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Series & Trilogias Literarias
O cometa atravessava o firmamento noturno em todo o seu esplendor, mais cintilante do que qualquer estrela, a sua cabeça fantasmagórica a deixar um rasto de fogo na sua esteira. Tinha andado a pairar no céu durante a última semana, qual espada suspensa acima da Terra, espalhando temor e assombro por toda a França.
Todas as mulheres do grupo reunido no cume de um penhasco escarpado na Bretanha francesa mantinham os olhos presos no céu, as suas formas ocultas por amplos mantos cinzentos, os capuzes puxados para a frente, como se fossem monges que se cobrissem para se protegerem das tentações do mundo. As mulheres tinham um aspeto sinistro, as suas silhuetas recortadas contra as labaredas altas da fogueira, a atmosfera espectral que revestia aquela cena realçada pelo ritmo obsidiante das vagas que se quebravam nos rochedos mais abaixo.
As mulheres sustinham a respiração enquanto olhavam mesmerizadas para o cometa, alheadas do facto de elas próprias estarem a ser observadas.
Estendida de barriga para baixo, Catriona OHanlon tentava ocultar-se entre a vegetação bastante esparsa e as árvores desgarradas que circundavam a clareira. A irlandesa era petite, mas o seu tamanho era enganador, a sua constituição magra era imbuída de uma força nervosa; os membros bem musculados estavam tensos, vestidos com roupas masculinas, calções de fustão apertados abaixo dos joelhos e um justilho de cabedal, vestuário que a ajudava a passar despercebida na escuridão.
Uma madeixa de cabelo de um ruivo flamante escapara-se-lhe da gorra, mas não se atrevia a afastá-la para o lado com receio de que o mais pequeno movimento traísse a sua presença. Em especial, porque o silêncio reinava entre as mulheres que espiava. Entretanto, ouviu-se uma voz por fim, mas num tom de voz tão baixo que Catriona teve de se esforçar para conseguir ouvi-la.
O cometa é, claramente, um sinal, minhas irmãs. O presságio por que todas temos esperado.
"Sim, um sinal de que o teu juízo foi dar uma grande volta", pensou Catriona desdenhosa. A exemplo de tantas outras tolas supersticiosas, que tremiam de medo ao
verem algo parecido com um grande langanho que brilhava no firmamento a uma eternidade de distância.
As verdadeiras Filhas da Terra deviam ter bom senso suficiente para não acreditarem naqueles disparates. Desde o princípio dos tempos que as mulheres sábias se esforçavam
por preservar a luz do conhecimento num mundo de ignorância, especialmente o conhecimento que lhes permitia curar e a prática de magia branca.
Contudo, existiam outras que sucumbiam à sedução das artes mais negras, mais interessadas em adquirir poder do que sabedoria, mais determinadas a disseminarem o
caos e as crenças supersticiosas do que o conhecimento. As mulheres à roda da fogueira que Catriona observava eram como estas últimas. Intitulavam-se Irmandade da
Rosa de Prata e eram fanáticas ao ponto de serem perigosas.
Catriona, lentamente, levou a mão à bainha do espadim que trazia preso à cintura, fechando-a no punho, reconfortada ao sentir a lâmina ao longo da perna.
Não virava costas a uma boa briga, à semelhança de qualquer dos seus conterrâneos, mas se a situação descambasse para uma rixa a sério, talvez estivesse ligeiramente
em desvantagem. Além disso, as ordens da sua mentora tinham sido bastante claras. Não entrar em contacto com o inimigo. Ela devia limitar-se a descobrir quem havia
feito ressurgir a temível irmandade das bruxas da Rosa de Prata, bem como a identidade da nova superiora.
Talvez fosse a mais alta, a que dirigia a palavra ao grupo do fundo do seu capuz de monja.
- Desde sempre que os cometas são presságios de grandes alterações, a morte dos velhos, o nascimento dos novos. - A mulher apontou para o firmamento com uma mão
de pele branca e com um gesto gracioso. - Aquele arde pela nossa Rosa de Prata, proclamando a sua glória, o seu triunfo há tanto devido ao assumir o lugar que é
seu por direito próprio, na qualidade de dirigente de França e além-mar.
- Mas temos de a encontrar primeiro - adiantou uma das presentes.
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- O que haveremos de fazer. - A mulher alta pousou a mão no ombro da que falou, mostrando um semblante solene. - Prometo-vos isso. Finalmente, descobri que a nossa
jovem rainha foi levada para fora de França.
- Para fora de França! - disse uma das presentes na assembleia de bruxas num gemido de perturbação. - Mas isso aumenta as nossas dificuldades dez vezes mais.
- Não, Megera será resgatada, juro-vos que sim. E depois puniremos o patife que se atreveu a raptar a nossa rainha, levando-a para longe de nós.
- Sim, morte ao vilão! - Ouviram-se outras vozes esganiçadas que fizeram coro com a dela.
- Não mostraremos misericórdia ao bandalho.
- Faremos com que lamente o dia em que nasceu.
- Destruiremos o malandro que raptou a nossa Rosa.
- Morte ao Lobo. Morte ao Lobo!
O cântico engrossou cada vez mais alto, até que a primeira mulher pediu silêncio. Voltou a fazer uso da palavra, mas desta vez as suas palavras eram proferidas num
tom de voz demasiado baixo para Catriona conseguir ouvir o que dizia. Aparentemente, havia sido dada uma ordem, porque o grupo voltou a sentar-se à roda da fogueira.
Catriona semicerrou os olhos azuis, esforçando-se por encurtar a distância para poder vislumbrar o rosto da superiora oculto pelo capuz.
A agudeza da visão de Catriona, até mesmo nas noites mais escuras, combinada com a sua agilidade e movimentos furtivos, há muito que havia levado a sua gente a apelidá-la
de Cat, tratando-a por gata, pelo menos, até o seu clã a ter expulsado, começando a tratá-la por outro nome.
Bruxa.
A sua expulsão devera-se, principalmente, à malquerença de Banan OMeara, o homem que se casara com a sua mãe. Desejava ter o padrasto junto de si naquela noite,
para poder mostrar ao grande mentecapto o que era uma verdadeira bruxa.
Quando a superiora do grupo levou a mão ao capuz para o afastar para trás, Cat susteve a respiração.
"É isso mesmo, minha querida", incentivou a mulher em pensamento. "Tira o capuz para eu poder ver bem a tua carantonha demoníaca de louca."
Mas quando o capuz da mulher tombou para trás, Catriona mordeu o lábio para se impedir de praguejar de tão desiludida que ficou. As feições da mulher estavam escondidas
por uma máscara de seda, do género das que
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as senhoras costumavam usar para protegerem a sua compleição do sol. Pouco conseguia discernir, além da linha delicada do nariz, o brilho do cabelo louro todo penteado
para trás num carrapito austero.
Quando as outras lhe seguiram o exemplo, Cat constatou que todas usavam máscaras. Havia apenas uma que mostrava o seu rosto, uma jovem que tinha uma basta cabeleira
preta de asa de corvo. Despiu o manto, revelando que por baixo não usava mais nada além de uma combinação branca. A atrevidota era uma noviça na irmandade, prestes
a ser submetida à cerimónia que a proclamaria como membro definitivo da Irmandade da Rosa de Prata.
Cat suprimiu um suspiro de impaciência, sem ter a mínima vontade de assistir a uma cerimónia de iniciação de gente demente. Já sentia uma cãibra na perna esquerda
por se ter mantido imóvel no solo frio durante tanto tempo, todavia não lhe restava outra alternativa que não fosse permanecer onde se encontrava, na esperança de
que, quando chegassem ao fim daquela pantomina, começassem a discutir os seus planos com respeito à Rosa desaparecida. E talvez quando encerrassem a assembleia de
bruxas e, finalmente, se sumissem a coberto da escuridão tivesse a sua oportunidade de encurralar a superiora sozinha, encostando-lhe a lâmina à garganta para a
obrigar a tirar a máscara.
Entretanto, a superiora quase desapareceu do ângulo de visão de Cat quando se inclinou para a fogueira a fim de aquecer a lâmina de uma adaga nas chamas. As outras
mulheres começaram a entoar um cântico monocórdico no que, provavelmente, imaginariam ser uma língua mística, mas que não passava de uma grande treta, pensou Cat
depreciativamente. Ela própria havia sido muito bem ensinada, pelo que aprendera todas as línguas da Antiguidade, graças à sua velha avó, e aquela lengalenga não
se parecia com nenhuma delas.
O corpo da rapariga de cabelo escuro oscilava ao ritmo da cantilena, com uma expressão sonhadora e alheada no semblante magro, talvez em resultado de ter sido drogada
com um qualquer opiáceo ou uma generosa dose de conhaque. Cat esperava que fosse esse o caso ao adivinhar o que aconteceria a seguir.
Apesar disso, foi ela quem estremeceu e não a noviça quando esta estendeu a mão calmamente, expondo a pele branca e macia do antebraço. Duas das bruxas pousaram
as mãos na jovem, agarrando-lhe o braço para que ela não se mexesse, não fosse a rapariga mudar de ideias quando a superiora se aproximasse com a lâmina ao rubro.
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Catriona não era nenhuma flor de estufa, tendo testemunhado muitas cenas macabras ao longo dos seus vinte e sete anos. Mas baixou o olhar, preparando-se para os
gritos da jovem que seriam inevitáveis, por muito suco de papoila que a pobre idiota tivesse engolido.
Mas o som que perturbou o silêncio da noite foi o barulho de ramos secos a estalarem e de seixos deslocados por botas pesadas. E vinha de trás de Cat.
Sobressaltada, virou-se para trás. Tinha estado tão absorta na cena que se desenrolava no cimo do penhasco que não se apercebera de que não era a única pessoa que
observava as bruxas.
As sombras agigantavam-se em volta dela, um grande grupo de homens, pelo menos doze, que avançavam pelo caminho até à clareira. Seriam caçadores de bruxas? Cat sentiu-se
tentada a gritar um aviso. Detestava a probabilidade de qualquer mulher vir a ser apanhada pelos caçadores de bruxas, por muito desencaminhadas ou demoníacas que
fossem. Eram as Filhas da Terra que deviam julgar as da sua espécie e não um qualquer padre pomposo ou mercenário imundo que ganhasse o seu sustento por meio da
tortura ou do assassínio.
Mas era demasiado tarde para qualquer aviso, além de ser desnecessário. As presentes na assembleia de bruxas já haviam dado pela presença dos homens e algumas gritavam
atemorizadas. Cat viu os contornos indistintos de pernas robustas, botas grossas e o brilho da lâmina de espadas desembainhadas quando passaram por onde se mantinha
escondida. Rolou para um lado, evitando ser espezinhada por uma unha negra.
As mulheres gritavam, agrupando-se em redor da superiora. com o caminho de acesso à clareira cortado e sem terem por onde retroceder, a não ser a vertente escarpada
do penhasco, o que significaria uma queda até aos rochedos mais abaixo, algumas das mulheres empunharam punhais e espadas, mas eles eram em número superior, impossibilitando-as
de se baterem com aqueles corpulentos brutos. Receando estar prestes a testemunhar uma chacina hedionda, Catriona pôs-se de pé repentinamente. Desembainhou a sua
espada. A despeito das ordens que recebera da sua mentora, não podia limitar-se a assistir sem que...
- Alto!
A ordem brusca do chefe do grupo imobilizou os homens, assim como Cat. Continuava oculta nas sombras quando o homem avançou, o clarão das chamas da fogueira a permitir
que Catriona distinguisse as suas feições. Era
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bem-parecido e tinha uma barba de um louro arenoso, bem como um cabelo suavemente ondulado. Tinha uma aparência muito mais elegante do que os seus homens de aspeto
grosseiro.
- Minhas senhoras - disse, fazendo uma vénia rasgada às mulheres encapuzadas e brindando-as com um sorriso cordial, como se estivesse num baile e tencionasse convidar
uma delas para dançar.
Cat ficou chocada ao reconhecê-lo. Estava bastante familiarizada com aquele sorriso encantador que mascarava um coração de assassino. Ambroise Gautier. Não era nenhum
caçador de bruxas, mas sim algo muito pior do que isso.
Ele prosseguiu num tom de voz aveludado que era quase apologético.
- Minhas queridas, lamento ser forçado a interromper os vossos pequenos rituais satânicos, mas tenho de vos prender a todas. Não tenho o mínimo desejo de fazer mal
a qualquer de vós, pelo que vos peço, com toda a cortesia, que largueis as vossas armas e que nos acompanhem sossegadamente. Tenho a certeza de que já tereis concluído
que só vos restam duas opções. A rendição ou a morte.
Uma das mulheres soltou um soluço entrecortado, talvez a jovem noviça. Todavia, a superiora da irmandade das bruxas mostrava-se bastante calma enquanto dava alguns
passos em frente.
- Estais equivocado, monsieur - disse ela. - Existe uma terceira opção. Muito simplesmente, podemos desaparecer, todas sem exceção.
- Falais a sério, mademoiselle? - Os dentes de Gautier brilharam num sorriso enquanto perguntava cortesmente: - E como é que estais a pensar fazer isso? Tencionais
saltar para cima dos vossos cabos de vassoura, desaparecendo no céu?
- Não, numa nuvem de fumo. - A bruxa rodopiou rapidamente, deitando uma mão-cheia de qualquer coisa na fogueira.
O efeito foi surpreendente e imediato, um estrondo ensurdecedor seguido de uma saraivada de centelhas que fez com que todos procurassem proteger-se, incluindo Cat.
Uma das brasas incandescentes caiu-lhe numa manga, apressando-se a extingui-la. O que quer que a bruxa tivesse atirado para a fogueira deu origem a uma nuvem de
fumo negro que se espalhou com toda a celeridade, soprada pela brisa.
Catriona ouviu Gautier a praguejar e a ordenar às suas tropas que atacassem. O caos instalou-se na clareira, com o cimo do penhasco coberto de um
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fumo acre, ouvindo-se gritos e imprecações de pessoas que sufocavam. Houve alguém que caiu por terra, mas se era uma das mulheres ou um dos homens, era coisa que
Cat não sabia dizer porque os seus próprios olhos começaram a arder-lhe.
Tapando a boca e o nariz com uma mão, embainhou a espada e apressou-se a bater em retirada pela encosta abaixo. A correr e quase a tropeçar, chegou ao local onde
tinha deixado a sua montada presa, sentindo-se aliviada ao ver que Red Rranch continuava onde o deixara e constatando que os homens de Gautier não tinham dado pelo
cavalo ruano.
Gautier. Catriona recompôs-se do aturdimento que sentira ao reconhecer o cruel mercenário, o que se deveu menos a ter medo do homem do que de quem o enviara, a pessoa
a soldo de quem Gautier estava.
Catarina de Médicis, a Rainha Viúva de França, mas mais conhecida pelas outras Filhas da Terra por um nome bastante diferente... A Rainha das Trevas.
Depois de ter desprendido Red Eranch e de ter montado, lançou um olhar de frustração na direção de onde tinha vindo e era aí que se desenrolava uma situação infernal.
No que dizia respeito a manobras de diversão, o truque da bruxa, com o pó explosivo, tinha sido uma idiotice porque o fumo a envolvera e às suas irmãs da mesma maneira
que envolvia os homens.
Cat não achava que todas tivessem boas probabilidades de se porem em fuga. Talvez nenhuma conseguisse escapar. Se os homens de Gautier capturassem uma que fosse,
levá-la-ia para enfrentar Catarina e se a Rainha das Trevas se inteirasse da verdade acerca da Rosa de Prata...
Cat sentiu o sangue a gelar-lhe nas veias ao considerar as possibilidades. No entanto, não havia nada que pudesse fazer, para além de se apressar a regressar à ilha
Encantada para advertir a sua mentora.
- O Diabo está metido no assunto, do que não há a mínima dúvida resmungou enquanto obrigava Red Branco a dar a volta. Fez pressão com os joelhos e começou a galopar,
sumindo-se na noite velozmente, como se o destino do mundo dependesse de si.
A Senhora da Ilha Encantada andava pelo jardim; calçada com chinelos, os seus passos quase não faziam barulho nenhum enquanto percorria o carreiro que lhe era tão
familiar. Até mesmo a cotovia que tinha o seu ninho no vetusto ulmeiro não fazia o mínimo movimento àquela hora tão matutina, com o firmamento a começar a clarear
com os primeiros alvores do romper do dia.
O jardim estava tão silencioso como a casa que se erguia atrás de si. com as suas paredes cobertas de hera, um único torreão retilíneo e as janelas com pinázios,
Belle Haven transmitia solidez e uma atmosfera acolhedora. Era o santuário de inúmeras gerações de mulheres sábias, o lar da que era considerada a mentora de todas,
a Senhora da Ilha Encantada.
Ariane Deauville, a atual detentora desse título, era uma mulher alta e de postura majestosa, com uma basta cabeleira castanha e uns olhos cinzentos de expressão
circunspecta. Não obstante todos os perigos e dificuldades com que se havia deparado ao longo dos seus trinta e quatro anos, de uma maneira geral o semblante de
Ariane apresentava uma serenidade régia. Mas, naquele momento, estava pálida e mostrava os sinais da falta de sono.
Depois de ter dado voltas e mais voltas na cama sem conseguir conciliar o sono, acabara por desistir. Receando perturbar o repouso do marido, abandonara o conforto
do leito que ambos partilhavam, envolvendo-se num manto de lã por cima da camisa de dormir e saindo de casa pela porta da cozinha.
Os seus jardins sempre lhe tinham proporcionado uma sensação de tranquilidade, com todos os seus canteiros bem cuidados de ervas medicinais que usava nas artes de
curar, dando-lhe grande satisfação. Contudo, naquela manhã, o seu olhar prendia-se na mesma direção para onde olhavam muitas outras
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pessoas por toda a Europa - em direção ao firmamento, aonde aquela estranha aparição perturbava a tranquilidade dos céus.
Até mesmo com o raiar da manhã, o cometa continuava a ser visível, a pairar abaixo do globo pálido da Lua. Era para aí que Ariane olhava com fixidez, sentindo-se
humilde e com um temor respeitoso perante aquele fenómeno espectral que atravessava o firmamento.
Desde o princípio dos tempos que as pessoas consideravam que os cometas anunciavam inundações, terramotos, pestilências e fome, além das mortes de imperadores e
reis. Ariane tinha noção de que devia estar acima dessas crenças supersticiosas.
Mas não conseguiu suprimir o arrepio que lhe percorreu a coluna vertebral. Baixou o olhar, ralhando a si própria por estar a pensar naqueles disparates. Estavam
a surgir problemas no mundo fora da ilha Encantada, mas ela não precisava da chegada de um cometa que lhe dissesse isso. A assembleia de bruxas da Rosa voltara a
ressurgir, a irmandade tão louca e perigosa como as feiticeiras que a haviam fundado.
Em tempos, Cassandra Lascelles tentara reunir um exército, recorrendo às mulheres da Irmandade da Rosa de Prata que haviam sido vítimas das crueldades do mundo.
E eram inúmeras, refletiu Ariane com tristeza. Mulheres casadas que eram vítimas de sevícias, raparigas que engravidavam sem estarem casadas, cortesãs envelhecidas
que tinham sido abandonadas pelos seus amantes. As miseráveis, as desiludidas, as desesperadas, as insanas, todas se haviam acolhido sob a insígnia da Rosa de Prata.
A intenção de Cassandra fora propagar o caos por toda a França, destruir a Casa de Médicis para poder instalar a filha, Megera, no trono. Um esquema que poderia
ter sido ignorado por ser a mais pura expressão de insanidade se Cassandra não estivesse de posse do terrível Livro das Sombras, um compêndio de toda a poderosa
e destrutiva ciência mais negra da Antiguidade.
Ariane encontrava-se na Irlanda nessa altura, tendo sido forçada a exilar-se devido a falsas acusações de bruxaria e traição contra o rei de França. Quando recebeu
notícias que a informavam do que estava a acontecer com respeito à Irmandade da Rosa de Prata, as maquinações de Cass já se tinham gorado devido à intervenção da
irmã mais nova de Ariane, Miri, e do caçador de bruxas de nome Simon Aristide.
com Cassandra Lascelles morta e Megera levada para parte incerta pelo pai, Martin, o Lobo, tudo indicava que esses acontecimentos tinham conseguido pôr fim àquele
perigoso assunto, pelo menos era o que todos esperavam.
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Mas alguns meses antes chegaram aos ouvidos de Ariane algumas histórias perturbadoras que lhe davam conta de que o culto tinha uma nova superiora, o que dera azo
a que as bruxas tivessem organizado uma procura implacável com vista a descobrirem o paradeiro de Megera.
Contava-se com que Ariane possuísse a sabedoria e a força necessárias para lidar com aquela nova ameaça. Mas, infelizmente, ela sentia-se mais cansada e mais debilitada
do que nunca em toda a sua vida. Meteu a mão por dentro do manto, passando as pontas dos dedos com suavidade pelo ventre ligeiramente protuberante, a criança que
aí se desenvolvia a dar os primeiros sinais da sua presença. Um milagre ao cabo de tantos anos em que fora estéril...
Um som vindo da direção da casa interrompeu os perturbadores pensamentos de Ariane. A luz de velas saía das janelas da cozinha e o ranger de dobradiças foi seguido
do bater da porta. Havia alguém que a procurava.
Ariane esperava ver o marido. Ao ver que ela não estava na cama, sem dúvida que Justice teria atirado as cobertas para trás com uma imprecação dita entredentes,
não parando de resmungar enquanto vestia os calções e a camisa.
"Mas perdeste o juízo de todo, mulher? Até mesmo o Sol tem o bom senso de ainda não se ter erguido no firmamento. Alguns de nós damo-nos ao luxo de um hábito muito
peculiar. Chama-se dormir e devias experimentá-lo com um pouco mais de frequência, minha sensata Senhora da Ilha Encantada."
A boca de Ariane esboçou um sorriso. Até mesmo depois de treze anos de casamento, o gigante que era o seu marido continuava a ser desmesuradamente protetor em relação
a ela. Em quanto é que isso aumentaria quando ele tivesse conhecimento do bebé? Não podia ocultar-lhe o seu estado por muito mais tempo.
Pensar naquilo tirou-lhe o sorriso dos lábios. Foi com vergonha de si própria que sentiu alívio ao ver que não era a figura alta e vigorosa do marido que percorria
o carreiro do jardim, muito embora a pequena donzela guerreira que se aproximava caminhasse com a mesma determinação de Justice.
- Cat - murmurou Ariane, respirando com um misto de alegria e ansiedade, satisfeita ao ver que a jovem regressava incólume, mas apreensiva ao conjeturar as notícias
que Catriona lhe traria. Esta hesitou no ponto em que o carreiro se bifurcava, um caminho que seguia em direção aos pomares e o outro para os estábulos.
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- Ariane? - chamou em voz baixa.
- Estou aqui - respondeu Ariane, saindo das sombras dos ulmeiros de grande porte. Catriona encaminhou-se para Ariane, que se apressou a ir ao seu encontro, dando
um forte abraço à amiga.
Antes de Ariane poder impedi-la, Cat ajoelhou-se sobre um joelho e levou a mão dela aos lábios num gesto de reverência.
- Saudações, minha Senhora da Ilha Encantada. Muita honra e glória para vós.
- Cat - retorquiu Ariane num tom de repreensão, tentando tirar a mão suavemente da de Catriona cheia de calos. - Quantas vezes tenho de te pedir que não me saúdes
nesses termos? Não sou nenhuma rainha.
- Para mim, sois - replicou Cat, inclinando a cabeça para trás. O céu já tinha clareado o bastante para Ariane conseguir ver a suave curvatura da face dela, o brilho
intenso que flamejava nos olhos azuis de Catriona.
- Para sempre e todo o sempre, minha senhora, minha rainha, minha mentora.
Pegando no braço da mulher mais jovem, Ariane disse-lhe que se endireitasse.
- Pois eu preferiria, de longe, que me considerasses como tua irmã e amiga. - Envolveu Catriona num abraço afetuoso que esta retribuiu um pouco desajeitadamente.
Se bem que a amizade entre as duas já remontasse a dez anos, Cat continuava a mostrar algum desconforto face àquelas manifestações de afeto. O que seria de esperar,
pensou Ariane com tristeza. Ao longo do curso tumultuoso da sua vida, Cat não havia sido bafejada por sentimentos de amor e ternura. Até mesmo da parte da mãe. Recuando
um pouco, Catriona olhou para Ariane com um afeto que tentava disfarçar.
- E como é que a minha mentora tem passado?
- Melhor agora que já vi que a minha guerreira irlandesa regressou sã e salva - respondeu Ariane sorrindo-lhe, mas era com consternação que via a aparência da amiga,
a sujidade na bochecha e o justilho coberto de poeira. Estava rasgado num ombro e estaria a ver uma manga queimada? - Oh, Cat, não me digas que tiveste de lutar.
- Nada disso! Por acaso não vos prometi? Nem sequer tive de desembainhar a minha espada. - Parte do orgulho ferido de Catriona desapareceu quando coçou o queixo
e confessou: - Isto é, apenas durante um momento ou dois, mas tratei de a embainhar de imediato e nem sequer arranhei ninguém.
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Assim que encontrei aquelas bruxas, apressei-me a voltar para vos relatar o que vi.
- Isso quer dizer que viste as bruxas durante a sua assembleia à meia-noite?
- Alguma vez haveis duvidado de que conseguiria? - perguntou Catriona, pondo-se de pé.
- Não. - Mas Ariane desejara que ela não conseguisse levar a cabo os seus intentos, que todos os rumores que haviam chegado à ilha Encantada viessem a provar-se
ser apenas histórias disparatadas e nada mais. - E... e então? - perguntou numa voz vacilante.
- E, então, tudo o que tínheis receado é verdade. A Irmandade da Rosa de Prata continua a existir. Se bem que não sejam tantas como anteriormente, andam a recrutar
novas noviças. Infelizmente, fui interrompida antes de poder descobrir a identidade da superiora. - Cat mordeu o lábio inferior, mostrando-se desgostosa e frustrada
por ter fracassado. - As bruxas usam máscaras durante as assembleias, mas todas estão marcadas, gravando a fogo uma rosa de tamanho ínfimo no antebraço. A devoção
que dedicam a Megera é tão fanática como sempre e estão firmemente determinadas a encontrar o seu paradeiro. Não sei como, descobriram que foi levada para fora de
França. Por isso, talvez seja apenas uma questão de tempo até a encontrarem. Ou que alguém pior do que elas o consiga.
Ariane empalideceu ao ouvir o seu maior receio confirmado. Fechou os olhos, desequilibrando-se um pouco ao sentir-se entontecida.
- Milady! - gritou Cat. Passou um braço pela cintura de Ariane, segurando-a. Levou-a para um dos bancos do jardim, ajudando-a a sentar-se com suavidade na pedra
fria.
Ariane inclinou-se para a frente e baixou a cabeça, respirando fundo várias vezes e lentamente até o jardim ter deixado de andar à roda. Catriona agachou-se à frente
dela enquanto lhe friccionava os pulsos e lhe falava numa voz de onde transparecia uma grande preocupação.
- O que é que devo fazer? Quereis um copo de água? Ou será melhor chamar milorde para que vos leve para dentro de casa?
Ariane abanou a cabeça e endireitou-se já recomposta, sentindo-se embaraçada perante aquela demonstração de fraqueza.
- Não, isto não tem importância - respondeu num tom veemente.
- De vez em quando, sinto-me um pouco entontecida, o que é bastante normal numa mulher no meu estado.
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Catriona franziu as sobrancelhas numa expressão que indicava não estar nada convencida.
- Na minha opinião, está bem patente que não tendes andado a cuidar de vós como deve ser. O que é que estáveis a fazer fora da cama a esta hora? Surpreende-me que
o vosso marido vos tenha permitido, em especial por estardes à espera de criança e tudo o mais.
Ariane não lhe deu resposta, mas a maneira como virou a cara, com uma expressão de culpa, disse a Cat tudo o que precisava de saber. A irlandesa oscilou apoiada
sobre os calcanhares, gemendo.
- Ah, em nome de todos os santos. Ainda não lhe dissestes! Isso não é um tudo-nada idiota? Mas milorde não tardará a aperceber-se. Surpreende-me que isso ainda não
tenha acontecido, levando em linha de conta que ele próprio é tão profundamente arguto.
Um meio sorriso escapou a Ariane ao ouvir a descrição de Catriona. Ele próprio, como ela descrevia Justice tão pitorescamente, era, efetivamente, arguto. Ariane
era extremamente competente a ler olhos, essas janelas da alma. com o seu olhar pleno de firmeza, conseguia avaliar o caráter de qualquer pessoa, sendo frequente
que também fosse capaz de ler os pensamentos. Mas Justice era ainda mais competente do que ela, uma vez que o marido havia sido ensinado na antiga arte da leitura
de pensamentos por Melusina, a sua avó, uma bruxa velha e malévola.
Ariane e Justice tinham uma relação tão chegada como era possível entre marido e mulher, contudo ela conseguia ocultar-lhe os seus pensamentos caso fosse necessário,
apesar de ter tido muito poucas razões para isso até recentemente. Era forçoso que Justice já se tivesse apercebido de que ela estava a fechar-lhe a sua mente, no
entanto não a pressionara para que se explicasse, aguardando pacientemente que ela decidisse confiar-lhe o segredo que guardava tão ciosamente, acreditando que a
mulher acabaria por o fazer. Ariane suspirou.
- Tem sido muito errado da minha parte ocultar do Justice que estou grávida. Mas, oh, Cat! Eu já tinha desistido da esperança de voltar a conceber. Será um egoísmo
assim tão grande eu querer desfrutar sozinha esta minha alegria por mais algum tempo? Porque sei que o Justice não será capaz de partilhar a minha felicidade, por
muito que ele se esforce por fingir. Ele vai temer tanto por mim.
- Perdoar-me-eis por vos dizer isto, mas não terá ele o direito de recear? - Cat suavizou as palavras, apertando a mão de Ariane afetuosamente,
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a palma áspera e calosa, o que não obstava a que o contacto físico fosse reconfortante. - Foi por pouco que ele não vos perdeu numa outra ocasião.
- Suponho que sim - murmurou Ariane, mas, decorridos tantos anos, a única coisa de que se recordava dessa ocasião não era o risco que a sua própria vida correra,
mas sim o rosto do seu nado-morto. O desgosto devastador que sentira ao olhar para o pequeno corpo engelhado da sua filha. O bebé por que tanto ansiara, uma menina
a quem ensinar todos os conhecimentos antigos, transmitindo-lhe as artes de curar que Ariane aprendera com a sua própria mãe, uma filha que um dia talvez lhe sucedesse
como Senhora da Ilha Encantada.
O antigo desgosto de perda ameaçava apoderar-se de Ariane, associado ao terror de poder vir a perder a criança que trazia no ventre, mas suprimiu aquelas sombrias
emoções. Tinha resolvido nos primeiros dias da sua gravidez que aquele bebé seria alimentado apenas com o sangue e respiração da sua vida, a sua calma e força. A
criança não seria envenenada pelas apreensões e medos da mãe.
- Tenciono dizer ao Justice dentro de pouco tempo, prometo-te que sim. Mas sei que, desta vez, as coisas serão diferentes. - Ariane pousou as mãos abertas no ventre.
- Este bebé é forte. Pressinto isso mesmo. Esta criança sobreviverá. Tens de acreditar em mim.
- Se assim o dizeis, assim será - respondeu Catriona circunspecta. - Mas...
Ariane apertou a mão de Cat firmemente, ansiosa por encerrar aquele assunto.
- Por favor, acaba o que estavas a dizer-me. Disseste que receavas que alguém muito pior talvez andasse a tentar encontrar Megera, certo?
- Eu disse isso? - Continuando a mostrar-se apreensiva, Catriona pôs-se de pé. Desviando a cara enquanto raspava a biqueira da bota, já com muito uso, pela grossa
raiz de uma árvore. - Bem... sabeis como eu sou. Às vezes deixo-me levar ao sabor das palavras, tenho tendência para exagerar o que digo. Atrevo-me a dizer que é
o meu sangue irlandês a falar e...
- Cat, não faças isso. - O tom autoritário da voz de Ariane obrigou Catriona a olhá-la bem de frente. - Sei o que estás a fazer - prosseguiu Ariane. - A minha breve
indisposição alarmou-te e, por isso, estás a tentar poupar-me. Por muito apreço que eu dê à tua solicitude, preciso que me relates o que se passou com toda a sinceridade.
Acredita em mim. Seja o que for de que te inteiraste, sou suficientemente forte para lidar com isso.
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"Tenho de ser, pensou Ariane sombriamente para consigo.
Cat soltou um suspiro. Tirou a pequena garrafa que trazia presa no cinto, fortificando-se com um gole de uísque irlandês. Como é que ela conseguia beber um uísque
tão forte antes de ter tomado sequer o pequeno-almoço, era coisa de que Ariane não fazia ideia. Sentiu o estômago às voltas ao pensar naquilo.
Cat rolhou a garrafa, voltando a guardá-la por dentro do cinto. Andava de um lado para o outro no carreiro do jardim enquanto relatava o resto da sua história a
Ariane, acompanhando-a com muitos gestos e gesticulações dos braços. Eram muitas as vezes em que Ariane havia refletido bem-humorada que não seria necessário amordaçar
Catriona OHanlon para a calar. Só seria preciso amarrar-lhe as mãos. Mas nem sequer se sentiu tentada a sorrir enquanto ela concluía a sua narrativa. Não queria
que Cat se preocupasse consigo, mas era difícil a Ariane manter uma fachada calma enquanto ela lhe descrevia os soldados que haviam atacado as bruxas no cume do
penhasco.
- ... reconheci o Gautier quase de imediato, o que me deixou muito poucas dúvidas quanto a quem o teria mandado.
- A Rainha das Trevas - murmurou Ariane. Como se aquele assunto já não se afigurasse bastante difícil e perigoso sem a ameaça do envolvimento de Catarina de Médicis.
O corpo de Ariane foi percorrido por um estremecimento. Entrelaçou as mãos com força no colo para esconder de Catriona o quanto estava perturbada. - Tens a certeza
absoluta de que era o Gautier? - perguntou num tom de voz surpreendentemente calmo.
- Tenho, fixei bem as feições do homem quando o acompanhei ao tribunal no dia em que a Rainha das Trevas vos perdoou e, à semelhança dos gatunos mais simpáticos,
vos restituiu tudo o que vos tinha roubado. O Gautier era o presunçoso canalha que se encontrava atrás da rainha. Não reparastes nele?
- Não - respondeu Ariane pesarosa. - Tenho de admitir que não vi ninguém além de Catarina. Essa mulher demoníaca tem vindo a projetar uma comprida sombra em toda
a minha vida.
- O que é um verdadeiro feito para uma mulher tão baixa. A minha avó costumava aterrorizar-me com as suas histórias arrepiantes acerca da Rainha das Trevas de França.
Quando, por fim, fiquei frente a frente com essa mulher, senti-me dececionada. - Cat franziu o nariz num trejeito de desdém.
- Ela era tão... tão velha e gorda.
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Ariane reconhecia que Catarina tinha envelhecido consideravelmente. A, em tempos, formidável Rainha das Trevas, agora movimentava-se com rigidez devido às dores
que sentia, tinha os dedos enodados devido ao reumatismo, uma papada enorme e o queixo descaído, além de um rosto cheio de rugas fundas. Aqueles olhos escuros de
expressão penetrante dos Médicis, que em tempos haviam sido capazes de pôr a nu a alma de qualquer pessoa, agora estavam reumosos e baços. Apesar disso, a mente
de Catarina parecia tão lúcida como sempre, além de perturbadoramente perversa.
Catriona prosseguiu.
- É possível que estejamos a criar uma tempestade num copo de água por causa da rainha para nada. O seu poder parece estar a diminuir. Ao fim e ao cabo, ela foi
forçada a ceder o controlo do exército francês ao duque de Guise. A fazer fé no que tenho ouvido dizer, ele conta com a estima e o apoio da gente de Paris, ao contrário
de Catarina ou daquele lamuriento filho dela. Alguns dizem que o duque virá a ser o governante de França, embora não a título oficial.
- E isso faz com que eu receie Catarina ainda mais - retorquiu Ariane. - Qualquer ameaça ao seu poder sempre fez com que se sentisse desesperada, tornando-a ainda
mais perigosa do que já é. Não tenho qualquer dúvida quanto ao motivo que a levou a incumbir Gautier de encontrar as bruxas durante a sua assembleia à meia-noite.
Ela quer o Livro das Sombras. O mais provável é nunca ter cessado de o procurar.
- E acreditais que esse livro se encontra na posse dessas bruxas.
- Quem me dera saber ao certo.
Depois de Cassandra ter morrido, ninguém conseguiu encontrar o sinistro livro, não obstante todos os esforços feitos por Simon Aristide para o localizar. Desde sempre
que Catarina de Médicis se sentira fascinada pelo lado mais negro do conhecimento. Se alguma vez viesse a deitar mão a esse manuscrito, não teria o mínimo escrúpulo
em usá-lo. No entanto, agora, Ariane tinha uma preocupação ainda mais premente.
- Se o Gautier conseguir capturar alguma dessas bruxas, obrigá-la-á a falar, pelo que a Catarina ficará a saber a verdade a respeito de Megera - continuou Ariane.
- O Aristide conseguiu convencer a rainha de que a Cassandra era, efetivamente, a Rosa de Prata. A Catarina acredita que tanto ela como a filha morreram afogadas.
Se a rainha descobrir que o Simon lhe mentiu, é muito possível que ele venha a ser vítima da sua cólera. Ele tem de ser avisado.
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- Essa devia ser a menor das nossas preocupações - retorquiu Catriona com um encolher de ombros. - O caçador de bruxas que cuide de si próprio.
- Infelizmente, esse caçador de bruxas está casado com a minha irmã Miri e é o pai da sua criança.
Cat franziu o sobrolho quando Ariane lhe lembrou aquele facto. O casamento de Miribelle Cheney com o notório caçador de bruxas Aristide não colhera grandes simpatias
entre a comunidade das mulheres sábias. A própria Ariane tivera grande dificuldade em não intervir, acabando por permitir que Miri desposasse o homem que em tempos
atacara a ilha Encantada por ordem do rei de França, forçando Ariane e a sua família a exilarem-se.
No entanto, era forçada a reconhecer que Simon tinha feito todos os possíveis para se redimir. Depois de ter salvado a Rainha das Trevas das mãos de Cassandra Lascelles,
Catarina concedera-lhe um favor, favor esse que Simon usou para que fosse permitido a Ariane regressar à ilha Encantada.
Além disso, Miri amava-o verdadeiramente. Sempre havia visto o bem em Simon, insistindo em dizer que ele era apenas um homem que andara perdido, tendo sido mal-aconselhado.
E se houvesse alguém que sabia como sarar feridas da alma, essa pessoa era Miri.
A outra irmã das duas, Gabrielle, não se mostrara tão compreensiva. Apaixonada e com um temperamento impetuoso, dera largas aos seus sentimentos numa carta contundente
endereçada a Ariane.
"Em que é que terás estado apensar ao permitires que a Miri casasse com esse vilão? Devias tê-la fechado na despensa e atirado fora a chave. Como é que a Miri pode
ser tão idiota? Nunca lhe perdoarei por isso. jamais!"
Mas muito em consonância com a maneira de ser de Gabrielle, escrevera na linha logo a seguir: "É bom que esse canalha cuide bem da minha irmã. Se ela sofrer algum
mal ou se for infeliz às mãos dele, juro que o flagelarei até à morte."
Aquela discórdia no seio da sua própria família atormentava Ariane profundamente, mas era forçada a banir aqueles pensamentos da cabeça, concentrando toda a sua
atenção num assunto muito mais premente.
Levantou-se do banco de pedra e ela própria começou a andar de um lado para o outro no jardim. Unindo as pontas dos dedos em forma de pirâmide por baixo do queixo,
tomou uma difícil decisão.
- Só nos resta uma coisa a fazer - disse. Endireitou os ombros e virou-se de frente para Catriona. - A Megera tem de ser encontrada o mais
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depressa possível para a podermos trazer para a ilha Encantada, aonde ficará em segurança.
Era muito raro que Cat questionasse as decisões de Ariane, mas a mulher franziu as sobrancelhas.
- Perdoai-me o atrevimento, mas parece-vos que isso é sensato? Não existe qualquer garantia de podermos mantê-la em segurança aqui, para já não mencionar que a sua
presença poderia acarretar perigo para a ilha.
- Já refleti sobre essa possibilidade, mas é um risco que temos de correr. A garota estará muito mais segura aqui do que sabe-se lá em que parte do mundo, contando
apenas com a proteção do pai. Se as bruxas da irmandade estiverem de posse do Livro das Sombras e também conseguirem deitar a mão a Megera, estaremos perante uma
situação verdadeiramente infernal. Por outro lado, se a Catarina conseguir encontrar a rapariga antes de nós, não tenho a mínima dúvida de que não hesitará em acabar
com ela.
- São inúmeras as da nossa espécie, mulheres boas, que aconselhariam a mesma coisa. Receiam que a rapariga esteja contaminada pelo sangue demoníaco da mãe.
- Oh, Cat, com certeza que não pensas...
- Deus nos valha, claro que não! - atalhou Catriona, soltando uma gargalhada de amargura. - São inúmeras as vezes em que eu própria fui apelidada de filha do Diabo,
para agora atirar pedras a quem quer que seja.
"Limito-me a relatar-vos o que ouvi dizer, até mesmo aqui, na ilha Encantada. São muitas as pessoas que consideram perturbador que uma rapariga tão jovem seja capaz
de fazer o que mulheres sábias mais velhas e mais eruditas não conseguem fazer. Traduzir o Livro das Sombras e pôr em prática os seus malditos encantamentos, fazendo
aquelas lâminas de bruxa tão letais e preparando venenos tão mortíferos.
- Única e exclusivamente por a Cassandra ter obrigado a garota a fazê-lo. Admito que eu própria nunca vi a rapariga. Mas a Miri diz que essa jovem é extraordinária,
muito mais inteligente e sensata do que seria de esperar em alguém da sua idade, além de os seus olhos também espelharem uma grande inocência. Talvez a minha irmã
seja capaz de convencer outras...
- Sem querer ofender a vossa irmã, milady, mas duvido muito que alguém dê ouvidos a uma mulher que teve a insensatez de casar com um caçador de bruxas - atalhou
Catriona sem estar com meias-palavras.
Ariane estremeceu, reconhecendo que ela tinha razão. Massajou a nuca, região onde a tensão se acumulava quando se sentia pressionada e avassalada.
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- Mas não vale a pena estarmos a preocupar-nos com a espécie de acolhimento que Megera teria na ilha Encantada até conseguirmos encontrar essa jovem. -? Ariane olhou
para Catriona com uma expressão de pesar.
- É necessário que alguém se disponha a procurá-la e lamento ter de dizer que serás tu, minha querida amiga. É com pesar que te forço a outra árdua jornada tão pouco
tempo depois da última.
- Deixai-vos de pedidos de desculpa - retorquiu Cat com as mãos nas ancas e mostrando uma atitude de indignação. - com certeza, quem mais é que haveríeis de incumbir
disso, a não ser a vossa irlandesa?
- Ninguém - replicou Ariane sorrindo-lhe. Quando exilada da sua terra natal, separada das irmãs, tinha-se habituado a depender da pequena irlandesa, sempre tão aguerrida,
ao longo dos anos. A seguir ao marido, não havia ninguém em quem Ariane confiasse mais do que em Catriona OHanlon.
- Não podeis enviar ele próprio - continuou Cat. - Não no vosso estado tão delicado. Ireis precisar do vosso senhor perto de vós e sabeis como eu sou, milady. Marcharia
até ao próprio Inferno se mo ordenásseis.
- O mais certo é pensares que a tua missão é pior do que o Inferno quando eu te disser aonde é que terás de procurar Megera. com base nas últimas notícias que recebemos,
Martin, o Lobo, levou a filha para Inglaterra.
- Inglaterra! - Cat não se virou para cuspir como em tempos talvez tivesse feito. Mas soltou uma imprecação e gemeu. - Mas o homem terá perdido o juízo? Não podia
ter ido para a Irlanda ou para a Escócia ou... ou até mesmo para Itália ou para a Baviera? Por que diabo é que teve de ir para Inglaterra?
- Achas que isso pode ser uma dificuldade para ti, Cat? - perguntou-lhe Ariane com mostras de ansiedade. - Sei que não nutres grande simpatia pelos ingleses.
- Somente porque esses canalhas assassinos têm andado a pilhar e a violar o meu país de há vários anos a esta parte. - Catriona mostrou uma expressão de azedume,
acrescentando: - Não há razão para ficardes preocupada, milady. Não será a primeira vez que andarei entre os ingleses e sempre fui capaz de refrear as minhas emoções.
Tive de o fazer. Faltou-me o cuspo. Além disso, há, pelo menos, uma coisa boa nos ingleses - acrescentou contrafeita. - Sabem como fazer uma cerveja bastante tolerável.
Portanto, vamos lá a saber para onde é que esse Martin, o Lobo, levou a filha nessa terra amaldiçoada por Deus?
- A dada altura, instalaram-se em Southwark. Martin costumava manter a Miri a par das suas andanças, mas deixou de escrever há vários meses, mais
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ou menos na altura.... - Ariane hesitou, relutante em revelar a mágoa pessoal de outrem, mas uma vez que Catriona ia tentar descobrir o paradeiro de Martin, precisava
de se inteirar de tudo. - O Martin deixou de dar notícias mais ou menos quando a Miri lhe escreveu a dizer-lhe que estava grávida. Lobo adorou a minha irmã durante
vários anos. Apesar de não ter deixado transparecer o que lhe ia na alma, deve ter sofrido muito quando a Miri casou com o Simon Aristide.
- Portanto, esse Lobo não só é um idiota, como também está perdido de amor. Maravilhoso. - Cat abanou a cabeça com uma expressão desdenhosa. - Lamento dizer isto,
milady, mas as penas de amor do homem que se danem. Devia ter-lhe ocorrido que algumas das bruxas dessa irmandade pudessem ter sobrevivido e decidido procurar Megera.
Ter-se exilado onde ninguém poderia ajudá-lo a proteger a filha e sem poder contar com alguém que o avisasse da aproximação de qualquer perigo... é uma rematada
idiotice.
- O Martin acreditava que estava a proceder da melhor maneira para proteger os interesses de Megera ao desaparecer de França.
- Nesse caso, o homem é um idiota. Mas o que é que se pode esperar de um homem suficientemente estúpido para ir para a cama com uma bruxa demente como a Cassandra
Lascelles?
- Ele afirmou que foi seduzido.
- Mas não é isso que todos dizem? - ripostou Catriona escarnecedora. - Contudo, do mal o menos, se ele é assim tão estúpido, não me deve ser muito difícil encontrar
esse Lobo.
- Cat - admoestou Ariane. - Por favor, não cometas o erro de subestimar Martin, o Lobo. Admito que o homem é capaz de ser um tudo-nada temerário e impetuoso de vez
em quando, mas está longe de ser um idiota. Lobo é inteligente, ousado e com muito expediente. E, com base no que a Miri me diz, ele protege Megera ferozmente. Além
disso, também pode ser extremamente teimoso e orgulhoso. É possível que não seja muito fácil convencê-lo a trazer a filha para a ilha Encantada.
- Ora, tenho a certeza de que encontrarei maneira de o convencer. - Catriona levou a mão ao punho da espada carinhosamente.
- Catriona!
- O quê? Eu só estava a referir-me ao meu encanto, milady. Sou irlandesa. Fui abençoada com uma superabundância de encanto. - Os lábios de Cat esboçaram um sorriso
atrevido.
Ariane tentou retribuir-lhe o sorriso, mas a tensão que sentia no pescoço estendera-se à cabeça, concentrando-se entre os olhos. Quando massajou uma
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têmpora, o sorriso de Cat desapareceu-lhe da boca, arrependendo-se imediatamente da sua atitude.
- Eu é que sou uma grande idiota. Aqui estou eu a dizer graçolas estúpidas quando estais tão preocupada com este problema. - Cat aproximou-se de Ariane, pousando-lhe
uma mão no ombro suavemente. - Não tendes por que vos preocupar, milady. Prometo-vos que me encarregarei deste assunto por vós.
As feições de Cat, que habitualmente espelhavam sempre tanta determinação, foram atravessadas por uma muito rara vulnerabilidade.
- Além da minha avó, sois a única pessoa que acreditou em mim. Por favor, peço-vos que continueis a confiar em mim.
- Como se eu pudesse fazer outra coisa que não isso - retorquiu Ariane, tentando sorrir-lhe, apesar da forte dor de cabeça que se apoderara de si.
- O Justice e eu jamais teríamos conseguido sobreviver durante tantos anos escondidos nas montanhas Wicklow sem a tua ajuda. Devemos-te as nossas vidas.
- E eu devo-vos mais do que isso. Quando o meu clã me expulsou, senti que não tinha o mínimo valor. Mas vós... devolvestes-me o meu orgulho. - Catriona engoliu em
seco antes de continuar com uma feroz determinação. - Encontrarei essa rapariguinha e protegê-la-ei como vos protegeria, até à minha última gota de sangue. Trá-la-ei
sã e salva para junto de vós, milady. Juro-vos que o farei.
- Certifica-te apenas de que também regressas sã e salva. O que é que a tua mentora poderia fazer sem a sua irlandesa? - disse Ariane na brincadeira para ocultar
o quanto se sentia comovida com a dedicação de Catriona por si. Ela ter-se-ia sentido extremamente constrangida.
A irlandesa já tinha afastado a mão do ombro de Ariane, mostrando o quanto aquelas manifestações de emoção a constrangiam. Para poupar a amiga a mais embaraços,
Ariane insistiu com Cat para que fosse refrescar-se e descansar dentro de casa. Mais tarde teriam tempo para elaborar um plano mais pormenorizado que orientaria
Cat na sua procura de Megera.
Teve alguma dificuldade em persuadir a jovem a voltar para dentro de casa sem si, mas Ariane acabou por ser bem-sucedida. Estava a precisar de alguns momentos a
sós consigo própria para poder reunir os seus pensamentos e as suas forças.
Muito tempo depois de Catriona ter desaparecido na cozinha, Ariane ainda continuava no jardim. O Sol já ia bem alto, banhando o jardim numa luminosidade
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esbranquiçada, emprestando brilho ao orvalho nas ervas, enquanto as cotovias chilreavam alegremente. O dia prometia ser um daqueles amenos do princípio do verão.
Ariane tentou desfrutar do dia, suspeitando de que aquele talvez fosse o último momento de paz que teria durante algum tempo. Mas a cabeça, apesar da dor excruciante,
já estava cheia de pensamentos relativos ao que tinha de fazer. Preparar Catriona para a viagem, pôr Miri e Simon ao corrente do que se passava e aconselhar-se com
Justice sobre a maneira de apertar a segurança da ilha Encantada.
E, por muito que o temesse, era forçoso informá-lo de que esperava uma criança. Cat tinha razão. Ariane não podia guardar o seu segredo por mais tempo.
Até mesmo naquele momento, sentia a criança a mexer-se dentro de si. Não era como o ténue movimento de uma borboleta, mas mais como o forte bater das asas de uma
águia acabada de eclodir.
Ariane levou a mão ao ventre, fez pressão suavemente e tentou sorrir, mas, em vez disso, surpreendeu-se a si mesma ao sentir os olhos rasos de lágrimas. Quem lhe
dera não se sentir sempre tão fraca e cansada, muito mais fatigada do que devia sentir-se.
Quase contra a sua vontade, virou o rosto em direção ao firmamento. O cometa deixara de ser visível, mas era estranho. Tinha a sensação de que continuava a pairar
no céu, a cauda ígnea como o fio de uma espada suspensa acima da sua vida.
De facto, o seu bebé era forte. Haveria de sobreviver à provação que era o parto. Mas a Senhora da Ilha Encantada não tinha tanta certeza de que ela própria conseguisse
sobreviver.
- Avant, bruxa - rosnou o cavaleiro, desembainhando a espada.
- Certificar-me-ei de que ireis para o Inferno antes que me sinta tentado outra vez pelos vossos conjuros demoníacos!
O sol refletia-se na lâmina da espada e no seu peito de armas, banhando Sir Roland numa aura cintilante. Penteava o cabelo escuro todo para trás, as ondas negras
em contraste com o escarlate do gibão que usava. A barba e o bigode suavizavam as feições angulosas que pareciam ter sido esculpidas a cinzel, mas os olhos verdes
tinham uma expressão feroz e irresistível. Tinha uma presença tão marcante que eram raras as pessoas que se apercebiam de que não era excessivamente alto, com uma
constituição corporal mais rija e seca do que corpulenta. Mas tinha uns ombros bastante largos e uma cintura fina, além de um par de pernas bem torneadas; os calções
tufados pelo meio das coxas mostravam umas barrigas das pernas bem definidas e deixavam ver parte das coxas musculadas.
Mais de metade das mulheres que se encontravam entre o público estava apaixonada por ele, enquanto os homens se remetiam a um silêncio respeitoso. Até mesmo a arraia-miúda
na segunda plateia, gente barulhenta e com vozes roufenhas, estava como que mesmerizada enquanto Hecuba sibilava e bajulava o arrojado Sir Roland.
Martin, o Lobo, repeliu a bruxa velha com um gesto irado e, numa atitude de desafio, começou a declamar uma série de coplas espirituosas numa voz troante. Desceu
do estrado, desfrutando do seu poder ao conseguir arrastar multidões que excediam a capacidade do teatro. As galerias à cunha e a segunda plateia apinhada, com o
seu fedor a suor, fumo de cachimbo e o cheiro a cerveja cediça, tudo isso transformado numa charneca à meia-noite, as
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esteiras de junco que estalavam debaixo dos seus pés transformadas em ervas sopradas pelo vento.
- Embora tenha sido um tolo do amor, tal não voltará a acontecer -- continuou Martin num tom declamatório. - A jornadear pelos reinos do desespero, todas as minhas
esperanças arrasadas numa praia longínqua. Barganhando a minha alma por um enfeitiçamento negro para conquistar a minha amada, sem nunca levar em linha de conta
todas as circunstâncias. Tudo para nada, sem que houvesse magia forte bastante para prender um coração que está perdido.
com a garganta embargada e a voz a vibrar com uma emoção que Martin não precisava de fingir. Só tinha de pensar em Miri Cheney, a sua encantadora Senhora da Lua.
Não, não era sua, nunca fora sua, lembrou Martin a si próprio com uma dor entorpecida. Agora era Madame Miri Aristide.
- Por isso, aqui nesta amaldiçoada charneca, que todos os sonhos morram - gritou numa voz enrouquecida.
Algures de entre o público, ouviu-se o soluço pranteado de uma mulher, ao que se juntaram algumas fungadelas da parte de outras pessoas enquanto Martin prosseguia.
- Que todos os meus desejos mergulhem num sono de morte. Não continuarei a traficar no vosso negrume, bruxa. Embora o meu coração esteja perdido, a minha alma guardarei.
Hecuba saltou de trás do seu caldeirão com um rosnar furioso.
- Não, Sir Cavaleiro. Se quebrardes a fé que depositais em mim, sereis vós quem morrerá.
A multidão ficou com a respiração suspensa e algumas pessoas gritaram avisos quando a bruxa, furtivamente, se aproximou mais, interpretada com uma perfeição sinistra
por Arthur Lehay, o idoso que era um ator de primeira água quando estava sóbrio. Conseguia representar uma velha de pele murcha e enrugada repulsiva, andrajoso e
com uma cabeleira grisalha toda desgrenhada, o queixo com uma barba hirsuta de vários dias.
Mas não foi a atitude ameaçadora da bruxa a acercar-se de si no palco que fez com que Martin cambaleasse, recuando um passo, mas sim a pessoa que avistou entre o
público que tentava passar despercebida.
Ficou petrificado, com o olhar preso numa mulher de figura petite sentada na fila da frente da primeira galeria, perto da esquerda do palco. Quase esmagada entre
uma matrona gorda que comia uma maçã e um corpulento comerciante,
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era possível que a mulher tivesse passado despercebida, não fosse a sua cabeleira de um ruivo flamejante.
Era como uma luz brilhante e não era a primeira vez naquele dia que Martin reparava naquelas tranças ruivas de um tom ígneo. Tinha-a visto de relance horas antes
quando desembarcou do bote em Southwark. E, mais tarde, no mercado junto das docas. Modestamente trajada, usava um vestido de fazenda de lã muito simples, a mulher
não se teria destacado dos demais não fosse aquele cabelo ruivo.
Uma vez que em tempos havia sido um hábil gatuno que exercia a sua atividade nas ruas de Paris, Martin tinha em si muito do caçador para se aperceber quando passara
a ser a presa. Havia adotado uma passada deliberadamente casual enquanto a mulher continuava a inspecionar muito interessada a mercadoria exposta no balcão de uma
loja, quando ele olhou para trás por acaso. Uma carteirista? Ou alguém mais ameaçador, à procura de um tesouro muito mais valioso do que a sua bolsa?
Quando, por fim, Martin deixou de a ver já no lado de fora do teatro, soltou um suspiro de alívio, pondo de parte as suas apreensões, considerando que eram um mero
produto da tensão que se apoderava de si sempre antes de um espetáculo.
Mas ali estava a rapariga outra vez...
- E se não tratais de vos defender, estais destinado a morrer, Sir Cavaleiro - gritara Hecuba quase ao ouvido de Martin. Ficou sobressaltado ao perceber que perdera
a sua deixa para desembainhar a espada.
Até mesmo enquanto desembainhava a espada, não conseguia desviar o olhar daquela galeria. Arthur abriu os braços completamente enquanto articulava um feitiço ameaçador
numa voz atroadora, para estacar a meio da maldição muito atrapalhado quando Martin passou por ele como uma flecha.
Havia mais de uma mulher ruiva em Londres, disse Martin a si próprio. O mais certo era estar enganado. O mais certo era não ser a mesma fedelha. Mas precisava de
a ver mais de perto.
Ignorando os olhares furiosos do contrarregra, Martin dirigiu-se determinado para o lado esquerdo do teatro. Parou a tempo antes de chocar com um daqueles jovens
nobres que pagavam mais pelo privilégio de se sentarem na beira do palco. Edward Lambert, o barão de Oxbridge, tinha mais direito a isso do que os outros. O dinheiro
da família havia custeado a construção do Teatro Crown.
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Ned Lambert fez uma careta risonha e atirou-lhe um caroço de cereja na brincadeira. Martin ignorou sua senhoria, mantendo o olhar preso na mulher de cabelos ruivos.
Sentada na bancada, ela inclinou-se para a frente, apoiando as mãos na balaustrada da galeria, com uma expressão inteiramente absorta.
Martin sentiu engulhos no estômago. Mon Dieu. Não se tinha enganado. Era ela. Tinha um rosto invulgar, a delicadeza dos malares em guerra com a força que lhe emanava
do queixo. Por breves momentos, quando os olhos azuis, de expressão penetrante, colidiram com os seus sentiu um estranho contacto por todo o corpo, como se tivesse
agarrado na ponta ao rubro de um atiçador.
Cambaleando para trás, sentiu o coração a bater descompassadamente. Mas quem diabo era ela? Não conseguia imaginar qualquer razão para ela ter seguido os seus passos,
exceto uma. Era uma delas. Não podia ser outra coisa. Aquilo que receava havia tanto tempo tinha-se concretizado. As bruxas da irmandade haviam conseguido encontrá-lo,
o que significava que a sua pequena Meg corria um perigo gravíssimo.
Martin sentiu a testa perlada de suor frio. Ficou possuído de um pânico cego, com um ímpeto quase irresistível de saltar do palco e desatar a correr para casa, e...
E levar a bruxa direitinha à sua filha, o que era, muito provavelmente, o que ela esperava que ele fizesse. De uma maneira qualquer, a voz da razão acalmou o seu
temor. Se as bruxas já tivessem localizado Meg, aquela mulher demoníaca não estaria a perder o seu tempo a persegui-lo. Ter-se-ia, muito simplesmente, limitado a
matar Martin ou, pelo menos, teria tentado.
Cerrou os lábios, o pânico inicial a dar lugar a uma avaliação feita de astúcia que o salvara e à filha em mais de uma ocasião.
Entretanto, ouviu-se um assobio agudo e alguns apupos vindos da segunda plateia que despertaram Martin, tomando consciência do que o rodeava. Apercebendo-se do desassossego
que começava a espalhar-se pelo teatro, viu que Arthur estava prestes a arrepelar as pontas da barba grisalha hirsuta, de tão frustrado que estava com Martin.
Mas conseguiu retomar a representação como se não se tivesse passado nada de anormal. Durante toda a sua vida fora um ator consumado, desempenhando um papel a seguir
a outro: de soldado, espião, cortesão, gentil-homem. Só havia um papel em que a sua facilidade de linguagem lhe faltara.
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O papel de pai. A chegada de Meg à sua vida alterara toda a sua existência. Ele morreria pela sua menina... mataria por ela. Se aquelas bruxas voltassem a ameaçá-la...
Aquele pensamento provocou-lhe um tal ímpeto feral de cólera que Martin teve de fazer um esforço tremendo para não golpear o seu colega de representação. Arthur
gemeu de medo e brandiu o punho cerrado em direção a Martin e depois deixou-se cair desajeitadamente na cena da sua morte.
Os aplausos que se seguiram eram ensurdecedores, mas não passavam de um troar distante aos ouvidos de Martin, a sua mente ocupada com a armadilha que tencionava
armar à bruxa de cabelos vermelhos.
Talvez ela fosse membro da Irmandade da Rosa de Prata. Ou talvez não fosse. Quem quer que ela fosse, era bom que estivesse preparada para lhe explicar quem era e
o que fazia, senão, ao contrário da bruxa que jazia no palco aos seus pés, ela não se levantaria para fazer a vénia de agradecimento pelos aplausos.
Muito depois de os atores terem saído do palco, Cat continuava no seu lugar, sentindo-se aturdida. Qual donzela indefesa atraída a um bosque de fadas, pestanejou
com força, apalpando o seu caminho de volta ao mundo real.
Nunca em todas as suas andanças pelo mundo vira uma coisa como aquela arena de madeira, nem a representação que tivera lugar naquela tarde. Tinha-lhe custado três
xelins da sua magra bolsa, mas dava-os por muito bem empregados até ao último dinheiro.
Era frequente que Cat se sentisse empolgada com as histórias tecidas pelos bardos proscritos da sua terra natal, mas o que acabara de ver tinha sido magia fiada
inteiramente na sua cabeça. Ter visto aquela peça havia sido como ver um dos contos da sua meninice a adquirir vida, o que, em grande parte, se devia a ele - o belo
Sir Roland com os seus olhos mesmerizantes e voz hipnótica.
Quando Martin atravessou o palco, virando na direção em que ela se encontrava, Cat sentira-se como se o seu coração estivesse prestes a começar a bater com tanta
força que lhe saltaria do peito. E quando os olhos dele se prenderam nos seus, mal conseguia respirar. A expressão no olhar dele a estimular recordações da jovem
irrefletida que fora em tempos. Sempre com
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a cabeça cheia de ideias românticas de lendários heróis irlandeses; quantas haviam sido as noites em que se embalara até adormecer, imaginando-se toda nua nos braços
do poderoso Cuchulainn ou do destemido Brian Boru e...
Cat levou a mão à garganta, sentindo uma onda de calor que lhe percorria todo o corpo. Olhou em volta com nervosismo, não fosse haver alguém que se tivesse apercebido
dos seus tolos pensamentos, sentindo-se desconcertada ao constatar que se encontrava sozinha.
A galeria estava deserta, bem como o resto do teatro. O público já se fora embora e, provavelmente, assim como os atores, incluindo o homem que seguira tão determinadamente
durante a maior parte do dia.
Amaldiçoando-se por ser tão tolamente aluada, Cat levantou-se de repente e retraiu-se, entorpecida por ter passado três horas sentada num assento duro. Esfregou
o rabo, saiu da galeria num passo trôpego e desceu as escadas, percorrendo o corredor de acesso à segunda plateia. O chão empedrado estava cheio de cascas de laranja
e cascas de nozes, além de estar sujo com uma mancha escura nauseante onde um espectador bêbado se tinha aliviado.
Cat franziu o nariz repugnada. O estrado agigantava-se acima dela, vazio e silencioso, mas pareceu-lhe ter ouvido vozes que vinham da área dos bastidores, possivelmente
seriam os atores a mudarem de roupa e, se a sorte a bafejasse, Sir Roland ainda estaria entre eles.
Custar-lhe-ia bem caro se a sua imbecilidade tivesse feito com que perdesse Martin, o Lobo, de vista, depois de lhe ter dado tanto trabalho descobrir o paradeiro
do homem.
Muitos dias de perguntas discretas e diligentes nas estalagens e em outros alojamentos, em bairros da cidade onde os estrangeiros costumavam alojar-se, não haviam
dado resultado nenhum. Só por mero acaso é que ela ouvira uma conversa na taberna onde quebrara o jejum naquela manhã.
O diálogo tinha tido lugar entre dois atores que lamentavam o facto de o seu ator principal estar de cama por sofrer de disenteria. Mas, felizmente, Marcus Wolfe
estava familiarizado com a maior parte das falas de Sir Roland, pelo que poderiam persuadi-lo a representar esse papel.
As orelhas de Cat tinham-se arrebitado. Marcus Wolfe... Martin, o Lobo, Sem dúvida que os nomes eram similares. Era possível que fosse uma mera coincidência, mas
era a melhor pista que encontrara até agora.
Pusera-se a observar de uma distância discreta quando os dois amigos cumprimentaram um outro acabado de desembarcar do bote. A pulsação de Cat acelerara-se de tanto
entusiasmo. Inegavelmente, o homem enquadrava-se
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na descrição que Ariane lhe tinha feito de Martin, o Lobo, mas Cat continuava pouco segura de que fosse ele.
Aquele homem parecia-lhe tão... tão inglês. Seria possível que uma pessoa alterasse o seu sotaque de maneira a não ter o mínimo traço da sua língua materna?
Não podia ter a certeza absoluta até conseguir chegar à fala com Marcus Wolfe, algo que fora incapaz de fazer até ao momento. Era imperativo que impedisse o homem
de deixar o teatro, caso contrário teria de começar a procurá-lo outra vez.
Num passo estugado, atravessou a segunda plateia e procurou maneira de chegar aos bastidores. Não viu maneira nenhuma, com a exceção de duas portas ao fundo do palco.
O estrado elevado teria estado à altura de um homem mediano, mas encontrava-se muito acima da cabeça de Cat.
Se não fossem as malditas saias que a atrapalhavam, poderia ter saltado, agarrando-se ao gradeamento e içando-se até ao palco. A área separada por um reposteiro
mais abaixo prometia um acesso mais fácil.
Erguendo o pesado tecido preto, Cat esgueirou-se por baixo para o outro lado. A área abaixo do palco era sufocante e fechada, poeirenta e escura. Quando os olhos
se ajustaram à obscuridade, Cat avistou um escadote que se elevava até um alçapão. Hecuba tinha chegado ao palco por aí durante o terceiro ato, supostamente a subir
das profundezas do Inferno.
Cat fez o mesmo. Subiu pelo escadote e transpôs a portinhola do alçapão, deixando-a cair no seu lugar silenciosamente, após o que se encaminhou para o fundo do palco.
Preparou-se para ser interpelada, dando voltas à cabeça para conseguir encontrar uma mentira plausível que justificasse ter entrado intrusivamente numa parte do
teatro vedada a estranhos.
Mas não foi necessário, já que a sua presença passou despercebida. Os bastidores pareciam desertos, com a exceção de um casal no canto mais afastado que dava a impressão
de estar embrenhado numa discussão.
Uma mulher idosa, aparentemente a responsável pelo guarda-roupa, agarrava um vestido de seda cor-de-rosa enquanto ralhava acaloradamente com um jovem de expressão
carrancuda.
- E digo-te mais, Alexander Naismith, se continuares a ser tão descuidado com o traje que usas em cena, tenciono queixar-me ao mestre Roxburgh, podes crer. Pensas
que belos vestidos como este caem das árvores depois de sacudidas?
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A única resposta do rapaz foi um bocejo de tédio e, nesse momento, Cat ficou atordoada ao reconhecer nele a Belinda de cabelos louros que dilacerara profundamente
o coração de Sir Roland no quarto ato.
A magia da representação ficou ainda mais empanada quando viu alguns dos adereços deixados aqui e ali. O caldeirão de Hecuba não passava de um pote de ferro enferrujado,
enquanto a moldura resplandecente do espelho mágico não passava de madeira pintada de dourado.
Quando passou em frente do espelho, fez uma cara de desagrado. Definitivamente, não havia magia nenhuma ali; o aço polido a refletir com toda a veracidade a mulher
baixinha e mal-ajambrada que usava um manto poeirento, o cabelo ruivo, como de costume, a desafiar o carrapito, pelo que agora tinha algumas madeixas em volta do
rosto.
Cat lambeu os dedos e tentou alisar para trás alguns dos cabelos que lhe haviam caído para os olhos. Parou a meio do gesto ao ver uma figura escura que se encontrava
a alguma distância atrás de si. Ele já tinha trocado de roupa, tendo tirado a armadura e o gibão vermelho que substituíra por calções de cabedal justos que apertavam
abaixo dos joelhos e um gibão preto, as mangas golpeadas para mostrarem o linho branco da camisa que usava por baixo. Tanto a camisa como o gibão não apertavam no
pescoço, revelando um pouco de peito desnudado e os pelos negros e encaracolados.
- Sir... Sir Roland - gaguejou Cat, as batidas do coração aceleradas. Sentindo-se como uma idiota, corrigiu-se. - Quero dizer... Marcus Wolfe?
Mas quando ela se voltou para trás, viu que ele já tinha desaparecido. Mas por onde diabo é que o homem teria desaparecido tão rapidamente? Ao espreitar por detrás
de uma coluna, concluiu que só havia uma maneira de ele se ter sumido. Retornara ao palco. Pensou ter ouvido passos.
Cat correu atrás dele através do pano de boca. O sol do fim de tarde estava posicionado no ângulo certo para a ofuscar. Teve de proteger os olhos quando desceu do
palco. Um palco onde não havia ninguém.
Franziu as sobrancelhas intrigada, olhando para a direita e para a esquerda e perguntando-se se ele não teria voltado atrás através de uma das outras portas do palco,
quando viu um movimento na mesma galeria aonde estivera sentada.
Wolfe levantou uma mão, levando-a à fronte numa saudação trocista antes de desaparecer a coberto das sombras.
- Esperai. Por favor. Só um momento. Preciso de vos dar uma palavrinha, eu...
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Mas ele já se tinha sumido. Cat ficou de boca aberta, mas fechou-a de imediato ao perceber que o homem estava a brincar consigo, brincava ao gato e ao rato.
Irritada, dirigiu-se para o extremo do palco, resmungando:
- Muito bem! Mas aconselho-vos a ter cuidado, Monsieur Rato. Esta gata tem garras.
Levantando as saias, Cat balouçou as pernas por cima do lado do gradeamento. Devido à espada de lâmina curta que trazia por baixo do manto e à altura do palco, não
era tarefa fácil, mas saltou, caindo sobre a parte da frente da planta dos pés. Cambaleou um pouco, mas não tardou a recuperar o equilíbrio, correndo para a entrada
de acesso às galerias. Quando chegou aí, não avistou sinal do homem. Pelo menos, não naquela galeria.
Ele acenou-lhe de uma galeria no lado oposto do teatro. Sentindo-se vexada, Cat praguejou e correu atrás dele, irritada ao perceber que aquele rato tinha uma vantagem.
Conhecia o seu teatro melhor do que ela.
Dez minutos depois, ela já estava com calor, a transpirar e sem fôlego, bastante irritada. Deu consigo de volta à entrada para as galerias pela terceira ou quarta
vez, gritando:
- Muito bem, meu idiota. Não estou nada divertida com esta brincadeira. Já chega de tanto disparate.
- Oh, concordo inteiramente com o que dizeis. - A voz era baixa e aveludada e soava tão próxima, mesmo atrás dela, que Cat deu um pulo. Girou sobre si própria. Viu
que ele tinha subido alguns degraus da escada da galeria e estava encostado à parede, examinando-a com frieza como se estivesse a desfrutar da atrapalhação dela.
- Pareceis-me bastante confusa, minha querida. A correr em círculos como se tivésseis perdido alguma coisa. Posso ser-vos útil em alguma coisa?
Cat respirou fundo, esforçando-se por não perder a calma, lembrando a si mesma a razão por que se encontrava ali.
- Isso... tudo isso depende - disse ela, irritada por estar sem fôlego enquanto ele se desencostava da parede.
Era ainda mais bem-parecido visto ao perto do que lhe parecera no palco, muito embora já não houvesse qualquer vestígio do nobre Sir Roland nele. Não se movimentava
com a atitude emproada do heróico cavaleiro. Começou a descer as escadas, e quanto à expressão no rosto - não existia outra palavra para a classificar. O seu semblante
era, decididamente, parecido com o de um lobo. Deteve-se a pouco mais de trinta centímetros dela.
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- Depende do quê? - perguntou a Cat.
- Se sois ou não Martin, o Lobo. - Cat tencionara ser mais subtil, mais discreta, mas a atitude sem-cerimónia dela provocou uma reação nele, um muito ténue pestanejar,
mas foi o suficiente.
- Ai de mim, minha querida, receio ter de vos dizer que estais equivocada.
- Não me parece. - Cat teve de fazer um esforço para conter uma manifestação de triunfo. - Haveis-me obrigado a uma longa busca para vos encontrar, Monsieur Lobo,
mas, finalmente, consegui encontrar-vos. Chamo-me...
- O vosso nome é inteiramente irrelevante - atalhou ele interrompendo-a; estava tão perto de Cat que ela retrocedeu um passo involuntariamente.
Um erro, porque ele agora tinha-a imobilizado contra a parede do corredor, tendo apoiado as mãos na parede com ela no meio, como se quisesse impedi-la de escapar.
- Como já vos disse, haveis cometido um erro. Mas é um erro que eu talvez deixe passar em branco. - Ele olhava para ela por entre olhos semicerrados que tinham uma
expressão predatória. Uns olhos de um verde intenso de floresta primeva. Se bem que o seu tom de voz continuasse baixo, dele transparecia um traço de perigo. Perigo
esse que emanava de todos os poros do corpo firme dele e que parecia picar a pele de Cat de uma maneira que tinha tanto de estimulante quanto de desconcertante.
- Não estais a compreender. Peço-vos que me permitais que vos explique. Tenho algo para vós... - Cat meteu a mão por dentro do manto para tirar a carta de apresentação
que Ariane lhe dera. Mas ele impediu-a, agarrando-lhe o pulso com dedos que pareciam de ferro.
- Seja o que for que tendes escondido por baixo do manto, é melhor que continue aí, minha doçura. Não estou interessado no que tendes para me oferecer e, como podeis
ver, quaisquer outros possíveis clientes há muito que se foram. No entanto, podeis ir a um lupanar ao fundo desta rua, aonde...
- Um lupanar! - A cara de Cat estava corada de indignação. - Tomais-me por alguma meretriz ordinária?
- Nenhuma mulher respeitável perseguiria um homem pelas ruas como me haveis perseguido. Se não for para abrirdes as pernas pelo meu dinheiro, que outra razão é que
poderíeis ter? - Os olhos dele mostravam uma expressão trocista e de repto a um tempo.
Cat não sabia se estava mais irada com ele por a ter insultado ou consigo própria por ser desajeitada ao ponto de ele ter dado pela sua presença. Puxou
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a mão que Martin continuava a prender e ergueu o queixo numa atitude altaneira.
- O inverno terá de gelar primeiro, antes de Catriona OHanlon vender o seu corpo a um homem.
- Ah, quer dizer que vos ofereceis gratuitamente, é isso?
- Não! - ripostou Cat, atabalhoada. - E certamente que nunca a um tratante como vós. - Começou a bater-lhe no peito com os punhos fechados, empurrando-o para o afastar
de si. Ele cambaleou, tendo sido, manifestamente, apanhado de surpresa, como acontecia à maior parte dos homens por ficarem surpreendidos com a inesperada força
dela. - E agora ouvi bem, grande idiota. Segui-vos porque tinha de me certificar de que éreis realmente vós antes de me mostrar. Correis um gravíssimo perigo e...
- De verdade? Eu diria que quem corre perigo sois vós. - Voltou a abeirar-se dela, mas Cat tratou de se esgueirar.
- Não temos tempo para estes disparates, Lobo.
- Ouvi bem o que vos digo, minha cara. Tal como vos disse antes começou ele a dizer, articulando cada palavra com um cuidado exagerado, como se ela fosse atrasada
mental. - Vós. Haveis. Cometido. Um. Erro.
Vós. Encontrastes. O. Lobo. Errado.
- Um que, aparentemente, reconhece o seu nome quando lhe falam em francês. A propósito, a maneira como disfarçais o vosso sotaque é absolutamente assombrosa. Tenho
de vos cumprimentar por isso.
Ele arqueou uma sobrancelha, para grande irritação de Cat. Sempre invejara as pessoas que conseguiam fazer aquilo, transmitir escárnio e ceticismo com um movimento
tão subtil e simples.
- Foi por essa razão que me seguistes? Para me congratulardes pela minha voz? Por muito que eu gostasse de acreditar que os meus encantos bastaram para me seguirdes...
- com certeza que pensaríeis isso. Como se costuma dizer, presunção e água benta, cada qual toma a que quer.
Os lábios dele estreitaram-se e avançou mais um passo ameaçador.
- Já chega desta troca de amabilidades. Dizei-me quem sois e ao que vindes e despachai-vos!
- E não é isso que tenho tentado fazer? Isto é, se pudésseis fechar a boca durante o tempo suficiente para me ouvirdes.
- Olha quem fala! Não sou o único a não ser capaz de ficar de boca fechada. Deixai-vos de berrar acerca de nada e dai-me uma resposta direta, mulher.
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Cat cruzou os braços diante do peito.
- Como sois observador, Lobo. Sim, sou uma mulher que não tolera ser insultada nem que lhe dêem ordens. Dai-me uma boa razão por que devo dizer-vos o que quer que
seja até começardes a comportar-vos com mais civilidade.
- Aqui tendes uma excelente razão. - Ele desembainhou o florete e apontou-lhe a lâmina. - Tenho uma espada com uma ponta muito aguçada.
Cat saltou para trás, com a mão a estender-se instintivamente para a sua própria espada. Desembainhou-a num único movimento fluido.
- Mas que coincidência - disse ela com um sorriso cheio de doçura. - Eu também tenho uma espada.
- A minha é maior. - Os dentes dele brilharam num esgar feroz.
- Portanto, aconselho-vos a guardar a vossa, minha menina. Sou tão galante como qualquer homem, disposto a estimar e a proteger as senhoras. Mas quando desembainhais
uma espada e a apontais a mim, considero-vos como minha igual e tratar-vos-ei como se fôsseis um homem.
- Vossa igual? - exclamou Cat quase a sufocar. - Duvido que exista alguém à face da Terra que iguale a vossa arrogância, mas quando se trata de floretes, esta menina
pode bater-se de igual para igual convosco ou com qualquer outro homem. - Quando Cat adotou uma postura beligerante, o homem teve o descaramento de soltar um longo
suspiro de padecimento.
- Deus sabe que tentei lidar convosco racionalmente - continuou ele com um encolher de ombros. - Mas faça-se a vossa vontade.
As espadas de ambos cruzaram-se com o entrechocar de aço e iniciaram a contenda com estocadas simuladas, que eram aparadas, deliberadamente lentas. Cat apercebeu-se
de que ele fazia o mesmo que ela, procedendo cautelosamente enquanto avaliava o seu oponente.
Os movimentos dela eram atrapalhados pelas saias e pela estreiteza do corredor. Recuou, tendo o cuidado de não tropeçar na bainha do vestido enquanto se deslocava
para o campo aberto que era a segunda plateia.
Entre estocadas, Cat conseguiu desapertar o manto, atirando-o para o lado. O corpete do vestido era justo, apertando à frente para que fosse mais fácil vesti-lo.
Desejou poder alargá-lo, mas naquele momento era impossível. Não com ele a manobrar em volta dela, como um lobo a aproximar-se furtivamente da presa.
Ele era ágil e flexível, movimentando os pés com rapidez, o que ela era forçada a admitir, ainda que contrafeita. Enquanto se batiam, andavam em
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volta um do outro e cruzavam lâminas, executando uma espécie de dança gloriosa. Cat apercebeu-se de que estava a desfrutar de mais daquela situação; havia tanto
tempo que não se envolvia numa boa contenda. E não lhe era difícil ver que ele também estava a gostar, os olhos verdes a brilharem, um sorriso lânguido nos lábios
e com movimentos quase de brincadeira.
Cat sentiu um baque de culpa quando pensou na sua mentora. Sabia que aquilo seria a última coisa que Ariane quereria, Cat a bater-se com Lobo de imediato, na verdade
envolvida num duelo com ele.
Mas diabos levassem o homem. Ele tinha sido o primeiro a desembainhar a espada e não havia maneira de fazer ver a razão a um homem quando ele tinha uma espada na
mão. Talvez depois de ela o ter desarmado pudessem ter uma conversa pontuada pela sensatez.
Cat viu uma abertura e investiu, mas ele apressou-se a bloqueá-la, saltando para trás com uma gargalhada ensurdecida.
- Bon. Reconheço que tendes alguma habilidade, mademoiselle - disse ele, o sotaque a atraiçoá-lo, enquanto lhe fazia uma rasgada vénia trocista.
- Para uma irlandesa.
- Também não estais nada mal - retorquiu ela. - Para um francês. Ele fez uma careta ao aperceber-se de que se tinha traído. Retomou a contenda, investindo com força
e obrigando-a a recuar.
Cat aparou os golpes e contra-atacou de imediato, praguejando quando as saias se lhe enrodilharam em volta das pernas.
- Eu poderia bater-me muito melhor se não fosse este maldito vestido - resmungou ela.
- Permiti que vos ajude a despi-lo. - com uma estocada repentina, ele furou a posição defensiva de Cat, a lâmina a golpear as fitas de cima do vestido.
Cat baixou a cabeça e olhou para o corpete, mostrando-se consternada.
- Grande idiota! Este era o meu melhor vestido. O meu único vestido. - Furiosa, Cat contra-atacou, neutralizando a defesa dele, o seu florete a fazer-lhe um grande
rasgão na manga. Ele rodopiou e desviou a estocada enquanto praguejava.
- Raios vos partam, mulher! Sabeis quanto é que paguei por este gibão? Várias coroas.
- Nesse caso, haveis desperdiçado o vosso... maldição! - Cat gritou quando ele retaliou, cortando mais duas fitas do corpete do vestido, revelando o suave intumescimento
que se entrevia do décotage. Ficou corada que nem um tomate quando ele tentou espreitar pela frente do vestido.
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- E para que diabo é que estais a olhar?
- Não sei. - Uma vez mais, o arquear daquela sobrancelha que tanto a irritava. - Talvez para a gravação de uma rosa?
- Isso mostra o muito pouco que sabeis. As rosas são sempre gravadas no braço direito... - Faltou-lhe a voz ao ver a súbita alteração na fisionomia dele. O sorriso
abandonou-lhe os lábios, os olhos a espelharem dureza e frieza.
- Ah, portanto, a minha primeira impressão estava certa. Sois uma delas.
- Elas!?
- A irmandade. Sois uma maldita bruxa.
- Não, grande mentecapto, claro que não. Eu... - Cat ficou sem fala quando ele investiu contra si com um vigor renovado. Foi com muita dificuldade que conseguiu
desviar várias estocadas violentas.
A expressão dele era de imensa cólera, os olhos plenos de uma determinação letal.
- O que é preciso fazer? Quantas de vós, doidas varridas, terei de matar para vos convencer de que deveis manter-vos afastadas da minha filha?
- Mas eu não sou... só quero que ouvis o que tenho para vos dizer disse Cat com a respiração arfante devido ao esforço para se defender, percebendo que ele não prestaria
a mínima atenção ao que lhe dissesse. Todos os contornos de brincadeira haviam desaparecido do duelo entre os dois. Ela lutava pela sua vida e ele tinha a vantagem
que todos os homens tinham em confrontos - força e resistência, enquanto a seu favor Cat só poderia recorrer à sua rapidez, agilidade e capacidade de discernimento.
Ele atacava-a com tanta dureza que ela já sentia que as energias a abandonavam, a sua respiração a fazer-se em haustos curtos. Infelizmente, a cólera que o possuía
não o tornava descuidado, pelo contrário, mostrava cada vez mais vigor e determinação. A única esperança de Cat residia em conseguir distraí-lo, um truque que em
ocasiões anteriores não a tinha deixado ficar mal.
Desviando uma investida que só por um triz é que não lhe trespassou o ombro perigosamente, apertou o punho da espada com mais força. com a outra mão, puxou o corpete
do vestido, desnudando um seio completamente.
Os olhos dele arregalaram-se, a sua concentração a vacilar por um breve momento, mas foi o suficiente. Cat atacou, acertando no elaborado guarda-mão do punho da
espada dele. Tirou-lhe a arma da mão, que voou disparada.
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Saltou para trás, a bota a escorregar numa casca de laranja. Desequilibrou-se e caiu redondo no chão de costas. Antes de poder recompor-se, Cat inclinou-se por cima
dele, apontando-lhe a lâmina da espada ao coração.
Martin apoiou-se sobre os cotovelos e olhou para ela com uma expressão de fúria, o peito a soerguer-se numa respiração esforçada, o semblante sombrio a mostrar um
misto de desafio e desespero. Cat apercebeu-se de que ele estava, genuinamente, à espera que ela o matasse.
Devia apressar-se a tranquilizá-lo, mas que diabo, o homem tinha estado a envidar todos os seus esforços para a aniquilar. com o coração a bater desenfreadamente,
sentia tanta falta de ar que mal conseguia falar.
com brusquidão, Cat puxou o corpete para cobrir o seio.
- E agora, Monsieur... Lobo - começou a dizer quase sem fôlego. - Talvez possamos... - Calou-se, a respiração arquejante ao sentir uma dor aguda nas costas. O ataque
vindo de trás foi tão repentino, tão inesperado, que ela esteve quase a largar a espada. Mas, embora com dificuldade, conseguiu manter a lâmina apontada a Lobo enquanto
se virava para ver de onde tinha vindo aquele ataque.
Quem a agrediu pôs-se em fuga com o roçagar de saias. Era uma garota esguia, toda ela era cotovelos e olhos verdes muito grandes, surpreendentemente semelhantes
aos de Lobo. E também dava a impressão de ter a mesma natureza furtiva, uma vez que conseguira apanhar Cat completamente de surpresa, algo que só muito raramente
é que acontecia.
- M... Megera? - perguntou Cat numa voz titubeante.
A garota não lhe deu resposta, o rosto pálido e o queixo espetado numa atitude beligerante enquanto guardava por dentro do manto a arma com que atacara Cat.
Era uma arma bastante estranha de que Catriona só ouvira falar, sem nunca a ter visto com os seus próprios olhos até ao momento. Uma lâmina de bruxa, uma espécie
de espigão quase tão fino como uma agulha, oco, capaz de conter os venenos mais letais.
Cat já começava a senti-lo a percorrer-lhe as veias como fogo, pulsante e fazendo com que a cabeça lhe andasse à roda. A cambalear, afastou-se de Lobo, a espada
a vacilar-lhe na mão.
Pestanejou, esforçando-se denodadamente para conter o pânico, para reter o domínio dos seus sentidos, mas as galerias do teatro começaram a oscilar diante dos seus
olhos. Apesar de ter a visão turva, teve a impressão de ver outro atacante, mas não podia fazer nada para se defender de uma mulher
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idosa com o cabelo ralo todo branco, que tinha a pele como uma maçã seca e engelhada, além de um nariz enorme.
A idosa soltou um grito cacarejado e desferiu o cajado contra Cat. A extremidade nodosa bateu-lhe com força na testa, fazendo com que arquejasse de dor. Cambaleou
e caiu de joelhos, a espada a cair-lhe da mão. Mas não foi a agressão da velha que a derrubou, compreendeu desesperada. Era o fogo letal que se espalhava pelo seu
corpo. Lançou um olhar de censura à garota e tentou falar. Mas a sua voz não passava de um crocitar enrouquecido.
- Tu... tu, pequena bruxa, o que é que me fizeste? - Por entre o nevoeiro em que a sua mente se transformara, Cat apercebeu-se de que Lobo se punha de pé. Colocando-se
entre a filha e Cat, apanhou a espada dela caída no chão.
- Não... não preciso mais disso - tentou Cat dizer-lhe, mas as palavras recusavam-se a sair-lhe da boca quando ficou estendida de lado. Via teias de aranha pretas
que dançavam diante dos seus olhos. O seu último pensamento foi para como dera cabo da sua missão, como tinha faltado à sua mentora.
- Perdoai-me, Ariane - murmurou.
Martin debruçava-se por cima da sua oponente caída; estava pálida e tinha um galo muito feio e inchado na testa, onde a velha Agatha Butterydoor lhe tinha batido.
A bruxa OHanlon provara ser uma hábil lutadora, dura e forte. Nunca lhe teria passado pela cabeça que ela pudesse ser vencida com tanta facilidade por uma pancada
dada com um cajado de uma mulher velha que era só pele e osso.
Mas talvez isso fosse apenas outro truque dela, como a ultrajante desnudação do seio. Baixando-se cautelosamente, Martin examinou-a, verificando a pulsação no pescoço.
A bruxa nem sequer pestanejou quando ele lhe tocou. "Ótimo", pensou Martin. Mas a verdade é que estava a braços com um problema diabólico. O que diabo é que faria
com ela? Amarrar-lhe pedras ao corpo e atirá-la para o Tamisa? Não era capaz de fazer uma coisa dessas, não obstante o facto de, no passado, qualquer gesto de galanteria
que mostrara àquelas mulheres ter provado ser quase a sua morte.
Ainda que ele fosse capaz de proceder com tanto sangue-frio, a verdade é que ainda era dia e as ruas estavam apinhadas de gente. Tinha muita sorte por aquela pequena
cena ainda não ter atraído a atenção de alguém no interior do teatro.
Não podia dispor do corpo da bruxa, mas também não podia arriscar-se a deixá-la ali sem fazer nada. Antes de poder encontrar uma solução, Meg atirou-se a ele, o
corpo pequeno estremecido por um soluço chorado. Martin apanhou-a nos seus braços, interpondo-se entre a garota e a bruxa inconsciente, bloqueando-lhe a visão. A
sua filha já havia assistido a demasiada violência e horror para os seus poucos anos de vida.
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- Oh, p... paizinho. - A tremer que nem varas verdes, Meg começou a chorar para o gibão do pai. - Eu... eu p... pensei... que a m... mulher horrível... te m... matasse.
- Non. Acalma-te, mapetite. Já passou - disse ele, tentando tranquilizá-la, ao mesmo tempo que lhe afagava as costas, sentindo os ossos através da camisa de baixo
e do vestido de seda. Apesar de ela já ter aumentado de peso desde que estava com ele, Meg, na sua opinião, continuava a ser demasiado
frágil.
Afastou Meg de si para poder agachar-se diante dela. Limpando-lhe as lágrimas que lhe corriam pelas faces com a parte carnuda dos polegares, conseguiu esboçar um
sorriso.
- Mas o quê? Pensaste que o teu destemido paizinho podia ser vencido por uma anã ruiva? Moi? Martin, o Lobo? Quando chegaste, eu já tinha um ardiloso plano. Estava
a preparar-me para... para...
"Para ser assado como uma galinha num espeto."
A voz de Martin vacilou, irritado ao sentir o tremor que lhe percorreu o corpo. Atendendo ao decorrer do duelo, reconhecia que tinha sido por um triz que escapara
com vida em mais de uma ocasião, para agora se limitar a limpar o suor da testa e rir, o sangue a cantar-lhe animadamente enquanto lhe percorria as veias.
Nunca sentira tamanho terror, um desespero tão intenso, como quando se viu à mercê da bruxa. O seu único pensamento havia sido para Meg. Pensou que estava prestes
a morrer, deixando a filha desprotegida. Passar a ser pai fizera com que começasse a saber o que era ter medo.
Dava graças pela senhora Butterydoor e pelo seu cajado, embora Martin não tivesse muito a certeza de querer abraçar ou esganar Agatha, um misto familiar de emoções
no que dizia respeito à velha rabugenta.
A irritação saiu a ganhar. Dando a Meg outro abraço apertado, endireitou-se e olhou para a idosa com uma expressão furiosa.
- Explicai-vos, senhora Butterydoor. Que demónio é que vos possuiu para trazerdes a minha filha para aqui?
A mulher velha fungou, mostrando sobranceria, como de costume, nada impressionada com a cara de mau de Martin. Antes que ela lhe pudesse responder, Meg puxou-lhe
pela manga.
- Por favor, paizinho. A culpa não foi da Aggie. Eu supliquei-lhe que me trouxesse ao teatro. Queria tanto ver-te a representar Sir Roland, mas a Aggie anda muito
devagar e depois levámos muito tempo a encontrar um
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barqueiro que nos trouxesse da cidade e por isso chegámos tarde de mais. - Meg curvou os ombros de tão desolada que estava. Perguntou anelante:
- Foste absolutamente magnificente?
- Mas é claro que sim, ma chère - respondeu Martin com um sorriso rasgado, mas adotou uma expressão circunspecta quase de imediato, continuando num tom mais grave.
- Mas isso não tem importância, Margaret Wolfe. Já te disse antes que este teatro não é lugar para uma jovem senhora.
- Mas, paizinho, eu costumava ver-te a representar no pátio das estalagens com a companhia de teatro de mestre Roxburgh.
- Esses tempos há muito que ficaram para trás, Meggie. Agora somos pessoas respeitáveis.
Quando Agatha soltou um som escarninho, Martin fitou-a de cenho carregado.
- Quanto a vós, senhora Butterydoor, contratei-vos para que cuidásseis da minha filha e não para que a expusésseis aos perigos das ruas ou à grosseria do teatro.
- Ora, ora! Como se eu não fosse capaz de proteger a minha pequena bonequinha. - A idosa brandiu o cajado com uma ferocidade que Martin talvez tivesse achado cómico
noutras circunstâncias. - Além disso, é perfeitamente aceitável que uma menina vá ao mercado ou ao teatro desde que acompanhada pela sua criada.
- A Meg não é apenas uma menina como as outras como bem sabeis. Os perigos que a vida dela pode correr... - Martin calou-se, detestando falar das forças do mal do
passado da filha à frente dela. - As circunstâncias da vida da Meg são... extraordinárias.
A senhora Butterydoor mostrou-se um tanto ou quanto vexada por ele lhe ter chamado a atenção para aquele aspeto, embora resmungasse:
- Já passou tanto tempo desde a última vez em que uma dessas loucas nos incomodaram, portanto, como é que eu poderia ter adivinhado que vos encontraria a lutar com
unhas e dentes com uma rameira demente? - Tocou
com o cajado na bruxa inerte. - E então, quem é ela?
- Uma irlandesa maluca de nome Catriona OHanlon. Uma dessas demoníacas da aliança de bruxas Rosa de Prata.
- Irmandade - corrigiu Meg numa voz um pouco a medo. - A mãezinha não gostava das palavras aliança de bruxas. Dizia que éramos uma irmandade.
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Martin mordeu a língua para evitar dizer à filha que já não precisava de se preocupar com o que a mãe gostava ou não. Cassandra Lascelles estava morta. Quantas foram
as noites em que teve de embalar a filha até ela voltar a adormecer, depois de ter acordado aos gritos por causa de um pesadelo em que revivia o dia em que vira
Cassandra a afundar-se nas águas do Sena que lhe serviram de campa?
Seria preferível que o nome da mulher nunca mais fosse mencionado. Era melhor que Meg esquecesse aqueles dias terríveis em que havia sido forçada a participar nos
esquemas insanos da mãe. Mas, acima de tudo, dava graças por Meg estar fora daquele mundo nefasto, a viver em segurança na casa acolhedora que ambos partilhavam
em Cheapside. Afagou o cabelo da filha com ternura, afastando-o da fronte.
- Não tens de te preocupar com este membro em particular da irmandade - disse Martin. - O teu paizinho encarregar-se-á dela. Só quero que vás para casa e tires este
assunto da tua cabeça. Senhora Buttetydoor, quero que acompanheis a Meg de regresso a...
Martin interrompeu-se, irritado ao ver que Agatha não lhe prestava a mínima atenção. Tinha-se agachado e examinava o manto que a bruxa tinha tirado a meio do duelo.
Endireitando-se com um grunhido, Agatha mostrou algo que parecia uma missiva escrita em pergaminho.
- Mas o que é que temos aqui? - perguntou Martin autoritário.
- Não sei. Parece uma carta. A megera de cabelos vermelhos deve tê-la deixado cair. - Agatha examinava o papel que tinha na mão por entre olhos semicerrados. Não
que isso lhe servisse de grande coisa. Nem sequer sabia ler o seu próprio nome.
- Dê cá isso - disse Martin. Aproximou-se dela e tirou-lhe a missiva das mãos. - E agora peço-vos o favor de fazer o que vos disse, levando a Meg... - Uma vez mais,
calou-se, o olhar preso na única linha escrita a tinta no pergaminho.
Martin, o Lobo.
- Mas o que diabo...? - resmungou, surpreendido ao ver o seu próprio nome e sentindo-se ainda mais perturbado pelo facto de a elegante caligrafia lhe ser vagamente
familiar.
- O que é que se passa, paizinho? - perguntou Meg, que se colocara sorrateiramente ao lado dele.
- Nada de importância, diria eu. É apenas uma coisa que pertence à bruxa. Talvez seja o passaporte dela - mentiu Martin para sossegar a filha.
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- O mais certo é ser uma maldição qualquer ou uma feitiçaria malévola. Não deveis abrir isso - aconselhou Agatha.
Mas Martin já tinha quebrado o selo. A velha susteve a respiração e ele deu consigo a fazer o mesmo enquanto lia as poucas linhas da missiva.
"Mon cher Martin,
Esta carta destina-se a apresentar a minha emissária, Catriona O Hanon. Surgiu um novo revés. Não me atrevo a dizer mais nada. A Cat poderá explicar-vos tudo. Podeis
confiar nela como teríeis confiado em mim.
Como sempre, a vossa dedicada amiga, Ariane Deauville
Martin expeliu todo o ar dos pulmões, sentindo-se como se lhe tivessem dado com um machado. Ariane Deauville, a Senhora da Ilha Encantada, a irmã da sua amada Miri,
a enviar-lhe alguma espécie de advertência? E a virago ruiva caída aos seus pés, aquela a quem Agatha batera, fazendo com que perdesse os sentidos, a mulher que
ele quase matara, era a emissária de Ariane?
- Merde!- praguejou Martin, amachucando a missiva na não.
- Paizinho? - Meg chegou-se mais a ele, a testa pequena toda franzida com rugas de ansiedade. - O que é que se passa? Essa carta... é acerca da bruxa?
- Ela não é nenhuma bruxa - respondeu Martin num gemido. - Pelo menos, não é uma das maléficas. Ela foi enviada para me transmitir uma mensagem da Senhora da Ilha
Encantada.
Os olhos de Meg arregalaram-se e a pouca cor que tinha nas bochechas desapareceu de imediato.
- Uma m... mensageira da Senhora? - Meg olhou na direção de Catriona, mostrando-se mortificada. - Oh, paizinho.
- Que maneira tão estranha de entregar uma mensagem - resmoneou Agatha. - com a ponta da lâmina de uma espada.
- Ela estava a tentar defender-se. Fui eu quem a atacou primeiro - admitiu Martin de má vontade. Passou a mão pelo cabelo num gesto de frustração. Como se a sua
vida já não fosse suficientemente complicada sem aquela complicação adicional.
Olhou para Cat com ferocidade, dividido entre o arrependimento e o desejo de sacudir a mulher para que ficasse ainda mais inconsciente do que já estava. Por que
raio é que ela não tinha começado por lhe mostrar aquela
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carta? Talvez ele próprio não lhe tivesse dado grande oportunidade de fazer isso, no entanto ela podia ter-se esforçado mais, em vez de adotar uma atitude de obstinação
e beligerância. Mas teria tempo de sobra para a censurar por isso. Naquele momento, o mais importante era cuidar da mulher, tirá-la dali antes que aparecesse alguém
a fazer-lhe perguntas embaraçosas.
Martin ajoelhou-se junto da irlandesa inconsciente e tentou friccionar-lhe os pulsos, na esperança de que ela recuperasse a consciência. Mas a mão dela continuava
inerte e fria. O toque dele nem sequer suscitava um gemido. Sentiu a mão pequena de Meg pousada no seu ombro.
- Ela... ela vai morrer, paizinho - disse a garota numa voz hesitante.
- Claro que não.
- Mas vai ficar horrivelmente doente. E tudo por minha culpa.
- Por tua culpa? - repetiu Martin, virando-se e olhando para a filha. - Como é que poderias ser culpada do que aconteceu, meu anjo? Não foste tu quem lhe bateu na
testa.
Mas Meg fitou-o com um olhar estranho, a expressão de quem se sentia culpada; a linha de raciocínio da filha a intrigá-lo como de costume. A garota tinha tendência
para se culpar por tudo e mais alguma coisa.
- Esta situação não passou de um lamentável mal-entendido. Mas vamos levar Mademoiselle Catriona OHanlon para nossa casa, tratamos-lhe da cabeça e depois ela ficará
boa. - Fez uma festa na bochecha de Meg para a tranquilizar, após o que se virou para a mulher de nome OHanlon. Mas antes de poder pegar em Catriona, Agatha soltou
um grito agudo e correu para ele para o impedir de lhe pegar.
- Que Deus nos valha, meu amo! O que é que estais a fazer? com certeza que não tendes a intenção de levar esta criatura para nossa casa.
- E o que é que querias que eu fizesse com ela?
- Entregá-la à guarda. Ou... ou levai-a para um dos hospícios. Martin passou o braço por baixo dos ombros de Cat.
- Eu já te disse que ela não é uma das bruxas malévolas. Foi enviada pela Senhora da Ilha Encantada.
- Não sei nada acerca dessa senhora. Mas sei o que esta é - ripostou Agatha apontando um dedo acusador a Cat. - E não podeis tê-la sob o vosso teto.
- E por que diabo é que não?
- Porque ela é irlandesa. É por isso que não - replicou Agatha como se tivesse escarrado. - E toda agente sabe que eles são um bando de selvagens
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sedentos de sangue com as suas malévolas ideias papistas. Não passam de uns bárbaros ignorantes que adoram ídolos e praticam sacrifícios humanos. Martin revirou
os olhos.
- É verdade. E devoram bebés e criancinhas pequenas.
Martin encostou Cat ao peito antes de se pôr de pé cuidadosamente.
- Duvido que Mademoiselle Catriona OHanlon tenha grande apetite seja pelo que for durante algum tempo. Antes que ela recupere os sentidos, tereis muito tempo para
esconder quaisquer infantes que se tenham perdido na despensa.
- Brincai se quiserdes, meu amo, mas...
- Já chega! Ao menos uma vez na vida, fareis aquilo para que vos pago, cuidando da minha filha.
A idosa arrepanhou os lábios. Amansou e fungou com uma expressão de ressentimento, mas não antes de ter a última palavra. Passou um braço pelos ombros de Meg e,
enquanto levava a garota para a saída do teatro, olhou para Martin por cima do ombro.
- Ireis arrepender-vos, meu amo. Ouvi bem o que vos digo. Essa criatura irlandesa só vos trará problemas.
Martin limitou-se a um resmungo, procurando pegar em Cat numa posição mais confortável enquanto as seguia. A mulher era bastante pequena, mas o peso morto não lhe
permitia muito equilíbrio. A cabeça oscilava contra o seu braço, o cabelo caído como uma chama à largura da manga do gibão. Sem saber explicar porquê, ela parecia-lhe
mais pequena e mais frágil nos seus braços. Mas Martin não se deixava enganar. Até mesmo inconsciente, o queixo do diabo da mulher aparentava truculência.
"Só vos trará problemas." Martin fez uma careta. Por acaso, não se teria ele apercebido disso mesmo desde o primeiro momento em que a vira?
Cat esforçou-se por abrir os olhos, mas tinha a sensação de que as pálpebras eram demasiado pesadas, como se estivessem debaixo de âncoras pequeninas. Sentia-se
como se estivesse perdida num mar de meia-noite, tão pacífico que desejava poder render-se, afundando-se mais profundamente naquela escuridão tão serena.
Mas o seu espírito de guerreira urgia-a a lutar, a subir à tona. Obrigou os olhos a abrirem, emergindo num mundo de carmesim, fogo e dor.
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Cat gemeu e virou-se para se proteger da luz ofuscante. Fechou os olhos, afundando mais a cara na almofada macia.
- Mademoiselle Catriona OHanlon? - A voz que a chamava era baixa e ronronante, tão aliciante e sedutora como a mão que lhe afastava o cabelo da cara.
Mas até mesmo aquele contacto tão ao de leve fez com que a cabeça lhe latejasse de dor. Cat gemeu outra vez. A sua pobre cabeça... tinha sido agredida com um machado
por alguém. Não. Tinham-lhe fendido o crânio com a lâmina. Levou a mão tremente à fronte, aterrorizada ao pensar que sentiria o cérebro a derramar-se da cabeça.
Mas os seus dedos encontraram um espesso chumaço de qualquer coisa. Seria o seu cérebro? Não, era um pano qualquer, mas antes de poder explorar um pouco mais, sentiu
uma mão cálida e calosa que se fechava no seu pulso, colocando-lhe o braço de novo ao longo do corpo.
- Sossegai. Permiti-me - murmurou-lhe uma voz grave. Sentiu que lhe tiravam o pano da testa e que era substituído por outro, húmido e frio. Inicialmente, a compressa
fez com que sentisse um choque por todo o corpo. Ficou arrepiada. Mas à medida que a frialdade se fazia sentir, ia-lhe amortecendo a dor, o suficiente para se arriscar
a abrir os olhos.
O mundo continuava a ter um excesso de luminosidade de onde jorravam lençóis de fogo. Pestanejou com força, num esforço para aclarar a visão turvada. Aquela luz
incandescente dissipou-se em nada mais do que a chama tremeluzente de uma vela em cima de uma mesa de três pernas, enquanto os lençóis de fogo não passavam dos panos
de damasco carmesim que pendiam do dossel de um leito.
Perplexa e alarmada, Cat olhou em volta, vendo uma alcova que não lhe era familiar. Aonde - aonde diabo é que se encontrava? O que é que lhe tinha acontecido?
Fez um esforço para se erguer, mas ficou arfante e com a cabeça a andar à roda e a latejar; tinha a impressão de que a alcova girava em torno de si.
Mãos suaves obrigaram-na a voltar a pousar a cabeça na almofada.
- Cuidado, minha doçura. Ficareis boa, mas é melhor não apressar as coisas. Tomai, bebei isto.
Ele levantou-lhe a cabeça, levando-lhe uma caneca aos lábios. Quis fazer como ele lhe dizia, apesar de a sua língua lhe parecer que tinha engrossado, recusando-se
a obedecer-lhe. Engasgou-se quando bebeu o primeiro gole de um líquido forte e agridoce. Mas sentia a garganta tão ressequida que bebeu avidamente, a infusão a acalmar-lhe
a garganta seca, sentindo uma nova vida que começava a correr-lhe pelas veias.
Pestanejou repetidamente para conseguir focar os olhos no homem sentado na beira da cama que estava inclinado para si. Pelo menos, a cara dele era-lhe familiar.
Conhecia aquele rosto sombriamente bem-parecido, a barba bem aparada, a cana fina do nariz e os olhos de um verde vívido. - Um pouco a medo, estendeu a mão para
tocar na face dele.
- Sir... Sir Roland? - perguntou numa voz enrouquecida. - Salvastes-me da bruxa?
- Ai de mim, não, ma chère. - Pegou-lhe na mão e virou-a para lhe depositar um beijo na palma muito ao de leve. - Receio ter de vos dizer que me enganei, pensando
que éreis uma bruxa. Apresento-vos as minhas mais sinceras desculpas, milady.
Cat franziu as sobrancelhas, tentando perceber o que ele lhe dizia, esforçando-se por se lembrar do que sucedera. O esforço fez com que a cabeça recomeçasse a latejar-lhe,
mas não desistiu até os acontecimentos da tarde lhe ocorrerem à mente em catadupa.
Southwark, o cais, o mercado à cunha. O Teatro Crown. Ter visto a peça com a respiração suspensa e depois - e depois a bater-se pela sua vida na segunda plateia
do teatro. O homem que teve a temeridade de lhe beijar a mão era o mesmo canalha que tentara passá-la a fio de espada. Não era o nobre Sir Roland, mas sim Martin,
o Lobo.
Cat tirou a mão da dele com brusquidão e retraiu-se ao sentir as dores de cabeça, assim como a dor na região dorsal, que sentia dorida. Era onde Megera lhe tinha
espetado a maldita lâmina de bruxa, injetando um veneno letal nas suas veias. Ou era o que Catriona pensava. Passou a mão pelo rosto, à procura de qualquer indício
de febre. Nenhum. Levou os dedos ao pescoço e fez pressão, sentindo a pulsação forte e regular.
- Eu... eu não estou morta - disse maravilhada.
-- Não - corroborou ele, rindo-se à socapa. - Porquê? Pensastes que acordastes constatando que estáveis no Paraíso?
- Nem por isso. Não, uma vez que estáveis aqui. - Continuava a sentir um formigueiro na palma da mão que ele beijara. Limpou-a às cobertas da cama e fechou os dedos,
posicionando a mão junto do corpo como se quisesse protegê-la.
- E aqui é, exatamente, onde? - perguntou num tom que exigia resposta.
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- La Maison des Anges.
A casa dos anjos? - Cat olhou furiosa para ele. - A cabeça dói-me demasiado para estar com mais brincadeiras estúpidas, Lobo. Portanto, com vossa licença...
- Aqui, em Londres, dou pelo nome de Marcus Wolfe, mademoiselle, e agradeço que não vos esqueçais disso. - Franziu os sobrolhos como se lembrasse isso mesmo a si
próprio. Quando voltou a falar, quaisquer vestígios do sotaque francês haviam desaparecido. - E eu não estava a brincar. Todas as casas em Londres têm nomes e esta,
em especial, tem o nome de Anjo. E é precisamente aí que estais, a repousar em segurança sob o meu teto, aconchegada na minha alcova.
Na casa dele? Cat focou mais o olhar e olhou de novo para o que a rodeava, avaliando o que via. Para um simples ator de teatro, Martin, o Lobo, estava a sair-se
surpreendentemente bem. As paredes estavam decoradas com tapeçarias que pareciam ter custado bom dinheiro, bem como os panos que pendiam do dossel do leito ricamente
bordados. A cama de carvalho entalhado era luxuosa, com um espesso colchão de penas, enquanto os lençóis eram de linho do mais fino que Cat vira em toda a sua vida.
Sentia-os sensualmente macios na pele desnudada.
Desnudada? Cat ficou rígida e depois, a medo, espreitou para baixo do lençol. Ficou mortificada ao ver que não tinha uma única peça de roupa. Não só se encontrava,
sem saber como, na alcova de Martin, o Lobo, como também estava completamente nua.
com a respiração arquejante, fez um esforço frenético para puxar as cobertas mais para o pescoço, os seus esforços prejudicados pelo facto de ele estar sentado no
leito.
- Fora da cama!
- com certeza, minha querida. - Martin levantou-se com a maior indolência. - Embora me sinta impelido a lembrar-vos que estais a expulsar-me da minha própria cama.
Se os olhos pudessem, ela teria desferido adagas em direção a Martin, mas teve de parar, a expressão feroz só servira para lhe agravar a dor de cabeça.
- Meu miserável patife! Onde é que estão as minhas roupas?
