana queria saber se Acheron estaria observando a fada com desejo ou não, mas não teve energia para procurar por ele, e analisar sua expressão. Na verdade, mal teve energia para arrastar-se para o chão, encostar-se no saco de couro com a armadura, usando-o como escora e fechar os olhos com o intuito de tirar um cochilo. Foi despertada por um chute nada gentil na canela. -Levante, quero falar com você – Acheron mandou irritado. Sempre irritado. O pensamento infame de ressuscitar a fada Driana para ver se ao menos acalmava seus brios e ele relaxava um pouco. Mas talvez, esse fosse seu desejo secreto e não necessidade do Guardião. Conseguiu ficar de pé, mas cambaleou. Acheron agarrou seu ombro e a manteve em pé. -O que você tem? – perguntou tentando ver em seus olhos avermelhados a causa de tanto cansaço. -Nada, estou ótima – esqueceu que era um menino, maneou a cabeça e se corrigiu – estou ótimo. Deixe-me – puxou o ombro, mas teria escorregado se não fosse agarrada pelo braço. -Estou vendo – ele ironizou – tem visto a fada fugitiva pelas minhas costas? É isso? Ela está fazendo isso com você? -Hum, quanta imaginação.– ela sussurrou para si mesma, mas ele ouviu– uma pena que não use tanta capacidade para enxergar o óbvio. -Do que está falando? – ele agarrou seu ombro e Driana ergueu os olhos. -Eu não sei. Acheron, eu não sei– foi sincera, os joelhos se recusando a mantê-la de pé. Acheron deixou-a escorregar e quando Jô ficou deitado, coçando freneticamente atrás de uma das orelhas, ele soube o que era. O palavrão que escapou da boca do Guardião era de longe um dos mais feios que tivera a chance de ouvir na sua vida. Ele afastou sua mão e afastou a orelha pequena, redonda e delicada. Não era uma orelha de elfo, mas ele não reparou isso naquele momento. A pele estava em carne viva de tanto coçar. Uma gosma esverdeada misturava-se ao ferimento e ele sabia o que procurar. Tateou a gola da túnica e quando seus dedos roçaram a criatura, ela fugiu, correndo pelo corpo de Driana. Acheron interceptou o fugitivo quando descia pela perna em direção à bota. -Eu não acredito nisso! – Ele segurou o bicho e Driana mal conseguiu ver o que era.– Onde está? – Acheron levantou gritando – Vocês me ajudem a encontrá-lo! Ao exibir a criatura, os elfos machos já sabiam a que se referia. Driana não se manteve acordada tempo bastante para vê-los empunharem espadas e correrem pela floresta, nos arredores do acampamento, em busca do duende. Era necessário que estivesse perto para manter o domínio sobre o Schill. Jana correu em sua direção e a acudiu. A sensação de que horas haviam passado era tão forte que ao despertar Jô quis muito, mas muito estar na caverna ou na beira daquele desfiladeiro, acordando de uma noite nos braços de Acheron. Seu sono confuso fora permeado de sonhos repletos da presença avassaladora do Guardião e das lembranças do que dividiram juntos. Sonhos inconfessáveis de uma fada que lutava contra a paixão e os sentimentos poderosos que ele despertou em seu coração tão castigado pela vida.
As fadas da clausura
-Jô acordou! – Driana ouviu a voz empolgada de Jana e olhou em torno até enxergar a fada perto de onde estava deitada. -Que susto, Driana– ela sussurrou ante que o Guardião pudesse ouvir– Você nos assustou muito! -Eu não sei do que fala...– Disse tensa, e triste, sem saber por que desses sentimentos estarem abatendo-a. -Falamos disso – Acheron exibiu dentro de um vidro um duende de tamanho mínimo, que facilmente caberia na palma de sua mão. -Um duende? – ficou incrédula. – Tire isso daqui, ele fede!– Reclamou do odor insuportável. -Esse duende usou um Schill para drenar seu sangue. Por isso estava doente. -Eu não estava doente – disse surpresa – eu não percebi nada... -E nem poderia. Eu mesmo já tive o desprazer de ter um desses no meu encalço – Acheron entregou o vidro para Jana, que se afastou.– Sabe o que é um Schill? -Sim– disse observando-o sentar-se perto dela. Tão mais amistoso e simpático... -São criaturas que drenam sangue e outros fluídos corporais. Depende da criatura a ser atacada. Escondem-se no corpo, e ficam por dias alimentando-se da vítima, algumas vezes partem antes de causar danos, outras vezes são fatais. Porque isso estava em mim? -Esses duendes que vivem pela Floresta de Saul alimentam-se dos dons das fadas. Drenam o sangue e acreditam que parte da magia da fada passa a habitar, temporariamente, o corpo que o sorver. -Isso é ridículo –ela disse chocada – Impossível e ridículo. -Não nos cabe questionar, são criaturas muito antigas. Estão vivas e andando por aí há séculos. Quem garante que estão erradas?– Ele disse cordial. -Estão errados sim porque eu não sou uma fada! Não tenho dons! Sou um elfo! Um macho!– Ela defendeu-se. Sua voz soou um tanto patética. Era difícil crer nessa afirmação. Era óbvio que Acheron deveria ter notado que era uma fada, nem mesmo ele continuaria a se auto enganar depois disso! -Não é uma fada, mas tem uma grande inteligência. É minha única explicação para tanto interesse.– ele disse com pesar. Driana fechou os olhos, lutando para não gritar com Acheron. Ele era obscenamente bonito, e burro na mesma proporção. Só podia ser isso! -Sim, tem razão – preferiu concordar logo e encerar essa questão – Eu preciso levantar e ajudar... Podemos seguir viagem se você quiser... -Não. Esteve dormindo por todo um dia e precisa se recuperar. Além do mais...- Ele parou o que falar e olhou bem para Jô – Tenho esperança que sua comparsa saia da toca para saber se está bem. Acheron deveria estar tentando alcançar algum recorde. Driana lutou contra o impulso de gritar com ele até fazê-lo ver a verdade que estava gritando diante dele. -Onde foi que essa coisa estava me comendo viva? – perguntou mudando drasticamente de assunto. -Atrás da orelha esquerda. Diga-se de passagem, tem orelhas de fada – ele sorriu debochado, achando estar mexendo com os brios do garoto. Porque será, pensou Driana. Qual a razão dela ter orelhas de fada? -E com você? Disse que já teve o desprazer de ter um desses o atacando. Onde estava quando encontrou? Acheron sorriu da lembrança. -Foi o Primeiro Guardião Egan quem notou. Eu estava bem, mas o bicho estava tão gordo e pesado que ficou visível por um momento e Egan reparou. Estava... No meu pescoço entre os cabelos. Eu nunca teria notado. Driana sorriu, estava cansada, mas sorriu. Grandão como era Acheron deveria ter sido um banquete para a criatura. -Porque estava em você? Será que o confundiu com uma fada? – Arreliou, para vê-lo sorrir. -Não. Mas não sou dessa terra. Alguns elfos, como os familiares de Jana, que são de longe, possuem características diferentes e atraentes para quem vive de parasitar os outros – ele justificou. -E o duende? O que fará com ele? Sabe que se aprisionar um duende, estará adquirindo uma guerra com todos os demais, não sabe? -Sim, por isso vou soltá-lo antes de deixarmos a Floresta de Saul. Por hora, ele permanecerá seguro onde está. -Sinto muito estar atrasando-o, Acheron – ela foi sincera. -Mentiroso. Está feliz em me atrasar. Sei que torce pela fada da clausura.– Ele reclamou. Driana apoiou o corpo na manta onde estava deitada, embaixo de uma árvore, e eles deveriam tê-la colocado ali para pegar um pouco de ar e se proteger do calor. Acheron não pareceu disposto a se afastar. Era bom ter sua companhia. Sua presença, sua afeição. -Não nego que seja verdade, torço pela fada conseguir sua liberdade. E você? Não torce pela fada? São amantes, não são? Não lhe tem um pouco de carinho? Acheron sabia que o garoto queria arrancar-lhe informações para oferecer a fada. Assim, ela teria mais informações sobre ele e poderia controlá-lo com facilidade. -O que tem de errado com um pouco de atraso? – Jô disse ao notar que ele não responderia sua pergunta.– Duvido que outro Guardião tenha conseguido chegar perto das fadas em tão pouco tempo como você fez – enalteceu-o propositalmente – Você disse que acha que Alma está na Vila dos Desesperados... Sendo assim Solon deve estar na estrada ou ter chegado a bem pouco tempo por lá. Talvez nem tenha localizado a fada ainda. Para onde mesmo disse que a fada Joan foi levada? -Eu não disse nada sobre isso. Pare de tentar arrancar informações de mim– ele ralhou, mas sem tanta brabeza – Eu gosto de você, garoto. É um bom ajudante, aprecio sua inteligência e gostaria de tê-lo perto de mim em viagens futuras, ou mesmo cuidando das minhas coisas no Castelo... Mas precisa ser leal. Eu não posso confiar em um mentiroso. -Despende tratamento diferenciado para a fada da clausura. Ela lhe mentiu, traiu e enganou e mesmo assim tornou a passar a noite com ela!– Acusou, duvidando do seu senso de lealdade. -Entre fêmeas e machos é diferente. É da natureza das fadas um pouco de mentira. Nunca conheci uma fada que falasse a verdade cegamente. Sempre manipuladoras e dispostas a esconder seus segredos. É parte da natureza de uma fêmea. É parte do seu charme, mas entre amigos, entre elfos, isso não cabe. Ou a verdade, ou nada. Driana estava chocada com seu machismo. Ou melhor, não conseguia classificar seu ponto de vista como puro machismo ou como um modo realista de ver a diferença entre relações emocionais. -Perdoaria a fada se ela fosse inocentada? – perguntou no susto, decidindo que a relação de Acheron com a fada da clausura, ela mesma, era muito mais importante do que a relação de Acheron com o garoto Jô, disfarce que mantinha erguido graças a burrice inacreditável do Segundo Guardião. -Existem muitas fadas no mundo, Jô– ele disse com pessimismo na voz. Não queria de modo algum fornecer-lhe informações que pudesse enaltecer o ego da fada fujona – Não perdoo quem me engana. Relevo, mas não perdoo. Se a fada for inocentada, será livre. Mas não terá meu apreço por conta das mentiras e do modo vil como me enganou duas vezes. -Mas... Mas você também agiu de modo vil! Você deflorou uma fada casta da clausura! Seus atos não devem ser condenados ou ao menos redimidos? Acheron olhou para o garoto com um meio sorriso sem vergonha na face ao dizer: -Se ela provar que fui eu... -Como assim? Você negaria se ela o deletasse por seu crime contra as regras do Ministério do Rei? – Ficou chocada com essa nova informação sobre o Guardião. -Fica surpreso que eu faça isso depois de tudo que ela me fez? Nunca ouviu a expressão dente por dente, olho por olho? – Ele estava bastante satisfeito em maldizer a fada fugitiva. -Não, eu nunca ouvi essa expressão vinda da boca de alguém que considero cheio de virtudes. Estou surpreso.– Jô era a mais pura expressão da inocência. -É curioso o modo como reverte às palavras sempre a seu favor – Acheron revidou – Eu me pergunto se tem parentesco com a fada e não quer confessar. -Parentesco? – Driana sentiu o coração falhar uma batida. -São parecidos fisicamente. Eu notei isso. E sua mentira sobre o duende Baltazar não me desceu, além disso os dois tem esse hábito de manipular as palavras a seu favor e contar boas histórias para boi dormir – ele foi franco. Gelada por dentro, Driana sabia como escapar desse confronto. Era só abusar mais um pouco do desejo de acreditar que Acheron nutria. -É possível. Ela é órfã. Eu também. Eu simpatizo com a fada e sua causa. Não pode aceitar isso? – Estava cansada e abatida, quase desistindo de conversar e aproveitar a presença do elfo. -Eu construí uma choupana na Floresta dos Desejos – ele disse depois de um curto silêncio. Driana estava quase adormecendo diante do silêncio e abriu os olhos surpresa. -Você? Por que faria isso? -Não sei. Eu pensei que seria bom ter um lugar só meu, na floresta. Gosto da vida livre, longe de paredes de pedras – ele disse dando de ombros. -Eu notei que gosta da vida ao ar livre. É algo natural da sua raça? -Sim, acho que sim. Sou melhor na natureza, do que entre as pessoas.– Admitiu. -E essa casinha... Onde fica? – Perguntou curiosa. -É segredo. Eu poderia contar se você prometesse convencer a fada da clausura a me encontrar lá. Driana sentiu o coração saltar no peito. Era um convite tão tentador... -Eu não posso. Ela não me procura mais. Não sei onde está e não sei se poderia confiar em você. Poderia ir atrás de mim, e me usar para chegar à fada. -Sim, eu poderia fazer isso.– Ele concordou. -Pretende viver nessa casa um dia? – Sua voz era baixa, quase murmurada. -Sim, quem sabe um dia quando minha armadura aceitar outro Guardião. Quando minha missão tiver acabado e não servir mais para proteger os desvalidos. Acho que seria uma vida confortável. -Não pensa em voltar para sua casa? Para seu verdadeiro lar? O lugar onde nasceu? Acheron pareceu tão pensativo que Driana sentiu pena. Queria muito apagar a tristeza dos olhos verdes do elfo. Apagar a magoa, a dor, e a saudade. -Eu não poderia viver naquele lugar outra vez.– Ele admitiu. -Eu não falo de morar. Falo em visitar, saber como estão às pessoas. Se a vida seguiu seu rumo e o lugar evoluiu ou se estão novamente nas trevas de uma guerra. Falo de reencontrar seu passado e fazer as pazes com ele. Seguir em frente. Acheron não disse sim, muito menos disse não. Pela expressão concentrada, soube que ele pensava sobre isso. Refletia sobre suas palavras e provavelmente chegava à consideração de que o garoto Jô estava coberto de razão. -Quem sabe um dia – ele deixou a dúvida no ar. Driana desejou dizer-lhe que um dia, ela gostaria de acompanhá-lo nesta viagem. Conhecer sua gente, o lugar onde viveu e ajuda-lo a esquecer desse passado sombrio. Que neste dia, esperava ajeitar-se ao seu lado e viver feliz sendo esposa de Guardião. E quando a armadura não mais lhe pertencesse, iria feliz viver no meio da Floresta dos Desejos, cuidando dele e de sua vida. Poderia se imaginar lendo, escrevendo e acalmando sua mente aguçada com coisas simples como cuidar de seu companheiro e dos filhos que tivessem. Seriam lindas crias, pensou Driana. Acheron era tão alto, tão louro, tão bonito em suas formas selvagens. Será que uma cria dos dois herdaria seus traços? Por certo ela torceria que herdasse uma parcela de sua inteligência, pois nesse aspecto não era bom contar com a genética de Acheron. Encobriu um sorriso com um bocejo e Acheron lhe cutucou com o braço antes de dizer: -Chega de conversa. Descanse. Amanhã seguiremos nossa jornada. -Boa noite, Acheron – ela disse com voz melosa, mas ele não reparou. Perdido em seus pensamentos não reparou que o menino, que na verdade era uma fada, pousou os olhos sobre ele, sonhadora e apaixonada, suspirando contente por ele querer ficar perto dela, mesmo sem saber que era a fêmea que tirava sua paz e o fazia de bobo sempre que surgia a oportunidade...
Elfos Guardiões
A Floresta de Saul estava anormalmente silenciosa, quando chegaram a fronteira com dois lados distintos. Um caminho trilho, que magicamente exigia passagem. Acheron carregava consigo um pouco de pó de ouro, o único modo de fazer os caminhos se revelarem. Se fosse para um lado, chegaria à Floresta dos Desejos, se fosse para o outro chegaria na Vila dos Desesperados. Casa escolhesse errado, o único modo de voltar, seria atravessando o Deserto das Areias Vermelhas, ou ter mais do pó de ouro para revelar os caminhos de volta. Driana observou-o segurar o saco com pó de ouro. Acheron pegou um pouco do conteúdo em sua mão e lhe entregou o saco. Driana foi rápida em retirar um punhado e esconder no bolso da calça. Acheron espalhou no chão o pó e aos pouco a mágica começou a acontecer. A mata se abriu, e a bifurcação foi apresentada diante dos olhos de todos. Driana aproveitou que um dos irmãos de Jana, o mais novo deles, estava maravilhado pela visão, e se apressava a correr de um lado ao outro, camuflando-se entre a vegetação colorida, para ficar em seu caminho e propositalmente se chocar contra ele, largando o saco com pó de ouro no chão. O pó rapidamente evaporou, sendo tragado pela mágica do lugar. -Não foi minha culpa! – Ela defendeu-se para Acheron que ficou na dúvida se acreditava ou não. -Eu não acredito nisso. Você tem sorte que eu conheço muito bem essa região e sei para onde devemos ir. Caso contrário, estaríamos em um momento de tensão – ele disse pensativo. -Oh, mas eu também sei para onde ir – O menino Jô disse com entusiasmo – Veja, esse caminho leva diretamente para a Vila dos Desesperados – apontou o caminho errado. Antes que Acheron pudesse dizer que estava errado, Jô puxava Jana pela mão e os dois corriam para o caminho. Eles passaram pela proteção mágica, uma barreira invisível, e acenaram para eles do outro lado, rindo. -Mas que garoto dos infernos!– Acheron gritou furioso – Este é o caminho errado, seu filho de uma fada desnaturada! Esse é o caminho para a Floresta dos Desejos! Era impossível voltar. A mágica do lugar impedia o retorno. Mesmo que Acheron pudesse abrir mão de toda sua integridade e abandonar o garoto a própria sorte, havia a fada Jana e seus familiares, que nunca permitiriam que tal coisa acontecesse, pois eram guiados por forte senso de dever moral. Eles confiavam na ajuda e proteção do Guardião. E o elfo sorridente que lhe acenava do outro lado da barreira invisível, contente de seu feito, havia tomado o cuidado de levar consigo sua armadura. Driana sabia muito bem que a expressão de fúria de Acheron não era mera indignação. Ele vinha sendo calmo e menos bruto com o garoto Jô em consideração a sua recuperação física. Enganá-lo de modo tão simplista era uma ofensa imperdoável. Rindo dele, e se parabenizando secretamente pela ideia perfeita, totalmente improvisada, Driana e Jana cochichavam entre si sobre a lerdeza do Guardião. Jana concordava em ajudá-la e quando tudo acabasse e fosse livre, Driana gostaria de manter uma amizade com a fada. Sendo obrigado a decidir pelo caminho errado, Acheron e os outros elfos atravessaram a barreira mágica e Jô tentou fugir, mas foi alcançado por Acheron. Ele agarrou-o pela orelha, numa torção típica dos elfos mais velhos em elfos relapsos e muito jovens. -Eu sei que fez por querer– avisou - Mais uma dessas e eu juro que não vou perdoar. Sinceramente? Driana nem ligava mais para suas ameaças em relação ao garoto Jô. Acheron ameaçava e não cumpria totalmente afeiçoado pelo menino. Queria era saber se ele teria metade desse carinho pela fada Driana, e não pelo garoto Jô. Essa era uma dúvida interessante. -Sinto muito, foi sem querer – infelizmente não conseguiu conter o riso, apesar da dor. Acheron ainda balançou um pouco a orelha do elfo, para que ele ficasse dolorido um bom tempo. Então o soltou e seguiu andando, sem olhar para trás. -Porque não nos leva para sua cabana? – Ela correu atrás ele, sendo tão irritante quanto possível. -Porque eu vou dar a volta na Floresta dos Desejos, atravessar todo o maldito Desertos das Areias Vermelhas e fazer tudo isso antes que a fada dissimulada e fugitiva tenha a chance de me enganar outra vez.– Ele disse mal humorado. -Mas eu pensei que você quisesse vê-la outra vez... Na cabana...– insinuou corando. Acheron não notou, pois o entendimento de que talvez o garoto houvesse falado com a fada pelas suas costas e ela estivesse indo na mesma direção foi mais importante do que a reação exagerada do seu ajudante. Engolindo o desejo, em nome do orgulho, disse: -Não tenho interesse. E daqui para frente, você anda do meu lado. Não vou permitir que me atrase mais uma vez! Ofendida em sua vaidade, Driana obedeceu, satisfeita consigo mesma por ter conseguido atrasá-lo pela milésima vez desde que saíram do castelo. Ou Acheron era muito fácil de atrasar, ou estava sem pressa nenhuma para chegar ao destino desejado. As vezes Driana duvidava da decisão do Guardião a cerca de sua missão. Seria preciso no mínimo mais uma semana para que conseguisse voltar para o caminho desejado. Tempo suficiente para conseguir armar alguma alternativa para atrasá-lo ainda mais. Seu plano inicial de garantir que Acheron não se dedicasse a caçada não estava surtindo o efeito desejado, e era um plano exercido de modo desajeitado, mas no fim, conseguia causar problemas e era o que importava. Pensativa, Driana observou-o atentamente, pensando em como a vida é complicada. A pouco mais de uma semana ela jamais poderia dizer que passaria uma noite nos braços do Segundo Guardião, ou de qualquer elfo, sempre avessa ao interesse masculino, quanto mais que estaria ansiosa para repetir o feito. Seus pensamentos românticos foram drasticamente interrompidos pela conversa entre Acheron e a família de Jana. Eles pretendiam se separar nas proximidades da Vila dos Desesperados. Jana era apenas uma fada, mas de um em um, poderia levar seus familiares para a Vila, sem a necessidade de penar no Deserto das Areias Vermelhas. Eles discutiam amavelmente sobre Acheron aceitar ajuda ou não. Pelo olhar enviesado direcionado a Jô e a resposta de má vontade que Acheron deu, ela soube que ele pretendia sim continuar na Floresta dos Desejos, provavelmente na esperança de atrair a fada da clausura. -Tenho um lugar para ir antes de partir – Acheron dizia ao pai de Jana – Faz algum tempo que não percorro essa floresta, mas ainda me lembro de um lugar bastante agradável onde posso conseguir companhia. Driana tropeçou em uma pedra, tamanha desatenção provocada pelo comentário de Acheron. Ele teria coragem de deitar-se com outra fada estando envolvido com ela? Sua mente lógica gritava que sim, pois não havia nada entre eles, além de rancor e desencontros. No entanto, prevalecia seu coração, gritando que arrancaria os olhos de qualquer fada que ousasse aproximar-se dele! -Uma vez ouvi que um elfo ficou em apuros nessa floresta – o irmão mais jovem de Jana disse observando em volta desconfiado. Acheron sorriu pensativo. -Sim, os crédulos veem magia em todo lugar – ele disse em uma clara provocação, pois Jô havia desmascarado a mágica aparente da Floresta dos Dois Dias, mas não quisera lhe contar o grande segredo. -Um pouco de ilusão faz bem para os olhos, ouvidos e sentidos – disse o irmão de Jana – Mas creio na magia dessa floresta. Aquele que tiver um desejo verdadeiramente intenso poderá ser recompensado com sua realização. Há quem tenha dito ter obtido êxito em seu pedido. Driana ouviu e baixou a cabeça. Sua mente lógica sabia que era impossível. Havia muita magia na Floresta, mas nada no mundo poderia realizar um desejo, pois normalmente os desejos são dúbios e difíceis de decifrar. Sendo assim a possibilidade era nula. No entanto, sentiu um aperto no peito imaginando como seria perfeito poder realizar seu desejo mais intenso. Mas qual seria seu verdadeiro desejo? Salvar a si mesma e as suas amigas, inocentando-as das acusações? A liberdade e a certeza de jamais correr o risco de ser aprisionada na clausura do Ministério do Rei? A chance de viver um grande amor ao lado de Acheron? Ou ainda, aquele desejo mais íntimo e inconfessável, que a acompanhava desde a infância? O desejo de conhecer sua mãe e seu pai, saber se possuía irmãos, se era lembrada com saudade por alguém que não pode criá-la ou que talvez, sequer saiba de seu paradeiro? Suas amigas dividiam com ela esse mesmo desejo. Essa mesma dor que apenas um órfão compreende. Triste, ela seguiu ouvindo a conversa. Jana a cutucou em determinado momento, quando Acheron pareceu distraído. Ela pousou os pés no chão e passou a andar, para conseguir acompanhar seu ritmo de caminhada e poder conversar: -Estou nervosa.– Ela disse mordendo o lábio. -Porque, Jana? -Porque vamos nos separar do Guardião – ela olhou para Acheron – ele me dá segurança. -Acheron faz isso... Ele faz com que todos a sua volta sintam-se seguros – disse baixinho, para que ele não ouvisse – Ficarão na Vila dos Desesperados por muito tempo? -Acho que não. Meu pai quer voltar para casa. E nossa casa fica muito longe.– Ela disse triste. -Eu gostaria de vê-la outra vez – Driana admitiu – Talvez não possa me despedir como gostaria...– Pediu desculpas por isso. -Eu sei. Mantenha-se livre, Driana, não abra mão da liberdade– Jana disse baixinho– E lembre-se, além do horizonte, voe sempre para o sul, e terá uma amiga para lhe dar abrigo. Driana quis lhe dizer que era agradecida por isso. Mas que não poderia jamais virar as costas para suas amigas. Mas quem sabe... Sua estratégia estivesse errada? Não deveria impedir o Guardião de encontra-las, e sim, juntá-las e abriga-las enquanto as asas de todas não nascessem. Então, poderiam todas voar para um lugar longe, onde não houvesse clausura ou acusações de assassinato! Esses pensamentos despertaram uma nova esperança dentro do coração de Driana, que estendeu a mão e apertou a de Jana. -Eu tive uma irmã – Jana confidenciou – não sei onde ela está, mas vou dizer ao meu coração, que ela seria como você. E por isso, a amo como se fosse meu sangue. -O que aconteceu com ela? – Perguntou baixinho, emocionada. -Um caçador de recompensa sequestrou-a logo depois do nascimento. Óbvio, que para vendê-la por um alto preço. Isso faz muitos anos. Não há pistas de seu paradeiro, mas meu pai tem devotado sua vida para procurá-la. Por isso estávamos tão longe de casa. Foi um erro ter vindo para essa região, mas havia uma forte pista sobre seu paradeiro que nos trouxe para esses lados. É tudo muito perigoso por aqui. E sei que não a encontraríamos com vida. Permanecer tantos meses morando por essas terras, não foi perca de tempo, apesar de tudo que me aconteceu, pude descobrir o que é o sentimento de ter uma irmã. É o que sinto por você, Driana. A fada da clausura parou e apertou sua mão. Queria abraçá-la e dizer que lastimava muito sua partida. Ambas olharam para Acheron e não precisaram de palavras para dizer que não poderiam falar sem levantar suspeitas. Seguiram atrás dos elfos, Driana tentando ignorar a conversa e fixar-se em seus pensamentos, mas era impossível ignorar a presença de Acheron. A roupa e a postura adotada para fingir ser o garoto Jô não mascarava seu interior e não a impedia de reparar no elfo, e sentir seu cheiro. Inebriada pela presença dele, Driana perdeu a noção dos próprios pensamentos, focando-se totalmente nas lembranças de estar em seus braços perdida de paixão. Talvez por causa disso, de sua distração, não percebeu que Acheron estava incomodado com algo, até que ele parou e disse: -Voe acima das árvores, fada – ele disse para Jana – Veja se encontra algo estranho entre as árvores. -O que devo procurar? – Ela perguntou imediatamente interessada em ajuda-lo. -Movimento de outros elfos. Sinto cheiro de carniça.Voe alto, para que não possam abatêla com flechas – ele disse incomodado. Driana sabia que ele era um exímio farejador. Mais do que isso, sua experiência de natureza, de caçador, o fazia prever o perigo e sentir a aproximação de uma luta. Jana alçou voo, suas asas batendo graciosamente no ar. Driana acompanhou-a com olhos atentos, admirando a beleza do revoar. Reconheceu a tensão nas formas do Guardião e aproximou-se, perguntando: -O que está acontecendo? -Estamos sendo seguidos há alguns dias – ele avisou.– Achei que fosse culpa da Floresta de Saul. No começo, pensei ser alguma criatura reclusa da floresta nos monitorando, depois achei que fossem os duendes, mas libertei o prisioneiro e mesmo assim continuamos sendo seguidos – ele explicou. -Fez bem ao pensar que poderia ser os seres da floresta. Eles seguem os visitantes, mesmo que não ofereçam risco. Zelam por seus lares, sempre na defensiva.– Ela concordou. -Não tem ideia das criaturas que já vi e enfrentei na Floresta de Saul.– Acheron comentou – Continuamos sendo seguidos, e as criaturas de Saul não são capazes de passar pela proteção da Floresta dos desejos. Não conheço nenhuma raça que se ariscaria a andar por esses lados sem necessidade de defender seu território ou sua gente. -Acha que são elfos? – Perguntou, sua mente logo imaginando o que seria. -Sim, mas não consigo entender quem são. A fada Jana fugiu de sequestradores, mas isso faz muitos dias e eles não saberiam que estamos aqui.– Ele divagou. -O caçador... Duque. Você o enfrentou e venceu, não foi? – Perguntou parando de andar – Ele foi eliminado. Mas o resto do bando? -Meia dúzia de elfos sem um líder? Não teriam coragem para me enfrentar por tão pouco, muito menos vingança. -Vingança? Tem razão. Esses elfos não entendem nada sobre lealdade ou sentimento de apego. – Driana concordou, usando a mão para fazer sombra para os olhos, enquanto tentava enxergar no céu o retorno da fada Jana – E a fada Driana? Eles podem estar atrás dela. Duque sabia onde ela estava, não é? Talvez eles não tenham desistido – disse pensativa, considerando se estaria ou não em risco mais uma vez. -Era só o que me faltava - ele reclamou – não vou enfrentar uma nova luta por causa dessa fada dissimulada. O garoto Jô olhou para ele com um olhar de indagação que duvidava de sua convicção. Eles poderiam ter engatado uma discussão sobre ideologia, se um estrondo não houvesse interrompido a linha de pensamento. A fada Jana revoava na direção deles com desespero na face. No céu, logo atrás dela uma bola de fogo vinha em sua direção. Jana gritava, e tentou fugir, e somente conseguiu, pois seu irmão mirou uma flecha no alvo, livrando-a do confronto. A bola de fogo revelou-se uma fada de pele rosada, cabelos vermelhos, e roupas de couro. Asas amareladas e com as pontas incendiadas em fogo puro. A fada planou no ar, e de seus olhos, labaredas de fogo surgiram enquanto suas mãos se tornaram repletas de fogo. Os irmãos de Jana usaram suas flechas para tentar abatê-la, e Driana foi levada para um canto, pois Acheron a puxou pelo braço. Empurrando-a atrás de algumas moitas. De olhos arregalados, Driana torceu para que alguma das flechas acertasse a fada. O fogo atingiu um dos irmãos de Jana, que correndo atirou-se no chão, rolando na terra, apagando as chamas. O pai e o irmão do meio formaram uma barreira a sua volta, protegendo-o. Acheron ajudou-os, usando seu corpo como escudo. Driana foi a única que viu o irmão mais jovem de Jana, quase um menino de calças curtas ainda, recuar entre as árvores, tornando-se parte delas, como era seu poder secreto, assim como os três irmãos, que ocupados em lutar, não puderam fazer o mesmo. De seu canto, escondido pela camuflagem, o garoto mirou e soltou a flecha, acertando exatamente onde desejava. A flecha perfurou ambas as asas da fada, abatendo-a em seu voo. O grito de dor e de lamento da fada doeu nos ouvidos de Driana que tudo observava, precariamente protegida. A fada caiu no chão, deitada e gritando. Contorcendo-se a fada de longos cabelos e traços faciais impressionantes, arrancou a flecha das próprias asas, gritando pela dor insuportável. As asas de uma fada são extensão de sua carne e deste modo qualquer agressão contra as finas estruturas coloridas e suaves, representavam danos irreparáveis para a fada. -Afastem-se!– Acheron gritou, a espada encostando-se ao pescoço da fada. Ela ergueu os olhos para ele e sorriu, enquanto estendia uma das mãos sobre o chão. Fogo queimou as folhas secas de árvores que cobriam o chão, e chegou até o pé do Guardião, subindo por suas canelas rapidamente. Acheron soltou a espada, para livrar-se das chamas e a fada ergueu-se, uma das mãos projetadas para frente, com fogo surgindo nas palmas. Foi quando uma pancada forte na parte de trás da cabeça da fada a derrubou no chão. O garoto Jô segurava o cajado nas mãos, e tremia de medo e susto, por estar atacando alguém. Queria ter usado algum pedaço da armadura, por ser mais pesada e rija, mas na hora do susto, pegou a primeira arma que achou. -Acheron... Você está bem? – Perguntou, pigarreando, tentando limpar a garganta e não parecer tão feminina e frágil como se sentia. Ele não respondeu, ocupado em levantar e andar até a fada desmaiada. -Como aprisiono uma fada com o dom do fogo? – Perguntou para Jô. Usar-se da boa inteligência do rapaz a seu favor. -Água. Chamas não podem fluir da água. – Disse pensando rápido – eu vi quando ela precisou erguer as mãos para gerar fogo. Amarrem as mãos da fada e as mantenha molhadas. -Estão usando do poder de fadas – Acheron disse conspirador, enquanto os irmãos de Jana prendiam e molhavam as mãos da fada perigosa com água de um cantil. -São elfos caçadores de recompensa – disse Jana ainda muito assustada. Aceitou o apoio do garoto Jô e pousou a cabeça em seu ombro, tremendo pelo medo que passara – Eu vi um acampamento entre as árvores. Vi três fadas, mas creio que devem existir elfos, embora não tenha visto-os. Seria possível que as usassem para nos atacar? -Uma destas fadas está abatida – Acheron disse pensando sobre o assunto e decidindo o que faria.– O melhor que fazemos é nos separar. Duas fadas juntas são perigosas demais para poucos elfos. -Acheron, eu não acho uma boa ideia a divisão.– Driana disse tensa – Pense bem, Jana não possuí dons, e seus familiares podem se camuflar, mas não desaparecer. Possuem apenas espadas e flechas como defesa! -Eu odeio usar minha armadura por causa de peixes pequenos – Acheron disse revoltado, apontando o saco com a armadura. Nervosa, Driana afastou-se de Jana, depois de dividir com ela um olhar cúmplice e correu para abrir o saco e retirar as peças da armadura. Acheron abriu os braços esperando, e Driana quase se enrolou toda na pressa de agradá-lo. Aparvalhada, e deleitada de ser honrada com esse ritual tão particular, prendeu os braceletes nos pulsos e braços do elfo, um a um. Humilde, ajoelhou-se e colocou as botas de metal nos pés do Segundo Guardião, e seguiu colocando as peças que faltavam e que protegiam suas canelas. Levantou, sem ar, o coração disparado dentro do peito, e com mãos tremulas, tocou o peito do elfo, tentando não parecer feminina demais. Colocou a proteção que cobria o ombro e o peito esquerdo, protegendo o coração do Guardião. Acheron não percebeu como seu ajudante estava abalado. Recebeu nas mãos outra vez a espada e a armadura se manifestou, aquecendo-se sobre sua pele, as peças unidas, como se uma solda estivesse sendo efetuada, tornando a armadura toda articulada e moldada ao corpo do elfo. Driana suspirou de puro encanto feminino quando Acheron passou por ela, na direção do pai de Jana, para decidir por onde seguiriam, pois era melhor atacar do que esperar ser atacado. Mesmo Jana que sabia haver algo romântico entre sua amiga Driana e o elfo, manteve os olhos na imagem do Guardião. Era muito impressionante tanta masculinidade e força. Complicado para uma fêmea fingir não reparar... Apartada do grupo, Driana aproximou-se da fada aprisionada, que acordava. Ela piscou os olhos, que agora sem chamas, eram negros como a noite, e metade do encanto da face havia desaparecido tornando-a uma fada comum como qualquer outra. Ela esbravejou e tentou se soltar, pois isso Driana correu para molhar mais um pouco suas mãos, para evitar que se recuperasse. -Está perdida, fada da clausura – ela disse entre dentes, fumaça escapando de seus lábios, pois a água aplacava as chamas, mas não o calor interno que consumia as entranhas da fada. -Você sabe...?– Ficou surpresa que ela soubesse de seu disfarce. O caçador de recompensa Duque sabia. Mas pensara ser algo dele. Um elfo muito inteligente que não dividiria seu segredo com outros elfos inferiores em luta. Guardar esse segredo, para garantir lucro total com a entrega da fada da clausura ou ao menos, impedir que outros lucrassem a suas custas, sentimentos típicos de bandidos sem escrúpulos como Duque! -Duque era meu macho – a fada de fogo disse – Agora estou só. Mas você... Não vai durar muito tempo. Creia, não durará muito tempo! -Cale-se!– Driana disse assustada – não ouse me ameaçar! -Não perca seu tempo falando com essa fada – Acheron gritou de onde estava, sem notar o diálogo entre elas – Junte-se a Jana. Esse cajado não vai ajudá-lo em nada, garoto. Não se meta a herói, pois não tenho tempo para salvar sua bunda... A voz de Acheron se perdeu no som de asas revoando. Não havia nada em volta, além do som. Asas pesadas batendo no ar. Elfos a postos, olhando em volta, em busca da invasora. Por um segundo a fada se revelou, era toda prateada, pele, cabelos, asas em tom prateado. Ela se revelou, e surgiu exatamente atrás do ajudante de Acheron. Com um sorriso de satisfação de quem sempre consegue o que deseja, a fada prendeu ambos os braços em torno dos braços do garoto e bateu as asas subindo. A poucos metros do chão, trincou as pernas a sua volta, tendo garras nos dedos dos pés. Driana berrou em puro pavor ao ser levada para o céu, a metros de distância do chão. Nunca havia voado. Queria desesperadamente conhecer essa sensação, mas esperava que isso acontecesse quando suas asas nascessem, ou quando uma de suas amigas fosse agraciada com o nascimento. A fada a levou para longe, desaparecendo entre a copa das árvores. Acheron rugiu de raiva por estar completamente impotente diante do sequestro. Seus olhos acompanharam a imagem desaparecer entre as nuvens e jurou a si mesmo que não descansaria enquanto não trouxesse o garoto de volta em segurança...
Olhos de cobiça
O voo foi curto, e a fada planou baixo, antes de soltar as garras e as mãos e joga-la no chão. O acampamento dos caçadores de recompensa era próximo ao local onde fora aprisionada, e Driana foi jogada no chão batido, coberto por pedregulhos e terra seca. Típico de bandidos acostumados a esconderem-se nos lugares mais imprevistos, escolher um lugar que mais ninguém escolheria para acampar.
Driana caiu de face contra o chão usando ambas as mãos para tentar amortecer a queda. Não surtiu efeito. Baqueada não se moveu por alguns instantes, e nem precisou, pois foi agarrada pela touca de duende e erguida a força.
Seu algoz era uma fada alta, longa, curvilínea, vestida com muito metal, e por um segundo Driana temeu ser Zoé, a única Guardiã fêmea do Reino de Isac. Mas não era. Era uma fada, vestida com metal nos ombros, e no peito, como se recriasse uma armadura. Provavelmente uma artimanha para enganar e causar medo em suas vítimas.
-Me solte! – Gritou e se debateu, mas não foi obedecida. -Tragam a faca – A fada ordenou e Driana ficou imóvel pensando no que aconteceria. A fada a jogou no chão e quando a fada invisível correu em sua direção com um punhal de
prata e pedrarias preciosas, a fada disse: -Sei que por de baixo dessa fantasia de elfo esconde-se uma assassina do Rei. Revele-se Driana, ou eu mesma arranco esse gorro da sua cabeça!– Ela ameaçou. Driana tocou o gorro, sabendo muito bem que a ideia da fada era escalpelá-la, caso Driana não se livrasse da mágica de duende que encobria seus cabelos. Seu disfarce não existia mais, ao menos diante dessas pessoas, sendo assim não havia razão para esconder-se e correr riscos desnecessários. Amedrontada, arrancou o gorro. Seus cabelos caíram por seus ombros, macios e negros, brilhantes como nunca. Ela precisava admitir que seus cabelos e sua pele nunca estiveram tão bonitos quanto nesses últimos dias vivendo ao ar livre. Driana afastou-se e levantou. Não queria sentir-se tão fraca. Pensou em pegar uma pedra e guardar consigo, mas seria infantilidade. Era uma fada sem asas e sem um dom útil para a batalha. Melhor poupar-se do papel patético de tentar lutar fisicamente, quando sua única arma era a mente. -Não sou uma assassina, sou inocente!– Gritou com a fada. -Meu nome é Misselan, quero que saiba o nome daquela que a entregará para a Rainha. Eu não estou interessada em sua inocência. Tenho uma recompensa para abocanhar e você é a primeira a ser capturada. Depois de exibir sua cabeça, uma a uma as fadas da clausura irão se apresentar.– Ela andou em sua direção. -Não pode crer que os Guardiões irão permitir que... -Não ouse tentar manipular meus pensamentos– a fada gritou mais alto que as palavras de Driana dominada por uma fúria puramente passional. Num piscar de olhos, Driana foi outra vez agarrada, pela fada que a trouxera até ali, e as pesada garras seguraram seu pescoço, imobilizando-a. Misselan aproximou-se e fixou os olhos castanhos nos seus enquanto dizia: -Conheço seu poder, fada assassina, e não vou me deixar enganar por palavras. Eu sei que é fraca, e sua fraqueza maior é o Guardião. Reconheço o cheiro de fada que exala. Seu cheiro não condiz com seu estado de castidade. Tem se deitado com o Guardião, não é? Pois bem, tente fugir, e minha amiga e eu teremos uma longa conversinha com o Segundo Guardião...– Ela sorriu e a outra fada sussurrou bem no ouvido de Driana: -Aposto como ele deve ser delicioso de segurar – ela apertou mais forte as garras e Driana gemeu de dor. -Nunca conseguirão vencer um Guardião. Acheron é poderoso, é forte, é... -É macho, é elfo e é burro como uma porta. Isso já basta para que eu sabia que vencerei seu Guardião com pouco esforço.– Misselan garantiu. -Isso é estranho – Driana disse, olhando em volta, seus olhos escaneando o lugar – Onde estão os elfos? Onde estão os seguidores do caçador Duque? -Não repita esse nome na minha frente – o punhal foi posicionado abaixo do seu queixo – Duque é passado. Felizmente, como todo elfo, ele foi burro o bastante para confidenciar suas suspeitas a cerca do menino estranho que seguia o Guardião... O que um elfo não faz quanto entorpecido no leito de uma fada, não é? Duque nunca foi tão esperto como se considerava. Alisha me procurou e aqui estamos. -Alisha gostava de Duque – a outra fada defendeu e Misselan riu. -Tanto que não hesitou em me seguir atrás da possibilidade de conseguir ouro e poder – Misselan a repreendeu.– Amarre-a. Mas não perca tempo caprichado muito, pois essa fadinha não possui asas, e não possui dom. Inteligência apurada? Já vi duendes chupadores de essência mais espertos que você– ela esmurrou a cabeça de Driana para trás, e aproximou os lábios da bochecha dela, enquanto dizia – você sabia que não é apenas os duendes que se alimentam da essência de outras fadas? Não tente me enganar, pois eu estou usufruindo muito da sua inteligência, fada da clausura. Empurrou a fada para trás e a fada de garras a arrastou em direção uma árvore. Driana foi amarrada e presa no tronco da árvore e enquanto isso acontecia, observou a fada das garras e disse: -Qual o seu nome? A fada espreitou sua face e na dúvida sobre suas intenções, disse: -Lua. -Lua? É seu nome? -É como me chamam– ela disse baixando o rosto e apertando um último nó que a prendia. -Lua, você não é uma caçadora de recompensa. Fadas não lidam com esse crime. As fadas são agraciadas com dons. Você não precisa disso... -Não? – A fada encarou-a com raiva – E o que você sabe sobre necessidade? -Sou uma fada da clausura, eu entendo tudo sobre privação!– Ela disse tentando enredá-la com palavras. -Misselan tem razão. Você é uma cobra. Driana foi deixada para trás e manteve os olhos nas duas fadas. Elas trocaram algumas palavras, e Driana sabia que tramavam como atacar Acheron e livrar-se dele. Filosoficamente falando, como estudiosa e intelectual, Driana analisava o comportamento e admirava-se da ousadia. Conhecia a antiga história de lutas e preconceitos entre fadas e elfos, que culminara em muitos anos de separação entre machos e fêmeas. Ver diante de seus olhos esse ódio era impressionante. Se ela não fosse a vítima desse ódio, com toda certeza, estaria estudando a situação. A fada do fogo, chamada Alisha estava teoricamente sobcontrole. Não podia jurar, pois Acheron era bem capaz de subestimar o poder da fada e permitir que ela escapasse. Não ficaria surpresa se isso acontecesse. Não mesmo. Estar apaixonada por ele, não modificava completamente sua reticência a cerca do fato de Acheron considerar as fadas um pouco inferiores e destinadas apenas ao cuidado de seu companheiro. Basicamente, Acheron não levava as fada em demasiada consideração. Misselan não demonstrou qual era seu dom, mas visto sua tranquilidade em relação ao Guardião, deveria supor ser poderosa. Lua, era uma fada da invisibilidade. Com uma careta de desgosto, ela lamentou seu azar. Olhando em volta, Driana mudou a fisionomia e sorriu. Já sabia como lidar com Lua. Como resolver o problema de sua invisibilidade. Agora precisava achar um jeito de avisar Acheron disso! Misselan havia usado de um duende para drenar seu dom da inteligência. Fada de uma figa tinha vontade de estrangular seu pescoço só de pensar em seu sofrimento induzido por sua ganância! Lua alçou voo e Driana rezou secretamente para que não estivesse indo atrás de Acheron. Imaginava que o Segundo Guardião estivesse esperando um ataque vindo de elfos, não estava preparado para lidar com fadas. E pior, deveria imaginar ter abatido a única fada poderosa usada por eles! Misselan aproximou-se e ficou de pé olhando-a com arrogância. Driana não afastou os olhos, e permaneceram em um duelo de egos por muito tempo...
Acheron observou o pai de Jana, Melquior, jogar água sobre a fada, molhando-a da cabeça aos pés. A fada berrava, e fumaça subia para o ar, pois ela não suportava o contato de água estando com o corpo pegando fogo.
