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A CAIXA PRETA / Michael Connelly
A CAIXA PRETA / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Na terceira noite, a contagem de corpos estava tão elevada e continuava a subir tão rápido que várias equipes da Divisão de Homicídios foram transferidas da linha de frente do choque para se revezar em turnos de emergência na área da South Central. O detetive Harry Bosch e seu parceiro, Jerry Edgar, foram deslocados da Hollywood Division e designados para uma equipe da B Watch, que também incluía, por segurança, dois patrulheiros munidos de escopeta. Eles eram enviados para qualquer lugar onde fossem necessários — onde quer que um corpo aparecesse. Os quatro membros da equipe se deslocavam na viatura preta e branca, indo de uma cena de crime a outra e nunca se demorando. Não era a forma mais adequada de realizar o trabalho com homicídios, bem longe disso, mas era o melhor que podia ser feito nas circunstâncias surreais de uma cidade em polvorosa.

A região de South Los Angeles tinha se tornado uma zona de guerra. Havia incêndios por toda parte. Bandos de saqueadores atacavam uma vitrine atrás da outra; qualquer pretensão de dignidade e de moralidade sumia em meio à fumaça que subia por toda a cidade. As gangues locais haviam saído às ruas e assumido o controle daquele caos, chegando a convocar uma trégua em suas disputas territoriais para criar uma frente única contra a polícia.
Mais de cinquenta pessoas já tinham morrido. Donos de lojas balearam saqueadores, homens da Guarda Nacional balearam saqueadores, saqueadores balearam saqueadores, e também havia outros — assassinos que se camuflavam no caos e na revolta civil para acertar antigas rixas que nada tinham a ver com o malogro do momento nem com as emoções que dominavam as ruas.

 

 

 


 

 

 


Dois dias antes, tinham vindo à tona com intensidade sísmica as questões raciais, sociais e econômicas da cidade. O veredicto do julgamento de quatro policiais do Departamento de Polícia de Los Angeles, o LAPD, acusados de uso de força excessiva contra um motorista negro depois de uma perseguição em alta velocidade, os inocentara. A decisão do júri em um tribunal suburbano a setenta quilômetros dali tivera impacto quase imediato em South LA. Pequenos grupos furiosos se juntaram em esquinas para protestar contra a injustiça. E logo as coisas ficaram feias. Os helicópteros da mídia sempre vigilante levaram para todos os lares da cidade imagens ao vivo e, em seguida, as exibiram para o mundo.

O departamento foi pego de calças arriadas. Quando o veredicto saiu, o chefe de polícia estava fora de Parker Center, em um evento político. Outros membros da equipe de comando também estavam ocupados com afazeres diversos. Ninguém se encarregou imediatamente do problema e, mais importante, ninguém prestou ajuda. O departamento inteiro bateu em retirada e imagens de violência sem vigilância se alastraram pelas tevês de Los Angeles. Em pouco tempo a cidade estava fora de controle e pegando fogo.

Duas noites depois, o cheiro penetrante de borracha queimada e de sonhos que se esfumaçavam ainda dominava todo o lugar. As chamas de mil fogueiras brilhavam como demônios dançando no céu noturno. Tiros e gritos furiosos ecoavam por onde a radiopatrulha passasse. No entanto, os quatro homens na viatura 6-King-16 não prestavam atenção em nada disso. Apenas em homicídios.

Era sexta-feira, 1º de maio. B Watch era o título da patrulha noturna de emergência, um turno que ia das seis da tarde às seis da manhã. Bosch e Edgar ocupavam o banco de trás enquanto os policiais Robleto e Delwyn iam na frente. Delwyn, no banco do carona, levava a escopeta no colo, virada para cima, com o cano apontado para fora da janela aberta.

Estavam a caminho de um corpo encontrado em uma travessa estreita da Crenshaw Boulevard. A chamada havia sido repassada ao centro de comunicações de emergência pela Guarda Nacional da Califórnia, que fora mobilizada para a cidade durante o estado de emergência. Eram apenas dez e meia, e as chamadas não paravam de chegar. A viatura já havia atendido a uma chamada de homicídio logo no início do turno — um saqueador baleado à porta de uma loja de sapatos. O autor do disparo tinha sido o proprietário.

A cena do crime se restringia ao interior da loja, o que permitira que Bosch e Edgar trabalhassem com relativa segurança, enquanto Robleto e Delwyn se postavam com as escopetas e todo o aparato de choque na calçada em frente. Isso também deu tempo aos detetives para coletar evidências, esboçar a cena do crime e tirar fotos para a investigação. Tomaram o depoimento do dono e assistiram ao vídeo da câmera de segurança, que mostrava o saqueador usando um bastão de softbol, de alumínio, para quebrar a vitrine da loja. O homem em seguida abaixava para passar pela abertura e era na mesma hora alvejado duas vezes pelo proprietário, que estava escondido atrás da caixa registradora, à espera.

Como o departamento do médico-legista estava sobrecarregado com mais óbitos do que podia processar, o corpo foi removido pelos paramédicos e transportado para o Centro Médico do condado, na USC, a Universidade do Sul da Califórnia. Seria mantido ali até que as coisas se acalmassem — se é que se acalmariam — e o legista pudesse pôr o trabalho em dia.

No que dizia respeito ao autor dos disparos, Bosch e Edgar não prenderam ninguém. Fosse autodefesa, fosse emboscada seguida de homicídio, o Gabinete da Promotoria cuidaria do assunto mais tarde.

Não era o modo correto de proceder, mas teriam de se virar desse jeito. No caos do momento, a missão era simples: preservar a evidência, documentar a cena da melhor forma e com a maior rapidez possíveis e recolher os cadáveres.

Entrar e sair. E fazer isso com segurança. A investigação de verdade viria mais tarde. Talvez.

Rodando na direção sul pela Crenshaw, passaram por esporádicos aglomerados de pessoas, na maioria homens jovens, reunidos nas esquinas ou perambulando em bandos. No cruzamento da Crenshaw com a Slauson, um grupo exibindo as cores dos Crips vaiou quando a radiopatrulha passou em alta velocidade, sem sirene nem luzes acionadas. Garrafas e pedras foram atiradas, mas a viatura passou tão rapidamente que os projéteis caíram atrás do veículo, sem acertá-lo.

— A gente volta depois, seus filhos da puta! Não perdem por esperar.

O xingamento veio de Robleto, e Bosch só podia presumir que fosse força de expressão. A ameaça do jovem policial era tão vã quanto havia sido a reação do departamento assim que os veredictos foram transmitidos ao vivo pela tevê na quarta-feira à tarde.

Robleto, ao volante, só começou a reduzir a velocidade quando se aproximaram de um bloqueio de viaturas e soldados da Guarda Nacional. A estratégia esboçada no dia anterior, com a chegada da Guarda, era retomar o controle dos principais cruzamentos em South LA e depois avançar a partir daí, acabando por abranger todos os pontos mais problemáticos. Estavam a cerca de 1 quilômetro de uma dessas interseções-chave, Crenshaw e Florence, e os homens e carros da Guarda já haviam se espalhado por várias quadras da Crenshaw Boulevard. Quando estacionou na barricada da 62nd Street, Robleto baixou o vidro da janela.

Um oficial da Guarda com galões de sargento se aproximou da porta e se curvou para ver os ocupantes do veículo.

— Sargento Burstin, San Luis Obispo. Em que posso ajudar, com­panheiros?

— Homicídio — disse Robleto. E apontou com o polegar para Bosch e Edgar, no banco de trás.

Burstin se empertigou e fez um gesto com o braço para que o caminho fosse liberado e os policiais pudessem passar.

— O.k. Ela está no beco do lado leste, entre a 66th Place e a 67th Street. Podem passar que meus rapazes mostram para vocês. Vamos formar um perímetro e vigiar os telhados. Temos relatos não confirmados de franco-atiradores na região.

Robleto voltou a subir o vidro enquanto atravessavam a barreira.

— “Companheiros” — disse, imitando a voz de Burstin. — Na vida real, esse cara deve ser professor ou qualquer coisa assim. Ouvi dizer que esses caras que eles trouxeram nem são de LA. De tudo o que é lugar no estado, menos LA. Aposto que não conseguem achar Leimert Park nem com um mapa.

— Há dois anos você também não conseguia, amigão — disse Delwyn.

— Vai nessa. O cara não sabe porra nenhuma daqui e já virou chefe? Assim, da noite para o dia? Só estou falando que a gente não precisava desses caras. Faz a gente ficar mal na fita. Como se não conseguisse controlar a situação e tivesse que trazer os bambambãs da merda de San Luis Obispo.

Edgar limpou a garganta e, do banco de trás, falou:

— Tenho uma novidade para você. A gente não conseguiu controlar a situação e não podia ter ficado pior na fita do que na quarta-feira à noite. A gente ficou com a bunda prostrada na cadeira vendo a cidade pegar fogo, cara. Você viu toda aquela merda na tevê? O que não viu foi um de nós ali no meio pondo vagabundo para correr. Então não vem pôr a culpa nos professores de Obispo. Essa é na nossa conta, cara.

— Que seja — disse Robleto.

— Diz PROTEGER E SERVIR aí na lateral do carro — completou Edgar. — A gente também não fez muito disso.

Bosch ficou em silêncio. Não que discordasse do parceiro. O departamento havia feito um papelão ao reagir timidamente à explosão inicial de violência, mas Harry não estava pensando nisso. Ele ficara surpreso ao ouvir o sargento se referir à vítima como “ela”. Era a primeira vez que ouvia falar nisso, e, até onde sabia, não havia tido nenhuma vítima de homicídio do sexo feminino até aquele momento. Isso não significava que não havia mulheres envolvidas na violência que tinha varrido a cidade. Pilhar e incendiar eram ocupações com oportunidades iguais. Bosch tinha visto mulheres envolvidas nas duas atividades. Na noite anterior, havia integrado o batalhão de choque na Hollywood Boulevard e presenciado a pilhagem da Frederick’s, a famosa loja de lingerie. Metade da multidão eram mulheres.

Mesmo assim, a informação do sargento tinha lhe dado o que pensar. Uma mulher se envolvera no tumulto e isso lhe custara a vida.

Robleto passou pela barricada e continuou na direção sul. Quatro quadras adiante, um soldado acenou com a lanterna, balançando o feixe de luz na direção de um beco entre dois estabelecimentos no lado leste da rua.

À parte os soldados postados a cada vinte e cinco metros, a Crenshaw estava às moscas. A quietude tinha uma atmosfera sobrenatural e sinistra. Todo o comércio de ambos os lados estava às escuras. Várias lojas haviam sido vítimas de saquea­dores e incendiários. Outras permaneceram milagrosamente intactas. Em algumas, na fachada lacrada com tábuas, o aviso escrito com spray avisava que eram de PROPRIETÁRIO NEGRO, uma defesa não muito eficiente contra a multidão.

A entrada do beco ficava entre uma loja de pneus saqueada, chamada ­Dream Rims, e uma de eletrodomésticos completamente queimada chamada Used, Not Abused. O prédio incendiado estava envolto em fita amarela e havia recebido a etiqueta vermelha dos inspetores municipais, declarando-o inabitável. Bosch imaginou que aquela área devia ter sido uma das primeiras atingidas nos distúrbios. Ficava a cerca de vinte quadras do lugar onde a violência havia sido deflagrada, no cruzamento da Florence com a Normandie, onde pessoas foram arrancadas de seus carros e picapes e espancadas enquanto o mundo assistia à distância.

O membro da Guarda com a lanterna começou a andar na frente da viatura, mostrando o caminho. Dez metros adiante, o homem parou e ergueu um punho fechado, como se eles fossem um pelotão de reconhecimento atrás de linhas inimigas. Era hora de descer. Edgar bateu no braço de Bosch com as costas da mão.

— Não se esqueça de manter distância, Harry. Pelo menos uns dois metros, sempre.

Era uma piada, para aliviar um pouco a situação. Dos quatro ali no carro, apenas Bosch era branco. Provavelmente seria o primeiro alvo de um franco-atirador. Ou de qualquer delinquente armado, aliás.

— Pode deixar — disse Bosch.

Edgar bateu em seu braço outra vez.

— E coloque o chapéu.

Bosch abaixou-se e pegou o capacete de choque branco que haviam recebido na central no momento da chamada. A ordem era para usá-lo durante todo o tempo em que estivessem em serviço. Na opinião dele, o plástico branco brilhante fazia deles alvos perfeitos mais do que qualquer outra coisa.

Ele e Edgar tiveram de esperar até que Robleto e Delwyn descessem e abrissem as portas traseiras da viatura. Bosch então saiu para o ar da noite. Relutante, pôs o capacete, mas sem afivelar a correia embaixo do queixo. Queria fumar, mas o tempo era crucial e só lhe restava um cigarro no maço que carregava no bolso esquerdo da camisa do uniforme. Era melhor conservá-lo, já que ele não fazia ideia de quando ou onde teria a chance de se reabastecer.

Bosch olhou em volta. Não viu nenhum corpo. O beco estava cheio de entulho, velho e novo. Eletrodomésticos usados, aparentemente sem condições para revenda, haviam sido empilhados contra a parede lateral da Used, Not Abused. Havia lixo por todo lado e parte do beiral do telhado tinha desabado devido ao incêndio.

— Onde ela está? — perguntou Bosch.

— Ali — disse o soldado. — Encostada na parede.

O beco era iluminado apenas pelos faróis da viatura e pela lanterna do soldado. Os eletrodomésticos e outros entulhos projetavam sombras na parede e no chão. Bosch acendeu sua lanterna Maglite e mirou o feixe de luz na direção indicada pelo soldado. A parede da loja de eletrodomésticos estava coberta de pichações de gangues. Palavrões, nomes de integrantes mortos, ameaças. Era um quadro de avisos para a facção local dos Crips, os Rolling 60s.

O detetive deu três passos atrás do soldado e então a viu. Uma mulher pequena caída de lado junto à parede. Havia ficado oculta na sombra lançada por uma máquina de lavar enferrujada.

Antes de se aproximar mais, Bosch passou o feixe de luz pelo chão. O beco um dia havia sido pavimentado, mas agora não passava de concreto quebrado, pedregulhos e sujeira. Ele não viu pegadas nem indício de sangue. Aproximou-se devagar e se agachou. Apoiou no ombro o cano pesado da lanterna de seis pilhas à medida que percorria o corpo com o feixe de luz. Com base em sua longa experiência em examinar cadáveres, achou que a mulher havia sido morta pelo menos entre doze e vinte e quatro horas antes. Os joelhos estavam bem dobrados e ele sabia que podia ser resultado do rigor mortis ou sinal de que a vítima estivera ajoelhada momentos antes de morrer. A pele exposta nos braços e no pescoço estava acinzentada, e escura onde o sangue havia coagulado. As mãos estavam quase negras, e o cheiro de putrefação começava a inundar o ar.

O rosto da mulher estava quase todo encoberto pelos longos cabelos loiros. O sangue seco era visível nos fios da parte de trás da cabeça e formava uma crosta na mecha espessa que lhe ocultava o rosto. Bosch subiu o feixe de luz pela parede acima do corpo e viu um padrão de sangue respingado e escorrido que indicava que ela havia sido morta no local, e não simplesmente deixada ali.

O detetive tirou uma caneta do bolso e se curvou para a frente, usando-a para afastar os cabelos do rosto da vítima. Havia um pontilhado de resíduo de pólvora em torno da órbita ocular direita e um ferimento de penetração da bala que tinha explodido o globo ocular. A mulher fora baleada a apenas alguns centímetros de distância. De frente, à queima-roupa. Bosch voltou a guardar a caneta no bolso e se curvou mais um pouco, iluminando atrás da cabeça dela, a parte inferior. O ferimento de saída, grande e denteado, era visível. A morte, sem dúvida, havia sido instantânea.

— Puta que pariu, ela é branca?

Era Edgar. Ele havia se aproximado por trás de Bosch e estava olhando por cima do ombro do parceiro, como um árbitro de beisebol pairando acima do apanhador.

— Pelo jeito, é — disse Bosch.

Ele moveu o feixe de luz pelo corpo da vítima.

— Que merda uma garota branca está fazendo aqui?

Bosch não respondeu. Havia notado alguma coisa oculta embaixo do braço direito. Pôs a lanterna no chão para calçar um par de luvas.

— Ilumine o peito dela — pediu a Edgar.

Com as mãos enluvadas, Bosch voltou a se curvar sobre o corpo. A vítima estava virada sobre o lado esquerdo, o braço direito estendido no peito e ocultando algo preso por um cordão ao pescoço. Bosch puxou com cuidado.

Era um crachá de imprensa, laranja brilhante, fornecido pelo LAPD. ­Bosch tinha visto muitos como aquele ao longo dos anos. Parecia novo. A plastificação ainda estava transparente e sem riscos. Trazia a foto de identificação de uma mulher de cabelos loiros. Abaixo da foto, lia-se seu nome e o órgão de imprensa para o qual trabalhava.

Anneke Jespersen
Berlingske Tidende

— É da imprensa estrangeira — disse Bosch. — Anneke Jespersen.

— De que lugar? — perguntou Edgar.

— Sei lá. Alemanha? Aqui diz Berlim... Berlim-alguma-coisa. Não sei como se pronuncia.

— Por que iam mandar alguém vir lá da Alemanha só por causa disso aqui? Será que eles não têm nada com que se preocupar por lá?

— Não tenho certeza de que ela é da Alemanha. Não dá para saber.

Bosch se desligou do que Edgar estava dizendo e examinou a foto no crachá de imprensa. A mulher retratada era atraente até na foto de identificação. Sem sorrir, sem maquiagem, séria e profissional, o cabelo atrás da orelha, a pele tão branca que era quase translúcida. Havia um ar indiferente em seu olhar. Como o de tiras e soldados que Bosch conhecera, que já tinham visto coisas demais muito cedo na vida.

Bosch virou o crachá para olhar o verso. Parecia legítimo, em sua opinião. Ele sabia que crachás de imprensa eram atualizados todo ano e que um adesivo de autenticação era necessário para que qualquer jornalista assistisse às coletivas do departamento ou recebesse autorização de acesso a cenas de crime. Aquele crachá tinha um adesivo de 1992. Significava que a vítima o havia recebido em algum momento nos últimos cento e vinte dias, mas, notando as condições impecáveis do material, Bosch acreditava que fizesse pouco tempo.

Harry voltou a examinar o corpo. A vítima usava calça jeans e colete por cima da camisa branca. Era um colete profissional, com bolsos grandes. Por isso Bosch deduziu que a mulher provavelmente era fotógrafa, mas não havia nenhuma câmera com ela nem nas proximidades. Seu equipamento havia sido levado, o que talvez tivesse sido o motivo do assassinato. A maioria dos fotógrafos de jornais que ele havia conhecido portava inúmeras câmeras e outros equipamentos de alta qualidade.

Harry levou a mão ao colete e abriu um dos bolsos do peito. Normalmente, era o tipo de coisa que pediria ao investigador do médico-legista para fazer, uma vez que o corpo era da alçada do Gabinete Médico-Legal do Condado. Bosch, porém, não sabia se uma equipe do legista apareceria na cena do crime e não pretendia esperar para descobrir.

O bolso continha quatro tubinhos pretos de filme fotográfico. Ele não sabia se eram rolos utilizados ou não. Voltou a abotoar o bolso e, ao fazê-lo, sentiu uma superfície dura debaixo dele. Sabia que o rigor mortis vinha e passava em um dia, deixando o corpo macio e maleável. Abriu o colete e bateu com o punho no peito da mulher. Era uma superfície dura, e o som confirmou isso. A vítima estava usando um colete à prova de balas.

— Ei, dá só uma olhada na lista — disse Edgar.

Bosch ergueu o rosto. A lanterna de Edgar agora apontava para a parede sobre o corpo. A pichação logo acima da vítima era uma contagem 187, o número para homicídio no Código Penal da Califórnia e gíria gangsta para hit list, com os nomes de vários integrantes eliminados na guerra das ruas. Ken Dog, G-Dog, OG Nasty, Neckbone e assim por diante. A cena do crime ficava em território dos Rolling 60s. Os 60s eram uma subseção da gigantesca gangue dos Crips. Viviam em guerra permanente com os vizinhos da 7-Trey, outra subseção dos Crips.

A maioria do público em geral pensava que as guerras de gangues que assolavam a maior parte de South LA e faziam vítimas sete noites por semana se resumiam a uma batalha Bloods versus Crips pela supremacia e pelo controle das ruas. A realidade, no entanto, era que as rivalidades entre as subseções de uma mesma gangue estavam entre as mais violentas da cidade e eram, em larga medida, responsáveis pela contagem de corpos semanal. Os Rolling 60s e os 7-Trey figuravam no topo dessa lista. Ambas as facções dos Crips atuavam sob o protocolo de “matar no local”, e a contagem era rotineiramente registrada em pichações pelo bairro. Uma lista de RIP, rest in peace, era usada para homenagear os homies mortos na batalha sem fim, enquanto a relação com os nomes sob a contagem 187 era uma hit list, um registro de inimigos eliminados.

— Parece que o que a gente tem por aqui é a Branca de Neve e os sete Trey Crips — brincou Edgar.

Bosch balançou a cabeça, irritado. A cidade havia mergulhado no caos e ali, bem na frente deles, estava o resultado — uma mulher encostada contra a parede e executada —, e seu parceiro parecia incapaz de levar a coisa a sério.

Edgar deve ter lido a linguagem corporal de Bosch.

— Foi só uma piada, Harry — disse ele rapidamente. — Dá um tempo. Um pouco de humor negro não faz mal a ninguém.

— O.k. — disse Bosch. — Eu dou um tempo enquanto você vai até o rádio. Fala para eles o que a gente encontrou aqui, explica bem direitinho que é uma jornalista estrangeira e vê se mandam uma equipe completa para a gente. Se não der, pelo menos um fotógrafo e um pouco de iluminação. Fala para eles que eu vou precisar de um pouco mais de tempo e de alguma ajuda por aqui.

— Por quê? Porque ela é branca?

Bosch levou um momento para responder. Foi irresponsável da parte de Edgar dizer aquilo. Ele estava dando o troco por Bosch não ter reagido bem à piadinha sobre a Branca de Neve.

— Não, não é porque ela é branca — respondeu Bosch, sem se alterar. — É porque não estava saqueando nada nem é de nenhuma gangue, e podem apostar que a mídia vai cair com tudo em cima de um caso que envolve alguém da turma deles. O.k.? Está bom assim para você?

— Saquei.

— Ótimo.

Edgar voltou ao carro para usar o rádio e Bosch se concentrou novamente na cena do crime. A primeira coisa que fez foi delinear o perímetro. Postou vários soldados no fim do beco de modo que criasse uma zona se estendendo até mais de cinco metros de cada lado do corpo. O terceiro e o quarto lados do quadrado eram a parede da loja de eletrodomésticos, de um lado, e a parede da loja de pneus, do outro.

Enquanto fazia a marcação, Bosch notou que o beco passava por um quarteirão residencial que ficava logo atrás do comércio da Crenshaw Boulevard. Não havia a menor homogeneidade na separação dos quintais contíguos ao beco. Algumas casas contavam com muros de concreto, ao passo que outras tinham cercas de madeira ou alambrados.

Bosch sabia que, em um mundo ideal, ele daria uma busca em todos aqueles quintais e pegaria o depoimento de todos os moradores, mas isso teria de ficar para mais tarde, se é que seria feito. Sua atenção naquele momento deveria permanecer focada na cena do crime a sua frente. Se tivesse chance de interrogar a vizinhança, poderia se considerar com sorte.

Bosch notou que Robleto e Delwyn haviam se posicionado com suas escopetas na entrada do beco. Estavam próximos e conversando, provavelmente reclamando de alguma coisa. Como se dizia na época do Vietnã, aquilo era como uma promoção “pague um, leve dois” para um franco-atirador.

Havia oito soldados postados no beco, no perímetro interno. Bosch notou que um grupo de curiosos começava a se juntar no fim da ruela. Ele acenou para o soldado que havia conduzido a viatura até a cena.

— Qual é seu nome, soldado?

— Drummond, mas todo mundo me chama de Drummer.

— O.k., Drummer, sou o detetive Bosch. Me diga: quem a encontrou?

— O corpo? Foi o Dowler. Ele entrou aqui para mijar e viu a mulher. Disse que primeiro sentiu o cheiro. Ele reconheceu o cheiro.

— Onde está o Dowler agora?

— Acho que guardando a barricada sul.

— Preciso falar com ele. Pode ir buscá-lo?

— Sim, senhor.

Drummond fez menção de se virar para a entrada do beco.

— Espera aí, Drummer, ainda não terminei.

Drummond se virou de volta.

— Quando você foi mobilizado para este local?

— A gente está aqui desde as seis da noite de ontem, senhor.

— Então vocês têm o controle da área desde esse horário? Este beco?

— Não exatamente, senhor. A gente começou na Crenshaw com a Florence, ontem à noite, e se deslocou na direção leste pela Florence e norte pela Crenshaw. Está sendo quadra por quadra.

— Então quando foi que chegaram a este beco?

— Não tenho certeza. Acho que a gente cobriu quando amanheceu, hoje.

— E os saques e incêndios na área ao redor, tudo isso já tinha terminado?

— Sim, senhor, aconteceu na primeira noite, pelo que fiquei sabendo.

— O.k., Drummer, só mais uma coisa. A gente precisa de mais luz aqui. Será que dá para você voltar com um daqueles carros de vocês, com toda aquela iluminação na capota?

— O nome é Humvee, senhor.

— Sei; bom, volta com um aqui naquela ponta do beco. Passa por aquele pessoal e entra, depois aponta as luzes bem para a minha cena do crime. Pode ser?

— Entendido, senhor.

Bosch apontou para o lado oposto de onde estava a radiopatrulha.

— Ótimo. Quero iluminar isso aqui de dois lados, o.k.? Provavelmente é o melhor que a gente vai poder fazer.

— Certo, senhor.

Ele começou a se afastar com um passo leve.

— Ei, Drummer.

Drummond virou-se mais uma vez e voltou.

— Sim, senhor.

Bosch sussurrou:

— Todos os seus homens estão olhando o que eu estou fazendo. Será que não era melhor eles vigiarem o perímetro?

Drummond recuou um passo e girou o dedo acima da cabeça.

— Ei! Vocês aí, meia-volta. A gente tem um trabalho para fazer aqui. Todo mundo de olho.

Bosch apontou para o fim do beco, na direção do ajuntamento de curiosos.

— E é para manter aquele pessoal afastado.

Os soldados da Guarda Nacional fizeram como ordenado e Drummond deixou o beco para se comunicar pelo rádio com Dowler e trazer o Humvee.

O pager de Bosch bipou em sua cintura. Ele levou a mão ao cinto e tirou o aparelho do estojo plástico. O número na tela era da central, e Bosch viu que ele e Edgar estavam prestes a receber uma nova chamada. Nem bem haviam começado ali e já seriam deslocados. Ele não queria isso. Guardou o pager de volta no cinto.

Bosch se aproximou da primeira cerca, que começava nos fundos da loja de eletrodomésticos. Era uma barreira feita de ripas de madeira, alta demais para alguém olhar do outro lado. Notou, porém, que havia sido pintada havia pouco. Não tinha pichações, nem mesmo no lado que dava para o beco. Ele reparou nisso porque significava que do outro lado daquela cerca havia um morador que se preocupava em cobrir as pichações. Talvez fosse o tipo de pessoa vigilante, e podia ter escutado ou até visto algo.

Dali ele atravessou o beco e agachou no canto oposto à cena do crime, como um boxeador no ringue à espera de soar o gongo. Começou a passar a luz da lanterna pelo concreto quebrado e pelos entulhos no chão do beco. Em ângulo oblíquo, o feixe de luz refratou na infinidade de superfícies, proporcionando-lhe uma visão única. Logo a luz refletiu em algo brilhante e Bosch focou a lanterna ali. Foi até o lugar e encontrou um cartucho de bala usado, caído no chão.

Ficou de quatro para olhar o cartucho de perto sem tocá-lo. Aproximou o feixe da lanterna e viu que era uma cápsula de 9 mm com a familiar marca da Remington estampada na base achatada. Havia um pequeno amassado no metal, deixado pelo percussor na escorva. Bosch também notou que o cartucho estava caído sobre o cascalho. Ninguém havia pisado nem passado com o carro por cima, e Bosch presumia que aquele fosse um beco bastante movimentado. Deduziu, assim, que a cápsula não estava ali fazia muito tempo.

O detetive começava a procurar alguma coisa para marcar a localização da cápsula quando Edgar se aproximou. Ele trazia uma caixa de ferramentas, e por isso Bosch deduziu que não iam conseguir nenhuma ajuda.

— Harry, o que você encontrou?

— Remington, 9 mm. Parece recente.

— Bom, pelo menos você encontrou alguma coisa útil.

— Pode ser. Falou com a central?

Edgar pôs a caixa de ferramentas no chão. Era pesada. Continha o equipamento que haviam juntado às pressas no almoxarifado da Hollywood Station quando ficaram sabendo que não poderiam contar com o apoio da perícia quando fossem às ruas.

— É, falei, mas negativo. Está todo mundo ocupado com outras coisas. Estamos por conta própria aqui, meu irmão.

— Nada de legista também?

— É isso aí. A Guarda Nacional está trazendo um veículo para pegar o corpo. Um transporte da tropa.

— Você só pode estar de brincadeira comigo. Vão tirar a mulher daqui em uma porra de caminhão?

— Não é só isso; a gente já está com uma nova chamada. Torraram um sujeito. Os bombeiros encontraram o cara em um restaurante de tacos no MLK.

— Puta que pariu, a gente acabou de chegar aqui.

— Sei; bom, a gente está de partida outra vez, porque somos a viatura que está perto do MLK. Então disseram que é para levantar acampamento e picar a mula.

— Certo. Olha, a gente ainda não encerrou por aqui. Longe disso.

— Não tem nada que a gente possa fazer, Harry.

Bosch estava determinado.

— Não vou embora ainda. Tem muita coisa para fazer aqui, e, se a gente deixar para semana que vem ou sei lá o quê, vai perder a cena do crime. Não dá para aceitar isso.

— A gente não tem escolha, parceiro. A gente não dita as regras.

— Isso é conversa.

— O.k., vamos fazer o seguinte. A gente fica uns quinze minutos. Bate umas fotos, recolhe a cápsula, põe o corpo no caminhão e depois parte para a próxima. Na segunda, ou sei lá quando isso terminar, já não vai ser mais nosso caso. A gente volta para a Hollywood depois que a poeira baixar e esse negócio continua aqui. Daí vai ser caso para outro. Aqui é jurisdição da 77. Vai ser problema deles.

Não interessava para Bosch o que viria depois, se o caso ia para os detetives da 77th Street Division ou não. O que importava era o que estava bem a sua frente. Uma mulher chamada Anneke, de um lugar distante, estava morta, e ele queria saber quem havia feito aquilo e por quê.

— Não interessa que não vai ser nosso caso. A questão não é essa.

— Harry, isso não tem sentido — disse Edgar. — Não agora, não com todo esse caos em volta da gente. Nada faz diferença nesse momento, cara. A cidade está fora de controle. Você não pode esp...

O súbito estrépito de uma arma automática rasgou o ar. Edgar mergulhou no chão e Bosch instintivamente se jogou na direção da parede da loja de eletrodomésticos. Seu capacete voou longe. Rajadas de tiros de vários soldados se seguiram, até que finalmente os disparos foram apaziguados por ordens.

— Cessar fogo! Cessar fogo! Cessar fogo!

Os tiros cessaram e Burstin, o sargento da barricada, veio correndo pelo beco. Bosch viu Edgar se levantando devagar. Ele parecia ileso, mas ficou olhando para Bosch com uma expressão esquisita.

— Quem abriu fogo? — berrou o sargento. — Quem disparou primeiro?

— Fui eu — disse um dos homens no beco. — Pensei ter visto uma arma nos telhados.

— Onde, soldado? Que telhado? Onde estava o atirador?

— Ali.

O soldado apontou para o telhado da loja de pneus.

— Merda! — berrou o sargento. — Ninguém mandou atirar, caralho! Aquele telhado está limpo. Não tem ninguém lá em cima, só a gente! Nossos caras!

— Desculpe, senhor. Eu vi o...

— Filho, estou pouco me fodendo para o que você viu. Se acertar um dos meus homens, eu mesmo acabo com a sua raça.

— Certo, senhor. Desculpe, senhor.

Bosch se levantou. Seus ouvidos estavam zumbindo e os nervos, à flor da pele. O barulho súbito de armas automáticas abrindo fogo não era novidade para ele, mas já fazia quase vinte e cinco anos desde que constituíra uma parte rotineira de sua vida. Ele foi até o capacete, pegou-o do chão e voltou a colocá-lo na cabeça.

O sargento Burstin se aproximou.

— Podem continuar com o trabalho, detetives. Se precisarem de mim, estarei no perímetro norte. Temos um veículo a caminho para buscar o corpo. Fui informado de que é para providenciar uma equipe e escoltar sua viatura para outro local, com outro corpo.

Então ele deixou o beco.

— Jesus Cristo, dá para acreditar nisso!? — exclamou Edgar. — Parece a operação Tempestade no Deserto ou sei lá o quê. Vietnã. Que merda a gente está fazendo aqui, cara?

— Chega de conversa e vamos trabalhar — disse Bosch. — Você esboça a cena do crime enquanto eu trabalho no corpo e bato as fotos. Vamos logo.

Bosch se agachou e abriu a caixa de ferramentas. Queria tirar uma foto da cápsula, no lugar onde a havia encontrado antes de guardá-la no saco de evidências. Edgar não parava de falar. A adrenalina dos tiros não passava. Quando ficava hiperexcitado, ele falava muito. Às vezes, até demais.

— Harry, você viu o que fez quando aquele animal abriu fogo?

— Claro, eu me protegi, como todo mundo.

— Não, Harry, você cobriu o corpo. Eu vi. Você protegeu a Branca de Neve aí como se ela estivesse viva ou sei lá o quê.

Bosch não respondeu. Ergueu a bandeja superior da caixa de ferramentas e pegou a Polaroid. Notou que eles só tinham mais dois rolos de filme. Dezesseis fotos, fora o que tivesse sobrado na câmera. Quem sabe, vinte fotos no total, e tinham a cena do crime ali e mais uma esperando no MLK. Não era suficiente. Sua frustração estava chegando ao limite.

— Por que você fez isso, Harry? — insistiu Edgar.

Bosch finalmente perdeu a paciência e gritou com o parceiro:

— Sei lá! O.k.? Sei lá. Então vamos trabalhar logo e ver se a gente faz alguma coisa por ela, daí quem sabe algum dia alguém vai conseguir tocar a investigação.

Sua explosão havia chamado a atenção da maioria dos soldados no beco. O homem que iniciara o tiroteio um pouco antes olhou direto para ele, feliz por passar adiante o bastão da atenção indesejada.

— O.k., Harry — disse Edgar calmamente. — Vamos voltar ao trabalho. A gente faz o que der. Quinze minutos e depois a gente parte para a próxima.

Bosch balançou a cabeça enquanto olhava para a mulher morta. Quinze minutos, pensou. Resignou-se. Sabia que não havia esperança para o caso antes mesmo de começar.

— Desculpe — sussurrou ele.

 

 

1

Eles o fizeram esperar. A explicação era que Coleman estava comendo e, se o tirassem de lá, isso criaria um problema, porque depois do interrogatório teriam de recolocá-lo no segundo bloco para fazer a refeição, onde talvez tivesse inimigos que os guardas não conheciam. Alguém poderia tentar alguma coisa contra ele, e os guardas não teriam como reagir a tempo. Não queriam que isso acontecesse, então disseram a Bosch para relaxar por quarenta minutos enquanto Coleman terminava seu filé à Salisbury com vagem, sentado a uma mesa de piquenique no pátio D, no conforto e segurança da multidão. Todos os Rolling 60s em San Quentin compartilhavam a comida e os blocos de recreação.

Bosch passou o tempo analisando os acessórios de que dispunha e ensaiando sua encenação. Tudo dependia dele. Nenhum parceiro para ajudar. Estava por conta própria. Os cortes de despesas de viagem no orçamento do departamento haviam transformado quase todas as visitas a prisões em missões solo.

O detetive tinha tomado o primeiro voo naquela manhã e não pensara a respeito do horário de chegada. A espera não faria diferença, no fim das contas. O voo de volta era somente às seis da tarde, e o encontro com Rufus Coleman provavelmente não demoraria tanto tempo assim. Para Coleman, era aceitar ou recusar a oferta. De um jeito ou de outro, Bosch não perderia muito tempo com ele.

A sala de interrogatório era um cubículo de metal dividido por uma mesa chumbada no chão. Bosch se sentou de um lado, de costas para uma porta. Do outro lado da mesa havia um espaço de igual tamanho com uma porta idêntica. Era por ali que trariam Coleman, Bosch sabia.

Ele estava trabalhando em um assassinato ocorrido vinte anos antes; ­Anneke Jespersen, fotógrafa e jornalista morta nos tumultos de 1992. Na época, Harry havia trabalhado no caso e na cena do crime por menos de uma hora, antes de ser deslocado para outros homicídios em uma noite de violência descontrolada que o levara a passar incessantemente de caso em caso.

Depois do término dos distúrbios, o departamento formou a Força-Tarefa de Crimes dos Distúrbios e a investigação do assassinato de Anneke ficou nas mãos deles. O caso nunca foi resolvido, e, depois de dez anos classificado como aberto e ativo, os documentos da investigação e a pouca evidência que havia sido coletada foram encaixotados e guardados sem alarde nos arquivos. Foi somente quando se aproximavam do vigésimo aniversário dos distúrbios que o midiático chefe de polícia enviou uma diretiva ao tenente encarregado da Unidade de Abertos/Não Resolvidos ordenando um novo exame em todos os homicídios não resolvidos ocorridos durante as revoltas de 1992. O chefe queria estar preparado quando a imprensa começasse a fazer perguntas sobre casos que tinham vinte anos de idade. O departamento podia ter sido pego desprevenido em 1992, mas isso não voltaria a acontecer em 2012. O chefe queria poder dizer que todos os homicídios não resolvidos dos distúrbios continuavam sob investigação ativa.

Bosch pediu especificamente o caso Anneke Jespersen, que, vinte anos depois, voltou para suas mãos. Não sem algum receio. Bosch sabia que a maioria dos casos era resolvida nas primeiras quarenta e oito horas e que, depois disso, as chances de se descobrir algo caíam drasticamente. Aquele caso em questão nem sequer havia recebido atenção por uma hora inteira das quarenta e oito. Por causa das circunstâncias, fora negligenciado, e Bosch sempre havia se sentido culpado por isso, como se tivesse abandonado Anneke Jespersen. Nenhum detetive de homicídio gostava de deixar para trás um crime não resolvido, mas, naquela situação, Bosch não tivera escolha. O caso fora tirado de suas mãos. Seria fácil para ele jogar a culpa nos investigadores que o sucederam, mas Bosch se incluía entre os responsáveis. A investigação começou com ele na cena do crime, e não conseguia deixar de pensar que, por mais breve que tivesse sido sua presença no local, talvez algo lhe tivesse escapado.

Agora, vinte anos depois, teria uma nova chance, mas seria um tremendo tiro no escuro. Ele acreditava que todo caso tinha sua caixa-preta. Alguma evidência, alguém, algum encaixe dos fatos capaz de lançar um pouco de luz e ajudar a explicar o que acontecera e por quê. Com Anneke Jespersen, no entanto, não havia caixa-preta. Apenas um par de caixas de papelão emboloradas tiradas dos arquivos, que lhe renderam pouca orientação ou esperança. As caixas incluíam as roupas da vítima e o colete à prova de balas, seu passaporte e outros itens pessoais, bem como uma mochila e o equipamento fotográfico recuperado no quarto de hotel dela, depois das revoltas. Havia também uma solitária cápsula de 9 mm encontrada na cena do crime e a fina pasta da investigação preparada pela Força-Tarefa de Crimes dos Distúrbios. O chamado inquérito de homicídio.

Aquele inquérito de homicídio era, na maior parte, um registro da inatividade da FTCD em relação ao caso. A força-tarefa havia atuado por um ano e fora incumbida de investigar centenas de crimes, incluindo dezenas de homicídios. Ficara quase tão sobrecarregada de trabalho quanto investigadores como Bosch durante os tumultos nas ruas.

A FTCD pregara cartazes em South LA anunciando um número de telefone para denúncias, bem como recompensas para informações que levassem a prisões e a condenações por crimes ligados aos distúrbios. Cartazes diferentes exibiam diferentes fotos de suspeitos, cenas de crime ou vítimas. Três deles exibiam uma foto de Anneke Jespersen e pediam qualquer informação sobre os lugares onde ela havia estado e sobre o assassinato.

A unidade operou em grande parte com base no que obteve graças aos cartazes e a outros programas de alcance público, e foi atrás dos casos sempre que a informação era confiável. Mas nada sólido surgiu sobre Jespersen, e assim a investigação nunca deu em nada. O caso virou um beco sem saída. Mesmo a única evidência encontrada na cena do crime — a cápsula da bala — não era de grande utilidade sem uma arma para comparação.

Em seu exame dos relatórios arquivados e dos pertences pessoais, Bosch descobriu que a informação mais digna de nota colhida na primeira investigação tinha a ver com a vítima. Anneke tinha trinta e dois anos e era da Dinamarca, não da Alemanha, como ele havia pensado por vinte anos. Trabalhava em um jornal de Copenhague chamado Berlingske Tidende, no qual era fotojornalista, no sentido mais completo da palavra. Ela escrevia as matérias e fazia as fotos. Tinha sido correspondente de guerra, documentando os conflitos mundiais por meio de palavras e de imagens.

Chegara a Los Angeles na manhã seguinte ao início dos tumultos. E na outra manhã estava morta. Nas semanas que se seguiram, o Los Angeles Times publicou breves perfis de todos os que morreram durante a revolta social. O artigo sobre Jespersen citava seu editor e seu irmão em Copenhague e retratava a jornalista como alguém que se arriscava e era sempre a primeira a se oferecer para incumbências nas zonas mais perigosas do mundo. Nos quatro anos que precederam sua morte, ela havia coberto conflitos no Iraque, no Kuwait, no Líbano, no Senegal e em El Salvador.

O distúrbio em Los Angeles dificilmente podia ser comparado a uma guerra ou a qualquer outro conflito armado que Anneke cobrira, mas, segundo o Times, ela estava, por acaso, viajando de férias pelos Estados Unidos quando a violência na Cidade dos Anjos explodiu. Na mesma hora, ela ligou para a redação do BT, como o jornal era mais conhecido em Copenhague, e deixou um recado com seu editor dizendo que estava partindo de San Francisco a caminho de LA, mas foi encontrada morta antes de ter enviado qualquer foto ou matéria para o jornal. Seu editor não voltou a falar com ela depois de receber o recado.

Com a dissolução da FTCD, o caso Jespersen foi repassado ao esquadrão de homicídio da 77th Street Division, em cuja jurisdição o crime ocorrera. Entregue a detetives novatos com seu próprio acúmulo de casos abertos, a ­investigação foi engavetada. As anotações sobre a cronologia da investigação eram escassas e muito espaçadas e, na maior parte, não passavam de um registro do interesse público pelo caso. O LAPD passou longe de dedicar algum entusiasmo ao caso, mas a família e os conhecidos de Anneke na comunidade jornalística internacional jamais perderam a esperança. A cronologia incluía registros das perguntas frequentes que eles faziam sobre o caso. Elas figuraram nas páginas dos relatórios até a data em que as pastas do caso e os objetos pessoais foram enviados para os arquivos. Depois disso, quem perguntasse sobre Anneke Jespersen era ignorado, assim como estava sendo o caso sobre o qual perguntavam.

Curiosamente, os pertences da vítima nunca foram devolvidos à família. As caixas-arquivos continham a mochila e os objetos pessoais que foram entregues à polícia dias depois do assassinato, quando o gerente do Travelodge no Santa Monica Boulevard comparou os nomes na relação de vítimas dos tumultos publicada no Times com o registro de hóspedes. Haviam pensado que ­Anneke Jespersen tinha dado calote no hotel. Os pertences que ela deixara para trás foram guardados em um armário para depósito de objetos. Assim que o gerente descobriu que Jespersen não voltaria porque estava morta, a mochila com seus pertences foi entregue à FTCD, que estava operando em escritórios temporários na Divisão Central, no centro.

A mochila continha duas calças jeans, quatro camisas brancas de algodão, algumas roupas íntimas e meias. Jespersen obviamente viajava apenas com o essencial, levando pouca bagagem, como uma correspondente de guerra, até quando saía de férias. Ao que parecia, porque ia voltar direto para o campo de batalha depois de sua estada nos Estados Unidos. Seu editor dissera ao Times que o jornal mandaria Anneke da América direto para Sarajevo, na antiga ­Iugoslávia, onde a guerra havia eclodido apenas algumas semanas antes. Relatos de estupros em massa e limpeza étnica surgiam na mídia e Anneke estava a caminho do foco central do conflito, planejando partir na segunda-feira, depois do início dos tumultos em Los Angeles. Ela talvez tivesse considerado a rápida parada em LA para fotografar os desordeiros apenas um aquecimento para o que a aguardava na Bósnia.

Nos bolsos da mochila havia também o passaporte dinamarquês de ­Anneke, junto com várias embalagens fechadas de filme 35 mm.

O passaporte da fotojornalista mostrava um carimbo do Serviço de Imigração e Naturalização no Aeroporto Internacional John F. Kennedy, em Nova York, de seis dias antes de sua morte. De acordo com os relatórios investigativos e matérias de jornal, estivera viajando sozinha e chegara a San Francisco quando os veredictos foram divulgados em Los Angeles, dando início à violência.

Nenhum relatório ou matéria de jornal explicava em que parte dos Estados Unidos Anneke estivera durante os cinco dias anteriores aos tumultos. Aparentemente isso não fora considerado importante para a investigação de sua morte.

O que parecia claro era que a irrupção de violência em Los Angeles fora um poderoso chamariz para Anneke, que na mesma hora fez um desvio em sua rota, pelo visto dirigindo a noite toda para Los Angeles em um carro alugado no Aeroporto Internacional de San Francisco. Na manhã de quinta, 30 de abril, apresentou seu passaporte e credenciais de imprensa dinamarqueses no escritório de mídia do LAPD a fim de conseguir um crachá.

Bosch havia passado a maior parte de 1969 e 1970 no Vietnã. Conhecera muitos jornalistas e fotógrafos nos acampamentos da base e também nas zonas de guerra. Em todos os lugares, presenciara um tipo incomparável de coragem. Não a atitude destemida de um soldado, mas uma crença quase ingênua na capacidade de sobrevivência do ser humano. Era como se acreditassem que suas câmeras e crachás de imprensa eram escudos que os salvariam sob quaisquer circunstâncias.

Ele conhecera bem um fotógrafo em particular. Seu nome era Hank Zinn e trabalhava para a Associated Press. Certa vez, acompanhara Bosch em um túnel em Cu Chi. Zinn era o tipo de sujeito que nunca recusava uma oportunidade de entrar no território inimigo e provar um pouco do que chamava de “vida real”. Ele morreu no início de 1970, quando o Huey em que subira para ser transportado para o front foi abatido. Uma de suas câmeras foi recuperada entre os escombros e alguém na base revelou o filme. As fotos mostravam que Zinn continuara a clicar mesmo enquanto o helicóptero pegava fogo e, depois, caía. Ninguém sabia dizer se ele registrara corajosamente a própria morte ou se acreditara que teria ótimas fotos para publicar quando voltasse ao acampamento militar. No entanto, conhecendo Zinn como conhecia, Bosch acreditava que ele se achava invencível e que não via a queda do helicóptero como o fim da linha.

Quando assumiu o caso Jespersen, depois de tantos anos, Bosch ficou se perguntando se Anneke havia sido como Zinn. Confiante em sua invencibilidade, confiante de que sua câmera e seu crachá de imprensa a manteriam ilesa em plena zona de guerra. Não havia dúvida de que se expusera ao perigo. Ele se perguntava qual teria sido o último pensamento dela quando o assassino apontara a arma para seu rosto. Será que era como Zinn? Havia tirado a foto dele?

Segundo uma lista fornecida por seu editor em Copenhague e guardada no arquivo de investigação da FTCD, Jespersen andava com um par de câmeras Nikon 4 e uma variedade de lentes. Claro que seu equipamento de trabalho fora levado e nunca mais visto. Toda e qualquer evidência fotográfica que pudesse haver em suas câmeras tinham desaparecido havia muito tempo.

Os investigadores da FTCD revelaram o que tinha nos tubos de filme ­encontrados nos bolsos de seu colete. Algumas fotos em preto e branco de 20 x 25, junto com quatro cópias contato exibindo reduções de todas as noventa e seis fotos, estavam no inquérito de homicídio, mas forneciam muito pouca coisa a título de evidência ou de pistas para a investigação. Eram simplesmente imagens da Guarda Nacional da Califórnia se reunindo no Coliseum depois da chamada para cuidar do conflito em Los Angeles. Outras fotos eram de soldados guardando barricadas em cruzamentos na zona de distúrbios. Não havia fotos de atos violentos nem de incêndios nem saques, embora houvesse várias imagens de soldados a postos diante de estabelecimentos que tinham sido saqueados ou incendiados. As fotos foram aparentemente tiradas no dia em que ela chegou, depois de obter seu crachá com o LAPD.

À parte seu valor histórico como documentação dos tumultos, as fotos foram consideradas inúteis para a investigação de homicídio em 1992, e, vinte anos depois, Bosch não podia discordar dessa avaliação.

A pasta da FTCD continha também um relatório de pertences datado de 11 de maio de 1992, detalhando o recolhimento do carro da Avis que Jespersen havia alugado no Aeroporto Internacional de San Francisco. O veículo fora encontrado abandonado na Crenshaw Boulevard, a sete quadras do beco onde o corpo havia sido deixado. Nos dez dias que ficou ali, foi vandalizado e levaram tudo o que foi possível do interior. O relatório afirmava que o carro e seu conteúdo, ou ausência de conteúdo, não tinham valor investigativo.

No fim das contas, a única evidência do caso encontrada por Bosch na primeira hora da investigação permanecia como a maior esperança de uma solução. O cartucho vazio. Ao longo dos últimos vinte anos, a tecnologia policial crescera à velocidade da luz. Coisas nem sequer sonhadas na época agora eram rotineiras. Por toda a parte o advento de aplicações tecnológicas para a obtenção de evidências e a solução de crimes levara a novas investigações de antigos crimes não resolvidos. O departamento de polícia de todo grande centro metropolitano tinha equipes destacadas para investigar esses casos no arquivo morto. A utilização de novas tecnologias em casos antigos às vezes era como pescar em um aquário: as comparações de DNA e de impressões digitais e a balística muitas vezes levavam a processos fulminantes contra culpados que acreditavam havia muito tempo ter escapado depois do homicídio.

Mas às vezes era mais complicado.

Uma das primeiras medidas tomadas por Bosch ao reabrir o caso número 9212-00346 foi levar a cápsula da bala até a Unidade de Armas de Fogo, para análise e perfil criminal. Em virtude da quantidade de trabalho e do status não prioritário dos pedidos de casos arquivados vindos da Unidade de Abertos/Não Resolvidos, três meses se passaram até que Bosch obtivesse um retorno. A resposta não constituía nenhuma solução mágica, nada capaz de solucionar o caso imediatamente, mas ao menos forneceu para o detetive um caminho a seguir. Depois de esperar vinte anos para que a justiça fosse feita a Anneke Jespersen, não era nada mau.

O relatório da unidade rendeu a Bosch o nome de Rufus Coleman, quarenta e um anos, leal membro da gangue Rolling 60s, dos Crips. No momento, cumpria pena por homicídio na Penitenciária Estadual da Califórnia, em San Quentin.


2

Era quase meio-dia quando a porta se abriu e Coleman apareceu, acompanhado por uma dupla de guardas da prisão. Ele foi algemado, com os braços às costas, na cadeira do outro lado da mesa à qual Bosch estava sentado. Os guardas avisaram que ficariam observando e deixaram os dois a sós, olhando um para a cara do outro.

— Você é policial, certo? — disse Coleman. — Sabe o que pode acontecer comigo por me deixarem sozinho nesta sala com um cana, se um desses aí entregar o serviço?

Bosch não respondeu. Examinava o homem à sua frente. Tinha visto as fotos de quando ele havia sido fichado, mas elas só mostravam o rosto. Ele sabia que o homem era grande — um conhecido soldado dos Rolling 60s —, mas não tão grande. Coleman tinha um físico robusto, musculoso, o pescoço mais grosso do que a cabeça de Bosch, incluindo as orelhas. Dezesseis anos de flexões e abdominais e quaisquer outros exercícios que fizesse em sua cela haviam resultado em músculos peitorais mais proeminentes que seu queixo, e os bíceps e tríceps pareciam capazes de funcionar como um quebra-nozes. Nas fotos policiais, seus cabelos exibiam sempre um corte meio quadrado. Agora sua cabeça estava raspada com gilete e ele usara a superfície como tela para o Senhor: em ambos os lados havia a tatuagem de uma cruz envolvida em arame farpado, feita com nanquim azul de prisão. Bosch se perguntou se aquilo fazia parte da tentativa de convencer a comissão de condicional. Estou salvo. É o que diz bem aqui no meu crânio.

— É, sou policial — disse Bosch finalmente. — De LA.

— Xerife ou Departamento de Polícia?

— LAPD. Meu nome é Bosch. Rufus, esse vai ser o dia mais sortudo ou mais azarado da sua vida. A boa notícia é que você vai poder escolher. A maioria das pessoas nunca tem a chance de escolher entre sorte ou azar. Uma das duas coisas acaba acontecendo, só isso. É o destino. Mas hoje você tem escolha, Rufus. Pode tomar seu destino nas mãos. Agora mesmo.

— Ah, é, como é isso? Você é o cara que traz a sorte no bolso?

Bosch fez que sim.

— Hoje, sou.

Bosch havia deixado uma pasta na mesa antes que Coleman fosse trazido. Ele a abriu e tirou duas cartas. Deixou o envelope, endereçado e já carimbado, dentro da pasta, distante o suficiente apenas para Coleman não conseguir ler.

— Então, ouvi dizer que na semana que vem você vai fazer a segunda tentativa com a condicional — falou Bosch.

— Isso mesmo — disse Coleman, com um leve tom de curiosidade e preocupação na voz.

— Bem, não sei se você sabe como funciona, mas a mesma dupla de integrantes da comissão que esteve na primeira audiência, há dois anos, volta para a segunda. Então você tem pela frente dois caras que já rejeitaram o pedido­ da primeira vez. Isso significa que vai precisar de ajuda, Rufus.

— Eu já tenho o Senhor do meu lado.

Coleman se curvou para a frente e virou a cabeça de um lado para o outro, de modo que Bosch pudesse dar uma boa olhada nas cruzes tatuadas. Elas lembraram a Harry o símbolo do time na lateral de um capacete de futebol.

— Acho que você vai precisar de mais do que essas tatuagens, se quer saber.

— Só que eu não quero saber porra nenhuma, cana. Não preciso da sua ajuda. Tenho minhas cartas todas prontas, e o capelão do bloco D, e o meu bom comportamento. Tenho até uma carta de perdão da família Regis.

Walter Regis era o nome do sujeito que Coleman havia assassinado a sangue-frio.

— Mesmo? Quanto você pagou por ela?

— Não paguei nada. Eu rezei e o Senhor me atendeu. A família me conhece e sabe como sou agora. Eles perdoaram meus pecados, e o Senhor também.

Bosch balançou a cabeça e baixou os olhos para as cartas à sua frente por um bom tempo antes de continuar:

— Tudo bem, então você está com tudo arranjado. Tem sua carta e tem o Senhor. Pode ser que não me queira trabalhando a seu favor, Rufus, mas com certeza não vai me querer trabalhando contra. A questão é essa. Não vai querer uma coisa dessas.