- Eu? Não fiz nada. Disse a uma das criadas que vos despisse para que estivésseis mais confortável e, bem, sem querer ofender-vos, as vossas roupas estavam um tudo-nada
sujas para os lençóis do meu leito. Mas levando
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em consideração o vosso pequeno desempenho durante o nosso duelo, não me passou pela cabeça que sofrêsseis de um excesso de recato.
- Uma pessoa faz o que tem de fazer no calor da batalha.
- Até mesmo recorrer a um truque tão desprezível como mostrar a vossa teta nua mesmo na cara de um homem?
- Eu não o classificaria de desprezível. - Cat meteu-se mais debaixo das cobertas até ficar apenas com a cabeça de fora. - Esse truque tem resultado sempre que o
utilizo, uma vez que os homens são tão simplórios e lascivos. Quando eu costumava lutar com o Rory OMeara, esse idiota foi enganado pelo meu truque em três ocasiões.
Martin atirou a cabeça para trás, rindo-se às gargalhadas.
- Peço-vos que me perdoeis o que vou dizer, mas duvido muito que esse Rory tenha sido o que foi enganado.
- Pensais que ele só estava a fingir para... para...
- Para regalar os olhos? E por que não? Estamos a falar de um seio encantador que merece bem um segundo, ou mesmo um terceiro, olhar.
O miserável patife estava a rir-se de si, mas os olhos verdes, que tinham um brilho de cumplicidade, convidavam-na a partilhar da cómica situação, a voz dele estava
plena de uma admiração que não tentava ocultar.
Era muito raro que Cat permitisse que um homem a enervasse, repudiando sempre qualquer espécie de lisonjas ou de romantismo. Para sua irritação, apercebeu-se de
que corava.
- Lembrai-me que tenho de vos socar as orelhas quando me sentir melhor - disse com brusquidão.
Martin riu-se, puxando uma cadeira para a beira da cama. Posicionou-a de costas para a frente e escarranchou-se de uma maneira agarotada, apoiando as mãos nas travessas
de madeira de carvalho das costas da cadeira.
- Sugiro que declaremos tréguas, Mistress Catriona OHanlon. Receio ter de dizer que começámos muito mal.
- Pelo que, estou certa, estais mortificado de tantos remorsos, reconhecendo que todas as culpas recaem em vós.
Martin voltou a mostrar os dentes muito brancos com aquele sorriso que era tão devastador.
- Não exatamente. Podíeis ter dito ao que vínheis, mostrando-me esta carta antes de a situação ter ficado fora de controlo. - Martin mostrou-lhe a missiva amachucada
de Ariane que tirou de dentro do gibão, atirando-a para cima da mesa de cabeceira. - Para uma mulher que gosta tanto de falar, haveis precisado de muito tempo para
irdes direita ao assunto.
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- Como se estivésseis preparado para ouvir o que quer que fosse que eu tivesse para vos dizer.
- Tenho tendência a ser um pouco irascível quando sou seguido e acossado por mulheres desconhecidas. Dado que estais familiarizada com o passado da minha filha,
decerto que compreendeis porquê. - O semblante de Martin ensombrou-se, mas suavizou-se quando acrescentou: - Mas lamento que tenhais ficado ferida. A senhora Butterydoor
é extremamente dedicada à Meg e a mim. Ela acreditou que estava a salvar-me a vida.
- A senhora Butterydoor?
- Sim, a Agatha. A idosa com o cajado. Ela bateu-vos e perdestes a consciência, fazendo-vos esse galo na testa. Estais recordada?
Cat recordava-se, mas a pancada com o cajado não foi o motivo por que perdeu os sentidos. Isso devia-se inteiramente a Megera e à sua lâmina de bruxa. Cat examinou
Martin por entre olhos semicerrados. Estaria o homem a tentar intrujá-la para proteger a filha de quaisquer possíveis repercussões da sua cólera? Ou seria possível
que ele não tivesse visto o que aconteceu realmente?
As palavras que Martin proferiu a seguir responderam à sua pergunta.
- Compreendo que a pancada com o cajado foi muito dolorosa, mas a verdade é que quem sofreu mais foi a minha filha. A Meg ficou deveras perturbada com o que teve
lugar no teatro. Ela já passou por tanta coisa que não seria de esperar que ficasse tão abalada. Mas o meu anjo tem um coração tão terno. Não podeis imaginar quanto
ela é doce.
Cat estremeceu, massajando a pequena picada nas costas. Sim, ela era capaz de imaginar e, aparentemente, muito melhor do que ele. A julgar pelo sorriso de tanta
ternura, o brilho nos olhos e a expressão protetora, era óbvio que Lobo não tinha a mínima noção daquilo que a filha era capaz. Cat debateu consigo própria se devia
esclarecê-lo, mas decidiu manter-se calada, pelo menos até ter oportunidade de falar com Megera.
- E agora, Mistress Catriona OHanlon - começou Martin, mas ela interrompeu-o.
- Quereis fazer-me o favor de não me tratar dessa maneira? Faz com que me sinta como uma velha. - Fez um trejeito de aversão. - Ainda por cima, é uma palavra inglesa.
- De acordo. Catriona...
- Cat. Tratai-me apenas por Cat.
- Muito bem. Cat - retorquiu ele sorrindo-lhe. - Não sou capaz de imaginar a razão por que a Ariane vos incumbiu de me encontrar, mas conhecendo
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a Senhora da Ilha Encantada, estou seguro de que deve ter tido um motivo bastante premente. Detesto estar a pressionar-vos quando ainda vos sentis tão debilitada...
- Não, não - atalhou ela. - Já me sinto bastante bem, além disso já perdemos tempo de mais. - Agarrando as cobertas até ao pescoço, fez outra tentativa para se sentar,
ficando irritada ao sentir que a sua cabeça continuava a andar à roda. Olhou ansiosa para a caneca de peltre que ele pousara na mesa de cabeceira. - Se pudésseis
dar-me mais um pouco daquela... daquela...
- Tisana. - Martin pôs-se imediatamente de pé para lhe chegar a caneca. - Foi a Agatha que vos preparou esta infusão. Ela tem alguma habilidade no que diz respeito
a alambiques.
- Quando não anda a partir cabeças - resmungou Catriona. Tirou o pano da cabeça e, com muito cuidado, apalpou o galo na testa. Tinha o tamanho de um ovo de gansa,
mas o inchaço parecia estar a diminuir.
Martin chegou-lhe a caneca e tê-la-ia ajudado a beber, mas ela afastou-lhe a mão. Aquilo por que ela ansiava realmente era um pouco do seu uísque irlandês, mas deixara
a pequena garrafa e os seus poucos haveres na estalagem em que se alojara na noite anterior. A tisana não era tão potente, mas bebeu tudo o que restava na caneca,
começando a sentir-se um pouco melhor. Recostou-se nas almofadas e, entalando as cobertas recatadamente entre os ombros e as almofadas, Cat deu início à sua narrativa
sobre o reaparecimento da Irmandade da Rosa de Prata, concluindo com os acontecimentos no cimo do penhasco na noite em que as bruxas se reuniram.
Procurou simplificar o relato, resistindo à sua natural tendência para embelezar a história, a pontuar as palavras com muitos gestos.
Martin escutou atentamente, mantendo o queixo apoiado na parte de cima das costas da cadeira, a fisionomia tão expressiva, agora estava impassível, ao contrário
do que era costume, revelando muito pouco dos seus pensamentos. Quando ela acabou a narrativa, ele manteve-se em silêncio e com uma expressão circunspecta. O mutismo
prolongou-se por tanto tempo que Cat começou a dar mostras de impaciência.
- A Ariane acredita que vós e a vossa filha devíeis ir para a ilha Encantada. Tenho a certeza de que vereis a necessidade de deixar Inglaterra de imediato.
Finalmente, Martin mexeu-se como um homem que tivesse despertado de um sonho desagradável.
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- Não, lamento ter de vos dizer que não vejo necessidade nenhuma de tomar essa medida. Na minha opinião, seria uma decisão precipitada e imprudente.
- Pela deusa Brigida! Não ouvistes uma única palavra do que eu vos disse?
- Sim, ouvi com bastante clareza - respondeu Martin, erguendo a cabeça e endireitando-se na cadeira. - Bruxas, fogueiras, assembleias de bruxas à meia-noite, os
soldados da Rainha das Trevas. Tudo isso me parece exatamente igual à situação que me levou a abandonar a França. Razão mais do que suficiente para que a Meg e eu
continuemos onde estamos.
- Onde estais! Pensais que estareis em segurança... - começou Cat a dizer, mas ele apressou-se a interrompê-la.
- Peço-vos que me clarifiqueis um aspeto. Fostes obrigada a interromper a vossa missão no penhasco, não é verdade?
- Sim - resmungou Catriona, que continuava a sentir-se agastada ao recordar a situação em que tivera de bater em retirada sem sequer ter atacado uma única bruxa.
- Eu tinha ordens da Ariane para não me meter em rixas. Tive de voltar a casa dela para a avisar, mas não sou nenhuma cobarde...
- Eu nunca disse que éreis. O que quero dizer é que não fazeis ideia do que possa ter acontecido depois de terdes partido. Tanto quanto sabeis, é muito possível
que esse capitão Gautier já tenha chacinado todas as bruxas da irmandade.
- Ou, mais provavelmente, ele arrastou uma dessas bruxas até à presença da Rainha das Trevas e agora ela está a par da verdade acerca da vossa filha.
- E tendes alguma prova disso? Antes de terdes saído de França, vistes algum indício de que Catarina andasse à procura da minha filha?
- Bem... não. Mas eu não dispunha de muito tempo para...
- Sendo assim, não vejo razão nenhuma para entrar em pânico. É muito possível que a Rainha das Trevas não saiba absolutamente nada e que a irmandade tenha sido destruída.
- E também é possível que sejais um rematado idiota! - ripostou Cat irada. - Estais disposto a arriscar a vida da vossa filha com base em possibilidades? Se a Rainha
das Trevas descobrir que a Meg é a Rosa de Prata, posso garantir-vos que ela moverá céu e terra à procura dela, quanto mais não seja por continuar a querer o Livro
das Sombras.
- Nesse caso, sua majestade estará a perder o seu tempo e esforço porque eu não faço a mínima ideia do que é feito desse maldito livro, tal como
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a Meg não sabe nada disso - ripostou Martin, levantando-se da cadeira e empurrando-a para trás. - Se a Rainha das Trevas andar realmente à procura da minha filha,
sinto-me muito mais seguro com o canal da Mancha a separar-nos.
- Mas na ilha Encantada a Meg teria a Ariane e o marido, além de inúmeras mulheres sábias que se manteriam vigilantes, para a proteger.
- Ela tem o pai para isso. E devo dizer que não me tenho saído nada mal a proteger a minha filha até agora.
- Ninguém está a dizer que isso não seja verdade - começou Cat a dizer, para logo se interromper frustrada quando Martin se afastou de si, sem lhe prestar a mínima
atenção. Raios partissem o homem! Não seria possível que ele a ouvisse durante o tempo suficiente para poder concluir uma frase?
Martin dirigiu-se para a janela oposta ao leito, abrindo os pesados reposteiros de brocado, o que permitiu que se visse os vidros em forma de losango. Catriona pestanejou
surpreendida ao ver que a noite escurecera o firmamento, quando estivera à espera de ver os tons de púrpura do crepúsculo. Devia ter estado inconsciente durante
mais tempo do que tinha pensado.
- Dizei-me uma coisa - disse Martin, acenando com a cabeça na direção da janela. - O que é que estais a ver ali fora?
Cat esticou o pescoço, mas parou de imediato ao sentir a cabeça a latejar e as cobertas prestes a deslizarem-lhe do corpo.
- Raios partam isto! - resmungou. - Não posso olhar sem que a minha cabeça expluda ou permitir que vejais o meu traseiro desnudado. Ainda que eu conseguisse levantar-me
da cama, suponho que não veria grande coisa além dos telhados das casas.
- Os telhados de uma vasta cidade.
- Suja, barulhenta e apinhada de gente. Demasiado cheia de ingleses.
- Tendes razão - retorquiu Martin sorrindo, mas enquanto olhava pela janela, o seu rosto ficou com uma expressão sonhadora. - Mas também é uma cidade a fervilhar
de energia, empreendimento e oportunidades. Uma cidade onde qualquer homem pode fazer fortuna, enterrar o seu passado e perder-se no futuro.
Cat olhou para ele com uma exasperação que mal conseguiu disfarçar.
- É isso que acreditais ter feito? Que vos perdestes? Admito que me levou algum tempo para conseguir encontrar-vos e tenho alguma habilidade para caçar. Mas também
a Rainha das Trevas. Se eu consegui encontrar-vos,
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também ela será capaz de o fazer, especialmente quando andais a pavonear-vos num palco público.
- Reconheço que isso foi um erro. Mas quando o nosso ator principal adoeceu, não consegui resistir à tentação de... - Martin calou-se e ficou corado que nem um tomate.
Deixou cair o reposteiro e afastou-se da janela. -- Não voltarei a ser tão descuidado.
- E o que é que tencionais fazer? Abandonar a companhia de teatro? Como é que estais a pensar sustentar a vossa filha se...
- Não é com o teatro que a sustento agora. - com um gesto amplo, abarcou todo o interior da alcova. - Pensais que possuo tudo isto com o meu salário de ator? Quando
chegámos a Inglaterra, é possível que não fosse mais do que um ator itinerante, mas a minha sorte mudou muito desde então. Na realidade, sou um investidor do Teatro
Crown, além de ter amigos poderosos.
- Os vossos colegas atores? - perguntou Cat escarnecedora. - Não haja dúvida de que seriam uma grande ajuda, com os caldeirões a fingir e espadas de gume rombo.
- Mas a minha espada é aguçada quanto basta, como estivestes quase a descobrir. E devo dizer-vos que conheço mais pessoas além do mestre Roxburgh e os atores da
companhia. Arranjei um patrono, um homem de vastos recursos e influência.
- Quem?
- É assunto que não vos diz respeito! - ripostou Martin com rispidez. Cerrou os lábios numa linha estreita e depois falou-lhe num tom mais moderado.
- Ouvi uma coisa, Mistress Catriona OHanlon... Cat. Não quero dar-vos a impressão de que não vos agradeço por terdes vindo para me advertirdes. Compreendo que isso
vos causou muitos inconvenientes. Certificar-me-ei de que sereis recompensada generosamente.
- Recompensada! Sois um palerma ignorante. - Catriona sentou-se a direito repentinamente, ignorando as dores de cabeça e o facto de estar quase a regalar os olhos
de Martin outra vez. - Vim falar convosco porque a Ariane me pediu, mais ainda, sirvo a Senhora da Ilha Encantada por a amar e ser-lhe muito dedicada, não por qualquer
recompensa ou... ou...
- Perdoai-me. - Martin ergueu as mãos num gesto defensivo para pôr fim à torrente de palavras acaloradas. - Não é minha intenção ofender-vos ou à Ariane. Aprecio
a vossa oferta de refúgio, mas ainda que a ilha Encantada
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não se situasse tão próximo da costa francesa, seria o último lugar para onde me sentiria tentado a levar a minha filha. Tal como vos disse há pouco, tenciono enterrar
o passado.
- O passado de quem? O vosso ou o da criança? - ripostou Cat. Quando Martin arqueou uma sobrancelha numa expressão sobranceira de interrogação, Cat sabia que seria
mais avisado ter tento na língua, mas essa sensatez era coisa de que sempre carecera.
- Estou bem ao corrente da vossa relação com Miribelle Cheney.
- De verdade? - inquiriu Martin cortesmente, mas os seus olhos transmitiram um forte aviso que Cat ignorou, apressando-se a prosseguir. - A Ariane contou-me o quanto
haveis amado a sua irmã e que ficastes com o coração dilacerado quando ela desposou o Simon Aristide. compreendo o constrangimento e a mágoa que deveis sentir ao
pensar em ver Miri de novo, mas não há razões para essa preocupação. Ultimamente, é muito raro que ela se desloque à ilha Encantada.
- E porque é que isso acontece? - perguntou Martin, franzindo o sobrolho. - A ilha Encantada era o lar da Miri. Era o lugar que ela mais amava em todo o mundo.
- Sim, mas o marido, o outrora caçador de bruxas, não é muito bem-vindo na ilha.
Martin abeirou-se do leito. Fechou os dedos num dos postes e olhou para Cat com uma expressão de ansiedade.
- Então... então isso quer dizer que a Miri não é feliz?
- Eu não disse isso. É possível que a Miri tenha amado a ilha Encantada, mas ama o marido ainda mais. Ela está perdidamente apaixonada pelo homem, mais ainda desde
o nascimento da filha e... - Finalmente, Cat calou-se e olhou pesarosa para Martin. - Lamento muito. Estou em crer que isto seria a última coisa que queríeis ouvir.
- Não, é precisamente o que queria ouvir. Folgo em saber que ela está bem e... é feliz. - Falava com toda a sinceridade, do que Cat se apercebeu surpreendida. Deus
era sua testemunha de que não tinha sido tão generosa quando Rory OMeara quebrara a sua confiança havia já bastantes anos, chamando o homem de tudo e mais alguma
coisa sempre que o nome dele era mencionado.
Ao contrário, o tom de voz de Martin suavizara-se quando falou de Miri, os olhos repletos de tanta ternura e mágoa, atitude que suscitou em Catriona uma estranha
inveja. Perguntou-se se Rory continuaria a falar de si com tanto
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afeto. Não, pensou com tristeza, o mais certo era Rory OMeara nunca falar dela e que nunca lhe dedicasse um único pensamento que fosse. Ela não era como Miri, visionária
e delicada, cheia de predicados femininos, a espécie de mulher que os homens nunca esqueciam.
Martin estava embrenhado nos seus pensamentos, como se mergulhado em recordações pungentes do seu passado. Mas acabou por dar um forte abanão a si próprio.
- A Miri e eu separámo-nos como bons amigos. A minha relutância em ir para a ilha Encantada prende-se mais com a Meg. Quando salvei a minha filha da irmandade das
bruxas, jurei a mim mesmo que baniria toda a espécie de bruxaria e magia da sua vida.
- Não me parece que se possa equiparar as mulheres da ilha Encantada e Ariane com essas bruxas demoníacas da Irmandade da Rosa de Prata.
- Não tenho nada além do maior respeito por Ariane Deauville...
- E é bom que seja assim! - atalhou Cat aguerrida.
- Todavia, não vejo onde é que o estudo dos conhecimentos da Antiguidade tenha beneficiado Ariane, pelo contrário, isso só fez com que fosse acusada de bruxaria.
Pois bem, visiono um futuro bastante melhor e seguro para a Meg. É minha intenção, de futuro, fazer dela uma grande senhora, feliz, próspera e bem casada.
Catriona olhou para ele com uma expressão de incredulidade.
- E pensais o quê? Que o passado desaparecerá só porque desejais que assim seja? com base no que me foi dito, a vossa filha possui determinados dotes e capacidades
que herdou da mãe, a Cassandra Lascelles.
- O nome dessa mulher não deve ser mencionado sob o meu teto! - ripostou Martin exacerbado. - A Meg não herdou nada da mãe. Absolutamente nada. No que me diz respeito,
essa fase da vida dela acabou de uma vez por todas. E, agora onde é que está o resto dos vossos haveres?
- Os meus haveres? - retorquiu Cat hesitante, surpreendida com aquela súbita mudança de assunto. - Não trouxe muita coisa, apenas um pequeno alforge. Deixei-o na
estalagem em que pernoitei ontem. A Galo Lutador, em Southwark, próximo da margem do rio. Mas no que concerne à vossa filha...
- Sei onde fica. vou mandar um dos meus servos para que traga o vosso alforge - atalhou Martin, dirigindo-se para a porta.
- Mas, Monsieur Lobo... quero dizer, senhor Wolfe. - Agarrando as cobertas e ignorando as dores, Cat tentou chegar à beira do leito. - Martin!
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Ele deteve-se junto da porta, virando-se e olhando para ela. Havia qualquer coisa que parecia ter-se fechado nos seus olhos, mostrando uma expressão tão fria e ameaçadora
que, ao contrário do que lhe era habitual, Cat ficou sem palavras.
- Entendei o que vos vou dizer, Mistress Catriona OHanlon. Como amiga de Ariane, sois bem-vinda a minha casa enquanto vos restabeleceis. Mas não voltaremos a falar
acerca da minha filha. Quando vos sentirdes bem, regressareis à ilha Encantada e apresentareis os meus cumprimentos a Ariane Deauville, agradecendo-lhe pelo seu
interesse no nosso bem-estar. Mas a Meg vai continuar onde está.
com uma vénia cortês, Martin saiu da alcova, deixando Cat a olhar para a porta de boca aberta. Voltou a deitar-se no leito com um gemido, frustrada e a ferver por
dentro.
Tinha sido avisada de que Martin, o Lobo, talvez se mostrasse um tudo-nada obstinado, mas até mesmo Ariane não preparara Cat para um homem teimoso que nem uma mula
como aquele. Tinha de se levantar, procurar as suas roupas, ir atrás de Martin e meter algum juízo na sua cabeça dura. Ainda que tivesse de usar o cajado da velha
Agatha para o fazer.
Se ao menos a sua própria cabeça não continuasse a latejar daquela maneira, como se uma centena de tambores irlandeses rufassem dentro do seu crânio. Massajou as
têmporas. A futilidade que fora argumentar com Martin, o Lobo, agravara-lhe a dor de cabeça. Ia descansar os olhos por uns momentos e recuperar algumas forças antes
de voltar a confrontar o idiota obstinado.
Cat estava quase a adormecer quando ouviu o ranger da porta. Abriu os olhos e viu que a chama da vela em cima da mesa de cabeceira tremeluzia soprada pela corrente
de ar. Ficou tensa quando se apercebeu de que a porta da alcova se abria muito devagar, mas apenas o suficiente para se poder espreitar para o interior.
Lobo voltava num estado de espírito mais consensual? Mas Cat duvidava. Ele não teria qualquer razão para proceder tão furtivamente. Preparou-se para falar, para
perguntar quem é que estava ali, quando viu uma figura espectral toda trajada de branco, um rosto pálido onde se viam uns olhos verdes enormes.
- Porque é que não entras, Megera, para poderes ver-me mais de perto? perguntou-lhe Cat acerbamente, soerguendo-se sobre os cotovelos.
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A garota ficou imobilizada como um coelho na mira de uma águia. Cat estava à espera que a garota desatasse a fugir, mas após uns momentos de hesitação, Megera entrou
na alcova e fechou a porta.
Aproximou-se da cama com uma postura tão digna que uma princesa talvez tivesse invejado. A figura esguia vestia uma camisa de dormir de fina cambraia branca, com
o cabelo castanho-escuro caído em volta dos ombros. Tinha o rosto emoldurado por uma touca de dormir orlada de renda que poderia ficar bem a uma menina mais gorducha
e bonita, mas que em Megera só servia para realçar as suas feições angulosas. As sobrancelhas escuras destacavam-se num acentuado contraste com a pele pálida.
Uma criança de luz e sombra, pensou Cat com um arrepio inexplicável. Ergueu-se com dificuldade, passando as pernas pela beira do leito e cobrindo os ombros com o
lençol, qual chefe de clã que envergasse o manto de lã escocesa com o padrão da sua tribo. Pensou que estava a ser ridícula ao desconfiar daquela amostra de gente,
mas a verdade é que já tivera oportunidade de sentir na pele o que aquela menina, em particular, era capaz de fazer.
Megera deteve-se a cerca de trinta centímetros de Cat, como se quisesse comê-la com os olhos. Cat fixou o olhar nela com a mesma ferocidade, fazendo frente à sua
pequena némesis.
- O meu nome não é Megera - afirmou a garota com o queixo erguido numa expressão obstinada. - Chamo-me Margaret Elizabeth Wolfe.
- E eu chamo-me Catriona e pertenço ao clã OHanlon. Queres dizer-me por que motivo é que andavas a rondar a porta, a espiar-me?
As bochechas da rapariga ficaram com um ligeiro rubor.
- Não andava a rondar. Só queria saber como é que estavas a passar.
- Mas que simpático da tua parte - retorquiu Cat com secura. - Para além do buraco que me fizeste nas costas e parecer que me estão a martelar o crânio por causa
da mistela que me injetaste nas veias, estou a sentir-me esplendidamente. Gostaria de poder ver de novo essa tua lâmina de bruxa que usaste. Nunca tinha visto uma
e confesso que me sinto curiosa.
Os lábios de Meg estreitaram-se numa linha cerrada.
- Não faço a mais pequena ideia do que estás a falar.
- A sério que não? Nesse caso, talvez seja melhor chamarmos o teu pai para que nos esclareça.
- Não! - A sobranceria de Meg desapareceu, o seu semblante a mostrar uma expressão muito semelhante ao pânico. - Por favor, não faças isso. O meu pai não tem a mínima
noção de que eu... eu...
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- Que andas por aí a espetar pessoas com a tua lâmina de bruxa?
- Não é uma lâmina de bruxa. O nome apropriado é seringa e não ando por aí a espetar as pessoas. Não, a menos que tenha de o fazer e... não posso mostrar-ta porque
não a tenho comigo.
- A sério que não? Eu até pensei que tinhas vindo ao quarto às escondidas para me espetares outra vez.
- Não! - gritou Meg de novo. - Eu não te teria espetado a primeira vez se não tivesse pensado que querias matar o meu paizinho. Seja como for, foi apenas com uma
infusão para dormir.
- Só uma infusão para dormir? - repetiu Cat, levando a mão à cabeça, que sentia a latejar. - Desconfio de que se trata de muito mais do que a infusão para dormir
de que falas e parece-me que é possível que nunca mais tivesse acordado.
- Sei qual é a quantidade certa que se deve usar - retorquiu a garota muito indignada. - Além disso, se eu quisesse matar-te, podia ter usado veneno. Também sou
muito competente na preparação de venenos.
- Oh, não duvido dessa tua competência.
- Eu nunca teria desejado fazer-te mal, mas não te deixes enganar, para proteger o meu pai não hesitaria em aniquilar-te ou quem tentar fazer-lhe mal. - O olhar
de aviso que Meg lançou a Catriona era desconcertantemente adulto, de mulher para mulher, de guerreira para guerreira.
- Acredito que farias isso - retorquiu Cat circunspecta.
Meg fitou Cat com uma expressão beligerante por breves momentos, mas depois o lábio inferior começou a tremer-lhe e murmurou numa voz que era a de uma criança.
- Eu adoro o meu paizinho. Ele é tudo no mundo para mim, é tudo o que tenho.
- Não me é difícil compreender isso - admitiu Cat. - Eu sentia a mesma coisa em relação ao meu pai. - Contra a sua vontade, Catriona sentiu-se levada para aquele
verão em que correra desesperadamente através do urzal atrás do homem de constituição musculada, cujo cabelo da cor do fogo era tão parecido com o seu.
"Pai! Espera", tinha gritado arante, as pernas pequenas a esforçarem-se para conseguir alcançar as passadas largas de Tiernan O Hanlon, que se virou e esperou por
Cat, que atirou os braços para ele, rodeando-lhe a cintura, as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
"Pai, hoje não deves lutar. A avó teve uma das suas visões. Ela... ela diz que não voltarás se fores."
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O pai limitara-se a soltar as suas gargalhadas atroadoras, pegando-lhe com os seus robustos braços. "E agora corre para casa, minha pequerrucha. E não quero que
dês ouvidos às arengas dessa velhota tola. Comporta-te como uma boa menina, minha Cat. Vai para casa e espera por mim. Voltarei antes do pôr do Sol com muitas belas
histórias para te contar."
O pai tinha-lhe beijado as bochechas e secado as lágrimas, mas depois tirou os braços dela da sua cintura, afastando-a de si. Porque nada nem ninguém estorvava um
irlandês quando o sangue lhe fervia nas veias e os tambores de guerra chamavam, refletiu Cat com amargura. Tinha voltado para a pequena casa e ficou à espera...
e esperou... Mas, como de costume, as visões da sua velha avó provaram ser verdade. Muito depois de o Sol se ter posto, o banco do pai junto da lareira continuava
por ocupar e Tiernan dos Olhos Risonhos nunca mais voltou para casa. Um toque tímido no braço levou-a de volta ao presente. Ficou surpreendida ao ver Meg diante
de si. A garota fitava-a com uns olhos cheios de tristeza.
- Perdeste o teu paizinho quando eras muito novinha, não é verdade? Lamento muito.
Catriona ficou a olhar para a garota. Era possível que fosse um bom palpite da parte de Meg ou talvez ela fosse competente na antiga arte das mulheres sábias na
leitura de olhos.
Cat sempre mantivera as suas mágoas e desgostos bem no fundo dos recantos mais escuros do seu coração; eram dores demasiado sensíveis para a luz do dia. Agarrando
o lençol como se fosse uma armadura protetora, Cat afastou-se prudentemente da garotinha.
- Isso aconteceu há já muito tempo - disse. - Além do mais, não estávamos a falar do meu pai. Estou em crer que estávamos a falar do teu.
Meg mordeu o lábio inferior.
- E então... vais contar ao meu pai o que eu te fiz? Ele não vai gostar de saber que eu tenho a seringa nem que preparo poções. Ele quer que eu me esqueça de tudo
o que aprendi com a minha ma... quero dizer, o que aprendi antigamente. O paizinho ficaria muito dececionado comigo se soubesse o que eu fiz hoje.
Catriona franziu as sobrancelhas. Era evidente que Martin, o Lobo, precisava de alguém que lhe abrisse os olhos no que dizia respeito à filha, contudo, enquanto
perscrutava a cara de desalento de Meg, se bem que a contragosto, sentiu empatia pela garota. Ainda se lembrava bem dos tempos em
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que um olhar de desilusão em Tiernan OHanlon tinha sido pior do que uma bofetada.
- Talvez, por agora, passe a ser o nosso segredo.
A expressão de Meg iluminou-se, para logo empalidecer de consternação quando Cat acrescentou:
- Mas vais ter de me entregar essa lâmina de bruxa.
- Oh, não, por favor, não posso fazer isso. Eu levo sempre a seringa comigo quando saio de casa. Para... para proteger o paizinho. E se a irmandade continuar a perseguir-me,
como afirmas que é o caso, ou mesmo a Rainha das Trevas, vou precisar da minha arma mais do que nunca.
Meg caiu de joelhos diante de Cat, numa atitude de súplica.
- Por favor, Catriona... Cat, por favor. Deixa-me ficar com a seringa. Terei mais cuidado ao usá-la e às minhas poções. Juro-te. Peço-te por favor que me prometas
que não contas nada disto ao meu pai.
Cat pensou que seria uma idiota se concordasse com o que ela queria ou se fizesse tal promessa. Mas quando baixou o olhar para Meg, não foi capaz de couraçar o coração
contra aquele pequeno rosto de expressão tão ansiosa e aqueles olhos enormes tão suplicantes.
- Oh, muito bem - cedeu por fim, soltando um suspiro de frustração.
- Não, tens de me prometer a sério - disse Meg, estendendo a mão para tocar na dela.
- Mas o que diabo é que tu queres, menina? Um juramento de sangue?
- Jura-me sobre a tua sagrada honra - replicou Meg com uma expressão muito solene. - Sei que é uma jura que jamais quebrarias.
E só havia uma maneira de ela saber isso. A pequena bruxa era apta na leitura de olhos e tinha voltado a perscrutar a mente de Cat.
- Está bem. Prometo sobre a minha sagrada honra - disse Cat, mas acrescentou, mostrando um semblante severo: - Mas tens de me prometer uma coisa. Não voltas a pôr
em prática esse teu pequeno truque em mim.
- Que truque? - perguntou Meg, endireitando-se com lentidão.
- Sabes muito bem do que é que estou a falar. Estás a lidar com outra mulher sábia e não com o teu crédulo pai. Estou muito familiarizada com a prática da leitura
de olhos.
- Oh, isso. - Meg mostrou uma expressão de acanhamento. Ergueu uma mão solenemente. - Prometo que nunca mais voltarei a fazer isso. Juro por minha honra. - Mas,
quando baixou a mão, os lábios desenharam o assomo de um pequeno sorriso. - Mas sou muito competente a fazer isso, não sou?
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- Sim, és, minha serigaita.
O sorriso de Meg alargou-se e era espantoso como aquela expressão transformava o pequeno rosto tão solene, emprestando-lhe traços do encanto agarotado de Martin,
o Lobo.
- Também sou boa a fazer outras coisas, como a preparação de poções de infusão. - Fez um gesto na direção da caneca vazia na mesa de cabeceira. - Essa tisana que
te preparei fará com que te sintas perfeitamente recuperada dentro em pouco. Se não, posso preparar-te outra.
- Foste tu quem fez a tisana? - perguntou Cat. Pela deusa Brigida! Mas Martin, o Lobo, estaria a par de alguma coisa do que se passava na sua própria casa?
- O teu pai disse-me que foi a senhora Butterydoor quem preparou essa poção.
- A Aggie? Ela não sabe nada acerca dessas coisas. Além disso, ela disse que nem te daria uma caneca do seu próprio mijo. - Meg fitou-a com um olhar apologético.
- Lamento, mas a Aggie não gosta de irlandeses. Ela diz que esmagarias os meus ossinhos na primeira oportunidade que te surgisse.
- E acreditaste nela?
- Claro que não. Não sou nenhuma garotinha ingénua - replicou Meg muito digna. - A Aggie é uma boa mulher, mas, por vezes, pode ser um tudo-nada...
- Supersticiosa e ignorante como a maior parte dos ingleses?
- Eu ia dizer analfabeta e nada viajada. Nunca esteve mais longe de Londres do que Southwark. Não tem a experiência que eu tenho do mundo.
Era uma afirmação absurda numa garota de onze anos. Em qualquer outra que não aquela, pensou Cat. Mas, ao perscrutar o rosto de Meg, vislumbrou algo de triste e
cansaço nos olhos verdes da jovem, tão semelhantes aos do pai, mas, ao mesmo tempo, tão diferentes.
Os olhos de Martin cintilavam, expressando uma juventude e vitalidade que o homem continuaria a ter ainda que vivesse até aos cem anos. Contudo, no respeitante a
Meg, a expressão que se espelhava no seu semblante fazia com que já parecesse que tinha cem anos. Havia uma alma muito velha a ensombrar os olhos da garota.
Era muito raro que Catriona sentisse impulsos maternais, mas passou os dedos por uma pequena madeixa dos cabelos castanhos sedosos de Meg, ajeitando-a no ombro dela.
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- Uma vez que és tão competente a ler olhos, decerto que terás uma ideia da razão que me trouxe a Londres.
- Pensas que eu corro perigo. Ouvi-te a falar com o meu pai.
- Ah, estiveste a ouvir pelo buraco da fechadura, foi isso?
Uma vez mais, viu aquele traço de um sorriso impudente, mas Meg adquiriu uma expressão circunspecta de imediato.
- Foi errado da minha parte, estou ciente disso, mas tive de o fazer. O paizinho nem sempre me diz as coisas que devia. Esforça-se tanto por me proteger.
O paizinho não era o único, sentiu-se Cat tentada a ripostar, mas guardou essa observação para si própria.
- Se a irmandade das bruxas ou a Rainha das Trevas continuarem a ser uma ameaça para nós, preciso de estar a par dessas coisas - acrescentou Meg estremecendo. -
Encontrei-a numa ocasião... a rainha. Nos jardins do palácio dela, em Paris. Ela já é muito velha, mas continua a ser bastante poderosa e assustadora. Existe...
existe uma terrível negridão nela.
- Razão por que eu vim para te levar para a ilha Encantada. Meg inclinou a cabeça de lado, refletindo no que Cat lhe disse.
- E eu ficaria inteiramente segura nessa ilha?
Cat hesitou em responder-lhe, mas não era capaz de mentir à garota. Em qualquer dos casos, mentir não a levaria a lado nenhum com Meg. Ela era demasiado perspicaz
para acreditar.
- Não, Margaret. Não existe lugar nenhum à face da Terra inteiramente seguro, mas estou em crer que estarias mais segura lá do que nesta cidade infernal.
- A ilha Encantada é um lugar agradável? Quem é que vive lá?
- A maior parte dos habitantes da ilha são mulheres por ser muito frequente que os maridos, filhos e irmãos estejam fora, a ganhar a vida no mar como marinheiros
ou andam à pesca. Consequentemente, encontrarias muitas mulheres que são comerciantes, artesãs, ferreiras, carpinteiras, fabricantes de cerveja, como não verias
em mais lugar nenhum, e...
- E mulheres sábias? - interrompeu Meg ansiosa.
- Absolutamente, mulheres sábias. Desde há muito que a ilha Encantada é um refúgio para as que querem inteirar-se dos conhecimentos da Antiguidade, herboristas e
curandeiras. A ilha é pequena, mas encantadora, como uma jóia no mar, com penhascos alcantilados e praias cheias de conchas, e mesmo no coração da ilha há uma floresta
escura com árvores tão antigas que não se sabe quantos anos têm. Existe um maravilhoso espírito selvagem que reside na ilha Encantada, ainda mais antigo do que os
que residem no meu próprio país.
Ou que, pelo menos, costumavam viver lá, pensou Cat com tristeza. Havia muito tempo que sentia que o espírito da Irlanda estava a morrer, expulso pelos ingleses
invasores e pela loucura dos seus próprios concidadãos.
- E o que é que me dizes sobre a Senhora da Ilha Encantada? - perguntou Meg.
- Ela é tão sábia quanto é boa, além de ser muito instruída. Podia ensinar-te muito mais a respeito das artes de curar e dos procedimentos da Terra.
- Parece ser um lugar maravilhoso. - Meg mostrou-se anelante por uns momentos, mas depois suspirou. - Mas o meu pai nunca concordará em ir para lá. Ele gosta de
viver em Londres e tem grandes ambições para mim. Quer que eu venha a ser uma grande senhora, admirada, lindíssima e prendada, que aprenda música e dança e... e
a bordar. Não tenho a certeza de ser capaz de tudo o que ele quer que eu seja, mas tenho de tentar.
- Tu falas muito acerca do que o teu pai quer. Mas e quanto à Meg? perguntou Cat. - O que é que ela quer?
- Agradar ao meu paizinho. É a minha obrigação. O clérigo de Saint Barnaby no sermão de domingo passado disse como é importante que as filhas sejam obedientes.
Cat pegou na mão macia da garota, fechando-a nas suas cheias de calos.
- Existem outras espécies de filhas, Meg. As Filhas da Terra, o que tu és. Em primeiro lugar, e principalmente, as mulheres sábias aprendem a ser verdadeiras para
com elas próprias.
- Eu... eu ainda me lembro disso. A minha primeira ama, Prudence Waters, era uma mulher sábia como essas. Ela tentou ensinar-me... - Meg interrompeu-se com um abanar
de cabeça de tristeza. - Mas tenho de esquecer tudo isso. É o que o meu paizinho deseja.
- Isso não é assim tão fácil, Meg, esquecer o passado, tentar negar aquilo que se é realmente até à medula, fazendo esforços para se ser o que outra pessoa quer
que se seja. Acredita em mim. Sei do que estou a falar.
Mas a garota tirou a mão das dela.
- Foi muito interessante falar contigo, Catriona do clã OHanlon. Mas eu concordo com o meu paizinho. Devias descansar para depois regressares a casa. - Meg fez-lhe
uma vénia bastante peculiar, o rosto fechado, uma réplica exata do de Martin havia pouco. - Desejo-te uma jornada segura de regresso à ilha Encantada.
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A garota saiu da alcova e, uma vez mais, Cat deu consigo a olhar para a porta fechada. Voltou a deitar-se na cama com um suspiro de frustração.
Ir para casa? Desejava poder seguir o conselho de Meg, mas havia passado muito tempo e Cat não sabia com exatidão onde é que isso era. Quanto à jornada de volta
à ilha Encantada, seria com satisfação que embarcaria aquando da próxima maré.
Tinha esperado desincumbir-se da sua missão com celeridade, regressando para junto de Ariane o mais depressa que lhe fosse possível. Apesar de todas as afirmações
de que estava a passar bem, Cat sentia-se profundamente preocupada com a sua amiga. Não que ela fosse de grande utilidade no tocante aos mistérios da gravidez e
do parto, mas se alguma coisa corresse mal, queria estar ao lado de Ariane.
Todavia, aquela missão estava a provar ser mais difícil do que Cat poderia ter imaginado, navegar por entre os baixios de Martin, o Lobo, e da filha igualmente obstinada,
era uma tarefa quase impossível de concretizar.
Catriona não podia culpar Meg. Por muita sabedoria que ela pudesse ter, era apenas uma garotinha ansiosa por agradar ao pai. Martin, por outro lado, devia ter a
sensatez necessária para não arriscar a segurança da filha daquela maneira. Mas o homem estava demasiado cego pelas suas próprias ambições para conseguir ver o que
era melhor para a garota.
Pois bem, dependia de si ensinar Monsieur Lobo a ver como estava a ir por caminhos errados. Levaria Meg sã e salva de regresso à ilha Encantada, ainda que para isso
tivesse de arrebatar a garota nas barbas do pai.
Martin percorria o corredor em silêncio, protegendo a chama da vela da corrente de ar, quando todos os que residiam na casa há muito que estavam na cama. Não era
a primeira vez que deambulava pela casa enquanto o resto do mundo dormia. Desde os seus tempos de ladroagem em Paris até ter agido como agente do rei de Navarra,
muitos dos seus assuntos eram tratados a coberto do manto da escuridão.
Envergava o manto com o capuz atado ao pescoço, com a espada e a adaga presas no cinto, e preparava-se para sair furtivamente para um encontro a desoras com o seu
patrono. Mas não antes de ter verificado se todas as portas e janelas se encontravam devidamente trancadas e ir ao quarto da filha para ver se ela estava bem. Pela
terceira ou, talvez, quarta vez. Aquela irlandesa maluca, com todos os seus avisos da iminência de perigos terríveis, tinha alarmado Martin, muito mais do que ele
queria admitir.
Depois de abrir a porta da alcova de Meg sem fazer barulho, entrou em bicos de pés. A garota era como uma princesa que vivesse numa torre, com o quarto situado no
piso mais alto da casa. Martin havia sido forçado a endividar-se consideravelmente para mobilar a alcova com uma sumptuosidade régia, o teto estava orlado com molduras
douradas e as paredes forradas com um papel que tinha motivos heráldicos. Via-se um pano de arras que pendia num canto para proteger o quarto do vento que soprava
de norte, a pesada tapeçaria tecida com a criatura predileta de Meg, um dragão de um azul-esverdeado, com as asas ornamentadas com fios iridescentes.
A alcova estava atulhada com tudo o que um pai extremoso podia proporcionar à filha, baús cheios de bonitos vestidos, uma harpa dourada, uma caixa de costura a transbordar
de carrinhos de linhas de seda, prateleiras cheias de livros e uma pequena escrivaninha.
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Martin pousou o castiçal em cima da escrivaninha, cuja superfície estava bastante desarrumada, com tinta, calamos e pergaminhos de que Meg se servira para traduzir
uma passagem de latim para inglês. Dado que ele próprio nunca fora muito dado aos estudos, Martin sentia-se orgulhoso dos feitos académicos da filha, muito embora,
por vezes, a ânsia da sua mente em aprender o preocupasse.
As suas amigas, as irmãs Cheney, sem dúvida que o esfolariam vivo por pensar daquela maneira, mas Martin receava que nem sempre fosse uma coisa boa para uma mulher
ser demasiado inteligente. Certamente que a mãe de Meg não tinha beneficiado muito disso - Martin comprimiu os lábios, bloqueando todos os pensamentos relativos
a Cassandra Lascelles.
Aproximou-se mais do leito de Meg, tendo todo o cuidado para não a acordar quando abriu os panos de seda indiana que pendiam do dossel. A filha tinha uma aparência
tão frágil e pequena, uma mera criancinha aninhada no meio de um gigantesco colchão de pano riscado enchido com penas.
Sentiu alívio ao ver que ela dormia a sono solto, a fronte macia, sem rugas de inquietação. Martin tinha temido que os acontecimentos da tarde pudessem dar origem
a um dos sonhos maus da filha. Já havia muito tempo que Meg não era atormentada por nenhum dos seus pesadelos e Martin estava determinado a que essa situação se
mantivesse inalterável.
Ela tinha adormecido, como acontecia com muita frequência, a mexer no conteúdo da sua caixa dos tesouros, o pequeno baú com embutidos em madrepérola aberto no colchão
ao lado dela. Cuidadosamente, Martin tirou o baúzinho do leito, não fosse Meg virar-se e magoar-se durante o sono. Sorriu ao ver a diversidade de pequenos tesouros,
uma concha apanhada na praia em Dover, a pena de um pássaro, uma fiada de pérolas que ele lhe oferecera por ocasião do seu décimo aniversário, bem como um medalhão
oval bastante grande que lhe reavivou outras recordações.
Enrolando o fio de prata em volta de um dedo, tirou o medalhão do pequeno baú, deixando que pendesse à luz da vela. A superfície oval estava enfeitada com a imagem
de um lobo a uivar à Lua. O medalhão continha um engenhoso relógio em miniatura e uma gravação que dizia: "Teu até ao fim dos tempos."
Era um presente que tencionara oferecer a Miri Cheney, um prelúdio do que esperara vir a ser um noivado. Recordava-se vividamente da noite em que ficara a saber
que Miri já não o usava. Tinham estado a caminhar à luz do luar na margem do pequeno lago na quinta de Simon Aristide.
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"Guardei o medalhão", dissera Miri. "Tencionava devolvê-lo a próxima vez que nos encontrássemos."
"Não o aceitarei!", tinha-lhe gritado Martin. "O que é que se passa, minha Senhora da Lua? Depois de terdes roubado o meu coração, também quereis roubar-me todas
as minhas esperanças e sonhos?"
"Meu amigo muito querido", dissera-lhe Miri, tocando-lhe na face, os olhos plenos de tristeza e mágoa. Eu devia ter sabido há já vários anos que nunca poderia vir
a ser o que queríeis que eu fosse."
Ele próprio devia ter estado ciente de que aquilo aconteceria, refletiu Martin. Se não tivesse andado tão cego, teria visto que Miri jamais seria sua, que desde
há muito que ela estava apaixonada por Aristide.
Martin voltou a guardar o medalhão no bauzinho, fechando-o. A dor de perder Miri acabara por se atenuar, dando lugar a uma mágoa agridoce. Tinham-se separado bons
amigos e ela entregara o medalhão à filha dele no dia em que ele e Meg tinham partido para Inglaterra.
De vez em quando, às horas mais tardias da noite, quando a casa estava mergulhada num profundo silêncio e ele se mantinha sozinho de vigília à filha, era então que
sentia mais a falta de Miri. Mon Dieu, como ele tinha adorado essa mulher, ou assim acreditava.
Miri acusara-o muitas vezes de que a tratava como se ela fosse uma deusa distante, de a cortejar da mesma maneira como vivia a sua vida, como se fosse uma grande
aventura romântica. Era provável que ela tivesse razão. Por vezes, ele tinha tido a sensação de que não soubera o que significava amar verdadeiramente outro ser
humano até ter passado a ser pai.
Martin voltou a guardar o pequeno baú em cima de uma prateleira, após o que se abeirou de novo da cama de Meg. Aconchegou a coberta por cima do ombro magro e afastou
para trás uma madeixa de cabelo castanho sedoso.
Meg mexeu-se quando ele lhe tocou, aninhando mais a cabeça na almofada, e Martin sentiu-se invadido de um amor tão grande pela sua filha que era quase doloroso.
Nem sequer tinha tido conhecimento da existência de Meg durante os primeiros nove anos de vida dela, mas com que rapidez ela se entranhara no seu coração, até se
introduzir no seu próprio sangue e medula óssea. Martin amava-a tanto que se sentia atemorizado.
Se ele alguma vez a perdesse, sabia que enlouqueceria irremediavelmente. Talvez fosse um grande idiota, como Cat o acusara de ser por não acatar a advertência de
Ariane. Talvez devesse proceder com mais sensatez, agarrando em Meg e pondo-se em fuga. Mas para fazer o quê e ir para onde?
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Para a ilha Encantada com toda a sua estranha influência mística e o aliciamento dos conhecimentos da Antiguidade, além dos procedimentos das Filhas da Terra? A
magia, até mesmo na sua forma mais benevolente, poderia levar à escuridão e ao perigo. Martin tinha-se esforçado ao máximo para exorcizar tudo isso do mundo de Meg.
E quanto a, muito simplesmente, pegar em Meg e tentar desaparecer... Já infligira à filha o suficiente de uma existência de fugitiva quando chegaram a Inglaterra
e se juntou à companhia de teatro itinerante de mestre Roxburgh. Fizera os possíveis e impossíveis para proteger a inocência de Meg num mundo de tabernas ordinárias
e conversas licenciosas, muitas vezes obrigado a fugir de um vigário puritano determinado a manter a sua cidade livre de quaisquer influências perniciosas de atores
malandros. Perseguido por cães, guardas, corregedores de forquilhas em punho.
Uma existência tão estouvada talvez se adequasse na perfeição a Martin. Estava acostumado a isso. Tinha a sensação de ter passado a maior parte da sua vida a fugir
de, ou para, alguma coisa. Mas essa vida não era apropriada para a sua menina.
Não, pensou Martin, a linha dura do seu queixo a mostrar determinação. Trabalhara tão esforçadamente, arriscara tanto para poder assegurar um futuro melhor para
Meg, para agora, de um momento para o outro, deitar tudo a perder.
Só precisava de se manter mais vigilante, contratar mais um servo ou dois, homens robustos que patrulhassem o jardim e que vigiassem a casa. Além disso, tencionava
avisar Agatha Butterydoor de graves consequências se ela se atrevesse a voltar a sair de casa sozinha com Meg.
Haveria de conseguir levar os seus planos avante. Proporcionaria à filha a vida que ele próprio nunca tinha tido, segura, feliz e respeitável, ainda que para isso
tivesse de pôr a sua própria alma em perigo.
A boca de Martin esboçou um trejeito pesaroso ao pensar no homem que se preparava para encontrar naquela noite. Iria vender-se ao Diabo? Por vezes, Martin receava
já ter feito isso.
Inclinando-se para baixo, depositou um beijo ao de leve na fronte de Meg. Pegou no castiçal e saiu da alcova.
A figura que se ocultava atrás do pano de arras aguardou durante longos minutos, depois de Martin ter saído, antes de sair do seu esconderijo. Cat movimentava-se
tão silenciosamente quanto lhe era possível, a andar desajeitadamente com as botas de Martin, tendo calçado vários pares de meias num
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esforço vão para se ajustarem aos seus pés. Os calções dele ameaçavam cair-lhe até aos joelhos, por muito que apertasse o cordão na cintura, além disso era forçada
a arregaçar as mangas da camisa dele para impedir que lhe descaíssem para as mãos.
Não se podia dizer que fosse o género de vestuário que fizesse com que passasse despercebida, mas como não lhe foi possível encontrar as suas próprias roupas, teve
de se contentar com o que pôde encontrar quando invadiu o guarda-fatos de Martin. Usar o vestuário do homem dava-lhe a sensação de uma intimidade perturbadora, o
que se devia ao facto de ainda estar ligeiramente impregnado do cheiro almiscarado caracteristicamente masculino.
Porque Martin levara a vela consigo, a alcova estava mergulhada numa escuridão cerrada. Apenas com a luz do luar que entrava pela janela para se orientar, Catriona
bateu com a canela numa perna da escrivaninha.
Conteve uma imprecação e olhou ansiosamente para o leito. Meg mexeu-se e Cat ficou petrificada. Mas a garota limitou-se a virar-se para o outro lado, afundando-se
ainda mais sob as cobertas. Soltando a respiração, Cat baixou-se para massajar a canela, que lhe doía, sentindo-se grata por esse simples movimento já não fazer
com que sentisse a cabeça a andar à roda.
A tisana de Meg conseguira o efeito desejado, tal como ela lhe tinha dito que aconteceria. Sentindo-se muito melhor, Cat começara a ficar inquieta, deitada na cama
sem fazer nada. Depois de ter chegado à infeliz conclusão de que talvez fosse necessário raptar Meg, a fim de poder levá-la para a ilha Encantada, Catriona decidira
que, quanto mais cedo pusesse o seu plano em prática, melhor seria. Quando lhe pareceu que toda a gente dentro de casa dormia, saíra sorrateiramente da alcova de
Martin para examinar a casa e o que a circundava. O que tinha descoberto era um pouco desencorajador.
A casa de nome Anjo era uma numa correnteza de outras construções contíguas numa rua estreita. Uma rua que, decerto, estaria cheia de gente e de carroças durante
o dia. À noite era patrulhada. A própria Cat ouvira o guarda a anunciar a hora.
horas de uma noite amena. Tudo está bem."
Quanto às traseiras da casa, a Anjo tinha um pequeno jardim, mas era circundado por muros muito altos. Cat era forçada a reconhecer que Martin escolhera bem ao optar
por aquela casa para arrendar. Não seria nada fácil levar a filha sem que ninguém se apercebesse.
Cat tinha andado a examinar o piso de cima silenciosamente, à procura de um acesso para o telhado, quando foi surpreendida por Martin, o Lobo, o que a obrigou a
esconder-se atrás do pano de arras no quarto de Meg.
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Surpreendida por um homem? Cat franziu as sobrancelhas, pensando que era uma palavra nada apropriada para descrever os seus sentimentos em tumulto, ao ver Lobo inclinado
por cima da garota adormecida.
Catriona classificara-o como arrogante, um tratante emproado. Mas quando ele puxou a coberta para tapar Meg, a expressão no rosto dele era tão aberta e vulnerável
que sentiu alguma vergonha por estar a espiá-lo.
O semblante dele mostrara um misto de ternura, amor e receio que a tinha levado a remontar aos tempos em que o seu próprio pai a tinha aconchegado no leito. Recordava-se
de ter resmungado numa voz ensonada.
Não precisa de fazer isso, meu pai. Sei como aconchegar-me a mim própria, já não tenho medo do escuro. Não sou nenhuma mantinha."
"Ai de mim, não, não és", replicara o pai num tom de voz estranhamente melancólico. "Venho ver-te à noite mais para apaziguar os meus medos do que os teus."
"Os vossos medos, meu pai?" Cat tinha ficado a olhar admirada para o seu pai, um guerreiro destemido. "Mas de que é que o pai poderia ter medo?"
Tiernan dos Olhos Risonhos passara os nós dos dedos ásperos pela bochecha da filha.
"De te perder, minha menininha. És um tesouro tão grande que receio que numa noite escura os sidhe venham roubar-te, levando-te para longe de mim."
Os lábios de Cat curvaram-se num sorriso saudoso ao lembrar-se desse episódio. Os sidhe. Era inquestionável que Martin, o Lobo, tinha temores mais substanciais por
causa de Meg do que a preocupação de Tiernan com respeito à gente pequena poder levar a sua filha.
Esta noite só havia uma fada má a andar furtivamente pela casa, e essa era ela própria, pensou Cat com um sentimento de culpa. Ao olhar para a garota que dormia
tão inocentemente, abandonou todos os pensamentos de a raptar.
Não devido às dificuldades em levar a cabo um plano desses, por causa da disposição das divisões da casa, do muito movimento nas ruas ou em descobrir maneira de
encontrar Meg sozinha - Cat estava confiante de que seria capaz de superar todas essas dificuldades.
O que a levou a reconsiderar foi pensar naquela garotinha para quem o pai era tudo e por ter visto a expressão no rosto de Martin quando deu um beijo de boas-noites
à filha.
Por muito que ansiasse regressar à ilha Encantada e voltar para junto de Ariane, não roubaria a filha de ninguém. O que não lhe deixava outra alternativa que não
fosse continuar em Londres, protegendo Meg até conseguir persuadir Martin a mudar de ideias.
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Saindo em silêncio do quarto, Cat estendeu-se na soleira da porta, dando início à sua missão de vigilante.
Whitehall estendia-se por mais de nove hectares de Londres, uma cidadela dentro da cidade. O palácio era uma mistura fortuita de estilos arquitetónicos, uma imensidão
de mil e quinhentas divisões onde os cortesãos da rainha Isabel se aglomeravam, se batiam e teciam intrigas por migalhas dos favores reais.
Mas nem a rainha nem a corte se encontravam presentes, uma vez que Isabel preferia o seu palácio em Richmond durante os meses de verão. Enquanto Martin seguia a
sua escolta através do labirinto de corredores, os passos de ambos ecoavam no silêncio dos salões desertos. Muitas das paredes estavam despidas, as dispendiosas
tapeçarias removidas e retiradas com a rainha, mas alguns dos retratos a óleo continuavam nos seus lugares, em particular os do falecido rei, Henrique VIII. Era
como se Isabel estivesse determinada a não permitir que alguém se esquecesse de quem era filha.
O acompanhante de Martin era um jovem lacónico que parecia entediado, como se para ele escoltar homens de caráter duvidoso, que iam encontrar-se com o principal
secretário do reino a uma hora tão tardia, fosse uma tarefa rotineira, o que, muito provavelmente, seria o caso. Dizia-se que Sir Francis Walsingham empregava uma
legião de homens pouco recomendáveis e Martin receava que seria um deles.
O pajem deixou Martin à espera numa pequena antecâmara enquanto anunciava a sua chegada a Sir Francis. O pequeno aposento era ocupado por um escrivão que tinha uma
barba amarelada numa cara toda marcada pela varíola. Escrevia afanosamente com um cálamo e tinta num pergaminho. Olhou para cima com olhos cansados e raiados de
vermelho. Thomas Phelippes cumprimentou Martin com um pequeno acenar de cabeça antes de retomar o seu trabalho.
A taciturnidade de Phelippes não permitia que Martin fizesse outra coisa que não fosse andar de um lado para o outro, desejando estar noutro lugar qualquer que não
ali, de volta a casa para estar com a filha. Em tempos, o género de assuntos pouco claros entre si e Walsingham teriam sido como um vinho capitoso para Martin, mas
o seu apetite por intrigas daquela natureza começava a esmorecer.
"Agora somos pessoas respeitáveis", dissera a Meg, mas isso não correspondia à verdade e nunca seria enquanto ele continuasse a trabalhar para Walsingham
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em segredo. Esperava que as informações de que se inteirara recentemente fossem suficientes para pôr fim aos serviços que prestava ao secretário da rainha.
Entretanto, o pajem regressou para informar Martin de que Sir Walsingham o receberia de imediato. Martin acompanhou o jovem até um gabinete atulhado de livros. Dizia-se
que Sir Francis era fluente em, pelo menos, cinco outras línguas além da sua, o que era atestado pelos tomos que enchiam as prateleiras, escritos numa grande diversidade
de idiomas, sobre várias matérias.
Tinha livros de História, de direito, de política, sobre castelos e fortificações, além de tratados sobre treino militar e táticas de guerra. Também mantinha os
registos das despesas referentes às muitas propriedades e à corte da rainha.
Martin sentia a cabeça a latejar só de olhar para tudo aquilo. Eram muitas as vezes em que se perguntava como é que Sir Francis conseguia abranger toda aquela surpreendente
quantidade de pormenores e informações, para já não mencionar o armário fechado à chave, a única que existia de posse de Walsingham, que continha os documentos mais
secretos.
Mal se conseguia ver o homem sentado à sua mesa de trabalho, o tampo empilhado com cópias de tratados, correspondência de embaixadores, mapas e demais documentos
de toda a espécie.
Algures no meio daquela avalanche de papelada, Walsingham apunha o seu selo na carta que acabara de escrever. Concentrado naquela tarefa, mal olhou para Martin quando
este entrou no gabinete.
Walsingham era um homem de constituição magra, com um rosto comprido e estreito. A barba negra era pontiaguda e tinha uma compleição amarelenta e de um tom escuro,
o que levara a rainha a alcunhá-lo de "o Mouro". Sempre trajado de escuro e com simplicidade, podia ser fácil e erroneamente tomado por um escrivão e não pelo que
era, o principal secretário de Isabel e um poderoso membro do conselho privado da rainha.
Entregou a carta ao pajem, dando-lhe uma ordem.
- Certifica-te de que isto é despachado imediatamente.
Quando o jovem já saía apressadamente para cumprir a ordem, fez um gesto com que indicou a Martin que se aproximasse e se sentasse.
- Peço perdão pela demora, mestre Wolfe.
- Estou inteiramente ao vosso dispor, senhor secretário - disse Martin, esboçando uma vénia, refletindo que as suas palavras correspondiam mais à verdade do que
era seu desejo. - com certeza que eu não poderia esperar tomar precedência quando em questão está um assunto urgente de Estado.
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- Assuntos de Estado - repetiu Walsingham, fazendo uma careta. - Sim, de facto, existe sempre uma infindável quantidade desses assuntos. Ultimamente, tenho vindo
a ser assoberbado com cartas que me são remetidas por magistrados de todo o país, os quais se queixam de tumultos devido a esse infernal cometa.
- O cometa? - perguntou Martin, arqueando um sobrolho enquanto se instalava na cadeira em frente da mesa.
- Esse objeto ígneo que tem andado a pairar no firmamento desde o mês passado - replicou o secretário com secura. - Decerto que haveis reparado nisso.
- Seria impossível não ter reparado, mas sou capaz de encontrar problemas que cheguem aqui, na Terra, sem ter de me preocupar com uma perturbação celestial a um
milhão de milhas de distância.
- Infelizmente, sois uma das raras pessoas com bom senso suficiente para chegarem a essa conclusão. Eu diria que o resto da nação parece ter enlouquecido um pouco,
cidadãos em estado de pânico que pagam bom dinheiro a charlatões, junto de quem procuram amuletos protetores, pregadores que apregoam em esquinas de ruas o fim dos
tempos. Mais recentemente, recebi esta carta de um juiz da paz referente a um agitador em Surrey que tem andado a espalhar o alarme entre as gentes. - Walsingham
pegou numa folha de pergaminho, começando a ler.
"Este vagabundo de olhos de louco tem andado a originar muita agitação no meu distrito, ao pregar que o cometa é uma manifestação da ira do Todo-Poderoso, dizendo
que o orbe ígneo foi forjado de pecados da espécie humana que se elevam como um gás nocivo até aos céus."
- Deus nos valha - disse Martin rindo-se. - Se isso fosse verdade, seríamos infestados por cometas todos os dias de todos os anos.
- Precisamente. Mas, infelizmente, este louco conseguiu provocar uma enorme onda de histeria. O magistrado está a planear enforcá-lo. No entanto, eu recomendei-lhe
que o pobre louco fosse internado à força no Hospital de Saint Mary of Bethlehem para os loucos. Medida que porá cobro com a mesma eficácia à agitação por que é
responsável.
Encerrado em Bedlam, como o hospício era conhecido, para, muito possivelmente, nunca mais voltar a ver a luz do dia. Martin reprimiu um estremecimento, pensando
que teria preferido de longe ser enforcado.
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Walsingham atirou a carta do juiz para cima de uma pilha de outros documentos, esfregando os olhos. Existiam pessoas que se referiam ao secretário como o homem que
nunca dormia, no que Martin quase acreditava.
Havia algo de sobrenatural naquele homem de pele escura e de carnes secas que tinha tendência para guardar os seus pensamentos para si próprio numa corte conhecida
pelos seus mexericos e finura. Era frequente que Martin pensasse como Sir Francis devia destacar-se com a sua indumentária tão sombria entre todas as sedas de cores
garridas, jóias e peles dos cortesãos, qual corvo entre pavões.
Ou talvez, e mais provavelmente, ele se limitasse a passar despercebido em segundo plano, uma sombra silenciosa que não perdia pitada do que se passava em seu redor.
A observar e a esperar - era o que Walsingham fazia melhor.
Recostando-se na sua cadeira, sobrepôs as mãos diante das roupas escuras e fixou o olhar penetrante em Martin.
- A hora já vai adiantada, senhor Wolfe, e ainda tenho muitos assuntos que requerem a minha atenção. Portanto, vamos tratar do que vos trouxe aqui. O que é que tendes
a relatar-me? Boas informações, por fim, espero eu.
- Trago-vos informações. Mas não sei até que ponto é que as considerais como boas - replicou Martin. - O homem tem sido visto a frequentar a Estalagem Charrua, situada
perto da Taberna Temple, dando pelo nome de capitão Fortescue, e é um impostor como haveis suspeitado. Na verdade, é um padre de nome John Ballard.
- De verdade... - Walsingham inclinou-se para a frente com avidez. - Tendes a certeza disso?
- Assisti a uma missa celebrada por Ballard em casa de Sir Anthony Babington. - Um rito religioso que estava proibido e que podia mandar um homem para a prisão ou
ainda pior. Martin apressou-se a acrescentar:
- O que fiz apenas com o objetivo de estabelecer a minha bonafides na qualidade de pessoa não-conformista. Não foi assim tão difícil. Eu... - Martin calou-se ao
perceber que estava prestes a dizer que passara parte da sua juventude em Paris, entre frades, depois de ter sido abandonado nos degraus de Notre-Dame pela mãe.
Walsingham só sabia que Martin era um antigo agente do rei de Navarra. O seu caminho de vida cruzara-se com o do secretário Walsingham havia dois anos, quando Martin
se deslocou a Londres para angariar fundos muito necessários para o sitiado rei de Navarra.
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E isso era tudo o que Walsingham sabia da vida de Martin, que preferia que as coisas ficassem por aí. Não tinha o mínimo desejo de ter o secretário da rainha a esquadrinhar
aprofundadamente o seu passado, em especial as partes referentes à sua filha.
- Estou familiarizado quanto basta com as formas da antiga fé para poder passar por católico.
- De facto... - O semblante de Walsingham mantinha-se impassível e o seu tom de voz não deixava transparecer o que quer que fosse, mas o olhar de expressão perspicaz
nunca se desprendeu do rosto de Martin.
- Sofrivelmente -- adiantou Martin, encurvando os ombros e adotando uma postura de modéstia. - Mas não suficientemente bem para convencer Babington e o padre Ballard
a fazerem-me confidências.
"Consegui inteirar-me de mais ao andar furtivamente pela Estalagem Charrua durante uma noite. O jovem Babington e os amigos vão cear muitas vezes nesta estalagem
e nem sempre são cautelosos quando já beberam de mais.
Martin fez uma pausa, prosseguindo com o cenho carregado.
- Sem dúvida que existe uma conspiração para destronar a rainha Isabel, com vista a colocar no trono a prima de sua alteza, Maria Stuart, rainha dos escoceses. Ouvi
o Babington a perguntar ao padre Ballard se seria errado matar a rainha Isabel.
- Um assassino com consciência. Que admirável! - comentou Walsingham escarninho.
- O Ballard assegurou-lhe que não seria pecado. O papa declarou Isabel como herege, pelo que absolveria Babington. Apesar disso, ele pareceu-me avesso a agir nesse
sentido. Na verdade, apesar de tudo o que dizia desassombradamente, o Babington não me deu a impressão de constituir uma grande ameaça. É um jovem indeciso e cheio
de sonhos. Estou em crer que ele resolveu escrever pessoalmente à rainha dos escoceses, para lhe pedir que o abençoasse antes de ir mais longe.
Martin fez um trejeito desdenhoso.
- Como é que o jovem tolo pensa que conseguirá isso, é coisa que não sei. Toda a gente sabe que a rainha escocesa é vigiada muito de perto em Chartley, o que a impede
de receber qualquer mensagem vinda do exterior.
- Oh, a senhora receberá a sua missiva - retorquiu Walsingham com um raro sorriso, mas tão frio que gelou o sangue de Martin. - vou dar ordens para relaxarem a vigilância
para que ela possa receber essa missiva.
Martin olhou para Sir Francis perplexo.
- com vossa licença, senhor, mas não seria preferível que prendêsseis Babington e o seu padre de imediato? Não seria perigoso permitir que os inimigos da rainha
Isabel se correspondam e conspirem contra ela?
- Perigoso, mas necessário. - Walsingham não era um homem que primasse pela franqueza, sendo muito raro que se explicasse a quem quer que fosse, até mesmo à sua
soberana.
Surpreendeu Martin quando uniu as pontas dos dedos em forma de pirâmide e prosseguiu com uma expressão solene.
- Já lidei com muitas dessas conspirações de católicos contra sua majestade. No passado, sempre me apressei a agir, sem nunca cortar pela raiz o cerne perverso da
questão. Mas, desta feita, tenciono pôr fim a estas conspirações de uma vez por todas. Para poder fazer isso, tenho de armar uma cilada à própria Jezebel escocesa,
oferecendo à rainha Isabel provas irrefutáveis da culpa da sua prima.
Walsingham suspirou.
- Muito embora sua majestade possa ser tão astuta como qualquer homem que conheci até hoje, sob esse aspeto pensa muito como uma mulher. Não tem estômago para execuções,
em especial quando se trata de outra rainha ungida.
- Quem sabe se a rainha não terá boas razões para a sua relutância aventurou-se Martin a sugerir -, levando em consideração a morte tão trágica da mãe.
- Isso é coisa que não saberia dizer. A rainha nunca fala dessa mulher, a Bolena, o que só mostra uma grande sensatez. A sua legitimidade já foi posta em causa inúmeras
vezes, lembrando ao mundo que é a filha de uma mulher que foi decapitada sob a acusação de traição e adultério. Mas não obstante os fantasmas que possam assediá-la,
a rainha deve pôr de lado os seus sentimentos pessoais.
"Enquanto Maria Stuart viver, nem este reino nem tão-pouco Isabel estarão em segurança. Se eu conseguir uma carta escrita pelo punho da própria rainha dos escoceses
em que sancione a conspiração de Babington, nesse caso não restará outra alternativa a Isabel. Será forçada a levar a prima a tribunal e a dar a ordem de execução.
- Mas será Maria Stuart tão irresponsável ao ponto de responder a uma missiva de Babington? - perguntou Martin incrédulo.
- Estou convencido de que sim. Ela acredita que se encontra a salvo ao escrever as suas mensagens em código. Mas acontece que eu tenho um criptógrafo
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capaz de descodificar tudo e mais alguma coisa. A mulher nunca foi conhecida pela sua sensatez.
"E é assim que a rainha dos escoceses perderá a cabeça, por ter sido indiscreta", esteve Martin quase a acrescentar. "Pobre mulher tola." Mas pensou duas vezes antes
de abrir a boca. O que foi uma atitude bem-avisada porque Walsingham fitou-o com dureza.
- Ela vai ficar sem a cabeça por traição e conspiração com o objetivo de assassinar a nossa rainha, a nossa soberana.
- Hum... ámen a isso - retorquiu Martin. Isabel era uma monarca inteligente, mas ele não podia impedir-se de sentir alguma simpatia pela rainha escocesa, que havia
sido deposta. Parte francesa, Maria Stuart tinha sido casada com o rei de França, tendo enviuvado, ainda muito nova, no ano em que Martin nasceu.
Tinha crescido a ouvir muitas histórias românticas a respeito de la petite Marie. Nas tabernas de Paris continuavam a fazer-se brindes em honra de la
belle reine, se bem que já houvesse decorrido muito tempo desde a última vez em que Maria Stuart se tinha sentado num trono. Havia doze anos que era prisioneira
dos ingleses. Consequentemente, era compreensível que conspirasse para recuperar a sua liberdade.
Martin começou a bater com os dedos nos joelhos num gesto de inquietação, repreendendo-se pelos seus próprios pensamentos. Era possível que tivesse conseguido suprimir
o seu sotaque francês e anglicizado o seu nome, contudo receava que bem no fundo do coração continuasse a ser um francês de gema. A situação de conflito de Isabel
com os seus súbditos católicos, no que lhe dizia respeito, era um problema dos ingleses, tendo muito pouco ou nada a ver com ele.
Quanto a Walsingham, o secretário da rainha estava a entrar por terrenos perigosos de mais de uma maneira. A rainha Isabel era senhora de muito mau feitio e Martin
duvidava que ela agradecesse a Walsingham por estar a forçá-la a agir implacavelmente contra a prima, tal como não favoreceria ninguém que ajudasse o secretário
nas suas maquinações.
Todas aquelas conspirações e manipulações só poderiam acabar em sangue e lágrimas. Rolaria mais do que uma cabeça e Martin só queria distanciar-se o mais possível
daquele assunto. Consequentemente, sentiu-se muitíssimo aliviado com o que Walsingham disse a seguir.
- Haveis procedido muito bem, mestre Wolfe, mas tenho um homem ao meu serviço que estudou num seminário de jesuítas em Douai. Estou em crer que ele está mais bem
preparado para conseguir granjear a confiança de Babington e da rainha escocesa, desempenhando o papel de intermediário das cartas trocadas entre eles.
- Excelente - concordou Martin cheio de satisfação, levantando-se da cadeira. - Se já não precisais dos meus serviços, retiro-me...
- Nada de pressas, senhor. Sentai-vos. - Quando viu que Martin hesitava, Walsingham repetiu num tom de voz mais autoritário: - Sentai-vos! Cheguei à conclusão de
que o relatório que me haveis apresentado está incompleto.
- Não compreendo o que quereis dizer com isso - retorquiu Martin pouco à vontade, voltando a sentar-se na cadeira e receando saber o que viria a seguir, perguntas
que esperara poder evitar.
Walsingham observava Martin por entre olhos semicerrados.
- Na nossa conversa a respeito de todas essas atividades de traição, reparei que não mencionastes o vosso jovem amigo, Lorde Oxbridge.
- Isso por não haver nada a relatar - replicou Martin com frieza. Walsingham ficou de cenho carregado, os sobrolhos unidos numa atitude de desagrado.
- Não gastei tanto dinheiro para vos instalar na casa em que viveis, a fim de vos proporcionar uma fachada respeitável, para agora vos limitardes a andar pelas tabernas.
A vossa principal incumbência, para o caso de já vos terdes esquecido, era que vos insinuásseis nas boas graças desse nobre, a fim de descobrirdes até que ponto
é que ele talvez já tenha ido nesta traição contra a rainha.
- E foi o que fiz - retorquiu Martin com um traço de aspereza.
- Admito que Ned, quero dizer, Lorde Oxbridge, por vezes, é irresponsável e pouco sensato, aliás, como qualquer jovem de vinte anos pode ser. Mas apesar de ele ser
um católico, não existe nada que sugira que ele não seja leal à rainha. Posso garantir-vos que não descobri qualquer relação entre ele e a conspiração chefiada por
Babington.
- Talvez não tenhais procurado com o necessário afinco.
- O que é que quereis dizer com isso?
- O que quero dizer é que talvez não vos seja conveniente que o homem que vos ajudou a fundar o vosso precioso teatro seja culpado de traição.
- Na verdade, não foi o dinheiro de Oxbridge que pagou a construção do Crown, mas sim o da irmã. - Martin arrependeu-se das suas palavras
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assim que lhe saíram da boca, porque Walsingham pegou-lhe nelas como um cão agarrado a um osso.
- Ah! Portanto, chegámos ao fulcro da questão, Ladyjane Danvers. Diz-se que é uma mulher encantadora.
Martin encolheu os ombros, numa tentativa para aparentar indiferença.
- Eu diria que é bastante donairosa.
- Além de ser uma viúva endinheirada, ainda suficientemente jovem para querer um novo marido no seu leito.
- Não faço ideia do que a senhora deseja. Eu nunca me atreveria a erguer o meu humilde olhar para a irmã de um lorde.
- Ora, ora, está-me a parecer que há muito pouca coisa a que não vos atreveríeis, mestre Wolfe.
Martin agitou-se constrangido. Dizia-se que Walsingham tinha um olhar capaz de pôr a nu a alma de qualquer homem e naquele momento perscrutava Martin minuciosamente,
o que lhe causava mal-estar.
Ultimamente, os seus pensamentos haviam-se perdido em Lady Danvers com mais frequência do que deviam. Era uma mulher dócil e delicada que, por vezes, era um pouco
solene de mais para o gosto de Martin. Mas não conseguia evitar pensar em como o matrimónio com aquela senhora lhe traria fortuna, além de que Jane seria uma boa
mãe para Meg.
Walsingham continuava a fitar Martin por entre olhos semicerrados. O secretário da rainha era perito em brandir o silêncio como uma arma, sendo frequente que acicatasse
outro homem a um discurso pouco judicioso.
Quando Martin se recusou a ser engodado, Walsingham retomou a palavra.
- Estamos a viver uma época única aqui, em Inglaterra, circunstâncias em que um homem ambicioso e com determinadas faculdades pode guindar-se a uma posição muito
mais elevada do que a que o seu pai teve. Pois bem, pareceis-me um homem desses, senhor Wolfe. Além disso, considero que sois bastante mais perigoso.
- E porque é que considerais isso?
- Um homem que não reconhece a autoridade de ninguém, que nada o prende a ninguém e que não é leal a quem quer que seja.
- Que estranho - retorquiu Martin numa voz arrastada. - Eu tinha a peculiar impressão de que estava ligado ao vosso serviço inquebrantavelmente, senhor secretário.
- É inegável que aceitais o meu dinheiro e que levais a cabo as incumbências de que vos encarrego, no entanto nunca fui tolo ao ponto de me
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considerar vosso amo. Não obstante trabalhardes para mim há seis meses, pouco mais sei a vosso respeito do que sabia ao princípio.
- Posso dizer a mesma coisa com referência a vós, senhor - ripostou Martin. - Tendes a reputação de ser um homem que diz muito pouco, mas que vê tudo.
- Enquanto vós sois um homem que fala muito, mas que não revela nada. Nem sequer tenho a certeza absoluta de quais são as vossas convicções religiosas.
- Assisto às cerimónias religiosas protestantes com regularidade todos os domingos.
- À semelhança de muitos outros homens, quanto mais não seja para evitarem as multas impostas aos que se abstêm.
- A minha relação com o Todo-Poderoso não tem nada de complicado - retorquiu Martin com um sorriso. - Quando eu era rapaz, Deus falou comigo e disse-me: "Martin,
meu rapaz, tenho coisas muito mais importantes com que me preocupar do que contigo, portanto, o melhor que tens a fazer é olhares por ti próprio."
Walsingham soltou uma risada que soou a falso, mas Martin pôde ver que tinha ofendido o austero puritano com a sua blasfémia. Adotou uma atitude mais circunspecta
quando prosseguiu.
- Quanto a este conflito entre católicos e protestantes, tive oportunidade de ver com os meus próprios olhos o sofrimento e as desgraças que causa. Desde há vários
anos que a França é devastada pela guerra civil: homens, mulheres e crianças cruelmente chacinados. E tudo isto em nome de quê? Estou em crer que a vossa rainha
pôs a questão da melhor maneira. Não foi ela quem disse: "Só existe um Jesus Cristo; o resto são disputas por causa de ninharias"? Tenho tendência a concordar com
ela.
- E não obstante, em tempos, haveis servido o rei de Navarra, um protestante - retorquiu Walsingham, à espera que ele dissesse mais.
- Porque eu gostava verdadeiramente do homem e ele fez com que eu não tivesse perdido o meu tempo.
- E é precisamente isso que me preocupa a vosso respeito. Que o afeto que tendes pela irmã de Lorde Oxbridge, bem como pela sua bolsa, tenha feito com que sejais
menos zeloso nas vossas investigações relativas a Lorde Oxbridge.
Martin soltou um suspiro de exasperação.
- O que é que vos leva a ter tanta certeza de que Oxbridge tem propensão para a traição?
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- Já vos expliquei as minhas razões. Os Lambert são uma das últimas grandes famílias católicas do Norte. Infelizmente, têm um historial de rebelião contra a coroa.
O avô do atual lorde acabou com a cabeça espetada numa estaca no cimo da Torre de Londres. Muito plausivelmente, o pai teria tido o mesmo destino se não tivesse
caído do cavalo e partido o pescoço enquanto fugia à justiça.
- Mas fostes vós quem me afirmou que esta é uma nova época em Inglaterra. Que um homem não tinha, necessariamente, de ser como o pai foi.
Walsingham mostrou-se exasperado por ver as suas próprias palavras usadas contra si.
- Também tenho outras razões. Oxbridge e a irmã foram criados pelo conde de Shrewsbury quando Sir Anthony Babington era um pajem nessa casa nobre. Viveram todos
sob o mesmo teto durante o período em que o conde teve a tutela da rainha dos escoceses.
- Mera coincidência - ripostou Martin escarnecedor. - Só porque se conheceram antigamente, tal não quer dizer que continuem a relacionar-se. Não vi nada que possa
indicar que tanto Lorde Oxbridge como a irmã...
- Nesse caso, sugiro que olheis mais de perto, senhor! - ripostou Walsingham desabrido. - Não vá eu ser forçado a empregar outra pessoa para examinar a fundo a medida
da lealdade do barão, bem como a vossa, Monsieur Lobo.
Martin couraçou-se para não mostrar o quanto aquela ameaça o deixara abalado.
- Farei o meu melhor.
- E isso é tudo o que pretendo. E agora tenho a certeza de que estais ansioso por voltar para junto da vossa filha. - O secretário da rainha levantou-se para acompanhar
Martin até à porta. - E como é que a jovem Margaret tem passado?
- Ela tem passado bem - replicou Martin cautelosamente, examinando Walsingham, tentando descortinar se havia alguma espécie de ameaça subjacente à pergunta.
Mas havia algo que tinha suavizado a expressão habitualmente de frieza nos olhos de Sir Francis.
- Já passaram seis verões desde que perdi a minha filha mais nova, a minha pequena Mary. Ela agora está com Deus. Deveis dar muito valor aos dias que passais com
a vossa filha, mestre Wolfe. Muitas vezes, os nossos filhos
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são-nos emprestados por um período de tempo demasiado breve. E, no fim, não são os reinos nem o poder que importam. O mais importante é Deus e a família.
O secretário da rainha falava despretensiosamente, sem um palavreado pio, mas sim diretamente do coração. E, por uns momentos, era como se fossem dois homens comuns,
um pai a conversar com outro.
Mas depois a máscara de Walsingham voltou a ocupar o seu lugar.
- Estais a pensar visitar Lorde Oxbridge e a irmã dentro de pouco tempo?
Martin fez um acenar de cabeça afirmativo com relutância.
- Foi-me concedida a honra de um convite para um grande banquete que terá lugar na Casa Strand amanhã à noite. Espera-se que a rainha nos agracie com a sua presença.
- Não se eu conseguir dissuadi-la. Levando em linha de conta todas essas conspirações que andam no ar, não me parece que esta seja a melhor altura para sua majestade
cear nas casas de não-conformistas conhecidos.
Walsingham pousou a mão num ombro de Martin.
- Ajudai-me a abortar esta conspiração contra a minha rainha e certificar-me-ei de que sejais recompensado generosamente. É possível comprar um brasão e respeitabilidade.
Não existe necessidade nenhuma de cortejar o perigo ao romancear uma mulher cuja família pode estar envolvida em atos de traição. Se me servirdes bem, podereis guindar-vos
a grandes alturas. Mas deveis ter em mente que, quanto mais alto se estiver, maior é a queda. Boas noites, senhor.
Desta feita, Martin não teve a mínima dificuldade em aperceber-se da ameaça.
Assim que Wolfe saiu, Phelippes entrou no gabinete. O escrivão fez um gesto com a cabeça, indicando a porta.
- Confiais inteiramente naquele francês, senhor?
- Tanto quanto confio em qualquer de vós - respondeu Walsingham. - Cheguei à conclusão de que são muito raros os homens que não é preciso manter debaixo de olho.
Como é que a tradução está a correr?
- Bastante razoavelmente. Pelo menos, a maior parte. - Phelippes coçou a barba. - Eu tinha a certeza de ter conseguido descodificar o código, mas parte desta mensagem
está redigida de uma maneira muito estranha, pelo que não tenho a certeza de que isto esteja certo.
- Tenho a certeza de que estais a interpretá-la bem. Sois o melhor criptógrafo que alguma vez tive ao meu serviço. Quem é que escreveu a carta?
- Foi remetida pelo administrador em Paris da rainha dos escoceses, Thomas Morgan.
Havia vários anos que Thomas Morgan representava os interesses de Maria Stuart, envidando esforços para a sua libertação e para granjear apoio para uma invasão francesa,
com o objetivo de a libertar e de a instalar no trono de Inglaterra. A fim de manter boas relações com Inglaterra, o rei de França, finalmente, tinha sido persuadido
a prender o homem. No entanto, Henrique III mostrara-se relutante em entregar Morgan ao governo inglês.
Morgan encontrava-se encarcerado na Bastilha, mas era inquestionável que isso não o impedira de dar continuidade às suas atividades em nome da sua soberana em cativeiro.
- O que é que a carta de Morgan tem que tanto vos perturba? - perguntou Walsingham.
- Ele recomenda Babington a Maria Stuart como um homem em que se pode confiar.
- O que nos serve às mil maravilhas.
- Mas o resto é que é deveras estranho. O Morgan considera que todos os meios devem ser usados para libertar Maria Stuart. Incluindo o recurso à bruxaria.
- O quê!? - Walsingham estendeu a mão para o pergaminho, começando a ler a tradução de Phelippes.
"E embora vossa majestade seja uma senhora muito religiosa, devo implorar-vos que considereis que até mesmo as forças da magia negra podem ser empregadas para levar
a bom porto uma causa sagrada. Ouvi rumores a respeito de uma poderosa feiticeira que vive em Inglaterra e cujas competências poderão ser canalizadas com vista à
vossa libertação..."
Walsingham ficou com uma expressão carrancuda.
- Está a parecer-me que o senhor Morgan já está encarcerado há demasiado tempo. Está a ficar avariado do juízo.
- Não acreditais em bruxaria?
- Se eu acreditasse em magia e em superstições seria um papista. No entanto, os que perfilham tais crenças perigosas podem causar muito mal. Não podemos ignorar
ameaças nenhumas, por muito inacreditáveis que nos possam parecer.
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- Nesse caso, o que é que desejais que eu faça, senhor? Walsingham massajou a têmpora enquanto refletia antes de dar as suas ordens.
- Voltai a selar a carta e tratai de a fazer chegar à rainha dos escoceses, juntamente com a correspondência do embaixador francês. Eu próprio vou escrever aos nossos
agentes em Paris para lhes dar as minhas instruções no sentido de descobrirem mais acerca dessa bruxa. Como é que ela se chama? - Sir Francis voltou a passar uma
vista de olhos pelo pergaminho com a tradução. "Rosa de Prata."
Cat aninhou-se no lado de fora da porta da alcova de Meg, a luz da manhã a incidir suavemente no seu rosto, seduzindo-a com recordações muito agradáveis da estação
do ano em que se procedia à transumância na sua Irlanda. com a cabeça deitada em cima do braço, sonhou que estava deitada por baixo de um telheiro feito de verga,
a dormitar numa cama de musgo e juncos. Conseguia ouvir o mugir do gado na pastagem de verão e os passos suaves da avó que lhe levava um belo pequeno-almoço de pão
escuro barrado com manteiga.
Mas não foi a voz melodiosa da avó que despertou Cat, mas sim um grito agudo capaz de furar os tímpanos de qualquer pessoa, como o grito de uma fada que pressagiasse
a morte de alguém.
- Bruxa papista! Mulher demoníaca irlandesa!
Os olhos de Cat abriram-se de repente. Os seus instintos de guerreira entraram de imediato em ação, rolando sobre si mesma para evitar o pesado cajado que ameaçava
esmagar-lhe o crânio. Pondo-se de pé atabalhoadamente, Cat deu consigo sitiada. Não só por Agatha Butterydoor, mas também por uma criada da casa escanzelada que
estava armada com uma vassoura.
Cat levantou os braços para se proteger das pancadas.
- Mas o que diabo! Endoideceste, velha? Pára com isso... au! - Cat soltou um gemido quando o cajado a atingiu no cotovelo. Contorceu-se para se afastar de Agatha,
agarrou no cabo da vassoura e puxou-o para o tirar das mãos da criada.
Agarrando a vassoura com as duas mãos, Cat começou a desferi-la como se fosse um bordão, aparando os golpes selváticos de Agatha. A criada aterrorizada refugiou-se
atrás das saias pretas da idosa, começando a berrar a plenos pulmões.
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- Quereis fazer o favor de parar com isso? - ripostou Cat entre bordoadas e com os dentes cerrados. - E tu pára com essa chinfrineira antes que acordes a garota!
A arfar, com os seios descaídos e o peito a soerguer-se rapidamente, Agatha retrocedeu alguns passos pelo corredor.
- Rezo para que a minha bonequinha ainda possa ser acordada. O que é que lhe fizeste, malvada!
- Nada, velha idiota!
- Maude! Corre até lá abaixo e chama o amo para que venha cá acima - ordenou Agatha à criada amedrontada, mas foi uma ordem desnecessária. Martin, o Lobo, já vinha
a subir as escadas apressadamente de espada em punho. Estava descalço e com as pernas nuas, vestia apenas uma camisa branca que lhe dava pelo meio das coxas. com
uns olhos que espelhavam uma expressão de desvario, de tão alarmado que estava, parecia um homem que tivesse sido acordado rudemente do seu sono, o cabelo escuro
todo despenteado e caído para a cara, misturando-se com a barba.
- O que é que aconteceu? - perguntou numa voz exaltada, subindo os degraus a dois e dois. - É a Meg? Houve alguém que...
Interrompeu-se, detendo-se no cimo das escadas. Pestanejou quando viu o que se estava a passar. Começou por Catriona, vestida com as suas roupas, e depois olhou
para a idosa, que tinha a criada agarrada às suas saias enquanto fungava.
- Mas o que diabo é que se passa aqui?
- Oh, meu amo, eu bem vos avisei! - gritou Agatha. - Esta bruxa irlandesa andava a rondar por aqui...
- Não estava a fazer nada disso, mulher estúpida - interrompeu Cat.
- Andava a rondar e a maquinar a maneira de nos roubar e matar a todos.
- Eu estava a dormir, grande idiota estuporada...
- ... e o meu maior receio é que ela já tenha devorado a nossa menina - continuou a idosa com olhos que brilhavam de lágrimas. - Porque ela...
- Oh, por amor de Deus! Mulher, tens a inteligência de uma pulga.
- Caladas! - berrou Martin, olhando para Catriona com uma expressão de tanta fúria que até mesmo esta obedeceu. Passando a mão pelo cabelo desgrenhado, interpôs-se
entre Cat e a senhora Butterydoor. Serviu-se da superfície plana da lâmina da espada para obrigar a velha a baixar o cajado.
- E agora haja alguém que faça o favor de me explicar o que é que se passa, uma de cada vez - apressou-se a acrescentar quando Cat e Agatha respiraram fundo. - Primeiro
a senhora Butterydoor.
- Pois bem, meu amo, a pobre Maude estava a fazer as tarefas da manhã quando avistou a perigosa papista estendida diante da porta da alcova da menina Meg. Ela pregou
um susto de morte à rapariga, que desatou a correr pelas escadas abaixo para me chamar. Mas não conseguiu encontrar-me de imediato porque eu estava no jardim...
- Sim, obrigado - atalhou Martin. - Tenho a certeza de que a menina Catriona OHanlon tem uma explicação plausível. - Apesar da sua figura desalinhada, Martin conseguiu
arquear o sobrolho com aquela sua expressão de frieza que era tão exasperante.
- Eu já disse o que tinha a dizer - disse Cat com cara de poucos amigos. - Estava a dormir.
- E o que é que não vos agradou no leito que vos proporcionei?
- Nada, exceto ser muito afastado da alcova de Meg. Limitei-me a cumprir as ordens que a Ariane me deu. Velar pela segurança da vossa filha.
Martin franziu as sobrancelhas numa atitude de perplexidade, momentaneamente sem fala. Cat aproveitou o silêncio dele para dizer a Agatha numa voz rosnada:
- E não sou nenhuma papista.
- Aí tendes, senhora Butterydoor, como ouvistes... - começou Martin a dizer, mas Cat espreitou em volta dele para a idosa, informando-a com uma satisfação perversa:
- Nunca fui batizada segundo o rito cristão. Sigo as maneiras antigas, honrando apenas a boa Terra-Mãe. - A declaração de Catriona fez com que a idosa e a criada
recomeçassem a gritar.
- Uma herege! Deus nos acuda a todos!
Martin agarrou-se à cabeça e gemeu quando a porta da alcova de Meg se abriu. Todos se imobilizaram quando a garota deu um passo a medo para o corredor, as sobrancelhas
unidas numa expressão de consternação.
- Paizinho? Porque é que toda a gente está a gritar?
- Não é nada, Meggie. - Martin baixou o olhar e corou, parecendo que só agora é que se apercebia de como só estava parcialmente vestido.
- É só uma pequena discussão doméstica. O pai trata do assunto. Deixa-te... deixa-te estar no teu quarto.
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com suavidade, empurrou Meg para dentro da alcova, fechando a porta, a que se encostou. Quando o fez, a camisa abriu-se ainda mais no pescoço, revelando uma parte
do peito coberto de pelos escuros.
Cat não foi capaz de evitar olhar, os olhos a prenderem-se naquele peito viril, descendo até às barrigas das pernas robustas e ao que conseguia ver das coxas bem
musculadas. Apercebeu-se de que não era a única a olhar embasbacada. A senhora Butterydoor olhava de boca aberta para o seu amo, enquanto a criadinha esticava o
pescoço em volta da velha anafada para poder ver melhor.
Martin ficou com um semblante carrancudo, ajeitando a camisa. Desencostou-se da porta com uma dignidade assombrosa para um homem quase nu e que era atentamente observado
pelas três mulheres.
- Minhas senhoras, ainda é demasiado cedo para um homem ser incomodado com cenas de histerismo. Maude, vai tratar das tuas tarefas. Senhora Butterydoor, ide buscar
umas fatias de pão com mel para a Meg e água quente para ela se lavar, agora que já acordaram a pobre garota,
"Quanto a vós... - olhou para Cat com uma expressão sombria. - Vinde comigo. - Sem esperar para ver se ela acatava o que lhe dizia, Martin encaminhou-se para as
escadas. A criada que fora repreendida limpou as lágrimas das bochechas e até mesmo a mal-humorada Agatha se preparou para obedecer.
Cat foi a única a recalcitrar, pouco habituada a receber ordens de um homem. No entanto, sentia-se humilhada por Martin a ter apanhado no meio de uma questiúncula
tão ridícula. Numa atitude desdenhosa, atirou a vassoura para o chão, diante da criada que tremia, antes de seguir Martin pelas escadas abaixo.
Caminhava atrás dele tão bem quanto lhe era possível calçada com umas botas demasiado grandes para os seus pés, resmungando.
- É possível que eu seja muitas coisas, Wolfe. Mas não sou a perturbação doméstica de nenhum homem.
- Aquilo que sois é o caos na sua expressão mais pura. Um desastre na iminência de acontecer. - Abrindo a porta à esquerda das escadas, com um gesto da cabeça, Martin
indicou-lhe que entrasse à sua frente.
Cat passou bruscamente por ele, entrando num pequeno gabinete singelamente mobilado, com as paredes revestidas a painéis entalhados. Era, obviamente, onde Martin
passara o resto da noite, o que ela deduziu ao ver uma cama improvisada com almofadas e cobertores junto da lareira.
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Martin fechou a porta e passou pelos cobertores amontoados até onde tinha deixado as bragas.
Equilibrando-se sobre uma perna, enfiou a outra no tecido de lã escura. Como uma donzela recatada, Cat supunha que devia ter desviado o olhar. Mas havia muito tempo
que ela deixara de ser uma donzela cheia de pudor.
Pôs-se a olhar, vendo de relance umas nádegas planas e firmes quando ele puxou as bragas por cima dos quadris. Só quando Martin a apanhou a fitá-lo com fixidez é
que ela, ainda que relutantemente, desviou o olhar.
Enquanto ele ajeitava a fralda da camisa em volta das suas partes privadas e abotoava as bragas, Catriona observava o tampo polido da escrivaninha e a estante. As
prateleiras estavam vazias, excetuando alguns livros que davam a impressão de estarem a acumular teias de aranha. Cat calculou que teriam sido deixados pelo anterior
locatário da casa. Martin não lhe parecia ser homem que se dedicasse ao estudo ou à contemplação meditativa.
Sentindo-se curiosa, aproximou-se para ver os títulos dos livros abandonados, mas o cano de uma bota que lhe estava larga dobrou-se à altura do tornozelo. Tropeçou
e foi por pouco que não torceu o tornozelo.
- Maldição!
Quando Martin a olhou com uma expressão inquisitiva, Cat queixou-se.
- São as vossas malditas botas. São demasiado grandes. Teria sido mais acertado andar descalça.
- Mas que desconsideração da minha parte não ter mandado fazer as botas do tamanho dos seus delicados pezinhos - retorquiu ele numa voz arrastada de troça. - Lembrai-me
para falar com o meu sapateiro a esse respeito. - Deixou-se cair na cadeira atrás da escrivaninha e começou a calçar as meias. - Quereis ter a bondade de começar
por me dizer o que diabo é que fostes fazer ao meu guarda-fatos sem minha autorização?
- Não me deixastes outra alternativa. Não depois de me terdes tirado as minhas roupas.
- Entreguei as vossas coisas à lavadeira para que fossem lavadas e cosidas. Se tivésseis ficado na cama a repousar, como devíeis ter feito, a falta do vosso vestuário
não teria constituído problema. Quereis fazer-me o favor de...? - Martin indicou outro par de botas deixadas junto da lareira, mais usadas do que as que Cat calçara.
Esta olhou-o com cara de poucos amigos, mas foi-lhe buscar as botas. Quando pegou nas botas que já tinham visto melhores dias, reparou no que lhe pareceu ser lama
fresca nos tacões. Também viu lama na orla de um
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manto que fora atirado para cima de um banco descuidadamente. Era o mesmo manto que ele usara quando foi ver Meg à alcova da filha na noite anterior.
Cat franziu a testa. O significado da indumentária de Martin devia ter-lhe despertado a atenção muito antes. Ele tinha saído de casa depois de ter aconchegado Meg
na cama. Mas que razão é que o homem teria para se aventurar a sair de casa a uma hora tão tardia da noite, numa cidade tão perigosa como Londres? Para jogar? Para
andar na pândega? Para frequentar meretrizes?
Cat seria capaz de imaginar facilmente que Martin se entregasse a esse género de passatempos, não fosse um senão - a atitude terna e protetora como se mantivera
junto da filha. Era possível que fosse um tratante, mas Catriona duvidava de que Martin se arriscasse a deixar Meg durante a noite, a menos que tivesse uma razão
imperativa. Mas que diabo de razão poderia ser essa?
- Hum... Mistress Catriona OHanlon? Cat?
A voz de Martin despertou-a da contemplação das botas dele, que lhe falou com toda a cortesia e numa voz aveludada.
- É claro que estou inteiramente ao vosso dispor, milady. Podeis devolver-me as botas quando muito bem vos aprouver. Mas se tiverdes a bondade de o fazer antes de
eu envelhecer, isso seria ótimo. Agradeço-vos do fundo do coração - acrescentou quando ela pousou as botas diante dele.
- A minha mentora não me mandou cá para ser o vosso criado de quarto - ripostou Cat taciturna.
- A vossa mentora?
- A Ariane faz-me a honra de me considerar a sua guerreira irlandesa. Martin ficou embatocado, esforçando-se por ocultar o riso, mas rindo-se à socapa enquanto calçava
as botas.
- Um destes dias, Wolfe - acrescentou Cat desabrida, cerrando os punhos com força -, a vossa tendência para vos rirdes de mim fará com que fiqueis com a cabeça partida.
- Eu não estava a rir-me de vós. Mas a noção de a Senhora da Ilha Encantada, epítome da paz e da graciosidade feminina, ser a mentora de alguém e contratar os serviços
de uma mercenária irlandesa, é absolutamente descabida.
- Eu já vos disse. Estou ao serviço de Ariane por amor e não por dinheiro. E há muito tempo que a Senhora da Ilha Encantada não tem paz e sossego, tal como ninguém.
Vivemos em tempos perigosos.
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- Sim, é verdade - corroborou Martin, o sorriso a desaparecer-lhe dos lábios. Acabou de calçar as botas e pôs-se de pé. - E dadas as circunstâncias, e como me pareceis
completamente recuperada, é preferível que enceteis a jornada de regresso para junto da vossa mentora e o mais depressa possível.
- Não tenho quaisquer planos de ir aonde quer que seja sem vós e a menina.
- Estou em crer que esse assunto ficou resolvido ontem.
- Tudo o que ficou resolvido foi o como sois obstinado. Até mudardes de ideias quanto a levar a Meg para a ilha Encantada, tenciono continuar aqui para a proteger.
- Não quero que penseis que não me sinto grato pela vossa atitude e pelo prazer da vossa presença. Tenho de dizer que não me divertia tanto desde a minha última
crise de disenteria, mas estou em crer que é melhor que aproveiteis a próxima maré para vos fazerdes ao mar, Mistress Catriona OHanlon.
- Não - replicou Cat determinadamente, cruzando os braços diante do peito.
- Não? - O sorriso de Martin era tão suave como a sua voz, mas os olhos brilhavam perigosamente quando contornou a escrivaninha, encaminhando-se para ela.
Cat abriu as pernas, firmando os calcanhares.
- Estais enganado ao pensar que me sinto intimidada. Haveis tentado isso ontem no teatro e acabastes de traseiro no chão, com a ponta da minha espada encostada à
vossa garganta. Oh, suponho que podíeis tentar pôr-me fora de vossa casa e na rua. Para o que precisaríeis de meia dúzia de homens além de vós. Mas isso não me impediria
de voltar e acampar na soleira da vossa porta se tal fosse necessário.
- Deus nos valha, mulher! Eu nem sequer trataria um cão com tanta descortesia, quanto mais uma amiga da Senhora da Ilha Encantada. Mas a verdade é que não existe
a mínima necessidade de continuardes aqui.
- Sim, existe, desde que continueis a persistir na loucura que é a vossa permanência em Londres. Se a irmandade das bruxas ou a Rainha das Trevas surgirem com o
intuito de capturarem Meg, ireis precisar de mim. Quem é que tendes que possa cuidar dela? Essa velha ignorante com o seu cajado? Uma criada armada com o cabo de
uma vassoura? Enquanto eu, tal como decerto já haveis reparado, sou bastante razoável no manejo da espada.
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- Mais do que razoável - admitiu Martin para surpresa de Cat.
- E protegerei a vossa filha como protegeria a minha própria mentora. Defenderei a Meg com a minha própria vida.
Martin perscrutou-lhe os olhos atentamente. Houve algo que se suavizou nas feições dele quando passou as pontas dos dedos pelo hematoma que ela tinha na fronte e
que Cat continuava a sentir ligeiramente dorida.
- com a breca! Acredito que faríeis o que estais a dizer - murmurou Martin. - Mas não é aí que reside a questão. Ainda não há vinte e quatro horas que estais em
minha casa e já causastes um enorme rebuliço, para não mencionar o facto de terdes vestido os meus calções.
- Para resolver isso, só tendes de mandar um dos vossos servos à Estalagem Galo Lutador para trazer as minhas coisas. Assim já poderei vestir os meus próprios calções.
- Na verdade, ontem à noite mandei o Jem para que fizesse isso mesmo. - Houve qualquer coisa na maneira como Martin evitou o olhar de Cat que lhe causou alguma desconfiança.
- Nesse caso, o que é feito do meu alforge? Martin fez uma careta e respondeu-lhe:
- As vossas coisas desapareceram.
- O quê!? - O coração de Cat deu um solavanco. - Mas o que diabo é que quereis dizer com desapareceu?
- Ao que tudo indica, houve alguém que levou as vossas coisas.
- Levaram tudo?
- Receio ter de dizer que sim.
- Todas as minhas roupas? O meu gibão, as bragas e... e as minhas botas? - Cat começou a andar de um lado para o outro, a cólera e a perturbação a aumentarem a cada
passo que dava. - O meu alforge e todo o meu dinheiro? Exceto o dinheiro de que precisei para comprar o ingresso no teatro, deixei o resto escondido dentro de uma
meia.
- Não se pode dizer que essa tenha sido uma boa ideia.
- Pareceu-me mais seguro do que trazer o dinheiro comigo, correndo o risco de ser roubada por salteadores ou... ou carteiristas.
- Mais seguro na Galo Lutador? - retorquiu Martin revirando os olhos. - Não se pode dizer que seja a estalagem que goze da melhor reputação.
- Onde diabo é que pensais que eu pudesse ter-me alojado? Os melhores estabelecimentos nunca alojariam uma mulher que viaje sozinha, sem um
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marido ou acompanhada de uma criada. Especialmente uma irlandesa. Tive muita sorte em não me terem alojado no chiqueiro dos suínos. Mas teria ficado muito melhor
com os porcos - acrescentou Cat furiosa. - Como eu odeio este maldito país. Todos os que aqui vivem são vilões e gatunos. - Passando por Martin numa atitude truculenta,
pontuava as palavras com gestos de fúria. Ele recuou para evitar ser atingido pelos punhos cerrados dela.
- Não tendes gatunos na Irlanda?
- Temos! - ripostou Catriona irada. - Os malditos ingleses! - Deu outra volta furiosa pelo pequeno gabinete. Apercebeu-se de que estava a comportar-se como se tivesse
perdido o juízo. Mas era-lhe mais fácil dar largas à sua cólera do que estar a pensar no muito amado objeto que se encontrava entre as suas coisas que haviam desaparecido,
a única coisa que não conseguia suportar ter perdido.
Quando a raiva que sentia acabou por se esgotar, deixou-se cair acabrunhada num banco de madeira, os punhos cerrados no colo. Martin acocorou-se diante dela.
- Lamento muito - disse com uma expressão circunspecta. - O que é que haveis perdido que tem assim tanto valor?
- Nada. O que é que vos leva a pensar...
- Porque não me pareceis ser o género de mulher que chora a perda de roupas ou de uma bolsa com dinheiro.
- Não estou a chorar! - Mas, para seu grande horror, Cat sentiu um ardor nos olhos. Virou a cabeça para não ter de olhar para ele, mas Martin agarrou-a pelo queixo,
obrigando-a a fitá-lo.
A expressão nos olhos dele era de simpatia. Havia muito tempo que um homem não a olhava daquela maneira.
- Dizei-me o que é que perdestes. Tratarei de vos arranjar outra coisa igual.
- Não p... podeis. - Cat afastou a mão dele da sua face. Mas Martin persistiu, fechando os dedos no pulso dela, acalentando-a com a suavidade que lhe espelhava nos
seus olhos e a generosidade no sorriso. - Não foi nada de importante. Só estou a ser estúpida, lamentando a perda de um pequeno odre de couro que eu mantinha sempre
cheio de uísque irlandês.
- Estais desolada por causa da perda do vosso uísqué?
- Não, não se trata do uísque, raios! - ripostou Cat, engolindo com força. - Mas sim o odre... era do meu paizinho. Era... era tudo o que eu tinha dele.
Martin apertou-lhe a mão num gesto caloroso.
- Continuais a ter as recordações que ele vos deixou e isso é uma coisa que vos invejo. Não faço a mínima ideia de quem foi o meu pai. Sou o rebento ilegítimo de
uma prostituta parisiense.
- Ora, não existe tal coisa de ilegítimo. Pelo menos, não na Irlanda acrescentou com tristeza. - Ou seja, na Irlanda que conheci em tempos. Sob a antiga Lei Brehon,
todos são considerados legítimos porque todos nascemos com almas. É um aspeto que não tem nada a ver com o facto de os progenitores serem casados ou não.
- Mas que bela lei tão judiciosa - comentou Martin com uma expressão nostálgica. - Infelizmente, não está nas minhas mãos fazer nada em relação ao odre do vosso
pai. Mas posso comprar-vos roupas novas... um vestido novo, sapatos, meias, corpetes e tudo o mais de que precisais.
- Não fareis nada disso! - gritou Cat, afastando a mão dele. Sentia-se bastante mortificada por ter estado quase a desfazer-se em lágrimas na presença de Martin,
sem ter de acrescer a humilhação que seria aceitar a generosidade dele. Levantou-se do banco repentinamente. - Peço perdão. Não quero parecer ingrata, mas nunca
me vi reduzida a ter de aceitar presentes de homem nenhum, como se fosse a sua... a sua amante.
- A minha amante!? Mas que ideia tão absurda! - Martin pôs-se de pé. - Não, considerai o novo vestido como sendo... como uma mera cortesia para com uma amiga de
Ariane. Além disso... - continuou Martin sorrindo.
- Quando achardes mais conveniente, gostaria que me devolvêsseis as minhas bragas.
- De acordo. Podeis reavê-las neste momento. Assim como a camisa. -- com os lábios cerrados numa linha de obstinação, começou a desapertar os cordões que apertavam
a camisa no pescoço.
Martin agarrou-lhe a mão para a impedir de continuar, mostrando uma expressão que era um misto de embaraço e de bom humor.
- Sois sempre assim, tão infernalmente orgulhosa e teimosa? - perguntou-lhe. - Sede razoável, Cat. Ainda que as vossas roupas não tivessem sido roubadas, não podeis
andar por Londres vestida com calções e calçada com botas. Não estamos na ilha Encantada. Haveríeis de vos cruzar com algum pregador puritano que vos mandaria prender
por ofensa à moral pública. Quer vos agrade, quer não, tenho de vos providenciar um vestido como deve ser...
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- Absoluta e terminantemente não! - ripostou Cat, afastando-se dele muito indignada. - Eu tenho um vestido, isto é, assim que a vossa lavadeira decidir devolver-mo.
- Essa coisa de aspeto deplorável. Eu não o usaria como trapo para esfregar o meu cavalo. Se insistirdes em ficar cá, fazendo parte dos que residem em minha casa,
é imprescindível que vos apresenteis de maneira respeitável.
- A vossa respeitabilidade que vá para o diabo! - vociferou Catriona, espetando um dedo no peito dele. - Permiti-me que deixe uma coisa bastante clara, Lobo. Não
faço parte dos que residem em vossa casa. Não me encontro aqui ao vosso serviço, mas sim para proteger a Meg. E serei eu a decidir o que vestir. Eu nunca...
Cat ficou com a respiração suspensa quando ele a agarrou pelos ombros, calando-a com um beijo ardente. Os lábios dele eram cálidos e carnudos, fazendo com que o
corpo dela fosse percorrido por uma onda de calor.
Cat deu um salto para trás, como se tivesse sido escaldada, incapaz, por uns momentos, de recuperar o fôlego, quanto mais de falar.
Igualmente, Martin também deu um pulo para trás, mostrando-se atónito perante a sua própria ação.
- Mas porquê... por que diabo é que fizestes isso? - perguntou-lhe Cat autoritária.
- Eu... raios me partam se sei! - respondeu Martin encolerizado. - A culpa foi vossa. Sempre a discutir por tudo e mais alguma coisa. Estais a dar comigo em doido.
Foi a única maneira que me ocorreu para vos obrigar a calar - justificou Martin, respirando fundo. - Além disso, não teve a mínima importância, trata-se meramente
de um... de um costume inglês. Por aqui, é frequente que os homens osculem as mulheres à guisa de... de uma saudação amigável.
- Pois bem, acontece que não sou inglesa e tão-pouco vós. Portanto, acho bom que não vos esqueçais desse pormenor. - Catriona limpou a boca à manga da camisa dele
que ela usava. - Se tentardes fazer isso outra vez enquanto eu estiver aqui, os vossos amigáveis lábios ficarão demasiado inchados para osculardes quem quer que
seja.
- Não vos aflijais, mademoiselle. Preferia beijar um ouriço-cacheiro. Pelo menos, são muito menos espinhosos! - ripostou Martin furioso. - E nunca concordei que
continuásseis em minha casa.
- Se eu vos tivesse pedido autorização, seria o mesmo que se me arrancassem os dentes. - Cat teria gostado de conseguir arquear a sobrancelha
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numa atitude de frieza como ele costumava fazer, mas o melhor que conseguiu foi atirar a cabeça para trás orgulhosamente enquanto se encaminhava para a porta. Mas
a sua saída muito digna foi afetada pelas malditas botas grandes de mais para o seu tamanho, fazendo com que voltasse a tropeçar.
A praguejar com palavrões que teriam feito com que um marinheiro corasse, Cat saiu bruscamente do pequeno gabinete, batendo com a porta depois de ter saído.
