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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CAÇA / Allison Brennan
A CAÇA / Allison Brennan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Não quero morrer.

Respirava em breves intervalos e com a boca aberta, tentando tragar o ar e soltá-lo entre violentas arcadas. Tragar. Soltar. Concentrar-se. Corre Miranda, corre! Mas em silêncio. Pé esquerdo, pé direito. Pé esquerdo. Não era esse o título de um desses livros infantis do doutor Seuss? Quase lhe escapou uma risada histérica, mas a reprimiu. Em silêncio. Sobretudo, respirar em silêncio.

Miranda fez uma careta ao ouvir o ruído a suas costas. Eram os soluços de sua amiga. Sharon, cale-se! Tinha vontade de gritar. A ouvirá. Nos Matará!

Correu mais rápido, apesar de que Sharon ia ficando cada vez mais atrasada. Começava a escurecer. Restariam umas duas horas, no máximo, para que caísse a noite.

Se não alcançassem o rio, ele as encontraria.

Não quero morrer. Sou muito jovem. Por favor, Meu Deus. Só tenho vinte e um anos. Não morrerei! Aqui, não, e não desta maneira.

A vista nublou com o suor que lhe banhava a testa e caía sobre os olhos. Não se atrevia a secar o rosto por medo de perder o equilíbrio naquele terreno rochoso. Os pés descalços lhe doíam com cada pegada, mas estavam tão frios que só as rochas mais agudas afetavam seu intumescimento. Olhe por onde pisa! Um só passo em falso e romperá a perna e ele a encontrará.

Um eco distante mas familiar chegou a seus ouvidos. Queria deter-se e escutar, mas não se atrevia a diminuir a marcha. Depois de percorrer outros trinta metros, soube dar um nome a aquele ruído.

Água! Água que fluía!

Tinha que ser o rio. Ela tinha prometido a Sharon, que o rio as conduziria à liberdade. Agradeceu em silencio ao professor Austin e a suas tediosas aulas de geologia. Sem elas, não teria sabido para onde correr, nem teria reconhecido os sinais que indicavam a proximidade de um rio. Depois de todos os quilômetros que ela e Sharon tinham percorrido, seguro que agora conseguiriam.

De repente, ouviu um chiado a suas costas. Miranda se deteve ante o grito de surpresa de Sharon, e se virou com o coração apertado. No chão estava sua amiga, estendida, meio oculta pela mata, soluçando de dor.

—Se levante! —urgiu-a Miranda, atendida pelo pânico.

—Não posso — soluçou Sharon, com a cabeça enterrada na folhagem.

—Por favor — implorou Miranda, que não queria voltar sobre seus passos. Olhou por cima do ombro para a liberdade. A água estava a pouca distância.

Voltou a olhar Sharon e mordeu os lábios. Ele seguia ali, em alguma parte. Se ela se detinha a ajudar sua amiga, mataria as duas.

Deu um passo para o rio. A culpa a deteve, sentiu que lhe ardia nas costas. Sabia que só podia salvar-se.

—Segue — disse Sharon.

Miranda mal ouviu essa única palavra. Abriu os olhos, atônita ante o que implicava.

—Não, sem você, não. Se levante!

Por um instante, Miranda não soube se Sharon não a tinha ouvido porque não queria ou pela distância. E então a garota loira foi se levantando lentamente até ficar de quatro. O olhar aterrorizado da Sharon cruzou com o de Miranda. Por favor, Sharon, por favor, pensava Miranda. Acaba-nos o tempo.

Sharon se agarrou em uma árvore pequena e ficou de pé.

— Ok — disse — Ok.

Miranda deixou escapar um suspiro de alívio e Sharon deu um tremulo passo adiante. Virou-se para o rio, para a liberdade.

Tchac-tchac!

O disparo deixou um eco no bosque. O bater de asas e os grasnidos dos pássaros espantados romperam o silêncio. Ante os olhos de Miranda, o peito da Sharon ficou aberto e esmigalhado. Um vermelho intenso, escurecido pelas sombras do crepúsculo, derramou-se sobre o branco sujo da blusa. Nesse momento entre a vida e a morte, Miranda viu como a expressão de surpresa da Sharon se convertia em felicidade. Em alívio.

A morte era preferível ao sofrimento.

Sharon! —Miranda tampou a boca, e na mão ficou o gosto e o aroma da terra podre. No ar flutuava o aroma acobreado do sangue. O peito se sacudiu em um soluço mudo ao ver que Sharon caía.

— Corre.

Aquela voz. Gelou-lhe o sangue ao ouvir essa voz grave, seca e sem inflexões. O mesmo pulso carente de emoções que tinha demonstrado quando as alimentava e lhes dava chicotadas, quando as submetia a seus toques ou quando as violava.

Pôs-se a tremer inclusive antes de reconhecer sua silhueta. Vestia uma calça de camuflagem e um casaco escuro. Estava de pé entre as árvores, o rosto semi-oculto pela boina e o céu que se obscurecia. A cem metros? A sessenta? Mais perto? Não conseguiria chegar. E morreria.

O grito que o homem lançou ressonou como um eco por toda a montanha. Deu um passo adiante e acomodou o rifle. Apoiou a culatra no ombro.

Miranda pôs-se a correr.

 

 

 

 

Doze anos mais tarde.

Nick Thomas observou a silhueta do miúdo corpo sob a lona de cor amarela luminosa. Apertou a ponte do nariz e tragou com tanta raiva que deixou um amargo sabor na boca. O fedor da morte estava no ambiente, e Nick se virou para afastar-se.

Ainda conservava na mente a imagem do corpo inerte e desconjuntado da garota de vinte anos, Rebecca Douglas, tal como a tinha encontrado só uma hora antes.

—Xerife?

Nick ergueu a vista e viu que se aproximava seu ajudante Lance Booker, um tipo bem plantado, um bom policial, embora ainda um pouco inexperiente. Parecia-se muito a ele fazia doze anos, quando o enviaram a inspecionar a cena de seu primeiro caso de assassinato.

—diga-me.

—Jim diz que na estrada há um tipo que diz ser do FBI. Quer que o deixem passar. Quincy Peterson.

Quinn. Nick levava anos sem vê-lo. Dez anos, para ser exatos. Mas mantinham uma correspondência por correio eletrônico desde que o tinham elegido xerife, fazia três anos. Depois do episódio das irmãs Croft.

Agora já eram sete as garotas mortas. Ao menos eram sete os casos que eles estavam cientes.

— Que o deixem passar.

—Sim, senhor. — Booker franziu o cenho, mas transmitiu a ordem por rádio. Nos assuntos que por regra geral caíam sob sua jurisdição, os agentes de polícia não olhavam com bons olhos as ingerências do exterior, e normalmente Nick reagia da mesma maneira. Não mencionou que a visita de Quinn se devia à chamada que ele mesmo tinha feito na semana anterior.

Nick se virou e se afastou do ajudante e da lona amarela, até o atalho onde tinham encontrado os últimos rastros de Rebecca Douglas. Agachou-se junto a um rastro de pegada inútil, um rastro disforme no lodo que começava a endurecer-se. Possivelmente fora a última pegada de Rebecca. Ou do assassino. Tinha chovido quase trinta centímetros nos últimos dias, dilúvio suficiente para saturar um terreno que acabava de recuperar-se de um inverno frio e chuvoso, típico de Montana. As nuvens se abriram essa manhã, e o céu era de um azul tão intenso e o ar tão fresco que Nick teria saído a desfrutar do belo dia se não o tivessem chamado à cena de um crime.

Fechou os olhos e aspirou o ar limpo e faiscante do vale de Gallatin. Nick adorava Montana, seus enormes espaços e a imponência de suas montanhas, suas corredeiras e seus verdes vales, seus amplos céus. As pessoas também eram boas, com os pés bem plantados na terra. Preocupavam-se com seus vizinhos e cuidavam dos seus. Ao receber a denúncia do desaparecimento de Rebecca Douglas, centenas de homens e mulheres, incluídos muitos companheiros da universidade onde tinha estudado, lançaram-se ao bosque a vasculhar cada palmo de terra entre Bozeman e Yellowstone.

Nick apertou a mandíbula com fúria reprimida. Eram pessoas boas, todos exceto um. Um que tinha matado Rebecca e a outras seis mulheres nos últimos quinze anos. E outras mulheres ainda figuravam como desaparecidas. Encontrariam seus corpos algum dia? Possivelmente o feroz clima de Montana ou os depredadores tinham acabado com seus restos? Nunca esqueceria o dia que encontraram os despojos de Penny Thompson; só um crânio e alguns ossos dispersos. Identificaram-na pela arcada dentária.

Nick olhou a seu redor. Para baixo cresciam sobre tudo os enormes pinheiros. Mais acima no monte, as árvores começavam a rarear. O caminho antigo por onde tinha vindo estava flanqueado por uma mata impenetrável e não figurava nos mapas. Provavelmente era um atalho antigamente utilizado para descer os troncos e, aparentemente, acabava aí, em uma clareira natural de uns poucos metros quadrados. Na borda daquela clareira jazia o corpo de Rebecca.

Marcariam a área com uma trama e procurariam qualquer pista que pudesse conduzi-los ao assassino. Entretanto, se fosse o mesmo safado de sempre, não encontrariam nada. Aquele indivíduo levava a cabo seus crimes com uma meticulosidade tão endemoninhadamente elaborada que nem sequer a única sobrevivente que tinha havido podia lhes dizer grande coisa. A derrota era um peso difícil de agüentar para Nick, mas não se dava por vencido.

Às vezes, odiava seu trabalho.

Virou-se ao ver que um veículo quatro por quatro se aproximava da clareira, lançando pedras e barro pelas quatro rodas. O sol se refletiu no pára-brisa e Nick protegeu os olhos para ver Quinn chegar.

O carro se deteve com uma freada atrás da caminhonete verde escura da polícia que conduzia Nick. Abriu-se a porta do condutor e Quincy Peterson desceu. Bateu a porta e se aproximou de Nick a grandes passadas. Quinn não tinha mudado muito da última vez que o tinha visto, e ainda se parecia mais a um jovem supermodelo que a um veterano com quinze anos no FBI. Nick se levantou e limpou o pó dos jeans.

—Rebecca Douglas? —Quinn assinalou o corpo coberto com um gesto da cabeça. Seu rosto era inexpressivo, mas em seus olhos ardia a mesma raiva e tristeza que sentia Nick.

—Assim é. Falta-nos a identificação definitiva, mas... —Não havia dúvidas de que era a mulher desaparecida. Nick olhou Quinn e franziu o cenho ao ver o curativo que seu amigo levava por cima da sobrancelha esquerda.

—O que é isso? Uma briga de bar? —inquiriu, em brincadeira.

Quinn tocou o curativo como se esquecesse de que o tinha posto.

— Os últimos dias foram muito movimentados —disse — . Contarei mais tarde. —Deu uma olhada ao redor—. Quando vai processar a cena?

—Queria que você a visse primeiro, mas tenho meus homens esperando na estrada.

Nick não sabia bem por que o federal o fazia sentir-se tão inferior. Possivelmente tivesse algo que ver com a sóbria segurança com que se desembrulhava, com sua habilidade para descartar o supérfluo e sempre chegar ao centro do assunto. Ou possivelmente fosse porque ele tinha vomitado até as tripas em sua primeira cena do crime, e Quincy Peterson não.

Ou também porque a mulher que Nick amava estava apaixonada por Quinn.

Fosse o que fosse, não havia ninguém em quem Nick pudesse confiar mais que no Agente Especial Quincy Peterson.

Quinn se agachou, vestiu as luvas de látex e levantou a lona. Apertou a mandíbula e, ao olhar o cadáver, uma veia lhe tremeu no pescoço.

Rebecca tinha sido uma garota bela. Agora tinha o comprido cabelo loiro emaranhado e endurecido pelo lodo seco. Aquela cara alegre, reproduzida em milhares de santinhos distribuídos pela cidade, tinha desaparecido. Estava torcida, e seu pobre corpo semeado de hematomas tinha esse aspecto grotesco que dá a morte. As chuvas dos últimos dias tinham limpado parte da sujeira de seu corpo nu, agora pálido e azulado.

Tinham-lhe cortado o pescoço, aberto em um talho profundo com uma faca muita afiada, embora mal ficasse rastros de sangue, já que a chuva os tinha lavado e filtrado no chão, junto com tudo o que pudesse usar-se como prova. O corpo mostrava sinais de abusos e torturas, adivinhava-se no rastro de feridas de todo tipo e de manchas violáceas. Tinha os seios esmagados por uma espécie de enorme parafuso. Aquelas marcas estranhas teriam passado desapercebidas para a maioria de olhos peritos, mas tanto Nick como Quinn tinham lido os informe do forense nos outros seis casos de mulheres assassinadas nesse bosque, e já estavam familiarizados com o modus operandi[1] do assassino.

Quinn retirou a lona para olhar as pernas e os pés da vítima, algo que Nick também tinha feito ao chegar à cena do crime. A perna esquerda estava torcida e quebrada. Tinha os pés cheios de abrasões e cortes profundos. De tanto correr descalça.

Era uma garota magra, e tão pálida e vazia. Em termos clínicos, sua pele gasta diria os forenses que Rebecca sangrou até a morte. Tinha morrido rapidamente. Ninguém podia sobreviver muito tempo com a carótida aberta de um talho. Era um triste consolo depois da semana de terror que tinha vivido a garota.

Quinn tampou o corpo.

—Chamaram o forense?

—Chegará ao meio-dia —disse Nick, assentindo com a cabeça—. Estava em meio da autópsia daquele escalador que encontramos nas montanhas mais ao norte faz uns dias.

—E quem encontrou o corpo?

—Três meninos... os irmãos McClain e Ryan Parker. Os Parker têm uma fazenda, a uns cinco ou seis quilômetros daqui. Os meninos saíram a cavalo a disparar com seus rifles calibre vinte e dois, coelhos, já sabe. —deu de ombros e acrescentou—: É sábado.

—Onde estão agora?

—Um ajudante do xerife os levou para casa. Disse-lhes que ficassem com os Parker e não se movessem até que eu chegasse.

Quinn assentiu, percorrendo com o olhar a cena que Nick tinha delimitado com a fita negra da polícia. Observou a clareira, o velho atalho, as árvores.

—Parece que chegou através desses arbustos, mais à frente —disse Nick, e assinalou o lugar—. Dei uma olhada mas ainda não desci pelo atalho.

—Se isso pode se chamar de atalho — disse Quinn, franzindo o cenho ante a espessura da vegetação—. Darei uma olhada rápido enquanto chama sua equipe. Quantos homens têm?

—Neste momento, tenho uma dúzia de meus homens, e virão outros mais tarde, além de um especialista em cenas de crime. Necessitarei voluntários, se quiser fazê-lo bem.

—De acordo. Quantos mais olhos, melhor, mas nada de espertinhos. Não queremos que ninguém se dedique a fazer porcarias.

Quinn pôs uma mão no ombro de Nick.

—Já sei que esperava apanhar o safado depois que encontraram Ellen e Elaine Croft. Sinto não ter vindo pessoalmente nessa ocasião, mas a agente Thorne é boa. Teria encontrado alguma coisa.

Nick estava de acordo, mas seguia sentindo a mesma impotência. O Açougueiro era o único safado que saiu ileso durante seu mandato como xerife.

—Passaram-se três malditos anos. Três anos da última vez que matou. E não tínhamos nada naquele momento, nem pistas, nem suspeitos.

—E há mais garotas desaparecidas. —Quinn não tinha por que recordar-lhe. As garotas desaparecidas apareciam a Nick em seus sonhos.

—Foi lento, mas estamos recolhendo provas —seguiu Quinn—. Temos cápsulas, balas, uma impressão digital parcial no medalhão de Elaine Croft. O agarraremos. —Quinn se virou e Nick o viu afastar-se pelo atalho. Falava com tanta segurança. Por que ele não teria que sentir-se igual?

Voltou a olhar pela última vez o corpo de Rebecca Douglas. Ao menos teria um enterro decente. Para sua família, seria um ponto final. Mas não para ele.

Pensou em Miranda.

Dirigiu-se a sua caminhonete. Já tinha ordenado que todos os agentes disponíveis se dirigissem aquele lugar. E então ouviu o ruído familiar do jipe ricocheteando nos buracos do acidentado caminho. Não tinha que olhar o veículo para saber quem se aproximava.

—Maldita seja.

O jipe vermelho se deteve bruscamente atrás do carro de aluguel do Peterson. Quase antes de deter-se, Miranda Moore desceu de um salto e, sem que o lodo fosse obstáculo para suas pesadas botas, aproximou-se a grandes passadas. O ajudante Booker foi para ela, mas Miranda lhe lançou um olhar furioso enquanto, sem deter-se, vestia um agasalho impermeável vermelho sobre sua camisa negra de flanela. Em qualquer outra situação, Nick teria sorrido ao ver como se afastava Booker.

Miranda fixou seus penetrantes olhos azuis nele.

O coração de Nick acelerou e sentiu um espasmo no estômago. Oxalá tivesse tido mais tempo para preparar-se para sua iminente chegada. Se soubesse que se dirigia para ali, teria se concentrado para o enfrentamento.

—Miranda — disse, ao ver que se aproximava—, eu...

—Maldito seja, Nick! —disse ela, lhe dando com o indicador no peito—. Maldita seja! —Nada intimidava Miranda. Embora fosse alta para ser mulher, ao menos um metro setenta e cinco, lhe passava quinze centímetros e pesava quarenta e cinco quilogramas mais. O normal seria que ele a intimidasse, que qualquer homem lhe desse medo depois do que tinha vivido mas, ao final, não tinha com o que surpreender-se. Miranda era uma sobrevivente nata. Não deixava que se notasse seu medo.

—Miranda, ia chamá-la. Não estava seguro de que fosse Rebecca. Não queria que tivesse que voltar a passar pelo mesmo.

Em seus olhos escuros viu que não acreditava.

—A merda com isso. A merda contigo! Prometeu-me que chamaria. —Passou a seu lado e se aproximou da lona. Ficou olhando o corpo coberto. Tinha os punhos fechados com força e até os ombros tremiam de tensão.

Nick queria detê-la, protegê-la de ter que ver outra garota morta. Sobre tudo queria protegê-la de si mesma.

E ela sempre tinha deixado claro que não queria o amparo de Nick.

Miranda fez um esforço por controlar sua ira. Não deveria haver gritado com Nick, mas, porra! Ele tinha prometido. Fazia sete dias que procuravam Rebecca, enquanto os pesadelos a impediam de dormir as poucas horas de sono que se concedia. Nick lhe tinha prometido que seria a primeira saber quando a encontrassem.

Nem ela nem Nick confiavam em encontrar Rebecca com vida.

Ficou olhando a lona amarela em meio dos tons marrons da terra e respirou fundo, com a garganta avivada pela raiva e um medo frio como o gelo. Tinha os punhos tão apertados que as unhas chegaram a fincar-se nas palmas das mãos. Sabia que era Rebecca Douglas, mas tinha que ver com seus próprios olhos, tinha que obrigar-se a ver a última vítima do Açougueiro. Para fazer-se mais forte, para ter valor.

Para a vingança.

Embainhou seus longos dedos nas luvas de látex, ajoelhou-se junto à mulher morta e tocou a beira da lona.

—Rebecca — disse, com um sussurro de voz—. Não está sozinha. Prometo-lhe isso, encontrarei-o. Pagará pelo que te fez.

Tragou saliva, vacilou um momento e depois retirou a lona para ver a garota em cuja busca tinha investido vinte horas ao dia durante a última semana.

A princípio, Miranda não viu a cara torcida, o pescoço cortado ou as múltiplas feridas lavadas pela chuva. A imagem da garota de vinte anos na lembrança do Miranda era bela, como o tinha sido quando estava viva.

Cândi, sua melhor amiga, dizia que Rebecca tinha uma risada contagiosa. Preocupava-se com as pessoas que não tinham nada e, uma noite por semana, acudia como voluntária para ler aos doentes no hospital do Deaconess, conforme tinha informado seu tutor na universidade, Rum Owens. Segundo Greg Marsh, seu professor de biologia, Rebecca era uma estudante com excelentes notas em todas as disciplinas.

Rebecca não era uma pessoa perfeita. Mas durante o tempo que durou seu desaparecimento ninguém tinha falado das histórias menos agradáveis.

E ninguém as repetiria agora que tinha morrido.

Enquanto a olhava, a imagem da Rebecca que tinha guardado tão perto de seu coração durante as horas de busca foi se transformando ante seus olhos até ficar convertida em um corpo desconjuntado.

—É livre —disse —. Por fim livre.

Sharon, sinto tanto.

—Agora ninguém pode te fazer mal.

Inclinou-se e lhe tocou o cabelo, afastou uma mecha a um lado e lhe segurou a face na terrina da mão.

Conserva a calma.

Repetiu seu mantra. Quantas vezes teria que passar pelo mesmo? A quantas garotas teriam que enterrar? Tinha acreditado que com o tempo seria mais fácil. Mas se não conseguia conter suas emoções em um reduto fechado e protegido, temia que os intermináveis êxitos do Açougueiro e sua incapacidade para detê-lo acabariam lhe pesando até afundá-la.

Muito a seu pesar, Miranda voltou a lhe cobrir o rosto com a lona. O gesto de cobrir o corpo recordou às outras garotas que tinham encontrado. Recordou Sharon.

A manhã em que Miranda os conduziu até o corpo de Sharon era tão fria que ela não deixava de tiritar sob a meia dúzia de capas que levava postas. Quis voltar o dia depois de ser resgatada, mas não lhe permitiram sair do hospital. Ao tentar caminhar sem ajuda, seus pés feridos lhe falharam.

Estava muito atordoada para chorar, muito cansada para discutir. Fez um mapa do lugar recordando tudo o que pôde, mas a equipe de resgate não conseguiu encontrar Sharon.

Miranda não suportava a idéia de que o corpo de sua amiga ficasse exposto à intempérie uma noite mais. A mercê de ursos pardos, pumas e abutres. Por isso, à manhã seguinte, a pesar da dor dos pés, conduziu à equipe de resgate e à polícia ao lugar onde jazia Sharon. Tinha que vê-la pela última vez.

Apesar de que ainda estivesse imersa em um estado de choque. Foi o que disse o médico. Mas caminhava com ajuda. Sabia onde tinha caído Sharon, jamais esqueceria. Conduziu-os até o lugar, e aí a encontraram. Tal como tinha caído abatida pelo disparo do assassino.

O silêncio enchia o ar, como se as aves e outros animais chorassem a perda junto aos seres humanos. Nem sequer soprava o vento da primavera. Nenhuma só folha do bosque se moveu enquanto outros compreendiam por fim o que tinham vivido Miranda e Sharon.

O repentino grasnido de uma águia rasgou o silêncio e se levantou uma suave rajada de vento.

O paramédico cobriu o corpo de Sharon com uma lona de cor verde gritante enquanto a equipe do xerife começava a busca de pistas. Miranda não podia afastar a vista da lona que cobria Sharon, morta, reduzida a um vulto sob um plástico. Era berrante e desumano!

Só então Miranda se dobrou e chorado amargamente.

Um agente do FBI a acompanhou os cinco quilômetros de volta ao caminho. Chamava-se Quincy Peterson.

 

Quando viu Miranda, Quinn parou em seco. Sentiu que lhe faltava o fôlego e deu um passo ao lado para ocultar-se atrás de um denso grupo de árvores.

Tinham passado dez anos da última vez que a viu, mas o impacto era o mesmo. Primeiro, uma mescla de assombro e respeito. Ainda não tinha conhecido nenhuma mulher que fosse mais ousada e decidida que Miranda. Também experimentava um sentimento de amor e orgulho, seguido rapidamente de raiva e frustração, fenômenos muito entrelaçados. Não podia fechar o fluxo de suas emoções como se dirigisse um grifo. Como tinha podido Miranda desprender-se dele tão facilmente? Como tinha abandonado a relação com ele sem sequer lhe dar uma oportunidade de explicar-se?

Quinn ainda albergava a esperança de que ela deixaria de lado sua cega obsessão pelo Açougueiro e que voltaria. Entretanto, essa esperança ia minguando com o passar do tempo. Agora temia que Miranda acabasse matando-se por não haver-se ocupado de suas próprias necessidades.

Miranda estava de costas a Nick. Só Quinn via a dor refletida em suas feições.

Enquanto a olhava, ela fechou os olhos e sacudiu a cabeça, como querendo afastar um pesadelo. Ou uma lembrança. Levantou-se, secou os olhos com o antebraço e se aproximou dos pés da garota morta. ficou olhando o corpo coberto de Rebecca um comprido momento antes de agachar-se e levantar o borda da lona.

Não precisava que Quinn estivesse ao seu lado para saber o que olhava. Os pés e as pernas da Rebecca salpicada de barro por causa da corrida. A perna quebrada. Os sinais de sua fuga.

—Quanto tempo?

Inclusive de seu ponto de observação a quinze metros, Quinn percebeu a raiva e a dor em sua voz. Miranda se virou e olhou Nick com raiva. Acentuou-lhe a rigidez da mandíbula enquanto fazia o possível por controlar sua dor.

Como sempre, tinha que controlar-se. Era um milagre que não tivesse sofrido um ataque de nervos, tal era o peso que levava sobre os ombros.

—Umas oito ou dez horas?

Quinn não ouviu a resposta de Nick, mas o cálculo de Miranda lhe pareceu correto.

—Porra, Nick! Teve-a oito dias em seu poder. Quase conseguiu escapar. Estamos a uns poucos quilômetros da estrada. A seis quilômetros, e rompeu a perna. E ele, ele... —balbuciou, e voltou a virar-se.

Vendo o esforço que fazia por controlar-se, Quinn se sentiu incômodo, como um olheiro. Ansiava aproximar-se dela, agarrá-la em seus braços como tinha feito no passado, só estreitá-la. Não lhe havia dito que tudo iria bem. Nunca lhe disse que a dor seria suportável. Quinn simplesmente esteve a seu lado. E, durante dois anos, só o fato de estar a seu lado ajudou Miranda a recuperar sua vitalidade e sua força. Ele sabia como uma certeza.

Mas não tinha sido suficiente.

—O doutor Abrams está a caminho —disse Nick—. Ele poderá nos dizer algo mais.

—Tinha me prometido isso, Nick. —Miranda tirou as luvas de látex e as meteu em um bolso. Apertou a ponta do nariz e se aproximou do xerife.

Quinn não podia deixar de saudar Miranda, mas o encontro lhe provocava certo desassossego.

—Não tente me proteger, Nick —disse Miranda, enquanto Quinn se aproximava por trás.

—Não culpe Nick, Miranda. Fui eu quem disse que não a chamasse.

Miranda ouviu aquela voz familiar: grave, cálida e suave como a manteiga derretida.

O ritmo do coração se acelerou o dobro, e o triplo. Por um momento, um momento que foi muito comprido, foi incapaz de dizer uma palavra. Tinha sonhado com essa voz e com seu dono. Virou-se bruscamente.

Quinn Peterson.

Por um instante, apenas um segundo, Miranda esqueceu tudo o que tinha acontecido entre eles dez anos antes, e sentiu seus braços que a estreitavam, as palavras serenas que lhe sussurrava ao ouvido.

A única vez que havia se sentido verdadeiramente segura do pesadelo da perseguição foi em seus braços.

Quinn tinha mudado e, ainda assim, seguia sendo o mesmo. Algumas mechas cinza apareciam em seu cabelo loiro. Caía-lhe um pouco muito comprido na frente, o justo para cobrir um curativo que levava por cima do olho. Seus olhos escuros seguiam vendo tudo, mas agora de seus cantos nasciam umas rugas finas. Fisicamente ainda estava em forma, embora ia vestido com um traje muito elegante para os bosques de Montana. Miranda ainda recordava o sabor de seus lábios, embora tivessem passado dez anos da última vez.

Não suportava todas essas lembranças que lhe vieram em cima e, ainda detestava mais que Quinn Peterson lhe recordasse suas piores fraquezas, justo quando mais necessitava sua força e sua coragem.

— Como se atreveu! —exclamou, irritada consigo mesma pelo tremor em sua voz.

—Já sei que se diverte torturando a si mesma, Miranda, mas não queria que o visse. — Quinn se aproximou uns poucos centímetros. Ela resistiu ao impulso de retroceder. Esta vez não se tornaria atrás.

Um nervo na mandíbula de Quinn tremeu. Miranda recordava bem esse sinal de sua irritação. Ou preocupação.

—O que faz você aqui? —Agora sua voz era mais forte, mas não confiava em si mesmo para seguir.

—Eu o chamei — disse Nick.

Ela se virou para olhar a seu melhor amigo.

—Você?

Nick se endireitou para mostrar seu desconforto.

-- Mantive Quinn informado desde que fui nomeado xerife —disse Nick—. Necessito dele e de seus recursos.

__Trabalhou com ele durante...? —Miranda pensou no tempo que tinha passado desde que Nick fora eleito xerife e lançou as mãos ao ar—. Três anos! E nunca me disse nada? Como pôde? Acreditava que se alguém me entendia, era você.

—Miranda, eu quero encontrar esse maldito tanto quanto você.

Quinn os interrompeu.

—Vim procurar um assassino. Não tenho por que dizer que o FBI conta com mais recursos que o departamento de Nick. E se tiver algum problema com isso, pode partir.

Aquele olhar escuro e intenso de Quinn abriu uma brecha em suas defesas com a precisão de um laser. Ela se sentiu incômoda, esquadrinhada. Como se fizessem inventário de seu medo, de suas inseguranças. Esperando que se derrubasse, que viesse abaixo. Mas ela não o deixaria ver seus pontos débeis. Nem que a visse como se derrubava. Tinha ido a ele muitas vezes no passado, procurando forças e apoio. Tinha chorado em seus braços e lhe tinha contado tudo o que pensava, sentia e acreditava.

O tinha usado tudo isso contra ela quando a tinham rechaçado na Academia.

Teria tempo para derrubar-se mais adiante. Quando estivesse a sós.

—Conheço esta área melhor que qualquer ajudante do departamento —disse Miranda, e voltou a lhe tremer a voz, apesar de seus esforços por controlar seu jeito e suas emoções. Com um olhar profundo como uma sonda, Quinn a tinha deixado reduzida a um estado de nervos.

Voltou sua atenção para Nick e recuperou a compostura.

—Terá que começar a procurar provas e a pedir voluntários. Necessita-me, e para mim é uma necessidade estar aqui. Tenho que olhar. Fixarei-me em coisas que outros não vêem. Poderei...

—Basta. —Quinn fechou a escassa distância entre os dois e lhe pôs uma mão no ombro. Ela a olhou, sem saber se o afastava-se com um tapa ou perdia-se em seus braços.

Olhou-o com raiva e ele deixou cair a mão.

—Tem que dormir —seguiu, com voz mais tranqüila—. Passou a semana procurando Rebecca. Quantas horas deu a si mesma? Está vivendo a base de café e comida sem qualidade. Vá para casa.

— Não! Não! —Miranda se afastou para que ele não a visse, temendo que as lágrimas que tinha reprimido durante toda a manhã agora brotassem sem remédio.

Agora, não. Diante de Quinn, não.

—Miranda, vou chamar uma equipe —disse Nick—. Não teremos acabado até dentro de duas horas. O doutor Abrams tem que certificar a morte. Volta mais tarde.

—Nick, não acredito que... —começou a dizer Quinn, mas Miranda o interrompeu.

—Direi aos voluntários. Duas horas, e voltarei. —Não quis olhar Quinn, não nesse momento, porque seus sentimentos eram muito transparentes.

Passou junto a Nick e lhe tocou o braço.

—Estou bem. —Não sabia se o dizia para tranqüilizar a ele, a si mesma ou a Quinn, mas pronunciar essa frase lhe permitiu ocultar o medo que tinha aflorado. A presença de Quinn a tinha perturbado quase tanto como o último crime do Açougueiro.

Quinn a viu afastar-se em seu jipe. Tinha-a dirigido mal. Antes não era assim. Antes que ela decidisse converter-se em agente do FBI acreditando que isso a ajudaria solucionar seus problemas, Quinn sabia exatamente o que lhe dizer, quando tocá-la, quando lhe dar espaço.

Entretanto, assim que chegou a Quântico, sua obsessão pelo Açougueiro se apoderou de sua vida. Ou possivelmente sempre tinha estado ali e Quinn simplesmente não se deu conta.

Por que não ela se dava conta?

—Por que fez isso? —perguntou Quinn a Nick—. Não está em condições de participar da busca de provas. Notou quando olhava o corpo? Estava a ponto de perder os nervos.

Revolviam-lhe as tripas ver a dor no rosto belo e gasto de Miranda. Como se estivesse vivendo em carne própria os momentos finais de Rebecca Douglas.

—Aí é onde se engana, Quinn. Miranda é mais forte do que acredita.

—Está se castigando por ter sobrevivido.

—Disso não estou tão seguro... —começou a dizer Nick.

—Eu sim. Miranda é o típico caso do sobrevivente com sentimento de culpa, e se agravou com o tempo. Cada vez que seqüestram outra garota, ela toma sua morte como se fosse culpa dela.

—Sei que tomou como algo pessoal, mas é uma ajuda para a equipe.

—Miranda não conhece o significado da palavra «equipe».

—Você não passou os últimos dez anos trabalhando com ela. Não virá abaixo. É uma mulher forte.

—Não deixará que sua relação pessoal com ela te tire o bom senso? —disse Quinn. Falava como se estivesse ciumento. Porra, a verdade é que estava ciumento. Inteirar-se da relação entre Nick e Miranda, doeu-lhe mais do que estava disposto a reconhecer. Depois de tantos anos separados, Quinn teria que havê-lo superado. Entretanto, desde sua ruptura com Miranda, as poucas relações que tinha cercado eram aventuras superficiais e breves. No coração de Quinn, Miranda sempre seria a única mulher.

Nick o olhou de esguelha.

—Não sabe do que está falando. —O xerife se dirigiu para sua caminhonete.

—Não se faça de esquivo comigo, Nick. Esteve muito tempo com Miranda como para não se dar conta. Está jogando contigo. É algo que faz muito bem.

Nick se voltou para olhar Quinn.

—Miranda e eu nos deixamos já faz dois anos.

Pela cara de Nick, Quinn se deu conta de que não estava nada contente com o assunto, e lhe pareceu que sua voz soava quase acusatória. Quinn estava de uma vez surpreso e agradado de saber que Nick e Miranda já não eram namorados. E depois se zangou consigo mesmo por preocupar-se. Bem visto, Miranda jamais cercaria uma relação com ele.

—Não tinha me contado isso.

—Por que teria que fazê-lo? Voltaria com ela sem duvidar um instante. E tampouco neste momento existe essa possibilidade —disse, e ficou olhando o caminho por onde partiu Miranda—. Estando você na cidade, não acredito.

—Miranda me odeia. —Ódio possivelmente fosse uma palavra muito suave. Abominar ou desprezar seriam palavras mais adequadas.

—Deveria te odiar —disse Nick, olhando-o de esguelha—. Se me tivesse expulsado da Academia do FBI um dia antes de me graduar, também o odiaria. Mas ela não o odeia.

Quinn não estava seguro disso, mas guardou silêncio.

— Se o odiasse —adicionou Nick—, já teria casado comigo.

 

Miranda cometeu todas as infrações de tráfico possíveis no caminho de volta à Universidade de Montana State, em Bozeman. Detestava a idéia de ter que contar aos voluntários que tinham encontrado Rebecca morta.

Nick tinha razão. Necessitavam os recursos do FBI se queriam lidar com o Açougueiro. Entretanto, de todos os agentes do FBI ao longo do amplo país, por que tinha que ser precisamente Quinn Peterson?

Miranda acreditava ter superado sua traição, um episódio ocorrido fazia muitos anos. Agora lhe agradava seu trabalho, tinha uma casa bonita, uma família que a queria e amigos fiéis.

E então viu ele. Em seu ser mais íntimo, em alguma recôndita dobra de seu coração, que ela acreditava endurecido fazia tempo contra o amor, soube que ainda tinha saudades.

Por que não teria que comportar-se ela com a mesma distância e frieza que ele? Estava decidida a demonstrar que não se importava o mínimo que tivesse arruinado sua carreira, além de lhe romper o coração.

Entrou em um dos muitos estacionamentos do campus. Aferrava-se ao volante com tanta força que os nódulos tinham perdido toda sua cor pelo esforço. Com um gesto brusco, deixou a mudança de marchas em ponto morto e apagou o motor. Quis voltar a relegar Quinn ao nicho mental onde tinha permanecido encerrado todos esses anos, mas ele resistia.

Respirou fundo e observou um grupo de garotas que se dirigia ao quartel geral dos serviços de busca no edifício da Associação de Estudantes. Seguia-as um par de garotas. E logo um grupo de professores.

Ninguém ia sozinho. Ninguém se atrevia agora que lhes tinha advertido sobre o Açougueiro. Entretanto, quanto tempo passaria antes que voltassem a baixar a guarda? Um mês? Dois? Um ano? Miranda não o esquecia nunca. O Açougueiro vivia com ela cada minuto de cada dia, empenhado em persegui-la e atormentá-la.

O reitor tinha autorizado o uso de uma das grandes salas da Associação Estudantil para que os voluntários das equipes de busca montassem a coordenação das atividades. Embora Miranda trabalhasse para o departamento do xerife na pequena unidade de Busca e Resgate, não tinham espaço suficiente para instalar o pessoal dedicado a chamar por telefone, a fotocopiar santinhos e distribuir mapas. Como tinha ocorrido durante o desaparecimento das outras estudantes, a universidade lhes proporcionava o espaço que necessitavam, algo com que ajudar. Nos momentos trágicos, os alunos e os professores estavam unidos.

Por que era necessária a morte para que as pessoas entendessem o valor da vida?

Tinham passado três anos do último assassinato. Do último assassinato conhecido.

Miranda não podia esquecer às outras garotas desaparecidas. Nessas datas, um ano antes, tinha sido Corinne Atwell. Ninguém havia tornado a vê-la desde que seu carro fora encontrado em uma sarjeta na Rota 191, que dava à Auto estrada de Gallatin. Era uma vítima do Açougueiro? Ou de outro assassino? Ou possivelmente tinha fugido. A Miranda atormentava a possibilidade muito real de que Corinne tivesse sido uma mais das vítimas do Açougueiro e que agora seu corpo estivesse apodrecendo em algum lugar dos milhões de hectares de bosque que havia entre Bozeman e Yellowstone, o território de caça deste assassino.

Pensamentos como esse, que se apoderavam de sua mente, provocavam-lhe insônia.

Chas! Chas!

O chicote estalou uma vez, e depois outra, ferindo na carne aberta. Tentou gritar, mas fazia tempo que já não tinha voz. E depois ficou abandonada a suas lágrimas silenciosas e ao eco das implorações de Sharon.

Seus rogos não significavam nada para esse monstro sem rosto que as torturava. O alívio que sentiam quando ele se ia, logo se converteu em terror. Tornaram-se dependentes dele. Ele as alimentava, dava-lhes água. Se ele partia para não voltar, elas morreriam, nuas e acorrentadas ao chão em meio de um lugar perdido.

Mas ele voltou. Para soltá-las. E assim, elas desempenhariam o papel de suas presas em seu jogo desenquadrado. O caçador e as presas.

Dar com o Açougueiro era algo mais que justiça. Só ele podia lhes contar a quem tinha matado. A Miranda pesava que exercesse um controle tão evidente sobre a dor dos vivos.

Rebecca tinha sobrevivido oito dias em mãos desse louco, desse maldito assassino. Quase tinha conseguido escapar. Quase.

Mas como tinha acontecido com Sharon, o quase não valia nenhuma merda se estava morta.

Permaneceu dentro do carro um momento, e respirou fundo. Fechou os olhos e afundou a cabeça nos braços, apoiada no volante.

As lágrimas não demoraram a brotar, e a raiva e a frustração que a embargavam fluíram em fios de lágrimas quentes, salgadas, que lhe banharam as faces. Tinha o corpo moído depois de dias de busca incansável, e sentia a tensão depois do reencontro com Quinn. Os soluços a fizeram estremecer em silêncio, e de sua boca brotava só a respiração agitada e rasgada. Demorou vários minutos em dominar a dor. Inclusive depois de recuperar a compostura, resultava-lhe difícil conservar a calma. Quando se olhou no espelho retrovisor viu a morte.

Tinha visto sete garotas mortas. Mas ainda ficavam outras nove jovens desaparecidas, e seus restos não eram mais que um punhado de ossos pulverizados pelo bosque. Aos ursos e pumas não importava muito a dignidade humana, nem praticavam os ritos de enterro da cultura judaica cristã.

Por que eu?

Por que tinha sobrevivido ela de entre todas essas vítimas? Por que a tinha escolhido, para começar? Por que Rebecca Douglas ou as irmãs Croft? Não tinha sentido. Não tinha tido então e não o tinha agora quando, ao fim de doze anos analisando uma e outra vez tudo o que tinha conduzido a seu seqüestro, todo o vivido naquela choça da tortura de um só infernal quarto e, depois, todo o ocorrido desde sua fuga.

O devia a seu pai, isso sabia com certeza. Se seu pai não a tivesse levado a aquelas expedições de caça que ela detestava, jamais teria aprendido a dissimular seus rastros nem a enganar o caçador. Ela era a presa mas, a diferença dos veados ou os ursos que caçava seu pai, ela era um ser dotado de inteligência. Podia enganar seu perseguidor, ocultando-se e correndo, correndo e ocultando-se, até mergulhar no rio e... Ainda que tivesse morrido na água gélida, teria vencido.

Ele não a teria matado. Ela teria escapado, lhe roubando com isso seu troféu, seu prêmio.

Não só tinha vencido mas também sobrevivido.

Se Rebecca não tivesse tropeçado e nem quebrado uma perna, teria sobrevivido? Teria tido a força necessária para chegar ao caminho? Embora Rebecca não fosse oriunda de Montana, criou-se em um povoado de montanha, em Quincy, Califórnia. Era um território similar e... Os pensamentos de Miranda se perderam e divagaram longe de Rebecca.

Quincy. Maldito seja. Não podia escapar dele.

Secou as lágrimas do rosto e voltou a olhar-se no retrovisor. Não estranhava nada que Quinn acreditasse incapaz de seguir participando da busca. Tinha um aspecto horrível. Tinha perdido mais peso do que se podia permitir. Não tinha se detido nem um momento a pensar na maquiagem, e seu cabelo escuro, embora estivesse limpo, tinha perdido aquele brilho de antes.

No que pensava? Por que teria que importar o que pensasse Quinn Peterson? Ele tinha destruído o vínculo entre eles anos atrás quando tinha deixado claro que, segundo seu julgamento, sua prudência pendia de um fio.

Disse-lhe que se equivocava, mas ele não fez conta. E bem, o tinha dado razão a ela, não? Era um ser humano sem problemas, levava uma vida normal, e ia perfeitamente bem sem os comentários de Quinn Peterson.

Ela tinha uma responsabilidade, e nesse momento seu dever era ordenar a quão voluntários pusessem fim à busca. Detestava ter que fazê-lo, mas era uma responsabilidade que assumia sozinha.

Depois de um profundo suspiro, deixou a comodidade de seu jipe e se dirigiu ao quartel improvisado. Havia vários estudantes chamando por telefone, recebendo informação ou dando instruções detalhadas para contribuir na busca. Uma equipe de voluntários acabava de entrar antes de Miranda para recolher uma seção do mapa que ela mesma tinha esboçado.

Nada disso importava já.

As lágrimas que acreditava em boa cobrança voltaram a brotar e apertou a ponte do nariz até que conseguiu as reprimir. Agora não era o momento.

O grito abafado de uma das garotas devolveu Miranda à realidade.

—Não! NÃO!

Judy Payne, a companheira que vivia com Rebecca, era quem tinha chamado à polícia ao ver que esta não voltava para o apartamento na sexta-feira de noite. Judy não tinha abandonado o centro de busca desde o começo, respondendo chamadas, enviando correios eletrônicos, imprimindo milhares de santinhos. Agora, deixou de pregar cartas e ficou olhando fixamente Miranda com o rosto desencaixado.

—Judy. —Miranda cruzou a sala até onde a garota estava sentada, tremendo.

—Não, por favor. —Judy procurou em seu olhar algo que não fosse a verdade, e umas lágrimas rodaram por suas faces.

Miranda se agachou junto à simpática companheira de Rebecca e lhe agarrou as mãos. Com cada ano que passava, Miranda acreditava que seria mais fácil. As buscas estavam bem planejadas e executadas, os voluntários tinham formação e eram competentes, a polícia era diligente e atuava com determinação. Mas as coisas não faziam mais que complicar-se. Cada vez era mais difícil. Cada uma das garotas desaparecidas levava uma parte de sua alma à tumba.

—Sinto muito. —O que outra coisa podia dizer? «Sinto muito» parecia tão desconjurado, tão vazio.

Judy se deixou cair nos braços de Miranda. Esta a abraçou, balançou-a e lhe murmurou coisas ao ouvido, palavras que não significavam nada, mas que possivelmente trariam algum consolo.

Não precisava dizer nada ao resto das pessoas na sala. A reação de Judy lhes dizia o que tinham que saber. As lágrimas brotaram dos olhos de homens e mulheres que tinham tido esperança, por um tempo, de encontrar Rebecca com vida.

Karl Keen, um jovem assistente, se aproximou. Miranda levantou o olhar e viu que ele também tinha os olhos umedecidos. Quis transmitir confiança, a ele e a Judy e a todos, mas não tinha palavras. O peso da dor da Rebecca descansava com toda sua carga sobre os ombros de Miranda. A propósito do que queria lhes transmitir confiança? De que desta vez a polícia o encontraria? De que desta vez tinha cometido um engano?

Tinha vontades de gritar ante aquela injustiça de ver outra jovem morta sem que tivessem nem um só indício sobre o assassino.

Limitou-se a dar um apertão no braço de Karl.

—Eu ficarei com ela —disse o menino, e se agachou junto a Judy, que seguia soluçando.

Miranda pestanejou querendo reprimir suas próprias lágrimas enquanto via Karl que abraçava Judy e a levava para fora. Por um instante, teve vontade de que alguém a abraçasse. Que alguém a consolasse. Que lhe dissesse que tudo ia se arrumar, embora não fosse verdade. Às vezes precisava acreditar nas mentiras.

Mas Quinn tinha renunciado a ela e ela tinha deixado que Nick partisse. Não tinha ninguém.

Quando os dois jovens saíram, Miranda percebeu que o resto dos que estavam na sala a olhavam. Esclareceu a garganta e falou, com voz rouca.

—O xerife Thomas descobriu o corpo de Rebecca esta manhã a uns seis quilômetros a oeste de Cherry Creek Road e a uns quinze quilômetros ao sul da estrada oitenta e quatro. Os ajudantes do xerife procuram pistas, mas...

— É o Açougueiro?

Miranda se virou para olhar à pessoa que a tinha interrompido e depois baixou o olhar. Era Greg Marsh, o professor de biologia de Rebecca, um homem achaparrado e gordo que usava óculos sem marco.

—Não... não posso afirmá-lo, eu... —começou a dizer.

—Sim pode. Você esteve ali —disse, assinalando as botas de Miranda. Ela baixou o olhar e piscou. Não se tinha dado conta do barro seco aderido às botas.

—Greg, você sabe que não posso dizer nada.

—Não é necessário que o faça —disse, e saiu da sala.

Outros seguiram com o olhar fixo em Miranda. Ela precisava estar a sós, mas tinha um dever para com os que ficavam na sala. Embora estivessem vivos, eles também eram vítimas do Açougueiro. Sentiu que a culpa lhe roía as vísceras quando em momentos como esse desejava ferventemente não sentir-se responsável pelas vítimas, estivessem vivas ou mortas. O que podia dizer para consolar Greg, Judy e os outros?

Sabia o que tinha vivido Rebecca. E graças à imprensa, que abundava em detalhes sobre as tragédias cada vez que o Açougueiro saía a matar, outros também sabiam. Não havia nada que fazer. Todos sabiam que Rebecca tinha sido torturada, violada e caçada como um animal.

E todos sabiam que a Miranda tinha acontecido exatamente o mesmo.

Teve que ocultar toda sua humilhação, a dor, a raiva poluída pelo medo que bulia em seu interior. Eram muito poucos os que ainda falavam com ela sobre seu seqüestro e posterior fuga. Miranda sabia que murmuravam coisas a suas costas, mas os ignorava. Tinha que ignorá-los. Pensar ou saber o que as pessoas diziam fazia mais difícil a tarefa de lutar com seus pesadelos.

Miranda suspirou, aliviada, ao ver que os voluntários, com expressão chorosa se reuniam em um canto, murmurando. Não esperavam que ela lhes falasse, que aplacasse sua dor. Que lhes dissesse que tudo iria bem quando sabiam que nada iria bem até que encontrassem o Açougueiro.

Miranda foi até o mapa que tinha desenhado da área de busca. Tinha dividido o condado de Gallatin em quatro quadrantes, desiguais devido ao terreno montanhoso. Cada quadrante estava dividido em dúzias de segmentos.

Não tinham chegado a cobrir nem dois quadrantes desde sábado passado.

Seis pontos vermelhos, quase invisíveis a simples vista, identificavam os lugares onde tinham encontrado os outros seis corpos. Com mão tremula, tirou uma caneta vermelha do bolso e desenhou um ponto no lugar onde tinha morrido Rebecca. A sétima vítima. A sétima vítima conhecida, repetiu para si.

Miranda não necessitava os pontos vermelhos para saber onde tinham encontrado os corpos. Tampouco necessitava os pontos azuis para saber onde as tinham visto pela última vez. Tinha o mesmo mapa, muito mais detalhado, na parede de seu estúdio em casa. Tinha passado muitas noites, sentada na cama estudando a topografia, esperando que os pontos, linhas e tramas desenhadas dissessem alguma coisa, qualquer coisa, a propósito daquele homem que se divertia caçando mulheres.

Sentiu um soluço preso na garganta e tampou a boca com ambas as mãos. Voltou sua atenção ao ponto situado ao sudeste do de Rebecca. Era o ponto de Sharon.

Tinha que voltar ao monte, mas havia um problema: Quinn estava aí.

Doze anos antes, Quinn tinha sido sua rocha, seu ponto de apoio. De algum jeito, tinha-a salvado, algo que recordava só quando permitia, quando estava sozinha na cama, com suas lágrimas como única companhia.

Nunca esqueceria o dia em que o conheceu no hospital. Foi o dia depois de acompanhar à unidade de busca do xerife até o lugar onde Sharon tinha sido assassinada.

Embora ele a levou ao longo de cinco quilômetros no dia antes, ela estava muito perturbada para fixar-se em apresentações formais. Nem sequer sabia como se chamava. E lhe agradeceu que não mencionasse seu ataque de nervos quando falou com ela, que seguia prostrada na cama do hospital.

Não a mimava como as enfermeiras. Não chorava como seu pai. Não arrastava os pés, presa dos nervos, como o xerife Donaldson, que a tinha interrogado no dia anterior.

Quinn Peterson era de granito, um tipo alto, forte e firme. Nunca fraquejava, nunca mostrava compaixão em seu olhar.

Doía-lhe todo o corpo. As feridas dos pés lhe ardiam apesar dos antibióticos e calmantes. Tiveram que lhe costurar muitas feridas e cortes, e levaria essas cicatrizes até o final de seus dias. Os médicos lhe tinham salvado os seios, embora os cortes fossem muito profundos.

Ela estava viva. Sharon estava morta. As cicatrizes de sua pele não eram nada comparadas com a dor incisiva da culpa lhe destroçando o coração.

—Não tem que fazê-lo disse o Agente Especial Quincy Peterson quando Miranda insistiu em acompanhá-lo ao lugar onde tinham sido presas ela e Sharon.

—Sim, tenho que fazê-lo, agente Peterson —disse ela quando saíram do hospital—. Tenho que acompanhá-lo.

Não podia pensar em sua dor. Agora, não. Era capaz de qualquer coisa para encontrar o homem que tinha assassinado Sharon, porque sua melhor amiga estava morta e ela estava viva.

Se isso significava voltar para o chiqueiro asqueroso, úmido e infestado de ratos onde tinha permanecido acorrentada sete dias infernais, faria-o.

— Entendo —disse ele, e lhe acreditou. Todos os que falavam com ela davam a impressão de querer serená-la, mas aquele homem não tinha essas intenções—. Acha que poderia me chamar de Quinn? Agente Peterson soa muito formal.

—De acordo.

Ela assinalou a área no mapa e entraram de carro até onde puderam, para logo seguir a pé, embora ficavam quase cinco quilômetros.

Oxalá tivesse deslocado na outra direção! Teriam chegado a um caminho. Era só um atalho, mas o era. Isso acaso teria trocado seu destino? Sharon estaria viva ainda?

—Disse-lhe que tínhamos que nos separar —murmurou Miranda quando ficou a sós com o agente Peterson... Quinn.

—Foi uma boa idéia.

—Sharon se negou. Estávamos tão assustadas que não o discutimos. e... —disse, e guardou silêncio.

—Segue.

—Não entendíamos por que nos soltava. Até que vimos a arma. Então entendemos com toda claridade que queria nos caçar como animais. Acredito que nem sequer pensamos nisso e, certamente, não falamos disso. Não tínhamos tempo. Disse-nos que nos puséssemos a correr.

—Corram, corram!

—E as duas sabiam perfeitamente o que pretendia fazer. Fomos presas feridas gravemente — disse, rindo com uma careta amarga.

Durante o trajeto, Quinn permaneceu a seu lado. Fez-lhe perguntas discretas e certeiras. Nunca disse que sentia. Nunca tentou serená-la. Nunca disse que deveria ter feito algo diferente, como tinha feito ela milhões de vezes, interrogando-se sem parar durante as setenta e duas horas transcorridas desde que a encontraram na margem do rio Gallatin.

Miranda os conduziu diretamente ao barraco desmantelado perdido no meio do bosque, em Montana, dez quilômetros para o oeste do rio onde ela tinha saltado para escapar. Ficou olhando as pranchas podres que pareciam muito fracas para agüentar o teto de alumínio corrugado. Miranda se tinha fixado no exterior do barraco só um momento breve, antes que ela e Sharon pusessem-se a correr. Entretanto, o interior tinha ficado gravado em sua memória.

Miranda não pôde entrar. Ficou sentada no chão, chorando.

Quinn entrou. A gente do xerife recolheu as provas que ele assinalava. O xerife Donaldson estava a ponto de aposentar-se, e queria agarrar o assassino de Sharon; que sua detenção fosse o broche de ouro de sua carreira, assim escutou os conselhos do agente do FBI chegado um dia antes.

Depois, Quinn se sentou no chão junto a ela.

— Vai sujar essa bonita calça —foi quão único atinou a dizer. Certamente, Peterson não ia vestido para sair à montanha, mas não parecia importar que seus elegantes sapatos ficassem raiados e sujos.

—Encontrarei a esse maldito. Prometo-te que pagará pelo que fez, a você e a Sharon.

Ela o olhou, procurando a pena em seus olhos, ou o asco, ou o desagrado. Quão único viu foi força, compaixão e raiva.

—Farei tudo o que possa para ajudar.

Ao final, apesar da angústia que Miranda sentiu ao voltar para a choça, apesar da busca no bosque, depois de encontrar os restos que, segundo todas as suspeitas, era a primeira vítima do Açougueiro, não conseguiram encontrar o assassino. Não tinham pistas que os orientassem. Escassas provas, e nem um só rastro. Nenhum suspeito.

Dois meses depois, chamaram Quinn de volta ao escritório de Seattle. Ela pensou que não voltaria a vê-lo, e isso lhe doeu, porque o apreciava muito.

Equivocava-se. Quinn voltou um mês mais tarde, só para vê-la.

Foi então quando começou a sanar de verdade.

 

Quando Miranda tinha oito anos, sua mãe morreu de câncer de ovários. Bill Moore ficou tão devastado pelo inesperado diagnóstico, a brevidade da enfermidade e a morte, que renunciou a seu emprego como executivo de marketing de alto nível no Spokane e se mudou com Miranda ao vale Gallatin, em Montana. Comprou uma velha cabana a trinta minutos de Bozeman, caminho ao West Yellowstone, perto do Big Sky, e a restaurou com dedicação e paciência. Aos dez anos, Miranda já tinha aprendido tudo sobre desempapelar, lixar e envernizar. Ela sozinha tinha restaurado quase todos os chãos do primeiro andar da hospedaria.

Os profundos canyons, as vistas assustadoras e os céus infinitos foram um consolo para a dor daquela família. Tinham passado vinte e cinco anos, e esse mesmo entorno foi o que salvou Miranda mais tarde do Açougueiro, e também, uma vez mais, do Quântico. E por isso, com o assassinato de Rebecca e o fantasma de Sharon pesando sobre sua consciência, era quase imperativo desviar-se e passar pela Hospedaria Gallatin. Disse-se que seria necessário levar algumas provisões, mas a verdade era que só queria ver seu pai.

 

Bill Moore estava sentado atrás do balcão de recepção preenchendo os eternos formulários que detestava. A enorme cabeça de alce, que Miranda tinha chamado Bruce a primeira vez que a viu, faz vinte e cinco anos, era o mascote da hospedaria. De lá de cima, fazia guarda sobre a recepção e sobre seu pai, a quem o alce sempre arrancava um sorriso.

Exceto em dias como esse.

Bill elevou o olhar quando Miranda entrou, e seu rosto se transfigurou. Pesaram-lhe cada um de seus cinqüenta e sete anos. Seu cabelo, embora ainda abundante, tornou-se grisalho. Umas rugas lhe sulcavam o rosto curtido e seu corpo, antigamente cheio de força, afundou-se imperceptivelmente. Miranda sentiu que algo lhe retorcia no interior. Ela era a causa da dor que via todos os dias em seus olhos claros. Seu amor de pai o estava matando, dia a dia. E saber isso, e não ser capaz de torcer a direção que tomava sua vida, o fazia sentir-se ainda mais culpado.

—Papai. —Não tinha por que acrescentar mais.

—Randy — disse ele, com voz rouca.

Bill saiu de trás do balcão e, quando o abraçou, Miranda se sentiu reconfortada. Seu pai nunca se fazia de rogar com os abraços.

—Foi ele — murmurou.

Seu pai a estreitou com força. Ela cheirou aquela mescla única de loção de barbear, suculentos grãos de café e tabaco de cachimbo. Cheirava a lar e a amor e a tudo de bom que havia em sua vida.

—Volta a sair?

—Tenho que ir. —Miranda deu um passo atrás, respirou fundo e o olhou com um sorriso que queria transmitir esperança.

—Prepararei uns sanduíches. Quantos são os que estão procurando?

—Possivelmente uns vinte, ou vinte e cinco. Nick chamará voluntários para que colaborem com seus homens. Terá que lhes dar instruções. Não tenho muito tempo.

—Vá procurar suas coisas. Eu apanharei algo para que possam comer.

—Te amo, papai.

Acariciou-lhe a face, deu meia volta e se dirigiu à cozinha.

Miranda teria dado qualquer coisa para retroceder no tempo e proteger seu pai do que tinha sofrido desde aquele dia em que ela tinha voltado para casa, destroçada e vazia. Às vezes pensava que seu pai ainda a via meio afogada e nua na margem do rio. Golpeada, ferida, mais à frente do esgotamento.

Mas viva.

O que não podia dizer de Rebecca. Ou de Sharon. Ou de Penny, Susan, Karen, Ellen e Ellaine. Nem das outras nove garotas desaparecidas sem deixar rastro na primavera dos últimos quinze anos.

Em circunstâncias normais, Miranda desfrutava do aprazível passeio pelo atalho de cascalho até sua própria cabana. Seu pai a tinha construído fazia dez anos, em sua volta da Academia do FBI no Quântico.

—Randy, necessita sua própria casa —disse—, mas eu me sentiria muito só se fosse viver na cidade.

Bill Moore nunca estaria sozinho. Era um homem apreciado e admirado por todos no condado de Gallatin, e sua hospedaria funcionava bem com os turistas no verão e os esquiadores no inverno, além dos habitantes locais que vinham com o passar do ano comer ou a tomar um aperitivo aos domingos. A hospedaria tinha oito suítes no primeiro andar. Também havia umas quinze cabanas dispersadas pelos trinta e tantos hectares da propriedade. Os amigos de toda a vida vinham freqüentemente. Os forasteiros eram como da família. Era a vida de Bill.

Miranda ansiava meter-se em uma banheira de água quente e olhar como passava o dia através da janela. Encharcar-se até ficar com a carne quase escaldada, inundando-se em uma água tão quente que quase não a agüentasse. Chorar até que não ficassem lágrimas.

Mas se limitou a agarrar munições para o 45 automático que levava e tirou sua escopeta. Seu pai lhe daria a comida mas ela se ocuparia de preparar a equipe de sobrevivência.

Três dias de mantimentos liofilizados e de garrafas de água, navalha, pistola de rojões de luzes e fósforos no fundo da mochila. Acrescentou as balas e uma jaqueta Gore Tex, uma muda de roupa e uma manta térmica.

Jamais a pegariam sem estar preparada.

Quinze minutos mais tarde, entrou na enorme cozinha e observou como seu pai e Ben «Gray» Grayhawk, o cozinheiro, faz tudo da hospedaria e amigo, carregavam uma geladeira portátil com sanduíches envoltos um por um. Havia ao menos quarenta rações. Colocaram seis recipientes térmicos em uma caixa, copos de plástico e uma bolsa verde para o lixo.

Miranda deixou sua mochila junto à porta e abraçou seu pai.

— Obrigado, papai —disse, e sorriu a Gray para lhe agradecer também.

—Seu pai não quer dizê-lo, assim direi eu —disse Gray—. Você, se cuide, jovenzinha. Não entre no bosque sem apoio. Não jogue a ser a heroína. Seja inteligente.

—Tomarei cuidado. —Miranda adorava Gray, embora ele sempre andasse preocupando-se com ela. Era alguns anos mais velho que seu pai, e em seu comprido cabelo prateado e trançado se adivinhava sua herança índia, embora seus olhos verdes eram os de sua mãe européia. Tinha nascido em Bozeman, mas tinha se mudado quando era apenas um adolescente. E depois de três períodos de serviço no Vietnam decidiu retornar para casa.

Gray também lhe tinha ensinado a usar armas de fogo.

Entre os três levaram a comida e as bebidas ao jipe de Miranda. Quando estava a ponto de subir, seu pai a agarrou pelo braço. Seus olhos azuis, um pálido reflexo dos olhos de Miranda, brilhavam com um fundo de inquietação e preocupação.

—Randy, tome cuidado.

Ela assentiu, incapaz de dizer uma palavra por medo de que brotassem as lágrimas reprimidas desde aquele momento de debilidade na universidade. Subiu ao jipe de um salto, saudou e partiu.

Bill ficou olhando o jipe até que desapareceu em uma curva, junto ao pôster que dizia: Sempre bem-vindos à Hospedaria Gallatin. Tirou um lenço e assoou o nariz.

Gray pôs sua mão enorme sobre o ombro de seu amigo.

—Estará bem, Billy. É uma moça forte.

—Sei. Sei. —Respirou fundo o ar fresco da montanha—. Merece ser feliz. Eu a amo tanto que não suporto ver como revive uma e outra vez a mesma história.

—Por isso está aí. Não pode obrigá-la a ir por seu caminho, assim como Nick não pôde obrigá-la a ir pelo seu.

Bill olhou seu amigo.

—Quinn Peterson ligou para reservar um quarto. —E o deu?

—Sim.

—Miranda não gostará.

—É claro que não. —Mas ele tinha que emendar algo. Só esperava que Miranda o perdoasse quando se inteirasse da verdade.

Elijah Banks deu graças a Deus no que já não acreditava de que por fim sua sorte estivesse mudando.

Saiu disparado pela porta traseira dos escritórios da Gazeta, em Missouri e subiu a sua desmantelada caminhonete. Um rápido olhar a seu relógio disse que tinha o tempo justo para passar por seu apartamento e apanhar uma bolsa de viagem.

O Açougueiro voltava a golpear. O corpo de Rebecca Douglas tinha sido descoberto fazia uma hora, e embora o xerife andasse com segredos, Eli tinha um sexto sentido que dizia que se tratava do Açougueiro.

Jovem universitária desaparecida uma semana. Encontrada morta. O Açougueiro. Maldito seja, tinha desejado estar ali desde o começo, mas seu editor não lhe dava a oportunidade. Ao contrário, tinha passada segunda-feira e terça-feira em Helena escrevendo sobre um caso mais de suborno político, e os três últimos dias entrevistando anciões que tinham sido vítimas do roubo de seus dados de identidade.

Aborrecido a mais não poder.

Mas agora que tinha que informar sobre a história de um cadáver, o chefe lhe tinha dado a tarefa. Seu contato na polícia tinha proporcionado escassos detalhes, só que tinham encontrado o corpo da mulher e que o xerife Thomas tinha dado instruções por radio de guardar silêncio. O forense estava acostumado e se encontrava agora no monte perto de Cherry Creek Road, ao sul da interestadual.

Se jogasse bem suas cartas, poderia catapultar-se para sair daquele buraco infernal e conseguir um emprego de repórter de verdade em um jornal de verdade em uma cidade de verdade.

Seu apartamento ficava a menos de um quilômetro do jornal. Deixou a caminhonete em marcha e subiu correndo a colocar a roupa e sua nécessaire em uma mochila. Agarrou seu gravador, lápis e papel, e seu diário.

Doze anos antes, Eli tinha criado esse diário para documentar tudo relacionado com a investigação sobre o Açougueiro. Inclusive depois de mudar-se a Missouri, sempre havia seguido estando informado, cada vez que uma garota era seqüestrada, cada vez que encontravam um cadáver.

O Açougueiro de Bozeman. Pôs esse nome ao assassino no primeiro artigo, quando se soube de Moore. Não foi sua primeira opção. Ele queria chamá-lo O Caçador de Mulheres, mas seu chefe no Chronicle, o imbecil do Brian Collie, não queria incomodar os caçadores e disse que inventasse outra coisa. O «Açougueiro» não era um apelido adequado porque o que o assassino fazia com suas vítimas não podia qualificar-se de «açougue». Não, o tipo as caçava, e depois disparava ou lhes cortava o pescoço. Entretanto, o apelido ficou assim.

Collie seguia ali, e nunca tinha chegado a grande coisa porque nunca tinha aspirado a ser mais que diretor de um jornal de segunda, em Bozeman. Eli, ao contrário, decidiu abandonar a cidade e chegou até Missouri. Nesse momento, parecia a decisão perfeita. Primeiro Missouri, depois Seattle e, finalmente, Nova Iorque.

O plano chegou até Missouri. Mas agora Eli confiava que não ficaria preso ali o resto de seus miseráveis dias.

Cinco minutos mais tarde, já tinha pego a interestadual em direção sul, para Bozeman, capital do comércio boiadeiro. Normalmente, detestava fazer esse trajeto, mas nesta ocasião quase não podia conter a emoção.

Uma história palpitante era justo o que necessitava para encontrar um emprego de qualidade em um grande jornal. Adeus, Missouri. Lá vou eu, Nova Iorque.

 

Quinn tamborilou sobre o painel da caminhonete da polícia que Nick conduzia. A Quinn não agradava viajar no lado do passageiro. Parecia que demorava o dobro de tempo em chegar a qualquer lugar.

—A semana passada não me deu muitos detalhes por telefone —disse a Nick—. Rebecca Douglas foi seqüestrada na sexta-feira a noite?

—Sua companheira de apartamento chamou por volta da uma da madrugada do sábado. Não tinha voltado para casa depois de seu turno na pizzaria, que fica na interestadual. O agente que fez o relatório encontrou seu carro no estacionamento, com as chaves no assento do passageiro.

—E sua bolsa?

—Não estava.

Não estavam acostumados a recuperar grande coisa dos objetos pessoais das jovens vítimas, o que levou Quinn a suspeitar que o assassino os conservava como objetos de fetiche. Para recordar suas vítimas.

—Não esperamos a que se cumprisse o tempo habitual antes de declarar uma pessoa desaparecida, porque eu sabia intuitivamente que era o Açougueiro.

— Seu carro tinha alguma imperfeição?

—Não.

—Isso é uma mudança. —A Quinn intrigava o motivo dessa mudança, porque, até então, todas as vítimas do Açougueiro ficaram abandonadas na estrada depois de danificar-se o carro. As análise descobriram que no tanque de gasolina havia restos de melaço tampando o filtro de gasolina. Assim, o carro ficava sem gasolina a cinco quilômetros da última parada.

Quando Penny Thompson desapareceu faz quinze anos, recuperou-se seu carro de uma ravina profunda. Encontraram sangue no volante, mas não detectaram sinais de violência. Nesse momento os investigadores pensaram que se afastou do carro até perder-se por causa de uma lesão na cabeça, mas o caso ficou aberto.

Três anos mais tarde, quando encontraram o carro de Miranda na beira do caminho a meio trajeto entre a auto-estrada de Gallatin e a hospedaria de seu pai, o escritório do xerife relacionou em seguida uns pontos com outros e chamou o FBI.

A vida de Quinn tinha mudado irrevogavelmente a partir daquele dia.

—Há quem insistia que não era o Açougueiro, mas...

—Sua intuição não se equivocou no do dinheiro.

—Por desgraça.

—Temos duas vantagens claras —disse Quinn—. Em primeiro lugar, uma mudança no modus operandi. Não manipulou o carro. Possivelmente não teve tempo. Possivelmente agiu em cima da hora. Ou possivelmente Rebecca Douglas o conhecia e não se assustou quando se aproximou.

—Já pensei nessa possibilidade mas, até agora, os interrogatórios não arrojaram grande coisa.

—Queria revisar suas notas.

—Como quiser —disse Nick—. E qual é a outra vantagem?

—Ter encontrado o corpo tão rapidamente. Não nos ajuda que chovesse ontem à noite, mas pode ser que o forense encontre algo que possamos relacionar com um suspeito, um cabelo, uma fibra de sua roupa, algo. —depois de ver o cadáver, Quinn não tinha grandes esperanças de que encontrassem provas úteis, mas a ciência não parava de aperfeiçoar seu instrumental. Se havia algo que encontrar, ele confiava em que eles o encontrariam.

—Se conseguimos encontrar o barraco onde a teve encerrada, teremos maiores probabilidades de achar provas úteis —disse Nick.

—É verdade. —As vezes que tinham encontrado os ruinosos barracos onde o Açougueiro ocultava suas vítimas antes de soltá-las no bosque, todas as provas estavam danificadas ou destroçadas. A umidade, o mofo e a podridão das choças destruíam a maior parte do material biológico. Não tinham nem DNA nem rastros digitais, com a exceção de um fragmento de rastro que não arrojou resultados na base de dados do FBI. E tampouco havia suspeitos.

O perfil elaborado por Quinn doze anos antes tinha sido atualizado para que refletisse os traços do homem, agora mais envelhecido. Naquela época, seu raciocínio o tinha levado a concluir que se tratava de um homem branco de entre vinte e cinco e trinta e cinco anos. Se lhe adicionassem dez anos, não podia ter menos de trinta e cinco anos, mais provavelmente quarenta. Fisicamente era um homem forte, uma pessoa metódica. De fato, era um planejador obsessivo, paciente e temerário. Não lhe faltava segurança, e por isso nunca duvidava de que pudesse dar com as mulheres que soltava. Tampouco era muito difícil seguir o rastro no bosque de uma mulher nua e descalça.

Quinn abandonou a investigação ao fim de dois meses porque não tinham pistas e as provas eram escassas. E quando deixaram de desaparecer mais mulheres, as autoridades decidiram que não valia a pena utilizar seus escassos recursos na inútil busca do assassino de Sharon.

O Açougueiro esperou três anos antes de seqüestrar outras duas garotas, mas os corpos nunca foram recuperados. Poucos assassinos em série eram capazes de esperar tanto tempo entre uma ação e outra, mas não se informou de crimes similares em outras partes do país.

A falta de continuidade e a natureza esporádica das atuações do assassino não davam à polícia pistas concretas para seguir investigando.

Quinn deu um golpe contra o painel.

—Quero agarrar esse canalha.

Nick guardou silêncio enquanto girava em um caminho de cascalho debaixo de um arco que dizia: Parker Ranch.

Quinn se lembrava vagamente de Richard Parker da época em que ele se dedicava ao caso do Açougueiro. Promotor e homem influente do estado de Montana, com conexões políticas em Washington, e eleito para algum cargo local. Poderia ser uma espécie de supervisor.

Nunca tinham suspeitado de Richard Parker. Quinn recordava sua arrogância e sua fanfarronice, embora parecesse verdadeiramente interessado em encontrar recursos adicionais para o escritório do xerife em uma época em que os orçamentos estavam reduzidos ao mínimo.

A residência do Parker recordou a Quinn o rancho de La Ponderosa. Era como se a qualquer momento fosse lhes abrir a porta Ben Cartwright.

—Xerife —disse Richard Parker ao abrir a larga porta. Quinn observou que Parker tinha envelhecido bem. Tinha uns cinqüenta anos, cabelo loiro, ainda sem cabelos grisalhos, e mal mostrava rugas em torno dos olhos. Um metro oitenta e qualquer coisa, magro, ombros fortes e músculos bem definidos, um homem que se sentia a vontade com seu trabalho no rancho.

Parker se voltou para Quinn.

—Agente Especial Peterson, correto?

—Boa memória, senhor Parker —disse, assentindo com a cabeça.

—Agora sou o Juiz Parker —disse este, com um leve sorriso—. Mas esqueça-se das formalidades. Chame-me de Richard.

Juiz. Quinn olhou Nick, irritado porque seu amigo não lhe tinha falado daquela situação, que era politicamente delicada. Quinn detestava brincar com a política.

—Obrigado.

Seguiram Parker e cruzaram o amplo vestíbulo revestido de madeira escura até o salão, um canto luminoso com janelas orientadas a leste e a sul e iluminado de uma vez por duas clarabóias largas e estreitas no teto.

Tudo era impecável e estava perfeitamente em seu lugar, como se os Parker estivessem esperando à equipe de rodagem de House Beautiful. Os troféus de caça e as gravuras de cenas campestres adornavam as paredes de cor clara. Os móveis de pinheiro muito grandes eram simples e funcionais. Adivinhava-se um toque feminino nas capas floreadas das almofadas que se complementavam com os tons escuros dos sofás e das cadeiras. Uma vitrine de armas de fogo ocupava uma parte proeminente de uma parede e, por cima, um peixe enorme com uma placa: Esturjão branco, 32 quilogramas, rio Kootenai, 10 de junho de 1991.

—Mandei os meninos ao estábulo ocupar-se dos cavalos —disse Parker—. Posso-lhes oferecer algo para beber? Café? Um refresco? É muito cedo para um uísque. —Com um gesto, convidou-os a sentar-se.

—Não podemos ficar, Richard —disse Nick—. Chamei todos meus ajudantes e temos um grupo de voluntários para pentear a área. Vai ser um dia comprido.

—Já entendo. Os guris estão mudados. Espero que não lhes peça muito.

—Claro que não —disse Nick.

—Necessita cavalos? Posso dizer a Jed que traga seis ou sete. E se necessitar, darei a tarde livre aos homens.

—Agradeço muito, Richard —disse Nick—. Teremos que procurar a pé para não danificar possíveis prova.

Parker assentiu.

—Claro, sim. —Fechou os olhos e sacudiu a cabeça—. Acreditava que... suponho que acreditava que tudo tinha acabado.

Eu não, pensou Quinn.

—Os assassinos em série só se detêm quando os metem no cárcere ou quando morrem.

—Mas passaram três anos.

—Temos razões fundadas para acreditar que Corinne Atwell também foi uma vítima do Açougueiro, e ela desapareceu em um de maio do ano passado. O bosque não perdoa. Os animais, o tempo, o terreno. Pode ser que nunca saibamos quantas garotas matou.

—A que vem o interesse do FBI agora? —perguntou Parker, franzindo o cenho—. Você não veio quando mataram às gêmeas.

—Na realidade — corrigiu Nick—, depois do seqüestro das garotas Croft, esteve aqui o agente especial Thorne e, em outra ocasião, quando Corinne Atwell se deu por desaparecida. Chamei o agente Peterson na semana passada porque ele conhece o caso. Não preciso lhe recordar que os recursos do governo federal são muito superiores aos de nosso condado.

Quinn já não queria seguir falando de amenidades. Teria que interrogar os menores o mais breve possível se eram testemunhas de um crime ou se tinham encontrado provas. À medida que passava o tempo, tinham a tendência a mesclar os fatos com fantasias, em grande parte saídas da televisão.

—Onde estão os meninos, senhor?

—No estábulo. —Parker fez um gesto a Quinn para que se sentasse—. Os irei procurar.

—Não precisa. Acredito que estarão mais cômodos se estão fazendo algo com as mãos. Assear os cavalos parece uma boa tarefa.

—Acompanharei-o — disse Parker.

Nick agarrou Quinn uns metros atrás de Parker para lhe falar em privado.

—Quero dar uma olhada nas patas dos cavalos —disse, em voz baixa. Não é que pensasse que os meninos tivessem algum motivo para mentir, mas gostava de contrastar as declarações com feitos sólidos.

O estábulo ficava a uns cem metros atrás da casa e Quinn ouviu os murmúrios dos meninos no interior.

—Ryan! O xerife Thomas veio falar contigo.

Ryan Parker tinha quase onze anos e era a viva imagem de seu pai, com seu cabelo loiro e seus olhos cor castanho. Tinha uns traços belos pouco habituais em um menino, e parecia mais velho, quase mais sofisticado que os irmãos McClain.

—Ryan —disse Nick—. Apresento o agente especial Quincy Peterson. Trabalha para o FBI.

Ryan olhou com os olhos muito abertos.

—O FBI? De verdade? Posso ver sua placa?

—Ryan —disse seu pai, severo.

Quinn ignorou Parker e se agachou junto ao menino.

—Claro —disse, enquanto tirava a carteira do bolso da jaqueta. Abriu-a e mostrou a placa e sua identificação ao menino, que olhava ensimesmado.

Ryan não a tocou, mas a olhou com interesse.