Seus gritos não compadeciam nenhum dos elfos. Bem distante, Jana estava sentada, observando tudo calada, dividida entre medo e pena. -Diga para onde Jô foi levado – Acheron exigiu. -Não – ela gritou, cuspindo fumaça. -Quantos elfos estão em seu bando? A fada riu na sua cara, com desdém total. Se não fosse uma fêmea, Acheron teria esbofeteado sua face para que aprendesse a respeitar um Guardião. Mas era uma fada, e ele evitava usar de força bruta com as fêmeas. -Seu dom é o fogo.– Ele sacou a espada e aproximou-se dela – Suas asas são seu voo. Não posso privá-la de seu dom, fada. Sabemos que em algum momento a água não será suficiente para pará-la. No entanto, uma fada sem suas asas não garante muito risco - ele aproximou a espada de uma das asas, e a fada nem se mexeu. Seu olhar era de desdém, e Acheron se conscientizou que ela não acreditaria a menos que ele realmente fosse até o fim. -Diga onde Jô foi levado e a pouparei do terrível destino de perder suas asas – ele avisou com seriedade. Acheron não se considerava tão burro quanto às pessoas viviam lhe acusando. Acreditava saber a causa de sequestrarem Jô e não suspeitava estar errado. Levar Jô era uma garantia de atrair a fada Driana, pois aparentemente havia uma forte ligação entre o ajudante do Guardião e a fada da clausura. A fada conhecia a personalidade do Guardião e fora alertada sobre como lidar com ele. Seus olhos piscaram graciosamente e ela disse suavemente, como uma cobra prestes a dar o bote: -Faça isso e não lhe conto quem é de verdade o seu ajudante. -Eu sei quem Jô é – ele disse pateticamente falso. A fada sorriu, e apesar de ser uma fada cruel e maldosa, era bonita e graciosa, e em outros tempos, em outras circunstâncias teria apreciado passar mais tempo conhecendo-a e quem sabe convertendo-a a outra vida. -Oh, não, você não sabe, não está sequer perto de saber o quanto complexo é seu ajudante. Bem da verdade, quando souber... - Ela soltou um risinho e parou de falar – O que está fazendo? Acheron a fez levantar e começou a alisar suas asas, surpreendendo a fada. -Estou procurando o ponto mais doloroso – ele avisou e a fada resistiu ao impulso de se apavorar. O Guardião pousou ambas as mãos, uma em cada asa e ela tentou enxergar o que fazia, pois havia deixado a espada no chão. Acheron começou a puxar as asas, cada qual para um lado, causando uma dor insuportável e a fada curvou-se na direção do chão tentando escapar. -Matou Duque! Matou o meu elfo! Pare, você matou o meu amor!– Minutos mais tarde, apesar do choro, ela gritava sem parar, quando a dor se tornou a única coisa que pairava em sua mente. Apesar de não ser adepto da tortura, Acheron não poderia ignorar o fato de que na maioria das vezes era um artifício muito útil e bem mais rápido de obter informações valorosas. Aquela fada era uma criatura perdida na vida, apegando-se a qualquer falso amor. Apenado, Acheron parou, e ela acalmou os gritos, mas não o choro. -Você – ele apontou o irmão mais jovem da fada Jana – Está encarregado de mantê-la molhada e amarrada. – virando-se para outro dos irmãos, disse – Vigie a prisioneira e mantenha sua irmã a salvo. Os demais me acompanhem. A fada de fogo havia deixado escapar durante a tortura de onde viera. Era por esse caminho que ele iria. Acheron, o pai de Jana e dois de seus irmãos mais velhos foram embora, e Jana aproximou-se da fada, ajoelhando-se no chão perto dela, observando o estado das asas. -Suas asas estão intactas. A dor vai passar, e elas vão sarar.– Disse apenada – Porque escolheu essa vida? É uma fada tão bela, tão poderosa... Porque escolheu essa vida? Não houve resposta. A própria Jana conhecia a dor que a vida impõe para quem é frágil, ou está desprotegido por qualquer que seja a razão, e não poderia culpa-la por deixar a escuridão e a raiva sombrear seu coração. Mesmo sem concordar com a escolha feita pela fada do fogo, apenou-se dela...
Driana permaneceu acordada durante toda a noite, olhos fixos nas duas fadas. A tarde havia passado rapidamente e a noite chegado absoluta, silenciosa e densa. Vez ou outra a fada invisível, desaparecia do seu campo de visão e Driana sentia uma fisgada de medo causar um tremor em seu corpo.
A espera era horrível, angustiante, e mesmo assim útil. Enquanto esperava Acheron resgata-la, pois tinha certeza que ele não abandonaria o garoto Jô a própria sorte, Driana aproveitava para pensar nas possibilidades.
Imaginava um modo bastante rápido de neutralizar a fada invisível, mas para isso precisaria de Acheron, ou de algum tipo de ajuda. Quanto a Misselan, não tinha a menor ideia de como neutraliza-la, pois ainda não sabia qual era seu dom. A fada Lua revoou baixo, e desapareceu mais uma vez. Misselan aproximou-se de Driana, banhada pela luz da fogueira. Era uma fada impressionante. Sua aparência era única. Os cabelos de Misselan eram ondulados, cor de fogo. Seus traços eram sofisticados. -Não olhe nos meus olhos – Misselan avisou. Carregava um punhal nas mãos. Driana estreitou os olhos, pensando profundamente sobre a questão. Sua mente privilegiada chegou à conclusão óbvia e ela sorriu. Seu sorriso irritou profundamente Misselan. -Estava me perguntando por que precisava da minha inteligência. Porque uma fada, com asas e dom, precisaria recrutar duendes e insetos peçonhentos para conseguir um punhado de sangue de fada. Eu não tenho meu dom completo, não estou pronta. Porque querer um dom incompleto? Agora vejo, é uma atitude desesperada de uma fada sem dom. Mal terminou de falar e Misselan acertou-lhe uma bofetada na face. Driana sentiu o gosto do sangue nos lábios e segurou um gemido para não lhe dar a satisfação de vê-la sofrer. -Jana também não tem dom– ela disse, sem se importar com o ódio que despertava, e mais um tapa acertou sua face – Agora eu entendi!– Gritou, a despeito disso – É uma fada sem dom! É uma fada sem dom! -Não!– Misselan curvou o corpo, e agarrou seus cabelos, falando bem perto, quase cuspindo em sua face – Não! Eu tenho dom! Eu tenho um dom! -Um dom roubado e temporário! Temporário! Logo, meu dom saíra de sua corrente sanguínea! Logo, Lua e Alisha vão descobrir que você não deseja a recompensa! Você quer atrair a família de Jana até aqui, não é? É esse o seu plano? Está me usando para atrair o Guardião, pois sabe que os elfos não o deixaram sozinho, pois são leais! Fico feliz de saber que meu bom tem lhe sido útil, pois tenho certeza que sozinha jamais teria pensando em um plano tão elaborado! Misselan soltou seus cabelos, e andou para longe. Parou e virou em sua direção. Calou-se ao lembrar que Lua poderia estar ouvindo. -Foi você não foi? – Driana gritou, na verdade berrou, para que Misselan não pudesse ignorá-la, mesmo que andasse para longe – Foi você quem sequestrou Jana e entregou-a para ser vendida? Foi você quem desgraçou a vida dela! Foi você! -Cale a boca!– Misselan gritou – Cale essa maldita boca! -É uma fada velha – Driana disse com sarcasmo, sendo maldosa apenas para causar indignação na fada, pois sabia muito bem que tocar na ferida de pessoas como Misselan era o método mais eficaz de arrancar informações.– Velha o bastante para ter... Oh, não! Você roubou a irmãzinha de Jana quando era um bebê! Foi você quem fez isso duas vezes com essa pobre família! Você é um monstro?! É um monstro! -Não! – Misselan voltou para perto de Driana, os olhos repletos de fúria.– Não sou um monstro! Melquior chegou perto demais... Eu precisei arrumar um entretimento para que ele fosse embora! -Sequestrar Jana e entrega-la para ser vendida foi um entretimento? Você não é um monstro! Você é uma louca! Fada sem dom! Ela não tem dom!– Começou a gritar– Misselan não tem dom! É uma fada sem dom! Sem dom! Sem dom! Misselan calou-a na base de tapas. Mas era tarde. Lua tornou-se visível, surpresa pelo que ouvira, pois havia chegado a tempo de ouvir o final da briga. -Sem dom? - Lua perguntou com uma expressão bastante óbvia. -Não acredite nessa fada mentirosa. Eu avisei que ela usa da inteligência para manipular a todos! Lembre-se de como ela tem enganado o Guardião! Lua olhou de uma para a outra, mas desistiu de fazer perguntas. -O Guardião está perto – ela avisou Misselan – Ele sabe onde estamos. Pelo que apurei tem companhia de mais três elfos adultos e capazes. -Ninguém toca no elfo mais velho – ela disse com autoridade, mas sem fornecer explicações– E Alisha? -Dois elfos e uma fada estão vigiando. -Quanto tempo até Acheron chegar aqui? –Misselan cravou os olhos sobre Driana, pensando num plano. Driana sentiu a raiva sufocar, só de pensar que a fada usava de seu dom para prejudicá-la! -Uma hora, duas no máximo. Ele é muito previsível.– Lua sorriu satisfeita em dizer isso. -Acheron não precisa se esconder. Ele tem uma armadura! É um Guardião!– Driana defendeu-o. -Veja, como é bonitinho o modo como essa fada mentirosa defende seu amante. – Misselan desdenhou – Liberte Alisha, precisamos dela ao nosso lado. Lua acenou e obedeceu. Driana baixou o rosto, pensando. Em poucas horas um confronto aconteceria e fadas se voltariam contra um Guardião. Uma luta pouco convencional, e perigosa por natureza. Para o bem de todos, esperava que Acheron pensasse em uma boa estratégia antes de atacar...
Reunião
O irmão mais novo de Jana, chamado de Tol, um apelido carinhosamente dado pela família, estava encantado pela fada do fogo. Ela observava-o do mesmo modo, mais pelo interesse de talvez ter um possível cúmplice, do que por qualquer tipo de interesse romântico. O jovem, provavelmente querendo se mostrar, camuflou-se no mato, entre as árvores e ela ficou impressionada.
Mas foi um sentimento passageiro. Sentiu algo tocando suas mãos amarradas, esfregando sobre elas, secando toda a umidade que a impedia de queimar. -Misselan precisa de você – Lua sussurrou em seu ouvido, estando invisível. Alisha não disse nada, gerando fogo pelas palmas das mãos, queimando as cordas e libertando os pés usando o mesmo artifício. De pé, ela usou o fogo para criar uma barreira entre os irmãos de Jana, que corriam para impedir sua fuga, e bateu suas asas. A dor a fez cair no chão, de joelhos. -Não posso voar. O Guardião feriu minhas asas!– Ela gritava histérica. Lua não perdeu muito tempo com essa questão. Agarrou-a e ambas alçaram voo. Jana mal acreditou que estivessem fugindo. Ansiosa e angustiada, Jana não pensou antes de segui-las. Ouviu os gritos indignados de seus irmãos, ordenando que voltasse, mas não deu ouvidos. A fada do fogo notou que eram seguidas e tentou atingi-la várias vezes usando fogo. Jana não se importou, pois era capaz de desviar. Ter fugido da vida cruel que lhe impuseram, lhe dera esperteza para saber escapar de ataques de fadas. As fadas voavam rápidas, em voos graciosos e precisos. Velocidade e beleza, e em pouco tempo Jana parou, planou no ar, batendo suas asas compulsoriamente, enquanto observava a fada do fogo ser pousada no chão. A outra fada olhou em sua direção e voltou ao ar. Jana fugiu, sabendo que sem o peso extra da fada do fogo, aquela fada seria ainda, mas rápida e não conseguiria fugir dela. Jana levou-a diretamente para o meio da Floresta. Não foi um gesto premeditado, ela apenas lembrou-se que o Guardião estaria a meio caminho entre elas, e seria mais seguro refugiar-se com ele, do que contar com a sorte e com a pouca experiência de seus dois irmãos mais jovens. -Perigo! Perigo! Invisível! A fada invisível!– Ela gritava quando mirou seu voo na direção de seu pai, irmãos e do Guardião. Acheron estendeu uma das mãos e ajudou a escondê-la atrás dele. Jana agarrou-se as costas do Guardião, com medo de ser apanhada pela fada que agora estava invisível. Sem prestar muita atenção, Acheron percebeu que os outros elfos camuflavam-se na mata, tornando-se parte dela. Atento, ele esperou que a fada se revelasse. Jana escondeu o rosto na armadura do Guardião, com medo. -Ela está perto. Eu sinto que está perto! Acheron ignorou-a. Ter uma fada histérica gritando em seu ouvido não ajudava em nada. Acheron puxou o ar com força, reconhecendo o cheiro novo. Era o cheiro da fada invisível, e esse cheiro vinha da direita. Mantendo-se discreto sobre isso, Acheron retirou da cintura, preso no cinturão de sua armadura um pequeno punhal de ouro. Usando de toda sua destreza, Acheron lançou seu punhal na direção de onde o cheiro se misturava a brisa da noite e lhe mostrava com clareza onde a fada estava. Lua apenas sorriu, e desviou do punhal. Sua arrogância a cerca de seu dom não permitia que considerasse o fato de Acheron também possuir seus truques. E um deles, era seu punhal abrir-se em um bumerangue e retornar atrás de sua vítima. Lua tentou bater suas asas e escapar, mas foi alcançada antes que isso acontecesse. O bumerangue tornou-se uma afiada lamina que se cravou em suas costas, entre as asas. Lua gritou, e tornou-se visível por alguns segundos, desaparecendo a seguir. Desesperada, Lua correu e escondeu-se entre as árvores. Não sabia ela que o perigo estava ali. Os elfos a interceptaram e a prenderam. Acheron obrigou Jana a soltá-lo, pois ela estava com muito medo, e decidida a permanecer escondida atrás do Guardião para não ser capturada como aconteceu com Driana. A fada continuava invisível, mas estava presa nos braços dos elfos. Era estranho não ver, e precisar falar com algo que não pode analisar. -Ela libertou a fada do fogo – Jana avisou. -Foi uma fada, mas ficou outra – Acheron disse com raiva contida – Revele-se, fada. Não houve resposta ou qualquer atitude que favorecesse esse pedido. -Eu imagino que as fadas não saibam que a armadura de um Guardião guarda segredos.– Ele disse e ouviu os gritos da fada. Acheron não precisou mover um dedo para que o punhal cravado entre as asas da fada, uma arma que fazia parte de sua armadura e respondia a essa magia, começou a girar, e machucar ainda mais. -Pare!– Ela gritava – Por favor, pare! -Porque eu teria pena de uma fada capaz de perseguir outra de sua espécie? Estão em busca de Driana, e sabe que é uma fada da clausura. Sabe que sofre uma perseguição mortal e mesmo assim, pretende trocar a vida de uma de sua raça por ouro. Não tenho razão nenhuma para ter piedade. Elimina-la, é minha obrigação. Livrar o mundo mágico de uma criminosa. -Eu nunca matei ninguém! Eu juro! É a primeira vez que eu faço isso. Eu juro, por favor, pare! Acheron parou, mas não por acreditar nela, e sim, por querer a fada viva. A fada revelou-se e sua face estava pálida e assustada. -Quantos elfos estão envolvidos nesse sequestro? – Acheron exigiu saber. -Você não sabe? Pensei que os Guardiões soubessem de tudo!– Ela ironizou. -Eu sei como acabar com a raça de uma sequestradora de fadas - ele prometeu.– Seu bom é maravilhoso. Poderia ter o mundo em suas mãos. Porque prefere o crime? A fada não respondeu nada. -Vai amarra-la? – Jana perguntou. -Não. Ela não oferta riscos– ele disse com arrogância. Acheron guardou seu punhal novamente na armadura e pretendia regressar a caminhada quando a fada sorriu de leve, satisfeita em conferir que o Guardião fazia jus a fama de burro e tolo que ostentava. Suas garras deixaram o conforto dos dedos e pés e usando-os como armas, libertou-se. O irmão mais velho de Jana foi o mais atingido, e por pouco não foi ferido gravemente. Acheron mal acreditou que a fada pudesse ter escapado bem debaixo de suas barbas. Começava a acreditar que o garoto Jô tinha razão ao enaltecer sua incapacidade de pensar antes de agir. Revoltado, Acheron segurou a fada Jana pelo braço, impedindo-a de voar e seguir a outra fada. -Não atrapalhe ainda mais. Fique aqui. De preferência calada – ele ordenou, entre dentes, furiosa. Jana levou a culpa, mas no fundo Acheron não estava com raiva da fada e sim de si mesmo. Driana precisava de ajuda. Jana aguentou a represaria sem coragem de defender-se. Mas não podia eximir-se de ajudar. -São fadas, e eu não vi elfos junto delas. Nenhum elfo sequer! Se eu sei onde elas estão, elas veem onde vocês estão. Jô diria que pegá-las de surpresa é uma boa ideia.– preferiu não usar o nome de Driana, pois Acheron não suspeitava que a conhecesse. - Posso levar o Guardião, e isso facilitaria tudo! O fator surpresa...– ofereceu. Acheron mediu a fada da cabeça aos os pés. -O que você sabe sobre o garoto? – Ele pressionou.– qual o segredo de Jô? -Salve-o, Guardião, algo me diz que depois de salvar Jô, você saberá de tudo.– Ela o preveniu. Acheron aceitou a ajuda de Jana não por crer nessa bobagem, mas sim porque considerar o fator risco de aguardar que a fada da clausura não tentasse salvar seu amigo e comparsa antes que ele o fizesse. Era bem capaz de Driana tentar algo antes dele. Acheron não era um elfo que alimentasse intrigas e ressentimentos entre fadas e elfos, mas podia entender o rancor entre um e outro. Era inegável a desvantagem masculina em relação às asas de uma fada. Jana pousou nos arredores do acampamento e Acheron espiou entre a vegetação, surpreso ao descobrir que o garoto não estava a vista e sim a fada Driana. Se Acheron reparasse de fato em elfos, teria notado que as roupas que Jô usava antes do sequestro eram as mesmas que a fada da clausura vestia. Mas Acheron não era atento a pequenos detalhes. Ainda mais quando farejava o perigo real. Sua armadura exigia que esse perigo fosse extirpado. O Segundo Guardião a continha, pois era contra usar todo seu potencial em fadas. Nunca conhecera nenhuma fêmea que merecesse tanta crueldade. -Eu posso soltar Driana e... - A fada Jana tentou sugerir, mas Acheron pousou um dedo em seus lábios. -Posso precisar de suas asas, fada – ele disse seco, indiretamente dizendo que preferia que ela ficasse ali e fosse útil em outro momento. Não precisava de dois reféns para libertar. Quis acreditar que seu ajudante havia conseguido escapar, pois era seboso como banha de porco, e parecia escapar de qualquer situação. Era bem provável que Driana houvesse tentando salvá-lo e acabado naquela situação. Ao menos, Acheron ficava feliz em saber que ela era capaz de algum sentimento de lealdade por seus amigos, uma vez que não se importava com seu amante. Acheron observou as três fadas em torno da fogueira. Uma delas vestia uma armadura semelhante às de Guardião, mas ele sabia que não era nada além de metal e uma tentativa falha de impressionar e coibir seus inimigos. A fada do fogo estava recolhida em um canto, recuperandose e a fada invisível parecia muito incomodada com o ferimento nas costas. A fada líder afastou-se delas e ele ouviu os cochichos entre as outra duas: -A fada da clausura disse que Misselan não tem dom– Lua dizia aos sussurros – que ela está nos usando para atrasar os elfos que se camuflam. Que é com eles as pendências de Misselan. -E isso importa? – Alisha perguntou absorta em sua dor – Duque está morto. Não me importa as razões de Misselan. Quero ver o Guardião pagar por isso. -Mesmo? Porque eu estou fazendo isso apenas pela recompensa – Lua disse surpresa – eu nunca tive nada na minha vida. Sempre fui escrava dos outros. Sempre fui condenada a ser forçada a fazer o que não quero. Não me agrada acabar com a vida de uma desgraçada como eu – ela olhou para a fada Driana– por causa de pendências dos outros. Ou é ouro, ou vou embora. Alisha não respondeu nada e Lua levantou furiosa. Pareceu pensar sobre enfrentar Misselan, mas desistiu. Andou para perto de Driana. Ela estava quase cochilando de exaustão, mas acabou desperta completamente diante da presença de uma de suas algozes. -Está quase amanhecendo. Seu Guardião vai chegar aqui em uma hora no máximo – disse com vontade de infernizar alguém como modo de deixar sua frustração sair de seu corpo - Eu fico pensando quanto pagarão por uma armadura de Guardião... -Muito ouro.– Driana a respondeu – Por certo, você será uma das fadas mais ricas de todo reino. Um sorriso nasceu no rosto de Lua e Driana completou: -Claro, se você conseguir ser rápida o bastante para fugir com esse ouro todo e comprar muitos elfos e fadas para protegê-la. A vingança dos outros nove Guardiões cairá em peso sobre você. Se, eu disse ‘se’, vocês três conseguirem vencer um Guardião como Acheron, e se você conseguir que a armadura aceite seu toque, o que é basicamente impossível, eu imagino que os nove Guardiões iram segui-la pelo mundo todo, em busca de vingança. Eles são muito unidos. São como irmãos. Vivem por uma causa. E lealdade é dom muito perigoso quanto dez homens fortes, poderosos, também possuem armaduras mágicas. Lua fechou a expressão e disse: -O que ganharei com você, é o bastante. Não preciso vender o Guardião. Muito menos a armadura. -Oh, sim, suponho que vá ter um grande lucro. Mas eu me pergunto se você estará viva para isso. Quero dizer, você e Alisha são pau mandado. São os peões que lutam por sua líder. Acheron primeiro se voltará contra as duas. Misselan não possuí dom, e não moverá um dedo para ajudá-las. -Eu não vou cair na sua conversa, fada dissimulada. Guarde seu veneno para si mesma. -Está bem. Eu fico calada. E será calada que verei uma a uma caírem no chão vítimas do Guardião. Depois disso, prometo que contarei aos quatro cantos do mundo da tolice de uma fada invisível, que possuía um dos mais úteis, e o desperdiçou seguindo ordens de uma líder que ambicionava apenas seu bem próprio. Lua apenas virou as costas e marchou para longe. -Você sabia que eu sei como mantê-la visível todo o tempo? – Driana gritou bem alto, e Lua parou, encarando-a com estranheza. -Isso é impossível!– Ela revidou cheia de certeza. -Não é não! Eu sei muito bem como fazer! Driana havia percebido que entre as árvores eram observados. Pela falta de delicadeza do observador, supunha ser Acheron e sua incapacidade de manter-se incólume. Queria que ele soubesse como agir em relação a Lua e seu poder. Por isso fizera questão de abordar assuntos que fornecessem a ele todas as informações que precisava. -Eu vou arrancar sua língua, eu juro que vou – Lua voltou até ela, e teria cumprido sua promessa se não fosse barrada pela presença de Misselan. Ela fez questão de deixar claro com os olhos, que não permitiria que isso acontecesse. -Amordace-a – Misselan deduziu, ainda se valendo do poder de Driana que corria em seu sangue – Se preparem, temos companhia. Driana reclamou quando foi amordaçada. Por não poder comunicar-se mais, tentou de todos os modos induzir o olhar de Acheron para cima. Implorando a todas as forças mágicas do universo para glorificarem aquela mente de passarinho de Acheron, e que ele pudesse entender o que tentava lhe dizer. Era uma questão de lógica. Qualquer um entenderia! Mas não o Guardião mais bonito e tolo de todo mundo mágico! Pensar que tanta beleza e virilidade vinha acompanhada de pura inocência existencial, incapacidade de tramar e usurpar da ingenuidade alheia e uma certa burricezinha, era exasperante. Acheron olhou para cima e tentou entender o que ela pensava. Driana era um complexo jogo de pecinhas, que tendia a exigir demais de sua concentração. E Acheron nunca foi adepto de jogos, muito menos capaz de vencê-los com facilidade. A escuridão da noite também contribuía para atrapalhar seu raciocínio. Acima de Driana havia apenas a copa da árvore, uma árvore de folhas largas, cinzentas, pesadas com frutos de amamonia, fruto grosso, amarelo, formado por uma casca fina, que continha pouca poupa e muito liquido. Uma espécie de suco adocicado, que escorria pelos dedos e molhava a roupa de quem mordia a fruta. Pessoalmente Acheron evitava consumir essa fruta sem preparação prévia. Não era dado a muitos cuidados na hora de comer e detestava precisar lavar as roupas e lidar com as manchas. O suco da fruta era pegajoso, amarelo e difícil de retirar da pele e das roupas. Aderia à pele, cabelos e roupas como uma praga. Por um segundo se perguntou se Driana estaria com fome. Mas seria estúpido pensar em comida naquele momento. Olhou tudo a sua volta. Era apenas mato, vegetação de floresta. A Floresta dos Desejos era a floresta menos densa que as demais. Poucas espécies de árvores e de plantas. Poucos tipos de animais. -Acho que ela quer que use o suco das frutas para manchar a fada invisível e assim mantêla visível, mesmo que use seu dom– Jana sussurrou logo atrás dele. Acheron sufocou um rosnado de indignação pelo susto desnecessário. Sim, fazia sentido. Driana pensaria em algo do gênero. -Pegue algumas frutas– ele mandou e a fada obedeceu contente em ajudar. Alguns minutos mais tarde Jana voltou, usando a barra da túnica como apoio para as frutas. Com um sinal para que fossem silenciosos, Acheron instruiu-a a revoar sobre as fadas no instante em que ele atacasse. Sua meta era acertar a fada da invisibilidade. Ele guardou algumas frutas consigo por garantia. A fada que se chamava Misselan estava ocupada observando a noite, pensando sobre quando seriam atacadas. Seria logo. Em minutos. Podia sentir, e era ciente que essa certeza provinha unicamente de valer-se do dom de outra fada. Driana não tinha ideia do poder que possuía. Não tinha ideia da dimensão do que carregava em seu sangue e que de modo algum provinha de sua essência de fada. Misselan baixou a face e fitou o chão, mordendo o lábio em ódio. A vida sempre acha um modo de se renovar e por mais que insistamos em desviar dela, sempre acha um modo de nos encontrar e escancarar diante de nossos olhos cada pequena escolha errada. Cada pecado enterrado no fundo da alma. Refazendo-se, Misselan sorriu e acalmou-se. Em breve Melquior estaria em suas mãos mais uma vez e nada poderia impedir o confronto final. Nada, nem ninguém. E seu maior segredo estaria guardado. O simples pensamento de continuar assistindo o sofrimento daquele elfo, mesmo que a distância era o suficiente para justificar tanto esforço e maldade. Jana, cheia de uma coragem que não sabia possuir, voou baixo, e rápido, sabendo que chamaria atenção das fadas. Era o risco que corria: ser morta para salvar a fada Driana, ou o menino Jô, tanto fazia. Jana não conseguia evitar. O desejo de ajudar aquela fada com quem fizera amizade era grande demais. Sentia-se unida, como nunca pensou que seria de uma fada. Talvez por não ter mãe, e ter sido privada de conhecer sua irmã mais velha, Jana sentia-se próxima da primeira amiga que tivera em sua vida. Seu pai, sua madrasta e seus irmãos sempre a protegeram muito, e ela raramente convivia com outras pessoas fora do círculo de amigos de sua família, e o vilarejo onde nascera era pequeno, com poucas pessoas. A primeira fruta foi jogada e acertou a ponta da asa da fada invisível. Ela saltou assustada e começou a se proteger do ataque, correndo sem parar. Mais uma fruta quase a acertou, caiu no chão e ricocheteou o suco, manchando as pernas da fada invisível. Ela desapareceu e alçou voo para tentar impedir Jana de conseguir o que queria, sem notar que já estava parcialmente visível, tanto que não chegou a ir longe. Acheron interceptou-a, agarrando-a pelo pé. A fada foi lançada no chão, e na confusão, ficou visível. Foi um deslize, e ela logo percebeu e tornou a se esconder. Mas era tarde. Acheron a via perfeitamente. As manchas amareladas se arrastando no chão indicava exatamente onde a fada estava. Acheron agarrou Lua pelos cabelos e a levou para trás consigo, em direção ao lugar onde Driana estava. -Desamarre-a – ele mandou com voz forte – Eu posso vê-la e saber onde está – ele puxou suas asas do mesmo modo que fizera com Alisha mais cedo e ela guinchou de dor, sendo impossibilitada de voar por um tempo. Era um truque que aprendera com a experiência de ser Guardião. Não restou alternativas para Lua que não fosse obedecer calada. Sem voar, e sem poder se esconder dos olhos do Guardião, estava em suas mãos. Acheron virou as costas e andou na direção de Alisha. A fada levantou, apesar de ferida e encarou-o com profundo ódio: -Porque você matou Duque? Porque tinha que matar o meu elfo? – Ela gritou esticando ambas as mãos para frente, chamas surgindo nas palmas. -Faça essa pergunta a si mesma – ele revidou andando em sua direção sem pestanejar. Acheron não viu quando Driana foi liberta. Mas ela livrou-se das cordas quando foi solta empurrou Lua para longe, livrando-se dela também. -Onde está o garoto? – Acheron gritou com Alisha e Driana revirou os olhos, mal crendo que ele ainda não conseguira entender o óbvio. Correu na direção dele, e não viu que Alisha estava de olho nela. -Eu não posso lutar e vencer um Guardião.– Alisha disse resoluta – Eu sabia disso desde o começo! É impossível tal feito. Sou apenas uma fada. Meu dom é simples comparado a proteção de uma armadura. Mas eu quero destruir você! Eu quero acabar com sua existência para que sinta a mesma dor que eu sinto! -Duque arruinou muitas vidas – ele alegou– é leviano da sua parte usar isso como desculpa para sua ganância. Eu sei o preço em ouro que a fada fugitiva alcançará no mercado negro. E sei também quanto a Rainha pagará por sua cabeça. Admita, sua motivação foi totalmente baseada em luxo, poder e diversão! -Não!– Ela gritou furiosa – Não repita isso! Alisha expurgou uma grande quantidade de chamas na direção de Acheron. protegido por sua armadura, ele avançou como se nada estivesse acontecendo. As chamas lamberam o metal e foram destruídas e apagadas naturalmente, sem esforço algum da parte do Segundo Guardião. É claro que Alisha mirou na pele, nas roupas, nos cabelos, regiões não protegidas pelo metal, mas o encanto da armadura estendia-se para o corpo do Guardião. Quando vestido com sua armadura um Guardião é praticamente imortal. Ela sabia disso. Considerando a tolice de sua atitude ao tentar enfrentá-lo, Alisha mirou em um alvo mais frágil. As chamas se voltaram contra a fada que corria tentando chegar até o elfo antes de ser abordada e apanhada outra vez. Lua corria atrás dela, pois perdera temporariamente seu poder de voo, e não adiantava nada tentar ficar invisível. Mas ainda possuía suas garras e poderia fazer grande estrago na carne tenra da fada. -Acheron! –Ela gritou implorando ajuda quando foi cercada por chamas. Lua afastou-se rindo, e juntou-se a Alisha. Um círculo de chamas altas mantinham Driana presa. Ela tentou escapar, mas estava cercada. O calor era insuportável e a fumaça escura intoxicava seus pulmões. Seus olhos ficaram turvos tentando enxergar através das chamas, e ela avistou o Guardião aproximando-se. Acheron não esperava que a fada Lua ainda tentasse mais um ataque. Ela se jogou em suas costas e tentou fincar as garras em sua jugular. Com um brado de guerra, Acheron lançou-a a vários metros de distância e se voltou contra Alisha. A fada, completamente apavorada, tentou bater as asas e fugir, mas foi agarrada e curvada sobre o chão. Acheron odiava usar força bruta contra as fêmeas, mas não poderia pensar em delicadeza ou cuidado quando essas mesmas fêmeas atentavam contra a vida de inocentes. Agarrou ambas as mãos de Alisha e disse em seu ouvido: -Devo fazer o mesmo que fiz a Duque? A fada ficou imóvel, lembrando que Acheron havia quebrado os ossos de Duque antes de matá-lo. Seu choro irrompeu e ela não lutou mais. -Acredito em uma segunda chance quando o crime é brando. Finjamos que você não atacou um Guardião muito menos uma fada sem asas e dom. Vamos fazer de conta que nada aconteceu e que você ainda tem salvação e pode se reerguer e ser alguém valoroso quando esquecer essa tolice de amor por um assassino – Apesar de ser uma oferta que qualquer ser na situação de Alisha agradeceria de joelhos, Acheron disse seco, sem soar como uma oferta, e sim uma barganha para que não precisasse matar ou punir fisicamente. A fada não respondeu, mas ele sabia que pela sua desistência física, havia desistido também emocionalmente. Esparramada no chão, Alisha permaneceu alheia a luta contra o Guardião. O desespero exaurindo todas as suas forças. -Guardião! Acheron! Me ajude!– Driana implorou, as chamas lambendo suas pernas, cada vez mais perto. -Eu me pergunto se você merece – ele disse com falsa indiferença. A fada estava suada, pálida e pertinho de desfalecer. Não poderia brincar com seus sentimentos, não quando ela corria risco verdadeiro de vida. Driana arregalou os olhos ao vê-lo andar pelas chamas e entre elas, até alcança-la. Acheron não precisou segurar a fada, ela se agarrou a ele, enlaçando seu pescoço com saudade, necessidade e confiança. Escondeu o rosto no pescoço do elfo, enquanto Acheron a carregava como se fosse uma criança, empoleirada em seu colo. Ele atravessou o circulo de fogo, sem medo de feri-la, pois a armadura havia escolhido protegê-la e isso era muito revelador. Ao seu ver, estava no caminho certo ao pensar que Driana e Jô eram parentes. Sua armadura aceitava a fêmea, e também aceitava o elfo jovem. Talvez possuíssem o mesmo sangue. Driana sussurrou palavras que ele não entendeu, e quando Acheron a colocou no chão, ela fitou seus olhos antes de ser totalmente solta: -Misselan não possui dom.– Foi sua humilde afirmação. Acheron não respondeu nada. Não falariam agora. Manteve a fada apartada de si e aproximou-se de Alisha, pois Lua estava inconsciente. -Onde está sua líder? – Ameaçou-a com a espada. -Eu não sei - ela respondeu apática. -Acho bom que entenda que minha pergunta não permite negativa. Onde ela está? Driana olhou em torno deles, esperando encontrar o lugar onde Misselan se esconderia. Ela usaria de trapaça, disso tinha certeza, pois era o que Driana faria se estivesse em seu lugar...
Roda da vida
Enquanto tentava adivinhar de onde a fada viria, Driana perdeu o movimento em torno deles. Um reflexo dourado muito rápido, quando Misselan revoou em torno deles, e atingiu Acheron com algo. Um líquido espirrado em sua face, especialmente em seus olhos, cegando-o momentaneamente.
A fada pousou, e exibiu a espada nas mãos. -Eu sabia que conseguiria por minhas mãos em sua armadura. Eu sempre soube que roubála não estava em questão. Vender o Guardião? De modo algum. Eu matarei o Guardião e a armadura me pertencerá. Vencer o corpo do Guardião será a glória para minha vida de pode. Serei uma guardiã por escolha da armadura. Não é maravilhoso? – ela tentou atingir Acheron descobrindo que ele era rápido demais, mesmo sem ver de onde vinham os golpes. Apavorada Driana correu o mais rápido que pode e tentou ficar entre eles. -Vá embora! Deixe-nos em paz! – Ela gritou, tentando puxar Acheron para longe do fio da espada. Grandalhão demais para obedecê-la. Usando de sua esperteza única, Driana pulou nas costas do Guardião e cobriu seus olhos com as mãos, pois ele tentava coçar, e esfregar sobre eles para livrar-se da dor e do impedimento. -Pra direita! Ela está na direita!– Driana gritou, instruindo sobre o que fazer. Ser os olhos do elfo, pois seu peso empoleirado em suas costas, com as pernas enroladas em sua cintura, muito mal era sentido e não impediria seus movimentos. Acheron conseguiu evitar o golpe da espada de Misselan e ela quase sucumbiu ao impacto. -Pra frente! Pra frente!– Driana gritava quando o golpe mudou de ângulo – Assim, isso, vai, vai... Isso!– Empolgada com a luta, ela notou que Misselan possuía uma atadura na cintura. Provavelmente um ferimento antigo. -Na barriga, ela tem uma ferida na barriga! Pro meio! Aponte pra frente e no centro! No centro, Acheron!– Irritou-se quando ele errou a mira – Que merda, você não sabe o que quer dizer a palavra ‘centro’? O elfo rosnou um palavrão e avançou sobre a fada Misselan, desobedecendo Driana, mas usando de suas dicas para chocar sua espada na da fada, e desarmá-la: -Isso! Ela está desarmada! Sem armas! Ow....!– Ela gritou quando Acheron se jogou sobre a fada Misselan acertando-lhe um golpe na cintura, exatamente onde Driana havia mandado. Não usou a espada, mas suas mãos potentes fizeram o trabalho. Misselan caiu no chão, apoiada nas palmas das mãos, de joelhos, cuspindo sangue. -Ela caiu! Ela caiu! Ela caiu!– Driana gritou empolgadíssima. -Não grite no meu ouvido!– Ele reclamou, empurrando-a para o chão, longe de suas costas. Driana ficou de pé, arfante, encantada com o que fizera. Logo ela que sempre lidava com a mente e os pensamentos, pela primeira vez estar lidando com corpo e com os limites do físico. Ajudando Acheron, sentiu-se poderosa, guerreira e pronta para enfrentar o mundo. Uma pena que faltasse certa profundidade em Acheron para notar os sentimentos que inundavam a face da fada. Ele não conseguia ver nada além de sombras. Seu pé cutucou o que ele achou ser a fada Misselan e ao encontrá-la, abaixou-se para erguê-la pelos cabelos. -Oh, não – eles ouviram uma voz de lamento. Jana saiu de seu esconderijo no alto da copa das árvores e voou até eles. -Você a conhece não é? – Driana deduziu. -Sim, ela é... Oh – ficou calada incapaz de explicar qualquer coisa. -Quem é ela? – Acheron exigiu saber. -A culpada pelo sequestro de Jana – Driana explicou – Foi ela quem armou o sequestro de Jana, e garantiu que ela fosse vendida como uma mercadoria. E também foi ela quem sequestrou a irmãzinha de Jana, quando ainda bebê.– Contou. -Não!– Jana disse com horror – Não! Isso não pode ser verdade! Essa mulher é... É Misselan, a fada dos campos, que cuida da plantação e da casa! A fada que casou-se com meu pai depois da morte de minha mãe! Ela me criou, era a melhor amiga da minha mãe! Minha madrasta! Isso não é possível! A surpresa de Jana era tanta que ela cambaleou a quase caiu no chão. Driana ajudou-a e sussurrou em seu ouvido: -Calma, é melhor saber a verdade, do que viver na mentira. Acheron não se importava muito com quem era Misselan. -Onde estão as cordas? – Ele gritou e Driana afastou-se de Jana para correr e atendê-lo. Trouxe cordas e ajudou a envolvê-las em torno da fada, e entregou ambas as pontas da corda nas mãos de Acheron, para que ele usasse sua força descomunal para dar o nó. Suas mãos guiando as mãos grandes, numa intimidade desoladora. -A fada invisível está desmaiada – Driana avisou-lhe.– Deveríamos amarrá-la também. -Jana está aqui, não está? -ele perguntou com um humor horrível – Voe e traga seus irmãos e seu pai até aqui. Preciso de ajuda. Driana estava pertinho do Guardião e seus olhos brilharam de admiração. Não é esperado que alguém de poder, força e beleza seja humilde a ponto de pedir ajuda. Acheron possuía tantos sentimentos bonitos dentro de si que a encantava. Sentia tanto orgulho dele... Acheron esperou ouvir o farfalhar discreto das asas de Jana para sentar no chão e esfregar os olhos, numa tentativa de limpá-los e voltar a ver. Driana sentou ao seu lado e afastou suas mãos. -Não adianta. Ela drenou inteligência de... De Jô. Deve ter feito o mesmo com outros elfos ou fadas. É possível que tenha usado em você algum veneno paralisante, e por isso seus olhos não enxergam. Ele rosnou furioso e ela sorriu tentando impedi-lo de se machucar mais, esfregando de novo sobre os olhos. -Esse tipo de veneno é passageiro. Se você não piorar as coisas, o efeito nocivo será inexistente em algumas horas.– Prometeu. -Onde está o garoto? - Ele perguntou, desistindo de tocar os olhos. Confiar nela era um perigo. -Eu tentei ajudá-lo – Driana mentiu – Ele fugiu, mas acabei ficando presa em seu lugar. Imagine minha surpresa ao descobrir que tudo isso não tinha nada a ver comigo e sim com o desejo de Misselan em se vingar e atrasar as buscas da família de Jana por sua irmãzinha perdida. Bem, mas o que importa é que Jô deve estar escondido por aí... Esperando a poeira baixar para aparecer – disse evasiva. -Quanto trabalho por uma fada do Ministério do Rei – ele disse em represaria a raiva que sentia por Driana ter o abandonado tempos atrás, durante uma luta contra elfos caçadores de recompensa. -Eu sabia que venceria sozinho. Não o abandonei.– Defendeu-se – Fui embora para salvar a mim mesma e as minhas amigas. Você quer me entregar para a morte, Acheron! Não pode me cobrar lealdade! Era a mais pura das verdades. Mas a verdade é singular, e costuma mudar de lado dependendo do locutor. -Não vou aprisioná-la nesse momento. Nem poderia tentar – ele disse irritado com a própria fragilidade, enquanto segurava a mão de Driana, e a pousava sobre a armadura, do lado esquerdo onde ficava o coração.– Façamos uma trégua, fada da clausura. Uma trégua por essa noite. -É quase manhã, Acheron...– Disse triste. -Então, por esse dia que está nascendo. Uma trégua de um dia. -Eu não deveria aceitar isso. Não é nada inteligente da minha parte acreditar nisso...– Disse sorrindo, enquanto aproximava o rosto do dele. Surpreendeu Acheron com um beijo em sua face. O Guardião tentou lhe roubar um beijo, mas ela fugiu. -Não vou beijá-lo, já lhe avisei sobre isso! Não tente outra vez, é patético.– Provocou, baixando a cabeça e a apoiando em seu ombro, sobre o metal gelado da armadura. Aos poucos, Driana acariciou o metal, sendo aceito seu toque. Acheron não disse nada, e ela também manteve o silêncio. Provavelmente permanecessem desse modo por muito tempo, pois cada qual possuía a mente repleta de pensamentos confusos. Quando a família de Jana foi trazida, primeiro o pai, e depois os dois irmãos mais velhos, eles estavam juntos, esperando que isso acontecesse, sem chegar a acordo algum sobre a relação de ambos. Um dos irmãos de Jana, que ainda não conhecia a fugitiva pessoalmente, reconheceu imediatamente os traços do garoto Jô na fada Driana. Olhou-a com cumplicidade e nada disse, apenas fez uma mesura e um sorriso sem vergonha que discretamente lhe disse que apreciava sua rebeldia. Driana simpatizava muito com está família e por isso apenas disfarçou fingindo não notar que sua situação era notada. Melquior, o pai de Jana, fincou os olhos na esposa. Misselan estava amarrada, ambas as mãos presas e pés acorrentados. -Ela roubou o dom alheio valendo-se de duendes – Driana explicou a ele, todos de pé em torno da fada, enquanto Acheron mantinha-se a parte, ouvindo já que não podia ver com clareza. -As fadas do meu povo não possuem dom– ele disse furioso, mal contendo a indignação. Era um elfo elegante, cuidadoso com as palavras, não era do tipo que escancarava suas emoções – Os elfos podem se camuflar. As fadas possuem asas. É desse modo que deve ser. É nossa natureza. Eu nunca esperaria isso de você, Misselan.– ele estava completamente chocado. -E porque não? Algum dia da sua miserável vida ao menos tentou me amar? – Ela perguntou chorando, e o antigo ódio que carregava prevalecia sobre suas palavras. -Sim, eu me esforcei para ser um bom marido. Achei que fosse uma boa esposa. Que criasse meus filhos como uma mãe amorosa – ele disse triste. -Foi o que fiz! Eu criei todos os seus filhos e mesmo assim, você sempre lamentou a perda dela! Sempre buscou essa menina dos infernos! -Minha filha! Minha primeira fêmea. É claro que eu a buscarei até o último dos meus dias! -Mamãe não viveu para ver o dia que encontraremos nossa irmã – um dos filhos mais velho de Melquior disse – Mas nós a encontraremos! Misselan riu. -Estavam tão perto de encontrá-la! Tolos! Estavam no passo certo para acha-la! Eu sabia que desistiriam de tudo para achar Jana. Quanta tolice! -Tolice? Uma fada com asas perder seu tempo e sua vida por causa de ódio e inveja? – Driana perguntou, maldizendo a maldade da fada – Pense bem em quem é tolo! -Não tem o direito de falar sobre mim! Não tem esse direito! Não ouse falar sobre mim! Sobre a minha família!– Misselan gritou, com um ódio direcionado unicamente para Driana. Algo entre elas duas. Ela não respondeu apenas se afastou e voltou a sentar ao lado de Acheron. Não participava da conversa, mas Acheron palpitava o tempo todo sobre o que deveriam fazer com as fadas. Lua era ambiciosa e claramente uma sequestradora, mas seus crimes eram motivados por ganância, e para tal crime há leis especificas no Reino. Acheron não quis abrir mão de levá-la como prisioneira e fazer valer as leis pessoalmente. Alisha era um caso a parte. A fada não tinha boas intenções, e desejava vingança. Casos assim merecem atenção redobrada. Penas leves não surtiriam efeito, e tão logo estivesse em liberdade voltaria a cometer os mesmos crimes. Estavam próximos da Vila dos Desesperados e o vilarejo possuía suas próprias leis. Seria mais prudente levar a fada para ser julgada lá, onde provavelmente Duque e seu bando, o que a incluía, deveriam ser mais ativos, e haver muitas sentenças esperando por cumprimento. Misselan era outra situação muito diferente. -Não perderei um minuto carregando essa fada nas minhas costas. Se eu estava perto de achar minha filha, e por causa disso Jana foi maltratada –ele olhou com afeição para a filha – tenho todas as razões do mundo para refazer meus passos, de onde parei semanas atrás. -Ela não pode ficar sem punição, papai – disse Jana.– Tudo que passei... Fui vendida, fui... Fui vendida duas vezes. O primeiro elfo era um animal. Achei que morreria em suas mãos. O segundo elfo a me comprar... Não foi muito melhor do que o primeiro. Eu penei toda a desgraça que uma fêmea pode conhecer por causa dela – apontou Misselan– Se as minhas asas não existissem, eu ainda seria uma prisioneira. Se não fosse o acaso e a sorte, eu ainda seria... Estaria sendo... Eu não quero nem pensar nisso. Ela não tinha segredos para sua família. Por mais doloroso que fosse para um pai saber que sua filha foi violada e ferida por elfos, ainda assim era necessário a total sinceridade, pois sem ela, relação alguma existe e perdura. -Minha primeira filha, nascida depois de dois filhos, foi uma luz na vida da minha mulher, uma luz na vida de toda família. Ela foi levada, sequestrada e nunca em quase vinte anos, tive qualquer pista dela. Esse sofrimento foi amenizado pelo nascimento de Jana, minha flor – ele fez um carinho na face da filha – mas o sofrimento a qual foi exposta por minha causa... Só pode ter sido por minha causa. E nunca me perdoarei por isso. -Não diga isso, papai – ela ficou triste. -É a única verdade. A única razão para esses crimes foi à inveja e o ciúme. Estou errado, Misselan? -Você preferiu Branca a mim – ela disse entre dentes.– Eu fui à segunda escolha. Porque precisava de uma fêmea para cuidar dos seus filhos! Foi à única razão para me escolher! -Ela é doente!– Driana opinou incapaz de manter a boca fechada. Acheron deixou claro que não aprovava que se envolvesse nessa discussão, segurando-a pela mão de modo incisivo. Calada, Driana esperou para saber o que eles fariam. -Desse momento em diante não a reconheço como esposa. Não importa o que diga para justificar seus crimes, não perdoarei o que fez a minha família. Apartou minha primeira filha, e talvez jamais descubra seu paradeiro... E não satisfeita em desgraçar minha vida, intermediou a desgraça de Jana, a única alegria que ainda restou para essa família– Melquior retirou a espada das roupas e aproximou-se da fada – Jamais seu nome voltará a ser pronunciado nessa família. Misselan riu histericamente. -Eu sei quem é a menina que procura. Eu sei onde ela está! Eu sei! Mas nunca vou contar! Nunca contarei quem é! Nunca! Nunca! -Não importa. Eu vou encontrar minha filha e farei isso sem a sua colaboração.– Ele disse com falsa calma. Ao entender o que fariam, Driana ficou tensa. Jana afastou-se e virou-se de costas para não ver. Driana não podia culpá-los pela decisão. Era a punição mais comum e viável no caso de Misselan. Não havia possibilidade real de redimir-se. Era uma barbárie condenável, como pensadora e intelectual, Driana enxergava isso com clareza. No entanto, precisava admitir que de nada valessem pensamentos como este quando a vida real trás as consequências de modo visceral. Misselan seria barbarizada, no entanto, se continuasse sem punição, destruiria muitas vidas. Era um paradoxo, e Driana abria mão totalmente de tentar elaborar sobre isso. Os dois irmãos mais velhos de Jana seguraram a fada no chão, de barriga para baixo e ela começou a gritar em desespero puro quando percebeu que o jogo havia acabado. Melquior agarrou uma das asas, e fincou a espada na junção criando um talho. Driana abriu a boca horrorizada e um som engasgado de medo e dor escapou. Era o susto de assistir essa crueldade. Ele soltou a espada e usou ambas as mãos para arregaçar o talho, arrancando a asa. A fada berrava, pois a dor era insuportável. Uma vez cortada, a asa jamais voltaria a crescer ou nascer. Driana não conseguiu seguir olhando. Escondeu o rosto no ombro de Acheron, e lutou para não chorar. Ouvia os gritos de Misselan, e sabia que a outra asa era partida. Uma hora mais tarde tudo teve fim e ela ainda se recusava a olhar. O efeito o paralisante havia passado e Acheron conseguia ver com clareza quase total. A cena era horrível. A fada se recuperaria, não era uma chaga fatal, mas jamais voltaria a voar. Por ser de uma raça sem dons, estava perdida para o mundo mágico. Viveria a sombra de si mesma. A sombra de suas próprias escolhas. Pagaria pela maldade. -Jamais terá o poder de fazer mal outra vez – Melquior disse limpando as mãos e a face, livrando-se do suor – eu lamento fazer isso. Eu lamento com todo o meu coração. Mas não poderia deixá-la livre e poderosa, para que destroçasse a vida de mais pessoas. Siga seu caminho, minha família e eu seguiremos o nosso. Não volte a cruzar nossas vidas, pois da próxima vez não terei clemência. Os primeiros raios do sol da manhã coloriam a floresta e Melquior olhou para o Guardião. -Sigo daqui com minha família. Levo as prisioneiras, é um favor que lhe faço em pagamento a toda ajuda que nos despendeu. Salvou minha filha, e lhe serei grato para a vida toda. Levarei as prisioneiras primeiro para a Vila dos Desesperados, depois se necessário, para o castelo do Rei Isac. Acheron acenou concordando. -Sei que um dia nos reencontraremos. Torço que em breve.– Acheron disse a ele com agradecimento. -Se o destino assim quiser – Melquior concordou. -Papai – Jana disse num repente – eu posso seguir com o Guardião? Os elfos da família pararam tudo que faziam e olharam-na como se estivesse louca. -O Guardião segue para a Vila dos Desesperados. Será um passo mais lento, por conta de... Bem, da fada da clausura – ela fingiu não ter intimidade com Driana – Eu os encontro por lá. -Me dê uma razão para isso – o irmão mais velho de Jana questionou. -Eu gostaria de ajudar a reencontrar Jô – ela disse corando. Depois de tanto sofrimento passado por Jana, Melquior não considerou a possibilidade de causar-lhe essa negativa. -Sei que estará em boas mãos – ele referia-se ao Guardião. Um beijo na testa da filha e eles ajeitaram os pertences e as prisioneiras, prontos para partir. Era preciso encontrar os dois irmãos mais novos que ainda percorriam a floresta e então todos seguiriam seus destinos. Antes de partirem, Melquior piscou para a fada Driana como quem diz que simpatiza com sua causa. Driana desejou do fundo do coração ter mais tempo para conhecer aquela família a fundo, ou ao menos ter a chance de um dia reencontrá-los. Minutos depois Jana esperou que o Guardião pudesse seguir. Quando isso aconteceu, Driana ficou de pé ao lado do Guardião e disse: -Me prometeu um dia de trégua – lembrou-o. -Sempre cumpro minhas promessas– ele avisou com um estranho carinho em sua face, que parecia mais um desafio. -Olhe para Misselan, Segundo Guardião– Driana disse olhando para a fada que soluçava no chão, em uma poça de sangue e asas destroçadas.– Se eu for entregue para a Rainha, serei eu em seu lugar. -Será julgada. Provavelmente condenada às masmorras.– Ele contrariou. -Não. Está errado. As asas de Eleonora estavam nascendo quando ela fugiu. Pelos dias que passaram, já devem ter nascido. Rainha Santha ordenará que nossas asas sejam destruídas antes do julgamento alegando o risco da fuga. Se alguém ver as asas de Eleonora, ela corre o risco de ser desmascarada. Esse será o meu fim– ela apontou para Misselan – Com uma única diferença: eu não fiz nada para merecer isso. Sou inocente. Suas palavras pesaram. -Tem um dia para me convencer que é digna de confiança – ele avisou, começando a ceder.– Um único dia, fada. Driana mal acreditou na sorte. Olhou para Jana com expressão maravilhada. A outra fada também não acreditava que Acheron estivesse cedendo! -Eu sou digna de confiança! Contarei-lhe toda a história de Eleonora, toda a nossa história desde o dia que nascemos até o dia em que fomos acusadas injustamente. Juro-lhe, Acheron, não mentirei em uma única palavra que disser! Seu juramento foi veemente e ela planejava cumprir sua promessa. -Primeiro, preciso encontrar o matusquela fujão – ele disse olhando em volta – Espero não encontrar o garoto enfurnado em alguma toca. Ele tem cara de ser bem capaz de se esconder em algum buraco para escapar da luta. Eram palavras ditas da boca para fora e Driana reconheceu o carinho impresso nelas. Virou-se de costas para Acheron e de frente para Jana, ambos com olhares cúmplices. -É inacreditável – sussurrou para Jana – ele ainda não notou que sou o Jô? -Acho que ele não quer ver a verdade – Jana sussurrou de volta. -Eu espero que seja essa a razão para tanta lentidão em notar o óbvio... - Ela deu de ombros, e as duas sufocaram o riso. Acheron teve a nítida sensação que as duas fêmeas riam dele. Mas era impressão sua. Estava contente de poder falar com a fada Driana. Quem sabe a convivência pudesse mudar sua certeza a cerca das boas intenções da Rainha Santha?