Martin ficou imóvel por uns momentos, sem saber ao certo se devia desatar a rir a bandeiras despregadas ou bater com a cabeça na parede.
Deixou-se cair na cadeira atrás da escrivaninha, esfregando os olhos, que continuava a sentir congestionados por ter sido acordado tão rudemente. Não que tivesse
tido um sono descansado depois da sua conversa com Walsingham na noite anterior. Tinha-se virado e revirado na cama durante horas a fio, amaldiçoando o dia em que
se tinha deixado apanhar naquela maldita teia de intrigas inglesas.
Na altura parecera-lhe uma oportunidade de ouro quando concordou trabalhar para Sir Francis. Única e exclusivamente como mensageiro, ouvindo um ou outro mexerico
aqui e ali, adquirindo algumas informações que lhe transmitiria. Nada de demasiado perigoso.
Nunca esperara ver-se enredado em conspirações para assassinar uma rainha, intrigas para armarem uma cilada a outra e, pior do que tudo isso, ser obrigado a espiar
pessoas de que gostava e para com quem tinha dívidas de gratidão.
E como se isso não fosse já demasiado complicado, agora estava a braços com uma irlandesa absolutamente irascível. Só Deus sabia o que o teria compelido a beijá-la.
Preferia as mulheres mais delicadas e dóceis, de estatura alta e esbeltas, graciosas como Miri. Catriona OHanlon, por seu lado, era pequena, rija e aguerrida.
Os lábios de Martin esboçaram um sorriso agarotado. Talvez valesse a pena beijá-la outra vez, quanto mais não fosse para ver o chispar dos olhos dela. Eram como
chamas azuis gémeas. No entanto, o homem que estava sentado num barril de pólvora não podia dar-se ao luxo de chegar lume a rastilhos.
Num gesto de cansaço, Martin cofiou a barba. Começava a sentir-se como um acrobata que em tempos vira a fazer malabarismos com facas numa feira em Paris. Um simples
pestanejar, um movimento em falso da sua parte e seria a morte do artista.
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Se acontecesse alguma coisa a Martin, talvez fosse bom ter Catriona por perto, alguém que tivesse um caráter forte e fosse suficientemente expediente para cuidar
de Meg. Martin não tinha a mínima dúvida de que Cat fosse tudo isso, por muito que a mulher o exasperasse.
Sentira-se estranhamente comovido ao constatar que Cat tinha passado a noite toda enrolada em frente da porta da alcova de Meg. Magoada por causa da bordoada que
sofrera no dia anterior, devia ter-lhe sido bastante difícil sair de um leito confortável para se manter de vigia deitada no soalho duro.
Também não conseguia esquecer a intensidade na expressão dos olhos de Cat quando afirmou: "Eu defenderei a Meg com a minha própria vida"
Martin tinha dito bazófias suficientes aquando da sua juventude para saber distinguir uma fanfarronada de uma promessa genuína. Cat falara com toda a sinceridade.
Não hesitaria em morrer para proteger a sua filha, da mesma maneira como ele próprio faria.
Se ao menos ele e Catriona conseguissem refrear-se de se matarem um ao outro, quem sabe se não seria uma decisão sensata permitir-lhe que continuasse em sua casa.
Permitir-lhe! Martin ficou com uma expressão irónica, perguntando-se quando teria sido a última vez em que um homem, fosse quem fosse, permitira que Catriona OHanlon
fizesse o que quer que fosse. O mais certo era nunca.
Ao que tudo indicava, Meg tinha adquirido uma guerreira irlandesa.
Cat atou as fitas do corpete do vestido acabado de lavar e susteve a respiração ao sentir uma picadela na pele macia do seio. Praguejando entredentes, meteu a mão
por dentro do tecido de lã e tirou um alfinete deixado por quem lhe tinha cosido o vestido.
Outro acidente, afirmar-lhe-iam caso se queixasse. Tal e qual como a porção de carne de porco que lhe haviam servido ao almoço tinha sido, acidentalmente, salgada
de mais, além de estar estorricada. Igualmente por mero acidente, a caneca em que lhe serviram a cerveja estava tão rachada que foi por pouco que não se derramou
por cima dela.
Ao que tudo indicava, estava a ter uma extraordinária pouca sorte naquele dia, pensava Cat com azedume. Concretamente, isso acontecia desde que Martin informara
os que residiam em sua casa que Catriona ficaria alojada ali durante um período de tempo indeterminado, dizendo a todos que devia ser tratada com o maior respeito.
Agatha Butterydoor acatara a ordem em silêncio, embora tivesse ficado a ferver por dentro, mordendo o lábio inferior com tanta força que quase começou a sangrar.
Desde então que a velha lhe tinha movido uma guerra de guerrilha. E tinha todo o pessoal doméstico do seu lado, desde as criadas ao ajudante da cozinha.
Ora bem, eles que fizessem o seu pior, pensava Cat com um encolher de ombros. A única pessoa que lhe causava preocupação era Meg. A garota não lhe dirigira uma única
palavra desde que soubera que Catriona não se iria embora. Limitara-se a fitá-la com olhos que espelhavam desconfiança, manifestamente desagradada com a presença
de alguém que era conhecedora dos seus segredos. Atitude que levava Cat a perguntar-se que outros segredos é que
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a garota lhe ocultaria. Estava determinada a proteger Meg, ainda que para isso tivesse de proteger a menina Margaret de si própria.
Quando Cat acabou de apertar o vestido, sentiu uma suave brisa que soprava pela janela aberta do pequeno quarto da criada onde se estava a vestir. Chegaram-lhe vozes
de pessoas que falavam nas traseiras da casa e uma dessas vozes era a de Meg. Cat aproximou-se da janela e espreitou para o jardim abaixo de si.
Circundado por um muro alto de tijolos, era uma pequena parcela de terreno que continha uma pequena horta e um canteiro de ervas aromáticas, umas duas macieiras,
um apiário e uma coelheira. A senhora Butterydoor estava ajoelhada a apanhar nabos enquanto Meg se sentava por perto, com as pernas a balouçarem da beira de um banco
corrido de pedra. A garota parecia uma graciosa menina de boas famílias, com o seu vestido de seda cor-de-rosa e um folho branco engomado em volta do pescoço esguio,
o cabelo de um castanho sedoso penteado para trás e preso numa graciosa touca.
Inclinou-se ligeiramente para a frente, ouvindo com toda a atenção a história que a idosa lhe contava.
- ... e eu entrei na alcova onde o pobre homem estava deitado, todo hirto e frio. Tinha os olhos muito abertos e olhava fixamente para mim. O rosto contorcido num
ricto horrível, como se o tivessem matado no meio de um grito medonho.
"No entanto, quando o examinei, não encontrei nenhum vestígio de ferimento nem de doença. Mas nem por isso era menos claro para mim qual o motivo por que morreu,
era tão óbvio como o nariz que tendes na cara, menina Meg.
- O quê, Aggie? - perguntou a garota arfante. - O que é que o matou? A velha ergueu o seu sacho, pronunciando num tom sepulcral.
- Ele morreu de um mau pensamento.
Cat estava à espera de ver Meg a abanar a cabeça perante tamanho disparate, mas a verdade é que ela ainda era muito acriançada. Retraiu-se toda para trás com o rosto
extremamente pálido, parecendo que ia ficar indisposta.
A velha que apodrecesse no Inferno com a sua verbosidade, a encher a cabeça da garota com aqueles horrores, pensou Cat. com uma atitude cheia de determinação, avançou
para pôr fim àquilo.
Enquanto se apressava a descer as escadas, passou em bicos de pés pela porta do gabinete de Martin, mas deteve-se. Retomando o seu passo normal,
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repreendeu-se por estar a ser tola. Nem sequer sabia se ele estaria ali, além disso, não poderia evitar o homem para sempre, não se passasse a viver na mesma casa.
Mas era precisamente isso que andara a tentar fazer durante todo o dia, bem ciente da razão por que o fazia. O raio daquele beijo. Perceber isso fazia com que sentisse
tanta aversão por si própria que percorreu o resto do corredor num passo pesado.
Não se podia dizer que fosse uma donzela inocente que ficasse toda afogueada por causa de um beijo roubado. O beijo não tinha tido mais significado para si do que
para ele. No que lhe dizia respeito, não passara de uma irritação, nada por aí além...
A boca de Cat esboçou um trejeito de pesar enquanto se encaminhava para as traseiras da casa. Não, era forçada a admitir com toda a sinceridade que o beijo suscitara
nela uma dor agridoce, uma vaga de recordações.
Havia decorrido tanto tempo desde que sentira um contacto tão íntimo. O último homem que beijara havia sido o rebelde irlandês que ajudara a esconder dos ingleses.
Banida do clã do seu padrasto, Cat passara a levar uma existência dura, sempre oculta e a caçar nas montanhas Wicklow.
Como é que o rebelde se chamava? Ciernan? Conner? Tinham passado toda uma noite nos braços um do outro, consolando-se um ao outro antes de cada um seguir o seu caminho
ao raiar do dia. Cat sentia-se entristecida por não conseguir lembrar-se do nome dele, nem tão-pouco da sua fisionomia.
Todavia, recordava-se bem de como ele fizera com que se sentisse apaixonada, cheia de vida e muito segura da sua feminilidade, a despeito das bragas de lã áspera
que vestia e mãos cheias de calos. Ainda que somente por uma noite.
Suspirou. O beijo, se bem que fugaz, de Martin recordara-lhe que com vinte e sete anos ainda não era uma velha. Continuava a necessitar do contacto com um homem,
desejava-o, e na qualidade de Filha da Terra sabia que isso era absolutamente natural.
Desejos que ela não satisfaria nos tempos mais próximos e, certamente, que não com um biltre como Martin, o Lobo. Mas raios partissem o homem! Ele era capaz de ser
desconcertantemente generoso e terno quando ela menos esperava.
Os olhos tão expressivos dele haviam mostrado tanta simpatia quando ela tinha ficado desgostosa com o roubo das suas coisas, quase a balbuciar
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como uma idiota por causa da perda do odre que pertencera ao pai. Lembrar-se disso embaraçava-a ainda mais do que o beijo.
Além disso, a perda do pequeno odre de couro, ainda que de pouco valor, tinha sido como mais um pedaço do seu passado que lhe era tirado e a verdade é que já tinha
perdido muito.
Mesmo assim, não era característico da maneira de ser de Catriona OHanlon ficar toda chorosa diante de um homem. Lobo e os seus olhos compassivos que fossem para
o diabo. Não voltaria a permitir que ele derrubasse as suas defesas.
Quando Cat saiu pela porta da cozinha, não viu Meg em lado nenhum. Só deparou com Agatha, ajoelhada na horta onde continuava a trabalhar. Deteve-se durante o tempo
suficiente para fitar Cat com uma expressão sinistra antes de retomar a sua tarefa, sacudindo a terra de um nabo enorme que acabara de tirar da terra.
Cat aproximou-se dela, contornando a cesta que Agatha enchia e uma pequena caixa de madeira ocupada por um gordo sapo mosqueado. Catriona empurrou a caixa do sapo
com a biqueira da bota.
- Se estais a pensar em pôr isso entre os meus lençóis, devo avisar-vos de que estareis a perder o vosso tempo. Já tive coisas muito piores na minha cama.
- Não duvido disso - ripostou Agatha com uma fungadela desdenhosa. - Mas tenho coisas mais importantes em que usar esse sapo do que servir-me dele para vos amedrontar,
senhora. As minhas couves estão cheias de lagartas.
- E estais à espera de vos livrardes delas com um sapo?
A velha olhou para Cat e abanou a cabeça incrédula e com uma expressão escarnecedora.
- Vocês lá na Irlanda recebem alguma educação? Toda a gente sabe que a melhor maneira de uma pessoa se livrar das lagartas é atar uma guita à volta do sapo e arrastá-lo
três vezes em volta da horta, três vezes para a frente e três vezes para trás.
Quando Cat soltou uma gargalhada de desdém, Agatha olhou-a furiosa.
- Achais que é divertido, é isso? Não acreditais que resulta?
- Acredito que conseguireis irritar o sapo, sem dúvida nenhuma, e atrevo-me a dizer que as lagartas talvez achem os vossos esforços bastante cómicos.
- Isso demonstra tudo o que sabeis - resmungou Agatha. - E é uma rapariga ignorante como vós que pensa que me vai substituir, cuidando da
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minha bonequinha. Pretendeis cair nas boas graças dela, afastando-a de mim. - com a força da raiva, arrancou outro nabo da terra.
- Não estou a tentar cair nas boas graças de Meg para a afastar de quem quer que seja.
- Andais a maquinar qualquer coisa de mal, do que eu tenho a certeza. É possível que tenhais conseguido enganar o meu amo, mas a mim não enganais. - Agatha abanou
o sacho num gesto ameaçador. - Mas estou a avisar-vos de que vou ficar de olho em vós, minha menina.
- Faríeis melhor em ficar de olho na vossa jovem senhora, exatamente o mesmo que eu tenciono fazer. Acreditai ou não, temos o mesmo interesse, senhora Butterydoor,
ou seja, o bem-estar da Meg.
- Ninguém poderia cuidar melhor da minha bonequinha do que eu própria.
- Nesse caso, talvez vos seja possível mostrar algum sinal desse cuidado não a aterrorizando com histórias de homens mortos e de pensamentos demoníacos.
- Estáveis a espiar-me? - gritou a velha, o queixo a oscilar de tanta indignação. - O que se passa entre mim e a menina Meg não vos diz respeito.
- Tudo o que se relacione com a Meg diz-me respeito - ripostou Catriona, agachando-se e apoiando o braço à largura do joelho. - Não tolerarei que vós ou qualquer
outra pessoa a amedrontem.
- Como se eu fizesse uma coisa dessas! A menina Meg gosta muito de ouvir histórias sobre os meus tempos em que era verificadora de mortos.
- Em que o quê?
- Em que verificava os mortos - repetiu Agatha, erguendo a cabeça com orgulho. - Antes de ter começado a trabalhar para o meu amo Wolfe, eu era uma mulher de alguma
importância aqui, em Cheapside. Era eu quem estava incumbida de examinar alguém que tivesse morrido e informar a causa do óbito. A paróquia pagava-me dois dinheiros
por corpo.
Cat estava a ter alguma dificuldade em acreditar que a idosa tão disparatada pudesse ter tido grande utilidade numa ocupação daquelas. A menos que tivesse subestimado
Agatha seriamente, sendo possível que ela tivesse mais de mulher sábia do que Catriona pudesse ter suposto.
Ou quem sabe se não seria mais uma bruxa do que outra coisa. Perscrutou a velha atentamente. Seria possível que tivesse sido ludibriada de modo a não dar pelo perigo
que Meg corria mesmo debaixo das suas barbas? O olhar de Cat prendeu-se na idosa. Usava um avental que protegia o vestido
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de lã escura, mas não se dera ao trabalho de arregaçar as mangas. Um pormenor curioso, levando em consideração que a tarde estava amena e o facto de a mulher estar
a mexer na terra.
- Arregaçai as mangas! - ordenou Cat.
- O quê? - perguntou Agatha com cara de poucos amigos.
- Ouvistes bem o que vos disse. Já inspecionei os braços das criadas da casa. E agora quero ver os vossos. Arregaçai as mangas.
- Não farei nada disso!
Cat não ficou à espera que ela cedesse. Tentou subir o tecido da manga do braço direito de Agatha. Mas a mulher resistiu-lhe com a força de uma leoa, esbofeteando-a,
socando-a e arranhando-a até ambas caírem engalfinhadas na horta. Cat caiu parcialmente em cima da velha cheia de garra.
- Sai de cima de mim! Sai de cima de mim, grande idólatra louca! guinchava Agatha, batendo-lhe com os punhos cerrados.
Mas Catriona não desistiu até conseguir arregaçar uma manga e depois a outra, expondo...
Nada. Nenhuma cicatriz em forma de rosa feita com um ferro em brasa, apenas pele branca e flácida. Agatha estava à beira das lágrimas de tão ultrajada que se sentia,
as faces mirradas manchadas de um vermelho-vivo. Cat recuou.
- Peço desculpa, senhora Butterydoor - desculpou-se contrita. - Mas eu precisava de ter a certeza...
- Como é que vos haveis atrevido a pensar que eu fosse uma dessas criaturas maléficas! - gritou a idosa. - Eu, que tenho sido a ama mais dedicada da menina Meg durante
todos estes m... meses.
Agatha estendeu a mão para o seu cajado. Cat deu um salto para a ajudar, mas a velha deu-lhe uma palmada nas mãos. com maior ou menor dificuldade, Agatha conseguiu
pôr-se de pé.
- Irlandesa selvagem! - vociferou quase sufocada.
- Senhora Butterydoor. Por favor, estou verdadeiramente... - Cat interrompeu-se sem fôlego quando a velha lhe deu uma bordoada na canela.
Pegando na sua cesta e no sapo, Agatha encaminhou-se para casa a cambalear, desaparecendo pela porta da cozinha. Cat ficou a vê-la a afastar-se, sentindo um grande
peso na consciência, cheia de sentimentos de culpa.
Em sua defesa, poderia argumentar que era seu dever proteger Meg, avaliando escrupulosamente todas as mulheres que se aproximassem dela. No entanto, poderia muito
bem ter lidado com as suas suspeitas com um pouco mais de diplomacia e delicadeza.
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Retraiu-se e baixou-se para massajar a canela dorida. Ia ficar com outro enorme hematoma graças à senhora Butterydoor, mas desta feita tinha-o merecido. Catriona
lembrou a si mesma que não se encontrava ali para fazer amigos nem para poupar as sensibilidades de quem quer que fosse, apesar disso deixou-se cair no banco corado,
sentindo-se extremamente desalentada. A luz do dia começava a desvanecer-se. A hora da ceia não tardaria e Cat não aguardava com satisfação outra refeição queimada
na companhia do pessoal doméstico da casa, pessoas que se mantinham afastadas dela como se sofresse de lepra.
Encolheu os ombros, dizendo a si própria que isso não tinha importância, que já havia passado por muito pior em casa do padrasto, o altivo OMeara do clã do mesmo
nome, o qual só nutria desprezo pela "pequena pagã imunda dos OHanlon".
Catriona conseguira sobreviver aos escárnios e sarcasmos, para não mencionar as frequentes sovas que o padrasto lhe dava. Mas o que a magoara mais tinha sido a indiferença
da mãe perante o martírio da filha.
"As coisas correriam muito melhor para ti se ao menos tentasses ser mais agradável, Catriona", ralhava-lhe Fiona. "Devias comportar-te como uma boa menina, em vez
de te portares como uma selvagem. Concordando em seres batizada segundo a santa fé católica."
"Mas o meu pai nunca foi batizado", protestara Cat. "A maior parte dos do clã OHanlon segue as maneiras antigas e a mãe nunca me pareceu importar-se quando ainda
vivíamos com o paizinho na casa da avó."
"O teu pai está morto e essa vida há muito que pertence ao meu passado."
E quando viu os olhos de expressão fria da mãe, Cat compreendeu que Fiona já se havia esquecido do grande amor que dedicara a Tiernan dos Olhos Risonhos, e que também
teria gostado de esquecer a filha que tivera dele.
Cat ficou irritada consigo mesma por a recordação daqueles dias da sua meninice continuar a causar-lhe tanta mágoa. Baniu a dor do seu pensamento, dizendo a si própria
que as crueldades que havia sofrido entre os OMeara só tinham servido para a endurecer. Por conseguinte, era demasiado dura para se sentir mortificada pelos escárnios
de alguns ingleses insignificantes.
E estava um belo fim de tarde ameno de verão, o Sol a espalhar os seus últimos raios dourados pelo jardim, iluminando uma abelha gorda que emitia um zumbido agradável
em volta de um trevo, enquanto as carriças chilreavam na macieira.
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Catriona pensava com alguma nostalgia que naquele momento devia estar na companhia de Ariane e Justice no jardim de Belle Haven a beber vinho enquanto admiravam
o pôr do Sol. Desde que o pai falecera que Cat se sentia à deriva, perdida desde que a haviam afastado do convívio da sua muito amada avó. Mas, do mal o menos, com
Ariane e com as outras mulheres sábias da ilha Encantada, Cat passara a ter um sentido de pertença. Um lar emprestado e, talvez mesmo, uma espécie de clã de empréstimo,
mas tinha esperado que isso fosse tudo o que a vida lhe reservava.
Envolveu-se nos seus próprios braços e, subitamente, sentiu-se isolada e muito sozinha.
Martin atravessou a cozinha com dificuldade em prender a sua capa nova, muito na moda, no ombro do seu gibão. Jem desviou o olhar do quarto traseiro de veado que
assava no espeto, enquanto Maude parou de cortar os nabos para se pôr a olhar para ele de boca aberta.
Mas Martin estava a sentir-se demasiado atormentado para dizer algumas palavras jocosas aos seus serviçais, ao contrário do que era seu costume. Já estava atrasado,
tendo estado a preparar-se para o banquete que teria lugar na Casa Strand naquela noite. Ter passado algum tempo a passar a mão pelo pelo de Agatha, decerto que
não lhe teria facilitado a vida.
Antecipando também outro confronto acalorado com Cat, o que mais lhe apetecia era meter as duas mulheres em sacas, cosendo-as e embarcando-as no próximo navio a
zarpar rumo ao Novo Mundo.
Quando saiu para o jardim, estava à espera de deparar com Catriona pronta para lhe dar luta na sua maneira de ser habitualmente beligerante. Assim, ficou surpreendido
ao vê-la sentada no banco, mostrando-se muito abatida e com o queixo apoiado na mão.
Do mal o menos, obedecera ao que ele lhe disse para lhe devolver as bragas. Mas, inegavelmente, a sua aparência era de grande desalento, para o que o vestido já
muito coçado, e que era um horror, contribuía em grande parte. Mon Dieu, o quanto ele gostaria de lhe despir aquele trapo para o queimar.
Martin respirou fundo e refreou os seus caprichosos pensamentos, cheios da recordação do que vira por baixo do corpete rasgado de Cat, aquele seio branco e macio
com um delicioso mamilo rosado. Não se podia dizer que fosse um pensamento apropriado para um homem que se esforçava por ser mais respeitável.
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Além disso, não era apenas o vestido tão miserável que fazia com que Cat se mostrasse tão infeliz, tinha tentado prender o cabelo com uma tira de couro, mas tinham-lhe
escapado algumas madeixas que lhe emolduravam o rosto pálido e de expressão melancólica, os olhos como poços azul-escuros de tristeza. Embrenhada nos seus próprios
pensamentos de tanta tristeza, nem sequer reparou na aproximação de Martin.
Catriona era uma mulher ferozmente orgulhosa. Consequentemente, Martin sentia-se afetado de uma maneira inexplicável ao vê-la com uma expressão de tanta desolação
e vulnerabilidade. Esquecendo a sua irritação, sentiu uma estranha vontade quase irresistível de a puxar para junto de si, perguntando-lhe carinhosamente: "O que
é que vos preocupa, chérie?" Uma atitude que, muito provavelmente, lhe valeria uns valentes tabefes. Contentou-se em tocar-lhe no ombro ao de leve.
- Mistress Catriona OHanlon? Cat?
A interpelada ficou sobressaltada ao ouvir a voz de Martin. Despertada dos seus pensamentos tão tristonhos, ergueu o olhar e foi por um triz que não caiu do banco
ao ver quem estava diante de si.
O sol do final de tarde incidia diretamente sobre ele, banhando-o numa espécie de névoa dourada que lhe dava uma aparência excessivamente bela para ser verdadeira,
como um herói de uma das peças de teatro em que representava, um imponente e nobre lorde.
Envergava um gibão escarlate com mangas golpeadas e calções tufados condizentes pelo meio das coxas, uma capa curta escura que lhe pendia de um ombro. Usava um pequeno
toque preto, enfeitado com uma pena branca, no cocuruto da cabeça, tendo-lhe dado uma inclinação galante. As pernas bem musculadas vestiam bragas cor de marfim e
calçava sapatos com fivelas prateadas.
Era o epítome do príncipe encantado dos contos de fadas e Cat olhava boquiaberta para ele, qual donzela pedinte. A cambalear, levantou-se do banco, consciente do
seu aspeto tão desalinhado, o resultado do recente confronto com Agatha nas couves da horta.
Tentou sacudir a terra das saias, atingindo o máximo da mortificação quando Martin lhe tirou uma folha seca do cabelo.
- Ah, estou a ver que teve lugar outra batalha épica.
Cat ficou corada que nem um tomate, ajeitando o cabelo para trás e endireitando os ombros.
- Suponho que a senhora Butterydoor tenha estado a falar convosco.
- E muito alongadamente - confirmou Martin suspirando. - Cat, dou muito apreço ao vosso zelo, no sentido de protegerdes Meg, mas se tínheis algumas dúvidas a respeito
da Aggie, devíeis ter falado comigo. Acreditais realmente que eu não tenha investigado aprofundadamente o passado de alguém que contratasse para cuidar da minha
filha?
- Peço desculpa. Eu... eu cometi um erro. Mas a verdade é que a mulher me levantou suspeitas quando se recusou a permitir que eu lhe visse o braço, ao que se juntou
a estranha conversa dela acerca de ter sido aquela que via os mortos.
- Que via os mortos? - Martin mostrava-se intrigado e com a testa franzida, mas então percebeu o que se passava. - Oh, uma verificadora dos mortos. A Aggie tem andado
a gabar-se disso outra vez?
Martin abanou a cabeça e sorriu.
- As paróquias de Londres, regularmente, contratam idosas para examinarem os cadáveres a fim de informarem a causa das mortes. É um serviço que mais ninguém quer
prestar por recearem possíveis contágios. Os funcionários da municipalidade nem sequer dão muita importância à competência ou conhecimentos dessas verificadoras.
Ser pobre e desesperada parece serem os únicos requisitos.
Cat fez um acenar de cabeça, mas a verdade é que estava a ter alguma dificuldade em concentrar-se no que ele dizia. A sua atenção centrava-se na pérola que oscilava
na orelha esquerda de Martin. Uma moda que poderia parecer efeminada num outro homem, mas que nele acentuava o seu semblante marcadamente masculino, emprestando-lhe
uma aparência um tanto ou quanto de pirata.
- ... e apercebi-me de que a Agatha pode ser uma velhota muito rabugenta. Mas é inegável que ela é muito dedicada a Meg e não se pode dizer que tenha tido uma vida
fácil, a começar no dia em que nasceu. A pobre senhora Butterydoor1 foi abandonada junto da porta da manteigaria do Hospital de Cristo.
Cat pestanejou, quebrando a concentração com que escutava o que Martin lhe dizia.
- Oh. Buttery door. Isso explica a estranheza do nome dela.
- As instituições de caridade não costumam mostrar uma grande imaginação a respeito dos nomes que dão aos órfãos.
Butterydoor, nome formado com a junção das palavras inglesas buttery, "despensa, amanteigado", e door, "porta, entrada". (N. da T.)
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- Portanto, isso significaria o quê? Que fostes encontrado entre uma alcateia de lobos?
Martin riu-se.
- Não, o padre que me batizou não se deu ao trabalho de me dar um apelido. Limitaram-se a batizar-me com o nome de São Martinho. Quando já era crescido, decidi adotar
o sobrenome de Lobo, e assim que os bons padres perceberam que existia em mim mais do lobo do que do santo, foi com grande satisfação que me viram pelas costas.
E foi assim que as ruas de Paris passaram a ser a minha casa.
Catriona tinha acreditado que partes da sua infância tinham sido insuportáveis, mas, pelo menos, tinha memória do seu pai e de fazer parte do clã OHanlon. Não era
capaz de imaginar como é que a existência de Martin teria sido ao crescer sem família nenhuma.
- Essa... essa deve ter sido uma existência muito perigosa - comentou Cat quase timidamente.
- Consegui sobreviver. Mas talvez seja por causa das circunstâncias que temos em comum que eu sinto uma certa afinidade com a senhora Butterydoor. Somos ambos órfãos
que nunca conheceram pai nem mãe.
- É muito possível que uma pessoa se sinta órfã, embora ainda tenha mãe - adiantou Cat constrangida.
- A vossa mãe ainda é viva? - perguntou Martin tão delicadamente que Cat acenou que sim.
- Mas, a exemplo dos vossos padres, a minha mãe ficou bastante contente quando se viu livre de mim. Estou em crer que ela sempre desejou que eu nunca tivesse nascido.
- Catriona tentou mostrar indiferença, como se aquilo fosse coisa de somenos importância. Uma vez mais, fora levada a revelar de mais sobre a sua vida. Sentiu alívio
quando a porta da cozinha foi aberta intempestivamente e Meg entrou de rompante, vinda do jardim. Levantou a orla do vestido e correu para o pai quase sem fôlego.
- Paizinho! Ainda estás aqui. Estava com medo de já não te encontrar e eu queria tanto ver-te com as tuas roupas novas antes de saíres para o banquete.
Martin esboçou um sorriso rasgado e deu uma volta para a filha poder vê-lo bem.
Meg batia palmas, suspirando deleitada. Começou a tocar na bainha da capa, mas apressou-se a afastar a mão como se receasse manchar o fino tecido.
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- Oh, estás tão bonito e... e tão imponente.
- Ora, ora! Preferia vestir andrajos se a menina mais bonita em toda a Inglaterra se recusar a abraçar o seu pobre pai com receio de lhe amarrotar o gibão. - Martin
inclinou-se à altura da filha e abriu os braços.
- Paizinho! Mas que disparate que estás a dizer - retorquiu Meg, sorrindo e atirando os braços ao pescoço dele.
A expressão de finório de Martin suavizou-se quando beijou a filha na face. Os olhos de Meg brilhavam de adoração, o rostinho solene transformado até ter ficado
verdadeiramente bonito.
Ao olhar para os dois, Cat sentia algum constrangimento, como se fosse uma intrusa, embora, ao mesmo tempo, se sentisse estranhamente anelante.
Meg afastou-se do pai, alisando-lhe a manga e dando-lhe uma palmadinha.
- Portanto, vais cear com Lorde Oxbridge. E a rainha... estará presente?
- Foi o que me disseram.
- A rainha!? - Cat soltou um assobio de surpresa. - Andais a conviver com pessoas extremamente importantes, mestre Wolfe.
com a desconfiança que Cat lhe inspirava momentaneamente esquecida, Meg fitou-a com uma expressão radiante.
- O meu paizinho tem amigos muito importantes, em particular Lorde Oxbridge, que tem uma grande dívida de gratidão para com ele. O paizinho salvou a vida da irmã
de sua senhoria, Lady Jane Danvers. Ele é um grande herói.
- E agora quem é que está a dizer disparates? - atalhou Martin, dando um beliscão no nariz da filha na brincadeira.
Meg mostrou-lhe uma expressão impudente, retomando o que estava a dizer.
- Quando voltares para casa, tens de me contar tudo a respeito da rainha. Tens de me descrever o vestido que ela usar e as jóias, aquilo que ela comer, tudo o que
ela te disser, e...
Martin interrompeu-a com uma gargalhada.
- Apesar da elevada opinião que tens do teu pai, não terei grande significado entre pessoas tão nobres. Ficarei sentado num lugar pouco proeminente e nem a rainha
nem ninguém darão pela minha presença.
Catriona duvidava do que ele dizia. Não era capaz de imaginar Martin, o Lobo, a passar despercebido onde quer que fosse, mas Meg pareceu descorÇoada por uns momentos.
Inclinou a cabeça de lado e olhou para o pai com um ar especulativo.
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- Bem, tenho estado a pensar...
- Isso parece-me perigoso... - atalhou Martin na brincadeira.
Meg olhou para o pai com uma expressão muito digna antes de prosseguir.
- Porque é que eu não posso ver a rainha pessoalmente? A Agatha podia levar-me até ao rio para eu poder ver a barca em que ela chegar e... - Mas Martin já estava
a abanar a cabeça.
- Não, mon ange. Já discutimos este assunto. Acabaram-se essas passeatas pela cidade com a Agatha, especialmente levando em consideração as advertências da Senhora
da Ilha Encantada.
- Suponho que ela poderia acompanhar-me, levando a sua espada sugeriu Meg, olhando de soslaio para Cat. - Uma vez que está de visita a Londres, eu atrever-me-ia
a dizer que a menina Catriona OHanlon também gostaria de ver a rainha.
- Eu atrevo-me a dizer que ela não gostaria - atalhou Cat. - Nunca me arriscaria a levar-te para fora de casa com a noite a cair só para vislumbrares de fugida a
mulher demoníaca dos Tudor.
Meg ficou com a respiração suspensa e expressão ultrajada.
- Essa não é maneira de falar da vossa soberana.
- Talvez seja a tua, mas não é a minha, doçura. Isabel e os seus malditos conselheiros só têm causado infelicidade na minha pátria, saqueando, incendiando e assassinando.
- Pois sim, mas a rainha não precisaria de ser tão dura se... se vocês, os irlandeses, não andassem a rebelar-se constantemente.
- Ah, portanto, agora é rebelião quando se tenta proteger o que nos pertence e impedir que a nossa casa seja invadida, é isso?
Meg contraiu os lábios, sendo evidente que não tinha resposta para aquilo.
- Muito bem. Uma vez que pensas dessa maneira, não precisas de vir. Seja como for, estou certa de que a Aggie não gostaria da tua companhia. - Virou costas a Cat
e apelou ao pai. - Tenho a certeza de que a Aggie e eu não correríamos perigo nenhum se...
- Não, Meg - atalhou Martin. - A Cat tem razão. Não deves sair de casa quando já é quase noite. Poderás ver a rainha numa outra ocasião qualquer.
- Há séculos e séculos que me prometes isso! - gritou a garota. - Não estou a ver porque é que não posso...
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- Porque eu disse que não, Margaret, e não se fala mais sobre o assunto.
Catriona duvidava de que Martin alguma vez tivesse falado com tanta severidade à filha ou que lhe tivesse recusado alguma coisa. Meg mostrava-se devastada, com o
lábio inferior a tremer. Deu meia-volta e correu para dentro de casa.
Martin não fez menção de a deter, mas soltou um suspiro de pesar quando a filha desapareceu de vista.
- Lamento o sucedido - disse Cat. - Não foi minha intenção afligir a Meg, mas não sou capaz de me calar quando o nome da mulher dos Tudor é mencionado.
- Não tem importância. Eu compreendo, além disso a culpa é mais minha do que vossa. Por uma razão qualquer, a garota começou a sentir um estranho fascínio pela rainha
de Inglaterra. É verdade que lhe prometi que haveria de arranjar maneira de ela poder ver a rainha Isabel. Mas é uma promessa que eu não devia ter-lhe feito. Não
quero que a Margaret chame uma atenção excessiva sobre si até... até...
- Até terdes conseguido enterrar o seu passado, transformando-a numa menina inglesa como deve ser? E diria que estais muito bem encaminhado nesse sentido.
Martin devia ter-se apercebido do tom de reprovação que transparecia do tom de voz dela. Adotou uma postura rígida.
- A Meg sempre foi mais inglesa do que francesa. Passou os seus primeiros cinco anos de vida numa casinha em Dover, perto do mar. Ela ainda fala desse período da
sua existência. Acredito que, a despeito da mãe, Meg foi mais feliz nesses tempos do que... - Martin fez uma pausa antes de concluir amarguradamente - do que é aqui
comigo. A realidade é que a minha pequenina não gosta muito da vida na cidade.
Isso seria a Filha da Terra nela a falar mais alto, pensava Cat, mas, muito sensatamente, guardou esse pensamento para si própria.
- Um dia, se tudo me correr bem, tenciono comprar uma pequena propriedade com uma casa de campo ao longo da zona costeira do Sul - adiantou Martin, com um brilho
de muita determinação no olhar. - Mas a minha boa sorte poderá abandonar-me de imediato se eu não me dirigir para a Casa Strand para tratar dos meus assuntos.
- Assuntos!? - O olhar de Cat demorou-se na requintada indumentária dele. - Pareceis-me mais como um homem que vai fazer a corte a uma senhora.
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- Claro que era assunto que não lhe dizia respeito, mas não foi capaz de se impedir de perguntar: - E então, quem é a bela senhora? Essa Lady Jane Danvers que vos
considera um grande herói?
- Oh, bastante bela, de facto, tem um cabelo como verga-de-ouro e um olhar de pomba, mas quanto a eu ser o seu herói... - Os lábios de Martin contraíram-se num trejeito
de amargura. - Tenho de dizer que salvei a senhora em questão tanto pela minha filha como por ela.
Quando Cat o olhou com uma expressão intrigada, ele explicou-se.
- Jane Danvers caiu da barca do irmão ao rio. A Meg e eu passávamos na altura num bote e é impossível que possais imaginar a expressão de horror nos olhos da minha
filha. Foi assim que a mãe de Meg morreu, afogada nas águas do Sena.
- Eu sei. A Ariane contou-me o sucedido.
- E a Meg assistiu a tudo. Costumava ter pesadelos horríveis sobre a morte de Cassandra. Ver Lady Jane Danvers a afogar-se seria mais do que Meg conseguiria suportar.
Por isso, vi-me forçado a salvar a senhora em perigo.
- Mas se a Meg não tivesse estado presente, também não teríeis deixado que Lady Jane Danvers se afogasse - retorquiu Catriona desafiadora.
- O Tamisa está cheio de correntes que podem ser muito traiçoeiras. Não sei bem se me teria arriscado para a salvar.
- Mas sei eu. Tenho a impressão de que sois exatamente o género de idiota galante que é incapaz de resistir a salvar uma donzela em perigo. Tenho a certeza de que
essa Lady Jane Danvers não terá palavras para vos expressar a sua gratidão, pronta para vos cair nos braços.
- Nem por isso. É uma senhora delicada e nobre, estando tão acima de mim como as estrelas no céu. - Quer o homem se apercebesse, quer não, o seu tom de voz suavizou-se
ao falar da senhora em questão.
"Que a Terra-Mãe o defenda", pensou Catriona. Martin tinha encontrado outra Miri Cheney, sendo muito plausível que acabasse com o coração igualmente dilacerado.
As irmãs de barões não eram conhecidas por entregarem as suas mãos em casamento a patifes sem nome, por muito bem-parecidos que fossem.
Arqueando um sobrolho, Martin olhava-se inquiridor.
- Mas vós, por outro lado, nunca teríeis precisado que vos salvassem.
- Sim, o mais provável seria eu ter de vos salvar. Prefiro ser eu a lutar as minhas próprias batalhas - ripostou Cat com uma careta risonha. - E, a
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propósito, acho melhor apressar-me a caminho da cozinha, não vá dar-se o caso de me servirem sapo assado à ceia. - Quando Cat já se encaminhava para a cozinha, Martin
acertou o passo pelo dela.
- Está-me a parecer que o meu pessoal doméstico vos tem feito passar um mau bocado. Tenciono voltar a falar com todos, deixando bem claro a todos, incluindo a Meg,
que, quando eu estiver ausente, a vossa autoridade é absoluta e inquestionável. Alguém que ponha em questão as vossas ordens, terá de responder perante mim.
- Sem dúvida que essa medida fará com que todos passem a adorar-me. Prefiro tratar do assunto à minha própria maneira, mas prometo-vos que o farei sem ter de partir
a cabeça de ninguém. Quanto à Meg, ela estará em segurança durante a vossa ausência, portanto não tendes de vos preocupar com isso.
- Por muito estranho que possa parecer, não estou preocupado. Por uma razão qualquer que não consigo explicar, inspirais-me confiança, Catriona OHanlon. - Martin
deteve-se já perto da porta da cozinha e olhou para ela com uma expressão afetuosa.
Pegou na mão de Cat, que ficou muito surpreendida por aquele gesto dele tão inesperado.
- Não sei nada a respeito da vossa mãe, portanto não posso pôr-me a adivinhar quais os sentimentos que ela nutre por vós. Mas quanto a mim, posso dizer que me sinto
satisfeito por estardes aqui.
Diabos levassem o homem se não parecia estar a falar com toda a sinceridade. Talvez fosse por essa razão que Cat estava incapaz de tirar os dedos da mão dele. Martin
levou a mão dela aos lábios, beijando-a como se ela fosse uma grande dama e não uma irlandesa pelintra que usava um vestido já muito coçado.
Apesar de o toque dos lábios dele ser suave, Cat sentiu um formigueiro na pele. Martin sorriu-lhe de uma maneira que fez com que o coração dela começasse a bater
aceleradamente.
Cat ficou desconcertada ao aperceber-se de que corava. Ah, o tratante possuía encanto para dar e vender, foi forçada a reconhecer. Se ele sorrisse à tal Lady Jane
Danvers daquela maneira, sem dúvida que conquistaria o coração dessa senhora.
Claro que aquele não era assunto que lhe dissesse minimamente respeito, disse Cat irritada consigo própria. Todavia, não era capaz de encontrar explicação para o
facto de aquele pensamento lhe causar um sentimento de angústia.
Martin recostou-se todo para trás no barco, enquanto o barqueiro remava, cortando as águas turvas do Tamisa. O rio era, de longe, a maneira mais rápida de uma pessoa
se deslocar através da cidade, uma vez que as ruas estreitas estavam demasiado imundas e atravancadas de carroças, cavalos e transeuntes.
Mas naquela noite o Tamisa estava cheio de tráfego fluvial, à cunha com botes e barcas com as suas velas quadradas. Até mesmo àquela hora, as docas eram como uma
floresta de mastros, carga que continuava a ser descarregada - vinho, madeira, arenques e lã. O fim de tarde reverberava com o som das vozes ásperas que falavam
em inglês, rindo, praguejando, cantando e discutindo, ao que se associavam os gritos constantes dos barqueiros que solicitavam clientes.
- A navegar para ocidente! A navegar para oriente!
Todo aquele movimento, o barulho e o cheiro desagradável a humidade que vinha do rio, toda aquela atividade ribeirinha, era muito familiar a Martin desde os tempos
da sua juventude. Se fechasse os olhos, quase conseguia imaginar-se de retorno às margens do Sena. Os londrinos eram uma gente insular muito obstinada, quezilentos
e desconfiados de todos os estrangeiros, o que, na prática, abrangia todos os que não tinham nascido em Londres. Muito embora Martin não desprezasse tanto os ingleses
como Cat, tinha saudades das vozes melodiosas dos seus concidadãos, do belo vinho que era vendido nas tabernas, da paixão e da alegria de viver das gentes de Paris.
Sentiu-se possuído por um raro sentimento de saudade pela sua terra natal, esforçando-se por pô-lo para trás das costas. Protegendo os olhos do último clarão do
pôr do Sol, observava os raios que se refletiam na superfície da água, tingindo-a de um vermelho tão intenso como o cabelo de Catriona OHanlon.
Os seus lábios esboçaram um sorriso involuntário ao pensar na voluntariosa irlandesa. Não obstante as últimas severas admoestações feitas aos seus serviçais, devido
à maneira como tratavam Cat, apercebera-se de um ressentimento latente neles. No entanto, não tinha dúvidas de que ela saberia como dar conta do recado e, ainda
mais importante, saberia como manter Meg em segurança.
Um pensamento que o tranquilizava, o único que lhe proporcionava alguma paz de espírito naquela noite. Ficou mais tenso quando o barco já se aproximava daquela área
da cidade onde as casas palacianas se agigantavam acima do Tamisa, com os seus relvados e jardins a estenderem-se até à margem do rio. Eram o género de mansões solarengas
em que Martin nem sequer teria podido encostar o nariz nos vidros das janelas durante a sua juventude, com receio de que lhe açulassem os cães.
Tinha conseguido subir bastante na vida para poder ir a um banquete na Casa Strand como convidado. Mas a satisfação que devia ter sentido era ofuscada pela perceção
bem clara do seu verdadeiro objetivo naquela noite, não como convidado, mas sim como espião de Walsingham.
com certeza que a ceia seria excelente, bem como a música, o baile e a peça teatral apresentada pela companhia do Teatro Crown, sem esquecer o espetáculo de fogo
de artifício, tudo em honra da rainha. Ned Lambert não se poupara a despesas para organizar um evento como aquele, mas Martin não iria desfrutar de nada daquelas
festividades.
Passaria toda a noite sobre brasas, sentindo-se como um canalha traidor enquanto esperava pela melhor oportunidade de poder passar revista à casa furtivamente. Mas
à procura do quê? Provas de traição que tinha a certeza absoluta que não encontraria.
Sentindo-se extremamente frustrado, perguntava-se como é que conseguiria convencer Walsingham de que Lorde Oxbridge não participava em nenhuma dessas conspirações
que eram urdidas contra a rainha Isabel. Estava a chegar à conclusão de que era muito mais fácil arranjar provas da culpabilidade de um homem do que da sua inocência.
Pousando o cotovelo sobre o joelho, Martin apoiou o queixo na mão, enquanto o barqueiro manobrava o barco em direção ao ancoradouro abaixo da Casa Strand. Era uma
imponente mansão de pedra que tinha inúmeras janelas com vidros em forma de losango. Janelas que, em grande parte, pareciam
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estranhamente às escuras para uma casa onde teria lugar um grandioso banquete. Do mesmo modo, não se via grande movimento na alameda de acesso à casa, nem tão-pouco
nos jardins que a circundavam.
Martin franziu os sobrolhos, sentando-se a direito. Receava chegar com algum atraso, no entanto devia existir algum sinal da chegada de outros convidados. Enquanto
olhava para a mansão mergulhada em silêncio, sentiu um aperto no estômago, com o pressentimento de que se passaria alguma coisa de muito errado.
Mal deu tempo ao barqueiro para atracar antes de saltar para fora do barco. Martin atirou uma moeda ao homem e afastou-se do ancoradouro. Os arbustos, os carvalhos
de grande porte e os canteiros dos jardins muito bem cuidados perdiam-se nas sombras com o cair da noite.
Mas no caminho mais adiante avistou a chama tremeluzente de um archote que lhe permitiu ver um grupo de homens que se afastavam da mansão em passo de marcha. Martin
colocou-se por baixo da copa de uma árvore até conseguir identificá-los. O vestuário modesto, a par das violas e alaúdes, indicava que eram músicos contratados para
animarem as festividades. Eram seguidos de perto por uma jovem que envergava um vestido de seda por cima de anquinhas.
Mas não se tratava de uma senhora. Martin reconheceu a passada familiar e a expressão agarotada de Alexander Naismith, o jovem ator que desempenhava papéis femininos
no Teatro Crown. Enquanto descia a alameda, Alexander levantou as saias, mostrando os calções apertados abaixo dos joelhos que usava por baixo do vestido.
Quando os músicos passaram pelo lugar onde Martin se ocultava, saiu das sombras e agarrou em Alexander pelo braço. O rapaz ficou sobressaltado quando Martin lhe
saiu de repente ao caminho.
- Mestre Wolfe!
- O que é que se passa, Sander? O que é que aconteceu?
- Não a nossa representação, sem dúvida nenhuma - respondeu o rapaz carrancudo. Apesar dos seus quase dezasseis anos, continuava a ter uma face imberbe devido à
ausência de barba e a voz tinha um tom de falsete. As bochechas carregadas de carmim pareciam ainda mais berrantes quando ele tirou a peruca preta cheia de caracóis.
O cabelo louro de Sander, que lhe dava pela altura do queixo, estava apanhado ao alto, revelando um coto muito feio onde a orelha esquerda devia ter estado. Habitualmente,
o jovem sentia-se extremamente embaraçado por
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causa da sua deformidade, fazendo tudo e mais alguma coisa para a ocultar, mas, de momento, mostrava-se demasiado vexado para se preocupar com isso.
- Foi tudo cancelado, o banquete, o entretenimento, o fogo de artifício, e tudo porque a nossa mui graciosa soberana decidiu não nos honrar com a sua presença. À
última hora, a rainha enviou uma mensagem a lamentar o sucedido. Mas não sei porquê.
Mas Martin sabia. Walsingham. O secretário da rainha devia ter conseguido fazer com que ela mudasse de ideias, persuadindo-a a não ir ao banquete.
- Sua senhoria deve estar extremamente desiludido - comentou Martin pensativo.
- Desiludido? - disse Sander com uma gargalhada esganiçada. - Cheio de raiva seria uma descrição mais exata. O homem fez uma birra monumental, virou a mesa do banquete
de pernas para o ar, derrubou os bancos e berrou aos convidados para que se pusessem na rua. A pobre Lady Jane Danvers estava à beira das lágrimas enquanto pedia
desculpa a toda a gente à medida que as pessoas iam saindo. - A nossa companhia encontrava-se no salão de baixo, onde nos preparávamos para atuar depois da ceia.
Mas quando o rebuliço se instalou, os outros atores puseram-se a andar. Fui o único que se atreveu a ficar por aqui na esperança de ainda poder vir a ser recompensado
por esta noite.
Atitude que não surpreendeu Martin. Sander Naismith era um rapaz ousado e, em certa medida, era um protegido de Lorde Oxbridge, que havia sido quem o meteu na companhia
do Teatro Crown.
- Mas está a parecer-me que vou voltar para casa com a bolsa vazia acrescentou Sander desanimado. - E a verdade é que estou desesperado por receber algumas coroas.
- Ah, meu jovem idiota. Sem dúvida que voltaste a perder uma boa maquia a jogar aos dados.
- Não, senhor! - Mas o sorriso acanhado do rapaz contradizia as suas palavras.
- Não importa. Tenho a certeza de que Lady Jane Danvers tratará de se certificar de que todos serão recompensados quando estiver menos mortificada - adiantou Martin,
dando uma palmada no ombro do jovem para o animar. - Mas se ela não o fizer, eu próprio tratarei desse assunto.
Sander mostrou-se mais alentado com a promessa de Martin. Mas enquanto continuava a descer pela alameda, disse por cima do ombro:
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- Se eu estivesse no vosso lugar, mestre Wolfe, não iria lá dentro. O Ned, quero dizer, sua senhoria, está perdido de bêbado, o que não contribuiu em nada para melhorar
o seu estado de espírito. - Sander apanhou as saias e desapareceu na escuridão. Apesar do aviso do rapaz, Martin continuou a encaminhar-se para a casa, bastante
perturbado com o que Sander lhe dissera.
Martin sabia que Ned Lambert aguardara ansiosamente a oportunidade de receber a rainha, não tendo falado de outra coisa durante as últimas semanas. À semelhança
de qualquer outro jovem nobre ambicioso, era frequente que se encontrasse nos salões de Whitehall na esperança de conseguir cair nas boas graças da soberana.
Prejudicado pelo facto de ser católico e pelos infelizes antecedentes da sua família, Ned vira todos os seus esforços frustrados, vendo-se obrigado a conviver com
os peticionários, que se aglomeravam no pátio exterior do palácio. Mas a rainha Gloriana adorava receber presentes. Um dispendioso alfinete de peito de pedras preciosas,
com a forma de um pavão, finalmente dera-lhe acesso à sala de audiências. As bonitas feições dele, a par de muitas lisonjas e uma canção composta em honra de Gloriana,
haviam-lhe granjeado ainda mais favores, tendo a rainha concordado graciosamente em assistir ao banquete que teria lugar na Casa Strand.
Não era difícil a Martin imaginar o desgosto e a humilhação de Lorde Oxbridge perante a ausência da rainha naquela noite. Todavia, era a extrema fúria da reação
de sua senhoria que mais perturbava Martin.
Ned Lambert tinha tendência para descarregar as frustrações irresponsavelmente nas coutadas onde costumava caçar. Era um cavaleiro muito imprudente que comprava
mais do que um belo garanhão quando o desânimo o assolava. Era bastante mais comedido na ingestão de álcool do que a maior parte dos seus amigos. Mas quando bebia
de mais, ficava muito calado e cabisbaixo até adormecer por fim. Martin nunca ouvira dizer que o jovem se tivesse embebedado ao ponto de ficar furioso. Só esperava
que a violenta desilusão que Ned sofrera não tivesse origem numa qualquer causa sinistra. Por exemplo, uma conspiração com vista a um assassínio que tivesse sido
abortado pela ausência da rainha...
Não, teria sido perigoso ao ponto da loucura para Ned se arriscar a atentar contra a vida da rainha sob o seu próprio teto. Martin não conseguia acreditar que sua
senhoria pudesse ser tão tolo, em especial porque também estaria a pôr em perigo a vida da própria irmã. Se bem que Jane fosse quase dez anos mais velha do que Ned,
os dois irmãos eram muito chegados.
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Não conseguia crer que Ned estivesse envolvido em conspirações de qualquer natureza. Não podia acreditar ou não queria acreditar na voz na sua cabeça, que lhe falava
com autoridade, extraordinariamente semelhante à de Walsingham.
"Considerais inconveniente que o homem que vos ajudou afundar o vosso precioso teatro seja culpado de traição. O vosso afeto pela irmã de sua senhoria tem feito
com que procedais com muito pouco zelo nas vossas investigações."
As acusações proferidas pelo secretário da rainha atormentavam Martin quando chegou ao pátio interior. Fez o seu melhor para banir esses pensamentos da sua mente.
Os serviçais da casa continuavam em rebuliço, ao ponto de ele ter conseguido chegar ao grande salão sem que ninguém o interpelasse nem anunciasse. Olhando em volta
de si, Martin ficou conturbado a constatar que Sander não tinha exagerado.
O salão dos banquetes parecia ter sido invadido por um bando de saqueadores turcos, com as mesas, cadeiras e bancos virados de pernas para o ar. Os assentos de palhinha
sujos com o que prometera vir a ser uma ceia sumptuosa. Os guardanapos de damasco, os saleiros, as bandejas de prata, as tábuas de madeira para trinchar, estava
tudo espalhado por todo o salão, a toalha de linho branco adamascado toda manchada de vinho e cheia de estilhaços da louça de cristal.
Os servos agrupavam-se junto da porta da cozinha, conversando em vozes sussurradas, claramente desnorteados quanto ao que fazer a seguir, mas olhando de soslaio
para o homem esparramado na poltrona diante da lareira.
Lorde Oxbridge estava de costas para a entrada do salão. Martin só conseguia vislumbrar as suas pernas compridas, vestidas com umas elegantes bragas justas, estendidas
diante dele. Um dos braços pendia ao lado da poltrona, os dedos afuselados de pele branca repletos de anéis. A raiva que se apoderara de Ned já se tinha esgotado
ou ele teria perdido a consciência. Do lugar onde se encontravam, Martin não conseguia ver qual das hipóteses é que o teria acalmado.
A irmã mantinha-se por perto, uma sombra de si mesma no seu vestido de seda não branqueada, drapejado por cima das anquinhas, o belo cabelo louro preso numa rede
pontilhada de pérolas. Foi a primeira a dar pela chegada de Martin.
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Quando um dos pajens se preparava para se aventurar a atravessar o salão para receber Martin, Jane Danvers, com um gesto, indicou-lhe que se retirasse. Aproximou-se
de Martin com a mão estendida.
- Marcus. Eu... eu quero dizer, mestre Wolfe.
- Lady Jane Danvers - cumprimentou Martin com um baixar de cabeça. Pegou na mão dela e roçou-lhe os lábios pela face, na saudação habitual para uma anfitriã.
Subiu-lhe um ligeiro rubor às faces pálidas. De costume, o seu semblante mostrava a serenidade de uma Madona, mas naquele momento tinha a fronte macia enrugada e
os olhos de um cinzento de pomba espelhavam uma grande ansiedade.
- Eu... eu peço-vos desculpa. Lamento muito ter de vos dizer que fomos obrigados a cancelar o banquete. Isto é... isto é, a rainha não... e... e o meu irmão não
está em si. Ele... ele...
- Tranquilizai-vos. Estou ao corrente do que se passou - atalhou Martin, apertando-lhe a mão suavemente. Este simples gesto foi o suficiente para que os olhos de
Jane ficassem marejados de lágrimas, mas ela pestanejou com força para as conter. Era possível que não possuísse o aguerrido orgulho de Catriona, mas Lady Jane Danvers
era senhora de uma dignidade muito pessoal. - Posso ser-vos útil em alguma coisa? - perguntou-lhe Martin solícito.
- Encontrar-me um convento agradável e silencioso onde eu me possa esconder? - retorquiu Jane, fazendo um esforço para esboçar um pequeno sorriso. - O comportamento
de Ned tem sido tão escandaloso que não me parece que seja capaz de mostrar a cara em Londres ou na corte durante as próximas semanas.
Semicerrou as pálpebras.
- Não que o Ned e eu fôssemos muito bem-vindos em Whitehall até ao presente.
- Wolfe, sois vós? - Ouviu-se uma voz entaramelada que vinha do outro extremo do salão. Lorde Oxbridge levantou-se das profundezas da poltrona.
Num passo cambaleado e pouco firme encaminhou-se para Martin, a luz da chama tremeluzente do castiçal a refletir-se nos botões de pedras semipreciosas do seu gibão
de seda azul. O cabelo de Ned Lambert estava todo penteado para trás, as madeixas de um louro mais claro do que o da irmã, mas os olhos cinzentos tinham uma expressão
ligeiramente mais firme. Ao
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contrário da maior parte dos homens que andavam sempre na moda, ele não usava barba.
Bem-parecido de uma maneira altaneira, esta noite o rosto de feições magras estava de um avermelhado-escuro que se devia à ingestão exagerada de vinho. Os olhos
continuavam a brilhar perigosamente e, não obstante estar mais calmo, Martin pressentia que não seria preciso muito para que a fúria voltasse a reavivar-se. Martin
fez-lhe uma pequena vénia.
- Boas noites. Como tendes passado, milorde?
- Mal. Amaldiçoadamente mal! - ripostou Oxbridge cambaleando um pouco, mas conseguiu equilibrar-se ao apoiar uma mão pesadamente no ombro de Martin. - A bruxa velha
não veio.
- Ned, por favor... - começou Jane a dizer, começando a dirigir-se para o irmão. Mas ele endireitou-se e com um gesto de desagrado indicou-lhe que se afastasse.
- A minha irmã mais velha preparada para me repreender. Não se deve falar desrespeitosamente da minha soberana, apesar de ela ser a causa de eu ter feito uma figura
extremamente ridícula. Enviou uma mensagem em que dizia que se sentia in... indisposta. Treta! - Sua senhoria emitiu um som escarninho através dos lábios cerrados,
espetando um dedo no peito de Martin. - Alguma vez tínheis ouvido uma coisa dessas, Wolfe? A velha jarreta nunca esteve doente um único dia que fosse em toda a sua
vida. Ela viverá para sempre, apesar de que ficaríamos muito melhor se ela fosse...
- Edward! - gritou Jane, olhando para o irmão com uma expressão de advertência, mas que ele estava demasiado inebriado para perceber. A gesticular com as mãos numa
manifestação de nervosismo, apelou a Martin.
- Por favor. Peço-vos perdão em nome de sua senhoria e de mim própria. Não nos encontramos em condições de poder receber convidados. Tenho de vos implorar que partais.
- com certeza. Eu compreendo, milady - retorquiu Martin, que já tinha ouvido mais do que desejara. Mas Ned passou o braço pelos ombros de Martin.
- Não, ficai - disse, lançando um olhar furioso à irmã. - Não deves ser rude para com o Wolfe, Jane. Ele é um amigo excelente. Não te esqueceste de que te salvou
a vida, pois não? - Apoiando-se pesadamente em Martin, acrescentou: - Vinde tomar uma caneca de vinho e comiserai comigo.
- Ned, já bebeste excessivamente - atalhou Jane, mas Martin advertiu-a com um abanar de cabeça para que se calasse. Ela compreendeu que todas
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as suas súplicas não surtiriam efeito nenhum, servindo apenas para exasperar o irmão ainda mais.
- Uma ideia excelente, milorde. - Num tom de voz mais baixo, disse a Jane: - Mais vinho é capaz de o ajudar a adormecer.
Os olhos de Jane abriram-se muito, mas depois fez um acenar de cabeça de compreensão.
- Mas quem diabo é que quer dormir? - perguntou sua senhoria numa voz rosnada, tendo ouvido o que Martin tinha dito. Afastando-se deste, conseguiu voltar para a
sua poltrona pelos seus próprios meios. Deixou-se cair e gritou para que lhe trouxessem mais vinho.
Um lacaio com uma postura muito digna, que usava a libré escarlate e preta dos Lambert, apareceu prontamente, trazendo duas canecas com tampa numa bandeja. Emborcando
o vinho da sua caneca, Ned nem sequer reparou que Martin pousou a sua em cima da prateleira da lareira, sem sequer ter provado o vinho. Apercebia-se de que se encontrava
numa situação extremamente difícil, pelo que precisava de ter as ideias bem claras. Aquela era precisamente a oportunidade que Walsingham esperaria que Martin aproveitasse
em pleno. Inteirando-se de quaisquer segredos que lhe fosse possível enquanto a língua de Ned estava mais solta devido à bebida.
Mas Martin não conseguia desviar os olhos de Jane. A fisionomia tão delicada mostrava-se de tal maneira conturbada que apelava a todos os seus instintos mais protetores.
Entretanto, o lacaio conseguiu chamar-lhe a atenção, perguntando-lhe em voz baixa:
- Peço perdão, milady, mas a cozinheira gostaria de saber o que fazer com toda a comida que foi preparada para o banquete.
A copiosa ingestão de vinho de Ned não parecia afetar o seu sentido auditivo.
- Atirem tudo para a rua! - vociferou. - É deixar que os cães e os tratantes se empanturrem.
Jane franziu as sobrancelhas, admoestando o irmão suavemente.
- Meu querido, com certeza que seria muito melhor distribuir a comida pelos pobres.
Ned bebeu outro trago do seu vinho, franziu o cenho e depois encolheu os ombros.
- Hum... está bem.
Enquanto Jane dava as suas instruções em voz baixa ao servo, Ned olhava para a caneca de vinho como se estivesse a cismar, após o que disse:
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- Os pobres estarão sempre connosco. Especialmente nos tempos que correm. Os pobres desgraçados não têm aonde ir para pedirem esmola. Malditos protestantes que não
pensaram no que estavam a fazer quando mandaram encerrar todos os mosteiros e conventos, pois não, mestre Wolfe?
- Não, tenho de reconhecer que não pensaram - respondeu Martin sentindo mal-estar. Desde sempre que os dois irmãos Lambert se tinham mostrado muito discretos no
tocante ao seu catolicismo. Martin sabia que Jane usava um crucifixo muito simples que mantinha sempre por dentro do vestido, mostrando apenas o fio de ouro. Quanto
a Ned, Martin nunca o ouvira dizer uma única palavra sobre o assunto da religião até agora.
Jane voltou ao salão a tempo de ouvir os últimos dislates do irmão. Pousou uma mão no ombro dele.
- Deus espera que todos sejamos caridosos, Ned, e não apenas os homens religiosos.
- Tu és suficientemente caridosa por nós dois. A minha irmã é uma santa, Marcus. Sabíeis isso?
- Sem dúvida nenhuma que é uma senhora nobre e virtuosa - retorquiu Martin sorrindo a Jane.
- Não! Estou a dizer-vos que é uma santa - insistiu Ned. - Um raio de uma santa!
- Edward! - admoestou Jane, apertando o ombro do irmão. Olhou para Martin com uma expressão de pesar. - Asseguro-vos de que não sou santa nenhuma.
Ned sorriu-lhe imbecilmente, estendendo a mão para dar uma palmadinha na da irmã. Mas a expressão dele ensombrou-se quase de imediato. Surpreendeu Martin e Jane
ao atirar, subitamente, a caneca de vinho para a lareira sem lume. Dobrou-se sobre si mesmo, ocultou o rosto nas mãos e disse num gemido:
- O que é que eu vou fazer? O que é que eu vou fazer? Pensei que ao lamber as botas da rainha poderia conseguir uma posição elevada na corte. Mas eu tinha obrigação
de saber que isso não seria fácil. Ela dá preferência apenas aos protestantes, aos ciganos de pele escura como esse velho jarreta que é o Leicester. Não sei se sabem,
mas ele já foi amante da rainha. Os dois puseram-se de conluio para assassinarem a mulher dele.
- Ned, por amor de Deus, suplico-te que te cales. Podes vir a ser encarcerado na Torre de Londres por falares dessa maneira - disse Jane, olhando para Martin deveras
constrangida.
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- Não vos preocupeis, milady - apressou-se ele a tranquilizá-la. - Estou ao corrente de todos esses mexericos de antigamente. Não lhes dou crédito nenhum e certamente
que nunca os repetiria.
- E por que não? Ninguém se coíbe de falar a esse respeito - resmungou Ned, mas depois retomou o tom de lamúria. - Elstou arruinado. Quase entrei em falência para
dar este ban... banquete. Fazeis alguma ideia de quanto gastei? O dinheiro da Jane.
- Isso não tem importância, meu querido irmão - disse Jane afagando-lhe as costas para o acalmar. - Eu não me importo.
- Mas importo-me eu, raios partam isto! - Ned ergueu a cabeça num movimento repentino. - Não quero passar o resto da minha vida agarrado às saias da minha irmã.
- É o dever de qualquer mulher olhar pelo bem-estar da sua família.
- Isso é o nosso pai a falar - ripostou Ned escarnecedor. Olhou para Martin. - Sabíeis que a Jane foi moeda de troca em duas ocasiões para repor a fortuna da família?
- perguntou. - Numa dessas ocasiões desposou um rapaz enfermiço e depois um velho que sofria de gota. Pobre vaquinha.
Quando Jane baixou o olhar embaraçada, Martin sentiu uma vontade quase irreprimível de dar uns bons socos nas orelhas do jovem tão insensível. O que não seria nada
boa ideia em virtude do estado inebriado de Ned. Essa atitude só levaria a uma luta com trocas de murros ou a um duelo, o que só serviria para entristecer Jane mais
do que já estava.
Ned virou-se para trás na poltrona para poder olhar para a irmã com olhos de carneiro mal morto.
- Nunca mais, Jane. A próxima vez que casares será com alguém que tu escolhas. Um homem bem-parecido e concupiscente que se deitará contigo como deve ser. Eu próprio
tratarei de refazer a nossa fortuna. Serei o homem mais rico e mais poderoso de Inglaterra, se tudo correr de feição.
Quando concentrou a sua atenção em Martin, o rosto congestionado de sua senhoria adquiriu uma expressão ardilosa. Levou um dedo aos lábios num gesto muito dramático.
- Chiuu, Wolfe, meu velho, sois capaz de guardar um segredo? - perguntou a Martin.
- Tento ser discreto - respondeu Martin com um sorriso forçado. - Mas não me parece que esta seja uma boa altura para vossa senhoria partilhar
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confidências. Não quando a vossa capacidade de raciocínio não está no seu melhor.
- Não há nada de errado na minha capacidade de raciocínio - ripostou Ned, esforçando-se por se pôr de pé e cambaleando ligeiramente. - Quero mostrar-vos uma coisa.
- Ned, não! - Se Jane se mostrava conturbada antes, agora estava lívida de alarme. - Tenho a certeza de que o Marcus não está interessado em...
- com certeza que está. Até é muito capaz de querer participar no meu empreendimento.
Jane agarrou-se ao braço do irmão, mas ele sacudiu-a com brusquidão. Fazendo um gesto a Martin para que o seguisse, Ned dirigiu-se num passo cambaleante para a cozinha.
Martin não tinha outra opção que não fosse segui-lo, o que fez, mas sentindo engulhos no estômago.
Maldito jovem que era tão irresponsável. Seria possível que Walsingham tivesse razão quando dizia que Ned estava envolvido na conspiração de Babington? Estaria o
idiota bêbado prestes a servir-lhe as provas de que o secretário da rainha precisava numa bandeja de prata?
Enquanto Ned continuava a dirigir-se para a cozinha num passo vacilante, os serviçais apressavam-se a recuar como sombras assustadas. Ned pegou num castiçal.
- Por aqui - indicou numa voz entaramelada, levando Martin por uma porta de acesso a umas escadas de pedra em bruto que desciam até às caves. Martin começou a descer
cuidadosamente atrás dele, com Jane logo a seguir, as saias a roçagarem pelos degraus de pedra. Agarrava Martin com um grande frenesim, como se quisesse puxá-lo
para trás. Mas Ned era quem estava a precisar de ser parado, pensou Martin agastado.
Pouco firme nos pés, Ned quase perdeu o equilíbrio quando desceu o último degrau. Martin tirou-lhe a vela da mão antes que o idiota a cair de bêbado pegasse fogo
à casa.
A luz da chama iluminava uma cave cheia de barris de vinho e barricas cheias de cerveja. No extremo mais afastado via-se uma porta de carvalho maciço. Foi para aí
que Ned se encaminhou enquanto tirava uma chave , enorme de ferro de um bolso interior do gibão.
Aquilo não augurava nada de bom, pensava Martin. Uma porta de acesso a uma qualquer câmara misteriosa no subterrâneo da mansão, cuja única chave estava na posse
de sua senhoria.
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O que quer que houvesse no interior, fazia com que a irmã estivesse mortificada de apreensão. Seria algum segredo terrível que Jane, obviamente, receava que Ned
revelasse a alguém?
Perante aquela situação, por que diabo é que ela não fazia qualquer coisa que não fosse contorcer as mãos repetidamente? Porque é que não detinha o irmão? Sem sombra
de dúvida que Cat teria feito isso se fosse o seu irmão. Ela ter-lhe-ia dado uma paulada que o teria posto inconsciente, impedindo que ele se traísse a si mesmo.
Enquanto Ned praguejava por não conseguir acertar com o buraco da fechadura de tão bêbado que estava, sub-repticiamente Martin limpou uma gota de suor da testa.
Nem sequer conseguiria dizer por que motivo é que pensava em Cat numa ocasião daquelas, comparando-a com Jane.
Talvez por se sentir um tudo-nada desesperado, temendo o que Ned estaria prestes a mostrar-lhe, quiçá, provas de traição, o que Martin se sentiria obrigado a relatar
a Walsingham.
Quase desejava que Ned partisse a maldita chave na fechadura. Mas, entretanto, ouviu-se um sonoro clique. Ned começou a empurrar a pesada porta, que se abria com
um ranger de mau augúrio. Encostando-se à ombreira com um sorriso de uma presunção imbecil, indicou a Martin que devia entrar à sua frente.
Jane soltou um pequeno som. Quando Martin olhou para ela, viu que tinha as mãos entrelaçadas enquanto mexia os lábios em silêncio. Maldição, estaria a mulher a rezar?
Mas o que raio é que se encontrava dentro daquela câmara?
Sentiu um aperto de frialdade no estômago. Martin endireitou os ombros e transpôs a ombreira da porta. Mas nada poderia tê-lo preparado para aquilo com que os seus
olhos se depararam.
Erguendo o castiçal ao alto, ficou de boca aberta ao sentir um choque indescritível.
A noite caiu sobre a janela da alcova de Meg, qual manta quente e escura, assinalando a hora de dormir. Mas a garota estava bem acordada. A camisa de dormir adejava
em volta das pernas nuas. Abriu a janela, debruçando-se por cima do peitoril tanto quanto se atrevia, e levou o instrumento de aumento a um olho.
Tinha sido ela própria a fazê-lo, seguindo as instruções tão fielmente como lhe foi possível, ajustando o vidro convexo no tubo de metal. À semelhança de tudo o
que estava descrito no Livro das Sombras, o instrumento destinava-se a um objetivo sinistro, espiar os inimigos de alguém, proporcionando à pessoa mais vantagem
numa guerra.
Mas o único inimigo que Meg ansiava por conquistar era o que se ocultava no seu próprio coração. Assestou o binóculo em direção ao firmamento escurecido, a respiração
suspensa na garganta enquanto examinava o cometa. De noite para noite, parecia um pouco mais brilhante, cintilando flamante como se quisesse queimar um buraco no
céu.
Um arauto do mal. Tanto os astrólogos como os homens religiosos estavam de acordo quanto a isso. O cometa era o precursor de uma qualquer mudança cataclísmica, um
qualquer destino sinistro. Meg só rezava para que não fosse o seu. Baixou o binóculo e voltou a sentar-se no assento da janela, soltando a respiração com um suspiro
trémulo.
"Desde o momento do teu nascimento, não, mesmo antes de nasceres, que foste escolhida para feitos de grandeza. As filhas da Terra destronarão monarcas e despojarão
todos os homens dos seus poderes. És aquela que está destinada a conduzir-nos a esta nova época de glória, Megera. Serás uma rainha entre rainhas, a mais poderosa
feiticeira que o mundo alguma vez viu.
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Meg fletiu as pernas completamente, chegando-as ao peito e apoiando a cara nos joelhos, tapando os ouvidos com as mãos para que a recordação da voz da mãe não lhe
entrasse no pensamento.
- Esquece, esquece, esquece - entoou repetidamente. Era o que o pai queria que ela fizesse, mais do que tudo. Bem, isto é, a seguir a vir a ser uma dama inglesa
como devia ser, que não soubesse nada acerca de venenos, seringas ou do Livro das Sombras. Ela ansiava tão desesperadamente por agradar ao pai, mas por que razão
é que lhe parecia ser cada vez mais difícil, ao invés de mais fácil, fazer tudo o que ele lhe pedia?
"Não é assim tão fácil esquecer o passado, tentar negar quem se é e que nos está na massa do sangue. Qualquer mulher sábia aprende a ser verdadeira consigo própria",
dissera-lhe Cat.
Mas e se o que uma pessoa era realmente fosse maléfico, alguém predestinado a ser uma poderosa e sinistra feiticeira, a Rosa de Prata?
Meg estremeceu, sentindo uma vaga de cólera contra Cat. Ela e o pai tinham vivido muito harmoniosamente antes de aquela irlandesa ter aparecido em casa deles, com
todas as suas advertências e conselhos que não haviam sido desejados.
E agora a voz da mãe voltava a fazer-se ouvir na cabeça de Meg. E o pai andava tão preocupado. Meg duvidava que ele alguma vez viesse a permitir-lhe voltar a pôr
um pé que fosse fora de casa. E tudo por culpa de Catriona OHanlon, e como se isso não chegasse, a arrivista irlandesa atrevera-se a criticar a mui graciosa e boa
rainha Isabel, que Meg adorava.
Desejava que Cat nunca tivesse ido a casa deles. Desejava que o mar se tivesse aberto para engolir Cat antes de...
Não. Meg pôs fim àquele pensamento com um pequeníssimo gemido. Olhou em volta por cima dos joelhos, como se receasse que algum espírito malevolente tivesse ouvido
o seu desejo.
- Retiro o que disse. Retiro o que disse - murmurou angustiosamente, tremendo ao lembrar-se da história de Aggie acerca do pobre homem que tinha morrido de um pensamento
maléfico.
Tal e qual como a mãezinha...
Um leve bater à porta sobressaltou Meg, que ficou a sentir o coração a bater-lhe contra as costelas. Atabalhoadamente, levantou-se do assento da janela. Mal teve
tempo para esconder o binóculo nas dobras da camisa de dormir antes de Cat entrar na alcova.
Catriona hesitou na ombreira da porta. Desde que Martin tinha saído para o banquete que a garota a evitava, ao ponto de ter ceado no quarto. Cat
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permitira-lhe que fizesse isso. Sentia-se tão farta da hostilidade das demais pessoas da casa que não se sentira com energia para lidar também com uma menina Margaret
amuada. Esperara ter encontrado a garota a dormir e não perto da janela como o fantasma de uma criança que tivesse acabado de ser trazido pela noite, os olhos com
uma expressão tão atemorizada como os de um texugo encurralado num matagal.
- Posso entrar? - perguntou Cat, fechando a porta atrás de si.
- Parece-me que já entraste - resmungou Meg mal-humorada. - O paizinho disse que era aqui que passarias a dormir para me poderes vigiar sem assustar os serviçais.
Ele não quer ser acordado com mais lutas com cabos de vassoura.
com um prolongado suspiro sofredor, a garota apontou para o colchão que havia sido colocado junto da lareira para Cat.
- Duvido que consigas dormir muito confortavelmente.
- Já dormi em condições muito piores em cavernas e em matagais ao ar livre, em vacarias e cabanas abandonadas. - As palavras de Cat puseram um brilho de curiosidade
nos olhos de Meg, o que fora a intenção de Cat. Mas a garota apressou-se a suprimi-lo, substituindo-o por uma expressão empedernida no rosto e encaminhando-se para
o seu leito. - Aprendi a sentir-me mais confortável no solo de terra compactada do que no melhor colchão de penas - continuou Cat, encostando-se à prateleira da
lareira. Enquanto descalçava os sapatos, Meg puxava a colcha para os pés da cama com movimentos excessivos, após o que procedeu da mesma maneira quando afofou a
almofada. Catriona acrescentou, como quem não quer a coisa: - Embora tenha de admitir que dormiria muito mais descansada se soubesse o que é que estás a tentar esconder
debaixo da almofada.
Meg ficou imóvel, mas depois atirou a cabeça para trás numa atitude desdenhosa.
- Não é a lâmina de bruxa, se é isso que está a preocupar-te.
- É bom saber o que não é, mas talvez fosse melhor que me mostrasses o que é. - Cat encaminhou-se para a garota e estendeu-lhe a mão. Meg fitou-a com uma expressão
de desafio por breves momentos. Cat não desviou o olhar, dando mostras de muita paciência, até Meg acabar por se render. Procurou debaixo das cobertas, de onde tirou
um cilindro de metal, que lhe pôs na palma da mão com brusquidão.
Catriona começou a examinar o objeto em questão, franzindo a testa intrigada.
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- O que é isto? Alguma espécie de cacete?
- Não! Para ti não existe nada que não seja uma espécie de arma? É um aparelho para ver ao longe. É preciso encostá-lo ao olho.
Quando Cat ergueu o cilindro, viu que tinha pedaços de vidro curvo ajustados nos dois extremos do tubo oco. Cautelosamente, ajustou um dos extremos ao olho. Cerrando
o outro, olhou pelo tubo.
A alcova ficou virada de pernas para o ar, o dragão tecido na tapeçaria a dar a impressão de estar a voar em direção a ela a uma velocidade estonteante.
- Santa Brigida! - exclamou Cat arfante, apressando-se a tirar o tubo da vista. - Mas que coisa diabólica é esta?
- É apenas um binóculo - respondeu Meg impacientemente. - Mas como não consegui descobrir como é que funciona como deve ser, as coisas parecem estar de pernas para
o ar. Mas isso não faz diferença se o usarmos para olhar para os céus - acrescentou, fazendo um gesto na direção da janela.
Cat dirigiu-se para a janela aberta e encostou o tubo ao olho, arriscando-se a outro olhar, direcionando o binóculo para a Lua, que estava na fase de quarto minguante.
A olho nu, parecia que metade da Lua tinha desaparecido, partida ao meio por uma espada gigantesca.
Contudo, com o aparelho de Meg, Catriona conseguia ver a parte da Lua oculta pela sombra e toda a superfície estava picada como uma cara redonda desfigurada pela
varíola. Ficou com a respiração suspensa na garganta e mudou de posição para poder observar o resto do firmamento, as estrelas tão brilhantes e tão próximas que
esteve quase a estender a outra mão para poder tocar-lhes.
E o cometa... visto através das lentes, era ainda mais inspirador de um temor respeitoso e aterrador, uma esfera incandescente que deixava na sua esteira a respiração
de fogo de um dragão.
Cat baixou o tubo e deixou-se cair em cima do assento da janela, olhando fixamente para Meg com uma expressão de assombro.
- Esta coisa é inacreditável. E dizes que foste tu que a fizeste?
Meg confirmou com um acenar de cabeça de indiferença. Mas quando se aproximou para que Cat lhe devolvesse o binóculo, o orgulho que sentia pelo seu feito não lhe
permitiu continuar em silêncio.
- Li um texto acerca do binóculo num.... num livro qualquer, já não me lembro onde. Disse a uma amiga... bem, foi à Aggie, o que precisava e que
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ela foi comprar, dando ao vidreiro as minhas instruções específicas sobre como fazer as lentes. Mas depois de ter as peças todas, tive de ser eu a montar o aparelho
sem a ajuda de ninguém.
- Foste muito inteligente.
O sorriso presunçoso de Meg indicou que ela pensava o mesmo. Cat devolveu-lhe o binóculo, esforçando-se ao máximo por ocultar os pensamentos que tanto a perturbavam.
Só sabia de um texto antigo que explicava tão pormenorizadamente aparelhos tão invulgares, bem como armas de muita potência, conhecimentos que há muito estavam perdidos
para o mundo atual.
O Livro das Sombras. Martin afirmara categoricamente que nem ele nem a filha sabiam do paradeiro desse manuscrito desde a morte de Cassandra. Cat acreditava que
ele não sabia realmente. Mas não se sentia tão segura disso com respeito a Meg.
Enquanto a garota estava ocupada a guardar o binóculo no baú que tinha aos pés da cama, Catriona, como quem não quer a coisa, percorreu as prateleiras da estante
que tinha os livros de Meg, lendo os títulos. Constituíam uma estranha miscelânea de textos de natureza académica e temas banais, esotéricos e práticos. Livros como
Vidas Paralelas, de Plutarco, ao lado de textos como O Labirinto do jardineiro, da autoria de um Didymus Mountaine. A sede de saber de Meg parecia abranger um conjunto
de temas indiferenciados, devorando todos os livros a que pudesse deitar a mão.
? A lombada de um dos livros parecia mais danificada do que a dos outros. Cat tentou tirar o livro para poder ler o título, mas encontrava-se demasiado entalado
entre outros dois tomos mais volumosos. Mas quando começou a puxá-lo, foi detida pelo som da voz de Meg.
- Se eu tivesse o Livro das Sombras, não me parece que o deixasse à vista de quem o quisesse ver. - A rapariga arqueou uma sobrancelha numa réplica tão perfeita
do trejeito do pai que Cat quase não foi capaz de conter um sorriso a contragosto. Cruzou os braços diante do peito e reavivou a memória de Meg.
- Juraste pela tua honra que não lerias os meus olhos.
- E se eu não tiver honra nenhuma?
- Nesse caso, sugiro que adquiras alguma.
Meg olhou-a com uma expressão furiosa, após o que deu de ombros numa atitude desdenhosa.
- Não precisei de ler os teus olhos. A tua cara é como um espelho que reflete todos os teus pensamentos. Podes revistar toda a minha alcova se quiseres,
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mas não encontrarás nenhum Livro das Sombras. Perdeu-se em Paris e ainda bem que isso aconteceu. Quanto a esse livro para que estás a olhar tão desconfiadamente...
- Meg aproximou-se das prateleiras num passo brusco e puxou o volume entalado entre os outros, batendo com a ponta de um pequeno dedo no título.
Os Segredos e Maravilhas do Mundo.
Catriona estremeceu. Não era uma sensação muito agradável quando uma garota de onze anos fazia com que uma pessoa se sentisse um pouco idiota. Tirou o volume das
mãos de Meg para poder examiná-lo mais de perto.
- Este livro parece ter sido consultado com muito interesse e frequência - comentou Cat. - Deve ser o teu preferido.
Meg inclinou os ombros para a frente, mas quando Cat começou a folhear as páginas, foi incapaz de manter a atitude de indiferença. Aproximou-se um pouco a medo,
indicando com um gesto a ilustração de um dragão em pleno voo.
- Esse livro diz que os dragões na Etiópia são muito amigáveis. -- Sempre acreditei que fossem - corroborou Cat, sorrindo-lhe.
Meg inclinou-se para ela ainda mais para poder começar a virar as páginas até uma que marcara, dobrando o canto superior direito, e onde se via o desenho de uma
criatura monstruosa e gigantesca com presas e cauda nos dois extremos do corpo, uma delas comprida e grossa, estendendo-se onde o nariz devia ter estado.
- Por outro lado, os olifantes são bastante ferozes. Alguma vez viste algum, Catriona OHanlon?
- Felizmente, não.
- Aparentemente, a única maneira de se poder combatê-los é amarrar as caudas juntas, de maneira a tropeçarem uma na outra.
- Não me esquecerei disso - replicou Cat solenemente. Meg olhou para ela e quase começou a esboçar um sorriso antes de se controlar. Tirou o livro das mãos de Cat.
Saltou para cima da cama, meteu-se debaixo das cobertas e recostou-se nas almofadas com o seu livro.
Cat seguiu-lhe os passos, sentando-se na beira do leito. Colocando o livro à frente do rosto, Meg ignorou-a deliberadamente.
- Portanto, estou a pensar que não gostas de mim por aí além - comentou Cat.
Meg arriscou-se a espreitar por cima do livro. Decorridos alguns momentos, replicou-lhe.
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- Gosto da tua voz. É muito musical.
- Ora bem, do mal o menos, isso já é alguma coisa.
Meg voltou a desaparecer atrás do livro, virando outra página.
- O paizinho também costumava ter um tom de voz musical. Antes de ter começado a tentar ser inglês.
- O que não te agrada nada?
- Sinto um orgulho extraordinário nele - respondeu Meg com toda a veemência, mas momentos depois admitiu: - Mas eu gostava mais nos primeiros tempos, depois de termos
chegado a Inglaterra, quando andávamos de terra em terra com a trupe do mestre Roxburgh. O paizinho ria-se mais nessa altura e fazia com que todos os dias parecessem
tão empolgantes, como uma grande aventura. Mas tudo mudou depois de a Finette nos ter encontrado.
- Finette?
- Ela era uma das bruxas da irmandade. Era uma criatura má, manhosa e porca que cheirava muito mal. Eu nunca gostei dela. Não sei como é que ela conseguiu encontrar-me
e ao paizinho. Ela nunca foi muito inteligente.
- Mas, apesar disso, essa Finette encontrou-vos - disse Cat quando Meg ficou em silêncio para a encorajar a prosseguir. - O que é que ela queria?
- O que todas as mulheres da irmandade querem - respondeu a garota numa vozinha que mal se ouvia. - Todas esperavam de mim coisas absolutamente inconcebíveis. Acreditavam
que eu, sabe-se lá como, possuía a magia de fazer com que todas ficassem maravilhosas, ricas e poderosas. Que eu tinha poder para trazer do mundo dos mortos pessoas
que amavam e que haviam perdido.
Meg encolheu-se ainda mais. Cat sentiu-se tentada a tirar-lhe o livro das mãos. Queria poder ver o rosto da garota, mas ela parecia ter mais facilidade em falar
de assuntos tão dolorosos por detrás da proteção do seu livro.
- A Finette era... era uma mulher absolutamente louca quando nos apanhou na estrada. Estava muito enraivecida com o meu pai. Ela disse que, quando ele me levou,
tinha roubado todas as esperanças e sonhos da irmandade. Tentou espetar o meu paizinho com a seringa. Eles começaram a lutar e a Finette acabou por se espetar a
si própria. Morreu do veneno.
A jovem remeteu-se de novo ao silêncio.
- E depois? - perguntou Cat suavemente.
- A Finette foi enterrada na vala comum numa aldeola perto de Iorque. Ninguém sabia quem ela era, nem como é que tinha morrido, exceto o meu
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pai e eu. Ele abraçou-me com toda a força e disse-me que ambos tínhamos de nos esquecer do que se passou, também me disse que nunca mais devíamos falar desse assunto.
Ele livrou-se da seringa, atirou-a para um lago próximo do lugar onde a Finette nos atacou. Mas a água não era tão profunda como o paizinho pensava e, por isso,
pude ir buscá-la mais tarde. Pensei que talvez viéssemos a precisar dela para nossa proteção.
"Foi depois de a Finette nos ter aparecido que o meu pai mudou. Começou a comportar-se como se o mundo estivesse cheio de olifantes que andassem a perseguir-me.
- Meg calou-se e soltou um fundo suspiro. - E agora que nos transmitiste essa advertência da Senhora da Ilha Encantada, o mais provável é eu nunca mais poder sair
de casa. Nunca vou ver a rainha.
- Mudou a posição do livro, mas apenas o suficiente para fitar Cat com olhos que espelhavam ressentimento. - Não que compreendesses ou que isso te interessasse sequer.
- Gostaria de ser capaz de compreender - retorquiu Cat, reprimindo resolutamente a sua aversão por Isabel Tudor. - O que é que admiras tanto nessa mulher?
Meg perscrutava Cat com desconfiança, como se duvidasse da sinceridade daquela manifestação de interesse. O que quer que fosse que viu no semblante de Cat devia
tê-la satisfeito porque lhe respondeu:
- Há muita coisa digna de admiração em sua majestade. Ela é tão inteligente e dotada. Sabe falar seis línguas estrangeiras e sabe tocar alaúde e espineta. Quando
era jovem, mal conseguiu sobreviver. Tinha tantos inimigos que queriam eliminá-la e um igual número de pessoas que queriam aproveitar-se dela como se... como se...
- Como de ti? - concluiu Cat a frase por ela.
O rosto de Meg desapareceu atrás do livro. Recomeçou a falar numa voz tão baixa que Catriona foi forçada a inclinar-se mais para conseguir ouvi-la.
- A rainha Isabel também teve uma mãe que toda a gente acreditava que era demoníaca e não pôde falar dela nunca mais.
- Mas tu podes falar comigo acerca da tua mãe.
- Mas o paizinho não gostaria.
- Nesse caso, teria de ser outro dos nossos segredos. - Cat tirou o livro das mãos de Meg, pondo-o de lado. - O teu pai é um bom homem que só quer proteger-te. Mas
não me parece que ele compreenda que, se mantiveres algumas recordações encerradas no teu coração durante demasiado tempo, elas podem começar a aumentar de importância,
passando a ter contornos mais sombrios e sinistros do que são realmente.
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Meg engoliu com dificuldade, os olhos verdes e enormes da garota ansiosos com a necessidade de expressar pensamentos que reprimira durante tanto tempo. Não obstante,
hesitou antes de confiar a Cat o que lhe ia na alma.
- Às vezes tenho a sensação de que o meu coração vai explodir.
- Não haveríamos de querer que isso acontecesse - retrucou Cat, afagando a bochecha da garota. - Portanto, fala-me da tua mãezinha. - Meg baixou o olhar e enrolou
as cobertas da cama nos dedos.
- Sei que a maior parte das pessoas pensa que a minha mãe era verdadeiramente malévola e que fez muitas coisas demoníacas em que nem sequer gosto de pensar. - O
lábio inferior de Meg tremia. - Qualquer pessoa que se opusesse à minha mãe desaparecia, sem mais nem menos, como a minha primeira ama, a senhora Waters. A mãezinha
eliminava os seus inimigos,
usando as rosas envenenadas e a seringa que são descritas no Livro das Sombras. Coisas que eu a ajudava a preparar.
O tom de voz da garota baixou até não passar de um sussurro.
- Eu não queria, mas a mãezinha conseguia ser aterradora quando se zangava. Ela sabia como usar o seu poder para me magoar. "Ela ficou cega quando era muito nova,
mas era a escuridão no coração dela que me assustava. Ela conseguia ver a alma de uma pessoa através do toque da mão. Mas ela nunca pôde ver-me, nunca pôde tocar-me
realmente.
Tudo o que ela via era a Rosa de Prata.
Os olhos de Meg refletiram uma expressão de tristeza.
- Razão por que foi tão espantoso quando o meu paizinho me encontrou. Pela primeira vez, houve alguém que me via realmente. Mas não acho que ele continue a ver-me
dessa maneira. Agora só vê a senhora elegante que espera que eu venha a ser. Alguém nobre e gentil como Lady Jane Danvers.
? Não tenho a certeza de conseguir vir a ser assim, como ele quer.
- Tu és uma Filha da Terra. Não devias ter de ser outra pessoa além de ti própria. - Cat pousou a mão na de Meg, que não a afastou, mas sentiu-a tensa debaixo da
sua.
- E se isso significar ser alguém verdadeiramente malévolo? A minha mãe dizia que eu estava destinada a ser uma feiticeira tão poderosa que todo o mundo haveria
de tremer e vergar-se perante mim.
- A tua mãe estava enganada, Meg. O teu destino está nas tuas próprias mãos.
A garota olhou para Cat com uma expressão anelante que mostrava o quão desesperadamente desejava poder acreditar no que ela lhe dizia. Abanou a cabeça com um semblante
de tristeza.
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- Foi o grande vidente Nostradamus que disse à mãezinha qual o destino que me estava reservado.
- Isso não é possível, minha doçura. O Nostradamus morreu há muitos anos.
- A minha mãe conjurou o espírito dele do mundo dos mortos. Eu vi-a fazer isso.
Deus do céu! Cat estremeceu. Os horrores que Cassandra infligira àquela pobre criança não teriam fim?
- E se eu não estiver destinada a vir a ser essa feiticeira, por que razão é que sou a única pessoa que foi capaz de ler e compreender o Livro das Sombras? - perguntou
Meg.
Cat hesitou, sem saber como responder àquilo. Sentia-se perturbada com essa inquietante faculdade de Meg, à semelhança de tantas outras verdadeiras Filhas da Terra.
Mas a garota mostrava-se tão apreensiva que Cat lhe apertou a mão para tentar tranquilizá-la.
- Isso... isso significa que és extraordinariamente inteligente. Mas o que optares por fazer com essa tua inteligência depende inteiramente de ti. Sei que nunca
haverias de querer fazer mal a quem quer que fosse.
-Já fiz mal - murmurou Meg, baixando a cabeça. - Matei a minha mãe.
- Deus nos valha, criança! Mas onde é que foste buscar uma ideia dessas? A Cassandra caiu nas águas do Sena e morreu afogada. Não foi nada por tua culpa.
Meg olhava para Cat com uns olhos enormes de assombração.
- Sim, foi... eu desejava que ela desaparecesse.
A garota era demasiado pequena, demasiado frágil, para carregar aquele tremendo fardo de culpa. O coração de Cat estava amargurado por ela.
- Oh, Meg - disse, passando-lhe os dedos pelo cabelo -, apesar de tudo o que te possam ter dito, ninguém morre por ter pensamentos maus. Se fosse esse o caso, a
minha própria mãe já teria mirrado tanto que teria ficado reduzida a poeira.
Meg inclinou a cabeça de lado, olhando para Cat com uma expressão de assombro.
- Tu... tu também não te davas bem com a tua mãe?
- Eu fui a raiz de todos os males na existência da minha mãe, na opinião dela. Por pressuposto, as senhoras irlandesas devem falar com docilidade, ser prendadas
em trabalhos de agulha e cheias de sabedoria feminina. Ao
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contrário, eu era capaz de praguejar com tanta eloquência como o meu pai, tinha muito mais habilidade para caçar do que para coser e a única sabedoria que possuía
eram os conhecimentos que a minha velha avó me transmitia. A minha mãe odiava e receava todos os conhecimentos da Antiguidade, tal como o meu padrasto. Quando ele
me acusou de ser uma bruxa, ela nunca disse uma única palavra em minha defesa. Limitou-se a virar-me costas.
Cat falava como se aquilo lhe fosse indiferente, como se não tivesse importância, mas a amargura que a traição da mãe lhe causara continuava a pesar-lhe no coração.
Meg apertou os dedos em volta dos de Catriona.
- Portanto, a tua mãe desprezava-te por seres uma bruxa, enquanto a minha mãe me odiava por eu não ser suficientemente bruxa. Não achas que isso é estranho?
- Suponho que seja. Mas chega uma altura em que temos de crescer, passando a não dar tanta importância à necessidade do amor e aprovação da nossa mãe.
- Quando, Cat? Que idade é que temos de ter para que isso aconteça? - perguntou Meg ansiosamente.
- Não sei - admitiu Cat com pesar. - Mas dir-te-ei quando eu chegar lá. Mas agora talvez seja melhor pensarmos em dormir.
Meg acenou que sim, aninhando-se mais debaixo das cobertas. Cat extinguiu a chama das velas. Preparou-se para se deitar, despindo-se até ficar apenas com a camisa
interior. Quando já estava prestes a deitar-se no colchão, Meg chamou-a.
- Cat?
- Sim?
- Às vezes tenho dificuldade em adormecer. Não que eu tenha medo do escuro - apressou-se a acrescentar. - Mas acontece que, em algumas noites, a minha cabeça fica
cheia de mais e... e seria agradável se te deitasses na minha cama, ao meu lado. Apenas durante algum tempo, só até eu adormecer. Se... se não te importares...
- Não me importo nada.
Às apalpadelas, Cat encontrou o leito e deitou-se ao lado da garota. A pouco e pouco, Meg foi-se chegando mais, até encostar a cabeça ao ombro de Cat, que passou
um braço por cima dela. Deu graças pela escuridão ocultar o seu semblante de preocupação.
Pensou no quanto Meg era uma garota confusa que tentava deslindar o seu emaranhado de emoções acerca da mãe, que se debatia com questões
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respeitantes ao seu futuro e medos relativos às suas faculdades, razões mais do que suficientes para mortificarem qualquer mulher muito mais velha e conhecedora
da vida.
A garota precisava da orientação de uma Filha da Terra como Ariane; Cat só desejava conseguir persuadir Martin disso mesmo. Ao afagar as costas da garota, sentiu
a tensão nas omoplatas magras.
- Se estás preocupada, com medo que a Rainha das Trevas te persiga, não há razão para isso. Podes contar comigo e com o teu pai para te protegerem.
- Tenho mais medo da irmandade das bruxas do que da Rainha das Trevas. Tenho medo que me encontrem e que me levem à força para França para ser a Rosa de Prata delas.
- Eu morreria por ti antes de permitir que isso acontecesse.
- Não digas isso, Cat, por favor - retorquiu Meg, sustendo a respiração. - E... é o que as minhas seguidoras costumavam prometer, viverem e morrerem por mim.
- Não sou uma dessas mulheres patetas, Meg. Serei a tuafíatma.
- O que é isso?
- As fianna eram guerreiras do meu país na Antiguidade, as protetoras especiais dos grandes reis.
Fez-se um silêncio enquanto Meg refletia naquilo.
- Preferia que fosses apenas minha amiga - murmurou Meg por fim.
- Estou em crer que também sou muito capaz de fazer isso - disse Cat, dando-lhe um pequeno beijo no cocuruto da cabeça.
Meg suspirou. Descontraindo-se um pouco e chegando-se ainda mais a Cat.
- Fala-me mais acerca desses grandes reis.
Catriona sorriu e começou a falar dos grandes reis, o poderoso Cuchulainn, Brian Boru e os cavaleiros da Red Branch. Contava a Meg as mesmas histórias que o pai
lhe contara em muitas noites de verão à luz das estrelas. Ela própria a sentir-se reconfortada ao recordar essas histórias, Cat desfiou a velha magia até Meg e ela
terem adormecido.
A coroa dourada colocada na cabeça de Meg estava a magoar-lhe a têmpora. O manto de arminho pesava-lhe tanto nos ombros que mal conseguia dar um passo. Esforçava-se
desesperadamente para escapar às mãos que se enclavinhavam nela, ao mar de olhos suplicantes e vozes lamuriadas.
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- Oh, grande rainha, restaurai a minha juventude.
- Imploro-vos, poderosa feiticeira, castigai o homem que me atraiçoou.
- Por favor, majestade, levantai a minha irmã dos mortos.
Meg empurrou as mãos que queriam agarrá-la. Contorceu-se num esforço frenético para escapar, mas viu o caminho bloqueado por outra das suas adoradoras que se ajoelhava
aos seus pés.
A rapariga ergueu o olhar para Meg, os olhos porcinos a brilharem com toda a avidez de uma ratazana esfaimada.
- Vede o que fiz para vós, majestade. Deposito aos vossos pés o meu sacrifício. - Colocou uma trouxinha em frente de Meg, começando a desembrulhá-la.
- Não, por favor - murmurou Meg.
A mantinha descaiu, revelando a forma engelhada de um recém-nascido morto. Olhava fixamente para Meg com olhos vadios e acusadores. Quando Meg retrocedeu horrorizada,
a rapariga disse numa voz arrulhada:
- Não, não deveis ficar perturbada, minha Rosa de Prata. Era apenas um bebé inútil do sexo masculino.
- Não! Não. - Meg retraiu-se, as lágrimas a correrem-lhe livremente pelas faces. - Não sou a vossa Rosa de Prata. Deixai-me em paz e sossego. Todas vós, deixai-me
sozinha!
Mas quando cambaleou para trás, Meg sentiu uma mão fria que pousou pesadamente no seu ombro. Ergueu os olhos e ficou aterrorizada ao deparar com a mãe que parecia
agigantar-se acima de si. O cabelo preto e comprido de Cassandra estava molhado e todo emaranhado com caniços do rio, os lábios arroxeados, apele lívida cheia de
veias. Os olhos escuros cegos trespassavam Meg de lado a lado.
- Nunca te deixaremos sozinha, Megera - disse Cassandra numa voz roufenha. - Pensaste que poderias eludir-nos com tanta facilidade? É possível que tenhas conseguido
renegar-me, desejado a minha morte, mas jamais serás capaz de escapar ao teu destino.
- Não - gemeu Meg. Contorceu-se para se libertar das mãos da mãe, esforçando-se para sair da escuridão do seu sonho. Abriu os olhos. Tinha a respiração arfante e
trémula; o seu primeiro impulso foi gritar pelo pai, mas recordou-se de que ele tinha saído, deixando-a com... Cat.
Meg apalpou o colchão ao seu lado e encontrou-o vazio. Levantou a cabeça e viu que Cat se mudara para o seu leito junto da lareira. A luz do luar, que entrava pela
janela, permitia-lhe distinguir uma forma adormecida.
Mas ou a mulher tinha um sono muito leve ou Meg teria gritado mais alto do que pensava durante o seu pesadelo.
Cat mexeu-se, chamando-a numa voz sonolenta.
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- Meg? Estás bem?
Não, Meg ansiava por chorar e pedir a Cat que voltasse para o seu leito e a abraçasse apertadamente outra vez. Mas estava envergonhada, sentindo que talvez já se
tivesse comportado como uma criança que chegasse para uma noite. Assim, deixou-se ficar muito quieta, obrigando-se a respirar regularmente e fingindo que dormia
até Cat se virar para o outro lado e voltar a adormecer.
Meg apercebeu-se de que tinha as faces molhadas de lágrimas, que se apressou a limpar com brusquidão. Não duvidava de que Cat teria sido bondosa, consolando-a, se
lhe falasse do sonho mau que teve. Mas Cat era tão corajosa e destemida que nunca seria capaz de compreender.
"O teu destino está nas tuas próprias mãos", diria ela com veemência.
Como Meg desejava poder acreditar nisso. Mas receava que nunca mais se veria livre dos seus pesadelos, a menos que conseguisse encontrar maneira de ela própria vislumbrar
o destino e ver que a mãe estava enganada.
Meg virou-se para o outro lado e olhou na direção do grande dragão na tapeçaria, descortinando o contorno na obscuridade. O pano de arras ocultava o painel solto
na parede, o esconderijo mais secreto de Meg.
Mentira a Cat, pensou com um baque de culpa. Outro legado que a mãe lhe deixara. Para evitar as perguntas constantes, Meg aprendera como distorcer a verdade e a
disfarçar as suas emoções.
Se bem que naquele caso não se pudesse dizer que tivesse mentido a Cat, mas sim que lhe omitira algumas coisas. Meg consolou-se a si própria. Quando lhe descreveu
o encontro com Finette, Meg, convenientemente, não mencionara que havia uma outra coisa que obtivera da mulher tresloucada, além da seringa.
O Livro das Sombras.
Bem fora da vista de todos, no seu esconderijo atrás do pano de arras, o manuscrito antigo parecia chamar Meg, sussurrando-lhe todos os seus temíveis segredos, para
que apartasse o véu entre os vivos e os mortos. Se ela conseguisse conjurar Nostradamus como a mãe costumava fazer...
Recordava-se do ritual com os círios negros, o rosto fantasmagórico a elevar-se das névoas que se formavam na bacia de cobre, a voz sepulcral do espírito do ancião,
tão irado por o seu eterno repouso ter sido perturbado.
Meg tremeu, sabendo que lhe faltava a coragem para tentar pôr em prática uma magia negra daquela natureza. Pelo menos, não para já, quando existia uma maneira menos
aterradora e menos perigosa de perscrutar o seu futuro, se ela tivesse a inteligência e a habilidade suficientes.
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Mas para isso precisaria de um determinado objeto e teria de confiar na mesma pessoa que a tinha ajudado antes, adquirindo os materiais de que ela precisara para
o binóculo. Não Aggie, como dissera a Cat. Isso tinha sido uma mentira gritante. Meg estremeceu, mas a sua consciência apaziguou-se ao pensar naquele seu amigo secreto
em particular, que tinha uma voz e um semblante como os de um anjo.
Cerrando os olhos, Meg conjurou uma imagem do seu cabelo de um louro-dourado e a fisionomia de grande beleza. O bater do seu coração acelerou-se e as faces ruborizaram-se
ao murmurar o seu nome muito baixinho para si própria.
- Sander.
- Merde!- disse Martin entredentes, sem ter consciência do que dizia. Foi por pouco que não deixou cair a vela, a cera a escaldar a salpicar-lhe a mão enquanto o
seu olhar percorria aquela câmara. A luz da vela tremeluziu, projetando sombras espectrais sobre as pedras em bruto das paredes, que tinham prateleiras a toda a
volta e onde se viam boiões e garrafas de toda a espécie, todos cheios de uma grande diversidade de líquidos turvos.
Mas o objeto mais alarmante era a mesa colocada no centro da câmara, a superfície de carvalho coberta por um pano de um vermelho de sangue onde se viam estrelas,
pentagramas e outros símbolos dourados de aspeto misterioso.
Os objetos colocados em cima da mesa eram igualmente perturbadores, um pilão e almofariz, um livro antigo coberto de poeira, um conjunto de balanças e um pequeno
caldeirão de ferro.
O sangue gelou nas veias de Martin.
- Mas o que diabo vem a ser tudo isto!?
Ned entrou na câmara a cambalear. Deu uma palmada no ombro de Martin, sorrindo tolamente.
- Magia, meu bom homem. Feitiçaria.
Jane mantinha-se na ombreira da porta, recusando-se a avançar mais. Estava empalidecida de temor, apressando-se a benzer-se, e Martin não a censurou por isso.
Havia muitos anos que ele próprio não se persignava, mas foi exatamente o que fez naquele momento. Durante a sua juventude, Martin possuíra um saudável medo de tudo
o que era sobrenatural, sendo frequente que fizesse os seus próprios amuletos para se proteger das bruxas.
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Depois de ter conhecido as irmãs Cheney, tinha aprendido mais acerca da verdadeira natureza das mulheres sábias. Inteirando-se até que ponto é que o chamado conhecimento
da Antiguidade podia ser benéfico. O dom de Ariane para curar e a extraordinária capacidade que Miri tinha de comunicar com os animais.
Todavia, também vira o lado mais sombrio da magia através de Cassandra Lascelles, com os seus perfumes inebriantes e medalhões amaldiçoados, a sua demoníaca apetência
para conjurar os mortos e para extorquir os pensamentos de um homem apenas com um toque arrepiante da sua mão.
Ele tinha tido experiências de vida que jamais quereria voltar a ter, tanto por si próprio como por Meg. Muito em especial, por Meg. E agora via-se rodeado por tudo
aquilo de que tentava protegê-la, de tudo o que tentara eliminar da vida da filha.
com uma mão que tremia ligeiramente, Martin pousou o castiçal sobre a mesa, os seus olhos atraídos pelo tomo coberto de pó. Haviam-lhe dito que só existia um único
Livro das Sombras, um compêndio que continha os conhecimentos da Antiguidade mais malévolos. Mas existiam outros textos antigos que também poderiam ser bastante
perigosos.
Martin olhou para o livro e estremeceu, incapaz de se obrigar a abri-lo. A cólera espelhou-se no seu semblante quando deu meia-volta e agarrou Ned pela frente do
gibão.
- Sois um raio dum garoto idiota! Fazeis alguma ideia da espécie de poder negro com que estais a brincar? De como tudo isto é diabolicamente perigoso?
Ned pestanejou, momentaneamente aturdido com a agressividade de Martin. Mas ficou com cara de poucos amigos, afastando as mãos dele com brusquidão.
- Não existe nada de perigoso nem de sinistro na minha câmara de trabalho. Intolerante, falais... falais como a minha irmã.
- É verdade - confirmou Jane numa voz muito conturbada. - Tentei avisá-lo tantas vezes...
- Tretas! Ambos entoarão outra canção quando eu for bem-sucedido.
- Bem-sucedido? Bem-sucedido no quê? - perguntou Martin num tom autoritário.
O corpo de Ned oscilou, lançando um olhar furtivo de bêbado em torno de si, como se as paredes tivessem ouvidos. Inclinando-se mais para Martin, sussurrou-lhe:
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- A pedra filosofal.
- O quê!?
- Ando a tentar criar a pedra filosofal, de modo a poder transformar chumbo em ouro. O que estive quase a fazer numa ocasião. E quando conseguir, serei fab... fabulosamente
rico.
Martin ficou a olhar para ele incrédulo, forçado a reprimir uma onda de gargalhadas histéricas. Era aquilo que sua senhoria fazia ali em baixo?
Virando-se para a mesa, abriu a capa do livro e leu o título.
A. Arte da Alquimia.
Era possível que o manuscrito estivesse coberto de pó, mas não era antigo, tratando-se apenas de um desses textos baratos que podiam ser adquiridos apenas por alguns
xelins no mercado de Leadenhall.
Martin respirou fundo. Não havia nada de traições nem de bruxaria, nenhuma conspiração sinistra para usar as artes negras contra a rainha. Tratava-se, única e simplesmente,
de um jovem nobre entediado que brincava aos magos. Se havia alguma coisa que o convívio de Martin com as senhoras da ilha Encantada lhe tinha ensinado, era saber
ver a diferença entre a magia verdadeira e os rematados disparates.
Fechou o livro, sentindo-se tão inebriado de alívio que teve de suprimir um impulso quase irresistível de arrebatar Lady Jane Danvers do chão, dando-lhe um forte
abraço que a tranquilizasse.
A pobre mulher continuava a não arredar pé da ombreira da porta, sem largar o fio de onde o crucifixo pendia e mostrando uma apreensão que era aflitiva. Martin sorriu-lhe.
- O vosso irmão tem razão. Ele não anda a fazer nada de perigoso.
- E eu já não lhe disse isso inúmeras vezes? - disse Ned oscilando para a frente e para trás apoiado nos pés. - Ela é como um coelho assustadiço. Mas as mulheres
não sabem nada a respeito de magia. Não têm cabeça para... para...
A voz faltou a Ned, a pele do rosto a adquirir uma cor de uma lividez esverdeada.
- Ohhh... Acho que vou vomitar.
A timidez de Jane desvaneceu-se. Passou célere por Martin, pegando no caldeirão mesmo a tempo de impedir que Ned vomitasse para cima dos requintados sapatos.
Jane aconchegou as cobertas em volta do irmão, sentindo alívio por o ver, finalmente, na cama. O criado de quarto dele atarefava-se em silêncio
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noutra parte da alcova, dobrando as roupas finas que sua senhoria despira, guardando-as no guarda-roupa. Timon era um homem circunspecto e de confiança, além de
ser um bom católico. Jane tinha-o em grande apreço pela sua discrição. Quem lhe dera poder sentir-se tão segura de todos os outros serviçais da casa. Tinha decorrido
tanto tempo desde que Ned se entregara a uma das suas crises de raiva. Geralmente, Jane era capaz de reconhecer os sinais de aviso a tempo de apaziguar o mau feitio
do irmão. No entanto, a mensagem da rainha apanhara-a desprevenida. Se ao menos ela tivesse conseguido intercetar o mensageiro da rainha, o que lhe teria permitido
ser ela própria a dar a má notícia ao irmão. Poderia ter suavizado o choque.
Jane afagava a fronte de Ned com toda a ternura. Pobre rapaz. Sua majestade tinha-o desiludido tão cruelmente. Ned mexeu-se ao sentir a mão da irmã, o seu rosto
de uma palidez de cera. Entreabriu os olhos e sussurrou: - Desculpa, Jane. Peço-te perdão. Esta noite desgracei-te - disse Ned,
deixando cair uma lágrima. - Sou um patife tão inútil. Só sirvo para te dar desgostos.
- Não digas isso, Ned. - Jane limpou-lhe a lágrima com as pontas dos dedos, exatamente como costumava fazer-lhe quando ele era garoto.