—Tem que ir a uma escola especial para ser agente especial?

—Depois de quatro anos na universidade, passei dezesseis semanas em um campo especial de treinamento chamado Quântico. Também estudei um ano para obter uma pós-graduação em criminologia.

—É difícil?

—Algumas coisas o são. Você quer ser agente federal?

Ryan olhou seu pai e Quinn percebeu um toque de medo no olhar do menino. Possivelmente seu pai esperava que o menino simplesmente seguisse seus passos, pensou Quinn. Ele entendia. Para ele, não ser o «Doutor Peterson» era algo que ainda pesava na casa de seus pais—. Possivelmente —disse Ryan, evasivo.

—Podemos o xerife Thomas e eu fazer umas perguntas a você e seus amigos?

—Sobre a garota morta?

—Sim.

Sean e Timmy McClain estavam ocupados escovando um cavalo, embora escutassem tudo com interesse, tanto que o irmão menor não fazia mais que escovar o ar.

—Meninos, venham aqui — chamou Quinn.

Deixaram as escovas em um balde e se aproximaram para apresentar-se. Sean era o irmão mais velho, e se comportava como se fosse um menino duro e importante. Timmy, o menor, não parava de mover-se e tinha os olhos muito abertos. Quinn observou que Ryan era o líder do grupo, com essa maneira de parar com os outros dois meninos atrás dele, sentados nos montes de feno. Quinn não gostava da idéia de ter Richard Parker formalmente a seu lado, com seu severo aspecto de juiz. Entretanto, tendo em conta que se tratava de um encontro informal com os menores, não podia pedir ao pai que se fosse. Sobre tudo se o pai era advogado.

—Ryan, me conte com suas próprias palavras o que saíram a fazer esta manhã. Timmy, Sean, podem intervir se acharem que terão que acrescentar algo. Não há respostas corretas ou incorretas. E ninguém recorda tudo, assim pode ser que um de vocês recorde coisas que os outros não recordem. De acordo?

Todos assentiram quando Quinn e Nick tiraram suas cadernetas. Ryan falou.

—Tiramos os cavalos às sete da manhã. Sean e Timmy ficaram para dormir porque queríamos sair cedo, e eles vivem na cidade.

—Mamãe trabalha nos fins de semana —disse Timmy, assentindo com a cabeça—. Viemos muito aqui.

—Seguro que é divertido sair a montar a cavalo pela fazenda e outras coisas que estão bem —disse Quinn, Sorrindo.

—OH, sim —disse Timmy—. E às vezes... —Seu irmão lhe deu um golpe no braço.

—Cale-se —disse Sean—. Só querem saber da garota morta.

Timmy adotou um ar mais tímido.

—Não aconteceu nada —disse Quinn ao pequeno—. A gente nunca sabe o que pode ser importante em uma investigação.

Os meninos tinham saído da casa cedo em direção aos prados, para o leste. Agarraram um atalho quase apagado pela vegetação com a idéia de encontrar um antigo cemitério índio no lado norte.

—Sabem que não deveriam ir tão longe —brigou Parker—. É um caminho perigoso. Têm muita sorte de que um cavalo não tenha quebrado uma pata.

__ Sinto muito, papai —disse Ryan, com olhar fugidio.

Que mais? —disse Quinn. Era o último que necessitava, um menino assustado e um pai beligerante—. Onde está o cemitério índio que andavam procurando?

—Não sabemos. Por isso o buscávamos. Gray, sabe? Que trabalha lá na hospedaria —disse, e assinalou vagamente para o sul—, diz que está lá no lado norte, por cima do Mossy Creek. Nem sequer ele sabe onde está, só que está ali, e não sabemos se o vimos. Buscamos o verão passado e não o encontramos. E como choveu toda a semana, este era o primeiro dia bom para sair e procurar.

Quinn se lembrava de Gray. Como esquecer o tempo passado na Hospedaria Gallatin quando investigava o assassinato da Sharon Lewis? Ou os fins de semana que vinha ver Miranda?

Sacudiu a cabeça e afastou Miranda de seu pensamento. Era mais difícil agora que penetrou sem prévio aviso, mas ele tinha que concentrar-se em seu trabalho.

E seu trabalho era deter o Açougueiro.

—Não chegaram a Mossy Creek? —inquiriu Nick.

—Os cavalos começaram a ficar um pouco estranhos —disse Ryan, negando com a cabeça—, e depois ouvimos um animal grande. Fomos até um claro e vimos um urso pardo que estava cheirando algo. Eu disparei meu rifle para assustá-lo. E então a vimos.

Ryan e Timmy ficaram onde estavam enquanto Sean, o maior dos três, voltava para o caminho principal pelo velho atalho da serraria e percorria cinco quilômetros a cavalo antes de chegar a um telefone.

—Tocaram o corpo?

Todos negaram sacudindo energicamente a cabeça.

—Eu me aproximei —disse Ryan—. A uns metros. Não parecia de verdade, sabe? O urso podia voltar e, bom, eu não queria ir. —olhou as mãos que mantinha entrelaçadas com força.

Quinn se aproximou e deu a Ryan um apertão no ombro até que o menino o olhou.

—Fizeram o correto.

Levantou-se e lhe soaram as articulações pela posição que tinha mantido tanto tempo, um aviso de que aquele outono faria quarenta anos.

—Obrigado, juiz —disse Quinn, virando-se para olhar Richard Parker.

Uma mulher loira vestida impecavelmente, de grandes olhos verdes, estava junto a Parker e olhava com expressão vazia. A mulher de Parker? Quinn estava surpreso porque não a tinha ouvido chegar.

—Senhora Parker? —saudou, estendendo a mão.

Ela a estreitou, com uma força surpreendente para uma mulher de aspecto tão frágil. Tinha os dedos gelados, embora as temperaturas tinham subido bastante desde que, pela manhã, ele visse a vítima.

—Delilah Parker — disse, com uma voz suave e serena.

—Senhora. Agente Especial Peterson.

—Preparei limonada e um bolo de banana na cozinha, se querem passar um momento.

Quinn estava a ponto de rechaçar o convite quando interveio Nick.

—Obrigado, senhora Parker, agradecemos muito sua hospitalidade.

Sorriu a Nick.

—Desculpem. Vou preparar uma bandeja —avisou, e se afastou depressa.

Quinn arrastava os pés enquanto caminhavam de volta à casa seguindo o juiz Parker.

—Temos que voltar para o monte —disse.

—Há coisas às que não se pode dizer que não. E um convite da senhora Parker a comer é uma delas.

—Jogando com a política —murmurou Quinn, com tom sarcástico.

—Dez minutos me economizam muitos meses de dores de cabeça. Acredite-me. Eu também declinei a primeira vez — disse Nick, e entreabriu os olhos.

Quinn não sabia muito bem o que pensar da família Parker. Embora o juiz se reunisse com eles na sala de jantar, Quinn observou que ele e sua mulher praticamente não se dirigiam a palavra.

A improvisação da senhora Parker era um acerto muito elaborado. Serviu a limonada em copos de cristal e o bolo de banana com nata fresca batida em pratos de porcelana da China. Quinn se sentia incômodo com tanta formalidade, mas dava a impressão de que Nick tomava com calma. Quando Quinn a felicitou por sua bonita casa, ela sorriu, feliz.

A Mulher Perfeita de Montana, pensou ele, ocultando um sorriso.

Nick cumpriu com sua palavra. Dez minutos mais tarde, já voltavam para o estábulo para fazer moldes dos rastros dos cavalos antes de ir-se.

—O que acontece a mulher do Parker? —perguntou Quinn enquanto fechava a porta da caminhonete do Nick—. Algo muito formal para um lanche ao meio-dia, não acha?

Nick deu de ombros enquanto punha o motor em marcha. Acelerou pelo comprido e sinuoso caminho que ia de casa dos Parker até a estrada principal.

—Gosta de fazer-se de anfitriã. Declinei seu convite a primeira vez que vim faz anos porque lhes tinham roubado um par de cabeças de gado. Depois de que me nomearam xerife, o juiz Parker me explicou que sua mulher toma a hospitalidade muito a sério e disse que me agradeceria isso se em futuras ocasiões aceitasse seus convites.

—Teria que me haver dito que Parker é juiz. Não recordava que fosse advogado.

—Por aquela época não exercia. Estava na Junta de Supervisores do condado. Agora é membro do Tribunal Superior de Justiça do estado. Diz-se que é um dos candidatos ao Tribunal de Apelações.

—É um grande salto.

—Tem amigos em lugares muito importantes —disse Nick, dando de ombros.

—Genial —disse Quinn, com um toque sardônico.

—Não estará pensando que o juiz Parker tem algo que ver com o acontecido com estas garotas.

Quinn não disse uma palavra durante um comprido minuto.

—Não sei —disse, sinceramente—. Não temos testemunhas, e Miranda só tem impressões vagas sobre a altura e os traços do assassino.

O Açougueiro não só mantinha suas vítimas encadeadas ao chão mas também lhes enfaixava os olhos. E Miranda jurava que o reconheceria pelo cheiro, embora o cheiro de um homem distaria muito de ser prova suficiente para condená-lo. Necessitavam provas mais sólidas.

Quinn não percebeu do muito que tinha saudades de Miranda até depois de havê-la visto aquela manhã. Teria querido tocá-la, assegurar-se de que ainda estava ali, em carne e osso, que não era um sonho mais.

—Levou-nos até o barraco onde esteve seqüestrado —seguiu Nick—. Nos levou até onde estiveram as irmãs Croft. Miranda nos conduziu até mais provas do que você ou eu poderíamos fazer sozinhos.

Quinn sabia, e sabia por que. Miranda teria sido uma excelente agente do FBI, pelas mesmas razões que, muito provavelmente, a teriam matado.

Algo impulsionava Miranda, incansável, sem vacilações, na busca de um assassino. Mas estava obcecada com o Açougueiro. Aquele caso a havia corroído até consumir sua existência. Quinn não o reprovava. Ah, quem se atreveria a reprová-la? Aquele canalha lhe tinha destruído a vida. Miranda tinha que reconstruí-la, peça a peça. E, por assombroso que parecesse, aquele processo a tinha convertido em uma mulher extremamente forte. Já não era uma vítima e sim alguém a quem Quinn admirava por sua capacidade para recuperar-se.

Apesar de ter lutado com a violação e as torturas melhor que qualquer vítima que ele tivesse conhecido, Miranda não tinha sabido sobrepor-se à culpa do sobrevivente. Culpava-se pelo assassinato de Sharon, e sua decisão de ingressar no FBI respondia mais a uma necessidade de vingar Sharon que converter-se em agente. E, ao final, sua necessidade de vingança acabou por aparecer nas provas psicológicas. Quinn tinha dado a cara por ela uma e outra vez, mas ante os resultados de várias sessões com o psiquiatra, teve que reconhecer que Miranda não estava preparada.

Passou uma mão pelo rosto e fechou os olhos. Tinha insistido em ser ele quem lhe desse a notícia. Porque ele a tinha amado e porque, de saída, graças a suas recomendações, além de suas qualificações, ela tinha ganho a admissão na Academia.

Não tinha ido nada bem.

Nunca esqueceria seu olhar ao sentir-se traída, em seus olhos azuis, quando lhe comunicou que estava fora da Academia. Já tinham passado dez anos? Por Deus, como tinha saudades.

—Merda —balbuciou Nick ao frear bruscamente. Quinn se sacudiu no assento do passageiro e abriu os olhos.

Havia ao menos trinta jipes, caminhões e carros estacionados ao longo da Rota 84. Quinn deu uma olhada às imediações.

—Por fim Miranda achou a razão. Seu jipe não está aqui.

Nick olhou Quinn enquanto virava brandamente para o velho atalho da serraria.

—Não terá entrado diretamente?

—Você disse que o pessoal não autorizado não podia usar o caminho velho —disse Quinn—. Eu...

—Quinn, ela está autorizada. É a coordenadora da Unidade de Busca e Resgate, do escritório do Xerife. —Nick fez uma pausa—. Miranda não quer que a protejam, assim será melhor que renuncie.

—Não tem nada a ver com o amparo e todo que ver põe em xeque a investigação.

—Miranda conhece estes bosques melhor que ninguém, incluindo a mim. Surpreenderia-me que não tivesse memorizado cada monte e cada sarjeta. Se até tem um fodido mapa na parede de seu quarto. Dorme e acordada com essas tachinhas vermelhas olhando-a, a recordando que sobreviveu. —Nick respirou fundo—. Agora são sete. Sete tachinhas.

Quinn tinha se informado da relação entre Miranda e Nick por uma companheira, Colleen Thorne, ao voltar da investigação do assassinato das irmãs Croft. Anos depois que Miranda deixasse de lhe falar e se negasse a vê-lo, ainda lhe doía imaginá-la com outro homem. Embora se tratasse de um homem que ele apreciava e respeitava.

Maldita seja, como a tinha amado! Poucas mulheres se podiam comparar com Miranda. Sua intensidade, sua risada, sua força, seu acusado sentido do bem e do mal. Tudo em Miranda era apaixonado, desde como vivia sua vida até sua incansável luta pela justiça.

Irritava-o e lhe doía que Miranda tivesse acudido a Nick quando esteve preparada para outra relação. Ela o tinha obrigado a lhe dar espaço e, contra seu próprio julgamento, ele fez conta. Mas nunca mais voltaria para o Quântico, nunca lhe devolveu as ligações nem aceitou que ele tivesse tomado a única decisão possível. E então começou a sair com Nick.

Quinn Peterson não queria saber nada dessa relação, mas não pôde deixar de perguntar.

—O que aconteceu?

—O que?      

—Por que romperam?

Nick deu de ombros.

—Muitas coisas. Sobre tudo porque eu não suportava a idéia de não poder protegê-la.

—Hmm. —Miranda não necessitava amparo, exceto de si mesma. O que precisava era superar a culpa. Mas nunca reconheceu sua obsessão, e muito menos fez algo por lhe pôr fim.

—Acredito que a gota que encheu o copo foi que eu queria levá-la de Montana —disse Nick—. Eu podia ser policial em qualquer lugar. Sempre pensei que Texas seria um lugar agradável para viver. Faz muito mais calor ali que no vale Gallatin.

—Já o imagino com um chapéu branco desses de um metro de altura —disse Quinn, com uma meio sorriso.

—Miranda não queria ir. Está decidida a fazer o que puder para proteger às mulheres do Bozeman. Dá aulas de defesa pessoal todas as semanas na universidade. Coordena a Unidade de Busca e Resgate, e isso não se limita às universitárias desaparecidas, mas sim inclui excursionistas perdidos, esquiadores apanhados por uma avalanche, qualquer coisa. O ano passado, duas meninas pequenas se afastaram um pouco de seu acampamento justo deste lado da fronteira com Wyoming, no Yellowstone. Miranda as procurou, encontrou-as e as devolveu sãs e salvas.

Quinn não disse uma palavra. O que podia dizer? Não podia reclamar nada de Miranda, nem tinha direito a inteirar-se de sua vida na atualidade. Mas, porra, vontades não lhe faltavam. Queria saber tudo o que tinha vivido durante os dez anos transcorridos da última vez.

—Obrigado por vir, Quinn —disse Nick, ao fim de um momento—. Sei que não é fácil para você trabalhar com ela.

Quando Nick deteve a caminhonete atrás do jipe de Miranda, Quinn disse:

—Não tenho problemas para trabalhar com o Miranda, mas se passar da raia teremos que relevá-la.

—De acordo.

Desceram da caminhonete e a primeira pessoa que viu Quinn foi ela. Estava de pé em uma borda, com as mãos nos quadris.

—Onde esteve? —Desceu de um salto pela parede e se deteve ante os dois homens. Tinha a mandíbula tensa—. Disse duas horas. Passaram quase três!

Embora estivesse pálida e magra, com seu profundo olhar azul marcado por olheiras, Miranda era uma mulher bela. Um núcleo de pura energia e força mal contida que Quinn sempre tinha admirado.

—Fomos interrogar os meninos que encontraram o cadáver —disse Nick.

Quinn queria perguntar a Miranda que diabos importava a ela, mas mordeu a língua. Ela formava parte da investigação, ao menos por agora. Nick já tinha definido seu papel e Quinn não pensava intrometer-se.

No momento, não, ao menos.

 

Assim que o xerife havia voltado para trazer os federais.

Era fácil identificar o morador da cidade, todo arrumado com seu jeans novos, as botas rígidas e a jaqueta recém estreada. Cada vez que vinham os senhores importantes do governo, não encontravam pistas.

Porque ele era mais preparado que todos eles. Este recordavam de antes, de fazia muito tempo. Tinha demonstrado ser um digno rival naquele episódio... Tinha chegado muito perto, mas as árvores lhe impediram de ver o bosque.

Deu-lhe vontade de rir com seu trocadilho. Eram todos uns néscios. Todos.

Exceto ela. A que tinha escapado.

Ficou tenso, e o cavalo que montava se agitou, nervoso, no atalho do monte, muito mais acima de onde se apinhavam os policiais. Obrigou-se a relaxar-se, deu uns tapinhas no cavalo até tranqüilizá-lo. Acariciando o animal conseguia conter sua raiva.

Tinha tanta vontade de matar Miranda Moore que já sentia seu corpo esmagado sob o seu. Imaginava-a só a centímetros de sua cara. Agarrando-a pelo cabelo e puxando sua cabeça para trás. Deixando nu seu branco pescoço. Sentindo como tremia inteira quando ele desembainhava a faca e a aproximava da garganta.

Um corte rápido e seu sangue quente se derramaria sobre ele e sobre a terra.

Mas tinha escapado. E ele tinha perdido. Seu fracasso o atormentava, recordava-lhe que não era perfeito. Nunca deveria ter procurado uma vítima da localidade. Em qualquer caso, não era ela a quem desejava. Era a loira que a acompanhava. Não teve mais remédio. Se quisesse à loira, tinha que levar sua amiga.

Ainda tinha vontade de matá-la, mas não podia.

Ao final, ela tinha ganhado.

Doze anos antes, seu maior temor tinha sido que o apanhassem graças a Miranda Moore. Teria visto ou escutado algo que poria à polícia sobre sua pista? Tinha agido com tanta cautela que acreditou que ela não sobreviveria. Sentiu-se fraudado ao vê-la saltar do alto da ravina até o rio Gallatin, embora também estivesse seguro de que não sobreviveria.

Ao ver as notícias no dia seguinte, surpreendeu-lhe descobrir que seguia com vida.

Entretanto, passou o tempo e foi relaxando. A mulher não sabia nada, ou não o recordava, ou nunca o tinha visto.

Não, agora não podia matá-la. Mas se aproximasse muito, isso mudaria.

Olhou seu relógio e franziu o cenho. Não tinha previsto andar por aí a essas horas. Esporeou brandamente o cavalo e seguiu pelo estreito atalho em direção ao sul.

 

—Todo mundo entende o que tem que fazer? —perguntou Nick, depois de detalhar as responsabilidades da equipe de busca. Os pares estavam formados por um ajudante jurado do xerife do condado de Gallatin ou um policial de Bozeman, e um voluntário. Três dos quatro policiais em atividade estavam presentes, alguns preocupados, outros excitados, quase todos tomando a sorvos o café que tinha enviado o pai de Miranda.

Miranda olhou os homens e mulheres que compunham a equipe de busca. Procurariam provas. Cápsulas de bala, pista de pegadas, farrapos de roupa. Algo que pudesse conduzi-los até o assassino.

Surpreendeu o ajudante do xerife, Sam Harris, olhando-a, e virou a cabeça. Não gostava daquele homem que tinha perdido contra Nick nas eleições a xerife fazia mais de três anos, seis meses antes que morreram assassinadas as irmãs Croft. Quando Nick nomeou o ajudante de cinqüenta anos primeiro oficial, Miranda lhe advertiu que cometia um engano. Harris tentaria sabotar todas suas oportunidades. Nick não estava de acordo, e Miranda guardou suas opiniões.

Era uma e meia da tarde. Restavam menos de cinco horas de luz.

Miranda formaria par com Cliff Sanderson, um policial de Bozeman que respeitava e que lhe ajudava a dar as aulas de defesa pessoal na universidade. Saudou-o de longe ao cruzar o claro e lhe sorriu, com essas covinhas que lhe tiravam dez anos dos trinta que tinha.

—Nick —disse, quando se aproximou para receber suas instruções — quero os quadrantes c um até c dez. Sanderson e eu podemos cobri-los e acredito que...

—Você deveria ficar aqui —disse Quinn, cruzando os braços.

Lançou-lhe um olhar furioso, sentindo que ele, com seus olhos escuros e intensos, tentava lhe ordenar que fizesse o que mandava. Miranda não pôde evitar pensar nas muitas vezes que tinha admirado essa intensidade, como se um só olhar pudesse derretê-la como manteiga em uma prancha quente.

Mas desta vez o ignorou.

—Do c um ao c dez — repetiu. Carregou a mochila aos ombros e apertou o cinturão. Levava o 45 ajustado a região lombar para maior comodidade.

—Leva uma arma —disse Quinn, com os dentes apertados.

—Você também —replicou ela sem vacilar, e se arrependeu em seguida de mostrar-se ofendida—. Tem algum problema? —Há, agora recorria ao sarcasmo, um sinal inequívoco de insegurança.

Olhou a seu redor. Os policiais e voluntários tinham baixado o volume da conversa, e seu interesse se derrubava sobre aquela discussão. Entretanto, não desejava ser o centro de atenção.

—Nick —disse, em voz baixa.

—Você vai com o Peterson —disse este, também em voz baixa e com olhar esquivo.

—O que? —exclamou ela, esquecendo do público.

—Vai com o Peterson ou não vai. Pode pegar o quadrante c.

Tinha o quadrante que queria, mas não o companheiro. Esteve a ponto de dizer que não iria.

Mas isso era precisamente o que queria Quinn Peterson.

—De acordo —disse, com a mandíbula tensa.

Deu meia volta e o viu. Era ele. Elijah Banks. Cabelo comprido e sujo atado com uma tira de couro, óculos de aro metálico, uma cara magra sobre um esqueleto adoentado. Nunca esqueceria esse presumido jornalista que tinha convertido sua vida em um inferno justo quando ela acreditava que seu inferno ficava para trás.

Endureceu a mandíbula e se aproximou da borda do claro onde estava Eli, com a câmara no pescoço, escrevendo rapidamente quem sabe que lixo em uma de suas famosas cadernetas.

—Banks! —Este levantou a vista e sorriu. Miranda parou justo frente a ele, as botas quase tocando-se, e lhe agarrou a caderneta das mãos. Sem olhar o que tinha escrito, rasgou as páginas e atirou a caderneta ao barro, depois do qual rompeu as páginas em pequenas partes.

Miranda via pontos vermelhos cada vez que pensava em Banks. Cada vez que via seu patético nome no jornal. Cada vez que recordava os segredos, seus segredos, que ele tinha escrito para que todos lessem e se compadecessem.

Eli ergueu as mãos e deu um passo atrás.

—Ouça, isso que acaba de destruir é de minha propriedade. —Esse maldito sorriso falso nunca lhe apagava da cara.

—Quem foi o imbecil que o deixou entrar? A cena do crime tem acesso proibido. —Olhou a seu redor, molesta com o revôo que estava causando, mas incapaz de reprimir-se. —chegou e entrou como se estivesse em casa, não é?

Nick lhe tocou o cotovelo, como que pedindo que o deixasse, e depois se situou entre ela e o repórter e disse:

—Eli, tem que ir.

—Xerife —replicou este, com um tom zombador e condescendente que Miranda desprezava—, admite que esta manhã o filho do juiz Parker encontrou o corpo de Rebecca Douglas?

—Sabe que não posso admitir nada até que se identifique o corpo. —Nick sentia a tensão junto a Miranda. Porra, como era possível que a imprensa se inteirasse tão rápido?

—Então, encontraram um corpo?

Miranda tinha vontades de gritar a Eli Banks, dizer que Rebecca não era um corpo e sim uma pessoa. Mas isso era o que ele queria. Uma reação. Miranda tragou a raiva e se virou bruscamente, só para encontrar-se cara a cara com Quinn. Ele a agarrou pelo cotovelo para que não tropeçasse.

Ela o olhou, surpreendida.

—Não vale a pena — murmurou Quinn.

Miranda não disse uma palavra. Tampouco teria podido. Encontrar-se tão perto de Quinn a desconcertava. Quando ele a olhou, fixamente, com a familiaridade de um amante, ela não pôde evitar recordar que, fazia muito tempo, ela o tinha amado, e que ele a tinha amado.

Ao menos isso era o que lhe havia dito.

—Vamos — disse finalmente, e passou a seu lado. Agora respirava mais tranqüila.

Nick viu que Miranda partia com Quinn e se voltou para Eli.

—É minha investigação, Eli —disse —. Está violando a proibição de pisar na cena do crime. Farei uma declaração esta noite.

— Genial. Depois de que o jornal tenha fechado as manchetes. Bom plano. —Tirou outra caderneta de sua pequena mochila e a abriu—. Por que não me economiza a confusão de ter que escrever a respeito de sua escassa cooperação e me dá a informação que sabe que terá que compartilhar comigo mais tarde?

Nick mordeu o interior da boca para abster-se de dizer algo que de maneira nenhuma quereria ver reproduzido em letra de imprensa.

—Não posso confirmar que o corpo de uma moça encontrado esta manhã seja, efetivamente, Rebecca Douglas. O corpo não foi identificado ainda, e agora esperamos a chegada do forense para uma análise e posterior identificação.

—Mas foi o Açougueiro, correto?

—O relatório do forense deveria ser concludente para a confirmação dessa possibilidade.

—Venha, Nick. Sejamos francos. Você sabe que o Açougueiro tinha Rebecca Douglas em seu poder.

—Não me pressione, Eli. Lembra que os pais das irmãs Croft se inteiraram da morte de suas filhas pelos malditos jornais.

Eli teve o acerto de mostrar-se envergonhado.

—Ok, oficiosamente. Juro que não escreverei nada até que o forense confirme.

—Não conseguirá nada, Eli. Já conhece o velho dito. Quem te engana uma vez... —Três anos antes, Nick lhe tinha proporcionado um retalho de informação, quando encontraram às irmãs Croft. Nunca voltaria a confiar nesse casulo depois de ter visto sua declaração confidencial no jornal.

—Venha, Nick — insistiu Eli—. Uma entrevista. Uma entrevista para o jornal e esperarei como um menino bom até que faça a declaração esta noite.

—Agente — disse Nick olhando Booker—. Tire este homem de minha cena do crime.

Elija Banks tinha esfregado com sal cada uma de suas feridas, começando pela publicação de uma foto do momento em que a subiam a um helicóptero, doze anos antes, depois de sobreviver com muita dificuldade de seu salto ao rio Gallatin. O que para ela tinha sido uma experiência aterradora, humilhante e destrutiva, o tinha feito merecedor de um prêmio em algum ignóbil concurso jornalístico. Pior ainda, a foto foi publicada nos grandes jornais de todo o país.

Não suportava esse homem. Entretanto, às vezes suspeitava que não o detestasse porque levasse a cabo seu trabalho da maneira mais repugnante possível, mas sim porque apenas vê-lo recordava o dia mais horrível de sua vida, que ele tinha imortalizado em uma foto instantânea.

 

O sol se pôs atrás das cúpulas de Gallatin.

Miranda estava intumescida, mas o repentino mergulho nessas águas geladas lhe recordou que tinha frio. Muito frio.

Sharon estava morta. Tinha-lhe disparado nas costas. E agora ia atrás dela.

Corre, Miranda, corre!

Rolou monte abaixo até que pôde agarrar-se de uma pequena árvore. O rio estava agora mais perto. O ruído dos rápidos se percebia como um zumbido ininterrupto que deixava um eco no flanco da quebrada.

Onde estava ele? Estava perto? Tinha-a na mira de seu rifle?

Não se atrevia a olhar atrás. Se o via, temia ficar paralisada, como um cervo deslumbrado pelos faróis de um carro. E não importaria que se detivesse. Mataria-a e deixaria seu corpo ali jogado para que o comessem as bestas carniceiras, bicada por abutres, carne de pumas...

Não! Basta!

Sharon.

Não queria deixar Sharon atrás, mas Sharon estava morta, e o assassino a teria matado também a ela se tivesse ficado a seu lado.

Quando lhe tirou as correntes que a mantinham cravada ao chão, pensou que sem dúvida a mataria. Estava muito débil. Ele lhes trazia água e pão duro para comer, alimentava-as depois de violá-las. Primeiro, Sharon.

Depois ela.

Basta!

Mas não podia parar. O amontoado de imagens a perseguia enquanto corria, tropeçando em sua carreira monte abaixo, seguindo a chamada do rio.

Se sobrevivesse, voltaria onde estava Sharon. Tinha que voltar. Não podia abandoná-la a intempérie, no meio do bosque. Sharon merecia mais que isso.

Era sua melhor amiga.

De repente, a inclinação se fez mais pronunciada. Miranda tentou parar, mas o impulso que levava a empurrou para diante. Caiu de joelhos e começou a rolar. O rio e a umidade, o rugido da água. E logo começou a cair... e cair...

Foi uma pura questão de sorte que acabasse na água e não sobre as rochas. Sentia frio enquanto corria montanha abaixo. Nada a tinha preparado para a água gelada do rio. Tocou as rochas e o fundo arenoso.

Estava a ponto de afogar-se.

Depois de tudo o que tinha vivido, ia afogar-se no rio, o rio que, conforme havia dito a Sharon, devia as levar a salvação.

Reunindo as forças que restavam, impulsionou-se para cima do fundo e a corrente a lançou violentamente para diante, como a uma boneca de trapo.

Alcançou a superfície, procurou ar. Deixou-se flutuar, deixando que a água a transportasse corrente abaixo, lutando para evitar que a engolissem as violentas corredeiras.

Se aproxime da margem. Bastará chegar à margem oposta, longe dele, e se agarrar a algo. A qualquer coisa.

Uma curva do rio lhe deu uma oportunidade. Agarrou-se nas raízes de umas árvores que lhe arranharam o rosto. Suas mãos escorregaram, e as raízes ficaram atrás.

Estava tão débil. Possivelmente morrer ali seria o melhor. Não queria recordar. Quanto tempo as tinha tido cativas? Ao menos seis dias. Sete? Oito? Tinha perdido a noção do tempo, dos dias e as noites.

Quem os levaria até onde estava Sharon?

Chocou-se contra uma rocha e gritou de dor, mas em seguida percebeu de que já não se movia. A corrente seguia querendo empurrá-la, levar-lhe rio abaixo. Mas ela se agarrou com força na rocha e, finalmente, pôde ver onde estava.

A um metro a sua esquerda viu um álamo caído com uma parte do tronco na água. Os ramos atuavam como recolhedores de desfeitos e convertiam a borda em um dique natural.

A um metro da borda.

Tinha deslocado quilômetros pelo bosque, descendo o monte e o rio a tinha arrastado. Agora podia mover um metro mais.

Tinha que fazê-lo. Por Sharon.

Miranda respirou fundo e reuniu suas forças. Inclinou-se para o dique. Um, dois.

Três.

Esperneou e abafou o grito que quis escapar de sua garganta ao acreditar que tinha perdido o apoio nos ramos.

Conseguiu. Chocou-se contra o dique e não o soltou. Lentamente, saiu do rio. Tão lentamente que acreditava que morreria de hipotermia. Na luz morrente do dia tinha a pele de cor azul. Possivelmente era azul.

Não soube quanto demorou a sair da água.

Duas horas depois, encontrou-a a equipe de resgate.

 

Miranda secou o rosto umedecido pelas lágrimas, recriminando-se por deixar que lhe afetasse a frívola atitude do repórter, por fazê-la recordar o dia em que ela viveu e Sharon morreu.

—Miranda, quer falar? —perguntou Quinn.

Quase tinha esquecido que lhe seguia os passos.

—Não.

Por Rebecca, Miranda estava disposta a suportar a companhia do Quinn. Os mortos mereciam justiça e, por muito que pesasse, tinha que reconhecer que Quinn era um tipo muito eficiente em seu trabalho.

— Encontra-se bem? —perguntou, com tom preocupado.

—Estou bem. —Miranda teve que recordar-se que não se importava.

Houve um tempo em que sim importava. Ao menos isso acreditava ela.

Não recordava em que momento o respeito e a avaliação que tinha por sua atitude decidida se converteram em sentimento amoroso. Não tinha acontecido da noite para o dia.

Ele a escutava sem tentar tranqüilizá-la. Ao contrário, estimulava-a e, apesar de que passavam os dias sem que dessem com o assassino de Sharon, Miranda tinha a sensação de ter obtido algo.

Teve que passar um mês depois de que retiraram Quinn da investigação por falta de pistas e sem que ele pudesse fazer nada mais, para que Miranda começasse a suspeitar que albergava sentimentos românticos para o agente do FBI. Na realidade, não se tinha dado conta de que tinha saudades até que ele apareceu na hospedaria. Era um sábado pela manhã e tinham passado três meses do seqüestro.

—Olá.

Nada a teria surpreendido mais que ver Quinn Peterson entrar no salão onde estava ela sentada a sós, olhando pela janela para o gigantesco canyon mais abaixo.

—Agente Peterson... quero dizer, Quinn. Não sabia que viria — disse, e o coração lhe pulsava com força—. Têm informação? Encontraste-o?

Ele negou com a cabeça.

—Não há nada novo. Não tínhamos grande coisa com que trabalhar.

—Sei. Só que esperava... —disse Miranda, e suspirou—. E, então, por que vieste?

Ele não parava de mover-se, e parecia menos seguro que o habitual.

—Queria... queria ver você.

A ela acelerou o coração. Pam-pam. Pam-pam. O martelar nos ouvidos, e Miranda estava segura de que tinha entendido mau.

—A mim?

—Não parei de pensar em você.

—OH. —Aquilo soava como uma estupidez.

—Sei que isto é inapropriado. Só me diga que vá e não voltarei a te incomodar.

Não quero que vá.

Não sabia que fazia, mas nesse momento teve a certeza de que se o agente Peterson saísse de sua vida lamentaria para sempre.

—Não quero te pressionar, Miranda. —sentou-se frente a ela e fez gesto de lhe agarrar a mão, mas não a agarrou.

—Não tenho medo —disse ela, olhando sua mão. Possivelmente estivesse assustada. Só um pouco.

E então o olhou nos olhos e viu empatia, preocupação e afeto, mas não viu compaixão.

Compaixão, nunca. Agarrou-lhe a mão e a apertou.

—Iremos pouco a pouco.

—De acordo.

Pela primeira vez do seqüestro, Miranda teve a sensação de que ficaria bem. Com o tempo, conseguiria.

E o tinha conseguido, apesar de Quinn Peterson.

Agora devia concentrar-se no importante, seguir os últimos passos de Rebecca Douglas. Seu passado com Quinn Peterson era precisamente isso, passado.

A tarefa exigia observar ao seu redor em busca de ramos ou plantas quebradas recentemente, farrapos de roupa, algo que ajudasse a recriar a fuga de Rebecca. Algo que os levasse até o homem que a tinha caçado como um animal para depois degolá-la.

Embora devido à chuva da noite anterior e ao terreno escarpado, quase se dava por sentado que aquele dia não teriam êxito a esperança era algo que Miranda nunca perdia. Graças à esperança podia seguir, dia a dia, ano após ano, cada vez que se produzia um seqüestro ou um assassinato. A esperança de que encontrariam o Açougueiro e de que, ao final, a justiça triunfaria.

Se perdesse a esperança, também perderia o juízo. Então Quinn sacudiria a cabeça com gesto de suficiência e diria:

—Tinha razão.

—Eu irei pela esquerda —avisou Miranda, livrando-se de suas reflexões—. Você vai por ali. —Assinalou o lado oposto do estreito atalho.

—Para —ordenou ele.

Ela se voltou a olhá-lo. Tinham percorrido um trecho bastante comprido do monte, e já não havia ninguém perto; as vozes se perdiam a suas costas.

Maldito seja, que bonito era com seu cabelo moreno e sua mandíbula forte e angulosa. Até a curvatura ligeiramente torcida de seu nariz era sexy. Mas não ia deixar que seu atrativo físico torcesse sua decisão.

—O que? —perguntou, com os dentes apertados.

—Você não dá as ordens, Miranda. Eu estou aqui, supõe-se que oficialmente, para ajudar o xerife em sua investigação. Não posso permitir que comece a dar ordens.

— Vamos esclarecer uma coisa, agente Peterson —disse ela, com rosto inexpressivo —. Pode ser que seja o grande agente federal que veio salvar os imbecis do campo, mas não cometa o engano de pensar que aqui tem algum poder real. Eu vivo e trabalho aqui, e aqui tenho meu lar. Esta gente daqui me obedece . Confiam em mim. Não me jogue em cima sua classe porque converterá sua vida em um inferno.

Uma expressão de raiva lhe cruzou o rosto e apareceu aquele tic familiar em sua mandíbula. Mas Miranda viu em seus olhos que ele sabia que tinha razão. Bem. Ia voltar para o rastreamento quando uma mão a agarrou e a fez virar-se.

Ela o obrigou a soltá-la com um movimento do braço.

—Não me toque —disse, com a voz enrouquecida. O coração pulsava muito forte. Recordava como era tocar-se com Quinn. Suas carícias atrevidas e seus longos beijos. Sentia-se arder com a lembrança de quão explosivos eram quando estavam juntos. De quanto o tinha amado. De como ele fez pedacinhos sua confiança, sua esperança e seu coração.

Demorou muito tempo em deixar que alguém a tocasse. Voltou a sentir-se cômoda com o contato físico mas, embora tivessem passado doze anos, se alguém a tocava quando não esperava, seu medo era evidente.

Odiava o Açougueiro, que lhe tinha roubado tantas coisas.

Quinn a olhou com cara de surpresa e retrocedeu um passo.

—Não faça ameaças que não está disposta a cumprir —disse, e seu tom de voz se parecia com o dela—. Não brigará comigo, porque desejas que se faça justiça tanto como eu. Possivelmente até mais.

Ficaram olhando-se. Ela detestava sua maneira de esquadrinhá-la com seu olhar inteligente, como se pudesse lhe ler o pensamento, ver diretamente em sua alma ferida. Endireitou-se e não fugiu o olhar.

—Como profissional da busca e resgate, sua ajuda é muito valiosa —seguiu ele—, por agora. Mas se acreditar, embora não seja mais que por um momento, que seu comportamento não é profissional ou que poderia pôr em perigo esta investigação, pedirei que te afastem.

A mandíbula de Miranda tremeu. Ardia de vontade de responder mas deu meia volta para controlar sua agitação. Não era sua ameaça o que a incomodava e sim, melhor, o fato de que ele seguisse pensando que ela se derrubaria. Durante anos, Miranda tinha experimentado que esse mesmo medo quase lhe paraliva no momento de despertar. Teve uma imagem de si mesma desmoronando-se cada noite quando fechava os olhos.

Mas perseverou. Tinha vivido dez anos sem afundar-se sob o peso de seus medos. Não podia deixar que as dúvidas de Quinn debilitassem sua determinação.

Miranda queria compartilhar suas lutas, mas temia que ele utilizasse suas confidências como desculpa para afastá-la da investigação. Ele tinha usado contra ela tudo o que lhe tinha contado antes do acontecido no Quântico, todos seus medos e inseguranças, e se tinha visto obrigado a expulsá-la da Academia por sua necessidade imperiosa de querer fazer justiça. Miranda tinha aprendido a lição. Não daria a Quinn mais argumentos que pudesse utilizar contra ela mais tarde.

Preferiu guardar silêncio. Não tinha vindo abaixo faz doze anos e não tinha intenção de vir abaixo agora.

—De acordo, agente Peterson —disse, com voz neutra. Afastou-se pelo atalho, concentrada no chão e na vegetação, concentrada em Rebecca. Ouviu que Quinn lhe seguia os passos pela direita. Ouviu-o balbuciar algo mas não entendeu.

Oxalá se tenha chateado, pensou.

Avançaram com cuidado. Miranda levava o mapa. Só falavam para assinalar alguma prova potencial, e Quinn fotografava e etiquetava algo que fosse remotamente relevante.

A quase um quilômetro de onde tinham encontrado Rebecca, Quinn assinalou quatro rastros profundos no lodo.

—Deve ter caído aqui —disse, e tirou uma foto do lugar.

Miranda olhou os rastros e imaginou Rebecca nua, tremendo de frio e pânico. E de esperança. Porque sem esperança, não teria tentado escapar.

Miranda fechou os olhos. Se estivesse sozinha nesse momento, teria retrocedido no tempo e recordado as vezes que ela caiu. Cada vez se dizia que não podia seguir. Cada vez voltava a levantar-se porque tinha a esperança de salvar-se.

—Miranda —disse Quinn, com voz fraca.

Abriu os olhos em seguida. De todas as pessoas imagináveis, Quinn não devia ser testemunha de como ela revivia o passado. Sabia muitas coisas a respeito dela, pelo que tinha vivido. Com o tempo, chegou a acreditar que por isso a tinha expulso da Academia. Quinn temia que perdesse as estribeiras no meio de uma operação e pusesse em perigo à equipe e a si mesma, se de repente ficava presa em um de seus pesadelos.

Tinha que guardar seus temores.

—Estava chovendo —seguiu Miranda, antes que Quinn interrompesse sua reflexão—, e ele tinha que segui-la por trás. O ruído da tormenta lhe dificultaria ouvi-la, assim não se afastaria muito dela. —A diferença de quando perseguia Sharon e a ela, pensou. Nessa ocasião ele corria em uma trajetória paralela à sua.

—É provável que tenha razão —disse Quinn, olhando-a com uma expressão estranha.

Ela não quis ver nessa expressão nada bom nem mau, e voltou sua atenção ao mapa. Riscou uma pequena marca vermelha ali onde Rebecca tinha caído.

—Olhe este terreno —disse, e se notava excitada, apesar da presença de Quinn.

Quinn olhou por cima de seu ombro e ela tratou de não respirar junto a esse cheiro muito masculino que ainda lhe era familiar.

— Este ponto? Isto é uma montanha.

—Sim, mas aqui —disse ela, assinalando—, há um claro. Esta área foi destruída faz muitos anos, mas voltaram a plantar. Fará uns oito ou dez anos. Estas árvores ainda são pequenas. Este atalho desemboca no claro, assim acredito que vinha daqui. Mas deu voltas e voltas e não correu em linha reta. Estava muito assustada, e não pensava com claridade. —Sacudiu a cabeça, querendo livrar-se mentalmente do medo da Rebecca—. Mas nós podemos pegar um atalho e chegar ao claro em menos de trinta minutos.

—Não —disse Quinn, sacudindo a cabeça—. Ficamos no caminho que seguiu Rebecca. Estamos procurando provas.

Ela apertou os punhos, frustrada, e se virou para encará-lo.

—Podemos voltar pelo caminho que tomou ela, mas estou convencida de que cruzou o claro. Por isso ele sabia onde estava. Com a chuva e a escassa visibilidade, não podia arriscar-se a lhe dar muita vantagem. E o terreno teria sido mais um obstáculo para ela que para ele, posto que ia descalça.

A emoção de Miranda ia aumentando à medida que tudo se esclarecia em sua cabeça.

—Não correu muito momento. Não podia. Ele não teria se arriscado a isso, porque estava obscurecendo e a chuva aumentava. O que significa que o barraco está perto. Tem que estar perto!

Quinn ficou olhando um momento comprido. Acaso se mostraria contrário a sua hipótese? Miranda não podia acreditar. Conhecia essas terras como a palma de sua mão; sabia como pensava o Açougueiro. Sabia que vivia para a caça mais que para a violação. Entretanto, a nenhuma delas tinha dado uma grande vantagem. Dois minutos. Havia dito a Sharon e a ela. Dois minutos, e se converteram em presas para abater.

Estava a ponto de exigir a Quinn que demonstrasse que seu plano era melhor. Confiava em sua própria experiência e formação para fundamentar seu ponto de vista. E ele disse:

—De acordo.

Antes que trocasse de parecer, ela sorriu.

— Me siga —disse. Separou-se do estreito atalho e cortou através de árvores e matas.

Por experiência, Quinn sabia que era provável que Miranda tivesse razão. Era um raciocínio válido e confirmava que, ao menos no que se referia à busca, ela seria mais uma ajuda que um estorvo.

O ar estava mais frio, úmido e escuro no meio do bosque. O cheiro de umidade que emanava da terra depois da tormenta fez Quinn pensar na vida e na morte, como se o bosque tivesse renascido, lavado pela chuva.

Se encontrassem a cabana onde o Açougueiro tinha encerrado Rebecca, podia ser que encontrassem pistas que os conduzissem até ele. Durante anos tinha sido muito escorregadio; não se podia deduzir que seguisse um padrão em seus seqüestros, mas sim que atuava na primavera. Abril, maio e junho.

Doze anos antes não tinham detectado um padrão de comportamento. Quando Miranda e Sharon foram raptadas, o mês do ano não teve uma relevância especial. Entretanto, em sua investigação do seqüestro das irmãs Denver, a companheira de Quinn, Colleen Thorne, deu-se conta de que o dado de que atuava na primavera era evidente. Todas as vítimas do Açougueiro tinham desaparecido na primavera.

Tinham consultado com o Hans Vigo, o principal perito do FBI em perfis psicológicos, e este declarou que a estação tinha uma importância especial para o assassino, ou que algo em seu trabalho ou vida pessoal lhe impedia de matar o resto do ano.

Possivelmente fosse simplesmente uma questão de conveniência. A temporada de caça em Montana se abria sobre tudo nos meses de outono. Na primavera seria menos provável um encontro acidental com alguém porque os caçadores autorizados não saíam em busca de presas. Entretanto, a chave da psicologia deste assassino em concreto, disse Vigo, era que precisava exercer um controle total. Quando Quinn perguntou por que renunciava a esse controle dando às vítimas tempo para escapar, Vigo lhe recordou que as mulheres não controlavam absolutamente sua situação. Estavam nuas, feridas, debilitadas por uma dieta a base de pão e água, e a vantagem de dois minutos não era mais que uma mutreta. Podia as alcançar com facilidade, guardando uma distância suficiente para que a vítima pensasse que podia escapar e, quando se cansava da caçada, entrava em matar.

—É o único aspecto da vida que pode controlar —sentenciou Vigo—. Recordem. Quando o encontrarem, verão que não controla absolutamente sua vida nem seu trabalho.

Isso queria dizer que de pequeno o assassino teria estado submetido a um pai ou mãe dominante e má. Os maus tratos eram de uma vez físicos e mentais, e se ele resistia, o castigo por sua desobediência era severo. Era provável que em algum momento da infância o tivessem encerrado, possivelmente em um quarto pequeno, ou que o tivessem de mãos atadas.

Teria um emprego onde não manteria muito contato com as pessoas. Levianamente, funcionaria com normalidade e não haveria sinais do severo transtorno que sofria, mas não iria bem em situações em que tivesse que estar em contato constante com pessoas.

O Açougueiro não controlaria muito a orientação de sua profissão, mas isso seria sobre tudo culpa dela. Veria-se relegado a trabalhos de menor categoria devido a sua incapacidade para relacionar-se com as pessoas em um contexto cotidiano. Possivelmente tivesse uma tarefa repetitiva, em uma fábrica, onde se repetiam as tarefas, o que lhe provocaria uma grande frustração, posto que aquele homem possuía uma inteligência superior à média. Era possível que trabalhasse ao ar livre, por exemplo, na construção, movendo-se de obra em obra sem estabelecer vínculos estreitos com os colegas de trabalho.

Nunca tinham encontrado um suspeito. Cada vez que desaparecia uma estudante da Universidade de Montana State, interrogavam seus noivos, ex-noivos e professores de faculdade, para em seguida descartá-los como suspeitos. O assassino era um homem dotado de uma força física superior a normal, uma grande paciência e um conhecimento exaustivo do território entre Bozeman e a fronteira norte do Parque Nacional do Yellowstone. Sabia onde se encontrava cada cabana no bosque, cada barraco abandonado, todos os lugares onde poderia ter cativas a uma ou duas mulheres durante uma semana para torturá-las e as violar quando lhe desse vontade.

Nenhum dos homens que tinham interrogado mostravam esse perfil.

Quinn admirava a Miranda por sua maneira de processar mentalmente a informação. E, certamente, nunca tinha duvidado de sua inteligência. O era uma combinação de bom senso conhecimentos e intuição que, a maioria das vezes, orientava-a na direção correta.

Mordeu a língua. Não queria reconhecer que ainda sentia algo por Miranda. Foda, só pensava nela sem parar. Em seus momentos mais frouxos, entre a meia-noite e o amanhecer, era quando sua decisão de não pensar nela fraquejava e então a recordava como era, seu sabor, como lhe sorria quando ele a estreitava.

Não sabia quando se apaixonou por ela. Quando a visitou aquele primeiro sábado depois de que a investigação sobre o Açougueiro se suspendesse por falta de provas, sabia que voltaria para Montana cada vez que tivesse um momento livre. Passava com ela ao menos um fim de semana no mês. Não a pressionava, não podia fazê-lo, mas juntos teceram um vínculo que ele jamais tinha sonhado encontrar.

Inclusive agora, dez anos mais tarde, dava-se conta de que nunca tinha cortado o que os unia. Ainda se sentia atraído por Miranda. Por que a tinha recomendado à Academia, de saída? Se a tivesse aconselhado que esperasse, que se desse um tempo para definir suas opções profissionais, que pensasse no que queria de verdade, tudo o que veio depois poderia ser evitado.

E possivelmente ainda estariam juntos.

Tinha acreditado durante muito tempo que ela voltaria para ele. Seu amor, pensava, era indestrutível.

Equivocava-se. Ela nunca o procurou, nem quis escutar seus motivos e, em troca, tinha acudido a Nick.

Quinn decidiu não pensar em suas frustrações. Não tinha sentido pensar no «que-teria-acontecido-se...» Tinha tomado a decisão mais difícil de sua vida, fazia dez anos e agora tinha que viver com as conseqüências.

Deixou que Miranda abrisse a marcha. Embora lhe custasse reconhecê-lo, sentia-se um pouco incômodo com o fato de não ver o céu. Estavam rodeados por sombras e resultava difícil saber em que direção iam. Ele estava quase seguro de que avançavam em direção nordeste. Mas esse «quase» podia fazer que se perdessem.

Tinha que confiar que Miranda saberia como tirá-lo daquele labirinto.

Passaram quarenta minutos, e Quinn estava a ponto de voltar sobre seus passos quando, de repente, chegaram a um claro alagado pela luz do sol, o qual era alentador.

Até onde chegava a vista, cresciam os pinheiros pesados, de dez a quinze metros de altura, a intervalos regulares. A excitação de Miranda era evidente.

—Me siga —disse, com gesto de impaciência—. Encontremos o lugar onde desemboca o atalho e retornemos.

Seguiram pelas bordas do claro e encontraram o atalho a uns cinqüenta metros.

Quinn se inclinou para examinar uns rastros profundos na terra. A marca alargada no chão indicava que Rebecca caíra de joelhos. Uma pequena árvore tinha ficado dobrada. Teria conseguido levantar-se?

Agora Quinn sabia que o assassino tinha passado por ali. O bosque era muito espesso para seguir sua vítima, a menos que tivesse seguido pelo mesmo atalho que ela. Tirou fotos das provas e depois elevou o olhar.

Miranda tinha desaparecido.

 

Os cabelos da nuca de Quinn se arrepiaram. Onde estava Miranda?

Chamou-a. Levantou-se e a procurou com o olhar, enquanto desencapava seu Sig Sauer, preparado para o que pudesse acontecer.

O assassino teria retornado? A observar a marcha da investigação? Sentiu que o coração se acelerava. Se esse maldito chegasse a tocá-la... Fez um esforço por acalmar suas emoções e se concentrou em procurar Miranda. Estava preparado para chamar pedindo reforços.

— Miranda! —voltou a chamar mais forte. Era uma ordem para que respondesse.

—Aqui. —A voz soava longe. Viu-a de repente, a uns noventa metros mais abaixo, no meio do claro.

Suspirou, aliviado. Tê-la controlada parecia uma tarefa impossível. Esperava que Nick soubesse o que fazia ao contar com ela.

Miranda esperou que chegasse.

—Não vá sozinha por aí —disse ele, seco.

Não lhe fez caso e assinalou:

—Olhe isto.

Quinn olhou o chão. Meio oculto no lodo aparecia uma cápsula de bala dourada.

Quinn tirou uma foto da cápsula, inclinou-se e, com a mão enluvada, meteu-a em uma bolsa de plástico.

Era um achado incrível. Só havia duas cápsulas recuperados que se podiam identificar positivamente como do Açougueiro, ele as recolhia depois de disparar ou as equipes de busca não conseguiam vê-los no meio do bosque. As cápsulas não tinham rastros digitais, por isso era provável que carregasse o rifle com as luvas postas, embora sempre existia a esperança de que o assassino cometesse um engano.

Era um rifle de calibre 270. Por desgraça, era uma arma muito comum utilizada para caçar todo tipo de animais, de modo que só lhes serviria se tinham um suspeito e contavam com uma autorização para inspecionar suas armas. Um perito em balística podia determinar, a partir das cápsulas e as balas, se a arma tinha sido utilizada. Encontrar essa arma era como a proverbial agulha no palheiro. Podia-se dizer que nos territórios de Montana quase todos os homens maiores de quatorze anos eram donos de uma arma como essa.

As provas que recolhessem não lhes serviriam de nada até que dessem com um suspeito, mas qualquer coisa era melhor que nada.

—Quase conseguiu salvar-se —disse Miranda, com voz tremula.

Quinn esperava ver lágrimas ou dor nos olhos de Miranda, mas o que viu, em troca, foi raiva. Uma raiva viva, evidente, seus olhos azul escuro olhando além dele para onde Rebecca tinha morrido.

Ele se levantou lentamente e olhou para a estreita abertura no atalho onde tinha tropeçado Rebecca.

—Disparou-lhe daqui — disse Quinn, embora não fosse necessário.

—Porque ela ia desaparecer na mata — disse Miranda, assentindo—. Sabia que o caminho está só a uns quilômetros. Disparou, embora não fosse o ideal.

Miranda passeou lentamente o olhar ao redor, observando atentamente a cena.

Ao final o olhou com uma expressão estranha, uma combinação de alívio e medo. Tragou saliva, e o olhar desapareceu. Tudo voltava a estar sob controle.

—Tem razão —disse, com voz cortante.

Quinn chamou Nick para lhe informar o que tinham descoberto—

—São quase cinco horas, Quinn —disse Nick pelo walkie-talkie—.Quando uma equipe chegar a esse lugar estará escuro. Não podemos levar luzes bastante potentes até lá encima. Marca-o. Voltaremos a primeira hora da manhã.

— Maldito seja! —exclamou Miranda, puxando a trança para expressar sua frustração.

—Tem razão —disse Quinn.

—Sei —reconheceu ela, e se apoiou em uma árvore. Suspirou e sua voz se fez mais pausada.

—Isso não tira que o atraso seja igualmente frustrante.

Tinham várias balas, todas extraídas das vítimas do Açougueiro. Quinn não esperava que neste caso as balas perdidas revelassem grande coisa, exceto que havia uma relação entre o assassinato de Rebecca e outros.

—Dispomos de uma hora antes de ter que voltar —disse Quinn—. Daremos uma olhada pelos arredores.

Em um silêncio quebrado só pelo grasnido das aves e as carreirinhas de pequenos animais, ou pela de um cervo assustado ao ser surpreendido pastando, seguiram o rastro do assassino. O claro se estendia ao longo de vários quilômetros, e eram quase cinco e meia quando Quinn disse:

—Temos que voltar.

—Dez minutos mais —disse Miranda, sem parar, e sem deixar de varrer o chão com o olhar.

—Miranda, amanhã.

—Mas...

—Não —disse Quinn. Ia agarrá-la pelo braço, mas se deteve, recordando o temor em seu olhar quando antes a tinha surpreendido, um temor que dissimulou rapidamente.

Era evidente que Miranda não queria nada com ele. Nem servia de nada tentar reavivar o fogo de antigamente.

Ela se virou para olhá-lo e, por sua expressão, notava-se que se debatia entre discutir ou obedecer. Quinn ocultou um sorriso. Apreciava a paixão que Miranda punha em seu trabalho.

Antes que ela pudesse dizer nada, ele esticou o braço, apoiou-lhe a mão no ombro e o apertou. Ela não o esquivou. O contato era agradável.

—Miranda, a frustração que sinto se parece muito com a sua. Há provas aqui que bem poderiam nos levar até o assassino da Rebecca. Mas não nos servirá de nada procurar na escuridão se não pudermos ver as pistas. Amanhã pela manhã voltaremos e começaremos por aqui. A equipe da balística procurará a bala, e haverá mais gente concentrada na busca.

—Estamos perto —murmurou ela—. Posso senti-lo.

Quinn não disse uma palavra, e Miranda se perguntou se acaso pensava que estava louca. Às vezes, quando estava sozinha e se sentia impotente, duvidava de sua prudência. Cada dia que passava, pensava nas garotas desaparecidas. E nele.

No Açougueiro.

Pode ser que tivesse escapado viva, mas tinha roubado sua vida.

—Tem razão —disse, com inapetência—. Voltemos.

Quinn deixou cair sua mão e ela sentiu frio, como se tivesse perdido uma conexão importante. Franziu o cenho. Levava muito tempo vivendo sozinha. Qualquer contato físico humano, inclusive um gesto tão inócuo como um tapinha no ombro, confundia-a.

Sobre tudo vindo de Quinn.

Abriu a marcha até o monte, agradecida de não ter que seguir olhando Quinn. Vê-lo de novo significava pinçar em muitos sentimentos encontrados, muitos pensamentos que tinha enterrado durante esses dez anos desde que ele a traísse e lhe arrebatasse o que mais importava.

Não sua carreira, e sim sua confiança.

Miranda estava acordada a meia-noite, sozinha, fisicamente abatida e esgotada. Tinha chegado com muita dificuldade até sua cabana depois de ter comido um jantar frugal, não porque tivesse fome, a não ser para agradar a seu pai, e pôs ao máximo a temperatura e as borbulhas de sua banheira. Entrou com cautela porque a água quase a queimava de quão quente estava. Quando acostumou um pé à temperatura, colocou o outro. Ao cabo de cinco minutos, reclinou-se contra o respaldo da banheira e tomou um gole de vinho.

Não podia deixar de pensar em Quinn.

—Vá — murmurou ao vazio.

Houve um tempo em que ela contava os dias que faltavam para sua próxima visita. Escutava sua voz por telefone e sentia um bater das asas de mariposas no ventre que a fazia sorrir.

Quando ele começou a visitá-la regularmente depois de fechar a investigação sobre o Açougueiro por falta de provas, ela não sabia o que pensar nem sentir, nem como reagir. Quinn lhe agradava, gostava muito, mas Miranda temia que no fundo nunca seria capaz de amar um homem, nunca deixaria que um homem a tocasse intimamente. Estava ferida, tinha o corpo tão permanentemente marcado que a cirurgia não podia remediar tudo. Nunca seria uma mulher normal, nem por dentro nem por fora.

Com Quinn, sentia-se como uma princesa.

Davam longos passeios e segurava sua mão.

Falavam durante horas de qualquer coisa, da família dele, de sua carreira, seus sonhos. Da família dela, de seu passado, pelo que esperava do futuro. E falavam também do Açougueiro.

Um dia Miranda sentiu vontade de que ele a beijasse. Mas ele nunca tomava a iniciativa. Ela se perguntava como reagiria se ele se decidisse por fim a beijá-la.

Em uma ocasião, ao entardecer, estavam sentados no balanço do alpendre.

Quinn? —perguntou ela, olhando seus dedos entrelaçados.

Mmm?

Ela olhou seu atrativo perfil, quase cinzelado. Tinha os olhos fechados e parecia estar em paz, com um meio sorriso nos lábios. A luz do sol poente dava a sua pele um tom mais acobreado, e ela pensou que lhe apreciava muito mais do que queria reconhecer.

Tinha passado um ano do ataque. Sua vida pendia de uma espécie de fio. Tinha voltado para a universidade, mas não era o mesmo. Não encontrou nada de interessante em seus estudos de administração, nem sequer nas disciplinas escolhidas como literatura inglesa.

Estava cansada de tanta imobilidade. Queria e precisava seguir adiante.

E queria que Quinn estivesse com ela a cada passado do caminho.

—Quer me beijar?

Sentiu que Quinn ficava tenso. Haveria se excedido em sua sugestão?

—Sinto muito —disse, e desviou o olhar.

Agarrou-lhe o queixo com o dedo e a fez voltar-se para ele. Seus olhos marrons se obscureceram, pareciam negros. Olhava com expressão séria, e ela esteve a ponto de ficar sem fôlego ante a pura beleza de seu rosto.

—Tive vontade de te beijar desde que voltei em setembro para vê-la. Quis te beijar cada dia que passamos juntos, e cada dia que estivemos separados.

Miranda sentiu um afeto quente, profundo e reconfortante que se apropriava dela, como se a sinceridade de suas palavras lhe acariciasse a alma. Apenas inclinou-se para diante.

—Me beije — disse.

O ligeiro roce de seus lábios a fez tremer. Pôs-lhe lentamente os braços ao redor do pescoço. Ele a beijou com mais urgência e ela se inclinou para ele. Quinn a estreitou e a atraiu com força, suas mãos perdidas sob o cabelo na nuca, sustentando-a com força, embora não muita. A cada movimento que ela fazia, ele se rendia, cada carícia na face, os braços e o peito, aceitava tudo.

Ela queria algo mais que um beijo.

—Fica comigo esta noite —lhe murmurou ao ouvido.

Ele se moveu para que pudessem olhar-se nos olhos.

—Miranda, quero ficar contigo. Quero fazer amor com você. Mas esta noite não. Não nos precipitemos.

Ela piscou, e um véu de frieza lhe cobriu o rosto.

Durante dois minutos, tinha esquecido do Açougueiro. Durante dois minutos gloriosos, tinha-o apagado de sua mente.

—Passou um ano —disse ela, com voz neutra, e se virou para afastar-se dele —. Não me precipitei em nada.

—Sei, carinho, não se zangue. Quero estar seguro de que deseja o mesmo que eu.

Ela mordeu o lábio para não chorar. Não por Quinn, mas sim porque sua vida era tão diferente do que desejava. Teria querido criar seu próprio negócio, um pouco relacionado com a vida ao ar livre e o ócio. Organizar saídas em balsa pelo rio no verão, ensinar os meninos a esquiar no inverno e ajudar a seu pai na hospedaria.

—Nada voltará jamais a ser o mesmo — murmurou.

Acariciou-lhe a face até que ela se virou. A emoção em seus olhos era um reflexo de sua confusão interior.

—Não, nada voltará a ser o mesmo. Mas você é a mulher mais forte que jamais conheci. Sua vontade de sobreviver, não só ao que ocorreu faz um ano, mas também para reclamar sua vida, é algo que me dá uma lição de humildade.

—Não sou nada especial —disse ela, sacudindo a cabeça.

Ele esteve a ponto de tornar-se a rir.

—Miranda, é incrível —disse, e a beijou brandamente.

—Sei que o fato de que o assassino da Sharon ande solto é como uma ferida aberta. Que não se fecha nunca. Queria ter feito algo mais — disse, com voz rouca, e passou a mão no cabelo com gesto de arrependimento.

— Fez todo o possível. — tinha impressionado o FBI e a polícia durante a investigação. Mas agora seu caso estava fechado. A menos que o Açougueiro atacasse outra mulher, nunca o capturariam. Não era justo que outra mulher tivesse que ser agredida, que tivesse que morrer, para encontrar o assassino da Sharon.

Miranda desejava contribuir em algo. Não só para deter o Açougueiro mas também para encontrar outros assassinos. Homens que espreitavam mulheres, que as maltratavam para satisfazer sua alma torcida e doente.

Por que não poderia? Por que não podia converter-se em um agente ativo dessa idéia? Levava um ano sem fazer nada na hospedaria e... o que tinha feito? Ir à universidade? Ajudar seu pai com os clientes? O que na realidade fazia era compadecer-se de si mesma e não fazer nada produtivo com sua vida.

Se queria aprender a viver com o que lhe tinha ocorrido, aquilo tinha que mudar.

—O que pensaria se dissesse que quero ser policial? Poderia trabalhar no escritório do xerife. —antes que Quinn pudesse responder, seguiu, mais iludida à medida que lhe vinham idéias — . Ou possivelmente poderia ser agente do FBI! Sou preparada, quase terminei minha faculdade volto a estar em forma e não me importa trabalhar duro. Por fim poderia fazer algo transcendente, para variar, e não ficar aqui sentada sem fazer nada. Estou cansada de ser uma vítima.

Ele não disse uma palavra.

—Não acha que seja boa idéia.

—Eu não disse isso.

—Não tem por que dizê-lo. —Miranda queria sua aprovação. Necessitava seu apoio.

—Miranda, quero que faça o que tenha vontade de fazer. Mas não tinha nem idéia de que a atraía a idéia de ser policial. Nunca o tinha mencionado.

—É algo que sempre pensei, para mim, mas cobrou corpo quando estava aqui sentada enquanto pensava que nada voltaria a ser o mesmo e que eu tenho que me encarregar de minha própria vida.

—Tem que ter vinte e três anos para que a aceitem na Academia —disse Quinn.

—Só falta um ano.

—Tem que terminar sua faculdade. Há muitos agentes que depois tiram uma pós graduação em outro campo, como criminologia ou psicologia.

—Sou boa aluna. Não me importaria ter que estudar um ano mais.

—A Academia não é fácil. É física e mentalmente demolidora.

—Eu posso dirigir. Não acredita?

Ele respondeu ao fim de um momento.

__Sim, acredito que responde bem quando se vê submetida a pressão.

- Quinn, sinto-me como se tivesse que ajudar às pessoas. Não tenho outra maneira de explicar —disse, e franziu o cenho. Com muita dificuldade conseguia explicar a si mesma esse torvelinho de idéias e elucidações que girava em sua cabeça. Entretanto, uma coisa sim estava clara. Agora tinha uma direção e não pensava perder o rumo. Ter um objetivo favorecia sua determinação.

O Açougueiro tinha escapado à justiça. Ela tinha que fazer algo para que outros desequilibrados não fizessem o mesmo.

—Eu a ajudarei, se puder —disse Quinn—. Se isso for o que quer.

—É o que quero —disse ela, sentindo-se mais segura agora que contava com seu apoio.

Ele a estreitou em seus braços e ficaram um momento assim. Quando o sol acabou de sumir atrás das montanhas, a noite se voltou fria e as criaturas da escuridão começaram a rondar. Ficaram sentados no balanço, balançando-se contentes e abraçados.

Essa noite Miranda jamais teria acreditado que Quinn podia traí-la.

Uma hora de água e jorros quentes a aliviou da maior parte da tensão nos músculos, e quando saiu do banho a pele lhe ardia, irritada e reaquecida, inclusive lhe doía um pouco.

Rebecca estava morta. Sharon estava morta. Mas ela estava viva.

A culpa e a confusão lhe minavam a moral, e quase desejava acreditar em Deus, como seu pai. De algum jeito, a fé o consolava como nunca tinha consolado a ela. Quando amaldiçoava aquele Deus criador do monstro que tinha caçado e torturado a ela e outras mulheres, não conseguia imaginar que se tratava do mesmo Deus benfeitor e generoso ao qual seu pai elogiava e dirigia suas preces. Era o Deus bondoso quem a havia trazido de volta a casa, dizia seu pai. Que lhe deu a força para sobreviver, a vontade para viver e o rio em que mergulhar-se.

Entretanto, alegava Miranda, segundo esse raciocínio, era o mesmo Deus que tinha criado um homem que satisfazia seus desejos doentios matando mulheres como passatempo. As atormentando e as violando e lhes fazendo dano. Miranda não podia reconciliar os dois deuses. Era muito mais fácil acreditar no diabo.

Sim, porque o mal era real. Estava vivo. Ardendo.

Permaneceu acordada, esgotada, a mente muito ativa para apagar-se. Imaginou Rebecca correndo nua pelo claro, enquanto a chuva caía com força, sabendo que um louco seguia seus passos. A sonora detonação do rifle ao disparar, ela esticando-se inteira segura de que lhe daria. Mas o disparo errou e seguia viva.

E correndo.

Baixou correndo pelo atalho, tropeçando, os pés descalços rasgados, tentando não chorar ao ferir-se com o fio de alguma pedra, levantando-se, rápido, cada vez que caía, sabendo que ele se aproximava. Sabendo que a mataria. Com um prazer profundo, sem o mínimo remorso.

Correndo, correndo... até que tropeçou e caiu mau e rompeu a perna.

Arrastava-se, tentava ocultar-se, mas já era muito tarde.

Ele se aproximava dela. Em lugar de disparar ao animal ferido, degolava-o.

E seu sangue tingia a terra.

Miranda levou a mão à garganta. Sentiu o fio do aço frio lhe rasgando a delicada pele por debaixo do queixo. Tragou com dificuldade quando imaginou os momentos finais da vida da Rebecca.

Tinha estado a ponto de consegui-lo. E agora estava morta.

Fechou os olhos e se recostou, afundando a cabeça nos travesseiros suaves. A tensão da qual se desprendeu na banheira quente voltou a apoderar-se de seu corpo.

Quando pararia? Algum dia capturariam esse canalha e lhe fariam pagar por quantas vidas tinha usurpado?

Não era justo que aquela besta anônima e assassina andasse solta enquanto Rebecca Douglas jazia em um compartimento frio do necrotério.

Simplesmente não era justo.

 

Os pássaros deixaram de cantar.

Fez-se uma quietude repentina nas gretas e nas árvores da quebrada, um silêncio que realçava seus instintos. Começou a contar. Um. Dois. Três.

Lá, para o sudeste do campo, o falcão peregrino apareceu voando, veloz como um avião de combate, o perfil impecável e elegante, um rastro solitário de vida em um céu largo de cor azul intensa.

Tragou ar em silêncio e com isso sentiu o aroma penetrante e tangível dos pinhões e as groselhas. Seu lar. Desejava ficar ali para sempre, nesse canyon, com seus depredadores.

Theron navegou as correntes de ar, combinando largas batidas de asas com descidas. Desenhou uma curva e aterrissou na borda da ravina onde tinha oculto seu ninho, em um nicho natural da parede de rocha sedimentária avermelhada.

Fazia três semanas, ver Theron tinha sido toda uma festa de boas-vinda, e decidiu ficar mais tempo de que devia para observar seu pássaro.

Os machos do falcão peregrino são territoriais e realizam umas acrobacias aéreas impressionantes para seduzir à fêmea. É uma espécie de armadilha, por assim dizer. Quando o macho convence uma fêmea de que é o falcão peregrino mais elegante que tenha conhecido, ela permanece na saliente rochosa do precipício um dia sim e outro também, e abandona o ninho uma só vez ao dia para caçar.

Theron tinha uma companheira. Estariam juntos até que ela morresse. Era um belo exemplar, e ele a tinha batizado como Aglaia. Esplendorosa. Nada igualava a magnificência de uma fêmea de falcão postada no alto do precipício, mostrando o peito. Ela queria estar aí, entregava-se a seu fechamento. Theron defendia o precipício; Aglaia ia de bom grado para que a protegesse.

O falcão peregrino é a ave mais veloz do reino animal. Ele nunca se cansava de vê-los rasgando os ares, e era capaz de esperar sentado do amanhecer até a noite para ver caçar aquelas aves majestosas. Com a cabeça erguida, observavam sua presa com um olho, logo pregavam as asas e se lançavam em vôo. Justo antes de chegar, o peregrino freava sua queda e descarregava um golpe à presa com suas garras afiadas. Chac! Morto com o impacto.

Também podiam agarrar um pássaro em pleno vôo, coincidindo com sua trajetória para cortá-lo em um plano reto. Todas as aves eram presas potenciais. Nenhuma podia ganhar no caçador em manobras.

Caaaaaaac–cac–cac. Caaaaaaac–cac–cac.

Theron era livre de verdade. Algo que ele nunca obteria. Apanhado e sozinho, sua necessidade de possuir o inalcançável, de caçar os impostores, era muito maior que sua busca da liberdade.

Ainda assim, ele tinha muito em comum com o falcão peregrino. Quando começou a estudar o falcão peregrino, faz dezesseis anos, este era uma espécie quase extinta. Estavam derrotados, mas não aniquilados. E um dia voltaram em toda sua glória, e ele sempre esteve presente, em cada passo do caminho, para escrever a crônica de sua vitória.

Sempre lhe irritou que muito poucos de seus colegas queriam documentar a vida do peregrino. Cumpriam com os horários estabelecidos, um só semestre, o exigido, para logo sair disparados a procurar trabalho em alguma grande empresa ou em uma organização sem fins de lucro, ou em um organismo público. Diziam que seguiam a pista ao falcão peregrino, que importava, mas na realidade lhes dava igual.

Falar não custava nada.

Sacudiu a cabeça, sentindo que a raiva se desbocava. Concentre-se.

Olhou com os binóculos para a parede do precipício onde Theron e Aglaia tinham construído seu ninho. Ao deixá-los, faz dez dias, tinham posto fim aos jogos de cortejo, mas ignorava se já havia ovos.

Assim que se dedicou a observar. Durante horas. O sol derramava seus raios por toda a campina, convertendo o bosque escuro da manhã em um glorioso leque de cores. Começou a fazer calor, e ele tirou a jaqueta. Comeu o sanduíche insípido, mais por costume que por fome.

Quando o sol cruzou o Equador do meio-dia, Aglaia mostrou a cabeça. Logo apareceu Theron, e os dois permaneceram na borda da saliente, o rei e sua rainha, olhando para seus domínios.

Caaaaaaac–cac–cac. Cooo cooo.

Caaaaaaac–cac–cac. Caaaaaaac–cac–cac.

Sentia o coração cheio para ouvir como se comunicavam ambos os caçadores. Se Aglaia deixava o ninho, significava que havia ovos. Esperou e observou, paciente, totalmente quieto entre as árvores e arbustos.

Desdobrando suas poderosas asas, Aglaia deu um salto e baixou como uma bala para a quebrada que se abria mais abaixo, antes de desenhar uma curva para cima e ao redor do precipício. O silêncio voltou a fazer-se no bosque. A caça tinha começado.

Theron viu sua companheira desaparecer e voltou para o nicho da rocha. Intercambio para a incubação. Theron protegia os ovos enquanto sua companheira caçava.

Nada podia lhe dar mais prazer. Tinha saudades de escalar a parede e ver Theron de perto. Tinha-o feito várias vezes antes. Aquele trabalho, que exigia uma grande forma física para seguir, documentar e escrever sobre a vida dos peregrinos, culminava quando agarrava os ovos para incubá-los em cativeiro.

Mas não tinha passado a noite caminhando pelo leito frio do rio, lutando contra a mata, cruzando os lodaçais de argila vermelha que abundavam na área noroeste do Colorado só para trazer os ovos de volta à universidade e incubá-los. Havia retornado para observar e escrever e resistir a tentação de voltar a caçar.

Faz quinze anos só tinha querido encontrar sua companheira a que seria a mulher perfeita para ele.

Mas não havia mulheres perfeitas.

Todas mentiam, todas manipulavam. Inclusive a doce, a muito doce Penny... por que havia dito que já não se via com o esportista? Por que havia dito que o tipo nem sequer lhe caía bem?

Ele sabia. Quando a viu beijando o outro.

Penny era uma mentirosa, como todas as mulheres neste mundo. Diziam uma coisa e faziam algo completamente diferente. Diziam que o amavam, prometiam que não lhe fariam mal, mas elas não amavam ninguém e sempre faziam mal.

Como sua mãe.

Sua mãe, com palavras melosas que eram pior que a picada de uma vespa. Sua maneira de tocá-lo, de obter que fizesse coisas por ela.

Toque-me aí. Não, não, não, aí. Sim. Não pare.

Se não fazia o que ela queria, o castigo era ainda pior.

Carinho, é por seu próprio bem. Tem que aprender.

Agarrava-lhe o pênis até fazê-lo chorar. Rogava-lhe que o soltasse. Faria o que ela quisesse, só para que não lhe fizesse mal.

E depois, sua irmã, sempre montada em cima dele, dizendo que o ajudaria. E o ajudou, durante um tempo. Ajudou-o até que ele confiou nela. E ela voltou a lhe fazer dano e tudo recomeçou...

Tudo começou quando tinha seis anos. Quando seu pai partiu sem dizer uma palavra. Ele acreditava que sua mãe o tinha matado, mas a verdade era ainda pior.

Seu próprio pai não o amava.

Acaso seu pai não sabia que sua mãe o fazia dano? Não via a verdade? Acaso não se importava?

Fechou os punhos sobre seu diário de notas sobre o falcão, e um soluço amargo escapou de sua garganta. O que importava?

Apoiou-se na árvore mais próxima e fechou os olhos, respirando a fragrância penetrante do pinheiro, a seiva agridoce e pegajosa, a terra úmida, as folhas e plantas apodrecendo-se.

Voltou a viver a caçada.

Sua presa era boa, mas ele era melhor. Ela corria, mas ele nunca a perdia de vista.

Viu-a cair, ouviu o rangido do osso por cima da chuva que caía e, no último momento, decidiu usar a faca.

Não tinha nenhuma graça disparar sobre uma presa caída. Era um gesto muito pouco esportivo.

Estava escuro, era quase meia-noite, mas a pele branca azulada da garota se destacava como um fulgor na escuridão.

Puxou-lhe o cabelo molhado para trás com a mão esquerda e, sem vacilar, baixou a faca e lhe cortou o pescoço esbranquiçado. O calor de seu sangue o surpreendeu.

Saboreou umas gotas que lhe salpicaram os lábios.

Deixou-a cair aí onde estava e olhou.

A caça tinha terminado, mas já o corroia o impulso de encontrar outra presa. O coração lhe pulsava com força e o sangue fluía por seu corpo como uma corrente enquanto abandonava às lembranças. Aquele poder intoxicante que sentia quando a tinha só para ele. A sensação de vitória que, desgraçadamente, diminuía dia a dia até que não ficava mais alternativa que voltar a caçar. A emoção da caça era como uma breve animação, e já voltava a lhe fazer falta. Tinha saudades ter esse poder em suas mãos.