— Então desembucha logo. Qual é a jogada?

Bosch concordou com a cabeça. Agora estavam no caminho certo. Ele ergueu o envelope.

— Está vendo este envelope? Está endereçado à comissão de condicional em Sacramento e tem seu número de detento aqui no canto, e está carimbado e pronto para ser enviado.

Bosch botou o envelope na mesa e pegou as cartas, uma em cada mão, segurando-as lado a lado para que Coleman examinasse e lesse.

— Vou pôr uma destas duas cartas neste envelope e deixar em uma caixa do correio assim que eu sair daqui. Você decide qual das duas.

Coleman se curvou para a frente e Bosch escutou o barulho das algemas contra o encosto da cadeira de metal. O homem era tão grande que parecia estar usando ombreiras de zagueiro de futebol americano sob o macacão cinza de presidiário.

— Do que você está falando, cana? Não consigo ler essa merda.

Bosch se recostou na cadeira e virou as cartas de modo que Coleman pudesse lê-las.

— Bom, são cartas dirigidas à Comissão de Condicional. Uma fala só a seu favor. Diz que você está arrependido dos crimes que cometeu e que tem cooperado comigo na solução de um homicídio cometido há muito tempo. Ela termina...

— Não estou cooperando com você em droga nenhuma, cara. Não tenta enfiar a carapuça de dedo-duro em mim. Toma muito cuidado com o que você fala, filho da puta.

— A carta termina com uma recomendação minha de que você receba a condicional.

Bosch pôs a carta na mesa e voltou sua atenção para a outra.

— Agora, esta segunda aqui não é muito boa para o seu lado. Ela não fala nada sobre arrependimento. Diz que você se recusou a cooperar em uma investigação de homicídio sobre o qual você tem informações importantes. E, por último, afirma que a Unidade de Inteligência sobre Gangues, do LAPD, conseguiu umas informações de que os Rolling 60s só estão esperando você sair da cadeia para usar outra vez seu talento para apagar os...

— Isso aí que você está falando é um monte de merda! É tudo mentira! Você não pode mandar essa merda de carta!

Bosch pousou a carta na mesa com a maior calma e começou a dobrá-la para enfiar no envelope. Olhou impassível para Coleman.

— Você acha que pode ficar aí e me dizer o que eu posso e o que eu não posso fazer? Sem chance, não é assim que a coisa funciona, Rufus. Me dá o que eu quero que eu dou o que você quer. É assim que funciona.

Bosch passou o dedo pelo vinco da carta e então começou a enfiá-la no envelope.

— Que homicídio é esse de que você está falando?

O detetive ergueu o rosto. Era a primeira deixa. Levou a mão ao bolso interno do paletó e tirou a foto de Jespersen que havia copiado do crachá de imprensa. Ergueu-a para que Coleman visse.

— Uma garota branca? Não sei nada sobre o assassinato de uma garota branca.

— Não falei que sabia.

— Então que caralho a gente está fazendo aqui? Quando foi que meteram chumbo nela?

— Primeiro de maio de 1992.

Coleman fez as contas, balançou a cabeça e sorriu como se estivesse lidando com um idiota.

— Você pegou o cara errado. Em 1992 eu estava na Corcoran cumprindo cinco anos. E agora, como é que fica, senhor detetive?

— Sei exatamente onde você estava em 1992. Acha que eu viria até aqui se não soubesse tudo da sua vida?

— Só sei que eu não tenho nada a ver com o assassinato dessa garota branca.

Bosch balançou a cabeça, como se dissesse que aquela não era a questão.

— Deixa eu explicar para você, Rufus, porque tem mais uma pessoa que eu quero ver aqui e depois tenho um avião para pegar. Está me escutando?

— Estou. Anda logo com essa merda.

Bosch segurou a foto no alto outra vez.

— Então, a gente está falando de vinte anos atrás. A noite entre 30 de abril e 1º de maio de 1992. A segunda noite dos tumultos em LA. Anneke Jespersen, de Copenhague, está circulando pela Crenshaw com suas câmeras. Está tirando umas fotos para o jornal dela lá na Dinamarca.

— Que merda ela está fazendo num lugar desses? Ali não era lugar para ela.

— Não vou discutir isso, Rufus. Mas ela estava lá, e alguém encostou a mulher na parede em um beco e mandou uma bala direto no olho dela.

— Não fui eu, e não sei droga nenhuma sobre isso.

— Sei que não foi você. Você tem o álibi perfeito. Estava em cana. Posso continuar?

— Pode, cara, conta logo sua história.

— A pessoa que matou Anneke Jespersen usou uma Beretta. A gente recuperou a cápsula na cena do crime. A cápsula mostrava as marcas características de uma Beretta modelo 92.

Bosch observou Coleman para ver se ele percebia aonde aquilo estava indo.

— Está entendendo agora, Rufus?

— Entendendo, estou, mas não sei de que porra você está falando.

— A arma que matou Anneke Jespersen nunca foi encontrada, o caso não foi resolvido. Daí, quatro anos depois, você acaba de sair de Corcoran e é preso de novo e acusado pelo homicídio do membro de uma gangue rival chamado Walter Regis, de dezenove anos. Você meteu uma bala na cara dele quando ele estava sentado em uma boate na Florence. A motivação alegada foi de que ele estava vendendo crack em uma esquina que era dos 60s. Você foi condenado por esse crime com base em múltiplos depoimentos de testemunhas oculares e em seus próprios depoimentos à polícia. Mas a única evidência que não conseguiram obter foi a arma que você usou, uma Beretta modelo 92. A arma não foi encontrada. Está entendendo onde quero chegar?

— Ainda não.

Coleman estava se fazendo de bobo. Bosch não se importava. O homem só queria uma coisa: sair da prisão. Ele acabaria entendendo que Bosch poderia ajudar ou atrapalhar suas chances.

— Certo, deixa eu continuar a história e você tenta acompanhar. Vou fazer o possível para simplificar para você.

Bosch fez uma pausa. Coleman não discordou.

— Bom, agora estamos em 1996. Você é condenado, pega quinze anos e vai para a prisão, como bom soldado dos Rolling 60s que é. Mais sete anos se passam e agora estamos em 2003, e outro homicídio acontece. Um traficante de rua da Grape Street Crips chamado Eddie Vaughn é atacado e roubado quando está no carro com uma latinha e um baseado. Alguém se aproxima pelo lado do passageiro e mete dois balaços na cabeça dele e mais dois no corpo. Mas atirar dentro do carro daquele jeito foi mancada. As cápsulas ejetadas pipocaram para todo lado. Não deu tempo de recolher todas. O atirador pegou só duas e se mandou.

— O que isso tem a ver comigo, cara? Eu estava aqui quando isso aconteceu.

Bosch fez que sim enfaticamente.

— Tem razão, Rufus, você estava aqui. Mas, sabe, em 2003 eles tinham esse negócio chamado Rede Nacional Integrada de Balística. É um banco de dados informatizado administrado pela Agência de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo, a ATF, que acompanha o rastro de balas e cápsulas recolhidas em cenas de crime e em vítimas de homicídio.

— Não me diga.

— A balística hoje em dia, Rufus, é praticamente como deixar impressão digital. Eles ligaram aquelas cápsulas do carro de Eddie Vaughn à arma que você usou faz sete anos para acabar com Walter Regis. A mesma arma usada em dois assassinatos por dois criminosos diferentes.

— Essa merda aí é boa, senhor detetive.

— Claro que é, mas sei que não é novidade nenhuma para você. Sei que vieram aqui conversar com você sobre o caso Vaughn. Os investigadores queriam saber para quem você tinha passado a arma depois de matar o Regis. Eles queriam saber a mando de quem nos Rolling 60s você havia feito aquela execução. Porque estavam achando que o mesmo cara podia ter dado a ordem para matar o Vaughn.

— Acho que eu me lembro disso. Faz muito tempo. Não falei merda nenhuma para eles na época e não vou falar merda nenhuma agora.

— É, eu puxei o relatório. Você mandou os caras se foderem e voltarem para casa. Sabe, naquele tempo você ainda era um soldado, todo macho e corajoso. Mas isso foi há nove anos e na época você não tinha nada a perder. A ideia de conseguir uma condicional ainda nem passava pela sua cabeça. Agora a história é diferente. Agora a gente está falando de três homicídios com a mesma arma. No começo deste ano, eu levei o cartucho vazio que a gente encontrou na cena de Jespersen em 1992 e mandei comparar no banco de dados da ATF. Bateu com o de Regis e Vaughn. Três homicídios ligados à mesma arma: uma Beretta modelo 92.

Bosch recostou na cadeira e esperou uma reação. Ele sabia que Coleman entendia quais eram suas intenções.

— Não posso ajudar você, cara — disse Coleman. — Manda chamar os guardas para vir me buscar.

— Tem certeza? Porque eu posso ajudar você. — Bosch ergueu o envelope. — Ou posso prejudicar você.

Ele esperou.

— Se eu quiser, dou um jeito de deixarem você aqui mofando mais dez anos antes de olharem para a sua cara e pensarem em uma condicional outra vez. Esse é o jogo que você quer fazer?

Coleman fez que não com a cabeça.

— Quanto tempo você acha que eu ia durar lá fora se ajudasse você, cara?

— Não muito. Eu concordo com você. Mas ninguém precisa ficar sabendo, Rufus. Não estou pedindo que você testemunhe no tribunal nem que me dê um depoimento por escrito.

Não ainda, pelo menos, pensou Bosch.

— Só quero um nome. A coisa vai ficar entre nós, e ponto final. Quero o cara que deu a ordem para a execução. O cara que deu a arma e mandou você apagar o Regis. O cara para quem você devolveu a arma depois que fez o serviço.

Coleman baixou os olhos para a mesa enquanto pensava. Bosch sabia que estava levando os anos em consideração. Mesmo o soldado mais forte tinha um limite.

— Não é assim — disse ele, finalmente. — O mandante do acerto nunca fala com o atirador. Tem os intermediários, cara.

Bosch tivera uma reunião na Unidade de Inteligência sobre Gangues antes de fazer a viagem. Informaram-lhe que as hierarquias das antigas gangues na South Central eram geralmente montadas como organizações paramilitares. Era uma pirâmide, e um soldado de posto baixo como Coleman nunca teria sabido quem havia ordenado o assassinato de Regis. Então Bosch usara a pergunta como teste. Se Coleman entregasse o nome de alguém como o autor da ordem, ele saberia que o homem estava mentindo.

— Tudo bem — disse Bosch. — Entendo. Então vamos simplificar. Vamos ficar só na arma. Quem deu a arma para você na noite em que matou Regis e para quem você devolveu, depois?

Coleman balançou a cabeça e manteve o olhar baixo. Ficou em silêncio, e Bosch esperou. Aquele era o jogo. Por isso que fora até ali.

— Não aguento mais isso aqui — murmurou Coleman.

Bosch ficou em silêncio e tentou controlar a respiração. Coleman estava prestes a ceder.

— Eu tenho uma filha — disse ele. — Ela é praticamente uma mulher-feita e a gente nunca se viu sem ser neste lugar. Só vi minha filha na prisão, em nenhum outro lugar.

Bosch assentiu.

— Isso não está certo — disse o detetive. — Eu também tenho uma filha, e a gente passou anos sem se ver.

Agora Bosch notava um brilho úmido nos olhos de Coleman. O soldado de gangue estava esgotado pelos anos de carceragem, culpa e medo. Dezesseis anos cuidando da própria retaguarda. As camadas de músculo eram apenas o disfarce de um homem destruído.

— Me dê o nome, Rufus — insistiu ele. — E eu mando a carta. Está fechado. Mas se você não me der o que eu quero, sabe que nunca vai sair vivo daqui. E sempre vai ter um vidro entre você e sua filha.

Com os braços algemados às costas, Coleman não podia fazer nada para limpar a lágrima que escorria pela face esquerda. Ele curvou a cabeça.

— ... história... — Bosch o escutou dizer.

Bosch esperou. Coleman não disse mais nada.

— Me conta — disse Bosch, por fim.

— Contar o quê? — perguntou Coleman.

— A história. Me conta.

Coleman balançou a cabeça.

— Não, cara, história, não. Trumont Story. Chamam ele de Tru, T-R-U. Foi com ele que eu peguei a arma para o serviço, e devolvi depois na mão dele.

Bosch assentiu. Tinha conseguido o que fora buscar.

— Mas tem uma coisa — disse Coleman.

— O que é?

— Tru Story morreu, cara. Pelo menos foi o que fiquei sabendo aqui.

Bosch já havia se preparado para isso no caminho. Nas duas últimas décadas, a contagem de corpos das gangues de South LA. estava na casa dos milhares. Ele sabia que havia uma chance considerável de estar procurando por um homem morto. Sabia também que o rastro não morria necessariamente com Tru Story.

— Vai mandar aquela carta mesmo assim? — perguntou Coleman.

Bosch ficou de pé. Havia terminado. O sujeito brutal diante dele era um assassino frio e estava no lugar que merecia estar, mas Bosch havia feito um acordo com ele.

— Você já deve ter pensado nisso um milhão de vezes — disse Bosch. — O que vai fazer depois que sair daqui e abraçar sua filha?

Coleman respondeu sem hesitar:

— Volto para a guerra.

Ele esperou, sabendo que Bosch tiraria uma conclusão precipitada.

— Mas minha arma vai ser a oração. Vou contar para todo mundo o que eu aprendi. O que eu sei. A sociedade não vai ter problemas comigo. Vou continuar sendo um soldado. Só que um soldado de Cristo.

Bosch assentiu. Ele sabia que muitos que deixavam aquele lugar tinham o mesmo plano em mente. Entrar para o exército do Senhor. Poucos conseguiam. O sistema dependia de fregueses voltando sempre. No fundo, sabia que Coleman provavelmente era um desses.

— Então eu mando a carta.


3

Pela manhã, Bosch foi ao South Bureau, na Broadway, para se encontrar com o detetive Jordy Gant, da Unidade Especial de Combate a Gangues. Gant estava na sua mesa, em uma ligação, quando Bosch chegou, mas não parecia ser nada importante, e ele desligou rapidamente.

— Como foram as coisas lá com o Rufus? — perguntou Gant.

O detetive sorriu, condescendente, como se esperasse que Bosch dissesse que a viagem para San Quentin havia sido um fiasco.

— Bom, ele me deu um nome, mas também me disse que o cara está morto, então pode ser que tenha me enrolado enquanto eu o enrolava.

— Qual é o nome?

— Trumont Story. Já ouviu falar?

Gant assentiu e voltou-se para uma pequena pilha de pastas no canto da mesa. Ao lado havia uma caixa preta com a etiqueta “Rolling 60s — 1991-1994”. Bosch a reconheceu como a caixa usada nos velhos tempos para guardar as fichas com os interrogatórios feitos no local. Isso foi antes de o departamento começar a usar computadores para armazenar informações sobre os suspeitos.

— Quem diria — falou Gant. — Acontece que estou com a pasta do Tru Story bem aqui.

— É, quem diria — respondeu Bosch, pegando a pasta.

Ele a abriu diretamente na foto 20 x 25 de um homem morto, caído na calçada. Havia um ferimento de entrada na têmpora esquerda. No lugar do olho direito, um grande ferimento de saída. Um pouco de sangue escorrera pelo concreto e já estava coagulado no momento em que a foto foi batida.

— Lindo — disse Bosch. — Parece que ele deixou alguém chegar perto demais. Esse caso continua aberto?

— Isso mesmo.

Harry folheou a pasta e verificou a data no boletim de ocorrência. Trumont Story morrera fazia quase três anos. Harry fechou a pasta e olhou para Gant, que estava recostado na cadeira com um sorriso de satisfação.

— Tru Story morreu em 2009 e por acaso você tem a pasta dele em cima da mesa?

— Negativo, eu puxei para você. Peguei mais duas também e achei até que você ia querer dar uma olhada em nossas fichas de 1992. Nunca se sabe, um nome aí talvez signifique alguma coisa para você.

— Pode ser. Por que você puxou as pastas?

— Bom, depois que a gente conversou sobre seu caso e os positivos da ATF para os outros dois, sabe como é: três casos, uma arma, três atiradores, diferentes, comecei a...

— Na verdade, é um tiro no escuro, mas poderiam ser só dois atiradores. O mesmo cara que mata minha vítima em 1992 volta e liquida o Vaughn em 2003.

Gant balançou a cabeça.

— Pode ser, mas acho que não. É muito improvável. Então eu estava pensando, só para considerar a possibilidade, três atiradores diferentes, uma arma. Daí eu repassei nossos casos dos Rolling 60s. Quer dizer, os casos em que eles se envolveram de um lado ou do outro da situação. Como assassinos ou como vítimas. Puxei os casos que podiam estar relacionados com essa arma e obtive três nos quais houve mortes com tiros em que nenhuma evidência balística foi recuperada. Dois foram execuções da 7-Trey e um você já adivinhou, foi Tru Story.

Bosch continuava de pé. Puxou uma cadeira para se sentar.

— Posso dar uma olhada rápida nas outras duas?

Gant lhe passou as pastas sobre a mesa e Bosch começou a examiná-las rapidamente. Não eram inquéritos. Eram arquivos de gangues e, desse modo, relatos abreviados e boletins de ocorrência sobre os assassinatos. Os inquéritos completos, com o histórico do caso, ou inquéritos de homicídio, estariam nas mãos dos investigadores de homicídio nomeados para os casos. Se quisesse mais informações, Bosch teria de requisitá-las ou dar uma passada na mesa dos detetives para conferir.

— Coisa típica — disse Gant enquanto Bosch lia. — O cara vende na esquina errada ou visita uma garota no bairro errado e fica marcado para morrer. O motivo de eu ter incluído Tru Story aí foi que o mataram em um lugar e depois jogaram o corpo em outro.

Bosch ergueu o rosto das pastas e olhou para Gant.

— E por que isso importa?

— Porque pode significar que foi um serviço interno. A própria turma dele. É incomum ver um corpo removido em um assassinato envolvendo gangues. Sabe como é, eles passam atirando dos carros ou se matam em emboscadas. Ninguém tem o trabalho de remover o corpo, a menos que haja um bom motivo. Um motivo como disfarçar que foi coisa interna. Largaram no território da 7-Treys, então a teoria é que mataram no próprio território e depois jogaram no território inimigo para fazer parecer que ele transgrediu um limite.

Bosch refletiu sobre tudo aquilo. Gant deu de ombros.

— Só uma hipótese de trabalho. O caso continua aberto.

— Deve ser mais do que só uma hipótese — disse Bosch. — O que levou você a ter esse palpite? Está trabalhando no caso?

— Não sou da Homicídios, sou da obtenção de informações, da Inteligência. Fui chamado e consultado. Mas isso faz tempo: três anos. Só o que eu sei agora é que esse caso continua aberto.

A Unidade Especial de Combate a Gangues era um destacamento subordinado ao LAPD que lidava com as gangues urbanas. Contava com esquadrões de homicídio e detetives, unidades de inteligência e programas de integração com a comunidade.

— O.k., então você foi consultado — disse Bosch. — Certo, o que ficou sabendo de três anos para cá?

— Bom, o Story subiu bem alto na pirâmide sobre a qual falei outro dia. A coisa ali em cima pode ficar acirrada. Todo mundo quer estar no topo e depois, quando chega lá, precisa cuidar da retaguarda o tempo inteiro, ficar em alerta máximo.

Gant gesticulou na direção das pastas que Bosch segurava.

— Você mesmo disse quando viu a foto. Ele deixou alguém chegar perto demais. Pode apostar que sim. Sabe quantos homicídios de gangue envolvem tiro à queima-roupa? Quase nenhum, a menos que seja tipo uma troca de tiros em uma boate ou algo assim. Mas na maior parte do tempo esses caras não chegam perto, é impessoal. Só que dessa vez, com o Tru Story, chegaram. Então a teoria na época foi de que os próprios 60s cuidaram disso. Alguém perto do topo da pirâmide teve motivo para acreditar que Tru Story tinha que ser eliminado e deu um jeito. Resumindo, pode ser a mesma arma que você está procurando. Não tinha bala, e nenhum cartucho vazio foi recuperado, mas o ferimento combinava com uma 9 mm, e agora que você tem Rufus Coleman pondo sua Beretta modelo 92 na mão do Tru Story parece até melhor.

Bosch fez que sim. Fazia algum sentido.

— E o GED nunca descobriu do que se tratava?

Gant balançou a cabeça.

— Negativo, nem chegaram perto. Você precisa entender uma coisa, Harry. A pirâmide é mais vulnerável à lei na parte de baixo. No nível das ruas. Também é onde ela é mais visível.

Ele estava dizendo que os esforços do GED eram em grande parte focados nos traficantes e nos criminosos de rua. Se um homicídio de gangue não fosse resolvido em quarenta e oito horas, em breve haveria um novo para investigar. Era uma guerra de atrito dos dois lados da linha.

— Certo — disse Bosch. — Vamos voltar para o assassinato de Walter Regis, aquele que Rufus Coleman cometeu e pelo qual foi condenado em 1996. Coleman disse que Tru Story lhe deu a arma e as instruções. Ele executou o serviço e depois devolveu a arma. Coleman disse que não foi ideia do Story apagar o Regis, que ele também cumpriu uma ordem. Então, será que temos alguma pista que indique de quem isso partiu? Quem foi o mandante, nos Rolling 60s, em 1996?

Gant balançou a cabeça outra vez. Estava fazendo isso com frequência.

— Foi antes da minha época, Harry. Eu estava em uma radiopatrulha em Southeast. E, para ser sincero com você, a gente era um pouco ingênuo naqueles tempos. Foi quando a gente lançou o CRASH para atacar o problema. Você se lembra do CRASH?

Bosch lembrava. A explosão da população gangsta e a consequente violência ocorreram com a mesma velocidade da epidemia de crack na década de 1980. O LAPD na South Central estava sobrecarregado e reagiu com um programa chamado Comunidades Reunidas Antissituações e Sujeitos Hostis. O programa tinha um acrônimo engenhoso — crash, que significa esmagar ou destruir —, e alguns diziam que passavam mais tempo fazendo exatamente isso do que implementando o programa em si. O CRASH atacava os níveis inferiores da pirâmide. Atrapalhava os negócios das gangues nas ruas, mas dificilmente ­alcançava o topo. E não era de admirar. Os soldados de rua que vendiam drogas e executavam as missões de retaliação e intimidação raramente tinham algum conhecimento que fosse além do trabalho diário, e raramente abriam mão disso.

Esses eram jovens cozidos no caldeirão antipolícia de South LA. Eram curtidos em um caldo de racismo, drogas e indiferença social e na erosão da família tradicional e das estruturas de ensino, depois largados nas ruas, onde podiam faturar em um dia mais do que suas mães ganhavam no mês todo. Eram encorajados a esse estilo de vida em cada aparelho de som portátil e em cada estéreo de carro por mensagens de rap que diziam “foda-se a polícia e todo o resto da sociedade”. Enfiar um gangbanger de dezenove anos em uma salinha de interrogatório e fazê-lo entregar o próximo na hierarquia era tão simples quanto abrir uma lata de ervilhas usando só os dedos. Ele não sabia quem era o próximo na hierarquia e, se soubesse, não diria. A prisão e a cadeia eram extensões da vida aceitas nas gangues, parte do processo de amadurecimento, mais uma etapa na obtenção de suas patentes no crime. Cooperar não tinha utilidade alguma. Trazia apenas desvantagem: a inimizade de sua família de delinquentes, que sempre vinha acompanhada de uma sentença de morte.

— Então o que você está dizendo — falou Bosch — é que não sabemos para quem Trumont Story estava trabalhando na época ou onde ele obteve a arma que deu para Coleman acabar com Regis.

— Resumindo, é isso mesmo. Exceto quanto à arma. Meu palpite é que o Tru sempre teve aquela arma e passava para quem quisesse usar. Olha, a gente sabe muito mais hoje do que sabia na época. Então, pegando o conhecimento de hoje e aplicando no que aconteceu naquela situação, funcionaria mais ou menos assim. A gente começa com um cara no topo ou perto do topo da pirâmide chamada gangue de rua Rolling 60s. Esse cara é tipo um capitão. Ele quer um sujeito chamado Walter “Wide Right” Regis morto porque o cara andou vendendo onde não devia. Então o capitão vira para esse seu sargento de confiança chamado Trumont Story e sussurra no ouvido dele que quer que deem um jeito no tal do Regis. Agora a bola está com o Story, que precisa dar um jeito de executar o serviço, se pretende manter sua posição na organização. Daí ele procura um dos caras de confiança em seu bando, Rufus Coleman, dá uma arma para o homem e diz que o alvo é o Regis e que ele gosta de frequentar a boate tal. Quando o Coleman sai para fazer o serviço, Story procura arranjar um álibi, porque ele é o dono daquela arma. Só uma precaução extra caso ele e a arma um dia sejam ligados. É assim que fazem hoje em dia, então estou ­dizendo que talvez fizessem assim na época, só que a gente não sabe exatamente.

Bosch assentiu. Estava começando a sacar a inutilidade de sua busca. Trumont Story tinha morrido e com ele se foram as ligações da arma. Não estava, na verdade, mais perto de saber quem matara Anneke Jespersen do que naquela noite, vinte anos antes, quando olhou para o corpo e se desculpou. Não havia chegado a lugar algum.

Gant notou sua decepção.

— Desculpe, Harry.

— Você não tem culpa.

— Vai poupar você de um bocado de dor de cabeça, de qualquer forma.

— Como assim?

— Ah, você sabe, todos aqueles casos não resolvidos da época. E se o único que a gente resolvesse fosse o da garota branca? Isso provavelmente não ia pegar muito bem na comunidade, entende o que eu quero dizer?

Bosch olhou para Gant, que era negro. De fato, não havia considerado os aspectos raciais do caso. Só estava tentando solucionar um homicídio atravessado em sua garganta havia vinte anos.

— Acho que sim — respondeu ele.

Ficaram em silêncio por um bom tempo antes que Bosch fizesse uma pergunta:

— Então, o que você acha, pode acontecer outra vez?

— O quê, os tumultos?

Bosch fez que sim. Gant havia passado toda a sua carreira em South LA. Ele, mais do que ninguém, saberia a resposta.

— Claro, qualquer coisa pode acontecer por lá — respondeu Gant. — As coisas estão melhores entre o povo e o departamento? Claro, bem melhores. Na verdade, tem gente que até confia em nós agora. O número de homicídios caiu muito. A criminalidade em geral caiu muito, e os delinquentes já não dominam as ruas com impunidade. O controle é nosso, o povo conquistou o controle.

Ele parou, e Bosch esperou um pouco, mas aquilo era tudo.

— Mas... — Bosch deu a deixa.

Gant deu de ombros.

— Gente à beça sem emprego, um monte de lojas e de estabelecimentos fechados. Não está chovendo oportunidade por lá, Harry. Você sabe onde isso vai parar. Frustração, agitação, desespero. É por isso que eu digo que tudo pode acontecer. A história anda em círculos. Ela se repete. Pode acontecer outra vez, com certeza.

Bosch assentiu. A avaliação que Gant fazia da situação não era muito diferente da dele.

— Posso ficar com essas pastas por um tempo?

— Desde que você devolva depois — disse Gant. — Vou emprestar também a caixa preta.

Ele esticou o braço para trás e pegou a caixa de papelão. Quando se virou, Bosch estava sorrindo.

— O que foi? Não vai querer?

— Não, não, claro que quero. Só estou pensando em um parceiro que eu tive. Faz muito tempo. O nome dele era Frankie Sheehan, e ele...

— Eu conheci o Frankie. Foi uma pena o que aconteceu.

— É, mas antes disso, quando a gente era parceiro, ele sempre dizia um negócio sobre trabalhar com homicídios. Ele falava assim: você precisa encontrar a caixa-preta. Essa é a primeira coisa, encontre a caixa-preta.

Gant fez uma expressão confusa.

— Você quer dizer, como a de um avião?

Bosch assentiu.

— É, como em um acidente de avião, eles precisam encontrar a caixa-preta, que registra todos os dados do voo. Eles encontram e ficam sabendo o que aconteceu. Frankie dizia que era a mesma coisa com uma cena ou um caso de homicídio. Vai aparecer alguma coisa que vai fazer tudo se encaixar. É só encontrar que dá tudo certo. É a mesma coisa que achar a caixa-preta. E agora olha você aí me dando a caixa preta.

— Bom, não espere muita coisa desta aqui. A gente chama de caixas do CRASH. São só os cartões de batida da época.

Antes do advento do Terminal de Dados Móveis, ou TDM, instalado em todas as viaturas, os policiais andavam com fichas de EC no bolso de trás. Eram cartões simples, com cerca de 8 x 13 centímetros, para anotar as entrevistas de campo, ou seja, o interrogatório feito no local. Incluíam data, hora e local do depoimento, assim como nome, idade, endereço, apelidos, tatuagens e afiliação de gangue do indivíduo interrogado. Havia também uma área para comentários dos policiais, o que era usado primordialmente para registrar quaisquer observações dignas de nota sobre o indivíduo.

A seção local da União Americana pelas Liberdades Civis denunciara havia muito a prática do departamento de conduzir esses interrogatórios in loco, condenando-os como injustificados e inconstitucionais, ­comparando-os a batidas policiais. Sem se intimidar, o departamento prosseguiu com a prática, e as fichas de interrogatório ficaram conhecidas entre as fileiras como cartões de batida.

Bosch pegou a caixa, abriu-a e viu que estava cheia de cartões surrados.

— Como isso sobreviveu à limpeza? — perguntou ele.

Gant sabia que Bosch estava se referindo à mudança do departamento para a armazenagem digital de dados. De cima a baixo, arquivos físicos estavam sendo digitalizados a fim de abrir caminho para o futuro eletrônico.

— Cara, a gente sabia que, se arquivassem isso no computador, iam deixar passar todo tipo de coisa. Eles são escritos à mão, Harry. Às vezes não dá para decifrar a caligrafia que vai salvar a sua vida. A gente sabia que a maior parte da informação desses cartões não ia sobreviver, está me entendendo? Então a gente segurou o máximo dessas caixas pretas que conseguiu. Você teve sorte, Harry, a gente ainda está com os 60s em uma caixa. Espero que tenha alguma coisa aí dentro que ajude.

Bosch empurrou a cadeira para se levantar.

— Pode deixar que depois eu trago de volta.


4

Bosch estava de volta à Unidade de Abertos/Não Resolvidos antes do meio-dia. O lugar estava bem vazio, já que a maioria dos detetives chegava cedo e saía cedo para almoçar. Nenhum sinal de David Chu, parceiro de Harry, mas isso não era uma preocupação. Chu podia estar almoçando em qualquer lugar do prédio ou em um dos laboratórios criminais nas proximidades. Bosch sabia que Chu estava trabalhando em uma série de requisições, ou seja, os primeiros estágios dos casos em que a evidência genética, de impressões digitais ou balística é preparada e submetida aos vários laboratórios para análise e comparação.

Bosch pôs as pastas e a caixa preta na mesa e pegou o telefone para checar os recados. Não havia nada. Mal tinha terminado de arrumar suas coisas e se preparava para começar a examinar o material recebido de Gant quando o novo tenente da unidade entrou em sua sala. Cliff O’Toole era novo não só na Abertos, mas também na Divisão de Roubos e Homicídios, a DRH. Fora transferido do Valley Bureau, onde dirigira todo o esquadrão de detetives em Van Nuys. Bosch não tivera contato com ele ainda, mas o que tinha visto e ouvido dizer por outros no esquadrão não era promissor. Depois de chegar e assumir o comando da Abertos/Não Resolvidos, em tempo recorde o tenente adquirira não um, mas dois apelidos com conotações negativas.

— Harry, como foi por lá? — perguntou O’Toole.

Antes de autorizar a viagem para San Quentin, O’Toole havia sido brevemente informado sobre a ligação da arma entre o caso Jespersen e o assassinato de Walter Regis perpetrado por Rufus Coleman.

— Bom e ruim — respondeu Bosch. — Consegui um nome com Coleman. Um tal de Trumont Story. Coleman disse que Story forneceu a arma que ele usou para liquidar Regis e que ele devolveu depois. O problema é que não posso ir atrás do Story porque o cara está morto; a vez dele de ser apagado chegou em 2009. Então passei a manhã no South Bureau e fiz uma checagem para confirmar a cronologia e se Story realmente se encaixa. Acho que Coleman estava me dizendo a verdade e não apenas tentando jogar tudo em cima de um cara morto. Então a viagem não foi uma total perda de tempo, mas não estou mais perto de descobrir quem matou Anneke Jespersen.

Ele fez um gesto para as pastas e a caixa preta de papelão na mesa.

O’Toole balançou a cabeça pensativamente, cruzou os braços e se sentou na beirada da mesa de Dave Chu, bem no lugar onde Chu botava o café. Se Chu estivesse ali, não teria gostado nada daquilo.

— Odeio usar o orçamento de viagem para um tiro no escuro — disse ele.

— Não foi um tiro no escuro — respondeu Bosch. — Acabei de explicar que consegui um nome e que o nome se encaixa.

— Bom, então talvez seja melhor simplesmente passar uma fita nisso e dar o caso por encerrado — disse O’Toole.

Com “passar uma fita” ele queria dizer terminar de embrulhar o pacote. Era o que, no jargão policial, chamavam de C-Bow, ou CBO, ou seja, um caso resolvido por outros meios. Era uma designação usada para formalizar o encerramento de um caso quando a solução é conhecida, mas não resulta em prisão nem em julgamento porque o suspeito está morto ou não pode ser levado à justiça por outros motivos. Na Unidade de Abertos/Não Resolvidos, os casos eram “resolvidos por outros” com frequência, porque normalmente tinham décadas de idade e porque impressões digitais ou DNA encontrados no banco de dados levavam a suspeitos falecidos havia tempo. Se a investigação subsequente ligasse o suspeito à hora e ao local do crime, então o supervisor da unidade tinha autoridade para encerrar o caso e mandá-lo ao Gabinete da Promotoria para ser carimbado.

Mas Bosch ainda não estava pronto para fazer isso com o caso Jespersen.

— Não, a gente não tem um CBO aqui — disse Bosch com firmeza. — Não consigo ligar a arma a Trumont Story a não ser quatro anos depois do meu caso. Essa arma pode ter passado por muitas mãos nesse meio-tempo.

— Pode ser — disse O’Toole —, mas não quero que esse caso vire hobby seu. A gente tem mais seis mil outros casos. Gerenciar isso significa gerenciar o tempo.

Ele uniu os pulsos, um gesto para indicar que estava de mãos atadas pelas pressões do cargo. Era esse lado burocrático de O’Toole que impedira Bosch, até aquele momento, de ir com a cara do sujeito. Ele era um tecnocrata, não um policial nato. Por esse motivo, “The Tool” (a Ferramenta), foi o primeiro apelido que ganhou.

— Sei disso, tenente — disse Bosch. — Meu plano é trabalhar com esse material, e, se nada aparecer, daí vai ser hora de passar para o caso seguinte. Mas, com o que a gente tem no momento, não é um CBO. Então não vai servir para engordar nossas estatísticas. Vai constar como não resolvido.

Bosch estava tentando deixar claro para o novo tenente que não pretendia entrar naquele jogo da chantagem estatística. Um caso estava resolvido se Bosch ficasse convencido de que havia sido de fato resolvido. Pôr a arma do crime na mão de um gangbanger quatro anos depois do ocorrido estava longe de ser o bastante.

— Certo, vamos ver o que você consegue quando terminar de olhar tudo isso — disse O’Toole. — Não quero pressionar ninguém antes da hora, mas meu papel aqui é pressionar a unidade. A gente precisa encerrar mais casos. Para fazer isso, precisamos trabalhar em mais casos. Então, o que eu estou dizendo é que, se o atual não dá, melhor passar para o seguinte, porque o próximo pode ser um que a gente vai conseguir encerrar. Nada de hobby, Harry. Quando eu vim para cá, tinha gente demais cuidando de hobby. A gente não tem mais tempo para isso.

— Entendido — disse Bosch secamente.

O tenente começou a voltar para seu escritório. Bosch bateu uma continência fajuta às suas costas e notou o círculo de café nos fundilhos de sua calça.

O’Toole substituíra havia pouco tempo um tenente que gostava de ficar na sala com as persianas baixadas. As interações do homem com o esquadrão eram mínimas. O’Toole era o oposto. Às vezes exagerava no envolvimento. Não ajudava em nada o fato de ser mais novo do que metade do esquadrão e quase duas décadas mais novo que Bosch. Sua supervisão sufocante da equipe de detetives, praticamente toda ela composta de veteranos, era desnecessária, e Bosch se pegava afrouxando o colarinho sempre que O’Toole se aproximava.

Além do mais, o homem estava mais para caixa registradora. Ele queria encerrar casos pelo bem dos relatórios mensais e anuais que mandava para o décimo andar. Não tinha nada a ver com levar justiça a vítimas de homicídio quase esquecidas. Até aquele momento, parecia que O’Toole não tinha nenhum tato com o elemento humano da função. Ele já repreendera Bosch por passar a tarde com o filho de uma vítima de homicídio que havia pedido para ver a cena do crime vinte e duas horas depois de o pai ter sido assassinado. O tenente disse que o filho da vítima podia perfeitamente ter encontrado o local por si mesmo e que Bosch deveria ter usado aquelas horas para trabalhar nos casos.

Subitamente, O’Toole girou nos calcanhares e voltou na direção da sala. Bosch se perguntou se teria visto a continência sarcástica no reflexo de alguma janela.

— Harry, mais duas coisas. Primeiro, não se esqueça de trazer os recibos das despesas da sua viagem. Eles não largam do meu pé sobre os registros corretos nesse negócio, e quero ter certeza de que você vai receber de volta tudo o que gastou do próprio bolso.

Bosch pensou no dinheiro que depositara na conta do refeitório do segundo detento que visitara.

— Não precisa se preocupar com isso — disse ele. — Não tem nada. Eu parei para comer um hambúrguer no Balboa e foi só.

O bar e grill Balboa, em San Francisco, ficava no meio do caminho entre o Aeroporto Internacional de San Francisco, o SFO, e San Quentin, e era o ponto predileto dos investigadores de homicídio do LAPD.

— Tem certeza? — perguntou O’Toole. — Não quero que fique no prejuízo.

— Absoluta.

— O.k., então.

O’Toole começou a se afastar outra vez quando Bosch o deteve:

— Qual é a outra? Você disse duas coisas.

— Ah, é. Feliz aniversário, Harry.

Bosch se recostou na cadeira, surpreso.

— Como você sabe?

— Eu sei o aniversário de todo mundo. De todo mundo que trabalha para mim.

Bosch assentiu. Ele preferia que O’Toole tivesse dito comigo em vez de para mim.

— Obrigado.

O’Toole enfim foi embora de vez e Bosch ficou aliviado que a sala do esquadrão estivesse vazia e ninguém tivesse escutado que era seu aniversário. Na sua idade, isso poderia iniciar uma leva de perguntas sobre aposentadoria. Era um assunto que ele tentava evitar.

Quando ficou sozinho, Bosch primeiro preparou um cronograma. Começou pelo assassinato de Jespersen, situando-o em 1º de maio de 1992. Mesmo que a hora do óbito fosse inconclusiva e a fotojornalista pudesse ter sido assassinada nas últimas horas de 30 de abril, ele adotou 1º de maio como data oficial, pois o corpo de Jespersen fora encontrado nesse dia e era mais provável que tivesse sido morta nessa data também. Depois disso, listou todos os assassinatos ligados ou possivelmente ligados à Beretta modelo 92, culminando no último. Também incluiu os dois outros casos cujas fichas Gant havia puxado, achando que pudessem ter uma ligação.

Bosch anotou os homicídios em uma folha de papel e não no computador, como a maioria de seus colegas teria feito. Ele tinha seu estilo e preferia um documento palpável. Queria conseguir segurá-lo, examiná-lo, dobrá-lo e carregá-lo consigo no bolso. Queria conviver com aquilo.

O detetive deixou bastante espaço em torno de cada item, de modo que pudesse acrescentar anotações à medida que avançasse. Sempre trabalhara assim.

1º de maio de 1992 — Anneke Jespersen — 67th Street e Crenshaw (assassino desconhecido)

2 de janeiro de 1996 — Walter Regis — 63rd Street e Brynhurst (Rufus Coleman)

30 de setembro de 2003 — Eddie Vaughn — 68th Street e East Park (assassino desconhecido)

18 de junho de 2004 — Dante Sparks — 11th Avenue e Hyde Park (assassino desconhecido)

8 de julho de 2007 — Byron Beckles — Centinela Park/Stepney Street (assassino desconhecido)

1º de dezembro de 2009 — Trumont Story — West 76th Street/Circle Park (assassino desconhecido)

Os três últimos assassinatos da lista eram os casos puxados por Gant em que não havia nenhuma evidência balística. Bosch examinou a relação e notou o intervalo de sete anos entre os casos Regis e Vaughn, os usos conhecidos da arma, e então comparou com o registro criminal que havia conseguido no banco de dados do Centro de Informações Criminais do FBI, o NCIC, sobre Trumont Story. Ali se via que Story ficara preso de 1997 a 2002, cumprindo uma sentença de cinco anos por agressão com circunstância agravante. Se Story havia deixado a arma escondida em algum lugar que só ele sabia onde era, então a lacuna no uso da arma estava explicada.

Em seguida, Bosch abriu seu guia de ruas Thomas Bros. e usou uma caneta para marcar os assassinatos na malha viária da cidade. Os cinco primeiros caíram todos em uma única página do grosso guia de ruas, ocorridos no território dos Rolling 60s. O último caso, o assassinato de Trumont Story, ficou no mapa da página seguinte. Seu corpo fora encontrado em uma calçada em Circle Park, que era no coração do território 7-Trey.

Bosch examinou o mapa por um bom tempo, folheando as páginas, indo e voltando. Considerando a afirmação de Jordy Gant de que Story muito provavelmente fora largado no lugar onde encontraram seu corpo, o detetive concluiu que estava olhando para um ponto de concentração bem reduzido na cidade. Seis homicídios, talvez apenas uma arma utilizada, e tudo começara com o único crime que não se encaixava em todos os demais que vieram depois. Anneke Jespersen, fotojornalista, assassinada longe de casa.

— Branca de Neve — murmurou Bosch.

Abriu o inquérito de Jespersen e olhou a foto de seu crachá de imprensa. Não conseguia imaginar o que ela estava fazendo sozinha naquele lugar nem o que acontecera.

Harry puxou a caixa preta sobre a mesa. No momento em que abriu a tampa, seu celular tocou. A identificação no visor dizia que era Hannah Stone, a mulher com quem vinha mantendo um relacionamento havia quase um ano.

— Feliz aniversário, Harry!

— Quem contou para você?

— Um passarinho.

A filha dele.

— Ela devia cuidar da própria vida.

— Acho que é a vida dela também. Já sei que vocês provavelmente vão comemorar hoje à noite, então estou ligando para ver se consigo pagar um almoço de aniversário.

Bosch olhou o relógio. Meio-dia.

— Hoje?

— Hoje é seu aniversário, não é? Eu queria ter ligado antes, mas a sessão do grupo de terapia demorou muito. Vamos lá, que tal? Você sabe que a gente tem os melhores furgões de taco da cidade por aqui.

Bosch sabia que precisava conversar com ela sobre San Quentin.

— Quanto a isso não sei, mas, se eu pegar o trânsito livre, chego aí em vinte minutos.

— Perfeito.

— Até mais, então.

Ele desligou e olhou para a caixa preta na mesa. Cuidaria daquilo depois do almoço.

Decidiram comer em um restaurante de verdade, em vez de almoçar tacos. Um lugar de classe não era uma opção real em Panorama City, então foram até Van Nuys e se sentaram na cafeteria no subsolo do fórum. Ali também não era exatamente um lugar de classe, mas tinha um velho que tocava jazz em um piano pequeno no canto, quase todo dia. Era um dos segredos da cidade que Bosch conhecia. Hannah ficou impressionada. Pegaram uma mesa perto da música.

Dividiram um sanduíche de peru e tomaram uma tigela de sopa cada um. A música atenuava os silêncios na conversa. Bosch estava aprendendo a se sentir à vontade com Hannah. Ele a conhecera enquanto cuidava de um caso, no ano anterior. Ela era terapeuta, trabalhava com delinquentes sexuais recém-saídos da cadeia. Era um trabalho duro, que lhe proporcionava um pouco daquele mesmo conhecimento sombrio do mundo que Bosch carregava consigo.

— A gente não se fala faz alguns dias — disse Hannah. — No que você tem trabalhado?

— Ah, é só um caso. Seguindo uma arma.

— O que isso quer dizer?

— Conectar uma arma de crime em crime. A gente não tem a arma propriamente dita, mas a balística bate e liga os casos. Sabe, durante anos, lugares diferentes, vítimas diferentes, esse tipo de coisa. Um caso assim é chamado de “seguir a arma”.

Ele não disse mais nada, e Hannah assentiu. Ela sabia que ele nunca respondia a perguntas sobre o trabalho com muitos detalhes.

Bosch escutou o pianista executando os acordes finais de “Mood Indigo” e limpou a garganta.

— Encontrei seu filho ontem, Hannah.

Ele não sabia como abordar o assunto, então acabou fazendo isso sem nenhuma sutileza. Hannah pousou a colher no prato de sopa com tanta rispidez que o pianista ergueu as mãos do teclado.

— Como assim? — perguntou ela.

— Estive em San Quentin para esse caso — respondeu ele. — Sabe, seguindo a arma, e tive que ver um sujeito por lá. Quando terminei, sobrou um tempinho, então eu pedi para ver seu filho. Só passei uns dez ou quinze minutos com ele. Falei quem eu era e ele me disse que tinha ouvido falar de mim, que você já havia contado a meu respeito.

Hannah ficou olhando para o nada. Bosch percebeu que havia adotado a estratégia errada. O filho dela não era segredo. Já haviam conversado sobre o rapaz várias vezes. Bosch sabia que ele era um criminoso sexual cumprindo sentença por estupro depois de ter se declarado culpado no julgamento. Seu crime quase destroçara a mãe, mas ela encontrara forças para seguir em frente mudando o foco de seu trabalho. Passou da terapia familiar para o tratamento de criminosos como seu filho. Foi esse trabalho que a levou a ter contato com Bosch, que era grato por tê-la em sua vida e aceitava a sombria fatalidade que envolvia a situação. Se o jovem não tivesse cometido aquele crime terrível, Bosch nunca teria conhecido a mãe dele.

— Acho que eu devia ter contado para você. Desculpe. Só que eu nem tinha certeza de que ia sobrar tempo para tentar me encontrar com ele. Com os cortes no orçamento, eles não permitem que a gente passe a noite por lá. Você precisa ir e voltar no mesmo dia, então eu não tinha certeza.

— Como ele estava?

A voz dela soou trêmula, com um temor maternal.

— Parecia bem. Perguntei se estava tudo certo e ele disse que sim. Não notei nada que me deixasse preocupado, Hannah.

O filho dela vivia em um lugar onde se era predador ou presa. Ele não era um homem grande. Seu crime envolvera drogar a vítima e não subjugá-la. As cartas estavam contra ele na prisão, e, com frequência, ele era a presa. Hannah havia contado tudo isso a Bosch.

— Olha, a gente não precisa falar sobre isso — disse Bosch. — Eu só queria que você soubesse. Não foi planejado, de verdade. Eu tive um tempo de sobra e simplesmente pedi para vê-lo, e arranjaram o encontro para mim.

Ela não respondeu logo, mas então suas palavras saíram em tom de urgência:

— Não, a gente precisa conversar sobre isso, sim. Quero saber tudo o que ele disse, tudo o que você viu. Ele é meu filho, Harry. Não importa o que ele fez, ele é meu filho.

Bosch assentiu.

— Ele me pediu para dizer que ama você.


5

A sala do esquadrão da Abertos estava a pleno vapor quando Bosch voltou do almoço. A caixa preta continuava onde ele a havia deixado e seu parceiro estava sentado à própria mesa, digitando no computador.

— E aí, Harry, como estão as coisas? — falou ele, sem tirar os olhos da tela.

— Indo.

Bosch se sentou, esperando Chu mencionar seu aniversário, mas ele não o fez. As mesas ficavam dispostas uma de cada lado, de modo que os dois trabalhavam de costas um para o outro. No antigo Parker Center, onde Bosch havia passado a maior parte de sua carreira, os parceiros ficavam cara a cara, em mesas encostadas umas nas outras. Bosch preferia a nova disposição. Dava-lhe mais privacidade.

— O que tem aí nessa caixa preta? — perguntou Chu às suas costas.

— Cartões de batida dos Rolling 60s. Estou tentando encontrar algum padrão nessa coisa, esperando que apareça algo.

— Bom, boa sorte com isso.

Como parceiros, eles recebiam os mesmos casos, mas depois os dividiam e trabalhavam isoladamente até a hora de ir para a rua executar serviços como vigiar alguém ou entregar mandados de busca. Detenções também eram sempre um trabalho em equipe. Essa prática proporcionava a ambas as partes uma compreensão da carga de trabalho do outro. Em geral, tomavam café na segunda­ de manhã para repassar os casos e se inteirar do andamento da investigação de cada um. Ao chegar ao aeroporto na tarde anterior, Bosch já havia feito um resumo para Chu da viagem a San Quentin.

Bosch abriu a caixa e contemplou a volumosa pilha de fichas de interrogatório. Uma pesquisa exaustiva em todas provavelmente tomaria o restante da tarde e parte da noite. Por ele, não havia problema nisso, mas, ao mesmo tempo, era um homem impaciente. Retirou o bolo de cartões 8 x 13 e, com um rápido exame, percebeu que estavam arrumados cronologicamente, cobrindo os quatro anos assinalados na etiqueta da caixa. Decidiu que centraria o trabalho inicial no ano em que Anneke Jespersen fora assassinada. Separou os cartões de 1992 e começou a ler.

Apenas alguns segundos eram necessários para sistematizar cada cartão. Nomes, apelidos, endereços, números da carteira de motorista e outros detalhes variados. Muitas vezes o policial que conduzia o interrogatório escrevia os nomes de outros membros de gangue que estavam com o indivíduo no momento das perguntas. Bosch viu diversos nomes repetidos nos cartões, ora como sujeito do interrogatório, ora como parceiro conhecido.

Bosch pegou todos os endereços anotados nos cartões — local do interrogatório e endereço na carteira de motorista — e os localizou no guia de ruas já com os assassinatos da Beretta modelo 92 marcados. Estava à procura de ligações próximas com os seis homicídios em seu esquema cronológico. Havia muitas, e a maioria era óbvia. Dois homicídios ocorreram em esquinas onde transações de droga eram rotineiramente feitas de mão em mão. Parecia razoável que patrulheiros e unidades do CRASH abordassem membros de gangue reunidos nesses pontos.

Foi apenas duas horas depois de começar, as costas e o pescoço já ficando rígidos devido ao esforço repetitivo para mapear os cartões, que Bosch encontrou algo que provocou uma descarga de adrenalina em seu sangue. Um adolescente identificado nos cartões de batida com um “BG”, ou baby gangster, dos Rolling 60s, foi abordado por ficar na esquina da Florence com a Crenshaw em 9 de fevereiro de 1992. O nome na carteira de motorista era Charles William Washburn. Seu nome de guerra, segundo o cartão, era “Baixinho”. Com dezesseis anos e 1,60 metro, já conseguira fazer por merecer a tatuagem característica dos Rolling 60s: o número sessenta em uma lápide, significando lealdade à gangue até a morte, no bíceps esquerdo. O que chamou a atenção de Bosch foi o endereço na carteira de motorista. Charles “Baixinho” Washburn morava na West 66th Place. Quando Bosch localizou o endereço no mapa, o lugar indicava uma propriedade com os fundos para o beco em que Anneke Jespersen fora assassinada. Olhando para aquela marcação, Bosch estimou que Washburn não devia morar a mais de quinze metros do ponto onde o corpo de Jespersen fora encontrado.

Bosch nunca havia trabalhado em uma unidade específica de gangues, mas investigara inúmeros homicídios ligados a tais grupos ao longo dos anos. Ele sabia que baby gangster era um jovem sendo preparado para virar membro, mas ainda não admitido oficialmente. Havia um custo de admissão, que costumava ser uma exibição de orgulho do bairro ou da gangue, algum trabalho, uma mostra de dedicação. Rotineiramente significava um ato violento, às vezes até assassinato. Alguém com um 187, código criminal de assassinato, na ficha era elevado na mesma hora ao status de membro pleno da gangue.

O detetive se recostou na cadeira e tentou alongar os músculos dos ombros. Pensou em Charles Washburn. No início de 1992, era um candidato a gangsta, provavelmente esperando sua chance de entrar para o grupo. Menos de três meses depois que os policiais o detiveram e o interrogaram na Florence com a Crenshaw, um tumulto começou no bairro e uma fotojornalista foi assassinada à queima-roupa no beco atrás de sua casa.

Era uma confluência de fatos muito grande para ser ignorada. Ele pegou o inquérito de homicídio montado vinte anos antes pela Força-Tarefa de Crimes dos Distúrbios.

— Chu, você pode verificar um nome para mim? — perguntou Bosch, sem se virar para olhar o parceiro.

— Só um segundo.

Chu era rápido como um raio no computador. As habilidades de Bosch eram precárias. Era comum que coubesse a Chu pesquisar nomes no banco de dados do NCIC.

Bosch começou a folhear as páginas do grosso inquérito. Não se podia dizer que houvera uma investigação exaustiva no local, mas algumas casas que davam para o beco tinham sido examinadas. Ele encontrou a fina pilha de relatórios e começou a ler os nomes.

— O.k., manda — disse Chu.

— Charles William Washburn. Data de nascimento: 4 de julho de 1975.

— Data bastante simbólica...

Bosch escutou os dedos de seu parceiro voando pelo teclado. Enquanto isso, encontrou um relatório das inquirições locais com o endereço de Washburn, na West 66th Place. Em 20 de junho de 1992, cinquenta dias depois do assassinato, dois detetives bateram na porta e conversaram com Marion Washburn, de cinquenta e quatro anos, e Rita Washburn, de trinta e quatro, mãe e filha, residentes na casa. Elas não forneceram nenhuma informação sobre os tiros no beco em 1º de maio. A inquirição foi curta e educada, e tomou apenas um parágrafo do relatório. Não havia menção a uma terceira geração da família presente na casa. Nenhuma menção a Charles Washburn, de dezesseis anos. Bosch bateu o inquérito, fechando-o.

— Consegui alguma coisa — disse Chu.

Bosch girou na cadeira e fitou as costas do parceiro.

— Fala. Preciso de qualquer informação.

— Charles William Washburn, mais conhecido como Baixinho; a ficha é longa. Na maior parte, drogas, agressões... Tem uma acusação de abuso infantil também. Vamos ver, duas passagens pela cadeia e no momento em liberdade, mas procurado desde julho, por falta de pagamento de pensão. Paradeiro desconhecido.

Chu se virou e olhou para ele.

— Quem é, Harry?

— Alguém em quem eu preciso dar uma olhada. Pode imprimir?

— Agora mesmo.

Chu mandou o relatório do NCIC para a impressora compartilhada da unidade. Bosch digitou a senha no celular e ligou para Jordy Gant.

— Charles “Baixinho” Washburn. Você sabe quem é?

— Baixinho... humm, isso parece... Espere aí um segundo.

A linha ficou em silêncio, e Bosch esperou quase um minuto antes que Gant voltasse.

— Está no radar da inteligência. É um cara dos 60s. Mais para a base da pirâmide. Não é o mandante do seu homicídio. Onde você conseguiu esse nome?

— Na caixa preta. Em 1992 ele morava do outro lado da cerca, na cena do crime de Jespersen. Tinha dezesseis na época e provavelmente estava tentando fazer parte dos 60s.

Bosch escutou um som de digitação no teclado enquanto falava ao telefone. Gant estava fazendo uma nova pesquisa.

— A gente tem um mandado de prisão emitido pelo departamento 120, no Centro — disse ele. — Charles não andou cumprindo as obrigações de pai como devia. O último endereço conhecido é a casa na 66th Place. Mas isso já tem quatro anos.

