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A CABRA VADIA / Nelson Rodrigues
A CABRA VADIA / Nelson Rodrigues

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CABRA VADIA

 

                                 A “CABRA” DE VOLTA — E PARA FICAR

     Os rodrigueanos mais recentes já podem interromper as suas garimpagens em vão pelos sebos brasileiros: A cabra vadia está de volta. Publicado em 1970 e logo esgotado, o livro desapareceu da praça. Nunca mais foi reeditado e quem o comprou na época nunca se desfez de seu exemplar. Tornou-se uma jóia de colecionador e, pela mística que o cercou, um dos livros mais procurados de Nelson Rodrigues.

     Mas, mesmo quem guardou avaramente a sua primeira edição terá motivos de sobra para acrescentar esta nova Cabra à sua coleção de Nelson. Basta comparar as duas.

     A edição original era um apanhado quase aleatório das “Confissões” (crônicas) publicadas em O Globo entre janeiro e outubro de 1968 — mais ou menos o mesmo período coberto por O óbvio ululante. E, assim como no Óbvio, as crônicas da Cabra vinham fora de sua ordem de publicação no jornal e sem as datas dessa publicação. A edição original, além disso, privilegiava as crônicas do primeiro semestre daquele ano, que repetiam muitos assuntos tratados no Óbvio.

     O resultado era que o leitor tinha às vezes a sensação de “já ter lido aquilo” no outro livro. E tinha mesmo — não só porque os temas eram recorrentes, como também porque a antiga Cabra tinha doze crônicas rigorosamente iguais às publicadas no Óbvio e várias outras com apenas ligeiras alterações. Por que isso? Porque, com seus problemas de saúde, nem sempre Nelson podia produzir a sua coluna diária em O Globo. Quando isso acontecia, uma crônica antiga era republicada com um título diferente ou com pequenas mexidas no primeiro parágrafo. Na hora de organizá-las em livro, não se tomou o cuidado de deixar essas crônicas de fora.

     Esta nova e definitiva edição de A cabra vadia põe as coisas em ordem — literalmente. As crônicas estão agora na seqüência de sua publicação no jornal e, pela primeira vez, tiveram suas datas estabelecidas. A nova seqüência dá todo um sentido ao livro: Nelson continua a desenhar o seu painel do extraordinário ano de 1968, iniciado em O óbvio ululante.

     Mais importante: todas as crônicas redundantes ou em duplicata foram substituídas por outras do mesmo período, com ênfase nas do segundo semestre de 68. E é espantoso que muitas destas não constassem da edição original — porque estão entre as melhores coisas de Nelson. Vai-se descobrir, por exemplo, que ele foi um espectador atento até dos festivais da canção daquele ano e que tinha surpreendentes opiniões sobre as polêmicas provocadas por canções como “É proibido proibir” (de Caetano Veloso), “Caminhando” ou “Para não dizer que não falei das flores” (de Geraldo Vandré) e “Sabiá” (de Tom Jobim e Chico Buarque).

     Os recém-chegados à obra de Nelson Rodrigues (agora milhares) terão um choque com as crônicas de A cabra vadia. Principalmente ao constatar que, escritas há quase trinta anos, elas não apenas conservaram a íntegra do seu brilho (que tanto incomodava os inimigos de Nelson) como podem ser lidas seguintes.

                          Ruy Castro

 

                                           O EX-COVARDE

    Entro na redação e o Marcello Soares de Moura me chama. Começa: — “Escuta aqui, Nelson. Explica esse mistério”. Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: — “Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?”. Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: — “Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas confissões. É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: — Por quê?”.

     Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcello foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: — “É uma longa história”. O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Coutto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcello me fustigava: — “Por quê?”. Quero saber: — “Você tem tempo ou está com pressa?”. Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcello já estava insuportável.

     Começo assim a “longa história”: — “Eu sou um ex-covarde”. O Marcello ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a TV. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.

     Marcello interrompe: — “Somos todos abjetos?”. Acendo outro cigarro: — “Nem todos, claro”. Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salva e só Deus sabe como. “Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo.” E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça, nem por acaso.

     O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a “Razão da Idade”. Somos autores de impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total.

     Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. E o medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.

     Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o dr. Alceu renegar os 2 mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a “Grande Revolução” russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a “Revolução Brasileira”. Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.

     Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: — “E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?”. Eu já fumara, nesse meio tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: — “Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc. etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: — ‘Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra’. E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da Grande Revolução, que o dr. Alceu chama de ‘o maior acontecimento do século XX, sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: — do que a experiência concreta do Socialismo”.

     Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, uma espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era “filho de Mário Rodrigues”. E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: — “Essa bala era para mim”. Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante quinze dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispnéia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mario Filho. Eu dizia sempre: — “Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mario”. Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, d. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.

     Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

     Eis o que eu queria explicar a Marcelo: — depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: — “Sou um ex-covarde”. É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra “Muerte”, já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol — posso chamá-los, sem nenhum medo, de “jovens canalhas”.

         [14/1/1968]

 

                                    A FEIA NUDEZ

     A propósito da melindrosa de 1929, escrevi, certa vez: — “Como é antigo o passado recente”. Gostei da frase e pinguei-lhe um ponto de exclamação. De então para cá, sempre que posso repito, e não sem uma certa vaidade autoral: — “Como é antigo o passado recente”.

     E, de fato, não há mulher mais antiga, mais fenecida, do que a melindrosa de 1929. É anterior a qualquer baixo-relevo assírio, fenício ou que outro nome tenha. Há pouco, andei repassando um dos primeiros números de O Cruzeiro. Exatamente de 1929, se não me engano. E vi as grã-finas da época. Já não falo do vestido sem cintura, nem do penteado, nem do sapato etc. etc. O que me importa é valorizar o espantoso olhar e o espantoso sorriso.

     Cada época sorri de certa maneira, olha de uma certa maneira. Repito: — por um olhar, ou por um sorriso, pode-se dizer de uma certa dama: — “Esta é do século Fulano, ou do século Beltrano”. E quanto mais antiga, a pessoa mais se parece conosco. Ao passo que há, entre nós e a melindrosa, como que uma distância abismai.

     Dirá alguém que de 1929 para cá são passados apenas 39 anos. Ah, não acreditem no falso tempo das folhinhas. A idade da melindrosa de O Cruzeiro nada tem a ver com esses míseros, escassos 39 anos. E ela sorri de um tal jeito, e olha de tal jeito, que, por vezes, me ocorre a seguinte suspeita: — “A melindrosa de 1929 nunca existiu”.

     Se me perguntarem o que havia no seu olhar e no seu sorriso, eu diria que ambos eram idiotas. Recorram às velhas edições de O Cruzeiro e, mais velhas ainda, do Fon-Fon, da Revista da Semana. Vejam as mais belas mulheres e as mais amadas do tempo. Olhavam e sorriam como débeis mentais. Aí está dito tudo: débeis mentais. E só admira que alguém as suportasse, ou pior, que alguém as desejasse.

     Não sei se me entendem. Se estou sendo obscuro, paciência. Mas, como ia dizendo: — desdobro aqui a minha meditação de ontem. Falei do biquíni, que, a meu ver, é muito, muitíssimo anterior ao primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. O biquíni, repito, tem a idade do impudor, que podemos estimar em para mais de, sei lá, 40 mil anos. Digo 40 mil anos, como poderia dizer milhões.

     Bastam os 40 mil. O impudor era certo, natural, consagrado, na mulher pré-histórica. Mas, quando a mulher se tornou um ser histórico, o pudor foi a sua primeira atitude, o seu primeiro gesto. Mesmo as mais degradadas preservavam um mínimo de pudor. E eis que, de repente, em nossos dias, há todo um movimento regressivo. Aí está o biquíni.

     Dirão que tenho a fixação do biquíni. (A nossa vida moral depende de uma meia dúzia de nobilíssimas idéias fixas. O santo ou, nem tanto, o simples homem de bem há de ser um obsessivo. Tenho um amigo que só pensa em biquíni. Nos pesadelos, os umbigos o atropelam.)

     Durante séculos e séculos, a História preservou o mistério e o suspense do umbigo. Era como se a mulher não o tivesse. Através das idades, só o marido de civil e religioso, ou o parteiro, conseguia vê-lo. Para os outros, o umbigo era irreal, utópico, absurdo. E, súbito, começam a aparecer, aqui e ali, as praias pré-históricas. Tal como no tempo em que os homens viviam em hordas bestiais. E começamos a época da nudez sem amor, do nu de graça e, repito, sem o pretexto do amor. A nudez exclusiva para o ser amado deixou de existir. Todas se despem, para o ser amado e para outros, inclusive o crioulinho do Grapette.

     Deixo de lado os outros povos. O que me interessa é o nosso. Nunca o povo brasileiro viveu tanto do passado, das rendas do passado. Somos devorados por misteriosas nostalgias. Dizia-me, ainda ontem, o meu amigo Luís Eduardo Borgerth: — “Nós somos vestidos pelos nossos avós”. O próprio Borgerth anda, por aí, estranhíssimo. Inaugurou um bigode que me deu o que pensar. Eu quebrava a cabeça perguntando-me a mim mesmo: — “Onde é que eu vi esse bigode?”. E, súbito, um nome faísca na treva: “Rio Branco, barão do Rio Branco”. O nosso Luís Eduardo pôs o bigode espectral do barão.

     E o Carlos Alberto, presidente do Banco do Estado da Guanabara? Doce figura. Um belo dia aparece com os bigodões de um longínquo avô. Quando ele entra, ou quando ele sai, dá a sensação de que é avô de si mesmo, ou o neto de si mesmo. No dia 2 ou 3 do presente janeiro, fui receber na TV Globo. Embolso o dinheiro e passo no gabinete do Walter Clark, o gênio da televisão. (Segundo o Otto Lara Resende, o Walter seria gênio do mesmo jeito, fosse arquiteto, veterinário, agrimensor ou bombeiro hidráulico.)

     Entro e vejo o meu amigo sem paletó, um vasto charuto. O charuto é o de menos. O transcendente eram os suspensórios. Não se pode falar dos suspensórios do Walter Clark sem lhes acrescentar um ponto de exclamação. Falei da melindrosa de 1929. Pois é esta a data dos suspensórios de Walter Clark, e repito: — era assim que os gângsteres da Grande Depressão seguravam as suas calças. Não só os suspensórios. Também o colarinho, a gravata, a camisa listrada, as botinas.

     Eu disse 1929 e já não sei se a sua elegância não será um pouco anterior. O fato é que, ao me despedir, tive vontade de perguntar-lhe: — “Estás faturando bem com a Lei Seca?”. Mas o leitor sairia frustrado se eu não contasse uma singularidade: — os suspensórios do Walter Clark têm paisagem. Neles há o Pão de Açúcar, corações flechados, faunos de gaitas, sátiros de pés de cabra etc. etc.

     Para sair da Grande Depressão, tive de deixar o gabinete. E cá fora, no corredor, já comecei a respirar o ano de 1968. Mas por toda parte continuo sentindo focos do passado. Na quinta-feira passada, apareceu aqui, de repente, o Otto Lara Resende. Vinha de Lisboa. Às sete horas da noite, sua presença explodiu na casa do Hélio Pellegrino.

     Mas era um outro Otto, sem nenhuma relação com o que daqui saíra para conquistar Portugal. Durante sua ausência mandara-me uma carta em que julguei perceber um sotaque lisboeta de Leopoldo Fróis. Mas na casa do Hélio Pellegrino deu-me outra impressão. Lusíada da cabeça aos sapatos. Ou melhor: Eça puro. O Otto instalou ali, na rua Nascimento Bittencourt, todo um clima antigo. E ele próprio parecia alguém expelido do ventre da primeira edição de Os Maias.

         [15/1/1968]

 

                                   A VACA PREMIADA

     Não há ser mais pungente e, repito, não há ser mais plangente do que o brasileiro premiado. O inglês, não, nem o francês. Um ou outro recebe qualquer prêmio com modéstia e tédio. Quando deram a Churchill o Nobel de literatura, ele nem foi lá. Mandou a mulher e continuou em Londres, tomando o seu uísque e mamando o seu charuto. O francês ou o alemão também reagiria com o mesmo superior descaro.

     E que faria o brasileiro? Sim, o brasileiro que, de repente, recebesse um telegrama assim: — “Ganhaste o prêmio Nobel. Gustavo da Suécia”. Pergunto se algum brasileiro, vivo ou morto, teria a suprema desfaçatez de mandar um representante, como fez o Churchill? Por exemplo: — o meu amigo Otto Lara Resende. Se a Academia Sueca, por unanimidade ou sem unanimidade, por simples maioria, o preferisse.

     Semelhante hipótese, que arrisquei ao acaso, já me fascina. O Otto, prêmio Nobel. Que faria ele? Ou que faria o Jorge Amado? Ou o Érico Veríssimo? Eis o que eu queria dizer: — qualquer um de nós iria, a nado, buscar o cheque e a medalha. Nem se pense que faríamos tal esforço natatório por imodéstia. Pelo contrário. Nenhuma imodéstia e só humildade.

     A nossa modéstia começa nas vacas. Quando era garoto, fui, certa vez, a uma exposição de gado. E o júri, depois de não sei quantas dúvidas atrozes, chegou a uma conclusão. Vi, transido, quando colocaram no pescoço da vaca a fitinha e a medalha. Claro que a criança tem uma desvairada imaginação óptica. Há coisas que só a criança enxerga. Mas quis-me parecer que o animal teve uma euforia pânica e pingou várias lágrimas da gratidão brasileira e selvagem.

     Cabe então a pergunta: — e por que até as vacas brasileiras reagem assim? O mistério me parece bem transparente. Cada um de nós carrega um potencial de santas humilhações hereditárias. Cada geração transmite à seguinte todas as suas frustrações e misérias. No fim de certo tempo, o brasileiro tornou-se um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: — não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima.

     Se não me entenderam, paciência. E tudo nos assombra. Um simples “bom-dia” já nos gratifica. Nunca me esqueço de minha iniciação jornalística. Trabalhei num jornal que não pagava. Mas o diretor, um escroque perfumadíssimo e, insisto, mais cheiroso do que uma cocote, era o gênio do cumprimento. Não passava por um funcionário sem lhe apertar a mão, e sem lhe sorrir, e sem lhe piscar o olho.

     E o cumprimento do chefe era, para o repórter ou para o faxineiro, a própria remuneração. Fiz as divagações acima porque assisti, no último sábado, à entrega dos prêmios do Museu da Imagem e do Som. A cerimônia ia ser televisada. Disse de mim para mim: — “Vamos ver se o brasileiro mudou”.

     Fiz, preliminarmente, uma breve autocrítica. Eis o que me perguntei: — “Será que estou frustrado, ressentido, humilhado, de não ser um deles?”. Há vinte anos, quando comecei minha carreira, queria ter o meu nome no jornal de qualquer maneira e a qualquer preço. Ah, quantas vezes escrevi sobre mim mesmo. Assinava com um nome inventado e mandava publicar. E, depois, vinha perguntar cá fora: — “Conhece esse sujeito? Escreveu sobre mim. Não sei quem é”. Pois bem: — e comecei a entrar em todos os concursos de peças, de reportagens, de contos, crônicas, o diabo. Todo mundo era premiado, menos eu. No primeiro ano, segundo, terceiro, eu estrebuchava de humilhação. Por fim, veio um doce e compassivo fatalismo. Repito: — “não ser premiado” é o meu hábito de vinte e tantos anos.

     (Minto. Outro dia, recebi no Chacrinha o prêmio de melhor cronista esportivo de jornal. E a verdade é que reagi como brasileiro. Escolhi o meu melhor terno, a minha melhor gravata, o meu melhor sapato. Meia hora antes estava na televisão. Lá encontrei o João Saldanha, também contemplado. Vagando pelos corredores da TV Globo, à espera da nossa convocação, tínhamos, os dois, um ar indubitável de prêmio Nobel.)

     Volto ao sábado. Sala Cecília Meireles. Como o governo da Guanabara estava ligado aos prêmios, compareceu o governador Negrão de Lima. Ele, em pessoa, faria a entrega. E, para maior ênfase do acontecimento, puseram lá uma banda de música. Um dos premiados era Oscar Niemeyer. Outro: Glauber Rocha; outro ainda: Pelé.

     Dirá alguém que eram prêmios modestos. Não importa. A vaca já citada recebeu muito menos, ou seja, uma fitinha com uma medalha, E nasceu nos seus dentes toda uma espuma; a gratidão escorria-lhe em forma de baba elástica. Eis o que me perguntava: — como reagiria Oscar Niemeyer?

     (Bato estas notas e sou perseguido por uma obsessão pueril e terrível. Não me sai da cabeça a seguinte cena: — o Otto indo buscar, a nado, o prêmio Nobel.) E, de repente, o ator Sérgio Cardoso diz o nome de Oscar Niemeyer. A platéia quase veio abaixo. O nome de Pelé foi muito menos aplaudido. E, no entanto, para o gosto popular, as botinadas estão muito mais próximas do sublime do que a arquitetura.

     Na minha casa, eu adulava a minha úlcera com pires de leite. E não entendia mais nada. Por que esse amor súbito e ululante por um arquiteto? Desde quando a arquitetura teve, no Brasil, um Frank Sinatra? Estava vendo a hora em que os presentes, de pé, iam berrar como nos comícios do Brigadeiro: — “Já ganhou! Já ganhou!”. Mas por que essa ovação de Cauby Peixoto? Era a pergunta que continuava sem resposta.

     E, súbito, percebo toda a verdade. Não era o arquiteto, era o gênio. O povo não gosta das invenções plásticas de Oscar Niemeyer. Abomina. O que o povo adora é aquele prédio do elixir de Nogueira, ali na Glória, perto do Relógio. O homem comum entende que a casa feita por Oscar Niemeyer não serve para dormir, amar, morrer ou simplesmente estar. Não importa. É gênio.

     Pouco depois chegou a vez de Glauber. Outra ovação formidável. O grande público não gosta dos seus filmes, não entende seus filmes. Mas é outro gênio. Chamam-no de maluco. A figura que tenha essa lenda de insânia fascina o povo. Lembro-me de um conhecido que foi ver Terra em transe e veio-me dizer, deslumbrado: — “Não entendi nada”. Estava gratíssimo ao filme e ao seu autor. O povo desconfia do que entende, desconfia do que gosta. E Glauber Rocha, ao surgir na sala, era uma figura. A cabeleira mais selvagem do que as cerdas bravas do javali.

     Subiu a escadinha do palco com um passo ágil, elástico, quase alado. Mas nem Glauber, nem Oscar Niemeyer fizeram a concessão de um sorriso. A cara do Niemeyer estava fechada, inescrutável, como certas máscaras cesarianas. (Ah, como o brasileiro precisa ter um gênio à mão. Sim, para apalpá-lo, farejá-lo. A simples existência de um gênio patrício já nos permite um mínimo de auto-estima.) E, por fim, o Luís Carlos Barreto, o formidável animador do Cinema Novo, foi receber o seu. Subindo, disse, à queima-roupa, ao governador: — “O dinheiro já saiu”. E aí, nessa voracidade jucunda, estava todo o Brasil.

          [23/1/1968]

 

                                       CAMBALHOTAS DO OTTO

     Como bebem as esquerdas! Era uma sexta-feira e eu fui ao Antonio’s. Hoje, o verdadeiro sábado é a sexta-feira. E, ainda outro dia, dizia-me um pau-d’água grã-fino: — “Não há mais sábados, nem há mais domingos”. Depois de mutilar a semana, concluiu, com o olho parado do bêbedo: — “Sexta-feira é o dia em que a virtude prevarica”.

     “A virtude prevarica” já era o efeito literário, a frase elaborada ainda na lucidez. Seja como for, a esquerda escolhe a sexta-feira para modular seus palavrões e babar seus pileques. Não sei se em toda parte e em todos os idiomas acontece o mesmo. No Brasil ou, mais precisamente, no Leblon, as esquerdas são pornográficas com a maior efusão e abundância.

     Mas por que escolhi o Antonio’s e não, por exemplo, o Nino ou o Bateau, ou outro qualquer? Porque só o Antonio’s tem a função e o destino do boteco ideológico. Repito: — sem o Antonio’s, o esquerdista não estará completa e definitivamente equipado. É lá que ele vai ensaiar o seu gesto, exercitar sua ênfase, empostar sua voz e esculpir suas caras.

     Justiça se lhes faça: — são as esquerdas mais plásticas do mundo. Fazem caras, e gesticulam, e saltam, e sapateiam, e atropelam, e cavalgam as cadeiras, e trepam nas mesas. Eis o que eu queria dizer: — vale a pena atravessar três desertos para vê-las. Além disso, tinha eu um outro motivo, de natureza sentimental, para ir ao Antonio’s. Era a esperança de lá encontrar o meu amigo Otto Lara Resende. O Otto estava no Rio, ou por outra: — esteve, porque já voltou para Lisboa.

     E o meu amigo, de um lado, e as esquerdas, de outro, fizeram da última sexta-feira uma noite inesquecível. Aqui, abro um parêntese para falar do Otto. Ele apareceu tarde da noite e logo senti que vivia um grande momento. Sem se atrelar às esquerdas, está à vontade no Antonio’s como um peixinho no seu aquário natal. Mesmo porque os donos, os empregados e os fregueses o tratam na palma da mão. No Brasil, ninguém é mais doutor. O único doutor que ainda se conhece, na vida real, é o dr. Britto, do Jornal do Brasil. Pois bem: o Otto é doutor para todos os garçons do Antonio’s.

     E há pior: — lá, ele jamais consegue pagar uma única e mísera despesa. A casa não aceita um tostão do meu amigo. Mas Otto chegou e alguém, jamais identificado, enfiou-lhe na mão uma garrafa de champanha. Não pensou duas vezes. Fez saltar a rolha e bebeu pelo gargalo. Eis a cena que arrancou aplausos até dos mais apáticos: — essa do Otto beber champanha pelo gargalo.

     Nem se pense que parou aí. Contou anedotas. Fez piruetas como o acrobata que testa a própria elasticidade antes da cambalhota suprema. Imaginem que, certa vez, confidenciara a um amigo: — “Eu sou a Idade Média”. A partir de então, os íntimos passaram a chamá-lo assim. Sábado, o Hélio Pellegrino batia o telefone para mim e perguntava: — “Viste a Idade Média?”. E eu mesmo, falando com Waldomiro Autran Dourado, dizia-lhes: — “Vou-me encontrar com a Idade Média”. E, no entanto, o Otto de sexta-feira, no Antonio’s, era muito mais a belle époque do que a Idade Média. Ao tomar champanha pelo gargalo, era a belle époque que irrompia, de repente, ali no Leblon. Uma euforia datada do princípio do século e, repito, anterior à primeira batalha do Marne. Só faltou beber champanha no sapato de uma cocote.

     E, por toda uma noite, o Otto foi a ex-Idade Média. Neste momento fecho o parêntese sobre o amigo e volto às esquerdas. Até aqui tenho pluralizado; e, daqui por diante, vou dar-lhes o nome singular, e mais autêntico, de “a festiva”. Dizia eu, no início do capítulo, que “a festiva” bebe. Esqueci-me, porém, de acrescentar a pergunta: e por que bebe? Sim, por que bebem as esquerdas?

     Domingo, fui passear com o Hélio Pellegrino e acabamos no parque Laje. A luz dourava a aragem muito leve. E, súbito, não sei se eu, ou Hélio, disse ao outro: — “O parque Laje é o anti-Antonio’s!”. Em seguida levamos tal descoberta às suas últimas conseqüências. Aquele domingo, de um azul jamais concebido, também era o anti-Antonio’s. E a cidade, e as esquinas, a gente, e o próprio Leblon, tudo era o anti-Antonio’s.

     Não exagero. Dizia-me o Pellegrino: — “O Rio é a cidade mais alegre do mundo”. Ele falava de uma alegria absurda e total. Segundo o Otto, até os nossos esgotos, os nossos ralos, são um festival de ratazanas. E o Antonio’s é a antifesta. Suas mesas, suas toalhas, seus bifes, estão embebidos de tristeza. Cabe então a pergunta: — por quê?

     Tentarei explicar. Não é uma tristeza própria, mas adquirida. Repito: adquirida das nossas esquerdas. Estas vão para lá exalar suas cavas depressões. Claro que há três ou quatro melancolias auxiliares de grã-finos errantes na madrugada. Todavia, a tristeza fundamental se evola da “festiva”.

     E, por isso, porque são tristes, as esquerdas bebem. Pouco a pouco, o álcool vai desatando não sei que euforias misteriosas e frenéticas. Em seu estado normal, e enquanto sóbria, a “festiva” não é festiva. Tem que, primeiro, encharcar-se. Depois, então, cada um dos seus membros torna-se um ser maravilhosamente plástico, elástico, luminoso. É capaz de virar cambalhotas inexcedíveis; e de equilibrar laranjas no focinho; e de ventar fogo por todas as narinas.

     Alguém poderia perguntar: — e por que “a festiva” é triste? Vejamos. O homem comum fica triste quando se lembra que morre. E a “festiva” bebe porque há de morrer um dia? Não. Nenhum perigo a ameaça. Há o Vietnã. E as esquerdas quando falam da guerra longínqua têm rompantes ferozes. Mas o Vietnã está lá e nós aqui. Há uma sábia distância entre os heróis do Leblon e o perigo.

     E, assim, sem arredar pé do Antonio’s, a “festiva” chegará aos setenta, oitenta e, eu diria mesmo, noventa anos. Saí do Antonio’s, no fim da madrugada. Lá ficaram as esquerdas, babando o seu pileque e arrotando os últimos palavrões.

         [30/1/1968]

 

                                           O PALAVRÃO HUMILHADO

     Quando vou ao Galeão, só uma figura me impressiona. Lá, chegam e partem reis, presidentes, rajás, grã-finos, ministros, Jorginho Guinle, velhas internacionais. Só não vi, no Galeão, um mandarim. E é, convenhamos, todo um elenco fascinante. Mas falei na figura que mais me impressiona e aqui está seu nome: — a aeromoça.

     A jovem que resolve ser aeromoça está fazendo uma opção profissional desesperadora. Bem sei que a aviação progrediu muito etc. etc. Todavia, no caso da aeromoça, a opção profissional não será bem profissional. É como se ela estivesse preferindo morrer. Para a aeromoça, cada dia pode ser a véspera do fim. Vejo-a passar por mim no Galeão. Seu olhar tem a doçura de um adeus. Sim, ele pode estar-se despedindo da paisagem.

     Não sei se as aeromoças são bonitas. Diz o Otto Lara Resende: — “O Brasil é o único país onde as feias são bonitas”. Seja como for, elas têm um patético irresistível. São íntimas da morte. E sua graça parece mais leve, mais efêmera, mais perecível que a das outras. Ah, quando vejo uma delas, sonho: — “Essa vai morrer cedo”.

     Pode parecer uma obsessão pueril (e talvez o seja). Mas eis o que eu queria dizer: — as nossas esquerdas atuais sugerem a impressão inversa, isto é, de que vão morrer tarde, muito tarde. Pelo amor de Deus, não vejam ironia, mesmo porque tenho vários amigos na “festiva”. A verdade é que a segurança das nossas esquerdas está acima de qualquer ameaça ou dúvida.

     O brasileiro simples formou do esquerdista patrício uma imagem inteiramente irreal. O pai de família imagina que um socialista tem uma barricada em cada bolso. Eu próprio, no 31 de março e no 1º de abril de 64, andei tecendo fantasias hediondas. Imaginava que o sangue jorraria e que as ratazanas iam sair dos ralos para bebê-lo. E não se derramou nem groselha.

     Só muito depois descobria eu a verdade, que é a seguinte: — as nossas esquerdas não têm nenhuma vocação do risco. E possuem a vocação inversa da segurança. Ainda ontem, falava eu da sábia distância que vai do Antonio’s ao Vietnã. Aí está dito tudo. E, assim, sem arredar pé do Antonio’s, e bebendo cerveja em lata, as esquerdas não morrerão jamais.

     O leitor há de perguntar, com irritação e escândalo: — “Mas elas não fazem nada?”. Responderei: — “Fazem”. Insistirá o leitor: — “E fazem o quê?”. Direi: — “Autopromoção”. É a pura verdade. A esquerda não sai por aí, derrubando bastilhas e decapitando marias antonietas, porque está ocupada em se autopromover.

     Abram os jornais, ouçam o rádio, vejam a televisão. O “grande poeta”, o “grande crítico”, o “grande ensaísta”, o “grande romancista”, o “grande dramaturgo” — são membros da “festiva”. Gustavo Corção acaba de publicar um grande livro. É toda uma meditação maravilhosa. Dois volumes de uma lucidez apavorante. E não sai, em lugar nenhum, uma linha, uma vírgula, nada. A imprensa, as câmaras e os microfones estão cegos, surdos e mudos para a obra de Corção.

     É inédita essa capacidade promocional das esquerdas. Elas ocuparam as redações. Não brigam, nem chupam o sangue da burguesia. Em compensação, a glória, ou execração, depende do seu exclusivo arbítrio. Ou faz uma reputação literária ou, com um piparote, a derruba. É um terrorismo cultural que se exerce, na melhor das hipóteses, com o silêncio. Corção é reacionário? Silêncio em cima dele.

     Ainda ontem, um revisor veio-me pedir emprego. Tem mulher, filhos, e contou o seu drama. Trabalhava num grande jornal, mas cometeu a imprudência suicida de elogiar os Estados Unidos. Não sei por que, ou por outra: — lembro-me agora. Disse ele que uma peça, ora em exibição em Nova York, insinuava que o presidente Johnson e senhora eram assassinos, ou co-assassinos, de Kennedy. E, por isso, concluía o revisor que havia liberdade nos Estados Unidos.

     Foi despedido, sumariamente. Vejam como as esquerdas têm poderes para admitir, ou demitir, nos jornais, rádio e TV. Dominando em todas as artes, não podiam deixar de fora o teatro. (Na pintura, aquele que não for da “festiva” terá menos imprensa de que um cachorro atropelado.) E, no teatro, as esquerdas descobriram o palavrão.

     Pasmem para as ironias da vida literária e dramática. Durante dezoito anos, ou vinte, fui o único obsceno do teatro brasileiro. Minhas peças Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogados foram interditadas. E não tive a solidariedade de ninguém. Lembro-me de que Álvaro Lins, a maior autoridade crítica da época, declarou, por outras palavras, o seguinte: — eu saíra da literatura e era agora um “caso de polícia”. No mais, nem estudantes, nem escritores, quando passavam por mim, concediam a graça de um “oba”. O dr. Alceu, em declarações a O Globo, aplaudia a minha interdição. Sempre que se referia a mim dizia, enojado: — “As peças obscenas de Nelson Rodrigues”.

     O curioso é que nem Álbum de família, nem Anjo negro, nem Senhora dos afogados tinham um único e escasso palavrão. Eu viria a usá-lo muito mais tarde. E, no entanto, montou-se, a meu respeito, todo um folclore medonho. Segundo corria à boca pequena, eu, todos os dias, depois do almoço, fazia a sesta num caixão de defunto. E as esquerdas tinham, dos meus textos, uma repugnância total.

     Súbito, elas descobrem o palavrão, ou especificando: — o palavrão no teatro. Já o usavam no romance. Mas a pornografia do livro se dirige a um único e íntimo leitor e morre numa relação individualíssima e secreta. Ao passo que no teatro o palavrão é declamado para duzentos, quatrocentos, oitocentos.

     Se bem entendi, as esquerdas querem chocar a platéia. É preciso que esta não fique, nas cadeiras, comendo pipocas. O bom teatro tem de ser agressão. Muito bem, ótimo. Nada tenho a objetar. E fui ver, sábado, o Rei da vela, dirigido por meu caro e simpaticíssimo José Celso. Trata-se do grande diretor do momento. Do mesmo modo que o Plínio Marcos está sendo representado em todos os palcos, o José Celso parece dirigir todas as peças. A do Chico, por exemplo, é dele.

     Preparei-me para ser testemunha e vítima da agressão. Durante todo o espetáculo, não fiz outra coisa senão esperar. Diziam que o texto e o espetáculo eram um soco na cara. E eu estava lá para ver e receber o soco na cara. No fim de duas horas e meia, saímos, eu e os outros, intactos. Éramos quatrocentos sujeitos e não havia, entre nós, um único e vago agredido. O novo teatro conseguiu desmoralizar o soco na cara. O palavrão, antes, tinha suspense, tinha mistério, tinha espanto. E a audiência do Rei da vela saía arrotando a sua satisfação burguesa.

     Por aí se vê como falhou o sonho de uma platéia esbugalhada, horrorizada. Imaginem que, no segundo ato, um dos personagens solta um palavrão inédito e que teria horrorizado as cinzas do Bocage, não o do soneto, mas o da anedota. Era o momento de a platéia arrancar os cabelos ou subir pelas paredes como uma lagartixa profissional. E, no entanto, vejam vocês: — os presentes, de pé, aplaudiam, aos vivas. Essa apoteose súbita e feroz frustrou, ofendeu e humilhou o pobre palavrão.

               [31/1/1968]

 

                                         A DOENÇA INFANTIL DO PALAVRÃO

     Que estaria fazendo eu, ontem, às três da madrugada? Sei que isso é intranscendente, irrelevante, mas vamos lá. Simplesmente, eu estava adulando minha úlcera com leite gelado. (Minha úlcera lambe leite como uma gata.) Pacificada a dor, vim para a janela espiar a noite. E comecei a pensar no teatro brasileiro.

     (É triste ser inteligente com dor.) Escrevi, há dois ou três dias, que lavra, por todo o Brasil, a doença infantil do palavrão. Não há lembrança de outra época tão pornográfica. Dirá alguém que o brasileiro sempre foi um neto retardatário e ululante de Bocage.

     Isso é e não é verdade. De fato, o povo sempre teve a boca suja. O nosso Pedro I, segundo informam a história e a lenda, soltava, com larga e cálida ênfase, alguns dos mais truculentos palavrões da língua. E, assim, através dos tempos, cada geração recebe das anteriores um farto legado obsceno.

     (Claro que a linguagem das mulheres sempre foi muito mais limpa.) Eis o que eu queria dizer: — no passado, o palavrão era muito mais solene, patético, vital. Bem me lembro de uma vizinha nossa, que perdeu a filhinha, de febre amarela. (Era ainda a cidade dos lampiões e da febre amarela.)

     Quando a menina morreu, e a mãe sentiu a morte, podia ter rezado. Rezado, em pé, ereta, a fronte alçada. Não. Ela se esganiçou em palavrões hediondos, inclusive alguns que os homens, os latagões presentes, não conheciam. Houve, junto à cama da agonia, um escândalo total. Mas logo todos perceberam que a dor pornográfica é ainda mais terrível.

     Uns vinte anos depois, passo, com um amigo, pela praia de Ipanema. E, por um momento, ficamos, ali, feridos de espanto. Que dizer de um poente do Leblon? Um de nós poderia declamar a seguinte imagem de D’Annunzio: — “O crepúsculo rola em quedas de silêncio e de luz”. Em vez disso, o meu amigo arrancou, das próprias entranhas, um palavrão deslumbrado. Aquele poente de folhinha como que exigia o uivo obsceno, não convencional.

     Disse obsceno e já retifico. Não houve obscenidade nenhuma. Houve, repito, uma unção e uma carga de espanto que a palavra comum não suportaria. Não sei se me entenderam. Mas o que eu queria dizer é que o palavrão não tinha nada de gratuito, de irresponsável. Nunca. E ainda outro exemplo: — fui ver um amigo que estava morre, não morre. Encontrei-o já com a dispnéia pré-agônica. Houve um momento em que a mulher curvou-se e lhe fez a pergunta: — “Meu bem?”. Sem abrir os olhos, ele soluçou um palavrão e morreu.

     O homem era pornográfico para morrer. Ou ainda: — era pornográfico por ódio, medo, paixão. Havia sempre um sentimento forte. Hoje não. O chamado nome feio deixou de ser feio. Esvaziou-se o palavrão de toda a transcendência, de todo o dramatismo. Ele já não causa o velho impacto heróico.

     Realmente, é a doença infantil dos adultos. Ontem, contei, de passagem, as reações da platéia do Rei da vela. Um belo espetáculo e um elenco admirável. O diretor, José Celso, fez um nobilíssimo esforço. No fim, o texto era uma laranja chupada (o diretor extraíra todo o caldo). Um amigo, que foi comigo, dizia-me da peça: — “Não tem estrutura”. E, de fato, se lhe retirassem os palavrões enxertados, o Rei da vela não ficaria de pé cinco minutos.

     O que explica o êxito do espetáculo é, exatamente, o engenho diabólico de José Celso. Não conversamos sobre a execução cênica do original. Mas quero crer que ele percebeu, em toda a sua força epidêmica e incontrolável, a doença infantil do palavrão. As falas de Oswald de Andrade não chegam ao público ou, na melhor das hipóteses, são de uma eficácia mínima. Quem reinou, através dos três atos, foi o palavrão.

     Claro que há, no Rei da vela, uma mensagem. Mensagem para a qual a platéia é surda, cega e muda. Em dado momento, no terceiro ato, a peça emposta a voz e se torna gravíssima. O tédio do público é então indescritível. Ah, por que fazer um Oswald de Andrade solene, encasacado como um mordomo de filme policial inglês?

     Já o rendimento plástico e auditivo do palavrão foi absoluto. Na minha frente estava um rapaz com a noiva. Passei duas horas seguindo as reações do casal. Diga-se de passagem que era a platéia mais antipolítica, mais antiideológica que já entrou no João Caetano. Volto ao rapaz (um latagão de vastas bochechas). A única coisa que o fascinava no espetáculo era a pornografia e toda a gesticulação correspondente.

     E sempre que explodia um palavrão, nada descreve e nada se compara à delícia auditiva do noivo. Ficava escarlate de prazer (e os outros também). Lembro-me que, na minha peça, O beijo no asfalto, um velhinho trepou na cadeira e pôs-se a berrar: — “Indecentes! Imorais! Tarados!”. Houve porém uma resistência solitária. Alguém, não identificado, estourou: — “Cala a boca, burro!”. E o carequinha: — “Burro é a mão na cara!”.

     O momento mais alto do Rei da vela foi quando a platéia, em sua unanimidade ululante, aplaudiu, de pé, o palavrão mais violento dos três atos. Ninguém fez cara feia; nenhuma senhora deu muxoxo; jamais um casal se retirou. No dia seguinte, encontro o doce Eduardo Chermont de Brito. Conto-lhe toda a minha experiência brasileira do Rei da vela. Pergunto: — “Chermont, que fazem os nossos sociólogos? Que faz o padre Ávila que ainda não deu uma aula sobre a doença infantil do palavrão?”. O Chermont suspira: — “É o Brasil, é o Brasil!”.

     E há de ser também o Brasil o Roda-viva do Chico. Um dos Guinles foi lá, com a senhora, ver a peça. Queria o Chico terno, tímido, nostálgico. Pois bem: — e deu de cara com o truculento José Celso. Em Roda-viva há uma presença devoradora: — o José Celso. O casal Guinle saiu, no meio, como se fugisse do anti-Brasil. Mas é o Brasil, o novo Brasil com potencialidades imprevisíveis.

     O público só irá, daqui por diante, ao espetáculo pornográfico. A platéia exige as duas coisas: — o palavrão e o gesto que lhe corresponde. É como se a obscenidade de palco justificasse e absolvesse a obscenidade do espectador. Se eu conhecesse o padre Ávila, ou outro sociólogo, ou quem sabe um psicanalista, ou ainda um pediatra, havia de perguntar-lhe: — há ou não, por todo o Brasil, a doença infantil do palavrão?

            [1/2/1968]

 

                                         OS FALSOS CANALHAS

     Um dos momentos mais patéticos da minha infância foi quando ouvi alguém chamar alguém de “canalha”. Note-se: — era a primeira vez. Teria eu que idade? Cinco anos, talvez. Ou menos. Vá lá: — cinco anos. E me crispei de espanto. Minto: — de medo. Foi medo e não espanto. Para mim, uma palavra estava nascendo, era o nascimento de uma palavra.

     Paro de escrever. Por um momento, repito para mim mesmo: — “Canalha, canalha”. O som ainda me fascina como na infância. E pergunto a mim mesmo se “o canalha” é uma dimensão obrigatória de cada um. Pode haver alguém que não tenha um mínimo de canalha? Um santo, talvez, ou nem isso. Disse não sei quem que há santos canalhas.

     Eis o que eu queria dizer: — o medo dos cinco anos perdura em mim até hoje. Ainda agora me pergunto se alguém tem o direito de chamar um semelhante de canalha. Poderão objetar que pulha é um insulto equivalente. Ilusão. Vi um sujeito ser chamado de “pulha”. Retrucou ao outro: — “Pulha é você!”. E o incidente morreu aí. Dez minutos depois, os dois pulhas estavam, na esquina, bebendo cerveja.

     O sujeito pode ser pulha e como tal beber cerveja. Não há incompatibilidade entre o pulha e a cerveja. Mas ninguém pode ser canalha. A simples palavra constrói uma solidão inapelável e eterna. Eis o que eu queria dizer: — o canalha é o pior solitário. Esse destino de solidão é o seu, eternamente.

     Mas tinha eu, como já disse e repeti, cinco anos. Meio século depois, me pediram um programa de televisão. Recomendaram: — “Coisa original”. Tratei de recorrer à minha originalidade. E, então, lembrei-me da cena de Aldeia Campista. Diante de mim estava um sujeito chamando o outro de canalha (e meio século depois, a minha úlcera teve contrações de víbora agonizante). Imediatamente, ocorreu-me a idéia. Liguei para o patrocinador. Disse-lhe: — “Já tenho o título”.

     O anunciante esperou. E eu anunciei: — Os falsos canalhas. Era o título. Expliquei o resto. Seria uma revisão de valores. No Brasil, como em qualquer país, a história, a glória, a lenda são tecidas de equívocos fatais. Nunca se sabe se o grande homem é grande homem, se o gênio é um débil mental, se a senhora honesta é uma messalina.

     Eu queria fazer, justamente, o processo dos nossos falsos canalhas. Assim como há a falsa virtude, existe a falsa abjeção. E os falsos canalhas andam por aí. Nós os encontramos nas primeiras páginas, nos editoriais; ou na boca das esquinas e dos botecos. Estão no parlamento, nos consultórios, nos lares e no banho de mar.

     Começaríamos o programa, exatamente, com Roberto Campos. A meu ver, não há, em todo o Brasil, e por toda a nossa história, um falso canalha mais translúcido e mais exemplar. Ou por outra: — era tão canalha como O inimigo do povo, de Ibsen. O herói ibseniano acabou apedrejado como uma adúltera bíblica. E, súbito, ele descobriu que o grande homem é o que está “mais só”.

     Falei em solidão e já retifico. O falso canalha é mais solitário do que o verdadeiro. O poder foi, para Roberto Campos, a solidão total. Não houve ninguém tão só, não houve ninguém mais só. Queriam matá-lo, simplesmente matá-lo. Vi um pau-d’água berrando: — “Dou um tiro nesse Roberto Campos!”. Ao mesmo tempo que dizia isso, pendia-lhe do lábio a baba elástica e bovina do homicida.

     E Roberto Campos seria o meu primeiro falso canalha. Mas acabei desistindo do programa e explico. Foi tudo o medo antigo, pueril e insuportável de uma palavra, de um som, de um efeito auditivo. Quando me sentei à máquina para fazer o script do programa e escrevi a palavra canalha, aconteceu isto: — senti a minha úlcera vibrando como uma víbora. Tirei o papel da máquina e o rasguei. Liguei para o patrocinador; disse-lhe: — “Olha. Nada feito. Esse título me dá vômito”.

     Ao mesmo tempo, prometi a mim mesmo não chamar ninguém, jamais, de canalha. Queria-me parecer que é mais puro o sujeito que nasce, vive, envelhece e morre sem usar, contra outro homem, a mais cruel e inapelável das palavras. E, no entanto, vejam vocês, nem pensei nas surpresas do mundo.

     Eis o caso: — li, ontem, isto é, anteontem, um artigo do dr. Alceu. Sou, não nego, o seu mais fiel e obstinado leitor. Diga-se de passagem que, quando repasso os seus escritos, caio em frustração e pena. Durante vários anos, tentei ser seu amigo e fracassei. Muito bem: — e que diz em tal artigo o notável pensador católico?

     Houve, em Cuba, um congresso, ou coisa que o valha, de quatrocentos intelectuais. E começa o dr. Alceu: — “Não sei, realmente, se os quatrocentos intelectuais reunidos em Cuba se esqueceram ou não de protestar contra o resultado iníquo de mais esse crime contra a liberdade de inteligência que acaba de ser cometido em Moscou”. Bem. Em primeiro lugar, ninguém “esqueceu” nada. Os totalitários são insuscetíveis de tais lapsos. Simplesmente, os quatrocentos intelectuais estão inteiramente a favor da polícia soviética e apóiam, de alto a baixo, “mais esse crime”.

     Mas o que me faz rilhar os dentes de horror é que venha o dr. Alceu, para a imprensa, dizer que “não sabe”. Não sabe que, por trás de toda a Cortina de Ferro, e em qualquer regime totalitário, inclusive Cuba, não existe nenhuma liberdade de pensamento, de criação artística, de inteligência ou que seja? E se o dr. Alceu “não sabe”, nem desconfia do óbvio ululante, como ousa assinar uma coluna de jornal? Insisto: — se “não sabe”, então que devolva o dinheiro que o dr. Britto lhe paga pela colaboração tão cega e tão surda.

     Mas sabe. Aí é que está o grave, o patético, o inconcebível: — o dr. Alceu sabe. Sabe que, há pouco tempo, um poeta foi processado, em Moscou, por vadiagem, e condenado. Quando lhe perguntaram pela profissão, respondeu: — “Sou poeta”. E o juiz, fulminante: — “Isso não é profissão!”. A Rússia encarcerou o poeta pelo crime de ser poeta. Aliás, esse juiz não é juiz, mas um tira abjeto.

     Insinuará alguém a seguinte hipótese: — o dr. Alceu tem uma boa-fé obtusa. Nem isso. Sabe. E insisto na pergunta: — “E, se sabe, por que vem dizer, de olhos baixos: — ‘Eu não sei’?”. Mas, se sabe, não deve nem rezar. O dr. Alceu pode enganar, a mim, ou ao dr. Britto, ou aos seus leitores. Mas não enganará a Deus. Deus também sabe e sabe que o dr. Alceu sabe. Ou achará que Deus é um dr. Britto? Mas eu direi ao eminente sábio, sob minha palavra de honra: — Deus não é o dr. Britto. Amém.

     O que é que eu ia dizer mais? Já sei. Ia dizer que o dr. Alceu vê a torpeza e não a identifica, vê a podridão e não lhe sente o cheiro. Direi, por fim, que os quatrocentos intelectuais de Cuba em nada diferem dos oitocentos que, na Rússia, assassinaram Pasternak. São canalhas uns e outros.

       [5/2/1968]

 

                                     O ANIVERSARIANTE NATO

     O brasileiro é o aniversariante nato. Nenhum outro povo faz anos com tão larga e cálida efusão. Bem me lembro da minha iniciação jornalística. Bela época em que o dono de jornal era doutor, para todos os efeitos. (Hoje, o último “doutor” da imprensa é o Britto, do Jornal do Brasil.) Depois de 30, fui trabalhar em O Tempo.

     De 30 para trás, cada jornal novo chamava-se O Tempo. E esse título obsessivo foi o túmulo de não sei quantos matutinos, vespertinos, semanários, mensários etc. etc. Eis o que eu queria contar: — o diretor era, se assim posso dizer, um aniversariante vocacional. Fazia anos de mês em mês. Os redatores promoviam uma vaquinha para o presente; havia discursos; e, depois, tínhamos uma mesa de mãe-benta, queijadinha, empada, pastel etc. etc.

     Fiz a introdução acima para chegar ao José Lino Grünewald (belo nome para um jovem oficial afogado no afundamento do Bismarck). Somos amigos, amicíssimos, mas vejam vocês: — a despeito da nossa intimidade, só consigo chamá-lo, por extenso, como num cartão de visitas, de José Lino Grünewald. Eu diria ainda que ele é neopagão, poeta concreto, amigo de Ezra Pound.

     Todos os dias, antes de sair de casa, o José Lino Grünewald vai ao guarda-roupa e apanha uma pose. Não uma pose qualquer, intranscendente. O neopagão não se pode comportar como um vago e convencional pai de família. A pose que ele veste, calça e abotoa é a de um cínico, de um amoral, de um perverso. Por outro lado, a soma dos dados já referidos — neopagão, poeta concreto e amigo de Ezra Pound — sugere não sei que abjeções inenarráveis.

     Sem nada dizer, para não o humilhar, a verdade é que sempre o julguei um puro. Lembro-me de que, certa vez, chamei um amigo comum, o Francisco Pedro do Coutto, e disse-lhe: — “Quando vejo o José Lino Grünewald, tenho vontade de oferecer-lhe alpiste na mão”. E, com isso, queria dizer que o nosso Grünewald (belo nome naval) é um terno, um manso, portador de não sei quantas virtudes exemplares.

     O Francisco Pedro do Coutto ouviu-me e concordou com a idéia do alpiste manual. Mas o que faltava, a mim e ao Coutto, era a evidência das virtudes que atribuíamos ao amigo. Em suma: — precisávamos de um fato sólido, de uma atitude concreta. E, de repente, tudo aconteceu. Imaginem vocês que almoçamos, ontem no Nino, eu, o José Lino Grünewald, o Francisco Pedro do Coutto, o Marcello Soares de Moura e o “Marinheiro Sueco”.

     E o que notei, ao primeiro olhar, foi a luminosidade escandalosa de José Lino Grünewald. Se ele falava, sentia-se nas suas palavras como que um halo intenso. Seu olhar vazava luz. Eis a pergunta que nos fazíamos, sem lhe achar resposta: — que teria acontecido? Ninguém sabia, só Deus. Era um neopagão e, pois, um sujeito sem nenhum compromisso com a melancolia. Mas, certa vez, entrei no Correio da Manhã e o surpreendi arriado numa cadeira. Vendo-o pingar tristeza, fui perguntar-lhe: — “Mas que tristeza é essa?”. Reagiu: — “Eu sou um dionisíaco”. E não teve nem forças para acrescentar à sua tirada um necessário ponto de exclamação. Citei o episódio para concluir: José Lino Grünewald é sujeito a cavas depressões como qualquer cristão.

     E, no almoço, sua presença foi uma festa irresistível. Até que, de repente, anuncia: — “Vou fazer anos dia 13”. Nenhum comentário. Deixa passar alguns minutos e insiste: — “Vou fazer anos dia 13”. E nos olhava, aflito, na esperança da reação, que tardava. Berrei então com vários dias de antecedência: — “Gentil aniversariante!”. Ele, transfigurado, repetia: — “Pois é. Dia 13, dia 13”. Juntou o dado histórico: — “Nasci numa sexta-feira 13”.

     Percebi tudo. Diante de nós, estava o brasileiro. Não mais o amigo de Ezra Pound, não mais o poeta concreto, não mais o neopagão. Num único lance, extrovertera toda uma inconfessa verdade interior, toda uma verdade negada. Ali estava o anticínico, o antiamoral, o antiperverso. Era apenas o aniversariante. E, no Brasil, um aniversário jamais é intranscendente. Estamos longe do dia 13. Pois o José Lino Grünewald, com uma semana de antecedência, anda por aí, trêmulo de felicidade; e já providenciando os salgadinhos, as mães-bentas, os guaranás.

     Ai de nós, ai de nós. Somos 80 milhões de aniversariantes e, repito, 80 milhões com alma de aniversariantes. Passo agora a outro assunto. Se a emotividade do nosso Grünewald é tão autêntica, tão brasileira, não posso dizer o mesmo dos rapazes da Escola de Belas-Artes (não falo de todos, mas de um grupo). Vocês conhecem o caso.

     Dias atrás, a cidade esbugalhou-se lendo no jornal o seguinte: — rapazes de belas-artes iam queimar, em praça pública, poemas de amor. Ora, o estudante brasileiro nunca foi “isso”. De mais a mais, a solenidade projetada era uma cínica imitação nazista. A Alemanha de Hitler queimava livros; aqui, ia-se tocar fogo em poemas de amor e porque eram de amor.

     No fim, os rapazes nem coragem tiveram de queimar. Simplesmente, rasgaram os poemas. Alguém dirá que os jovens tinham a atenuante da burrice. Não, não. A burrice que assassina livros não tem perdão. O melhor que se poderia talvez dizer é que os estudantes tinham a coragem cínica e suicida de afrontar toda uma cidade, toda uma população.

     E, no entanto, vejam vocês: — os culpados distribuem agora uma circular em que gaguejam explicações e só faltam dizer: — “Nós não tivemos a menor intenção etc. etc.”. Pior do que a atitude foi a explicação. Estarei disposto a admitir um canalha que trepe numa mesa e anuncie: — “Meus senhores e minhas senhoras, eu sou um canalha”. Um canalha assim translúcido e assim confesso estaria salvo. O pior do canalha é que se quer passar por gentil-homem. Goebbels, quando viu seu mundo perdido, matou a mulher, seis filhos e se matou. Não estava brincando.

     Eu aceitaria os tais rapazes de Belas-Artes se, ao menos, tivessem a coragem, a consciência, a fúria do próprio gesto. Se queriam queimar poemas, por que não o fizeram? À última hora, resolveram apenas rasgar. Já essa concessão foi uma vergonha. Muito bem: — rasgaram. E só porque os jornais meteram o pau, soltam uma circular deprimente. Pareciam uns bárbaros, uns possessos, e me saem uns parnasianos.

     Eis o que eu desejaria notar: — o que se procura no bem e no mal é a autenticidade. O José Lino Grünewald vai fazer anos dia 13. Como um brasileiro puro, está numa alegria honrada e profunda. Como já disse, todos nós somos, acima de tudo, aniversariantes. José Lino Grünewald não trapaceia. E os jovens de belas-artes fazem trapaça. À primeira resistência, caem num pânico profundo. Com um pouquinho mais de pressão, acabam recitando o nosso J. G. de Araújo Jorge, com um piano ao fundo, tocando a Dalila.

           [8/2/1968]

 

                                 VELHOS ESPARTILHOS

     Cada época se assoa de uma certa maneira. (Não falo da grã-fina atual, que não se assoa, nem usa lenço. Na belle époque, porém, a mulher não tinha esse pudor nasal. Por exemplo: — numa frisa de ópera, uma bela senhora puxava o lenço e, diante da platéia interessada, assoava-se com um som de trombeta. Era sublime.)

     Já as gerações seguintes tinham outros escrúpulos e recatos. E uma bonita senhora só usava o lenço em último recurso, e quando a coriza já pingava. Mas não havia o som comprometedor. Em nossos dias, chegamos à solução ideal: — uma grã-fina não usa nem lenço, nem som, nem coriza. Até hoje, que me lembre, não vi nenhuma capa de Manchete com sinusite.

     Mas, assim como uma época tem um estilo para se assoar, usa outro para se vestir ou para se despir. Eis a pergunta que me faço: — como se veste ou como se despe a presente geração? A rigor, todo mundo está mais interessado em se despir. Vivemos a mais despida das épocas.

     Na minha infância profunda, o Brasil inteiro cantava uma modinha que, entre outros, tinha o seguinte verso: “Cobre, me cobre, que eu tenho frio”. Ah, eu andava pelos quatro, cinco anos. Não percebia a insinuação erótica, nem desconfiava que havia, ali, uma nudez confessa. “Cobre, me cobre, que eu tenho frio.” Hoje, nenhuma menina ou senhora está interessada em se cobrir.

     A nudez feminina perdeu todo o suspense e todo o mistério. Nas minhas Memórias contei um dos mais violentos traumas de minha infância. Foi numa batalha de confete da praça Saenz Peña. Teria seis anos, ou cinco, talvez. Cinco. Em cima do meio-fio, atracado às saias de uma vizinha, eu espiava o corso. E, de repente, fez-se, na praça, um silêncio ensurdecedor.

     Sim, foi um silêncio de se ouvir em toda a cidade. Lá adiante vinha um carro aberto; e, dentro dele, uma odalisca. Mas odalisca era o de menos. Seria bonita, feia, ninguém sabe. O patético é que havia uma abertura na fantasia, um decote abdominal. E, por aí, pela modestíssima nesga de carne — irrompia o cavo umbigo. Daí o assombro total.

     Eis o que eu queria dizer: — a primeira nudez que eu vi, na minha vida, foi um umbigo. Há entre mim e essa batalha de confete toda a imensa, espectral distância de meio século. Cinqüenta anos. Pois, até hoje, o umbigo pretérito ainda atropela meus sonhos.

     Hoje, a nudez não custa nenhum esforço. Com dois ou três movimentos, qualquer uma se despe. É, se assim posso dizer, uma nudez fulminante. Na época do espartilho, não. Eu fui, confesso, um menino fascinado pelo espartilho. Já com dez anos, subi, certa vez, no sótão lá de casa. Morávamos, então, em Copacabana, na rua Inhangá, nos fundos do Copacabana Palace. Na casa do lado, havia um menino chamado Edgard, que é, hoje, se não me engano, engenheiro.

     Mas deixemos o Edgard. Subi ao sótão e encontrei lá uma mala cheia de roupas antigas, exatamente roupas da belle époque. No meio de velhas plumas, de chapéus espectrais, descobri um espartilho, cor-de-rosa. Muitos anos depois, escrevi minha peça Vestido de noiva. E a heroína também sobe ao sótão, também abre uma mala da belle époque e também descobre um espartilho. (Mas estou misturando as coisas.)

     O espartilho explica todo um comportamento feminino. Do mesmo modo, o fraque influía nas maneiras, idéias e sentimentos masculinos. O homem de fraque estava sempre ereto, de fronte alta, como se estivesse ouvindo o Hino Nacional. Não sei se me entendem, mas acho que o espartilho criava entre a mulher e sua nudez, entre a mulher e o pecado, uma distância física e psíquica. Despir-se era um esforço, uma paciência, quase um martírio. E uma bonita senhora deixava de ser uma Ana Karenina — por preguiça.

     E outra coisa: — assim como influía nas maneiras e sentimentos da mulher, o espartilho fazia o seu tipo físico. Pode parecer exagero. Nem tanto, nem tanto. Como se sabe, cada época tem seus quadris típicos. Antes da primeira batalha do Marne e até à primeira batalha do Marne, a brasileira tinha outros flancos. Uma menina de catorze anos precisava pôr-se de perfil para atravessar as portas.

     O sujeito olhava a mulher e via, nos seus quadris fortes, uma generosa promessa de fecundidade. Nada mais normal do que uma mulher ter oito filhos. Lembro-me de mães de vinte, 22 filhos. Hoje, a partir dos dez, a mãe recebe um prêmio do Chacrinha, medalha, o diabo. Mas era a brasileira. O casal que parava no primeiro filho arrancava os cabelos de vergonha e frustração.

     Em nossos dias, cabe a pergunta alarmada: — onde estão os quadris? Não se pode nem falar em “cadeiras”, porque não há mais cadeiras. E, súbito, esbarramos numa realidade surpreendente: — o tipo manequim. Ele se multiplica por toda a parte. Está na PUC, na praia, nos colégios, nas calçadas. A beleza sem quadris, sem peso, sem busto e, numa palavra, o manequim.

     Outro dia, um amigo meu, desesperado, bramava: — “A brasileira nunca foi manequim!”. Bufei: — “Nunca”. Mas tanto eu como o meu amigo somos vencidos, convencidos e humilhados pela evidência. Realmente, a brasileira nunca foi manequim. De Debret para cá e antes e depois de Debret, a brasileira nunca foi manequim. Até há pouquíssimo tempo, não era manequim.

     Não era. Um dia, porém, o brasileiro acorda e constata o seguinte: — está namorando um manequim; vai-se casar com um manequim; e, se trair, há de ser com outro manequim. Nas velhas gerações, a brasileira não se parecia com uma alemã, ou uma inglesa, ou uma americana. E, de repente, parece gêmea dos modelos profissionais que posam nas revistas de Londres, Nova York, Paris.

     Outro amigo me pergunta se eu não noto menos feminilidade por aí. E, então, eu me lembro de um Rio em que as mulheres tinham um certo halo de histeria. Há anos e anos e eu quase dizia: — há várias gerações que não vejo ninguém desmaiar. Alguém poderá explicar a redução de feminilidade e os pobres quadris de manequim.

     Não deixa de ser alarmante para o brasileiro. Tem que namorar, amar, trair ou esquecer a antibrasileira. Sob a pressão de novos usos, novas maneiras, novas idéias, novos sentimentos, a brasileira muda também fisicamente e vira a antibrasileira. Contei o caso de um amigo, de 45 anos, que amou uma menina de vinte. Ah, nós sabemos o que é uma dessas paixões tardias que levam tudo de roldão, tudo. O meu amigo estava disposto a largar família, fugir, o diabo. Até que, um dia, vai ver a garota e ela o recebe com uma saraivada de palavrões jamais sonhados. Mais tarde, contando-me o episódio, ele esbravejava: — “Um manequim, um manequim!”.

     Para ele, a explicação de tudo estava nos quadris estreitos. Não tinha quadris, donde tinha que ser uma impotente do sentimento. Uma antibrasileira.

          [12/2/1968]

 

                                     OS IDIOTAS DA OBJETIVIDADE

     Sou da imprensa anterior ao copy desk. Tinha treze anos quando me iniciei no jornal, como repórter de polícia. Na redação não havia nada da aridez atual e pelo contrário: — era uma cova de delícias. O sujeito ganhava mal ou simplesmente não ganhava. Para comer, dependia de um vale utópico de cinco ou dez mil-réis.

     Mas tinha a compensação da glória. Quem redigia um atropelamento julgava-se um estilista. E a própria vaidade o remunerava. Cada qual era um pavão enfático. Escrevia na véspera e no dia seguinte via-se impresso, sem o retoque de uma vírgula. Havia uma volúpia autoral inenarrável. E nenhum estilo era profanado por uma emenda, jamais.

     Durante várias gerações foi assim e sempre assim. De repente, explodiu o copy desk. Houve um impacto medonho. Qualquer um na redação, seja repórter de setor ou editorialista, tem uma sagrada vaidade estilística. E o copy desk não respeitava ninguém. Se lá aparecesse um Proust, seria reescrito do mesmo jeito. Sim, o copy desk instalou-se como a figura demoníaca da redação.

     Falei no demônio e pode parecer que foi o Príncipe das Trevas que criou a nova moda. Não, o abominável Pai da Mentira não é o autor do copy desk. Quem o lançou e promoveu foi Pompeu de Sousa. Era ainda o Diário Carioca, do Senador, do Danton. Não quero ser injusto, mesmo porque o Pompeu é meu amigo. Ele teve um pretexto, digamos assim, histórico, para tentar a inovação.

     Havia na imprensa uma massa de analfabetos. Saíam as coisas mais incríveis. Lembro-me de que alguém, num crime passional, terminou assim a matéria: — “E nem um goivinho ornava a cova dela”. Dirão vocês que esse fecho de ouro é puramente folclórico. Não sei e talvez. Mas saía coisa parecida. E o Pompeu trouxe para cá o que se fazia nos Estados Unidos — o copy desk.

     Começava a nova imprensa. Primeiro, foi só o Diário Carioca; pouco depois, os outros, por imitação, o acompanharam. Rapidamente, os nossos jornais foram atacados de uma doença grave: — a objetividade. Daí para o “idiota da objetividade” seria um passo. Certa vez, encontrei-me com o Moacir Werneck de Castro. Gosto muito dele e o saudei com a mais larga e cálida efusão. E o Moacir, com seu perfil de lord Byron, disse para mim, risonhamente: — “Eu sou um idiota da objetividade”.

     Também Roberto Campos, mais tarde, em discurso, diria: — “Eu sou um idiota da objetividade”. Na verdade, tanto Roberto como Moacir são dois líricos. Eis o que eu queria dizer: — o idiota da objetividade inunda as mesas de redação e seu autor foi, mais uma vez, Pompeu de Sousa. Aliás, devo dizer que o copy desk e o idiota da objetividade são gêmeos e um explica o outro.

     E toda a imprensa passou a usar a palavra “objetividade” como um simples brinquedo auditivo. A crônica esportiva via times e jogadores “objetivos”. Equipes e jogadores eram condenados por falta de objetividade. Um exemplo da nova linguagem foi o atentado de Toneleros. Toda a nação tremeu. Era óbvio que o crime trazia, em seu ventre, uma tragédia nacional. Podia ser até a guerra civil. Em menos de 24 horas o Brasil se preparou para matar ou para morrer.

     E como noticiou o Diário Carioca o acontecimento? Era uma catástrofe. O jornal deu-lhe esse tom de catástrofe? Não e nunca. O Diário Carioca nada concedeu à emoção nem ao espanto. Podia ter posto na manchete, e ao menos na manchete, um ponto de exclamação. Foi de uma casta, exemplar objetividade. Tom estrita e secamente informativo. Tratou o drama histórico como se fosse o atropelamento do Zezinho, ali da esquina.

     Era, repito, a implacável objetividade. E, depois, Getúlio deu um tiro no peito. Ali estava o Brasil, novamente, cara a cara com a guerra civil. E que fez o Diário Carioca?. A aragem da tragédia soprou nas suas páginas? Jamais. No princípio do século, mataram o rei e o príncipe herdeiro de Portugal. (Segundo me diz o luso Álvaro Nascimento, o rei tinha o olho perdida-mente azul.) Aqui, o nosso Correio da Manhã abria cinco manchetes. Os tipos enormes eram um soco visual. E rezava a quinta manchete: “HORRÍVEL EMOÇÃO!”. Vejam vocês: — “HORRÍVEL EMOÇÃO!”.

     O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: — o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção popular. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy.

     Na velha imprensa as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoção dos títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto da manchete. Havia um abismo entre o Jornal do Brasil e a tragédia, entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete.

     O Jornal do Brasil, sob o reinado do copy desk, lembra-me aquela página célebre de ficção. Era uma lavadeira que se viu, de repente, no meio de uma baderna horrorosa. Tiro e bordoada em quantidade. A lavadeira veio espiar a briga. Lá adiante, numa colina, viu um baixinho olhando por um binóculo. Ali estava Napoleão e ali estava Waterloo. Mas a santa mulher ignorou um e outro; e veio para dentro ensaboar a sua roupa suja. Eis o que eu queria dizer: — a primeira página do Jornal do Brasil tem a mesma alienação da lavadeira diante dos napoleões e das batalhas.

     E o pior é que, pouco a pouco, o copy desk vem fazendo do leitor um outro idiota da objetividade. A aridez de um se transmite ao outro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós 80 milhões de copy desks? Oitenta milhões de impotentes do sentimento. Ontem, falava eu do pânico de um médico famoso. Segundo o clínico, a juventude está desinteressada do amor ou por outra: — esquece antes de amar, sente tédio antes do desejo. Juventude copy desk, talvez.

     Dirá alguém que o jovem é capaz de um sentimento forte. Tem vida ideológica, ódio político. Não sei se contei que vi, um dia, um rapaz dizer que dava um tiro no Roberto Campos. Mas o ódio político não é um sentimento, uma paixão, nem mesmo ódio. É uma pura, vil, obtusa palavra de ordem.

             [22/2/1968]

 

                                        TERRENO BALDIO

     Ah, como é falsa a entrevista verdadeira! Não sei se me entendem. Eis o que eu queria dizer: — trabalho em jornal desde os treze anos e tenho 55 anos. Façam as contas. São 42 anos. Depois de 42 anos de redação, o sujeito acumulou uma experiência em nada inferior às obras completas de William Shakespeare.

     Posso ir à boca de cena, alçar a fronte e anunciar para a platéia: — “Eu vi tudo e sei tudo”. Não vejam imodéstia nas minhas palavras. Qualquer repórter de polícia, em fim de carreira, terá a mesmíssima vidência shakespeariana. O mérito não é nosso, mas estritamente profissional. E, depois de 42 anos de vida jornalística, posso repetir: — nada mais cínico, nada mais apócrifo do que a entrevista verdadeira.

     Não me esquecerei nunca do meu primeiro entrevistado. Se não me engano, era o diretor da Casa da Moeda (ou seria da Imprensa Nacional?). Mas não importam os títulos do homem, nem suas funções. O entrevistado é sempre o mesmo, variando apenas de terno e de feitio de nariz. No mais, há uma semelhança espantosa. Nem importa o assunto. Seja batalha de confete, ou Hiroshima, um cano furado ou os Direitos do Homem. O que vale é o cinismo gigantesco. O sujeito não diz uma palavra do que pensa, ou sente.

     E o pior é o gesto, é a ênfase, é a inflexão. O diretor da Casa da Moeda, que também podia ser da Imprensa Nacional, recebeu-me no seu gabinete. Falou uma hora, ou mais. Hora e meia. Mas fosse um Bismarck e daria no mesmo. Ele se perfilava para falar, como se a sua palavra fosse o próprio Hino Nacional.

     Fiz outras entrevistas, centenas, dezenas de entrevistas. E todas me deixaram a mesma sensação de cinismo. No fim de alguns anos, eis a minha certeza definitiva, inapelável: — ninguém devia ser entrevistado, nem os santos. Até que, um dia, na crônica, ocorreu-me a idéia das “entrevistas imaginárias”. Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto.

     Fascinou-me a “entrevista imaginária”. Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia. Além do valor plástico da figura, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências. Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.

     Fiz “entrevistas imaginárias” com jogadores, dirigentes de futebol, literatos. Ainda anteontem, o Antonio Callado foi meu convidado no terreno baldio. Mas eu sentia, de maneira obscura, quase dolorosa, que faltava alguém no capinzal. “Mas quem?” — eis o que me perguntava. — “Quem?” E, súbito, um nome ilumina minhas trevas interiores: — “D. Hélder!”. De todos os vivos ou mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística.

     Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a “entrevista imaginária”. À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo, comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar. Primeira pergunta: — “O senhor fuma, d. Hélder?”. Resposta: — “A entrevista é imaginária?”. Acho graça: — “Ou o senhor duvida?”. E d. Hélder: — “Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?”. Digo: — “Caporal Amarelinho”. Cuspiu por cima do ombro: — “Deus me livre! Mata-rato!”.

     Faço a pergunta: — “Que notícias o senhor me dá da vida eterna?”. Riu: — “Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?”. No meu espanto, indago: — “E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?”. O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: — “Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta”.