Quarentena
Acheron estava enxergando perfeitamente quando encontraram uma clareira limpa de vegetação e próxima a um córrego. Jana correu até a água, distraída em molhar as mãos, braços e rosto.
Acheron jogou-se perto de uma árvore, reclamando de dor por todo o corpo. Driana aproximou-se e ajoelhou-se pertinho dele, tentando não ser tímida: -Sente sede? Posso buscar um pouco de água para você – disse doce. -Está tentando me agradar, fada? – ele perguntou sorrindo. -Acho que sim– garantiu, corando.– Eu quero alimentá-lo, saciá-lo e então, poderei contar-lhe toda a minha história sem interrupções. -Jana pode cozinhar, e pode cuidar dos afazeres enquanto não encontro o garoto Jô – ele negou – Quero que converse comigo, Driana. Se estivéssemos sozinhos, eu a levaria para minha cabana e aproveitaríamos o dia de um modo bem mais gostoso – ele disse sedutor. Era o modo de ser de Acheron, não tentava ser bonito, apesar de ser enlouquecedoramente bonito e sexy. Driana lutou contra o impulso de dizer isso a ele. Se pudesse, passaria o dia todo em seus braços, vivenciando aquele momento com total entrega. -Eu poderia dizer sim, caso não dispusesse de poucas horas para convencê-lo que sou completamente inocente. -Não tente me engabelar – Acheron achou por bem avisar. Como se alguém precisasse tentar, pensou Driana. Seu sorriso intrigou-o. Acheron estendeu a mão e acariciou seu rosto, e seus cabelos. Os olhos verdes do Guardião brilhavam como pedras preciosas, e Driana quase se esqueceu porque negava-lhe um beijo. Sem notar estava inclinada em sua direção, como quem pede para ser abraçada. Acheron enlaçou sua cintura e a puxou para si. Driana usou as mãos para se amparar em seu peito. Olhos nos olhos, o impulso era irresistível. Se Acheron a beijasse ela deixaria. Não conseguiria mais fugir ou encontrar desculpas para se impedir de entregar-lhe todo seu sentimento. Acheron não tentou um beijo. Ele roçou o nariz em seu pescoço e aspirou seu cheiro de fada. Driana sequer cogitou a possibilidade de camuflar seu cheiro natural de fêmea. Queria que ele sentisse o ardor que provocava em suas entranhas e que soubesse que isso era verdade, que não lhe mentia a cerca de seus sentimentos. Começaria lhe contando sobre sua vida no Ministério do Rei, então sobre suas amigas, e sobre a fuga. E como prova de sua sinceridade e boas intenções lhe contaria sobre Jô e sobre seu arrependimento em lhe mentir. -Conte-me sua história, fada da clausura – ele sussurrou em seu ouvido, acariciando-a com a intimidade de um macho que já roubara seu coração. Jana se fez notar, e Acheron apenas manteve o abraço, primando pela discrição, para não causar desaforo e ofensa à integridade da outra fada. Driana sorriu para Jana que se sentou perto deles, para ouvir a história. Acheron não tinha como saber da amizade que ligava as duas, muito menos que ver Guardião e fada da clausura juntos, lhe trazia muito gosto e alegria. Um profundo suspiro de pesar, e Driana afastou-se de Acheron, abraçando os joelhos, enquanto dizia: -Eu não sei quando fui deixada no orfanato. Sei que não era um bebê, mas que era muito pequena. Meu pai me deixou com as fadas da clausura, pois não podia cuidar de mim. Sempre me disseram que isso aconteceu por ser muito carente e pobre. Mas isso eu jamais saberei se é verdade ou não, pois jamais tornei a ter notícias dele e nenhuma faz carcereiras do Ministério do Rei tornou a encontrá-lo outra vez. -Elas não poderiam estar mentindo? Quem sabe lhe escondem que ele vive perto de você? – foi Jana quem perguntou. -Não. As carcereiras são as maiores interessadas em se livrar das fadas da clausura, pois são responsabilizadas por nos vigiar vinte e quatro horas por dia. Ouso dizer que são tão prisioneiras quanto nós. Uma fada a menos representaria um pouco mais de tranquilidade para elas.– Sorriu triste – Histórias como a minha são incomuns no Ministério do Rei. Normalmente as fadas e elfos são levados para o orfanato ainda bebês, muitos ainda recém-nascidos. – Explicou – Eu cresci tendo como companhia as fadas e elfos da clausura. Com os anos os meninos foram apartados de nós, e levados para o trabalho escravo junto ao reino. -Não existem escravos no Reino de Isac – Acheron disse incomodado com sua colocação. -Eu sei que fecha seus olhos para a verdade, pois encontrou seu lugar no mundo e não quer perder isso. Não o culpo. Mas eu vejo a verdade. Os elfos são criados para ser empregados no castelo. Nenhum deles é livre para escolher seu caminho. Não viver na clausura não quer dizer que não sejam prisioneiros – lembrou Acheron – Alguns meninos são treinados para ajudar os Guardiões, principalmente na luta, sendo usados como cobaias vivas, outros são ajudantes, arrumadores, cavalariços... Depende da sorte ou do azar do pobre infeliz. O que importa de fato, é que aos dez anos são afastados das fêmeas. As fadas seguem no Ministério do Rei com liberdade controlada, até os vinte anos, quando suas asas nascem. No mesmo dia em que as dores começam, as fadas são enclausuradas e jamais chegam a farfalhar as asas, pois só tornam a sair da clausura no ano seguinte quando serão exibidas para a apreciação e possível escolha para o casamento. Em média, anualmente são enclausuradas umas dez a quinze fadas. Essas fadas somam-se as demais, e não é preciso dizer que a cada dez, uma é escolhida e liberta. As outras vivem aprisionadas, vendo a luz do dia uma única vez ao ano. E jamais usarão suas asas, pois são impedidas de voar. -Isso é bárbaro – Jana disse apenada – É medonho. -É o que estou tentando dizer ao Guardião, mas ele se esqueceu de seu tempo de escravidão – Driana disse tensa. -Como sabe que fui escravo? – ele perguntou irritado – Aquele garoto bicudo. Quando o encontrar, lhe darei um corretivo por espalhar fofocas sobre mim! – Ele culpou Jô e Driana nem se deu ao trabalho de pensar o quanto ele poderia ser bobo. -Eu cresci ao lado de três amigas, uma se chama Eleonora, ela é alva, bonita e branquinha como uma nuvem do céu...– sorriu para Jana– Joan, ela é tão pequena, traquina e seus cabelos parecem fogo puro, um vermelho lindo e selvagem. Eu gostaria que a conhecesse, Jana, pois Joan é muito meiga e curiosa, iria adorar saber sobre seu povo! Suspeitamos que o dom de Joan seja manipular nossos olhos e sentidos, mas isso não é algo confirmado ainda, pois devo lembrá-los que ela não completou vinte anos ainda. Faltam algumas semanas.– Havia acidez na voz de Driana ao lembrar o Guardião disso – e há Alma! Não posso esquecer-me de falar dela!– Riu achando graça da expressão de curiosidade de Jana – Pobrezinha, tem a voz temerária. Claro, nós não dizemos isso a ela, e tentamos incentivá-la a falar sem se importar com esse pequeno detalhe... Mas cá entre nós, haja paciência para suportar seus guinchos quando começa a falar mais alto!– Ela riu dessa lembrança – Alma é muito má às vezes, mas não é de um modo ruim. Ela é apenas convicta de suas decisões e nada nem ninguém têm o poder de tirar uma ideia de sua mente uma vez que ela tenha se convencido de algo. Teimosa como um pingo de água tentando quebrar uma rocha sólida! Sempre achamos que suas asas nasceriam primeiro, pois tínhamos certeza que ela havia alcançado os vinte anos. -O nascimento das asas se dá durante todo o ano antes dos vinte – Acheron disse. -Hum, na clausura sempre nos orientaram que as asas acontecem aos vinte anos.– ela lembrou-o. -E como saber a idade exata de uma fada do Ministério do rei? – ele atiçou.– É normal que as carcereiras tentem estimar a idade das fadas e não alimentar dúvidas sobre a história de cada uma. É de enlouquecer uma pessoa, viver desesperado por informações de um passado que nunca aconteceu. Era cruel, mas era a mais pura verdade. -Tem razão. Não vale a pena discutir sobre as mentiras das carcereiras do Ministério do Rei. As pobres são tão infelizes quanto nós. Todas elas já foram enclausuradas e passaram pelo mesmo que nos ainda passaremos. Mas tornando a falar de mim... Minhas amigas e eu crescemos juntas, como irmãs. Tubã, o irmão adotivo de Egan, o Primeiro Guardião, era nosso companheiro de sofrimento, mas quando foi adotado passou a viver do outro lado. Mas nunca nos abandonou. Sempre pensando em como nos libertar, tentando achar uma forma de conseguir que fugíssemos... Com o passar do tempo virou uma piada entre os elfos do castelo. Eles brincavam com Tubã iludindo-o sobre possibilidades e planos que nunca obteriam êxito. Mesmo assim, ele nunca deixou de ter, por mais louco que fosse o plano, ele sempre tentou executar! Eu confesso, não há uma fada sequer da clausura que nunca tenha pensando em uma fuga e em nossos corações sempre esperamos que houvesse um modo disso acontecer. Mas era sempre Tubã quem inventava os planos mais loucos e impossíveis de obter resultado. -Quanta inocência, fada – Acheron desconfiou de sua face angelical. -Desculpe se fazia uso da paixonite de Tubã por Eleonora para obter informações sobre o mundo dos Guardiões e quem sabe assim, obter ajuda para salvar minha própria vida – ela disse irônica – De qualquer modo nunca participamos dos planos de Tubã! Tão pouco, achávamos que ele obteria êxito! Creio que nem mesmo ele acreditava ser possível nos salvar. Ele fazia isso mais para aliviar sua consciência culpada por ser livre enquanto padecíamos da clausura, do que por esperança de salvação. Eu, talvez, eu seja a fada que menos sabe de tudo que aconteceu, a mais improvável de poder lhe fornecer detalhes. Confesso que sempre estava lendo ou escrevendo e raramente participava das estripulias de Eleonora e Tubã, apesar de sempre assumir seus crimes, para que assim a punição fosse dividida entre quatro e não pesasse sobre os ombros de Eleonora na íntegra.– Admitiu. -Estão sendo acusadas de invadir os aposentos reais, usarem de seus dons para manter a Rainha sem ação, para que Eleonora pudesse copular com o Rei. Uma vingança, sem dúvidas. Assassinaram o Rei e fugiram.– Acheron acusou. -Bem, isso é você quem diz. O que sei, é que dormíamos em nossos aposentos medíocres na clausura quando Reina, madrasta do Primeiro Guardião, invadiu a clausura e nos ordenou que partíssemos. Ela contou o que sabia, e a história que sei em nada se parece com a história que a Rainha Santha conta! -Fale das asas de Eleonora – ele mandou, não querendo perder tempo entrando em atritos, pois o assunto causava divergência entre ambos. -As asas de Lora começaram a nascer durante a fuga. Pobrezinha, passar por tudo isso sozinha e sem nossa presença. Ela foi levada para... Bem, ela foi levada para longe – claro que não lhe contaria o paradeiro de Eleonora! Acheron fez uma expressão de desgosto. -O que importa é que as asas de Lora vão provar nossa inocência. Ela tem as mesmas asas da Rainha Santha. São mãe e filha! Eleonora é a primogênita! A prova do crime de Santha contra as leis do Ministério do rei! Ela armou contra todas nós, pois acusar várias fadas seria menos suspeito do que acusar uma só. Eu preciso ganhar tempo, Acheron, tempo para que as asas de Lora nasçam e provem sua inocência! -As asas não são prova de nada.– Acheron lembrou-a desse detalhe. -Sim, mas não é no mínimo suspeito que uma fada acusada de assassinar o Rei seja filha bastarda da Rainha? Uma filha não reconhecida? Talvez filha de seu amante Lucius? Acheron afastou-se e levantou. Ele não queria ouvir aquela conversa. Cada palavra fazia tanto sentido em seus ouvidos, que qualquer outra teoria parecia falha. -Se essa história for verdade, você sabe a repercussão disso não é? – Acheron perguntoulhe e Driana ergueu os olhos, mirando-o com a seriedade necessária para a conversa. -Sim, eu sei. Provavelmente Lora ainda não tenha pensando nisso, mas eu sei a consequência de toda essa mentira vindo à tona. Eu soube desde o minuto em que Reina contou o que acontecia. A Rainha Santha é uma assassina. Sua punição será a morte ou as masmorras. Em caso de punição, o reino estará destronado. Um reino sem rei ou Rainha é um lugar perigoso. As leis são muito claras. Os sucessores do rei e da Rainha são seus filhos de sangue. O Rei Isac partiu sem herdeiros, e a única herdeira comprovada será a filha primogênita da Rainha. A lei não diz que essa cria precisa necessariamente ser dos dois, e sim, que tenha sangue real. A herdeira do trono será Lora. -Sim, uma Rainha vinda da clausura – ele disse com olhos brilhantes. -Sim, uma Rainha vinda da escravidão e do sofrimento. Gente do povo, sangue do sangue de todos que sofrem e são injustiçados – ela alegou. -Sim, é tudo isso que você disse – faltou a Acheron palavras bonitas para expressar-se, mas sobraram-nas na boca de Driana. -O mundo seria mais justo se o poder estivesse nas mãos de que conhece a dor do povo – Jana opinou. -Mas para que tudo isso aconteça, nenhuma de nós pode ser presa antes que as asa nasçam. Lora não hesitaria em se entregar, se isso pudesse salvar uma de nós. -Suas palavras são bonitas demais – ele disse pesaroso – Mas palavras não resolvem minha situação, eu preciso entregá-la para ser julgada. Está é minha missão. -Você pode me entregar para ser julgada daqui a alguns dias não pode? Que pressa é essa? O mundo não foi feito em um dia. Tão pouco você seria questionado pela lentidão, pois creio que todos estejam mais do que acostumados a esperar isso de você...– Driana não resistiu em provocá-lo. -Sua língua é carregada de veneno, fadinha – ele acusou. Driana baixou o rosto e corou furiosamente. Fadinha? Deveria se irritar com o machismo, mas ao contrário, o modo preguiçoso de Acheron falar a deixou tímida e corada. Queria ficar a sós com Acheron, queria tanto que seu coração estava saltando dentro do peito de ansiedade. Jana notou, é claro que notou. -Eu pensei em sobrevoar a Floresta e procurar por... Jô – Jana sugeriu. -É uma ótima ideia!– Driana disse empolgada.– Jana, você poderia procurar a fonte dos desejos...! Eu sempre quis saber se é verdade que existe a fonte dos desejos! -Existe. - Acheron respondeu por Jana – Voe para o centro da floresta, nas limitações da Floresta e do Deserto. Não tem como não ver a fonte. Mas faça isso de uma altura suficiente para flechas não conseguirem abatê-la. -Sim, farei isso. Imagino... Que eu vá demorar – Jana garantiu. Driana dividiu um novo sorriso cúmplice com Jana e observou-a voar para o céu. Admirava suas asas e seu dom de voar. Mal podia esperar que chegasse seu momento. Estava sozinha com Acheron, e em sua mente havia um único intento. Não valia a pena perder tempo tentando convencê-lo que Eleonora não era uma assassina. Preferia seguir outro caminho. -Eleonora deve estar sendo agraciada com o nascimento em alguns dias. Talvez... Já tenha acontecido e a qualquer momento chegue notícias sobre sua inocência. Sei que pode ser apenas um desejo, um sonho, mas pode acontecer. Eu preciso de tempo, Acheron. Algum tempo. -Eu posso lhe dar esse tempo. – Acheron aproximou-se, boa parte de si flexionado a concordar com ela.– Alguns dias. Não posso esperar mais do que poucos dias.– ele prometeu – É um risco deixar uma assassina em liberdade. E eu não posso confiar em suas palavras cegamente. -Porque não? – ela perguntou num fio de voz. Acheron afastava a franja da testa de Driana, usando a ponta dos dedos, sendo delicado e gentil, como não era esperado de um elfo tão grandalhão. -Porque você tem o hábito desagradável de mentir para mim.– Ele alegou sério. -Mentir para você? Não. Eu não minto para você – achou por bem esconder seu segredo, para não desfazer a frágil ligação estabelecida entre eles. O Segundo Guardião estava a um passo de ceder e colaborar com sua causa... Nesse caso a verdade apenas causaria dor e sofrimento desnecessário. Quando estivessem seguras, suas amigas em liberdade e sem acusações, ela contaria para Acheron a verdade sobre Jô e lhe pediria sinceras desculpas. -Estou começando a acreditar em você, fada– ele concordou, curvando o rosto para beijar sua testa. Driana suspirou e inclinou-se para mais perto, pedindo ao elfo um abraço. Acheron não forçaria um beijo. Driana viria de livre e espontânea vontade lhe pedir um beijo quando chegasse a hora certa. -Jana vai demorar – ele alegou, levando o carinho para o pé do seu ouvido. Driana afastou o rosto e olhou para seus olhos. Acheron possuía olhos verdes, muito ambíguos. De longe a cor parecia indefinida. Era tão bonito que provocava borboletas em seu estomago. -Ainda bem– ela sorriu, convidando-o para ficar com ela. Foi muito revelador para Driana como fêmea ter a ousadia de pegar a mão do Guardião e o puxar gentilmente na direção da barraca que antes era usada por Misselan e suas comparsas e que agora era inútil e poderia muito bem servir de abrigo para Acheron enquanto estivesse por ali. Driana levou-o consigo para dentro da barraca e lembrou-se num último segundo que não poderia ver seu machucado atrás da orelha, pois aquela ferida pertencia ao garoto Jô e não a fada fugitiva Driana. Soltou a mão do Guardião, e começou a despir as roupas. Não afastou os olhos dos seus. Tão pouco Acheron desviou o olhar. Driana soltou o cinto, e a calça tipicamente usada por elfos, e chutou para longe as botas livrando-se assim de toda roupa de baixo. Faltou-lhe um pouco de maturidade sexual para retirar tudo. Manteve a túnica, e deitou-se sobre as peles que cobriam o chão da barraca, erguendo a túnica até a barriga, revelando toda a parte inferior do corpo. A fera dentro do elfo se manifestou. O cheiro que a fada exalava era insuportavelmente erótico. Pensar que seus dias poderiam ser sempre assim, repletos dessa paixão estonteante, o fez ajoelhar-se no chão, sem retirar a armadura, ou as roupas. Driana moveu o corpo, ansiosa, olhos brilhantes de expectativa. Acheron observou sua barriga lisa, seus quadris redondos e magrinhos, suas coxas separadas e sua intimidade aveludada e escurecida por poucos pelos negros, como um suave pelego de peles. Driana entreabriu os lábios, esperando que ele viesse. Não sabia exatamente se preferia gentileza ou brutalidade, mas quando o elfo curvou-se sobre ela, Driana envolveu seus braços em torno dele, agarrando-o sobre a armadura, apertando o metal, querendo e precisando possuir o Guardião e armadura. Ser aceita pela armadura era um motivo de orgulho. Agora, precisava e queria ser aceita também pelo elfo que a vestia. -Acheron...– Seu sussurro foi carregado de pura luxúria quando o elfo encontrou caminho entre suas pernas e a possuiu com um movimento forte, e preciso.– Acheron! Sim, ela queria gritar, apertar e exibir sua necessidade! Depois da luta, de enfrentar o perigo, muita adrenalina ainda corria em suas veias. Muita loucura impregnava seu sangue e a fazia selvagem. Uma parte sombria impregnava os olhos do Guardião, enquanto a tomava. Acheron não movia o corpo, apenas o quadril e o peso retinha todo o ar de Driana. A intensidade da posição era maior que fatores como demora ou preliminares. Estava sem ar, olhos fechados, cabeça lançada para trás, usufruindo da intimidade e do prazer de estar em seus braços, quando Acheron deu um puxão e mudou a posição. Acheron sentou sobre os joelhos e a subiu, enrolando suas pernas em sua cintura. Os braços do elfo envolveram suas costas, e suas mãos agarraram sobre a camisa e entre seus cabelos, enquanto a fazia descer e subir em seu membro, intensificando o ir e vir, entrando e saindo com raiva, necessidade e poder. Driana encarou seus olhos, incapaz de articular qualquer palavra. Queria que ele soubesse que estava a um passo do disparate, mas não conseguia falar. Segurava seu ombro, sobre o metal da armadura e a outra mão foi deslizada com muito carinho pelo rosto do elfo, sobre o suor. Acheron tentou morder seus dedos e ela soltou uma risada tensa, enquanto se curvava para beijar perto dos seus lábios. Não havia a menor possibilidade de resistir mais tempo e negar-lhe aquele beijo que os dois tanto queriam. Driana estava quase o beijando quando Acheron desviou os lábios, sem notar sua intenção, e mordeu seu pescoço. Driana gritou, trincando as pernas em sua volta, sentindo-o inchar em seu interior, ambos muito perto do final. Corpos suados, grudados, o único empecilho entre eles era a túnica, mas isso não impedia que ele sentisse os seios empinados, e bicos atiçados, espremidos em seu peitoral. Nem mesmo a armadura era empecilho para que sentisse sua pele quente contra a dele. Acheron mergulhou uma das mãos em seus cabelos e os puxou revelando seu pescoço para beijos e mordidas e ela se esqueceu de tudo, gritando de prazer, tentando dizer a ele que estava gozando e era delicioso demais para expressar com palavras. Olhos pesados, fechados, lábios abertos, pedindo por ar. Corpo tenso sendo apertado contra o dele, enquanto o elfo chegava ao mesmo paraíso que ela, e derramava em seu corpo toda sua semente de elfo. Por um louco segundo, desejou estar no cio, ou ter passado por ele, e poder engravidar de uma cria de Acheron. Ser a mãe de seus filhos. O elfo abocanhou muita pele atrás da sua orelha e quando Driana notou, era tarde demais para esconder-se. Acheron parou, e jogou-a no chão, de volta sobre as peles, com horror na expressão. Nem mesmo Acheron em sua eterna demora em raciocinar uma simples conclusão lógica poderia ignorar a ferida atrás da orelha de Driana. Era a mesma ferida que ele vira em Jô. -Não são parentes. Não são amigos. Não são cúmplices – ele disse, caindo para o lado e arrumando as calças, enquanto se levantava. -Acheron! Eu posso explicar!– Ela tentou levantar, mas Acheron agarrou seu braço e a jogou de volta no chão, sobre as peles que forravam a terra batida. -Não, você não pode!– Ele gritou, a fúria falando por ele – Mentiu esse tempo todo! Eu não acredito que tenha feito isso! Que eu tenha... Eu não percebi que o garoto que me ajudava era uma fada! Que espécie de elfo eu sou? -Do tipo burro! - Ela gritou de volta, tremula ainda do recente ato e inconformada por ele não ouvi-la – eu tentei te contar, mas você não entenderia, não queria ver a verdade! Eu lhe dei uma pista! Lá no desfiladeiro, eu lhe dei pistas para que descobrisse sozinho, mas você é uma porta de tão estúpido! Foi incapaz de entender! -Tem coragem de me ofender depois de tudo que fez? – Ele perguntou, tentando caçá-la dentro da barraca. Consciente do que fizera, Driana levantou e correu para fora da barraca. Usava a túnica e não estava nua, mas estava quase. -Eu precisava saber o que acontecia! Precisava estar perto de um Guardião! E se possível, atrasar o máximo possível um Guardião!– Ela defendeu-se. -E eu fui a sua escolha? -Não pode negar que eu não teria tido tanto êxito se houvesse escolhido outro Guardião!– Ela teria rido dele se a situação não fosse séria– Acheron, todo mundo notou! Os irmãos de Jana, o caçador de recompensas Duque... Até os duendes da Floresta de Saul! O único que não notou foi você! -Talvez porque eu confiasse em você!– Ele acusou. -Não! Você confiava no garoto Jô! Não em mim! Nunca confiou em mim!– Tentou respirar fundo e pensar com clareza, mas ele tentou avançar e ela precisou escapar outra vez com receio, de no mínimo, levar umas palmadas. Acheron não era do tipo de elfo que espancasse uma fêmea, mas com a raiva que ele estava exibindo nos olhos... No mínimo de umas palmadas ela não escaparia! E bem merecidas, na verdade. Não tinha medo que lhe batesse, pois Acheron não faria isso com uma fada. Lutar contra uma fada era contra seus princípios. Uma coisa era fazer isso para salvar vidas, outra era fazer por raiva pessoal. -Agora eu vejo com clareza. Rainha Santha está coberta de razão!– Ele acusou – Usou seu dom para me enganar! Participou do plano para assassinar o Rei e fugir! Foi recrutada para me enganar e me forçar a cometer traição! Ter ajuda nesse plano horrendo contra o reino! Agora eu tenho a confirmação de que é capaz disso! -Não! Eu não sou assim!– Com raiva, incapaz de encontrar palavras para se defender Driana pego uma pedra no chão e jogou contra ele. Fez isso várias vezes, querendo que ele sentisse a dor que ela sentia. Acusada sem ter como se defender mais uma vez!– Eu não sabia que iria gostar de você! Eu não sabia! -Mentirosa! Dissimulada! Ardilosa! Cobra peçonhenta, carregada de veneno na voz e nos lábios. Agora eu sei por que não me beijava... Eu teria morrido com seu veneno!– Acusou, conseguindo segurá-la por um dos braços – Me engana há dias, anda ao meu lado, divide da minha comida e dos meus pensamentos. Fiz confidências para um elfo que julgava ser meu amigo. Eu dediquei minha afeição para um garoto órfão que precisava de ajuda e companhia! Brincou com meus sentimentos! -Não exagere! Estou tentando salvar minha pele! Não seja hipócrita! Você atacou seu rei para salvar a si mesmo e sua gente! Para deixar de ser escravo!– Jogou em sua cara, tentando se soltar – qual a diferença entre nós dois? -A diferença é que não nego meus crimes! Não agi pelas costas de ninguém! Tão pouco mordi a mão que me alimentou!– ele sacudiu-a, machucando seus braços, com apertos, pois nessas horas a raiva fala mais alto e Acheron se esquecia da própria força em relação ao porte físico delicado da fada. E na raiva do momento, Driana não notou dor alguma! -Eu não vou admitir uma grande armação! Uma grande mentira! Rainha Santha é uma assassina! Eu não fiz nada! -Mentirosa! O que adianta ter uma inteligência como a sua, se você age como uma bandida? -Não diga isso de mim! Eu fiz o que precisava fazer! Não é minha culpa que seja uma toupeira que não consiga ver a verdade nem que ela dance nua diante do seu nariz! -Nem todos os seres são capazes de mentir com a facilidade que você faz. Nem todos esperam mentiras o tempo todo! Não sou obrigado a imaginar que alguém seja tão baixo quanto você! -Ah, tá – ela desdenhou, querendo irritá-lo – boa desculpa. Eu poderia enumerar as milhares de vezes em que tentei te contar ou que você poderia ter notado, mas não vou fazer isso, pois faltariam dias e noites suficientes em toda a minha vida para dar conta da lista! Eu estava usando as roupas de Jô! Como é possível que não tenha notado? Era verdade. Acheron soltou-a e virou se costas, sua juba longa e loura atraindo-a como um imã. Ela não resistiu. Abraçou-o pela cintura e disse: -Eu não fiz por mal. -Não, você e suas amigas são o próprio mal – ele soltou suas mãos e manteve-as presas nas suas. -Acheron...– ela soube o que ele faria, antes mesmo que ele agisse. Driana foi imobilizada e levada de volta para a barraca.
De volta ao começo
Quando a fada Jana retornou encontrou Driana amarrada e presa dentro da barraca. Acheron estava por perto, mas pela expressão fechada ela soube que não deveria fazer perguntas. -O que aconteceu? – Jana aproximou-se dela. -Não, não faça isso – Driana impediu-a de soltá-la – Não quero que ele se volte contra você.– Sua voz estava carregada de desprezo ao dizer a palavra ‘ele’. -Não me diga que ele notou que você é o garoto Jô!– Jana surpreendeu-se. -Inacreditável, não é? Quem poderia supor que a maior toupeira entre os Guardiões poderia um dia notar que uma fada com quem se deita é também o rapazola que o segue como ajudante? – satirizou. -Não fale tão alto, ele vai ouvi-la – Jana temeu - Tenho pena, é um bom elfo não merece que você ria dele! -Eu não estou rindo!– Driana negou, lutando contra o choro – Estou com raiva. Muita raiva. Ele não quis ouvir meus motivos! Não me deu uma única chance de pedir perdão! Estávamos entendidos, Jana. Finalmente ele ia me dar uma chance de provar minha inocência. Porque isso tinha que acontecer? Por quê? -Meu pai sempre diz que uma mentira não pode ser mantida uma vida toda...– Jana disse pensativa. -Não, não faça isso. Não me lembre de como sou leviana– uma lágrima desceu em sua face e ela fungou alto – eu não acho que Acheron seja uma besta. Eu não acho. Ele é tão ingênuo às vezes... Mas não é uma besta. Agora eu sei que sua credulidade não é falta de intelecto, é apenas desinteresse total pelo mundo de planejamento e mentiras em que as pessoas costumam viver. Acheron é feito só de verdade e naturalidade. Ele não precisa de máscaras. Ele se aceita como é. Ele é tão livre... Mas burro? Não. Ele não é nada burro! -É claro que não é!– Jana concordou. -Mas eu disse a ele o contrário. Foi na raiva. Ele tinha-me... Bem, tínhamos...– ela corou e desviou o olhar – e então, ele descobriu que eu sou Jô e simplesmente me rejeita e detesta? Pensei que gostasse um pouquinho de mim... -Ele gosta. Mas é bastante humilhante passar por esse tipo de enganação. Além do mais, Acheron apegou-se ao garoto. Era seu melhor amigo, Driana. Ele perdeu seu melhor amigo. Driana fechou os olhos e lidou com essa verdade. Sim, esse era outro lado do problema. Acheron não possuía família, e os Guardiões eram como sua família. Uma família unida por dever, lealdade e amor a uma causa. Provavelmente o pequeno Jô havia sido seu primeiro amigo verdadeiro e despretensioso em anos. -Eu sou um monstro – ela disse chorando. -Não é não. O que eu faço? Intercedo por você? – Jana perguntou. -Não. Cuide das coisas dele. Faça a comida, cuide do cavalo... Quando Acheron encontrar o animal precisará de ajuda. Essa besta é bem capaz de ter esquecido que deixou o cavalo perto do desfiladeiro, no outro acampamento que tínhamos.– ela disse com rancor, era impossível conter um pouco de rancor por Acheron não entender seu lado e não perdoá-la.– Se não houver outra alternativa... Você me liberta. -Está bem.– Jana concordou– Não fique tão nervosa. A raiva vai passar e Acheron vai pensar com clareza... -Ah. Isso eu queria ver acontecer – ela desdenhou outra vez. Claro, era esse o momento que Acheron acharia para entrar na barraca. Ele ouviu a última parte da conversa e sabia que o desprezava como ser pensante. -É preciso muita prepotência para uma assassina sentir-se inteligente – ele desdenhou também. -Eu gostaria de ter certeza que você conhece o significado da palavra ‘prepotência’ antes de me sentir ofendida – ela retrucou. -Saia– ele ordenou e Jana obedeceu. -Eu já sei que me odeia e vai me entregar para Rainha Santha de vingança por ter mentido para você mais uma vez. Não precisa vir aqui me lembrar disso – seu orgulho a impediu de ser cordata e tentar acalmá-lo em vez de enfurecê-lo. -Estou tentando entender como pode me enganar tanto tempo -ele foi franco – Mas não deve ter sido muito difícil. Agora reparo que mais parece um elfo do que uma fada.– ele desmereceu. Atingida em sua vaidade, Driana não respondeu nada. -O encanto acabou, fada da clausura. Não vejo mais beleza alguma em você. Vejo apenas a face de uma fada bandida e o cheiro de pobre que exala dos perversos. -E eu posso saber como será daqui por diante? Vai me levar de volta para o castelo? – Perguntou petulante. -Sim, vou levá-la para a Vila dos Desesperados. Vou encontrar Solon e ajudá-lo a capturar a fada Alma. Quero que carregue esse remorso, fada traiçoeira. Vou usá-la como isca para atrair suas amigas. Buscava me atrasar e atrasar as buscas dos Guardiões? Pois sim, agora será a causadora do êxito de todos eles.– Acheron ameaçou. Driana lutou para não lhe dar uma resposta feia. Tentou ignorar seus olhos que viam muito mais do que um Guardião de pé perto dela. Não era boba, ele dormiria com a armadura. Prova que esperava uma nova batalha. Ele pretendia lidar com ela como lidaria com um oponente. Usaria a armadura como escudo para o encanto que existia entre eles. Depois do que fizera, a armadura demoraria para aceitá-la novamente. Enquanto durasse a fúria do seu mestre, duraria também a rejeição da armadura! Triste, Driana afastou o olhar e não respondeu nada. -Vai pagar por ter me feito de idiota.– Ele prometeu com voz baixa, exibindo muito da mágoa que imperava por de trás da raiva. -Eu não o fiz de idiota. Você é um idiota!– Fervendo por dentro, Driana não resistiu - teve momentos que eu nem acreditei na sua estupidez! Seguindo pistas de fadas de tavernas? Parando em cada pardieiro que encontrou no caminho para beber e deitar-se com fadas? É bem capaz que estivesse até agora procurando por mim, se eu não tivesse feito à besteira de seguir com você! Duvido que sozinho pudesse me encontrar! -Fala que sou burro, que sou tolo, mas eu não vejo sua inteligência toda. Eu vejo uma fada mentirosa, enrolada com as próprias armações. Eu vejo uma criatura desesperada que usou de artimanhas para conseguir alcançar um gigantesco objetivo! Eu teria ouvido você, fada. Eu teria ouvido, lá atrás, quando deixei o castelo com uma pulga enorme atrás da orelha, duvidando de cada palavra dita pela Rainha Santha! Eu poderia ter ouvido, quando pensava que as quatro fadas fossem criaturas desgraçadas pela vida, sem voz e sem direito a defesa! Eu teria ouvido! – Ele gritou e Driana se encolheu, magoada e assustada – Mas agora, eu quero terminar logo esse trabalho e nunca mais pensar em você e sua tão suprema inteligência! -Não fale assim comigo, Acheron– ela pediu, chorando – Não fale assim comigo, eu queria o bem das minhas amigas, eu só queria sobreviver... Já passei por tantas coisas na vida... Eu não sabia o que fazer e fiz o que consegui. Eu estava tão perdida... Tão sozinha, com tanto medo... Por favor, não me odeie. -Eu não posso nem olhar para você. Não quero saber das suas lamúrias. Use sua inteligência para convencer os Guardiões e Conselheiros de sua inocência. Pois comigo não conseguirá mais nada! Ela ficou sozinha e chorou. Culpada, chorou por não ser capaz de se expressar quando mais precisava de palavras e argumentos. Era isso, quando os sentimentos assumiam, os pensamentos coerentes fugiam. Fora da barraca Jana observou o Guardião andar em círculos, retirar a armadura, e procurar um canto para sentar, escondendo a cabeça entre as mãos. Seguindo as recomendações de Driana, preparou comida e cuidou de manter Acheron satisfeito. Depois de servi-lo, no final do dia, Jana disse baixo, para não correr o risco de irritá-lo: -Driana não comeu nada o dia todo. Na verdade, desde ontem que não come nada. Eu sei que vai entregá-la para ser julgada... Mas ela ainda não foi sentenciada. Seria justo que passe fome? -Estou começando a achar que todas as fêmeas com quem esbarro não valem nada. – Ele disse pensativo. -É o jeito da fada.– Ela disse com cuidado para não enfurecê-lo – Ela é tão inteligente. Deve ser difícil ser assim o tempo todo. -Tão difícil que ela se acha no direito de enganar a todos que tentam ajudá-la? -É um Guardião, e está caçando-a. Não está tentando ajudá-la. Nunca ergueu um dedo para amparar Driana.– Jana disse e quase saiu correndo para a barraca, para não ver sua reação. Acheron ignorou suas palavras, mas não podia negar que elas martelavam em sua mente. Ele não possuía um décimo da inteligência da fada, isso era a mais pura das verdades. Nunca foi um elfo preocupado em pensar, e sim agir. Era ligado com os assuntos que vinham da terra. A natureza e aos animais. Nunca se preocupou com a opinião dos outros. Inconformado em ter sido enganado desse modo, Acheron sorriu pensando em como causar nela um pouco da aflição que sentia. Jana estava ajudando-a a comer quando Acheron afastou as peles que cobriam a entrada da barraca e ficou observando-as. Driana manteve os olhos sobre o elfo enquanto mastigava com firmeza, pois apesar dos pesares, estava faminta. Acheron fixou o olhar na fada Jana, observando com interesse forçado cada pequeno movimento da fêmea. Desde as pernas bonitas que escapavam pela fenda da túnica surrada que vestia, até os pés cobertos de sandálias de couro trançado artesanalmente. Os cabelos macios, bonitos e longos, parecidos com os de Driana. Reparou em tudo. Incomodada com o olhar, Jana olhou para ele e então para Driana, desconfortável em permanecer entre eles. Driana cerrou os lábios, furiosa. Sabia muito bem a intenção de Acheron. Magoa-la lhe causando ciúmes. Entender previamente as intenções dele, não impedia que ela sentisse raiva imediata. Queria ter o poder de romper as cordas e sumir dali. -Obrigada – ela negou quando Jana tentou lhe oferecer mais comida. Seu apetite havia desaparecido completamente. Aceitou um pouco de água fresca de uma cumbuca de barro. -Quero que durma lá fora essa noite, fada – Acheron ordenou para Jana.– Deixe a prisioneira sozinha. Ela não merece companhia. Jana obedeceu. O porco deixava claro que algo aconteceria entre os dois, ao dormirem juntos ao relento. Remoendo essa indireta, Driana convenceu a si mesma que Jana era uma fada de respeito e que não cederia ao elfo, mesmo que ele insistisse. Sozinha na barraca, Driana tentou afastar da mente a imagem vívida de Acheron entrelaçado ao corpo nu de Jana, ambos se amando loucamente. Era o ciúme falando mais alto. O ciúme! Driana tentou ouvir conversa, mas não ouvia nada. Silenciosos. Com a mente repleta de minhocas, Driana fechou os olhos e tentou desesperadamente parar de pensar. Deixar a mente limpa. Pensar unicamente nas amigas e na liberdade. Precisava pensar em um modo de sair daquela situação sem agredir Acheron, e sem causar mais problemas para o Guardião e quem sabe, sem causar ainda mais fúria em seu grande amor. Apesar da razão que pairava em sua mente e lhe dizia que tudo ficaria bem e que precisava apenas manter Acheron parado, no mesmo lugar, perdendo tempo com ela, enquanto Eleonora padecia do nascimento das asas que as inocentariam num futuro muito próximo, um outro sentimento gritava em seu coração que elfo e fada estavam muito silenciosos e que ela temia que Acheron estivesse traindo-a onde mais doía. Sabendo que desempenhava um papel ridículo, Driana escorregou para o chão, engatinhando até a abertura da barraca, para espiar o que acontecia lá fora. Não avistou nem Acheron, nem Jana. Sufocando um grito de raiva, voltou para o mesmo lugar que estava antes e sufocou o choro de ciúme e raiva. Não teve êxito, pois o choro sufocado era ainda mais doloroso.
Driana decidiu por dar o troco nos dois. Era imaturo, principalmente com Jana que não tinha culpa de nada, mesmo assim, Driana manteve-se calada, sem pronunciar palavra alguma, ignorando ambos descaradamente.
Como suspeitava, Acheron não encontrou o lugar onde havia deixado seu cavalo. E como penitência para sua própria incapacidade, recebeu um olhar de desprezo intelectual vindo de sua prisioneira.