Entretanto, antes tinha algo importante que fazer. Ali, com Theron, Aglaia e seus ovos. Observando, esperando, escrevendo.

Seus pássaros o necessitavam.

Tinha que resistir ao impulso.

 

Muito antes que o sol aparecesse entre os Montes, Quinn despertou, preso de certa agitação, ainda preso em sonhos onde aparecia Miranda.

Os que sabem repetem o mantra: O tempo tudo sana.

Era uma mentira. Algumas feridas nunca sanavam, sobre tudo quando o ferido não parava de arrancar as crostas.

Miranda vivia e respirava para o Açougueiro. Para a justiça. Tinha vivido os últimos dez anos em um limbo, entre o céu e o inferno, esperando. Esperando que o Açougueiro cometesse um engano. Procurando no bosque os restos de suas vítimas. Como penitência por ter sobrevivido.

Quinn tinha visto muitos colegas obcecar-se tanto com um caso concreto, especialmente difícil e angustiante, que todos outros aspectos de sua vida se ressentiam. Os matrimônios costumavam acabar em divórcio. Esqueciam os amigos e, com o tempo, perdiam-nos. A busca da justiça para vivos e mortos podia consumir até o profissional mais emocionalmente estável. Miranda era por sua vez uma vítima e uma defensora, e não havia ninguém que conhecesse tão de perto como ela a investigação sobre o Açougueiro.

Miranda era uma bomba relógio a ponto de implodir. O fato de que tivesse sobrevivido tanto tempo sem uma grave crise de nervos era uma incógnita sem explicação para ele.

Isso não era de todo verdade, pensou, enquanto se obrigava a deixar a cama. Miranda era, sem dúvida, a mulher mais forte que tinha conhecido. Depois de suportar torturas que teriam matado qualquer um, homem ou mulher, tinha visto sua melhor amiga cair com uma bala nas costas, e ainda teve forças para seguir fugindo. Levou os investigadores ao lugar onde jazia o corpo, e depois à choça onde tudo tinha começado.

Quinn amava e admirava Miranda por esse núcleo indestrutível que a animava, por essas suas costas dura como o aço.

E o que acontecia às necessidades de Miranda? Quem cuidava dela para assegurar que não fosse muito longe? Alguém que tomasse tempo para tirá-la desse entorno asfixiante de maneira que pudesse recompor-se e recuperar sua orientação. Quinn temia que, sem ter ninguém que cuidasse dela, Miranda fosse deixando que a investigação a consumisse por inteiro sacrificando sua felicidade pessoal e sua paz interior em nome da justiça.

Se pensasse em sua própria carreira, não tinha direito a criticá-la. Ele levava quase dezessete anos como agente do FBI. A única ocasião em que tirou férias foi graças à insistência de seu chefe. Com a exceção dos dois anos compartilhados com Miranda. Era o único período em que se ausentou voluntariamente do trabalho.

Despiu-se e entrou na ducha. Abriu o grifo e o jorro frio o banhou antes que a água esquentasse. Mas ele necessitava do frio. Depois de inteirar-se do que tinha tido que viver Miranda, ficou sob o jorro de água fria tudo o que pôde agüentar. Queria experimentar embora não fosse mais que uma parte leve de sua dor.

Seu recorde eram dezenove minutos. Mas a água do rio era ainda mais fria que a da ducha, e ela tinha sobrevivido.

Saiu da Hospedaria Gallatin antes que ninguém despertasse. Não queria encontrar-se com Miranda, ainda não. A noite anterior, ela não se inteirou de que ele se hospedava ali, e Quinn ignorava se seu pai o havia dito.

Acreditava que não.

Nick se encontrou com ele no McKay, uma cafeteria situada na esquina da rua da delegacia de polícia. Aquilo não tinha mudado tanto desde sua partida. Toalhas de plástico e quadros brancos azulados, os condimentos no meio da mesa, paredes cinza flores de plástico de cor vermelha com aspecto de murchas em vasos entre as janelas com vidros meio limpos. Os alto-falantes instalados em dois cantos da sala emitiam música country, em momentos mesclados com um programa matinal de rádio de um par de cômicos aficionados.

Quinn pediu a Fran, a garçonete, que enchesse o recipiente térmico, mas não tinha muita vontade de comer antes da autópsia. Pediu torradas, mais para molhá-las no café que por fome.

Nick não tinha aspecto de ter dormido mais que Quinn. Também tinha envelhecido. Doze anos antes, a primeira vez que veio a Bozeman, Nick era um menino de vinte e três anos, viçoso como um cachorrinho. Agora as rugas lhe sulcavam o rosto e em seus olhos se adivinhava o brilho da experiência.

Os assassinatos faziam envelhecer.

—Que planos temos? —perguntou Quinn.

—Tenho um agente florestal que se dirige ao lugar para cortar qualquer árvore que necessitemos como prova, e vinte e seis efetivos da polícia, dois deles peritos em cenas de crime. —Nick olhou seu relógio —. Temos duas horas antes do encontro.

—Se encontrarmos a cabana?

—Processamos a cena e mandamos as provas ao laboratório estatal de criminologia em Helena.

—A semana passada comentou que Rebecca foi raptada longe de onde trabalhava. Há testemunhas?

—Ninguém viu nada —disse Nick, negando com um gesto da cabeça.

—Rebecca Douglas se encontrava em um estacionamento, não com o carro avariado à borda do caminho. Ninguém viu nem ouviu nada?

—Interroguei todos os que estavam na pizzaria nessa noite, embora tivessem ido antes que seqüestrassem Rebecca. Se alguém viu algo, não deve ter parecido suspeito.

—Pergunto-me se o conhecia — disse Quinn, em voz alta.

—Sempre mesclamos a possibilidade de que o Açougueiro conheça as garotas da universidade.

—Fizeram uma busca do pessoal que trabalha na universidade e dos alunos que passaram por ali nos últimos quinze anos?

—Cruzamos os traços dos empregados que coincidem com o perfil da base de dados da polícia, mas não obtivemos resultados. O mais sério que temos é um professor de sociologia que foi detido nos anos setenta por desobediência civil, e um zelador detido por conduzir sob os efeitos do álcool faz oito anos.

—Volta a processar os dados —disse Quinn. Nick franziu o cenho e Quinn se reteve. Não queria que Nick pensasse que ele assumia o comando—. Quero dizer, que deveríamos nos centrar em todos os homens brancos solteiros que passaram pela universidade, sejam alunos, empregados ou professores que tivessem menos de trinta e cinco anos o ano que Penny desapareceu.

—Trinta e cinco?

—O perfil original —explicou Quinn— assinalava que o Açougueiro era um homem branco solteiro entre vinte e cinco e trinta e cinco anos, e que conhecia ao menos uma de suas vítimas.

—A princípio acreditávamos que conhecia Miranda ou Sharon, já fora do campus, a hospedaria, ou de onde trabalhava Sharon —seguiu—. Mas quando chegamos à conclusão de que Penny Thompson foi sua primeira vítima, pensamos que o mais provável é que Penny conhecesse seu agressor e que Miranda e Sharon fossem desconhecidas.

—Entretanto, havia centenas de possíveis suspeitos —observou Nick—. Recordo ter feito dúzias de interrogatórios sem chegar a nenhuma parte.

Quinn recordava. Eram muitas as pessoas que tinham tido contato com Penny, e ao reduzir o número até ter uma lista final de quem a conhecia bem, entre eles o noivo, os professores, os tutores de suas disciplinas, ninguém encaixava no perfil.

Tampouco facilitava as coisas o fato de que Penny tivesse desaparecido três anos antes do seqüestro de Miranda e Sharon.

Quinn não falou ao ver que a garçonete se aproximava com suas torradas. Bozeman era uma cidade pequena, apesar dos doze mil alunos da universidade situada nos subúrbios. As paredes tinham ouvidos. As línguas se soltavam facilmente.

—O xerife Donaldson estava convencido de que Penny foi morta pelo noivo —disse Nick—. Mas isso nunca foi mais à frente. Não havia provas que o relacionassem com seu desaparecimento. Ao final, suspeitamos que Penny tivesse sido a primeira vítima do Açougueiro, mas a essa altura seu pai já havia se desfeito do carro.

Nick acabou seu café e deixou a xícara na mesa com um golpe.

—Estamos nos perdendo, Quinn. O maldito cobrou outra vítima e nós não temos provas, testemunhas nem suspeitas. A imprensa vai se divertir muito.

—A encontramos rápido. Isso sempre é uma boa notícia. A que hora começarão a autópsia?

Nick olhou seu relógio.

—Em dez minutos. Deveríamos ir —disse, e acabou o café.

Quinn detestava as autópsias. Não sabia o que temia mais: se ver o corpo de Rebecca Douglas sobre a mesa ou imaginar Miranda sob esse mesmo bisturi.

Fran se aproximou da mesa com um recipiente térmico de café recém feito e um jornal.

—Acabam de deixar —disse, e deixou o jornal frente a Nick—. Se não se importar que o diga, Elijah Banks é um inseto e todos sabem. Sua mãe estará revolvendo-se em sua tumba, pobrezinha.

CADÁVER ENCONTRADO NO BOSQUE

O escritório do xerife não confirmou a identidade.

Elijah Banks

Correspondente especial do Chronicle

 

BOZEMAN, Montana — O xerife do condado de Gallatin, Nick Thomas, não quis confirmar nem negar que o corpo da mulher encontrado ontem pela manhã fosse o da estudante do Bozeman, Rebecca Douglas.

«Tudo indica que foi o Açougueiro», assinalou uma fonte do escritório do xerife que quis permanecer anônima.

O xerife Thomas reconheceu a contra gosto que conta com a ajuda de um agente especial, Quincy Peterson, do escritório do FBI em Seattle. O agente Peterson, mais experiente, participou faz doze anos na investigação sobre o desaparecimento de duas estudantes universitárias, Sharon Lewis e Miranda Moore. Lewis foi encontrada morta e Moore escapou, mas não pôde identificar o assassino.

O corpo da mulher sem identificar foi descoberto a primeira hora da manhã do sábado por Ryan Parker e dois amigos. Ryan, de onze anos, é filho do juiz do Tribunal Superior, Richard Parker. Por volta de meio-dia, mais de quarenta oficiais do xerife e voluntários penteavam a área situada a seis quilômetros ao leste de Creek Road e quinze quilômetros ao sul da Rota 84. Ninguém pôde confirmar concretamente que tipos de provas procuravam.

«Quando a encontramos, pensamos que podia ser a garota desaparecida — disse Parker—. Estava nua.»

Uma fonte do escritório do prefeito havia dito « Já era hora», ao saber que o FBI volta a participar da investigação. «Necessitamos uma equipe de profissionais competentes para dar com este assassino de uma vez por todas. As mulheres de Bozeman têm medo, e com razão.»

A noite da sexta-feira passada, a senhorita Douglas saiu do Salão Hannon da Universidade de Montana State em seu próprio carro para ir a seu trabalho na pizzaria da Interestadual 191. Não voltou para o campus. Sua companheira de quarto comunicou à segurança do campus que a senhorita Douglas estava desaparecida e posteriormente chamou o escritório do xerife do condado de Gallatin. A polícia não demorou a encontrar seu carro no estacionamento da pizzaria.

A primeira vítima conhecida do Açougueiro...

 

Nick deixou o jornal sobre a mesa de um golpe, e o café se derramou pela borda da xícara.

Quinn também opinava que a entrevista de Eli a Ryan Parker era inaceitável. Onde estava o juiz Parker agora? Por que não lhe tinha parado os pés?

Não era só a entrevista de Ryan. A Quinn não agradou as provocações de Eli contra o escritório do xerife. Quão último necessitava nesse momento era uma guerra de feudos que enlodasse a investigação. Os homens de Nick já o olhavam como a um estranho. Se suspeitavam que tentava minar a influência de Nick, ninguém quereria lhe ajudar.

Tinha que ganhar a confiança dessa gente.

—Farei uma declaração oficial —disse Quinn, e deixou uns dólares sobre a mesa.

Nick lhe lançou um olhar ao sair da cafeteria. Detiveram-se junto a sua caminhonete.

—Não sei do que servirá isso.

—É sua investigação, Nick. Eu não estaria aqui se não me houvesse convidado. Isso sabe.

—Estou fazendo as coisas bem? Passei algo por alto? Quinn elevou as mãos.

—Para. Não serve de nada se pôr a especular. Pôs todos os pontos sobre os «is», cumpriu cabalmente com seu dever, e não ache que eu não seria o primeiro a dizer se alguma coisa não tivesse sido assim. Mas jamais iria ver os da imprensa primeiro, e sim você. Espero que isso fique claro.

Nick fechou os olhos.

—Sei, sei. O que passa é que Eli me rompe os ovos, sabe?

—Sim, é um imbecil.

Caminharam uma quadra até o centro público, onde o forense tinha seu escritório e laboratório.

—Como Miranda reagiu ao saber que está na hospedaria? —perguntou Nick.

—Ainda não sabe — disse Quinn, com uma careta.

—Não gostará nada.

—Saberá encaixá-lo.

Nick não estava seguro de que Miranda soubesse encaixá-lo. Já estava zangada com ele por ter chamado Quinn sem consultá-la. Não era necessário, mas Nick estava acostumado a pedir sua opinião em diferentes questões relacionadas com a investigação do Açougueiro, sobre tudo quando se tratava da busca inicial. Com o tempo, acostumou-se a sua relação de trabalho. Tinha sido um passo fácil converter essa amizade em uma relação mais íntima.

O fato de que ele partiu dois anos antes porque Miranda não respondia a seus sentimentos não mitigava seu desagrado porque Quinn estivesse praticamente compartilhando teto com ela. No fundo de seu coração, sabia que Miranda não voltaria com ele. Se voltasse, seria porque era a segunda opção, depois de Quinn.

Não lhe parecia uma perspectiva particularmente agradável.

Quinn lhe caía bem. Mas ele amava Miranda, e pensar nos dois juntos...

Não, isso não aconteceria. Miranda viu como sua vida se vinha abaixo quando Quinn a expulsou da Academia. Depois de tantos anos alimentando essa dor e essa raiva, seguro que não lhe aconteceria agora, nas poucas semanas que Quinn estivesse na cidade.

De modo que ainda ficava uma oportunidade, pensou Nick ao entrar na sala de espera do forense. Na realidade, pensou, possivelmente Miranda buscaria a ele precisamente porque Quinn estava na cidade. Ofereceria-lhe sua compreensão, sua simpatia, seu ombro.

Não, ele não ia se conformar com um segundo posto. Miranda tinha que amá-lo em lugar de ver-se empurrada a seus braços pela intervenção de outro homem.

Ryan Parker estava sentado no alto do monte, seguro de que ninguém podia vê-lo, e observava às pessoas que se reunia mais abaixo. Mas seu olhar não seguia a agitação dos agentes do xerife.

Atraía-lhe a cena do crime, isolado pela fita de plástico da polícia. O fazia pensar na garota que tinham encontrado. Jamais esqueceria o corpo azulado e nu. O talho profundo de cor vermelha escura, quase negra, no pescoço. Os cortes e machucados por todo o corpo.

Entretanto, agora sentia que seus olhos o perseguiam.

Não tinha dormido grande coisa a noite anterior. Cada vez que tentava dormir, Rebecca Douglas o estava olhando com seus olhos azuis abertos e congelados pela morte.

Ryan tinha visto dúzias de animais mortos em seus onze anos. Em uma ocasião, matou um cervo com seu rifle 22, um disparo certeiro na nuca, e seu pai se mostrou muito orgulhoso dele. Mas ele mesmo não se sentiu tão orgulhoso.

A caça não estava má. Não gostava especialmente, não como seu pai e seu tio, mas não estava mau.

A pesca, pelo contrário, era o paraíso. Se seus pais o deixassem iria pescar todos os dias. Sentia-se livre e independente lá no lago, ou sentado à beira dos redemoinhos na curva do rio que ficava mais ao sul de sua casa, ou no cais do lago. Aquilo o fazia mais feliz que qualquer outra coisa na vida. Mais que os cavalos. Certamente, mais que a caça.

Em geral, Ryan se encontrava mais a vontade só que acompanhado de seus pais.

Possivelmente tivesse que ver com a quietude. Ou com a espera. Sean e Timmy não tinham paciência para pescar. Timmy guardava silêncio, mas se movia muito. Sean já nem sequer ia porque Ryan se negava a guardar o cano se não picavam ao cabo de vinte minutos. Às vezes, seu pai pescava com ele durante um par de horas, e isso lhe agradava.

Mas agora seu pai estava muito ocupado para acompanhá-lo em suas excursões ao lago.

Às vezes demorava todo um dia em pescar uma truta ou um robalo de tamanho decente. Às vezes não pescava nada, mas não se importava. Porque o que mais o fazia desfrutar era simplesmente lançar a linha, a espera e a liberdade, não a captura em si.

Sean e Timmy não o entendiam.

Tampouco o entendia seu pai, embora tentasse.

Ryan observava às pessoas movendo-se lá em baixo. Eram tão pequenas que pareciam formigas. Fechou um olho e elevou dois dedos. Assim de grandes, menos de um centímetro.

Nem sequer sabiam que ele estava ali.

Ryan tinha curiosidade de ver o que encontravam. Por algum motivo, acreditava que se encontravam o tipo que matou essa mulher, ele dormiria mais tranqüilo. A garota parecia um cervo, com os olhos abertos e olhando sem enfocar.

Ryan não gostava disso. As pessoas eram pessoas e os animais eram animais, mas alguém tinha tratado essa garota como se fosse um animal. Isso não estava bem.

Quando a maioria dos homens da brigada começaram a subir pelo caminho da serraria, ele se levantou e limpou a terra dos jeans desgastados. Já era hora de voltar. Tinha deixado Ranger no estábulo e ainda demoraria uma hora em chegar a casa. E não queria que sua mãe se preocupasse. Ela não estava acostumada a fazer muitas perguntas, mas sabia quando mentia.

Na realidade, Ryan nunca mentia. Mas, às vezes, não queria dizer a verdade. Evitar as conversas era a melhor maneira de não ter problemas com sua mãe.

Seguiu pelo pequeno arroio que na primavera descia pela ladeira, para o caminho mais largo que conduzia aos limites da propriedade. Ryan viu rastros de cavalo e franziu o cenho. Pareciam frescas, mas não tinha visto nenhum dos homens chegar tão acima. Quem quer que fosse, teria que dar uma olhada às ferraduras de seu cavalo. A pata direita traseira tinha perdido um par de pregos e seguro que a terra e as pedras se meteriam por debaixo da ferradura até alojar-se na pata do animal.

Perdido em seus pensamentos, quase não o viu.

De repente, o sol se refletiu em um objeto atirado no caminho e Ryan se deteve e se agachou para olhá-lo.

A princípio, pensou que eram os olhos de uma serpente que o olhava, a ponto de dar um golpe, e retrocedeu de um salto. Mas em seguida recuperou o equilíbrio e olhou o objeto mais atentamente.

Certamente, não era uma serpente. Os dois olhos eram duas pequenas gemas escuras. Verde escuro, como a cor dos pinheiros ao entardecer. As duas pedras estavam engastadas em uma rústica fivela de prata cinzelada que parecia uma ave. Parecida com uma águia. E as pedras eram os olhos.

Agachou-se e o recolheu. Surpreendeu-se ao ver que tinha um pedaço de couro ainda aderido à fivela. Ao olhá-la de perto, viu que estava desgastada e provavelmente teria se quebrado quando o dono, um caçador, ou um excursionista, deteve-se lá na cúpula a urinar.

Ryan vacilou enquanto olhava a fivela. Deveria levar ao agente do FBI? Possivelmente fosse importante para a investigação. O coração pulsava com força. Os Intocáveis, era um de seus filmes preferidos, e nunca perdia um programa chamado Quem Sabe Onde, que tratava da busca de pessoas desaparecidas.

Agora sua emoção se converteu em inquietação. Seu pai tinha insistido que não incomodasse o xerife. E lhe tinha mentido a sua mãe sobre o lugar aonde ia. Ela perderia a paciência. Não gritaria nem lhe pegaria, mas teria esse olhar que dava mais medo que qualquer castigo.

Tiritou de frio e se abrigou com a jaqueta, embora a essas horas começasse a fazer um calor agradável. Meteu a fivela no bolso e seguiu pelo estreito atalho rumo a casa. Se voltasse a ver o xerife Thomas, mostraria a fivela.

O mais provável é que não tivesse importância. Só um tipo que parou a urinar no bosque.

 

Miranda sentia a tensão em todos os músculos enquanto caminhava atrás de Quinn, Nick e outros pelo atalho até o claro que tinham descoberto no dia anterior.

Nick chamou Pete Knudson, um agente florestal com quem tinha trabalhado freqüentemente em outras buscas. Se encontrassem uma bala alojada no tronco de uma árvore, cortava uma parte ou destruía toda a árvore com o fim de guardar a bala como prova.

Tanta tensão lhe provocava uma dor de cabeça que embotava o cérebro. Tentou combatê-la tomando três aspirinas com um gole de seu cantil. Era fácil atribuir a dor de cabeça à falta de sono, a seu escasso apetite ou à tensão que significava um seqüestro mais do Açougueiro. Entretanto, ela tinha Quinn por responsável pela maior parte de seu mal-estar. Sua presença a desconcertava de maneira inesperada.

Durante anos enganou a si mesma dizendo-se que a traição de Quinn na Academia não importava. Chegou à conclusão de que, embora nesse momento se sentisse ferida, voltaria para Bozeman e levaria uma vida aprazível. Depois de quatro anos na Unidade de Busca e Resgate, aceitou o posto de coordenadora quando seu chefe, Manny Rodríguez, obteve um emprego em Colorado. Contava com uma equipe de dois membros contratados pela unidade e mais de uma vintena de voluntários, homens que confiavam nela.

—Miranda? —disse Nick, que caminhava a seu lado. Em seu rosto atrativo e curtido, apareceu uma expressão de preocupação.

—Estou bem —disse ela, antes que lhe perguntasse.

—Sim —disse Nick, e lançou um olhar a Quinn, que ia à cabeça do grupo.

—O que aconteceu na autópsia? —Tentou que a pergunta soasse profissional, mas não pôde evitar que lhe tremesse a voz.

—Fui-me antes que o doutor Abrams acabasse, mas foi o mesmo de sempre.

—Isso sabíamos.

—Sinto não haver contado do Quinn —disse Nick. Falou em voz baixa para que ninguém mais pudesse ouvi-lo.

—Sinto haver gritado ontem. Não merecia isso depois de ver Rebecca nesse estado.

Nick ainda tentava protegê-la da lembrança de seus sete dias no inferno. Não entendia que, embora ela não pudesse escapar do passado, o fato de ajudar na busca dessas garotas lhe desse certa quietude. Miranda fazia todo o possível para encontrar o Açougueiro. E, algum dia, chegaria o momento de lhe parar os pés.

Ela queria estar presente quando chegasse aquele dia de sua captura. Tinha que estar, como se ajudar a apanhá-lo fosse libertá-la de seus fantasmas e pesadelos.

Nick deixou escapar um comprido suspiro.

—Pactuamos uma trégua?

—Nunca me dura muito o aborrecimento contigo —disse ela, e sorriu. Amava Nick, mas não como ele teria gostado.

Tinha tentado. Durante três anos tinha querido lhe dar seu coração. Queria de verdade amá-lo. Mas quanto mais o tentava, mais difícil era. Com seu ex-amante tinham uma relação livre de amizade, lealdade e apoio mútuo. Entretanto, Miranda ainda tinha o coração quebrado, e Nick não podia recompor as peças.

Miranda olhou o único homem que sim podia.

Quinn se sentiu observado. Deteve-se nos limites do claro para orientar-se, olhou para trás e se encontrou com o olhar dela. Durante uma fração de segundo, acreditou ver algo diferente da raiva em seu rosto comprido e magro. Por um momento, viu um brilho de desejo em seus olhos escuros, uma necessidade física e uma saudade emocional que ele recordava bem do passado. Se lhe tivesse caído um raio em cima não o teria sacudido com mais força. Fez uma careta e piscou.

Aquilo que tinha acreditado ver já não estava. Miranda tinha a boca fechada, os lábios convertidos em uma linha rígida, o rosto impassível e o olhar duro, cheia de suspeitas e desconfiança.

Quinn se voltou para os homens, desfez-se da mochila e tirou a jaqueta. Tomou um gole comprido de água fria do cantil para combater o calor que o embargava com apenas pensar que Miranda ainda albergasse algum sentimento por ele.

A temperatura tinha alcançado apenas os sete graus pela manhã, mas o sol agora estendia um manto quente sobre aquele campo de árvores novas. Em circunstâncias normais, o lance que acabavam de cobrir seria um passeio estimulante e agradável.

Os agentes de Nick o olhavam com uma mescla de arrogância e cautela. Obedecer ordens de um federal era algo que não figurava em seus manuais, mas ele não deixaria que a hostilidade entre os diferentes corpos interferisse com a investigação.

Esclareceu a garganta.

—Verão as bandeirolas laranja onde a senhorita Moore e eu encontramos as provas ontem. Queria encontrar a bala que foi disparada, se for possível. —voltou-se para olhar o agente Booker—. O xerife Thomas diz que você é o que melhor dispara de todo o departamento.

O agente se endireitou ainda mais.

— Ganhei a competição do condado, senhor, mas...

—Booker — interrompeu Nick—, quero que vá até essa bandeirola de lá. —Assinalou um ponto a uns sessenta metros—, e se situe como se estivesse disparando um rifle de grosso calibre a um alvo em movimento do tamanho de uma mulher de um metro e sessenta que vai por esse atalho —disse, e lhe indicou outra bandeirola a uns sete metros.

Booker tragou saliva, ajustou a boina e olhou Miranda como se estivesse nervoso.

—Eh, sim, xerife —disse.

— Depois conta ao agente florestal Knudson a trajetória e encontra as malditas balas. —Nick se voltou para o resto de seus homens —. Separem-se. Já sabem o que procuramos. E se encontrarem algo, chamem o agente Peterson ou a mim. Nada de conversas por walkie-talkie; têm que ser minuciosos. A chuva estragou nossas possibilidades de conservar as provas, mas pode ser que tenhamos sorte.

Deus sabe quanta sorte necessitamos agora, pensou Quinn, olhando o céu espaçoso.

Dirigiu-se para onde esperavam Miranda e Nick, no começo do atalho.

—... o barraco —dizia Miranda quando se aproximou.

—O que?

Ela quase não lhe prestou atenção.

—Irei nessa direção para encontrar o barraco —disse, assinalando montanha abaixo, além das bandeirolas onde o agente Booker se preparava com o guarda florestal.

—Não sem mim —disse Quinn. No que estaria pensando Miranda?

—Nick e eu podemos arrumar isso sem problemas.

—Eu ficarei aqui —avisou Nick—. Tenho que estar acessível.

Quinn viu que Miranda se debatia ante a perspectiva de parceria com ele novamente. E lhe importava o mínimo. Miranda não se afastaria sozinha. E se tinha razão ao pensar que a cabana estava situada perto do claro, ele tinha que acompanhá-la. Por segurança e para recolher provas.

—De acordo —disse ela, com voz seca, como cansada. Era provável que não tivesse dormido muito ontem à noite, como lhe vinha acontecendo desde o desaparecimento de Rebecca.

Ele, certamente, mal tinha dormido em toda a maldita noite, pensando no que Miranda fazia durante os últimos dez anos. Em como tinha mudado sua vida, e como não tinha mudado. Perguntando-se se tinha feito o correto na Academia. Não, era o correto, mas tudo tinha saído errado.

Naquela época não soube como remediá-lo, e agora a brecha entre ambos parecia muito mais profunda. Quis dar a Miranda tempo e espaço enquanto tentava ficar em contato com ela, falar com ela e explicar-se. Confiava que Miranda acabaria entendendo que naquele momento deixar a Academia era a decisão correta. Mas ela nunca respondeu a suas chamadas e lhe devolveu sem abrir a única carta que lhe mandou com um Devolver ao remetente.

Aquilo doía.

Não fez caso das lembranças e voltou a tirar seu cantil. Bebeu um gole comprido e disse:

—Vamos.

Caminharam em silêncio, olhando o chão em busca de provas. Cada certos passos verificavam que fossem pelo bom caminho, graças a algum ramo quebrado ou a rastros muito marcados. Em um ponto, viram que Rebecca havia caído, não havia dúvida. A prova era uma comprida mecha de cabelo loiro preso em um ramo, arrancado pela raiz da cabeleira. Quinn colocou uma bandeirola laranja sem dizer nada, fotografou-a. Cortou o ramo e o meteu em uma bolsa de provas com a mecha de cabelo.

Quando acabou, deu-se conta de que Miranda se deteve e o estava olhando. Não, não olhava a ele e sim a algo que estava mais à frente. Como se visse algo que não estava ali.

O coração se acelerou. Doía-lhe ver que Miranda ficava em situações que a obrigavam a reviver o que lhe tinha acontecido. Sua angústia era visível. Recordou o momento em que encontrou o corpo de Sharon, sua dor, seu evidente desgosto. Miranda era forte mas não indestrutível.

Deu-lhe vontade de aproximar-se dela e tocá-la, estreitá-la.

—Miranda —disse, com voz suave—. Encontra-se bem?

Ela voltou rapidamente sua atenção a ele.

—Estou pensando —disse—. Caiu aqui. Por que? Não há ramos que a fizessem tropeçar. Está no claro. E lhe disparou.

—Não se sabe... —disse ele, e se deteve. Poderia ser. Seguiu a direção de seu olhar enquanto ela caminhava desenhando um lento círculo—. Possivelmente — disse—, mas onde está a prova.

—Aqui mudou de direção — murmurou, como se estivesse falando sozinha.

—O que?

—Não teria seguido em linha reta depois que lhe disparasse. Teria mudado de direção, teria se virado, faria algo diferente para que ele não pudesse lhe seguir a pista. —Miranda começou a caminhar desenhando um arco, para trás e para frente, até deter-se, a uns quinze metros monte abaixo, em um ângulo de quarenta graus em relação com o atalho por onde avançavam.

—Aqui! —disse, com a voz tingida pela emoção.

Quinn se reuniu com ela mais abaixo. Havia outras duas cápsulas. Quinn plantou uma bandeirola.

—Temos que descer — disse ela, assinalando para uma inclinação muito acentuada.

—É muito íngreme.

—Sim, mas vieram por aqui.

Tinha razão. Havia uma árvore pequena pisada e quebrada na direção que assinalava Miranda. O limite do claro acabava bruscamente uns quinze metros mais à frente. Quinn deteve Miranda quando chegaram ao perímetro.

Doze anos antes tinham caminhado juntos por uma inclinação similar para chegar à cabana onde Miranda e Sharon tinham estado encerradas. Quinn nunca esqueceria a coragem de Miranda aquele dia.

—Está preparada para o que possamos encontrar? —perguntou com voz fraca.

—Certamente que sim — disse ela. Mas quando Quinn a olhou não era raiva o que brilhava em seus olhos escuros e sim as lembranças.

Também ela pensava nesse dia?

Ele esticou a mão, querendo conectar com ela, mas Miranda o rechaçou com um movimento quase imperceptível de cabeça. Ele deixou cair o braço, molesto consigo mesmo por havê-lo tentado, mas desejando que Miranda não insistisse em levar sozinha sobre seus ombros todo o peso da dor de Rebecca.

Caminharam seguindo o limite do claro e se detiveram ao cabo de um momento. A Quinn chamou a atenção algo que parecia desconjurado.

—Aqui — disse, e se agachou para examinar os rastros de pegadas no chão.

—Vamos.

Quinn desencapou sua pistola e assentiu quando ela o imitou com uma Beretta de nove milímetros um pouco menor. Nunca esqueceria que Miranda tinha obtido o terceiro posto na competição da Academia. Era um bom resultado se tinha em conta que tinham participado cem pessoas mais.

Mas ela se zangou consigo mesma por não obter o primeiro posto. A competência na Academia era coisa séria, mas ninguém a submetia a tanta pressão como ela mesma.

Miranda respirou fundo e reuniu toda a coragem possível à medida que se internavam no bosque. A vegetação se voltou mais espessa quando abandonaram o claro alagado de luz, e o ar, frio e úmido. O frio mantinha alto o nível de adrenalina enquanto varria o monte silenciosamente com o olhar em busca de qualquer indício de movimento.

Em busca do Açougueiro.

À medida que se internavam na espessura, os animais que escapuliam, o grasnido das aves e as botas que esmagavam o chão coberto de folhas eram os únicos ruídos. O ar estava fresco e limpo depois da chuva, a terra renovada. Entretanto, ao mesmo tempo, a Miranda chegou o aroma penetrante e desagradável da podridão. Recordou-lhe sua própria queda, quando estava suja e tinha frio e lhe doía tudo.

Quinn se deteve para olhar o atalho. A ladeira do monte era mais suave, muito diferente do terreno rochoso de mais acima por onde tinha escapado Miranda. A Rebecca tinham tido mais perto da civilização, a só uns dez quilômetros a vôo de pássaro.

Miranda fechou os olhos e respirou fundo para serenar-se. Quando voltou a abri-los ao cabo de um minuto, tudo parecia mais vivo e brilhante. O verde era mais verde, o marrom mais marrom. Uns potentes raios cortavam a sombra entre as árvores e alagavam o chão com manchas de luz. A Miranda fascinava os dias como esse, depois da chuva da primavera que deixava o ar limpo, quando tudo ficava fresco e novo e a culpa que ela sentia por estar viva se desvanecia.

De repente, um brilho chamou sua atenção.

Um leve reflexo em um teto de zinco meio oxidado. Ficou olhando, tão concentrada em seu descobrimento que os ruídos do bosque passaram a um segundo plano. Não ouvia mais que os batimentos de seu coração. A madeira curvada e velha que sustentava o frágil teto não teria podido agüentar a recente tormenta, mas as aparências enganam. Aquela cabana tinha suportado os duros invernos de Montana, golpeada pela chuva e sepultada pela metade pela neve.

—Miranda.

—Lá —disse ela, saindo de seu ensimesmamento.

Ele olhou com expressão inescrutável. Tirou o walkie-talkie e apertou a tecla para falar.

—Xerife, encontramos uma choça. A uns... —disse, e olhou para o alto do monte íngreme—, seiscentos metros da borda do claro. Há uma bandeira laranja que marca o ponto onde nos afastamos do campo.

Soou a estática.

—Entendido. —A voz de Nick, distorcida pela comunicação, rompeu o silêncio—. Enviarei uma equipe.

—Entendido. Cambio e desligo. — Quinn meteu o aparelho no bolso e se voltou para Miranda.

Ela elevou o queixo, sabendo que podia enfrentar o que fosse.

—Vamos.

Miranda seguiu Quinn, o bastante perto para não passar nada por alto. Os dois colocaram as luvas de látex para preservar o que provavelmente seria a cena do crime.

Onde Rebecca tinha sido violada e torturada.

Miranda fechou brevemente os olhos e depois pestanejou, surpreendida. Tinha lágrimas nos olhos. Agora, não, recriminou a si mesmo, com sua severa voz interior.

Quinn lhe fez um gesto para que se afastasse enquanto ele inspecionava o perímetro do barraco. Ela obedeceu sem resmungar.

Aquele barraco desmantelado provavelmente levava décadas aí. A madeira estava desgastada, quase negra. De fato, deveria estar convertida em um monte de troncos, apodrecendo-se sob capas de folhas em decomposição e coberta de musgo. Mas embora não parecesse muito sólida, estava bem construída. Um velho barraco abandonado, como tantos outros.

Até que o Açougueiro o encontrou.

Com uma mão, Miranda tirou o mapa topográfico e localizou sua posição aproximada assim como o caminho que tinha seguido Rebecca.

Sentiu que lhe revolviam as tripas ao imaginar a pobre garota fugindo pelo bosque. Não porque sua fuga acabasse em uma execução, mas sim porque se Rebecca tivesse escapado uns seis quilômetros na direção oposta teria chegado a um caminho de terra que conduzia a uma pequena represa. Possivelmente teria morrido de qualquer maneira, mas ao chegar ao caminho teria tido mais possibilidades.

Corre! Tem dois minutos. Corre!

A voz vinha de um nada, e Miranda apertou a culatra de sua arma enquanto olhava a seu redor, lutando contra o pânico com o corpo alagado de adrenalina.

Ninguém. Não havia ninguém. Sua maldita voz, rouca, sádica, perseguia-a. Maldito fosse.

Rebecca não tinha tido a possibilidade de escolher por onde fugir, como aconteceu a Sharon e a ela. Elas corriam para afastar-se em direção contrária a seu seqüestrador. Se ele estivesse ali, justo do outro lado dessa porta estreita, lhe apontando ao coração com um rifle, Rebecca teria deslocada colina acima. Afastando-se.

— Miranda?

A voz de Quinn era suave mas firme, e ela voltou a recordar que ele tinha sido seu apoio mais firme durante os piores dias depois do ataque. Recordou o jovem e promissor agente do FBI por quem se apaixonou, um homem entusiasmado com a vida e com seu trabalho, combatendo os maus. E durante todo esse tempo, lhe ajudou a recuperar o equilíbrio, deu-lhe a força que tanto necessitava.

Miranda se obrigou a olhar com rosto inexpressivo (tinha muita experiência fingindo um interesse neutro), e se virou para ele.

Quinn tinha amadurecido. Tinha quase quarenta anos. Já não se movia de um lado a outro compulsivamente, como se estivesse obrigado a controlar esse cacoete, quão única reconhecia como tal.

Mantinha-se alto e erguido, ainda seguro de si mesmo, inteligente, mas mais sábio. Mais curtido.

Já não era o homem por quem se apaixonou. Ela tampouco era a mulher que ele havia dito amar. Ele tinha amadurecido até converter-se no homem que ela tinha imaginado.

Entretanto, seguia sendo o homem que a tinha traído.

—Estou pronta —avisou, com voz suave.

Ele abriu a boca para falar, mas não disse nada. Em troca, assentiu com a cabeça e se aproximou do barraco. Aliviada, ela reprimiu um suspiro e o seguiu.

Umas arranhadas recentes na madeira indicavam que até pouco tempo a porta se fechava com um cadeado. Quinn tinha sua arma pronta. Ela também.

Jamais voltariam a surpreendê-la com a guarda baixa.

Quinn empurrou a porta e esta se abriu. Sem chave. Empurrou-a para dentro com cuidado, lentamente, enquanto se tornava a um lado para o caso do assassino estar ali dentro.

Estava vazia. Miranda sentiu um alívio relativo. Tinha uma vontade desesperada para apanhar esse tipo, mas temia encontrar-se cara a cara com ele. Era alguém que conhecia? Alguém com quem tinha ido ao colégio? Um cliente habitual da hospedaria? Um habitante local? Um estranho?

Seria capaz de reconhecê-lo? Era alguém a quem via todos os dias?

Aquela idéia não parava de lhe rondar a cabeça. Possivelmente o Açougueiro fosse alguém que ela via como um amigo.

— Miranda?

—O que? —disse, sobressaltando-se. Em seguida se arrependeu de seu tom de voz. Não tinha por que comunicar sua agitação a Quinn. Esses demônios que ela combatia eram estritamente pessoais.

Ele ia dizer algo, mas calou. Começou a examinar minuciosamente o interior.

No barraco, de um só cômodo de dois metros e meio por quatro, só havia um colchão manchado e imundo no meio do chão de madeira enegrecida. Sangue seco mesclado com terra. O teto era de madeira e zinco, inclinado para impedir que a neve o destruísse. A roupa de Rebecca estava em um canto. Os jeans, o pulôver amarelo e o agasalho impermeável azul com que a tinham visto pela última vez.

Não estavam nem o sutien nem as calcinhas.

Miranda se fixou no aroma. Era o aroma do medo grudado às paredes, como se o terror da Rebecca tivesse ficado impresso para sempre na madeira escura e musgosa.

Não, o medo não cheirava. Era o suor seco, o aroma vago e metálico do sangue, o que empapava seu olfato ao respirar, deslocando-se até sua língua, lhe fazendo sentir o sabor acobreado do terror, antes que seus pulmões e seu coração se enchessem de penosas lembranças.

O sexo. O sexo brutal e doloroso.

Tenho muito frio, Randy.

Miranda olhou a seu redor, segura de ter ouvido a Sharon que lhe falava.

Não era Sharon, e sim seu fantasma.

A habitação sem janelas se encolheu. Era como se as paredes pulsassem, como se respirassem. Como se arrastando para ela, cada vez mais perto... e o medo sim cheirava. O aroma enjoativo de seu próprio terror, sua mortalidade, puxavam ela para baixo, estrangulavam-na.

Randy, tenho frio. Vamos morrer.

Não vamos morrer. Não se dê por vencida. Encontraremos uma maneira de escapar.

Nos matará.

Basta! Deixa de falar dessa maneira.

Rebecca esteve sozinha. Sem alguém que a apoiasse. Ninguém com quem falar, com quem chorar, a quem fazer promessas. Sozinha. Sem saber quando ele voltaria, quando voltaria a montá-la. Quando agarraria as tenazes frias como o gelo para lhe apertar os mamilos até que ela gritasse.

Aaaayy!

Os gritos da Sharon lhe ressonavam nos ouvidos, golpeavam-lhe como um martelo na cabeça.

Ela seria a seguinte.

As paredes respiravam e se curvavam. Aproximavam-se, pouco a pouco, cada vez mais...

Começou a tremer descontroladamente quando ouviu os gritos e soluços da Sharon. Ele guardava silêncio. Um silêncio doentio. Mas Miranda sabia que voltava a violar a Sharon, ouvia o tamborilar asqueroso de sua carne contra a dela, chas, chas, chas, sobre sua pele. O grito quando lhe retorcia os mamilos com as tenazes...

Sim, ela seria a seguinte.

As paredes lhe caíram em cima, como se quisessem lhe chupar a vida. Miranda levou a mão à boca e saiu correndo da choça, tropeçou entre os ramos, até que encontrou uma árvore. Apoiou-se no tronco, tentando reprimir o terror que ameaçava deixando-a louca.

Quinn tinha razão. Vai se afundar.

Não. Não. Não!

Respirar fundo. Respirar para limpar-se. Os aromas do suor, da violação infame e do sangue foram desvanecendo, substituídos pela fragrância fresca dos pinheiros, a terra úmida e as folhas podres. A seiva pegajosa.

Inspirar. Exalar.

O coração acalmou e os batimentos do coração no pescoço perderam sua frenética pulsação. Abriu os olhos e ficou olhando a árvore em que se apoiou.

Abraçadora de árvores, pensou, e se deu conta de que reprimia um sorriso.

Separou-se da árvore, secou as mãos nos jeans e reuniu sua coragem, recuperando a compostura.

Respira, Miranda. Respira.

Levantou-se e voltou para a choça, disposta a tentar uma vez mais. Lutaria contra a claustrofobia que se converteu em seu obstáculo desde aquela semana no inferno, fazia doze anos.

Quinn ficou olhando e ela agüentou a respiração.

 

Quinn observava Miranda da soleira da porta.

Estava vindo abaixo, pálida como um fantasma, e era evidente que estava tocada. Se a imprensa se inteirava de que um dos membros da equipe não tinha confiança em si mesmo, toda a investigação poderia vir abaixo.

Miranda se aferrava à árvore como se fosse um salva-vidas. Ele deu um passo adiante, pensando no que tinha que dizer. Miranda, vá para casa. Cuide-se. Não pode nos ajudar se tiver uma crise nervosa.

Enquanto ele observava, ela começou a recuperar a compostura. Miranda deixou de tremer e se separou da árvore. Acabaram os soluços mudos que a sacudiam. Inclinou-se, respirou fundo e voltou a erguer-se.

E o olhou diretamente nos olhos.

Medo. Via-lhe o medo pintado na cara, mas não era o terror do qual tinha escapado na choça. Era medo dele.

Em seu interior se debatiam a fúria e a empatia. Que tivesse medo dele era inquietante, mas ele o entendia. Depois de lhe advertir sem rodeios que estava a ponto de ter uma crise, não tinha nada de estranho que a relevasse da investigação.

Assim que ele entendeu seus medos, ela os dissimulou atrás de um rosto de pedra.

Quinn se surpreendeu com a rapidez que Miranda voltava tão rapidamente a ser dona de si mesma. Tinha visto veteranos impressionados diante da cena de um crime especialmente brutal, que demoravam mais de cinco minutos em recompor-se. Outros demoravam vários dias.

Entretanto, também era certo que Miranda tinha tido doze anos para ocultar seus medos.

—Claustrofobia? —ouviu-se dizer.

Ela assentiu, visivelmente mais relaxada. Inclinou a um lado a cabeça e deu de ombros.

—Às vezes ainda me acontece. Não há janelas —acrescentou, ao cabo de um instante, em voz tão baixa que quase não se ouviu.

Embora parecesse tranqüila, seguia olhando com olhos vigilantes. Esperando mais. Esperando que lhe saltasse à garganta. Desconfiava tanto dele? Que fizesse algo assim enquanto ela estivesse indefesa?

—Miranda —disse ele, e se aproximou. O que podia dizer para lhe dar segurança?— Eu...

O ruído de homens que desciam pela ladeira do monte o interrompeu. Viram Nick que se aproximava do barraco com cinco agentes.

—Encontramos três balas em duas árvores —disse Nick, olhando de Quinn a Miranda e de novo a Quinn. Se tinha se dado conta da tensão, sua expressão não o delatava.

—O agente florestal está trabalhando com meus homens para cortar as partes de troncos; mandaremos ao laboratório em Helena. —Nick se voltou para seus homens—.Dispersem pelo monte para baixo a partir do barraco e tratem de averiguar como a trouxe até aqui. Atentos aonde pisam, terá que vigiar se por acaso vêem algo estranho. Rastros de rodas, lixo...

— Sim, senhor. —Os homens se separaram.

—Necessitamos uma equipe para procurar provas — disse Quinn.

—Então é aqui —disse Nick, franzindo o cenho ao olhar para o barraco, como se uma nuvem negra passasse por seu pensamento.

—Sem dúvida, teremos que coletar amostras de sangue e outras. —Nos outros barracos encontrados, tinha recolhido algumas provas forenses, embora as amostras de DNA estivessem poluídas pela exposição ao ar livre. O assassino não deixava rastro de sêmen nas vítimas, nem cabelo nem sangue. Utilizava uma camisinha, embora nem sempre as violasse penetrando-as com o pênis.

Quinn olhou sua companheira e teve vontades de estrangular o canalha que lhe tinha feito isso. Era um impulso diferente a sua habitual reação de ira ante os criminosos violentos. Era mais forte e poderoso.

Era pessoal.

Ela o surpreendeu olhando-a e lhe sustentou o olhar. Seu rosto pálido era inexpressivo, mas seus olhos estavam cheios de interrogações.

—Acredito que estamos preparados para seguir. Miranda? —perguntou Quinn, querendo lhe dar a opção de não seguir, embora duvidasse que ela fosse abandonar agora.

—Sigam vocês —disse ela, o que foi uma surpresa—. Eu volto.

Nick parecia tão surpreso quanto Quinn.

—Espera que chame um de meus homens para que a acompanhe —disse ele.

—Maldito seja, Nick. Não vou me perder.

—Miranda —disse ele—. Ninguém de minha equipe pode ir sozinho enquanto dure a busca. Deveria saber melhor que ninguém, posto que também é sua regra.

—Tem razão. Sinto muito —disse, suspirando—. É que estou cansada.

Nick lhe tocou o ombro e assentiu.

—Descansa um pouco, Randy. Amanhã teremos muito trabalho e daqui a duas horas terá que suspender a busca.

—Farei Isso. —Esperou que Nick chamasse o agente Booker para que voltasse com ela. Olhou Quinn.

—Obrigado —disse, e lhe tocou levemente o braço. Um contato ligeiro que transmitia mais emoção real que algo que tivessem compartilhado desde sua volta a Montana. E não era raiva. Sustentaram o olhar, só um momento, uma trégua mútua. E algo mais. Um pouco mais profundo. Era perdão?

Não, ele não tinha tanta sorte.

Observou-a enquanto se afastava com o agente. Enquanto conjecturava.

O sol se pôs muito depois da hora de jantar, e já caía a noite quando Miranda se dirigiu para o sudeste, em direção à Hospedaria Gallatin.

Não podia deixar de pensar na reação de Quinn.

Estava segura de que ele converteria tudo aquilo em um escândalo, e que lhe soltaria frases como «já lhe adverti isso». Maldito seja, esperava que não sentisse lástima por ela. Isso quase seria pior. Miranda não necessitava nem queria inspirar lástima a ninguém. Quão único queria era um pouco de espaço para respirar, um pouco de compreensão sem compaixão.

E ele o tinha dado. Isso lhe brindava uma perspectiva nova de tudo.

Não queria pensar em Quincy Peterson nem em suas motivações. Agora, não. Ao ser expulsa da Academia, tinha entendido perfeitamente o que ela era para ele. Uma carga, um problema, uma pessoa dispensável. Fazer algo inesperado e amável agora não trocava o fato de que ele pensasse que ela não podia dirigir a investigação sobre o Açougueiro.

Apesar de sua decisão de esquecer o passado, este a acossava com suas lembranças.

Era o dia antes da graduação e Quinn foi vê-la em seu quarto. Miranda acabava de receber os resultados de seu exame final e não podia conter seu entusiasmo. Lançou-se a seus braços e o beijou.

Meu Deus, como amava aquele homem!

Enredou-lhe os dedos no cabelo, despenteando-a e lhe sustentou o rosto muito perto. Seus lábios eram quentes, firmes, seguros.

Deles.

Não tinham falado de matrimônio, não com essas palavras. A única conversa sobre o assunto o tinha introduzido Quinn. Foi antes que ela partisse de Montana, justo depois de que a admitissem na Academia, e justo depois de que seus escarcéus românticos se convertessem em uma relação em toda regra. Tinham concordado em postergar a conversa até depois de que ela se graduasse em Quântico.

Miranda nunca tinha duvidado de que passaria. Seus resultados lhe davam a razão.

Tinha uma carreira em que sabia teria êxito. Um homem que amava com todo seu coração. Alguém que a entendia, que cuidava dela e a amava sem condições. Que não a considerava uma mulher danificada. Alguém que a estreitava em suas noites de pesadelos, que acalmava sua ansiedade com suas mãos cálidas e seus ternos beijos. Que fazia amor sem reprimir-se.

Agora estava a ponto de graduar-se. Sua vida voltava a ser dela. Uma nova vida. Inteira, completa. Sentia-se renascer.

Ele a estreitou com força, beijou-lhe o cabelo. O aroma do Quinn era tão particular: sabão normal e comum e um pingo de loção pós-barba. Algo picante, mas não lhe embargava os sentidos. Quinn era bonito, sexy, inteligente e pormenorizado.

E era todo dela.

—Olhe! —exclamou ela, com um sorriso de orelha a orelha, elevando o exame escrito com uma pontuação quase ótima.

Ele abriu seus olhos de cor chocolate.

—Há. Tirou um ponto a mais que minha nota final.

Ela voltou a beijá-lo e quase deixou escapar uma risada. Quase. Ainda não tinha aprendido a rir como estava acostumada a fazê-lo, e essas risadas eram tão... imaturas. Entretanto, não havia se sentido tão feliz em anos, desde antes do seqüestro.

Nada podia detê-la agora.

Quinn a agarrou pela mão e caminharam pelo pátio ao exterior dos quartos. Cruzaram com um grupo de futuros agentes conversando em roda de pessoas, gozando de diversos estados de êxtase e orgulho. Era uma bela tarde de outono na Virginia. O dia seguinte prometia um tempo espaçoso e uma temperatura próxima aos vinte graus. Ideal para uma cerimônia de graduação.

Mas embora caísse um dilúvio, Miranda conheceria a glória quando recebesse seu diploma do Quântico, e lhe atribuíssem sua primeira tarefa.

Tinha vencido o Açougueiro, e isso parecia uma façanha.

—Falei com o agente Clark — disse Quinn, quando passaram mais à frente do pátio e seguiram caminhando tranqüilamente pelos atalhos ao redor do edifício.

—Já lhe disse isso, Quinn, nada de entendimentos especiais na atribuição de tarefas. Se me derem o que eu prefiro, melhor. Se não, farei méritos. —Miranda tinha pedido para trabalhar em casos de assassinos em série e ser admitida no programa de elaboração de perfis. Sua pós graduação em criminologia e sua licenciatura em psicologia eram pontos a seu favor, mas nada era seguro.

Ela queria fazer-se merecedora de sua tarefa. Não queria que sua relação com o Quinn influísse na decisão.

—Sei. —Ele guardou silêncio um comprido momento e Miranda sentiu um comichão no couro cabeludo. Algo estava acontecendo. Quinn não era um grande falador, mas tampouco lhe custava tanto comunicar-se. Dizia o que acreditava e acreditava no que dizia. Era a grande diferença em sua relação, posto que Miranda tinha dificuldades para falar sobre como se sentia, ou para encontrar as palavras adequadas.

—O que aconteceu? Não me diga que Rowan ou Liv não aprovaram. —Não era possível. As duas estavam tão centradas nos estudos e punham a mesma dedicação que ela. Eram suas primeiras amigas desde a morte da Sharon. E ao fim da primeira semana, sua relação se voltou mais de irmãs que de companheiras de quarto.

Quinn negou com um gesto da cabeça.

—Falamos de você.

—OH, você e o agente Clark falaram de mim? —Tentou que sua voz soasse leve e despreocupada, mas sentiu que a tensão se agarrava as costas e as mariposas batiam as asas no ventre. Algo muito errado estava acontecendo.

—O doutor Garrett se reuniu com Clark ontem pela manhã. Estava... hé... um pouco preocupado por sua segunda prova psicológica.

—Garrett é um idiota arrogante —disse Miranda, e meteu o cabelo atrás das orelhas. A mão lhe tremia e quis dissimular.

—Sim, bom. Clark o escutou. Estão preocupados com você. Acreditam que necessita um pouco mais de tempo.

Os dois sabiam a que se referia. O tempo. O tempo se converteu em um inimigo.

—Faz dois anos que ocorreu aquilo, Quinn. O que dizia, concretamente, o puto perfil?

Miranda se deteve e o olhou. Quando ele desviou seu olhar, ela soube, soube que estava fodida.

—Que tem uma personalidade obsessiva, e isso poderia nublar seu julgamento e pôr em perigo as vidas de seus companheiros.

—Isso é mentira! E você sabe. Não podem... O que disse? A cara de preocupação de Quinn lhe arrancou toda esperança do coração e então Miranda se deu cabalmente conta do que ocorria. Sua vida voltava a acabar.

—O que aconteceu? Maldito seja, Quinn, o que aconteceu? Ele falou com voz neutra.

—Clark me perguntou o que pensava. Disse-lhe que necessitava um ano mais.

Ela odiou as lágrimas que brotaram em seus olhos. Não pôde fazer nada para impedir que lhe banhassem as faces. Sentia um peso como um chumbo no coração e lhe faltou a respiração.

—O que?

Ele tentou lhe agarrar a mão mas ela se afastou.

—Randy...

—Não me chame assim! —Zangada com sua própria debilidade, limpou as lágrimas com o dorso da mão, mas em seguida caíram mais.

Quinn deu um passo atrás.

—Tem o ingresso assegurado em Quântico o ano que vem. E aprovará com todas as honras, verá...

—Já fui aprovada com todas as honras! —disse, olhando-o através de suas lágrimas—. A você... Pergunto a você. Por que não me defendeu?

—Necessita mais tempo. —Quinn falava em voz baixa e a olhava fixamente—. Miranda, passou pela universidade e fez sua pós graduação a toda velocidade, não fez nada por si mesma. Tem que saldar contas com o passado para poder enfrentar o futuro. Não estou seguro de que os motivos que tem para ser agente do FBI sejam os corretos.

— Economize a fodida psicologia barata. É você... você é o que pensa que virei abaixo. Que... que não posso fazer meu trabalho. Que se foda. Eu acreditava que... que precisamente você me entendia...

E pôs-se a correr.

Miranda sacudiu a cabeça e esfregou a têmpora, devolvendo a lembrança ao lugar que lhe correspondia. Enterrado. Não tinha percebido que aqueles pensamentos estivessem tão a flor da pele até que sentiu a umidade nos olhos. Mas por que se surpreendia? Assim que tinha visto Quinn no dia anterior os anos se desvaneceram.

Durante um ano lutou consigo mesma pela idéia de voltar para Quântico. Ignorou Quinn, segura de que não faria mais que recorrer a lugares comuns inúteis para lhe explicar até o cansaço por que precisava dar um tempo. Ela não queria ouvir suas razões. Quinn não a tinha apoiado no momento da verdade. Ele tinha questionado suas motivações, e depois tinha insistido em lhe dizer que não era nada pessoal.

Ao contrário, não podia ser nada além de pessoal.

Queria voltar para Quântico, mas uma coisa a retinha.

O medo. Um medo profundo que lhe gelava os ossos com apenas pensar que o psiquiatra pudesse ter razão, não só que estivesse obcecada com o Açougueiro mas também, se algum dia o encontrasse, sofreria de verdade uma crise nervosa.

A caça ao Açougueiro a mantinha centrada e lúcida. Mas quando a caça chegasse a seu fim, onde estaria ela? Quando apanhassem o assassino e o castigassem, o que faria ela? Não tinha nada mais.

O vazio de sua vida a sacudiu como um golpe no baixo ventre.

Piscou. De repente se deu conta de que tinha chegado à hospedaria. O jipe estava estacionado, mas o motor seguia em marcha. Apagou-o e respirou fundo. Estava turvada.

Tinha esquecido o muito que amava Quinn. Depois de ter dedicado tanto tempo a pensar em sua traição, esqueceu-se que um dia tinha querido —e planejado— passar o resto de seus dias com ele.

 

Quinn enviou o relatório a seu chefe do computador de Nick, que nesse momento voltava com um copo de café da cafeteria situada na mesma rua.

—Só, com uma gota.

Quinn franziu uma sobrancelha.

—Uma gota?

Nick sorriu.

—Expresso. Uma gota mais de cafeína.

Quinn pôs-se a rir e aceitou o café, sentindo que parte da tensão em suas costas se desvanecia.

Nick se sentou na cadeira para as visitas, do outro lado de sua mesa, e lhe fez um gesto para que ficasse em seu assento.

—Acabei que registrar todas as provas —disse Nick—, e o agente Booker as levará a Helena amanhã pela manhã.

—Bem. —Quinn tomou um sorvo de café. Deu-se conta de que não parava de tamborilar com o dedo indicador sobre o copo, e se obrigou a parar. O caso que tinham nas mãos era difícil, mas sua frustração tinha mais que ver com Miranda que com a investigação.

—O doutor Abrams confirmou que o sangue era da Rebecca? —perguntou.

—O mesmo tipo sangüíneo. Mandará uma amostra ao laboratório para uma análise de DNA, mas você e eu sabemos que é dela. —Nick guardou silêncio um momento e depois disse—: Porra, Quinn, o mofo que há nesse lugar terá destruído todas as provas.

—Possivelmente, ou pode ser que a tenhamos encontrado a tempo. —Era provável que no colchão esmagado e imundo no chão do barraco não houvesse nada útil, mas o perito criminologista tinha aspirado tudo o que havia dentro desse lugar, e logo analisariam até o último grão de terra. Quinn velaria por isso.

—Chamei uma amiga para que venha nos ajudar —disse Quinn.

—Outro super agente do FBI? —perguntou Nick em tom de brincadeira, embora Quinn percebeu o indício de algo mais, possivelmente um pingo de amargura. Esperava que Nick não seguisse zangado por causa do artigo de Eli Banks no Chronicle dessa manhã. Banks tinha deixado Nick em segundo plano porque este não lhe tinha dado a entrevista que queria, e não havia mais. Entretanto, a alusão à presença do FBI para encaminhar a investigação tinha que tê-lo afetado de algum modo.

Certamente, conhecendo Eli Banks, esse não era mais que o primeiro de uma seqüência de artigos negativos.

—Não exatamente. É uma técnica de laboratório, e amiga. Chama-se Olivia St. Martin.

—Esse nome me soa familiar. Não é amiga de Miranda?

Quinn assentiu com a cabeça.

—Eram companheiras de quarto em Quântico.

—Acredita que servirá de algo?

—Olivia faria qualquer coisa para ajudar Miranda. Virá. Só tenho que pedir-lhe Era muito tarde para chamar ontem à noite quando me ocorreu. Há poucos técnicos de laboratório tão dedicados a seu trabalho como Olivia, e sua especialidade é a análise de provas.

—O que seja, se acha que nos ajudará a apanhar esse canalha. — Se houver algo nas provas, Olivia o encontrará. Logo, só necessitamos um suspeito. —Não custava nada dizê-lo, mas não tinham suspeitos. Nem sequer uma pista.

Nove garotas desaparecidas, sete delas mortas. Supunha-se que as garotas não encontradas tinham sido vítimas do Açougueiro porque tinham encontrado seus carros avariados em um raio de três a seis quilômetros depois de sua última parada.

Depois do desaparecimento de Miranda e Sharon, a investigação conjunta do escritório do xerife e o FBI chegaram à conclusão de que o modus operandi era muito limitado. O seqüestrador avariava os carros de suas vítimas vertendo melaço no tanque de gasolina quando elas paravam para comer, e repor gasolina ou para ir ao lavabo. Ele as seguia até que lhes detinha o carro e então provavelmente se oferecia a repará-lo ou às levar no seu.

Quinn suspeitava que o seqüestrador tivesse um aspecto inofensivo, e que as vítimas o conheciam ou as pegava despreparadas quando desciam do carro para pedir ajuda.

Embora Miranda fosse sua única testemunha, Quinn não acreditava que seu caso fosse similar a outros seqüestros. Na realidade, suspeitava que o Açougueiro pensasse que Sharon estava sozinha ou não acreditava que Miranda voltaria tão rápido depois de conseguir ajuda.

Uma vez que Miranda levou os investigadores até o barraco, contou a Quinn o que tinha acontecido nessa noite.

E ainda lhe punham os cabelos arrepiados em apenas pensar.

—Sharon e eu fomos a Missouri as compras. E passar o dia. Decidimos ir ver um filme.

Miranda fez uma pausa e seu pai lhe passou um copo de água. Ela bebeu com um canudo.

—Papai, importaria-se em trazer um refresco? Eu adoraria tomar uma coca.

— Claro que sim. —Bill Moore lhe acariciou a face e saiu do quarto.

Quando fechou a porta, Miranda olhou Quinn.

—Sofreu tanto com tudo isto que não queria que escutasse o que vou contar.

Quinn dissimulou sua surpresa, mas Miranda não deixava de impressioná-lo. Depois do que tinha vivido, o fato de pensar nos sentimentos de seu pai demonstrava a solidez de seu caráter tanto, ou até mais que sua vontade de sobreviver.

Estava na cama do hospital, e seu cabelo negro murcho mas limpo contrastava com o branco dos lençóis. Seu rosto pálido estava cheio de hematomas, tinha uma atadura na cabeça, e os olhos inchados e avermelhados. Por todo o corpo tinha cortes, grandes e pequenos curados e enfaixados.

Soube pelos informes do médico que a tinham violado repetidas vezes. Que tinha necessitado dúzias de pontos de sutura nas pernas, ventre e seios devido a feridas com um objeto agudo. Que a tinham torturado com um parafuso metálico.

Que tivesse sobrevivido e escapado quando tudo jogava contra era um fato assombroso.

Que estivesse disposta a falar do acontecido e ajudar a encontrar o maldito que lhe tinha feito isso e depois matado a sua melhor amiga demonstrava que Miranda tinha mais integridade que a maioria dos agentes com que tinha trabalhado Quinn.

—O filme acabou depois das nove —disse—, e quando empreendemos a volta, já eram dez horas. Íamos no carro da Sharon, um Volkswagen fusca. Eu sempre ria de seu carro. —Em seus olhos brotaram lágrimas, mas seguiu—: Quero dizer, estava ali sem poder sair no inverno porque não podia conduzi-lo se havia neve ou gelo, e tinha a bateria totalmente morta quando as neves se derretiam... —balbuciou ao final, e logo tragou saliva—. Mas Sharon adorava seu Herbie, sabe, batizado como o fusca apaixonado.

Quinn não a pressionava, nem sequer quando fechava os olhos. Ver as lágrimas lhe banhando as faces o destroçava. Tinha trabalhado com numerosas vítimas, em diferentes estados de histeria, mas algo na dor de Miranda lhe chegou ao fundo. Deu-se conta de que desejava consolá-la com algo mais que palavras.

Ela seguiu e ele se concentrou em tomar nota.

—Paramos no Three Forks porque acabava a gasolina do Herbie, e eu acreditava que não chegaríamos à hospedaria, embora estivéssemos a menos de cinqüenta quilômetros. Sharon fazia isso freqüentemente, conduzir com o depósito quase vazio. Desde que a conhecia me tinha chamado três vezes para me pedir que lhe levasse gasolina — disse, e sorriu com essa lembrança agridoce.

— Tínhamos fome e havia um local de comida rápida, assim entramos para comprar batatas fritas e umas cocas. Comemos no local porque Sharon não gostava de comer dentro do carro.

Voltou a fazer uma pausa, esta vez com o olhar absorto no teto. O que estava olhando? Recordando? Tentando esquecer?

—Saímos ao cabo de um momento. Ao fim de uns cinco minutos, Herbie começou a dar sacudidas e um quilômetro depois de Manhattan, parou-se sem mais. Jogou um pouco de fumaça e morreu. —Miranda guardou silêncio—. Jamais devia ter dito que parasse. Seguro que tínhamos suficiente gasolina para chegar em casa. Se só...

—Basta, Miranda —disse Quinn, e em seguida pigarreou—. Perdão, senhorita Moore.

—Tudo bem. Meu nome é Miranda.

—Não deve pensar no que teria feito de maneira diferente. Nada disto foi sua culpa. Tudo é culpa dele. E sabe.

—A imprensa o chama o Açougueiro de Bozeman.

__ Odeio a imprensa — disse Quinn, com uma careta.

__ Eu estou começando a odiá-la —disse ela, com voz fraca. Quinn se perguntava se teria visto a foto de quando a tiravam do vale com uma corda de salvamento. Confiava que o pessoal do hospital lhe economizasse as notícias da televisão ou a leitura de jornais. Quinn já tinha gritado ao xerife um par de coisas por alguns dos detalhes revelados, não só sobre a condição de Miranda mas também sobre a investigação.

Entretanto, não era o momento mais indicado para pensar nisso.

—O que aconteceu quando o carro se danificou? —perguntou.

—Eu comecei a fazer brincadeiras. A respeito do Herbie e de como ela o amava muito.

Miranda respirou fundo antes de seguir.

—Eu conheço a área e sabia que havia uma cabine de telefone em um pequeno posto de gasolina que fecha de noite. Ia chamar a meu pai para lhe pedir que viesse nos buscar.

—Por que não o chamou?

—A isso ia. Estava quase na curva, mais ou menos, a uns duzentos ou trezentos metros, quando chegou um carro por trás. Eram dois anciões e se ofereceram a me levar. Disse-lhes o que tinha ocorrido, e eles tinham um telefone no carro. Quero dizer, não conheço ninguém que tenha um telefone no carro exceto o prefeito. Deixaram-me usá-lo para chamar meu pai. Ele disse que passaria a nos buscar em vinte minutos.

Miranda lhe lançou um olhar agônico.

—Por que não fui com eles? Possivelmente ao vê-los tivesse fugido e Sharon ainda estaria viva —disse, e calou, afogada pela emoção—. Disse-lhes que meu pai viria, que seguissem e que eu esperaria com Sharon.

—Miranda, tinha motivos de sobra para se sentir segura.

—Aqui nunca aconteceu nada errado. Nunca pensei — balbuciou, reprimiu um soluço e seguiu—: Voltei Sharon não estava. Quero dizer, não estava no carro. Chamei-a e ela gritou pedindo ajuda.

—Onde estava?

— Na sarjeta ao lado do caminho. Pensei em um animal, um urso, ou algo. Não tinha uma arma, quero dizer, tenho uma mas não a carrego sempre, sabe? Comecei a gritar para afugentar essa coisa que aterrorizava Sharon, e, e... —disse, e calou.

—E?

—Nada. Ouvi um ruído a minhas costas, virei-me e... —Fez uma pausa, como se pensasse—. Cheirei algo doce. Doce e enjoativo. Senti uma dor de cabeça, e depois nada.

Miranda voltou a olhá-lo, com os olhos alagados pela dor de suas emoções.

—Nada, até que despertei acorrentada ao chão. Não sabia por que tinha tão frio, até que me dei conta de que estava nua.

 

O escritório de Nick era a segunda sala destinada à investigação do Açougueiro. Um mapa da região ao sul da interestadual até o West Yellowstone cobria quase toda uma parede. As tachinhas de cor assinalavam os pontos onde tinham desaparecido as mulheres, onde se tinham encontrado os corpos, e onde se situava o lugar de seu cativeiro. Com os dados contribuídos pelas provas, tinham esboçado uma linha fina da rota que tinham seguido em seu intento de fuga.

Com exceção da Sharon, nenhuma das sete vítimas tinha percorrido mais de três quilômetros. Tinha matado Sharon a seis quilômetros da choça. Miranda tinha caído no rio uns oitocentos metros mais à frente.

O mapa da parede incluía uma linha temporária, com fotos e informação balística, escrita com a pequena letra maiúscula de Nick.

Quinn se aproximou do quadro e revisou a informação que conhecia de cor, esperando que algum novo detalhe de repente lhe chamasse a atenção.

 

Penny Thompson. Desaparecida: 14/05/91

Carro abandonado na sarjeta junto a Interestadual 191, a quatro quilômetros do Super Joe's Stop-n-Go.

Penny encheu o depósito de gasolina no Stop-n-Go às 22:46. Foi ao lavabo. Comprou uma Pepsi light e bolachas. Saiu aproximadamente às 22:55.

 

Não havia câmara de segurança no fornecedor onde Penny tinha deixado o carro.

Naquela época, a polícia tratou o caso de Penny como o de uma pessoa desaparecida e uma provável agressão. Quando encontraram rastros de sangue no volante, pensaram que Penny se chocou contra a sarjeta, e nunca descartaram uma morte acidental. Não sabiam que enfrentavam um assassino em série. O xerife Donaldson acreditava que o ex-noivo de Penny a tinha matado e que depois tinha batido o carro para confundir à polícia, mas não encontrou provas que sustentassem sua acusação. Tiveram que passar três anos para que se reconhecesse Penny como a primeira vítima do Açougueiro.

Dois anos mais tarde, desapareceu Dora Feliciano. Não tinha veículo, e voltava para casa caminhando de seu trabalho no centro de Bozeman. Ainda havia dúvidas de se o Açougueiro era o culpado de seu desaparecimento. O escritório do xerife olhava com maus olhos seu noivo e companheiro de apartamento, mas não havia provas claras que o relacionassem com seu desaparecimento.

Então, quando depois do desaparecimento das irmãs Croft, chegou a Montana Colleen Thorne, a colaboradora de Quinn, puseram a Dora no quadro. O episódio datava de três anos. O raciocínio de Colleen era que o Açougueiro ainda estava forjando uma estratégia. Dora tinha sido um alvo fácil, caminhando sozinha de noite. Bozeman era uma cidade com baixos índices de criminalidade. A maioria das mulheres se sentia seguras.

 

Miranda Moore e Sharon Lewis. Desaparecidas em 27/05/94. Sharon assassinada em 02/06. Miranda encontrada pela equipe de busca do xerife.

Quinn estremeceu ao recordar o perto que tinha estado Miranda de morrer. O que tinha sofrido nas mãos do Açougueiro, sua vontade de viver, sua fuga.

A informação sobre Miranda era mais longa e detalhada. Foi então quando se deram conta de que o seqüestro era premeditado. E souberam que se tratava de um assassino em série. Voltaram para o caso de Penny Thompson, mas seu pai já fazia tempo que se desfez do carro. Quando a polícia o encontrou, o novo proprietário explicou que o carburador estava tão inutilizado que o tinha tido que substituir por outro. O anterior o tinha atirado ao lixo.

Em junho de 1997, desapareceram Susan Kramer e sua companheira de quarto, Jenny Williams. Considerou-lhes imediatamente vítimas do Açougueiro porque seus carros abandonados tinham melaço no depósito de gasolina. Quatro meses depois, uns caçadores encontraram o corpo da Susan. Não estava em boas condições mas a identificaram na autópsia. Tinham-lhe disparado em uma perna e no peito.

Nunca encontraram o corpo de Jenny.

O ano 1999 foi um ano estrela para o Açougueiro, pensou Quinn, enojado. Três garotas universitárias desaparecidas, todas seqüestradas em separado, com uma diferença de três semanas, começando em 28 de abril. Nenhum dos corpos foi recuperado. Em 2001 desapareceu outra mulher, uma aluna de biologia, originária da Florida, depois de abandonar o carro a uns cinco quilômetros de sua última parada.

O caso da Karen Papadopoulis era diferente, porque encontraram o corpo antes que o veículo, que estava oculto em um pequeno caminho secundário a oeste de Old Norris, no condado vizinho de Madison. Tinham-lhe disparado na coxa com um rifle de alta velocidade, embora não era isso o que a tinha matado.

Tinha morrido degolada.

Quinn se separou do quadro com essa raiva contida que conhecia bem. Sabia que o Açougueiro era preparado e engenhoso, e que seguiria matando até que cometesse um engano. Mas ainda não tinha cometido engano algum.

—Assim sabemos que este sujeito não tem um veículo identificado — assinalou Quinn, passeava de cima abaixo—. Mas não pode chegar com ele até a choça. Todas as mulheres eram miúdas, pesavam menos de sessenta quilos. Um homem em forma poderia carregá-las.

— Ou as arrastar em uma espécie de trenó.

—É verdade, mas não vimos esse tipo de rastros, não é?

Nick negou sacudindo a cabeça e apertou a ponte do nariz.

—Ok, assim carregava as garotas até lá encima. Às vezes eram duas.

—Uma cada vez?

—É o mais provável.

O Açougueiro era um homem paciente. Metódico. Planejava seus movimentos. Tinha que planejar seu itinerário antes dos seqüestros. O barraco estaria preparado com as correntes e um cadeado na porta. Era bastante forte para carregar com uma mulher pelo monte, e provavelmente conduzia um veículo com tração até um ponto próximo antes de seguir a pé.

Não tinham encontrado provas que indicassem que montava a cavalo, mas Quinn não podia descartá-lo. Já que se tratava de um homem metódico, possivelmente tomasse o tempo para apagar os rastros.

Quinn voltou a concentrar-se no mapa, com o queixo apoiado em uma mão.

—Todos os barracos se encontram relativamente perto, entre cinco a dez quilômetros, de algum tipo de caminho, ou de atalhos que já não se usam, cobertos pela vegetação —disse. Não era nenhuma revelação, simplesmente tentava pensar na investigação de outra perspectiva—. Já o definimos como um homem forte mas, além dos músculos, tem que estar acostumado a trabalhos manuais compridos e duros.

—A busca nos registros de propriedade não deu resultados — seguiu Quinn. Tinham procurado nos registros das áreas onde estiveram encerradas as outras mulheres e descobriram que havia tantos proprietários como cabanas —. E o que há no lugar onde encontraram Rebecca?

—É propriedade privada, uns quatrocentos hectares, pertencem a um tipo de Hollywood. Vem uma ou duas vezes ao ano. É provável que nem saiba que o barraco está em suas terras. Seu rancho está no outro extremo.

—Comprovou?

—Não — disse Nick, depois de uma pausa.

—E o que tem que sua casa? —perguntou Quinn, franzindo o cenho.

—Tem um zelador.

—Irei vê-lo.

Nick apertou a mandíbula, e Quinn suspeitou que seu amigo temia ter passado algo por alto. Embora fosse um filão importante da investigação, Quinn se preocupava que Nick se sentisse ameaçado, sobre tudo depois da luz negativa que a imprensa tinha lançado sobre a atuação do escritório do xerife.

— É um tiro no ar — disse Quinn. Nick não pareceu mais tranqüilo.

—Vou procurar o registro da propriedade. Já volto — disse Nick, e saiu.

Quinn o viu fechar a porta e franziu o cenho. Nick estava deixando que a imprensa o afetasse, e isso não era bom sinal. Quando Colleen realizou uma busca, tinha visto que o escritório sob seu comando estava qualificado como «muito competente», mas assinalava que o anterior xerife tinha sido muito lapso em seu tratamento dos informe e investigações, sobre tudo com as garotas desaparecidas. Quinn tomou nota para chamar Colleen pela manhã e averiguar se tinha mais informação.

Voltou-se para o quadro. Os principais traços do perfil do Açougueiro estavam recolhidos em uma lista à direita.

 

Homem branco, 35-45 anos.

Nascido ou criado em Montana. Conhecimento exaustivo da região.

Familiaridade com a Universidade de Montana State: ex-aluno, professor ou membro do pessoal.

Melaço no depósito de gasolina para avariar o carro. Há algum motivo para utilizar sempre o mesmo procedimento, ou é só uma questão de conveniência e efetividade?

 

Durante a Segunda guerra mundial, as tropas dos Estados Unidos sabotavam os tanques alemães com açúcar. Era uma tática bem conhecida, amplamente publicada nas páginas da Web relacionadas com o tema da vingança. O perito em perfis do FBI, Vigo, acreditava que o Açougueiro podia ter servido no exército, mas acabou por descartá-lo.

—Não teria se apresentado como voluntário, e é muito jovem para que o tenham chamado a filas —havia dito a Quinn doze anos antes.

Tinham uma lista de todos os alunos, professores e membros do pessoal que coincidiam com o perfil na época em que Miranda foi seqüestrada. Eram centenas de nomes.

Quando souberam que era provável que Penny fosse a primeira vítima, já tinham passado três anos. Voltaram a revisar as listas, e elaboraram uma lista com centenas de homens brancos de menos de trinta e cinco anos que tiveram conhecido Penny, embora só fosse de forma casual.

Nick entrou e passou a Quinn uma nota.

—É a informação sobre o rancho, o zelador e o dono.