Bosch sabia que um mandado de prisão para um zé-ninguém com pensão atrasada em South LA era o mesmo que nada. Dificilmente chamaria a atenção da equipe de detenção do Gabinete do Xerife, a menos que houvesse algum tipo de interesse da mídia. Na verdade, o mandado ficaria aguardando no banco de dados, para a vez seguinte que Washburn cruzasse o caminho da lei e seu nome fosse checado no computador. Mas, contanto que ficasse na moita, não seria incomodado.

— Vou dar um pulo no antigo domicílio e ver se tenho sorte — disse Bosch.

— Quer algum apoio? — perguntou Gant.

— Não, tranquilo. Mas o que você pode fazer é pôr seus caras para perguntar na rua.

— Pode deixar. Vou comunicar sobre o Baixinho pelo rádio. Enquanto isso, boa caçada, Harry. Depois me diz se você pegou o cara ou se precisa de mim por aí.

— Pode deixar, eu aviso. — Bosch desligou e se virou para Chu. — Preparado para dar uma volta?

Chu fez que sim, mas com expressão relutante.

— A gente vai estar de volta às quatro?

— Nunca se sabe. Se meu cara estiver lá, pode levar algum tempo. Quer que eu procure outro?

— Não, Harry. É só que eu tenho um compromisso hoje à noite.

Bosch lembrou que havia recebido ordens explícitas da filha de não se atrasar para o jantar.

— Humm, vai encontrar alguma gata? — perguntou para Chu.

— Esquece, vamos indo.

Chu se levantou, pronto para ir em vez de ficar respondendo a perguntas sobre sua vida particular.

A casa de Washburn tinha um pequeno quintal com gramado malcuidado e um Ford caindo aos pedaços na entrada. Bosch e Chu tinham dado a volta no quarteirão antes de parar na frente e avaliado que o canto oeste do quintal, nos fundos da casa, não ficava a mais de seis metros do local onde Anneke Jespersen havia sido colocada contra a parede e baleada.

Bosch bateu na porta com firmeza e deu um passo para um lado, na varanda. Chu ficou do outro. A porta tinha uma grade de ferro como medida de segurança. Estava trancada.

Finalmente a porta se abriu, e uma mulher de vinte e poucos anos olhou para os dois através da grade. Havia um menino pequeno a seu lado, agarrando-lhe a coxa.

— O que vocês querem? — perguntou ela com indignação, depois de avaliar, corretamente, que eram policiais. — Não chamei droga de polícia nenhuma.

— Senhora — disse Bosch —, só estamos à procura de Charles Washburn. Fomos informados de que este é o endereço domiciliar dele. Ele está?

A mulher emitiu um som agudo e levou alguns segundos para Bosch se dar conta de que era uma risada.

— Senhora?

— Estão falando do Baixinho? Esse Charles Washburn?

— Isso mesmo. Ele está aqui?

— Ah, por que estaria aqui? Vocês policiais são muito estúpidos. Aquele homem me deve dinheiro. Por que estaria aqui? Se puser o pé aqui dentro, é melhor trazer o dinheiro.

Bosch então compreendeu. Olhou para o garoto à porta e depois voltou a olhar para a mulher.

— Qual é o seu nome, por favor?

— Latitia Settles.

— E do seu filho?

— Charles Junior.

— A senhora faz alguma ideia de onde Charles pai possa estar? Temos esse mandado contra ele por não pagar a pensão alimentícia. Estamos procurando por ele.

— Já estava mais do que na hora. Toda vez que eu vejo aquele vagabundo passando de carro eu chamo vocês, mas ninguém aparece, ninguém faz merda nenhuma. Agora vocês me aparecem aqui e faz dois meses que eu não vejo aquele anão.

— E o que você anda ouvindo por aí, Latitia? Alguém comentou se tem visto o Charles por aí?

Ela balançou a cabeça enfaticamente.

— Ele sumiu.

— E a mãe e a avó dele? Elas moravam nesta casa.

— A avó morreu e a mãe se mudou para Lancaster faz tempo. Vazou daqui.

— Charles costuma aparecer por lá?

— Sei lá. Ele costumava fazer uma visita no aniversário, esse tipo de coisa. Nem sei mais se está vivo ou morto. Tudo o que eu sei é que meu filho nunca foi ao dentista nem ao médico e jamais vestiu uma roupa nova na vida.

Bosch assentiu. E não tem pai, pensou. E também não disse que, se pegassem Charles Washburn, não seria para obrigá-lo a pagar a pensão.

— Latitia, você se incomoda se a gente entrar?

— Para quê?

— Só para dar uma olhada, ter certeza de que o lugar está seguro.

Ela bateu na grade.

— Está seguro, não precisa se preocupar.

— Então podemos entrar?

— Não, não quero ninguém aqui dentro vendo essa bagunça. A casa não está arrumada.

— O.k., e quanto ao quintal? Podemos dar uma olhada?

Ela pareceu confusa com a pergunta, mas então deu de ombros.

— Faça o que vocês acharem melhor, mas ele não está lá.

— O portão nos fundos está destrancado?

— Está quebrado.

— O.k., a gente dá a volta.

Bosch e Chu desceram os degraus da varanda e foram para a entrada da garagem, que passava pela lateral da casa e terminava em uma cerca de madeira. Chu teve de erguer o portão e segurá-lo na dobradiça enferrujada para que abrisse. Então passaram ao quintal, cheio de brinquedos velhos e quebrados e móveis de família. Havia um lava-louça caído de lado, e Bosch se lembrou de quando estivera no beco vinte anos antes, cheio de eletrodomésticos sem salvação.

O lado esquerdo da propriedade era a parede dos fundos da antiga loja de pneus na Crenshaw Boulevard. Bosch foi até a cerca que separava o quintal do beco. Era alta demais para se conseguir ver do outro lado, então ele subiu em um triciclo que estava sem uma roda traseira.

— Cuidado aí, Harry — disse Chu.

O detetive pôs um pé no selim do triciclo e ergueu o corpo acima da cerca. Olhou do outro lado, na direção de onde Anneke Jespersen havia sido assassinada, vinte anos antes.

Bosch desceu de volta ao chão e começou a andar pela linha da cerca, empurrando cada tábua, procurando uma que estivesse solta ou, quem sabe, até alguma usada para proporcionar livre acesso para entrar e sair do beco. Depois de testar dois terços da cerca, uma tábua cedeu. Ele parou e olhou mais de perto, então puxou a madeira na direção do corpo. Não estava presa em cima nem embaixo nas ripas horizontais. Ele tirou a madeira com facilidade, criando uma abertura de vinte e cinco centímetros.

Chu se aproximou e examinou a abertura.

— Alguém pequeno pode passar fácil, fácil por aí e ir para o beco — disse ele.

— Era o que eu estava pensando — respondeu Bosch.

Aquilo era óbvio. A pergunta era se a madeira havia se soltado com o tempo ou se fora usada como uma passagem secreta quando Charles “Baixinho” Washburn morara ali, como um gangsta novato de dezesseis anos à espera da oportunidade de subir na gangue.

Bosch pediu a Chu que tirasse uma foto da abertura na cerca com o celular. Ele a imprimiria mais tarde e a juntaria ao inquérito. Então encaixou a madeira de volta e se virou para examinar o restante do quintal mais uma vez. Viu Latitia Settles na porta dos fundos da casa, observando-o através de outra grade de ferro. Ele sabia que ela já devia ter adivinhado que não estavam de fato à procura de Charles porque ele deixara de pagar a pensão.


6

Quando Bosch chegou em casa, encontrou um bolo de aniversário na mesa e a filha na cozinha preparando o jantar, com um livro de receitas aberto.

— Puxa, o cheiro está bom — disse ele.

Estava com o inquérito de homicídio de Jespersen debaixo do braço.

— Fique longe da cozinha — avisou ela. — Espere lá no deque até eu avisar que está pronto. E guarde o trabalho na estante, pelo menos até depois do jantar. E ligue a música também.

— Certo, chefe.

A mesa de jantar fora arrumada para dois. Depois de pôr o inquérito em uma prateleira da estante, atrás da mesa, Bosch se virou na direção do aparelho de som e abriu a bandeja dos CDs. A filha já havia deixado no aparelho seus cinco discos favoritos: Frank Morgan, George Cables, Art Pepper, Ron Carter e Thelonius Monk. Ele ligou no modo aleatório e saiu para o deque.

Lá fora, na mesa, havia uma garrafa de Fat Tire a sua espera, em um vaso de cerâmica cheio de gelo. Bosch ficou admirado. Fat Tire era uma de suas cervejas favoritas, mas ele raramente tinha álcool em casa e sabia que não comprara nenhuma cerveja recentemente. Sua filha, aos dezesseis anos, podia até parecer ter mais idade, mas isso não teria sido suficiente para comprar cerveja sem apresentar uma carteira de motorista.

Ele abriu a garrafa e deu um longo gole. A cerveja desceu agradavelmente, a temperatura gelada queimando o fundo da garganta. Era um alívio bem-vindo depois de um dia seguindo a arma e afunilando a investigação em Charles Washburn.

Um plano havia sido elaborado com a ajuda de Jordy Gant. Até a última chamada, no dia seguinte, todos os patrulheiros e unidades de gangue no ­South Bureau teriam visto uma foto de Washburn e sido informados de que era um procurado de alta prioridade. O motivo legal seria o mandado para pagamento da pensão alimentícia, mas, assim que Washburn estivesse sob custódia, Bosch seria alertado e iria a seu encontro para conversar sobre um assunto completamente diferente.

Mesmo assim, Bosch não podia depender só de um boletim de busca. Ele tinha trabalho a fazer. Esquecendo que era seu aniversário, havia levado o inquérito para casa com planos de vasculhar cada página à procura de alguma referência a Washburn e de tudo o mais que tivesse deixado escapar ou não tivesse investigado mais a fundo.

Naquele momento, porém, estava repensando esses planos. A filha lhe preparava um jantar de aniversário, e essa seria a prioridade. Não havia nada melhor no mundo do que receber toda a atenção dela.

Com a cerveja na mão, Bosch olhou para o outro lado do cânion onde morava fazia mais de vinte anos. Ele conhecia as cores e os contornos de cor. Conhecia o som da via expressa que ecoava de lá. Conhecia a trilha que os coiotes faziam na vegetação densa. E sabia que nunca ia querer deixar aquele lugar. Ficaria ali até o fim.

— O.k., está pronto. Espero que esteja bom.

Bosch virou-se. Maddie abrira a porta de correr sem que ele escutasse. O pai sorriu. Ela também havia deixado a cozinha para pôr um vestido antes de se sentarem à mesa.

— Quero só ver — disse ele.

A comida já estava servida. Costeletas de porco com molho de maçã e batatas coradas. Um bolo caseiro fora deixado na lateral da mesa.

— Espero que você goste — disse Maddie quando se sentaram.

— A cara e o cheiro estão ótimos — respondeu ele. — Tenho certeza de que vou gostar.

Bosch deu um largo sorriso. Ela não havia chegado a tanto nos dois aniversários anteriores em que estivera morando com ele.

Maddie ergueu a taça de vinho cheia de refrigerante.

— Saúde, pai.

Ele ergueu a cerveja. Já estava quase vazia.

— À boa comida e à boa música e, principalmente, à boa companhia.

Tilintaram os copos.

— Tem mais cerveja na geladeira, se você quiser — disse Maddie.

— Sei, mas quero saber de onde veio isso.

— Não esquenta, tenho meus contatos.

Ela estreitou os olhos, como alguém maquinando alguma coisa.

— É isso que me preocupa.

— Pai, não começa. Será que dá para apreciar o jantar que eu fiz?

Ele fez que sim, deixando o assunto de lado... por ora.

— Claro que dá.

Ele começou a comer, notando que “Helen’s Song” ecoava do aparelho de som. Era uma canção maravilhosa, e ele podia sentir a paixão que George Cables punha na música. Bosch sempre imaginara que Helen fosse a esposa ou a namorada dele.

A mistura do porco perfeitamente temperado com o sabor da maçã estava maravilhosa. Mas ele se enganara ao achar que fosse um simples molho de maçã. Teria sido fácil demais. Aquilo era uma redução de maçã que Maddie havia preparado no forno. Como o recheio da torta de maçã do Du-par’s.

Seu sorriso voltou.

— Isso está bom mesmo, Mads. Obrigado.

— Espere só até provar o bolo. É de mármore, como você.

— O quê?

— Não mármore mármore, sabe, mas o glacê e o chocolate, o preto e branco misturados. Por causa do que você faz e do que você já viu.

Bosch refletiu a respeito.

— Acho que essa é a comparação com comida mais profunda que alguém já fez de mim. Eu e um bolo mármore.

Os dois deram risada.

— Eu também tenho presentes! — exclamou Maddie. — Mas ainda não tive tempo de embrulhar, então ficam para mais tarde.

— Você pensou em tudo mesmo. Obrigado, querida.

— Você faz tudo por mim, pai.

Isso fez com que se sentisse bem e um pouco melancólico ao mesmo tempo.

— Espero que sim.

Depois de comer, decidiram dar um tempo para a digestão antes de atacarem o bolo mármore. Madeline se enfiou no quarto para embrulhar os presentes, e Bosch tirou o inquérito da estante. Sentou-se no sofá e notou que a mochila de escola da filha havia sido deixada no chão, junto à mesinha de centro.

Pensou um momento a respeito, tentando decidir se deveria esperar até a noite terminar, quando ela estivesse na cama. Ele sabia, porém, que a essa altura a filha teria levado a mochila para o quarto e a porta estaria fechada.

Resolveu agir logo. Pegou a mochila e abriu o zíper do menor compartimento da frente. A carteira da filha estava por cima de tudo. Ele sabia que estaria lá porque ela não usava bolsa. Rapidamente abriu a carteira — tinha um sinal da paz bordado do lado de fora — e verificou o conteúdo. Tinha o cartão de crédito que ele lhe dera para usar apenas em caso de emergência e a carteira de motorista, recém-tirada. Ele verificou a data de nascimento no documento e viu que era legítima. Havia alguns recibos e cartões de presentes da Starbucks e do iTunes, além de um cartão de fidelidade para registrar as compras de smoothies em um lugar do shopping. Compre dez, o próximo é de graça.

— Pai, o que você está fazendo?

Bosch ergueu o rosto. A filha estava ali. Segurava um embrulho em cada mão. Ela continuara a usar o estilo do bolo mármore. O papel era preto com espirais brancas.

— Eu, hã, queria ver se você tinha dinheiro suficiente, e você não tem nenhum.

— Gastei meu dinheiro com o jantar. Isso é por causa da cerveja, não é?

— Querida, eu não quero que você se meta em encrenca. Quando tentar entrar na academia, não pode ter nenh...

— Eu não tenho identidade falsificada, o.k.? Eu pedi para a Hannah comprar a cerveja para mim. Está satisfeito?

Ela deixou os presentes na mesa, deu meia-volta e desapareceu no corredor. Bosch escutou a porta do quarto bater com força.

Esperou um momento e então se levantou. Seguiu pelo corredor e bateu suavemente na porta.

— Ei, Maddie, olha, desculpa. Vamos comer o bolo e esquecer isso.

Não houve resposta. Ele tentou a maçaneta, mas a porta estava trancada.

— Vamos, Maddie, abra. Desculpa.

— Vá comer seu bolo.

— Não quero comer o bolo sem você. Olha, desculpa. Eu sou seu pai. Eu preciso cuidar de você e protegê-la, e só queria ter certeza de que você não ia se meter em algum tipo de encrenca.

Nada.

— Olha, desde que você tirou sua carteira, sua liberdade aumentou. Eu adorava levar você ao shopping, agora você vai sozinha. Só queria ter certeza de que você não estava cometendo nenhum tipo de engano que pudesse prejudicá-la mais tarde. Desculpe por ter feito isso do jeito errado. Estou pedindo desculpas, o.k.?

— Vou pôr o fone de ouvido agora. Não vou escutar mais nada que você disser. Boa noite.

Bosch se segurou para não arrombar a porta. Em vez disso, encostou a testa ali e ficou escutando. Dava para ouvir o ruído metálico da música tocando nos fones de ouvido.

Voltou para a sala e se sentou no sofá. Pegou o celular e enviou uma mensagem de texto arrependida para a filha usando o alfabeto do LAPD. Sabia que ela conseguiria decifrar.

Paul
Edward
Robert
David
Ocean
Edward
Ocean
Boy
Adam
Boy
Adam
Charles
Adam
David
Ocean
Sam
Edward
Union
Paul
Adam
Ida

Esperou que ela respondesse à mensagem, mas, como não houve retorno, pegou o inquérito de homicídio e começou a trabalhar, esperando que o mergulho no caso Branca de Neve o fizesse esquecer o erro que havia acabado de cometer como pai.

O relatório mais volumoso no inquérito era a cronologia dos investigadores, pois se tratava de um relato listado de cada passo dado pelos detetives, assim como de cada ligação telefônica e de cada pergunta do público sobre o caso. A Força-Tarefa de Crimes dos Distúrbios pusera três cartazes ao longo da Crenshaw Boulevard, como meio de instigar a reação da população para o homicídio não resolvido de Jespersen. Os cartazes prometiam vinte e cinco mil dólares de recompensa por alguma informação que levasse à prisão e à condenação pelo assassinato. Os cartazes e a possibilidade de recompensa resultaram em centenas de telefonemas, desde legítimos até dicas completamente falsas, bem como queixas de cidadãos quanto ao empenho do departamento de polícia para resolver o homicídio de uma mulher branca quando tantos negros e latinos foram vítimas de assassinatos não solucionados durante os tumultos. Os detetives da FTCD anotaram devidamente cada ligação na cronologia e mencionaram os eventuais resultados posteriores da investigação. Bosch passara rapidamente por essas páginas em seu primeiro exame do inquérito, mas dessa vez ele tinha nomes ligados ao caso e queria examinar cada página no livro para ver se alguns deles haviam surgido antes.

Na hora seguinte, Bosch examinou em detalhes dezenas de páginas da cronologia. Não havia menção a Charles Washburn, Rufus Coleman ou Trumont Story. A maioria das informações parecia ter valor nulo, e Bosch entendeu por que haviam sido descartadas. Várias denúncias forneceram outros nomes, mas esses suspeitos foram descartados depois da investigação subsequente. Em muitos casos, as denúncias anônimas visavam pessoas inocentes, sabendo que a polícia as investigaria e transformaria a vida delas em um inferno por um bom tempo, todo esse trabalho servindo apenas como troco para um assunto sem relação com o crime.

As ligações anotadas na cronologia começaram a diminuir em 1993, com a dissolução da força-tarefa e a remoção dos cartazes. Assim que o caso Jespersen foi transferido para a 77th Street Division de homicídios, as anotações da cronologia diminuíram e foram ficando mais esparsas. No início, apenas o irmão de Jespersen, Henrik, e uma série de diferentes repórteres verificavam o status do caso de tempos em tempos. Uma das últimas anotações, porém, finalmente chamou a atenção de Bosch.

Em 1º de maio de 2002, no décimo aniversário do assassinato, uma ligação feita por alguém chamado Alex White foi anotada na cronologia. O nome não significava nada para Bosch, mas a anotação na cronologia era seguida de um número de telefone com um código de área 209. Estava listada como averiguação da situação. A pessoa queria saber se o caso tinha sido encerrado.

Não havia mais nada escrito ali dizendo qual seria o interesse de White no caso. Bosch não sabia quem era, mas ficou intrigado com o código de área. Não pertencia a Los Angeles, e o detetive não conseguiu localizar de memória.

Ele abriu o laptop, digitou o código no Google e descobriu que pertencia ao condado de Stanislaus, no Vale Central, Califórnia, a quatrocentos quilômetros de Los Angeles.

Bosch olhou o relógio. Era tarde, mas não muito. Ligou para o número que vinha ao lado do nome de Alex White na cronologia. Depois do primeiro toque, a ligação caiu na secretária eletrônica, com a gravação de uma agradável voz feminina.

“Você ligou para a Cosgrove Tractor, representante número um da John Deere no Vale Central, localizada na Crows Landing Road, 912, em Modesto. Ficamos perto da Golden State Highway e estamos abertos de segunda a sábado, das nove às seis. Se quiser deixar recado, um membro de nossa equipe de vendas retornará a ligação assim que possível.”

Bosch desligou antes do bipe, decidindo que ligaria de novo no dia seguinte, em horário comercial. Ele também sabia que a Cosgrove Tractor talvez não tivesse nada a ver com a ligação. O número poderia pertencer a uma empresa diferente ou ter sido uma linha particular em 2002.

— Está pronto para seu bolo?

Bosch ergueu o rosto. A filha tinha saído do quarto. Vestia uma camiseta comprida que usava para dormir; o vestido provavelmente estava pendurado no cabide.

— Claro.

Ele fechou o inquérito e, levantando-se, deixou-o na mesinha de centro. Quando se aproximou da mesa da sala de jantar, tentou abraçar a filha, mas ela recuou com delicadeza e se virou em direção à cozinha.

— Me deixe pegar faca, garfos e pratos.

Da cozinha, ela pediu que o pai abrisse os dois presentes, começando pelo mais óbvio, mas ele esperou até que ela voltasse.

Enquanto a filha cortava o bolo, Bosch abriu a caixa comprida, a qual sabia conter uma gravata. Ela vivia comentando como as gravatas do pai eram velhas e sem graça. Uma vez, chegou a sugerir que ele tirava ideias para gravatas do velho programa de tevê Dragnet, dos tempos em que era tudo em preto e branco.

Bosch abriu a caixa e pegou a gravata em padronagem de tons de azul, verde e roxo.

— É linda! — exclamou ele. — Vou usar amanhã.

Ela sorriu, e ele passou para o segundo presente. Desembrulhou e viu que era uma caixa que continha um conjunto de seis CDs. Uma coleção de gravações ao vivo recém-lançadas de Art Pepper.

— Unreleased Art — leu Bosch. — Volumes de 1 a 6. Como você encontrou isso aqui?

— Internet — disse Maddie. — A viúva dele lançou.

— Nunca tinha ouvido falar disso.

— Ela tem um selo próprio: Widow’s Taste.

Bosch viu que algumas caixas continham vários discos. Era música à beça.

— Vamos ouvir?

Ela lhe passou um prato com uma fatia de bolo mármore.

— Ainda tenho lição de casa para fazer — disse a filha. — Vou voltar para o quarto, mas você pode ouvir.

— Acho que vou ouvir pelo menos o primeiro.

— Espero que goste.

— Tenho certeza de que vou gostar. Obrigado, Maddie. Por tudo.

Pôs o prato e os CDs na mesa e se esticou para abraçar a filha. Dessa vez ela deixou, e ele se sentiu imensamente grato por isso.


7

Bosch entrou em sua baia bem cedo na quarta de manhã, sendo o primeiro a chegar. Passou o café que trouxera em um copo de isopor para a caneca que guardava na gaveta da mesa. Pôs os óculos de leitura e checou as mensagens, torcendo para ter tido sorte e descobrir que Charles Washburn havia sido detido em algum momento à noite e que estava à sua espera em uma cela da 77th Street Division. No entanto, não havia nada em seu telefone nem no ­e-mail sobre o Baixinho, que continuava à solta. Havia, porém, um e-mail do irmão de Anneke Jespersen em resposta. Bosch sentiu uma onda de empolgação ao reconhecer as palavras na linha do assunto: “Investigação sobre o assassinato de sua irmã”.

Uma semana antes, quando Bosch foi notificado pela ATF de que a cápsula encontrada no homicídio de Jespersen havia sido ligada pela balística a dois outros homicídios, o caso pulou da fase de apreciação para a de investigação ativa. Parte do protocolo de casos da Unidade de Abertos/Não Resolvidos era alertar a família da vítima sempre que um caso ganhava status de ativo, mas isso era uma faca de dois gumes. A última coisa que o investigador queria era dar falsas esperanças aos familiares ou fazê-los reviver desnecessariamente o trauma da perda de um ente querido. A notificação inicial sempre tinha de ser conduzida com delicadeza, o que significava fazer contato com uma pessoa da família escolhida a dedo e sobre a qual já se tivesse alguma informação.

No caso Jespersen, Bosch contava com um único contato familiar em Copenhague. O irmão da vítima, Henrik Jespersen, estava relacionado nos relatórios originais como o contato familiar, e uma anotação de 1999 na cronologia fornecia o endereço eletrônico. Bosch enviou um e-mail, sem nem mesmo saber se, depois de treze anos, o endereço continuava existindo. A mensagem não voltou acusando endereço inexistente, mas também não foi respondida. Dois dias depois de enviá-la, Bosch a reenviou, mas, de novo, não obteve resposta. Então deixou a questão do contato de lado enquanto investigava e se preparava para falar com Rufus Coleman, em San Quentin.

Por coincidência, um dos motivos para Bosch ter chegado cedo a sua mesa era tentar conseguir um número de telefone de Henrik Jespersen e fazer uma ligação para Copenhague, que fica nove horas à frente de Los Angeles no fuso horário.

Henrik havia se antecipado a Bosch e respondera ao e-mail, sua men­sagem tendo chegado à caixa de entrada de Harry às duas da tarde, horário de LA.

Caro sr. Bosch, agradeço seu e-mail, que por engano foi para minha caixa de spam. Eu recuperei agora e queria responder rápido. Muito obrigado ao senhor e ao LAPD por procurar o assassino de minha irmã. Anneke ainda deixa nós com muitas saudades aqui em Copenhague. O jornal BT, onde ela trabalha, põe placa de metal no lugar para comemorar a corajosa jornalista que é heroína. Espero que senhor consiga pegar a má pessoa que a matou. Se podemos conversar um com outro meu telefone do trabalho é melhor para ligar no hotel onde eu trabalho todo dia como director. 00-45-25-14-63-69 é o número para ligar.

Espero que senhor encontre assassino. Significa demais para mim. Minha irmã era gêmea minha. Sinto terrível saudade.

Henrik

P.S.: Anneke Jespersen não estava de féirias. Estava na matéria.

Bosch ignorou os erros óbvios de redação de um estrangeiro e ficou olhando para a última linha por um bom tempo. Presumiu que Henrik quisera dizer “férias” e não “féirias”. Seu pós-escrito parecia uma resposta direta a algo do e-mail que Bosch enviara, que estava copiado no fim da mensagem.

Caro sr. Jespersen, sou detetive de homicídios no Departamento de Polícia de Los Angeles. Fui designado para prosseguir com a investigação sobre o assassinato de sua irmã, em 1º de maio de 1992. Não desejo incomodá-lo nem causar nenhuma dor adicional, mas é parte de meu dever como investigador informá-lo de que estou diligentemente à procura de novas pistas no caso. Peço desculpas por não conhecer sua língua. Se o senhor for capaz de se comunicar em inglês, por favor responda a esta mensagem ou me ligue em qualquer um dos números abaixo.

Passaram-se vinte anos desde que sua irmã veio de férias a este país e perdeu a vida quando esteve em Los Angeles para cobrir os tumultos na cidade para seu jornal em Copenhague. Tenho esperança e obrigação de finalmente pôr um ponto final nesse caso. Darei o melhor de mim e espero me comunicar com o senhor o quanto antes.

Pareceu a Bosch que as referências que o irmão fizera a “féirias” e a matéria não necessariamente estavam ligadas aos tumultos. Henrik talvez quisesse dizer que a irmã fora aos Estados Unidos por causa de uma matéria e pusera isso de lado para ir atrás dos tumultos em Los Angeles.

Tudo seria pura semântica e conjectura enquanto Bosch não conversasse com Henrik diretamente. Ele ergueu o rosto para o relógio na parede e fez as contas. Passava um pouco das quatro da tarde em Copenhague. Tinha boas chances de pegar Henrik ainda no hotel.

Sua ligação foi atendida na mesma hora por um funcionário da recepção que lhe disse que Henrik havia acabado de sair e não voltaria mais naquele dia. Bosch deixou seu nome e telefone, mas nenhum recado. Depois de desligar, enviou um e-mail a Henrik pedindo-lhe que entrasse em contato assim que possível, de dia ou de noite.

Bosch tirou da pasta surrada a papelada do caso e começou uma leitura com novos olhos, dessa vez filtrando tudo por uma nova hipótese, a de que Anneke Jespersen já estava trabalhando em uma matéria quando chegou aos Estados Unidos.

Logo as coisas começaram a se encaixar. Jespersen tinha pouca bagagem porque não estava de férias. Estava trabalhando e levara roupas de trabalho. Uma mochila e ponto final. Desse modo podia viajar com rapidez e facilidade. Podia continuar em movimento, atrás da matéria, fosse ela qual fosse.

A mudança de ângulo trouxe à luz outras coisas que Bosch havia deixado escapar. Jespersen era fotógrafa e jornalista. Ela fotografava. Escrevia matérias. No entanto, nenhuma caderneta foi encontrada com o corpo ou entre os pertences no quarto de hotel. Se estava trabalhando em algo, onde estariam as anotações? Não deveria haver uma caderneta em um dos bolsos do colete ou na mochila?

— O que mais? — disse Bosch em voz alta, então olhou em torno para ter certeza de que continuava sozinho na sala do esquadrão.

O que mais estava faltando? O que ela devia estar carregando? Ele começou um exercício mental. Visualizou-se em um quarto de hotel. Estava de saída, fechando a porta atrás de si. O que levaria nos bolsos?

Pensou nisso por um tempo e então algo lhe veio à mente. Virou as páginas do arquivo rapidamente até que encontrou a lista de pertences pessoais feita pelo legista. Era uma relação manuscrita de todos os itens encontrados no corpo ou nas roupas da vítima. Listava cada peça de roupa, bem como uma carteira, uns trocados e joias, que consistiam em um relógio e uma simples correntinha de prata.

— Não tem chave do quarto — disse ele em voz alta.

Para Bosch, isso significava uma de duas coisas. A primeira era que ela a havia deixado no carro alugado e a chave fora levada quando arrombaram o veículo. A outra conclusão, mais provável, era de que alguém havia assassinado Jespersen e pegado em seu bolso a chave do quarto de hotel.

Verificou a lista duas vezes e depois passou às páginas plásticas com as fotos Polaroid que ele mesmo havia tirado vinte anos antes. As imagens esmae­cidas mostravam a cena do crime de vários ângulos e o corpo como havia sido encontrado. Duas eram closes do tronco e mostravam claramente a calça da vítima. O alto do bolso esquerdo mostrava o forro branco. Bosch não tinha dúvida de que o bolso havia sido virado quando alguém revistara a vítima e roubara a chave do hotel, deixando para trás joias e dinheiro.

O quarto de hotel muito provavelmente havia sido vasculhado. À procura do quê, não estava claro. Mas nem uma única caderneta ou sequer um pedaço de papel tinha sido encontrado entre os pertences entregues pela equipe do hotel à polícia.

Bosch se levantou, porque estava agitado demais para continuar sentado. Sentiu que estava na pista de algo, mas não fazia ideia de quê, nem se acabaria tendo alguma coisa a ver com o assassinato de Anneke Jespersen.

— Oi, Harry.

Bosch virou-se e viu o parceiro chegando.

— Bom dia.

— Chegou cedo.

— Não, o horário de sempre. Você é que está atrasado.

— Ei, perdi seu aniversário ou algo parecido?

Bosch olhou para Chu por um momento antes de responder.

— É, foi ontem. Como você sabe?

Chu deu de ombros.

— Sua gravata. Parece novinha, e sei que você nunca ia usar cores chamativas assim.

Bosch baixou o rosto para a gravata e a alisou no peito.

— Minha filha.

— Então ela tem bom gosto. Ainda bem que não puxou ao pai.

Chu riu e disse que ia descer para pegar um café. Era sua rotina se apresentar na sala do esquadrão toda manhã e imediatamente depois fazer uma pausa na cafeteria.

— Quer alguma coisa, Harry?

— Quero. Preciso que você verifique um nome para mim no computador.

— Eu quis dizer, você quer um café ou qualquer coisa assim?

— Não, obrigado.

— Eu vejo o nome quando voltar.

Bosch fez um gesto dispensando-o e voltou a se sentar a sua mesa. Decidiu não esperar. Foi para o computador e começou pelo banco de dados do Departamento de Trânsito. Usando dois dedos para digitar, inseriu o nome Alex White e descobriu que havia quase quatrocentos motoristas registrados como Alex, Alexander ou Alexandra White na Califórnia. Apenas três deles moravam em Modesto e eram todos homens entre vinte e oito e cinquenta e quatro anos. Ele copiou a informação e submeteu esses três ao banco de dados do NCIC, mas ninguém tinha ficha criminal.

Bosch olhou para o relógio na parede da sala e viu que eram só oito e meia. A franquia da John Deere de onde a ligação de Alex White havia partido dez anos antes só abriria dali a meia hora. Pediu o auxílio à lista para o código de área 209, mas não havia números registrados em nome de Alex White.

Chu voltou e, ao entrar na baia, pôs o copo de café no exato lugar onde o tenente O’Toole havia se sentado no dia anterior.

— O.k., Harry, qual é o nome? — perguntou.

— Já chequei — disse Bosch. — Mas você podia verificar pelo TLO e, quem sabe, conseguir os números de telefone para mim.

— Sem problema. Me dá aí.

Bosch deslizou a cadeira para perto de Chu e lhe passou a página em que havia escrito a informação sobre os três Alex White. O TLO era o banco de dados a que o departamento recorria para a informação cruzada das inúmeras fontes públicas e particulares. Era uma ferramenta útil e muitas vezes resultava em números de telefone não listados, até celulares, que haviam sido fornecidos em requisições de empréstimo ou de emprego. O uso do banco de dados exigia conhecimento especializado, sabendo-se exatamente como estruturar o pedido, e era nisso que as habilidades de Chu superavam em muito as de Bosch.

— O.k., me dá uns minutos nisso — pediu Chu.

Bosch voltou para sua mesa. Notou a pilha de fotos do lado direito. Eram retratos 8 x 13 da foto no crachá de imprensa de Anneke Jespersen que solicitara à unidade de fotografia para depois distribuir onde fosse necessário. Ele pegou um e examinou o rosto outra vez, seu olhar sendo atraído para a expressão distante da mulher na foto.

Então deslizou a foto sob o tampo de vidro que cobria a mesa. Ela foi se juntar às demais. Todas mulheres. Todas vítimas. Casos e rostos dos quais queria sempre se lembrar.

— Bosch, o que você está fazendo aqui?

Ele ergueu o rosto e viu que era o tenente O’Toole.

— Eu trabalho aqui, tenente.

— Você tem qualificação hoje e não pode chegar atrasado outra vez.

— É só às dez, e eles vão estar lotados de qualquer maneira. Não se preo­cupe, eu dou conta.

— Não quero mais saber de desculpas.

O’Toole se afastou na direção de sua sala. Bosch ficou observando-o, balançando a cabeça.

Chu virou-se em sua mesa, segurando a página que Bosch lhe dera.

— Essa foi moleza.

Bosch pegou o papel e verificou. Chu havia escrito números de telefone embaixo de todos os três nomes. Bosch esqueceu O’Toole na mesma hora.

— Valeu, parceiro.

— Então, quem é o cara?

— Não tenho certeza, mas há dez anos alguém chamado Alex White ligou de Modesto para perguntar sobre o caso Jespersen. Quero descobrir por quê.

— Não tem resumo no inquérito?

— Não, só uma anotação na cronologia. Provavelmente foi sorte que alguém pelo menos tenha se dado ao trabalho de escrever isso lá.

Bosch foi para o telefone e ligou para os três Alex White. Teve sorte e azar. Conseguiu falar com os três, mas nenhum deles admitiu ser o Alex White que havia ligado sobre o caso Jespersen. Todos pareceram francamente confusos com uma ligação de Los Angeles. Ele perguntou a cada um não apenas sobre Jespersen, mas também sobre o que os homens faziam para viver, bem como se estavam familiarizados com a revendedora John Deere, de onde a ligação teria sido feita. O mais perto que Bosch chegou de alguma associação foi no último telefonema.

O Alex White mais velho, um contador que era proprietário de vários lotes de terra sem uso, disse que havia comprado um trator na loja de Modesto cerca de dez anos antes, mas não poderia fornecer a data exata sem procurar em seus registros. Estava jogando golfe quando Bosch ligou, mas prometeu retornar a ligação mais tarde ainda naquele dia com uma data da compra. Por ser contador, tinha certeza de que ainda tinha os recibos.

Bosch desligou. Não fazia a menor ideia se estava apenas perdendo seu tempo, mas a ligação de Alex White era um detalhe que o incomodava. Já passava das nove, portanto, ligou para a concessionária de onde viera o telefonema em 2002.

Fazer uma ligação que não esperam é sempre uma operação delicada. Bosch queria proceder com cuidado e não fazer besteira ou deixar um potencial suspeito com o alerta ligado de que ele estivesse no caso. Decidiu contar uma história qualquer em vez de abrir logo o jogo sobre quem era e de onde estava ligando.

A ligação foi atendida por uma recepcionista e Bosch simplesmente pediu para falar com Alex White. Houve uma pausa de início.

— Parece que não temos ninguém com esse nome na relação de funcionários. O senhor tem certeza de que quer falar com a Cosgrove Tractor?

— Bom, esse foi o número que ele me deu. Há quanto tempo essa empresa existe?

— Vinte e dois anos. Só um momento, por favor.

Bosch ficou na espera enquanto a telefonista presumivelmente recebia outra ligação. Logo estava de volta.

— Não temos nenhum Alex White. Gostaria de falar com alguma outra pessoa?

— Posso falar com o gerente?

— Claro, quem gostaria?

— John Bagnall.

— Um momento, por favor.

John Bagnall era o nome falso usado por todos os membros da Unidade de Abertos/Não Resolvidos quando precisavam fazer algum jogo de cena ao telefone.

A ligação foi rapidamente transferida.

— Aqui é Jerry Jimenez. Em que posso ajudar?

— Bom dia, senhor, aqui quem fala é John Bagnall e só estou verificando uma solicitação de emprego que diz que Alex White foi funcionário da Cos­grove Tractor de 2000 a 2004. O senhor teria como me confirmar essa informação, por favor?

— Não posso confirmar. Eu estava aqui nesse período e não me lembro de nenhum Alex White. Em que ele trabalhava?

— O problema é esse. Não diz especificamente o setor.

— Bom, não vejo como eu posso ajudar o senhor. Na época, eu era gerente de vendas. Eu conhecia todo mundo que trabalhava aqui, como conheço hoje, e não tinha nenhum Alex White. A empresa não é muito grande, sabe? Temos vendas, serviço, peças e gerência. No total, são apenas vinte e quatro pessoas, incluindo eu.

Bosch repetiu o número de telefone de onde Alex White ligara e perguntou quanto tempo fazia que a concessionária utilizava o número.

— Desde sempre. Desde que inauguramos, em 1990. Eu estava aqui.

— Agradeço pelo seu tempo, senhor. Tenha um bom dia.

Bosch desligou, mais curioso do que nunca sobre a ligação de Alex White em 2002.

Bosch perdeu o restante da manhã com sua qualificação de arma e treinamento policial, que tinham de ser feitos de seis em seis meses. Primeiro, ficou uma hora sentado em uma sala de aula sendo atualizado sobre as mais novas determinações judiciais relativas ao trabalho policial e sobre as mudanças de procedimento do LAPD originadas daí. Essa hora incluía também revisões de confrontos recentes, com uma discussão sobre o que tinha dado certo ou errado em cada incidente envolvendo troca de tiros com criminosos. Em seguida, ele foi ao estande de tiro, onde tinha de praticar a fim de manter a qualificação para arma. O sargento do estande era um velho amigo, e perguntou sobre a filha de Harry. Isso deu a Bosch uma ideia de algo para fazer com Maddie no fim de semana.

Bosch estava atravessando o estacionamento de volta para seu carro e pensando onde almoçar quando Alex White retornou a ligação de Modesto com a informação sobre sua compra de trator. Ele contou a Bosch que havia ficado tão intrigado com o telefonema surgido do nada naquela manhã que largou seu jogo de golfe depois de apenas nove buracos. Também comentou que sua pontuação de 59 havia pesado na decisão.

Segundo os registros do contador, White comprou o trator na Cosgrove Tractor em 27 de abril de 2002 e foi buscá-lo em 1º de maio, décimo aniversário do assassinato de Anneke Jespersen e o mesmo dia em que alguém alegando ser Alex White havia ligado para o LAPD do telefone da revendedora para perguntar sobre o caso.

— Sr. White, preciso perguntar outra vez: no dia em que o senhor foi buscar o trator, o senhor ligou para cá da loja para perguntar sobre um homicídio?

White deu uma risada apreensiva antes de responder:

— Isso é a coisa mais maluca que eu já ouvi. Não, eu não liguei para o Departamento de Polícia de Los Angeles. Nunca liguei para o LAPD na minha vida. Alguém deve ter usado meu nome e não sei dizer por quê, detetive. É um mistério para mim.

Bosch perguntou se havia algum nome nos papéis que ele recebera na data da compra. White passou a Bosch dois nomes. O vendedor estava registrado como Reggie Banks e o gerente de vendas que assinou a negociação era Jerry Jimenez.

— O.k., sr. White — disse Bosch. — O senhor foi de grande ajuda. Muito obrigado e lamento ter atrapalhado seu jogo de golfe.

— Sem problema, detetive, meu swing hoje estava péssimo de qualquer maneira. Mas vamos fazer o seguinte, se o senhor algum dia solucionar esse mistério de quem ligou usando meu nome, depois me conta, o.k.?

— Pode deixar, senhor, farei isso. Tenha um bom dia.

Bosch pensou sobre as coisas enquanto destrancava o carro. O mistério de Alex White agora havia passado de um simples detalhe carente de esclarecimentos para algo mais. Estava na cara que alguém havia ligado da concessionária John Deere para perguntar sobre o caso Jespersen, mas fornecera identidade falsa, apropriando-se do nome de um cliente que estivera na loja naquele mesmo dia. Para Bosch, isso mudava radicalmente as coisas em relação ao telefonema. Não era mais um bipe sem explicação em seu radar. Agora havia alguma coisa sólida ali e que precisava ser investigada e compreendida.


8

Bosch decidiu esquecer o almoço e voltar à sala do esquadrão. Por sorte, Chu não havia saído para almoçar, e Bosch lhe deu os nomes Reginald Banks e Jerry Jimenez para que os submetesse ao banco de dados. Então notou a luz piscando no telefone em sua mesa e verificou a mensagem. Havia perdido um telefonema de Henrik Jespersen. Praguejou enquanto se perguntava por que Henrik não tentara também o celular que ele havia fornecido nos e-mails.

Bosch olhou para o relógio da parede e fez as contas. Eram nove da noite na Dinamarca. Henrik havia informado o número de casa na mensagem, e Harry ligou. Houve um longo silêncio conforme a ligação cruzava um continente e um oceano. Bosch ficou imaginando se a ligação fora na direção leste ou oeste, mas então um homem atendeu ao segundo toque.

— Aqui é o detetive Bosch, de Los Angeles. Gostaria de falar com ­Henrik Jespersen.

— Sim, aqui é Henrik.

— Peço desculpas por retornar a ligação tão tarde. Será que podemos conversar por alguns minutos?

— Sim, claro.

— Ótimo. Agradeço por ter respondido ao e-mail e tenho mais algumas perguntas a fazer, se o senhor não se incomodar.

— Fico feliz em conversar agora. Por favor, continue.

— Obrigado. Eu, ahn, primeiro gostaria de dizer, como já disse no ­e-mail, que a investigação sobre a morte de sua irmã é de alta prioridade. Estou trabalhando nisso com muito empenho. Embora tenha sido há vinte anos, tenho certeza de que a morte de sua irmã é algo que causa sofrimento até hoje. Meus sentimentos por sua perda.

— Obrigado, detetive. Ela era uma mulher linda e muito animada com a vida. Sinto muita saudade.

— Tenho certeza que sim.

Ao longo dos anos, Bosch conversara com muitas pessoas que haviam perdido entes queridos de forma violenta. Foram mais do que podia contar, mas nunca ficava mais fácil e sua solidariedade jamais diminuía.

— O que é que o senhor quer perguntar para mim? — questionou Jespersen.

— Bem, antes de mais nada, gostaria de perguntar sobre o pós-escrito acrescentado ao e-mail. O senhor disse que Anneke não estava de férias e quero esclarecer isso, se possível.

— Isso, ela não estava.

— Bom, eu sei que ela não estava de férias quando veio a Los Angeles para cobrir os tumultos para o jornal, mas o senhor está me dizendo que ela não veio de férias aos Estados Unidos?

— Ela estava trabalhando o tempo todo. Tinha uma matéria.

Bosch pegou um bloco de papel que estava à sua frente para fazer anotações.

— Sabe de que matéria se tratava?

— Não, ela não me contou.

— Então como o senhor pode saber que ela veio a trabalho?

— Ela me contou que estava atrás de uma matéria. Ela não me contou do que se tratava porque era uma jornalista e guardava segredo sobre essas coisas.

— Será que o chefe ou o editor dela saberiam qual era a matéria?

— Acho que não. Ela era freelancer, sabe? Vendia fotos e matérias para o BT. Às vezes recebia uma matéria, mas nem sempre. Ela fazia as matérias e depois contava para eles o que tinha, entende?

Havia referências ao editor de Anneke nos relatórios e nos recortes de jornal, então Bosch tinha um ponto de partida. Mas ele perguntou para ­Henrik de todo modo:

— Por acaso o senhor sabe o nome do editor dela na época?

— Sei, era Jannik Frej. Ele falou em memória dela, no enterro. Homem muito bom.

Bosch lhe pediu que soletrasse os dois nomes e perguntou se por acaso teria um telefone de contato para falar com Frej.

— Não, eu nunca tive o telefone dele. Sinto muito.

— Tudo bem. Eu consigo. Agora, o senhor pode me dizer quando falou pela última vez com sua irmã?

— Sim, foi no dia em que ela viajou para os Estados Unidos. Nós nos encontramos.

— E ela não disse nada sobre a matéria em que estava trabalhando?

— Eu não perguntei e ela não mencionou.

— Mas o senhor sabia que ela estava vindo para cá, certo? Foi se despedir.

— Sim, e dar a ela informação de hotel.

— Que informação?

— Eu trabalho há trinta anos com hotelaria. Na época eu fazia reservas de hotel para Anneke quando ela viajava.

— Não era o jornal?

— Não, ela era freelancer e conseguia serviço melhor comigo. Eu sempre cuidava das viagens dela. Mesmo com as guerras. Não existia internet na época, entende? Era mais difícil encontrar os lugares para ficar. Ela precisava que eu arranjasse tudo.

— Entendo. Por acaso o senhor se lembra de onde ela ficou nos Estados Unidos? Ela passou vários dias aqui antes dos tumultos. Aonde ela foi, além de Nova York e San Francisco?

— Eu teria que ver se eu sei.

— Como disse?

— Eu vou precisar ir ao meu depósito para registros. Eu guardei muitas coisas daquela época... por causa do acontecido. Vou procurar. Lembro que ela não foi para Nova York.

— Ela só desembarcou lá?

— Isso, e pegou conexão para Atlanta.

— O que tinha em Atlanta?

— Isso eu não sei.

— O.k. Quando acha que poderá dar uma olhada no depósito, Henrik?

Bosch queria pressioná-lo, mas não demais.

— Não tenho certeza. É longe daqui. Vou precisar tirar folga do trabalho.

— Entendo, Henrik. Mas isso pode ser de grande ajuda. Será que poderia me enviar um e-mail ou me ligar assim que der uma olhada?

— Sim, é claro.

Bosch olhou para seu bloco enquanto tentava pensar em novas perguntas para fazer.

— Henrik, onde estava sua irmã antes de vir para os Estados Unidos?

— Estava aqui em Copenhague.

— O que eu quero dizer é: qual foi a última viagem dela antes de vir para os Estados Unidos?

— Ela ficou na Alemanha por um tempo e, antes disso, na Cidade do Kuwait, para a guerra.

Bosch sabia que ele se referia à operação Tempestade no Deserto. Sabia que Anneke estivera lá por meio das matérias a respeito dela. Escreveu: Alemanha. Isso era novidade para ele.

— Onde na Alemanha, você sabe?

— Esteve em Stuttgart. Eu me lembro disso.

Bosch anotou em seu bloco. Achou que tinha tudo o que ia conseguir tirar de Henrik até o homem ter oportunidade de ir ao depósito olhar os registros de viagem.

— Ela lhe contou o que ia fazer na Alemanha? Era uma matéria?

— Ela não me contou. Pediu que eu conseguisse um hotel que ficasse perto da base militar norte-americana. Eu me lembro disso.

— Ela não contou mais nada?

— Foi só isso. Não entendo por que isso tem importância quando ela foi assassinada em Los Angeles.

— Provavelmente não tem, Henrik. Mas às vezes é bom lançar a rede longe.

— O que isso quer dizer?

— Quer dizer que, se você faz um monte de perguntas, consegue um monte de informação. Nem tudo é útil, mas às vezes você dá sorte. Agradeço pela paciência e por ter conversado comigo.

— Vai resolver o caso agora, detetive?

Bosch fez uma pausa antes de responder:

— Vou dar o melhor de mim, Henrik. E prometo que você vai ser o primeiro a saber.

A conversa com Henrik encheu Bosch de energia, ainda que ele não tivesse conseguido tudo o que havia para extrair. Ele não sabia bem que rumo estava tomando aquele caso, mas as coisas haviam mudado. Pouco mais de um dia antes, acreditara que a investigação não caminhava para lugar algum e que em dois tempos estaria empacotando de novo as caixas-arquivo e mandando ­Anneke Jespersen de volta para as profundezas do depósito de casos não resolvidos e vítimas esquecidas, mas depois da conversa com Henrik surgira uma luz no fim do túnel. Um mistério começava a se insinuar. Havia questões a serem respondidas, e Bosch continuava no jogo.

O passo seguinte era contatar o editor de Anneke no BT. Bosch verificou o nome que Henrik lhe dera, Jannik Frej, comparando com as notícias na imprensa e os registros no inquérito. Os nomes não batiam. As matérias que saíram na esteira dos tumultos citavam um editor chamado Arne Haagan. A cronologia da investigação também listava Haagan como o editor com quem os detetives da FTCD haviam conversado sobre Jespersen.

Bosch não sabia explicar a discrepância. Pesquisou no Google o número de telefone da redação do BT e fez a ligação. Imaginou que alguém continuaria trabalhando, mesmo sendo tarde.

— Redaktionen, goddag.

Bosch havia esquecido que poderia enfrentar problemas com a língua. Não sabia se a mulher que atendera estava dizendo o nome ou uma palavra em dinamarquês.

— Nyhedsredaktionen, kan jeg hjœlpe?

— Ahn, alô? Você fala inglês?

— Um pouco. Como posso ajudar?

Bosch consultou as anotações.

— Estou procurando por Arne Haagan ou Jannik Frej, por favor.

Houve uma breve pausa antes que a mulher do outro lado da linha falasse:

— O sr. Haagan morreu, sim?

— Ele morreu? Ahn, e quanto ao sr. Frej?

— Ninguém aqui.

— Ahn, quando o sr. Haagan faleceu?

— Humm, aguarde na linha, por favor.

Bosch esperou pelo que pareceram cinco minutos. Olhou em torno da sala do esquadrão enquanto esperava e logo notou o tenente O’Toole observando-o pela janela de sua sala. O’Toole disparou uma arma imaginária, depois fez sinal de positivo e ergueu uma sobrancelha, com ar interrogativo. Bosch percebeu que ele queria saber sobre a qualificação na academia. Fez sinal de positivo e então desviou o olhar. Finalmente, uma voz masculina surgiu na linha. O inglês dessa pessoa era excelente e o sotaque era quase imperceptível.

— Aqui é Mikkel Bonn. Em que posso ajudar?

— Certo, eu gostaria de falar com Arne Haagan, mas a pessoa que me atendeu disse que ele faleceu. Isso está correto?

— Isso, Arne Haagan faleceu faz quatro anos. Posso perguntar o motivo da ligação?

— Meu nome é Harry Bosch. Sou detetive do Departamento de Polícia de Los Angeles. Estou investigando a morte de Anneke Jespersen, ocorrida há vinte anos. Está familiarizado com o assunto?

— Sei quem era Anneke Jespersen. Conhecemos bastante o assunto por aqui. Arne Haagan era o editor do jornal na época. Ele se aposentou e depois morreu.

— E um editor chamado Jannik Frej? Continua por aí?

— Jannik Frej... não, Jannik, não.

— Quando ele saiu? Está vivo?

— Há alguns anos, ele também se aposentou. Está vivo, até onde eu sei.

— O.k., sabe como posso entrar em contato? Preciso conversar com ele.

— Posso verificar se alguém tem informação. Um dos redatores talvez ainda mantenha contato. Pode me dizer se há movimento no caso? Sou repórter e gostaria de...

— O caso está aberto. Estou investigando, mas não tenho nada além disso. Só estou começando.

— Entendo. Posso retornar a ligação com a informação para contato de Jannik Frej?

— Eu preferia que conseguisse isso para mim agora.

Houve uma pausa.

— Entendo. Muito bem, vou tentar ser rápido.

Bosch foi deixado em espera de novo. Dessa vez, evitou olhar na direção da sala do tenente. Virou-se e olhou para trás e viu que Chu não estava mais lá; provavelmente havia saído para almoçar.

— Detetive Bosch?

Era Bonn de volta à linha.

— Sim.

— Estou com o e-mail de Jannik Frej.

— E quanto ao número do telefone?

— Não temos isso disponível no momento. Vou continuar procurando e depois ligo. Mas, por enquanto, quer o endereço de e-mail?

— Sim, quero.

Anotou o endereço eletrônico de Frej e depois forneceu a Bonn o próprio e-mail e número de telefone.

— Boa sorte, detetive — disse Bonn.

— Obrigado.

— Sabe, eu não estava aqui naquela época, quando aconteceu. Mas há dez anos estava e lembro que fizemos uma matéria grande sobre Anneke e o caso. Gostaria de ver?

Bosch hesitou.

— Não está em dinamarquês, está?

— Está, mas existem vários sites de tradução na internet que o senhor poderia usar.

Bosch não sabia muito bem o que ele queria dizer, mas pediu a Bonn que lhe enviasse um link da matéria. Agradeceu e então desligou.


9

Bosch percebeu que estava faminto. Tomou o elevador para o saguão do prédio, saiu pela entrada principal e atravessou a praça. Ele pretendia andar até o Philippe’s para comer um sanduíche de rosbife, mas o celular vibrou antes mesmo que atravessasse a First Street. Era Jordy Gant.

— Harry, já estamos com seu cara.

— Baixinho?

— Isso mesmo. Acabei de receber a ligação de um dos meus homens. Pegaram o cara quando estava saindo de um McDonald’s na Normandie. Um dos rapazes que eu instruí hoje de manhã na chamada estava com a foto dele na viatura. E era mesmo o Baixinho.

— Ele foi levado para onde?

— Para a 77th. Está sendo fichado neste exato minuto, e no momento estamos segurando só com o mandado de prisão. Imagino que, se for rápido, você consiga chegar lá antes que ele arrume um advogado.

— Já estou a caminho.

— Que tal se eu for também e participar com você?

— A gente se vê lá.

Levou apenas vinte minutos no trânsito do meio-dia para chegar à 77th Street Station. Durante todo o trajeto ele ficou imaginando como agiria com Washburn. Bosch não tinha nada para pegar Baixinho, a não ser um palpite baseado na proximidade. Nenhuma evidência e nenhuma certeza. Parecia-lhe que a única chance era blefar. Convencer Washburn de que tinha alguma coisa e usar a mentira para extrair uma admissão de culpa. Era o modo mais fraco de proceder, principalmente com um suspeito que já havia se envolvido várias vezes com a polícia. Mas era tudo o que tinha.

Na 77th, Gant já estava na sala da Guarda à espera dele.

— Mandei transferi-lo para o departamento D. Pronto?

— Pronto.