     Ele continuava: — “O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém”. D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: — “Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?”.

     Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: — “A fome do Nordeste é a fome do Nordeste”. D. Hélder estende a mão: — “Dá um dos teus mata-ratos”. Acendi-lhe o cigarro. D. Hélder não pára mais: — “Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: — Joana D’Arc. Já viu a nossa querida Joana D’Arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!”.

     Lanço outra isca: — “É verdade que o senhor vai para o Amazonas?”. Riu: — “Onde fica esse troço? Ó rapaz! Ainda nunca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?”. Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: — “E o comunismo?”.

  1. Hélder conta: — “Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!”. Insinuei a dúvida: — “Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso”. Nova risada: — “Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O arcebispo vermelho fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos”.

     Pede outro cigarro. Fez novas confidências: — “Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: — cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O Charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costallat, nem o Charleston. Entende? É Guevara. O santo é Guevara. E acompanho a moda”.

     Desfechei-lhe a pergunta final: — “E a Presidência da República?”. D. Hélder respira fundo: — “Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá”. Era o fim da “entrevista imaginária”. Despedi-me assim: — “Até logo, presidente”. Respondeu: — “Obrigado, irmão”. E antes de partir fez a última declaração: — “Olha, as donas de casa têm uma simpatia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro”. Disse isso e sumiu na treva.

             [14/3/1968]

 

                                         AS BOLACHAS

     Em recente confissão, dizia eu que o milionário brasileiro é pobre de mesa. Tem dinheiro para banquetes suntuários. Se quisesse, comeria 25 leitões no café. E ainda teria quinhentos frascos de geléia para lhes passar por cima. O diabo é que, psicologicamente, o nosso milionário continua pobre.

     E, nessa alma de pobre, está todo o patético, todo o sublime do rico brasileiro. Seu automóvel tem cascata artificial com filhote de jacaré. Sua esposa gasta mais do que 25 amantes. Sua amante gasta mais do que 25 esposas. Conheço um milionário que amou uma jovem senhora. Disseram: — “Gosta do marido!”. Teve um riso torpe: — “Eu compro”. Achava que tudo se compra e tudo se vende.

     Começou a conquista. Ligava e a outra batia-lhe com o telefone. Mandou-lhe rosas. Na frente do mensageiro, a moça sapateou em cima das flores como uma espanhola. Na sua obstinação fanática, dizia o milionário: — “Há de ter seu preço! Todas têm um preço!”. E, um dia, mandou-lhe um colar de pérolas, legítimas, dessas que, segundo ele, subornam uma rainha. Esperou 24 horas, 48. E, como não houve devolução, pôs a boca no mundo: — “Comprei, comprei!”.

     Os amigos, os conhecidos e parentes já admitiam: — “Vendeu-se!”. Até que, quatro ou cinco dias depois, os dois se cruzam numa recepção grã-finíssima. O milionário tem um choque delicioso: — ela estava com o colar, usava o colar, com um divino impudor. “Cínica”, eis o que pensava o milionário. E, súbito, ela o vê. Pede licença a uma outra senhora, com quem conversava, e vem ao encontro do conquistador.

     Tudo aconteceu numa progressão fulminante. Parou diante do milionário; com um gesto leve e ágil, tirou o colar (ele não estava entendendo nada). Em seguida, segurando o colar como a um relho, deu-lhe em pleno rosto a primeira lambada. O salão parou; os convidados tinham uma cara idiota. Sim, uma cara idiota como se todos ali fossem figuras de museu de cera. As pérolas explodiam em cada face do milionário. Não houve uma palavra entre os dois. Só houve a surra de pérolas.

     E o pior foi depois. Aquelas casacas e aqueles decotes agachados e apanhando, vorazmente, as pérolas espalhadas. Bem. Contei o episódio e não sei por que o fiz (realmente). Ou por outra: — já sei por que contei uma surra tão cara. É que esse brasileiro rico possuía uma alma de pobre, e repito: — tinha velhas fomes enterradas na alma. Por vingança de pobre, de pau-de-arara, queria tudo comprar e tudo corromper.

     Falei do milionário brasileiro. Mas há um outro patrício ainda mais fascinante. Refiro-me àquele que não é, mas será rico algum dia. Por exemplo: — o meu amigo Asdrúbal. Espírito admirável, ensaísta de uma lucidez apavorante. Eis o que eu queria dizer: — Asdrúbal conheceu a fome, a boa, a santa fome. E, no entanto, trazia um milionário em seu ventre. Hoje é homem de televisão, empresário, tem automóvel etc. etc.

     Percebi que o Asdrúbal ia ser milionário quando, certa vez, sem um tostão, comprou uma ilha. Sim, uma ilha do Pará, meio paradisíaca, com jacarés por toda a parte. Não há mais carambolas. Pois a ilha do Asdrúbal tem carambolas. E ele a comprou sem um níquel. Só um milionário nato podia ter um gesto assim, dionisíaco. Mas não me importa muito o atual Asdrúbal, bem-sucedido, de larga e cálida euforia. Não. O melhor Asdrúbal é o da fome. Ele poderia dizer: — “Eu já fui o Raskolnikov!”.

     Não matou as velhas. Tem uma estrutura doce demais para isso. Mas roubava livros. Morava então com o Carlinhos de Oliveira e o Ferreira Gullar, numa água-furtada, e havia, lá, uma clarabóia, como nos romances de Paulo de Kock. Eis o que fazia o nosso Raskolnikov: — roubava livros. Entrava numa livraria e, como um “virtuose”, um estilista, apanhava três, quatro volumes. Era quase um número circense. Ninguém percebia nada. E lá ia o nosso Asdrúbal vender os livros ao Mário Pedrosa. Este era o grande freguês.

     Não só o Mário Pedrosa, evidentemente. A freguesia do Asdrúbal era imensa, inclusive senhoras e até padres. Eugene O’Neill, quando se tornou milionário, costumava dizer: — “Ah, só tenho saudades da fome!”. Sim, saudades das noites do cais. Suas entranhas se contraíam na náusea da fome e não havia o que vomitar. A nostalgia do Asdrúbal, ou a sua vaidade, é o adolescente e nobilíssimo ladrão literário. Só roubava do bom, do melhor! Era, repito, um ladrão crítico, que excluía qualquer subliteratura.

     Eis o que eu queria dizer: — quando Asdrúbal for milionário, a fome estará enterrada, no seu sangue e na sua alma. O ladrão de livros, de um gosto tão lúcido, e tão fino, e de uma sensibilidade tão erudita, não há de morrer jamais. E é justamente esse passado que faz do Asdrúbal uma natureza tão complexa, irisada, dramática. Outro que não seria nada se não tivesse para pisar o grande chão do passado é Plínio Marcos.

     Hoje, é uma das figuras mais obsessivas dos nossos palcos. Por toda a parte, lê-se e ouve-se o seu nome. É representado, simultaneamente, em três, quatro teatros. Já foi tudo, como Knut Hamsun. Raros brasileiros podem entrar numa sala e anunciar, de fronte alta: — “Já fui palhaço”. E, no caso de Plínio Marcos, com uma agravante dramática: — era o palhaço sem graça, o palhaço que não fazia rir. Uma vez representou para quinhentas crianças.

     Fez o diabo. As suas cambalhotas elásticas, acrobáticas, não arrancavam um sorriso. Quinhentas caras amarradas. Até que o Plínio Marcos explodiu: — parou no picadeiro e, na sua fúria, dava arrancos triunfais de cachorro atropelado. Nunca mais foi palhaço, nunca mais. Mas sua experiência culminante não foi de palhaço: — foi de ladrão.

     Um dia, ficou de sentinela de um avião, se não me engano, da Cruzeiro. Estava lá, na sua função, armadíssimo, disposto a fuzilar o primeiro suspeito. E, súbito, chegam os assaltantes. Era um bando de rotos, de esfarrapados, crioulos, brancos, e, no meio dos miseráveis, um leproso. Um súbito e móvel pátio dos milagres. Queriam pilhar o avião. Eis o dilema do futuro dramaturgo: — ou fuzilava, ou confraternizava. O avião estava cheio de bolachas. Plínio Marcos vacilou um minuto,dois. E, por fim, tomou a liderança dos canalhas. Invadiram o avião e saquearam as bolachas.

     Pouco depois era preso, arrastado à prisão. Degradaram-no como a um Dreyfus sem Zola. Uma mão feroz arrancou-lhe os botões, um a um. Foi toda essa experiência de Dreyfus, todo esse peso vital que ele pôs na sua nova peça. Ah, é um texto que dará ao espectador, no fim do espetáculo, a vontade de chorar, eternamente, sentado no meio-fio.

             [15/3/1968]

 

                                           A FOTOGRAFIA DO ÓDIO

     É uma fotografia de Manchete, e com a agravante: — colorida. Lá está o sangue coagulado. O olho enorme, que ninguém fechou; e os intestinos escorrendo, no seu puro escarlate; e as mãos entrevadas pela morte. Morreu, não há dúvida, morreu.

     E odeia. Morreu com esgar de ódio, com a boca aberta em grito. Nem sei se é de um lado ou de outro; se é guerrilheiro ou não. Morreu, mas o ódio sobrevive. É um cadáver e continua odiando. Olho a fotografia e vejo tudo. Não é americano, não pode ser americano. Tem de ser do outro lado, e explico.

     O mistério de Manchete está na impressão, em cores. Seus anúncios são graficamente exemplares. Lembro-me de uma salada de página inteira. A alface, as fatias de tomate, os frios, a maionese, tudo, tudo é perfeito, irretocável. Manchete imprimiu o cadáver vietnamita com o mesmo virtuosismo da salada.

     Mas eu digo que devia ser guerrilheiro pela miséria dentária. Eram cacos, não dentes. Dirá alguém que de um lado e do outro há maus dentes. Seja como for, instala-se em mim a certeza, talvez pueril, mas obsessiva: — são dentes de terrorista.

     Mas não falemos mais na meia dúzia de cacos pendurados nas feias gengivas. O que realmente apavora é o ódio. Imaginem vocês que acabo de receber a carta de uma leitora. É uma brasileira que me escreve e não assina. A meu ver, não há carta anônima intranscendente. Se não tem assinatura, passa a valer como um documento trágico. Desde os velhos folhetins, a carta anônima é de uma veracidade apavorante.

     A leitora fala da moça chamada Gisela, que morreu de gangrena. E morreu porque saiu, de hospital em hospital, e não encontrou um médico, uma enfermeira, um estudante, um porteiro. Teria sido salva, sem maiores problemas, se alguém a atendesse em tempo. Mas vinha um médico, olhava o braço partido e dizia: — “Não é urgente”. E a mandava embora.

     Qualquer barbeiro diria: — “É de urgência, sim”. Mas não houve, repito, um médico que reconhecesse o óbvio. Não houve uma enfermeira, nem um funcionário. Há uma escola que se chama, pomposamente, Ana Nery. Pois as enfermeiras, práticas ou formadas, as serventes, ninguém teve pena, simplesmente pena. Temos pena de uma cachorra manca. E ninguém teve pena da gangrena em flor.

     No fim, não havia a menor dúvida. Caso tão nítido, tão límpido, tão inequívoco. Qualquer um, a olho nu, veria a cor da gangrena e da orquídea. Mas os médicos, de vários hospitais, de todos os hospitais, continuavam a negar, de pés juntos, a gravidade e a urgência. Até que a menina morreu, apenas morreu, e nada mais.

     E, então, a leitora me escreve. O que me impressionou na carta foi o ódio. Um ódio só comparável ao do cadáver que continuava odiando. Sempre digo que o verdadeiro amor continua para além da vida e para além da morte. Mas vejo o cadáver da guerra. E sinto que também o verdadeiro ódio dura mais que a vida e dura mais que a morte. Minha leitora viu a notícia no jornal. E conheceu, não a irritação efêmera, não a raiva que passa, não o protesto que se esquece. Não, não. Ela toma uma posição radical. É uma paixão que não conhecia. E, no seu ódio, pergunta se ninguém vai fazer nada. Nada, nada?

     Sim, ninguém fará nada, nada. Exatamente nada. Mas a leitora tem um tesouro de ódio, íntimo tesouro, que não sabe como aplicar ou contra quem aplicar. Odeia, mas a quem? E o pior é que morreu uma só e repito: — uma só Gisela. Se fossem duzentas, trezentas Giselas, talvez tivéssemos, por aí, um surto de piedade convencional e enfática. Mas uma só gangrena é de tal insignificação numérica que comove de uma maneira muito epidérmica e ineficaz.

     E me espanta o nosso vão esforço. Pagamos toda uma imensa organização, toda uma estrutura gigantesca. E sabem para quê? Para que um médico olhe uma gangrena inequívoca, óbvia, evidentíssima, e diga: — “Não é de urgência”. Ora, eu sou um obsessivo. E uma das minhas idéias fixas é, justamente, a seguinte: — o médico ou é um santo ou um gângster. Meu Deus, não vejam nas minhas palavras nem exagero, nem caricatura.

     Um médico tem responsabilidades que ninguém tem. Estou dizendo o óbvio, mas paciência. O médico só devia ser médico depois de sofrer uma série de provas, de testes vitais crucialíssimos. O sujeito teria de passar três anos nos cafundós da África, tratando de negros leprosos. Como é que se pode passar um atestado de óbito sem tremer? Diz um amigo meu que o sujeito que assina um atestado de óbito substituiu Deus e O antecipa.

     Mas não se aflijam. Os médicos que não identificaram a gangrena, que não enxergaram o óbvio e despacharam alegremente a moça continuarão a fazer a barba, a escovar os dentes, a namorar, a assobiar etc. etc. Mas volto ao cadáver que mereceu de Manchete uma impressão de salada. Eu falei de dois ódios e passo a um terceiro. Desta vez é um chofer de praça.

     Imaginem um chefe de família, de origem italiana. Mas a origem pouco importa. Era uma criatura doce, cálida, generosa. Um dia foi preso porque não tinha, na hora, a sua identidade. Sua mulher, seus oito filhos, estão em casa, esperando para o jantar. Mas ele não vem porque foi atirado no fundo de um xadrez. Passou lá, entre marginais, 24 horas, e gritando. Digo eu que o verdadeiro grito parece falso. E o motorista gritava como se estivesse imitando, apenas imitando a dor da carne ferida.

     Eis o que aconteceu: — fora estuprado por seis ou sete marginais. Saiu do xadrez, foi para casa. Empurrou a mulher, entrou no quarto e trancou-se. Lá, meteu uma bala na cabeça. Morreu de ódio, morreu odiando, como a fotografia de Manchete. E, como a leitora, não sabia a quem odiar. Os marginais eram, decerto, os menos culpados. Episódios assim são uma rotina que jamais variou. Isso pode acontecer com o filho, o pai, o irmão de qualquer um; pode acontecer com qualquer um. A vítima pode uivar três dias e três noites. Ninguém se mexe na delegacia.

     A nova peça de Plínio Marcos, Barrela, que o Teatro Jovem ia levar, se passa num xadrez. Seis ou sete marginais estão em cena. E, de repente, entra mais um preso, um adolescente, preso porque brigara num bar do Leblon. Os outros o agarram, e qualquer um pode imaginar o resto. Pergunto: — que faremos nós? Desta vez, foi tomada a providência justa: — interditou-se a peça. Obscena é a denúncia e não a monstruosidade. A moral está salva, porque se emudeceu uma peça. E o ser humano continuará sendo violentado em cada xadrez, eternamente. Porque o nosso sentimento é impotente, como o ódio do chofer.

             [20/3/1968]

 

                                             O MENINO KENNEDY

     Vocês devem estar lembrados. Era um dia como outro qualquer, ou por outra, não era um dia como outro qualquer. E repito: — era um dia dramatizado pela greve do rádio e da televisão. Dirá alguém que os jornais circulavam.

     Mas o tempo da imprensa é um e outro o das câmaras e microfones. Em jornal, o fato leva 24 horas para ser notícia. Ao passo que tanto o rádio como as TVS são fulminantes (mais uma vez, estou aqui proclamando o óbvio). Eis o que eu queria lembrar: — Kennedy morreu e custamos a saber. Entre nós e a tragédia houve a greve. Um tiro arrancou o queixo presidencial. E, aqui, ninguém desconfiava de nada. Quando as extras saíram, Kennedy já estava no caixão, Johnson tomara posse, Jacqueline improvisara o luto de sua viuvez atônita.

     (Aliás, foi furada a greve do rádio e da televisão. Se não me engano, a Roquette Pinto estava no ar. Mas o rádio educativo faz sua audição para surdos. Ninguém o ouve, ninguém, ou por outra: — só uma meia dúzia o ouve. E foi essa meia dúzia que saiu contando para os amigos, os familiares, os conhecidos; e assim, de boca em boca, a notícia tomou conta, paulatinamente, da cidade. Todavia o silêncio do rádio e da televisão parecia humilhar, parecia desfeitear a catástrofe.)

     Estou falando de Kennedy e de sua morte porque meu filho Joffre chegou de Nova York. Está aqui de passagem e voltará. E, nos Estados Unidos, ele vai de um assombro a outro assombro. Lá, vive ele num mundo quase absurdo. Um dia, abre a televisão e vê um filme sobre “as atrocidades norte-americanas”. O mesmo filme passara, antes, normalmente, num gigantesco circuito de cinemas.

     Só um país, no mundo, ousaria tamanha antipropaganda, tamanha antipromoção. E o Joffre, em conversas intermináveis, fala de tudo que há de pueril, trágico, jamais concebido, na vida americana. Súbito, meu filho chega a Bob Kennedy. Nós o conhecemos fisicamente; nós o vimos, aqui, na praia, de calção, dourando-se ao sol como um camaleão (rimou com calção, e desculpem).

     Mas o Bob que por aqui passou e viu muitos poentes de Leblon nada tem a ver com o Bob candidato. Naquele tempo, ele preservava, como um segredo, como um pudor, a sua intenção presidencial. Fazia de conta que o sonho do poder ainda não se instalara no seu coração. Mas, ao falar de Bob, não resisto à tentação de contar um episódio brasileiro. Vamos lá.

     Certa noite, o nosso Bob teve um encontro com vários patrícios nossos, inclusive o dr. Alceu. Eram intelectuais, estudantes, cada qual fazendo a sua pose e cada qual dando seu recado. Por coincidência, todos vendiam a mesma imagem do Brasil. Houve um momento em que o Tristão empostou-se, ergueu o gesto e disse, textualmente, o seguinte: — “Posso assegurar-lhe que não havia o menor perigo comunista no Brasil!”. Foi imensamente divertido o tom inapelável de verdade eterna com que ‘ o mestre atirava na cara do ilustre visitante tamanha barbaridade.

     Os presentes, menos Bob Kennedy, balançaram a cabeça, e com o maior descaro. Mas nada descreve a amarga perplexidade do americano. Eis as perguntas que ele, espantadíssimo, teve o decoro de não fazer: — “Como não há perigo comunista? Isto aqui não é um país subdesenvolvido? Não há fome? Existe ou não existe o Nordeste? A tal mortalidade infantil é pura escroquerie?”. Com a conivência e o descaro dos brasileiros presentes, o dr. Alceu estava sendo de uma monstruosa e consciente inveracidade. Digo “consciente” porque ele não ignora, decerto, a fome, o Nordeste, a mortalidade infantil etc. etc.

     Volto aos Estados Unidos. Conta Joffre que Bob mudou, até fisicamente. Há pouquíssimo tempo era, na televisão, um modesto, um humilde, um cerimonioso. Não olhava, cara a cara, os vários milhões de telespectadores. Baixava a cabeça. Tinha como que a vergonha física do poder. E, súbito, o candidato secreto, inconfesso, começou a borbulhar, irresistivelmente. Bob Kennedy se deflagra. Seu gesto, sua inflexão, sua ênfase, sua ira, tudo, tudo promove, impõe, desfralda o candidato.

     E, com isso, ficamos sabendo que a modéstia, a humildade, a suavidade anteriores eram uma pose. Aliás, pode-se datar a sua candidatura: — no dia, ou, melhor dizendo, no momento em que John Kennedy morreu, ele começou a ser candidato, automaticamente candidato. Não importa o pudor que, por muito tempo, disfarçou, negou o automatismo dessa candidatura.

     Eu diria que, no seu caminho presidencial, só resta uma dúvida. E, de fato, custa crer que existam, numa mesma família, dois Kennedys. Seria o mesmo que pretender dois Napoleões. E, quando dois nomes coincidem, passamos de um Napoleão, o Grande, para o Napoleão III, o idiota. Há, todavia, uma hipótese para o nosso Bob: — de que o verdadeiro Kennedy não seja o morto, mas o sobrevivente.

     Sempre me pareceu que John Kennedy era, como líder, um equívoco. Escrevi, aqui mesmo, que o verdadeiro líder é um canalha. E Kennedy era um pobre ser crispado de humanidade, igual a um de nós, perplexo, frágil, dilacerado, menino, como um de nós. Menino sim, infinitamente menino. Kennedy tinha uma mulher bonita; amava e era amado. Não há Jacqueline na História e na Lenda de Lenin, Stalin, Hitler. E a mulher bonita só tem sentido para o líder quando o trai. E mais: — o líder morre na hora certa, e não antes. John Kennedy morreu antes, e repito: — morreu antes da obra. Um Napoleão que morresse na tomada da Bastilha não seria Napoleão. Um Cristo morto aos três anos de idade, de coqueluche, já não seria Cristo. De mais a mais, o verdadeiro líder há de morrer com o rosto. Sim, a morte tem que preservar seu perfil para a moeda, a cédula, a medalha. O último rosto, o rosto do caixão, precisa estar intacto. E tiveram que fechar o caixão de Kennedy para esconder o queixo arrancado.

           [25/3/1968]

 

                                             FLOR DE OBSESSÃO

     De vez em quando, alguém me chama de “flor de obsessão”. Não protesto, e explico: — não faço nenhum mistério dos meus defeitos. Eu os tenho e os prezo (estou usando os pronomes como o Otto Lara Resende na sua fase lisboeta). Sou um obsessivo. E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro idéias fixas? Repito: — não há santo, herói, gênio ou pulha sem idéias fixas.

     Só os imbecis não as têm. Não sei por que estou dizendo isto. Ah, já sei. É o seguinte: — recebo a carta de uma leitora. Leio e releio e sinto a irritação feminina. E, justamente, a leitora me atribui a idéia fixa do “umbigo”. Em seguida, acrescenta: — “Isso é mórbido ou o senhor não desconfia que isso é mórbido?”. Corretíssima a observação. Realmente, jamais neguei a cota de morbidez que Deus me deu.

     A minha morbidez. Ela me persegue e, repito, ela me atropela desde os três anos de idade. Eu ainda usava camisinha de pagão acima do umbigo. E, um dia, na rua Alegre, apareceram quatro cegos e um guia. Juntaram-se na esquina, na calçada da farmácia, e tocaram violino. Três anos. Quando os cegos partiram, caí de cama. Debaixo dos lençóis, tiritava de tristeza, como de malária. A partir de então, sou um fascinado pelos cegos.

     Ainda na infância, eu fechava os olhos e, dentro de minhas próprias trevas, me imaginava cego. Claro que tudo isso é morbidez. Eis o que eu queria dizer à minha leitora: — infelizmente, não tenho nem a saúde física, nem a saúde mental de uma vaca premiada. Na sua irritação, ela continua: — “Bem se vê que o senhor é um velho”. E, de fato, sou tão velho quanto o Antônio Houaiss.

     Por coincidência, almocei, ontem, com o já referido Antônio Houaiss, o Francisco Pedro do Coutto e o José Lino Grünewald. (Vejam como Grünewald é um nome naval, sim, o nome de um primeiro-tenente morto no afundamento do Bismarck.) Durante o almoço, o Antônio Houaiss batia na tecla fatal: — “A minha geração é a do Nelson”. E dizia ao José Lino e ao Coutto: — “Vocês que são brotos”. E, pouco a pouco, eu e o próprio Houaiss íamos ficando lívidos de idade, amarelos de velhice, espectrais como a primeira batalha do Marne ou como o fuzilamento de Mata-Hari.

     Depois do almoço, volto para a redação e vejo a carta da leitora. Lá está a mesma e crudelíssima acusação de velhice. Cabe então a pergunta: — e por que me chama de velho? Resposta: — porque ainda me impressionam os umbigos do biquíni, do sarongue, dos bailes. E, sem querer, a leitora toca num dos mistérios mais patéticos da nossa época. Os jovens não estão interessados na nudez feminina. Essa rapaziada dourada de sol, esses latagões plásticos, elásticos, solidamente belos como havaianos não desejam como as gerações anteriores. Só os velhos é que ainda se voltam, na rua, ou na praia, para ver as belas formas. Quem o diz é a leitora.

     Mas o melhor está do meio para o fim. De repente, percebo a origem da carta e da irritação. A leitora defendia alguém. Eis o caso: — no baile do Municipal, irrompeu um umbigo especialíssimo. Uma lindíssima senhora, e, se não me engano, embaixatriz, foi fotografada, televisada de sarongue. Mais tarde, os jornais e as revistas falavam do umbigo diplomático. A imprensa rendia suas homenagens à beleza. Mas a leitora via, nas fotografias e legendas, uma inconfidência visual, quase um ultraje. Parece-lhe que não estamos longe do jornalismo de escândalo ou, para usar a cor exata, marrom.

     Vejam vocês como os papéis se invertem. Já a televisão foi chamada de obscena, porque pôs no vídeo a nudez coletiva, geral, ululante. Eis o que me pergunto: — queriam o quê? Que as câmaras e os microfones vestissem os nus, calafetassem os umbigos, enfiassem espartilhos nos quadris? Ao mesmo tempo, o Jornal do Brasil deitou um judicioso editorial afirmando que, depois da praia, a nudez perdera todo o mistério e todo o suspense. Era assim no Brasil e em todo o mundo. Portanto, segundo o velho órgão não há nada que objetar ao impudor eugênico, salubérrimo e “pra frente” da praia. E, todavia, o mesmo Jornal do Brasil e no mesmo editorial condena a televisão que devia ter tapado os quadris, umbigos etc. etc.

     Do mesmo modo, o caso da leitora e da embaixatriz. Que uma bela senhora ponha um sarongue assim e vá ao baile é um fato intranscendente, normalíssimo. Mas, se um cronista deixa escapar uma referência ao umbigo do Itamaraty, vem o mundo abaixo. E por que, meu Deus do céu? Imoral é a televisão e não os nus frenéticos que vinham posar para as câmaras. Antigamente, havia, em torno de um beijo, todo um sigilo, toda uma solidão. Lembro-me de uns namorados, na minha infância, que iam para debaixo da escada. E, nos bailes recentes, os casais caçavam as câmaras e iam beijar para milhões de telespectadores.

     Seja como for, algo restou do último Carnaval. Refiro-me aos nus arrependidos. Na própria quarta-feira de Cinzas, cruzei, ao chegar em casa, com uma menina da vizinhança. Fora, nos quatro dias, um dos umbigos mais insistentes da televisão. Em qualquer canal, lá estava ele. E, no entanto, enterrado o Carnaval, eu via a menina passar, rente à parede, de cabeça baixa, na sua vergonha tardia e crispada.

     A minha leitora, que assume a irada defesa da embaixatriz, também é outro nu arrependido. Diz, a folhas tantas: — “Eu também brinquei no Carnaval”. E levando mais longe a sinceridade, confessa: — “Vesti o meu sarongue e não me arrependo”. Mentira. Está arrependida, e insisto: — é um dos nus arrependidos da cidade.

     É linda, embora inútil, essa vergonha póstuma. Também as famílias estão horrorizadas com o nudismo carnavalesco. Fui a um jantar e lá as senhoras diziam: — “Não eram meninas de família. Eram aventureiras”. Perdão: vamos dizer a casta e singela verdade: — os nus saíam dos lares. Já escrevi isto e repito, porque é meio vil trapacear com o nosso próprio impudor. Se a cidade se despiu, deve ter o nobilíssimo cinismo de o proclamar.

     Mas vamos crer que não houve nus em lugar nenhum. Não adianta. Para nós não há saída. Por que ter pudor no Carnaval e não na praia? Aí está o biquíni, que é a forma mais desesperada da nudez. Como é triste o nu que ninguém pediu, que ninguém quer ver, que não espanta ninguém. O biquíni vai comprar grapete e o crioulo da carrocinha tem o maior tédio visual pela plástica nada misteriosa. E aí começa a expiação da nudez sem amor: — a inconsolável solidão da mulher.

             [28/3/1968]

 

                                             OS DRÁCULAS

     Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: — a nossa. Ainda anteontem, falei da idéia inusitada de d. Hélder. O nosso querido arcebispo propõe uma missa cômica (se duvidarem, leiam a última edição dominical de O Jornal). Por trás de suas palavras, sentimos o tédio cruel de uma missa que se repete, com uma monotonia já irrespirável, há 2 mil anos. E ele sugere que se substitua o órgão, o violino, a harpa, o címbalo, pelo reco-reco, o tamborim e a cuíca.

     Por aí se vê que ele, como o dr. Alceu, é um progressista. Não sei se o leitor entendeu todo o alcance da sugestão. D. Hélder propõe, se bem o entendi, que se enfie o sobrenatural na gafieira ou por outra: — que se faça da catedral uma gafieira gótica. Parece ao arcebispo de Olinda que se pode louvar a Deus, igualmente ou até com vantagem, com a cuíca, o pandeiro, o reco-reco e o tamborim.

     A missa, como a conhecemos, nos últimos vinte séculos, é triste, é depressiva, é neurótica. E quem sabe se a Virgem, se Jesus, se os santos não hão de preferir, por fundo musical, o samba? Seria uma boa maneira de espanar o pó que 2 mil anos depositaram em certas representações católicas.

     Mas falei acima nas épocas que parecem doentes mentais. Só em nossos dias um arcebispo poderia irromper num jornal, na televisão ou rádio e lançar a idéia da missa cômica. Estamos pertinho da Semana Santa. É o caso de, na Sexta-Feira da Paixão, cada um levar seu reco-reco, sua cuíca, seu tamborim e seu pandeiro. Nada de lúgubres e mórbidas procissões. E chorar por que, se tristezas não pagam dívidas? Mas, como eu ia dizendo: — se em qualquer outra época, de razoável sanidade, alguém sugerisse tal coisa, seria um escândalo inominável. Em sua indignação, os fiéis dariam arrancos triunfais de cachorro atropelado. Hoje, não.

     Hoje, achamos perfeitamente normal que se instale a vida eterna numa gafieira. Daqui a pouco, um outro há de propor que, dentro das igrejas, garçons passem bandejas de salgadinhos, mães-bentas, caldo de cana, grapete e chicabon. Mas volto à minha observação anterior: — d. Hélder não espantou ninguém. Não houve escândalo, ninguém arrancou os cabelos etc. etc.

     Essa impotência para o espanto dá que pensar. Eis o que me pergunto: — e por que, meu Deus, por quê? Vejo católicos justificando a guerrilha, achando a guerrilha uma atividade nobilíssima. E o dr. Alceu só não a recomenda para o Brasil, porque, diz ele, os nossos camponeses não são politizados. Eu me lembro de que, antes da esquerda católica, não tínhamos dráculas neste país.

     E já os temos. Amaldiçoados? Não. Abençoados. Sim, abençoados, absolvidos por respeitáveis homens de fé. Quando vi o dr. Alceu falando, com indisfarçável simpatia, das guerrilhas, pensei numa outra e singular figura: — o Lawrence das Arábias. Vocês o conhecem da História e da Lenda. O próprio Lawrence conta uma de suas passagens mais patéticas. Vale a pena lembrar o episódio.

     Em dado momento, Lawrence teve que matar. Jamais tirara a vida de ninguém. Em criança, era contra a matança até de passarinho. E, além disso, havia um mandamento, o único do qual se lembrava e, também, o único que cumpria: — o “Não matarás”. Lawrence estaria disposto a roubar e, aqui entre nós, já roubara. Matar, jamais. Mas precisava tirar a vida de um semelhante. Era um homem como ele e igual a ele.

     E, então, Lawrence preparou-se para matar. Nobilíssimos motivos o impeliam para o assassinato. Na véspera do crime, não dormiu; passou a noite em claro. Houve um momento em que o fascinou a idéia de morrer para não matar. Se estourasse os miolos, estaria dispensado do crime hediondo. Outro que matasse. O diabo é que o sentimento do dever o empurrava. E o dever passa por cima dos mandamentos, por cima dos escrúpulos, por cima da misericórdia. Por dever, Lawrence saiu de casa para matar.

     Viu a vítima. Ia morrer e não sabia. Ele, Lawrence, seria, por um momento, Deus; tiraria uma vida, como se Deus fosse. E Lawrence matou. O primeiro tiro já seria mortal. Mas a vítima poderia não morrer imediatamente e também atirar. Então, Lawrence deu o segundo tiro, igualmente mortal. Não precisava mais; ele poderia correr, pular o muro e sumir. Mas Lawrence ficou.

     O sujeito já estava morto, tecnicamente morto. Mas saiu o terceiro tiro. Eis a pergunta que o assassino fazia a si mesmo: — por que o terceiro tiro se, desde o primeiro, a vítima já era um inequívoco, indubitável cadáver? Com grande assombro para si mesmo, continuou atirando. Quarto, quinto, sexto tiro. E só parou quando esgotou a carga. Era a hora de fugir. Mas ficou ainda. Virou a arma e meteu a coronha na cara do cadáver. E o fato de não ter mais balas, para continuar atirando, deu-lhe um sentimento atroz de frustração. Só então fugiu.

     Mais adiante, Lawrence pára, assustadíssimo. O que o apavorava, em si, era a ausência de qualquer horror. Matara, pela primeira vez matara, e não estava horrorizado. Matara gostando de matar. Ao varar de balas a vítima, sentira um prazer jamais suspeitado. Era uma volúpia que não conhecia. Olhou em torno. Passava, lá adiante, uma senhora, uma velha; e, mais além, uma criança. Teve a súbita e inefável tentação de matá-las também. Matar, sempre matar, matar na véspera, no dia seguinte, eternamente matar.

     Não quero ser enfático. Mas me parece estar havendo, no Brasil, uma degringolada de valores. Vimos d. Hélder propor a missa cômica; e ninguém se espantou. Vimos o dr. Alceu declarar que, por causa de um passarinho, pode-se matar um homem. Uma coisa está ligada à outra e ambas se explicam. Se d. Hélder pode propor a gafieira gótica, e se o dr. Alceu absolve um monstruosíssimo assassinato (se bem que hipotético), tudo é permitido e vale tudo.

     O brasileiro é uma espécie de Lawrence na véspera do crime. Vozes piedosas, batinas consagradas e a ferocíssima esquerda católica doutrinam as massas sobre a “violência justificada”. Aí esta uma janela aberta para o infinito. E se o brasileiro matar, um dia? E se, como Lawrence, gostar de matar? E se começar a beber o sangue como groselha?

              [5/4/1968]

 

                                          ASSASSINAR O GESTO DE AMOR

     Sou um homem que não dorme sentado. Quando viajo de noite para São Paulo, todos os outros passageiros dormem, menos eu e o chofer. E, se a viagem para São Paulo (que é, realmente, a viagem para a solidão) durar as Mil e Uma Noites, eu não dormirei um minuto. Dirão vocês que a Cometa tem poltronas-leito. Nem assim. O meu sono exige cama, a clássica, a convencional, a absoluta.

     (Não sei quem foi que disse que a cama é um móvel metafísico. Na cama, o homem nasce, ama, sonha e morre.) Mas dizia eu: — não durmo sentado e agora vem o trágico: — quase não durmo deitado. Tenho insônias obrigatórias e fatais. Os meus amigos sugerem: — “Toma barbitúrico”. Ah, jamais uma farmácia resolveu o meu sono. E, além disso, o barbitúrico exaspera todas as víboras de minha insônia. Se eu tomar um tubo, 25 pílulas, posso morrer. Dormir, não. Vejam vocês: — morto e insone.

     Felizmente, criou-se uma acomodação recíproca. Depois de uma longa convivência, eu e minha insônia já nos entendemos. E, a partir da meia-noite, começo a sonhar em claro. Se fosse um assassino, um Raskolnikov, usaria a minha vigília para construir meus crimes. Mas como não sou, até segunda ordem, um criminoso, só tenho insônias literárias e dramáticas. Ontem, às três da manhã, comecei a pensar em Lúcio Cardoso. Há anos estou para visitá-lo. Passarei na sua casa, verei seus quadros e ele há de me olhar como um visitante convencional e não um amigo para sempre.

     Ainda dentro da mesma insônia, lembrei-me do pai do grande romancista. De vez em quando, o velho chegava em casa e, já da porta, avisava: — “Não falem comigo, que hoje estou brigando automaticamente”. Ele podia falar assim porque era homem de outra geração, de outro Brasil, de outro mundo. Hoje, o pai de Lúcio Cardoso não teria nenhuma originalidade. Repito: — hoje, qualquer um de nós poderia entrar num boteco, num velório ou numa retreta, e anunciar, patético: “Não falem comigo, porque hoje estou brigando automaticamente”.

     Estamos todos brigando. Há um automatismo nas nossas fúrias, nos nossos palavrões, nas nossas patadas. É assim no Brasil e é assim em todo o mundo. Outro dia, aconteceu-me uma que me deixou “pálido de espanto”, como no soneto. Imaginem que, todos os sábados, almoço na casa do Hélio Pellegrino. Criou-se entre nós esse hábito tão doce e que me faria uma falta desesperadora. O Hélio é uma presença lírica, ardente, um ser de maravilhoso ímpeto. Lembro-me de uma noite em que, num dos seus rompantes homéricos, vira-se para mim e fala: — “Você é um dos meus amigos fundamentais”. Isso dito na sua voz cálida, vibrante, de barítono de igreja, foi de arrepiar.

     Ninguém terá melhor qualidade humana. Vou contar um episódio que considero uma jóia da nossa convivência. Na véspera de partir para Lisboa, o Otto Lara Resende passou na casa do Hélio. O Otto sofre de uma falsa gastrite, que o tortura mais do que uma úlcera autêntica. Chegou e foi logo pedindo ao anfitrião: — “Um copo de leite! Um copo de leite!”. Foram os dois para a cozinha.

     E, lá, conversam, de coração para coração. Apaziguada a gastrite imaginária, o Otto abriu o coração. Fez confidências, o diabo. E, súbito, começa a chorar. Qualquer viagem, mesmo que seja a Bangu, a Vigário Geral, é uma janela aberta para o infinito. Na tensão da partida, o Otto teve um violento espasmo. Chorava alto, chorava forte. Que fez o Hélio? Arrastou o amigo e o enfiou no banheiro. Lá se trancaram. E, ali, a salvo de curiosidades frívolas e divertidas, o Hélio chorou também. O Otto teria seus motivos concretos. Ao passo que o Hélio chorava de graça, chorava por chorar, porque seu pranto é fácil, é abundante.

     Contei o episódio e passo adiante. No último sábado, vou, como sempre, à casa do amigo, filar a bóia fraterna. Ele não estava, mas não ia demorar. Espero-o. E, com pouco mais, entra o dono da casa. Mas chega de cara amarrada. Diz-me um “olá” que é quase uma agressão. Penso no pai do Lúcio Cardoso e imagino: — “Hoje o Hélio está brigando automaticamente”. Nos sábados anteriores, sempre me recebera com uma efusão larga e dionisíaca. Não estou entendendo nada.

     Vamos para a mesa, enorme, patriarcal. E a cara amarrada do Hélio punha, entre nós, uma imensa distância afetiva, espiritual, sei lá. Comendo o meu bife, tive vontade de lembrar-lhe: — “Olha que sou teu amigo, teu irmão!”. Não digo nada. Foi tão aguda a minha perplexidade que minha úlcera começou a doer. Até que, subitamente, o Hélio fala e eu vi tudo: — eram os meus últimos artigos ou, melhor dizendo, as minhas últimas confissões. O nosso Hélio estava indignado porque eu falara de d. Hélder e do dr. Alceu.

     Segundo ele, eu não podia falar de ambos. “Nesse momento, não.” Atônito, eu ouvia só. Em primeiro lugar, não me entrou na cabeça que exista um momento, próprio ou impróprio, para se dizer as verdades que cada qual traz no ventre. Nem lhe disse: — “Eu escrevo o que quiser, como quiser e quando quiser”. E não disse porque percebi a total esterilidade de qualquer debate em termos assim incendiários. De mais a mais, via diante de mim o anti-Hélio, a negação do Hélio. Poderia eu ter dito uma série de coisas, inclusive esta: — “Tudo, menos pensar como Moacyr Félix de Sousa!”. Gesticular como Moacyr Félix de Sousa, ser como Moacyr Félix de Sousa. Jamais, jamais.

     Em dado momento, digo uma dessas verdades objetivas, concretas, que não admitem o menor sofisma. E o meu amigo, o meu irmão, o meu anfitrião (rimou) troveja: — “Mentira! Mentira!”. Fiz então a piada amarga: — “Hélio, se meu fuzilamento depender de você, já estou no muro”. Mas o que assombrou não foi o berreiro, mas o que se escondia ou, por outra, o que não se escondia por trás do berreiro. Eu via, ali, o Brasil, um novo Brasil, um Brasil jamais concebido.

     Minha vida autoral tem sido difícil. Ao longo de minha vida, cinco peças minhas foram interditadas; recentemente, caçaram a pauladas um romance meu. Nunca as esquerdas exalaram um suspiro em meu favor; nunca os nossos intelectuais libertários fizeram um manifesto contra as miseráveis interdições. Digo isso e vou completar: — e não é possível que, agora, nos meus 55 anos, venham me interditar também os artigos sobre d. Hélder e dr. Alceu.

     Mas falei de um novo Brasil. É só olhar. Está aí germinando. E esse Brasil será, para o amor, a Casa de Bernarda Alba. Disse Brasil e posso ampliar. O resto do mundo já é também, para o amor, a mesmíssima Casa de Bernarda Alba. Mataram Luther King e por que o mataram? Porque é preciso assassinar o gesto de amor.

            [10/4/1968]

 

                                          O GUARDA-CHUVA NO MUNICIPAL

     Cada época tem suas palavras encantadas. No tempo de Dumas velho, era “cáspite”. Ninguém sabe, até hoje, o que se esconde por trás de “cáspite”. Anos atrás, o poeta Murilo Mendes foi ao Municipal. Não me lembro se era ópera ou companhia francesa. No primeiro intervalo, lá foi ele para o corredor, fumar o seu cigarrinho. E, súbito, começa a ouvir uma série de vozes.

     Não vozes das grã-finas que cacarejavam nas imediações. Não. Era uma única voz, absurda, fantástica, que repetia, junto ao seu ouvido, a mesma palavra: — “Cáspite! Cáspite!”. Demais a mais, não parecia um som terreno. Não era a primeira vez que um poeta tinha delírios auditivos como uma Joana D’Arc. Aqui abro parêntese, para referir um episódio que consta da história e lenda de Murilo Mendes.

     Não sei em que dia ou ano, nem importa a data. Era o mesmo Municipal e estava levando uma peça francesa (alguém diria, mais tarde, e textualmente, que era uma peça “chatérrima”). Lá foi o nosso Murilo para uma das primeiras filas. Olhou em torno e viu uma fauna impressionante de casacas e decotes. E cada decote ou casaca humilhava e agredia o seu traje de passeio, surrado e sebento. Muito bem: — e, no fim dos primeiros cinco minutos, o poeta achava o texto irrespirável.

     Não teve mais dúvidas. Abriu um guarda-chuva na platéia. Na frisa, o embaixador francês, de monóculo, já não entendia mais nada. O elenco, no palco, esbugalhou-se. Por um momento, não se ouviu aquela pronúncia perfeita, irretocável dos artistas de França. Era uma experiência inédita aquele guarda-chuva solitário e sobrenatural. E não havia sequer uma goteira que o justificasse. Por outro lado, nenhum regulamento de teatro prevê a hipótese de um guarda-chuva. Que fazer diante de um fato novo, revolucionário e alucinatório?

     Houve uns dois ou três minutos de um suspense geral e pânico. E, súbito, aquelas casacas e aqueles decotes começaram a aplaudir. Primeiro, uma meia dúzia de palmas ainda envergonhadas e pioneiras. Depois, explodiu a unanimidade. Pela primeira vez, um guarda-chuva foi longamente ovacionado, como um tenor italiano. Naquele tempo, o intelectual era louco (hoje, o próprio Murilo é apenas um funcionário corretíssimo, que faz do livro de ponto a sua bíblia).

     Volto ao “cáspite”. E, então, no corredor do Municipal, Murilo Mendes começa a repetir: — “Cáspite! Cáspite!”. Houve um fluxo e refluxo de casacas e decotes. Não satisfeito, ele cai, entorna-se no ladrilho, como um fuzilado. No ar ficou aquela palavra em flor: — “cáspite, cáspite”. A queda do poeta impressionou menos do que o som apavorante. As senhoras perguntavam umas às outras: — “Por que cáspite?”. Era a pergunta que todos faziam sem lhe achar resposta. O fato é que a exumação de uma gíria velhíssima deflagrou todo um processo de terror coletivo.

     Mas “cáspite” é, repito, do tempo do Dumas velho. Outra palavra que vem injetada de passado é “biltre”. Se perguntarmos às novas gerações o que é “biltre”, nem todos saberão responder. Mas reparem como o som é fascinante. Ninguém chama mais ninguém de “biltre”. Em nosso repertório de palavrões, falta este. E alguém que, em nosso tempo, fosse chamado de “biltre” não sentiria o ultraje fatal, a mácula indelével.

     Todavia, há uma palavra que não passa, que não envelhece, uma palavra que mantém, através dos tempos, a sua eficácia mortífera. Ei-la: — “canalha”. Na minha confissão de ontem ou anteontem (já não me lembro mais), tratei do destino da inteligência. Sem nenhum dramatismo, e apenas com a maior isenção e objetividade, observei um fato patético do nosso tempo. Referi-me à “inteligência degradada”. Outro dia passou por mim um pintor estimadíssimo. Alguém cochichou: — “Olha um canalha plástico!”. E, de repente, vi tudo. Sim, do cinema, do teatro, da pintura, da poesia, do romance — sai todo um elenco de canalhas.

     O leitor, perplexo, há de perguntar: — “Mas como e por quê?”. É preciso explicar: — são os artistas que, por motivos políticos, ideológicos, rolam de abjeção em abjeção. E assim desponta, como uma nova classe, a dos “canalhas da inteligência”. Fiz a pura constatação e citei dois exemplos: — o poeta Éluard, que se recusou a assinar um pedido de clemência para um outro poeta, condenado à morte. E o poeta foi enforcado. Outro exemplo: — de Sartre, que, depois do extermínio de Pasternak, dizia: — “Um escritor que não é lido em sua própria língua”. Não era lido porque a polícia russa não deixava. E Sartre achava corretíssimo o assassinato de um maravilhoso artista.

     Eu poderia ir buscar, na Cortina de Ferro, centenas de exemplos. E é óbvio que a inteligência passa, em nossa época, por um processo de desumanização. Ninguém era mais humano do que o poeta, o romancista, o pintor, o escultor. O artista era o seu povo. E, hoje, nós vemos o nosso intelectual dando vivas a Cuba, outros que se esgoelam pelo Vietnã. Populações inteiras do Brasil apodrecem na fome. E, aqui, não damos um passo sem tropeçar num vietcong da inteligência brasileira. Dane-se a nossa mortalidade infantil! Artistas plásticos, poetas, romancistas escrevem “muerte” em seus cartazes. Traem sua língua. Traem seu povo. Sim, podemos falar numa inteligência desumana, tão pouco brasileira e de uma abjeta alienação.

     Fiz toda a meditação acima pensando em Oduvaldo Viana Filho. Se vocês não o conhecem, é pena. Eu disse Oduvaldo Viana Filho e já retifico: — o Vianinha. Sua estrutura doce exige o diminutivo. Dos nossos artistas, é o menos sombrio, o menos neurótico, o menos ressentido. O nosso teatro está cheio de víboras. Pois o Vianinha é a antivíbora.

     Feito este lírico retrato de lambe-lambe, passo aos fatos. Ontem, eu o encontrei no gabinete de Beatriz Veiga, diretora do Teatro Nacional de Comédia. O Vianinha ia atrás de umas bambolinas para a estréia de Cordélia. E, pela primeira vez, eu o vi sem a luminosidade do otimista. Sim, o dramaturgo estava a meio-pau, exalando uma cava depressão. Ao ver-me, chamou-me de “senhor”. (E, então, senti que se cavara entre mim e ele o abismo de várias gerações.) Simplesmente, o Vianinha está numa torva desilusão do teatro. Parece que suas últimas tentativas teatrais não foram bem-sucedidas. E o Vianinha, em conversa comigo, falou em largar o teatro. Quer ser outra coisa. Deprimido, chegava ao patético, raiando pelo sublime. Quando falou em largar o teatro, tive ímpetos de aplaudi-lo como na ópera: — “Bravos! Bravíssimo!”. Quase, quase lhe disse: — “Seja vendedor de chicabon, de laranja, de cachorro-quente ou de grapete. Mas não seja poeta, não seja artista, não seja intelectual”. O que importa é não ser nem Sartre, nem Éluard.

             [24/4/1968]

 

                                             O “VELHO”

     Em recente confissão, contei a minha visita a uma grã-fina que, de três em três meses, é capa de Manchete. E, de fato, sempre que Justino Martins está em apertos, vai ao arquivo e apanha a cara da minha belíssima anfitriã. O leitor nem desconfia que já viu a mesmíssima capa umas quinze vezes. Não há nada mais parecido com uma grã-fina do que outra grã-fina. Por dentro e por fora, todas se parecem. Quem viu uma, viu as outras.

     Entro no palácio e nada descreve a minha perplexidade. Conheço, de longa data, a dona da casa. Mas como identificá-la, se lá todas se pareciam entre si como soldadinhos de chumbo? Cumprimentei umas oito, na ilusão de que era a própria. Até que uma delas, ligeiramente mais lânguida, ligeiramente mais afetada do que as demais, suspirou: — “Até que enfim veio à minha casa!”. Fez-se luz em meu espírito. Era aquela.

     Bem. Estou-me perdendo no secundário em prejuízo do essencial. O que eu queria dizer é que lá passei umas cinco horas. E, até o fim da noite, só se ouviu um nome e só se falou de uma figura: — Marx. Tudo era marxista. O mordomo de casaca devia ser outro marxista. Idem, os garçons dos salgadinhos, uísque e champanhe. E Marx não era apenas Marx. Não. De um momento para outro, passou a ser “o velho”. Damas e cavalheiros diziam “o velho” com uma salivação intensa.

     Foi quando, a folhas tantas, alguém lembrou que “o velho” era dado a furúnculos. Houve um frêmito de volúpia geral e inconfessável. Parece meio difícil emprestar-se qualquer transcendência a uma furunculose. Pois bem. Havia, ali, um tal clima marxista que os furúnculos do “velho” pareciam mais resplandecentes do que as chagas de Cristo. Os decotes palpitaram. Os cílios postiços tremeram. Havia como que uma voluptuosidade difusa, volatizada, atmosférica. E, de repente, Marx deixava de ser o profeta, o gênio, o santo. Parecia mais um fauno de tapete, torpe e senil. Ao passo que as damas presentes seriam ninfas também de tapete.

     Por aí se vê que uma simples furunculose pode deflagrar um misterioso surto erótico. Saí de lá às quatro da manhã e sem me despedir. Não foi incivilidade, absolutamente. É que eu reincidia na mesma confusão visual. Como reconhecer a anfitriã, se todas as presentes eram iguaizinhas umas às outras? Vim para casa e pensava em tudo que vira e ouvira no sarau grã-fino.

     Eis o que eu pensava: — “Como a nossa alta burguesia é marxista!”. E não só a alta burguesia. Por toda a parte, só esbarramos, só tropeçamos em marxistas. Um turista que por aqui passasse havia de anotar no seu caderninho: — “O Brasil tem 80 milhões de marxistas”. Hoje, o não-marxista sente-se marginalizado, uma espécie de leproso político, ideológico, cultural etc. etc. Só um herói, ou um santo, ou um louco, ousaria confessar, publicamente: — “Meus senhores e minhas senhoras, eu não sou marxista, nunca fui marxista. E mais: — considero os marxistas de minhas relações uns débeis mentais de babar na gravata”.

     Mas contei o episódio da furunculose para concluir: — como nós conhecemos Marx! E o conhecemos na sua intimidade mais doméstica, prosaica e profunda. Somos autoridades em seus furúnculos. Do mesmo modo, estaremos informadíssimos sobre as suas tosses, bronquites, asmas, aerofagias etc. etc. Resta apenas uma pergunta: — e teremos a mesma intimidade com os seus escritos? Aqui se insinua a minha primeira dúvida.

     Senão, vejamos. Há três ou quatro dias, fui eu a um sarau político. Lá, como no grã-finismo, o marxismo reinava. Cheguei disposto às provocações mais sórdidas. Meus bolsos estavam entupidos de notas. Reuni a fina flor da “festiva” e comecei: — “Venham ouvir umas piadas bacanérrimas. Ouçam, ouçam!”. E, de repente, tornei-me extrovertido, plástico, histriônico, como um camelô da rua Santa Luzia. Promovia idéias como quem vende laranjas, canetas-tinteiro, pentes, isqueiros, calicidas.

     Logo juntou gente.,E comecei a ler frases de recente leitura: — “O imperialismo é a tarefa dos povos dominantes — Alemanha, França, Inglaterra, Estados Unidos”. Estes últimos “eram o país mais progressista do mundo”. “Contra o imperialismo russo, a salvação é o imperialismo britânico.” Outra: — “O defeito dos ingleses é que não são bastante imperialistas”. Quanto à história, “avança de leste para oeste”. O colonialismo é progressista porque os povos domináveis e colonizáveis só têm para dar “a estupidez primitiva”. O budismo é “o culto bestial da natureza”.

     E que dizer da China? É uma “civilização que apodrece”. Por outro lado, a vitória dos Estados Unidos sobre o México, em 1848, foi uma felicidade para o próprio México. Dizia o autor, que eu citava: — “Presenciamos a conquista do México e regozijamo-nos porque este país, fechado em si mesmo, dilacerado por guerras civis e negando-se a toda evolução, seja precipitado violentamente no movimento histórico. No seu próprio interesse, terá que suportar a tutela que, desde este momento, os Estados Unidos exercerão sobre ele”.

     Por outro lado, é maravilhosa a sujeição da Índia à Inglaterra. “A Alemanha é um povo superior e os latinos e os eslavos, mera gentalha.” Ainda sobre os eslavos: — “Povos piolhentos, estes dos Bálcãs, povos de bandidos”. Os búlgaros, em especial, são “um povo de suínos” que “melhor estariam sob o domínio turco”. Em suma: todos esses povos eslavos são “povos anões”, “escórias de uma civilização milenar”. Mais ainda: — “A expansão russa para o Ocidente é a expansão da barbárie” etc. etc.

     Durante duas horas li para a “festiva”. Por fim, embolsei as notas e, arquejante, falei: — “Vocês ouviram. O autor ou autores citados já morreram. Quero saber se teriam coragem de cuspir na cova de quem escreveu tudo isso?”. E outra pergunta: — “Quem pensa assim, e escreve assim, é um canalha? Respondam”. Em fulminante resposta, todos disseram: — “É um canalha!”. Ainda os adverti: — “Calma, calma. São dois os autores! Vocês têm certeza de que são dois canalhas? E canalhas abjetos?”. Não houve uma única e escassa dúvida. Os marxistas ali presentes juraram que os dois autores eram “canalhas” e abjetos. E, então, só então, alcei a fronte e anunciei: — “Agora ouçam os nomes dos canalhas”. Pausa e disse: — “Marx e Engels”. Fez-se na sala um silêncio ensurdecedor. Repeti: “Marx e Engels, os dois pulhas, segundo vocês”.

     Tudo aquilo estava em Marx et la politique internationale, por Kostas Papaloanou etc. etc. Os dois, Marx e Engels, eram paladinos fanáticos do imperialismo, do colonialismo, admiradores dos ianques, russófobos. Disseram mais: — “A revolução proletária acarretará um implacável terrorismo até o extermínio de todos esses povos eslavos”.

     Os marxistas que me ouviam eram poetas, romancistas, sociólogos, ensaístas. Intelectuais da mais alta qualidade. E entendiam tanto de Marx quanto de um texto chinês de cabeça para baixo. Eis a verdade: somos analfabetos em Marx, dolorosamente analfabetos em Marx.

             [3/5/1968]

 

                                      BRAVOS, BRAVÍSSIMO!

     Eu me lembro do gráfico Arlindo, que foi, há trinta anos ou mais, chefe de oficina de O Globo. Jamais poderei esquecê-lo. Imaginem vocês que o velho Arlindo não bebia café na xícara, como qualquer um de nós. Não. Derramava o café no pires e bebia do próprio pires. E nada descreve a volúpia com que o fazia. Parecia um desses prazeres jamais concebidos.

     Aquilo me impressionava muito. Eis o que me perguntava: — por que o pires e não a xícara? Até que, na madrugada de ontem, resolvi fazer uma experiência. A úlcera começou a doer e fui apanhar leite na geladeira. E, como o velho e finado Arlindo, bebi um pires de leite. Por uma dessas ingenuidades fatais, eu estava esperando um efeito mágico. Mas vejam vocês: — o pires não dá nenhum sabor encantado e repito: — o leite em pires, copo ou xícara é a mesma bebida hedionda.

     E, então, meio frustrado, lá vou eu para a janela da madrugada. Súbito, começo a pensar no meu ex-inimigo Paulo Francis. Já nos chamamos de “palhaços”, de “analfabetos”, de “burros”. Lembro-me da estréia de minha peça Perdoa-me por me traíres. Era, ali, no Municipal. Ao baixar o pano sobre o terceiro ato, a platéia explodiu. Metade vaiando, metade aplaudindo. O então vereador Wilson Leite Passos puxou um revólver e queria fuzilar o texto.

     (O patético, ou sublime, como queiram, é que eu representei. Foi, da minha parte, um gesto suicida. Eu sabia que era o pior ator do mundo, o pior. Mas como se tratava de uma peça desesperada, quis ser solidário com a obra, o produtor, o diretor e os artistas. E representei. O prodigioso é que a platéia falava mais do que o elenco. Na primeira fila estava uma senhora gorda e patusca como uma viúva machadiana. Passou os três atos me chamando de “tarado”. E outras senhoras, e outros cavalheiros, me xingavam, o tempo todo, em cena aberta.)

     E, no final, tive a vaia e tive a apoteose. Do palco, vi grã-finas subindo nas cadeiras, aos uivos, contra e a favor. E estava lá o Paulo Francis, com o Edmundo Moniz. Berrava para mim: — “Burro! Burro!”. Contam-me que o Edmundo Moniz protestava: — “Não faça isso! Não faça isso!”. Nada me ofendeu, e digo mais: — achei a vaia estimulante. Nem me impressionou o vereador, de revólver, querendo dar tiros como um Tom Mix. Mas sofri quando o crítico me chamou de “burro”.

     Um mês depois, caí doente. Circulou que fora um derrame e que eu estava paralítico de um lado, sei lá. E, então, o Paulo Francis não pensou duas vezes: — foi para a redação e escreveu uma página crispada de ternura. Foi aí que, subitamente, descobri tudo. Era um pobre ser, de intensa, desesperada fragilidade. O meu caso clínico não foi trombose, nem eu estava hemiplégico. Seja como for, tive a visão de sua dilacerada, envergonhadíssima bondade. Era um falso cínico.

     Mas ainda assim, passamos anos sem um cumprimento, sem um “olá”, sem um aperto de mão. Até que, no aniversário do José Lino Grünewald, o anfitrião ofereceu-nos uma noite de ópera. Houve um desfile dos divos de velhas gerações. Foi uma rajada de carusos, de muros, lauri volpi, totti dal monte, schipa, tita rufo. E, súbito, o Paulo Francis começa a falar comigo. O teatro dramático nos separou e o teatro lírico nos uniu. Eu, o Paulo Francis e o José Lino Grünewald somos loucos por ópera.

     Foi esta a última vez que o vi. Depois do aniversário, ele desapareceu. E, pouco a pouco, a sua ausência foi adquirindo uma densidade, uma tensão insuportável. Houve um momento em que me ocorreu a seguinte e fascinante hipótese: — “O Paulo Francis entrou para um convento”. Imaginem: — o Paulo Francis franciscano, beneditino ou jesuíta. Ontem, porém, almoço com o José Lino Grünewald. E o meu amigo solta a notícia: — “O Paulo Francis chegou”. Estava viajando.

     Não era absurda a idéia do convento. Viajar é também uma forma de solidão. Pergunto ao José Lino: — “E que tal?”. O Paulo Francis andara pela Europa e dera um pulo aos Estados Unidos. Não sei de tudo que ele viu e ouviu. Só sei de duas coisas que o assombraram: — primeiro, a liberdade americana. Nos Estados Unidos, tudo se diz e tudo se faz. A liberdade estourou todos os limites. Outra coisa que o impressionou: a Alemanha Oriental.

     Na Alemanha Oriental, não entram nem Sartre, nem Le Monde. Segundo as autoridades comunistas, o povo, lá, ainda não está preparado para ler Le Monde. Quanto a Sartre, não sei por que expulsaram os seus textos. Mas o que importa é o simples fato: — a Alemanha Oriental abomina Sartre. E, como uma ditadura analfabeta, há de perseguir outros autores, e livros, e idéias, e jornais.

     Mas imagino que, ao desembarcar no Galeão, o Paulo Francis tenha feito a pergunta dramática: — “E aqui? E aqui?”. Como se comportara o Brasil na sua ausência? Como agiram e reagiram os nossos intelectuais? E qual foi a ação das esquerdas? Se eu estivesse no aeroporto, contaria o histórico comício de 1º de maio, no campo de São Cristóvão. Foi um ato longamente concebido e amorosamente executado. Tratando-se do “Dia do Trabalhador”, as esquerdas aproveitaram a data universal para uma demonstração de força.

     O d. Hélder fala muito em “conscientização”. Outros exaltam “a maturidade política” do nosso povo. E há, por todo o Brasil, um furioso ímpeto libertário. Portanto, o comício do campo de São Cristóvão devia dar, segundo os cálculos mais modestos, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos.

     E, de fato, a partir das dez horas da manhã, hordas ululantes começavam a varar a cidade. Da Zona Sul, Norte e Centro, partiam multidões ventando fogo. E havia, também, uma tempestade de bandeiras. Um turista que por aqui passasse e visse esse vendaval humano havia de imaginar que começava, aqui, outra revolução francesa. D. Hélder diria que era a “conscientização”. E era a “conscientização”. Só que houve um ligeiro desvio de itinerário. Em vez de ir para o campo de São Cristóvão, o povo rumava para o Estádio Mario Filho.

     Imagino a perplexidade amarga do Paulo Francis: — “E o comício?”. Diria eu: — “Houve o comício”. Insistiria o Paulo Francis: — “Não foi ninguém?”. Resposta: — “Foi. Compareceram os oradores”. Se o Paulo Francis perguntasse — “E o público?” — eu responderia que os oradores eram oradores e público. Faço uma idéia do imenso e divertido espanto do meu ex-inimigo. Desembarca no Brasil e sabe de um orador que faz o discurso e urra “bravos”, “bravíssimo”, para a própria retórica.

               [9/5/1968]

 

                                           ALIENAÇÃO

     Faço anos dia 23 de agosto e confesso: — tenho, como o José Lino Grünewald, a alma do aniversariante. Nos meus sete, oito anos, minha família nem sempre teve uma fatia de pão com um pouco de manteiga para lhe barrar por cima. Não importa. Mesmo sem uma mísera cocada, sem uma mísera mãe-benta, eu celebrava, sozinho, a feliz data.

     E, hoje, quero crer que o aniversário apagado e triste é mais lindo. Também o José Lino Grünewald sabe fazer anos como ninguém, e repito: — é um aniversariante vocacional. Muito bem. Fiz esta introdução para dizer o seguinte: — lembro-me, com implacável nitidez, de cada dia 23 de agosto de minha vida.

     Dirão vocês que dou muita importância a meu próprio aniversário. Exato, exato. Dou, sim, uma importância capital. Todavia, há um 23 de agosto que me doeu com uma pungência mais aguda. E isso por dois motivos: — primeiro, porque eu fazia anos; e, segundo, porque era véspera de um suicídio histórico. Vocês já perceberam que falo de Getúlio.

     Um suicida não se improvisa, assim como não se improvisa o artista, o poeta, o mágico, o mímico, o arquiteto. Portanto, teremos de antedatar a tragédia getuliana. Não sei se me entendem e tentarei explicar. O suicídio é anterior a si mesmo. Começa muito antes e direi mesmo: — começa no berço. Não sei se cabe falar em gesto nato. Ao vir ao mundo, o homem traz um repertório de atos facultativos e de atos obrigatórios.

     Quando Getúlio nasceu, o tiro no peito estava inserido entre seus gestos obrigatórios. Em 30, ao assumir o poder, já era o suicida. E, dia após dia, foi ainda e sempre o suicida. Até que, já aos setenta anos ou pouco mais, matou-se. Mas atirou no peito. Não estourou os miolos, como o faria um suicida banal. Quis preservar o rosto, o último rosto, para a história, para a lenda. O povo quer olhar a cara do líder morto.

     Mas o que eu queria dizer é o seguinte: — Getúlio foi o último grande enterro do Brasil. Parou a cidade, parou o Brasil. Lembro-me de uma crioula, de gloriosas ventas raciais, que desmaiou junto ao caixão. Foi levada, arrastada por dois ou três. Que crioula, gorda como a babá de ...E o vento levou, retinta como a babá de ...E o vento levou, que crioula, repito, desmaiaria por um morto contemporâneo?

     Somos 80 milhões. Examinemos, um por um, os 80 milhões. Façamos um censo de possíveis defuntos. E chegaremos à conclusão de que ninguém, no momento, justificaria um grande enterro. Por isso, falo na solidão do Brasil. Não há a perspectiva do “grande enterro” porque não há “grande homem” para enterrar.

     Parece enfático falar em “solidão do Brasil”. Mas é a límpida e inapelável verdade. E como é árida a época que não consegue dar um defunto monumental! De repente, entendemos o mistério brasileiro. Somos uma rala, uma tênue orla litorânea. O que existe, fora de nós, é uma imensa sibéria florestal. E nunca o deserto siberiano daria um radiante cadáver.

     Aqui, passo às nossas esquerdas. Sou uma flor de obsessão e, nos meus últimos escritos, tenho insistido no papel e destino das esquerdas brasileiras. Elas não faziam nada, senão beber no Antonio’s, dourar-se na praia e rabiscar nos suplementos dominicais. Até que uma data universal deu-lhes a oportunidade sonhada: — o 1º de maio.

     As esquerdas se prepararam para entoar o que se chama, em ópera, o dó de peito. No mesmo dia 1º de maio, o Estádio Mario Filho apresentava um Flamengo x Vasco. O paralelo pode ser feito nos seguintes termos: — o jogo trouxe, em seu ventre, uma renda de 416 milhões de cruzeiros antigos. E ao comício compareceram apenas os oradores. Minto. Em verdade, compareceram alguns familiares dos oradores.

     E o comício foi desses fatos íntimos, confidencialíssimos. O pior vocês não sabem. O pior é que, em pleno e furioso ato cívico, dois ou três oradores ligaram o rádio de pilha e ficaram ouvindo o jogo. Travou-se, ali, um duelo inesperado entre as duas retóricas: — de um lado, a libertária; de outro lado, a futebolística. Enquanto em São Cristóvão o orador fazia anti-imperialismo, no Mario Filho o locutor tratava de botinadas.

     No dia seguinte, encontro-me com um esquerdista feroz. Numa cava depressão, gemeu: — “Como pode? Como pode?”. Ele não entendia os quinze gatos pingados do comício e as 200 mil pessoas do jogo. E, por uma boa meia hora, rosnou de impotência e frustração. Por fim, despediu-se. Mas estava de pé o problema, a saber: — por que o povo ignora as esquerdas?

     Pelo simples motivo de que as esquerdas também ignoram o povo. Não se conhece, na Terra, caso mais prodigioso de alienação. Por outro lado, volto ao dado fúnebre, que me parece decisivo: — onde não há perspectiva de “grande enterro”, também não é viável o “grande comício”. E vêm as esquerdas e começam a falar do Vietnã, de Cuba, dos Estados Unidos. Se o problema é racismo, falam do norte-americano. E não há uma palavra, ou um palavrão, em favor do negro brasileiro. Simplesmente, o nosso negro não existe.

     Poderão objetar que não há racismo em nosso país. Como não há, se nunca vimos um negro de casaca? Mas a fatal alienação das esquerdas começa na própria língua. Já citei uma passeata recente. Vários cartazes davam morras ao imperialismo. Mas a palavra escrita, a piche, era “Muerte”. Não morte, e sim “Muerte”. Os gaiatos odiavam em castelhano, queriam matar em castelhano. Punham sotaque até nos cartazes. Claro que ali se insinua a influência cubana. Mas Cuba é uma Paquetá ou, se preferirem outra imagem, eu diria que é uma pulga e o Brasil um fabuloso elefante geográfico. A troco de que a pulga vai montar no elefante? Os gringos das nossas esquerdas representam o anti-Brasil, a negação do Brasil. As esquerdas não entendem o povo, nem o povo as entende.

             [10/5/1968]

 

                                         O CACHORRO ATROPELADO

     Lembro-me de uma crônica que li não sei onde, nem sei quando. Escapa-me também o nome do autor. Se não me engano, era brasileiro. Não, não era brasileiro. E o assunto era a influência da distância nas leis da emoção. Vejamos o que dizia o cronista. Dizia que um atropelamento de cachorro na nossa porta, pelo fato de ser na nossa porta, teria mais apelo emocional do que Hiroshima.

     Sabemos que, em Hiroshima, morreu um mundo e nasceu outro. A criança de lá passou a ser cancerosa antes do parto. Mas há entre nós e Hiroshima, entre nós e Nagasaki, toda uma distância infinita, espectral. Sem contar, além da distância geográfica, a distância auditiva da língua. Ao passo que o cachorro é atropelado nas nossas barbas traumatizadas. E mais: — nós o conhecíamos de vista, de cumprimento. Na época própria, víamos o brioso vira-lata atropelar as cachorras locais. Em várias oportunidades, ele lambera as nossas botas.