Com as mãos amarradas para frente, Driana andava lentamente ao lado de Acheron. Ele quis assim, para vigiá-la bem de perto. -Andar, andar, andar– ela sussurrou para irrita-lo – vou andar, andar, pela Floresta andar...– era uma cantiga que as carcereiras do Ministério do Rei cantavam para os pequenos dormirem a noite voar, voar, eu vou voar... Quando minhas asas nascerem, voar, voar e voar... Acheron lhe cutucou com a bainha da espada, tentando avisá-la por bem que estava ficando irritado e que isso teria fim ela querendo ou não. -Cair, cair, cair... Voar com minhas asas, para não cair, cair, cair... Ela olhou para ele com desafio. Seus olhos lhe diziam a seguinte mensagem: se eu não posso puni-lo por me causar ciúmes, ao menos, vou deixá-lo tão irritado quanto eu estou me sentindo! -Ouvi dizer que a fonte dos desejos é incrível. – Jana tentou puxar assunto, pois Driana a olhava com sangue nos olhos. E Acheron estava assustando-a com tanta atenção e flerte. O elfo era um exemplar perfeito de masculinidade e força. Temia ceder. Não era de ferro, e os cabelos louros, a pele bronzeada do sol, e os olhos claros eram excitantes para quem não conhecia o amor carnal consentido e ansiava para ter um pouco de amor. Jana ainda carregava em seu coração a sombra de um amor perdido, e temia se deixar enganar pela tentação de ser amada por alguém tão provedor, protetor e doce quanto Acheron. Doce? Sim, era doce o modo como ele lutava contra os próprios sentimentos em nome de um estranho amor que nascia e vingava entre ele a fada da clausura. -Gostaria de conhecer a fonte antes de sairmos da Floresta dos Desejos? – Ele ofereceu meloso. Seu tom era de puro flerte. Driana revirou os olhos, furiosa. -Sim, eu não sei se voltarei para essa floresta algum dia.– Jana tinha os olhos brilhantes de expectativa. -Seu desejo é uma ordem, bela fada – ele disse falante e Driana parou de andar, e encarouo.– Ande, prisioneira – ele a empurrou de leve pelo ombro, para que não parasse. -Bela fada – ela murmurou irônica – Tenha dó. Não era sua intenção desmoralizar os predicados de Jana, por quem sentia um profundo apreço, mas o ciúme a impedia de achar natural Acheron elogiar e flertar com ela! -Eu tenho esperança que meu desejo mais intenso seja atendido – Jana contou, animada com a ideia de conhecer a fonte dos desejos. -E qual seria esse desejo? Definitivamente Acheron queria arrancar de Driana uma reação. Ela engoliu essa desfeita, de ter que assistir seu súbito interesse na fada Jana e fingiu uma indiferença que não sentia. -Um desejo de que minha família encontre o que procura a tantos anos. Que meu pai possa finalmente ser feliz e libertar-se da culpa de não ter protegido minha irmã. Eu sonho com o dia que minha irmãzinha voltará para casa. Minha mãe não viveu para ver isso acontecer... Mas meu pai há de ter muitos anos de felicidade convivendo com a filha que lhe roubaram. Eu sei que é tolo, mas eu desejo muito que ela seja minha amiga. Que sejamos irmãs de verdade, como se houvéssemos sido criadas juntas e o tempo não houvesse passado e a separação não existisse. Mesmo que esse desejo seja impossível, eu gosto da ideia de pedir por isso. Se houver uma força mágica nessa Floresta que tenha esse poder... Não custa tentar não é? O sorriso de Jana era alegre, mas em seus olhos havia um brilho que desmentia sua esperança. A vida não tinha lhe mostrado a melhor das suas faces e por conta disso Jana também lutava contra o sentimento de desanimo e revolta. Driana entendia esse sentimento. -E você, Driana? Pensa em fazer um pedido? – Jana mudou o assunto, provavelmente para afastar a tristeza. -Não. Não farei pedido algum– foi franca. -E o que mais ela poderia querer na vida além do seu cérebro brilhante? Uma inteligência incomparável? O que mais um ser vivo pode precisar para ser feliz além de si mesmo? – Acheron provocou ainda revoltado por ter sido chamado de burro pela fêmea a quem tinha apreço. Por isso a ofendia chamando-a de egoísta. Driana tentou não se importar, pois lá no fundo, ele tinha razão. Era egoísta! -Tem razão. Eu não preciso de mais nada – ela foi categórica e vingativa. -Driana, é claro que você precisa fazer um pedido!– Jana duvidou, sorrindo diante das rusgas entre Guardião e a fada da clausura. – Não quer pedir pela liberdade de suas amigas? Pedir por sua própria vida? Diana ficou calada. Sim, ela queria fazer isso, mas temia que seus desejos mais íntimos interferissem no pedido. Afinal, a Fonte dos Desejos realizaria o desejo mais profundo de um ser, e ela não poderia saber com total certeza qual era o verdadeiro desejo de sua alma, poderia? -Quem disse que a mágica da Floresta dos Desejos é verdadeira? Pode ser tudo uma grande besteira. Eu posso afirmar com toda convicção que a Floresta dos Dois Dias não possui mágica alguma. Desvendei seus mistérios com apenas alguns minutos percorrendo suas estradas. Quem garante que a fonte não é apenas outra armação para enganar os olhos alheios? Para que os tolos se percam em longas e arriscadas viagens, em busca de uma fonte que não significa nada além de enganação? Não, prefiro não correr o risco de fazer papel de boba. Pois de bobos, o mundo já está suficientemente cheio – olhou para Acheron com veneno no olhar. -Não tanto quanto está cheio de assassinos e bandoleiros – ele corrigiu. -Hum, disso não entendo. Não sou especialista nesse tipo de gente.– ela desdenhou. -E como poderia? É incapaz de ver qualquer um que esteja além do seu próprio umbigo – ele acusou entre dentes, cutucando-a outra vez com a bainha da espada. Driana parou de andar e sentiu o impulso de dizer a ele exatamente onde deveria colocar aquela espada! Mas não o fez. Retomou a caminhada calada. -Peça por sua vida, Driana - Jana disse depois de algum silêncio– Não deixe o orgulho falar mais alto. Pode ser uma chance. Pode ser mágica de verdade. -Não – ela disse pensativa– Se eu fizer um pedido, não será por minha vida. Eu tenho receio de... -Do que tem medo? – Jana andou ao seu lado, e Driana tentou fingir que Acheron não estava perto ouvindo cada palavra que dizia. Driana pensou nessa pergunta. -Você tem certeza de qual é seu verdadeiro desejo, Jana? Como pode saber que as palavras que sairão da sua boca são as palavras que seu coração e mesmo sua alma, entendem como seu verdadeiro desejo? Quem é capaz de alegar conhecer a si mesmo tão profundamente? E se essa magia existir e tiver o poder de ver nossos corações em carne viva? Sem máscaras, sem rodeios e sem atalhos? Eu não poderia escolher realizar um desejo meu, sabendo que minhas amigas correm perigo. Prefiro padecer com elas, a vê-las sofrerem desamparadas.– admitiu em voz baixa. -Acha que seu verdadeiro desejo não seria a liberdade? – Jana não compreendeu. Driana não queria responder, mas Jana era bozinha com ela, e merecia esse carinho. -Sou uma fada do Ministério do Rei. Não conheci meus pais. Não sei minhas origens. Penso se o desejo de uma vida toda não pode ser maior que o amor que sinto por minhas amigas. E eu odiaria se isso fosse possível. Pois é esse amor que é real e presente na minha vida. O passado não volta. Não quero correr o risco de me sentir culpada por trocar o amor das minhas amigas por sonhos de infância. Seu desânimo silenciou a insistência de Jana, mas não os pensamentos de Acheron. -É curioso que uma fada labiosa como você seja incapaz de encontrar um modo de ludibriar a fonte dos desejos.– Ele disse com rancor e ironia, mas ela percebeu que seus olhos verdes brilhavam com algo de incentivo. Driana observou-o passar por ela e tomar a liderança, sem lhe dar atenção, apenas puxar a corda que prendia suas mãos, puxando-a para que andasse mais rápido. -Argh, e eu pensando em lhe dizer onde ficou esquecido seu bendito cavalo!– Ela reclamou, seguindo-o, tendo que correr para alcança-lo. Jana precisou planar, usando as asas para apressar-se. -Meu cavalo está a salvo. Não posso levá-lo pelo Deserto, tão pouco há necessidade de correr atrás de um cavalo, tendo tantos a disposição na Vila dos Desesperados.– Ele alfinetou-a. -É crueldade abandonar um cavalo sozinho na Floresta!– sabia que era uma tentativa vã de atrasá-lo, mas não custava tentar. -Um dos meus irmãos deve ter se lembrado do animal – Jana intrometeu-se, sem notar que acabava com seu plano recém-elaborado de atrasá-lo. -Espero que sim– Acheron ameaçou e Driana suspirou. -Deixe Jana em paz, Guardião Secundário – ela satirizou, pois ele não era o primeiro em hierarquia, e sim o segundo – É patético flertar com a fada sem intenções para com ela! -E quem disse que não tenho intenções com a fada? É bonita, jeitosa, cheia de curvas. Gostei de sua família, de sua gente, e como você deve lembrar, pois me arrancou essa informação valendo-se da minha confiança, no seu disfarce ridículo de elfo... Eu tenho planos de ter uma fada em minha vida. Uma fada especial, e não vejo razões para Jana não ser essa fada– ele avisou. -Pobre Jana, não merece esse carma – ela disse para ofendê-lo. Acheron puxou a corda e ela reclamou do passo. Furiosa, Driana baixou o corpo e pegou um graveto no chão e jogou nas costas do Guardião. -Não ouse me desafiar – ele avisou, e ela repetiu o gesto. -Nossa, quanto medo eu sinto de um Guardião que pretende me entregar para a morte. O que de pior você pode fazer? Jana ascendeu aos céus e pareceu incomodada de presenciar a briga, ainda mais sendo usada como pivô de uma discussão que mascarava a verdadeira conversa que os deveriam ter. Acheron olhou para ela e disse para irritar Driana: -A fada possui um voo lindo. Suas asas são bonitas e bem feitas. Imagino como deve ser atraente possuir uma fada com essas asas longas e bem torneadas. Uma fada com suas asas. Sempre mais atraente que uma fada velha, sem suas asas. -Não sou velha!– Ela gritou, irritada – Minhas asas vão nascer em breve! -Não vão não.– ele disse maldoso, olhando em seus olhos, ignorando a beleza da face angelical, corada pela briga, pelo ciúme e pelo esforço físico da caminhada estando amarrada.– Não há sinal de nascimento – ele mentiu – e pelo que eu vejo suas asas não nascerão enquanto for mentirosa e ardilosa. Driana estreitou os olhos, com raiva, mas se conteve. Não desceria ao seu nível de criancice. Superior, ela virou a face e recomeçou a andar, dizendo com malícia: -Pelo menos não sou um trasgo ignorante, incapaz de diferenciar um macho de uma fêmea com quem se deita. É incrível que tenha chegado a essa idade sem nenhum... Incidente. Para essa acusação e alfinetada, Acheron não possuía resposta. Na verdade era custoso tentar vencê-la com argumentos. Pois isso restava exercer seu domínio como podia. Puxando-a pela corda, Acheron seguiu andando mais a frente, num passo que sabia que a desgastaria rapidamente. Driana forçou o pensamento a desviar das ações e palavras de Acheron. E acabou pensando na Fonte dos Desejos. Acheron lhe dera uma ideia esplêndida. Achar um modo de ludibriar a fonte dos desejos e salvar todas as possibilidades, abrindo margem para ser atendida em três desejos de uma única vez! Enganar a Fonte, usando de artimanhas, como dizia Acheron. Analisando seus sentimentos mais íntimos, encontrava o desejo de conhecer sua família ou ao menos saber sua origem. Encontrava também o desejo de liberdade e salvação para suas amigas e para si própria, sobretudo, recentemente, o desejo ardoroso de encontrar uma forma de permanecer ao lado de Acheron como sua companheira. Eram três fortes desejos, mas ela não sabia qual prevaleceria na hora da escolha. Precisava encontrar um modo de realizar os três, e não correr o risco de desperdiçar sua chance. Até agora Driana não vira nenhum sinal de magia naquela Floresta, com exceção das criaturas mágicas que viviam harmoniosamente na mata. Precisava analisar a fonte e descobrir se ela possuía magia ou não. Afinal, a nascente do Rio Branco era carregada de mistérios e magia. Já a Floresta dos Dois Dias não era nada além de uma Floresta carregada de mitos e boatos. Seu suspiro de impotência chamou atenção de Acheron que fincou os olhos na fada da clausura. Mas ela estava perdida em seus pensamentos e não reparava nele. Acheron permaneceu olhando-a desse modo por muito tempo notando que a fada não percebia nada a sua volta, perdida em um mundo somente seu. Era assustador imaginar que alguém pudesse ter uma profundidade tão grande a ponto de esquecer-se de tudo, e permanecer cativa de sua própria mente. A fada Jana parecia ter razão ao dizer que deveria ser angustiante ser um eterno refém da lógica e da razão. Acheron notou o exato momento em que sua mente privilegiada chegou a uma conclusão sobre o assunto que martelava em sua mente. Driana sorriu e ergueu os olhos, finalmente reparando no mundo a sua volta. Jana revoava em torno deles, indo de árvore em árvore, encantada com o vale de bromélias que se estendia em volta, pois haviam alcançado as imediações da divisão entre a Floresta dos Desejos e o Deserto das Areias Vermelhas, local onde encontrariam a Fonte dos Desejos. -Eu já sei!– ela disse empolgada, esquecendo que o elfo a odiava – Eu já sei como enganar a fonte! Eu já sei! -E quem lhe disse que deixarei que se aproxime da fonte?– Ele disse bem perto de seu ouvido, arrepiando sua pele, e lhe causando um suspiro de êxtase incontrolável. Amor bandido esse que a fazia sentir saudade de ser dominada pela sensualidade de um macho que não acreditava em sua inocência! -Se me deixar amarrada eu dou um jeito de fugir. Ou me leva com você... Ou começamos o jogo de esconde-esconde outra vez – ela ameaçou. Acheron olhou bem para ela. Sim, em se tratando de Driana, Acheron era um elfo burro demais para encontrar meios de submetê-la a sua vontade. -Ande de uma vez, que não tenho paciência para você – ele disse inconformado. Fechando os olhos, e pedindo ajuda aos céus, Driana seguiu-o.
Belas fadas
Acheron obrigou-a a assistir seu excesso de zelo ao ajudar a fada Jana a descer pelas pedras em direção a Fonte dos Desejos. Amarrada em um tronco de árvore, Driana observava-os. Por mais que Jana fosse uma santa, ainda assim, corava como uma boba a cada galanteio do elfo. Apesar da fúria provinda do ciúme, Driana precisava admitir que Acheron e Jana combinavam. Juntos seriam um par perfeito. Juntos construiriam uma família feliz e honesta. Magoada com o destino que a fizera tão desgraçada, Driana tentou soltar as cordas que amarravam suas mãos e pernas. Acheron era burro na mesma medida em que era forte. Seria impossível soltar as cordas sem usar de sua inteligência. E mesmo com sua inteligência, às vezes havia o limite do corpo. Como agora, ela via com clareza pedras suficientemente afiadas para usar como navalha e soltar as cordas, mas para isso precisaria de asas para erguer seu corpo até elas. Afinal, era uma prisioneira de seu próprio corpo e isso doía na alma. A voz dos dois vinha ferir seus ouvidos. Mesmo o risinho contente de Jana lhe causava urticária. Odiaria transferir seu ciúme para Jana, mas estava quase impossível não se voltar contra ela. -A fonte existe!– Jana correu para lhe contar, arfante, sem fôlego da surpresa – Oh, Driana, a fonte é linda! Linda! -Fico feliz por você. Como vê, não sairei daqui tão cedo.– disse com amargura, olhando par abaixo. -Quer que eu peça a Acheron para deixá-la aproximar-se da fonte? –Jana perguntou. -Sim, eu quero, mas seria humilhante demais. Eu gosto dele, Jana. Eu gosto de verdade desse gigante sem cérebro. Eu deveria libertá-lo para ter um amor fácil e feliz. Alguém descomplicado que pudesse lhe dar uma vida calmaria, que é o que ele tanto deseja e merece. Mas eu não consigo ser tão abdicada assim! Eu não quero que arraste asa para ele, Jana. Deveria ser racional, mas não é. Não quero, não quero e não quero! – bateu o pé no chão, sem perceber o quanto estava sendo ridícula. -Eu não arrasto asa para o Guardião, mas se ele não a quiser... Eu poderia pensar nisso, não poderia? – Jana sorriu e Driana tentou não se irritar. -Não, não poderia – ela negou e Jana correu para a fonte, deixando-a sozinha outra vez. Minutos depois Acheron voltou molhado, água correndo por seu peitoral nu. Ele havia retirado à armadura, e as calças coladas em suas coxas, pernas e masculinidade, atraíram sua atenção. Ele era muito bonito de cabelos molhados. Todo louro, pelos do corpo claros como seus cabelos. Quis afastar os olhos, pois o sol coroava os pingos de água e ela sentiu um impulso incontrolável de lamber cada gotícula de água que corria por sua pele bronzeada pelo sol... -Não pense que faço isso por você – ele disse bem perto, soltando as cordas com puxões brutos, fazendo-a reter o ar, tão pertinho assim, erguendo os olhos para encara-lo, torcendo para ser beijada, abraçada e jogada na grama. Não era definitivamente, um pensamento racional. -Jana pediu, e eu quero agradá-la.– ele avisou. -Não, não quer. Você quer me ofender, agredir e desestruturar.– Não pode evitar de dizer, enquanto pousava uma das mãos em seu ombro, estando solta. Acheron desceu as cordas em seu tornozelo, correndo as mãos em suas pernas, com o corpo curvado. Estava nua sob a túnica e desejou poder erguer a roupa, e atraí-lo. Mas isso não levaria a nada. Acheron se recompôs e afastou suas mãos, com raiva de quase ter se deixado levar pela fada da clausura. -Cale a boca e baixe a cabeça. Não quero ver seus olhos, fada. Prisioneiros não olham nos olhos de seus senhores. Driana guardou essa ofensa para ser respondida mais tarde. Em meio às bromélias e folhagens, pedras formavam uma fenda, que levava diretamente para uma estrutura subterrânea. A claridade do dia foi escondida, e eles andaram por alguns minutos no escuro até que uma fenda no alto da estrutura rochosa banhava de luz a fonte. Um pequeno laguinho, onde uma fonte brotava do chão, em uma altura de um metro de água que borbulhava. Jana estava ajoelhada na beira do laguinho, e tinha a cabeça baixa, e Driana parou de andar, fazendo com que Acheron parasse também. Era questão de respeito. A fada terminou e olhou para os dois. Um pequeno sorriso envergonhado e Jana aproximou-se. -Faça um pedido, Acheron – ela disse meiga.– eu cuido de Driana. -Não – ele negou– Estou a trabalho nessa Floresta. E tenho pressa de chegar a Vila dos Desesperados.– ele negou empurrando Driana na direção do laguinho. Driana puxou o braço com força, empurrando-o quando tentou pegá-la de volta. Era assim entre eles. Um bate, outro rebate. Acheron não esmorecia porque ela tinha a desculpa de ser uma fêmea. E era completamente revoltante admitir que ficasse excitada com esse comportamento dominador do elfo. Andou alguns passos, permitindo que seus pés entrassem na água, pisando sobre as rochas. Não aconteceu nada diferente. Era apenas água gelada. Nada especial aconteceu. Um pouco frustrada, Driana olhou para a água por um bom tempo. -Faça seu pedido – ele mandou com a voz carregada de impaciência.– Faça em voz alta para que eu saiba que não está rogando minha morte.– não resistiu a alfinetar. Driana olhou para o seu Guardião. Tão bonito. Tão viril. Tão honesto. -Eu desejo a verdade – pediu - A verdade e apenas a verdade. Esperou com o coração acelerado. Nada especial aconteceu na superfície da água, mas Driana sentiu a água aquecer e as pedras sob seus pés nus seguirem o mesmo caminho. A fonte jorrou água com mais força, e ela fechou os olhos, sentindo-se parte dessa magia. Muito sutil, muito delicado, uma magia perfeita para enganar viajantes solitários ou mágica verdadeira e mal compreendida? Acheron invadiu o espaço de Driana e a puxou pelo braço. Levou-a para longe da fonte e começou a arrastá-la para longe. Pedir pela verdade, era o melhor caminho para Driana. A verdade de sua origem, a verdade para Eleonora e suas amigas de martírio, e a verdade sobre seus sentimentos para com o Segundo Guardião. Que a fonte atendesse seu pedido. Essa foi sua oração secreta. -Me solta – ela soltou-se e encarou Acheron– Eu sou sua prisioneira. Não tenho para onde fugir! Deixe-me beber um pouco de água e lavar o corpo! Eu tenho direito a um momento de higiene! Que droga, Acheron! -Não, você não tem direito a nada!– ele rechaçou seu pedido e a levou para fora mesmo sob seus protestos e gritos.
Gritos que não sobreviveram aos próximos dias. Cada vez mais calada e sombria, Driana amargava a proximidade entre Acheron e Jana, e também a rapidez com que percorriam as estradas.
A Floresta dos Desejos era protegida e por conta disso era necessário o uso do pó de ouro que Driana havia derrubado quando ainda era o rapaz Jô. -Se você não houvesse destruído minhas calças, teria pó para usar– ela ironizou– não me olhe assim, eu não destruiria o pó de ouro sem ter guardado um pouco para mim. Da próxima vez que usar de sua selvageria contra uma fada durante a copula cheque os bolsos da calça da coitada. Talvez isso o ajude a solucionar seus problemas futuros! As máscaras haviam caído e seu mau humor era retribuído diretamente pela raiva de Acheron. A situação entre eles era simples e ao mesmo tempo complexa. Estavam tensos, e essa tensão provinha do desejo reprimido e das acusações e ofensas divididas. -Eu posso conseguir um pouco de pó de ouro – Jana ofereceu, pois poderia voar e adquirilos na Vila dos Desesperados. -Acontece que tenho meus truques – Acheron disse com um meio sorriso provocador, que desejava irritar Driana. Ele retirou do ombro o saco de couro onde carregava sua armadura. -Não faço uso da minha armadura por pouca coisa –ele explicou atencioso com Jana – mas em casos extremos...– encaixou parte da armadura no braço e olhou com desafio para a fada.– Abro uma exceção. Tenho pressa de encontrar Solon. -Se ele for tão inteligente quanto você... Isso deve acontecer em uma próxima vida– ela alfinetou, insinuando que os dois Guardiões não teriam capacidade para exercer seus cargos. Acheron afastou-se das duas, e Driana manteve os olhos fixos no Guardião. Ele não vestia as roupas, apenas a calça, e uma das peles cobria seu ombro, juntamente com o cinturão com a espada e a adaga. Jana perdeu o interesse, e sentou para esperar e descansar. Driana nunca se cansaria de ver o Guardião na total posse de seu poder. Acheron ergueu o braço dobrado em direção à barreira invisível que delimitava a fronteira entre a Floresta dos Desejos e a escondida bifurcação que conduziria ao Deserto das Areias Vermelhas, ou a Vila dos Desesperados. Luz irradiou do metal e a magia do lugar se rendeu ao poder do Guardião em posse de sua armadura. Era um espetáculo que Driana jamais se cansaria de assistir. Uma reprise esperada, onde estavam outra vez diante da vegetação que se esticava e encolhia revelando ambos os caminhos. Uma larga estrada de pedras direcionava para a Vila dos Desesperados. Uma estrada de terra batida e vegetação seca indicava o caminho para o Deserto. Satisfeito consigo mesmo, Acheron olhou na direção de sua prisioneira, como quem diz que se superou e não precisa de inteligência para salvar a si mesmo. -Penso em como seria se não possuísse sua armadura – ela alfinetou mais uma vez. -Pensa demais para quem não é dona da própria vida– ele puxou a corda e a arrastou para junto de si. -Lá vamos nós de novo – ela ironizou. Sim, além de tudo precisava lidar com o tédio de seus pensamentos. Sua mente era um inimigo poderoso ameaçando enlouquecê-la com tanta agitação. -Diga, Driana, porque está tão doente? – Jana planou ao seu lado – Tem estado deprimida desde que foi apanhada. -A prisão não é causa suficiente? – Ela desdenhou, descontando em Jana sua frustração. -Sim, mas vindo de você... Causa-me espanto – ela disse triste em ser o alvo de sua magoa. -Alguém como eu? – Não compreendeu. Jana olhou para baixo, envergonhada. -Você sempre sabe tudo, e deve saber como se livrar disso. – foi sincera.– É tão inteligente! -É claro que sei como me livrar dessas estúpidas cordas – ela sacudiu os pulsos e Acheron olhou para trás, fitando-a com desconfiança – Mas não posso colocar em prática nenhuma das minhas opções de fuga. Isso é frustrante. As ideias ficam na minha cabeça e me enlouquecem. -Porque não pode por em prática? Eu não entendo. – Jana segurou a corda e assim, Acheron obrigou-se a reduzir a caminhada, pois fingia agradar Jana. A fada queria aliviar o sofrimento físico de Driana. -Tem ideia de quantas oportunidades já tive de fazer esse gigante sem tutano cair e rachar essa cabeça dura ao meio? Umas mil chances desde que foi aprisionada! Uma pedra no lugar certo, um tropeço no lugar errado, e ele estaria de joelhos aos meus pés!– ela disse azeda. -É mesmo? – Acheron parou de andar e encarou-a.– E posso saber como você faria isso? -Olhe pro chão, seu imbecil. E olhe o seu tamanho – ela disse irritada - se eu puxasse essa corda enquanto estivesse andando com essa força bruta que exala o tempo todo, você acabaria pisando em falso em uma dessas pedras afiadas. Elfos do seu tamanho não primam pelo equilíbrio. Acha que não notei que pende para a direita quando anda? É um pequeno desequilíbrio em seu pé. Algo muito sutil, mas que no seu caso poderia induzir a um tombo. Estimo que pela massa corpórea que possui, bateria a cabeça, então, se eu fizesse isso num campo repleto de pedras afiadas como este... Você estaria no mínimo desacordado por alguns estantes, e eu poderia facilmente desamarrar as mãos e fugir. -E como desamarraria suas mãos? – ele perguntou sabatinando-a. -Usaria o fio da lâmina da sua armadura. Ela não me rejeita e eu poderia usa-la facilmente. A corda cederia. É fato. O único empecilho entre mim e sua armadura é você. - Notando a expressão pensativa de Acheron, ela disse para ofender e espezinhar - não faça essa cara, elfo estúpido, essa não é a única vez em que pensei em como seria fácil mata-lo e culpar o acaso. Quando era Jô tive inúmeras oportunidades. Tavernas, elixir proibido, fadas roliças... Você não prima por seu bem estar e por frequentar lugares de boa fama – ergueu uma sobrancelha em deboche. -Deve ser horrível ter um dom que só tem serventia ao fazer mal aos outros – Acheron devolveu-lhe a ofensa. -Hum, eu não sei... Até alguns dias atrás a maior das bestialidades que cometi foi surrupiar um dos livros proibidos da biblioteca das carcereiras. Seu tom altivo teve o poder de instiga-lo a andar. No fundo, Acheron pensava em como era perigoso alguém com essa mente privilegiada ao seu lado, que a qualquer momento um ataque poderia vir, e ser do tipo inesperado e fatal. E o pior de tudo, é que só de olhar para Acheron, ela sabia que pensava sobre isso. Sobre como é letal andar com alguém como ela ao seu lado. Driana baixou a cabeça e o seguiu, sem considerar a ideia de se recusar a ir. Melhor esperar para ver onde Acheron a levaria. Vindo dele... Poderia esperar qualquer caminho errado. Pelo sorriso depreciativo nos lábios da fada, Acheron soube que Driana pensava algo a cerca dele. Furioso, puxou a corda e ela precisou correr para dar conta de alcança-lo e não ser arrastada pelo chão.
Alma, minha alma
A Vila dos Desesperados era o mais simples e abandonado dos recantos de toda Montanha das Fadas. Driana tentava impedir que seus pensamentos vagassem por teorias sobre sociedade e filosofia. Era impossível ignorar as carências daquelas criaturas abandonadas por todos.
A vila era conhecida por abrigar as criaturas mais estranhas e desabrigadas do reino. Criaturas desprezadas e expulsas do convívio social. Apesar da simplicidade das choupanas, feitas em pedra, barro vermelho e teclado de palha e as barracas de couro batido e troncos de madeira, a vila era movimentada pelo comercio.
Muitos rejeitavam esses seres, mas dependiam deles para obter bens de consumo. Hipócritas a se saciar obtendo lucro sobre o trabalho mal pago de pessoas rejeitadas. Driana captava cada centímetro, analisava cada ser, cada barraca, cada choupana. Soube imediatamente para onde era levada, antes mesmo de Acheron vangloriar-se de conhecer o dono da taverna. Claro, porque não? Quem sabe tivesse sorte e o Guardião perdesse a linha e a dignidade dentro de um cálice de elixir proibido. A sandália de Driana havia arrebentado algum tempo atrás, e agora ela pedia caída e arrastando em seu pé, impedindo-a de andar livremente. Reparou que uma das criaturas, um elfo baizinho e magricela de cor avermelhada, e pelos pelo corpo todo olhava apenado para seus pés. Sim, era levada como prisioneira e muitos deles, já passaram por algo parecido ou até pior. Emocionada por saber que era entendida e que mesmo estranhos poderiam ter pena, Driana baixou a cabeça. Acheron estava desconfortável levando-a sob os olhares. Esse sentimento vinha crescendo e temia em breve não ter emocional para concluir sua missão. Em suam mente passado e presente se misturavam, e a cada reclamação ou gemido da fada, por conta de um tropeço ou desconforto, Acheron se lembrava de si acorrentado e obrigado a trabalhar sob o chicote afiado de elfos que também alegavam ser leais a seu rei e cometer tais crimes contra a raça por conta da lealdade. O estalar de ossos nos ombros do guardião quando ele esticou os braços, era prova de sua atenção. Driana sabia que ele estava incomodado. Pobrezinho, seu coração sofria por causa de seu drama pessoal, pensou sádica. Malvada, Driana decidiu fazê-lo provar de seu próprio veneno. Jana revoava baixinho ao seu lado, perto da corda, seus pés mal tocando o chão. Driana acelerou o passo e esbarrou de propósito na asa direita da fada. Atrapalhou o voo e ela tombou para o lado, esbarrando na corda, suas asas enroscando e encurtando bruscamente a tensão da corda. As asas tentaram manter o voo e não derruba-la, era instintivo da fêmea, e por causa disso, Acheron foi bruscamente puxado para trás. Como dito anteriormente por Driana, ele não possuía um grande equilíbrio na perna direita, e tombou. Não seria um tombo mortal, mas garantiu um traseiro dolorido e orgulho ferido. Acheron soltou a corda por alguns segundos, até olhar em torno e notar que os comerciantes haviam parado de trabalhar e fixavam olhares no Guardião. O cargo que exercia era de poder supremo entre os plebeus por isso nenhum ousaria rir. O reino era dividido em poder real, representado por Rainha e Rei, poder dos do Conselho Real, representado por conselheiros e Poder da Guarda, representado por Guardiões. Então, ver um Guardião agir como qualquer ser normal era no mínimo um agrado à autoestima de todos. Driana riu. Depois de vários dias estando deprimida e sem esperanças, ver Acheron humilhado e provando de seu próprio veneno, era hilário. Seu riso era pura histeria. Acheron levantou silencioso, e andou em sua direção, notando que ela sequer tentou fugir. Furioso por comprovar que a fada tinha razão ao chamá-lo de estúpido, agarrou-a e jogou sobre o ombro, como um saco pesado de batatas mofadas. Driana continuou rindo sem parar, gargalhando e balançando as pernas, disposta a chamar atenção, e arrancar olhares. Acheron rugiu baixo, e Driana não se surpreendeu ao ser levada para dentro de um dos casebres. Foi jogada sobre um tapete de peles graúdo e macio e apesar de todo cuidado, a túnica revelou muito mais de sua nudez do que ela gostaria. Ela parou de rir imediatamente e virou de lado, escondendo-se e se arrastando para longe. -Provou sua teoria. Sou um Guardião burro e sem equilíbrio. Está feliz? – ele perguntou magoado. -Não é uma teoria– ela disse sorrindo– é uma constatação generosa. Eu poderia ser mais especifica do que isso! -Está feliz? Eu perguntei se está feliz em me humilhar em público? – ele tentou caça-la e Driana escapou outra vez, rindo ao se encolher contra a parede de barro e pedras. -E porque estaria humilhado? Por ser como qualquer outro? Capaz de cair e passar vergonha? É um elfo, com ou sem armadura! -Você é uma cobra – ele disse amargurado.– Uma cobra. -Sim, eu sou uma cobra. E você? Que animal você é? – instigou. Acheron correu os olhos por suas pernas nuas e por suas coxas. Engoliu em seco, e não respondeu. Um debate moral dentro de Driana sobre afastar as pernas e seduzi-lo provando que possuía muito mais poder sobre ele do que Acheron supunha. Faltou-se coragem para tanto. Driana esperava por brutalidade e foi isso que ele lhe deu, amarrando a corda em torno de seus tornozelos, mantendo-a presa na casinha enquanto saia e fechava a portinhola. Com seu poder de Guardião exigiria a casa em nome do reino. Driana recostou-se, fazendo-se confortável, e fechou os olhos. Queria descansar um pouco. Do jeito que Acheron era limitado em seus pensamentos, era capaz de retomarem a caminhada antes do esperado. Sorrindo, pegou-se pensando no toque do elfo. Quem sabe pudesse adormecer e sonhar com os dois juntos? Apreciaria uma trégua no caleidoscópio de pensamentos que permeavam sua mente. Estava quase adormecendo quando sentiu um toque em sua testa. Mãos que percorriam seu rosto, seu pescoço e seus braços, procurando saber se ela estava bem. Caçando chagas que precisassem de cuidado. Driana abriu um sorriso, antes mesmo de abrir os olhos. Piscou e focou o rosto que tanto amava. Um engasgo imediato tomou sua garganta. Driana abriu os lábios e perguntou baixinho com voz muito baixinha: -Você está bem? De joelhos ao seu lado, segurando sobre seus pulsos, pois suas mãos estavam amarradas, Alma respirava com dificuldade. Maneou a cabeça, e foi seu modo de responder. -Não fale, Alma. Não fale – ela pediu chorando. A voz de Alma era muito alta e esguichada e quando nervosa se acentuava. Alma encostou a face na sua e as duas choraram baixinho por alguns segundos. Foi um momento de reencontro, de união e de desespero. Driana beijou a bochecha de sua amiga e disse: -Acheron quer me usar como isca. Você não pode ceder. Jure, Alma, jure que não vai ceder – implorou. Alma gemeu e baixou o rosto, as lágrimas correndo em sua face. -Eu sei que é difícil, estamos tão sozinhas e desamparadas...– Driana sabia exatamente o que sua amiga sentia - Tenho tanto medo por Joan e Eleonora. Você sabe notícias delas? Alma maneou a cabeça, negando. -Ele te feriu? – Alma sussurrou em seu ouvido, um sussurro que mais parecia uma brisa batendo em folhas de árvore. -Não. Acheron vai encontrar o Guardião Solon e vai me usar para encontra-la. Tira-la da toca, como ele diz – Driana sorriu um pouco menos tensa, por poder alerta-la disso – eu rezava para ter a chance de encontra-la antes dele, e avisa-la do perigo. Alma olhou em seus olhos, querendo lhe dizer que estivera espiando-os desde que despontaram na vila, chamando atenção de todos. -Sei me esconder. - Foi seu novo sussurro, segurando a cabeça de Driana, uma das mãos tocando seus cabelos. Muito perto. Abraçadas. Uma ilusão de segurança. Alma era supostamente mais velha em alguns meses, dona de olhos castanhos expressivos e feições angulosas. Cabelos lisos, escorridos, e divididos sempre exatamente no centro da cabeça. Suas bochechas eram largas, lábios generosos, muito cheios e vermelhos. Sua pele estava muito bronzeada, provavelmente por conta da fuga e a exposição ao sol. Vestia uma túnica sem mangas, revelando seus braços longos, seu colo cheio, de seios fartos. -Acheron não é muito sagaz.– Driana sorriu – ele vai me entregar. Vai fazer o papelão de juntar-se ao Guardião Solon, criar um escarcéu e então... Desistir. Alma fez uma expressão incrédula que lhe cobrava resposta. -Eu sei lidar com ele. Tenho... Tenho me deitado com o Guardião. E ele gosta de mim. Tem carinho. Afeição. Não vai me entregar para a Rainha – confidenciou. Alma afastou a face da sua, olhos arregalados, de surpresa e indagação. Esperaria isso de qualquer uma delas, menos Driana sempre tão austera e indiferente aos elfos! -Fique longe e não se revele. Eleonora não terá menor chance se nós duas formos apanhadas! Sozinha eu consigo me salvar e ainda atrasar os Guardiões. Tenho feito isso durante dias, com pleno sucesso! Alma... Se você correr risco maior, procure por uma família de elfos que se camuflam. Um pai e quatro filhos elfos. Fale meu nome, e o nome da fada Jana e peça ajuda. Eles estão por aqui, ou em breve estarão. Entende o que digo? Alma acenou com a cabeça e suas feições modificaram, pois o choro vinha com força. -Força – Driana pediu –Por favor, Alma, sua força é minha força. -Vamos fugir juntas – Alma fez força para segurar a voz num sussurro. -Oh, Alma, suas asas estão nascendo não é? – Driana a notou que a túnica estava manchada de sangue. Alma concordou, e Driana sentiu vontade de abraça-la, como não podia, esfregou a face na da amiga. -Quanto orgulho. Não se envergonhe da sua voz.– Entendia agora, a voz de Alma estava ainda mais alta, e a pobre sofria com isso.– Eu dou conta de Acheron. Não vamos fugir juntas. Você precisa se esconder e deixar suas asas nascerem. Depois, espere, vou dar um jeito de encontrar Joan, e dizer onde está. Quando encontrar todas, e nossas asas estiverem nascidas... Fugiremos juntas. Você aguenta? –Perguntou para conferir se ela aguentaria mais tempo. -Sim– Alma puxou ar, e apoiou as duas mãos no chão, levantando.–Driana, eu poderia... – ela começou a falar, mas Driana se assustou imediatamente ao entender o que pairava na mente de sua amiga. -Nem pense nisso!– Driana mudou o tom de voz. Precisava ser severa, pois Alma corria o risco de ceder à própria essência de seu sangue. – Já conversamos sobre isso um milhão de vezes, não é? -Acontece – Alma ergueu um pouco o tom de voz, tomada pela fúria – Que eu sinto a vontade de fazer isso. Eu posso matá-los. Driana, eu não vou sentir remorso por isso! Acho que sentirei até prazer em matar.– admitiu. -Por isso mesmo que não deixaremos que faça isso. Nunca terá nossa permissão, Alma! Nenhuma das suas amigas lhe dará permissão para ser uma assassina! Ainda mais... Que no fundo, você poderia apreciar isso!– repreendeu. -Mas se é a minha essência, porque devo ficar sofrendo e penando se é mais fácil...? -Alma, não ma apavore assim! Eu não posso discutir isso com você agora!– Driana ficou a um passo de chorar por não poder tirar essa ideia da mente de Alma!– Não espere obter minha permissão! Joan e Eleonora jamais concordariam com isso! Se você fizer algo do gênero... Terá que lidar com as consequências disso, Alma! Somos sua família, por favor, não traia nossa confiança! Quantas e quantas vezes não haviam usado a amizade como arma para conter os impulsos de Alma? Ela -Está bem.– Alma disse envergonhada – Eu só pensei que seria mais simples assim. -Sim, é mais simples. E nos tornaria iguaiszinhas a Rainha Santha. Sobretudo você. Alma pensou sobre isso. Não havia muito mais para ser dito sobre essa verdade e também não havia tempo para debates profundos. Um último olhar antes de ir. Um olhar de amor fraternal. – Eu te amo. Alma disse sem som, apenas movendo os lábios. Driana sufocou um soluço e manteve os olhos nela, vendo-a sair fugida. Era tão triste. Tão angustiante, que o seu choro não pode ser contido. Chorava por toda a desgraça abatida sobre sua vida e a vida de suas amigas, quando Acheron voltou. Questão de segundos, e teria pego Alma no flagra! Ele ficou parado observando-a chorar. Jana entrou logo atrás, e correu até ela, ajoelhandose ao seu lado, onde a pouco estivera Alma. -Solte-a um pouco, Acheron – Jana pediu – Por favor, ela está machucada – fez um carinho em seus pulsos onde as cordas feriam a pele. Acheron fugiu do contato visual, e usou de sua força para erguê-la e desamarrar suas pernas. -Adivinha quem eu encontrei? – ele perguntou, sorrindo pela primeira vez em dias. Por um minuto Driana temeu ter encontrado Alma. Mas então se lembrou que Acheron não conseguiria esse feito sem ajuda externa. Sabia que a resposta era: Guardião Solon. Não iria lhe frustrar o empenho em impressionala com seu maravilhoso feito. -Não consigo pensar em um nome.– sua falsa doçura o fez conter um sorriso. -Solon.– disse orgulhoso - Como se sente sabendo que em breve sua amiga estará junto de você, presa nessa mesma corda? -Sinto-me tentada a dizer-lhe que não creio que Alma ponha tudo a perder. -Eu pensei que fossem amigas – ele disse simples, olhando em seus olhos. -Exatamente por isso que Alma não vai se entregar – desafiou-o. Pela expressão de Acheron, imaginou que ele pudesse ter uma atitude mais carnal e menos profissional caso estivessem sozinhos. -Eu quero lhe contar um segredo, Segundo Guardião. Algo que precisa saber sobre mim– ela disse com voz meiga. Acheron pareceu duvidar de suas intenções. De volta ao ponto inicial, Driana queria atrasa-lo e no fundo, ele também sabia disso. Um pouco mais desesperada que no começo, mas ainda mal intencionada. Acheron fez um sinal para que Jana saísse e avisou: -Fique junto de Solon. -Pobre Jana, eu ainda não sei se o obedece por medo, por respeito ou por estar acostumada a obedecer qualquer voz de autoridade – ela debochou e Acheron chegou que estavam sozinhos, antes de perguntar: -O que você quer me contar? -Bem, em primeiro lugar, não creio que permaneceremos juntos nesse trajeto por muito mais tempo.– explicou. -E eu posso saber por que você pensa desse modo? – ele duvidou. -Acho que nós dois sabemos que se eu estou falando isso, é porque vai acontecer– ela afirmou e sorriu, aproximando-se dele espontaneamente. Seus pulsos ainda estavam amarrados, mas ao menos podia andar. -E eu quero que saiba que eu gostei de ser o garoto Jô. Gostei de ser seu amigo. Gostei de conviver com o elfo, e também com o Guardião. Isso não era mentira. Sou uma cobra como disse, mas nem tudo que sai da minha boca é veneno. E eu não precisava me deitar com você para atrasa-lo. Bastava deixa-lo continuar seguindo os caminhos errados que sempre escolhia– não resistiu em lembra-lo disso. -Acha que sou um tolo não é? -Algumas vezes eu acho. Em outras... Tenho certeza completa!– ela riu, e arriscou mais um passo em sua direção – sejamos realistas, você quer me entregar para a Rainha. E eu quero fugir. Um de nós dois vai vencer, e outro vai se arrepender e muito. Enquanto isso não acontece... Porque não ficamos aqui um pouco? Ninguém precisa saber não é? Um momento nosso. Prometo não contar para sua adorada Rainha Santha. -Eu não gosto da Rainha. E não gosto de você. As duas me parecem muito parecidas. Usam de sedução para obter o que desejam– ele negou. -Hum, nos dois sabemos que você se rende quando sente o meu cheiro de fêmea – Driana tentou toca-lo com as mãos amarradas, mas Acheron afastou-a. -Não nego. Tanto que essa noite passarei na taverna. Eu preciso de uma fêmea. Qualquer uma... Menos você – ele ameaçou decidido. -E depois você não quer eu o ache um tolo.– Ela desdenhou, magoada – É sua ultima chance de se deitar comigo. Será que não vê isso? -Não, eu vejo seus planos de me engabelar outra vez e fugir. Dessa vez não era a intenção de Driana. Não pretendia fugir dele depois de engana-lo. Não, pretendia ter um momento ao seu lado, pois era provável que jamais voltassem a se ver após fugir definitivamente. -Vai se arrepender dessa decisão, Guardião, vai se arrepender amargamente!– rogou. -Talvez. Mas o meu arrependimento será rapidamente esquecido nos braços de alguma fêmea bem disposta e sincera. Merecer esse tratamento não queria dizer que aceitava calmamente ser humilhada. -Está me rejeitando? É isso? Definitivamente? Não vou oferecer uma segunda vez.– ela sorriu, e sabia que ele não era indiferente. -Vai me beijar se eu aceitar sua ofertar? – ele atirou de volta. Driana baixou os olhos e se afastou. -Vá, espero que encontre uma fada repleta de fungos – disse rancorosa, virando-se de costas. Não podia beija-lo. Ele ainda não estava do seu lado. Nessas horas o desanimo batia com força total. Suas esperanças diminuíam consideravelmente. O segundo Guardião não ignorou seu coume. Com um olhar cobiçoso para o corpo da fada, saiu e a deixou sozinha. Foi forte e resistiu. Era burro e tonto, segundo as palavras e o julgamento de Driana. E isso magoava. Acheron olhou em volta, prestando atenção aos detalhes, tentando enxergar os mínimos nuances, como a mente de Driana faria. Infelizmente, apesar de achar que era bom o bastante, ninguém se compararia a Driana. E para bem da verdade, Acheron não era tão atento assim, tanto, que não percebeu uma fada passar perto dele, usando uma capa desgastada e velha, carregando um jarro de barro repleto de ervas e chinelas de couro, com os olhos compridos em sua direção. Era Alma querendo ver ou ouvir o que acontecia dentro do casebre, e sem esperar, quase esbarrando no Segundo Guardião.
Roubando sonhos
Era um pesadelo, pensou Driana pela milésima vez. Acheron havia regressado fazia algum tempo e trouxera consigo uma visita desagradável. O quarto Guardião era o oposto exato de Acheron.
Uns vinte centímetros mais baixo, menos musculoso, cabelos curtos, escuros e lisos, de expressão pesada, sombria, fechada. Vestia-se bem mais arrumado que os outros Guardiões, com calça de couro marrom, túnica aprumada em algodão engomado, colete do mesmo material que a calça. No cinturão ele carregava um bumerangue e uma espada curta, e uma espécie de chocalho amarrado no lado esquerdo.