Bosch viu uma caixa de donuts Krispy Kreme em um balcão atrás da mesa do tenente de patrulha. Estava aberta e só restavam dois donuts ali, provavelmente sobrando desde a chamada da manhã.

— Ei, alguém se incomoda?

Apontou para os donuts.

— À vontade — disse Gant.

Bosch pegou um donut coberto de glacê e comeu em quatro dentadas enquanto seguia Gant pelo corredor dos fundos da delegacia para a divisão dos detetives.

Entraram na enorme sala repleta de mesas, arquivos de metal e pilhas de papelada. A maioria das mesas estava vazia, e Bosch imaginou que os detetives estivessem fora, trabalhando em seus casos, ou no horário de almoço. Viu uma caixa de lenços de papel em uma das mesas vazias e pegou três lenços para limpar o açúcar dos dedos.

Um patrulheiro estava sentado junto à porta de uma das duas salas de interrogatório. Ele se levantou quando Gant e Bosch se aproximaram. Gant o apresentou como Chris Mercer, o patrulheiro que encontrara Baixinho Washburn.

— Bom trabalho — disse Bosch, apertando sua mão. — Leu o texto para ele?

Queria dizer os direitos e proteções constitucionais.

— Li.

— Ótimo.

— Obrigado, Chris — disse Gant. — A gente assume daqui em diante.

O policial fez um arremedo de continência e se afastou. Gant olhou para Bosch.

— Quer fazer isso de algum jeito em particular?

— A gente tem alguma coisa em cima dele, fora o mandado?

— Pouca coisa. Tinha quinze gramas de maconha com ele.

Bosch franziu o rosto. Não era muito.

— Tinha também seiscentos dólares em dinheiro.

Bosch fez que sim. Isso tornava a situação um pouco melhor. Talvez ele conseguisse trabalhar com o dinheiro, se Washburn não estivesse muito por dentro da atual legislação antidrogas.

— Vou jogar um verde para cima dele, vamos ver se morde a isca. Acho que é nossa melhor estratégia. Encostá-lo na parede, assim ele vai ter que soltar a língua para se safar.

— O.k., eu vou na sua onda, se você precisar.

Na parede entre as portas das duas salas de interrogatório estava uma pasta de documentos. Bosch puxou um formulário de renúncia aos direitos, dobrou-o e enfiou-o no bolso de dentro do paletó.

— Abre aí e me deixa entrar primeiro.

Gant obedeceu, e Bosch entrou na sala de interrogatório com uma expressão sombria no rosto. Washburn estava sentado a uma pequena mesa, os pulsos presos por lacres de plástico às costas da cadeira. Como previsto, era um sujeito pequeno, que usava roupas largas para disfarçar a pouca estatura. Na mesa havia um saco plástico de evidência contendo os itens encontrados em sua roupa no momento da prisão. Bosch se sentou na cadeira à frente de Baixinho. Gant puxou a terceira cadeira para perto da porta e se sentou como se montasse guarda. Estava alguns palmos atrás do ombro esquerdo de Bosch.

Bosch ergueu o saco de evidência e olhou para o conteúdo. Uma carteira, um celular, um molho de chaves, o rolo de notas e o saquinho plástico contendo quinze gramas de maconha.

— Charles Washburn — disse ele. — Chamam você de Baixinho, correto? Bom apelido. Foi você que inventou?

Olhou do saco para Washburn, que não respondeu. Bosch voltou a baixar o rosto para o saco de evidência e balançou negativamente a cabeça.

— Bom, a gente tem um problema aqui, Baixinho. Você sabe qual é o problema?

— Estou pouco me fodendo.

— Bom, sabe o que não estou vendo neste saco?

— Não me interessa.

— Não estou vendo um cachimbo nem sedas. E também você tem esse bolo de dinheiro aqui com o fumo. Você sabe qual é o resultado disso tudo, não sabe?

— O resultado disso é você deixar eu ligar para o meu advogado. E nem se incomoda em falar comigo porque não tenho nada para dizer nas suas fuças. Só traz o telefone que eu ligo para o meu camarada.

Através do plástico, Bosch apertou o botão principal do celular de Baixinho e o visor se iluminou. Como esperado, o celular era protegido por senha.

— Oops, você precisa de uma senha.

Bosch o ergueu para Washburn ver.

— Fala para mim qual é que eu ligo e você fala com o seu advogado.

— Não, tudo bem. Me manda de volta para a cela que eu uso o telefone pago de lá.

— Por que não este aqui? Você provavelmente tem seu camarada na discagem rápida, não tem?

— Porque esse celular não é meu e eu não sei a senha.

Bosch sabia que o aparelho provavelmente continha informações de ligações e listas de contato que poderiam trazer mais problemas para Washburn. Baixinho não tinha alternativa a não ser negar que era dele, mesmo que a alegação fosse ridícula.

— Sério? É meio estranho, já que isso saiu do seu bolso. Junto com a erva e a grana.

— Seu pessoal plantou essa merda em mim. Quero chamar um advogado.

Bosch fez que sim, virou-se para Gant e se dirigiu a ele. Estava pisando em uma linha constitucional muito tênue ali.

— Sabe o que isso significa, Jordy?

— O quê?

— Significa que esse cara tinha uma substância controlada em um bolso e um maço de dinheiro no outro. Sabe, andar sem cachimbo foi um erro. Porque, sem carregar um meio de consumo pessoal, a lei enxerga isso como posse com intenção de venda. E isso eleva a posse à condição de delito. O advogado dele provavelmente vai explicar tudo isso para ele.

— Do que você está falando, cara? — protestou Washburn. — Quase não dá um baseado aí. Não estou vendendo porra nenhuma e você sabe disso muito bem.

Bosch voltou a olhar para ele.

— Você está falando comigo? — perguntou Harry. — Porque acabou de me dizer que queria um advogado, e, quando diz isso, eu preciso fechar o bico. Você agora quer conversar?

— Só estou dizendo que não estava vendendo porcaria nenhuma.

— Você quer falar comigo?

— Quero, eu falo com você se é para resolver logo essa parada.

— Bom, então a gente precisa fazer do jeito certo.

Bosch tirou o formulário de direitos do bolso do paletó e pediu que ­Washburn assinasse. O detetive duvidava que sua jogada fosse aceita em uma Suprema Corte, mas também achava que não chegaria a tanto.

— O.k., Baixinho, vamos conversar. Só o que eu sei aqui é isso que está no saquinho. Isso me diz que você é um traficante, e é essa a acusação que a gente vai ter que usar.

Bosch viu Washburn flexionar os músculos dos ombros magros e baixar a cabeça. O detetive olhou o relógio.

— Mas não precisa ficar todo nervoso por causa disso, Baixinho. Porque a erva é o menor dos seus problemas. É só uma coisa que eu vou conseguir usar contra você, porque meu palpite é que um cara que não paga a pensão alimentícia não vai ter grana suficiente para bancar uma fiança de vinte e cinco paus.

Bosch ergueu outra vez o saquinho contendo a maconha.

— Isso aqui vai manter você preso enquanto eu trabalho nessa outra coisa que eu tenho na manga.

Washburn ergueu o rosto.

— Porra nenhuma. Eu saio. Conheço umas pessoas.

— É, bom, as pessoas somem quando chega a hora de empatar uma grana.

Bosch se virou e olhou para Gant.

— Já notou isso, Jordy?

— Já. As pessoas parecem evaporar, principalmente quando sabem que o parceiro vai dançar. Elas pensam: para que vou esquentar a cabeça pondo a mão no bolso se o maluco vai em cana?

Bosch confirmou com a cabeça quando olhou de novo para Washburn.

— Que papo é esse? — disse Washburn. — Por que você está pegando no meu pé, cara? O que foi que eu fiz?

Bosch tamborilou os dedos na mesa.

— Certo, vou dizer, Baixinho. Eu trabalho no Centro e não ia ter todo esse trabalho de vir de lá até aqui só para enquadrar alguém por causa desta merreca. Sabe, meu trabalho é com homicídio. Eu trabalho com o arquivo morto. Sabe o que isso quer dizer? Eu trabalho com casos antigos. De anos. Às vezes, de vinte anos de idade.

Bosch avaliou a reação de Washburn, mas não percebeu nenhuma alteração.

— Como esse sobre o qual a gente vai conversar.

— Não sei porra nenhuma sobre nenhum homicídio. Você pegou o cara errado nessa.

— É mesmo? Sério? Não foi isso que eu escutei. Acho que tem gente que anda falando merda sobre você, então.

— Isso mesmo. Pode ir procurar outro otário para apertar.

Bosch se recostou na cadeira, como se estivesse pensando em seguir o conselho de Washburn, mas então balançou a cabeça uma vez.

— Não, não posso fazer isso. Tenho uma testemunha, Charles. Na verdade, alguém que ouviu a história de você, sabe como é isso?

Washburn desviou o rosto ao responder:

— A única coisa que eu sei é que você só está falando merda.

— Tenho uma testemunha que ouviu você admitir o crime, cara. Ela disse que você contou para ela. Que você estava se achando e que contou para ela como encostou a vadia branca na parede e meteu um teco na cara dela. Ela disse que você estava muito orgulhoso disso, porque ia pôr você dentro dos 60s.

Washburn tentou ficar de pé, mas as mãos presas o mantiveram no lugar.

— Vadia branca? Cara, de que porra você está falando? Foi com a Latitia que você andou conversando? Ela só fala merda. Só está querendo me foder porque faz quatro meses que eu não mando grana nenhuma. Aquela vagabunda mentirosa vai falar qualquer coisa.

Bosch apoiou os cotovelos na mesa e se aproximou de Washburn.

— É, bom, eu não dou nome de informantes, Charles. Mas posso dizer que você arrumou um problemão aqui, porque andei dando umas checadas, baseado no que me contaram, e acontece que em 1992 uma mulher branca foi assassinada no beco logo atrás da sua casa. Então isso não é coisa inventada.

Os olhos de Washburn brilharam quando a ficha caiu.

— Você está falando daquela repórter dos tumultos? Não pode pôr essa na minha conta, cara. Estou limpo nessa, e pode falar para a sua testemunha que se ela continuar mentindo, ela está fodida.

— Charles, acho que você não vai querer ameaçar uma testemunha na frente de dois agentes da lei. Olha, se acontecer alguma coisa com a Latitia, sendo ela a testemunha ou não, você vai ser a primeira pessoa que a gente vai procurar, está entendendo?

Washburn não disse nada, e Bosch prosseguiu:

— Na verdade, tenho mais de uma testemunha, Charles. Tenho outra pessoa do bairro que disse que você tinha uma arma na época. Uma Beretta, para falar a verdade, e esse é exatamente o tipo de arma que foi usado para matar a mulher no beco.

— Aquela arma? Eu encontrei a arma no meu quintal, cara!

Pronto. Washburn havia admitido alguma coisa. Mas também fornecera uma explicação plausível. Parecia genuína e espontânea demais para ser inventada. Bosch tinha de seguir por essa trilha.

— Seu quintal? Quer que eu acredite que você simplesmente encontrou a arma no seu quintal?

— Olha, cara, eu tinha dezesseis anos. Minha mãe nem me deixou sair de casa durante o tumulto. A porta do meu quarto tinha cadeado por fora e as janelas eram com grade. Ela me enfiou lá dentro e me trancou, cara. Vai falar com ela disso aí.

— Então, quando você encontrou essa arma?

— Quando terminou, cara. Quando acabou tudo. Eu fui lá pros fundos e encontrei a arma no meio do mato quando fui cortar a grama. Eu não sabia de onde tinha vindo. Eu não sabia nem da mulher, até que a minha mãe me contou que a polícia foi bater na porta lá de casa.

— Você contou para a sua mãe sobre a arma?

— Não. Porra, não, eu não ia falar com a minha mãe sobre merda de arma nenhuma. E, depois, eu nem estava mais com a arma.

Bosch lançou um olhar furtivo por cima do ombro para Gant. Harry estava saindo de sua área. Pelo desespero e pelos detalhes, a história de Washburn soava verdadeira. Quem quer que fosse, o assassino de Jespersen podia ter jogado a arma do crime por cima da cerca para se livrar dela.

Gant compreendeu o olhar e se levantou. Puxou a cadeira para junto de Bosch. Agora ele também estava entrando no jogo.

— Charles, sua situação é bastante séria aqui — disse ele, em um tom de voz que transmitia perfeitamente essa seriedade. — Saiba que a gente tem mais informação sobre isso do que você imagina. Se você não ficar de embromação para cima da gente, pode se safar de uma merda federal. Mas se mentir, a gente vai saber.

— O.k. — disse Washburn, submisso. — O que vocês querem saber?

— Você precisa contar para a gente o que fez com aquela arma há vinte anos.

— Eu dei. Primeiro escondi, depois eu dei.

— Para quem?

— Um cara que eu conhecia, mas ele agora já era.

— Não vou perguntar outra vez. Quem?

— O nome era Trumond, mas eu nunca soube se esse era o nome dele de verdade ou não. Na rua o pessoal chamava ele de Tru Story.

— É um apelido? Qual era o sobrenome dele?

Gant estava seguindo uma técnica de interrogatório-padrão ao fazer algumas perguntas cuja resposta já sabia. Ajudava a aferir a veracidade do interrogado e às vezes fornecia uma vantagem estratégica quando o sujeito achava que o investigador sabia menos do que na realidade.

— Sei lá, cara — disse Washburn. — Mas ele está morto agora. Apagaram ele faz uns anos.

— Quem apagou?

— Sei lá. O cara era da rua. Alguém meteu uma bala nele, foi só isso, entendeu? Acontece.

Gant voltou a se recostar na cadeira, e isso era um sinal para Bosch conduzir de novo o interrogatório, se quisesse.

Ele quis.

— Me fala sobre a arma.

— Como você disse, uma Beretta. Era preta.

— Onde exatamente você encontrou, no seu quintal?

— Sei lá, perto do balanço. Estava bem lá no meio da grama, cara. Eu não vi e passei o cortador por cima, fiz um puta arranhão no metal.

— Onde foi o arranhão?

— Na lateral do cano.

Bosch sabia que o arranhão podia ser um identificador, se a arma algum dia fosse encontrada. Mais importante, o arranhão ajudaria a confirmar a história de Washburn.

— A arma ainda funcionava?

— Ah, funcionava, pode apostar. Funcionava direitinho. Eu disparei ali mesmo, meti uma bala em uma das madeiras da cerca. Levei um susto, quase nem toquei no gatilho.

— Sua mãe escutou o tiro?

— Escutou, ela saiu da casa, mas eu enfiei a arma na calça, debaixo da camisa. Falei para ela que era o escapamento do cortador estourando.

Bosch pensou sobre a bala na tábua da cerca. Se continuasse ali, serviria como corroboração adicional da história. Continuou:

— Tudo bem, então você disse que a sua mãe trancou você no quarto durante os tumultos, certo?

— Isso mesmo.

— O.k., então quando você encontrou a arma? Os tumultos praticamente terminaram depois de três dias. Primeiro de maio foi a última noite. Você se lembra de quando encontrou a arma?

Washburn balançou a cabeça como se estivesse irritado.

— Faz muito tempo, cara. Não me lembro do dia. Só lembro que encontrei a arma e mais nada.

— Por que você deu para o Tru Story?

— Porque ele era o chefe da rua. Eu dei para ele.

— Quer dizer que ele era um chefe dos Rolling 60s Crips, correto?

— É, correto!

Ele disse isso imitando o sotaque de um homem branco. Estava claro que queria conversar com Gant e não com Bosch. Harry lançou um olhar para Gant, que reassumiu a condução do interrogatório.

— Você disse Trumond. Quer dizer Trumont, certo? Trumont Story?

— Acho que é, cara. Eu não conhecia ele direito.

— Então por que deu a arma para ele?

— Porque queria conhecer. Queria subir na vida, está me entendendo?

— E deu certo?

— Não muito. Dancei, e me mandaram para a DJ em Sylmar. Fiquei lá quase dois anos. Depois disso eu meio que perdi minha chance.

Um dos maiores centros de detenção juvenil ficava em Sylmar, no subúrbio norte do vale de San Fernando. Os tribunais juvenis muitas vezes mandavam criminosos menores de idade para centros distantes de seus bairros de origem, em um esforço para romper a ligação deles com as gangues.

— Você alguma vez voltou a ver aquela arma? — perguntou Gant.

— Não, nunca — respondeu Washburn.

— E quanto a Tru Story? — perguntou Bosch. — Você chegou a ver o cara outra vez?

— Eu vi ele na rua, mas a gente nem se cumprimentou. A gente nunca se falou.

Bosch esperou um momento para ver se ele diria mais alguma coisa. Mas não.

— O.k., aguenta aí um minuto, Baixinho — disse ele.

Deu um tapinha no ombro de Gant ao se levantar. Os detetives deixaram a sala de interrogatório, fecharam a porta e se aproximaram para conferenciar. Gant deu de ombros e falou primeiro:

— A história faz sentido.

Bosch assentiu, relutante. A história de fato parecia verdadeira. Mas parecer não queria dizer nada. Washburn admitira ter encontrado uma arma em seu quintal. Era, muito provavelmente, a arma que Bosch estava procurando, mas não havia nenhuma evidência disso, assim como não havia nenhuma evidência de que o envolvimento de Baixinho Washburn no assassinato de ­Anneke Jespersen fosse algo além do que ele havia admitido.

— O que você quer fazer com ele? — perguntou Gant.

— Eu já terminei com ele. Ficha o cara na pensão e na erva, mas deixando claro que nem a Latitia nem ninguém mais conversou com a gente.

— Pode deixar. Pena que não funcionou, Harry.

— É, eu estava pensando...

— Pensando o quê?

— Trumont Story. E se ele não foi morto com a própria arma?

Gant apoiou o cotovelo em uma das mãos e coçou o queixo com a outra.

— Isso foi há quase três anos.

— É, eu sei. É um tiro no escuro. Mas teve um período de cinco anos aí, quando Story estava em Pelican Bay e ninguém usou a arma. Ela ficou sumida.

Gant balançou a cabeça, concordando.

— Ele morava na 73rd. Há mais ou menos um ano, tive oportunidade de visitar o bairro, em um negócio de relações comunitárias que a gente estava coordenando. Eu bati naquela porta e a mulher dele continuava morando na casa.

Bosch fez que sim.

— A equipe que descobriu sobre o assassinato dele, você sabe se chegaram a dar uma batida na casa?

Gant balançou a cabeça.

— Não sei, Harry, mas acho que não com muita atenção. Não com um mandado, quer dizer. Posso verificar.

Bosch fez que sim e começou a se dirigir à porta da sala do esquadrão.

— Me mantenha informado. Se eles não checaram o lugar, então quem sabe eu não vou lá?

— Pode valer a tentativa — disse Gant. — Mas é bom você saber: a mulher do Story era uma garota de gangue da pesada. Porra, provavelmente ia estar no topo da pirâmide, se tivesse outra coisa no meio das pernas. Ela é osso duro.

Bosch pensou a respeito por um momento.

— Pode ser que a gente consiga usar isso a nosso favor. Não sei se vamos ter o suficiente aqui para conseguir um papel.

Ele estava falando sobre a causa provável necessária para obter um mandado de busca na antiga casa de Trumont Story, quase três anos depois de sua morte. A melhor forma seria não precisar de um mandado assinado por um juiz. A melhor forma seria ser convidado. E, fazendo o jogo direito, às vezes o convite menos provável podia ser feito pelo indivíduo menos provável.

— Vou pensar em um roteiro, Harry — ofereceu Gant.

— O.k. Depois você me fala.


10

Chu estava no computador, trabalhando em um documento do Word, quando Bosch voltou à sala do esquadrão.

— O que é isso?

— A carta de condicional do caso Clancy.

Bosch assentiu. Ficou satisfeito por ver Chu cuidando daquilo. O departamento era notificado sempre que um condenado por homicídio em um de seus casos estava prestes a comparecer a uma audiência de condicional. Não era obrigatório, mas os investigadores que trabalharam no caso eram convidados a enviar cartas de objeção ou recomendação para a comissão de condicional. A carga de trabalho em geral impedia que isso fosse feito, mas Bosch normalmente fazia questão. Ele gostava de escrever cartas que descreviam a brutalidade do homicídio em detalhes, na esperança de que o horror dos crimes ajudasse a demover a comissão de conceder a condicional. Estava tentando passar essa prática adiante para o parceiro e incumbira Chu da tarefa de escrever a carta sobre o assassinato de Clancy, um caso particularmente horrível de esfaqueamento com motivação sexual.

— Acho que amanhã vou ter alguma coisa para você ler.

— Ótimo — disse Bosch. — Você verificou aqueles nomes que eu passei para você?

— Já, não encontrei muita coisa. Jimenez estava totalmente limpo e Banks tinha só uma condenação por DUI.

— Tem certeza?

— Foi só o que eu descobri, Harry. Lamento.

Decepcionado, Bosch puxou sua cadeira e se sentou à mesa. Não que ele achasse que o mistério de Alex White fosse ser resolvido rápido, mas esperava algo mais do que uma condenação por dirigir alcoolizado. Qualquer coisa com que pudesse trabalhar.

— De nada — disse Chu.

Bosch voltou a olhar para ele, e seu desapontamento se transformou em irritação.

— Se você quer ouvir agradecimento toda vez só por fazer seu trabalho, escolheu a carreira errada.

Chu não respondeu. Bosch ligou o computador e foi saudado por um e-mail de Mikkel Bonn, do Berlingske Tidende. Havia chegado quase uma hora antes.

Detetive Bosch: andei sondando um pouco. Jannik Frej era o editor que trabalhava com Anneke Jespersen porque ele estava encarregado dos projetos freelance. O sr. Frej não falou diretamente com os investigadores e repórteres de Los Angeles em 1992 porque sua proficiência no inglês era considerada insuficiente. Arne Haagan foi quem falou o tempo todo, porque sua proficiência era boa e ele era o editor do jornal.

Fiz contato com o sr. Frej e o inglês dele não é bom. Ofereço meus serviços como intermediário, se tiver perguntas a lhe dirigir. Se isso for de ajuda para o senhor, ficarei feliz em fazê-lo. Por favor, fico no aguardo de sua resposta.

Bosch considerou a oferta. Ele sabia que havia uma troca tácita no oferecimento de ajuda aparentemente desinteressado de Bonn. O homem era jornalista e estava sempre à procura de notícia. Além disso, se Bosch o usasse como intermediário, isso daria a Bonn informações que poderiam ser vitais para a investigação. Não era uma situação das mais confortáveis, mas Bosch achou que precisava aproveitar o embalo. Começou a digitar uma resposta.

Sr. Bonn, gostaria de aceitar sua oferta, se puder me prometer que a informação fornecida pelo sr. Frej será mantida confidencial até eu lhe dizer que pode ser usada em uma matéria jornalística. Se puder concordar com isso, aqui está o que eu gostaria de perguntar:

O senhor sabe se Anneke Jespersen veio aos Estados Unidos para trabalhar em uma matéria?

Caso sim, do que se tratava? O que ela estava fazendo aqui?

O que o senhor pode me dizer sobre os destinos dela nos Estados Unidos? Ela foi a Atlanta e San Francisco antes de vir para LA. Por quê? O senhor sabe se ela passou por alguma outra cidade dos Estados Unidos?

Antes de vir aos Estados Unidos, ela foi para Stuttgart, Alemanha, e se hospedou em um hotel perto de uma base militar norte-americana. O senhor sabe por quê?

Acho que esse é um bom começo, e eu apreciaria qualquer informação que pudesse obter em referência à viagem de Anneke pelos Estados Unidos. Obrigado pela ajuda e, mais uma vez, por favor, mantenha a informação confidencial.

Bosch releu o e-mail antes de mandar. Apertou o botão ENVIAR e na mesma hora começou a se arrepender de envolver Bonn, um jornalista que nunca tinha visto e com quem havia conversado uma única vez.

Deu as costas para a tela do computador e olhou para o relógio de parede. Eram quase quatro, o que significava que eram quase sete horas em Tampa. Bosch abriu o inquérito e pegou o número de telefone que havia escrito no lado interno da capa, de Gary Harrod, o detetive agora aposentado que cuidara do caso Jespersen para a Força-Tarefa de Crimes dos Distúrbios em 1992. Ele havia conversado com Harrod quando reabrira o caso. Na ocasião, não houvera muito o que conversar, mas agora havia.

Bosch não sabia se o número que anotara como de Harrod era de casa, celular ou do trabalho. Ele se aposentara jovem, depois de vinte anos de serviço, mudara-se para a Flórida, região de sua esposa, e agora tocava uma imobiliária bem-sucedida.

— Alô. Aqui é Gary.

— Ahn, ei, Gary, aqui é Harry Bosch, de LA. Lembra que a gente conversou sobre o caso Jespersen no mês passado?

— Claro, Bosch, foi isso mesmo.

— Tem uns minutos para conversar ou está jantando?

— O jantar ainda vai demorar meia hora. Até lá, sou todo seu. Não me diga que já resolveu o caso da Branca de Neve.

Bosch lhe contara no telefonema anterior que Anneke havia sido apelidada de Branca de Neve pelo parceiro dele, na noite do homicídio.

— Nem perto disso. Ainda estou correndo atrás. Mas surgiram algumas coisas sobre as quais eu queria falar com você.

— Vai em frente, manda.

— O.k., a primeira é sobre o jornal em que Jespersen trabalhava. Foi você quem fez contato com o pessoal na Dinamarca?

Houve uma longa pausa enquanto Harrod refrescava sua memória acerca do caso. Bosch nunca trabalhara diretamente com Harrod, mas ouvira falar dele na época em que estava no departamento. Ele tinha reputação de ser um investigador confiável. Foi por esse motivo que Bosch havia escolhido entrar em contato com ele, entre todos os investigadores que tiveram participação no caso naqueles dias. Ele sabia que Harrod ajudaria, se pudesse, e que não ia segurar informação.

Bosch sempre fazia um esforço para entrar em contato com os investigadores originais dos casos arquivados. Era surpreendente o número dos que continuavam mordidos pelo orgulho profissional, relutantes em ajudar outro investigador a resolver um caso que eles próprios não haviam conseguido encerrar.

Com Harrod era outra história. Desde a primeira conversa que tiveram, ele revelou como se sentia culpado por não ter solucionado o caso ­Jespersen e vários outros homicídios, da época dos tumultos, que lhe haviam sido designados. Disse que a força-tarefa ficara sobrecarregada com o excesso de casos com escassez de evidências para explorar. Como o caso Jespersen, a maioria das investigações da FTCD estava baseada em investigações de cena do crime incompletas ou quase inexistentes. A falta de evidência forense era paralisante.

— Na maioria dos casos, a gente não sabia nem por onde começar — contara Harrod a Bosch. — Estávamos trabalhando totalmente no escuro. Então a gente espalhava cartazes e oferecia recompensas, e era principalmente com base nisso que trabalhávamos. Mas não se conseguiu muita coisa e no fim das contas não serviu para quase nada. Não me lembro de um único caso que tenhamos encerrado. Muito frustrante. Esse foi um dos motivos para eu pedir a aposentadoria depois de vinte anos. Precisava cair fora de LA.

Bosch não conseguia deixar de pensar em como a cidade e o departamento tinham perdido um bom homem. Sua esperança era de que, se conseguisse encerrar o caso Jespersen, Harrod encontrasse algum tipo de consolo.

— Eu me lembro de ter conversado com alguém por lá — disse ­Harrod. — Não era o chefe direto dela, porque a pessoa não sabia falar inglês. Então estava mais para um supervisor-geral, e só consegui informações meio por alto. Lembro que tinha um dos nossos em Devonshire que falava a língua, dinamarquês, e a gente o usou para dar alguns telefonemas para lá.

Isso era novidade para Bosch. Não havia informes no inquérito de homicídio sobre conversas ao telefone com outras pessoas exceto Arne Haagan, o editor-chefe do jornal.

— Com quem vocês falaram, você lembra?

— Acho que só com outras pessoas da redação do jornal, talvez familiares também.

— O irmão?

— Pode ser, mas eu não lembro, Harry. Faz vinte anos e foi em outra vida para mim.

— Entendo. Você lembra quem vocês usaram na Devonshire Division para dar os telefonemas?

— Não está no arquivo?

— Não, não tem nada no inquérito sobre inquirições em dinamarquês. Era só algum patrulheiro de Devonshire?

— Isso, um cara que nasceu lá e foi criado aqui e conhecia a língua. Não lembro o nome. O departamento de pessoal o encontrou para a gente. Mas olha, se não tem nenhum relatório no inquérito, então é porque não acrescentou nada, Harry. Eu teria anotado.

Bosch assentiu. Ele sabia que Harrod tinha razão. Mas era algo que sempre o aborrecia, descobrir algum passo na investigação que não estava registrado no arquivo oficial do caso, o inquérito de homicídio.

— O.k., Gary, vou dar um sossego para você agora. Só queria checar isso uma última vez.

— Tem certeza? Mais nada? Desde que você me ligou, não parei mais de pensar no caso. Esse e aquele outro não me saem da cabeça, sabe?

— Qual é esse outro? Quem sabe eu possa dar uma olhada, se ninguém o reabriu ainda.

Harrod parou outra vez enquanto sua memória pulava de um caso para outro.

— Não lembro o nome — disse. — Era um cara lá em Pacoima. Ele era de Utah, estava hospedado em um hotelzinho vagabundo por lá. Fazia parte de uma equipe de construção que viajava pelo Oeste construindo esses centrinhos comerciais suburbanos. Era o azulejista, disso eu me lembro.

— O que aconteceu?

— A gente nunca soube. Ele foi encontrado com um tiro na cabeça, no meio da rua, a um quarteirão do hotel mais ou menos. Lembro que a tevê do quarto estava ligada. Ele devia estar assistindo. Sabe, a cidade naquele caos. E vai saber por que cargas-d’água ele resolveu sair para olhar. E isso foi o que sempre me incomodou nesse caso.

— O fato de ele ter saído?

— É, o fato de ter saído. Por quê? A cidade estava pegando fogo. Sem regras, pura anarquia, e ele sai de um lugar seguro e vai dar uma olhada. Até onde a gente pode dizer, alguém simplesmente passou e meteu uma bala nele do carro mesmo. Sem testemunhas, sem motivo, sem evidência. Era um caso perdido no minuto mesmo em que me passaram, e eu sabia disso. Eu me lembro de falar com os pais ao telefone. Estavam em Salt Lake City. Não conseguiam entender como uma coisa dessas tinha acontecido com o filho. Eles viam LA como se fosse algum outro planeta para onde ele teve que ir. Estava além da compreensão deles.

— Sei — disse Bosch.

Não havia mais nada a dizer.

— Enfim — continuou Harrod, apagando a lembrança. — Melhor eu ir lavar as mãos, Harry. Minha esposa está fazendo macarrão esta noite.

— Parece uma boa pedida, Gary. Obrigado pela ajuda.

— Que ajuda?

— Você ajudou. Se lembrar mais alguma coisa, me fala.

— Pode deixar.

Bosch desligou e tentou pensar se conhecia alguém que teria trabalhado em Devonshire vinte anos antes. Na época, era a divisão de polícia mais tranquila, ainda que geograficamente fosse a maior, cobrindo todo o canto noroeste da cidade no vale de San Fernando. Era conhecida como Club Dev, porque a central era nova e a carga de trabalho, leve.

Bosch se deu conta de que Larry Gandle, um ex-tenente da Abertos/Não Resolvidos, havia passado um tempo em Devonshire nos anos 1990 e talvez soubesse quem era o patrulheiro que falava dinamarquês. Bosch ligou para a sala de Gandle, que era agora o capitão encarregado da DRH.

A ligação de Bosch foi passada adiante de imediato. Harry explicou o que e quem estava procurando, e Gandle lhe transmitiu a má notícia:

— Sim, você está falando de Magnus Vestergaard, mas ele morreu já faz pelo menos dez anos. Acidente de moto.

— Droga.

— Para que precisava dele?

— Ele foi intérprete de dinamarquês em um caso que eu estou investigando. Queria ver se ele se lembrava de alguma coisa que não está no arquivo.

— Que chato, Harry.

— É, também acho.

Assim que Bosch pôs o fone no gancho, o aparelho tocou, ainda em sua mão. Era o tenente O’Toole.

— Detetive, pode vir à minha sala um momento?

— Agora mesmo.

Bosch desligou a tela de seu computador e se levantou. Uma chamada à sala de O’Toole não era boa coisa. Sentiu que diversos olhares na sala do esquadrão o seguiam conforme se dirigia à sala do canto. Estava iluminado ali dentro. As persianas das janelas que davam para a sala do esquadrão estavam abertas, assim como as janelas da rua, com vista para o Los Angeles Times Building. O tenente anterior sempre mantinha aquelas janelas fechadas, por medo de que repórteres estivessem espionando.

— O que foi, tenente? — perguntou Bosch.

— Tenho um negócio de que gostaria que você cuidasse.

— Como assim?

— Um caso. Recebi uma ligação de um analista chamado Pran, do Death Squad. Ele ligou um caso aberto de 2006 com um de 1999. Quero que você cuide disso. Parece bom. Aqui está o contato.

O’Toole entregou um post-it amarelo com um número de telefone anotado. Death Squad, ou Esquadrão da Morte, era um acrônimo extraoficial da nova Unidade de Avaliação de Dados e Teoria. Era parte de uma nova forma de investigar casos arquivados, chamada sintetização de dados.

Nos últimos três anos, o Esquadrão da Morte viera digitalizando inquérito de homicídios arquivados, criando um imenso banco de dados de homicídios não resolvidos, com facilidade de acesso e de comparação de informações. Suspeitos, testemunhas, armas, locais, formação de palavras — qualquer um entre a multiplicidade de detalhes de cenas de crime e investigações — eram constantemente jogados em um computador IBM do tamanho de uma cabine telefônica. Isso proporcionava toda uma nova linha de investigação para o arquivo morto.

Bosch não esticou o braço para pegar o post-it, mas sua curiosidade levou a melhor:

— Qual é a ligação entre os casos?

— Uma testemunha. Aconteceu de a mesma testemunha ver o atirador fugindo. Dois assassinatos de aluguel, um no Vale, outro no Centro, nenhuma ligação aparente, mas a mesma testemunha nas duas vezes. Para mim, parece que essa testemunha precisa ser encarada de um ângulo totalmente novo. Pegue o telefone.

Bosch não obedeceu.

— O que está acontecendo, tenente? Eu estou embalado no caso ­Jespersen. Por que está me dando isso?

— Você me disse ontem que o caso Jespersen estava empacado.

— Eu não disse que estava empacado. Disse que não era um caso CBO.

Bosch percebeu de repente o que estava acontecendo. Algo que Jordy Gant dissera, ligado ao que O’Toole estava tentando fazer. Além disso, ele sabia que na tarde anterior O’Toole estivera na reunião de comando, no décimo andar. Virou-se para sair da sala.

— Harry, espera aí, aonde você vai?

Bosch falou sem se voltar para olhar para ele:

— Dê para o Jackson. Ele precisa de um caso.

— Estou dando para você. Ei!

Bosch marchou pelo corredor central, passou pela porta e parou no saguão do elevador. O’Toole não o seguiu, e foi uma sábia decisão. As duas coisas com que Bosch tinha menos paciência eram política e burocracia. E ele achava que O’Toole estava envolvido nas duas, mas não necessariamente por escolha própria.

Pegou o elevador para o décimo andar, e quando a porta se abriu, foi em direção ao conjunto de salas do chefe de polícia. Havia quatro mesas na sala da frente. Atrás de três delas estavam policiais uniformizados. Atrás da quarta estava Alta Rose, que era possivelmente a civil mais poderosa em atividade no departamento de polícia. Ela montava guarda na entrada da sala do chefe de polícia havia quase três décadas. Era em parte o pit bull e em parte a menina dos olhos dele. Qualquer um que a subestimasse como simples secretária estava muito enganado. Ela cuidava da agenda do chefe e normalmente era quem lhe dizia onde estar e quando.

Bosch havia sido chamado à sala do chefe vezes suficientes ao longo dos anos para que Rose o reconhecesse à primeira vista. Sorriu amavelmente quando ele se aproximou de sua mesa.

— Detetive Bosch, como está?

— Ótimo, srta. Rose. Como andam as coisas por aqui?

— Se melhorar, estraga. Mas, desculpe, não sei se você está na agenda do chefe hoje. Será que me enganei?

— Não, engano nenhum, srta. Rose. Eu só queria saber se o Marty, quer dizer, o chefe, tem cinco minutinhos para mim.

Os olhos dela se desviaram por um momento para o telefone de múltiplos ramais na mesa. Um dos botões brilhava com a luz vermelha.

— Ai, querido, ele está em uma ligação.

Mas Bosch sabia que essa linha ficava permanentemente acesa, só para que Alta Rose pudesse dispensar quem quisesse. A ex-parceira de Bosch, Kiz Rider, havia trabalhado por algum tempo na sala do chefe e lhe contado esse segredo.

— Ele também tem um compromisso daqui a pouco e vai sair assim que...

— Três minutos, srta. Rose. É só perguntar para ele. Provavelmente vai estar até me esperando.

Alta Rose franziu o rosto, mas se levantou da mesa e desapareceu atrás da grande porta que dava para o sanctum sanctorum. Bosch aguardou.

O chefe Martin Maycock chegara longe. Vinte e cinco anos antes, havia sido um detetive da DRH destacado para a Especial de Homicídios. Assim como Bosch. Os dois nunca foram parceiros, mas trabalharam juntos em casos de força-tarefa, mais particularmente na investigação Dollmaker, que terminou quando Bosch baleou e matou o infame serial killer em seu refúgio usado para assassinatos em Silver Lake. Maycock era tão bonito quanto competente e seu nome peculiar pegou como uma marca. Ele usou a atenção da mídia e a celebridade que havia conquistado com esses casos importantes para ascender pela estrutura de comando do departamento, culminando com sua indicação para chefe pela comissão de polícia.

Os homens da corporação no início ficaram nas nuvens com a chegada de uma prata da casa ao décimo andar. No entanto, três anos depois de ele ­assumir o cargo, a lua de mel terminou. Maycock ficou encarregado de um departamento marcado por uma paralisante interrupção na contratação de novo pessoal, um enxugamento devastador do orçamento e os inúmeros e ­variados escândalos que ocorreram ao longo dos meses seguintes. A criminalidade desabou, mas isso não lhe garantiu nenhum crédito ou força política. Pior do que isso foi que os homens começaram a vê-lo como um político, mais ­interessado em aparecer no noticiário das seis do que em comparecer às chamadas diárias e às cenas de confronto policial. Um antigo apelido do chefe, Marty MyCock, foi revivido nos vestiários, estacionamentos e bares onde os policiais se reuniam, tanto em serviço quanto fora dele.

Por um bom tempo Bosch havia mantido a confiança, mas no ano anterior ele sem querer ajudou o chefe em uma traiçoeira batalha política com um vereador municipal que era o principal crítico do departamento. Uma armação em que Bosch foi usado por Kiz Rider. Ela ganhou uma promoção com isso. Era agora a capitã encarregada da West Valley Division. Bosch nunca mais falou com ela ou com o chefe desde então.

Alta Rose reapareceu pela porta da sala e a segurou aberta para Bosch.

— Você tem cinco minutos com o chefe, detetive Bosch.

— Obrigado, srta. Rose.

Bosch entrou e encontrou Maycock sentado atrás de uma enorme mesa enfeitada com uma variedade de objetos e suvenires policiais e esportivos. A sala era grande e incluía um grande balcão privativo, uma sala de reuniões anexa a uma mesa de quatro metros de comprimento e vista panorâmica do centro cívico.

— Harry Bosch, eu estava com o pressentimento de que teria notícias suas hoje.

Apertaram as mãos. Bosch ficou parado diante da mesa larga. Não podia negar que gostava do velho colega. Só não gostava do que ele estava fazendo nem do que havia se tornado.

— Então, por que usou O’Toole? Por que apenas não me chamou aqui em cima? Você me chamou no ano passado para aquele negócio do Irving.

— É, mas aquilo ficou confuso. Usei O’Toole e agora está confuso outra vez.

— O que você quer, Marty?

— Eu preciso dizer?

— Ela foi executada, Marty. Encostaram a mulher na parede, puseram a arma na cara dela e deram um tiro. Só porque era branca você não vai querer que eu resolva o caso?

— Não é bem assim. Claro que eu quero que você resolva. Mas é uma situação delicada. Se estourar a notícia de que o único homicídio que a gente resolveu no aniversário de vinte anos dos tumultos foi o da garota branca assassinada por um delinquente qualquer, a gente vai ter que lidar com uma situação bem feia. Faz vinte anos, mas as coisas não mudaram tanto assim, Harry. Nunca se sabe o que pode fazer a coisa pegar fogo outra vez.

Bosch se virou e olhou pelo vidro para o prédio da prefeitura.

— Você está falando de relações públicas. Eu estou falando de homicídio. O que aconteceu com a ideia de que todo mundo conta, seja quem for? Ou foi. Será que você se lembra pelo menos disso dos tempos na Especial de Homicídio?

— Claro que lembro, e isso continua valendo, Harry. Não estou pedindo que você abandone o caso. Apenas que dê um tempo. Espere um mês, depois do dia 1º, daí você pode ir fundo, só que resolvendo sem alarde. E a gente comunica à família e fica por isso mesmo. Se dermos sorte, o suspeito vai ter morrido e a gente não vai precisar se preocupar com um julgamento. Nesse meio-tempo, O’Toole me contou que tinha uma indicação quente do Esquadrão da Morte que podia passar para você. Quem sabe não vai ser esse que pode atrair o tipo de atenção que a gente quer?

Bosch balançou a cabeça.

— Eu já tenho um caso. Estou trabalhando nele agora.

Maycock estava perdendo a paciência com Bosch. Seu rosto foi ficando de um vermelho mais vivo.

— Põe esse na fila e pega a dica do esquadrão.

— Por acaso O’Toole falou que, se eu resolver esse aqui, talvez consiga resolver mais cinco ou seis?

Maycock fez que sim, mas desconsiderou a informação com um aceno de mão.

— Sim, só membros de gangues, e nenhum durante os tumultos.

— Essa ideia foi sua, de investigar esses casos.

— Como eu ia saber que você seria o único a conseguir avançar em um caso e justamente o da Branca de Neve? Deus do céu, só esse nome, Harry. Na verdade, aconteça o que acontecer, para de chamar ela desse jeito.

Bosch deu alguns passos pela sala. Parou em um ângulo em que a flecha do prédio da prefeitura era dobrada pelo reflexo na superfície envidraçada da ala norte do Prédio de Administração Pública, PAP. Homicídios novos ou casos arquivados, a caça aos assassinos não conhecia trégua. Era o único modo de proceder e o único modo como Bosch sabia proceder. Contudo, quando considerações políticas e sociais se intrometiam, sua paciência sempre ficava muito curta.

— Puta que pariu, Marty.

— Sei como você se sente.

Bosch finalmente voltou a olhar para ele.

— Não, não sabe. Não sabe mais.

— Você tem direito à sua opinião.

— Mas não de trabalhar no meu caso.

— De novo, não é isso que estou dizendo. Você insiste em apresentar a coisa de um jeito que não...

— Tarde demais, Marty. Estou perto de avançar.

— Avançar como?

— Eu precisava de informação sobre minha vítima. Procurei o jornal em que ela trabalhava e negociei a informação. Estou trabalhando nisso com um repórter. Se puser na geladeira agora, ele vai saber o motivo, e isso vai dar uma matéria até melhor do que se o caso for encerrado.

— Seu filho da puta. Que jornal? Na Suécia?

— Dinamarca. Ela era da Dinamarca. Mas não espere que isso fique só por lá. A mídia é globalizada. Pode ser que a matéria saia por lá, mas depois do pingue-pongue, vai terminar chegando aqui. E você terá que responder por que interrompeu a investigação.

Maycock pegou uma bola de beisebol em sua mesa e começou a manuseá-la entre os dedos, como um lançador amaciando uma bola nova.

— Já pode ir agora.

— O.k. E então?

— Cai fora logo daqui. A gente não tem mais nada para conversar.

Bosch fez uma pausa, depois começou a se mover na direção da porta.

— Vou tomar todas as precauções de relações públicas enquanto estiver nesse caso.

Era uma oferta pobre.

— Certo, faça isso, detetive — disse o chefe.

Ao sair do escritório, Bosch agradeceu a Alta Rose por deixá-lo entrar.


11

Eram seis da tarde quando Bosch bateu na porta da casa na 73rd Place. Normalmente, mandados de busca residenciais eram executados pela manhã, de modo que chamassem pouca atenção no bairro. As pessoas estavam trabalhando, na escola, dormindo até mais tarde.

Mas esse não era o plano daquela vez. Bosch não queria esperar. O caso pegara embalo e ele não queria ficar empacado.

Depois da terceira batida, a porta foi aberta por uma mulher baixa em um vestido simples e com uma bandana colorida enrolada na cabeça. Tatuagens lhe cobriam o pescoço e a linha do queixo como se fossem um lenço. Ela ficou atrás da porta de segurança, a grade de ferro que a maioria das casas no bairro tinha.

Bosch parou bem na frente e no centro da varanda. Era proposital. Atrás dele estavam dois policiais brancos da Unidade Especial de Combate a Gangues. Jordy Gant e David Chu ficaram mais atrás, à esquerda. Bosch queria deixar bem claro para a dona da casa que ela estava prestes a enfrentar uma grande invasão, policiais brancos uniformizados dando uma busca em sua residência.

— Gail Briscoe? Sou o detetive Bosch, do LAPD. Tenho um documento aqui que me autoriza a dar uma busca em sua residência.

— Busca? Para quê?

— O papel especifica que estamos procurando uma pistola Beretta modelo 92 que esteve sabidamente em posse de Trumont Story, que residiu aqui até sua morte, em 1º de dezembro de 2009.

Bosch mostrou o documento, mas a mulher não podia alcançá-lo por causa da porta de segurança. De qualquer forma, ele estava torcendo para que ela não tentasse.

Em vez disso, ela explodiu, ultrajada:

— Você só pode estar de sacanagem comigo. Ninguém vai entrar aqui para revistar nada. Esta é minha casa, seus filhos da puta.

— Senhora — disse Bosch calmamente —, seu nome é Gail Briscoe?

— É, isso mesmo, e esta é a porra da minha casa.

— A senhora pode, por favor, abrir a porta para ler este documento? O cumprimento dele é obrigatório, a senhora cooperando ou não.

— Não vou ler merda nenhuma. Sei dos meus direitos, e vocês não podem vir aqui e me mostrar um pedaço de papel assim na maior e esperar que eu abra a porta.

— Senhora, por...

— Harry, posso conversar com a moradora?

Era Gant, subindo à varanda no momento certo e bem de acordo com a encenação que haviam combinado.

— Claro, à vontade — disse Bosch bruscamente, como se estivesse mais irritado com a intrusão de Gant do que com Briscoe. Recuou, e Gant deu um passo à frente. — Ela tem cinco minutos para abrir a porta ou então vai ser algemada e enfiada na viatura e vamos entrar. Estou chamando o apoio.

Bosch tirou o celular do bolso e desceu para o gramado tomado pelo mato na frente da casa, de modo que fosse visto por Briscoe enquanto fizesse a ligação.

Gant começou a falar em voz baixa com a mulher junto à porta, fazendo o estilo Louis Gossett Jr., tentando jogar uma conversa para amaciá-la e conseguir o que queriam.

— Mama, se lembra de mim? Eu vim aqui faz uns meses. Eles me trouxeram junto para tentar manter a paz, mas não tem como segurar esses caras. Eles vão entrar e vão revirar sua casa toda. Abrir tudo, mexer nas suas coisas particulares, meter o nariz em qualquer coisa que alguém tem aí dentro. Você quer isso?

— Isso é uma puta conversa mole do caralho. Tru morreu faz três anos e agora eles me aparecem por aqui? Não resolveram nem a porra do assassinato e vêm aqui esfregar um mandado no meu nariz?

— Eu sei, mama, eu sei, mas você precisa pensar em si mesma agora. Não vai querer esses caras virando sua casa do avesso. Onde está a arma? A gente sabe que passou pela mão do Tru. É só entregar e esses caras deixam por isso mesmo.

Bosch encerrou seu telefonema fajuto e começou a voltar na direção da casa.

— Já deu, Jordy. O apoio está a caminho, está na hora.

Gant ergueu a mão com a palma estendida.

— Aguenta aí um segundo, detetive, a gente está trocando uma ideia.

Jordy olhou para Briscoe e tentou uma última vez:

— A gente está trocando uma ideia, certo? Você quer ou não quer evitar todo esse negócio? Não vai querer que os vizinhos vejam isso, você algemada dentro de uma viatura, vai?

Ele fez uma pausa, e Bosch também parou, e todo mundo esperou.

— Só você — disse Briscoe finalmente.

Ela apontou através da tela para Gant.

— Beleza. Vai me mostrar onde está?

Ela destrancou a porta de segurança e a abriu.

— Só você entra aqui.

Gant virou-se para encarar Bosch e piscou. Estava dentro. Passou pela porta e Briscoe puxou a porta e voltou a trancá-la.

Bosch não gostou dessa última parte. Subiu os degraus da varanda e olhou através das barras. Briscoe estava conduzindo Gant por um corredor em direção aos fundos da casa. Pela primeira vez, notou um menino de cerca de nove ou dez anos em um sofá, jogando um video game portátil.

— Jordy, tudo bem aí?

Gant olhou para trás, e Bosch pôs as mãos no puxador do portão e sacudiu a grade para lembrá-lo de que ele estava trancado do lado de dentro, com o apoio do lado de fora.

— Beleza! — exclamou Gant de volta. — A mama vai entregar para a gente. Ela só não quer um bando de branquelos detonando a casa dela.

Ele sorriu ao sumir de vista. Bosch ficou diante da porta, aproximando-se para ver se escutava algum som que pudesse significar problemas. Guardou o falso mandado, uma imitação antiga, no bolso interno do paletó, para usar em outra ocasião.

Esperou cinco minutos e não escutou nada, a não ser os bipes eletrônicos do jogo do garoto. Presumiu que fosse filho de Trumont Story.

— Ei, Jordy? — chamou ele finalmente.

O menino não tirava os olhos do video game. Ninguém respondeu.

— Jordy?

Mais uma vez sem resposta. Bosch tentou forçar a grade, mesmo sabendo que estava trancada. Virou-se para os dois policiais do apoio e sinalizou que contornassem a casa até os fundos para ver se havia uma porta aberta. Chu subiu rapidamente na varanda.

Então Bosch viu Gant aparecer no final do corredor. Estava sorrindo e segurando um grande saco plástico lacrado contendo uma pistola preta.

— Estou com ela, Harry. Relaxa.

Bosch disse a Chu para chamar os dois policiais de volta e respirou normalmente pela primeira vez em dez minutos. Foi o melhor modo de fazer aquilo funcionar. Não havia como O’Toole ter aprovado o pedido de um mandado. Não havia causa provável para um juiz autorizar uma busca três anos depois da morte do envolvido no caso. Então um mandado de busca fajuto foi a melhor estratégia. E o roteiro de Gant funcionou às mil maravilhas. Briscoe entregou a arma voluntariamente, sem que tivesse havido busca ilegal na casa.

Quando Gant se aproximou da porta, Bosch percebeu que o saco plástico com a arma estava molhado.

— Caixa da descarga?

O lugar óbvio. Um dos cinco esconderijos mais usados pelos criminosos. Todos assistiam a O poderoso chefão em algum ponto de seu processo de amadurecimento.

— Negativo. A bandeja de drenagem debaixo da máquina de lavar.

Bosch assentiu. Esse não estava nem entre os vinte e cinco mais. Briscoe contornou Gant e destrancou a porta de segurança. Bosch puxou a grade para que ele passasse.

— Agradeço pela cooperação, srta. Briscoe.

— Sai da merda da minha casa agora mesmo e não aparece mais aqui — respondeu ela.

— Certo, moça. Com todo prazer.

Bosch acenou ironicamente e seguiu Gant para fora da varanda. Gant lhe passou o saco plástico, e Harry deu uma conferida na arma conforme caminhavam. O plástico estava preto de bolor e todo riscado depois de anos de uso, mas dava para ver que era uma Beretta modelo 92.

No porta-malas do carro, Harry pegou um par de luvas de látex e tirou a arma do saco plástico para examiná-la com mais cuidado. A primeira coisa que notou foi que no lado esquerdo havia um arranhão profundo na lateral do cano e no corpo da arma, mas que fora pintado ou disfarçado com caneta marcador. Parecia ser a arma que Charles Baixinho Washburn descrevera como tendo encontrado em seu quintal depois do assassinato de Jespersen.

Bosch em seguida verificou o número de série, também no lado esquerdo, mas claro que havia sido apagado. Segurando a arma mais perto e virando-a em determinado ângulo contra a luz, pôde ver o lugar onde o metal havia sido raspado com diversos arranhões. Duvidou que aquilo tivesse sido causado pela lâmina do cortador de grama. Na verdade, parecia um esforço concentrado e deliberado para evitar que a arma fosse rastreada. Quanto mais olhava de perto o metal raspado, mais convencido ficava. Trumont Story ou algum dono anterior da arma havia removido de propósito o número de série.

— É ela? — perguntou Gant.

— Pelo jeito, é.

— Dá para ver o número de série?

— Não, alguém raspou.

Bosch ejetou o pente carregado e a bala da câmara. Então transferiu a arma para um novo saco de evidência. O teste da balística teria de confirmar a ligação da arma com o assassinato de Jespersen e os demais, mas Bosch tinha certeza de que estava segurando a primeira evidência sólida produzida no caso em vinte anos. Isso não necessariamente o aproximava mais do assassino de Anneke Jespersen, mas já era alguma coisa. Um ponto de partida.

— Já mandei vocês irem se catar! — exclamou Briscoe atrás de sua porta de segurança. — Vê se somem logo daqui ou meto todo mundo no pau por assédio! Por que não tentam fazer alguma coisa útil e encontram quem matou o Tru Story?

Bosch pôs a arma em uma caixa de papelão aberta que levava no porta-malas e fechou-o, olhando para a mulher por cima do teto do carro. Teve de se segurar para não responder ao dar a volta e entrar no lado do motorista.

Estavam com sorte. Charles Washburn não só não conseguira a fiança, como também precisara ser transferido da cela na 77th Street Station para a cadeia no Centro. Foram buscá-lo e o levaram outra vez à sala de interrogatório na divisão de detetives, e ele estava esperando lá quando Bosch, Chu e Gant entraram.

— Ei, vieram os três patetas agora? Precisa de três para me apertar dessa vez?

— Negativo, ninguém está aqui para apertar você, Charlie — disse Gant. — A gente está aqui para limpar sua barra.

— Ah, é? E como vai ser isso?

Bosch puxou uma cadeira e se sentou diante de Washburn. Pôs uma caixa de papelão fechada na mesa. Gant e Chu ficaram de pé na sala minúscula.

— A gente tem uma proposta para você — disse Gant. — Você leva a gente para a sua antiga casa e mostra em que parte da cerca deu aquele tiro, daí a gente vê o que dá para fazer e tira algumas daquelas acusações contra você. Sabe como é, testemunha colaborativa. Uma mão lava a outra.

— Tipo agora? Está escuro lá fora, cara.

— A gente tem lanterna, Baixinho — disse Bosch.

— Não sou testemunha colaborativa nenhuma, cara, e pode lavar sua mão onde você achar melhor. Eu só contei do Story porque o cara está morto. Pode me levar de volta para a cela agora.

Fez menção de se levantar, mas Gant pôs a mão em seu ombro de um jeito que era amigável, mas que ao mesmo tempo o impedia de sair da cadeira.

— Negativo, você não vai colaborar contra ninguém. Nada disso. Só vai mostrar para a gente onde foi parar aquela bala. É só isso que a gente quer.

— Só isso?

Seus olhos focalizaram a caixa na mesa. Gant olhou para Bosch, que tomou a dianteira:

— E a gente quer que você dê uma olhada em umas armas que a gente pegou e veja se consegue identificar a que encontrou vinte anos atrás. A arma que você deu para o Trumont Story.