"Borboletas, Neddie. São as borboletas que vêm para beber as tuas lágrimas.-"
- Como sempre, és a minha maior alegria - afirmou-lhe ela. - Nada disto foi por tua culpa.
- Mas... mas deves sentir-te zangada comigo por ter mostrado a câmara s... secreta ao Wolfe.
- Quem me dera que não tivesses feito isso - retorquiu ela com suavidade. - Mas atrevo-me a dizer que isso não fará mal nenhum. Eu ocupo-me do senhor Wolfe. Mas
agora deves tentar dormir. - Inclinou-se e depositou-lhe um beijo ao de leve na fronte.
- Querida Jane. Sempre tão generosa. Como uma mãe, sempre a olhar por mim - disse Ned sonolento com os olhos a começarem a fechar-se.
"O que farei sempre, meu irmãozinho", prometeu Jane silenciosamente para consigo própria, comprimindo os lábios numa linha que denotava firmeza e determinação. Deixando
o irmão entregue aos cuidados de Timon, saiu da alcova em bicos de pés.
Quando chegou ao cimo das escadas, viu que Marcus Wolfe esperava por si no vestíbulo. Andava de um lado para o outro com mostras de inquietação,
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a capa curta a voltear presa num ombro forte. A luz suave das chamas das velas emprestava um belo brilho ao cabelo negro e à barba bem aparada.
Para consternação de Jane, sentiu que o coração lhe saltava uma batida. Era velha de mais para ficar toda trémula por causa de um homem que conhecia tão mal, com
a exceção de saber que lhe tinha salvado a vida e que em tempos fora ator. Não se podia dizer que fosse uma profissão respeitável, mas não seria a primeira vez que
se sentia fascinada por um tratante.
Seria ela alguma vez capaz de escapar à recordação dos pecados do seu passado, a grande loucura da sua juventude? Tinha apenas catorze anos quando se perdeu de amores
pelo muito bem-parecido moço de estrebaria dos estábulos do conde de Shrewsbury.
"A tua natureza apaixonada só te trará desgraças, menina", ralhara-lhe a sua velha ama. E Marie não se tinha enganado. A prova disso encontrava-se enterrada no cemitério
de uma obscura igreja, misericordiosamente, um nado-morto do sexo feminino.
Se todas as ordens religiosas não tivessem sido dissolvidas em Inglaterra, Jane supunha que teria sido recambiada para um convento. A única outra alternativa havia
sido um matrimónio respeitável.
Era possível que Ned lastimasse o facto de ela ter sido forçada a desposar um rapaz enfermiço como Richard Arkwright, mas a própria Jane fora capaz de compreender
que havia sido a atitude mais sensata a tomar. Um jovem imberbe seria muito mais fácil de enganar, fazer com que acreditasse que a sua noiva ainda era virgem.
"Pobre Dickon", pensava Jane. Nunca reparava em grande coisa que fugisse do âmbito dos seus queixumes e padecimentos. Tinha perecido de uma crise de febre terçã
durante o primeiro ano do casamento de ambos. Quando Jane casou com o seu segundo marido, um abastado comerciante de vinhos, Sir William Danvers, já era uma mulher
inteiramente diferente. Mais sóbria, sensata e com um grande sentido do dever, os ardores das paixões e rebeliões há muito olvidados, até recentemente...
Depois de alguns momentos a recompor-se, Jane levantou a orla das saias e desceu as escadas com uma postura de serenidade. Wolfe ergueu o olhar ao dar pela aproximação
dela. Avançou para ir ao encontro dela ao fundo das escadas, sorrindo-lhe. Não com o seu sorriso de malandro, mas sim com aquela expressão calorosa que ameaçava
derreter por dentro até mesmo a mulher mais resoluta.
- Está tudo bem?
- Sim, o meu irmão adormeceu finalmente. Ele está bem ou, pelo menos, estará até acordar amanhã com...
- Não me expliquei como devia ser. O que quis perguntar foi se vós estáveis bem.
Pouco habituada a que alguém se preocupasse com o seu bem-estar, Jane não sabia muito bem como responder. Só conseguiu um acenar de cabeça.
Martin estendeu-lhe a mão. Ela não devia permitir-lhe tais liberdades. Mas foi uma sensação tão boa, sentir a sua pele em contacto com a palma cálida e dura da mão
dele. Deixou que os seus dedos se demorassem nos dele, por mais tempo do que devia ter-se permitido, antes de a retirar com um sorriso de nervosismo.
- Oh, mestre Wolfe, nem sequer sou capaz de imaginar o que deveis estar a pensar...
- Não penso nada, a não ser que o vosso irmão bebeu de mais, uma coisa que pode acontecer a qualquer de nós.
- Agradeço-vos por serdes tão compreensivo, mas não me foi difícil ver o quanto haveis ficado perturbado com o estranho passatempo a que o Ned se dedica nas caves.
Há muito tempo que me sinto preocupada com o interesse dele pela... pela feitiçaria.
- Acreditai no que vos digo, não existe razão nenhuma para vos preocupardes. Ouvi dizer que muitos jovens da nobreza se entretém com a prática da alquimia, na esperança
de virem a descobrir o segredo que lhes permitiria transformar chumbo em ouro. Trata-se apenas de um disparate inofensivo.
- Um disparate que pode resultar em acusações de feitiçaria. O astrólogo pessoal da rainha, o doutor John Dee, foi obrigado a fugir para o estrangeiro por ter levado
os seus estudos longe de mais, quando tentou invocar o espírito dos anjos para que falassem com ele.
Jane levou a mão ao fio de ouro do seu crucifixo.
- A minha fé religiosa ensina-me que tudo isso é errado. Deus nunca quis que nos dedicássemos a adquirir tais conhecimentos proibidos. - Jane esboçou um pequeno
sorriso. - O Ned gosta de me arreliar. Diz que, se eu tivesse sido uma mulher no Jardim do Paraíso, a maçã nunca teria sido apanhada.
Wolfe sorriu-lhe, atrevendo-se a tocar-lhe na face.
- A ter sido esse o caso, ninguém teria caído em desgraça, o que teria feito de vós um anjo.
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Jane abanou a cabeça, pensando no pouco que Marcus Wolfe a conhecia. Tal como o seu próprio irmão.
- O Ned não devia dizer blasfémias dessas. Ele precisa realmente de se confessar. - Jane falou sem pensar no que dizia, algo muito raro nela. Olhou atentamente para
a fisionomia dele, à procura de qualquer indício de reprovação pela prática do rito católico, mas o semblante de Martin mostrava apenas circunspeção.
- Deve ser-vos extremamente difícil quando vos negam a prática da vossa fé religiosa - disse ele.
- É difícil para um grande número de católicos. Mas eu persisto, rezando silenciosamente o meu rosário todas as noites, onde ninguém me vê, além de Deus. - Jane
suspirou. - Os homens da minha família nunca foram muito sensíveis. Sem dúvida que vós... que estais cientes da nossa desafortunada história. O meu avô perdeu a
cabeça, literalmente, a lutar pela causa católica. O meu pai também morreu pela mesma razão. E o Ned... - Jane mordeu o lábio inferior. - Não se pode dizer que ele
seja exatamente o homem mais pio. Mas é jovem e ambicioso, ansioso por deixar a sua marca no mundo. Foi por esse motivo que fiquei satisfeita quando ele decidiu
ser o patrono do vosso teatro. Passou a estar interessado noutra coisa além dessa horrível alquimia. Sempre receei que ele um dia talvez cometesse, também, alguma
imprudência que o atirasse para a Torre de Londres.
- Isso nunca lhe acontecerá! Não se eu puder evitá-lo.
Os olhos de Jane arregalaram-se ao ouvir as palavras tão apaixonadas dele. O próprio Wolfe pareceu ter ficado um pouco surpreendido pela sua precipitada promessa,
mas Jane só podia sentir-se agradecida pelas palavras dele. Impulsivamente, pousou a mão no braço dele.
- Tendes sido um grande amigo de nós dois.
Martin soltou uma risada desconsolada, a expressão nos seus olhos a ensombrar-se estranhamente.
- Sentir-me-ia muito honrado por poder dizer que sou vosso amigo, mas não me atrevo a presumir isso. Receio ter de dizer que não passo de um patife como tantos outros.
- Não, estais muito longe de ser como tantos outros, Marcus Wolfe retorquiu Jane suavemente. Tinha a impressão de que a sua mão se mexia de moto próprio, acariciando-lhe
o braço.
Os olhos dele olharam-na com uma expressão de extrema surpresa. O olhar de ambos prendeu-se um no outro durante um longo momento prenhe
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de intensidade. E depois ele inclinou-se para a frente e os seus lábios roçaram pelos dela.
Jane não devia ter acolhido o beijo dele de bom grado, mas a calidez da boca de Martin despertou nela uma ânsia inesperada, uma vontade quase irresistível de meter
os dedos por entre o cabelo dele e saboreá-lo mais plenamente, sentir o ardor da língua dele na sua boca.
Jane recuou muito corada. Parecia que a chama dos ardores da sua juventude não tinha ficado completamente reduzida a cinzas frias. Continuava a existir uma centelha
que Jane fez o seu melhor por extinguir quando deu as boas-noites a Wolfe com a respiração arfante, antes de fugir escadas acima.
Martin, de calções apertados abaixo dos joelhos e em mangas de camisa, tinha os pés apoiados na escrivaninha do seu gabinete. Bebeu um gole de vinho da sua caneca
com tampa; os seus pensamentos eram tão sombrios que desejava poder seguir o exemplo do jovem Ned, bebendo até ficar inconsciente.
Mas era uma fraqueza a que Martin não se entregava havia muito tempo, não desde que Meg entrara na sua vida. Mas a filha já dormia a sono solto, e se havia alguma
noite com uma boa razão para beber de mais, era aquela.
Se ingerisse vinho em excesso, era possível que conseguisse lavar o sabor da culpa que lhe tinha ficado na boca, pensou Martin, bebendo um generoso trago e fazendo
uma careta. Era um vinho inglês, demasiado encorpado, demasiado doce e não havia sido bem decantado.
Não que isso importasse. Duvidava que houvesse vinho em quantidade suficiente em Londres que lhe aliviasse a consciência ou que apagasse da sua memória os olhos
confiantes de Jane Danvers.
"Tendes sido um grande amigo de nós dois".
Sem dúvida, refletiu Martin com amargura. Tinha sido tão amigo como o inquisidor-mor era para os hereges. Encostou a caneca fresca de peltre à testa bastante quente.
Era forçado a relatar a Walsingham o que se tinha passado na Casa Strand naquela noite. Caso não o fizesse, alguém se encarregaria de o fazer. Ned fizera uma figura
tão triste, com todo o seu desarrazoado acerca da rainha. Só Deus sabia o que os outros convidados teriam ouvido antes de se terem ido embora. No mínimo, Martin
talvez conseguisse atenuar o relato dos acontecimentos, convencendo o secretário da rainha de que
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tudo não teria passado de um chorrilho de disparates de um jovem embriagado com vinho e deceção.
Quanto à câmara secreta de Ned, Martin não via razão absolutamente nenhuma para aludir a esse assunto. Não passava de uma rematada tolice que não tinha nada a ver
com conspirações contra a rainha, no entanto, Walsingham talvez aproveitasse a oportunidade para prender Ned, uma vez que o secretário da rainha estava convencido
de que Lorde Oxbridge talvez constituísse uma ameaça à vida da rainha. Se Walsingham não tivesse fundamentos para condenar Ned por traição, a acusação de feitiçaria
talvez servisse para os seus objetivos.
Como Jane viria a sofrer ao ver que os seus piores receios se concretizavam, o único membro que lhe restava da sua família encarcerado na Torre de Londres.
"Não se eu puder evitá-lo."
Martin estremeceu, perguntando-se o que é que o teria induzido a fazer uma promessa tão precipitada. Receava ter de admitir que Catriona OHanlon tivera razão quando
o acusou de ser o género de idiota romântico que se deleitava quando se apressava para ir socorrer uma donzela em apuros.
Jane Danvers era tão doce, tão delicada. Ver o seu rosto pálido e tão sereno com uma expressão de tamanha aflição despertara em Martin os seus impulsos mais galantes.
Ele ter-lhe-ia prometido tudo e mais alguma coisa para aliviar aquela expressão de tanta apreensão nos olhos de um cinzento tão suave.
Como era rejuvenescedor encontrar uma mulher que se contentava em ser, simplesmente, uma mulher, sem mostrar qualquer interesse em adquirir quaisquer poderes ou
conhecimentos proibidos, uma mulher que possuía a sensatez de perceber o perigo inerente a essas ambições.
Era indubitável que ela seria uma mulher e uma mãe perfeitas. Até ao momento, Martin não soubera muito bem se teria alguma hipótese de ela não recusar as suas manifestações
de afeto. Jane surpreendera-o quando se atreveu a acariciar-lhe o braço, o olhar de tanta ternura a espelhar-se-lhe nos olhos.
Quando ele a beijou, ao contrário de Cat, Jane não ameaçara partir-lhe a cabeça. Jane enrubescera adoravelmente, toda ela doçura e com a respiração suspensa, mostrando
o recato de uma verdadeira senhora.
Ela era verdadeiramente um anjo...
Os pensamentos de Martin foram perturbados por um pequeno som que vinha do corredor. A chama da vela tremeluziu como se soprada por uma corrente
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de ar. Havia alguém que, muito cautelosamente, abria a porta do seu gabinete. Martin ficou tenso, pronto para baixar os pés apoiados na escrivaninha, entrando em
ação de imediato assim que visse quem era o intruso.
Cat meteu a cabeça pela porta entreaberta, o cabelo ruivo despenteado e caído em volta dos ombros, como se tivesse acabado de acordar. Martin não ficou muito surpreendido
ao ver que ela estava armada com uma espada.
Descontraiu-se e recostou-se na cadeira.
- Entrai, Mistress Catriona OHanlon. Se estais à procura de outra oportunidade de me passardes a fio de espada, não há por que hesitardes. Estou inteiramente carecido
de qualquer vontade de me defender.
Fez-se uma pausa antes de Cat entrar, mostrando-se ligeiramente acanhada.
- Ouvi os passos de alguém aqui em baixo e vim ver o que se passava.
- Portanto, correstes escadas abaixo de espada em punho sem terdes a mínima noção daquilo com que poderíeis deparar-vos? Não vos passou pela cabeça que talvez tivesse
sido mais sensato manter-vos trancada na alcova da minha filha, permitindo que eu fosse a primeira linha de defesa?
Cat mostrou-lhe um semblante carrancudo, o queixo levantado numa atitude de teimosia.
- Não é meu hábito acobardar-me por detrás de portas trancadas. Além disso, eu nem sequer sabia se já tínheis voltado para casa.
- Agora que já estais acordada, podeis entrar e fazer-me companhia tomando uma caneca de vinho comigo. O vinho está ali, em cima da tripeça. Servi-vos à vontade.
Cat hesitou antes de fechar a porta depois de ter entrado. Martin não sabia dizer o que se apoderara de si para lhe fazer aquele convite, mas arrependeu-se amargamente
quando Catriona se aproximou da luz da chama da vela.
Vestia apenas a camisa de noite, o tecido tão puído que era quase transparente com a luz da vela por detrás dela. Martin conseguia ver claramente o contorno dos
seios, o suficiente para poder dizer que um era tão cheio e desenvolvido como o outro que ele vira durante o duelo entre os dois. O linho tão puído também deixava
adivinhar outros encantos, as linhas curvilíneas das ancas, o intrigante triângulo escuro entre as pernas dela. O efeito produzido por ela parecer que estava quase
nua tornava-se estranhamente mais erótico pelo facto de estar armada com aquela maldita espada.
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Martin sentiu-se imediatamente endurecido, mudando de posição para ocultar esse facto. Baixou as pernas que tinha em cima da escrivaninha e sentou-se a direito,
queixando-se.
- Mon Dieu, mulher! Essa vossa camisa de dormir tão velha está uma desgraça. O vosso orgulho que se dane. Tendes de me permitir que, pelo menos, vos compre uma camisa
de dormir decente.
- Seria um desperdício de dinheiro. Eu prefiro dormir toda nua - replicou ela sem mostrar o mais pequeno embaraço quando pousou a espada perto da lareira. - É claro
que compreendo que não posso fazer isso aqui. Seria um pouco embaraçoso se tivesse de dar luta a um intruso.
- E eu a pensar que de seio nu era o vosso método preferido de ataque.
- Não é nada vantajoso começar a lutar dessa maneira. Perde-se o elemento de surpresa. - Enquanto ela se servia de vinho, proporcionou a Martin uma vista tentadora
da parte de trás do seu corpo, o tecido puído da camisa de noite agarrado às nádegas de formas graciosamente arredondadas. Martin rangeu os dentes, sentindo-se grato
quando Cat se instalou num banco afastado da luz da vela. Bebeu um pequeno gole de vinho e fez uma careta de desagrado.
- Isto é uma zurrapa.
- Sei que sim - concordou Martin, olhando com um ar taciturno para a sua caneca. - Mas a verdade é que nem sempre me posso dar ao luxo de comprar vinhos importados.
Cat aventurou-se a beber outro gole, estremeceu e pôs a caneca de lado. Encostou-se à parede, bocejou e estendeu as pernas à sua frente, flexionando os pés descalços.
Tinha uns pés surpreendentemente graciosos e delicados. Martin ficou admirado por ela ter conseguido usar as suas botas. Também tinha uns tornozelos finos, para
já não dizer nada das barrigas das pernas flexíveis e de pele branca. Martin mexeu-se agitado na sua cadeira, concentrando o olhar
na caneca.
- Portanto, presumo, pela vossa expressão de monco caído, que o vosso serão não foi um sucesso - comentou Cat. - A vossa Lady Jane Danvers não vos sorriu?
Martin agitou as borras do vinho no fundo da sua caneca.
- Sua senhoria não estava com disposição para sorrisos para quem quer que fosse. A rainha mandou as suas desculpas e as celebrações da noite esmoreceram por completo
com a ausência de sua majestade.
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- A Meg vai ficar desiludida. Ela estava ansiosa por ouvir da vossa boca todos os pormenores.
- Isso quer dizer que a minha filha me perdoou por ter feito o lugar do pai intransigente?
- A Meg perdoar-vos-ia tudo e mais alguma coisa. - O tom de voz de Cat tinha uma certa aspereza que fez com que Martin lhe perscrutasse o rosto atentamente.
- Falais de uma maneira que até parece que eu fiz algo horrível e de que preciso de ser perdoado.
- Não intencionalmente. - Cat mordeu o lábio inferior. - Se eu vos contar uma coisa a respeito da Meg, prometeis-me que não serei comida?
Martin estremeceu. Uma infeliz escolha de palavras da parte dela, levando em consideração a sua excitação sexual.
- Prometo fazer o meu melhor para que não me nasçam garras.
Cat levantou-se do banco e começou a andar de um lado para o outro. Martin já tinha reparado que a mulher tinha dificuldade em manter uma conversa se estivesse sentada
e quieta. Mas enquanto ela como que se passeava diante de si, infelizmente para ele, também reparou noutras coisas.
- Por amor de Deus, Cat - disse ele. - Dizei-me tudo o que quiserdes. Mas suplico-vos que vos senteis e, de preferência, longe da luz da vela.
Ela deteve-se para o olhar com uma expressão intrigada. Mas quando o seu olhar se desviou das velas, concentrando-se em si própria, de súbito pareceu aperceber-se
de tudo o que estava a mostrar.
- Oh! - exclamou, rindo-se com ironia. Sem se mostrar particularmente constrangida, voltou a sentar-se no banco.
Entrelaçou as mãos, respirou fundo e informou de um só fôlego:
- Tive uma longa conversa com a Meg esta noite, acerca desse vosso esquema de a transformar numa menina inglesa de boas famílias. Ela sente-se tão infeliz que isso
está quase a matá-la.
Martin olhou para Cat com o cenho franzido, as suas palavras a respeito de Meg a arrefecerem qualquer luxúria mais eficazmente do que um mergulho nas águas frias
do Tamisa.
- Não vos assistia o direito de discutir o que quer que fosse com a minha filha.
- A garota precisa de falar com alguém, uma vez que não lhe permitis que fale convosco. Aquilo que lhe tendes vindo a pedir é absolutamente despropositado.
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Esquecer que ela é uma Filha da Terra, esquecer tudo o que ela aprendeu acerca da magia da Antiguidade... - Catriona fez uma pausa antes de prosseguir com uma atitude
de desafio. - E, acima de tudo, esquecer a sua própria mãe.
- Que bem é que poderá advir para ela ao recordar-se dessa parte da sua vida? - perguntou-lhe Martin.
- As recordações nem sempre são boas. Mas até mesmo as piores do nosso passado fazem parte daquilo que somos como pessoa. Tendes de permitir a Meg que faça o luto
pela morte da mãe, que encare as suas mágoas.
- É preferível deixar que as mágoas sarem por si próprias e que não sejam reavivadas.
- Mas as cicatrizes perduram, Martin. O legado da Cassandra...
- Não existe legado nenhum. A mãe não lhe deixou absolutamente nada.
- Estais a ser tão cego, homem - ripostou Cat com impaciência.
- Tudo o que a Cassandra lhe ensinou, todas as palavras que disse à filha acerca do seu destino como Rosa de Prata, está gravado na memória da garota.
- A Meg é suficientemente sensata para saber que tudo o que Cassandra lhe disse não tem o mínimo valor.
- Sabê-lo na sua cabeça e no seu coração são duas coisas inteiramente diferentes. A Meg é uma menina inteligente, possui uma inteligência que é quase aterradora.
Ela é a única pessoa que alguma vez conseguiu traduzir o Livro das Sombras.
- Porque a Cassandra a obrigou, mas isso agora não tem importância porque esse maldito livro desapareceu.
Mas por que razão é que Cat tinha de continuar a bater na mesma tecla? Agitado, Martin pôs-se de pé, como se o facto de começar a andar de um lado para o outro lhe
permitisse escapar às opiniões dela que não eram desejadas.
Mas a mulher era persistente como uma carraça. Seguindo-lhe o exemplo, também se levantou do banco e começou a andar atrás dele.
- A Meg tem uma memória absolutamente espantosa, Martin. Receio que ela se recorde de muita coisa que aprendeu nesse livro infernal. Seria muito difícil à mulher
mais sensata resistir ao poder do Livro das Sombras, quanto mais pedir isso a uma garota.
Cat aproximou-se dele que nem uma flecha, os olhos azuis com uma expressão acalorada e intensa.
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- A vossa filha anda tão confusa. Ela precisa de orientação, alguém que lhe ensine as maneiras genuínas das Filhas da Terra. Ela precisa da Ariane. Quem me dera
que tivésseis o bom senso de a levar para a ilha Encantada...
- Outra vez esse assunto! Acusastes-me de ser cego, mas está a parecer-me que vós própria sois um pouco dura de ouvido. Já vos tinha dito que não, com a breca, e
não quero voltar a ouvir menção a esse assunto.
Martin encaminhou-se para a janela a fim de lhe escapar, não fosse ela aperceber-se da verdade. Que por baixo da sua cólera, da sua determinação fruto da teimosia,
corria uma corrente de medo. Muito do que ela dizia a respeito de Meg tocava-lhe numa ferida em carne viva que tinha num lugar secreto do seu coração.
Ele mal era capaz de admitir perante si próprio que tinham existido ocasiões em que examinara Meg ansiosamente, receando encontrar alguma parecença com Cassandra,
algum vestígio da influência nefasta e sinistra da bruxa.
Mas não via nada, dizia a si próprio veementemente, Meg era a mais pura expressão da bondade e da inocência. E decerto que, com a passagem do tempo, ela acabaria
por se esquecer da mãe. Isso aconteceria. Martin ficou tenso quando começou a ouvir os passos de Cat atrás de si.
- Peço desculpa - disse ela. - Tenho tendência para, por vezes, ser demasiado contundente. A minha avó costumava dizer que era um defeito em todos os OHanlon. Somos
muito melhores guerreiros do que diplomatas. - Catriona puxou-lhe pela manga um pouco a medo. - Sei o quanto amais a Meg e como ela vos adora. Mas ela também se
preocupa convosco. Disse-me que haveis perdido a música que tínheis na voz.
- Estou em crer que ela se referia ao meu sotaque. Apesar de a minha filha ser mais fluente na língua inglesa, por uma qualquer razão inexplicável, ela prefere que
eu lhe fale em francês.
- Talvez por serdes de nacionalidade francesa. Todo este fingimento, quererdes passar por inglês, o esquema para vos transformardes num qualquer... num qualquer
fidalgo rural gordo na vossa confortável casa solarenga não é mais benéfico para vós do que para a Meg. O que é feito do Martin, o Lobo, que costumava considerar
que a vida era uma grande aventura? Tencionais fazê-lo desaparecer sem deixar rasto?
- Posso assegurar-vos que a perda não é grande - retorquiu Martin com um sorriso de tristeza. - Ele nunca foi grande coisa.
- A vossa filha não concordaria com o que dizeis.
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- Ela não passa de uma criança. Há muita coisa que ela não compreende. - Martin olhou para Cat com uma expressão indignada. - Além disso, quem é que disse que eu
acabaria gordo?
- Gordo - repetiu Cat com uma satisfação perversa. - E atacado por gota.
Martin tentou olhá-la com uma expressão de fúria, mas desistiu, soltando uma risada ainda que com relutância, para logo a seguir afivelar um semblante circunspecto.
- Existe algum fundo de verdade no que dizeis. A Meg necessita da orientação de uma mulher. Mas não a de uma Filha da Terra, mas sim da de uma mãe. Uma mãe às direitas
que lhe ensine as belas-artes, música, a bordar e... e como administrar o seu lar.
- Alguém tão virtuosa como Lady Jane Danvers? - perguntou Cat, o nariz franzido numa expressão de escárnio.
- Sim, se eu fosse capaz de a persuadir a desposar-me.
E se ele conseguisse manter o desditoso irmão dela fora do patíbulo e impedir que Jane fosse implicada em qualquer das loucuras de Ned, pensou Martin descorçoado.
Cat cruzou os braços, a boca franzida num trejeito de desagrado. E depois encolheu os ombros.
- Desejo-vos êxito quando lhe fizerdes a corte. Só espero que essa Lady Jane Danvers tenha um resquício de força algures no meio de toda a doçura que lhe corre pelas
veias. Ela vai precisar disso, está a parecer-me, para vos manter e a essa menina inteligente na ordem.
"Deus sabe que eu não posso continuar aqui para sempre a cuidar de vocês dois. Nesta altura já eu contava estar a caminho da ilha Encantada por causa da Ariane.
Ela... - Cat interrompeu-se e o seu semblante ensombrou-se.
- O que é que se passa com a Ariane? - perguntou Martin num tom premente.
- Ela está à espera de criança. Eu ainda não vos tinha dito?
- Mas isso é maravilhoso - começou Martin a dizer cheio de júbilo, mas quando começou a recordar-se do que sabia a respeito de Ariane, perguntou com alguma hesitação:
- É maravilhoso, não é? Ela tem passado bem?
- Ela diz que sim. Mas sabeis bem como a Ariane é. A mulher seria capaz de estar a morrer e far-se-ia de forte apenas para... - O lábio inferior de Cat começou a
tremer e mordeu-o com força para parar a tremura.
Martin pegou-lhe na mão num gesto para a reconfortar.
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- Tenho a certeza de que a Ariane ficará bem. Ninguém sabe mais na arte de curar do que a Senhora da Ilha Encantada. Desde sempre que ela foi extremamente competente
a cuidar de toda a gente.
- Tratar toda a gente, menos a cuidar dela própria. O parto terá lugar no princípio do inverno. Eu... eu gostaria de estar presente.
- Não vejo motivo nenhum que vos impeça, em especial por as advertências da Ariane não terem tido qualquer razão de ser. Se tudo continuar calmo por aqui...
- Não vou a parte nenhuma, a menos que a minha mentora me ordene que o faça - atalhou Cat obstinadamente.
- Nesse caso, escrevei-lhe para lhe perguntardes. Tratarei de fazer com que a vossa missiva lhe chegue às mãos.
Cat franziu o sobrolho, mostrando-se pensativa, obviamente dividida entre o que considerava ser o seu dever para com a sua mentora e a preocupação que a amiga lhe
inspirava. Que estudo tão intrigante de contrastes que a irlandesa era, pensou Martin.
Tão dura, tão independente, tão solitária, sob muitos aspetos, exatamente como uma gata, fazendo jus ao diminutivo do seu nome. Mas quando ela decidia amar, Martin
imaginava que o faria com um grande ardor e dedicação, além de que ninguém poderia desejar uma amiga mais leal.
Enquanto Catriona se mantinha nas sombras junto da janela, o cabelo caía-lhe em volta dos ombros como uma chama ardente. Ele resistiu à vontade quase irreprimível
de enrolar alguns fios nos dedos para sentir a textura sedosa. Noutras circunstâncias, talvez se sentisse tentado a fazer mais do que isso, tomá-la nos seus braços,
fazer com que ela entreabrisse os lábios para os dele, tentar encontrar o caminho até à suavidade da mulher escondida bem no fundo da fachada de dureza de Cat.
- Muito bem. - A aquiescência abrupta de Catriona despertou-o das suas perigosas congeminações. - Devo escrever a Ariane, quanto mais não seja por não querer que
ela fique apreensiva por não ter notícias minhas. Talvez por esta altura ela já se tenha inteirado mais acerca da irmandade das bruxas e da Rainha das Trevas; quem
sabe se não concordará convosco.
Quando Cat pegou na espada e começou a dirigir-se para a porta, deteve-se e sorriu a Martin com alguma ironia.
- Nessa altura partilharemos outra caneca de vinho para celebrarmos ter-nos visto livres um do outro. Embora eu espere qualquer coisa um pouco melhor do que a mixórdia
que me haveis oferecido esta noite.
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- Oh, somente o bordéus mais fino servirá para uma grande ocasião como essa - retrucou Martin num mesmo tom ligeiro. Fez-lhe uma exagerada vénia rasgada quando ela
saiu do aposento.
Mas o sorriso dele desapareceu assim que a porta se fechou depois de ela ter saído. Por muito grato que se sentisse pela ajuda de Cat em proteger Meg, não lamentaria
que a irlandesa partisse. A sua vida já era suficientemente complicada sem a presença dela.
Para um homem que tinha decidido desposar um anjo, aquela situação era absolutamente descabida - a atração que ele sentia por uma mulher que tinha o temperamento
do próprio Diabo, se bem que toda a calidez do Paraíso nos seus olhos azuis.
Muito tempo depois de Wolfe ter partido e de a casa ter ficado mergulhada em silêncio, Jane saiu furtivamente da sua alcova. Já tinha despido o requintado vestido
de seda bege, substituído por um traje muito sóbrio e escuro, como o hábito de uma freira, por baixo de um longo manto negro. Ao contrário do que era costume, não
fez o mínimo esforço para ocultar o crucifixo, a cruz em ouro por cima do peitilho do vestido.
Não se arriscou a acender uma vela. Dependendo apenas da sua memória, percorreu a casa às escuras e saiu para o jardim. A sola macia dos sapatos fazia muito pouco
barulho enquanto atravessava o relvado em direção ao roseiral.
Estava tudo mergulhado num silêncio e quietude tão profundos que Jane receou que ele não viesse, que tivesse sido descoberto e levado para a prisão. Suspirou de
alívio quando viu uma figura escura que saía das sombras.
Também estava envolto num manto, pelo que ela pouco lobrigava além da mancha esbranquiçada que era o rosto e o galão dourado que lhe adornava o gibão.
Mas Jane nem sequer se deu ao trabalho de estar a fingir tratando-o por capitão Fortescue.
- Padre Ballard - murmurou. - Estou tão contente por terdes podido vir.
Saúdo-vos com toda a honra, respeito e afeto, minha mentora. Consegui localizar a rapariga, mas não deveis esperar..."
Não dever esperar o quê? Ariane semicerrou os olhos, intensamente concentrada em tentar decifrar o que estava escrito na missiva de Cat, esfregando os olhos cansados
do esforço. Cautelosa como era seu costume, Catriona codificara a carta, escrevendo-a numa língua antiga que só era do conhecimento das outras Filhas da Terra. Ariane
estava familiarizada com aquela língua. Era a caligrafia de Cat que dificultava a descodificação.
A irlandesa era muito mais hábil no manejo da espada do que no do calamo. As palavras que mal eram legíveis e os borrões de tinta que manchavam o pergaminho falavam
claramente da impaciência e pressa de Cat. Ariane sorriu ao imaginar o desassossego com que ela redigira aquela missiva, mal conseguindo manter-se sentada durante
o tempo suficiente para concluir a tarefa.
Ariane prosseguiu com a mesma dificuldade, decifrando o parágrafo seguinte, antes de ser obrigada a pôr a carta de lado para poder distender os membros. Nos últimos
tempos, custava-lhe permanecer imóvel durante longos períodos de tempo.
Levou a mão às costas doridas, fazendo pressão e estremecendo quando se pôs de pé, o abdómen a aumentar com o seu precioso fardo. A criança que tinha no ventre estava
a desenvolver-se sem qualquer problema. Do que ela se apercebia e o que lhe proporcionava um grande consolo, permitindo-lhe ignorar as suas próprias dores e a avassaladora
sensação de fadiga que a atormentavam com tanta frequência.
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Afastando-se da escrivaninha, deu uma volta pela alcova, detendo-se junto do assento da janela onde deixara o seu cesto da costura. Por cima da outra roupa que andava
a coser, via-se uma pequena peça. Ariane passou os dedos ao de leve por cima da camisinha que já tinha acabado, cada ponto dado com todo o amor e esmero.
Feita da mais fina cambraia, o tecido acariciaria suavemente a pele do seu bebé, envolvendo a criança com a prova tangível do amor de mãe, mesmo que Ariane não pudesse
estar presente para lhe pegar...
Pestanejando para reter as lágrimas, Ariane reprimiu aquele pensamento da sua mente. Precisava de ter fé, mas a verdade é que, ultimamente, chorava com muita facilidade,
pensou desagradada consigo própria. Prometera a si mesma que deixaria de albergar aqueles pensamentos sombrios.
Tinha ajudado muitas mulheres a darem à luz. Algumas daquelas emoções e medos exagerados eram naturais. Todavia, teria repreendido qualquer outra pessoa por se entregar
a cogitações tão mórbidas, permitindo que a atormentassem.
No entanto, não parecia ser capaz de se ajudar a si própria. Massajando com os nós dos dedos a região lombar, olhou pela janela aberta. O sol cálido banhava os jardins
e o pomar mais abaixo. O firmamento estava de um azul tão cintilante que lhe ofuscava os olhos e o cometa...
Ariane susteve a respiração. Agora, o cometa até era visível à luz do dia, uma faixa espectral que parecia precipitar-se numa rota de colisão em direção ao Sol.
Um mau augúrio? Mas ela sabia bem que isso não passava de uma superstição disparatada. Mas ainda que tais coisas fossem verdade, não havia razão nenhuma para acreditar
que tivesse alguma coisa a ver com a sua pessoa.
Não obstante o facto de ser a mentora das Filhas da Terra, além de ser reconhecida como a Senhora da Ilha Encantada, desde sempre que Ariane se considerara uma mulher
modesta. Teria ela, efetivamente, começado a ser arrogante ao ponto de acreditar que os céus fariam surgir um cometa para anunciar a sua morte?
Que loucura! Mas pondo de parte todas as superstições, não podia ignorar a realidade nua e crua. O parto envolvia sempre riscos para qualquer mulher, e levando em
consideração o historial de Ariane em termos de gravidezes, as suas probabilidades de sobrevivência eram menores do que para a maior parte das mulheres. Era muito
possível que viesse a falecer, deixando tanta coisa por fazer. Havia uma responsabilidade em particular que era um pesado fardo nos seus ombros.
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Não havia designado ninguém que desse continuidade às tradições, tarefa que cabia à Senhora da Ilha Encantada. A irmã mais nova teria sido a escolha mais óbvia,
mas uma vez que Miri desposara o caçador de bruxas, a comunidade de mulheres sábias jamais a teria aceitado.
Desde o seu regresso à ilha Encantada, Ariane tinha começado a trabalhar com algumas das mulheres, transmitindo-lhes os seus conhecimentos na arte de curar, tudo
o que sabia sobre as tradições antigas. Carole Moreau mostrava ser prometedora, mas a jovem ainda era muito novinha.
Ariane estava bem ciente do motivo por que descurara tanto este assunto da maior importância, que era a escolha da sua sucessora. Tinha almejado tão veementemente
que um dia fosse a sua própria filha a escolhida. A possibilidade de vir a dar à luz uma menina e não viver durante o tempo necessário para poder ensiná-la... Não,
aquela possibilidade era demasiado insuportável para poder pensar nela.
Eventualmente, teria de resolver a questão da próxima Senhora da Ilha Encantada, mas não seria hoje, pensou Ariane com lassidão, massajando as têmporas. Tinha muitos
outros assuntos prementes que requeriam a sua atenção, acima de tudo a carta de Catriona.
Voltou a sentar-se à escrivaninha para acabar de transcrever a missiva de Cat. As notícias de que ela lhe dava conta, infelizmente, não eram nada animadoras para
a sua mente já tão apreensiva.
Franzindo as sobrancelhas, Ariane dobrou a carta de Cat e foi procurar o marido. Nos últimos tempos, não era difícil encontrar Justice. Desde que Ariane o tinha
informado de que estava de esperanças, ele passava a maior parte do seu tempo nas cavalariças a descarregar as suas preocupações, enquanto tratava dos cavalos com
que costumava caçar, ou no pátio a rachar lenha. Ariane receava que, quando chegasse a altura de a criança nascer, todos os cavalos estivessem completamente pelados
de tanto serem escovados e que toda a ilha estivesse completamente despida de árvores.
Assim que Ariane saiu de casa, começou a ouvir as pancadas ritmadas do machado a rachar madeira. Suspirou. Do mal o menos, os pobres cavalos estavam a ser poupados
de momento.
Atravessou o jardim, encaminhando-se para o palheiro, a pilha de madeira elevava-se a tal altura que ela mal conseguia ver o marido, apesar de Justice Deauville
ser um homem com uma constituição formidável, e uma altura bastante superior a um metro e oitenta, constituída por ossos largos e músculos sólidos.
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Contornando a pilha de madeira silenciosamente, Ariane ficou a observá-lo a desferir o machado. A luz do Sol refletia-se nos fios prateados intercalados no cabelo
de um castanho-dourado, a camisa de linho húmida de suor que se agarrava ao tronco robusto. Vestido com uns calções de um algodão grosso apertados abaixo dos joelhos
e calçado com umas botas de trabalho, parecia o que a sua irmã Gabrielle costumava chamar-lhe tantas vezes na brincadeira, um grande camponês.
Apesar de ser de nascimento nobre por parte do pai, desde sempre que Justice mostrara ter mais afinidade com as suas raízes mais simples e terra a terra por parte
da família materna. Habitualmente, o trabalho físico duro e as tarefas que exigiam mais esforço e suor proporcionavam-lhe um enorme prazer.
Contudo, a sua expressão facial era taciturna enquanto desferia o machado, rachando o madeiro com uma força que fez com que Ariane estremecesse. Atirando o toro
rachado para o lado, apressou-se a substituí-lo por outro.
Mantendo-se oculta, Ariane observava-o com alguma melancolia. Recebera mal a notícia da gravidez da mulher, mas não da maneira que ela tinha receado, sem arredar
pé de junto dela a todos os momentos. Ao invés disso, ele mostrara-se muito reservado e distante, ao ponto de se afastar para o extremo oposto do leito todas as
noites. Justice mal lhe tocara desde que ela lhe tinha dito que estava à espera de bebé, embora ela ansiasse por que ele lhe tocasse.
Haviam sido sempre tão chegados, unidos como unha com carne, os pensamentos e desejos, muitas vezes, a coincidirem. Ariane sentia-se magoada ao vê-lo tão distanciado,
quando o acontecimento que mais os devia ter unido era o que os separava um do outro.
Ariane foi buscar-lhe uma caneca de água ao poço antes de permitir que ele a visse. Manteve-se um pouco afastada enquanto ele rachava outro toro, fazendo com que
lascas de madeira voassem em todas as direções.
- Justice?
com o machado a meio caminho do madeiro, ele deteve-se, interrompendo o que estava a fazer e enterrando a lâmina no toro. Justice não seria considerado um homem
bem-parecido em conformidade com a maior parte dos padrões de beleza masculina. O maxilar inferior era protuberante e tinha o nariz torto, o que associado à sua
robusta constituição lhe dava uma aparência ameaçadora. Mas quando ele olhava para Ariane, as feições duras, geralmente, suavizavam-se com uma ternura que fazia
com que ela sentisse o coração a bater mais aceleradamente.
173
Quando ela lhe entregou a caneca de água, os olhos verdes dele de expressão velada espelhavam mais desconfiança do que ternura. Bebeu vários goles generosos e chapinhou
o rosto com o resto da água.
- Mera, mas não devias estar a descansar? Pensei que tínhamos concordado que conservarias as tuas forças, fazendo a sesta todas as tardes.
- Precisei de descodificar a carta que a Cat me escreveu. - Ariane tocou-lhe na mão e acrescentou: - Além disso, eu... eu sinto falta de ti.
- Falta de mim!? - perguntou Justice, arqueando as sobrancelhas. - Não fui a lado nenhum. Tenho estado sempre aqui.
"Não, não tens estado aqui", disse Ariane para consigo, reprimindo a vontade de lho dizer em voz alta.
Justice devolveu-lhe a caneca e limpou a face à manga da camisa. Quando estendeu a mão para o machado, Ariane agarrou-o pelo braço para o impedir.
- Não te parece que já rachaste madeira que chegue? Temos aqui o suficiente para podermos fornecer todos os residentes da ilha - disse Ariane numa tentativa para
imprimir um tom de brincadeira ao seu tom de voz, contudo as palavras saíram-lhe com mais rispidez do que fora sua intenção.
- O outono promete vir a ser frio - replicou Justice.
- Atrevo-me a dizer que assim será se continuares a olhar para mim dessa maneira.
- E que maneira é essa, ma chère?
- Como se estivesses a pensar que estou prestes a morrer. E quando não estás a olhar para mim como se estivesses à espera de me fazeres o funeral amanhã, olhas-me
com tanto ressentimento que até parece que te atraiçoei ao ter engravidado.
Ariane não tinha tido a intenção de lhe falar de maneira tão exacerbada. Mas não podia retirar o que já dissera. Estava dito e talvez fosse o melhor que poderia
ter feito, apesar de Justice ter unido os sobrolhos, mostrando uma expressão que não podia ter sido mais carrancuda.
- Não sejas ridícula - resmungou ele.
- Não estou a ser nada ridícula. Estás irritado comigo e seria preferível que o admitisses abertamente.
Justice cerrou os maxilares por breves momentos, numa atitude obstinada.
- Muito bem, sim. Sinto-me um tudo-nada irritado. Sabes bem como é perigoso para ti tentares ter uma criança. Também tens conhecimento das
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antigas maneiras das mulheres sábias para poderes ter impedido isso. Se eu me tivesse apercebido de que serias imprudente a esse ponto, eu próprio teria tomado as
precauções mais adequadas.
O que não era uma ameaça sem fundamento. Justice aprendera a preparar uma poção com a sua avó, uma velha bruxa, que tinha o efeito de fazer com que o homem ficasse
temporariamente infértil. Recorrera a isso havia vários anos sem que Ariane tivesse conhecimento. Ela perdoara-lhe por a ter ludibriado, mas apenas por ele lhe ter
prometido que nunca mais voltaria a usar essa poção.
- Por que razão é que eu haveria de querer impedir uma bênção que desejei durante tanto tempo e da qual já tinha desistido? - Ariane fechou os dedos com força na
caneca vazia e soltou um suspiro com que deu largas ao azedume. - Quem me dera nunca te ter dito nada.
- Está a parecer-me que seria um segredo difícil de guardar - retorquiu Justice, olhando para o ventre protuberante por baixo do vestido. - Pensaste realmente que
tenha sido preciso que me dissesses? Há treze anos que me deito ao teu lado todas as noites, fiz amor contigo mais vezes do que sou capaz de contar. Conheço todas
as curvas, todas as nuances do teu corpo tão bem como do meu próprio corpo. Pensaste que as mudanças no teu corpo me passariam despercebidas?
- Nunca disseste nada.
- Estava à espera que confirmasses as minhas suspeitas, na esperança... na esperança... - Quando ele se calou, Ariane concluiu a frase por ele num tom de secura.
- Na esperança de que estivesses enganado.
Justice olhou para ela sem ocultar a frustração que sentia, passando a mão pelos cabelos humedecidos.
- Já tinham decorrido tantos anos desde a última vez que concebeste, que pensei que, finalmente, já não seria possível que viesses a engravidar. Acreditei que o
meu amor te satisfazia em pleno, que para ti era suficiente sermos somente nós dois.
- E era. E é! - gritou Ariane. - Mas não és capaz de ver ao cabo de todo este tempo como a minha gravidez é um verdadeiro milagre?
- Não, tudo o que vejo é a possibilidade de vir a perder-te. Mon Dieu! - Justice atirou as mãos ao ar num gesto que expressava a cólera que sentia.
- Sempre soubeste que esse é o meu maior temor, mas estás tão determinada a ter uma criança que te é indiferente que vivas ou morras em consequência dessa gravidez.
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- Claro que não me é indiferente! - gritou-lhe Ariane. - Se fosses tão competente a ler olhos como pensas que és, já terias visto o quanto me sinto aterrorizada.
Mas por causa de ti tenho andado a fingir que sou mais corajosa do que sou realmente. O mínimo que podias fazer por mim era fingir, fingir al... alguma alegria...
- Ariane ficou com a voz embargada na garganta, furiosa ao sentir que as sempre presentes lágrimas lhe assomavam aos olhos. Numa muito rara manifestação de mau feitio,
atirou a caneca a Justice, que ficou demasiado atónito para se esquivar, mas a caneca bateu-lhe no ombro sem lhe causar qualquer dano físico.
Cega pelas lágrimas, Ariane afastou-se dele num passo pouco firme. Ouviu-o a chamá-la, mas continuou a caminhar até chegar ao extremo do pomar. Apoiando-se ao tronco
de uma árvore, tentou conter o pranto que a estremecia. Recompôs-se e com um gesto de irritação limpou as lágrimas das faces com um gesto brusco. Ficou hirta ao
aperceber-se de que Justice a tinha seguido. Ele pousou-lhe as mãos nos ombros.
- Chérie, perdoa-me.
Ariane pestanejou, recusando-se a olhar para ele.
- Perdoa-me - repetiu Justice num tom de voz ainda mais terno, o que quase a levou a ficar lavada em lágrimas outra vez. Envolvendo-a nos seus braços, ele puxou-a
para junto de si, depositando-lhe um beijo ao de leve na nuca.
- Não precisas de fingir que és corajosa por causa de mim, se bem que seja forçado a admitir que conseguiste enganar-me. Sempre foste tão corajosa. O cobarde sou
eu. Pensar que posso vir a perder-te deixa-me aterrorizado. Mas prometo-te que vou comportar-me melhor. vou ser suficientemente forte para te ajudar a ultrapassar
este teu estado em segurança. Por vós dois.
Justice pousou a mão enorme aberta na região do ventre dela num gesto protetor. Ariane como que se derreteu encostada a ele, fechando os olhos e inspirando o forte
cheiro masculino do marido, o corpo cálido e robusto a suportar o dela. Parecia-lhe que havia tanto tempo que ele não lhe tocava assim, além de ser a primeira vez
que ele acolhia de bom grado a perspetiva de virem a ter uma criança.
Ariane queria saborear aquele momento, mas existia outro medo que ela se recusara a reconhecer e que não podia ignorar por mais tempo.
- Se me acontecesse alguma coisa... - começou a dizer hesitantemente.
- Caladinha, chérie. Não vai acontecer-te nada - atalhou Justice, beijando-a com toda a ternura e sucessivamente na face e na têmpora.
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Ariane inclinou a cabeça para trás, expondo a curva do pescoço ao ataque de ternura dele, o que não a impediu de persistir.
- Mas se acontecesse continuarias a amar a nossa criança, não é verdade?
- Mas que pergunta tão absurda é essa? - perguntou Justice, fazendo uma pausa com os lábios a meio do pescoço dela.
Ariane virou-se de modo a ficar de frente para ele. Emoldurou-lhe o rosto com as mãos, perscrutando-lhe a fisionomia ansiosamente.
- Não quereria que ficasses tão abalado com o desgosto ao ponto de culpares o nosso bebé pela minha morte. Promete-me que isso nunca aconteceria, que amarás e protegerás
a nossa criança aconteça o que acontecer.
Justice mostrava-se magoado, mas do seu tom de voz transparecia uma culpabilidade mais dirigida a si próprio do que a Ariane quando lhe respondeu:
- Oh, chérie, dar-se-á o caso de eu ter sido realmente um ogre tão monstruoso que sentes necessidade de exigir que eu te faça uma promessa dessas? É evidente que
prometo. Farei o meu melhor para cuidar da nossa bebé, acalentá-la-ei e ensiná-la-ei como tu terias feito. - Justice pegou numa das mãos dela e levou a palma aos
seus lábios. - Mas isso não será necessário, porque tu estarás presente para a criares e educares.
- Ela? - Ariane esboçou um sorriso trémulo. - Como é que podes ter tanta certeza de que será uma menina?
Justice pousou a mão no ventre intumescido, concentrando-se com uma expressão muito teatral. Para deleite de Ariane e dele próprio, a criança dentro dela mexeu-se.
Esboçou um sorriso rasgado.
- Mon Dieu. Sem dúvida alguma que se trata de uma menina. Já consigo senti-la e adivinho como vai ser forte, esta nossa pequena filha.
- Ela será exatamente como o seu papá.
- Para bem dela - redarguiu Justice fazendo uma careta -, acho que devemos rezar para que se pareça mais com a sua mamã.
Ariane riu-se. De momento, todos os seus medos e dúvidas ficaram esquecidos quando Justice a puxou para junto de si, dando-lhe um longo beijo apaixonado. Só muitos
momentos depois, e com a respiração entrecortada, é que se lembrou da razão por que havia ido à procura do marido. Afastando-o de si com relutância, Ariane abordou
o assunto.
- Acabei de traduzir a mensagem da Cat. Justice fitou-a com um semblante inquiridor.
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- Pela expressão na tua cara, eu diria que as notícias que ela te deu não são boas.
- Não inteiramente. O Martin e a filha estão bem e em segurança, para já, pelo que dou graças a Deus. Mas tal como eu receava, o Martin resiste teimosamente à ideia
de vir para a ilha Encantada. Conseguiu singrar na vida em Londres e as suas perspetivas continuam a ser risonhas. Pretende fechar a porta sobre o passado de Meg,
quer cortar todas as ligações com os conhecimentos antigos e com as Filhas da Terra.
Ariane interrompeu-se, mostrando uma expressão de amargura.
- A Cat sente-se extremamente frustrada com a atitude dele, mas não posso censurá-lo inteiramente por isso. Existem ocasiões em que eu própria desejava poder ter
uma existência mais normal. As nossas vidas teriam sido muito mais fáceis e seguras se eu não fosse a Senhora da Ilha Encantada e não fosse versada na magia da Antiguidade.
Eu nunca teria sido acusada de bruxaria. E nós nunca teríamos passado tantos anos no exílio e tu... tu continuarias a ter o título de conde de Renard.
Conquanto Catarina de Médicis tivesse permitido que Ariane voltasse a ocupar a sua posição na ilha Encantada, informara-a numa voz falsamente contrita e de lamento
que era impossível restituir a Justice o que lhe havia sido confiscado. As duas propriedades dos Deauville, bem como o título nobiliárquico, haviam sido concedidas
a um dos favoritos do rei, um daqueles peralvilhos sempre muito pintados que eram os companheiros constantes de Henrique, competindo pelos favores do monarca. O
rei jamais consentiria em privar um dos seus favoritos dos brinquedos que ele próprio lhe concedera.
Ariane sentira-se profundamente ultrajada, perante a espoliação de que o marido fora vítima, mais do que ele próprio. Justice encolheu os ombros ao que ela disse,
não dando importância ao assunto.
- Sabes bem o pouco valor que eu dava às propriedades e ao título que o meu avô me deixou. A Gabrielle tinha razão quando me acusava de, bem no íntimo, eu ser um
camponês. Além disso, parece que tu te esqueces de que não és a única culpada de ser versada em conhecimentos da Antiguidade. Eu próprio aprendi bastante com a minha
velha e malévola avó.
Passando o braço pelos ombros dela e conduzindo-a de volta para dentro de casa, Justice prosseguiu.
- Chéríe, és de longe uma mulher demasiado sensata e inteligente para alguma vez poderes ser normal, vivendo contente num estado de santa ignorância.
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E com base no que ouvi dizer sobre a petite fille de Wolfe, suspeito que a jovem Margaret possa ser a mesma coisa.
- Receio ter de dizer que tens razão - concordou Ariane. - A Cat tenciona permanecer em Londres para proteger a garota até eu lhe ordenar o contrário. Mas não me
é difícil adivinhar que ela deseja abandonar uma cidade que, citando a própria Catriona, "fede a ingleses". - Quando Justice se riu à socapa, Ariane acrescentou:
- E, verdade seja dita, sinto falta da minha aguerrida irlandesa.
- Até que seja possível persuadir o Wolfe, não vejo que outra coisa se possa fazer. Sinto-me perplexo por ele pôr a filha em risco desta maneira.
- O Martin não considera que a ilha Encantada seja mais segura para Meg.
- Sendo assim, deves escrever-lhe para lhe dares conta de todas as precauções que tomámos - disse Justice. - Destaquei sentinelas para a ponte que liga a ilha ao
continente, além de ter dado instruções a vários homens para que patrulhem todas as enseadas mais recônditas, incluindo no extremo mais afastado da ilha. Ninguém
conseguirá pôr pé na ilha sem que alguém dê por isso. Em acréscimo, temos amigos ao longo de toda a costa da Bretanha preparados para fazerem uma fogueira que nos
avise se algum dos soldados da Rainha das Trevas for avistado a aproximar-se da ilha. A ilha Encantada é mais segura do que nunca.
- Podes ter a certeza de que informarei o Martin disso mesmo, mas temo que as nossas precauções não cheguem para que ele mude de ideias. O Martin acredita que, muito
provavelmente, estamos a exagerar o perigo, pelo que se recusa a ficar em pânico, ao ponto de abandonar a sua vida em Londres.
- É possível que ele tenha razão, ma chère. Tens de admitir que tudo tem estado tranquilo e em paz desde a noite em que Gautier pôs fim à assembleia das bruxas reunidas
à meia-noite. Se a Rainha das Trevas se tivesse inteirado
de alguma coisa, ela já teria caído sobre nós com uma fúria de vingança.
Ariane desejou poder sentir-se reconfortada com a ignorância de Catarina, mas abanou a cabeça.
- É muito provável que a rainha esteja muito sossegada à espera da melhor oportunidade. Essa mulher sempre teve uma mente do mais sub-reptício e perverso que se
possa conceber.
- Segundo todas as notícias que nos chegam, ela já tem problemas de sobra para conseguir controlar o filho, que é meio louco, para já não mencionar
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o que tem de fazer para impedir que o duque de Guise assuma totalmente todo o poder em França - disse Justice, apertando afetuosamente os ombros de Ariane. - Se
a situação continuar tão calma como até agora, se não tivermos mais notícias sobre a irmandade das bruxas, não vejo razão nenhuma para a Cat não voltar para junto
de nós por volta do Natal.
- Preocupo-me mais com o que Catarina de Médicis possa fazer do que com essas bruxas.
- Ela está a ficar velha, ma chère, e não é imortal - retorquiu Justice radiante e com uma expressão animadora. - Até mesmo a Rainha das Trevas não pode viver para
sempre.
Catarina de Médicis dirigiu-se para a sala de audiências de cabeça bem erguida. A seda negra do seu vestido, a par do véu que pendia do seu toucado em forma de bico
chegado à testa, emprestava uma grande austeridade à sua figura. O cabelo grisalho começava a rarear-lhe, enquanto a papada dupla e a fisionomia cheia de rugas revelavam
todos os seus sessenta e sete anos.
Não obstante o peso dos anos, deslocava-se majestosamente em direção ao trono, retribuindo as cortesias e vénias dos seus cortesãos com um acenar de cabeça régio.
Ninguém, a não ser ela, sabia o esforço que isso lhe custava. As suas articulações, inflamadas e inchadas devido ao reumatismo, latejavam-lhe de dores que teriam
confinado uma mulher de menos fibra ao seu leito.
Era apenas a muita força de vontade de Catarina que a mantinha de pé, ao que se associava a sombria determinação de não mostrar fraqueza diante de qualquer dos seus
inimigos. E Catarina tinha poucos inimigos maiores do que Henrique de Lorena, o terceiro duque de Guise.
A sua visão tinha-se deteriorado com a passagem dos anos, mas teria de ser quase cega para não dar pela presença do duque, que se destacava de entre todos os demais
cortesãos. Era um homem alto e muito bem-parecido, o cabelo escuro e ondulado todo penteado para trás da testa alta. Tinha uma barba e um bigode muito bem cuidados
no rosto magro. Uma das faces estava dividida por uma cicatriz, uma recordação do campo de batalha que dava mais realce à sua reputação, considerando-se que era
o guerreiro mais corajoso de França.
Trajava com elegância e simplicidade, embora o vestuário fosse dispendioso, refletindo o seu desejo de se apresentar como um militar, o defensor da causa católica.
com trinta e sete anos, o duque encontrava-se na flor da
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idade. A sua robusta saúde e vigor eram como uma afronta a Catarina, que envelhecia e cujo estado de saúde não era famoso.
A rainha teria gostado de poder ignorar a presença dele, mantendo-o à espera até ter falado com o mais humilde dos peticionários, mas isso não era possível com o
duque de Guise. Os outros cortesãos recuavam como um rebanho de carneiros néscios que se tresmalhavam perante o imperioso mastim.
A capa azul presa num ombro volteava com os movimentos do duque quando se ajoelhou sobre um joelho diante da soberana numa atitude esplêndida, mas apenas em nome
do protocolo. Ela já não tinha o poder de vergar aquele arrogante nobre e, o que era pior que tudo, todos os presentes tinham noção disso mesmo.
Manteve-o ajoelhado sobre um joelho durante tanto tempo quanto se atreveu. Uma vitória mesquinha, mas era a única que ela parecia conseguir sobre aquele duque tão
altivo.
- Majestade...
- Monsieur le duc. - Catarina obrigou-se a um sorriso forçado que ele retribuiu com a mesma falsidade. Poderiam ter sido figuras numa pantomina teatral, os sorrisos
falsos de ambos era um fraco disfarce para a aversão que sentiam um pelo outro.
Desde a morte do seu marido que Catarina de Médicis se empenhara numa luta pelo poder com a família dos Guise, que considerava serem arrivistas. Em tempos, o atual
duque tinha pensado elevar a sua posição social desposando a filha da própria Catarina, a princesa Margot. Mas a soberana tinha gorado essas ambições quando casou
Margot com o rei de Navarra. O duque de Guise nunca perdoara isso a Catarina. Sem se dignar oferecer-lhe a mão para que ele a beijasse, a rainha tocou-lhe no ombro
e disse-lhe que se erguesse.
- Este é um prazer bastante inesperado. Não sabia que havíeis regressado a Paris.
Era uma mentira e ambos estavam cientes disso. Catarina certificava-se de que os seus espiões a mantinham bem informada de todos os movimentos daquele homem tão
perigoso.
- Só regressei ontem e apressei-me a vir prestar vassalagem a vossa majestade.
- Sentistes assim tantas saudades de mim, foi isso? - retorquiu a rainha numa voz arrastada.
?- Tenho a certeza de que vossa majestade sabe muito bem o quanto aprecio a vossa companhia - replicou o duque de Guise num timbre de voz
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igualmente melífluo. - Mas, para vos dizer a verdade, era com o rei que eu tinha esperança de poder falar sobre um assunto que me causa alguma preocupação.
- Deveras? - Catarina desejava que os seus olhos continuassem a ter o mesmo poder de outrora, em que era capaz de sondar o olhar de um homem, pondo os seus pensamentos
a nu.
O que é que poderia andar a preocupar o duque ao ponto de desejar uma audiência com um rei que desprezava? O duque de Guise já havia conseguido assumir o comando
do exército, até então sob o domínio do seu fraco filho. Granjeara a adoração das gentes de Paris, sendo aclamado como um herói aonde quer que fosse. Possuía riqueza,
vastas propriedades e poder. O que é que o homem poderia desejar mais além disso?
A resposta encontrava-se atrás dela, o trono adornado a dourado por baixo do pálio do poder da monarquia.
"Nunca, enquanto houver um sopro de vida no meu corpo", jurou Catarina para consigo mesma. Sentou-se com uma lentidão deliberada no trono, um esforço doloroso, com
as articulações dos joelhos a protestarem e sentindo uma dor aguda e espasmódica na anca. Mas não deu mostras desse desconforto físico, além de um contrair dos lábios.
- Lamentavelmente, esta manhã o rei sente-se indisposto - disse a rainha, reprimindo uma expressão de desagrado ao pensar em Henrique, que estava na cama, ainda
inebriado e de ressaca dos excessos da pândega da noite anterior com os seus favoritos. Mas isso era preferível aos tempos em que o rei tinha crises de zelo religioso,
flagelando-se ao ponto de ficar inconsciente. A rainha continuou, falando suavemente: - Podeis ter a certeza de que qualquer petição que me apresentardes será transmitida
de imediato ao rei.
O semblante do duque mostrou uma fugaz expressão de desagrado. Claramente, ele contara poder falar com o filho da rainha, um homem de caráter muito mais fraco. No
entanto, era forçoso que soubesse que qualquer petição da sua parte chegaria aos ouvidos dela, mais cedo ou mais tarde. Em tempos, o filho de Catarina de Médicis
tentara rebelar-se e livrar-se da influência da mãe. Mas com o seu reino devastado pela guerra civil e à beira da ruína financeira por mor das suas extravagâncias,
Henrique tinha vindo a depender cada vez mais da mãe, sempre pronto a esconder-se atrás das suas saias ao mais pequeno sinal de iminência de perigo.
O duque ficou de cenho franzido por uns momentos, mas depois encolheu os ombros numa atitude fatalística.
- A minha preocupação deve-se a Thomas Morgan, o homem que representa a minha prima em Paris, a infeliz rainha da Escócia.
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- Sei muito bem quem é esse homem.
- Nesse caso, por que motivo é que ele está encarcerado na Bastilha?
- Porque Monsieur Morgan é um homenzinho que tem andado extremamente atarefado, a arquitetar conspirações e a tentar obter o apoio da França num esquema com vista
à libertação de Maria Stuart e ao assassínio da rainha Isabel.
- com certeza que isso é algo que todos os católicos devotos deviam desejar - ripostou o duque, persignando-se e afivelando aquela expressão de falsa religiosidade
que fazia sempre com que Catarina sentisse vontade de o esbofetear. Ficou ainda mais irritada quando se ouviram murmúrios de aquiescência da parte de alguns cortesãos
presentes. - A bruxa dos Tudor encarcerou a minha pobre prima sob falsos pretextos há mais de dez anos acrescentou o duque com rispidez. - Não me parece que tenha
de recordar a vossa majestade que a pequena e bonita Maria Stuart, em tempos idos, foi
vossa nora.
A rainha cerrou os lábios. Não, não precisava que lhe lembrassem a fedelha insolente que havia sido casada com o seu enfermiço primogénito, Francisco. Maria Stuart
tinha-se comportado com toda a altivez característica dos seus parentes franceses da família dos Guise. Esses tinham sido tempos de tristeza e de frustração para
Catarina. Depois da morte do marido, tinha visto a família dos Guise e Maria a terem cada vez mais ascendente sobre Francisco, usurpando o poder e a influência que
deviam ter recaído em Catarina como mãe do rapaz e na sua qualidade de rainha viúva de França.
Quando Francisco faleceu depois de um breve reinado de apenas dois anos, foi com toda a satisfação que Catarina de Médicis recambiou a sua impertinente nora para
a Escócia, a sua pátria. A jovem mulher havia sido uma criatura de uma voluntariedade e impetuosidade sem precedentes, dominada pelas suas emoções, pelo que não
constituíra grande surpresa para Catarina quando Maria Stuart caiu em desgraça, tendo perdido não só o seu trono na Escócia, mas também acabando encarcerada numa
prisão em Inglaterra.
Disfarçando a indiferença que o assunto lhe suscitava com uma falsa expressão de interesse, a rainha prosseguiu.
- é evidente que me sinto tão mortificada como vós com o destino da bonita Maria Stuart. Mas, ai de mim, disseram-me que ela envelheceu e engordou bastante durante
o seu cativeiro.
- Um destino reservado a muitos de nós - ripostou o duque, percorrendo a figura corpulenta da rainha com o olhar. Uma das damas de honor de Catarina soltou um arquejo
perante aquela insolência.
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A rainha optou por ignorar aquela atitude, embora os seus dedos se tivessem apertado impercetivelmente no apoio dos braços do trono.
- Monsieur Morgan é um servo fiel e dedicado da minha prima. Vejo-me forçado a exigir que seja libertado sem mais perdas de tempo - disse o duque.
- Lamentavelmente - retorquiu Catarina num tom de voz mais frio -, esse é um pedido que estou certa que o rei recusará. A detenção de Monsieur Morgan foi necessária
para aplacar os ingleses.
- Desde quando é que a França necessita de aplacar os hereges ingleses?
- Não podemos dar-nos ao luxo de ofender qualquer poder estrangeiro. Não quando tanto o tesouro público como o exército estão na penúria por causa da guerra civil
- ripostou Catarina, inclinando-se ligeiramente para a frente. - Uma guerra a que, até ao momento, não haveis sido capaz de pôr fim com êxito.
- Trata-se apenas de uma questão de tempo até eu conseguir esmagar os rebeldes huguenotes - replicou o duque com o cenho carregado.
- Assim tendes vindo a afirmar-me há mais de um ano. Perdoai-me se não dou ordens para que se lance fogo de artifício em celebração durante os tempos mais próximos.
O duque de Guise ficou corado. Ouviu-se um coro de sussurros de simpatia por ele, e de indignação contra Catarina, que percorreu toda a câmara. A soberana rangeu
os dentes, apercebendo-se de que talvez tivesse ido longe de mais. Aos olhos de muitos franceses, o duque de Guise era o herói, enquanto ela há muito que era estigmatizada
como sendo a vilã. A Rainha das Trevas, a bruxa italiana, a arrivista florentina que nunca havia sido considerada como digna de desposar um membro da família real
de França, O quão pouco tinha mudado desde que ela chegara a França, uma jovem noiva, havia tantos anos. Nada mudara, exceto ter ficado mais velha, mais enfraquecida
e menos capaz de se manter firme perante os seus detratores.
Apesar de lhe causar uma profunda aversão fazê-lo, Catarina adotou um tom conciliatório.
- Estou certa de que não tardareis a triunfar sobre os rebeldes huguenotes. Feito isso, podereis envergar a vossa armadura e rumar a Inglaterra, apressando-vos a
ir pessoalmente em socorro de Maria Stuart.
- Podeis ter a certeza de que procederei exatamente dessa maneira! ripostou o duque de Guise exacerbado.
Catarina sorriu, acalentando a imagem do duque a ser trespassado por uma centena de flechas disparadas pela companhia de alabardeiros enfurecidos
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da rainha de Inglaterra. Existia a possibilidade de ele talvez conseguir colocar Maria Stuart no trono inglês, aumentando assim o seu poder e influência, mas Catarina
tinha sérias dúvidas. Confiava em que Isabel Tudor jamais permitisse que isso viesse a acontecer. À semelhança da própria Catarina, a mulher dos Tudor era uma sobrevivente,
dura, determinada e inteligente. Afivelando uma expressão mais austera, Catarina continuou:
- Entretanto, posso garantir-vos que Monsieur Morgan está alojado com todo o conforto na Bastilha, podendo receber tantas visitas quantas desejar. A sua detenção,
ao que tudo indica, não coartou de maneira nenhuma as suas intrigas em prol da vossa prima.
O duque franziu o sobrolho, nada satisfeito com a resposta da rainha à sua exigência, contudo não insistiu no assunto. Ainda não detinha poder suficiente para conseguir
vergar Catarina completamente, bem como o rei de França, à sua vontade.
Mas quando o duque fez a sua vénia e saía com uma postura de arrogância da câmara, Catarina receava que isso se tratasse apenas de uma questão de tempo.
Ouviu mais algumas petições, mas mal prestava atenção ao que lhe era dito. Em tempos, possuíra extraordinários poderes de concentração, mas, ultimamente, a exaustão
parecia apoderar-se de si com demasiada facilidade. Quando foi informada da chegada do embaixador inglês, pedindo para ser recebido em audiência privada, Catarina
recusou, sabendo de antemão o que Sir Edward Stafford pretendia. Não satisfeito com o encarceramento de Thomas Morgan, o embaixador insistia em que o representante
da rainha escocesa fosse extraditado para Inglaterra, a fim de ser julgado.
Catarina de Médicis estava mais do que farta de toda aquela situação. Desejava poder despachar toda aquela gente, o incómodo Morgan, o importuno embaixador e o arrogante
duque de Guise, para longe da sua vista.
Em especial, o duque. Quando era mais nova, no auge do seu poder, teria sabido muito bem como lidar com um homem tão insolente à sua própria maneira, discretamente.
Trataria de arranjar um acidente muito conveniente, uma qualquer substância letal deitada furtivamente no copo dele. Teria o duque, de facto, adquirido tanto poder
que ela não se atrevia a levantar um dedo contra ele? Ou teria ela, muito simplesmente, passado a ser uma mulher idosa tão enfraquecida que receava agir?
"Como a velhice faz com que todos sejamos cobardes", pensou com um suspiro de desalento. Recusando-se a ouvir mais petições, Catarina abandonou a sala de audiências,
as suas damas de honor a saírem atrás de si.
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Os seus passos eram lentos enquanto percorria os corredores do Louvre, ansiando pelo sossego dos seus aposentos e por uma tisana que lhe aliviasse as dores que sentia
nas articulações.
Cruzou-se com o rei, que saía dos seus próprios aposentos. Como de costume, estava rodeado por um séquito dos seus bajuladores muito pintados. Pensou com azedume
que Henrique parecia estar em excelente forma para um homem que tinha afirmado sentir-se demasiado fraco para lidar com quaisquer assuntos de Estado ou petições.
Outrora, Catarina tinha desejado ter nas mãos as rédeas do governo do reino sem quaisquer restrições, mas, agora, o facto de Henrique se furtar cada vez mais aos
seus deveres de monarca estava a tornar-se uma fonte de
preocupação e exasperação.
Henrique não mostrou muito mais prazer ao ver a mãe do que ela quando se cruzou com ele. Encaminhou-se para a rainha, o seu cabelo preto comprido penteado para trás,
deixando ver a sua compleição amarelenta. Envergava um gibão num tom de açafrão muito justo na cintura e uns calções tufados pelo meio das coxas que faziam com que
parecesse excessivamente magro e efeminado. Um contraste deplorável com o vigoroso e destemido duque que tão recentemente deixara a sala de audiências com uma postura
cheia de altivez.
Embora o rei fosse mais novo do que o duque de Guise, o rosto de Henrique mostrava tão gritantemente as rugas da sua existência de devassidão que parecia, de longe,
o mais velho dos dois.
Catarina forçou os joelhos a dobrarem-se numa cortesia hirta e dolorosa enquanto Henrique, por dever filial, lhe depositava um beijo na face.
- Folgo em ver-vos com uma aparência tão boa, meu filho -? disse a rainha, sem fazer o mínimo esforço para ocultar a expressão escarnecedora.
- Suficientemente bem para um homem com a morte a pairar acima da sua cabeça - replicou ele com impertinência.
- E o que é que agora aflige vossa majestade? - perguntou-lhe Catarina, reprimindo um suspiro de cansaço.
- O que é que me aflige? O que é que me aflige? - repetiu Henrique num tom de voz mais elevado a cada sílaba que articulava. - Ainda não vos haveis dado ao trabalho
de olhar lá para fora esta manhã?
Sem lhe dar a oportunidade de responder, Henrique agarrou o braço da mãe, pouco lhe faltando para a arrastar até à janela mais próxima. Catarina rangeu os dentes
quando os seus ossos protestaram com dores.
- Olhai lá para fora - disse ele insistente.
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A despeito de si própria, o coração de Catarina saltou uma batida. As condições de vida em França haviam-se deteriorado cada vez mais ao longo dos últimos anos,
o que se devia a uma sucessão de secas e colheitas escassas que davam origem à fome e ao desespero do povo. Muitas pessoas haviam sido expulsas de suas casas, vendo-se
forçadas a pedir esmola pelas estradas.
A rainha receava deparar com uma turba revoltada que tivesse convergido para o palácio. Mas tudo o que viu foi o amplo relvado que se estendia num suave declive
até às águas mansas do Sena, os bonitos jardins e fontes que ela própria desenhara. Sacudiu a mão do filho.
- Não estou a ver nada, além do facto de as rosas estarem a precisar de ser podadas - disse a rainha agastada.
- Não, ali! - ripostou Henrique, agarrando-lhe o queixo e forçando-a a olhar para cima. - Ali! No céu.
Catarina pestanejou até ficar com os olhos lacrimosos, mas pouco conseguia lobrigar além de uma ténue faixa que se recortava no firmamento de um azul esmaecido.
Mas sabia bem qual o motivo que agitava o filho daquela maneira, o mesmo corpo celestial que estava a fazer com que todos os outros idiotas de cabeça fraca de França
ficassem em estado de pânico. Aquele maldito cometa. Esforçou-se por conter a impaciência.
- Já vos disse antes, Henrique, que não é nada de especial, apenas um cometa.
- Mas está a aproximar-se cada vez mais, mamã.
- Não, está a dirigir-se em direção ao Sol e não tardará a desaparecer por completo.
- E o que é que isso importa? Já lançou sobre nós a sua terrível maldição. Sabeis tão bem como eu qual o significado do cometa. Um grande homem, seja ele quem for,
está prestes a morrer.
"E o que é que isso tem a ver contigo, meu filho?", pensou Catarina, mas deu-lhe uma palmadinha no braço.
- com certeza que vossa majestade é inteligente de mais para se preocupar com tais disparates.
- Disparates? É um facto que consta dos anais da História que um cometa apareceu para anunciar a morte de Júlio César.
- Não se pode dizer que sejais um César, Henrique - ripostou a rainha com secura, mas, no seu estado de grande agitação, ele ignorou o comentário da mãe, começando
a tamborilar com as pontas dos dedos no vidro da janela. A mão magra estava tão sobrecarregada de anéis com pedras preciosas que, muitas vezes, Catarina se admirava
por ele conseguir levantá-la.
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- E o que me dizeis do imperador Nero? com base no que tenho lido, sem sombra de dúvida que ele compreendeu o significado perigoso dos cometas.
- Ah, sim, Nero. Aí está um belo exemplo de sensatez e sagacidade. - Era evidente que o sarcasmo da rainha passou ao lado do filho, uma vez que ele acenou com a
cabeça num gesto de aquiescência.
- O imperador tinha a sensatez de consultar os seus astrólogos acerca de como evitar que o desastre o atingisse. Sabeis o que é que eles o aconselharam a fazer?
- perguntou-lhe Henrique, inclinando-se mais para ela e baixando o tom de voz até um mero sussurrar. - Que matasse alguns dos nobres da sua corte, oferecendo essas
mortes como sacrifício.
- Mas que ideia esplêndida. E que tal se começásseis por alguns desses vossos amigos que têm andado a depauperar o tesouro público?
- Eu estava a pensar mais no duque de Guise! - ripostou Henrique, olhando-a furioso.
Catarina ficou petrificada, olhando para o filho extremamente consternada. Até mesmo com a sua falta de vista, era-lhe impossível não se aperceber do brilho perigoso
que surgira nos olhos de Henrique. A despeito da sua letargia, por vezes Henrique era muito capaz de tomar iniciativas que, de uma maneira geral, eram precipitadas
e desastrosas. E a verdade é que ele tinha uma grande aversão ao duque de Guise, ao ponto de poder cometer uma loucura.
Olhando para as suas damas de honor e para os amigos do filho sem ocultar o nervosismo que se apoderara de si, Catarina agarrou a mão do filho, afastando-o para
mais longe de ouvidos indiscretos. Falou-lhe em voz baixa num tom premente.
- Já discutimos este assunto antes. Resolveremos o problema que o duque de Guise constitui numa ocasião mais propícia, mas não agora. Neste momento, ele é demasiado
poderoso. Se acontecesse alguma coisa de mal ao duque que pudesse ser-nos atribuído, toda a população de Paris e a maior parte dos católicos de França se rebelariam
contra nós. Estaríamos perdidos. Para nós, seria o fim de tudo.
O semblante de Henrique contorceu-se numa expressão que a amedrontou por a ter visto com demasiada frequência recentemente. Por breves momentos, ele pareceu incapaz
de pensar racionalmente, como se estivesse à beira da demência.
- Já é tarde de mais. O que eu sei há já algum tempo. O nosso fim está escrito no céu, mamã. Dentro de um ano, vós e eu estaremos reduzidos a pó e há muito olvidados.
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Para um homem que estava a dizer uma loucura, a sua expressão era arrepiantemente sana.
Catarina encontrava-se sozinha, aconchegando-se mais no xaile que a envolvia, sentada no cadeirão colocado perto da enorme lareira de pedra nos seus aposentos particulares.
Apesar do lume forte e das chamas altas, o calor que irradiava da lareira não era suficiente para lhe aquecer os ossos. Outra consequência da idade avançada, pensou
com amargura. Havia ocasiões em que tinha a impressão de não conseguir aquecer o corpo, talvez fosse um presságio aziago, a antevisão da imensa frialdade que a aguardava,
a frialdade da sepultura.
"Dentro de um ano, vós e eu estaremos reduzidos a pó e há muito olvidados."
Catarina estremeceu ao recordar-se da previsão do filho. Poderia ter ignorado as palavras dele, levando-as à conta do palavreado oco de um louco, isto é, se não
lhe tivessem tocado no coração, onde albergava o seu mais secreto temor. Morrer, cessar de existir. Receava a ideia de um vasto vazio, muito mais do que ter de se
apresentar perante um poderoso Criador para prestar contas dos seus pecados.
As Filhas da Terra consideravam a morte como um processo natural, um fim adequado ao ciclo da vida, ser devolvida ao seio da Terra-Mãe, passar a ser una com o solo
rico. No entanto, Catarina não achava nada reconfortante a perspetiva de larvas a devorarem a sua carne, até tudo o que restar não passar de um feixe de ossos que
o tempo se encarregaria de desfazer.
Ficou toda arrepiada, encolhendo-se no seu cadeirão. Repugnada consigo própria, obrigou-se a sentar-se a direito. Não, ainda não estava preparada para passar a ser
comida por vermes, os presságios insanos do filho que se danassem.
Pelo menos, e para já, tinha conseguido apaziguar Henrique, convencendo-o a não agir irresponsavelmente em relação ao duque de Guise. Todavia, teria de se manter
de olho no filho mais de perto, talvez mesmo deitar alguma espécie de substância na sua comida que garantisse que ele passasse a estar num estado de calma letárgica.
Era inquestionável que continuava a possuir apetência suficiente para preparar poções de infusão com vista a esse objetivo.
Massajando o ombro dorido, Catarina suspirou. Como se o comportamento errático de Henrique e as ambições do duque de Guise não lhe chegassem para a atormentar, agora
tinha de lidar com o regresso de outro problema para a assolar, um problema a que acreditara ter posto fim de uma vez por todas quando a bruxa Lascelles morreu afogada
no rio Sena.
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Contudo, a lenda da Rosa de Prata perdurava e, aparentemente, a própria feiticeira. Não a mulher de nome Lascelles, mas sim uma mera criança...
Catarina mexeu-se quando as suas damas de honor entraram na alcova para acenderem as velas. Perdida nas suas sombrias cogitações, mal reparara que o dia estava a
dar lugar ao crepúsculo. Quando uma das suas damas de honor se aproximou, em bicos de pés, para a informar de que o capitão Gautier tinha chegado e desejava que
a soberana o recebesse, alguma da energia esmorecida de Catarina reavivou-se.
Atirou o xaile para o lado e pôs-se de pé com bastante dificuldade, determinada a, até mesmo perante alguém tão insignificante como um dos seus mercenários, apresentar
a postura majestosa de uma rainha.
Quando o capitão entrou, Catarina dispensou as suas damas de honor. O assunto que levara Gautier à sua presença era de uma natureza demasiado pessoal e secreta para
outros ouvidos que não fossem os seus. Quando a porta se fechou depois de as suas damas de honor terem saído, Gautier ajoelhou-se sobre um joelho aos pés de Catarina.
A luz das chamas das velas produzia um jogo de sombras e luz sobre os cabelos encaracolados e a barba de um louro arenoso de uma textura tão sedosa que muitas mulheres
lhe teriam invejado. O homem possuía um semblante risonho e amável, o que era uma grande vantagem num assassino de uma insensibilidade sem igual.
- Como pareceis radiante esta noite, majestade - cumprimentou o capitão, levando a mão da soberana aos lábios suavemente. - Se me permitis a ousadia de vos dizer...
- Não, não permito - cortou Catarina, tirando a mão da dele com brusquidão. -Já tive que me chegue, e de sobra, de homens ousados de mais e fingidos para um único
dia. Limitai-vos a apresentar o vosso relatório o mais sucintamente possível.
Sem se mostrar perturbado com a repreensão dela, Gautier endireitou-se.
- Muito bem. Está feito, majestade. A última das bruxas que capturámos aquando do ataque de surpresa já foi executada.
- E o carcereiro da Bastilha resolveu o assunto com discrição? - perguntou a rainha com ansiedade. Já era bastante mau que circulassem pelo estrangeiro todas aquelas
aberrantes histórias acerca de uma feiticeira destinada a destruir a Rainha das Trevas. Consequentemente, Catarina não precisava que a execução daquelas bruxas emprestasse
ainda mais crédito à lenda da Rosa de Prata.
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- Fomos tão discretos quanto nos foi possível quando se enforca quase meia dúzia de mulheres. Uma delas ainda tentou gritar: "Que a Rosa de Prata viva por muitos
e bons anos." - Os dentes de Gautier brilharam num sorriso rasgado. - Mas foi silenciada de imediato quando a corda lhe apertou o pescoço. Em qualquer dos casos,
não havia ninguém para a ouvir além de mim e do carrasco.
-- Esplêndido. - Para Catarina, era difícil permanecer de pé na mesma posição durante tanto tempo. Deu alguns passos numa tentativa vã para aliviar parte da rigidez
que sentia nas articulações. - Portanto, deduzo que nenhuma dessas mulheres mostrou vontade de aceitar a comutação da pena que eu lhes ofereci a troco de mais informações
sobre o paradeiro da Rosa de Prata?
- Lamentavelmente, não. Por uma razão qualquer, elas não depositaram muita confiança na promessa de misericórdia de vossa majestade. - O homem teve a insolência
de esboçar um trejeito de presunção. - Do mesmo modo, nenhuma forma de tortura conseguiu soltar-lhes a língua. Tentámos tudo, o cavalete, a bota e o parafuso para
lhes apertar os polegares. Inteirámo-nos de pouco mais, além do que eu já tinha dito a vossa majestade. A Rosa de Prata é, de facto, filha de Cassandra Lascelles,
uma rapariga que tem o nome de Megera; essas mulheres adoram-na ao ponto da insanidade mental.
Catarina abanou a cabeça, ainda mal conseguindo acreditar que a sua temida némesis fosse uma mera rapariguinha. A verdade é que tinha tido a garota ao seu alcance
naquele verão em que a bruxa Lascelles atacara Catarina nos terrenos ajardinados do seu próprio palácio.
Se Catarina de Médicis não tivesse andado tão perturbada, tão obcecada com a tentadora perspetiva de vir a obter o Livro dos Segredos de Cassandra Lascelles, teria
prestado mais atenção a Megera? Se os poderes de perceção da rainha tivessem sido tão apurados como haviam sido na sua juventude, teria reparado em algo de estranho
e extraordinário na garota?
Por muito que se concentrasse, mal se recordava da rapariga. Era uma coisinha tão magricela e comum, com uns enormes olhos verdes que espelhavam temor.
- Essas bruxas foram para as suas sepulturas sem revelarem o paradeiro dessa rapariga - continuou Gautier. - Eu próprio sinto-me mais inclinado a acreditar que as
mulheres não faziam a mínima ideia sobre o que aconteceu à sua preciosa Rosa de Prata.
- Talvez por não terem sido mais do que lacaias ignorantes como vós sois - ripostou Catarina. - Se não tivésseis feito asneira nessa noite nos
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penhascos, permitindo que a chefe da irmandade das bruxas escapasse, talvez tivéssemos ficado a saber mais.
- Fiz o meu melhor - retorquiu Gautier, encolhendo os ombros. Ao contrário de outros mercenários que a tinham servido no passado, o capitão nunca apresentava desculpas
pelos seus fracassos. Talvez porque ele fosse um grande malandro arrojado ou talvez, mais provavelmente, refletiu Catarina com amargura, porque a Rainha das Trevas
não era a figura temível que havia sido em tempos. - A despeito do estratagema a que as bruxas recorreram nessa noite, apenas duas conseguiram escapar-me - acrescentou
Gautier. - A chefe da seita e a mulher de cabelos ruivos que foi vista a afastar-se a galope. - Gautier cofiou as pontas do seu bigode. - Desde essa ocasião que
me inteirei de que a rapariga ruiva, provavelmente, dá pelo nome de Catriona OHanlon e trabalhará para Ariane Deauville.
Catarina franziu as sobrancelhas. Sim, fazia sentido que a Senhora da Ilha Encantada tivesse ouvido rumores a respeito do ressurgimento da irmandade das bruxas,
tendo enviado alguém que investigasse o que se passava realmente. Catarina sentiu-se percorrida por uma onda de cólera dirigida a Ariane, à irmã desta, Miri, e àquele
maldito caçador de bruxas de nome Aristide.
Haviam feito com que Catarina fizesse uma figura ridícula, ludibriando-a quanto à identidade da Rosa de Prata. Mas exercer a sua vingança neles era uma medida a
que não podia dar-se ao luxo naquele momento. O mais importante era localizar a garota e descobrir o que era feito do Livro das Sombras. Feito isso, haveria tempo
para lidar com a duplicidade de Ariane.
Catarina apercebia-se de que Gautier tinha mais alguma coisa a revelar-lhe. O homem balouçava-se apoiado sobre a parte dianteira da planta dos pés, cheio de regozijo,
qual gato prestes a depositar uma ratazana gorda aos pés da sua dona.
- Que mais é que haveis descoberto? - perguntou Catarina num tom autoritário. - Já vos disse que não estou com disposição para brincadeiras, Gautier. Seja o que
for que ficastes a saber, dizei-o sem mais delongas.
- Coloquei espiões no continente para que me mantenham a par de todas as idas e vindas da ilha Encantada. Parece que Ariane Deauville deu instruções à mulher de
nome Catriona OHanlon para que encontrasse Megera.
Sem dúvida que para proteger a queridinha, pensou Catarina desdenhosa, a Senhora da Ilha Encantada, como de costume, estava a proceder com tanta nobreza e generosidade
como seria previsível.
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- Sabemos de um mensageiro que chegou muito recentemente. Não tenho maneira de confirmar a veracidade desse facto, mas acredito que as notícias de que era portador
eram de Mademoiselle Catriona OHanlon. Um dos meus homens conseguiu encontrar esse mensageiro, tendo-se certificado de que ele embarcou para... - Gautier fez uma
pausa para imprimir mais dramatismo às suas palavras, tendo tido a temeridade de prolongar o suspense da rainha.
- Embarcou para onde? Raios vos partam! Para onde?
- Para Londres - respondeu Gautier com um dramático floreado da mão. - Estou em crer que é aí que a garota se encontra. Tenciono enviar alguns dos meus homens para
começarem a procurá-la...
- Não enviareis absolutamente ninguém - interrompeu Catarina com frieza. - Ireis pessoalmente. Este assunto é demasiado importante para mim. É forçoso encontrar
essa rapariga e tendes de vos apoderar do livro, caso esteja na posse dela.
- E quanto à própria rapariguinha?
- Mas precisais de me perguntar isso? Só existe uma maneira de pôr fim à lenda da Rosa de Prata, ou seja, cortar o mal pela raiz. Tendes algum escrúpulo em eliminar
crianças, capitão?
Gautier sorriu, a mão a fechar-se no punho da espada.
- Se o rei Herodes me tivesse tido como seu lugar-tenente, não estaríamos a braços com as atuais guerras religiosas.
- Sois um cão blasfemo, Gautier, além de serdes um grande fanfarrão. Não quero fanfarronices. Quero resultados.
- E é o que havereis de ter - retorquiu o capitão, fazendo-lhe uma vénia acompanhada de uma expressão aduladora. - Não fracassarei, majestade.
- Aconselhar-vos-ia isso mesmo, monsieur- ripostou Catarina com frieza. - É muito possível que eu não seja a mulher que fui em tempos, mas posso garantir-vos uma
coisa: a Rainha das Trevas ainda não morreu.
Cat tinha procurado refúgio sob a saliência do telhado do último piso da vivenda Anjo, o barulho ensurdecido da rua a chegar-lhe aos ouvidos. O bater dos cascos
dos animais no empedrado e o ranger das rodas das carroças misturavam-se com os pregões dos vendedores, das leiteiras e dos padeiros que apregoavam as suas mercadorias.
- Alguns objetos de cozinha, meninas? - gritava um ferro-velho a plenos pulmões, esforçando-se por se fazer ouvir acima das vozes de dois aprendizes de alfaiate
que estavam engalfinhados numa rixa em que ambos vociferavam.
Acostumada a passar a maior parte da sua vida ao ar livre, por vezes Cat sentia uma necessidade premente de escapar aos espaços confinados da casa na cidade de Martin,
mas até mesmo ao cabo de uma quinzena, ainda não se habituara ao lixo, barulho e fedor que eram uma constante em Londres.
Mas, de momento, era preferível à chinfrineira que tinha lugar dentro de casa. Meg estava a ter outra das suas lições de música e, Deus abençoasse a garotinha, a
verdade é que ela não tinha a mínima apetência musical, tal como não tinha ouvido nenhum para a música. Ouvir Meg a tentar dedilhar as cordas de um alaúde era tão
agradável como ouvir alguém a arrancar as garras de um gato.
Cat tinha saído de casa, à procura de alguns momentos de paz e sossego. Mas foi obrigada a encolher-se toda para trás, encostando-se à moldura de madeira pintada
de preto e branco da casa quando um membro da nobreza, acompanhado do seu séquito, passou a cavalo, as montadas a levantarem a lama e o lixo da rua e fazendo com
que três milhanos que tinham estado a comer de um amontoado de bosta levantassem voo a grasnar em direção aos beirais.
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Cat rangeu os dentes. Como ela desejava ardentemente a paz e o sossego das florestas e das enseadas rodeadas de escarpas da ilha Encantada, tudo a cheirar a limpeza
e a ar puro que era soprado pela revigorante brisa que vinha do mar. Consolava-se com a mensagem que recebera de Ariane havia pouco tempo.
Tudo parecia estar tranquilo na ilha e também não recebera más notícias sobre a França, com respeito à Rainha das Trevas e à irmandade das bruxas. Ariane tinha-se
mantido em contacto com o cunhado, o caçador de bruxas Aristide, com a intenção de, com muita cautela, investigar o assunto mais aprofundadamente. Se chegasse à
conclusão de que haviam sobrestimado o perigo que Megera correria, Ariane não via qualquer razão para que Catriona não regressasse à ilha Encantada por ocasião do
próximo Natal.
No Natal... ainda faltavam quase cinco meses. Essa perspetiva teria, apesar do tempo que ainda faltava, enchido Cat de satisfação não fosse um pormenor. Regressaria
sozinha, deixando Martin a tentar alcançar o seu ilusório sonho de se transformar e a Meg numa família inglesa como devia ser. Mas tinha de lembrar a si própria
constantemente e com toda a veemência que isso deixaria de ser um assunto que lhe dissesse respeito.
Cat ouviu a voz de alguém que praguejava, apesar da constante cacofonia que vinha da rua. Rob Nettle, o jovem aguadeiro que fornecia água fresca à casa, esforçava-se
sob a grossa aduela presa aos ombros robustos, o semblante cordial corado que nem um tomate.
Era um dos poucos ingleses com que Cat simpatizava, um rapaz bem-educado e bem-falante. Mas em vez do seu alegre: "Bons dias, menina Catriona OHanlon", ele limitou-se
a resmungar uma saudação quando ela o cumprimentou.
Protegendo os olhos do sol, Cat ficou a olhar fixamente para o recipiente cónico e alto que oscilava nas costas largas de Rob. Pestanejou perplexa e, por breves
momentos, pensou que estava a ver coisas.
- Peço perdão, senhor Nettle - disse Cat. - Mas sabeis que parece que... hum... que tendes uma flecha espetada no recipiente em que trazeis a água?
Rob olhou-a mal-humorado enquanto passava por ela.
- E tenho muita sorte por não me ter trespassado as costas.
- Mas quem diabo é que...
- O louco do vosso amo, quem mais é que faria uma coisa dessas?
- O mestre Wolfe disparou essa flecha contra vós? - perguntou Cat franzindo as sobrancelhas, demasiado atónita com a resposta de Rob para
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o corrigir como fazia habitualmente, dizendo-lhe indignada que Martin não era seu amo. Mas Rob já se tinha afastado demasiado pela rua cheia de movimento para poder
fazer-lhe mais perguntas. Quando Cat começou a contornar a casa para investigar o assunto pessoalmente, ouviu Rob a gritar-lhe do fundo da rua.
- Se eu estivesse no vosso lugar, menina, não iria para dentro. Não, a menos que vos precaveis com o diabo de uma armadura!
Ignorando o que ele lhe dizia, Cat percorreu a estreita passagem entre a casa Anjo e a casa contígua, encaminhando-se para o portão das traseiras.
Habitualmente, Catriona evitava o jardim durante a manhã, altura do dia em que Agatha arrancava as ervas daninhas e podava o que tinha a podar. Muito embora Cat
tivesse conseguido, finalmente, granjear o respeito dos outros serviçais da casa, o atrito persistia entre ela e a senhora Butterydoor. Para que a paz reinasse em
casa, Cat tentava evitar a idosa tanto quanto lhe era possível.
Mas quando começou a abrir o portão do jardim, não viu sinais de Agatha. Mas ninguém que tivesse amor à pele se teria aventurado a ir ao jardim, pensou Cat.
Alguém havia instalado um alvo para a prática de tiro com arco perto da macieira, mas o solo em redor estava rodeado de flechas que o tinham perfurado e de onde
emergiam em vários ângulos estranhos. A sebe e o tronco da árvore não haviam escapado à mesma sorte. Somente o alvo é que permanecia intacto enquanto o frustrado
archeiro ajustava uma flecha para outra tentativa de acertar no alvo.
Apesar de o dia estar fresco, as madeixas de cabelo escuro de Martin e a sua camisa de linho branco estavam húmidas de suor, o que era testemunho dos seus denodados
esforços.
Erguendo o arco, ele cerrou os maxilares com determinação e puxou a corda para trás. Cat fez um ar de reprovação ao ver a postura inadequada, a posição hirta do
braço esquerdo a anunciar o problema que ele teria.
Sentiu-se tentada a avisá-lo, mas já era tarde de mais. Martin soltou a flecha e a corda do arco bateu-lhe com tanta força no braço que Cat se retraiu. A flecha
saiu disparada por moto próprio, indo espetar-se na macieira que já sofrera tanto.
Martin flexionou o braço dorido e praguejou, esquecendo-se do sotaque inglês. Praguejou em francês com uma fluência gaulesa que Cat não pôde impedir-se de admirar.
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Fechando o portão atrás de si, Catriona entrou no jardim.
- Oh, muito bem, monsieur - disse. - Mas acredito que podeis parar o vosso ataque. Duvido muito que essa árvore se atreva a ameaçar-nos outra vez.
Talvez não fosse a coisa mais acertada, troçar de um homem armado com um arco e uma aljava cheia de flechas presa à cintura, mas aquilo foi mais forte do que Catriona.
Tenso ao ouvir a voz dela, Martin deu meia-volta e fitou-a com uma expressão furiosa.
- Se quiserdes fazer o favor, eu...
Mas ela atalhou a réplica brusca que ele se aprontava para articular. Suavizando a expressão carrancuda, Martin apoiou a extremidade do arco no solo, perscrutando
atentamente a fisionomia de Cat, o que a levou a ocultar as mãos nas dobras do seu vestido novo.
Tinha sido forçada a engolir o orgulho, permitindo que Martin lhe comprasse roupas novas para substituir as que lhe haviam sido roubadas. A sua única outra alternativa
seria continuar a usar o mesmo vestido já muito coçado e camisa interior, dia após dia, até começar a cheirar tão mal como os ingleses, os quais tinham uma grande
aversão ao banho diário.
Trajava o vestido que a costureira entregara naquela mesma manhã. Embora tivesse um corte muito simples, era de um azul-vivo, feito da fazenda mais macia do que
a de qualquer outro dos vestidos que tivera até ao momento. com um avental atado à cintura e o cabelo de um ruivo chamejante preso numa coifa de linho, Cat calculava
que devia ter o aspeto de uma criada da casa de uma família abastada.
Mas sentiu-se um pouco ridícula quando Martin lhe falou num tom autoritário.
- Dai uma volta para eu poder ver-vos, por favor.
Catriona franziu as sobrancelhas, mas consciente de que estava em dívida para com o homem, quer isso lhe agradasse, quer não, fez como ele lhe pedia, ainda que com
relutância.
Os olhos de Martin mostraram um súbito fulgor enquanto a observava dos pés à cabeça, demorando o olhar na recatada coifa orlada com renda e sorrindo.
- Quem diria, menina Catriona OHanlon, estais positivamente ador... Mas quando Cat cruzou os braços e o olhou furiosa, desafiando-o a concluir a palavra, Martin
emendou a mão.
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-- Respeitável. Estais com um aspeto deveras respeitável.
- Obrigada - agradeceu ela numa voz resmungada. - Teria sido muito melhor se tivésseis escolhido um tecido mais escuro e modesto. Por exemplo, talvez um tecido castanho.
Cat apressou-se a mudar de assunto com toda a satisfação, desviando a atenção dele na sua pessoa ao fazer um gesto na direção do arco.
- Portanto, o que é que estais a fazer com isso, além de chacinar uma pobre árvore que nunca vos fez mal absolutamente nenhum?
O sorriso de Martin esmoreceu e olhou para o arco como se fosse algum objeto estranho que tinha na mão.
- Mas o que diabo é que vos parece que estou a fazer? Estou a tentar aprender como usar esta maldita coisa, mas estou em crer que há alguma coisa neste arco que
não funciona bem. Não funciona de maneira nenhuma como o livro diz que devia funcionar.
- Livro!?
Martin apontou para um volume que deixara aberto com a capa para baixo em cima do banco do jardim. Cat pegou no livro e leu o título. Toxophilus1. Folheou algumas
páginas e fechou o livro com brusquidão, atirando-o com uma expressão desdenhosa por cima do ombro.
- Cat! - protestou Martin quando o livro caiu no solo. - Aquele manuscrito foi escrito por Roger Ascham, um académico de renome e tutor da rainha Isabel...
- Até podia ter sido escrito pela própria rainha. Nunca aprendereis a praticar tiro com arco seguindo as instruções de um livro, especialmente nunca com um escrito
por um inglês. Essa arte adquire-se apenas com vários anos de prática. Felizmente para vós, o meu pai pôs-me o meu primeiro arco nas mãos quando eu tinha apenas
seis anos. - Cat aproximou-se de Martin. - Muito bem - disse-lhe. - Vamos ver o que é que estais a fazer de errado.
Martin arqueou um sobrolho numa atitude de altivez, mas ela ignorou-o e colocou as mãos nos quadris dele para o colocar na posição mais correta.
- Tendes de manter o flanco em ângulo reto em relação ao alvo. Postura a direito e o peso do corpo distribuído igualmente pelos pés, que devem estar ligeiramente
afastados - instruiu Cat, dando-lhe um pequeno pontapé na bota até ele deixar de lhe resistir com um suspiro mal-humorado.
Manual de instruções para amadores de tiro com arco. (N. da. T.)
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Martin descontraiu o corpo, permitindo-lhe que lhe posicionasse as mãos corretamente e que lhe dobrasse o cotovelo no ângulo correto e seguro.
- Tendes de manter o cotovelo para baixo e as mãos descontraídas. Um dedo em cima da flecha e dois em baixo. - Para frustração de Cat, ele mexeu-se. Pousou uma mão
nas costas dele e passou a outra à largura da frente das ancas, forçando-o a voltar a adotar a posição mais correta. - E agora puxai a corda para trás lentamente
e concentrai-vos.
- Hum, isso é um pouco difícil quando estais a agarrar-me os tomates.
- Oh, peço desculpa. - Na sua ânsia de o ajudar, Cat não se apercebera de como a mão tinha deslizado para baixo. Sentindo a reação física dele, apressou-se a desviar
os dedos. - Eu só estava a tentar posicionar... - gaguejou Catriona, calando-se quando ele lhe lançou um olhar lascivo. Retrocedeu um passo e entrelaçou as mãos
diante de si, mostrando-se embaraçada.
- Não há que hesitar, tratai de disparar a flecha - disse ela de má catadura.
Martin assim fez, disparando outra flecha em direção à sebe, seguida de outra. Cat ficou a olhar até conseguir aguentar e a uma distância segura. Mas os seus dedos
não paravam numa manifestação de impaciência enquanto lhe ia dando instruções. Mas quando outra flecha caiu no solo diante do alvo, não foi capaz de suportar aquilo
por mais tempo.
Esquecendo-se do seu constrangimento, abeirou-se dele com uma atitude determinada, puxando e posicionando ombros, cotovelos e quadris, mas, desta feita, tendo o
cuidado de ver bem onde punha as mãos. Desejava ter podido ajudá-lo a puxar a corda e a fazer pontaria, o que lhe era difícil por ser muito mais baixa do que ele.
Quando Martin, finalmente, conseguiu picar a extremidade do alvo, Cat disse-lhe:
- Foi melhor. Mas permiti que vos mostre uma coisa. - Quando estendeu a mão para o arco, ele protestou:
- Isto não é nenhum brinquedo de criança. Nunca sereis capaz de puxar a corda ao arco com força suficiente.
Cat resfolegou e tirou-lhe o arco das mãos. Submeteu-o a uma inspeção crítica.
Era uma bela arma, embora um pouco ornamentada de mais para o seu gosto com os seus embutidos em marfim. Ergueu-o e ensaiou a tensão da corda, estimando que o arco
teria cerca de cinquenta quilos de tensão. Um pouco pesado para ela, mas nada que não fosse capaz de manejar.
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Estendeu a mão para que ele lhe passasse uma flecha. O que Martin fez com um encolher de ombros numa atitude paternalista. Enquanto ajustava a flecha na corda, Cat
fez uma careta de desagrado.
- Penas de pavão? Andaríeis muito melhor com penas cinzentas de ganso. Têm mais duração e permitem uma pontaria mais certeira. - Posicionou-se da maneira mais correta
em relação ao alvo, tentando alinhar o tiro, mas as fitas da coifa atrapalharam-na. com impaciência, tirou-a da cabeça e arremessou-a para cima do banco de pedra.
Cat voltou a erguer o arco e flexionou os músculos das costas, recuando a flecha e fazendo pontaria em direção ao alvo como o pai lhe ensinara. Já havia passado
muito tempo desde a última vez em que caçara, mas o arco nas suas mãos proporcionava-lhe uma sensação agradável, a sensação de que era aí que pertencia, tão familiar
como se estivesse a acariciar um amante de longa data.
Cat fez pontaria, relaxou a mão do recuo, puxou, soltou e acertou em cheio no centro do alvo. Martin soltou um prolongado assobio num tom baixo de admiração. Cat
fez o seu melhor para conter um sorriso presunçoso.
- E agora gostaria que vos posicionásseis atrás de mim enquanto eu fizer o próximo tiro. Colocai as mãos nas minhas costas para poderdes sentir como eu uso os músculos.
Martin aproximou-se, chegando-se muito a ela e posicionando as mãos quentes nas costas de Cat quando esta recuou a corda. Sentia o calor que irradiava dele até mesmo
através do tecido do vestido, uma presença avassaladoramente masculina de onde emanava um cheiro almiscarado e a suor. Deixando-se levar pelo entusiasmo de estar
a ensinar, Cat apercebeu-se de que aquela talvez não tivesse sido a sua melhor ideia.
Falava numa voz pouco firme enquanto tentava fazer pontaria.
- O vosso... defeito é continuardes a depender da força do vosso braço. Mas assim acabareis com o braço muito dorido e cansado antes de concluirdes uma manhã de
caça. Tendes de aplicar todo o corpo na prática do tiro com arco e flecha.
- Oh, é o que prefiro fazer sempre - murmurou Martin num tom extremamente sugestivo, a sua respiração a fazer cócegas na orelha de Cat, que estremeceu e soltou o
pior tiro que dera em toda a sua vida, até mesmo quando só tinha seis anos. A flecha foi disparada numa trajetória errante, atravessando as ramagens da macieira
e cortando algumas folhas.
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Mordeu o lábio inferior numa manifestação de irritação quando Martin lhe disse numa voz muito suave:
- Pouca sorte, minha querida. Talvez estejais a precisar de vos concentrardes um pouco mais. - Parecia bastante circunspecto, mas quando ela se virou para ele, viu
uns olhos que tinham um brilho trocista.
- com o arco e flecha, a sorte é coisa que não existe, apenas habilidade - retorquiu ela cáustica, voltando a pôr-lhe o arco nas mãos com brusquidão. Afastou-se
para ir apanhar as flechas, ignorando resolutamente o riso dele à socapa.
Catriona passou a hora seguinte a obrigá-lo a praticar os movimentos tão impiedosamente como qualquer instrutor militar, obrigando-o a atirar ao alvo flecha atrás
de flecha. O principal problema de Martin era semelhante ao que ela própria tivera durante a sua aprendizagem. Impaciência.
"Manejar um arco não é como empunhar uma espada, minha pequenina Cat. É uma arte que requer muito mais subtileza e precisão." As palavras do pai ecoavam-lhe através
da mente, uma recordação carinhosa e pungente.
Sentiu a garganta embargada. Engoliu em seco, concentrando toda a sua atenção em Martin. Para sua grande satisfação, ele, por fim, conseguiu lançar uma flecha com
uma pontaria bastante razoável, acertando no alvo próximo do centro.
- Muito bem! - gritou Cat encorajadora. - Sois um homem notável.
- Porquê? - perguntou ele rindo-se. - Só porque deixei de chacinar a macieira.
- N... não. - Um pouco embaraçada por causa da sua explosão de entusiasmo, Cat raspou a sola do sapato pelas ervas, continuando quase com timidez. - Porque haveis
suportado o meu mau feitio que pode ser intimidante. São muito raros os homens que conheço dispostos a tolerarem ser instruídos por uma mulher seja no que for.
Martin encostou o arco ao banco corrido, fazendo uma pausa para limpar uma gotícula de suor da fronte.
- Tenho o maior respeito pelas vossas capacidades, Catriona. Catriona. Havia qualquer coisa na maneira como ele disse o seu nome que quase fez com que o rubor lhe
subisse às faces, até ele acrescentar com um sorriso endiabrado:
- Além disso, não teria sido tão agradável ser posicionado por um homem. Ao ouvir aquilo, Cat corou realmente.
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- Como é que vós... - Ficou sem fala e atirou-se a ele com a intenção de lhe dar uns bons tabefes. Mas Martin riu-se e agarrou-lhe o punho cerrado com facilidade,
imobilizando-o na região lombar antes de lhe prender também a outra mão nas costas.
Cat olhou-o com uma expressão de fúria, embora estivesse bem consciente da comicidade da sua indignação. Estava a desfrutar de mais daquele confronto físico, razão
por que não se esforçava com o afinco necessário para se libertar das mãos dele.
Sentiu que o coração lhe saltava uma batida quando Martin a puxou mais para junto de si, sentindo os seios comprimidos contra a parede sólida que era o peito dele.
Martin fitou-a por entre as bastas pestanas escuras.
- O azul foi a escolha mais acertada - murmurou ele.
- Eu... eu peço desculpa, mas... - Cat estava a sentir-se estranhamente sem fôlego. Talvez fosse por isso que as palavras dele não faziam qualquer sentido.
- Azul- repetiu ele. - Foi a escolha de cor mais acertada para o vosso vestido. Assenta-vos muito bem.
Cat ensaiou uma fungadela escarninha.
- Oh, suponho que agora ireis tentar impingir-me uma treta qualquer acerca de condizer com a tonalidade dos meus olhos.
- Não. Eu podia ter procurado por toda a cidade de Londres e nunca teria sido capaz de encontrar esse azul tão intenso e cintilante.
Maldito fosse o homem por falar de uma maneira que parecia tão sincera e por a chegar a si ainda mais. O bater do coração dela passou de um trote a todo o galope.
Não era a primeira vez que Cat sentia aqueles calores, aquela atração entre os dois. com frequência, durante as últimas semanas, sentira que se encontravam sempre
presentes, mas sempre a pulsar abaixo da superfície.
Um impulso puramente físico e bastante natural fisiologicamente, assegurou a si própria. Havia muito tempo que não tinha um homem e desconfiava que Martin também
sofria de um celibato imposto por si próprio. Duvidava muito que a virtuosa Lady Jane andasse a satisfazer as suas necessidades masculinas.
Sim, era uma atração inteiramente natural e compreensível, mas esse raciocínio não fazia com que fosse menos reprovável. Um desejo perigoso que poderia complicar
a relação entre os dois.
202
Martin olhava para a boca dela com uma intensidade que era desmesurada. Cat deu consigo a humedecer os lábios numa reação involuntária. Quando Martin se inclinou
mais para ela, Cat teve o discernimento suficiente para desviar a cabeça.
Martin apertou-a mais fortemente por uns momentos, mas então pareceu ter recuperado o bom senso. Libertou-a. Afastaram-se um do outro e ambos se concentraram em
recuperar as flechas com uma energia e afinco muito maior do que a tarefa requeria.
Catriona precisou da navalha de Martin para conseguir extrair uma demasiado incrustada no tronco da macieira. Ele entregou-lha, mal olhando para ela. Enquanto Cat
retirava pedaços de casca do tronco da árvore, procurava desesperadamente um tópico de conversa que aliviasse a tensão que se instalara entre os dois.
- Portanto, vamos lá a saber o que é que desencadeou essa ânsia tão súbita de atirar ao alvo com arco e flecha.
- É-me exigido por lei.
- O quê!?
Arrancando as flechas que tinham ficado espetadas no alvo, Martin começou a explicar:
- Desde o reinado de Henrique VIII, é exigido a todos os súbditos ingleses com menos de sessenta anos que possuam um arco e saibam como manejá-lo.
Ah, portanto era a isso que toda aquela afincada prática de tiro ao alvo com arco e flecha se devia, apenas mais um dos muitos esforços denodados de Martin para
se transformar num respeitável cavalheiro inglês. Catriona desejou poder soltar uma gargalhada de escárnio perante aquilo, mas considerou que era uma atitude demasiado
triste e patética da parte dela. Era uma situação tão triste como a da garotinha que se encontrava dentro de casa a dedilhar o alaúde até ficar com as pontas dos
dedos em carne viva, devido aos seus esforços para aprender música como "uma menina inglesa de boas famílias".
Naquela altura, já Cat sabia bem que não valia a pena argumentar com Martin a respeito dos planos de vida que ele tinha para si próprio e para a filha. Face à situação,
limitou-se a um resmungo.