Os olhos azuis do elfo eram cativantes, primeiro pela cor intensa, depois por conta dos cílios longos e escuros, e as sobrancelhas grossas e praticamente emendas de um lado ao outro. -Esta é Driana? – ele perguntou com voz mansa. Sua fala era um pouco diferenciada e Driana demorou em descobrir se usava um dialeto próprio, e possuía um sotaque acentuado, ou se era algo pessoal. -Sim, é a fingida – ele disse agressivo. Mãos na cintura olhando para Driana como se olha para algo muito incomodo. As orelhas de Solon, pontudas e longas, se moveram, e então pararam. Provavelmente que estivesse incomodado pela postura agressiva de seu companheiro de guarda. -É uma fêmea bonita – dele disse surpreso – Deveríamos ter dado ouvidos a conversa fiada de Tubã quando tivemos oportunidade – ele sorriu aproximando-se de Driana. Acheron não se deu ao trabalho de responder. Sua postura deixava claro que não queria ver beleza na fada, pois naquele momento estava desacorçoado com o comportamento da fêmea. -Pretende exibi-la na praça?– Solon perguntou interessado – Precisará vestir uma roupa na pobre. Não é justo exibi-la do jeito que está. Driana concordava plenamente. A túnica cobria sua nudez, mas não lhe conferia uma aparência muito respeitável. Sua expressão entediada e ressentida indicava o que estava pensando. -Sim, pensei em amarra-la no centro da praça. Mas preciso buscar um tronco de árvore para isso. Creio que alguns dias sem água e comida devem comover a outra fugitiva – ele disse seco. Driana duvidava que tivesse coragem para tanto. -Conversou com ela sobre o que aconteceu no castelo? Driana percebeu finalmente a razão de Acheron falar quase aos gritos, e de a forma de Solon se expressar ser estranha, era que o quarto Guardião não possuía audição aguçada. Isso explicava o chocalho. -Ela conversou comigo sem parar sobre esse assunto. E nem uma palavra que saiu dessa boca pode ser levada em consideração.– Ele disse cruzando os braços. -Acheron achou que eu fosse um elfo chamado Jô – ela contou com orgulho.– Ele lhe disse isso? Solon olhou para o companheiro de trabalho surpreso. -Como me contou tudo sobre sua vida, a vida dos Guardiões e sobre como eu o atrasei durante dias, levando-o para todos os caminhos errados que consegui encontrar? Contou-lhe que não foi nada difícil fazer isso? -Não – Solon estudou sua expressão com atenção – Está com raiva passional contra Acheron. Qual a razão? Driana não pode deixar de pensar que o Quarto Guardião era sagaz. -O Segundo Guardião quebrou todas as regras do Ministério do rei. Ele é um criminoso.– Acusou formalmente. É claro que sua denuncia era mera formalidade. Sua palavra não tinha valor. -Mesmo? Quais regras Acheron extrapolou dessa vez? – Um sorriso conciliador, pois ele gostava muito do Guardião louro. -O Guardião se deitou comigo - contou direta, sem meias palavras. -Isso é verdade? – Solon perguntou a ele, mudando a expressão. -Sim, mas ela não era casta – ele respondeu. -Mentira!– Driana surpreendeu-se com a mentira – Acheron, seu mentiroso! Eu era casta sim! Como pode mentir sobre isso? -Bem, se não era uma fada casta, não cometeu crime algum– Solon deixou claro que acreditaria apenas em seu companheiro de guarda e não em suas palavras. -Como pode mentir sobre isso? – Driana indignou-se, lidando com essa frustração. -Não é difícil, basta observá-la mentir, para aprender a fazer o mesmo. Vamos conversar lá fora, preciso saber mais sobre a outra fada fugitiva.– Acheron disse, olhando para ela com vitória no olhar. Vingança cumprida. Fora do casebre, Solon fez Acheron parar e perguntou-lhe: -Você deflorou a fada fugitiva, Acheron? -É claro que sim.– Ele sorriu – Não foi algo premeditado. E não pense que ela é uma vitima. A fada é uma cobra venenosa que me tentou, seduziu e enganou.– Defendeu-se. -Então, como será? Vai mesmo usa-la como isca? - Solon duvidou. -A Vila é pequena. Não tem como a fada esconder-se de dois Guardiões. Temos Driana, e devemos usa-la. É o correto a fazer. -Sim, mas eu não quero saber se é correto – Solon fixava os ouvidos apenas em Acheron, para acompanhar a conversa.– quero saber se vai ou não usa-la. Tenho uma missão a cumprir. Não posso perder tempo. O que vai ser? -Vou obedecer às ordens que recebi. Ter me deitado com ela não muda em nada minhas convicções.– ele disse sério. -Admito achar toda essa situação estranha e inusitada. O Acheron que conheço não perde tempo em relacionamentos. Achei que fada alguma pudesse causar reboliço em seus sentimentos. -Driana é uma dissimulada. Tem me enganado desde que deixamos o castelo. Fingiu ser um elfo. Um menino intrometido e impertinente. Fiquei amigo desse menino. Gostei da companhia, de ter alguém com quem conversar. E era tudo mentira. – Acheron descruzou os braços e o modo como pareceu pender na direção de Solon indicava que desejava não ser ouvido por mais ninguém, e que lhe pediria algo muito difícil – Eu sei que não correto, mas... Será que esse assunto poderia ficar entre nós? Não quero que os outros Guardiões saibam que fui enganado desse jeito. -Eu posso guardar segredo, mas a fada vai contar. Ela pareceu bastante disposta a causar intrigas entre os Guardiões. Não se envergonhe, Acheron, eu vi o disfarce e também fui enganado. Não quis um ajudante, pois não gosto de companhia em minhas missões, e esta foi à única razão para não estar na mesma situação que você– Solon sorriu malicioso, mas não quis dizer-lhe que dificilmente o disfarce da fada teria perdurada na sua companhia. Não era tão crédulo quanto Acheron.– Diga, a fada está no cio? -Não.– ele fechou a expressão, desagradado com a insinuação que Acheron havia se descontrolado por causa do cio de uma fêmea.– Eu tenho certeza que as asas estão para nascer, mas ela não pereceu ainda, e acho que não sente os sinais. Está muito ocupada enaltecendo minha burrice, para dar-se conta do que acontece com seu próprio rabo– ele disse ofensivo e Solon balançou a cabeça, incrédulo. -Acho melhor esperarmos até amanhã para usarmos a fada – ele disse – Esta história está muito mal resolvida entre vocês dois. Eu sou capaz de fazer meu trabalho sem precisar de sua ajuda. Sendo assim, pense bem. -Eu já pensei. Tenho passado dias e mais dias sendo enganado por essa fêmea. Primeiro se passou por um garoto chamado Jô e tentou colocar caraminholas em minha cabaça e me atrasou o quanto pode, tornando as minhas escolhas erradas. Depois, me enganou com suas intenções amorosas. Quero vê-la pelas costas, Solon, para que pague por seus crimes. Perdi dias e mais dias correndo em círculos, sem saber que era ela quem me atrasava! -Não se culpe, é o dom da fada. Nós elfos somos fantoches nas mãos das fadas quando elas usam de seus dons.– Solon amenizou a situação – A fadinha não me parece ser tão má. Além disso, nenhum de nós está atrasado em sua busca. Eu mesmo, levei todo esse tempo para chegar a Vila dos Desesperados. Imprevistos acontecem para todos nós. Acheron concordava, mas a magoa o impedia de ver os acontecimentos com a mesma clareza. -A fada lhe contou algo sobre o assassinato do rei? – Solon quis saber, enquanto observava o vai e vem de pessoas na vila, enquanto o comercio de ervas, plantas, alimentos, couro e artesanatos, acontecia à revelia da presença dos Guardiões. -Ela fala sobre um plano de incrimina-las. Fantasias da mente de uma fada com o dom da inteligência – ele desmereceu. -Um plano contra as quatro fadas? – Solon não acreditou. -Não. Ela diz que foram usadas como escudo, que a Rainha Santha unida com Lucius, seu amante, desejava atingir a fada Eleonora. Que as asas da fada estão para nascer e serão idênticas as asas da Rainha. Solon ouviu e permaneceu em silêncio, seu rosto expressivo concentrado nesse pensamento. -Eu confesso que pensava mais na possibilidade do assassinato ter a ver com o tratado que o Rei Isac planejava assassinar com o líder dos duendes. Sei que desagrada os Conselheiros. E nós sabemos que nem todos eles são de confiança. -Estamos debatendo a possibilidade das fadas serem inocentes? – Acheron reclamou e Solon sorriu. -As fadas são inocentes, Acheron. Seja realista. São fadas da clausura. Acompanhamos cada passo da vida dessas quatro fadinhas através das conversas sem fim de Tubã. Vai dizer que desconfia dele também? – Solon perguntou. -A única coisa que eu sei é que se Driana quiser, ela é bem capaz de coisas piores do que matar e fugir.– Disse rancoroso. -Acho que fomos enviados para a caçada muito rápido, sem orientação alguma. Se houvéssemos pensado um pouco mais... Veríamos que a história não confere com a realidade. Uma fada da estratégia e inteligência não seria capaz de elaborar um plano um tantinho menos atrapalhado? Você mesmo disse que ela ficou ao seu lado durante dias sem levantar suspeitas. E eu penso muito na fada Joan. O dom de ludibriar é praticamente incontestável. Porque escancarar o que ela faz em segredo há anos? Porque tanta algazarra se elas poderiam fazer tudo em surdina? -Algumas criaturas precisam de plateia – Acheron se recusava a abrir mão da magoa. -Talvez, eu não descarto nenhuma possibilidade, já vi e vivi coisas demais para me dar ao luxo de crer cegamente. De qualquer modo, eu nunca gostei da Rainha e muito menos de Lucius e se as asas da fada Eleonora forem idênticas as da Rainha, serei o primeiro a defendê-la e exigir um julgamento justo. -Prefere uma fada da clausura como rainha? Bandear-se para o lado rebelde? -Acho que a fadinha vestida de elfo deixou-o ainda mais tonto, Acheron –Solon cutucou-o com o braço e apontou um casebre não muito longe de onde estavam – Veja, um pouco de vinho e elixir proibido deve clarear sua mente. -E deixa-la sozinha? Não.– Acheron reclamou – Vou encontrar um suporte para colocar no centro da vila e então, Driana verá o que a espera. -Faça como quiser – Solon sorriu – Mas lembre-se do tratado entre o Rei Isac e os Duendes e pense em como isso vinha incomodando Lucius. Pense bem, fera, uma decisão dessas não tem volta. Solon era menos dedicado à figura do Rei como um ser onipotente, e sim dedicado ao reino, representado na figura do povo. O bem geral lhe era muito mais importante do que o bem individual. Ele não se importava com quem reinava, e sim, se o reino satisfazia as necessidades dos menos afortunados. Olhando seu colega afastar-se, Acheron pensou na simplicidade das colocações de Solon. Vinha estando preocupado em ser o único que desconfiava dessa missão, quando na verdade estava certo. Cumprir seu plano de usar Driana como isca, aceleraria a captura da outra fada, Alma. Sendo assim, precisava pensar bem se valia a pena ou não fazer isso apenas por vingança pessoal. Dividido entre o desejo de voltar para perto de Driana e de partir e nunca mais colocar os olhos sobre a fada, Acheron conteve um rugido de raiva e virou as costas, entrando outra vez na casinha de duende. É claro que pegou a fada no pulo, tentando escutar sua conversa com Solon. Por causa da limitação do Quarto Guardião, eram obrigados a falar em tom demasiadamente alto. Driana afastou-se um passo e nem tentou fingir indiferença. -Solon é quase surdo não é? – Perguntou a queima roupas. -Sim– ele afirmou. -Hum, e como isso aconteceu? Notei que sua fala é boa, apesar de um pouco atrapalhada às vezes. Deve ter sido algo recente que o fez perder a audição. -Pergunte a ele. Não espalho boatos sobre a vida dos meus colegadas de Guarda – ele foi indiferente. -Que surpresa, você também não sabe!– ela sorriu um sorriso feliz ao notar a mentira nos olhos do Guardião – Que coisa interessante! Porque será que Solon não contou aos seus irmãos Guardiões? -Não é da sua conta.– Ele apontou o chão coberto de peles, e ela sentou-se, vendo-o fazer o mesmo. Acheron retirou as botas e espichou os dedos, que se ressentiam da longa caminhada pela Floresta. -Se algo acontecesse com uma de nós – Driana disse ignorando sua estupidez ao falar com ela – jamais ficaríamos quietas. Eu descobriria quem fez isso com minha amiga e não sossegaria enquanto não o fizesse pagar! -É mesmo? Pobre Rei Isac – ele usou isso contra ela. -Pobre Rei Isac. Concordo com você. Mas não se esqueça de um detalhe, ele não fez nada contra Eleonora, ou contra qualquer uma de nós. Sempre com uma resposta na ponta da língua, pensou Acheron. Sempre prontinha para atacar verbalmente! -O que torna seu crime ainda mais cruel – Acheron foi claro. -Certo.– Driana irritou-se. Estava cansada dessa guerra sem fim. Era desgastante emocionalmente, e seu intelecto sofria. Precisava estar forte. Firme. De pé. Afastou os olhos de Acheron e disse depois de pensar sobre o assunto: -Desculpe ter te feito cair em publico e ser motivo de chacota. Achei que precisava disso para lembrar-se que é apenas um elfo, e que não um nasceu Guardião. Acheron fitou seu rosto por alguns segundos, e chegou a uma conclusão adversa: -Está tranquila demais para quem sabe que estou a um passo de aprisionar uma de suas amigas.– afirmou – Como pode estar tão tranquila? Driana sorriu, mas nada respondeu. -Espere, você avisou sua amiga não é? Como você conseguiu fazer isso? Estou vigiando-a todo o tempo!– ele indignou-se, e ameaçou levantar, mas Driana achegou-se a ele, e usou as mãos amarradas para empurra-lo no chão, apoiando-se em seu peito, enquanto dizia: -Mas não me vigiou tão de perto que eu não pudesse pensar em outras coisas... Acheron empurrou a fada e indignado, cravou os olhos sobre ela. -Como consegue fazer essas coisas? Age pelas minhas costas e não sou capaz de fazê-la parar! Nem mesmo sou capaz de suspeitar do que está fazendo! Driana afastou os, triste por saber que a exasperação de Acheron tinha origem profunda, vinha da constatação que se um dia houvesse uma chance entre eles, ainda assim, seu dom sempre estaria entre eles. -Eu não ajo pelas costas do Segundo Guardião Acheron. Eu ajo pelas costas da Rainha Santha e de seu amante Lucius, nesse momento representados pela figura do Guardião Acheron. Ajude-me nessa luta por liberdade e nunca mais agirei pelas suas costas. Era uma promessa de amor. Sem a missão dos caçadores entre eles, seriam como qualquer casal comum. -Contei a Solon dos seus feitos. Ele já sabe o que esperar vindo da sua amiga.– ele disse com rancor. -Hum, Alma não é tão inteligente quanto eu.– ela contou, a voz um pouco superior ao falar disso – Mas é bastante esperta. Acho que ele terá trabalho de conseguir lidar com ela, caso chegue a encontrá-la. Alma sempre foi um pouco malvadinha. Um pouquinho mais que o normal – disse com um meio sorriso – Sempre foi um custo segurá-la. -O que quer dizer com isso, fada da clausura? -Existem pessoas que nascem boas, mas ao longo da vida, vão perdendo a razão para ser tão compreensivo e aceitar tudo calado. Creio, Acheron que existe um linha muito fina, muito tênue, separando o que é certo, do que é errado. De um lado, está um mundo atrativo, onde não existe mais dor. Nada importa, porque não existe dor. Não existe arrependimento, não existe saudade. Não existe nada além de bem estar. E no outro, há lamentação. O tempo todo, sofrimento e lamentação. E por mais incrível que pareça, o lado do sofrimento chama-se sanidade, respeito, amor ao próximo. E o lado da perdição é carregado de paz e ausência de dor. -Está errada – ele foi categórico. -Não, não estou. Ao abrir mão da bondade e das convicções em prol dos indivíduos ao meu lado, eu passo a ser livre para fazer o que desejo, para esquecer as dores do passado, para enterrar os fantasmas e jamais pensar nisso. Eu faço o que quiser, sem arrependimento. Agora, ao decidir por ser honesto, a criatura se prende a necessidade de pensar no outro, antes de pensar em si mesmo. E entre esses dois lados, há uma linha. E é por essa linha que toda criatura anda. Você, nesse momento anda pela linha, margeando o lado bom, o lado honesto. Por isso tanto debate interno, se é certo me entregar para a Rainha, se vai se arrepender se vai causar dor para uma inocente. Se você estive margeando o lado mau, você se deitaria comigo tantas vezes pudesse, então me devolveria, eu seria morta e você jamais voltaria a pensar nisso. Simples, sem dor. Sem sentimentos. Simples. Acheron não teve coragem de negar, ou discutir esse ponto de vista. -Alma nasceu e anda por essa linha, como todos nós. Mas às vezes, ela tende a querer pisar do lado mau. Quando o peso da nossa vida está demais, ela tende a querer fugir do sofrimento. É uma vigília constante, estar ao seu lado, e segurá-la com a gente, do lado certo. Mas sozinha, sendo perseguida, em meio ao sofrimento do nascimento das asas... Quem poderia condena-la de preferir a ausência de dor do lado obscuro da vida? Quem pode condenar alguém por lutar com unhas e dentes contra seu caçador? Resta torcer para que Alma não se renda a tentação de viver sem dor -Mais uma razão para encontra-la e julga-la ante que faça mal a alguém– Acheron acusou. -Não se faça de tolo, Acheron. Sabemos que você é normalmente tapado mas não exagere sem necessidade. Alma não é má. Mas ela sabe ser má se quiser e com o benefício de não sentir culpa. E eu odiaria saber que a vida a fez escolher um o lado definitivamente e que isso não tenha volta. A culpa não será dela, e sim de Santha. Dos Guardiões, até mesmo minha, que não consegui impedir que dois caçadores a perseguissem. -Não sou um caçador de recompensa. Não me compare a essa raça.– Acheron ficou furioso e essa fúria vinha mais da certeza que estava errado e as fadas eram totalmente inocentes. -É um caçador de fadas. Não importa qual é a sua motivação.– Completou, com um suspiro de pesar. -E você é uma assassina do rei. Não importa qual é a sua motivação.– ela acusou. -Se o que diz é verdade... Temos algo em comum, segundo Guardião, também assassinou seu rei, e não me importa quais eram as suas motivações. Porque não volta para sua terra e para sua gente e se entrega por seu crime? Exigiria que o punam mesmo que todos devam considerá-lo um herói? -Herói? – Acheron estranhou tanto o uso dessa palavra, que somente naquele momento Driana entendeu que ele nunca havia pensado sobre esse prisma. -Oh, Acheron – ela apiedou-se– você não consegue ver não é? As pessoas que foram libertadas por seu gesto... Elas o consideram um herói. Os escravos, os aldeões, todos que sofriam por conta do rei que você destronou... Todas essas criaturas, elfos, fadas... Todos devem se lembrar de você como um herói. É provável que não consiga ver a dimensão do que fez. Mas hoje, sei que deve ser lembrado e aclamado, como o nome de um herói. -Não existem heróis burros – ele lembrou-a disso. Driana fechou os olhos apenada e culpada. -Cada qual com sua limitação. Não sou capaz de soltar minhas próprias mãos. Eu fiquei ilhada naquele desfiladeiro! Eu quase me afoguei no Rio Branco. Não tenho um milésimo da sua força física, e da sua capacidade de luta. Sou indefesa. Totalmente indefesa, e meu dom não é útil no sentido físico da vida. Sou mais inteligente que você. É fato, mas sou mais inteligente que todas as pessoas que conheço então... Isso não é nada demais. -Você me chamou de burro diversas vezes. É sua opinião. -Bem, e você não me acha uma chata? Achava o garoto Jô um chato.– Lembrou-o. -Nunca vamos nos entender quanto a isso – ele achou por bem encerrar a questão. -É claro que não. Como podemos nos entender se você não me ouve? -Eu ouviria se não soubesse que tudo que sai da sua boca é mentira – alfinetou. -Nem tudo. Eu gostei que tenha sido meu primeiro amante, apesar de você ter negado para seu amigo.– disse magoada – Não será o único, é claro, haverá outros. Por isso que eu guardo o meu beijo. Quando as asas de Lora nascerem, vamos provar nossa inocência, e então... Eu vou interceder junto dela. Para que o Ministério do Rei deixe de existir. Para que sejamos todas livres, e desse modo eu poderei conhecer o mundo e conhecer alguém que me aprecie. E quando isso acontecer, eu terei meu beijo para oferecer. Pois o beijo não será uma lembrança presente de você em minha mente. Surpreso por essa revelação, e incomodado, Acheron fitou a face da fada. Bonita como uma boneca de pano, frágil e rosada. Lábios suaves, de boneca de porcelana. Rosado nas faces. Olhos azuis escurecidos pelas lágrimas que queriam cair, mas ela não permitia. A franja escondia sua testa, e cobriam parte dos cílios. Driana afastou o olhar, e deitou de lado nas peles que cobriam o chão do casebre. A conversa não podia prosseguir. Não havia sentido em seguir. -Qual foi o seu primeiro pensamento sobre mim quando me conheceu? – ele perguntou, provavelmente para checar sua mente. -Hum, não me pergunte isso, Acheron – ela gemeu de desgosto. -Fale.– Ordenou. -Eu pensei que era inaceitável que permitissem um elfo burro e sem serventia como uma porta sem tranca, ser um Guardião, ainda mais em segundo em hierarquia de poder.– Admitiu. Era o que Acheron precisava saber para se convencer que a fada não merecia clemência. Ofendido, colocou as botas, levantou e não olhou para trás ao sair. Driana ficou deitada pensando em sua tristeza. Era a verdade da sua mente. Era assim que ela funcionava às vezes. Lágrimas de desgosto correram em sua face, mas ela se conteve e não chorou alto. Não tinha culpa de ser assim...
Dias de verão
A fada Jana observava com assombro o tronco colocado no centro da vila. Os habitantes do lugar não estavam nada satisfeitos com o que acontecia. Eram dois Guardiões e ninguém os questionaria. Acheron terminou de montar a estrutura, suado e furioso, peito nu, músculos tensos.
De canto Solon assistia calado, pensativo e desgostoso. Quando andou o chocalho preso em sua cintura balançou e o som alto chamou atenção sobre sua figura. Solon era diferente dos outros Guardiões, ele não carregava consigo sua armadura o tempo todo, como os outros faziam. Havia descoberto um modo mais pratico de fazer-se atender. Sua ligação com sua armadura era diferente, pois Guardião e armadura eram peculiares.
Acheron não foi refeitado pela armadura quando voltou ferido e tornou-se praticamente surdo. Pelo contrário, pela primeira vez, sentiu-se realmente aceito pela mágica da armadura. -Está pronto – Acheron disse com uma pitada de revanche na voz. -Sim, estou vendo. Um bom trabalho, Acheron.– Solon elogiou. -Não duvide do meu plano.– ele avisou– Alguns dias de privação e a outra fada vai tentar
alguma coisa. -Se você diz, eu acredito– Solon afirmou– Vou esperar uns dois dias, depois retomo minha caçada. -É seu direito – Acheron concordou, e virou-se para Jana – Está proibida de libertar a fada da clausura, aproximar-se dela ou alimentá-la. Se eu descobrir que descumpriu minhas ordens irei causar problemas pra você e sua família. Está disposta a cumprir minhas ordens? -Sim– Jana disse com segundas intenções. -Eu estou falando sério, fada.– Ameaçou. Jana baixou a cabeça e entrou no casebre, provavelmente para avisar a fada da clausura sobre o destino que a aguardava. Não houve tempo, pois Acheron a seguiu. Driana olhou para ele com pesar. Não era preciso que lhe contasse o que aconteceria. Acheron a fez levantar e a empurrou nada gentilmente para fora da casinha de duende. Driana reclamou da luz do sol, pois estava há muitas horas praticamente no escuro. Foi levada para o centro da vila e amarrada de pé contra o tronco. O último nó foi dado e Acheron estava a centímetros dela. Por isso os olhos se encontraram por alguns segundos. Ele não queria fazer isso. Se o fazia, era por orgulho ferido. Por magoa de ser considerado inferior pela fêmea que cativara seu apreço. A fera albina, como muitos o chamavam, não sabia lidar com seus próprios sentimentos, e por conta disso, agia de modo arbitrário e condenável. -Siga sua busca, eu vou vigia-la – Acheron avisou Solon que não reclamou, mas sugeriu: -Não é uma boa ideia. Você pode ter razão ao dizer que a fada é ardilosa. Melhor dois Guardiões com os olhos sobre ela, do que apenas um. Acheron concordou e os dois encontraram um lugar para ficar, sentar e esperar. Driana não reclamou na primeira hora. Foi forte e suportou. Na segunda hora seu orgulho cedeu e Driana começou a reclamar. Estava com muita fome, muita sede, e suas pernas doíam. A sola dos pés cobertas de bolhas de andar pela Floresta. Solon apenas sorriu e ignorou, pois para ele seus gritos e reclamações eram apenas sussurros distantes. Menos paciente, Acheron ignorava suas reclamações a muito custo. Quando cedeu, pareceu ser por impaciência, e não por piedade, mas foi unicamente por pena de vê-la sofrer tanto. Soltou um pouco as cordas, somente o bastante para que pudesse escorregar e sentar no chão. Aliviou um pouco do sofrimento, mas não a ajudou, além disso. -Acheron – ela disse baixinho, e ele parou de andar, olhando para ela. Driana sorriu, em meio ao desconforto, do sol forte, do suor, da fome e da sede, ela sorria assim mesmo: -Eu vou fugir. Você sabe disso não é? – Perguntou-lhe com desaforo na foz e no modo de olhar – Estou lhe avisando para que não diga que fiz pelas suas costas. Agora está avisado. Acheron sentiu uma vontade incontrolável de abraça-la, conforta-la e dizer-lhe que queria que fugisse. Retornou ao seu lugar e bebeu um longo gole de água de seu cantil pessoal, provocando-a com este gesto. Precavido, o Guardião havia pegado sua própria comida e água. Não queria correr o risco de que Jana o traísse e ajudasse Driana. Era impossível que ele não conseguisse mantê-la presa. Em nenhum momento tirou os olhos de sobre a fada. Muito tempo depois Driana havia adormecido, recostada no tronco de árvore, e era um sono de exaustão. Acheron comia uma fruta, das que apanhara na floresta pessoalmente, o sumo da fruta escorrendo por sua barba crescida. Fazia alguns dias que não cuidava de sua higiene e estava parecendo uma fera da floresta. Ele não viu, tão pouco Solon viu, mas algo aproximou-se. Esse algo se camuflava contra a terra, contra as árvores, contra as pessoas, e assemelhava-se ao cenário em volta de si. Uma mão surgiu e derrubou um pó dentro do cantil de água do Segundo Guardião, que jazia destampado ao lado dele. Comendo sua fruta, Acheron sentiu sede e pegou o cantil, sem notar nada anormal, bebeu um longo gole, e cutucou Solon oferecendo-lhe um pouco de água, pois estavam os dois penando no sol para vigia-la. Depositou novamente o cantil no chão ao seu lado e voltou a morder a fruta, saciando-se e cravando os olhos na fada adormecida. Minutos mais tarde ele percebeu que Solon bocejava e cruzava os braços, como quem luta para não seguir o exemplo da fada e tirar um cochilo. Acheron lhe deu razão, quando o sono também o derrubou. Driana acordou quando foi cutucada e não viu nada em torno de si. Olhou para cima e viu uma velha duende, encurvada e usando uma capa escura. Ao seu lado, um dos irmãos de Jana se revelou e então a própria Jana corria em sua direção. -Rápido, os dois estão dormindo – Jana disse animada, trazendo Alma consigo. -Oh, vocês me ajudaram!– Driana abraçou Alma com quase desespero. -Todos na Vila ajudaram. Ninguém vai contar nada. Vá com meus irmãos e com meu pai. Acheron não vai desconfiar de nós. Ele nem sabe que estão aqui.– Jana contou. Driana soluçou e puxou Jana para um abraço também. Alma não lhe diria, mas estava estranhando que sua amiga sempre tão reclusa e avessa a contato físico, quisesse espontaneamente abraços. -Eu não tenho palavras para agradecer. Alma, eu quero leva-la comigo! - Abraçou Alma outra vez, e Alma finalmente falou com a voz normal: -Não é seguro duas de nós juntas. Eu vou atrasa-la. Driana fez um carinho no rosto de Alma, apenada. Sua voz estava insuportavelmente alta, esguichada e rachada. Apenada, Driana não disse nada sobre isso. Com o padecimento da carne, enquanto suas asas nascessem Alma não poderia seguir viagem no ritmo que careciam. E também, seu cheiro acentuado atrairia todos os elfos que estivessem a quilômetros floresta adentro! -Lhe rogo um bom nascimento, Alma. Eu tenho que ir. Nos veremos em breve e quando isso acontecer, seremos fadas livres. Creia nisso. E fique longe do Guardião Solon! E longe de Acheron! E por tudo de mais sagrado... Fique longe dos impulsos de morte! Longe! Alma acenou concordando. Com um suspiro de lamento puro, Driana olhou para Jana e sorriu: -Não o deixe seduzi-la. Eu quero esse elfo, e vou tê-lo de volta quando todo esse inferno acabar – disse para Jana e as duas sorriram. Num impulso, ela abraçou o irmão mais novo de Jana que estava ali para ajuda-la, e afastou-se para pegar as frutas de Acheron, pois estava faminta. Fez um carinho triste no queixo barbudo do elfo, e mordendo a fruta, ela seguiu o rapaz e sumiram na vila, valendo-se do poder do rapaz para ganhar tempo e restar longe quando o Guardião acordasse. Alma observou os dois Guardiões adormecidos, sobretudo o Guardião Solon que era incumbido de caça-la. Era hora de esconder-se e não sair mais. A velha duende a acompanhou quando alma voltou para seu esconderijo e todo vilarejo voltou as suas atividades normais, como se nada houvesse acontecido.
Driana ficou sozinha, escondida entre as pedras que margeavam um córrego pequeno, que levava água do Rio Branco diretamente para a Vila dos Desesperados. Melquior e seus filhos regressaram para a vila, pois chamaria muita atenção se eles não aparecem. Acheron consideraria suspeito. E também, seria mais útil que permanecessem perto do Guardião atrapalhando sua busca.
Driana estava feliz de ter fugido, claro que estava, e ao ficar solitária outra vez, optou pelo silêncio e pela reclusão. Ficaria naquele esconderijo por alguns dias, até ser seguro partir. Enquanto se escondia, na Vila dos Desesperados, Acheron acordava após muitas horas de sono pesado. A noite havia chegado quando ele despertou, e descobriu que ao seu lado Solon também acordava. Achando ser um pequeno cochilo, Acheron olhou para o tronco de árvore onde Driana deveria estar amarrada, encontrando-o vazio. Foi então que descobriu que não era um simples cochilo. A fada Jana estava perto, carregando uma cumbuca com comida. Ele olhou em sua direção e ela falou: -Eu tentei acorda-los, mas nada foi capaz de despertá-los! Eu não sei o que aconteceu. Estava distraída com as barracas... Nunca tinha visto tantas coisas bonitas... Quando voltei, Driana havia partido e vocês dois estavam adormecidos... -Fada mentirosa – ele disse, com raiva – Ajudou-a a fugir não é? -Não – Jana negou – Eu não fiz nada! -Cuido de você mais tarde – ele disse ignorando-a – Ela nos fez dormir – disse a Solon. O quarto Guardião pegou o cantil de água e cheirou. -Alguém batizou nossa água.– Explicou levantando e espreguiçando as costas, tranquilo. -Alguém que vai pagar amargamente quando eu por minhas mãos sobre sua carcaça mentirosa – Acheron prometeu, olhando em volta – Aposto como ninguém viu nada. -Incrível a capacidade que sua fadinha tem de enganar as pessoas – Solon disse agradavelmente surpreso – Bem, eu preciso procurar pela minha fada. Alma deve estar entre essa gente, e agora tem a vantagem de ter me visto na sua companhia e saber que procuro por ela. Receio abandoná-lo em sua caçada, Acheron – ele sorriu tranquilo – Boa sorte, vai precisar de muita sorte para conseguir subjulgar sua caça. Acheron nem se deu ao trabalho de responder. Empunhando a espada, ele jogou o saco de couro com sua armadura em um dos ombros e ganhou espaço andando veloz em direção a Jana. Agarrou a fada apelo braço e levou-a consigo enquanto falava: -Deve saber que não esquecerei sua participação na fuga da fada da clausura. -Mas eu não fiz nada! -Ah, você fez. Bandeou-se para o lado da fada fugitiva. É típico das fêmeas. Jana conteve um discurso feminista e deixou-se levar por Acheron. Tentava achar uma alternativa para sua situação, como Driana faria, quando foram interceptados por seu pai e seus irmãos. Jana quis gritar de alegria. Acheron não percebeu que era engabelado. Ficou até mesmo grato por ter ajuda. Ouvia atentamente as dicas e sugestões de Melquior quando reparou no irmão mais jovem de Jana que se exibia para os outros irmãos, pois havia dominado completamente sua capacidade de camuflar-se e tornar-se parte do ambiente. Acheron correu os olhos sobre o rapazola, e reparou na lama vermelha e barrenta em suas botas. Esperava não estar ficando paranoico, mas o garoto era plenamente capaz de ter colocado ervas do sono em sua água, sem que ele notasse. E aquela lama era especifica da região, e ele até imaginava onde o garoto poderia ter conseguindo manchas como aquelas. Quando o garoto sumiu no mato, Acheron teve a confirmação que precisava separar-se deles para encontrar Driana. Driana, alheia a tudo que acontecia, passou a noite solitária e amedrontada escondida entre as pedras, com frio e medo de sair para procurar comida. Para seu azar total, durante a madrugada um temporal teve início, e estendeu-se pela manhã do dia seguinte. Chovia tanto, que Driana foi obrigada a esquecer de seus pensamentos sobre Acheron e suas amigas e concentrar-se em procurar por alimento, e algum lugar para refugiar-se. Lembrando-se da Floresta dos Dois Dias, Driana achou que pudesse encontrar árvores ocas por ali também. Um trovão assustador a fez correr na chuva e tropeçar em um galho caído no chão barrento. De cara no chão, Driana esmurrou o chão e levantou. Era bem mais fácil andar ao lado de Acheron, pois ele conhecia todos os macetes de viver na Floresta ou no mato. E acabava abrindo caminho para que seguisse sem tanta dificuldade. Furiosa consigo, por saber como fazer as cosias em sua mente, mas não na pratica, Driana conseguiu encontrar uma árvore gigantesca que parecia ser seu abrigo perfeito. Antes de alcançala, Driana teve a nítida impressão de estar sendo vigiada. Assustada, ela olhou em torno de si, sob a chuva compulsiva, e pensou ter visto um pequeno vulto esconder-se entre as árvores. Sua última experiência com duendes fora terrível e ela não estava disposta a lidar com outro duende problema. O vulto correu para o lado oposto, tão rápido que Driana tremeu de susto, consciente que não era um duende, mas sim, algo desconhecido. Com o coração acelerado, Driana procurou por segurança, e enfiou-se numa fissura de um tronco de árvore, encontrando nessa estreita abertura um caminho para o interior da árvore. Diferente das árvores ocas da Floresta dos dois dias, esta árvore era seca, e vazia de vida, mas oca o suficiente para caber uma fada miudinha, sentada e encolhida. Por alguns minutos, Driana não ouviu nada. Nenhum barulho além do som abafado da chuva que batia na árvore. Vez ou outra um filete de água caia sobre ela, mas era pouco comparado a estar na chuvarada sem proteção alguma. Driana foi relaxando aos poucos, quase esquecendo o medo, quando o barulho de algo sendo roído e quebrado chegou aos seus ouvidos. Driana não tinha como escapar, por isso ficou imóvel, esperando que o perigo fosse apenas fruto da sua imaginação fértil. Num repente uma mão surgiu pela fenda, era um pulso fininho, com uma mão miúda, com dedos peludos e unhas gigantescas, e em pânico completo Driana gritou por ajuda...
Montanha de ilusões
Frustrado Acheron descobriu que as pedras em torno do riacho, onde a lama era constantemente vermelha e barrenta, estavam vazias. Nem sinal de cheiro de fada fugitiva. Nem sinal de Driana e sua expressão de falsa inocência.
Antes de ser Guardião, Acheron era um exímio caçador e apreciava a vida na mata, por contra disso não foi difícil identificar rastros de fuga no chão. Em meio a mato, barro e todo tudo de entulho restante de um temporal, Acheron visualizou pegadas parciais, de pés pequenos e rápidos, que corriam.
Muitos metros depois, ele percebeu que a pessoa que corria, havia encontrado um esconderijo. O que lhe entregou o caminho seguido por Driana foi um grito estridente de medo. Acheron correu na direção do som, e seus olhos mal creram na criatura que avistou. Era pequeno, magricelo, porém com uma cabeça gigantesca, coberto por muito cabelo vermelho, não ruivo, e sim vermelho sangue. A criatura era assustadora e imediatamente Acheron exigiu ajuda de sua armadura.
A recusa foi imediata, por isso Acheron não pode contar com mágica. Sacando a espada, ele correu na direção da árvore, e do ser estranho. A criatura virou a face assustadora na sua direção, revelando uma boca repleta de dentes afiadíssimos, e olhos demoníacos. Driana parou de gritar ao reconhecer a voz de Acheron gritando com a criatura. A fenda foi liberada, e Driana tentou espiar o que acontecia. Viu o ser sobre Acheron, tentando cega-lo ou algo do gênero, mas o Guardião era grande demais para ser dominado e lançou a criatura longe. Driana reteve o ar quando o ser passou muito perto da fenda e ela afastou-se assustada. O som de briga continuou e quando tudo ficou quieto ela esperou. Levou um susto, sua alma culpada, quando Acheron espirou pela pequena fenda encontrando-a dentro da árvore. -Saia - ele mandou. -Não – ela negou – Eu não vou sair! Você vai me prender outra vez! -Saia de uma vez, Driana, eu não posso garantir sua segurança aqui.– Ele disse entre dentes, mas ela só via seus olhos verdes. -Minha segurança? Você vai me entregar para a Rainha! – encolheu-se em seu canto, e emburrada, negou-se a sair. O som de um rugido que estava longe de ser um dos rugidos que normalmente Acheron emitia a assustou. Era a criatura que deveria estar voltando. Apavorada, saltou para fora da fenda, preferindo os braços de Acheron e ficar ali para saber o que era o animal. -Não brigue comigo – ela pediu, escondendo-se em seus braços. Acheron não esperava que a fada envolvesse os braços em sua cintura e escondesse o rosto em seu peito. -O que era aquilo? – ele perguntou, tocando suas costas e a fada tremeu. Estava completamente molhada, e tremula de frio. A chuva ainda caia em torno deles, menos potente, mas ainda capaz de causar danos à saúde. -Não sei. Apareceu do nada, e tentou me pegar. Eu fiquei com muito medo. Acheron, eu... Pretendia pedir-lhe desculpas, mas ele interrompeu. -Calada – ele mandou, ouvindo o som aproximar-se.– Minha armadura não obedeceu ao meu pedido de luta – avisou – É melhor irmos antes que aquilo volte. Driana não ousou contraria-lo. Não era muito lógico sentir-se segura na presença de Acheron, quando era ele quem pretendia aprisiona-la e entrega-la para a Rainha Santha. Não ouve tempo para fugir, a criatura voltou, e correu em torno dele, levantando barro em torno deles, tão rápido era seu correr. Acheron a protegeu, mas não foi rápido o bastante para proteger sua armadura. A criatura roubou o saco de couro que jazia em seu ombro, rasgando a alça e correndo para longe. Era quase impossível ver sua corrida. -Não!– Driana gritou em choque, atingida na alma por ver a armadura ser roubada. Era parte de Acheron, e não era aceitável quer lhe tirassem o que era seu por merecimento. O ser correu pela árvore, desaparecendo no topo. Ouviram o som de pulos e Acheron com a espada na mão tentou enxergar onde ele estaria. -Guardião, espere. Ele vai voltar- ela disse agarrando seu braço.– Ele vai voltar! -Minha armadura, Driana, eu não vou perder a minha armadura! – ele negou tentando ver onde o animal poderia estar. -Ele veio atrás de mim, me seguiu até aqui e me encurralou. Fique quieto, eu vou achar um jeito de reaver sua armadura! Não vai conseguir pegá-lo, é preciso atraí-lo até você! Uma armadilha! E nessa chuvarada não tem a menor possibilidade! Acheron estava tenso, o braço que ela segurava parecia rocha sob seus dedos, os músculos tensos e retesados, todo o corpo do elfo respondendo a ameaça que a criatura a e o roubo da armadura significavam. Acheron olhou para ela, e duvidou de sua palavra. Era a fada da clausura, a fugitiva, que vivia enganando-o e passando-lhe a perna com tanta facilidade quanto respirava. Não duvidava que fosse capaz de um bom plano para atrair a criatura, temia julgar errado suas intenções em ajuda-lo! -Porque eu acreditaria nas suas boas intenções em me ajudar? -ele duvidou. -Porque você não tem alternativa. Eu te ajudo e você me ajuda – ofereceu – Venha, ele vai achar que desistimos. Segurou a mão do elfo, e não podia negar que era agradabilíssimo ter contato físico com Acheron, fosse qual fosse à situação. Os dois correram na chuva, em busca de um esconderijo que os protegesse do aguaceiro. Acheron a segurou contra o seu corpo, de costas para ele, um braço envolvendo sua cintura, enquanto ambos se abrigavam dentro de um tronco de árvore morto, que não possuía mais viva e por isso cedeu facilmente à espada de Acheron, cedendo espaço para que se abrigassem em seu interior oco. Driana encolheu-se contra ele, e fechou os olhos por um segundo, tentando afastar da mente o prazer que o abraço lhe proporcionava. A pele arrepiada, cada pelinho do corpo eriçado, principalmente quando o elfo baixou o rosto, roçando a face barbuda e molhada em seu pescoço, falando em seu ouvido: -Fugiu de mim mais uma vez, fada. A mão que agarrava em sua barriga apertou com mais força e ela respirou fundo antes de responder: -Sim, e isso não é surpresa para nenhum de nós dois. Você me prender, e eu fugir. Vamos começar com essa briga outra vez? -Solon pensa que sou um completo idiota - ele disse com magoa. -Hum, mas ele também foi enganado. Fique quieto, quero ouvir se ele está perto – ela pediu, referindo-se a criatura.– Isso me assustou de verdade. O que será que é? Deixando o assunto de sua fuga de lado temporariamente, Acheron puxou-a um pouco mais para trás, pois chuva ameaçava pegar em Driana. -Eu não sei. Nunca vi nada parecido, e já vi de tudo nesse mundo em matéria de criaturas diferentes e estranhas – foi franco. -Ótimo. Mais esse problema atrás de mim– ela ironizou. -Já pensou em um modo de recuperar minha armadura? – Ele exigiu saber. -Não, mas estou pensando.– roçou o corpo contra o dele e olhou para cima, por sobre o ombro, para ver os olhos do elfo – você consegue pensar com clareza, elfo? Assim, aqui, agora...? -Esqueça – ele disse entre dentes, afastando os olhos – Não caio mais na sua sedução, fada sem vergonha. -Certo – ela sorriu– Mas eu ainda caio na sua sedução, então, se mudar de ideia... Ah, eu já sei como fazer!– mudou drasticamente de assunto quando a ideia pipocou em sua mente num repente. -E o que tem em mente? – perguntou desconfiado. -Precisamos esperar a chuva passar ou acabaremos os dois doentes. Porque acha que sua armadura não o obedeceu? – perguntou olhando para ele com cobiça. O elfo ignorou seu olhar, mais para proteger a si mesmo de cair na lábia da fêmea, do que propriamente por desinteresse. -Eu não sei, fada. -Normalmente, o que faz uma armadura não responder ao seu Guardião? – insistiu. -Quando o perigo não é suficiente ou não existe. As armaduras não se revelam se não for estritamente necessário. Eu sempre evito usar a minha, mas é decisão pessoal. Alguns Guardiões, principalmente os mais jovens, acabam valendo-se do poder mágico de sua armadura por qualquer razão estúpida. Por causa disso, elas se protegem e não respondem quando não necessário. -Entendo, mas dessa vez o perigo era real!– ela disse surpresa. -Sim, mas também pode ter se recusado a atender por conta de alguma magia desconhecida. O que me preocupar bastante. -Não se preocupe, quando a chuva passar, recupero sua armadura.– ela prometeu, virandose no limitado espaço, para ficar de frente e poder olhar em seus olhos– Farei isso como um pedido de desculpas por ter enganado-o e abusado de sua boa índole ao fingir ser o ajudante Jô. Você aceita um pedido de desculpas se ele for sincero? -Se eu pudesse ter a certeza que é sincero... Sim, eu aceitaria – Acheron concordou. -E porque uma fada que você caça iria lhe devolver sua armadura, sabendo que um elfo não possui outro poder além desse? Seria muito mais pratico deixa-lo ir atrás de sua armadura sozinho, e fugir. Eu ganharia tempo.– racionalizou a situação dos dois – Eu vou ajuda-lo, para que me perdoe e veja que não sou tão ruim quanto pensa. Acheron sabia disso. Que não era uma má pessoa. Precisava sobreviver e proteger a quem amava, nesse caso as outras três fadas acusadas do mesmo crime, e para isso usava a única arma que possuía. A esperteza. -O que tem me mente? – ele escapou de debater esse assunto com ela. -Primeiro a chuva precisa passar. Não sei de você, mas não consigo pensar com clareza na chuva – disse com superioridade. -É bom saber disso – ele retrucou e Driana riu. -Eu fiquei triste de deixa-lo para trás. Isso não é estranho? – ela perguntou baixinho, após algum silêncio.– Não estamos propriamente viajando juntos. Mas lamentei não poder seguir com você. Eu acho isso muito pouco ortodoxo. Acheron manteve silêncio e ela sorriu sem jeito. -Conversava comigo sobre todos os assuntos, quando achou que eu era um elfo, porque agora me ignora quando quero conversar? -Porque agora eu sei que usará tudo que eu disser contra mim no futuro. Quanto menos informações pessoais lhe fornecer, maior será a minha vantagem, fada da clausura. -Hum, não concordo – ela deixou de lado a tristeza, e investiu em conquistá-lo – Olhe em volta, estamos dentro de um tronco de árvore velho e mofado. Não sou uma fada da clausura aqui dentro, tão pouco é um Guardião. Somos elfo e fada. Somente isso. -E o que você sugere que um elfo e uma fada façam nessa situação? – ele perguntou com malícia na voz. -Eu poderia sugerir algo bastante primitivo... Se você não houvesse me abandonado no meio disso, a bem pouco tempo atrás – ela não pode deixar de referir-se ao ato de amor, quando Acheron descobriu que era Jô e a abandonou – Eu confesso que não esperava acabar tão rápido. Fiquei um pouco incomodada em ser desprezada. -Não fale como se fosse experiente, fada – ele negou, segurando uma mexa dos seus cabelos molhados – é só uma fada sem asas, que não conhece o cio. -Está dizendo que depois do cio, nos braços de outro elfo, irei sentir algo ainda mais bonito? – optou por provoca-lo, instigar para descobrir se Acheron sentia por ela ao menos algum carinho. -É possível – ele cerrou os músculos do queixo e ela sorriu. -É uma pena então, que tenha desperdiçado minha castidade com algo menor. Deveria ter esperado o cio. E esperado um elfo mais interessado em mim. Bem, mas isso não volta mais. Prometo que tentarei evitar o comparativo quando chegar a hora de experimentar outro macho. Acheron sabia que era uma tentativa feminina de provocação. -Fala com a propriedade de uma fada livre, o que você não é.– Ele lembrou-a disso. -Ainda não sou. Eu tenho fé que as asas de Lora nascerão antes que você possa me entregar para a Rainha, e que minhas amigas também consigam se mantiver incólume. É minha esperança, Acheron. Não é justo que eu tenha ao menos direito a esperança? -Palavras, palavras e palavras. Você é muito boa em usa-las a seu favor.– ele disse sério. -Ah, sim, lembre-me que quando Eleonora for livre, e provar nossa inocência, e todas nós pudermos escolher nossos destinos, lembre-me de nunca mais cruzar seu caminho, fera estúpida. – virou-se de costas para ele e cruzou os braços. Precisou desfazer a carranca, pois a chuva começava a invadia o estreito esconderijo, e molhava suas pernas nuas. -Está com frio, fada da clausura? – Acheron sussurrou em seu ouvido e ela descruzou os braços, e ficou meio tonta imediatamente. Era um ‘meio tonta’ inexplicável, pois seu corpo reagia à revelia da sua vontade. -É culpa sua que eu tenha passado a andar quase nua pela Floresta – acusou, recostando-se contra ele. Acheron não a afastou, mas também não forçou mais contato. Driana torcia que para a intimidade forçada e a quase trégua entre eles resultasse em bem mais do que um diálogo estranho e carinhos velados. Ela torcia para acabar contra a parede coberta de musgos do interior da árvore, sendo amada violentamente pelo Guardião, também chamado de fera pelos inimigos. De joelhos bambos, Driana observou a chuva começar a minguar. Pela que a vida tinha outros planos que não juntá-los definitivamente. -Quando me escondi por esses lados, passei por um vale de árvores, perto daqui. Uma delas, de copa esbranquiçada, precisamos encontra-la.– disse baixinho, para o caso da criatura poder ouvi-los. -Por que? – ele quis saber. -Porque eu sou capaz de criar os mais elaborados planos e você não deveria perder seu tempo me questionando apenas por rancor e recalque. Ainda mais quando é sua armadura que está em jogo!– disse azeda. -O que espera que eu faça?– ele cedeu. Driana sorriu e subiu nas pontas dos pés para beijar a face coberta por uma barba grossa, que pinicava. Acheron era lindo sem barba, cuidado e limpo e estava ainda mais sexy com aquela aparência selvagem e descuidada de fera que anda pela Floresta. -Corra atrás de mim– ela disse com olhos brilhantes. Acheron não pretendia obedecer ordens, mas o brilho de malícia nos olhos azuis da fada agitaram a fera dentro de seu corpo, e ele precisou seguir suas ordens, primeiro pelo desejo de reaver sua armadura e depois, pelo simples prazer de caçar a fada e obtê-la de volta. Era um jogo perigoso seguir as regras de Driana. A fada escapou para a Floresta e correu no meio do mato, fugindo das árvores, pedras e arbustos. Sua mente havia gravado a posição de cada elemento do ambiente, e sua mente ensinava o caminho que deveria correr. Depois de alguns minutos ela sentiu uma presença muito perto, e correu mais rápido, o medo subjulgando a lógica. Acheron alcançou-a antes que a criatura o fizesse. Sua presença não assustou o ser, que seguiu correndo atrás de Driana. Ela lembrava com clareza que ao se esconder na primeira árvore, que era muito pequena, a criatura não conseguira entrar, ficando do lado de fora. Era esse o plano, leva-lo de volta para o começo. Ao avistar as duas árvores que procurava, Driana saltou e pulou pelo buraco do centro de uma delas, que provavelmente guardava um duende, e caiu no fundo da árvore, onde realmente havia um duende. O pequeno esverdeado começou a espernear e empurra-la e Driana lutou para calar a voz esguichada do ser. Driana gritou quando uma cabeça gigante invadiu o buraco. Era uma cabeça enorme, coberta de muito cabelo e pelos vermelhos, de uma cor parecida com sangue. Olhos amarelados, com duas orbitas saltadas, lábios rasgados, com dentes proeminentes, afiados e assustadores. Até mesmo o duende que lutava com ela calou-se e tentou cavar um buraco na madeira da árvore, para fugir. Driana gritou muito, pois sem os gritos, era provável que Acheron não entendesse a deixa. A criatura pareceu levar um baque e sua cabeça enorme travou no buraco, entalada, quando Acheron começou a puxa-lo, agarrando em seu corpo miúdo, pois era apenas sua cabeça e barriga que eram largas, o restante era fino como graveto. Alguns puxões e a criatura foi retirada e imobilizada no chão. Driana espiou pelo buraco e saltou para fora quando foi segundo. A armadura estava caída no chão, metade para fora do saco de couro. Cuidadosa, colocou-a dentro do saco de couro e tentou amarrar a alça, para poder usar. Jogou-a por cima do pescoço, atravessando a tira pelo seu peito, pousando o saco nas costas. -Acheron! – ela gritou, pois a criatura berrava e esperneava.– Não o machuque! Preciso saber quem é e o que quer comigo! -Deve ser outro interessado em recompensa – ele disse socando a criatura e erguendo-a sobre o ombro – Vou deixa-lo em algum lugar que não possa escapar até saber o que fazer com ele. -Espere, ele quer falar alguma coisa – ela disse notando que a criatura parecia murmurar algo, mesmo confuso por ter sido socado com tanta força. Afinal, Driana não queria saber como era levar um soco de um Guardião com o tamanho, força e fúria de Acheron! -El...– o ser sussurrava – El... -O que será que ele quer dizer? – ela perguntou curiosa e Acheron fechou a expressão, dizendo: -Vamos amarra-lo e arrumar algo para você vestir. Suas canelas são finas demais para suportar tanto frio – ele ironizou. Driana olhou para as próprias pernas, começando a arrochar, por conta do frio. Normalmente o Monte das Fadas era um lugar de temperatura amena, ou calor, mas depois da tempestade o vento viera coroar a baixa da temperatura e ela estava molhada da cabeça aos pés. Concordou com Acheron e seguiu-o, calada, deixando-o cuidar da segurança dos dois. Pensativa, Driana lembrou-se da armadura que não costumava recusar seu toque. Pensou se deveria ou não ariscar. Pedir por calor e proteção. Seria audaz da sua parte e Acheron ficaria furioso quando notasse. Era tentador demais, e por conta disso, Driana fez o pedido, imaginando que era assim que os Guardiões faziam. Foi tudo muito silencioso, ela andava logo atrás de Acheron, e ele não notou nada. Um gosto calor envolveu-a e ela sorriu, sabendo que era uma resposta da armadura. Acheron deveria gostar muito dela, ou a armadura não aceitaria seu contato ou obedeceria a um pedido seu. Sua vaidade feminina foi enaltecida ao pensar que Acheron gostava um pouquinho dela, mesmo que apenas uma amizade, pois não podia esquecer, que primeiro Acheron simpatizou com o garoto Jô, e somente depois conheceu a fada Driana. O elfo não era tão burro quanto Driana gostava de acusa-lo. Tanto que pensou em um lugar perfeito, levando a criatura para as rochas em torno do córrego que abastecia a Vila dos Desesperados. Acheron, gozando de toda sua irritação masculina, por ter que perder tempo com mais essa distração, jogou a criatura no chão, e começou a amordaçá-lo para conter seus gritos e ruídos desagradáveis. -Eu lhe disse, não disse? – Driana perguntou quando o barulho cedeu, exibindo a armadura, sem no entanto, lhe contar a troca de intenções entre ela e a mágica da armadura Recuperei sua armadura. Não vai me agradecer? -Não. E você, vai me pedir algo em troca desse gesto? – estendeu a mão para recuperar o saco de couro. -Não. Eu não sou tão amarga assim. Porque não comemoramos em vez de brigarmos? Será que não pode esquecer por uma noite que eu sou uma fada da clausura? -Uma fada fugitiva – ele lembrou-a. -É tudo questão de ponto de vista – sorriu, e notou que ele lutava para não lhe dar razão. -Mais um pouco de seus jogos, fada, mais um pouco da sua conversa mole...– ele deu de ombros e ela concordou. -Só que dessa vez minha única intenção é lhe mostrar que a fada Driana também é capaz de fazer um bom jantar, e não apenas o ajudante Jô era cheio de prendas. – foi uma inteligente forma de lembra-lo que era uma boa cozinheira e que sua comida sempre o agradou, quando ainda pensava lidar com um elfo jovem chamado Jô. Acheron não discutiu sobre isso, e retirou um punhal da veste, aproximando-se e dizendo: -Lebre ou javali? Seu tom rouco e fundo a excitou imediatamente. Sim, Acheron era um caçador nato. Um provedor irretocável. Mesmo com seu jeitão rude, Acheron cuidava de sua fêmea e não permitia que nada lhe faltasse. -Porque não me deixa cozinhar alguns cogumelos? Vi alguns saborosos lá embaixo, na curva do riacho. Deixe as lebres e javalis em paz, Acheron. Era bom saber que poderiam conviver em paz e harmonia. Nas horas seguintes, foram silenciosos e cuidadosos um com o outro, preparando alimento e mantendo um lugar limpo e quentinho para passarem a noite. Depois de comer e descansar a fogueira acessa fornecendo calor e luz, Driana andou em torno deles, aproximando-se da criatura, que apesar de amarrada, mantinha os olhos sobre eles, prestando atenção a cada movimento. -Será que ele tem fome? – Perguntou, de costas para o Guardião. -É provável. Quando amanhecer descobrirei quem é e o que deseja – avisou, recostado em uma das pedras, pernas esticadas, mascando um pedaço de mato. Uma cena cotidiana de quem nasceu com forte ligação com a natureza e todos os seus elementos. -Antes de fazer isso precisamos ver o que ele carrega nos bolsos. Pode ter algo importante. -Sim, farei isso. Você nunca para de pensar? – perguntou obviamente querendo atingi-la e fazê-la brigar com ele. -Bem, há alguns dias atrás eu lhe responderia que não. Mas eu descobri que tem um jeito de parar minha mente e tudo ficar silencioso aqui dentro na minha cabeça – Driana disse sorrindo, pegando do chão um pedaço de pano velho que usavam como forro para proteger do frio e jogou sobre a face da criatura, que amarrada não pode fazer nada para se livrar disso. Então levantou e andou até onde Acheron estava. -Eu posso saber que solução mágica é essa? – ele perguntou audaz. -Sim, você pode saber. Deve saber. Você é a causa – disse erguendo a túnica sobre a cabeça, ficando nua diante dele.– Eu não consigo pensar em nada quando estou nos seus braços, Segundo Guardião... Acheron engoliu em seco e correu os olhos por cada curva do corpo da fada. Apesar de sua força de vontade, era tentador aproveitar-se dela mais uma vez antes de decidir seu futuro. Driana sorriu, reconhecendo nos olhos do elfo a paixão e a decisão de possuir a fêmea. Não pretendeu tirar a roupa e jogar-se sobre ele. Não mesmo, mas quando notou, já estava fazendo exatamente isso! A fada andou em torno e Acheron viu suas costas. Levou um susto e pensou em dizer-lhe. Mas pelo modo como a fada agia, não sentia nada diferente. Uma linha negra havia se definido desde o pescoço até um ponto acima das nádegas. Era uma linha escura, grossa e começava a despontar pequenos calos, ondulações sob a pele, que se refletiam no exterior também. Linhas negras, bem fininhas, estendiam-se pelas costas, desenhando matas e formas desconhecidas em sua pele. Era o sinal definitivo que a fada estava a um passo de obter suas asas. Um momento crucial onde aprisiona-lo era o único modo de garantir que cumpriria sua missão com êxito. Com a esperteza de Driana, e asas, seria impossível alcança-la. Outra certeza era que não poderia encostar um dedo na fada, pois corria o risco de emprenha-la. Driana não notava o nascimento, então, não sentia dor ou desconforto. Se não sentia o nascimento das asas, talvez não estivesse sentindo o cio aproximar-se. Como ele poderia prever o risco de possuí-la, quando nem mesmo ela conseguia? -É passado nosso tempo, fada. Deite-se e durma.– ele ofereceu a mão e Driana segurou-a, sem entender o que ele queria dizer. O entendimento logo veio quando Acheron a manteve perto, em seus braços, mas não fez movimento algum para toca-la. -O quer dizer com isso? É passado nosso tempo? – perguntou incapaz de ouvir algo desse gênero e não meditar a respeito. -Sou um Guardião. Você é uma fugitiva. Não há jeito para nós.– ele foi sincero. -Mas e se houvesse? – ergueu a cabeça, olhando para seus olhos. -Eu continuaria sendo um Guardião e você uma fada da clausura. Agora durma, e me deixe descansar.– mandou, fechando os olhos, encerrando assim a conversa. Driana manteve o olhar, analisando o rosto bonito do segundo Guardião. Era tão bonito, tão verdadeiro, tão único. Até mesmo quando decidido a ser responsável, Acheron era superficial. Nada de palavras ostensivas. Menos é mais, e Acheron abusava do direito de não precisar de muitas palavras para encerrar com algo que nem deveria ter começado. Com o coração apertado, pois essa era a conclusão que Driana vinha se conscientizando desde que descobria que estava apaixonada por ele, Driana descansou a cabeça e seu peito, usando uma das mãos para acariciar a pele quente e os músculos rijos. Aspirou o cheiro másculo e puro de Acheron, sem artifícios, apenas cheiro de elfo, de suor e de mato. Lutou para não chorar. Não queria que visse suas lágrimas. A história dos dois não havia chegado ao fim ainda. E enquanto estivessem juntos, sempre haveria uma esperança. Driana vinha descobrindo sobre esse novo elemento, até então desconhecido na sua vida: esperança. Sua mente lógica nunca permitiu que aceitasse a esperança como algo real. Sempre foi focada nos fatos e estes, por si só, nunca a enganavam. Ter esperanças, era uma novidade, pois a esperança não se apega a fatos concretos, e sim desejos inalcançáveis. Fechando os olhos, Driana tentou adormecer. Quando sentiu o corpo da fêmea acalmar, Acheron percorreu suas costas com uma das mãos. Deslizou os dedos pelos relevos que ondulavam sob a pele da fada e lutou contra o impulso dentro de si que exigia que dominasse e requisitasse a fêmea como sua. Era certo que essa noite seria passada em claro. E a manhã que nasceria em algumas horas traria consigo a conclusão de sua jornada. Não perderia mais tempo. Iria manter Driana a seu lado, crendo ser seu amigo. Era mais fácil mantê-la consigo, se fosse por sua própria vontade. Ela havia admitido que gostava de ficar com ele. Usaria dessa fraqueza para mantê-la consigo, crendo ser por amizade e não por segundas intenções. E quando as dores do nascimento das asas chegassem a levaria para o castelo sem demoras. Durante o nascimento, por alguns dias, a fada é frágil e docilmente submetida ao poder de um elfo, sobretudo se for um Guardião. Incomodado com essa decisão, cheirou os cabelos perfumados da fada e manteve-a segura em seus braços pelo restante da noite...