Bosch se curvou e abriu a caixa. Tinham colocado duas outras pistolas 9 mm descarregadas em sacos de evidência ali dentro, junto com a arma entregue por Gail Briscoe. Bosch tirou as armas e pôs as três na mesa, depois colocou a caixa no chão. Gant então tirou as algemas de Washburn para que ele pudesse pegar cada uma e examinar, sem tirar do saco plástico.

Baixinho examinou a Beretta encontrada na casa de Tru Story por último. Observou os dois lados e então fez que sim com a cabeça.

— Esta aqui.

— Tem certeza disso? — perguntou Bosch.

Washburn passou um dedo pela lateral esquerda da Beretta.

— É, acho que sim, só que alguém arrumou o arranhado, mas ainda dá para sentir. É a marca do cortador.

— Não quero saber de “acho”. Essa é a arma ou não é?

— É, cara, essa mesma.

Bosch a pegou de volta e esticou o plástico sobre a armação, onde o número deveria estar gravado.

— Olha aqui. Estava assim quando você encontrou?

— Assim como?

— Não banca o otário, Charles. O número de série foi apagado. Estava assim quando você encontrou a arma?

— Você quer dizer essas marcas de arranhado? É, acho que sim. O cortador fez isso.

— Nenhum cortador fez isso. Isso foi feito com uma lima. E você está dizendo que tem certeza de que estava assim quando encontrou?

— Cara, não dá para ter certeza de nada que aconteceu há vinte anos. O que você quer que eu diga? Não lembro.

Bosch estava ficando irritado com aquela dança.

— Foi você quem fez isso, Charles? Para deixar mais valiosa para um cara como o Tru Story?

— Não, cara, não fui eu.

— Então me diga, quantas armas você já encontrou na vida, Charles?

— Só essa.

— Certo. E, assim que você encontrou, sabia que tinha valor, certo? Você sabia que podia dar para o chefe da rua e conseguir alguma coisa em troca. Talvez deixassem você entrar para o clube, certo? Então vamos parar com a enrolação, para de falar que não lembra. Se o número de série estava apagado quando você encontrou, você teria mencionado isso para o Trumont Story porque sabia que ia ser ainda mais interessante para ele. Então, Charles, como foi?

— É, cara, já estava apagado. O.k.? Estava apagado. Não tinha nenhum número de série quando eu encontrei, e foi isso que eu falei para o Tru, então sai de cima de mim.

Bosch percebeu que havia se debruçado sobre a mesa e invadido o que Washburn considerava seu espaço pessoal. Voltou a se curvar para trás.

— O.k., Charles, obrigado.

Era uma admissão significativa, porque confirmava algo sobre o modo como o assassino de Anneke Jespersen praticara o crime. Bosch vinha remoendo a questão do porquê de o assassino ter jogado a arma por cima da cerca. Teria acontecido alguma coisa no beco que o havia obrigado a se livrar da arma? O barulho do tiro havia chamado a atenção de alguém? O fato de estar usando uma arma que julgava impossível de rastrear tornava as coisas um pouco mais fáceis. Com o número de série apagado, o assassino teria pensado que a única forma de ser ligado ao homicídio seria se o pegassem com a arma do crime em seu poder. O melhor modo de evitar isso era se livrar da arma rapidamente. Isso explicava por que a arma havia sido jogada por cima da cerca.

Compreender a sequência de acontecimentos no crime era sempre importante para Bosch.

— Agora vocês vão retirar as acusações e essa merda toda? — perguntou Washburn.

Bosch voltou de suas elucubrações e olhou para ele.

— Não, ainda não. A gente ainda quer encontrar aquela bala.

— Para que vocês precisam disso? Vocês já estão com a arma.

— Porque isso vai ajudar a explicar a história. Júri gosta de detalhe. Vamos indo.

Bosch se levantou e começou a guardar as três armas de volta na caixa de papelão. Mostrando as algemas, Gant sinalizou que Washburn ficasse de pé. Washburn não se mexeu da cadeira e continuou protestando:

— Eu falei para você onde ela tá, cara. Você não precisa de mim.

Bosch subitamente se deu conta de algo e fez um gesto para que Gant recuasse.

— Vamos fazer o seguinte, Charles. Se você prometer cooperar quando a gente estiver lá, não precisa ir algemado. E a gente mantém sua ex bem longe. Que tal assim?

Washburn olhou para Bosch e assentiu com a cabeça. Harry percebeu a mudança. A preocupação do rapaz era que o filho o visse algemado.

— Mas, se tentar fugir — disse Gant —, eu vou atrás de você aonde for, e você não vai gostar quando eu pegar você. Agora vamos embora.

Dessa vez ele ajudou Washburn a se levantar da cadeira.

Meia hora mais tarde, Bosch e Chu estavam com Washburn no quintal de sua antiga casa. Gant ficou na frente, vigiando a ex de Washburn, para assegurar que a mulher enraivecida não armasse nenhum barraco para cima do pai de seu filho.

Não levou muito tempo para Washburn identificar a tábua da cerca na qual havia acertado o tiro, vinte anos antes. A marca da penetração ainda era visível, sobretudo na luz em ângulo das lanternas. O buraco havia rompido a resina aplicada na madeira e permitido a penetração de água. Chu primeiro tirou uma foto com o celular, enquanto Bosch segurava um cartão de visita junto ao ponto de perfuração para dar ideia da escala. Depois Bosch abriu seu canivete e o enterrou na madeira apodrecida, rapidamente extraindo o projétil de chumbo. Rolou-o entre os dedos para limpar e o segurou no alto. A bala que estava antes dessa no pente da arma havia matado Anneke Jespersen.

Bosch soltou a bala em um pequeno saco de evidência aberto por Chu.

— Agora posso cair fora? — perguntou Washburn, seu olhar se desviando cautelosamente para a porta dos fundos da casa.

— Ainda não — disse Bosch. — A gente precisa voltar para a 77th e preencher uma papelada.

— Você disse que, se eu ajudasse, retirava as acusações. Testemunha colaborativa, essas coisas.

— Você colaborou, Charles, e a gente reconhece. Mas eu nunca disse que ia retirar as acusações. Dissemos que, se você ajudasse, a gente ia ajudar você. Então vamos voltar agora, dar uns telefonemas e melhorar um pouco sua situa­ção. Tenho certeza de que a gente vai conseguir resolver a acusação de droga. Mas a pensão alimentícia, disso você ainda precisa cuidar. É um mandado emitido por um juiz. Vai ter que comparecer a uma audiência para resolver essa parada.

— Era uma juíza, e como eu vou resolver esse lance se me meterem em cana?

Bosch se aprumou diante de Washburn e separou os pés. Se Baixinho pretendia fugir, aquele era o momento. Chu percebeu a situação e também mudou de postura.

— Bom — disse Bosch —, acho que essa é uma pergunta que você vai precisar fazer para o seu advogado.

— Meu advogado é uma merda. Ainda nem vi o cara.

— Bom, quem sabe não está na hora de você arrumar um novo advogado? Vamos indo.

Quando atravessavam o quintal na direção do portão quebrado, o rosto de um menino surgiu atrás da cortina de uma das janelas dos fundos. Washburn ergueu a mão e fez sinal de positivo.

Quando saíram da 77th Street Station, deixando Washburn na cela da delegacia, Bosch viu que estava muito tarde para ir diretamente para o Laboratório Forense Regional, na Cal State, com a arma e a bala que haviam encontrado. Assim, ele e Chu voltaram ao PAP e guardaram ambas as coisas no cofre de evidências da Unidade de Abertos/Não Resolvidos.

Antes de ir embora, passou em sua mesa para verificar os recados e viu um post-it colado no encosto de sua cadeira. Sabia que era do tenente O’Toole mesmo antes de ler. Era um dos métodos prediletos de comunicação do tenente. O bilhete dizia simplesmente PRECISAMOS CONVERSAR.

— Parece que você tem um tête-à-tête com o O’Toole logo de manhã, Harry — disse Chu.

— É, mal posso esperar.

Pegou o papelzinho e o jogou no lixo. Não estava com a menor pressa de procurar O’Toole no dia seguinte de manhã. Tinha mais o que fazer.


12

Eles trabalharam em equipe. Madeline fez o pedido pela internet e Bosch passou na Birds da Franklin para pegar a comida. Ainda estava quente quando ele chegou em casa. Abriram as embalagens para viagem e as empurraram pela mesa quando perceberam que haviam trocado os pedidos. Ambos tinham pedido o frango no espeto, característico da casa, mas Bosch optara pelo combo de feijões e salada de repolho com molho barbecue, e sua filha pedira como acompanhamento o macarrão com queijo e o molho malaio doce e picante. O pão lavash veio embrulhado em papel-alumínio, e em um terceiro recipiente menor estava o picles frito que combinaram dividir.

A comida estava deliciosa. Não era tão bom quanto comer na própria Birds, mas bem perto disso. Embora estivessem sentados de frente um para o outro, não conversaram muito. Bosch estava mergulhado em pensamentos ligados ao caso e ao modo como avançaria agora que havia recuperado a arma. A filha, nesse meio-tempo, lia à mesa. Bosch não reclamou, porque considerava ler enquanto comia muito melhor do que mandar mensagens de texto ou ficar no Facebook, coisas que ela normalmente fazia.

Bosch era um detetive impaciente. Para ele, o embalo do caso era tudo. Como obtê-lo, como mantê-lo, como não perder o foco. Ele sabia que podia entregar a arma à Unidade de Armas de Fogo para uma análise e possível restauração do número de série. No entanto, muito provavelmente ficaria semanas ou até meses sem ter notícia dos resultados. Tinha de encontrar um modo de evitar isso, de driblar a burocracia e a sobrecarga de casos. Depois de um tempo, acreditou ter um plano que talvez funcionasse.

Não demorou para Bosch terminar sua comida. Olhou para o outro lado da mesa e viu que poderia conseguir um pouco do macarrão com queijo da filha se tivesse sorte.

— Quer mais picles? — perguntou ele.

— Não, pode comer tudo — disse ela.

Ele comeu os picles restantes em uma só bocada. Olhou o livro que estava na mão dela. Era uma leitura para a escola, tarefa de literatura inglesa. Ela estava quase no fim. Bosch deduziu que não restariam mais que uns dois capítulos.

— Nunca vi você devorar um livro desse jeito. Vai terminar hoje?

— Não era para a gente ler o último capítulo hoje, mas não tem como eu parar. É triste.

— O herói morre no final?

— Não... quer dizer, isso eu ainda não sei. Acho que não morre. É triste porque vai acabar.

Bosch assentiu. Não era muito chegado a leitura, mas sabia o que ela queria dizer. Lembrou-se de ter se sentido desse jeito quando chegara ao fim de Straight Life, que devia ter sido o último livro que realmente lera do começo ao fim.

Madeline deixou o livro de lado para terminar de comer. Bosch percebeu então que não sobraria nada do macarrão com queijo para ele.

— Sabe, você meio que me lembra ele — disse ela.

— Sério? O personagem do livro?

— O sr. Moll diz que tem a ver com inocência. Ele quer salvar as criancinhas antes que elas caiam no penhasco. É uma metáfora para a perda da inocência. Ele sabe como é a vida real e quer impedir que as crianças inocentes enfrentem isso.

O sr. Moll era o professor. Maddie havia contado a Bosch que durante as provas, na classe, ele subia na mesa e ficava de pé ali, de olho para ninguém colar. Os alunos o chamavam de “O apanhador no campo de observação”.

Bosch não sabia o que dizer, porque nunca tinha lido o livro. Havia passado a juventude em reformatórios e, ocasionalmente, em lares para menores. Ninguém nunca havia colocado aquele livro em sua mão. Mesmo que isso tivesse acontecido, ele provavelmente não teria lido. Não era um bom aluno.

— Bom, acho que eu só entro em cena depois que elas caem no penhasco, você não concorda? Eu investigo homicídios.

— Sei, mas não é isso que faz você querer trabalhar nisso — disse ­Maddie. — Você foi privado de coisas no passado. Acho que foi o que fez você querer ser policial.

Bosch ficou em silêncio. A filha era muito perspicaz, e sempre que ela acertava na mosca algum comentário pessoal ele ficava meio constrangido e meio admirado. Também sabia que, na questão de grandes privações do passado, os dois estavam no mesmo barco. Ela dissera que queria fazer o que o pai fazia. Bosch ficava tão lisonjeado quanto assustado com isso. Secretamente esperava que algo surgisse no meio do caminho — cavalos, meninos, música, qualquer coisa — e dominasse sua intensidade e seu interesse para fazê-la mudar de rumo.

Até o momento, nada disso havia acontecido. Então ele fazia tudo o que estava a seu alcance para ajudá-la a se preparar para o futuro.

Maddie esvaziou toda a sua embalagem, só sobraram ossos de frango. Era uma menina cheia de energia e já não acontecia mais de Bosch finalizar o que ela deixava no prato. Ele recolheu tudo da mesa e foi até a cozinha para jogar no lixo. Então abriu a geladeira e pegou a garrafa da cerveja Fat Tire que havia restado de seu aniversário.

Quando voltou, Maddie estava no sofá com o livro.

— Ei, eu preciso sair supercedo amanhã de manhã — disse ele. — Será que você mesma pode cuidar do seu almoço e de tudo quando acordar?

— Claro.

— O que você vai levar?

— O de sempre. Miojo. E eu pego um iogurte nas máquinas.

Macarrão e leite fermentado com bactérias. Não era o tipo de coisa que Bosch um dia consideraria almoço.

— Como você está de grana para as máquinas?

— O suficiente para o restante da semana.

— E aquele menino que estava enchendo o seu saco porque você ainda não usa maquiagem?

— Eu evito. Não estou preocupada, pai, e não é “ainda”. Nunca vou usar maquiagem.

— Desculpe, não foi isso o que eu quis dizer.

Ele esperou, mas esse foi o fim da conversa. Bosch se perguntou se o fato de dizer que não estava preocupada com o bullying na escola era, na verdade, um jeito de a filha dizer que estava. Queria que Maddie tirasse os olhos do livro enquanto conversavam, mas ela havia chegado ao último capítulo. Ele deixou para lá.

Foi com a cerveja para o deque nos fundos, contemplar a cidade. O ar estava fresco e agradável. Deixava as luzes no cânion e na via expressa ali embaixo ainda mais nítidas e brilhantes. Noites frias sempre faziam Bosch se sentir sozinho. O frio penetrava seus ossos e se alojava ali, levando-o a pensar nas coisas que havia perdido com o tempo.

Virou-se e olhou através do vidro para a filha no sofá. Observou-a terminar o livro que estava lendo. Viu que ela chorou ao chegar à última página.


13

Bosch estava no estacionamento na frente do Laboratório Forense Regional às seis horas na quinta-feira. A luz do amanhecer mal começara a invadir o céu a leste de LA. O campus da Cal State em torno do edifício estava tranquilo àquela hora. Bosch parou em uma vaga que lhe permitia ver os funcionários do laboratório conforme estacionavam e iam na direção do prédio. Tomou um gole do café e aguardou.

Às 6h25, viu a pessoa que queria. Deixou seu café de lado, pôs o pacote com a arma embaixo do braço e se moveu entre os carros e através das faixas para cercar sua presa. Alcançou o homem antes que ele tivesse tempo de passar pela entrada do edifício envidraçado.

— Pistol Pete, justamente quem eu queria encontrar. Eu já ia subindo para o terceiro.

Bosch esticou o braço e segurou a porta aberta para Peter Sargent. O homem era um veterano na Unidade de Análise de Armas de Fogo do laboratório. Haviam trabalhado juntos em diversos casos.

Sargent usou um cartão para passar pelo portão eletrônico. Bosch mostrou seu distintivo para o funcionário da segurança atrás do balcão e foi atrás de Sargent. Depois o seguiu até o elevador.

— O que foi, Harry? Parece que você estava me esperando lá fora.

Bosch sorriu meio sem graça, como que dizendo “É, você me pegou”, e assentiu.

— É, acho que estava mesmo. Porque você é o cara de que eu preciso. Pistol Pete.

O L.A. Times tinha lhe dado o apelido, vários anos antes, no título de uma matéria sobre seu trabalho incansável ao ligar uma Kahr P9 aos projéteis de quatro homicídios aparentemente não relacionados. Ele havia fornecido o testemunho principal no processo que condenou um assassino de aluguel da máfia.

— Qual é o caso? — perguntou Sargent.

— Um homicídio cometido há vinte anos. Ontem a gente finalmente encontrou o que tem grande chance de ser a arma do crime. Preciso de uma análise da bala, mas preciso ver também se conseguimos recuperar o número de série. Isso é fundamental. Se conseguirmos o número, acho que chegamos ao suspeito. E resolvemos o caso.

— Simples assim, hein?

Ele estendeu a mão para pegar o pacote quando as portas do elevador se abriram no terceiro andar.

— Bom, nós dois sabemos que nada é simples, mas o caso pegou certo embalo e não quero perder o pique.

— O número foi limado ou queimado com ácido?

Estavam andando pelo corredor em direção à entrada de porta dupla da Unidade de Armas de Fogo.

— Me parece que usaram lima. Mas você consegue recuperar, certo?

— Às vezes conseguimos, pelo menos parcialmente. Mas você sabe que o processo leva quatro horas, não sabe? Metade de um dia. E sabe que temos que fazer essas coisas por ordem de chegada. A espera está em cinco semanas, nada de furar fila.

Bosch estava pronto para isso.

— Não estou pedindo para furar a fila. Só queria saber se você podia dar uma olhada nisso no seu horário de almoço e, se parecer promissor, usar seu kit de mágica e checar até o fim do dia para ver o que consegue. Quatro horas, mas nenhum minuto tirado do seu período normal de trabalho.

Bosch abriu os braços, como se estivesse explicando algo tão simples que chegava até a ser bonito.

— Assim, a fila é respeitada e ninguém fica aborrecido.

Sargent sorriu quando ergueu a mão para digitar a senha na fechadura eletrônica da unidade. Digitou 1-8-5-2 no teclado numérico, o ano de fundação da Smith & Wesson.

Ele abriu a porta.

— Não sei, não, Harry. Só temos cinquenta minutos de intervalo, e eu preciso sair para almoçar. Eu não trago comida, como outros fazem por aqui.

— É por isso que você precisa me dizer o que vai querer comer, assim eu posso estar de volta aqui às 11h15.

— Está falando sério?

— Seríssimo.

Sargent o conduziu a uma bancada de trabalho que consistia basicamente em um banquinho estofado e uma mesa alta cheia de peças e canos de armas, bem como diversos sacos de evidência contendo balas ou pistolas. Pregado na parede acima da mesa havia um recorte com a manchete do Times:

“PISTOL PETE” CRUCIAL EM PROCESSO
CONTRA SUPOSTO ASSASSINO DA MÁFIA

Sargent pôs o pacote de Bosch bem no centro da mesa, próximo de si, o que Harry tomou como bom sinal. Bosch olhou em torno para ter certeza de que ninguém o veria tentando cooptar o trabalho de Sargent. Eram as únicas pessoas na unidade até aquele momento.

— Então, o que me diz? — quis saber Bosch. — Aposto que, depois que se mudaram para cá, você nunca mais viu um filé au poivre do Giamela’s na sua frente.

Sargent balançou a cabeça, pensativo. O laboratório regional tinha poucos anos de idade e havia combinado os laboratórios criminais do LAPD e do Gabinete do Xerife do Condado de Los Angeles. A Unidade de Armas do LAPD antes ficava na Northeast Station, perto de Atwater. O maior sucesso ali era uma sanduicheria chamada Giamela’s. Bosch e quem quer que fosse seu parceiro no momento sempre davam uma passada por lá, chegando a programar as requisições de balística para o horário do almoço e muitas vezes levando seus sanduíches para comer no Forest Lawn Memorial Park. Um dos parceiros de Bosch era louco por beisebol e sempre insistia em que dessem uma pausa no trabalho para visitar o túmulo de Casey Stengel. Se o lugar não estivesse preservado de forma adequada e sem mato, ele alertava pessoalmente os zeladores para o problema.

— Sabe do que eu sinto saudade? — disse Sargent. — Do sanduíche de almôndega que eles fazem. Aquele molho era bom pra caramba.

— Um sanduíche de almôndega saindo — disse Bosch. — Quer que eu mande pôr queijo?

— Não, sem queijo. Mas será que não dá para trazer o molho à parte, em um potinho ou algo do tipo? Assim o sanduíche não fica encharcado.

— Bem pensado. A gente se vê às 11h15.

Com tudo combinado, Bosch virou-se para deixar a unidade antes que Sargent mudasse de ideia.

— Ei, espere um pouco, Harry — disse Sargent rapidamente. — E a comparação da balística? Você precisa disso também, não?

Bosch ficou em dúvida se Sargent não estaria cobiçando um segundo sanduíche.

— Preciso, mas quero o número de série primeiro, porque posso começar a trabalhar nisso enquanto a balística é feita. Além do mais, tenho certeza de que o resultado vai bater. Uma testemunha identificou a arma.

Sargent fez que sim e Bosch começou a se dirigir à porta outra vez.

— Até mais tarde, Pistol Pete.

Bosch foi para o computador assim que se sentou a sua mesa. Ele havia ajustado um alarme em casa para as quatro da manhã a fim de verificar se recebera algum e-mail da Dinamarca, mas não havia nenhum. Ali, ao abrir sua caixa de entrada, viu uma mensagem de Mikkel Bonn, o jornalista com quem havia conversado.

Detetive Bosch, conversei com Jannik Frej agora e escrevi as respostas dele em negrito. O senhor sabe se Anneke Jespersen veio aos Estados Unidos para trabalhar em uma matéria? Caso sim, do que se tratava? O que ela estava fazendo aqui? Frej disse que ela estava trabalhando em uma matéria envolvendo crimes de guerra da Tempestade no Deserto, mas não era seu costume revelar a matéria inteira até ter certeza. Frej não sabe exatamente com quem ela andava se encontrando ou a que lugar estava indo nos EUA. O último recado que recebeu dela foi que estava a caminho de LA para a matéria e que cobriria os tumultos se o BT pagasse em separado. Fiz muitas perguntas sobre isso e Frej insistiu que ela lhe contou que já estava a caminho de LA por causa da matéria sobre a guerra, mas que ia cobrir os tumultos se o jornal pagasse. Isso é de alguma ajuda?

O que o senhor pode me dizer sobre os destinos dela nos Estados Unidos? Ela foi a Atlanta e San Francisco antes de vir para LA. Por quê? O senhor sabe se ela passou por alguma outra cidade dos EUA? Frej não tem respostas para isso.

Antes de vir aos EUA, ela foi para Stuttgart, Alemanha, e se hospedou em um hotel perto de uma base militar norte-americana. O senhor sabe por quê? Esse foi o início da matéria, mas Frej não sabe com quem Anneke se encontrou. Ele acredita que devia haver uma unidade de investigação de crimes de guerra na base militar por lá.

O e-mail parecia ser de alguma ajuda. Bosch se recostou com na cadeira, impaciente, e ficou olhando para a tela do computador. As barreiras de distância e língua eram frustrantes. As respostas de Frej eram animadoras, porém incompletas. Bosch tinha de redigir uma resposta que levasse a mais informações. Curvou-se para a frente e começou a digitar.

Sr. Bonn, obrigado por isso. Seria possível eu conversar diretamente com Jannik Frej? Não podemos mesmo conversar em inglês? A investigação está ganhando ímpeto e esse procedimento em particular anda muito devagar, sendo preciso um dia inteiro para receber respostas para minhas perguntas. Se eu não puder conversar diretamente com ele, podemos marcar uma teleconferência com o senhor como intérprete? Por favor, responda assim que

O telefone na mesa de Bosch tocou e ele atendeu sem desgrudar os olhos da tela do computador.

— Alô.

— Aqui é o tenente O’Toole.

Bosch virou-se e olhou na direção da sala do canto. Podia ver pelas persianas abertas que O’Toole estava à mesa, olhando direto para ele.

— O que foi, tenente?

— Viu meu bilhete dizendo que precisava falar com você imediatamente?

— Vi, peguei ontem à noite, mas o senhor já tinha ido embora. Hoje eu vi que ainda não tinha chegado. Preciso mandar um e-mail importante para a Dinamarca. As coisas es...

— Quero você na minha sala. Agora mesmo.

— Já estou indo.

Bosch terminou de digitar rapidamente e enviou o e-mail. Então se levantou e foi até a sala do tenente, averiguando a sala do esquadrão no caminho. Ninguém havia chegado ainda, eram só O’Toole e ele. Fosse lá o que estivesse para acontecer, não haveria testemunhas imparciais.

Quando Bosch entrou na sala, O’Toole lhe disse para se sentar. Bosch obedeceu.

— É por causa do Esquadrão da Morte? Porque eu...

— Quem é Shawn Stone?

— O quê?

— Eu perguntei quem é Shawn Stone.

Bosch hesitou, se perguntando o que O’Toole estava tentando fazer. Instintivamente soube que a melhor medida era jogar aberto e com franqueza.

— É um estuprador condenado, cumprindo pena em San Quentin.

— E que assunto você tem para resolver com ele?

— Não tenho nenhum assunto para resolver com ele.

— Você conversou com ele na segunda quando esteve lá?

O’Toole estava olhando para um documento de uma só página que segurava, os cotovelos apoiados na mesa.

— Conversei.

— Você depositou cem dólares na conta da cantina para ele?

— Depositei, isso mesmo. O que isso...

— Já que você diz que não tem nenhum assunto para resolver com ele, qual é sua relação com o detento?

— Ele é filho de uma amiga minha. Sobrou um tempo quando estive lá, então pedi para ver o cara. Eu nunca tinha me encontrado com ele antes disso.

O’Toole franziu o rosto, os olhos ainda no papel.

— Então, com o dinheiro dos contribuintes, você fez uma visita ao filho de sua amiga e depositou cem dólares na conta da cantina para ele. Entendi direito?

Bosch fez uma pausa para avaliar a situação. Ele sabia o que O’Toole estava fazendo.

— Não, o senhor não entendeu direito, tenente. Eu fui até lá, com o dinheiro dos contribuintes, para interrogar um condenado com informação vital no caso Anneke Jespersen. Obtive essa informação e, com o tempo que me sobrava antes de precisar voltar para o aeroporto, visitei Shawn Stone. Também fiz o depósito na conta dele. A coisa toda não durou mais que meia hora e não provocou nenhum atraso na minha volta para Los Angeles. Se vai me acusar de alguma coisa, tenente, vai precisar de mais do que isso.

O’Toole assentiu, pensativo.

— Bom, vamos ver o que o BPP decide.

Bosch sentiu vontade de esticar o braço por cima da mesa e agarrar O’Toole pela gravata. O BPP era Bureau de Padrões Profissionais, o novo nome da corregedoria. Para Bosch, uma flor que ganha outro nome tem o mesmo cheiro que tinha antes. Ele se levantou.

— O senhor está entrando com uma denúncia contra mim?

— Estou.

Bosch balançou a cabeça. Não acreditava na falta de visão do superior.

— Percebe que todos os homens vão ficar contra o senhor se insistir nisso?

Ele estava se referindo ao esquadrão. Assim que os demais detetives descobrissem que O’Toole estava denunciando Bosch por algo tão trivial quanto uma conversa de quinze minutos em San Quentin, o pouco respeito de que O’Toole ainda gozava ali na sala ia desmoronar como uma ponte de palitos de dente. Por estranho que parecesse, Bosch estava mais inquieto com O’Toole e sua situação na unidade do que com a investigação do BPP que resultaria de sua atitude impensada.

— Essa não é minha preocupação — disse O’Toole. — Estou preocupado com a integridade da unidade.

— Está cometendo um erro, tenente, e a troco de quê? Disso? É porque eu não deixei que encerrasse minha investigação?

— Posso assegurar que uma coisa não tem nada a ver com a outra.

Bosch balançou a cabeça outra vez.

— E eu posso assegurar que vou sair dessa sem problemas, mas o senhor, não.

— Isso é algum tipo de ameaça?

Bosch nem se dignou a responder. Deu as costas e começou a sair da sala.

— Aonde está indo, Bosch?

— Tenho um caso no qual trabalhar.

— Não por muito tempo.

Bosch voltou para sua mesa. O’Toole não tinha autoridade para suspendê-lo. As regras da Liga de Proteção Policial eram claras. Uma investigação do BPP deveria conduzir a uma evidência e queixa formalizadas antes que isso pudesse acontecer. O que O’Toole estava fazendo, porém, aumentaria a pressão do tempo. A necessidade de Bosch de manter o embalo da investigação era ainda maior.

Quando voltou para a sala, Chu estava à sua mesa com o café.

— Como estão as coisas, Harry?

— Indo.

Bosch se sentou pesadamente na cadeira. Bateu na barra de espaço do teclado, e a tela do computador se iluminou. Viu que já havia recebido uma resposta de Bonn. Abriu o e-mail.

Detetive Bosch, vou falar com Frej para marcar a teleconferência. Volto a entrar em contato com os detalhes assim que possível. Acho que neste ponto devemos deixar nossas intenções claras. Eu lhe prometo confidencialidade neste assunto contanto que o senhor me assegure que terei a primeira matéria exclusiva quando efetuar uma prisão ou procurar ajuda do público, o que vier primeiro.

Estamos combinados?

Bosch sabia que sua interação com o jornalista dinamarquês acabaria chegando a isso. Ele clicou no botão de resposta e disse a Bonn que concordava em lhe fornecer uma exclusiva assim que surgisse alguma coisa que fosse digna de noticiar.

Enviou o e-mail com uma forte pancada no ENTER, então girou na cadeira e olhou na direção da sala do tenente. Podia ver O’Toole ali dentro, ainda a sua mesa.

— Qual é o problema, Harry? — perguntou Chu. — O que o Tool aprontou agora?

— Nada — disse Bosch. — Não esquenta com isso. Preciso ir.

— Ir aonde?

— Ver Casey Stengel.

— Bem, precisa de apoio?

Bosch olhou por um momento para o parceiro. Chu era sino-americano e, até onde Bosch sabia, não entendia nada de esportes. Havia nascido muito depois de Casey Stengel ter morrido. Parecia mesmo não saber quem era o famoso jogador de beisebol que depois se tornara treinador.

— Não, acho que não vou precisar de apoio. A gente se fala mais tarde.

— Vou estar por aqui, Harry.

— Eu sei.


14

Bosch passou uma hora zanzando pelo Forest Lawn enquanto esperava para pegar sanduíches no Giamela’s. Por respeito ao antigo parceiro, Frankie Sheehan, começou o passeio pelo local de descanso final de Casey Stengel e em seguida fez o tour de celebridades, passando por lápides gravadas com nomes como Gable e Lombard, Disney, Flynn, Ladd e Nat King Cole, conforme se dirigia à seção Bom Pastor do vasto cemitério. Uma vez ali, prestou seus respeitos ao pai que não conhecera. A lápide dizia “J. Michael Haller, pai e marido”, mas Bosch sabia que nunca havia sido incluído naquela equação familiar.

Depois de alguns minutos, desceu o morro até um ponto mais plano, onde as covas eram mais próximas. Levou algum tempo, porque estava puxando uma lembrança de doze anos, mas finalmente encontrou a lápide que marcava o túmulo de Arthur Delacroix, um menino em cujo caso Bosch havia trabalhado certa vez. Um vaso de plástico barato contendo hastes secas de flores mortas jazia junto à lápide. Pareciam constituir um lembrete de que o menino fora esquecido em vida antes de ser esquecido na morte. Bosch pegou o vaso e jogou em uma lata de lixo quando deixava o cemitério.

Ele chegou à Unidade de Análise de Armas de Fogo às onze horas, dois sanduíches italianos do Giamela’s ainda quentes em um saco para viagem, com o molho à parte. Foram comer em uma das copas. Pistol Pete gemeu ao dar sua primeira dentada no sanduíche de almôndega, tão alto que levou dois outros analistas de armas de fogo presentes a querer saber o que estava acontecendo. Sargent e Bosch, muito a contragosto, ofereceram um pedaço de seus sanduíches, e Bosch fez dois novos amigos para o resto da vida.

Quando chegaram à bancada de trabalho de Sargent, Bosch viu que a Beretta que trouxera já estava em um torno com o lado esquerdo voltado para cima. A armação havia sido polida com lã de aço, como preparativo para a tentativa de Sargent de obter o número de série.

— Tudo pronto para começar — disse Sargent.

Ele calçou um par de grossas luvas de borracha, pôs um protetor de plástico nos olhos e tomou seu lugar no banquinho diante do torno. Então puxou a lente de aumento articulada e acendeu a luz do instrumento.

Bosch sabia que toda arma fabricada legalmente no mundo portava um número de série único, pelo qual o proprietário, bem como o roubo, podia ser rastreado. Quando alguém queria impedir o rastreio da arma, geralmente limava o número de série com uma variedade de ferramentas ou tentava queimá-lo com ácido.

No entanto, a fabricação da arma e o processo de gravação envolvido na estampagem do número de série proporcionavam aos agentes da lei antes de mais nada uma chance muito grande de recuperá-lo. Quando um número de série era gravado na superfície de uma arma durante a fabricação, o processo comprimia o metal sob as letras e os números. A superfície podia mais tarde ser limada ou queimada com ácido, mas com muita frequência conserva o padrão de compressão mais abaixo. Vários métodos podiam ser usados para extrair o número. Um envolvia a aplicação de uma mistura de ácidos e sais de cobre que reagia com o metal comprimido, revelando os caracteres. Outro envolvia o uso de ímãs e resíduo de ferro.

— Quero começar pelo Magnaflux, porque se funcionar é mais rápido e não danifica a arma — disse Sargent. — A gente ainda tem a balística para fazer com essa belezinha, e quero ver tudo funcionando direito.

— Você que manda — disse Bosch. — Da minha parte, quanto mais rápido, melhor.

— Certo, vamos ver o que conseguimos.

Sargent prendeu um grande ímã redondo no lado de baixo da arma, diretamente sob o mecanismo deslizante.

— Primeiro vamos magnetizar...

Ele esticou o braço para pegar um frasco plástico em uma prateleira acima da mesa, agitou o conteúdo e apontou o spray para a arma.

— Agora a gente usa a receita patenteada de ferro e óleo de Pistol Pete...

Bosch se curvou para ver mais de perto quando Sargent borrifou a arma.

— Ferro e óleo?

— O óleo é viscoso o bastante para manter o ferro magnetizado em suspensão. Você borrifa o líquido e o ímã atrai o ferro para a superfície da arma. Onde o número de série estava gravado o metal é mais denso, a atração magnética é maior. O ferro deve acabar se alinhando com a numeração. Em teoria, pelo menos.

— Quanto tempo?

— Não demora muito. Se funcionar, funcionou. Senão a gente vai de ácido, mas aí provavelmente vai danificar a arma. Evitamos fazer isso enquanto a balística não tiver terminado. Você já tem alguém a postos para isso?

— Ainda não.

Sargent estava falando sobre a análise que confirmaria que a bala que matara Anneke Jespersen fora disparada da arma diante deles. Bosch estava seguro disso, mas era necessário haver a confirmação forense. Ele tinha forçado o procedimento a seguir de trás para a frente a fim de não perder o embalo. Queria aquele número de série para poder rastrear a arma, mas ao mesmo tempo sabia que, se o processo de óleo e ferro de Sargent não funcionasse, teria de desacelerar um pouco as coisas e proceder na ordem adequada. Com O’Toole apresentando sua queixa ao BPP a demora efetivamente arruinaria o progresso do caso, exatamente o que o tenente esperava conseguir a fim de conquistar a aprovação de seu superior.

— Bom, então vamos torcer para isso funcionar — disse Sargent, interrompendo o curso dos pensamentos de Bosch.

— Certo — disse Harry. — Eu aguardo ou você prefere me ligar?

— Espero ter alguma coisa daqui a quarenta minutos. Pode aguardar, se quiser.

— Vamos fazer o seguinte, você me liga assim que souber.

— Pode deixar, Harry. Obrigado pelo sanduíche.

— Obrigado pelo serviço, Pete.

Houve momentos na carreira de Bosch em que ele sabia de cor o telefone do Escritório de Assistência à Defesa da Liga de Proteção Policial. Quando voltou para o carro, porém, abriu o celular para falar com um representante de defesa sobre a questão de O’Toole e se deu conta de que havia esquecido o número. Esperou um momento para ver se conseguia lembrar. Dois jovens criminalistas atravessaram o estacionamento, o vento soprando seus jalecos brancos. Ele deduziu que fossem especialistas em cena de crime, pois não os conhecia. Bosch raramente trabalhava em cenas de crime nos últimos tempos.

Antes que o número da Liga de Proteção Policial lhe viesse à memória, o celular começou a vibrar em sua mão. A identificação no visor mostrou uma sequência de números depois de um sinal de mais. Ele sabia que era uma ligação internacional.

— Harry Bosch.

— Sim, detetive, aqui é Bonn. Estou com o sr. Jannik na linha. Pode conversar com ele agora? Eu posso traduzir.

— Tudo bem, só um minuto.

Bosch pôs o celular no banco enquanto tirava uma caderneta e uma caneta.

— O.k., estou pronto. Sr. Jannik, está aí?

Houve o que ele presumiu ser a repetição de sua pergunta em dinamarquês e então uma nova voz respondeu:

— Sim, boa noite, inspetor.

O sotaque era pesado, mas dava para entender o que Jannik dizia.

— Senhor deve perdoar meus palavras. Meu inglês muito mau.

— Melhor do que o meu dinamarquês. Obrigado por conversar comigo, senhor.

Bonn traduziu, iniciando uma hesitante conversa de meia hora que forneceu a Bosch pouca coisa a título de informação capaz de ajudá-lo a esclarecer um pouco mais a viagem de Anneke Jespersen para Los Angeles. Mas Jannik forneceu detalhes sobre a personalidade e a capacidade da fotojornalista, sua determinação de ir atrás das matérias, independente dos riscos e da oposição. No entanto, quando Bosch tentou passar aos crimes de guerra que ela estava investigando, Jannik não pareceu saber sobre que crimes seriam, quem os havia cometido ou de onde a matéria surgira. Lembrou a Bosch que Anneke era freelancer que, desse modo, sempre se resguardava contra a revelação de seu artigo para um editor de jornal. Ela havia sido passada para trás muitas vezes por editores que ouviram suas sugestões de pauta, disseram não, muito obrigado, e depois encomendaram a matéria para seus próprios repórteres e fotógrafos.

Bosch foi ficando cada vez mais frustrado com o ritmo lento do processo de tradução e com o que escutava quando as respostas de Jannik eram passadas para o inglês. Ficou sem perguntas e percebeu que não havia escrito nada na caderneta. Enquanto tentava pensar no que mais poderia perguntar, ouviu os dois homens conversando em sua língua nativa.

— O que ele está dizendo? — perguntou Bosch finalmente. — Sobre o que vocês estão conversando?

— Ele está frustrado, detetive Bosch — disse Bonn. — Ele gostava muito de Anneke e queria ser de mais ajuda para o senhor, mas não tem a informação de que precisa. Está frustrado porque sabe que o senhor também está frustrado.

— Bem, diga a ele para não levar para o lado pessoal.

Bonn traduziu e Jannik começou a dar uma longa resposta.

— Vamos fazer o contrário — disse Bosch, interrompendo os dois. — Conheço um monte de repórteres por aqui. Eles não são correspondentes de guerra, mas tenho certeza de que repórteres trabalham da mesma forma. Em geral, uma matéria leva a outra. Ou, se eles encontram alguém em quem podem confiar, continuam a beber da mesma fonte. Isso quer dizer que vão atrás da mesma pessoa para obter outras matérias. Então veja se ele se lembra das últimas matérias em que trabalhou com Anneke. Sei que ela estava no Kuwait no ano anterior, mas pergunta para ele... só descobre se ele lembra em que matérias ela trabalhou.

Bonn e Jannik então iniciaram um longo diálogo. Bosch podia ouvir um deles digitando e deduziu que fosse Bonn. Enquanto esperava pela tradução para o inglês, escutou um bipe de chamada em espera no celular. Verificou a identificação e viu que o telefonema vinha da Unidade de Análise de Armas de Fogo. Pistol Pete. Bosch queria atender a ligação imediatamente, mas decidiu terminar primeiro as perguntas com Jannik.

— O.k., consegui — disse Bonn. — Dei uma olhada em nossos arquivos digitalizados. No ano anterior à sua morte, como você disse, Anneke estava cobrindo e mandando fotos do Kuwait durante a Tempestade no Deserto. Várias matérias e fotos foram compradas pelo BT.

— O.k. Alguma coisa sobre crimes de guerra ou atrocidades, algo desse tipo?

— Humm... não, não vejo nada nessa linha. Ela escreve matérias da perspectiva das pessoas. O povo na Cidade do Kuwait. Ela fez três ensaios fotográficos...

— Como assim, “perspectiva das pessoas”?

— A vida na guerra. Sobre famílias que perderam parentes. Esse tipo de história.

Bosch pensou por um momento. Famílias que perderam parentes... Ele sabia que crimes de guerra eram com muita frequência atrocidades cometidas contra inocentes envolvidos no conflito.

— Vamos fazer o seguinte — disse ele finalmente. — Pode me enviar os links das matérias que está vendo aí?

— Posso, vou fazer isso. Você vai precisar traduzir.

— É, eu sei.

— Até onde quer que eu volte a partir da última matéria?

— Que tal um ano?

— Um ano. O.k. Isso é bastante matéria.

— Não tem problema. O sr. Jannik tem mais alguma coisa? Ele consegue se lembrar de mais alguma coisa?

Bosch esperou que a última pergunta fosse traduzida. Queria desligar. Queria voltar a Pistol Pete.

— O sr. Jannik vai pensar mais a respeito — disse Bonn. — Ele promete verificar o site para tentar se lembrar de mais alguma coisa.

— Que site?

— Sobre Anneke.

— Como assim? Existe um site?

— Sim, claro. Foi feito pelo irmão dela. Ele criou o site como um memorial para Anneke e pôs várias fotos e matérias dela ali, sabe?

Bosch ficou em silêncio por um momento, porque estava constrangido. Podia jogar a culpa no irmão de Anneke por não ter lhe contado sobre o site, mas isso seria fugir da responsabilidade. Ele deveria ter tido a iniciativa de perguntar.

— Qual é o endereço do site?

Bonn lhe disse, soletrando, e agora Bosch por fim tinha algo para anotar.

Era mais rápido ligar do que voltar e precisar passar pela segurança. Pistol Pete respondeu ao segundo toque.

— É o Bosch. Você conseguiu alguma coisa?

— Eu expliquei no recado — disse Sargent.

A voz dele soou desanimada. Bosch supôs que fossem más notícias.

— Eu não ouvi a mensagem. Só liguei de volta. O que aconteceu?

Bosch prendeu a respiração.

— As notícias são muito boas. Consegui tudo, a não ser um número. Isso limita a dez possibilidades.

Bosch já havia trabalhado em casos com armas em que contara com muito menos do que isso para se virar. Continuava com a caderneta fora do bolso e pediu a Sargent que lhe dissesse o que havia conseguido. Escreveu e leu em voz alta para confirmar.

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— É o oitavo dígito, Harry — disse Sargent. — Teima em não aparecer. Tem um ligeiro arco no alto, então deve ser um zero, um três, um oito ou um nove. Alguma coisa com um arco no alto.

— Entendi. Vou voltar para a unidade e jogar o número no computador. Pistol Pete, você matou a pau. Valeu, cara.

— Sempre que precisar, Harry. Contanto que passe antes no Giamela’s!

Bosch desligou e deu partida no carro. Então ligou para o parceiro, que atendeu em sua mesa. Leu para ele o número de série da Beretta e lhe disse para começar a rastrear todas as dez possibilidades para o número completo. O lugar para começar era o banco de dados do Departamento de Justiça da Califórnia, porque Chu poderia acessá-lo e rastrear todas as armas vendidas no estado. Se não houvesse nenhum resultado por lá, teriam de requisitar o rastreio junto à Agência de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo, que era federal. Isso retardaria um pouco as coisas. Os federais não primavam pela rapidez e a ATF havia sido abalada por uma série de escândalos e trapalhadas que também contribuíram para retardar o encaminhamento de pedidos da lei local.

Mesmo assim, Bosch estava otimista. Tinha dado sorte com Pistol Pete e o número de série. Não havia motivo para pensar que tudo não continuaria a dar certo.

Pegou o trânsito pesado da San Fernando Road e tomou a direção sul. Não sabia quanto tempo demoraria para voltar ao PAP.

— Ei, Harry? — disse Chu em tom baixo, pelo telefone.

— O quê?

— Alguém da corregedoria esteve aqui procurando você.

E lá se foi sua boa sorte. O’Toole devia ter entregado a queixa em mãos ao BPP que continuava sendo simplesmente corregedoria para a maioria dos homens, a despeito da mudança de nome oficial.

— Como era o nome? Ele continua por aí?

— Era uma mulher, e disse que o nome é detetive Mendenhall. Ela entrou na sala do O’Toole e ficou lá com a porta fechada por um tempo, depois acho que foi embora.

— O.k., eu cuido disso. Cheque o número.

— Pode deixar.

Bosch desligou. Sua faixa não estava andando e ele não conseguia enxergar adiante, porque o Humvee na sua frente bloqueava toda a visão. Soltou o ar dos pulmões e buzinou de frustração. Sentiu que algo mais do que sua sorte de repente estava indo embora. O embalo e a atitude confiante estavam esmorecendo. De uma hora para outra, foi como se tudo tivesse escurecido do lado de fora.


15

Chu não estava na sala quando Bosch voltou para o Prédio de Administração Pública. Ele olhou para o relógio na parede e viu que eram apenas três da tarde. Se o parceiro tivesse dado o dia por encerrado mais cedo para compensar as longas horas do dia anterior sem ter pesquisado o número de série da arma no computador do Departamento de Justiça, Bosch teria um troço. Aproximou-se da mesa de Chu e apertou a barra de espaço do computador. A tela se iluminou, mas parou na janela que pedia a senha. Ele averiguou a mesa de Chu em busca de algum formulário impresso do registro de armas do departamento, mas não viu nada. A baia de Rick Jackson ficava do outro lado da divisória de 1 metro e pouco de altura.

— Você viu o Chu? — perguntou Bosch.

Jackson se endireitou na cadeira e olhou em torno da sala do esquadrão como se fosse capaz de reconhecer Chu, e Bosch não.

— Não... Ele estava aqui. Deve ter ido à sala do chefe ou qualquer coisa assim.

Bosch lançou um olhar para a sala do tenente, apenas para ter certeza de que Chu não estava fechado ali com O’Toole. Não estava. O’Toole estava curvado sobre a mesa, escrevendo alguma coisa.

Bosch foi para sua mesa. Não havia nenhum documento impresso para ele, mas havia um cartão deixado por Nancy Mendenhall, detetive III do ­Bureau de Padrões Profissionais.

— E aí, Harry... — disse Jackson em voz baixa. — Fiquei sabendo que o Tool prestou queixa contra você.

— É.

— Perda de tempo?

— É.

Jackson balançou a cabeça.

— Imaginei. Que imbecil.

Jackson fazia parte do esquadrão havia mais tempo do que qualquer outro, a não ser Bosch. Ele sabia que a jogada de O’Toole acabaria trazendo mais prejuízo para si mesmo do que para Bosch. Depois dessa, ninguém mais no esquadrão confiaria no tenente. Ninguém lhe passaria mais do que o mínimo exigido. Alguns supervisores inspiravam seus homens a fazer um trabalho melhor. Agora os detetives da Unidade de Abertos/Não Resolvidos dariam o melhor de si a despeito do sujeito no comando.

Bosch puxou sua cadeira e se sentou. Olhou para o cartão de Mendenhall e pensou em ligar para ela, encarar a queixa sem fundamento e lidar com a situa­ção. Abriu a gaveta do meio e tirou a velha caderneta telefônica com capa de couro que mantinha havia três décadas. Encontrou o número do qual não tinha se lembrado antes e ligou para o Escritório de Assistência à Defesa. In­formou seu nome, posto e atribuição no departamento e disse que precisava falar com um representante de defesa. O supervisor da unidade lhe disse que no momento não havia nenhum representante disponível, mas que ele logo receberia uma ligação. Bosch quase comentou que sabia que não seria logo, mas apenas agradeceu ao supervisor e desligou.

Quase imediatamente, uma sombra pairou acima de sua mesa, e, ao levantar o rosto, Bosch deparou com O’Toole, de paletó. Bosch deduziu que estava a caminho do décimo andar.

— Por onde andou, detetive?

— No laboratório de balística.

O’Toole fez uma pausa, como que memorizando a resposta a fim de checar a veracidade disso mais tarde.

— Pete Sargent — disse Bosch. — Ligue para ele. A gente almoçou junto também. Espero que não seja contra o regulamento.

O’Toole deu de ombros para a provocação e se curvou, batendo com o dedo no cartão de Mendenhall sobre a mesa.

— Ligue para ela. Ela precisa marcar uma entrevista.

— Claro. Assim que eu tiver tempo.

Bosch viu Chu aparecer pela porta, vindo do corredor. Ele parou quando viu O’Toole em sua baia, agiu como se tivesse esquecido algo de repente, deu meia-volta e saiu de novo pela porta.

O’Toole não percebeu.

— Não era minha intenção criar uma situação como essa. Eu esperava promover um relacionamento forte e de confiança com os detetives em meu esquadrão.

Bosch respondeu sem erguer o rosto para O’Toole:

— É, bom, isso não durou muito, não foi? E não é seu esquadrão, tenente. É só o esquadrão. Estava aqui antes de o senhor chegar e vai continuar aqui depois que o senhor for embora. Vai ver que foi aí que as coisas desandaram para o seu lado, quando deixou de perceber isso.

Ele disse alto o bastante para que os outros na sala também escutassem.

— Se esse comentário tivesse vindo de alguém sem a gaveta cheia de queixas anteriores e investigações internas, eu me sentiria insultado.

Bosch se recostou na cadeira e finalmente olhou para O’Toole.

— É, mas mesmo com todas essas queixas eu continuo sentado aqui. E vou continuar sentado aqui depois que tiverem investigado a sua.

— Vamos ver.

O’Toole estava prestes a sair, mas não pôde se conter. Apoiou a mão na mesa de Bosch e se curvou para falar em voz baixa, cheio de veneno:

— Você é o pior tipo de policial, Bosch. É arrogante, metido a valente e acha que as leis e os regulamentos simplesmente não se aplicam a você. Não sou o primeiro a tentar livrar este departamento de você. Mas vou ser o último.

Terminando o que tinha a dizer, O’Toole tirou a mão da mesa e aprumou o corpo. Esticou o paletó com um forte puxão na parte de baixo.

— Você só esquece uma coisa, tenente — disse Bosch.

— O quê? — perguntou O’Toole.

— Que eu resolvo casos. Não para pôr nas estatísticas que o senhor leva lá nas apresentações de PowerPoint do décimo andar. Para as vítimas e as famílias delas. E isso é algo que o senhor nunca vai entender, porque não anda nas ruas, como o restante de nós.

Bosch fez um gesto indicando o restante da sala do esquadrão. Jackson, que estava obviamente escutando a conversa, ficou olhando para O’Toole com uma reprovação definitiva.

— A gente faz o trabalho, a gente resolve os casos, e o senhor passeia de elevador para receber tapinhas nas costas.

Bosch se levantou e encarou O’Toole.

— É por isso que não tenho tempo para o senhor nem para as suas bobagens.

Ele se afastou, indo na direção da porta por onde Chu havia passado, enquanto O’Toole se dirigiu à porta que dava nos elevadores.

***

Bosch passou pela porta e saiu no corredor. De um lado havia uma parede de vidro, dando vista para a ampla área de circulação na frente do prédio e, mais além, para o coração do centro cívico. Chu estava de frente para o vidro, observando a estrutura pontuda familiar do prédio da prefeitura.

— Chu, o que está acontecendo?

O parceiro de Bosch levou um susto com o aparecimento súbito.

— Ei, Harry, desculpe, esqueci uma coisa e... daí eu... ahn...

— O que foi, você se esqueceu de limpar a bunda? Eu estava esperando. O que aconteceu com o Departamento de Justiça?

— É, não encontrei nada, Harry. Pena.

— Nada? Você checou as dez possibilidades?

— Chequei, mas não tinha nenhuma transação na Califórnia. A arma não foi vendida no estado. Alguém trouxe para cá e não registrou.

Bosch apoiou a mão no ferro e encostou a testa no vidro. Dava para ver o prédio da prefeitura refletido na longa parede de vidro que percorria o corredor perpendicular. Estava conformado de que sua sorte não podia piorar.

— Conseguiu alguém na ATF? — perguntou.

— Na verdade, não — disse Chu. — E você?

— Não. Ninguém que possa despachar. Esperei quatro meses só para eles lançarem a cápsula no computador.

Bosch não mencionou que também tinha uma longa história de interações com as agências federais. Não podia contar com ninguém para lhe fazer um favor na ATF ou onde quer que fosse. Sabia que, se utilizasse o procedimento padrão e preenchesse os formulários, só teria algum resultado, se tivesse, em no mínimo seis semanas.

Havia ainda uma tentativa a fazer. Afastou-se do vidro e começou a voltar para a sala do esquadrão.

— Harry, aonde você vai? — perguntou Chu.

— De volta ao trabalho.

Chu começou a segui-lo.

— Queria conversar com você sobre um dos meus casos. A gente tem uma coleta para fazer em Minnesota.

Bosch parou à porta da sala do esquadrão. Uma “coleta” era o jargão que usavam para ir a outro estado confrontar e prender o suspeito de um caso arquivado. Em geral, o suspeito tinha sido ligado a um antigo homicídio pela evidência de DNA ou impressão digital. Havia um mapa na parede da sala do esquadrão com alfinetes vermelhos marcando todas as localizações de coleta em que o esquadrão estivera nos dez anos desde que fora estabelecido. Dúzias de alfinetes se espalhavam pelo mapa.

— Que caso? — perguntou Bosch.

— Stilwell. Finalmente localizei o cara em Minneapolis. Quando a gente pode ir?

— Putz, a gente vai morrer de frio por lá.

— Eu sei. O que me diz? Preciso entrar com a requisição de viagem.

— Tenho que ver aonde o caso Jespersen vai me levar nos próximos dias. E também estou com esse negócio do PSB para resolver. Eu posso ser suspenso.

Chu fez que sim, mas Bosch percebeu que o parceiro estava esperando um pouco mais de entusiasmo em pegar Stilwell. Algo um pouco mais conclusivo sobre quando fariam isso. Ninguém no esquadrão gostava de ficar esperando quando já tinha um suspeito identificado e localizado.

— Olha, o O’Toole provavelmente não vai aprovar nenhuma viagem para mim por um tempo. Talvez seja melhor você ver se outra pessoa pode ir. Pede à Trish. Assim você consegue um quarto só para você.

As regras de viagem do departamento exigiam que os detetives reservassem apenas quartos duplos, de modo que os parceiros pudessem dividir hospedagem e poupar dinheiro do orçamento. Esse era o lado ruim de viajar, porque ninguém queria dividir um banheiro, e invariavelmente um ou outro parceiro roncava. Tim Marcia certa vez teve de gravar o parceiro roncando alto a ponto de sacudir as janelas para conseguir persuadir o comando a deixá-lo ficar em um quarto individual. Mas a exceção inquestionável era quando os parceiros eram de sexo oposto. Trish Allmand era uma parceira cobiçadíssima na Abertos/Não Resolvidos. Não só porque era atraente, além de ótima investigadora, mas porque viajar com ela significava um quarto individual para o parceiro.

— Mas o caso é nosso, Harry — queixou-se Chu.

— Tudo bem, então você vai ter que esperar. Não tem nada que eu possa fazer.

Bosch passou pela porta e foi para a baia. Pegou o celular e a caderneta que havia deixado na mesa. Pensou na ligação que estava para fazer e decidiu não usar nem seu celular nem o telefone de sua mesa.