—Obrigado — disse Quinn, e guardou o papel—. Onde estão as pastas da investigação do caso Penny Thompson?

—Nos arquivos.

—Incluindo os papéis da universidade.

—Os dela ou dos suspeitos?

—De todos os homens que a tinham conhecido.

Eram centenas de nomes.

Sei.

—Foram devolvidos à universidade.

Merda. Teria que conseguir uma ordem judicial para cumprir com uma das exigências da Lei de privacidade de dados.

Quinn passou a mão pelo cabelo.

—Teremos que voltar a pedi-los. Já se estabeleceu que Penny foi a primeira vítima. Depois de quinze anos, poderemos descartar a maioria dos homens da lista, mas temos que vê-los um por um. Riscar os que estão casados, mortos ou que foram viver a outro lugar longe da região. Ao menos nos dará um ponto de partida.

—Parece uma possibilidade muito remota.

—Não sei se tiraremos algo em claro —disse Quinn, e sua voz soou surpreendentemente amarga—. Odeio os assassinos em série. São mais preparados, mais agudos e difíceis de identificar. Seus enganos costumam ser menores. Mas é quão único temos.

Quinn não queria voltar a passar por cima de Nick. Já tinha deixado claro que era decisivo levar a cabo um seguimento do seqüestro de Penny.

—Alguma vez se perguntou por que o assassino não se propôs acabar com Miranda depois que conseguiu escapar?

Nick parecia surpreso.

—Na realidade, não.

—Eu sim. Pensei muito nisso. Toda minha formação me diz que o assassino deve odiá-la por ter escapado, por cometer um engano, por sua incompetência. Considera-se superior às mulheres, ou sente uma necessidade irreprimível de demonstrar sua superioridade porque se sentiu inferior em pequeno. Odeia às mulheres. É algo que tem que ver com o controle. Com a dominação. Mas não pôde controlar Miranda.

—O fato de que Miranda tenha escapado deveria enfurecê-lo — seguiu Quinn—. Entretanto, nunca tentou ir caçá-la. O que me leva a pensar que, por algum motivo, sente-se orgulhoso dela. Ou que a deixa viver porque lhe recorda algo. A caça, ou o fato de ter perdido seu prêmio.

— Como se o tivesse vencido na caça?

Quinn esfregou a testa.

—Simplesmente não tem sentido. Deveria querer vingar-se. Teria que ter ido caçá-la. Mas, em troca, é como se a respeitasse o bastante para manter-se a distância.

—Mas como, Nick, é uma contradição, e me faz pensar que estivemos procurando no lugar errado.

 

Quando Quinn se deteve junto ao jipe de Miranda na hospedaria, era quase meia-noite e estava esgotado. Entretanto, sua mente ia por outros roteiros e baralhava todo tipo de idéias.

As luzes do restaurante estavam acesas, e viu o pai de Miranda com seu amigo de toda a vida, Ben Grayhawk, sentados no balcão. Bill o convidou a aproximar-se com um gesto e Quinn se sentou no tamborete a seu lado.

—Bill. Gray. Alegro-me de voltar a vê-los.

Gray levantou o copo com o líquido âmbar e elevou uma sobrancelha, como perguntando.

—É do bom — disse.

—Obrigado —disse Quinn. Um uísque duplo possivelmente lhe acalmaria bastante a cabeça para dormir um par de horas.

Bill se inclinou por cima do balcão, tirou um copo e serviu Quinn um gole comprido de uma garrafa meio vazia de Glenlivet.

—Saint —disse Bill.

Quinn elevou seu copo e tomou um gole. O uísque deslizou por sua garganta como vidro líquido e ele fez um gesto de aprovação.

Ficaram sentados em silêncio vários minutos.

—Não disse a Miranda que estou aqui —disse Quinn.

Bill sacudiu a cabeça.

—Não queria que discutíssemos. Randy pode ser muito teimosa.

—Não quero me intrometer em sua relação — disse Quinn.

—Não se preocupe.

—Agradeço a hospitalidade.

Bill acabou seu uísque e se serviu outro.

—Randy me disse que encontraram o barraco onde esteve seqüestrada a pobre Rebecca Douglas.

—Sim, é muito boa seguindo pistas. —Mais que boa, pensou Quinn.

—Isso está claro. É uma garota esperta —disse Gray.

Quinn recordou sua entrevista com Ryan Parker e seus amigos.

—Gray, queria te perguntar. Você falou a Ryan Parker a respeito de um velho cemitério índio que fica ao norte do monte? A alguns quilômetros ao leste do rio?

Gray o olhou sorrindo e mostrando seus dentes brancos e torcidos.

—Sim, contei. Os meninos às vezes vêm a cavalo até aqui. Temos bons atalhos para explorar. Eles já tinham ouvido falar, certamente. Os meninos da escola dizem que está enfeitiçado e que só se pode encontrar de noite e com lua cheia. —Riu com uma espécie de grasnido e ficou a tossir.

—Esteve ali?

—Não. Nem sequer sei se existe de verdade —disse ele, sacudindo a cabeça—. Suspeito que sim existe. Ouvi falar desse lugar desde que era menino. Mas minha mãe nunca me disse onde estava. Isso sim, sempre estávamos procurando. Assim não nos metíamos em outros problemas. Tem algo que ver com o assassinato? —perguntou, depois de uma pausa.

—Duvido. Só queria comprovar a história do menino —disse Quinn, sacudindo a cabeça.

—Ryan é um bom menino —disse Gray.

—Conhece bem os Parker?

—Na realidade, não. Mas dou um curso de segurança sobre o uso de armas de fogo. O ano passado Ryan se inscreveu com o mais velho dos meninos McClain. E, como digo, já que andam por nossos caminhos, quero estar seguro de que conheçam bem as regras.

Bill se levantou.

—Pode ficar o tempo que quiser, ou levar a garrafa a seu quarto. Eu tenho que me levantar cedo, assim será melhor que vá dormir.

Quinn acabou seu copo e disse que não com a cabeça.

— Obrigado pela conversa. —Deu-lhes boa noite e subiu a seu quarto.

Uma hora mais tarde, ainda estava acordado. Não podia deixar de pensar nos motivos que teria o Açougueiro para não procurar Miranda. Acreditava que, por alguma razão, era importante sabê-lo, mas não conseguia imaginar por que.

Acendeu as luzes e se sentou à mesa. Apontou umas notas criptografadas que só ele podia decifrar.

Vigo. Hans Vigo era o perito do departamento em perfis de assassinos, e um bom amigo. Possivelmente tivesse alguma informação relevante.

Antigos casos. Tinha que voltar a olhar as pastas das vítimas. Possivelmente havia algo em comum, mais à frente do sexo e a idade, que concernia a todas as vítimas. Ou possivelmente Miranda era única. Por quê? Por que a tinha deixado viver? Sim, tinha escapado, mas para o Açougueiro ela seria um estorvo.

Penny Thompson.

O primeiro que faria pela manhã era ir à universidade e usar todas as influências que tivesse para conseguir os velhos arquivos.

Olivia.

Eram duas da manhã na Virginia, muito tarde para chamar Olivia, embora ele soubesse que não lhe importaria. Chamaria-a pela manhã e lhe perguntaria se dispunha de um pouco de tempo para colaborar com as provas no laboratório estatal em Helena. Deveria atuar com muita diplomacia se queria conseguir que um técnico criminologista do FBI entrasse no laboratório do estado, mas confiava em sua habilidade para negociar e na capacidade que tinha Olivia para cercar relações cordiais.

Ao final, entendeu por que não podia conciliar o sono. Tinha fome. Com Nick, tinham parado a comer algo rápido e ele deixou meio hambúrguer sem acabar no escritório.

Sabendo que a Bill não importaria que olhasse na cozinha, desceu a fazer um sanduíche.

 

Sharon dormia e Miranda pensava em um plano.

Tinha que haver uma maneira de escapar. Alguma maneira. Como fosse.

Embora tivesse os olhos vendados, sabia que era de dia. Não pela luz mas sim pela diferença de temperatura.

Pensava que nunca voltaria a recuperar o calor. De noite, pensava que morreria de frio. Mas nunca fazia tão frio, só o necessário para que ela não deixasse de tiritar. Só o suficiente para que ela não pudesse sentir os dedos dos pés e mãos.

Já tinha deixado de desejar ter à mão seu edredom de penugem ou um café quente. A essas alturas, o calor era um luxo. A sobrevivência era quão único ocupava seu pensamento.

Duas coisas a mortificavam.

Teria-as ali para sempre? As alimentando a pão e água e as obrigando a revolver-se em sua própria sujeira?

Ou acaso as mataria assim que se cansasse de lhes fazer mal?

A liberdade não era uma das opções. Intuía, sem que ele houvesse dito nada, que nunca as deixaria livres. Durante os três primeiros dias, tinha-lhe suplicado. Mas agora sabia com certeza. Sua muda resposta lhe dizia que não tinha intenção alguma de as deixar em liberdade.

Tinha que haver dormido, porque o ruído do metal contra o metal a sobressaltou.

Clique. Clique.

O homem estava abrindo a porta do quarto onde as tinha encerradas. Miranda se retorceu, com todos os instintos postos na idéia de escapar, mas estava acorrentada à madeira bastante fria.

Deus queira que não volte a começar.

O ruído das correntes despertou Sharon.

—Não! —exclamou esta, com um grito rouco que escapou de sua garganta ferida—. Não, não, por favor —balbuciou entre soluços. Miranda guardou silêncio.

Já não ficavam lágrimas, nem ficavam súplicas. Tinha vindo às violar ou às matar.Iriam morrer.

Papai, te amo. Te amo e sinto muito. Espero que nunca saiba o que me ocorreu, porque o destroçaria.

Tinha saudades de seu pai, tinha saudades vê-lo e deixar que lhe acariciasse o cabelo, como fazia quando era uma menina e sua mãe tinha morrido.

— Está no céu, carinho — costumava dizer, e depois murmurava palavras doces a respeito do maravilhoso e belo que era o céu, onde a dor não existia.

Miranda ignorava o que a esperava. Veria a mãe que mal recordava? Era um paraíso como o que lhe descrevia seu pai?

Ou acaso era um nada? Um nada seria preferível ao vivido durante esses últimos cinco dias. Cinco? Ou eram seis dias? Tentava levar a conta, mas não sabia. Possivelmente tinha passado mais tempo.

Era um quarto pequeno. Um passo. Dois passos. Sharon gritou.

—Não me toque! Não me toque!

Para ouvir o ruído das correntes, Miranda teve que reprimir seu próprio terror. Ouvir que faziam mal a Sharon realçava seu próprio espanto, porque o que fizesse a Sharon o faria mais tarde a ela.

—O que? —Sharon parecia confundida.

E então Miranda sentiu que lhe levantava os braços. Depois do som metálico, de repente se viu livre.

Um leve indício de esperança lhe inchou o coração.

Tinha-as tido com os olhos vendados, não? Não podiam identificá-lo. Acaso as soltaria?

Estavam livres?

Agora tocava os pés.

—De pé.

Uma ordem de só duas palavras. Miranda tentou levantar-se, mas tropeçou e caiu.

—Não... não posso.

Tinha procurado manter os músculos em forma com exercícios, mas levava tanto tempo estendida de costas que suas extremidades já não estavam conectadas com seu corpo. Tinha toda a coluna machucada. Os cortes tinham sangrado e agora estavam secos.

— Uma hora. Aproveitem bem.

Um passo, e a porta se fechou. Com chave. Quatro palavras, o máximo que lhes tinha falado de um puxão. Entretanto, a voz soava sempre tão estranha, um tom neutro e seco. Oco.

—Soltou-nos! —exclamou Sharon.

Miranda cheirou algo por cima de sua própria sujeira corporal. Arrastou-se até a porta, apalpou a seu redor.

Pão. Água.

—Sharon —disse—. É comida.

Sharon topou com ela e as duas comeram no chão, aconchegadas em torno de sua solitária fatia de pão, bebendo de um pequeno copo de água.

Miranda levantou uma mão e tocou a venda. Quase tinha esquecido que o tinha posto, já quase formava parte dela.

O nó estava apertado e ela se sentia débil, mas o soltou. Sharon fez o mesmo.

Estava cega.

Não, estava escuro.

Miranda demorou vários minutos em distinguir as débeis estrias de luz que penetravam pelos nós da madeira do barraco sem janelas onde tinham permanecido atadas durante dias. Sharon agarrou uma camisa abandonada em um canto. Não era dela. Tampouco era de Miranda.

Meu Deus, acaso alguém tinha passado por aí antes que elas?

Sharon a pôs.

—Sinto muito, Randy. Sinto muito, tenho tanto frio.

—Está bem —disse ela.

Miranda se esticou tudo o que pôde e, como um bebê que aprende a caminhar, levantou-se se apoiando na parede.

Lentamente, foi recuperando a sensibilidade. A princípio, um comichão, depois, uma dor aguda.

—Move os músculos, Sharon.

—Mas vai nos soltar.

—Isso não sabemos. Temos que estar preparadas.

—Não posso.

Sharon se aconchegou em um canto, com os braços ao redor das pernas, balançando-se.

— Levante-se! —ordenou Miranda. Não queria gritar a sua amiga mas não demorou para dar-se conta de que ela teria que ser a mais firme e assumir o controle da situação. Era sua oportunidade para escapar. Ignorava por que seu seqüestrador as tinha desatado, mas lutaria até a morte antes de ver-se acorrentada ao chão uma vez mais.

Sharon a olhou zangada, mas se levantou e caminhou pela habitação, que não media mais de três metros por três. Miranda provou a porta e a sacudiu com a pouca força que tinha.

Fechada por fora.

Aproveitaram bem a hora para esticar-se. Caminhando. E, lentamente, embora fosse difícil de acreditar, recuperando parte de sua força.

Clink, clink.

A porta se abriu e entrou luz a torrentes.

Venham aqui.

Elas obedeceram e saíram a rastros do barraco. Miranda tropeçou e caiu ao chão.

A liberdade.

 

Ouviu o som distintivo de um carregador acoplado a um rifle.

—Corram.

Miranda olhou por cima do ombro. O homem permanecia na sombra, encapuzado, e a luz do final da tarde se refletia no canhão de seu rifle.

Quando Miranda compreendeu o que estava acontecendo, sentiu como um golpe no baixo ventre. O homem queria caçá-las.

—Corram. Têm dois minutos —disse, e calou—. Corra!

E Miranda correu.

 

Miranda despertou com um sobressalto.

Corram.

Tinha o corpo suado. Sentou-se e esfregou os olhos. Tinha estado a ponto de gritar, e se surpreendeu ao ver que tinha sua pistola na mão. Em que momento a tinha empunhado? Em seu sonho?

Sua voz.

Não, era seu pesadelo. O maldito pesadelo. Ele seguia em sua cabeça, perseguindo-a. Ela tinha escapado. Estava viva. Mas Sharon estava morta. De um disparo nas costas. E Rebecca, caçada e degolada como um animal.

Voltou a piscar. As mãos lhe tremiam quando se obrigou a deixar o revólver. A luz da lua caía como uma cascata pelas clarabóias, projetando sombras cinza azuladas pelo quarto.

Tinha a cama desfeita, os lençóis retorcidos e úmidos, as mantas no chão. Seu pijama de flanela estava empapado de suor, com o aroma tangível de suas lembranças na pele.

Não eram nem sequer as duas da madrugada. Quatro horas de sono. Miranda estava surpreendida de haver dormido tão rápido. Mas duvidava de que essa noite fosse dormir nem um minuto mais.

Tomou banho para lavar o suor do medo, vestiu uns jeans, um pulôver de gola alta e seu grosso agasalho impermeável, já que as noites de maio ainda eram frias. E se dirigiu à hospedaria, pensando no bolo de nozes que Gray tinha preparado.

Entrou pela porta lateral, iluminada por uma luz no teto. A porta estava fechada, mas ela tinha uma chave mestra. Cruzou a sala de jantar e quando estava a ponto de entrar na cozinha ouviu algo.

Deteve-se, com o coração pulsando tão forte como ao despertar do pesadelo.

Arranha, arranha, arranha.

Tap, tap, tap.

Silêncio.

Havia alguém na cozinha. Embora a luz da lua iluminasse a hospedaria através das janelas, não se viam luzes acesas. Se fosse um cliente, seu pai ou um empregado, teriam acendido as luzes.

Um intruso.

Procurou a arma que levava na bolsa. Nunca saía de casa desarmada fazia doze anos. Cautelosa, mas decidida, aproximou-se da porta grande da cozinha.

Tap, tap, rac.

Apertou-se contra a porta, apalpou procurando o interruptor com a mão esquerda, enquanto sustentava o braço direito, com a arma, estendido à frente.

Contou mentalmente até três, ligou o interruptor e apontou com o revólver.

Um homem alto, meio nu, virou-se e o garfo que tinha no prato caiu ao chão.

— Porra, Miranda! Baixa essa pistola.

Ela obedeceu, olhando-o boquiaberta. Muda.

A última pessoa que esperava ver de noite às escondidas em sua cozinha era, Quincy Peterson.

 

Miranda guardou a arma na cintura e olhou Quinn.

—O que você faz aqui?

—Chamei a seu pai quando vinha a caminho se por acaso tinha um quarto livre. Não pensei que nos encontraríamos. Calculei que estaria aqui quatro ou cinco horas ao dia, para dormir — disse ele, e deixou seu prato sobre a mesa. Bolo de nozes. Seu bolo.

—Espero que esse não seja o último pedaço de bolo —balbuciou Miranda. Por que havia dito isso? Tinha toda a intenção de lhe dizer que se fosse de sua propriedade.

Ele sorriu. E Miranda pestanejou. Sempre esquecia quão atrativo era Quinn. Ao vê-lo no dia anterior, sentiu-se tão embargada pela raiva e a tristeza e as emoções encontradas que não se fixou em seu aspecto. Ao vê-lo agora, com o torso magro e bronzeado nu, com seus músculos definidos com nitidez, embora estivesse relaxado, a cicatriz em seu ombro direito, lembrança de um disparo de escopeta recebido ao começar sua carreira... Tudo aquilo lhe trouxe lembranças. Boas lembranças. Despertar junto a Quinn e beijar o peito duro. E suas mãos... Quinn tinha umas mãos incríveis. Umas mãos grandes, com as palmas endurecidas e dedos surpreendentemente elegantes. Dedos com muito talento...

Seu olhar seguiu até onde uma estreita franja de pêlo loiro escuro desaparecia sob a cintura da calça cinza do moletom. Desviou rapidamente o olhar, sentindo que se ruborizava o suficiente com a subida de adrenalina ao acreditar que havia um intruso.

Estar com Quinn ali, em sua cozinha, sem a segurança protetora do trabalho, era como se lhe tivessem arrancado o tapete sob os pés. Quinn tinha invadido sua cidade, sua investigação e, agora, sua casa. Fazia anos que não pensava nesse dia em Quântico. E, de repente... a represa havia se quebrado e ela era incapaz de pensar em outra coisa.

Miranda não tinha nem idéia do que Quinn fazia durante esses dez anos. Por isso sabia, até podia estar casado. Essa idéia a perturbou, e franziu o cenho. Passou a seu lado e foi até o armário onde Gray guardava os bolos.

Ainda restava meio bolo de nozes, esperando-a. Não pôde deixar de sorrir.

Tomou seu tempo para cortar uma porção, sentindo que Quinn lhe tinha o olhar cravado nas costas. Na realidade, não tinha vontade de sentar-se e falar com ele. Fora da hospedaria, no monte, com Nick e os outros ao redor, era outra coisa. Mas aqui, sozinha? Não. Recordava-lhe sua antiga intimidade. Recordava-lhe quanto o tinha amado. Recordava-lhe aquilo que teria podido ser.

Entretanto, não podia ficar ali todo tempo lhe dando as costas. Deixou seu bolo na mesa, foi até a geladeira e tirou uma caixa de leite. Deixou-a na mesa com dois copos. Um para ela e outro para Quinn e se sentou frente a ele.

— Obrigado —disse ele. Seus olhos escuros eram impenetráveis. No que pensava? Nela? Neles?

Tomou um gole de leite e atacou o bolo. Se mantivesse a boca cheia não teria que falar, e assim não diria nenhuma estupidez.

Ele seguia observando-a.

Teve que resistir a vontade de retorcer-se. Durante os últimos anos, tinha recuperado o controle de sua vida e elaborado uma noção de paz relativa. Gostava de seu trabalho, um trabalho que procurava o bem para outros, embora não tivesse podido encontrar Rebecca antes que a matassem.

Tinha alguns bons amigos. Nick. Seguia em contato com Rowan e Olivia, embora não as tivesse visto em anos. Escreviam-se correios eletrônicos e falavam por telefone, mas para Miranda era difícil sair dali. Para não dizer impossível. Não podia ausentar-se de Montana quando ele ainda andava solto por aí.

Miranda amava Rowan e Olivia como se fossem irmãs, mas como podia abandonar aqueles que a necessitavam? Sobre tudo às garotas que tinham morrido. Rowan e Liv a entendiam, e possivelmente eram as únicas.

—Teria que ter me dito que ia ficar aqui —disse Quinn, rompendo o silêncio.

Ela elevou a vista. Viu que Quinn tirou o curativo da testa. Ficava uma crosta fina e escura, um aviso de sua última missão. Queria lhe perguntar por isso, mas não o fez. Não queria que importasse.

Sua mandíbula firme recordou a Miranda sua força. Quinn trabalhava incansavelmente quando ela o conheceu. Decidido a encontrar ao assassino da Sharon. Ela o ajudou porque precisava fazer algo para encontrar o canalha que lhe tinha feito tanto dano e que tinha matado sua amiga. E ao fim de um tempo se apaixonou.

Não aconteceu da noite para o dia. Tempo para sanar, para superar a dor. Quinn lhe deu tudo o que necessitava, e mais.

E depois foi e danificou tudo de cima abaixo.

—Os técnicos recolheram tudo o que puderam no barraco, e amanhã o enviarão a Helena. Decidi chamar Olivia e lhe pedir que fiscalize as provas de laboratório.

— Liv? Virá aqui?

—A Helena, se puder escapar —disse ele, e sorriu —. Às vezes, a ameaça de assumir a direção de uma investigação desperta certas reservas. Eles prefeririam ocupar-se das provas sem interferências, embora tivessem um federal vigiando por cima do ombro, que ter que enviar tudo a Virginia.

—O que for necessário — disse Miranda, com cara pouco esperançada. Nem sequer Olivia, que amava seu trabalho e se destacava nele, podia encontrar uma pista ali onde não havia nenhuma. O clima e as condições à intempérie danificavam qualquer prova que fosse aproveitável.

—Em algum momento, cometerá um engano — disse Quinn, seguro.

—Já. —Ela não acreditava.

—Pode ser que já o tenha cometido.

— Por que pensa isso? —perguntou ela, sentindo que lhe acelerava o coração.

—Penny Thompson.

—Vou revisar todos os arquivos da universidade. Lembra-te do Vigo, o perito em perfis? Insiste em que o assassino conhecia sua primeira vítima pessoalmente. Dedicamos tanto tempo faz doze anos a investigar as pistas suas e as da Sharon que quando soubemos que Penny era a primeira vítima e voltamos para suas pistas, estas não nos disseram nada. Seu noivo, o tipo que o xerife acreditava culpado do desaparecimento, tinha um álibi a prova de fogo para o assassinato da Sharon.

— Nos concentraremos nas partes do perfil do Vigo que nos ajudem a reduzir a lista, depois de tantos anos. Que o assassino siga solteiro, que tenha agora mais de trinta e cinco anos, que viva de um emprego com horários flexíveis, que esteja fisicamente em forma. Que tenha família na região, ou que ainda viva por aqui. Merece a pena.

—É um tiro ao ar —disse ela, embora a perspectiva a entusiasmava. Haveria centenas de antecedentes por investigar, centenas de homens que levianamente encaixavam no perfil. Entretanto, o tempo teria descartado muitos possíveis suspeitos, que teriam se casado, que teriam ido, ou que agora teriam um emprego de alto perfil e de horários rígidos. Se reduzissem a lista poderiam investigar em profundidade os suspeitos e, com sorte, acabariam com um punhado de homens que teriam que interrogar. Possivelmente inclusive conseguir uma ordem judicial para revistar uma casa ou um carro, sobre tudo se algum dos suspeitos não tinha álibi para a data da morte da Rebecca.

Possivelmente havia uma esperança de que triunfasse a justiça. E embora fosse pequena, Miranda se aferraria a ela com força.

—Por agora, é o único que temos —disse Quinn e, depois de uma pausa, perguntou—: Miranda?

Ela o olhou nos olhos, a esses olhos que podiam derretê-la ou irritá-la, que podiam refletir amor ou frustração.

Tinha passado tanto tempo que ela já não sabia como interpretar Quinn. Ele tinha mudado, e ela também.

O olhar de Quinn era cálido. Baixou as pálpebras quase imperceptivelmente. Seu rosto relaxou e se inclinou para diante, apenas um centímetro.

—Está mais magra —disse, com voz grave.

—Sei. —Miranda nem pensava em comer quando estava em uma missão de busca.

—Segue sendo uma mulher bela.

Ela ficou sem fôlego. Era seu coração o que batia as asas dessa maneira? Como era possível que ainda a afetasse tão profundamente? Depois de todos esses anos, Quinn seguia sendo parte dela. Uma parte importante. Tinha contribuído a fazer dela o que era, no bom e no mau. Sem ele, ela não sabia se teria sido capaz de superar os dias, semanas e meses mais negros depois do seqüestro. Ele tinha sido a rocha em que apoiar-se, sua salvação. Firme e seguro. Ela tinha se apaixonado por ele por quem era, mas também pelo que fazia por ela.

Que tivesse tido tão pouca fé nela depois de conhecê-la tão intimamente era algo que a rasgava por dentro.

Como se lhe tivesse lido o pensamento, Quinn perguntou:

—Por que não voltou para Quântico?

O que podia responder a isso? Nem sequer ela sabia cabalmente. Salvo que sua falta de fé e de confiança lhe doeu mais que o teste psicológico que a pontuava de obsessiva.

—Se era uma obsessiva, um ano não ia mudar nada —disse finalmente.

—Em um ano as coisas podem mudar muito.

—Tinha passado dois anos, Quinn. —Dois anos desde que sua vida ficou irrevogavelmente unida a de um assassino.

— Sei —disse ele, e se reclinou no respaldo da cadeira, enquanto brincava com o garfo.

Ficaram se olhando. Quinn parecia tão perdido e confundido como ela.

—Sinto muito haver te ferido —disse, de supetão.

Ela tragou umas lágrimas. Como era possível que uma simples confissão a afetasse tanto?

Porque sabia que não era só Quinn. Era verdade que ela era uma obsessiva. Prova disso era sua intensa concentração na busca. Sua vida inteira tinha ficado em suspense enquanto procurava Rebecca. Seus amigos e sua família passavam a segundo plano, já se tratasse de uma mulher seqüestrada pelo Açougueiro ou de um menino perdido que se afastou de seu acampamento. Nada lhe importava mais que a busca.

Miranda queria resgatar alguém. Embora tinha tido êxito encontrando a montanheses perdidos, qualquer mulher seqüestrada pelo Açougueiro já se podia dar por morta. Ela tinha saudades desesperadamente de um final feliz, mas ali onde olhasse só via dor e angústia. Possivelmente não era mais que um reflexo de sua própria culpa.

Se sua reação no barraco servia de exemplo, era evidente que nunca se recuperou plenamente do ataque sofrido fazia doze anos. Sempre sentiria claustrofobia nas habitações pequenas ou sem janelas. Por isso havia clarabóias por toda parte em sua casa, e diretamente em cima de sua cama. Tinha que ver o céu, olhasse onde olhasse.

Mas nem sequer o céu com toda sua imensidão podia sossegar os gritos da Sharon, nem a voz cruel e oca do assassino sem rosto cada vez que Miranda fechava os olhos.

—Deveria ter voltado para Quântico. —Nunca havia dito isso em voz alta, e se surpreendeu a si mesma. Passou a língua pelos lábios—. Estava tão hei... —ia dizer ferida. Não. Não estava preparada para contar isso a Quinn. Não podia contar – Zangada —se corrigiu—. Cega pela raiva, suponho. E quando o ano se cumpriu, já estava trabalhando na Unidade de Busca e Resgate, e eu gostava. Tinha-me adaptado. Suponho que estou feita para isso.

—Teria sido uma agente muito boa — disse ele, com voz grave.

O coração deu um tombo. Perguntou-se o que faria ele se ela o beijasse.

Aquele pensamento fugaz a desconcertou e se tornou para trás. Tinha as mãos úmidas. Uma boa agente? Sim, isso sabia. Uma agente muito boa.

Um ano. Um ano! Tinha esperado mais de dois anos depois que o Açougueiro matasse a Sharon, presa do desassossego, assistindo a aulas suplementares, trabalhando na hospedaria, aprendendo defesa pessoal. Tudo e qualquer coisa com tal de não voltar a sentir-se vulnerável.

Ao sair de Quântico, dez anos antes, nunca havia se sentido tão perdida. Então soube que jamais voltaria.

— Obrigado. —A voz quebrou. Queria gritar, mostrar sua raiva pela injustiça que tinha cometido, além das razões. Possivelmente houvesse um indício de verdade no que dizia Quinn, algo em sua atitude que dava a entender que possivelmente não fosse capaz de dirigir-se em uma missão.

Concentrou o olhar em seu copo de leite e em seu bolo. Quinn fez o mesmo. O silêncio era de uma vez agradável e estranho. Ela desejava saber o que pensava ele, mas não se atrevia a perguntar. Tinha vontade de lhe dizer que nunca o perdoaria e, ainda assim, queria lhe oferecer um ramo de oliveira. As emoções encontradas lhe pesavam no coração e no pensamento.

Ela e Quinn se levantaram da mesa ao mesmo tempo e levaram seus pratos à pia. Ela os pôs de molho, esperando que a água se esquentasse. Ele estava atrás, tão perto que seu fôlego tingido de nozes lhe acariciava o pescoço. Miranda tragou saliva, sabendo que não confiava o bastante em si mesma para se virar. Não estava segura de que não o tocaria, que não o beijaria e que não lhe pediria que passasse a noite com ela.

Queria que ele a tomasse em seus braços para que pudesse dormir. Amá-la para que pudesse recordar o que tinha sido a época mais feliz de sua vida.

Quinn apoiou as mãos em seus ombros, tão brandamente que ela não se moveu. Fechou os olhos. Afastou-lhe o cabelo da nuca e seu dedo comprido desenhou um arco candente entre sua orelha e seu pescoço. Com a outra mão, virou-a para que o olhasse.

Quando Miranda abriu os olhos, separou os lábios. Quinn estava tão perto, seu torso nu a só uns centímetros. Sentiu o calor entre ambos os corpos, como se ele tivesse seu próprio termostato. Tragou saliva, quis lhe dizer que retrocedesse, mas não lhe saiu a voz.

Os lábios dele tocaram os seus com uma terna suavidade. Tão suave que se Miranda não houvesse sentido a descarga de desejo que a embargou dos pés a cabeça, teria duvidado que a tinha beijado.

E então ele voltou a beijá-la, mais firmemente, movendo a mão do ombro até sua nuca, lhe acariciando os músculos lhe sustentando a cabeça. Com a língua lhe abriu docemente os lábios até que as duas línguas se travaram em um ligeiro duelo, para trás e para frente. Ela se apoiou nele, a princípio timidamente, e depois pôs os braços em torno de seu pescoço, sustentando-o perto.

Os beijos do Quinn seguiram, dos lábios até o queixo e o pescoço. Ela tremeu de desejo, desejo dele. Uma saudade profunda que dava fé de dez anos de ausência. Sem o homem que sabia exatamente onde beijá-la, onde tocá-la.

Quinn a beijou meigamente atrás da orelha.

—Senti sua falta, Miranda.

Ela tragou ar. De verdade tinha sentido falta dela? Durante dez anos ela tinha tido que encerrar Quinn em um canto de seu coração e de sua mente. Não queria pensar nele porque não queria sentir saudades.

Mas agora a represa se rompia e seus sentimentos reprimidos se derramavam pelas comportas. Durante dez anos tinha sido muito mais fácil fingir que Quinn não chegou a ser uma pessoa importante em sua vida no pouco tempo que o conheceu. Agora era como se o tempo transcorrido não existisse. Ainda o amava, desejava-o, mas a dor brutal que se fez forte em sua vida da declaração de Quinn em Quântico era como um espinho cravado no coração.

Miranda deu um passo atrás e topou com o aparador da cozinha.

- Quinn... Não sei o que se supõe que devo dizer.

_ Por que me esquivava nessa época? —Quinn lhe apertou os ombros, com os olhos igualmente acesos de desejo que ela.

Miranda sacudiu a cabeça. Não podia ter essa conversa nesse momento, quando sentia as emoções tão a flor da pele. O afeto de Quinn a confundia. Era muito mais fácil recordar a rígida postura que tinha tido ao opor-se a sua graduação, suas enfáticas declarações a respeito de suas habilidades quando se viram justo depois da morte da Rebecca.

—Tenho que ir.

—Miranda, não vá outra vez. Temos que falar.

Ela sacudiu a cabeça e se liberou de seu abraço. Tinha que pensar, e isso era impossível se estava junto a Quinn. Tinha a impressão de que o sangue lhe fervia e borbulhava por debaixo da pele, que lhe revolvia o estômago de tanta confusão. Sentia seu coração quebrado, mas tudo misturado com amor. Nada tinha sentido. Era muito mais fácil existir e controlar suas emoções antes que Quinn voltasse a entrar em sua vida.

Ficou olhando um momento e viu que uma expressão de frustração lhe cruzava fugazmente o rosto. Virou-se e pôs-se a correr para sua cabana, sentindo-se como uma covarde mas sem saber o que outra coisa fazer.

Quinn viu como se afastava e sentiu que algo lhe encolhia no peito. Ao voltar-se para a pia se deu conta de que o grifo seguia aberto. Tinha estado aberto todo o momento? Fechou-o com um tapa.

O que acabava de acontecer?

Acreditava que Miranda começava a abrir-se com ele. Tinha matizado seus sentimentos para ele. Pensou que possivelmente houvesse uma esperança...

E esse beijo. O tempo ou a distância o fazia ainda mais doce. E ele queria mais.

No que estava pensando? Acaso acreditava que poderiam retomar sua relação onde a tinham deixado? O que lhe podia dizer que ainda a amava e que em seguida ficariam a falar de matrimônio?

Quinn nunca tinha deixado de amar Miranda. Ela o irritava, contrariava-o, enfurecia-o, mas a tinha amado quase desde o começo. Estava orgulhoso dela, admirava sua inteligência, sua força e sua perseverança. Era uma mulher muito bela. Vê-la ali sentada frente a ele comendo bolo de nozes lhe trazia lembranças de fazia dez anos, daquela vez que passou duas semanas de férias na hospedaria. Na cabana dela. Quando se metiam às escondidas na cozinha para comer bolo de nozes e mal esperavam para voltar a cabana com vontade que tinham de fazer amor.

Quinn não tinha tempo para relações duradouras. Tinha tido relações com algumas mulheres ao longo dos anos, mas eram episódios breves. Nenhuma podia comparar-se com Miranda. Algumas eram mais bonitas, outras mais inteligentes, mas nenhuma era Miranda. Sua faísca. Sua força. Ela.

O que teria pensado ela? Por que não podia responder a sua pergunta? Ele tinha esperado a que Miranda lhe saltasse à garganta que lhe gritasse por ter tomado essa decisão no Quântico. Não esperava ver uma emoção tão aberta e cheia de desejo em seus olhos insondáveis.

Maldita seja! Queria segui-la, queria lhe explicar uma vez mais as razões de havê-la afastado da Academia. Ela queria centrar-se na opinião do psiquiatra, em sua obsessão com o Açougueiro, mas isso era só uma parte de seu raciocínio. Se tivesse sido só pelo psiquiatra, Quinn nunca teria se mostrado de acordo para que a separassem do programa.

O que Miranda nunca tinha entendido, e era evidente que ele tampouco conseguia lhe fazer entender, era que os motivos pelos que aspirava a ser agente do FBI estavam mal expostos. Trabalhar para o FBI não lhe daria o que ela esperava, e Quinn temia que então Miranda se sentisse fatal.

Possivelmente tivesse sido preferível deixar que se sentisse assim. Mas a amava muito, e Miranda era uma pessoa muito leal; não podia abandoná-la quando se desse conta de que idealizava a profissão de agente do FBI.

Para dizer alto e claro, Miranda queria ser agente do FBI para ter a autoridade de perseguir o Açougueiro. Não haveria se sentido satisfeita trabalhando na Florida, por exemplo, ou em Maine ou na Califórnia, a menos que o Açougueiro começasse a caçar em um desses estados. E era muito provável que a tivessem atribuído ao esquadrão de roubos ou ao de corrupção política, experiências que não lhe ajudariam o mínimo a enfrentar-se com seus demônios.

Quinn albergava a esperança de que, ao cabo de um ano, Miranda teria se dado conta de que não desejava absolutamente converter-se em agente, ou que teria superado a obsessão com o Açougueiro e aceitaria qualquer tarefa que lhe atribuísse o escritório.

Fechou os olhos, sem saber bem como pensar na dor e a raiva de Miranda para ele. Durante uns minutos, quase tinham chegado a esse ponto de confiança em que poderia haver dito algo, e ela teria se aberto. Mas não tinham chegado aí, e ele não sabia se algum dia o conseguiriam. Assim que ele se aproximava muito, ela levantava uma barreira invisível.

Às vezes lhe dava vontade de sacudi-la para que escutasse o que tinha que dizer, para obrigá-la a não questionar todos seus motivos. Mas essa noite só tinha desejado levá-la para cama e estreitá-la em seus braços.

Se não se abria e falava com ele, se ela não escutava o que tinha que dizer, ficavam poucas esperanças de restaurar essa relação rota com a única mulher que tinha amado em toda sua vida.

 

Como acontece com certos sonhos, ele não parava de pulsar em sua imaginação a tecla de «Rebobinar». Queria ver Theron sulcando o céu, voando a mais de trezentos quilômetros por hora, batendo poderosamente as asas, seguro no veloz lance final até chegar ao vencilho e deixá-lo aturdido no ar com um certeiro golpe de suas garras.

Repetia o mesmo sonho uma e outra vez, a vontade. Em alguma parte de seu subconsciente lhe preocupava o lugar onde se encontrava, e a quem esperava, mas por agora se entretinha em rebobinar o vôo de seu depredador em um exercício de caça.

Não despertou até que o frio metal das algemas girou em seu pulso.

Ela havia retornado.

Revolveu-se entre os lençóis empapados de suor e ela riu. A risada em surdina que ele conhecia muito bem.

— O que? —perguntou ele, com a voz espessa pelo sono. Theron desapareceu e recordou onde estava.

De volta em Montana.

—Desejo-te.

—Não, estou cansado.

Silêncio. Despertou de tudo.

Nunca me diga que não.

A lua em quarto crescente brilhava com força através das grandes janelas, projetando sombras cinzas no loft. Destacava sua cama, uma cômoda solitária e seu rifle de caça.

E ela.

Ia vestida de negro, com o cabelo loiro recolhido atrás em um coque compacto. Seu queixo delicado e sua pele pálida eram só uma ilusão, porque não havia nada suave naquela mulher.

Ela franziu o cenho ante seu rechaço.

—Venho aqui no meio da noite a te dar prazer, e você me diz que não?

Prazer? Possivelmente para ela. Sempre para ela. Dava-lhe raiva reagir assim. Tentava uma e outra vez que seu corpo não o delatasse. Mas ela sabia o que fazer.

Por que havia retornado? Porque o impulso era muito forte, e ele não podia resistir. O castigo por ceder ao impulso de caçar era ter que ver a Puta.

Tirou-lhe o lençol de cima e voltou a franzir o cenho.

— Está vestido!

Deixou-se cair sobre seu ventre e lhe tirou a cueca. Deu-lhe uma forte palmada nas nádegas. Chac!

Chac! Chac!

—Sinto muito —disse, com uma voz que parecia sincera—. Sabe que detesto fazer isso —disse, e beijou o lugar em questão, onde lhe tinha pego.

Fascina-lhe. Fez uma careta quando ela procurou entre suas pernas e lhe agarrou o penis. Já estava quase duro. Maldito fosse seu corpo. Oxalá apodrecesse no inferno. Por que reagia ante ela? Sempre. Um dia o cortaria por despeito. O enviaria por correio em um bonito pacote. Já que tanto gostava, podia ficar com ele.

Agora ia se endurecendo em suas mãos, e gemia, tentando sepultar o ruído sob o travesseiro. Mas ela ouvia tudo, e ele sentia seu sorriso frio a suas costas.

—Venha, venha, carinho —murmurou ela, soltando-o e subindo sobre suas costas. Girou-lhe levemente o corpo para poder beijá-lo— passou muito tempo.

Não o bastante.

—Sim —disse.

—Sentiu falta de mim?

Porra, não.

—Claro que sim.

—Já pensava isso. Custou-me muito escapar.

Já, espera que acredite nisso?

Durante anos, seu marido tinha suspeitado que ela tinha um amante. Entretanto, o muito imbecil jamais imaginou que fosse ele.

—Tenho algo especial para você.

Não, não.

Virou-se e a viu tirar um consolador comprido do bolso de sua jaqueta. Um extremo era grosso, o outro magro. Não o tinha visto em muito tempo.

Não.

Obrigou-o a deitar-se de costas e começou a despir-se. Tinha o corpo em plena forma. A ponto de cumprir os quarenta anos, conservava uma figura magra, firme e elegante. O corpo de uma bailarina, o rosto de um anjo e a alma de um demônio.

Montou-o escarranchada sobre ele. Não sobre seu pênis e sim sobre sua cara. Esfregou-lhe sua maldita vagina na boca.

— Me faz gozar, carinho.

Ele não podia se negar. Sabia o que acontecia quando protestava. De modo que lhe comeu a vagina como gostava. Possivelmente, se conseguisse satisfazê-la, não usaria esse maldito aparelho.

Ela empurrava com tanta força contra sua cara que não podia respirar. E ela sabia perfeitamente. Mas se ele a rechaçava, lhe faria muito dano.

Levantou-se apenas para que ele pudesse respirar, e em seguida se agitou sobre sua cara ao gozar, agarrando-se a cabeceira e gemendo.

—Ah, sim —disse, enquanto deslizava por seu corpo e lambia seus próprios sucos da cara dele —. Foi muito agradável. Merece uma recompensa.

Não.

Abriu-lhe as pernas e sorriu ante sua ereção palpitante. A lua lhe iluminou o corpo com suas sombras azuis, dando a seu prazer uma cor sinistra. Perversa.

Ela era pura perversão.

Acariciou-lhe o pênis com gesto quase amoroso. Agarrou o consolador da mesinha de noite e meteu o lado grosso na vagina umedecida, gemendo de prazer. Tinha um cinturão, e o ajustou.

—Não —chiou ele. Odiava aquilo, e ela sabia.

—Hã disse não?

Merda, ele não queria dizer que não. Tinha-lhe escapado.

—Não disse nada.

—Não minta. —Deu-lhe uma bofetada e ele mordeu a língua.

Maldita puta.

Ele não podia fazer nada. Se protestasse... ela conhecia seus segredos. Cada um de seus escuros segredos. Sabia das garotas. Sabia e burlava dele. Desfrutava de sua raiva, de seu aquecimento.

Alimentava-se disso.

Tocou-lhe brandamente o rosto, ofegando de prazer. O prazer que sentia lhe fazendo dano.

—Sinto muito, carinho, mas deveria saber que a mim não diz não.

Levava quinze anos brincando com ele e se não fazia exatamente o que ela queria, quando queria, ela o ameaçava lhe arrancar o que mais valorizava.

Sua liberdade.

Te odeio.

Odiava-a de verdade? Sim! Mas houve um tempo... recordava um tempo em que a buscava e a tocava e ela o consolava. Lambia-lhe as feridas. Abraçava-o e lhe murmurava palavras suaves. Tocava-o com carinho.

Isso tinha ocorrido fazia muito tempo, mas o passado o tinha preso em um punho de ferro, indestrutível. Como ela.

Assim que ficou estendido e não se moveu. Ele era seu puto e nada podia fazer para remediá-lo. Doía-lhe, mas tinha o penis duro como uma pedra. O prazer e a dor, tão entrelaçados. Não podia ter um sem o outro.

Ela gemia e se retorcia, a ponto de voltar a gozar. Se gozar pararia, e ele não teria seu alívio. Ele nunca importava. Tudo era para ela. Sempre para ela.

Imaginou que lançava à puta ao chão e depois lhe colocava o consolo no trazeiro. Imaginou golpeando-a até deixá-la sem sentido ou até que lhe suplicasse que parasse. Não lhe custava imaginá-la com dois parafusos nas tetas, as tetas que nunca o deixava tocar.

A imagem o levou ao orgasmo e gemeu com o alívio.

Ela empurrou com tanta força que seu gemido de prazer se converteu em grito de dor. Quando lhe fez mal, ela gozou, toda ela quente e úmida. Deixou ir contra ele e lhe beijou as lágrimas.

—Isso, carinho, foi por dizer não.

Te odeio.

Saiu bruscamente e tirou o consolo. Vestiu-se, deu-lhe um beijo, um beijo quase terno, e lhe abriu as algemas.

—Voltarei —disse, com um grande sorriso.

Sob essa falsa ternura, era uma puta malvada. Ele a seguiu com o olhar até que saiu.

Odiava-a. Mas estava preso por toda a vida. Se tentasse matá-la, fracassaria. Queria desesperadamente caçá-la e lhe cortar o pescoço. Ver como seu falso sorriso se convertia em um gesto grotesco de dor. Vê-la dar-se conta de que sua criação era sua perda.

Se ele ia, ela o encontraria. Se não podia encontrá-lo, contaria seus segredos. Ele sabia o que ocorreria se ela ia ver o xerife. Toda lágrimas e ternura. Toda uma mentira.

—Não sabia, xerife, até que encontrei a carteira de motorista...

Uma mentira. Sempre mentiras. Mas eles acreditariam na Puta. Com suas lágrimas de crocodilo e seus olhos enormes.

Ninguém acreditaria nele. Sempre acreditavam nela.

Era muito cedo, mas tinha muita raiva acumulada. O medo o enfurecia ainda mais.

Muito cedo, mas o que podia fazer? A Puta tinha começado. Sempre tinha esse ar como se estivesse no comando. Como se ele tivesse que escutar e fazer tudo o que ela ordenasse. Quando ela pôs Penny a voar de seu ninho de amor, tinha-o obrigado a caçar. A matar.

Não era sua intenção matar Penny. Só a prendeu na cabana para fazê-la entender que a amava, que o tipo com que estava saindo a ia trair. Queria saber por que lhe tinha mentido

Nunca quis matá-la. Mas às vezes a única maneira de chegar à verdade era machucando às pessoas. Assim fazia sua mãe, e ele sempre dizia a verdade.

Esteve a ponto de convencer Penny. Tudo o que ele tinha aprendido funcionava. Ela dizia o que ele queria que dissesse. Deixava que a tocasse sem gritar. Teriam sido felizes juntos para sempre, se ele tivesse tido um pouco mais de tempo para fazê-la achar a razão.

Mas A Puta não queria que ele fosse feliz. Uma noite o seguiu e lhe arrebatou a única mulher que amava. E soltou Penny.

Penny pôs-se a correr. Correu para afastar-se dele quando lhe rogava que ficasse. Ele não quis matar Penny. Só queria que ficasse com ele.

Quando a alcançou, soube que tudo o que lhe havia dito era mentira. Ela não o amava, nem queria ficar com ele. Mentiras e mais mentiras!

Morreu da maneira mais indolor possível. Ele nunca tinha querido lhe fazer mal. Entretanto, não pôde evitá-lo; o impulso foi mais forte que ele. E lhe tinha mentido. Era um justo castigo. Mas não queria que sofresse.

A Puta o obrigou a matar essa primeira vez. Mas quando viu o corpo inerte de Penny, sentiu-se encorajado. Poderoso. Havia algo divino nele: a capacidade de tirar uma vida, ou de dá-la.

Com a mulher pequena de cabelo negro (não sabia que se chamava Dora até que o leu nos jornais), picou-lhe a vontade. Só a fodia quando ele queria, não quando ela queria. Alimentava-a quando ele queria, não quando ela tinha fome. Soltou-a quando ele quis, e ela pôs-se a correr.

A emoção da caça ficava em segundo plano frente à faculdade de poder dispor de uma vida.

Ele sempre ganhava, com a exceção daquela que tinha escapado...

Levantou-se da cama agarrando o lençol e enrolando-o pelo corpo. Foi até seu escritório e abriu uma gaveta de um puxão tão violento que o conteúdo se esparramou pelo chão. Furioso consigo mesmo, mas sobre tudo com a Puta, acendeu o abajur e ficou de joelhos no chão para recolher seus tesouros.

Fez um monte com as carteiras de motoristas de sua coleção (vinte e um no total) e as deixou a um lado, com a da Rebecca em cima de tudo. Tocou a foto e ficou a pensar, não no ritual da morte e sim na vida, na vida que lhe dava ao correr. A vida que dava quando lhe suplicava piedade. Por algo. Ele mandava. Ele tomava todas as decisões e ela não tinha nada que dizer.

Raras vezes falava com as mulheres. Elas não eram nada.

Agarrou a caderneta de capa de couro desgastado que continha sua vida. Respirou sobre a capa deteriorada, e se sentiu estranhamente em paz. Quando começava a planejar algo, ocorria-lhe isso. A preparação requeria tempo, concentração, inteligência.

E ele tinha as três coisas. Tinha chegado o momento de planejar a próxima caçada. Quanto antes, melhor.

Os ovos do Theron estariam a ponto de romper-se. E, claro, não queria perder.

 

ENCONTRADA A GUARIDA DO AÇOUGUEIRO

A jovem morta foi identificada como a aluna desaparecida da Universidade de Montana State

Enviado Especial, Elijah Banks

 

Miranda tinha pego o jornal com tanta força que não podia nem ler as palavras. Mas as fotos eram inequívocas.

Por debaixo do titulo, uma foto do barraco onde Rebecca tinha estado cativa. Ao lado, uma foto da Rebecca copiada da ficha universitária, quão mesma aparecia nos santinhos distribuídos por toda a cidade.

—Maldito seja!

Estava a ponto de lançar o jornal a um lado quando algo familiar mais abaixo da folha chamou a atenção.

O breve café da manhã que tinha tomado lhe revolveu no estômago. Tragou bílis e murmurou:

—Que canalha!

Na parte de abaixo havia outra foto. Uma foto dela. Apoiada contra a árvore fora do barraco. Destacava a palidez de seu rosto, inclusive no grão grosso do papel. O pé de foto dizia:

 

Miranda Moore, chefe da Unidade de Busca e Resgate e única sobrevivente do Açougueiro de Bozeman, ajuda o FBI na localização da velha cabana.

 

—Sinto muito.

Ela deu um salto ao ouvir a voz.

—Quinn.

Tinha chegado pelo atalho da hospedaria, mas ela estava tão concentrada no jornal que não o ouviu.

—Teria Lhe economizado isso se pudesse.

Ela sacudiu a cabeça e elevou o queixo.

—Estou bem — insistiu, embora a foto a tinha desconcertado.

—Quando a gente reage zangando-se com estas montagens de Elijah Banks, lhe concede ainda mais poder.

—Não estou zangada. —Mentia. E era evidente, por sua expressão, que Quinn sabia.

—Ok, estou zangada, mas passará. —Guardou silêncio e ficou olhando atentamente—. Por que está aqui?

—Esta manhã falei com Olivia.

—E?

—Estará em Helena esta noite.

—De verdade? Possivelmente possa vir até aqui. Não fica muito longe. Eu adoraria vê-la.

—Tem o número de seu celular. Chama-a.

— Farei isso — disse Miranda, e se propôs ligar no dia seguinte.

—Vou à universidade —disse Quinn—, mas queria te contar de Olivia. Se houver algo nas provas...

—Ela o encontrará —disse Miranda, terminando sua frase.

—Isso. —Quinn subiu as escadas e se deteve na borda do alpendre onde estava Miranda. A ela lhe acelerou o coração ao ver que ele se aproximava tanto, embora sem chegar a tocá-la.

—Miranda, temos que falar. A respeito de ontem à noite. Pelo que aconteceu em Quântico.

Ela tragou saliva. Tinha tanta vontade de esquecer e perdoar, mas era incapaz de deixar de lado o nó da traição que levava na alma.

—Não há nada do que falar.

Ele a olhou um momento comprido, até que ela baixou o olhar.

—Miranda — murmurou. E a beijou.

Um beijo intenso, duro e rápido, e logo se tornou atrás. O beijo a deixou sem fôlego. Era incapaz de falar.

— Falaremos —disse ele, firme—. Vá com cuidado quando sair hoje.

Não esperou sua resposta, e se foi por onde tinha vindo.

 

Ter uma placa de agente federal abria algumas portas e fechava outras. A nova Lei de Privacidade de Dados exigia que Quinn conseguisse uma ordem judicial antes que a universidade lhe entregasse a informação que queria. Demorou toda a manhã em consegui-la.

Não voltou para o campus até depois da hora de comer. Por sorte, o reitor já tinha pedido a sua secretária que procurasse os arquivos necessários. Estavam dentro de uma caixa e preparados para que os levasse.

Quatro caixas. Cento e oitenta e nove homens.

Voltando para o escritório do xerife, pensou em algumas maneiras de cortar a lista. Só necessitava alguns colaboradores.

Nick deixou aos agentes Booker e Janssen. Entre os selecionados, havia alunos que punham os estados de Montana ou Idaho ou Wyoming como lugar de residência antes de vir à universidade. O assassino tinha um conhecimento exaustivo da área, de modo que era lógico pensar que viveria no condado de Gallatin ou perto.

Quinn atribuiu aos agentes a tarefa de revisar os nomes e eliminar qualquer um que estivesse casado, partiu do país ou estivesse morto.

Ficou olhando o quadro dos assassinatos no escritório de Nick e tentou pensar como se ele fosse o assassino.

Por que violava? Controle. Raiva.

Por que precisava ter esse controle? Porque não controlava sua própria vida, sobre tudo de jovem. Teria passado parte de sua infância em um lar para meninos? Seria órfão? Vítima de abusos sexuais? Sairiam os dois pais na foto? Algum deles possivelmente teria abusado dele em pequeno?

Em geral, os assassinos em série foram vítimas de abusos sexuais em sua etapa pré-adolescente. Esse traço em comum era utilizado pelos advogados da defesa para adulterar o sentido da pena de morte ou para culpar a outros dos horríveis crimes cometidos por seus clientes.

Mas a triste verdade era que embora muitos meninos sofressem abusos sexuais, físicos e emocionais, a maioria não chegavam a converter-se em assassinos em série. Quinn sentia compaixão pelos meninos maltratados que, com o tempo, converteriam-se em assassinos, mas não albergava o mesmo tipo de sentimento para eles como adultos.

O Açougueiro experimentava um prazer doentio torturando suas vítimas antes de matá-las. Entretanto, dois traços característicos o distinguiam da maioria de assassinos sádicos. Por isso, conseguia compreender o raciocínio do Açougueiro, poderia penetrar mais profundamente em seu pensamento e, possivelmente, ajudar a identificar algum suspeito. Era uma tarefa difícil. Os assassinos em série eram seres lógicos dentro de seus próprios cálculos, mas entender essa lógica era quase impossível se não tinham todas as peças.

Por desgraça, ainda faltavam várias peças cruciais a eles.

O primeiro traço distintivo do Açougueiro era que encerrava a suas vítimas. Isso indicava uma necessidade de controle. Ele as machucava e, de uma vez, cuidava delas, se o fato de alimentá-las com pão e água podia se chamar «cuidar». Era um homem parco em palavras e, quando lhes falava, seu tom era de desprezo. As mulheres eram posses, objetos com os que podia fazer o que desse vontade. Seus gritos não o excitavam nem o incomodavam, eram irrelevantes. Só o fato de tê-las cativas o excitava.

O segundo (e possivelmente único) traço característico era que soltava às mulheres para caçá-las. Sempre existia uma possibilidade de que escapassem. Dava a impressão de que aquele jogo era para ele um verdadeiro deleite, ainda quando lhes desse um tempo de fuga antes das perseguir. Isso sim, não lhes dava muito. E as mulheres já estavam feridas e desmoralizadas antes de começar.

Quinn estranhava que o Açougueiro não tivesse tentado apanhar Miranda, mas também lhe surpreendia que seguisse soltando e caçando outras vítimas depois de sua fuga.

Possivelmente já não lhes desse tanto tempo antes de começar a caçada. Possivelmente as debilitava. Ou possivelmente pensasse que Miranda era uma anomalia e tivesse optado por demonstrar-se constantemente a si mesmo que ainda podia caçar e triunfar, e que era capaz de um domínio e controle absolutos. Possivelmente deixava que Miranda seguisse viva como aviso de seu único fracasso.

Quinn sacudiu a cabeça. Estava dando voltas no mesmo. Não tinha nem idéia de por que o assassino não tinha açoitado Miranda. Se ele fosse um violador sádico que desfrutasse caçando mulheres como esporte, seguro que não deixaria que uma escapasse. De algum jeito, não encaixava com o resto do personagem, e isso incomodava Quinn.

As cinco, saiu para encontrar-se com Olivia no aeroporto, e deixou aos dois agentes com o crivo dos suspeitos da lista universitária. Quando voltasse pela manhã, confiava em ter uma lista reduzida de nomes.

Seu instinto lhe dizia que o Açougueiro estaria entre esses nomes.

 

Essa noite enquanto jantava no salão da hospedaria, Miranda esteve muito atenta que Quinn chegasse, comendo sem vontade de um prato que seu pai tinha preparado. Não queria que Bill se preocupasse, mas a verdade era que não tinha fome.

Em troca, tinha umas estranhas vontades de comer bolo de nozes.

Disse a seu pai que já podia retirar-se a seu quarto e descansar, que ela se ocuparia dos pratos e fecharia a cozinha. Precisava ter algo que fazer para deixar de pensar no Açougueiro.

Embora não fosse mais que uma simples desculpa para ver Quinn quando voltasse.

Quando acabou de limpar os balcões, ouviu vozes no vestíbulo. Quinn. Saiu em seguida e se surpreendeu ao ver Nick que estava falando com Gray.

—Nick. Aconteceu alguma coisa?

—Não —disse ele—. Passava por aqui e me ocorreu vir lhes saudar.

— Farei um pouco de café — disse ela.

—Não precisa. Francamente, já ingeri suficiente cafeína por hoje. Que tal um copo?

Beber com Nick era quão último queria fazer. Não porque não lhe agradasse sua companhia, mas sim porque resultava estranho estar ali com um ex-noivo enquanto o outro — Quinn— podia entrar a qualquer momento. Na realidade, não se tinha posto a pensar na relação íntima que tinha tido com esses dois homens, e agora se sentia confusa.

Mas Nick era sobre tudo um amigo, assim sorriu.

—Claro. Gray, quer tomar um copo conosco?

—Eu estou arrebentado —disse este, negando com a cabeça. Amanhã tenho que me levantar cedo para ir procurar uns aposentados que vêm de Los Angeles. Ficarão alguns dias.

Gray lhes deu boa noite e partiu.

Miranda levou Nick ao balcão e assinalou um tamborete. Passou por debaixo do balcão e agarrou uma garrafa da cerveja preferida do Nick. Também abriu uma para ela.

—Obrigado.

—Saúde. —Miranda inclinou a garrafa para ele e tomou um gole comprido.

Sempre tinha se divertido quando saía com Nick. Antes de ser amantes, tinham sido amigos. Ela confiava que ainda seria assim, embora as relações parecessem um pouco tensas ultimamente. Havia se sentido satisfeita com a relação, até que Nick pediu que fosse viver com ele. Disse-lhe que não. E ele partiu.

Bastava-lhe com que fossem amigos e amantes. Nick queria mais.

Algo mais parecido ao que havia entre ela e Quinn.

Ainda assim, a sua tinha sido uma cálida amizade, uma boa relação de trabalho. Por que tinha tido tantas reticências em ir viver com ele?

Em poucas palavras, porque não o amava. E quando ele sugeriu que seria conveniente que não seguissem tendo relações sexuais, disse-lhe que de acordo. Agora, pensando nisso retrospectivamente, perguntava-se se Nick não tinha esperado um protesto de sua parte.

Ao final, a ruptura foi um alívio.

—Como foi com o Quinn?

Miranda se surpreendeu com a pergunta.

—Bem — disse, de maneira mecânica.

Ele franziu o cenho.

Ela se sentia incômoda sob esse olhar que a esquadrinhava. Quase como se lhe devesse uma explicação.

—Sério, ele faz seu trabalho e eu faço o meu, e não há mais que isso.

Miranda não queria entrar no assunto. Por que tinha que explicar sua relação de trabalho com Quinn? Possivelmente fosse porque levava anos queixando diante de Nick que Quinn tinha roubado sua carreira e quebrado seus planos de futuro.

Nunca tinha contado o muito que sofria.

—Tem dois de meus homens revisando os arquivos da universidade —disse Nick—. Ainda estavam no escritório quando chamei faz meia hora.

—Disse-me que estava revisando os arquivos dos anos de Penny no Bozeman. Mas naquela época havia centenas de possíveis suspeitos. Não sei como poderemos reduzir a lista se não termos mais prova que nos digam por onde seguir.

-- Quinn está seguro de que este tipo ainda é solteiro e leva uma vida solitária.

-- Por certo, onde está Quinn? —Quis que sua pergunta soasse despreocupada, mas não estava segura de havê-lo conseguido.

-- Em Helena. Foi ao aeroporto procurar essa sua amiga, a técnica de laboratório.

-- Olivia? —Quase esquecia que Quinn a tinha chamado para pedir sua colaboração.

Nick assentiu e tomou um gole de sua cerveja.

—Voltará tarde ou pela manhã — disse, e guardou silêncio. Depois acrescentou—: Desejo a você e a Quinn toda a sorte do mundo.

—Não sei a que se refere.

—Não?

—Não.

Nick suspirou e começou a tirar a etiqueta à garrafa de cerveja.

—É evidente que ainda está apaixonada por ele. Sempre esteve apaixonada.

        —Isso não é verdade. —Estava protestando muito? Tentou explicar-se—. Já sabe como era tudo naquela época. Mas com tudo o que aconteceu, eu... e ora, já acabou. Acabou faz muito tempo.

—O amor não se abre e fecha como um grifo, Miranda —disse Nick, e soava irritado.

—Eu não disse isso. Eu... —disse ela, e calou —. Nick, sinto muito —Que outra coisa podia dizer? Sabia que Nick ainda sentia algo por ela, sentimentos que ela não podia corresponder. Quão último queria era machucar seu melhor amigo.

Ele despachou sua desculpa e se levantou.

—Só queria ver como se encontrava, já que estou livre, como quem diz. —O xerife nunca estava de verdade «livre». Quando o escolheram para o cargo, dizer aquilo se converteu em uma brincadeira entre eles.

—Não há nada entre Quinn e eu — disse ela, e mordeu a língua. Por que era tão importante convencer Nick daquilo?

Ou possivelmente quão único pretendia com seus protestos era convencer a si mesma?

Ele a olhou com um sorriso irônico.

—Pode acreditar o que quiser, Miranda, mas a verdade é que seu coração sempre esteve com Quinn. Eu nunca tive uma oportunidade. Mas acabo de me dar conta agora.

—Você me importa. É meu melhor amigo.

Ele assentiu e ela soube que havia dito o que não devia. Nick estava apaixonado por ela e lhe dizia que o considerava seu melhor amigo.

Por que sempre tinha que dar um fora?

—Já sei que me aprecia, Randy. Sempre foi uma boa amiga. Mas uma noiva muito má. Boa noite.

Ela ficou olhando, perguntando-se por que diabo teria passado pela hospedaria essa noite. Para ver se ela e Quinn estavam juntos? Para convencer-se de algo? Sacudiu a cabeça enquanto acabava a cerveja e deixava as garrafas no contêiner debaixo da pia.

Nunca conseguiria entender os homens.

 

— É um imbecil.

A Puta estava furiosa, mas agora mesmo não lhe importava. Faria-lhe pagar mais tarde por ter quebrado as regras. Depois da caçada. Mas agora não podia fazer nada.

Ele viu o brilho da excitação em seus olhos.

Seguia odiando-a, mas a odiava menos as noites que saíam para caçar juntos.

Entretanto, sua falta de paciência o irritava.

—Por que não essa? —gemeu ela, assinalando uma garota de cabelo castanho que acabava de chegar ao posto de gasolina.

—Não.

—Por que não?

—Desta vez quero uma loira.

—Acaba de ter uma loira.

—Não me importa. Quero outra.

Ela suspirou e tamborilou sobre o volante.

—Não quero passar toda a noite aqui.

—Nunca demorei mais de duas horas. Maldita seja, tenha um pouco de paciência! —A Puta nunca tinha paciência. O considerava um tipo estranho porque era capaz de ficar no meio do bosque durante dias escrevendo coisas sobre seus pássaros.

Não importava o que ela pensasse dele. Agora mesmo era uma ajuda. Embora a maior parte do tempo só pensasse em estrangulá-la.

Não se atrevia nem a lhe tocar o pescoço.

A garota arrancou depois de pôr gasolina. Eram quase onze horas da noite. Levavam duas horas esperando. O tráfico tinha diminuído grandemente depois das dez.

Deixou os binóculos sobre seus joelhos e esperou que chegasse o próximo carro ao centro comercial junto à auto-estrada. Estavam situados em um bom ponto de observação, bem oculto, no caminho que dava ao posto de gasolina, estacionados em uma entrada particular. Conhecia a proprietária da casa, uma anciã surda como uma porta que se deitava ao por do sol.

Tinha escolhido esse lugar porque era uma parada habitual das alunas da universidade. Entre o posto de gasolina, a pizzaria e o pequeno bar, sabia que encontraria à pessoa adequada.

Não é que fosse um capricho. Simplesmente queria outra loira.

Em uma ocasião, tinha começado a caça nesse mesmo lugar. Como regra, nunca utilizava duas vezes o mesmo lugar. No caso de. Entretanto, já fazia tempo disso. Nesse lugar tinha raptado a outra loira, uns doze anos antes.

Oxalá não tivesse viajado com essa amiga dela.

A Puta nunca o tinha deixado ir atrás de Miranda Moore. A idéia o perseguia constantemente. Mas A Puta acreditava que Moore merecia viver porque tinha escapado. Sempre pensava nela, esfregava-lhe seu fracasso em toda a cara. Odiava-a. Odiava às duas.

Algum dia as faria pagar. Eram como duas cadelas de uma mesma ninhada, provocavam-no, ridicularizavam-no.

Entretanto, por agora não podia tocar Miranda Moore. A Puta lhe havia dito que o delataria. E acreditava.

—Mataremos Miranda Moore se converter-se em uma ameaça, mas agora não é —dizia A Puta uma e outra vez —. Ela o venceu, carinho, e quero que sempre o recorde.

Como se com seus constantes comentários ele pudesse esquecê-lo.

Pela entrada principal entrou um Honda Civic. Passou sem parar pelo posto de gasolina e foi direto para a pizzaria. Ele agarrou os binóculos.

Do lado do condutor desceu uma loira. Sentiu que lhe inchava o coração e começava a pulsar com força.

Era ela.

Soube imediatamente, como sabia cada vez que saía a caçar mulheres. Ela era a chamada, e ele a teria.

—Vou —disse.

—Espera.

—E agora, o que?

—Olhe.

Ele olhou com inapetência. Abriu-se a porta do passageiro e desceu uma ruiva. Juntas, a loira e ela entraram na pizzaria.

—Espera — disse A Puta.

—Não.

—Eu disse que se acabaram as duplas. É muito arriscado.

—De acordo.

Ela relaxou e ele abriu a porta do seu lado.

—Aonde vai? —perguntou ela, e quase deu um salto no assento para agarrá-lo.

Ele se tornou atrás e meteu a garrafa de melaço no bolso.

—Vou ocupar-me do carro.

—Mas disse que estava de acordo.

—Nada de duplas, confia em mim. Só me ocuparei de uma.

Não acreditou, mas não importava. Não tinha nada que fazer com a ruiva. Esta vez, só queria à loira.

Primeiro teria que matar à ruiva.

 

Ao aproximar-se, as luzes da caminhonete de Nick iluminaram o Honda Civic azul por trás, a uns dez metros da hipotética cena do crime. Deixou os faróis acesos e desceu. Aproximou-se do agente que estava encarregado, Brad Jessup.

—Como está a garota?

—O médico de urgências diz que seu estado é crítico. Já a levaram ao hospital. —Jessup olhou suas notas —. Segundo a carteira de motorista, trata-se de JoBeth Anderson. Tinha uma carteira da Universidade de Montana State na bolsa vinte e três dólares.

—O que aconteceu? Deu-lhe outro carro e fugiu? —inquiriu Nick

—Não parece que o veículo tenha sofrido danos, senhor.

—Quem chamou para dar o aviso?

—Red Tucker, senhor.

Todos conheciam o velho Red. Era o dono do bar que ficava a quinze minutos pelo caminho do cruzamento da 191/85 e se dizia dele que era o habitante mais velho do condado de Gallatin.

—Onde está agora?

—Tenho-o ali sentado em minha caminhonete, senhor.

Red estava sentado de lado no assento do passageiro do carro Patrulha de Jessup, com a porta aberta e os pés pendurando para fora. Sua abundante cabeleira branca necessitava um bom corte de cabelo, e em sua cara curtida se cruzavam tantas rugas que fazia pensar em um mapa dos atalhos de Yellowstone.

—Como vai, Red? —perguntou Nick, ao aproximar-se.

—Estive melhor. Como está a garota?

—Em estado crítico. Se conseguir sair, deverá isso a você. —Nick agachou junto a ele e tirou sua caderneta—. Importaria -se de me contar o que aconteceu?

—Ultimamente fecho o bar mais ou menos às onze. Preciso dormir mais que antes. Vi o carro ao lado do caminho e passei devagar, pensando que possivelmente alguém tinha problemas, que tinha ficado sem gasolina ou algo assim. Não vi ninguém, assim pensei que teria se avariado e que os ocupantes teriam partido a pé até o cruzamento, ou seguido pelo caminho alguns quilômetros. Ia passar ao largo quando vi algo diante do carro. Pensei que podia ser um animal, que possivelmente o condutor tinha atropelado a um filhote de urso, ou algo parecido. Assim parei.

Red sacudiu a cabeça.

—Não podia acreditar que fosse uma garota. Estava estendida ali, com o corpo no meio do caminho. É um milagre que não lhe passasse por cima um desses grandes reboques.

—Viu alguma outra coisa? Alguma outra pessoa?

—Não, tudo estava em silêncio. Não tenho telefone celular, mas não queria deixá-la ali, assim decidi esperar até que passasse alguém. E então vi um telefone perto dela, como se tivesse querido usá-lo antes que a atropelassem. Assim que o usei. Acredita que está bem que fizesse isso?

—Fez o correto. Tocou em algo dentro do carro? O contato? O capô? Qualquer coisa?

—Hmmm, possivelmente o teto quando me inclinei para olhar dentro. Queria ver se havia alguém mais no veículo. Você não acha que foi um acidente, não? Alguém que tenha chocado e fugido? Acredita que poderia ser esse assassino de novo?

Nick sentiu que o mundo dava um tombo. Embora quisesse acreditar que as feridas do JoBeth Anderson se deviam a algo mais inofensivo que um assassino em série, assim que os faróis de sua caminhonete iluminaram a cena, sentiu-se transportado doze anos para o passado.

Encontraram o pequeno fusca Volkswagen da Sharon Lewis a uns três quilômetros dali. No mesmo caminho.

—Averiguarei —disse Nick. Levantou-se e sentiu que rangiam os joelhos — . Pode esperar aqui uns minutos?

—Não poderia dormir nem que quisesse — disse Red, assentindo com a cabeça.

Nick subiu a gola do agasalho impermeável, agora que o vento soprava com mais força. Era quase meia-noite e a temperatura tinha baixado bruscamente. Essa noite faria menos de dez graus.

Nick rogava que não se tratasse do Açougueiro. Tinham encontrado Rebecca fazia só três dias. Nick não recordava que o assassino houvesse tornado a atacar depois de um intervalo tão breve.

Havia uma maneira muito fácil de saber.

Os pés lhe pesavam como chumbo e tinha o coração encolhido quando se aproximou do carro.

—Jessup! —chamou.

—Sim, senhor.

—Temos os dados do carro e a matrícula?

—O carro pertence a Ashley van Auden, vinte e um anos. Aqui diz que seu lugar de residência está em San Diego, Califórnia, e sua direção postal corresponde ao campus da universidade.

—Onde estava Ashley?

Nick foi à parte traseira do carro e procurou o depósito de gasolina. Tirou uma lanterna e iluminou a tampa. O carro tinha um mecanismo de abertura no chão, junto ao assento do condutor, para abrir o depósito. Entretanto, em geral o motorista não fechava o carro com chave quando se detinha a pôr gasolina ou a comer, nem sequer quando estacionavam frente a sua própria casa.

E embora fechassem o carro, era fácil abrir uma porta se a gente sabia o que fazia.

Inclinou-se para olhar mais de perto e a luz da lanterna iluminou um leve rastro de algo espesso junto à tampa da gasolina. Aspirou. O aroma adocicado do melaço se voltou amargo assim que soube que o Açougueiro havia tornado a golpear.

Nick teve vontades de lhe dar um chute a qualquer coisa.

—Jessup! —gritou—. Chama os técnicos do laboratório! Quero todo mundo aqui, completamente equipados, sem exceções!

—Senhor?

Ignorando a pergunta implícita do Jessup, Nick tirou seu telefone móvel e teclou um número.

—Aqui é Peterson.

—Quinn, o Açougueiro agarrou outra mulher. A que hora pensa voltar?

—Já estou a caminho. Onde está você? Demorarei menos de uma hora a chegar.

 

Ashley van Auden tinha ressaca, como aquela vez que passou bebendo champanha nas bodas de sua tia Sherry. Tinha a cabeça espessa, pesada, e martelava nos ouvidos.

Tiritou e se deu conta de que despertou por causa do frio. Nunca tinha se acostumado ao clima frio de Montana. Em sua ensolarada San Diego, o normal era o calor, a diversão e as praias bonitas. Não gostava de Montana, mas a universidade de Montana State contava com um excelente programa de biologia da fauna selvagem. Vinha-lhe bem, já que queria trabalhar com as cabras monteses em perigo de extinção no sul de Califórnia.

Mas esse frio era pior que o frio. Estava gelada até a medula dos ossos. Sentia a pele nua e exposta. Nenhuma manta para cobrir-se, nenhuma estufa para esquentar-se. E aquele quarto cheirava que emprestava. A podre e mofo. Cheirava como um animal morto, como se uma família de ratos estivessem em um canto e levassem mortos uma semana.

Aquilo não era sua habitação no campus.

Um medo horrível se apoderou dela assim que despertou de tudo. Não foi um aumento das pulsações cardíacas nenhuma inquietação paulatina e sim um terror imediato e profundo. Quando sentiu esse pânico que lhe chegava à medula, tentou sentar-se, mas se deu conta de que algo a impedia. Queimou-se a pele dos pulsos tentando libertar-se. O que tinha acontecido? Onde estava? Onde estava JoBeth?

Quão último recordava era que o carro parava. Sem mais. Depois de um par de estertores, morria de tudo. Teve sorte de poder conduzi-lo a um lado do caminho.

Jo lhe disse que chamaria um guincho e desceu do carro porque seu celular não tinha boa cobertura. Outra coisa que Ashley detestava das montanhas. Nunca tinha problemas com seu celular em San Diego.

Inclinou-se para olhar o reprodutor do CD e ver se tinham bateria para escutar música. Quando voltou a olhar, Jo tinha desaparecido.

Desceu do carro e percebeu a figura de uma mulher que caminhava para as árvores do outro lado do caminho. Por que Jo cruzava a estrada?

—Jo, o que faz lá ao outro lado?

E depois, nada. Não recordava nada mais. Por que não podia recordar? O que tinha acontecido?

Estava nua. E atada. Algo lhe tampava os olhos, um pouco ajustado. Muito apertado. Não ouvia nada exceto o pânico como um martelo nos ouvidos. Tremeram-lhe os lábios e deixou escapar um soluço. Tragou saliva, tentando que o medo não a dominasse.

Crac.

O que era isso? Alguém vinha? Deus, o que ia fazer?

Rebecca Douglas.

Sentiu que o pânico a apertava, e que desvanecia de sua alma até a última grama de esperança. Acabavam de encontrar essa garota da universidade, Rebecca. O jornal dizia que tinha sido o Açougueiro de Bozeman. O homem que torturava às mulheres no bosque e depois as caçava como animais. O Açougueiro.

Não! NÃO! NÃO! NÃO!

Meu Deus, por favor, não deixe que me faça mal.

Sentiu a garganta apertada, o peito tenso, e começou a respirar descontroladamente, enquanto lutava contra suas ataduras. Lançando chutes, puxando e empurrando. Não queria morrer. Não podia morrer! Tinha toda a vida pela frente. Seus amigos. Sua família. Seu querido pai lhe havia dito que tomasse cuidado. Que vigiasse. Que tomasse as devidas precauções. Dizia-lhe que era muito amável, muito ingênua.

Ela acreditava que fazia caso de suas advertências. O que tinha feito de errado?

Mais que nada no mundo, queria economizar a dor de seu pai. Ela era sua princesa. O que faria ele quando se inteirasse de que tinha desaparecido? Quando a encontrassem morta? Torturada e... e violada.

Não. Não. NÃO! Aquilo não podia estar acontecendo.

Onde estava JoBeth?

—Jo —murmurou em meio daquela escuridão. Ficou escutando, tentando tranqüilizar seu coração galopante.

Nada.

Ao cabo de um momento, voltou a escutar o mesmo ruído. Algo. Fora. Eram vozes, sussurrando na escuridão. Aguçou o ouvido e captou algumas palavras.