Desfazendo o mal entendido?
Os primeiros raios de luz do sol acordaram Driana. Ela estava nua, e deitada sozinha, protegida pelas pedras e por uma túnica masculina. Acheron deveria ter levantado mais cedo e deixando-a dormir.
Sentou-se e fitou a criatura que estava adormecida, ainda com o rosto coberto. Languida, Driana levantou e olhou para si mesma nua em pelo. Deveria estar com vergonha, pois sempre foi incomodada com aspectos físicos da vida. Sempre travada, bloqueada em relação aos segredos do corpo.
Eleonora e Joan sempre foram tão livres, tão espontaneamente como pétalas de flores levadas pelo vento, sem medo do desconhecido. Alma era mais retraída, é verdade, mas isso acontecia unicamente por sentir-se diferente em reação a sua voz e a reação das pessoas a seu modo de falar.
No entanto, Driana tinha um bloqueio em relação ao corpo e ao convívio entre outras pessoas. Uma barreira invisível que a impedia de agir sem pensar. Barreira essa que parecia cada minuto mais frágil.
Sorriu ao pensar que o responsável por sua mudança era Acheron. Não exatamente o elfo, e sim o exemplo que representava. Alguém integro, inteiro, sem rachaduras. Livre e espontâneo, sem puderes a respeito de pele, carne e instintos.
Alguém sem preconceitos consigo mesmo e para com os outros. Acheron era incrivelmente único. Talvez por isso roubara seu coração e fazia com que Driana não quisesse devolução. Estava bem feliz com esse amor todo dentro de si. Era bom ter um sentimento tomando conta de sua vida pela primeira vez na vida. Nada de razão e sim coração. Convenceria esse Guardião teimoso a ficar ao seu lado. A ajuda-la a provar sua inocência. Era isso que faria! Driana ignorou a sua túnica e vestiu a de Acheron, bem maior e que a cobria quase até o meio das canelas. Ele não gostava de usar muita roupa mesmo. Ela decidia por esperar pelo regresso do elfo, ou ir atrás dele, quando a criatura despertou e começou a gritar por liberdade. Driana causou de ouvir seus gritos e aproximou-se dele, de cócoras, puxou o pano que tapava seu rosto e ele parou de gritar. -Você fala minha língua? – perguntou curiosa. Ouviu passo atrás de si, e enxergou Acheron regressando com peixes presos no cinturão. O Guardião esteve pescando e adquirindo alimento para o almoço. Ele prestou atenção aos dois e Driana lhe sorriu, antes de voltar sua atenção para a criatura. -Meu nome é Driana. Você estava atrás de mim? – Perguntou e não obteve resposta. Os olhos do animal estavam fixos em Acheron e ela olhou outra vez para ao Guardião. -O nome do elfo é Acheron. É segundo Guardião do Reino de Isac, ele é muito bom quando não precisa lutar para reaver sua armadura. Por que você roubou a armadura? A criatura começou a falar, mas ela não entendia quase nada de sua dicção. -Não, não, não – reclamou obrigando-o a parar – Fale devagar. Porque você está atrás de mim? Porque me atacou? Houve uma pausa enquanto a criatura fitava seus olhos em dúvida sobre falar ou não. -El...Eleonora– sua dicção era enrolada, mas finalmente se fez entender. -Eleonora? – ela levou as mãos ao rosto, surpresa por ouvir esse nome - Você tem notícias de Eleonora? Não quer falar na frente do Guardião? É isso? Notícias de Eleonora? A criatura maneou a cabeça concordando. -Ela está bem? Lora está viva? – Perguntou, segurando o choro. Outra afirmação. -Eleonora mandou que viesse atrás de mim? É isso? – Perguntou de olhos arregalados, deduzindo o restante sozinha. Duas teorias eram possíveis. Ou Eleonora estava a salvo, ou estava definitivamente perdida. -Eleonora nascer suas asas– ele disse com seus erros de dicção e de idioma bastante acentuados– Asas espelhas da Rainha. -Eu disse!– Driana levantou em um impulso e apontou para Acheron – Eu disse! Eu disse! As asas de Lora são idênticas as da Rainha! Você não acreditou! Mas eu avisei!– Em um frenesi de expectativa, virou-se para a criatura e começou a desamarra-lo. Acheron, com duas longas passadas, chegou até ela e a segurou, afastando-a da criatura. -Fique quieta, eu quero ouvir o que ele tem para dizer – mandou, sério, com voz de ferro Como se chama? -Mikazar– ele respondeu seco, com sua voz estranha. -E o que você é? – perguntou correndo os olhos pelo corpo do ser. -Elfo. Meu pai ser um duende, minha mãe ser uma fada– ele explicou. -Muito justo – Acheron concordou. -Cruzamentos de duendes e fadas, ou elfos e duendes fêmeas nunca resultam em crias que vinguem– Driana não resistiu em explicar, pois já lera muito sobre o assunto em livros – Mikazar é um perfeito milagre da genética. Um exemplar único no mundo! Agora vejo, não é errado, é maravilho que esteja vivo e tenha chegado a uma fase adulta tão avançada quando outros com sua genética não sobreviveram mais que... -Fique quieta. Não quero saber sobre a genética dos duendes e elfos – Acheron cortou seu discurso, pois se deixasse ela ficaria horas dialogando sobre isso – Quem o mandou? -Guardião Egan– Mikazar respondeu – ele seguir viagem atrás de mim. Eu ser mais rápido. Ele ficar para trás. -Egan está a caminho? É isso? – Acheron notou a tensão estender para Driana. -Sim, ele estar a caminho. Ir para o Campo dos Humanos. -E o que ele quer no campo dos humanos? – Driana perguntou, já sabendo a resposta. Ia atrás de Joan, que se escondia no Vale dos Humanos. -Ter pressa para resgatar a fada vermelha– Mikazar disse e Driana sorriu. -Joan é ruiva – lembrou Acheron disso – E porque Joan, e não Alma? Ou mesmo Driana? -Eu dever encontrar a fada Driana, ela encontrar a fada Alma. A fada vermelha precisa ser salva, porque a Guardiã fêmea ser perigosa. Mikazar mal fechou a boca e Driana bateu o pé no chão, e disse indignada: -Eu sabia! Zoé é perigosa! É uma selvagem! Ela vai fazer mal a Joan! Lora também deve ter esse medo! Eu deveria ter ido atrás de Joan, e não ter perdido tempo tentando atrasar um Guardião! - ela passou as mãos nos cabelos, nervosa. -Acalme-se, Zoé não é uma assassina. Pode ser um tanto bruta, mas não é uma assassina. -Acontece que Joan é delicada como uma flor! Ela não é como eu, ou como Alma! Ela não é como Eleonora! Joan é... É... Sensível. É uma pétala de flor! É como uma gota de orvalho! Qualquer coisa pode feri-la! Eu tenho medo que Zoé faça algo que não tenha retorno! Eu tive esse medo desde o começo, mas deixei a lógica falar mais alto! -Eu disse e repito: Zoé não é uma assassina. E duvido que sua amiga seja tão frágil assim. Pare de se lamuriar. -Não duvide do que eu digo. Joan sempre teve a saúde frágil, sempre foi delicadinha. Sempre! -Aposto como metade dessa fragilidade se deve a ser paparicada – ele negou, pois duvidava muito desse excesso de zelo. -Porque Egan o enviou?– Acheron perguntou e Driana aproximou-se dele, que estava de cocorar olhando para o pequeno ser. Driana ajoelhou-se ao seu lado e fitou o Mikazar com a mesma expressão de curiosidade e medo. -Estar no meu bolso o pergaminho da Rainha– Mikazar disse. Driana ficou tensa na mesma hora. Se a Rainha Santha havia enviado um pergaminho com ordens que o Guardião deveria seguir, é porque Eleonora estava perdida. Acheron revistou os bolsos até encontrar o pergaminho amassado. Antes que o abrisse, Driana segurou sua mão e olhou em seus olhos: -Por favor, Acheron, acredite na minha inocência. Por favor, me ajude a salvar minhas amigas, por favor, eu imploro que acredite em mim. Acheron ignorou seu pedido, não por falta de vontade, pois no fundo acreditava na fada, e sim por senso de dever. Ao menos leria as ordens da Rainha, mesmo que não a obedecesse. Desapontada Driana observou-o ler com atenção. Algumas palavras fugiram da compreensão do elfo, mas ele não precisou saber o significado para entender o que acontecia. -É inacreditável – ele disse ao terminar de ler. -O que aconteceu? Lora está morta? É isso? O medo havia paralisado sua mente, por isso não pensava com clareza. -É uma carta da Rainha, e esta Rainha não se chama Santha.– ele entregou-lhe o pergaminho – Os Guardiões agora respondem a nova Rainha. Uma Rainha chamada Eleonora. Driana pegou o pergaminho e antes de ler um soluço escapou de sua garganta e ela cobriu os lábios enquanto as lágrimas corriam em sua face. -A letra de Lora – explicou a ele – A letra tão feia de Eleonora. Eu jamais poderia esquecer seus garranchos... -Tem a assinatura de Egan e dos conselheiros – Acheron explicou. Driana levantou e começou a andar enquanto lia. -Aqui diz que as asas da fada Eleonora são idênticas as asas de Santha e comprovado sua ligação de sangue, e também a culpa da Rainha no assassino do rei Isac... Foi imprescindível levar ao poder a nova Rainha Eleonora. Que ela revoga o Ministério do Rei, tornando livre todas as fadas da clausura e também, que ao provar sua inocência, Eleonora também prova a inocência das demais três fadas acusadas injustamente e inocenta o elfo Tubã que ajudou na fuga.– ela parou de ler e olhou para Acheron com olhos de pura acusação – Não acreditou em mim! Eu disse que era inocente! Você não quis acreditar, agora leia isso, seu elfo burro! Leia! Veja com seus próprios olhos que tudo que passei foi por culpa da sua amada Rainha Santha! Leia! Eu quero que leia isso e admita que eu estava falando a verdade! – Num impulso de raiva, ela veio até ele e esfregou o papel no rosto de Acheron, como se quisesse fazê-lo engolir o papel, juntamente com a verdade de suas afirmações sempre desacreditadas. Ele levantou e segurou seu pulso, lutando contra o impulso de puni-la pela agressão. Tinha que entender que a raiva de Driana não era somente para com ele. Era por conta de Santha e suas mentiras. -Sou uma fada livre.– Ela disse os joelhos falseando de emoção. Permaneceu de pé porque Acheron a segurou. -Me solte, eu sou livre! Não me prenda! Sou livre!– Ela gritou e Acheron a soltou. Driana andou para longe pensando, a cabeça fervendo com mil pensamentos. O mais forte deles, o mais intenso, era também o mais difícil de explicar com palavras. Um sentimento de opressão, de dor, de laceração. Um sentimento que carregava humilhação, flagelo e desamor de uma vida toda. Driana olhou para o elfo, com lágrimas correndo na face. -Eu sou livre? – era uma pergunta puramente estúpida, pois sabia a resposta. -Sim, é livre, e não apenas das acusações. O Ministério do rei foi dissolvido. Não é mais uma fada da clausura – ele disse com algo na voz de emoção que Driana não conseguiu perceber por conta da emoção.– É completamente livre, Driana. -Oh, eu sou livre – ela disse encarando-o com olhos brilhantes– eu sou livre para ir e vir? Livre para viver minha vida? – Um ‘Sim’ ecoou em sua mente e ela abriu um lindo sorriso e gritou – eu sou livre, Acheron! Eu sou livre! Correu na direção do elfo, e jogou-se em seus braços. Acheron aceitou o arroubo, segurando-a em seu colo, pois ela estava envolvida em um turbilhão de emoções. Driana abraçouo com braços e pernas e riu, enquanto dizia: -Não sou mais uma fada da clausura. Terá que me chamar de outro modo daqui por diante! -Sim, eu a chamarei de fada livre. O que me diz? Prefere ser chamada assim? – Ele respondeu no mesmo tom. -Acheron... Eu sonhei com isso todos esses dias. Eu sonhei com a liberdade. Eu juro que sonhei, mas não achei que fosse mais do que um sonho. Eu confesso, Acheron que pensei que a liberdade fosse apenas uma doce ilusão. Acheron sustentou-a enquanto Driana quis e precisou agarrar-se a uma tabua de salvação. Então, o entendimento de que era mesmo livre penetrou em sua mente, e ela quis ser solta, e não encontrou empecilho. Ela tornou a ajoelhar-se aos pés de Mikazar e começou a desamarra-lo, enquanto dizia entre lágrimas: -Eu sinto muito, Mikazar. Você me assustou muito. Gostaria de ser boba o bastante para lhe dizer que foi sem querer, mas não foi. Estava sendo caçada e estava com medo. Quando vi uma criatura com sua aparência, naturalmente tive medo e fugi. Quem sabe se eu estivesse em meu estado normal de juízo pudesse ter dado uma chance de saber quem era antes de fugir. Mas eu passei por tantas coisas nas últimas duas semanas, que não posso responder por mim mesma a maior parte do tempo.– explicou-se. Mikazar, finalmente liberto levantou e espichou as pernas. -Eu ser acostumado a isso– ele disse com seus erros de fala. -Meu pedido de desculpas é sincero, acredite.– ela disse com humildade. O pequeno elfo não insistiu no assunto e Driana sorriu, perguntando-lhe: -Conte-me, Mikazar, como está Lora? -A Rainha estar no castelo - ele afirmou. -Isso eu sei! Quero saber se ela está bem fisicamente. As asas nasceram com tranquilidade? -Quando conhecer a Rainha Eleonora, ela estar no nascimento– ele disse com seus enormes olhos esbugalhados pela lembrança– eu não gostar de presenciar isso. Não gostar mesmo. Agora as asas nascer. E a Rainha estar no castelo, sendo preparada para o casamento. -Casamento? – Surpresa, Driana não entendeu de imediato o que ele disse. -É esperado– quem respondeu foi Acheron– A fada possui laço de sangue com Santha e por direito herda o trono. Mas uma fada não pode governar sozinha. É necessário escolher um elfo. -Eu não consigo imaginar Eleonora escolhendo um elfo para ser seu rei... A menos, que ela escolhesse Egan. É o único amor que ela tem. -Egan? – Acheron pensou no assunto – Não posso negar que ele seria um rei irretocável. -Ser Guardião Egan– Mikazar concordou – As bobas serão quando as fadas estiverem reunidas. O Guardião estar ajudando na busca pelas fadas fugitivas... -Típico de Eleonora. Ela não será feliz se não estivermos bem e salvas. Quanta alegria. Lora será uma Rainha esplêndida.– Driana levantou-se e ficou de pé, perto de Acheron, fitando-o com expectativa – E agora? O que acontece? -O que você quer fazer, fada? – Ele perguntou sem rodeios. -O que eu quero fazer? – perguntou-lhe de volta. Seu coração dividia-se em dois nesse momento. Primeiro, desejava procurar pelas amigas e ajuda-las e conhecer a liberdade. Segundo, queria permanecer ao lado de Acheron, e fazer o que ele quisesse. Infelizmente estes dois desejos não se misturavam. Não coincidiam, e sim colidiam. -Devo procurar por Joan. É o correto. Ela precisa muito de mim– sua boca dizia uma coisa e seus olhos diziam outra – Sei que não consigo acompanhar Mikazar, mas é melhor que eu tente chegar a tempo. Joan não vai deixar que Mikazar se aproxime. Ela vai ter medo, como eu tive. Mesmo sem suas asas, o poder de Joan impedirá que qualquer um a encontre a menos que ela queira se revelar. E o primeiro Guardião...bem, Egan é apenas um elfo. Não chegará a tempo. Voltarei para a vila dos Desesperados, encontrarei Solon e Alma, e contarei da novidade. Mostrarei o pergaminho. Tenho certeza que Jana me ajudará. Ela me levará com suas asas e eu chegarei a tempo de evitar uma tragédia. De impedir que a guardiã Zoé faça mal para Joan. Acheron olhou para a fada ws então para as pedras a sua volta. Não havia nenhuma razão para não deixa-la ir. Era livre e ele reconhecia a autoridade da nova rainha. Bem da verdade, não havia razão alguma para não ficar contente em ter um novo reinado. Novas leis, novas diretrizes. Um respiro depois de tantos anos de acomodamento entre povo e governantes. Por outro lado, precisava ser sincero com a fada. Driana era uma mentirosa quando queria conseguir algo, mas agora via com clareza, que era inocente. Se não houvesse sendo coagida e perseguida, talvez jamais ousasse mentir e enganar do modo que fizera. -Deve chamar a fada Jana, isso não questiono. Eu mesmo farei isso – ele disse, saindo da sua zona de conforto para aproximar-se e pousar ambas as mãos em seus ombros como fazia quando ela era apenas o rapazola Jô.– Mas você não pode partir ainda. -É claro que posso! Sou uma fada livre, Acheron! Livre!– tentou soltar-se, m as ele apertou os dedos em seus ombros, mantendo-a no lugar. Não era um aperto doloroso, era algo quase carinhoso. -É livre, porém prisioneira do seu corpo. Não pode partir ainda. É mais seguro e confortável que fique aqui. -De modo algum! Eu vou atrás de Joan, e vamos acabar logo com essa perseguição! Quero estar com minhas amigas. Eu mal posso esperar pelo momento de vê-las outra vez! Acheron, eu passei toda minha vida ao lado delas. No Ministério do rei, sempre presas... Eu nunca passei um dia longe das minhas amigas. Nenhum dia. Tem ideia da saudade que sinto? Do quanto eu quero vê-las e abraça-las? -Tenho uma vaga ideia sim– ele brincou para vê-la sorrir, mas isso não aconteceu – Acalme-se, fada livre – dessa vez ela sorriu e ele tranquilizou-se – Eu suspeito que vá se assustar com o que eu vou dizer, mas preciso alerta-la da verdade antes que descubra do pior jeito. -Nada pode me assustar, Guardião. Nada que disser pode me causar espanto.– disse no mesmo tom, pois realmente nada poderia deixa-la surpresa depois de saber que a clausura não existia mais, e que sua melhor amiga Eleonora era uma Rainha. -Suas asas estão nascendo– ele disse com voz forte, e o brilho em seus olhos dizia que estava muito contente em ser ele a informar a esperta e inteligentíssima fada Driana que suas asas nasciam e ela não percebera. -Não. Minhas fadas não estão nascendo– negou imediatamente- eu saberia se estivessem nascendo! -Não. Eu notei que nasciam quando ficamos juntos no desfiladeiro. Você não percebeu nada. Suas asas estão nascendo e não vai demorar. É mais seguro que esteja perto de mim, e não andando pela Floresta sozinha. -Eu não pretendi andar pela floresta sozinha – afastou-se dele, repudiando a ideia de suas asas estarem nascendo justamente agora – Pretendo ter a companhia de Jana e seus familiares! -Existem muitos caçadores de recompensa espalhados por aí, Driana. Eles não sabem que é uma fada livre, e mesmo que souberem, uma fada no cio, com asas recém-adquiridas, é uma mercadoria de grande valor. Pelo que vi ontem à noite... Suas asas não demoram mais que um dia para despontar. -Foi por isso que me repudiou ontem à noite? – tudo fez sentido em sua mente. -Não seria bom para nenhum de nós se corrêssemos o risco desnecessário de emprenha-la – ele disse sério e Driana mudou a postura imediatamente. Claro, ele não iria querer uma cria vinda de uma fada a quem nutria apenas sentimentos dúbios. Talvez simpatia. Nada, além de sentimentos confusos. Envergonhada, Driana perguntou: -Tem toda razão do mundo. Quem iria querer gerar e criar uma cria de um Guardião tão burro como você? – era para agredir. E agrediu. -Tão burro que fui o único que notou o nascimento das asas que lhe pertencem– alfinetou. -Não é possível. Eu teria notado...– ela disse desconcertada. -Pelo viso andou muito ocupada pensando sobre os outros... E esqueceu-se de pensar em si mesma.– Acheron olhou para Mikazar e disse – Eu preciso de um momento de privacidade para conversar com a fada. O elfo olhou para Driana que concordou com um movimento da cabeça. Mesmo quando fugia de Acheron, ainda assim o fazia por receio da prisão, e não por medo do elfo. -Fique calma e não grite.– ele pediu com voz mansa, aproximando-se, tocando o tecido da túnica na lateral do seu corpo, puxando lentamente para cima. Driana esqueceu por um segundo o que deveria estar pensando. Acheron subiu o tecido por seu corpo e ela ergueu as mãos para facilitar o seu trabalho. Oferecida, essa era a única palavra que poderia descrever seu comportamento para com o Guardião cada vez que ele aproximava-se. Nua, Driana esperou que ele dissesse ou fizesse algo. Era uma fada livre, e o desejo gritou dentro de si, por isso, tentou beija-lo. Sim, não guardaria nada para elfo algum! Queria um beijo do Segundo Guardião e o resto do mundo não importava! Correria atrás dele até provar-lhe que poderiam ser um casal feliz! Acheron não permitiu que o beijo acontecesse virando a fada de costas. A rejeição não perdurou no coração de Driana, pois só de pensar no que ele poderia fazer com seu corpo estando de costas... Mordeu o lábio e esperou. Acheron afastou seus cabelos colocando-os para frente, sobre seu seio direito, e desnudou assim as costas macias de Driana, que eram tomadas pelo fenômeno do nascimento. -Não sente dor? – perguntou-lhe. -Não, não sinto dor alguma – ela tentou olhar para trás, mas não viu nada especial. Os dedos da mão calejada de Acheron correram por linhas imaginarias que percorriam suas costas. -São linhas negras, escuras, finas. Ontem a noite havia algumas, essa manhã aumentou a quantidade – contou – Está sentindo? – correu os dedos pelos calombos que percorriam sua espinha, no centro, onde a linha escura era mais forte. -O que eu deveria estar sentindo? – não entendeu. Acheron sentiu os relevos com os dedos, e lutou para não investir contra a fada. -Me dê sua mão – pediu e ela estendeu uma das mãos para trás. Com cuidado ele pousou a mão da fada sobre os relevos, em um ponto onde ela conseguia alcançar. Driana soltou um gritinho de susto. -Oh, isto está em mim? – Era uma pergunta retórica – E o que é isso? -São suas asas nascendo – ele respondeu com a sombra de um sorriso em sua face. -É impossível, as asas nascem de dois pontos centrais, um do lado direito, outro do lado esquerdo. Elas variam de trinta centímetros de cumprimento e no máximo dois metros. As fadas que alcançam essa maior marca são consideradas as mais bonitas. São normalmente coloridas e... -Teoria, fada – ele cortou sua explicação completa sobre anatomia das asas de uma fêmea. – As asas nascem de onde devem nascer. De onde eu vim, as asas nascem quase dos ombros. Suas asas, e o modo como nascem, indicam que não é daqui, fada livre. -Como assim? Não sou daqui? – Virou-se assustada, fitando seus olhos com angustia; -Nasceu em outras terras longes do monte das fadas. Como eu, é uma forasteira. Por isso não notou o nascimento.– Ele correu um dos dedos por seu nariz arrebitado e disse numa provocação doce – Sua esperteza não valeu de nada. Se eu não contasse, descobriria do pior modo. -Eu deveria lhe agradecer por sua gentileza...– Ela deu um passo para frente e Acheron afastou-se, baixou-se e pegou a túnica entregando-a. -Não encostarei um dedo em você enquanto estiver no cio – ele avisou. -Veremos se você vai aguentar – ela disse baixo, olhando-o afastar-se e pegar os peixes esquecidos.– Eu preciso encontrar Alma e... -Primeiro vai comer. Depois deitar e descansar.– ele avisou sério. -Mas eu estou me sentindo ótima. Não vou perder tempo com bobagens enquanto alma se esconde. Não vou conseguir encontra-la se isso acontecer! Acheron jogou os peixes sobre uma pedra e pegou o punhal, começando a limpá-los sem lhe responder. Depois de alguns segundos, esperando uma resposta, Driana vestiu a túnica e continuou encarando-o. -Solon é um Guardião calmo e centrado. Ele encontrará a fada e a levará diretamente para o castelo, sem pegar atalhos e sem ceder a tentações – era uma clara provocação a si mesmo, que cedeu aos encantos da fada da clausura. Olhou para ela e então de volta para os peixes – Cuide de si mesma e procure por sua amiga mais delicada... Como é mesmo o nome da fada? -Não se faça de bobo. É burro, não bobo – ela atiçou, aproximando-se e sentando perto de onde ele estava – Eu me sinto ótima. As asas devem demorar ainda. -Está enganada.– ele disse sério – muito enganada. Se quiser fazer algo útil vá atrás de Mikazar e mande-o buscar Jana. Precisará de ajuda feminina quando as dores começarem. -Ajuda feminina? – ela sorriu achando graça do seu jeito. Acheron parou de lidar com os peixes e olhou-a com seriedade: -Sou um elfo, e não sou imune ao cio de uma fada, seja ela um problema ou não. Quanto tudo isso passar e a euforia da sua liberdade diminuir agradecerá que eu tenha lucidez e não permitia que emprenhe de um Guardião. Ou acabaria perdendo sua liberdade outra vez. Não era uma ameaça, mas soo como uma. Diana não disse nada, fez o que ele pediu, e quando voltou, escondeu-se entre as pedras, observando-o preparar silenciosamente o almoço. Comeu sem apetite, pois Driana recebera dois presentes imensuráveis em um único dia: a liberdade e o nascimento das asas. E ambos eram acontecimentos desconcertantes. O que um pássaro aprisionado por toda sua vida, faz ao ser posto em liberdade? Par aonde voar? O que esperar da vida? Indagações profundas demais para pensar naquele momento. O nascimento das asas não passava longe no quesito perturbação. Queria tanto ter suas asas, mas não havia pensado no significado físico disso até sentir os calombos que se formavam em sua pele. Não estava preparada para a dor. Não mesmo! Sem apetite terminou de comer o que ainda restava em seu prato, e ficou quieta ao lado de Acheron, observando-o comer.
É a sua vez
-É estranho, não sinto nada anormal – queria conversar com ele. -Você não sente.– ele disse sério – seu cheiro está diferente – ele deixou a comida de lado, pois o apetite também o abandonou. -Como assim diferente? Estou fedendo? – perguntou surpresa. -Não. Seu cheiro está mais forte. Picante, eu diria. – ele tentou sorrir, mas a conversa apesar de banal, não era fácil – Em algumas horas não poderei ficar perto de você. -Não seja tolo – ela disse assustada com a ideia dele se afastar – Presenciou o nascimento das asas de outras fadas! – lembrava-se da fada que encontraram no caminho para há Floresta dos Dois Dias. -Sim, mas você é diferente. Eu não resisti ao seu cheiro fora do cio. Não me responsabilizo por resistir durante.– ele foi franco.