Deu uma olhada por todo o andar da Divisão de Roubos e Homicídios. A Abertos/Não Resolvidos ficava no canto sul de uma sala do tamanho de um campo de futebol. Por causa do corte no departamento de promoções e contratações, havia diversas baias não ocupadas em todas as áreas individuais do esquadrão. Bosch foi até uma mesa vazia na Especial de Homicídios e se sentou para usar o telefone fixo. Pegou o número de que precisava no celular e discou. Foi atendido na mesma hora.

— Tático.

Achou ter reconhecido a voz, mas não tinha certeza depois de tanto tempo.

— Rachel?

Houve uma pausa.

— Olá, Harry. Tudo bem com você?

— Estou ótimo. E você?

— Não tenho do que me queixar. Está com um número novo?

— Não, só peguei uma mesa emprestada. Como anda o Jack?

Bosch rapidamente tentou se esquivar do fato de que havia usado um número diferente porque pensou que ela pudesse não atender caso o nome dele aparecesse no identificador de chamadas. Ele e a agente do FBI Rachel Walling tinham uma longa história juntos, não toda feita de boas lembranças.

— Você sabe como é o Jack. Ele está bem. Mas duvido que você tenha me ligado de um telefone que não é seu para me perguntar sobre o Jack.

Bosch balançou a cabeça, apesar de Rachel não poder vê-lo.

— Certo, bom, como você provavelmente já percebeu, preciso de um favor.

— Que tipo de favor?

— Estou trabalhando em um caso. Uma dinamarquesa chamada ­Anneke. Uma mulher supercorajosa. Foi correspondente de guerra e esteve em alguns dos...

— Harry, você não precisa tentar me vender sua vítima como se me convencesse a fazer o favor para você, seja o que for. Diga logo o que quer.

Ele balançou a cabeça outra vez. Rachel Walling sempre o deixava nervoso. Tinham namorado, mas a relação não terminara bem. Já fazia muito tempo agora, mas sempre que conversava com ela ainda se pegava imaginando o que poderia ter acontecido de diferente.

— O.k., o.k., o negócio é o seguinte. Eu tenho parte de um número de série extraído de uma Beretta modelo 92 usada para matar essa mulher há vinte anos, durante os tumultos. A gente acabou de recuperar a arma e conseguiu parte do número. Está faltando só um dígito, então isso quer dizer que existem dez possibilidades. A gente passou todas as dez pelo computador do Departamento de Justiça da Califórnia, mas não conseguiu nada. Preciso de alguém dentro d...

— ATF. É jurisdição deles.

— Eu sei. Mas não conheço ninguém lá dentro e, se for simplesmente seguir o protocolo normal, só vou conseguir uma resposta daqui a dois ou três meses. Não posso esperar tanto assim, Rachel.

— Você não mudou nada. Continua o mesmo apressado de sempre. Então quer saber se tenho alguém dentro da ATF que eu uso para agilizar as coisas.

— Isso, é por aí.

Houve uma longa pausa. Bosch não sabia se alguma coisa havia distraído Rachel ou se ela estava hesitando em ajudá-lo. Resolveu preencher o silêncio com mais um esforço para convencê-la:

— Eu posso dividir todo o crédito com eles quando a gente efetuar a prisão. Pelo jeito, a menção viria a calhar. Eles já forneceram a pista inicial no caso. Compararam uma cápsula da cena e a ligaram a dois outros homicídios. Podiam sair bem na foto, para variar.

A ATF andava aparecendo com mais frequência nos noticiários ultimamente, porque havia patrocinado uma operação clandestina que dera com os burros n’água e pusera centenas de armas nas mãos de narcoterroristas. A indignação pública chegou a tal ponto que o fiasco se transformou em munição na época da campanha presidencial.

— Você tem razão. Bom, tenho uma amiga por lá. Posso conversar com ela. Acho que prefiro fazer assim: você me passa o número de série e eu o repasso para ela. Se eu simplesmente der o celular, não vai funcionar.

— Sem problemas — disse Bosch depressa. — O que for melhor. É capaz de ela conseguir entrar no banco de dados e descobrir o registro da transação em dez minutos.

— Não é fácil assim. O acesso a esse tipo de pesquisa é monitorado e o caso recebe um número. Ela vai precisar da aprovação do supervisor, de qualquer modo.

— Droga. Pena que eles não foram rígidos assim com aquelas armas que deixaram passar pela fronteira no ano passado.

— Muito engraçado, Harry. Vou dizer a ela que você falou isso.

— Humm, acho que não convém.

Walling em seguida pediu o número de série da Beretta, e Bosch o leu para ela, comentando que estava faltando o oitavo dígito. Ela própria retornaria a ligação, ou a amiga, agente Suzanne Wingo, entraria em contato diretamente com ele. Walling encerrou a ligação em um tom mais pessoal:

— Então, Harry, quanto tempo mais pretende continuar nessa vida?

— Que vida? — perguntou ele, ainda que fizesse uma boa ideia do que ela queria dizer.

— A de arma e distintivo. Achei que a essa altura já estaria aposentado, voluntariamente ou não.

Bosch sorriu.

— Enquanto me deixarem, Rachel. O que, segundo meu contrato de aposentadoria adiada, vai ser só por mais quatro anos.

— Bom, espero que a gente volte a se cruzar em algum trabalho antes que chegue a hora.

— É, eu também.

— Se cuida.

— Obrigado por fazer isso.

— Bom, melhor ter certeza de que eu ajudei em alguma coisa antes de me agradecer.

Bosch pôs o fone de volta no gancho. Assim que se levantou para voltar à baia, o celular vibrou. A chamada era não identificada, mas ele atendeu mesmo assim, só para o caso de ser Rachel tentando ligar de volta.

Era a detetive Mendenhall, do BPP.

— Detetive Bosch, precisamos marcar uma entrevista. Como está sua agenda?

Bosch começou a voltar para o esquadrão da Abertos/Não Resolvidos. A voz de Mendenhall não soava ameaçadora. Parecia indiferente, distraída. Talvez já soubesse que a queixa de O’Toole não passava de perda de tempo. Harry decidiu enfrentar logo a investigação interna.

— Mendenhall, essa queixa é uma perda de tempo. Quero resolver logo. Então que tal amanhã de manhã, no primeiro horário?

Se ela ficou surpresa por Bosch preferir resolver logo em vez de protelar, sua voz não demonstrou.

— Tenho uma hora vaga às oito. Para você está bom?

— Claro, no meu prédio ou no seu?

— Eu preferiria que você viesse aqui, a menos que seja um problema.

Ela estava falando sobre o Bradbury Building, onde a maioria do BPP ficava localizada.

— Sem problemas, Mendenhall. Eu apareço aí com um representante.

— Muito bem. Vamos ver se conseguimos resolver esse assunto. Só peço uma coisa, detetive.

— O quê?

— Que o senhor se dirija a mim como detetive ou detetive Mendenhall. É desrespeitoso me chamar apenas pelo sobrenome. Eu gostaria que nossa relação fosse profissional e respeitosa desde o início.

Bosch havia acabado de entrar em sua baia e viu Chu. Ele se deu conta de que nunca se dirigira a Chu pelo primeiro nome ou por seu posto. Será que tinha sido desrespeitoso todo esse tempo?

— Pode deixar, detetive. A gente se vê às oito.

Desligou. Antes de se sentar, apoiou-se na divisória e se debruçou sobre a baia de Rick Jackson.

— Tenho uma entrevista no Bradbury amanhã às oito. Não deve demorar muito. A Liga de Proteção Policial ainda não me ligou de volta. Quer ir junto e ser meu representante?

Embora a liga fornecesse representantes de defesa para entrevistas do BPP, qualquer policial podia cumprir essa função, contanto que não fizesse parte da investigação em andamento.

Bosch escolheu Jackson porque já era um veterano no departamento e havia alguma coisa nele que dizia que não levava desaforo para casa. Isso sempre servia de intimidação durante o interrogatório de um suspeito. Ocasionalmente, Bosch o usava como parceiro em uma sala de interrogatório. A encarada silenciosa de Jackson muitas vezes enervava o suspeito. Bosch pensou que Jackson talvez lhe proporcionasse uma vantagem ao se sentar diante da detetive Mendenhall.

— Claro, pode contar comigo — disse Jackson. — O que você quer que eu faça?

— A gente se encontra às sete no Dining Car. Comemos alguma coisa e eu explico tudo.

— Está combinado.

Bosch se sentou na cadeira e percebeu que talvez tivesse insultado Chu ao não lhe pedir para ser seu representante. Virou-se e falou com o parceiro:

— Ei, ahn, Chu... ahn, David.

Chu se virou.

— Não posso usar você como meu representante porque Mendenhall provavelmente vai convocá-lo para conversar sobre o caso. Você vai ser testemunha.

Chu fez que sim.

— Entende?

— Claro, Harry. Entendo.

— E eu chamo você sempre pelo sobrenome, mas nunca quis ser desrespeitoso, viu? É só que eu sou assim mesmo com as pessoas.

Chu pareceu confuso com o pedido de desculpa meio chocho de Bosch.

— Claro, Harry.

— Então, tudo certo?

— Sim, tudo certo.

— Beleza.

 

 

16

Bosch começara a avançar pelos discos de Art Pepper que ganhara de aniversário. Estava no volume 3, ouvindo uma versão estonteante de “Patricia” gravada três décadas antes em um clube em Croydon, Inglaterra. Era o período em que Art Pepper tinha voltado, depois dos anos de vício em drogas e da prisão. Naquela noite em 1981, tudo havia funcionado. Naquela canção em particular, Bosch achava que ele estava provando que ninguém nunca tocaria melhor. Harry não sabia muito bem o que a palavra “etéreo” queria dizer, mas foi ela que lhe veio à mente. A canção era perfeita, o saxofone era perfeito, a interação e a comunicação entre Pepper e os três parceiros de banda eram perfeitas e orquestradas como o movimento dos dedos de uma só mão. Havia muitas palavras usadas para descrever o jazz. Bosch as havia lido durante anos em revistas e nos textos dos álbuns. Nem sempre as compreendia. Só sabia que gostava, e pronto. Era vigoroso e incansável, e às vezes triste.

Achou difícil se concentrar na tela do computador enquanto a canção tocava, a banda avançando quase vinte minutos com a música. Ele tinha ­“Patricia” em outros discos e CDs. Era uma das marcas registradas de Pepper, mas nunca a escutara sendo tocada com aquela mesma paixão intensa. Olhou para a filha, deitada no sofá lendo um livro. Outra leitura para o colégio. Esse era intitulado A culpa é das estrelas.

— Essa é sobre a filha dele.

Maddie ergueu o rosto do livro e olhou para o pai.

— Como assim?

— Essa música. “Patricia”. Pepper escreveu para a filha. Ele ficou longe dela por longos períodos, mas o amor e a saudade sempre estiveram presentes. Dá para perceber, não dá?

Ela pensou por um momento e então assentiu.

— Acho que sim. É quase como se o saxofone estivesse chorando.

Bosch devolveu o aceno.

— É, você entendeu.

Ele voltou ao trabalho. Estava verificando os inúmeros links de matérias que Bonn havia mandado por e-mail. Incluíam as últimas catorze matérias de ­Anneke Jespersen e ensaios fotográficos para o Berlingske Tidende, bem como a matéria que o jornal publicara em 2002, dez anos após sua morte. Era um trabalho tedioso, porque os artigos estavam em dinamarquês e Bosch tinha de usar um site de traduções para montar um texto em inglês, dois ou três parágrafos de cada vez.

Anneke Jespersen havia fotografado e escrito sobre a breve primeira Guerra do Golfo de todos os ângulos. Suas palavras e imagens vinham dos campos de batalha, dos refugiados, dos postos de comando, até do navio usado pelos Aliados como estação flutuante de descanso e relaxamento para soldados. Seus despachos para o BT revelavam uma jornalista documentando um novo tipo de guerra, uma batalha high-tech descendo velozmente dos céus. Mas Jespersen não ficava a uma distância segura. Quando a batalha passou para o solo, durante a Operação Sabre do Deserto, ela encontrou um modo de ficar perto da ação com as tropas aliadas, documentando as batalhas para a retomada­ da Cidade do Kuwait e de Al Khafji.

Suas matérias contavam os fatos, e as fotografias mostravam os custos. Ela fotografou os quartéis norte-americanos em Dhahran, onde vinte e oito soldados morreram em um ataque de míssil Scud. Não havia fotos de corpos, mas as carcaças fumegantes de carros Humvees destruídas de algum modo transmitiam as perdas humanas. Anneke fotografou os campos de prisioneiros de guerra no deserto saudita, onde prisioneiros iraquianos exibiam cansaço e medo constantes no olhar. Sua câmera captou as colunas de fumaça negra nos campos de petróleo kuwaitianos sendo incendiados atrás do recuo das tropas iraquianas. Suas fotos mais impressionantes eram da Rodovia da Morte, onde o extenso comboio de tropas inimigas, bem como de civis iraquianos e palestinos, havia sido bombardeado sem misericórdia pelas forças aliadas.

Bosch havia estado na guerra. Para ele, foi uma guerra de lama, sangue e confusão. Mas viu de perto as pessoas que eles mataram, que ele matou. Algumas das lembranças eram tão cristalinas para ele quanto as fotografias que via agora na tela. Elas lhe vinham mais à noite, quando não conseguia dormir, ou inesperadamente, quando alguma cena cotidiana evocava uma imagem de algum modo ligada às selvas e túneis onde havia estado. Ele conhecia a guerra na fonte, e as palavras e fotos de Anneke Jespersen o marcaram como o mais próximo disso que já tinha visto pelos olhos de um jornalista.

Depois do cessar-fogo, Jespersen não voltou para casa. Permaneceu na região durante meses, documentando os campos de refugiados e as aldeias destruídas, os esforços para reconstrução e recuperação conforme os Aliados passavam à etapa conhecida como Operação Prover Conforto.

Ele percebia a presença invisível de Jespersen do outro lado da câmera, segurando a caneta, tanto quanto isso era possível. Jespersen fora atrás de mães e filhos e das pessoas mais prejudicadas e desprovidas pela guerra. Talvez fossem apenas palavras e imagens, mas juntas contavam o lado humano e o custo de uma guerra tecnológica e suas consequências.

Talvez fosse efeito do fundo musical de Art Pepper e seu comovente saxofone, mas, conforme traduzia penosamente o texto, lia as matérias e via as fotos, Bosch sentia que de alguma forma ficava mais próximo de Anneke ­Jespersen. Depois de vinte anos, ela o tocava, emocionando-o com seu trabalho, e isso tornou a resolução dele ainda maior. Vinte anos antes, ele lhe pedira desculpas. Dessa vez, fazia uma promessa. Ia descobrir quem havia tirado tudo o que a fotojornalista tinha.

A última parada no tour digital de Bosch pela vida e obra de Anneke Jespersen era o site memorial elaborado por seu irmão. Para entrar no site, ele tinha de se registrar com seu endereço de e-mail, o equivalente digital de assinar o registro de convidados em um enterro. O site era então dividido em duas seções: fotos tiradas por Jespersen e fotos que tiraram dela.

Muitas das fotos na primeira seção eram de artigos que Bosch já tinha visto nos links fornecidos por Bonn. Havia diversas fotos extras das mesmas matérias, e ele achou que algumas eram melhores do que as escolhidas para publicação.

A segunda seção estava mais para um álbum de família, com fotos de Anneke de quando ainda era uma mocinha magrela de cabelos loiros. Bosch passou rapidamente por essas até chegar a uma série de fotografias tiradas pela própria Anneke. Essas eram todas tomadas de diferentes espelhos ao longo de vários anos. Jespersen posava com sua câmera em uma correia em torno do pescoço, segurando-a na altura do peito e batendo fotos sem olhar pelo visor. Consideradas em conjunto, Bosch podia ver a progressão do tempo no rosto dela. Anneke continuava linda de uma imagem para outra, mas era visível em seus olhos como ela se tornara uma mulher mais experiente.

Nas últimas fotos, era como se ela estivesse olhando direta e unicamente para Bosch. Ele achou difícil desviar a atenção de seu olhar.

O site tinha uma seção de comentários, e, quando Bosch a abriu, encontrou uma infinidade de depoimentos, desde 1996, quando o site foi montado, que diminuía com o passar dos anos até se reduzir a apenas um no último ano. O post era de seu irmão, que pôs no ar e mantinha o site. Assim, para ler o comentário em inglês, Bosch o copiou e jogou no tradutor on-line que estava usando.

Anneke, o tempo não apaga sua perda. Sentimos falta de você como irmã, artista, amiga. Sempre.

Depois de ler isso, Bosch saiu da página e fechou o laptop. Era o suficiente por uma noite. Embora seus esforços o tivessem aproximado de Anneke Jespersen, no fim das contas não lhe proporcionaram nenhum insight sobre o que a fizera ir aos Estados Unidos depois da Tempestade no Deserto. Não conseguiu nenhuma pista sobre o porquê de ela ter ido a Los Angeles. Não havia nenhuma história sobre crimes de guerra, nada que justificasse o prosseguimento de alguma investigação jornalística, muito menos uma viagem a LA. Fosse lá o que Anneke estivesse perseguindo, Bosch ainda não descobrira.

Harry olhou o relógio. O tempo tinha voado. Passava das onze, e ele tinha de começar cedo pela manhã. O disco havia terminado e a música cessado, mas ele não percebeu em que momento exatamente. A filha adormecera no sofá com o livro, e ele tinha de decidir se a acordava para que fosse para cama ou se apenas a cobria e a deixava dormir.

Bosch se levantou, e os tendões das pernas protestaram quando se alongou. Pegou a embalagem de pizza na mesinha de centro e, mancando, passou devagar para a cozinha, onde a deixou sobre a lata de lixo para jogar fora depois. Baixou o rosto para a caixa e silenciosamente se amaldiçoou por mais uma vez pôr o trabalho na frente da alimentação balanceada da filha.

Quando voltou à sala, Madeline estava sentada no sofá, ainda meio dormindo, com a mão na frente da boca para cobrir um bocejo.

— Ei, está tarde — disse ele. — Hora de dormir.

— Não diga.

— Vamos lá, eu levo você.

Ela se levantou e apoiou-se no pai. Ele passou o braço em torno de seus ombros e os dois seguiram pelo corredor até o quarto dela.

— Amanhã de manhã eu não vou estar aqui, filha. Tudo bem?

— Você não precisa perguntar, pai.

— Tenho um compromisso na hora do café e...

— Não precisa explicar.

Na porta, ele a deixou, dando um beijo no alto de sua cabeça, sentindo o cheiro de romã do xampu.

— Preciso. Preciso, sim. Você merece alguém que seja mais presente. Que esteja aqui para ajudar.

— Pai, estou cansada demais. Não quero falar sobre isso.

Bosch fez um gesto na direção da sala.

— Sabe, se eu pudesse tocar como ele, eu tocaria. Então você ia me entender.

Ele tinha exagerado, despejando sua culpa nela.

— Eu entendo! — disse Maddie em um tom impaciente. — Agora boa noite.

Ela passou para o quarto e fechou a porta.

— Boa noite, querida.

Bosch foi à cozinha e levou a embalagem da pizza para a lata de lixo do lado de fora. Verificou se a tampa estava bem fechada, por causa dos coiotes e de outros animais noturnos.

Antes de entrar, usou suas chaves para abrir o cadeado do depósito no fundo da garagem. Puxou a correntinha da luminária no teto e começou a examinar as estantes entupidas. Lixo que havia juntado durante a maior parte da vida, encaixotado nas prateleiras empoeiradas. Ergueu o braço e puxou uma caixa para a bancada, depois voltou a se esticar para alcançar o que estava mais atrás na prateleira.

Ele pegou o capacete branco de choque que havia deixado cair na noite em que encontrou Anneke Jespersen. Olhou para a superfície raspada e suja. Com a palma da mão, limpou o pó do adesivo afixado na frente. O distintivo alado. Examinou o capacete e se lembrou das noites em que a cidade havia mergulhado no caos. Vinte anos se passaram. Pensou em todo aquele tempo, em tudo o que lhe havia acontecido e em tudo o que permanecera ou mudara.

Depois de algum tempo, voltou a guardar o capacete na prateleira e pôs de novo no lugar a caixa que ficava na frente. Trancou o depósito e entrou em casa para dormir.


17

A detetive Nancy Mendenhall era uma mulher pequena, com um sorriso sincero, quando não amigável. Não parecia minimamente ameaçadora, o que deixou Bosch com um pé atrás na mesma hora. Não que já não estivesse alerta e pronto para qualquer coisa quando entrou com Rick Jackson no Bradbury Building para a entrevista agendada. Seu extenso passado de confrontos com os investigadores da corregedoria lhe dizia para que não retribuísse o sorriso de Mendenhall e que ficasse desconfiado de sua afirmação de estar simplesmente procurando a verdade com a mente aberta, sem nenhuma intenção particular imposta por superiores.

Nancy tinha a própria sala. Era pequena, mas com cadeiras confortáveis diante de sua mesa. Tinha até uma lareira, como era o caso de muitas salas no antigo edifício. As janelas às suas costas davam para o prédio que abrigava o Million Dollar Theater, do outro lado da Broadway. Ela pôs na mesa um gravador digital que era igual ao de Jackson, e começaram. Depois de identificar todas as partes presentes e recitar as advertências rotineiras sobre policiais dando depoimento sob coação, Mendenhall simplesmente disse:

— Fale-me sobre sua viagem na segunda-feira à prisão em San Quentin.

Durante os vinte minutos seguintes, Bosch relatou os fatos relacionados à sua viagem à prisão para interrogar Rufus Coleman sobre a arma usada para matar Anneke Jespersen. Ele forneceu cada detalhe que conseguiu lembrar, incluindo quanto tempo teve de esperar para que o prisioneiro fosse levado até ele. Bosch e Jackson haviam decidido no café, um pouco antes, que Bosch não esconderia nada, na esperança de que o bom senso de Mendenhall a levasse a ver que a queixa de O’Toole não passava de perda de tempo.

Bosch complementou seu relato com cópias de documentos do inquérito de homicídio, de modo que Mendenhall pudesse ver que era absolutamente necessário que tivesse realizado a viagem até San Quentin para conversar com Coleman e que a viagem não havia sido inventada como pretexto para ver Shawn Stone.

A entrevista parecia transcorrer bem, com Mendenhall fazendo apenas perguntas gerais que permitiam a Bosch desenvolver a resposta. Quando terminou, ela estreitou o foco para coisas específicas.

— Shawn Stone sabia que você estava a caminho?

— De forma alguma — respondeu Bosch.

— O senhor informou à mãe dele de antemão que ia se encontrar com ele?

— Não, não informei. A coisa foi feita de improviso. Como já expliquei, eu tinha voo marcado. Sobrou algum tempo para uma conversa rápida e pedi para vê-lo.

— Mas ele foi levado à sala de interrogatório, correto?

— Correto. Não fui orientado a comparecer à sala de visitas para familiares e amigos. Disseram que iriam buscá-lo.

Esse era o único ponto em que Bosch se sentia vulnerável. Ele não havia requisitado uma visita a Shawn Stone como um cidadão teria feito. Continuou na sala em que Rufus Coleman lhe havia sido levado e simplesmente pediu para ver outro detento, Stone. Sabia que isso podia ser encarado como uso do distintivo em interesse próprio.

Mendenhall prosseguiu:

— O.k., e, quando o senhor fez os preparativos para ir a San Quentin, calculou o tempo entre os voos de maneira que tivesse tempo de visitar Shawn Stone?

— De modo algum. Quando a gente vai para lá nunca sabe quanto tempo vai levar para trazerem o prisioneiro ou por quanto tempo o prisioneiro vai falar com você. Já fui até lá para o que acabou sendo uma conversa de um minuto e já fui até lá para uma conversa que era para durar uma hora e durou quatro. Você nunca sabe, então sempre calcula um pouco de tempo extra.

— O senhor calculou uma janela de quatro horas na prisão.

— Mais ou menos por aí. Além disso, há as incertezas do traslado. Você precisa tomar o voo, pegar o trem para o centro de aluguel de veículos, arrumar um carro e atravessar toda a cidade e depois a Golden Gate, e depois precisa fazer tudo isso de novo na volta. É preciso considerar o tempo para as contingências. Acabei ficando com pouco mais de quatro horas para a prisão e só usei duas esperando e conversando com Coleman. É só fazer as contas. Eu tinha tempo extra, que usei para ver o rapaz.

— Exatamente quando o senhor disse aos guardas que queria ver Stone?

— Eu me lembro de olhar o relógio quando levaram Coleman embora. Vi que eram duas e meia e eu sabia que meu voo era às seis. Imaginei que, mesmo com o trânsito e a devolução do carro alugado, ainda me sobrava pelo menos uma hora. Eu podia voltar para o aeroporto mais cedo ou ver se me traziam outro prisioneiro bem rapidamente. Escolhi a segunda opção.

— O senhor pensou em verificar se haveria um voo mais cedo?

— Não, porque não fazia diferença. Meu dia de trabalho estaria encerrado quando eu voltasse para LA. Eu não ia passar no esquadrão, então não fazia diferença se chegasse às cinco ou às sete. Meu dia estaria terminado. Não recebemos mais hora extra. A senhora sabe disso, detetive.

Jackson interrompeu pela primeira vez durante a entrevista:

— Além disso, trocar de voo envolve uma tarifa adicional. Pode ser qualquer coisa entre vinte e cinco e cem dólares, e, se ele tivesse feito essa alteração, teria que responder por isso ao pessoal de orçamento e viagens.

Bosch assentiu com a cabeça. Jackson estava improvisando em cima da pergunta de Mendenhall, mas fora um bom aparte.

Mendenhall parecia ter uma lista que estava percorrendo, ainda que não houvesse nada no papel à sua frente. Mentalmente, ela marcou a questão da viagem e passou à seguinte.

— O senhor, de algum modo, levou os funcionários correcionais em San Quentin a acreditar que queria falar com Shawn Stone como parte da investigação?

Bosch balançou a cabeça.

— Não, não fiz isso. E acho que, quando eu pedi para depositar dinheiro na conta da cantina dele, ficou claro que não era parte da investigação.

— Mas o senhor falou sobre isso depois que conversou com Stone, correto?

— Correto.

Houve uma pausa, e ela olhou os documentos que Bosch havia fornecido.

— Acho, senhores, que por ora é só.

— Sem mais perguntas? — quis saber Bosch.

— Por enquanto, não. Posso ter algo depois.

— Posso perguntar uma coisa agora?

— Pode perguntar, e eu respondo se puder.

Bosch fez que sim. Nada mais justo.

— Quanto tempo isso vai levar?

Mendenhall franziu a testa.

— Bom, em termos de tempo de investigação, acho que não demora muito. A menos que eu não consiga o que preciso pelo telefone com San Quentin e tenha que ir até lá.

— Quer dizer que eles são capazes de gastar dinheiro para mandar a senhora até lá só para verificar o que eu fiz com uma hora extra do meu tempo.

— Isso quem decide é meu capitão. Ele certamente vai levar em consideração os custos envolvidos e o nível de seriedade da investigação. Ele também sabe que estou conduzindo diversas investigações no momento. Talvez conclua que a despesa e o tempo de investigação não valham a pena.

Bosch não tinha a menor dúvida de que mandariam Mendenhall a San Quentin caso necessário. Ela podia estar em uma bolha, sem pressão alguma vinda do alto, mas seu capitão não estava.

— Mais alguma coisa? — perguntou ela. — Tenho uma entrevista às nove, preciso me preparar.

— Sim, mais uma — disse Bosch. — De onde veio essa queixa?

Mendenhall pareceu surpresa com a pergunta.

— Não posso discutir isso, mas pensei que o senhor soubesse. Achei que fosse óbvio.

— Não, eu sei que veio de O’Toole. Mas toda essa história de eu ter visto Shawn Stone, como ele apareceu com essa? Como ele soube?

— Sobre isso não podemos conversar, detetive. Quando minha investigação estiver completa e eu fizer minha recomendação, o senhor poderá tomar ciência desses fatos.

Bosch assentiu, mas a questão em aberto o incomodava. Alguém em San Quentin teria ligado para O’Toole e sugerido que Bosch havia agido inadequadamente, ou será que O’Toole tinha ido atrás disso, chegando a ponto de checar as atividades de Bosch na prisão? De um modo ou de outro, era desconcertante para Bosch. Ele fora até lá acreditando que a denúncia seria facilmente descartada depois de suas explicações para Mendenhall. Agora percebia que não seria assim tão simples.

Depois de deixar o BPP, Jackson e Bosch pegaram um dos elaborados elevadores de gaiola para descer ao saguão. Para Bosch, o centenário Bradbury Build­ing era de longe o edifício mais belo da cidade. A única coisa que estragava sua imagem era o fato de abrigar o Bureau de Padrões Profissionais. Quando atravessaram o saguão sob o átrio para a saída da West Third Street, Bosch sentiu aroma de pão fresco sendo preparado para o horário de almoço na sanduicheria junto à entrada principal do prédio. Essa era mais uma coisa que o incomodava. Não bastava o BPP estar localizado em uma das joias ocultas da cidade e ter lareiras em algumas salas, também havia aquele cheiro divino que Bosch sentia toda vez que ia lá.

Jackson ficou calado enquanto atravessavam o saguão e viravam à esquerda na saída lateral fracamente iluminada. Havia um banco com uma escultura de Charlie Chaplin sentado. Jackson se acomodou ao lado da figura e gesticulou para Bosch se sentar do outro lado.

— O que foi? — perguntou Bosch ao se sentar. — A gente precisa voltar.

Jackson parecia contrariado. Balançou a cabeça e se curvou sobre o colo de Charlie Chaplin para sussurrar:

— Harry, acho que você está fodido de verdade nessa história.

Bosch compreendia o estado de espírito de Jackson ou sua aparente surpresa com o fato de o departamento chegar a tal ponto por causa de um encontro de quinze minutos com um prisioneiro em San Quentin. Mas para Bosch isso não era novidade. Sua primeira advertência da corregedoria tinha sido trinta e cinco anos antes. Sofrera uma queixa por parar em uma lavanderia a seco, que ficava em sua área de patrulha, para pegar seus uniformes limpos a caminho da central, no fim da ronda. Desde então, nada mais o surpreendia no modo como o departamento policiava os próprios funcionários.

— E daí? — disse Bosch com desprezo. — Eles que mantenham a queixa. Qual é a pior coisa que pode acontecer comigo? Três dias? Uma semana? Eu vou com a minha filha para o Havaí.

Jackson balançou a cabeça outra vez.

— Você não está entendendo, está?

Agora Bosch pareceu completamente confuso.

— Entender o quê? É corregedoria, não interessa como chamam agora. O que há para não entender?

— Isso não tem a ver só com suspensão de uma semana. Você está no POAA, cara. Tem um contrato, e você não tem mais as mesmas proteções: foi provavelmente por isso que ninguém da liga retornou sua ligação. Um contrato pode ser cancelado com uma Conduta Imprópria do Oficial.

Então Bosch compreendeu. No ano anterior, ele havia assinado um contrato de cinco anos para o adiamento opcional do plano de aposentadoria, o Plano de Opção de Aposentadoria Adiada, ou POAA. Na prática tinha se aposentado, a fim de congelar a pensão, e depois voltado sob os termos do contrato. Havia uma cláusula no documento que permitia ao departamento exonerá-lo se fosse considerado culpado de cometer um crime ou se uma acusação interna de conduta não condizente com a de um policial, a CIO, fosse mantida contra ele.

— Você não percebe o que o O’Fool está fazendo? — perguntou Jackson. — Reformulando o esquadrão, tentando criar o esquadrão dele. Qualquer um de quem ele não goste ou com quem tenha alguma treta ou que não esteja mostrando o devido respeito e lealdade, ele vai usar esse tipo de merda para fazer vazar.

Bosch fez que sim ao juntar as peças do esquema. Ele sabia algo que ­Jackson não sabia: O’Toole talvez não estivesse agindo sozinho, apenas em benefício próprio. Talvez agisse por ordens do homem no décimo andar.

— Tem uma coisa que eu não contei para você.

— Ah, merda — disse Jackson. — O que é?

— Aqui, não. Vamos andando.

Deixaram Charlie Chaplin para trás e voltaram a pé para o Prédio de Administração Pública. Ao longo do caminho, Bosch contou a Jackson duas histórias, uma antiga e outra nova. A primeira era o que estava por trás do caso em que Bosch havia trabalhado no ano anterior, envolvendo a morte do filho do então vereador Irvin Irving. Bosch relatou como havia sido usado pelo chefe e por uma ex-parceira em quem confiava em um golpe político bem-sucedido que resultou na derrota de Irving na disputa pela reeleição. Uma pessoa mais favorável ao departamento de polícia foi eleita no lugar dele.

— Isso me deixou em rota de colisão com o Marty — disse Bosch. — E, com o caso em que estou trabalhando agora, a gente colidiu.

Ele então explicou como o homem no décimo andar estava tentando pressioná-lo, por intermédio de O’Toole, para quebrar o embalo do caso ­Anneke Jespersen. Enquanto encerrava sua história, Bosch deduziu que Jackson havia se arrependido amargamente de ter aceitado atuar como seu representante de defesa.

— Então, pesadas todas as coisas — disse Jackson quando entraram no pátio frontal do PAP —, você não está interessado em tirar o pé do acelerador, nem mesmo em levar o caso na maciota até o ano que vem?

Bosch balançou a cabeça.

— Ela já esperou demais. E, seja quem for que a tenha matado, já ficou livre por tempo demais. Não vou tirar o pé por nada deste mundo.

Jackson assentiu ao passarem pelas portas automáticas.

— Foi o que imaginei.


18

Bosch mal estava de volta à sua mesa na Unidade de Abertos/Não Resolvidos quando recebeu a visita de seu mais novo inimigo, o tenente O’Toole.

— Bosch, já marcou uma hora com o investigador do BPP?

Bosch girou na cadeira de modo que olhasse para seu supervisor. O’Toole estava sem paletó e usando suspensórios com um padrão de pequenos tacos de golfe. O alfinete de gravata era um distintivo do LAPD em miniatura. Algo que vendiam na lojinha de presentes da Academia de Polícia.

— Já cuidei do assunto — disse Bosch.

— Ótimo. Quero esse negócio resolvido o quanto antes.

— Estou certo disso.

— Não é nada pessoal, Bosch.

Bosch sorriu.

— Só queria saber uma coisa, tenente. O senhor arrumou esse negócio sozinho ou teve ajuda de alguém lá de cima?

— Harry? — disse Jackson do outro lado da divisória. — Acho que você não vai querer entrar n...

Bosch ergueu a mão para impedir Jackson de se envolver.

— Tudo bem, Rick. Foi só uma pergunta retórica. O tenente não precisa responder.

— Não sei o que você quer dizer com alguém lá de cima — falou O’Toole, de qualquer maneira. — Mas seria típico de você se concentrar na origem da queixa em vez de cuidar da queixa em si e de suas próprias ações.

O celular de Bosch começou a vibrar. Ele o tirou do bolso e desviou o rosto de O’Toole para olhar o visor. A identificação da chamada estava bloqueada.

— A questão é simples — continuou O’Toole. — Você agiu corretamente quando esteve na prisão ou você...

— Preciso atender — disse Bosch, cortando-o. — Estou trabalhando em um caso, tenente.

O’Toole virou-se para deixar a baia. Bosch atendeu a ligação, mas disse à pessoa que havia telefonado para aguardar. Então segurou o celular no peito a fim de que suas palavras não fossem ouvidas por quem estivesse na outra ponta.

— Tenente.

Havia chamado o supervisor com voz alta o bastante para ser ouvido por vários detetives nas baias próximas. O’Toole virou-se e olhou de novo para Bosch.

— Se continuar a me perseguir, vou formalizar uma queixa.

Encarou O’Toole por uns instantes, depois levou o telefone ao ouvido.

— Aqui é o detetive Bosch, em que posso ajudar?

— Aqui é Suzanne Wingo, ATF. O senhor está no PAP neste momento?

Era o contato de Rachel Walling. Bosch sentiu a vibração da adrenalina percorrendo suas veias. Talvez ela já tivesse rastreado o proprietário da arma usada para matar Anneke Jespersen.

— Isso, estou aqui. Conseguiu...?

— Estou em um banco na frente do prédio. Pode descer um pouco? Tenho algo para você.

— Ahn, claro. Mas não prefere subir aqui? Eu posso...

— Não, eu preferiria que você viesse até aqui.

— Então chego aí em dois minutos.

— Venha sozinho, detetive.

Ela desligou. Bosch ficou sentado por um longo momento, perguntando-se por que ela lhe dissera para ir sozinho. Na mesma hora ligou para Rachel Walling.

— Harry?

— Sou eu. Essa Suzanne Wingo... qual é o lance com ela?

— Como assim? Ela me contou que ia pesquisar o número. Eu dei seu celular para ela.

— Eu sei. Ela acabou de me ligar e me pediu para encontrar com ela na frente do prédio. Falou que era para eu ir sozinho. No que eu estou me metendo, Rachel?

Walling riu antes de responder:

— Nada, Harry. É só o jeito dela. Cheia de sigilo, muito cautelosa. Está fazendo um favor para você e não quer que ninguém mais saiba.

— Tem certeza de que é só isso?

— Tenho. E ela provavelmente vai querer alguma coisa em troca pelo favor. Uma mão lava a outra.

— O quê, por exemplo?

— Não faço ideia, Harry. Talvez nem seja agora. Pode ser que você fique em dívida com ela, só isso. De qualquer forma, se quer descobrir de quem é a arma que encontrou, vá até lá e converse com ela.

— O.k. Obrigado, Rachel.

Bosch desligou e se levantou. Olhou para trás. Chu não havia voltado para sua mesa até aquele momento. Bosch ainda não o tinha visto naquela manhã. Percebeu que Jackson olhava para ele e fez um sinal para saírem da sala a fim de conversar. Harry só falou quando chegaram ao corredor.

— Tem um tempinho?

— Acho que sim — disse Jackson. — O que foi?

— Venha cá.

Bosch foi até a vidraça que dava vista para a área na frente do prédio. Passou os olhos pelos bancos de concreto até ver uma mulher sentada sozinha, segurando uma pasta. Usava calça comprida, blazer e camisa polo. Bosch via onde o blazer formava uma acentuada saliência atrás do bolso direito. A mulher tinha um coldre com arma sob o paletó. Era Wingo. Bosch apontou para ela.

— Está vendo aquela mulher no banco? De blazer azul?

— Estou.

— Vou até lá conversar com ela por uns minutos. Só preciso que você fique de olho, quem sabe bater uma foto com o celular. Dá para fazer isso?

— Claro. Mas o que está acontecendo?

— Provavelmente nada. Ela é da ATF e quer me entregar uma coisa.

— E então?

— Não conheço a mulher. Ela não quer subir e me disse para ir lá embaixo sozinho.

— Tudo bem.

— Acho que só estou sendo paranoico. Com o O’Toole obviamente verificando cada passo que eu dou...

— É, acho que não ajudou muito você ter falado com ele daquele jeito. Como seu representante de defesa, acho que você não...

— Ele que se foda. Preciso descer. Você fica de olho?

— Não saio daqui.

— Valeu, parceiro.

Bosch bateu no braço dele e se afastou. Jackson exclamou às suas costas:

— Você sabe que é o cara mais paranoico que eu conheço.

Bosch estreitou os olhos, fingindo que estava desconfiado.

— Quem contou isso para você?

Jackson riu. Bosch pegou o elevador, desceu e atravessou a área direto até a mulher que tinha visto lá de cima. De perto percebeu que devia ter trinta e poucos anos, era atlética e os cabelos ruivos tinham um corte curto e prático. A primeira impressão de Bosch foi de que era provavelmente uma agente federal tarimbada.

— Agente Wingo?

— Você disse dois minutos.

— Desculpe, fui interrompido por meu supervisor e o homem é um pé no saco.

— E não são sempre assim...

Bosch gostou de ela ter dito isso como uma afirmação e não como uma pergunta. Sentou-se ao lado dela, os olhos na pasta que a agente estava segurando.

— Então, que negócio de agente secreto é esse, de marcar o encontro aqui embaixo? Lembro que ninguém queria ir ao prédio antigo porque podia virar panqueca da próxima vez que o ponteiro batesse em seis na escala Richter. Mas agora a gente tem um lugar novinho em folha. É cem por cento seguro. Você podia entrar e eu mostrava o lugar.

— Rachel Walling me pediu o favor, mas disse que só podia se responsabilizar por você até aí, entende o que eu quero dizer?

— Não, o que ela disse sobre mim?

— Disse que você atrai encrencas e que eu devia tomar cuidado. Mas não usou essas palavras exatamente.

Bosch fez que sim. Deduziu que Walling o havia chamado de ímã de problemas. Não teria sido a primeira vez.

— Vocês, garotas, são unidas.

— A gente precisa ser. Estamos no clube do bolinha.

— Então, você checou os números da arma?

— Chequei. E não sei se vai ser de grande ajuda para você.

— Por quê?

— Porque eu acho que a arma que você encontrou estava sumida fazia vinte e um anos.

Bosch sentiu a carga de adrenalina começar a se esvaziar imediatamente. Lamentou ter depositado tamanha esperança na crença de que o número de série da arma seria capaz de abrir a caixa-preta do caso.

— É onde ela sumiu que deixa a história interessante — acrescentou Wingo.

Os pensamentos de arrependimento de Bosch foram substituídos na mesma hora pela curiosidade.

— Onde?

— No Iraque. Desde a operação Tempestade no Deserto.


19

Wingo abriu a pasta e leu suas anotações antes de prosseguir:

— Vamos começar pelo começo.

— Eu preciso anotar alguma coisa ou você depois vai me dar essa pasta? — perguntou Bosch.

— É toda sua. Só preciso dela para contar a história.

— Então vá em frente.

Bosch tentou se lembrar exatamente do que havia dito a Rachel Walling sobre o caso. Ele lhe contara que Anneke Jespersen cobrira a operação Tempestade no Deserto? Ela havia dito isso a Wingo? Mesmo se Wingo soubesse, não teria mudado o rastreamento da arma, e ela não teria como saber como essa informação específica, que a arma sumira no Iraque, fornecia um novo rumo para a investigação de Bosch.

— Vamos lá, do começo — disse Wingo. — Os dez números de série que você me passou pertenciam a um lote fabricado na Itália em 1988. Essas dez armas estavam entre três mil fabricadas e vendidas para o Ministério da Defesa do governo iraquiano. A entrega do estoque das armas foi em 1º de fevereiro de 1989.

— Deixa eu adivinhar... a trilha desaparece depois disso?

— Não, na verdade ainda não. O Exército iraquiano manteve alguns ­registros limitados, aos quais tivemos acesso desde a segunda Guerra do Golfo. Um pequeno benefício decorrente da distribuição de registros confiscados dos palácios e das bases militares de Saddam Hussein. Você se lembra da busca por armas de destruição em massa? Bom, pode ser que não tenham achado ­nenhuma, mas encontraram uma pilha de registros envolvendo armas menores. Tivemos acesso a isso.

— Muito bem. O que eles diziam sobre minha arma?

— O carregamento inteiro de armas da Itália foi distribuído para a Guarda Republicana. Eram os soldados de elite. Você sabe a história do que aconteceu depois disso?

Bosch fez que sim.

— Sei o básico. Saddam invadiu o Kuwait, e, depois que as atrocidades começaram, as forças aliadas acabaram com a festa.

— Certo, Saddam invadiu em 1990, logo depois de receber essas armas. Então eu acho que a conclusão óbvia é que estava se equipando para a invasão.

— Então a arma foi para o Kuwait.

Wingo confirmou com a cabeça.

— Muito provavelmente, mas não dá para ter certeza. É aí que os registros terminam.

Bosch se recostou no banco e ergueu o rosto para o céu. De repente se lembrou de que havia pedido a Rick Jackson para vigiá-lo. Não achou mais que isso fosse necessário, e seus olhos percorreram a superfície de vidro do PAP. O reflexo do sol no vidro combinado ao ângulo exato de Bosch o impedia de ver o que quer que fosse. Ergueu a mão e fez um sinal de o.k. Esperava que ­Jackson captasse o recado e deixasse de perder seu tempo.

— O que foi isso? — perguntou Wingo. — O que você está fazendo?

— Nada. Eu estava com um cara lá de olho em mim por causa dessa sua coisa toda de sigilo e de eu vir sozinho e tudo o mais. Só avisei que estava tudo bem.

— Bondade sua.

Bosch sorriu com o sarcasmo. Ela lhe passou a pasta. O relatório havia terminado.

— Olha, eu sou paranoico, e você me deixou desconfiado — disse Bosch.

— Às vezes ser paranoico é uma coisa boa — respondeu Wingo.

— Às vezes. Então, o que você acha que aconteceu com a arma? Como veio parar aqui?

Bosch estava trabalhando em suas próprias respostas a essas perguntas, mas queria ouvir o que Wingo tinha a dizer antes de ir embora. Afinal, ela trabalhava para a agência federal, encarregada do monitoramento de armas de fogo.

— Bom, a gente sabe o que aconteceu no Kuwait durante a Tempestade no Deserto.

— É, a gente foi lá e pôs os soldados de Saddam para correr.

— Certo, a guerra de verdade durou menos de dois meses. O exército iraquiano primeiro bateu em retirada na Cidade do Kuwait e depois tentou voltar correndo pela fronteira para Basra. Muitos foram mortos e muitos mais foram capturados.

— Acho que essa rota foi chamada de Rodovia da Morte — disse Bosch, lembrando-se da matéria e das fotos de Anneke Jespersen.

— Isso mesmo. Fiz uma pesquisa sobre tudo isso ontem na internet. Houve centenas de baixas e milhares de prisioneiros só nessa estrada. Eles puseram os prisioneiros em ônibus e as armas deles em caminhões e mandaram tudo para a Arábia Saudita, onde ficavam os campos de prisioneiros de guerra.

— Então minha arma pode ter vindo em um desses caminhões.

— Exato. Ou pode ter pertencido a um soldado que não escapou, ou a um que conseguiu chegar até Basra. Não tem como saber.

Bosch pensou a respeito por uns momentos. De algum modo, uma arma da Guarda Republicana Iraquiana aparecera em Los Angeles no ano seguinte.

— O que aconteceu com as armas capturadas? — perguntou ele.

— Foram empilhadas e destruídas.

— E ninguém registrou os números de série?

Wingo balançou a cabeça.

— Era guerra. Havia armas demais e não dava tempo de ficar por lá anotando números de série ou qualquer coisa do gênero. Estamos falando de caminhões carregados de armas. Então elas foram simplesmente destruídas. Milhares por vez. Levavam os carregamentos para o meio do deserto, jogavam em um buraco e depois detonavam tudo com explosivos de alto grau. Deixavam queimando durante um ou dois dias e então jogavam areia no buraco. Fim de papo.

Bosch assentiu.

— Fim de papo.

Ele continuou remoendo a história. Havia um pensamento se formando no fundo da sua mente. Uma conexão que ajudaria a pôr tudo em foco. Ele tinha certeza disso, apenas não conseguia formular a ideia com clareza.

— Preciso perguntar uma coisa — disse ele, finalmente. — Você já viu isso antes? Quer dizer, uma arma de lá aparecendo aqui em um caso. Uma arma que deveria ter sido apreendida e destruída.

— Eu verifiquei exatamente isso hoje de manhã e a resposta é sim, já aconteceu. Pelo menos uma vez, pelo que descobri. Só que não exatamente do mesmo jeito.

— Como, então?

— Houve um homicídio em Fort Bragg, Carolina do Norte, em 1996. Um soldado matou outro em uma briga de bêbados por causa de uma mulher. A arma que ele usou também era um modelo Beretta 92 que havia pertencido ao exército de Saddam. O soldado em questão serviu no Kuwait durante a Tempestade no Deserto. Na confissão, ele disse que a havia tirado de um soldado iraquiano morto e depois trazido contrabandeada como suvenir. Só que nos registros que eu examinei não consegui descobrir como isso foi feito. Mas ele a trouxe para os Estados Unidos.

Bosch sabia que existiam muitos modos diferentes de trazer armas para o país como lembrança de guerra. A prática era tão antiga quanto o exército. Quando servira no Vietnã, o modo mais fácil era desmontar a arma e enviar as partes separadamente pelo correio, durante várias semanas.

— O que você está pensando, detetive?

Bosch riu.

— Estou pensando... Estou pensando que preciso descobrir quem trouxe a arma para cá. Minha vítima era jornalista e fotógrafa. Ela cobriu essa guerra. Eu li uma matéria que ela escreveu sobre a Rodovia da Morte. Eu vi as fotos...

Bosch tinha de considerar a possibilidade de a própria Anneke Jespersen ter levado para Los Angeles a arma que a havia matado. Parecia improvável, mas ele não podia desprezar o fato de que ela estivera no mesmo lugar onde a arma fora oficialmente localizada pela última vez.

— Quando começaram a usar detectores de metal nos aeroportos? — perguntou ele.

— Ah, já faz tempo — disse Wingo. — Começou depois de todos aqueles sequestros nos anos 1970. Mas escanear bagagem é outra história. Isso é bem mais recente e também não foi constante.

Bosch balançou a cabeça.

— Ela viajava com pouca coisa. Não acho que ela carregava bagagem, só mala de mão.

Ele não acreditava nessa hipótese. Não fazia sentido que Anneke Jespersen­ tivesse de algum modo pegado a arma de um soldado iraquiano morto ou capturado e a contrabandeado para a Dinamarca e depois para os Estados Unidos para então ser assassinada com ela.

— Sei que não parece muito promissor — disse Wingo. — Mas, se você pudesse fazer um levantamento da região onde a vítima foi morta, talvez descobrisse quem serviu no Exército e na Guerra do Golfo. Se havia alguém morando nas proximidades do local do homicídio que tivesse acabado de voltar... — Wingo deixou a frase morrer no ar. — Sabe, falou-se muito na época sobre a síndrome da Guerra do Golfo, exposição a produtos químicos e calor. Um monte de incidentes violentos ocorridos no país depois disso foi atribuído a essa guerra. O soldado em Fort Bragg... essa foi a defesa dele.

Bosch fazia que sim com a cabeça, mas não estava mais escutando. As coisas de repente começavam a se encaixar, palavras, cenas, lembranças... visões daquela noite no beco da Crenshaw Boulevard. De soldados perfilados na rua. De fotos em preto e branco de soldados na Rodovia da Morte... a explosão do quartel em Dhahran e a carcaça fumegante de um Humvee militar... as luzes com que o Humvee iluminara o beco...

Bosch se curvou para a frente, os cotovelos nos joelhos, e passou as mãos nos cabelos.

— Está se sentindo bem, detetive Bosch?

— Estou. Tudo bem.

— Bom, não parece.

— Acho que eles estavam lá...

— Quem estava lá?

Ainda com as mãos nos cabelos, Bosch percebeu que havia falado em voz alta. Virou-se para olhar Wingo por sobre o ombro. Não respondeu à pergunta dela.

— Você conseguiu, agente Wingo. Acho que você abriu a caixa-preta.

Ele se levantou e olhou para ela.

— Obrigado, e agradeça a Rachel Walling. Agora preciso ir.

Virou-se e começou a voltar em direção às portas do PAP. A voz de Wingo se elevou às suas costas:

— Que caixa-preta?

Ele não respondeu. Seguiu em frente.


20

Bosch marchou pela sala do esquadrão até sua mesa. Viu Chu na baia, virado­ de lado e curvado sobre o computador. Bosch entrou na salinha, agarrou sua cadeira e a puxou para ficar ao lado de Chu. Sentou-se ao contrário, o peito apoiado no encosto, e começou a falar em um tom de voz urgente:

— No que você está trabalhando, David?

— Ahn, só pesquisando umas opções de viagem para Minnesota.

— Você vai sem mim? Já disse que não tem problema.

— Estou achando que preciso ir ou começar alguma outra coisa enquanto espero.

— Então é isso aí, você devia ir. Já viu quem pode ir com você?

— Já, a Trish disse que vai. Ela tem família em St. Paul, então está dentro, com frio e tudo.

— Certo, só fala para ela tomar cuidado com o O’Toole fuçando em cada comprovante de viagem.

— Já falei. Então, do que você precisa, Harry? Dá para ver que você está seguindo algum rastro. Tem algum palpite?

— Pode apostar. O que eu preciso que você faça é entrar no computador e descobrir que unidades da Guarda Nacional da Califórnia foram enviadas para Los Angeles durante os tumultos de 1992.

— Isso deve ser bem fácil.

— E depois descobre quais unidades dessas também foram mobiliza­das no Golfo Pérsico durante a Tempestade no Deserto no ano anterior. Entendeu?

— Entendi, você quer saber que unidades estiveram nos dois lugares.

— Exato. E, assim que você tiver uma lista, quero saber onde era a base na Califórnia e o que eles fizeram na Tempestade no Deserto. Para onde foram destacados, esse tipo de coisa. Estou procurando nomes. Nomes de soldados que estiveram na Tempestade no Deserto em 1991 e em Los Angeles um ano depois.

— Saquei.

— Beleza. Valeu, David.

— Sabe, Harry, você não precisa me chamar pelo primeiro nome se não fica à vontade. Estou acostumado a você me chamando pelo sobrenome.

Chu olhava para a tela de seu computador ao dizer isso.

— É óbvio assim, hein? — disse Bosch.

— Meio que dói o ouvido — disse Chu. — Sabe, depois de todo esse tempo com você simplesmente me chamando de Chu.

— Bom, vamos fazer o seguinte. Você descobre o que eu pedi e vou chamar você de sr. Chu daqui para a frente.

— Não precisa chegar a tanto. Mas você se importa de me contar por que estamos fazendo essa pesquisa? O que isso tem a ver com a Jespersen?

— Espero que tudo.

Bosch então explicou a nova teoria do caso que estava perseguindo, de que Anneke Jespersen estava trabalhando em uma matéria e tinha ido a LA não por causa dos tumultos, mas porque andava atrás de alguém de uma das unidades da Guarda Nacional da Califórnia que havia sido destacada no ano anterior para o Golfo Pérsico.

— O que aconteceu lá que a fez ir atrás do cara? — perguntou Chu.

— Ainda não sei — disse Bosch.

— O que você vai fazer enquanto eu trabalho nesse ângulo?

— Vou trabalhar em outro. Alguns desses caras já estão no inquérito de homicídio. Vou começar por lá.

Bosch se levantou e rolou a cadeira de volta para sua mesa. Sentou-se e abriu o inquérito de homicídio original do caso de Jespersen. Antes que ­pudesse começar a repassar os depoimentos das testemunhas, seu celular vibrou.

Ele olhou o visor e viu que era Hannah Stone. Bosch estava ocupado e sentia que pegara novo embalo. Normalmente, teria deixado cair na caixa de mensagens, mas algo lhe disse que era melhor atender. Hannah quase nunca ligava no horário de trabalho. Se queria falar com ele, mandava uma mensagem de texto antes, para saber se Bosch podia conversar.

Ele atendeu:

— Hannah? O que foi?

A voz dela saiu como um sussurro urgente:

— Tem uma mulher da polícia aqui na sala de espera. Disse que quer me entrevistar sobre você e o meu filho.

A voz de Hannah estava tensa de medo, beirando o pânico. Ela não fazia ideia do que estava acontecendo, e Bosch percebeu que era lógico que ela seria entrevistada. Ele deveria tê-la advertido.

— Hannah, tudo bem. Você pegou o cartão dela? O nome é Mendenhall?

— Isso, ela disse que era uma detetive dos padrões policiais ou qualquer coisa assim. Não me deu cartão nenhum. Só apareceu aqui, sem ligar para avisar.

— Tudo bem. É o Bureau de Padrões Profissionais e ela só precisa perguntar o que você sabe sobre o meu encontro com o Shawn no outro dia.

— Como? Para quê?

— Porque meu tenente prestou queixa por causa disso, dizendo basicamente que eu usei dinheiro da empresa por motivos pessoais. Olha, Hannah, não interessa, só fala para ela o que você sabe. Fale a verdade.