     E, além disso, vimos tudo. Vimos quando o automóvel o pisou. Vimos também os arrancos triunfais do cachorro atropelado. Portanto, essa proximidade valorizou o fato, confere ao fato uma densidade insuportável. A morte do simples vira-lata dá-nos uma relação direta com a catástrofe. Ao passo que Hiroshima, ou o Vietnã, tem, como catástrofe, o defeito da distância.

     Não sei se estou dizendo o óbvio. Não importa. Toda a história humana ensina que só os profetas enxergam o óbvio. Seja como for, achei a crônica citada de uma sagacidade deliciosa. Muito tempo depois, sinto, na própria carne e na própria alma, a influência da distância nas leis da emoção. Imaginem que recebo de Natal este súbito e inapelável telegrama: — “Sua Peça ‘Toda Nudez’ Quase Pronta, Elenco Ensaiando, Artistas Unidos Grupo Vencedor Festival Pascoal, Censura Proíbe Em Todo Território Nacional. Que Podemos Fazer? Abraços etc. etc.”.

     Este o telegrama. A princípio, a proibição me pareceu espantosamente irreal. Toda nudez será castigada foi levada em 1965 no Rio, em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Não sofreu o corte de uma vírgula. Ao terminar o ensaio geral, os seus três censores, inclusive Ayres de Andrade, aplaudiram, de pé, o texto e o espetáculo. E por que, e a troco de que, de repente, vem a censura e impõe uma interdição bestial?

     Só vejo duas hipóteses: — ou é má-fé cínica, ou obtusidade córnea, ou ambas. Ora, eu sou o sujeito mais próximo de mim mesmo e de minha obra. E a coisa repercutiu brutalmente em mim. Se me perguntarem qual foi a minha primeira reação, eu diria: — a vergonha de ser brasileiro. Tive, sim, uma vergonha total e como que o arrependimento de ter nascido aqui.

     Estou, porém, diante do fato consumado. O telegrama faz a pergunta, sem lhe achar a resposta: — “Que faremos?”. Sim, que faremos? Agora, vou ficar esperando um manifesto, uma passeata e uma greve. Tenho vinte e tantos anos de vida autoral e sofri seis interdições (cinco peças e um romance). Por uma singular coincidência, nas seis oportunidades, não mereci a solidariedade de ninguém. Álvaro Lins, em plena atividade crítica, limitou-se a dizer: — “Nelson Rodrigues deixou de ser um problema literário. É um caso de polícia”. Dr. Alceu hipotecou a sua veemente solidariedade à polícia. No fundo, os nossos intelectuais achavam que eu era mesmo obsceno e que devia ser mesmo interditado.

     Mas as coisas mudaram. E, se as coisas não mudaram, mudou o dr. Alceu. E espero um artigo do dr. Alceu. Todo santo dia hei de comprar o Jornal do Brasil. Quero ver o nosso Tristão de Athayde, com a sua nobilíssima indignação, fulminar o crime contra a inteligência. E também penso na classe teatral, que é a minha. Vocês não são de teatro, nem sabem nada. Mas a classe teatral é um comício nato. Nas suas assembléias, há iras sublimes. Pois eu gostaria de ver as indignações da classe teatral salvando a minha peça.

     Recentemente, entrei numa greve dos meus colegas. Levei-lhes a minha comovida solidariedade. E mais: — sentei-me na escadaria do Teatro Municipal. Embora não visse em tal ato nenhum heroísmo, sentei-me com os outros. Estavam todos indignados; hipotequei-lhes a minha indignação. O motivo da greve era também a interdição de uma peça, ou duas, não me lembro mais.

     Em seguida, houve uma nova greve. Por que, já não sei. A minha solidariedade tem um automatismo inexorável. Juntei-me aos colegas. Todos os teatros deviam cerrar suas portas. E só um permaneceu escandalosamente aberto: — o da sra. Eva Todor. Imediatamente, despachou-se um piquete aguerrido. A atriz estava no palco representando e ganhando o pão. Impediram-na de representar e de ganhar o pão.

     Vejam vocês como há, de autor para autor, dessemelhanças irritantes de sorte. A classe trata os outros a pires de leite. E eu, mais interditado do que qualquer um, sempre estive em crudelíssima solidão. Alguém dirá que falo assim por despeito, por ressentimento. Não nego. Sou despeitado e sou ressentido. Mas tenho atenuantes. Nas minhas seis interdições, ninguém impediu a sra. Eva Todor de trabalhar. Quero crer que chegou o grande momento. Interditaram Toda nudez será castigada. É hora, pois, de mandar a sra. Eva Todor devolver o dinheiro das entradas.

     Realmente, mais que uma assembléia da classe, mais do que uma greve, estou interessado numa passeata. Sim, um desfile contra a interdição de Toda nudez será castigada. Há, em qualquer brasileiro, uma alma de cachorro de batalhão. Passa o batalhão e o cachorro vai atrás. Do mesmo modo, o brasileiro adere a qualquer passeata. Aí está um traço do caráter nacional.

     Mas já não sei se quero mesmo a passeata. Em passado recente, houve um desfile patético. Cem, duzentos cartazes dando morras ao imperialismo. O diabo é que, em vez de morte, estava lá escrito “muerte”. Imaginem se há a passeata em favor da minha peça. Cem, duzentos cartazes dando morras à censura em castelhano. Em tal caso, eu teria também vergonha de ser brasileiro.

           [13/5/1968]

 

                                           AOS BEIJOS E SOLUÇOS

     Aqui mesmo, se não me engano, escrevi sobre a religiosidade profunda do Brasil. Examinem todos e cada um. O brasileiro, inclusive o nosso ateu, é um homem de fé. Conheço vários marxistas que são, ao mesmo tempo, macumbeiros. E um povo que pode conciliar Marx e Exu está salvo e, repito, automaticamente salvo.

     Imaginem vocês que, outro dia, passei na casa de um ateu patrício. É uma excelente figura de marido, pai, funcionário e rubro-negro. Mas esse meu amigo só fala aos berros, como o Salim Simão. E seu bom-dia, como o de Salim Simão, é um soco nos tímpanos. Coisa curiosa! Gosta de parecer um anticristo. Na noite em que o visitei, desabou uma tempestade.

     Legítimo mau tempo de quinto ato do Rigoletto. Costumo dizer que a grande tempestade é a de ópera. A orquestra imitando trovão convence mais do que o próprio trovão. E nenhum raio, por melhor que represente, assusta mais do que um relâmpago de curto-circuito. Justamente, parecia uma tempestade de palco. Todos os presentes rilhavam os dentes de pusilanimidade. Quando vi a dona da casa benzer-se, bem a entendi. Não há ocasião mais própria para um arroubo místico do que um toró. Sei de conversões ocorridas em temporais desvairados.

     E, por um momento, imaginei que o mau tempo ia precipitar aquele ímpio, aquele desalmado nos braços do Eterno. Pelo contrário. De repente, um raio estala e quase nos fuzila. A dona da casa enfiou-se debaixo da mesa. E foi esse o momento escolhido para as blasfêmias do ateu. Ele urrou, no meio da sala, trepado numa cadeira, como um Antero de Quental. Esganiçava as gargalhadas. Do seu lábio pendia a baba elástica e bovina da impiedade.

     Ninguém se indignou, ali, e explico: — são obviamente incompatíveis o pavor e a indignação. Graças a Deus, a tempestade sumiu como veio, de repente. Mais uns quinze minutos, e o céu limpou. Fui espiar da janela. Vi, “pálido de espanto”, como no soneto, estrelas jamais concebidas. Voltei para a sala, exausto do meu terror. O ateu arquejava, ainda, do riso torpe.

     E, súbito, o caçulinha começa a chorar. Os donos da casa se arremessaram. Primeiro, a mãe e, depois, o pai carregaram o menino. Mas não houve colo que o calasse. Á tia solteirona já pensava em leucemia. E o caçulinha berrava com um brio inexcedível. Súbito, o pai desatinado é atravessado por uma luz; soluça para a mulher: — “Faz aquela simpatia! Faz aquela simpatia!”.

     Ou a própria mãe, ou a tia, cola na testa do menino um algodãozinho molhado. Houve, então, nas barbas estarrecidas da família, o suave milagre. Efeito fulminante da simpatia. A criança parou de chorar, instantaneamente. O pai, eufórico, gabava-se: — “Não disse? Não disse?”. Vira-se para mim e pisca o olho: — “Tiro e queda! Não falha!”.

     E, então, vi tudo. Aquele era o único ateu que eu conhecia na vida real. Blasfemara contra o raio. Mas bastou uma dor de barriguinha para que ruísse, em cacos, todo seu ateísmo. E assim a fé do brasileiro assume as formas mais imprevisíveis e, até, cômicas. Ao menor pretexto emocional, aquele ateu de papelão há de acreditar até em Papai Noel.

     Mas estou-me perdendo no acessório e esquecendo o essencial. Eis o que eu queria dizer: — se eu fosse marxista ou pertencesse a qualquer ramo das nossas esquerdas, estaria, hoje, num pânico profundo. Profundo e justificado. É que todos os jornais abrem manchetes deste teor: — “Negociações de paz iniciam-se em Paris”. Por se tratar de um fato catastrófico, o jornal devia pingar-lhe um apavorado ponto de exclamação.

     Repito: — se eu fosse uma flor das esquerdas, estaria recorrendo a simpatias, como o ateu da dor de barriguinha. Sim, estaria apelando para o Sobrenatural. Iria até à macumba para frustrar essa paz amaldiçoada. O leitor há de perguntar, com a sua crassa e ignara ingenuidade: — “Mas por quê?”.

     Vamos lá. O Vietnã pode ser guerra para todo mundo, menos para as esquerdas brasileiras. Para as nossas esquerdas, o Vietnã é um meio de vida. Há sujeitos, aqui, que vivem do Vietnã. Não só os intelectuais, não só as grã-finas, não só os estudantes. Conheço um alfaiate que se tornou um próspero alfaiate porque vocifera como um vietcong. Aí está dito tudo: — ninguém consegue ser um bom alfaiate sem xingar os Estados Unidos por conta do Vietnã.

     Vejam que invejabilíssima situação: — o sujeito daqui, sem arredar pé do Antonio’s, ou da praia, sem correr o menor risco e, ao mesmo tempo, fazendo poses e, repito, fazendo quadros plásticos contra os norte-americanos. É o patético, raiando pelo sublime. Há, entre nós e o perigo, toda uma sábia e inexpugnável distância. Por causa do Vietnã, o sujeito faz artigos dominicais, arranja namoradas, passa por inteligente, moderno, libertário etc. etc. Ir ao jogo Fluminense x Vasco é mais arriscado para nós do que essa guerra admirável.

     E, súbito, vem a manchete e diz que Washington e Hanói começam as discussões de paz. É o que eu chamaria de ameaça de desemprego em massa. Vamos rezar para que fracassem os entendimentos; e que a guerra continue até o fim da nossa geração. Mas se, por fatalidade, Washington e Hanói chegarem a um acordo e caírem nos braços um do outro, aos beijos, aos soluços, que faremos nós? Cada época vive de uns tantos assuntos obrigatórios e fatais. O Vietnã é o grande assunto do nosso tempo. Hoje, o nosso berro, o nosso gesto, a nossa ênfase, o nosso palavrão, as nossas pequenas, a nossa retórica — dependem do Vietnã.

     Ou por outra: — todos dependemos do que se esconde por trás do Vietnã, ou seja, o ódio aos Estados Unidos. O Vietnã não interessa a ninguém, a não ser como pretexto para o ódio. Mas imaginemos um mundo sem o Vietnã. Hanói e Washington concordam, fazem a abominável paz. Cessam os bombardeios. Nem mortos, nem feridos, nada. Eis as nossas esquerdas esvaziadas. E tendo que vagar, por entre mesas e cadeiras, sem função e sem destino. Por outro lado, d. Hélder e dr. Alceu terão que aturar, novamente, o abominável Sobrenatural.

            [15/5/1968]

 

                                         FESTA DE CABEÇAS CORTADAS

     Graças ao Dumas pai, eu e o José Lino Grünewald somos íntimos da Revolução Francesa. Falo da primeira, da autêntica e não da atual. A atual tem um defeito indesculpável: — falta-lhe sangue e, repito, o sangue não jorra como a água dos tritões de chafariz. E, como não há marias antonietas, nem cabeças cortadas, o mundo já boceja. Sim, é o tédio antes do Terror (e talvez não haja nem o Terror).

     Eu e o José Lino Grünewald, com base em nossa experiência de Dumas pai, diríamos que a atual revolução francesa não tem nada de Revolução Francesa. Ainda ontem, Raul Brandão, o pintor, bateu o telefone para mim: — “Como a greve é chata!”. Dava uma opinião pictórica. E, realmente, só tem valor plástico a greve metralhada, com operários emborcados na sarjeta. Mas nada mais insípido do que a greve consentida, abençoada, unânime. Imaginem, imaginem: — a própria polícia é grevista também.

     Eu e o José Lino poderíamos sugerir ao público: — “Não leiam os jornais. Leiam o velho Dumas”. Falta ao noticiário atual o frêmito, a tensão, a crueldade das Memórias de um médico. Portanto, entendo o comentário restritivo do Raul Brandão: — “Como é chata a greve!”.

     Todavia, alguma coisa salva a “revolução cultural” da monotonia irremediável. É um certo suspense, é um certo mistério. A França parou. Primeiro, os estudantes e, depois, o resto. Nunca houve tamanha greve. Até os papa-defuntos, até os coveiros, cruzaram os braços. Ninguém morre, por falta de quem o enterre.

     Mas eis a pergunta que o mundo faz, sem lhe achar a resposta: — “Por quê?”. Os artigos sobre as greves não explicam nada e por uma razão óbvia: — o inexplicável é inexplicável. A princípio, imaginei que os grevistas quisessem o poder. São milhões e milhões. Portanto, os grevistas têm o que eu chamaria de onipotência numérica. Não há o que objetar, o que discutir, o que resistir. São milhões e eu imaginei que a história lhes daria o poder imediato.

     Engano. Os dez ou 12 milhões de franceses não querem o poder. Vocês entendem? O poder está, diante deles, como um fruto próximo, fácil, indefeso; basta o gesto de colhê-lo. Mas ninguém se dispõe a tal gesto. E nem há, ao menos, o vago, surdo, informulado desejo do poder. A presente “revolução cultural” corre o risco de ser um movimento idiota. Dirá alguém que as greves assumem uma dimensão de catástrofe. Mas insisto: — pode haver a catástrofe idiota.

     Sem querer, deixei escapar a palavra exata: — idiota. Há quinze ou vinte dias atrás, escrevi sobre o grande tema de nossa época. Não sei se vocês se lembram. Falei da ascensão do idiota. No passado, eram os “melhores” que faziam os usos, os costumes, os valores, as idéias, os sentimentos etc. etc. Perguntará alguém: — “E que fazia o idiota?”. Resposta: — fazia filhos.

     Mas vejam: — o idiota como tal se comportava. Na rua, passava rente às paredes, gaguejante de humildade. Sabia-se idiota e estava ciente da própria inépcia. Só os “melhores” sentiam, pensavam, e só eles tinham as grandes esposas, as grandes amantes, as grandes residências. E, quando um deles morria, logo os idiotas tratavam de erguer um monumento ao gênio.

     E, de repente, tudo mudou. Após milênios de passividade abjeta, o idiota descobriu a própria superioridade numérica. Começaram a aparecer as multidões jamais concebidas. Eram eles, os idiotas. Os “melhores” se juntavam em pequenas minorias acuadas, batidas, apavoradas. O imbecil, que falava baixinho, ergueu a voz; ele, que apenas fazia filhos, começou a pensar. Pela primeira vez, o idiota é artista plástico, é sociólogo, é cientista, é romancista, é prêmio Nobel, é dramaturgo, é professor, é sacerdote. Aprende, sabe, ensina.

     No presente mundo ninguém faz nada, ninguém é nada, sem o apoio dos cretinos de ambos os sexos. Sem esse apoio, o sujeito não existe, simplesmente não existe. E, para sobreviver, o intelectual, o santo ou herói precisa imitar o idiota. O próprio líder deixou de ser uma seleção. Hoje, os cretinos preferem a liderança de outro cretino.

     Escrevi tudo isso há uns quinze dias. Ou por outra: — há um mês, mês e meio. E, súbito, as greves da França parecem dar razão aos meus escritos. Eu queria, aqui, insinuar a hipótese de que a “revolução cultural” seja obra de idiotas. São milhões de sujeitos implicados no movimento. Mas não há um único e escasso líder; não se ouve um nome. Aí está um dado patético. Não há nada mais impessoal do que o idiota e nada mais idiota do que a unanimidade. E os milhões exprimem a “onipotência numérica” de que falei mais acima.

     De Gaulle tem, nisso tudo, a solidão do herói. Sua liderança foi um equívoco que teria de ser desfeito. É o herói puro e, ainda mais, com esporas e penacho. Diria também que não há francês mais radical. Foi francês no momento em que ninguém era francês. Mas tem o defeito realmente indesculpável de não ser idiota. Terá que cair, mais cedo ou mais tarde.

     Mas devo fazer uma ressalva. E, de fato, o idiota francês não será nunca trivial. Tem, a seu favor, a língua. A lavadeira parisiense é uma estilista; fala como uma heroína de Racine. E o chofer de táxi descompõe os turistas com o rigor, a melodia, a plasticidade da prosa francesa. Em tal idioma, a pior vulgaridade está a um milímetro do sublime. Nos telegramas, não se cita um grande nome da França. Minto. Vi uma fotografia de Sartre ao lado de grevistas. Estava, ali, fingindo-se de idiota para sobreviver.

            [24/5/1968]

 

                                             A BOFETADA

     O defeito do jovem é o velho. Não sei se me entendem. É o velho, ou pluralizando: — são os velhos que, no momento, em toda parte e em qualquer idioma, corrompem os jovens. Antigamente, a velhice era de uma cerimônia, de um pudor, de uma correção admiráveis. Há todo um folclore sobre os nostálgicos, espectrais velhinhos da porta da Colombo. Mas não fazem mal a ninguém. Apenas olham as meninas, e com que ternura infeliz e antiga.

     Repito: — não falo dos velhinhos da porta da Colombo. Acho até que o departamento de turismo devia preservá-los. Falo dos que erguem a cínica bandeira da imaturidade. Nem se pense que a idealização da imaturidade começa nos jornais, nas universidades, nas rádios, nas TVS, nos sermões. Não. Começa em casa.

     O moço começa a ter razão na altura da primeira chupeta e quase no berçário. Eu gostaria de saber qual teria sido o primeiro pai, ou mãe, ou tia, ou avó, ou cunhada, que inaugurou o Poder Jovem. O Poder Jovem é, portanto, anterior a si mesmo. Começa a exercitar a sua ferocidade muito antes, ainda na infância profunda. Há por aí toda uma geração de pequeninos possessos. São garotinhos de quatro, cinco anos, de uma intensa malignidade. Um dia, a família achou que a criança está certa quando mete a mão na cara da mãe, do pai, tia ou avó.

     Outro dia, eu próprio vi uma cena admirável. Uma garotinha de cinco anos foi impedida de fazer não sei o quê. Como uma pequenina fera, investiu contra o pai, às caneladas. Desatinada, a mãe vai apanhar a menina e a carrega no colo. E, então, acontece isto: — a filha mete-lhe a mão na cara. Sempre digo que precisamos tirar o som da bofetada. Uma bofetada muda seria menos ultrajante. Mas a bofetada da garotinha estalou na cara materna. (Até hoje, não entendo como aquele pingo de gente foi capaz de bater com uma violência adulta.)

     Fiquei olhando. Mas o episódio familiar não parou aí. A mãe, agarrada à filhinha, soluçava: — “Coitadinha! Coitadinha!”. Tias se arremessavam. A menina passou de colo em colo. Numa das vezes, chutou o seio de uma tia; e meteu a mão na cara da seguinte; e na imediata, cuspiu na boca. Foi um horror.

     Eis o que eu queria dizer: — a origem do Poder Jovem está numa bofetada consentida, de filha em mãe, ou de filho em pai. Hoje, o adolescente leva uma sensação de onipotência. O homem maduro tem, por vezes, um olhar estrábico de pavor. Sim, o homem maduro traz o medo no coração. Se alguém gritar — “Olha o rapa!” — uma dona de casa ou pai de família sairá correndo e pulando os muros da covardia.

     O jovem, não e nunca. Vejam um rapaz chegando a qualquer lugar. Entra e olha. Luminoso descaro. Cada gesto forte extroverte toda uma ilusão de onipotência. Sente-se nele uma coragem irresponsável e brutal. Nenhum medo, nenhuma dúvida, nenhuma interrogação. É um prodigioso ser, feito de certezas.

     Mas eis o que importa repetir: — o jovem não tem culpa nenhuma. Vítima de um processo de desumanização, ele é vítima também dos velhos. Numa das minhas confissões, referi um episódio que considero magistral. A coisa se passou com o padre Ávila. Certo rapaz, se não me engano aluno da PUC, cometeu uma vileza atroz com um amigo. O padre Ávila (espírito altamente compreensivo) foi interpelá-lo. Perguntou-lhe: — “Você não acha isso uma deslealdade?”. O adolescente pergunta: — “É preciso ser leal?”. O bom sacerdote perdeu noites sem saber direito o que aquilo significava. E nem lhe ocorreu que, por trás do moço, explicando essa e outras deslealdades, estava um velho conhecido nosso: — o pulha.

     Ora, o ser humano não anda de quatro, nem está no bosque urrando à lua. E por quê? Resposta: — porque somos responsáveis. É a responsabilidade o nosso mistério e a nossa salvação. Os velhos começam por suprimir os limites morais da juventude. O nosso padre Ávila apreciou a canalhice do aluno ou conhecido, sei lá, com um espanto muito leve, quase imperceptível. Se fosse um quarentão, havia de se arremessar para a janela, aos berros de — “Aqui del-Rey! Aqui del-Rey!”. E chamaria a radiopatrulha. Ou ele próprio, na base da velha moral, daria ao pulha umas bengaladas saudabilíssimas.

     Portanto, são os velhos, sacerdotes, psicólogos, professores, artistas, sociólogos que dão total cobertura à imaturidade. Os jovens são o certo, o direito, o histórico, o infalível. Um amigo meu, e velho como eu, dizia-me: — “A juventude sabe mais do que nós”. Outro exemplo: — o dr. Alceu. É um sábio católico. Não há dúvida. Ninguém, de boa-fé, poderá negar-lhe a enorme autoridade moral.

     Quando o leio, fico imaginando: — “Se eu fosse jovem, depois de ler isso, sairia por aí decapitando velhinhas como um Raskolnikov”. Até hoje, não sei bem que idéia faz da juventude o nosso Tristão de Athayde. Ou está esquecido de que o jovem participa da nossa miserável, infeliz e, tantas vezes, abjeta condição humana? O jovem é, permita-me o mestre lembrar-lhe, o ser humano com suas fragilidades, os seus méritos, as suas tentações e com a inevitável, obrigatória dimensão do canalha. O moço tem os defeitos de qualquer um e mais este: — a imaturidade. Eu sei que o dr. Alceu anda fazendo uma promoção da imaturidade como se esta fosse sabonete ou um refrigerante. E o nosso Tristão, como o Carlinhos de Oliveira, inverte os papéis: — a maturidade é que passa a ser uma deficiência humilhante.

     Num dos últimos artigos, conta ele que esteve em Paris e foi testemunha auditiva e ocular da “popularidade mínima” de De Gaulle. Fala de “poucos aplausos” e “algumas vaias”. Eu não entendo e repito: — não entendo. Ah, o bom Alceu, o ótimo, o excelente Alceu. Não deve acreditar na vaia. Aqui, no nosso estádio, vaia-se até minuto de silêncio. Mas quererá ele insinuar que o povo francês tem ódio ao herói? Talvez. Se fosse Lavai, quem sabe se não seria carregado na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado?

           [3/6/1968]

 

                                     AS DUAS CABEÇAS

     Sou um profissional de velhas gerações. Mas a “jovem revolução” está aí. E quero crer que, em futuro bem próximo, eu e o Carlos Tavares seremos dirigidos pelas estagiárias do Jornal do Brasil. Imaginem vocês uma imprensa de meninas. E a redação será uma paisagem de bordados, de tapete, com ninfas, ou sílfides, sei lá, bebendo em cascatas artificiais.

     Fiz este comentário parnasiano e já mudo de tom. Eis o que eu queria dizer: — três vezes por semana, sou atropelado por uma estagiária. É uma fatalidade. Não atendo telefone, fujo, não estou, não volto mais. Mas a estagiária é invencível. Acaba por me descobrir, e nas horas e locais os mais surpreendentes. Outras vezes sou eu próprio que, por fraqueza de caráter, ou por indulgência de velho, as atendo. Foi o que aconteceu ontem.

     Bateu o telefone e o contínuo me avisa: — Jornal do Brasil. Tinha de ser uma estagiária. Eu podia ter dito como de outras vezes: — “Não estou” ou “Estou no café”. Mas ontem era um dia excepcional e crudelíssimo. Pela manhã, o jornaleiro me assombrou: — “Mataram Kennedy”. Por um momento, não soube o que pensar, o que dizer. Quase perguntei: — “Outra vez?”. Os dois fatos estavam justapostos na minha cabeça: — Bob e John. Eu já não sabia se eram dois ou um só. Se era o presidente que morria novamente, e não mais no Texas, agora em Los Angeles. O jornaleiro, numa gloriosa excitação, arqueja: — “O rádio está dando! O rádio está dando!”.

     Não era ainda a morte. Bob Kennedy apenas agonizava. Talvez não morresse. Vim para a cidade já desesperado. E, no Centro, fui ouvindo por toda a parte: — “Um tiro na cabeça”. Se fosse no coração, ninguém diria “um tiro no coração”. Mas o assassino de um Kennedy e o assassino do outro Kennedy quiseram a cabeça. Vocês entendem? Quiseram estourar o cérebro. Como se o morto, apenas ferido no peito, continuasse pensando, morto e pensando, cadáver e pensando, enterrado e pensando, eternamente.

     Portanto, era preciso parar a cabeça. Foi assim no Texas. De repente, Jacqueline viu, a seu lado, um marido sem queixo. O presidente era, sobretudo, o queixo forte, crispado, vital. E, agora, em Los Angeles, num hotel vagabundo (não seria hotel vagabundo. Mas a minha visão do crime exige o lívido corredor de um hotel vagabundo), um jovem jordaniano atira muitas vezes. E Bob Kennedy há de ter sentido, antes do medo, o espanto. No corredor, houve uma constelação de estampidos. Foi, como queria o assassino, uma bala na cabeça.

     Não sei por que estou repetindo o que todas as primeiras páginas já disseram e repisaram. Venho para a redação e sou chamado pelo Jornal do Brasil. De fato, era uma estagiária. Entre parênteses, acontece, entre mim e o velho órgão, uma coisa singularíssima. Quase todos os dias uma estagiária me entrevista. No dia seguinte: — não sai a entrevista. É espantoso, mas exato. Não sai, nem a tiro. Eu opino sobre tudo, desde o Zé da Ilha no barraco, ao arquiduque da Áustria em Sarajevo. E a minha opinião não aparece. Digo as coisas mais ousadas, certo de que ficarão para sempre inéditas.

     Naturalmente, o Jornal do Brasil havia de querer o meu ponto de vista sobre o crime. (E, decerto, como das outras vezes, não publicaria uma linha.) Muito bem. Sento-me e apanho o telefone. “Alô”, digo. Uma voz feminina pergunta: — “Nelson Rodrigues?”. Sou eu, sim. Há situações em que um homem, qualquer um, passa a ser um momento da consciência humana. Ao telefone, eu me sentia, exatamente, esse momento da consciência humana. Já imaginava uma frase. Ia dizer que todos os males pessoais e coletivos têm uma origem obrigatória: — o desenvolvimento.

     O curioso é que responderia antes da pergunta; e diria então: — “A civilização é responsável por mais este crime que...”. Mas não cheguei a falar. A estagiária falou antes: — “Nelson Rodrigues, eu queria a sua opinião sobre...”. Esperei ouvir o nome do Kennedy. A menina continuou: — “Sua opinião sobre o jogo Vasco x Botafogo”. Estou trêmulo de espanto. Insiste, risonhamente: — “Qual é seu palpite?”. Estou calado: — “Também queria um palpite seu sobre Flamengo x Bonsucesso, Fluminense x América” etc. etc.

     Dei-lhe os palpites pedidos, que o Jornal do Brasil não vai publicar, absolutamente. Saí do telefone humilhado e ofendido. Pensava no dia em que eu e o Carlos Tavares estaremos sob as ordens das estagiárias. Bem, agora tentarei resumir o que não disse à jovem do Segundo Caderno. Vamos lá.

     Há pouco tempo, vi um sacerdote afirmar com a ênfase de uma manchete: — “Paz é desenvolvimento”. O sacerdote falava com a certeza forte de um Moisés de Cecil B. de Mille. Disse “Paz é desenvolvimento” e acrescentou-lhe um patético ponto de exclamação. Eis o que eu diria à estagiária: — “Aí está uma opinião falsamente acaciana”. Parece o óbvio, mas nunca foi e nunca será o óbvio.

     Repito: — é o falso Acácio e o falso óbvio. Justa será a verdade inversa: — “O desenvolvimento não é a paz”. Ou: — “O desenvolvimento é a guerra” ou, ainda, “O desenvolvimento criou a antipessoa”. A estagiária não se espantaria, porque as estagiárias são insuscetíveis de espanto. E eu diria mais: — “O desenvolvimento é a agressividade, a angústia, a mania de grandeza, o ódio e, ainda, a guerra interna e externa, a mania homicida, o inferno sexual, a morte da alma”.

     As duas nações mais desenvolvidas do mundo, os Estados Unidos e a Rússia, estão sempre a um passo da guerra nuclear. Dizem, até, que um equívoco pode liquidar a vida e o homem. Falam da Suécia. Mas a Suécia é uma festa de suicidas. Na melhor das hipóteses o desenvolvimento é o tédio mortal. Agora, matam o segundo Kennedy. Dirá alguém que na Rússia não há crime político. Ao que eu responderia: — só há crime político. Nos EUA, qualquer um mata. E, por trás da Cortina de Ferro, só o Estado mata. Só o Estado é assassino. Mas o que importa notar é a brutal solidão do homem desenvolvido. A feroz infelicidade. E as lesões de sentimento. E as trevas interiores que ninguém pode desafiar em vão. Não sei quem disse, ou talvez ninguém tenha dito: — “O desenvolvimento é o demônio”.

             [7/6/1968]

 

                                        O ESQUECIDO

     Era um escritor católico. Há um mês, já com sessenta e poucos anos, caiu doente. Os sintomas eram vagos, incaracterísticos, triviais. Desde o primeiro momento, porém, foi varado por uma certeza inapelável: — “Vou morrer”. Não teve medo da morte. Morreria mil vezes, se fosse o caso. Sua angústia era esta: — ser ou não ser esquecido.

     Piorava, de quinze em quinze minutos. E começou o desfile de médicos. Fez, à queima-roupa, a pergunta cruel: — “Doutor, quanto tempo dura?”. Como era um médico da família, o outro fingiu, com nobre descaro, um otimismo impossível. Riu: — “Mas que é isso? Você vai ficar bom”. O doente odiou o médico e não perguntou mais nada. Olhava para a. mulher e pensava: — “Vai-me esquecer”. Seria esquecido pela mulher, filhos, amigos e vizinhos. Uma tarde, apanhou um jornal. Olhava na manchete sem ver; e imaginava que, no aniversário de sua morte, nenhum jornal pingaria uma linha sobre sua memória.

     Fui, um dia, visitá-lo. Disse-me, então, que descobrira um remédio contra a insônia (a doença tirara-lhe o sono). Durante a madrugada, enquanto os outros dormiam, distraía-se imaginando o próprio velório. Suspirou: — “Ah, o pior na capelinha não é a capelinha. Nem os círios elétricos”. O pior, segundo ele, era um pequeno bar que lá funcionava. Aí estava a impiedade total. A morte tinha, por fundo, o alarido de xícaras e pires. A dois passos do sagrado, do eterno, parentes, amigos, curiosos pediam ou um guaraná ou um grapete, ou uma coca-cola, ou um sanduíche.

     Quando me despedi, já começava a dispnéia pré-agônica. Mas ainda me disse, sem rancor, apenas informativo: — “Você vai-me esquecer”. Neguei, vermelhíssimo da própria mentira: — “Absolutamente. Você pensa que... Ora!”. A dona da casa levou-me até à porta. Passei por uma sala e eis o que vi: — dois filhos do moribundo jogando futebol de botão. E me ocorreu uma reflexão a um só tempo cruel e vil: — “Aqueles ali já esqueceram”.

     Lá fora, tomei o primeiro táxi. Disse: — “Cidade”. E que euforia quando o carro pôs uma distância progressiva entre mim e a agonia, entre mim e a morte. No meio da viagem, ocorreu-me um verso não sei de quem: — “Tão curto o amor e tão longo o esquecimento”. Quem escreveu isso? Não sei, ou por outra: — agora me lembro. É de Neruda, o Neruda da primeira fase. Tão curto o amor e tão longo o esquecimento. É espantoso que, algum dia, Neruda tenha amado.

     Dois dias depois, ou no dia seguinte, um amigo comum bateu o telefone para mim: — “Já sabe? Fulano morreu”. Lembrei-me de Neruda e passei de Neruda para a frívola memória dos homens. O meu informante ainda acrescentou: — “Já está na capelinha”. Não me saía da cabeça o futebol de botão, enquanto um pai morria a dois passos. Horas depois, entrava eu na capelinha.

     É um erro — era o que ia pensando —, é um erro a simultaneidade de velórios. De vez em quando, o parente, ou amigo, ou a esposa, vem espiar o velório vizinho. Ou se, por escrúpulo, pudor, não vem espiar, tem essa vontade. O escritor católico estava no andar de cima. Vou subindo (contando os degraus com uma irremediável pusilanimidade cardíaca).

     Antes de ver o morto, uma lúgubre curiosidade levou-me ao pequeno bar (e isso me daria, em seguida, um sentimento de culpa pueril e terrível). O escritor não exagerara. Realmente, era exato o alarido de xícaras e pires. As pessoas interrompiam a dor e vinham tomar um cafezinho, ou um refrigerante. Alguém pedia um sanduíche de salaminho. E, de fato, a morte tinha, por fundo, aquele pequeno bar fremente como uma colméia de xícaras e pires.

     E, de novo, eu pensava em Neruda. Queria-me parecer que o esquecimento começava antes da morte. Cada um de nós esquece tanto, tanto. Há os que são esquecidos antes da própria doença. Andam por aí, salubérrimos, e nós os esquecemos como se jamais tivessem existido. E, súbito, começo a pensar em Bob Kennedy.

     (Preciso datar esta minha experiência: — tudo aconteceu há dois dias.) Bob Kennedy era um morto tão recente e tão antigo. Não se passou nem uma semana, não haveria tempo sequer para a missa do sétimo dia. Não sei se os outros povos têm, como o nosso, essa vocação para a missa do sétimo dia. E vejam vocês: — as primeiras 24 ou, digamos, as primeiras 48 horas criaram entre nós e o crime, entre nós e o morto, toda uma distância infinita, milenar. Mais uns quinze dias, e os dois assassinatos parecerão simultâneos: — o de Bob Kennedy e o de Pinheiro Machado. Com um mês, já não saberemos quem levou a punhalada e quem levou o tiro, se o gaúcho, se o americano.

     Mas onde percebi o esquecimento de Bob Kennedy foi, domingo, no Estádio Mario Filho. Iam jogar Vasco x Botafogo. Embora fizesse um mau tempo de quinto ato do Rigoletto, quase 200 mil pessoas estavam ali. (E, novamente, me ocorre o verso parnasiano parecido com o do astronauta: — “A multidão é azul”. Realmente, nenhum céu da Itália será mais azul do que a multidão de domingo.) Éramos 200 mil pessoas e ninguém, ali, exatamente ninguém, pensava em Bob Kennedy. Era quase o morto da véspera. A notícia do atentado feriu de espanto o Brasil inteiro. E a multidão de meio bilhão e quebrados esquecia o jovem até seu último vestígio.

     E o pior foi quando o locutor do Estádio Mario Filho anunciou o minuto de silêncio pela morte de Bob Kennedy. Ora, no ex-Maracanã vaia-se até minuto de silêncio. Pelo amor de Deus, não façam outro minuto de silêncio num grande clássico. Olhei em torno. Nem todos se levantaram. Houve um muxoxo unânime, ou quase (e um muxoxo de 200 mil pessoas é ensurdecedor). E, súbito, o mártir passou a ser o importuno, o inconveniente, que vinha adiar por todo um minuto interminável o começo do jogo. Nunca houve um minuto de silêncio tão ressoante de assovios, piadas e milhões de ruídos fantásticos e inumanos.

     Pior foi lá, nos Estados Unidos, na catedral onde o corpo ficou exposto. Aqui, no Estádio Mario Filho, estavam presentes só 180 mil pessoas. Na catedral, 1 milhão de pessoas desfilaram diante do caixão. Eis o que eu queria notar: — o velório teria de ser um ato de amor, solitário, exclusivo, sagrado ato de amor. Que miserável impostura atribuir às 180 mil daqui e às 900 mil de lá qualquer sentimento de amor. (O velório de 1 milhão de pessoas é gelado como um deserto siberiano.) Foi apavorante a solidão de Bob Kennedy no jogo Vasco x Botafogo.

              [12/6/1968]

 

                                         EDUCAÇÃO SEXUAL

     O meu secretário chama-se “Pão Doce” (tal apelido, não sei por que, me parece do mais puro Dostoievski. Quero crer que “Pão Doce” é um ser tão prodigioso como Marmeladov, o pai de Sônia). Mas, como ia dizendo: — chego à redação e o “Pão Doce” vem, correndo, avisar: — “Tem um cara te procurando”. E repetia, de olho rútilo: — “Um cara!”.

     Estava excitado como se fosse a polícia. Tiro o paletó e o ponho na cadeira. O “Pão Doce” indaga: — “Mando entrar?”. Puxo um cigarro: — “Manda”. Com pouco mais, volta o “Pão Doce” acompanhado. Era um senhor, grisalho, bem posto, um ar de major Anthony Eden, quando este era major e tinha 37 anos. Digo: — “Tenha a bondade”. Sentou-se: — “Com licença”. O “Pão Doce” retira-se. E, então, começa uma conversa que me deu, do princípio ao fim, uma sensação de um vil pesadelo.

     Só agora me lembro que o desconhecido não me disse o nome. Vejam vocês: — conversamos duas horas e não sei como se chama (e, como permanece anônimo, o nosso diálogo parece cada vez mais irreal). Eis como se apresentou: — “Eu sou um pai”. Explicou em seguida: — “Vim de São Paulo, especialmente”. (Estou fazendo o suspense que ele fez comigo.) Pausa. Diga-se de passagem que o “diálogo” foi um monólogo. Só ele falava, e só eu ouvia.

     Durante cerca de duas horas desfiou a sua história ou, melhor dizendo, a história de sua filha. É uma menina de oito anos, linda, linda, de olhos azuis. Digo “olhos azuis” e já não sei se ele falou de “olhos azuis”. Matriculou a menina num colégio religioso, o melhor, mais caro de São Paulo. “Sou católico”, informa; e ajuntou: — “Praticante”. Quase o interrompi para dizer-lhe que, no Brasil de hoje, o verdadeiro católico é um ser em solidão total. O pai baixa a voz: — “Mas não sou católico pra frente”.

     No colégio referido, só existem meninas de luxo, de famílias também de luxo. O pai estava muito feliz, vendo a garota à sombra das freiras em flor. Aconselhava aos amigos: — “Põe lá a tua filha! Colégio padrão, colégio ideal”. Até que, um dia, é convocado para uma reunião de pais e freiras. Disse no telefone: — “Pois não, pois não! Irei, com muito prazer”. E, na hora marcada, estava lá, com a elegância de um major Anthony Eden mais moço. Inclina-se diante de uma freirinha: — “Por obséquio, onde é a reunião dos pais?”. A outra sorria: — “Por aqui”. Ele a seguiu.

     E houve a reunião. O pai chegou, cumprimentou a madre, sorriu para os outros pais e sentou-se. A madre estava falando com uma mãe grã-fina. Dava explicações: — “A educação sexual, aqui, começa aos quatro anos de idade”. O pai imagina: — “Devo ter ouvido mal”. Fez a pergunta: — “A senhora disse ‘quatro anos’?”. Resposta: — “Quatro anos”. Um outro pai indaga: — “E as crianças entendem?”.

     Todos, ali, eram pessoas esclarecidas, atualizadas, em dia com as novas verdades. Mas houve, ainda assim, uma dúvida geral. Os presentes se entreolhavam. Havia, sim, uma perplexidade no ar. E o pai, sem nada dizer, imaginava um jardim de infância, onde, aos quatro anos, as garotinhas teriam suas idéias, seus pontos de vista, sobre Freud. A diretora explica, deleitada: — “As meninas aprendem vendo figurinhas”.

     O coração do pai começou a bater mais forte. Continuava a explicação: — “As meninas vêem as gravuras e aprendem tudo”. O major Anthony Eden já não sabia o que pensar, nem o que dizer. Teve vontade de perguntar se não seriam aquelas as tais “gravuras obscenas” que a polícia não deixa vender. Mas nada disse.

     E por que garotinhas de quatro anos teriam de ver as “gravuras obscenas” que a madre não achava obscenas? Veio o esclarecimento: — “É preciso acabar com o tabu do sexo!”. Disse isso e sentia-se a sua gloriosa satisfação. Afirmava, olhando em torno exultante: — “Sexo não pode ter mistério. A criança precisa saber que o sexo é como...”. A diretora parou, um momento, procurando a imagem exata. Disse, afinal: — “Como beber um copo de água”. O sujeito bebe água quando tem sede. Esse copo de água é o sexo. Uma grã-fina cochicha, deliciada: — “Muito interessante”.

     O pai já está sentindo uma dor do lado esquerdo, com reflexo pelo braço. E continua ouvindo. Então, a propósito não sei de que filme, alguém fala em “prostituição”. A freira deu a resposta fulminante: — “Ser prostituta é uma profissão como outra qualquer”. Houve uma concordância quase unânime. Fora umas duas ou três perplexidades, aqueles pais e aquelas mães balançavam a cabeça: — “Realmente; realmente”. O pai balbuciou: — “Profissão como outra qualquer? A senhora tem certeza?”. A outra é superiormente irônica: — “Não vamos discutir o óbvio”.

     E, então, o pai ergueu-se. Estava numa indignação homicida. Mas como um bem-educado, preservava a polidez até no ódio. Despediu-se de todos, desculpou-se: — “Preciso ir. Estão-me esperando”. Saiu, desatinado. E, agora, diante de mim, dizia: — “Um colégio de religiosas. Entende? De religiosas. E ensina que a prostituta é uma profissional como um ourives, ou um protético, ou um bombeiro hidráulico, ou um estofador. A caftina também não tem nenhum problema. É outra profissional do sexo. Deve descontar para o Instituto”.

     O outro horror do pobre homem eram as “gravuras obscenas”. Dizia-me: — “O senhor me entende? Um jardim-de-infância de meninas de quatro anos é quase um berçário. O senhor já imaginou freiras mostrando, num berçário, fotografias ignóbeis? Se um jornaleiro vendesse, para velhos bandalhos, faunos senis, tais gravuras, seria preso, apanharia na polícia, seria processado, o diabo. E por que um colégio de luxo, e religioso, pode fazer o que é proibido a um pobre jornaleiro?”.

     Eu queria falar e não tinha o que dizer. Bati-lhe nas costas: — “É a Igreja pra frente”. E repeti: — “É a Igreja pra frente”. O outro concordou, numa amargura hedionda. Sentiu-se um católico de uma outra Igreja, talvez de um outro Cristo. Estendeu-me a mão, envergonhado do próprio horror. Suspira: — “Pelo menos, desabafei”. E partiu, sem deixar o nome. É tão anônimo como alguém que jamais tivesse existido.

             [14/6/1968]

 

                                        A MESSALINA GAGA

     Tenho um amigo curiosíssimo. Dá-se comigo há mais de trinta anos. Mas não há, digamos assim, continuidade em nossos encontros. De vez em quando, desaparece; e, de vez em quando, volta (é cíclico como a minha úlcera). Quando some, sua ausência tem a densidade da morte. E, quando reaparece, está sempre comigo, grudado a mim como um gêmeo.

     Mas eu disse “amigo curiosíssimo”. Pelo seguinte: — nunca sei se ele se chama Meireles ou Marcondes. Pode ser Marcondes e pode ser Meireles. Tal singularidade empresta à nossa relação um tom meio alucinatório. Eis o que eu queria dizer: — não o via há mais de seis meses. E, ontem, de repente, dou com o Meireles na esquina, em cima do meio-fio, esperando que o sinal abrisse para os pedestres. Quando nos vimos, foi uma festa recíproca e escandalosa.

     O Meireles caiu nos meus braços e eu nos dele. Dizia ele, de olho rútilo: — “Há quanto tempo!”. Em seguida, gabou-me a aparência. Disse e repetiu: — “Você está ótimo, ótimo”. E eu: — “Você também”. Afirmei que a sua aparência era um poema. Depois dos mútuos rapapés, o Marcondes (ou será Meireles?) limpa um pigarro e começa: — “Preciso de um favor teu”. Digo-lhe: — “Dois”. Põe a mão no meu ombro: — “É o seguinte: — faz outra entrevista imaginária com o d. Hélder, faz”.

     Era esse o favor. No meu espanto, exclamo: — “Outra vez?”. Tentei explicar-lhe que um colunista diário vive da variedade de assuntos e de figuras. O leitor não gosta de fixações. E repeti: — “O segredo é a variedade”. O Marcondes não se conforma. Retruca com um argumento engenhoso: — “D. Hélder é a própria variedade, é a antimonotonia”. Terminou com um novo apelo: — “Te peço, encarecidamente, uma nova entrevista imaginária com o d. Hélder”. Digo, por fim: — “Está bem. Farei”. O Marcondes se despediu num arroubo: — “És uma mãe!”.

     Isso foi ontem. Hoje, estou na máquina, escrevendo mais uma imaginária. Como se sabe, nada mais falso do que a entrevista verdadeira. O entrevistado só diz o que sente, o que pensa, o que sabe, nas entrevistas inventadas. Inventadas da primeira à última linha e, por isso mesmo, de uma imaculada veracidade.

     Tais entrevistas imaginárias só ocorrem à meia-noite em ponto. Eis a paisagem obrigatória: — um terreno baldio que tenha, no alto, uma lua de sangue e, por fundo, a gargalhada dos sátiros e duendes. Além de mim e d. Hélder, a única presença consentida é a de uma cabra vadia. O arcebispo foi pontualíssimo. Chega exatamente quando o sino da matriz dava as doze badaladas. Alhures, uma coruja pia. D. Hélder pergunta: — “E o pessoal? Não vem ninguém?”.

     Explico-lhe que o charme das entrevistas imaginárias é o pudor, o sigilo, o mistério. É preciso que ninguém as veja e ninguém as ouça, a não ser a cabra. D. Hélder vira-se: — “Em que jornal trabalha a cabra?”. Respondo-lhe que a cabra tem vários defeitos, menos o de ser jornalista. Esclareço ainda: — “A única função da cabra é paisagística”. A frustração do sacerdote foi total. Fechou a questão: — “Só falo para jornal, rádio, televisão”. Pergunto: — “É sua última palavra?”. Era.

     E, já que não havia outro, remédio, tratei de convocar uma imprensa também imaginária para o local. Instantaneamente, apareceram lá o caminhão da Globo e os locutores-volantes, o Washington Rodrigues, o Pallut, o Paradelas, fotógrafos, correspondentes estrangeiros, a BBC de Londres etc. etc. Essa platéia espectral foi um afrodisíaco para o bom padre. O Justino Martins surgiu e prometeu uma capa de Manchete. O Claudio Mello e Souza daria uma capa de Fatos & Fotos. Mas d. Hélder parecia ainda insatisfeito: — “E a Life não mandou ninguém?”. Tive que providenciar um enviado imaginário da Life.

     Todos presentes, comecei: — “D. Hélder, a diretora de um colégio religioso de São Paulo disse o seguinte: — que ser prostituta é uma profissão como outra qualquer. O senhor concorda?”. D. Hélder não respondeu logo. Semicerrou os olhos, juntou as mãos, como se rezasse. Os faunos e as ninfas, que costumam infestar os terrenos baldios, vieram espiar. Suspense aterrador. E, súbito, o arcebispo pula: — “Não! Não!”.

     Flashes assustam os grilos e os sapos do terreno baldio. Todos sentiram que d. Hélder ia fulminar a iniqüidade. De braços abertos, vai falando: — “Nunca, jamais! Ser prostituta não é uma profissão como outra qualquer. Absolutamente. É uma profissão que exige prendas raras. Raras”.

     Instalou-se, ali, no mato, o caos profundo. A imprensa imaginária já não sabia se d. Hélder estava contra ou a favor. Os taquígrafos não perdem um suspiro do orador. Mais didático, d. Hélder está falando: — “Qualquer uma pode ser datilógrafa, não é exato? Mas uma messalina tem que possuir dons outros, atrativos especiais. Uma gaga não pode ser messalina. Uma bruxa de disco infantil não pode fazer a prostituição. Tanto a gaga como o bucho morreriam de fome. Portanto, é injusto falar em ‘uma profissão como outra qualquer’. Ou estou enganado?”. O orador é aplaudido como um tenor no dó de peito.

     O representante imaginário da Life faz a sua pergunta: — “É verdade que o senhor brigou com os 2 mil anos da Igreja?”. D. Hélder não ouviu direito. O outro repete: — “É verdade que o senhor brigou com o passado da Igreja?”. A resposta foi de uma rara felicidade: — “Meu amigo, quem tem passado é a adúltera recuperada”. Neste momento, uma admiradora de J. G. de Araújo Jorge aparece com um livro: — “O senhor quer escrever isso no meu álbum?”. D. Hélder arranca da batina uma caneta e põe lá: — “Quem tem passado é a adúltera recuperada”. Na sua vaidade autoral, o arcebispo pergunta: — “Gostou?”. E a moça: — “Lindinho!”.

     Agora era a vez da estagiária do Jornal do Brasil. Eis a pergunta: — “O que é que o senhor acha do amor?”. D. Hélder fez um risonho escândalo. Diz: — “Oh, oh!”. E responde com outra pergunta: — “Que idade você tem?”. Resposta: — “Dezenove”. D. Hélder ralhou, alegremente: — “E como é que você, aos dezenove anos, fala em amor? O que é amor? Isso não existe, nunca existiu. O amor é a doença do sexo”. Estaca ao som da própria frase. Diz: — “Acho que fui feliz”. E repete: — “O amor é a doença do sexo”. Estimulado pela frase, foi adiante: — “O amor tem que ser exterminado. Nunca a morbidez é do sexo, sempre do amor. O sexo é de uma pureza, de uma inocência, de uma saúde totais. Vejam a lição dos vira-latas e dos gatos vadios. Olhem a praça da República. Não se conhece um Werther entre os gatos do Campo de Santana. Jamais um vira-lata matou, ou se matou, ou deu manchete na Luta ou no Dia. Precisamos matar o amor!”.

     Era o fim. A aragem fina desfez a imprensa imaginária. O Justino Martins tornou-se diáfano, o Claudio Mello e Souza, incorpóreo, a estagiária, alada. Paletós, camisas, gravatas e sapatos, tudo se volatilizou. E, por muito tempo, o terreno baldio ficou ressoante da sábia frase: — “O amor é a doença do sexo”.

               [15/6/1968]

 

                                           OS ASSASSINADOS

     Disse não sei quem que os homens se dividem em dois grupos: — “assassinos” e “assassinados”. Ou o sujeito mata ou, se não mata, morre. Portanto, segundo esse autor, cujo nome não me ocorre, não há hipótese de morte natural. Mesmo os “assassinos” são, por sua vez, “assassinados”. Por isso, o francês Paul Valéry chegou a imaginar, para si mesmo, o seguinte epitáfio: “Aqui jaz Paul Valéry — assassinado pelos outros”.

     Houve, porém, um momento, na minha vida, em que “todos” eram assassinos. Foi quando morreu meu irmão Roberto. Roberto Rodrigues. Não sei se me entendem. O que eu quero dizer é que “todos” eram assassinos, e Roberto, a única vítima. Foi ferido no dia 26 de dezembro de 1929. Ele conversava comigo. Uma voz pediu: — “Pode-me dar um minuto de atenção?”. Era na redação de Crítica. Os passos caminharam até à sala seguinte. Porta de vaivém. Roberto faz a volta da mesa e caminha para lá.

     Por minha vez, encaminho-me para a escada. Ia tomar um refresco no botequim da esquina. Paro com o estampido. Houve uma pausa entre o tiro e o grito (e foi um grito de quem vai morrer). Um dos presentes era o detetive Garcia. Com seu reflexo profissional, tirou o revólver; e foi de arma em punho que invadiu a sala da frente. Roberto está de joelhos, com as duas mãos agarrando a mão que o ferira.

     Da serraria do lado, os operários subiam a velha escada gasta de muitas gerações. Roberto tinha 23 anos, era o homem mais bonito que vi até hoje. Uma bala interrompeu, para sempre, a obra que amadurecia na sua alma atormentada. Levado para o pronto-socorro, lá morreu dois dias depois. Eu continuava a ouvir a voz: — “Vim matar Mário Rodrigues ou um dos seus filhos”. Paro de escrever. A voz está dizendo, como há 39 anos atrás: — “Mário Rodrigues ou um dos seus filhos”.

     A redação armada em câmara-ardente. Eu, com dezessete anos, era abraçado. Um velho agarrou-se a mim: — “O nosso Roberto”. E eu tinha pena, vergonha, remorso de estar vivo. Muitos anos depois, na minha peça Anjo negro, há esta imagem: “No enterro sobra sempre uma flor. Uma flor fica boiando no soalho”. E, de fato, naquele dia, eu vi uma flor boiando no soa-lho. Não sei se alguém a pisou. Passei toda uma madrugada velando o sono dos círios.

     O último a se despedir de Roberto foi meu pai. “Eu te vingo!”, soluçou. No fim, chegou Melo Viana, o vice-presidente da República. Abraçou-se a meu pai, que repetiu: — “Essa bala era para mim”. E, depois, o enterro saindo. Era uma manhã de tanto céu que a própria sombra era azulada, lunar. Dois meses depois, morria meu pai. Sua agonia durou quinze dias. Morávamos numa colina. E, na última noite, da esquina já se ouvia a sua dispnéia. Morreu tão órfão do próprio filho.

     Eis o que aprendi com Roberto e meu pai: — o importante é não matar. Nada mais doce do que nascer, viver, envelhecer e morrer. E não ser jamais assassino. Nunca me esqueço do que aconteceu com um dos meus amigos. Gostou de uma menina e, no final da tarde, os dois passeavam, na praça Saenz Peña, de mãos dadas. Um dia, a menina crispa a mão no braço do bem-amado; diz: — “Olha Fulano”. Fulano era o ex-namorado da garota, um brutamontes, que aprendia judô, caratê etc. etc. E, segundo se dizia, estava esperando, para qualquer momento, o seu primeiro ataque epilético. O ex-namorado barrou-lhe a passagem; abotoa o meu amigo: — “Quando se encontrar comigo... Cala a boca. Quando se encontrar comigo, atravesse a rua. Ou lhe parto a cara”. O ofendido, branco, não disse uma palavra. E o outro: — “Agora, suma. Ande. Suma”. O rapaz baixou a cabeça e correu.

     De noite, a moça liga para ele, aos soluços. Quase não podia falar. O humilhado, o ofendido, só dizia: — “Calma, meu bem, calma”. Por fim, mais controlada, disse tudo: — “Você vai-me fazer um favor. Vai dar um tiro nesse miserável”. Num espanto aterrado, ele balbuciou: — “Tiro, eu? Meu bem. Eu não sou de dar tiros”. E a outra: — “Quer dizer que você é covarde?”. Respondeu: — “Não sei se sou covarde. Assassino, não sou”. Ela esganiçou-se no telefone: — “Escuta! Escuta! Na próxima vez, ele vai-te dar na cara. E você vai apanhar calado?”. Disse, manso como um santo: — “É mais forte do que eu. Não posso brigar fisicamente. Apanho, mas não mato. Nada me fará matar!”. Romperam no telefone. E a menina acabou voltando para o ex-namorado.

     Eu compreendo tanto os que não matam. Gostaria de explicar. Quando matam alguém, é como se Roberto estivesse morrendo outra vez. Foi assim com o primeiro dos Kennedy. Uma bala arrancou seu queixo plástico, crispado, vital. Então senti como se fosse Roberto, novamente Roberto. E, por um momento, tive a ilusão de que, dois meses depois, meu pai morreria também, como em 1930. E assim, quando balearam o outro Kennedy, Bobby. E onde quer que alguém seja assassinado por alguém — cria-se entre mim e o que morreu uma relação obsessiva, implacável.

     Há dias, trucidaram, em Pernambuco, o jovem padre Antônio Henrique Pereira Neto. Até o momento em que bato estas notas, não se sabe quem matou e por que matou. Segundo o comunicado da arquidiocese de Olinda e Recife, o padre Antônio Henrique, além de sofrer uma série de sevícias hediondas, foi amarrado e enforcado. Em seguida, vararam de balas o cadáver. Começam então as hipóteses desesperadas. Autoridades policiais do Recife acham que se trata de um crime passional. Ao passo que autoridades eclesiásticas afirmam que foi “crime político”. Mas “passional” ou “político”, o que importa é a hediondez do fato. Dizia aquele personagem dostoievskiano: — “Se Deus não existe, tudo é permitido”.

     Para muitos brasileiros, Deus está morto. E para esses, para os “assassinos de Deus”, tudo é permitido. Que limites, dúvidas, arrependimentos poderão travar os “cristãos-marxistas”, os “cristãos-sem vida eterna”, os “cristãos-sem sobrenatural”, os “cristãos-sem Cristo”? Falei da “esquerda católica”. Um dia, ela terá de ser julgada. Na confissão de ontem, falei de um dos pronunciamentos mais claros de d. Hélder. Sem nenhum disfarce, declara: — “Respeito aqueles que, em consciência, sentem-se obrigados a optar pela violência; não a violência fácil dos guerrilheiros de salão, mas a daqueles que provaram sua sinceridade com o sacrifício de suas vidas”. Não. Aí não está dito tudo. Provaram a sinceridade morrendo, por azar, e matando, por querer. Antes de morrer, Guevara matou. E, repito, morreu sem querer e matou querendo. Também Camilo Torres. Esse cristão-homicida empunhou o fuzil, não para morrer, mas para matar.

     E diz mais o arcebispo de Olinda e Recife: — “Parece-me que as memórias de Camilo Torres e de Che Guevara merecem tanto respeito quanto as do pastor Martin Luther King”. Não, mil vezes não! Luther King não morreu de fuzil, faca ou revólver na mão, como Guevara ou Camilo Torres. Não matou, nem quis matar. Não pregou o ódio, a “violência justificada” católica. Morreu de amor e por amor. Os que pregam o ódio não podem chorar o jovem sacerdote do Recife.

     Todos nós temos um projeto de Brasil. O da esquerda católica é o Brasil do ódio. O Brasil do sangue, o anti-Brasil, um Brasil sem Deus. Este país não teve jamais um drácula. E, súbito, os possessos querem que nos transformemos em 80 milhões de dráculas bebendo o sangue uns dos outros.

           [17/6/1968]

 

                                               CAÇA-NÍQUEIS

     Passo na redação e apanho um bilhete de Playboy, a revista de nus. Viro, reviro o envelope. Ai de nós, ai de nós! Tudo que tenha um vago sotaque norte-americano já exala o terror. Finalmente, tomo coragem e abro o envelope.

     Era uma meia dúzia de linhas. Simplesmente, o correspondente de Playboy queria, de mim, um favor de colega para colega. Pedia, em suma, informações urgentes sobre “Palhares”, o brasileiro ilustre que surpreendera o país com seus métodos originais e revolucionários de educação sexual. Playboy queria biografia, o nome completo, idade, estado civil etc. etc. Li e reli, na mais absurda das perplexidades.

     Eis o que me perguntei: — “Palhares, que Palhares?”. Por um desses lapsos fatais, não me lembrava de ter conhecido, aqui ou alhures, em passado recente ou longínquo, nenhum Palhares. Seria Tavares? Eu conhecia um Tavares. Mas esse Palhares que, de repente, invadia a minha vida era o desconhecido total, jamais visto, jamais cumprimentado. O bilhete dava, embaixo, no canto da página, um número de telefone. Liguei.

     Por sorte, encontrei o diabo do correspondente. Disse-lhe a feia e humilhante verdade. Não conhecia nenhum Palhares, vivo ou morto. O colega internacional não queria acreditar. Mas como, se, no momento, o Palhares é o nome obsessivo, a figura obrigatória? Só se falava no Palhares. Toda a cidade repetia os feitos do Palhares, as anedotas do Palhares, as piadas do Palhares. Saí do telefone humilhadíssimo. Numa amargura medonha, pensava na idéia que a Playboy faria de mim, o único brasileiro que desconhecia o Palhares!

     Vejam como são as coisas. Horas depois, estou, num boteco, tomando cafezinho em pé, quando se irradia uma luz de minhas profundezas e eu descubro a verdade jamais imaginada. O misterioso Palhares era simplesmente o Palhares. Eu o conhecia, sim, e de longa data; e mais: — eu o vira de calças curtas, roubando goiabas. Coisa de espantar: — o Palhares era um sobrenome. O seu nome por extenso é uma maciça impossibilidade. Ele próprio o diz: — “Desde garotinho, sempre fui Palhares, e só Palhares!”.

     Nada quer ser mais além de Palhares. De mais a mais, o nosso herói é conhecidíssimo do leitor. Várias vezes, aqui mesmo, nesta coluna, narrei o seu maior feito. Se vocês não se lembram, posso repetir. Eis o episódio: — certa vez, o Palhares cruza com a cunhada no corredor. Não diz nada. Segura a mocinha e dá-lhe um beijo no pescoço. Ali, inaugurou-se um novo canalha. Não sei por inconfidência de quem, a torpeza espalhou-se. E quando o Palhares passava, havia o cochicho estarrecido: — “O que não respeita nem as cunhadas!”.

     Vivemos uma época tão surpreendente que a vil audácia foi de uma prodigiosa e fulminante eficácia promocional. Todas as portas se abriram para o canalha. No emprego, por coincidência ou não, o chefe aumentou-lhe o ordenado. Certa vez, fui a um aniversário. Estava lá o Palhares. Tão cínico que, a um canto, perto da janela, cheirava uma camélia. Não era camélia, mas vá lá. E lembro-me que uma senhora gorda, abanando-se com uma Revista do Rádio, suspirava: — “Adoro o Palhares!”. Dizia isso e tinha, no pescoço, um colar de brotoejas. Em outra ocasião, entrei no Antonio’s e o vejo com um vasto embrulho debaixo do braço. Pergunto: — “Que é isso?”. E ele, com ardente seriedade: — “O Cristo!”. Em seguida, desembrulha e mostra o retrato de Guevara. Lá estava o guerrilheiro, de boina, a cara virilizada por uma barba crespa. Guevara era o Cristo.

     Chamo o canalha para um canto. Digo-lhe: — “Rapaz, a piada tem limite”. Ele refaz o embrulho, amarra o barbante e se justifica: — “A cruz não dá mais nada. É preciso, de vez em quando, mudar de Cristo”. Olha para os lados e baixa a voz: — “Este retrato é uma mina. Convido as meninas para ver o Guevara no meu apartamento. Tiro e queda. Vai por mim: — é o verdadeiro Cristo. Esse negócio de amar o próximo é uma laranja chupada. Não pinga mais nada”. E, no fim, deu-me o conselho: — “Você tem de ser socialista. É o golpe”.

     Mas nunca me ocorrera, nem como hipótese suicida, que, um dia, o Palhares viesse a explodir como o revolucionário da educação sexual. Bati o telefone: — “Escuta, Palhares. Que negócio é esse de professor? E de educação sexual ainda por cima?”. Fiz-lhe mesmo a pergunta contundente: — “Desde quando deixaste de ser analfabeto?”.

     Sendo um canalha, o Palhares tem uma virtude admirável: — não reage. Achou uma graça saudabilíssima. Inicialmente, foi de um luminoso impudor: — “Continuo o mesmo analfabeto, o mesmo. Não leio nem manchete”. Fiz a pergunta impaciente: — “Mas qual é o teu colégio?”. Ao ouvir falar em colégio, Palhares soltou uma gargalhada de se ouvir no fim da rua: — “Colégio? Me achas com cara de colégio?”. Eu já não entendia mais nada. Já o canalha explicava: — “Faço educação sexual a domicílio. Percebeste? A domicílio”.

     Em todas as suas palavras, inflexões, pontos de vista, sentia-se o bem-sucedido total: — “Podes chamar-me de analfabeto. E eu sou analfabeto com muita honra. Mas escuta: — ninguém precisa do bê-a-bá para ensinar educação sexual”. Conversamos duas horas. Afirma o Palhares que nós tivemos sorte de nascer na presente época. “Os novos tempos são tão gigantescos que a gente pode dizer tudo, fazer tudo, pensar tudo.”

     Quase me despedindo, fiz uma amarga ironia: — “Resumindo, qual é o conselho que você me dá?”. Fingiu modéstia: — “Quem sou eu pra te dar conselhos?”. Insisti. E, então, o canalha tira um pigarro, coloca a voz e diz, gravemente: — “Seja o ex-católico. No momento, é o que dá mais. O ex-católico tem todos os trunfos na mão”.

     Aquilo deu-me um novo e agudo interesse pela conversa. Eu já queria crer que certas coisas, certas verdades, exigem um canalha para dizê-las. Pergunto: — “Que história é essa de ex-católico?”. O nosso Palhares foi preciso: — “É o seguinte. Repara. Há uma colossal maioria católica. Não há? É o óbvio”. E continuou. Segundo ele, não adianta nada ser “maioria”. Quem tem o poder de decisão, e o exerce furiosamente, é uma pequena minoria de ex-católicos. O Palhares cita como exemplos de ex-católicos o dr. Alceu e d. Hélder. Ah, os minoritários como influem, como decidem, como agitam. E a maioria católica está aí, por todo o Brasil, aturdida, acuada, humilhada. Ouvi o Palhares sem interrompê-lo. Terminou com uma profecia jucunda:

     “Toma nota. Escreve o que te estou dizendo. Ainda seremos o maior povo ex-católico do mundo”.

             [19/6/1968]

 

                                             DA LINHA CHINESA

     Todos os dias, chova ou faça sol, vou tomar o meu copo de leite, ou meu prato de mingau, ali, no Cabaré dos Bandidos. É na esquina de Mem de Sá com Tenente Possolo. Eu tenho, se assim posso dizer, uma úlcera amestrada, que dói na hora certa. Nunca houve uma lesão duodenal tão adulada. E, assim, com papinhas analgésicas, minha úlcera vive a vida que pediu a Deus. Boa, excelente ferida. Mais do que um martírio, é um hábito. Sinto falta de sua dor e, quase diria, saudades de sua acidez.

     Ontem, aconteceu como sempre: — na hora convencional, começaram os seus espasmos de víbora. Olho o relógio e constato a sua pontualidade. Manifestava-se na hora própria, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Levanto-me e vou para o Cabaré dos Bandidos, a dois passos do trabalho. Quando chego na esquina, paro em cima do meio-fio. Fechara o sinal para os pedestres. Ao meu lado estava um jovem havaiano do Leblon, vasta cabeleira, imensas costeletas, blusão de couro. De propósito, e não sei por que, esperou que o sinal abrisse para os carros.

     Podia ter atravessado antes, com os outros. Não. Ficou esperando. E quando os carros, os ônibus começaram a rolar, desceu do meio-fio como de um pedestal. Seria talvez um desafio. Ou estaria testando a própria onipotência. Os Fuscas passavam em delirante velocidade. E lá ia ele, num passo mole, sem olhar, de perfil, sempre de perfil, sem pressa, uma morosidade insolente. A princípio, imaginei: — “Vai morrer”. Se fosse um velho, ou uma senhora, ou alguém de mais de 35 anos, seria fatalmente arrastado, esmagado.

     Logo, porém, baixou em mim uma certeza total: — não aconteceria nada. Ele chegaria ao outro lado, maravilhosamente intacto. Os Fuscas tiravam finas mortais. Houve derrapagens, buzinas; em dado momento, um pneu chiou como uma cigarra lancinante. E nada aconteceu, prodigiosamente nada. Por um desses milagres irritantes, aquele rapaz não seria atropelado, em hipótese nenhuma. De uma calçada a outra, cumpriu a sua travessia encantada. A velocidade o poupou como a um santo.

     Em outros tempos, ou na passada geração, o mesmo jovem levaria uma trombada assassina. Seria batido, ao mesmo tempo, por três automóveis. E ficaria emborcado, rente ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. Uma apiedada mão acenderia uma vela. Alguém talvez o cobrisse com uma folha de jornal. E a chama ficaria lambendo o silêncio. Depois, viria o rabecão apanhá-lo. E, então, o jovem seria apenas um cadáver numerado do necrotério.

     Hoje, não. Há, por toda a parte, a “jovem revolução”. É um movimento mundial. Quem o diz, e as manchetes o confirmam, é o Carlinhos de Oliveira. Os jovens se levantam na China, na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra. E por que se levantam? Segundo se diz, porque estão insatisfeitos com os valores até então vigentes. Só que tais valores, ninguém os realizou e todos os traíram. E os jovens parisienses arrancaram os paralelepípedos, viraram os carros e incendiaram a Bolsa. Na China, a guarda vermelha caça os inimigos de Mao Tsé-tung. Sim, os desafetos de Mao são exterminados a pauladas, na rua, como obesas ratazanas.

     Tem razão o Carlinhos de Oliveira: — a “jovem revolução” é mundial. Só uns dois ou três sujeitos, estreita e amargamente positivos, insinuam que se está fazendo, e também em dimensões mundiais, uma gigantesca e irresistível impostura. Outros espíritos, também minoritários, afirmam o seguinte: — a “jovem revolução” nada tem de jovem. São precisamente os velhos que a promovem. E, com efeito, o caso da China dá o que pensar. A guarda vermelha tem, já o disseram, a idade de Mao Tsé-tung e, possivelmente, a sua obesidade e, mais possivelmente, a sua arteriosclerose.