Acheron era sempre franco, sincero e absurdamente explicito sobre seus sentimentos e ações. Ruborizada, Driana respondeu: -Não vai me deixar sozinha... Mikazar pode demorar a encontrar Jana...– ela pegou um graveto de árvore que jazia esquecido no chão de pedras e cutucou uma plantinha que insistia em crescer entre as rochas.– E eu não sei se consigo passar por isso sem companhia. -Ficarei perto. Prometo-lhe isso.– Acheron deu de ombros- É o máximo que posso fazer por você, fada. -Isso é injusto. Por causa das ordens que os Guardiões receberam e seguiram sem questionar, e quando falo disso me refiro a você em especial, que estou nessa situação. Se houvesse ouvido meus apelos, eu poderia estar na vila, ao lado de Alma! Não pode me deixar agora que preciso de ajuda – estava sendo mesquinha, mas era assim que se sentia. -Cuidado, fada livre, você não irá querer lidar com um elfo durante o cio – ele avisou com olhos brilhantes. -E porque não? Não é quando a copula deve acontecer? – Enfrentou-o. -Sim, é quando a primeira copula de uma fada deve acontecer. Mas eu não sou da raça dos elfos que tem por aqui. Não sou tão civilizado. Não vai querer me enfrentar durante o cio, fada. -Enfrentar? E porque lutaríamos? – Perguntou convidativa. Acheron afastou-se e ela repirou fundo. Pelo visto a fonte dos desejos estava errada. Conseguira obter dois dos seus desejos, mas o terceiro era impossível de alcançar. Era livre e sabia parte da sua história. Não pertencia ao Monte das Fadas, sendo assim, precisava encontrar mais sobre sua história passada. E o terceiro desejo inalcançável era ter a afeição de Acheron. Ele não queria engravida-la para não ter ligações futuras com ela. Era fato. -Eu pensei em ficar um tempo no castelo– ela disse deitando-se em um lugar confortável, entre as pedras, protegida do vento frio e da garoa que começava a cair do céu.– Permanecer um tempo a lado de minhas amigas.– confidenciou. -Eu não achei que fosse partir – ele disse surpreso. Verdadeiramente surpreso. Seu instinto previa que a tempestade voltaria, e a ponta das suas orelhas estava irritada, o que era sinal de temporal, por isso cuidava de reacender a fogueira, extinta após o cozimento do almoço. -Não é partir exatamente – ela disse deitada de lado, olhando para ele com olhos sonhadores – Pretendo ir atrás do meu passado. -Isso é tolice. Uma fada criada no Ministério do Rei jamais conseguirá saber sua origem.– ele foi realista. -Hum, não importa. Eu tenho por onde começar, preciso descobrir em que parte do mundo as asas nascem do modo que as minhas estão nascendo. Já é um começo para saber de onde sou. Depois, se eu tiver sorte de ter sido a primeira fêmea de uma família... Talvez consiga notícias de minha mãe. -Notícias de morte e sofrimento? – ele foi realista – Quando mentiu sobre o duende Baltazar, mentia sobre tudo? -Não. Aquela era minha história. Com exceção do duende, claro.– Driana se moveu, e ficou de costas, abraçando a túnica que dobrada servia de travesseiro. A túnica que ela usava antes de apoderar-se das roupas e Acheron. -Trocará sua liberdade por um ideal inalcançável – ele concluiu. -Talvez - admitiu – O que sugere que eu faça com a minha liberdade? O segundo Guardião não respondeu, por não saber o que responder. Ele próprio não sabia o que fazer com a liberdade que adquirira anos atrás quando deixou de ser escravo e tornou-se um elfo livre. Ainda buscava resposta para essa pergunta. Driana entendeu no silêncio de Acheron, o tamanho do vazio que ele carregava. Temeu que esse vazio pudesse instalar-se em seu coração num futuro muito próximo. Quieta, permaneceu deitada, descansando. As horas passaram rapidamente, e quando a chuvarada começou, Driana estava adormecida e nem percebeu. Acheron olhava para o temporal com a testa franzida. O cheiro da fada estava acentuado e ele mal podia reespirar em paz. A tarde findou, e a noite chegou, escura e fria. O temporal não deu trégua, e quando Driana acordou de seu pesado sono, procurou por Acheron. Por um segundo o pânico de ter sido abandonada sozinha a fez imóvel. Então, ouviu seus passos pesados e suspirou de alivio. Acheron estava encharcado, voltando de algum lugar, e quando a viu acordada, disse: -Mikazar ainda não voltou. Talvez não tenha encontrado Solon a tempo. Ele pode ter partido para procurar sua amiga.– disse contrariado, e profundamente irritado. -Eu pedi a Jana para ajudar Alma a fugir.– Ela confessou – Se eu soubesse...– suspirou desgostosa - ...mas infelizmente meu dom não é prever o futuro, não é? Porque estava na chuva? – perguntou inocente. -Achei mais seguro cuidar do seu sono de uma distância maior – ele explicou. Estivera longe o bastante para o cheiro não enlouquecer sua mente, mas perto o bastante para ver onde ela estava e se estava bem. -Acheron, isso é tolice. Somos íntimos.– Ela racionalizou o fato.– além do mais... O cio de uma fada acontece uma única vez na vida. Eu jamais saberei como é... Passar por isso na companhia de um elfo a menos que você fique aqui comigo. O convite era tentador. Ele afastou os olhos, pensando nisso. -Eu tenho certeza que você sabe meios de nos proteger – ele engatinhou nas pedras, até ficar de joelhos e olhou para ele com olhos brilhantes, longe do cantinho estreito onde se escondia para dormir - Eu mesma, que não tenho metade da sua experiência de vida, sei alguns meios... De tanto ler, é óbvio. Sempre li muito. Todos os assuntos.– explicou corando– Fique aqui do meu lado, Acheron... -Peste – ele negou e afastou-se. Driana ficou sozinha mais uma vez e tentou levantar. Seu grito fez Acheron voltar correndo. Ela se segurava em uma das pedras, o corpo de pé, as pernas bambas. Acheron viu que o tecido da túnica estava grudado em suas costas, e o que antes eram calombos, agora eram hastes pontiagudas que furaram o tecido e provavelmente eram a causa de seu grito. -Acheron! O que é isso? Acheron, me ajude, isso não pode ser as minhas asas! Não pode! - Ela chorou, e ele soube que ao seu mover para levantar, toda a dor veio a tona.– Isso é horrível! É horrível! Tire isso de mim! Seu horror era maior do que qualquer outro sentimento que ele pudesse sentir. Aproximouse e a ajudou a deitar outra vez, dessa vez em suas pernas, meio deitada sobre ele, meio sentada. Embalou-a, enquanto puxava a túnica e rasgava o tecido, desnudando-a. Pelo visto seria apenas os dois enfrentando esse momento, e não havia razão para pudor. Driana chorou quando ele tocou as hastes. Eram longas, rijas e não havia sinal de que cairiam quando as asas verdadeiras nascessem. Por isso ele também não esperava. A primeira das hastes nascia acima das nádegas e a última terminava no centro das costas. As demais eram apenas calombos pegajosos. -Tire isso de mim, Acheron. Eu quero asas bonitas, não quero essa... Essa... Coisa!– ela estava histérica.– Eu nunca ouvi falar disso. Nunca li nada sobre isso! Eu não quero essas asas! São horríveis! -Chega de gritos – ele mandou, falando com firmeza– grite de dor se for necessário e não de medo. São suas asas, e a aparência que tem, é a que deve ter. Cada fada com seu par de asas. Aguente firme. A natureza sabe o que faz. – ele avisou e ela se moveu, tentando enlaçar o pescoço do elfo. Acheron deixou, mas não abraçou-a pelas costas, pois era impossível, apenas pousou uma das mãos em sua barriga e deixou-a ficar em seus braços. -É uma dor estranha - ela murmurou após algum tempo silenciosa – eu não sei explicar com palavras... -Nem tudo na vida deve ser explicado. O que uma fada sente nesse momento pertence apenas a ela.– ele disse e Driana sorriu, apesar das lágrimas que ocasionalmente ainda molhavam sua face. -Mas eu queria ter belas asas – seu argumento era patético. Acheron quis lhe galantear dizendo que suas asas seriam lindas, pois ela era uma fêmea bela em aparência e essência, mas não disse nada, e Driana fechou os olhos, conformada em ter asas feias e estranhas. Deveria saber que seres desgraçados pela vida como ela nunca teriam nada de bonito em sua existência. Era um pensamento dramático e ela estava sendo histérica por conta de jamais aceitar com naturalidade os acontecimentos do corpo. Entendia da mente, e não do corpo e por consequência, o corpo não a entendia. Uma relação que apenas quem nasceu com os pés na terra, correndo atrás de passarinhos e brincando na chuva, poderia entender alguém como Acheron. Quem nasceu trancado em uma saleta lendo, lendo e lendo, não poderia entender essa naturalidade. A fada apagou em seus braços e ele respirou aliviado. O cheiro da fêmea era enlouquecedor, mas a visão daquelas hastes feias e pontudas minguava qualquer libido. Estava em uma posição desconfortável, mas manteve-a assim, para não acorda-la. Com um pouco de sorte, as asas viriam à tona antes que ela acordasse. A fúria do temporal tornou a temperatura baixa e Acheron precisou pousa-la na cama improvisada com as peles que ele normalmente usava como vestes. Pegou uma dessas peles e colocou sobre ela. Tadinha, estava de bruços, as costas exibindo as marcas assustadoras do nascimento. Era diferente, pois não rompia a pele como acontecia com as outras fadas. Não havia sangue, nem feridas. Era um nascimento limpo, onde as hastes se formavam prolongamentos do corpo da fada. Acheron afastou os olhos dela e fitou a chuva, enquanto sentava afastado. Passada a estranheza pelas formas desconhecidas, voltava a tentação irreparável do cheiro da fada. Lutando contra si mesmo, Acheron aguentou até as primeiras horas da manhã, quando Driana despertou outra vez. Ele estivera durante toda a noite cuidando dela. Em determinado momento deu graças das chamas da fogueira terem se extinguido por causa da umidade do temporal, pois assim não precisava assistir as hastes se retorcendo e se moldando em um espetáculo da natureza que ao mesmo tempo o assustava e enfeitiçava. Amanheceu com pouca claridade. Ainda chovia muito, mas não o suficiente para escurecer ou ofuscar a claridade do dia que raiava. A fada estivera dormindo pesadamente durante toda a noite sem se mexer. Era melhor assim, ela não suportaria passar por isso. Era muito racional para aceitar as mudanças do corpo e lidar com elas sem estranhezas. Driana piscou e despertou por completo. Foi estranho, pois no instante em que abriu os soube que nada em sua vida seria igual outra vez. Teve medo de levantar, e até mesmo de se mexer. Permaneceu alguns instantes imóvel, até convencer a si mesma que não poderia passar a vida toda assim, com medo. A lembrança das palavras de Acheron a fizeram envergonhada de seu próprio comportamento. Ele estava certo. Era fêmea, e o nascimento das asas era parte natural de sua vida. Estava fazendo escândalo à toa. Não encontrou dificuldades em sentar. Pensou em tocar as costas e descobrir o que acontecera durante seu sono. Faltou-lhe coragem. Chamou o nome de Acheron e ele não respondeu. O segundo Guardião seria incapaz de abandona-la, mesmo que houvesse ameaçado fazer isso na noite passada. Driana estava nua outra vez, e pegou a túnica rasgada, usando-a como uma toalha enrolada em torno do corpo. Foi uma agradável surpresa descobrir que não havia nada em suas costas que impedisse isso. De pé, Driana testou o peso do corpo, erguendo-se nas pontas dos pés. Nada anormal. Era a mesma Driana de sempre. Ainda se recusando a tocar a própria pele e descobrir se as asas estavam ali ou não, Driana andou para longe do refugio entre as pedras. Foi quando seu olfato farejou a presença de um macho próximo. Sim, o cheiro da sexualidade de um macho, e não importava qual. Pega de surpresa pela sensação de calor, Driana ficou imóvel, ouvindo o som da mata a sua volta. Sim, ela podia sentir o cheiro, e esse cheiro fazia seu sangue correr em suas veias com a força de lava quente varrendo o interior de um vulcão em busca da liberdade... Ela quase trocou os pés ao andar na direção do cheiro, sem saber por que tremia tanto. Não era lógico, não era racional, não era algo que esperaria acontecer com ela. Em nada lembrava o desejo que sentira por Acheron ao se entregar a ele. Era diferente, mil vezes diferente. Era um desejo que não possuía nome ou face. Não importava quem era o macho, o que importava era encontra-lo e... Corando muito, Driana quase correu entre as árvores, na direção do córrego. Esquecida das asas, Driana sentia o contado do chão molhado, coberto de folhas e pedregulhos, e era um contato único. O cheiro do mato, da água orvalhando as plantas, dos animais que se esconderam da tempestade, mas que passado o risco, voltavam à vida rotineira. O cantar dos pássaros na copa das árvores e a procurar alimento entre as folhas, pedras e outros esconderijos que a Floresta oferecia. Driana era parte disso, e nunca antes em sua vida supôs que pudesse existir um sentimento parecido. O elfo estava perto e ao avistar a crina loura de Acheron ela quase chorou de alivio. Sim, era o elfo que sua mente e coração desejavam, e não qualquer outro, ao qual se arrependeria para o resto dos seus dias de ter encontrado justamente no momento do cio! Acheron estava na beira do córrego de águas calmas e rasas, lavando a pele com água gelada, na esperança de acalmar o bater acelerado do próprio coração e controlar os instintos que ameaçavam torna-lo apenas um animal. Um animal sem controle que iria colocar a fêmea em péssima situação! Ele ouviu os passos e não olhou para trás. O cheiro impregnou a sua volta e soube que a fada o farejava e viera atrás de um elfo. Era o instinto natural do cio. Driana viera atrás do que sua porção animal gritava e implorava. De cócoras na beira da água, Acheron olhou para trás. Mal coberta por resto de pano velho, cabelos longos desgrenhados, bagunçados, negros como a noite, macios e perfumados. Face sombria, havia algo de sombrio no peso do desejo que brilhava nas pupilas azuis. Corada, lábios vermelhos, mastigados pelo ardor de morder e tentar controlar a paixão que corria em suas veias. Ela estava sem ar, às mãos abriam e fechavam, num nervoso incontrolável. Era o chamado da natureza e por mais que tentasse pensar com clareza, seu corpo não entendia os comandos da mente. A voz de Acheron soou mais como um rugido, ao dizer: -Volte para seu esconderijo, fada. Aqui não é lugar para você. -Eu sei – ela disse. -Afaste-se – Acheron olhou de fato para ela, quando tentou dar mais um passo em sua direção. -Não – ela negou e ficou um pouco de lado. Acheron olhou e não acreditou em seus próprios olhos. -Nasceram não é? Minhas asas? – ela perguntou, a voz aveludada, como se estivesse cantando. Voz sensual. -Sim– ele acenou, levantando e fitando as asas da fada. De lado, Driana não exibia muito das asas. Mas ele observou-as atentamente mesmo assim. Nunca vira asas dobradas. A aparência era de asas quebradas. -São feias, não é? – ela deduziu pela expressão de estranheza na face do elfo. -Eu não posso afirmar. Abra suas asas, e eu posso dizer como se parecem.– mandou sério. -Eu não sinto nada. Não sinto as asas. Como posso abri-las? Eu não sei o que fazer com elas. Suas palavras eram de lamento, mas a expressão da fada era muito diferente. Naquele momento seu subconsciente pedia explicações sobre as asas, mas sua libido impedia que fosse o tema central da conversa. -Eu quero ver suas asas, Driana. Mostre-as para mim– ele pediu. Driana sentiu o corpo amolecer diante do pedido. Mesmo com medo de relevar as asas, e sem saber como fazer, concentrou-se no pedido. Nunca em suas leituras encontrara informações sobre isso. Como governar suas próprias asas? Pensou na armadura de Acheron, e imaginou que seria igual. Uma plana extensão de si mesma obedecendo seus impulsos cerebrais. Ela concentrou-se e seus pés perderam o rumo, quase a levando ao chão quando num solavanco as asas se abriram. Ela perdeu o passo, e saiu do chão por uma fração de segundo. Teria caído se Acheron não fosse rápido e segurasse seu pulso, obrigando-a a ficar no chão, pés fincados na terra. Asas abertas. Ele estava errado ao supor que as asas pareciam quebradas. Não, elas jaziam dobradas para encolher e não atrapalhar o corpo da fêmea. Abertas eram as asas mais longas que vira em toda sua vida. As hastes que nasceram primeiramente, ainda eram pontudas, e despontavam no final de cada filamento da asa, como articulações perfeitas. A aparência de carne dera lugar à aparência de algo amadeirado, como galhos de um poderoso carvalho. Eram filamentos finos, em um tom prata muito sutil, quase transparente que despontava em uma cor negra perfeita. Eram asas negras. Acheron nunca vira asas negras. Esplendidas, negras como a noite, com filamentos e articulações esbranquiçadas. Uma noite repleta de estrelas. Sim, era uma metáfora romantizada do efeito das asas sobre ele. -Suas asas são lindas - disse afinal. Driana moveu as asas de um lado ao outro, finalmente sentindo o movimento. Sim, ela podia sentia suas asas! Soltou o pulso que Acheron apertava, e afastou-se dele, andando até o córrego com pés trôpegos. Curvou-se para enxergar na água. Mal acreditou que as longas, largas e negras asas lhe pertenciam. Bateu-as, para checar se não eram uma bela ilusão de sua mente, e foi surpreendida por um puxão forte. As asas queriam ergue-la e Driana, segurando-se no chão, em uma planta qualquer. -Eu não sei voar – ela disse e Acheron aproximou-se. -É claro que sabe, fada livre. Bata suas asas. Driana voltou para perto de Acheron e encostou sua mão na dele. Era fogo puro. Faíscas de paixão. Contendo a vontade de pular sobre o elfo e consumar a paixão que explodia dentro de si, usou desse contato como apoio caso caísse. Bateu suavemente uma asa na outra. Eram longas, as asas eram negras e potentes, pois ela logo estava planando. Um princípio de pânico, e ela descobriu que se mantivesse as asas batendo não cairia. Acheron esticou a mão o mais longo que conseguiu até não ser mais possível segurá-la e permitir que seus dedos soltassem os dela. Driana não olhou para trás ao abater as asas e alçar voo. Era a sua vez. Depois de tanto desejar e invejar as fadas que cruzaram seu caminho ao longo dos dias de fugitiva, era sua vez de voar e conhecer esse sentimento único. Mesmo sem asas, Acheron conhecia o sabor do voo por ter sido levado por algumas fadas ao longo da sua vida. Mas para Driana era tudo uma grande novidade. Engolindo a emoção, pois não sabia lidar muito bem com esses sentimentos estranhos que vinham sufoca-lo em momentos como este, cravou os olhos na imagem distante da fada. Era tolo da sua parte, e provavelmente ela tinha razão ao considera-lo um estúpido sem inteligência, mas parte sua temia que esse voo não tivesse retorno. Que as asas da fada a levassem para tão distante, que lhe faltasse vontade de voltar para junto de um Guardião que lhe causara tanto sofrimento e ofensa. Driana bateu suas asas por muitos minutos até descobrir que poderia planar também. Revoou sobre a copa das árvores, enxergando a vila dos desesperados, enxergando a proteção mágica que dividia as florestas, e escondia a Floresta dos desejos para um lado, o deserto das areias vermelhas para outro. Descobriu que uma alma aventureira escondia-se em seu peito, pois o desejo de conhecer o mundo apoderou-se dela. Bater suas asas para longe, sempre distante, encontrando lugares desconhecidos e descobrindo como a vida acontece fora do Monte das Fadas. Esse desejo era novo, sempre tão medrosa sobre o desconhecido, mas era um desejo que pedia sacies. E um dia, ela saciaria esse novo desejo. Pois agora, havia um desejo maior. Seu voo teve fim quando o aperto de saudade calou o desejo de liberdade, lembrando-o da paixão não saciada e da presença do elfo, que em breve sairia para sempre da sua vida. Já não lhe importava mais a vontade de Acheron. Era decisão tomada e caberia a ele apenas obedecer. Não é assim que os machos costumavam agir com as fêmeas? Pois bem. Era assim que ela agiria a cerca de Acheron! Suas asas cortaram o céu, e a levaram de volta. Era incrível descobrir que sabia voar sempre precisar aprender sobre isso. Que seu corpo reconhecia as asas como parte de si. Que era perfeita a junção entre fada e voo. E para essa perfeição Driana não conhecia palavras que pudessem explicar tal ligação. E talvez não devesse explicar. Acheron esperança que voltasse. Não deveria, mas esperava. As asas brilharam contra a luminosidade da manhã, o tom escuro sendo subjulgado pela claridade dos filamentos, e linhas prateadas, quase transparentes. A fada pousou bem diante dele. Seus olhos brilhavam como pedras precisas e sem explicação ou necessidade de conversação, Acheron segurou sua face entre as duas mãos e a beijou. Lábios cheios, molhados, macios. Não havia descrição possível para um beijo de alma, corpo e coração. Driana agarrou os cabelos louros do elfo e entregou tudo de si naquele beijo como se houvesse nascido sabendo beijar e principalmente, sabendo beija-lo. Acheron desceu uma das mãos para enlaçar sua cintura e dobrou a face, mudando o ângulo do beijo, caçando língua com a fúria de uma fera enjaulada. Driana lhe entregou o que exigia, as línguas duelando no interior de seus lábios mornos. Acheron era tão maior que ela, tão mais forte, que ela sentiu o impulso incontrolável de ser assim grande e forte como ele. E de envolvê-lo, agasalha-lo e mantê-lo preciso a si, com o ele era capaz de fazer com um simples abraço. Dobrou as asas, sem saber que poderia fazer isso, era instinto puro, dobrou-as para frente, envolvendo o elfo em um abraço de braços e asas. Acheron grunhiu em sua garganta, levando-a contra o tronco de uma árvore. O frenesi envolveu-os de tal modo que não ouviram nada em torno deles. Nada poderia interferir na ligação estabelecida naquele momento. Tomado pela fúria da paixão, respondendo ao clamor do cio, Acheron subiu o corpo da fada e entrou entre suas pernas, afastando seus braços, e as roupas. O ardor queimava a pele da fêmea, esquentando seus nervos a um ponto insuportável. Driana pertencia a uma raça desconhecida para ele, e por isso ignorou as marcas negra que surgiam em sua pele, como linhas imaginarias que bailavam por sua pele, em braços, pescoço e colo. Eram linhas harmoniosas, e únicas. Era induzido pelo cio, disso não restava dúvidas e quando ela fechou os olhos, erguendo os braços para cima, oferecendo totalmente o corpo, Acheron não se fez de rogado. Precisava ser franco e confessar que apesar de já ter desfrutado do cio de uma fêmea, aquele momento em especial estava sendo diferente de tudo que viveu. Era mágico. Único. E ele nem perderia tempo tentando explicar. Nunca foi de palavras e sim atos, e não seria agora que começaria a divagar em vez de agir! A onda de calor entre eles era tão forte que Acheron obrigou-a a soltar as asas, assim ele pode pegá-la nos braços e leva-la para o córrego. Era um córrego de pouca água e muitas pedras, por isso colocou-a na parte mais rasa da água, onde não cobria seu corpo com água, mas refrescava o calor escaldante em seu corpo, atacado e torturado pelo cio. Driana se contorceu e virou de costas, batendo as asas para ele. Acheron deslizou as mãos pelas asas, e afastou-as pedindo silenciosamente espaço. Driana alargou as asas, uma de cada lado, para eu Acheron pudesse ter acesso a ela, e quando ele agarrou seus cabelos e puxou- a para trás com força, unindo definitivamente os corpos, Driana gritou e empurrou-se com força, chocando as nádegas contra o quadril do elfo. Nua, contorceu-se o recebendo por inteiro. Era sua posição favorita desde que descobrira que o elfo perdia completamente o controle possuindo-a de quatro. Era visceral o modo como ele empurrava e a tomava por inteiro. Os dois jamais esqueceriam aquele momento. O ato no meio da Floresta, tomados pelo sentimento inexplicável de ser parte da fauna e flora. De coração e sangue os dois eram parte da natureza. Os gritos, os berros, os movimentos, tudo era parte da natureza, como dois animais. Um dia Driana descobriria que parte dessa loucura era o seu acompanhante. Que se não houvesse um sentimento gritando dentro de si para o segundo Guardião, aquela entrega toda não aconteceria.
Mãos e braços
As mãos apertavam a terra enlameada sob seus dedos e seus braços e pernas tremiam, as veias dilatadas bombeando sangue de modo voraz. Não era algo que o elfo pudesse lidar. Era parte da essência da fada, parte do cio que envolvia o nascimento das asas.
Por conta disso que tantas fadas eram sequestradas e vendidas para elfos sem coração que apreciavam desfrutar desse momento. Um acontecimento único na vida de uma fada e de um elfo. Acheron conheceu muitas fadas em sua vida, mas nunca desfrutou disso. Não achava que merecesse, pois não ofereceria a nenhuma delas compromisso esperado. O calor do corpo e da alma esmoreceu com o passar das horas. Driana foi a primeira a despertar e se mover. Desfez-se do emaranhado de pernas e braços e sorriu de orelha a orelha, ao descobrir que Acheron ainda estava nu, tal como ela. Quando em sua vida, pensaria ser possível esquecer-se das convenções desse modo? Com tanto abandono? Procurou por roupas e vestiu o que sobrou da túnica. Sorrindo de pura felicidade, Driana chegou a inegável conclusão de que precisar arrumar roupas antes de seguir viagem. Seguir viagem? Olhou para o elfo adormecido. Sim, precisava seguir viagem, e essa decisão a afastaria para sempre do Guardião. Acheron não queria vínculos duradouros com ela. Isso estava claro. Apesar de ter esquecido totalmente suas decisões de não emprenha-la, ele estava enlevado pelo ato e não se dera conta do que fizera. Mas quando esse sentimento passasse e despertasse de seu sono dos justos, Acheron se recriminaria por isso. Ele não a queria em sua vida. Talvez gostasse um pouco dela, mas não o bastante para relevar tudo que aconteceu, todas as mentiras e ainda querê-la em sua vida. Ela, por sua vez, não podia se dar ao luxo de ficar e esperar que ele a quisesse. Precisava encontrar Joan, antes que a Guardiã Zoé o fizesse. Para esse impasse, havia uma única solução: partir com a certeza que voltaria. Sim, tão logo estivessem todas salvas, ela encontraria Acheron e grudaria nele como um inseto Schill! Convenceria esse elfo das terras geladas a aceitá-la em sua vida. Esperava que isso não demorasse a acontecer. Ela tinha pressa em ser feliz ao seu lado agora que provara do gostinho da liberdade. Um gosto doce e sereno. Um gosto inesquecível. Encantada com suas asas, Driana estava testando-as quando Acheron acordou. Primeiro de tudo, estava com o traseiro gelado, pois estava meio deitado em uma poça de água formada pelo córrego e segundo estava solitário. A fada exibia suas aas e parecia brincar com elas. Acheron levantou e se vestiu, sabendo que ela notara sua presença e seus movimentos, mas fingia que não. Quando terminou, aproximou-se e segurou-a pelo braço para que parasse e ficasse no chão, ao alcance de suas mãos. Alem de ter que lidar com sua mente privilegiada que sempre a afastava dele por conta do abismo que havia entre ambos, intelecto e planos de vida que divergiam, agora havia as asas que a levavam para longe. Driana parou de se mexer e tocou-o sobre a barba espessa que crescia a cada dia, e estava prestes a dizer-lhe que partiria, mas voltaria em breve quando ouviram som de vozes e passos. -Ela está ali! Driana ouviu a voz de Jana e então um a um seus familiares foram aparecendo, junto do pequenino Mikazar. Driana afastou-se apenas o suficiente para olhar para eles. Estava prestes a gritar um cumprimento quando notou a expressão de Jana mudar drasticamente. Ela tinha os olhos arregalados de surpresa e algo que Driana não entendeu o que era. Supondo ser pasmo por encontrá-la com asas, Driana sorriu e andou em sua direção dizendo: -Minhas asas nasceram! A expressão de alegria que deveria estar estampada na face de Jana fora substituída por outra expressão: a preocupação. -Driana, eu não imaginava que fosse da minha raça!– Ela disse sendo a primeira a aproximar-se. -Da sua raça? – espantou-se. -Sim, suas asas são típicas da minha gente – ela disse correndo os dedos pelos filamentos da asa de Driana, que sentiu o toque carinhoso e sorriu encantada. -Está dizendo que eu posso ter nascido no mesmo lugar que você? -Estou dizendo que já vi asas idênticas as suas – Jana afastou-se e olhou para o pai – Estou certa, não estou, papai? Ou são meus olhos tentando me enganar? -Está coberta de razão – ele disse com olhos fixos nas asas, e então na face da fada Driana – Foi agraciada com lindas asas, fada Driana – ele elogiou e Driana abriu seu mais belo sorriso agradecida pelo elogio. -Em pensar que cheguei de temer que minhas asas nunca nascessem! Como fui apressada! – ela bateu as asas e Jana fez o mesmo com as suas – Eu voei pela primeira vez agora a pouco! -Mesmo? Posso me juntar a você em um voo? – ofereceu, adiantando-se para segurar a mão de Driana com afeição inegável. Driana olhou para Acheron, como quem diz que não vai demorar. As duas fadas se afastaram um pouco e de mãos dadas alçaram voo. Acheron havia percebido imediatamente a expressão de espanto dos elfos. Não disse nada, pois era um momento de felicidade para a fada que conviveu toda a vida na clausura. -Qual a possibilidade real de Driana ser da sua raça e tudo isso ser uma grande coincidência? – perguntou a Melquior e ele deixou cair no chão a trouxa de pertences que carregava, ordenando que os filhos montassem acampamento. Seria uma longa conversa e era bom que acontecesse longe de Driana. Duas horas mais tarde, exaustas, Jana e Driana voltaram para a terra firme. A alegria no rosto de Driana valia uma vida toda de sofrimento e privação. -É tudo tão bonito visto lá de cima!– ela contou, apontando para o céu. Conversava animadamente com Jana e seus irmãos. Havia trocado as roupas esfarrapadas por trajes de Jana, um belo vestido sem mangas, onde as alçar se prendiam no pescoço e mantinham suas costas nuas, para que as asas pudessem permanecer abertas o tempo todo. No futuro seria preciso adaptar roupas que coincidissem com as asas tão grandes e fartas. Por hora nada era problema em sua mente. O vestido de algodão simplório lhe cobria até os pés, e estes estavam calçados em sandálias de couro artesanal. Sem dúvida feitas por um dos irmãos de Jana. Um deles havia se afastado um pouco e tocava uma gaita. A música era suave, como um lamento ou um choro. Melancolia pura. -Eu preciso tanto de ajuda – ela disse com voz sorridente.– Preciso encontrar uma das minhas amigas, chamada Joan. Ela é muito frágil e a guardiã que a persegue é uma selvagem. É quase pior que Acheron – não resistiu em provocar. -Não subestime a inteligência de Zoé – ele retrucou. -Eu nunca ousaria comparar a inteligência de Zoé com a sua – ela retrucou de volta, com um meio sorriso malicioso. Ser livre permitia que fosse autentica, sem amarras e sem papas na língua. -Eu tenho minhas asas, mas não posso voar o tempo todo. Acheron acha perigoso que siga sozinha até o Campo dos Humanos. -A razão está com o Guardião– Melquior disse sério, olhos na fada – o nascimento das asas das fêmeas da nossa raça é um momento menos doloroso e mais rápido, mas o cio é idêntico ao das outras raças. Seu cheiro provocará os elfos que estiverem a quilômetros daqui. É perigoso seguir, mesmo acompanhada. Mas visto a necessidade de salvar uma vida, sim, você não deve seguir sozinha.– ele tocou gentilmente o ombro de Driana que gostou do toque. Olhou para ao elfos a sua volta e um pensamento cruzou sua mente. Foi um curvar de sobrancelhas e Melquior disse: -Faça a pergunta que a intriga. Diante de sua seriedade, Driana apenas sorriu: -Eu só me perguntei por que nenhum de vocês está incomodado com o cheiro do cio. O elfo mais jovem que tocava a gaita parou de tocar e prestou atenção a conversa. -Talvez não seja um bom momento para essa conversa– interrompeu Acheron – O pedido da fada é muito simples. Melquior concordou em leva-la para o campo dos humanos e então para o castelo. Estará protegida com ele e sua família. E terá Jana como companhia para conversas. Deve seguir seu caminho o quanto antes. Aproveitar que é dia ainda. Driana afastou-se de Melquior e aproximou-se de Acheron, perguntando: -Não pode mesmo me ajudar? Alguns dias, Guardião, preciso apenas de alguns dias para encontrar Joan e... -Minha missão foi cancelada, devo voltar e me reportar para a nova Rainha.– ele interrompeu suas palavras – tenho um divida para com você, e não fugirei dessa responsabilidade. -Divida? – perguntou sem compreender.– Como assim... Tem uma divida para comigo? -Eu me aproveitei do cio. Foi errado e inconsequente. Se emprenhar, sabe onde me encontrar para cobrar responsabilidade pelo meu ato. Por certo nos veremos no castelo em breve, Driana. É uma fada livre e deve seguir seu caminho, pois agora, quem tem uma missão a cumprir é você. -Eu pensei que a missão de um Guardião fosse salvar os inocentes e desprotegidos! Joan e alam são inocentes! Elas correm perigo e precisam de ajuda! Da ajuda de um Guardião! -Alma será libertada quando for entregue a Rainha, se eventualmente Solon a encontrar antes da notícia sobre a Rainha Santha se espalhar, não seja dramática a cerca desse assunto.– ele dizia, enquanto carregava sua armadura no ombro, pronto para seguir viagem para longe dela. -Eu preciso da sua ajuda, Acheron, eu preciso de você do meu lado!– ela seguiu-o, precisando convencê-lo a ficar. -Eu já disse – ele olhou por sobre a cabeça de Driana, fitando os elfos – me responsabilizo pelo erro cometido. Me redimirei perante a nova Rainha por ter deflorado uma das fadas castas do Ministério do rei. Aceitarei a punição imputada a meu crime. E se houver uma cria... Não ficará desamparada. Siga sua viagem e desejo-lhe boa sorte. Acheron virou as costas e partiu. Imóvel e incrédula, Driana sentiu o ódio vir a tona e ferver dentro de si a revolta total pelas palavras ouvidas. Esqueceu que não estava sozinha e correu atrás do elfo encontrando-o entre as árvores. Acheron não esperava ser agarrado por um dos braços e empurrado contra uma árvore. Não lutou, pois ela não era um inimigo, e sim uma fêmea furiosa em ser rejeitada. -Boa sorte? Você me deseja boa sorte com essa cara deslavada? – gritou. Ele não respondeu. -Eu passei os piores dias da minha vida andando por florestas perigosas. Carregando peso, cheia de calos e bolhas nos pés. Cozinhando, limpando e entretendo um Guardião imbecil, e tudo isso para que? Para nada! -Culpe a Rainha destronada por isso – ele lembrou-a disso. -Não foi Santha quem me encurralou em uma caverna e seduziu! Foi você quem me fez mentir e agir de modo incorreto, para defender minhas amigas e minha própria vida! Foi você quem me deixou assim...- ela apontou para si mesma – é culpa sua! -Eu não fiz nada contra você, fada, nada. Tudo que aconteceu, foi consequência das mentiras de Santha e Lucius e está superado. O reino está salvo de intrigas e as fadas estão livres. E você é uma delas. -É claro que você fez algo comigo!– bateu com força no elfo, descontando nele sua raiva – Eu me deite com você! Você me fez querer isso! Me fez esquecer tudo! Me fez culpada por mentir e fingir ser um garoto, quando na verdade era a mulher com quem se deitava! Você me fez sentir fêmea, e não fada da clausura! E agora vai virar as costas para mim? -Não estou virando as costas para você. É livre, Driana, e vai descobrir que a liberdade não existe. Ela vem carregada com o peso das obrigações. Você precisa encontrar suas amigas e eu preciso voltar para o castelo. Essa é a verdadeira liberdade.– ele disse amargurado. -Mentiroso!– negou – Está fugindo de mim! Porquê? -O que você acha? – ele perguntou irônico. -Acheron, eu não creio que esteja irritado ainda porque eu o chamei de burro. Você também me ofendeu diversas vezes!– era uma acusação bastante plausível. -Não é uma questão de ofensa.– ele foi franco – não disse nenhuma mentira. Eu sou menos inteligente que você. Provavelmente menos racional que a maior parte dos elfos que conhece. Eu nunca tive problema com isso até o dia em que a conheci. Mesmo quando era apenas o rapaz Jô ainda assim, me considerou inferior. E é provável que eu seja inferior, quando comparado a você. Eu poderia desqualifica-la e mil questões, deixando claro que é inferior a outras fadas em outros quesitos... Mas não o faço. Somos diferentes nisso. Sua inteligência é uma barreira insuperável. Um abismo. E sua arrogância faz com eu não queira atravessar esse abismo. Eu gosto da minha vida calma. -Você gosta de mentir a si mesmo – ela afastou-se um passo olhando para ele com raiva e magoa, porque apesar de tudo, suas palavras eram verdadeiras – Não tem coragem de assumir quem é de verdade! Não é um Guardião! É um rei! -Não!– Acheron gritou, avançando na direção da fada, uma das mãos erguidas como se fosse lhe bater, mas parou, contendo o impulso – não repita isso nunca mais. -Porque não? É a única verdade! É um rei se escondendo da vida embaixo de asas falsas! Sua missão para com o reino? Sua lealdade para com os Guardiões? Conversa! Tudo mentira! Usar uma armadura é usar um escudo contra quem é de fato! E não vire as costas para mim! – gritou quando ele ameaçou ir embora – Eu fui Driana, a fada da clausura minha vida toda. Agora eu sou uma fada livre. Eu penei o inferno em vida trancafiada naquelas masmorras, entre as paredes fedidas, dormindo em pedra crua, e comendo lavagem e restos do castelo. Eu vivi cada dia da minha vida sabendo que era sozinha na vida e que um dia, eu seria trancafiada para sempre. Eu lutei todos os dias da minha vida para não enlouquecer, para perder a sanidade! E apesar de todo o mal que vivi, eu vou voltar para o castelo. Eu voltarei para junto dos que amo. Eu ficarei nesse lugar a despeito das lembranças, pois elas me fortalecem, e não me derrotam por medo! Se eu partir, será por vontade e desejo, e não por medo! -Você não sabe nada de mim! – ele gritou com ela, vermelho de raiva, sua descendência clara, quase albina, se refletindo no vermelhão sob a pele morena do convívio sob sol escaldante. -Eu sei que salvou o seu povo da opressão e escravidão! Eu sei que lutou com cada fibra do seu corpo para salvar as pessoas que amou! E que essas pessoas não viviam mais para vê-lo ser livre. Eu sei que no fundo, adormecido dentro do Guardião corajoso e imperturbável, existe um menino escravo, que não sabe viver sem ordens alheias! Eu sei que é perigoso voltar os olhos para o passado, mas também sei que sem fazer isso, não há como escolher o caminho correto a seguir! Vai me rejeitar, como rejeitou o lugar onde nasceu? Por medo? -Eu não quero você, fada. Somos compatíveis na cama. É verdade. Mas de resto...não gosto do seu jeito de ser. Você é séria demais. Chata demais. Arrogante demais.– ele foi propositalmente cruel – Siga seu destino, eu sigo o meu. Me avise se houver uma cria. Era um aviso grosseiro. Incapaz de insistir mais uma vez, Driana observou-o partir definitivamente. Estava feito. Todas as suas esperanças estavam findadas. -E se eu voltar com você para o castelo? – ela gritou, correndo atrás dele outra vez.– E seu eu...–as palavras morreram em sua voz. Deixar as amigas para trás, para segui-lo era o cumulo do amor. -Jamais nos aturaríamos mais que alguns dias– ele foi franco – Use seu brilhantismos para se convencer disso, Driana. Na vida real, somos água e vinho. – ele disse com um relance de pena na voz. Humilhada, Driana deixou-o ir. Acheron abriu caminho entre as árvores e desapareceu do seu campo de visão. Sozinha, Driana pensou que estava tudo acabado. Francamente, nunca havia começado, então como poderia falar em final? Sua mente lhe dizia isso, mas seu coração lhe gritava que ainda haveria uma segunda chance. E se não houvesse por bem, haveria por mal! Driana não reparou que Jana cochichava com o pai, e parou de falar abruptamente ao vê-la retornando sozinha. -Aquela cabeça oca é também teimosa – ela disse com magoa e Jana suprimiu um sorriso. -Quem sabe se você não fizesse mais esse tipo de comentário fosse mais fácil convencê-lo a ficar do seu lado? Driana gemeu de desgosto e sentou ao lado de uma dos elfos, o mais novinho, que ainda brincava com a gaita nas mãos. Ela pousou a cabeça no ombro do garoto e suspirou pesarosa. Sentia-se bem entre os familiares de Jana. Sentia-se em família. -Acredite... Ele também não fala coisas bonitas a meu respeito – disse magoada. -Vocês dois vivem brigando. Eu lembro como era quando era o garoto Jô. Eram amigos. Porque não tenta retomar essa amizade? – Jana sugeriu para vê-la sorrir. -Driana é livre agora – foi Melquior quem interrompeu a conversa.– Precisa pensar em si mesma e não em um Guardião que a rejeitou. Abusou de sua castidade, e então, abusou do cio, um momento tão delicado para uma fada, e seguiu sua vida sem olhar para trás? Esse algo não é digno de uma fêmea doce e meiga como Driana. Doce e meiga? Nem mesmo Driana acreditava possuir tais qualidades! -Acheron é muito justo e corajoso. É um elfo valoroso. Não fale mal dele, Melquior. Por favor, não fale mal dele na minha frente – disse chorando. Lágrimas silenciosas que não aceitavam recusa. Eram lágrimas de abandono. Deveria estar comemorando o nascimento de suas asas, e a liberdade adquirida com a remissão de todas as acusações contra as fadas da clausura, mas em vez disso, chorava pelo elfo. -Driana, é necessário que tenhamos uma longa conversa – Melquior aproximou-se e ela ergueu os olhos azuis para o elfo, sem prestar muita atenção na seriedade da conversa. -Sim, mas primeiro eu gostaria de agradecer por toda ajuda que despendem a mim. Eu sei que gostaria de estar buscando por sua filhinha desaparecida.– Ela disse se movendo para frente, erguendo-se e segurando uma das mãos do elfo, com agradecimento. Ele secou as lágrimas que corriam em seu rosto e ela sorriu agradecida – Eu rogo que a Fonte dos Desejos realize o desejo de Jana e traga sua irmãzinha de volta.– disse com sinceridade. Jana sufocou um soluço, e Driana imaginou que eram lágrimas de esperança por falar desse assunto tão delicado. -A fonte atendeu quase todos os meus pedidos até agora. Sou livre pela primeira vez na vida e já sei por onde começar a procurar informações do meu passado. -Você é a única no mundo que conseguiu enganar a fonte e conseguir mais que um desejo, Driana – Jana afastou o choro e disse para incentiva-la – Quem lhe garante que seu maior desejo não será realizado em breve? Que talvez... Precise apenas dar uma forcinha para que isso aconteça... -A fonte é uma piada. Se os desejos de Driana estão se realizando, é porque a vida assim desejou por ela– Melquior disse sério – Insisto, Driana, esqueça o Guardião. O tempo mostrará se devem ou não ficar juntos. Apenas o tempo. O comportamento dele não me agradou. Não é honesto da parte de um elfo seduzir uma fada em sua situação, e depois simplesmente virar as costas e abandona-la. -Eu não posso esperar. Não. De modo algum– subitamente seus olhos brilharam, pensando no que Jana dissera - Acheron não abusou de mim, eu me oferecia a ele, e é melhor não tentar explicar minhas razões – era intimo demais confidenciar a reação exagerada que o elfo causava em suas entranhas.– e definitivamente, não me abandonou. Ele ficou comigo durante todo o nascimento das asas. Cuido de mim. Eu sei o sentimento que o move ao fugir de mim. E por isso mesmo que não posso deixa-lo escapar! Não assim! Tomada dessa certeza Driana limpou as faces, livrando-se das lágrimas com um plano na mente. Não deixaria Acheron ir embora brigado com ela. Empolgada com a ideia que se formava em sua mente, Driana beijou a face de Melquior para acalma-lo em sua indignação contra o segundo Guardião e disse antes de bater suas asas e voar para longe: -Eu não demoro! Prometo que não demoro! Sim, não esperava demorar, tão pouco imaginava que Acheron mudasse de ideia por conta do que pretendia fazer. Não era tão esperançosa assim. Seria como um lembrete, para que Acheron pensasse muito bem sobre a relação que comearam a nascer entre eles e que em sua ausência, tivesse no que pensar. Demorou a encontra-lo. Apesar de pouco tempo passado, Acheron era exímio em esconder o próprio rastro. Um caçador nato não deixava pistas a serem seguidas, ainda mais quando pretendia ter um percurso calmo, sem atropelos. Driana esperou anoitecer, observando-o a distância. Solitário, Acheron cuidou de si mesmo, com os anos de pratica que a vida lhe impusera. Sempre sozinho. Sempre desacompanhado, sem pegadas ao lado das suas. Ele comeu, e deitou para dormir em um canto qualquer em meio a árvores, sem suspeitar que era analisado por olhos gulosos. Driana esperou que seu sono estivesse pesado para andar sorrateira em sua direção. Em determinado momento lembrou que podia voar o que ainda lhe era uma novidade, e tirou os pés do chão, voando em sua direção. A porção fera dentro do elfo não reconhecia o perigo, pois a aceitava como parte integrante da vida dele, assim como acontecia com a armadura e somente por isso, Driana pode deitar-se sobre ele, tomando cuidado para não acorda-lo. Na quase inexistente claridade, provinda apenas do luar e das estelas no céu, Driana beijou um espaço intimo no queixo do elfo, perto da orelha e quando ele abriu os olhos sonolento, sem entender imediatamente ela sussurrou muito baixinho e intima: -Eu não vou desistir de você – audaz, cabelos negros caindo sobre o peito dele, olhos brilhantes como as estrelas daquela noite calorenta, pele macia e aquecida pela paixão renovada em suas entranhas, pelo simples ato de estar com ele mais uma vez – Não vou te deixar partir sem saber o que está perdendo – empurrou os cabelos para o lado, e eles caíram ao lado, o perfume enervando a mente do Guardião. Roçou suas pernas nas dele, e esfregou seus seios no peito amplo e suado de um sono agitado. -Não vai conseguir me esquecer, Acheron, eu não vou permitir que me esqueça. Seus sussurros eram como gritos na noite escura que era o coração do elfo. Ele não disse palavras, apenas enlaçou o corpo da fada e grudou os lábios. Pelo restante da noite não houve palavras, apenas gemidos e sussurros de paixão, desconexo e sem sentido. Quando amanheceu, Driana afastou-se, arrumou as roupas e voou para longe. De volta para a família de Melquior que a recebeu de braços abertos. Com um olhar de pesar em torno de si, Diana seguiu-os em direção o Rio Branco, que desta vez ela atravessaria voando, de mãos dadas com Jana, sua recente amiga. Os planos de Melquior e seus filhos era contornar o Vilarejo Sem Fim, evitando lidar com a magia do lugar, margeando o desvio do rio Branco, que seguia diretamente para o Campo dos humanos. Deste modo em menos de uma semana estariam com Joan. Era uma previsão que fazia valer a pena toda dor de deixar Acheron partir de sua vida. Enfrentando o que vinha, sem titubear, Driana tentou sorrir e se envolver na conversa, gostando de fazer parte daquela família tão unida e carregada de amor uns pelos outros.
Por onde você andar...
Dois dias mais tarde, Driana começava a descobrir que não existe liberdade quando um coração sofre por amor. A saudade deixava seus dias cinzentos e chuvosos, independente do sol e do calor a sua volta.
Tornava as conversas monótonas e seus dias passavam lentamente. Em sua alma um sentimento que parecia gritar que algo aconteceria, e que esse algo mudaria sua vida. O que era estranho, pois esse ‘algo’ já acontecera. A descoberta do amor, suas asas, a liberdade adquirida... Sua vida jamais seria a mesma. Nada que acontecesse poderia mudar isso.
Jamais voltaria a ser a Driana de antigamente. Era outra, e suas atitudes também haviam mudado drasticamente. Ela sorria mais, achava graça de pequenas tolices que antes não lhe chamariam atenção.
Como ver os dois irmãos mais jovens de Jana brigando por conta de uma gaita. Ou ouvir os gritos de Melquior corrigindo os filhos de modo amigável, porém repleto de orgulho masculino em ter filhos saudáveis e corajosos. Os dois brigavam muito e eram parecidos demais para não divergirem em opiniões e atitudes.
Nessas horas Jana apenas maneava a cabeça e começava algum assunto para desviar os irmãos da briga tola. A paz voltava a reinar e eles conviveriam em harmonia outra vez. Era uma hierarquia. Dois irmãos mais velhos, então nascera a filha desaparecida de Melquior, no ano seguinte Jana, e em sequência os dois outros filhos menores. Era uma família que tentou se erguer após a tragédia e através do amor uns dos outros, conseguia seguir em frente sem nunca desistir de encontrar o último elo que faltava da corrente familiar. Era emocionante ver tanto sentimento entre elfos e fadas de uma mesma família. Driana que nunca conviveu com o que chamavam de unidade familiar, ficava encantada em fazer parte disso, mesmo que temporariamente. Driana sorriu para Jana e a fada apenas fez uma expressão de que não acreditava que aqueles homenzarrões podiam agir como crianças. As duas sentaram lado a lado, e Driana permaneceu sorrindo enquanto todos se acalmavam e voltavam ao convívio normal. Mais tarde, ela sobrevoou o desvio do rio e chegou à conclusão que poderiam cobrir maior caminho se pegassem um atalho. Atalho que se fez necessário ao visualizar um grupo pequeno de elfos que seguiam pelas pedras em torno da margem do desvio do Rio Branco. Eles andavam na margem oposta ao caminho que eles seguiriam, por isso, precisaram mudar o caminho. Seria uma tragédia ter que lutar com tantos elfos. Era possível que fossem bons homens, seguindo em direção à vila dos Desesperados, mas dado o fato de ainda ter suas asas recentes, era melhor não ariscar um confronto. Nessas horas a falta que sentia de Acheron era quase física. Ele sabia lidar com essas situações sem medo, sem aflições, era um provedor, um protetor, um elfo que valia por dez! O amor pode distorcer a realidade, e Driana torcia para não ser o seu caso. Que seu último encontro com Acheron, a noite passada em seus braços, sem conversa, sem brigas, sem passado entre ambos, pudesse ter aberto os olhos do elfo para a necessidade de ao menos se conhecerem melhor. Era impossível que ignorasse tanta emoção. Driana afastou-se de Jana e planou perto do desvio do rio, atraída por uma margem repleta de orquídeas selvagens. Flores de cores pálidas, que ela sabia que não eram simples e inocentes flores. Aquelas orquídeas em especial eram venenosas e poderiam levar uma pessoa a morte com um simples contato. Vistas de longe eram lindas e não ofereciam perigo, por isso, Driana sobrevoou em tono do campo florido, admirando a beleza. Distraída não notou o perigo que corria até ser tarde demais...
Acheron levou um dia inteiro para emparelhar com a comitiva que levava Driana em segurança para o Campo dos humanos. Exímio caçador, encontrara os rastros dos elfos e fadas facilmente.
Depois, precisou apenas segui-los a uma distância segura aguardando o momento de pegar a fada de surpresa. Em outros tempos, com outra fêmea, Acheron não perderia seu tempo usando de jogos. Simplesmente se revelaria e colocaria sua situação em pratos limpos.