— Tem certeza? Quer dizer, você tem certeza de que é melhor eu falar com ela? Ela disse que eu não sou obrigada.

— Você pode falar com ela, mas só fale a verdade. Não é para falar coisas que você acha que podem me ajudar. Conta só a verdade, até onde você sabe. O.k., Hannah? Não tem nada de mais.

— Mas e quanto ao Shawn?

— O que tem ele?

— Ela pode fazer alguma coisa com ele?

— Não, Hannah, não tem nada desse tipo. Isso tem a ver comigo e não com o Shawn. Então chame a detetive à sua sala e responda às perguntas só com a verdade. O.k.?

— Se você diz que está tudo bem...

— Estou dizendo. Está. Não se preocupe. Vamos fazer assim, me ligue de volta quando ela for embora.

— Não dá. Tenho horários marcados. Meu trabalho vai acumular porque vou precisar falar com ela.

— Então vá rápido com ela e depois me ligue, quando você estiver em dia com seus pacientes.

— Por que a gente não janta hoje?

— Tudo bem, parece uma boa ideia. Você me liga ou então eu ligo e a gente combina onde se encontrar.

— O.k., Harry. Já estou me sentindo melhor.

— Ótimo, Hannah. A gente se fala.

Ele desligou e voltou ao inquérito de homicídio. Chu o interrompeu, às suas costas, tendo escutado metade da conversa entre Bosch e Hannah:

— Então eles não vão deixar isso para lá.

— Ainda não. Mendenhall já agendou uma entrevista com você?

— Negativo, não tive notícia dela.

— Não se preocupe, vai ter. Ela me pareceu uma investigadora bastante cuidadosa, pelo que pude perceber.

Bosch abriu o inquérito de homicídio no começo para encontrar e reler a declaração de Francis John Dowler, o soldado da Guarda Nacional da Califórnia que encontrou o corpo de Anneke Jespersen no beco da Crenshaw. O relatório era a transcrição de uma entrevista por telefone conduzida por Gary Harrod, da Força-Tarefa de Crimes dos Distúrbios. Bosch e Edgar não tiveram oportunidade de entrevistar Dowler na primeira noite de investigação. Harrod conseguiu falar com ele pelo telefone cinco semanas depois do crime. Nessa época, ele tinha voltado à vida de civil em uma cidade chamada Manteca.

O relatório e o depoimento da testemunha diziam que Dowler estava com vinte e sete anos e trabalhava como motorista de caminhão; que havia servido na Guarda Nacional da Califórnia por seis anos e tinha sido designado para a 237ª Companhia de Transporte baseada em Modesto.

Uma onda de adrenalina invadiu o corpo de Bosch. Modesto. Alguém se fazendo passar por Alex White havia ligado de Modesto dez anos depois do crime.

Bosch girou na cadeira e comunicou a informação sobre a 237ª para Chu, que, por meio de sua busca na internet, já havia determinado que a 237ª era uma das três tropas da Guarda Nacional que enviaram homens tanto para a Tempestade no Deserto quanto para os tumultos de Los Angeles.

Lendo de sua tela, Chu disse:

— Você tem o quartel da 237 em Modesto e o da 2668 de Fresno. Os dois eram companhias de transporte, motoristas de caminhão, basicamente. O terceiro era o da 270ª de Sacramento. Eram a polícia militar.

Bosch não escutou muita coisa depois de “motoristas de caminhão”. Estava pensando nos caminhões que transportaram todas as armas capturadas para descarte no deserto saudita.

— Vamos nos concentrar na 237ª. O cara que encontrou o corpo estava com a 237ª. O que mais você tem deles?

— Não muita coisa. Diz que serviram por doze dias em Los Angeles. Foi informado que houve apenas um ferido, um cara que passou a noite no hospital com uma concussão quando alguém o acertou com uma garrafa.

— E sobre a Tempestade no Deserto?

Chu apontou para a tela.

— Estou com isso aqui. Vou ler a descrição das incumbências durante a Tempestade no Deserto. “Os soldados da 237ª foram mobilizados no dia 20 de setembro de 1990, com sessenta e dois homens. A unidade chegou à Arábia Saudita no dia 3 de novembro seguinte. Durante as operações Escudo do Deserto e Tempestade no Deserto, a unidade transportou vinte e uma mil toneladas de carga, quinze mil soldados e prisioneiros de guerra e rodou 1,347 milhão de quilômetros sem acidentes. A unidade voltou para Modesto sem uma única baixa, em 23 de abril de 1991.” Está vendo o que eu quero dizer? Esses caras eram motoristas de caminhão e de ônibus.

Bosch considerou a informação e as estatísticas por alguns momentos.

— A gente precisa conseguir esses sessenta e dois nomes.

— Estou trabalhando nisso. Você tinha razão. Cada unidade tem um site amador e um arquivo. Sabe, matérias de jornal e esse tipo de coisa. Mas não encontrei nenhuma lista de nomes de 1991 ou 1992. Apenas menções de diferentes pessoas aqui e ali. Como um cara da época, que é xerife do condado de Stanislaus agora. E também está concorrendo ao Congresso.

Bosch rolou sua cadeira até lá para olhar o que Chu tinha em sua tela. Havia a foto de um homem, em um uniforme verde de xerife, segurando um cartaz que dizia DRUMMOND PARA O CONGRESSO!

— Esse é o site da 237ª?

— É. Aqui diz que esse cara serviu de 1990 a 1998. Então ele deve ter...

— Espera aí um minuto... Drummond, eu conheço esse nome.

Bosch tentou se localizar, projetando seus pensamentos para a noite do beco. Todos aqueles soldados parados, observando. Ele estalou os dedos quando o relance fugidio de um rosto e um nome surgiu.

— Drummer. Esse é o cara que chamavam de Drummer. Ele estava lá naquela noite.

— Bom, J. J. Drummond é xerife agora — disse Chu. — Quem sabe ele não ajuda a gente com os nomes.

Bosch fez que sim.

— Pode ser, mas é melhor deixar isso tudo entre a gente até sabermos direitinho onde estamos pisando.


21

Bosch foi até o computador e buscou o mapa de Modesto, para localizar melhor a distância entre Va e Manteca, a cidade natal do soldado Francis Dowler.

Ambas ficavam no coração do vale de San Joaquin, mais conhecido como Vale Central, o celeiro do estado. Carne, frutas, legumes, frutas secas, tudo o que era servido nas mesas das cozinhas e dos restaurantes em Los Angeles e na maior parte da Califórnia vinha do Vale Central. E isso incluía alguns dos vinhos presentes nessas mesas.

Modesto era a principal cidade do condado de Stanislaus, enquanto Manteca ficava logo depois da fronteira norte e era parte do condado de San Joaquin. A sede do condado ali era Stockton, a maior cidade do Vale.

Bosch não conhecia esses lugares. Fora poucas vezes ao Vale, apenas de passagem, em viagens para San Francisco e Oakland. Sabia, no entanto, que na Interestadual 5 você podia sentir o cheiro dos currais nos arredores de Stockton muito antes de chegar lá. Podia também pegar praticamente qualquer saída na Califórnia 99 e rapidamente encontrar uma barraca de frutas ou legumes com produtos que reafirmavam sua convicção de estar morando no lugar certo. O Vale Central era grande parte do que tornava a Califórnia o Estado Dourado.

Bosch voltou ao depoimento de Francis Dowler. Embora já o tivesse lido pelo menos duas vezes desde a reabertura do caso, voltava a lê-lo dessa vez à procura de cada detalhe que talvez tivesse deixado escapar.

Eu, aqui subscrito, Francis John Dowler (21/7/1964), servi com a Guarda Nacional da Califórnia, 237ª Companhia, na sexta-feira, 1º de maio de 1992, em Los Angeles. As responsabilidades de minha unidade eram proporcionar segurança e zelar pelas grandes artérias de tráfego durante os distúrbios civis que ocorreram depois dos veredictos no julgamento por abuso policial do caso Rodney King. Na noite de 1º de maio, minha unidade estava estacionada ao longo da Crenshaw Boulevard, entre a Florence Avenue e a Slauson Avenue. Tínhamos chegado à área no fim da noite anterior, depois que havia sido extensamente atacada por saqueadores e incendiários. Minha posição era entre a Crenshaw e a 67th Street. Aproximadamente às 22 horas, recuei até um beco próximo a uma loja de pneus para urinar. Nesse momento, notei o corpo de uma mulher caído junto à parede de uma estrutura incendiada. Não vi mais ninguém no beco naquela hora e não reconheci a mulher morta. Pareceu-me que havia sido baleada. Confirmei o óbito tomando seu pulso e em seguida deixei o beco. Aproximei-me do operador de rádio Arthur Fogle e o instruí a contatar nosso supervisor, o sargento Eugene Burstin, e lhe dizer que tínhamos um corpo no beco. O sargento Burstin foi até lá e inspecionou o beco e o corpo, e então a divisão de homicídios do LAPD foi informada pelo rádio. Regressei ao meu posto e mais tarde fui deslocado para a Florence Avenue, onde o controle de multidão era necessário por causa dos residentes enfurecidos naquele cruzamento. Este é um relato completo, confiá­vel e preciso de minhas atividades na noite de sexta-feira, 1º de maio de 1992, devidamente atestado por minha assinatura abaixo.

Bosch anotou os nomes de Francis Dowler, Arthur Fogle e Eugene ­Burstin em uma página na caderneta sob o nome de J. J. Drummond. Pelo menos tinha os nomes de quatro dos sessenta e dois soldados que serviram em 1992 na 237ª Companhia. Bosch ficou olhando para o depoimento de Dowler enquanto refletia sobre qual seria o próximo passo.

Foi então que notou o papel impresso junto à parte de baixo da página. Era uma comprovação de envio de fax. Gary Harrod obviamente havia datilografado o depoimento e o enviado por fax para Dowler para sua aprovação e assinatura. O fax havia sido reenviado. A identificação do fax no pé da página informava o número do telefone e o nome da empresa: Cosgrove Agriculture, Manteca, Califórnia. Bosch deduziu que fosse o empregador de Dowler.

— Cosgrove — disse Bosch.

O mesmo nome aparecia na revendedora John Deere, de onde a ligação de Alex White havia sido feita dez anos antes.

— É, encontrei esse — disse Chu às suas costas.

Bosch se virou.

— Esse o quê?

— Cosgrove. Carl Cosgrove. Ele estava na unidade. Encontrei o cara em algumas fotos aqui. Ele é meio que um figurão por lá.

Bosch se deu conta de que haviam topado com uma conexão.

— Me manda esse link, o.k.?

— Pode deixar.

Bosch voltou a seu computador e aguardou a chegada do e-mail.

— É o site da 237ª que você está olhando?

— É. Eles têm coisa aqui desde os tumultos e a Tempestade no Deserto.

— E quanto a uma lista de pessoal?

— Nenhuma lista, mas há alguns nomes nessas matérias, e com fotos. Cosgrove é um deles.

O e-mail chegou. Bosch rapidamente o abriu e clicou no link.

Chu tinha razão. O site parecia amador, para dizer o mínimo. Com dezesseis anos, sua filha já havia criado páginas de web mais bem-feitas em trabalhos da escola. Esse em questão obviamente tinha sido feito anos antes, quando os sites ainda eram um fenômeno cultural novo. Ninguém se dera ao trabalho de ­atualizá-lo com recursos gráficos e design contemporâneos.

A chamada principal anunciava o site como “Lar dos Combatentes da 237ª”. Embaixo disso estava o que pareciam o lema e a logo da companhia, as palavras Keep on Truckin’ e uma versão da ilustração icônica do cartunista Robert Crumb, de um homem marchando com otimismo, um pé desproporcional adiante do corpo. A versão da 237ª tinha o homem com uniforme militar, um fuzil pendurado no ombro.

Mais abaixo havia blocos de informação sobre as atuais excursões de treinamento e atividades recreativas da companhia. Tinha links para fazer contato com o gerenciador do site ou para se juntar aos grupos de discussão. Havia também um chamativo botão “História”. Bosch clicou nesse.

O link o levou a um blog que exigia rolar a página por vinte anos de relatórios sobre as realizações da companhia. Por sorte, as chamadas da Guarda tinham sido poucas e muito espaçadas, e ele não levou muito tempo para chegar ao início dos anos 1990. Esses relatórios haviam sido obviamente carregados no site quando de sua construção, em 1996.

Havia um pequeno artigo sobre a convocação para os tumultos de Los Angeles que não apresentava nenhuma informação que Bosch já não tivesse. Mas era acompanhado por diversas fotos de soldados da 237ª a postos em diversas localizações de South LA e incluía vários nomes de que Bosch não dis­punha. Ele copiou cada um na caderneta e então continuou a rolagem da página.

Quando chegou aos feitos da 237ª durante o Escudo do Deserto e a Tempestade no Deserto, sua pulsação acelerou ao ver diversas fotos semelhantes às que Anneke Jespersen havia tirado quando cobrira a guerra. A 237ª havia acampado em Dhahran e estava bem próxima do quartel bombardeado pelo ataque de Scud iraquiano. A companhia de transporte havia levado soldados, civis e prisioneiros para todos os lados nas principais estradas entre o Kuwait e a Arábia Saudita. Havia até fotos de membros da 237ª de licença, descansando em um navio ancorado no Golfo Pérsico.

Havia mais nomes ali, e Bosch continuou copiando-os na caderneta, pensando que eram boas as chances de que a guarnição da 237ª não tivesse mudado muito entre a Guerra do Golfo e os tumultos de Los Angeles. Os homens indicados nas fotos de guerra eram muito provavelmente parte da unidade enviada a LA um ano depois.

Ele chegou a uma série de fotos mostrando diversos integrantes da 237ª em um navio chamado Saudi Princess, durante a licença. Havia fotos de uma equipe de vôlei competindo em um possível torneio, mas a maior parte era obviamente de homens embriagados erguendo garrafas de cerveja e posando para a câmera.

Bosch ficou paralisado quando leu os nomes sob uma das fotos, que mostrava quatro homens no deque de madeira em torno da piscina do navio. Estavam sem camisa, segurando garrafas de cerveja e fazendo o sinal da paz para a câmera. Seus trajes de banho molhados eram calças camufladas com as pernas cortadas. Pareciam muito bêbados e estavam bem bronzeados. Os nomes listados diziam Carl Cosgrove, Frank Dowler, Chris Henderson e Reggie Banks.

Bosch agora tinha mais uma ligação. Fora Reggie Banks quem vendera a Alex White o trator dez anos antes. Ele escreveu os novos nomes em sua lista e sublinhou o nome de Banks com três traços.

Bosch expandiu a foto em sua tela e a examinou novamente. Três deles — todos, exceto Cosgrove — tinham tatuagens idênticas no ombro direito. Bosch percebeu que era a famosa ilustração de Crumb em roupa camuflada, o logo da unidade. Bosch então notou que atrás e à direita deles havia uma lata de lixo tombada, garrafas e latas espalhadas pelo deque. Olhando para a foto, o detetive se deu conta de que já tinha visto aquilo antes. A mesma cena, de um ângulo diferente.

Harry abriu depressa uma nova janela em sua tela e foi para o site memorial de Anneke Jespersen. Então abriu a pasta com as fotos da Tempestade no Deserto. Percorreu-as rapidamente até chegar à pasta das fotos tiradas no navio. A terceira foto na série de seis era do deque da piscina. Mostrava um faxineiro do navio erguendo uma lata de lixo caída.

Alternando de janela em janela e de foto em foto, Bosch pôde comparar a miscelânea de garrafas, latas e marcas espalhadas. A configuração dos conteúdos entornados era exatamente a mesma. Significava, sem sombra de dúvida, que Anneke Jespersen havia estado no navio na mesma ocasião que os membros da 237ª Companhia. Para confirmar isso, Bosch comparou outros marcadores nas fotos. Em ambos notou o mesmo salva-vidas empoleirado na cadeira ao lado da piscina usando o mesmo chapéu de pano e com o nariz coberto de protetor nas duas fotos. Uma mulher de biquíni tomando sol na beira da piscina, a mão direita mergulhada na água. E, por último, o bartender ao balcão do bar com telhado de palha. O mesmo cigarro torto atrás da orelha.

Não havia dúvida. A foto de Anneke havia sido batida minutos depois da foto que se via no site da 237ª Companhia. Ela estivera lá com eles.

Diziam que o trabalho policial era composto de noventa e nove por cento de tédio e um por cento de adrenalina, momentos de alta intensidade, com resultados potencialmente fatais. Bosch não sabia se havia algum resultado ­potencialmente fatal naquela descoberta, mas sentia a intensidade do momento. Rapidamente abriu a gaveta em sua mesa e tirou a lente de aumento. Então virou as páginas do inquérito de homicídio até encontrar a folha na qual estavam as cópias e as fotos 20 x 25 que foram reveladas a partir dos quatro rolos de filme encontrados no colete de Anneke Jespersen.

Havia apenas dezesseis fotos 20 x 25, cada uma marcada no verso com o número do rolo de filme correspondente. Bosch deduziu que os investigadores as selecionaram de modo aleatório e copiaram quatro fotos de cada rolo de filme. Harry agora olhava febrilmente para elas, comparando os soldados em cada uma com a foto dos quatro homens no Saudi Princess. Não conseguiu encontrar nada até chegar às quatro fotos do rolo 3. Todas as quatro mostravam diversos soldados em fila para subir em um caminhão de transporte de tropas diante do Coliseum. Mas claramente no centro e no foco de cada imagem havia um homem alto e bem-constituído que parecia o soldado identificado como Carl Cosgrove na foto do navio.

Bosch usou a lente de aumento para aprofundar a comparação, mas não conseguiu ter certeza absoluta. O homem na foto de Jespersen usava capacete e não estava olhando diretamente para a câmera. Bosch sabia que teria de entregar as fotos, as cópias e as tiras de negativo para a unidade fotográfica, para ser feita a comparação usando um método melhor do que uma lente de aumento portátil.

Quando deu uma última olhada na foto da 237ª, Bosch notou o crédito em letras miúdas na margem direita:

FOTO J. J. DRUMMOND

Bosch sublinhou o nome de Drummond em sua lista e parou para pensar na coincidência com que se deparara. Três nomes que já conhecia da investigação — Banks, Dowler e Drummond — eram homens que haviam estado no deque da piscina do Saudi Princess no mesmo dia e hora em que a fotojornalista Anneke Jespersen. Um ano depois, um deles encontraria o corpo dela em um beco no meio dos tumultos em Los Angeles. Outro conduziria Bosch até o corpo e o terceiro, presumivelmente, ligaria para saber sobre o andamento do caso uma década depois.

Outra conexão envolvia Carl Cosgrove. Ele se encontrava no navio em 1991 e parecia ter estado em Los Angeles um ano depois. Seu nome aparecia na comprovação do fax do depoimento de Francis Dowler e da revendedora John Deere em que Reggie Banks trabalhava.

Em qualquer caso, sempre chegava um momento em que as coisas começavam a se encaixar e o foco adquiria uma nitidez de luz incandescente. Bosch estava nesse ponto. Ele sabia o que tinha de fazer e aonde precisava ir.

— David? — disse, os olhos ainda fixos na imagem em sua tela de compu­tador: quatro homens embriagados e felizes se bronzeando, longe do medo e da aleatoriedade da guerra.

— O que foi, Harry?

— Pare agora.

— Pare o quê?

— Pare o que está fazendo.

— Como assim? Por quê?

Bosch virou sua tela de modo que o parceiro pudesse ver a foto. Então olhou para Chu.

— Esses quatro homens. Comece por eles. Pesquise no computa­dor. Encontre. Descubra tudo o que puder sobre eles.

— O.k., Harry. E o xerife Drummond? A gente deve entrar em contato para falar sobre esses caras?

Bosch pensou por um momento.

— Não — disse afinal. — Acrescente ele na lista.

Chu pareceu surpreso.

— Você quer que eu levante a ficha dele?

Bosch assentiu.

— É isso, e não comente com ninguém.

Bosch se levantou e deixou a baia. Atravessou o corredor central até a sala do tenente. A porta estava aberta, e ele viu O’Toole trabalhando em sua mesa com a cabeça baixa enquanto escrevia algo em uma pasta aberta. Harry bateu no batente da porta e O’Toole ergueu o rosto. Ele hesitou, então sinalizou para que Bosch entrasse.

— Deixe-me lembrá-lo de que você entrou aqui por vontade própria — disse quando Bosch entrou. — Nada de perseguição, nada de coerção.

— Registrado.

— Em que posso ajudar, detetive?

— Quero pedir um período de férias. Acho que preciso de um tempo para pensar nas coisas.

O’Toole demorou a responder, como se cogitasse que aquilo era uma armadilha.

— Quando quer ir? — perguntou ele, finalmente.

— Estava pensando na semana que vem. Sei que é sexta e que estou avisando em cima da hora, mas meu parceiro pode cobrir qualquer coisa que a gente tiver. Além disso, ele já está trabalhando em uma coleta com a Trish Allmand.

— E quanto ao caso da Branca de Neve? Você não estava me dizendo dois dias atrás que nada o impediria de continuar investigando?

Bosch concordou, com ar arrependido.

— É, bom, meio que esfriou um pouco no momento. Estou aguardando uns desdobramentos.

O’Toole assentiu como se sempre tivesse sabido que Bosch chegaria a um beco sem saída no caso.

— Sabe que isso não vai mudar a investigação interna — disse o tenente.

— Sei. Só preciso sair um pouco, pensar nas minhas prioridades por um tempo.

Bosch percebeu que O’Toole tentava segurar um sorriso presunçoso. Ele mal conseguia esperar para ligar para o décimo andar e informar que Bosch não seria mais problema, que o detetive pródigo finalmente havia caído em si e voltado para o rebanho.

— Então você quer tirar uma semana?

— É, só uma semana — respondeu Bosch. — Tenho quase dois meses de férias vencidas.

— Normalmente eu gosto de ser avisado com um pouco mais de antecedência, mas vou abrir uma exceção no seu caso. Pode ir, detetive. Vou deixar marcado aqui.

— Obrigado, tenente.

— Você se incomoda de fechar a porta quando sair?

— De jeito nenhum.

Bosch o deixou para que fizesse a ligação para o chefe com tranquilidade. Antes de voltar à sua mesa, já havia preparado um plano para cuidar das coisas por lá enquanto estivesse fora.


22

Ca’ Del Sole havia se tornado o lugar especial deles. Era ali, mais do que em qualquer outro ponto da cidade, que se encontravam. Uma escolha baseada no romantismo, no gosto — ambos gostavam de comida italiana — e no preço; mais que tudo, porém, na conveniência. O restaurante em North Hollywood era equidistante em tempo e trânsito tanto de suas casas quanto de seus trabalhos, com uma pequena margem de vantagem para Hannah Stone.

Com ou sem vantagem, Bosch chegou lá primeiro e foi conduzido à mesa que havia se tornado habitual para eles. Hannah tinha avisado que talvez se atrasasse porque a entrevista não programada com Mendenhall havia provocado um efeito dominó nos horários com seus pacientes no centro de reabilitação em Panorama City. Bosch havia levado a pasta consigo, e gostou de poder trabalhar enquanto esperava.

Antes que o dia terminasse na Unidade de Abertos/Não Resolvidos, Chu compilara breves perfis biográficos preliminares dos cinco homens em quem Bosch pretendia se concentrar. Extraindo informação de bancos de dados tanto públicos quanto jurídicos, Chu havia conseguido juntar em duas horas o que Bosch teria levado semanas vinte anos antes.

Chu imprimira diversas páginas de dados sobre cada homem. Bosch estava com essas páginas na pasta, junto com cópias das fotos tiradas por ­Drummond e Jespersen no Saudi Princess, além de uma tradução da matéria que Anneke entregara ao BT junto com as fotos.

Bosch abriu a pasta e releu a matéria. Estava datada de 11 de março de 1991, quase duas semanas depois que a guerra terminara e os soldados passaram a trabalhar como mantenedores da paz. Era um artigo curto, cuja principal função devia ser acompanhar as fotos. O programa de internet que Bosch usara era rudimentar. Não traduzia nuances gramaticais e estilo, deixando o texto brusco e desajeitado em inglês.

É chamado de “Barco do Amor”, mas não se engane, esse é um navio de guerra. O navio de luxo Saudi Princess nunca deixa o porto, mas conta sempre com segurança e capacidade máximas. A embarcação britânica vem sendo fretada e temporariamente usada pelo Pentágono norte-americano como um retiro de descanso e relaxamento para os soldados americanos da operação Tempestade no Deserto.

Homens e mulheres em serviço na Arábia Saudita às vezes recebem três dias de licença, e desde o cessar-fogo a demanda por ele é muito grande. O Princess é o único destino no conservador Golfo Pérsico onde os soldados podem beber álcool, fazer amizades e não levar seu equipamento camuflado.

O navio fica no porto e é bem guardado por fuzileiros armados e uniformizados. (O Pentágono pede a jornalistas em visita que não revelem a exata localização do navio.) Mas a bordo não há uniformes e a vida é uma festa. Ele tem duas discotecas, dez bares abertos vinte e quatro horas e três piscinas. Os soldados que estacionaram na região por semanas e meses e que escaparam de mísseis Scud e de balas iraquianas têm setenta e duas horas para se divertir, beber e flertar com o sexo oposto — todas as coisas que são proibidas no acampamento.

“Durante três dias somos civis mais uma vez”, disse Beau Bentley, soldado de vinte e dois anos de Fort Lauderdale, Flórida. “Na semana passada eu estava em um fogo cruzado na Cidade do Kuwait. Hoje estou tomando uma gelada com meus amigos. Não tem coisa melhor.”

O álcool circula livremente nos bares e à beira da piscina. As comemorações da vitória aliada são muitas. Homens a bordo do navio superam as mulheres na proporção de quinze para uma — refletindo a composição das tropas norte-americanas no golfo. Não são apenas os homens no Saudi Princess que desejam que os lados fossem mais equilibrados.

“Não precisei pagar nenhuma bebida desde que vim para cá”, disse Charlotte Jackson, uma combatente de Atlanta, Georgia. “Mas os caras dando em cima de você o tempo todo cansa. Me arrependi de não ter trazido um livro para ler. Eu estaria em minha cabine neste instante.”

Baseado no comentário de Beau Bentley sobre estar em um fogo cruzado apenas uma semana antes, Bosch imaginou que a matéria havia sido escrita e depois engavetada pelo BT durante quase uma semana até ser publicada. Isso significava que Anneke Jespersen provavelmente havia estado a bordo do navio em algum momento da primeira semana de março.

Bosch de início não tinha encarado o artigo sobre o Saudi Princess como significativo. Agora, com a ligação estabelecida entre Jespersen e os membros da 237ª Companhia a bordo, as coisas tinham mudado. Ele percebeu que estava olhando para os nomes de duas possíveis testemunhas. Pegou o celular e ligou para Chu. A chamada caiu na caixa de mensagens. Chu não estava de serviço; provavelmente já havia encerrado por aquela noite. Bosch deixou um recado em voz baixa para não incomodar os outros clientes do restaurante:

— Dave, sou eu. Vou precisar que você pesquise dois nomes que consegui em uma matéria de jornal de 1991. Que se dane, vamos tentar. O primeiro é Beau Bentley e o cara é de Fort Lauderdale, Flórida. O segundo é Charlotte Jackson. A matéria diz que ela é de Atlanta. Os dois combateram na Tempestade no Deserto. Não sei em que divisão. A matéria não diz. Bentley tinha vinte e dois anos na época, então hoje deve estar com quarenta e dois ou quarenta e três. Não sei a idade de Jackson, mas pode ser qualquer coisa entre, sei lá, trinta e nove ou até cinquenta. Vê o que você consegue descobrir e me diz. Valeu, parceiro.

Bosch desligou e olhou para a porta do restaurante. Ainda nenhum sinal de Hannah Stone. Voltou ao celular e enviou uma mensagem rápida para a filha perguntando se tinha alguma coisa para comer, depois voltou à pasta.

Folheou o material biográfico que o parceiro havia esboçado para os cinco homens. Quatro relatórios continham uma foto da carteira de motorista no alto. A carteira de Drummond não havia sido incluída porque seu status de homem da lei o mantinha fora dos computadores do Departamento de Trânsito. Bosch parou na folha de Christopher Henderson. Chu escrevera ­FALECIDO em letras grandes ao lado da foto.

Henderson sobrevivera à Tempestade no Deserto e aos tumultos de Los Angeles como membro da 237ª, mas não escapou do confronto com um ladrão armado no restaurante que gerenciava em Stockton, uma popular churrascaria chamada Steers. Chu havia incluído a notícia de jornal de 1998 informando que Henderson fora abordado quando estava sozinho e depois trancado no restaurante. Um homem armado usando máscara de esqui e casaco comprido o forçara a entrar. Um motorista que estava passando viu o incidente e ligou para o 911, mas, quando a polícia chegou, pouco depois de receber o chamado de emergência, encontrou a porta da frente destrancada e Henderson morto. Ele foi assassinado ao estilo de execução, ajoelhado no enorme frigorífico da cozinha. Um cofre na sala do gerente, no qual o dinheiro de operação do restaurante ficava guardado à noite, foi encontrado aberto e vazio.

A notícia de jornal dizia que Henderson tinha planos de deixar o emprego na Steers para abrir o próprio restaurante em Manteca. Ele nunca teve a chance. De acordo com o que Chu encontrou em sua pesquisa, o crime jamais foi resolvido e nenhum suspeito foi identificado pela polícia de Stockton.

O perfil de Chu sobre John James Drummond era extenso, porque Drummond havia se tornado uma figura pública. Ingressou no Gabinete do Xerife do condado de Stanislaus em 1990 e ascendeu meteoricamente ali dentro, até concorrer com o xerife titular em 2006 e ganhar uma eleição considerada perdida. Em 2010, concorreu com êxito à reeleição e agora apontava sua mira para Washington, DC. Estava em campanha para o Congresso, esperando representar o distrito que abrangia os condados de Stanislaus e de San Joaquin.

Uma biografia política que circulara on-line durante seu primeiro mandato como xerife descrevia Drummond como o jovem local que tinha se dado bem na vida. Ele havia sido criado sem o pai, no bairro Graceada Park, de Modesto. Como delegado, servira em todas as funções no Gabinete do Xerife, até como piloto do único helicóptero da seção, mas foi a capacidade exemplar de gerenciamento que acelerou sua ascensão. A biografia também se referia a ele como herói de guerra, título atribuído por ter servido na Guarda Nacional na Tempestade no Deserto, e comentava que havia sido ferido nos tumultos de Los Angeles em 1992 enquanto protegia uma loja de vestidos de ser saqueada.

Bosch se deu conta de que Drummond havia sofrido o único ferimento ocorrido na 237ª Companhia durante os tumultos. Uma garrafa arremessada naquela época talvez fosse uma das pequenas coisas que agora o conduziriam a Washington. Notou também que Drummond já era um policial quando foi convocado com a Guarda para o Golfo Pérsico e depois para Los Angeles.

O material autopromocional na biografia da campanha também comentava como a taxa de crimes havia caído no período de Drummond no condado de Stanislaus. Tudo aquilo não passava de texto enlatado, e Bosch foi em frente, olhando a seguir para a folha sobre Reginald Banks, que estava com quarenta e seis anos e residira a vida toda em Manteca.

Banks ficara empregado por dezoito anos como vendedor em uma concessionária da John Deere, em Modesto. Era casado e pai de três filhos. For­mara-se na Modesto Junior College.

Cavando mais fundo, Chu descobrira que, além da condenação por embriaguez ao volante, Banks tinha duas outras prisões pelo mesmo motivo, mas que não resultaram em condenação. Bosch observou que a única condenação viera de uma prisão efetuada no condado de San Joaquin, onde Manteca se localizava, mas as duas prisões por dirigir sob efeito de álcool no condado de Stanislaus, que era vizinho, nunca resultaram em acusações formais. Bosch imaginou se o fato de ele ser ex-companheiro de Exército do xerife do condado de Stanislaus não teria alguma relação com isso.

Passou a Francis John Dowler, e leu uma biografia não muito diferente do currículo de seu colega Banks. Nascido, criado e ainda morando em Manteca, ele frequentara a San Joaquin Valley College, em Stockton, mas não por tempo o bastante para adquirir sequer o nível técnico.

Bosch escutou um som de risada e, ao erguer o rosto, viu Pino, seu garçom de costume, sorrindo.

— O que foi? — perguntou Bosch.

— Eu li seu jornal, desculpe.

Bosch baixou o rosto para a folha com os dados sobre Dowler, depois voltou a encarar Pino. Ele era mexicano, mas se passava por italiano, já que trabalhava em um restaurante italiano.

— Tudo bem, Pino. Mas qual é a graça?

O garçom apontou para a primeira linha da página.

— Aí diz que ele nasceu em Manteca. É engraçado.

— Por quê?

— Achei que falasse espanhol, sr. Bosch.

— Só um pouco. O que Manteca quer dizer?

— É banha. Gordura.

— Sério?

— Sí.

Bosch deu de ombros.

— Quem sabe acharam o som bonito quando batizaram o lugar. Provavelmente não sabiam.

— Onde é essa cidade chamada Banha? — perguntou Pino.

— Ao norte daqui. Cerca de cinco horas.

— Se o senhor for lá, tire uma foto para mim. “Bem-vindo a Banha.”

Ele riu e se afastou para atender os fregueses das outras mesas. Bosch olhou o relógio. Hannah estava meia hora atrasada. Pensou em ligar para saber onde ela estava. Pegou o celular e viu que a filha havia respondido à mensagem com um simples Pedi pizza. Isso significava pizza pela segunda noite seguida, enquanto ele estava fora para um jantar supostamente romântico com salada, massa e vinho. Uma onda de culpa voltou a atingi-lo. Parecia incapaz de ser o pai que sabia que deveria ser. A culpa se transformou em raiva dirigida a si mesmo e lhe deu toda a determinação de que precisava para o que planejava pedir a Hannah, se é que ela iria aparecer.

Decidiu esperar mais dez minutos antes de incomodá-la com uma ligação e voltou ao trabalho.

Dowler tinha quarenta e oito anos de idade e havia permanecido exatamente a metade de sua vida empregado na Cosgrove Ag. A descrição de seu trabalho figurava na folha como transporte contratado, e Bosch imaginou se isso queria dizer que ele continuava sendo motorista de caminhão.

Como Banks, fora detido no condado de Stanislaus por embriaguez ao volante sem o subsequente fichamento. Também tinha um mandado de prisão que vinha mofando no computador havia quatro anos, por multas de estacionamento não pagas em Modesto. Isso seria compreensível ele se residisse no condado de LA, onde milhares de mandados menores ficavam esquecidos nos computadores até a pessoa procurada calhar de ser detida por um policial e ter sua identidade verificada no banco de dados. Mas, no entender de Bosch, um condado do tamanho de Stanislaus devia ter pessoal e tempo para ir atrás de transgressores locais citados nos mandados. O dever de fazer cumprir um mandado recaía, é claro, sobre o Gabinete do Xerife do condado. Mais uma vez, pareceu a Bosch que as amizades da Tempestade no Deserto estavam protegendo um ex-soldado da 237ª Companhia, pelo menos no que dizia respeito ao condado de Stanislaus.

No entanto, bem no momento em que um padrão se formava, Bosch passou à folha sobre Carl Cosgrove. Ele também nascera em Manteca e pertencia à mesma faixa etária, quarenta e oito anos, mas a semelhança com os demais homens naquela pasta terminava na idade e no fato de terem servido na 237ª Companhia. Cosgrove não tinha registro de prisão, formara-se em gerência agrícola na UC Davis e aparecia como presidente e principal executivo da Cosgrove Ag. Um perfil de 2005 em uma publicação chamada California Grower afirmava que a empresa possuía mais de oitenta mil hectares de terras, entre fazendas e ranchos, na Califórnia. Lidava tanto com gado quanto com produtos agrícolas e era uma das maiores fornecedoras de carne, amêndoas e uvas para vinho no estado. Não só isso, mas a Cosgrove Ag. lucrava até com o vento. O artigo dizia que Carl Cosgrove havia transformado grande parte das pastagens de gado da empresa em parques eólicos, lucrando duas vezes com a terra ao produzir eletricidade e carne.

Pelo lado pessoal, o artigo descrevia Cosgrove como um solteirão divorciado havia muito tempo, com gosto por carros velozes, vinhos finos e belas mulheres. Ele morava em uma propriedade perto de Salida, no extremo norte do condado de Stanislaus. O lugar era cercado por um pomar de amendoeiras e incluía um heliporto, de modo que ele pudesse se transportar sem atrasos para suas outras propriedades, que incluíam uma cobertura em San Francisco e um chalé de esqui em Mammoth.

Era a clássica história do berço de ouro. Cosgrove administrava uma empresa que o pai, também Carl Cosgrove, criara a partir de uma fazenda de morangos de vinte e cinco hectares, junto com a banca de frutas, em 1955. Aos setenta e seis, o pai continuava na empresa como presidente do conselho, mas havia passado as rédeas para o filho dez anos antes. O artigo focava em Carl pai preparando o filho para o negócio, assegurando-se de que fosse capaz de trabalhar em todas as facetas — criação de gado, irrigação da fazenda, vinicultura. Foi também o velho que insistiu que o filho ajudasse a comunidade de várias formas, incluindo seus doze anos na Guarda Nacional da Califórnia.

O artigo atribuía a Carl filho o feito de ter levado o negócio familiar de cinquenta anos a outro patamar e a ousadas novas direções, mais notavelmente com os parques eólicos, que produziam energia verde, e a expansão da cadeia de churrascarias Steers, de propriedade da família, agora com seis restaurantes espalhados pelo Vale Central. A última linha do artigo dizia: “Cosgrove tem muito orgulho do fato de que é quase impossível fazer uma refeição em qualquer restaurante Steers sem comer ou beber algo que sua vasta empresa não tenha produzido”.

Bosch leu as últimas quatro linhas duas vezes. Eram a confirmação de mais uma ligação entre os homens na foto do Saudi Princess. Christopher ­Henderson havia sido gerente em um dos restaurantes de Carl Cosgrove até ser assassinado lá.

Chu acrescentara um bilhete no fim da matéria da California Grower. Dizia: “Dê uma checada no pai. Morreu em 2010, causas naturais. O filho cuida de tudo agora”.

Bosch entendeu que Carl Cosgrove havia herdado o controle completo da Cosgrove Ag. e de suas inúmeras propriedades e interesses. Isso fazia dele o rei do Vale de San Joaquin.

— Oi. Desculpa.

Bosch ergueu o rosto quando Hannah Stone se sentou a seu lado. Ela lhe deu um beijo rápido na bochecha e disse que estava faminta.


23

Ambos tomaram uma taça de vinho antes de entrar no assunto de Menden­hall e falar sobre seus respectivos dias. Hannah disse que precisava de alguns minutos para relaxar antes de entrar em qualquer assunto sério.

— Muito bom — disse ela sobre o vinho que Bosch havia pedido.

Ela esticou a mão e girou a garrafa para ler o rótulo. Sorriu.

— “Modus Operandi”... é claro que você ia pedir esse.

— Você me pegou.

Hannah tomou mais um gole, pegou o guardanapo e voltou a arrumá-lo no colo, sem necessidade. Bosch notou que muitas vezes ela fazia isso como sinal de nervosismo, quando estavam em um restaurante e a discussão enveredava para seu filho.

— A detetive Mendenhall me disse que ia conversar com Shawn na segunda-feira — disse Hannah finalmente.

Bosch fez que sim. Não o surpreendia que Mendenhall fosse até San Quentin. Mas estava um pouco surpreso por ela ter contado a Hannah. Não era uma boa prática investigativa contar a um interrogado sobre os planos relativos a outro, mesmo em se tratando de mãe e filho.

— Não interessa se ela vai ou não — disse Bosch. — Shawn não precisa conversar com ela se não quiser. Mas, se decidir que quer, só precisa dizer a ela q...

Bosch parou de falar assim que se deu conta do que Mendenhall podia estar fazendo.

— O que foi? — perguntou Hannah.

— O acobertamento é sempre pior do que o crime original.

— Do que você está falando?

— Ela dizer que vai até lá na segunda. Talvez tenha contado isso porque sabia que você ia me dizer. Então ela ia ver se eu tentaria chegar a Shawn primeiro para dizer a ele o que falar ou pedir que recusasse a entrevista.

Hannah franziu o cenho.

— Ela não me pareceu do tipo furtivo. Pareceu realmente direta. Na verdade, fiquei com a impressão de que não estava nada feliz de se ver no meio de uma situação com conotações políticas.

— Ela falou isso ou é você que está dizendo?

Hannah teve de pensar a respeito antes de responder.

— Eu posso ter sido a primeira a mencionar ou insinuar, mas não foi novidade para ela. Disse que estava considerando a motivação por trás da queixa original. Eu me lembro disso. Partiu dela, não de mim.

Bosch assentiu. Presumiu que ela se referisse ao fato de a queixa proceder de O’Toole. Talvez fosse melhor dar um crédito de confiança a Mendenhall, de que ela entenderia as coisas como de fato eram.

Pino serviu as saladas Caesar e eles interromperam a conversa sobre a investigação da corregedoria enquanto comiam. Depois de um tempo, Bosch deu um novo rumo à conversa:

— Entro em férias na semana que vem.

— Sério? Por que não me contou? Eu podia ter tirado uns dias. A não ser que... tenha sido por isso mesmo: você queria um tempo para ficar sozinho.

Ele sabia que ela chegaria a essa conclusão ou pelo menos a imaginaria.

— Vou trabalhar. Vou viajar até o centro do estado. Modesto, Stockton, um lugar chamado Manteca.

— Tem a ver com o caso da Branca de Neve?

— É. Não tinha como O’Toole aprovar a viagem para mim. Ele não quer esse caso resolvido. Então vou por conta própria e pago do meu bolso.

— E sem um parceiro? Harry, isso não é...

Ele balançou a cabeça.

— Não vou fazer nada perigoso. Só vou conversar com umas pessoas, observar outras. De longe.

Hannah franziu o cenho outra vez. Não estava gostando daquilo. Ele continuou antes que ela pudesse apresentar mais uma objeção:

— O que você acha de ficar na minha casa com Maddie enquanto eu estiver viajando?

Bosch viu claramente a surpresa em seu rosto.

— Ela sempre ficava na casa de uma amiga. A mãe dessa menina se oferecia para cuidar delas, mas agora ela e a garota não são mais amigas. Então é meio esquisito. Maddie sempre diz que por ela tudo bem ficar sozinha, mas a ideia não me agrada.

— Nem a mim. Mas não sei quanto a isso, Harry. Você perguntou a Maddie?

— Ainda não. Vou contar hoje.

— Não é para “contar”. A decisão precisa partir dela também. Você precisa perguntar se ela quer.

— Olha, eu sei que ela gosta de você e sei que vocês duas conversam.

— A gente não conversa. Somos amigas de Facebook.

— Bom, para ela é a mesma coisa. Facebook e celular, é assim que essa garotada conversa. Você comprou a cerveja para o meu aniversário. Foi você que ela procurou.

— Isso não quer dizer nada. E com certeza é bem diferente de ficar na casa de vocês.

— Sei, mas acho que por ela vai estar tudo bem. Se faz você se sentir melhor, eu pergunto hoje quando chegar em casa. Quando ela aceitar, você também aceita?

Pino chegou e tirou os pratos de salada. Bosch fez a pergunta mais uma vez quando o garçom se afastou.

— Tudo bem, aceito — disse Hannah. — Eu ia adorar. Mas ia adorar ficar quando você estivesse em casa também.

Ela já havia mencionado a questão de juntar os trapos. Bosch estava à vontade com o relacionamento, mas não tinha certeza de que queria dar o próximo passo. Não sabia bem por quê. Não era mais nenhum jovem. O que estava esperando?

— Bom, isso seria um primeiro passo nessa direção, não seria? — perguntou, em uma tentativa de se esquivar da discussão.

— Parece que está mais para um ensaio meio esquisito. Se eu passar no teste da filha, sou admitida.

— Não é nada disso, Hannah. Olha, não quero começar a falar nesse assunto agora. Estou no meio de um caso, preciso viajar no domingo ou na segunda e estou com uma detetive da corregedoria no meu pé. Eu quero conversar sobre isso. É importante. Mas será que dá para esperar até eu tirar um pouco disso tudo do caminho?

— Claro.

Ela disse isso de um jeito que deixava evidente que não ficava nada feliz por ele pôr a questão de lado.

— Vamos lá, não fique chateada.

— Não estou.

— Eu sei que está.

— Só quero deixar claro que não estou na sua vida para bancar a babá.

Bosch balançou a cabeça. A conversa estava fugindo do foco. Ele sorriu por reflexo. Sempre fazia isso quando se sentia acuado.

— Olha, eu só perguntei se você podia me fazer esse favor. Se não quiser fazer isso ou se tiver que fazer com todo esse sentimento ruim envolvido, então a gente...

— Eu já disse que não estou chateada. Será que dá para mudar de assunto agora?

Bosch pegou sua taça e deu um longo gole no vinho, esvaziando-a. Depois pegou a garrafa para se servir de mais um pouco.

— Claro.


24

Bosch dividiu o sábado entre o trabalho e a família. Havia convencido Chu a se encontrar com ele na sala do esquadrão de manhã, pois assim poderiam trabalhar longe dos olhos do tenente O’Toole e de outros na unidade. Não só a Abertos estava tranquila, como também ambas as alas da vasta sala do esquadrão da Divisão de Roubos e Homicídios estavam completamente às moscas. Com o fim da hora extra remunerada, o único momento de atividade nos esquadrões de detetive de elite em um fim de semana era quando havia um caso sendo elucidado. Por sorte, para Bosch e Chu, nada do tipo aconteceu. Puderam ficar na baia sozinhos e sem ser perturbados para fazer o trabalho.

Assim que terminou de resmungar sobre abrir mão de meio sábado em troca de nada, Chu foi para o computador e conduziu uma busca de terceiro e quarto níveis nos homens da 237ª Companhia de Transporte da Guarda Nacional da Califórnia.

Embora Bosch tivesse estreitado seu foco nos quatro homens da fotografia no Saudi Princess e no quinto, que havia batido a foto, ele sabia que uma investigação exaustiva significava que tinha de verificar cada nome que tivessem levantado com relação à 237ª, sobretudo aqueles que também haviam estado no navio mais ou menos na mesma hora em que Anneke Jespersen.

No mínimo, Bosch sabia que o esforço poderia valer a pena se um processo resultasse do caso. Os advogados de defesa eram os primeiros a alegar que a polícia havia colocado viseiras nos olhos e focado apenas seus clientes, enquanto o verdadeiro culpado fugira. Ampliando o escopo e verificando exaustivamente todos os membros conhecidos da 237ª em 1991 e 1992, Bosch sabotava a tática da defesa de alegar “falta de visão” antes mesmo que pudesse ser apresentada.

Chu trabalhava em seu computador e Bosch fazia o mesmo, imprimindo tudo o que haviam juntado sobre os cinco homens do foco principal. Tudo somado, eram vinte e seis páginas de informação, mais de dois terços das quais dedicadas ao xerife J. J. Drummond e a Carl Cosgrove, os dois poderosos do Vale Central nos negócios, na política e na lei.

Bosch em seguida imprimiu mapas dos locais no Vale Central que pretendia visitar na semana seguinte. Isso também lhe permitiu ver as relações geográficas entre os lugares onde os cinco homens trabalhavam e moravam. Era tudo parte de um pacote de viagem cuja montagem era rotineira para ele, antes de viajar para cuidar de um caso.

Enquanto trabalhava, Bosch recebeu um e-mail de Henrik Jespersen, que havia finalmente olhado em seu depósito e encontrado os detalhes da viagem da irmã nos últimos meses de vida. A informação confirmava grande parte do que ele havia contado a Bosch sobre a ida de Anneke aos Estados Unidos. Comprovava, ainda, a curta viagem a Stuttgart.

Segundo os registros de Henrik, a irmã passara apenas duas noites na Alemanha na última semana de março de 1992, hospedando-se em um hotel chamado Schwabian Inn, localizado perto de Patch Barracks, onde ficava a base militar dos Estados Unidos. Henrik não tinha mais nada a revelar sobre o propósito de sua ida até lá, mas Bosch conseguiu confirmar, por meio de busca na internet, que Patch Barracks era onde a Divisão de Investigação Criminal do Exército estava localizada. Descobriu também que o escritório da DIC em Stuttgart cuidava de todas as investigações de supostos crimes de guerra relacionados à Tempestade no Deserto.

Parecia óbvio para Bosch que Anneke Jespersen havia feito perguntas em Stuttgart sobre um suposto crime cometido durante a Tempestade no Deserto. Se o que ela descobrira ali foi o que a levou aos Estados Unidos, isso não estava claro. Bosch sabia por experiência que nem mesmo seu status de agente da lei ajudava a obter cooperação junto à DIC militar. Parecia-lhe que uma jornalista estrangeira enfrentaria um desafio ainda maior para obter informação sobre um crime que muito provavelmente continuava sob investigação na época em que ela indagou a respeito.

Ao meio-dia, Bosch tinha seu pacote de viagem montado e estava pronto para partir. Parecia até mais ansioso do que Chu para sair dali. No seu caso, porém, isso não tinha a ver com receber ou deixar de receber horas extras. Simplesmente tinha planos para o restante do dia. Sabia que a filha acordaria em breve, e sua ideia era passar no Henry’s Tacos, em North Hollywood. Seria almoço para ele e café da manhã para ela. Depois disso, tinham ingressos comprados para um filme 3-D ao qual Maddie queria assistir. Em seguida, à noite, os dois jantariam com Hannah em um restaurante em Melrose chamado Craig’s.

— Estou pronto para ir — disse Bosch a Chu.

— Então também estou — respondeu o parceiro.

— Vale a pena conversar sobre alguma coisa que você conseguiu?

Referia-se à pesquisa de dados de Chu sobre os outros nomes da 237ª. Chu balançou a cabeça.

— Nada muito animador.

— Você fez aquela busca que eu pedi, quando deixei recado ontem à noite?

— Que busca?

— Os soldados entrevistados na matéria de Jespersen sobre o Saudi Princess.

Chu estalou os dedos.

— Esqueci completamente. Eu ouvi o recado ontem à noite e simplesmente esqueci hoje de manhã. Vou cuidar disso agora.

Ele se virou para seu computador.

— Negativo, deixa pra lá — disse Bosch. — Você pode fazer isso amanhã de casa mesmo ou quando voltar aqui na segunda. É um tiro no escuro de qualquer jeito.

Chu riu.

— O que foi? — perguntou Bosch.

— Nada, Harry. É que, com você, tudo é um tiro no escuro.

Bosch fez que sim.

— Pode ser. Mas quando um deles acerta o alvo...

Chu assentiu. Já tinha visto muitos tiros no escuro de Bosch acertarem o alvo.

— Até mais, Harry. Tome cuidado por lá.

Bosch havia confiado em Chu e lhe contado o plano para as “férias”.

— A gente se fala.

No domingo, Bosch acordou cedo, fez café e foi com a caneca e o celular para o deque dos fundos a fim de apreciar a manhã. Estava frio e úmido lá fora, mas Bosch adorava as manhãs de domingo, porque eram o momento mais sereno da semana no Cahuenga Pass. O ruído da via expressa era baixo, não havia o eco de marteladas das várias construções na fenda da montanha, nenhum coiote latindo.

Ele olhou o relógio. Tinha uma ligação para fazer, mas planejava aguardar até as oito. Pôs o celular na mesinha lateral e se recostou na espreguiçadeira, sentindo o orvalho da madrugada penetrar nas costas da camisa. Isso não era problema. A sensação era boa.

Em geral acordava com fome, mas não nesse dia. Na noite anterior, no Craig’s, comera meia cesta de pão de alho antes de devorar uma salada Green Goddess e o filé que veio em seguida. Tudo coroado com metade do pudim de pão que sua filha pedira de sobremesa. A comida e a conversa foram as melhores que Bosch havia tido em muito tempo, e considerou a noite um grande sucesso. Maddie e Hannah também acharam, embora tivessem deixado de prestar atenção na comida assim que viram o ator Ryan Phillippe a uma mesa dos fundos com um grupo de amigos.

Bosch tomava seu café devagar e sabia que seu café da manhã se resumiria a isso. Às oito, fechou a porta da varanda e deu um telefonema para o amigo Bill Holodnak. Queria ter certeza de que o plano deles para a manhã conti­nuava de pé. Falou em voz baixa de modo que não fosse escutado pela filha nem a acordasse antes da hora. Sabia por experiên­cia própria que não existia nada pior do que uma adolescente acordando cedo demais em um dia sem aula.

— Por aqui está tudo preparado, Harry — disse Holodnak. — Ajustei os lasers ontem e ninguém mais usou depois disso. Mas tenho uma pergunta. Você quer usar a opção de reação? Porque, se quiser, eu preparo a armadura para ela, mas mesmo assim é bom ela vir com roupa velha.

Holodnak era o oficial de treinamento do LAPD que cuidava do Simulador de Opções de Uso de Força na academia, em Elysian Park.

— Acho que dessa vez vamos sem reação, Bill.

— Menos bagunça para arrumar depois. A que horas você chega?

— Assim que conseguir tirá-la da cama.

— Já passei por isso com os meus. Mas você precisa me dar um tempo para eu chegar lá.

— Que tal às dez?

— Parece bom.

— Ótimo. A gente se...

— Ei, Harry, o que está tocando no seu aparelho de som ultimamente?

— Umas coisas antigas do Art Pepper. Minha filha me deu de aniversário. Por quê, você tem coisa nova?

Holodnak era o maior aficionado de jazz que Bosch conhecia. E suas dicas geralmente valiam ouro.

— Danny Grissett.

Bosch reconheceu o nome, mas precisava se localizar. Era um jogo que ele e Holodnak faziam muitas vezes.

— Piano — disse ele finalmente. — Ele toca no grupo de Tom Harrell, não é? É da área também.

Bosch sentiu orgulho de si mesmo.

— Certo e errado. Ele é daqui, mas está baseado em Nova York já faz um tempo. Eu o vi com o Harrell no Standard quando estive lá da última vez, visitando a Lili.

A filha de Holodnak era escritora e morava em Nova York. Ele ia sempre lá e fazia muitas descobertas nos clubes de jazz que frequentava à noite quando sua filha o punha para fora do apartamento porque precisava escrever.

— Grissett está lançando coisa nova — continuou Holodnak. — Recomendo um disco chamado Form. Não é o mais recente, mas vale a pena escutar. Neo-bop, esse tipo de coisa. Tem um ótimo tenor lá que você vai curtir. Seamus Blake. Dá só uma conferida no solo em “Let’s Face the Music and Dance”. É fantástico.

— Tudo bem, vou escutar — disse Bosch. — E a gente se vê às dez.

— Espera aí um minuto. Não tão rápido, meu amigo — interrompeu Holodnak. — Sua vez. Me dá alguma coisa.

Essa era a regra. Bosch tinha de dar depois de receber. Tinha de devolver algo que com sorte já não estivesse no radar jazzístico de Holodnak. Ele se concentrou. Havia mergulhado nos discos de Art Pepper que Maddie lhe dera, mas antes de receber o presente de aniversário viera tentando expandir um pouco seus horizontes no jazz e também fazer com que a filha se interessasse, descobrindo talentos mais jovens.

— Grace Kelly. Não a princesa.

Holodnak riu com a facilidade do desafio.

— Não a princesa, a menina. A nova sensação. Participou de gravações com Woods e Konitz. Acho que a de Konitz é melhor. Próxima?

O desafio parecia impossível para Bosch.

— Certo, mais um. Que tal... Gary Smulyan?

— Hidden Treasures — respondeu Holodnak depressa, dizendo justamente o nome do disco em que Bosch estava pensando. — Smulyan no barítono e depois só baixo e bateria no ritmo. Coisa boa, Harry. Mas ganhei mais essa.

— Bom, um dia sua hora vai chegar.

— Não se eu puder evitar. Até as dez.