- Só poderiam ser os ingleses a tirarem toda a alegria à prática de um belo desporto, tornando-a obrigatória por lei.
- Os ingleses não consideram que a apetência com o arco e flecha seja um mero desporto. Eles não têm um exército permanente. Se houvesse alguma
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invasão, o país depende de todas as paróquias para que reunam todos os seus homens a fim de organizarem uma defesa.
- com arcos e flechas contra canhões e pólvora? - perguntou Cat sem conseguir resistir, acrescentando provocadoramente: - Ai de nós, os gloriosos dias de Agincourt1
há muito que ficaram para trás.
- Agincourt? - ripostou Martin, reagindo exatamente da maneira que Catriona esperara que ele reagisse. O homem parecia prestes a escarrar.
- Mon Dieu! Não houve nada de glorioso com respeito a essa batalha. Em primeiro lugar, Henrique V não tinha o direito de invadir a França. Em segundo lugar, o número
de tropas francesas era superior, portanto foi uma questão de mera sorte que os ingleses tivessem conseguido... - Martin interrompeu-se, mostrando-se irritado, quer
consigo próprio, quer com Cat, era coisa que ela não saberia dizer.
Acabou de extrair a flecha do tronco da macieira, aproximando-se dele para lha entregar. Quando Martin a guardou na aljava, Cat conteve a língua, mas foi mais forte
do que ela e não conseguiu impedir-se de dizer em voz baixa:
- Jamais sereis capaz de o fazer, Martin, o Lobo.
- De fazer o quê?
- De vos transformardes num inglês.
- Sim, hei de conseguir - ripostou ele cerrando os lábios numa expressão obstinada. - À semelhança do arco e flecha, isso só requer mais prática.
- E se conseguirdes atingir esse vosso objetivo, o que é que acontecerá depois? Se houvesse uma invasão, de facto, e os invasores fossem os franceses? - perguntou
ela provocadora. - Conseguiríeis ser suficientemente inglês para lutar contra os vossos compatriotas?
- com base no que tenho ouvido, é muito mais provável que os ingleses venham a ser atacados pelos espanhóis. Mas se fosse a França a atacar... - Martin fez uma pausa
com uma expressão a ensombrar-lhe a fisionomia que era de acabrunhamento e tristeza a um tempo. - Não seria a primeira vez que eu teria de desembainhar a minha espada
contra alguém da minha própria pátria. Há vários anos que a França é devastada por uma guerra civil.
1. Alusão à batalha de Agincourt que se travou no Norte de França em 1415, na qual o exército inglês, sob o comando de Henrique V, derrotou o exército francês mais
numeroso. A vitória deveu-se em grande parte ao recurso, com muito êxito, aos archeiros ingleses, o que permitiu que Henrique ocupasse a Normandia, consolidando
a sua reivindicação ao trono francês. (N. da T.)
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Foi ao serviço do rei de Navarra, um protestante, que combati ombro a ombro ao lado do meu bom amigo, o capitão Nicholas Remy, que também é um huguenote.
"E também estive em Paris na véspera do dia de São Bartolomeu, quando o sangue correu pelas ruas da cidade. Pessoas que se degolavam umas às outras porque umas consideram
a hóstia sagrada como sendo o corpo de Cristo e outras pensam que não passa de um pedaço de pão. Franceses a chacinarem franceses. No entanto, eu diria que não podeis
compreender...
- Oh, sim, compreendo muito bem. Os irlandeses andam a matar-se uns aos outros há mais séculos do que os franceses. Foi por causa disso que fiquei sem o meu pai.
Martin lançou-lhe um olhar de curiosidade.
- A Meg disse-me que o vosso pai pereceu no campo de batalha quando ainda éreis muito nova, mas presumi que tivessem sido os ingleses...
- Não - atalhou Cat com um veemente abanar de cabeça. - Não, foi numa luta com os Dunnes. Havia muitas gerações que existia uma rixa entre os dois clãs, vá-se lá
saber por que razão, uma disputa por causa da posse de terras, caça furtiva em coutadas alheias, talvez por causa do roubo de algumas cabras.
Cat encolheu os ombros, esboçando um sorriso tristonho.
- É a maldição da minha gente, fervem em pouca água e têm memória de elefante. Não faço a mais pequena ideia do motivo que desencadeou as hostilidades outra vez.
Eu tinha apenas oito anos na altura. Tudo o que sei é que, ao fim desse dia, o meu pai nunca mais voltou para casa.
A voz dela enrouqueceu de emoção. Fez menção de se afastar de Martin, mas este agarrou-a pela mão. Outro homem qualquer talvez a tivesse irritado sobremaneira ao
tentar reconfortá-la com um qualquer lugar-comum.
Martin limitou-se a levar a mão dela aos lábios. Cat estremeceu ao sentir os lábios dele, considerando aqueles momentos de empatia bastante mais difíceis de gerir
do que aqueles em que o ardor se fez sentir entre os dois. Sabia bem como lidar com a paixão. Era a ternura que a deixava desconcertada. Afastou a mão da dele, falando-lhe
com uma brusquidão que era forçada.
- É melhor voltar para dentro de casa. A Meg tem estado a trabalhar tão esforçadamente na sua lição de música como vós com o arco e flecha. É preciso que alguém
vá salvar a pobre garota.
205
Ou, mais precisamente, salvar mestre Naismith, bem como os restantes residentes da casa, pensou Cat, mas não seria boa ideia partilhar essa conclusão bem-humorada
com Martin. O homem andava tão deliberadamente cego a respeito das apetências musicais da filha como sobre tudo o mais.
Quando já atravessava o jardim, Cat baixou-se para apanhar a coifa que atirara para o chão. Ficou atónita quando Martin se apressou a tirar-lha da mão.
- Não deveis usar esta coisa. A única razão que me levou a dar-vos esta coifa foi para vos irritar na brincadeira. Nunca pensei a sério que devíeis usá-la.
- Pensei que seria necessário, para complementar o meu disfarce, a fim de que se acreditasse que eu era um membro respeitável do pessoal doméstico da vossa casa.
Como se a dar realce ao que ela dizia, uma madeixa do cabelo ruivo indomável caiu-lhe para o rosto. Martin afastou-a, prendendo-a atrás da orelha dela.
- A coifa não vos fica nada bem - disse-lhe Martin com um sorriso provocante. - Há que levar em consideração que é possível que se tente ser respeitável com um excesso
de zelo, menina Catriona OHanlon.
Cat tentou pensar numa réplica espirituosa, mas teve a sensação de que as palavras lhe ficavam presas na garganta, sentindo o coração cheio de um estranho anelo.
Talvez por desejar tão ansiosamente convencê-lo disso mesmo.
Meg flexionou os dedos doridos, soltando um suspiro de desânimo. O seu tutor dissera-lhe que, com o tempo, as pontas dos dedos dela começariam a endurecer, acostumando-se
a dedilhar as cordas do alaúde. Talvez ele tivesse razão. Mas o que jamais se alteraria era a sua falta de habilidade musical.
Afinada ou desafinada, a diferença entre uma nota e as outras... muito simplesmente, era coisa para que ela não tinha ouvido. Para sua grande infelicidade, tinha
plena consciência de ser um fracasso e uma grande desilusão. Não apenas para o pai, mas também para o jovem de cabelo louro ondulado que se sentava ao seu lado,
no assento da janela da sala.
A luz do Sol filtrava-se pelo vidro, formando como que um halo dourado que emoldurava a face macia e de feições tão belas de Alexander Naismith. Estendendo o braço
em torno de Meg, com toda a paciência, ele reajustou os dedos dela nas cordas do alaúde pelo que seria mais ou menos a décima segunda vez.
- Vamos lá, menina Margaret. Tentai outra vez. Apenas os primeiros compassos da canção.
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Meg acenou que sim, mal conseguindo olhar para ele. A mera presença de Sander, quanto mais o toque da sua mão, era quanto chegava para que toda ela ficasse a tremer
por dentro.
Meg respirou fundo e posicionou os dedos nos trastos do alaúde, mortificando o instrumento uma vez mais. Mas por muito que ela se esforçasse para replicar o que
Sander lhe mostrava, tudo o que conseguiu produzir em termos musicais foi um arranhar agudo nas cordas absolutamente horrível.
Deteve-se, deixando que a última nota excruciante ficasse a vibrar no silêncio. Uma única lágrima formou-se-lhe ao canto do olho, começando a correr-lhe pela face.
- Mas o que é que se passa? - perguntou Sander, levando os dedos ao queixo dela e tentando fazer com que olhasse para si. Mas Meg baixou a cabeça, permitindo que
o cabelo lhe caísse para a frente enquanto se esforçava por se conter.
- Eu... eu sou uma nulidade musical, Sander.
- O que estais a dizer é um disparate, milady. Melhorastes muito - retorquiu Sander, inclinando-se para baixo a fim de apartar a cascata de cabelo para poder ver-lhe
a cara. - Hoje até nem sequer partistes uma única corda.
O sorriso dele era bem-humorado, mas também afetuoso, fazendo com que ela soltasse uma pequena risada, a despeito da tristeza que sentia. Ficou tensa ao ouvir o
ressonar que vinha do outro lado da sala.
Por vezes, ela esquecia-se de que não se encontrava sozinha com Sander. Agatha mantinha-se sentada numa cadeira com a sua costura, ostensivamente no seu papel de
pau de cabeleira da sua jovem senhora durante as lições de música. No entanto, tinha tendência para dormitar de tempos a tempos.
A cabeça dela começava a descair cada vez mais baixa, até que o queixo quase lhe tocava no cimo dos seios pendentes, altura em que endireitava a cabeça com um gesto
repentino. Pestanejava e olhava com uns olhinhos de coruja para Meg e Sander, antes de esboçar um sorriso sonolento e retomar o trabalho de agulha que tinha em mãos.
Deu mais alguns pontos antes de as pálpebras voltarem a pesar-lhe, voltando a entregar-se de novo à sonolência.
Sander inclinou-se mais para Meg, murmurando-lhe ao ouvido:
- Às vezes estou à espera de ver a cabeça da senhora Butterydoor a cair completamente, começando a rolar pelo soalho.
Meg levou a mão à boca para abafar uma risada.
- Nem sequer sou capaz de imaginar como é que ela consegue dormir daquela maneira - acrescentou Sander.
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- Especialmente, com o barulho horroroso que eu faço - retorquiu Meg em voz baixa. - Talvez ela ponha algodão nos ouvidos, como o Jem e a Maude costumam fazer. -
Meg voltou a concentrar a sua atenção no alaúde pousado no colo, acrescentando cheia de indignação: - Ouvi o Jem a rir-se enquanto dizia à Maude que fazeis música
muito mais melódica com uma orelha do que eu alguma vez serei capaz de fazer com as duas...
Meg interrompeu-se repentinamente, horrorizada por ter sido insensível ao ponto de repetir uma graçola tão cruel.
- Oh, S... Sander, lamento tanto...
- Não, não vos mortifiqueis por um momento que seja por causa do que esse patife diz. Garanto-vos que lhe darei uns bons tabefes se ele se atrever a voltar a falar
de maneira tão desrespeitosa da minha jovem senhora.
A sua jovem senhora? As bochechas de Meg ficaram ruborizadas enquanto olhava fixamente para o alaúde no seu colo.
- Quanto a mim, não presto a mínima atenção a essas graçolas estúpidas e de mau gosto. Estou acostumado a elas. - Não havia azedume no tom de voz de Sander, mas
Meg sentiu que ele mexia o braço e nem sequer precisou de olhar para saber que ele ajeitava o cabelo por cima do coto que restava da sua orelha. Era um gesto que
ele fazia com bastante frequência.
Meg tentou não pensar nisso, mas, por vezes, não era capaz de evitar pensar nas imagens horríveis de Sander a ser arrastado para o cepo de madeira, a cabeça maravilhosa
a ser imobilizada à força sobre a madeira áspera, o brilho na lâmina aguçada da faca do carrasco...
Estremeceu e arriscou-se a olhá-lo com timidez.
- Foi uma coisa extremamente cruel que vos foi feita.
- Vivemos num mundo cruel, menina - disse ele, tamborilando com os dedos magros e afuselados no braço do alaúde. - Mas a música torna-o um lugar muito mais doce.
- Mas não o género de música que eu tento tocar - replicou Meg descorçoada.
Sander fitou-a atentamente por breves momentos antes de abanar a cabeça vagarosamente.
- Tendes a memória mais espantosa e extraordinária do que qualquer outra pessoa que eu conheça. Sois capaz de memorizar os poemas líricos de todas as canções que
vos ensinei, até mesmo depois de as terdes ouvido apenas uma vez.
208
- É verdade - confirmou Meg um pouco mais alegre e com veemência. - Também sou capaz de decorar passagens inteiras em latim e grego, na verdade, livros inteiros...
A voz esmoreceu-lhe, retraindo-se ao aperceber-se de como era um talento enfadonho para uma jovem se gabar, certamente que não seria o género de coisa que um jovem
cheio de vida como Sander consideraria cativante.
- Sois uma menina muito inteligente, Meg. - Deu-lhe uma palmadinha na ponta do nariz na brincadeira. - Portanto, por que será que não sois capaz de memorizar, igualmente,
todas as notas de música nessa cabecinha tão inteligente?
- Porque não compreendo as notas musicais. Para mim, não fazem o mínimo sentido.
- Bem, não importa. Talvez venhais a provar ser mais dotada noutros campos das artes.
Sander esticou o pescoço na direção de Agatha, como se a certificar-se de que a mulher tinha adormecido realmente. Inclinou-se mais para Meg e falou-lhe numa voz
murmurada:
- Trouxe-vos o objeto que me pedistes que vos comprasse.
Meg ficou tensa, olhando também de relance e com nervosismo para Agatha. Mas a mulher continuava a ressonar de mansinho enquanto Sander procurava no saco em que
costumava trazer as suas pautas de música, de onde tirou uma esfera de cristal do tamanho de uma pequena meloa.
- Mas agora tendes de me prometer que não direis nada ao vosso pai sobre esta aquisição - disse-lhe ele antes de lhe entregar o objeto. - Considero que adivinhar
o futuro por meio de uma bola de cristal é um passatempo inofensivo, mas sei que mestre Wolfe não aprecia nenhuma espécie de magia. Eu não gostaria nada que ele
se irritasse comigo.
- Prometo que não lhe digo nada - sussurrou-lhe Meg, pondo o alaúde de lado. Os dedos tremiam-lhe quando tirou a esfera das mãos dele. Tinha ouvido dizer muita coisa
a respeito de bolas de cristal, mas nunca tinha visto uma com os seus próprios olhos. Sentia-a fria e pesada nas suas mãos, o cristal a cintilar sob a luz que entrava
a jorros pelas janelas.
Devido à sua cegueira, Cassandra Lascelles nunca tinha consultado uma bola de cristal, muito embora não escarnecesse daquele meio para a prática de magia.
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"Uma bola de cristal que permite prever o futuro pode ser útil. Caso se possua a capacidade de ver", dissera à filha. "Talvez a seu tempo, te ponhamos aprova para
vermos se possuis essa apetência. Mas, por agora, quero que concentres toda a tua atenção na tarefa da tradução do Livro das Sombras."
A recordação da voz da mãe era o suficiente para que o seu corpo fosse percorrido por um arrepio. Havia sido forçada a memorizar todo o conteúdo do livro, tendo
receado que a mãe talvez viesse a querer, um dia, ensinar-lhe as artes de erguer os mortos. Até mesmo a perspetiva de vir a possuir uma bola de cristal que lhe permitisse
adivinhar o futuro era algo que lhe inspirava algum receio. Nunca tivera a intenção de adquirir uma até agora...
Pegou na bola de cristal e posicionou-a à altura dos olhos, perscrutando o seu interior enquanto se perguntava se possuiria a capacidade de adivinhar o futuro. Não
viu nada de especial, além da imagem de Sander distorcida pelo vidro.
Ao beijar a bola, apercebeu-se de que ele a observava com uma expressão de curiosidade.
- Sois uma menina deveras misteriosa, Margaret Wolfe. Continuo sem conseguir compreender o que desejais com essas estranhas lentes curvas que me haveis pedido que
encomendasse no vidreiro.
Sander pensava que ela era misteriosa, o que agradava bastante a Meg. Esboçou o que esperava que fosse um sorriso imperscrutável. - Quem sabe se um dia não me decidirei
a mostrar-vos.
- Pelo menos, sei para o que uma bola de cristal serve, se bem que não faça a mais pequena ideia sobre o que pensais fazer com isso.
(Adivinhar o meu futuro na esperança de que a minha mãe estivesse enganada, ou seja, que não estou destinada a ser essa maléfica Rosa de Prata."
Meg inclinou os ombros para a frente, num esforço para mostrar indiferença e não o quanto estava desesperada por descobrir a verdade acerca de si própria.
- Só pensei que talvez fosse divertido... brincar com uma bola de cristal, para descobrir se é realmente possível ver o futuro.
- Não precisais de uma bola de cristal para isso. Posso dizer-vos qual será o vosso futuro.
- Vós... vós podeis fazer isso?
Sander tirou a bola de cristal das mãos de Meg e pousou-a em cima do peitoril da janela. Virou a palma de uma das mãos de Meg para cima, começando a examiná-la.
Os dedos dela pareciam deprimentemente curtos e grossos quando comparados com os dele, tão afuselados e graciosos.
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Meg contorceu-se, sentindo um formigueiro na pele enquanto Sander percorria com a ponta dos dedos as linhas da palma da sua mão.
- Ah!
- O que é que estais a ver? - perguntou Meg ansiosamente. Ele semicerrou os olhos, perscrutou a palma da mão e entoou numa voz solenemente trocista:
- Estou a ver-vos crescida, transformada numa beldade deslumbrante, prestes a desposar um rico comerciante, ou até mesmo um cavaleiro, numa cerimónia tão grandiosa
que até a própria rainha estará presente. E eu serei obrigado a tocar alaúde no vosso matrimónio enquanto ranjo os dentes de inveja do noivo.
- Oh! - exclamou Meg, os ombros encurvados numa postura de desilusão e afastando a mão. Sander só estava a brincar com ela. Só podia ser isso. Era um bonito rapaz
de dezasseis anos, enquanto ela própria apenas uma rapariga de onze anos, além de ser muito magricela e pequena para a idade.
Mesmo assim, não podia evitar perguntar-se o que ele pensaria realmente dela. Cat costumava dizer-lhe que era má educação ler olhos, invadir a privacidade dos pensamentos
das outras pessoas. Meg tinha vindo a fazer um grande esforço para reprimir esse seu talento e, de uma maneira geral, era-lhe fácil fazer isso com Sander. Sentia
sempre tanto acanhamento na presença dele que mal se atrevia a erguer o olhar para o dele.
Mas, ao contrário do que era costume, a tentação foi demasiado forte para lhe resistir. Dominando os escrúpulos, adquiridos recentemente, e a sua timidez, inclinou
a cabeça para trás e esquadrinhou-lhe os olhos com toda a sua concentração. Eram de um azul extremamente suave, emoldurados por umas pestanas de um louro muito claro.
Meg perscrutava-lhe a mente cada vez mais aprofundadamente para se inteirar de todos os seus pensamentos.
"Ela é tão novinha, ainda é apenas uma garotinha."
O coração de Meg caiu-lhe aos pés. Sentia-se tão mortificada que quase quebrou o contacto visual.
"Mas promete vir a ser uma mulher lindíssima de futuro. Tem uns olhos como esmeraldas de fogo, um pescoço tão branco e granoso como o de um cisne."
"Domina-te", disse Meg a si própria, baixando o olhar e prendendo-o no colo. Ele não tinha estado a brincar. Sander acreditava verdadeiramente que ela seria lindíssima.
Meg levou a mão ao corpete do vestido, fazendo pressão,
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desejando que Aggie não lhe tivesse apertado tanto as fitas do corpete naquela manhã. Mal conseguia respirar.
Entretanto, Agatha voltou a acordar tão repentinamente que Meg mal teve tempo de estender as saias por cima da bola de cristal. Ela e Sander foram forçados a retomar
a lição de música, mas Meg teve mais dificuldade em concentrar-se do que nunca.
Estava demasiado consciente tanto da presença de Sander como do tesouro que tinha escondido por baixo das dobras do vestido. A sua mente vagueava, imaginando-se
a perscrutar a bola de cristal e encontrando um futuro tão delicioso como Sander descrevera. Um grandioso casamento, vendo-se a si própria alta e graciosa, com um
vestido lindíssimo, a rainha a acenar com a cabeça num gesto de aprovação enquanto Meg unia as mãos com um noivo muito bem-parecido que se parecia muito com Alexander
Naismith.
Mas aqueles devaneios desvaneceram-se rapidamente, ensombrados por uma visão mais sinistra, a de Cassandra Lascelles, o cabelo de um preto asa de corvo atirado para
trás, os olhos cegos a brilharem de escárnio, a rir-se desdenhosamente de todas as risonhas esperanças de Meg.
Cat aproximou o banco um pouco mais da lareira, dependendo da luz das velas de um candelabro com vários braços enquanto se incumbia da sua tarefa. Tirar as penas
de pavão das flechas de Martin, substituindo-as pelas de ganso muito mais discretas.
Não aprovava a razão dele para querer aprender a atirar ao alvo com arco e flecha, mas se isso era assim tão importante para Martin, o melhor que ela tinha a fazer
era ajudá-lo no que lhe fosse possível. Não que se pudesse dizer que tinha mais com que ocupar o seu tempo naquela noite, para além de ver Meg, que andava de um
lado para o outro na alcova, possuída de um enorme desassossego.
Meg, habitualmente, estava de nariz enterrado num livro ou a importunar Catriona para que lhe contasse mais lendas da Irlanda à hora de deitar. Não era costume que
a garota se mostrasse tão inquieta, mas a verdade é que Meg nem parecia a mesma. À mesa da ceia, mantivera-se agitada durante toda a refeição, a brincar com a comida
que tinha no prato e em que mal tocara.
Martin, que de costume estava sempre na brincadeira, conseguindo fazer com que Meg, geralmente bastante sisuda, se risse, mostrara-se demasiado perturbado. Cat observara
frequentemente essa perturbação em Martin quando ele se preparava para desaparecer numa das suas misteriosas saídas noturnas.
A desculpa que tinha apresentado naquela noite era muito pouco convincente. Alegara ter de ir falar com mestre Roxburgh para conferirem as contas do Teatro Crown.
Mas àquela hora da noite!? Cat ansiara por lhe fazer aquela pergunta. Havia homens que talvez ficassem muito ansiosos e tensos por terem de conferir as contas do
livro-razão, mas Cat duvidava que Martin fosse um deles.
213
Catriona dividira o tempo que passara à mesa da ceia por Martin e pela filha dele, examinando os dois atentamente. Ambos se apressavam a desviar o olhar quando se
apercebiam de que eram alvo da atenção dela. Conquanto Martin fosse capaz de afivelar uma expressão impassível, Meg era demasiado jovem para outra atitude que não
fosse mostrar uma expressão de culpa que causava mal-estar a Cat e a levava a perguntar-se o que é que se passaria.
O que é que a menina Margaret poderia andar a aprontar? Levando em linha de conta as faculdades e conhecimentos da jovem, as possibilidades eram infinitas e alarmantes.
Os assuntos de Martin só a ele diziam respeito e Cat nada tinha a ver com isso, foi forçada a lembrar a si própria. Mas, por outro lado, o que se passava com Meg
era do seu foro pessoal.
No entanto, quando se retiraram para a alcova no piso de cima, Cat refreara a muita vontade de a massacrar com perguntas. Durante as últimas semanas, nascera uma
amizade entre as duas, mas que ainda era muito recente e, consequentemente, frágil. Cat detestava a possibilidade de pôr essa amizade em causa ao forçar Meg a fazer-lhe
confidências.
Embora lhe fosse difícil, conteve-se, fingindo-se muito embrenhada na tarefa das flechas enquanto, pelo canto do olho, observava Meg a andar de um lado para o outro.
Entretanto, a garota deteve-se diante do espelho pendurado acima do lavatório de pé. Meg tinha tendência para evitar ver-se ao espelho, quase como se receasse ver
um grande defeito na sua fisionomia. Mas, naquele momento, inclinava-se toda para o espelho, examinando-se ansiosa e atentamente.
Abriu muito os olhos e estendeu o pescoço, rodando a cara de um lado para o outro, examinando-se de perfil. A sua expressão fisionómica alternava entre a esperança
e o desespero enquanto puxava a camisa de dormir de maneira a ajustar o tecido de linho às formas do corpo, olhando atentamente para o peito e soltando um profundo
suspiro.
Os lábios de Catriona esboçaram um sorriso que em parte era divertido e em parte de alívio. Pelo menos, agora já tinha uma ideia do que poderia estar a mortificar
Meg e que, desta feita, não era nada tão perturbador como ter de lutar contra recordações sombrias que guardava da mãe ou questões relativas ao destino da garota.
Quantas vezes é que a própria Cat tinha feito a mesma coisa quando era garota, a examinar o peito tão plano que fazia com que desesperasse de alguma vez vir a ter
outro aspeto que não fosse o de um garoto da rua meio morto de fome. É claro que tinha sido alguns anos mais velha do que Meg
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quando se afligira com esses pensamentos, mas a realidade era o facto de Meg, ao contrário, ser precoce.
Quando a garota se apercebeu de que era observada, Cat apressou-se a concentrar-se no que estava a fazer. Entretanto, Meg aproximou-se dela, colocando-se à sua frente
a contorcer as mãos que arrepanhavam as dobras da camisa de dormir.
- Cat, posso perguntar-te uma coisa?
- Tudo o que quiseres, minha doçura.
- Que idade tinhas quando começaram a crescer-te?
- A crescer-me o quê?
- Os... os seios - explicou Meg, olhando fixamente para os dedos dos pés descalços, as bochechas coradas que nem um tomate.
- Não me lembro ao certo - respondeu Catriona reprimindo outro sorriso. - Mas parece-me que já tinha catorze anos.
- Catorze anos! - exclamou Meg. - Tão velha?
- Já estava bastante decrépita, não achas? - ripostou Cat com secura. - Ainda me lembro de ter pensado que estava fadada a continuar a ter um peito tão achatado
como um escudo para sempre, mas então houve um verão em que os meus seios brotaram como melões que tivessem amadurecido.
- A sério? - Meg espreitou esperançadamente para dentro do decote subido da camisa de dormir.
- Não tenhas tanta pressa em crescer, minha pequena amiga. Ter peito pode ser uma bênção ambígua.
- Como assim?
Cat alisou a ponta de uma pena antes de a encaixar numa flecha.
- Bem, sem dúvida que as minhas novas protuberâncias aumentaram a admiração dos rapazes. Mas, por outro lado, os seios também me atrapalhavam e diminuíram a minha
habilidade no manejo do arco e flecha. Não conseguia acertar no alvo até ter aprendido a fazer alguns ajustes.
- Não estou interessada em aprender tiro ao alvo com arco e flecha.
- E quanto a conseguires despertar o interesse de um certo rapaz? perguntou-lhe Cat na brincadeira.
- Deixa-te de disparates - retorquiu Meg. Mas ficou ainda mais corada, confirmando as suspeitas de Cat que lhe diziam que a jovem estava a sentir as ansiedades da
sua primeira paixoneta e sentia-se quase certa da identidade do felizardo.
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Mas não disse nada quando Meg puxou outro banco para se sentar ao seu lado. A garota pegou numa das penas de pavão rejeitadas, virando-a e revirando-a nas mãos.
- Como é que foi a tua lição de música? - aventurou-se Cat a perguntar.
- Tenho a certeza de que deves ter ouvido.
- Ah... não, estive no jardim durante a maior parte desse tempo.
- Sem dúvida que com as mãos a taparem os ouvidos. É preciso um esforço tremendo para estrangular um alaúde, mas, finalmente, consegui fazê-lo.
Cat riu-se. Para uma coisinha tão solene, Meg, ocasionalmente, fazia uns comentários bem-humorados.
- Se as tuas lições de música te causam tanta infelicidade, posso tentar falar com o teu pai a esse respeito - sugeriu Catriona com alguma matreirice. - Tenho a
certeza de que ele te ama o suficiente para...
- Não. Não! - apressou-se Meg a gritar alarmada. - Eu... eu gosto muito das minhas lições de música.
- Ou, pelo menos, do teu professor de música.
- Isso é ridículo! - disse Meg com brusquidão, percorrendo a pena com os dedos. - Se bem que tenha de admitir que o mestre Naismith é muito bem-parecido, não achas?
- É um pouco bonito de mais para o meu gosto - respondeu Cat. Quando Meg a olhou com uma expressão de fúria, apressou-se a acrescentar:
- Mas atrevo-me a dizer que já sou velha de mais para poder apreciar os encantos de um homem jovem como ele.
- Ele é encantador e... e inteligente. Sabe tocar alaúde e tamborim, além de ter uma voz de anjo. Tenho a certeza de que deve ser um dos melhores atores em toda
a cidade de Londres, apesar de eu nunca o ter visto a representar.
- Mas vi eu. Ele é muito bom. De facto, o jovem é muito melhor a desempenhar o papel de uma mulher do que eu.
- Não me parece que gostasse de ver o Sander a fingir que é uma mulher - retorquiu Meg, franzindo o nariz. - Deviam dar-lhe um papel mais arrojado, como o de um
soldado ou de um cavaleiro.
- A voz dele não é suficientemente grave e aposto que o rapaz tem mais habilidade para se abanar com um leque do que para empunhar uma espada.
- E porque é que dizes isso? - perguntou Meg indignada.
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- Se o rapaz tivesse algum jeito para lutar, minha doçura, decerto que continuaria a possuir as duas orelhas.
- Não foi por culpa do Sander que ficou sem a orelha! - gritou Meg. - Foi por um ato da maior injustiça e crueldade. Ele foi preso por ter roubado e foi levado para
Newgate...
- O Alexander Naismith era um gatuno? - interrompeu Cat chocada.
- Não pôde evitá-lo. Era muito novo e pobre, estava a morrer de fome. Tudo o que ele roubou foi um pão!
Ou assim ele teria dito a Meg. Cat perguntou-se se Martin estaria ao corrente do reprovável passado de Alexander Naismith. Gostaria de dar o benefício da dúvida
ao rapaz, mas havia qualquer coisa no jovem ator que não lhe caía muito bem.
Por vezes, os olhos dele mostravam demasiada ousadia, demasiado calculismo. Era, obviamente, um jovem ambicioso e que melhor maneira para um ator singrar do que
adular e seduzir a filha do homem que era coproprietário do Teatro Crown.
Meg ainda era muito nova, pelo que Cat duvidava que Naismith tivesse a imprudência de fazer alguma coisa de menos respeitável com ela. Mas era inquestionável que
o coraçãozinho terno dela podia ficar bastante magoado.
Passando a pena pela face, Meg olhava sonhadoramente para o lume que ardia na lareira.
- Ouvi dizer que, por vezes, as meninas ficam noivas quando ainda são muito novinhas - murmurou - e os noivos esperam que elas tenham idade suficiente para poderem
casar.
- Isso é verdade, mas, habitualmente, isso deve-se a questões de ambição, para que se possam juntar grandes propriedades, adquirindo-se assim mais riqueza ou qualquer
título nobiliárquico.
- O meu paizinho tem ambições para mim.
- É verdade, mas ele tem-te demasiado amor para contratar um casamento para ti quando ainda és tão novinha - acrescentou Meg com suavidade. - Além disso, não creio
que os sonhos que ele tem para ti incluam ver-te desposar um professor de música que não tem nada de seu e que em tempos esteve preso por roubo.
- Eu sei. - O brilho nos olhos de Meg esmoreceu. - Às vezes penso que nem sequer me quero casar.
Cat passou o braço pelos ombros da garota, apertando-os afetuosamente.
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- Claro que hás de casar, mas...
- Não, não quero casar. - Não era a lamúria melodramática de uma garota, mas sim uma afirmação feita conscientemente. Aquela enervante expressão de idade a mais
para os anos que tinha realmente voltou a espelhar-se nos olhos de Meg. - Às vezes acredito que estou destinada a ficar sozinha.
- Oh, minha doçura - disse Cat, emoldurando-lhe o rosto com as mãos. - Não tens andado outra vez a mortificar-te com as previsões da tua mãe, pois não?
- Isto não tem nada a ver com a minha mãe, pelo menos não inteiramente. Trata-se apenas de uma coisa que pressinto para mim própria. Que nunca virei a ter um marido
ou filhos. Que estou fadada a permanecer solitária como... como...
- Como a tua grande heroína, a Rainha Virgem? - concluiu Cat com uma careta.
- Não, como tu - retorquiu a garota, olhando para Cat, os olhos a brilharem com um respeito e admiração que apanharam Cat de surpresa.
- Eu!?
- És tão forte, corajosa e independente como é muito raro que as mulheres possam ser, nem sequer as Filhas da Terra. Não precisas de ninguém.
- Eu não diria exatamente isso, mas...
- E és feliz, não és?
- com certeza. Eu... eu vivo contente. -- Mas a voz de Cat faltou-lhe, sentindo-se tão desconcertada com a pergunta como com o olhar de quase adoração que via nos
olhos da garota. - Mas muitas vezes ser independente é apenas outra palavra para... para...
- Para quê?
- Para significar que se está sozinha - respondeu Cat, prendendo atrás da orelha de Meg alguns cabelos que lhe tinham caído para a cara. - Não sou a heroína de ninguém,
minha menina, nem tão-pouco sou um exemplo que deva ser seguido. Cada um tem de encontrar o seu próprio caminho.
Meg envolveu a cintura de Cat nos seus braços, encostando a cabeça no peito dela.
- É o que me dizes constantemente. Mas isso é muito difícil e confuso.
- Sei que sim, minha querida - retorquiu Catriona, depositando um beijo no cimo da cabeça de Meg. - Felizmente, não precisas de chegar a nenhuma conclusão esta noite.
O dia foi muito comprido e está a parecer-me
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que ambas devíamos ir para a cama antes que a senhora Butterydoor apareça para nos ralhar por estarmos a desperdiçar velas.
Meg acenou com a cabeça, concordando com o que ela dizia e deixando que Cat a levasse para a cama, aconchegando-lhe as cobertas depois de se ter deitado. A garota
estava tão cansada que Cat mal tinha chegado a meio da lenda empolgante de Grania, a rainha pirata, quando Meg adormeceu.
Muito depois de a garota já estar a dormir, Cat ainda andava pela alcova, tratando de pequenas tarefas domésticas que, habitualmente, deixava para a senhora Butterydoor
ou para Maude. Pegou no vestido e nas saias de baixo que Meg tinha despido, dobrou-os e guardou-os no baú. Continuava a pensar na pergunta de Meg e na sua resposta
que não lhe saíam da cabeça.
"Tu és feliz, não és?"
"com certeza. Eu vivo contente."
Cat sempre acreditara nisso. Havia muito tempo que deixara de ter esperança em algo diferente para a sua vida, uma casa que fosse sua, um marido e filhos. Depois
de Rory OMeara ter atraiçoado a sua confiança, depois de ter sido expulsa do clã, havia sido obrigada a aprender a virar-se sozinha, a viver solitária e independente.
E tinha aprendido mais do que isso; era aguerridamente ciosa da sua liberdade e a única coisa que a prendia era a sua amizade com Ariane Deauville. Mas até mesmo
esse afeto havia sido algo que abraçara cautelosa e tenuemente.
Quando se amava alguém desmesuradamente, o risco de se vir a perder essa pessoa era demasiado grande, a dor da perda insuportável. Meg acreditava que ela era muito
corajosa, pensou Cat com um trejeito de ironia nos lábios. Na verdade, ela era uma grande cobarde.
Encaminhou-se em bicos de pés para o leito, aconchegando ainda mais as cobertas em volta dos ombros de Meg e ajeitando os cabelos despenteados, afastando-os da fronte
dela. Ver a garota a dormir, tão novinha, tão vulnerável, suscitou-lhe uma mágoa no coração que era alarmante.
Tinha começado a sentir uma grande amizade por Meg, nutrindo um afeto por ela que talvez fosse excessivo. Se alguma vez viesse a ter uma filha... Cat apressou-se
a reprimir esse pensamento nostálgico. Afastou-se da cama a pensar que, quanto mais depressa dezembro chegasse, melhor seria para si. Estava a correr o grande perigo
de vir a embrenhar-se em demasia nas vidas de Martin, o Lobo, e da sua filha.
Dirigiu-se para o seu próprio leito e deitou-se, apenas para se levantar quase imediatamente, abafando uma imprecação. Sentira um objeto, pequeno
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e duro, que lhe magoou a coluna vertebral. Rolou para fora do leito e viu o brilho de qualquer coisa prateada, bem como o contorno de uma folha de pergaminho.
Agarrou na missiva e aproximou-a do fraco clarão das brasas na lareira, mas conseguiu ler a curta mensagem de Martin.
Aqui vos deixo uma coisa que talvez vos faça falta.
Cat ficou de cenho carregado. Mas o que diabo é que o homem tinha tido a impertinência de lhe comprar? com impaciência, começou a apalpar as cobertas até conseguir
encontrar o objeto.
Chegou-o à pouca luz das brasas e ficou de boca aberta quando percebeu o que era. Uma pequena garrafa de prata e, a julgar pelo peso, era óbvio que estava cheia
de um líquido qualquer.
Cat tirou a rolha e cheirou, inclinando a garrafinha, que levou aos lábios cautelosamente. O uísque irlandês passou-lhe pela língua antes de descer pela garganta,
enchendo-a de um calor que como que a queimava com recordações de fogueiras de turfa e colinas cobertas de urzes, as gargalhadas atroadoras do pai e a estranha sabedoria
da avó. Sentiu o ardor das lágrimas nos olhos.
- Raios te partam, Martin, - murmurou.
Que direito é que ele tinha de lhe dar um presente como aquele? Um que, inevitavelmente, calaria bem fundo no seu coração. Não, assegurou a si própria com veemência,
limpando os olhos. Não era por isso que estava abalada.
Era a extravagância da prenda que a deixava assombrada. A pequena garrafa de prata e o uísque irlandês teriam, forçosamente, custado mais do que o seu vestido novo,
as saias de baixo, as meias e os sapatos. Como é que Martin tinha dinheiro para tudo aquilo?
Cat franziu as sobrancelhas, apercebendo-se de que aquela era uma pergunta que a perturbava havia já algum tempo. Apenas um ano antes, Martin era um fugitivo, nada
mais do que um ator de uma trupe que andava de terra em terra. Mas agora era coproprietário do Teatro Crown, tinha uma bela casa na cidade cheia de servos, para
já não falar das lições de Meg, os seus livros, o seu guarda-roupa. Como é que o homem tinha dinheiro para todos aqueles luxos?
Martin meteu a mão na bolsa, de onde tirou vários guinéus, que pôs na mão que o estalajadeiro lhe estendia. Era bastante dinheiro pela ceia de uma
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noite, mas uma pessoa não podia regatear por causa de uns dinheiros, pensou com uma expressão sombria. Não quando se tinha convidado homens que talvez acabasse por
enviar para a forca.
Depois de ter pago a refeição, Martin abriu caminho por entre os clientes que se encontravam na taberna, o fumo de cachimbos, o cheiro desagradável e cediço a cerveja
e o fedor do suor que pairava no ar. A Estalagem Charrua estava demasiado apinhada e barulhenta para uma noite tão quente de verão, no entanto o estalajadeiro tinha
colocado um biombo que separava os convidados de Martin dos restantes homens que enchiam as mesas e cadeiras de madeira em tosco.
Quando Martin contornou o biombo, vários dos criados da estalagem apressaram-se a dirigirem-se para a mesa, levantando travessas vazias e tábuas de trinchar, voltando
a encher as canecas. Martin dera instruções para que não parassem de servir vinho branco e cerveja. Alguns dos convidados de Martin já mostravam sinais de terem
desfrutado dessa liberalidade, bebendo sem quaisquer restrições.
O padre Ballard já tinha as faces muito coradas, enquanto Sir Anthony Babington olhava sonhadoramente para dentro da caneca. John Savage estava esparramado na cadeira,
mostrando uma expressão bonacheira... isto é, tão bonacheira como o homenzinho presunçoso era capaz de mostrar. O único que aparentava continuar a ter as ideias
claras era Robert Poley. Olhos brilhantes como sempre, Poley trincava uma coxa de peru entusiasticamente.
- Ah, mestre Wolfe. Ainda bem que haveis voltado - disse Ballard a Martin com um sorriso radiante quando os criados já se retiravam. O padre ergueu a sua caneca.
- Cavalheiros, ainda não bebemos à saúde do nosso generoso anfitrião desta noite. A Marcus Wolfe.
- A Marcus Wolfe - entoaram os outros em coro, erguendo as suas canecas bem ao alto.
- Ou devíamos dizer Monsieur Lobo - adiantou Poley num aparte com um piscar de olho cúmplice a Martin.
Martin esboçou um sorriso forçado enquanto os homens bebiam à sua saúde.
- Obrigado, hum... mera. - Tinha-se esforçado tão afincadamente para conseguir eliminar o sotaque francês da sua dicção que agora lhe era difícil voltar a expressar-se
na sua língua materna.
Mas a verdade é que conseguira cair nas boas graças daqueles conspiradores, para o que tinha inventado uma história inteiramente fictícia com que
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os convencera de que em tempos havia sido o estribeiro do duque de Guise, o primo da rainha escocesa.
Quando arrastou a cadeira para trás, contraiu-se ao sentir uma dor espasmódica excruciante no ombro. Lambendo a gordura dos dedos, Poley olhou para ele com curiosidade.
- Um toque de reumatismo, monsieur?
- Non - respondeu Martin, rangendo os dentes enquanto se sentava na cadeira muito cautelosamente. - Eu... hoje dei uma queda, escorreguei no lixo que estava espalhado
na rua.
A sua explicação deu origem a uma conversa muito animada entre os seus convivas, que deploravam o estado lamentável em que Londres se encontrava, condenando quase
unanimemente o atual lorde-maior e os membros do seu conselho. Durante a discussão, Martin conseguiu, sub-repticiamente, despejar a sua caneca de vinho nas plantas,
o que tinha estado a fazer durante grande parte do jantar. Precisava de ter as ideias bem claras, quanto mais não fosse para não perder o fio de todas as mentiras
que estava a dizer.
Tentando não atrair demasiada atenção sobre a sua pessoa, começou a massajar o braço dorido. Cat advertira-o de que ficaria dorido se não prestasse mais atenção
ao que ela lhe dizia sobre a maneira correta de recuar a corda do arco. Mas como diabo é que poderia seguir as instruções dela, quando não havia sido capaz de se
alhear das suas mãos a posicioná-lo e o roçar dos seios no seu corpo?
Levando em linha de conta a direção dos seus pensamentos, Martin considerou que a dor no braço e no ombro era um castigo adequado. Não tinha nada que sentir luxúria
pela mulher que se encontrava ali com o objetivo de proteger a sua filha.
Tentou imprimir um movimento rotativo ao ombro para aliviar a dor, mas pareceu-lhe que isso só serviu para agravar a dor. Mon Dieu, o que ele teria dado para esquecer
todas aquelas malditas conspirações e maquinações de assassínio. Esta noite só queria poder ir para casa descansar os ossos. Pôr os pés para cima diante da lareira
e beber um pouco de vinho quente com especiarias e adoçado com mel, enquanto ouvia Cat a desfiar algumas daquelas histórias que tanto fascinavam Meg e os serviçais
da casa. Martin conseguia ser tão tolo como o moço que ajudava na cozinha, sentado na beira do assento e de olhos arregalados, enquanto Cat contava as lendas dos
cavaleiros da Red Branch ou do Hound of Ulster.
A irlandesa tinha uma voz musical e um jeito genuíno para o drama, sabendo bem quando devia pausar e como descrever imagens com as mãos.
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Era uma pena que a lei proibisse as mulheres de atuarem no teatro. Ela teria sido uma magnífica mais-valia para a companhia teatral do Crown.
Não que isso tivesse feito alguma diferença se a lei fosse outra. Cat mal conseguia esperar pelo dia em que poderia sacudir a terra do solo de Inglaterra das botas.
Se a ameaça constituída pela Rainha das Trevas ou pela irmandade das bruxas não se concretizasse, Cat partiria antes que o ano chegasse ao fim.
Martin ficou surpreendido com um súbito sentimento de angústia ao pensar naquilo, mas tratou de banir isso da sua mente. A mulher já estava a causar-lhe desorientação
de sobra, coisa a que ele não podia dar-se ao luxo se queria navegar sem soçobrar por aquelas águas traiçoeiras, a fim de assegurar um futuro sólido e seguro para
a filha.
- O nosso bom Wolfe parece que não está connosco - comentou o padre, cuja voz despertou Martin das suas cogitações. Olhou por cima do bordo da caneca vazia, deparando
com o padre, que o olhava com uma expressão inquiridora.
- Peço perdão, mon pere - murmurou Martin. - A culpa é do vinho e do calor que fazem com que sinta alguma indolência.
- Habitualmente, são as capacidades mentais de Sir Anthony que costumam afundar-se - interveio John Savage escarnecedor, puxando as pontas do bigode.
- Não, p... protesto! - gritou Babington. O muito bem-parecido jovem nobre pestanejou, os olhos quase a fecharem-se. - As minhas capacidades mentais estão... - soltou
um soluço - estão muito bem fundeadas esta noite.
- Ou talvez estejam bem afundadas - interveio Poley, suscitando mais riso e punhos fechados a baterem na mesa da parte dos outros do que as suas palavras muito pouco
espirituosas mereciam.
Para alguém que espreitasse do outro lado do biombo, teriam parecido como qualquer outro grupo de cavalheiros que conviviam cordialmente durante uma ceia, um pouco
bebidos de mais. Mas, em vez disso, eram um inverosímil bando de conspiradores, mais desesperados do que perigosos.
Ballard, um padre com visões de glória; Savage, um fanfarrão que fingia ser mais ameaçador do que era realmente; Babington, o romântico, com mais tendência para
filosofar do que para a ação; e Poley, um sujeito cordial que parecia gostar muito de tecer conspirações durante uma boa ceia.
E depois havia ele próprio, refletiu Martin com amargura. Um Judas no meio deles. Um aventureiro francês que se fazia passar por um protestante
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inglês, mas que afirmava que, em segredo, era um católico francês. Sentia-se como um ator que tinha demasiados papéis a encher-lhe a cabeça, confuso quanto às falas
necessárias ao desempenho de cada papel em particular.
E para piorar aquela situação ainda mais, sabia que o seu patrono não aprovava inteiramente o seu atual papel. Walsingham teria preferido que Martin continuasse
a investigar Lorde Oxbridge.
Tal como Martin receara, as histórias sobre o comportamento de Ned na noite do banquete e as suas tiradas encolerizadas contra a rainha já haviam chegado aos ouvidos
do secretário dela. Walsingham mostrara-se mais desconfiado do que nunca, suspeitando de que Ned estava envolvido na conspiração.
Por muito que isso lhe causasse um profundo desagrado, vira-se forçado a seguir os movimentos de Lorde Oxbridge, mas não apurara nada de mais incriminador do que
o facto de Ned jogar muito mais do que devia e que tinha uma amante. Martin esperava ter finalmente conseguido convencer Walsingham disso mesmo, no entanto duvidava
que o secretário da rainha alguma vez viesse a acreditar na inocência de Ned até Martin conseguir pôr a descoberto aqueles que eram realmente culpados de conspiração.
Entretanto, o criado voltou à mesa para encher as canecas de vinho outra vez. Assim que o homem se retirou, o padre Ballard propôs outro brinde.
- À nossa boa e graciosa rainha.
- À saúde da rainha! - ecoaram os outros. Um brinde que, à primeira vista, era inofensivo, mas todas as expressões dissimuladas e sobrolhos arqueados indicavam que
o brinde não era dedicado à rainha Isabel.
Martin apertou os dedos na caneca, subitamente com plena consciência de todos os seus fingimentos e falsas atitudes. Ergueu a sua caneca e um pouco o tom de voz.
- À saúde da nossa rainha. La belle Marie.
Os outros beberam, mas entreolharam-se com algum mal-estar enquanto lançavam olhares de nervosismo por cima do ombro.
- Estais a ser um tudo-nada imprudente, meu filho - admoestou Ballard.
- Um empreendimento da dimensão do nosso nunca foi conseguido pelos timoratos.
- Ninguém pode acusar-me de uma coisa dessas! - ripostou Savage com rispidez. - Não jurei sobre a minha espada há vários anos livrar a Inglaterra da sua rainha herege?
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- E, contudo, ela continua bem viva - disse Martin com um sorriso provocador. - A menos, é claro, que Isabel seja contagiada pelo calor do vosso bafo.
- Raios vos partam! - ripostou Savage, pondo-se de pé com dificuldade, mas com uma atitude melodramática, enquanto levava a mão ao punho da espada.
Martin nem sequer se deu ao trabalho de estender a mão para a sua, sabendo de antemão que Savage seria impedido de levar os seus intentos avante. O homem aguardaria
até que isso acontecesse. Babington puxou-o, obrigando-o a sentar-se de novo, o que não foi muito difícil de fazer, dado que o homem cambaleava de tão embriagado
que já estava.
Sentando-se, Savage contentou-se em retorcer as guias do bigode e a olhar para Martin com uma expressão de fúria do lado oposto da mesa.
- Paz, cavalheiros - disse o padre Ballard numa voz conciliadora.
- Não podemos dar-nos ao luxo de dissensões entre nós. Não quando os nossos planos estão tão perto de se materializar.
- Estarão? Vejo poucos indícios disso - ripostou Martin.
- Porque não estais a par de todos os pormenores - disse Savage carrancudo.
Sir Anthony sorriu, mostrando uma expressão apologética.
- Receio ter de vos dizer que haveis chegado muito recentemente ao nosso grupo para podermos confiar-vos todos os nossos segredos.
- Não confio absolutamente nada nele - resmungou Savage. O padre Ballard pousou a mão no braço de Martin.
- Tendes de aprender a ser paciente, meu filho.
- Sou paciente que chegue e sobre - retorquiu Martin com um encolher de ombros. - Só gostaria de saber durante quanto mais tempo é que tencionais continuar sentados
aqui a discutir esta revolução.
- Não se trata de uma revolução quando se quer obter o que é nosso e da boa rainha católica de pleno direito - interveio Sir Anthony com um semblante de censura.
- Três bien. Sendo assim, quando é que repomos a nossa rainha no trono? Babington estava embriagado, mas não tão confuso que não pudesse virar-se na direção do padre
Ballard, como se quisesse a sua autorização. Quando o padre lhe fez um acenar afirmativo, Babington inclinou-se mais para Martin.
- Só estamos à espera da bênção da rainha Maria Stuart - confiou-lhe. - A última carta que ela me enviou é muito breve, mas prometeu que escreveria mais dentro de
um ou dois dias.
- Peço perdão, Sir Anthony, mas será preciso mais do que a bênção da rainha para que esta perigosa sublevação tenha êxito.
- Foi-nos prometida ajuda de Espanha - adiantou o padre Ballard em voz baixa, mas nem por isso com menos fervor. - Talvez mesmo trinta mil tropas, que desembarcarão
assim que tivermos libertado a rainha Maria Stuart.
- E como é que apenas nós os cinco conseguiremos fazer isso? - perguntou Martin. - Não existirão outros católicos ingleses dispostos a ajudar-nos? - Martin recostou-se
todo para trás na sua cadeira, sem dar a menor indicação da ânsia com que aguardava resposta à sua pergunta.
- Existem... outros - replicou Sir Anthony cautelosamente.
- Quem?
- Informar-vos-emos a seu tempo - ripostou Savage desabrido.
- Mostrais-vos tão curioso a respeito dos ingleses, monsieur- disse Poley. - Pelo menos eu, gostaria muito de saber que ajuda é que os franceses tencionam dar-nos.
- Tenho estado em contacto com o duque de Guise. Ele promete vir pessoalmente com... - Martin interrompeu-se. Se ia inventar um exército imaginário, supunha que,
já agora, o número que adiantasse fosse superior ao dos espanhóis.
- Monsieur le duc virá acompanhado de cinquenta mil tropas.
- Cinquenta mil! - exclamou Babington.
Martin perguntava-se se não teria ido longe de mais com as suas mentiras, mas a verdade é que uma onda de empolgamento percorreu os que se encontravam sentados à
mesa. Até mesmo Savage se mostrou impressionado, ainda que a contragosto. Juntando as cabeças, não tardaram a embrenhar-se numa conversa sobre como é que aquelas
hipotéticas tropas seriam dispostas.
Encostando-se para trás na sua cadeira, Martin teve alguma dificuldade em não abanar a cabeça. Mas que grupo de idiotas tão patéticos, dispostos a acreditar em tudo
e mais alguma coisa, homens mais embriagados de esperança e de sonhos fruto do desespero do que devido ao vinho que já tinham bebido.
Walsingham tinha razões de sobra para mandar prendê-los a todos, mas, como Babington, ele também esperava pela próxima carta da rainha escocesa. A missiva que talvez
proporcionasse a Walsingham a prova de que precisava para conseguir concretizar o seu verdadeiro objetivo: a morte de Maria Stuart.
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Aqueles conspiradores pouco mais eram do que os meios para que ele atingisse um fim. Martin não conseguia evitar perguntar a si mesmo até que ponto é que Babington
ou qualquer dos seus amigos teriam sido realmente perigosos se Walsingham não os tivesse encorajado pela calada, permitindo-lhes que comunicassem com a rainha encarcerada.
Atraindo-os cada vez mais para a sua rede que se ia fechando gradualmente, colocando-os cada vez mais perto do patíbulo.
Se tal lhe fosse possível, Walsingham não teria hesitado em juntar Ned Lambert aos conspiradores. Durante o seu último encontro com Martin, o secretário da rainha
fizera a sugestão mais insidiosa que se pudesse imaginar.
"Portanto, nunca vistes Lorde Oxbridge em nenhuma dessas reuniões dos conspiradores? Podíeis oferecer-vos para o levar"
"E com que objetivo?", tinha perguntado Martin indignado. "Para o levar a cometer um ato de traição?"
"É impossível levar um homem honesto a cometer algo de incorreto."
Não, mas um homem fraco talvez pudesse ser tentado a fazer até mesmo o que seria a sua perdição. Martin só precisava de olhar à sua volta para encontrar provas mais
do que suficientes disso mesmo, pensou ao observar os rostos corados dos seus companheiros.
Bebeu um gole de vinho da sua caneca, mas o vinho deixou-lhe um sabor azedo na boca - ou dever-se-ia isso à sua consciência? Naquela noite, Martin ceara com homens
mortos e tinha muito pouco estômago para a parte que desempenhara na sua perdição.
- Capitão Fortescue? - perguntou um dos criados, que apareceu de detrás do biombo.
Martin fez menção de começar a dizer que não havia ali ninguém com esse nome, mas lembrou-se a tempo da falsa identidade do padre.
- Sim? - respondeu o padre Ballard com mostras de impaciência por ter sido interrompido.
- Está ali um cavalheiro à vossa procura, senhor. - O criado da estalagem inclinou-se mais para poder segredar qualquer coisa ao ouvido de Ballard. Viu-se uma mudança
quase impercetível na fisionomia do padre. com um ar circunspecto, pediu licença aos presentes para se levantar da mesa, acompanhando o criado.
Os outros já estavam demasiado bêbados e embrenhados na sua conspiração para terem prestado muita atenção àquela interrupção, mas Martin
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ficou imediatamente em estado de alerta. Murmurou uma desculpa, alegando que precisava de se aliviar, e levantou-se da mesa para seguir o padre por entre a multidão
que enchia a taberna.
Foi atrás de Ballard, saindo para o beco nas traseiras da estalagem. Deixando-se ficar para trás, perto do alpendre da entrada, viu o padre a travar uma conversa
que parecia da maior premência com um homem alto e magro, as suas feições obscurecidas pela noite e por um manto escuro.
Por muito que se esforçasse, Martin só conseguia ouvir umas palavras aqui e ali da conversa. O desconhecido alto agarrava a manga do padre.
- Por favor, padre... deveis vir.
- Impossível... não esta noite. Já corri um risco enorme... a primeira vez. Tentaremos amanhã.
- Já pode ser tarde de mais.
- Lamento muito - disse Ballard, soltando o braço que o homem continuava a agarrar e voltando para dentro da estalagem.
Mas o que diabo é que se estava a passar?, perguntava-se Martin. E o que é que aquela conversa tinha a ver com as conspirações contra a rainha?
Quando Ballard já se aproximava de si, Martin não perdeu tempo a fingir que apertava a braguilha dos calções. O padre mostrou-se ligeiramente desconcertado ao deparar
com ele, mas recompôs-se com um comentário chocarreiro, passando o braço pelos ombros de Martin.
Este olhou furtivamente e com frustração para onde o desconhecido parecia ter-se evaporado na escuridão, ansiando por poder segui-lo para se inteirar da sua identidade.
Mas com o braço de Ballard por cima dos seus ombros, impelindo-o a seguir em frente, Martin não teve outra alternativa que não fosse regressar ao interior da estalagem.
As chamas intensas dos círios iluminavam o altar improvisado na pequena câmara particular de Jane Danvers. O crucifixo e a imagem da Virgem Maria haviam sido levados
para ali do seu local secreto. Várias das criadas da casa mantinham-se ajoelhadas a rezar, com Adela e Hilarie a desfiarem as contas do rosário, a jovem Louisa de
cabeça baixa e com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
A câmara contígua estava iluminada por uma única vela e era aí que Jane se inclinava sobre a mulher moribunda. Jane deitara a serva idosa no seu próprio
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leito, fazendo o pouco que podia para tornar as derradeiras horas de vida de Sarah Williams mais confortáveis.
A velha ama parecera a Jane, tantas vezes, ser uma figura formidável durante a sua meninice. Mas o tumor que lhe carcomera o estômago reduzira a senhora Williams
a pouco mais do que uma carcaça oca. Sarah assemelhava-se mais a uma criança perdida na vastidão do leito com dossel de Jane do que a uma mulher adulta. O pouco
cabelo encanecido da anciã rareava-lhe pelo couro cabeludo rosado, as faces mirradas e encovadas. Tinha os olhos febris enquanto Jane a soerguia, querendo que ela
tomasse um pouco de láudano num esforço vão para lhe aliviar as dores.
Mas a idosa mal conseguia engolir, quanto mais falar. Não obstante, quando Jane voltou a baixar-lhe a cabeça na almofada, Sarah falou numa voz roufenha.
- Ele... ele já chegou?
Jane pegou na mão engelhada da anciã, mantendo-a entre as suas, querendo dizer a Sarah que ainda não precisava de nenhum padre. Que não morreria naquela noite. No
entanto, já não restava tempo para essas piedosas mentiras.
- O padre Ballard não tardará a chegar, prometo que sim. Já mandei o Timon para que o traga. Haverá tempo suficiente... ele chegará a tempo...
- Mas a voz vacilou-lhe nas últimas palavras, sentindo o ardor das lágrimas nos olhos.
- Não quero ver-vos triste por causa de mim, milady - disse Sarah, apertando a mão de Jane quando foi sacudida por outro espasmo de dor. - Eu... eu ficarei bem desde
que possa confessar os meus pecados.
- Oh, Sarah, que pecados é que poderias ter para confessar?
- Somos todos pecadores, menina - retorquiu a idosa com o assomo de um sorriso. - No entanto, tenho menos por que me arrepender do que a maior parte das pessoas.
Só tenho a reprovar-me ter de vos deixar agora quando... quando mais precisais de mim.
- Caladinha, Sarah. Não deves recear por mim.
- Mas receio. Sempre receei. Sois tão arrebatada, tão obstinada. Jane levou a mão da anciã aos lábios.
- Não, passarei a ser humilde como um cordeiro se não me deixares. - Tentou sorrir antes de fazer eco da promessa que fazia sempre em criança, quando era mandada
de castigo para a sua alcova por causa de alguma birra. Mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta e deixou de conseguir conter as lágrimas, que começaram a
cair na mão de Sarah.
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Apesar de parecer que exigia um esforço tremendo da idosa, passou as costas dos dedos frágeis pela bochecha de Jane.
- N... não chores. Sempre fostes tão corajosa, na verdade, demasiado corajosa, correndo tantos riscos. Eu não devia ter permitido que corrêsseis este por mim, chamar
o padre. Não tenho medo de morrer. Só se... se...
- Os olhos de Sarah mostraram uma expressão de terror. - Tenho de ser perdoada pelos meus pecados, tenho de receber a extrema-unção, caso contrário nunca chegarei
às portas do Paraíso. Eu... eu irei parar aos fogos do Inferno, sem nunca poder ver a face de Deus.
Apertou a mão de Jane com uma força que tinha origem no desespero.
- Quero ver Deus, milady.
?- E verás, minha Sarah, juro-te que sim - retorquiu Jane. Olhou por cima do ombro, perguntando a si mesma o que é que estaria a demorar o padre Ballard.
Sentiu alívio quando Louisa entrou de mansinho na alcova para lhe murmurar que Timon já tinha voltado. Desprendendo a mão da de Sarah, Jane indicou a Louisa que
se mantivesse junto da idosa.
Quando Jane já se apressava a sair da alcova, pensou que dava graças por Ned não se encontrar em casa. Habitualmente, preocupava-se muito quando o irmão ficava fora
de casa até tão tarde, mortificada a pensar no que ele estaria a fazer, mas, naquela noite, o facto de ele estar ausente era uma bênção.
Ned era demasiado impulsivo, demasiado imprudente por sua própria iniciativa, sem que Jane o enredasse naqueles seus assuntos secretos. Chegava ao ponto de lamentar
ter sido forçada a recorrer ao criado de quarto do irmão para lhe fazer aquele recado. Mas Giles Timon era um bom católico, um homem corajoso e sensato e, de longe,
o de maior confiança dos serviçais da casa.
Jane viu Timon à sua espera no cimo das escadas e sentiu um baque no coração. A expressão do lacaio era extremamente grave e, pior ainda, ele estava sozinho.
Jane correu para ele. Sem dar ao rapaz a oportunidade de falar, perguntou-lhe num tom autoritário:
- Onde é que está o padre Ballard?
- Ele não pôde vir, milady.
- N... não pôde vir?
- Disse que a sua presença era necessária num outro lugar esta noite. Além disso, acrescentou que receava ser seguido. Pensava que talvez fosse um risco demasiado
grande tanto para ele como para vossa senhoria...
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- O risco dele e o meu que vão para o diabo! - gritou Jane colérica, sem se importar por a sua reação ter feito com que Timon ficasse de boca aberta de tão chocado.
Jane olhou freneticamente para a alcova atrás de si. O maxilar inferior a cerrar-se numa expressão cheia de determinação.
- Muito bem. Nesse caso, vou ter de ir buscar o homem eu própria.
- Milady, não podeis fazer isso. Não deveis fazer uma coisa dessas - disse Timon insistente, indo atrás de Jane, que voltou a entrar na alcova intempestivamente.
- O padre Ballard disse que tentaria vir cá amanhã.
- Amanhã já será tarde de mais.
Mas quando transpôs a ombreira da porta, apercebeu-se de que já era tarde de mais. As suas criadas estavam ajoelhadas à beira do leito, lavadas em lágrimas enquanto
rezavam. Sarah estava tão imóvel, os olhos que já não viam presos fixamente no dossel.
Jane ficou sem respiração. Parte de si queria gritar a plenos pulmões, bater com os punhos cerrados na parede para dar largas à cólera e frustração que sentia.
- Não! - gritou. - Eu prometi-lhe. Eu prometi!
A outra parte de si ficou demasiado entorpecida para se mexer, para falar. Nem sequer era capaz de se obrigar a fechar os olhos da anciã, demasiado atemorizada da
expressão que talvez visse neles. Não de paz, mas sim de um terror na sua expressão mais pura.
Louisa aproximou-se de Jane, fechando com força as contas do rosário nas mãos, o corpo magro percorrido por um estremecimento quando conteve um soluço chorado.
- Oh, m... milady! A senhora Williams finou-se e... ela faleceu sem um padre à sua beira. - A rapariga respirou fundo antes de murmurar: - Ela foi para o Inferno?
As outras duas serviçais viraram-se para Jane, até mesmo Timon ficou a olhar para ela, como se estivessem à espera que ela, de uma maneira qualquer, desse resposta
àquela pergunta. Na qualidade de senhora da casa, cabia-lhe orientar os servos, proporcionar-lhes conhecimento espiritual. Mas Jane nunca se sentira tão incapaz
de cumprir essa obrigação.
- Não - conseguiu dizer por fim. - Tentámos ir buscar um padre para a senhora Williams. Não foi por culpa dela que faleceu sem se ter confessado. Tenho a certeza
de que Deus compreenderá.
Pelo menos, Jane esperava que o Senhor compreendesse, porque ela própria não era capaz. Por que razão é que uma mulher tão boa, e a quem não
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se podia apontar um único pecado, como havia sido Sarah Williams, agonizara, não só com dores excruciantes, mas também a sentir um terror indescritível pela sua
alma? Porquê que se considerava um crime tão grave contra o reino consultar um simples padre?
Que mal poderia advir para alguém se uma pobre idosa fosse reconfortada na sua morte pelos rituais da sua fé religiosa?
Quando Isabel Tudor ascendera ao trono, jurara que seria uma boa rainha para todos os seus súbditos, quer estes fossem católicos, quer fossem protestantes. Contudo,
com o decorrer dos anos, ela acabara por ceder à pressão do seu parlamento e de conselheiros da coroa, como Lorde Burghley e o infame Sir Francis Walsingham, promulgando
leis cada vez mais repressivas contra os católicos.
Em tempos, Jane acreditara que a rainha fizera o seu melhor para se manter tolerante. Mas a verdade é que Isabel não tentara com o empenho necessário. A soberana
faltara aos seus súbditos católicos, o que tornava muito difícil permanecer leal a uma mulher que procedia dessa maneira.
Quando o pai de Jane morreu, tendo-se rebelado contra os novos éditos, Jane chorara lágrimas de cólera. Não compreendia a razão que levara o pai a arriscar tudo,
a sua vida, a sua família e as suas propriedades, acrescentando mais desdouro ao nome dos Lambert ao ser acusado de traição contra a coroa. Mas agora compreendia,
refletiu Jane com uma expressão sinistra.
E, pela primeira vez na sua vida, pareceu-lhe que o seu próprio caminho estava traçado com clareza.
Martin andava de um lado para o outro diante das janelas na câmara de Walsingham em Whitehall. Conseguia ver o clarão dos archotes no pátio envolto em escuridão
mais abaixo, ouvindo o barulho dos cascos dos cavalos dos mensageiros que chegavam e partiam. Os servos cansados ainda andavam numa grande azáfama pelos corredores,
a limpar, a regar as plantas, a arejar as roupas de casa e a pendurar tapeçarias, tudo preparativos para o regresso da rainha a qualquer momento.
Até mesmo o infatigável Walsingham mostrava sinais de exaustão, com olheiras escuras em volta dos olhos. Recostou-se para trás na sua cadeira, continuando a ouvir
Martin com um ar circunspecto enquanto este concluía o seu relatório referente ao seu serão na Estalagem Charrua.
- E quando os deixei ainda estavam a sonhar enquanto bebiam a sua cerveja, a discutirem as recompensas que poderiam esperar da rainha Maria Stuart. O Savage tem
esperança em vir a ser armado cavaleiro, o padre Ballard espera vir a ser ordenado bispo. Quanto a Babington... - Martin soltou uma risada de onde transparecia cansaço
e desconsolo. - Na minha opinião, tudo o que esse jovem idiota romântico almeja é ajoelhar-se aos pés de Maria Stuart e que ela o autorize a beijar-lhe a fímbria
do vestido. Em relação ao Robert Poley, não faço ideia nenhuma do que diabo é que ele espera vir a ganhar com a sua participação neste assunto. Ainda não consegui
perceber o homem.
- E acerca do desconhecido que quis falar com o padre Ballard?
- Estava demasiado escuro e eu encontrava-me demasiado afastado para conseguir distinguir as feições do homem ou ouvir com clareza o que eles diziam - respondeu
Martin, que se apressou a acrescentar: - Mas posso garantir-vos que não era Lorde Oxbridge, se for isso que suspeitais. Tenho
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a certeza de que reconheceria a sua voz e estatura. Conheço Ned Lambert suficientemente bem para poder afirmar que não era ele.
- De verdade? - murmurou Walsingham.
- Sim, assim é. Além disso, tenho a certeza de que sua senhoria passou a noite nos braços da sua amante como de costume.
Walsingham contraiu os lábios num trejeito de reprovação.
- Muito embora não possa aprovar esse género de comportamento, ter uma amante por conta é prática habitual de muitos nobres, com a atenuante de sua senhoria não
ter uma consorte que atraiçoasse. Face a esta situação, por que motivo é que Lorde Oxbridge faz tanto segredo dos seus amours?
- Não existe grande mistério nessa atitude - replicou Martin com um encolher de ombros de impaciência. - A amante de Ned parece ser uma criatura de um estrato social
bastante inferior. Ele costuma visitá-la furtivamente num alojamento decrépito num dos lupanares de Southwark. Não me é difícil compreender a razão por que ele desejará
manter essa ligação em segredo, em especial da irmã. Lady Jane Danvers é uma senhora muito pia e de uma reputação intocável.
Martin perguntou-se como é que um pecador como ele próprio era se sairia caso desposasse a virtuosa Lady Jane Danvers. Bastante bem, esperava. Não amava Jane da
maneira como adorara Miri, mas respeitava-a. Tentaria ser tudo o que ela esperava de um marido, circunspecto, sóbrio e fiável. Isto é, se alguma vez viesse a conseguir
deixar o serviço de Walsingham.
Não era capaz de perceber se o secretário da rainha tinha ficado satisfeito com o seu último relatório ou não. Entretanto, Walsingham começou a mexer em alguns documentos
que tinha em cima da secretária, mostrando um pequeno vinco entre as sobrancelhas.
- Portanto, o que é que desejais que eu faça a seguir? - perguntou-lhe Martin. - Talvez devesse tentar inteirar-me de mais alguma coisa a respeito deste Poley -
sugeriu.
- Não, isso não será necessário.
- E por que não?
- Porque o homem também trabalha para mim. Martin ficou de boca aberta, tal o choque que sentiu.
- Oh, muito obrigado - ripostou num tom de muito azedume. - Que generosidade da vossa parte por me informardes desse facto.
- Não estou aqui para vos informar, mestre Wolfe. Sois vós que, por pressuposto, deveis manter-me informado - replicou o secretário da rainha
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com um olhar de frieza. - Não havia a mínima necessidade de terdes conhecimento do que quer que fosse acerca de Robert Poley, se vos tivésseis concentrado em Lorde
Oxbridge como vos ordenei que fizésseis.
- O que eu fiz! - ripostou Martin exacerbado. - Descobri tudo o que havia a saber a respeito de Ned Lambert.
- Estais certo disso? - perguntou Walsingham, arqueando os sobrolhos numa expressão de sobranceria. - Nesse caso, tenho a certeza de que sabereis que Lorde Oxbridge
pediu a emissão de um passaporte ao meu secretário.
Martin franziu o sobrolho, agitando-se na cadeira numa manifestação de mal-estar.
- Não, não sabia.
- Parece que sua senhoria, subitamente, sentiu uma necessidade premente de viajar para França. Na vossa opinião, a que é que isso se deverá?
- Porque, para variar, talvez lhe apeteça beber um vinho de uma qualidade razoável?
Quando Walsingham se mostrou carrancudo perante aquela impudência, Martin emendou o tom.
- Compreendo que para vós tudo se resuma a assuntos do reino e aos vossos deveres, mas a verdade é que existem alguns homens que talvez desejem viajar única e exclusivamente
pelo prazer que isso lhes proporcionará e não existe outro país que propicie mais prazeres do que a França. É muito plausível que sua senhoria tenha amigos nesse
país e...
- Amigos como Thomas Morgan, por exemplo? O qual se mantém muito atarefado a arquitetar conspirações da sua cela na Bastilha com vista a libertar a rainha escocesa.
Ou o primo de Maria Stuart, o duque de Guise?
- Não tendes prova nenhuma de que Lorde Oxbridge conheça qualquer desses homens.
- Não. Talvez a França seja, meramente, o destino de férias que está na moda este ano, o que digo porque Lorde Oxbridge não é o único a querer a emissão de um passaporte.
Sir Anthony Babington apresentou o mesmo pedido.
Martin queria levar as ações destes dois homens à conta de uma mera coincidência, mas concluiu que não poderia fazê-lo. E se Walsingham tivesse razão e existisse
uma ligação entre Babington e Lorde Oxbridge? E se Ned Lambert tivesse algum envolvimento na conspiração e Martin estivesse demasiado cego para ver isso mesmo? Esperava
que não... para bem de Jane.
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- Lamento muito - disse contrito. - Ao que tudo indica, não tenho sido tão vigilante como pensava.
Estava à espera que Walsingham se mostrasse irritado com a sua incompetência. O secretário da rainha olhava-o com fixidez, mas a sua expressão mostrava, surpreendentemente,
alguma simpatia.
- Servistes-me bem no passado, mestre Wolfe, mas receio ter de vos dizer que haveis cometido um erro fatal para alguém que exerce a vossa atividade. Permitistes-te
criar apego à pessoa que era objeto da vossa vigilância. Se não a Lorde Oxbridge, então, inequivocamente, à irmã dele.
- Não podeis suspeitar que Jane esteja envolvida neste assunto. Ela está inteiramente inocente.
- Acredito que sim. Mas alguma vez haveis considerado a hipótese de, ao provar que Lorde Oxbridge é culpado, podíeis, em boa verdade, estar a salvar Jane Danvers
de vir a ser enredada neste conluio de traição? Sem a presença do irmão, é muito possível que a senhora procurasse consolo em vós.
- Oh, sim - retorquiu Martin com azedume. - Não existe nada que atraia mais os afetos de uma mulher do que saber que o homem que pretende granjeá-los ajudou a pôr
a cabeça do irmão dela no cepo.
- Lady Jane Danvers não tem, necessariamente, de saber qual seria o vosso envolvimento neste assunto.
- É possível que eu seja capaz das maiores falsidades, Sir Francis, mas isso seria uma mentira para a qual até eu mesmo não teria estômago. Teria sido forçado a
contar a verdade a Lady Jane Danvers, que passaria a odiar-me. E com toda a razão para isso.
Martin cofiou a barba, mostrando lassitude.
- Este é um assunto lamentável e quem me dera que fosse resolvido de uma vez por todas. A única razão por que entrei ao vosso serviço foi por causa da minha filha.
- Para assegurar um futuro melhor para Margaret.
- Eu faria tudo e mais alguma coisa pela minha menina - confirmou Martin com um sorriso de tristeza. - Se pudesse, dar-lhe-ia o mundo, com a Lua e as estrelas a
servirem-lhe de luz.
Sir Francis começou a tamborilar com as pontas dos dedos no tampo da mesa, franzindo os sobrolhos.
- Apercebo-me de que considerais que este é um assunto sórdido. Quer acrediteis, quer não, também eu. Mas o fim está à vista. - Pegou num documento
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que tinha em cima da secretária, hesitando como se debatesse alguma coisa consigo próprio. - vou arriscar-me a mostrar-vos algo, esperando que a confiança que deposito
em vós não venha a provar ser imerecida. - Walsingham estendeu o pergaminho na direção de Martin, que lhe pegou com desconfiança.
- O que é isto?
- É a última carta que a rainha escocesa escreveu a Sir Anthony Babington. A mensagem estava escrita em código, à semelhança de todas as outras. Essa é a tradução
de Phelippes do texto original.
Martin baixou o olhar para o documento, sentindo um nó de temor no estômago. Um temor que não era infundado. A rainha escocesa fazia pressão sobre Babington para
que a pusesse ao corrente dos pormenores da conspiração; queria saber quantos católicos ingleses estariam dispostos a apoiar a causa, o número de forças militares
que esperavam vindas do estrangeiro, quais os portos que seriam usados para a invasão.
Mas o parágrafo mais incriminatório era o último.
"Quando as forças militares estiverem apostos, tanto no interior como no exterior do reino, será chegada a altura de os seis gentis-homens tomarem medidas com vista
à minha libertação. Antes que isso possa concretizar-se, é imperativo que Isabel seja despachada. Caso contrário, se a tentativa para me libertarem fracassar, a
minha prima encarcerar-me-á para sempre numa qualquer masmorra de onde jamais poderei escapar, isto é, se não me reservar um destino pior do que esse.
Tomai a precaução de queimar esta missiva de imediato...
E com estas palavras, compreendeu Martin, a rainha escocesa caíra irremediavelmente na teia de Walsingham, tendo assinado a sua própria sentença de morte. Phelippes
até tomara a liberdade de embelezar a tradução com um pequeníssimo desenho de uma forca.
Pobre mulher que agia tão tolamente...
- Só posso congratular-vos - disse Martin num tom de voz neutro, devolvendo o documento ao secretário da rainha. - Parece que, finalmente, tendes a cabeça da rainha
escocesa, bem como a dos conspiradores. Presumo que ireis começar a emitir mandados de prisão.
- Ainda não.
Quando Martin olhou surpreendido para Sir Francis Walsingham, este explicou-se:
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- Continuo a desconhecer a identidade de todos estes seis cavalheiros que a rainha menciona. Tenciono permitir que a missiva chegue às mãos de Sir Anthony com um
pós-escrito falsificado a imitar a letra da rainha, pedindo-lhe que a informe dos nomes de todos os conspiradores.
- E se a vossa maquinação não resultar?
- Nesse caso, prenderei os homens com que haveis ceado esta noite e serei obrigado a recorrer a métodos mais drásticos.
- Quereis dizer tortura - retorquiu Martin, estremecendo.
- Sem dúvida que é uma medida extrema que deploro e que vós podeis ajudar a evitar. Talvez com um pouco mais de diligência e engenho consigais descobrir o nome dos
restantes conspiradores.
- Farei tudo o que estiver ao meu alcance para vos obter essa lista, senhor.
- Até mesmo se Lorde Oxbridge for um dos nomes dessa lista? Martin hesitou por uma fração de segundo demasiado longa antes de aquiescer com um acenar de cabeça.
Receava que Walsingham se tivesse apercebido dessa hesitação, mas este parecia que já estava concentrado em alguns dos outros papéis que tinha em cima da secretária.
Fazendo uma pequena vénia, Martin apressou-se a dirigir-se para a porta da câmara. Ficou tenso quando foi detido pelo som da voz de Sir Francis.
- Martin?
Este olhou para trás com uma expressão de surpresa. Era a primeira vez que o secretário o tratava pelo seu nome de batismo.
- Quando os mandados de prisão forem executados, deveis ter o cuidado de vos manterdes à distância para que não sejais igualmente capturado.
- Mas eu estou ao vosso serviço, senhor - ripostou Martin de sobrolho carregado. - com certeza que haveríeis de responder por mim.
- Assim faria, mas acontece que este assunto já não estaria inteiramente nas minhas mãos. Se fôsseis implicado na conspiração, talvez decorresse algum tempo até
eu conseguir ilibar-vos. É possível que ficásseis encarcerado durante vários meses, talvez mesmo anos. O que seria catastrófico para a vossa filha.
"Portanto... portanto, aconselho-vos a que tenhais cautela - concluiu Walsingham, voltando a prender os olhos na sua papelada. - Boas noites, senhor Wolfe.
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Sá muito depois de Martin ter saído, Sir Francis tinha o olhar preso no vazio com um franzir de testa carregado de preocupação. Tinha muitos espiões e agentes ao
seu serviço, embora não confiasse inteiramente em nenhum e simpatizasse com eles ainda menos.
No entanto, havia algo em Martin, o Lobo, que o tocara como nenhum dos outros conseguira até então. Talvez fosse a dedicação incondicional que o homem tinha pela
filha ou talvez porque Martin possuía algo que faltava aos outros - consciência.
Tais escrúpulos não eram uma qualidade desejável num espião, mas Walsingham não era capaz de se impedir de respeitar Martin por isso. Infelizmente, isso também significava
que não podia confiar em Martin incondicionalmente, em particular no que dizia respeito a Jane Danvers e ao irmão.
Todavia, Walsingham aprendera cedo na sua carreira política que nunca devia depender inteiramente de uma única fonte para conseguir informações fiáveis. Do mesmo
modo que aprendera que até mesmo os homens de maior caráter poderiam servir os seus objetivos se lhes fosse oferecido o suborno adequado ou se lhes fosse aplicada
a pressão mais apropriada.
O homem alto que entrou sorrateiramente no gabinete de Walsingham mantinha-se de cabeça baixa, os olhos presos no chão, como se estivesse profundamente envergonhado
por se encontrar ali.
Walsingham sorriu-lhe, um sorriso que se destinava a tranquilizá-lo, dirigindo-se ao seu novo informador num tom de voz que não podia ser mais suave.
- Boa noite, senhor Timon. Estava esperançado em ter notícias vossas ainda esta noite.
Martin esgueirou-se por entre duas casas para evitar cruzar-se com o guarda. Devia ter pensado numa justificação plausível por se encontrar fora de casa depois da
hora do recolher obrigatório, mas parecia-lhe que até mesmo ele já tinha esgotado a sua reserva de mentiras para uma só noite.
Percorrendo a rua, já divisava o contorno da sua casa arrendada que se recortava sob a luz do luar, a tabuleta a dizer "Anjo" a ranger ligeiramente soprada pela
brisa noturna. A moldura de madeira pintada a preto e branco da casa, com a saliência do andar de cima, não se diferenciava muito de qualquer outra residência naquela
rua.
Mas para um homem que fora um vagabundo durante a maior parte da sua vida, a Anjo era como um palácio, uma fortaleza, cujas paredes simples de taipa mantinham a
filha a salvo dos dragões que a ameaçavam.
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Era deveras constrangedor pensar que os perigos que agora ameaçavam Meg poderiam ter tido origem em si próprio. Quando já se aproximava da porta da frente, o encontro
com Walsingham não lhe saía do pensamento. As perguntas do secretário da rainha, as suas exigências e advertências eram como o zumbido de um enxame de vespas irritadas
na cabeça de Martin. Especialmente, as últimas palavras de Walsingham.
"Aconselho-vos a que tenhais cautela"
Teriam aquelas palavras sido um conselho amigável ou uma ameaça? O secretário era um homem de falas tão mansas que nem sempre era fácil destrinçar a diferença. Não
obstante o seu comportamento de puritano, Sir Francis seria um homem perigoso e implacável se encolerizado.
Mas Martin não precisava de nenhuma advertência de Walsingham para compreender a precariedade da sua situação. Se desempenhasse o seu papel de espião, ainda que
com pouco entusiasmo, arriscava-se a que Babington e os cúmplices de conluio desconfiassem de si. Por muito tolos que fossem, também eram homens desesperados que
arriscavam a própria vida. Se lhes desse motivo para suspeitas, Martin poderia acabar morto.
Mas se desempenhasse o seu papel com empenho, Martin talvez conseguisse ser bem-sucedido, obtendo as informações que Walsingham pretendia, os nomes dos seis homens.
Por outro lado, se Ned Lambert fosse, de facto, um deles, Martin teria de o denunciar igualmente e o resultado seria dilacerar o coração da gentil Lady Jane Danvers.
E ainda que Martin desempenhasse o seu papel demasiado bem, arriscava-se a ser confundido com um dos conspiradores e, consequentemente, seria atirado para o cárcere...
se não o esperasse destino pior.
Martin praguejou entredentes e em voz baixa. Mas que maldito imbróglio em que estava metido. Porque é que não se tinha apercebido antes de como a sua posição era
tão aterradoramente vulnerável? Era um ator insignificante naquele drama de proporções épicas, pelo que a sua saída de palco não teria a mínima importância para
ninguém, exceto para Meg. A filha ficaria órfã, sozinha e abandonada.
Não, pensou Martin, o maxilar a endurecer. Não permitiria que isso viesse a acontecer. Aquele estado de espírito acabrunhado devia-se apenas ao cansaço, além de
que havia algo de deprimente por estar a chegar sorrateiramente a uma casa às escuras, e tão pouco acolhedora àquela hora tão tardia. Toda a gente a dormir aconchegadamente
nos seus leitos, exceto ele.
Quando Martin abriu a porta da frente sem fazer barulho, ficou surpreendido por alguém a ter puxado pelo lado de dentro. Deparou com Cat,
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que erguia um castiçal ao alto. Parecia um pequeno dragão de camisa de dormir e pés descalços. com uns olhos azuis que pareciam expedir chamas, o cabelo ruivo muito
emaranhado.
- Ah! Aqui está ele, a entrar em casa, finalmente, pela calada - disse ela num tom de voz que era mais um rosnado.
Martin ficou momentaneamente perplexo, mas depois ficou tenso e alarmado. Transpôs a ombreira e fechou a porta.
- O que é que se passa? - perguntou autoritário. - Aconteceu alguma coisa à Meg?
- A Meg está bem, para além do facto de ter um pai que é um idiota. Por onde diabo é que andastes? Tendes alguma noção das horas?
- Sim, tenho, o que também acontecerá com o resto das pessoas que se encontram nesta casa se não baixardes o tom de voz - ripostou Martin num tom sibilado. - O que
diabo é que estais a fazer fora da cama?
- A fazer um buraco no soalho, de tanto andar de um lado para o outro, cheia de preocupação, à vossa espera. Já vos imaginava preso por um guarda ou... ou encurralado
por salteadores, espancado até ficardes feito numa polpa e deixado na sarjeta a morrer. - Catriona pontuava as suas palavras com gestos furiosos, apesar da vela
que tinha na mão. - Será possível que tenhais tão pouco juízo? Não fazeis ideia dos perigos que correis ao andar sozinho na rua a esta hora da noite?
Martin recuou quando a chama da vela se aproximou perigosamente do seu manto, espirrando cera para cima de si.
- O único perigo que corro neste momento é o de vir a ficar envolto em chamas. - Tirou-lhe o castiçal da mão e agarrou-a pelo braço, apressando-se a levá-la para
o seu gabinete antes que ela acordasse toda a casa com as suas tiradas.
- Cat, peço desculpa se vos causei alguma preocupação - começou Martin a dizer, mas ela desprendeu-se da sua mão.
- Preocupar-me, eu? Nem pensar. Só me preocupei por causa da Meg. Posso garantir-vos que me é absolutamente indiferente se vos cortarem essa garganta de idiota num
qualquer beco escuro.
Mas a verdade é que ela se preocupava. Por baixo daquela explosão de fúria, Martin conseguia ver vestígios do receio que ela sentira e que ainda lhe ensombrava os
olhos, o pequeno vinco na fronte. Apesar da exaustão que sentia, Martin não pôde evitar uma careta sorridente.
- Mon Dieu! Estáveis mesmo preocupada por causa de mim.
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- Nem por sombras! - ripostou Cat numa voz ríspida. -Já vos disse. Era por causa da Meg. Não queria que a pobrezinha ficasse aflita por causa do pai.
- Oh? A Meg deu por eu ter saído? E também se manteve a pé a andar de um lado para o outro? - Pousando o castiçal em cima da prateleira da lareira, Martin fez uma
grande encenação ao fingir que estava à procura da filha, chegando mesmo ao ponto de espreitar para debaixo da secretária.
- Não, raios vos partam! Ela está ferrada no sono, tal como eu devia estar - disse Catriona furiosa, avançando para ele com o punho cerrado e a abanar. - Por Santa
Brigida, muito gostaria eu de poder dar-vos um pontapé bem em cheio no traseiro.
- Que nada vos impeça. Poupar-me-eis ao trabalho de tentar fazê-lo eu próprio. Peço desculpa se vos alarmei com a minha ausência, mas pensei que há muito que estaríeis
na cama.
- Só fiquei a pé à vossa espera porque preciso de vos falar acerca de um assunto que está a incomodar-me.
O sorriso de Martin desvaneceu-se. Tirou da cabeça o toque adornado com uma pena e a capa curta. Lamentava sinceramente ter causado qualquer preocupação a Cat, mas,
naquele momento, não estava com disposição para mais confrontos. O que mais desejava era poder deixar-se cair na cama e afundar a cabeça na almofada.
Retraiu-se ao sentir uma dor no ombro dorido quando atirou as peças de vestuário para cima do banco diante da lareira.
- O que é que se passa? O assunto não pode esperar até amanhã de manhã?
- Já é quase manhã - lembrou-lhe Cat. Martin soltou um fundo suspiro de resignação.
- Muito bem. O que é que eu fiz agora para vos perturbar?
- Tenho a certeza de que sabeis e muito bem o que foi - respondeu-lhe Cat furiosa. - É possível que eu me tenha visto forçada a aceitar que me comprásseis algumas
peças de vestuário, mas deixei, inequivocamente, bem claro que não queria estar em dívida para convosco mais do que o estritamente necessário.
Martin arqueou uma sobrancelha, mostrando-se ligeiramente surpreendido.
- Não estais... eu não... Tudo o que fiz foi comprar-vos algumas peças de roupa, um vestido, uma coifa, um avental...
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- Isto não é nenhum raio de um avental!
Pela primeira vez, Martin reparou que ela tinha qualquer coisa na mão, que pousou com brusquidão no tampo da mesa. Era a pequena garrafa de prata que ele tinha escondido
no leito dela nessa mesma tarde.
- Oh... isso! - exclamou com um encolher de ombros. - Mas que coisa, mulher! Até parece que vos enchi de diamantes ou fiadas de pérolas. É apenas uma coisa insignificante.
- Não se trata apenas de uma coisa insignificante. Esta maldita coisa é feita de prata!
Martin abriu as mãos num gesto de impotência enquanto procurava palavras para se explicar.
- Vi-vos tão perturbada pela perda do pequeno odre de couro que pertenceu ao vosso pai. Eu sabia que não conseguiria substituí-lo, mas quis fazer alguma coisa. -
Martin interrompeu-se, franzindo o sobrolho. - Mas parece que exagerei; foi isso? Tenho tendência para fazer isso. Mas a verdade é que a garrafa de prata me pareceu
tão bonita. Devia ter-vos comprado uma mais simples de couro em vez dessa?
- Não devíeis ter-me comprado absolutamente nada! - ripostou Cat, batendo o pé numa manifestação de fúria.
- Estou a ver isso. É óbvio que foi um gesto estúpido da minha parte. Peço desculpa.
- N... não. Foi um gesto de grande generosidade e... e eu não tenho maneira de vos retribuir - justificou-se Cat, apressando-se a virar a cara, mas não tão depressa
que Martin não tivesse visto um brilho de qualquer coisa nos olhos dela. Seriam lágrimas?
Não era muito frequente que Cat mostrasse emoções tão marcadamente femininas. Mas se ele tinha ficado a saber alguma coisa a respeito daquela irlandesa durante as
últimas semanas, era que Catriona detestava qualquer manifestação de fraqueza ou de vulnerabilidade. O seu aguerrido orgulho e o temperamento irascível não passavam
muitas vezes de uma fachada que ocultava emoções de grande sensibilidade que ela tinha tanta dificuldade em mostrar. Era por demais evidente que ficara mais emocionada
pelo presente que ele lhe ofereceu do que queria admitir.
Martin aproximou-se dela um pouco a medo. Agarrou-a pelos ombros, virando-a de modo a que ficasse de frente para si, apesar de ter noção de que corria o risco de
levar alguns tabefes.
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Mas Cat limitou-se a fixar os olhos nas botas dele, pestanejando repetidamente. com as pontas dos dedos, Martin ergueu-lhe o queixo, obrigando-a a levantar a cabeça.
- Os cuidados que tendes tido para com a minha filha são mais do que pagamento suficiente. Eu é que estou em dívida para convosco - acrescentou Martin sorrindo-lhe.
- Além disso, por que razão é que devia haver qualquer conversa de retribuição entre amigos?
Cat fungou e limpou os olhos com as costas da mão.
- Ah, com que então agora somos amigos, é isso?
- Bem, levando em consideração que não tentastes trespassar-me com a espada nem partir-me a cabeça ao longo da última semana, pensei que devíeis estar a começar
a gostar um pouco de mim.
Quando os lábios dela tremeram, Martin inclinou a cabeça para a frente e olhou para ela com uma expressão afetuosa.
- Portanto, estou perdoado pela garrafinha? E por vos ter preocupado, ou continuais a ter vontade de me dar um pontapé no traseiro?
Cat soltou uma risada relutante.
- Suponho que o vosso traseiro está a salvo de mim. Pelo menos, de momento - respondeu Catriona, que voltou a pegar na pequena garrafa, mantendo-a nas mãos quase
reverentemente. - Uísque irlandês... Chegastes ao ponto de o encher de uísque irlandês. Como é que conseguistes fazer isso?
- Estou bem ciente da pobre opinião que tendes de Londres, mas é uma cidade portuária. É possível comprar quase tudo e mais alguma coisa, caso se procure com afinco.
Como não sou conhecedor do uísque irlandês, não posso garantir a sua qualidade.
Cat desarrolhou a pequena garrafa e bebeu um gole que fez com que na sua fisionomia se espelhasse uma expressão beatífica.
- É o melhor que bebi até hoje - disse ela, estendendo-lhe a garrafinha.
Mas quando Martin lhe pegou, o seu olhar ficou preso na gota que ficara presa na boca dela, enchendo-o de uma tentação avassaladora de provar os lábios dela em vez
do uísque.
Situação que só se intensificou quando a língua de Cat lambeu sensualmente o lábio inferior, recolhendo a gota, que saboreou, o que fez com que ficasse com a boca
humedecida e de um vermelho lascivo.
Martin voltou a concentrar a sua atenção na pequena garrafa e bebeu um gole generoso do uísque de Cat, engasgando-se. Sentiu-se como se tivesse
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engolido um bocado de fogo que lhe ardia na garganta, queimando tudo no seu percurso até ao estômago.
com os olhos lacrimosos, tossiu engasgado.
- Doce Jesus, mulher. Como... como é que conseguis beber esta coisa?
- De facto, é um tudo-nada forte e tem um pequeno travo amargo. Uma pessoa leva algum tempo a acostumar-se - adiantou ela com uma careta risonha. - Tal como a mim.
- Ao ver que ele continuava a tossir e sem fôlego, Cat deu-lhe umas palmadas nas costas, que se estenderam ao ombro dorido.
- Au! Au! - exclamou Martin, pousando a garrafinha de imediato e levando a mão ao músculo dorido, que começou a massajar.
Cat ficou a observá-lo por entre olhos semicerrados.
- Ah! Ah! Eu bem vos avisei, Martin, o Lobo. Eu disse-vos que lamentaríeis se continuásseis a forçar os músculos do braço para recuar o arco disse Cat, dando um
estalo com a língua. - Mas agora o melhor é despirdes o gibão e a camisa para eu poder tentar remediar isso.
Remediar aquilo? Até mesmo apesar das dores que sentia, aquilo trazia-lhe à mente demasiadas imagens ardentes.
- Não, mas agradeço-vos, Cat. A sério que estou bem. Eu...
Mas Cat já tinha começado a desabotoar-lhe o gibão com eficiência e destreza. Martin fez outro esforço pouco convincente para protestar, mas naquela altura já sabia
que argumentar com Catriona era o mesmo que tentar resistir à maré. Por vezes, era preferível relaxar e deixar que a corrente nos levasse.
Estremeceu quando ela lhe tirou o gibão do ombro antes de lhe puxar a camisa pela cabeça. Martin sentia o ar frio no tronco nu.
Deixou-se cair na cadeira, rangeu os dentes e preparou-se para o ataque. Mas, apesar de fortes, as mãos dela eram suaves quando começou a massajar-lhe o ombro e
continuou pelo braço abaixo.
Após uma dor inicial, os músculos contraídos do braço começaram a relaxar sob o efeito dos dedos quentes e diligentes dela.
- Oh... - gemeu Martin. - Um bocadinho mais acima. Não, um bocadinho mais abaixo. Sim, aí mesmo. - Suspirava enquanto os dedos dela faziam magia no ponto mais dorido.
Martin pensava que, se fosse um cão, a sua perna teria estremecido de puro êxtase. Encostou a cabeça para trás e fechou os olhos, entregando-se inteiramente ao que
as mãos dela lhe faziam.
Era estranho, pensava. Nunca tinha desfrutado do afeto de uma mãe ou de uma irmã. Muitas das suas relações com mulheres tinham sido fugazes.
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Aquelas relações que tinham tido algum significado na sua vida, a filha, Miri Cheney e agora Lady Jane Danvers, consistiam em ele tentar protegê-las e cuidar de
que não lhes sucedesse mal nenhum.
Nunca tivera uma mulher que cuidasse de si. A sensação era nova para ele e bastante agradável. Martin deu consigo a sentir prazer naquela mudança, talvez mesmo um
tudo-nada de mais.
Sentiu que a tensão que se tinha apoderado de si começava a atenuar-se sob as mãos curativas de Cat, todas as suas dúvidas e medos... Não que pudesse dizer que estivessem
a desaparecer, mas sim a diminuir, tendo deixado de lhe parecer tão avassaladores. Pelo menos, até Cat lhe ter feito uma pergunta:
- E então, o que é que se passa de errado? Toda a tensão anterior voltou a apoderar-se dele.
- De errado? Não... absolutamente nada. O que é que vos leva a pensar que tenha acontecido alguma coisa de mal?
- O facto de os vossos músculos estarem tão flexíveis como um atiçador do lume - respondeu Cat, continuando a massajar-lhe a articulação do ombro dorido. - Não sei
aonde é que fostes esta noite, nem tão-pouco o que fizestes, mas aposto que foi alguma coisa mais preocupante e perigosa do que fazer as contas do teatro.
- E o que é que vós andastes a fazer? - perguntou ele, esforçando-se por imprimir um tom de brincadeira ao tom de voz. - A pôr em prática a vossa magia de mulher
sábia na leitura de olhos?
Martin ficou como que petrificado. Aquilo era algo que nunca lhe ocorrera antes, embora, inquestionavelmente, lhe devesse ter ocorrido.
- Não sois capaz de fazer isso, pois não? - perguntou com uma expressão de ansiedade, fazendo menção de querer levantar-se da cadeira.
Catriona inclinou-se por cima dos ombros dele, obrigando-o a continuar sentado.
- Não, não sei fazer isso muito bem. O que eu sei é ler feixes de músculos tensos, o que está a acontecer com os vossos músculos esta noite.
Quando recomeçou a massajar-lhe o braço dorido, Cat também retomou o assunto.
- Estais tão tenso como um animal acossado que é perseguido por uma matilha de cães ferozes. - Inclinou-se para a frente para poder ver o semblante dele. - Portanto,
o que é que está a preocupar-vos, meu lobo irritadiço?
Martin prendeu o olhar naqueles sábios olhos irlandeses e, por breves momentos, sentiu-se tentado a contar-lhe tudo o que se estava a passar em
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relação ao perigoso serviço que prestava a Walsingham, o conluio da conspiração, as dúvidas que o atormentavam acerca de Ned Lambert.
Cat tinha uma personalidade extremamente forte, além de ser uma pessoa muito prática. Ela não se retrairia, não tremeria de medo e não empalideceria horrorizada
como talvez acontecesse com outra mulher. Mas, não obstante, decerto que Cat não aprovaria, pensando que ele era ainda mais tolo e incompetente como pai do que já
pensava que era, pelo facto de se ter afundado até aos joelhos naquele atoleiro, quando já eram tantos os perigos que ameaçavam Meg. Não importava que ele tivesse
procedido dessa maneira com a melhor das intenções, com o objetivo de tentar assegurar um futuro melhor para a filha.
Martin não sabia dizer quando é que a opinião de Catriona tinha começado a ser tão importante para si, mas sentiu-se desconcertado ao constatar que essa era a realidade.
Além disso, a mulher já correra riscos mais do que suficientes para que a sua filha não corresse perigo. Cat não merecia ser arrastada também para os seus problemas.
- Não se passa nada de errado - replicou Martin insistente. -? Só estou exausto. Tive uma noite muito cansativa numa taberna à cunha e saturada de fumo na companhia
de alguns... alguns atores - acrescentou com uma careta. - Na verdade, com alguns atores muito maus. Teria preferido, de longe, ter ficado em casa com Meg e...
"E convosco", esteve quase a acrescentar. Conseguiu interromper-se mesmo a tempo. Voltou a fechar os olhos para evitar o olhar perscrutador dela, tentando forçar-se
a relaxar sob as suas mãos. Não sabia se Cat teria acreditado no que ele lhe dissera sobre o que tinha feito naquela noite. Quase sentia fisicamente o franzir de
sobrancelhas dela quando recomeçou a massajar-lhe o ombro.
- E quanto à Meg e a vós? Como é que passaram o serão? - perguntou Martin para mudar de assunto.
Os dedos de Cat fizeram pressão com mais força, aliviando a dor que ele sentia na parte superior do braço.
- Bastante bem, mas sinto-me um pouco preocupada por causa da Meg e do professor de música. Não estou bem certa de que o jovem mestre Naismith seja uma boa escolha
para professor de música dela.
- Porquê? O rapaz tem muito talento para tocar alaúde.
- Não nego isso. Mas sabíeis que, em tempos, ele foi um carteirista? Aparentemente, não era tão talentoso na gatunagem, uma vez que isso lhe custou uma orelha.
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- Sim, estou a par de tudo isso.
- E mesmo assim haveis decidido contratá-lo para ensinar música a Meg?
- O Sander já não tem razão nenhuma para roubar. Além de trabalhar no teatro, é contratado com muita frequência para tocar em muitas das casas mais nobres de Londres.
Ele conta com o patrocínio de Lorde Oxbridge, tendo escrito vários poemas líricos para sua senhoria.
Poemas líricos que Ned não tinha o mínimo pejo em afirmar serem da sua autoria, pensou Martin com desagrado.
- Talvez o Sander tenha sido um carteirista quando era mais novo, mas estais a esquecer, minha querida, que também eu fui um carteirista.
- Estou em crer que deveis ter sido bastante mais hábil do que o jovem mestre Naismith - retorquiu Cat, que interrompeu as suas massagens para lhe puxar o lóbulo
de uma orelha na brincadeira. - Ainda tendes as duas orelhas.
- Tive mais sorte do que ele, mais nada. Nunca fui apanhado e, em qualquer dos casos, esse castigo não era aplicado em França. - Os sobrolhos de Martin franziram-se
numa pequena expressão de censura. - Na verdade, é uma punição bastante estranha. Como é que se consegue dissuadir um ladrão de continuar a roubar ao cortar-lhe
uma orelha? Faria muito mais
sentido decepar-lhe uma mão.
- Os ingleses têm uma lógica muito própria - respondeu Cat desdenhosa -, que é incompreensível para o mundo dos sãos de mente.
Martin sorriu quando Catriona recomeçou a massajar-lhe o braço. Apercebeu-se de que estava a começar a gostar de sentir as mãos dela na sua pele nua por uma razão
muito diferente daquela por que ela estava a fazê-lo, mas à semelhança de um pobre pedinte quase enregelado, faltava-lhe a força de vontade para se afastar do lume
que o aquecia. Mas as palavras que Cat proferiu a seguir tiveram o efeito de um balde de água fria.
- Estais ciente de que a Meg tem uma paixoneta por mestre Naismith, não é verdade?
Os olhos de Martin abriram-se de repente.
- O que dizeis é um absurdo. Ela ainda é uma criança.
- Ela está a amadurecer mais depressa do que julgais. Dai-lhe mais alguns anos e vereis a promessa de uma jovem mulher encantadora a desabrochar. Os rapazes hão
de reparar e não a deixarão em paz, assediá-la-ão como moscas no mel.
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Martin fez uma expressão carrancuda ao imaginar os jovens a cheirarem as saias de garotinhas como uma matilha de cães com cio.
- Para bem deles, é bom que finjam que não reparam ou terei de lhes cortar mais do que orelhas - disse Martin com cara de poucos amigos num tom de voz que não augurava
nada de bom.
- Pensei que era para isso que estáveis a educá-la, para fazer um bom casamento, para vir a ficar noiva de um homem de posses - ripostou Cat num tom de alguma irritação
que tinha razão de ser.
- Sim, mas só daqui a muitos anos - retorquiu ele com rispidez. Contorcendo-se para afastar as mãos dela, Martin levantou-se de repente, qualquer prazer que tivesse
sentido nas mãos de Catriona a dar lugar à zanga e a uma estranha sensação muito semelhante à de pânico.
De facto, tinha ambições para Meg, sonhando que ela fizesse um bom casamento, mas pensar que alguém poderia levar-lhe a filha causava-lhe uma dor cava que se lhe
alojava no peito. A sua menina pertencia-lhe ainda havia muito pouco tempo.
- Sei que existem muitas meninas que casam ainda muito novas, mas isso não me parece bem. É mais sensato que a mulher tenha mais maturidade, que seja mais velha...
- Como por volta dos trinta anos? - perguntou Cat.
- Não! - atalhou Martin, fitando-a furioso. - Mas, pelo menos, com dezanove ou vinte anos. - Ao ver que ela tinha a impertinência de um sorriso trocista, acrescentou
irritado: - Sei de muitas mulheres que casaram já com alguma idade.
- Ou que nunca chegaram a casar - redarguiu ela com o assomo de um sorriso que denotava uma certa amargura.
Martin ficou a olhar para ela com uma expressão de curiosidade. Só podia tentar adivinhar a idade de Catriona, mas diria que ela talvez andasse pelos vinte e cinco
anos. Deus sabia que ela era capaz de ferver em pouca água, tinha mau feitio, era teimosa e excessivamente independente. Mas para um homem que tivesse coragem para
a domar, ele também encontraria uma ternura extremamente feminina, para já não mencionar os seus atributos físicos, aqueles olhos de um azul tão vívido, o cabelo
ruivo com uma textura sedosa e os seios firmes e completamente formados. Portanto, por que motivo é que ela continuava solteira? Embora estivesse à espera de uma
resposta torta, foi mais forte do que ele.
- E quanto a vós? Alguma vez pensastes em casar? - perguntou.
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Seria aquilo o resquício de uma dor recordada que viu nos olhos dela? A ser o caso, ela não perdeu tempo a recompor-se.
- Nem por isso. O meu padrasto tentou arranjar-me casamento quando eu tinha quinze anos, quanto mais não fosse para se ver livre de mim. Quis casar-me com o chefe
de um clã, o que lhe permitiria despachar-me para uma região muito distante no Norte. Chegou ao ponto de mandar pintar o meu retrato, que enviou ao chefe do clã.
Cat endireitou os ombros numa atitude de desafio.
- Não que eu alguma vez me tivesse submetido a um casamento arranjado dessa maneira, mas, felizmente, o esquema foi por água abaixo assim que o O'Hare viu o meu
retrato. O retrato era horrível. Fazia com que eu parecesse uma anã de cabelos vermelhos.
- Mas... Cat, sois uma anã de cabelos vermelhos.
- Como um varlete - ripostou Cat com uma risada trocista. Cerrou o punho e fez menção de lhe dar um soco na orelha na brincadeira.
Rindo-se, Martin agarrou-a pelo pulso e compensou-a por a ter arreliado, beijando-lhe primeiro um nó do dedo e depois o seguinte e os outros. A tensão na mão dela
relaxou e os dedos abriram-se. Os olhos dos dois encontraram-se e prenderam-se um no outro. Cat espalmou a mão aberta no peito nu dele, na região do coração.
Sentindo a respiração acelerada, Martin inclinou-se e os seus lábios roçaram pelos dela. Só um beijo não faria mal nenhum. Apenas um pequeno beijo amigável ou, pelo
menos, havia sido essa a intenção dele, até a sua boca se encontrar com a de Cat e ela ter correspondido. Retribuiu o beijo com todo o ardor, os lábios a entreabrirem-se,
o hálito a uísque e ardente, enchendo-o igualmente de ardor.
com a mão em cima da dela, Martin manteve a palma presa ao seu coração, que batia acelerado. Aquilo... aquilo não era nada sensato, disse a si próprio, mas a sua
cabeça parecia ter deixado de dominar as suas emoções.
O beijo aprofundou-se e intensificou-se, a língua dela empenhada num ardente duelo com a dele. Cat enlaçou-o pelo pescoço e ele ergueu-a, cingindo-a ao seu corpo
e sentindo a macieza dos seios dela através do tecido fino da camisa de noite.
Trocaram beijo após beijo com um desejo ardente. Martin começou a tentar desatar as fitas da camisa de dormir dela, tendo sido por pouco que não rasgou o tecido
quando o puxou por um dos ombros. Soltou um gemido ensurdecido, sentindo que as virilhas se contraíam quando fechou a mão num seio dela. Cálido e macio, um globo
que se ajustava à sua mão na perfeição.
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Quando ele começou a beijar-lhe o pescoço de cima a baixo, Cat arqueou as costas e agarrou-se aos ombros de Martin. Arquejou, mordendo o lábio inferior quando a
boca dele se deslocou mais para baixo e fechou os lábios no mamilo rosado.
Até mesmo enquanto se deleitava com ela, o raciocínio de Martin lutava para se afirmar. Sem saber bem como, conseguiu deter-se, afastando-se dela. Cat soltou um
pequeno grito de protesto e ele passou os dedos pelo cabelo, sentindo-se capaz de arrancar uma mão-cheia, de tão frustrado que estava.
com respirações arquejantes, olharam um para o outro. As faces de Cat com um intenso rubor, mas a expressão que transpareceu do seu semblante não era de vergonha
nem de pudor. Apenas pura consternação.
- Ah, Santa Brigida! - exclamou exaltada. - Mas o que diabo é que estamos a fazer?
- Eu... eu não sei.
Afastaram-se um do outro subitamente, cada um para o seu lado. Enquanto Cat tentava voltar a atar as fitas da camisa de dormir desajeitadamente, Martin estendeu
a mão para a camisa, vestindo-a pela cabeça. Qualquer dor residual no braço passou-lhe despercebida, suplantada pelo desconforto muito maior que ele sentia nas virilhas.
- Peço desculpa - disse Martin, os dedos desajeitados que pareciam de madeira a tentarem apertar as fitas da camisa.
- As vossas desculpas podem ir parar às urtigas - ripostou Cat. - Não sois o único culpado nesta situação.
- Mas sou o chefe desta casa e ter-me aproveitado de uma senhora que vive sob o meu teto...
- Não sou nenhuma senhora e, sem dúvida alguma, não sois o meu chefe. Sois um mero homem e eu sou uma mera mulher. O que acabou de acontecer foi... foi absolutamente
natural.
- Natural, mas errado.
- Oh, sim, de facto. Muito, muito errado. Tendes... tendes as vossas ambições, a vossa Lady Jane Danvers a levar em consideração.
- Sim, a Jane - retorquiu Martin, surpreendido com a sua falta de entusiasmo, perplexo consigo mesmo por nem sequer conseguir conjurar uma imagem do rosto da senhora
em questão, pelo menos de momento.
- E... e tudo o que mais quero é regressar à ilha Encantada - gaguejou Catriona. - Inequivocamente que não preciso do envolvimento... de passar a ter um amante.
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- Um amante! - gritou Martin escandalizado. - Não, claro que não. Nem sequer se põe a hipótese de alguma coisa nesses moldes entre nós dois.
- Portanto, ninguém saiu prejudicado - disse Cat, tentando sorrir. - Não se pode dizer que sejamos um garanhão e uma égua com cio. Ambos possuímos discernimento
suficiente para não voltarmos a ceder a tais impulsos.
- Não. Decididamente que não - concordou Martin. Mas quando arriscou um olhar na direção de Cat, o anelo que continuava a refletir-se nos olhos azuis dela foi quase
quanto bastava para o atrair de novo para os seus braços.
Desviou o olhar e apressou-se a vestir o gibão, sem prestar muita atenção a se ficava bem abotoado ou não. Quando se atreveu a voltar a olhar para ela, viu que Cat
tinha desarrolhado a sua pequena garrafa e bebia vários tragos generosos de uísque.