— Disse que era muito cedo! —Era uma voz grave, mas parecia uma voz de mulher.

—Vá. Volta a semana que vem. —A voz de um homem. Uma voz rouca.

Chas.

—Tenho que voltar para casa. É tarde. Voltarei amanhã.

Murmúrios, algo que não pôde escutar. Crac. Nada.

O silêncio realçava seu medo, com seus ruídos negros como a noite de seus olhos enfaixados. E depois um rangido. O grito de uma coruja. Os ruídos da noite estavam presentes desde o começo, mas até esse momento seu terror a tinha impedido de ouvi-los. Algo que se arrastava, depois um chiado, e silêncio. Algo que escapulia pelo telhado. De zinco. Era o ruído do zinco. Estava em uma espécie de cabana, e fazia muito frio.

Ashley soube que a porta se abria, não pelo ruído mas sim pelo sopro de ar frio.

E depois um ligeiro crac, duas partes de madeira que se roçavam. Uma respiração. Estava ali dentro. Ele estava ali dentro e ela também, salvo que ela nada podia fazer.

Um estalido surdo e repentino percorreu a habitação, e Ashley em seguida sentiu uma dor penetrante no interior da coxa que a fez chiar. Um látego.

E depois ele estava em cima dela. Uma dor intensa e aguda na entre perna lhe arrebatou o que ficava de compostura e gritou até sentir que a garganta lhe queimava.

Acreditou ouvir uma risada distante. E depois o silêncio.

 

Miranda passeou de uma ponta a outra da sala de espera de urgências durante duas horas até que, finalmente, decidiu sentar-se em uma das cadeiras de plástico verdes alinhadas junto às paredes. Não sabia quase nada do estado de JoBeth Anderson. O hospital não conseguia localizar sua família em Minnesota, e por isso tinham chamado à universidade. Um administrativo se encarregava de encontrar seus pais mas, dado que se tratava de uma questão de vida ou morte, decidiram transladar JoBeth a cirurgia para operá-la.

Quando o telefone de Miranda soou às duas da madrugada, tirou-a violentamente de um pesadelo, e se sentiu agradecida pela interrupção.

Era Nick. O Açougueiro tinha outra vítima.

Nesse momento, Miranda não se perguntou por que o Açougueiro teria deixado atrás a JoBeth. Mas agora não podia tirar isso da cabeça.

Por que não a tinha levado com Ashley?

Por que o Açougueiro tinha tentado matá-la para em seguida deixá-la jogada a beira do caminho?

E por que agia tão rapidamente depois do assassinato de Rebecca Douglas? O interlúdio mais breve que tinham era de duas semanas. Tinha levado Ashley só três dias depois.

Tinha que falar com Quinn e desentranhar o significado daquilo. Estavam aproximando-se dele? Havia qualquer coisa na investigação que lhe indicasse algo? Ou possivelmente fosse obra de um imitador? Entretanto, Nick e Quinn não estavam para que lhes pudesse perguntar. Estavam interrogando possíveis testemunhas no Cruzamento, onde JoBeth e Ashley tinham parado para comer.

Pela enfermeira de volta, Miranda se inteirou de que JoBeth tinha recebido um golpe na nuca que podia ser mortal. Tinha-na golpeado três vezes o bastante forte para lhe romper o crânio. Os médicos procuravam lhe salvar a vida mas embora isso acontecesse era provável que tivesse a coluna quebrada. As feridas eram graves. Os golpes dados foram destinados a matar.

É uma sobrevivente. Igual a mim.

JoBeth não o merecia. Agora jazia quase inerte na mesa de operações enquanto os médicos lutavam por parar a hemorragia do cérebro.

Dentro desse cérebro possivelmente houvesse algo que os conduzisse até o assassino. Possivelmente JoBeth tivesse visto o Açougueiro, possivelmente o conhecesse, algo que lhes ajudasse! Tinham que encontrar uma pista. Necessitavam que o assassino cometesse um engano.

Miranda rogava que JoBeth sobrevivesse. Que recuperasse a consciência. Que dissesse: «Sim, vi-o, é...»

Por favor, JoBeth, você pode conseguir.

Miranda seguia sentada na cadeira do hospital. Quando apareceu a alvorada, fechou os olhos para descansar um momento.

JoBeth seguia na sala de operações quando Quinn chegou uma hora depois.

Não o surpreendeu ver Miranda na sala de espera de urgências. Mas não esperava encontrá-la estirada sobre uma poltrona, dormindo, com a mochila de travesseiro. Uma manta de lã cobria seu corpo miúdo. Tinha os braços cruzados sobre o peito, com a manta agarrada muito perto do rosto. Como uma menina. Inocente.

Sua pele pálida estava relaxada pelo sono, ao contrário da tensão que se adivinhava em todo seu corpo. Quinn se aproximou sem fazer ruído, deixando que a imagem lhe chegasse ao coração. Bela, forte, vibrante, esperta

Apaixonada. Inteligente. Embora às vezes fosse como um chute na entre perna de teimosa que ficava.

Umedeceu os lábios. Nunca voltaria a comer bolo de nozes sem lembrar-se de Miranda. De seus lábios doces, açucarados, ao fundir-se com os seus. Sentindo como se amoldavam seus corpos, como encaixavam à perfeição.

Não pôde resistir a tentação de inclinar-se para lhe afastar uma mecha de cabelo solto atrás da orelha.

Miranda abriu os olhos e levantou de um salto. A manta caiu ao chão e, no instante antes de reconhecê-lo, seu rosto ficou paralisado pelo medo. Ele se sentiu mal por havê-la assustado. Sentou-se junto a ela e lhe tocou a face. Tinha uma pele muito suave.

Ela não se afastou, mas tampouco se inclinou para ele para receber sua carícia. A essa altura, ele se contentava com o que lhe desse. Certamente, não queria pôr em perigo o pouco que tinha avançado para conseguir que voltasse a confiar nele.

Como se não fosse um engano tê-la beijado. Embora naquele momento não houvesse dito que se tratava de um engano.

—Sinto muito, Miranda, não queria acordá-la.

—Senti que alguém me observava —disse, com a voz ainda rouca do sono, ou pela falta de sono. Miranda esclareceu a garganta, e ocultou o medo em seu olhar atrás de suas espessas pestanas. Respirou fundo e o olhou —. O que aconteceu? JoBeth? —levantou-se e, ao sentar-se, cambaleou levemente. Ele a agarrou pelo cotovelo para estabilizá-la e não lhe afastou a mão.

Outro pequeno passo.

—Acabo de chegar — disse ele.

Ela olhou para a sala de enfermeiras.

—Prometeram me despertar se houvesse alguma novidade. —virou-se para a enfermeira que estava sozinha atrás do balcão.

-- Sabe algo? —perguntou —. JoBeth Anderson, estava em...

-- Sei —assentiu com a cabeça a enfermeira—. Já saiu da cirurgia e a transferiram a UTI faz trinta minutos.

-- Como está?

-- Sinto muito, senhorita Moore, não posso dizer se não for da família da paciente.

Miranda ficou tensa junto a Quinn e mordeu o lábio. Ele a entendia. Entendeu que Miranda se sentisse mal por Ashley e preocupada com JoBeth.

Quinn tirou a carteira e mostrou a insígnia

—Agente Especial Quincy Peterson, do FBI. Se fosse tão amável de procurar o médico da senhorita Anderson, tenho que falar com ele.

—Sim, senhor. —A enfermeira agarrou o telefone e Quinn voltou com Miranda à sala de espera, acompanhando-a com a mão no cotovelo.

Ela suspirou e levou uma mão à cabeça, ocultando seus olhos injetados em sangue.

—Maldito seja, Quinn. Por que?

Não precisava que perguntasse a que se referia.

—Levamos o carro ao escritório do xerife e o estão revisando com lupa. Procuram impressões digitais, cabelos, qualquer coisa. Os técnicos de criminologia seguem ali, tomando amostras de tudo o que há nas imediações, até a última pedra, a terra e as folhas. Se houver algum resíduo a beira do caminho, enviarão imediatamente a Helena. Se tiver cometido um só engano, Miranda, encontraremos.

Agarrou-lhe o queixo para obrigá-la a olhá-lo de frente. O coração se encolheu da pena de ver a dor em seus grandes olhos azuis.

—Prometo. Não penso ir até que obtenhamos respostas concretas.

Ela assentiu com um gesto quase imperceptível e depois se afundou em uma cadeira de plástico com a cabeça entre as mãos. Ele se sentou a seu lado e lhe tocou o ombro. Era tão agradável poder tocar de novo a Miranda sem que ela fizesse caretas. Quinn esfregou os músculos.

—Temos alguma possibilidade de encontrá-lo antes que Ashley morra?

O que ele podia dizer a isso?

—Sempre há uma possibilidade.

Ela se voltou para olhá-lo. Irradiava tensão em ondas invisíveis, com todos os tendões do pescoço estirados. Devia ter uma enxaqueca horrível e, conhecendo a Miranda, limitaria-se a sofrê-la em silêncio. Em uma ocasião tinha contado que a dor lhe recordava que estava viva. Ele pensou que era um castigo que ela mesma se infligia pela culpa de ter sobrevivido, enquanto que Sharon morria.

—É como se pudesse vê-la, Quinn —murmurou Miranda, com voz tremula—. Ashley. Na escuridão. Com frio, nua e assustada. Aterrada. Pior do que eu estava.

—Miranda, não faça isso...

Ela sacudiu a cabeça e se inclinou para ele, como lhe rogando que compreendesse. Quinn lhe rodeou o ombro com um braço e a apertou com ternura.

—Não, não, tenho que me centrar nela. Tenho que recordar. Não vê que para ela é pior? Ela sabe. Ela sabe que foi o Açougueiro. Mataram Rebecca faz poucos dias. Ashley estará pensando que ela será a próxima. —Sua voz se quebrou, em um soluço, mas não brotaram as lágrimas.

Ele a estreitou em seus braços e a abraçou brandamente. Tremia-lhe todo o corpo apesar do esforço para conter a emoção. Era um grande passo que deixasse que a consolasse, um passo que lhe dava esperanças.

E saber que havia esperança o impulsionava a abrir ainda mais o coração.

Ela respirou fundo e murmurou contra seu peito:

—Chamei Charlie e à equipe de busca —seguiu ela—. Começamos às oito.

—Tem que dormir — disse ele, lhe esfregando as costas.

Ela se tornou para trás e sacudiu a cabeça.

—Não posso dormir. Pensando que Ashley está lá, perdida. Mas... maldito seja, não sei o que fazer. Percorremos hectares e mais hectares e nunca encontramos às mulheres vivas. Mas não sei que outra coisa fazer. Não posso fazer nada.

Miranda nunca tinha sido das que se desentendiam do trabalho para deixar a outros. Do começo, lançava-se de cabeça à tarefa.

Antes que ele pudesse dizer alguma banalidade para tentar distraí-la, viu que se aproximava um médico alto e magro, de cabelo grisalho.

—Agente Peterson? —disse, estendendo a mão e cravando nela seus olhos negros. Depois olhou novamente a ele —. Doutor Sean O'Neal.

—Obrigado por vir —disse Quinn, lhe estreitando a mão—, Como se encontra a senhorita Anderson?

-- Ficará bem? —perguntou Miranda.

O doutor O'Neal suspirou, tirou os óculos e esfregou os olhos. Voltou a colocar os óculos.

—Não sei. Tinha tudo contra quando a trouxeram, mas agüentou. Agora que sobreviveu à operação, tem cinqüenta por cento de probabilidades. O xerife Thomas se pôs em contato com seus pais, que vivem em outro estado, e eu acabo de falar com eles. Os golpes na cabeça foram fortes. Por sorte, não lhe afetou a coluna. Temíamos que tivesse o nervo seccionado, mas está em bom estado. Por outro lado, embora desperte, não se pode dizer se o dano cerebral será permanente... Em poucas palavras —disse o médico—, está em coma.

Em coma. Sua melhor testemunha, sua única testemunha, estava em coma. A sorte era uma merda.

 

Ryan Parker despertou de repente. O coração pulsava com força em meio da luz cinza de seu quarto. Estava molhado, e por um momento acreditou que urinou na cama em seguida se deu conta de que era suor; um suor que lhe dava frio.

Mas lhe dava ainda mais frio seu pesadelo.

Olhou seu relógio digital e viu que eram 05h46min.

Tragou saliva várias vezes, com dificuldade, porque tinha a boca muito seca. Tinha tido pesadelos antes, mas nenhum tinha lhe provocado medo nem tinha parecido tão real como esse. Porque esse pesadelo tinha ocorrido na realidade. Tinham matado essa garota de verdade, e ele tinha visto seu olhar vazio no meio do bosque, acusando a ele. Estava a ponto de lhe fechar os olhos devido a esse olhar, mas não quis tocar o cadáver.

Entretanto, seu pesadelo combinava a realidade com o imaginário. Ela não queria agarrá-la no bosque, disse-se uma e outra vez.

Isso era um sonho, algo que fabricava sua mente. Ryan demorou vários minutos em distinguir entre o que tinha visto de verdade na semana anterior e o que tinha sonhado.

Mas o olhar vazio da Rebecca Douglas o perseguia, embora não dormisse.

Levantou-se em silêncio da cama e cruzou até sua cômoda. Abriu com cuidado a última gaveta. Ali dentro guardava seus objetos especiais, um dos poucos lugares de seu quarto onde sua mãe não se metia. Pedras estranhas, o fóssil de um peixe encontrado em Yellowstone, um pedaço de madeira petrificada, figurinhas de beisebol, os pacotes de chiclete com divertidas tiras cômicas.

E a fivela de cinturão.

Não recordava todo o pesadelo, mas justo antes que despertasse, imaginou a fivela, a ave com os olhos verdes que brilhavam.

Não acendeu as luzes e procurou no fundo da gaveta até que notou a textura fria do metal. Ficou paralisado, sentindo que algo acontecia, mas sem saber o que era.

Deveria tê-lo mostrado ao tipo do FBI. Mas agora era muito tarde.

O mais provável é que não fosse nada, só algum tipo mijando no bosque.

Não, não era isso.

Apertou os dedos em torno do pássaro de metal como se tivessem vontade própria. E, nesse momento, soube o que tinha que fazer, a quem tinha que mostrar a fivela.

Seu pai não era a pessoa com que menos lhe custava falar, mas era a pessoa mais inteligente que conhecia. Ele era juiz e saberia exatamente o que fazer com a fivela e a quem deveria entregá-la

Quando se dirigia aos aposentos de seus pais, chegou-lhe o aroma de café de baixo. Deu uma volta pela cozinha, esperando encontrar-se com seu pai.

Ali estava.

-- Olá papai.

-- Levantou cedo.

Ele deu de ombros, e jogou com a fivela em uma mão.

—Estava pensando... porque... encontrei algo e não sei muito bem o que é. Ocorreu-me que possivelmente você possa... —Que estupidez. Sabia que se tratava de uma fivela, mas não queria contar a seu pai onde a tinha encontrado.

—Claro, mostre-me isso.

—Aqui o tem.

Ryan se sobressaltou ao ver sua mãe entrar, vestindo um robe. Ela franziu o cenho ao vê-lo ali.

—Delilah —disse seu pai—. Acreditava que estava dormindo.

—Despertei e não estava na cama. Fui ver Ryan e ele tampouco estava.

—Fui ver os cavalos, que pareciam assustados e, como não podia voltar a dormir, preparei um pouco de café. Quer uma xícara?

—Eu mesma a pegarei — disse sua mãe.

Ryan não queria falar estando diante de sua mãe. Seguro que o castigariam por voltar para o lugar onde tinham encontrado à garota morta. Pelo geral, os castigos de seu pai eram menos duros que os de sua mãe. Essa noite falaria com ele.

—Vou me vestir para ir a escola — disse.

—Não queria me mostrar algo? —perguntou seu pai.

—Não é nada importante. Mostrarei esta noite.

—De acordo.

Sua mãe se inclinou para beijá-lo, e apenas lhe roçou as faces com os lábios, depois fez o mesmo com seu pai e subiu correndo as escadas.

Perguntarei a papai pela fivela esta noite.

 

Antes de abandonar o hospital, Miranda tinha que ver JoBeth Anderson. Não teve problemas para convencer o guarda. Às vezes, tinha suas vantagens ser a ex-noiva de Nick.

JoBeth era uma sobrevivente. Não era Rebecca nem era nenhuma das outras garotas. Estava viva. Mais que nada, Miranda queria que soubesse que era uma garota forte, que tinha que lutar. Lutar para pegar o miserável que tinha seqüestrado sua amiga.

Pode ser que oculta em sua mente houvesse alguma chave para averiguar a identidade do Açougueiro. Uma chave que agora estaria enterrada em seu inconsciente.

JoBeth jazia reclinada em uma cama de hospital, coberta quase até o pescoço com um lençol branco. Os monitores emitiam uns suaves assobios seguindo o ritmo de seu coração. Outros aparelhos controlavam sua respiração. Sua atividade cerebral. Sua vida.

Estava viva e respirava por seus próprios meios. Tinha uma agulha de soro no braço para hidratá-la. A lembrança da semana que ela mesma tinha passado nesse hospital permanecia muito viva em Miranda. Então, chegou a ansiar a hora de abandoná-lo, e tampouco nesse momento queria estar ali.

— Desperta —murmurou. Se existia alguma possibilidade real de salvar Ashley, JoBeth tinha que recuperar a consciência o mais rápido possível.

Tinha grande parte da cabeça enfaixada com uma tira grossa e branca, que contrastava com seu cabelo vermelho e murcho. Sua pele esbranquiçada parecia quase translúcida, e Miranda se perguntou se o tom de sua cútis se devia ao ataque sofrido ou se era sua cor natural.

—JoBeth —disse Miranda, com a voz enrouquecida pelas lágrimas que queria derramar. Estava sentada em uma cadeira junto à garota. Tragou saliva. Não queria que JoBeth percebesse, além de seu estado inconsciente, que ela mesma estava assustada e preocupada. Queria que a garota se contagiasse de sua força.

—Jo —disse, com voz mais firme—. Me chamo Miranda Moore. Acredito que não nos conhecemos.

O que dizer? Não tinha estado nunca com uma vítima viva. Embora isso, claro está, não era do todo verdade. Tinha conversado com vítimas de violações, ou ajudado a excursionistas perdidos a recuperar a calma. Também tratava com pais histéricos e meninos desconcertados.

Mas nunca o tinha feito com uma vítima do Açougueiro. Exceto quando se olhava no espelho.

Ela podia conseguir. Tinha que conseguir. Se JoBeth guardava em sua memória uma lembrança qualquer, algo que pudesse conduzi-los até o homem que lhe tinha feito mal, Miranda tinha que encontrar uma maneira de chegar a ela. Para salvar Ashley.

—Você sobreviveu, JoBeth. Ouvi que as pessoas que estão em coma podem escutar quem os rodeia. Se concentre em mim, JoBeth. Se concentre. Se quiser salvar a vida de Ashley, se concentre no que digo.

Era o enfoque correto? Possivelmente não deveria nem sequer lhe contar que Ashley estava em perigo? E se isso piorava as coisas? O que aconteceria se a culpa a matasse?

Eu sobrevivi. Sharon morreu.

Miranda fechou os olhos com força e respirou fundo.

—Não sei por que não terá levado você também —disse Miranda, sem tirar os olhos de cima à garota inconsciente—. Mas você teve sorte. Você sobreviveu. Chegou até aqui e voltará a estar entre nós. Tem que fazê-lo. Por Ashley. Porque em alguma parte de sua mente adormecida se encontra a chave da identidade do homem que a seqüestrou.

Miranda não se perdoava por não recordar mais coisas de seus dias em cativeiro. Por não ter sido capaz de identificar seu agressor. O homem que matou Sharon. Mas recordava sua voz das poucas vezes em que lhe tinha falado.

Puta.

O que te parece isto?

Fique.

Corre. Tem dois minutos.

Ela repetiu essas palavras para os investigadores. Para o perito em perfis do FBI. Para o psiquiatra que teve que visitar por obrigação. Aquelas palavras cruéis, ditas com voz apagada, inclusive neutra, não significavam nada para ela. O perito em perfis, está claro, havia considerado que falar com a versão de que o agressor tinha sido vítima dos abusos sexuais de uma mulher em pequeno, e que agora «castigava» a seu verdugo, mas do que servia isso à investigação? Miranda não sabia. Certamente, se tivessem um suspeito, seria de alguma utilidade. Mas a polícia não tinha pistas. O FBI tampouco.

Ela não lhes tinha servido de nada.

Mas possivelmente JoBeth sim poderia lhes servir.

Miranda respirou trabalhosamente.

—JoBeth, eu sou a que escapou —murmurou —. O Açougueiro de Bozeman. Eu escapei. Mas minha melhor amiga morreu. Chamava-se Sharon e eu a amava. Como uma irmã. Compartilhava tudo com ela. Jamais pensei... bom, jamais pensei que podia nos acontecer algo ruim. Mas o Açougueiro nos seqüestrou.

Por que o Açougueiro não levou JoBeth? Miranda não sabia e Quinn e Nick só podiam especular. Possivelmente não teve tempo para colocá-la em seu carro. Possivelmente lhe viu a cara e talvez o conhecesse. Uma especulação que só podia confirmar JoBeth Anderson.

—Jo, tem que sair dessa nebulosa em que está colocada. Sei que dói. E sei que doerá. Mas se não despertar logo, o Açougueiro matará Ashley —disse, e tragou saliva—. Nada disto é sua culpa. Tem que sabê-lo. Mas também tem que despertar e nos ajudar. Ajudar à polícia a encontrar o homem que levou Ashley. Antes que lhe faça mal. Antes que a cace.

Nada. Nenhum movimento, nada que indicasse a Miranda que JoBeth tivesse escutado uma só de suas palavras. Miranda lhe apertou a mão e apoiou a testa sobre a cama, respirando profundamente.

Tinha uma missão a cumprir. Tinha que encontrar uma mulher. Antes que fosse muito tarde.

Ao fim de um momento, levantou-se, sentindo-se mais forte e decidida. Tocou o ombro de JoBeth e disse:

—Espero que fique bem, Jo. Prometa-me que ficará bem. Voltarei para falar contigo. Possivelmente volte esta noite e, se não, virei sem falta amanhã pela manhã, ok?

Não esperava uma resposta. E não a teve.

 

Quinn não pôde estacionar frente ao escritório do xerife devido a meia dúzia de veículos de distintos meios de comunicação ocupavam todo o espaço disponível. Franziu o cenho, estacionou à volta da esquina e caminhou até o edifício, bem a tempo para ouvir Nick que falava do alto da escada.

—Não tenho tempo para mais pergunta. Tenho que me ocupar da investigação.

Nick se voltou para entrar no edifício enquanto os repórteres lançavam todo tipo de perguntas.

Quinn se meteu por um beco para evitar os repórteres e mostrou sua insígnia ao agente que fazia guarda na entrada de trás. Foi direto ao escritório de Nick.

—O que aconteceu? —perguntou, servindo uma xícara de café da cafeteira no aparador.

—Porra, não tenho nem idéia, mas há um da CNN que está chamando o responsável por relações públicas para pedir uma entrevista, e esse cara do programa dos mais procurados quer vir este fim de semana para filmar umas seqüências sobre o Açougueiro.

—Não poderia nos prejudicar. Muita gente vê esses programas. —Embora dentro de uma semana ou dez dias, Ashley já estará morta.

—Viu o jornal desta manhã? —perguntou Nick, olhando-o fixo.

—Não.

Nick lhe lançou a seção principal. Os títulos na capa chamavam a atenção: O Açougueiro volta a golpear.

—Como conseguiu colocar essa notícia?

—Terá parado as prensas. É o que sei. A maior parte da reportagem poderia ter escrito antes do seqüestro de Ashley van Auden. Só no primeiro e o último parágrafo se referem a ela. —Nick fez uma pausa e tamborilou com os dedos sobre a mesa—. Você falou com Banks?

Quinn leu o artigo por cima.

—Não, a verdade é que não. Encontrei-o ontem na Universidade de Montana State, onde andava metendo o nariz.

—O que lhe disse?

—Nada importante. Por quê? —perguntou Quinn, elevando o olhar.

—Segue lendo.

Quinn seguiu lendo. Um resumo do seqüestro e morte da Rebecca... Ryan Parker que encontrava o corpo... uma adaptação atrás de outra de notícias já publicadas... Banks falava também da chegada de uma especialista do laboratório de criminologia do FBI e acrescentava a informação de que o reitorado tinha entregado a Quinn 189 pastas com antecedentes de estudantes da universidade. Assinalava o artigo: Os expedientes dos suspeitos do desaparecimento de Penny Thompson tinham sido devolvidos à universidade, o que constitui um exemplo evidente da incompetência e desorganização que caracterizam a investigação.

Banks também se enfurecia com o escritório do xerife e com Nick em particular: Uma fonte anônima próxima à investigação declarou: «O escritório do xerife dirigiu tudo mal desde o começo. Já é hora de que alguém competente tome as rédeas do assunto. Vivemos em um estado de medo permanente e isto tem que acabar».

O artigo insinuava que Quinn havia dito que Nick era um incompetente sem citá-lo abertamente.

Que saco!

—Eu não lhe contei nada a respeito da Olivia nem dos expedientes — disse Quinn, lançando o jornal de volta a Nick—. Só tenta te tirar do sério. É uma entrevista anônima, Nick. Não tome pessoalmente.

Pela expressão de sua cara, Quinn soube que seu amigo tomou muito mal a crítica.

—Estamos fazendo tudo o que podemos — disse Quinn—. Temos os melhores dos melhores examinando as provas. Estamos procurando em todas as cabanas e barracos conhecidos. Estamos desmontando o carro de Ashley e o da Rebecca também. E reduzi a lista de homens que teriam conhecido Penny a umas poucas dúzias. É bastante mais abordável que as centenas de nomes que tínhamos fazem doze anos, e os quase duzentos de ontem. Sigamos com isso.

—Tenho algumas coisas que fazer —disse Nick, levantando-se.

—O que?

— Nada importante. Só algumas idéias.

—Aqui estou eu se quiser que nos ponhamos com uma tormenta de idéias. Baralhemos as idéias que tenhamos. —Nick tinha aspecto de derrotado, algo que Quinn nunca teria esperado de seu amigo.

—Sério, não é nada. Mas se sair algo disso, chamarei. Segue com os amigos de Penny. É provável que eu só esteja perseguindo sombras.

Saiu antes que Quinn pudesse fazer mais pergunta.

Quinn franziu o cenho. Nick estava preocupado por algo, embora possivelmente só fosse esse artigo. Ainda assim, possivelmente deveria acompanhá-lo e o ajudar com o que tivesse nas mãos.

Olhou o enorme monte de pastas que havia trazido da universidade no dia anterior. Tinham eliminado as daqueles que já não calçavam com o perfil. Ficavam cinqüenta e dois possíveis suspeitos. Tinha que reduzir ainda mais a lista.

Agarrou o telefone e começou a fazer ligações.

 

Sentia-se relaxada, como se não estivesse dentro de seu próprio corpo, como se só estivesse olhando como evoluía a cena, como em um filme, sobre o chão imundo. Tinha visto a cena muitas vezes e nunca deixava de excitá-la e repelir ao mesmo tempo.

Ele ofegava em cima da garota, fudendo-a como se fosse uma boneca. A garota estava ali só porque estava atada a uma estaca no chão. Ele nunca tinha sido capaz de despertar o interesse de uma garota. Era como se, depois de uma única entrevista, a possível noiva tivesse percebido que ele albergava escuras fantasias nas que ela não queria tomar parte. Nunca teve mais encontros depois dessa garota em Portland. Quando lhe disse que não, perdeu os estribos. Entrou em sua casa e a violou. A muito tola.

Só ela entendia suas necessidades. Um apetite insaciável de poder fervia sob sua pele, queimando-a de dentro para fora, procurando alívio. Vê-lo satisfazer suas ânsias lhe proporcionava certo grau de alívio. Mas ele era muito tolo. Quando violava essas garotas, elas seguiam tendo poder. Porque ele as desejava, necessitava-as, e elas o controlavam.

A garota tinha chorado até cansar.

Era algo que, com o tempo, acabava. Demorava uma hora. Um dia. Às vezes mais. Mas, finalmente, a garota se resignava a sua sorte e ficava quieta, sem resistir nem gritar. Só umas lágrimas silenciosas que lhe corriam pelas faces.

Deu-lhe vontade de rir ante todo esse absurdo. Ele se comportava como uma cadela no cio, necessitava que as mulheres saciassem seu voraz apetite. Entretanto, custava-lhe cada vez mais sentir a mesma satisfação; ela o constatava em seus abusos, cada vez mais cruel. À última garota, antes da Rebecca Douglas, tinha-a golpeado até a morte, sem sequer lhe dar a oportunidade de fugir.

Dava bofetadas na garota, tentando que ela respondesse. O ruído da pele contra a pele, agitando-se, costumava excitá-la, mas esse dia não estava tendo o efeito habitual.

Pela primeira vez em sua vida adulta, sentiu o medo como um estremecimento que lhe percorria as costas. Saiu do barraco e respirou o ar frio e fresco da manhã.

Não temia tanto por ela como por ele. Ele era responsabilidade dela, e sua decisão precipitada de seqüestrar outra garota ao fim de tão pouco tempo de raptar a anterior era uma insensatez. Ela tentou dissuadi-lo, manipulá-lo para que abandonasse a idéia, mas ele se mostrou inflexível. Estava decidido a agarrar à garota com ou sem ela

Não podia permitir que o fizesse sozinho. Ele a necessitava. Para vigiar. Para apagar seus rastros. Para protegê-lo.

As outras razões pelas quais decidiu ficar com ele esta vez eram um pouco mais difíceis de discernir, inclusive para ela. Sentia a compulsão de olhar, embora não suportasse a idéia de vê-lo copulando com outra mulher sem participar. Se ele acreditava obter a máxima e mais completa satisfação quando ela não estava, começaria a procurar outras mulheres sozinho. Cada vez que seqüestrava uma, o risco de que os descobrissem aumentava. Se ele se empenhava em sair para buscá-las sozinho, dariam com ele. Era só questão de tempo.

Então o protegia. E não era que essas mulheres tivessem algo que ela não tinha. Claro que não. Quão único ela fazia era cuidar dele, como sempre tinha feito.

Ele podia ter essas mulheres, mas só se ela participava do assunto.

Ele passeava pela vida atado a uma correia invisível, e todas as mulheres em sua vida tinham tido essa correia na mão. Ela. As garotas que violava e matava. E, sobre tudo, a que tinha escapado.

Ela não o deixou matar Miranda Moore porque se Miranda vivia, ela o mantinha sob seu poder. Imbecil. Era um imbecil. Mas a necessitava.

Agora era como se as coisas lhe escapassem das mãos. Teriam que deixar esse lugar e procurar outras paragens aonde caçar. Para protegê-lo.

Assim que acabassem com Ashley van Auden.

 

Sentado em um canto do Escritório de Administração e Registro da Propriedade, uma planta por cima dos despachos do tribunal, Nick estava concentrado na revisão de milhares de mapas dos lotes da região do condado onde caçava o Açougueiro.

Havia dito a Quinn que tinha uma idéia, que na realidade só era uma intuição. Nick suspeitava que, por algum motivo concreto, o Açougueiro tinha escolhido essa região do território para caçar. Possivelmente encontraria alguma pista revisando as transações de propriedades dos últimos quinze anos.

Poderia ter atribuído aquela tediosa tarefa a um agente, mas depois do artigo do Banks onde se questionava sua competência e depois do desastre da conferência de imprensa, era preferível não fazer-se notar muito.

Não podia acreditar que Quinn houvesse dito que o escritório do xerife era «incompetente». Entretanto, Nick havia se sentido ferido em seu amor próprio ao inteirar-se de que toda a cidade estava informada da incapacidade do xerife do condado de Gallatin em sua busca do Açougueiro. Seu mandato terminava no ano seguinte e, a esta altura, já não queria voltar a candidatar-se. Sentia como o vigiava Sam Harris, criticando cada uma de suas decisões, e com Eli Banks na cidade, lhe seguindo cada passo, a pressão começava a afetá-lo.

Nick se mostrava muito crítico com todas as decisões que tinha tomado nos últimos três anos. Aquilo não lhe servia de nada. Entretanto, a noite anterior, tinha elaborado um inventário dos grandes giros da investigação sobre o Açougueiro desde que ele era xerife. Não teria modificado nenhuma de suas atuações. Todas as pistas investigadas eram lógicas e seguiam o rastro dos poucos indícios que tinham. Entretanto, todas as pistas conduziam a um beco sem saída e, nesse momento, ele não via mudanças.

Alegrava-se de ter chamado Quinn. Embora alguns de seus agentes se mostrassem resistentes a aceitar a presença dos federais em sua jurisdição, Nick estava decidido a usar todos os recursos possíveis para dar com o Açougueiro. E Quinn era um homem discretamente seguro de si mesmo, exercia uma liderança natural e representava a autoridade.

Nick não podia evitar sentir-se como um policial de províncias, como um bronco, junto ao elegante agente da grande cidade.

E logo estava Miranda.

Tinha ido à hospedaria a noite anterior só para confirmar o que já suspeitava. Que Quinn reclamava o coração de Miranda. Que não havia esperança de que ele recuperasse um lugar em sua vida. Além do que dissesse Miranda, Nick a conhecia bem. Seu coração sempre tinha pertencido a Quinn, e o tempo que Miranda tinha passado com ele tinha uma importância menor.

Doía-lhe porque a amava, mas o superaria. Quão único de verdade queria era sua felicidade e sua tranqüilidade. Se Quinn podia lhe dar isso, ele estava disposto a aceitá-lo.

Tinha que concentrar-se em algo útil, algo que marcasse um ponto de inflexão na investigação. Estava farto de aparecer na imprensa como um parvo. De questionar suas próprias decisões, não só tomadas desde que o tinham elegido xerife mas também desde que era policial.

Sabia que era um bom policial. Entretanto, os crimes horripilantes do Açougueiro superavam todos os limites de sua experiência.

Tinha olhado os registros das propriedades no passado, mas só para averiguar quem eram os atuais donos. As sete vítimas, incluída Rebecca, tinham sido encontradas em terras que pertenciam a diferentes pessoas. Três foram localizadas em terras de propriedade federal. Qual seria a situação dez anos antes? Vinte anos antes? Havia algum denominador comum nos territórios de caça do Açougueiro?

Nick levava consigo o mapa que ele mesmo tinha configurado e agora se propôs desenhar uma trama dos registros de propriedade. Procurou pessoalmente o histórico de cada lote porque não confiava que os funcionários do escritório do Registro guardassem o segredo de suas pesquisas.

E se aquilo não arrojava resultados, não queria voltar a ver manchetes redigidas por Eli Banks aludindo a mais um de seus fracassos.

 

Quinn queria saber o que pensava Miranda.

Encontraram-se no escritório central da Unidade de Busca depois da hora do jantar. Não tinham jantado e Quinn sugeriu que fossem comer alguma coisa juntos. Ela esteve a ponto de dizer que sim. Ele percebeu em seu olhar.

Mas lhe disse que seu pai esperava com alguma coisa que lhe teria preparado. Os dois pensavam ir à universidade a primeira hora da manhã, e Quinn lhe perguntou se queria voltar para a hospedaria com ele. Teve uma surpresa quando ela disse que sim e subiu no carro.

Tentou falar com Nick, mas não o encontrou nem em seu telefone celular nem no pager. Não estranhou aquilo. Ao falar com ele a tarde, Nick parecia seco e irritado. Embora a pressão dos meios de comunicação fosse intensa, Quinn confiava que soubesse ignorá-la. Nestas situações era o melhor remédio.

A prioridade era encontrar Ashley van Auden.

Quinn conseguiu reduzir a quarenta e três indivíduos a lista dos homens da época universitária de Penny. Os agentes Booker e Janssen trabalhavam em comprovações preliminares dos antecedentes de todos e cada um deles. Confiava que pela manhã reduziriam ainda mais a lista, a menos de trinta nomes. Em qualquer caso, repartiriam a lista entre ele, Nick e seus principais investigadores para o laborioso processo de interrogar cada homem.

Aquilo não levava a nenhuma parte. Mas na atual conjuntura, a menos que Olivia encontrasse algo nas provas que mostrasse outra alternativa, carecia de idéias.

Não podia contar que JoBeth Anderson saísse do coma. E se recuperar, possivelmente não fosse capaz de descrever seu agressor. Quinn albergava a esperança de que sim poderia, mas sabia que as testemunhas que despertam de um coma no momento preciso para assinalar o assassino só existiam no cinema barato.

Ainda assim, esperava que se recuperasse de tudo e pudesse lhes dar informação útil para localizar um suspeito. Antes que morresse Ashley van Auden.

Lançou um olhar a Miranda ao girar e seguir pelo comprido caminho pavimentado que levava a hospedaria.

-- Está bem?

-- Passaram vinte e quatro horas desde que agarrou Ashley. Sinto-me como se estivéssemos em uma contagem regressiva. O tempo corre contra nós. Não podemos cobrir todos os pontos do mapa.

Não gostava de ouvir esse tom de derrota em sua voz.

—Miranda, não fale assim. Não comece a imaginar o pior.

—Custa não imaginar, Quinn —murmurou ela—. Quando estou com a equipe de busca, com Nick... e contigo... consigo segurar a barra, mas cada vez que fecho os olhos, imagino Ashley acorrentada e passando frio.

Quinn se deteve no estacionamento reservado para os empregados atrás da hospedaria e desligou o motor. Uma luz de segurança na entrada da cozinha iluminava a área circundante, mas tinham um pouco de intimidade.

Ele a tocou. Miranda estava rígida.

—Miranda, queria que pudesse se liberar dessas imagens e sentimentos. Faria algo por apagar a dor de seu coração. Sabe, não?

Ela o olhou. A luz artificial se refletiu em seus olhos, lhes dando um ar insondável. Quinn queria beijá-la, estreitá-la, lhe dizer que tudo se arrumaria, queria levá-la para cama e protegê-la de seus pesadelos.

Abriu a mão e lhe tocou a face.

—Nunca deixei de te amar.

Miranda ficou com os olhos cravados nele, sentindo que lhe acelerava o coração. Suas palavras pareciam sinceras. Ela não sabia o que pensar. Seu lado racional lhe dizia que o perdoasse, que em muitos sentidos tinha razão ao ter agido como fez. Por outro lado, no fundo de seu coração, sentia que ele nunca tinha acreditado de verdade nela, que sua fé nela era frágil.

— Quinn, não creio que possamos voltar ao passado.

Ele piscou, e uma expressão de dor lhe transformou o semblante. Ela não queria feri-lo, mas tampouco sabia o que fazer.

Quinn lhe afastou uma mecha de cabelo do rosto e o recolheu atrás da orelha. O gesto era tão íntimo que ela baixou o olhar. Era exatamente o mesmo gesto que Quinn estava acostumado a fazer quando eram um casal. Com esse simples contato, sentiu-se embargada pela lembrança do muito que o tinha amado, e logo cheia de um sentimento de calidez e, ao final, de apreensão.

Agora não podiam voltar atrás. Ela era uma pessoa diferente do que tinha sido dez anos antes, quando era uma jovem e ingênua aspirante ao FBI.

Sua leve carícia a sacudiu com um estremecimento elétrico que não tinha experimentado em muito, muito tempo. Era como se Quinn pudesse ler em sua mente, como se soubesse que sofria interiormente e não pudesse expressá-lo com palavras. Que tinha saudades que ele voltasse a abraçá-la, que simplesmente a estreitasse sem falar, sem explicações, sem sentir-se incômoda.

Ficou olhando, desejando com toda a alma compartilhar seus sentimentos, que a abraçasse, que fizessem amor. Lenta e meigamente, como a primeira vez.

Voltou seus lábios para as mãos de Quinn e as beijou. Era o único que podia fazer para não entregar-se a seus braços.

Tinha que pensar nesses sentimentos. Pensar nas repercussões. Podia confiar nele? Confiava ele nela?

Doía-lhe não ter uma resposta a essas perguntas.

—Boa noite —murmurou, e saiu rapidamente do carro antes de que mudasse de opinião.

Ouviu que a porta do Quinn se abria e fechava.

—Acompanharei-a até sua cabana — disse.

Ela sacudiu a cabeça.

— Papai está me esperando — disse, assinalando as luzes da hospedaria com um gesto da cabeça.

Seguiu caminhando no ar fresco da noite e cruzaram os poucos metros que a separavam da porta traseira. Sentiu o olhar de Quinn cravado em suas costas e se perguntou o que aconteceria se virasse e lhe dissesse que viesse com ela. Desejava-o. Meu Deus, quanto o desejava.

E o que aconteceria se ele se aproveitasse de sua vulnerabilidade emocional? Se a relevava da busca, ou do caso? Enquanto pensava, deu-se conta de que Quinn a tinha apoiado firmemente desde sua chegada. Se tinha dúvidas a respeito dela, as reservava muito bem.

Ela sim tinha dúvidas. Levava dez anos convencida de que Quinn lhe tinha arrebatado todo o compartilhado intimamente com ele a propósito de seus sentimentos, seus temores, sua psique maltratada, e que tinha usado tudo contra ela para que a expulsassem de Quântico. Entretanto, essa experiência tinha tanto que ver com sua própria insegurança e seu temor como com algo que Quinn houvesse ou não tivesse feito.

Era preferível pôr certa distância entre ela e Quinn. Seria melhor esquecer o passado. Esquecer aquele beijo na cozinha. Esquecer como ele a tocava com mãos que a faziam arder de desejo e voltar a sentir-se mulher.

Ainda sentia o contato de sua mão na face, e desejava muito mais.

Fechou a porta da cabana e ele ficou fora. Suas emoções estavam muito vivas, muito a flor da pele. Tinha que guardar distância. Porque sabia que Quinn podia voltar a lhe romper o coração com muita facilidade.

 

Quinn marcou o número de Olivia assim que entrou em seu quarto da hospedaria. Mas não conseguia tirar Miranda da cabeça.

Estava ficando louco. Não podia parar de pensar nela, não queria parar. Ansiava poder sentar-se com ela e ter uma longa conversa. Mas Miranda não era o tipo de mulher que se entregasse a conversas razoáveis. Agia por instinto e reagia a partir de suas emoções.

Tinha-lhe explicado com abundância de detalhes sua atuação no Quântico em uma carta que lhe devolveu sem abrir. Tentou falar com ela. Agora tinha que encontrar uma maneira de que escutasse. Se encontrasse as palavras adequadas, sabia que entenderia e o perdoaria. Mas tanto sua própria decisão há anos, como a posterior reação de Miranda, ampliada, tinham tecido uma enorme rede de sentimentos complexos que ele não saberia desembaraçar.

Quinn estava muito orgulhoso de tudo o que Miranda tinha obtido em dez anos, tanto profissional como pessoalmente. Entretanto, a figura do Açougueiro seguia perseguindo-a, e ela não deixava que ninguém cruzasse essa soleira para lhe ajudar.

Passou uma mão pelo cabelo enquanto passeava pelo amplo quarto.

Teria que ter saco. Há mulher. Acaso não acabava de lhe dizer nunca deixaria de amá-la? E ela foi como se nada.

Acaso não acreditava? Nunca lhe tinha mentido embora, considerando o vivido no passado, possivelmente ela duvidava de sua sinceridade. Como podia convencê-la?

Possivelmente tinha cometido um grande erro dez anos antes, quando tinha deixado todo o espaço que pedia. Tinha-a respeitado muito. Deveria tê-la visitado pessoalmente, explicar suas razões com claridade e dizer quanto a amava. Todas as vezes que fosse necessário, até que tivesse acreditado. Quando não devolveu as chamadas por telefone, pensou que sua melhor alternativa era escrever aquela carta.

Equivocou-se. A única maneira de tratar com Miranda era cara a cara.

—Olá? Quinn, é você? —A voz no telefone o sobressaltou. Ele sacudiu a cabeça para clareá-la.

—Sinto muito, Liv, estava sonhando acordado.

—Acordado? São onze horas da noite.

—Despertei-a?

—Não, posso te ajudar em alguma coisa?

Olivia era sempre uma mulher séria, conforme ditavam as regras. Ele admirava sua inquebrável devoção para seu trabalho como técnica de laboratório. Não lhe escapava nenhum detalhe da investigação forense.

—Encontrou algo?

—Só levo um dia aqui. As provas de laboratório demoram seu tempo. —Disse como se ele devesse saber, e assim era. Mas, porra, ele queria toda a informação agora. Do que servia poder puxar certos fios se esses fios não rendiam um resultado imediato?

—Sinto muito —balbuciou Quinn.

—Ok.

—É um sarcasmo? —perguntou ele, com tom jocoso.

—Estou cansada. Aqui na Virginia é uma da madrugada.

—Me esqueci. Deixo-te.

—Há uma coisa.

Quinn deixou de passear.

—O que?

—Há uma amostra de terra que parece... não sei, diferente.

—Terra? De onde?

—Espera um momento. —Quinn ouviu um ruído de fundo, como se Olivia revisasse uns papéis —. Aqui o tenho. Temos dez amostras de terra tiradas do barraco onde esteve seqüestrada Rebecca, cada uma de um lugar diferente e da área imediatamente circundante. Duas das amostras do interior são diferentes da amostra de terra tomada fora.

—Diferente? Em que sentido?

— Se vê a primeira vista. Em primeiro lugar, é vermelha. Não recordo ter lido que a terra de Montana fosse vermelha. E o fato de que não coincidisse com a terra do exterior me disparou o alarme. Mas esta não é minha especialidade. Mandei uma amostra a Quântico para que a analisem.

—Vermelha? Como vermelho de sangue? De caminhão de bombeiros?

—Não, mas como vermelho tijolo.

—Tijolo?

—Mas mais leve que a terra.

—Perdi-me, Liv.

Ela pôs-se a rir e Quinn sorriu. Olivia não estava acostumada a rir, mas quando ria, sua calidez alcançava a tudo o que a escutava.

—Da cor do tijolo, mas com uma textura mais parecida com argila que à terra. A argila é muito fina, mas quando se molha as partículas se unem.

—Como na olaria? —perguntou ele franzindo o cenho, tentando imaginar o que explicava Olivia.

—É o mesmo princípio, mas este é um tipo de argila muito diferente.

—Quando saberá? Pode assinalar com precisão de onde veio? —Estava a ponto de fazer outras dez perguntas quando Olivia o interrompeu.

—Mandei-o o mais rápido possível, Quinn, mas a mostra está em mãos da Federal Express e minha gente não pode fazer nada até que a recebam.

-- Sinto muito. Mas dá a impressão de que é a melhor pista que temos.

-- Sei. Estive lendo todos os expedientes que me deixou — disse, e guardou silêncio um momento—. Como está Miranda?

—Está bem.

—E?

— Conhece Miranda. Está trabalhando muito, não come o suficiente. Mas é muito boa em seu trabalho. Só queria que não sofresse tanto. —deixou-se cair na cama e ficou com o olhar cravado nos pés, mas vendo só como os olhos azul escuro de Miranda se enchiam de toda a dor do mundo.

—Quinn?

—Sim.

—Ainda a ama.

—Sei.

—O que disse?

—Sim.

—E?

—Dá-lhe igual. Fiz-lhe mal, Liv. Não queria, mas me vi obrigado a fazê-lo.

— Pode explicar a Miranda?

—Tentei — disse Quinn. Dava a impressão de estar à defensiva.

—Sim, lembra que tentou então, quando tudo estava em carne viva e era um assunto muito emocional. E agora, o que?

—Nada mudou, Liv. Tentei falar com ela duas vezes, mas me evita. Não quer me escutar.

—Obriga-a a escutar.

—Maldita seja, tentei.

—Tenta de novo.

 

Apesar de que Nick tinha esboçado um meticuloso quadriculado em seu mapa, quase passou do desvio que levava a cabana do juiz Parker.

Os ramos pendentes de umas árvores grossas roçaram o teto de seu suv quando subiu pela levantada costa. As luzes de seus faróis iluminavam justo a parte de frente, mas o estreito caminho de cascalho estava flanqueado por grossos arbustos e trepadeiras que arranhavam ambos os lados do carro ao passar.

Uma hora antes, Nick tinha estado sentado à mesa de sua cozinha comendo um prato de comida preparada enquanto revisava os mapas e os documentos da propriedade que tinha copiado do Registro. Tinha que situar os limites dessa cabana em concreto no mapa. De repente viu claro. Aquela propriedade estava situada no centro de um círculo de uns vinte e cinco quilômetros e destacava como se fosse o alvo central. A cabana era a única construção acessível a pé a partir das cenas de todos os crimes que tinham descoberto. Embora parte do terreno fosse perigoso e podiam demorar horas, um excursionista com experiência podia consegui-lo.

Por sua forma física, o Açougueiro podia permitir-se.

Nick pisava em terreno perigoso. A cabana era propriedade do juiz Richard Parker.

Embora sua intuição fosse acertada e a cabana fosse um ponto de descanso para o Açougueiro, isso não significava que o Juiz Parker estivesse informado. Aquele homem era dono de uma propriedade de quatro mil hectares. Era impossível manter uma vigilância que abrangesse toda essa extensão.

Nick não podia permitir que um dos homens mais poderosos de Montana se voltasse contra ele ou contra o Escritório do Xerife. Era preferível investigar a cabana em segredo, e depois informar em caso de que descobrisse algo.

Tampouco pensava encontrar-se com ninguém. Só queria confirmar que existia e dar uma olhada. Se encontrasse provas de que havia intrusos ou de que tivesse sido habitada recentemente, traria uma equipe de investigadores e falaria com Parker.

O juiz não declarava a propriedade como fonte de ganhos, mas isso não significava grande coisa. Podia alugá-la a amigos nos fins de semana, ou possivelmente ele a usasse. Tinha-a herdado de seu pai, segundo os registros patrimoniais. Aquela cabana em concreto estava situada no fim do mundo, como muitas casas de férias no sudoeste de Montana.

Se Nick não passasse cinco horas no Registro de Propriedade examinando todas as propriedades registradas em um raio de quinze quilômetros do lugar onde tinha aparecido cada vítima conhecida, nunca teria notado nessa cabana.

Chamou Quinn quando se aproximava do desvio da Hospedaria Gallarín para saber se queria acompanhá-lo. Mas respondeu a caixa de mensagens de voz e Nick não deixou mensagem. Ir até o Big Sky era um capricho, porque era provável que sua intuição não levasse a nenhuma parte. Depois de passar os últimos dias sacudido pela imprensa, preferia que sua hipótese fosse um segredo até ter alguma prova.

Ao final, descartou as dúvidas e continuou subindo os três quilômetros sinuosos que ficavam pelo caminho estreito e cheio de arbustos.

Depois de um giro brusco, desembocou diretamente na garagem da cabana, e embora Nick esperasse encontrá-la de um momento a outro, pegou-o de surpresa. Freou de repente e apagou as luzes ao mesmo tempo.

Apagou o motor e desceu da caminhonete. Ao sentir o ar frio se abrigou fechando o agasalho impermeável. Desde que o sol se pôs, a temperatura rondava os dez graus. A previsão do tempo calculava uma mínima de cinco. Encolheu-se de frio pensando em Ashley van Auden.

Na época em que era amante de Miranda, Nick se deu conta de que lhe acontecia algo com o calor. Tomava umas duchas com água que teriam escaldado a qualquer um. Abrigava-se quando fazia bom tempo. Sempre levava mantas e café quente no carro. Durante muito tempo, Nick o tinha visto como costumes muito especiais. Nunca o relacionou com a agressão do Açougueiro até uma noite, pouco antes de que se separassem.

Ouça, Randy, vamos dar um passeio pelo lago Meyer.

Era verão e os termômetros ainda rondavam os vinte e sete graus, apesar de que se aproximava a hora do por do sol. Prometia ser uma noite deliciosa.

—Não tenho vontade.

Nick franziu o cenho. Estava acostumado às mudanças de humor de Miranda, mas ela estava acostumada ser muito espontânea. Fascinava-lhe esquiar, descer os rios em balsa; era a única mulher que conhecia que sentia paixão pela vida ao ar livre. Era uma das razões pelas quais se apaixonou por ela.

O lago Meyer era um desses lugares onde os casais iam banhar-se nus.

Merda, tinha dado um fora.

—Sinto muito, deveria ter pensado...

Ela o interrompeu.

—Não me importa que me vejam, Nick.

—Não me ocorreu pensar —disse ele, franzindo o cenho.

-- Esta noite fará uns quinze graus. Não entendeu.

-- Prometo-te que voltaremos para casa antes que faça tão frio. Ela o olhou, desiludida.

—Não penso ir nadar em nenhum lugar a noite.

Acabaram ficando em casa de Nick vendo um filme. Nick acreditava que Miranda não queria que a vissem nua, com o corpo cheio de cicatrizes, e se sentiu mal por havê-lo sugerido.

 

Agora sabia. Não era o fato de estar nua, mas sim de estar nua na água fria.

Nick se deu conta de que tinha jogado mão da pistola de dez milímetros que levava. Quase voltou a embainhá-la.

Mas, não. Decidiu permanecer alerta.

Não havia luzes acesas na cabana. Parecia deserta. Nick relaxou.

Rodeou-a. Era uma estrutura clássica em A, com uma sala ou salas grandes no primeiro andar, apoiada sobre pilares. E uma espécie de apartamento de cobertura na parte superior.

Subiu as adoentados escadas que levavam ao balcão que a rodeava. Era evidente que não havia ninguém. Estava escuro. Não havia veículos. Vazia. Ainda assim, Nick estava tenso, com todos os sentidos alerta.

Olhou pela janela, e a meia lua lhe permitiu ver algumas sombras. Alguns móveis, um sofá, uma cadeira, uma mesa. Nada de bagagem. Nada de comida na mesa. Nenhuma pistola, nem faca nem mulher atada ao chão.

Sim, tinha sido uma perda de tempo vir.

Embainhou a pistola, deu uma olhada pelo balcão. Havia duas cadeiras espreguiçadeiras apoiadas contra a parede da casa. Cruzou o outro lado do balcão e olhou para o lago, a uns cem metros, cuja superfície quieta refletia a lua.

O que vou fazer agora?

Ninguém sabia que tinha ido até ali. Voltar para casa, dormir algumas horas, contar a Quinn que tinha revisado os registros de propriedade com uma intuição que não deu resultado. Esquecer-se de tudo isso e concentrar-se na lista de cinqüenta e poucos homens da universidade.

Era o que teria que ter feito esse dia em lugar de andar com intuições.

Ao virar-se apoiou no corrimão e viu um par de botas junto à porta.

Que estranho.

Levou a mão à pistola.

Antes que pudesse tirá-la, caiu, vítima de um golpe que o fez perder os sentidos.

 

Miranda olhou seu relógio. Já eram sete e meia da manhã e Quinn ainda não aparecia.

Tinha o jipe na universidade assim dependia dele para voltar para a cidade. Por que teria aceitado voltar com ele a noite anterior?

Estava esgotada. Sim, temia dormir ao volante. Levava quase duas semanas praticamente sem dormir e a falta de sono começava a passar fatura.

Entretanto, surpreendeu-lhe dormir tão bem a noite anterior. Nada de pesadelos nem interrupções. Mas ao despertar pela manhã, recordou uma conversa com Quinn um ano antes de ser admitida em Quântico. Pensando nisso, chegou à conclusão de que ele sempre tinha tido dúvidas, mas não a propósito de suas capacidades.

—Parto amanhã pela manhã —disse Quinn, jogando uma mecha de cabelo atrás da orelha de Miranda.

—Amanhã? Pensava que tinha a semana livre.

—Assim é, mas aconteceu algo.

O tom de voz de Quinn lhe deu uma chave a respeito da verdade.

        —Um assassinato.

        —Preferiria não sabê-lo.

        —Justamente o contrário.

—Miranda, por que te faz isto?

Estavam sentados no alpendre da hospedaria. Era tarde de noite e a maioria dos clientes se retirou ou tomavam uma última taça antes que o bar fechasse às onze.

—Logo serei agente do FBI, Quinn. Posso me inteirar dos detalhes. —Miranda estava matriculada em cursos de psicologia e criminologia. Já tinha obtido sua licenciatura reunindo seus estudos no ano anterior. Teria ingressado no Quântico esse ano, salvo que ainda ficavam dez meses para cumprir os vinte e três anos.

—Não pára de falar disso.

—Já contei meus planos.

—É verdade. Só que pensei que trocaria de parecer.

—Por que? —Acaso tinha dado a Quinn a impressão de que fraquejava? Esperava que não.

Ele a olhou e em seus olhos havia tal carga de emoção que ela se sentiu maravilhosa e completamente conquistada por ele.

—Faz um ano que não pára de me assombrar, Miranda. Foi todo um estímulo para mim quando o trabalho começava a entediar-me. Quando era incapaz de apanhar o canalha que te fez mal... — Tragou saliva e desviou o olhar, mas ela alcançou a captar o brilho úmido em seus olhos.

—Não é sua culpa. Perseguiremo-os. E algum dia o encontraremos.

Quinn se virou lentamente para ela, agarrou-lhe as mãos e as apertou com força. Ela se abandonou em seus braços, contente e segura de si mesmo e de sua sexualidade pela primeira vez desde a primavera passada.

—Está tão perto. Acredito... que é bastante preparada e está bastante motivada para se converter em uma excelente agente do FBI. Entretanto, acredito que a investigação do Açougueiro a motiva mais que o fato de querer ser agente. — Quinn suspirou e lhe acariciou o cabelo—. Não sei se tem sentido o que digo.

-- Já demonstrarei que sou capaz. —Tinha falado como se sentisse pânico? Não, só queria ser enfática—. Disse que me daria uma carta de recomendação. Mas se não quiser me dar posso conseguir outras.

        —Prometi uma carta e a terá.

—Além disso, não ingressarei na Academia até dentro de um ano — disse ela, e fez uma pausa—. Não me contou o de seu caso.

Ele a estreitou com força e ficaram olhando as sombras. Ela levava postas quatro capas de roupa e uma manta ao redor das pernas. Ali, com Quinn a seu lado, sentia-se segura.

—A vítima é um menor — disse ele, com voz fraca—. São os piores casos.

—Miranda?

Ela teve um sobressalto. Quinn estava ao pé da escada e a olhava com expressão intrigada.

—Vamos? —perguntou.

—Vamos.

Ela deveria ter lido entre linhas naquele momento. Voltando a pensar naquela noite, deu-se conta de que Quinn tinha reservas desde o começo a propósito de sua decisão. Deu-lhe a carta de recomendação porque a tinha prometido, mas não confiava que seguisse adiante. Miranda não sabia se estava mais zangada com ele por sua preocupação ou consigo mesma por não haver-se dado conta disso em seu momento.

Estava tão segura de que queria ingressar no FBI. Falando com Quinn dos casos em que tinha trabalhado e de quantos assassinos tinha posto entre grades, ela se sentia inspirada e cheia de esperança de que também poderia enfrentar os malfeitores e ao final triunfar.

Isso sim, só havia um malfeitor que de verdade queria encontrar, que de verdade precisava derrotar. Não era a primeira vez que pensava que possivelmente o psiquiatra tivesse razão. Sua obsessão por apanhar o Açougueiro era o que a motivava, o que a tinha levado a apresentar-se ao FBI. Ela não o teria chamado obsessão, mas a verdade é que concentrava-se em pouca coisa mais. Como podia abandonar se ele seguia caçando mulheres?

—Miranda? —disse Quinn, quando já estavam no carro.

—O que?

—Aconteceu algo ruim?

—Não. —Tanto lhe notava? Olhou Quinn e lhe sorriu —. A verdade é que ontem à noite dormi bastante bem.

—Alegra-me sabê-lo. Necessitava-o. —Tinham saído à estrada principal. Ela olhou o relógio do painel. As 07h50min. Começou a pensar no planejamento da busca, e voltou a revisar mentalmente o quadriculado que tinham elaborado no dia anterior, perguntando-se se mandar seus homens inspecionar algum outro lugar. Qualquer coordenada que escolhesse era como um disparo ao acaso.

—Serve de algo?—perguntou.

—Perdão?

Não se tinha dado conta de que pensava em voz alta.

—Pensava na busca. Cada vez que seqüestram a uma mulher, não faço caso dos limites e penteamos milhares de hectares. E do que serve? Nunca encontramos a ninguém a tempo. Não pudemos salvar Rebecca. Por que terei pensado que podíamos?

—Deixa de se criticar assim, Miranda. É o que fazia Nick ontem porque se sentia pressionado pela imprensa. Você é uma especialista em busca e resgate. Revisei seus métodos e as rotas que seguiu e eu teria feito exatamente o mesmo com o pessoal e os recursos que tinha.

—Sim?

—Absolutamente. E se não fosse pelo metódico de suas buscas, jamais teríamos encontrado alguns corpos.

—Mas era muito tarde. —Tinham encontrado às irmãs Croft quatro semanas depois de que as matassem. Com Rebecca tinham demorado menos de um dia. Mas teriam passado várias semanas se o filho do juiz Parker não tivesse achado acidentalmente o cadáver.

        —Ontem à noite falei com Olivia.

-- E? Descobriu algo? Não teria chamado se não tivesse notícias. O que há de novo?

-- Fui eu quem a chamou —explicou Quinn—. E não tem nada definitivo. Mas mandou umas amostras de terra ao laboratório do FBI na Virginia. Sabe de algum lugar por aqui onde haja terra ou argila vermelha?

—Vermelha? —Miranda revisou seus conhecimentos de geologia—. Não acredito. Nos arredores, não. —Miranda mordeu o lábio—. Argila vermelha? Poderia falar com alguém do departamento de geologia, possivelmente saibam algo.

—Trata de fazê-lo discretamente,ok? Deixarei-a na universidade. Iria contigo, mas tenho que me encontrar com Nick para ver os expedientes da universidade. Vamos repartir-nos o trabalho com a lista que temos. Acabaremos com umas três dúzias de nomes no total, mas é quão único temos por agora até que Olivia nos dê algum resultado definitivo.

Miranda olhou Quinn de esguelha. Queria que investigasse aquilo? Não esperava que a incluísse em seus planos, à luz do ocorrido no passado. Saber que ele confiava nela para encontrar respostas, embora fosse só um pequeno aspecto da investigação, significava muito.

-- Obrigado —disse.

-- Por que?

-- Por confiar em mim.

—Só peço que tome cuidado — disse ele, finalmente.

 

A Puta ia esfolá-lo vivo.

Mas o que se supunha que tinha que fazer ele? Esse fodido policial tinha vindo meter o nariz. O que teria acontecido se tivesse decidido saltar todas as normas sobre inspeções e buscas, e tivesse entrado na cabana?

Ele não podia dizer nada à Puta a propósito disso. Ela não sabia tudo o que ele guardava. Não teria entendido. Ele necessitava uma conexão com as mulheres que tinha cuidado. Manuseava suas fotos e recordava tudo a propósito delas. A suavidade de seu cabelo. A beleza dos pescoços. E seus seios... sobre tudo amava seus seios. Belos, redondos, cheios.

Não, ela não entenderia.

Mas agora tinha que desfazer do fodido veículo do policial. Possivelmente lançá-lo pela beira do caminho. Ou abandoná-lo onde o encontrassem facilmente. Era preferível escondê-lo ou deixar que o descobrissem?

Não sabia. Por isso a tinha chamado.

Ela subiu pelo estreito caminho a mais velocidade do que devia, e quase acabou embutida na parte de atrás da caminhonete do xerife. Desceu do carro apressada, com sua loira cabeleira ricocheteando sobre os ombros.

—Maldito imbecil!

—Estava farejando por aqui.

—Temos que ir. —Ela subiu a escada a grandes passadas e se deteve na porta—. Onde está? O que fez com o corpo? Enterrou?

—Está com a garota.

Ela piscou e o olhou com olhos desmesuradamente abertos.

—Por que teria que arrastar o corpo a quilômetros daqui? Por que não o enterrou aqui?

—Acredito que não está morto.

—Mas como, por que caralho?

Ele deu de ombros. Não estava em seus planos matá-lo. Só o tinha deixado fora de combate. Tinha sangrado um pouco, mas não acreditava tê-lo matado. De fato, jogado ali no balcão, não lhe urgia muito matá-lo. Que graça tinha matar alguém que não sabia o que lhe esperava?

Enfim. Ele não tinha pensado deixar que o xerife fosse embora. À longa, morreria de fome.

—É um imbecil. Um babaca de merda! Agora temos que ir, abandonar Montana. Arruinaste-me a vida. Maldito, maldito seja!

A Puta passeava a grandes passadas, mexendo o cabelo. Ele se encolheu, apoiado na parede exterior da casa. Não havia maneira de saber o que era capaz de fazer nesse estado de ânimo.

A Puta seguiu balbuciando e lançando imprecações durante dez minutos antes de dirigir-se a ele com o indicador no alto.

—Faz as malas. Vamos. Vamos deixar à garota, e Nick Thomas. Estarão mortos antes que os encontrem. Tenho um pouco de dinheiro guardado. Conseguiremos novas identidades, possivelmente na Califórnia. Sim, Califórnia estaria bem. Los Angeles é uma cidade grande, e sairemos do meio.

—Não.

Ela deixou de passear de cima abaixo e ficou olhando.

—O que?

—Não penso ir. Theron e Aglaia puseram ovos. Não posso ir até que os pintinhos rompam a casca do ovo.

—Pensa arriscar tudo por uns fodidos pássaros de merda?

Ele ficou tenso.

—Não são uns pássaros de merda.

—São pássaros. Não me disse em uma ocasião que estão por toda parte, que até constroem seus ninhos nos telhados dos edifícios em Los Angeles? Se quer ver esses malditos insetos, pode ir pensando em olhá-los da rua em lugar de andar perdendo o tempo em meio da porcaria no fim do mundo. Maldito seja, isto é sério! Seqüestrou o xerife! Não podemos ficar aqui. Temos que ir. E você virá comigo.

Irritava o desprezo que A Puta demonstrava por Theron e Aglaia. Enquanto isso, ela pensava no que diria a seu marido, ou em como comprariam novas carteiras de motoristas, e quando se largariam.

Ele não a largaria.

Ela mentia, igual a todas as demais. Sempre lhe dizia que se sentia orgulhosa de seu trabalho, que admirava sua paciência e seu esmerado cuidado com os falcões. Mas agora os chamava de pássaros de merda. Como se atrevia? Como era possível que pensasse isso de um animal tão elegante e veloz, tão livre e formoso como Theron?

Sentiu que ia se acumulando aquela raiva tão familiar, mas esta vez era diferente. A fúria crescia por momentos, se fazia mais real. Suas próprias necessidades já não eram essenciais. A raiva não parava de aumentar, até que o superou.

Se ele não voltava onde Theron, quem se ocuparia dele? Algum funcionário do Estado que identificava os pássaros por sua freqüência de rádio? Nunca. Theron tinha uma personalidade única. Ele jamais permitiria que o convertessem em um simples número, um de tantos, quer dizer, em nada. Agora que ao falcão peregrino já não era considerada um ave em perigo de extinção, a ninguém importava tanto como a ele.

Se ele partia, o que lhes aconteceria? Quem os vigiaria? Quem os seguiria ou protegeria?

Não, ele não pensava ir-se. E ela não podia obrigá-lo.

Além disso, ainda não tinha acabado a loira que tinha oculta. Não podia partir antes de terminar com ela.

Flas!

Levou uma mão à face, enquanto o calor do golpe ia descendo da cabeça ao resto do corpo. Ficou olhando. Quase tinha esquecido que ela estava frente a ele, lhe falando.

—Não escutou nenhuma palavra do que eu disse! Porra, não é mais que um pobre imbecil! Vá procurar suas coisas. Agora!

—Não.

Parecia tranqüilo. Na realidade, sentia-se livre. E gostava desse sabor de seu desafio.

—O que? —Ela parecia comocionada. Bom.

—Não vou. Ainda não —disse, e deu um passo para ela. Ele era quinze centímetros mais alto que A Puta, mas nunca havia se sentido tão grande como nesse momento. Ergueu-se quão alto era e a olhou de sua altura.

Ela começou por desviar o olhar. Logo deu um passo atrás. Era medo o que lhe pintava na cara? Sim, era. Ele conhecia bem esse olhar, mas nunca pensou que chegaria o dia em que o visse nela.

Durante anos, ela o tinha mimado e ignorado. Tinha-o amado e odiado, tinha-o protegido e também ferido.

Agora já não tinha nenhum poder sobre ele. Os anos não tinham passado em vão.

Ela olhou a direita e esquerda, mas sorriu. Um sorriso nervoso.

Tinha entendido.

—Carinho —disse, com essa voz melosa sua—. Seja razoável.

—Não penso ir até que os pintinhos rompam a casca do ovo.

—Mas...

Ele lançou um tapa e lhe deu em toda a cara. Ela tartamudeou e foi para trás.

Ele não sabia quem estava mais surpreso, se ele ou ela. Jamais lhe tinha levantado a mão. Jamais o tinha pensado seriamente.

Mas ela nunca tinha atacado seus pássaros antes.

Ele cresceu ante o alcance do medo dela. A sorte virou e agora o poder estava em suas mãos.

—Você pode fazer o que te dê a maldita vontade —avisou —. Eu não penso ir.

 

Nick recordava sua primeira bebedeira. Não se tratava de uma simples intoxicação. Não, tratava-se de uma bebedeira em toda regra, com o cérebro embotado, com náuseas que o fizeram vomitar tudo, arrastando-se pelo chão.

Agora trocaria com gosto a dor de cabeça por uma ressaca de três dias.

De seus lábios ressecados escapou um gemido, e o leve ruído piorou sua dor de cabeça. Sentia as pálpebras cobertas e fechadas pela areia e um grande peso que lhe impedia de abri-los. Apenas pensar em movê-las, redobrava a dor.

Entretanto, estava vivo. Ao menos disso estava seguro. Era evidente que não morreu, podia sentir dor. A menos que existisse o inferno e ele tivesse feito algo que o fazia merecedor de uma maldição eterna. Tal como se sentia agora, possivelmente preferia o inferno.

O frio lhe penetrava no corpo, mais à frente da dor na cabeça. Estremeceu e a dor que sentiu ao mover lhe arrancou outro gemido. Tinha os ossos gelados, mas não estava à intempérie. Estava estendido de lado sobre uma superfície mais dura que a terra. Um chão de madeira. Aromas. Mofo, urina, animais mortos. O fedor penetrante de capas de terra úmida.

Tentou mover o braço. Tinha as mãos intumescidas, mas não da dor. Tinha-as atadas à costas. Respirou fundo e suportou uma nova onda de dor ao respirar. Sentiu que seu fôlego lhe voltava imediatamente. Tinha a cara tocando contra uma parede.

O que tinha acontecido? Ele ia conduzindo... aonde? Agora recordava. Ia ver aquela cabana com telhado de duplo vertente no limite sul da extensa propriedade do Juiz Parker.

Ao não ver nada suspeito, decidiu que voltaria para casa. Ir a esse lugar tinha sido uma perda de tempo, e recordou que se alegrava de não ter incomodado Quinn. Mas quando se virou, viu um par de botas e lhe pareceu estranho que estivessem ali, junto à porta de uma cabana sem habitar.

Quis agarrar a pistola mas alguém o golpeou por trás. Ele não ouviu nada, só sentiu uma dor muito aguda... e logo, nada.

Até agora.

Acaso seu atacante o tinha observado tranqüilamente protegido pela escuridão da cabana enquanto ele examinava o perímetro? Por quê? Tratava-se de um ladrão? Alguém a ocupava ilegalmente? Ou eram conhecidos do Parker?

Seria acertada sua teoria de que o Açougueiro a utilizava como centro de operações?

Nick estava seguro de que agora não se encontrava na cabana do Parker. Esses aromas pestilentos e o frio penetrante lhe faziam pensar em uma cabana improvisada ou um pequeno barraco.

Fazia um frio que gelava o tutano. Miranda detestava o frio por causa do que o Açougueiro lhe tinha feito. Agora, ele estava na mesma situação. Amarrado e estendido em um chão de madeira frio.

Era possível que Richard Parker fosse o Açougueiro?

Nick não podia imaginar o juiz que conhecia desde que era adulto torturando essas mulheres. Entretanto, de algum modo encaixava com o perfil, não? Possivelmente fosse um pouco mais velho. Por outro lado, estava casado, e seguro que não era um solitário. Mas Parker era um homem que estava em boa forma física e se criou caçando e pescando no sudoeste de Montana. Certamente, a prova mais flagrante era que tinham atacado Nick em sua cabana.

No FBI às vezes se equivocavam com os perfis. Vieram-lhe náuseas de só pensar que Parker pudesse ser o Açougueiro. Recordou todas as vezes que tinha ido ao juiz para que lhe ajudasse a obter mais recursos. Parker puxava os cordões e conseguia que o condado atribuísse mais dinheiro a umas buscas que sempre acabavam sem resultados. Possivelmente Parker se divertia muito olhando de fora enquanto a polícia se equivocava em toda sua análise. Sentiria um prazer doentio vendo Miranda procurar as mulheres que ele tinha cativas?

Não havia provas concretas de que Parker fosse o Açougueiro. Possivelmente o assassino tinha descoberto a cabana e, depois de ver que rara vez se usava, tinha-a ocupado sem que nada acontecesse. Também existia a possibilidade de que Parker a tivesse alugado ou emprestado a um amigo.

Merda. Tinha que ter deixado a maldita mensagem na caixa de mensagem de voz do Quinn. Eles teriam vigiado Parker, ou posto uma equipe a seguir o que acontecia a casa, ou teriam investigado mais em profundidade o passado do juiz.

Levava tanto tempo duvidando de si mesmo ao longo dessa semana que não tinha prestado atenção a sua intuição. E agora estava pagando o preço por isso.

Um leve ruído, o roce de algo, sobressaltou-o. Roedores? Um urso?

Não, o ruído não vinha de fora.

Não estava sozinho.

Nick ignorava como sabia, mas em seguida percebeu que alguém mais compartilhava com ele o ar da habitação. E logo o ouviu. Um leve sussurro.

O martelar que sentiu no crânio era tão forte que demorou um momento em entender as palavras.

—Quem é? Quem é?

Ele tentou falar, mas de sua boca só escapou um gemido.

—Quem é? —Era um sussurro de voz. Rouca. De mulher.

Ele se umedeceu os lábios.

—O xerife —disse, e o só esforço de falar lhe doeu.

—Quem?

Porra, mal conseguia pensar, e muito menos falar. Fez um esforço por tragar saliva.

—O xerife Thomas —disse, pronunciando cada palavra com grande dificuldade

—Xerife?

Nick se deu conta de que aquela pessoa não sussurrava. Tinha a voz enrouquecida, uma voz que recordou a seu irmão Steve quando nos anos do instituto tinha padecido uma laringite.

Ou uma garganta afônica de tanto gritar.

—Ash...lei? —Doeu-lhe articular essas duas sílabas, mas tinha que superá-lo. Estava seguro de que estava sofrendo o efeito de uma comoção. E que tinha algum problema com as pernas. Possivelmente também as tinha atadas, embora não sentia nada por debaixo da cintura. Tinha todo o corpo frio e intumescido.

Mas estava vivo. E estava decidido a seguir vivo. E também a manter com vida Ashley van Auden. Como fazê-lo era outra história, de tudo diferente. Não sabia onde estava, que hora era, nem como diabos sair daí.

—Sim —disse ela, com um fio de voz que em seguida se quebrou em um soluço. Estava tão perto que se Nick não estivesse amarrado, quase poderia tocá-la. Nos matará. Matará-nos. É ele. É o Açougueiro. Vai nos matar, como matou a todas essas...

—Shh.

Ashley repetia seu mantra uma e outra vez, até que a Nick brocou a cabeça. Tentou fazê-la calar, mas não pôde, assim procurou ignorá-la. Tampouco teve mais sorte.

—Ashley. Ashley. —Repetiu seu nome até que ao final a garota deixou de soluçar.

—O que? —perguntou, com um gemido.

—Temos que pensar em algo. Pensa. —Pensar? Porra, ele mal era capaz de somar dois mais dois.

—Não quero morrer —soluçou ela.

Ele tampouco queria morrer.

—Em algum momento a soltará.

—E depois me matará! Sei o que fez a Rebecca Douglas. Degolou-a. A ma... matou-a.

—Ashley, basta. —Nick sentiu que a náusea lhe chegava à garganta e, com o enjôo, sua mente perdia a lucidez. Respirou o mais fundo que pôde e exaltou lentamente. Respirar. Exaltar. Não podia voltar a perder os sentidos. Era muito perigoso para os dois.

—Xerife?

Pelo tom de preocupação na voz do Ashley, Nick pensou que teria desmaiado ou ficou inconsciente por um momento.

—Estou aqui.

—Não me respondeu.

—Sinto muito —disse ele, e exaltou—. Sabe onde está?

—Não. Tenho os olhos enfaixados. Não vejo nada.

—Viu alguém quando a seqüestraram?

—Não —disse ela, voltando a soluçar—. A ninguém. Meu Deus. E Jo. Não está aqui, não me respondeu. Está morta, não é? —Ashley começou a soluçar, histérica. Nick demorou vários minutos em acalmá-la. Não lhe serviria de nada Ashley saber que sua amiga estava em coma, assim mentiu.

—JoBeth ficará bem. Está no hospital, mas ficará bem.

—Graças a Deus, graças a Deus.

Saberia o Açougueiro que ele conhecia sua identidade? Certamente se sentia ameaçado e por isso o tinha atacado na cabana.

Se assim era, não havia nenhuma possibilidade de que o Açougueiro desse a Nick uma oportunidade de escapar. Se não encontrasse uma maneira de sair dali, suas horas estavam contadas.

—Aconteça o que acontecer, quando sair daqui, tem que correr. Não faça o que ele espera de você. Apaga seus rastros. Evita gritar ou inclusive respirar muito forte. Fica entre as árvores. Se fizer de noite e não puder seguir, se enterre sob a folhagem e se esconda. Mas, sobre tudo, corre tudo o que puder. —Nick tratou de compor em sua mente um mapa dos lugares onde o Açougueiro caçava às mulheres. O território ficava ao sul da interestadual e ao oeste da auto-estrada de Gallatin—. Dirija-se ao nordeste tudo o que possa. Ao final, em um dia ou dois, chegará ao caminho principal.