     Cabe então a pergunta: — e por que, de repente, os “mais velhos” resolveram idealizar o jovem e conferir ao jovem a própria onipotência? Referi, mais acima, o episódio de trânsito. O rapaz que, insolentemente, esperou que o sinal fechasse para os pedestres e só então atravessou a rua. Não foi atropelado porque os veículos também bajulam a “jovem revolução”.

     Ainda ontem, fui procurado por um rapaz, estudante de teatro. Entrou na redação e vinha solene, ereto, hierático. Pára na minha mesa. Diz, gravíssimo: — “Seu Nelson, trouxe isto aqui para o senhor ler”. Era um recorte de jornal; explica: — “É uma entrevista da Cacilda Becker”. Estou ouvindo, risonhamente. E ele continua: — “Queria que o senhor lesse, o senhor que é contra o jovem”. Com tal afirmação, o rapaz criou entre nós o súbito e cavo abismo da primeira divergência.

     Dá-me um certo cansaço, um certo tédio, ouvir que sou contra o jovem. Repeti para o rapaz a casta e singela verdade: — não sou contra ou a favor de ninguém, automaticamente. Expliquei que a mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades. Naturalmente, o jovem tem o defeito salubérrimo e simpaticíssimo da imaturidade. De vez em quando, isto é, de quatro em quatro séculos, aparece um Rimbaud. Aos dezessete anos, fez toda a sua obra. Se não me engano, o poeta acabou aos dezessete anos. Viro-me para o rapaz: — “Queres que eu te admire? E te faça manchetes? Sê um Rimbaud. Aí está a solução. Sê Rimbaud”.

     Foi então que o garoto ousou a confidência: — não estava interessado em poesia. Fiz um alegre escândalo: — “Não é possível! Um estudante de teatro tem que estar interessado em poesia!”. Novamente, ele me surpreendeu ao dizer que também não estava interessado em teatro. Desta vez, o meu espanto teve um mínimo de irritação. Disse-lhe: — “Escuta cá. Se não te interessas nem por teatro, nem poesia, estás interessado em quê?”. Disse, ofegante da vaidade: — “Sou da linha chinesa”.

     Fez-se uma pausa. E, então, catei na mesa a entrevista da minha amiga Cacilda Becker. Mas, antes de lê-la, fiz para o rapaz algumas observações de minha experiência teatral. Eis a minha tese: — uma atriz ou ator não devia ter nada com a vida real. Por exigência contratual, não poderia deixar o palco, nunca. Justifiquei meu ponto de vista: — a Duse, a Sarah Bernhardt ou qualquer outra grande atriz age e reage, cá fora, como uma canastrona. Eu preferia uma Cacilda dramática, lírica, romântica, e não impressa.

     A Cacilda impressa, a mim, não me diz nada. Nem a líder. Conheço-a, somos amigos, admiro-a profundamente. E parece que eu estava adivinhando. Começo a ler e paro nesta frase: — “O mundo é dos jovens”. A gloriosa atriz dá o mundo, de graça, de mão beijada. O sujeito tem dezessete, dezoito, vinte. Pronto. Toma o mundo. Mas vejam como, numa simples frase, está todo um crime, ou seja, o crime de dar razão a quem não a tem. O mundo só pode ser dos que têm razão. Mas a razão é todo um maravilhoso esforço, toda uma dilacerada paciência, toda uma santidade conquistada, toda uma desesperada lucidez. Não era bem assim que eu queria dizer. Faltam-me palavras.

            [20/6/1968]

 

                                             OS ABNEGADOS

     Há uma página de Os Maias que não consigo esquecer. Imaginem um ministro de Educação que não tinha cara, só tinha testa. Nem um mísero e escasso fio de cabelo. Tamanha testa foi o seu destino e sua glória. Ele não precisava ciciar uma palavra, ou desdenhar um gesto, ou piscar um olho. A testa bastava e repito: — a testa era a evidência mesma do gênio.

     Uma noite, está o nosso ministro numa recepção. Cercado de damas e cavalheiros por todos os lados. E, súbito, alguém fala na Inglaterra. S. exª achou bonito o nome, o som. Inglaterra. E vira-se, então, para o Ega, que estava a dois passos. Pergunta-lhe: — “Sabe se, na Inglaterra, há folhetinistas de pulso, como aqui? Talentos como os nossos?”. Primeiro, o Ega tem uma vertigem diante da testa inaudita. Em seguida, informa: — “Lá não há literatura”. Diz então o ministro: — “Logo vi. Povo prático, essencialmente prático”.

     Eis o que eu queria dizer: — sou um pouco essa admirável testa de Os Maias. Em criança, só li folhetim. E ainda hoje, tanto tempo depois, ainda preservo a nostalgia dos Sue, dos Perez Scrich, dos Dumas pai, dos Ponson du Terrail. Outro dia, vou a uma festinha em casa de um amigo. E, de repente, vem a dona de casa, com um pratinho. Pergunta: — “Aceita rocambole?”. Esse nome arremessou-me no passado profundo. “Rocambole” era o nome de um herói de Ponson du Terrail e título também do próprio folhetim. Disse, radiante: — “Pois não, pois não”. E os dois ficaram justapostos na minha memória: — o personagem e o doce, o folhetim e o prato.

     Essa mesma experiência proustiana tenho eu quando me chega uma carta anônima. E aí está uma marca de leituras pasmas. Como se sabe, a carta anônima é um dos artifícios mais felizes do velho folhetim. O marido a recebia (e o marido era sempre sórdido e obeso). Lá vinha escrito: — “Considere-se miseravelmente enganado”. E se disparava a intriga romanesca. Na altura dos meus oito, nove, dez anos, daria tudo para receber uma torpe carta anônima.

     Fiz a introdução acima para contar o que me sucedeu ontem. Vou ler a minha correspondência e já no primeiro envelope tenho o impacto. É que a carta não trazia assinatura. Ah, o homem diz, na carta anônima, o que não ousaria dizer ao padre, ao psicanalista e ao médium, depois de morto. O menino do folhetim veio à tona. Comecei a ler.

     Começava assim: — “Nelson, você é um traidor”. Minha curiosidade assumiu proporções inéditas. Traidor, eu? Da pátria, talvez. Entre parênteses, assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria. Em seguida, a carta anônima informa que sou traidor da própria classe. Qual delas? Tenho duas: — por um lado, faço jornalismo; por outro lado, faço teatro. Segundo a carta, era traidor da classe teatral. Quando cheguei à última linha, voltei à primeira e reli tudo. Só então fui-me olhar no espelho. E vi, na minha cara, o esgar hediondo da traição.

     Fica de pé a pergunta: — e por que traidor? Vejamos os fatos. O Estado de S. Paulo fez um editorial, ou dois editoriais, que desagradaram a classe. E que faz a classe? Reúne-se e, por unanimidade, resolve devolver os Sacis que o velho órgão distribui entre os melhores de cada ano, no cinema e no teatro. E, não satisfeita, a assembléia decidiu, e por outra unanimidade, uma passeata-monstro.

     Mas, vejamos. A classe ia marchar contra quem? Aqui começa o doloroso, o comprometedor, o humilhante: — contra um jornal. Se os meus colegas saíssem pelas ruas paulistas decapitando marias antonietas e derrubando bastilhas, eu estaria admirando a ferocidade teatral. Mas a nossa vítima é uma redação, vejam vocês, uma redação. Por outro lado, tenho algumas dúvidas perturbadoras.

     O Saci é uma pequena estatueta. E se fosse um prêmio em dinheiro? Repito: — se o Saci fosse um cheque de 5 milhões de cruzeiros? E nem precisa tanto. Imaginemos um cheque mais modesto de 1 milhão ou menos do que isso: — de 500 mil cruzeiros antigos. Pergunto se os manifestantes devolveriam o dinheiro vivo. Duvido, isto é, afirmo que ninguém devolveria um centavo. Portanto, vamos desconfiar de um desprendimento que não desembolsa um tostão.

     Nem considero a unanimidade um argumento decente. Quanto ao meu caso pessoal, estou farto de repudiar unanimidades. Além disso, como eu sou um premiado, e não vou devolver Saci nenhum, não existe tal unanimidade. Mas, vamos admitir que todos, absolutamente todos, estejam contra O Estado de S. Paulo. Eu estaria a favor. Não me solidarizo com os erros, os equívocos, de minha classe. Diz a carta anônima: — “Uma classe não erra. Uma classe sempre tem razão”.

     Nada mais falso. Homens; classes, povos são suscetíveis dos mais sinistros enganos ou das mais hediondas torpezas. O motivo e a origem de tudo foram dois editoriais. Que fossem duzentos. Qualquer jornal tem o direito de escrever como quiser e o que quiser, sem dar satisfações a ninguém. Falo por experiência própria. Ao longo de vinte anos, fui o único autor obsceno do Brasil. E, durante esse período, fui chamado de “tarado” em manchete. Os críticos me xingavam de “cérebro doentio”, de “caso de polícia”, de “louco varrido”. O dr. Alceu Amoroso Lima disse horrores de mim. Em momento nenhum, neguei-lhe o direito de me dizer tais horrores. Sempre quis a imprensa livre.

     Diz a carta que a classe quer a liberdade. Ah, os nossos libertários! Bem os conheço, bem os conheço. Querem a própria liberdade. Dos outros, não. Que se dane a liberdade alheia. Berram contra todos os regimes de força, mas cada qual tem no bolso a sua ditadura. A passeata que se fez é, precisamente, contra a liberdade de imprensa. Queremos um teatro livre. E, ao mesmo tempo, pretendemos exercer uma censura, vejam vocês. Os censores da imprensa somos nós, atores, atrizes, autores.

     Em nome da liberdade, agredimos a liberdade. Ainda bem que o nosso heroísmo começou e acabou na devolução dos Sacis. E assim o pessoal de teatro desceu do palco e foi às ruas, representar de libertário.

             [22/6/1968]

 

                                           CONTRA A VIOLÊNCIA

     Apanho o jornal e vejo o telegrama: — Hollywood declara guerra à violência. São atores, atrizes, diretores, roteiristas. É uma unanimidade, mais uma unanimidade. Assim somos nós, todos nós. O nosso gesto, o nosso ódio e o nosso grito — já não precisam nascer na solidão. O homem quer ser irresponsável. Na hora do protesto, da ira, todos providenciam uma urgente unanimidade. Ninguém está só. Matamos e morremos em grupos, em hordas, em maiorias, em assembléias, em comícios.

     No manifesto de Hollywood, o que existe, precisamente, é o pânico da responsabilidade nítida, indivisível, total. Não há um nome, uma cara. Cada qual se esconde debaixo da unanimidade como de uma cama. Todos são contra a violência, a crueldade, o sadismo, o terror. Vejam e pasmem: — daqui, para o futuro, Hollywood só fará filmes com bons sentimentos.

     Não tenho nada a objetar. É uma reação linda, embora tardia. Mata-se demais no cinema, morre-se demais, trai-se demais, odeia-se demais. E há, na tela, um erotismo difuso, volatizado, atmosférico. A platéia respira voluptuosidade. E tudo nos é transmitido em forma de perversão. Portanto, parece muito cabível e sábia a correção ética que se propõe. Até aqui, Hollywood viveu, inversamente, dos maus sentimentos. Com que técnica e com que arte, com que fotografia e com que direção, soube ela tecer as mais lindas fantasias sobre as nossas abjeções!

     Para não ir mais longe, aí está Belle de jour, Quem o veja percebe esta verdade absoluta: — o “grande diretor” não pode ter essa mediocridade de virtudes e defeitos que se exige de um marido burguês. Para pôr de pé um personagem sádico, cruel, voluptuoso, ele terá de ser de um sadismo, ou de uma voluptuosidade, ou de uma crueldade profunda. E assim o intérprete, e assim o fotógrafo, e assim o autor dos diálogos. Um filme como Belle de jour exige toda uma equipe de possessos. Aquela esposa alucinatória é o próprio Buñuel. Sim, ela é ele.

     Diria eu que a humana sordidez tem sido o ganha-pão dos que, hoje, tentam uma árdua, frenética e antieconômica purificação. Se não existisse no homem o lado podre, se não existisse no fundo de cada qual a lama inconfessa e encantada, também não existiria a indústria cinematográfica. Ah, o cinema nos compromete desde meninos! Bem me lembro dos mitos que Hollywood teceu para as crianças. Um deles foi Tom Mix. Outro, Rolleaux; outro ainda, William S. Hart. Pois Tom Mix subia no cavalo e dava tiros em todas as direções. Matava, e como matava! Era assassino por todas as crianças da platéia.

     E, de repente, a unanimidade resolve acabar com o terror. Uma das primeiras vítimas de tal providência é um velho conhecido nosso: — o vampiro. Aí está uma figura fundamental do cinema. Tenho um tio que passa anos sem ver um filme. Diz ele que o cinema, como o jornal, mente muito. Mas não perde um filme de vampiro. Certa vez, soube que estava levando um em Vigário Geral. Atravessou a cidade e foi lá. Por que será que esse tio, e outros tios, e outras tias — têm um tal delírio pelos vampiros? Deve ser uma fascinação mundial. A indústria cinematográfica não seria o que é, o império que é, se não tivesse, no seu passado, presente e futuro, as bilheterias do vampiro.

     Abro um breve parêntese. Ainda ontem estive com o Palhares, o canalha. Sim, “o que não respeita nem as cunhadas”. E o Palhares me dizia, com um agudo sentimento de frustração: — “Nunca houve um vampiro no Brasil”. O canalha chama isso de “lapso”, que se deve atribuir ao subdesenvolvimento. E, de fato, o sujeito aqui nasce com os pendores mais imprevisíveis. Conheci um que era um “barbeiro de necrotério” nato. Teve as melhores ofertas. Certa vez, um vizinho ofereceu-lhe sociedade numa barbearia. Ponto ótimo, aluguel muito em conta. Repeliu a hipótese com a mais intransigente repugnância. Só queria escanhoar cadáver. Nada o impediria de exercer esta função e de cumprir este destino. Pois bem. O Brasil teve bastante imaginação para dar um barbeiro de necrotério. E nunca pôs no mundo um drácula. Fecho o parêntese.

     Voltemos a Hollywood. O que se propõe, no manifesto citado, é da mais pura e deslavada alienação. Nada mais idiota do que fazer filmes sem violência para uma platéia de violentos. Todas as violências nos fascinam. Sempre foi assim, e agora mais do que violência. O cinema trabalha para o mundo que matou Bob Kennedy, chorou Bob Kennedy e, 48 horas depois, esqueceu Bob Kennedy. O esquecimento veio antes de que murchassem as flores do seu caixão.

     O sujeito entra num cinema e leva a sua tensão exterminadora. Ele odeia e quer ver seu ódio na tela. De vez em quando, a Manchete publica um cadáver do Vietnã. Não se sabe se o morto é de lá ou de cá. Pode ser um herói e pode ser um bandido. O cadáver morreu odiando e continua odiando. Lá está seu gesto retorcido de ódio. E assim a fúria do homem continua para além da vida e para além da morte.

     E que pobre utopia um cinema sem violência, sadismo, terror e medo! Seria a morte da própria indústria cinematográfica. Hollywood desabaria como uma cúpula de palitos. Uma destas noites, passei num sarau de grã-finos. E uma bela senhora dizia, com um maravilhoso impudor: — “Eu era a própria belle de jour. Fiz psicanálise e não adiantou. Continuei belle de jour do mesmo jeito. Até que fui ver o filme e houve o milagre. A heroína fez por mim, sonhou comigo. Saí do cinema purificada. Era uma menina tão pura, tão sem sexo. Nem alma tinha”.

     Assim, o ser humano vai para o cinema lavar as suas abjeções. Já estou acabando e queria apenas acrescentar: — Hollywood devia fazer precisamente o contrário do que exige a sua tola unanimidade. Mais do que nunca, deve fabricar os filmes hediondos. O homem precisa ser colocado diante da própria violência. Temos que ver a face da nossa crueldade. Ou o cinema nos ofende e nos humilha ou, então, deve morrer. E, sempre que o cinema apresenta a sordidez em dimensão gigantesca, cada qual sente o eterno, o sagrado, que existem no mais vil dos seres.

           [24/6/1968]

 

                                         O IRMÃO ADQUIRIDO

     Tempos atrás, o Walter Clark telefonou-me. Foi sumário: — “Preciso de ti”. Ainda perguntei: — “Qual é o drama?”. Fez suspense, fez mistério: — “Só pessoalmente”. E já se despedia: — “Te espero. Vem já”. Meia hora depois, entro no seu gabinete, ali, na TV Globo.

     Tenho que esperar, porque ele despachava alguém. E, então, para fazer hora, vou espiar os quadros do meu amigo. Walter Clark gosta de pintura e, pior, entende de pintura. Ao passo que eu, como o Otto Lara Resende, sou um idiota plástico. Certa vez, aconteceu uma, que considero antológica. Estávamos, eu e o Otto, na casa do Hélio Pellegrino. E paramos, um momento, diante de um Volpi. Veio o Hélio e jurou que o Volpi era “melhor que Portinari”. Uma abjeta pusilanimidade crítica tapou-nos a boca. Mas, assim que o anfitrião virou as costas; ciciei para o Otto e o Otto ciciou para mim: — “Abominável Volpi! Horrendo Volpi!”. Essa sinceridade cochichada lavou-nos a alma.

     E, justamente, o escritório do Walter Clark está cheio de belas cópias de Cézanne, Gauguin, Degas, Monet etc. etc. Aqui há um jóquei, ali uma bailarina, acolá uma mulata e, mais adiante, um clown. Falta-me entusiasmo visual. Para mim e o Otto, a boa pintura é como um texto chinês de cabeça para baixo. Súbito, ouço o Walter balbuciar, de puro assombro: — “Você veio da Hungria só para me tomar dinheiro?”. Era verdade. O sujeito que lá estava viera, sim, de Budapeste, pedir-lhe setenta contos emprestados.

     Walter quis um abatimento para cinqüenta. O patriota húngaro não transigiu: — “Setenta”. E daí não saía. Walter subiu Para sessenta. E ninguém percebeu que os papéis já se invertiam. O pedinte agora era o meu amigo. Sim, era ele que crispava as mãos numa súplica abjeta. O outro estava quase ofendido e quase enojado. Houve um momento em que, nauseado, ergueu-se: — “Ou setenta ou nada”. Então, batido, o Walter encheu o cheque dos setenta. O sujeito olha o papel, verifica a quantia, a data e a assinatura. E vai-se embora sem agradecer e sem se despedir.

     Só então o Walter me chama. E confesso: — pasmei para o esplendor dos seus suspensórios. Não sei se me entendem. O meu amigo usa, hoje, os suspensórios dos gângsteres de Chicago, na Grande Depressão. São, por assim dizer, suspensórios paisagísticos, com figurinhas de flores, bezerros, vaquinhas, bodes, arvoredos, corações flechados. Essas tatuagens encantadas fascinam, não só os visitantes da TV Globo, como os funcionários da casa. Eu diria que a única vaidade física do Walter Clark está nos suspensórios.

     Começamos a conversar e ele foi direto ao assunto: — “Bola um programa de televisão. Coisa interessante. Pra você fazer com o Otto e o Hélio”. Seria um programa sem limite de tempo. E, todas as noites, ou mais precisamente, no fim da noite, eu, o Otto Lara Resende e o Hélio Pellegrino passaríamos em revista, e com a maior imodéstia, os grandes problemas do Brasil e do mundo. Prometi ao Walter: — “Vou pensar”.

     Fui para casa e não me saíam da cabeça as vaquinhas desenhadas nos suspensórios. Quebrava a cabeça e não me ocorria uma idéia, um título, nada. Até que, de repente, fez-se luz. Imaginei um programa que se chamasse assim: — Os falsos canalhas. Repeti para mim mesmo: — Os falsos canalhas. Uma das vantagens do título era fazer mistério, fazer suspense. De resto, “canalha” era uma das palavras mais fortes, mais densas, mais patéticas da língua.

     Quando liguei para o Walter, propondo o título, ele fez espanto: “Por que falsos canalhas?”. Tratei de explicar. Todos os países e todos os idiomas têm uma seletíssima elite de “canalhas aparentes”. Darei um exemplo. Imaginem um político, ou um poeta, ou um artista, ou um ministro, ou um funcionário. Parecem esculpidos em ignomínia. Lembro-me de um rapaz que conheci, uma flor de rapaz. E todos o apontavam e cochichavam: — “Pulha da pior espécie!”. Mas ninguém sabia de um gesto seu menos correto, de uma ação menos digna, de um sentimento menos nobre. Até que, uma tarde, eu próprio o vi passar, de braço, com a esposa linda. Estava aí o mistério de sua reputação: — a mulher bonita.

      E, de fato, não custa chamar de “escroque”, de “gatuno”, de “crápula”, aquele que tem, em casa, uma Ava Gardner. O fato é que os “falsos canalhas” existem, por toda a parte. E o triste é quando o sujeito morre sem reabilitação. Todos pensam, inclusive a própria família, que o morto foi realmente um pulha. Há sempre alguém, no dia de Finados, com vontade de lhe cuspir na cova.

     Mas o que eu queria, na presente confissão, é contar uma experiência muito pessoal. Imaginem que, certa noite, meu irmão Mario Filho apresentou-me a Carlos Heitor Cony. É exatamente a pessoa: — Carlos Heitor Cony. Jornalista, polemista, romancista etc. etc. Eu já o conhecia de nome e de vista. Vira-o, uma madrugada, nos Três Patetas, tomando café. Não sei se café ou sei lá. Não, não: Estava em pé, nos Três Patetas, junto ao balcão, e de cachimbo. Até o momento em que fomos apresentados, Cony era um cachimbo. Não uma pessoa, e não um artista. Um cachimbo.

     Bem me lembro da nossa primeira conversa. Eis o que eu pensava: — que sujeito indesejável, irrespirável e cínico. Eis a palavra: — cínico. Achei Carlos Heitor Cony de um cinismo abjeto e total. E não entendia por que Mario se afeiçoara a ele e tão profundamente. Dizia-me: — “O Cony! O Cony!”. Em suma: — com meia hora de conversa, já não tive a menor dúvida: — era um canalha. Seu riso me ofendia e me humilhava. Na primeira pausa, aproveitei para me despedir. Saí, desesperado e nem sei por que desesperado. Afinal, não tínhamos nenhuma relação especial, nenhuma intimidade. Mas sentia uma angústia intolerável, como se a simples presença de Carlos Heitor Cony exalasse o tifo, a malária, a febre amarela.

     E quantas vezes, depois disso, Mario me falou de Cony. Sim, o meu irmão continuava achando o amigo um maravilhoso ser. Eu não entendia nada. Mas senti, sempre, sempre, que Mario ia ser, e para sempre, amigo do canalha. Até que, uma madrugada, às quatro e pouco, bate o telefone. Lúcia atende: — Mario acabara de morrer. Corri para vê-lo. Na véspera, tomamos café juntos, no bar da esquina. E ele combinara, para o dia seguinte, uma chopada com o Hélio Pellegrino. Debrucei-me sobre o irmão. As mãos entrelaçadas e com que estremecido amor. Tive pudor de beijá-lo.

     Bem. Quero falar, não de mim, mas de Carlos Heitor Cony. Chegou, na casa de Mario, às seis da manhã. Pára diante de mim, abre os braços, grita: — “Como foi isso? Como foi isso?”. O espanto veio antes da dor. Eu via, ali, um outro Cony, absurdo, irreal, jamais concebido. E, depois, ficou ainda, algum tempo, vagando por entre mesas e cadeiras — tão órfão de Mario. Foi aí e só então que entendi a amizade que os unia. O irreal, o absurdo, era o Cony cínico, o Cony pulha, o Cony obsceno; o verdadeiro Cony é o da orfandade brutal. Vi-o desabar. Afundou o rosto nas duas mãos, chorou alto, chorou forte. E, naquele momento, eu me tornei seu irmão, para sempre. Era, sim, o falso canalha.

              [25/6/1968]

 

                                              VELHO MITO

     Imaginem vocês a Irlanda de 1919 ou 20. Havia lá, numa cidadezinha obscura, um prefeito igualmente obscuro. Não se notava entre ele e os demais nenhuma forte e crespa dessemelhança. Absolutamente. Não era pior nem melhor do que milhões de irlandeses, vivos ou mortos. E tinha essa mediocridade de virtudes e defeitos que exigimos do bom marido e do exemplar funcionário.

     Até que, um dia, esse burocrata apagado resolve fazer um protesto contra a Inglaterra. Hoje, todo mundo protesta. Há sujeitos que acordam indignados e não sabem contra quem, nem por quê. Naquele tempo, não. Depois de uma guerra, o mundo estava exausto do próprio ódio. Havia um tédio da violência e da paixão. Mas o homem resolveu desafiar todo o império inglês.

     Anunciou a greve de fome e a começou. Claro que, em nosso tempo, as técnicas de comunicação têm uma eficácia e uma instantaneidade prodigiosas. Faz-se um gênio ou idiota, um santo ou herói em quinze minutos de fulminante promoção. Em 1920 ou 21, porém, uma notícia ainda levava meia hora para chegar de uma esquina a outra esquina.

     Assim mesmo, o mundo soube, já no dia seguinte, que alguém estava morrendo pela liberdade. (Não existe, hoje, palavra mais vã, mais sem caráter, e, direi mesmo, mais pulha do que “liberdade”. Como a corromperam em todos os idiomas!) Sim, o martírio do vago funcionário irlandês teve uma platéia mundial. Dia após dia, o prefeito ia morrendo, ia agonizando nas manchetes. A Inglaterra fez o diabo para salvá-lo. Mas aquele santo nacional não se corrompeu.

     A morte amadurecia no seu coração atormentado e puro. Mas falei em “platéia mundial” e preciso acrescentar que eu, garoto de seis anos, de pé no chão, fui um dos espectadores. Na minha rua, em Aldeia Campista, os moradores apostavam na sua vida e na sua morte. E quando, finalmente, ele morreu, e morreu de fome e de sede, houve uma misteriosa irritação.

     Quero crer que, em Aldeia Campista, o patriota irlandês só foi amado por mim. E amado porque eu era um menino, um pobre ser ainda incorrupto. Mais tarde, compreenderia que o santo, ou herói, ou mártir, ofende e humilha os demais. Na própria Irlanda, agonizou só e morreu só. A solidão do seu gesto, até hoje, ainda me fere de espanto.

     Foi talvez o último herói do século. Não sei se exatamente o último. Vá lá — “o último”. Em nosso tempo, só conhecemos o heroísmo coletivo. Na guerra, não se viu uma Joana D’Arc. A heroína era Varsóvia, Roterdã, Londres ou Hiroshima. E, depois da guerra, o homem nunca mais ficou só. Cada um de nós é um comício, uma assembléia, uma unanimidade.

     Na hora de odiar, ou de matar, ou de morrer, ou simplesmente de pensar, os homens se aglomeram. As unanimidades decidem por nós, sonham por nós, berram por nós. Qualquer idiota sobe num pára-lama de automóvel, esbraveja e faz uma multidão. Um camelô de caneta-tinteiro é mais ouvido do que os profetas antigos. E, quando está só, o homem começa a babar de pusilanimidade. As maiorias, as unanimidades ululantes, é que dão à nossa covardia um sentimento de onipotência.

     Hoje, o prefeito irlandês seria uma rigorosa impossibilidade. Não teria sentido a sua feroz solidão. Sentiríamos falta, no episódio, da assembléia, do comício, da massa. E daí porque há, em nosso tempo, o ódio ao herói. Não existe figura mais indesejável, antiga, inválida, espectral.

     Ainda há pouco, viu-se a França levantar-se contra De Gaulle. Lembro-me de uma fotografia das greves francesas. É uma rua de paralelepípedos arrancados. É como se até os paralelepípedos estivessem contra o herói. Disse eu, linhas atrás, que o prefeito irlandês, em sua inútil greve de fome, fora o último caso de heroísmo solitário. Faço a correção: — existe também De Gaulle. Outro dia, uma estagiária do Jornal do Brasil veio perguntar-me: — “Qual a sua opinião sobre De Gaulle?”. Eu poderia ter dito: — “De Gaulle é o passado”. E estaria certo. O herói é o passado.

     Mas como ia dizendo: — o país se levantou contra o mito. Estudantes levavam cartazes assim: — “De Gaulle assassino”, “Fora De Gaulle” etc. etc. E o prodigioso é que a França foi a pátria dos heróis. Mas não se iludam. A própria França é o passado. Diante de nós está a anti-França.

     No momento em que o país se matava em greves, De Gaulle fez um pronunciamento. Disse: — “Eu sou a Revolução”. Mas vejam a obstinação com que ele se diz “eu”. Usa uma linguagem morta, até o último vestígio. Ao se apresentar como o último “eu” do século, De Gaulle pôs entre ele e o seu povo toda uma distância irreversível.

     Dirá alguém que os paralelepípedos foram repostos, que não há mais carros virados e que apagaram o incêndio da Bolsa. Por outro lado, os operários que seqüestraram os gerentes já os devolveram. Tudo isso é certo. Mas nada impede que De Gaulle seja o puro e irremediável passado. O herói está só e cada vez mais só. Sei que o resultado das eleições parece uma ressurreição. De Gaulle ganha por toda a parte. Mas é preciso ver o que há de aparente, de ilusório, de efêmero em tal vitória. São os cem dias napoleônicos.

     O que se passou entre ele e o seu povo é uma incompatibilidade irremediável, fatal. A França das assembléias, das maiorias, das unanimidades, não aceita mais o herói solitário e formidável. De Gaulle não sabe que está morto, e faz discursos.

              [27/6/1968]

 

                                           O NEGRO AZUL

     Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma misteriosa angústia. Quero que me entendam. Disse “angústia”, mas explico: — era um sofrimento menor e indefinível. Paro de bater à máquina e puxo um cigarro. Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá. Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê. Voltei para a redação e aquilo não me saía da cabeça. “Falta alguma coisa”, repetia para mim mesmo.

     Mas não sabia o que era. Paciência. Quero trabalhar e não posso. De repente, há um clarão interior: — as polainas! Eu sentia, exatamente, a falta das polainas. Não em mim, que nunca as usei, mas nos outros. Olhem em torno, baixem a vista. As polainas desapareceram da cidade, do país. São antigas, espectrais, como o guarda-chuva de Paulo de Frontin. Será que alguém as usa? Esqueço o trabalho e me concentro. Eis a pergunta que me faço: — “Qual foi o último sujeito que eu vi de polainas?”.

     Um deles foi o dr. Jacarandá. Outro: o cidadão Pingô. Mas o último, exatamente o último que vi de polainas foi um preto, oficial de Justiça. Sempre digo que nunca se viu, neste país, um negro de casaca. É verdade. Os nossos patrícios de cor já usaram tudo e, se quiserem, até folha de parreira, menos casaca. Estou para fazer uma tragédia racial, cujo título é o seguinte: — O negro azul. Morava o “negro azul” num pardieiro, em Del Castilho. De manhã, entrava ele na fila do banheiro coletivo. Até que, um dia, às dez horas da manhã, todos o viram sair de casaca. Casaca e cartola. Não tomou um táxi, um ônibus, um bonde ou taioba. Levou a casaca a passear pelas ruas e a pé. O desfile começou às dez da manhã e só parou à meia-noite. Exatamente à meia-noite, atirou-se debaixo de um ônibus. Ninguém soube jamais que a casaca era o seu protesto contra o Brasil.

     Volto ao oficial de Justiça. Fisicamente enorme, era um negro plástico, lustroso, ornamental. E tinha uma voz de Paul Robeson, as ventas de Paul Robeson, os beiços de Paul Robeson. Vou eu passando pela rua Senador Furtado (ou seria Senador Pompeu). E, súbito, vejo adiante um ajuntamento. O brasileiro se incorpora a qualquer grupo de mais de cinco pessoas. De mais a mais, temos a fascinação do escândalo. E eu, da esquina, já ouvia o berreiro tremendo, gritos de mulher etc. etc.

     Tantos anos depois, ainda vejo o Paul Robeson em todo o esplendor de sua figura e de suas polainas. Vocalmente, tinha a potência de um barítono, ou baixo cantante, desses que exigem a acústica de uma catedral, a cúpula de uma catedral. Enchia a rua, o bairro, com o seu clamor: — “Eu tenho razão! Eu tenho razão!”. Lá estavam elas, as polainas. O homem andava de um lado para outro. Bem vi que as polainas o desagravavam da frustração da casaca. Soltava a voz: — “Eu tenho razão! Eu tenho razão!”.

     Em três ou quatro minutos, vim a conhecer a história toda. Aquilo era um despejo. O crioulão de polainas estava ali como oficial de Justiça. Outros crioulões, e um branco sarará, iam e vinham, trazendo os móveis e empilhando tudo na calçada. Quanto à mulher dos gritos (e continuava gritando), era viúva e mãe de cinco ou seis filhos. Há uns três meses o marido morrera tuberculoso e deixara, para a mulher, além das dívidas, a própria doença.

     Cabe então a pergunta: — e de onde vinha a magnífica, a estupenda, a ululante razão do oficial? Ei-la: — a viúva não pagava o aluguel há um ano. E, portanto, ele podia abrir sua razão de par em par, como uma manchete. Outrora, o brasileiro reagia muito contra a violência, mesmo justa, mesmo legal. Sempre um ou outro gritava: — “Não pode, não pode!”. Mas ninguém insinuou um vago pio em favor da viúva e dos filhos. De vez em quando vinha a tosse afogar a sua fúria. Ela se torcia e destorcia em náuseas medonhas. Houve um momento em que, depois do acesso, cuspiu na palma da própria mão e espiou o sangue. A vista do vermelho distraiu-a do despejo. Arquejou, sem desespero, apenas informativa: — “O falecido me chama”. Não chorou mais, ou por outra: — continuou chorando, mas sem gritar. E as polainas eram mais insolentes do que esporas.

     Eis o que eu queria dizer: — vem daí, desse pequeno e ilustrativo episódio, o meu horror às pessoas que têm razão e a proclamam com o impudor da manchete. Dirá o leitor que qualquer um pode ter razão. Nem todos, nem todos. Eu diria mesmo que só algumas almas seletíssimas, alguns espíritos de rara delicadeza podem tê-la. Lembro-me de outro episódio também perfeitamente cabível. Foi uma briga de mulheres. Uma senhora insultou outra. Por que, não me lembro. E o marido da ofendida foi tomar satisfações. A culpada estava esperando criança. Mas o Fulano tinha razão; e porque a tinha derrubou-a a bofetões e mais: — pisou-lhe a barriga, chutou-lhe a gravidez. Correto. Tinha razão.

     Nas almas menos nobres, a razão pode subir à cabeça em forma de vil embriaguês. E os piores sentimentos, e as crueldades mais secretas e inconfessas, e todos os demônios do orgulho são liberados. Tudo que sei da vida ensina que a razão pode perder a nossa alma e repito: — pode destruí-la.

     Fiz a volta imensa para chegar à juventude. Vocês me entendem. Falo dessa figura impessoal, sem cara, sem nome, que é “o jovem”. Eis o seu drama: — mesmo sem razão, ele a tem. É uma razão que não lhe custa um esforço, um mérito, um sacrifício, uma conquista. Tem razão porque é jovem. Não sei se vocês leram um recente artigo do dr. Alceu. Vale a pena.

   (Claro que não estou falando de razão em cada caso concreto e específico. Refiro o problema vital que se está criando com uma desfaçatez inédita.) Todo o artigo do dr. Alceu é muito curioso. Mas em dado momento descobre o notável pensador a “razão da idade”. É fantástico.

     A razão da idade muda todas as relações e todos os valores. Nem importa o que faça “o jovem”. Incendeia a França. Tem dezessete, dezoito, 22 anos. E basta. Arranca os paralelepípedos e vira os carros. Pode fazê-lo porque tem no bolso a triunfal certidão de idade. Se nasceu no ano X, tudo lhe é permitido. Estão aí o jornal, o rádio, a TV para justificá-lo, para absolvê-lo. Há uma “Moral da Idade”, assim como há uma “Igreja da Idade”. Conheço sacerdotes que só confessam “o jovem”. Todos põem na mão do jovem, como uma bomba, a razão absoluta. O mundo deixou de ser dos “mais velhos”. Mas pergunto: — que fará “o jovem” com sua onipotência? A razão da idade pode destruir o mundo.

             [1/7/1968]

 

                                            O BOM PADRE

     Como qualquer autor, vivo ou morto, tenho três ou quatro personagens obrigatórios. E um deles é o havaiano de filme. Hoje, não há mais louro no Brasil. Todo mundo é moreno. E quando falta uma praia, há sempre um sol à mão. Vem o sol e lambe e bronzeia e lustra qualquer um. Somos 80 milhões de havaianos e de havaianas. Dirão que há garotas de cabelo dourados. Não importa. No Brasil atual, mesmo as louras são morenas.

     Que abismo entre as gerações românticas e os novos tempos! Na época do Dumas filho, o certo, o correto e, mesmo, o obrigatório era a palidez diáfana e intensa. Nos velhos folhetins, ao menor pretexto, os personagens cobriam-se de uma “palidez mortal”. Aqui mesmo, o nosso Bilac ouvia estrelas “pálido de espanto”. (Hoje, o mesmo Bilac ouviria as mesmas estrelas “moreno de espanto”.) E nem a morte mudava a cor de ninguém. Só o cadáver preto era azul. Ao passo que o branco, vivo ou morto, tinha a mesmíssima lividez.

     O que é mesmo que eu estava dizendo? Já sei. Dizia eu que somos todos havaianos. Todos, menos um. E, de fato, há um brasileiro que se constitui em uma exceção escandalosa. O único não moreno. Eis o seu nome: — Nelsinho Motta. Daqui a oitenta anos, sua alma subirá aos céus, num carro azul de glórias, como Elias e como o pai de Augusto dos Anjos.

     E, lá, os anjos e os santos perguntarão ao Nelsinho: — “Você nunca foi à praia? E nunca tomou banho de mar?”. Alçando a fronte, dirá o colega e patrício: — “Nunca tomei banho de sol, nunca tomei banho de mar”. E assim é e assim será, eternamente. Nelsinho Motta é a única palidez que se conhece na vida real. Eu próprio já o chamei, certa vez, de Alfredo, da Traviata. Mudei de opinião. É muito mais Werther do que Alfredo. E tão Werther que, ao vê-lo, tenho vontade de perguntar-lhe: — “Quando é o suicídio?”.

     Mas disse eu que o colega era o caso único de palidez que se conhece no Brasil de nossos dias. E, novamente, tenho que fazer uma exceção. Conheci, três ou quatro noites atrás, uma outra palidez, e não menos diáfana. Imaginem vocês que fui a um sarau de grã-finos na Gávea. Sim, Gávea.

     Entre parênteses, direi que qualquer sarau desse tipo lembra muito um pesadelo humorístico. Se não me entendem, explico. Humorístico porque uma reunião grã-fina se assemelha a todas as reuniões grã-finas passadas, presentes e futuras. Entro lá e penso: — “Vai acontecer tudo outra vez”. E, de fato, são os mesmos decotes, as mesmas sandálias, e os mesmos cabelos, e perfumes, e frases, e jóias etc. etc. Fecho o parêntese.

     Assim que me viu, a dona da casa veio para mim, radiante. Estendeu não uma, mas as duas mãos. Perguntou: — “Como vai esse reacionário?”. Numa época em que ninguém se ruboriza, eu fiquei, e o confesso, vermelhíssimo. Digo: — “Vai-se vivendo”. E já a dona da casa (uma havaiana) me puxava: — “Vem cá, vem cá. Alguém quer te conhecer”. Demos alguns passos e encontramos a pessoa. Era uma outra grã-fina e, como a anfitriã, uma falsa bonita. Diga-se de passagem que todas as presentes eram falsamente lindas.

     A dona da casa me apresenta: — “Aqui, o maior reacionário do Brasil”. Digo: — “Não mereço tanto”. E, então, ela se volta para a amiga: — “Aqui, Fulana”. Pausa teatral e completa: — “A amante espiritual de Guevara”. Sou dos que se espantam de vez em quando. Achei aquilo meio forte (bobagem minha). Mas a amiga fixa em mim o seu olhar límpido e triste. Queria dizer simplesmente que era “amante espiritual” de Guevara: — “Com muita honra”. Deliciada, a anfitriã insistia: — “Não é brincadeira. Sério, sério”. E disse mais: — “Com o consentimento do marido. Quer ver? Um momentinho”.

     Afastou-se um minuto. A outra não tirava os olhos de mim. Houve um momento em que, para dar passagem ao garçom, chegou tanto o rosto que senti o frêmito de suas narinas. Voltava a dona da casa com o marido da amiga. (O marido era só testa. Não tinha mais nada. Só testa.) A anfitriã fala: — “Diz pra ele. Sua mulher é o quê?”. A testa respondeu, em tom monotonamente informativo: — “A amante espiritual do Guevara”. Silêncio. Eu não sei se devo rir, sorrir ou ficar sério. Mas ninguém, ali, achava graça. Era um fato ou, para ser mais explícito, um adultério como outro qualquer.

     E, depois, saiu a dona da casa com o marido alheio. Foi aí que ela me disse: — “O senhor, que é jornalista, sabe de uma sessão que...”. Interrompe-se; e continua: — “Sou católica, mas... Sabe de uma sessão espírita, onde eu possa comunicar-me com Guevara?”. Fiz um suspense. Começo: — “Bem. De momento, não me lembro de nenhuma. Só pensando”. E cada vez me convencia mais de que era uma falsa bonita. Finalmente, sem uma palavra, ela me deixou ali, e ia, ereta, a fronte alta, os olhos sem luz, misteriosa como uma sonâmbula.

      Todavia, a noite não esgotara ainda o seu repertório de singularidades. Em seguida, vi a anfitriã arremessar-se (e quase o garçom a atropela). Dizia: — “Padre Fulano! Padre Fulano!”. Espiei a figura que acabava de chegar. Falei no Nelsinho Motta. E o padre era outro pálido e, quero mesmo crer, mais pálido do que o Nelsinho. Nunca pisara numa praia. Talvez a palidez fosse a sua única concessão ao misticismo. Primeiro, a dona da casa; e, em seguida, outras o envolveram, quase o raptaram. Esquecia-me de dizer: — não usava batina. Colarinho, gravata, terno, como qualquer um. “Padre moderno”, notou alguém.

     Resistia às havaianas que o cercavam: — “Estou de passagem. Deixei o automóvel na porta. Vim aqui”. Uma voz feminina pedia pelo amor de Deus: — “Fica só quinze minutos”. Ele acabou perdendo a paciência: — “Um momento, um momento!’’. Como era confessor de várias, inclusive da “amante espiritual” de Guevara, tinha autoridade e se dispôs a exercê-la. Berrou: — “Silêncio!”. E, assim, emudeceu todos os cochichos. Sentiu que havia acústica para sua mensagem. Disse forte, disse alto: —’ “Vim aqui pedir desculpas pelos 2 mil anos da Igreja!”. Suspense. Repetiu: — “Peço desculpas pelos 2 mil anos da Igreja!”. Pessoas de outras salas vinham espiar, espavoridas. Mas o padre já se despedia, com um aceno geral: — “Até logo, até logo. O táxi está esperando. Tabela 2!”. Como era tabela 2, deixaram-no partir.

     Só depois eu soube que, antes dele, um outro sacerdote fora a um programa de estudantes na televisão. Começara exatamente assim: — “Vim aqui pedir desculpas pelos 2 mil anos da Igreja”. Mas não são os únicos. Outros e outros estão repetindo, com patética e rutilante humildade: — “Peço desculpas pelos 2 mil anos da Igreja”. Pergunto se é uma palavra de ordem. E a sensação dos fiéis é de que se trata de um vil passado, de vinte séculos de lepra espiritual.

             [2/7/1968]

 

                                         A MULTIDÃO AFRODISÍACA

     Nunca me esqueço de uma conversa que tive, há tempos, com o Plínio Marcos, o autor mais representado do Brasil. Hoje, é difícil, senão impossível, descobrir um teatro que não tenha o seu nome, na frente, como uma manchete. Mas eis o que me disse o Plínio Marcos: — “Eu queria representar no Maracanã, para 200 mil pessoas!”.

     (Digo Maracanã, e com que remorso o digo. O Maracanã é muito mais Mario Filho do que Maracanã.) Mas ao ouvir falar em 200 mil pessoas, concordo: — “Boa platéia, boa platéia!”. Era uma noite fria. O hálito do mar gelava os edifícios. E, então, o nosso dramaturgo exaltou-se de vez. Sonhava aos berros: — “A minha peça seria a partida principal. E o Fla-Flu, a preliminar”. A hipótese o fascinou. Soluçava: — “O Fla-Flu como preliminar da minha peça!”.

     Uma semana depois, vou a um sarau de grã-finos. Súbito, um dos presentes, já bêbedo, começou a falar em morte e, em seguida, na própria morte. Dizia o pau-d’água de luxo que não há ninguém mais exibicionista do que o defunto. O morto quer platéia. E o ideal seria que a nossa morte fosse preliminar do Fla-Flu. E o sujeito, em vez de morrer para meia dúzia de familiares e vizinhos, teria um velório de 200 mil pessoas.

     Foi aí que percebi, subitamente, toda a verdade. A nossa utopia mais fascinante é a platéia do Fla-Flu, de Flamengo x Vasco. Sim, o homem moderno gostaria ser épico, sublime, obsceno e romântico para multidões gigantescas. E já me ocorre uma objeção contra a preliminar do Fla-Flu. Ei-la: — não há sacadas no Estádio Mario Filho. A superioridade das últimas passeatas sobre as massas do futebol está, exatamente, nas sacadas.

     Se não entendem o que estou dizendo, passo a explicar. Hoje, não há mais terça-feira gorda e, repito, a terça-feira gorda morreu até o último vestígio. Mas houve um tempo em que os préstitos paravam a cidade. As pessoas alugavam sacadas para ver as grandes sociedades. Ao passo que, em nosso tempo, as sacadas deixaram de ter uma função estritamente contemplativa e assumiram o seu destino histórico (desculpem esse tom de editorial do Jornal do Brasil).

     Sim, as sacadas foram, nas recentes passeatas, a grande revelação. Vocês se lembram. Embaixo, o grande desfile estudantil. Imagino que tenha sido uma surpresa até para os jovens. E, de repente, sem aviso prévio, as sacadas passaram a ter uma ação política, ideológica, libertária como as barricadas. Elas começaram a pensar, a ousar idéias, gestos, frases, sentimentos, berros. Instantaneamente, todos perceberam que as sacadas eram barricadas aéreas, aladas, superpostas. Lá de cima, chovia papel picado, e mais, listas telefônicas, processos, cadeiras. À distância, tinha-se a impressão visual de que o papel picado era neve de Papai Noel. Nunca me esqueço de um décimo andar que começou a nevar cinzeiros e até baldes. De mais a mais, as sacadas aplaudem como as frisas e os camarotes da ópera. E os que passam cá embaixo simplesmente passam, e não fazem mais nada senão passar — têm uma sensação de ópera sem lustre, sem torrinhas, sem libreto e sem cafezinhos nos entreatos.

     E, de repente, a sacada passou a ter um papel decisivo nas passeatas. É uma excitação a mais, uma espécie de afrodisíaco ideológico, sei lá. Ou por outra: — não se trata bem de ideologia. A sacada traz um tremendo apelo à nossa vaidade. Pode parecer um sentimento menor, quase vil. Nem tanto, nem tanto. A vaidade está inserida na complexidade dos santos, dos heróis, dos mártires. São centenas, milhares de sacadas que pendem sobre nós e atiram sobre nós listas telefônicas. Visualizem a cena: — o sujeito vem passando. E, súbito, cai-lhe no crânio, baixando do 12? andar, um cinzeiro. O sujeito há de sentir-se perfeitamente sublime.

     Mas falo, falo e não digo o essencial. Hoje, queria pingar duas palavras sobre a inteligência nas passeatas. Reparem: — qualquer um pode falhar, menos o intelectual. Não houve chuva em nenhuma marcha. Mas, fizesse um mau tempo de quinto ato do Rigoletto e já estaria ele, firme, inarredável, inexpugnável. Mas escrevi “intelectual” e cabe uma especificação: — falo do escritor, do romancista, do ensaísta e, numa palavra, daquele que depende sempre de um leitor. Não se pode pluralizar o leitor. Mesmo o best-seller de 500 mil exemplares é lido por um, fatalmente por um. Por outro lado, o leitor é o ausente, o invisível, o intangível. Portanto, o romancista tem uma inconsolável nostalgia de massas.

     Vimos que, no sarau de grã-finos, um pau-d’água queria fazer, da própria morte, a preliminar do Fla-Flu. Duzentas mil pessoas haviam de recolher o seu último suspiro. O dramaturgo Plínio Marcos gostaria de representar no ex-Maracanã para as mesmas 200 mil pessoas. E ninguém escapa à fascinação numérica da multidão. Mas o escritor não tem possibilidade nenhuma de massas. Bem que gostaria de ser lido, no Estádio Mario Filho, por 200 mil pessoas ao mesmo tempo.

     Ora, a passeata o desagrava de sua humilhante solidão. Fui com Raul Brandão, o pintor de igrejas e grã-finas, ver o desfile. E, súbito, o Raul crispa a mão no meu braço: — “Olha lá! Ali”. Virei-me, e confesso o meu deslumbramento. Primeiro, vi a tabuleta: — “Intelectuais”. Sempre tive a impressão injusta, a impressão iníqua de que há, na cidade, uns sete intelectuais. Ou nove. Vá lá, dez. E eis que, no espaço reservado à “Inteligência”, se concentrava uma multidão nunca vista. Jamais me ocorrera a hipótese paranóica de que o Brasil tivesse tantos intelectuais. Por um momento, eu e o Raul Brandão ficamos só olhando, esbugalhados de assombro. E admiramos a disciplina daqueles finos espíritos. Ninguém se mexia. Todos quietinhos, como se estivessem engradados.

     Não larguei mais os intelectuais. O Raul Brandão tremia: — “Viste como o Brasil é inteligente?”. De fato, a evidência numérica estava a demonstrar que somos uma potência espiritual de primeiríssima. Já começava a marcha. Eu e o Raul Brandão fomos ao lado de um romancista. Caminhamos até à rua do Ouvidor de olho no romancista. E em outros romancistas, e ensaístas, e poetas, e cronistas, e sociólogos (cada vez me convencia mais da insuportável inteligência do Brasil). Cada intelectual marchava como se fosse, no mínimo, um Proust, um Joyce. Volto ao primeiro romancista. Livrara-se da tirania, numericamente humilhante, de um único leitor. Tinha sua platéia de Fla-Flu. E estava magnetizado pelas sacadas. Um catálogo de telefone, atirado de um 13° andar, podia rachar-lhe o crânio. Morreria feliz. E como transpirava de glória e de esforço físico. Vi o suor pingando e, repito, o suor chorando na sua cara gorda.

              [12/7/1968]

 

                                           A MORTE DO TEATRO

     Hoje, a classe teatral é realmente uma classe. Ninguém anda só, ou por outra: — a única solidão que conheço, em nossa comunidade, sou eu mesmo. No meio dos meus colegas, eu me sinto só, e tão só, como um Robinson Crusoe sem radinho de pilha. Ao passo que os outros autores, e os atores, e as atrizes, e os contra-regras, e os maquinistas são A CLASSE.

     Não vejam, porém, nas minhas palavras, nenhuma insinuação restritiva. Deus me livre. Diria mesmo que considero a minha solidão, não uma virtude, mas uma incapacidade. Bem que eu gostaria de ter um mínimo de vocação associativa. Gostaria de ser ninguém ou, por outra, ser apenas GRUPO, CLASSE, REUNIÃO, ASSEMBLÉIA, DISCURSO!

     Outro dia, cruzei com a minha amiga e grande atriz Cacilda Becker. Ia cumprimentá-la, mas não me atrevi. Como tratá-la? Outrora, eu diria: — “Olá, Cacilda”, ou “Bom dia, Cacilda”, ou “Tudo azul, Cacilda?”. Sim, houve um tempo em que Cacilda era Cacilda, simplesmente Cacilda e apenas Cacilda. Hoje, tudo mudou. Cada ator, ou atriz, ou autor, ou diretor, ou cenógrafo é um misterioso ser impessoal, rumoroso, coletivo. E eu teria que saudar Cacilda assim: — “Olá, Comissão”, “Olá, Assembléia”, “Olá, Passeata”.

     Dias atrás, ao sair de casa, encontro um ator patrício, à espera de condução. Ergueu o gesto e anunciou: — “Vou à passeata!”. Disse eu não sei o que ou, melhor, não disse nada, e ele começou a falar. Juntou gente. Não era um ator, era um Discurso, era uma Comissão, era uma Assembléia. Dizia “nós” e não “eu”. E, de repente, entraram, de roldão, o Vietnã, Mao Tsé-tung e Guevara. Com mais um pouco, ele sairia por aí virando carros, arrancando paralelepípedos e incendiando a Bolsa (tal como em Paris).

     E daí a minha admiração pela CLASSE. Em outra ocasião, houve, em São Paulo, um “seminário de teatro”. Era de teatro e, como dramaturgo, lá fui eu. Imaginei que íamos discutir representação, técnicas, décor, luz, textos etc. E, súbito, um alienado qualquer falou em dramaturgia. Quase o lincharam. Um latagão enfiou-lhe o dedo na cara, aos berros: — “Pensa que nós estamos aqui pra discutir teatro?”. O quase-agredido baixou a cabeça, lívido de pusilanimidade. Sentou-se no seu canto e lá ficou, numa solidão de comício de 1° de Maio.

     Eis o que eu queria dizer: — entendo, como ninguém, as posições da CLASSE. Ótimo que cada ator, ou atriz, ou diretor, tenha uma ênfase de 14 de Julho, de tomada da Bastilha, de Hino Nacional. A política é a grande linguagem do nosso tempo. E cada qual, para sobreviver, simplesmente existir, precisa ter um toque ideológico. Tudo isso é certo e eu concordo. Mas estão acontecendo coisas que justificam, a meu ver, uma relativa perplexidade. Não sei se vocês conhecem o caso de Norma Bengell. O que aconteceu com a famosa atriz tem mais suspense e mistério do que qualquer Hitchcock. Os jornais já comentaram, a TV cobriu, o rádio deu. Vamos aos fatos.

     Um jornalista norte-americano resolveu assistir à peça de Norma Bengell. Ouviu dizer que se tratava de atriz notável, um valor internacional, e quis ver. Foi à bilheteria, adquiriu e pagou os ingressos, deixou uma propina e foi à vida. Na hora própria, ou melhor, com meia hora de antecedência, estava na porta do teatro. Soube, então, que não havia espetáculo. Deixou passar três ou quatro dias e voltou à bilheteria. Perguntou, com sotaque: — “Há espetáculo?”. Havia. E, novamente, comprou os ingressos, pagou e deixou uma propina. Mais tarde, e antes de sair de casa, telefonou para o teatro. Fez a honrada pergunta: — “Há espetáculo?”. Havia. Lá se mandou ele com todos os convidados. Chega e sabe: — não havia espetáculo.

     A partir de então, passou a desconfiar que há qualquer coisa de errado, não só no teatro, como no próprio Brasil. Deixou passar mais uns cinco dias. E volta à bilheteria. Pergunta: — “Há espetáculo?”. Havia. Pela terceira vez, comprou os ingressos, deu a propina e partiu. Dez minutos antes de abrir o pano, liga para a bilheteria e pergunta: — “Há espetáculo?”. Resposta: — “Há”. O desgraçado pergunta: — “Posso ir?”. E do outro lado: — “Pode vir”. O americano junta os convidados e chega ao teatro em cima da hora. E o apunhalam com a notícia: — não havia espetáculo. Desta vez, o que era simples e difusa angústia tornou-se pânico total. O homem e os convidados começaram a achar que o Brasil está louco.

     Mas não desistiu. Deixou passar mais dois dias. Ei-lo de volta ao bilheteiro. Desta vez, os convidados o acompanharam, todos mortalmente interessados naquele suspense insuportável. Cada um perguntou: — “Há espetáculo?”. A resposta foi uma só: — “Sim, senhor”. Desta feita ninguém foi para casa. Todos se reuniram num boteco próximo e lá ficaram, esperando a hora de subir o pano. Um processo de angústia instalara-se no grupo. E, quando chegou o momento, lá foram eles. Ou por outra: — primeiro, foi um voluntário fazer um reconhecimento. Informaram que havia o espetáculo. Voltou com a grande notícia: — “Há espetáculo”. Todos se juntaram, numa euforia feroz, e foram para a porta do teatro. Não havia espetáculo, simplesmente não havia espetáculo.

     Não era mais possível nenhuma dúvida ou sofisma. Aqueles sujeitos se convenceram e, para sempre, do seguinte: — não haveria espetáculo nunca mais, nunca mais. Daqui a duzentos anos, na hora de subir o pano, virá um funcionário avisar: — “Não há espetáculo”. O tal americano está convencido de que os nossos atores, as nossas atrizes, não representam, de que os nossos diretores não dirigem, de que os nossos cenógrafos não fazem cenários.

     E talvez seja esta a santa verdade. Dizia-se que o Brasil é um país racional. Já não sei, e tenho as minhas dúvidas. Os atores não representam, e também o romancista não faz romance, nem o poeta, poesia, nem o pintor, pintura, nem o cineasta, filme. Sim, as coisas que devem ser feitas, ninguém as faz. Cabe então a pergunta: — e por quê? Primeiro, porque tanto o teatro, o romance, a poesia, a pintura ou a música vivem de umas tantas ou quantas individualidades fortes, crispadas, miguelangelescas. E hoje o artista prefere ser ninguém, isto é, ele morre em classes, assembléias, discursos e passeatas. O artista é um cadáver.

           [14/7/1968]

 

                                           OS NOIVOS

     Tinha eu sete anos. Não havia ainda o Poder Jovem e, pelo contrário, o Brasil estava cheio de setuagenários natos. Muitos nasciam com cinqüenta, sessenta, setenta anos. Por exemplo: — Rui Barbosa. Nasceu de fraque e já conselheiro. Volto aos meus seis anos. Ou por outra: — sete, eu disse sete. E, um dia, veio morar, perto da minha casa, uma senhora admirável.

     Na minha infância, assim como os homens eram velhos, as mulheres eram gordas. E d. Ivonete (ou seria Ivete?) teria cem quilos, talvez. Às sete horas da manhã, já estava vestida de veludo encarnado, um decote de Elizabeth Taylor, pintada como uma máscara. Usava colares, braceletes, diademas, pingentes, o diabo. Para meu gosto, d. Ivonete era mais bonita do que Dorothy Dalton, heroína do cinema mudo.

     E d. Ivonete era noiva. Aqui começa a singularidade da nova vizinha. A partir das dez horas, começavam as visitas do noivo. O Fulano passava quarenta minutos lá e saía. Dez minutos depois, voltava. Todavia, ao voltar, o noivo de d. Ivonete tinha outra cara, outro terno, outra gravata, outra idade e, até, outra cor. O movimento entrava pela noite adentro. E vejam como são as crianças: — não me admirava nada, nada, que o noivo mudasse de cara, de terno, de idade, de meia em meia hora.

     Até que, um dia, não sei quem denunciou. E o fato é que a polícia foi bater na porta de d. Ivonete. (Segundo se soube depois, quem deu o serviço foi outra vizinha, uma que falava mal de todo mundo. Era outra gorda. Não me lembro do seu nome, nem de sua cara. Só me lembro das gazes enroladas nas canelas, por cima das varizes.) D. Ivonete foi expulsa da rua, do bairro. Arrastada por três ou quatro, esganiçava palavrões. Berrava: — “Vocês vão me pagar! Vocês vão me pagar!”.

     Só então se conheceu toda a verdade: — d. Ivonete pertencia à mais antiga das profissões. Bem. E o curioso é que esta lembrança nasceu de uma leitura de jornal. Li, em toda a imprensa, que há um motim de padres. Os padres se revoltam, e contra que ou contra quem, meu Deus? Contra a castidade. Exigem o fim do celibato. Portanto, odeiam a castidade.

     Comecei a ler sobre o motim e pensei, vejam vocês, na vizinha da minha infância (cada gesto seu era uma cintilação, um alarido de pulseiras, colares, pingentes etc. etc.). E de d. Ivonete passei para as mulheres que, em todos os tempos e em todos os idiomas, praticaram o amor pago. Disse eu: — “A mais antiga das profissões”. Sim, uma profissão de uns 40 mil anos.

     Imaginem vocês se, um dia, d. Ivonete e suas colegas de todas as procedências e sotaques resolvessem fazer também sua revolução. Imagino d. Ivonete propondo, em assembléia geral, não um aumento de tarifas. Não. Os preços ainda estão satisfatórios, ainda garantem uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima. Na minha fantasia, vejo d. Ivonete, como a “Pasionaria” do sexo — propondo a castidade. Ouviram bem? Eis o seu apelo: — castidade para as prostitutas. Os idiotas da objetividade iriam objetar: — “E o passado? E a tradição? E o hábito? E a féria?”. Há 40 mil anos que certas mulheres cobram os seus carinhos. Não sei quem disse, certa vez, que o comércio carnal principiou “quarenta anos antes do Nada”.

     Mas vamos dar rédeas ainda à fantasia. Visualizemos uma passeata de tais mulheres. Carregam faixas, cartazes, com dizeres assim: — “Muerte” a não sei quê. Ou por outra, sei: — ao sexo. “Muerte”, portanto, ao sexo. As sacadas atirariam listas telefônicas e cinzeiros sobre as manifestantes. Estas agradeceriam, entrelaçando as mãos no alto, como os pugilistas. Havia de ser patético ou, por outra, sublime.

     Eis o que eu queria dizer: — um movimento de meretrizes a favor da castidade não me espantaria mais do que o motim dos padres contra a castidade. Um, tão absurdo, divertido ou trágico quanto o outro. E a coisa é tão alucinatória que recebo um telefonema, sabem de quem? Do Palhares, o canalha. “O que não respeita nem as cunhadas” começou, às gargalhadas: — “Você leu? Não leu o manifesto dos padres, pedindo o fim de celibato?”.

     Conversamos, no telefone, uma hora talvez, ou mais. O Palhares falava mais do que eu. E a sua objetividade começou a me deprimir e a me consternar (por vezes, os canalhas têm um implacável, luminoso senso comum). Simplesmente, o Palhares dizia o seguinte: — “Ah, duzentos padres, ou trezentos, ou mil que sejam, querem casar? Não precisam apelar para a Conferência de Bispos. É simples como água: — vão ali na Ducal, compram dois ternos e substituem a batina pelo terno. E, assim, no crediário, conquistam uma fulminante liberdade sexual”. Lembrei ao canalha que muitos sacerdotes já se vestem como a gente. Ele retruca: — “Então, melhor. Não precisam comprar nada”.

      Ponderei que os padres queriam casar. O Palhares morria de rir: — “Não precisa casar. Se a castidade não significa nada, nem o casamento. Pra que casamento? Vamos sair por aí como livres atiradores”. Mas houve um momento em que o Palhares falou sério. (O Palhares, grave, pela primeira vez grave!) Disse, amargo: — “Como se põe pela janela uma castidade de vinte séculos? E só agora, 2 mil anos depois, é que descobrem o sexo?”.

     Por fim, o Palhares fala do próprio caso: — “Por que é que não sou padre? Porque não posso ver mulher. Não posso. Digo a verdade: — não posso. Um dia, cruzei com a cunhada no corredor. Era cunhada. Dei-lhe um beijo. Um ato vil, está certo. Mas nunca quis ser padre. E, se duvidarem, subo numa mesa e digo: — Sou um canalha!”. Parou, um momento, arquejante da própria sinceridade. Tomou fôlego e voltou com outra indignação: — “E o pior é o sindicato!”.

     Atracado no telefone, fez um comício: — “Querem sindicato, descontar para o Instituto? Vão para o cais do porto. Carregar saco é uma solução. O estivador desconta para o INPS. Ótimo. Os ex-padres serão segurados do INPS. E O problema da castidade deixa de existir. Mas pode ser que eles não queiram carregar saco. Ora, o cais do porto não é só estiva. Há o contrabando!”. E, já esquecido de suas fantasias éticas, o pulha está radiante: — “Aí está: — o contrabando. Os ex-padres podem ser contrabandistas. Uma mina, uma mina! Cigarro americano, lingerie. Há cada camisola, menino! Cremes, o diabo!”.

     Mas Palhares tinha que ver uma pequena no Leblon e estava na hora. Novamente lúgubre, suspirou: — “Eles não sabem que não há, nunca houve, satisfação sexual. Sábio é o casto”. O que o Palhares queria dizer é que todo mundo tem, claro, suas tensões, suas angústias, seus desesperos. Ao passo que o casto sofre menos e está mais perto da serenidade. E, antes de se despedir, concluiu o canalha: — “Esses padres não devem casar. Quem traiu um celibato de 2 mil anos há de trair um matrimônio de quinze dias”.

             [18/7/1968]

 

                                            A LEITORA DE MARCUSE

     Não sei se vocês conhecem o meu amigo e editor Alfredo C. Machado. Vale a pena. Eu diria que de todos os brasileiros, vivos ou mortos, é o que mais viaja. De vez em quando, ligo para o seu escritório. Digo: — “Meu bem, cadê o Machado?”. A telefonista, mascando um imaginário chiclete, responde: — “Está em Tóquio”. Ou é Tóquio, ou Cingapura, ou Cairo, ou Berlim. E a telefonista fala como se Tóquio fosse ali na esquina.

     Nas minhas insônias, que as tenho e crudelíssimas, pergunto, de mim para mim: — “Por que viaja tanto o Machado?”. E, de fato, é o único brasileiro que gosta de viajar. Os outros saem do país por imitação, pose ou tédio. Ao passo que, para o Alfredo, a viagem é um dom, uma graça, um destino. Estivemos juntos, ontem. E já não sei se hoje, agora, neste momento, ele não estará desembarcando num porto qualquer, lá nos mares do Sul.

     Mas falo, falo, e não digo o essencial. Assim como circula por todas as terras, idiomas e paisagens, o Machado tem o mesmo e fácil trânsito em todos os jornais, em todas as redações. As nossas conversas são picotadas por telefonemas. E, então, o Machado pede licença e atende. Por exemplo: — ontem. Uma grã-fina liga para o meu amigo. Pedia uma notícia não sei em que jornal.

     Ora, o Machado podia dizer, simples e lisamente: — “Eu não sou jornalista”. Mas ninguém pode exigir que uma linda senhora, e, de mais a mais, capa de Manchete, seja também racional. Ela está acima de qualquer argumento ou raciocínio. E a grã-fina não se contentava com um único jornal. Seria pouco para a sua fome. Queria que a notícia saísse em todos. E era tal a aflição da capa de Manchete que o Machado quis saber: — “Mas o que é, afinal?”.

     Imagino que, do outro lado da linha, a grã-fina tenha baixado a vista, escarlate de modéstia; e disse: — “Estou lendo Marcuse”. Houve uma pausa, um suspense. No seu espanto, Machado pergunta: — “Como? Como?”. A outra suspira: — “Estou lendo Marcuse”. E queria que o Machado, que tinha tantas amizades jornalísticas, mandasse publicar que ela, d. Fulana de Tal, lia Marcuse. Era preciso que o mundo, o Brasil, De Gaulle, as amigas, as inimigas, os credores, todos, todos soubessem que ela passava as horas e os dias lendo e relendo Marcuse.

     Machado saiu do telefone num radiante espanto; e me perguntava: — “Como pode? Como pode?”. Eu, numa curiosidade aflita, queria o nome e, se possível, os dados biográficos da leitora de Marcuse. E quando soube do nome, fiz um risonho escândalo: — “Mas é ela? Ela?”. Sim, era “ela”. E, já num interesse profundo, perguntei mais: — “E vais dar a notícia?”. Meu amigo admitiu que sim. Estava disposto ao alegre sacrifício de promover uma leitura e uma leitora tão “pra frente”.

     E o leitor, que é um marginal do grã-finismo, há de pedir também o nome e, se possível, até uma descrição física da pessoa. Vamos por partes: fisicamente, não sei se é bonita; talvez o seja, talvez não. Ou por outra: — eu diria que é uma falsa bonita, como costumam ser as grã-finas. Já a vi em várias festas. Seu decote lembra o de Elizabeth Taylor. Como se sabe, depois dos vários casamentos, a célebre atriz engordou. E a leitora de Marcuse tem, precisamente, o decote robusto, bem alimentado, de Elizabeth Taylor.

     Estou agora em dúvida. Não sei se terei outras informações “físicas” sobre a nossa heroína. Ah, já me lembro. Tempos atrás, fui ao Estádio Mario Filho ver um Fla-Flu qualquer. Coincidiu que entramos juntos: — eu, por uma borboleta; a grã-fina, por outra borboleta. Mas que faria ela em tal lugar? Realmente, entende tanto de futebol que, entrando no ex-Maracanã, é capaz de perguntar, nervosamente: — “Quem é a bola? Quem é a bola?”.

     Outra coincidência: — eu, ela e o marido (quinto marido) subimos pelo mesmo elevador. Estávamos amontoados num espaço sufocante e numa promiscuidade vagamente abjeta. Justamente, eu ia lado a lado com a leitora de Marcuse (que ainda não era leitora de Marcuse). Houve um momento em que a olhei, de esguelha. E, súbito, fiz a observação que jamais ocorreu a ninguém: — ela tem narinas de cadáver!

     Entendem? Pode ser bonita, e eu admito que o seja. Mas suas possíveis virtudes, físicas e espirituais, não alteram este fato iniludível, fato que está acima de qualquer dúvida, de qualquer sofisma: — tem narinas de cadáver. E, ali, no elevador, antes de chegar ao sexto andar, eu percebia toda a verdade. A leitora de Marcuse, contando com o atual, teve cinco maridos e só se desquitou do primeiro. Nos restantes casamentos, dispensou ou esqueceu a formalidade do desquite. E o que perturbou sua convivência com os quatro maridos anteriores foram, ouso presumir, as narinas de cadáver.