"A combater o fogo com fogo", sentiu-se tentado a dizer na brincadeira. Mas recordando-se de que tinha sido uma brincadeira que dera origem aos momentos de paixão
entre os dois, decidiu engolir o comentário. Em vez disso, disse com uma animação que era forçada:
- Não tarda a amanhecer. É melhor irmos para a cama. Sozinhos apressou-se a acrescentar. - Vós no vosso leito. Eu no meu... - Calou-se ao aperceber-se de que estava
a papaguear como um idiota. Para já, precisava de fechar a boca.
Cat aquiesceu e rolhou a garrafinha. Para uma mulher que não tinha aparentado o menor embaraço quando ele lhe beijou os seios e mordiscou os mamilos, de súbito mostrava-se
adoravelmente tímida.
- Receio ter de admitir que fui terrivelmente ingrata. Nem sequer vos agradeci por isto - disse, encostando a pequena garrafa ao peito.
- Não tendes de quê. Já vos disse que isso não passa de uma ninharia.
- Não - retorquiu Cat insistente. - O vosso presente tem muito significado para mim.
- Cat, ainda que eu vos oferecesse mil garrafinhas de prata, isso não seria um décimo daquilo que me haveis dado. Não fazeis a mínima ideia do quanto me sinto mais
tranquilo por vos ter aqui para me ajudar a proteger Meg. Fazeis com que não me sinta tão...
Sozinho, esteve quase a dizer e ficou perplexo. Até àquele momento, nunca se tinha apercebido dessa realidade.
- com que não me sinta tão preocupado - concluiu pouco convincentemente. Forçou-se a esboçar um sorriso e deu-lhe uma palmadinha no ombro numa atitude desajeitada.
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- Boa noite, petite chatte - disse com suavidade.
Mas duvidava que Cat o tivesse ouvido quando passou rapidamente por ele, saindo pela porta do pequeno gabinete.
Catriona sentou-se e aninhou-se no assento da janela na alcova de Meg, mantendo-se tão quieta quanto lhe era possível para não perturbar a garota, que continuava
a dormir. Incapaz de conciliar o sono, Cat não largava a sua preciosa garrafinha enquanto observava os primeiros alvores do dia acima dos telhados.
"Boa noite, petite chatte." O adeus de Martin continuava a pairar no seu pensamento.
Pequena gata. Os seus lábios contorceram-se num sorriso relutante. Cat teria esventrado qualquer outro homem que se tivesse atrevido a chamar-lhe aquilo. Portanto,
porque é que permitira que Martin o fizesse sem sofrer qualquer consequência? Pelo contrário, tinha gostado de ouvir aquele absurdo termo de ternura que saíra dos
lábios dele. E por que razão é que permitira que ele lhe oferecesse uma prenda tão dispendiosa?
Passou as pontas dos dedos pela pequena garrafa de prata e suspirou. Já que estava decidida a atormentar-se com perguntas que não tinham resposta, supunha que também
podia perguntar-se a mais difícil.
Por que motivo é que se mantivera a pé durante a maior parte da noite à espera de Martin, extremamente preocupada ao pensar se teria acontecido alguma coisa de mal
ao diabo do homem? Podia dizer a si própria que a sua preocupação tinha sido por causa de Meg, mas isso só era verdade em parte.
A garota teria ficado devastada com a perda do pai, mas Cat ficou desconcertada ao perceber que Meg não seria a única.
Quando se afligiu e preocupou devido à ausência dele, pensar que Martin nunca mais voltaria a transpor a porta daquela casa, que ela talvez nunca mais visse aquele
sorriso trocista, ouvir aquelas gargalhadas dadas com tanto gosto, sentira um muito estranho aperto na garganta.
Numa atitude de lassidão, Cat encostou a cabeça à parede. Mas que disparate era aquele? Martin, o Lobo, era um patife encantador, mas a verdade é que ela tinha conhecido
outros patifes bem-parecidos, pelo que estava habilitada a ver com toda a clareza os defeitos que aquele tinha.
1. Em francês no original: "pequena gata". (N. da T.)
2. Em francês no original: "adeus". (N. da T.)
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Ele era obstinado, imprudente e primava pela falta de qualquer sentido prático, além de ter uma exagerada propensão para o drama e atitudes grandiloquentes. Mas
tais pecadilhos pareciam ter pouco significado quando em comparação com a sua compassividade, a sua coragem, o seu bom humor e generosidade.
Para não mencionar o seu coração tão constante. Martin faria qualquer coisa pela filha e era precisamente isso que tanto preocupava Cat. Exatamente, o que é que
Martin andaria a fazer para garantir o futuro deslumbrante que pretendia para a filha? Catriona continuava sem fazer a mínima ideia da natureza do assunto que fazia
com que ele saísse à noite, mas tinha a certeza absoluta de que não se relacionava com o Teatro Crown.
Quando ele chegou a casa, entrando sorrateiramente já de madrugada, vinha com uma expressão de abatimento, bastante pálido, o que se deveria ao segredo que ele não
revelava, o que quer que fosse. E isso num homem que habitualmente se mostrava tão despreocupado, sempre a transbordar de energia; estar junto dele era como montar
a cauda daquele cometa flamejante que continuava a desfigurar o firmamento.
No que quer que Martin estivesse envolvido, tinha de ser, forçosamente, perigoso e arriscado para acabrunhar um homem sempre tão bem-humorado como ele. Talvez Cat
decidisse segui-lo da próxima vez que ele saísse à noite e...
Mas em que é que ela estava a pensar? Teve de lembrar a si mesma com muita rispidez que a razão por que se encontrava ali não era para proteger Martin, o Lobo, mas
sim a filha dele.
- O homem não é assunto que te diga respeito. É assunto que não te diz respeito - repetiu a si própria como se aquilo fosse uma espécie de cântico protetor, mas
que não estava a resultar, talvez porque os seus lábios continuassem pisados e doridos por causa do ardor dos beijos dele.
Natal. Ainda faltavam quase cinco meses, recordou a si mesma com brusquidão. Cinco meses em que teria de evitar enredar-se ainda mais com Martin. Mas Cat receava
que já fosse tarde de mais para evitar isso.
A grande idiota que era, tinha-se apaixonado perdidamente pelo homem.
Os sinos tocavam por toda a cidade numa manifestação de júbilo sem paralelo. Uma pessoa até poderia pensar que assinalariam uma grande vitória militar ou o nascimento
de um herdeiro real. Mas tratava-se, muito simplesmente, da homenagem que era necessário prestar à rainha sempre que ela embarcava na barcaça real, navegando pelas
águas do Tamisa. Os sacristães de todas as paróquias recebiam uma remuneração suplementar por cumprirem aquele dever. Era um desperdício de bom dinheiro, além de
ser uma barulheira infernal e tudo para nada.
"Os ingleses", pensou Cat, mas conteve o desdém para não ofender a sua jovem companheira. Ao cabo de várias semanas em que Meg estivera confinada à casa, finalmente
tinha-se considerado que seria seguro permitir que a garota saísse durante algum tempo para visitar o teatro do pai. O facto de que talvez pudesse avistar por fim,
e ainda que de relance, a sua muito admirada rainha aumentava ainda mais o empolgamento que Meg sentia.
- Despacha-te, Cat - disse a garota, puxando-a pela mão em direção à multidão que enchia a margem do rio na área de Southwark. Os chapéus eram tirados da cabeça
e os lenços adejavam no ar enquanto as pessoas aclamavam e acenavam. Reinava uma atmosfera de festa naquele dia quente de verão, mas Cat mantinha a sua desconfiança,
sempre em estado de alerta. Examinava todos os que se encontravam nas proximidades, perscrutando os rostos atentamente, em especial os das mulheres, para se certificar
de que não havia nenhuma que parecesse demasiado interessada em Meg sem motivo para tal. Mas todos os olhares estavam assestados na direção do rio.
Enquanto Meg arrastava Catriona para a margem do rio, esta olhava por cima do ombro à procura de Martin, constatando que ele se deixara ficar para trás.
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Tinham vindo a manter uma discreta distância entre os dois desde a noite em que cederam aos arroubos da paixão que quase os levou a acasalarem no gabinete dele.
Cat censurara-se severamente e desde então que se esforçava por conter os seus desejos, bem como os seus disparatados pensamentos.
Imagine-se uma coisa dessas; apaixonada pelo homem! Uma ideia com origem em uísque irlandês a mais e horas de sono a menos. No entanto, tinha a honestidade suficiente
perante si própria para admitir que se sentia atraída por Martin, especialmente quando ele estava trajado com tanta elegância como hoje.
Vestia um gibão de veludo de uma tonalidade que condizia com o verde-vivo dos seus olhos. A capa preta curta pendia-lhe galantemente de um ombro, os calções tufados
pelo meio da coxa e as bragas justas davam realce ao contorno bem musculado das pernas. O toque adornado com uma pena que usava com desenvoltura dava realce às feições
bem-parecidas e de expressão descarada.
Estava com uma aparência de fazer acelerar a pulsação de qualquer mulher por cujas veias corresse um sangue bem vermelho. Contudo, Cat duvidava que a mulher que
Martin acompanhava tivesse a correr-lhe nas veias mais do que água esbranquiçada.
Lady Jane Danvers caminhava ao lado de Martin, os olhos baixos numa atitude recatada. Eram seguidos pelo séquito de sua senhoria, composto por vários lacaios de
libré e pela senhora Porter, a sua criada de quarto, uma criatura de cabelos grisalhos que tinha uma expressão que primava pelo azedume.
As duas mulheres, cujas saias se mantinham rígidas sobre as anquinhas e devido aos passos miúdos e afetados que davam, eram a razão principal por que Martin se deixara
ficar para trás. Cat teria dispensado de boa vontade a presença daquelas pessoas.
Mas Lady Jane Danvers nunca tinha visto o teatro em que investira o seu dinheiro e Martin parecia ansioso por poder mostrar-lho. Cat desconfiava de que ele também
estivesse ansioso por que a filha ficasse a conhecer melhor a mulher que, esperava ele, talvez viesse a ser a madrasta de Meg.
A própria Cat sentira curiosidade em poder, finalmente, ver a senhora em questão. A mulher era bonita quanto bastava, calada, afetada e insípida. Trajada com um
vestido de seda crua e o cabelo louro preso num toucado, sua senhoria poderia ter-se sumido na tarde nebulosa sem que ninguém desse pela sua falta. Pelo menos, no
que dizia respeito a Cat.
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Sem dúvida que Martin se mostrava bastante solícito, falando baixinho ao ouvido de Lady Jane. Como se se erguesse a voz um pouco alto de mais, a pobrezinha pudesse
desmaiar, pensou Cat com desprezo. Mas isso não a impedia de ver como é que a delicadeza e o ar de vulnerabilidade de Lady Jane Danvers atrairiam um homem como Martin,
com as suas românticas noções de galanteria e propensão para o drama. Sua senhoria era o género de mulher perante a qual ele se ajoelharia, jurando chacinar todos
os dragões que a ameaçassem.
Muito diferente de ela própria, refletiu Cat. "Eu sou a dragão."
Foi despertada dos seus pensamentos acabrunhadores quando se apercebeu de que Meg lhe tinha largado a mão. Sentiu uns momentos de pânico até avistar a garota não
muito distante.
Ter visto a mãe a morrer afogada fizera com que Meg passasse a ter um certo receio da água. Mas o desejo de ver a rainha sobrepunha-se a tudo o resto, suplantando
tanto o receio que sentia das correntes do rio Tamisa, como o medo dos estranhos que se apinhavam na margem.
A jovem tentava furar por entre a multidão para conseguir chegar à beira-rio. Correndo para ela, Cat pousou uma mão pesada no ombro de Margaret.
Baixou-se o suficiente para poder falar ao ouvido da garota numa voz rosnada.
- Meg, tu prometeste. Se te déssemos autorização para saíres de casa, juraste que te manterias junto do teu pai e de mim.
- Mas, Cat, assim não consigo ver a rainha - queixou-se Meg.
"E não estás a perder grande coisa", sentiu-se Cat tentada a replicar. Mas não era capaz de resistir àqueles olhos verdes de expressão suplicante de Meg.
Acotovelando um corpulento comerciante nas costelas, empurrando uma matrona escanzelada acompanhada da filha e pisando os dedos dos pés de um marinheiro esgalgado,
Cat ajudou Meg a avançar. Ignorando as imprecações e os olhares de fúria de que era alvo, conseguiu colocar Meg na frente da multidão.
A barcaça real estava quase a dobrar o cotovelo do rio, com doze robustos homens trajados de escarlate a remarem esforçadamente, transportando a rainha, que mal
se via por baixo do baldaquim dourado. Catriona agachou-se para encavalitar Meg nos seus ombros, o que não era nada fácil.
A garota não pesava muito, mas para causar uma boa impressão em Lady Jane Danvers, Meg também vestia saias volumosas. Quando Cat se endireitou
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cautelosamente, pouco conseguia ver além dos drapejados de seda cor-de-rosa. Mas sentiu-se recompensada pelo arquejar de deleite da garota, que se agarrava à sua
cabeça, gritando vivas à soberana em coro com o resto da multidão.
Sentindo o peso nos músculos dos ombros, Cat manteve Meg às cavalitas durante tanto tempo quanto as forças lhe permitiram. Quando as celebrações começaram a diminuir
e as pessoas nas proximidades começaram a dispersar, deduziu que a barcaça da rainha já se teria afastado de vista.
Quando se baixou para que Meg saísse dos seus ombros, Cat perdeu o equilíbrio. Cambaleou para trás e contorceu-se para aparar a queda de Meg quando ambas caíram
no chão.
Cat abafou uma imprecação quando sentiu o impacto com o solo. Ficou sem fôlego por uns momentos, esparramada de costas e retraindo-se quando sentiu o cotovelo da
garota que se desembaraçava de si.
- Oh, Cat, estás magoada? - perguntou aflita.
Catriona só conseguiu responder com um acenar de cabeça. Ao longo da sua vida, tinha dado quedas muito piores ao montar os potros indomáveis das cavalariças do seu
padrasto. Mas a verdade é que batera com o traseiro com força no chão. Quando se sentou cautelosamente, fez uma careta, sabendo de antemão que ficaria com o cóccix
muitíssimo dorido.
Pondo-se de pé, Meg olhou para Cat, mostrando-se ansiosa.
- Tens a certeza de que não estás magoada?
-- Apenas na minha dignidade - resmungou Cat.
- E, felizmente, não tendes muito disso - disse uma jovial voz masculina.
Quando a figura alta de Martin apareceu diante de si, Cat sentiu uma onda quente de calor a subir-lhe às bochechas. Apercebeu-se de que, durante a queda, as saias
lhe tinham subido, revelando uma boa quantidade de perna. Antes de poder reagir, Martin puxou-lhe a fímbria da saia para baixo. Enlaçando-a pela cintura com um braço
robusto, ajudou-a a levantar-se do chão.
Poderia ter-se sentido tentada a encostar-se a ele por uns momentos, mas estava demasiado consciente da presença de Lady Jane Danvers, que se aproximava com a sua
criada. Cat endireitou-se rigidamente, sacudindo a poeira do chão da parte de trás do vestido e sentindo-se como uma grande idiota.
Mas Martin mostrava-se mais divertido do que vexado.
- Sei o que sentis em relação à rainha, menina Catriona OHanlon disse ele com um brilho maroto no olhar -, mas parece-me que devíeis conter um pouco todo esse entusiasmo.
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Cat olhou para ele com uma expressão carrancuda. Antes de poder responder-lhe, Meg interveio na sua vozinha que mal se ouvia:
- Não arrelies a Cat, papá. Sabes bem que fui eu quem quis ver a rainha.
- E conseguiste, finalmente, ver bem a tua grande heroína? - perguntou-lhe Martin.
- Não - respondeu Meg com um fundo suspiro de desolação. - Ela estava rodeada de demasiados cortesãos lorpas. - A garota adotou tão inconscientemente o sotaque melodioso
de Cat que esta viu-se forçada a rir. Tal como Martin.
- Portanto, agora os cortesãos são lorpas, é isso? - perguntou, rindo-se à socapa, imitando também o sotaque irlandês. - Até parece que a Cat quer transformar-te
numa irlandesa.
- O que é melhor do que ela passar a ser inglesa! - ripostou Cat.
- Quanto à sua maneira de falar, o único culpado sois vós. A vossa filha herdou de vós o vosso diabólico jeito para a mímica.
Martin sorriu-lhe e a tensão que os havia distanciado durante a última semana pareceu ter-se dissipado até Lady Jane Danvers ter avançado.
Os lábios dela esboçaram o sorriso a medo de alguém que se aperceberia de qualquer coisa divertida mas que não fazia ideia do que fosse.
- Vi-te a cair na margem, Margaret. Tratava-se de algum jogo a que estavas a brincar?
Recordando-se de que, por pressuposto, se encontrava ali na qualidade de criada de uma senhora de posição, Cat recuou, tentando passar despercebida. Mas Meg pegou-lhe
na mão, explicando a Lady Jane Danvers:
- Eu queria poder ver bem a rainha e a Cat tentou ajudar-me. Quis pôr-me aos ombros e caímos as duas.
Entretanto, a senhora Porter apressou-se a abeirar-se de Meg, endireitando-lhe a gola de tufos engomados e sacudindo as ervas que se tinham agarrado à manga do vestido.
A criada contraiu os lábios e olhou para Cat de má catadura.
- Uma criada como deve ser habitualmente tenta proteger a sua senhora de uma multidão tão vulgar como esta - disse Porter sem estar com meias-palavras. - Mas talvez
por ser irlandesa, a senhora Catriona OHanlon não saiba isso.
Meg afastou-se da mulher, retrocedendo até embater em Catriona.
- A Cat protege-me. Sempre. Além disso, ela não é minha serva. Ela é a minha fianna...
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Cat apertou o ombro da garota num gesto de advertência.
- É minha amiga - concluiu Meg.
- Os serviços da menina Catriona OHanlon têm vindo a provar ser de um valor incalculável para a minha filha - acrescentou Martin, olhando para Cat com uma expressão
afetuosa.
A senhora Porter deu uma fungadela, mostrando um ar sobranceiro e começando a dizer qualquer coisa. Mas, para surpresa de Cat, Lady Jane Danvers admoestou a sua
criada com um franzir de sobrancelhas de reprovação.
- Já chega, senhora Porter. - Sua senhoria virou-se para Meg, afastando-lhe da cara uns fios de cabelo, que lhe prendeu atrás da orelha. - Eu compreendo. Tive uma
pessoa que cuidou de mim inexcedivelmente durante vários anos e eu considerava-a como minha amiga. A minha velha ama, a Sarah, era uma boa mulher muito afetuosa.
- Quando é que ela faleceu? - perguntou-lhe Meg.
Era possível que tivesse sido uma boa suposição da parte da garota, com base na expressão de melancolia nos olhos de Lady Jane Danvers. Mas levando em linha de conta
a maneira extremamente intensa como Meg perscrutava os olhos dela, Cat suspeitou que não se trataria disso. Deu-lhe outro apertão de advertência no ombro; com uma
expressão de culpabilidade, a garota baixou os olhos.
Sua senhoria mostrava-se ligeiramente perplexa com a capacidade de discernimento de Meg, mas respondeu-lhe:
- Perdi a Sarah muito recentemente. Morreu de um tumor. - Baixou ainda mais o tom de voz quando acrescentou: - Foi... foi uma morte excruciantemente dolorosa.
- Lamento muito - retorquiu Meg.
- Pelo menos, agora a pobre mulher repousa em paz - adiantou Martin. Sua senhoria concordou com um acenar de cabeça, mas a tentativa de Martin para a reconfortar
só fez com que Lady Jane Danvers ficasse ainda mais melancólica. Fez-se um silêncio de mal-estar.
Era inequívoco que a mulher sabia como refrear a alegria de uma agradável saída à tarde, pensou Cat. Sentiu alívio quando Martin sugeriu que prosseguissem a caminho
do teatro.
Quando já subiam a rua do Crown, Martin encorajou Meg a caminhar ao lado de Lady Jane Danvers e da criada desta. A garota, obedientemente, fez o que o pai lhe dizia,
ainda que sem entusiasmo.
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O teatro situava-se a pouca distância da margem do rio, mas a rua estreita estava apinhada de vendedores ambulantes, carroças e pessoas que acorriam ao pequeno recinto
oposto ao teatro.
Via-se um grupo de homens que se entretinham com um jogo de bolas de madeira num espaço relvado em frente da taberna. Normalmente, Meg teria esticado o pescoço para
poder vê-los, com uma curiosidade que era como um poço sem fundo, sempre desejosa de não perder pitada de tudo o que fosse novidade e por absorver todos os sons.
Mas a desilusão por ter estado tão perto da rainha Isabel e não ter sido capaz de ver sua majestade arrefecera a boa disposição da garota. Isso e ter de agradar
a Lady Jane Danvers, uma senhora de posição social tão elevada que não podia aventurar-se a sair de casa sem se fazer acompanhar da criada e de uma escolta de lacaios.
Os homens tomavam a dianteira a fim de abrirem caminho para sua senhoria passar, mantendo a multidão afastada. Meg não podia impedir-se de pensar que Cat jamais
quereria que um homem lhe abrisse caminho, tal como a sua formidável mãe - para já não mencionar o facto de Cassandra Lascelles ter sido cega.
Mas nem a mãe nem Cat eram senhoras refinadas como devia ser, ao contrário de Lady Jane Danvers, que tinha todos os predicados que o pai de Margaret desejava que
ela viesse a ter um dia. O pai nunca o dissera por tantas palavras, mas a garota desconfiava de que ele almejava desposar Jane Danvers para que a filha passasse
a ter uma mãe, a última coisa que a garota desejava.
A menos que fosse Cat, pensou Meg com nostalgia. Mas isso seria impossível, dada a maneira como o pai e Cat discutiam com tanta frequência, para além de terem perspetivas
do mundo muito diversas, em particular no que dizia respeito aos ensinamentos dos conhecimentos da Antiguidade e aos procedimentos das mulheres sábias.
Levando em consideração o sombrio destino que a mãe previra para Meg, supunha que o pai estava certo ao querer que ela fosse mais como Lady Jane Danvers.
No entanto, sua senhoria parecia tão restringida pelos estreitos limites da sua existência como pelos espartilhos que usava. Enquanto continuava a percorrer a rua
cheia de gente, Lady Jane Danvers mantinha uma postura rigidamente ereta. Apesar disso, conseguia evitar que a bainha do seu dispendioso vestido tocasse na lama,
com uma graciosidade que parecia não lhe exigir
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o mínimo esforço e que Meg duvidava bastante que algum dia pudesse vir a adquirir.
A garota sabia que o pai estava ansioso por que ela causasse uma impressão favorável, mas sentia-se desajeitada e sem saber o que dizer. Não fazia a mais pequena
ideia sobre o que dizer àquela mulher com a sua postura perfeita e comportamento tão solene.
Do mal o menos, sua senhoria não parecia tão fria e reprovadora como a sua criada, uma mulher horrenda. Quando Meg se arriscou a olhar de relance para Lady Jane
Danvers, esta mexia nervosamente na gola de folhos engomados, uma coisa que a própria Meg ansiava por fazer. Os folhos engomados com um excesso de goma arranhavam-lhe
o pescoço.
Seria possível que aquela grande dama se sentisse tão pouco à vontade como a própria Meg? A garota considerou que aquela probabilidade era absurda.
- Está... está muito calor - aventurou-se a mulher a dizer.
- Sim, de facto está.
- E a rua está cheia de gente.
Uma vez mais, Meg concordou cortesmente.
- Toda esta multidão me surpreende bastante. Para onde é que todos poderão estar a dirigir-se? O teu pai disse-me que o teatro estaria encerrado esta tarde.
- É verdade, os atores estão a ensaiar uma nova peça. Acho que todas estas pessoas tencionam assistir ao açular dos cães ao urso no jardim público - aventou Meg,
enrugando o rosto numa expressão de intensa censura.
- Não aprovas esse desporto? - perguntou Lady Jane Danvers.
- Não é desporto nenhum. Açular uma matilha de cães a uma pobre besta acorrentada! Quem me dera que o urso conseguisse libertar-se, comendo-os a todos. Bem... não
me refiro aos cães. Eles não têm raciocínio. Mas
sim àqueles homens malvados que fazem as suas apostas...
Meg refreou a sua tirada colérica. Cat teria compreendido a sua necessidade de dar largas à indignação, mas receava que sua senhoria ficasse chocada. Mas Lady Jane
Danvers surpreendeu-a com a sua réplica:
- Concordo plenamente contigo. Eu própria desejei muitas vezes que isso acontecesse, que o urso pudesse banquetear-se com uma boa refeição composta pelos seus atormentadores.
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Meg ficou a olhar para a mulher com uma expressão de muita incredulidade. Talvez sua senhoria não fosse tão afetada e circunspecta como aparentava. O comentário
dela fez com que a garota ficasse a gostar mais de Lady Jane Danvers, a despeito de si própria.
- Se eu fosse a rainha, proibiria a prática de açular cães aos ursos e a touros acorrentados - continuou Lady Jane Danvers. - Mas receio ter de dizer que sua majestade
gosta bastante desses desportos sangrentos.
- Oh! - exclamou Meg contraindo os lábios. Aquela não era uma informação relacionada com a sua heroína que lhe agradasse ouvir. Contudo, pensar que Lady Jane Danvers
conhecia a rainha, que tinha estado na augusta presença de Isabel, era mais forte do que os escrúpulos de Meg. - Portanto, haveis estado na corte. Conheceis a rainha?
Já a vistes? Falastes com ela? com que opinião é que haveis ficado dela? O que é que ela... - Meg tentou pôr cobro à catadupa de perguntas anelantes. - Peço desculpa.
Não devia estar a incomodar-vos.
- Não, não me incomodas nada, minha querida. O teu paizinho disse-me que és uma grande admiradora da rainha Isabel, tal como eu própria era.
Era? Meg concentrou-se naquela palavra e na sombra que pareceu ensombrar momentaneamente o rosto de Lady Jane Danvers.
- Não posso afirmar que conheça bem sua majestade. Não foram assim tantas as vezes em que estive na sua presença, mas quando o meu pai faleceu, a rainha foi muito
amável para comigo e para com o meu irmão. Apesar do facto de o meu pai a ter encolerizado bastante.
Lady Jane Danvers hesitou, como se estivesse à procura das palavras seguintes com todo o cuidado.
- Ninguém consegue ser mais compassiva do que sua majestade para com as viúvas ou os órfãos, para com quem tenha tido uma grande infelicidade. Mas quando se trata
de fazer o que ela considera necessário para manter o seu trono seguro, a rainha Isabel é capaz de ser muito... implacável.
Meg leu o suficiente dos pensamentos de Lady Jane Danvers para perceber o que ela quisera dizer com aquilo.
"A rainha Isabel também é capaz de ser muito dura, injusta e cruel." Mas Meg não poderia verbalizar a sua indignação ao tomar conhecimento daquele criticismo dirigido
à sua amada rainha, uma vez que não fora articulado em voz alta. Obrigada a ter tento na língua, a garota remeteu-se a um mutismo de obstinação.
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Sua senhoria seguiu-lhe o exemplo, dando a impressão de estar embrenhada nos seus próprios pensamentos. Como se movida por um súbito impulso, abriu uma pequena bolsa
que trazia presa ao cinto.
com a sua proverbial curiosidade, Meg não conseguiu conter um olhar de relance para o conteúdo da bolsa de veludo. Lady Jane Danvers tirou do interior uma coisa
azul que ofereceu a Meg.
- Toma. Quero oferecer-te isto.
Meg aceitou um retalho de seda desfiada e um pouco suja. Olhando para aquilo com um ar duvidoso, agradeceu.
- Hum... obrigada.
- É um bocado da passadeira que foi estendida para a rainha aquando da sua coroação. Depois da cerimónia, foi rasgada em bocados pela multidão ansiosa por conseguir
uma recordação desse grandioso evento. A minha velha ama esteve presente e conseguiu obter este pedaço.
- Oh! Muito obrigada - repetiu Meg, mas num tom muito diferente, olhando para o bocado sujo de tecido de uma perspetiva inteiramente diferente.
- Encontrei esse pequeníssimo bocado de passadeira da rainha entre os pertences mais valiosos da minha velha ama - explicou Lady Jane Danvers numa voz embargada.
- A Sarah ofereceu-mo no seu leito de morte.
Meg ficou com o pedaço de passadeira nas mãos tão reverentemente como se fosse uma relíquia sagrada. Teve de chamar a si toda a sua força de vontade para o devolver
a Lady Jane Danvers.
- Oh, não, Lady Jane - gaguejou. - É impossível que desejeis separar-vos disto. É um tesouro tão grande, um símbolo do dia em que a princesa Isabel passou a ser
a nossa amada rainha. Eu não p... posso aceitar.
- Sim, menina. Podes aceitar - retorquiu Lady Jane Danvers, fechando os dedos de Meg no bocado de pano. - Guarda-o. - O sorriso de sua senhoria era, a um tempo,
estranhamente amargo e de uma tristeza que parecia nunca a abandonar. - Tenho a certeza de que darás muito mais apreço a esse bocado de seda do que eu alguma vez
poderia apreciar.
Cat caminhava atrás da comitiva de Lady Jane Danvers, sentindo-se impaciente e irritada por ter de encurtar o seu passo habitualmente largo. Mas seguir atrás dos
demais dava-lhe a oportunidade de poder vigiar Meg melhor.
Também lhe permitia observar com um olhar crítico os esforços desajeitados de sua senhoria para estabelecer amizade com a garota. Lady Jane Danvers
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até recorrera a um presente qualquer que tirou da bolsa e ofereceu a Meg. Cat não conseguiu ver do que se tratava. Talvez fosse uma moeda.
Meg aceitou com bastante satisfação, embora continuasse a manter uma atitude rígida e reservada perante sua senhoria. Cat sentiu-se envergonhada da satisfação que
isso lhe proporcionava. Se Lady Jane Danvers estava destinada a ser a madrasta de Meg, Cat devia desejar que começasse a existir algum afeto e confiança entre as
duas. Para o bem da garota.
Mas a verdade é que estava a ter uma enorme dificuldade em se sentir generosa a esse ponto. O seu estado de espírito de irritação não melhorou quando Martin acertou
o passo com o seu, colocando-se ao seu lado e murmurando-lhe ao ouvido.
- E então, o que é que pensais?
Cat olhou carrancuda quando a senhora Porter se colocou atrás da sua ama para endireitar uma dobra do vestido de sua senhoria, impedindo momentaneamente que Cat
pudesse ver Meg.
- Ela é um bocado larga de mais nas ancas e no traseiro para o meu gosto.
- Não estou a falar da criada. Sabeis perfeitamente bem que estava a referir-me a Lady Jane Danvers - retorquiu Martin.
- A minha opinião tem alguma importância? - perguntou Cat com um encolher de ombros.
- Sim, tem. - Martin surpreendeu-a ao insistir: - Qual é a vossa opinião a respeito de Jane?
As sobrancelhas de Cat uniram-se numa expressão de poucos amigos. O que é que ela pensava? Que Jane Danvers não passava de uma pálida cópia de Miri Aristide, a mulher
que Martin adorara durante tantos anos. Que sua senhoria era bonita como Miri, mas que não possuía a sua sensatez visionária, nem tão-pouco a sua serena força.
Jane era tão doce e gentil que tanto Martin como Meg prevaleceriam sobre ela sem pensarem duas vezes. Sua senhoria jamais conseguiria domar um garanhão tão intratável
nem a sua obstinada potra, nunca seria capaz de ralhar e consolar, amar e protegê-los.
"Não da maneira como eu poderia", pensou Catriona, mas logo a seguir surpreendeu-se consigo própria perguntando-se de onde é que um pensamento tão caprichoso teria
vindo. Sentiu o calor de um intenso rubor nas faces ao aperceber-se de que Martin a observava, à espera da sua resposta.
Engoliu em seco e, indo contra a sua maneira de ser, tentou responder com algum tato.
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- Lady Jane Danvers parece ser uma... uma senhora extremamente respeitável. Ela... ela é tão loura como a irmã mais nova de Ariane, embora não seja tão encantadora
como Miri.
- Nunca mais haverá outra Miri - disse Martin num tom de voz tão suave, tão repleto do afeto que guardava na sua recordação, que Cat teve a sensação de que o seu
coração era rasgado por garras. Uma sensação deveras estranha, constrangedoramente semelhante a um sentimento de ciúme. Cat esforçou-se ao máximo para a dissipar.
Martin não perdeu tempo a continuar:
- Mas a Jane possui uma espécie de beleza serena muito pessoal. Como uma delicada rosa inglesa.
- Não sou a melhor pessoa para fazer essa avaliação - replicou Cat causticamente -, uma vez que eu própria sou uma erva daninha.
- Não, sois mais como a urze que cresce livremente nos campos das vossas colinas irlandesas. - A expressão no olhar dele era de ternura e de admiração, sentimentos
que tocavam Cat nos seus pontos mais vulneráveis ao mesmo tempo que a encolerizavam.
Esforçava-se denodadamente por manter as suas defesas bem erguidas, o que ele não lhe estava a facilitar nada. Forçou os lábios a esboçarem uma expressão de escárnio.
- Que esperteza da vossa parte comparar-me com algo que nunca haveis visto.
- Mas vi, sim. Através dos vossos olhos.
Maldito homem! Porque é que ele tinha de dizer coisas como aquilo ou sorrir-lhe daquela maneira, obrigando-a a reconhecer aquilo com que não queria ver-se confrontada?
Não estava exausta, com a cabeça confusa devido ao uísque. Não podia estar mais sóbria e continuava a pensar que estava apaixonada por ele.
Pensava que estava? Não, sabia-o, sentia-o no mais fundo do seu ser. Catriona deteve-se repentinamente no meio da rua, servindo-se da única arma ao seu dispor para
o pôr na ordem, a lâmina bem afiada que era a sua língua.
- Que encantador, mestre Wolfe - disse, imprimindo uma entoação de desprezo à sua voz. - Mas andaríeis melhor se poupásseis as vossas lisonjas para uma mulher que
as aprecie minimamente. Se aspirais a ser um gentil-homem, devo dizer-vos que eles não costumam desperdiçar tais elogios nos
seus servos.
- Deus me valha, Cat! - retrucou Martin, pestanejando perante aquele inesperado ataque. - Sabeis muito bem que não olho para vós a essa luz.
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- Não é da vossa conta olhar-me seja a que luz for! - ripostou Cat com brusquidão, alargando o passo e afastando-se dele com uma expressão de cólera e mágoa. Mas
o que era preferível, de longe, a ele adivinhar a verdade.
Ela amava o homem. Mas se passasse mais um momento que fosse na sua companhia, acabaria por partir alguma coisa naquela cabeça dura e obtusa.
Cat caminhava ao longo da extremidade da segunda plateia, mantendo o olhar de expressão melancólica preso nas galerias vazias. O Teatro Crown perdera muita da sua
magia desde a sua primeira visita, ocasião em que se sentira tão fascinada com o desempenho de Martin no palco. Talvez porque ela não se sentia particularmente agradada
com o papel que ele desempenhava naquele momento, acompanhar Lady Jane Danvers numa visita ao teatro, apresentando-a aos membros da companhia teatral.
Cat deduzia, com base na exagerada gesticulação de Martin, que ele se esforçava ao máximo para entreter sua senhoria, fazendo com que a mulher sempre tão melancólica
sorrisse. Até parecia que estava a representar no palco.
Talvez ele tivesse mais êxito com Lady Jane Danvers se a arrebatasse com um dos seus olhares sinceros e plenos de intensidade com que, muitas vezes, fitava Cat.
Esta suspirou, fazendo o seu melhor para banir da sua mente aqueles pensamentos de ressentimento. Ser espirituoso e encantador eram facetas tão naturais em Martin,
o Lobo, como o respirar. Não podia ser censurado por Catriona se ter apaixonado por ele. Tal devia-se única e exclusivamente à sua idiotice, sendo algo que ela precisava
de vencer, recordando-se que se encontrava ali apenas para proteger Meg.
Cat nunca teria desejado que a garota corresse qualquer perigo, mas, com isso em mente, teria sido uma grande ajuda se tivesse alguma coisa de importante a fazer.
Por exemplo, desembainhar a adaga que mantinha oculta para lutar contra uma das bruxas da Rosa de Prata ou contra os soldados da Rainha das Trevas.
Mas de acordo com a última missiva que recebera de Ariane, os perigos que ameaçavam Meg haviam diminuído significativamente.
"Ma chère Catriona", escrevera a Senhora da Ilha Encantada.
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"A meu pedido, o meu cunhado viajou para Paris com o objetivo de tentar descobrir mais alguma coisa. Ao cabo de muitas investigações discretas, o Simon inteirou-se
de que muitas das bruxas da irmandade foram aniquiladas ou presas no penhasco aquando da sua assembleia à meia-noite. As bruxas que foram levadas para Paris foram
executadas.
Não posso dizer com certeza absoluta se Catarina de Médicis ficou a saber alguma coisa sobre a Megera. As bruxas da irmandade eram tão fanaticamente dedicadas aMeg
que duvido muito que pudessem ser induzidas a falar, até mesmo sob tortura. Talvez isso fosse desejar de mais da minha parte.
Mas se a Rainha das Trevas descobriu que foi intrujada em relação à identidade da Rosa de Prata, Simon não discerniu o mínimo indício disso. com certeza que, se
soubesse alguma coisa, nesta altura já teria invadido a ilha Encantada com uma fúria vingadora, mas tudo permanece sossegado por aqui..."
O resto da carta dava conta, com asseverações muito animadas, do bom estado de saúde de Ariane e que tudo estava bem tanto com ela como com a criança que trazia
no ventre, algo que Cat desejava poder acreditar plenamente.
Ariane concluíra a sua missiva recomendando a Cat que se mantivesse vigilante, sem perder Meg de vista, não que ela precisasse que lhe lembrassem isso. Mas o único
perigo que ameaçava a garota de momento era o de uma superabundância de doces.
A garota andava pelo palco acompanhada de um dos atores, o velho Arthur Lehay. O homem de porte majestoso enchia Meg com gengibre cristalizado.
- A vossa jovem ama rasgou a bainha do vestido - informou-a uma voz cheia de frieza. Para grande irritação de Cat, deu com a senhora Porter ao seu lado.
- Ah, rasgou? - perguntou Cat. - Atrever-me-ia a dizer que ainda resta muito vestido, o suficiente para vestir duas meninas do tamanho dela. - Quando a outra franziu
os sobrolhos numa expressão de censura perante a atitude dela, Cat encolheu os ombros e acrescentou: - A bainha será cosida depois de voltarmos para casa.
- Eu ando sempre preparada para servir a minha senhora, não vá dar-se o caso de acontecer um percalço desses - informou-a a senhora Porter com um ar presunçoso.
- Nunca vou a lado nenhum sem que esteja bem prevenida com agulha e linhas.
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- Eu própria prefiro uma adaga de lâmina bem afiada - ripostou Cat numa voz arrastada. - As vossas agulhas não serviriam de grande coisa durante uma boa luta. Embora
eu calcule que pudésseis espetar uma no olho do vosso inimigo, se isso fosse necessário.
A senhora Porter ficou sem fala, olhando para Cat com os olhos muito arregalados e afastando-se dela com uma expressão de desconfiança. Mas a satisfação que Catriona
sentiu ao ver que a mulher batia em retirada foi de pouca duração ao ver que Meg desaparecia nos bastidores. A garota olhou em redor como se procurasse alguém e
Cat não tinha a mínima dúvida sobre quem seria essa pessoa.
Todos os atores já haviam feito as suas vénias e apresentado os seus cumprimentos a Lady Jane Danvers. Todos, exceto um... Alexander Naismith.
- Sander? - chamou Meg em voz baixa.
Aproximou-se furtivamente do pano pintado pendurado ao fundo dos camarins. Não havia ninguém nos bastidores, a não ser um dos trabalhadores a separar algumas armaduras
enferrujadas que haviam sido oferecidas ao teatro. Numa atitude respeitosa, o homem tirou o barrete da cabeça, que acenou num cumprimento dirigido a Meg, que lhe
sorriu timidamente.
Ainda pensou em lhe perguntar onde é que poderia encontrar Sander, mas sentiu-se demasiado envergonhada, receando que o rubor a traísse. Encaminhou-se para as escadas
que davam acesso ao balcão acima dos camarins. Sander tinha-lhe dito que era aí que se refugiava muitas vezes para trabalhar na sua música, uma vez que a estalagem
onde estava alojado era demasiado barulhenta e tinha muita gente.
A escada em espiral que se elevava até à parte mais alta do teatro recebia pouca luz. Apanhando a orla das saias, Meg começou a subir cautelosamente. Quando dobrou
a curvatura dos degraus, esbarrou com um casal num encontro amoroso. Uma mulher de cabelo louro que ergueu o leque recatadamente diante dos lábios. O cavalheiro,
um homem alto trajado com um requintado gibão de seda, estava todo inclinado para ela, dando a impressão de estar prestes a roubar-lhe um beijo.
Quando os amplexos amorosos entre os dois foram interrompidos, ambos se viraram para ela, mostrando-se muito surpreendidos.
- Oh! Peço perdão - tartamudeou Meg, sentindo as bochechas a arder. Apressou-se a dar meia-volta e começou a correr pelas escadas abaixo. Estugou o passo em direção
à porta do ponto que lhe permitia voltar ao palco.
- Menina Margaret, esperai! - gritou-lhe uma voz que lhe era familiar.
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Sander? Meg virou-se esperançada para trás, mas a única pessoa que se aproximava dela era a mulher com que se deparara nas escadas.
- Parece-me que estais perdida, jovem senhora. Posso ser-vos útil? perguntou a loura numa voz de falsete, olhando para Meg por cima da extremidade superior do leque,
um brilho trocista nos olhos azuis.
Os olhos de Sander. Mas aquela criatura espampanante, que usava espartilho por baixo do vestido de um azul desbotado, com as bochechas pintadas com carmim, tinha
muito poucas semelhanças com o amigo de Meg e seu professor de música tão bem-parecido. Entorpecida com o choque, Meg entrelaçou as mãos uma na outra com força.
- Sou eu, milady. O vosso humilde servo e professor - disse Sander, falando num tom de voz normal. A vénia geralmente elegante era atrapalhada pelas saias. - Mas
então! Não me reconheceis?
Meg acenou que sim com uma expressão muito entristecida.
- Eu só estava a experimentar o meu traje para a minha próxima peça. O que é que achais? - perguntou Sander, dando uma volta completa.
Meg nunca o tinha visto trajado para uma das suas representações teatrais. E detestou o que viu. Não se coadunava nada com a imagem heróica que formara de Sander.
E aquela cena que interrompera nas escadas... Teria Sander estado a ensaiar com outro ator? Parecia-lhe que era um lugar estranho e bastante escuro para ensaiar
as falas de um ator.
- É... é um vestido muito bonito - respondeu Meg por fim num murmúrio que mal se ouvia, mantendo os olhos presos no soalho.
Sander devia ter-se apercebido do seu constrangimento porque parou de se ajeitar e tirou a peruca da cabeça. Baixou-se e sussurrou-lhe num tom conspiratório.
- Como é que tendes passado? Como é que vos estais a sair com a vossa bola de cristal?
- Não muito bem. Tenho estado a olhar para ela durante horas a fio até ficar vesga. Mas não consigo descortinar absolutamente nada.
- Não deveis desistir. Estou certo de que com o tempo havereis de dominar a técnica de adivinhar o futuro. Sois uma menina tão inteligente, Meg.
Meg? Era a primeira vez que Sander se lhe dirigia tão intimamente, tratando-a pelo diminutivo do seu nome.
- Existem mais alguns objetos misteriosos que desejeis que vos compre? - perguntou-lhe ele. - Farei o meu melhor para os adquirir, ainda que o vosso pai me esfole
vivo.
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- Não, não preciso de nada - disse Meg, arriscando-se a olhar para os olhos dele. Não tinha a intenção de invadir a privacidade da sua mente, mas os pensamentos
dele encontravam-se tão à superfície que pareciam brilhar para que ela os lesse.
"Ela é um verdadeiro anjo, Eu faria tudo no mundo por ela. Fosse o que fosse." Meg sentiu-se percorrida por um formigueiro ardente. Apesar do traje feminino e das
bochechas cheias de carmim, agora ele parecia-se mais com o seu Sander de sempre. Meg sorriu-lhe, mas o sorriso imobilizou-se-lhe nos lábios quando uma sombra se
abateu sobre os dois, o companheiro com que Sander estava nas escadas.
- Ah, Sander! com que então foi para aqui que desaparecestes.
- Milorde - disse Sander, endireitando-se e afastando-se dela.
A fronte de Meg franziu-se, denotando alguma surpresa. O desconhecido parecia-lhe vagamente familiar, mas não era um dos atores. Meg não precisava de ter visto a
atitude de deferência de Sander para saber isso. O gibão e os calções tufados pelo meio das coxas, novos, pareciam ter custado bom dinheiro, não se assemelhando
em nada às roupas de refugo que os atores compravam para o seu guarda-roupa de cena.
Os dedos afuselados brilhavam com vários anéis. As feições patrícias eram magras e arrogantes, o cabelo de um louro-escuro todo penteado para trás da testa.
- Estou a ver com os meus próprios olhos que guardais segredos de mim - disse o homem num tom de queixume, passando um braço pelos ombros de Sander num gesto displicente.
- Quem é esta jovem beldade por quem me haveis deixado?
Meg não se impressionou com as lisonjas dele. Tinha noção de que não era nenhuma beldade. Tão-pouco lhe agradou a maneira possessiva como ele punha as mãos em Sander.
Uma atitude que fez com que os pelos se lhe eriçassem, sentindo mal-estar e ciúmes simultaneamente.
- Esta menina é a filha de mestre Wolfe. Menina Margaret Wolfe, permiti que vos apresente sua senhoria, Edward Lambert, Lorde Oxbridge.
Meg baixou-se numa vénia rígida. Lorde Oxbridge, o patrocinador do pai e irmão de Lady Jane Danvers. Agora Meg já se lembrava dele daquele dia terrível em que o
pai salvara Jane Danvers de morrer afogada. Nessa ocasião, sentira-se tão aterrorizada ao pensar que o pai poderia ser arrastado pela corrente do rio que sua senhoria
quase lhe passara despercebida.
Lorde Oxbridge sorriu, o seu olhar a demorar-se nela com tanto interesse que fez com que Meg se sentisse constrangida.
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- com que então esta é que é a menina Margaret Wolfe, a notável jovem de quem tenho ouvido falar tanto.
- Sou Margaret Wolfe - retorquiu Meg afetadamente -, mas não sou assim tão notável.
- Oh, estou em crer que sois. O vosso pai tem-se mostrado muito renitente em permitir-me desenvolver o nosso conhecimento. Mas, felizmente, aqui o mestre Naismith
tem-me dito muito sobre os vossos predicados adiantou sua senhoria, trocando um olhar afetuoso e de intimidade com Sander.
Meg não era capaz de imaginar a razão por que um nobre tão poderoso como Lorde Oxbridge se mostraria interessado em conhecer melhor uma garota insignificante de
onze anos. Devia sentir-se lisonjeada por Sander falar dela tão elogiosamente. Face a isso, porque é que isso lhe dava mais uma sensação tão acentuada de traição?
Sua senhoria tirou o braço de cima dos ombros de Sander. Tentou pegar no queixo de Meg para lhe inclinar o rosto para cima, a fim de a examinar mais atentamente,
como se ela fosse uma curiosidade bastante estranha.
Mas a garota retraiu-se, afastando-se dele. Sentiu-se tentada a ler os olhos de sua senhoria, mas pareciam tão irrequietos, além de estarem parcialmente velados
pelas pestanas de um louro-claro. Ainda que fosse capaz de penetrar na cabeça dele, tinha a desagradável impressão de que não gostaria do que encontraria aí.
- Meg?
Para seu muito alívio, a garota ouviu a voz de Cat, que gritava pelo seu nome. Viu-a surgir dos bastidores, tendo chegado pela porta do lado oposto da sala de espetáculos.
Resmungando uma desculpa qualquer a Sander e a sua senhoria, pouco faltou para que desatasse a correr para a sua protetora.
Cat aguardava-a com as mãos nas ancas, mostrando-se extremamente desagradada por Meg ter saído para fora da sua vista.
- Margaret Wolfe. Quantas vezes tenho de te dizer que... - Cat interrompeu-se com um resmungo quando a garota se atirou para os seus braços, enlaçando-a pela cintura.
O tom de zanga na voz de Cat suavizou-se de imediato, dando lugar a um de preocupação.
- O que é que foi, minha doçura? O que é que se passa?
Meg afundou a cara no peito de Cat. Não sabia bem como responder às perguntas dela, uma vez que ela própria não compreendia o tumulto que
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tinha lugar dentro de si. Até mesmo sem recorrer à leitura de olhos, Meg pressentira qualquer coisa. A atmosfera no teatro era opressiva e densa com segredos que
giravam à volta de si. Uma sensação que emanava não só de Sander e de Lorde Oxbridge, mas também de Lady Jane Danvers e do seu próprio pai que Meg tanto amava.
A única pessoa que naquele momento lhe inspirava confiança e que acreditava ser inteiramente sincera era Cat, e Meg agarrou-se a ela com força.
- Não se passa nada - murmurou a garota. - Só me sinto cansada e quero ir para casa.
Martin franziu o sobrolho ligeiramente quando se apercebeu de que a filha desaparecia nos bastidores. Meg conhecia a maior parte dos atores e trabalhadores da companhia
teatral, apesar disso sentiu alívio quando viu que Cat tratava de seguir atrás de Meg.
Tentou manter a sua atenção concentrada em Jane, mas não era capaz de impedir que o seu olhar anelante seguisse Cat.
Catriona mostrara-se bastante ríspida com ele durante aquele passeio. Sem dúvida que, em parte, essa atitude se devia a ela reprovar o interesse dele por Lady Jane
Danvers, o seu plano de arranjar uma mãe inglesa, uma senhora como devia ser, para a filha, ao invés de a entregar aos ensinamentos de Ariane na ilha Encantada.
No entanto, receava que a atitude tão desabrida de Cat se devesse mais ao incidente que tivera lugar no seu pequeno gabinete. Nunca a recordação de alguns momentos
de paixão roubados tinha sido tão doce para Martin, mas também nunca se arrependera tanto de uma coisa como daquilo.
Pagara um elevado preço por ter deixado que o seu desejo lhe levasse a melhor, o que avaliava no distanciamento que passara a haver entre si e Cat. Mon Dieu, como
ele detestava aquela situação, a tensão, os silêncios constrangedores que se haviam instalado entre os dois durante a última semana.
Sentia tremendamente a falta do companheirismo, a conversa fácil, até mesmo as querelas aguerridas. A amizade de Cat tornara-se um refúgio para ele e Deus sabia
como ele precisava de um ombro amigo, com todas as preocupações que o atormentavam, todas aquelas intrigas em que estava envolvido, a morderem-lhe os calcanhares.
Quando avistou Robert Poley, que entrava descontraidamente no teatro, Martin conteve um impropério, compreendendo que não conseguia ter paz
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de espírito, nem sequer no seu próprio teatro, enquanto não se livrasse de toda aquela conspiração e maquinações infernais.
Murmurando um pedido de desculpa a Lady Jane Danvers, Martin saltou para fora do palco e apressou-se a intercetar Poley.
- Peço desculpa, senhor, mas o teatro está fechado. Esta noite não haverá sessão nenhuma - informou Martin com firmeza para benefício de quem pudesse estar a prestar
atenção à conversa. Inclinando-se um pouco mais para Poley, disse-lhe numa voz sibilada: - O que diabo é que estais a fazer aqui?
Poley inclinou a cabeça e sorriu-lhe com a sua habitual cordialidade.
- Não há espetáculo? Mas isso é uma deceção enorme para mim! disse, acrescentando entredentes: - Temos novidades, mestre Wolfe. O nosso empregador mútuo está a ficar
impaciente.
Martin ficou tenso ao ouvir a referência a Walsingham. Depois de ter ficado a saber quem era Poley, Martin abandonara todos os fingimentos com o homem. Era possível
que Walsingham gostasse de tecer as suas intrigas, mantendo os seus agentes na ignorância uns dos outros, mas Martin considerava que ambos beneficiariam se Poley
soubesse que ele, Martin, também trabalhava para a mesma causa.
Não que Martin albergasse algumas ilusões quanto ao seu colega espião, tal como não depositava nenhuma confiança no homem. Se aquele perigoso assunto desse para
o torto e ambos ficassem metidos em grandes apuros, Poley trataria de tentar salvar a sua própria pele e Martin faria precisamente a mesma coisa. Enquanto fingia
admirar o interior do teatro, Poley retomou a conversa.
- O Babington ainda não mordeu o isco, respondendo à carta da rainha escocesa. Continuamos sem fazer ideia de quem são os seis assassinos. Sir Francis é da opinião
de que não devemos arriscar mais demoras. Tenciona emitir mandados de prisão dentro em breve em nome de todos os que são suspeitos.
- Incluindo Lorde Oxbridge? - perguntou Martin com mostras de ansiedade.
- Não sei dizer. Mas de certeza absoluta que em nome do padre Ballard, John Savage e Sir Anthony Babington. Haveis reparado em como Babington tem andado nervoso
ultimamente? Acho que ele está a perder a coragem, preparando-se para bater em retirada. Tem andado a evitar pernoitar no seu próprio alojamento, optando por ficar
comigo. Ainda não tive oportunidade
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de passar revista às coisas dele, mas reparei que ele tem um saco de lona que guarda muito ciosamente.
- E o que é que vos parece que conterá? Missivas da rainha dos escoceses ou de alguns dos seus correligionários de conspiração? com certeza que nem Babington seria
tão tolo ao ponto de não destruir provas tão incriminatórias.
- Penso que o jovem idiota é suficientemente tolo para tudo e mais alguma coisa - respondeu Poley, encolhendo os ombros. - Seja como for, as capturas são iminentes.
Só pensei que devíeis ser alertado.
- Obrigado - agradeceu Martin.
Poley acenou com a cabeça e acrescentou num tom de voz mais elevado:
- Por favor, peço-vos que me mantenhais informado, mestre Wolfe, da data em que a próxima peça será estreada.
- Assim farei, senhor.
Despedindo-se animadamente, Poley encaminhou-se para a saída do teatro, permitindo que Martin voltasse para junto de Lady Jane Danvers, que continuava no palco acompanhada
de Arthur Lehay. O idoso ator e um dos outros demonstravam a sua senhoria o funcionamento da portinhola do alçapão.
Martin esforçava-se por ocultar a perturbação que o consumia por dentro quando se juntou a eles no palco. Jane virou-se para ele, sorrindo-lhe timidamente e fingindo
um estremecimento.
- O mestre Lehay tem estado a mostrar-me os vossos segredos, senhor. Como o Diabo pode ser chamado das profundezas do Inferno para aterrorizar os espectadores.
"Ou como os anjos podem ser arrastados para o Inferno", disse Martin para consigo, sentindo um aperto no coração ao olhar para a expressão de inocência no semblante
dela. Obrigou-se a sorrir.
- Espero que considereis que o vosso investimento foi bem aplicado. A traça arquitetónica do Crown é muito superior à do teatro em Shoreditch.
- Não tenho maneira de poder avaliar. Nunca fui ver nenhuma peça a esse teatro. O Ned é que gosta muito desses divertimentos públicos.
- Quais são os passatempos da vossa preferência, milady.
- Prefiro passar uma tarde sozinha a ler um bom livro ou a bordar sossegadamente - replicou Jane com uma risada autodepreciativa. - Tenho a certeza de que deveis
achar que sou uma criatura bastante enfadonha.
- De maneira nenhuma. Eu próprio tenho vindo a ansiar por um pouco de sossego - retorquiu Martin, muito embora não partilhasse do gosto de
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Jane Danvers por solidão. O seu olhar desviou-se involuntariamente para a porta por onde Cat tinha desaparecido nos bastidores.
- Passa-se alguma coisa de errado, Marcus? - perguntou Jane. - Pareceis bastante... tenso.
Martin voltou a concentrar a sua atenção nela.
- Não, estou ótimo - mentiu.
Não havia nada de errado. Nada, exceto que o maior temor de Jane poderia estar prestes a concretizar-se. Era muito possível que o irmão estivesse alojado na Torre
de Londres amanhã àquela mesma hora. Seria um ato de compaixão ou uma grande tolice tentar avisar Jane? E se Ned fosse realmente culpado de traição? Se bem que ele
próprio se sentisse atormentado por sentimentos de culpa, retomou a conversa.
- De que é que estávamos a falar? Oh, sim, dos divertimentos preferidos do vosso irmão. Tanto quanto sei, ele está a planear uma viagem a França.
- Até parece que não aprovais isso - ripostou Jane Danvers, olhando-o com uma expressão de frieza. - Espero que não sejais como esses ingleses insulares que desprezam
os franceses.
Martin teve bastante dificuldade em não desatar a rir.
- Não, os franceses têm a sua utilidade. Pelo menos, são vinhateiros toleráveis. O Ned... conhece muitas pessoas em França?
- O Ned tem muita facilidade em fazer amigos aonde quer que vá respondeu Jane, baixando o olhar e mostrando uma expressão acabrunhada. - Acho que seria bom que ele
fosse. Estaria mais seguro em França do que aqui.
- Mais seguro?
- A atmosfera em França é muito mais saudável para a nossa fé. Existem muitos ingleses católicos que se exilaram em França e agora vivem em Paris. Vivemos tempos
tão incertos e perigosos. Uma pessoa nunca sabe o que lhe poderá acontecer.
A julgar pela expressão tensa no rosto de Jane Danvers, Martin receava que ela soubesse. Ou, pelo menos, que desconfiaria de que Ned estivesse envolvido em algo
perigoso. Apertou-lhe a mão.
- Eu jamais desejaria que vos acontecesse ou ao Ned nada de mal. Se houver alguma coisa que eu possa fazer, se fordes capaz de...
Martin quase lhe pediu que confiasse em si, mas não tinha o direito de fazer isso. Walsingham contratara os seus serviços para ajudar a expor a
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conspiração e, em especial, para descobrir provas que incriminassem Ned Lambert. Martin tinha consciência das recompensas, se fosse bem-sucedido, e dos riscos que
corria, se fracassasse, principalmente se tentasse ludibriar Walsingham.
Mas não importava. Não poderia assegurar o seu futuro nem o de Meg à custa do coração daquela senhora tão gentil. Levando a mão de Jane aos lábios muito ao de leve,
tomou uma decisão.
Se existisse alguma maldita prova de traição contra Ned Lambert, só podia estar guardada no misterioso saco de lona de Babington. Poley acabaria por descobrir o
que quer que fosse e esse outro espião de Walsingham não teria o mínimo pejo em entregar-lhe o que encontrasse. A Ned Lambert e à irmã só restava uma hipótese. Era
Martin conseguir obter essa prova antes de qualquer outra pessoa...
O sol do fim de tarde estendia um clarão dourado sobre as águas escuras do Tamisa enquanto o barqueiro transportava Cat, Martin e Meg através da cidade.
Meg sentava-se muito aninhada junto do pai, que lhe passava o braço pelos ombros num gesto protetor. A expressão de muito desânimo da garota estava em gritante contraste
com o empolgamento com que começara o seu dia.
A garota tinha tido uma esperança tão grande de poder ver a rainha. No entanto, Cat acreditava que o desânimo de Meg teria menos a ver com o que ela não conseguira
vislumbrar e mais com o que tinha visto - o seu jovem herói trajado com um vestido e na mariquice com Lorde Oxbridge.
Cat observara o suficiente nos dois homens para ter ficado com as suas suspeitas a respeito da relação entre sua senhoria e o jovem ator. Não que fosse uma prática
invulgar entre os membros da nobreza, desfrutarem dos favores amorosos de um rapazinho donairoso, e Sander Naismith dava a impressão de ser um rapaz ambicioso com
poucos escrúpulos quanto ao que teria de fazer para subir na vida.
Cat não sabia ao certo até que ponto é que Meg teria compreendido o significado daquela troca de afagos entre os dois homens. Sem dúvida que o suficiente para perturbar
a garota. O semblante sombrio era um espelho embaciado da expressão facial do pai.
Cat via que também havia alguma coisa que conturbava, e muito, Martin. A coberto das sombras nos bastidores, tivera oportunidade de observar a
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breve conversa que ele mantivera com o desconhecido de aparência afável que tinha entrado, como que por acaso, no teatro. Não obstante a aparente cordialidade entre
os dois, quando Martin voltou para o palco parecia que tinha engolido uma bala de pistola.
Enquanto mantinha Meg aninhada junto de si, os pensamentos de Martin encontravam-se, claramente, muito longe dali. Tamborilava com as pontas dos dedos no joelho,
com uma agitação que Cat reconhecia bem de mais. Naquela noite, o homem voltaria a sair de casa furtivamente para tratar de algum dos seus misteriosos assuntos.
Catriona tinha a certeza absoluta disso.
com terra a perder-se de vista à distância, Cat recordou-se do dia em que tinha chegado a Southwark, seguindo Martin para conseguir encontrar Meg. Parecia-lhe que
isso fora há uma eternidade, numa altura em que a única pessoa que merecia a sua lealdade era a Senhora da Ilha Encantada, enquanto o seu único objetivo era cumprir
as ordens de Ariane, salvando a garota.
Quando é que tudo isso começara a mudar e a alterar-se? Talvez na primeira noite, quando viu Martin inclinado sobre a filha com tanta ternura enquanto esta dormia,
aconchegando-lhe as cobertas. Cat só sabia que já não eram precisas quaisquer ordens da sua mentora.
Catriona sacrificaria a sua própria vida de boa vontade quer por Martin quer por Meg. Amava tanto ambos que o coração lhe doía de tamanho amor.
Jamais poderia haver um lugar permanente para ela na vida de pai e filha. Cat estava ciente disso, contudo, recusava-se a permitir que a melancolia se apoderasse
de si em virtude dessa realidade. Haveria tempo mais do que suficiente para afogar as mágoas em uísque irlandês quando regressasse à ilha Encantada.
Mas, naquele momento, Cat tinha uma nova missão. Certificar-se de que Martin e Meg se teriam sempre um ao outro. Fora enviada para ali para proteger Meg. No que
o coração da garota também estava incluído, assegurando-se de que ela não ficasse sem o pai por causa de qualquer aventura irresponsável. Cat entrelaçou os dedos
enquanto tomava uma decisão com toda a firmeza.
Quando o lobo saísse de casa naquela noite, a caçadora segui-lo-ia bem de perto.
Talvez, ao menos uma vez na vida, a sorte estivesse com ele, pensou Martin enquanto atravessava o jardim furtivamente, em direção à casa de Robert Poley nos arrabaldes
de Londres. O firmamento noturno estava encoberto, com as nuvens a passarem diante da superfície da Lua, o que fazia com que houvesse muito pouca visibilidade para
os cidadãos honestos, mas que era perfeito para alguém que tivesse objetivos contrários ao que a lei preconizava.
Martin agachou-se nos arbustos, espreitando para a casa de dois pisos com moldura de madeira que, àquela hora tardia da noite, estava às escuras e em silêncio. Martin
sabia que Babington e Poley tinham saído para outro rendez-vous na Estalagem Charrua com o padre Ballard e John Savage. As suspeitas que este último tinha em relação
a Martin, muito provavelmente, intensificar-se-iam devido à ausência dele, mas essa era a menor das preocupações de Martin naquele momento.
A sua principal apreensão era encontrar maneira de conseguir trepar até ao quarto de Babington no segundo piso sem acordar todos os que se encontravam dentro de
casa ou sem escorregar e partir o pescoço.
Olhando furtivamente em volta, Martin atravessou sorrateiramente o amplo relvado, dirigindo-se para um carvalho de grande porte. Havia muito tempo que ele não subia
a uma árvore, considerando que era uma perspetiva difícil na escuridão. A casca áspera do tronco feria-lhe as palmas das mãos e as botas escorregavam enquanto tentava
encontrar pontos de apoio para poder trepar.
Içou-se até uma ramificação do tronco onde pôde fazer uma pausa, avaliando a robustez da ramagem que se alongava para a sua esquerda. O tronco da ramagem estendia-se
convenientemente na direção do parapeito da janela de
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Babington. Mas seria suficientemente resistente para aguentar o peso de Martin ou partir-se-ia, fazendo com que caísse no solo?
O vento atirou-lhe um anel de cabelo para os olhos, ao mesmo tempo que se ouvia um ribombar de trovoada à distância, o que não augurava nada de bom. Martin tinha
noção de que não podia ficar ali a ponderar as suas opções. Sentiu-se tentado a elevar uma prece silenciosa aos céus, mas não lhe pareceu que fosse muito sensato
despertar a atenção do Todo-Poderoso quando se estava empenhado num empreendimento tão nefando.
Chamando a si toda a sua coragem, começou a avançar vagarosamente pelo tronco da ramagem. Quando oscilou sob o seu peso, Martin ficou com a respiração presa na garganta.
Mas a ramagem aguentou-se. Continuando até chegar ao extremo, conseguiu saltar para o parapeito da janela.
A sua habilidade como gatuno em Paris cingira-se a roubar carteiras e malas de mão de senhora. Tinha alguns amigos que eram mais aventureiros, não hesitando em assaltar
estabelecimentos e casas, mas não ele.
É claro que a maior parte deles estavam mortos, tendo acabado a balouçar na corda do carrasco que os enforcou. Não era a recordação mais reconfortante que podia
ocorrer-lhe à mente naquele momento, pensou Martin. Em vez disso, tentou lembrar-se de tudo o que lhe haviam dito sobre abrir fechos com gazuas e janelas com recurso
a um pé de cabra.
Nenhuma dessas apetências fora necessária. Não só Babington tinha tido a imprudência de ter deixado a janela destrancada, como também a tinha deixado entreaberta
para arejar o quarto.
- A minha bon chance1 continua - murmurou Martin para consigo enquanto, cautelosamente, abria a janela ainda mais para poder entrar na alcova.
O quarto estava tão escuro que ele mal conseguia ver o contorno do leito com dossel e o baú da roupa. Engoliu um impropério quando foi por pouco que não tropeçou
num banco baixo. Mal era capaz de ver a mão diante da cara. Teria de se arriscar a acender uma vela.
Procurou na bolsa que trazia presa à cintura a pederneira e a mecha, bem como uma pequena vela que levara consigo. Os segundos que entretanto passavam pareciam-lhe
mais como horas devido aos nervos que estavam em franja. Mas, por fim, lá conseguiu chegar a chama ao pavio da vela.
1. Em francês no original, significando "boa sorte"; mas o termo correto é bonne chance e não bon chance. (N. da T.)
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Protegendo a chama da corrente de ar, passou uma rápida vista de olhos pela alcova. Era evidente que Babington tencionava abreviar a sua estada em casa de Poley.
Sir Anthony tinha levado poucos dos seus pertences.
Martin encontrou um castiçal de bronze onde pôs a vela, pousando-o em cima de uma pequena escrivaninha. Viu um cálamo em cima de uma carta que Babington começara
a escrever, mas que ainda não tinha acabado. Martin pegou-lhe na esperança de que fosse a resposta dele à missiva da rainha Maria Stuart, em que indicaria o nome
dos seus correligionários de conspiração.
Mas se estivesse escrita em código, Martin nunca seria capaz de a ler para ficar a saber se o nome de Ned constaria da lista. Enquanto examinava a folha, Martin
ficou aliviado ao ver que a carta não estava escrita em código. Para sua desilusão, viu que a missiva não era endereçada à rainha escocesa, mas sim a Robert Poley.
"Robyrt,
Estou preparado para aceitar o que o destino tiver em reserva para mim. Sou o que sempre aparentei ser. Rezo a Deus para que sejais igualmente verdadeiro e continueis
a sê-lo para comigo.."
Martin franziu o sobrolho, olhando para as últimas palavras escritas na carta, como se Babington não tivesse tido tempo para prosseguir ou se, simplesmente, tivesse
perdido a vontade de continuar. Poley não se enganara ao dizer que Babington estava com dúvidas em relação ao empreendimento que pretendiam levar a cabo. Dúvidas
que o assolavam tarde de mais.
O jovem romântico tão tragicamente idiota, pensou Martin. Suprimindo a compaixão a que não podia dar-se ao luxo, voltou a pousar, cuidadosamente, a missiva na escrivaninha
na posição em que a encontrou e com o cálamo por cima, de modo a que parecesse que ninguém lhes tocara.
Aquilo que precisava de encontrar era aquele misterioso saco de lona a que Poley se tinha referido. E teria de o encontrar rapidamente, a menos que quisesse ser
apanhado num temporal. Seria uma longa caminhada de regresso a Cheapside sob uma chuva torrencial.
Martin deslocava-se em silêncio, mas com eficiência, pelo quarto, vasculhando um armário e uma cómoda, além de procurar atrás das peças de mobiliário. Foi recompensado
quando encontrou o saco de lona guardado debaixo do leito.
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com um resmungo de satisfação, puxou o saco para a luz da vela. Um golpe de sorte? A sorte que o bafejava naquela noite podia ser considerada um verdadeiro milagre.
Martin era um jogador, pelo que era uma pena que não tivesse tempo para uns quantos jogos de cartas antes de voltar para casa.
Começou a revistar o interior do saco, na esperança de encontrar um grosso maço de cartas. Os seus dedos tocaram num pesado rolo de tela, que tirou para fora do
saco, desenrolando-o e examinando-o de perto à luz da vela.
Era uma pintura de seis cavalheiros trajados com as suas melhores vestimentas, com Babington orgulhosamente no meio deles. A pintura tinha uma espécie de inscrição
gravada em latim.
Mas o que diabo...? Martin franziu o sobrolho numa expressão de incredulidade. Era aquilo que Babington tinha andado a guardar tão ciosamente? Um retrato de si próprio
com cinco dos seus...
Martin susteve a respiração quando percebeu o que se passava. Babington e os seus camaradas de conluio tinham-se sentido tão seguros do seu êxito que até tinham
posado para aquele retrato, registando as suas imagens para a posteridade. Os idiotas, os grandessíssimos idiotas!
Martin esquadrinhou os rostos dos outros homens, a maior parte dos quais não conhecia, mas isso tinha pouca importância. Deixaria a Walsingham a tarefa de os identificar.
Martin só se importava com uma coisa. Ned Lambert não se encontrava entre eles.
com um pequeno sorriso de satisfação, Martin enrolou a tela. Quando voltou a guardá-la dentro do saco, o quarto foi iluminado por um relâmpago. No espelho oposto,
viu uma imagem encoberta pelas sombras de uma figura envolta num manto que rondava atrás de si.
Não sabia quando nem como, mas a verdade é que já não se encontrava sozinho. Tinha sido seguido por alguém que entrara igualmente pela janela. Precisou de toda a
sua fortitude para não estremecer, dando assim a entender que dera pela presença do outro intruso. Tratou de guardar a tela dentro do saco de lona, puxando os cordões
para os apertar. Tinha todos os músculos tensos e todos os nervos em estado de alerta.
Quando ouviu o ranger do soalho atrás de si, Martin deixou cair o saco e deu meia-volta de súbito. Investiu rapidamente e atacou. Agarrou o seu oponente pela garganta
e encostou-o à parede.
A figura encapuzada ficou a arfar, agarrando-se aos pulsos de Martin, num esforço para que ele lhe largasse a garganta. Mas, impiedosamente, ele apertou-lha ainda
mais.
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- Martin... - disse o intruso sem fôlego. Durante a refrega, o capuz caiu para trás da cabeça dele. Ou, melhor dizendo, da cabeça dela. Martin ficou a olhar para
os olhos azuis muito abertos, para as madeixas de cabelo ruivo que se haviam desprendido do carrapito, caindo-lhe para a cara, que lhe era tão familiar, e que estava
a ficar de um avermelhado alarmante, sem querer acreditar no que via.
- Cat! - Horrorizado, Martin largou-a, deixando que as mãos lhe pendessem ao longo do corpo.
Cat, muito combalida, afastou-se da parede, massajando o pescoço e respirando fundo sucessivamente.
- Mon Dieu. Magoei-vos muito? Estais bem? - perguntou ansioso. Outra mulher qualquer teria desfalecido, ou ficado a tremer, se tivesse sido vítima de um ataque tão
violento. Mas Cat só levantou a cabeça para poder olhar para ele e até conseguiu sorrir-lhe.
- Isso... isso foi espantoso - disse numa voz roufenha. - Não fazia ideia de que pudésseis atacar tão repentinamente. Começo a pensar que talvez sejais capaz de
olhar por vós próprio.
- Talvez?
- Eu sabia que éreis vós, portanto não vos dei luta da maneira habitual como teria feito se fosse outra pessoa. Sorte a vossa. Caso contrário, eu ter-vos-ia agarrado
pelos tomates, puxando-os com tanta força que poderíeis usá-los como barrete.
A imagem era suficientemente evocativa para que as partes pudibundas de Martin se encolhessem, como se quisessem recolher-se dentro do corpo. Mas a preocupação inicial
pelo estado físico dela não tardou a dar lugar à cólera.
- Raios vos partam, mulher! - Teve de fazer um grande esforço para manter o tom de voz baixo. - Mas o que diabo é que estais a fazer aqui?
- Posso perguntar-vos a mesma coisa.
- Mas fui eu quem perguntou primeiro. Como é que conseguistes chegar aqui?
- Só precisei de esperar e seguir-vos, trepando pela árvore e entrando pela janela - respondeu Cat com cara de poucos amigos. - Embora tenha de dizer que sou muito
melhor a trepar árvores do que vós. Até cheguei a pensar que íeis cair e aleijar esse traseiro idiota.
- O meu traseiro não é para aqui chamado - ripostou Martin, inclinando-se tanto para ela que ficaram praticamente nariz contra nariz, sibilando
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na cara um do outro. - Porque é que não estais em casa? Quem é que está de guarda à minha filha?
- Dei ordens ao Jem e ao Samuel para que ficassem a pé armados com pistolas, além disso, todas as portas e janelas estão barradas. As coisas têm estado bastante
sossegadas, pelo que estou confiante em que Meg não corre qualquer perigo. Estou mais preocupada com o idiota do pai dela, receando que lhe possa acontecer alguma
coisa de mal.
- O pai dela está muito bem. Ou pelo menos estava até terdes aparecido sorrateiramente atrás dele, tendo sido por pouco que não fizestes com que sofresse uma apoplexia.
- Martin afastou-se dela, furioso, para pegar no saco de lona que deixara cair no chão.
Cat apressou-se a segui-lo.
- Está muito bem, é isso? Eu bem sabia que andáveis metido em qualquer coisa perigosa, mas nunca esperei que até mesmo vós seríeis irresponsável ao ponto de retomar
a vossa atividade de ladroagem de antigamente.
- Ladroagem! Mas de que é que estais para aí a falar? Eu não vim roubar nada.
Quando Cat olhou significativamente para o saco que ele tinha na mão, Martin fez uma careta.
- Oh, bem... sim, estou a roubar isto.
- Essa pintura que estáveis a examinar tão atentamente quando eu entrei pela janela? - perguntou Cat, fungando desdenhosamente. - Isso é uma palermice. Duvido que
sejais capaz de a vender por uma quantia por que valha a pena arriscar o pescoço.
Martin olhou para ela com uma expressão furiosa.
- Ficai a saber que sobrevivi nas ruas de Paris durante muitos anos graças à minha habilidade e dedos ligeiros. Não me parece que precise das vossas lições sobre
como ser um ladrão com êxito... - Martin interrompeu-se abruptamente, ficando tenso e pondo-se à escuta. Os sons que lhe chegavam do lado de fora da porta eram de
passos e de vozes ensurdecidas. Martin não conseguia distinguir o que diziam, mas o tom de receio estava bem patente.
- Estais a ver o que fizestes? - disse a Cat num tom rosnado. - Haveis acordado toda a gente da casa.
- Eu!? Fostes vós quem andou pesadamente de um lado para o outro e a atirar-me contra a parede...
Martin tapou-lhe a boca com a mão.
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- Temos de sair daqui imediatamente. Não tenho tempo para estar com explicações, mas tenho de guardar esta pintura. Podeis confiar em mim e ajudar-me?
Cat ficou a olhar para Martin por cima dos dedos dele que continuavam a tapar-lhe a boca, os olhos azuis a penetrarem os dele profundamente. Ele receava que ela
começasse a argumentar como lhe era habitual, mas Cat acenou que sim quase sem ter hesitado.
Martin soprou a chama da vela e ambos se encaminharam para a janela. Cat saltou para o tronco da ramagem, tendo sido a primeira a descer da árvore. A mulher era
tão diabolicamente ágil que até podia ter sido confundida com um verdadeiro felino. Martin atirou-lhe o saco de lona e apressou-se a descer pela árvore, embora a
sua descida tivesse sido muito mais barulhenta e desajeitada, abanando os ramos e agitando a folhagem.
Quando as botas dele assentaram no solo, viu um servo que assomou à janela por cima de si. Era um idoso de cabelos grisalhos que usava um barrete de dormir e que
trazia uma vela na mão trémula. Semicerrou as pálpebras e olhou para Martin e gritou.
- Olá! Você aí em baixo! Páre, ladrão!
Martin tirou o saco de lona das mãos de Catriona e os dois desataram a correr para fora do jardim, continuando a correr pela rua fora. Martin arriscou um olhar por
cima do ombro.
O criado idoso tinha conseguido acordar os restantes serviçais da casa de Poley ou talvez tivesse sido o próprio Martin quem tinha feito isso. Conseguia ouvir outras
vozes e avistou o clarão de uma lanterna.
- Depressa. Por aqui - disse a Cat, apesar de não fazer ideia nenhuma de para onde é que se dirigia. Aquela parte da cidade era-lhe inteiramente desconhecida. Pegou
na mão de Cat, puxando-a desesperadamente por um beco estreito. Talvez não fosse o meio de fuga mais seguro, levando em consideração os perigos de Londres à noite.
Mas até mesmo os salteadores e carteiristas pareciam ter-se recolhido dentro de portas, devido ao temporal que não tardaria a abater-se. As explosões de relâmpagos
que se sucediam iluminavam o caminho quando Cat e Martin chegaram a um largo em que todas as lojas estavam fechadas.
Martin puxou Cat para baixo e ambos se agacharam por detrás de um maciço chafariz público que lhes dava cobertura, enquanto ele recuperava o fôlego e se esforçava
por organizar as ideias.
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- Onde... onde diabo é que estamos? - perguntou ela com a respiração arfante.
- Não faço ideia nenhuma. Só sei que estamos muito longe de casa.
- Porque é que não tivestes a esperteza de alugar um cavalo? - perguntou-lhe Cat num resmungo.
- Os cavalos não servem de grande coisa num roubo, a menos que se seja um salteador de estradas.
- Penso que um seria muitíssimo útil neste... - começou Cat a dizer, mas Martin disse-lhe que se calasse, pondo-se à escuta atentamente de qualquer barulho que lhe
indicasse que eram perseguidos.
Não ouviu nada, para além da respiração acelerada de Catriona e o gorgolejar da água no chafariz. Quando a primeira gota de água lhe caiu na mão, pensou que era
daí que viria. Mas essa foi seguida de outras mais volumosas. Perturbado, olhou para o firmamento quando se ouviu outro ribombar atroador. Os céus abriram-se e começou
a chover torrencialmente.
- Merde! - gemeu, puxando freneticamente as abotoaduras do seu gibão para poder resguardar o saco de lona por baixo da camisa.
Finalmente, a sorte tinha-o abandonado.
A jovialidade que reinava na taberna da Estalagem Pombo continuava sem esmorecer, a despeito do temporal ou talvez mesmo por causa dele. A taberna em Southwark estava
cheia de clientes que se riam, cantavam, emborcavam cerveja e manifestavam o seu júbilo por terem conseguido escapar ao dilúvio que se abatia pesadamente sobre o
telhado de ardósia do edifício.
A única pessoa que não partilhava de toda aquela alegria era o cavalheiro que, sossegadamente, se sentava a uma mesa sozinho no canto mais recôndito da taberna.
Alguns dos outros clientes comentaram a sua presença. Os que o faziam troçavam escarnecedores das bonitas feições do homem, do cabelo comprido suavemente ondulado,
barba e bigode de um louro arenoso muito bem aparados.
Tinha a aparência de ser estrangeiro. Sem dúvida que seria um daqueles franceses afetados, foi a avaliação desdenhosa que fizeram dele. Um desdém que Ambroise Gautier
retribuía em igual medida. Levou um lenço perfumado ao nariz. Que nojo! O fedor na taberna era mais repugnante do que o de um canil em que os cães tivessem o pelo
molhado. Não, decidiu. Os cães
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cheirariam melhor do que aquela horda de ingleses que suavam por baixo das roupas de lã húmida.
A Estalagem Pombo era frequentada por uma clientela do estrato social mais inferior, aguadeiros, estivadores, músicos itinerantes, atores... O agente da Rainha das
Trevas estremeceu e tentou beber um gole da mixórdia que o taberneiro lhe assegurara ser o melhor vinho que se vendia em toda a cidade de Londres.
A tragédia daquilo era o taberneiro, muito provavelmente, ter razão no que dizia. Contorcendo os lábios num trejeito de repugnância, Gautier empurrou a caneca para
o lado. Estava certo de que já teria passado por provações piores ao serviço da sua régia ama, mas Gautier sentia dificuldade em recordar quais.
Naquele momento, teria vendido de bom grado as fivelas de prata dos seus sapatos por um bom bordéus, se não por outra razão, então para celebrar o êxito que conseguira
obter.
Contra tudo o que seria de esperar, havia sido capaz de localizar Martin, o Lobo, e a sua maldita filha naquela cidade apinhada de ingleses grosseiros e que fediam.
Mas um brinde naquele momento talvez fosse prematuro.
Conseguira encontrar a pequena bruxa, mas deitar a mão à Rosa de Prata estava a provar ser um desafio maior do que ele antecipara. Entre o pai e aquela irlandesa
ruiva, que trabalhava para a Senhora da Ilha Encantada, a rapariga andava sempre muito bem vigiada.
Gautier tinha-se feito acompanhar de dois dos seus homens de maior confiança de França. com o reforço de dois mercenários tão experientes, como Jacques e Alain,
Gautier talvez tivesse sido capaz de organizar um ataque com êxito à casa de Lobo. Todavia, a rainha Catarina esperava que ele tratasse aquele assunto tão discretamente
quanto lhe fosse possível, de maneira a não despertar a atenção da justiça inglesa.
A tarefa de Gautier teria sido de muito mais fácil execução se tudo o que tivesse de fazer fosse matar a garota. Mas, acima de tudo, a Rainha das Trevas queria aquele
maldito Livro das Sombras. Se Gautier se atrevesse a regressar a Paris sem o livro, seria preferível cortar a própria garganta.
Tinha formulado um plano, mas precisava de ajuda. Felizmente, ele tinha uma ideia bastante boa de onde talvez encontrasse a ajuda de que precisava.
Os olhos de Gautier estreitaram-se quando a pessoa de quem tinha estado à espera entrou na taberna. O homem, ainda muito jovem, entrou de
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rompante, a água da chuva a escorrer-lhe do manto e do gibão, fazendo com que o toque enfeitado com penas tivesse ficado transformado num trapo ensopado.
Os amigos do jovem cumprimentavam-no aos gritos, troçando dele por estar encharcado até aos ossos.
- Maldição, Sander. Já não era sem tempo, até pensámos que nunca mais chegavas.
- Chegámos a pensar que tinhas sido levado pela enxurrada.
- Pareces uma ratazana afogada.
- Terias andado melhor se tivesses usado um dos teus vestidos, rapaz. Podias ter levantado as saias por cima da cabeça.
Alexander Naismith limitou-se a rir daquelas facécias, espetando o dedo médio num gesto obsceno. Tirou o toque da cabeça e sacudiu o cabelo molhado, permitindo que
se visse de relance o muito feio coto onde a orelha esquerda devia ter estado.
Os amigos de Naismith tentaram chamá-lo para a mesa que ocupavam, mas o jovem recusou o convite, insistindo em que tinha de mudar de roupa primeiro, vestir roupas
secas. Dirigiu-se para as escadas que davam acesso ao seu alojamento, no andar acima da taberna.
Gautier atirou algumas moedas para cima da mesa, apressando-se a pôr-se de pé. Um dos atores, embriagado, saltou para cima da sua cadeira e começou a declamar uma
qualquer tirada melodramática numa voz entaramelada.
Por entre inúmeros assobios e apupos da parte dos outros clientes, Gautier chegou às escadas, seguindo Sander sem que ninguém reparasse em si. As botas do rapaz
deixavam um rasto de água ao longo do corredor, mas o facto de estar encharcado não pareceu ter feito grande mossa no seu estado de espírito.
Naismith assobiava uma melodia brejeira enquanto abria a fechadura da porta do seu quarto. Ficou um pouco sobressaltado quando Gautier o abordou, deixando-se ficar
nas sombras que envolviam o corredor.
- Alexander Naismith?
Sander esticou o pescoço, semicerrando as pálpebras e olhando na direção de Gautier.
- Quem está aí?
- Alguém que assistiu ao vosso desempenho - respondeu Gautier numa voz ronronante. - Sou um grande admirador.
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- Tenho muitos admiradores, senhor - retorquiu o rapaz rindo-se -, ou devo dizer momsieur? Infelizmente, atualmente não me encontro no mercado para mais admiração.
O meu patrono atual é extremamente ciumento...
Interrompeu-se quando Gautier saiu das sombras. Naismith empalideceu quando o reconheceu. com frenesim e desespero, tentou entrar no quarto e fechar a porta. Mas
Gautier foi demasiado rápido e demasiado forte para ele.
Meteu o ombro à porta, que abriu à força, e entrou. Antes de Naismith poder sacar do seu punhal, já Gautier o tinha encostado à parede, com a lâmina da sua adaga
encostada à garganta do rapaz. O clarão de um relâmpago mostrou os olhos do jovem ator, que espelhavam o terror que se apoderara dele.
- Q... quem sois vós? O que é que quereis? Se é a minha bolsa, en... encontrareis pouca coisa, além de alguns dinheiros...
- Tenho a certeza de que sabeis muito bem quem sou e aquilo que pretendo - interrompeu-o Gautier num tom de voz aveludado. - E não é o vosso dinheiro. Ando à procura
da Rosa de Prata.
- Não... não sei de que é que estais a falar.
com um gesto carinhoso, Gautier passou a mão pela lâmina da adaga, que mantinha à largura da garganta esguia e de pele branca.
- O nosso relacionamento melhoraria bastante e muito mais amigavelmente se não me mentísseis.
- Não estou a mentir. Eu... - Naismith susteve a respiração quando Gautier fez pressão com a lâmina, apenas o suficiente para causar o derrame de um fio de sangue.
- Quando eu disse que admirava o vosso desempenho, não me estava a referir ao que vi aqui há alguns dias no Teatro Crown. Senti-me muito mais impressionado com o
papel que desempenhastes numa outra noite. No cimo dos penhascos.
Os lábios trémulos de Naismith mexeram-se numa tentativa débil de continuar a negar, mas tudo o que lhe saiu da boca foi um gemido amedrontado.
Gautier puxou a manga molhada de Naismith para cima. Até mesmo naquela semiobscuridade, a marca da rosa destacava-se de um vermelho carregado na pele muito branca.
- Esse é o perigo de se dançar com bruxas à luz do luar, meu rapazinho - disse Gautier com um sorriso feral que deixava ver o brilho dos dentes. - Até mesmo um rapaz
sagaz como vós sois pode ficar queimado.
O temporal, acompanhado de chuva torrencial, continuava sem dar tréguas, mas no interior da Veado Vermelho, onde Cat e Martin tinham encontrado refúgio, estava quente
e seco. Martin arranjara um quarto para os dois nas traseiras da estalagem. Era uma alcova modesta, mas muito mais limpa e mais confortável do que a da estalagem
em que Cat se alojara quando chegou a Londres. Quando tirou o manto encharcado, a água escorreu-lhe do cabelo ruivo para a face.
Afastou o cabelo para trás e pendurou o manto nas costas de uma cadeira perto do gibão que Martin também despira. Já estava só de camisa e com calções apertados
abaixo dos joelhos. Depois de atirar outro madeiro para a lareira, dirigiu-se para a janela descalço.
Emoldurou os olhos com as mãos em forma de concha, esforçando-se por descortinar alguma coisa na escuridão.
- Estou em crer que conseguimos despistar alguém que nos tenha seguido, mas o melhor é mantermo-nos sossegados durante algum tempo, pelo menos até o temporal passar.
O dilúvio tinha acabado com o calor habitual do mês de agosto, trazendo consigo uma aragem fria. Cat esfregou os braços, sentindo-se percorrida por um arrepio de
frio.
- O mais provável é termos de ficar presos aqui, pelo menos, durante mais algumas horas. Devíeis descalçar os sapatos molhados e as bragas, para tentardes ficar
tão seca e confortável quanto vos for possível - sugeriu Martin, fazendo uma careta quando o seu olhar percorreu o vestuário dela.
- Estou a ver que voltastes a meter as mãos nos meus calções.
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- Parece-me que estou a ter alguma dificuldade em manter as mãos afastadas deles - replicou Cat com um sorriso atrevido. - Se bem que, neste momento, estejam desconfortavelmente
molhados.
- E porque é que não os despis? - sugeriu Martin com um sorriso rasgado muito sugestivo que mostrava os dentes brilhantes. - Eu não haveria de querer que morrêsseis
de uma pneumonia, petite chatte.
Cat abanou a cabeça e deu uma gargalhada trocista. A recente aventura dos dois tinha dissipado a reserva entre ela e Martin, repondo o tom jocoso e de ironia que
pontuara até há pouco o relacionamento entre os dois. O facto de terem conseguido escapar por uma unha negra enchera-os de uma disposição hilariante, talvez um pouco
perigosa, pensava Cat. Cruzou os braços recatadamente à largura do peito.
- Por muito que dê apreço ao facto de terdes arranjado este quarto começou ela a dizer - e acendido aquele belo lume na lareira, desconfio que toda essa solicitude
tem mais a ver com a preservação dessa maldita pintura do que com qualquer cuidado relativo à manutenção da minha boa saúde.
Se bem que Martin se apressasse a negar aquilo veementemente, dirigiu-se para a pequena mesa de pinho onde tinha desenrolado a tela, estendendo-a com todo o cuidado.
- Parece-vos que tenha ficado danificada? - perguntou ele ansiosamente.
Cat abeirou-se de Martin e abanou a cabeça. Continuava incapaz de compreender a razão por que ele quisera adquirir aquela pintura tão desesperadamente. Era apenas
um quadro em que figuravam seis homens ingleses trajados com as suas melhores roupas. O homem que posava no meio do grupo era jovem e bastante bem-parecido, mas
Cat pensou que a sua expressão fisionómica fazia com que ele parecesse um carneiro perdido nos seus devaneios. Não havia nada de especial naquela pintura, com a
exceção, talvez, de uma inscrição em latim.
- Hi mihi sunt Comités, quos ipsa Perimia ducunt - entoou Cat.
- Sabeis ler latim? - perguntou Martin avidamente. - O que é que a frase quer dizer?
Cat refletiu por uns momentos, após o que traduziu grosso modo.
- "Estes homens são meus companheiros, atraídos por grandes perigos." - Aquele mote não tinha o mínimo significado para ela, mas pareceu querer dizer alguma coisa
para Martin, o que ela deduziu por ele ter resmungado entredentes.
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- Mas será possível que Babington consiga ser ainda mais idiota?
- Quem é esse Babington? E que perigos são esses? O que é assim tão importante nesta pintura? - perguntou Catriona num tom que exigia respostas. - Quem são estes
seis homens tão emproados?
- São homens mortos. Ou serão dentro de pouco tempo. - A satisfação que Martin sentira por ter conseguido roubar com êxito aquela tela pareceu ter esmorecido. Olhou
para Cat com uma expressão sombria. - Mon Dieu, não fazeis a mínima ideia do quanto eu desejaria que não me tivésseis seguido esta noite. A última coisa que eu queria
era arrastar-vos para este diabólico assunto. Peço-vos desculpa.
Mas Cat ignorou o pedido de desculpas dele com um gesto de impaciência.
- Fui eu que decidi de minha livre e espontânea vontade seguir-vos. No entanto, gostaria de saber, exatamente, em que é que agora estou envolvida.
- Não vos vai agradar nada.
- Mesmo assim, dizei-me o que se passa.
Martin foi impedido de lhe responder quando um dos toros no lume se deslocou, ameaçando sair da lareira numa chuvada de centelhas. Cat desconfiava que a prontidão
com que Martin foi cuidar do lume se devia tanto a querer evitar as perguntas dela, como a impedir que o quarto pegasse fogo.
Colocando o madeiro no seu lugar com o atiçador, Martin mantinha-se de costas para ela. Mas Cat aproximou-se dele junto da lareira, os sapatos molhados a chapinharem.
Deixou-se cair num banco baixo para os descalçar e tirar as bragas. O manto servira para lhe proteger a camisa, mas os calções pendiam-lhe todos molhados abaixo
dos joelhos, colando-se às barrigas das pernas e causando-lhe um grande desconforto.
Após alguns momentos de hesitação, Cat pôs-se de pé e desapertou o cinto a que prendera a adaga. Encostou-se à parede e começou a despir os calções. O que, finalmente,
conseguiu captar toda a atenção de Martin.
- Cat, o que é que estais a fazer? - perguntou ele atónito e de olhos arregalados.
- A seguir o vosso conselho.
- Mas eu só estava a brincar - retorquiu ele, apressando-se a bater em retirada, pondo-se a olhar fixa e ostensivamente pela janela.
Cat parou de se debater com o tecido molhado que se lhe agarrava às pernas durante o tempo suficiente para lhe espetar um dedo entre as omoplatas.
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- Não há necessidade de estardes para aí a armar-vos em cavalheiro. Ambos sabemos que as questões de pudor e recato são coisas que não me mortificam. Além disso,
estareis a esforçar os olhos desnecessariamente para conseguirdes ver o meu reflexo no vidro da janela.
- Eu jamais faria uma coisa dessas - protestou Martin, mas quando se virou tinha uma expressão envergonhada. Deixou de fingir que desviava o olhar enquanto ela despia
os calções.
A camisa de Martin caía-lhe até bastante abaixo dos joelhos, mas ela devia ter-lhe permitido que regalasse bem a vista, porque ele lhe disse cheio de admiração:
- Tendes um belo par de pernas.
- Obrigada. Mas acho que são um tudo-nada curtas de mais, mas nem por isso deixam de me levar aonde preciso de ir. - Cat ergueu o olhar para ele. Apesar de estar
a sorrir, o seu olhar era acutilante e direto. - Já chega de tentar ganhar tempo, Lobo. Estais metido em apuros, a braços com um problema qualquer de que me apercebi
desde que cheguei a Londres. O que é que se passa? Quero saber a verdade. Estou em crer que a mereço.
- De facto, mereceis, e muito mais do que alguma vez serei capaz de vos retribuir. - Mas Martin continuava a sentir relutância em dar início a uma narrativa que
sabia de antemão que seria recebida com o desdém dela pela sua irresponsabilidade, idiotice e duplicidade. Aquela noite havia sido tão agradável, ver Cat a rir-se
de novo e a espicaçá-lo na brincadeira como costumava fazer. Sentia relutância em fazer com que isso acabasse. Ela comportara-se outra vez como a sua Cat.
A sua Cat? Martin tomou consciência do que estava a pensar. Aquele era um pensamento chocante em alguém que andava a tentar fazer a corte a outra senhora, além de
ser uma noção falsa. Catriona OHanlon não era o género de mulher que alguma vez viesse a pertencer a um homem. Martin encostou-se à parede e deu inicio à sua explicação.
- Suponho que tudo começou há uns nove meses, na tarde em que a nossa companhia teatral representou no pátio de uma estalagem nos arredores de Norwich. Por mero
acaso, Sir Francis Walsingham tinha parado lá durante uma jornada para dar descanso aos cavalos. Walsingham é membro do conselho privado da rainha, além de ser o
principal sec...
- Eu sei muito bem quem é Sir Francis e quais são as suas funções interrompeu Cat. - O espião-mor da rainha é bem conhecido até mesmo nas regiões mais recônditas
da Irlanda. Mas o que diabo é que ele tem a ver convosco?
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- Trabalho para ele.
Fazendo os possíveis por ignorar a expressão de assombro no rosto de Cat, Martin prosseguiu.
- Apesar de eu ter estado trajado com o vestuário multicor dos bobos para a representação dessa tarde, o meu inglês era impecável. Walsingham reconheceu-me. Lembrava-se
de mim como Martin, o Lobo, dos tempos em que fiz parte de uma delegação do rei de Navarra. Fomos enviados com a missão de angariar fundos muito necessários para
a defesa do reino contra as forças católicas do duque de Guise.
- O meu papel nessas negociações foi insignificante. Encontrava-me presente mais como os olhos e ouvidos do rei de Navarra, para aferir a disposição dos membros
do conselho da rainha e para avaliar a possibilidade de apoio militar da parte dos ingleses. Nada de muito importante, mas a verdade é que Sir Francis reparou em
mim. É o que ele faz e sem nunca se esquecer de ninguém.
- O homem tem uma reputação sinistra - disse Cat, tratando de pendurar os calções num prego na prateleira acima da lareira para secarem.
- O Walsingham é tão malévolo e tem um coração tão negro como ouvi dizer?
- Não, ele é um homem de uma profunda fé e convicção. Mas também possui uma mente surpreendentemente subtil e tortuosa. Suponho que a melhor maneira de o descrever
é como um Maquiavel religioso.
- Nossa Senhora nos valha! Não sou capaz de imaginar uma combinação mais perigosa. Mas a saber... O que é que aconteceu quando ele vos reconheceu? - perguntou Cat.
- Suponho que o homem quisesse saber o que diabo é que andáveis a fazer, a andar de terra em terra enquanto vos fazíeis passar por um ator inglês.
- De facto, foi isso mesmo. Tentei intrujá-lo, contando-lhe uma patranha sobre ter fugido de França para escapar aos credores. Não sei se ele acreditou ou não. Uma
pessoa nunca sabe ao certo quando se trata do Walsingham.
"Ele podia ter ordenado que me prendessem meramente por ter entrado no país sem os documentos necessários, para não mencionar que o poderia ter feito por suspeitar
que eu fosse um espião a soldo da França. Em vez disso, ofereceu-se para contratar os meus serviços.
- O que quereis dizer é que ele vos obrigou a prestar-lhe os vossos serviços.
Martin desejou poder permitir que ela acreditasse nisso, mas abanou a cabeça.
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- Não foi preciso coagir-me muito, Walsingham exerceu alguma pressão, dando a entender que eu e a Meg poderíamos ser deportados de regresso a França. Mas eu podia
ter agarrado em Meg e fugido, podia ter tentado recomeçar uma nova vida num outro país, talvez até mesmo na vossa Irlanda. Mas Walsingham acenou-me com a oportunidade
de poder singrar na vida, a perspetiva de conseguir um bom futuro para a minha filha com que eu nunca poderia ter sonhado. E eu aceitei, sem sequer me deter a sopesar
os riscos ou o custo que isso poderia acarretar.
Cat não disse nada, mas a sua expressão era circunspecta enquanto o ouvia. Sentou-se no pequeno banco, adotando uma posição muito pouco própria de uma senhora, mas
que lhe era muito característica. com as pernas ligeiramente abertas e os cotovelos apoiados em cima dos joelhos. A camisa dele pendia-lhe por entre as coxas, numa
postura provocadora que excitou Martin a despeito de si próprio.
Concentrou a sua atenção nos tijolos da lareira, enquanto continuava a contar-lhe o que tinha sucedido, sem lhe omitir absolutamente nada. Falava num tom de voz
neutro, sem nenhum dos floreados habituais, relatando-lhe todos os pormenores da conspiração de Babington, todos os subterfúgios a que ele próprio tinha recorrido
para obter provas que entregaria a Walsingham, incluindo ser obrigado a espiar Ned Lambert. Concluiu com o assalto à casa de Poley e a razão que o levara a apoderar-se
da pintura.
- ... e ali estão eles, Babington e os seus camaradas de conspiração, retratados em toda a glória da sua idiotice - concluiu Martin, fazendo um gesto na direção
da tela. - A sentença de morte assinada num arco-íris de cores das tintas a óleo. Mas quando eu entregar esta pintura ao Walsingham, pelo menos há um pescoço que
ficará a salvo. com certeza que isto salvaguardará o irmão de Jane Danvers.
Cat fez um pequeno acenar de cabeça que indicava estar de acordo com ele. Estendeu as pernas, baixou a cabeça e pôs-se a olhar para os dedos dos pés nus. Entre o
silêncio continuado dela e o tamborilar persistente da chuva que batia nos vidros da janela, os nervos de Martin estavam quase a atingir o ponto de rutura.
- Podeis dizer à vontade o que estiverdes a pensar. Nunca me haveis poupado até ao momento. Nada de hesitações. Dizei-me que sou um irresponsável e um rematado idiota.
- Muito bem. Sois um idiota.
Martin retraiu-se. Tinha estado à espera que ela tivesse concordado. Mas tinha de o fazer tão animadamente?
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- Desde sempre que eu soube com exatidão o que sois, Martin, o Lobo continuou Cat com um pequeno trejeito nos lábios. - Tendes um pouco de tratante, um pouco de
patife e sois um idiota. Um idiota imprudente, corajoso e nobre.
Ao invés do desprezo com que ele tinha contado, Cat olhava-o com uma estranha suavidade nos olhos.
- Nobre? - ecoou Martin. - Mulher, ouvistes bem o que eu tenho estado a dizer durante os últimos quinze minutos? As coisas que eu fiz...
- Foram extremamente perigosas - atalhou Cat, interrompendo-o.
- E conquanto eu não possa aprovar o facto de terdes corrido esses riscos, a verdade é que estais prestes a fazer com que um grupo de malandros conspiradores seja
entregue à justiça.
- Quereis dizer para serem torturados e executados. E um desses malandros, o Ballard, é um padre. - Martin afastou-se dela, pondo-se a olhar pela janela e vendo
que do firmamento continuava a jorrar uma chuva torrencial que batia contra os vidros. - Deus sabe que não sou um homem religioso, mas durante os anos da minha juventude
que passei entre os prelados de Notre-Dame, eles incutiram-me um certo respeito pelos que são ordenados padres - disse Martin, acrescentando com tristeza: - Não
sei ao certo quantas transgressões são o suficiente para mandar um homem para o Inferno, mas atraiçoar um padre deve ser, certamente, um pecado bastante grave.
Cat aproximou-se por detrás dele, pousando-lhe uma mão no ombro.
- Na minha opinião, esse John Ballard abdicou de qualquer direito sagrado quando planeou cometer um assassínio. Não afirmo compreender os fundamentos da religião
católica ou protestante. Mas com base no que sei a respeito do vosso Cristo, ele pregava o amor, a paz e o perdão, não o assassínio.
Cat puxou-o pelo braço, forçando-o a olhar para si.
- Nenhum dos motivos desses conspiradores me parece assim tão nobre ou puro.
- E os meus são mais louváveis? - perguntou Martin. - Quando eu trabalhava como agente do rei de Navarra, a maior parte do meu trabalho consistia em observar os
movimentos do exército do duque de Guise ou a tentar granjear apoio para um pequeno reino sitiado. Pelo menos, existia uma certa medida de equidade e de honra nisso.
Mas é um assunto tão sórdi do... tendo por atividade espiar e enganar, encorajando outros homens a cometerem
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traição a fim de os encurralar. - Martin passou a mão pela barba.
- E tudo isso para quê? Para obter um brasão falso e uma parcela de terra.
- Procuráveis conseguir um futuro melhor para a vossa filha. Não andáveis a planear assassinar a rainha.
- Não, só estou a ajudar o Walsingham a causar a desgraça e morte de outra rainha.
- Maria Stuart não se saiu nada mal para conseguir isso pelos seus próprios meios. - Cat passou a mão pela face dele num daqueles gestos de ternura que eram muito
raros nela e por isso mais doces. - Não tenho grande apreço por Isabel, mas sei que não existe grande coragem no desferir da faca de um assassino. A única maneira
de eu poder concordar em lutar contra a mulher dos Tudor era se pudesse olhá-la bem de frente, olhos nos olhos, a minha espada contra a dela.
- Isso deve-se ao facto de existirem muito poucas mulheres como vós. E, já agora, nem tão-pouco homens.
- Como eu? - Cat soltou uma gargalhada autodepreciativa. - Exatamente, que género de pessoa é que essa seria?
- Uma pessoa com honra, sabedoria e coragem. Como os vossos cavaleiros da Red Branch, os vossos Grania e Brian Boru, todas essas gerações de heróis irlandeses que
celebrais nas vossas histórias. É o sangue deles que vos corre nas veias.
Cat sorriu com tristeza, abanando a cabeça.
- Estou em crer que esse sangue ficou um pouco diluído durante as minhas andanças.
- Não. - Martin passou a ponta de um dedo pelas sobrancelhas dela, olhando para os olhos tão límpidos como lagos puros de azul. - Até mesmo exilada da vossa pátria,
trazeis a Irlanda nos vossos olhos, toda a sua força e beleza selvagem.
- Deixai-vos de tolices - retorquiu ela, mas corou de uma maneira como nunca teria acontecido se ele a tivesse cumulado do género de cumprimentos cheios de floreados
que Martin, habitualmente, reservava para as mulheres.
Catriona era uma mulher tão prática, dotada de uma sabedoria que primava pela frontalidade. Conseguia ver as coisas com muito mais clareza do que ele. Tinha a sensação
de que ela, com um golpe limpo do seu punhal, conseguira cortar por entre todos os seus sentimentos de culpa, todos os conflitos de consciência que andavam a atormentá-lo.
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Não era merecedor do consolo que ela lhe proporcionava, mas era mais forte do que ele, não conseguia impedir-se de o aceitar apesar disso. Passou um braço pela cintura
dela, puxando-a para junto de si.
Cat não opôs a mínima resistência, nem hesitou, afundando o rosto na calidez do peito firme dele. Martin apoiou o pescoço em cima da cabeça dela, sentindo o cabelo
ainda húmido. Inspirou o cheiro de Cat, que era único. Não era como um perfume enjoativo, mas sim um aroma que era mais a terra, mais elementar, cheirava a chuva
doce e a vento fresco de verão.
Manteve-a chegada a si durante o que pareceu muito tempo, em que não se ouviram quaisquer sons, com a exceção do bater da chuva, o crepitar do lume na lareira e
o bater regular do coração dos dois.
Havia algo de terno no abraço de Martin e Cat esforçou-se por não ansiar avidamente mais do que aquilo. Sentiu-se grata por poder ocultar o rosto no peito dele,
não fosse Martin ler a loucura dela nos seus olhos. O quanto estava perdidamente apaixonada por ele, como se sentia abalada ao tomar conhecimento dos perigos que
ele tinha corrido, ao arriscar-se da maneira como o fizera. Pensar que Martin podia ter morrido, que poderia tê-lo perdido, fazia com que fosse percorrida por um
pequeno tremor.
Ele jamais poderia vir a ser o seu homem. Dentro de alguns meses, cada um seguiria o seu caminho, sendo muito provável que nunca mais voltassem a encontrar-se. Por
muito duro e doloroso que isso fosse, Cat tinha a certeza de que seria capaz de suportar a falta dele, desde que soubesse que Martin continuava vivo, algures a percorrer
o mundo à sua maneira inimitável.
Cat inclinou a cabeça para trás para poder olhar para ele.
- Quando entregardes aquela pintura a Walsingham, ficareis livre dele. A vossa participação em todo esse assunto chegará ao fim, não é verdade?
- Estou em crer que sim. Mas se houver alguma coisa que corra mal, se me acontecesse alguma coisa, cuidaríeis da Meg. - Não era uma pergunta que Martin lhe estivesse
a fazer, apenas a corroboração de um facto que parecia proporcionar-lhe um grande conforto.
- Sabeis que sim - assegurou-lhe Cat. - Mas não vai acontecer-vos nada de mal.
- Mas se acontecesse... - começou ele a dizer, mas ela silenciou-o antes que ele pudesse tentar o destino ainda mais. Pondo-se em bicos de pés, Cat levou os lábios
aos dele.
Martin hesitou, mas apenas por uma fração de segundo, antes de embrenhar os dedos nos cabelos dela. A mão dele envolveu-lhe a nuca, os seus lábios a movimentarem-se
nos dela, num beijo que era ardente e demorado.
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Afastou a cabeça para trás e olhou para ela, a paixão ávida que ela sentia espelhava-se nas profundezas verdes dos olhos dele.
- Cat - disse Martin numa voz enrouquecida, humedecendo os lábios, e ela percebeu o que ele tentava fazer. Chamar a si a força de vontade para poder resistir à tentação,
pensando em todas as boas razões por que deviam afastar-se um do outro.
Razões que ela compreendia muito melhor do que ele. Dos dois, seria muito mais provável que fosse ela a sair magoada de uma união sexual fortuita.
Mas isso era-lhe inteiramente indiferente. Tinha andado pelo mundo com um coração intocável e reservado durante tempo de mais. Até mesmo a dor de saber que amar
Martin, para o perder a seguir, não seria nada quando comparado com o vazio que sentiria se nunca o tivesse amado.
Estendeu a mão e com as pontas dos dedos percorreu o contorno dos lábios dele muito ao de leve, provocadoramente. Martin olhava-a com fixidez, mostrando uma agonia
de anelo nos seus olhos.
- Cat, nós... não devemos...
Cat expeliu uma baforada de ar de muita frustração, o que se devia ao desejo há muito negado, de facto, há demasiado tempo.
- Sim, que diabo! Devemos, sim.
Fechando os dedos nas dobras da camisa dele, Cat puxou-o de modo a que a boca dele voltasse a colar-se à sua. Martin agarrou-a pelos ombros, como se tencionasse
afastá-la de si.
A língua de Cat saiu rapidamente da sua boca, acariciando os lábios cerrados dele, à procura de uma maneira de poder entrar. Martin sentiu-se percorrido por um frémito
e foi como se ela conseguisse sentir que algo se quebrava dentro do homem, qual tempestade que explodisse no firmamento.
Emitindo um som semelhante a um rosnar abafado, Martin enlaçou-a nos seus braços. As suas mãos começaram a percorrer ousadamente o corpo dela enquanto a cumulava
de beijos, como se chovessem nas faces dela, nos olhos, no queixo, até que, finalmente, se concentraram na boca. A língua dele apoderava-se da dela numa colisão
explosiva e ardente que fazia com que ela ficasse sem fôlego.
Colando-a a si com força, Martin levantou-lhe a fralda da camisa. Cat arquejou quando ele espalmou as mãos nas nádegas nuas dela, o calor das mãos dele a transmitir-lhe
um ardor que foi diretamente para o núcleo da sua feminilidade. Beijando-a ferozmente, Martin puxou-lhe as ancas, apertando-as
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tanto contra o seu corpo que ela ficou excitada ao sentir a ereção dele, que parecia esforçar-se para sair de dentro dos calções.
Cat tremeu de carência, encostando-se mais a ele freneticamente, se é que isso fosse possível. Martin tirou a boca da dela, a sua respiração a fazer-se acelerada
e entrecortada.
- Oh, meu Deus - gemeu Martin. - Sou um patife sem qualquer mérito. Um tratante sem escrúpulos. Um homem sem caráter.
- Eu sei - retorquiu Cat num sussurro, esfregando-se contra ele, como se quisesse trepar pelo homem acima da mesma maneira como trepara pela árvore. - É uma das
coisas que eu...
Esteve quase a dizer que mais amava nele. Apesar de ter os sentidos drogados com paixão, ainda lhe restava algum discernimento para se emendar.
- Uma... uma das tuas melhores qualidades.
Martin soltou uma gargalhada enrouquecida. Se bem que o seu corpo pulsasse devido à ânsia de a possuir, tirou as mãos das nádegas de Cat. Puxou para baixo a fímbria
da camisa que ela vestia, endireitando-a e fazendo um nobre esforço para a afastar de si.