—Como sabe?

—Conheço seus territórios de caça.

—E o que passará com você?

—Ficarei contigo, se puder.

Ela não disse nada. Possivelmente soubesse quão maltratado estava. Ou possivelmente pensou que não o soltaria.

Passou um bom momento, e Nick pensou que Ashley dormiu.

—Tem-me feito mal —disse a garota. Sua voz era débil. Suplicante, quase infantil.

—Sei, pequena. Sinto muito. —E como sentia. O seqüestro de Ashley se devia, em parte, a seu fracasso. Não tinha sido capaz de proteger às mulheres de sua cidade do desequilibrado que as perseguia.

Isso lhe provocava uma dor quase pior que sua cabeça.

Estendido ali, sobre o chão duro e frio, Nick sabia que sua situação era grave. O Açougueiro voltaria antes que os encontrassem. Não importava a quantidade de gente que os buscasse, nunca conseguiriam cobrir todo o território.

Tinha que pensar, idear um plano para salvar Ashley e salvar a si mesmo.

Mas temia que já fosse muito tarde.

 

Miranda bateu na porta do escritório do professor Austin no porão das instalações do Traphagen Hall, na Universidade de Montana. Nada tinha mudado em quinze anos, da época em que ela estava matriculada em sua disciplina. As rochas eram os objetos de decoração mais importantes naquele escritório abarrotado de objetos. Uns mapas topográficos do oeste dos Estados Unidos cobriam as paredes, junto com gráficos desbotados com comparações de pedras e tipos de terra. Toda a sala cheirava a sujeira e papéis.

O professor Austin já era um homem velho quando Miranda ia a suas aulas, e não tinha mudado. Tinha o mesmo cabelo grisalho arrepiado, e precisava cortar um pouco a barba. Entretanto, em seus olhos de cor esmeralda apareceu um brilho de reconhecimento quando ela pigarreou para chamar sua atenção.

—Mas se não é Miranda Moore! —ficou parado, sem dar-se conta, ou sem lhe importar que um monte de papéis caísse ao chão e que alguns deslizassem sob a mesa. Não era nada de estranho que tivesse perdido os trabalhos de metade de curso nos tempos em que ela era aluna, quinze anos antes.

—Olá, professor —disse Miranda, enquanto ele a saudava com uma forte palmada nas costas e um amável sorriso.

— Tanto tempo passou que não se lembra de me chamar Glen?

—Sinto muito. —Desde o primeiro dia de aula, o professor Austin insistia em que todos o chamassem por seu nome de batismo. O problema era que realmente sua aparência era o de um professor, e Miranda sempre se sentiu incômoda chamando o de maneira tão informal. Possivelmente se seu nome fosse Archibald...

—O que a traz por aqui tão cedo?

—O assassinato de Rebecca Douglas.

—Pobre garota —disse o professor, com o semblante escurecido.

—A investigação tem descoberto algo estranho, e pensei que possivelmente pudesse nos ajudar.

—Eu? —O professor se sentou a sua mesa e mais papéis caíram ao chão. Com um gesto, convidou Miranda a sentar-se em uma cadeira.

Ela tirou uma caixa grande de livros da cadeira antes de fazê-lo.

—Enviaram uma amostra de terra ao laboratório do FBI em Quântico para que a examinem. É vermelha. Como o tijolo. A técnica do laboratório acredita que se trata de argila. A mim não me ocorreu nenhum lugar nesta área onde haja terra ou argila vermelha. Pensei que possivelmente você conhecesse algum lugar.

—Hmmm. —O professor Austin olhou mais à frente do ombro de Miranda, para a parede, perdido em suas reflexões —. Há um lugar em Three Forks ao largo do Missouri, embora eu não diria que é de cor tijolo. Terra vermelha. Hmm. —Voltou a pensar e, de repente, deu um salto que fez Miranda sobressaltar-se.

Dirigiu-se a estante repleta de livros, tirou um volume grosso e voltou para sua mesa. Assentindo e murmurando para si, folheou o livro e se deteve.

—A terra vermelha, especialmente a argila, é um produto da erosão muito comum nas formações de arenito do paleozóico médio.

Miranda voltou a sentir-se como uma aluna universitária.

—O que são formações do paleozóico médio?

—Você foi aprovada em minha disciplina, não? —perguntou, olhando-a com o cenho franzido.

—Sim, senhor. —Mas sua cabeça já não armazenava essa informação.

Ele sacudiu a cabeça e suspirou.

—As formações do paleozóico foram criadas pelos mares pouco profundos que cobriam a maior parte do oeste dos Estados Unidos, faz entre quinhentos e duzentos e cinqüenta milhões de anos, sobre tudo nos estados dos Quatro cantos, quer dizer, Colorado, Utah, Arizona e Novo o México, assim como uma boa parte de Nevada.

—E o que há do sudoeste de Montana?

—E bem, como eu disse, há argilas e terras finas ao longo de todo o rio Missouri. As cores e texturas variam, mas nada que pudesse considerar-se vermelho. Ainda assim — disse, e franziu o cenho—. Se vir a amostra, possivelmente possa lhes dizer algo mais.

—Obrigado, professor. Glen. —Miranda se levantou de seu assento—. Verei se posso lhe enviar a alguém com uma amostra, mas se trata de uma prova, e não sei quanto terão conservado no laboratório.

—Espero que você e o xerife Thomas agarrem esse homem. Faz muito tempo que têm aterrorizado às mulheres de Bozeman.

—Obrigado. —Miranda saiu com o coração acelerado. Tirou o celular e chamou Quinn.

—Peterson.

—Quinn, é Miranda. Acabo de falar com o professor Austin sobre a amostra de terra. Ele me disse que há uma pequena região no oeste de Montana onde poderia haver algo parecido. Também se encontra em Utah, Colorado, Arizona e Novo o México. Quer saber se pode dar uma olhada na amostra. Pode ser que nos dê mais informação.

—Chamarei Olivia e perguntarei se alguém pode levar uma amostra à universidade.

—Obrigado.

—Nick está contigo?

—Comigo? Não. Não o vi esta manhã.

—Tínhamos ficado de nos encontrar aqui faz meia hora, em seu escritório, e não está. Chamei em sua casa e também a seu celular, mas não responde.

—Nick não está acostumado a fazer isso —disse Miranda, franzindo o cenho.

—Espera um momento. —Miranda ouviu a voz apagada de Quinn que, ao cabo de um momento, voltou a falar—. O agente Booker tentou encontrá-lo, mas ninguém soube dele desde ontem a tarde, quando chamou para consultar suas mensagens.

—Passarei por sua casa. Possivelmente esteja doente — disse Miranda. Sentiu um mal-estar no ventre. Algo tinha acontecido.

—Tome cuidado —disse Quinn—. Booker e eu ligaremos a alguns lugares e averiguaremos quem falou com ele ontem a noite. Chame-me assim que o localize, ok?

— Farei isso. —Miranda desligou o celular e cruzou o campus para chegar a seu jipe.

Quinze minutos mais tarde se deteve frente a uma casa de estilo Vitoriano em uma rua tranqüila do centro de Bozeman. Sua caminhonete não estava na entrada.

Sentiu que lhe arrepiavam os cabelos da nuca. A casa se via vazia.

Desceu do jipe e se aproximou cautelosamente. Não sabia por que sentia tanta apreensão. Afinal, era amanhã em pleno centro de Bozeman. Rua abaixo, um velho regava a grama. Na esquina, ouviu um grupo de guris jogando a pega-pega; seus chiados e risadas enchiam o ar.

Mas Miranda tinha percebido a preocupação na voz do Quinn. Nick não se apresentou no escritório pela manhã.

Subiu pelas largas escadas que conduziam à porta principal e se deteve no alpendre. Ficou olhando o banco onde ela e Nick estavam acostumados a sentar-se a conversar durante esses anos de amizade. Recordou-lhe o que tinha perdido depois da separação. Antes que fossem amantes, Miranda nunca pensava duas vezes e parava em sua casa a comer uma pizza e tomar uma cerveja, ou simplesmente para conversar um momento. Mas quando deixaram de ver-se como casal, nunca voltou a sentir-se cômoda com a idéia de visitá-lo.

Sempre tinha pensado em Nick como seu melhor amigo. Entretanto, durante o último ano sua relação era sobre tudo de trabalho. Entristecia-a pensar nisso.

Tocou a campanhia e depois bateu na porta.

—Nick! É Miranda. Silêncio.

Voltou a chamar e olhou pela estreita janela junto à porta. Não observou movimento.

Desceu do alpendre e seguiu pelo lado da garagem até a parte de atrás. Tudo parecia estar em seu lugar. Nem janelas quebradas nem portas abertas.

Deu uma volta ao redor da casa e não observou nada estranho. Nick guardava uma chave no abrigo da parte de atrás da casa. Miranda a encontrou e abriu a porta traseira. O interior estava muito frio, como se a noite anterior a calefação não tivesse estado acesa.

Miranda, presa de certo nervosismo, desencapou sua pistola. Era uma tolice, pensou, mas era preferível ser tola que acabar morta.

A cozinha estava impecável: só um copo de plástico grande de um restaurante de comida rápida da vizinhança. Estava na beira do móvel e ela o agarrou com cuidado. Estava meio cheio. Nick tinha o balde do lixo debaixo da pia da cozinha. Miranda abriu a porta do armário. Em cima de tudo havia uma bolsa do mesmo restaurante. Agarrou-o e olhou o ticket da compra. A hora registrada eram 20h04min do dia anterior.

Devolveu o lixo a seu lugar, olhou a seu redor mas não viu nada mais que lhe parecesse desconjurado. Subiu e se deteve ante o quarto de banho. Por natureza, Nick era uma pessoa organizada. Cada coisa tinha seu lugar. Em um armário tinha uma caixa de pílulas com sete compartimentos, um para cada dia da semana. Nick acreditava que uma dose diária de vitaminas o mantinha são, e Miranda não recordava que jamais se ausentou do trabalho por enfermidade. Sempre tomava as drágeas pela manhã, justo depois de levantar-se, para não esquecer-se.

Miranda abriu o compartimento da Sexta-feira.

As drágeas ainda estavam ali.

Abriu outros. Possivelmente Nick já não era tão meticuloso como antes.

Os compartimentos do domingo à quinta-feira estavam vazios. Nick não tinha mudado seu costume.

Voltou para jipe e chamou Quinn.

—Nick não está em casa.

—Merda.

—Esteve em casa ontem à noite depois das oito, mas acredito que mais tarde voltou a sair. —Miranda explicou a Quinn do ticket do restaurante.

—Sabe no que andava ontem?

—Não, pensava que você sabia.

—Nem idéia.

—Onde está?

—No escritório do Nick.

—Vou em seguida. Tudo isto me cheira mal.

—A mim também. —Quinn parecia tão preocupado como a própria Miranda.

 

Quinn estava revisando a mesa de Nick, tentando averiguar onde tinha ido quando Sam Harris, o ajudante do xerife, entrou sem chamar.

Harris era um homem baixinho que caminhava muito erguido em um intento de parecer mais alto. Quinn tinha conhecido muitos homens como Harris entre os guardiões da lei; policiais que desfrutavam do poder que lhes dava vestir um uniforme.

—Agente Peterson —disse Harris, com um gesto da cabeça.

—No que posso lhe ajudar?

—Eu diria, melhor, no que eu posso ajudar você? Aparentemente, o xerife desapareceu e isso me deixa no comando. Certamente, me alegro de que o FBI esteja aqui para ajudar a nosso pequeno escritório.

—Terá que emitir uma ordem de busca para localizar Nick, se é que ainda não o fez. Pedi a dois agentes que lhe sigam o rastro para saber o que fez ontem. Sabemos que jantou em casa entre as oito e as nove. Chamou e deixou umas mensagens do telefone de sua casa. Entretanto, em algum momento voltou a sair e não retornou.

—Isso parece —disse Harris.

—Obrigado.

Quinn ia perguntar se a caminhonete do Nick tinha GPS, já que muitos departamentos de polícia tinham instalado o sistema em seus veículos, quando Harris o interrompeu.

—Tenho que informar à prefeita sobre a investigação. Não teve notícias do Nick depois da conferência de imprensa de ontem, e nos pediu que lhe entregássemos um relatório diário.

—Nick e eu decidimos que a prefeita, e também os meios de comunicação, devem estar informados sem que isso prejudique à segurança da investigação. Não preciso recordar que se trata de um caso muito delicado.

—Estou totalmente de acordo —disse Harris, com um tom que dava a entender que pensava justo o contrário—, mas a prefeita não está contente com a cobertura dos meios de comunicação. Estão a submetendo a um severo escrutínio, não só na imprensa local mas também nas cadeias de televisão nacionais.

—Estamos todos sob o olho da opinião pública —disse Quinn—. Deve-se à natureza de nossos assuntos.

—É verdade, é verdade —disse Harris, com um meio sorriso—. Mas você sabe que de onde as dão as tomam. A prefeita está sob pressão, todos estamos sob pressão.

Inclusive nas circunstâncias mais difíceis, Quinn estava acostumado a dirigir-se bem com as questões de política local. Mas este caso era pessoal. Primeiro, a experiência de Miranda e, agora, o desaparecimento de Nick.

— Entendo —disse Quinn, contendo-se—. Confio que fará chegar a informação pertinente à prefeita.

Harris ficou olhando.

—Me permita que lhe faça uma pergunta, agente Peterson. Deixando de lado sua amizade com o xerife Thomas, me diga: pode dizer sinceramente que fizeram tudo o que tinha que se fazer?

—Não penso ficar aqui emitindo julgamentos sobre os procedimentos quando têm duas pessoas desaparecidas —disse Quinn—. Posso assegurar que não detectei falha algum no procedimento do escritório do xerife do condado de Gallatin.

—Não somos um escritório grande. Não temos os recursos para dirigir simultaneamente dois casos de desaparecimento. Possivelmente o xerife simplesmente necessitava um pouco de tempo. Esteve submetido a muita pressão. —Harris tentava parecer pormenorizado, mas era evidente a antipatia latente em seu tom de voz.

Quinn ia responder quando Harris o interrompeu.

—Possivelmente chegou o momento de que intervenham mais homens —disse, com as mãos atrás das costas—. Já que o xerife não está em condições de solicitar a ajuda neste momento, eu o faria com muito prazer.

Era um comentário muito sutil para estar seguro, mas o tom do Harris fez Quinn entender claramente a insinuação de que Nick deveria ter solicitado mais ajuda ao FBI.

Respirou fundo antes de responder.

—Obrigado —disse, com aspecto diplomático—, mas já temos dois agentes que estão a caminho para colaborar nos interrogatórios. Chegarão esta noite. De fato, agora mesmo pensava me pôr a isso.

Miranda entrou apressada no escritório e perguntou, quase sem fôlego:

—Quinn, encontraram Nick?

Quase trombou com Sam Harris. Em seu rosto apareceu espontaneamente uma expressão de desagrado, mas soube ocultá-la.

—Sam —saudou.

—Miranda —disse ele, no mesmo tom formal, e depois olhou Quinn—. Com muito gosto falarei deste assunto com a prefeita em seu nome, agente Peterson —disse Harris, com gesto marcial.

—Que significa isso? —perguntou Miranda ao fechar a porta depois que o ajudante do xerife saísse.

—E eu que sei. Jogos de poder? —disse Quinn, mexendo o cabelo—. Quão último precisamos é que as ânsias de protagonismo de alguns sabotem nosso trabalho.

—Não se soube nada?

—Nada.

—E Sam, o que? Estava fazendo seu número de imbecil de sempre? —perguntou, entreabrindo os olhos.

—Mais ou menos. Harris tem razão em uma coisa.

—No que?

—Não temos recursos suficientes para lutar com dois casos de desaparecimento.

—Não diga isso. Podemos dirigi-los simultaneamente.

—Faremos o que pudermos, enquanto possamos. Mas a prioridade neste momento é Ashley van Auden. —O telefone na mesa do Nick emitiu um zumbido. Quinn o agarrou e, ao fim de um momento, desligou.

—Era Jeanne Price, do Registro de Propriedade. Pelo visto, Nick esteve ali cinco horas ontem pela tarde copiando mapas e registros da propriedade.

—A que esperamos? Vamos.

Três horas mais tarde, Quinn e Miranda se encontravam no Registro da Propriedade olhando os montes de mapas e registros que tinha consultado Nick.

Mas nenhum dos dois conseguia dar um sentido às milhares de páginas de informação. Quando Miranda perguntou a Jeanne Price pelas cópias concretas que solicitou Nick, inteirou-se de que ele mesmo as tinha feito.

—Acha que tinha uma pista e a estava seguindo? E que depois teve um acidente ou se meteu em alguma confusão? —Miranda não podia dissimular sua inquietação.

—Nick é muito preparado para sair sem apoio — disse Quinn, franzindo o cenho.

—O que? —perguntou Miranda.

—Ontem se sentia arrasado. Entre a imprensa e a falta de provas, e com os meios de comunicação nacionais ameaçando desembarcar na cidade... não sei. Não o imagino fazendo nada por conta própria, mas possivelmente ia seguindo uma pista difícil.

—Uma pista difícil. Deveria haver dito a alguém aonde ia! —Ela sempre estava preparada para sair correndo para onde fosse, e Nick insistia que cada vez que o fizesse o notificasse. Ao final, converteu-se em um costume. Por que então não tinha seguido suas próprias normas?

Suspirou e se mexeu no cabelo.

—Nem sequer sei por onde começar. —ficou olhando o documento que consultava—. Os registros de propriedade de algumas terras se remontam a vinte anos... mapas de todo o condado... seguro que lhe terá ocorrido algo, mas não consigo ver a conexão.

—Não sei —disse Quinn, quando seu celular começou a soar— Peterson. —Escutou durante vários minutos e depois acrescentou—: Perfeito. O veremos aí em uma hora.

-- Quem era? —perguntou Miranda, quando ele guardou o celular.

-- Olivia. Vem para aqui com o diretor do laboratório estatal para falar com seu professor. Receberam os resultados preliminares sobre a argila vermelha. Seu professor tinha razão. A origem se encontra nos estados dos Quatro Cantos e o analista se inclina por Utah. Olivia espera que possa dar uma olhada à amostra e os dados técnicos para definir a origem com mais precisão. Do Quântico chamaram um especialista do Departamento de Estudos Geológicos, embora isso demorará ainda um dia mais.

—E o que tem estes mapas e registros? —inquiriu Miranda, olhando o enorme monte de documentos. Quinn parecia frustrado e irritado.

—Não sei em que diabos estaria pensando Nick. Poderíamos passar todo o dia aqui procurando e não encontrar nada. E, francamente, sem algo concreto que nos permita continuar, não podemos seguir aqui perdendo tempo. —levantou-se —. São três da tarde e não parou para comer.

—Você tampouco —replicou Miranda. Não necessitava que ninguém cuidasse dela como se fosse sua babá, mas no fundo agradecia que Quinn se desse conta.

—Não me grunhe o estômago tão forte como a você.

—A mim o estômago não grunhe.

—Quanto aposta?

—Compremos algo de caminho ao campus —disse ela, que estava a ponto de começar a rir.

—Comida rápida? —disse ele, enrugando o nariz—. Se não tiver mais remédio.

—Não há mais remédio —confirmou ela, provocadora. Era tão agradável e se sentia tão a vontade estando ali de novo, conversando com Quinn. Embora a pressão em torno da investigação do Açougueiro, somada ao recente desaparecimento de Nick, bastava para mantê-los em um estado de tensão, Miranda se deu conta de que estavam cultivando uma agradável camaradagem. Como no passado.

Agora não queria que chegasse ao fim.

 

— Liv! —exclamou Miranda, no meio do pátio de Traphagen Hall.

Miranda abraçou com força sua amiga, Olivia St. Martin, embora não foi um abraço comprido. A Olivia não agradavam os abraços nem o contato físico amistoso, algo que Miranda nunca tinha entendido, mas que respeitava. Olivia sempre tinha sido uma mulher muito particular.

—Tem bom aspecto — disse Olivia, e recolheu uma mecha de seu cabelo curto atrás da orelha—. Tendo em conta que não dormiste muito —acrescentou, preocupada.

Miranda lançou um olhar a Quinn e franziu o cenho.

—Não acredite tudo o que lhe digam.

—Quinn não me disse nada. Eu a conheço —disse, e lhe tocou brandamente o braço —. Encontra-se bem? Sei que está passando por um mau momento.

Miranda respirou fundo e assentiu.

—Estou bem. De verdade. —Voltou a olhar discretamente Quinn, mas Olivia se deu conta.

—Você e Quinn arrumaram seus assuntos?

—Na realidade, não —disse Miranda, dando de ombros—. Mas as coisas vão um pouco melhor. Quinn foi um grande apoio. —Quinn era sempre sólido como uma rocha. Agora se sentia confundida ao cair na conta de que começava novamente a contar com ele. Não era que ele se convertesse em sua muleta, mas Miranda notava que se encontrava mais a vontade que irritada em sua presença.

Quando tinha ocorrido isso?

—Como vai você? —perguntou Miranda, a sua vez.

—Estou bem.

— Quando se celebra a próxima vista sobre a liberdade condicional?

Foi como se uma nuvem cruzasse pelo olhar da Olivia.

—Dentro de três semanas.

—Tão logo? Passaram menos de três anos da última sessão.

Olivia tinha declarado em várias ocasiões contra a liberdade condicional para o assassino de sua irmã. Felizmente, o jurado tinha atuado com a sensatez suficiente para não deixar em liberdade a esse maldito. Entretanto, cada vez que retornava a Califórnia para enfrentar esse maldito canalha e contar sua história, ficava como vazia. Miranda a admirava por sua perseverança e tinha sua amiga como modelo.

Se Olivia era capaz de estar sentada na mesma habitação com o homem que tinha violado e matado sua irmã, sem dúvida Miranda podia enfrentar o Açougueiro quando a polícia o detivesse. Entretanto, a idéia de ver seu agressor em pessoa, embora fosse atrás das grades, aterrorizava-a.

Quinn estava conversando com o diretor do laboratório estatal e agora se aproximou com ele.

—Miranda, apresento o doutor Eric Fields, do laboratório estatal.

—Muito prazer, senhorita Moore. Ouvi falar muito de você. —O doutor Fields era um homem pequeno e fibroso e usava óculos de aro prateado. Mal parecia ter idade suficiente para barbear-se.

Miranda deu meio passo atrás e baixou o olhar. Não lhe agradava ser uma celebridade, e menos ainda pelas razões que a tinham feito famosa.

Olivia rompeu o incômodo silêncio.

— O doutor Fields foi muito amável ao me facilitar pleno acesso e, certamente, tem um laboratório que funciona à perfeição. Ainda estamos analisando as provas. Ainda não conhecemos sua possível validez ante um tribunal, mas estamos trabalhando em um possível rastro digital.

—Temos rastros parciais encontrados em um medalhão de uma das vítimas anteriores — disse Quinn.

—Sim, também tenho que revisar esse relatório —disse Olivia—. Posso ficar todo o tempo que seja necessário. Mas acredito que esta terra lhes dará a melhor pista.

—Falemos com o professor —sugeriu Miranda, e se dirigiram a seu escritório.

Depois das apresentações, o professor Austin examinou a terra e leu as conclusões do relatório. Miranda esperava contendo a respiração. Seguro que chegavam a algo. Ele lhes diria exatamente de onde provinha essa terra ou argila.

—Está claro que não é de Montana —disse o professor, com total segurança—. Tampouco é do novo o México nem do Arizona. Atreveria-me a dizer, por minha experiência, que é de Utah. Ou, possivelmente, do oeste do Colorado.

Miranda fervia de emoção.

—Estupendo. Agora só temos que comprovar se um dos homens da lista viajou recentemente a Utah ou ao Colorado. Vamos.

Miranda se sentia de uma vez entusiasmada e apreensiva. Tinha chegado o momento! Agora contavam com uma pista de verdade. Algo tangível de sua busca no barraco do bosque onde tinha estado Rebecca. Por que estava tão nervosa?

—Antes que vá —disse Olivia—, o doutor Fields e eu analisamos as amostras das provas do assassinato das irmãs Croft. Encontrou-se a mesma argila vermelha no colchão. Uma pequena quantidade, embora as provas mostrem uma coincidência de oitenta e sete por cento. Enviei-a ao Quântico para que voltem a analisá-la, mas ao menos é algo concreto que se pode relacionar com o homicídio de Rebecca Douglas.

—De modo que procuramos alguém que esteve em Utah ou no Colorado recentemente e também há três anos? —inquiriu Miranda.

—Exatamente —disse Quinn—. Temos que voltar para o escritório. Se conseguirmos definir melhor a lista de nomes, poderemos começar hoje mesmo com os interrogatórios.

O professor Austin procurou entre os papéis de sua mesa e tirou um mapa dos Estados Unidos. Miranda ficou assombrada ante a quantidade de documentos que tinha ao alcance da mão e que não perdesse nenhum em meio de tanto desordem.

—Me permita que delimite a região. —Com uma caneta vermelha, marcou um território que incluía a maior parte de Utah e a região do noroeste de Colorado.

—Obrigado, professor —disse Quinn, agarrando o mapa.

—Glen. Meu nome é Glen.

—Obrigado, Glen. Isto nos ajudará enormemente. —Pegou o mapa e o guardou no bolso, justo quando soava seu celular.

—Perdão —disse, e se afastou uns metros.

Miranda escutava pela metade Olivia e o doutor Fields enquanto observava que a expressão de Quinn se endurecia. Este desligou o celular com um gesto seco e cruzou um olhar com ela.

—Encontraram a caminhonete do Nick —disse, tentando conter a emoção.

—E Nick? —perguntou Miranda, que já conhecia a resposta.

—A ele ainda não.

 

O doutor Eric Fields se ofereceu para colaborar com o recolhimento de provas na cena do crime, então ele e Olivia seguiram Quinn e Miranda até a estrada onde tinham encontrado o veículo do Nick. Quando chegaram, já havia uma dúzia de carros do escritório do xerife estacionados a beira do caminho. Dois agentes dirigiam o escasso tráfico e ao redor da caminhonete do Nick tinham desdobrado a fita policial.

Quinn duvidava que Nick estivesse ainda com vida, mas não disse a Miranda.

Perguntava-se o que andaria procurando. Acaso investigava uma intuição? Por que tinha saído sem apoio ou sem deixar que ao menos alguém soubesse aonde ia? Ou é que possivelmente se encontrou no lugar errado no momento errado?

Sam Harris ladrava ordens a seus subordinados quando viu que Quinn e Miranda desciam do jipe.

—Tenho tudo sob controle —disse o ajudante do xerife ao vê-los chegar.

—Estou seguro que sim —disse Quinn.

O doutor Fields se aproximou.

—Sam, me alegro de voltar a vê-lo —disse, e estendeu a mão.

—Doutor Fields. Não sabia que tinha vindo. —Harris parecia um pouco nervoso e impressionado pela presença do diretor do laboratório.

—Acompanhei à doutora St. Martin por outro caso quando nos inteiramos do desaparecimento do xerife Thomas vim para ver se posso ajudar em algo. Voltaremos para Helena assim que terminemos aqui e me encarregarei de acelerar a análise das provas. Acredita que isto tem algo que ver com a investigação do Açougueiro?

A Quinn não agradava muito as concessões que Fields fazia à vaidade de Harris, mas então cruzou um olhar com Fields. O doutor o olhou com um leve sorriso e Quinn teve que reconhecer seus dotes de diplomático. Em seguida deduziu que Fields era mais velho, e mais sábio, pelo que aparentava.

—Neste momento, não queremos nos precipitar nas conclusões, doutor Fields —disse Harris —. Pode ser que o xerife Thomas estivesse investigando alguma pista do caso van Auden. Ainda estamos reconstruindo seu itinerário durante o dia de ontem.

—Posso dar uma olhada a seu veículo?

—É claro que sim. Agora mesmo tenho os técnicos do laboratório trabalhando nisso. Estou seguro de que estarão agradecidos de que você possa fiscalizá-los. —Harris acompanhou Fields até a caminhonete do Nick.

Quinn não pôde evitar um sorriso.

—Não pensei que Fields pudesse manipular Harris dessa maneira. Parece tão... Doogie Hauser.

Olivia riu.

—Eric tem um currículo impressionante e, entre outras coisas, dirigiu o laboratório de criminologia de Oklahoma City. Trabalhou em estreita colaboração com nossa gente depois do atentado de mil novecentos e noventa e cinco e se sente muito afortunado de contar com nossa ajuda em seu laboratório. Não é habitual que nos acolham com tanta amabilidade.

—Harris é como uma pedra no sapato — disse Quinn.

—Quando Nick o nomeou primeiro ajudante, disse-lhe que teria problemas — acrescentou Miranda—. Harris foi seu rival nas eleições.

—Isso explica tudo.

Os olhos de Miranda se encheram de lágrimas que não chegou a derramar quando olhou pelo caminho para a caminhonete do Nick.

—Quinn, Nick está morto, não?

—Isso não sabemos —disse Quinn. Embargava-o a tristeza ao vê-la nesse estado. Tocou-lhe o braço —. Ainda não sabemos grande coisa. Pensa positivo.

Ela o olhou, mordendo o lábio.

—Sinto-me tão impotente!

—Pois não tem por que. Temos dois agentes revisando os arquivos neste mesmo momento, nos apoiando na informação que nos deu o professor Austin. Uma lista que ficará reduzida a uns quantos nomes. E dois agentes mais que chegam esta noite. Mais cedo que tarde, teremos notícias. Estamo-nos aproximando, Miranda. Vamos apanhar este canalha. Pressinto-o.

—Antes que mate Ashley?

—Meu Deus, isso espero.

Vinte minutos mais tarde, o doutor Fields chamou Quinn. Aproximaram-se do carro de Fields.

—Encontraram algo? —perguntou Quinn.

O diretor do laboratório deu um golpezinho à bolsa que levava.

—Vou encarregar-me das provas. Limparam o interior a fundo.

—Não há impressões digitais?

—No volante não há impressões de Nick nem de ninguém mais. Nem no painel nem nas portas. Harris disse que tinha uma testemunha, um caminhoneiro, o homem que informou sobre o veículo abandonado.

—Testemunha? —Quinn estava que expelia fumaça. Harris estava retendo informação valiosa. Obcecava-se nessa atitude, Quinn estava preparado para assumir a autoridade e deter esse imbecil por obstrução à justiça.

—A testemunha não viu ninguém dentro nem ao redor do carro. Vinha por este caminho à uma e meia desta tarde, seguiu em direção sul pela cento e noventa e um e se deteve para comer e colocar gasolina, a uns cinco quilômetros daqui. Tem tudo registrado em seu livro de viagem. Saiu do restaurante às três e a caminhonete do xerife estava aqui. Diz que quase se chocou com ela depois de fazer a curva. Chamou em seguida para avisar.

—Isso nos dá uma referência no tempo. Bem. —Quinn tentava dar um sentido a essa informação—. Alguém deixou aqui o carro do Nick. Por que? Porque queria que o encontrassem. Poderiam tê-lo deixado em um milhão de lugares para que ninguém o visse em dias, ou quem sabe quando. Assim fez para nos distrair —disse, respondendo a sua própria pergunta.

—Me parece razoável —disse Fields —. Uma coisa mais. Apesar de que limparam o carro, pude recolher umas amostras de terra do acanalado do pedal de freio. A primeira vista, parece o mesmo tipo de argila que encontramos no assassinato de Douglas. É uma amostra pequena, menos de um grama. Não posso dizer com segurança se são idênticas até fazer umas provas, mas acredito que por cautela deveríamos supor que provém do mesmo lugar.

— O qual significa que o Açougueiro tem Nick.

Olivia e o doutor Fields deixaram a cena junto ao caminho para voltar para Helena. Quinn e Miranda voltaram para o escritório do xerife e, quando chegaram, o agente Booker lhes pediu que fossem vê-lo.

—Temos quatro possíveis suspeitos —disse; seus olhos claros saltavam de um lado a outro, emocionado —. Não posso acreditar que de todos esses nomes tenhamos chegado a isto tão rápido.

—Terá que seguir o rastro das provas —disse Quinn—. Todos os detalhes servem. —Agarrou a lista de mãos do Booker, sabendo que Miranda olhava por cima de seu ombro.

—O primeiro homem —disse Booker— ainda trabalha no campus. Mitch Groggins. É cozinheiro na cafeteria. Leva dezessete anos ali. Tem quarenta anos. Sua mãe vive em Green River, Utah.

Quinn assentiu, com todo o corpo vibrando de espera. Essa era a lista. O assassino era um desses nomes. Intuía-o.

—Falastes com sua mãe? Ou averiguou se esteve de visita recentemente?

Booker negou com a cabeça.

—Estivemos ocupados reduzindo a lista. Não tivemos tempo. Sinto muito...

Quinn elevou uma mão.

—Fizeram o correto —disse, e anotou algo em sua caderneta.

—O próximo na lista se formou um ano depois que Penny Thompson desapareceu. Só fazia uma disciplina com ela, de biologia avançada, e não vivia em uma das residências universitárias. Chama-se David Larsen. Abandonou a cidade depois de formar-se e fez uma pós-graduação em biologia da fauna selvagem na Universidade de Denver. Olhei seu histórico e está na lista de nomes da universidade.

Denver... aquilo estava no centro de Colorado. Quinn consultou o mapa que lhes tinha deixado o professor Austin. Denver ficava fora da região. Ainda assim, era provável que um biólogo especializado em fauna selvagem realizasse parte de seu trabalho ao ar livre. Justificava-se um seguimento para averiguar se fazia trabalho de campo.

—Que idade tem? —perguntou Quinn, procurando as folhas de dados na pasta elaborada por Booker.

—Trinta e sete.

—Ok. O seguinte?

—Bryce Younger. Trinta e cinco anos. Estava no primeiro curso quando desapareceu Penny. Viviam no mesmo edifício do campus, no North Hedges. A Universidade de Montana tinha dormitórios mistos; sabe, os meninos em um andar, as garotas em outro.

—Sei —disse Quinn.

—Assim que ele estava um andar abaixo de Penny. Conheciam-se. Seguiam uma disciplina juntos. E depois, olhe isto, é originário de Utah. Voltou ali depois de formar-se e trabalha na construção. Não está casado, não tem filhos.

Na construção. Significava que estaria em boa forma, capaz de neutralizar fisicamente uma mulher.

—Há algo que indique que tenha vindo a Montana recentemente?

—Sua empresa de construção é muito grande, têm projetos por todo o oeste dos Estados Unidos, entre eles a construção do novo edifício de ciências, no Missouri.

A Universidade de Montana no Missouri ficava a umas duas horas ao noroeste de Bozeman.

—O último nome da lista tem quarenta e cinco anos; é um pouco mais velho que os outros. Brad Palmer. Trabalhava como auxiliar em uma das disciplinas de Penny e partiu pouco depois que ela desaparecesse. Tinham saído juntos. Tem pinta de jogador de rugby. Pelo visto, conseguiu uma bolsa esportiva para jogar em Stanford, mas lesou o joelho. Graduou-se, trabalhou de treinador na equipe de um instituto. Veio aqui para fazer uma licenciatura em engenharia mecânica. Segundo o expediente, interrogaram-no várias vezes, mas não puderam acusá-lo de nada.

—Mas, olhe isto —acrescentou Booker—. Vive em Grand Junction, Colorado.

Quinn olhou seu mapa. Aí estava, Grand Junction, justo na linha desenhada pelo professor Austin.

Miranda escutava como Quinn assumia o comando. Tinha que reconhecer que sabia fazê-lo.

Olhou as fotos dos quatro homens. Qualquer deles podia ser o Açougueiro. Sentiu que lhe punha a pele arrepiada.

Ficou sentada em um canto, absorvendo as ordens de Quinn em lugar de escutá-las. Chamou os dois agentes que esperavam essa noite e os desviou para Colorado. Primeiro a Grand Junction, para comprovar o ex-noivo, e depois a Denver, a investigar ao biólogo.

Quinn também chamou à polícia do St. George; informou-lhes da investigação em curso e lhes pediu que averiguassem algo sobre Bryce Younger. Mandou Booker e Zachary ao Missouri a investigar o proprietário da empresa de construção e para saber se Younger tinha viajado a Montana nas últimas três semanas. Quinn não deixava o telefone, enquanto despachava os agentes e se preocupava em mimar a vaidade do Sam Harris, tudo de uma vez.

Miranda percebia todo aquilo da periferia. Concentrou-se nas fotos da universidade dos quatro homens. Imaginou, um após o outro, disparando em Sharon pelas costas. Não podia tirar da cabeça a imagem de cada um deles atando-a, violando-a. E depois a alimentando com pão e água, como se fosse um pássaro ferido.

Não tinha querido voltar para essa lembrança mas, na realidade, já estava nela. Tentou subtrair à dor mas, uma vez rompida as barreiras, esta a arrasava com toda sua força.

No fundo, queria voltar para casa e deixar Quinn fazer seu trabalho. O que faria ela em meio de tudo aquilo? Trabalhava para o escritório do xerife, mas não era policial. Procurava pessoas perdidas. Às vezes as encontrava. Mas nunca esqueceria todas as mulheres que não tinha encontrado, ou às que tinha descoberto muito tarde.

Agora, embora corresse a ocultar-se na comodidade de suas mantas, o Açougueiro seguiria rondando. Ashley van Auden seguiria atada ao chão, padecendo frio e dolorida, segura de que ia morrer e de que não importava a ninguém, depois de chegar à conclusão de que ninguém a salvaria. Nick seguiria desaparecido. Estaria morto? Por favor, não.

Mas como podia estar vivo? Para que o manteria com vida o Açougueiro? Não o faria. Mataria-o e abandonaria seu corpo. Pode ser que não o encontrassem até muito depois de desmascarar esse assassino.

Sempre se tinha perguntado se seria capaz de enfrentar-se ao homem que a tinha atacado. Depois de todos esses anos, dos pesadelos e os sacrifícios, possivelmente finalmente estavam a ponto de lhe jogar a luva.

—Vamos —disse Quinn a Miranda.

Ela elevou o olhar. Não tinha se dado conta de que a sala havia esvaziado nem de que Quinn estava ante ela em atitude de espera.

— Aonde?

—À universidade. A falar com o Mitch Groggins. —Quinn olhou seu relógio —. Acabo de falar com o encarregado da cafeteria. Groggins está de volta até as nove da noite. Deveríamos poder falar com ele.

—Eu? —perguntou ela, piscando. Acaso estava pedindo que o acompanhasse? Que se aproximasse poucos metros do homem que podia ser o Açougueiro?

Quinn ficou olhando. Seu rosto era inexpressivo, mas seus olhos lhe perguntavam: «Não prestou atenção nos últimos dez minutos?»

—Suponho que estava distraída. Não sei do que serviria.

Miranda queria ir, queria desesperadamente enfrentar os quatro homens e ouvi-los falar. Fechar os olhos e escutar a cadência de suas vozes. Saberia quem era o Açougueiro porque ouvia sua voz em seus pesadelos.

Possivelmente tinha chegado o momento. Se Mitch Groggins era o Açougueiro, teriam-no entre grades hoje mesmo. Por que vacilava?

Quinn se sentou a seu lado e lhe agarrou as mãos. Estavam sozinhos. Todos outros partiram a cumprir com as tarefas atribuídas. Miranda não queria sentir-se tão inútil, tão assustada, mas não podia evitar.

—Está tremendo —disse Quinn, com voz fraca.

—O que acontecerá se for Groggins? Eu... —disse, e guardou silêncio—. Possivelmente você tivesse razão.

—Perdão?

—A respeito de mim. Não estou feita para trabalhar no FBI. Não sei como poderei enfrentá-lo sem me pôr a gritar ou sem tentar lhe arrancar os olhos. Sempre tinha pensado que quando me inteirasse de quem era o Açougueiro, quando estivesse entre as grades, poderia me pôr diante e lhe cuspir na cara, dizer que iriam injetar veneno nele e que morreria e iria ao inferno. E que, de algum jeito, isso me faria sentir inteira de novo.

—Miranda, eu...

—Mas —interrompeu ela, porque não queria ouvir desculpas nem mentiras piedosas que a aliviassem—, agora que de verdade estamos perto, agora que acredito pela primeira vez em doze anos que o vamos deter, não sei se poderei olhá-lo nos olhos depois do que me fez. — A voz lhe quebrou e se separou de Quinn—. Fez bem em não deixar que me aceitassem na Academia.

Quinn lhe agarrou o queixo, obrigou-a a olhá-lo. Ela tentou conter as lágrimas, esperando ver nele um olhar de já lhe havia isso dito. Mas, pelo contrário, o que tinha era a mandíbula apertada e seu olhar era de raiva.

— É capaz de fazer qualquer coisa que se proponha, Miranda. Nunca duvidei de sua força nem de sua habilidade. Teria sido uma excelente agente do FBI. Só que nesse momento pensei que queria sê-lo por motivos errados. Que nunca teria se contentado se a destinassem a Florida nem a trabalhar na investigação de ataques de bancos ou nos casos de corrupção política em Washington D.C. Pensava que só se sentiria satisfeita se fosse uma agente permanente aqui, em Montana, trabalhando nesta investigação.

»Queria que esperasse um ano para que pensasse seriamente no que necessitava em sua carreira. Estava tão convencida de que poderia lidar com o Açougueiro assim que tivesse o distintivo, que todas suas decisões partiam dele, não de você. Eu estava muito orgulhoso do que tinha conseguido na Academia. E você também deveria estar orgulhosa. Não só foi uma aluna excepcional ali, mas também foi um pilar fundamental do escritório do xerife aqui.

—Tudo o que tenho feito, tudo aquilo em que me converti, foi por causa dele. Não sei quem sou. —Miranda tentou virar-se, mas Quinn não a deixou.

Nunca deixei que te amar.

Ela não merecia estar com Quinn. Levava mais de dez anos culpando-o do acontecido na Academia, quando o único que tinha que fazer era olhar-se em um espelho para ver a verdadeira culpada.

Os olhos do Quinn se encheram de emoção.

—Sei muito bem quem é. E nunca admirei ninguém tanto como a você..

—Eu não...

—Temos que ir. Você pode fazê-lo. Eu estarei ali contigo. Não deixarei que jamais volte a te fazer dano.

Miranda se deu conta de que assentia. Não sabia se podia acreditar nele, mas ele tinha fé nela.

Prometeu a si mesma que não o decepcionaria. Nem tampouco a si mesma.

 

Mitch Groggins não era o Açougueiro.

Embora fosse de uma estatura aproximada de seu agressor, que Miranda tinha calculado vagamente entre um metro oitenta e um metro oitenta e oito, dado que era comum na metade dos homens maiores de dezoito anos, Groggins era um homem magro. E não tinha a mesma constituição física.

Entretanto, tinham passado doze anos desde que ela visse sua silhueta.

Assim que escutou sua voz, um tom agudo e nasal, soube além de toda suspeita que não era o Açougueiro. Não soube se sentiu alívio ou medo.

Por outro lado, tinha-o conseguido. Enfrentou um suspeito e não tinha lhe gritado nem arrancado os olhos. Estava aterrorizada, mas se plantou ante ele e se sentiu mais forte por isso, embora Groggins fosse inocente.

Quinn estava preocupado por Miranda enquanto conduzia seu jipe de volta à hospedaria. Não precisava que lhe dissesse que estava cansada, física e emocionalmente. Depois de haver-se preparado para enfrentar Groggins como se fosse o Açougueiro, e depois descobrir que não era, Miranda se sentia vazia. Quinn desejava ajudá-la a recompor-se, estreitá-la em seus braços, lhe ajudar a encontrar sua integridade.

Ele sabia que a valentia não a tinha abandonado. Tinha a esperança de que ela também se desse conta. Conhecer Groggins era o primeiro passo.

A polícia do St. George, Utah, chamou o Quinn a seu celular quando estavam a meio caminho da hospedaria. Younger, o dono da empresa de construção, mostrou-se beligerante. Entretanto, o fato de que estivesse em Utah nesse momento o colocava no final da lista, se é que não o descartava de todo. Declarou que estava em seu escritório todo o dia e a polícia local se encarregaria de comprovar seu álibi.

A única maneira de que Younger pudesse voltar para Utah de Montana depois que encontrassem a caminhonete do Nick era voando. Quinn chamou o FBI e encarregou alguém que procurasse nos vôos com o destino ou saída de Las Vegas, o aeroporto mais próximo, ao St. George, e que fizesse o mesmo nos pequenos aeroportos locais.

Voltou a chamar Colleen Thorne, sua colega de trabalho ocasional, que já estava em Grand Junction para ir ver Palmer, o noivo de Penny Thompson no momento de seu desaparecimento.

—Agora Palmer encabeça a lista —disse, quando Colleen respondeu à chamada. Contou-lhe o do Groggins e Younger—. Procura agir com cautela.

—Farei isso, mas não acha que se for o Açougueiro não estará em casa?

—Grand Junction não fica muito longe de Bozeman. Umas dez horas, possivelmente. Haverá retornado para não levantar suspeitas. Mas se não estar, poremos uma ordem de busca para interrogá-lo.

—Contarei-te o que acontece. Estamos a ponto de chegar a sua casa. Também falei com o reitor da Universidade de Denver —disse.

—E?

—Está muito disposto a dar uma mão. Entrará em contato com o diretor do departamento de biologia da fauna selvagem para averiguar em que projetos Larsen trabalha. Certamente falaremos com o diretor e com o Larsen amanhã pela manhã. Era tarde, assim que nos custou um pouco falar com eles. Mas tenho o endereço de Larsen, que tem um pequeno apartamento perto da universidade, e uma foto atualizada de sua carteira de empregado. Quer que lhe mande isso?

—Agora?

—Tenho-o em meu Blackberry.

Quinn sorriu e sacudiu a cabeça.

—Há, tecnologia de ponta. Claro, manda via email. Baixarei assim que chegue à hospedaria.

Desligou e dobrou pelo caminho da entrada da hospedaria. Ao olhar de esguelha, pareceu-lhe que Miranda estava dormindo, embora soubesse que não de tudo.

O que havia dito no escritório do xerife era sério, mas sabia que não acreditava. Na realidade, não podia culpá-la. Miranda levava dez anos refletindo sobre as piores fantasias por que Quinn fez o que fez. Ele tentou explicar-lhe então mas deveria ter perseverado. Amava-a, e não deveria ter renunciado a ela nem pensado que encontraria a razão por si só.

Ela teve medo, e estava preocupada e zangada. Embora tivesse visto a verdade naquele momento, era muito teimosa para reconhecê-la.

Entretanto, parte de sua força residia nessa tenacidade. Sua inquebrável determinação lhe ajudava a sobreviver. Era a base de seu caráter, a motivação necessária para seguir adiante quando tinha quase tudo contra.

Fascinava-lhe esse traço dela.

Ao mesmo tempo, Miranda era uma mulher insegura no que se referia a seus próprios pontos fortes e seus temores, e também, quanto a que o medo ganhasse a partida. Como convencê-la de que saberia perseverar? Como lhe explicar que ser um agente do FBI não anularia seu medo?

Quinn se deteve na entrada e tirou a chave do contato.

—Miranda?

—Sim? —perguntou com voz lenta.

—Ouviste minha conversação com o Colleen?

—Sim.

—Quer que falemos disso? Tem alguma pergunta?

—Nenhuma pergunta. —Miranda calou e abriu os olhos —. Espero que seja um deles, Quinn. Se não, teremos voltado ao começo.

—É um deles.

—É a voz da experiência que fala? —perguntou ela, com uma ameaça de sorriso.

—Não, é minha intuição. Escuta a sua.

—De acordo —disse ela, e foi abrir a porta.

—Deixa que a acompanhe até sua cabana —disse ele.

Ela assentiu e o beijou brandamente na face.

—Obrigado.

 

Santo Deus, quando acabaria aquilo?

Muito tempo depois que o sol levasse o pouco calor que projetava sobre esse barraco escuro e úmido e tivesse passado à noite. Muito depois de que o primeiro uivo de um coiote cortasse a profunda quietude. Muito depois de que Ashley deixasse de chorar em seu sonho, Nick permanecia acordado, esperando.

O Açougueiro voltaria. E ele nada podia fazer para proteger Ashley.

Nunca teria imaginado que a noite pudesse ser tão insuportável.

Cada vez que tentava afrouxar as cordas das mãos, estas se esticavam mais e puxavam dos pés, aos quais estavam atadas. Nick estava esmagado contra a parede, e Ashley seguia no centro da pequena habitação. Por fim dormia, por fim tinha um pouco de paz depois de um dia de angústias que não cessavam.

Quando clareou um pouco a cabeça, Nick pediu o Ashley que se arrastasse até ele e tentasse lhe desfazer os nós. Mas ela estava acorrentada ao chão e não podia mover-se. E cada vez que ele tentava aproximar-se, as ataduras se apertavam.

Nick tentava lhe assegurar que encontrariam uma maneira de sair. Queria convencê-la de que seus homens e o FBI estavam a ponto de descobrir a identidade do assassino.

Mas como saberiam onde olhar? Nick não sabia quem era o Açougueiro, só que rondava pela propriedade dos Parker. Podia ser um amigo, um inquilino ou um empregado de Richard Parker. Ou, possivelmente, um intruso. Ou o próprio Richard Parker.

Seguiria Quinn seus rastros? Veria o que ele tinha visto? Não era muito provável. Enquanto subia para as terras do Parker, ele mesmo acreditava que se lançou atrás uma pista falsa. O fato de ter nascido e crescido no sudoeste de Montana lhe permitia entender algumas coisas sobre as terras e os registros de propriedade, mas mais graças à perspectiva da história e da experiência que ao seguimento de provas sólidas.

Saber que tinha boa intuição não o fazia sentir-se melhor. Ia morrer. E Ashley teria que suportar os horríveis vexames, e depois seria caçada e degolada.

Tinha que encontrar uma maneira de sair daí.

As criaturas da noite de repente se calaram, como se de repente percebessem a presença de um predador maior e perigoso. Nick aguçou os ouvidos. Alguém se aproximava do barraco.

Ao cabo de um momento, girou-se a corrente da porta e ressonaram os elos. Nick sentiu que Ashley despertava de repente.

—Não —gemeu—. Outra vez, não.

—Tranqüila —disse ele, com voz rouca.

—Não, tranqüila, não! Não posso estar tranqüila!

No barraco fazia um frio penetrante, mas quando a porta se abriu e o vento da noite chegou até ele como um manto gélido, estremeceu. Pela primeira vez, deu-se conta do gelada que devia estar Ashley.

A porta se fechou. O Açougueiro não disse uma palavra.

Nick ouviu o claquete de algo metálico, e Ashley lançou um grito de dor.

—Basta! Não lhe faça mal!

Nick falava com o violador enquanto tentava escapar de suas cordas. Ashley não parava de gritar, e logo começou a soluçar, até que um grito horrível rasgou o silêncio da noite.

O violador falava, tal como havia dito Miranda. Alguma palavra solta... minha, para sempre..., com grunhidos e o ruído de um grande esforço.

Saltaram lágrimas aos olhos de Nick. De puro ódio. Raiva. Impotência. Ouviu o entrechocar das carnes nuas enquanto o Açougueiro violava Ashley e usava algo metálico para cravá-la. Seus seios.

Ele tinha visto as cicatrizes de Miranda. Agora sabia como lhe tinha infligido as feridas.

Como tinha sobrevivido Miranda a uma tortura tão brutal? Para logo converter-se na mulher forte e valente que era? A atadura que não o deixava ver tinha caído. Entendeu que Miranda era mais que uma vítima, mais que uma sobrevivente.

Era a vencedora.

Ashley voltou a gritar e a soluçar. O silêncio quase absoluto do Açougueiro era mais desconcertante que se o tivesse ouvido gritar obscenidades. Como se ao guardar silêncio queria demonstrar algo a si mesmo.

Nick não soube quanto tempo o Açougueiro seguiu torturando Ashley. Era como se não percebesse a presença dele. Ignorou todas suas súplicas, maldições e acusações. Ao final, saiu. E fechou a porta com a corrente. Ashley permanecia em silêncio.

A teria matado?

Não, não faria isso. Necessitava-a para a caça. Possivelmente tivesse desmaiado. Escutou agüentando o fôlego até que teve a segurança de que respirava.

Nick queria consolar à garota, mas não sabia o que dizer. O que podia dizer ele para apagar a dor e a humilhação do que Ashley acabava de viver?

Decidiu preparar-se mentalmente para a fuga. Possivelmente o Açougueiro visse como um desafio caçar o xerife. Nick tinha que idear algum tipo de manipulação psicológica para convencê-lo de que o soltasse.

Dispara em mulheres jovens pelas costas. Não é bastante bom para caçar um homem?

As mulheres são fáceis. Choram e tropeçam e lhe suplicam misericórdia. O que tem de esportivo nisso? Se me soltar, não poderá me alcançar. Assim veremos se está apto.

Se pudesse provocar o Açougueiro para que se decidisse a caçá-lo, possivelmente desse a Ashley uma verdadeira oportunidade para escapar. Tinha que convencê-la para que corresse na direção contrária.

E que não olhasse atrás.

 

A Puta o advertiu que não usasse mais a cabana em caso de que o policial tivesse contado a alguém aonde se dirigia. A Puta acreditava que seguia mandando.

Não se importava em dormir ao ar livre. Tinha um saco de dormir para baixas temperaturas, uma manta térmica e café quente que tinha comprado em um posto de gasolina depois de deixar sua garota.

Era difícil concentrar-se nela com esse maldito policial ao lado que não calava. Pensou em matá-lo e acabar de uma vez... Igual, ao final o mataria. Embora a idéia de caçar um policial o entusiasmasse. Seria uma presa difícil. Inclusive poderia tentar atacá-lo.

Mas o policial perderia, certamente.

Estou na melhor forma possível.

Ficou a refletir sobre como atar alguns cabos soltos. A Puta disse que não podia ter Miranda Moore. Isso mudaria. A Puta já não mandava.

Mataria a que conseguiu escapar. Que duro tinha sido. Perseguia-o até em seus sonhos. Ali onde via sua foto, havia um pesadelo em floração. Ele não recordava todo o pesadelo, só que despertava empapado em suor, ainda a viva imagem dela lhe cortando o coração de um talho para depois devorá-lo, enquanto ele olhava.

E então se transformava em sua mãe.

Deu-se conta de que lutava contra seu saco de dormir. Obrigou-se a relaxar. Não pense nela. Ela estava morta, acabada. Isso estava bem. Por que teria que pensar em sua mãe?

Era Miranda. Ela era a culpada de que voltassem as más lembranças. A que escapou.

A Puta não deixaria que a matasse, mas já não importava. Se insistisse, também lhe cortaria o pescoço.

Possivelmente o fizesse de qualquer maneira.

 

Ficaram sentados balançando-se na poltrona do alpendre, tomando uma taça de vinho, olhando as sombras e escutando os ruídos da noite. Era quase como antes. Antes que ela partisse ao Quântico e renunciasse a seu sonho.

Tinha sido realmente seu sonho? Ou é que fugia de algo?

Miranda estava convencida de que converter-se em agente ativa e trabalhar em trabalhos policiais (concretamente, tratava-se de converter-se em agente do FBI), daria-lhe a força que necessitava para vencer seus demônios. Acreditava que se tinha o distintivo, teria o valor. E que seus pesadelos se desvaneceriam.

Semanas depois do seqüestro, temia que o Açougueiro viesse procurá-la. Que a matasse enquanto dormia. Que voltasse a levá-la a esse lugar perdido e a persegui-la para caçá-la como uma besta. Estava acostumado a despertar com um grito afogado na garganta e dando patadas como se corresse.

Esse pesadelo se desvaneceu, mas outros o substituíram. Chamava mulheres que tinham desaparecido. Gritava até que não ficava voz e sentia os pés cansados. Caía em uma tumba sem fundo. Caía e caía... até que despertava banhada em um suor frio.

Não era sua segurança física o que a preocupava, e sim seu estado mental. Enquanto o Açougueiro seguisse acossando às mulheres, apropriaria-se de seus sonhos.

—O que acontecerá se o Açougueiro não for Palmer nem Larsen? —perguntou a Quinn.

—Teremos que ampliar a busca. Caminhoneiros, viajantes de comércio, ou possivelmente passamos por cima de alguém da lista da universidade. Revisaremos cada interrogatório, cada nota, voltaremos a interrogar às pessoas. Olivia está trabalhando muito a fundo com essas provas, fixaram-no como prioridade. Se houver restos de DNA em uma pedra, ela os encontrará.

—Mas necessitamos o DNA de um suspeito para compará-lo.

—Compreendo o duro que será tudo isto para você.

—Sinto que agora mesmo deveria estar lá, no bosque. Procurando Ashley. E Nick.

Os olhos de Miranda ardiam e lhe doía a cabeça de tanto olhar mapas e registros de propriedade, tentando desentranhar o que tinha descoberto Nick e onde tinha ido.

—Escuta, não quero que tenha ilusões com a sorte de Nick —disse Quinn, com voz tremula. Estava tão preocupado pelo desaparecimento do Nick como ela.

—Não posso deixar de pensar que está vivo. Se não, por que o Açougueiro deixaria abandonado o carro? Se Nick tivesse morrido, por que não deixar também o corpo?

—Não sei. Possivelmente temesse que recolhêssemos provas depois de uma análise do cadáver. Se houve luta, possivelmente ficassem no Nick restos da pele ou o sangue do agressor. Nesse caso, seria preferível abandonar o corpo onde ninguém pudesse encontrá-lo.

—E então, por que deixar o veículo abandonado junto ao caminho?

—Para nos distrair. Obriga-nos a dividir nossos recursos. Se nos centrarmos em procurar Nick, já não estamos procurando Ashley. E se encontrarmos Ashley, chegaremos ao Açougueiro —disse, e passou uma mão pelo cabelo—. Mas são só especulações. Embora o Açougueiro nunca pretendesse burlar da polícia, possivelmente seja sua maneira de nos dizer que é mais preparado que nós. «Note. Posso matar o xerife e não são capazes de me agarrar.»

Soou o celular de Quinn e Miranda ficou tensa. As notícias a essa hora da noite nunca eram boas.

Apertou-lhe a mão e não a soltou. Ela fez o mesmo.

—Peterson.

Miranda estava o bastante perto para ouvir a voz de uma mulher.

—Sou Colleen. Toby e eu acabamos de visitar o Palmer. Diria que as probabilidades de que seja nosso homem são praticamente nulas. O tipo tem que comer mingau. Fica sem fôlego com apenas caminhar da poltrona até a geladeira.

—Merda.

—Tenho os dados do contato em seu emprego. Palmer diz que leva várias semanas sem ausentar-se nem um dia. Está bastante amargurado pelo que aconteceu a sua noiva e não gosta da polícia, mas acredito que é inofensivo.

—Confio em sua intuição. Onde está agora?

—Estamos a caminho de Denver. Ficam umas duas horas. Pela manhã falaremos com a chefe de departamento do Larsen. Chamou-me ela diretamente. Diz que Larsen saiu a fazer trabalho de campo, mas que pode mandar alguém para buscá-lo.

—Trabalho de campo? Que tipo de trabalho?

—O tipo é um especialista em... —disse, como procurando entre suas notas— né, em falcões, acredito. Segue-lhes a pista, faz seguimentos da reprodução, coisas assim. As instalações de investigação estão em Craig, mas Larsen trabalha perto do Monumento Nacional Dinosaur.

—Onde fica isso?

—Eu sei onde fica — disse Miranda.

—Espera um momento, Colleen. — Quinn se voltou para Miranda.

—Está no noroeste de Colorado. A menos de oito horas de carro de Bozeman. E cai totalmente no mapa do professor Austin.

 

Miranda não podia dormir. Levava horas dando voltas e voltas.

—Isto é ridículo —balbuciou, para si. Jogou a um lado o edredom e se calçou as botas.

Quinn tinha saído a meia-noite depois de receber uma chamada de Olivia avisando que a terra encontrada na caminhonete do Nick coincidia com a terra do barraco onde esteve Rebecca. Além disso, tinham um rastro de pé inteira, número quarenta e três, no chão do veículo. Nick calçava quarenta e quatro.

Quinn havia dito que dormisse um pouco. Ela precisava, e o desejava, mas tinha a cabeça feito um torvelinho. Cada vez que fechava os olhos, vinha-lhe a lembrança da pequena foto de Larsen em seu histórico universitário.

A sensação era de irrealidade. Pôr rosto ao Açougueiro. Seria Larsen? Não sabia. Agora tinha lhe visto o rosto, mas não podia dizer com certeza que era ele.

Quase tinha pedido a Quinn que ficasse para passar a noite. Perguntou-se se acaso ele esperava que ela o propusesse. Agora desejava havê-lo feito.

A raiva que cultivou durante tanto tempo parecia haver-se dissipado nos últimos dias. Ao ver Quinn a primeira vez, sentiu-se muito irritada, assombrada e preocupada de que ele visse o que ocultava ela atrás de sua fachada de mulher dura. Temia que fosse questionar cada uma de suas decisões, ou a censurar tudo o que dissesse ou fizesse.

Entretanto, ao despertar essa manhã, não temia o que ele pudesse dizer ao vê-la debater-se sob a tensão da investigação. Ao contrário, tinha vontade de vê-lo.

Vestiu o agasalho impermeável grosso, embainhou a pistola e abandonou o calor de sua cabana. Deteve-se no alpendre, respirando o ar frio. Apesar de estar bem abrigada, pôs-se a tremer. Essa noite faria uns sete graus. Não bastava para que a pobre Ashley se congelasse, mas seguro que desejaria estar morta.

Miranda o tinha desejado.

Chegou a meio trote até a entrada dos empregados da hospedaria. Não se permitiu duvidar de sua decisão. Subiu diretamente pelas escadas até seu quarto e bateu na porta.

Quinn abriu. Usava umas calças de moletom cinza e nada mais. Miranda ficou sem fôlego ao ver seu peito nu. Acreditava ter esquecido quão bonito era, mas não. Recordava cada um dos músculos bem definidos de seu corpo. Nem um grama de gordura.

Era tão perfeito agora como o tinha sido aos trinta anos.

—Não podia dormir —disse, com a respiração um pouco acelerada. O coração martelava, espectador. Ao vir, ela sabia o que aconteceria. O que esperava que acontecesse.

Necessitava-o. Quinn espantaria seus demônios e a faria sentir-se protegida. Desejável. Mais como mulher e menos como vítima.

—Miranda...

Ela entrou e fechou a porta. Quinn lhe agarrou a mão e a puxou.

—Não tinha me dado conta do muito que tinha saudades —disse Miranda, com uma voz rouca que não parecia a sua.

—Meu Deus, como senti saudades, Miranda —disse ele. E a beijou.

Esta vez, não havia nada de acanhamento no beijo. Quinn lhe agarrou o rosto e se entregou a ela. Ela se sentiu como se tivesse voltado para casa.

Nunca tinha deixado de amá-lo. Quinn tinha tido uma paciência exemplar com ela, e lhe tinha prestado um apoio incrível. Ajudou-lhe em tudo, incluindo a recomendação para a Academia ainda que pensasse que não estava preparada.

Os sentimentos de traição e medo que experimentava Miranda foram varridos por esse quente beijo. Estalou o calor. Ela não ficaria satisfeita com um só beijo. Queria mais. Queria tudo.

Queria que ele voltasse.

Quinn se afastou, olhou-a e franziu o cenho.

—O que aconteceu? —perguntou.

—O que aconteceu? Nada.

—E isto? —disse, e lhe secou as lágrimas da face. Ela não se deu conta. Quinn beijou os dedos úmidos, e depois a beijou na face.

—Miranda, levo tanto tempo desejando que volte para mim.

Agarrou-lhe a mão, beijou-lhe a palma e a guardou perto de sua boca.

—Dei-me conta de uma coisa estes últimos dias. Você tinha razão. Eu queria ingressar no FBI por motivos errados. Acreditava que o distintivo me daria o valor necessário. Que seria um escudo contra o medo com que vivia cada dia.

—Miranda, é a pessoa mais valente que conheci. Nunca necessitou um distintivo para confirmá-lo.

—Entendo isso agora. Mas não sei se amanhã terei o valor se você não estiver comigo. Se Larsen for de verdade o Açougueiro, não sei como vou enfrentá-lo.

—Não tem que fazê-lo.

Ela assentiu.

—Sim tenho que fazê-lo. Ia dizer que não sei como vou enfrentá-lo, mas o farei. Demonstrarei a mim mesma que posso fazê-lo. Mas será mais fácil se tiver a meu lado.

Quinn a atraiu o mais perto possível, envolta como estava em suas capas de roupa.

—Miranda, estarei ali todo o tempo.

—Posso tirar o agasalho impermeável?

Quinn sorriu e a beijou na testa enquanto a ajudava a tirar a jaqueta. E o pulôver. E a blusa, até que ficou de camiseta e jeans. Era evidente que Quinn queria devorá-la. Ela se sentiu arder sob seu olhar.

Apoiou-se na ponta dos pés e o beijou.

Sustentou-lhe o rosto com as mãos e a beijou uma e outra vez, como querendo compensar todos os beijos que perderam ao longo dos anos. Como era possível que ela tivesse renunciado a todo esse afeto? Com cada beijo, voltava a sentir essa cálida intimidade que tinham compartilhado, além da paciência de Quinn, seu apoio. E a primeira vez que fizeram amor.

De seus lábios escapou um gemido e ele a levou brandamente até a cama.

—É muito bela, Randy —murmurou, e seus lábios lhe deixaram um fio de beijos no pescoço, para baixo e depois para cima. Ela estremeceu, sacudida por ligeiras descargas elétricas que lhe percorriam a coluna.

Miranda o atraiu, puxando-o, para beijá-lo com toda sua vontade, mas ele se atrasou com ligeiras carícias, passeando os dedos lentamente por seus braços, por cima de seus seios, e logo depois de volta. Uma sensação tão sedutora que teve vontade de lhe tirar a calça de moletom.

Mas estava desfrutando de cada delicioso instante. Tinha passado muito tempo, muito tempo.

Ela se estirou e lhe acariciou as costas. Ele a olhou com seus olhos escuros, e lhe tremeu a mandíbula, tal era seu desejo contido.

—Miranda, está segura?

Ela assentiu, ergueu-se pela metade e o beijou.

Quinn queria fazer amor. Agora.

Tinham passado mais de dez anos desde a primeira vez e, naquela ocasião, ele sabia que ela não tinha desfrutado. Miranda queria acabar o mais rápido possível, como se quisesse demonstrar algo a si mesma. Que lhe confiasse seu corpo e alma converteu aquilo em uma experiência vibrante, e ele nunca a pressionou. Mas à medida que evoluía a relação e Miranda se encontrava mais cômoda com ele na cama, suas sessões de amor se voltaram apaixonadas e quentes.

Agora, o contato de seus dedos despertava nele o mesmo fogoso desejo. E, a julgar por como ela se acoplava a ele, estava-a tocando justo onde mais gostava.

Quinn lhe tirou os jeans e a fina camiseta.

A primeira vez que viu as cicatrizes que o Açougueiro lhe tinha deixado nos seios, não pôde dissimular uma raiva animal. Miranda o interpretou como um sinal de rechaço, e ele demorou dias em fazê-la entender que não era isso.

Miranda era bela, com suas cicatrizes e tudo. Ele a tinha convencido de sua sinceridade e seu amor, mas cada vez que deixava ver seus seios, ficava tensa.

Ele os beijou. Brandamente. Amorosamente. Não se deteve muito em seu torso, sabendo que ela não se sentia do todo cômoda. Recordava tudo de Miranda. Estava mais magra e se notavam as costelas. Oxalá tivesse estado a seu lado para assegurar que comesse o devido e se mantivesse sã. Entretanto, seus músculos eram duros e fibrosos. Tinha melhor forma física agora que quando quis ingressar na Academia, mas isso não o surpreendeu.

Quinn estava orgulhoso dela. De que tivesse trabalhado tanto para chegar onde estava. E ela acreditava que lhe faltava coragem? Miranda era a encarnação mesma da coragem.

Miranda agüentou a respiração enquanto Quinn lhe passava a língua, atrasando-se no ventre, e sentiu as ondas maravilhosas que lhe percorriam o corpo, esquentando-a do interior. Quinn lhe mordeu o zíper com os dentes e o puxou para baixo, de modo que sua língua podia jogar com ela e provocá-la, aproximando-se cada vez mais, sem tocá-la, a aquele canto onde ela desejava senti-lo explorar. Com mãos firmes, Quinn a despiu, acariciando-a com o olhar.

—É muito bela —repetiu, e voltou a inclinar-se para lhe beijar a coxa.

—Me faça amor —disse ela, com tom premente. Queria-o agora.

Mais que ouvi-lo, sentiu um estalo de sua boca no interior da coxa, e a boca do Quinn baixou até seu joelho, sua panturrilha, deixando um rastro de beijos e calor.

Beijou-lhe os pés e ela tremeu. Sentiu línguas de fogo que começavam a arder em seu centro. Em mais de um sentido, a paciência de Quinn era admirável, mas nesse momento ela o queria dentro. Fazendo-lhe amor.

—Quinn! —disse, em um sussurro abafado.

Ele seguiu lhe beijando as pernas, deixando fios de fogo. Miranda jamais tinha frio nos braços de Quinn. Estava quente, convertia-se em material combustível.

Alargou uma mão para baixo, tentando atraí-lo até sua boca, onde pudesse afundar-se nele, converter-se em um tudo com ele. Mas Quinn lhe separou as pernas e com os polegares desenhou pequenos círculos por toda parte, exceto ali, no lugar preciso onde ela o desejava.

—Quinn, estou preparada —disse, gemendo e arqueando as costas.

—Sei —murmurou ele, mas não fez nada para acelerar suas primeiras carícias.

Era como se quisesse voltar a reconhecê-la por inteiro. Tinha passado tanto tempo no passado tocando, acariciando e beijando cada centímetro de sua pele. Ela sentia falta dessa atenção, seu terno afeto e sua fogosa paixão. Enquanto Quinn explorava seu corpo, voltou-lhe uma avalanche de lembranças de tudo de bom que tinham compartilhado. Ele aceitou seu corpo maltratado e a ajudou a voltar a querer-se. A fazia sentir-se cômoda consigo mesma.

Quinn se aproximava, mais... e mais... até que ela se arqueou, espectadora. Ele não a decepcionou. Assim que aproximou a boca de seu sexo, ela se deixou ir em um orgasmo. Uma purgação quente e rápida que a deixou ofegando como se lhe faltasse o ar. Acariciou-lhe as coxas, as costas, fazendo-a subir, depois descer.

Beijou-lhe o interior das coxas, o umbigo, o ventre, os seios, até chegar ao pescoço.

Ela se deslizou por cima dele até ficar escarranchada.

—O que? —perguntou ele. Seu sorriso malicioso ficou iluminado pelo fulgor do abajur na mesa. Entretanto, sua atitude relaxada contradizia a de seu corpo, rígido, tremendo sob ela. Quinn a desejava tanto como ela a ele.

Necessito-o.

Miranda deixou de lado suas necessidades. Não sabia o que aconteceria essa noite. Não queria pensar no amanhecer e na dura realidade que traria consigo. Não queria pensar em Quinn voltando a partir, nem nela voltando a ficar sozinha. Longe dele.

Teria que aproveitar o tempo que tinham agora. Voltar a descobrir uma pequena fração do compartilhado no passado. Fingir que nada tinha acontecido nos últimos dez anos que pudesse separá-los.

Miranda o beijou, e suas mãos o acariciaram como ele a havia tocado. Quinn a estreitou com força, até que os corpos se acoplaram um ao outro. Ela se afastou um momento e lhe tirou as calças. Isto era o que ela queria. Uma união completa.

A paciência de Quinn começava a esgotar-se. Desejava desesperadamente lhe fazer amor. Ali onde o sexo e o amor se fundem em um todo. Olhou-a sob a luz tênue do abajur, com seu cabelo comprido e escuro caindo pelo rosto. Parecia uma mulher selvagem de olhos grandes e luminosos. Sua satisfação depois de lhe dar prazer se converteu rapidamente em urgência, e agora gemeu quando lhe acariciou o membro e apertou com suavidade.

—Espera —disse ele. Não queria perder o controle em seguida. Queria fazer amor, sustentá-la. Tomar-lhe com parcimônia. Mas se ela o agarrava assim, não seria capaz de controlar-se.

— Acredito que não —disse ela, com um sorriso levemente provocador.

Ele cometeu o engano de olhar e a viu inclinando-se entre suas pernas para agarrá-lo em sua boca em toda sua plenitude. Seus lábios carnudos o rodearam e a combinação de vê-la e sentir sua boca quente e sua língua úmida chupando-o fez tremer o penis e o excitou até o ponto de não retorno.

—Miranda.

Levantou-a lentamente até que pôde beijá-la na boca.

—Quero fazer amor contigo —sussurrou.

—Sei —respondeu ela, respirando junto a sua orelha.

Quinn levava dez anos sonhando com isto. Estreitar Miranda em seus braços, fazer amor. Quase parecia um sonho. Jamais tinha pensado que poderiam recuperar o perdido.

Não queria deixá-la nunca. Não queria seguir perdendo tempo.

Deixou que ela levasse o ritmo. Igual à primeira vez, deixou que ela decidisse quando e até onde e com que cadência.

Teriam tempo para mais no futuro.

Que incrivelmente sexy era Miranda quando abriu as pernas e lenta, quase dolorosamente, deixou-o afundar-se nela. Tinha o cabelo convertido em uma juba de cachos selvagens, as pálpebras semi caídas e a boca entreaberta. Era uma maravilha. Quinn resistiu a vontade de aumentar o ritmo que se moviam e acabar imediatamente, embora também quisesse seguir para sempre.

Miranda respirava entre ofegos, deixando que Quinn a penetrasse até o fundo. Tinha passado muito tempo da última vez que fez amor, mas seu primeiro orgasmo já tinha aplainado o caminho.

—Está bem? —murmurou.

Ela o olhou de cima, deleitando-se com o afeto profundo que via em sua expressão. Ele esticou a mão e lhe acariciou os braços.

—Sim —disse ela—. Levo muito tempo te esperando.

Sem pressa, ela se moveu em cima dele. Acima e abaixo, desfrutando de cada sensação, ascendendo juntos para o orgasmo final. Ela o sentiu esticar-se por baixo, enquanto seguiam movendo-se, cada vez mais excitados. O puro gozo de fundir-se novamente com Quinn a levou ao clímax.

—Meu Deus, como te amo —disse Quinn, com a voz rouca, tinta pela emoção e a luxúria—. Goza comigo.

Aquelas duas palavras a excitaram tanto e lhe provocaram um orgasmo tão intenso como o contato de seus corpos. A ele endureceram os músculos, puxou-a para baixo e se converteram em um só, unidos em um vínculo que o tempo havia tornado tão frágil. Entretanto, igual a uma borracha elástica, recuperaram sua elasticidade assim que voltaram a encontrar-se.

Ela não queria que Quinn partisse de novo.

Deixou-se cair contra seu peito, sentindo-se mais relaxada que depois de uma hora de banho quente. Suas extremidades se tornaram líquidas, e se aconchegou no oco de seu ombro. Ele a envolveu em seus braços, acariciou-a e ela se abandonou a sua calidez e sua força.

—Te amo, Miranda.

Pregada contra ele, apoiando a cabeça sobre seu ombro, Miranda suspirou. Ela também o amava. Tinha vontade de dizer-lhe. Queria recuperar tudo o que tinham antes de Quântico. Oxalá não tivesse viajado nunca à Academia. Se tivesse ficado em Montana, as coisas teriam sido muito diferentes. Miranda teria vivido os últimos dez anos sentindo-se amada e protegida, como se sentia nesse momento.

Possivelmente fosse sem sentido pensar assim. Mas talvez pudessem reconstruir o sonho. Quando apanhassem e condenassem David Larsen, talvez pudesse voltar a compartilhar algo com Quinn.

Desejava tentá-lo. Mas agora... estava tão cansada... Escapou-lhe um bocejo.

Quinn se deu conta de que Miranda dormiu ao sentir que todo seu corpo se fundia inteiramente com ele.

Puxou o edredom para abrigar-se e ficou olhando enquanto dormia. Parecia estar em paz, e ele se alegrou de poder lhe dar uma noite de sonhos serenos.

Apenas lhe tocou o cabelo, acariciou-lhe a face. Ah, como amava essa mulher.

 

Quando soou o celular ele se sentou de repente e, pela qualidade da luz, em seguida se deu conta de que adormeceu. Um rápido olhar ao relógio despertador o confirmou: 07h45min.

A seu lado, Miranda se espreguiçou. Com o cabelo derramando-se sobre o travesseiro e seu comprido pescoço lhe incitando a beijá-la, Quinn não queria outra coisa que voltar a fazer amor com ela.

O celular voltou a emitir seu gorjeio. A chamada do dever.

—Peterson — respondeu.

—É Colleen. Tenho um mau pressentimento a respeito do Larsen.

—O que aconteceu?

—A diretora do departamento de biologia da fauna selvagem, Sarah Tyne, chamou o laboratório da universidade em Craig. Isso fica no noroeste de Colorado. Queria informar-se sobre os horários do Larsen. A última vez que se apresentou foi na segunda-feira.

—O dia depois de que encontramos o corpo de Rebecca.

—Assim é. Disse que pensava voltar para o seguimento de uns falcões originais. É sua especialidade. Assim uma da equipe de investigação saiu para lá esta manhã.

—E não estava em seu posto —aventurou Quinn, sentindo um comichão no estômago.

—Não. Além de seu apartamento em Denver, que está vazio, tem uma caravana perdida em alguma parte. Encontraram suas provisões para o trabalho de campo, mas nada do Larsen. Tentaram chamá-lo por rádio, porque se supõe que os investigadores têm que ter acesso a todo momento quando saem. Não houve resposta.

—Averiguou que tipo de carro ou caminhonete conduzia? O encontrou? —Quinn tirou sua caderneta e anotou dois dados.

—Conduz uma caminhonete mas não temos os detalhes. Não leva a caravana.