     Eu já não ia dizer-lhe o nome. E, agora, muito menos, já que existe um claro impedimento nasal. Feita a ressalva, volto ao Machado. Saí do seu escritório e, dois dias depois, estou pesquisando as seções sociais. No fim da leitura, eis a minha conclusão: — “O Machado trabalhou direito”. E, de fato, em todos os jornais, menos O Dia e Luta Democrática, estava a notícia borbulhando: — “A sra. Fulana de Tal está lendo Marcuse”.

     Os simples, os românticos, os que não têm uma certa malícia não imaginam o que é, e como é, o grã-finismo. Dois dias depois, repasso as colunas sociais e lá está: — Fulana de Tal lê Marcuse; Beltrana de Tal lê Marcuse; Sicrana de Tal lê Marcuse. E, de repente, todas as grã-finas, vivas, mortas ou analfabetas, estão lendo Marcuse. A coisa é tão contagiosa como o foi, outrora, a escarlatina.

     A grã-fina que “lê Marcuse”, e o confessa por toda a parte, está dando um atestado de ideologia. E, realmente, a conhecida do Machado e minha é esquerdista e radical como as que mais o sejam. Quer violência, não abre mão de sangue. Acha que, sem luta armada, o desenvolvimento é uma absoluta e eterna impossibilidade. No mais, freqüentou todas as passeatas; foi vista, numa sacada, atirando listas telefônicas. De outra feita, marchou pela Avenida. Só fez uma concessão à própria classe. Foi quando Vladimir mandou a multidão sentar. Ela desobedeceu para não sujar o vestido.

     Por fim, o leitor há de querer um informe cultural sobre a nossa heroína. Seria desairoso eu próprio opinar. Prefiro dar a palavra aos fatos. Certa vez, fui a um sarau de grã-finos no Alto da Boa Vista. Ela compareceu com as suas narinas de cadáver e seu decote de Elizabeth Taylor. Descobri entre os presentes o Daniel Caetano, moreno como um galã do neo-realismo italiano. E havia também um dominicano, vestido de branco, passava, solene, por entre os decotes. Era um imaculado pavão de arminho. Alguém falou de Molière. A então futura leitora de Marcuse teve uma dúvida: — “Esse Molière é brasileiro?”. Um pau-d’água grã-fino respondeu na hora: — “Cearense”.

            [20/7/1968]

 

                                             O BRASIL NAZI-STALINISTA

     Vocês se lembram do pacto germânico-soviético. Uma manhã, o mundo vê, em todas as primeiras páginas, a cínica, a deslavada fotografia: — Stalin apertando a mão de Ribbentropp. Digo sempre que o riso pode comprometer ao infinito. Aqui mesmo, contei o caso daquele ministro que não ria, para não se arriscar. E, diante de tudo e de todos, tinha a mesma cara hirta como uma máscara. Mas Stalin e Ribbentropp riam, um para outro, e a risonha abjeção estarreceu o mundo.

     Ou por outra: — não estarreceu. Em verdade, a manchete, a notícia e o clichê só espantaram uma meia dúzia. Os outros sentiram apenas o medo, o Grande Medo. Os exércitos alemães esperavam apenas o riso e o aperto de mão. Posso dizer que uma fotografia assassinou milhões. Em seguida, a Polônia foi estuprada. Era a nova Guerra Mundial. E morreram tantos que, no fim de certo tempo, o horror deixou de ser horror. E o que havia, por toda a parte e em todos os idiomas, era o tédio da morte, e do sangue, e das mutilações. Diria também que os próprios sobreviventes tinham vergonha de estar vivos. A vida tornara-se indigna.

     Não era bem isso o que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que Stalin e Hitler se juntaram contra a pessoa humana. Escrevi que a fotografia matou 100 milhões (não sei se mais, não sei se menos). Mas deixemos de lado o horror numérico. Tanto faz 1 ou 100 milhões de defuntos. Quando se assinou o pacto, eu já trabalhava em O Globo. Li o telegrama ainda na redação. Eis o que me ocorreu, por outras palavras: — se é possível o pacto germânico-soviético, e se o mundo o aceita, tudo é permitido. Durante dias e até meses, fui devorado por uma obsessão. Parecia-me absurdo que cada um de nós continuasse a fazer sua vida, a escovar os dentes, a tomar café, a jogar nos cavalos etc. etc. O meu sentimento era de que o pacto extinguira toda a vida moral.

     E, no entanto, em todo o século, não há um ato tão inteligente, uma aliança tão lúcida, um acontecimento tão natural. Rússia e Alemanha tinham que se entender naquele momento. Tão parecidos Stalin e Hitler, tão gêmeos, tão construídos de ódio. Ninguém mais Stalin do que Hitler, ninguém mais Hitler do que Stalin.

     Do mesmo modo, como são parecidos os radicais da esquerda e da direita! Dirá alguém que as intenções são dessemelhantes. Não. Mil vezes não. Um canalha é exatamente igual a outro canalha. Pode parecer que Hitler e Stalin passaram. Nenhuma ilusão mais idiota. Napoleão, o Grande, só foi possível porque a Europa estava saturada de pequeninos napoleões. E o mundo está cheio de Hitler e Stalin liliputianos. No tempo da guerra usava-se muito a expressão nazi-fascismo. Muito mais válido seria dizer-se, ainda hoje, nazi-stalinismo.

     O pequenino Hitler, ou o pequenino Stalin, tem um íntimo tesouro de ódio. É como se tivéssemos de optar por um ou por outro. Imaginem que falo pensando no Brasil. Vejamos os brasileiros. Aqui, o radical de esquerda não percebe, ou finge que não percebe, que é um stalinista. O radical, do outro lado, é nazista. A toda hora e em toda a parte, cumprimentamos um pequenino Stalin ou um pequenino Hitler. Instala-se o Brasil do ódio, ou, melhor dizendo, o anti-Brasil. Direi mesmo que o brasileiro está em processo de desumanização. Imaginem cada um de nós transformado, de repente, na antipessoa. Conheço vários que perderam qualquer semelhança com o ser humano.

     Aqui abro um parêntese. Não sei se notaram que estou usando uma ênfase, um tom, uma veemência não comuns nesta coluna. Mas explico. O caso é que, ontem, o Kleber Santos bateu o telefone para mim. Dizia excitadíssimo: — “Imagine, Nelson, imagine!”. Sinto a sua dispnéia emocional. E o Kleber, que é um dos nossos grandes diretores de teatro, continua, arquejando: — “Usaram o teu nome! Teu nome!”. Excelente Kleber! Falava como se meu nome fosse um patrimônio, algo de sagrado e intangível como um quepe ou uma espada da Guerra do Paraguai. E, então, mais calmo, contou-me tudo.

     Alguém atirara, de um automóvel, na porta do Teatro Jovem, prospectos insultantes. Eu não os li. Mas o meu amigo informa que os panfletos ameaçam e ofendem os artistas. E lá está impresso o trecho de um artigo meu sobre d. Hélder. No seu fervor de amigo, o bom Kleber entende que eu devo repudiar a canalhice.

     Aí está por que, desde o começo do presente artigo, sou o mais contrafeito dos colunistas. Se eu apoiasse qualquer ato de violência, da direita ou da esquerda, seria um canalha. Ao mesmo tempo, é meio humorística a situação de um escritor que, empostando a voz, limpando o pigarro e alçando a fronte, anuncia para o seu público: — “Meus senhores e minhas senhoras, saibam que eu não sou exatamente um canalha”. Entendo, ao mesmo tempo, o empenho do Kleber. Sua dispnéia, ao telefone, tinha algo de comovente. Não resisto a um amigo patético.

     Bem. Vamos lá. Eu me consideraria o último dos infames se, algum dia, me solidarizasse com a violência. Para mim, a liberdade está acima do pão (e, por isso, o pequenino Stalin ou o pequenino Hitler há de me considerar o mais bestial dos reacionários). D. Hélder e dr. Alceu são contra e a favor da violência. Assumem uma ou outra atitude, taticamente, segundo as conveniências de momento. Outro dia, li, no d. Hélder, no dr. Alceu e no padre Comblin, que a guerrilha “não adianta”. Não se trata de uma objeção moral, religiosa, humana, ou que outro nome tenha. Eles se opõem pela ineficácia. Só. A dedução é óbvia: — se a carnificina fosse proveitosa, devíamos sair por aí chupando as carótidas uns dos outros. Singular caridade de d. Hélder, do padre Comblin e do dr. Alceu.

     Também não aceito o padre de passeata. Quero que me entendam. O padre de passeata é, hoje, uma ordem tão definida, tão caracterizada como a dos beneditinos, dos franciscanos, dos dominicanos e qualquer outra. E está a serviço do ódio. Nunca ninguém verá um gesto meu, ou uma linha, a favor de qualquer terrorismo da esquerda ou da direita. Agora mesmo cometeu-se um crime contra o teatro brasileiro. Espancou-se a platéia, espancou-se o elenco de Roda viva. Despiram as atrizes. Uma delas estava grávida, e gritou a própria gravidez. Foi arrastada, pisada, chutada. Começou um Brasil nazi-stalinista.

            [24/7/1968]

 

                                               O ANTITEATRO

     Ah, gosto muito do Sábato Magaldi, o crítico paulista. Lembro-me do nosso encontro, há anos, aqui no Rio, na esquina de Senador Dantas com Evaristo da Veiga. Eu não o via há meses. E ele me pareceu tão magro e tão só. O que me impressionou mais, porém, foi o olho do amigo, e repito: — o olho de uma doçura intensa, quase insuportável. Com um retoque aqui e ali, o Sábato Magaldi seria um santo, o primeiro santo da crítica teatral.

     Mas não é isso que eu queria dizer. Eu ia falar da nossa discussão sobre cinema. Era a época dos primeiros filmes coloridos. Há entre mim e o caro amigo uma série de cordiais abismos. Quando escreve sobre o meu teatro, sinto que não é o crítico, mas o amigo, quase o irmão (quero crer que ele sempre reage como o amigo e o irmão das coisas). Eu era a favor do filme colorido, e Sábato, contra. Ele só entendia o preto-e-branco.

     No meu espanto, perguntei-lhe: — “Mas que diabo! Você é contra a cor?”. E eu não compreendia tal ressentimento visual. Discutimos uma boa meia hora. E, até o fim, o Sábato Magaldi foi o mesmo e brioso paladino do preto-e-branco. Dizia eu: — “Vem cá, Sábato, vem cá”. E insistia: — “Mas que diabo te fez o amarelo? E o verde? E o azul? E o roxo?”. Lembrei-lhe que Van Gogh gostava tanto do amarelo. O meu último argumento foi este: — “Você odeia o arco-íris?”. Não o dissuadi. Hoje, imagino que o Sábato deva abominar também o poente do Leblon porque a natureza não o fez em preto-e-branco.

     Falei do cinema para chegar ao teatro. Quando começou o cinema, houve o vaticínio mundial: — “O teatro vai morrer”. E mais tarde surgiu a televisão. Imediatamente, outros profetas anunciaram também que a televisão era o fim do teatro. Vejam como o teatro vive de mortes e de ressurreições. De vez em quando, vem alguém passar-lhe o atestado de óbito. Mas ele continua. Não importa que a tela cinematográfica seja miguelangesca. (Contra a oposição solitária e ressentida do Sábato Magaldi, a cor vingou triunfalmente.) Mas o teatro está vivo, o teatro é um cadáver salubérrimo.

     Não sabemos se o cinema morrerá um dia, se outras técnicas vão devorar a televisão. Quanto ao teatro, quero crer que já demonstrou a sua eternidade. Cabe então a pergunta: — e por que sempre existirá um palco e sempre existirá um elenco representando? Tem sido assim e assim será, para sempre. Pode parecer que o “grande artista” explica essa prodigiosa continuidade. Nem tanto, nem tanto. A eternidade do teatro depende mais do canastrão.

     Foi mais ou menos isso que eu disse, no telefone, ao Sábato Magaldi. Imaginem vocês que o crítico ligou para mim, e vamos e venhamos: um interurbano é sempre uma altíssima demonstração de afeto. Lisonjeado, balbuciei: — “Quanta honra!”. Não é sempre que um crítico, e dos mais lúcidos, e dos mais agudos, procura um autor. Conversa daqui, dali, e o Sábato acaba pedindo: — “Por que é que você não faz uma entrevista imaginária com a Cacilda Becker?”. Foi aí que, dentro do meu ponto de vista, expliquei que a Cacilda tinha um defeito: — era “a grande atriz”. O Sábato não entendeu: — “Se é grande atriz, melhor”. Reagi: — “Pior”. E expliquei que é o canastra que, inversamente, nutre a continuidade teatral. O “grande ator” é um para 10 mil. Só a massa de medíocres pode alimentar milhares de elencos e milhares de repertórios.

     Todavia, o Sábato, com sua bondade pertinaz e persuasiva, insistia: — “Pelo amor de Deus, faz a entrevista imaginária com a Cacilda. Te peço como amigo”. Eu preferia a canastrona, muito mais representativa do que o gênio. A Duse ou Sarah Bernhardt é um corpo estranho dentro de sua geração. Mas o Sábato pedia; e quem, no céu e na terra, pode resistir ao Sábato? Suspirei: — “Está bem. Você manda. Vou entrevistar a Cacilda Becker”. E, antes de me despedir, fiz o apelo: — “Me abençoa, Sábato, me abençoa”. E o amigo, em sua infinita misericórdia, me abençoou.

     Saí do telefone, isto é, não saí do telefone. Desliguei e, imediatamente, disquei para 01. Feita a ligação fulminante, uma voz feminina atende. Peço: — “Quer-me chamar a Cacilda?”. A resposta foi taxativa: — “Não mora aqui”. Protesto: — “É esse o número, minha senhora. Cacilda Becker. Mora aí”. E a outra: — “Engano”. E, súbito, desconfio da verdade. Berro: — “É você que está falando, Cacilda? Sou eu, Nelson!”. Há uma pausa dramática. Finalmente, explode a voz feminina: — “É mesmo, é mesmo! Agora me lembro. Cacilda Becker. Eu era Cacilda, fui Cacilda. O sobrenome é Becker? Fui Cacilda Becker”. A conversa estava meio alucinatória. Numa impressão profunda, pergunto: — “Está-me ouvindo, Cacilda? Esteja, hoje à meia-noite, no terreno baldio. Você vai-me dar uma entrevista imaginária. Entendeu? Uma entrevista imaginária, na presença da cabra vadia”. A grande atriz pluralizou: — “Lá estaremos”. E eu: — “Boa noite”. Ela respondeu em voz pungente, em voz plangente: — “Boa noite”.

     Às dez para meia-noite, estou eu no terreno baldio. Tomei todas as providências. Reuni os gafanhotos, sapos, corujas, caramujos e minhocas. Fui de um em um, pedindo pelo amor de Deus: — “Modos, hem; modos!”. E, súbito, vem correndo um caramujo: — “Está chegando a passeata”. Pulo: — “Que passeata? Eu não chamei passeata nenhuma. Vou entrevistar a Cacilda Becker. Só a Cacilda e mais ninguém”. Mas era a estarrecedora verdade. Ao longe, empunhando archotes, vinha a passeata. E, no meio, hirta, sonâmbula, vestida de Ofélia, pude ver a minha entrevistada, Cacilda Becker.

     Aterrado, esperei aquela massa ululante. Ouvia-se o coro: — “Par-ti-ci-pa-ção! Par-ti-ci-pa-ção!”. O vozerio subia aos céus. Lá em cima, as estrelas começaram a atirar listas telefônicas e cinzeiros sobre os manifestantes. A quinze metros do local, o Vladimir Palmeira trepa na capota do próprio automóvel. Diz, forte: — “Classe teatral!”. Silêncio. E o Vladimir: — “Estamos cansados. Vamos sentar”. A docilidade foi total. A Classe sentou-se no asfalto, o Líder deixou passar cinco minutos; e comanda: — “Já descansamos. Vamos marchar!”. E todos marcharam os quinze metros que faltavam. Só então, dilacerado e confuso, dirijo-me à própria Cacilda: — “Escuta, houve um lamentável engano, um equívoco horrendo. Eu só convidei você, Cacilda!”. E a atriz: — “Eu não sou Cacilda. Sou a passeata!”. Lá estava Paulo Autran: — “Você, Paulo Autran, ao menos você, é Paulo Autran?”. Resposta: — “Sou uma assembléia!”. Ao lado, vi o Ferreira Gullar: — “Ferreira, diga, berre: — eu sou Ferreira Gullar!”. Retruca: — “Eu sou um abaixo-assinado! Sou uma comissão de intelectuais!”. Em seguida, puxou um isqueiro e incendiou um exemplar de A luta corporal. Vozes repetiam: — “Sou um comício! Sou um panfleto! Sou a Classe!”. Cada qual era ninguém. Olho aquelas caras. Todos tinham perdido a noção da própria identidade. Recuo, apavorado. Uma coruja rola com ataque. E, então, a marcha continua. A massa coral repetia: — “Par-ti-ci-pa-ção! Par-ti-ci-pa-ção!”. A cabra vadia veio sentar-se no meio-fio e começou a chorar. As estrelas atiravam catálogos telefônicos sobre a passeata. Foi um caso sério.

             [25/7/1968]

 

                                                  AS CABEÇAS ROLANTES

     E ninguém fala dos estudantes tchecos. Quando os jovens da França começaram a virar carros, a arrancar paralelepípedos e a incendiar a Bolsa — as manchetes se assanharam, em todos os idiomas. Ninguém entendia nada. A primeira Revolução Francesa fora nítida e profunda. Derrubou-se a Bastilha, decapitou-se Maria Antonieta e instalou-se o Terror. Mas sabíamos por que as coisas aconteciam e por que rolavam as cabeças.

     Mas a recente agitação estudantil teve um defeito indesculpável: — faltou-lhe o Terror. O mundo ainda faz a pergunta sem resposta: — “Onde estão as cabeças cortadas?”. Simplesmente, não estão, nem houve. Ninguém decapitou ninguém. E, como não havia gasolina, ninguém morria, nem atropelado.

     Pode-se dizer que nem tudo se perdeu no caos estudantil. Eu diria que se salvaram algumas frases. Fala-se muito da prosa francesa. E, de fato, as maiores bobagens ditas em francês têm um insuperável requinte estilístico. Além de arrancar a capa de asfalto e pôr fogo nos carros, os estudantes faziam as belas frases. Uma dela dizia assim: — “É proibido proibir”. Houve um dia em que todos os muros parisienses não diziam outra coisa. Por toda a parte, o berro vital: — “É proibido proibir”.

     E todos os fatos eram possíveis. Numa assembléia de estudantes, levantou-se um barrigudo: — “Quero falar. Sou um capitalista”. Um jovem líder se levanta: — “Fala o camarada capitalista”. E o gorducho disse ao que veio. Em seguida, o poeta Aragon pede a palavra. Um estudante diz: — “Aqui, qualquer um pode falar, inclusive o último dos traidores”. Aragon é stalinista e, como tal, o último dos traidores, não só da França, não só da poesia, como da própria pessoa humana. Falou, como o camarada canalha.

     Naturalmente, vocês querem saber qual figura fez Sartre no lírico tumulto daqueles dias. Ah, Sartre, Sartre! Quando o filósofo esteve no Brasil, o nosso papel foi, se me permitem dizê-lo, meio indigno. Sim, os nossos intelectuais se comportaram como se fôssemos a mais deprimente subcolônia espiritual. Fui ver uma de suas conferências. Quando ele apareceu, a platéia só faltou lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. E foi aí que eu descobri que há, sim, admirações abjetas.

     Mas o francês não admira outro francês com esse estupor. E os estudantes de lá trataram o filósofo de alto a baixo. Quase não houve conversa. A rapaziada ouvia Sartre com irônica indulgência. Por fim, o gênio levantou-se, humilhadíssimo; disse: — “Vocês têm mais imaginação do que eu”. Saiu de lá trôpego e derrotado. Os jovens o enxotaram e assim começou a solidão de Sartre.

     Mas a grande frase da quase Revolução Francesa foi mesmo a do general De Gaulle. O velho herói parecia um mito exausto. A jovem massa levava cartazes assim: — “Fora De Gaulle”, “De Gaulle Assassino”, “Morte para De Gaulle”. O general estava fora do país. Sim, o mito passeava. Quando voltou à França, declarou para o seu povo: — “Eu sou a Revolução!”. Foi um espanto mundial. E todos sentiram que De Gaulle era o último “eu” do século. Olhem o nosso mundo, virem e revirem a nossa época. Não há outro “eu”. E o herói setuagenário parece um momento da insânia humana. Só um louco, em sua danação, pode-se julgar um “eu”.

     Nem precisamos ir tão longe. Vamos olhar o Brasil. Antes, porém, de falar do Brasil, quero lembrar os versos que Rainer Maria Rilke escreveu para o próprio túmulo. Só me lembro de um momento do epitáfio. É quando diz o poeta que o morto sente “a volúpia de ser ninguém”. Aí está o mistério da nossa época. Fora um insano, como De Gaulle, que se imagina “eu”, não há mais as fortes e crispadas individualidades, que ofendiam e humilhavam os demais com a sua dessemelhança genial.

     Mas deixemos de lado os outros países e os outros homens. O que me interessa é o Brasil, é o brasileiro e, em especial, o nosso teatro. Sempre digo que só os profetas enxergam o óbvio. O que eu chamo de óbvio é este fato: — o teatro brasileiro acabou antes de começar. Na altura de 1940, sentiu-se aqui uma enorme tensão criadora; e cheguei a pensar que ia nascer a nossa tragédia. Toda uma geração de autores, diretores, atores parecia saturada de potencialidade.

     Essa plenitude durou pouco. De repente, estancou o processo teatral. Falei do “nascimento da tragédia” no Brasil. E o que aconteceu foi espantoso: a “tragédia brasileira” ainda não nasceu e já está decadente. Entendem? Decadente antes de nascer. Todo o maravilhoso ímpeto inicial se esvaiu e se corrompeu no show idiota. Mas há pior e, repito, há pior. O show ainda tem uma relação com o teatro. Acontece que os diretores, autores, atores e atrizes abandonam o palco. Cabe então a pergunta: — e onde estão eles?

     Cada qual assume a forma impessoal, numerosa e irresponsável da assembléia, do comício, da comissão, do manifesto, da passeata e da unanimidade. Só agimos, só sentimos, só amamos e só odiamos em massa. Sim, estamos todos massificados. E cada um sente, como no epitáfio de Rilke, a volúpia de ser ninguém. O sujeito se dissolve na passeata, na assembléia, na unanimidade. E ninguém faz as coisas simples e profundas que o teatro exige. Em vez de realizar o Hamlet ou A dama das camélias, a classe desfila da Cinelândia à Candelária. E basta.

     E, por isso, dizia eu que o teatro está morto no Brasil. Morreu a partir do momento em que nos politizamos. Felizmente, a nossa traição ao “drama brasileiro” tem nobilíssimas razões e, eu diria mesmo, razões sublimes. Não escrevemos peças, nem as representamos e, tampouco, as dirigimos. Em compensação, salvamos o Vietnã e, ao mesmo tempo, resolvemos o problema da fome mundial. Dirá alguém que a fome do homem resistiu a Cristo, Buda, Alá, Maomé, Marx, Freud. Mas os citados falharam, por azar, inépcia, incompetência, má-fé, corrupção. O que não acontece com a Classe Teatral. Bem me lembro da nossa última assembléia. Enquanto vociferávamos, o Pentágono foi surpreendido a ouvir-nos, atrás das portas; e do seu lábio vil pendia a baba elástica e bovina da pusilanimidade.

            [26/7/1968]

 

                                             A ATRIZ INTELIGENTE

     Não há dúvida que se cavou um abismo, um voraz abismo, entre o antigo teatro e o novo. (Pode parecer que eu esteja aqui dizendo o óbvio ululante. Paciência.) E não se trata do estilo de representação. Outrora, um ator entrava em cena com uma saúde e um estardalhaço de centauro. E o último suspiro da Dama das camélias era um rugido. Hoje, berra-se pouco, urra-se menos. Sim, o artista é mais sóbrio, mais contido. Morre e mata com mais cerimônia e polidez. Sua tensão é superiormente controlada.

     Mas o que me impressiona não é dessemelhança de comportamento cênico. O artista mudou até na vida real. Voltemos, por um momento, à belle époque, Faz de conta que ainda não houve a primeira batalha do Marne, nem os táxis de Paris salvaram a França. Imaginemos por um momento que Mata-Hari, a espiã de um seio só, ainda não foi fuzilada, e que tampouco ocorreu a primeira audição do Danúbio azul.

     Pergunto: — e que fazia então, no palco e fora dele, uma atriz? Qual o seu tipo de vida? As prima-donas vinham realizar, cá fora, todo o patético e todo o sublime dos papéis românticos. Uma Sarah Bernhardt amava mais no mundo do que no palco. Seria uma humilhação para uma atriz passar quinze minutos sem uma paixão suicida e homicida. O que a Duse amou D’Annunzio! O grande homem estava, então, em furioso apogeu.

     Durante vinte anos, o poeta reinou em toda a Europa. Era uma vergonha não ser amante de D’Annunzio. E a Duse o amou e, pior do que isso, deu-lhe dinheiro. Não satisfeita, a trágica mandava o seu “relações-públicas” espalhar que pagava o esteta. A humilhação também era promocional. Vejam bem: — uma atriz precisava ter, por fundo, amores reais e crudelíssimos. Ou ateava paixões e suicídios ou deixava de ser bilheteria.

     Hoje, não há mais similitude entre o real e o ideal. A ficção vai para um lado e a vida para outro. Vejam o teatro brasileiro. As nossas musas não amam ou, se amam, ninguém sabe. Dirá alguém que, hoje, o sexo é menos promocional. Pode ser, quem sabe? E, realmente, depois de Freud, o homem passou a amar menos. Ainda outro dia, uma mocinha, em pânico, correu à mãe. Soluçava: — “Estou amando! Estou amando!”. A mãe tremeu em cima dos sapatos, horrorizada. O pai soube e também pôs as mãos na cabeça. Foi chamado, às pressas, um psiquiatra. Finalmente, a menina recebeu um tratamento de choques para se curar do amor. O amor virou doença.

     Volto ao teatro. Há uns meses que faço a pergunta, sem lhe achar a resposta: — “O que é que mudou essencialmente nas atrizes, nos atores, nos diretores?”. Outra pergunta: — “E por que não há mais Duse, nem há mais D’Annunzio?”. Imaginem vocês que, de repente, descobri toda a verdade.

     Ontem, eu ia ver, no Teatro Jovem, a peça de José Wilker, Trágico acidente destronou Teresa. (Um texto admirável. Resta saber que tratamento lhe deu Kleber Santos.) Mas aconteceu não sei o que e fiquei em casa. Ligo a televisão. E, por felicidade, vi e ouvi a entrevista da sra. Maria Fernanda. Foi aí que, de supetão, descobri qual é, exatamente, a dessemelhança entre a atriz moderna e a da belle époque. Uma é inteligente e a outra não.

     Não exagero. No antigo teatro, a atriz não pensava, simplesmente não pensava. A maioria absoluta, para não dizer a unanimidade, nascia, vivia e morria sem ter arriscado jamais uma frase própria. Graças a Deus, não havia rádio, nem televisão. E, na hora de dar uma entrevista, a diva chamava o poeta mais à mão e este redigia, com o maior rigor estilístico, as suas declarações. Mas, no teatro moderno, a atriz pensa como nunca. E as que não pensam pensam que pensam. (Desculpem o jogo de palavras.) Pois bem. O que a televisão nos mostrou foi a sra. Maria Fernanda pensando.

     O repórter e deputado Amaral Neto fazia as perguntas. E justiça se lhe faça: — como a atriz falou bem! Não me refiro somente às idéias, todas de uma fascinante originalidade. Há também a considerável vantagem do métier, que é a inflexão. E como a TV é imagem, a atriz faz uma composição cênica da mais fina qualidade. Assim o sorriso, e o olhar, e o movimento das mãos e, mesmo, o clima que se evolava da entrevistada. O fato é que a sra. Maria Fernanda não dizia duas ou três frases sem lhes salpicar outras duas ou três verdades eternas.

     A notável atriz está representando, no momento, uma peça do falso grande dramaturgo Arthur Miller. E discorreu, exatamente, sobre esse texto e respectiva encenação. O repórter Amaral Neto pediu-lhe que resumisse a mensagem do drama. Outra qualquer se teria arremessado em uma fulminante resposta. Não a sra. Maria Fernanda. Fez uma pausa de duração calculada. E, por fim, respondeu: — “A peça é o problema de opção”.

     Nos lares, as donas de casa, os chefes de família, as tias se entreolharam. Rola, por toda a cidade, um suspense atroz. Mas havia mais, havia mais. E a sra. Maria Fernanda varreu todas as dúvidas: — “O problema da nossa época é a opção”. Alguns descontentes, que sempre os há, poderão insinuar que a atriz não disse nada, nem de novo, nem de profundo. Vejamos: — “O problema de nossa época é a opção”. Isso, dito por qualquer outra, não teria maior transcendência. Mas, em teatro, a inflexão é tudo. Um vago “bom-dia”, dito da maneira certa, adquire uma profundeza inimaginável. E a “opção” da sra. Maria Fernanda deu-nos uma vertigem de abismo. Ao mesmo tempo, ela parecia ter, na testa, a seguinte manchete: — “Inteligência aqui é mato”.

     Sim, subiu muito o nosso nível intelectual. Contei o caso daquela grã-fina que leu as orelhas de Marcuse. Leu as orelhas e saiu, na passeata, ao lado dos intelectuais e como um deles. Mas voltemos ao nosso teatro. Tenho um amigo que é um retrógrado, um obscurantista, que os íntimos chamam de “a própria Idade Média”. Ele mesmo, antes de opinar, faz sempre a ressalva: — “Eu, que sou a Idade Média” etc. etc. Esse amigo relembrava, com inconsolável nostalgia, as gerações românticas. Naquela época, o ator era grande porque não pensava. E essa radiante obtusidade dava-lhe a tensão dionisíaca que a poesia dramática exige. Quanto à “opção”, não sei se ela existe. A meu ver, nunca optamos tão pouco. Somos pré-fabricados. É difícil para o homem moderno ousar um movimento próprio. Nossa vida é a soma de idéias feitas, de frases feitas, de sentimentos feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústias feitas. A última passeata mostrou como é rala a nossa autodeterminação.

     Eis o fato: — no meio do caminho, o líder Vladimir Palmeira trepou no automóvel e disse: — “Estamos cansados”. Ninguém estava cansado. Mas, como ele o dizia, começamos a arquejar de uma dispnéia induzida. (Parecíamos uns barqueiros do Volga.) Em seguida, ele acrescentou: — “Vamos sentar”. Falava para a parte mais lúcida do Brasil. Ali, estavam médicos, romancistas, poetas, atores, atrizes, arquitetos, professores, sacerdotes, estudantes, engenheiros (só não víamos um único preto ou um único operário). Como reagiu a elite espiritual do país? Sentando-se no asfalto e no meio-fio. A única que permaneceu de pé e assim ficou foi uma grã-fina, justamente a que lera as orelhas de Marcuse. Estava com um vestido chegado de Paris. E não quis amarrotar a saia. Todos sentados, e ela, alta, ereta, numa solidão de Joana D’Arc.

             [30/7/1968]

 

                                             ÓRFÃOS DE ROSAS

     E, de repente, o sujeito fez um comício. Era um sarau de grã-finos. A dona da casa não fazia outra coisa senão passar. Estava com penteado de Josefina Bonaparte, decote de Josefina Bonaparte, vestido de Josefina Bonaparte (só a maquilagem é que era de cadáver). Falei das sandálias? Não, não falei das sandálias. Sandálias também de Josefina Bonaparte. E o rapaz, dizia eu, fazia um comício.

     Abro um parêntese para falar do rapaz. Chamá-lo de bêbedo é dizer muito pouco. O comum dos paus-d’água precisa beber. Esse, não. Sem tocar em álcool, sem tomar água da bica, está embriagado. Imaginem um bêbedo que não bebe ou, melhor dizendo, um bêbedo nato. Dirão que isso é impossível. Não sei. Simplesmente constatei. E, se quiserem, vão discutir com o fato. Fecho o parêntese.

     Que dizia o pau-d’água nato e talvez hereditário? Dizia e repisava: — “A grã-fina não tem alma”. Era falar de corda em casa de enforcado. Sem contar a dona da casa, que continuava passando, todos ali eram grã-finos. Mas ninguém se ofendeu. Um dos decotes presentes quis saber: — “Todas?”. E o bêbedo, que também era grã-fino, teve um repelão feroz: — “Todas!”. Foi então que alguém objetou: — “É um erro generalizar”.

     Cada grã-fina, ah, estava lisonjeadíssima de não ter alma. O pau-d’água, na sua cólera fácil, explodiu: — “Erro, vírgula; erro, uma ova!”. Foi aí que, dos presentes, um gordo, com uma papada de Nero de Cecil B. de Mille, interrompeu: — “Há uma exceção” — e repetiu, mexendo o gelo do uísque: — “Há uma exceção”. Logo todo mundo quis saber que grã-fina, entre tantas, entre todas, tinha uma alma.

    O Nero fez um suspense e o prolongou. Por fim, disse o nome: — “Fulana!”. Os presentes se arremessaram. Queriam saber que ato, fato ou feito tinha cometido a Fulana para que lhe atribuíssem essa coisa preciosa, entre todas as coisas, que é uma alma. Atropelado por tantas curiosidades, o gordo dizia, risonhamente: — “Eu explico, eu explico!”. E disse, por fim: — “Leu as orelhas de Marcuse!”. A anfitriã passou mais uma vez (e sua maquilagem de cadáver só não fazia mais efeito porque as outras usavam também uma hedionda máscara amarela).

     Desta vez, o próprio bêbedo nato balançou. Teve um movimento de fluxo e refluxo que quase o entorna em cima dos decotes. Houve uma certa aquiescência. Se lera as orelhas, tinha um certo direito à alma. O Nero deu outras informações, forneceu dados biográficos. De mais a mais, participara da última passeata. Fora vista, entre os intelectuais, numa fotografia de Manchete. E eu, no meu canto, e só ouvindo, imaginava que o nosso grã-finismo ganhou uma George Sand na leitora de orelhas.

     Depois de negar a alma das grã-finas, o bêbedo hereditário passou a outro assunto. No meio da sala, pôs-se a declamar: — “Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa”. Lera ou ouvira isso não sabia onde, nem quando. E ignorava se as rosas tinham ou não tinham as vírgulas que acrescentara. Repetiu: — “Uma rosa é uma rosa uma rosa uma rosa uma rosa” (tirou as vírgulas). Mas o bêbedo é um emotivo e já queria chorar. Achava justo que uma rosa fosse mil vezes rosa, e eternamente rosa. Passava mais uma vez a dona da casa. Agarrou-a por um braço. Perguntou-lhe: — “A senhora tem uma rosa em seu jardim?”.

     A máscara amarela sorria (cada vez mais cadavérica). Disse: — “O autor do meu jardim é o Burle Marx”. Para o ébrio, a autoria não provava a existência de rosas. E já arrastava a anfitriã: — “Vamos ver! Quero ver!”. Organizou-se uma súbita expedição ao jardim do palácio. Ele exigia rosas, não abria mão das rosas. Desceram todos. Lá fora as estátuas morriam de frio na noite gelada. Dizia-se: — “O Burle Marx é um gênio! Um gênio!”.

     Decerto, o jardim era uma obra-prima. Mesmo porque o gênio de Burle Marx está acima de qualquer dúvida ou sofisma. Todavia, depois de meia hora de busca, fez-se a constatação vagamente humilhante: — não havia, ali, uma única rosa. Nenhuma, nenhuma. A mais espantada era a dona da casa. Dizia: — “É mesmo! É mesmo!”. O Burle Marx esquecera as rosas, e mais: — os jardins de Burle Marx não têm flores. Houve um espanto, quase um terror. A anfitriã sentiu-se cruelmente órfã de rosas. O bêbedo exultava. Dizia, em arrancos: — “O Brasil é um país sem rosas. Não há flores. Flores, flores!”.

     Todos voltavam, sucumbidos. Alguém perguntava a um outro: — “Há quanto tempo você não vê uma rosa?”. Um confessou que tinha que ir ao cemitério, no dia de Finados, para ver flores. E o bêbedo, com alegre crueldade, repetia: — “Por isso, esta droga não vai pra frente! O Brasil é um país perdido!”. Varado de indignação, berrava: — “Há gramados e não há flores. Mas para que grama, se não somos cabras?”. Interpelava os presentes, damas e cavalheiros: — “Somos cabras?”. Embora parecesse óbvio que ninguém, ali, era cabra, vozes esclareceram: — “Não, não, não!”.

     E, de repente, o que era uma festa tornou-se uma sessão fúnebre. Só quem falava era o bêbedo nato. Argumentou com a Europa. Lá não havia uma varanda, ou uma janelinha, sem flores. E por que a tristeza das novas gerações brasileiras? Por que os gabinetes dos psicanalistas tinham filas? A depressão nacional achava uma razão nítida e profunda: — as rosas, as rosas, as rosas. Os presentes concordavam em que o Brasil precisa, não de um estadista, mas de um jardineiro. Aqui, só os defuntos têm flores. Eu continuava um maravilhado ouvinte de tantas opiniões ilustres.

     E não me lembro por que, de repente, os grã-finos saíram das flores para as passeatas. O Nero de Cecil B. de Mille tomou a palavra. Dizia, por outras palavras, o seguinte: — “As passeatas vão salvar o Brasil”. Alguém duvidou: — “Por que, meu Deus?”. A papada do gordo vibrou: — “É o povo! É o povo!”. Falava e o suor pingava da papada como um pranto.

     E, então, o bêbedo teve outro rompante: — “A passeata não salva ninguém!”. O gorducho bramava: — “É o povo! E o povo!”. Quase se atracavam no meio do salão. Vozes concordavam em que era o povo. O ébrio teve um riso feroz: — “Povo nenhum! O povo não se meteu!”. Na ira de sua embriaguez, teimou: — “Vocês viram? As fotografias? Não tinha um negro, um operário, um torcedor do Flamengo!”.

     Silêncio. E, realmente, ninguém se lembrava de ter visto um negro, um operário. O pau-d’água começou a chorar: — “Sabem quem estava lá?”. Suspense. Ele olha, uma por uma, as caras que o cercavam. A dona da casa, que vinha passando, parou. E o outro soluçando: — “Quem estava lá eram as classes dominantes! Foi a passeata das classes dominantes. Nenhum perna-de-pau, nenhum cabeça-de-bagre, nenhum pau-de-arara. Só as classes dominantes!”. E o bêbedo hereditário teve, ali, nas nossas barbas estarrecidas, o delirium tremens. Via as classes dominantes, em cima e embaixo, no asfalto e nas sacadas da Avenida. As classes dominantes o atropelavam. Acabou vomitando no tapete.

              [31/7/1968]

 

                                               O FURIOSO NELSINHO MOTTA

     Depois do último Carnaval, passei uma semana escrevendo sobre o mesmo assunto. Meus amigos me chamam de “Flor de Obsessão”. Ainda ontem, recebo uma carta de Roma. E lá vinha escrito, no envelope, “Nelson Rodrigues” e, por baixo do nome: — “Flor de Obsessão”. (Há, em tal metáfora, como que um odor de folclore havaiano. Mas isso é outra conversa.) Meus amigos não exageram. Eu sou assim, e digo mais: — convivo muito bem com as minhas idéias fixas.

     E a minha fixação, nos quatro dias de Carnaval, foi a nudez unânime. Imaginem uma cidade que se despia, e com a agravante: — não se despia para o namorado, noivo, marido ou lá o que fosse. Não. Um, apenas um, seria muito pouco para o seu impudor. (Hoje, a própria palavra “pudor” é tão antiga e irreal como, como... Vejamos uma palavra bem fora de moda. Já sei: — “supimpa”. Aí está: — supimpa.) Mas as mulheres se despiam para milhões de telespectadores. Milhões.

     Não saí de casa. Fundei a minha solidão diante do vídeo. E, de repente, aparece uma conhecida minha, aliás uma menina linda, linda. Um mês antes perdera o marido, um jovem aviador, moreno como um galã do neo-realismo italiano. O jato batera numa montanha e não restara do ser amado, para a viúva, um relógio, uma aliança, uma obturação. E, um mês depois, ela pôs um sarongue em cima da eterna saudade e levou a viuvez para sambar.

     Por uma fúnebre coincidência, as câmaras não tiraram o olho da viúva. Ela apareceu duzentas vezes em cada dia. O rosto era lindo. Todavia, ninguém estava lá para promover rostos. E a televisão só mostrava o umbigo, vejam vocês, o umbigo da menina. Minto. Mostrava também uma pequena cicatriz de apendicite. E o umbigo e a cicatriz, ampliados, tinham uma dimensão miguelangelesca.

     Depois do Carnaval, andei tendo sonhos hediondos. E, no pesadelo, era atropelado por milhões de umbigos, por milhões de cicatrizes. Eis o que eu queria dizer: — na série de artigos em torno da festa de nus disse eu o que me parece ser uma verdade eterna: — nada mais feio do que a nudez sem amor. O ideal seria que só o bem-amado pudesse ver um decote. Dirá alguém que o decote é tão pouco. Sei que é tão pouco. Mas só o bem-amado devia olhar o decote. Escrevi mais: — como é triste e mesmo vil a nudez que ninguém pediu, que ninguém quis ver e que nenhum desejo explica. A Marilyn Monroe também se despiu para uma folhinha. Mas teve um preço, um cachê. Era um impudor mercenário. Mas parece mais vil a nudez de graça, a nudez sem gratificação.

     Foi mais ou menos isso que escrevi em três ou quatro artigos. E, um dia, recebo a carta de uma leitora indignada. Começou por me chamar de “velho”. Até aí nada demais, porque sou realmente uma múmia. Mas ela continua e logo percebo que não se trata de uma velhice de idade, mas de espírito. E dizia mais que só um velho podia-se interessar pela nudez feminina. Os jovens tinham mais em que pensar etc. etc. Achei a carta da leitora uma delícia rara. Dois ou três dias depois, conversei com um clínico famoso. E ele estava apavorado. Disse-me que nota nas novas gerações um ressentimento contra o sexo, contra o amor e contra a mulher. Isso da parte dos homens. E as meninas têm a mesma aridez. Os jovens de ambos os sexos sentem o tédio antes do amor e esquecem antes da posse.

     Vejam bem. Se a leitora e o médico têm razão, os únicos homens válidos são os velhinhos nostálgicos e espectrais da porta da Colombo. E os moços plásticos, elásticos, ornamentais da praia? Bem. Sempre me pareceu que, aos vinte anos, o sujeito não sabe nem como se diz “bom dia” a uma mulher. Simplesmente não sabe como tratar uma mulher. Mas no passado a vitalidade o salvava. Vitalidade talvez cega, talvez obtusa, talvez brutal. Mas, repito, essa vitalidade era alguma coisa. E, de re-pente, vêm a leitora e o médico e dizem: — só os velhos ainda se interessam por amor, só os velhos ainda se interessam por sexo.

     A princípio, fiquei em pânico. Mais tarde, pensando melhor, cuidei que tinha sido um exagero da leitora e do clínico. Não era possível. E, no entanto, vejam vocês: — acabei de ler um prodigioso artigo de Nelsinho Motta. Sim, o escritor, o jornalista, o ensaísta, o sociólogo, o letrista, o homem de televisão. Não sei se vocês o conhecem. Se não conhecem, tentarei descrevê-lo, por dentro e por fora. Fisicamente, é pálido e diáfano como Werther ou, se preferirem, como Alfredo da Traviata. Não sei se o tal Alfredo tinha costeletas. Mas quero acreditar que, de costeletas, o Nelsinho seria o próprio. Ainda no terreno da ópera, lembra também o pajem do Rigoletto. E, por dentro, é de uma fragilidade ideal. Sua estrutura psíquica não resistiria a um sopro de apagar velinha de aniversário.

     (Por um lapso indesculpável, eu ia-me esquecendo de um dado fundamental: — nunca foi à praia. No momento em que cada brasileiro é moreno como um havaiano de Hollywood, a palidez do Nelsinho Motta faria o maior sucesso nos velhos folhetins.) E foi essa flor de biscuit que, subitamente, escreveu um artigo feroz. Imaginem um javali com todas as cerdas eriçadas. Assim é Nelsinho Motta na primeira e admirável fúria de sua vida. O pretexto foi a música popular.

     O autor fala como jovem e em nome dos jovens. Os idiotas da objetividade diriam que a ira do Nelsinho (só comparável à de Zola) tem motivos menos nobres e estritamente competitivos. Mas vejamos. Ele arrasa os compositores que pretendem “uma música pura, romântica, que eleve a alma”; e que querem impressionar as meninas (o que é o caso de todos os brasileiros vivos e mortos). Diz o caro Nelsinho que essa espécie está-se extinguindo. Com um pouco mais, estaremos todos desinteressados de meninas. Essa castração do homem brasileiro chega a ser comovente.

     Em tom épico, fala da juventude que lutou nas ruas de Paris. Mas que luta? Contra os paralelepípedos, contra os carros virados? Não houve uma cabeça quebrada, uma fratura, nada. E continua o Nelsinho. Fala nas passeatas brasileiras. Realmente, as passeatas! Alguém viu um negro um operário, um roto, um esfarrapado? Mas o autor afirma que as passeatas vão salvar o Brasil. E, súbito, ele cita o Chico Buarque de Holanda e o inclui na lista dos jovens que não gostam de amor. Mas é falso. O Chico é o anti-Roda viva. A Banda é o anti-Roda viva. Não há autor mais lírico, e que toque mais às meninas, e mais terno, e mais “sentimentalóide”, e mais “desvinculado do mundo em que vivemos”. Aí está: — o vil e canceroso mundo em que vivemos não admite, segundo o Nelsinho, nem amor, nem sexo, nem mulher e, muito menos, homem.

     E mesmo o Nelsinho, que é o próprio Werther. Como ele se explica, como ele se justifica? Mas, de qualquer maneira, acredita em passeatas. Na próxima, ponha um negro na marcha; um operário; um esfarrapado; um torcedor do Flamengo; uma crioula dando o peito seco ao filhinho recém-nascido. Não me comove a passeata das classes dominantes. É preciso tirar a fome brasileira de sua hedionda solidão.

             [1/8/1968]

 

                                                   MÃE

     Posso não ter outras virtudes, e realmente não as tenho. Mas sei escutar. Direi, com a maior e deslavada imodéstia, que sou um maravilhoso ouvinte. O homem precisa ouvir mais do que ver. Qualquer conversa me fascina e repito: — não há conversa intranscendente. E, se duas pessoas se falam, a minha vontade é parar e ficar escutando. Uma simples frase, ainda que pouco inteligente, tem a sua melodia irresistível.

     Ontem, por exemplo. Eu ia passando e vi duas senhoras no poste de ônibus. Conversavam. Estaquei e resolvi ouvi-las. Eram duas gordas e uma delas perguntava à outra: — “Sabe onde fica a praça Serzedelo Correia?”. A outra respondeu: — “É pertinho daqui. Ali”. E mostrava, com o dedo: — “Está vendo? Ali”. A primeira olha e suspira: — “Então vou tomar o ônibus”.

     A distância que a separava da praça era de uma quadra. Comecei a ver, ali, um mistério insuportável. Por que tomar um ônibus para ir de uma esquina a outra esquina? Foi mais ou menos o que disse a segunda senhora: — “Não precisa ônibus. Para que ônibus? Tão pertinho”. Novo suspiro da primeira: — “Estou tão machucada. Vou mesmo de ônibus”.

     Foi aí, e só aí, que eu e a outra percebemos a evidência total. Estava, sim, bem machucada. Na minha infância, dizia-se “amarrotada”. E ela estava amarrotada. O olho esquerdo, ou direito, tinha um halo negro, um halo que parecia feito de rolha queimada. Uma das orelhas (não vi a outra) estava enorme como a de um boxeur. Enorme e vermelha ou roxa. A simples palavra repercutia, dolorosamente, lá por dentro. E, então, compadecida, a outra quis saber: — “Mas que foi isso? Desastre?”.

     Parecia um bárbaro atropelamento. E havia, na conversa, um clima folhetinesco. Não perco uma palavra. Veio a resposta: — “Foi meu filho que me deu uma surra”. Dizia isso sem nenhum horror, em tom castamente informativo. Era como se não fosse ela a mãe, e fosse o espancador o filho da vizinha. A segunda senhora deixa passar um momento. Ainda espicha o pescoço para ver o ônibus. E pergunta, com relativo interesse: — “Bateu na senhora?”. Geme: — “Bateu”. E havia no que uma perguntava, e no que a outra dizia, uma naturalidade hedionda.

     A primeira olha no relógio de pulso: — “Já são onze horas, meu Deus!”. E, como o ônibus não vinha, a outra indaga: — “Bateu por quê?”. Disse: — “Me pediu dinheiro. Eu não tinha. Já sabe. Meu filho tem um gênio que Deus te livre. Muito nervoso”. A segunda olha no fim da rua: — “E esse ônibus que não vem?”. Espia de novo o relógio. Suspira: — “Caso sério”. A primeira está dizendo: — “Quando respiro...”. Respira fundo: — “Dói aqui”. Espeta o dedo: — “Aqui”.

     E, súbito, chega o ônibus. Uma subiu, fácil e lépida. Mas a mãe espancada foi uma dificuldade. Dizia baixinho, como se o motorista pudesse ouvi-la: — “Espera, espera”. O trocador fica olhando e reclamando: — “Como é, minha tia?”. Lá fui eu ajudá-la. Um outro apareceu. Foi empurrada, quase carregada. Gemia: — “Ai, ai”. Finalmente, entrou. Arquejou para mim e para o outro: — “Deus te abençoe, Deus te abençoe!”. O trocador deu o sinal, o ônibus partiu. Começou, para ela, a longa viagem de uma esquina para outra esquina.

     Pouco depois, estava eu no táxi. E pensava: — “Será que essa mãe não tem marido? Ou um outro filho? Ou vizinho?”. Vamos crer que fosse viúva de filho único. Mas teria vizinhos. E, além disso, há a imprensa, o rádio, a televisão, as duas casas do Congresso, as Forças Armadas etc. etc. E toda essa maravilhosa estrutura não faz nada, não exala um pio? Um filho pode espancar a mãe e fica por isso mesmo? Admito que não se faça nada. Mas o que não entendo é que ninguém se espante. O brasileiro cada vez se espanta menos.

     A própria vítima não me pareceu espantada. Vejam bem: — não a espantou a surra do filho, usara um tom impessoal e, repito, apenas informativo. Já falei das orelhas? Acho que não. Uma delas estava roxa, um roxo de orquídea e de gangrena. Agora me lembro: — falei, sim, da orelha. Paciência. Lembro-me de que, ao contar a surra, inflexionava como se tivesse pena, não ódio (ódio nenhum), pena do filho. Era uma espécie de ternura apiedada. Se a outra condenasse o rapaz, ela o teria defendido, talvez. Talvez, não. Estou certo de que o teria defendido.

     E, se a apertassem muito, acabaria dando razão à surra. E iria para o espelho acusar a própria imagem: — “Bem feito, bem feito!”. Eis o que eu queria dizer: — essa mãe, capaz de dar razão à surra, existe e aos milhares, existe aos milhões, em todas as terras e em todos os idiomas. É o próprio mundo — não, não —, é a própria família que atira pela janela todos os seus valores. Há poucos dias, um pai amargurado escreveu-me: — “Meu filho sabe mais do que eu! Minha filha sabe mais do que a mãe!”. Porque fez dezoito, ou vinte, ou 23 anos, o sujeito passa a ter a “verdade da idade”, a “razão da idade”, o “direito da idade”, o “poder da idade”, a “virtude da idade”. E todos assumem a mesma atitude da abdicação: — o jornalista, o político, o psicólogo, o sociólogo, o sacerdote, os artistas. O pintor Raul Brandão berrava numa galeria de pintura: — “O jovem tem todos os defeitos dos mais velhos e mais um: — a imaturidade!”.

     Outro dia, tivemos a jovem revolução francesa. Os estudantes da França explodiram. A princípio, pensou-se que eram as vítimas da fome, furiosas contra a fome. Mas logo se percebeu que era a antifome. Sim, a antifome que devastava a França. E o mundo viu os filhos da alta burguesia virando carros, arrancando paralelepípedos. Ninguém entendia nada. Certo parisiense, perfeito idiota da objetividade, escreveu: — “A desgraça da França são os franceses”. Outro propôs uma Resistência contra os franceses. Um terceiro queria uma nova invasão da Normandia que salvasse a França da brutal ocupação francesa.

     E eram os jovens, os jovens, os jovens. Como eram os jovens, todo mundo lhes deu razão. Cabe a pergunta: — e que fizeram eles, além de arrancar paralelepípedos e de quebrar vidraças? Foram pichar as obras-primas do teatro Odeon. Passaram a gilete ou a brocha nas telas famosíssimas. Por que esse ódio, esse estupro plástico? Porque os estudantes eram contra a “arte oficial”. Mas fecharam a Bienal, por se tratar de arte moderna, capitalista etc. etc. O festival de Cannes foi também fechado, a tapa. Alguém que acordasse, de repente, havia de imaginar que era uma nova ocupação nazista. Os nazistas nunca se lembraram de humilhar, degradar os belos quadros, as obras-primas de todos os tempos. E o curioso é que jamais ocorreu aos estudantes franceses que eram eles a alta burguesia, eles o capitalismo, eles as classes dominantes.

     Volto à mãe que apanhou do filho e deu razão à surra. Foi um pouco o papel da França ao ser agredida pela própria juventude. Lá ninguém insinuou um protesto. Igualmente suicida é a posição da família diante dos seus filhos. Dizia-me, ontem, um padre de passeata: — “A família tem seus dias contados”. Viu a minha perplexidade e perguntou: — “Ou você não percebe que a família é uma instituição falida?”. Bem. Não direi falida. Suicida, talvez.

            [5/8/1968]

 

                                           SOBRE VAIDADE

     Há tempos, contei o caso do ministro que foi, pela primeira vez, à televisão. A família tremeu em cima dos sapatos. E não sei se a própria mulher, uma tia, ou uma cunhada, deu a sugestão espavorida: — “Toma banho! Toma banho!”. E porque não lhe ocorrera a idéia do banho, o ministro julgou-se um vencido. Imediatamente, a esposa se arremessou. Podia ser banho de chuveiro. Mas, como ele ia falar na TV, a santa senhora achou que devia ser banho de imersão.

     Encheu a banheira. Temperou a água. E o banho ministerial foi digno de Paulina Bonaparte. Do lado de fora, a mulher comandava: — “Esfrega bem! Esfrega bem!”. Uma tia cochichou: — “Debaixo do braço!”. E a mulher mais alto: — “Debaixo do braço, ouviu?”. Súbito, alguém veio dizer à esposa: — “Homem não sabe tomar banho. Não se limpa direito”. Vozes a instigavam: — “Vai lá! Vai lá!”. E ela foi. Quando s. exa. saiu, era o membro mais limpo do governo.

     E, assim, esfregado pela própria mulher e mais perfumado do que uma noiva, lá se foi o ministro. Ele, só, não. Levava um acompanhamento estarrecedor. Parecia uma passeata de parentes. Havia, na família, uma solteirona de García Lorca. Chamada, não queria ir. Quase a laçaram; e a velha estrábica (era estrábica) teve que se incorporar à massa familiar.

     O ministro entrou na estação em ânsias, palpitações sufocantes. Não acreditava em nada, era um ateu nato e hereditário. Todavia, na hora de ir para o ar, vira-se para a mulher: — “Reza por mim! Reza por mim!”. E, com uma dispnéia pré-agônica, encaminhou-se para o abismo. Sim, a televisão era, para S. Exa., um abismo voraz e inédito. Na frente das câmaras e dos microfones, deixou de ser o poder, o governo, a autoridade. Era o contínuo de si mesmo. Houve um momento em que, em pleno ar, teve sede. Apanhou o copo com as duas mãos. Mas parte da água voltava como uma baba.

     Já não me lembro por que é que estou contando tudo isso. Ah, já sei, já sei. Eu queria demonstrar o óbvio, isto é, que a televisão fascina qualquer um. O sujeito pode ser rei, ou rainha, ou anjo, ou santo. Mas atravessa três desertos para entrar no programa do Chacrinha, da Dercy ou da Bibi. Cabe então a pergunta: — e por que esse deslumbramento?

     Vamos lá. Primeiro, porque, normalmente, cada um de nós é um ator sem platéia. Representamos, no máximo, para uma namorada, para meia dúzia de familiares, meia dúzia de vizinhos, meia dúzia de credores. E o sujeito que entra no Chacrinha sai de lá célebre. Aparece para milhões. E essa celebridade fulminante é a maior delícia terrena.

     E quem fala para tantos pode, com uma frase, fundar uma religião, com outra frase derrubar um império, com uma terceira frase decapitar várias marias antonietas. De mais a mais, a simples imagem nos confere uma nova dimensão. Pois não há idiotas no vídeo. Lembro-me de um outro ministro. Alguns espíritos, estreitamente positivos, afirmam que é débil mental de babar na gravata. Foi para a televisão e parecia um Disraeli. E De Gaulle, que fez De Gaulle, quando viu a França sob a brutal ocupação francesa? Correu à TV e anunciou: — “Eu sou a Revolução!”.

     Isso, dito cara a cara, e para meia dúzia, não convence ninguém. Mas uma platéia de 20 milhões não pensa. E não precisou polícia, nem exército, nem bazuca. Uma frase bastou. Sem nenhuma repressão sangrenta, o único francês vivo liquidou o que ele próprio chamou de “carnaval”. Baixou sobre a França uma súbita quarta-feira de Cinzas. O que restou de tudo foi a ressaca do caos ululante.

     E se alguém disser na televisão que é Joana D’Arc, será Joana D’Arc. Portanto, a França e colônias (se sobrou alguma colônia), todo mundo acreditou que De Gaulle era a própria Revolução de esporas e penacho. Aqui mesmo tivemos o encontro de Carlos Lacerda e d. Hélder. Iam fazer um diálogo. Mas o diálogo foi monólogo. Só Lacerda falou. O arcebispo disse um “oba” à entrada e um “até logo” à saída. Por que tal silêncio? Por dois motivos: — primeiro, porque d. Hélder só se interessa Por d. Hélder; segundo, porque é um arcebispo de TV, um santo de TV. Ele próprio o disse: — “Não sou um Guevara de salão”. É um Guevara de TV. Carlos Lacerda era um único e escasso espectador. D. Hélder só falaria para milhões de carlos lacerdas.

     Eis o problema: — ninguém quer mais posar para meia dúzia. O nosso gesto, a nossa ênfase, a nossa careta pedem a grande comunicação, a formidável audiência. Aí está a minha CLASSE. No passado, era-se atriz, ator, diretor para uma platéia de poucos. Mas hoje o palco passou a ser a pior forma de solidão. Diante dos 150 gatos-pingados de cada sessão, a Duse ou o Zaconi sente-se um Robinson Crusoe sem radinho de pilha. Instalou-se em cada um de nós, do teatro, a utopia das platéias fantásticas. Disse-me o dramaturgo Plínio Marcos que queria representar e ser representado no ex-Maracanã, hoje Mario Filho, para uma platéia de Vasco x Flamengo, de Santos x Corinthians. Cada um de nós queria ser um Santos x Corinthians, um Vasco x Flamengo. Ou ainda: — qualquer um de nós gostaria de ser, na pior das hipóteses, uma preliminar de Fla-Flu.

     Foi a televisão, claro, que nos deu essa obsessão numérica das grandes massas. Volto ao teatro. Lembro-me de um ator que me dizia, patético: — “Eu queria morrer no palco”. Um outro, mais radical, além de querer morrer no palco, gostaria de ter nascido no palco. E o palco seria, duplamente, berço e túmulo. Hoje, este último gostaria de nascer e morrer na TV, para milhões. Por que todos gostamos de fazer passeata?

     Pode parecer que temos altíssimas e sutilíssimas razões políticas, ideológicas, revolucionárias etc. etc. Na verdade, e até prova em contrário, o que há é a vontade que cada qual tem de ampliar a sua platéia. Reparem como tudo é pretexto para passeata. Há uma greve de veterinários? A CLASSE sai à rua. Mas como, se ela nunca tratou de cachorro? Não importam os cães, sejam eles galgos ou vira-latas. O que interessa é a conquista de uma nova e incalculável platéia. Outrora, as sacadas não iam ao teatro, os automóveis não gostavam de teatro, os edifícios abominavam o teatro. E a passeata incorpora à sua platéia ideal milhares de carros, e prédios, e esquinas, e avenidas etc. etc. Dirá alguém que é um público sem bilheteria. E pergunto: — e a vaidade? Hoje, há poetas, sociólogos, arquitetos, protéticos, cardiologistas que pagariam, do próprio bolso, para entrar na passeata.

     Eu disse “vaidade”. Aí está a palavra que explica tudo. O que nos induz à passeata é, digamos, uma vaidade de leitão assado. Se não entenderam a metáfora, tentarei justificá-la. Imaginem um salão imenso. Banquete. Quinhentas pessoas sentadas, entre casacas e decotes. E, lá do fundo, um garçom traz na bandeja um leitão. Levado na bandeja em desfile, o leitão há de sentir uma vaidade total. Assim também o artista, o literato, o cineasta ou o padre de passeata. O sujeito parece desfilar triunfalmente, numa bandeja imaginária, e de maçã na boca, como o leitão assado.

               [6/8/1968]

 

                                                   O PAULISTA

     Certa vez, estou em casa, quando bate o telefone. Atendo: — era o paulista. Fiz-lhe uma festa imensa: — “Como vai? Há quanto tempo!”. E, de fato, não nos víamos há uns três anos. Ou mais. Quatro ou cinco anos. Sou um desses brasileiros que vão pouco a São Paulo. Em 55 anos de vida passei por lá três ou quatro vezes. Só. E não sei se por culpa minha ou de São Paulo ou de ambos. Creio que de ambos.

     Um dia, fui a São Paulo, de automóvel, ver um jogo. Se não me engano, Brasil x Tchecoslováquia. Exatamente, Brasil x Tchecoslováquia. E ele foi comigo ao Pacaembu. Torcíamos juntos, ou por outra: — só me lembro da minha torcida. A dele apagou-se completamente na minha memória. Do Pacaembu saímos para jantar. Jantamos. E já me pergunto: — será que jantamos mesmo? Sei lá. Passamos a noite juntos. Ele não arredava o pé de mim. Fazia um frio tão feroz — era junho — que, em dado momento, tive vontade de chorar, sentado no meio-fio.

     O homem foi para mim uma espécie, digamos, de irmão súbito. Não consegui pagar uma caixa de fósforo. Ele subvencionou tudo. E fez questão de me levar no trem. Desembarquei no Rio e me saturei, até os sapatos, de vida carioca. Passa-se o tempo e, de vez em quando, me lembrava do paulista. Via com a maior nitidez a sua cara, o terno, a camisa, e nada mais. Lembrava-me, sim, do seu pigarro. Mas não me ficara de nossa convivência uma palavra, uma frase, um “boa-noite”, um “adeus”. Cheguei a pensar que, em minha passagem por São Paulo, ou eu era surdo ou ele mudo. Mas claro que se tratava de uma ilusão auditiva: — até uma múmia acompanhada há de falar coisas, dizer frases, soltar palavrões etc. etc. E eu só me lembrava de um único e escasso pigarro.

     Mas, enfim, estava ele no Rio. Ótimo, ótimo. Eu ia vê-lo e, mais do que isso, ia ouvi-lo. No telefone, combinamos um jantar. Exagerei, patético: — “Você não imagina a minha alegria”. Quis saber: — “Quanto tempo vai passar aqui?”. Resposta: — “Dois dias”. Ao sair do telefone, juntei ao pigarro mais umas quinze palavras. Vejam bem: — quinze palavras e um pigarro tinham, para mim, quase que a abundância de uma ópera.

     Vou encurtar, porque não quero tomar o tempo do leitor. Jantamos, nesse dia, almoçamos e jantamos no dia seguinte, fomos ao teatro e ainda ceamos na sua última madrugada de Rio. De manhã, compareci ao aeroporto. Perguntei-lhe: — “Até quando?”. Teve um sorriso inescrutável e não disse uma palavra. Por fim, tomou o avião e partiu. Vim embora e aqui começa a minha trágica perplexidade: — eu voltava à mesma situação. O outro era um paulista fino, inteligente, um homem de sensibilidade, de imaginação. Há momentos em que o mais incomunicável dos homens tem que fazer uma confidencia. Ou faz uma confidência ou morre.

     E ele, nos seus dois dias de Rio, não fizera nenhuma confidência. A princípio, ainda tentei forçar aquela barreira de silêncio. Mas senti que era inútil e calei-me também. E, então, aconteceu esta coisa vagamente alucinatória: — éramos dois silêncios que andavam um atrás do outro; dois silêncios que comiam, bebiam, fumavam e se entreolhavam. Deu-me, por vezes, a vontade de ouvir-lhe o som do pigarro. Se não tinha o que dizer, podia dar-me a esmola auditiva de um pigarro. Por imitação inconsciente, eu ia-me tornando paulista também.

     Saí do aeroporto numa melancolia hedionda. E a primeira buzina que ouvi deu-me uma desesperada euforia. Pensei: — “Ao menos as buzinas falam!”. Entrei na redação e fui adiantar serviço. Passei dez minutos diante da máquina. Mas não me ocorria absolutamente nada. O papel estava na máquina, branco, virginal. Acabei decidindo: — “Vou escrever sobre o kaiser”. Mas quando comecei a bater as teclas, saiu-me esta frase: — “A pior forma de solidão é a companhia de um paulista”. Reli, honestamente espantado. A coisa nascera sem nenhuma elaboração prévia. Continuei a escrever. Expliquei a verdade, isto é, que a frase me escapara sem querer. E fiz toda uma crônica sobre o kaiser.

     Dias depois, encontrei-me, na casa do Pitanguy, com a sra. Clô Prado. Falou da minha frase com uma ternura agradecida: — “Como é verdadeiro o que você disse! Como é exato! Como é perfeito!”. Nessa mesma noite, e ainda na casa do Pitanguy, um dos convidados achou que eu escrevera, numa simples frase, uma verdade estadual inapelável e eterna. Já no fim da madrugada, uma terceira pessoa me levou para os fundos da casa. Pitanguy tem uma piscina. E foi, perto da piscina, que conversamos.

     Era ainda a frase. O convidado começou por dizer que o paulista é a única solidão do Brasil. E aí está sua formidável superioridade sobre todos os outros brasileiros. E o que explica a epopéia industrial de São Paulo é a solidão. Realmente, o paulista é capaz de viver, amar, envelhecer sem fazer jamais uma confidência, nem ao médium depois de morto. Os demais brasileiros são extrovertidos ululantes, está certo. Mas não fazem o Brasil. O único que faz o Brasil é o paulista. O autor do Brasil é São Paulo. Fiz-lhe a pergunta: — “O senhor é paulista?”. Era.

     Todos os autores têm suas três ou quatro frases bem-sucedidas. Não sei se me entendem. São frases que adquirem vida própria e que duram mais do que o autor, mais do que o estilo do autor, mais do que as obras completas do autor. Imaginem que a da solidão paulista ainda me rende bons dividendos. Ontem, por exemplo. O telefone me chama. Vou lá. Era uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Veio a pergunta: “Seu Nelson?”. E eu: — “Pois não”.

     Começou dizendo que era paulista. Começo a ficar inquieto. Continua: — “Vim-lhe falar sobre aquilo que o senhor escreveu”. Eu não digo nada ou, melhor, digo: — “Ah, sim, sim”. Evidentemente, era a frase. Pergunto: — “A senhora concorda ou não?”. E a voz de anjo defunto: — “Foi a maior verdade que o senhor já disse na sua vida. O senhor é paulista?”. Quase pedi desculpas de ser pernambucano. Conversamos uma hora ou mais. Disse a idade: — oitenta. Era paulista há oitenta anos. Casada desde os quinze, vivera com o marido, outro paulista, por 65 anos. Ele era fazendeiro, não sei onde. E passavam dias, semanas, meses de silêncio total. Muitas vezes, ela já não se lembrava de como era a voz do marido e chegava a esquecer a própria. E a velhinha me perguntou: — “O senhor acredita se eu lhe disser que enterrei meu marido na semana passada?”. Acreditei. Em mais de meio século de coabitação, nem lhe conhecera o gemido, o simples gemido. Um ficava escutando o silêncio do outro. Ele agonizara sem gemer. E, depois, lá foi ela para a capelinha. Floriu, velou e chorou um desconhecido.

               [7/8/1968]

 

                                                   WERTHER

     Não me lembro de ter dito que o Palhares, o canalha, é o carioca radical. Sim, ninguém mais carioca, ninguém tão carioca. É uma espécie de irmão das coisas, das esquinas, das retretas, dos paralelepípedos da cidade. Olha o Pão de Açúcar como se fosse a primeira vez, sempre a primeira vez. E tem a sensação de que a luz acaba de inaugurar o Corcovado.

     Pois bem. E, ontem, eu estava na Cinelândia, olhando os pombos. Não sei que misterioso pudor me impede de lhes dar milho na mão. De repente, ouço o berro: — “Nelson! Nelson!”. Era o Palhares, “o que não respeita nem as cunhadas”. Na calçada da Biblioteca, ele, qual um extrovertido ululante, berrava o meu nome. E, depois, atravessou a Avenida. Os automóveis em disparada raspavam o magnífico pulha. Mas ele chegou do outro lado, sem um arranhão, sem uma fratura e sem uma trombada.

     Olhei o canalha. Como sempre, tinha uma pele de quem lavou o rosto há quinze minutos. E anunciou: — “Tenho uma pra te contar, menino!”. Imaginei que devia ser a sua última conquista. O Palhares tem sempre uma “última conquista”. E ele, já de olho rútilo, ia começar. Súbito, balbucia: — “Até logo, até logo!”. Segurei-o pelo braço: — “Que é isso, rapaz?”. Diz, baixo: — “Vem aí o Torres. Já me viu. Torres, o homem de bem. O maior chato do Rio de Janeiro. Adeus!”. Largou-me e fugiu.