Mas a sua heróica atitude foi em vão porque Cat agarrou a orla da camisa que vestia, despindo-a pela cabeça. Martin ficou com a boca seca quando os seus olhos se
demoraram nos seios pequenos e firmes, nos pelos de um ruivo-alourado que formavam o triângulo entre as pernas dela. Martin gemeu, a sua ereção a atingir um grau
doloroso.
- Cat, tem piedade.
- Não. - Ela atirou a camisa para os pés dele, como alguém que arremessasse uma manopla. - Está uma noite muito escura e chuvosa lá fora, à qual conseguimos escapar
por um triz. O mundo não acabará e o céu não se abaterá sobre nós se encontrarmos um bocadinho de prazer um no outro. Mas há que ver que as noções de pecado da tua
religião não me perturbam. Ao fim e ao cabo, sou apenas uma pagã.
E isso era precisamente o que ela era, pensou Martin. Uma deusa pagã, descarada e orgulhosa em toda a glória da sua nudez, mãos bem firmes nas ancas estreitas numa
atitude de desafio, as pernas ligeiramente afastadas e os pés bem assentes no chão.
Cat atirou o cabelo para trás, as madeixas da cor do fogo a espalharem-se em volta dos ombros brancos, os olhos a cintilarem como jóias resplandecentes. Martin aproximou-se
dela como um homem que mal podia esperar para se atirar para o fogo sacrificial.
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Ele sempre havia sido quem tomava a iniciativa quando fazia amor. Afinal de contas, não era em vão que era francês. Apesar disso, deixou que ela o despisse. Os dedos
de Cat desapertaram-lhe habilmente os cordões da camisa. Despiu-lha pela cabeça, o seu olhar a demorar-se apreciativamente no corpo dele.
Atirando a camisa para o lado, Cat passou as unhas ao de leve pelo peito nu de Martin, após o que o contornou como se estivesse a avaliar a presa, de uma maneira
calculada para o enlouquecer de desejo.
Martin sentia-se entontecido de calor e desejo quando ela o enlaçou nos seus braços por detrás, espalmando os seios cálidos contra as costas dele. Cat começou a
passar os dedos pelos pelos do peito de Martin, descendo cada vez mais em direção aos calções a cada passagem das mãos.
Desapertou-os e soltou-lhe a ereção. Ele quase gemeu de alívio até a mão dela se fechar no pénis. O mero calor do toque da mão dela foi o suficiente para fazer com
que ele perdesse o controlo.
- Doce Jesus, mulher, o que é que estás a tentar fazer-me?
- Fazer com que te derretas nas minhas mãos - respondeu Cat numa voz ronronante e mordiscando-lhe o braço na brincadeira. Ele apercebia-se de que ela se deliciava
com o poder que estava a exercer sobre si, talvez mesmo um tudo-nada excessivo. Já era mais do que altura de ele recuperar algum controlo da situação.
Agarrando-a pelo pulso, Martin pôs cobro à exploração descarada dela. Virou-a de maneira a que ficasse de frente para si.
- Não, o que estás a fazer é conseguires pôr-me de joelhos - murmurou-lhe Martin. Ele ajoelhou-se diante dela, ergueu a cabeça e fitou-a com uma expressão maliciosa.
Antes de Cat adivinhar o que ele se preparava para lhe fazer, ele envolveu-lhe as nádegas nas mãos, puxando-a para mais junto de si e afundando a cara no ninho de
pelos encaracolados entre as pernas dela.
Cat soltou um grito de deleite e choque perante aquele audacioso beijo como ela nunca tinha experimentado. A capitosa sensação de poder que tinha estado a sentir
começou a abandoná-la quando Martin lhe apartou as pernas, provocando-a com a sua língua.
Cat foi percorrida por um frémito, agarrando-se aos ombros dele quando o seu corpo reagiu com uma prontidão surpreendente, avassalando-a com sensações de um prazer
que a alheava de tudo o mais e a deixava demasiado enfraquecida para conseguir manter-se de pé. A tremer, deixou-se cair de joelhos
302
ao lado dele. O sorriso de Martin era de uma presunção que ele mal conseguia conter.
- Tu... tu és um demónio francês - disse Cat arquejante.
- Bruxa irlandesa - retorquiu ele rindo-se.
Cat começou a bater-lhe, puxando-o para o soalho, onde se beijaram, lutaram e acariciaram-se. Depois do que ela acabara de experimentar, Cat não acreditava que fosse
possível que o seu desejo se manifestasse de novo tão pouco tempo depois. Mas a verdade é que voltou a apoderar-se dela uma vez mais com cada carícia das mãos tão
hábeis dele. Tal como sempre suspeitara, o homem tinha umas mãos infernalmente eficazes.
Cat mal se tinha apercebido de como é que Martin se livrara do resto das roupas que vestia. Teria gostado de poder dispor de uns momentos para recuperar o fôlego,
para poder apreciar demoradamente o corpo nu dele, todo constituído por músculos firmes e tendões cobertos de suor. Mas ele forçou-a a rolar de modo a que ficasse
deitada de costas no chão.
Posicionando-se por cima dela, Martin começou a beijá-la na garganta e desceu até um seio, fechando a boca primeiro num mamilo e depois no outro. Enquanto ele a
banhava com o calor molhado da sua língua, Cat fechava os olhos e mordia o lábio inferior para se impedir de gritar de puro prazer, sentindo um êxtase que era quase
um tormento.
Era como se ele quisesse marcá-la com o seu toque, com o seu cheiro, com os beijos com que lhe cobria todos os centímetros do seu corpo. Cat sabia que traria consigo
o sabor e o toque das mãos de Martin, o lobo, até ao fim dos seus dias.
Razão por que, quando chegasse a hora de ela partir, ser-lhe-ia muito mais difícil, deixando-o entregue à sua vida inglesa, à sua Lady Jane Danvers. Mas Cat não
se importava com isso. Desejava aquilo desesperadamente, precisava daquelas poucas horas furtivas.
Quando Martin, finalmente, a penetrou, ela arquejou com o choque da união entre os dois. Quando o corpo dela se alargou para o acomodar, foi como se ele a enchesse
completamente. Os olhos de Cat abriram-se e depararam com ele a fitá-la com uma expressão maravilhada nos olhos.
- Mon Dieu, Cat! - exclamou Martin num tom de voz enrouquecido. - És tão quente e apertada. Ajustas-te a mim como... como...
- Uma luva?
- Não, é como se os nossos corpos tivessem sido feitos para isto, feitos um para o outro.
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Cat sentiu a garganta embargada. Quem lhe dera que ele estivesse a falar com sinceridade, mas tinha a certeza de que não passavam de palavras ternas que Martin se
sentiria obrigado a sussurrar a qualquer mulher com que fosse para a cama.
Embrenhou os dedos no cabelo dele, puxando-lhe a cabeça de modo a que os lábios dele se chegassem aos dela. Firmando os pés nas tábuas ásperas do soalho, Cat soergueu
as ancas, urgindo-o a tomar a iniciativa. As primeiras penetrações e a reação dela foram um pouco desajeitadas, parecendo mais uma colisão até ele ter conseguido
encontrar o ritmo certo.
Cat movimentava-se contra o corpo dele, em sintonia com o ritmo fluido de Martin, tão suave e tempestuoso como ondas que se quebrassem na areia. Todos os vestígios
do sotaque inglês que ele fingia desapareceram, enquanto lhe murmurava termos de ternura que eram intercalados por obscenidades numa fiada proferida em francês fluente.
Enquanto ele a penetrava cada vez com mais ímpeto e profundidade, Cat tinha a sensação de que a ansiedade se intensificava cada vez mais acentuadamente. Arranhava-lhe
as costas com as unhas, gritando o nome dele, quando teve outra sensação de abandono extasiante, acompanhada de frémitos sucessivos de prazer que lhe percorriam
o corpo da cabeça aos pés.
Martin investiu uma última vez, estremecendo quando libertou o seu sémen bem fundo dentro dela. Deixou-se cair em cima dela. Cat sentia o bater forte e acelerado
do coração dele, que fazia eco do seu.
Cat fechou os braços apaixonadamente em torno dele, mantendo-o apertado contra o seu corpo, enquanto a respiração dos dois começava a fazer-se com mais lentidão.
Para seu muito constrangimento, Cat sentiu um ardor nos olhos, que ameaçavam ficar marejados de lágrimas.
A maneira como haviam feito amor parecia quase miraculosa, um júbilo físico que não tinha qualquer semelhança com nada que ela tivesse sentido antes. No entanto,
tinha noção de ter oferecido a Martin mais do que o seu corpo naquela noite. Também lhe abrira o seu coração e a sua alma, tornando-se mais vulnerável do que alguma
vez estivera com qualquer outro homem.
Quando Martin saiu de cima dela, Cat pestanejou, não fosse ele apanhá-la nas suas mentiras, apercebendo-se de que o que tinha acabado de se passar significava muito
mais para ela do que uns fugazes momentos de prazer.
A profundidade das suas emoções era difícil de ocultar quando ele a olhava com tanta ternura. Num gesto muito terno, Martin afastou-lhe os cabelos húmidos que se
haviam agarrado à fronte dela.
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- Catriona.
Era muito raro que ele a tratasse pelo seu nome. Cat engoliu com força, esboçando um sorriso forçado de languidez.
- Caramba! Isto foi... foi...
- Sim, foi - atalhou Martin com um sorriso rasgado. - Não foi?
Ela estremeceu, sentindo que as costas e o traseiro começavam a acusar os efeitos da maneira vigorosa como haviam feito amor em cima do soalho duro.
Martin saiu de cima dela, olhando-a com alguma preocupação.
- Fui demasiado bruto? Magoei-te?
"Mais do que alguma ve saberás", pensou Cat, obrigando-se a sorrir.
- Eu não costumo magoar-me com tanta facilidade. Mas é possível que tenha uma lasca de madeira no traseiro.
Martin riu-se à socapa. Antes de ela ter tempo para perceber o que ele se preparava para fazer, ele já a tinha levantado do chão, levando-a para a cama nos seus
braços.
- Vamos ter de ver o que podemos fazer quanto a isso - murmurou-lhe Martin.
O lume na lareira perdera intensidade, com os toros reduzidos a brasas incandescentes. A dada altura, durante a última hora, a chuva torrencial tinha abrandado e
agora limitava-se a um bater ao de leve nos vidros da janela. Martin não fazia ideia de quando é que isso tinha acontecido. Durante a segunda vez em que ele e Cat
se tinham derretido nos braços um do outro? Ou teria sido aquando da terceira vez?
Martin tinha um sorriso enigmático nos lábios e com os olhos quase fechados. Sentia-se mais relaxado, fisicamente satisfeito e contente, do que tinha memória em
muito tempo. Mexeu-se à procura de uma posição mais confortável num colchão que já tinha muitos altos e baixos; os ocupantes tinham tendência para descaírem para
o meio, que tinha uma cova enorme.
Não que considerasse que tinha direito de se queixar. Ele e Cat haviam tratado de fazer a sua quota-parte de estragos na armação da cama. Martin receava que algumas
das cordas talvez tivessem rebentado durante as sessões muito vigorosas em que fizeram amor e tinha a certeza de que rasgaram um dos lençóis já com muito uso.
A maior parte das cobertas estavam amontoadas no soalho. Martin debruçou-se pela beira do leito e pegou na colcha. Puxou-a até junto da mulher toda dobrada sobre
si mesma no lado oposto da cama, de costas para ele.
Para sua grande desilusão, receava que Cat tivesse adormecido depois do tempestuoso clímax dos dois. Teria preferido que ela se tivesse aninhado nos seus braços,
com a cabeça encostada ao seu ombro. No entanto, viu que ela estava acordada e a olhar para a chuva que escorria pelos vidros da janela.
Tapou-se e a Cat com a colcha, aconchegando-se a ela. Sentia o coração tão extraordinariamente repleto. Tinha a sensação de estar prestes a jorrar, como de uma nascente,
palavras românticas e termos de ternura tolos no ouvido
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dela. Mas duvidava que Cat acolhesse de bom grado essas manifestações.
Contentou-se em passar os dedos numa carícia pelo ponto no traseiro dela de onde ele tinha tirado a lasca de madeira.
- Como é que está o teu traseiro? - perguntou-lhe ternamente.
- Fatigado - respondeu Cat com uma risada de cansaço. - Estou a ver se consigo ter ambição suficiente para me levantar e vestir-me. Temos de voltar para casa antes
que amanheça. A Meg ficará muito assustada se acordar e vir que ambos estamos ausentes.
- Ainda falta muito para amanhecer. Não deve passar muito da meia-noite e ainda está a chover - protestou Martin. - Temos muito tempo.
- Sim, mas deves estar ansioso por entregar esse retrato ao Walsingham. Se o Babington descobrir que desapareceu, o mais certo será o homem ficar em estado de pânico,
pondo-se em fuga. Duvido muito que o homem que paga os teus serviços ficasse muito satisfeito ao inteirar-se disso. Ao fim e ao cabo, tens de levar em consideração
a recompensa que receberás. Acreditas que o Walsingham cumprirá a promessa que te fez?
- Suponho que sim. Ele tende a ser um homem de palavra. - Martin devia estar cheio de júbilo ao pensar que estava prestes a alcançar o objetivo que almejava havia
tanto tempo. Sentia-se surpreendido com a sua própria falta de entusiasmo.
Tentou beijar o ombro de Cat, mas ela puxou a colcha mais para o pescoço.
- Finalmente, vais poder ir ter com Lady Jane Danvers, colocando o coração aos pés dela.
Martin estremeceu com um sentimento de culpa à menção do nome de Jane. Verdade fosse dita, ultimamente tinha pensado muito pouco nela e absolutamente nada durante
as últimas horas. Era obrigado a ir falar com ela, quanto mais não fosse para lhe assegurar que podia deixar de se preocupar com o irmão. Além disso, teria de ser
sincero ao ponto de lhe dizer qual a razão por que tinha tanto a certeza disso, confessar-lhe como tinha espiado a soldo de Walsingham.
Martin esperava que Jane fosse capaz de lhe perdoar. Quanto a querer mais alguma coisa dessa senhora, ficou assombrado ao aperceber-se de que não queria.
Cat retraiu-se, afastando-se dele até à beira do colchão. Era como se agora, que tinham feito amor, ela se tivesse fartado do toque das mãos dele. Ou
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talvez aquela atitude se devesse ao seufauxpas, ao permitir que os seus pensamentos se desviassem para outra mulher enquanto a cama ainda estava morna da paixão
que ambos haviam partilhado. Mas que diabo! Ele nem sequer mencionara o nome de Jane. Cat é que lhe lembrara de sua senhoria.
As velas há muito que se tinham derretido. Somente o clarão avermelhado do lume na lareira é que proporcionava alguma luz, mas muito fraca. Martin soergueu-se apoiado
sobre um cotovelo, olhando para Cat por entre pálpebras semicerradas e desejando poder ver melhor a cara dela.
Afastou para trás uma madeixa despenteada que lhe tinha caído para a face e fez-lhe uma confissão um pouco a medo.
- Nem sequer sou capaz de pensar na Jane. Depois de tudo o que partilhámos...
- Não faças isso - atalhou Cat com rispidez.
- Não faço o quê? - perguntou Martin, imobilizando a mão. - Tocar-te ou...
- Não te sintas obrigado a fazer bonitos discursos, nem juras de amor, só por que fomos para a cama um com o outro. - Cat virou-se o suficiente para poder olhar
para ele com um franzir de sobrancelhas. - Ambos sabemos que isto não passou de um agradável interlúdio. Dois corpos ardentes que libertaram desejos reprimidos numa
noite fria e chuvosa. A Terra não se deslocou e do firmamento não caiu subitamente uma chuva de estrelas.
Talvez não para ela. Martin respirou fundo, sentindo-se como uma barca de três mastros que tivesse andado a navegar pelas ondas, mas que, de súbito, se imobilizava
por falta de vento nas velas.
- Peço perdão por ter tentado ser galante - resmungou ele. Afastando-se bruscamente para o outro lado da cama, deu um soco na almofada com pouco enchimento num esforço
vão para a afofar.
- Lamento se feri o teu orgulho masculino... - começou Cat a dizer.
- Noa, pás de toufi. Não sou assim tão arrogante a respeito da minha competência na cama. - Martin fez uma careta. - Bem, sim, calculo que seja isso. Quando acabo
de fazer amor com uma mulher, não estou habituado a que ela boceje, que se vire para o outro lado e comece a ressonar.
Cat sentou-se com um movimento brusco, agarrando a colcha por cima dos seios.
1. Em francês no original, querendo dizer "nada, absolutamente nada"; mas a expressão correta seria pás du tout. (N. da T.)
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- Não fiz nada disso. Esse é o género de comportamento que é considerado uma prerrogativa dos homens.
- Nunca fui insensível a esse ponto - ripostou Martin, colocando a almofada atrás da cabeça com um gesto brusco. - Até mesmo quando paguei... - Martin calou-se,
mas não a tempo. Cat olhou-o com uma expressão escarnecedora.
- Pagaste para ires para a cama com uma mulher? Eu nunca teria imaginado que o fogoso e sensual Lobo precisaria de recorrer a isso.
- Eu ainda era muito novo - ripostou Martin. - Foi assim que deixei de ser acompanhado pelo fardo da minha virgindade. Só tinha onze anos.
- Onze anos!
- Talvez uns doze.
Quando Cat o olhou com ceticismo, Martin cedeu.
- De acordo. Talvez estivesse quase a fazer treze anos quando me rendi aos encantos de Daphne, la Bouche, uma das mais hábeis prostitutas que alguma vez calcorrearam
as ruas de Paris.
- Daphne, a Boca? Porque é que lhe chamavam isso? Oh! - Os olhos de Cat iluminaram-se quando compreendeu. com alguma da sua irritação a dissipar-se, Martin sorriu
a despeito de si próprio.
- com base na tua expressão lúbrica, presumo que a alcunha não foi dada à mulher por gostar muito de dar à língua.
- Não, a Daphne mantinha os lábios inacreditavelmente fechados, em especial quando ela... au! - gritou Martin quando Cat lhe espetou um dedo com força nas costelas.
- Compreendo muito bem sem ser preciso que me faças desenhos ilustrativos.
Martin acalmou-se, suprimindo um sorriso. Do mal o menos, as suas reminiscências indecentes tiveram o efeito de atrair Cat para o seu lado. Passou-lhe um braço pelos
ombros.
- Precisei de roubar muitas carteiras para poder pagar os serviços da Daphne. É possível que ela não tenha sido uma cortesã deslumbrante, mas não era nada barata.
- E valeu o dinheiro que custou?
- Oui. Ela era muito competente. Proporcionou-me uma introdução tão estonteante aos ritos de Vénus que eu fiquei maravilhado com ela. Voltei ao bordel no dia seguinte
com um ramalhete de flores um pouco murchas, decidido a fazer dela minha amante para a salvar daquela trágica profissão, ainda que para isso tivesse de roubar a
bolsa do próprio rei.
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- E como é que Mademoiselle la Bouche reagiu a essa generosa oferta?
- Quando ela acabou de se rir de mim, puxou-me as orelhas e pôs-me na rua e preparou-se para receber o cliente seguinte.
Cat soltou um riso abafado, mas que não era isento de alguma compaixão quando lhe afagou o peito.
- Pobre filhote de lobo tão assustado. Deves ter sido um rapaz absolutamente extraordinário.
- Extraordinário? - repetiu Martin resfolegando.
- Sim, considero extraordinário que tenhas conseguido manter tanta paixão pela vida, uma perspetiva tão romântica do mundo, levando em consideração as circunstâncias
em que viveste. Abandonado pela tua mãe, sem família, sem casa, dependendo inteiramente de ti próprio. É forçoso que tenham existido ocasiões em que tiveste frio
e fome, sentindo-te desesperado.
- É possível que sim - admitiu Martin com um encolher de ombros. Sempre fora capaz de suprimir da mente os momentos mais sombrios da sua vida. Envolveu Cat nos seus
braços, depositando-lhe um beijo no cimo da cabeça. - Por vezes, a única maneira de se conseguir sobreviver à dureza de uma existência na rua é aprender a caminhar
com a cabeça nas nuvens. Além disso, não se pode dizer que eu não tivesse nenhuns amigos. Havia uma velhota, uma vendedeira de flores, que foi muito boa para mim.
Ela era uma espécie de santa padroeira dos garotos abandonados, muito embora não houvesse nada de particularmente santo nela. A tante Pauline era capaz de praguejar
e de beber mais do que qualquer dos carroceiros que trabalhavam nas ruas de Paris.
- Tante Pauline?
- Era como todos a tratavam. Nunca cheguei a saber o nome verdadeiro dela - replicou Martin, sorrindo ao recordar-se da velhota escanzelada com o seu sorriso desdentado.
- Encheu-me a barriga muitas vezes em que eu tinha fome, partilhando comigo o seu pão e queijo. Além de vender as suas flores, a tante Pauline afirmava que tinha
sangue cigano, pelo que sabia ler a sina na palma da mão. Até me ensinou como fazer um amuleto para manter as bruxas afastadas.
Justiça lhe fosse feita, Cat tentou manter um semblante solene, mas os lábios tremiam-lhe quando perguntou a Martin:
- Que género de amuleto?
- Um saquinho que continha uma mistura extremamente malcheirosa de ervas e alho.
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Cat desatou a rir a bandeiras despregadas, tal como ele receara que ela fizesse.
- De acordo, era uma superstição disparatada. Agora percebo isso. Durante a minha juventude, é muito possível que tenha sido audacioso ao ponto de me arriscar a
ser enforcado, mas tudo o que estivesse relacionado com feitiçaria inspirava-me um medo de morte. Não havia nada que eu temesse mais do que as bruxas.
- Nesse caso, porque é que... - começou Cat a perguntar-lhe com a testa franzida.
- Porque é que o quê? - Martin acariciou-lhe as costas, desfrutando da sensação de calidez e macieza da pele dela.
Cat hesitou por uns momentos antes de concluir a sua pergunta.
- Porque é que foste para a cama com Cassandra Lascelles?
A mão de Martin imobilizou-se; a menção do nome da mulher foi como uma faca que lhe tivessem espetado entre as costelas.
- Estou em crer que esse é um assunto que é preferível não abordar respondeu lapidarmente. Retomou as suas carícias, mas Cat afastou-se dele. Soergueu-se para poder
olhá-lo com uma expressão circunspecta.
- Há tempo de mais que não abordas esse assunto. Compreendo que seja um tema constrangedor para ti, falar sobre a Cassandra...
- Constrangedor? - repetiu Martin numa voz embargada. - A recordação dessa mulher repugna-me.
- Isso quer dizer que ela não foi tua amante?
- Minha amante? Deus me valha, claro que não! Só me deitei com ela uma vez. Mas foi o suficiente para... para...
- Para seres o pai de Meg.
- A Meg é a única coisa boa que resultou dessa noite. - Martin esfregou os olhos com as pontas dos dedos, num esforço para banir as imagens de pesadelo que tentavam
apoderar-se à força da sua mente. - O resto é tudo... veneno.
- A única maneira de uma pessoa se livrar do veneno é purgando-o retorquiu Cat, afastando-lhe o cabelo da fronte. - Conta-me o que aconteceu.
Mas Martin afastou a mão dela, sentando-se na cama. Deu um pontapé na colcha, empurrando-a para o fundo do colchão, e passou as pernas pela beira do leito.
Cat lamentou ter mencionado aquele assunto. Mas Cassandra Lascelles era uma sombra que ensombrava a vida de Martin e da filha. Ela continuaria
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a atormentá-los enquanto Martin se recusasse a reconhecer a presença dela no seu pensamento.
Cat mordeu o lábio inferior. O seu tempo na companhia de Martin e de Meg seria muito curto. Não podia amá-los e protegê-los até ao fim dos seus dias como ansiava
poder fazer. Mas se pudesse, pelo menos, eliminar o espectro de Cassandra...
Cat examinou a linha rígida das costas dele e estendeu a mão para lhe tocar, mas arrependeu-se. Receava tê-lo pressionado em demasia. Não estava nada à espera que
ele falasse; ficou surpreendida quando ele recomeçou a falar.
- Eu tinha apenas dezoito anos quando o meu caminho se cruzou com o da bruxa Lascelles - começou Martin com alguma indecisão. - Foi no mesmo verão em que conheci
a Miri Cheney. Para mim, ela era como algo saído de um sonho, com o seu cabelo de um louro muito claro, olhos de visionária e aquela sua maneira de ser estranhamente
mística. Eu fiquei absolutamente deslumbrado, perdidamente apaixonado por ela.
- Sim, e porque é que não haverias de ficar? - retorquiu Cat com uma expressão de melancolia.
- Nessa altura, eu partilhava um alojamento em Paris com o meu bom amigo, o capitão Nicolas Remy. Uma vez que és tão chegada a Ariane, com certeza que saberás quem
ele é.
- Sei que ele é considerado um grande herói - replicou Cat. - Um defensor da causa dos huguenotes. Casou com a irmã de Ariane, a Gabrielle. Mas nunca o conheci pessoalmente.
- O Remy é um herói na verdadeira aceção da palavra. Valente como ninguém no campo de batalha, um homem honrado como nenhum. Também foi o amigo mais sincero que
tive em toda a minha vida, era como um irmão para mim. - Martin fez uma pausa e expirou com uma respiração entrecortada antes de ser capaz de retomar a conversa.
- A Cassandra Lascelles era tão louca quanto era malévola. Tinha a absurda noção de que estava destinada a dar à luz uma feiticeira que destronaria todos os reis,
restabelecendo o poder das Filhas da Terra.
- Ser uma verdadeira mulher sábia não tem nada a ver com poder disse Catriona interrompendo-o. - Tem a ver com adquirir sabedoria e a arte de curar, aprender a viver
em harmonia com a Terra, e não a disseminar obscurantismo e destruição.
- Obviamente, nunca ninguém explicou isso a Cassandra.
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- A julgar pelo que ouvi dizer a respeito dela, era impossível explicar o que quer que fosse a essa mulher. Vivia obcecada com os seus insanos sonhos de glória.
Martin fez uma pausa, suspirando.
- Infelizmente, a obsessão dela prendia-se com o capitão Remy. Ela pretendia que ele fosse o pai da criança que viria a ter. Ameaçou destruir o capitão com recurso
à sua magia negra, caso não pudesse tê-lo na sua cama. Por muito inacreditável que isto possa parecer, chegou ao ponto de fazer um medalhão diabólico para conseguir
exercer poder sobre ele.
"Na noite em que decidiu seduzi-lo, fui ter com ela em lugar dele. Apesar do muito medo que eu tinha de bruxas, pensei que seria muito mais capaz de lidar com Cassandra
do que o meu nobre amigo, o Remy. Nessa altura, eu sentia-me muito importante e capaz de tudo, até mesmo mais do que agora - acrescentou Martin com um riso desconsolado.
- Nessa noite houve um temporal infernal, muito pior do que o desta noite. O firmamento estava coberto de nuvens negras, os véus eram rasgados por relâmpagos medonhos,
seguidos de trovões atroadores, como se o mundo estivesse à beira da destruição.
Martin fez outra pausa, envolvendo o tronco apertadamente com os braços rígidos.
- Fiz-me passar por criado da estalagem para entrar no quarto onde a Cassandra aguardava o Remy. Eu sabia que a bruxa gostava muito de bebidas fortes. O meu plano
era embebedá-la ao ponto de se esquecer do capitão, de modo a poder apoderar-me do amuleto de magia negra que ela ameaçava usar contra ele. Mas havia uma coisa com
que eu não tinha contado; não contei com os encantos da própria Cassandra.
Martin estremeceu ao recordar aquilo.
- Ela era extraordinariamente bela, embora possuísse uma beleza fria. Tinha um cabelo negro comprido, uma pele muito branca e aqueles olhos escuros que não viam.
Consegui embriagá-la, mas, por seu turno, ela fez o que quis com os meus sentidos, que deixei de dominar. Ela usava um perfume sedutor muito estranho. Dava a impressão
de se entranhar através de todos os poros da minha pele, subindo-me à cabeça e privando-me de qualquer capacidade de raciocínio, roubando-me a minha vontade. Quando
a bruxa se apercebeu de que o Remy não iria ter com ela, ela decidiu... substituí-lo por mim.
"Antes de eu poder dar conta do que se estava a passar, já me encontrava na cama com ela, esquecendo-me do amor que dedicava a Miri, do objetivo
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que me tinha levado ali, esquecendo-me de tudo, exceto da luxúria que Cassandra tinha desencadeado em mim.
Martin baixou a cabeça e concluiu numa voz enrouquecida:
- Depois de eu ter saído da estalagem nessa noite, lembro-me de ter caído de joelhos e de começar a vomitar descontroladamente. Sentia-me tão... tão conspurcado.
Só muito tempo depois é que consegui olhar para os olhos da Miri, quanto mais pensar em tocar-lhe.
Era uma confissão humilhante para qualquer homem. Martin nunca tinha falado acerca dos acontecimentos dessa noite, até mesmo com Miri. Não conseguia compreender
como é que Cat o induzira a abrir-se com ela.
Depois do que ouviu, ela só devia sentir desprezo por ele, pela fraqueza de que dera provas, mas quando o abraçou pelas costas, o seu tom de voz era tão terno como
a ternura com que o abraçava.
- Martin, tenho tido oportunidade de conhecer muitas Filhas da Terra capazes de prepararem uma poção ou um perfume por meio de infusão com que conseguem seduzir
um homem. Admito que antigamente não considerava que isso fosse alguma coisa de mais. Senti tanto azedume depois de o Rory OMeara ter atraiçoado a confiança que
depositava nele, que costumava dizer: "Os homens que cuidem de si próprios." Mas é tão errado uma mulher aproveitar-se de um homem, como um homem aproveitar-se de
uma mulher.
Martin virou-se para ficar de frente para ela e viu nos olhos de Cat, de um azul tão intenso, compreensão e compaixão. O beijo que ele lhe deu nos lábios estava
tão repleto de gratidão como de ternura.
Por muito que detestasse ter de o admitir, Cat tinha razão. Sentia-se melhor depois de ter expressado em voz alta aquelas recordações que lhe envenenavam o espírito,
ainda que não tivesse sido capaz de ser inteiramente franco com Cat. Continuava a haver um tremor em relação a Cassandra e à sua filha que persistia em atormentá-lo,
um medo tão grande que mal conseguia reconhecê-lo para consigo próprio.
Puxou Cat para os seus braços e voltou a deitá-la no colchão. Os lábios dos dois encontraram-se num beijo cheio de ardor e paixão, até Martin se recordar de algo
que ela dissera.
- Mas quem diabo é esse Rory OMeara? - perguntou autoritário, inclinando-se por cima dela.
- Ninguém importante. Apenas um rapaz que conheci em tempos.
- Pensou que poderia distraí-lo com outro beijo, mas Martin furtou-se ao beijo.
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- Isso não me parece nada justo. Acabei de partilhar contigo os meus segredos mais negros.
- A vida é injusta - replicou ela descarada, enrolando os pelos do peito dele nos seus dedos. - Ainda ninguém te tinha ensinado isso?
- Já aprendi o suficiente para conseguir o que pretendo. Quer por meios corretos, quer por meios incorretos.
Martin imobilizou-a no colchão, pôs os dedos nas costelas dela, sujeitando-a a uma sessão de cócegas impiedosa. Cat contorcia-se enquanto lhe batia nos braços e
se engasgava de tanto rir.
- Está bem, pára com isso, grande malvado francês - disse Cat arfante. - Eu conto-te.
Quando Martin parou de lhe fazer cócegas, ela olhou-o com uma expressão de fúria. Ignorando o semblante feroz de Cat, ele deu-lhe um beijo na cana do nariz.
- O Rory era sobrinho do meu padrasto - explicou Cat com relutância. - O tanist do clã OMeara.
- Tanist?
- É um título atribuído ao presumível herdeiro, ao que, eventualmente, virá a ser o próximo chefe do clã, como se fosse o príncipe do seu clã, e Rory, aos meus olhos,
era um príncipe sob todos os aspetos. Era pecaminosamente bonito com uns cabelos de um ruivo brunido, olhos azuis e ombros largos. Todas as raparigas eram loucas
por ele. - Quando Cat chegou ao ponto de suspirar ao lembrar-se daquilo, Martin franziu o sobrolho.
- Que estranho. Já comecei a detestar intensamente esse homem. Cat riu-se, mas o seu riso revestia-se de alguma amargura.
- Nunca pensei que o Rory olharia duas vezes para as moças como eu, quando tinha tantas raparigas lindíssimas que não o largavam, muito mais femininas e graciosas
do que eu.
"E mais altas - acrescentou ela. - Mas, não obstante, na primavera em que fiz quinze anos, ele reparou em mim. Foi... foi como um milagre, a primeira vez em que
ele me sorriu. Foi como se o resto do mundo tivesse desaparecido, toda a tristeza, as desfeitas e o escárnio a que eu estava sujeita em casa do meu padrasto, era
como se nada disso existisse.
A expressão de desagrado de Martin acentuou-se ainda mais, a antipatia por aquele príncipe da memória de Cat estava a progredir para o grau de profunda aversão.
Talvez ele não quisesse ouvir mais nada sobre aquele Rory OMeara. Mas quando Cat se calou, disse-lhe:
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- Continua.
- Eu estava absolutamente caída por ele. E ele tinha encanto suficiente para me levar a acreditar que me amava. Perdi a minha virgindade com ele numa noite quente
de primavera, num campo de urzes.
Os olhos azuis de Cat ensombraram-se. Mudou a posição da cabeça no colchão, numa tentativa de desviar a cara.
- Depois de o Rory ter conseguido o que queria de mim, mal olhou para trás. Não é uma história nova, mas sim a mesma história patética que acontece a muitas donzelas
tolas.
Os lábios dela estreitaram-se num trejeito de desdém por si própria.
- Pensei que tinha sido mais sensata do que isso. Uma semana depois de ter ido para a cama comigo, o Rory comprometeu-se a casar com a filha do chefe de um clã vizinho,
uma criatura gorducha e bonita, de carnes muito mais macias do que eu, que sou quase só pele e osso, para além de possuir mais riqueza e importância social.
Cat encolheu um ombro ligeiramente, como se o assunto não tivesse importância nenhuma. Mas quando Martin lhe pegou no queixo, obrigando-a a olhar para si, pôde ver
a mágoa da adolescente nos olhos da mulher feita.
Martin levou uma das mãos dela aos seus lábios, beijando-lhe as pontas dos dedos.
- Portanto, o malandro destroçou-te o coração. Gostaria de me fazer ao mar amanhã mesmo, rumo à Irlanda, para lhe partir a cabeça.
- Isso não seria muito acertado. - As últimas notícias que tive sobre o Rory dizem que ele passou a ser o chefe do clã por morte do meu padrasto. À semelhança da
maior parte dos irlandeses, os OMeara podem ser gente deveras vingativa quando o seu chefe é ameaçado.
Cat ergueu o queixo numa atitude orgulhosa.
- Além disso, não preciso que lhe partas a cabeça. Que satisfação é que isso me poderia proporcionar? Preferiria ser eu própria a fazê-lo. - Os lábios de Cat esboçaram
um sorriso felino. - De facto, foi precisamente isso o que fiz.
- Ah, mapetite chatte - retorquiu Martin, rindo-se à socapa. - Eu devia ter calculado isso mesmo.
- Foi a prenda que ofereci a Rory no dia do seu casamento, um murro bem dado que lhe partiu o nariz. A minha mãe desfaleceu de vergonha perante o meu comportamento,
enquanto o meu padrasto me deu uma valente tareia por causa disso. Não me importei. Valeu a pena. Depois de as dores
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nas minhas costas terem desaparecido, não voltei a dedicar um único pensamento ao Rory.
- De verdade? - perguntou Martin cético.
- Os corações não se partem, Martin - respondeu Cat, olhando para ele com um sorriso de tristeza. - Só ficam um pouco magoados. Aprendi a ser mais cautelosa.
- Tão cautelosa que te fechaste a qualquer outro homem desde então.
- Já tive outros amantes entretanto.
- Sim, mas nunca te permitiste voltar a correr riscos, entregando-te a essa espécie de amor que nos transporta até acima da Terra, que consome todo o nosso ser.
- Estás a referir-te ao que sentiste pela Miri Cheney - retorquiu Cat com uma fungadela de escárnio.
- Depois do que aconteceu com a Cassandra, nem sequer me sentia com direito a tocar nas botas da Miri. Mas, sim, passei muitos anos a esforçar-me por ser digno da
Miri.
- Estás a dizer-me que durante todo esse tempo te mantiveste celibatário?
- Bem... não. As minhas viagens e os meus deveres para com o rei de Navarra levaram-me com frequência para longe da Miri. Ocasionalmente, fui forçado a satisfazer
a lascívia da minha natureza, mas isso não teve nada a ver com a adoração que tinha pela Miri.
A súbita investida de Cat apanhou-o desprevenido. Empurrou-o para que ficasse deitado de costas e debruçou-se por cima dele com uma expressão de censura.
- Sabes qual é o problema contigo, Martin, o Lobo?
- Não - respondeu este com um suspiro. - Mas tenho a certeza de que estás prestes a dizer-me.
- Tens uma perspetiva do amor como sendo uma coisa transcendente, adorando sem qualquer reserva a mulher que é alvo dos teus afetos, como se ela fosse uma estrela
distante. - Cat deu um soco no ar, num gesto de frustração. - Precisas de uma mulher que seja terra a terra, que não tenha medo das realidades sujas da vida, que
sue e lute ao teu lado, os dois a olharem um pelo outro, cuidando e... protegendo-se mutuamente até ao fim dos vossos dias.
- E suponho que essa tua visão romântica inclua dois corpos quentes a esfregarem-se um no outro para satisfação mútua? - perguntou Martin com um arquear de sobrancelha
num trejeito sardónico.
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- Sim, isso também faz parte, sem dúvida alguma, dessa minha perspetiva.
- E o que me dizes a dois corações e almas que também se toquem? La grande passion? Não acreditas nisso? - perguntou ele num tom autoritário.
Cat saiu de cima dele.
- Suponho que isso possa acontecer, mas é tão raro como aquele cometa que anda a percorrer o firmamento. Tudo o que estou a dizer é que a próxima vez que te encontrares
com Lady Jane Danvers, em vez de a encheres de discursos cheios de floreados, devias... devias agarrá-la e beijá-la como se o mundo acabasse amanhã. Caso contrário,
é muito possível que passes os próximos dez anos a cortejá-la.
Cat levantou-se da cama de repente e aproximou-se da lareira. Pegou nos calções com brusquidão e começou a vestir-se.
Martin deixou-se ficar deitado de costas por uns momentos, sentindo-se atordoado. Nunca, em todas as vezes que dera prazer a uma mulher, tinha existido uma que se
tivesse levantado do seu leito, ordenando-lhe sem estar com meias-palavras que fosse fazer amor com outra mulher.
Sentou-se bruscamente, a morrer por dizer a Cat o que ela podia fazer com o seu conselho. Só existia uma mulher em todo o mundo que ele desejava beijar, e essa era
aquela amostra de mulher de cabelos ruivos, obstinada e enfurecedora, que voltava a vestir os calções dele.
Porque ele a amava.
Mon Dieu! Martin susteve a respiração, a irritação que sentia a desaparecer perante aquela perceção que o deixava atordoado.
Ele... ele estava apaixonado por Cat. Que grande idiota por não se ter apercebido disso mais cedo. Ela era o último género de mulher que ele esperaria que se apoderasse
do seu coração daquela maneira. Forte, dura, infernalmente independente e orgulhosa de mais para seu próprio bem.
Mas quando Cat revelava a faceta mais suave e mais terna da sua maneira de ser, deixava um homem a sentir que lhe haviam confiado um tesouro extremamente valioso.
Martin nunca conhecera nenhuma mulher tão capaz de o enfurecer num dado momento, para o excitar no imediatamente a seguir. Ao vê-la a vestir-se, as curvas suaves
do seu corpo banhado pelo clarão das chamas do lume na lareira, era o suficiente para ficar de novo com uma grande ereção.
Mas o que sentia por ela era muito mais do que o mero desejo sexual. Podia ser ele próprio com Cat, contar-lhe tudo, mostrar-lhe todas as suas fraquezas,
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sem a mínima necessidade de fingimentos, sem receio de que ela o considerasse menos homem por isso.
Martin amava Catriona OHanlon e o seu primeiro impulso foi saltar da cama para fora, tomá-la nos seus braços e dizer-lhe que a amava. Foi impedido por um pensamento.
Ela jamais acreditaria no que lhe dissesse. E porque é que haveria de acreditar, depois de o ter visto a cortejar Jane Danvers durante os últimos tempos, depois
de ele lhe ter confessado a adoração que sentira por Miri? Ela pensaria que era um idiota romântico que empregava a palavra amor a torto e a direito e teria toda
a razão.
Como é que conseguiria convencê-la de que o que sentia por ela era um sentimento mais genuíno do que qualquer outro que tivesse sentido em toda a sua vida. Não podia
e nem sequer tinha o direito de tentar.
Continuava a ter de pensar na filha. O que Cat mais almejava era voltar para a ilha Encantada, o local de todas essas estranhas associações místicas que ele tinha
de banir da vida de Meg. Se restasse alguma dúvida a Martin quanto a isso, as memórias que guardava de Cassandra e que invocara esta noite eram uma recordação amarga.
Cat deteve-se durante uns momentos, quando já apertava os cordões da camisa, para lhe lançar um olhar de impaciência.
- A chuva já parou. Temos de ir andando.
Martin acenou que sim e levantou-se da cama. Depois do seu interlúdio de pesadelo com Cassandra, tinha começado a detestar temporais. Jamais lhe teria passado pela
cabeça que se sentisse tão acabrunhado ao ver que um temporal já tinha passado.
O gentil-homem que desempenhava as funções de cocheiro permitiu que Walsingham entrasse na câmara mais privada da rainha, um privilégio concedido a um número muito
reduzido de pessoas, em especial a horas tão tardias da noite.
Como o próprio Walsingham, a rainha era conhecida por examinar relatórios e tratar de assuntos do reino pela noite adentro, a única pessoa do reino cujo trabalho
rivalizava com o dele.
Contudo, a rainha não estava sentada à sua mesa de trabalho como era habitual. Só ardiam algumas velas e as damas de honor mantinham-se juntas, falando em sussurros
que denotavam nervosismo.
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Walsingham não tinha dificuldade em imaginar qual o estado de espírito da rainha desde que lera a tradução da infame carta de Maria Stuart.
Mas, naquele momento, era-lhe difícil avaliar qual a disposição dela. A rainha mantinha-se de costas para ele, a figura alta e magra envolta nas sombras junto da
janela. Walsingham pouco conseguia discernir além do cabelo ruivo, as linhas angulosas do perfil enquanto ela olhava para fora, a sua atenção concentrada no firmamento
noturno.
O temporal já havia passado e as nuvens tinham-se dispersado o suficiente para deixarem ver uma pequena parte de uma Lua pálida, além da cauda do cometa tão ominoso.
Se bem que os seus cortesãos lhe implorassem repetidamente que não tentasse o destino ao olhar para aquele estranho fenómeno, era típico da maneira de ser desafiadora
e corajosa de Isabel que persistisse em olhar para o cometa tão audaciosamente.
A rigidez dos ombros indicou a Walsingham que ela estava bem ciente da sua presença, mas que se recusava a reconhecer.
- Majestade... - murmurou ele, ajoelhando-se rigidamente diante dela.
Mesmo assim, ela procedia como se ele não estivesse presente, e Walsingham sabia bem de mais porquê. Isabel era perita nas artes da procrastinação e adiamentos,
uma política que a servira bem em inúmeras circunstâncias, mas tal não poderia continuar em relação ao assunto da rainha escocesa.
Para seu bem, para bem do seu reino, ele tinha de lhe fazer ver isso mesmo, que seria forçada a encarar a nefasta tarefa que tinha diante de si.
- Sabeis das últimas notícias que nos chegaram de Roma? - perguntou a monarca por fim numa voz suave.
Sir Francis mexeu-se desconfortavelmente, sentindo os joelhos doridos.
- Não, majestade.
- O papa está a pensar em emitir outra bula papal de excomunhão.
- Contra quem?
- Não quem. Contra o quê. Sua santidade está a pensar em excomungar o cometa. Não considerais que isso tem tanto de divertido como de surpreendente?
- Nada consegue surpreender-me no que diz respeito às superstições absurdas dos papistas.
- Talvez seja uma coisa boa. Se servir para concentrar a atenção dos meus inimigos em encontrar uma maneira de destruírem o cometa, talvez eles se esqueçam, durante
algum tempo, de que querem destruir-me.
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A rainha lançou-lhe um olhar de impaciência antes de voltar a virar-se para a janela.
- Levantai-vos antes de desgastardes os vossos joelhos, velho Mouro. Walsingham endireitou-se rigidamente, retraindo-se quando os joelhos estalaram.
- Vossa majestade já... já teve tempo de examinar cuidadosamente a carta da rainha escocesa?
- Sim, já a examinei cuidadosamente. Como deveis estar cheio de júbilo. Por fim, essa mulher tão pateta forneceu-vos as provas que a condenarão.
- Posso garantir-vos que não sinto prazer nenhum em...
- Pelas chagas de Cristo!
Walsingham deu um pulo para trás perante aquela súbita explosão de cólera. A rainha era conhecida por socar e cuspir nos seus cortesãos quando o temível temperamento
dos Tudor se apoderava de si. Houve uma ocasião em que atirou um chinelo de quarto à cara de Walsingham.
Ele olhava desconfiadamente para Isabel, que tinha os dedos firmados no peitoril da janela. Mas após uns momentos tensos, ela pareceu ter conseguido dominar a sua
fúria, prosseguindo num tom de cansaço.
- Poupai-me às vossas afirmações. Como uma aranha extremamente diligente, haveis tecido as vossas teias ao longo dos últimos dez anos, ou mais, na esperança de virdes
a destruir Maria Stuart.
- Somente porque não consigo ver outra maneira de assegurar a vossa segurança e a do vosso reino.
- Sim, mas serei eu que terei nas minhas mãos o sangue de uma mulher que é da minha família. E um precedente demoníaco que estabelecerei, condenar à morte uma rainha
legítima.
Walsingham absteve-se de lhe lembrar que esse precedente já havia sido estabelecido pelo seu próprio pai. Ninguém se atrevia a mencionar o nome de Ana Bolena na
presença da rainha. A própria Isabel nunca falava da mãe. A rainha levou a mão às têmporas, massajando-as.
- Suponho que agora Maria Stuart deve ser levada a julgamento.
- Ela devia ser levada para a Torre de Londres...
- Não - ripostou Isabel exacerbada. - Não permitirei que o julgamento tenha lugar em Londres, onde eu seria obrigada a...
- Não - repetiu num tom de voz mais baixo, mas igualmente determinado. - Ireis preparar-me uma lista de outros locais adequados para o julgamento.
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Examiná-los-ei demoradamente, após o que vos darei a saber o que decidir.
Walsingham fez uma careta ao reconhecer outra tática de protelamento no que a rainha dizia.
- Majestade...
- Uma lista, Sir Francis. Quero que me seja apresentada amanhã - ordenou a rainha num tom que não admitia qualquer argumento em contrário.
- Sim, majestade - retorquiu Walsingham com um suspiro.
- Mas, agora, o que é que se passa com os outros? Os seis gentis-homens. - A rainha enfatizou o termo com uma expressão de escárnio. - Já haveis descoberto a identidade
desses galantes audaciosos que juraram acabar com a minha vida?
- Foi isso que vim dizer a vossa majestade - disse Walsingham. - Um dos meus agentes veio falar comigo há uma hora, levando-me provas novas. Agora estou de posse
dos meios que me permitem identificar todos os conspiradores. Já tratei de emitir mandados de captura para todos, incluindo a bruxa que parece ter estado envolvida
no assunto.
- A criatura que dá pelo nome de Rosa de Prata de que me haveis falado - retorquiu Isabel com um abanar de cabeça de aversão. - Conspirações para me atacarem com
práticas de bruxaria. O que é que se seguirá?
"Muito bem, Walsingham. Tratai das vossas detenções e da vossa maldita lista. Mas deixai-me em paz. Pelo menos, durante o resto desta noite. - Sem se voltar para
Walsingham, a rainha indicou-lhe que se retirasse com um gesto de cansaço da mão.
Walsingham fez uma curta vénia e retirou-se, apressando-se para ir cumprir as ordens da rainha antes que ela mudasse de ideias, encontrando alguma razão para proibir
o julgamento de Maria Stuart.
Walsingham sabia que a sua diligência lhe iria custar muito caro. Alguém teria de ser considerado culpado quando o machado separasse a cabeça da rainha escocesa
dos seus ombros. Ele esperava, sem dúvida nenhuma, que a maior parte do desagrado real recaísse em si e estava preparado para lhe fazer face.
Quanto à detenção da Rosa de Prata... Walsingham sentiu um baque de consciência. Martin, o Lobo, tinha prestado um enorme serviço ao secretário da rainha ao descobrir
aquela tela e levando-a tão prontamente à atenção de Walsingham.
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A morte da bruxa seria uma trágica recompensa pelas ações destemidas de Martin. Walsingham receava que Martin sofreria com isso, o que lamentava muito.
Mas Walsingham não podia permitir nenhum favoritismo para com Martin que o fizesse mudar de ideias. Como sempre, Sir Francis via com toda a clareza qual era o seu
dever e estava preparado para o cumprir. Custasse o que custasse.
Os raios cálidos do Sol do fim de tarde projetavam-se obliquamente sobre a mesa de madeira em tosco da cozinha, onde Maude descascava maçãs, os frutos vermelhos
e de casca luzidia na cesta de vime, enquanto um quarto de veado assava num espeto ao lume, o aroma de fazer crescer água na boca a misturar-se com a fragrância
dos ramos de ervas secas suspensos do teto.
Cenas e cheiros com que Cat estava familiarizada, mas pareciam-lhe quase desconcertantemente normais depois da aventura da noite anterior. O roubo da pintura, a
fuga que haviam conseguido apenas por um triz, o temporal, aquelas inesperadas horas nos braços de Martin, tudo aquilo lhe parecia que era um sonho.
Mas uma pessoa precisava de dormir a fim de poder sonhar e isso era coisa que Cat fizera muito pouco desde que regressara à Anjo. Sentira um grande alívio ao ver
que Meg continuava a dormir apesar do forte temporal. A garota era hábil de mais na leitura de olhos, pelo que teria sido tão embaraçoso como constrangedor explicar-lhe
a sua ausência.
Mas Meg nem sequer se mexeu quando ela entrou de mansinho na alcova que ambas partilhavam. A garota mantivera-se adormecida enquanto Cat passava o resto das horas
daquela noite no assento da janela, sentindo-se assombrada consigo mesma perante a loucura que cometera ao ceder ao amor que sentia por um homem que nunca haveria
de retribuir esse sentimento. No entanto, não conseguia levar-se a arrepender-se do que fizera. Aquele conflito de raciocínio e sentimentos não era um bom indutor
de sono.
Cat esfregou os olhos cansados e agachou-se próximo do jovem esgalgado que se contorcia no colchão colocado a um canto. Se Cat passara uma noite desassossegada,
era forçada a reconhecer que Jem tinha passado uma noite ainda
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pior. Tinha fios de cabelo louro escorridos e sujos agarrados ao rosto angular enquanto olhava para Cat com uns olhos que mostravam uma expressão confrangedoramente
infeliz, com uma mão fechada no maxilar inchado.
- Abre a boca, rapaz, e deixa-me dar uma olhadela - disse Cat pela terceira vez num tom encorajador.
Quando Jem persistiu em abanar a cabeça, retraindo-se para se afastar dela, Cat soltou um suspiro de irritação. A falta de sono e a luta que travava consigo própria
para dominar um coração magoado não contribuíam em nada para a sua paciência.
Apesar de Jem ter o dobro do seu tamanho, todo ele era pernas esgalgadas e braços cheios de tendões, Cat agarrou-o pelos cordões da camisa e falou-lhe numa entoação
de voz ameaçadora:
- Abre a boca se não queres que eu me ajoelhe em cima do teu peito para te abrir as queixadas à força.
Jem gemeu, mas entreabriu os lábios ligeiramente. Cat agarrou-lhe o queixo, obrigando-o a abrir mais a boca. Examinou a gengiva avermelhada, que inchava em volta
do dente acastanhado que estava podre.
A senhora Butterydoor mantinha-se atrás de Catriona a olhar para o rapaz. A idosa abanava a cabeça, dizendo judiciosamente:
- Miolos de lebre. É preciso esfregá-los por cima da gengiva inchada. São maravilhosos para acalmar as crianças que têm dentes a romper.
Cat mordeu a língua para se impedir de lhe dizer precisamente o que pensava de um costume tão idiota e repugnante. Ela e Agatha tinham estabelecido recentemente
uma espécie de tréguas e Cat esforçava-se por as manter, quanto mais não fosse pelo bem de Meg.
- Está a parecer-me que o Jem já não vai melhorar com esses remédios, senhora Butterydoor. Este dente vai ter de ser arrancado.
- Não! - gritou Jem aterrado.
Para grande surpresa de Cat, Agatha concordou com o que ela dizia.
- É melhor pedir ao amo que mande chamar o Turner, o barbeiro que mora na Rua Gunning.
- Não, não! - Jem abanou a cabeça repetidamente, tapando a boca com as mãos.
- Vê se te acalmas, meu menino - interveio Agatha, dando uma cotovelada a Cat para a tirar do caminho; inclinou-se para Jem e afastou-lhe os cabelos dos olhos. -
O mestre Turner é muito competente a arrancar dentes.
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Ele arranca-os com rapidez e pode aproveitar para te cortar o cabelo. Está a parecer-me que está a precisar de um bom corte.
A única resposta de Jem foi outro gemido patético. Cat deixou Agatha a consolar o rapaz o melhor que podia, enquanto foi procurar Martin. Ele tinha saído algumas
horas antes para tratar de um assunto qualquer e quando voltou fechou-se no seu pequeno gabinete.
Cat deparou com Meg, que se mantinha na ombreira da porta da cozinha. Olhou para Cat com uma expressão de ansiedade.
- Como é que o Jem está? O Samuel disse que ele... que o mais certo era ele morrer.
- O Samuel é um grande idiota que só sabe dizer disparates - retorquiu Cat, apertando ligeiramente o ombro da garota para a tranquilizar. - O Jem ficará bom assim
que o dente podre for arrancado.
Meg estremeceu, esfregando o seu próprio queixo, solidária com o sofrimento do rapaz. com um olhar furtivo em volta de si, fez um gesto a Cat para que se aproximasse
mais de si para poder segredar-lhe.
- Talvez eu possa fazer uma coisa para ajudar o Jem. Recordo-me de um remédio que li num... num livro, já não me lembro onde.
Cat ficou tensa. Pela maneira como Meg evitava os seus olhos, teve poucas dúvidas quanto ao livro a que a garota se referia.
- Existe uma poção que se aplica num lenço e que se leva às narinas da pessoa que está com dores até ela perder a consciência. Se eu fizesse isso ao Jem, toda a
gente pensaria apenas que ele tinha desmaiado. Desta maneira, o Jem não teria de suportar as dores. Mas eu teria de ser cuidadosa porque, caso se aplique muito dessa
poção, a pessoa pode...
- Não! - ripostou-lhe Cat no mesmo tom sussurrante. - Isso não seria nada sensato, Meggie.
- É mais sensato deixar que o Jem sofra?
- Ele não sofrerá.
Ouviu-se outro gemido dramático que vinha da cozinha, como se a contradizer o que Cat dizia. Fez uma careta.
- O rapaz só precisa de arranjar coragem. Uns bons puxões e as dores acabarão.
Meg não se mostrava muito convencida, mas quando Cat a incentivou a ir para o jardim, o que a impediria de ouvir as manifestações de sofrimento do rapaz, a garota
fez o que ela lhe dizia.
Só depois de Meg ter saído da cozinha é que Cat se mostrou apreensiva, perturbada pela sugestão dela. Havia já bastante tempo que Meg não aludia
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minimamente aos extraordinários conhecimentos que adquirira no Livro das Sombras.
A garota parecia andar tão empenhada nos seus esforços para aprender a tocar alaúde, a aperfeiçoar os seus trabalhos com agulha e a transformar-se numa menina inglesa
como devia ser, que era como se ela própria também estivesse determinada a enterrar o seu passado. Já não mantinha a sua lâmina de bruxa escondida na algibeira do
vestido, nem tão-pouco consultava o invulgar binóculo que fizera para poder estudar o cometa.
Catriona quase se permitira esquecer tudo o que a garota era capaz de fazer. Devia ter sabido que as coisas não seriam assim tão fáceis. As capacidades e os conhecimentos
que Meg possuía não eram facilmente renegados, as tentações que um tal poder suscitava estavam sempre presentes.
Quer Meg fosse para a ilha Encantada ou não, a garota precisava de aprender a lidar com os seus dons, que eram tão raros. De uma maneira qualquer, Cat teria de conseguir
persuadir Martin disso mesmo.
Mas quando entrou no gabinete dele, percebeu que aquele não seria o momento mais propício para abordar o assunto. A secretária estava abandonada, o cálamo, o tinteiro,
os registos de contas e o livro-razão espalhados pelo tampo da mesa. Martin olhava fixamente pela janela, mostrando um semblante carregado.
A sua expressão iluminou-se quando Cat entrou no pequeno gabinete. Os olhos de ambos cruzaram-se e, por uns breves momentos, Cat teve a sensação de que o ar que
os envolvia ficava mais pesado com as recordações da noite anterior. Acostumada a olhar desassombradamente para qualquer homem, Cat fez uma coisa que nunca tinha
feito antes. Foi a primeira a desviar o olhar.
- E então, como é que o nosso há tanto tempo sofredor Jem está? perguntou Martin.
Os lábios de Cat contraíram-se num trejeito escarnecedor.
- Está a comportar-se como um bebé chorão. A senhora Butterydoor diz que é melhor chamar o mestre Turner, com o que eu concordo. Antes que o Jem me faça perder a
paciência, resolvo o seu problema à minha própria maneira. - Quando Cat bateu com o punho fechado na palma da outra mão, Martin sorriu.
- Pobre Jem. Muito bem. O Samuel que vá buscar o barbeiro.
Cat acenou num gesto de aquiescência. Era-lhe extremamente difícil não sentir constrangimento na presença de Martin, fingir que a noite anterior não tinha
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sido mais do que um encontro casual, uma ânsia de paixão que fora apaziguada por uma cambalhota entre lençóis.
Não interessava que aqueles momentos de paixão entre os dois tivessem intensificado ainda mais o desejo ardente por ele, tendo reforçado o amor que lhe dedicava.
Reconfortou-se ao pensar que, pelo menos, continuava a ter o seu orgulho. Martin nunca viria a ter conhecimento da sua idiotice.
Quando ele se virou de novo para a janela, Cat examinou a linha rígida das costas dele. O sorriso fácil de Martin e o tom ligeiro talvez enganassem o resto do mundo,
mas ela conhecia o homem bem de mais para se deixar enganar.
Juntando-se a ele junto da janela, Cat teve de resistir à muita vontade de massajar o pescoço dele para lhe aliviar alguma da tensão. Levando em linha de conta a
facilidade com que o seu desejo por ele podia ser reacendido, ela procederia mais acertadamente se começasse a aprender a reprimir as suas mãos. Cobriu as mãos com
o avental.
- O que é que se passa? - perguntou-lhe Cat. - Eu estava à espera de um pouco mais de jactância depois do teu encontro com o Walsingham. Garantiste-me que tudo tinha
corrido bem.
- Correu bastante bem - replicou Martin, encolhendo os ombros.
- Sir Francis pareceu-me bastante satisfeito comigo. Prometeu-me que seria recompensado generosamente por ter descoberto a tela e disse-me que posso dar por finda
a minha participação neste assunto. Não preciso de me envolver mais no caso.
Fez uma pausa e admitiu com relutância:
- Mas esta manhã arrisquei-me voltando a casa do Poley.
- Martin! - Cat deu largas à sua preocupação e frustração, dando-lhe um soco no braço.
- Eu sei. - Contraiu-se, esfregando o braço onde ela o socara. - Sei que foi uma coisa muito idiota que fiz. Mas depois de todos os riscos e perigos da última semana,
era forçoso que eu me inteirasse do desfecho da situação.
"Fiquei a observar à distância quando prenderam o Ballard, que tinha ido à procura do Babington, razão por que prenderam o padre no jardim da casa do Poley. Mas
o Babington conseguiu escapar por uma unha negra.
- Ah, por isso é que estás tão tenso.
- Não, tenho de confessar que parte de mim deseja que o jovem idiota consiga escapar aos horrores da morte reservada a um traidor - disse Martin
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com um suspiro. - Mas quando os soldados da rainha assaltaram a casa, prenderam o Robert Poley.
- O Poley!? Mas ele é um dos homens do Walsingham, tal como tu és.
- São os perigos que se correm quando se é um espião, minha querida. É muito fácil que se seja confundido com um dos conspiradores. O Walsingham advertiu-me de que
me mantivesse afastado quando procedessem às detenções.
- E devias ter-lhe dado ouvidos! - ripostou Cat exacerbada.
- Percebi isso quando vi o pobre diabo do Poley a ser arrastado para a prisão. Não fosse pela graça de Deus... - Martin interrompeu-se, deixando aquela reflexão,
que lhe dava muito que pensar, por concluir. - Senti-me tão estranho quando vinha a caminho de casa sem que me tivesse acontecido nada de mal. Os rumores sobre uma
conspiração para assassinar a rainha já tinham começado a espalhar-se pelas ruas. Diz-se que se tratou de um conluio dos católicos para destruírem o reino. Em todos
os lugares onde fui, ouvi exclamações de horror e orações pela segurança da rainha e de todos os seus súbditos leais.
- "Que Deus nos livre do Diabo, do papa e do cometa" - citou Martin com ironia. - E, depois, toda a gente retomava as suas tarefas diárias como se não fosse nada
com eles.
- É a maneira de as pessoas conseguirem sobreviver, Martin - disse Cat. - A vida é feita mais de pequenas coisas e de momentos rotineiros do que de grandes acontecimentos
ou de circunstâncias cataclísmicas e todos devíamos agradecer à boa Terra-Mãe por isso.
- Suponho que sim. Muito embora eu tenha de reconhecer que a noite de ontem foi tudo menos rotineira. - Martin surpreendeu-a quando entrelaçou os dedos nos dela.
O coração de Cat começou a bater com rapidez. Teve de lembrar a si mesma que se tratava apenas de um gesto casual da parte dele. Ao fim e ao cabo, tinham sido amigos
antes de passarem a ser amantes.
- Cat... - começou Martin a dizer.
- Sim?
Quando ela o fitou com aquele seu olhar límpido e sereno, sentiu-se incapaz de continuar. Martin nunca havia sido um homem calado nem particularmente estóico. Parecia-lhe
extremamente antinatural manter-se impávido e sereno, quando sentia um amor tão profundo por aquela mulher sem lho dar a saber.
Subitamente apercebeu-se de que não era o facto de o resto da população de Londres tratar dos seus assuntos calmamente hoje, como se não tivesse
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acontecido nada de invulgar, que o perturbava. Era Cat. Depois da paixão que haviam partilhado na noite anterior, como é que a mulher era capaz de parecer tão -
tão blasé e inteiramente alheada do que se passara? A atitude dela irritava-o ao ponto de desejar puxá-la para os seus braços e beijá-la até que ela lhe implorasse
por misericórdia. E que fosse para o diabo qualquer pessoa que deparasse com eles naqueles propósitos.
Foi poupado à tolice de tal ação pelo barulho de alguém que batia insistente e fortemente à porta da frente, exigindo que lhe permitissem entrar.
- É melhor eu ir ver o que se passa - disse Cat. - Atender à porta, habitualmente, é uma tarefa que cabe ajem, mas não me parece que ele esteja em condições de o
fazer.
Cat saiu apressadamente do gabinete e só baixou a guarda quando já se encaminhava para a porta da frente. Era uma das coisas mais desconcertantes na maneira de ser
de Martin, o Lobo, como ele conseguia fazer com que uma mulher se sentisse devastada com um olhar abrangente dos seus olhos verdes de expressão tão intensa.
Corada pelo calor da situação, Cat resistira à muita vontade de se abanar com a orla do avental. Deteve-se durante uns momentos para se recompor, adquirindo a postura
de uma criada aprumada. Abriu a porta toda para trás, apanhando de surpresa a pessoa que estava na soleira prestes a bater à porta de novo.
Alexander Naismith baixou o punho fechado. O jovem parecia estar num estado de grande agitação, o cabelo louro todo despenteado, o rosto coberto de suor como se
tivesse vindo sempre a correr de Southwark a Cheapside. Tirou a boina e começou a falar quase sem fôlego.
- M... mestre Wolfe. P... preciso de falar com ele imediatamente. Antes que Cat pudesse responder-lhe, Naismith empurrou-a para o lado
e entrou dentro de casa. Martin devia ter ouvido alguma coisa porque saiu do gabinete, os sobrolhos franzidos numa expressão apreensiva.
- Sander? O que é que se passa, meu rapaz? Aconteceu alguma coisa no teatro?
O rapaz dobrou-se sobre si mesmo, agarrado ao flanco enquanto tentava recuperar o fôlego.
- N... não é o teatro. Casa Strand. Os soldados da rainha assaltaram a residência dos Lambert. Tinham um mandado de prisão, mestre Wolfe. Deveis ir de imediato para
t... tentardes ajudar.
Martin e Cat trocaram um olhar de perplexidade.
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- Mas isso é absolutamente impossível - disse Cat por fim. - O Walsingham não te assegurou de que...
Mas Martin silenciou-a com um ligeiro abanar de cabeça com que a avisava para que tivesse cuidado com o que dizia em frente de Sander. Martin pousou firmemente a
mão no ombro do jovem.
- Estás a dizer-me que Lorde Oxbridge foi preso?
- N... não. Não faço ideia do paradeiro de Ned. Foi a irmã dele que... que foi acusada de traição - explicou Sander, endireitando-se e acrescentando num tom de grande
consternação: - Lady Jane Danvers foi levada para a Torre de Londres.
O rosto de Martin ficou sem pinga de sangue, tal o choque e desespero que se apoderaram dele. Começou a andar de um lado para o outro no vestíbulo, passando a mão
pela cara, sendo bem evidente o turbilhão de emoções que lhe ia por dentro.
Deteve-se abruptamente, como se tivesse tomado uma decisão, e Cat receava muito saber qual seria. Virando-se para Sander, agradeceu ao jovem por ter ido a sua casa
para lhe dar aquela notícia.
- E agora vai à cozinha para te recompores. A Agatha dá-te um pouco de cerveja.
- Mas a pobre Lady Jane Danvers! Ireis imediatamente em seu socorro? Martin fez um acenar de cabeça. Deu uma palmada no ombro do rapaz e mandou-o para a cozinha.
Cat esperou até ele não poder ouvi-los antes de se virar para Martin.
- Ir em socorro dela? - disse enquanto seguia Martin de volta ao pequeno gabinete. - O que é que estás a pensar que vais fazer? Nem sequer tu podes entrar pela Torre
de Londres adentro sem mais nem menos.
- Não, mas posso começar por entrar pelo gabinete do Walsingham adentro - ripostou Martin, batendo com o punho cerrado na prateleira acima da lareira e praguejando.
- Maldito homem e a sua língua dúbia. Ontem à noite, o Walsingham jurou-me que não tinha qualquer intenção de prender o Ned Lambert. Mas o velho diabo já devia estar
a maquinar isso há muito tempo, deter a Jane em vez do irmão.
- Mas o Walsingham deve ter tido algum motivo...
- Motivo! Que motivo é que ele poderia ter para prender uma das senhoras mais generosas e irrepreensíveis de Londres?
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- Suponho que nenhum. A mulher é um anjo. - Cat não conseguiu manter a entoação de azedume do seu comentário, mas Martin pareceu não se ter apercebido.
Quando já pegava no seu manto, ela bloqueou-lhe o caminho, fazendo um último esforço desesperado para chamá-lo à razão.
- Martin, o Walsingham disse-te que a tua participação em todo este assunto tinha acabado. Também te advertiu para que não voltasses a envolver-te nisso. Compreendo
os teus... os teus sentimentos por Jane Danvers, mas só vais conseguir correr um grande perigo. Não estou a ver como é que poderás ajudá-la.
- Eu também não sei, mas tenho de tentar. - O olhar de Martin concentrou-se no dela, os olhos verdes a darem a impressão de lhe suplicarem que compreendesse.
E Cat compreendia até bem de mais. Pedir a Martin, o Lobo, que ignorasse uma donzela em perigo era o mesmo que esperar que o fogo não queimasse. Em especial, quando
se tratava da mulher que ele queria para sua esposa e como mãe de Meg.
Cat sentiu um baque de ciúme, mas esforçou-se por ignorá-lo. Até foi capaz do assomo de um sorriso quando lhe disse:
- Oh, de acordo. Vai ver o que podes fazer para salvares a senhora que amas. Eu pedir-te-ia que fosses cuidadoso, mas seria o mesmo que esperar que o papa passasse
a ser um puritano.
Martin retribuiu-lhe o sorriso.
- Prometo que terei cuidado. Juro que regressarei para junto de ti... e de Meg antes de dares por eu ter saído.
- Estarei aqui.
Martin estendeu a mão para a dela, mas Cat furtou-se a ele, saindo do gabinete num passo apressado. Martin viu-a a afastar-se com tristeza, desejando poder ter-lhe
dito.
Não era o amor que o levava a querer salvar Jane. Era um sentimento de culpa.
A Torre de Londres erguia-se qual sentinela acima do porto de Londres desde o século xII. Fortaleza, palácio e cárcere, a torre branca, circundada por muralhas resistentes,
era tanto uma fonte de orgulho quanto de terror para os londrinos.
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Martin recordava-se de como, aquando da sua primeira visita a Londres, sentira uma enorme satisfação ao lembrar a um inglês arrogante que a imponente fortaleza havia
sido mandada erigir por Guilherme da Normandia e que fora construída com pedra importada de França.
Mas essa alfinetada pareceu-lhe ter sido toda uma vida antes. Enquanto Martin seguia o alabardeiro da Torre de Londres mais para o interior da fortaleza, era como
se sentisse todo o poder do reino inglês a abater-se sobre si.
A frialdade que se instalou nos seus ossos devia-se a algo mais do que à humidade das paredes de pedra. Martin conseguia ouvir os gemidos de desespero que vinham
das celas, o entrechocar das correntes. A prisão estava impregnada do cheiro a medo e desesperança. Martin sentia-se horrorizado ao pensar na delicada Lady Jane
Danvers encarcerada num lugar daqueles.
Como é que poderia ter acontecido uma coisa daquelas, era coisa de que Martin não fazia a mínima ideia. Não havia sido capaz de encontrar Walsingham para lhe exigir
uma explicação. Ou o secretário da rainha andaria a evitá-lo deliberadamente ou estaria a braços com as suas próprias dificuldades. Chegado a Whitehall, Martin ouvira
mais rumores. A rainha dos escoceses ia ser presa e dizia-se que Isabel não estava nada agradada com isso.
Impossibilitado de confrontar Walsingham, Martin adotara o único outro curso de ação que lhe ocorreu à mente. Tinha subornado um dos guardas da Torre de Londres
para que lhe permitisse visitar Jane. Pelo menos, poderia ver como é que ela estava a passar e pedir-lhe para que lhe dissesse qual a natureza das acusações contra
si.
Enquanto Martin seguia o guarda pelo chão empedrado de superfície irregular, tinha a sensação de que também estava agrilhoado, porque cada passo que dava era sobrecarregado
pelo peso da culpa.
Se tivesse sido sincero com Jane, se, ao menos, a tivesse avisado de que Walsingham andava a investigar a família Lambert, teria sido possível a Martin encontrar
maneira de impedir que Jane tivesse de passar por aquilo? Até que ponto é que ele, ainda que inadvertidamente, era responsável por ela ter sido presa?
Mas isso era algo que Martin só poderia saber depois de ter falado com Jane. Temia o momento em que estaria frente a frente com ela, confessando-lhe a sua própria
traição por ter espiado a soldo de Walsingham. Esforçou-se por se couraçar quando o alabardeiro abriu a porta da cela de Jane.
- Posso conceder-vos dez minutos - lembrou-lhe o homem concisamente. - Nem mais um minuto.
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Martin acenou que sim antes de entrar na cela e ouvir a porta a ser trancada atrás de si. Sentiu algum alívio ao ver que não se encontrava na masmorra infestada
de ratazanas que imaginara, com Jane acorrentada e acoitada numa enxerga de palha.
Sua senhoria estava presa como era apropriado ao seu estatuto social, numa câmara com um teto abobadado e três janelas em cruzeta de vários braços. Estava mobilada
com um leito de dossel e uma pequena mesa onde se via um modesto repasto de pão, queijo e vinho. Tinham colocado na câmara um colchão para a criada de Lady Jane
Danvers, mas Jane encontrava-se sozinha.
Estava sentada num banco baixo junto de uma das janelas, esforçando-se para poder coser à pouca claridade que ainda havia. Ergueu a cabeça, olhando para Martin quando
este entrou, o seu semblante a mostrar uma forte emoção, o que os lábios trémulos refletiam.
Martin compreendeu que era a única visita que ela recebia desde que tinha sido presa. Quase estava à espera que ela se levantasse de um salto, atirando-se para os
seus braços a chorar convulsivamente. Certamente que a maior parte das mulheres teria feito isso mesmo.
Todavia, Jane recompôs-se rapidamente. Levantou-se com uma postura digna, estendendo-lhe a mão com tanta graciosidade como se estivesse a recebê-lo no salão de sua
casa.
- Mestre Wolfe.
Martin teria tido mais facilidade em lidar com lágrimas. Pelo menos, teria tido oportunidade de tentar reconfortá-la nos seus braços. Aquela coragem serena era o
suficiente para o desfazer, cravando ainda mais fundo os espigões da culpa.
- Vossa senhoria - disse Martin com uma elegante vénia, tentando igualar a fachada de coragem a que ela se impusera. Mas havia qualquer coisa na maneira como o queixo
de Jane se inclinava que fez com que se lembrasse de Meg, quando a filha se esforçava denodadamente para mostrar coragem.
Incapaz de continuar com aquela charada, Martin pegou-lhe nas mãos, fechando-as nas suas.
- Jane, vim assim que soube da notícia.
- Que generosidade da vossa parte.
- Não tenho o mínimo resquício de generosidade em mim. - Ter consciência da sua duplicidade fazia com que tivesse dificuldade em olhar para ela frontalmente. - Sou
o mais infame vilão à face da Terra! - Aquela afirmação tão intempestiva surpreendeu-a manifestamente. Tentou rir-se.
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- Não de acordo com o que a coroa diz, o vilão, ou melhor dizendo, vilã, mais infame sou eu.
- Não sei o que se passou para que vos tenham prendido, mas juro-vos que vos porei em liberdade antes do pôr do Sol. - Uma promessa impetuosa, reconheceu Martin,
tentando refrear-se. A última coisa de que Jane precisava dele naquele momento era da sua habitual atitude de fanfarrão.
- Assim que eu encontrar o Walsingham, tenho a certeza de que poderei esclarecer esta situação. Eu... eu conheço o secretário da rainha, embora não intimamente...
Ela interrompeu-o com um abanar de cabeça, mostrando uma expressão de tristeza.
- É muito gentil da vossa parte, Marcus, mas isto é um pouco diferente de um trambolhão no Tamisa. Receio ter de vos dizer que desta feita não sereis capaz de me
salvar.
Martin apertou-lhe as mãos.
- Isto só pode ser um mal-entendido de pesadelo. Não pode ser outra coisa. De que é que eles vos acusam?
- De ter encontros secretos com um inimigo da coroa, um padre católico.
- Mas isso é um rematado disparate!
- Não, não é - retorquiu Jane, afastando as mãos das dele. - Sou culpada daquilo que me acusam.
Martin ficou a olhar para ela, demasiado perplexo para lhe dar réplica.
- Foi por isso que o carcereiro se ofereceu para permitir que a minha criada ficasse comigo - continuou Jane. - Mas recusei. Não vi por que motivo é que a pobre
senhora Porter devia ser forçada a partilhar o meu encarceramento. Fui a única responsável pelo que me está a acontecer.
Martin recuperou a fala, por fim.
- Estais a dizer-me que haveis participado numa conspiração com vista ao assassínio da rainha Isabel?
- Não! -Jane mostrou-se estupefacta por aquela insinuação tão descabida. - Juro por minha honra que não fazia a mais pequena ideia de que o padre Ballard estivesse
envolvido numa conspiração dessa natureza. Nos meus momentos de maior amargura, tenho sentido cólera e desilusão perante o comportamento de Isabel, sentindo-me até
mesmo atraiçoada, todavia continuo a considerá-la a minha legítima soberana. Jamais procuraria fazer mal a sua majestade. Mas é verdade que me tenho encontrado com
o padre
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Ballard - admitiu Jane com um suspiro - desde que ele chegou a Londres, fazendo-o entrar às escondidas na Casa Strand, a horas tardias da noite, para dizer missa,
para ministrar os sacramentos da confissão e da comunhão. Atos de fé que nos tempos que correm tão deploráveis são considerados atos de traição.
Depois de todos os riscos tão perigosos que ele próprio correra, Martin seria a última pessoa com o direito de censurar o procedimento de Jane. Mas não pôde evitar
uma repreensão, ainda que articulada suavemente.
- Deus nos valha, Jane. Compreendo os vossos sentimentos ou, pelo menos, estou a tentar compreender. Mas sabíeis que receber em casa um padre católico é ilegal.
Dar-se-á o caso de a vossa vida ter realmente o valor de uma missa?
- Não, mas a minha alma tem. Nunca tínhamos discutido fés religiosas. Não faço a mais pequena ideia de qual é a vossa, mas também não preciso de saber. Nunca me
achei com o direito de fazer juízos de valor sobre a fé dos outros.
Jane virou-se para a janela, a luz que entrava pela estreita cruzeta refletia-se na fisionomia empalidecida, mostrando um semblante de uma determinação que era inabalável.
- Eu e aqueles por quem sou responsável, os serviçais da minha casa, fomos criados a acreditar na verdade da religião católica. Desde o dia em que nascemos que tem
sido a nossa fonte de força, tornando suportáveis os sofrimentos da vida e até mesmo a perspetiva da morte. Terem-nos tirado tudo isso de uma penada, um selo real
aposto num decreto parlamentar...
Os lábios de Jane estreitaram-se numa linha contraída.
- É duro, cruel e insuportável. Sim, eu arriscaria a minha vida por uma missa, para proporcionar esse conforto à minha gente, ainda que tenha de desafiar a minha
rainha e a minha pátria. Porque é o procedimento mais correto. - Virou-se de novo para Martin com um sorriso esmorecido. - Parece que, afinal de contas, herdei a
minha quota-parte do sangue rebelde dos Lambert. É bastante irónico que tenha sido eu, sempre tão receosa por temer que acontecesse alguma coisa de mal ao Ned, quem
acabou por vir parar a Tower Hill.
- Que é feito do vosso irmão? - perguntou-lhe Martin.
- Não sei. Felizmente, ele não se encontrava em casa quando os soldados chegaram para me prenderem. Rezo para que ele tenha tido o bom senso de se esconder e de
se manter no seu esconderijo. - Pela primeira vez, a
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compostura dela sofreu um ligeiro abalo. Enclavinhou a mão no braço de Martin. - Sinto-me aterrada ao pensar que o Ned possa cometer alguma imprudência num esforço
para me libertar. Tendes de o impedir. Persuadi-lo a escapar para França até este assunto ficar resolvido. Martin pousou a mão em cima da de Jane.
- Farei o meu melhor. Mas se fôsseis minha irmã, posso garantir-vos que jamais seria persuadido a pôr-me em fuga, abandonando-vos à vossa sorte.
- Vossa irmã? - perguntou Jane, olhando para ele com um arquear inquisitivo de sobrancelhas. - Houve uma altura em que acreditei que me víeis sob uma perspetiva
diferente.
- Jane, eu... - começou Martin a dizer pesaroso, mas ela silenciou-o, levando os dedos aos lábios dele.
- Não tem importância. Há já muito tempo que não inspiro sentimento nenhum num homem, a não ser uma dedicação fraternal. Muitos namoros têm por base posição social,
riqueza e conveniência. Para minha infelicidade, passei a ser uma mulher extremamente inconveniente.
- Oh, Jane - murmurou Martin, levando a mão dela aos lábios respeitosamente. - Muito embora eu tenha a maior estima por vós, sinto vergonha ao admitir que vos fiz
a corte por causa da vossa posição social, porque pensei que seríeis uma mãe excelente para a minha filha.
- Considero que isso é um grande cumprimento e pelo qual vos agradeço. - Jane apertou-lhe a mão antes de se afastar dele. - Não existe motivo para vos sentirdes
envergonhado, Marcus. Tendes sido um bom amigo tanto para o Ned como para mim.
- Não, para minha vergonha, isso não é verdade.
Quando os olhos dela se abriram muito de surpresa perante a veemência das palavras dele, Martin fortaleceu-se, respirando fundo, após o que lhe contou tudo o que
se passou durante os meses em que agiu como espião de Walsingham.
Jane ouviu a confissão dele em silêncio, o seu semblante a espelhar mais tristeza do que cólera. Jane só falou quando Martin, por fim, ficou em silêncio.
- Se eu tivesse sido abençoada com uma filha como a Meg, teria procedido da mesma maneira como haveis feito. Teria feito qualquer trabalho e correria qualquer risco
para assegurar o futuro dela.
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Martin só conseguiu olhar para ela de boca aberta, sentindo um misto de perplexidade e humildade face à capacidade de compreensão e perdão de Jane.
- Sois um verdadeiro anjo.
- Se acreditais nisso - retorquiu ela com um riso seco -, vós e eu não teríamos sido realmente talhados um para o outro. Estou muito longe de ser angélica. Sou capaz
de vos perdoar tão prontamente porque não existe nada por que tenha de vos perdoar. Fizestes tudo o que estava ao vosso alcance para ilibar o Ned. Não fazíeis a
mínima ideia de que era eu quem precisava de ser protegida.
- Nunca me ocorreu que poderíeis manter contacto com o Ballard. Portanto, onde diabo é que o Walsingham encontrou a prova que serviu para vos acusar?
- No senhor Timon.
- O criado de quarto do vosso irmão? - perguntou Martin. - Foi ele que vos traiu?
- Tanto eu como o Ned nos enganámos ao acreditar que o Timon era um católico devoto, mas parece que ele tem andado a estudar a nova doutrina há já algum tempo. Ele
teve medo de revelar a sua nova fé religiosa por recear perder o emprego. Viu-se encurralado entre a sua lealdade para com a nossa família e a sua nova religião;
a consciência do pobre Timon ficou dividida ao meio.
- Um facto que Walsingham, sem dúvida, se apressou a explorar para seu benefício - retorquiu Martin com azedume.
Jane concordou com uma expressão de tristeza.
- A minha pobre Sarah sentiu que a sua alma estava em perigo devido à falta de um padre católico. O Timon receava pela dele porque tentou ajudar-me a levar um padre
a minha casa.
- Este conflito religioso é odioso.
- Tendes razão e, por vezes, temo que todos acabaremos condenados por causa disso. O derramamento de tanto sangue inocente dos dois lados - murmurou Jane.
- Não terão uma única gota do vosso - retorquiu Martin determinado.
- A associação com um padre católico é ilegal, mas ouvi dizer que a rainha pode ser bastante tolerante, perdoando essa infração. É a conspiração de assassínio que
vos coloca numa situação tão perigosa. Se conseguirmos convencer a rainha de que não haveis participado nisso...
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- É possível que isso seja difícil de provar - interrompeu Jane. - A acusação de traição não é a única que pesa sobre mim. Também sou acusada da prática de bruxaria.
- O quê!?
- O Timon falou a Walsingham da existência da câmara secreta do Ned. O secretário da rainha acredita que sou eu quem a utiliza com vista a objetivos sinistros.
- Mas Sir Francis é um homem razoável. Por que carga de água é que ele haveria de acreditar numa coisa dessas?
- Não sei. Eu própria não sou capaz de compreender o que se passou em toda a sua dimensão - retorquiu Jane, erguendo a mão num gesto de lassidão. - Havia uma referência
qualquer numa carta remetida de França, na qual se aconselhava os conspiradores a procurarem a ajuda de uma feiticeira. Uma vez que eu mantinha contacto com o padre
Ballard e por causa da câmara secreta do Ned, de uma maneira qualquer o Walsingham chegou à conclusão de que eu devia ser essa... essa Rosa de Prata.
Martin ficou com a respiração presa na garganta. Ao ouvir aquele nome tão temido, sentiu-se como se o coração lhe tivesse parado de bater.
- Quem? - perguntou numa voz enrouquecida.
- A Rosa de Prata. Aparentemente, correm algumas histórias bastante estranhas no estrangeiro acerca de uma feiticeira lendária que, em tempos, ameaçou a vida da
rainha Catarina de Médicis. Acredita-se que, atualmente, essa bruxa reside em Inglaterra.
Martin teve a sensação de que o seu rosto ficava sem pinga de sangue. Teve de se afastar de Jane para que ela não se apercebesse do quanto estava abalado. Sabia
que as histórias que se contavam em França entre as Filhas da Terra a respeito de Meg eram inúmeras e extravagantes. Mas pensar que a lenda da Rosa de Prata se tinha
espalhado até tão longe, despertando a atenção de Walsingham, encheu Martin de terror. Mal conseguiu concentrar-se no que Jane continuava a dizer.
- É claro que viajei frequentemente através da França com o meu irmão, mas suspeitar que eu seja essa poderosa bruxa francesa... Parece-me tão ridículo que podia
dar-me vontade de rir - dizia Jane, que tentou rir sem grande êxito. - Suponho que agora deva temer tanto a perda de uma orelha como de vir a ser degolada. - O último
comentário de Meg sobressaltou Martin, que deu uma meia-volta repentina, ficando de frente para ela.
- Peço desculpa, mas não ouvi.
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- A minha orelha - repetiu, levantando a mão para a puxar. - É por esse meio que, muitas vezes, a lei pune os que são condenados pela prática de necromancia. Cortam
a orelha da pessoa em questão.
- Pensava que esse era o castigo por roubo - disse Martin franzindo o cenho.
- Pode ser. Também pode ser a sentença aplicada aos espiões - adiantou Jane com um olhar frio. - Mas, com mais frequência, decepar uma orelha é a punição para os
que são acusados de feitiçaria, como aconteceu ao jovem ator Naismith.
- Naismith!? - ecoou Martin numa voz roufenha.
- Poder-se-ia pensar que ter ficado sem uma orelha teria servido de lição ao desventurado rapaz - retorquiu Jane, cerrando os lábios. - Contudo, recentemente, cheguei
à conclusão de que é a deplorável influência de Sander Naismith que tem mantido o Ned tão interessado nas artes proibidas.
Os pensamentos de Martin ficaram num turbilhão. Sander tinha-lhe dito que lhe cortaram a orelha por roubo. Porque é que o rapaz lhe teria mentido quanto a isso?
Martin não conseguia pensar em nenhuma boa razão.
Sentiu-se ainda mais inquieto ao lembrar-se de que não havia sido por sua iniciativa que Sander tinha começado a ensinar Meg a tocar alaúde. Fora o contrário, tendo
sido o próprio Sander a oferecer veementemente os seus serviços.
Talvez com demasiada veemência? Teria sido por mero acaso que o rapaz, que também se dedicava ao ocultismo como passatempo, mostrara tanto interesse em ensinar música
à filha de Martin? Dever-se-ia a outra coincidência o facto de ter sido Sander a dar a notícia a Martin do que se havia passado com Jane, implorando-lhe que se apressasse
a ir em seu auxílio? Naismith nunca tinha demonstrado anteriormente qualquer interesse pelo bem-estar de sua senhoria.
Martin tentou aquietar os seus temores, dizendo a si próprio que estava a inquietar-se sem razão para isso. Meg encontrava-se em segurança em casa, além de ter Cat
com ela. Mas sentia-se arrepiado ao pensar que permitira a Naismith, que, aparentemente, procedia com falsidade, que andasse livremente pela sua casa.
Assolado por aqueles pensamentos, Martin mal deu conta do regresso do carcereiro, que lhe foi dizer que a duração da visita tinha acabado. Martin despediu-se apressadamente
de Jane, urgindo-a a que não se deixasse abater pelo desânimo. Assegurou-lhe que voltaria dentro de pouco tempo, prometendo-lhe... mal tinha noção do que mais é
que lhe prometera.
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A provação por que Jane estava a passar foi, momentaneamente, relegada para segundo plano perante a urgência, a necessidade instintiva, que levava Martin a querer
ir de imediato para casa, para junto da filha.
Meg balouçava as pernas sentada no banco de pedra do jardim, resistindo à vontade quase irresistível de tapar os ouvidos. Continuava a conseguir ouvir os gritos
patéticos do pobre Jem, que lhe chegavam vindos da cozinha.
Em vez disso, entrelaçou as mãos apertadamente em cima do colo, esforçando-se por não pensar naquele encantamento que tinha aprendido no Livro das Sombras, aquele
que teria podido, com tanta facilidade, fazer com que Jem perdesse a consciência. Sem dúvida que Cat agira com sensatez ao admoestá-la, dizendo-lhe que esquecesse
o assunto.
O problema era Meg não conseguir tirar aquilo da ideia. A sua memória era extraordinariamente boa. Inteirara-se dessa poção em particular quando a mãe lhe ordenou
que estudasse o Livro das Sombras, a fim de encontrar uma cura para a sua cegueira.
Apesar de ter conseguido o que ela lhe pedira, Meg mentira à mãe. A cura para a cegueira requeria o uso da poção que fazia com que uma determinada pessoa perdesse
a consciência, após o que descrevia uma delicada magia para lhe roubar a visão, dando-a a outrem. O dador ficaria cego, talvez até morresse, caso se lhe administrasse
um excesso da poção que o poria a dormir. Mas isso era coisa que nunca teria perturbado Cassandra Lascelles.
Talvez Meg fosse tão demoníaca como a mãe ao considerar a utilização dessa poção soporífera, mesmo numa tentativa de fazer o bem. Devia encher-se de coragem para
destruir o Livro das Sombras, mas Meg receava que já fosse tarde de mais para isso.
Uma grande parte dos ensinamentos do livro já estava guardada na sua memória e cada vez se sentia mais tentada a usar esses conhecimentos. Se ao menos tivesse conseguido
aprender como utilizar a bola de cristal que lhe permitiria adivinhar o futuro. Mas não lhe fora possível.
Agora parecia-lhe que só existia uma maneira de vir a inteirar-se da verdade acerca de si própria e sobre o seu destino. A necromancia. Teria de tentar pôr em prática
o encantamento que ergueria o vidente Nostradamus dos mortos. Exatamente como a mãe havia feito.
Os pensamentos de Meg foram perturbados quando ouviu alguém que saía de dentro de casa. Ergueu o olhar com uma expressão ansiosa, esperando
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que fosse Cat que lhe vinha dizer que o sofrimento do pobre Jem acabara.
Para sua perplexidade, viu Sander, que percorria o carreiro do jardim num passo apressado, dirigindo-se na direção dela. A luz do Sol refletia-se nas madeixas de
cabelo louro humedecido e o rosto de belas feições parecia ter sido acabado de esfregar, como se ele o tivesse lavado na cozinha.
De uma maneira qualquer, aquilo acrescia ainda mais o seu encanto. O coração de Meg ficou mais animado ao vê-lo, mas então recordou-se dos pormenores do que tinha
acontecido aquando da última vez que se tinham encontrado, no teatro.
A alegria que sentiu ao vê-lo esmoreceu. Meg baixou a cabeça. Sander devia ter-se apercebido da falta de cordialidade de Meg. Deteve-se a cerca de trinta centímetros
dela, perguntando-lhe com hesitação:
- Permitis que vos faça companhia durante algum tempo, menina Margaret?
Ela encolheu os ombros.
- Acontece que o barbeiro já chegou. Está a preparar-se para arrancar o dente do pobre Jem com uma faca de aspeto muito ameaçador e confesso que tenho alguma tendência
para sentir náuseas.
Meg mantinha o olhar preso nas fivelas dos seus sapatos.
- Porque é que estais aqui? Nem sequer é o dia da minha lição.
- Vim para falar com o vosso pai. Tinha uma mensagem para ele.
- Oh. - Meg fungou desdenhosa. - Suponho que seja do vosso amigo, Lorde Lambert.
- Lorde Lambert é o meu patrono, Meg. Faço todos os possíveis por lhe agradar. Quando se é pobre, é a única maneira de singrar neste mundo. - Sander agachou-se diante
dela, estendendo a mão para pegar na dela. - Mas só tenho um único amigo verdadeiro e essa pessoa sois vós.
Meg não acreditava no que ele lhe dizia, mas quando arriscou olhar para os olhos dele, estavam tão abertos e com uma expressão tão sincera, um sorriso tão terno,
que se sentiu a derreter, a despeito de si própria.
- Podeis sentar-vos ao meu lado durante algum tempo, se quiserdes disse-lhe Meg, arredando-se para o lado no banco.
Mas Sander limitou-se a rir e a abanar a cabeça, olhando para ela.
- Deixais-me perplexo, menina Margaret. Fico surpreendido ao ver-vos sentada aqui tão calmamente, quando toda a gente anda tão empolgada por toda a cidade.
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- E qual é a causa de tanto empolgamento?
- A rainha. Sua majestade vai homenagear o lorde-maior de Londres e o seu conselho, assistindo a uma festa. Deve haver um grande cortejo que percorrerá as ruas da
cidade a qualquer momento. Os arautos já devem ter começado a desimpedir as ruas. Não quereis, finalmente, poder ver sua majestade? A rainha estará a cavalo. Desta
vez é impossível que não consigais vê-la.
- Oh! - Meg levantou-se de um salto do banco de tão entusiasmada que ficou. Mas ficou desanimada ao lembrar-se de uma coisa.
- O meu pai não se encontra em casa para poder levar-me. E a Cat está ocupada a ajudar o Jem.
- Pobre diabo. com certeza que arrancar um dente deve ser horrível comentou Sander com um estremecimento exagerado. - Eu não haveria de querer estar aqui a ouvir
os gritos dele. Se vós e eu fôssemos até ao fundo da rua, devíamos poder ter uma boa vista do cortejo, além de evitarmos os gritos de sofrimento do pobre Jem.
Meg mordeu o lábio inferior, a tentação era demasiado irresistível. Abanou a cabeça com tristeza.
- Não posso. A Cat não gostaria nada que eu fosse. Ficaria muito zangada connosco.
- Mas ela não precisa de saber. Iríamos apenas até ao fundo da rua, Meg. Voltaríamos para aqui num abrir e fechar de olhos.
Como ela continuava a hesitar, Sander soltou um fundo suspiro.
- Será uma oportunidade maravilhosa de ver a rainha. Duvido que vos surja outra tão boa como esta nos tempos mais próximos.
Meg agitava-se ora num pé, ora no outro, numa agonia de indecisão. Chegou-lhe aos ouvidos um grito, vindo da cozinha, que lhe gelou o sangue nas veias e que foi
o fator decisivo. Levantou a cabeça e olhou para o belo rapaz que a aliciava com o seu sorriso e, timidamente, Meg deu-lhe a mão.
Cat saiu para o jardim, inspirando uma lufada fortificante de ar puro. Tinha o rosto perlado de suor e o avental salpicado de sangue de Jem. Tirou o avental, continuando
a sentir-se meio ensurdecida pelos gritos de dor do jovem.
O dente tinha uma raiz mais funda do que seria de esperar. Enquanto mestre Turner procedia à extração, tinham sido necessários os esforços conjugados de Cat, de
Agatha e de Samuel para conseguirem imobilizar Jem. Cat
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sentia-se como se tivesse estado a lutar com um urso até Jem, misericordiosamente, ter perdido os sentidos.
Por muito stressante que arrancar o dente pudesse ter sido, do mal o menos, distraíra-a da terrível preocupação de não saber do paradeiro de Martin.
A extração do dente podia ter corrido melhor se Sander Naismith lhes tivesse sido útil, tendo-se mantido na cozinha para os ajudar, pensou Cat com azedume. Todavia,
não tinha ficado surpreendida quando foi por pouco que Sander não desfaleceu, tendo-se apressado a sair da cozinha para se juntar a Meg.
Cat limpou o suor da testa e começou a atravessar o jardim para informar Meg de que o sofrimento de Jem tinha chegado ao fim. Estacou abruptamente quando viu que
o banco de pedra estava desocupado. Não viu qualquer sinal da presença de Meg nem tão-pouco da de Naismith.
Cat ficou tensa quando viu o portão entreaberto. Mas tentou tranquilizar-se. Meg devia ter querido voltar para dentro de casa, mas para evitar a cena perturbadora
na cozinha teria contornado a casa até à porta da frente, entrando por aí.
Cat estugou o passo até ao portão, saindo para a rua estreita, onde viu o movimento das atividades habituais de todas as tardes. Vendedores que apregoavam as suas
mercadorias, mendigos que pediam esmola, donas de casa que regateavam os preços do que compravam, enquanto um corpulento carroceiro praguejava, tentando abrir caminho
para conseguir passar com a sua carroça carregada de barris de cerveja.
Cat pestanejou quando avistou uma figura tão familiar a meio da rua: Meg quase a desaparecer de vista, de mão dada com Sander Naismith.
Mas o que diabo é que a garota pensava que estava a fazer? Cat conteve uma imprecação de ira. Quando apanhasse Meg, tencionava repreendê-la como ela nunca tinha
sido repreendida. Quanto a Naismith, o rapaz iria lamentar-se por ainda lhe restar uma orelha depois de Cat a ter socado sem piedade.
Cat abriu caminho por entre a multidão, ignorando os protestos de indignação e os palavrões que lhe eram dirigidos.
- Meg! - chamou, mas não conseguia fazer-se ouvir acima do ruído de tantas vozes, a que se associava o barulho das ferraduras dos cavalos que puxavam as carroças
pelo piso empedrado.
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Esforçando-se por avançar, Cat chocou com um homem alto, elegantemente trajado. com impaciência, tentou empurrá-lo para o lado, mas ele bloqueou-lhe o caminho deliberadamente.
- Saia do meu... - As palavras de Cat ficaram-lhe embargadas na garganta quando olhou para as feições afáveis que lhe eram familiares, a barba e o cabelo ondulado
de um louro arenoso, o sorriso bem-humorado que não se coadunava com a frieza que viu espelhada nos olhos dele.
- Gautier! - exclamou Cat, recuando de tão chocada que ficou.
- Sabeis o meu nome, mademoiselle - disse ele numa voz ronronante. - Tendes essa vantagem sobre mim. Mas não por muito tempo.
Quando ele levou a mão ao punho da espada, Cat apressou-se a sacar do seu punhal. Para sua surpresa, ele limitou-se a sorrir e a um acenar de cabeça.
Nunca lhe teria passado pela cabeça que aquela atitude fosse um sinal até ser tarde de mais. Pelo canto do olho, apercebeu-se de movimento quando a clava foi desferida,
acertando-lhe na têmpora.
Cat ficou com a respiração arquejante, sentindo que a rua diante de si explodia numa mancha de dor e estrelas de um rubro-branco. A cambalear, fez um grande esforço
para se manter de pé, apesar de o sangue lhe correr profusamente pela face, dificultando-lhe a visão do olho direito.
Agarrou-se a Gautier, tentando erguer o punhal, mas, com toda a facilidade, ele tirou-lho da mão. Tentou gritar, mas a sua voz foi abafada pela dele.
- Ajudem-me! Esta pobre mulher foi assaltada, roubaram-lhe a bolsa. Haja alguém que cuide dela enquanto eu vou atrás do gatuno.
- Não, ele... ele está a mentir. Ele é que... - A voz de Cat ficou reduzida a um sussurro e sentiu as pernas a dobrarem-se. Ainda tentou agarrar-se a Gautier, mas
ele desprendeu-se dela. Cat caiu por terra, as mãos como se quisessem agarrar-se ao ar, ao mesmo tempo que teias de escuridão lhe dançavam diante dos olhos. - Meg...
- Cat fez um esforço frenético para conseguir rastejar em frente, tentando firmar-se no chão. Só foi capaz de avançar alguns centímetros. Quando a escuridão se abateu
sobre ela, só teve perceção de um sussurrar de vozes da multidão que se juntava à sua volta como se estivesse cada vez mais distante dali.
Meg e Sander já estavam quase na curva da rua seguinte quando a garota olhou para trás no momento em que Cat caía.
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- Mas o que...? - Meg esticou o pescoço todo para trás. Puxou pela mão de Sander num gesto cheio de ansiedade. - Sander, parece-me que aconteceu qualquer coisa à
Cat. Temos de voltar para trás.
Mas, para surpresa dela, Sander agarrou-lhe a mão com mais força, mostrando uma estranha expressão de exultação no rosto.
- Não, o que a Cat fez foi atrasá-lo, dando-nos a nossa oportunidade.
- Atrasou quem? A nossa oportunidade de fazer o quê?
- De escapar.
Antes que Meg pudesse protestar, Sander agarrou-a pelo braço com força, pouco faltando para a levantar do chão. A garota tentou manter-se onde estava, mas ele arrastou-a
violentamente para que continuasse a andar, dizendo-lhe uma única palavra ao ouvido com premência e numa voz rosnada.
- Correi!
O teatro estava mergulhado num silêncio espectral e numa luminosidade cada vez mais fraca, os atores e os serviçais que faziam a limpeza no Teatro Crown há muito
que tinham ido para casa. Meg estava agachada contra a parede dos camarins, sentindo os braços pisados e doridos, o que se devia à maneira bruta como Sander a agarrara.
Estariam em segurança desde que se mantivessem escondidos no teatro, insistira ele quando forçara e persuadira Meg em partes iguais a fugir para o Crown. Mas a garota
começava a recear que de quem devia ser salva era do rapaz que andava de um lado para o outro pelo camarim como um tigre enjaulado. O rapaz em quem em tempos tinha
confiado incondicionalmente, acreditando que ele era seu amigo, abruptamente transformara-se num desconhecido que a atemorizava.
Meg estava confusa, assustada e irritada de uma maneira como não se sentia desde os dias em que vivia com a mãe em Paris. Sander aparentava estar tão tenso como
ela própria. Ele metia os dedos pelo cabelo, mostrando-se sobressaltado ao menor som, como um animal acossado.
Meg olhou para ele com um ar de reprovação.
- Tendes de me deixar ir para casa - insistiu ela pela décima vez. - Acho que a Cat ficou magoada. Tenho de a ajudar... - Meg interrompeu-se, encolhendo-se toda
e encostando-se ainda mais à parede quando Sander se aproximou. Ele levantou a mão. Mas quando se preparou para a agressão, baixou a mão, soltando um suspiro de
frustração.
- Maldição, Meg! Não estais a perceber? - perguntou-lhe num tom de súplica. - Estou a tentar salvar-vos.
- Nesse caso, porque é que não me sinto a salvo? - ripostou ela. - Sinto-me mais como... como vossa prisioneira.
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E Meg sabia bem de mais como era essa sensação, pensou com amargura. Tinha aprendido havia muito tempo com a sua própria mãe o que era ser mantida como refém dos
esquemas de outra pessoa. Todavia, nunca lhe passara pela cabeça que Sander andasse a maquinar alguma coisa... até agora.
- Haveis visto aquele homem que nos perseguia? - perguntou Sander exacerbado. - Ele chama-se Ambroise Gautier e trabalha para a Rainha das Trevas. Ele obrigou-me
a aliciar-vos de modo a que saísseis de casa. Eu não quis fazer isso, mas se não fizesse o que ele queria, ele matar-me-ia e depois encontraria outra maneira de
poder chegar a vós. Eu tive esperança em conseguir pensar num plano que nos permitisse fugir-lhe, o que aconteceu graças à menina Catriona OHanlon. Se ela não tivesse
servido como manobra de diversão, nesta altura já estaríeis nas garras do Gautier.
- A minha fianna não é nenhuma manobra de diversão. E se a Cat foi... - Meg tremia. Não, recusava-se a acreditar que Cat tivesse sido morta. A sua amiga era forte
de mais, aguerrida de mais para que lhe tivessem levado a melhor com tanta facilidade. Àquela hora, já Cat andaria à sua procura, e, sem dúvida nenhuma, tal como
o seu pai.
Aquele pensamento animou Meg o suficiente para erguer a cabeça e olhar para Sander com uma expressão de desafio.
- Afirmais que estais a salvar-me. Por que razão é que eu havia de acreditar nisso?
- Porque fui sincero quando vos falei acerca do Gautier. Expliquei-vos tudo. - Sander apoiou uma mão na parede acima da cabeça da garota e inclinou-se para ela.
- E sei que tendes o dom de ler olhos. O que é que os meus vos dizem?
Meg olhou para ele, exercendo todo o seu poder de concentração, tentando penetrar no mais fundo daqueles olhos azuis. Viu que ele lhe dizia a verdade em parte, pelo
menos no que dizia respeito a não querer entregá-la a Gautier. Contudo, o resto dos seus pensamentos eram tão confusos e...
Meg susteve a respiração, atónita ao aperceber-se de que Sander não lhe tinha explicado tudo.
- Como... como é que tendes conhecimento da Rainha das Trevas? Ou o que quer que seja acerca da leitura de olhos? - perguntou-lhe numa voz hesitante.
- Eu sei muita coisa. Por exemplo, sei quem sois realmente.
O coração de Meg parou de bater momentaneamente, mas ergueu o queixo num gesto de desafio.
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- O que é que quereis dizer com isso. Eu sou Margaret Elizabeth Wolfe.
- Não, sois Megera. - Sander sorriu e deu-lhe uma palmadinha na face. - Minha Rosa de Prata. Eu sou membro da vossa irmandade de bruxas, sou um dos vossos seguidores
mais dedicados.
- Os meus seguidores são todos do sexo feminino. Eu... eu, o que quero dizer é que não tenho nenhuma irmandade de bruxas. Eu... eu não faço a mais pequena ideia
daquilo de que estais a falar.
- Quereis uma prova, minha jovem rainha? - perguntou-lhe Sander rindo-se. Despiu o gibão e arregaçou a manga da camisa, expondo o antebraço. Meg ficou a olhar para
a cicatriz da marca da rosa gravada na pele branca. Pestanejou, mal conseguindo acreditar no que os seus olhos viam.
- Não, não é possível.
- Não me tendes em grande consideração, Meg. Eu sou um ator brilhante. Sou capaz de desempenhar o papel de mulher na perfeição - retorquiu Sander, pestanejando repetidamente
com uma expressão recatada. - É uma pena que nunca tenhais tido a oportunidade de me ver a representar. Existem algumas mulheres muito sagazes e inteligentes, ou
talvez devesse dizer que existiam, na irmandade das bruxas, mas nunca nenhuma delas conseguiu adivinhar que eu nasci com crista e não fendido.
Meg olhou para ele com uma expressão de aturdimento.
- Mas por que motivo é que fizestes uma coisa dessas?
- Porquê? Porque desde sempre que me senti fascinado pelas artes proibidas, desde que era rapazinho. Os meus pais puseram-me a aprender o ofício de ferreiro, mas
era um trabalho de que eu não gostava. Compreendi rapidamente que a minha existência seria muito dura e extenuante num ofício em que teria de suar muito. Percebi
que tinha nascido para uma vida melhor quando um homem desconhecido passou pela nossa aldeia.
"Mestre Cervais era francês de nascimento, era o que chamaríamos de gitan. Mas, indubitavelmente, ele não era um cigano qualquer. Era um homem de muitos talentos,
ator, músico, conjurador e cartomante. Ele simpatizou comigo e fugi para Londres com ele. Ensinou-me tudo o que sabia sobre magia e representação teatral, até mesmo
como falar a sua língua. Quando não conseguíamos trabalho em nenhuma das companhias de teatro, não vivíamos nada mal com o que o Cervais ganhava a adivinhar o futuro
na sua bola de cristal, conjurando vozes de anjos para consolarem as pobres pessoas que andavam tristes.
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- O que quereis dizer é que ele burlava as pessoas - ripostou Meg indignada.
- É possível que tenhamos feito isso. Mas a verdade é que éramos suficientemente credíveis para termos sido acusados de necromancia. O Cervais foi condenado por
feitiçaria e enforcado. Eu tive a sorte de ser condenado a uma pena mais leve - disse Sander, enfatizando a palavra sarcasticamente.
- Limitaram-se a decepar-me a orelha. Foi nessa altura que tomei conhecimento de algo a respeito da justiça. É aplicada de acordo com o tamanho da bolsa e a posição
social de cada um.
"O que é considerado um crime num homem pobre é considerado de mera excentricidade entre os grandes da sociedade. Por isso, decidi arranjar um patrono mais poderoso.
- Lorde Oxbridge.
- Sim, o Ned. Sua senhoria tem, digamos, uma certa inclinação por jovens mancebos bem-parecidos e inteligentes. Quando me apercebi de que partilhávamos o mesmo interesse
pelo oculto, ele ficou bastante embeiçado por mim. O suficiente para me convidar a acompanhá-lo numa das suas viagens a França e foi então que ouvimos falar pela
primeira vez de vós, Megera.
- O meu nome é Meg - insistiu ela teimosamente, mas Sander ignorou-a.
- Inteirámo-nos da irmandade das bruxas por mero acaso, quando viajávamos através da Bretanha. O Ned e eu pensámos que talvez fosse divertido se eu me fizesse passar
por mulher, para vermos se eu seria capaz de me insinuar no grupo.
- Não vos teríeis sentido tão divertido se essas bruxas tivessem descoberto o vosso segredo. Elas não teriam hesitado em desfazer-vos.
- com certeza que sim. A maior parte das vossas seguidoras mais fiéis são um tudo-nada dementes. Têm um ódio aos homens, a todos sem qualquer exceção.
- Começo a compreender por que motivo.
- Não, não me odieis, Meg. - Quando Sander tentou afastar-lhe o cabelo que lhe caíra para a fronte, Meg furtou-se à mão dele, fitando-o com uma expressão furiosa.
- Os meus olhos nunca vos mentiram sempre que lestes os meus pensamentos, invariavelmente dei-vos a entender a muita admiração que tenho por vós, acreditando que
vireis a ser uma mulher deslumbrante quando crescerdes. Inicialmente, juntei-me à vossa irmandade de bruxas por
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brincadeira, apenas por curiosidade. Mas comecei a sentir-me cada vez mais intrigado com o que ia ouvindo a respeito dos teus poderes e do Livro das Sombras. Quando
soubemos que vos haviam trazido para Inglaterra, o Ned e eu decidimos procurar-vos.
"Nunca seríeis capaz de imaginar como o Ned ficou assombrado quando vos encontrámos em Londres, mesmo nas nossas barbas. Se a intenção do vosso pai foi manter-vos
escondida, ele devia ter sido mais discreto. - Sander interrompeu-se, rindo-se à socapa. - Mas ninguém gosta mais de ser o centro das atenções do que mestre Wolfe.
- Não vos atrevais a falar do meu pai nesse tom de escárnio! - gritou-lhe Meg indignada. - Ele... ele não podia ter sido mais generoso e amável para convosco.
- Apesar de tudo isso, ele não passa de um tolo - ripostou Sander com um encolher de ombros. - Ele não faz a mais pequena ideia do vosso poder, pois não? Eu não
tinha a certeza do quanto eu próprio acreditava. Por isso, decidi conquistar a vossa confiança a pouco e pouco.
- Eu nunca devia ter confiado em vós.
- Quanto mais tempo passava na vossa companhia, mais assombrado me sentia. Sois tão perspicaz e inteligente. As vossas seguidoras afirmam que sois a única pessoa
capaz de traduzir o Livro das Sombras, no que eu acredito.
- O que agora não interessa, porque eu já não tenho esse livro.