—Comprovarei com os registros de veículos. Se aproxime do lugar e vejamos o que encontra. Se aparecer, detenham. Lançarei uma ordem de busca e captura. Só para interrogá-lo. Não quero que se assuste. E façam discretamente. Não quero que entre em pânico e mate Ashley van Auden. Só a teve dois dias. É provável que ainda esteja viva.

—Ok.

—Se o encontrar, Colleen, deixe-o pra mim —disse Quinn, e fechou o celular.

—David Larsen —disse Miranda, com voz apagada—. Parece um nome tão normal.

Ele se inclinou e, depois de lhe afastar uma mecha de cabelo, beijou-a na testa. Queria aliviá-la da dor, roubar suas lembranças para que jamais voltasse a pensar em David Larsen ou nas mulheres que tinha matado. Quinn teria que falar com Miranda de montes de boas lembranças para substituir as más. Já se tinham posto a isso a noite anterior, mas era só o começo.

—Está bem? —perguntou.

—Estarei bem.

Não soava como a Miranda de sempre, mas ele não insistiu. Faria-o mais tarde.

Voltou a beijá-la e se levantou da cama.

—Vou ao escritório do xerife. Quer que a deixe na universidade?

—Sim, tenho que ver como vai a minha gente.

—Não vá a nenhuma parte sozinha. A nenhuma parte.

—Não o farei — disse. Soava distante.

—Miranda, o encontraremos. Não porá a mão em cima de você. E, pela primeira vez, acredito que poderemos apanhá-lo. Antes que Ashley morra.

—Penso como você — disse ela—. E não há nada que queira mais, exceto... —disse, e calou —. Nick. Pode ser que Ashley esteja viva, mas o que sabemos de Nick? —Calou porque não podia seguir. levantou-se da cama e se vestiu —.vou tomar banho e me reunirei contigo no carro, dentro de vinte minutos.

Quinn a deteve antes que saísse.

—Pagará por ter matado Nick.

—Sei. Mas é como se com isso não bastasse.

 

No escritório do xerife, a primeira coisa que Quinn fez foi falar com Lance Booker.

—Booker, tenho que te pedir um favor.

—O que você disser.

Bom moço. Quinn não estranhava que caísse bem a Nick.

—Poderia acompanhar Miranda à universidade? A qualquer lado aonde vá, quero que esteja perto e lhe sirva de escolta.

—Aconteceu alguma coisa?

—Temos um suspeito. David Larsen.

—O biólogo?

—Não está em seu posto, teve uma oportunidade para estar na cena do crime e descartamos os outros três suspeitos da lista. Minha gente está levando a cabo uma comprovação de seu histórico neste momento. Chamarei-o assim que tenha mais informação. Mas se sentir-se pressionado de algum jeito, temo que faça algo imprevisível. E não quero que Miranda esteja a seu alcance.

—Não me moverei de seu lado.

Tampouco se aproxime tanto, pensou Quinn.

—Booker, não divulgue esta informação. Miranda sabe, mas não quero que a imprensa se inteire ainda. Até que tenhamos mais informação.

—De acordo —disse Booker, e saiu.

Quinn entrou no escritório de Nick e não se surpreendeu muito ao ver que Sam Harris se apropriou da mesa. Estava falando por telefone e lia um fax. Quinn reconheceu o logotipo.

Escritório Federal de Investigações. Seattle. Era seu escritório.

Arrancou o papel das mãos do ajudante do xerife. Era a informação solicitada sobre David Larsen.

Caminhonete... modelo recente, todo terreno. Potente. Licenciado pela Universidade de Montana... doutorado em Colorado... biólogo especializado em fauna selvagem... Muito poucos detalhes. Coisas que ele já sabia.

Pais... falecidos. Irmãos... uma irmã. Uma irmã? O que dizia de seu nome, residência, estado civil?

Harris desligou o telefone de repente.  

—Este fax está dirigido a mim.

—Chegou a meu escritório.

—Estava dirigido a mim —repetiu Quinn, que começava a perder a paciência.

Harris se incorporou e rodeou a mesa.

—Agente Peterson, não me havia dito que tinha um suspeito. Que classe de respeito tem você por meu escritório?

Quinn passou a mão pelo cabelo.

—Você sabia que estávamos trabalhando na lista. Acabo de receber esta chamada sobre David Larsen, mal faz uma hora.

—Se o xerife estivesse aqui, a primeira coisa que teria feito é chamá-lo.

Era verdade. Quinn nem sequer pensou em chamar Sam Harris. Estava muito ocupado tentando contatar com seus superiores para que lhe concedessem acesso imediato a recursos e informação.

—De acordo. Desculpe-me.

Harris tremia a mandíbula. Ficou vermelho.

—Vocês, os federais, acreditam saber tudo. De acordo. Resolva o caso sem mim. Mas o lamentará.

Quinn acreditou que tinha ouvido mal.

— O que significa isso?

—Nada — disse Harris terminante, e saiu.   

Merda, só faltava que chateasse o policial.

—E se supõe que você é diplomático — disse para si.

Quinn se aproximou da mesa do Nick e procurou entre todos os papéis para ver se Harris ficou com algum outro documento enviado por fax. Não encontrou nada. Chamou o pequeno escritório de Helena e pediu dois agentes para os dois dias seguintes. Necessitava ajuda e não tinha reparos em pedi-la.

Sobre tudo se estava em jogo a vida de uma garota.

Seu olhar posou sobre uma pequena foto meio oculta sob o mata borrão e a tirou. De fato, era uma série de quatro fotos. Miranda e Nick em uma máquina de fotografia instantânea. Miranda sorria em todas as fotos, um pouco pendente de seu aspecto, embora fosse provável que ninguém mais que ela e Nick vissem jamais essas fotos.

Por sua parte, Nick estava mais animado. Primeiro com um largo sorriso, depois com uma expressão jocosa e, na terceira, pondo orelhas de burro em Miranda.

Na última foto, ele a olhava. Pela intensidade desse olhar, Quinn soube que Nick a tinha amado.

Todo o ciúmes que em seu momento sentiu pela relação amorosa e as amizades de Nick com Miranda se desvaneceram. Embargou-o uma emoção que lhe deixou um nó na garganta ao pensar que seu amigo talvez tivesse morrido.

Um só engano e Nick tinha pago com sua vida. Não era justo, e Quinn se jurou que faria Larsen pagar, não só pelas mulheres que tinha matado e o que tinha feito a Miranda mas também pelo Nick.

Guardou as fotos na carteira, para entregar a Miranda, e então saiu a falar com os agentes e atribuir as tarefas.

Havia muito terreno que cobrir e pouco tempo.

 

Miranda tinha seis agentes atribuídos à Unidade de Busca e Resgate, e mandou um deles com dois voluntários à área ao sul da auto-estrada de Gallatin. Quinn já estava ali e tinha informado a todos a propósito de David Larsen, recalcando que deviam proceder com cautela. Não teria que persegui-lo. Sua missão consistia em encontrar Ashley com vida e resgatá-la, não em deter um suspeito.

Também insistiu em que procuravam Larsen para interrogá-lo embora todos sabiam o que isso significava.

Era o primeiro suspeito que tinham em doze anos.

Miranda não tinha grandes esperanças de que sua equipe encontrasse Ashley, mas cumprir com o requerido lhe ajudava a esquecer que conhecia a identidade do Açougueiro. Quando todos saíram e se encontrou sozinha, deixou-se cair em uma cadeira e fechou os olhos.

E viu sua imagem.

Só tinha visto essa foto do Larsen, mas lhe resultava fácil transladá-la ao homem sem cara que a tinha torturado. Ao homem que tinha disparado em Sharon pelas costas.

Corram. Corram!

Nunca tinha visto David Larsen. Recordaria sua cara. Mas conhecia sua voz, esse tom oco, cruel em sua ausência absoluta de emoção. Suas palavras e seus atos não se correspondiam com esse tom distante, quase aborrecido.

Estava segura de que nunca o tinha visto porque um coração desprezível como o seu não passaria despercebido. Tinha o rosto marcado pelo ódio para as mulheres.

Entretanto, na foto, David Larsen não parecia um indivíduo perverso nem consumido pelo ódio. Tinha o rosto de um homem normal e comum. Levianamente agradável. Normal.

O Açougueiro era qualquer coisa menos normal.

Recordou uma lição bíblica de seu pai. Que o mal podia ocultar-se na beleza, que os corações negros às vezes se revestiam de compaixão. O mal não anunciava com cartões sua visita iminente. O mal ia e vinha com um sorriso, Sorrindo às vidas destruídas que deixava em sua esteira. A serpente que tinha seduzido Eva para que provasse do fruto proibido não podia ter sido uma criatura repulsiva porque ela teria fugido aterrorizada. Não, a serpente tinha que ter sido um ser belo, algo que ganhava facilmente a confiança de todos. Não confie nas aparências.

O mal se esconde sob a superfície.

—Miranda?

Miranda deu um salto e levou a mão à arma, tudo ao mesmo tempo.

Era o agente Booker.

—Merda, Lance.

—Não era minha intenção assustá-la.

—Não me assustou. —Tinha-a aterrorizado. Sentada ali sozinha, pensando no Açougueiro. E no David Larsen e na Sharon... — No que posso te ajudar?

—O agente Peterson me pediu que hoje ficasse com você. Sabe, como não encontraram Larsen, nem nada.

Na semana anterior, a teria enfurecido o amparo de Quinn. Ela não só era capaz de defender-se só do Açougueiro, mas também de defender a todos, do Açougueiro e de qualquer outro mal que se atrevesse a pôr um pé em suas terras de Montana.

Mas embora soubesse defesa pessoal, e treinasse um grupo de mulheres na universidade, mantivera-se em boa forma física e pudesse orientar-se em qualquer ponto do condado, só a idéia de enfrentar David Larsen em pessoa a paralisava.

— Obrigado, Lance —disse.

Cruzou até o mapa na parede e ficou olhando, reunindo coragem para superar as horas que restavam do dia. Se encontrassem Larsen, levaria-os até Ashley? Diria-lhes onde estava Nick? Se estava vivo ou morto?

O que procurava Nick no escritório do Registro da Propriedade? Tinha consultado os títulos de propriedade de todas as terras da região. Incluindo a de seu pai, conforme observou quando ela e Quinn os revisavam. Nada lhe chamou a atenção. O que lhe teria chamado tanto a atenção para que arriscasse a vida em sua investigação? Tem que ter pensado que não era perigoso, ou não teria acudido sozinho.

Tinha saudades de Nick. Oxalá houvesse dito que lamentava que as coisas não tivessem funcionado entre eles. Ela nunca desejou magoá-lo. Ele se comportou muito bem com ela. Deu-lhe todo o espaço que necessitava, deixou-a seguir com seu trabalho e a apoiou em tudo o que fazia. O problema era que ela não o tinha amado como ele a ela.

Como ela amava Quinn.

Sentiu uma espécie de calor ao recordar como a tocava. Com ternura. Lentamente. Não tinha esquecido onde gostava que a tocasse. Tampouco tinha esquecido quão sensível era ela com as cicatrizes de seus seios, como gostava de ficar em cima, todos esses pequenos detalhes que se foram forjando do terror que lhe infundiu aquele desequilibrado. Um terror que tinha durado uma semana.

Com Quinn relaxava e se entregava tal qual era, de boa vontade e com alegria. Quando faziam amor, eram companheiros.

Tinha estado a ponto de dizer que o amava. Tinha toda a intenção. Mas não lhe saíam as palavras. Uma parte dela resistia e Miranda não sabia por que.

Quinn dizia que a conhecia. Como era possível que a conhecesse tão bem se ela ainda lutava por conhecer si mesma? Assim que mordeu a língua e guardou silêncio, embora suas palavras fossem sinceras e embora queria pedir a Quinn que nunca voltasse a partir.

Possivelmente, ao final, esse fosse seu maior temor, que ele voltasse a deixá-la. Não era nada fácil conviver com ela, isso sabia, e às vezes se mostrava deliberadamente conflitiva para que as pessoas não se aproximassem muito. Era mais fácil manter as pessoas a certa distância que mostrar a própria vulnerabilidade.

A gente perecia de mortes violentas. A luta de sua mãe contra o câncer. O assassinato da Sharon. E, agora, o provável desaparecimento de Nick. Todos mortos.

O que faria ela se algo acontecia com Quinn?

 

Quinn chamou seu escritório em Seattle para falar com Bonnie Blair, uma especialista em investigação de antecedentes. Se havia algo que descobrir sobre David Larsen, Bonnie o encontraria.

—Olá, Bonnie. Recebi seu relatório. Não há grande coisa. O que te parece se jogar mão de seus procedimentos mágicos para encontrar alguma outra coisa?

Seguiu um comprido silencio.

—Que mais quer? —Bonnie soava um pouco irritada.

—Bom, para começar queria saber o nome dos pais, sua irmã, onde nasceu...

Bonnie o interrompeu.

—Tudo isso estava em meu relatório. Mandei dezesseis páginas.

—Dezesseis? Eu recebi uma. — Sam Harris. Tinha que as haver pego. Mas por quê?

Haveria algo nessas páginas de fax que Harris queria ocultar? Ou queria proteger alguém?

—Sinto muito, Bonnie. Importaria-se me mandar isso de novo? Ficarei aqui, esperando junto ao fax.

—Farei por você. Mas que saiba que estarei aqui, esperando uma caixa de bombons em minha mesa quando voltar.

—Ok.

Abriu a porta e fez gestos ao sargento de guarda para que viesse ao escritório do Nick.

—Sargento, por favor, localize Sam Harris e lhe diga que volte para a delegacia de polícia, imediatamente.

O sargento franziu o cenho mas não disse nada. Foi até a mesa principal e agarrou o telefone.

Quinn já estava de volta no escritório do Nick quando começou a chegar a primeira página do fax. Era a página que ele já tinha.

Seguiram outras quinze. À medida que foram saindo do fax, Quinn viu como se configurava ante ele a vida de um assassino em série.

Nascido e crescido em Portland, Oregón. O pai, Kyle Larsen, abandonou à família quando David tinha três anos e, aparentemente, deixou de ter contato com eles. Morreu nove anos mais tarde em uma disputa por drogas que acabou mau.

Mãe maltratadora... Os Serviços de Amparo do Menor tiveram que tirar David de sua casa em duas ocasiões, mas as duas vezes o haviam devolvido. Bonnie assinalava que teriam que pedir os expedientes aos tribunais.

Dois delitos cometidos na adolescência. Disso também teriam que pedir os expedientes.

Uma detenção por violação aos dezoito anos. Interessante, David cursava primeiro ano na universidade Lewis and Clark, no Oregón. Detiveram-no por violação, mas a vítima se retratou. Ele se aferrou ao álibi de que tinha passado a noite em casa de sua irmã, dado que sua irmã confirmou. Acaso a vítima ficou tão traumatizada que renunciou a levar o julgamento adiante?

Um detalhe chamou a atenção de Nick. Os seios da vítima ficaram marcados para o resto da vida com uma faca.

Tudo encaixava. Um lar sem pai, uma mãe maltratadora, que provavelmente abusava sexualmente dele. Teria que ver os arquivos dos Serviços de Amparo do Menor. Cresce em um ambiente dominado por mulheres. A mãe o acossa. Os seios são ao mesmo tempo um objeto sexual e um objeto maternal. David se enfurecia com os seios de suas vítimas como tivesse querido fazer com sua mãe.

Sua irmã mais velha se converteu em sua tutora depois da morte de sua mãe. Definiu-se oficialmente a causa da morte como «acidental». Sua irmã lhe serve de álibi ante a acusação de violação. Ou a irmã o protegia ou David a tinha aterrorizada. Ou ambas as coisas de uma vez.

A irmã... irmã. Quinn seguiu folheando o expediente.

Delilah Larsen.

Delilah. Onde tinha ouvido esse nome recentemente? Richard Parker. Sua mulher se chamava Delilah. O nome era tão pouco comum que tinha que ser ela. Certamente, Delilah Parker não parecia uma vítima, embora Quinn soubesse que as aparências podiam enganar. Só a tinha visto essa única vez, e a teria definido como meticulosa, organizada e inteligente.

Entretanto, até as mulheres mais distinguidas podiam ser vítimas de abusos e manipulações por parte de uma pessoa a que amavam ou temiam. Quinn teria que proceder com cuidado com os Parker.

Se Delilah Parker não suspeitava que seu irmão era perigoso, possivelmente era porque não queria reconhecê-lo, e poderia tentar lhe advertir da investigação. Quinn conhecia vários casos em que um parente próximo, um amigo ou amante não acreditavam que alguém em quem eles confiavam podia ser um assassino.

Por outro lado, se estava ciente do que David Larsen fazia com essas mulheres, estavam ante uma dinâmica de tudo diferente. Era evidente que não tinha ido à polícia denunciar suas suspeitas. Possivelmente ele abusasse dela e a manipulasse, e logo possivelmente a convencesse para que o protegesse. Ou possivelmente fosse cúmplice de suas atividades.

Teria que vigiar de perto Delilah Parker.

Quinn leu o resto do relatório e encontrou a confirmação que necessitava.

Depois que se retirou a acusação de violação, David Larsen ingressou na Universidade de Montana e foi viver com sua irmã, que conseguiu um emprego como secretária no escritório da Junta de Supervisores.

Richard Parker era supervisor durante a época em que ela estava ali.

Sam Harris levou o relatório para prevenir Parker a propósito de seu cunhado. Parker era um juiz influente, mas no que estaria pensando Harris? Pôr em perigo toda a investigação só por salvar o prestígio político de alguém?

A menos que sua intenção fosse averiguar o paradeiro de David Larsen graças a sua irmã, acreditando que ele sozinho seria capaz de apanhá-lo.

O muito imbecil!

Quinn deu um salto. Chamou o sargento de guarda.

—Encontrou Harris?

—Não, senhor.

—Siga tentando. Quem está livre agora para me acompanhar em uma saída?

—Estamos muito escassos de pessoal, senhor — disse o sargento, olhando sua folha—. Posso chamar o Jorgensen. Hoje está em tráfico.

— Chame-o.

 

Ryan Parker estava jogando com um vídeo game no salão depois de comer quando chegou um carro do escritório do xerife e estacionou na entrada. Ao cabo de um momento, entrou sua mãe.

—Ryan, por favor, recolhe e vá a seu quarto. Temos visita. Ryan apagou o vídeo game, embora estivesse a ponto de derrotar ao Darth Maul.

—Só é Sam —disse seu pai, de sua mesa frente aos grandes janelas.

—Richard —foi quão único disse sua mãe, mas lhe lançou o olhar. Esse olhar que dizia não discuta comigo e que Ryan conhecia muito bem.

Ryan guardou o vídeo game, fechou os armários e subiu. Abriu e fechou a porta de seu quarto, para que sua mãe pensasse que a tinha obedecido. Mas em lugar de ficar em seu quarto, voltou nas pontas dos pés até o alto da escada onde podia ouvir sem que o vissem.

O menino se inteirava de muitas coisas com esse sistema.

—Eu gostaria de ter vindo em circunstâncias mais agradáveis — disse Sam Harris.

—Algo relacionado com a garota que foi assassinada? —perguntou seu pai.

—Não é nada fácil dizer isto, e por isso pedi a meu agente que fique no carro. Acredito que convém que possam pensar em como estão as coisas, sem ninguém no meio que queira usar a informação para o prejudicar em sua carreira, juiz.

—O que tenta me dizer?

Ryan reconheceu esse tom de irritação. Seu pai não gostava dos «puxa-sacos», como ele os chamava. Referia-se a essa gente que tentava ser seu amigo pelo que ele fazia, não pelo que era. Como seu pai era juiz, uma posição importante, dizia que muita gente tentava lhe lamber o trazeiro, e ele os desprezava por isso.

—Irei diretamente ao ponto —disse Sam—. O FBI vem aqui para interrogar a seu cunhado, David Larsen. É o principal suspeito na investigação do Açougueiro.

—Davy? Não me posso acreditar — disse seu pai.

O tio Davy? O Açougueiro? Ryan se deixou cair contra a parede. Isso significava que tinha matado essa garota universitária que ele encontrou na semana anterior, a garota que não o deixava tranqüilo em seus sonhos, olhando-o fixo com sua cara de cervo morto.

O tio Davy, não. Levava-o a pescar todos os verões. Mamãe os acompanhava à cabana do lago Big Sky, embora não gostasse de pescar. O tio Davy sabia tudo sobre os pássaros, as árvores e os animais. Tinha-lhe ensinado a distinguir entre os bagos comestíveis e as que podiam matá-lo.

O tio Davy o escutava, e o escutava de verdade. Ryan não podia falar com ninguém a respeito de seus pais, sobre tudo de sua mãe. Ryan pensava que ela não o amava de verdade. Bom, seguro que o amava (todas as mães amam seus filhos), mas tudo o que ela fazia por ele, das bolachas ao forno até lhe lavar a roupa ou reunir-se com seu professor, eram coisas que fazia por obrigação. Como se tivesse uma lista de «Como ser uma boa mamãe».

Seu tio entendia tudo.

—Delilah não cai bem ninguém —confessou a Ryan em uma ocasião. E quando o disse, ele soube que era verdade.

Ryan perdeu uma parte da conversa no andar de baixo, e aguçou o ouvido. Sua mãe dizia algo, mas em voz tão baixa que ele não conseguiu entender.

-- Lamento de verdade, senhora Parker. Sei que teve uma surpresa desagradável, e por isso queria que soubesse antes que se inteire a imprensa. Intento manter tudo o que posso em segredo, mas você já sabe como são os federais. Não são mais que uma matilha de lobos à caça da fama imediata, e só querem sair na foto. E se para isso têm que prejudicar pessoas respeitáveis como você, importam-se o mínimo.

-- Estarei em contato com meu advogado. Davy terá uma boa defesa com meus advogados, Sam.

— entendo.

O agente saiu e, a princípio, Ryan só ouviu vozes apagadas.

—Você sabia? —Seu pai levantou a voz. Seu pai nunca falava com sua mãe nesse tom.

—Não —disse sua mãe—. Davy não tem nada a ver com o que aconteceu com essas garotas.

—Merda, Delilah, isto é um problema grande.

— Sabe como é o FBI. Sempre tentando pendurar a desonra a alguém.

—Não acredito nisso, nem você.

—Davy não tem nada a ver com isto.

—Eu gostaria de acreditar. Tenho que me pôr em contato com meus advogados.

Ryan desceu pelas escadas de atrás e saiu pela porta da cozinha, cuidando de fechar brandamente. Pôs-se a correr para o estábulo e não se deu conta de que estava chorando até que as lágrimas lhe nublaram a vista.

Por que teria que pensar a polícia que o tio Davy tinha matado essas pessoas se não era verdade?

Ele tinha visto o tio Davy a noite anterior, acampando no prado traseiro do imóvel. Aquilo não era estranho, porque sabia que seu tio gostava de dormir ao ar livre. Estava acostumado a vir freqüentemente, e acampava ou ficava na cabana. Mas Ryan estava acostumado a inteirar-se de antemão quando o tio Davy os visitava.

Sua mãe não tinha avisado a noite anterior que vinha. Possivelmente não soubesse.

Ryan selou Ranger em silêncio e saiu com ele do estábulo caminhando até afastar-se de casa, e só então o montou.

Não sabia o que fazer. Queria prevenir tio Davy e dizer-lhe que a polícia estava errada.

E se não estivesse errada?

O acampamento ficava a um quilômetro e meio da casa. O tio Davy já tinha acampado ali em outras ocasiões, assim Ryan sabia exatamente onde estava. Mas ao aproximar-se não viu ninguém.

Viu que tinha material guardado, dissimulado cuidadosamente no interior de um tronco podre de um pinheiro ponderosa. Ryan franziu o cenho. Por que seu tio não tinha vindo para casa tomar o café da manhã como estava acostumado a fazer quando acampava? Onde estava agora?

Viu os rastros de umas botas que se dirigiam para baixo, onde a quebrada conformava o limite ocidental do imóvel dos Parker. Ryan estava proibido de ir lá em baixo, mas o tinha feito muitas vezes. Havia uma torteira muito bonita. Ele, Sean e Timmy estavam acostumados a ir quando acreditavam que suas mães não se inteirariam. Entretanto, as ladeiras empinadas e as abruptas depressões do terreno o convertiam em um lugar perigoso, sobre tudo para Ranger.

Ainda assim, ele sabia onde pisava. Tomaria cuidado.

Estava a ponto de desmontar quando o ruído de um movimento o deteve. Alguém subia pela escarpada ladeira.

— Tio Davy?

Seu tio apareceu ao mesmo tempo em que agarrava o rifle que levava em bandoleira.

Foi então quando Ryan se fixou na fivela do cinturão de seu tio. Por que lhe parecia tão estranha?

Então compreendeu. O tio Davy sempre levava a fivela com o pássaro. Igual a que tinha encontrado no bosque perto da garota morta. Só que agora a fivela do cinturão tinha desaparecido.

 

Quinn chamou Miranda enquanto conduzia de Bozeman ao rancho do Parker. Tamborilava sobre o volante, ansioso de chegar quanto antes, com a inquietante sensação de que o caminho estava se fazendo eterno. Havia muito terreno que cobrir sob «Big Sky». Informou-lhe sobre as conexões familiares de David Larsen. Ela não disse uma palavra durante um comprido momento.

—Está seguro? —perguntou finalmente.

—Sim.

—E eles não sabiam? —inquiriu ela, com voz tremula.

—Ele não vive com eles. É muito provável que não saibam nada de suas aventuras. Mas... —Quanto mais devia lhe contar?

—Mas o que?

Tinha que confiar nela e lhe contar a verdade. Cedo ou tarde, acabaria sabendo tudo.

—Larsen foi detido por violação aos dezoito anos. Retiraram a queixa contra ele porque a vítima se negou a declarar. A irmã do Larsen, Delilah, foi seu álibi.

—E você acredita que era culpado?

Ele respondeu com um suspiro comprido.

—Sim, acredito. —Disse-lhe por que—. A garota tinha os seios cortados.

—E sua irmã mentiu por ele?

—Não sabemos o que aconteceu nesse momento. Pode ser que ele a tenha ameaçado, ou manipulado. Possivelmente sua irmã mentiu porque o acreditava inocente e ele não tinha um bom álibi. Não poderemos saber até que tenha falado com ela. E é o que vou fazer agora mesmo.

—Não posso acreditar que uma mulher concorde em proteger um violador. Teria que estar doente, igual a ele.

—Ainda está na universidade?

—Não. Booker me trouxe para a hospedaria faz uma hora. Estava ficando louca de impaciência. saímos a investigar uma área que fica ao sul daqui. Tenho que fazer algo.

—Pode se comunicar com todas as equipes de resgates, não?

—Temos uma freqüência para nós.

—Ok. Se conseguir averiguar algo com os Parker sobre o lugar onde Larsen poderia ter ocultado Ashley, trocaremos de direção e reuniremos todo mundo. Fica na hospedaria um momento mais, ok?

Ela guardou silêncio.

—Não quer que saia?

—Não é porque ache que não pode fazer o trabalho, Miranda, mas sim porque tenho que me pôr em contato contigo.

—Tem razão. Sinto muito.

—Não diga nada sobre a conexão com os Parker ainda. É provável que Sam Harris já tenha contado tudo, mas tentarei de qualquer forma.

—Harris! O que fez?

Quinn lhe contou do fax.

—Não responde às chamadas da caixa de voz e dei ordens de detê-lo todos os policiais ou perderão o distintivo. Harris está obstruindo a justiça e não o deixarei conseguir o que quer.

 

Miranda não estranhava que Harris tentasse agir sozinho. Sempre tinha sido uma bala perdida. Oxalá Nick tivesse um ajudante melhor.

Pôs Booker ciente dos detalhes enquanto caminhavam do restaurante da hospedaria a sua cabana. Estava muito nervosa para ficar quieta, e esperava que Quinn a chamasse logo.

Ouviu o galope de um cavalo no caminho que vinha reto para ela. Virou-se e viu um menino em uma montaria exausta.

Ryan Parker.

—Anda! —disse Booker.

Ryan se deteve e desmontou. Ofegava quase tanto como o pobre animal.

—O que aconteceu? —perguntou Miranda. A enorme propriedade dos Parker quase rodeava a totalidade das terras dos Moore, mas o rancho mesmo ficava a vários quilômetros para o sul—. Veio até aqui de sua casa?

—Mi... meu tio.

O tio do Ryan era David Larsen.

—O que acontece a seu tio? —Miranda se surpreendeu ao ver que sua voz soava normal.

—Soube..., soube —repetia Ryan—, assim que vi a fivela de seu cinturão.

—Espera um momento. —Miranda pinçou em sua mochila e tirou uma garrafa de água, que estendeu ao menino —. Bebe um gole de água.

Ele obedeceu, tossiu e bebeu outro pouco. Sentou-se em uma pequena rocha ao lado do caminho e esvaziou o resto da garrafa sobre a cabeça. Miranda se sentou a seu lado.

—O que aconteceu, Ryan?

—Ouvi tudo. Sam Harris contou a meus pais que o tio Davy é o Açougueiro. Mas eu não acreditava. Quero dizer, ele é meu amigo.

Miranda se compadeceu do pobre menino. O mundo lhe vinha abaixo, como tinha acontecido a ela.

—Ontem à noite vi o tio Davy. Está acampando no prado sul. Às vezes faz isso. Ou usa a cabana.

—A cabana?

—Temos uma cabana, justo ao lado do lago Big Sky. Saímos a pescar e coisas assim. O tio Davy se aloja ali.

—Sabe onde fica?

—Claro —disse ele, e deu as coordenadas do lugar.

—Possivelmente esteja ali —disse Miranda a Booker—. Temos que chamar Quinn.

Ryan negou energicamente com um gesto da cabeça.

—Não, não está ali. Eu o vi. E a fivela.

—Que fivela?

—Pareceu-me que a tinha visto antes. O pássaro. Mas não recordava onde. E então vi ele, que vinha da quebrada e, não sei como, mas em seguida soube. Olhei o cinturão e já não a tinha. Levava um cavalo ou algo assim, não o pássaro de sempre. —Ryan tirou uma fivela de cinturão quebrado de seu bolso — . Como este.

Miranda estava confusa.

—Você apanhou isto de seu tio? Por que?

Ryan olhou as mãos e fez girar a parte de metal uma e outra vez.

—Não o apanhei. Encontrei-o perto do cadáver dessa garota que mataram. No dia seguinte voltei e estive olhando como procuravam.

Sua voz ficava mais rouca com as lágrimas, que agora secava com o dorso da mão.

—Sinto muito. Não sabia. Eu não queria apanhá-la. Mas encontrei isso. Queria contar a meu pai, mas pensei que se zangaria comigo se dissesse que tinha voltado a esse lugar. Assim que a escondi em meu quarto. Mas hoje vi meu tio e agora sei que a fivela era dele. Fui em casa para buscá-la —disse, e sorveu suas lágrimas—. Estava muito estranho. Não estava contente de me ver. Levava seu rifle. E sua faca. Acredito que ele a matou.

Miranda sentiu que o ventre lhe apertava.

—Onde está agora? —perguntou.

—Não sei. Disse-lhe que passava por ali e que vi sua equipe de camping e que tinha que voltar para casa. Minha mãe e meu pai estavam brigando, assim vim até aqui, que era o mais perto.

—Fez bem, Ryan —disse ela, e se levantou —. Pode nos levar até onde viu seu tio?

Ryan assentiu com um gesto.

—Pode-se conduzir quase até acima de tudo.

—Bem. —Miranda tirou seu celular e marcou o número de Quinn.

Quinn respondeu mas a comunicação se cortou.

—Maldito seja! —Voltou a tentar, e desta vez lhe respondeu a caixa de mensagem de voz—. Quinn, me ligue. Estou com Ryan Parker, e sabe onde está Larsen. —Lançou um olhar a Ryan—. Onde?

—No prado do sul, a um quilômetro e meio, pela parte de atrás da casa. Há um atalho.

—O prado sul, atrás da casa dos Parker. Eu vou para lá agora. Encontre-se comigo ali, Quinn —disse, e fechou o celular—. Ryan, sei onde fica isso. Não quero que venha. É muito perigoso.

—Mas...

—Não. Fique aqui. Levarei-o onde Gray está e poderá se ocupar de seu cavalo. —Miranda o observou atentamente—. Há algo mais que queira me dizer?

O menino assentiu com um gesto.

—O tio Davy vinha da quebrada, do outro lado do prado. Ao final, há muitas pedras e um arroio.

—Estive ali.

—Não sei por que iria lá em baixo —disse o menino.

Miranda sim sabia.

 

Sentado no salão dos Parker, Quinn Peterson explicava ao juiz Parker sua teoria sobre David Larsen.

—Mas por que têm que falar com Delilah? Vemos o Davy durante as férias e, às vezes, quando saímos a pescar, mas Delilah nunca fala de seu irmão. Tiveram uma infância difícil e não têm uma relação muito estreita.

—Delilah lhe contou alguma vez que seu irmão foi detido por violação?

Richard o olhou como se acabassem de lhe dar uma porrada.

—Não.

—Faz dezesseis anos, no Oregón. Retirou-se a acusação por que a vítima se negou a declarar e Larsen tinha um álibi. Sua irmã.

—Então seguro que Davy não terá tido nada que ver.

— Os seios da mulher foram cortados.

Quinn se deu conta de que Parker começava a entender.

—Mas... Delilah? Protegeu-o? É que... não entendo. Minha mulher não é uma pessoa muito afetuosa, senhor Peterson. Custa aproximar-se dela. Não a imagino mentindo por alguém, nem sequer por seu irmão.

—E se tratar de proteger-se a si mesma?

—Perdão? —O tom de Parker era uma mescla de irritação e confusão.

Enquanto se dirigia ao rancho de Parker, Quinn tinha falado com o Hans Vigo, o especialista em perfis do FBI. Vigo tinha a intuição de que Delilah não só tinha protegido seu irmão quando o acusaram de violação no Oregón, mas também estava ciente de seus crimes em Montana.

—Ele deve caçar na cidade de sua irmã, embora viva a horas de Bozeman —disse Quinn a Parker, repetindo o que lhe havia dito Vigo —. Ou o faz para atormentá-la, como ameaça para que não fale, ou porque esta é sua casa. Se sua mulher não estiver ciente, é evidente que terá suspeitado alguma coisa desde o começo.

Parker ocultou o rosto entre as mãos.

—Meu filho... Deixei que meu filho fosse pescar com esse canalha. Deixei-o comer em minha mesa e dormir em minha casa! Emprestei-lhe uma cabana onde pudesse ficar, paguei sua educação, cuidei dele como de um irmão. —Deu um murro na mesa do café com tanta força que fez saltar os objetos que havia em cima.

Quinn se centrou em um detalhe importante.

—Juiz, diz que lhe facilitou uma cabana?

—A trinta minutos daqui, para o sul. Quase ao chegar a Yellowstone.

—Tenho que vê-la. Pode-me levar?

—Certamente. Qualquer coisa com tanto que ajude.

Nesse momento, soou o celular de Quinn.

—Peterson.

—Ele... anda.

—Miranda? Há má cobertura — alcançou dizer, e a comunicação se cortou.

—É a casa —disse Parker—. Fora terá cobertura.

—Onde está sua mulher agora?

—Saiu depois de que Sam Harris se foi. Estava muito perturbada com este assunto do Davy.

—Sam Harris veio vê-lo?

E Quinn se inteirou do que Sam Harris tinha contado a Parker.

—Sinto muito, juiz, mas tenho que detê-la. Ou tem informação que necessitamos sobre o paradeiro de seu irmão, ou temos que protegê-la. Não posso deixar que ande sozinha por aí. Até que detenhamos seu irmão.

Quinn saiu da casa e chamou o escritório para ordenar a busca e captura de Delilah Parker, e para perguntar se Sam Harris se apresentou. Não tinha se apresentado. Maldito seja. Pediu ao agente ao telefone que informasse a todos os policiais relacionados com o caso que Harris estava oficialmente destituído da investigação e que era procurado por obstrução à justiça. Quinn não podia permitir que Harris seguisse prejudicando a busca do Larsen.

O juiz Parker saiu com ele.

—Vamos? —perguntou Quinn ao juiz.

—Venha, levarei-o. —Subiram a caminhonete da polícia. O agente Jorgensen ia ao volante. Parker deu as instruções para chegar.

—Me diga exatamente onde. Vou chamar uma equipe para que se reúna conosco. —Quinn necessitava todos os homens disponíveis.

Dez minutos mais tarde, acabou todas as chamadas, incluindo uma a seu chefe para lhe informar do ocorrido. Quando fechou o celular de um golpe, soou sua caixa de mensagem de voz. Chamou e escutou.

—Dê meia volta —disse a Parker, com a voz tensa.

—O que? Por que?

—Voltamos para sua casa. Acelera, Jorgensen —ordenou Quinn, e se voltou para Parker—. Seu filho viu ao David Larsen ali, faz menos de uma hora.

 

Davy Larsen observava de uma janela do andar superior enquanto Miranda Moore e um policial rodeavam a casa. Ao cabo de um momento, foram-se.

Mas não voltaram para a entrada. Ao contrário, desceram em direção ao prado.

Ryan, um de seu próprio sangue, tinha-o delatado.

Como podia fazer isso? Acaso não o tinha amado como um irmão maior? A vida do Ryan era perfeita, a vida que ele nunca tinha tido. Mas não importava. Não era que estivesse ciumento nem nada pelo estilo. Não.

Por que ia vê-la, Miranda Moore? Para dizer onde encontrá-lo?

Isso não estava nada bem. Não permitiria que lhe tirassem essa garota. Ashley lhe pertencia, e ainda não tinha acabado com ela.

A Puta partia. O corno. Não a necessitava.

Ela nunca tinha entendido. Ficava ali olhando, excitava-se e se agitava, e nunca o incomodava quando ele era dono da cena. Mas desfrutava e fazia comentários em código.

— Sente-se melhor agora, Davy? —perguntava depois, como se falasse com um menino.

Ele teria querido lhe apagar da cara essa expressão de presunçosa, esse sorriso de suficiência. Como se soubesse algo que ele ignorava. Tinha-lhe chegado a roubar inclusive isso, suas mulheres. Quando ela olhava, reclamava uma parte delas, como se ela fosse a coreógrafa e ele uma simples marionete.

E bem, ele tinha decidido cortar os fios do titereito. Finalmente havia ficado de reunir-se com ela em Missouri essa noite, e dali iriam a qualquer parte. Ele teve que dizer que sim. Se lhe tivesse contado o que ia fazer, ela não teria se separado de seu lado.

Não, essa noite seria a caça. Essa noite seria livre. Reclamaria seu prêmio e seguiria seu caminho. Enquanto durasse o verão, poderia viver durante meses da terra. Era capaz de caminhar inclusive até a Califórnia se precisasse.

Ela nunca o encontraria. Por fim seria livre.

E suas caçadas e suas mulheres por fim seriam suas, só suas.

Saiu da casa tomando todas as precauções e se dirigiu ao prado pelo caminho mais largo. Sabia como chegar até a garota por um desvio.

O primeiro era o primeiro. Seguiria a Miranda Moore. O prazer de lhe cortar o pescoço seria sublime. Quis matá-la justo depois que ela escapasse, mas A Puta disse que não. Como se alegrasse de que uma de suas presas tivesse escapado. Zombou dele, tinha-o provocado, e ele sonhava agarrando-a pelo pescoço com as duas mãos, romper-lhe como quem rompe o pescoço de um frango. Crac. Deixar a beira do caminho e que os pumas dessem conta dela, enquanto os insetos passeavam por sua boca. E seria bem merecido.

Mas, claro, não fez nada. Nesse momento, não. Sempre tinha acreditado que sem ela ele não seria nada. Sem ela, ele teria morrido faz anos. Ela o tinha salvado mais vezes das que podia contar. E lhe estava agradecido. Ele a amava.

Agora a odiava. E aquele ódio aniquilava qualquer sentimento de amor que tivesse albergado por ela.

Ficou olhando pela costa, para a ravina mais abaixo, pensando no momento da execução. Primeiro, Miranda Moore e os policiais. Depois, sua garota.

E logo, sua irmã puta.

De mais abaixo na quebrada chegou o ruído de dois disparos. Sua garota. Estavam-lhe roubando a garota.

A puta pagaria caro!

Desceu a ladeira da montanha a grandes passadas. A caça tinha começado.

 

—Não podemos esperar Quinn —disse Miranda a Booker.

Tinham ido diretamente ao campo do sul com seu jipe. Quando Miranda não viu Quinn, seguiram até a casa.

Ninguém abriu.

Tentou novamente entrar em contato com Quinn, e voltou a sair a caixa de voz. Maldito seja, acaso não tinha chamada em espera?

Miranda respirou fundo. Na montanha a cobertura da telefonia móvel era um desastre. Ela tinha chamada em espera e a metade das chamadas foram diretamente à caixa de voz porque as torres de repetição recebiam sinais confusos. Tampouco ajudava em nada o fato de que o tempo estivesse piorando. A manhã clara e luminosa se converteu em uma palidez cinzenta que cobria toda a face da montanha. Esperavam uma tormenta forte, mas o mau tempo não devia começar até a noite. Miranda confiava que assim fosse.

Quinn não demoraria a chegar. Ela sabia que viria. Mas era uma boa idéia esperar? Entre o tempo que piorava e o fato de ignorar o paradeiro de David Larsen, estava em jogo a sorte de Ashley.

Miranda intuía que estava perto. Tinha que tentar. Se Ashley morresse esse dia na parte da quebrada chamada Ravina da Rocha, sem que ela desse uma olhada, nunca se perdoaria.

Além disso, Lance Booker estava com ela. Era um bom policial e, além disso, um homem forte. Eram dois contra um. E Larsen não sabia que a polícia lhe vinha pisando nos calcanhares. O elemento surpresa era uma vantagem acrescentada.

—Ashley está lá em baixo. Sei — disse Miranda—. Mas se ele sentir a pressão da polícia, poderia matá-la e fugir. Agora mesmo.

-- Temos que chegar a ela antes que isso aconteça. Não podemos esperar ao Quinn nem a minha unidade. —Miranda tinha chamado para que todos os efetivos suspendessem a busca em sua área e fossem a esse ponto, não sem antes lhes advertir que deviam tomar cuidado.

—Tem razão — concedeu Booker.

Ela respirou lentamente. Não estava segura do que teria feito se Booker não tivesse querido acompanhá-la em sua descida a Ravina da Rocha. Mas se queriam seguir os passos de Larsen, tinham que fazê-lo enquanto ainda tivessem luz do dia.

Tirou seu mapa topográfico e o pregou até ter a Ravina da Rocha e a área circundante à vista. O meteu no bolso e olhou pelo pendente do monte. Viu as folhas revoltas e a terra por onde Larsen tinha subido e saudado Ryan.

—Aqui —assinalou a Booker; o coração lhe pulsava com tanta força que temia que o agente ouvisse seu medo.

Era capaz de fazê-lo? Sabendo que podia encontrar-se cara a cara com seu agressor?

Como não ia ser capaz? Se esperasse embora não fossem mais que dez minutos, Larsen poderia chegar antes onde estava Ashley e assassiná-la.

E se Ashley já tinha morrido? Mas não, Miranda intuía que seguia viva. Era muito cedo para sair a caçá-la. Larsen era um presunçoso. Gostava das ter o tempo suficiente para as quebrar. Para as debilitar, de maneira que não tivessem nenhuma possibilidade de sobreviver à caça.

A Miranda não a tinha quebrado. Não a tinha matado. Ela tinha escapado, e agora ia roubar lhe sua presa. Ashley.

Chamou Charlie, o chefe de sua unidade.

—Booker e eu vamos resgatar a Ashley.

Seguiu os rastros de Larsen. Este tinha subido em ziguezague para não correr o risco de cair. Algumas parte eram perigosas. Se começasse a escorregar, não poderia parar até se chocar contra uma árvore.

A Ravina da Rocha era uma quebrada estreita de uns oitocentas hectares que cortava a montanha com um arroio sazonal. As formações rochosas eram um fenômeno geológico incrível. Miranda o tinha visto em suas visitas com a classe do professor Austin. O descida era perigosa, embora eles essa vez escolhessem uma área mais fácil para descer, na face este mais distante da quebrada. Mas para chegar ali, teriam que dar uma volta de quase uma hora em carro.

Descer por esse lado era a maneira mais rápida de chegar ao fundo da quebrada.

Levavam uns quinze minutos descendo a ladeira sem ajuda de cordas. Nem ela nem Booker cruzaram palavra porque não podiam. Miranda já tinha chegado à conclusão de que, em seu estado atual, a Ashley seria impossível escalar essa ladeira. Isso as obrigaria a sair pelo caminho mais longo, o qual significava vários quilômetros pelo leito do rio durante muitas horas.

Possivelmente correndo.

Agora via o fundo da quebrada.

—Booker —disse, e assinalou para baixo —. Temos que encontrar outra maneira de descer.

—Ele passou por aqui —disse Booker.

—Mas ele vinha subindo. Podia usar seu impulso para subir, agarrando-se nas árvores. São quase cem metros até lá em baixo. E os últimos quinze metros são tudo rocha. É muito perigoso. —Ao longo dos anos Miranda tinha visto vários membros de sua equipe lesar-se tentando subir e descer superfícies plainas.

Booker não se via muito contente.

—Pode ser que tenhamos que nos afastar muito para encontrar um lugar melhor.

—Parece mais fácil por lá. Depois voltaremos para trás para chegar lá em baixo. Mas temos que nos apressar. Não sabemos quando vai voltar.

Miranda se virou e começou a caminhar em paralelo à quebrada. A terra molhada debaixo da grosa capa de folhas de pinheiro fazia difícil avançar. Mais abaixo, o ar estava mais frio, e não ajudava em nada que agora se nublou. Quase como se esperasse esse sinal, uma gota gorda de chuva lhe caiu na face.

—Olhe —disse a Booker—. A capa de folhas se torna escorregadia com a chuva.

—Miranda, vivi aqui toda minha vida. Conheço a montanha.

—Perdão — balbuciou ela.

Booker a olhou Sorrindo.

—Desçamos por aqui —disse, assinalando uma parede que não parecia muito mais fácil que a parte que acabavam de deixar atrás. Muitas folhas de pinheiro, umas poucas árvores caídas, rochas que se sobressaíam aqui e lá. E uma descida abrupta.

—Está seguro? —perguntou ela, olhando para onde se dirigiam. Não se via nenhum lugar melhor.

—Totalmente. Vê como ao final o pendente é mais suave? Só há quinze ou vinte metros difíceis.

—De acordo —. Miranda não estava tão segura, mas então lhe caiu outra gota na cara. Estava-lhes acabando o tempo.

Booker desceu primeiro. Ela punha o pé onde ele pisava, com o corpo quase colado contra a parede para não perder o equilíbrio.

De repente, Booker começou a escorregar ao ceder o terreno sob seus pés. Capas e capas de terra solta incapaz de suportar seu peso. A semana seca depois das chuvas tinha deixado o chão úmido, mas solto.

—Lance! —exclamou. Booker tentou controlar a queda mas cada vez escorregava mais rápido, até que começou a rodar.

E caiu ao fundo da quebrada. Meio coberto de ramos e pó, ficou imóvel.

Miranda desceu o monte arrastando-se mais rápido possível. Era mais fácil agora que já não ficava terra solta.

—Lance, encontra-se bem?

Viu que se virava, mas quando chegou ao fundo da ravina, ofegando, era evidente que estava mau.

—O que aconteceu?

—Acredito que fraturei uma costela. Poderia estar quebrada.

Miranda sentiu os batimentos do coração com tal força que pensou que lhe estalaria o peito. Estavam no fundo da ravina. Sozinhos. E o Açougueiro voltaria por alguma hora dessa noite.

Tinha que tirar Booker dali, mas não havia maneira de subir a ladeira. E ficavam uns oito quilômetros pela quebrada até o outro lado. Possivelmente o conseguiriam, se parassem de vez em quando.

E o que aconteceria com Ashley? Como podia abandoná-la estando tão perto? O Açougueiro ia voltar.

—Vá buscá-la —disse Booker, como se lhe lesse o pensamento—. Eu estarei bem.

—Não vou deixá-lo sozinho. É uma de minhas regras... Quando seu companheiro cai, fica até que chega a ajuda.

—Estas são circunstâncias especiais. —Booker se sentou, fazendo uma careta de dor—. Irei contigo até que encontre um lugar onde me esconder.

Miranda o ajudou a levantar-se, imitando sem dar-se conta sua careta de dor.

—Ficará bem, Lance. Mas se te custa respirar, não se mova. Pode ser que tenha uma costela quebrada, e um movimento repentino poderia perfurar o pulmão.

—Agora me dói um pouco menos.

Começaram a retroceder seguindo o leito rochoso do rio até que voltaram a encontrar os rastros de Larsen. Entretanto, com as rochas era difícil ver de onde tinha vindo antes de começar a subir a ladeira.

—Olhe a seu redor, Lance. Vê algo que indique por onde passou? —As gotas de chuva eram agora uma garoa nebulosa. Era agradável, mas logo pioraria a visibilidade.

—Lá —disse Booker, assinalando para o outro lado do arroio, onde essa parte da quebrada estava flanqueada por espessos matagais.

Em efeito, viram uma arvoreta quebrada.

Poderia ter sido um urso ou um puma. Mas era o único rastro que tinham, e o seguiram. Pelos rastros de quão pisadas viram o entrar no bosque, era evidente que por ali tinha passado um predador bípede.

— Está bem?

—Por agora, sim.

Ainda assim, avançavam mais lentamente do que Miranda tivesse querido. Tirou seu rádio e chamou Charlie para lhe comunicar sua situação. Charlie levava dez anos trabalhando na unidade de busca e tinha mais experiência que Miranda. Embora distorcida pela estática, era agradável ouvir sua voz. A equipe de Charlie estava a dez minutos do rancho dos Parker.

Isso significava que demorariam ao menos uma hora em chegar ao fundo da quebrada.

—Charlie, cambio e desligo.

—Entendido, toma...

—Espera.

Tinha-o visto. O barraco.

—Miranda?

—Está aqui. Acredito que encontrei Ashley. Vou comprovar.

—Faz com cautela. Desligo.

A desmantelada construção de madeira estava como curvada pelo passar do tempo e pelos invernos frios e úmidos de Montana. O teto de zinco tinha partes oxidadas mas, a diferença do barraco da Rebecca, esta tinha ao menos uma janela.

Miranda gritava em silencio por todos os poros de seu corpo.

—Tome cuidado! —Poderia estar aí. David Larsen, o Açougueiro.

—Miranda — sussurrou Booker. Estava justo atrás dela. Tinha empalidecido e suava copiosamente.

—Tem que te sentar —disse ela, em voz baixa.

—Não posso. O que fazemos se estiver dentro?

—Me servirá de apoio.

Desencaparam suas armas. A Miranda não tremiam as mãos, e isso a surpreendeu, embora tinha arrepiados todos os cabelos da nuca.

Sustentando a arma com ambas as mãos, aproximou-se com cautela do barraco. Booker lhe fez um sinal para que fosse por um lado enquanto ele ia pelo outro. Ela assinalou a janela. Ele assentiu com um gesto da cabeça e ela se situou por debaixo, tentando controlar sua respiração. Estava quase ofegando, sentindo um medo desbocado e a flor de pele.

Agora não. Por favor, agora não. A vida de Ashley dependia dela. Se falhasse...

Não. Não podia falhar. E não falharia.

Lentamente, inclinou-se para olhar dentro do cubículo. Quando seus olhos se acostumaram à escuridão do interior, viu uma mulher nua atada sobre um colchão imundo no meio do chão. Seu cabelo loiro parecia negro de sujeira e sangue.

Sharon.

A dor, a raiva e a humilhação voltaram como uma onda que a sacudiu e a fez cair de joelhos. OH, Meu Deus, por quê? Por que criaste este monstro?

Mas aquela garota não era Sharon. Era Ashley. E Ashley a necessitava.

E se já estivesse morta?

Miranda respirou fundo e se levantou. Voltou a olhar pela janela. Enquanto esquadrinhava a escuridão, viu que o peito da mulher subia e baixava. Estava viva. Possivelmente havia um Deus, depois de tudo.

E então Miranda viu que Ashley não estava sozinha.

Estava a ponto de disparar ao homem através da janela. Encontrava-se estendido junto a Ashley, como desfrutando da violação recém consumada. Dispararia-lhe, cortaria-lhe os ovos e os colocaria até a garganta. Dominada pelo ódio e a raiva, levantou a pistola.

Deteve-se quando viu brilhar algo metálico. Tentou lhe ver a cara, mas era impossível. Estava imobilizado, amarrado com cordas, com as mãos e os pés atrás das costas.

Era um corpo familiar. Cabelo escuro, camisa bege.

Era Nick!

E estava vivo!

 

Miranda se apressou a rodear o barraco. Maldita seja, a porta estava fechada com uma corrente.

Começou a dar golpes na porta.

—Nick! Nick, é Miranda! Vou disparar no cadeado e a os tirar daqui.

Respondeu-lhe uma voz apagada, mas Miranda não entendeu o que dizia. Ashley lançou um grito, entre dolorido e jubiloso.

—Booker! Onde está? —Miranda olhou a ambos os lados, mas não o viu.

—Aqui. —A voz vinha do outro lado do barraco, e se notava débil. Miranda temeu que sua ferida fosse mais grave do que dava a entender.

—Nick está dentro do barraco com Ashley. Vou tirá-los. Não vejo Larsen por nenhuma parte, mas mantém os olhos bem abertos.

Silêncio.

—Lance? Está bem?

—Estarei bem. Só necessito um minuto.

Porra. Agora tinha dois policiais gravemente feridos e a uma garota. O primeiro era o primeiro, tinha que liberar Ashley, e logo pensaria em uma maneira de tirar todos daí.

Miranda apontou ao cadeado. Necessitou duas balas para abri-lo, e logo deu um chute na porta.

O fedor a sangue, a sexo violento e a refugos humanos foi totalmente, asqueroso e familiar. Teve uma ameaça de náuseas e virou a cabeça. Ela e Sharon tinham vivido em uma sujeira igual a essa.

Ficou paralisada. Queria entrar e comprovar que Nick se encontrava bem. Mas sentia os pés carregados de chumbo, como se os tivesse calçados em cimento. Quanto mais tentava movê-los, mais pesados se voltavam.

Começou a tremer. Com apenas pensar em cruzar a soleira daquele espaço que já começava a encolher-se, sentiu que lhe intumescia todo o corpo. Sua visão periférica começou a reduzir-se lentamente.

Não. Agora, não. Por favor.

Caiu de joelhos. Posso fazê-lo. Posso entrar. Salvá-los.

Não, não posso. Sou débil. Venceu-me. Voltará e acabará o que começou. Matou Sharon e eu escapei. Não pude salvá-la. Agora nem sequer posso salvar a mim mesma.

—Miranda?

Era a voz do Nick. Rouca e pastosa.

—Miranda! —Seguia sendo pastosa, mas em tom de ordem.

—Nick, eu... —Respirou fundo. Se não se tranqüilizasse, acabaria sofrendo um ataque de nervos.

—Preciso de você. Ashley a necessita. Entra de uma vez. Esse homem está a ponto de voltar.

Depois de tantos anos, o Açougueiro conseguiria vencê-la. Ele a tinha convertido em uma claustrofóbica. Tinha-lhe inoculado o medo.

—Eu... não posso.

—Sim pode, Miranda. Eu sei que pode. Confio em você. Respira fundo. —Nick balbuciou algo e tossiu, esforçando-se para pronunciar cada palavra—. Você pode —disse, finalmente, com fôlego entrecortado.

Ela podia, não? Podia vencer seu medo. Tinha que vencê-lo. Por Nick. Por tudo o que ele tinha feito por ela, por seu apoio e sua coragem e sua amizade. Não tinha chegado até ali para falhar.

E, além disso, amava Nick. Agora via com grande claridade a diferença entre Nick e Quinn. Amava-os aos dois. Nunca se tinha dado conta disso. Mas podia amar a dois homens. A um como amante, ao outro como irmão.

Respira. Espira. Respira. Espira.

Voltou a respirar fundo e se obrigou a entrar na habitação que não parava de encolher-se. As paredes começaram a curvar-se para dentro, e a cada passo que dava se estreitavam mais. Sentiu o peito totalmente apertado. Não ficava ar.

Agora não, não.

Tremendo, agarrou a corda que atava Nick. Seus dedos tentaram desfazer os elaborados nós. As paredes se aproximaram, como querendo agarrá-la.

—Miranda — disse Nick, com voz rouca.

—Tirarei-o daqui. —Sua voz soava débil e tremia dos pés a cabeça. Concentrou-se nos nós. Se se ocupasse em desatá-los, esqueceria-se das paredes que se estreitavam, da fetidez, das lembranças da violência. Tinha que esquecê-lo. Por Nick. Por Ashley.

Por si mesma.

—Esqueça de mim. Tira Ashley daqui. Depois envia alguém para me buscar.

—Não posso, Nick. O Açougueiro é David Larsen, o irmão de Delilah Parker. A polícia não pode encontrá-lo, mas o viram perto daqui. Não posso deixá-lo. Virá de noite. —Ou até antes.

—Não acredito que possa sair daqui —disse Nick, com um fio de voz.

—Não o abandonarei. —Miranda teve que tragar o medo e a vergonha ante a possibilidade de falhar, e seguiu concentrada nos nós para não pensar no pequeno que se tornou a choça desde que tinha entrado—. Pensávamos que tinha morrido.

—Cometi um engano.

—Depois me contará —disse ela.

Maldito seja, os nós eram complicados e estavam muito apertados! Sua faca. Por que não lhe tinha ocorrido antes? Não as tinha todas consigo. A habitação a estava afogando e agora suava, como saturada por seu próprio pânico.

Se não se apropriava da situação, Ashley e Nick morreriam. E se não encontrava uma maneira de sair dali, ela e Lance Booker acabariam lhes fazendo companhia.

Entretanto, os números davam certa segurança. Quatro contra um, embora três estivessem em condições menos que aceitáveis.

Tirou sua faca e cortou com cuidado as cordas para não machucar Nick. Demorou um minuto e o conseguiu. Depois começou a desatar Ashley.

-- Vai nos matar —soluçava a garota.

-- Não, não deixarei —disse Miranda, e lhe tirou a apertada venda dos olhos. A garota tentou abri-los, mas não pôde—. Não se esforce. Espera um minuto.

—Não! Virá! E me agarrará!

—Eu escapei de suas mãos uma vez. Voltaremos a fazê-lo, você e eu. —Miranda desejava estar tão segura como soava—. E logo pagará pelo que te tem feito.

E pelo que me tem feito também, acrescentou para si. Ashley era tão miúda que Miranda pôde levantá-la.

— Não! Não! —gritou.

—Tenho que a tirar daqui, Ashley. Tem que se mover. Miranda a levou até a porta e a deixou no lado de fora. A garota, que não parava de soluçar, estava toda coberta de sangue ressecado e feridas. Era como olhar em um espelho de fazia doze anos. Miranda tragou com dificuldade e em seus olhos brotaram lágrimas. A garota cobriu os seios com o braço, mas Miranda não tinha que ver o dano que tinha sofrido. Baixou o olhar e se deu conta de que ela também se cobria os seios. Deixou cair as mãos como se estes a queimassem.

Queria dizer a Ashley que ficasse calada, que ele as ouviria. Mas a verdade é que ignorava quão longe ou quão perto da choça se encontrava David Larsen. Se ia acudir essa noite... ou nesse mesmo momento.

Desprendeu-se da mochila, abriu-a e tirou o pulôver que levava dentro. O pôs na garota. Depois, passou-lhe uma garrafa de água.

—Bebe, devagar — disse.

Ashley a agarrou, sem deixar de soluçar, aconchegada dentro do pulôver muito grande.

Miranda agarrou dois pares de meias grossas e se ajoelhou junto a Ashley.

—Tem que cobrir os pés para recuperar o calor.

—Não me toque!

—Ok —disse, e lhe deu as meias. Como um animal espantado, Ashley os colheu com um gesto rápido e os levou ao peito—.Ponha isso Os dois pares.

Procurou Booker com o olhar e não o viu.

—Lance! —chamou, com voz tensa.

—Estou aqui —ouviu uma resposta apagada. A voz vinha de um lado do barraco. Não tinha se movido desde que Miranda tinha entrado. Miranda levou Ashley até onde estava Booker apoiado contra a parede do barraco. Deixou à garota no chão e se virou para ele.

—Por que não me disse que estava tão mal? —perguntou, e lhe levantou a camisa. Viu que tinha o peito ferido e inchado. Tocou-lhe apenas as costelas e ele mordeu os lábios para não gritar, com o rosto contorcido pela dor.

—Tem ao menos uma costela quebrada.

Lance custava para respirar, e Miranda se preocupava que tivesse um pulmão perfurado.

—Nick, não podemos deixá-lo aqui.

—Encontra-se bem? —perguntou Booker.

Miranda olhou por cima do ombro e franziu o cenho. Pensava que Nick tinha saído atrás dela.

—Não sei. —girou-se para Lance—. Chama por rádio, transmite as coordenadas e pergunta a que hora aproximadamente chegarão os reforços. Diga-lhes que precisamos transportar feridos totalmente imobilizados. Vou tirar o Nick — disse, e voltou para a entrada.

Nick seguia deitado no chão. Miranda não se deu conta de quão ferido gravemente estava. Respirou fundo, vacilou um momento e voltou para interior daquele espaço asfixiante. Ajoelhou-se junto a ele.

—Nick, se levante.

—Não posso. A cabeça. Não vejo nada.

—Tirarei-o daqui, mas terá que me dar uma mão. Pode caminhar?

—Suponho que sim.

Demoraram vários minutos, um tempo precioso, em sair com Nick do barraco. Miranda o deixou sentado junto a Booker.

Nick tinha a cabeça coberta de sangue ressecado. Estava quente ao tato. Muito quente. Tinha o olhar desfocado. Tinham-lhe dado um forte golpe na cabeça. Era provável que fossem os sintomas de uma infecção.

Não havia maneira de que pudesse sair da quebrada por seu próprio pé.

Necessitava urgentemente ajuda médica.

—Miranda, vá. Agarra Ashley e vá daqui antes que volte.

—Não posso ir e o deixar aqui sozinho. O matará. —Mas não via outra solução.

—Estou dando uma ordem, Miranda.

—Não me venha com suas ordens! —exclamou ela. Apoiou a cabeça nas mãos e respirou fundo —. Porra, Nick, pensei que tinha morrido, estava destroçada. Não me faça isto. Nem te ocorra fazer alguma tolice.

Ele fechou os olhos e suspirou.

—Não poderei sair daqui caminhando, Miranda.

Tocou-lhe a cabeça ali onde tinha uma ferida ressecada, profunda e ensangüentada.

—Nick, tem febre. Necessita um médico.

—Pois chama um quando voltar à cidade.

—Lance, com quem falou? A que hora chegarão?

—Falei com Charlie. Demorarão entre quarenta e quarenta e cinco minutos.

O que podia fazer ela? Carregar dois homens ao longo de alguns quilômetros de terreno rochoso e aberto? E Ashley?

Possivelmente David Larsen estivesse a ponto de chegar. Não podiam ficar ali sentados esperando uma equipe de resgate. Ele os agarraria um a um. E ela não estava disposta a deixar ninguém para trás. Quando voltasse com ajuda, seria muito tarde.

Lançou um olhar à garota, que seguia encolhida, agarrando os joelhos, balançando-se sem parar. O pulôver verde escuro que Miranda lhe tinha passado para abrigar-se e cobrir a cobria inteira.

Tinha o rosto cheio de hematomas, o cabelo imundo e enredado. Cheirava a sua própria merda. Os cortes e feridas em todo o corpo ficavam ocultos, mas Miranda os tinha visto e sabia que Ashley estava emocional e fisicamente destroçada. Miranda conhecia esse inferno onde ela tinha estado. Entretanto, com o tempo, suas feridas se desvaneceram, todas e cada uma delas.

Ashley lhe deu forças. Aquela garota a necessitava. Não podiam ficar sentadas esperando que chegasse alguém a lhes ajudar. Sobre tudo se não sabiam onde estava Larsen.

Mordeu o lábio e olhou a seu redor. O barraco estava no extremo fechado da quebrada. A uns vinte e cinco metros de onde se encontravam, estreitava-se, e não seria fácil sair. Para o outro lado, encontravam-se se alargava até centenas de metros, em algumas parte, e se estreitava a menos de dez metros em outras. Entretanto, ela sabia perfeitamente onde desembocava. Aí mesmo, havia poucos lugares onde ocultar-se. Certamente, não havia lugar para quatro pessoas adultas.

Miranda não podia deixar ali os homens feridos e Ashley enquanto procurava um bom esconderijo até que chegassem reforços. Nick e Lance não chegariam muito longe.

Voltou-se para o Nick.

—Toma — disse, e passou sua segunda pistola.

—Não quero ficar com sua arma.

—Tenho outra, Nick, e não irei se não a pegar. —Agarrou-lhe a mão e o obrigou a empunhá-la. Ele a manteve assim.

Miranda colocou seu mapa em um saco de plástico para impedir que a chuva o empapasse e indicou a Booker a rota que seguiria.

—Vou para o leste seguindo a quebrada. Aqui dobra para o sul. São muitos quilômetros, até chegar perto do Big Sky, mas eu conheço um atalho na curva que nos levará até... —assinalou— ... aqui. —Olhou de Lance a Nick—. Seguirei o curso do leito rochoso todo o possível, mas para ocultar nosso passo possivelmente tenhamos que subir por alguma ladeira. Levo o rádio, mas o fixarei em sessenta e quatro. Ok? Isso significa silêncio? Nada de falar. O melhor que podem fazer é seguir com vida.

Miranda olhou a seu redor e assinalou a uns quinze metros monte acima.

—Lance, vê essas rochas mais acima? Ele seguiu a direção de seu dedo.

—Sim.

—Pode levar Nick até lá encima?

—Acredito que sim.

—Tem que fazê-lo. Aqui os dois são um alvo perfeito. Subam até lá e se escondam. Chama Charlie e lhe conta o plano. Se virem o Larsen, chamem a minha freqüência e me digam quanto tempo tenho. —ajustou o rádio —. Se o vir... disparem para matar.

Não era o melhor plano, mas lhes acabava o tempo.

—Está bem? —perguntou a Nick, lhe apertando a mão.

—Bem.

Miranda olhou seu relógio, e secou a garoa do rosto. 16h35min. Fazia só quinze minutos que tinha divisado a cabana. Parecia uma eternidade.

Tinham quase cinco quilômetros que percorrer antes do por do sol. Não chegariam antes dessa hora, embora corressem todo o caminho.

—Ashley, temos que ir.

—Não posso. Deixe-me ficar com eles.

—Ele a buscará. —Além disso, mal havia espaço suficiente nessas rochas para esconder dois homens.

Miranda pôde enfrentar seu medo no barraco e vencer. Se ela podia com sua claustrofobia, era evidente que podia libertar Ashley. Mas só se a garota colaborasse.

—Vamos — disse.

—Não posso — disse Ashley, sem parar de chorar, com as lágrimas lhe banhando as faces.

—Sim pode. Não deixe que ele ganhe.

—É mais forte do que acredita, Ashley —disse Nick.

Algo em seu tom de voz fez que Miranda se voltasse. Nick tinha os olhos fechados, mas ela viu por sua expressão que estava preocupado. E mais que preocupado. Era como um mudo entendimento. Ele sabia. Tinha estado ali estendido, tinha sido testemunha da violação de Ashley. Miranda se aborrecia que tivesse tido que acontecer.

Entretanto, pela primeira vez em sua vida, não se deteve a pensar nesse passado tão longínquo. Tinha escapado do Açougueiro então, e agora voltaria a burlá-lo.

—Temos que ir — repetiu—. Lance, não se esqueça de chamar Charlie assim que lhes tenham escondido na ladeira.

—Não se preocupe.

Ashley gemia e se sacudia com cada soluço. Mas parecia resignada a ir com o Miranda quando se levantou penosamente, com os braços ainda cruzados sobre o peito.

Miranda se virou pela última vez para olhar Nick e pegar a mochila.

—Espero te encontrar vivo quando chegar ao final desta quebrada.

 

Quinn inspecionou a residência dos Parker com o agente Jorgensen, enquanto outros dois policiais procuravam nos arredores

—Espaçoso —avisou.

Richard Parker tinha um aspecto fantasmagórico, com a cara gasta, quando Quinn voltou a sair ao alpendre.

—Poderia ter matado Ryan. Poderia ter matado Delilah.

—Ryan está a salvo —recordou Quinn—. Enviei um agente a casa do Bill Moore para cuidar dele. Todos outros saíram a procurar o Delilah e David.

—Ela não sabia. Não pode ter sabido.

Parker não parava de repetir aquela cantilena no carro até que a Quinn deu vontade de lhe dar um murro.

—Agente Peterson!

Um dos agentes de Nick se aproximou correndo. —Estávamos investigando no campo do sul como você disse e escutamos disparos ao longe na quebrada.

—Onde?

—Resulta difícil sabê-lo pelo eco, mas o mais seguro é que seja lá em baixo, no fundo. Vê-se que várias pessoas desceram pela ladeira; nota-se na terra removida e na vegetação. —O agente secou a testa. A garoa aumentava sem parar, embora ainda não era uma chuva em toda regra.

Aproximaram-se algumas caminhonetes pelo caminho de entrada. Quinn reconheceu o condutor do primeiro. Era Charlie. Não esperou que descesse, e foi reunir se com ele junto ao estábulo.

—Acabo de falar com Lance Booker — disse Charlie—. Encontraram à garota. E, o que te parece? Nick está com ela.

Quinn deu um murro sobre o capô da caminhonete de Charlie. Como tinha ocorrido a Miranda descer sozinha essa quebrada? Dava-lhe igual se um agente a acompanhasse. Miranda não era nem policial nem agente federal. Por que tinha descido?

E, de repente, entendeu. Queria salvar a Ashley. Ele teria feito o mesmo.

—Vamos ao campo. Eu irei contigo. Necessitaremos o quatro por quatro se a chuva piorar.

—Piorará — avisou Charlie.

O trajeto foi breve mas acidentado. Assim que se detiveram, soou a rádio de Charlie.

—UBR, UBR, há alguém aí? — UBR eram as siglas de Unidade de Busca e Resgate, a unidade de Miranda.

Charlie respondeu.

—Recebido. Aqui, Charlie Daniels.

—Charlie, sou Lance Booker. Chamo para dar coordenadas. Pode anotá-las?

—Adiante — disse Charlie, com lápis e uma caderneta na mão. Booker transmitiu as coordenadas. Quando acabou, Quinn agarrou o rádio.

—Booker, é o agente Peterson. Me ponha com a Miranda.

—Não posso, senhor.

—Por que diabos?

—Não havia suficiente lugar para nos esconder todos aqui e levou Ashley quebrada abaixo.

—Se explique.

Quinn fechou os olhos quando acabou de falar por radio com Lance Booker. Maldita seja. Miranda não tinha outra alternativa. Tampouco havia onde escolher. Mas fugir com uma mulher ferida e assustada...

—Vamos. Booker diz que demoraremos uns quarenta e cinco minutos em chegar à quebrada.

—Cortaremos esse tempo pela metade. Alguma vez fez rapel?

 

Davy ficou olhando a porta aberta. Uma fúria vermelha explodiu em seu peito, enchendo até o último vaso sangüíneo de um ódio poderoso.

Essa puta tinha roubado sua garota.

Onde tinham ido?

Era uma puta esperta. Não subiria pela quebrada. O terreno ali se voltava mais escarpado e estreito. Era uma armadilha. Não tinha caído em suas armadilhas antes. Seguindo pela Ravina da Rocha para baixo chegariam perto de Big Sky. Era difícil caminhar pelas rochas, e teriam que cruzar vários arroios. Com as chuvas da semana anterior, estes desciam carregados. Pelo menos lhes chegaria à cintura. Isso as faria perder tempo.

Ela não poderia carregar a garota montanha acima. Era muito escarpado. Ele tinha escolhido esse lugar porque qualquer um que fosse para o oeste se veria apanhado. Queria encurralar essa garota. Olhá-la nos olhos quando visse que não havia escapatória. Correria para ele? Ou se encolheria de medo ante a montanha que nunca poderia escalar?

Ao contrário, a puta tinha que havê-la levado ravina abaixo, o que tirava seu atrativo esportivo. Que mérito tinha lhes disparar em campo aberto? Já o tinha feito antes.

Agora queria algo novo.

Aquela puta pagaria pelo que tinha feito. Deveria ter matado Miranda Moore fazia doze anos.

Obrigaria-a suplicar misericórdia antes que lhe arrancasse o coração.

 

Miranda fez uma careta ao escutar o rádio. Tinha baixado o volume, mas ouviu igual.

—Aqui, Moore — disse, esperando que o aparelho não emitisse eco. A chuva caía com força e ajudava a amortecer o ruído, embora se o Açougueiro lhe seguia os passos teria que tomar todas as precauções. Avançavam coladas à ladeira direita para não mostrar-se em terreno aberto, mas a chuva convertia a terra em um lodaçal. Miranda levava botas de escalar e, ainda assim, caiu uma vez. Teve que recolher Ashley mais vezes das que podia contar. Em sua opinião, não avançavam bastante rápido.

—É Booker. O Açougueiro veio e se foi, faz uns noventa segundos, a passo rápido. Não o via contente.

A voz de Booker chegava distorcida.

—Recebido.

—Ia disparar, mas não encontrei ângulo.

—É preferível manter-se escondido. Se tivesse errado o primeiro disparo, teria sabido onde estavam. Como está Nick?

—Passa momentos consciente e depois desmaia. Estava falando com ele para mantê-lo acordado, até que vi o Larsen e tive que guardar silêncio. Depois desmaiou.

Porra. Nick necessitava atenção médica, já.

—Falei com Peterson —seguiu Booker—. Agora estão descendo.

Bem. Ao menos tinha reforços.

—Vou apagar meu rádio — disse ela—. Não quero ruídos. Cambio e desligo.

Olhou Ashley. Aquela garota não sabia o significado da palavra silencio. Cada vez que tropeçava, começava a gritar e depois começava a chorar como se fosse morrer.

Miranda não podia culpá-la. Ashley estava morta de medo. Sabia que sorte tinha corrido as demais vítimas do Açougueiro. Ela mesma tinha sofrido suas perversões na própria carne os dois últimos dias.

Entretanto, tinha que explicar as coisas da vida —e a morte— a Ashley van Auden.

Apagou o rádio e o meteu no bolso. Ashley parou sobre uma rocha cortante e caiu de joelhos.

—Auch! —exclamou, soluçando com a cara apoiada no chão.

Miranda levantou Ashley, com todos os músculos esticados ao máximo. Embora Ashley fosse vários centímetros menor e alguns quilogramas mais leve que ela, estava empapada. Com o peso da mochila e a água, Miranda se sentia torpe e lenta.

A chuva tinha lavado o corpo de Ashley, eliminando assim o sangue e o aroma corporal, deixando só o aroma do pulôver de lã molhada e do medo. Porque o medo que despedia era evidente.

Ou acaso era seu próprio terror?

Miranda levou a garota até um grosso pinheiro ponderosa e a firmou contra o tronco.

—Me escute, Ashley —disse, com sua voz mais severa.

— Nos matará —a interrompeu Ashley—. Você sabe. Sabe que nos perseguirá. Ouvi-o. Ouvi-o em seu rádio. Disse-o esse policial. Vem nos matar. Vamos mo... morrer.

Miranda agarrou Ashley pelos braços e a sacudiu com firmeza.

—Cale-se. —Não queria perder a paciência, mas o coração lhe pulsava descontrolado. Não tinham tempo. Larsen estaria cobrindo o terreno que os separava três ou quatro vezes mais rápido que elas. Embora contassem com essa vantagem inicial de vinte minutos, já não ficariam mais de dez. E só se seguiam avançando.

Se corriam.

Não. Nada de seguir correndo. Acabaria aqui e agora.

A chuva aumentava. Miranda deu um olhar a seu redor. Podiam aproveitar do terreno.

Encontravam-se em uma parte larga da quebrada. As rochas estavam como amontoadas no centro, e um arroio esquálido corria pelo lado norte e sul das rochas. Embora a ladeira sul era mais escarpada, havia mais árvores caídas. Melhores lugares onde esconder-se.

-- Ashley!

-- Por que me trata tão mal? Não me entende —disse a jovem. —Em seus lábios feridos gravemente se desenhou um bico e as lágrimas rodaram pelas faces —. Você não sabe nada. Solte-me!

Miranda não a soltou.

—Sabe quem sou?

—Miranda —disse Ashley, com voz tremula.

—Sou Miranda Moore. Em uma ocasião, escapei desse canalha. Não deixarei que me mate. Nem a mim nem a você.

Miranda ficou surpreendida de quão contundente soava. Interiormente, parecia uma confusão. Não tinha idéia do que aconteceria quando visse Larsen. Não sabia se ficaria paralisada, se lhe entraria o pânico ou se chiaria enfurecida.

Mas sim sabia uma coisa: que não podiam ir mais rápido que ele. E que, esta vez, ela tinha uma arma e estava fisicamente em forma e, o mais importante, que tinha o fator surpresa a seu favor.

Não voltaria a ser a vítima.

Ashley piscou, insensível aos fios de chuva que lhe corriam pelo rosto. Tremia de frio, mas, aparentemente, não se dava conta.

—Promete? —perguntou, com uma vozinha infantil.

— Que Deus me ajude, mas terá que me matar antes que o deixe te tocar. Mas tem que fazer exatamente o que digo. Exatamente.

Ashley assentiu com a cabeça, lentamente.

—Ok.

Dez minutos. Tinha dez minutos para ver se seu plano funcionava.

Ou Quinn a encontraria morta.

 

Quinn ajudou Charlie a tirar os equipamentos de montanhismo das caminhonetes no alto da montanha. Desceriam diretamente fazendo rapel, com o qual economizariam muito tempo em chegar ao fundo. Só tinham duas cordas bastante longas, assim Quinn e Charlie desceriam primeiro, seguidos por outros agentes.