     E eu, que também conhecia o Torres, tratei de escapar. Atravessei para a Câmara, dobrei Evaristo da Veiga e fui andando, rente à parede. Se vocês conhecessem o Torres, “o homem de bem”, justificariam o meu horror e o do Palhares. O Torres é a virtude mais promocional do Rio de Janeiro. Em todas as esquinas, salas e retretas ele esfrega, na cara dos outros, a sua honra. Lembro-me de um dia em que, na esquina de Sete de Setembro, bramava: — “Sou um homem de bem! Sou um homem de bem!”. E quando ele aparece as pessoas fogem, como se ele fosse o Juízo Final ou, pior do que isso, o rapa.

     Jamais o Torres deu um biscoito a um pobre sem promover tal esmola em manchetes. Mas não é ele o único Narciso da caridade. A toda hora e em toda parte, há íntegros que nos atropelam com a sua integridade, há justos que nos humilham com a sua justiça, há castos que nos ofendem com a sua pureza. Raríssima uma bondade sem impudor.

     Por isso, chega a ser inquietante o caso de Abrahim Tebet. Digo-lhe o nome e não sei se vocês o conhecem. Foi homem do esporte, do futebol, do escrete. Mas o que me interessa é o Abrahim Tebet “ser humano”. Muita gente só tem de humano o terno, a gravata, os sapatos. E passamos meses e até anos sem ver ninguém parecido com o ser humano.

     Há dois ou três dias, Abrahim tomou posse do cargo de presidente do Conselho Estadual de Trânsito. Ah, que figura patética e, eu quase dizia, chapliniana, a do “empossado”. Depois do governador Negrão de Lima, falou o próprio Abrahim. Imaginei: — “Vai chorar!”. Mas não chorou. Ah, o esforço que fez para controlar a própria tensão. Ao lado, estava o Luís Alberto Bahia, o chefe da Casa Civil. Nós sabemos que o poder gosta de pôr uma máscara hirta. Mas o nosso Bahia é, justamente, o poder dionisíaco. Sai de casa, num suntuário chapa-branca, e leva no bolso várias gargalhadas. Ria para mim, para o Abrahim, para todo o mundo. Essa alegria antioficial estarrecia os mais tímidos.

     Mas sem querer estou pecando contra o meu assunto. Volto a ele. Eis o que eu queria dizer: — vimos a bondade do Torres, que se badala como um sino indigno. Mas a do Abrahim é, justamente, a que se esconde, a que se nega, e se disfarça. Diria que ele faz o bem às escondidas, como quem pratica um ato obsceno. É bom com vergonha de o ser. Quando ele deixou a CBD, houve quem sussurrasse o vaticínio: — “Vai morrer de fome”. Aí está. Abrahim, o doce, sempre terá uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.

     (Não sei se eu disse que o Luís Alberto Bahia tem o riso luminoso e forte dos sátiros vadios.) Falei de Abrahim e passo ao Nelsinho Motta. Dias atrás, escrevi sobre o jovem cronista, e não só cronista: — também homem de TV, da canção, do romance (ainda não escreveu nenhum romance, mas será, um dia, romancista). E o Nelsinho, que é romântico por dentro e por fora, romântico no terno, romântico na gravata, romântico na calça de veludo e romântico na palidez. Faço ponto, porque já vou arquejando. E, como ia dizendo: — o Nelsinho escreveu, justamente, contra os românticos. Há uma rapaziada aí que anda bebendo nas fontes líricas da música popular. E meteu-lhe o pau.

     Não contente, Nelsinho faz do Chico Buarque de Holanda uma imagem cruelmente inexata. Na sua versão, o autor de A banda seria um vampiro saudoso de carótidas, querendo beber o sangue gelado da burguesia. Mas esse é o falso Chico, a negação do Chico, o anti-Chico. Ninguém mais nostálgico, ninguém mais fremente, ninguém mais pungente. E como é antiga e infeliz a sua ternura. Querem transformar um Pierrô do Méier num Guevara de capinzal vagabundo.

     Dirá o leitor: — “E Roda viva?”. Ah, Roda viva é também o anti-Chico, e por outras palavras: — Roda viva é o José Celso. O diretor sentou-se na alma do espetáculo. No texto que lá aparece não há uma janela. Ora, o Chico tem, como as modinhas antigas, a obsessão das janelas. Eu me lembro de uma letra de Hermes Fontes (de Hermes Fontes ou Olegário). Diz assim: — “Pela janela da saudade” etc. etc. Aí está insinuada a Carolina.

     E eu achei que toda a crônica do Nelsinho tinha um som de moeda falsa. Por que o pudor de ser piegas? Que somos nós, todos nós, senão 80 milhões de piegas? E o Nelsinho, que é capaz de fazer um pacto de morte na primeira esquina, e Chico, idem? Um ou outro devia aparecer na boca-de-cena e anunciar, de fronte alta: — “Damas e cavalheiros: — Eu sou um piegas nato e hereditário”. E o Sérgio Buarque de Holanda, uma das inteligências mais sérias do Brasil? Em várias entrevistas, já declarou: — “Eu sou apenas o pai do Chico”. Eis um gesto do piegas radical e incontrolável.

     Quando escrevi sobre o Nelsinho, estava disposto a uma feroz polêmica. Seria o patético, raiando pelo sublime: — de um lado, eu, velho, de uma velhice inenarrável; de outro lado, o Nelsinho, com todo o esplendor das Novas Gerações. Mas não há tal polêmica. O Nelsinho pensa como eu, sente como eu, e mais: — usa contra mim as minhas próprias piadas. Quando cruzar com esta figura da belle époque, hei de perguntar-lhe: — “Quando é o pacto de morte?”. E dirá ele, pálido como um Werther: — “Estou caprichando”.

               [8/8/1968]

 

                                          TELEFONEMA COM SOTAQUE

     Entro na redação e o companheiro avisa: — “Telefonaram pra ti. Do Paris-Match. O correspondente de lá”. No meu espanto, balbucio: — “O Paris-Match? Comigo?”. Qualquer telefonema é uma janela aberta para o infinito. Muitas vezes a glória internacional começa no telefone. Tirando o paletó, armei uma fantasia paranóica. Seria talvez uma entrevista. E já imaginava um retrato meu de página inteira. Sair na revista que só promove Stalin, Buda, Mao Tsé-tung, Roosevelt, o príncipe de Gales e o decote de Elizabeth Taylor (decote tão robusto, tão bem alimentado).

     E, como um telefonema do Paris-Match é altamente promocional, já os companheiros cravavam em mim o olho da inveja. E, súbito, o telefone bate novamente. Numa tensão sufocante, fecho os olhos e espero o chamado. Ouço a voz: — “Nelson, pra ti!”. Saio atropelando mesas e cadeiras, como um centauro. Digo, arquejante: — “Alô! Pronto!”. E, como a voz não tem sotaque, rilho os dentes de frustração. Era o alfaiate. Destratei-o: — “Eu não sou o único brasileiro que deve! Sossega o periquito!”. Bati com o telefone.

     Sentei-me. E já me afligia e humilhava a gíria sórdida. No momento em que a imprensa européia me procurava, não me perdoei aquele “sossega o periquito”. No meu canto, pedi pelo amor de Deus um telefonema com sotaque. Três ou quatro minutos depois, sou chamado, outra vez. Ainda sondei o contínuo: — “Tem sotaque?”. “Sim.” Da minha mesa para o telefone, tive tempo de imaginar o seguinte: — estréia de minha peça Vestido de noiva em Paris. Na frisa oficial, estaria De Gaulle, com todas as medalhas escorrendo, em ouro, pelo peito. E, ao abaixar o pano, o Herói, de pé, pedindo bis, como na ópera.

     Chego ao telefone. Digo: — “Pronto, pronto!”. E ouço o bendito sotaque. Era o homem. Na minha dispnéia emocional, estou dizendo: — “Pois não, pois não!”. E fiquei ouvindo o enviado do Paris-Match. Logo nas primeiras palavras, o colega esvaziou-me de toda a mania de grandeza. Não estava interessado em mim, nem em meus textos, nem nas minhas metáforas. Vinha falar do Britto. Queria informações urgentes sobre o Britto.

     A princípio, não liguei o nome à pessoa. Britto? Que Britto? O sotaque falou no Jornal do Brasil (sempre este órgão fatal). Só então fez-se luz em mim. Já que o autor era outro, e não eu, comecei achar execrável o sotaque. Eis o fato: — chegara ao Velho Mundo a notícia de que o Britto, através do Jornal do Brasil, declarara guerra de morte às cores. Era um desafeto das cores e um fanático do preto-e-branco. Não podia passar por uma porta de tinturaria sem náuseas profundíssimas.

     Comecei a ver, ali, um mistério, um suspense. Que dizer do Britto? Achei a seguinte solução: — ia reunir uns dados e, em seguida, escreveria uma crônica sobre a vida e a personalidade do nosso patrício. Estou falando, aqui, no momento, para o Paris-Match.

     Quem é o Britto? Geralmente, cada qual é um só. Buda foi Buda, exclusivamente Buda e tão-somente Buda, do berço ao túmulo. E assim Maomé, e assim são João Batista, e assim Nero ou Stalin. No presente caso, temos três Brittos num só: — o do Jornal do Brasil; o futuro ministro das Relações Exteriores; e o beque do Vasco. Há um quarto: — o Britto doutor, único doutor da imprensa brasileira. Portanto, os três são quatro.

     Quando começou a sua projeção internacional? Vejamos. Domingo passado, a TV Globo iniciou, no Brasil, a época da televisão em cores. Se perguntarmos a um paralelepípedo analfabeto, ou a uma cabra vadia, ou a um bode de charrete se a televisão em cores é um passo maravilhoso, a resposta será unânime e taxativa: — “Está na cara!”. Não pensa assim o beque do Vasco. Ao saber da novidade, convocou uma reunião de editorialistas.

     Como se sabe, o Jornal do Brasil não diz um “oba” sem uma assembléia prévia e douta. Sob a presidência do dr. Britto, as maiores cabeças da casa discutem o “oba”, em toda a sua complexidade. Se aquelas inteligências preferem o “oba”, o Jornal do Brasil, no dia seguinte, diz o “oba” em vibrante editorial. Pois bem. Também a televisão em cores mereceu essa grave, erudita, clarividente reunião.

     Parecia uma sessão histórica da Câmara dos Comuns. Por vezes, os debates se acaloraram. Mas, mesmo no fogo da controvérsia, todos conservavam um tom dignamente crespo. O primeiro a falar foi o dr. Britto. Pedia licença para referir um fato, dos mais desprimorosos. E contou. Dias antes, vinha ele passando pela Avenida quando viu, na esquina, três cores: — o verde, o grená, o branco. Por se tratar de cores conhecidas, ele resolveu cumprimentá-las. Agora vem o horror: — as três cores viraram-lhe o rosto.

     Ante esse ultraje direto e crudelíssimo, o dr. Britto voltou atrás e perguntou-lhes: —”Vocês não me cumprimentam?”. Resposta: — “Nós somos Fluminense. E você Vasco”. E o dr. Britto, que já não gostava do amarelo, tinha agora razões de honra para abominar o verde, o grená e o branco. Na cabeceira da mesa, em pé, de fronte alçada, bradou: — “Ao Fluminense, nem água!”. Os taquígrafos, de orelhas ávidas, não perdiam uma palavra.

     Imediatamente, fez-se uma comissão de estilistas (os mais finos da folha de pagamento) para redigir uma nota feroz que desagravasse o chefe. Lá estava o dr. Britto, com os brios mais eriçados do que as cerdas bravas do javali. E a página foi feita e, no dia seguinte, publicada, num luminoso “Informe JB”. É um primor ou, como diziam as velhas gerações, uma tetéia. Nada de cores. Se o poente do Leblon não é em preto-e-branco, azar da paisagem e abaixo o poente. A nossa baía é metida a azul. Pau nela!

     Portanto, a televisão em cores deve ser varrida a patadas. E o “Informe JB” chega ao sublime quando malha a miséria colorida. O certo, o correto, o patriótico é a miséria em preto-e-branco, é a mortalidade infantil em preto-e-branco, é o subdesenvolvimento em preto-e-branco. Alguns realistas, que sempre os há, poderão dizer que a ira do Jornal do Brasil tem razões sordidamente competitivas. Quem ruge contra a televisão em cores é o jornal que não tem a televisão, nem as cores. Seja como for, o velho órgão esta ventando fogo por todas as narinas.

     Assim é o homem. Mas justiça se lhe faça: — aos poucos, etapa a etapa, vai conseguindo tudo o que quer. Dirá alguém que nunca passará de “futuro” ministro do Exterior. Não importa: — é um título. E os contínuos já o chamam de “ministro”, “sr. ministro” e, até, “dr. ministro”. Faltava-lhe a consagração do escrete. São Januário era pouco para a sua fome. É agora zagueiro da seleção. E se o Paris-Match dedicar ao nosso patrício as mesmas sete páginas que concede a De Gaulle e ao busto de Elizabeth Taylor — não faz mais que a obrigação.

           [9/8/1968]

 

                                             A GRATIFICAÇÃO

     Já falei da grã-fina que mora no Alto da Boa Vista. (No seu jardim, há uma estátua nua que, nas noites frias, morre gelada.) Seu palácio saiu nos “mais belos interiores” de Manchete. Mas o que me fascina, em certas casas, é o requinte. Outro dia, fui visitar outro casal de grã-finos. E, na hora de lavar as mãos, vi uma pia inexcedível. A pia ainda não era nada. O que me deslumbrou foi a bica. Enxuguei as mãos e, depois, chamei o dono da casa. Disse-lhe, de olho rútilo: — “Que bica! Que bica!”. E ele, na sua flamejante modéstia: — “Ouro maciço!”.

     Volto ao Alto da Boa Vista. A dona da casa é exatamente aquela que, certa vez, dizia, lânguida, meio alada: — “Eu sou amante espiritual do Guevara”. Em seguida, voltando à vida real, levou-nos para ver o retrato do “Che” em sua alcova. Lá estava ele, de boina; a barba crespa virilizava a doçura da expressão quase infantil. Pois bem. E foi justamente a “amante espiritual” de Guevara que telefonou, ontem, para mim.

     Perguntei-lhe, inicialmente, se o retrato de Guevara ia bem de saúde etc. etc. Zangou-se, risonhamente: — “Cada vez mais reacionário!”. E eu: — “Pelo amor de Deus!”. Mas ela estava com pressa e foi dizendo: — “Vem hoje aqui em casa, ouviu?”. Criou um mistério, um suspense: — “Tenho uma surpresa”. Resisti de puro charme. Finalmente, disse que ia. Assim nos despedimos.

     Cheguei lá, às nove e pouco. Perguntei-lhe: — “E a surpresa?”. Brincou com a minha curiosidade: — “Calma, calma”. Acabou dizendo que a surpresa era um padre. Assustei-me: — “Padre de passeata?”. Fez espanto: — “Que história é essa de padre de passeata? Isso não existe!”. Expliquei-lhe que o padre de passeata era um fato concreto e histórico, Acabou admitindo que, realmente, o sacerdote comparecera a duas passeatas; e acrescentou: — “Uma cabeça. E olha. Mais inteligente do que d. Hélder”. Chamou o marido que ia passando, e perguntou: — “Não é mais inteligente do que d. Hélder?”. O marido disse, grave, taxativo: — “Uma cabeça!”. Se era “uma cabeça”, e “mais inteligente do que d. Hélder”, eu estava disposto a vê-lo e ouvi-lo.

     Pouco depois, chegava “a cabeça”. Nada de batina. O sacerdote estava vestido como um anúncio da Ducal. Quando apareceu, houve um frêmito em todos os decotes. Fui apresentado. “Muito prazer”, de parte a parte. Duas ou três o levaram. E a dona da casa dizia, no meu ouvido: — “Vai falar sobre sexo”. Insinuei: — “Já estou muito velho para educação sexual”. Mas uma outra a chamava. Afastou-se. E eu fui olhar na janela, que se abria para a noite.

     (O padre de passeata fazia conferências a domicílio para grã-finas. Especializara-se em sexo e Guevara.) Daí a pouco, sou chamado: — a “cabeça” ia falar. A anfitriã fizera um teatrinho, com umas cinqüenta cadeiras e um pequeno palco, quase ao nível da platéia. Alguém me sussurrou: — “Uma cultura!”. E, justamente, a “cultura” começava a falar.

     Disse, preliminarmente, que ia fazer uma palestra informal. Estaria disposto a responder perguntas. Mas frisou: — “Estamos aqui num encontro informal”. Dizia “informal” com particular satisfação, como se a palavra lhe fizesse cócegas no céu da boca. Não começou, imediatamente. No pequeno palco, andava de um lado para outro, de cabeça baixa, as mãos trançadas nas costas. E, súbito, da primeira fila, a anfitriã sugere: — “Conta aquela”.

     Parou, risonhamente, no meio do palco. Fingiu um lapso: — “Qual?”. E a outra: — “Aquela!”. Empina o queixo, faz um esforço de memória: — “Aquela?”. Risos. As pessoas achavam graça. Ele sentiu que o lapso era um efeito. Fechava os olhos, cruzava os braços. Teve que admitir: — “Sinceramente, não me lembro”. E, como ele não se lembrava, não se sabia o quê, explodiu a gargalhada. O padre de passeata dramatizou o lapso. Apertou a cabeça entre as mãos. Sentiu o sucesso e o agarrou. Há de ter pensado: — “A platéia está no papo”.

     Um sujeito, a meu lado, com uma barriga de ginecologista, repetia, banhado em delícia: — “Uma cabeça! Uma cabeça!”. Fui, então, varado por uma súbita recordação auditiva. Há um tango de Gardel que começava assim: — “Por uma cabeça” etc. etc. E o tango devia ser de Gardel e Le Pera. Na platéia, já batiam palmas. Era o primeiro lapso aplaudido. A dona da casa explicava: — “Aquela da prostituta. Aquela!”.

     O padre de passeata bateu na testa: — “Agora me lembro”. E a anfitriã, de pé, virava-se para a platéia; dizia, radiante: — “Ótima, ótima!”. Sentou-se novamente. Andando de um lado para outro, o sacerdote não tinha pressa. Parou numa extremidade do palco. De perfil para a platéia, olhando para o alto, disse: — “Realmente, realmente”. Começou: — “Prostituta”. Suspirou. E, já no centro do palco, explicava: — “A prostituta não me espanta”. Perguntou, de supetão, à platéia: — “Os senhores se espantam com um bombeiro hidráulico, um ourives ou protético?”. Silêncio. Recomeçou: — “Ser prostituta também é um ofício”. Repetiu, com certa ferocidade: — “Ofício, ofício, ofício”. Pausa. Novo suspiro: — “Profissão”. Profissão, como outra qualquer. “Ganha-pão.”

     Ria agora: — “Aconteceu comigo um fato. Um episódio. Fato de rua”. Jogando as pausas, usando silêncios, ele deliciava os presentes. Disse: — “Nem sei se deva contar”. Vozes protestaram: — “Conta, conta!”. E o padre de passeata dispôs-se a contar. Agora estava mais ágil, mais lépido, mais brilhante: — “O caso é o seguinte: — fui abordado por uma mulher da vida. Digamos: — mulher da vida. Me abordou”.

     Excitação na platéia. As pessoas se entreolhavam. Longa pausa. Foi de uma extremidade a outra e vice-versa. Disse: — “Me fez uma proposta”. E, súbito, em tom castamente informativo, ele falou que, hoje, há trottoir por toda a cidade. “Até na porta da igreja.” No passado, a prostituição estava localizada. Hoje, não. Às vezes, em ruas rigorosamente familiares, estritamente residenciais, nós vemos uma moça. Parece uma menina. O sujeito jura que é uma menina de família. E, ali, na calçada onde as crianças brincam, ela está exercendo uma profissão. “Não direi profissão infame, porque não há profissões infames. Há profissões.”

     Vozes perguntam: — “E o que é que o senhor fez?”. Repetiu, criando um suspense delicioso: — “O que é que eu fiz?”. Continuou: — “Ela falou comigo em português. E eu respondi em alemão”. Perplexidade divertida. A “amante espiritual de Guevara” pediu: — “Diz por que é que o senhor falou em alemão”. Sorria, banhado em sucesso: — “Pelo seguinte: — porque eu queria passar por estrangeiro. Saíra da igreja, estava sem batina. Pra todos os efeitos, eu não estava entendendo nada”. A dona da casa, em pé, protestou: — “O senhor não está contando direito. Conta, conta. Por que é que o senhor não podia entender a proposta?”. E ele, iluminado: — “Porque se eu entendesse a proposta e recusasse, ela ia pensar que eu sou pederasta”. Foi uma ovação formidável. Os decotes se atiravam para o palco. Era uma euforia geral. E ele, que falara tão pouco, e usara mais pausas do que palavras, suspirava: — “Cansei”. Vozes: — “Genial! Genial!”.

     Meia hora depois, a “amante espiritual de Guevara” chamou-o numa outra sala. E lá o padre de passeata recebeu, no envelope, o cachê.

             [10/8/1968]

 

                                                 OS DEFUNTOS LITERÁRIOS

     Todo mundo já ganhou o prêmio Nobel, menos o brasileiro. Não me venham falar em subdesenvolvimento. O Chile e a Nicarágua são mais subdesenvolvidos do que o Brasil. E ambos têm o seu prêmio Nobel. Há quem diga: — “A Nicarágua não existe”. Sei lá. Mas, exista ou não, eis a verdade: — existe para a Academia Sueca. O Brasil, não. E nem importa a nossa tremenda extensão territorial. Este país é uma espécie de elefante geográfico. Mas a Academia Sueca olha para cá e não vê ninguém.

     Portanto, existimos menos do que a Nicarágua. Mas é uma injustiça. Temos uma massa de intelectuais. Numericamente, não estamos atrás de ninguém, nem da União Soviética. Na Rússia há, registrados, seis mil e tantos escritores (e o sujeito que não foi registrado não é escritor. Mesmo que tenha escrito A divina comédia, não é escritor).

     Pode parecer que, numericamente, a União Soviética está na frente do Estados Unidos. Dos Estados Unidos, talvez. Do Brasil, não. Vocês se lembram da última passeata. Antes do desfile, fui ver a concentração. Levei comigo o Raul Brandão, pintor de grã-finas e igrejas. E espiamos o espaço reservado aos intelectuais. Parecia uma massa de Fla-Flu. Jamais nos ocorrera que a inteligência brasileira fosse tão abundante. No seu horror, o Raul Brandão perguntava: — “Tudo isso é intelectual?”.

     Fomos olhar outra vez a tabuleta. Lá estava escrito, acima de qualquer dúvida ou sofisma: — “Intelectuais”. Portanto, os intelectuais eram intelectuais. E, então, passo a passo, tratamos de identificar os nossos poetas, os nossos romancistas, os nossos ensaístas, os nossos dramaturgos, os nossos sociólogos, os nossos professores. Eis a lamentável e quase grotesca verdade: — depois de buscas ingentes, não identificamos ninguém. Ninguém? Isso mesmo: — ninguém. No meio de 20 mil sujeitos, não havia uma cara conhecida.

     De repente, o Raul Brandão crispa a mão no meu braço; sussurra: — “Acho que vi a Nara Leão!”. O “acho” insinuava uma dúvida. A Nara Leão pode não ser a Nara Leão. Talvez parecida e não a própria. Pergunto: — “Cadê?”. O Raul Brandão procura, procura, e tem de admitir: — “Sumiu”. E, então, começamos a reexaminar as caras.

     (Quem devia estar ali era a Academia Sueca, apalpando, farejando, a literatura brasileira.) Se pose é um dado válido, todo mundo ali era Proust, era Joyce, era Balzac, era Cervantes. Uns ficavam de perfil, outros de frente, outros de três quartos, outros punham as mãos nas cadeiras. Atrás de mim, o Raul Brandão gemia: — “Como são inteligentes!”. Eram, sim, inteligentíssimos.

     Os idiotas da objetividade poderão insinuar que são autores sem um livro, poetas sem uma quadrinha de são João, ensaístas que não lêem, não escrevem, nem pensam. Não importa. A abundância numérica os salva. Enquanto a União Soviética só consegue juntar escassamente 6 mil escritores, o Brasil pode retrucar com 20 mil. Dirá alguém que toda a literatura soviética atual não merece amarrar os sapatos de Dostoievski. Como não sou crítico literário, deixo de opinar. Mas continua de pé a pergunta humilhante: — por que, com tantos autores, o Brasil jamais foi contemplado com um prêmio Nobel?

     Não obstante o subdesenvolvimento, que explica tudo, temos campeões mundiais no futebol, no basquete, no hipismo, no tênis, na pesca submarina, no iatismo. Nas exposições de gado, temos vacas premiadas. As nossas caixas de fósforos ganham medalhas. Se houver um campeonato de cuspe à distância, um moleque nosso há de vencê-lo. Ainda na semana passada, o nosso Botafogo, com três enxertos, goleou de 4 x 1 a grande seleção argentina. Vitória com olé. Fizemos um gol, o último, de oitenta passes. Mas repito: — por que até as vacas, até as caixas de fósforos brasileiras são premiadas, e os escritores, não?

     Foi esta, mais ou menos, a pergunta que fiz a um amigo, justamente um dos idiotas da objetividade. Ele vira-se para mim e pergunta: — “Ou não Percebeste que a literatura brasileira não escreve mais?”. Tomo um susto: — “É literatura e não escreve?”. Exatamente: — a literatura brasileira é literatura, mas não escreve uma linha, uma frase, um verso, nada. Há, por todo o Brasil, um ensurdecedor silêncio literário.

     Esbugalhado, perguntei: — “E que faz a literatura brasileira?”. Retruca o idiota da objetividade: — “Faz passeatas”. Todavia, não aceitei a morte literária do Brasil. Corri à Biblioteca Nacional. E tive a crudelíssima surpresa: — o nosso último suplemento literário fechou as portas na abertura dos portos. Volto ao idiota da objetividade; disse-lhe: — “Mas tínhamos um crítico, rapaz de talento, o Álvaro Lins”. E o outro: — “É anterior a José Veríssimo, Araripe Júnior, Sílvio Romero. Álvaro Lins é a nossa maior antigüidade crítica”.

     Posto diante da evidência objetiva e estarrecedora, acabei por me convencer. Quando se travou a primeira batalha do Marne, e os táxis de Paris salvaram a França, que fazia, aqui, o José Veríssimo? Fazia crítica literária, indiferente ao mundo que morria, indiferente ao mundo que nascia. E, sem querer, falei num nobilíssimo gênero literário: — a crítica. No passado, um jornal podia abrir mão de tudo, menos do seu crítico. E quando aqui desembarcou d. João VI, enxotado por Napoleão, já encontrou o Álvaro Lins, no cais, à sua espera. El Rey perguntou, num gesto largo: — “Como vai o meu caro rodapé?”. E o rodapé, baixando a vista, escarlate de modéstia: — “Caprichando, majestade, caprichando!”. Foi divino.

     Mas tudo isso acontecia antes das passeatas. O último óbito literário, que se conhece, foi o suplemento concretista do Jornal do Brasil. Aí morreu a nossa literatura. O leitor, que é de uma inocência obtusa, há de perguntar: — e por quê? Resposta: — Morreu porque se politizou. Veio o Vietnã. E, por último, explodiram as passeatas. Assim como há o padre de passeata, há o escritor de passeata. São os tais estilistas sem uma frase, os tais poetas sem uma metáfora etc. etc. E, súbito, os nossos cafés, bares e boates se povoaram de defuntos literários. Outro dia, no Antonio’s, vi um tão defunto que usava algodão nas narinas. Orai por ele.

     Temos, ainda, a grã-fina de passeata. No seu guarda-vestidos há 1500 decotes. Já quando houve, na França, a jovem revolução, o marido da grã-fina sentiu-se ameaçado como se fosse o próprio De Gaulle. E, de repente, começa aqui a imitação francesa. Até que um dia a grã-fina diz que vai à passeata. O marido perdeu a esportiva: — “Está maluca? Bebeu?”. A mulher, que só fazia massagem com um copo de cerveja na mesinha, reagiu como “La Pasionaria”: — “Eu não sou reaça como você!”. O marido tratou de provar-lhe, didaticamente, que a passeata era contra os 1500 decotes. Ela não se convencia, nem a tiro; e, por fim, o marido propôs: — “Vou lá espiar e depois te digo”. Assim se fez. O homem viu e, inclusive, participou da marcha até a Candelária. Não descobriu um preto, um operário, um salário-mínimo, mas viu, em compensação, todas as grã-finas da cidade.

     Voltou convencido de que eram as classes dominantes que desfilavam, sob a chuva de listas telefônicas. Disse à mulher: — “Pode ir à próxima”. Os 1500 decotes estavam salvos.

               [13/8/1968]

 

                                               O ÓPIO DAS ELITES

     Em todas as ruas, há um ódio. Ou é do ex-namorado pela ex-namorada, ou de uma vizinha por outra vizinha, ou de uma família por outra família. Na minha infância, vi um ódio de meninos. Um teria seus nove, outro, oito anos. Um deles, mais vingativo, encheu de iodo uma seringa de borracha; e deu um esguicho no olho do outro. De repente, a rua encheu-se de gritos.

     Ainda bem que foi um olho só, e não os dois. Dias depois, apareceu na calçada. Logo outros meninos e outras meninas se juntaram. Fiquei espiando o ceguinho. Ainda agora, estou vendo o olho branco, ou melhor: — era branco, mas com uma mancha de azul leve, diáfano. E, não sei por que, eu achava mais bonito o olho cego e tinha inveja do olho cego.

     Assim como as ruas, também os povos precisam ter seu ódio. Não importa qual seja, nem contra quem. Hoje, estou convencido de que os povos sem ódio agonizam na mais pavorosa esterilidade, na mais cruel frustração. Quando me contam que a estatística de suicídios, na Suécia, atinge proporções inéditas, bem entendo esse feroz tédio sueco. Falta a seus homens e falta às suas mulheres o incentivo mágico, vital, do ódio.

     Na minha infância, o ódio era o argentino. Odiávamos o argentino. Eu, garoto, de seis, sete anos, ficava ouvindo a conversa dos adultos. Tinha-se como certo que, mais dia, menos dia, íamos brigar com a Argentina. Meu irmão Roberto me dizia: — “Os argentinos chamam os brasileiros de macaquitos!”. E, por muitos e muitos anos, aquilo me doeu na carne e na alma. Era como se fosse eu o macaquito, eu a vítima única do insulto direto e crudelíssimo.

     Mas o barão do Rio Branco cometeu um erro, a meu ver grave. Era um estadista. Mas vejam vocês: — nem sempre o estadista é psicólogo. Não percebeu que devia promover, e não contrariar, a nossa paixão contra a Argentina. Um bom ódio, obsessivo e unânime, é a melhor, a mais eficaz, a mais fascinante distração de um povo. O vizinho, a família ou o povo que odeia esquece todas as outras questões vitais. Dito isto, passo adiante.

     Até que um dia (ainda estou falando de Brasil x Argentina), até que um dia houve um episódio. Seria, em outras circunstâncias, um fato secundário, intranscendente e, mesmo, humorístico. Mas o povo viu o incidente através da óptica monumental do ressentimento. E, de repente, a cidade saiu para as ruas. Todo mundo se juntou no largo de São Francisco. Hoje, passo anos sem pisar no largo de São Francisco e sem ouvir-lhe o nome. De vez em quando, chego a me perguntar: — “Será que existe o largo de São Francisco?”. Se não existe hoje, naquele tempo existia.

     E a multidão veio para o largo de São Francisco exigir “guerra”. Queríamos mobilização fulminante e fulminante invasão. E o barão do Rio Branco foi avisado. Largou o gabinete e veio, de carro aberto, para a praça pública. Quando chegou ao largo de São Francisco, recebeu uma tremenda ovação. Naturalmente, viria trazer também o seu grito de guerra. Em pé, no carro, com a sua nobilíssima barriga, ele fez um gesto de silêncio. Pedia silêncio e fez-se o silêncio. E, então, ele ergueu o chapéu: — “Viva a Argentina!”. Pausa. O povo estava mudo, num desses espantos jamais concebidos. E o nosso Paranhos repetiu: — “Viva a Argentina!”. E, então, subiu das entranhas da massa o berro triunfal: — “Viva a Argentina!”.

     Mas, repito, foi um erro. Volto ao que dizia. Como pode viver uma rua se, entre vizinhos, entre famílias, não explode um desses sentimentos fortes e exterminadores? Assim o povo. Nada como um ódio geral para uni-lo, para dar-lhe uma tensão nacional e dinamizar suas potências criadoras. Realmente, ninguém trai o seu ódio e repito: — o homem é mais fiel ao seu ódio do que ao seu amor.

     Vimos que, em dez minutos, saímos do “morra a Argentina” para o “viva a Argentina”. Anos depois, o barão morreu; e seu enterro, segundo as testemunhas, foi maior que o de Inês de Castro. Mas eis o que eu queria dizer: — a partir de então, o povo teve alguns ódios locais, com graus diferentes de intensidade: — um deles foi Pinheiro Machado. Mas o ódio a Pinheiro foi mais retórica do que paixão. Era, digamos assim, um ódio de comício. Foi apunhalado por um discurso. Tivemos também Bernardes. Eu, com nove anos, odiei Bernardes; os meninos de Aldeia Campista odiaram Bernardes. Mas era pouco para o nosso coração. O ódio que rende mais, que dá dividendos mais generosos, exige o estrangeiro.

     Graças a Deus, descobrimos o americano. O americano foi, mais que um ódio, uma solução. Se odiamos o americano, não precisamos nem amar o Brasil. Não exagero nada. A evidência está aí: — o Brasil é um país por fazer. Fazer o Brasil seria a nossa tarefa. Não damos um passo sem esbarrar, sem tropeçar num problema. Tudo no Brasil é problemático. Mas reparem: — quanto mais odiamos o americano, menos pensamos no Brasil e, repito, menos o amamos. O Vietnã está mais próximo de nós do que Magé. E sabem por que essa impotência nacional para qualquer trabalho sério? Por causa dos Estados Unidos.

     Mas temos as nossas elites. As elites, porém, estão entretidas em odiar o americano. E não tapam um buraco de rua, não soldam um cano furado, não desentopem uma bica. Na hora de pichar o muro, damos vivas a Cuba, e ao vietcong, e a Mao Tsé-tung, e a Guevara, e a Fidel. Vivas ao Brasil, jamais.

     Não há, no mundo, elites mais alienadas do que as nossas. E convém falar, em especial, dos nossos intelectuais. São socialistas, em sua maioria absoluta. Pode-se perguntar: — à maneira sueca? Não e jamais. Ninguém fala da Suécia, porque lá não houve sangue, nem ódio, nem extermínio, nem escravidão. Portanto, a Suécia não interessa. O nosso intelectual está de olho no socialismo totalitário da Cortina de Ferro. Dirá alguém que ele, intelectual, por boa-fé, ingenuidade ou simplesmente burrice, é vítima de uma funesta ilusão. Mentira. Ninguém que ligue duas idéias tem o direito de se iludir a tal ponto. A experiência socialista é a mais gigantesca e vil impostura do nosso tempo. E o intelectual é o primeiro degradado, sempre. O romancista, o poeta, o cineasta, o dramaturgo, o crítico, o artista plástico, o compositor, todos, todos são rigorosamente escravos. E quando um ou outro insinua um vago lamento, vem a polícia e o interna como louco. E os psiquiatras do Estado o tratam como doente mental perigosíssimo. Ou, então, é fisicamente destruído.

     Uma dona de casa que me leia há de perguntar: — “Mas o nosso intelectual sabe disso e, apesar disso, quer isso mesmo?”. Quer. A maioria quer. Pergunta: — “E por quê?”. Como diz um vizinho meu: — “Há gosto pra tudo”. Diria mais que, por uma fatal coincidência — fora poucas exceções, suicidas —, o intelectual não resiste ao totalitarismo comunista. Tem sido assim em toda a Cortina de Ferro. Jamais insinua um protesto contra o estupro da liberdade, da inteligência, das artes e da pessoa humana.

     Volto às elites. Temos aí artistas, escritores, médicos, arquitetos, cineastas, professores, os grã-finos. Ninguém faz o Brasil, porque só temos tempo de odiar o americano. E fica todo mundo numa deliciosa e alienada inércia contemplativa. Sim, o ódio ao americano é o ópio das elites brasileiras.

           [15/8/1968]

 

                                           MADRUGADA DE 13 DE JANEIRO

     Vou ver o Juarez, no Banco Nacional de Minas Gerais, ali na esquina de Ouvidor com Avenida. Tomo o elevador, salto na sobreloja. E, no corredor, sou recebido com uma saraivada de versos. Um funcionário ergue o gesto e declama: — “Madrugada de 13 de janeiro/ Rezo chorando o ofício da agonia” etc. etc. Perfilo-me como se aquilo fosse, não um soneto, mas o próprio Hino Nacional. E continua o rapaz, trêmulo de beleza: — “Sem um gemido assim como um cordeiro”.

     E, de repente, instalou-se, naquela sobreloja, o clima de Augusto dos Anjos. Sua tuberculose tossia para mim. O poeta falava da morte do próprio pai. Saíra para o jardim, ou quintal, e achou em tudo “o mesmo abismo de beleza”. Depois, pareceu-lhe ver, “como Elias no carro azul de glórias”, a alma do pai subir aos céus. Amém.

     Quem acabava de declamar era o funcionário da portaria, Francisco Hilton Batista. Sempre que vou ao banco, ele me dispara, à queima-roupa, um soneto. De Bilac, Raimundo ou Augusto. Deste último, prefere a morte do pai, que começa forte e crispada: — “Madrugada de 13 de janeiro” etc. etc. E a data, atirada na cara do ouvinte, tem um patético insuspeitado e fremente.

     Entro para falar com o Juarez. Sou um brasileiro que paga, não as dívidas, mas os juros. E estou tratando justamente de juros quando entra o Batista. Vem com a bandeja e dois cafezinhos. (Eis um dos mistérios do nosso caráter: — não há brasileiro, vivo ou morto, que goste de café; e todos o tomam.) Depois de acertar as contas com o Juarez, saio. Paro um momento junto ao Batista. Põe-se de pé e começa: — “Ainda hoje o livro do passado abrindo, lembro-me e punge-me a lembrança delas”. Era o Bilac.

     O rapaz termina o soneto; digo-lhe: — “Deus te abençoe”. E saio para a Avenida. Pensava no velho Brasil. Houve, sim, o Brasil do soneto. Do soneto e também do fraque e do espartilho. Era o tempo em que o nosso Afrânio Peixoto chamava Baudelaire de torpe realista. Eis a verdade: — o fraque, o espartilho e o soneto influíam em nossos usos, costumes, maneiras, valores e pudores. O fraque predispunha à ênfase generosa; o espartilho disciplinava as ânsias femininas; e quantas se casavam por um soneto, ou traíam por um soneto? Enfim, o brasileiro estava sempre a um milímetro do patético e do sublime.

     E há o caso daquela bela senhora que amou o amigo do marido. Foi uma dessas paixões de ópera, de novela ou, ainda, de soneto. Combinaram dia, hora e endereço do pecado. Mas ela dizia que ia e, ao mesmo tempo, insinuava um escrúpulo. Confessava: — “Sou muito medrosa”. E ele, arquejante de paixão: — “Ou você não gosta de mim?”. Ela suspira: — “Gosto. Amo”. Mas tinha medo, não do marido, não do pai, não da sociedade. Pausa e novo suspiro: — tinha medo do filho.

     Desta vez, o bem-amado perdeu a paciência: — “Medo de um fedelho de três anos?”. A Ana Karenina soluçou: — “Se eu for, nunca mais beijarei meu filho!”. O garotinho era o seu Juízo Final. Mas ele tantas fez que ela prometeu: — “Está bem. Vou”. Ele jurara que o filho não saberia nunca. Até que chegou a data do pecado. Na véspera, ela deixara o garoto, o Juízo Final, na casa da avó. E já acordou suspirando. Era a belle époque e nunca a brasileira suspirou tanto como na belle époque. Enquanto o marido tomava café, ela, cheia de papelotes na cabeça (era o Brasil do papelote), imaginava: — “Não sabe!”. O desgraçado passava manteiga no pão. E, ao mastigar, a manteiga vinha de volta, como uma baba amarela. Ela, varada de remorsos, dizia-lhe: — “Limpa aqui, meu bem!”. Arquejante de apetite, o outro limpava-se na própria toalha ou na fralda da camisa. (Como se vê, estou exagerando.)

     Mas não é nada disso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que o marido foi trabalhar e ela ficou sozinha, com seu pecado. Coincidiu que fazia um calor de rachar catedrais. E faltou água. Ou por outra: — o problema não foi a falta da água. Isso mesmo, não foi a falta da água. Olhava o relógio, numa espécie de terror. Devia estar lá às três e era meio-dia. Portanto, daí a três horas, ela estaria batendo na porta. Tomou banho. Mas, quando olhou o espartilho, pensou que teria de vesti-lo, de tirá-lo, de vestir e tirar. Começou a sentir um cansaço, um tédio, uma irritação contra o espartilho. E, depois, não era apenas o espartilho, mas o ser amado; e, pouco a pouco, vinha o tédio do próprio pecado. Pôs-se diante do espelho. Percebia, olhando a própria imagem, que o desejo é triste, que o desejo é vil.

     Às três horas estava em casa, ainda em casa e para sempre em casa. E foi a preguiça de pôr o espartilho, a preguiça de tirar o espartilho, que a salvou. Dirá alguém que influíram outros fatores secundários, como, por exemplo, o calor. Vá lá o calor. Mas foi o espartilho que começou todo um processo de angústia sufocante. No dia seguinte, ela passa no armarinho; lá comprou um carretel. Voltava, quando viu o ser amado, na esquina. Abordou-a, impulsivamente. Disse-lhe, baixo e violento: — “O que você fez não se faz. Esperei quatro horas. Está pensando que sou seu moleque?”. Ela não teve medo: — “Não fale assim comigo. Nunca lhe dei essa confiança”. O sujeito recuou como um agredido: — “Nunca me deu essa confiança? Escuta. Não combinamos? Hem? Não combinamos? Fala!”. E ela: — “Eu sou uma senhora casada! O senhor não sabe com quem está falando!”. Ele balbuciou: — “Está tudo acabado?”. Ela disse as últimas: — “Acabado o quê? Não houve nada. O senhor não se enxerga! Quer deixar eu passar? Quer?”. O outro, branco, afastou-se, para dar-lhe passagem.

     De noite, quando o marido chegou, ela o recebeu aos soluços: — “Fui insultada!”. Contou-lhe: — “Aquele canalha fez propostas!”. O marido ouvia só, atônito. Foi apanhar o chapéu; disse: — “Volto já”. E saiu. Andando, na calçada, de fraque, parecia um estadista. O fraque, repito, dava mais ferocidade à sua honra conjugai. Foi encontrar o amigo, se não me engano, no Café Papagaio (exatamente, no Café Papagaio). O outro tomava cerveja, sozinho. O marido aproxima-se e diz: — “Seu cachorro!”. Puxa o revólver e o fuzila. O sedutor (como então se dizia) nem se levantou. Morreu sentado. Se o ofendido não estivesse de fraque, talvez lhe tivesse apenas quebrado a cara. Quem sabe?

     Aí está: — o espartilho frustrou um adultério e o fraque matou um homem. E há também o episódio do soneto. Foi o caso de uma noiva na véspera do casamento. De tardinha (era como se dizia: — “de tardinha”) recebeu um envelope. Virou, revirou e abriu. Era um soneto e, por baixo, a assinatura do ex-namorado, por sinal, o primeiro de sua vida. Leu a primeira vez. E, depois, foi-se trancar no banheiro para reler dez, vinte, trinta vezes. De vez em quando, vinha alguém bater na porta: — “Está aí, Fulana?”. Estava. E a pessoa ia dizer na sala que a noiva não saía do banheiro. A mãe explicava: — “Nervosa”. Até que, de repente, a rua ouviu aqueles gritos. Todos correram. A noiva embebera o vestido em álcool, ou querosene. E riscara um fósforo. Depois correu, dentro de casa, gritando, incendiada. Só muito tarde alguém se lembrou de abraçá-la com um cobertor.

     Levaram a moça para a cama, enquanto chamavam a assistência. E, de repente, uma tia notou que algo se derretia, atravessava o colchão e vinha pingar no soalho. Era a banha que escorria. A velha foi apanhar uma bacia e a pôs debaixo da cama. Quando a assistência apareceu, estava morta. E, por algum tempo, ouviu-se o pingo tinir na bacia. Só depois se falou no soneto. (Já usei a mesma tia, o mesmo colchão, a mesma bacia, o mesmo pingo, em crônica anterior. Desculpem.)

           [17/8/1968]

 

                                             OS IDIOTAS CONFESSOS

     Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante.

     Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — “Uma santa! Uma santa!”. Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia etc. etc.

     Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: — “Eu sou um quadrúpede!”. Nenhuma objeção. E, então, insistia, heróico: — “Sou um quadrúpede de 28 patas!”. Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.

     E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos “melhores”. Só os “melhores”, repito, só os “melhores” ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.

     Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos “melhores”, só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.

     Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os “melhores” podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: — “Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido”. Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.

     De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos “melhores”. Para um “gênio”, 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.

     Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os “superiores”. Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes, carros, jóias etc. etc.

     Quanto aos “melhores”, ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a “invasão dos idiotas”. E, de fato, eles explodem por toda parte: — são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.

     E, então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o fim.

     É o que está acontecendo. Nem se pense que a “invasão dos idiotas” só ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira, cada um de nós podia resmungar: — “Subdesenvolvimento” — e estaria encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns aqui, outros em Cingapura.

     Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica. Segundo ele, durante os vinte séculos, a Igreja não foi senão uma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais hediondos. Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própria Iniqüidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com a inicial maiúscula).

     Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a Igreja e confiscar-lhe as pratas.

     Cabe então a pergunta: — “O dr. Alceu pensa assim?”. Não. Em outra época, foi um dos “melhores”. Mas agora é preciso adular os idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou simplesmente homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem short, maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado. Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca. É a missa cômica e Jesus fazendo passista de Carlos Machado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o papa seja agredido, assassinado, ultrajado etc. etc. A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação. São os idiotas, os idiotas, os idiotas.

           [19/8/1968]

 

                                           O APLAUSO DO ESTUPRO

     Era um chofer de praça. Não sei se de origem italiana ou se ele próprio era italiano. Um dia foi preso. Por que, nem Deus sabe. Não fizera absolutamente nada. Era uma das raras inocências do nosso tempo. Sua vida tinha este movimento doce e casto: — da casa para o trabalho, do trabalho para a casa. Foi preso, repito, porque uma batida está acima da Justiça e da Iniqüidade.

     E atiraram o chofer no fundo de um xadrez. Mas antes levou uns cachações. No seu espanto, começou a chorar. Sim, ele, chefe de família, marido de uma santa senhora, pai de sete filhos, ele chorava. Mas uivaram: — “Engole o choro! Engole o choro!”. O chofer de praça cerrou os dentes, trancou os lábios e acabou engolindo o choro. Um último bofetão e entrou no xadrez.

     Lá estava uma meia dúzia de marginais. Ao vê-lo, um deles dá o berro triunfal: — “Carne fresca!”. E o recém-chegado via aquelas caras, e tinha o olho enorme de pavor. O riso estava crescendo. Gritou: — “Socorro! Socorro!”. Do lado de fora, o guarda nem olhou. Uma hora depois, a Assistência encostava no distrito. Lá saiu o português, isto é, o italiano, de maca. A caminho do pronto-socorro, repetia: — “Não quero ver a minha patroa! Nem meus filhos!”. Pausa, e vinha o resto: — “Não quero ver ninguém!”. Sua idéia fixa era “não ver ninguém”, nunca mais ver ninguém.

     Ficou no corredor, esperando o primeiro médico vago. E quando apareceu um avental de mangas curtas, gemeu o apelo: — “Doutor, não me salve! Não me salve!”. Claro que o médico o salvou. Passou no hospital oito dias (não sei, exatamente. Vá lá: — oito dias). Já na manhã seguinte, saiu a manchete, não sei se na Luta, no Dia, ou em ambos: — “Currado no xadrez”. Parece que o jornal falava em sete marginais. Ah, esquecia-me de dizer que não recebeu a mulher, que aparecera com dois garotos. Mandou o recado: — “Vai embora! Vai embora!”.

     O chofer de praça queria sair do hospital e desaparecer. Teve a idéia de ir para não sei onde e até de mudar de nome. Chamava-se não sei se Lucas (agora me lembro: — o pai é que era italiano). Mas um médico, recém-formado, deu-lhe conselhos. Disse que nem ele, nem a mulher, nem os filhos tinham culpa de nada. Portanto, devia voltar, sim, para casa. Ele dizia, de olhos baixos (não tinha coragem de olhar para ninguém): — “Minha mulher vai mudar, meus filhos vão mudar”. Achava que até o caçula havia de olhá-lo de outra maneira. E arquejava, sem encarar o médico: — “Minha mulher não vai esquecer. Eu sei que ela não vai esquecer!”. Mas o doutor tanto insistiu que, por fim, disse: — “Vou pra casa, sim”. E acrescentou, de olhos baixos, sempre de olhos baixos: — “O senhor me salvou”.

     No fim dos oito dias, saiu. Na porta do hospital, teve uma última dúvida. Por fim, decidiu-se: — “Vou”. E foi. Entra em casa. Ao vê-lo, a mulher começa a chorar. Os filhos têm medo. Ele está dizendo baixo e vai num crescendo: — “Não olhem pra mim. Não olhem pra mim”. O menor veio atracar-se ao pai, mas levou um safanão. E o chofer corre para o quarto e tranca-se lá. Vai abrir a gavetinha e apanhar a arma. Mete uma bala na cabeça.

     Eis o que queria dizer: — também a Tchecoslováquia foi currada. De repente, nas barbas da platéia mundial, não sei quantos exércitos a estupraram. Foi invadida por todos os lados. Humilhada, ofendida, pisada. Bem. Cabe então a pergunta: — e que vão fazer os estudantes? E os intelectuais? E os grã-finos? E a “classe teatral”? E, sem querer, penso na Hungria. Quando os russos a massacraram, existia a UNE. Hoje, todo mundo chora a sua clandestinidade. Tem-se a impressão de que o Brasil não anda porque fecharam a UNE.

     Mas insisto: — que fez a famosa e tão pranteada UNE quando a Hungria foi invadida? Não fez nada, exatamente nada, e repito: — não exalou um pio. Um mísero pio, nada. Boiando nas verbas fáceis como uma vitória-régia, ela ignorou o assassinato de um povo. Os húngaros foram fisicamente esmagados. Os tanques passaram por cima de crianças, mulheres, velhos. E nenhuma manifestação da UNE. Hoje, temos até uma musiquinha de protesto. Mas só contra o americano. O compositor põe umas rimas no ódio aos Estados Unidos e se dá por satisfeito.

      Aí está a nossa má-fé cínica e inédita: — o nosso ódio não toma conhecimento da Rússia. Amantes espirituais de Guevara (e de ambos os sexos) são numerosíssimos. Houve um tempo em que era Stalin. E, então, eu via, aqui, por toda a parte, “amantes espirituais” de Stalin. Eram jornalistas, intelectuais, poetas, romancistas. Lembro-me de um comunista que me dizia, na redação de O Globo: — “Hitler é mais revolucionário do que a Inglaterra”. Isso antes da invasão da Rússia. Outros punham nas paredes retratos de Stalin. Era uma pederastia idealizada, utópica e fotográfica.

     Nos últimos tempos, temos visto as passeatas,. Perguntem a um dos que marcham: — “Você é o quê?”. Ele dirá: — “Socialista”. Não de modelo sueco. Ninguém está interessado na Suécia e no seu socialismo não stalinista, não homicida, não sanguinário. O sujeito da passeata é socialista chinês, ou russo, ou cubano. Mas o russo, ou chinês, é a invasão da Hungria, da Tchecoslováquia, da Polônia, na guerra. E, por isso, vimos nossos jovens marchando com cartazes de “Muerte”. Desde quando o brasileiro odeia em espanhol, mata em espanhol? (E a China é o socialismo na sua forma stalinista mais bestial e assassina.) Sempre que há as passeatas, picham as nossas paredes com vivas a Cuba, ao Vietcong, a Guevara. Ao Brasil, não. Mas que é Cuba? É uma Paquetá. E não invade, não faz imperialismo porque é frágil, impotente, indefesa como Paquetá.

     E os nossos intelectuais de “passeata”, de “manifestos”? Que farão eles? Gostaria de vê-los passeando em favor da Tchecoslováquia e contra a Rússia. Por toda a Cortina de Ferro, o crime contra a inteligência é uma descarada rotina. E deve haver uma relação entre os intelectuais e a inteligência. O diabo é que eles só usam o gesto, a ênfase, o palavrão, contra os Estados Unidos. São os que mais odeiam os americanos. Mesmo os mais desinteressados do ato político, do pensamento político, do crime político, mesmo esses, dizia eu, fingem-se de antiamericanos. Nunca me esqueço de Érico Veríssimo. Tem tão escassa informação política que é capaz de pensar que somos governados ainda por d. Pedro II. E o nosso Érico achou-se na obrigação de vir a público meter o pau nos Estados Unidos. No Brasil, o intelectual tem de xingar a grande nação para sobreviver.

     Mas os estudantes que têm retratos de Mao Tsé-tung, Lenin, Guevara, não vão fazer nada. As sacadas, que são aéreas barricadas, também nada. E os intelectuais? Esses são socialistas, do tipo que mata, fere, degrada, curra e desumaniza. Um povo foi violentado como o chofer de praça. Portanto, por obrigação de coerência, e em nome do socialismo, os intelectuais devem aplaudir o estupro.

             [23/8/1968]

 

                                               É TRISTE SER NERUDA

     Sou, como Didi, um brasileiro canicular. (Falo do grande Didi, o bicampeão do mundo, o virtuose, o estilista que inventou a folha seca.) Já apresentei o autor, preciso falar da obra. A chamada folha seca é uma bola que desenha uma curva encantada; e vai-se enfiar na última gaveta etc. etc. Resta dizer que última gaveta é uma imagem da gíria futebolística.

     Um dia, o Real Madrid contratou Didi. Lá foi ele. No Brasil, era um craque plástico, elástico, acrobático. Quando entrava em campo, a própria bola o reconhecia e vinha lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. E, súbito, conhece Didi a solidão do frio europeu. Deixou de ser o grande Didi. Uma aragem fina e leve já o deprimia e já o derrotava. Nos grandes jogos parecia um entrevado. E o que o liquidava era a nostalgia crudelíssima do sol brasileiro. Gostava mesmo de se incendiar na luz brutal.

     Repito que sou igualmente canicular. Só entendo o verão. E, por isso, nada me espantou mais do que o nosso último inverno. Só conhecíamos o falso inverno da folhinha. Pela primeira vez fazia frio na cidade e, repito, um frio cadavérico. O próprio sol era gelado. E esse frio foi uma experiência inédita para os cariocas. Senti então uma inconsolável saudade dos bons tempos em que o sol brasileiro derretia as catedrais.

     Até que, um dia, saio de casa e dou de cara com uma vizinha. É uma senhora gorda e patusca como uma viúva machadiana. Deve ter varizes. Eu não as vi, mas deve ter varizes. Ia Passando e parou no portão do meu edifício. Conversamos uns três minutos. E eu não tirava a vista do seu pescoço. Eis o que via: — um colar de brotoejas. Manhã gelada. Mas as brotoejas eram um sinal profético de calor. Eu tinha hora marcada e já me despedia. Foi então que a vizinha suspirou e disse: — “Tudo é possível, tudo é possível”. E paramos por aí.

     Vejam vocês as voltas em que se perde uma crônica. Falei da canícula carioca, de Didi, o artista plástico da folha seca; mencionei a frase da vizinha e seu colar de brotoejas. Mas não disse uma palavra sobre o personagem que inspirou a presente “confissão”. Falo de Neruda, Pablo Neruda, o homem que, segundo Sartre, está merecendo um urgente prêmio Nobel. Neruda não é um chileno como outro qualquer. Seria mais exato chamá-lo de poeta do mundo.

     Há muito que o nosso Pablo assumiu a dimensão da poesia social. Houve um tempo, todavia, em que ele fazia versos à maneira do nosso J. G. de Araújo Jorge. Bem me lembro de um dos seus lamentos mais dilacerados. Dizia assim: — “Tão curto o amor e tão longo o esquecimento”. Essa era a melancolia do antigo Neruda e, ouso mesmo dizê-lo, do ex-Neruda. Dizia-me meu amigo: — “Neruda é um Rubem Braga de penacho”. Vou ser franco: — Prefiro o Rubem Braga.

     Mas o poeta que aqui desembarcou, de supetão, não tem nada a ver com o do “amor tão curto” e do “esquecimento tão longo”. Só não mudou fisicamente. A mesma cara forte, vital e bovina. Exatamente, bovina. Sempre o achei parecido e não sabia com quem. Aquela cara enorme, o beiço largo, o perfil, o pescoço, um certo peso, o olhar — tudo me lembrava alguém. Mas quem? Até que, ontem, morreu o suspense. Vi a sua cara na primeira página de O Globo; e percebi toda a semelhança. Lembra o boi e, repito, um boi admirável, quase divino, mas indubitavelmente um boi.

     E aconteceu o que era fatal: — a entrevista coletiva. Juntou-se na casa do Rubem Braga a rapaziada do jornal, do rádio e da televisão. Todos presentes, inclusive fotógrafos, o futuro prêmio Nobel dispôs-se a responder. A primeira pergunta — ou uma das primeiras — foi sobre a Tchecoslováquia. Justiça se lhe faça: — a princípio, Neruda não queria responder. Era apenas um poeta que vinha falar dos seus livros. Só dos livros? Só dos livros. Era pouco para a fome da reportagem. Ante a cruel insistência dos rapazes, o poeta resolveu falar sobre tchecos e russos. Lendo sua entrevista, pensei na vizinha: — “Tudo é possível”.

     Antes não o fizesse. E mais uma vez percebemos que não há opinião intranscendente. O simples fato de opinar compromete ao infinito. Quando vetara o assunto, Neruda foi de uma sábia, de uma clarividente pusilanimidade. Mas se definiu. Eis o que ficou evidentíssimo: — a pusilanimidade do silêncio teria sido mais digna do que a coragem de dizer o seguinte: — “Eu estou com os dois lados. Com a Rússia e com a Tchecoslováquia”.

     Explicou: — “Sou amigo da Tchecoslováquia, país que me deu asilo quando dele precisei, e também sou amigo da União Soviética”. Por isso, quando perguntam com quem está, ele não se aperta e responde: — com os russos e com os tchecos. Por outras palavras: — está com o crime e com a vítima, com a vítima do estupro e com o autor do estupro etc. etc. Disse eu que, em certos casos, é melhor a covardia do silêncio do que a coragem de certas opiniões. Já retifico. Em verdade, não houve coragem nenhuma. A frase deve ser lida assim: — pior do que a pusilanimidade do silêncio foi a pusilanimidade da resposta.

     Se a Rússia pode invadir a Tchecoslováquia, tudo é permitido. Trata-se de um crime que envolve o próprio destino da pessoa humana. E vem o nosso Pablo e diz que “a Tchecoslováquia deve compreender”. Vejam: — ainda por cima, “deve compreender”. Quem o diz é o poeta, e o poeta sabe o que diz. Cabe então a pergunta: — e o que é que os miseráveis tchecos “devem compreender”? Responde Neruda: — que a Rússia perdeu muitos homens na guerra. Ah, perdeu? Também os Estados Unidos perderam, e a Inglaterra perdeu, e a França, e outros, e outros. Portanto, vamos nos invadir uns aos outros.

     Apenas o poeta se esquece de que a Rússia fez o pacto germânico-soviético; que se tornou aliada de Hitler; que colaborou lealmente no esforço de guerra nazista. E afirma o nosso ilustre hóspede que a Rússia libertou os tchecos. Não libertou ninguém. O que a Rússia vinha fazendo era a cínica e brutal exploração da Tchecoslováquia. Esta foi uma nação escrava com os nazistas e continuou escrava com os comunistas.

     Vejam vocês: — os jornais gastam tinta e papel; a televisão gasta a sua imagem; o rádio gasta os seus microfones; nós gastamos a nossa paciência. E tudo para Neruda proclamar que está com os dois lados. Só imagino a amarga perplexidade do leitor, do ouvinte, do telespectador. Pablo Neruda é um dos maiores poetas do mundo; quase prêmio Nobel; amigo de Sartre e por Sartre amado; homem de sensibilidade, de pensamento, de imaginação. Era de se esperar que visse a invasão através de uma óptica própria e monumental. Sim, ele saberia dizer verdades jamais suspeitadas. Muito bem: — e o poeta me sai um Luvizaro. Ou por outra: — nem o Luvizaro teria descaro tamanho. E é um intelectual. Chamado a opinar sobre o expurgo de intelectuais, diz: — não pode condenar a Rússia, porque tem amigos lá; tampouco pode condenar a Tchecoslováquia, porque também tem amigos na Tchecoslováquia. Agora compreendo o desespero de um amigo meu. Fez dois ou três ensaios literários e desistiu da literatura. Um dia, alguém o apresentou como “intelectual”. Corrigiu: — “Não sou intelectual”. O outro insiste: — “É intelectual, sim”. O meu amigo apontou o dedo: — “Se me chamar de intelectual outra vez, parto-lhe a cara”, É triste, é humilhante ser Neruda.

            [13/9/1968]

 

                                                 O CAFAJESTE NÃO VIAJA

     Qualquer um pode viajar, menos o brasileiro. O inglês pode ir para a China e jamais será mandarim. Do mesmo modo, a inglesa. Uma inglesa, em Tóquio, não será jamais uma madame Butterfly. E assim o francês, ou o alemão, ou a alemã. Ao passo que o brasileiro, a partir do Meyer, começa a usar os sotaques do seu itinerário turístico.

      E, por vezes, não é preciso nem a viagem. Basta um telegrama. Recentemente, os estudantes franceses fizeram uma singular revolução francesa. Tudo consistia em arrancar paralelepípedos e virar carros. Foi talvez a primeira revolução feita sem uma única idéia. Os jovens arrancavam os paralelepípedos, viravam os carros e nada mais. Exatamente: — nada mais.

     E houve um momento em que o poder ficou vago. A história pensou: — “Vem por aí um novo De Gaulle”. E o velho De Gaulle não moveu uma palha, não tirou uma cadeira do lugar. O poder estava lá, nas alegres barbas da “jovem revolução” e repito: — o poder oferecia-se como um fruto maduro, próximo e indefeso. Bastava o simples gesto de colhê-lo. E ninguém fez esse gesto. Nem estudantes, nem socialistas, nem comunistas, nem intelectuais, nem operários. Ninguém.

     Um conhecido meu abria os braços e perguntava: — “Mas como? Uma potência espiritual, como a França, não tinha ninguém?”. Era a humilhante verdade: — ninguém. Ou por outra: — tinha o velho De Gaulle e só De Gaulle. E, portanto, foi o Herói que, com o seu tédio sardônico, ficou com o poder não possuído por ninguém.

     Mas não era isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que os nossos jovens se embebiam das notícias de Paris. Vejam vocês: — é possível, pelo telégrafo, mudar as nossas idéias, sentimentos, valores. E, então, começou aqui uma efervescência feroz. Também carros virados. Ninguém arrancou os paralelepípedos, porque somos uma cidade asfaltada. Fez-se uma “jovem revolução” liderada por telegramas. Pode-se dizer que tudo era apócrifo. Aqui, ninguém teve um gesto próprio, uma fúria autêntica, um palavrão original e profundo.

     Imaginem agora o brasileiro que sai de sua rua, de sua paisagem, de sua cidade e de seu idioma. Como reagirá ele, em Paris, Londres, Berlim ou Nova York? Está lá submetido a pressões insuportáveis. Bem me lembro do meu amigo Otto Lara Resende. Passou dois anos na Europa. E, quando voltou, era outro Otto. Fomos passear em Ipanema. Diante do poente do Leblon, inaugurou ele uma de suas frases máximas: — “Paisagem é verba!”. Insinuei que o nosso poente não faz vergonha. Mas ele insistiu: — “Poente é verba!”.

     E, mais uma vez, verifiquei que raríssimos brasileiros podem viajar além de Bangu. O outro caso. Há três ou quatro meses, o meu amigo Carlos Heitor Cony bateu-me o telefone: — “Nelson, vim me despedir”. Como seu tom era meio lúgubre, ainda brinquei: — “Vais te matar?”. Respondeu: — “Ainda não. Vou viajar”. Protestei: — “Não faça isso”. Conversamos uma meia hora. Insistia eu: — “O brasileiro que viaja volta mais burro”. Jurei: — “Não conheço um brasileiro que não voltasse mais burro”. Ele resistiu até o fim: — “Você exagera. Não é nada disso”. Quanta coisa ouviu o Cony de mim! Cheguei a dizer-lhe que ele precisava ser o cafajeste total. Não exagerava. De fato, um maravilhoso cafajeste está inserido nele, está enterrado nele como um sapo de macumba. E o cafajeste não viaja.

     O pior é que a viagem ia ser imensa. Passaria por Berlim, Paris, Moscou, Londres e, até, Pólo Norte. Imaginei que voltaria um ex-Cony, um anti-Cony. E me preocupava também o destino do seu riso. O meu amigo tem uma gargalhada absurda. Sim, ele ri como os antigos sátiros vadios. Imaginei que a viagem pudesse emudecer-lhe o riso.

    E o Cony partiu. Três meses de ausência densa, cruel, desesperadora como a morte. Outro dia, paro num sinal fechado. Estou em cima do meio-fio, esperando, quando um automóvel encosta e alguém anuncia: — “O Cony chegou! O Cony chegou!”. Pouco depois, entro na redação e ligo para o amigo. Ia perguntar-lhe: — “Como é? Ficaste mais burro?”. Mas não estava. Deixei o meu nome. E esperei em vão que me telefonasse. Nada. No dia seguinte, ligo outra vez. Também não estava. Liguei outras vezes. Nunca estava. Ele, aqui, a dois passos, parecia longínquo como se ainda existisse entre nós dois a distância que vai de Ipanema ao Pólo, do Castelinho a Cingapura.

     Sou um pessimista e logo imaginei: — “É outro Hélio Pellegrino”. Já falei do abismo ideológico que se cavou entre mim e o Hélio. Tenho escrito sobre passeatas, d. Hélder e dr. Alceu. Em confissões sucessivas, acusei as esquerdas de uma alienação monstruosa etc. etc. O Hélio não gostou. Dizia-me com a sua bela voz de Paul Robeson branco: — “Não é o momento! Não é o momento!”. Enquanto o Hélio falava assim, em arroubos, eu pensava nos meus mortos e nos meus vivos; sofri demais por uns e por outros. Ferido como estou, não ouso trapacear comigo mesmo e com os demais. Digo o que sinto e o que penso. Apenas.

     Todavia, na véspera dos meus anos, o Hélio ligou para mim. Ninguém mais doce: — “Pode dizer nos seus artigos que você é dos meus amigos fundamentais”. Dias antes, de público, eu o desafiara a jantar comigo no meu aniversário. E o Hélio explicava: — “Mas não posso jantar contigo amanhã, porque vou sair do Rio”. Era o décimo encontro que ele adiava. Jurou, porém: — “Janto contigo na semana que vem”. Isso foi no dia seguinte. Não me concedeu um mísero telefonema. Se eu fosse esperar por ele, e seu prodigioso jantar, estaria morto de fome.

     E já me parecia que, como o bom Hélio Pellegrino, o Cony fugisse de mim. Não queria, decerto, conspurcar-se com o meu “oba” ou com o meu aperto de mão. Pois bem. Até que há o temido encontro. A coisa ocorreu no Museu da Imagem e do Som. Ele ia depor sobre a figura e a obra de Mario Filho. Assim que o vi, e ele me viu, houve o suspense de um ou dois segundos. Em seguida, veio o abraço desesperado, o riso violento e recíproco e a certeza de que éramos amigos para sempre. Disse-me Cony: — “Recebi o teu recado. Mas não telefonei, de propósito. Não queria ver ninguém. Por enquanto, não”. Foi aí que eu reparei: — era um outro Cony que estava na minha frente, talvez mais atormentado e talvez mais puro. Sim, um Cony trabalhado pela solidão, um Cony de uma outra densidade. Perguntei, aflito: — “E a viagem? E a viagem?”. Varara o mundo e fora até ao Pólo Norte. E eu: — “Que tal? Que tal?”. Respondeu sério, cruel: — “Tudo a mesma coisa! Tudo a mesma coisa!”. Vira a Vênus de Milo: — “Tem erisipela”. E da Gioconda: — “Tem mau hálito”. “O Louvre, uma impostura.” Estava triste e exausto de tudo o que vira. Passara na Rússia, na França, na Inglaterra, na Tchecoslováquia. E, por fim, fez um resumo desesperado de tudo: — “O homem fracassou”.

             [18/9/1968]

 

                                                   OS DOIS NAMORADOS

     Há coisas que um grã-fino só confessa num terreno baldio, à luz de archotes, e na presença apenas de uma cabra vadia. Lembro-me de uma festa na casa não sei de quem (só sei que era grã-fino). Na altura das três da manhã, o dono da casa põe mais gelo no uísque e diz: — “Na minha casa só as criadas vêem televisão”. Os circunstantes concordaram em que a televisão é uma ignomínia.

     E, no entanto, vejam vocês: — o anfitrião estava bêbedo da cabeça aos sapatos. Mas o grã-fino preserva, ainda no pileque, uma série de poses fundamentais. Uma delas é o falso desprezo pela TV e seus programas. Disse eu que o grã-fino só diz certas coisas num terreno baldio etc. etc. Já retifico. Nem no terreno baldio. Ele só dirá que gosta de televisão ao médium, depois de morto.

     É, repito, uma pose. Na verdade, o meu anfitrião não perdia uma da Dercy, uma do Chacrinha, uma do Raul Longras. Quanto a mim, sou franco: — não preciso do terreno baldio, nem do médium. O fato de ser apenas um pequeno-burguês, sem nenhum laivo de grã-finismo, dá-me descaro bastante para confessar, aos quatro ventos: — vejo televisão e, pior, gosto de televisão.

     Dirá um intelectual ou um grã-fino: — “Mas, e o nível? O nível?”. Ao que eu responderia, com a mais límpida e casta objetividade, que o tal nível, que se atribui às nossas TVS, é muito relativo. Acusamos o nível das emissoras e ninguém fala do nosso. Há uma reciprocidade de níveis. A televisão é assim porque o telespectador também o é. Uma coisa depende da outra e as duas se justificam e se absolvem.