Mas a fêmea em questão era Driana, e ela merecia um pouco mais de exibição e entretenimento. Causar algum rebuliço em sua mente privilegiada. Tempos atrás Jana havia argumentado, em uma tentativa de defender e justificar o comportamento nem sempre coeso de Driana, e suas apalavras remetiam a reflexão a cerca da dificuldade que enfrentava a fada que um dia fora da clausura. Uma mente como a sua tendia a viver um martírio eterno. Sempre racionalizando tudo a sua volta, sempre perdida em ponderações e conclusões, que nem sempre condiziam com a realidade. Pois apesar de sempre acertar em suas argumentações, ainda assim, o que é e o que aprece é muito diferente do que a ação diz. Uma pessoa pode saber o caminho certo a seguir e ainda assim preferir o errado, ou simplesmente confundir-se e perder o rumo. A criatura, seja humana ou mágica,é passível de erros, e essa variável normalmente não fazia parte das fórmulas e racionalizações de Driana. Acheron não poderia negar que ela estava coberta de razão ao deduzir que a causa de sua partida era medo. Observando-a voar, com suas longas e fartas asas negras, Acheron refletia sobre isso. Sobre sua visita noturna, inesperada e perturbadora. Logo quando estava solitário e remoendo a própria decisão de partir, dividido entre a culpa, e o arrependimento, Driana surgia e confundia totalmente suas emoções. Na noite, como uma gata selvagem, mostrando-lhe que também podia ser imprevisível e tomada pelas ações e não pensamentos. Sem argumentos, palavras ou ofensas que pudessem confundir a mente e o coração, sem a paixão escarrada e inflamada que turvava os sentidos e tornava o ato ainda mais apaixonante do que poderia ser de fato. Um ato sexual regado a desejo, carinho e companheirismo. Sim, eles dividiram algo precioso naquela noite, e quando amanheceu, estava sozinho outra vez, livre para seguir seu caminho. Livre para escolher o que desejava de verdade. Retornar o seguro, ao correto e irretocável caminho de volta para o castelo onde conhecia as criaturas que viviam sob sua proteção e não se surpreendida com nada. Onde não corria risco de sentir novamente o vazio interior de ser alguém sem família e sem futuro, abandonado a própria sorte, e esta sorte não ser exatamente prospera. Ou aventurar-se pelas surpresas que a vida ao lado daquela fada lhe reservava. Era provável que um relacionamento entre os dois não durasse mais que algumas poucas semanas. Quem sabe quando a lenha da paixão houvesse queimado toda, se separasse de modo trágico e repleto de ofensas. Era provável que fosse assim. Ele mesmo apostaria nessa versão da história. Mas fosse como fosse, lá estava ele refazendo os mesmos passos percorridos, em busca de Driana. Descobrira que o acampamento havia sido desfeito e que seguiram para o Campo dos humanos. Depois disso, restou-lhe caçar os passos e pistas deixadas para trás. O principal indicio, era farejar a fada. Mesmo a distância, ele podia farejar seu cheiro. E havia também sua armadura, guiando-o na direção certa. Vestindo a parte que cobria seu braço, Acheron foi levado pela armadura em direção da vasta planície de flores. A fada revoou sobre as flores, muito perto, as asas longas quase tocando as pétalas, o que ele não recomendaria, pois eram venenosas, e aparentemente Driana sabia disso também, pois não as tocou. Driana, a fada impertinente que o considerava burro. Como lidar com essa situação? Era uma pergunta que esperava que ela soubesse a resposta. Ele não estava disposto a ser tratado como alguém inferior e ela não estava disposta a ser tratada como alguém comum. Talvez por ser capaz de grandiosos pensamentos, Driana tivesse dificuldade de entender que isso não importava no mundo de Acheron. Ele gostava da terra e dos animais. Do mato e da vida calma. Não havia necessidade de perder tempo com alheamento intelectual. E havia também o problema recentemente descoberto. Pela tranquilidade da fada, e alegria ao voar, talvez ela já soubesse da grande novidade a cerca de si mesma. O Guardião também pensava em como seria isso, a repercussão dessa novidade na vida de ambos. Ele cortou caminho, percorrendo o trilho de pedras, encontrando-a a imagem da fada revoando acima da copa das árvores. Com um sorriso de contentamento, Acheron retirou o punhal do cinturão, e ergueu-o pela ponta afiada, usando sua visão perfeita para fazer mira. Demorou um pouco para o alvo chegar onde ele queria e posicionar-se do jeito que precisava e quando isso aconteceu, foi tudo muito rápido. O punhal girou no ar e com a força do lançamento cortou o ar, acertando exatamente o tecido da única, e enroscou-se na bainha trabalhada, fazendo que com a força do impacto, o corpo vestido com a roupa fosse levado para trás e preso em uma árvore. Driana mal notou o que acontecia, até descobrir que estava espetada em um tronco de árvore e alguns metros do chão. Debateu-se e gritou de susto quando o tecido começou a rasgar. Olhou para cima e não reconheceu imediatamente o punhal, pois o medo de ter sido pega por caçadores de recompensa mais uma vez a fez desatenta. Debateu-se, e gritou, tentando se soltar. Quando conseguiu, o impacto a puxou para baixo e ao tentar usar as asas, bateu os filamentos no tronco de árvore, sendo barrada em seu desejo der voo. Desajeitada na verdade, ela ainda não possuía total domínio das asas. Caiu diretamente para o chão. Esperava o impacto do chão quando calou os gritos no instante em que foi agarrada por braços. O pensamento louco de que ao menos não havia sacrificado seu traseiro em seu primeiro tombo oficial desde que aprendera a voar durou um segundo. Começou a se debater ao descobrir que estava presa e olhou para seu algoz. Parou na mesma hora. -Acheron! – ela gritou e agarrou a pele de animal que cobria o ombro dele. Como sempre sem túnica, mas com peles cobrindo o ombro e parte do braço. Era o traje preferido do Guardião, e o preferido dela também! Peito nu, bronzeado, suado e coroado pela claridade do dia. Ela ainda lembrava com clara da sensação destes músculos sob seus dedos... Ele havia raspado toda a barba e ela quase sorriu diante da lembrança de quando o conheceu. Achou o Segundo Guardião burro como uma porta, um completo imprestável, que vinha acompanhado de um corpo esplêndido e de um olhar perturbados. Mesmo assim, uma toupeira vestindo armadura de Guardião. Incrível como as aparências enganam. A esperteza de Acheron vinha da vida, do convívio entre animal, natureza e magia. Não era um conhecimento que Driana pudesse conhecer facilmente. Precisaria de uma vida toda para que ela fosse tão esperta quando Acheron. -É você!? – era uma pergunta, ou uma afirmação, nem mesmo Driana sabia o que pretendia dizer com essa frase. -Sim, sou eu – ele concordou – Veja, eu abati uma fada em pleno voo. Agora, o que devo fazer com ela? -Eu deveria recomendar que a colocasse no chão imediatamente. – Driana não conseguia afastar os olhos dos seus. Eram verdes, tão claros, e únicos, que somente assim de pertinho párea identificar a cor exata. Ela se pegou pensando em como ele deveria ser de verdade, longe do monte das Fadas. Longe do calor, e do sol que escurecia sua pele facilmente. Um desejo tão forte de conhecê-lo em sua essência mais pura. Seu olhar contou uma história de profundidade para Acheron. Difícil explicar o que passava na mente da fada, mas com toda certeza a resposta para essa questão mudaria sua vida. Driana pousou uma das mãos sobre o peito dele, onde ficava o coração. -Você veio atrás de mim, ou apenas esbarrou em mim por conta de uma imensa coincidência? É claro que era ciente que ele estava a milhas de distância do trilho certo para chegar ao castelo! Mas não custava interagir de modo mais simples. Deixar suas frescuras intelectuais de lado. O sentimento que a abatia quando perto desse macho a fazia boba, então, que mal havia em deixar seus pensamentos um pouco de lado em nome desse amor todo que ameaçava explodir em seu coração? -Coincidências não existem– ele negou, sem demonstrar desgaste por segurá-la nos braços. -Se isso for verdade, devo concluir que Rainha Santha cometeu um crime hediondo, sem saber, que seus atos levariam a sua ruína e ascensão de uma fada honesta e lúdica, que será uma Rainha irretocável? E que esse mesmo crime me fez escolher entre os quatro Guardiões e caçadores de fadas, e que esta escolha me foi ditada pelo destino párea que eu escolhesse o Guardião exato? Aquele que é perfeito para as minhas medidas? É isso? Uma sequencia de atropelos que me jogou diretamente nos seus braços nesse exato segundo? -Às vezes, Driana, uma simples frase galante não quer dizer mais do que isso – ele disse tentando não sorrir do seu excesso de melindres. -Oh - ela disse corando – Foi um galanteio? -Uma tentativa – ele disse sério. Driana abriu um sorriso maravilhado. Uma resposta na ponta da língua. Nenhum dos dois notou que Melquior e seus irmãos se camuflavam na natureza e agir em torno deles. Acheron sentiu algo espetar em suas costas e quase derrubou a fada. -Solte-a – Melquior se revelou e Acheron não se surpreendeu pela animosidade. Esperava por esse tratamento depois da conversa tida com Melquior e seus filhos. -Está apontando sua espada para um Guardião? – foi à pergunta de Acheron. Era uma pergunta retórica, mas que dizia muito mais do que isso. -Sim, é o que estou fazendo. Solte Driana. Deixe-a em paz – ele reinteirou. Os quatro elfos em torno deles concordavam. Acheron pousou-a no chão com cuidado e manteve-se no mesmo lugar, sem manifestar-se a cerca de pegar a espada e retribuir a gentileza. -Porque está fazendo isso, Melquior? Por favor, é Acheron! Ele não me faria mal!– Driana disse incrédula. O irmão mais velho de Jana aproximou-se dela, e passou o braço em torno de sua cintura, puxando-a gentilmente para longe do segundo Guardião. Sem compreender, ela aceitou, porque não conseguia ver o intuito de uma briga entre amigos. -Papai!– a voz de Jana cortou o silêncio e ela surgiu correndo – Papai, isso é mesmo necessário? -Sim, isso é necessário.– ele disse sério – Afaste-se da fada, Guardião. Siga seu caminho. Volte para o castelo e continue sua vida. Terá sua chance de se explicar quando retornarmos. Se eu o ver outra vez aproveitando-se da fada, eu vou...– ele parou de falar, contendo a fúria. Algo velado. Melquior não era de exibir seus sentimentos, ou expor suas explosões de raiva, amor, ou sofrimento. Era contido e isso se refletia em sua expressão cansada. Cansado de tantos anos de flagelação em uma busca que parecia jamais ter fim. -Eu não permito que fale assim com Acheron! – Driana empurrou o braço do elfo, e aproximou-se de Melquior sem crer no que ouvia– eu sou uma fada livre. Não pesa sobre mim calunias, ou leis. Sou eu quem responde por minhas decisões! Eu agradeço muito pela ajuda, e confesso que sou grata a tudo que tem feito por mim, e tenho muito carinho por toda sua família... Mas não permitirei que falem em meu nome! Acheron não me abandonou... -Sim, ele abandonou.– Melquior usou a mão para baixar as dela, pois Driana gesticulava muito, pois estava nervosa.– O Guardião a abandonou. Jana me contou como ele tem abusado de você desde o começo. Não é aceitável que um Guardião use do corpo de uma fada desprotegida e sofrida. Ele sabia que é órfã. Sem proteção. Sem família. Fugitiva e amedrontada. E o que fez? Abusou do seu corpo. Abusou da sua castidade. Suas atitudes são imperdoáveis. -Nossa – ela mal acreditou no que ouvia – Quanta tolice. Eu deitei com Acheron porque quis! Ele não abusou de mim. Eu que passei a usar isso para... Bem, ter algum controle sobre ele – corou ao dizer. -Não vai ser julgada pelas atitudes que a vida a obrigou a tomar em nome da própria salvação – Melquior alegou, apiedado. -Mas eu... Eu gosto deste elfo de cabeça oca – ela disse um pouco desesperada em se fazer entender. -É algo que teremos que lidar, Driana. Quando chegar a hora, de preferência diante da Rainha que tem o poder de controlar as ações de seus Guardiões. Lidaremos com a responsabilidade dos atos de um macho que não controla seus impulsos. O abuso contra uma fada indefessa não ficará sem punição. Eu já lhe avisei sobre isso, Guardião. Sobre minha lealdade não me permitir erguer a espada e cobrar a castidade de Driana com sangue. – Era uma conversa estranha. Driana quase sorriu diante da tolice do que acontecia. -Isso é ridículo – disse incrédula. -Não, isso é justiça – um dos irmãos mais novos de Jana disse. -Injustiça é um elfo na posição de poder de um Guardião usufruir do cio de uma fada e não assumir seu crime diante das leis e da família. -É mesmo? Porque estão agindo assim? Sou livre para me deitar com quem eu quiser!– Driana lembrou-os disso. -Não. Não é livre para se deitar com quem quiser. De agora em diante terá quem cuide de você. E esse tipo de coisa não tornará a acontecer. Jamais alguém voltará a abusar de você, Driana. Apesar de ser uma afirmação tocante, era bem desproporcional. Estanhando tanto silêncio da parte de Acheron, Driana achou que havia algo que ela não sabia acontecendo. -Acheron? Não vai dizer nada? – Perguntou. -Não – ele deu de ombros. -Você veio atrás de mim– era uma tola afirmação. Viera encontrá-la, mas não defendia suas motivações diante de Melquior e seus filhos? Acheron afastou os olhos dos seus, e ela teve a confirmação que mentiam. Escondiam algo! -Eu quero saber por que desse comportamento!– Exigiu – Eu não admito receber ordens de quem quer que seja! Fui presa minha vida toda! Agora sou livre e não admito que ousem mandar em mim!– ficou bastante revoltada.–Eu o admiro e respeito, Melquior, mas não admito que tome minhas dores! Cobrar reparação? Que ousadia! O corpo me pertence, e eu faço dele o que bem entender! Acheron não é culpado das minhas escolhas! Ele veio atrás de mim, e eu quero ouvir o que ele tem a dizer!– estava corada de indignação – e se ele não quiser dizer nada... Bem, eu aceito assim mesmo! Como Melquior não esmorece eu um centímetro em sua decisão de protegê-la, Driana apelou: -Eu não acredito nisso! Quer saber... Eu não vou participar disso! Vocês dois que se resolvam sozinhos – olhou de Acheron para Melquior e vice e versa – eu vou continuar meu caminho bem longe da loucura de vocês! Driana deu as costas para aqueles elfos loucos, e começou a marchar para longe. -Não vá – foi Acheron quem chamou. -E porque eu ficaria para participar dessa discussão estúpida? – ela parou, olhou para ele e gritou de volta. -Não pergunte a mim– ele respondeu com a mesma expressão que ela. Indignação. Acheron estava inconformado em não poder falar sobre esse assunto com a liberdade que desejava – Eu fiz uma promessa e não posso voltar atrás. -Uma promessa? – A cada segundo a situação se tornava ainda mais estranha. -Não é um segredo que me pertença – Acheron soou como se pedisse desculpas. -Não está pensando em ir embora outra vez, está? – ela perguntou com magoa.– Veio atrás de mim, o mínimo que mereço é uma conversa não é? Melquior, por favor, seja razoável.– ponderou – Acheron é um Guardião, é de total confiança! Eu posso ao menos conversar com ele, não posso? Melquior não queria ceder, tão pouco seus filhos. O modo desconfiado com que tratavam o elfo começou a exaspera-la. -Mas afinal, o que esta acontecendo? - verbalizou esse sentimento de curiosidade mesclada a indignação. Melquior baixou a espada e seus filhos fizeram o mesmo por associação. Jana suspendeu a respiração, pois sabia o que viria a seguir. -Eu posso contar – Acheron sugeriu – Eu sei lidar com ela. -Lidar comigo? – Driana perguntou imediatamente – Como assim ‘lidar comigo’? -Driana, querida, porque você não se acalma? – Jana sugeriu aproximando-se e segurando sua mão – Podemos nos sentar um pouco? Os homens precisam conversar em particular... -O que é isso, Jana? Quanto machismo! Que conversem na minha frente! Se eu sou o assunto principal, é justo que ouça o que dirão de mim!– indignou-se – Afinal, Melquior, qual o seu problema com Acheron? O elfo estava no limite entre o que desejava fazer e o correto. Por fim, a emoção falou mais alto. -Esse elfo usou de minha filha e não quer assumir a responsabilidade. Conversamos e ele não quer se responsabilizar. Driana olhou para Jana com surpresa total. -Eu não acredito nisso! Acheron! -ela correu em sua direção e empurrou-o com raiva– você tocou em Jana? Você ousou me trair depois de tudo que aconteceu entre nos dois? -É claro que não – ele segurou seu braço, obrigando-a a parar e empurrou-a nada cortês em direção do elfo Melquior – Ouça o que ele tem a dizer. Cale a boca, fada livre, e pelo menos uma vez na vida, ouça e não fale! Driana puxou o braço, direcionado a ele um olhar mortal. Calou-se, pela recomendação e também pela vontade de saber o que acontecia de fato. Melquior baixou a cabeça e disse sem coragem de encará-la: -Eu dediquei minha vida ao trabalho e a proteção do povoado onde nasci e me criei. Quando me casei, a fada escolhida era minha melhor amiga de infância. Éramos três amigos inseparáveis, por isso entendo perfeitamente sua dedicação às fadas fugitivas, Driana. Ela pensou em corrigi-lo e lembra-lo que eram livres e não mais fugitivas, mas as palavras de Acheron pesaram em sua mente, lembrando-a de ouvir em vez de falar. -Eu me casei muito cedo. Um ano mais tarde nasceu meu primeiro filho. Tive dois filhos elfos em sequencia. A vida parecia perfeita, até que em uma primavera nasceu nossa primeira fadinha. –ele sorriu da lembrança – Branca, minha esposa estava apaixonada pela filha. Foram quase dois anos de pura felicidade, ela engravidou outra vez e estávamos vivendo em um conto de fadas. Perto do parto, alguém invadiu nossa casa na minha ausência e levou nossa filha. Os meninos estavam sempre comigo, foram criados correndo atrás de mim aprendendo meu oficio na Guarda. Eu procurei minha filha por meses, Driana, quando voltei pra casa, Jana era nascida e estava grande. Fui ver minha fada com quase quatro anos – Jana estava triste de ouvir a história e baixou os olhos, pois eles carregavam muitas lágrimas– Branca pediu que não partisse mais. Ela só chorava, dia e noite. Eu não sabia mais o que fazer. Fiz o que me pediu. Fiquei ai seu lado, e ela parecia mais feliz quando vieram os dois últimos meninos. Eu não sei como pude ter me enganado tanto. Ela estava morrendo por dentro, e eu não notei. Seis anos após o sequestro da minha primeira filha, Branca morreu. Eu sei que foi de tristeza. O sofrimento a matou. Nada pode apagar essa dor. Se eu houvesse me rebelado contra seu pedido e encontrado nossa filha, ela estaria viva para ver esse momento chegar. -Ninguém pode prever o que vai acontecer na vida– Driana corrigiu-o – eu mesma era uma fada da clausura, sem esperanças, desgraçada pela vida... E isso foi a apenas algumas semanas atrás, agora sou livre. A vida é imprevisível. -Branca era muito diferente de mim. Ela era fechada.Vivia em meio a livros e escritas. Era muito boa com as palavras. Ainda tenho seus diários, suas anotações... Ela registrava tudo que pensava. Era muito... Criativa – ele não quis usar uma determinada palavra, mas Driana entendeu que fugia do uso da palavra ‘inteligente’. A causa disso a intrigou ainda mais. -Mas você se casou depois da morte de sua esposa – lembrou-o disso. Não entendia exatamente porque lhe contava tudo isso, mas era uma história que gostaria de conhecer. -Sim, cresci ao lado de Branca e Misselan. Eram minhas melhores amigas. Os anos fizeram o amor nascer e minha vida foi devotada para Branca. Quando a perdi.... Misselan me ajudava com as crianças, e principalmente, era uma boa companhia para Jana. Eu não pude cuidar da minha primeira filha, não queria errar com a segunda... E cometi o pior dos erros. Jana foi sacrificada por minha culpa. Jana não negou. Na verdade não disse nada. Era hora de um desabafo, e não de interferências. -Misselan era louca. Teve o que mereceu– Driana disse surpresa por um elfo tão bom quanto Melquior pensar desse modo arbitrário – Não existe amor que justifique o mal que ela fez para sua família! Ela me disse que sequestrou Jana porque você estava muito perto de encontrar sua filha sequestrada. Que Jana seria uma distração para afasta-lo do caminho certo. E agora, quem o afasta da sua missão sou eu...– baixou a cabeça – mas lhe prometo, que tão logo esse inferno termine, eu pedirei ajuda para Eleonora,c a nova Rainha e pedirei que ela me ajude a conseguir elfos, quem sabe até um ou dois Guardiões para ajudar na busca por sua filha. -O nome da primeira fêmea que nasceu do ventre de Branca era Sell. Pequena Sell, com olhos arregalados e bochechas rosadas –dele disse com profunda ternura – A primeira cria fêmea, a herdar as asas de Branca. -Diga para Driana, papai, sobre o dom– Jana lembrou-o, não queria interferir, mas Melquior estava se tornando mais e mais emotivo e as palavras pareciam ter fugido de sua mente. Ele cobriu a boca com os dedos, como quem perecia de um tempo antes de continuar a falar. -As fêmeas do meu povo não possuem dons, Driana. Assim como Jana, você também não possui dons. -Sempre me disseram que minha inteligência era indicio que meu dom seria esse... Que eu seria inteligente e... -Não é um dom, é uma qualidade – Acheron se fez notar – Uma fada do Ministério do rei não possui rastros, impossível saber de onde você veio. Quando demonstrou sua inteligência, foi natural que deduzissem ser o seu dom. foi um engano. -Não era um dom muito útil de qualquer modo...– ela disse com ironia e seus olhares se cruzaram.– Eu só não entendo porque esta briga toda contra Acheron. Eu gostaria de saber qual o desentendimento que existe entre vocês dois. -Você – Melquior respondeu – Você existe entre nós dois. Eu exigi a reparação do mal lhe feito, e ele se negou. Enquanto essa situação não se resolver, ele não terá a oportunidade de abusar de você outra vez– ele foi resoluto – Eu estive muito perto de visitar o Ministério do Rei, Driana. Sabia disso? -Não – ela disse sem entender ainda. -Quando sequestram Jana estávamos a caminho do castelo. Eu pretendia conhecer as fadas com mais de vinte anos, esperar as asas nascerem e tentar... Tentar me apegar a esperança, de que alguma delas pudesse ter asas iguais as de Branca... O entendimento imediato cruzou a mente de Driana. Acheron notou o momento em que a tensão surgiu na face da fada. Apesar disso, ela não disse nada. Era hora de calar. Como ele dissera, a hora era de calar. Calar para ouvir a história de sua própria vida. Saber o que viria não poderia subjulgar a necessidade de ouvir. -Tivemos que adiar esse momento, porque Jana estava correndo perigo. Abrir mão de uma filha por conta de outra. Que escolha eu tinha? – Ele perguntou a si mesmo, e seus filhos tinham o mesmo olhar de culpa que ele exibia. -Nenhuma – foi Driana quem respondeu. Uma simples palavra que refletia tudo. Driana se moveu, e andou até Melquior. Estendeu a mão e tocou sobre o ombro do elfo: -Você encontrou essa filha, Melquior? -Sim– olhos nos olhos, ele não hesitou na resposta – E ela tem as mesmas asas negras que Branca tinha, as mesmas longas, e belas asas cor de noite. Um profundo suspiro escapou dos lábios de Jana e Driana olhou para ela estendendo a mão em sua direção. Jana não esperou outro convite. Acheron ficou de fora, observando a cena. Jana soluçou, chorando sua alegria e abraçou Driana com toda a saudade de uma irmã que nunca conheceu sua irmã mais velha, mas acalentava esse sonho. Em meio ao abraço Driana afastou-se e perguntou, com um sorriso invejável em sua face: -Como é possível que eu tenha tido minhas asas depois de você? – precisava de uma explicação, mas não se importava com isso. Pela primeira vez na vida esses detalhes não lhe importavam. -Eu lhe disse uma vez, quando conversamos, nem sempre as asas nascem aos vinte anos. Cada fada é uma situação diferente. Em nossa gente é assim. -Eu tenho uma família? – ela perguntou para se certificar, encantada com essa verdade– Um pai? – Olhou para Melquior – Irmãos? – ela olhou um a um, e as lágrimas rolaram em sua face, lágrimas de alegrias– Essa é minha história? Tenho vinte e dois anos, um pai corajoso e quatro irmãos bonitos e fortes para me proteger? -E uma irmã!– Jana disse emocionada – Minha irmã. -Minha irmã – Driana repetiu, abraçando Jana mais uma vez. Então, soltou Jana para chegar a Melquior. -Eu não preciso que Acheron redima de crime algum – ela explicou, entendendo agora o problema entre os dois homens – Eu preciso que ele fique comigo, do jeito que ele puder. E agora ele sabe – olhou para o Guardião com malícia no olhar – que eu tenho um pai e irmãos para me defender. Encantada com o quanto a vida estava sendo boa com ela, depois de tanto sofrimento e privação, Driana disse lutando contra o engasgo que apertava sua garganta: -Eu queria ter conhecido minha mãe – sussurrou – eu queria muito ter conhecido-a. Eu só lamento que Jana tenha sofrido por minha causa. Por culpa de uma mulher louca que fez essas atrocidades por causa de um falso amor. De resto, agradecerei para sempre a loucura da Rainha Santa que me jogou na vida, pois graças a ela, a vida me trouxe até a minha família! Eu... Não sei como ainda, mas eu nunca mais vou me afastar do meu pai e dos meus irmãos! Dizendo isso, ela se jogou nos braços de Melquior, seu pai. Um abraço que esperou uma vida inteira para acontecer. Ele beijou sua testa quando o abraço acabou e Driana, rindo, abraçou um a um seus irmãos. O mais novinho a ergueu do chão e rodopiou e ela riu muito enquanto a vida a trazia de volta para o ceio da sua família. Quando o abraço acabou, Driana olhou para o segundo Guardião. Não esperou permissão para abraça-lo. -Você sabia e não me contou– ela sussurrou em seu ouvido enquanto o abraçava pelo pescoço. -Não era um assunto meu – ele foi simples em sua resposta – Não deveria saber pela minha boca. -E quando me contariam? – a pergunta foi feita para Melquior. -Quando voltássemos para o castelo. Quando sua antiga vida estivesse em paz. – ele explicou com a mesma simplicidade que Acheron fazia. -Acheron... Você vai me ajudar a encontrar Joan? – perguntou, sendo abraçada por apenas um braço do elfo. Ele era forte e não precisava de mais que isso para mantê-la presa a seu corpo. -Se for seu desejo – ele respondeu e ela segurou seu rosto para que pudesse ter sua total atenção. -É o meu desejo.– respondeu – eu quero falar com você – disse com ternura. -De modo algum– Melquior informou – Enquanto não se redimir por ter roubado a castidade de uma fada desprotegida, não terá a oportunidade de abusar de minha filha outra vez. Eu não pude protegê-la durante toda sua vida, mas de hoje em diante, está sob minha proteção. Foi taxativo. Driana não argumentou sobre a desnecessidade dessa posição. Pra que tirar esse prazer que seu pai estava sentido em cuidar dela? -O Segundo Guardião jamais ficaria em divida com quem quer que seja – ela disse tão feliz que poderia gritar para o mundo todo ouvir – Ele veio atrás de mim, não veio? -Papai – Jana disse como um apelo – Um momento a sós não vai arruinar a reputação de Driana. Contrariado Melquior concordou com a filha, mas estava contrariado em deixá-los sozinhos. Acheron e Driana ficaram sozinhos. A fada livre afastou-se dele e com um meio sorriso esperou que ele se manifestasse. -Não vamos sobreviver muito tempo juntos – ele alegou – Não combinamos em nada. Você é chata e enfadonha a maior parte do tempo e me irrita profundamente com suas perguntas e argumentos desnecessários sobre toda situação que passamos e ainda vamos passar. Eu não quero e não preciso ser analisado o tempo todo. -Eu não precisaria fazer isso se você conversasse comigo normalmente – ela argumentou – Conversava com o garoto Jô sem problema algum, mas comigo... Você não fala nada! Esconde o que sente e o que pensa! O que me resta? Arrancar-lhe a verdade! -Se eu quiser, eu lhe contarei a minha verdade, fada. Eu preciso querer. Não vou falar quando você quiser, e sim quando eu quiser.– Foi taxativo, suas mãos graúdas emoldurando seu rosto, para que ela não deixasse os olhos vagarem e consequentemente sua mente criar teorias.– eu sei o que pensa a meu respeito, fada, e em algum momento da nossa vida essa opinião vai nos separar. Quero que pense sobre isso. -Mas Acheron...– ela pousou as mãos sobre as dele, incrédula sobre ouvir isso – quando o conheci eu pensei que nunca tinha conhecido um elfo tão burro quanto você em toda minha vida e que dificilmente voltaria a conhecer. Uma toupeira de cabeça oca e dura agraciado pela carcaça mais bem feita que já tinha visto em toda minha vida. Eu não sei como não notou que eu era uma fada! Eu queimava por você, fingindo não reparar. Eu era um elfo, não é? Acho que desempenhei bem meu papel, ou o mundo inteiro sofre de falta de percepção coletiva...– notando que ele não gostava de suas palavras, Driana sorriu – acontece que eu percebi meu engano. Você não é burro, Acheron. Eu era profundamente ignorante sobre a alma humana, sobre a vida, e sobre o que realmente importa. Uma porta, sem sentimentos profundos e sem sagacidade verdadeira. Eu era tola. -Você nunca poderia ser tola, Driana, mesmo que se esforçasse para isso.– Ele negou. -Como não? Eu não conhecia nada da vida. Eu li sobre a vida em muitos livros, mas não conhecia o sentindo exato das palavras até vivenciá-las. Acheron... Você não tem ideia de como me sinto na sua presença. Sinto saudade de ser o menino Jô, porque naquele época você era próximo a mim. Conversava comigo. E eu sinto falta disso. -De conversar com um elfo burro? Talvez você também não seja tão esperta assim... Ouvir uma piada vinda de Acheron era entusiasmante. -Eu gosto de você, Guardião. Eu me apaixonei. Eu quero que fique comigo. Mesmo que não dure muito tempo. Fica comigo, Acheron. Agora eu sei que as diferenças não importam. Eu não sou quem pensei que era. Sou comum. -Eu me pergunto se terei que lidar com sua arrogância todos os dias – ele sugeriu. -Temo que sim.– ela foi sincera.– Diga que gosta de mim, Guardião. -E quais são os seus planos, fada da clausura? – não resistiu a provoca-la, privando-a da declaração que tanto desejava. -Não me chame assim, eu tenho arrepios só de lembrar como teria sido minha vida se não houvesse sido envolvida nas mentiras da Rainha Santha. – Reclamou, puxando a orelha pontuda do elfo, arrancando-lhe um rosnado de queixa– Meus planos são simples. E você está incluído em todos eles. -É mesmo? – ele insistiu, uma sobrancelha erguida em falsa dúvida. -É claro que sim. Eu vou ajudar Joan. Quando ela estiver segura voltarei ao castelo, e esperarei minhas amigas decidirem o que farão de suas vidas. Eu espero de coração que todas nós permaneçamos juntas. Depois... Eu gostaria de viver na Floresta dos Desejos em uma cabana que ouvi dizer que um bonito Guardião mantém escondida entre árvores, flores e animais... O que você acha? É um bom plano? -Eu posso ver uma falha ou outra neste plano... Mas nada que me assuste – ele fez graça apesar da aparente seriedade. -Eu quero conhecer o lugar de onde vim, Acheron, mas é um plano futuro. Um futuro próximo. E quero... Quero conhecer sua terra também.– Notou imediatamente sua posição mudar. Ele se afastou, soltando-a. -Quero ver como você é sem esse bronzeado todo.– Não resistiu a provocar.– Quero vêlo rei, Segundo Guardião. Quero que escolha sua vida, depois de reencontrar seu passado. -Isso não vai acontecer – ele colocou o saco de couro com a armadura nas costas e tornou a negar – tire essa ideia da cabeça. -Não mesmo – entendeu sua posição e pulou nas costas dele, quando Acheron virou-se para andar para longe, fugindo da conversa que tanto o perturbava. Abraçando-o com braços e pernas – Não vai fugir disso, Acheron. Não vai fugir do que acontece entre nós dois! -Pelo visto nossas brigas começaram antes do previsto – ele não a colocou no chão e assim, recomeçou a andar – eu deveria devolvê-la para Melquior. -Se fizer isso, eu fujo atrás de você – avisou. -Eu não duvido disso – ele sorriu, e ela beijou-o. Um estranho beijo, porém profundo e apaixonado com o beijo de amantes inseparáveis deveria ser. Acheron derrubou a armadura e colocou Driana no chão, enlaçando-a pela cintura e a puxando para seus braços. Mãos, lábios, corpos unidos em um beijo que duraria para a vida toda. Nenhum deles acreditava de verdade que o relacionamento não duraria. Havia muito amor, e esse sentimento não desapareceria mesmo com as diferenças entre ambos. De mãos dadas, procuram pela família de Driana. Infelizmente, apesar da felicidade que sentia, sua família não estava completa. Em algum lugar, perdidas e sozinhas, suas amigas tentavam sobreviver. Na Vila dos Desesperados, Alma mantinha-se escondida em uma choupana de uma velha duende. Suas asas nasciam e seu corpo penava de um sofrimento incomum. Nua da cintura para cima, de costas para cima, naquele exato momento ela se contorcia aos gritos enquanto suas asas saltavam, rompendo a carne e espalhando sangue por todo colchão velho. Em um canto do quarto a duende anciã, usando seu manto e capuz apenas baixou a cabeça, sem ajudar a aliviar o sofrimento da fada. Suada, tremendo da cabeça aos pés, Alma levantou a cabeça e olhou para ela, olhos vermelhos, perigosos, injetados pela dor e pela raiva. Era tudo culpa da Rainha Santha e dos Guardiões. Seu sofrimento solitário era culpa dos Guardiões. Ela segurou o lençol contra o peito e sentou-se, não havia tempo para lamento ou se recuperar de toda a dor lacerante. Precisava sair dali antes que o Guardião Solon a farejasse. Infelizmente Joan não precisava se preocupar em esconder seu cheiro de fada, pois a Guardião Zoé sabia onde estava. Apavorada, Joan correu pelos corredores do castelo, no alto, olhando para o pátio aonde humanos trabalhavam e mantinha o forte em perfeito zelo. Tentou ver onde estaria Zoé. Apavorada, Joan temia por sua vida e pela vida de todas aquelas pessoas. A estratégia de Zoé em caça-la com discrição a assustava muito mais do que um ataque direto. Zoé parecia muito mais interessada em derramar seu sangue do que aprisiona-la e leva-la para a Rainha Santha. Joan voltou a correr, e parou abruptamente ao ver Roni, o seu humano. Gostava de pensar nele dessa forma: O seu humano. Ele não estava sozinho. Ao seu lado uma bela plebeia trajando um vestido delicado um sorriso falso na face. Essa mulher era Zoé caçando-a dentro do castelo, nas fuças dos humanos. Joan deixou cair a bandeja com pratarias que carregava e ficou imóvel. Correu para longe, esperando ter alguma vantagem. Mas era tarde demais para temer por suas amigas, pois sua vida estava por um fio... E não era apenas a vida de Joan que estava em risco, amarrado e amordaçado em uma caverna aos pés do abismo, Tubã esperava por sua algoz. Não a única. Eram muitas. Divididos entre metade medo e metade expectativa. Ele queria notícias de Eleonora sem saber que nesse exato instante, na torre mais alta do Castelo, Eleonora observava a noite, vento nos cabelos, e olhar perdido no infinito, implorando que suas amigas voltassem a salvo e que Egan não demorasse a voltar para seus braços...
Seis anos depois
Pela janela aberta o vento entrou, agitou as cortinas de linho branco, e varreu a mesinha, derrubando os pergaminhos, tinteiro com suas penas e revirou as páginas de um dos livros que jazia aberto e esquecido, pois sua dona o abandonara no meio da leitura.
Um dos pergaminhos voo levado pelo vento para o assoalho de madeira e deixou o pequeno espaço de livros e estudos, para invadir o quartinho onde as duas crianças brincavam. O elfo pequenino, louro e de olhos verdes profundos, nem reparou no intruso, ocupado com seu mundo imaginário, onde invadia e salvava seu reino de conto de fadas, usando sua espadinha feita de bambu. A fadinha, idêntica ao menino, deixou sua boneca de pano e correu atrás da folha de pergaminho. Seus longos cabelos louros, cacheados nas pontas balançaram ao sabor do vento e ela riu quando mãos enormes a tiraram do chão, impedindo-a de caçar o pergaminho que era levado de um lado ao outro pelo assoalho. Era seu pai, e ela não sentia medo. Ele estava de volta e seu irmãozinho logo corria até eles. O pergaminho esquecido no chão. Atraída pelo som de risos, a fada aproximou-se, deixando de lado a caderneta onde fazia anotações, e apoiou-se no batente da porta, observando a família reunida. Driana mantinha os longos cabelos negros presos por uma fita, e eles caiam para o lado, sobre seu peito. A franja prevalecera, ela gostava de se sentir bonita. Os anos amadureceram sua beleza e seu gosto pessoal sofisticou-se, como era de esperar de uma intelectual. Acheron estava coberto de razão ao dizer que teria que lidar com sua arrogância todos os dias de sua vida, pois nesse quesito, ela não se emendava. A pequenina Miha foi colocada no chão e correu atrás do irmão, o incontrolável Piero. Eles estavam arredios com o presente trazido pelo pai. Driana precisava lembrar Acheron mais uma vez sobre não trazer animais de estimação para os filhos sem consulta-la antes. Principalmente pequenos roedores. O elfo olhou em sua direção, provavelmente adivinhando seus pensamentos. Em uma casinha simples, de madeira e folhas, no meio da Floresta dos Desejos, vivendo da natureza e da simplicidade que a vida pode oferecer, ainda assim, Driana parecia saída de um livro sofisticado de contos de fadas. Altiva, elegante e muito, mas muito inteligente. -Achei que tinha esquecido nosso acordo, Guardião – ela reclamou – Passou uma semana sem que eu recebesse um única notícias sua. -Hum, preocupada comigo, fada livre? – Ele perguntou aproximando-se. -Não. Minha preocupação se encaixa em algo entre indignação e fúria. Não pensou que escaparia da sua promessa pensou? Acheron ficou diante dela, de pé, fitando a mulher decidida a sua frente. Ele ainda se vestia do mesmo modo de quando o conheceu. O único retoque eram as tiras de couro que prendiam os cabelos indomáveis em tranças e penteados que realçavam ainda mais sua masculinidade exacerbada. Segundo Guardião, pai e marido. Acheron era tão lindo por dentro quanto por fora, e ela era a fada mais sortuda no universo. Foi Driana quem cedeu primeiro, deu um passo à frente e tocou seu peito com as duas mãos. O coração de Acheron batia forte e ela sorriu: -Senti tanto a sua falta, Acheron. Você desaparece por dias sem mandar notícias. O que espera? Que não me preocupe? -Eu não desapareci. Sua rainha solicitou minha presença.– Era um aviso. Algumas vezes ele gostava de desafia-la. -Preciso reclamar com Lora sobre mantê-lo tantos dias longe de casa. – Ela resmungou, erguendo-se nas pontinhas dos pés para beija-lo. Muitos acontecimentos haviam ocorrido depois que Driana foi salva do destino de fugitiva. Um desses acontecimentos havia sido seu casamento com Acheron. Acheron não havia se enganado ao profetizar que a emprenharia durante o cio, pois exatamente nove meses depois do acontecido, nasceram os gêmeos Piero e Miha. Herdeiros da genética e inteligência de Acheron, embora Driana ainda tivesse esperanças a cerca do gradativo interesse de filha pela leitura, eram duas espoletas alegrando seus dias. Dias esses em que a leitura ficava de lado, juntamente com os profundos pensamentos, e se dedicava apenas as crianças e ao cuidado do pequeno paraíso que Acheron construiu para os dois naquele pedaço de felicidade no meio da floresta. Com a permissão da Rainha Eleonora, o Segundo Guardião vivia na Floresta dos desejos, como era sua vontade, e ocasionalmente era solicitado para algum trabalho ou treinamento. O beijo, repleto de saudade e paixão, foi alimentado pelas mãos de Acheron, que a erguiam contra a primeira parede que encontrou e a pressionou com seu corpo, exigindo alivio para toda a falta que sentia de sua companheira. Ele estava errado ao dizer que não durariam mais que alguns poucos dias juntos. Estava errado ao alegar que não combinavam em nada. Mas estava certo ao dizer que seria difícil e que ambos precisariam ceder. E principalmente, que ela precisaria entender as pessoas a sua volta, antes de julgá-las. Era um aprendizado diário, e Driana estava contente com as escolhas feitas em sua vida. -Não será com beijos que conseguirá fugir dessa vez, Acheron – ela avisou, forçando os lábios nos dele, e tentando controlar a fera que poderia devorá-la com os olhos. Acheron era fogo puro e juntos a brasa queimava. No entanto havia um assunto pendente entre eles. -Conheço todos os seus truques e desculpas esfarrapadas e dessa vez tenho uma arma contra cada um deles – ela avisou, confortavelmente instalada em seus braços. -Não me diga que contou a eles – ele disse ficando irritado imediatamente. -É claro que sim! Não é possível esconder os preparativos de uma viagem desse porte. Além disso... Eles irão conosco. -Eu não gosto dessa ideia – Acheron afastou-se na mesma hora. Driana pousou a mão em seu ombro, por trás, enquanto ele fingia atenção em retirar o cinturão e as peles que cobriam parte do seu peito e braços. -São seus filhos, herdeiros do seu sangue e é justo que conheçam suas origens. Assim como eu conheci as minhas origens.– Ela disse sorrindo. Acheron não tinha argumentos para negar esse pedido. Seis longos anos batalhando por esse momento. Ela sempre soube que não seria fácil, pois ele não estava pronto para vivenciar essa hora. Ao contrário de Driana, que poucas semanas após dar a luz aos gêmeos, havia seguido viagem com seu pai e irmãos, sempre vigiada de perto por seu amado Guardião, encontrando seu passado ao chegar ao vilarejo onde nasceu. Um ano vivendo uma vida que um dia foi sua, mas não lhe pertencia mais e o casal voltou para o Monte das Fadas. Driana não se surpreendeu quando alguns meses depois seus familiares decidiram por morar na Vila dos Desesperados, perto dela. Não havia mais nada que pudesse ser resgatado de seu passado. Driana não precisava buscar essa realização interna, pois já a encontrara. No entanto, Acheron ainda estava longe dessa paz. Muito longe na verdade. Algumas vezes, durante a noite, sofria de pesadelos. Nunca lhe contava nada sobre isso, e Driana respeitava suas razões. Nem sempre o amor é feito apenas de felicidade sublime, é preciso alguma persuasão e insistência para vencer limites. Finalmente, depois de todos aqueles anos de insistência, Acheron concordou com seu convite. Driana desconfiava que concordara mais para calar sua insistência. Mas agora era tarde, sua palavra de Guardião havia sido dada e ela o cobraria sobre isso enquanto não cedesse. -Não aprovo a ideia de expô-los ao perigo.– Ele não virou para olhar em seus olhos e Driana abraçou-o pela cintura, colando a face em suas costas largas. -Não tente mentir pra mim, elfo. Seria patético se fizesse isso a essa altura da nossa vida em comum– alertou. -Não é questão de mentir – ele se defendeu. -É questão de medo. Mas não pense nisso, Acheron. Não precisa ter medo de perder seu lugar no mundo. Esse lugar ninguém tomará de você. Seu lugar é ao meu lado. Aqui, nessa cabana, na minha vida, e na vida das crianças. Nada que acontecer em sua terra natal mudará isso. Por favor, é hora de vencer o passado. Acheron não quis responder, e um suspiro agressivo foi sua manifestação de rendição. Ele segurou uma das suas mãos que o abraçava pela cintura e Driana sorriu diante da rendição definitiva. -Não existe nada para mim nessa terra, Driana – ele foi franco - Tantos anos passados... Ninguém se lembra do meu pai, do rei assassinado injustamente. Tão pouco se lembram de um príncipe escravo que partiu após vingar a morte de sua família. É tudo passado e você precisará aceitar isso, do modo que eu aceito. Fará isso? -Sim, eu farei isso – ela disse para tranquilizá-lo. Somente para acalma-lo e aliviar o peso que Acheron carregava em seus ombros largos e capazes de suportar as maiores responsabilidades em prol da segurança dos inocentes e de seus familiares. Driana imaginava que a realidade que encontrariam na terra natal de Acheron seria muito diferente do que ele fantasiava. Acheron supunha encontrar uma terra esquecida de seu príncipe escravo. Ela acreditava no oposto. E mesmo que estivesse enganada, a viagem valeria a pena. Seus filhos conheceriam parte de sua genética, e poderiam ver o mundo sob variados prismas. Para Driana isso era vital. Acheron puxou a fada para si e abraçou-a, beijando sua testa. Não queria falar mais nada. Uma semana de saudade era o bastante. Ouvindo o riso dos filhos brincando no jardim, pois a Floresta em torno era o jardim de seus filhos, Driana puxou seu Guardião pela mão em direção ao quarto.
Driana estava certa em suas convicções e em tantas brigas insistindo para que Acheron vencesse seu medo e voltasse para casa. Muitos dias depois da partida, eles chegaram ao local onde Acheron nasceu.
A primeira parte da viagem foi difícil, usando de fadas para encurtar a viagem e ganhar tempo. Depois, a caminhada em meio à neve trouxe o frio e a as reclamações sem fim das duas crianças.
Driana levava Miha pela mão, à fadinha agasalhada da cabeça aos pés, assim como seu irmão que seguia empoleirado nas costas do pai. Driana usava tantas roupas, que a dias não via a própria pele. Acheron por sua vez, não usava nada além de uma capa de peles.
O vento polar agredia a pele e machucava o corpo, mas para o filho daquela terra, era incapaz de causar danos. Driana parou de andar quando Piero gritou empolgado que conseguia ver a vila de sobre os ombros do pai.
Eles haviam chegado ao topo de uma montanha e a vista proporcionava grande emoção. Era um vilarejo erguido em meio à neve e ao frio. Construções de pedras, em formas quadradas e sóbrias, tão diferentes dos casebres comuns na floresta de onde Driana vinha.
Muitos ursos brancos, domados e usados para o trabalho encontravam-se guardando a entrada dos grandes portões em forma de arco. Não era uma civilização pequena, como supôs baseada nas histórias que Acheron contava. Era um povo formado por muitas pessoas e muitas raças.
Piero mal se continha nos ombros do pai apontando e falando sem falar, exibindo sua empolgação sem constrangimento, com a naturalidade peculiar das crianças. Driana olhou para o Guardião e sentiu um aperto no coração.
O silêncio era tão grande, e ele não conseguia se expressar. Os olhos verdes, sempre de cor indefinida, desde que pisara na neve branca, que cobria cada centímetro de terra, tornou-se um verde pesado, forte e decifrável e Driana estava encantada pela mudança.
Aquele era o seu elfo, voltando para suas origens. Segurando sua mão, Miha surpreendeu-a ao perguntar baixinho: -Mamãe, é aqui que vamos morar? -Não, querida. Aqui é o lugar onde o papai nasceu. Porque você me fez essa pergunta? – Curvou-se para cochichar com a filha. -Porque o elfo de barba branca disse que o papai voltou pra casa– ela respondeu com naturalidade. Driana olhou para onde a menina apontava e não viu nada além de neve. Puxou a filha para mais perto e olhou para o céu nublado pela aproximação de mais uma tempestade de neve. Há algum tempo que ela desconfiava que a genética de Acheron interferia na genética de sua fadinha. Ela vinha demonstrando um dom para ver e ouvir o que os olhos e ouvidos normalmente não captam. Emocionada, Driana esperou que Acheron ditasse o passo. Eles não poderiam permanecer na neve para sempre, mas não o forçaria a nada. Acheron olhou para sua companheira de vida e apontou o caminho, enquanto falava sobre a cidade, atraindo a atenção dos filhos para a cidade e não para o nervosismo que ele sentia. Eles desceram por um caminho difícil e quando se aproximaram dos portões em forma de arco foram recepcionados por elfos sobre o lombo de dois ursos brancos. Os animais impressionavam pelo porte e pela ferocidade. Usavam celas, como se fossem cavalos e eram celas gigantescas, feitas em material resistente, muito semelhante às roupas que os elfos que faziam a guarda usavam. Driana lembrou-se que não existiam Guardiões com armaduras nessas terras tão longínquas e que era provável que a armadura que Acheron carregava nas costas seria a primeira que entrava por aqueles portões. Miha estava desesperada tentando soltar a mão de sua mãe e correr para os ursos, sem medo do que pertencia a natureza, pois para ela era tudo fascinante. Acheron colocou o filho no chão e Driana se apressou para segurar a mão de Piero antes que ele também quisesse seguir a curiosidade. O vento soltou seus cabelos negros da touca que a protegia do frio, mas ela ignorou observando-o falar em uma língua estranha. Uma língua típica do seu povo. Um dos elfos voltou para o castelo e demorou em voltar. Driana estava quase desistindo dessa missão louca quando ele retornou e os guiou para dentro dos portões. Eles andaram entre elfos e fadas que paravam tudo que faziam para olhar para eles com espanto nas faces. Miha soltou de sua mão em determinado momento, aproveitando a distração de Driana e correu para um dos ursos. Era tão natural para ela tocar o pelo do animal e não ser rechaçada. Por isso, Driana livrou-se do receio materno e soltou Piero. Ele imitou a irmã. Ela parou e ficou olhando sua família. A pele tão alvinha, os cabelos louros tão claros, os corpos longilíneos, e fortes, a integração com o meio a sua volta. Ela quis trazer Acheron de volta para sua casa, para que vencesse as sombras do seu passado, e estava coberta de razão. Sua família pertencia aquela terra. Os pequenos seguiram os pais sem que precisassem ser chamados e ficaram ao lado do pai por instinto. Amavam a mãe, mas nesse momento eles sentiam a necessidade de estar ao lado do pai. Era o sangue falando mais alto. Algo diferente rondava-os. Uma sensação única de que algo muito grande aguardava-os. Algo que mudaria suas vidas para todo sempre. Quando entraram no castelo e foram levados por um caminho de pedras e mármore, ela sentiu um calor dentro do peito e olhou para Acheron. Ele viveu nesse lugar pensou. Esta é sua casa. As grandes portas que mantinham o salão real protegido foram abertas e foram conduzidos por longos corredores. Acheron na frente, sua família logo atrás, silenciosos. Havia um homem no trono, seu nome era Lourenzo. Acheron lembrava-se dele, e Driana também, pois muito ouvira falar sobre ele. Era um dos revoltosos que ajudou a salvar o reino. O elfo escolhido para reinar quando Acheron partiu. Esse mesmo elfo que jamais esqueceu do príncipe que partiu, destroçado pela dor e pelo desespero de ter perdido todas as esperanças de ser feliz, um príncipe escravo que aguardava o retorno e nunca em sua vida, teve dúvidas que viveria para ver retornar a sua terra natal. Lourenzo era de estatura media, contava muitos invernos de idade, e suas roupas não diferenciavam em nada das vestimentas dos demais elfos de seu povo. Nada de soberba ou ganância. O Segundo Guardião estava tenso, e com razão. Para um rei, a presença do príncipe destronado sempre representa uma ameaça. Por direito o trono poderia ser exigido. Não era a intenção de Acheron, mas nem sempre as pessoas são racionais quando sentem medo. Ele levantou e fixou os olhos em Acheron. Com exceção da pele bronzeada e do porte de macho adulto, ainda podia enxergar o príncipe escravo por de trás dos anos e das mudanças ocorridas em seu corpo e alma. Seus olhos enxergaram as duas crianças, e para surpresa de Acheron, mas não de Driana, o rei desceu os degraus que o separavam dos plebeus e ajoelhou-se ao chão, despindo a coroa a erguendo-a com ambas as mãos. Acheron não se moveu em aceitação ou rechaço e Driana aproximou-se e pegou a coroa por ele. Os olhos verdes lhe faziam perguntas e ela disse com voz doce e carregada de emoção: -O rei voltou – estendeu as mãos para colocar a coroa em sua cabeça – Esse povo lhe pertence, Acheron. E você pertence a eles. E nós – estendeu as mãos para os filhos que correram em sua direção – pertencemos ao lugar onde você for feliz. Driana sabia. Como, Acheron não conseguiu entender. Como ela poderia saber que seu povo o aguardava? Talvez fosse a vida, costurando suas bainhas soltas com pontos invisíveis e indecifráveis. Sua fada esposa era parte de sua armadura, parte de seu coração e da sua carne. E essa emoção era indescritível. Acheron nunca foi esquecido e nunca conseguiu esquecer suas origens. Era o que faltava para a felicidade completa e somente agora conseguia fazê-lo ver isso. Ao lado de Acheron, com os filhos totalmente entrosados ao ambiente, deixaram o castelo para serem vistos pelo povo. Todos sabiam que era um dia aguardado a anos, um dia de pura felicidade. Era o dia do retorno do rei.
M a r j a
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