—Dez minutos, no máximo —disse Charlie.

Estavam a ponto de começar a descer quando soou a rádio do Charlie.

—Aqui Charlie.

—Sou o agente Booker. Larsen acaba de passar pelo barraco e seguiu na mesma direção que Miranda. Já lhe avisei. Agora tem o rádio apagado.

Merda. Quinn queria falar com ela, saber exatamente onde se encontrava. Inteirar-se de como estava agüentando. Dizer-lhe que cobrisse as costas. Comunicar-lhe confiança em sua força e perseverança.

Sobre tudo queria ouvir sua voz.

—O xerife Thomas está mal — disse Booker—. Necessita um médico.

—Mandaremos o paramédico em seguida depois de nós —disse Charlie—. Vinte minutos.

—Recebido.

Charlie se voltou para o Quinn.

—Vamos.

Quinn estava em boa forma física, mas descer por uma parede fazendo rapel requeria o uso de uns músculos que ele ignorava ter preparados. Quando chegaram embaixo, estava sem fôlego.

Mas não podiam deter-se. Deu uma olhada à paisagem da quebrada. Onde estava Miranda?

Onde estava Larsen?

Charlie chamou Booker, e soube que ele e Nick se encontravam a uns trezentos metros para o oeste.

—Ok, Booker. Agüenta. A equipe médica está a ponto de chegar.

Charlie se virou para o Quinn e assinalou o chão.

—Olhe.

A chuva caía cada vez com mais força, e Quinn mal podia ver seus pés. E então viu o mesmo que Charlie.

Uns rastros profundos entre as folhas que se dirigiam ao leito rochoso.

— Por aqui — disse Quinn.

 

Miranda intuiu a presença do caçador antes de vê-lo.

Não sabia exatamente como se deu conta de que não estavam sozinhas nessa parte do bosque, mas de repente o ar úmido se voltou elétrico, a cortina cinza da chuva se fez mais densa e seus ouvidos captaram todos os ruídos. O da chuva que tamborilava sobre as rochas no arroio mais abaixo, cujo caudal seguia crescendo; e os gemidos suaves das árvores balançando-se na tormenta.

Seu próprio fôlego entrecortado.

Tinha tentado cobrir seus rastros, mas era quase impossível com o limitado tempo de que dispunha para levar seu plano à prática. Esperava que Ashley guardasse silêncio. Era o único que tinha que fazer. Esconder-se e estar calada.

Doze anos antes, Miranda tinha se zangado com Sharon enquanto fugiam do Açougueiro. Cada vez que Sharon gritava, ela se encolhia de terror, temendo que sua amiga atrairia o Açougueiro direto para elas. Que ele as alcançaria e as mataria.

Era o que Sharon fazia.

Os tempos tinham mudado. Apesar de que Miranda fazia uma careta cada vez que Ashley gemia, agora entendia. Como podia julgá-la com tanta dureza por seu medo?

Era o mesmo medo que se apoderava dela, que arrastava-se pelas costas, passo a passo, minando sua determinação.

Teria que ter seguido. À larga, Larsen as teria alcançado. Mas possivelmente não. Ela teria que ter ficado com Nick. Se tivesse olhado mais atentamente, possivelmente teria encontrado um lugar melhor onde ocultar-se. Ou se teria ficado no barraco, esperando que ele entrasse.

Tinha que deixar de duvidar de si mesma. Seu medo aumentava porque ele se aproximava.

Maldito seja, onde estava? Já teria que ter aparecido.

Seguro que não cometeria o engano de passear pelo centro da quebrada. Não, seguiria seus rastros, manteria-se perto das árvores para contar sempre com o elemento surpresa. Miranda tinha semeado rastros falsos no lado norte da quebrada, na ribeira oposta aonde se escondia agora.

Supunha que, graças a sua camuflagem, Larsen se confundiria com a vegetação. Com todos os músculos endurecidos pela tensão, esperou, sem deixar de esquadrinhar.

Ali.

Um movimento a sua esquerda. Leve. Justo frente ao esconderijo de Ashley. Olhou e não viu nada. Possivelmente era a chuva a que distorcia sua visão periférica.

A luz estava a ponto de desvanecer de tudo sob os céus cinza. A visibilidade era mínima. A armadilha era uma má idéia. Não conseguiria distingui-lo.

Mas possivelmente funcionaria. Ele passaria de comprimento, e ela e Ashley ficariam quietas até que chegasse Quinn.

Sim. Isso seria o melhor.

Longe, a sua esquerda, percebeu um movimento. Porra. Ashley! Baixa a cabeça. Fica quieta. Acaso não tinha escutado suas instruções? Não se mova. Fica agachada. Nem sequer olhe.

Justo diante dela, a uns doze metros, viu-o. Estava totalmente quieto. Ela tinha deixado um rastro que seguia uns sessenta metros além de seu esconderijo, antes de voltar atrás. Por que tinha se detido ali? Tinha ouvido algo? Cheirado algo?

Tinha visto Ashley no interior da árvore podre onde Miranda a tinha escondido?

Merda. O que o tinha alertado?

Começou a lhe entrar o pânico. Era impossível que soubesse onde estavam escondidas. Nem ela nem Ashley.

Por favor, Ashley, não se levante. Não faça ruído, por favor. Larsen escutava. Estava tão quieto que se Miranda não tivesse sabido que se encontrava ali, teria se perguntado se não o tinha imaginado. Mas o tinha visto por um instante e, se enfocava, distinguia sua silhueta.

Corram! Corram!

Não, esta vez não poria-se a correr. Ficaria ali mesmo, atrás das rochas mais baixas. Estava estendida sobre o ventre, olhando de cima. Observando, com o olho posto no Açougueiro. Estava muito longe para tê-lo como alvo seguro. E não podia permitir-se errar. Um só disparo perdido e ele daria meia volta e viria por elas. Sabendo onde estavam.

Segue adiante, Larsen. Segue.

Seu plano era voltar sobre seus passos uma vez que Larsen passasse. Nos dez minutos que tinha tido para planejá-lo, decidiu que a melhor armadilha consistia em não deixar-se apanhar. Que ele passasse e então elas voltariam o mais rápido possível onde estava Nick. Em algum momento, antes de chegar a ele, encontrariam-se com Quinn e os outros.

Sua primeira responsabilidade era proteger Ashley, não capturar o Açougueiro. Entretanto, apesar desse medo, queria detê-lo. Agora. Não lhe dar nenhuma oportunidade mais de machucar uma mulher.

Mas seu trabalho lhe exigia que tirasse Ashley do monte e a pusesse a salvo, e ela tomava muito a sério.

Segue adiante. Venha, venha! que esperas!

Ele ficou quieto, sem mover nem um músculo. Por que?

Embora não via Ashley, Miranda percebia seu pânico.

Tudo ocorreu como a câmara lenta. Ashley mostrou a cabeça fora do tronco. E voltou a ocultar-se.

Larsen se virou completamente e ficou olhando o tronco. Levantou o rifle.

Ashley gritou e saiu se arrastando da árvore morta. Miranda apontou com sua pistola a Larsen. Este pôs um joelho em terra e girou seu rifle para Ashley.

Miranda disparou uma, duas, três vezes.

Larsen caiu ao chão. Tinha-lhe acertado?

Ashley voltou a gritar e Larsen se arrastou pelo chão apoiando-se nos antebraços. Fez girar o rifle e disparou em Ashley.

—Ashley, se abaixe! —gritou Miranda, ao mesmo tempo em que disparava três vezes mais contra Larsen. Mas ele pôs-se a rodar, longe de seu alcance e desapareceu atrás de uma rocha.

Merda! Onde tinha se metido?

Ashley chegou dando tropeções ao ponto onde se escondia Miranda.

—Sinto muito, sinto muito. Acreditei que tinha me visto. E que tinha que correr. Sinto muito.

—Shh. Cala.

—Sinto muito.

—Cale-se —ordenou Miranda. Tinha que pensar. Ficou olhando a rocha, a uns doze metros. A visibilidade era tão escassa que não podia ver mais à frente. Havia se protegido do outro lado? Tentaria agarrá-las pela direita? Pela esquerda? Por atrás?

Ele tinha que saber onde estavam. Mas Miranda não se atrevia a mover-se.

Esperaria-o. Não tinha outra alternativa.

 

Passou um minuto.

Miranda não se moveu. Apenas se atrevia a respirar. O único ruído que ouvia além do tamborilar constante da chuva eram os tremores de Ashley.

Varreu o bosque com o olhar. Alerta a qualquer movimento. A algo que lhe dissesse onde se colocou.

Nada.

Passou outro minuto.

Sentiu o medo na boca, um sabor repugnante que lhe deu vontade de cuspir. Mas não se atreveu a abri-la. O peito ia encolhendo enquanto seus olhos foram de um lado a outro, sem parar.

Sentia-se como um animal paralisado por um terror familiar. Incapaz de mover-se, incapaz de salvar-se. Finalmente morreria ali, como um cordeiro esperando o açougueiro. Impotente.

Não. Não morrerei sem brigar.

—Ashley —murmurou ao ouvido da garota—, descerei me arrastando até o arroio.

—Não!

—Shh. —Maldita seja! O que acontecia com essa garota? Acaso não entendia que a presa devia guardar silêncio? Sobre tudo, silêncio.

Miranda começava a perder o sangue-frio. Controle-se.

—Vou A...

Ouviu a descarga seca de um rifle ao mesmo tempo em que uma parte da rocha onde se escondia se fez pedacinhos junto a seu rosto. Ela pôde afogar um grito, mas Ashley não.

— Não! —chiou Miranda quando Ashley se levantou de um salto e começou a correr ladeira abaixo.

Chas, chas!

Ashley tropeçou e rodou pelo chão.

Matou-a! Meu Deus, não!

Miranda começou a arrastar-se colina abaixo sobre o ventre, reduzindo o tamanho do alvo, e viu que Ashley se movia. Não estava morta. A queda lhe tinha salvado a vida. Pela extremidade do olho, percebeu um movimento. Virou-se e apontou para baixo. Ele estava em parte coberto pelas rochas, assim também estava tendido.

Agora levantou o rifle.

Ashley se levantou e pôs-se a correr.

Miranda disparou uma vez para distrair Larsen. A bala ricocheteou justo a seus pés, mas ele nem se alterou.

Ia disparar em Ashley pelas costas. Tal como tinha feito com a Sharon.

Levantou-se de um salto.

— David Larsen! —gritou, a todo pulmão.

Aquilo sim o distraiu. Girou o rifle para ela ao mesmo tempo em que se separava da rocha que o defendia.

Os dois dispararam ao mesmo tempo.

Miranda se voltou para a esquerda e a bala passou tão perto que sentiu o calor do roce contra sua bochecha.

Larsen deixou escapar um grunhido. Tinha-lhe acertado? Onde? Não se atreveu a olhar. Miranda escapuliu e, ao abrigo de um pinheiro, encontrou uma relativa segurança.

Mas não podia vê-lo.

Passou outro comprido minuto. Miranda expulsou o carregador vazio de sua pistola, substituiu-o por um cheio e colocou uma bala na antecâmara. Já não podia ver Ashley, o que significava que ele tampouco a via. A menos que tivesse saído em sua busca.

Tinha que distraí-lo.

—Sei quem é! —gritou—. Todos sabem quem é, David.

Ouviu o som característico do mecanismo de um rifle ao ser carregado. Muito mais perto do que esperou. Larsen guardava silêncio.

Nunca tinha sido homem de muitas palavras.

—O FBI está por toda parte. Falei com eles por rádio. Sabem exatamente onde está. Nunca sairá desta quebrada.

Sentiu seu fôlego no pescoço. Uma descarga gelada lhe percorreu a coluna da nuca até a cintura. Nem sequer o tinha ouvido aproximar-se.

Ele soltou uma risada apagada.

—Corre.

Ela girou rapidamente à esquerda e lançou a perna direita com força para cima. O golpe o fez soltar o rifle.

Larsen emitiu um grunhido e tentou agarrá-lo pela culatra. Deu-lhe um chute na entre perna e, aproveitando o impulso, o fez cair, enquanto rodava para afartar-se. Mas deu com a mão em uma rocha e o golpe a fez soltar a pistola.

Ele a agarrou pela perna quando ela tentou agarrar a pistola, que ficou justo um palmo além de seu alcance.

Larsen a puxou, tentando montar em cima dela. Não para violá-la e sim para matá-la. Deixou escapar um grunhido ao agarrá-la pela cintura e ficar em cima dela.

Não! Outra vez, não. Nunca, nunca mais.

Miranda aproveitou o declive e a gravidade para rodar para a esquerda, desprendendo-se de seu peso. Ele a acertou um golpe no rim direito e ela gritou de dor.

Mas tocou o canhão de seu rifle com a ponta dos dedos.

Miranda girou com o rifle na mão e, com a culatra aplicou-lhe um golpe na cabeça justo quando se lançava sobre ela. Larsen caiu ao chão, atordoado. Ela se levantou e o apontou com o rifle.

—O que te parece agora? Você é o caçado.

Miranda respirava entrecortadamente, quase asfixiada pela corrente de adrenalina. Um só disparo na cabeça e tudo teria acabado. Apontou. E apertou o gatilho.

Clique.

Miranda ficou olhando o rifle. Não havia bala na antecâmara.

Ele não vacilou nem um instante e agarrou o rifle pelo canhão. Ela tentou resistir mas ele o arrancou das mãos de um puxão. E então escorregou, e deixou ir o rifle que rodou costa abaixo.

Miranda viu o brilho de uma adaga em sua cintura. Tinha chegado o momento. Não seria capaz de vencê-lo em um combate corpo a corpo. Larsen era magro, mas alto e muito mais forte do que parecia.

Com seus olhos azuis claro, o Açougueiro lhe lançou um olhar cheio de ódio. E logo sorriu com um gesto grotesco.

—Hoje vai morrer.

E de um salto se lançou sobre ela.

 

Quinn ouviu disparos. Estavam muito perto, mas o que aconteceria se fosse muito tarde?

Correu a solta, tropeçando entre as rochas e salpicando água ao cruzar o arroio.

Ouviu um grito de surpresa. Miranda. Não podia vê-la, mas não estava muito longe. Correu mais rápido, desesperado por chamá-la, mas consciente de que alertaria Larsen.

Chegou a um claro e se deteve a tempo para evitar cair por uma rocha. Justo um pouco mais abaixo, Larsen tinha cravado Miranda no chão. E na mão tinha uma faca.

Quinn sacou sua pistola.

Miranda sentia o coração saindo do peito e as veias saturadas de adrenalina. Era como se sua visão se houvesse aguçado, e seu ouvido afinado.

Larsen a tinha cravada com todo seu peso, e com o braço esquerdo lhe pressionou com força a garganta. A faca em sua mão direita lançou um brilho, enquanto a água caía da folha para seu rosto.

Seu maior temor era ficar paralisada. Que não fosse capaz de defender-se quando sua vida estivesse em jogo. Que os anos de aulas de defesa pessoal, como aluna e como professora, mais o exercício, a determinação e tudo isso não lhe servissem de nada.

Porque, ao final, ele venceria.

Chegou o dia. O dia de minha morte.

Não. NÃO!

Esticou a mão esquerda e lhe afundou os dedos nos olhos até onde pôde. Ele lançou um rugido de dor e se separou dela. Elevou o braço direito por cima da cabeça, e Miranda viu a folha afiada por ambos os lados da adaga de caça que agora caía...

Miranda arqueou as costas e se serviu do precário equilíbrio de Larsen para tirar-lhe de cima.

Não esperou para ver como caía. Levantou-se de um salto, mas ele a agarrou pelo pé e voltou a puxá-la. Ficou estirada sobre o ventre, a pior posição possível. Sentiu uma queimadura na perna quando ele deu a primeira punhalada. O calor escapou de seu corpo e o tecido da calça, empapada de sangue, lhe colou à perna.

Tinha-a apunhalado.

Miranda ouviu que alguém gritava. O Açougueiro ficou quieto, e diminuiu a pressão de seu peso.

Justo o suficiente.

Miranda se levantou apoiando-se nos braços e lhe lançou um chute com a perna ferida. A descarga de dor lhe percorreu todo o corpo e cambaleou, presa da vertigem, mas não perdeu o controle.

Larsen tropeçou e, ao cair, deixou ir a adaga. Os dois se lançaram por ela ao mesmo tempo.

Miranda sentiu que sua mão se fechava sobre o metal quente e pegajoso, com seu próprio sangue.

De repente, olhou-o, e seus olhos ficaram fixos.

Os olhos sem alma do Larsen disseram a Miranda tudo o que tinha que saber a respeito dele.

Matava porque podia. O objeto de sua paixão era a caça.

A caçada tinha chegado a seu fim.

Larsen se lançou para a adaga que ela sustentava. Sem vacilar, e com um movimento certeiro, Miranda o cravou no peito. Seu sangue lhe manchou as mãos e Larsen quis agarrá-la. Ela se encolheu, mas não soltou a adaga.

Ele abriu a boca, mas ofegando sem respirar. Tentava dizer algo.

Soava como Theron.

Miranda não entendeu a referência à deusa grega, se é que se tratava disso.

Viu-o morrer, olhando-o diretamente à cara pela primeira vez.

Não tinha aspecto de homem malvado.

Aquele tipo a tinha violado. Tinha-lhe deixado feridas por todo o corpo e cicatrizes nos seios. Aquele homem tinha matado a sangue frio sua melhor amiga e ao menos a outras seis mulheres. Tinha aterrorizado às mulheres do sudoeste de Montana durante doze anos, até o ponto que já não se atreviam a ir sozinhas pela rua. Nem a conduzir sozinhas. Nem sequer se sentiam seguras acompanhadas.

Embora agora estivesse morrendo, ninguém esqueceria jamais seu reinado de terror.

Entretanto, não tinha aspecto de monstro. Parecia bem um menino assustado. De sua boca brotou sangue e seus olhos olharam o céu.

—The-rum.

Miranda soltou a faca e se tornou para trás, gaguejando. Larsen se derrubou sobre ela, colhendo com as duas mãos a adaga que seguia cravada em seu peito.

Miranda se deixou cair ao chão, com a perna dolorida e o coração disparado. Tinha a cabeça feita uma nebulosa.

Acabava de matar alguém. Não um homem qualquer, e sim o Açougueiro.

As lágrimas rodaram por suas faces e respirou como se tivesse estado horas sem tragar oxigênio. ficou olhando David Larsen, enquanto o sangue se derramava sobre a terra. Os olhos frágeis e mortos.

Viu-o agonizar até morrer.

—Meu Deus, Miranda.

—Quinn. —Sua voz soava estranha, distante. Não conseguia enfocar a vista. Agora que a adrenalina diminuía, começou a cair em um estado de choque.

Uns braços a agarraram. Uns braços fortes que a estreitaram.

—Miranda, pensei que... —Quinn não acabou a frase.

Ela se virou em seu peito quente e respirou seu aroma reconfortante, desejando que jamais a deixasse. Aferrou-se a ele como se estivesse afundando, sepultando seus soluços em seus braços. E ele a sustentou. Não fez mais que sustentá-la.

Sua serenidade, profunda e tranqüila, apaziguou-a.

—Tudo acabou, amor. Por fim acabou.

 

Quando Quinn voltou com Miranda à hospedaria já era passada a meia-noite. Miranda estava inusualmente calada, e Quinn a entendia. Acabava de voltar a viver uma experiência traumática no bosque.

Os paramédicos tinham demorado quase duas horas em transportar Nick, Lance Booker e Ashley da quebrada até o rancho dos Parker, onde esperavam as ambulâncias. Um médico enfaixou a perna de Miranda enquanto esperava em um refúgio provisório. Fixaram-lhe uma tala e a subiram lentamente pela montanha depois dos outros.

Miranda tinha querido voltar em seguida para casa, mas Quinn a levou ao hospital para que lhe suturassem a ferida. Não estava disposto a perdê-la de vista, e não lhe soltou a mão durante toda a visita.

Embora David Larsen tivesse morrido, o único em que Quinn atinava a pensar era que tinha estado a ponto de voltar a perder Miranda.

Bill e Gray esperavam no bar. Bill se apressou a ir para sua filha assim que esta entrou coxeando com a ajuda de Quinn.

—Randy —disse, com a voz abafada pela emoção.

—Estou bem.

Estava melhor que bem. Miranda era uma sobrevivente nata. Era algo que Quinn já dava por sabida, e ela tinha demonstrado seu valor enfrentando-se cara a cara com o mal.

Esperava que agora acreditasse em si mesma. Nada de dúvidas sobre sua pessoa, nada do «que aconteceria». Converteu-se em uma mulher que, Quinn sabia, voltava a ser proprietária de si mesma.

—Sentem-se —disse Bill, e aproximou um par de cadeiras.

Afundaram-se em seus assentos enquanto ele lhes preparava um uísque duplo de sua melhor garrafa.

—Espera um momento, se tomou analgésicos, não pode beber —disse, retendo o copo de Miranda.

—Dêem-me isso papai —disse ela, estirando a mão—. Não tomei as pílulas. Sabe que detesto os remédios.

Passou-lhe o copo e se sentou a seu lado.

—Tudo acabou. Está a salvo.

Quinn mal podia falar. Ainda estava aniquilado pelo corte que Larsen tinha infligido a Miranda.

A maioria das pessoas jamais vivia a experiência traumática de enfrentar um assassino em série. E menos ainda duas vezes.

Quinn contou a Bill a versão abreviada do acontecido.

—Não posso acreditar que o irmão de Delilah Parker... E o pobre do Ryan, inteirar-se dessa maneira —disse Bill, sacudindo a cabeça.

Miranda falou pela primeira vez.

—Ryan é valente. Não sei por que Larsen não o matou. Tem que ter intuído que Ryan sabia.

—Pelo que sei dos assassinos em série — disse Quinn—, têm seus próprios sistemas de valores.

—Valores! —disse Bill, indignado.

—Possivelmente «regra» seja uma palavra mais adequada —explicou Quinn—. Por exemplo, alguns assassinos não fazem mal aos animais. Larsen era biólogo especializado na fauna selvagem e, segundo todos os que falaram com minha companheira em Denver, amava às aves que cuidava. Inclusive lhes punha nomes.

—Theron —murmurou Miranda.

Quinn se virou para olhá-la. De repente, sentiu-se novamente transbordado por vivas emoções ao pensar no perto que Miranda tinha estado da morte.

—Perdão, disse Theron?

Ela assentiu com um gesto da cabeça.

—Ao morrer, disse «Theron». Não entendi o que significava.

—Poderia ser um de seus pássaros. —Quinn se voltou para Bill e apertou a mão de Miranda—. Pode ser que Larsen sentisse esse vínculo de sangue com seu sobrinho. Foram pescar juntos. Ryan pensava que seu tio era uma pessoa que sabia escutar. Pode ser que a Larsen nem tivesse passado pela cabeça lhe fazer dano, mas possivelmente tampouco acreditasse que Ryan o delataria.

—Mas por que não partiu, simplesmente? Por que não desapareceu?

—Tinha que acabar o que tinha começado.

— Deixei a Richard um par de habitações —disse Bill—. Ele e Ryan ficarão uns dias. Richard está preocupado com Delilah. Acredita que Larsen a matou.

—É possível —disse Quinn, embora não conseguia entender em que momento tinha acontecido isso. Richard e Delilah estavam juntos quando Sam Harris os visitou. Richard disse que ela saiu pouco depois, e que parecia muito perturbada. Ryan se encontrou com Larsen mais ou menos à mesma hora em que Delilah saiu do rancho.

Havia uma hora nas aventuras de Larsen ainda por explicar, o tempo que Ryan tinha demorado para chegar à hospedaria a cavalo.

Pelas provas achadas no rancho do Parker, Larsen tinha entrado na casa em algum momento, mas Quinn não sabia a que hora.

Havia retornado Delilah Parker durante o breve momento que Quinn e o juiz Parker tinham saído? Acaso tinha tido uma briga com Parker? Não havia sinais de violência na casa. Não tinham levado a cabo uma busca por toda a propriedade devido à operação de resgate na quebrada. No dia seguinte acudiria uma equipe completa para inspecioná-la, e o mesmo fariam na cabana de Parker no Big Sky, onde Nick tinha tropeçado com o esconderijo do Larsen.

Ou possivelmente Delilah temia que seu irmão fosse procurá-la e se escondeu. Então voltaria no dia seguinte, quando se inteirasse de sua morte.

Ou pode ser que fugisse porque se sentia culpada. Porque conhecia as aventuras de seu irmão e não tinha feito nada para impedi-lo.

Quinn não sabia com certeza, mas não gostava desses cabos soltos, e o papel de Delilah Parker na vida de seu irmão era bastante escuro.

Nick seguia inconsciente. Tinha uma ferida grave na cabeça e uma infecção que deveriam tratar. Quinn rogava a Deus para que sobrevivesse.

Pelo visto, JoBeth Anderson se recuperaria. E os pais de Ashley se transladaram de San Diego. A jovem dariam alta hospitalar em dois dias, e já tinha decidido voltar para Califórnia.

—O que aconteceu a Sam Harris? —perguntou Miranda, dissimulando um bocejo.

Quinn ficou tenso.

—Acabou voltando para o escritório do xerife e o telefonista lhe comunicou que o tinham relevado de suas funções. Saiu da delegacia de polícia, aparentemente, bastante furioso. Amanhã me encarregarei dele.

Na realidade, não sabia o que faria com Harris. Tinha posto em perigo toda a investigação e nada agradaria mais a Quinn que lhe aplicar uma sanção exemplar. Ainda assim, pensou que deveria deixar a situação nas mãos do Nick uma vez que se recuperasse de tudo. Escreveria um relatório formal ao xerife assim que tivessem amarrado os cabos soltos da investigação.

Por exemplo, onde estava Delilah Parker? Estava viva ou morta?

Miranda bocejou, e Bill disse a Quinn que a levasse de volta a sua cabana.

—Cuida dela, Peterson —disse o velho. Quinn não deixou de captar o duplo sentido.

Bill abraçou a sua filha.

—Te amo, Randy —murmurou em seu ouvido, com a voz enrouquecida pelas lágrimas.

—Eu também te amo, papai.

 

Miranda não se agradava que se ocupassem muito dela, e Quinn estava passando dos limites. Não parava de assegurar-se de que estivesse cômoda na cama, com a perna elevada, de preparar seus analgésicos e uma garrafa de água em sua mesinha de noite, embora ela insistia em que não tomaria as drágeas. Quinn acendeu um fogo na cozinha de lenha para combater o frio que dominava ao por do sol, e lhe ofereceu algo de comer, outro copode água. Disse-lhe que era tarde e que tinha que dormir.

Apesar de tudo, isso sim, era muito terno.

—Quinn, sente-se —disse ela, dando uns golpezinhos na cama.

—Não quero machucar sua perna.

—Não me fará mal. Por favor —pediu, e estendeu a mão. Ele a agarrou.

Quinn se sentou e Miranda adivinhou o cansaço em seus vivos olhos cor chocolate. Cansaço, preocupação e alívio.

E amor.

Em seus olhos apareceram umas lágrimas, mas não de dor nem de tristeza.

Pela primeira vez desde que o Açougueiro tinha mudado o curso de sua vida, sentia-se verdadeira e maravilhosamente viva.

Queria compartilhá-lo tudo com Quinn.

Ele se inclinou e lhe acariciou a face. Ela apoiou toda o rosto em sua mão, suspirou e fechou os olhos.

—Te amo Miranda.

Ela abriu os olhos. Viu-o procurando sua resposta. Tinha sido incapaz de dizê-lo antes. Não porque não sentisse algo profundo por ele mas sim porque tinha medo. Não suportava a idéia de voltar a perdê-lo, e não sabia o que faria para vencer seu ressentimento e sua sensação de traição.

Entretanto, junto com a confusão, tinha desaparecido o medo. O passado era precisamente isso, passado.

—Eu também te amo —disse com voz tremula—. Quinn, fui uma parva. Senti-me tão ferida faz anos que nunca entendi o que fez e por que o fez. Não sei se tinha razão, mas já não tem importância. Impuseram-se meu orgulho e minha teimosia. Acreditei que você duvidava de mim, e isso me doeu mais que qualquer outra coisa.

— Lamento ter te feito mal — disse ele, e umas lágrimas brilharam em seus olhos—. Mas nunca duvidei de você. Espero que me acredite.

—Acredito. Eu também o feri. Disse coisas cruéis das que me arrependo —disse Miranda, e guardou silêncio. Custava-lhe tanto abrir seu coração, inclusive a Quinn, em cujo rosto resplandecia o amor que sentia por ela.

Miranda respirou fundo e pediu o que queria, o que necessitava. Ele.

—Podemos recuperar o que tínhamos?

Ele se inclinou para diante e a beijou ligeiramente.

—Randy, não podemos voltar atrás. Não somos os mesmos. Mas... —disse, e voltou a beijá-la—, podemos seguir adiante.

Uma esperança renasceu no coração de Miranda. Mas tinha que ouvi-lo. Com toda exatidão.

— O que quer dizer? O que deseja você?

—Preciso de você. Amo você. Minha vida esteve vazia sem você. Jamais me apaixonei por ninguém mais que de você, e a levei sempre em meu coração. Deveria ter retornado antes, mas me perdi em minha própria teimosia.— Quinn sacudiu a cabeça e lhe recolheu uma mecha de cabelo atrás da orelha.

—Estava seguro de que, depois de um tempo, chamaria —disse—. Que possivelmente gritaria mas que, ao final, diria que me amava e perguntaria quando iria vê-la.

—E bem, acredito que se algo ficar claro é que somos duas pessoas muito teimosas.

Apertou-lhe brandamente a mão e a sustentou contra seu peito.

—Randy, é incrível. Foi capaz de vencer seus demônios mediante a pura vontade. Cada vez que a observava, pensava que não encontraria a força interior, que se deixaria vencer por suas dúvidas. Não podia estar sempre lhe repetindo que foi valente e aguerrida. Tinha que demonstrar isso a si mesma.

Dito isso, beijou-a. Suave, cálida e docemente.

—E demonstrou isso.

—Temia que nunca fosse capaz de enfrentar esse monstro que me tinha tirado tantas coisas.

Levou as mãos aos seios. Umas lágrimas apareceram em seus olhos. Sempre estaria marcada, sempre levaria em seu corpo os rastros de um assassino.

—Carinho, eu não vejo as cicatrizes. Vejo você. Sei que estão aí, igual a você, mas é algo exterior. As cicatrizes interiores sanaram. E farei tudo o que esteja em meu poder para que nunca voltem a abrir-se.

Umas lágrimas rodaram por suas faces e ele as secou. Beijou-a, apertando os lábios contra sua boca. Ela se inclinou para frente, querendo algo mais que uma leve carícia. Desejava-o, inteiro e para sempre.

Ele se retirou, como se temesse lhe machucar.

—Não —disse ela, e voltou a puxá-lo.

Os lábios estavam separados só por uns centímetros, e Quinn tinha seus olhos cravados nela, olhadas entrelaçadas em um abraço invisível. Ela agüentou a respiração.

—Case-se comigo, Miranda. Te amo. E desta vez não a deixarei partir.

Ela assentiu, com o coração lhe pulsando a cem.

—OH, sim. Se consegue me agüentar. —Tentou rir mas foi quase um soluço —. Às vezes sou um pouco... bom, bastante obsessiva com certas coisas. —Tentava que seu comentário fosse leve, mas era verdade. Quando lhe importava algo, concentrava-se nisso. Intensamente.

—Só com as coisas que importam —disse Quinn—. E nós importamos.

—Sim, nós importamos

 

Quinn se reuniu com a agente especial Colleen Thorne e seu colega de trabalho, Toby Wilkes, cedo pela manhã, na cabana de pesca de Richard Parker, perto de Big Sky. A pequena casa em forma de A tinha um balcão que a rodeava e uma vista do lago mais abaixo.

Embora tinha deixado de chover em algum momento durante a noite, o ar estava pesado e úmido e, ao mesmo nível do chão, flutuava uma névoa cinzenta.

Dois agentes tinham passado a noite guardando a cabana, postados fora, e outros dois tinham chegado um pouco antes que Quinn. Fizeram-se as apresentações e soou o celular de Quinn. Era o agente Zachary, notificando que ia substituir os policiais postados no exterior da cabana de Miranda. Desligou e Colleen o olhou franzindo o cenho.

— Tem a um policial vigiando a hospedaria? Por que?

—Na realidade, tenho mais de um policial. Tenho um carro fora, um agente na hospedaria e outro fora da cabana de Miranda.

—Disse-me que Larsen tinha morrido.

Quinn se remexeu, intranqüilo. Colleen era uma agente que acreditava nos fatos e a lógica, e era endemoniadamente boa. Ao contrário, a inquietação dele tinha que ver com os sentimentos.

—É Delilah Parker. Pode ser que seja inofensiva, mas... —Não acabou a frase. Como podia explicar essa sensação estranha de que Delilah Parker sempre tinha sabido o que tramava seu irmão?— Foi seu álibi pela violação no Oregón. Até que averigúe por que, penso tratá-la como se fosse uma ameaça.

—É provável que, neste caso, justifique-se a cautela. Preparado? —perguntou, assentindo com a cabeça para a porta.

Quinn rompeu a fechadura da porta enquanto Wilkes dava uma olhada ao terreno.

—Como está Miranda? —perguntou Colleen.      

—É uma mulher extremamente resistente.

—Reconciliaram-se?

O sorriu.

—A única pergunta é quanto demoraremos a chegar ao altar.

—Me alegro —disse Colleen, Sorrindo.

Na cabana se percebia algo escuro, frio e vazio. A porta principal dava a uma sala grande, com o salão à esquerda, a cozinha e a sala de jantar à direita. A porta da cozinha dava ao balcão traseiro, e outras duas portas davam ao banheiro e a uma despensa cheia de latas de comida e arranjos de pesca.

O andar de baixo era um espaço vazio e funcional. Sólidas poltronas de pinheiro com almofadas escuras. Uma mesa redonda e grande com seis cadeiras e, em um canto, uma estufa que esquentaria facilmente aquele pequeno espaço.

Não encontraram objetos pessoais no primeiro andar, nada que indicasse que alguém habitava o lugar, exceto uma solitária xícara na pia. Quinn tomou nota e a guardou como prova.

Uma escada de caracol levava a um loft. Embora os agentes já tivessem assegurado a casa, Quinn subiu com cautela.

A primeira vista, a casa parecia desabitada. A cama estava feita, e na cômoda não havia objetos pessoais. Não havia roupa no chão e o cesto do canto estava vazio.

De uma janela se via um pequeno prado e a ladeira de um monte de pinheiros. Poderia ter sido um lugar romântico como refúgio de um casal de amantes.

Sob a janela havia uma mesa. Simples, com uma só gaveta comprida e estreita. Uma cadeira de madeira estava aproximada a ela para escrever.

Com mãos enluvadas, Quinn abriu a gaveta. Tendo em conta que a casa estava vazia, não esperava encontrar nada.

No interior havia canetas, papel solto, clipes e outras intrigas. Entre todos aqueles objetos havia uma caixa, daquelas que servem para guardar envelopes e folhas.

Quinn sentiu que algo no peito se esticava e ficou instintivamente em alerta. Tirou a caixa com cuidado e a deixou sobre a mesa.

—O que é isso? —perguntou Colleen, olhando por cima do ombro de Quinn.

Em lugar de responder, ele levantou a tampa.

Era uma espécie de diário. O forro de pele estava desgastado e brunido de tanto manuseio. Tirou-o com cuidado da caixa.

Sobre a mesa caíram vários cartões de visita. Não, não eram cartões de visita...

Eram carteiras de motoristas.

Com o coração na mão, recolheu uma, virou-a e viu a foto da carteira de motorista de Penny Thompson.

Sentiu que tragava bílis enquanto contou as vinte e duas carteiras. Vinte e duas vítimas em quinze anos. Sharon Lewis. Elaine Croft. Rebecca Douglas. Tremeu-lhe a mão quando chegou a carteira de uma jovem Miranda Moore.

Abriu o diário.

Ela me mentiu. Disse-me que não saía com esse homem. Mas eu os vi. Seus lábios que não se separavam. Eu sabia o que ele queria fazer a Penny. Queria fode-la. Queria seus seios...

 

Com um sentimento de horror parecido à vertigem, Quinn passou as páginas.

 

A Puta a deixou ir. Não ficava outra alternativa que matar Penny. Acaso Dee não entendia que Penny teria ficado se eu lhe tivesse dedicado mais tempo? Mais tempo para convencê-la de quanto a amo? De que eu podia cuidar dela?

 

Dee? Delilah?

Quinn passou por cima do seqüestro de Miranda e Sharon e a crônica das violações. Não podia lê-lo nesse momento. Deveria ter posto tudo em mãos de Colleen. Estava muito envolvido pessoalmente.

Mas não o fez. Larsen tinha morrido.

 

Dee não me deixou matá-la.

Disse-me que a puta Moore era muito forte para mim. Que ela tinha ganho e que eu devia aceitar minha derrota.

Odeio Dee. Finge me amar mas me odeia. Igual a mamãe. Sempre como mamãe. Babam sua amabilidade da boca para fora, enquanto suas mãos e seus seios me atormentam.

 

Quinn sentiu que lhe arrepiavam os cabelos da nuca ao ler umas páginas mais à frente. 

 

Quase matei à puta Moore. Ia sozinha. Caminhando. Nesse campo onde sempre vai, perto de sua casa. Tinha-a na mira. Poderia ter recuperado o que me tinham roubado.

Mas ela ganhou com todas as da lei. Dee disse que não poderia cobrar esse troféu.

As odeio. Odeio ela. A odeio, a odeio, a odeio, a odeio!

Mas Dee tem razão. Desta vez não mereço minha presa. Não fui bastante rápido. Falhei. Não falharei a próxima vez.

Já encontrei à próxima. É muito bela. Também mentirá. Todas mentem...

A odeio. A odeio, a odeio, a odeio.

 

A letra se deteriorava ao longo da página porque a caneta se fincava no papel até rasgá-lo em duas partes. Quinn não sabia se Larsen odiava Delilah ou Miranda, ou às duas. Voltou a página e encontrou uma nova entrada, datada uma semana mais tarde. Podia ser uma ironia do destino, mas era a mesma semana que Miranda tinha viajado a Quântico. A letra voltava a ser polida e ordenada.

 

Tenho uma no velho barraco do Carson. Não acreditei que se sustentasse em pé, mas Dee diz que está bem para nosso jogo.

 

Quinn fechou o livro de um golpe e o passou a Colleen antes que fizesse uma estupidez, como, por exemplo, rompê-lo em pedaços.

— Lancem uma ordem de busca e captura de Delilah Parker. Deve ser considerada perigosa.

 

Tudo era culpa da Miranda Moore.

Delilah chorava por Davy. Seu irmão mais novo estava morto. Ela chorou ao ouvir as notícias enquanto se escondia na casa de férias da família Vought. Sabia que não viriam da Califórnia até que seus filhos tivessem acabado o colégio no mês seguinte.

Poderia ficar até na sexta-feira, quando viesse o zelador abrir a casa e limpá-la, embora também temesse que a polícia decidisse investigar todas as residências secundárias na área.

Delilah supunha que a polícia sabia tudo. Ela não iria para prisão. Encerrada como uma besta. Não, ela não era um animal. Fazia todo o possível. Acaso ninguém entendia? Fazia todo o possível!

As notícias da televisão eram vagas, só diziam que o Açougueiro de Bozeman tinha sido identificado como David Larsen e que tinha ingressado cadáver no hospital de Deaconess.

Sentiu que as vísceras lhe revolviam. Supunha-se que ela tinha que proteger Davy, assegurar-se de que nunca lhe fizessem mal, de que nunca o capturassem.

Odiava-o.

A dor martelava sua cabeça. Não odiava seu irmão. Não, ele a necessitava. Ela só odiava a atenção que ele recebia quando os dois eram pequenos.

Ao crescer, Davy se voltou tímido e calado. Até que foram à universidade, Davy era magro como um guri desnutrido e nem sequer era mais alto que ela. Entretanto, quando sua mãe se matou em um acidente de carro, foi como se florescesse. Cresceu quinze centímetros e começou a fazer exercício e a transformar-se em um homem.

A Delilah isso não agradou. Não gostou nada. Davy pertencia a ela. Ela o controlava. Ela o manipulava. Dizia-lhe o que fazer e o que não fazer. Sempre fazia caso. E sempre tinha feito o que ela dizia. E ela o protegia o melhor que podia. Bom, pode ser que não o melhor. Por exemplo, o que podia fazer para que sua mãe deixasse de lhe colocar a mão?

Em uma ocasião, quando tinha quatorze anos, escondeu-se no armário. Olhou através da persiana e viu como sua mãe tocava as partes de Davy. E a ele parecia gostar. Seu pênis ficava duro e jorrava esperma sobre os seios de sua mãe.

Ela sabia que isso que sua mãe obrigava Davy a fazer estava errado. Mas a quem o diria? Quem acreditaria? E, em qualquer caso, Delilah tinha seus próprios problemas. Por exemplo, como colocar uma serpente no armário da Mary Sue Mitchell sem que a pegassem.

Uma serpente venenosa. Afinal, Mary Sue tinha segurado a mão de Matt Drake na assembléia escolar na semana anterior. Acaso a grande puta acreditava que ela não se daria conta?

Davy sempre gozava de todas as atenções de mamãe. Delilah era a filha não desejada. Às vezes preferia a liberdade de não ser desejada. O resto do tempo alternava entre odiar ao Davy e a sua mãe.

Entretanto, intervinha freqüentemente para deter os duros golpes de sua mãe, e estava disposta a ganhar uma surra com tal de evitar que golpeasse Davy. Se não amasse a seu irmão, acaso teria agüentado essas surras por ele?

Mas ele não era normal. Ela se deu conta a uma idade muito temprana. Como podia ser normal se sua própria mãe o violava?

Você também o violava.

Não, eu o amava. Ele me amava. Sempre voltava, não? Sempre dizia que me necessitava.

Você lhe fez mal.

Não! Nada do que eu lhe fiz o marcou. Ele entendia... dor e prazer. Era ela. Miranda Moore. Ela o matou. Apunhalou-o. Tinha as mãos manchadas com o sangue do Davy.

Mate-a.

Depois de dezesseis anos de matrimônio, Delilah estava surpreendida de não sentir nada mais que irritação para seu marido. Ele não a amava. Ela tinha dado tudo por ele; tinha cuidado de sua casa e de seu pirralho, cozinhado e limpo e assistido a seus estúpidos atos. Tinha sido a mulher perfeita.

E ele a olhava como se fosse uma estranha.

A única outra coisa que a incomodava, e a incomodava muito, era Ryan. Como se ela fosse capaz de machucar seu próprio filho! Ela não era sua mãe. Evitava deliberadamente tocar Ryan para não cair na tentação. Tampouco se podia dizer que sentisse a tentação.

Ela não era sua mãe.

Ela não tinha querido descendência, certamente, um filho, não. Mas quando soube que estava grávida (do que serviam os anticoncepcionais se não funcionavam?) estava segura de que o bebê seria uma menina.

Ter uma menina para educá-la como se deve educar uma filha. Para enchê-la de cuidados, vesti-la com roupa bonita, levá-la a restaurantes elegantes, lhe organizar uma grande festa para seu debut.

Soltou uma risada amarga.

Tinha tido um menino. Outro Davy.

Entretanto, era uma boa mãe, maldita seja! Ela fazia tudo por ele. Assava-lhe as fodidas bolachas, limpava-lhe seu fodido quarto. Assistia a todas as fodidas reuniões de pais e peças de teatro e jogos de futebol.

Que mais queria? Seu sangue? Com isso ficaria satisfeito? Acaso ficaria alguém satisfeito?

Respirou fundo para relaxar-se. Não servia de nada perder o controle. Seu sangue-frio a tinha salvado de muitas imprudências.

Como a noite em que quase tinha sufocado Rory em seu berço. No último momento, tirou o travesseiro do rosto. Richard se teria informado, e a teriam metido no cárcere.

Ou a vez que o ameaçou contando à polícia da garota em Portland. Esteve a ponto de não servir de álibi a Davy. O estúpido, imbecil! Queria deixar tudo por uma puta rica da irmandade de mulheres do Delta dos caralhos.

Entretanto, ao final, proporcionou-lhe o álibi e foi muito convincente. Porque, sem o Davy, sua vida teria vindo abaixo. Ela o necessitava tanto como ele a ela.

Juntos eram mais fortes.

Agora ele estava morto.

Tudo era culpa de Miranda Moore. A grande puta pagaria caro.

 

Miranda despertou tarde. A luz banhava as clarabóias. Mais abaixo, no vale, acumulou-se uma névoa cinza, mas não demoraria em limpar-se.

Prometia ser um dia esplêndido.

Deu meia volta, esperando encontrar ao Quinn a seu lado. Em seu lugar, encontrou uma nota.

 

Miranda,

Não queria te incomodar. Reunirei-me com o Colleen no Big Sky para levar a cabo um registro rápido da cabana. Devo estar de volta por volta de meio-dia, ligarei se me atrasar.

Chamei o hospital. Nick segue igual, o que é mais ou menos uma boa notícia. JoBeth Anderson está acordada e consciente. Ashley pediu para falar contigo. Ficará bem, graças a você.

Fica na hospedaria. Tenho quatro agentes vigiando o lugar. Até que não saiba o que aconteceu a Delilah Parker, preferiria seguir com cautela.

Te amo. Q.

P.S. Não caminhe com a perna má. Se tiver que tomar banho, que seja rápido.

 

Miranda sorriu. Na semana anterior, sem ir mais longe, teria pensado que a proteção policial era um exagero. Mas esse dia estava disposta a permitir a Quinn sua paranóia.

Seu sorriso se converteu em um cenho franzido. Não podia nem imaginar como estava vivendo Delilah Parker nesse momento, depois de inteirar-se de que seu próprio irmão era o Açougueiro, um violador. Miranda estava segura de que os temores de Quinn não tinham fundamento. Como podia participar uma mulher, embora só fosse calando, na violação e tortura de outra mulher?

Era uma perversão. Uma perversão quase tão indigna como a de David Larsen.

Saiu trabalhosamente da cama e ficou de pé. Tinha a perna ferida rígida e lhe doía, mas podia caminhar sem muletas se fosse lentamente. Mover-se era o melhor remédio. Na realidade, a perna não lhe doía mais que o terrível machucado no ombro, que se fez ao se chocar contra a rocha.

Necessitava uma ducha. Tomou banho no hospital, mas a água era morna.

Abriu o grifo e esperou a que a água se esquentasse. Desejava que Quinn estivesse ali. Tirou o pijama e se olhou no espelho.

Tinha dezenove cortes nos seios, todos de uns três centímetros de comprimento. Tinha-os contado. Uma e outra vez. Tinha perdido grande parte da sensibilidade dos mamilos, posto que os nervos tinham sido danificados para sempre. Fechou os olhos. Sentiu, como sempre, uma profunda indignação ante o reflexo de seu escarificação[2]. As cicatrizes que conservava nos tornozelos e pulsos por ter estado acorrentada, ou o grande corte que tinha no interior da coxa, não lhe incomodavam nem a metade que seus seios feridos.

Obrigou-se a olhar de novo, até que a condensação no espelho não lhe deixou ver seu reflexo.

Agora as cicatrizes eram parte dela. Tinha que deixar de compadecer-se de si mesmo. Quinn nunca havia sentido o rechaço que ela mesma sentia. Raiva, sim. Miranda tinha visto o brilho de raiva em seus olhos.

A raiva não a incomodava. A compaixão, sim.

Acabaram-se os «o que aconteceria»! Ela se sentia cada dia mais cômoda consigo mesma. O Açougueiro tinha morrido. Miranda tinha que enterrar sua auto compaixão e sua raiva. Tinha toda uma vida por diante, com Quinn.

E ele a amava tal como ela era.

Meteu-se na ducha quente e pensou em como seria a vida de casada com Quinn. Divertida. Um desafio. Emocionante. Frustrante. Ela era uma teimosa, e ele também. Entretanto, reconciliar-se era parte da diversão de brigar, não?

Tinham demorado anos em voltar a encontrar-se, e Miranda não queria perder nem um minuto. As bodas seria o mais breve possível. Quando Quinn voltasse para Seattle, ela voltaria com ele. Seguro que encontraria um emprego em uma Unidade de Busca e Resgate no estado de Washington. Em Seattle havia rios e cursos de água, e as Montanhas Cascade. Ela tinha experiência em todo tipo de terrenos.

E, pela primeira vez em mais de dez anos, pensou em ter um filho.

Com Quinn.

Fechou o grifo e procurou a toalha que pendurava do gancho fora da ducha. Não a encontrou. Que estranho. Estava segura de havê-la deixado ali. Teria caído ao chão. Abriu a porta de tudo e saiu.

E se encontrou frente a frente com o cano de uma nove milímetros semi-automática.

Olhou os olhos frios e perturbados de Delilah Parker, que não se parecia em nada a elegante dama de sociedade que tinha conhecido no passado.

—O que fazia? Ao lavar as mãos no sangue de meu irmão?

 

Quando na cabana de Miranda não responderam, Quinn usou o rádio para falar com os agentes que protegiam a hospedaria.

—Emiti uma ordem de busca e captura de Delilah Parker —disse—. Seguro que vai armada e é perigosa. Há sérias provas de que ajudou seu irmão, David Larsen, a seqüestrar às vítimas.

—Meu Deus —disse um dos agentes.

—Passemos revista. Digam nome e localização. —Jorgensen, entrada principal e comprovação do perímetro cada vinte minutos.

—Zachary, entrada principal e interior, aqui.

—Ressler, atalhos, celeiro, estacionamento, tudo espaçoso.

Silêncio. Até que falou Jorgensen.

—Walters, reporta sua posição.

Silêncio.

Quinn sentiu que o coração lhe subia à garganta.

—Ressler, você e Jorgensen, vão à cabana de Miranda, já! Chamem a todos os hóspedes e empregados ao salão e os mantenham ali até que lhes dêem aviso. Trarei reforços. Chegarei em uns dez minutos.

Deu um golpe no rádio.

—Maldita seja! —por que a tinha deixado sozinha? Acreditou que estaria a salvo. Quatro policiais protegendo a hospedaria. Eram poucos os criminosos que se atreviam a abater um policial sem mais. Mas, esperavam uma oportunidade para penetrar sem ser vistos.

Entretanto, abatendo Walters. Delilah Parker tinha chegado até Miranda.

Quinn acelerou a caminhonete, fazendo as perigosas curvas a toda velocidade.

Ele e Miranda por fim se reencontraram. Desta vez não estava disposto a perdê-la.

 

— Se atrever-se ainda que seja mais que a abrir a boca, matarei-a. Lentamente. E depois matarei seu amante.

Miranda acreditou na ameaça de Delilah. Não queria morrer. Não agora, que tinha posto seus demônios em lugar seguro. Não suportava a idéia de que Quinn a encontrasse morta.

Delilah Parker era uma mulher doente.

Com as mãos atadas atrás das costas, Miranda sentiu arrepiada a pele ainda úmida. Levava posto um fino robe de algodão e nada mais.

Tremendo e descalça, Miranda avançou a tropicões pelo atalho, sentindo a perna dolorida. Não tinha nem idéia de aonde a levava Delilah, mas ainda não estava morta. Já encontraria uma oportunidade para escapar.

—Por que faz isto? —perguntou Miranda.

—Porque quero —disse Delilah, como uma menina mimada—. Venha, segue caminhando.

Tinha que seguir falando. Miranda recordava de suas aulas de psicologia criminal.

—Por que ajudava seu irmão a seqüestrar mulheres? É uma mulher. Suponho que sentiria alguma simpatia por elas.

Delilah deu de ombros.

—Era interessante.

Interessante? Delilah pensava que violar e disparar a mulheres pelas costas era interessante!

—Entregava, as mulheres, e depois partia sem mais? Sabendo o que ele ia fazer?

—Fala mais baixo — advertiu Delilah, com um assobio de voz.

Miranda não podia acreditar no que estava ouvindo. Seguiu caminhando, embora falando em um murmúrio, consciente da pistola que lhe apontava por trás.

—Como podia fazer isso? Simplesmente lhes dar as costas?

—Não lhes dava as costas. Não sou uma covarde. Não sou como David.

Miranda tropeçou ao ouvir essas palavras. Delilah a apontou para que se levantasse.

—Venha, segue caminhando.

—Minha perna.

—E a quem importa uma merda sua perna? Davy morreu.

Miranda mordeu a língua e umas lágrimas apareceram em seus olhos. —Você sabia? Você olhava?

-- Queria olhar. Queria ver que precisava quebrar alguém. Davy insistia em que se encontrasse à garota adequada, ela ia querer ficar com ele para sempre. Eu lhe dizia que era uma tolice. E tinha razão.

Como podia ignorar esses gritos que não paravam? Ela olhava enquanto seu irmão violava e torturava às mulheres e o achava interessante? Para ver como se quebrava um ser humano? Miranda sentiu que lhe revolvia o estômago e a bílis lhe chegou à boca da garganta. Obrigou-se a tragar, e a sensação de queimação lhe arrancou uma careta.

Delilah era uma criatura tão retorcida como seu irmão!

—Saberá que não é minha culpa —seguiu Delilah—. Davy agarrou essa primeira garota sem me dizer. Pode acreditar nisso? Foi, seqüestrou-a e a violou. Acreditava que se a garota se inteirava de quanto a amava —disse Delilah, entreabrindo os olhos—, ficaria junto dele.

—Penny — disse Miranda, como se falasse sozinha.

—Supunha-se que não devia tocar a outras mulheres sem minha permissão. Mas eu sabia, como uma mulher sabe que seu marido a engana, eu sabia que ele tinha outra mulher. Segui-o. E ali estava, atada no chão imundo de alguma cabana abandonada. Vi Davy através da janela. Rogando que lhe dissesse que o amava, bla, bla, bla.

—Davy saiu uma hora mais tarde e eu a soltei. Disse-lhe como tinha que descer da montanha. Rogou-me que a levasse comigo. Como se eu queria ajudá-la. Acompanhei-a até a entrada da quebrada e alcancei a Davy antes que subisse a sua caminhonete. —Delilah riu, um gesto surpreendentemente leve tendo em conta seu arrepiante relato.

—Disse-lhe que tinha que matá-la. Se não a matasse, ela o entregaria à polícia —disse, e sacudiu a cabeça—. Esperei. Não demorou muito.

Delilah empurrou Miranda para que avançasse. Miranda tropeçou sobre uma raiz e caiu de joelhos. Os pontos de sutura se esticaram e um fio de sangue correu pela perna. Delilah deu-lhe uma chute.

— Levante-se!

Miranda se levantou apoiando-se nas panturrilhas e com as pernas para fora para manter o equilíbrio, enquanto sentia a raiva acumulando-se nela. Aterrava-lhe pensar no que era capaz de fazer Delilah. Aquela mulher demonstrava uma total e absoluta indiferença à dor e os sofrimentos alheios.

—Está doente, Delilah. Parecia-lhe emocionante ver como seu irmão violava às mulheres.

Miranda se preparou para um golpe que não chegou. Delilah guardou silêncio, e Miranda entendeu nesse momento para onde se dirigiam. A seu campo. A aquele prado especial onde ela ia pensar, relaxar e celebrar as coisas boas da vida.

Acaso Delilah a tinha olhado enquanto ela refletia sentada nesse amplo espaço aberto? Acaso a seguia? Espreitava-a? E o doente de seu irmão? Fazia o mesmo?

Nos limites da clareira, Delilah obrigou Miranda a sentar-se de um empurrão. Esta tropeçou, e não pôde evitar golpear o rosto contra o chão. De seus olhos brotaram lágrimas, mais pela indignação e o medo que de dor.

Delilah parecia uma mulher delicada, mas era forte. Empurrou Miranda contra uma árvore e a obrigou a sentar-se. Miranda sentiu as pedras e as afiadas agulhas de pinheiro fincando-se nas nádegas e as pernas, mas resistiu ao impulso de gritar. Não daria a essa cadela a satisfação de vê-la chorar. Delilah lhe tirou as cordas das mãos.

Era sua oportunidade.

Miranda tentou lhe dar com ambos os braços. Antecipando-se a seu movimento, Delilah lhe deu um golpe na têmpora com a culatra de sua pistola. Miranda se derrubou, ofegando de dor. Apertou com força os dentes para suportar a dor e as náuseas, e Delilah voltou a empurrá-la para que se sentasse contra a árvore. Atou-lhe as mãos por trás e ao redor do tronco. Delilah puxou com força de ambos os braços e Miranda lançou um grito.

—O que faz? —conseguiu perguntar.

—Esperando.

—A que?

— Que apareça seu amante.

—Não conseguirá se sair bem. —Era uma estupidez dizer isso! Além disso, Miranda temia que Delilah estivesse bastante se desesperada para fazer qualquer coisa.

Miranda imaginou diversos cenários. Podia gritar, mas Delilah simplesmente a deixaria inconsciente de um golpe. Podia lançar um chute para lhe fazer soltar a pistola mas, atada à árvore, Miranda não tinha nenhuma possibilidade de fazer-se com ela. A melhor oportunidade que teria seria avisar a Quinn quando estivesse bastante perto. Advertir-lhe que se tratava de uma armadilha. Só podia esperar que ele percebesse antes que fosse muito tarde.

—Vi você e esse policial — seguiu Delilah—. A outra noite, que estavam fodendo.

Ela estava ali? Tinha estado tão perto e eles sem saber? Miranda se sentia como manchada ao inteirar-se de que o momento mais íntimo de sua reunião com Quinn tivesse sido observado por aquela mulher retorcida e doente.

—Quando era pequena, nunca entendia o que tinha que tão extraordinário no sexo. Parecia tão complicado. Os corpos suando e tudo isso. Estava acostumado a olhar minha mãe, depois de que meu pai nos deixou. Olhava o que fazia com os homens. O que fazia com Davy.

Miranda aguçou o ouvido. Sua mãe tinha abusado de seu próprio filho? Toda a família estava doente. Uma leve faísca de compaixão apareceu na alma de Miranda, mas algo nela a reprimiu. Todos temos a capacidade de escolha. Eles escolheram ser perversos.

Delilah guardou silêncio um momento comprido. E depois voltou a falar.

—Eu odiava Davy. Mamãe o amava mais. Abraçava-o. Beijava-o. Eu era a filha não desejada. Papai me queria, mas nos deixou e nunca voltou. Nunca, nem sequer uma vez. Simplesmente se foi. —Respirou fundo e seu tom de voz deixou de ser infantil—. Mas mamãe amava mais a Davy, e o metia em sua cama. Fazia tudo por ele. E eu o odiava. Claro que quando soube que o estava fodendo, o pobre guri me deu um pouco de pena. Ele ficava ali deitado e chorava. Era patético. Por que não resistia? Por que não se ia? —perguntou, sacudindo a cabeça—. Não deixei que a matasse — disse, ao final.

Miranda preferiu tragar sua resposta. Não era o momento de contradizer ao Delilah.

—Depois que você escapou, queria te matar, mas você lutou. Eu admirava isso. E olhe como me pagou. Dei-lhe a vida e agora mata meu irmão! —exclamou, e golpeou Miranda no rosto, lhe esmagando a cabeça contra a árvore. Miranda literalmente viu estrelas e lançou um grito de dor.

— É uma cadela doente!

—Nada de palavrões — disse Delilah. Tirou um lenço de seu bolso e o colocou na boca de Miranda. Depois, atou-lhe um pedaço de corda para manter a mordaça em seu lugar.

Agora não poderia advertir Quinn. Miranda sentiu que o estômago lhe revolvia. Por favor, por favor, não venha.

Não suportaria vê-lo morrer.

 

 

O agente Dick Walters estava morto. Com um disparo na cabeça. E Miranda tinha desaparecido.

Quinn deixou o corpo do policial no pequeno alpendre de Miranda e deu ordens à meia dúzia de agentes do xerife que já tinham chegado. Outros vinham a caminho, junto com outros agentes do FBI, mas o tempo urgia. Quinn não podia esperar que chegasse mais ajuda.

Delilah inclusive não tinha tentado dissimular seus rastros. Esperava que a seguissem. Queria que a seguissem.

O que pretendia? Tinha Miranda, supostamente viva, já que não tinham encontrado sangue no interior da cabana. Mas por que mantê-la com vida?

Delilah queria alguém ou algo, e um refém lhe daria algo com o que negociar.

Quinn odiava as negociações com reféns. A enorme tensão de ser responsável pelas vidas de pessoas inocentes tinha destruído alguns dos melhores agentes com que tinha trabalhado. Mas era pior quando o refém era alguém que alguém conhecia.

Ou alguém a quem alguém amava.

—Terá que ir com cuidado —disse aos agentes, e enviou dois pela direita e outros dois pela esquerda, além dos dois que o seguiam pelo caminho que tinha tomado Delilah.

Apressaram-se, mantendo-se colados às árvores, se por acaso fosse uma armadilha. Não caminharam, nem sequer duzentos metros, antes que o atalho desembocasse em um prado, oculto por uma densa cortina de árvores.

Quinn não podia equivocar-se. O robe branco de Miranda quase brilhava no fundo verde e marrom das árvores no limite do prado, como um farol que anunciava sua presença. Estava sentada ao pé de uma árvore. Quinn tirou seus binóculos e olhou.

Estava atada à árvore e amordaçada. Levava o cabelo molhado e aquele simples robe. Entretanto, o frio era um problema menor para ela nesse momento.

Quinn não via Delilah por nenhum lado. Algo lhe dizia que aquilo era uma armadilha.

Deu-lhe vontade de correr até onde estava Miranda, mas deu um passo atrás. Não serviria a nenhum dos dois se o matassem.

Falou por rádio, em voz baixa.

—Parece uma armadilha. Não entrem, repito, não entrem no claro.

Girou-se para Jorgensen.

— O megafone —pediu, e este o passou.

Quinn respirou fundo. Era o momento chave.

—Delilah Parker —disse, com o megafone em alto, a voz a todo volume e com um retinir metálico—. Delilah, sou o Agente Especial Quincy Peterson, do FBI. Pode ser que se lembre de mim. Teve a amabilidade de me oferecer limonada com bolo de banana no dia que cheguei à cidade.

Quinn disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça, mas parecia o correto. Fez um gesto aos homens para que se abrissem por ambos os lados e não se deixassem ver. Olhou Jorgensen, fez-lhe um sinal e este deu meia volta e se dirigiu à hospedaria. O plano B era um último recurso.

Quinn temia que fosse sua única opção.

Delilah Parker tinha uma obsessão pelo controle e a imagem. Quinn recordou o que Nick lhe havia dito a respeito de sua necessidade de ser uma boa anfitriã, e que nunca teria que rechaçar uma taça ou uma comida da senhora Parker.

Tinha que apelar a essa parte dela.

Não à parte que olhava enquanto o irmão violava a quase duas dúzias de mulheres.

— Delilah? Pode aparecer para que falemos?

— Não! Está fazendo errado!

Delilah estava zangada, e Miranda olhou a ela e depois a Quinn, a quase cem metros de distância. Delilah tinha se escondido atrás de uma árvore podre e oca. Sua intenção era matar a Quinn quando fosse resgatar Miranda. Para que esta o visse morrer.

Mas Quinn não estava jogando seu jogo, e isso a enfurecia. Deu um chute no chão e fez um bico.

—Delilah, agora isto é entre você e eu —disse Quinn pelo megafone—. Ninguém mais. Você me diz o que quer e eu verei como lhe conseguimos isso. De acordo?

—Não! —De um salto, Delilah saiu de seu esconderijo e se aproximou de Miranda a grandes passadas. Apoiou-lhe o cano da arma na cabeça. Miranda não podia parar de tremer. Tinha visto o corpo de Dick Walters. A ela também a mataria.

E mataria Quinn se tivesse a oportunidade.

—Baixa a arma para que possamos falar — disse Quinn. Começou a caminhar pelo lado mais estreito do prado. Dava a impressão de que se afastava, mas Miranda sabia o que estava fazendo. Tentava aproximar-se. Tentava distrair Miranda de tudo o que estava acontecendo. Miranda só via um policial entre as árvores. Seguro que havia mais.

—Não, não, não! —Delilah deu chutes no chão—. Será que não vê? —gritou—. Ela tem que morrer. Mas isso não tem nenhuma graça se antes não o vê morrer. Ela matou Davy. Agora tem que sofrer por haver o matado. Não entende?

—Delilah, compreendo o que deve estar vivendo —disse Quinn—. A dor é uma emoção poderosa.

—Você não sabe nada da dor.

—Me ponha a prova.

—Não. Só quer ganhar tempo. O que vai fazer? Trazer para uma unidade das SWAT para que venham e me disparem. Pois, direi uma coisa, e é que sua amiguinha também morrerá.

Delilah não tremia a mão, mas suava copiosamente. Não deixava de olhar a um e outro lado, com olhos de roedor assustado. Miranda esperava uma oportunidade para fazer algo, mas não tinha nem idéia do que podia ser. Olhava Quinn em busca de um sinal, mas ele não reparava nela. Tinha o olhar fixo em Delilah.

Seguiu aproximando-se.

—Delilah, você não quer fazer isso. Tomou algumas decisões equivocadas, mas você não matou essas garotas, não é?

—A quem importa? A ninguém importou quando contei o que minha mãe fazia com Davy. Não me acreditaram.

—Eu acredito, Delilah.

—Não sou tola, Agente Especial Peterson —gritou—. Sei o que tenta fazer. Quer que me renda por remorso, que diga que o sinto. Pois, não sinto. Quão único lamento é não ter deixado que Davy matasse esta puta —disse, e deu um chute no flanco de Miranda —, quando escapou.

Miranda começou a fechar os olhos, esperando a descarga e a dor do impacto da bala, quando viu que Quinn fazia um sinal com a mão. Linguagem de sinais. Era uma das coisas que tinham que aprender na Academia.

Agache-se.

Do outro lado do campo, ouviu-se uma voz.

—Mamãe! Não!

Miranda girou e a pistola deixou de apontar à cabeça de Miranda. Esta se agachou tudo o que pôde.

—Ryan? Você também pensa me trair? —Delilah girou a pistola para seu filho.

E aconteceram as descargas.

Bang! Bang Bang Bang Bang Bang Bang!

Com o impacto dos disparos, Delilah tropeçou para trás contra a árvore. Caiu sobre o regaço do Miranda, e seus olhos ficaram cravados nela.

—Paz —disse, em um último fervor.

Delilah se sacudiu e exaltou seu último fôlego. Miranda ficou olhando o corpo inerte sobre seus joelhos.

Quinn se ajoelhou a seu lado, jogou o corpo do Delilah a um lado e lhe tirou a mordaça. Enquanto a desatava, deu-lhe vontade de abraçá-la.

Tirou-lhe as cordas das mãos. Jogou os braços ao pescoço, apertando-o com força, enquanto umas lágrimas silenciosas lhe corriam pela face. Ele a levantou e a levou para as árvores, longe da morte.

Beijou-a e a estreitou em seus braços.

—Sinto ter tido que trazer Ryan, mas só o fiz como último recurso.

—Sei.

—Agora, Miranda, tudo acabou de verdade.

 

O primeiro dia de junho amanheceu com céus azuis e limpos e uma temperatura agradável pouco habitual nessa época do ano. O vestido do Miranda era um singelo crepe, com um grande decote por trás e umas finas alças, um corpete com vôos, e uma saia ligeiramente boca-de-sino até os pés. Elegante e clássica, sem parecer desconjuntada para aquele assunto informal. Alegrava-se de ter prendido a massa de cachos e, por uma vez, haver-se maquiado com algo mais que um pouco de rímel. O olhar de orgulho e agradecimento de Quinn era evidente. Ela se sentia como uma adolescente nervosa e radiante com seu primeiro amor.

Quinn era seu primeiro amor. O primeiro e o último.

Olhou-se ao espelho e sorriu. Um sorriso verdadeiro, autêntico. Tinha a impressão de que em lugar de caminhar, flutuava, uma mudança radical nela. Mas quando de repente o mundo se abre e o coração se desprende do peso do medo, a sensação é de uma grande leveza.

Alguém bateu na porta de sua cabana e seu momento de solidão chegou ao fim. Quinn tinha saído antes que ela se vestisse (Miranda conhecia a tradição de que o noivo e a noiva não deviam ver-se, mas aquilo era uma regra absurda que estava disposta a romper alegremente).

—Adiante — disse, de seu quarto —. Não pudeste se ausentar mais de dez minutos?

—Imagina o que são dez anos.

Miranda deixou cair o pincel da maquiagem e saiu correndo do quarto.

—    Rowan! —exclamou, e abraçou com força a sua amiga—. Não posso acreditar que tenha vindo!

Como Olivia, Rowan tinha sido sua companheira de quarto na Academia dez anos antes, mas tinha deixado o FBI depois de escrever sua primeira novela policial. Acabava de sobreviver a seu próprio pesadelo, com um assassino desumano e obcecado com a recreação de seus assassinatos fictícios, um homem que se dedicava a lhe mandar horríveis lembranças de seus crimes.

Agora que tudo isso tinha ficado atrás, Rowan parecia tão feliz como Miranda.

—Quinn me chamou —disse Rowan, com olhar risonho—. Acha que perderia vê-los neste ritual final, você e a esse grande teimoso?

—Eu sabia que seria assim —disse Olivia, que acabava de entrar. Miranda segurou sua mão e lhe deu um apertão.

—    Acreditei que tinha voltado para Virginia.

—Tinha feito Isso. Cheguei a Montana ontem à noite —disse Sorrindo—. Se vê muito contente.

—    Estou —disse Miranda, dando uma olhada ao redor—. Rowan, veio com seu amigo? Quinn me falou dele se chama John, não?

—Está conversando com Quinn e seu pai na hospedaria. Pediram que viéssemos buscá-la. —Rowan parecia tranqüila, como se tivesse tirado de cima dos ombros uma enorme carga. Miranda sabia exatamente como se sentia. Entretanto, Rowan caminhava como se ainda lhe doesse. Quando se sentou para aliviar-se, estava pálida.

—O que tem? Quinn me disse que estava bem.

—É que foi um dia comprido e já não sou tão forte como antes. Quando esse assaltante de bancos me disparou faz oito anos, só demorei duas semanas em me recuperar —disse, e riu—. Estou ficando velha.

—    Ouça, eu não gosto nada disso —disse Liv, cruzando os braços — . Sou cinco anos mais velha que você.

—E parece cinco anos mais nova — disse Rowan.

Miranda viu as duas bolsas de uma loja de roupas de Bozeman e enrugou o nariz. Adorava seu singelo vestido branco de noiva, mas não tinha intenção de vestir outra coisa que uns jeans depois da cerimônia.

— O que têm aqui?

—Somos suas damas de honra — explicou Liv, com um grande sorriso.

—Não posso acreditar nisso.

Rowan deu de ombros.

—Não sabia que Quinn tivesse uma veia romântica, mas tudo foi sua idéia — disse Rowan, dando de ombros. Levantou-se trabalhosamente da cadeira—. Será melhor que nos troquemos, Liv —disse.

Miranda estava a ponto das seguir para o quarto quando a porta de sua cabana se abriu e o amor de sua vida apareceu na soleira.

—Não se supõe que há uma regra de que não pode ver a noiva antes das bodas? —perguntou, Sorrindo.

Quinn cruzou a sala e a estreitou em seus braços.

—Está preciosa. Acredito que nunca tinha te visto com um vestido.

—Não se acostume.

Miranda o beijou, e sentiu as mãos de Quinn descendo por seu pescoço até seus ombros, e a espera a fez estremecer-se.

—Te amo Miranda.

—Sei —disse ela, com sorriso provocador, e então se deu conta de que ele não sorria.

— O que aconteceu?

—Quase te perdi. Não é algo que vá esquecer muito facilmente.

—Estou bem.

—Sim? De verdade? Porque eu não — disse, e passou a mão pelo cabelo, nervoso.

—Estou bem, sério. Pela primeira vez desde o seqüestro, sinto-me livre. Enfrentei David Larsen e não fiquei em pânico, nem saí fugindo. Fiz o melhor que pude com o que tinha.

—Com certeza que sim. Mas também penso no que aconteceu faz dez anos.

—Já lhe disse isso, o passado é o passado. —por que voltava agora para o mesmo assunto? O que pretendia conseguir com isso?

— O que aconteceu então nos afastou um do outro.

—Foi mais culpa minha que tua. —Miranda acreditava de verdade—. Poderia ter retornado. E, possivelmente, em circunstâncias diferentes, teria retornado. —Fez uma pausa, tentando encontrar uma maneira de explicar seus sentimentos, idéias que tinham começado a cobrar corpo nas últimas duas semanas, depois da morte do David Larsen e Delilah Parker.

—Nunca entenderei o destino. Por que Sharon morreu. Mas acredito que há um motivo pelo qual não voltei para Quântico. Naquele momento, era fácil jogar a culpa em você, no psiquiatra e a meus próprios temores. Mas quando penso retrospectivamente nessa decisão, dou-me conta de que fiz bem. Possivelmente não o pensei assim então, mas agora pode se dizer que se não tivesse estado aqui, possivelmente teriam demorado muito em encontrar Ashley e Nick.

—Não posso minimizar minha contribuição nesta investigação, mas também sei que se não houvesse retornado para ajudar, possivelmente as coisas tivessem acabado de maneira muito diferente. Assim acredito que tudo aconteceu como aconteceu porque assim tinha que ser. E não me lamentarei de minhas decisões, embora as tenha tomado por razões equivocadas.

Quinn a agarrou pela cintura e a beijou. Um beijo comprido, lento e quente. Aquele era precisamente o lugar onde ela tinha que estar.

—E, te parece bem ter que adiar a lua de mel?

—Ai, por favor. —Por algum motivo, Quinn lamentava não poder desfrutar da lua de mel até setembro. Tinha pedido as últimas duas semanas para ocupar-se dos preparativos das bodas—. Desfrutamos da lua de mel antes das bodas —disse Miranda, e riu.

—É claro que sim —disse ele, Sorrindo.

—Te amo, Quincy Peterson. E agora ficará comigo, com todas minhas imperfeições.

—Que imperfeições? —Quinn sorriu e lhe beijou a orelha, atrasando-se no lóbulo.

-- Para ou chegaremos tarde a nossas bodas.

-- E? —murmurou ele—. Não podem celebrar umas bodas sem a noiva e o noivo.

Miranda riu. Tinha rido mais nas últimas duas semanas que nos últimos dez anos. Pensando no futuro, esperavam-lhe anos de risadas com o homem que amava.

 

Foi uma cerimônia discreta e reservada só aos amigos mais próximos da hospedaria. Os pais de Quinn tinham tomado um vôo e chegado pela manhã e logo se uniram ao grupo de convidados composto pelo pai da Miranda, Gray, Nick, um par de agentes de polícia e à Unidade de Busca e Resgate de Miranda.

—Boa tarde, senhora Peterson.

Quinn sorriu e a beijou ligeiramente.

Ela arqueou as sobrancelhas.

— Senhora Peterson? Acreditei que conservaria meu sobrenome.

—Como você queira, senhorita Moore.

Ela riu e jogou os braços ao pescoço.

—Acredito que senhora Peterson soa perfeito.

Ele a fez girar e ela voltou a rir. Quando era a última vez que se havia sentido tão livre?

Pela extremidade do olho, viu Nick aproximar-se. Apertou o ombro de Quinn, e este a soltou.

—Nick, me alegro tanto de que tenha vindo. Como está?

Ele assentiu, com expressão neutra. A Miranda encolheu o coração com apenas ver seu amigo. Nick não tinha recuperado do todo a vista e os óculos não corrigiam o problema completamente. A infecção tinha seguido seu curso, deixando-o magro e vazio. Embora não falasse disso, Miranda sabia que a decisão de ter acudido sozinho à cabana do Richard Parker o perseguia como um pesadelo.

Deu-lhe um forte abraço. Nick tinha sido um grande amigo quando ela o tinha necessitado.

—Acabou, por fim, Nick. O agarramos.

—Foi parte de minha vida durante anos. —Nick a olhou diretamente—. Da tua também. —Olhou Quinn—. Alegro-me de que o tenham superado. Digo de todo coração.

— Quando quiser falar do que seja, me chame. Sabe o que faria o que fosse por você.

—Sei. Mas vai viver em Seattle.

— Sabe que em Seattle têm telefones.

—É verdade —disse Nick, com um sorriso desinteressado—. Estarei bem.

Miranda assentiu, embora Nick seguia lhe preocupando. Não se tinha recuperado com a rapidez que ela esperava, e tinha começado a dizer que não se apresentaria à reeleição como xerife. Miranda esperava que mudasse de parecer, sobre tudo depois de ter decidido não relevar Harris como primeiro ajudante.

—Cuide-se —disse a Quinn com um olhar muito sério.

— Farei isso. —Quinn abraçou Miranda pelo ombro e lhe deu um suave apertão, ao mesmo tempo que tendia a mão a Nick. Saudaram-se e partiu.

—Preocupa-me — disse Miranda, deixando de olhar Nick que ia e detendo-se nos olhos profundos cor chocolate de Quinn.

—Sei. Ficará bem. Só precisa mergulhar um pouco em sua própria alma. — Quinn beijou sua mulher—. Sabe que te amo.

Ela sorriu e assentiu com a cabeça.

—Eu também te amo.

—    Acha que poderemos escapar a sua cabana? —murmurou ele em sua orelha. Ela estremeceu quando Quinn lhe roçou o pescoço com um beijo.

—Hmmm. Não me tente.

—Por que não? —Quinn lhe beijou a orelha.

—Sua mãe está olhando.

—E o que?

—    Quinn!

Ele riu e a estreitou em seus braços.

—Uma hora, no máximo. Depois a levarei para cama.

—Não sei se poderei esperar uma hora. —Nada desejava mais que levar Quinn para cama. Agora.

Ele sorriu.

—    Acredito que poderemos escapulir em uns dez minutos.

—Tomarei a palavra.

E isso fez.

 

 

[1] Modus operandi: Modo operante

[2] Escarificação: corte ou incisão realizado em um hematoma com o fim de permitir a retirada de líquidos inflamatórios. 

 

                                                                  Allison Brennan

 

 

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