     Muitos abominam o Chacrinha e adoram d. Hélder. E há coisas que d. Hélder faz e que o Chacrinha jamais ousou. Por exemplo: — um dia, abro O Jornal e vejo na seção “Eles disseram” algumas declarações do grande arcebispo. Dizia ele, em resumo, que era perfeitamente legítima a “missa ao som de cuíca, tamborim, reco-reco” etc. etc. Um católico e, ainda mais, um sacerdote propunha a “missa de gafieira”.

     Portanto, é lícito dizer-se que certas posições de d. Hélder estão abaixo do nível do Chacrinha. Mas falo, falo, e esqueci o meu assunto. Vou falar, hoje, do padre Ávila. (Se não me engano, é da PUC.) Mas, vejam vocês: — o nosso Ávila, além de ser padre, é sociólogo. Há um ano, um ano e pouco, estava eu assistindo a um programa de TV. E eis que aparece quem? Justamente o padre-sociólogo.

     É um sociólogo que está radiante de o ser. E ele não diz um “oba” sem lhe pingar sociologia. No programa referido discorreu, exatamente, sobre o jovem. Que dizia o padre e que dizia o sociólogo? Não me lembro textualmente de suas palavras. Mas o padre Ávila começou dizendo, se não me engano, que “os tempos estão duros”. Até aí concordei. De fato, acontecem coisas, em nossa época, que desafiam toda a nossa experiência e todo o nosso raciocínio. E, a propósito de o jovem, ele referiu um episódio muito curioso. Certo rapaz cometeu, contra um amigo, um ato de extrema vileza. Pouco depois, o padre Ávila conversou com o culpado. Perguntou-lhe: — “Você não acha que foi uma deslealdade com o seu amigo?”. O rapaz, mascando goma, saiu-se com esta: — “E é preciso ser leal?”.

     O padre não se espantou. Um sociólogo não se espanta. Se lhe servirem, no jantar, um ensopadinho de abóbora com ratazana, ele não concederá ao fato um único e reles ponto de exclamação. Pois bem. Até aquele momento não entendera o gesto de o jovem. Transmitiu ao telespectador a sua perplexidade. E nem o entrevistado, nem o público perceberam o óbvio ululante. Quem se escondia, ou por outra, quem não se escondia por trás do ato vil era um velho conhecido nosso — o pulha.

     Mas, pergunto: — por que o nosso Ávila não reconheceu a vileza como tal? É sacerdote e, ao mesmo tempo, um sábio e, ao mesmo tempo, um professor e, ao mesmo tempo, um sociólogo. E não sabe que a infâmia é infâmia, que a indignidade é indignidade, que o cinismo é cinismo. Diante da evidência espetacular, faz-se de cego. E o padre Ávila não será o único. Há milhares, há milhões de ávilas. Por toda a parte, e a começar na família, só esbarramos e só tropeçamos em ávilas de ambos os sexos. Os pais são ávilas, as mães são ávilas, e as tias, e as cunhadas. Todos são ávilas sem batina, sem sociologia etc. etc. Também nas escolas, nas universidades, nos escritórios, nas redações os ávilas são a maioria, quase a unanimidade.

     O dr. Alceu fala, sem rebuços, na razão da idade. É um ávila. E como existem alceus e ávilas em todos os idiomas, ninguém julga o jovem, Não ocorre a ninguém que o jovem pode ser um santo, um herói, um justo e, também, um canalha. É um crime dar-lhe uma razão absoluta, isto é, dar razão a quem não a tem.

     E assim se criou uma figura sinistra, difusa, irresponsável, que ninguém ousaria julgar. Realmente, o jovem está diante de nós sagrado, intangível. Um coroinha julga o papa. O padre de passeata condena 2 mil anos de cristianismo. Todos os valores são questionados, refutados. Só ao jovem tudo é permitido. Há coisas, porém, que justificam a nossa desesperada meditação. Quero falar de um fato concreto.

     Para evitar que se identifiquem as vítimas, não direi nem quando, nem onde ocorreu. Foi numa universidade que o leitor não saberá se daqui, de São Paulo, Brasília ou Belo Horizonte. Imaginem um casal de namorados de menos de vinte anos, estudantes e católicos. Um dia, o rapaz e a menina são cercados por um bando de colegas marxistas (digamos, marxistas de galinheiro). O que estes exigem dos namorados é um atestado de ideologia.

     Para não tomar o tempo do leitor, direi que o primeiro a ser agredido, por uns oito ou dez, foi o rapaz. A namorada, na sua desesperada fragilidade, quis socorrê-lo. Foi logo agarrada, imobilizada. Apanhou na boca. E quase mataram o namorado, a socos, pontapés, chutes. Já sem sentidos, levou o último pé na cara. Mas não foi tudo. Lá estava o rapaz, quase morto. E, então, os outros arrastaram a menina. Também a socos, a patadas. Ah, eu sei que tudo se publica. Mas o que fizeram com a adolescente não pode ser impresso em idioma nenhum. Muito tempo depois, alguém descobriu os namorados, ainda desmaiados. Uma ambulância, ou táxi, sei lá, os levou. O crime não mereceu nenhuma imprensa e explico: — os bandidos tinham a razão da idade. O jovem estupro, por ser jovem, está acima do bem e do mal. Mas há de chegar um dia em que a juventude será julgada.

             [19/9/1968]

 

                                                 ADMIRÁVEL DEFUNTO

     Uma coluna diária precisa ter um elenco variadíssimo. Sim, um elenco colorido de mágicos, trapezistas, clowns, arquitetos, cineastas, heróis, estudantes, intelectuais e pulhas. Quando o colunista precisa de um mímico, tem o mímico; e se é cineasta, vem o cineasta; e se é o intelectual, há o intelectual.

     Fiz esta breve introdução para concluir: — as minhas confissões vivem de um elenco assim. Meus protagonistas e meus comparsas dariam para lotar uma platéia de Fla-Flu. E um dos meus personagens mais fascinantes é exatamente o “defunto vocacional”. Não sei se me entendem. Imagino mesmo que o leitor há de perguntar: — “Por que defunto e por que vocacional?”. Tentarei explicar.

      Outro dia cruzo na Avenida com um morto. Passou por mim e acenou-me com os dedos: — “Salve!”. Balbuciei, lívido: — “Salve”. E fiquei olhando o outro afastar-se e sumir na multidão. Mas por que o meu espanto e por que o meu horror? Era um sujeito que eu já velara, e chorara, e florira umas cinco vezes.

     Dirá alguém: — “Ilusão”. Seja ilusão. Mas o “defunto vocacional” cumprimenta como os outros, e calça como os outros, e tem gravata como os outros. E dá sempre a sensação de que já o vimos de pés juntos e de algodão nas narinas. Sua cara é hirta e feia como uma máscara, sim uma máscara da cor de certas pinceladas amarelas de Van Gogh.

     Mas por que estou dizendo tudo isso? Ah, já sei. Imaginem vocês que recebi um telefonema fantástico. Era alguém que desejava de mim uma entrevista imaginária. O sujeito falava de maneira especialíssima. Era uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Fiz-lhe a pergunta assustada: — “O senhor tem mesmo essa voz?”. Jurou que tinha. E eu: — “Mas quem é o senhor?”. Veio a resposta terrível: — “Sou o homem de bem”.

     Ora, eu estava certo de que o homem de bem era, precisamente, “O Grande Defunto”. Ninguém tão morto e ninguém tão enterrado. Lembrava-me da missa mandada rezar pelo seu eterno repouso. E me parecia irritante que alguém saísse da tumba e pedisse uma entrevista imaginária. Seriam ambos imaginários: — a entrevista e o homem de bem.

     Tive de usar de franqueza: — “Meu amigo, vai-me desculpar, mas o senhor já morreu”. Há uma pausa lúgubre. E, depois do suspense, diz o homem de bem: — “Obrigado pela informação”. E desligou. Viro-me para os colegas e, puxando um cigarro, digo-lhes: — “O homem de bem é um cadáver mal-informado. Não sabe que morreu”.

     Volto para a minha mesa. Bate novamente o telefone. Aviso: — “Se for o homem de bem, não estou”. Felizmente, não era o falecido. O contínuo pergunta: — “Quem quer falar com ele?”. Pausa. O contínuo repete: — “Quem? O canalha?”. Alguém que se dizia “o canalha” queria falar comigo. Levanto e vou atender. Mas achava curioso que no mesmo dia, na mesma hora, fosse eu solicitado pelo falecido homem de bem e por um salubérrimo canalha. Do outro lado da linha, diz alguém: — “Seu Nelson Rodrigues? Eu queria dar uma entrevista imaginária. Pode ser?”. Fiz-lhe a primeira pergunta: — “Quem é o senhor?”. E o outro, com a voz de quem está mascando chicletes: — “Já disse. Sou o canalha”.

     Tive de explicar-lhe: — “Meu amigo, já temos um canalha oficial. Nunca ouviu falar no Palhares, o que não respeita nem as cunhadas?”. Respondeu, com radiante vaidade: — “Sou muito pior do que o Palhares”. Era uma bravata óbvia. Digo: — “Escuta. O Palhares beijou a cunhada no corredor. E o senhor? Vamos lá. Qual foi a sua ignomínia?”. O outro dá uma risadinha de Chaliapine em Mefistófeles: — “Só responderei no terreno baldio”. Faço uma pausa. Estou achando a voz muito moça. Pergunto: — “Afinal, que idade tem o senhor?”. Eis a resposta: — “Dezessete anos”.

     Ao ouvir falar em “dezessete” tremo em cima dos sapatos. Faço-lhe reverências de Michel Zevaco: — “Peço-lhe mil desculpas. Eu não sabia que o senhor era o jovem. Pode vir. O terreno baldio jamais fechará suas portas para o jovem”. Expliquei-lhe que as entrevistas imaginárias devem começar à meia-noite, hora que, segundo Machado de Assis, apavora. O jovem foi sarcástico: — “A meia-noite é uma ilusão”. Seja como for, foi magnânimo; e aceitou o tenebroso horário. Assim me despedi: — “Salve, jovem canalha!”.

     Imediatamente, liguei para o contra-regra do terreno baldio: — “Sou eu. Manda providenciar papel picado e listas telefônicas. Vamos receber a mais ilustre visita de toda a história do terreno baldio”. Pergunta, pálido, o contra-regra: — “Quem?”. Imaginou, por certo, que seria um rajá montado num elefante. Disse-lhe: — “O jovem canalha!”. Era honra demais para o contra-regra. Sob violenta dispnéia emocional, quase desfaleceu no telefone: — “Não merecemos tanto”. Trato de instigá-lo: — “Capricha, capricha!”. Saio do telefone, ponho o paletó e embaixo apanho o primeiro táxi. Arquejo: — “Me leva no terreno baldio. Chispa”.

     Salto lá. A cabra, os gafanhotos, os sapos, as pulgas, os caramujos estão assanhadíssimos: — “Cadê o jovem canalha?”. Tenho que pedir calma. Chamo as pulgas: — “Modos, hem, modos”. Ao longe, como no soneto do Alencar de Os Maias, um burro, pensativo, pastava. E, súbito, a cabra põe a boca no mundo: — “Evém o jovem canalha!”. Era a pura verdade. Vinha ele e com as costeletas ao vento. Mas não vinha só. Uma massa o seguia, berrando como nos comícios do Brigadeiro: — “Já ganhou! Já ganhou!”. De um lado do jovem canalha marchava o dr. Alceu; de outro lado vinha d. Hélder. E ambos abanavam o pulha com uma Revista do Rádio. Foi sublime quando o patife entrou no terreno baldio. Num desvairado arroubo, o dr. Alceu forrou o chão com o próprio paletó para o jovem pisar. Do alto, choviam listas telefônicas e papel picado.

     Finalmente, pedi silêncio. E então o mestre-de-cerimônias anunciou os títulos do entrevistado: — “É estudante, mas não sabe nada, porque onde se viu estudante estudar? Nunca leu um livro. Só lê manchete”. Palmas, vivas, foguetes. Dr. Alceu começa a gritar: — “Tem a razão da idade!”. A massa coral de gafanhotos, sapos, pulgas, camaleões, pôs-se a repetir: — “Tem a razão da idade! Tem a razão da idade!”. E, súbito, fez-se o maior silêncio da terra. O “jovem canalha”, de viva voz, ia contar o feito que estava justificando aquela apoteose. Com radiante modéstia, disse tudo: — “Não fiz nada demais. Estão exagerando. Simplesmente, havia uma menina reacionária. Tão reacionária e obscurantista que namorava de mãos dadas. Eu e mais uns sete pegamos a menina. Batemos no namorado”. Pausa, suspense. E, então, limpando as unhas com um pau de fósforo, concluiu: — “Eu sou um co-autor do jovem estupro”. Em delírio, a multidão avançou. O co-autor foi carregado na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado. Assim fez, pelo terreno baldio, a triunfal volta olímpica.

             [21/9/1968]

 

                                                 O ESPANTOSO SILÊNCIO

     Hoje, a praça de São Marcos tem mais turista americano do que pombo. E muitos, inadvertidamente, dão milho aos americanos e deixam os pombos a ver navios. Graças a Deus, a nossa Cinelândia ainda não foi invadida pelos nossos irmãos do Norte. De sorte que, lá, os pombos ainda constituem uma sólida maioria. Diria mesmo que a Cinelândia tem mais pombos do que o soneto de Raimundo Correia. E são tão mansos, de uma tal docilidade, que parecem amestrados. Todas as manhãs e todas as tardes vem uma mão anônima e amorosa dar-lhes milho. O que então acontece é uma espécie de milagre, de suave milagre. Às centenas, aos milhares, sei lá, descem pombos de não sei que misteriosos telhados, de que encantados beirais. É lindo vê-los dando pulinhos e bicando o milho.

     Mas não é bem isso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que os pombos da Cinelândia devem ter visto coisas do arco da velha. Temos três locais altamente politizados: — o largo de São Francisco, o largo da Carioca e a Cinelândia. Os dois primeiros ainda estão ressoantes de velhos comícios espectrais. Em especial, o largo de São Francisco.

     Certamente, vocês já ouviram falar na “Primavera de sangue”. Foi metáfora e foi manchete. Mas vamos aos fatos. Há uns quarenta anos, ou cinqüenta, os estudantes resolveram fazer o enterro simbólico do então chefe de Polícia. Foi proibida a passeata ou por outra: — não foi proibida. O chefe de Polícia autorizou-a. E, então, os estudantes concentraram-se, exatamente, no largo de São Francisco. Lá estavam o caixão, as velas acesas, com os estudantes chorando falsamente o pseudodefunto.

     Quando, porém, saiu o enterro, três ou quatro policiais, à paisana, infiltrados na massa, esfaquearam e mataram dois estudantes. Um dos repórteres presentes dispara para a redação. Lá chegando deu à luz a metáfora: — “Primavera de sangue”. O diretor do jornal, num arroubo perdulário, puxou uma cédula e a enfiou na mão do estilista. No dia seguinte, a manchete sangrava no alto da primeira página.

     A metáfora quase pôs abaixo o governo. E, até hoje, há sempre um velho profissional, que se lembra da “Primavera de sangue”. Também na Cinelândia houve memoráveis explosões cívicas. E os pombos de lá, como uma alada platéia, a tudo assistiam, arrulhando os seus aplausos e as suas vaias. E, se um deles tivesse de redigir suas memórias, havia de conceder um especial destaque ao comício da escola de belas-artes. Trata-se de um episódio que, na época, encheu a cidade de um divertido horror.

     Eis o caso: — certo dia, os pombos da Cinelândia foram surpreendidos por uns trinta ou quarenta rapazes. Num golpe de mão, os jovens ocuparam as escadarias do Municipal. Os pombos imaginaram que a rapaziada ia falar do Vietnã, o assunto da moda. Engano. Simplesmente, estavam ali para um comício de um tipo jamais suspeitado. Ninguém xingou os Estados Unidos. O primeiro orador anunciou a morte da palavra. O segundo também anunciou a morte da palavra. E assim o terceiro, o quarto, o quinto oradores. Como fizeram cinco discursos e todos vociferando a mesma coisa, pode-se dizer que a palavra morreu cinco vezes.

     Os pombos se entreolhavam, num mudo escândalo desolado. Não entendiam nada. Mas nisto chegou o momento do milho. Dez minutos depois, voltam os pombos. Eis o que viram: — os rapazes estavam rasgando poemas de amor. Com tal gesto queriam demonstrar que a nossa época não comporta nem a palavra, nem o amor. Era meio estranho que latagões, aparentemente válidos, tivessem tal desgosto do amor e, por conseqüência, da mulher. Por fim, retiraram-se, gloriosamente, os rapazes. E, então, ruflando as asas e sacudindo as penas, os pombos voltaram para o soneto de Raimundo Correia.

     Passou. De vez em quando, porém, lembro-me do episódio e faço da “morte da palavra” um tema de meditação fúnebre. Até hoje, não sei se a palavra está morta. Admito que se possa fazer um romance sem palavras, um conto sem palavras, um soneto sem palavras e até um recibo sem palavras. Admito que, futuramente, um novo Tosltoi venha a fazer uma outra Guerra e paz sem título e com 1200 páginas em branco. Não consigo imaginar, porém, que certas situações vitais possam dispensar a palavra.

     Pode-se admitir um flerte mudo. Todavia, não se conhece um flerte eterno ou, pelo menos, que tenha chegado às bodas de prata ou de ouro. Um flerte dura escassamente os quarenta minutos de um chá, de um desfile, jantar etc. etc. Em seguida, tem de entrar a palavra. Homem e mulher não podem ficar eternamente olhando um para o outro. Conheci um paulista que era, por índole e por fatalidade geográfica, um introvertido. Falava pouquíssimo. Um dia, apaixonou-se. Não tirava a vista do ser amado. O pior é que a moça estava achando o silêncio uma prova de alma profunda, inescrutável e fascinante. Até que, um dia, o paulista resolve falar. Aproxima-se da bem-amada e sussurra-lhe: — “Rua tal, número tal, apartamento 1015, última porta à direita. Cinco da tarde”. Para um paulista, ainda mais quatrocentão, era um esforço vocal insuportável. E teve que se sentar, mais adiante, com as pernas bambas e a vista turva.

     Claro que esse mutismo atroz é, no amoroso, uma exceção escandalosa. Seja como for, mesmo o paulista citado teve que dizer um endereço e uma hora. A dama achou, com isso, que o ser amado era de uma prolixidade inefável. Normalmente, ninguém ama sem uma inestancável torrente verbal. Tive um colega que dava para a namorada telefonemas de oito horas. Nem ele nem ela faziam uma pausa. Falavam ao mesmo tempo, e tanto a pequena como o rapaz não entendiam o que o outro dizia. Mas falei do paulista e agora me lembrei: — há pior, há pior.

     Quem me contou o episódio foi Marcos André. Vocês conhecem, decerto, o admirável colunista. Eu o admiro por vários motivos e mais este: — Marcos André andou pela China, pelo Japão, por Formosa. Viu paisagens, flores, lagos jamais sonhados. Quando o leio lembro-me do nome azulado, lunar, de Pierre Loti. E, como este, Marcos André conhece a China anterior a Mao Tsé-tung e, portanto, a China do ópio.

     Em Hong Kong, o colega foi testemunha da mais linda e silenciosa história de amor. Conta Marcos André que certo milionário brasileiro foi traído pela esposa. Quis gritar, mas a infiel disse-lhe sem medo: — “Eu não amo você, nem você a mim. Não temos nenhum amor a trair”. O marido baixou a cabeça. Doeu-lhe, porém, o escândalo. Resolveu viajar para a China, certo de que a distância é o esquecimento. Primeiro, andou em Hong Kong. Um dia, apanhou o automóvel e correu como um louco. Foi parar quase na fronteira com a China. Desce e percorre, a pé, uma aldeia miserável. Viu, por toda a parte, as faces escavadas da fome. Até que entra na primeira porta. Tinha sede e queria beber. Olhou aquela miséria abjeta. E, súbito, vê surgir, como num milagre, uma menina linda, linda. Aquela beleza absurda, no meio de sordidez tamanha, parecia um delírio.

     O amor começou ali. Um amor que não tinha fim, nem princípio, que começara muito antes e continuaria muito depois. Não houve uma palavra entre os dois, nunca. Um não conhecia a língua do outro. Mas, pouco a pouco, o brasileiro foi percebendo esta verdade: — são as palavras que separam. Durou um ano o amor sem palavras. Os dois formavam um maravilhoso ser único. Até que, de repente, o brasileiro teve que voltar para o Brasil. Foi também um adeus sem palavras. Quando embarcou, ele a viu num junco que queria seguir o navio eternamente. Ele ficou muito tempo olhando. Depois não viu mais o junco. A menina não voltou. Morreu só, tão só. Passou de um silêncio a outro silêncio mais profundo.

             [22/9/1968]

 

                                                  “EL ARZOBISPO DE LA REVOLUCIÓN”

     Quando era crítico teatral, Paulo Francis disse certa vez: — “O hospital é mais importante do que o teatro”. Não me lembro se escreveu exatamente assim, mas o sentido era este. E o articulista tinha a ênfase, a certeza de quem anuncia uma verdade inapelável e eterna. Ao acabar o texto, voltei à frase e a reli: — “O hospital é mais importante do que o teatro”.

     Fiz para mim mesmo a pergunta: — “Será?”. Já me pareceu imprudente que se comparassem funções e finalidades diferentes. Para que serve um teatro e para que serve um hospital? Por outro lado, não vejo como um crítico de teatro, no gozo de plena saúde, possa preferir uma boa rede hospitalar às obras completas de William Shakespeare.

     De mais a mais, o teatro era, na pior das hipóteses, o seu ganha-pão. Imaginem um médico que, de repente, no meio de uma operação, começasse a berrar: — “Viva o teatro e abaixo o hospital!”. A mim, parecem gêmeas as duas contradições: — de um lado, o crítico que prefere o hospital; de outro lado, o cirurgião que prefere o teatro.

     É óbvio que a importância das coisas depende de nós. Se somos doentes, o hospital está acima de tudo e de todos; caso contrário, um filme de mocinho, ou uma Vida de Cristo ali no República, ou uma burleta de Freyre Júnior, é uma delícia total. Mas volto ao Paulo Francis. Alguém que lesse o artigo citado havia de pensar: — “Bem. Esse crítico deve estar no fundo da cama, moribundo, já com a dispnéia pré-agônica. E, por isso, prefere o hospital”. Engano. Repito que, ao escrever aquilo, Paulo Francis nadava em saúde. E por que o disse?

     O leitor, em sua espessa ingenuidade, não imagina, como nós, intelectuais, precisamos de poses. Cada frase nossa, ou gesto, ou palavrão é uma pose e, diria mesmo, um quadro plástico. Ah, as nossas posturas ideológicas, literárias, éticas etc. etc. Agimos e reagimos de acordo com os fatos do mundo. Se há o Vietnã nós somos vietcongs; mas se a Rússia invade a Tchecoslováquia, vestimos a pose tcheca mais agressiva. E as variações do nosso histrionismo chegam ao infinito. Imagino que, ao desdenhar do teatro, o Paulo estivesse fazendo apenas uma pose.

     Bem. Fiz as divagações acima para chegar ao nosso d. Hélder. Está aqui na minha mesa um jornal colombiano. É um tablóide que... Um momento. Antes de prosseguir, preciso dizer duas palavras. Domingo, na TV Globo, o Augusto Melo Pinto chamou-me num canto e cochichou: — “Você precisa parar com o d. Hélder”. Faço um espanto: — “Por quê?”. E ele: — “Você está insistindo demais”. Pausa e completa: — “Você acaba fazendo de d. Hélder uma vítima”.

     Disse-lhe da boca para fora: — “Você tem razão, Gugu”. E paramos por aí. Mas eis a verdade: — o meu amigo não tem nenhuma razão. Gugu inverte as posições. Se há uma vítima, entre mim e d. Hélder, sou eu. Outrora, Victor Hugo vivia bramando: — “Ele! Sempre ele!”. Falava de Napoleão, o Grande, que não lhe saía da cabeça. Com todo o universo nas suas barbas a inspirá-lo, Hugo só via na sua frente o imperador. Bem sei que não sou Hugo, nem d. Hélder, Bonaparte. Mas eu podia gemer como o autor de Os miseráveis: — “Ele! Sempre ele!”. Realmente, sou um território solidamente ocupado pelo querido padre.

     Dia após dia, noite após noite, ele obstrui, engarrafa todos os meus caminhos de cronista. É, sem nenhum favor, uma presença obsessiva, sim, uma presença devoradora. Ainda ontem, aconteceu-me uma impressionante. Tarde da noite, estava eu acordado. Ai de mim, ai de mim! Sofro de insônias. Graças a Deus, me dou bem com as minhas insônias e repito: — nós nos suportamos com uma paciência recíproca e quase doce. Mas não conseguia dormir e levantei-me. Fui procurar uma leitura. Procura daqui, dali e acabei apanhando um número de Manchete.

     E quem havia de brotar, da imagem e do texto? O nosso arcebispo. Quatro páginas de d. Hélder! E, súbito, minha insônia foi ocupada pela sua figura e pela sua mensagem. Primeiro, entretive-me em vê-lo; em seguida passei à leitura. E há um momento em que o arcebispo diz, por outras palavras, o seguinte: — o mundo pensa que o importante é uma possível guerra entre Leste e Oeste. E d. Hélder acha uma graça compassiva em nossa infinita obtusidade.

     Se a Rússia e os Estados Unidos se engalfinharem; se as bombas de cobalto caírem nos nossos telhados ou, diretamente, em nossas cabeças; se a OTAN começar a disparar foguetes como um Tom Mix atômico — ninguém se assuste. O perigo não está aí. Não. O perigo está no subdesenvolvimento. Leio a fala de d. Hélder e a releio. Eis a minha impressão: — esse desdém pelas armas atômicas não me parece original. Sim, não me parece inédito.

     E, súbito, um nome e, mais do que um nome, uma barriga me ocorre: — Mao Tsé-tung. Certa vez, Mao Tsé-tung chamou liricamente a bomba atômica de “tigre de papel”. Foi uma imagem engenhosa e até delicada. E vem d. Hélder e, pela Manchete, diz, por outras palavras, a mesmíssima coisa. O homem pode esquecer o seu pueril terror atômico. Quem o diz é o arcebispo e ele sabe o que diz. Mas objetará o leitor: — e aquela ilha em que a criança é cancerosa antes de nascer? Exato, exato. Vejam bem o milagre: — ainda não nasceu e já tem o câncer. O leitor, que é um piegas, perguntará por essas crianças.

     Mas ninguém se aflija, ninguém se preocupe. A guerra nuclear não importa. Eis o que eu não disse ao Gugu: — como esquecer uma figura que diz coisas tão corajosas, inteligentes, exatas, coisas que só ele, ou Mao Tsé-tung, ousaria dizer? Sabemos que o ser humano não diz tudo. Jorge Amado tem uma personagem que vive puxando barbantes imaginários que a enrolam. Os nossos limites morais, espirituais, humanos, ou que outro nome tenham, os nossos limites são esses barbantes. Há coisas que o homem não diz, e há coisas que o homem não faz. Mas deixemos os atos e fiquemos nas palavras. O que me espanta é a coragem que leva d. Hélder a dizer tanto. Há um élan demoníaco nessa capacidade de falar demais.

     Continuemos, continuemos. No dia seguinte, veio o “Marinheiro Sueco” trazer-me, em mão, um jornal colombiano. E, novamente, agora em castelhano, aparecia d. Hélder. Ele começava na manchete: — “EL ARZOBISPO DE LA REVOLUCIÓN”. Em seguida, outra manchete, com a declaração do arzobispo: — “ES MÁS IMPORTANTE FORMAR UN SINDICATO DO QUE CONSTRUIR UN TEMPLO”. Eis o que eu gostaria de notar: — na “Grande Revolução”, os russos substituíam, nos vitrais, o rosto da Virgem Maria por um focinho de vaca. Jesus tinha a cara de boi, com as ventas enormes. Mas a “Grande Revolução” se fez contra Deus, contra a Virgem, contra o Sobrenatural etc. etc. e, como se verificaria em seguida, contra o Homem. Portanto, ela podia incluir Jesus, os santos, num elenco misto de bois e vacas. Mas um católico não pode agredir a Igreja com esta manchete: — “Es Más Importante Formar un Sindicato que Construir un Templo”. E se o nosso Hélder o diz, estejamos certos: — é um ex-católico e, pior, um anticatólico.

               [25/9/1968]

 

                                                  OS CENTAUROS

     Fala-se em “Poder Jovem”, na “Jovem Revolução” e um padre de passeata, em seu veemente sermão, chamou Nossa Senhora de “a mãe do Jovem Salvador”. Vejam: — é tão importante ser jovem que já se providenciou uma idade promocional para Jesus. Há também os que proclamam a razão da idade. Nada tenho a objetar. Que seja dado o poder aos jovens, e que eles o exerçam, e que façam o mundo à sua imagem e semelhança.

     A meu ver, porém, chegou a hora de se falar também da “jovem obtusidade”. Que ela existe como uma realidade concreta, que se pode apalpar, farejar, não há dúvida. Basta olhar e faremos a singela, a tranqüila constatação visual. Se me pedirem fatos, eu direi: — “Vamos aos fatos”.

     Sábado, fiquei em casa. Fazia um frio cadavérico. Tenho um amigo que se refere ao frio em termos de “julgamento moral”. Quando a aragem vai gelando os edifícios e as esquinas, ele põe-se a esbravejar: — “Ah, frio canalha! Ah, frio indecente!”. Para a sua indignação, o frio era “torpe”, era “obsceno”, era “sórdido”. Sábado, tive também vontade de xingar o frio dessa forma direta, pessoal e crudelíssima.

     Fiquei vendo televisão, com três suéteres. Ia passar o teipe do Festival da Canção. Não sei se não teria preferido um bangue-bangue. Mas, vamos lá. Começa o festival com uma panorâmica da platéia. Verificou-se, ao primeiro olhar, que todo mundo lá era jovem. Só rapazes, só mocinhas. É apavorante. No passado ocorria o inverso: — o Brasil era uma paisagem de velhos. Nos bondes, só os velhos vinham sentados; os jovens ficavam de fora, pendurados no balaústre. E as senhoras grávidas pediam para o filho já nascer setuagenário e de guarda-chuva, como o personagem de Gogol.

     Hoje, o velho tem vergonha de o ser. O padre de passeata precisa fazer uma plástica em Jesus e remoçá-lo (talvez assim o Salvador se salve, sobreviva etc. etc.). Mas, como ia dizendo: — não havia na platéia um sujeito de meia-idade, uma viúva, ou, como quer a gíria perversa, um coroa. Uma platéia sem coroa e ocupada por uma mocidade ululante e salubérrima. Imaginei que estaria, ali, a melhor juventude paulista.

     E era de um óbvio escandaloso a politização dos presentes. Sempre que uma letra fazia uma insinuação política, ou tinha um arroubo ideológico, ou rosnava para os Estados Unidos — a audiência vinha abaixo. Que pasionarias eram as meninas! Lembro-me de uma que assim se manifestava: — tirando os sapatos e batendo com os saltos, um no outro. Ninguém sabia se estava aplaudindo ou vaiando. Ah, os rapazes, os rapazes! Cavalgavam as cadeiras e atiravam patadas como rútilos centauros.

     Mas todas essas impressões paisagísticas são secundárias, irrelevantes. De um altíssimo patético foi a aparição do sr. Caetano Veloso. Ah, esquecia-me de Vandré. Seus versos tinham o seguinte título, de uma malícia ou, melhor dizendo, de uma ironia finíssima: — “Pra não dizer que não falei de flores”. E, realmente, para nosso pasmo, ele faz um artigo de fundo contra as flores. Até hoje ainda não sei o que é que o nosso libertário propõe. Vejamos algumas hipóteses: — quererá ele dizer que a “Grande Revolução” vai acabar com as flores? Ou que só a burguesia mais reacionária aprecia as rosas e, por carambola, a beleza? E que o revolucionário é tão obtuso, tão bestial, tão abjeto que não pode ver uma flor sem chutá-la? Sim, há várias metáforas no editorial do Vandré e todas absolutamente inescrutáveis. Só uma coisa é certa: — sem que o próprio autor o perceba, tais metáforas são absolutamente contra-revolucionárias.

     Mas vejamos o sr. Caetano Veloso. A vaia selvagem com que o receberam já me deu uma certa náusea de ser brasileiro. Dirão os idiotas da objetividade que ele estava de salto alto, plumas, peruca, batom etc. etc. Era um artista. De peruca ou não, era um artista. De plumas, mas artista. De salto alto, mas artista. E foi uma monstruosa vaia. A menina, já citada, batia com os saltos dos sapatos, em delírio. Mas era um concorrente que vinha, ali, cantar; simplesmente cantar. Mas os jovens centauros não deixaram. Na minha casa, lembrei-me de uma velha solenidade nazista: — a queima de livros. Imaginei que, a qualquer momento, a guarda vermelha ia subir ao palco para queimar o próprio Caetano Veloso. Não me admiraria nada que, no futuro, os nossos jovens socialistas queimem poetas no meio da rua.

     Mas estou aqui fazendo uma defesa inútil de Caetano Veloso. Ninguém reage melhor do que ele mesmo. Quis cantar e esmagaram seu canto. A massa coral repetia, em furiosa cadência, uma obscenidade espantosa. Era o massacre de um artista, um desesperado artista que se propunha a cantar o “É proibido proibir”. A canção era a flor que o nosso Vandré quer expulsar do seu horrendo paraíso socialista. Já nenhum telespectador suportava mais a humilhação, que se transferia para as casas. (E a jovem massa insistia no refrão torpe.) Súbito, os brios de Caetano Veloso se eriçaram mais que as cerdas bravas do javali.

     Ele começou a falar. Era um contra 1500. E um que dizia a sua feroz mensagem nos trajes mais impróprios para o seu rompante. Sim, estava de peruca, plumas, batom, salto alto etc. E disse as verdades que estavam mudas, sim, as verdades que precisavam ser ditas — urgentes, inadiáveis e santas verdades. Ainda bem que milhões de telespectadores as ouviram.

     Se bem me lembro, eis as suas palavras: — “É isso a juventude? E vocês são políticos? Querem o poder! Vocês não sabem nada, não entendem nada! Analfabetos em política e arte! Se entendem de política como entendem de música, desgraçado Brasil!”. Não me lembro de tudo. Houve um momento em que Caetano Veloso comparou, e com exemplar justiça, as duas vergonhas: — a vaia obscena e a invasão do Teatro Ruth Escobar. Naquela ocasião, depois do espetáculo de Roda viva, uns quarenta bandidos espancaram o elenco. Havia uma atriz grávida, que gritou: — “Estou grávida!”. Levou um chute na barriga. Foi pisada como uma flor do nosso Vandré. E dizia Caetano Veloso: — “Vocês não são melhores! São iguaizinhos!”.

     Os idiotas da objetividade hão de perguntar: — “E a peruca? E as plumas? E o batom? E o salto alto?”. Eu responderia que qualquer um pode ter uma indignação à Zola. Quando morreu o autor de Germinal, disse alguém, à beira do túmulo: — “Zola foi um momento da consciência humana”. No teipe de sábado tivemos, pela fúria de Caetano Veloso, um momento da consciência brasileira. E vimos como a sua implacável lucidez acuou e bateu a “jovem obtusidade”.

              [26/9/1968]

 

                                                     O ÚNICO DE GAULLE

     Uma das maiores festas populares do velho Rio era o “grande enterro”. Não sei se me faço entender. Falo de uma cidade ou de um Brasil que passou até o último vestígio. Era ainda o tempo do barão do Rio Branco, de Pinheiro Machado, de Oswaldo Cruz, Patrocínio, Rui (digo os nomes, ao acaso, sem nenhuma cronologia). E, quando morria um dos citados, a cidade vinha, radiante, enterrar o “grande homem”.

     Claro que ninguém chorava o defunto oficial. E, por todo o itinerário fúnebre, ou falsamente fúnebre, havia uma euforia louca. Os moleques, trepados nos postes e nas árvores, avisavam: — “Evém! Evém!”. Mas eu disse que ninguém chorava o “grande homem” e já retifico: — as velhinhas choravam, sim, o cadáver monumental. Foi assim quando morreu o barão do Rio Branco.

     Naquela época, ainda tínhamos o instrumento da reverência, que era o chapéu. Podia ser um enterro de quinta classe. E cada qual se descobria diante da morte. Ninguém morria sem que toda uma cidade o cumprimentasse. Mas eu estava falando de que mesmo? Ah, de Rio Branco. Segundo se afirma, foi o maior enterro do Brasil, em qualquer tempo. O velho barão era o “grande homem” até fisicamente. Bem me lembro de que, na minha infância, o que mais me fascinava em Rio Branco era a barriga. Hoje, temos um preconceito cardíaco, não sei se justo ou iníquo, contra o barrigudo. Os clínicos costumam fazer a restrição pressaga: — “Você está muito gordo”.

     No velho Rio, porém, a barriga era um mérito a mais do ministro, do homem de Estado, do senador. E, naquele dia, ninguém ficou em casa, ninguém, e só as velhinhas choravam. O resto exultava com a mise-en-scène funeral. Mas eis o que eu queria dizer: — hoje, seria talvez impossível um enterro parecido. Cabe então a pergunta: — e por quê?

     Vejamos. Outro dia fui a um sarau de grã-finos na Lagoa. Houve um momento em que faltou assunto. E, então, alguém falou, precisamente, dos velhos enterros do Brasil. Citou os do Barão, de Rui, de Pinheiro Machado etc. etc. Havia lá um escultor português. Este gostaria de ter assistido aos funerais de Inês de Castro. A dona da casa (bonita demais para ser feliz) confessou que não vira, jamais, um “grande enterro”.

     Em seguida, alguém propôs uma revisão dos nossos “grandes homens”. Houve a dúvida: — “Vivos ou mortos?”. Convencionou-se que só interessavam os vivos. E começou uma busca frenética. No fim de uma hora os nomes lembrados dariam para encher uma lista telefônica. E começou um processo de angústia. Mais um pouco e se insinuou a dúvida: — “Será que, no Brasil, ninguém é grande homem?”. Até que, cerca das quatro da manhã, chegou-se à síntese desesperadora: — não temos o grande enterro porque nos falta o grande morto. O anfitrião repetia, vagamente humilhado: — “O Brasil não tem um grande homem para enterrar”.

     Saímos já ao amanhecer. Vim, com mais dois ou três, numa carona amiga. O dono do carro ainda gemia, numa irada frustração: — “É impossível que o Brasil não tenha um grande homem”. Nenhum povo pode viver sem o grande homem. Um outro sugeriu a hipótese consoladora: — “Quem sabe se não há, por aí, um gênio inédito?”. Protesto do dono da carona: — “A primeira virtude do grande homem é não ser inédito”. Quando saltei do carro, na porta de casa, já tínhamos renunciado ao grande homem brasileiro.

     E, agora mesmo, ao bater estas notas, estou com o problema na cabeça. Lembro-me então de uma das recentes passeatas, justamente a mais concorrida, a dos “100 mil”. Estavam, ali, eretas as nossas elites. Eram estudantes, poetas, romancistas, professores, sacerdotes, arquitetos, médicos, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, cineastas. Do alto de uma sacada, um observador podia imaginar: — “São os que pensam”. E, de fato, era o Brasil pensante que desfilava. Pasmado, cochichei para o meu companheiro Raul Brandão, o pintor das igrejas e das grã-finas: — “Vai haver o diabo”.

     O meu raciocínio era justo. Cem mil brasileiros não se juntam para nada. Imaginei que ia começar, ali, a “Grande Revolução”. Até que se ouviu a palavra de ordem: — “Vamos sentar”. A docilidade foi total. E as nossas elites sentadas eram de um efeito plástico inesquecível. E, depois, veio a ordem inversa: — “Levantar”. Tal e qual no anúncio do “senta e levanta”. Ninguém queria tomar o poder, absolutamente. Uma vez que se tinham sentado e levantado, os 100 mil se deram por satisfeitos e cada qual foi para casa.

     Se os que pensam agem e reagem assim, que dizer dos que não pensam? Sim, que dizer do pobre-diabo, do homem de rua, do pé-rapado, do sujeito mais obscuro do que um cachorro atropelado? Finda a passeata das elites, o Raul Brandão esbravejou: — “O importante, no Brasil, não é o grande homem, mas, inversamente, o pobre-diabo, o homem comum, o torcedor do Flamengo, o analfabeto”. Arquejava de uma fúria sagrada contra as elites.

     Eis o que eu gostaria de dizer: — passou a época do grande homem, e não só no Brasil. Também no mundo. Recentemente, vimos a nova “Revolução Francesa”. Os estudantes viravam a pátria de pernas para o ar; e, logo, 12 milhões de operários entraram em greve. Estudantes chamavam De Gaulle de “o assassino”. O poder estava indefeso. Mas ninguém o tomou, ninguém. E por quê? Simplesmente porque, entre milhões, não havia um único e escasso grande homem. A França teve que se atirar, outra vez, nos braços de De Gaulle. Sim, o velho De Gaulle, único grande homem francês.

     Na minha mesa está uma revista de Paris. E, lá, vem um artigo confessional de Jean-Louis Barrault. Já falei, aqui, da sua “morte”. Durante a “jovem revolução”, o famoso ator, com um oportunismo muito pusilânime, tratou de adular a massa estudantil. O teatro Odeon, que ele dirigia, estava ocupado pelos jovens. E, então, Barrault subiu ao palco. Foi patético. Declarou que, a partir daquele momento, deixava de ser Barrault. De fronte alçada, completou: — “Barrault morreu”. Saiu dali e foi comer um bom bife na esquina. Quinze dias depois, não havia mais greve, não havia mais nada. Barrault, falso grande ator, falso grande homem, teve o seu prêmio. Um outro intelectual, André Malraux, o chamou e deve ter dito mais ou menos isto: — “Rua! Rua!”. E o artigo do “morto” vem plangente de uma funda e inconsolável nostalgia do salário. Seja como for, a “jovem revolução” ensinou-nos que a França é uma paisagem sem franceses ou, por outra, é a paisagem de um único francês: — Charles de Gaulle.

              [27/9/1968]

 

                                               HERÓI E MÁRTIR

     Era uma avant-première de caridade. Todo o grã-finismo presente. Não se dava um passo sem esbarrar, sem tropeçar numa capa de Manchete. Diga-se de passagem que estou usando uma imagem hoje obsoleta. E, de fato, as grã-finas deixaram de ser capas de Manchete. Mas, como ia dizendo: — eu era, se bem me lembro, o único plebeu da festa. E, súbito, passou por mim um colar de brilhantes. Pobre hereditário, sou um deslumbrado nato pelas jóias caras.

     E aquilo me ofuscou. Como um hipnotizado, fui atrás. Mas, se me perguntarem quem era a dona do colar, e quem era o seu marido, não saberia dizê-lo. Um e outro pareciam secundários, nulos, diante da jóia. Ele, multimilionário, era como que um contínuo dos brilhantes. Fiquei, de longe, de olho no colar, como um Raffles. Esquecia-me de dizer que sou também fascinado pelo preço das coisas. Fiz meus cálculos. A bela senhora trazia no pescoço uma fortuna delirante. E, súbito, alguém cochicha: — “Aquele colar custou trinta segundos da festa do Patino”.

     Quem me disse isso? Não sei. Foi talvez o próprio Satã. O pretexto para a avant-première beneficente era um filme francês. E, depois do filme, ouvi não sei quantas opiniões. Alguém dizia, em arroubos: — “Que diálogo! Que diálogo!”. Houve um momento em que parou, perto de mim, o casal do colar. Em vez de se contentar com os brilhantes, a mulher também queria ser inteligente, e dizia: — “A mulher brasileira não chega aos pés da francesa”. O culpado do colar, com um tédio de Nero, resmungou o que não ouvi. E a mulher, com um frêmito nos brilhantes e no decote: — “o Brasil é um país de quinta ordem”. E, então, o marido, obeso como um Nero de Hollywood, faz esta síntese crudelíssima: — “O brasileiro não sabe fazer uma frase”.

     A ser verdade esta impotência verbal do brasileiro, seria a nossa desgraça. Nenhum povo, nenhuma época, nenhuma classe conseguiriam viver sem frases. E eu, ao apanhar meu táxi, vim pensando na Itália, que é, exatamente, a pátria da frase. A outra pátria seria a França. Quando o táxi passou pelo relógio da Glória, eu pensava em D’Annunzio e na sua prodigiosa magia verbal. Durante toda a belle époque, era uma honra ser amante do poeta. Os despeitados, que sempre os há, perguntavam: — “Por quê? Por quê?”. Fisicamente, D’Annunzio era o antifauno — pequenino, de barbicha em ponta, uma calva que começava e não sabia onde acabar. Mas fazia frases. E a boa frase, em qualquer tempo ou em qualquer idioma, sempre fez adúlteras. Segundo a lenda, só uma senhora resistiu à frase de D’Annunzio. Vai o poeta e faz-lhe um soneto. Resistiu à frase, não resistiu ao soneto.

     Falei do gênio verbal de um homem e passo a falar do gênio verbal de um povo: — o francês. Pode parecer exagero. Mas eis o que eu queria dizer: — a França é uma paisagem de frases. O francês não sabe amar, odiar, viver ou morrer sem a palavra. Nele, o gesto é apenas o reforço plástico da frase. Vejam a última “Revolução Francesa”. Evidentemente, ninguém queria cortar a cabeça de ninguém. E, de fato, ninguém morreu e ninguém matou. Mas os revolucionários lavaram a alma porque fizeram uma meia dúzia de frases. Uma delas, que está rolando por todos os idiomas, é a já insuportável “É proibido proibir”. Essa frase já foi bonita. Mas, pichada em todos os muros, impressa por toda a parte — tornou-se de um tédio auditivo hediondo. Logo se viu, porém, que era uma reles pose verbal da massa francesa. “É proibido proibir”, mas os seus autores foram pichar telas antigas, por serem antigas, e as modernas, por serem modernas; e assim como proibiram a pintura, também proibiram o teatro, o cinema, a música. Naqueles dias, o vento da “jovem irracionalidade” varreu a França.

     Deixemos as frases francesas e passemos às nossas. Será que elas existem? Afirmou o marido dos brilhantes que o brasileiro “não sabe fazer uma frase”. Dirá um patriota de penacho: — “Mas é injusto! Injusto!”. Nem tanto, nem tanto ou por outra: — talvez seja uma falsa injustiça. Acontecem coisas, no Brasil, que fazem desconfiar de nossa potência verbal.

     Em várias ocasiões cívicas, o brasileiro faz o gesto, sem lhe acrescentar a frase que o justifique e o consagre. Imaginem vocês se Pedro I, nas margens do Ipiranga, puxasse a espada sem o grito. O gesto mudo significaria mais cem anos de colônia. Todavia não precisamos recuar tanto na folhinha. Há pouquíssimo tempo houve aqui a passeata dos 100 mil. Era a primeira vez em que as nossas elites, depois de uma inércia paradisíaca de 468 anos, iam intervir na vida brasileira. E, súbito, em plena avenida Rio Branco, ocorre o milagre: — as elites brasileiras sentaram-se. E não em cadeiras, não em poltronas, não em sofás, não em divãs. Não. Tal não fariam as nossas elites. Vejam e pasmem: — exaustas de quase quinhentos anos de ociosidade, de praia, de Antonio’s — elas saíram para descansar outros quinhentos anos. E sentaram-se no próprio chão, no próprio asfalto, no próprio meio-fio, na própria calçada.

     E, se as nossas elites assim o fizeram, temos de admitir que devem ter razões históricas especialíssimas e inescrutáveis. Mas qualquer gesto, ainda o mais trivial, exige a frase correspondente. Foi o que faltou às elites do Brasil. E o gesto mudo nunca fez história. Por aí se vê que o grã-fino do colar não foi, como parecia, de uma inveracidade total. O brasileiro senta como ninguém. Na hora da frase, porém, cai na mais absurda esterilidade verbal.

     Felizmente despontou o Festival da Canção. E como os concorrentes fazem frases! Pena é que vários tenham apelado para o “É proibido proibir”. Pergunto: — por que não inventar uma frase nossa? Por que recorrer a uma tradução? Graças a Deus, outros, como o Vandré, são de uma fascinante originalidade. Ah, fiquei tocado pela sua integridade autoral. Não há um verso que não seja dele, dele mesmo e arrancado de suas entranhas vivas. E as frases jorram de sua canção, assim como a água jorra da boca dos tritões, sim, dos tritões de chafariz. Ao mesmo tempo, é a letra de um centauro de artista e de herói.

     Todavia, quer-me parecer que as letras políticas, ideológicas do Festival apresentam um defeito que escapou, certamente, aos seus autores. Vou explicar. No episódio dos 100 mil houve o gesto e faltou a frase. Na canção do Vandré só há frases e nenhum gesto. O sujeito, depois de escrever o que Vandré escreveu, e de cantar o que ele cantou, não pode ficar no Maracanãzinho recebendo corbeilles como na ópera. É pouco. O leitor e ouvinte imagina que ele ouviu tudo aquilo numa sessão espírita, como um médium de Guevara. Depois de tal canção, só lhe resta uma saída: — correr para se encontrar com o próprio martírio na primeira esquina.

          [28/9/1968]

 

                                             A IRA DE VANDRÉ

     Os que são velhos, como eu, conheceram os estertores das gerações românticas. Havia então uma permanente nostalgia do patético e do sublime. Morrer de amor, ou por amor, era uma honra; morrer simplesmente, sem amor, nem ódio, morrer de paratifo ou até de asma, era outra honra. E quando passava um enterro de virgem, com o caixão de arminho, as mocinhas dos sobrados invejavam a morta e gostariam de estar no imaculado caixão. Bom tempo, em que a morte era mais promocional do que a vida.

     Mas quem conta episódios admiráveis da vida romântica é o Eça. Num dos seus livros, não sei se Os Maias, há uma cena deliciosa. Imaginem um rapaz vestido de negro e pálido como um santo. É uma festa. Ele está, na janela, maravilhosamente só. E ali, olhando a noite, que já vai para a madrugada, cheira uma flor, talvez camélia. Muito olhado pelas damas, exalava uma nobre e inconsolável melancolia. E, súbito, vem a dona da casa e pergunta: — “Não dança?”. O rapaz ergue a fronte diáfana e responde: — “Como posso eu dançar, se a Polônia sofre?”.

     Nesse rapaz que, junto à janela, beija uma camélia; e não pode sorrir porque a Polônia sofre, nesse rapaz está todo um Portugal, toda uma Europa. Outro que tem o mesmo valor social, humano, histórico, é o nosso Geraldo Vandré. Quem não o conhece? Com o seu sucesso no Festival da Canção, o nosso Vandré tornou-se uma súbita figura nacional. Abram os jornais, as revistas, ouçam os rádios, vejam as TVS. A fulminante celebridade de Vandré é de uma evidência estarrecedora.

     E mais: — de domingo para cá, sempre que três brasileiros se juntam, o assunto obrigatório, fatal, é a vil injustiça que lhe fizeram. Vandré concorria ao Festival com a sua “Pra não dizer que não falei de flores”. Segundo se diz, ele devia tirar o primeiro lugar. Vai o júri e dá-lhe um mísero e franciscano segundo lugar. Antes, porém, de passar no Maracanãzinho, preciso dizer quem é e como é Vandré. Vamos lá.

     Dias atrás, um amigo meu cruza com o compositor e diz-lhe: — “Boa noite”. Ora, a um cumprimento responde-se com outro cumprimento. É o mínimo e o máximo que se pode fazer. O Vandré, porém, está bem acima de um automatismo tão crasso e tão ignaro. Assim saudado, ele se arremessa para o meu amigo, como se fosse agredi-lo. Agarra-o pelos dois braços, sacode-o; diz-lhe, embargado: — “Como pode você me dar boa-noite se o mundo está em guerra?”. O outro tomou o maior susto: — “Eu não tive intenção! Eu não tive intenção!”. E, realmente, o meu amigo não tivera nenhuma intenção, senão a de lhe dar boa-noite. E o Vandré, em arrancos: — “Você não vê que estão morrendo no Vietnã?”. O autor do imprudente “boa-noite” quase correu, fisicamente, do Vandré.

     Pode parecer talvez que eu esteja fazendo um exagero caricatural. Por sua vez, os idiotas da objetividade dirão que o Vietnã está lá e o compositor aqui. Mas saibam que, no caso do Vandré, a distância não influi nas leis da emoção ou da indignação. Ele reage como se o Vietnã fosse ali na esquina; e como se o chão que ele pisa estivesse juncado de vietcongs defuntos. Narrei o episódio para caracterizar o artista: — será nosso contemporâneo apenas nos ternos, gravatas e sapatos; mas por dentro tem a estrutura das gerações românticas. Já os familiares e conhecidos evitam cumprimentá-lo, porque o Vietnã sofre.

     Dito isto, passo ao Maracanãzinho. Domingo, ia ser escolhida a música brasileira para o Festival Internacional da Canção. Não sei por que, meteu-se na cabeça de muitos, inclusive do próprio Vandré, que sua letra e sua música iam ser as ganhadoras fatais. Vocês entendem a minha perplexidade? Informa o senso comum que qualquer competição, seja o prêmio Nobel ou de cuspe à distância, tem os seus imponderáveis. A começar pelos juizes. São quinze sujeitos e temos de admitir a “verdade de cada um”, verdade que foi, como se sabe, o ganha-pão de Pirandello. Todavia, Vandré e seus partidários, que eram numerosos e ululantes, estavam maravilhosamente certos da vitória.

     Daí a crudelíssima desilusão. Os jurados preferiram “Sabiá”, de Chico e Tom. Ao nosso Vandré coube o segundo lugar. Outro qualquer estaria soltando os foguetes da vaidade, e telefonando para casa: — “Tirei o segundo lugar! Tirei o segundo lugar!”. Seria uma glória para a família, para a namorada etc. etc. Mas Vandré não tem as reações de qualquer um. Assim como não admite que o cumprimentem, também não aceita um reles segundo lugar. O resultado doeu-lhe, fisicamente, como uma nevralgia.

     Estava falsamente derrotado. Na verdade, merecera uma colocação nobilíssima. Não tinha que sofrer como se o segundo lugar fosse a mais hedionda das lanternas. Os que estavam lá, no Maracanãzinho, viram muito pouco. Havia entre a platéia e o palco uma deplorável distância visual. Ao passo que o vídeo amplia a cara, o gesto, o espanto. Eu, em casa, com a televisão ligada, vi tudo e com prodigiosa nitidez. E, sobretudo, vi a bela, forte, crispada e jovem cara de Vandré.

     Ele acabara de saber que era, apenas e miseravelmente, o segundo colocado. Os presentes não puderam sentir o seu patético, mas o telespectador, sim. Para nós, de casa, a cara de Vandré tomou a expressão cruel, vingativa, de certas máscaras cesarianas. Lia-se tudo na jovem cara. Houve um momento em que, instigado pelos seus fiéis, Vandré perguntou, de si para si: — “Abro ou não o verbo?”. Seria o comício.

     Nas velhas gerações, o brasileiro tinha sempre um soneto no bolso. Mas os tempos parnasianos já passaram. Hoje, ferozmente politizado, ele tem sempre, à mão, um comício. Outrora soneto, hoje comício. Eis a perplexidade que o telespectador percebia, com perfeita visibilidade: — por um lado, o comício fascinava Vandré como um abismo; por outro lado, era amigo do Chico e do Tom. Mas eis o que eu queria dizer: — um concorrente frustrado só devia aparecer de máscara, como nos velhos carnavais. Apenas o primeiro colocado teria o direito de fotografar-se de rosto nu.

     Então o Vandré cometeu o erro de saudar os concorrentes vitoriosos. Só ele e Deus sabem o esforço braçal que lhe custou essa concessão às boas maneiras. Mas um artista não pode ser convencional. Sei que, por um instante, quase partiu para o comício. Foi quando começou: — “Nem tudo é festival!”. Disse isso e não foi além. Assim traiu a própria ira, traiu o próprio ressentimento. Ninguém pôs uma máscara compassiva no ódio tão forte, ingênuo e impotente.

      Outro momento inesquecível: — a cara de Tom Jobim. Ao saber-se premiado teve espasmos triunfais de víbora moribunda. Somos uma pátria de cavas depressões; e a cara de Tom Jobim, na vitória, devia ser exibida por todo o Brasil. Como é trágica a euforia do subdesenvolvido premiado. O nosso Tom foi aos Estados Unidos, fez músicas para Sinatra, é uma glória internacional. Só faltou atirar beijos como uma menina de préstito carnavalesco. Um americano embolsa um prêmio com um tédio sarcástico. O francês recebe um favor como se estivesse fazendo um favor ao favor. E o nosso Tom, ao impacto do triunfo, quase foi para a tenda de oxigênio.

         [1/10/1968]

 

                                         REVOLUCIONÁRIO DE FESTIVAL

     Repito que o grande momento do Festival foi o ódio de Geraldo Vandré. Era o talento ferido. E as vaidades do autor estavam mais eriçadas do que as cerdas bravas do javali. Pouco antes, ao executar o seu número, era o vencedor total. Vocês se lembram dos comícios do Brigadeiro. A massa gritava: — “Já ganhou, já ganhou!”. Também domingo os fiéis de Vandré berraram: — “Já ganhou, já ganhou!”.

     E, finalmente, quando saiu o resultado, o autor de “Caminhando” foi o maior espanto da terra. Apunhalado por um segundo lugar — um torpe segundo lugar — quase desabou, fisicamente. E, em seguida, rompeu de suas entranhas um ódio que bem merecia estar inserido nas obras completas de William Shakespeare. O leitor, que é um simples, há de pedir um sinal exterior e concreto de sua ira.

     Não houve tal exteriorização. O ódio de Vandré permaneceu dentro de Vandré. Mas dizia eu, na confissão de ontem, que as caras não mentem. E a jovem cara crispada de Vandré não fazia nenhum mistério. Bem sei que, da boca para fora, ele pedia aos seus devotos: — “Aplaudam Tom e Chico, como se fosse eu!”.

     Mas a vaia explodiu. Ou por outra: — não sei se era mesmo vaia. Hoje, o povo aplaude como se vaiasse e vaia como se aplaudisse. Contei o caso da universitária que, em São Paulo, arrancou os sapatos e batia com os saltos um no outro. Ninguém sabe, até hoje, se estava contra ou a favor. Outros assoviam, vaiando ou aplaudindo. E há os que fazem castanholas com a boca. No Maracanãzinho, sujeitos sapateavam como bailarinas de Sevilha.

     Cabe então a pergunta: — e foi mesmo injustiça? Admitamos que sim. Faz de conta que o segundo lugar é pior do que a lanterna. E que “Sabiá” não merecia nem a lanterna. Admitamos tudo isso. Mas, se houve injustiça, Vandré deve ser festejado e não chorado. Seus partidários devem recolher todos os palavrões. E, de fato, não há nada mais promocional do que a injustiça. O “injustiçado” assume uma dimensão inesperada e gigantesca. Quando passa, é lambido com a vista. Só uma coisa me espanta: — é que não tenham carregado o Vandré na bandeja, e de maçã na boca, como um leitão assado.

     Todavia, já uma dúvida se insinua no meu espírito. “Para não dizer que não falei de flores” é uma bela canção. Não há dúvida. Bela canção. Mas ainda ontem dizia-me um amigo: — “Sou contra ‘A Marselhesa’! Não topei ‘A Marselhesa!’“. Custei a entender que ele falava, justamente, da música de Vandré. E, sem o saber, o meu amigo deu-me a pista exata. Era uma deslavada “Marselhesa”.

     Agora mesmo, ao bater estas notas, vejo toda a cena. Vandré está fazendo a música do Festival. Evidentemente, quer partir para o social, o político, o épico, o homérico, ou sei lá. O Chico, ou o Tom, pode encerrar-se no lirismo íntimo. Mas um rapsodo como o Vandré sonha com a grande comunicação. E, então, quis fazer “A Marselhesa”. Eis aí, em rápidas pinceladas, o que foi a concepção, o que foi a execução de sua obra. Perdeu noites, na fremente elaboração. Mas quando acabou a sua “Marselhesa” — saiu-lhe a anti-“Marselhesa”.

     Aí está, como eu dizia, o defeito. Lenin falou no “ópio do povo”. O que o Vandré fez é o que há de mais ópio, de mais sedativo, repousante, embalador, suavíssimo. É o tipo de música que o sujeito deve ouvir na rede, abanando-se com a Revista do Rádio. Quase uma berceuse. E o próprio Vandré a canta em surdina, como se estivesse fazendo o povo dormir. Repito que nunca se viu uma “Marselhesa” tão pouco “Marselhesa”, tão anti-“Marselhesa”.

     Dirá alguém: — “E a letra?”. De fato, há a letra. Mas é óbvio que o nosso “injustiçado” fez o libreto para a ópera errada. Há, sim, entre a música e o canto, o feio e cavo abismo das incompatibilidades totais. É só prestar atenção. Uma coisa não tem nada a ver com outra. E já me parece certo o seguinte: — a sua música é o que há de mais impróprio, de mais ineficaz para resolver as ‘cóleras, sim, as cóleras que dormem nas entranhas populares.

     Todavia, o nosso Vandré não foi um caso único. E, súbito, explode na vida brasileira uma nova figura: — o “revolucionário de Festival”. Vocês entenderam? Trata-se do herói sem risco. Claro que outros países, e os outros idiomas, também o têm. Foi assim na nova e jovem “Revolução Francesa”. Milhões de franceses entraram no movimento. Pois bem. E não morreu ninguém. Não houve um morto e, ouso mesmo dizê-lo, não houve um ferido. Na França, morre-se muito de atropelamento. Mas como os estudantes viraram todos os carros, a “revolução” não teve nem os atropelados dos dias úteis.

     Eis o óbvio ululante: — o “revolucionário de Festival” não mata, nem morre. Põe entre a sua pessoa e o perigo uma sábia distância. Por exemplo: — o Roldão. Fez outra “Marselhesa” que se chama “América, América”. Vejam vocês: — temos, ali, nas nossas barbas cínicas, Magé. Todos conhecemos Magé. Magé, repito, está diante de nós, fisicamente próxima. Podemos apalpá-la, podemos farejá-la. Lá, de vez em quando, uma ratazana devora um recém-nascido.

     E vem o Roldão, com seu bigode boliviano, a falar de “América, América”. Eis a verdade a um só tempo deplorável e patusca: — o “revolucionário de Festival” não toma conhecimento do Brasil. Aqui mesmo, nesta coluna, contei um episódio que me pareceu uma obra-prima de alienação. Era uma passeata. E um rapaz empunhava este cartaz: — “Muerte” etc. etc. Adiante, outro: “Independiencia o muerte”. E, de repente, graças às nossas esquerdas, o brasileiro se põe a odiar, a matar, a morrer em castelhano.

     Eis a pergunta que, em casa, vendo o Festival, eu me fazia: — “Por que o nosso Roldão não vai cantar guarânia, ou bolero, ou tango?”. Talvez, um dia, alguém se lembre de medir a distância que há entre as nossas esquerdas e esse pobre-diabo colossal, que é o Brasil. Ninguém apontará um “revolucionário de Festival” que mencione, ainda que de passagem, ainda que de raspão, esta mísera terra. Vejamos o Vandré. Nem o Brasil, nem o brasileiro entram na sua berceuse.

             [2/10/1968]

 

                                               O MASSACRE DA “SABIÁ”

     Não há brasileiro, vivo ou morto, que não tenha uma vizinha gorda e, além de gorda, patusca como uma viúva machadiana. Dirão os idiotas da objetividade que vizinha é a que mora ao lado, ou defronte, ou ali na esquina ou, ainda, na mesma rua. O caso não me parece tão simples. O que eu chamo de vizinha é, antes de mais nada, um certo tipo físico, uma certa e generosa adiposidade. Dizia-me um amigo, a propósito de não sei de quem: — “Gorda como uma vizinha”. Aí está dito tudo. E se tiver varizes, melhor. Ah, esquecia-me das brotoejas. É preciso que desponte, no seu decote, uma constelação de brotoejas.

     Assim é, fisicamente, a vizinha. Do ponto de vista de caráter, sentimentos e modos tem de ser patusca. Imaginem uma víbora gaiata — é a vizinha, como a imaginava o nosso Machado de Assis. Se, por acaso, mora ao lado uma senhora esguia, de lindas maneiras e nobres sentimentos — estejamos certos de um equívoco, de uma fraude ou de uma confusão de endereço. Reside a dois passos, mas é a falsa vizinha, a antivizinha, sem nada de machadiano. Fiz esta breve introdução para concluir: — tenho, na minha rua, uma senhora que é a vizinha perfeita, irretocável.

     Está sempre na janela. Eis aí um costume típico. Como se sabe, a janela foi a televisão das gerações passadas. Hoje, tudo mudou. Há pessoas que passam anos e não usam a janela nem para cuspir. Resumindo: — a janela só existe e sobrevive nas letras do Chico Buarque de Holanda. Mas onde é que eu estava? Ah, na vizinha gorda, a quem chamam de “Moby Dick”, a baleia. E a santa senhora, instalada no seu primeiro andar, toma conta de tudo e de todos. Vê quem chega, quem parte, quem namora e quem prevarica.

     Ontem, ao sair de casa, quem vejo eu? A vizinha. Quase atravessei a rua. Mas já a vizinha crispava no meu braço a sua mão pequena e voraz de gorda. Não tive outro remédio senão parar. Agrediu-me com a pergunta: — “O que me diz do Festival?”. Não me lembro se disse “Gostei” ou “Não gostei”. Agora me lembro. Minha resposta foi exatamente esta: — “Mais ou menos”. Só. Por coincidência, também ela achara “mais ou menos”. Vendo, ali, uma similitude de gosto, de sentimentos, vibrou a vizinha. Conversamos uns quinze minutos. E, por fim, quando me despedi, ela fez mistério, fez suspense. Disse, sem desfitar-me: — “Nada como um dia depois do outro”.

     Aquilo ficou na minha cabeça. “Nada como um dia depois do outro.” Só uma vizinha gorda diria isso. Sim, a frase era um achado de vizinha gorda, patusca e cheia de varizes. Mas como ia dizendo: — despedi-me e, em seguida, apanhei o táxi. Vim para a cidade ressoante do “Nada como um dia depois do outro”. E, então, pensei no Festival. Em São Paulo, quando se escolheu a música paulista, os fanáticos de Vandré promoviam uma apoteose para o seu ídolo e, ao mesmo tempo, massacravam a música de Caetano Veloso. E não só a massacravam, como também massacravam o autor.

     Se vocês assistiram ao teipe da Paulista, hão de se lembrar. Pela primeira vez viu-se uma pobre canção linchada. A canção, digo eu, e respectivo autor. E mais: — enquanto Caetano Veloso queria cantar, a platéia — sapateando como uma espanhola — fazia um coro feroz, unânime e obsceno. Mas o artista deu-lhe o bravo troco. Chamou os jovens ululantes de “imbecis”, “analfabetos”, “débeis mentais” etc. etc. E disse tanto que a obscenidade emudeceu. O comportamento de tal platéia — e toda ela “festiva” — foi de uma indignidade inédita. Vejam como cabe, aqui, o “Nada como um dia depois do outro” da minha vizinha. No Rio, novamente, apoteose para Vandré e vaia para “Sabiá”. Em São Paulo, porém, o “Proibido” foi realmente proibido pela platéia, e saiu do Festival. Aqui, o vaiadíssimo “Sabiá” ganhou e vai representar o Brasil.

     Mas o que ainda me assombra é o poder de promoção da “festiva”. O povo acha graça e vamos e venhamos: — o simples nome de “festiva” é um apelo ao ridículo. Realmente, há o ridículo, sem prejuízo, todavia, do gênio promocional das esquerdas. O leitor não tem noção do que sejam os bastidores da glória, do sucesso, da consagração. Hoje, só se é poeta, romancista, sociólogo, crítico, cineasta, se as esquerdas o permitirem. Cabe então a pergunta: — e por quê? Vejamos.

     Porque a “festiva” infiltrou-se nas redações, nas rádios, nas TVS. Há um escritor que não escreve, não lê, não pensa? Outro que é cineasta inédito? E outro ainda um romancista que não fez, nem fará jamais um romance? Como desfilam em passeatas e xingam os Estados Unidos — são grandes sociólogos, cineastas, romancistas e poetas. E há o caso de Gilberto Freyre.

     As esquerdas o abominam. Por que, não se sabe, ou, por outra, sabe-se perfeitamente. Gilberto Freyre é um homem livre. Pensa, vejam vocês e pasmem: — pensa. Pois bem. Até outro dia era, na vida intelectual do Brasil, uma presença enorme, obrigatória, obsessiva. Lembro-me de que, certa vez, as grandes figuras literárias do Brasil propunham que ele fosse o nosso candidato ao prêmio Nobel. E, súbito, desaba sobre o seu nome e sua obra um vil silêncio. É solidamente ignorado pelos nossos jornais. Não há mais notícia, nem reportagem, nem crônica, nem artigo sobre Gilberto Freyre. Acabou? Morreu? Deixou de pensar, ler, escrever? Não, mil vezes não.

     Simplesmente, não aceitou a pressão das esquerdas. E estas, que têm a posse de todos os meios de promoção, não falam em Gilberto Freyre, negam-lhe uma notícia de duas linhas ou uma vaga referência. Bem. Volto ao Festival. Vejam vocês: — a “festiva”, com o seu horror ao risco, não deu um tiro em 31 de março, não matou um passarinho em 1º de abril. E nem vai mover uma palha ou tirar uma cadeira do lugar. Mas só se tem talento com a sua licença.

     E, domingo, no Maracanãzinho, as esquerdas caíram do cavalo. Esperavam o primeiro prêmio para Vandré e quem ganhou foi “Sabiá”. Entre parênteses, não nego o talento de Vandré. Sua “Marselhesa” nada tem de “Marselhesa” e, pelo contrário, soa como berceuse e o próprio autor a canta como tal. Mas, berceuse ou “Marselhesa”, há talento. E o resultado doeu na “festiva”. Logo, com aquela sua coragem sem risco, saiu pelas redações, rádios e TVS. O nosso Vandré teve uma imprensa que nem Rui, nem o barão do Rio Branco, nem Santos Dumont mereceram. Mas era pouco. A glória impressa era pouco.