- Ora bem, aí está uma coisa em que não acredito. Haveis-me pedido que vos comprasse algumas coisas muitíssimo estranhas nos apotecários, para já não falar das instruções
tão precisas que me destes quando adquiri aquelas intrigantes lentes. Pergunto-me o que é que haveis feito com isso. E que poções é que andais a preparar de infusão?
Meg comprimiu os lábios, desviando a cabeça, mas Sander agarrou-a pelo queixo, forçando-a a olhar para ele.
- Também tendes uma memória absolutamente extraordinária, como ninguém que eu tenha conhecido. Eu apostaria que haveis memorizado a maior parte dos feitiços contidos
nesse livro; estou enganado? - Sander passou as pontas dos dedos ao de leve pela testa de Meg. - Todavia, o vosso pai pretende que a vossa vida seja desperdiçada
a fazer bordados para serem pendurados nas paredes em quadros, bem como a tocar alaúde, por sinal muito mal.
- O que é que quereis de mim? - perguntou Meg, afastando as mãos dele.
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- Que pergunta, só quero ajudar-vos para virdes a ser a poderosa feiticeira que estais destinada a ser.
Não, o que ele pretendia era servir-se de Meg para adquirir para si próprio os poderes e conhecimentos que ela possuía. A garota conseguia ler isso mesmo nos olhos
dele. Perguntou-se por que razão é que não tinha visto isso mais cedo. Sentiu alguma agitação na sua memória e a voz fria de Cassandra Lascelles a ecoar-lhe na cabeça.
"Aprendeste a fazer bem a leitura de olhos, Megera. Tenho a impressão de que começaste a imaginar que és muito inteligente, minha filha. Mas há um perigo quando
se é presumida de mais, em especial com um homem. É possível que nos iludamos, passando a ver o que desejamos nos olhos dele. O que ele quer que vejamos.
A sua mãe tinha razão, o que deixou Meg atormentada com uma pergunta: em que mais é que a sua mãe teria tido razão?
- Não estou interessada em vir a ser uma feiticeira. Exijo que me leveis para casa. Sem mais delongas! - gritou Meg numa voz esganiçada.
Mas calou-se quando Sander lhe tapou a boca com a mão. Inclinou a cabeça de lado, pondo-se à escuta atentamente. Ouviu o som de passos. Havia alguém que atravessava
o palco, aproximando-se dos fundos do teatro.
Seria Cat? O pai? A pulsação do coração de Meg acelerou-se de esperança. Mas quando tentou afastar a mão de Sander da sua boca para poder gritar, ele agarrou-a pela
cintura. Encostando-a violentamente a si, abafou-lhe a voz ainda mais cruelmente.
Meg debatia-se e esperneava, esforçando-se por ferrar os dentes na palma da mão dele. Sander praguejou quando ela lhe pisou um pé com toda a força.
- Deixai-vos de tolices, Meg - sussurrou-lhe ele com brusquidão ao ouvido. - E se for o Gautier? Quereis realmente acabar à mercê da Rainha das Trevas?
As palavras de Sander fizeram com que ela ficasse como que paralisada. Deixou de se debater com um gemido que mal se ouviu.
- E agora deveis ficar caladinha.
Quando ficou certo de que ela faria como lhe dizia, soltou-a. Depois de ter colocado Meg atrás de si, Sander sacou do punhal e firmou-se, tenso, à espera.
Meg mal se atrevia a respirar quando os passos vacilaram, após o que se aproximaram mais, encaminhando-se diretamente para o camarim. A mão dela dirigiu-se instintivamente
para a algibeira oculta no seu vestido, mas já
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havia muito tempo que não se precavia com a sua seringa. Não desde o dia em que Cat passara a ser a sua fíanna.
Uma das tábuas do soalho rangeu debaixo de uns pés pesados. Quem quer que estivesse a aproximar-se, não fazia grande esforço para ocultar a sua presença.
- Sander? - chamou uma voz num sussurro.
Sander expirou demoradamente, voltando a embainhar o punhal. Apartou a cortina do camarim antes de responder.
- Ned, estou aqui.
Lorde Oxbridge passou para o outro lado da cortina. Apesar de a luminosidade já ser muito reduzida, ainda permitia ver o seu perfil aristocrático e de feições angulosas.
Era possível que Sander sentisse alívio ao vê-lo, mas Meg olhava para Ned Lambert com uma expressão de desconfiança.
- Sander, onde diabo é que tens estado? Tenho andado à tua procura por todo o lado. - O olhar de sua senhoria desviou-se de relance na direção de Meg. - O que é
que ela faz aqui?
- É uma história muito comprida. Chega dizer que há outro contendor aqui, em Londres, a lutar pelo prémio. Não podemos dar-nos ao luxo de esperar por mais tempo,
Ned. Temos de levar a rapariga para fora de Inglaterra ainda esta noite. Assim que escurecer, nós...
- Nenhum de nós vai a lado nenhum. Em especial, ela. - O olhar que sua senhoria lançou a Meg era tão duro e encolerizado que ela se encolheu toda, afastando-se dele.
Sander pareceu ter ficado perplexo com as palavras de Lorde Oxbridge ditas com tanta veemência, mas não tardou a recompor-se, acenando com a mão num gesto displicente.
- Sei que esperavas que eu conseguisse convencê-la a dizer-me o que tinha acontecido ao Livro das Sombras, mas não temos tempo para estarmos a preocupar-nos com
isso agora. Seja como for, isso não tem importância porque acredito que a rapariga sabe de cor a maior parte dos feitiços. A Megera é o livro.
- O livro que vá para o diabo! - interrompeu Lorde Oxbridge impacientemente. - Mas tu pensas que estou interessado no que quer que seja dessas... dessas feitiçarias
agora? Não sabes o que aconteceu à minha irmã?
- Oh, isso - retorquiu Sander pestanejando. - Sim, ouvi dizer que Lady Jane Danvers foi levada para a Torre de Londres. Na verdade, isso provou ser bastante conveniente.
Consegui servir-me dessa notícia para me livrar de mestre Wolfe, de maneira a poder...
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- Conveniente?
Sander apressou-se a emendar o tom.
- Não foi minha intenção dizer isso exatamente. É deplorável o que se está a passar com a tua irmã, mas parece que a culpada do que lhe aconteceu é ela própria,
fazendo entrar um padre clandestinamente em tua casa para dizer missa. Tens muita sorte em não seres tu a estar na Torre.
- A Jane só fez o que eu próprio devia ter tido coragem de fazer. - As bochechas de Lorde Oxbridge ficaram vermelhas que nem um tomate. - Eu é que devia ter sido
preso. Fui eu quem encheu a câmara secreta de símbolos do oculto com vista à minha estúpida demanda pela pedra filosofal.
- Mas isso tem alguma coisa a ver com o que se está a passar?
- Ainda não sabes quais são as acusações mais graves que pesam sobre a minha irmã? A Jane é acusada de ter conspirado com vista a usar bruxaria contra a rainha.
Não tenho a mínima noção de como é que isso seria possível, mas, sabe-se lá como, eles convenceram-se de que a Jane é a Rosa de Prata.
Como se tivesse sido esquecida, Meg mantinha-se em silêncio, ouvindo atentamente o diálogo entre os dois homens com uma consternação crescente. Pensava em Lady Jane
Danvers com os seus olhos de expressão triste e ensombrada, mas que, não obstante, era tão gentil, tendo oferecido a Meg o que ela considerava o seu maior tesouro,
um pedaço da passadeira que fora estendida para a rainha aquando da sua coroação. E agora essa mesma senhora tão gentil estava encarcerada na Torre de Londres, sob
a acusação de ser a Rosa de Prata em vez de Meg?
Sentiu-se horrorizada quando Sander começou a rir-se. Lorde Oxbridge parecia ter uma vontade quase irresistível de o estrangular e Meg não podia censurá-lo, apercebendo-se
claramente de outra coisa assustadora a respeito do seu, em tempos, muito amado amigo.
Sander Naismith era de um egoísmo sem igual, não tendo a mínima empatia por quem quer que fosse, a não ser por si próprio.
Mas face ao olhar encolerizado de sua senhoria, Sander esforçou-se por conter a sua satisfação.
- P... peço desculpa. Mas com certeza que consegues ver como a situação é absurda. A virtuosa Jane suspeita de ser uma feiticeira demoníaca? Foram muitas as vezes
em que tu próprio te queixaste de como a tua irmã era enfadonhamente virtuosa.
- Sim, de facto queixei-me, para minha grande vergonha - admitiu Lorde Oxbridge contrito. - A Jane olhou por mim desde que éramos crianças.
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Tem sacrificado muita coisa por minha causa, enquanto eu, estouvadamente e sem pensar duas vezes, aceitei tudo o que ela tinha para dar.
- E tenho a certeza de que ela daria de boa vontade a sua própria vida para que continuasses são e salvo.
- Sem dúvida alguma que o faria, mas esse é um sacrifício impossível de aceitar, e até mesmo um miserável sem qualquer valor como eu não poderia aceitá-lo - disse
Lorde Oxbridge, endireitando os ombros. - Só me resta uma esperança de poder salvar a Jane e essa é afirmar que era eu quem mantinha contacto com o padre Ballard.
vou admitir que qualquer tentativa de pôr em prática magia negra era minha.
Lorde Oxbridge virou-se para Meg, que ficou surpreendida ao ver traços de suavidade, até mesmo de nobreza, nas feições magras, que espelhavam a sua vida dissoluta.
Pela primeira vez, ela apercebeu-se de vagas parecenças nele com a irmã.
- Lamento muito, Margaret - continuou sua senhoria -, mas vou ter de vos levar perante o conselho privado da rainha. Tendes de confessar que sois realmente a Rosa
de Prata.
O coração de Meg começou a bater violentamente. Via que aquela decisão dele era de toda a justiça, mas sentiu a boca seca, tal o medo perante aquela perspetiva.
Antes de poder formular uma resposta qualquer, Sander colocou-se entre ela e Lorde Oxbridge.
- Mas perdeste o juízo por completo?
- Não, acredito que estou a pensar com clareza pela primeira vez na minha vida.
- Muito bem. Vai brincar aos heróis se tiveres estômago para isso - ripostou Sander escarnecedor. - Mas raios me partam se vou ficar parado sem fazer nada, enquanto
deitas a perder tudo aquilo por que trabalhei e me arrisquei durante os últimos meses. Todo o poder e conhecimentos que esta rapariga representa.
- Sai do meu caminho, Sander. - Quando este se recusou, Ned deu-lhe um violento empurrão. Sander cambaleou para trás, caindo em cima de um baú que continha peças
do guarda-roupa do teatro.
- Não vais levar a Meg para lado nenhum! - gritou, esforçando-se por se pôr de pé.
- Estou inteiramente de acordo - disse uma voz ameaçadoramente aveludada. A cortina atrás de Lorde Oxbridge agitou-se e foi como se uma das sombras tivesse adquirido
vida de repente.
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Deu a impressão de envolver Lorde Oxbridge. Meg viu o reflexo da lâmina de um punhal e, logo a seguir, a garganta de Lorde Oxbridge ficou de um vermelho-vivo. Ele
nem sequer teve a oportunidade de gritar, mostrando-se apenas espantado enquanto caía de joelhos, tombando de lado no chão.
Meg pestanejou, incapaz de compreender o que tinha acontecido. Tudo se passara num abrir e fechar de olhos. Ficou a olhar fixamente para as gotas de sangue carmim
que lhe tinham salpicado a manga do vestido, sentindo o cheiro adocicado e peganhento de sangue.
Tinha dificuldade em interiorizar aquilo que acabara de presenciar, o assassínio de um homem. A mãe e as mulheres da sua irmandade de bruxas tinham cometido inúmeros
atos de violência, mas Meg nunca assistira a nenhum desses atos. Apesar disso, sempre se sentira atormentada por isso, acreditando que seria capaz de visionar as
coisas horríveis que teriam tido lugar.
Contudo, como a realidade do assassínio era de tal maneira pior do que alguma coisa que pudesse ter imaginado, a sua respiração era entrecortada e começou a tremer
que nem varas verdes.
A figura envolta em sombras adquiriu a forma robusta de um homem. Continuando a empunhar o punhal, ele olhava para Lorde Oxbridge, caído no chão, com uma expressão
desapaixonada.
- Peço perdão, monsieur, mas não devíeis ter-vos intrometido. Não tendes qualquer papel a desempenhar nesta pequena farsa e serei eu a encenar o último ato.
Meg apercebeu-se do sotaque francês do homem, apesar do aturdimento causado pelo choque. Aquela pessoa só podia ser Gautier, o agente da Rainha das Trevas contra
o qual Sander a advertira. No entanto, Meg continuava a sentir-se demasiado entorpecida para poder mexer-se. Olhava fixamente para os olhos sem vida de Lorde Oxbridge,
continuando a tremer.
Sander estava tão imobilizado devido ao choque como ela. Quando, por fim, se sentiu galvanizado para entrar em ação, já era tarde de mais. Quando sacou do seu punhal
para se defender, apareceram outros dois homens repentinamente. Agarraram Sander, imobilizando-lhe os braços atrás das costas.
Gautier aproximou-se dele, encostando o gume da lâmina ensanguentada do punhal à garganta de Sander. Meg gemeu, certa de que estava prestes a assistir ao assassínio
de Sander. Este debatia-se freneticamente, os olhos revirados, tal o terror que se apoderara dele.
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- P... por favor, monsieur.
- Desapontais-me, Monsieur Naismith - ripostou Gautier, dando um estalo com a língua. - Um ator tão inteligente como vós. Pensei que havíeis compreendido o vosso
papel, mas desviastes-te do argumento. Eu devia cortar também essa vossa garganta sem préstimo, mas é possível que ainda venha a precisar dos vossos serviços.
Sander gemeu de alívio quando Gautier afastou a lâmina da sua garganta. O francês limpou o punhal na parte da frente da camisa de Sander. Voltou a embainhá-lo antes
de se virar para Meg com um acenar de cabeça bastante cortês.
- Ah, lapetite Mademoiselle la Rose. Encontramo-nos, finalmente. Meg só conseguia olhar para ele de boca aberta. Perscrutando os olhos de Gautier, viu rapidamente
tudo o que precisava de saber. O coração daquele homem estava encerrado em gelo; o sangue que lhe corria nas veias era frio. Exatamente como o da sua mãe.
Se sentira temor antes, agora a sua pulsação era descompassada devido ao mais puro terror, embora tentasse denodadamente não o mostrar.
Quando Gautier se encaminhou para ela, Meg voltou a poder fazer uso da fala.
- Mantende-vos afastado de mim. Se me fizerdes mal, o meu pai virá e...
- Confio em que o vosso pai venha. Achais que devíamos enviar-lhe uma mensagem a convidá-lo, aproveitando para lhe pedirmos que traga o Livro das Sombras? Não vale
a pena que vos incomodeis a negar. Ouvi a vossa conversa com estes dois cavalheiros.
- Ainda que eu tivesse esse livro, o meu pai não sabe nada a esse respeito. Ele... ele não saberia onde é que eu o escondi.
- Nesse caso, sugiro que lhe digais ou... - Os dentes de Gautier brilharam num sorriso feral. - Sabeis o que eu costumo fazer às bruxas, minha menina?
- Q... queimai-las? - perguntou Meg numa voz vacilante.
- Isso requer um esforço desmesurado porque é preciso juntar lenha, levá-la para o local e fazer uma fogueira. Existe uma maneira muito mais simples.
Gautier estalou os dedos e um dos seus homens entregou-lhe uma corda resistente. Meg olhava para aquilo horrorizada. Mesmo assim, continuava a dar a impressão de
ser incapaz de se mexer, até mesmo quando Gautier lhe pôs no pescoço a ponta da corda com o nó corrediço.
Cat subiu as escadas a coxear, pouco firme nas pernas. As horas decorridas desde que fora levada para casa eram como uma mancha na sua memória, um pesadelo de que
não havia maneira de acordar. Sentia a cabeça a latejar devido à violência da pancada de que fora vítima. Tinha uma ligadura espessa em volta da fronte que protegia
o ferimento na têmpora que mestre Turner lhe suturara.
Cada passo que dava era transmitido dolorosamente até ao seu crânio. Somente um esforço supremo da sua força de vontade é que a mantinha de pé. Sentia o estômago
às voltas, mas talvez isso se devesse em grande parte às emoções que a consumiam desde que Meg havia sido raptada - medo, desespero e autorrecriminação.
Revia incessantemente em pensamento o que se tinha passado, censurando-se, tentando pensar no que poderia ter feito de maneira diferente. Se não se tivesse distraído
a ajudar Jem ou se tivesse obrigado Meg a manter-se na cozinha. Quem lhe dera ter mandado Naismith embora ou se tivesse sido mais desconfiada ou agido com mais rapidez.
Quem lhe dera... quem lhe dera... A única coisa que aqueles pensamentos faziam era agravar ainda mais as dores de cabeça que a atormentavam. Cat fez o seu melhor
para pôr fim àqueles pensamentos que não adiantavam nada.
Sentiu-se entontecida quando chegou ao cimo das escadas. Agarrou-se ao corrimão, deteve-se por alguns momentos até a casa ter parado de andar à roda e recuperar
as forças.
No vestíbulo do piso térreo, todos os serviçais da casa aguardavam, os semblantes ansiosos e angustiados. Tanto Maude como o ajudante da cozinheira estavam lavados
em lágrimas, enquanto a idosa Agatha tinha os olhos avermelhados.
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Todos os olhares se fixavam em Cat, espelhando uma esperança tão desesperada que a deixava assombrada. Era como se, fosse-se lá saber como, todos esperassem que
ela fosse capaz de resolver tudo. Mas quando diabo é que ela tinha começado a inspirar tanta confiança naquelas pessoas, até mesmo na rezingona senhora Butterydoor?
Aquilo era um grande peso nos ombros de Catriona por sentir que era uma confiança de que não era merecedora.
Num passo cambaleante, afastou-se das escadas e encaminhou-se para a porta da alcova de Meg, onde Martin se havia fechado, proibindo toda a gente de se abeirar de
si. Desde que voltara da Torre de Londres, parecia estar extremamente perturbado, como se à beira da loucura, e Cat sentia-se aterrorizada ao pensar no que ele poderia
fazer.
Recuperar Meg requeria cabeça fria e ideias bem organizadas. Mas Martin não era avesso a agir com grande imprudência e impulsividade, até mesmo nas melhores circunstâncias.
Mas quando Cat espreitou para dentro da alcova, deparou com Martin sentado na beira do leito, com o pedido de resgate que tinha recebido fechado na mão. com os ombros
encurvados, parecia estar inteiramente despojado da maneira impetuosa como habitualmente encarava o mundo.
O olhar cheio de tristeza dele percorria a alcova, que continha os livros de Meg, a sua escrivaninha, o seu alaúde, o guarda-roupa a transbordar de vestidos dispendiosos.
Cat só conseguia imaginar como tudo aquilo lhe pareceria estar a escarnecer dele, os adornos de um refúgio seguro que ele acreditava ter criado para a filha. Aquela
situação também atormentava Cat.
- Martin? - Cat entrou de mansinho na alcova, fechando a porta.
Ao ouvir a voz dela, Martin pôs-se de pé e olhou-a com um semblante de reprovação.
- Cat, o que é que estás a fazer aqui em cima? Volta para baixo e deita-te na minha cama.
- Estou ótima. - A afirmação dela foi desmentida quando cambaleou. Martin correu para a impedir de cair no chão.
- Ótima? Que diabo, mulher, estás prestes a desfalecer. Não servirás de nada à Meg se caíres e partires a cabeça outra vez.
- Já não sirvo de nada à Meg - retorquiu ela, empurrando as mãos de Martin e deixando-se cair na beira da cama. As feições endurecidas de Martin suavizaram-se. Passou
os nós dos dedos pela face dela.
- Fizeste tudo o que te foi possível, minha valente Cat, quando te bateste sozinha contra aqueles vilões. Não foste tu quem faltou à Meg. Fui eu. Tentaste avisar-me
de que havia qualquer coisa que não batia certo com o Alexander Naismith. Mas eu não te dei ouvidos.
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- Razão de sobra para eu ter passado a ser mais vigilante quando soube que esse rapaz andava pela casa.
- Não, eu é que devia ter estado aqui em vez de ter ido a correr para ajudar Lady Jane. Não que me tenha servido de grande coisa ter ido à Torre. Não sirvo de grande
coisa a quem quer que seja...
- Calma, Martin - disse-lhe Cat, apertando-lhe a mão numa tentativa para o sossegar. - Teremos muito tempo para atribuir culpas depois de termos Meg de regresso
a casa sã e salva. Nessa altura, poderemos dar pontapés no traseiro um do outro à vez. A Agatha disse-me que recebeste um pedido de resgate.
- Sim, um desses cobardes amarrou-a a uma pedra que atirou pela janela. - Martin entregou-lhe o papel amarrotado.
Levando a mão à fronte e fazendo pressão, Cat olhou para o pergaminho por entre olhos semicerrados. Apesar da dor de cabeça excruciante, não precisou de fazer um
grande esforço para o ler. O pedido de resgate estava escrito em francês, uma mensagem gritante escrita numa letra fluida.
"Saudações, Monsieur Lobo,
A vossa encantadora e jovem filha agracia-me com a sua presença. Não tendes por que recear. A garota está segura comigo e assim permanecerá desde que tenhais a amabilidade
de me prestar um serviço na resolução de um certo assunto. Peço-vos, por favor, que tenhais a gentileza de me trazer o Livro das Sombras.
A vossa filha informou-me de que é possível que fiqueis perplexo ao saber que se encontra na vossa posse. Receio ter de dizer que a Megera tem sido uma menina muito
marota. Ela disse-me que deveis procurar o manual de feitiçaria atrás do unicórnio.
Estou disposto a tirar este perigoso livro das vossas mãos em troca da vida da vossa filha.
Encontrar-me-ei convosco no vosso teatro à meia-noite. Não deveis chegar um segundo que seja atrasado para eu não lamentar ter de vos informar de que a vossa filha
sofreu um acidente muito infeliz.
O vosso obediente servo, A. G."
Para uma mensagem ameaçadora, sem dúvida que estava escrita num estilo extremamente cortês, o que era muito característico da falsa amabilidade de Gautier. Cat não
tinha dificuldade em imaginar como o capitão devia ter tido uma expressão pretensiosa enquanto a escrevia.
- Gautier. O grande canalha! - Cat amarfanhou o pedido de resgate na mão cerrada.
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- Portanto, isto foi escrito pelo mesmo homem que te atacou na rua? - perguntou-lhe Martin.
- Sim, o capitão Ambroise Gautier. Ele está ao serviço da Rainha das Trevas.
- E como é que o Sander se envolveu com ele?
- É coisa de que não faço a mínima ideia. Talvez eu seja capaz de induzir o rapaz a dizer-me antes de o esganar - respondeu Cat. - Mas o mais importante agora é
resgatar a Meg.
- E como é que vamos fazer isso? Esse Gautier exige o impossível. O Livro das Sombras. O que diabo é que precisamos de fazer para convencer esses idiotas de que
não temos esse maldito livro? - perguntou-se Martin, começando a andar de um lado para o outro e atirando as mãos ao ar numa atitude de frustração e de cólera. -
Se o tivesse, juro que o entregaria até ao próprio Diabo, apenas para comprar alguma paz e sossego para a Meg e para mim.
Cat hesitou antes de se aventurar a dar-lhe réplica.
- A Meg diz que o livro está escondido atrás do unicórnio.
- O mais certo é o Gautier a ter aterrorizado ao ponto de ela dizer tudo e mais alguma coisa. Se esse vilão tocou num único cabelo que seja da minha fílhinha, corto-lhe
os tomates e dou-lhos a comer.
- E eu ajudo-te a assá-los. Mas, por agora, acho melhor irmos verificar atrás da tapeçaria. Eu... eu sempre desconfiei de que a Meg tinha um esconderijo algures.
- E o que é que isso tem de mais? Talvez para guardar algumas bugigangas próprias de uma garota da idade dela. Mas a minha filha não tem esse maldito livro de magia
negra. Se alguma vez lhe tivesse passado pelas mãos, ela ter-me-ia dito e teríamos tratado de nos livrar dele. A Meg não haveria de querer guardar essa amaldiçoada
coisa mais do que eu próprio quereria.
A negação de Martin era tão veemente que raiava o desespero. Cat sentia uma grande angústia no coração por ele, sabendo de antemão o golpe que ele estava prestes
a sofrer e desejando poder poupá-lo a esse sofrimento.
- Boa sorte, Martin - disse em voz baixa.
Ele ficou a olhar para ela com tal intensidade que Cat não foi capaz de o olhar de frente. Encaminhou-se para a tapeçaria, que arredou para o lado, revelando as
tábuas simples da parede.
- Não está nada aqui... - começou Martin a dizer, para parar logo de seguida. Agarrando numa das velas, começou a examinar o lambrim de madeira.
Enquanto ele soltava a tábua, Cat apercebeu-se de que Martin sustinha a respiração. Como ela se arrependia por nunca o ter preparado para aquele
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momento, por nunca lhe ter dito nada a respeito do fascínio persistente de Meg pelos conhecimentos da Antiguidade. Cat sabia que Martin não teria querido ouvir isso,
mas devia tê-lo forçado a ouvir. Teria sido preferível outra coisa qualquer a inteirar-se da verdade daquela maneira.
Martin estendeu a mão para a reentrância atrás da tábua, de onde tirou um pequeno saco de lona. Virou a abertura para baixo e deixou cair o conteúdo ao lado de Cat.
Todos os segredos de Meg ficaram espalhados em cima da cama, o seu binóculo, a bola de cristal para adivinhar o futuro, pequenos pacotes de ervas secas que ela usava
na preparação de infusões para poções. A última coisa a cair foi um objeto cuidadosamente embrulhado. Martin desembrulhou o pano, expondo a lâmina de bruxa.
Tocou no cabo e falou num tom de voz de uma incredulidade incomparável.
- Não. Eu... eu livrei-me desta coisa infernal. Atirei isto para o lago.
- Mas não a uma profundidade suficiente. A Meg foi buscar essa coisa mais tarde. Ela costumava andar sempre com esta arma. Mas não estava cheia de veneno - apressou-se
Cat a acrescentar. - Apenas com uma poção soporífera. Serviu-se disso em mim naquele primeiro dia em que tu e eu nos embrenhámos num duelo no teatro. Foi por isso
que caí desfalecida. Não foi por causa da pancada que a Agatha me deu com o cajado, mas sim devido à poção da Meg. Ela só deixou de andar com esta arma depois de...
- Depois de quê? - perguntou Martin com brusquidão.
- Eu... eu ameacei-a de que te diria que ela tinha isso - replicou Cat em voz baixa. - Mas não estou em crer que seja isso que a dissuadiu. Acho que foi porque depois
de eu ter aparecido, com todas as minhas garantias de a proteger, de... de proteger vós dois, a Meg começou a sentir-se em segurança. Sentiu que já não precisava
dessa arma.
Cat pestanejou com força para conter as lágrimas.
- Quem me dera nunca ter interferido. Quem me dera que a Meg tivesse a sua lâmina de bruxa neste momento.
- Por amor de Deus, Cat. Ela é apenas uma garota.
- Não, ela é uma Filha da Terra, de facto é uma Filha da Terra extraordinária. A Meg... - Cat só se deteve quando se apercebeu da maneira como Martin a olhava, com
uma expressão de mágoa e acusação nos olhos, como se tivesse sido atraiçoado. Sem dúvida que ela merecia ser censurada. Mas, desta feita, obrigou-se a olhá-lo bem
de frente. - Isto é tudo o que ela tinha guardado dentro do esconderijo?
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- E não é suficiente? - perguntou Martin com brusquidão. Mas voltou a dirigir-se para a tábua solta. Chamou a si toda a sua fortitude, como se estivesse prestes
a meter a mão num ninho de víboras, e uma vez mais começou a apalpar o interior da reentrância.
Tirou um pequeno livro, que parecia já ter sido muito folheado e que não era maior do que uma Bíblia. Limitou-se a olhar para o tomo por uns momentos, como um homem
que tivesse recebido o derradeiro golpe.
O coração de Cat começou a bater mais depressa quando Martin se encaminhou para junto de si. Estremeceu quando ele lhe atirou o livro para o colo.
- É esse o livro? O Livro das Sombras?
- Eu... eu acredito que sim. - Cat nunca tinha visto o livro em questão, apesar de se ter juntado à Senhora da Ilha Encantada, havia vários anos, numa procura desesperada
com o objetivo de encontrarem aquele perigoso texto. Sem dúvida que o livro condizia com a descrição que lhe tinham feito, era antigo e estava encadernado a couro
preto já muito desgastado e sem qualquer título na capa.
Tinha um aspeto tão inofensivo, mas quando Cat passou as pontas dos dedos pela lombada, estremeceu ao sentir o poder sinistro daquele livro. Quando o abriu, viu
que as páginas estavam quebradiças devido à passagem do tempo, as folhas de pergaminho cobertas de estranhos símbolos que como que sussurravam conhecimentos antigos
há muito perdidos para o mundo, segredos que seria preferível que nunca viessem a ser revelados.
- Isso é que é o Livro das Sombras? - Martin voltou a perguntar num tom autoritário. - Consegues lê-lo?
- Apenas um pouco. Está escrito numa língua que remonta aos primeiros tempos das Filhas da Terra na Terra, além de estar escrito numa linguagem críptica. São muito
poucas as mulheres sábias capazes de o traduzir, entre estas a Ariane e talvez a Rainha das Trevas.
- E a minha filha - acrescentou Martin categoricamente.
- Sim, inequivocamente a Meg. Tal como eu já te disse, ela é muito dotada.
- Mas não te pareceu que devesses dizer-me muito mais além disso. Sabias que ela tinha este maldito livro. Sempre soubeste, durante todo este tempo.
- Não, eu apenas suspeitava de que ela o tivesse. Quanto ao resto, a Meg contou-me confidencialmente. Não me parece que conseguisse conquistar a confiança da garota
se revelasse os seus segredos. Até mesmo a ti.
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- A confiança dela? E quanto à minha? Sabias bem o que eu pensava a respeito de ela se envolver nessa maldita magia, esses instrumentos infernais. Sabes o que a
Cassandra fez com este raio de lâmina de bruxa, a morte hedionda que ela causou a pessoas inocentes?
- A Meg só se servia disso para proteção.
-- Talvez o que a minha filha mais precisava era que a protegessem de ti.
- O que é que queres dizer com isso? - perguntou Cat exaltada.
- Que independentemente de qualquer acordo a que tenhamos chegado entre nós, tu continuavas a albergar a esperança de a levares para a ilha Encantada, a fim de a
arrastares de novo para esse teu mundo de bruxaria e magia. Foi por esse motivo que permitiste que ela escondesse estas coisas respondeu Martin, fazendo um gesto
furioso na direção dos objetos espalhados pela colcha da cama.
- Admito que pensei que os talentos da Meg seriam desperdiçados nesta confortável existência inglesa que planeaste para ela - ripostou Cat corada. - Existe uma diferença
entre a magia boa e a má. A Meg precisa de aprender a ver a diferença entre uma e a outra e tu estás demasiado cego para poderes ensiná-la a fazer essa distinção.
- Tenho andado cego em relação a muitas coisas. Mas, pelo menos, agora tenho os meios para poder resgatar a minha filha. - Martin tirou o livro das mãos de Cat com
brusquidão.
- com certeza que não estás a pensar em entregar esse livro tão perigoso ao Gautier? - perguntou Cat, que ficou a olhar para ele muito consternada.
- Estou-me a lixar para o livro e para o que possam fazer com ele. Tudo o que quero é recuperar a minha filha.
- Eu também quero isso acima de tudo e esse livro é a nossa única vantagem. Se estás a pensar que, ao entregares o livro ao Gautier, ele, muito cortesmente, tratará
de te devolver a Meg, isso quer dizer que não sabes absolutamente nada sobre o homem nem sobre a mulher a quem ele presta vassalagem. Temos de usar a cabeça, pensar...
- Não existe o envolvimento de nenhum de "nós", menina Catriona OHanlon. A Meg é minha filha e serei a única pessoa a protegê-la, tal como sempre devia ter feito.
- O que também é da minha responsabilidade. Se pensas que eu tenciono ficar muito quietinha aqui enquanto...
- É precisamente isso o que farás.
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Quando Cat fez menção de se pôr de pé, Martin empurrou-a para baixo, para que voltasse a sentar-se.
- Não estás em condições de ir aonde quer que seja - disse Martin, acrescentando num tom de aspereza: - Ainda que estivesses, nem eu nem a minha filha precisamos
da continuação dos teus serviços.
Quando Martin saiu intempestivamente pela porta da alcova, Cat tentou ir atrás dele, mas voltou a sentir tonturas. Deixou-se cair outra vez na beira do leito, amaldiçoando
tanto Martin como a sua própria fraqueza.
Irritado e magoado, Martin preparava-se para fazer exatamente aquilo que ela receara, atirar-se de cabeça para uma situação de desastre, e Cat não tinha maneira
de o impedir. Ainda que tivesse podido ir atrás dele, ele não daria ouvidos a uma única palavra que ela lhe dissesse. Martin tinha deixado de confiar nela. Muito
provavelmente, nunca mais confiaria, pensou Cat acabrunhada. Levou as mãos à cara, avassalada por uma sensação de desaire e desespero.
- Menina Cat! Menina Cat!
A urgência na entoação de voz de Agatha Butterydoor obrigou Cat a olhar para cima. A idosa entrou de rompante no quarto com a respiração ofegante, torcendo e retorcendo
o avental entre as mãos.
- Oh, menina Cat. Parece-me que o meu amo, finalmente,, perdeu o juízo por causa do desgosto que sente. Ele saiu para lutar sozinho contra aqueles velhacos que raptaram
a menina Meg.
- Eu sei - retorquiu Cat como que entorpecida.
- Nesse caso, porque é que estais sentada aqui sem fazer nada? Porque é que não fostes com ele para o ajudar a salvar a nossa preciosa menina?
- Porque a minha presença não é desejada. Mestre Wolfe ordenou-me que ficasse em casa.
Agatha olhou para ela furiosa, a papada dupla a tremer. - Mas desde quando é que obedeceis às ordens dele? E a respeito do juramento que fizestes à menina Meg? Sois
a ama da rapariga ou não?
- A suafíanna - corrigiu Cat. A palavra trazia-lhe à memória gerações de guerreiros irlandeses, todas as noções de dever e honra que haviam sido instiladas em si
pelo seu pai, o que fez com que se recordasse de Tiernan dos Olhos Risonhos... lembrando-lhe quem ela era.
Cat endireitou os ombros.
- Sim, é exatamente isso que eu sou, senhora Butterydoor. Mas vou precisar da sua ajuda para me preparar. vou ter de despir estas inúteis saias de baixo e vou precisar
de uma arma.
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A mulher enlaçou Cat com o seu robusto braço, ajudando-a a pôr-se de pé.
- Oh, com certeza. Quereis que vá buscar a vossa espada?
- Não, senhora Butterydoor, vou precisar de uma arma diferente. Esse Gautier é um canalha muito traiçoeiro.
- Já haveis encontrado esse homem antes?
- Oh, sim - respondeu Cat. - Mas desta vez não serei eu a bater em retirada.
Martin esperava poder contar com a vantagem da surpresa, chegando antes da hora indicada. Conhecia bem o interior do seu teatro, mas, por outro lado, também Naismith,
lembrou a si próprio.
Mas até mesmo o Crown pareceu a Martin um lugar estranho naquela noite, as bancadas das galerias mergulhadas em silêncio e banhadas pela luz do luar. Sentia-se como
que alienado de todo o seu mundo, sem que nada nem ninguém fosse o que havia aparentado ser.
Jane Danvers, Sander, a sua própria filha. Mas aquela cuja duplicidade o magoava mais era a mulher em quem ele passara a confiar incondicionalmente e com quem mais
contara.
Cat.
Mas Martin não estava capaz de pensar nela naquele momento. Iria precisar de toda a sua capacidade de raciocínio para conseguir salvar Meg daquela situação.
Ao chegar mais cedo, esperava poder armar a sua própria cilada. Mas enquanto percorria a bancada mais baixa das galerias sorrateiramente, aquilo com que se deparou
fez com que todos os pensamentos de cautela se esfumassem da sua cabeça.
Meg encontrava-se no centro do palco, iluminada por um círculo de luz que irradiava de várias lanternas. Estava com as mãos amarradas atrás das costas e fora colocada
em cima de um banco, numa posição muito periclitante. Tinha uma grossa corda em volta do pescoço, o nó corrediço suspenso da galeria sobranceira ao palco.
Martin respirou fundo, com a impressão de que o coração deixava de lhe bater momentaneamente. Não só Gautier antecipara a sua chegada antes da hora indicada, como
também encenara aquela cena tão cruel como preparação para o encontro. Ao aperceber-se do que se tinha passado, Martin sentiu-se possuído de uma forte emoção que
não conseguiu conter.
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- Meg - disse numa voz roufenha, correndo para a balaustrada e saltando para a segunda plateia.
A filha estava tão imóvel que Martin receou o pior. Mas Meg mexeu-se ao ouvir a voz dele, semicerrando as pálpebras para conseguir perscrutar a escuridão.
- Paizinho? - perguntou numa voz trémula. Estava extremamente pálida, possuída de um terror indescritível, contudo não chorava. Obviamente, fizera um esforço de
valentia para mostrar coragem, negando ao seu raptor a satisfação de a ver a chorar.
Martin sentiu um aperto no coração ainda mais intolerável ao perceber isso. Avançou, desembainhando a espada. Antes de poder saltar para o palco, foi advertido por
uma voz cheia de frieza.
- Já estais suficientemente perto, Monsieur Lobo.
Martin viu um homem alto e de estrutura óssea larga que surgiu das sombras, com uma cabeleira de um negro asa de corvo que lhe emoldurava as feições angulosas. com
um esgar sorridente, encostou uma bota grossa ao banco. Meg soltou um gemido de terror.
- Não! - Todos os instintos de Martin urgiam-no a investir contra o vilão, a trespassá-lo com a lâmina da sua espada. Todavia, sabia que nunca conseguiria chegar-lhe
a tempo, antes de o canalha derrubar o banco. Martin estacou. - Maldito sejas, Gautier! Se lhe fizerdes mal...
- Garanto-vos, monsieur, nada de mal acontecerá à criança se fizerdes exatamente o que eu vos disser.
Os olhos de Martin estreitaram-se ao aperceber-se de que aquela voz aveludada não era a do homem que ameaçava a vida de Meg. Gautier tinha-se ocultado algures fora
do palco.
- Atirai a espada para o lado e continuai aí em baixo, na segunda plateia, caso contrário serei obrigado a ordenar ao Jacques que dê um pontapé no banco. A vossa
filha possui um pescoço extremamente delicado, monsieur. Tão fácil de partir.
Martin rangeu os dentes de raiva e frustração. Não lhe restava outra alternativa que não fosse obedecer. Arremessou a espada para longe de si e levantou a mão para
mostrar que estava desarmado. com a outra mão, mostrou o Livro das Sombras.
- Libertai a minha filha, Gautier. Trouxe-vos o amaldiçoado livro.
- Oh, paizinho, eu... eu estou tão arrependida - disse Meg contrita. O facto de no meio de todo aquele horror a sua filha expressar sentimentos
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de culpa e de arrependimento tão acentuados era quase mais do que Martin estava capaz de suportar.
Esforçou-se ao máximo por lhe sorrir para a tranquilizar.
- Tudo se resolverá pelo melhor, petite.
- Na verdade, assim será, mademoiselle - corroborou Gautier. - Desde que continueis a manter-vos quieta até o vosso pai e eu concluirmos a nossa transação.
Martin tentou descobrir o local onde Gautier se ocultava. O homem só podia estar nos bastidores, a falar e a observar através da caixa do ponto.
- Perdoar-me-eis se me sinto um tudo-nada cético, mestre Wolfe prosseguiu Gautier. - Antes de poder libertar a vossa filha, tenho de determinar a autenticidade do
livro. A minha régia ama, a rainha Catarina de Médicis, já foi enganada em duas ocasiões nos seus esforços para adquirir esse livro.
Martin acenou com o livro ao alto, numa atitude provocadora.
- Vinde examinar o livro com os vossos próprios olhos - desafiou, pensando que se pudesse dominar Gautier, encostar-lhe a lâmina da espada à garganta, poderia obrigá-lo
a ordenar a libertação de Meg.
Mas como se o homem fosse capaz de lhe adivinhar os pensamentos, ele riu-se à socapa.
- Estou em crer que prefiro continuar onde estou. Mestre Naismith, afirmais ter alguns conhecimentos acerca destes assuntos do ocultismo. Ide até lá abaixo para
examinardes o livro.
Martin quase se tinha esquecido do papel de Sander em tudo aquilo. O rapaz emergiu dos bastidores, mas a sua habitual postura emproada primava pela ausência. Desceu
para a segunda plateia, estremecendo perante o olhar ameaçador de Martin. Sander aproximou-se deste desconfiadamente, tendo a decência de se mostrar envergonhado.
- Lamento m... muito, mestre Wolfe - disse a gaguejar. - Não foi minha intenção fazer qualquer mal a Meg. Também não quis ajudar Monsieur Gautier, mas ele forçou-me
a...
- Vê se te calas - atalhou Martin. - Poupa-me às tuas fantochadas se sabes o que é bom para ti, rapaz.
Sander remeteu-se ao silêncio, mostrando-se abespinhado enquanto estendia a mão para o livro. com relutância, Martin entregou-lho.
Sander olhou fixamente para o tomo, passando os dedos, quase com reverência, pela capa de couro muito antiga. Quando abriu o livro, examinando aquela estranha escrita,
o rosto do rapaz iluminou-se com uma cobiça que ficou bem patente.
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- E então, rapaz? - perguntou Gautier impaciente. Sander virou-se na direção do palco para lhe responder.
- Parece-me que é genuíno, monsieur.
- Nesse caso, trazei-mo.
- Não! - Martin fechou a mão com força no braço de Sander. - Não até libertardes a minha filha.
- O que farei assim que tiver o livro nas minhas mãos. Mestre Naismith, trazei-me o livro.
Antes que o rapaz pudesse responder a Gautier, Martin agiu com uma celeridade assombrosa. Imobilizou Sander com uma força férrea, desembainhou o punhal do próprio
rapaz e encostou-lhe a lâmina à garganta.
Martin ouviu Sander a respirar fundo. Embora o rapaz se mostrasse aterrorizado, não tinha largado o Livro das Sombras.
- Libertai Meg de imediato ou eu... - começou Martin a dizer ameaçador, mas foi interrompido pelo riso trocista de Gautier.
- Ou fareis o quê, monsieur? Cortar a garganta do rapaz? Eu próprio me senti tentado a fazer isso mesmo ainda não há muito tempo. Ele não tem o mínimo significado
para mim. Não tendes por que hesitar, matai-o. Mas se esse livro não estiver na minha posse quando eu acabar de contar até dez, ides ver o corpo sem vida da vossa
filha a oscilar dessa corda.
- Um... dois...
Martin ficou com a testa coberta de suor quando Gautier iniciou a sua contagem. Em silêncio, invetivou-se, percebendo que se pusera precipitadamente naquela situação,
ignorando a advertência de Cat. Ela tinha tido razão. Duvidava muito que Gautier tivesse a mínima intenção de permitir que Martin ou a sua filha saíssem com vida
daquele teatro, quer ele lhe entregasse o livro, quer não.
- Três... quatro...
Os pensamentos de Martin sucediam-se a grande velocidade enquanto avaliava as suas opções. Só lhe ocorria uma coisa que pudesse fazer: arremessar Sander para longe
de si e atirar o punhal em direção ao coração do homem que se mantinha junto de Meg, após o que desataria a correr para salvar a filha antes de Gautier poder chegar-lhe.
Martin perguntou-se se possuiria a destreza e a celeridade necessárias para fazer isso. Não lhe restava outra alternativa, disse a si próprio. Era a única esperança
para ambos.
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Cat mantinha-se recuada, a coberto das sombras da bancada superior do teatro. Recorrendo a um poço de força que nem sequer sabia que possuía, tinha conseguido percorrer
o caminho até ao Teatro Crown. O ar da noite contribuíra em grande parte para lhe aclarar as ideias, aguçando-lhe os sentidos.
A ligadura estava quase a escorregar-lhe para os olhos e Cat decidiu tirá-la da cabeça. A brancura do linho só serviria para chamar a atenção sobre si, algo que
ela conseguira evitar por estar toda vestida de preto.
Mantendo-se nas sombras, Cat observava a cena que se desenrolava abaixo de si. A provação por que Meg estava a passar fazia com que quisesse rugir de raiva e medo.
Mas manteve-se com os maxilares cerrados enquanto Martin mantinha Sander como refém e Gautier iniciava a sua implacável contagem.
O canalha estava escondido algures nos bastidores. Um bruto de cabelo negro mantinha-se de guarda a Meg. Tanto quanto Cat sabia, até era possível que houvesse mais
homens ocultos nas alas, mas não dispunha de mais tempo para avaliar a situação mais pormenorizadamente.
Tinha o arco de Martin nas mãos, a caçadora preparada para o tiro com arco e flecha mais difícil da sua vida. Tirou da aljava a flecha a cuja ponta aplicara pez.
Chegou-lhe a chama da lanterna escondida no chão atrás de si.
- Cinco... seis... - ouviu Gautier a contar. - Estou a perder a paciência, Monsieur Lobo.
O bater do coração de Cat acelerou-se, mas sabia que não podia dar-se ao luxo de perder a coragem, permitindo que o pânico se apoderasse de si. Colocou a flecha
com a ponta incandescente em posição, fazendo pontaria com uma deliberação bem calculada.
Fez uma pausa durante apenas o tempo necessário para oferecer uma breve oração a Santa Brigida e à boa Terra-Mãe. E depois disparou a flecha.
Atravessou o ar a sibilar, descrevendo um arco flamejante antes de acertar na corda suspensa acima da cabeça de Meg. Antes que os que se encontravam abaixo de si
pudessem reagir, Cat apressou-se a ajustar outra flecha
no arco.
Ao mesmo tempo, Martin arremessou Naismith para longe de si. Atirou o punhal ao homem que estava de guarda a Meg. Jacques uivou de dor. Cat atirou a segunda flecha,
acertando em cheio num dos olhos do homem.
Jacques ficou esparramado no chão, derrubando uma das lanternas e o banco onde Meg estava de pé, mas a corda tinha-se partido, soltando-a. com um pequeno grito,
saltou para o chão do palco.
370
Martin correu para a filha, mal conseguindo chegar-lhe antes de Gautier, que saía dos bastidores, desembainhando a espada com um sibilar de fúria.
Martin apressou-se a recuperar a sua espada na posse de Jacques, que estava caído por terra. Conseguiu desembainhá-la mesmo a tempo de aparar uma estocada mortífera
de Gautier.
Enquanto os dois homens se defrontavam, esquivando-se às investidas um do outro, Cat tirou outra flecha da aljava, aguardando a melhor oportunidade de a lançar contra
Gautier sem atingir Martin. No entanto, apercebeu-se de algo que lhe causou mais preocupação. Quer tivesse sido uma centelha da sua flecha ou a lanterna derrubada,
o certo é que as esteiras de juncos secos espalhadas pelo palco tinham pegado fogo.
Alimentadas pelos juncos secos, as chamas propagaram-se rapidamente, ameaçando consumir tudo à sua passagem, o que incluía Meg.
Cat passou a correia do arco por cima do ombro antes de correr para as escadas, tendo sido por pouco que não tombou pelos degraus abaixo com a pressa de chegar à
segunda plateia.
Meg continuava com as mãos amarradas, prestes a sufocar por causa do fumo, tentando ir, com bastante dificuldade, para a extremidade do palco a fim de fugir às chamas.
- Meg! - gritou Martin. Foi impedido de ir em socorro da filha pela espada de Gautier. Foi por um triz que conseguiu esquivar-se à estocada que teria posto fim à
sua vida.
Cat chegou ao lado de Meg e desembainhou o seu punhal, cortando as cordas que manietavam a garota.
- Cat - disse a garota numa voz roufenha com as lágrimas a correrem-lhe abundantemente pelas faces, quer de alívio, quer devido ao fumo denso, era coisa que Cat
não sabia dizer.
Sentiu os seus próprios olhos a arderem, o cheiro acre das esteiras de palha que ardiam a invadir-lhe as narinas. Mas abraçou Meg, apertando-a junto de si e tentando
tranquilizá-la enquanto a ajudava a descer do palco, levando-a para longe das chamas.
- Já passou o perigo, Meggie. Agora estou aqui.
- Eu... eu sabia que tu e o paizinho viriam em meu socorro. Mas o Sander...
- Não te preocupes com ele. Agora ninguém poderá fazer-te mal. Meg soltou-se do braço dela. A tossir e a fungar, disse numa voz arfante:
- Não... não estás a compreender. Ele está a fugir. com o livro! - Meg gesticulou freneticamente na direção do lado oposto do teatro. Aproveitando
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o caos que se instalou em volta de si, Naismith encaminhava-se furtivamente para a saída do teatro, com o livro bem seguro nas mãos.
Cat estendeu a mão para o arco. Não conseguia obrigar-se a aniquilar o rapaz diante dos olhos horrorizados de Meg. Optou pela outra coisa que lhe ocorreu ao pensamento,
algo que devia ter sido feito por uma Filha da Terra há uma eternidade.
Voltando a chegar lume à ponta de outra flecha, Cat ajustou-a no arco. Pestanejando para aclarar a visão, fez pontaria e lançou a flecha em direção ao livro, tendo
conseguido acertar-lhe.
Sander gritou quando as folhas quebradiças do livro antigo ficaram em chamas. O rapaz poderia ter ficado ileso se tivesse deixado cair o livro, mas enquanto se esforçava
por extinguir as labaredas, o fogo propagou-se até à manga. Em pânico, começou a esbracejar, o que só serviu para atiçar as chamas.
Os gritos agudos rasgavam o ar enquanto as chamas o consumiam. Cat colocou-se à frente de Meg para a impedir de ver aquela cena horrível, mas esse seu cuidado era
desnecessário.
Entretanto, o teatro já era pasto das chamas, o ar irrespirável, de tão denso que era o fumo, impedindo que se visse o que quer que fosse.
- Cat! - Esta ouviu o berro de Martin. - Leva a Meg daqui para fora!
Cat agarrou em Meg pelos braços, desceu-a do palco e ordenou-lhe que corresse. Olhou para trás à procura de Martin cheia de desespero, sentindo-se aliviada ao ver
que ele estava a levar a melhor sobre Gautier.
Martin conseguiu neutralizar a defesa do capitão, golpeando a face de Gautier, que soltou um berro de dor, deixando cair a espada. Quando Martin já se preparava
para desferir o derradeiro golpe, surgiu um terceiro homem, que até aí passara despercebido, aproximando-se a correr para ajudar o capitão.
Cat tentou gritar a Martin para o avisar quando o homem desembainhou a espada, mas tinha a garganta entupida pelo fumo. Atirou-se para a frente, colocando-se entre
Martin e o seu atacante.
O choque foi tal que ficou com a respiração arquejante, sentindo a dor aguda quando a lâmina aguçada de aço lhe golpeou o flanco. Antes que o homem pudesse feri-la
de novo, Martin foi em seu auxílio, aniquilando-o. Cat sentiu-se entontecida e caiu desamparada no palco. Sentiu o seu próprio sangue morno a começar a escorrer-lhe
por entre os dedos, enquanto mal conseguia respirar.
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Apercebeu-se vagamente de que Martin a levantava, pegando-lhe ao colo. Cat fechou os olhos e encostou a cabeça ao ombro dele, sentindo-se enfraquecida e com a sensação
de que ambos se encontravam irremediavelmente perdidos num qualquer inferno em chamas.
Nunca saberia dizer como é que ele conseguiu, mas, de uma maneira qualquer, conseguiram sair do teatro, longe do calor infernal das labaredas e do fumo sufocante.
Quando começou a encher os pulmões de ar puro e frio, sentiu tantas dores como as causadas pelo ferimento que tinha no flanco. Martin pousou-a no chão. Cat obrigou-se
a abrir os olhos, embora só tivesse conseguido entreabri-los.
A noite parecia estar transformada em caos, com o som de gritos à distância e de passos pesados. O teatro envolto em chamas iluminava o firmamento noturno, fazendo
com que as pessoas se levantassem das suas camas e saíssem para a rua.
Mas Cat viu que Martin e Meg estavam sãos e salvos e isso era tudo o que mais lhe interessava. Ele começou a rasgar tiras das saias de baixo de Meg. Quando tentou
ligar-lhe o ferimento, Cat disse o nome dele ofegante.
- Martin.
- Não tentes falar - ordenou-lhe ele. - Estamos todos a salvo, mas temos de sair daqui sem mais perdas de tempo. Deixámos quatro homens mortos no teatro e vai ser
muito difícil encontrar explicações para essas mortes.
- Não é tão difícil como pensas - retorquiu ela numa voz roufenha antes de perder a consciência pela segunda vez naquele dia.
- Eles morreram de um pensamento demoníaco.
Martin passou o que restava da noite sentado na sua cadeira, mantendo-se de vigília a Cat enquanto ela dormia. Finalmente, foi vencido pela exaustão, tendo começado
a dormitar, mas era um sono entrecortado, acordando
a espaços.
Foi despertado pelo chilrear de uma cotovia que se ouvia no lado de fora da sua alcova. Martin endireitou-se de repente, pestanejando e esfregando os olhos. Depois
de uma noite de fogo e violência como aquela e de ter conseguido escapar com vida por uma unha negra, parecia-lhe estranho acordar ao som de algo tão normal como
o chilrear de uma cotovia e a luz do Sol a entrar pela janela.
Levantou-se da cadeira e aproximou-se de Cat, examinando-a ansiosamente. com a ajuda de Agatha, tinham limpado o ferimento, após o que o ligaram. Ela tinha perdido
bastante sangue, mas desde que o ferimento não infetasse, Cat acabaria por se restabelecer.
Martin passou os dedos ao de leve pela fronte dela, sentindo um grande alívio ao constatar que não tinha febre. Dormia profundamente, mas isso talvez se devesse
apenas à exaustão. Martin sentiu um aperto no coração ao pensar como estivera prestes a perdê-la naquela noite.
Em tempos, fora suficientemente idiota para imaginar que seria a imagem etérea de Miri Cheney que o atormentaria durante o resto da sua vida. Mas ainda que vivesse
até aos cem anos, sabia que jamais se esqueceria da silhueta de Cat quando a viu na galeria do teatro, uma deusa guerreira de cabelos de um ruivo chamejante com
aquele arco nas mãos.
Naquele momento, Cat não tinha uma aparência tão indómita, de facto pouco mais era além de um corpo que mal se via tapado pelas cobertas, o cabelo espalhado pela
almofada, o rosto pálido e pisado, com a fronte desfeada
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por uma fiada irregular de pontos da sutura. Mas Martin pensava que nunca tinha visto uma mulher tão maravilhosa.
Eram tantas as coisas que ele queria dizer-lhe quando ela despertasse. Tanto que precisava de lhe dizer. Mas para um homem a quem nunca haviam faltado palavras,
Martin nem sequer fazia a mais pequena ideia de como e por onde é que começaria.
Quando puxou a colcha para cima, cobrindo-lhe o ombro nu, Cat mexeu-se finalmente. As pálpebras fremiram antes de se abrirem, as profundidades dos olhos azuis toldadas
de confusão.
- Martin?
- Sim, estou aqui, tal como tu estás - replicou ele, acariciando-lhe a bochecha. - Graças ao bon Dieu. Pensei que poderia vir a perder-te.
- Não, aqui estou eu. Onde quer que aqui seja. - O olhar dela percorreu o interior da alcova enquanto parecia estar a avaliar tudo o que a rodeava. Levantando a
colcha, espreitou para baixo e queixou-se.
- Estou toda nua e, uma vez mais, deitada na tua cama.
"Talvez seja aí que pertences", sentiu-se Martin tentado a dizer, mas tinha o coração cheio de mais. Franzindo as sobrancelhas, Cat olhou para ele e fungou.
- Cheiras a fumo.
- Sim... peço perdão, mas depois de tudo o que aconteceu, senti-me demasiado exausto para tomar banho e mudar de roupa.
- Depois de tudo o que aconteceu - repetiu Cat. Os seus olhos iluminaram-se ao recordar-se do sucedido. Gemeu.
- com a breca! Incendiei o teu teatro.
- Enquanto salvavas a vida da minha filha, para não dizer nada da minha própria pele miserável. O teatro não tem a mínima importância, desde que continue a ter tudo
o que para mim é mais precioso - acrescentou Martin, fechando a mão na dela.
Ou ela não o compreendia ou fingia que não compreendia. Cat tirou a mão da dele.
- A Meg - murmurou. - Como é que ela está?
- Bastante bem, levando em consideração tudo o que se passou. A última vez em que a fui ver, estava a dormir. Uma coisa surpreendente quando se leva em linha de
conta que ela passou a ter todo um novo conjunto de horrores na cabeça.
Martin abanou a cabeça com uma expressão de amargura.
375
- Fui tão arrogante quando tirei Meg à tutela da mãe. Prometi que proporcionaria uma vida muito melhor à minha filha, mantendo-a em segurança e protegida. No entanto,
veio a revelar-se que sou um progenitor tão mau como Cassandra foi.
- Isso não é verdade, Martin - ripostou Cat, mostrando um semblante de censura. - Estás a ser absolutamente injusto para contigo próprio.
- Não, foi para contigo que fui injusto. Todas essas coisas ríspidas que eu te disse ontem, culpando-te pelos meus próprios defeitos. Nem sei por onde começar para
te pedir perdão.
- Não precisas de fazer nada disso. Tinhas todo o direito de estar encolerizado comigo. Eu devia ter-te dito que a Meg continuava a pôr em prática as artes antigas,
devia ter tentado fazer com que compreendesses.
- O que não é nada fácil de fazer, minha querida, quando um homem está firmemente determinado a não ouvir. Quero que saibas que venceste. Assim que estiveres suficientemente
restabelecida, levaremos a Meg para a ilha Encantada.
Cat olhou-o com uma expressão de tristeza na cara.
- Oh, Martin, não foi minha intenção vencer. Nunca quis que te sentisses forçado a aceitar essa decisão. Tinha esperança de que, com o tempo, acabasses por ver que
isso era o melhor para ela.
- E estou a ver que sim. Talvez uma parte de mim tenha visto isso desde sempre - admitiu Martin, com o assomo de um sorriso de pesar. - Mas sou um homem muito egoísta.
A Meg é minha ainda há tão pouco tempo. Concluí que a perspetiva de a partilhar com outra pessoa me era insuportável, até mesmo quando essa pessoa é a Senhora da
Ilha Encantada.
Cat não fez qualquer comentário, limitando-se a estender a mão para ele num gesto com que queria consolá-lo. Martin deixou-se cair na beira da cama, colocando a
mão dela na sua.
- Existe outra razão para me ter sentido sempre aterrorizado com a possibilidade de a Meg vir a interessar-se pelos conhecimentos da Antiguidade. É algo que para
mim é difícil de admitir, até mesmo perante mim próprio - reconheceu Martin, humedecendo os lábios. - Têm existido ocasiões em que me deixei ficar à beira do leito
da minha filha, a observá-la a dormir enquanto lhe perscruto o rosto, sentindo-me aterrorizado por poder ver nela algum traço da mãe. Pensando que, faça eu o que
fizer, a Cassandra acabaria por triunfar, o que faria com que a Meg passasse a ser a Rosa de Prata.
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- Isso jamais acontecerá, Martin. Não com a Ariane a orientá-la.
- Estou seguro de que tens razão. Rezo para que, com o tempo, todo o mito da Rosa de Prata acabe por ser relegado para o esquecimento. São inúmeras as vidas que
essa maldita lenda já ceifou e receio que ainda ceifará outra.
"A de Jane Danvers. Não faço ideia nenhuma de como salvá-la, Cat, para além de lhe contar a verdade. Mas a Meg é minha filha. Não posso sacrificá-la, até mesmo para
salvar a vida da Jane.
- Haveremos de pensar em alguma coisa, Martin. Depois de termos a Meg em segurança na ilha Encantada - retorquiu Cat apertando-lhe a mão.
Martin sorriu-lhe, um sorriso de gratidão, levando os dedos dela aos lábios.
Nenhum dos dois se apercebeu do ranger da porta, nem da pequena figura que se retirava depois de ter estado a ouvir a conversa entre os dois. Meg espalmou-se contra
a parede do corredor, tapando a boca com as mãos.
Só descera silenciosamente para se inteirar do estado de saúde de Cat, para saber se o ferimento estava a sarar. Meg nunca tinha esperado um choque tão grande.
O seu pai... o seu próprio pai tinha receado que um dia viesse a ser como a mãe, que cumpriria a sinistra profecia da Rosa de Prata.
Os seus lábios tremiam e pela face corria-lhe uma lágrima furtiva. Agora que ele sabia que ela tinha escondido o Livro das Sombras, estaria mais convencido disso
do que nunca.
Meg só via uma maneira de lhe provar que estava enganado, de pôr fim de uma vez por todas à Rosa de Prata e de salvar Lady Jane Danvers. Apenas uma maneira... se
conseguisse chamar a si a coragem necessária para a pôr em prática.
Continuando exaurida pelos acontecimentos da noite anterior, Cat voltou a adormecer. Martin aproveitou a oportunidade para se lavar e para se arranjar. Vestido apenas
com os calções, banhava o peito nu quando a sua alcova foi invadida.
A senhora Butterydoor e Maude entraram de rompante, muito angustiadas e sem fôlego. As duas mulheres tentavam falar ao mesmo tempo.
- Oh, mestre Wolfe, ela foi-se embora e é tudo por culpa da Maude.
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- Não é nada - respondeu Maude, desatando a chorar desabaladamente.
- Sim, sim, senhora, minha grande idiota chorona. Foste tu que a ajudaste a atar as fitas do melhor vestido dela.
- E então, c... como é que eu havia de saber. Depois de todas as coisas t... terríveis que lhe aconteceram ontem, eu p... pensei que ela só queria pôr-se b... bonita.
- Idiota! Se tivesses metade de um cérebro que fosse, terias... Martin interveio, ordenando a ambas que se calassem.
- E agora, senhora Butterydoor, podeis dizer-me de uma maneira coerente e que eu seja capaz de compreender o que diabo é que se passa?
- É a menina Meg. Ela fugiu - informou Agatha dramaticamente, enquanto Maude limpava as lágrimas ao avental.
- Mas que disparates é que estais para aí a dizer, mulher! - ripostou Martin desabrido. - Depois de tudo por que ela acabou de passar, a Meg não seria imprudente
nem tola ao ponto de fazer uma coisa dessas. O mais certo é ela ter saído apenas para o jardim.
com os olhos a encherem-se de lágrimas, Agatha abanou a cabeça, entregando-lhe uma pequena mensagem dobrada. Martin tirou-lha da mão com brusquidão, sentindo-se
possuído de uma inquietação crescente.
Era impossível não reconhecer a letra de Meg. A filha tinha uma caligrafia muito cuidadosa e elaborada. Quando leu as breves linhas, Martin praguejou.
- Meu bom Jesus!
Todo aquele burburinho tinha acordado Cat. Retraindo-se, tentou sentar-se.
- Martin, o que é que se passa? - perguntou ansiosamente.
Ele respondeu-lhe ao ler a mensagem em voz alta numa voz repleta de tensão.
Paizinho.
Lamento muito ter provado ser uma grande desilusão para ti. Tentei com todas as minhas forças não vir a ser uma feiticeira demoníaca como a minha mãe foi e não quero
que mais ninguém venha a sofrer por causa da minha saga. Existe uma maneira de eu poder salvar Lady jane Danvers, ou seja, confessar que sou a Rosa de Prata.
Perdoa-me e lembra-te sempre de mim como a tua filha que muito te ama, Margaret Wolfe
Martin mal conseguiu ler a assinatura da filha, de tão esborratada que estava de lágrimas. Ele próprio sentiu uma enorme vontade de chorar que não
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se coadunava nada com a sua masculinidade, vendo-se forçado a engolir em seco.
Ao contrário do que era seu costume, Cat não tentou ocultar a sua emoção, ficando com os olhos marejados de lágrimas.
- Que menina tão corajosa! - exclamou.
- Corajosa? - repetiu Agatha a choramingar. - A minha bonequinha enlouqueceu. Será possível que a criança esteja decidida a fazer-se enforcar?
- Isso não irá acontecer - disse Martin, pousando a mensagem com brusquidão e começando a procurar as botas cheio de frenesim. - Hei de encontrar a Meg e impedi-la
de se aproximar sequer do Walsingham. - Quando viu que Cat se esforçava por se levantar do leito, ordenou-lhe que continuasse deitada. - Não estás em condições de
me acompanhar.
- Sei que não - concordou ela. - Mas tens de me ouvir antes de saíres impetuosamente. Para para poderes pensar, Martin. A Meg não sabe nada a respeito do Walsingham.
Se a garota decidiu confessar, só existe uma pessoa em Londres que ela procuraria e ambos sabemos quem é essa pessoa.
Martin imobilizou-se, receando que Cat tivesse razão. E, a ser esse o caso, passava a ser ainda mais urgente encontrar Meg a tempo de a impedir de cometer uma loucura.
A sala de audiências em Whitehall estava apinhada de cortesãos e peticionários, todos esperançados em conseguir chamar a atenção da rainha quando ela regressasse
da capela. Qualquer pessoa com uma boa aparência e bem vestida podia ter acesso àquela antecâmara.
Meg tinha entrado atrás de um corpulento fidalgo rural, acompanhado da mulher, esforçando-se por passar despercebida entre as inúmeras filhas tagarelas do casal.
Perdendo-se entre aquela multidão que aguardava, não era capaz de conter a sua admiração por Isabel, pensando que ela devia ser muito corajosa para aparecer tão
destemidamente entre os seus súbditos depois de tantas conspirações contra a sua vida.
Meg só desejava conseguir igualar a coragem da rainha que tanto admirava. Receava ter esgotado a pouca que possuía só para poder chegar ali. Encolhia-se toda no
fundo da antecâmara à cunha, impossibilitada de ver alguma coisa para lá daquela floresta de membros e cabeças.
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O único indício que lhe permitiu dar conta da aproximação da rainha veio da agitação entre a multidão, os gorros a serem tirados das cabeças e ouvindo-se vozes que
gritavam: "Deus salve a rainha!"
O coração de Meg começou a bater tão depressa que mal conseguia respirar. Estava como que petrificada, sentindo-se avassalada pela perspetiva de, finalmente, poder
estar na presença da rainha Isabel e receando o que se preparava para fazer.
Meg sabia que, se não agisse dentro em pouco, perderia a sua única oportunidade. Enchendo os pulmões de ar, abriu caminho em frente por entre aquele mar de saias
de seda e de pernas masculinas vestidas com bragas. Ignorando as repreensões e os protestos que lhe eram dirigidos, Meg conseguiu colocar-se à frente da multidão.
Por uns momentos, sentiu-se ofuscada perante a visão entontecedora de uma mulher alta e esbelta que parecia ser feita de fogo e ouro, o requintado vestido enfeitado
com pedras preciosas, o tecido de seda aberto em leque por cima de anquinhas muito largas.
Sem se permitir mais tempo para pensar, Meg atirou-se para a frente e deixou-se cair de joelhos. Baixou a cabeça, sem se atrever a erguer o olhar.
- Deus nos valha! Quem é esta? - Meg ouviu a exclamação e a pergunta proferidas numa voz melodiosa.
- D... Deus salve vossa majestade. Eu... eu imploro-vos... - gaguejou Meg, mas não foi capaz de se fazer ouvir acima do murmurar de muitas vozes na antecâmara.
Um problema que a rainha não tinha.
- Silêncio! - ordenou Isabel numa voz ressonante.
A soberana foi obedecida de imediato, mas para Meg aquilo só agravou a situação. O silêncio que passou a reinar na câmara era tão profundo que só ouvia a sua respiração
acelerada, a pulsação a latejar-lhe nos ouvidos. Tinha perceção dos olhares de todos os presentes presos em si; olhava com fixidez para a orla do vestido da rainha.
- Não há motivo para receios, criança - disse-lhe a soberana. - Dizei-nos o vosso nome.
- Chamo-me Margaret. Margaret Elizabeth Wolfe - replicou Meg numa voz que mal se ouvia acima de um murmúrio.
- Muito bem, menina Margaret Wolfe. E o que é que pretendeis da vossa soberana?
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Animada pela amabilidade que transparecia do timbre de voz da rainha, Meg sentiu-se encorajada a falar mais alto.
- Deus salve vossa majestade. Suplico-vos que ouv... - Meg olhou para cima e o resto do seu discurso, tão cuidadosamente preparado, desapareceu-lhe do pensamento.
De boca aberta, examinava Isabel, chegando à conclusão de que a rainha era muito mais e muito menos do que tinha esperado.
Isabel apresentava uma postura régia, a gola de tufos engomados em volta do pescoço esguio. Tinha uma fisionomia inteligente, um rosto comprido e magro com um nariz
aquilino e um queixo pontiagudo. O cabelo ruivo encaracolado era, obviamente, uma peruca, a tez estava coberta de várias camadas de cosméticos que se destinavam
a ocultar os estragos feitos pela varíola e pela passagem do tempo.
Aquela Isabel aparentava ser muito mais velha e muito mais como a mortal comum do que a rainha que Meg imaginara. com a exceção dos olhos.
Encimados por umas sobrancelhas finas e arqueadas, os olhos de Isabel pareciam não ter idade, tão brilhantes e penetrantes que Meg pestanejou. Era como se estivesse
a olhar diretamente para o Sol.
- Gloriana - sussurrou Meg, provocando um coro de risos por toda a antecâmara.
Até mesmo a rainha pareceu divertida, mas o seu sorriso como que banhava Meg na calidez de um dia de verão.
- Podeis dispensar a lisonja, indo direita ao assunto que vos trouxe aqui, menina Margaret Wolfe. Qual é o teor da vossa petição?
Meg passou a língua pelos lábios, começando a falar abruptamente.
- Vim para vos implorar que liberteis Lady Jane Danvers.
O sorriso da rainha desapareceu-lhe dos lábios. Era como estar a ver o Sol a desaparecer atrás de nuvens. A sala foi percorrida por um murmúrio de mal-estar geral.
- O que é que tendes a ver com o que possa acontecer a sua senhoria, menina? - perguntou a rainha numa voz autoritária.
- com licença de vossa majestade, eu... eu sei que ela está inocente.
- E como é que saberíeis isso?
O coração de Meg batia-lhe com tanta força no peito, era tanto o medo que sentia, que receou desfalecer. Engoliu em seco e conseguiu erguer o queixo numa atitude
corajosa enquanto respondia à soberana.
- Porque sou eu quem devia ter sido presa. Eu sou a Rosa de Prata.
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Meg sentou-se no banco, como a rainha lhe ordenava, sem se atrever a mexer, mas o seu olhar percorria todo o interior da câmara. Tinha esperado, sem a mínima dúvida,
que naquela altura já estivesse presa e levada sob escolta da guarda para a Torre de Londres.
Em vez disso, e deveras surpreendida, deu consigo numa parte do palácio onde o acesso só era permitido a uns raros privilegiados - os aposentos privados da rainha.
Não obstante o perigo da situação em que se encontrava, Meg não era capaz de se impedir de examinar avidamente tudo o que a rodeava, o imponente leito feito de madeiras
de várias cores e de cujo dossel pendiam ricas sedas pintadas, uma mesa com um tampo prateado, um guarda-joias ornamentado com pérolas.
com as paredes cobertas de tapeçarias e o teto trabalhado e ornado com dourados, era, de facto, uma alcova digna de uma rainha. Mas era um tudo-nada sombria por
ter apenas uma janela.
Que estranho e triste, pensou Meg, que uma rainha só dispusesse de uma janela que se abria para o mundo. Era como se a própria Isabel também fosse uma espécie de
prisioneira.
Esta impressão reforçou-se ainda mais quando um gentil-homem ao serviço da rainha fechou as portas duplas, o que fez com que se deixasse de ouvir o clamor que a
afirmação de Meg causara.
Os ministros da rainha tinham estado prontos para arrastar Meg para fora da presença de Isabel, enquanto os cortesãos suplicavam à monarca que mantivesse uma distância
segura entre a sua régia pessoa e a rapariga, até que fosse possível determinar se ela era apenas louca ou algo muito mais sinistro.
Imperiosamente, a rainha ignorara-os a todos. Tendo mesmo ordenado às suas damas de honor que se retirassem, após o que Isabel se fechou a sós com Meg.
A rainha instalou-se num cadeirão estofado defronte dela, começando a examinar Meg com tanta curiosidade como esta a examinava a ela. Juntando as mãos elegantes
de dedos afuselados no colo, Isabel prescindiu do tom mais formal que usara na sala de audiências.
- Muito bem, menina Rosa de Prata - começou a dizer. - Há muito tempo que eu não recebia uma maga na minha corte. O que não acontecia desde o dia em que o meu infeliz
amigo, o doutor Dee, foi acusado de bruxaria, tendo sido obrigado a fugir para o estrangeiro. Era um matemático
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e astrólogo muito dotado. Um dos serviços que me prestou foi determinar o dia mais auspicioso para a minha coroação.
- E escolheu muito bem, majestade - retorquiu Meg timidamente.
- O vosso reinado tem sido coroado de êxito até ao momento.
- Hum... estou a ver que sabes adular tão bem como os meus cortesãos.
- Oh, não! Nem sempre falo com tanta sinceridade como desejaria. Mas jamais mentiria a uma rainha.
- E por que não? Toda a gente me mente - ripostou Isabel com frieza. - Tudo teria corrido bem ao doutor Dee se ele se tivesse limitado à astrologia. Mas acredita-se
que ele começou a interessar-se pela necromancia, tentando comunicar com espíritos e demónios do outro mundo. Alguma vez sucumbiste a essa tentação?
- Ainda não.
A franqueza de Meg surpreendeu a soberana, que soltou uma gargalhada seca.
- Parece-me que és demasiado nova para poderes dizer que és uma poderosa feiticeira como a que afirmas ser. Portanto, diz-me onde é que adquiriste todos os teus
conhecimentos?
Ainda que com relutância, Meg disse-lhe, abrindo-se como era muito raro que o fizesse, nem sequer com Cat. Contou à rainha tudo o que tinha aprendido no Livro das
Sombras, os anos em que vivera em França, a tentativa de revolução orquestrada pela mãe.
A rainha ouvia-a fascinada.
- A tua mãe acreditou realmente que conseguiria fazer de ti a rainha de França? - perguntou atónita.
- Sim, majestade. Mas eu nunca desejei isso.
- Uma garota muito sensata - disse Isabel. - Ser uma rainha e usar uma coroa é mais glorioso para aqueles que estão de fora do que é um prazer para os que se encontram
nessa situação.
- Toda a gente acredita que a minha mãe era demoníaca e talvez fosse. Era uma bruxa. Ela teria arrasado todo um reino se lhe tivesse sido permitido.
- O meu foi arrasado - retorquiu a rainha num tom de voz tão baixo que Meg mal conseguiu ouvi-la.
Mas Isabel apressou-se a mudar de assunto.
- Por conseguinte, vieste ao palácio para te renderes com o objetivo de salvares Lady Jane Danvers. Isso é extremamente corajoso da tua parte.
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- Não me sinto muito corajosa, de maneira nenhuma - confessou Meg. - Mas parece-me que é a atitude mais honrada a ter. Rogo-vos que a liberteis de imediato, agora
que estais a par da verdade.
com lentidão, Isabel abanou a cabeça.
- É possível que Lady Jane Danvers esteja inocente da acusação de bruxaria, mas existem muito poucas dúvidas de que sua senhoria conspirou com um tal padre Ballard
com vista a atentarem contra a minha vida.
- Não, Lady Jane Danvers é-vos leal. Tenho a certeza do que digo. Quando vi o que ela trazia dentro da bolsa, constatei que continha dois tesouros. Um era o seu
rosário. O outro era isto. - Meg levou a mão ao interior da sua própria bolsa, de onde tirou o pequeno pedaço de passadeira azul. - Isto é uma parte de...
- Sei bem o que isso é. Um bocado da passadeira que foi estendida aquando da minha coroação. - Isabel tirou o bocado de tecido da mão de Meg. Apalpou-o por uns momentos,
os olhos a humedecerem-se ao recordar-se desse dia, enquanto Meg continuava a rogar-lhe que a vida de Jane Danvers fosse poupada.
- Sua senhoria é uma católica devota, mas também é uma das vossas súbditas mais leais. É possível que se sinta desiludida por não terdes sido capaz de fazer mais
para proteger os católicos do vosso reino, mas ela jamais faria o que quer que fosse que pusesse em risco a vida de vossa majestade.
- Como é que podes ter tanta certeza disso? - perguntou a rainha, devolvendo-lhe o bocado de passadeira.
- Porque fiz mais do que olhar para dentro da bolsa dela. Eu... eu olhei para a mente dela.
- Sabes ler os pensamentos? - perguntou Isabel incrédula.
- Foi uma das primeiras coisas que aprendi com a minha primeira ama, a senhora Waters, quando ainda era pequena. Sou bastante hábil a ler olhos. Habitualmente -
acrescentou Meg, estremecendo ao lembrar-se de Sander.
- És capaz de ler os meus? - desafiou-a a soberana.
Meg sentiu que mal se atreveria a fazer isso. Mas quando a rainha insistiu, começou a perscrutar os olhos de Isabel.
Franziu as sobrancelhas. Não era fácil penetrar nos olhos de expressão acutilante da rainha. A mente de Isabel era como um labirinto de câmaras, aposentos repletos
de pensamentos, esperanças e sonhos para todo um país. Era como se a verdadeira Isabel andasse perdida algures por aqueles corredores tortuosos.
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A fronte de Meg franziu-se enquanto aprofundava mais esses pensamentos, até que, por fim, conseguiu encontrar a mulher por detrás da rainha. Estremeceu avassalada
pelas emoções reprimidas que lhe chegavam em catadupa.
- Oh! Vós... sois tão corajosa e forte como a minha amiga Cat. Mas estais cansada ao ponto da exaustão. Tudo o que mais desejais é paz, mas nem os vossos conselheiros
nem os vossos inimigos vos permitem ter essa paz. Receais que dentro em pouco sejais forçada a tomar medidas duras e cruéis contra... contra a vossa própria prima.
A rainha retraiu-se, mostrando-se muito surpreendida.
- Estás a começar a convencer-me, menina Margaret. És, de facto, uma bruxa.
- Lamento muito, majestade - retorquiu Meg numa voz vacilante -, se fui demasiado ousada...
- Não, fui eu que te pedi que o fizesses - atalhou Isabel, que não parecia nada enervada, embora se mostrasse intrigada. - Isso é toda a extensão das tuas feitiçarias
ou também consegues fazer mais coisas? És capaz de adivinhar o futuro?
- Já tentei usar uma bola de cristal, mas...
- Mostra-me - interrompeu a rainha avidamente. Antes de Meg poder protestar, Isabel dirigiu-se para a sua escrivaninha, de onde tirou um pequeno globo de vidro.
Mas quando a rainha tentou entregar a bola de cristal para que Meg adivinhasse o futuro, esta apressou-se a pôr as mãos atrás das costas.
- Oh, n... não, majestade. Nunca tive muito sucesso a prever o futuro.
- Tenta - insistiu Isabel. - A meu pedido, o doutor Dee tentou, com bastante frequência, consultar a bola de cristal para me revelar o meu futuro. Se conseguires
fazer isso, é possível que sejas capaz de me persuadir a conceder-te o teu pedido, libertando Lady Jane Danvers.
Meg aceitou a bola de cristal relutantemente.
- Não tenho grande apetência para fazer isto. Mas posso tentar.
Não tinha grande apetência? Meg nunca tinha tido êxito sempre que tentou consultar a bola de cristal. Virou-se com o globo nas mãos, recordando-se de como Sander
se tinha gabado, sem vergonha nenhuma, de ter enganado pessoas, levando-as a acreditar que era capaz de fazer magia. Meg perguntava-se se conseguiria fazer a mesma
coisa. Contudo, não acreditava que fosse capaz de enganar Isabel, nem sequer para salvar Lady Jane Danvers.
Respirou fundo e começou a olhar fixamente para a bola de cristal, esforçando-se por se concentrar como nunca fizera antes. Imaginou os seus olhos
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como sendo lentes curvas, como as que ajustara no seu binóculo para sondar toda a amplitude dos céus, como se atraísse as estrelas para cada vez mais perto.
Começou a ver um bailado de pontos minúsculos de luz diante dos olhos, para depois parecer que explodiam numa enorme quantidade de imagens vertiginosas, umas a seguir
às outras. Mas foi a última que fez com que Meg soltasse um grito agudo, afastando a bola de cristal de si com brusquidão.
Voltou a sentar-se no banco muito acabrunhada, a tremer, enquanto a rainha se inclinava para reaver a bola de cristal. Colocou-a em cima da mesa que tinha o tampo
prateado.
- O que é que viste, criança? - perguntou a Meg. "Nada!", quis a garota gritar a plenos pulmões.
- Eu... eu vi que tereis um longo e glorioso reinado. Os vossos inimigos não vos vencerão. Vós...
- Não me mintas, menina. Diz-me a verdade. Não foi nenhuma visão da minha glória que fez com que ficasses lívida e a tremer, como se tivesses visto o fantasma da
tua mãe.
O fantasma de Cassandra... se a rainha soubesse. Meg esforçou-se por apagar do seu pensamento a última visão aterradora. Pensou desoladamente na outra visão que
tinha tido, a que dizia diretamente respeito a Isabel, desejando poder guardá-la apenas para si própria. Mas viu que a rainha não aceitaria que lhe negassem o que
queria saber.
- Vi o que mais temeis - admitiu Meg, por fim, depois de ter engolido em seco. - Uma... uma mulher prestes a ser executada. E não era Lady Jane Danvers. Uma mulher
mais velha num castelo antigo muito longe daqui. Tinha um cão de orelhas caídas e pelo comprido escondido debaixo da saia dela quando colocou a cabeça no cepo. Quando
o carrasco desferiu o machado, a primeira vez falhou e...
- Já chega - atalhou Isabel, levantando-se do cadeirão. - Não precisas de me dizer mais nada.
Afastou-se de Meg, desviando a cara enquanto olhava pela sua única janela. Seguiu-se um pesado silêncio.
- Eu... eu lamento muito, majestade - disse Meg por fim. - O que eu vi... talvez não queira dizer nada. A minha amiga Cat diz-me sempre que o futuro não está escrito
em lado nenhum. Somos nós que tomamos as nossas próprias decisões.
- E, por vezes, essas opções são-nos impostas. - Quando a rainha Isabel se virou para trás, a fim de poder olhar de frente para Meg, havia qualquer coisa que se
encerrara nos seus olhos.
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Não foi Isabel mas sim a rainha quem falou.
- Muito bem, Margaret Wolfe, conseguiste convencer-nos. Lady Jane Danvers será posta em liberdade, mas vamos ter de te entregar à pessoa do nosso reino mais adequada
a lidar com uma bruxa tão perigosa como tu és.
O coração de Meg caiu-lhe aos pés. Tinha sentido uma afinidade tão forte, ainda que inexplicável, com Isabel que ficou com esperança que a rainha também a sentisse,
o que a levaria a perdoar-lhe.
Mas fez um acenar de cabeça numa atitude de valentia. Enquanto seguia a rainha para fora dos seus aposentos privados, Meg mantinha os ombros bem direitos, esforçando-se
por não mostrar desânimo enquanto se perguntava a que temível chefe de carcereiros de masmorra ou carrasco é que estava prestes a ser entregue.
Quando Meg entrou na antecâmara e viu o homem que a aguardava, pestanejou sem querer acreditar no que via.
Martin, o Lobo, não tinha parado de andar de um lado para o outro no pequeno aposento, qual lobo enjaulado. Deteve-se abruptamente quando a rainha chegou com Meg
logo atrás de si.
O pai nunca a tinha fitado com uma expressão tão severa. Meg retraiu-se toda, pensando que talvez tivesse preferido o carcereiro de masmorra.
Martin deixou-se cair de joelhos diante da rainha, sem lhe dar a oportunidade de fazer uso da palavra.
- Majestade, imploro o vosso perdão para a minha filha. Não sei o que a Margaret vos possa ter dito, mas...
- Ela encantou-nos com uma história absolutamente extraordinária, Monsieur Lobo.
O pai de Meg estremeceu.
- A Meg possui uma imaginação demasiado fértil para o seu próprio bem. A garota...
- É uma das jovens mais notáveis que tivemos oportunidade de conhecer - atalhou a rainha. - Conseguiu persuadir-nos a pôr Lady Jane Danvers em liberdade.
Martin olhou com ansiedade para a soberana.
- E quanto à própria Meg?
- Decidimos entregá-la à vossa tutela. Aconselhamos-vos fortemente a levá-la o mais depressa possível para essa ilha Encantada. - A rainha acrescentou com um trejeito
indecifrável: - Além de ser uma garota extraordinária, a Margaret também é uma das mais enervantes que conhecemos.
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Consequentemente, pensamos que o nosso clima inglês talvez não seja o mais adequado para, hum... uma rosa francesa tão rara e delicada.
Whitehall já se perdia à distância enquanto o barqueiro continuava a remar o bote pelas águas do Tamisa abaixo. Martin enlaçou Meg com um braço, apertando-a tanto
que ela mal conseguia respirar. Mas não se queixou, afundando o rosto no gibão do pai.
- Estás zangado comigo, paizinho? - perguntou, arriscando-se a olhar para ele. - vou... vou ser castigada?
- Tenho de admitir que quando corri para o palácio, quase louco de preocupação por causa de ti, ocorreram-me fugazmente alguns pensamentos de chibatas. - Martin
fez o seu melhor para afivelar uma expressão severa, mas acabou por lhe depositar um beijo cheio de ternura na testa. - Mon Dieu, Meggie. Tens de parar de me fugir.
Não sabes que esse é o meu maior temor?
- Peço p... perdão, paizinho - replicou Meg contrita e com os olhos cheios de lágrimas. - Sei que te desiludi. Tenho-me esforçado tanto para ser tudo o que queres
que eu... que eu...
- Cala-te, mon ange. Não há nenhum pai que pudesse sentir-se mais orgulhoso da sua filha. O que tu fizeste, teres ido falar com a rainha, arriscando a tua própria
vida para salvares Lady Jane Danvers, foi a coisa mais corajosa que vi alguém fazer até hoje.
Meg pestanejou para conter as lágrimas, olhando-o esperançada.
- Fui tão corajosa como a Cat?
- Garanto-te que foste. Vocês, duas mulheres, deixam-me envergonhado - replicou Martin sorrindo-lhe. com o polegar, limpou uma lágrima isolada que tinha corrido
pela face de Meg. - Eu é que devia implorar-te que me perdoes, minha filha. A tua mãe... - Martin teve de engolir com força antes de poder prosseguir. - Procedi
mal ao proibir-te de mencionar o nome dela, procedi mal em relação a muitas coisas. Abomino o que a Cassandra te fez, tentando obrigar-te a realizar os sonhos dela,
a tornares-te na Rosa de Prata. Mas eu não te tratei melhor do que ela.
- Oh, não, paizinho, isso não é verdade - atalhou Meg, tentando protestar, mas Martin impediu-a.
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- Receio ter de admitir que é verdade, petite. Também tentei moldar o teu futuro em conformidade com os meus desejos, transformando-te numa jovem senhora inglesa.
- Mas um pai tem o direito de decidir o futuro da sua filha.
- Talvez sim, no caso dos pais de outras filhas. Mas tu és mais extraordinária do que as filhas comuns.
- Nós somos mais extraordinários - retorquiu Meg muito solenemente, pousando a palma da mão na bochecha barbada.
Martin pegou-lhe na mão, entrelaçando os dedos mais pequenos nos seus.
- Os meus planos para ti estavam errados e talvez fossem mesmo um pouco egoístas, mas posso jurar que tudo o que queria era manter-te em segurança e feliz.
- Eu sou feliz, paizinho, desde que esteja contigo.
- Por agora, talvez sim. - O sorriso de Martin tinha um traço de melancolia. - Sei que não será assim para sempre. Não faço ideia do que o futuro nos reserva, mas
não duvido de que seja extraordinário.
- Sem dúvida - concordou Meg, erguendo o queixo orgulhosamente. - Afinal de contas, é preciso não esquecer que sou filha de Martin, o Lobo.
Quando o pai se riu, abraçando-a mais apertadamente, Meg soltou um suspiro de contentamento, sentindo-se segura e amada. Quase conseguiu esquecer aquela última imagem
que tinha visto a rodopiar na bola de cristal. Uma visão perturbadora que não tinha nada a ver com a rainha Isabel, mas sim com uma rainha bastante diferente.
Meg tinha visto Catarina de Médicis no seu leito de morte e, para seu grande alarme, Meg também se vira na mesma visão, inclinada por cima da Rainha das Trevas,
com a lâmina de bruxa na sua mão. E, algures à distância, pensou ter ouvido Cassandra Lascelles a rir-se triunfante.
Meg estremeceu e chegou-se mais ao pai, tentando banir do pensamento aquela visão tão assustadora, lembrando a si mesma o que Cat lhe dissera tantas vezes.
"O teu destino está nas tuas próprias mãos."
Meg queria acreditar nessas palavras. Quando regressasse a casa, a primeira coisa que tencionava fazer era procurar a sua própria bola de cristal para a quebrar
num milhar de estilhaços.
A noite estava fria e o solo endurecido pela geada, mas isso não impedia as mulheres da ilha Encantada de se manterem reunidas em vigília à porta de Belle Haven.
Acendiam velas e rezavam para que a Senhora da Ilha Encantada tivesse uma hora feliz quando desse à luz.
A menina que se aguardava com tanta ansiedade vinha ao mundo antes do tempo. Já havia passado uma noite e um dia, mas a Senhora da Ilha Encantada continuava em trabalho
de parto. As mulheres sábias mais velhas entre o grupo já abanavam a cabeça e pranteavam. Levando em linha de conta a idade de Ariane Deauville e a trágica história
de muitas mulheres aquando do parto, aquele atraso não podia ser um bom sinal.
A janela da alcova de Ariane estava aberta, apenas uma frecha, apesar do ar frio da noite. Ela própria uma parteira da maior competência, Ariane desdenhava dos costumes
de confinamento, os quais ditavam que as mulheres em trabalho de parto deviam estar fechadas numa alcova em que a atmosfera era abafada e sombria.
Apesar do ar fresco que entrava no quarto, Ariane tinha a camisa de dormir empapada em suor. Quando o seu corpo foi percorrido por outra contração, agarrou a mão
de Cat, apertando-a com tanta força que os nós dos dedos ficaram esbranquiçados.
- Isso mesmo, milady - disse Cat numa voz serena. - Apertai com força. Estais a ir muito bem.
Estaria a ir bem? Cat estremeceu perante a inanidade das suas palavras. Ariane parecia-lhe tudo menos bem, os olhos congestionados de exaustão, o rosto tão pálido
como os lençóis da cama.
Por muito que Cat amasse a sua amiga, desejava de todo o coração que uma das irmãs de Ariane se tivesse deslocado à ilha para a apoiar durante
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aquela provação. Cat sentia-se tão impotente e inadequada. Não havia nada que não tivesse feito pela sua mentora, mas aquela era uma batalha que não podia travar
em lugar de Ariane.
Tudo o que podia fazer era oferecer-lhe a sua mão para que a apertasse durante as contrações, tentando infundir alguma da sua própria força na mulher cuja própria
força se esvaía um pouco mais sempre que sentia uma contração.
Entre todas as mulheres da ilha, Cat teria pensado que existiria alguma parteira competente, mas não havia nenhuma cujos conhecimentos pudessem igualar-se aos de
Ariane. A Senhora da Ilha Encantada insistira em que não queria a ajuda de ninguém, a não ser a de Cat, do seu marido e da sua criada.
Justice Deauville mostrava-se tão exaurido como a própria Ariane, cada espasmo de dor da sua mulher refletido no seu semblante de feições angulosas, até mesmo enquanto
tentava encorajá-la.
- Já consigo ver o cocuruto da cabeça da tua filha, chérie. Se fizeres força só mais uma vez, não tardarás a ter a tua pequenita nos braços.
Ariane afundou-se encostada às almofadas, as lágrimas a correrem-lhe dos olhos.
- Oh, Justice, eu... eu não acho que seja capaz.
O marido, um homem de figura gigantesca, parecia estar prestes a chorar como ela, tanto de medo como de exaustão, mas disse:
- Que diabo, Ariane! Sim, podes. Tens de fazer força. Cat, ajuda-a. Levanta-a um pouco.
Quando a contração seguinte se fez sentir, Cat passou o braço pelas costas de Ariane, apoiando-a de modo a que ela se mantivesse sentada. Ariane rangeu os dentes,
esforçando-se com as últimas forças que lhe restavam. Soltou um grito arrepiante.
Algures abaixo do grito agudo de Ariane, ouviu-se um vagido, inicialmente fraco, para depois soar cada vez mais forte.
- Já a tenho nas mãos, chérie - gritou Justice. - Tenho a nossa menina.
Tanto Cat como Ariane deixaram-se cair para trás, afundando-se nas almofadas, rindo e chorando ao mesmo tempo. Cat mal prestou atenção enquanto Justice e a criada
tratavam de cortar o cordão umbilical, após o que começaram a limpar Ariane e a criança recém-nascida.
Cat mantinha-se à beira da amiga. Ariane parecia tão exaurida e Cat sabia que o perigo para qualquer mãe que tivesse acabado de dar à luz, com frequência,
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apresentava-se depois dos rigores do parto com o aparecimento de febre. Enquanto banhava a fronte de Ariane, Cat sentiu-se mais animada quando esta abriu os olhos
e olhou para ela com a expressão límpida que lhe era habitual.
- O meu bebé. Quero ver o meu bebé - murmurou.
Cat acenou que sim, incapaz de falar devido ao grande aperto que sentia na garganta. Mas quando se apressou a ir ter com Justice para o informar do pedido de Ariane,
o coração caiu-lhe aos pés.
Percebia pela expressão tão grave no rosto dele que havia algo que estava a correr terrivelmente mal. A criança recém-nascida que gritara com tanto vigor mantinha-se
agora ominosamente quieta.
- Meu senhor, o que é que se passa? - perguntou Cat, mal conseguindo arranjar coragem para fazer aquela pergunta. - Passa-se alguma coisa de errado com a criança?
Justice confirmou com um acenar de cabeça, como que entorpecido.
- O bebé. A criança por quem Ariane arriscou a vida para... e ela nunca mais poderá ter outra.
Afastando a mantinha para trás, mostrou a criança recém-nascida a Cat, que susteve a respiração.
- O que é que eu poderei dizer a Ariane? - perguntou-se Justice com uma expressão dilacerada.
- A verdade - respondeu Cat, encurvando os ombros numa postura de impotência. - Não podeis ocultar dela o que se passa.
Voltando a envolver a criança na mantinha, Justice aproximou-se do leito num passo arrastado. Ariane soergueu-se encostada às almofadas e estendeu-lhe os braços.
Justice estremeceu ao ver a expressão ansiosa e de expectativa no rosto de Ariane. Sentindo-se desesperado, procurou as palavras que pudessem prepará-la para ouvir
o que estava prestes a dizer-lhe.
- Ariane, tenho de te dizer uma coisa muito importante...
- Diz-me tudo o que quiseres - interrompeu-o ela. - Assim que me deres o meu filho.
Justice ficou tão atordoado que foi por um triz que não deixou cair a criança. Conseguiu pô-la nos braços da mulher sem que isso acontecesse.
Quando Ariane encostou o recém-nascido a si, Justice deixou-se cair ao seu lado no leito, com as forças a faltarem-lhe.
- Tu... tu sabias que era um rapaz?
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- Claro que sim, senti isso há já alguns meses. O teu filho conversava intimamente comigo, com muita frequência, às primeiras horas da manhã. Em grande parte, através
dos vigorosos pontapés que ele me dava.
com uma expressão radiante nos olhos, Ariane afastou a mantinha para trás, inspecionando os pequeníssimos dedos das mãos e dos pés. Soltou um suspiro de satisfação
que lhe saiu do fundo do coração.
Justice continuava a olhar para ela absolutamente assombrado.
- E não te importas que a criança seja um menino?
- E porque é que haveria de me importar. Ele é lindíssimo - respondeu Ariane, olhando radiante para o filho e sussurrando-lhe palavras que pareciam ser proferidas
numa língua da Antiguidade. Ou talvez fosse apenas aquela linguagem peculiar que só as mães e os bebés é que conseguiam compreender.
- Mas eu pensava que querias uma filha tão desesperadamente, para que te sucedesse como Senhora da Ilha Encantada.
- Tudo o que eu desejava era uma criança saudável. Tua e minha. Quanto à sucessão, nada me impede de fazer como outras Senhoras da Ilha Encantada fizeram antes de
mim. Procurar a garota mais adequada, começando a treiná-la. Agora tenho muito tempo para poder fazer isso.
Justice sorriu-lhe ternamente. Passando um braço pelos ombros dela, envolveu Ariane e o filho de ambos num forte abraço.
Ariane baixou a parte de cima da camisa de dormir, instalando o recém-nascido para começar a mamar. Ele fechou a boca avidamente no mamilo da mãe, deleitando ambos
com o seu vigor.
Justice depositou um beijo na fronte de Ariane.
- Enquanto o nosso filho comunicava intimamente contigo, por acaso alguma vez mencionou o seu nome?
Ariane perscrutou profundamente os olhos azuis que ainda não se concentravam em nada.
- Léon - pronunciou ela com suavidade. O nome dele é Léon, o nosso jovem leão.
A noite que se havia revestido de tanta apreensão até ao momento explodiu num júbilo irreprimível. A Senhora da Ilha Encantada tinha dado à luz um filho e ambos
estavam bem. O vinho corria e acenderam-se fogueiras. Os pescadores, as donas de casa e as donzelas dançavam todos com abandono e estouvadamente, cabriolando à roda
das chamas da fogueira.
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Martin, o Lobo, mantinha-se atrás da multidão, observando aquelas explosões de alegria por baixo das sombras de um carvalho de grande porte. Embora se sentisse feliz
por Ariane e Justice, contentava-se em observar as celebrações à distância, olhando melancolicamente para Cat, que dava a mão a outras mulheres, rindo e dançando
com uma animação irrefreada à volta da fogueira. Até mesmo a velha Agatha Butterydoor se juntou aos folguedos, pulando enquanto brandia o seu cajado.
De todos os serviçais de Martin, Agatha tinha sido a única a mostrar coragem suficiente para enfrentar a travessia do canal e a perspetiva de viver numa terra estrangeira.
Tinha declarado perentoriamente que nada nem ninguém a separaria da sua bonequinha, certamente que não uma ilha cheia de franciús. E se Agatha era capaz de se acostumar
ao convívio com Catriona e à sua estranha maneira de ser de irlandesa, a idosa estava confiante em que nada a intimidaria.
E, de facto, para uma mulher que nunca se tinha aventurado mais fora de Londres do que Southwark, a senhora Butterydoor adaptara-se notavelmente bem à ilha Encantada.
Até tinha começado a aprender a falar francês, muito embora com um sotaque atroz que, muitas vezes, fazia com que Martin ficasse todo arrepiado.
Esboçou um meio sorriso ao ver Cat e Agatha, que saltitavam em torno da fogueira, se bem que se sentisse à margem daquelas festividades, de todo o mundo de que a
ilha Encantada era composta. Nunca se sentira inteiramente confortável na ilha, considerando-a demasiado estreita e insular.
Mas a coisa mais importante, disse a si próprio, era Meg parecer sentir-se feliz ali, embora lamentasse ter-lhe sido cada vez mais difícil vê-la durante as últimas
semanas, porque Meg andava muito absorvida nos ensinamentos de Ariane e embrenhada na existência diária da ilha. A sua filha parecia estar a crescer, e cada vez
mais afastada de si, com uma rapidez que considerava excessiva.
Quando ela foi ter consigo ao jardim, Martin pensou que Meg lhe parecia muito mais velha, embora ela continuasse a meter-se debaixo do seu braço, aninhando-se junto
de si como sempre fizera.
- Não achas que é maravilhoso, paizinho? A Senhora da Ilha Encantada ter tido o seu bebé?
- É maravilhoso - respondeu Martin, inclinando-se para baixo para poder dar um beijo no cimo da cabeça da filha. - Portanto, sentes-te muito feliz na tua nova casa?
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- Oh, sim. A Cat tinha razão. A ilha Encantada é uma terra espantosa. Uma pessoa consegue sentir a antiga magia a pulsar aonde quer que vá, até mesmo nas árvores.
- Meg saiu de debaixo do braço do pai para passar os dedos pelo tronco de uma árvore. - Estás a ver? Experimenta tu.
Para lhe fazer a vontade, Martin passou a mão pelo tronco da árvore.
- A mim parece-me que é a casca do tronco de uma árvore. Meg riu-se e abanou a cabeça, olhando para ele.
- Amo-te do fundo do coração, paizinho. Mas, por vezes, és irremediavelmente obtuso acerca de muitas coisas.
- Apercebo-me agora de que procedi erradamente quando tentei forçar-te a renegares os teus dotes como Filha da Terra. Mas estou em crer que já te pedi desculpa em
várias ocasiões.
- Não estou a falar da tua cegueira em relação a mim. Estou a referir-me à Cat. Sei que a adoras e sem dúvida que sabes como fazer a corte a uma senhora. Portanto,
porque é que ainda não te ajoelhaste para lhe declarares o amor que sentes por ela?
- Talvez porque receio que ela me dê socos nas orelhas - ripostou Martin. Acrescentou em voz mais baixa: - A Cat não me ama, por muito que tu ou eu desejássemos
isso.
- Mas ela ama-te - insistiu Meg, batendo o pé impacientemente.
- O que é que tens andado a fazer? A ler os olhos dela?
- Por acaso, foi precisamente isso que fiz, mas qualquer palerma seria capaz de ver como ela está apaixonada por ti. Mas é demasiado orgulhosa para te confessar
esse amor. - Meg apoiou as mãos nas ancas, olhando para o pai com uma expressão severa. - A questão, paizinho, é esta: o que é que tencionas fazer a esse respeito?
Cat atravessou o prado, a luz do luar a brilhar nas ervas cobertas de geada, o solo a ranger debaixo dos seus pés. Quando os sons dos festejos ficaram bastante para
trás, respirou fundo, desfrutando daquela quietude para organizar os seus pensamentos.
Começou a remontar no tempo, pensando no primeiro dia em que tinha chegado à ilha, no princípio do verão, a fim de levar a cabo a missão de que Ariane a incumbira.
Concluía que as coisas haviam corrido muito melhor do que Cat tinha tido razões para esperar nessa altura.
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Ariane dera à luz sem qualquer percalço, a Irmandade da Rosa de Prata estava destruída e Meg encontrava-se instalada na ilha em segurança. com o fim do Livro das
Sombras, parecia pouco provável que até a Rainha das Trevas tivesse qualquer motivo para continuar a perseguir a garota.
Catriona estava de regresso à ilha Encantada, exatamente aonde tanto ansiara estar. Portanto, por que razão é que, com tanta frequência, se sentia inquieta e assolada
pela melancolia?
Não precisou de dar muitas voltas à cabeça para poder responder a essa pergunta. Martin. Não lhe era difícil ver que ele não se sentia mais satisfeito por estar
a residir na ilha Encantada do que Jane Danvers.
Exilada de Inglaterra, sua senhoria juntara-se a eles aquando da jornada rumo à ilha, uma figura tristonha com o seu vestuário de luto, que usava por morte do irmão.
A atmosfera mística da ilha Encantada causava, claramente, mal-estar a Lady Jane Danvers.
Tencionava mudar-se para Paris, cidade onde tinha amigos entre os católicos que viviam no exílio. Cat não ficaria surpreendida se Martin se oferecesse para a acompanhar
durante a viagem. A trágica situação de Jane era precisamente o género de circunstâncias que atrairiam as românticas noções de galanteria de Martin.
Enquanto aguardava pelo dia da partida, Cat fizera tudo o que estava ao seu alcance para se distanciar de Martin, reclamando o coração que lhe tinha dado. Até ao
momento, não existiam motivos para se congratular pelo êxito.
O estalar de um galho advertiu-a da aproximação de alguém. Virou-se para trás e deparou com Martin, que se encaminhava para si.
O seu coração executou o habitual bailado de tolice, mas ela apressou-se a abafar as emoções que se apoderavam de si assim que via o homem.
- Martin - conseguiu dizer à guisa de saudação, com um acenar de cabeça amigável, mas frio. - Portanto, também sentiste necessidade de um pouco de sossego, foi isso?
- Está a parecer-me que os folguedos se prolongarão até ao raiar do dia - retorquiu ele com um sorriso. - Mas a verdade é que todos têm motivo para estar jubilantes.
Não é todos os dias que nasce um Senhor da Ilha Encantada.
- Toda a gente se regozija por ver que Ariane deu à luz um menino saudável e por ambos estarem bem. Todavia, o rapaz nunca virá a ser o senhor desta ilha. Desde
sempre que esta ilha foi regida por uma mulher e é assim que continuará a ser. A Ariane continua a ter de encontrar quem lhe possa
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suceder. - Cat hesitou antes de acrescentar: - Existem fortes probabilidades de ela vir a escolher a Meg. A garota é absolutamente extraordinária.
- Pôs-se a observar Martin, sem saber ao certo como é que ele reagiria face àquela possibilidade.
- Sentir-me-ia muito orgulhoso se a Meg fosse a escolhida - replicou Martin contra as suas expectativas. - Seria uma grande honra. A Cassandra sempre insistiu em
que a Meg estava destinada a vir a ser uma guia entre as mulheres sábias. Talvez essa previsão venha a provar ser verídica, mas de uma maneira como ela nunca teria
sido capaz de imaginar.
- E quanto ao destino de Martin, o lobo? - perguntou Cat, esforçando-se por falar com ligeireza, como se a resposta lhe fosse indiferente. - Suponho que te porás
a caminho para uma nova aventura, à procura de outra donzela em perigo. Quem sabe se Lady Jane Danvers não se enquadrará nesse perfil. Ela continua a dar a impressão
de necessitar de alguém que a salve.
- Talvez precise, mas terá de haver outro homem que cuide dela. Já tenho que me chegue nas mãos para te salvar.
- A mim!? - exclamou Cat com uma expressão escarnecedora. - E do que é que imaginas que eu precise que me salvem?
- Do teu obstinado orgulho irlandês. Receio que venha a provar ser quanto baste para nos prejudicar a ambos - respondeu Martin, apoiando as mãos nos quadris e firmando
bem as botas no solo. - Portanto, estavas à espera que eu montasse o meu cavalo e desaparecesse de vista? Pois bem, sou capaz de ser tão obstinado como tu. Não tenciono
ir a parte nenhuma até me dizerdes.
- Dizer-te o quê?
- Que me amas.
Cat ficou com a respiração arfante, fazendo uma grande encenação para se mostrar indignada.
- Mas onde é que foste buscar uma ideia tão idiota como essa?
- À Meg. Ela disse-me que leu isso nos teus olhos.
- Que pequena megera tão impertinente. - Para sua grande consternação, Cat sentiu as bochechas a arderem tanto que duvidava que as sombras da noite chegassem para
lhe ocultar o rubor.
- Dix-me! - insistiu Martin. - É verdade? Amas-me?
Cat fitou-o com uma expressão beligerante e de mãos na cinta, imitando a postura dele.
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- Talvez sim. E o que é que isso tem de mais?
- Isto - replicou Martin numa voz roufenha, enlaçando-a nos seus braços e esmagando-lhe a boca com a sua.
Cat debateu-se para se soltar dos braços dele antes de Martin a reduzir a um estado de impotência absoluta com o ardor do seu beijo.
- Não - disse ela arquejante. - Não... não precisas de ter pena de mim só porque fui suficientemente idiota para me apaixonar por ti. Recuso-me a ser objeto da tua
galanteria.
- A galanteria que vá para o diabo! Estou perdidamente apaixonado por ti. Não consegues ver isso? Mas que espécie de mulher sábia é que tu és?
- Uma que nunca foi muito competente na leitura de olhos. - Cat inclinou-se para trás, tentando perscrutar o rosto de Martin, mal se atrevendo a acreditar nas palavras
dele. - Não sou, nem de longe, nem de perto, como a Miri Cheney ou como a Jane Danvers. Não sou nenhuma beldade cheia de doçura que pudesses... que pudesses...
- Adorar à distância? - Martin franziu a testa. - Foste tu própria quem me disse que isso não era para mim. O que eu preciso, não, o que eu quero é... - Martin sorriu-lhe,
citando-lhe as suas próprias palavras. - "Precisas de uma mulher que seja terra a terra, que não tenha medo das realidades sujas da vida, que sue e lute ao teu lado,
os dois a olharem um pelo outro, cuidando e... protegendo-se mutuamente até ao fim dos vossos dias."
- Oh... - Cat engoliu em seco, dizendo com brusquidão: - Bem, suponho que é possível que essa mulher possa ser eu própria.
- É mais do que possível, petite chatte. É uma certeza inquestionável. Martin voltou a enlaçá-la e, desta feita, Cat rendeu-se ao abraço dele sem
um murmúrio que fosse. Limitaram-se a ficar abraçados durante muito tempo sob a vasta abóbada celeste do firmamento noturno. Martin foi o primeiro a quebrar o silêncio.
- Já desapareceu! - exclamou subitamente.
- O quê?
- O cometa.
Cat levantou a cabeça e olhou para o céu, vendo a Lua e as estrelas. Os céus já não eram perturbados por nenhum fenómeno fantasmagórico. Sorriu a Martin com uma
expressão de indulgência.
- Só agora é que reparaste nisso? Essa coisa desapareceu há já vários dias.
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- Quer dizer que, depois de nos ter atormentado durante tantos meses, desapareceu assim, sem mais nem menos? - perguntou Martin incrédulo.
- Talvez o cometa fosse o arauto de qualquer coisa.
- De quê?
- Vá-se lá saber. Talvez tenha surgido para anunciar o nascimento da criança de Ariane ou... ou até mesmo um evento ainda mais importante, o facto de teres concordado
em vires a ser minha mulher.
Cat ergueu o queixo numa atitude desafiadora.
- Não me lembro de ter concordado com isso.
- Mas vais concordar - retorquiu Martin com traços da sua antiga arrogância. - Talvez o cometa tenha vindo para anunciar a nossa união, um amor que será tema de
lendas, ultrapassando a duração da Lua e das estrelas.
- E quem sabe se não terá sido tão-somente um cometa. - Cat riu-se e puxou a cabeça dele de modo a que os lábios de ambos se unissem num outro beijo ardente.
Nota da autora
O cometa que atravessa o firmamento, e que é mencionado ao longo de todo o romance, é exclusivamente fruto da minha imaginação. Não existiu nenhum fenómeno celestial no verão de 1586, ano em que a minha história tem lugar. O impacto emocional do cometa e as reações das minhas personagens baseiam-se em registos relativos ao avistamento de cometas ao longo da história da humanidade.
Grande parte deste romance aborda uma das inúmeras conspirações contra a vida de Isabel I de Inglaterra. A conspiração Babington era tão complexa e perversa como a mente do principal espião da rainha, Francis Walsingham. Para efeitos ficcionais, fui forçada a condensar e a simplificar os pormenores da conspiração. A participação de Martin, o Lobo, na revelação do conluio e o roubo do retrato são, inteiramente, fruto da minha imaginação.
Mas o retrato em si não é. Na realidade, os conspiradores foram suficientemente idiotas para posarem para um retrato que, eventualmente, ajudou a que fossem capturados.
O retrato Babington é um dos deliciosos pormenores da História, muito melhor do que o que qualquer escritor pudesse inventar.
Susan Carroll
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