     E que fizeram elas, as esquerdas? Vejam que golpe bem imaginado. Na terça-feira, em jornais, rádios e TVS, largaram a bomba: — Tom e Chico iam renunciar. Nada descreve o meu espanto. O prêmio, se não me engano, é de 25 milhões. Vinte e cinco milhões — o brasileiro não é assim. Mesmo o nosso milionário não é assim. Um dia, o Walther Moreira Salles ganhou um prêmio menor no “Seu Talão”. Pois meteu-se na fila e foi buscar o dinheiro. Por que, e a troco de que, Tom e Chico iam enfiar no bolso de Vandré os 25 milhões? O Chico não está presente. E, se o Tom aceitasse a coação sentimental e realmente idiota, estaria merecendo um urgente tratamento psiquiátrico. Sim, e nós o amarraríamos num pé de mesa e lhe daríamos água numa cuia de queijo Palmira.

           [3/10/1968]

 

                                                    O FALSO DEFUNTO

     Foi doce o meu encontro com o Varanda. Com esse nome paisagístico, ventilado, é uma grande figura. E como não nos víamos há meses e meses, houve, de parte a parte, uma festa imensa. Eu ria para ele e ele para mim, como se o amigo fosse uma figura extremamente cômica. Súbito, o Varanda pergunta: — “Tens visto o Burlamaqui?”. Respondo: — “Morreu”.

     O Varanda recua dois passos e avança outros dois. “Pálido de espanto”, como no soneto, balbucia: — “Quem morreu?”. Confirmei: — “O Burlamaqui”. Pulou como o espectro da rosa. Agarrou-me: — “Não é possível! Não pode ser!”. Houve, ali, dois espantos, o meu e o dele. Teimei: — “Você não sabia? Morreu, rapaz, morreu!”. Desatinado, o outro dizia: — “Só se morreu hoje, agora, neste momento!”. Desta feita, o assombrado fui eu. Disse-lhe: — “Morreu há dois ou três anos. Dois. Dois, não. Três”.

     Esquecia-me de localizar o nosso encontro, no tempo e no espaço. Foi ontem, na esquina de Sete de Setembro com Avenida, às quatro da tarde. Ao ouvir falar em “três anos”, o Varanda perdeu de vez a paciência: — “Estás fazendo molecagem comigo!”. Estendi a mão sobre uma Bíblia invisível: — “Juro”. Varanda substituiu o espanto pelo furor: — “Deixa de palhaçada!”. E eu, também exaltado, voltei à carga: — “Rapaz! Eu fui ao enterro do Burlamaqui, mandei-lhe uma coroa, estive na missa! Está-me chamando de mentiroso?”.

     Em plena calçada, e aos berros, já fazíamos escândalo. Um senhor gordo, de óculos, com esparadrapo na testa, parou e ficou olhando. O Varanda estava quase chorando: — “Pelo amor de Deus! Escuta! Estive com o Burlamaqui ontem, ontem. Sabe o que é ontem? Paguei-lhe o cafezinho. Tomou cafezinho comigo!”. Era demais. Estou repetindo: — “Contigo, cafezinho, ontem? E não morreu?”. O Varanda estendia, as duas mãos crispadas: — “Acredita em mim! Peço. Acredita em mim!”. E então, pela primeira vez, admiti a hipótese de um engano, sim, de um equívoco fatal. Era possível que a morte, o enterro, a missa do Burlamaqui fossem uma falsa lembrança, um sonho talvez da memória.

     Finalmente, capitulei: — “Tens razão, tens razão! Eu me enganei. Não foi o Burlamaqui. Foi outro, um cara que tu não conheces”. Tive que inventar, às pressas, um defunto, que justificasse a confusão. Mas eu e ele estávamos exaustos e irritados com o equívoco. Nem o Varanda me reteve, nem eu a ele. Cada qual queria ver o outro pelas costas. E assim nos despedimos.

     Pergunto: — como explicar que a memória invente uma morte, um enterro e uma missa? Só muito depois, em casa, entendi tudo. Não há brasileiro que não tenha, entre suas relações, um “falso defunto”. Não estou exagerando. “Falso defunto” é o que a gente pensa que já morreu umas cinco vezes, que já foi enterrado outras tantas. O sujeito imagina que já o viu de pés juntos e algodão nas narinas. No fim, fica provado que ninguém morreu e que se trata de uma pura e irresponsável fantasia da memória. E o Burlamaqui era, justamente, o “falso defunto”. Não havia dúvida: — estaria tão vivo quanto eu e o leitor.

     Vejam vocês: — no dia seguinte, estou em casa e bate o telefone. Alguém está dizendo: — “Aqui fala a alma do Burlamaqui”. E, em seguida, veio a gargalhada, forte, tremenda, vital. E eu, rindo também: — “Ah, como vai essa figura?”. O outro não parava: — “Então, você me matou? Parei contigo!”. Simplesmente, o Varanda armara toda uma alegre intriga entre nós dois. Rimos muito; perguntei-lhe: — “Que fim levaste?”. E ele: — “Moro em Brasília. Estou passando uns dias aqui, na casa do meu cunhado”. Quando lhe perguntei “Que tal Brasília?”, ele explodiu: — “Brasília é o ouro! O ouro!”. Indaguei se ele estava bem lá. Deu uma resposta triunfal: — “Estou com a vida que pedi a Deus. Você precisava ir pra Brasília. O Rio é uma ilusão, São Paulo outra ilusão. Vai pra Brasília!”.

     Por fim, marcamos um encontro para logo depois. Esquecia-me de dizer que, antes de Brasília, o Burlamaqui pagara todos os seus pecados. Conheceu a fome. Certa vez passara 48 horas sem comer e sem beber. Um dia, entrou num boteco e pediu um copo de água da bica. Foi medonho. O garçom deu-lhe o copo e ele não bebia. Simplesmente, mastigava a água e repito: — comia a água. Em outra ocasião, Burlamaqui agarrou-me. As lágrimas caíam-lhe de quatro em quatro. Disse, baixo: — “Me empresta um dinheiro. Não vi nem o café da manhã”. Estava lívido, febril de fome. Hoje estava feliz; e eu percebera, em tudo o que dizia, uma prosperidade insolentíssima.

     Quando me viu, fez a pergunta afrontosa: — “Precisas de dinheiro? Estamos aí”. E repetia, batendo no bolso: — “Dinheiro há, dinheiro há!”. Tal generosidade era uma maneira de se compensar de velhas e santas humilhações. Repetia (e seu olhar vazava luz): — “O ouro está lá! Está lá!”. Apontava na direção de Brasília. Quando lhe perguntei pelo mistério, deu risada. Contou que fora para Brasília morto de fome; e, agora, tinha três empregos e era fazendeiro. No meu espanto, gemi: — “Mas é um milagre!”. Riu, com salubérrimo descaro: — “A autora do milagre é Brasília”.

     Conversamos duas horas e o assunto obrigatório foi a capital. Eu só ouvia, numa impressão profunda. E, por tudo que contava o Burlamaqui, eu via Brasília como a imagem da pequena comunidade. Sim, a pequena comunidade é a soma de acomodações, de interesses, de egoísmos. Cada qual absolvia o próximo para ser também absolvido. O sujeito podia ter três, quatro empregos, porque os demais tinham três, quatro empregos. Quando falei na imprensa, o Burlamaqui dava gargalhadas de se ouvir no fim da rua.

     Não saía de Brasília nenhuma notícia que a pudesse comprometer. Uma universitária sofreu uma curra homicida. Nunca ninguém, na Terra, foi tão humilhada e tão ofendida. O fato chegou ao Rio por via oral. Os jornais telefonaram. Resposta das sucursais: — “Não há nada”. E se lá aparecesse um Jack, o Estripador, ou um conde Drácula, ninguém saberia, ninguém. As sucursais continuariam falando da Arena e do MDB. E O silêncio envolve os fatos indignos como um celofane. À sombra dos egoísmos solidários, ninguém julga ninguém, ninguém acusa ninguém. E, portanto, os curradores referidos continuam maravilhosamente impunes.

     E o Burlamaqui me diz: — “Houve uma passagem comigo que... Foi o seguinte: — um cara folgou comigo. Dei-lhe uns tiros. E não me aconteceu nada. Vivo lá na minha fazenda, venho só receber dos três empregos, ninguém me aborrece”. Maravilhado, repito: — “Mas é um milagre!”. O outro ri, sórdido: — “Mais ou menos”. Já se despedia. Mas antes de partir, ainda me disse: — “Larga tudo, vai pra lá. Toda as cidades pecam, menos Brasília”. Respira fundo e completa: — “Em Brasília, somos todos inocentes e somos todos cúmplices”.

     O automóvel estava no estacionamento. Vi o “falso defunto” embarcar no carro. Já falei na sua Mercedes? Acho que falei. Não, não. Não falei. Pois sua Mercedes tem cascata artificial, com filhote de jacaré.

             [5/10/1968]

 

                                               O HÉLIO E O ANTI-HÉLIO

     A história dos meus jantares e almoços com o Hélio Pellegrino não é, como pode parecer aos idiotas da objetividade, um problema de menu. (Eu devia estar aqui falando do desfecho do Festival.) Mas como ia dizendo: — acima das preferências de cardápio e da voracidade dos nossos apetites, há toda uma complexa, dilacerada, conflituosa relação humana.

     Não sei se me entendem e tentarei explicar. Enganam-se os que vêem um só Hélio Pellegrino. São dois. Há o Hélio e o anti-Hélio. A alma do meu amigo tem sido palco de uma batalha feroz entre um e outro, entre ele e o seu oposto, entre o verdadeiro e o apócrifo. Dirá alguém que estou apresentando a figura de um centauro. Exatamente. A metade do Hélio é o Hélio e a outra metade o anti-Hélio.

     Mas como o leitor é fanático da nitidez, tentarei ser mais claro. O Hélio é a pessoa e o “outro” Hélio a antipessoa. Se, apesar da minha prolixidade, ainda não me entenderam, paciência. O que chamo Hélio do puro, do legítimo, do escocês, é o que me telefonou na véspera dos meus anos. Dias antes, eu o desafiara a jantar comigo no meu aniversário. Esse repto foi, e aqui o confesso, uma impiedade. Sim, eu sabia que estava provocando uma luta corporal entre o Hélio e o anti-Hélio, ou seja: — entre o poeta e o político.

     Para minha sádica satisfação, as coisas se passaram como eu previa. Os dois Hélios marcaram um encontro no terreno baldio, à meia-noite, a hora que apavora. Tratava-se de decidir se o poeta e psicanalista devia comer, ou não, um bife comigo. Como era uma rixa crudelíssima, o contra-regra do terreno baldio providenciou um mau tempo de quinto ato do Rigoletto.

     Segundo a cabra vadia, única testemunha do fato, o bate-boca teve um fundo de relâmpagos de curto-circuito e de trovões de orquestra. E, como se trata de um centauro humano, as duas metades chegaram ao mesmo tempo. E não houve nem boa-noite. Começaram brigando. Ou por outra: quem brigava, e escouceava, era o anti-Hélio. O Hélio, não.

     O Hélio legítimo, escocês e não falsificado, é o que há de mais doce, terno, compassivo, luminoso. Quantas vezes já o vi crispado de misericórdia como um santo. E não resisto à tentação de contar um dos seus gestos exemplares. Eis o caso: na véspera de partir para Lisboa, o Otto Lara Resende estava, na cozinha do Hélio, bebendo um copo de leite. Bebe o leite e, súbito, dá-lhe uma nostalgia total do Brasil. Começa, então, a chorar. Enquanto o anti-Hélio achava aquilo uma papagaiada, o verdadeiro Hélio chora também. Os idiotas da objetividade dirão que um chorava porque partia, e o outro chorava porque ficava.

     Não, não. O Hélio chorava de graça, chorava por nada. Minto. Ninguém chora por nada e repito: — chora-se por tudo. Devíamos chorar, em massa, em unanimidade, todos por todos. Mas o que importa notar é que o Hélio chora. Dito isto, voltemos ao terreno baldio. O anti-Hélio esbravejava: — “Você não pode jantar com a besta do Nelson! É um reaça! Acredita nos Dez Mandamentos! É da Igreja velha! A favor da Virgem Maria!”. E o verdadeiro Hélio: — “Mas é meu amigo! Gosto dele! Meu chapa!”. Dando rútilos coices, dizia o outro: — “É a favor dos 2 mil anos da Velha Igreja e contra os quinze minutos da Nova!”. Dada a exaltação de ânimos, o contra-regra providenciou mais uma meia dúzia de relâmpagos de curto-circuito e outra de trovões de orquestra.

     A guerra verbal durou até às quatro da manhã. O anti-Hélio batia na mesma tecla: — “Não podes jantar com a reação! Não podes jantar com a Direita!”. Às cinco horas da manhã, o legítimo Hélio capitulou: — “Está bem. Não janto. Mas preciso telefonar. Dou uma desculpa. Afinal, gosto do Nelson, que diabo!”. E assim se fez.

     O telefonema que me deu o Hélio, na véspera dos meus anos, foi uma página de Os Maias. Disse-me que nada mudara; era meu amigo como nunca; e foi mais taxativo: — “Autorizo você a dizer, no seu artigo, que você continua sendo um dos meus amigos fundamentais!”. Mas logo acrescentou: — “Só não posso jantar”. Pigarro e ajunta: — “Tenho que ir a Teresópolis!”. Eu imaginei o esforço físico que lhe custara fabricar tal viagem contra um pobre e indefeso aniversariante. Transido de remorso, disse ainda: — “Na semana que vem jantamos juntos. Sem falta. Faço questão”. E eu: — “Deus te abençoe, Hélio, Deus te abençoe”.

     Dia dos meus anos, todo mundo jantou comigo, menos o Hélio. Sua ausência estava sentada na minha alma. Mas, e o jantar posterior, combinado e datado por ele mesmo, com a ênfase dos compromissos fatais? Sim, o jantar mais esperado do que o Messias? Interditado pelo anti-Hélio, o meu amigo não me telefonou nem para perguntar: — “Morreste?”. Mas dizia eu que o nosso jantar não era uma questão de menu. Em verdade, seu telefonema foi um momento da consciência humana: enquanto meu obscurantismo não me proíbe de tê-lo por amigo, seu socialismo o impede de jantar comigo. E eu sou, segundo ele próprio o declara com a sua bela voz de barítono, um dos seus “amigos fundamentais”. Durante anos, os casais Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende não faltaram na minha mesa de aniversariante. Lembro-me de que, na véspera da morte de Getúlio (eu faço anos a 23 de agosto), abri a minha casa, de par em par, para recebê-los.

     Tudo por quê? Porque o anti-Hélio, o Hélio falsificado, não admite que eu insinue as minhas objeções ao d. Hélder e ao dr. Alceu. Tenho uma vizinha gorda que, nos grandes impasses, costuma dizer: — “Deixa pra lá, deixa pra lá”. E eu ia esquecer tudo, quando, domingo, li o artigo do meu amigo e irmão sobre Lúcio Cardoso. Ora, fui, se assim posso dizer, amigo de infância do grande romancista. E pensei, antes de começar a leitura: — “Ainda bem que o Hélio escreve sobre o Lúcio”. Ora, um artigo sobre Lúcio Cardoso teria de ser sobre Lúcio Cardoso. O diabo é que o testemunho sobre o ficcionista foi escrito pelos dois Hélios e, portanto, padece de contradições e equívocos horrendos.

     Começa assim: — “Lúcio Cardoso morreu no dia 23 de setembro e, na tarde desse mesmo dia, foi enterrado”. As primeiras linhas são do poeta. Em seguida, vem o político, o anti-Hélio: — “Nesse dia, intelectuais, artistas, professores, sacerdotes, mães de família participavam de um ato público contra a realização da VIII Conferência de Exércitos Americanos”. Só não entendi por que “mães de família” e não também “pais de família”. De resto, uma mãe de família, quando em ação política, não está ali em função de sua maternidade, mas por motivos outros, políticos, ideológicos etc. etc. “La Pasionaria” tinha uns oito filhos, mas seus partos nada tiveram a ver com o seu fervor socialista. Bem. Eis o que eu queria perguntar: — por que falar em passeata, por que, se Lúcio Cardoso era a antipasseata, era a negação da passeata? E, de repente, comecei a rilhar os dentes, no pavor de que me saísse um súbito e aviltado Lúcio Cardoso de passeata. Tempos atrás, escrevi que a única solidão da literatura brasileira era Guimarães Rosa. Não falei de outras e totais solidões: — de Lúcio Cardoso, Octavio de Faria etc. etc.

     Em dado momento, diz o artigo: “[...] capitalismo que amesquinha, degrada e coisifica o ser humano” e, portanto, “o amor humano”. O articulista diz isso fremente, com o seu tão conhecido gosto pelo patético. Realmente, o capitalismo não é flor que se cheire e muito menos o socialismo que as passeatas propõem. Amigos, às vezes um pequenino, um ínfimo, um individualíssimo episódio abre uma janela para o infinito. Vejam o nosso jantar. O capitalismo nunca me impediria de jantar com o Hélio. E o socialismo é tão assassino do amor que não o deixa comer um bife comigo, um doce e franciscano bife.

             [8/10/1968]

 

                                                     SAÚDE DENTÁRIA

     Cada um de nós é um subdesenvolvido furioso contra o subdesenvolvimento. Outro dia, fui testemunha auditiva e ocular de um episódio curiosíssimo. Era na rua Santa Luzia, esquina de México. E um idiota trepa num caixote de querosene Jacaré. Começa a fazer um comício. E que dizia ele? Falava do desenvolvimento. Imediatamente, juntou-se, ali, uma multidão de Fla-Flu.

     Berrava: — “Porque o desenvolvimento, e o subdesenvolvimento, e outra vez o desenvolvimento” etc. etc. Essa música verbal fascinava a platéia. Já um amigo meu, temperamento otimista, tem uma visão menos negra da nossa miséria. Esse meu amigo viu, na TV, o Festival da Canção. Não prestou atenção, nem à música, nem à letra, nem ao canto. Estava obcecado pela saúde dentária dos intérpretes. Gemia: — “Que dentes! Que dentes!”. E concluía que o nosso subdesenvolvimento é uma fraude. Se o brasileiro tem bons dentes — não é subdesenvolvido.

     Mas eu falava da nossa fúria contra o subdesenvolvimento. Vejam o nosso Nordeste. A quem deve d. Hélder o seu pão de cada dia? Deve-o à fome do Nordeste. E há outros, e outros, e outros que, como o bom arcebispo, vivem e prosperam graças, ainda e sempre, à fome do Nordeste. Há mais. D. Hélder deve cada frase e cada gesto de sua retórica à bendita miséria nordestina. (Quando lá se instala uma nova fábrica ele tem urticária de ódio impotente.)

     Portanto, os interesses criados exigem que o Nordeste permaneça como está, rigorosamente como está. É preciso que não seja alterada uma vírgula da mortalidade infantil. O que eu queria dizer é que, em tantos casos, a raiva contra o subdesenvolvimento é profissional. Uns morrem de fome; outros vivem dela, com generosa abundância.

     Todavia, existe uma paixão pior que o ódio do subdesenvolvido contra o subdesenvolvimento. Sim, há um outro tipo de ressentimento ainda mais amargo e ainda mais feroz. Refiro-me ao desenvolvido indignado contra o desenvolvimento. Aí está o exemplo dos Estados Unidos.

     Os Estados Unidos, além de outros méritos, puseram o homem na Lua. Devíamos dizer: — “Que país formidável!”. Outro dia, um nosso padre de passeata esbravejava no sermão: — “Paz é desenvolvimento”. O sacerdote fez uma pausa, parou o gesto, arquejante da própria veemência. Repetiu, abrindo os braços: — “Paz é desenvolvimento!”. Os ouvintes tremiam em cima dos sapatos. E poucos perceberam que aquilo era muito mais patético do que verdadeiro. O correto seria dizer, inversamente, que são incompatíveis a paz e o desenvolvimento .

     Falei dos Estados Unidos. Se o desenvolvimento fosse a paz, o americano seria um ser paradisíaco. Tem tudo. O seu país é o mais rico do mundo. O operário vive a vida que pediu a Deus. Tem muito mais direitos do que deveres. Na guerra, os metalúrgicos tiveram o sinistro descaro de fazer uma greve. Estavam comprometendo o esforço de guerra do país; e eles, que já ganhavam bastante, queriam mais uns tostões. Pergunto: — por que, nos Estados Unidos, é mais fácil arranjar uma girafa do que uma cozinheira? Porque, lá, a cozinheira é uma grã-fina. Bóia numa banheira de leite de cabra como uma Paulina Bonaparte. E o próprio desempregado tem uma pensão suntuária.

     Portanto, a ser verdade o que diz o padre de passeata, o americano devia estar dando graças a Deus de ser americano. Pelo contrário. Ainda me lembro daquele almoço de Porto Alegre. Estavam na mesa brasileiros e americanos. Um dos presentes era o nosso Sobral Pinto. E o grande Sobral começou a meter o pau nos Estados Unidos, a fazer-lhes restrições crudelíssimas. Aconteceu, então, esta coisa prodigiosa: — os americanos aderiram e malharam, também, a formidável nação. Daí a pouco, estava o Sobral a defender os Estados Unidos dos americanos.

     Eis o que eu queria dizer: — o desenvolvido é um ressentido contra o desenvolvimento. Ninguém agride tanto os Estados Unidos como os próprios Estados Unidos. Há pouco tempo, passou nos cinemas de lá, em circuito normal, e, em seguida, nas TVS, um filme sobre As atrocidades americanas no Vietnã. Ora, numa guerra, todos cometem atrocidades contra todos. Seria facílimo filmar as iniqüidades de parte a parte. Mas os Estados Unidos trataram de reunir uma antologia de cenas que os comprometessem ao infinito.

     E o sujeito que vê tal filme imagina que só os americanos matam, só os americanos ferem, só o americano dá tiro. Por sua vez, os jornais e as agências telegráficas tratam de vender, para o mundo, uma imagem aviltada de sua pátria. Qualquer radiofoto que possa ofender o país é distribuída para o mundo inteiro. As revistas norte-americanas encomendam, no estrangeiro, artigos contra os Estados Unidos.

     Certa vez, um dos nossos intelectuais de esquerda escreveu um artigo absolutamente irracional. Lá dizia ele, mais ou menos, o seguinte: — só o americano gosta de beber, de ganhar, de matar, de roubar etc. etc. Muito bem. E o intelectual patrício mandou traduzir o artigo e o remeteu a uma grande revista dos Estados Unidos. Pela volta do correio, recebeu o cheque suntuário. E, pouco depois, via, na tal revista, seu trabalho aberto, escandalosamente, em página dupla.

     Todavia, o maior enfermo do desenvolvimento americano é o estudante. O Estado lhe dá tudo para ser um gênio. É tratado a pires de leite como uma úlcera. E, no entanto, a juventude universitária é de um antiamericanismo total. Recebi, ontem, de Nova York, a carta de um amigo meu. Diz ele que, na Califórnia, os dois líderes estudantis mais agressivos são um peruano e um venezuelano. Os desenvolvidos deixam-se manipular pelos latino-americanos. Pergunta-se: — e por que esse peruano e esse venezuelano assumem tal poder de liderança? Porque odeiam os Estados Unidos. Por isso, tantos universitários os seguem, fascinados.

     Mais dramático é o nosso caso. O terrorismo instalou-se no Brasil. E os que o praticam são brasileiros que se dizem chineses. Por aí se vê que nos falta também, e por motivos diferentes, um mínimo de auto-estima. Cabe então a pergunta: — por que a China, ou Cuba, ou Rússia, e não o Brasil? Por que esses homicidas, incendiários e assaltantes precisam pôr um sotaque no próprio ódio? Imaginem que nem os chineses entendem os chineses. O que nós chamamos China são várias Chinas. Eis um povo que não tem um idioma único e nem, ao menos, o mesmo Deus. Por enquanto, o que dá aos chineses uma certa unidade é o terror. Sabemos que o medo junta e até quando? Há de chegar um dia em que, naquele território, aparecerão vários mao tsé-tungs, várias guardas vermelhas. E recomeçará o caos da China. Velha China, de Pearl Buck. Vi tantas vezes jovens brasileiros gritando: — “Vietnã, Vietnã, Vietnã!”. Isso nas barbas da rua do Ouvidor, da rua Sete, do largo da Carioca. E se confessavam, aos berros, chineses, ou vietcongs, ou cubanos. Certa vez, condenando meus artigos, telefonou-me uma aluna da PUC. Disse o diabo e concluía: — “Sou da linha chinesa”. Ninguém é brasileiro, nem quer fazer uma revolução brasileira. Simplesmente, o Brasil não existe. E vi, em outra ocasião, uma cena que não me canso de relembrar. Numa passeata, um jovem estudante carregava um cartaz: — “Muerte” a não sei o quê. O jovem queria matar em espanhol.

              [9/10/1968]

 

                                                       A PATUSCA

     Entro na redação e o Carlos Tavares avisa: — “Olha. O correspondente do Paris-Match telefonou”. Ora, sou, como se sabe, um pobre jornalista brasileiro, que tem de espremer o cérebro para subvencionar o sapato da mulher e o leite do caçula. Trabalho demais e, como se sabe, jamais o trabalho promoveu a ascensão social e econômica de ninguém. Para um brasileiro pobre e, além de pobre, medíocre, um telefonema do correspondente do Paris-Match abre uma janela para o infinito. Ainda perguntei ao Tavares: — “Tens certeza de que sou eu mesmo?”. O colega só faltou estender a mão sobre uma bíblia invisível e jurar.

     Portanto, era mesmo comigo. Sentei-me à mesa para escrever a minha confissão. Logo, porém, tornaram-se irrelevantes, secundários, os problemas sociais, humanos, políticos e estilísticos de minha coluna. Só o telefonema importava. O que me fascinava era a hipótese de uma entrevista. Imaginei-me falando para o mundo. Mas logo travei a minha fantasia. Uma entrevista parecia demais e, realmente, eu não merecia tanto.

     Fosse como fosse, o simples fato em si mesmo era uma honra. E, de repente, o Carlos Tavares me chama: — “Paris-Match, outra vez!”. Corro, com uma sufocante dispnéia emocional. Digo: — “Alô! Alô!”. Era, sim, o homem. E começou a falar. Mas ai, não se tratava de mim, nem de meus feitos, livros, peças e metáforas. Ele queria apenas informações sobre a “grã-fina gorda”. Por um momento, a minha perplexidade assumiu proporções trágicas. Ainda repeti: — “Grã-fina gorda?”.

     Custei a me lembrar que, dias antes, numa de minhas crônicas, falei, de passagem, numa “grã-fina” realmente gorda e realmente patusca como as viúvas machadianas. O Paris-Match queria saber se era fantasia ou fato. O curioso é que não era o primeiro que me interpelava a respeito. Inúmeras pessoas ligaram para mim, intrigadíssimas: — “Mas existe mesmo? Ou é piada?”. Muitos achavam que se tratava de uma gorda irreal, de pura e irresponsável ficção. Tive de explicar que não, que absolutamente. Existia, sim. Dei a minha palavra de honra.

     Ao correspondente do Paris-Match forneci informações confidenciais: — “É uma das amantes espirituais do Guevara”. Esse dado íntimo, glorioso e revolucionário, causou o melhor efeito. Mas a curiosidade do colega francês era insaciável. Queria saber mais, cada vez mais. Contei-lhe, então, o drama da ilustre senhora. Eis o caso: — era gorda sem o saber ou sem ligar à própria gordura. Até que, um dia, alguém lhe deu um retrato de Guevara, com aquele olhar de santo e aquela barba de fauno. Foi uma paixão fotográfica e à primeira vista.

     Só então baixou-lhe a súbita e inexorável consciência da própria gordura. Por uma dessas coincidências, que o diabo explica, começou a receber telefonemas anônimos, em que era chamada de “Abade da Brahma” para baixo. Passou a odiar as balanças, e explico: — a balança é o espelho das gorduchas. Ora, a classe média suporta a obesidade mais generosa. Não o grã-finismo. O grã-finismo é extremamente escasso de cadeiras, bustos. E pior: — o retrato de Guevara era mais inclemente do que uma balança. O simples olhar do Che a esmagava.

     Do outro lado da linha, o correspondente do Paris-Match dizia: — “Muito interessante, muito interessante!”. Continuei: — até que, certo dia, em conversa com um. padre de passeata, ela abre o coração. Dizem que grã-fina não chora, mas ela chorou: — “Eu me sinto uma baiaca!”. E, então, o sacerdote começa: — “Já experimentou passeata?”. A princípio, não entendeu. Com fina malícia, o outro insinua: — “Passeata é muito bom. Para emagrecer, não há como a passeata”. E o religioso citou o próprio exemplo: — “Estou com menos barriga”. Para convencê-la, girou como uma modelo profissional. Ou por sugestão, ou porque queria ser amável, ela admitiu: — “É mesmo! É mesmo!”. E disse mais, o padre, gravemente: — “A passeata faz bem à aerofagia. Melhor do que remédio da Flora Medicinal”.

     Desde então, a única grã-fina gorda da vida real não perde uma. Tem uma frota de intelectuais, de estudantes, que avisam: — “Hoje tem”. E lá vai ela, feliz. Quando houve a histórica dos “100 Mil”, foi a primeira a chegar e a última a sair. O padre da aerofagia deu-lhe instruções técnicas lapidares: — “Transpire, transpire”. A gorda teve um escrúpulo desculpável. Realmente, uma grã-fina vai do berço ao túmulo sem transpirar, jamais. O suor é coisa da classe média para baixo. Mas por amor de Guevara fez o sacrifício e transpirou como uma moradora do Encantado.

     O homem do Paris-Match quis saber se a Ana Karenina do retrato tinha perdido peso nas marchas das esquerdas. Disse-lhe: — “Até aqui uns oitocentos gramas”. Passara dos cem quilos para os 99. E o colega perguntou: — “E o retrato do Che? Como tem reagido?”. Respondo: — “Maravilhosamente”. Sim, o retrato passou a tratá-la com outro charme. Houve mesmo um dia em que teve a sensação de que Guevara piscou-lhe o olho. Radiante, a grã-fina promove o remédio entre as amigas: — “A sauna é uma ilusão. Só a passeata emagrece. E serve também para aerofagia”.

     O colega indaga: — “Ela participou também da passeata invisível?”. Preciso explicar. No seu último artigo, diz o meu doce amigo Hélio Pellegrino que houve uma passeata contra a reunião dos exércitos americanos. Acontece, porém, que ninguém viu tal passeata, e repito: — nenhuma pessoa, viva ou morta, enxergou tal passeata. A coisa deve ter ocorrido dentro da mais rigorosa invisibilidade. Quinhentos agentes do Dops não perceberam nada. Nem a reportagem, nem os transeuntes, ninguém. Mas a nossa gorducha não podia faltar, ainda que se tratasse de uma passeata espectral. Lá estava ela, a única. Pingava como um jogador de futebol depois de noventa minutos de pelada.

     Expliquei que os oitocentos gramas custaram um martírio inenarrável. O que isso significa de disciplina interior, de vontade atroz, de energia sobre-humana! Outra qualquer não teria problemas. Mas a nossa heroína é um dos maiores apetites terrenos. E o pior é que, tendo saído em “Os mais belos interiores do Brasil”, que Manchete publica, tem uma fome de favelada. Sim, deu-lhe Deus uma fome nada seletiva. É capaz de comer a empada que matou o guarda. Mas o amor abre, sobre nossas cabeças, a bica dos milagres. Uma noite, o retrato de Guevara parecia mais frio do que o costume. Sentindo-se esnobada, ela jurou que, daí por diante, só tomaria chá com torradas. Ora, Guevara não acreditou, e vamos e venhamos: — o sujeito só toma chá nos romances e nunca na vida real. Mas a nossa gorda estava mesmo disposta a cumprir o juramento. Foi a umas três festas e, na sua fidelidade ao Che, não tocou num mísero salgadinho.

     Na quarta festa, porém, foi demais. O seu apetite dava arrancos triunfais. Até que não se conteve. Passou uma bandeja. Apanhou um salgadinho e o enfiou no seio. Cinco minutos depois, outra bandeja. Outro salgadinho sumiu no decote. E assim, sucessivamente. Depois, ficou olhando a mesa. Deixou que todos se servissem. E, quando não havia mais ninguém, foi lá, apanhou uma lagosta e a introduziu pelo decote. (Dirá alguém que, a comportar tamanha lotação, seu busto é o próprio Seio de Abraão. E é.) Fez mais: — numa alucinação, foi à cozinha e arrebatou uma garrafinha de refrigerante. Ato contínuo, trancou-se no banheiro. E, lá dentro, foi comendo, comendo. Na hora de beber, quase engoliu a garrafinha com chapinha e tudo, como um elefante de circo.

           [11/10/1968]

 

                                                   OS MILITARES

     Um sarau de grã-finos é mais ressoante do que uma concha marinha. Por lá, passam todas as vozes do Brasil e do mundo. E nem pensem que exagero. Nem tanto, nem tanto. Tenho falado muito na única grã-fina gorda da vida real. Com uma fina sensibilidade histórica e um sutil faro profético, tem antecipações assustadoras. Quantas vezes não diz, hoje, a manchete de amanhã?

     Foi justamente a grã-fina gorda que me ligou, anteontem. Era um convite: — “Espero você, hoje. Mas olhe: — sem falta”. Explicou que não era festa: — “Uma reunião de amigos. Coisa íntima”. Eu queria dormir cedo, mas a grã-fina gorda é irresistível. Capitulei: — “Está bem. Vou”. E só no fim, baixando a voz, disse: — “Vem também um coronel, que é a maior cabeça do Exército”. E assim nos despedimos.

     À minha amiga vive no que a Manchete chama de um dos “Mais belos interiores do Brasil”. Nove, nove e pouco estou lá. Chego e vou perguntando pela “maior cabeça do Exército”. Ainda não chegara. Insisto: — “Vem mesmo ou vai dar o bolo?”. Minha anfitriã fazia tanto suspense, tanto mistério, que não me Contive: — “Será um Napoleão talvez?”. E ela: — “Quem sabe?”.

     Paramos por aí. Tenho uma vizinha e leitora que me atribui uma fértil imaginação. O fato é que comecei a tecer as minhas desvairadas fantasias. Quis acreditar que o nosso coronel, mais esperado do que um messias, tivesse mesmo uma dimensão napoleônica. A grã-fina gorda insinuara um “quem sabe?” altamente excitante. Logo percebi, porém, que, com exceção da dona da casa, todos, ali, eram de um antimilitarismo feroz. Um grã-fino pôs gelo no uísque e dizia: — “O lugar dos militares é no quartel!”.

     A grã-fina gorda insinuou a objeção: — “As Forças Armadas também são filhas de Deus!”. Protestos: — “Não, senhora! Absolutamente! O papel do Exército não é esse!”. E a palavra de ordem que se instalou, ali, e com a maior veemência, foi mais ou menos esta: — “Os militares não são filhos de Deus”. A dona da casa já implorava: — “Vamos mudar de assunto. O coronel deve estar chegando!”. Mas um dos convidados, obeso como um Nero de Cecil B. de Mille, encarniçou-se: — “Não, senhora. Desculpe, mas os militares precisam ouvir certas verdades!”. Outros concordaram: — “Isso mesmo! Perfeitamente! Onde é que nós estamos?”.

     Improvisou-se uma unanimidade, segundo a qual a função constitucional dos militares é lavar cavalos nos quartéis. Dizia-se: — “Os militares nunca fizeram nada pelo Brasil!”. Até que, de repente, entra o coronel. Vinha sem sabre, esporas e penacho, em trajes chatamente civis. Não lhe farei nenhuma descrição física e explico: — não quero que ninguém o identifique. Mas entra e logo percebi que tinha o gênio do cumprimento. Saiu apertando a mão dos homens e beijando a mão das senhoras. Já a grã-fina gorda, no seu fervor promocional, cochichava para um e outro: — “Uma cabeça! Uma cabeça!”.

     O curioso é que o colarinho e a gravata do coronel confundiram um pouco os presentes. Os civilistas ali presentes esperavam talvez ou que ele entrasse a cavalo ou, pelo menos, de esporas, sabre e penacho. E aquele coronel a pé, com um terno da Ducal e, além disso, de uma polidez quase humilde, foi uma decepção amarga. Outro dissabor foi quando o garçom ofereceu uísque e ele recusou: — queria água. “Água mineral. Sem gás.” E, risonhamente, explicou para os lados: — “Gosto de Lindóia, porque é água da bica”.

     Os presentes entenderam que a água mineral não era sede, mas pose. O militar fingia uma pureza de costumes ou, se assim posso dizer, uma espécie de castidade alcoólica. Houve um silêncio. E, de repente, de copo na mão, ergueu-se o Nero de Hollywood. Com a malignidade do pileque pergunta: — “Coronel, permite um aparte?”. Ninguém estava falando e ele pedia um aparte ao silêncio. O militar acabava de tomar a água da bica engarrafada: — “Pois não, pois não!”.

     O pau-d’água grã-fino insiste: — “Posso dizer tudo?”. E o outro: — “Tudo!”. Em pé, o Nero, no seu movimento de fluxo e refluxo, ameaçava entornar o copo no decote mais à mão. Pergunta: — “Quando é que vocês vão voltar à caserna? O d. Hélder já disse: — “Voltem às casernas!”. Pausa. O outro, risonho, ainda espera. E o grã-fino das bochechas e da papada: — “Pode-me dizer quando vocês militares voltam para a caserna?”.

     O coronel responde: — “Voltar, por quê? Se nós nunca saímos da caserna?”. Houve, ali, um espanto maravilhado. Aquilo enfureceu o Nero: — “E esse governo, coronel? O senhor nega que só há militares na minha frente! Só militares!”. E apontava os presentes como se todos ali estivessem de sabre, esporas e penacho. — “Hem, coronel? O senhor nega?” Disse, pousando, ao lado, o copo de água da bica: — “Nego”. Levantou-se: — “Posso falar?”.

     A grã-fina, excitadíssima, pedia silêncio: — “O coronel vai falar”. E, então, andando de um lado para outro, sem nenhum ardor polêmico, ele ia falando: — “Todo mundo manda no Brasil, todo mundo pia no Brasil, menos as Forças Armadas”. Num repelão, o bêbedo rugiu: — “E os tanques? E os tanques?”. O coronel deu a sua primeira gargalhada, como se o outro estivesse falando de tanques de lavar roupa. Explicou então que os facinorosos tanques têm quase a domesticidade dos cachorros velhos.

     Insistiu em que nunca, nunca, as Forças Armadas influíram tão pouco. Citou um exemplo concreto: — “A Arena. Que me diz o amigo? Eu sei que a Arena não é nada. Um sopro de velinha de aniversário basta para apagar a Arena. Ou não é? Meu amigo, quer fazer uma experiência? Vá à Câmara. Entre lá e, durante a sessão, dê o berro: — ‘Olha o rapa!’. Sabe que é que ia acontecer?”. Fez um suspense teatral. O Nero estava quase dormindo em pé.

     Desta feita, o coronel exaltou-se. Dava pulos: — “Vocês vão ver a Arena sair correndo, pular a janela e nunca mais aparecer”. Como que arrependido do exagero histriônico, e arque-jante da falsa cólera, completou mais contido: — “E nós acreditamos na Arena. As Forças Armadas acreditam na Arena. O governo acredita na Arena. A Arena é ouvida. Se ouvem a Arena, tudo é possível”. Respira fundo: — “E ninguém desconfia que não se faz o Brasil com Arenas”. Estava acabando: — “Saímos da caserna para derrubar o Jango. E, depois, voltamos e estamos encerrados lá como monges. Há um mosteiro em que os monges fazem voto de silêncio. Nós somos os monges do silêncio político”. Puxa o lenço e enxuga o suor da testa. Depois, sai apertando a mão dos homens e beijando a mão das senhoras. A grã-fina gorda foi levá-lo até à porta. O Nero já não tinha forças para falar. De olhos fechados continuava no seu fluxo e refluxo. Acabou vomitando no decote mais próximo.

             [14/10/1968]

 

                                                   SANGUE COMO GROSELHA

     Foi na paróquia de Navalmorales. Seguraram o padre: — “Estás preso, velhinho”. O ancião suspira: — “Seja o que Deus quiser”. Outro miliciano (eram milicianos) pergunta: — “Estás com medo, padre?”. Responde: — “Quero sofrer pelo Cristo”. Os milicianos riam, sem nenhuma maldade. Batiam nas costas do sacerdote: — “Pois morrerás como Cristo”. Em seguida, disseram: — “Tira a roupa, amigo. Ou tens vergonha?”. Olha as caras que o cercam: — “Tudo?”. E os outros: — “Tudo”.

     O padre vai-se despindo. E, de repente, pára. Pergunta, súplice: — “Basta?”. O chefe diz, e não isento de doçura: — “Eu disse tudo”. E tirou tudo. Alguém faz o comentário: — “Como tu és magro, hem, velho?”. De fato, o ancião era um esqueleto com um leve, diáfano revestimento de pele. Foi açoitado furiosamente. Perguntaram: — “Não choras, padre?”. Arquejou: — “Estou chorando”. As lágrimas caíam-lhe, de quatro em quatro.

     Por fim, os homens cansaram-se de bater. Resmungavam: — “O velho não grita, não geme”. Houve um momento em que um dos milicianos teve uma dúvida: — “Padre, vamos fazer um trato. Blasfemas e serás perdoado”. Responde: — “Sou eu quem os perdoa e abençoa!”. E repetiu: — “Quero sofrer como o Cristo”. Os milicianos se juntam, num canto, e discutem. Como matar o padre, eis a questão. Um deles voltou: — “Padre, vamos te crucificar”. Estende as duas mãos crispadas: — “Obrigado, obrigado”.

     Mas três ou quatro milicianos esbravejavam: — “Vamos acabar com isso!”. Realmente, fazer uma cruz dava trabalho. A maioria optou pelo fuzilamento: — “Fuzila-se e pronto!”. Puxaram o padre nu: — “Vamos te fuzilar. Anda”. O velho tinha um último pedido: — “Quero ser fuzilado de frente para vocês. Pelo amor de Deus. De frente para vocês”. E repetia: — “Quero morrer abençoando vocês”. Atracou-se a um miliciano, escorregou ao longo de seu corpo, abraçou-se às suas pernas; soluçava: — “De frente para vocês, de frente, de frente, de frente!”. Levou seus últimos cachações terrenos: — “Sai pra lá, velho!”.

     Ficou de frente. Quando viu os fuzis apontados, esganiçou-se: — “Eu perdôo vocês! Eu abençôo vocês! Eu amo vocês, amo, amo, amo”. Os milicianos atiraram. Um tiro na cara, outro no peito, outro no ventre, outro não sei onde. E ficou, lá, horas, varado de balas, aquele cadáver tão magro e tão nu.

     Aí está um episódio da Guerra Civil Espanhola. Iguais a esse, e piores do que esse, ainda mais hediondos, houve milhares, houve milhões. De parte a parte acontecia tudo. Matava-se, violava-se, enforcava-se, sangrava-se sem nenhum ódio e, até, sem nenhuma irritação. O padre de Navalmorales teria escapado se tivesse dito um palavrão contra Deus ou contra a Virgem Maria. E sairia com vida e ninguém lhe tocaria num fio de cabelo.

     Contei o episódio do sacerdote e proponho ao leitor: — façamos de conta que isso vai acontecer no Brasil dos nossos dias. Não é mais a Guerra Civil Espanhola, nem Espanha, nem Navalmorales. É a Guerra Civil Brasileira. A toda hora e em toda parte, brasileiros fazem apelos à Guerra Civil. Há muita gente interessada em que os brasileiros bebam o sangue uns dos outros. E vamos admitir que, tão solicitada, tão sonhada, a Guerra Civil venha a explodir no Brasil.

     Sei que estou, aqui, sugerindo uma fantasia cruel. Mas vamos lá. Tiremos de cena os milicianos. Somos agora nós, brasileiros, cariocas, paulistas, gaúchos, pernambucanos ou lá o que seja, quem prende um padre bem velhinho como o de Navalmorales. Vejo um nosso patrício rosnando: — “Velho, fica nu, velho!”. Algum leitor há de pedir: — “Licença para um aparte?”. Respondo: — “Pois não”. E o leitor, enfático: — “Mas nós somos brasileiros!”.

     Ledo engano. Ou, por outra: — nós somos brasileiros, sim, mas os espanhóis também eram espanhóis. E os americanos eram americanos, e os franceses eram franceses, e os chineses eram chineses. Mas aqui começa o pavoroso mistério da condição humana. Quando um povo chega à Guerra Civil ninguém é mais brasileiro, ninguém é mais francês, ninguém é mais americano ou cubano. Cada qual é o anti-homem, a antipessoa, o anticristo, o antitudo.

     Nós ouvimos falar em Guernica. Pelo amor de Deus, não sejamos cínicos. Na Guerra Civil, cada lado faz uma Guernica em cima do outro lado. São massas de canalhas contra massas de canalhas. Cada uma das nossas inocentes passeatas propõe Cuba, propõe Vietnã, propõe a matança espanhola, propõe a linha chinesa etc. etc. E isso sem nenhuma sutileza, da maneira mais límpida, líquida, taxativa. As passeatas picham os muros confessando suas intenções.

     Até há bem pouco, a história tinha-nos feito o favor de não testar a nossa crueldade. Eu próprio escrevi, certa vez, com certa humilhação de subdesenvolvido: — “Nunca tivemos um vampiro”. Mas vejo muita gente querendo beber sangue como groselha. E já o mito da nossa bondade começa a ruir. Em São Paulo, massacraram um oficial americano porque era americano. A vítima estava com o filho, um garotinho. O filho foi testemunha auditiva e ocular do fuzilamento do pai.

     E quem fez esse crime, de uma irracionalidade apavorante, não foi chinês, nem espanhol, nem tirolês; foi brasileiro. Portanto, convém desconfiar dos nossos bons sentimentos. Mas voltemos à história que o aparte do leitor interrompeu. O padre velhinho, de oitenta anos ou mais, está nu. A dez passos, ou quinze, estamos nós, de fuzil apontado. Vejam bem: — nós — brasileiros, torcedores do Flamengo, do Fluminense, do Botafogo, do Vasco — massacrando um velhinho, magro, santo e nu. Queremos sangue.

     O brasileiro tem suas trevas interiores. Convém não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro. Sim, ninguém sonha com as fúrias que estão por baixo das trevas. A partir do momento em que se instala o terrorismo no Brasil, tudo o mais é possível. E nós, brasileiros, estamos brincando com a nossa irracionalidade. Ainda domingo li um espantoso editorial sobre o assassinato do oficial americano. La está dito que foi obra da direita. Meu Deus, deixamos de raciocinar. As esquerdas levam anos promovendo, aos urros, o seu ódio aos Estados Unidos. E vem um jornal e diz que foi a direita a assassina. Ninguém entende mais nada e nem há nada para entender.

     Mas não vou acabar sem referir um outro episódio da Guerra Civil Espanhola. Prenderam uma freira que, por infelicidade, era mocinha. Se tivesse 85 anos, seria apenas fuzilada. Mas, repito, era mocinha. Um miliciano pergunta-lhe: — “Queres casar comigo?”. Não quis. E, então, ele tomou-lhe o rosário e enfiou-lhe no ouvido as contas do rosário. Em seguida, bateu-lhe na orelha com a mão aberta, até rebentar-lhe os tímpanos. Ato contínuo, fez o mesmo na outra orelha. E, por fim, a violou. Transfiram o mesmo fato para o Brasil dos nossos dias. As nossas classes dominantes estão encantadas com a letra de Vandré. Há grã-finas que a cantam, deliciadas, como se cada qual fosse a própria “Passionaria”. É uma pose, claro, mas uma pose pode comprometer ao infinito. Em caso de Guerra Civil, prendem a capa de Manchete. Um sujeito pergunta: — “Queres casar comigo?”. Não. O revolucionário faz o seguinte: — enfia-lhe pedrinhas no ouvido. Depois dá murros na orelha. Os tímpanos explodem. Faz o mesmo na outra orelha. E depois, depois. Paro aqui.

             [16/10/1968]

 

                                                     SEXO NOS BERÇÁRIOS

     E, de repente, vejo o Palhares, o canalha. O público que me acompanha, se é que me acompanha, já o conhece. Todavia, a coluna mais irrelevante tem sempre um ou outro leitor novo. E um leitor não iniciado é um inocente em Palhares. Portanto, convém descrever aqui, em rápidas pinceladas, a sua torva figura. Imaginem vocês que, certo dia, o Palhares cruza com a cunhada no corredor. Era uma menina de dezessete anos, quase noiva.

     Um homem de bem passa por uma cunhada e nada acontece. Há, de parte a parte, um “oba” imaculado e nada mais. E que fez o Palhares? (O novo leitor deve estar numa dessas curiosidades mortais.) Eis o fato: — o Palhares atraca a menina e atira-lhe um beijo ao pescoço. Era o canalha. E aí está, num simples lance, toda a sua biografia. O justo, o correto, o obrigatório é que o ato nefando fosse condenado por toda a comunidade. Afinal, temos ou não temos vida moral?

     Em vez de ser execrado, como um legítimo fauno de corredor, o Palhares foi invejado por gregos e troianos. Houve, certa vez, um batizado. E uma vizinha, abanando-se com a Revista do Rádio, sussurrou-lhe: — “O senhor é de morte, hem, seu Palhares?”. Ele baixou a vista, escarlate de modéstia. Por coincidência, dois ou três dias depois, o patrão aumentou-lhe o ordenado. E quando ele saía de casa, ou chegava a casa, era muito olhado pelas mocinhas. Infelizmente, estamos numa época em que as patifarias do sexo são promocionais.

     Devo acrescentar que, mais tarde, se tornou socialista dos mais ferrenhos. Não perde uma passeata e diz, para quem quiser ouvir: — “Sou da esquerda católica!”. Pois bem. E, súbito, encontro o canalha no meio da rua. Entre parênteses, o Palhares tem sempre uma pele de quem lavou o rosto há cinco minutos. Veio para mim, de braços abertos: — “Há quanto tempo, há quanto tempo!”. Houve o abraço interminável. O Palhares não me largava e confesso o meu constrangimento. Aquela efusão de canalha, ao ar livre, era altamente comprometedora.

     A despeito de todas as objeções éticas, porém, ele me inspira uma dessas curiosidades humilhantes. Pesa-me confessá-lo, mas a mim interessa tudo o que o Palhares diz e tudo o que o Palhares faz. Perguntei-lhe: — “Que é que tens feito?”. Imaginei que ele, horrendo sátiro, ia falar de mulheres e conquistas. Subitamente grave, falou: — “Que é que eu tenho feito?”. Pausa. Cara a cara comigo, diz: — “Tenho feito História!”.

     E, de repente, vi aquele sujeito, que “não respeitava nem as cunhadas”, deixar de ser o fauno de tapete. Assumia, agora, a forma, o gesto e as inflexões do socialista. Disse-me, baixo e convicto: — “Nelson, toma nota das minhas palavras”. E repetiu, como um iluminado: — “Escreve o que eu te digo”. Pausa. E fala: — “Aconteceu uma coisa inédita no Brasil. Vê se me entendes. É o seguinte: — o brasileiro deixou de ter medo das Forças Armadas. Repara, repara. Ninguém tem medo das Forças Armadas”. Como um possesso, agarrou-me pelos dois braços: — “E, se perdemos o medo das Forças Armadas, tudo é permitido e tudo vai acontecer!”. Ainda resmunguei: — “Estás sinistro, ó Palhares!”. E ele, baixo e ofegante: — “Estou sinistro e é para estar sinistro. Não esqueças: — tudo vai acontecer!”.

     Já o canalha se despedia: — “Tenho que ir. Uma cara me espera. Boa pra burro!”. Estendeu-me a mão. Digo-lhe: — “Bye, bye”. Dá três passos, pára e retrocede, aflito: — “Esquecia-me do principal. Espera um instantinho. Vou ali no jornaleiro e volto já”. Foi e voltou com uma revista: — “Toma isto aqui. Lê. É o Brasil”. Olho a revista e tomo um susto. Lá estava escrito: — Meu Bebê. Não entendo: — “Que piada é essa?”. Mas ele partia, célere, para o seu encontro amoroso. Na capa, estava uma cara, em cores, de um bebê lindo. E eu continuava a não perceber que relação podia ter eu com uma revista chamada Meu Bebê.

     Fosse como fosse, levei aquilo para casa. E, depois do jantar, fui apanhar a revista. Comecei com uma curiosidade muito rala e fui tomado, em seguida, de um interesse total. Sempre digo que a leitura é a arte da releitura. Depois de ler, fui reler. E o meu espanto era cada vez mais profundo.

     Antes, porém, de falar de Meu Bebê, quero dizer duas palavras. Há pouco tempo, um colégio grã-finíssimo, de São Paulo, convocou os pais. Esquecia-me de especificar que era um colégio de freiras pra frente. Simplesmente, a madre queria comunicar que a educação sexual, naquele educandário, ia começar no jardim-de-infância. E dizia a religiosa: — “O sexo não tem mistério. Nenhum, nenhum”. E, portanto, meninos e meninas a partir de quatro anos iam ser esclarecidos sobre a atividade sexual.

     Não houve espanto, absolutamente. Os pais e as mães ali presentes eram espíritos altamente compreensivos. A única dúvida era a seguinte: — como meninos e meninas, que não sabiam ler, nem escrever, nem assimilar, poderiam entender as aulas? E, então, risonhamente, a madre explicou: — “Vão aprender com figurinhas”.

     Os presentes se entreolharam, maravilhados. Um senhor disse e repetiu: — “Interessante, muito interessante!”. E, súbito, uma senhora ergueu-se. De pé, batia palmas. Logo outros, também de pé, aplaudiam, em delírio. A ninguém ocorreu que os garotinhos e as garotinhas iam aprender com figurinhas que a polícia toma de certos jornaleiros e ainda os processa. Estavam ali pais, avós, tias etc. etc. E todos, ovacionando como na ópera. A madre teve um sucesso de final de ato. Só faltou receber corbeilles etc. etc.

     Uma das raras colunas da imprensa brasileira e internacional que ainda se espantam é esta. Todas as outras são divinamente compreensivas. Mas, como ia dizendo: — esta coluna pôs a boca no mundo. Dar “educação sexual” a menininhas de quatro anos já me parecia um escândalo. E, ainda mais, com figurinhas obscenas, dessas que alguns jornaleiros vendem, às escondidas, aos sátiros gagás. Disse eu, na ocasião, que a “educação sexual” é uma das mais deslavadas imposturas do nosso tempo. Afirma o Raul Brandão, o pintor de igrejas e de grã-finas: — “Sexo e apenas sexo, é coisa para bezerros, bodes, preás e jumentos”. No homem, sexo é amor. Portanto, só se entenderia, não uma “educação sexual”, mas uma educação para o amor etc. etc.

     Hoje, porém, lendo Meu Bebê, verifico como foi ingênuo o meu espanto. Afinal, o tal colégio grã-fino de São Paulo, embora usando figurinhas obscenas, lidava com meninos e meninas de quatro anos. Já a revista que o Palhares me deu de presente voa mais alto. Meu Bebê, como o próprio título diz, trata de bebês. Vocês já imaginaram a educação sexual começando no berçário? Visualizem a cena: — a criança que não provou ainda sua primeira chupeta aprendendo coisas que Paulina Bonaparte ignorava. Se Messalina, aos setenta anos, lesse essa admirável revista de bebês, havia de fazer esta autocrítica sucinta e lapidar: — “Eu sou uma analfabeta”.

          [21/10/1968]

 

                                                     A GRANDE VIÚVA

     Antes de falar da sra. Jacqueline Onassis, quero falar da sra. Jacqueline Kennedy. E eis o que eu queria dizer: — a viúva de um pobre-diabo não tem maiores problemas. É fácil substituir um pobre-diabo por outro pobre-diabo. E logo as coisas se acomodam e deslizam num ritmo perfeito. Mas cabe a pergunta: — e se a mulher for uma Josefina? Ah, é muito difícil ser uma Josefina.

     Diz-se muito: — “Ninguém é insubstituível”. Eis aí uma bobagem repetida em todas as épocas e em todos os idiomas. Melhor seria dizer, inversamente, que todos são insubstituíveis. Se não todos, uns três ou quatro. Ainda há pouco toda a França ergueu-se contra De Gaulle. Os estudantes viraram os carros e arrancaram os paralelepípedos. Ao mesmo tempo, 12 milhões de operários entravam em greve.

     De Gaulle parecia historicamente morto. Tinha que ser removido como um cadáver político. Havia, porém, o problema desesperador: — um De Gaulle só pode ser substituído por outro De Gaulle. E, por todo um mês, houve uma busca histérica. Estudantes, intelectuais, operários, classe média, direita, esquerda, todos procuravam. E, por fim, o país parou diante da evidência humilhante: — a França não tinha outro De Gaulle. E todos se convenceram de que o “velho” é o único e último “grande homem” francês.

     E passo, finalmente, à sra. Jacqueline Kennedy, deixando para depois a sra. Jacqueline Onassis, Vamos voltar no tempo. Estamos no dia em que ela se tornou, de véu e grinalda, a esposa de John Fitzgerald Kennedy. Vejam o casal: — ela, “a mulher bonita”; ele, o “grande homem”. Ninguém percebeu que, antes da lua-de-mel, já os separavam incompatibilidades fatais. Nem a “mulher bonita” faz a felicidade do “grande homem”, nem o “grande homem” faz a felicidade da “mulher bonita”.

     Não sei se estou sendo claro. Mas o “grande homem” tem de ser o antiamoroso. Impossível ser, ao mesmo tempo, um formidável Napoleão e um formidável marido. Bonaparte foi amado por todo um povo, menos por sua mulher. E pior: — Josefina não traiu Napoleão por outro Napoleão. Escolheu um sujeito que não deixou um nome, uma cara, um feito, uma notícia. O amante ou, pluralizando, os amantes de Josefina sumiram até o último vestígio, como se jamais tivessem existido.

     Dirão vocês que, no caso de Jacqueline e de Kennedy, os dois pareciam felicíssimos. Mas hoje se sabe que tal felicidade foi uma pose ou, mais exatamente, uma pose fotográfica. Para efeitos políticos, eleitorais, seria insuportável um casal insatisfeito, amargo, neurótico, ressentido.

     Mas John nascera para ser presidente da República. Sim, para isso a família o criou. E o casamento foi marcado por essa fatalidade presidencial. Até que, um dia, tudo aconteceu, como num milagre. Jacqueline Kennedy viu-se mulher de uma casaca, de uma Casa Branca e da Guerra Fria etc. etc. E a vida em comum de marido e mulher não teve nada em comum. Ele cada vez mais “grande homem”. E Jacqueline apenas bonita e apenas trivial. Via-se cavar entre ela e o marido uma distância infinita, espectral. (E, por isso, Josefina traiu seu “grande homem” com o idiota desconhecido.)

     E, por fim, chegou o grande dia. Faltava a Kennedy, jovem demais, bonito demais, feliz demais, um toque, ou retoque, trágico. Abraão Lincoln só assumiu a sua verdadeira dimensão quando o mataram. Para o “grande homem” nada mais árido e, repito, nada mais humilhante do que a simples morte natural. E Jacqueline e Kennedy desceram no Texas, em Dallas, a homicida. O presidente agiu como se fosse cúmplice na própria morte. O automóvel tinha vidros à prova de bala. Se ele baixasse a capota, estaria vivo até hoje. Parte o carro presidencial. Os dois representam pela última vez o casal feliz. Estavam juntos e, entre eles, a distância que vai do “grande homem” para a pequena mulher.

     E, de repente, tão de repente, aconteceu tudo. A bala interrompeu o sorriso do presidente. Sim, a bala arrancou-lhe o queixo forte, crispado, vital. E foi tudo tão absurdo. Aquela cabeça ensangüentada que tombou no colo de Jacqueline. E depois ela estava de gatinhas na capota do automóvel. Ainda hoje, o que ninguém entende é que uma mulher, depois de viver esse momento, vá casar-se com Onassis, a quem os jornais chamam de o “grego de ouro”.

     O presidente chegou ao hospital tecnicamente morto. Era um cadáver que respirava. Normalmente uma viúva chora para quinze parentes, vizinhos, amigos. Mas o morto era o “grande homem”. Jacqueline estava diante de uma platéia mundial. Sim, uma platéia exigente e voraz que contava as suas lágrimas. Teria de ser, além da viúva, a atriz, ou mais atriz do que viúva. Sofria para De Gaulle e outros chefes de Estado; sofria para o próprio povo e para os outros povos. Tinha que chorar lágrimas jamais choradas. Deram-lhe sedativos, quando deviam injetar-lhe excitantes. E, então, o mundo reconheceria que jamais uma viuvez gritara tanto.

     Bem me lembro da indignação de um amigo meu quando, meses depois, Jacqueline pôs um maiô na sua viuvez. E o tempo foi passando. Os românticos esperavam que fosse fiel ao luto, eternamente. Mas as coisas aconteciam. A viuvez que põe um maiô está a dois passos do vestido de baile, do decote, do flerte. Como ria nas páginas das revistas européias. Ela se entregava, de novo, a todos os sonhos da carne e da alma.

     Mas dizia eu que Josefina traiu Napoleão, não com outro Napoleão, mas com o “idiota desconhecido”. E, quando se soube que Jacqueline gostava de Onassis, houve um muxoxo mundial. Até agora ninguém aceita que uma mulher substitua um Kennedy por um Onassis. Mas pergunto: — será Onassis um “idiota desconhecido”? Já sabemos que desconhecido não é. Será idiota? Duvido.

     Estou aqui imaginando o seu começo na Argentina. Vejo-o, nas ruas de Buenos Aires, catando tocos de cigarro no asfalto. Já aí sentimos o gênio e, de fato, só o gênio fundaria uma fortuna juntando guimbas. Tirava o fumo das guimbas e fazia cigarros inteiros. E não parou mais. Há também, na sua ascensão social e econômica, um casamento rico. Mas o seu império nasceu de uma colossal pirâmide de tocos, sim, de tocos de cigarros ainda úmidos da saliva anônima. “O homem mais rico do mundo”, dizem.

     Há quem diga: — “Foi casamento por dinheiro”. Outros protestam: — “Mas Jacqueline é rica”. Não importa. Ou por outra: — ninguém ama tanto o dinheiro como o rico, o milionário, o multimilionário. O pau-de-arara pode desprezar o dinheiro. Mas o Rockefeller, pai, faria uma guerra para embolsar mais uns trocados. O que eu queria dizer é que Onassis pode ser tudo, menos idiota. Imagino que sua carne tenha antigas tatuagens eróticas. Tatuagens de tempo em que era um vagabundo errante do cais. E, hoje, com sessenta e poucos, deve ter a experiência de voluptuosidades mortais. Mas se casa com Jacqueline porque é a viúva de John Kennedy. É a tragédia de Dallas que o fascina. Do contrário, não haveria casamento, não haveria nada. As belezas internacionais que passam pela sua vida levam um cachê, só um cachê.

     Seja como for, o casamento da ilha de Scorpios não deve espantar. A bela e banal senhora sempre foi muito mais Jacqueline Onassis do que Jacqueline Kennedy.

               [22/10/1968]

 

                                                       O DEUS FENECIDO

     Imaginem um palácio nas Laranjeiras. Nas pias, bicas de ouro. Se me disserem que as torneiras jorram, em vez da nossa irmã, a água, leite de cabra, eu acreditaria piamente. No jardim, até as samambaias têm consciência de classe. Quanto às paredes, vocês não fazem uma idéia. O sujeito quer um Rembrandt, e tem um Rembrandt. Um Goya, e tem um Goya. Um Murilo, e tem um Murilo.

     Em se tratando de Picasso, nem se fala. Há o Picasso da fase azul, roxa, amarela, verde etc. etc. É um Picasso diverso, numeroso ou, se me permitem a metáfora, um Picasso de porta de tinturaria. A visita olha para as telas famosas e sofre uma crudelíssima humilhação plástica. Há um ceguinho na rua do Ouvidor, que vive a tocar, ao violino, eternamente, o mesmo tango. E os que passam vão pingando, no pires, a moeda de sua caridade. Eis o que eu queria dizer: — o sujeito que entra em tal residência sente-se o próprio ceguinho da rua do Ouvidor.

     Pois bem. E o palácio, feérico como um velório, abriu, de par em par, as suas portas de bronze. Era uma festa. Todo o grã-finismo presente. E também presentes o corpo diplomático, os representantes dos três poderes. Do lado de fora, a plebe lambia com a vista as jóias, os manteaux, os sapatos de prata, os penteados de Josefina Bonaparte etc. etc.

     Há de perguntar quem me leia: — e por que esse bárbaro esplendor das Mil e uma noites? Ora, nenhuma família gasta tanto sem uma intenção precisa e, por vezes, inconfessável. Cabe então a pergunta: — e por que se fazia, no Brasil, uma festa assim delirante? Os donos da casa queriam talvez competir com o Patino?

     Agora vem a surpresa realmente deliciosa: — uma grande figura ia ser recebida. Mas quem? A rainha da Inglaterra, que, por sutilíssimas razões de Estado, antecipara a sua chegada? Não. Não se tratava de Sua Majestade. Para não tomar o tempo do leitor, encerro aqui o suspense — quem ia ser recebida era uma senhora comunista.

     Exatamente: — uma senhora comunista. Portanto, tratava-se de uma festa ideológica. Imagino que o leitor queira saber nome, endereço, filiação, estado civil e outros dados pessoais de “La Passionaria”. Vejamos, primeiro, o nome. Chamava-se... Bolas, não me lembro. Acho que é, se não me engano, Malvina, d. Malvina.

     Malvina, Malvina. Engano meu. Estou fazendo confusão com a linha de bonde Malvino Reis. Seria Mavílis? Também não. Mavílis é um clube de futebol do subúrbio. Mas como se chamava o diabo da mulher? Desculpem. “Mulher”, não. Dama, senhôra, com acento circunflexo.

     Vejam vocês. Por um desses lapsos funestos, não consigo me lembrar do nome. Sei do feitio do nariz, da cara, sei do sapato. E só não sei do nome. Malvina, não é. Vamos chamá-la de “La Passionaria”. Pois bem. E “La Passionaria” era a musa da festa. Os donos da casa avisavam aos recém-chegados: — “Vem Fulana! Vem Fulana!”. E os convidados iluminados. Entre parênteses, “La Passionaria” não foi a primeira a chegar, e longe disso. De caso pensado, para fazer suspense, custou a aparecer. Por fim, já se insinuava a hipótese de um bolo ignominioso. De repente, alguém veio correndo: — “Chegou, chegou!”. Houve um frêmito nos decotes.

     Os donos da casa se arremessaram. “La Passionaria” chegava, com o marido, um estrábico. Entre parênteses, esclareço que não tomo o estrabismo por defeito. Na minha infância conheci uma menina a quem chamavam de “caolha” e que foi uma das minhas primeiras namoradas por isso mesmo, por ser “caolha”. Dei a explicação e passo adiante. “La Passionaria” foi logo envolvida, quase raptada, pelos presentes. Lera um pouco de Marx e mais do que as orelhas de Marcuse. Ou por outra: — o marido, o estrábico, é que lera algum Marx e achava Marcuse “perfumaria”.

     Só com a presença da marxista se soube de tudo. A festa tinha, por um lado, a intenção de celebrar “La Passionaria” e, por outro lado, a subintenção de falar do Vandré. Exatamente: — do Vandré. E, de repente, a dona da casa anunciou uma surpresa. Todos se viraram na direção da surpresa. Era um quadro coberto por um pano vermelho. A princípio, imaginou-se que seria um novo Gauguin, ou Van Gogh, ou Rembrandt, para a coleção do palácio.

     Debaixo do quadro, estavam a dona da casa e “La Passionaria”. O anfitrião pedia: — “Atenção! Atenção!”. Silêncio. E, súbito, puxa a fitinha e descobre o quadro. Era um retrato, e sabem de quem? Do Vandré. Palmas de todos os lados. Houve “bravos”, “bravíssimos”; quase pediram “bis” como na ópera. O dono da casa berrava: — “Silêncio! Silêncio! Um momento!”.

     A comunista ia falar. Simplesmente, queria contar um episódio delicioso. Nas vésperas do Festival da Canção, saltara no Galeão uma dessas velhas internacionais indescritíveis. Se não me engano, espanhola. Era o que se pode chamar uma “solteirona de Garcia Lorca”. Pois a santa senhora comparecera ao Maracanãzinho para ouvir as canções do mundo. Até aí nada demais. E, de repente, a solteirona olha e vê o Vandré. Tremeu em cima dos sapatos: — “Pero es un santo! Un santo!”. Foi tal o deslumbramento, que a solteirona saiu dali carregada.

     Claro que “La Passionaria”, como boa materialista, acha que esse negócio de santo é uma piada. Mas ela, comunista, chamava a atenção dos presentes para a “cara profunda” do Vandré. E repetia “profunda, profunda”, como se uma cara pudesse ter a profundidade de um poço. Eis a sua opinião: — Vandré não é santo, mesmo porque um santo, qualquer santo, é um “bolha”. É, porém, o profeta, sim, o profeta da “Grande Revolução”. E dizia a oradora: — “Vejam! Vejam!”. Segundo ela, ninguém teria aquela cara de graça e à toa. Uma cara pode ser uma predestinação. E, então, houve um movimento unânime. Aquele sarau de grã-finos deixou de ser um sarau de grã-finos. Rompia dos decotes e dos black-ties uma nova fé, um novo fanatismo. Toda devoção sincera é patética, mesmo que se evole de um decote ou de um smoking. Aquilo era um Canudos grã-fino e o Vandré um Antônio Conselheiro sem barbas, sem camisola e sem alpercatas.

     De repente, alguém perguntou: — “E o retrato de Guevara?”. De fato, naquele mesmo lugar, misturado com as mulatas de Gauguin e os jóqueis de Degas, estava o retrato do guerrilheiro morto. E Vandré o substituíra de maneira mais ultrajante. Eis a verdade: — Guevara fora, sim, a mania dos grã-finos. Andou em todos “os mais belos interiores do Brasil” da Manchete. Mas começou o desgaste quase imperceptível. Hoje, é a fé perdida de um deus fenecido. A sua bela cara fora enxotada. Dizem que o retrato de Che, na sua impotência e humilhação, teve um acesso de asma.

            [31/10/1968]

 

                                                                                Nelson Rodrigues  

 

                      

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