Bosch desligou e verificou as horas no celular. Podia deixar a filha dormir por mais uma hora, acordá-la com o cheiro de café fresco e diminuir as chances de que ficasse de mau humor por sair da cama no que consideraria ser muito cedo em um domingo. Ele sabia que, mal-humorada ou não, ela acabaria mudando de ideia e apreciaria os planos que ele havia feito para o dia.

Entrou para anotar o nome Danny Grissett.

O Simulador de Opções era um dispositivo de treinamento que havia na academia, composto de uma tela do tamanho da parede na qual cenas interativas variadas de atirar/não atirar eram projetadas. As imagens não eram geradas por computador. Atores de verdade eram filmados em inúmeras sequências de alta definição, que passavam de acordo com as ações do policial na sessão de treinamento. O policial recebia uma pistola que disparava um laser em vez de balas e que era eletronicamente conjugado à ação passada na tela. Se o laser atingisse um dos personagens projetados ali, bons ou maus, a pessoa caía. Cada filme avançava até o policial agir ou decidir que não agir era a atitude correta.

Havia uma opção de reação, que consistia em uma arma de paintball localizada acima da tela e que disparava contra a pessoa em treinamento no mesmo instante em que um personagem da simulação atirava.

No trajeto para a academia, Bosch explicou o que estavam fazendo, e a filha ficou cada vez mais empolgada. Ela havia se tornado uma atiradora de primeira em sua faixa etária nas competições locais, mas foram provas de tiro contra alvos de papel. Maddie tinha lido sobre situações de atirar/não atirar em um livro de Malcolm Gladwell, mas aquela seria a primeira vez que enfrentaria as decisões de vida ou morte em uma fração de segundo com uma arma na mão.

O estacionamento diante da academia estava quase vazio. Não havia aulas nem atividades programadas para um domingo de manhã. Além disso, a paralisação nas contratações por toda a cidade tornaram as aulas para cadetes menos frequentes e fizeram despencar o nível de atividade, uma vez que o departamento só podia contratar substitutos no caso de policiais que estivessem se aposentando.

Eles entraram no ginásio e atravessaram a quadra de basquete até onde o Simulador de Opções havia sido montado, em uma antiga sala de depósito. Holodnak, um homem gentil de cabelos grisalhos, estava ali à espera deles. Bosch apresentou a filha como Madeline e o treinador ofereceu uma pistola a ambos, cada uma equipada com um laser e ligada eletronicamente ao computador do simulador.

Depois de explicar o procedimento, Holodnak tomou seu lugar atrás de um computador nos fundos da sala. Reduziu a iluminação e deu início à primeira cena. Começava com a visão pelo para-brisa de uma radiopatrulha que estava estacionando atrás de um carro que havia parado junto à calçada. Uma voz eletrônica vinda de cima anunciava a situação.

“Você e seu parceiro detiveram um motorista que dirigia o veículo de forma irregular.”

Quase imediatamente dois homens jovens desceram de ambos os lados do carro à frente. Os dois começaram a gritar e a xingar os policiais que os detiveram.

— Porra, cara, o que você quer comigo? — disse o motorista.

— O que a gente fez, cara? — disse o passageiro. — Isso não é justo!

A situação piorava a partir daí. Bosch proferiu as ordens para que os homens se virassem e pusessem as mãos no teto do carro, mas ambos o ignoraram. Bosch notou as tatuagens, as calças descendo até a metade das cuecas e os bonés de beisebol virados para trás. Disse-lhes que se acalmassem. Não obedeceram. Então a filha de Bosch também falou:

— Calma aí! Ponham as mãos no veículo. Não...

Os dois levaram as mãos à cintura ao mesmo tempo. Bosch também sacou sua arma, e assim que viu a arma do motorista sendo erguida, abriu fogo. Ele escutou igualmente o disparo à direita, vindo da filha.

Os dois homens na cena foram ao chão.

As luzes se acenderam.

— Então — disse Holodnak atrás deles. — O que vocês viram?

— Eles estavam armados — disse Maddie.

— Tem certeza? — perguntou Holodnak.

— Meu cara tinha arma. Eu vi.

— Harry, e quanto a você? O que viu?

— Vi uma arma — disse Bosch.

Ele olhou para a filha e fez que sim.

— O.k. — disse Holodnak. — Vamos voltar.

Então repassou a cena em câmera lenta. De fato, ambos os homens tinham levado as mãos às armas e as estavam erguendo para atirar quando ­Bosch e a filha atiraram primeiro. Acertos na tela eram marcados com um X vermelho e os erros, com preto. Maddie havia acertado o passageiro com três tiros no tronco, sem errar nenhum. Bosch baleara o motorista duas vezes no peito e errara o terceiro tiro no alto, porque seu alvo já estava caindo para trás.

Holodnak disse que os dois tinham ido bem.

— Não esqueçam, estamos sempre em desvantagem. Leva um segundo e meio para reconhecer a arma, e outro segundo e meio para avaliar e disparar. Três segundos. Essa é a vantagem que o atirador tem sobre nós. É isso que precisamos trabalhar para superar. Três segundos é tempo demais. As pessoas morrem em três segundos.

Em seguida, chegaram de viatura a um assalto a banco em andamento. Como no primeiro exercício, os dois abriram fogo e derrubaram um homem que surgiu pelas portas de vidro do banco e apontou a arma para os policiais.

A partir daí as cenas ficaram cada vez mais difíceis. Em uma, batiam em uma porta e o morador abria furioso, gesticulando com um celular preto na mão. Então se seguia uma briga doméstica em que o marido e a esposa discutindo se voltavam ambos contra os policiais. Holodnak aprovou o modo como lidaram com ambas as situações sem disparar as armas. Depois submeteu Madeline a uma série de cenas solo em que ela atendia as chamadas sem um parceiro.

No primeiro exercício, ela encontrava um homem mentalmente perturbado segurando uma faca e conversava com ele até que largasse a arma. O segundo envolvia outra briga doméstica, mas nesse caso o homem a ameaçou com a faca a três metros de distância, e ela corretamente abriu fogo.

— É preciso duas passadas largas para cobrir três metros — disse Holodnak­. — Se tivesse esperado que ele tomasse a iniciativa, ele a teria alcançado assim que você disparou. Teria dado empate. Quem perde no empate?

— Eu perco — disse Madeline.

— Isso mesmo. Você agiu corretamente.

A seguir era uma cena em que Maddie entrava em uma escola depois da informação de um tiroteio. Deslocando-se por um corredor vazio, ela escutou gritos de crianças mais à frente. Então dobrou o corredor e viu um homem diante da porta de uma sala de aula apontando a arma para uma mulher encolhida no chão, que tentava proteger a cabeça com as mãos.

— Por favor, não — suplicou a mulher.

O atirador estava de costas para Madeline. Ela disparou imediatamente, acertando o homem nas costas e na cabeça, derrubando-o antes que pudesse atacar a mulher. Ainda que não tivesse se identificado como policial ou dito ao atirador para largar a arma, Holodnak lhe disse que se saíra bem e dentro do protocolo de conduta. Ele apontou para um quadro branco na parede esquerda. Havia alguns diagramas desenhados ali, mas no alto se via uma única palavra em letras maiúsculas: DIV.

— Defesa imediata da vida — disse Holodnak. — Você está agindo dentro do procedimento se sua ação é uma defesa imediata da vida. Isso pode significar sua vida ou a vida de alguma outra pessoa. Não importa.

— O.k.

— Mas tenho uma pergunta para você. Como avaliou o que viu? O que eu quero dizer é o seguinte: o que fez você pensar que era uma professora sendo ameaçada pelo bandido? Como sabia que a mulher não era o bandido que acabara de ser desarmado por um professor?

— Bom — disse Maddie —, as roupas. Ele estava com a camisa para fora da calça, e eu acho que um professor não se vestiria assim. E ela usava óculos e tinha os cabelos presos como uma professora. Notei também que ela estava com um elástico no pulso, e eu tive uma professora que fazia isso.

Holodnak assentiu.

— É, você viu direito. Eu só estava curioso para saber como tinha chegado a essa conclusão. É surpreendente o que a mente pode assimilar em uma fração de segundo.

Foram em frente. Holodnak a inseriu em uma cena incomum, em que Maddie viajava em um voo comercial, como detetives muitas vezes fazem. Estava armada e em seu lugar quando um passageiro sentado dois assentos adiante se levantou e agarrou a aeromoça pelo pescoço, ameaçando sua vida.

Madeline se levantou e ergueu a arma, identificando-se como policial e ordenando que o homem soltasse a mulher, que gritava. Em vez disso, o homem puxou a refém para mais perto, como proteção, e ameaçou esfaqueá-la. Outros passageiros estavam gritando e correndo pelo avião, procurando se esconder. Finalmente, houve um momento em que a aeromoça tentou se libertar e abriu poucos centímetros de distância do agressor armado. Madeline disparou.

E a aeromoça caiu.

— Merda!

Madeline se abaixou, horrorizada. O homem na cena gritava: “Quem é o próximo?”.

— Madeline! — berrou Holodnak. — Acabou? O perigo terminou?

Maddie percebeu que havia perdido o foco. Ela se endireitou e disparou cinco vezes no homem que segurava a faca. Ele caiu no chão.

As luzes se acenderam e Holodnak saiu de trás da bancada dos computadores.

— Eu a matei — disse Maddie.

— Certo, vamos conversar sobre isso — disse Holodnak. — Por que você atirou?

— Porque ele ia matar a aeromoça.

— Certo. Isso está certo de acordo com a regra da DIV. Será que dava para você ter feito alguma outra coisa?

— Não sei. Ele ia matar a mulher.

— Você tinha que ficar em pé e mostrar sua arma, se identificar?

— Não sei. Acho que não.

— Essa era sua vantagem. Ele não sabia que você era da polícia. Ele não sabia que você estava armada. Você forçou a ação ao se levantar. Assim que sua arma apareceu, não tinha como voltar atrás.

Maddie fez que sim e baixou a cabeça, e Bosch de repente se sentiu mal porque havia sido ele que preparara toda a sessão.

— Filha — disse Holodnak —, você está se saindo melhor do que a maioria dos policiais que passam por aqui. Vamos tentar mais uma e encerrar com uma boa nota. Esqueça essa e se prepare.

Ele se virou para o computador e Maddie se deparou com mais uma cena, um incidente em um dia de folga em que ela era abordada por um ladrão de carros armado. Ela o derrubou com um tiro na barriga assim que o bandido fez menção de puxar a arma. Então recuou quando um pedestre civil subitamente correu em sua direção e começou a brandir um celular para ela gritando: “O que você fez? O que você fez?”.

Holodnak disse que ela lidou muito bem com a situação, e isso pareceu melhorar seu ânimo. Mais uma vez, acrescentou que estava impressionado com sua habilidade em atirar e em seus processos de tomada de decisão.

Harry e Maddie agradeceram a Holodnak o tempo gasto com o equipamento e saíram. Estavam atravessando outra vez a quadra de basquete quando Holodnak chamou da porta da sala do simulador. Era uma continuação da brincadeira de sempre com Bosch.

— Michael Formanek — disse. — The Rub and Spare Change.

Ele apontou para Bosch, em um gesto de peguei você. Maddie riu mesmo sem entender que Holodnak estava falando de jazz. Bosch se virou, começou a andar de costas e ergueu as mãos, como que se rendendo.

— Baixista de San Francisco — disse Holodnak. — Mestre do inside/outside. Você precisa expandir sua equação, Harry. Nem todo mundo que vale a pena escutar já morreu. Madeline, no próximo aniversário do seu pai, vem falar comigo antes.

Bosch acenou que fosse se catar e virou-se outra vez.


25

Pararam para almoçar na Academy Grill, onde as paredes eram enfeitadas com suvenires do LAPD e os sanduíches, batizados com nomes de antigos chefes de polícia e policiais famosos, reais e imaginários.

Logo depois que Maddie pediu um Bratton Burger e Bosch um Joe Friday, o tom de leveza com que Holodnak encerrara a sessão de tiros evaporou e a filha de Bosch foi caindo em silêncio até afundar na cadeira.

— Ânimo, querida — tentou Bosch. — Era só uma simulação. No geral você se saiu bem. Você ouviu o que ele disse. Teve três segundos para reconhecer e atirar... Acho que foi muito bem.

— Pai, eu matei uma aeromoça.

— Mas salvou uma professora. Além do mais, não era real. Você tomou uma decisão que provavelmente nunca teria tomado na vida real. No simulador tem essa sensação de urgência. Quando acontece na vida real, as coisas parecem desacelerar. Ficam, sei lá, mais claras.

Ela não pareceu se convencer. Ele tentou outra vez:

— Além disso, é bem provável que a arma não estivesse perfeitamente calibrada.

— Muito obrigada, pai. Quer dizer que todos os tiros que eu acertei no alvo foram então fora do alvo, porque a arma não estava calibrada.

— Não, eu...

— Vou lavar as mãos.

Ela saiu da mesa abruptamente e foi para o corredor dos fundos, enquanto Bosch se dava conta de como havia sido estúpido de sua parte pôr a culpa por um tiro ruim no ajuste da arma em relação à tela.

Enquanto esperava que a filha voltasse, ele observou a página enquadrada do Los Angeles Times na parede acima da mesa. Todo o alto da página era dedicado à troca de tiros da polícia com o Exército Simbionês de Libertação na 54th com a Compton, em 1974. Bosch estivera lá naquele dia, ainda um jovem patrulheiro. Ele cuidou do tráfego e ajudou a controlar a multidão durante o mortífero fogo cruzado e no dia seguinte montou guarda enquanto uma equipe vasculhava os entulhos da casa incendiada, procurando os restos de Patty Hearst.

Por sorte, Patty não estava lá naquele dia.

A filha de Bosch voltou a se sentar.

— Por que está demorando tanto?

— Calma — disse Bosch. — Faz só cinco minutos que a gente pediu.

— Pai, por que você entrou para a polícia?

Bosch ficou surpreso por um instante com a pergunta, que veio do nada.

— Vários motivos.

— Como o quê?

Ele fez uma pausa para organizar os pensamentos. Essa era a segunda vez em uma semana que ela lhe perguntava a mesma coisa. Bosch sabia que era importante para Maddie.

— A resposta pronta é dizer que eu queria proteger e servir. Mas, como é você me perguntando, vou dizer a verdade. Não foi porque eu tinha o desejo de proteger e servir ou de ser algum tipo de servidor público do bem. Quando penso nisso, acho que na verdade eu só queria proteger e servir a mim mesmo.

— Como assim?

— Bom, na época eu tinha acabado de voltar da guerra no Vietnã e pessoas como eu, sabe, ex-combatentes de lá, não eram muito bem aceitas por aqui. Principalmente pelo pessoal da nossa própria idade.

Bosch olhou em volta para ver se a comida estava chegando. Agora era ele que estava ficando ansioso com a espera. Voltou a olhar para a filha.

— Lembro que eu voltei e não tinha certeza do que estava fazendo, e comecei a assistir a umas aulas no LA City College de Vermont. E eu conheci uma garota na classe, e a gente começou a sair, e eu não contei a ela que eu tinha ido, sabe, para o Vietnã, porque podia ser um problema.

— Ela não viu sua tatuagem?

O símbolo de Tunnel Rat em seu ombro teria entregado tudo.

— Não, a gente não tinha chegado a esse ponto nem nada. Eu nunca tinha nem tirado a camisa com ela. Mas um dia a gente estava andando no gramado depois da aula e ela meio que me perguntou do nada por que eu era tão calado... E sei lá, eu meio que decidi que isso era uma brecha, que eu podia abrir o jogo de uma vez. Achei que ela ia aceitar, sabe?

— Mas ela não aceitou.

— Não, não aceitou. Eu disse algo como “Bom, passei os últimos anos no Exército”, e ela na mesma hora perguntou se eu queria dizer Vietnã, e eu contei, disse que sim.

— O que ela disse?

— Não disse nada. Simplesmente deu uma pirueta como se fosse uma dançarina e foi embora. Não disse uma palavra.

— Ai, meu Deus! Que maldade!

— Foi aí que eu fiquei sabendo de verdade para onde tinha voltado.

— Bom, o que aconteceu quando você chegou à sala de aula no dia seguinte? Disse alguma coisa para ela?

— Não, porque eu não voltei. Nunca mais voltei para aquela faculdade, porque eu sabia que era assim que seria dali para a frente. Então grande parte da razão de uma semana depois eu ter entrado para a polícia foi isso. O departamento estava cheio de veteranos do Exército, e muitos deles tinham passado pelo Sudeste Asiático. Então eu sabia que teria pessoas como eu e que seria aceito. Foi como alguém que sai da prisão e vai primeiro para um centro de reabilitação. Eu não estava mais no meio, mas continuava na companhia de gente como eu.

A filha parecia ter esquecido sobre a aeromoça. Bosch ficou feliz por isso, mas não estava nada contente de ativar a própria memória.

De repente, ele sorriu.

— O que foi? — perguntou Maddie.

— Nada. Eu meio que pulei para outra lembrança daquela época. Um troço maluco.

— Então me conta. Você acabou de contar uma história supertriste, agora me conta a maluca.

Ele esperou enquanto a garçonete servia a comida. A mulher trabalhava ali desde que Bosch era cadete, quase quarenta anos antes.

— Obrigado, Margie — disse Bosch.

— Não tem de quê, Harry.

Madeline pôs ketchup em seu Bratton Burger, e deram algumas dentadas na comida antes de Bosch começar a história.

— Bom, quando eu me formei e peguei meu distintivo, me puseram nas ruas e foi meio que a mesma coisa outra vez. Sabe, a contracultura, o movimento de protesto contra a guerra, essas coisas malucas estavam rolando.

Ele apontou para a primeira página do jornal, enquadrada na parede perto deles.

— A polícia era vista por um monte de gente como só um pouquinho menos pior do que os assassinos de bebês que voltavam do Vietnã. Entende o que eu quero dizer?

— Acho que sim.

— Então, meu primeiro serviço nas ruas como manga-lisa era and...

— O que é isso, “manga-lisa”?

— Um novato. Nenhum galão na manga ainda.

— O.k.

— Minha primeira incumbência fora da academia foi fazer uma patrulha a pé na Hollywood Boulevard. Na época o lugar ainda era bem barra-pesada. Bem caído mesmo.

— Ainda é bem suspeito em algumas partes.

— É verdade. Mas, continuando, eu fui designado para um parceiro que era um cara mais velho chamado Pepin, e ele era meu oficial de treinamento. Lembro que todo mundo chamava o cara de French Dip, porque na hora da ronda ele parava todo dia para tomar um sorvete em um lugar chamado Dips, perto da Hollywood com a Vine. Como um relógio. Todo santo dia. Enfim, Pepin já era um macaco velho e me puseram na ronda com ele. A gente seguia a mesma rotina. Subia a Wilcox desde a central, pegava a direita na Hollywood até chegar na Bronson, então fazia meia-volta e descia até a La Brea e depois voltava para a estação. O French Dip tinha um relógio na cabeça, e ele sabia exatamente o ritmo da caminhada para a gente estar de volta à central bem no fim do turno.

— Que tédio.

— Era mesmo, a não ser que a gente recebesse um chamado ou qualquer coisa parecida. Mas, mesmo assim, seria por uma merda... quer dizer, porcaria qualquer. Furto de loja, prostituição, venda de droga: só coisa sem importância. Enfim, quase todo dia alguém passava de carro e gritava para a gente. Chamavam a gente de fascista, porco e outras coisas. French Dip odiava ser chamado de porco. Você podia chamar o cara de fascista ou de nazista ou de quase qualquer outra coisa, mas ele odiava ser chamado de porco. Então, o que ele fazia quando um carro passava e xingava a gente de porco era anotar a marca, o modelo e o número da placa, pegar o talão e multar o carro por estacionamento proibido. Daí destacava a cópia que era para ter deixado presa no limpador do para-brisa e simplesmente amassava e jogava fora.

Bosch riu outra vez ao dar uma mordida em seu queijo quente com tomate e cebola.

— Não entendi — disse Maddie. — Por que é tão engraçado?

— Bom, ele entregava sua cópia da multa e é claro que o proprietário do veículo não fazia a menor ideia daquilo, então a multa ficava sem ser paga e depois um mandado era emitido. Então o cara que tinha chamado a gente de porco acabava um dia sendo detido e lá estava aquele mandado para prisão, e esse era o modo de French Dips sempre rir por último.

Ele comeu uma batata frita antes de terminar:

— O que me fez rir foi que, na primeira ronda que a gente teve junto, ele fez isso. Eu disse: “O que você está fazendo?”. Ele me explicou. Eu falei: “Isso não faz parte do procedimento, faz?”. Ele disse: “Faz parte do meu procedimento!”.

Bosch riu outra vez, mas a filha apenas balançou a cabeça. Harry concluiu que a história era engraçada só para ele e voltou para o sanduíche. Quando terminou, contou o que viera postergando durante todo o fim de semana:

— Olha, eu preciso sair da cidade por uns dias. Estou indo viajar amanhã.

— Para onde?

— Só até o Vale Central, na região de Modesto, para conversar com umas pessoas sobre um caso. Eu volto na terça à noite ou pode ser que precise ficar até quarta. Só vou saber quando estiver lá.

— Tudo bem.

Ele se preparou.

— Então eu queria que a Hannah ficasse com você.

— Pai, não preciso de ninguém para ser minha babá. Já estou com dezesseis anos e tenho uma arma. Eu fico numa boa.

— Sei disso, mas eu quero que ela vá. Vou me sentir melhor, só isso. Você faz isso por mim?

Ela balançou a cabeça, mas concordou, meio a contragosto.

— Acho que tudo bem. É só q...

— Ela está superanimada com a ideia. E não vai ficar dando ordens nem mandando você ir dormir, nada assim. Já conversei com ela sobre tudo isso.

Ela pôs seu hambúrguer pela metade no prato de uma forma que Bosch aprendera a interpretar como refeição encerrada.

— Por que ela nunca dorme na nossa casa quando você está lá?

— Não sei. Mas não é sobre isso que a gente está conversando.

— Tipo ontem à noite. A gente estava curtindo e daí você levou a ­Hannah para a casa dela.

— Maddie... isso é assunto particular.

— Está bem, então.

Todas as conversas desse tipo terminavam sempre assim. Bosch olhou em volta e tentou pensar em alguma outra coisa sobre a qual conversar. Ficou com a sensação de que havia metido os pés pelas mãos na questão de Hannah.

— Por que você me perguntou de repente, agora há pouco, por que eu entrei para a polícia?

Ela deu de ombros.

— Sei lá. Eu só queria saber.

Ele pensou um momento sobre isso antes de responder:

— Olha, se você está pensando se essa é a escolha certa para você, ainda tem muito tempo.

— Eu sei. Não é isso.

— E você sabe que eu quero que você faça com a sua vida o que achar melhor. Quero que seja feliz, e isso vai me deixar feliz. Nunca pense que precisa fazer isso por minha causa ou para seguir meus passos. Não tem nada a ver.

— Eu sei, pai. Só fiz uma pergunta, só isso.

Ele assentiu.

— Então está bom. Mas, se faz alguma diferença, eu já tenho certeza de que você daria uma ótima policial e uma ótima detetive. Não tem a ver com o jeito como você atira, tem a ver com o modo como você pensa e sua visão básica de justiça. Você tem o que precisa, Mads. Só falta decidir se é o que você quer. De um jeito ou de outro, estou com você.

— Obrigada, pai.

— E, só para voltar à simulação por um segundo, estou mesmo orgulhoso de você. Não só por causa dos tiros. Estou falando sobre como se manteve fria, a confiança que demonstrou na hora de agir. Foi tudo muito bom.

Ela pareceu aceitar bem o encorajamento, e então ele observou a linha de sua boca virar para baixo, com ar preocupado.

— Fala isso para a aeromoça.

 

 

26

Bosch saiu na segunda-feira de manhã quando ainda estava escuro. Eram pelo menos cinco horas de viagem até Modesto e ele não queria desperdiçar um dia inteiro só para chegar lá. Tinha alugado um Crown Victoria, na Hertz, no aeroporto de Burbank na noite anterior, porque o regulamento do LAPD não lhe permitia usar seu veículo do departamento estando de férias. Normalmente, essa seria uma das regras que Bosch desrespeitaria, mas com O’Toole verificando cada passo seu nos últimos tempos, decidiu andar na linha só por garantia. No entanto, não deixou de pegar a luz estroboscópica portátil do veículo de trabalho e transferir suas caixas de equipamento de um porta-malas para outro. Até onde sabia, não havia regulamento quanto a isso. Com o Crown Vic alugado Bosch podia agir devidamente como policial, caso necessário.

Modesto era praticamente uma linha reta para o norte a partir de Los Angeles. Bosch tomou a I-5 para sair da cidade e passou pelo cânion de Grapevine antes de pegar a Califórnia 99, que o levaria a cruzar Bakersfield e Fresno no caminho. Na estrada, continuou a escutar a coletânea de Art Pepper que Maddie lhe dera de presente. Estava agora no volume 5, com uma apresentação gravada em Stuttgart em 1981. Continha uma versão memorável da marca registrada de Pepper, “Straight Life”, mas foi a melancólica “Over the Rainbow” que levou Bosch a apertar o botão no painel para ouvir outra vez.

Ele chegou a Bakersfield no horário do rush matinal e diminuiu a velocidade para menos de cem pela primeira vez. Decidiu esperar o trânsito fluir melhor e parou para o café da manhã em uma lanchonete chamada Knotty Pine Cafe. Conhecia o lugar porque ficava a apenas algumas quadras do Gabinete do Xerife do condado de Kern, onde ocasionalmente havia tido assuntos a resolver ao longo dos anos.

Depois de pedir ovos, bacon e café, desdobrou o mapa que imprimira no sábado em duas folhas de papel e unira com fita adesiva. O mapa mostrava o trecho de sessenta e cinco quilômetros no Vale Central que havia se tornado importante para o caso Anneke Jespersen. Todos os pontos marcados por ­Bosch ficavam perto da CA-99, a começar por Modesto, na extremidade sul, e seguindo na direção norte por Ripon, Manteca e, depois, Stockton.

O que parecia digno de nota para Bosch era que o mapa que ele havia montado se estendia por dois condados: Stanislaus ao sul e San Joaquin ao norte. Modesto e Salida ficavam no condado de Stanislaus, onde o xerife ­Drummond tinha a autoridade e a jurisdição, mas Manteca e Stockton se localizavam na jurisdição do xerife do condado de San Joaquin. Para Bosch, não era de surpreender que Reggie Banks, que morava em Manteca, preferisse tomar seus pileques em Modesto. O mesmo valia para Francis Dowler.

Bosch circulou os locais que queria verificar antes que o dia terminasse. A revendedora John Deere, na qual Reggie Banks trabalhava, o Gabinete do Xerife do condado de Stanislaus e o centro de operações da Cosgrove Ag., em Manteca­, além das residências dos homens que tinha ido observar. Seu plano para o dia era mergulhar ao máximo no mundo em que esses homens estavam vivendo. Depois disso, ele planejaria o próximo passo — se é que haveria um.

Assim que se viu de volta à CA-99 e indo outra vez para o norte, Bosch apoiou na coxa direita a impressão de um e-mail recebido de Dave Chu no domingo à noite. Chu havia feito uma busca por Beau Bentley e Charlotte Jackson, os dois soldados mencionados na matéria de Anneke Jespersen sobre o Saudi Princess.

Bentley logo não deu em nada. Chu encontrou um obituário de 2003 para certo Brian “Beau” Bentley, veterano da Guerra do Golfo, no Sun-Sentinel de Fort Lauderdale, que afirmava que o homem havia morrido de câncer aos trinta e quatro anos.

Chu teve um pouco mais de sorte com o outro soldado. Usando os parâmetros de idade que Bosch lhe fornecera, encontrou sete mulheres chamadas Charlotte Jackson morando na Georgia. Cinco delas estavam listadas em Atlanta e seus subúrbios. Usando a conta TLO do departamento e vários outros bancos de dados na internet, Chu conseguira obter números de telefone de seis das sete mulheres. Enquanto dirigia, Bosch começou a ligar.

Era o início da tarde na Georgia. Ele completou as duas primeiras ligações. Foram atendidas por Charlotte Jackson, mas nenhuma delas era a ­Charlotte Jackson que ele estava tentando encontrar. A terceira e a quarta ligações não foram atendidas, e ele deixou recado na caixa de mensagens dizendo que era um detetive do LAPD trabalhando em um caso de homicídio e que precisava que a ligação fosse retornada o quanto antes.

Foi atendido nas duas ligações seguintes, mas nenhuma das mulheres com quem falou era a Charlotte Jackson que havia servido o país durante a primeira Guerra do Golfo.

Bosch desligou na última lembrando a si mesmo que ficar atrás de ­Charlotte Jackson dificilmente era o melhor uso de seu tempo. O nome era comum e vinte e um anos tinham se passado. Não havia garantia de que ela continuasse morando em Atlanta ou na Georgia, nem mesmo que estivesse viva. Também podia ter casado e mudado de nome. Ele sabia que podia ir ao arquivo de registros militares dos Estados Unidos em St. Louis e requisitar uma pesquisa, mas, como todas as coisas mergulhadas em burocracia, conseguir respostas talvez demorasse uma eternidade.

Dobrou o papel e voltou a guardá-lo no bolso interno do paletó.

A paisagem ficou plana depois de Fresno. O clima era árido em virtude do sol causticante e empoeirado por causa dos campos secos. A estrada também era ruim. O asfalto estava muito gasto e as junções do concreto haviam se separado por serem antigas demais e por falta de manutenção. As superfícies se desmanchavam e os pneus do Crown Vic trepidavam com força, às vezes fazendo a música no aparelho pular. Art Pepper não ficaria feliz com isso.

O estado tinha uma dívida de dezesseis bilhões e os noticiários sempre falavam sobre o efeito do déficit na infraestrutura, mas ali, em pleno coração do território, a teoria era um fato.

Bosch chegou a Modesto na metade do dia. O primeiro item em seu cronograma era dar uma passada casual no Public Safety Center, onde o xerife J. J. Drummond era a autoridade. O prédio parecia razoavelmente novo, com a cadeia contígua. Na frente, havia a escultura de um cão policial morto no cumprimento do dever, e Bosch se perguntou por que nenhum ser humano parecia merecer o mesmo tratamento.

Em geral, quando Bosch ia atrás de um caso fora de Los Angeles, a primeira coisa que fazia era registrar sua presença no Gabinete do Xerife ou da Polícia em seu destino. Era uma cortesia, mas também uma precaução, como deixar para trás farelos de pão caso algo desse errado. Mas não dessa vez. Ele não sabia se o xerife J. J. Drummond estava envolvido de algum modo na morte de Anneke Jespersen. Mas havia névoa demais no caso e coincidências e conexões demais para Bosch correr o risco de alertar Drummond sobre a investigação.

Para enfatizar essas coincidências, ele topou com a Cosgrove Tractor, a concessionária John Deere em que Reginald Banks trabalhava, a apenas cinco quadras do prédio do xerife. Bosch passou devagar, fez a volta e passou de novo, parando junto à calçada, na frente.

Havia uma fileira de tratores verdes dispostos do menor para o maior diante da concessionária. Atrás deles ficava o estacionamento para uma única fileira de carros e a loja com vitrines do chão ao teto cobrindo a fachada inteira do prédio. Bosch desceu do carro e pegou um binóculo pequeno, mas potente, em uma das caixas de equipamento no porta-malas. Voltando ao banco do motorista, usou o binóculo para observar a concessionária. Em cada canto, na frente, havia uma mesa com um vendedor a postos. Entre eles estava outra fileira de tratores e de quadriciclos, todos verdes e brilhantes como grama fresca.

Bosch abriu sua pasta e olhou a foto de Banks que Chu havia conseguido no Departamento de Trânsito. Voltando a espiar a concessionária, logo identificou Banks como o homem parcialmente calvo com um bigode curvo à mesa do canto mais próximo de Bosch. Observou o sujeito, examinando-o de perfil por causa do ângulo da mesa. Embora Banks parecesse concentrado em algo na tela do computador, Bosch sabia que devia estar jogando paciência. Ele posicionara a tela de modo que não fosse vista de dentro do showroom, mais provavelmente pelo chefe.

Depois de algum tempo, Bosch se cansou de observar, deu partida no carro e saiu. Ao fazer isso, olhou pelo retrovisor e viu um carro compacto azul saindo também, cinco vagas atrás. Seguiu pela Crows Landing Road até a 99, checando o espelho de vez em quando e observando o carro azul no tráfego atrás dele. Não estava preocupado. Ali era uma via importante e muitos carros iam na mesma direção. No entanto, quando tirou o pé do acelerador e começou a deixar que outros o ultrapassassem, o carro azul também diminuiu e manteve a velocidade a fim de continuar mais atrás. Finalmente, Bosch encostou diante de uma loja de autopeças e olhou pelo retrovisor. Meia quadra atrás, o carro azul virou à direita e sumiu, levando Bosch a se perguntar se estava ou não sendo seguido.

Bosch voltou a andar e continuou de olho no retrovisor conforme se dirigia à entrada da CA-99. Ao longo do caminho, passou pelo que parecia um desfile infindável de espeluncas de comida mexicana e pátios de carros usados, cenário interrompido apenas por lojas de pneus, oficinas mecânicas e de autopeças. A rua era quase um drive-thru automotivo: você comprava a lata-velha ali e consertava acolá. E podia se servir de um taco de peixe no furgão escrito MARISCOS enquanto aguardava. Bosch ficou deprimido ao pensar em todo o pó da estrada que devia se acumular naqueles tacos.

No instante em que viu a rampa de acesso para a CA-99, viu também o primeiro cartaz de “Drummond para o Congresso”. Tinha cerca de um metro por dois e estava preso em uma cerca de segurança que cruzava a pista elevada. O cartaz, que exibia o rosto sorridente de Drummond, podia ser visto por todos que tomavam o rumo norte na via expressa abaixo. Bosch notou que alguém havia desenhado um bigode de Hitler no lábio superior do candidato.

Ao descer pela rampa para a via expressa, Bosch olhou pelo retrovisor e pensou ter visto o compacto azul atrás. Assim que entrou no meio do tráfego, olhou novamente, mas os carros agora obscureciam sua visão. Resolveu atribuir o que tinha visto à paranoia.

Seguiu para o norte outra vez, e poucos quilômetros depois de Modesto ficava a saída para a Hammett Road. Voltou a sair da via expressa e seguiu na direção oeste pela Hammett até se ver em meio a um pomar de amendoeiras plantadas em fileiras perfeitas, seus troncos escuros se projetando acima da planície de irrigação inundada. A água era tão imóvel que as árvores pareciam crescer em um vasto espelho.

Não tinha como perder a entrada para a propriedade de Cosgrove. O desvio era amplo e protegido por um muro de tijolos e um portão de ferro preto. Havia uma câmera no alto e um interfone para os visitantes. As letras CC ornamentavam o portão.

Bosch usou a ampla área asfaltada na entrada para fazer a volta com o carro, como se fosse alguém perdido. Quando retornava pela Hammett na direção da 99, notou que a segurança havia sido pensada apenas para a estrada de acesso à propriedade. Ninguém podia passar de carro sem ter permissão e sem que o portão fosse aberto. Mas entrar a pé era outra história. Não havia muro ou cerca interditando o acesso. Qualquer um disposto a molhar os pés podia entrar vadeando o solo do pomar de amendoeiras. A menos que houvesse câmeras e sensores de movimento ocultos no pomar, era o caso clássico de falha de segurança. Muito alarde para pouca eficiência.

Assim que voltou à 99 na direção norte, passou pelo cartaz dando as boas-vindas ao condado de San Joaquin. As três saídas seguintes foram para a cidade de Ripon, e Bosch viu o cartaz de um hotel se projetando sobre os espessos arbustos floridos de rosa e branco que cobriam a beira da estrada. Pegou a saída seguinte e encontrou um jeito de voltar ao hotel Blu-Lite. Era um hotel de beira de estrada em estilo rancho, saído diretamente dos anos 1950. Bosch queria um lugar que lhe desse privacidade, onde não tivesse gente por perto para vê-lo entrar e sair. Achou que ali seria perfeito, pois viu apenas um carro estacionado na frente de seus muitos quartos.

Pagou pelo quarto no balcão. Resolveu se hospedar em grande estilo, pagando a diária máxima, de quarenta e nove dólares, por um quarto com cozinha.

— Por acaso vocês têm wi-fi por aqui? — perguntou ao atendente.

— Não oficialmente — disse o rapaz. — Mas, se o senhor me der cinco paus, eu forneço a senha do wi-fi da casa que fica atrás do hotel. O sinal pega que é uma beleza.

— Para quem são os cinco paus?

— Eu divido com o cara que mora lá.

Bosch refletiu por um momento.

— É particular e é segura — acrescentou o atendente.

— O.k. — disse Bosch. — Fechado.

Foi para o Quarto 7 e estacionou diante da porta. Levando sua mala de roupas para dentro, largou-a na cama e olhou em torno. Havia uma pequena mesa com duas cadeiras na cozinha. O quarto serviria.

Antes de sair, Bosch se trocou, pendurando no closet a camisa azul de botões que acabara de tirar, para o caso de ficar até quarta e precisar usá-la outra vez. Abriu a bolsa e pegou uma camisa preta. Vestiu-se, trancou a porta e voltou para o carro. “Over the Rainbow” estava tocando outra vez quando voltou à estrada.

A parada seguinte de Bosch era Manteca, e bem antes de chegar ele pôde ver a caixa-d’água anunciando a “Cosgrove Ag.”. O empreendimento comercial de Cosgrove se localizava em uma estrada vicinal que corria paralela à rodovia. Consistia em uma estrutura que abrigava os escritórios e vastas instalações para armazenamento de produtos e deslocamento dos veículos, onde dezenas de caminhões de transporte e caminhões-tanques estavam enfileirados e prontos para trabalhar. Contornando a propriedade, havia o que para Bosch pareceram quilômetros e mais quilômetros de videiras cobrindo a paisagem, se esparramando na direção das montanhas acinzentadas, a oeste. Na linha do horizonte, a paisagem só era interrompida pelos gigantes de aço que desciam as encostas, como se fossem invasores de outro mundo. As turbinas eólicas que Carl Cosgrove havia levado ao Vale.

Depois de ficar devidamente impressionado com a extensão do império de Cosgrove, Bosch foi conhecer o lado pobre. Seguindo os mapas que imprimira no sábado, procurou os endereços fornecidos pelo Departamento de Trânsito para Francis John Dowler e Reginald Banks. Nenhum dos dois lugares impressionou Bosch para além do fato de que pareciam estar nas terras de Cosgrove.

Banks morava em uma pequena casa isolada com fundos para os pomares de amendoeiras junto à Brunswick Road. Seguindo o mapa e notando a ausência de estradas entre Brunswick ao norte e Hammett ao sul, Bosch pensou que talvez fosse possível entrar no pomar a pé por trás da casa de Banks e sair em Hammett — muitas horas depois.

A casa de Banks estava precisando de uma pintura e as janelas pediam por uma limpeza. Se ele morava ali com a família, não havia indicação disso. Havia um monte de garrafas de cerveja pelo terreno, todas à distância de um arremesso da varanda, onde havia um velho sofá descosturado. Banks não fizera a limpeza depois do fim de semana.

A última parada antes do jantar foi o trailer de tamanho duplo com uma parabólica montada no alto da cumeeira. Ficava em um estacionamento de trailers próximo à estrada, e todas as moradias contavam com uma área para estacionar o longo veículo de reboque, que era tão grande quanto a casa em si. Aquele estacionamento era onde os motoristas de Cosgrove moravam.

Enquanto Bosch permanecia sentado em seu carro alugado olhando para a residência de Dowler, uma porta foi aberta na lateral, sob a cobertura da garagem, e uma mulher saiu e ficou olhando desconfiada para ele. Bosch acenou como se fosse um velho amigo, desarmando-a um pouco. Ela avançou pela entrada, limpando as mãos em um pano de prato. Ela era o que o velho parceiro de Bosch, Jerry Edgar, costumava chamar de meio a meio: meio século de vida, meio acima do peso.

— Está procurando alguém? — perguntou ela.

— Bom, eu esperava encontrar o Frank em casa. Mas estou vendo que o caminhão dele não está.

Bosch acenou na direção da garagem vazia.

— Ele vai demorar?

— Ele teve que levar uma carga de suco para American Canyon. É capaz que tenha que ficar esperando por lá até eles terem alguma coisa para ele trazer de volta. Deve voltar amanhã à noite. Quem é o senhor?

— Só um amigo, resolvi dar uma passada. A gente se conheceu no Golfo faz vinte anos. A senhora pode dizer que John Bagnall mandou um abraço?

— Digo, pode deixar.

Bosch não lembrava se o nome da esposa de Dowler estava no material que Chu conseguira. Se tivesse o nome na cabeça, ele o teria usado ao se despedir. Ela se virou e foi na direção da porta que havia deixado aberta. Bosch notou uma moto com o tanque pintado de azul mosca-varejeira estacionada sob um dos toldos da casa. Deduziu que, quando Dowler não estava transportando suco de uva em uma jamanta, gostava de passear de Harley.

Bosch saiu do estacionamento de trailers esperando não ter despertado nada além de curiosidade da parte da mulher. Esperava também que Dowler não fosse o tipo de marido que ligava toda noite para casa quando estava viajando.

A penúltima parada de Bosch em seu giro pelo Vale Central o levou a Stockton, onde entrou no estacionamento da Steers, a churrascaria onde ­Christopher Henderson havia conhecido seu fim dentro do frigorífico.

Bosch, porém, tinha de admitir que estava fazendo mais do que observar o estabelecimento como parte da investigação. Estava morrendo de fome e tinha ido até ali pensando em comer um bom filé. Seria difícil superar o que havia comido no Craig’s no sábado à noite, mas estava com fome suficiente para tentar.

Sem se importar de comer sozinho em um restaurante, Bosch disse à jovem recepcionista que preferia uma mesa em vez do balcão. Ela lhe indicou um lugar perto da adega climatizada e ele se sentou na cadeira que lhe proporcionava uma visão completa do restaurante. Era seu hábito fazer isso por segurança, mas ele também sempre se preparava para o caso de dar sorte. Quem sabe o dono em pessoa, Carl Cosgrove, não entraria para comer no próprio restaurante?

Durante as duas horas seguintes, Bosch não reconheceu ninguém que entrou na churrascaria, mas sua ida ao lugar não foi em vão. Comeu um filé com purê de batatas delicioso do início ao fim. Também provou uma taça do merlot Cosgrove que acompanhava o prato.

O único porém se deu quando o celular de Bosch tocou alto no restaurante. Ele havia deixado o aparelho ajustado no máximo para ter certeza de escutar quando estivesse dirigindo. Esquecera-se de mudar para o modo vibratório, menos intrusivo. Os demais fregueses fizeram cara feia para ele. Uma mulher chegou a balançar a cabeça, com ar de desprezo, talvez o considerando o típico grosseirão arrogante de cidade grande.

Arrogante ou não, Bosch atendeu, pois viu o código de área 404, Atlanta. Como esperado, a ligação era de uma das Charlotte Jackson para quem havia deixado recado. Ele precisou de apenas algumas perguntas para determinar que não era a pessoa que estava procurando. Agradeceu e desligou. Depois sorriu e acenou para a mulher que balançara a cabeça em protesto contra sua falta de modos.

Abriu a pasta que levara para o restaurante e riscou a Charlotte Jackson número 4. Estava restrito agora a duas possibilidades, números 3 e 7, e nem sequer tinha o número de telefone de uma delas.

Quando Harry voltou ao estacionamento, já havia escurecido, e ele estava cansado depois do longo dia na estrada. Pensou em se sentar no carro e tirar um cochilo de uma hora, mas descartou a ideia. Tinha de continuar em movimento.

Parando junto ao porta-malas do carro, olhou para o céu. A noite estava sem nuvens e sem lua, mas as estrelas brilhavam com toda a força ali no Vale Central. Bosch não gostou disso. Precisava de mais escuridão. Ele abriu o porta-malas.


27

Bosch desligou os faróis do carro ao passar pelos portões de entrada da propriedade Cosgrove. Não havia nenhum outro carro na Hammett Road. Ele prosseguiu por mais duzentos metros até onde a estrada fazia uma ligeira curva à direita e então parou no acostamento de terra.

Já havia apagado a luz interna no teto, de modo que o carro permanecesse escuro quando abrisse a porta. Saiu para o ar fresco, observou e escutou. A noite estava silenciosa. Bosch levou a mão ao bolso de trás da calça jeans e tirou uma folha de papel dobrada. Prendeu-a sob o limpador do para-brisa. Era um bilhete que havia escrito antes. Dizia:

SEM GASOLINA — VOLTO LOGO

Bosch estava usando as galochas que pegara em uma das caixas no porta-malas. Levava uma pequena lanterna Maglite que esperava não ter que usar. Desceu o barranco de um metro e se moveu cautelosamente na água, provocando uma ondulação cintilante no chão do pomar de amendoeiras.

O plano de Bosch era avançar em diagonal e voltar até a estrada da entrada. Ele então se deslocaria paralelamente ao caminho até chegar à casa de Cosgrove. Não sabia bem o que estava fazendo ou procurando. Apenas seguia seus instintos, que lhe diziam que Cosgrove, com seu dinheiro e poder, estava no centro das coisas. Precisava se aproximar, ver onde e como o homem vivia.

A profundidade da água não passava de poucos centímetros, mas o lodo sugava as galochas e dificultava o avanço de Bosch. Várias vezes o solo úmido se recusou a aliviar a pressão, e ele quase perdeu a galocha.

A superfície aquática refletia o céu estrelado e deixava Bosch com a sensação de estar completamente exposto em sua invasão. A cada vinte metros, mais ou menos, ele se enfiava sob uma árvore para se esconder e descansar por um minuto, de ouvidos atentos. O pomar era de um silêncio absoluto, sem nem mesmo o ocasional zumbido de insetos no ar. O único som vinha de longe e Bosch não tinha ideia do que o estava causando. Era um chuá contínuo, e imaginou que talvez fosse algum tipo de bomba de irrigação destinada a manter a água do pomar.

Depois de algum tempo, o pomar começou a lhe parecer um labirinto. As árvores plenamente desenvolvidas se erguiam a dez metros de altura e pareciam a cópia exata umas das outras. Tinham sido plantadas em fileiras incrivelmente retas. Isso fazia qualquer direção para que Bosch olhasse parecer igual. Ele começou a ficar com medo de se perder e se arrependeu de não ter trazido consigo algo para marcar o caminho.

Finalmente, depois de meia hora, alcançou a estrada da entrada. Já estava se sentindo exausto, como se suas botas fossem feitas de concreto, mas decidiu não abandonar a missão. Avançou em uma paralela, indo de árvore em árvore na primeira fileira junto à estrada.

Quase uma hora depois, Bosch viu as luzes da mansão adiante por entre os galhos das últimas fileiras de árvores. Continuou andando a custo, observando que o som de chuá ficava mais alto à medida que se aproximava das luzes.

Quando chegou ao fim do pomar, agachou-se na lateral do aterro e examinou o que estava a sua frente. A mansão era uma imitação exótica de palacete francês. Tinha apenas dois andares, mas telhados muito inclinados e pequenas torres nos cantos. Alguma coisa na construção lembrava a Bosch uma versão menor do Château Marmont, em Los Angeles.

A casa era iluminada de fora por holofotes instalados em ângulo no chão. Havia um grande caminho circular na frente e um caminho secundário que contornava o prédio principal. Bosch presumiu que a garagem ficasse nos fundos. Não havia veículo algum à mostra e ele percebeu que todas as luzes que tinha visto quando andava pelo pomar eram externas. Por dentro, a mansão estava às escuras. Parecia não haver ninguém em casa.

Bosch se ergueu e subiu o barranco do aterro. Começou a andar na direção da casa e logo se encontrou em uma superfície elevada de concreto. O enorme H desenhado no centro indicava que era um heliporto. Ele seguiu em frente, movendo-se diretamente para a mansão, então foi distraído por um movimento em seu campo de visão periférica. Olhou à esquerda, na direção de uma sutil elevação na paisagem.

No início, não enxergou nada. A casa era tão iluminada que mal se viam as estrelas, e a área em torno da mansão parecia negra como breu. Mas então ele viu o movimento outra vez, acima da colina. De repente se deu conta de que estava vendo as lâminas escuras de uma turbina eólica cortando o ar, bloqueando momentaneamente a luz tênue das estrelas e perturbando o céu noturno.

O som sibilante que vinha escutando enquanto andava pelo pomar de amendoeiras saía da turbina eólica. Cosgrove acreditava tão piamente no poder do vento que havia construído um de seus gigantes de ferro no próprio quintal. Bosch deduziu que as luzes que banhavam o exterior do palacete fossem alimentadas pelo vento que soprava incessantemente em todo o Vale.

Bosch voltou a prestar atenção na mansão iluminada e quase imediatamente foi tomado por uma sensação de hesitação, repensando o que estava fazendo. O homem que morava entre aquelas paredes era inteligente e poderoso o bastante para domar o vento. Vivia atrás de uma muralha de dinheiro e um batalhão — não, melhor dizendo, um exército — de árvores. Não precisava erguer uma cerca nos limites de sua vasta propriedade, pois sabia que o pomar intimidaria qualquer intruso que ousasse atravessá-lo. Ele morava em um castelo com fosso, e quem era Bosch para pensar que podia pegá-lo? Bosch não sabia nem a natureza exata do crime. Anneke Jespersen estava morta, e o detetive perseguia um palpite. Ele não tinha evidência de coisa alguma. Apenas uma coincidência com vinte anos de idade e mais nada.

De repente, uma onda de som mecânico e vento surgiu acima dele quando um helicóptero sobrevoou o pomar e pairou no ar. Bosch parou e correu de volta para a proteção das árvores, escorregando pelo barranco na direção da água e da lama. Olhou para trás e viu o helicóptero — uma silhueta negra contra o céu escuro — manobrando e se posicionando para aterrissar. Um holofote na parte inferior da aeronave se acendeu e mirou o H do heliporto. Bosch se abaixou ainda mais e observou enquanto o helicóptero parecia lutar contra o vento para manter o alinhamento de seus trens de pouso. Quando por fim desceu e tocou o concreto com suavidade, a luz se apagou e a turbina estridente foi desligada.

Os rotores giraram livremente por mais algum tempo e então cessaram. A porta no lado do piloto se abriu e alguém desceu. Bosch estava a pelo menos trinta metros de distância e só pôde divisar a silhueta da pessoa, identificando-a como um homem. O piloto se dirigiu à porta traseira e a abriu. Bosch esperava que outra pessoa descesse da cabine, mas foi um cachorro que pulou. O piloto apanhou uma mochila, fechou a porta e começou a andar na direção da casa.

O cão trotou atrás do piloto por alguns metros, mas então, de repente, parou e se virou direto para o lado onde Bosch estava se escondendo. Era um cachorro grande, mas estava escuro demais para que Bosch identificasse a raça. Ele escutou primeiro um rosnado, depois o animal começou a correr em sua direção.

Bosch ficou paralisado enquanto o cachorro rapidamente cobria o terreno entre ambos. Ele sabia que não podia ir a lugar algum. Atrás dele só havia o lodo. Não conseguiria dar dois passos. Agachou-se mais junto ao aterro, imaginando que em sua fúria talvez o cachorro pulasse por cima dele e ficasse atolado na lama.

E tirou a arma do cinto. Se o cão não parasse, Bosch estaria pronto para detê-lo.

— Cosmo!

O homem gritou da entrada da casa. O cão parou em plena corrida, as patas traseiras escorregando sob o corpo conforme lutava para obedecer à ordem.

— Aqui, já!

O cão olhou para Bosch e por um momento Harry achou ter visto um brilho vermelho em seus olhos. Então ele se afastou, voltando para seu senhor. E foi punido, mesmo assim.

— Cachorro mau! Sem correria! E fique quieto!

O homem deu um tapa na anca do cachorro quando o animal passou correndo por ele. O cachorro continuou pela entrada e então se abaixou em uma postura de submissão. Um minuto atrás ia rasgar a garganta de Bosch. Agora o detetive sentia pena dele.

Harry esperou até o homem e seu cão entrarem na mansão antes de retroceder pelo pomar, esperando não se perder no caminho de volta para o carro.

Bosch chegou ao hotel Blu-Lite às onze da noite. Foi direto para o banheiro e tirou as roupas molhadas e sujas de barro, jogando tudo na banheira. Estava para entrar no banho e ligar o chuveiro quando escutou o celular vibrando; ele havia ligado o silencioso depois do incidente no Steers.

Saiu do banheiro com a toalha dura como papelão enrolada na cintura. A identificação da chamada estava bloqueada. Bosch se sentou na cama e atendeu.

— Bosch.

— Harry, sou eu. Está tudo bem?

Chu.

— Tudo bem. Por quê?

— Porque não tive notícia sua e você não respondeu aos e-mails.

— Eu viajei o dia inteiro e não olhei os e-mails. Acabei de chegar ao hotel e ainda não tenho certeza sobre o wi-fi.

— Harry, você tem e-mail no celular.

— É, eu sei, mas é um saco com esse negócio de senha e tal. É pequeno demais e eu não gosto de mexer nisso. Mando mensagem de texto.

— Você quem sabe. Quer que eu conte o que eu mandei?

Bosch estava morto de cansaço. A exaustão do dia e o avanço penoso no pomar de amendoeiras, ida e volta, tinham acabado com ele. Os músculos de sua coxa doíam como se tivesse dado dez mil passos naquele lodo pegajoso. Queria tomar uma ducha e ir para cama, mas disse a Chu para ir em frente.

— Basicamente, duas coisas — disse o parceiro. — Primeiro, estabeleci uma conexão bem sólida entre os dois nomes da lista que você me deu.

Bosch olhou em volta à procura de sua caderneta e percebeu que a havia deixado no carro. Não dava para ir buscar agora.

— Continue, o que foi?

— Bom, você sabe que Drummond está concorrendo ao Congresso?

— Sei, eu vi um cartaz hoje, mas só isso.

— É porque a eleição é no ano que vem. Então não adianta ir com tudo por enquanto. Na verdade, ele nem tem um adversário ainda. O titular está se aposentando e Drummond provavelmente anunciou cedo para assustar a competição.

— O.k., tudo bem. Qual é a conexão?

— É o Cosgrove. O Cosgrove como pessoa física e a Cosgrove Agricul­ture são os dois maiores financiadores da campanha dele. Eu puxei o relatório da campanha inicial que ele registrou quando anunciou.

Bosch assentiu. Chu tinha razão, era uma conexão boa e sólida entre dois membros da conspiração. Agora tudo de que precisava era a conspiração.

— Harry, você está aí? Não cochilou enquanto eu falava, né?

— Quase. Mas foi um bom trabalho, Dave. Se ele está bancando o cara agora, deve ter feito o mesmo nas duas vezes em que concorreu a xerife.

— É, também acho, mas esses registros não são acessíveis on-line. Você deve conseguir puxar aí do arquivo do condado.

Bosch balançou a cabeça.

— Não. É uma cidade pequena. Se eu fizer isso a notícia vai chegar até os dois. Não quero isso por enquanto.

— Entendi. Como estão as coisas por aí?

— Indo. Hoje foi mais reconhecimento. Amanhã vou começar a acelerar um pouco. Qual era a outra coisa? Você falou que eram duas.

Houve uma pausa antes de Chu responder, de modo que Bosch percebeu que a segunda leva de notícias não seria das melhores.

— O Tool me chamou na sala dele hoje.

Claro, pensou Bosch. O’Toole.

— O que ele queria?

— Queria saber no que eu estava trabalhando, mas deu para perceber que a preocupação dele era que você talvez não estivesse mesmo de férias. Ele perguntou se eu sabia aonde você tinha ido, esse tipo de coisa. Falei para ele que, até onde eu sabia, você tinha tirado uns dias para pintar a casa.

— Pintar a casa. O.k. Vou lembrar. Você me avisou sobre isso em um e-mail?

— Sim, logo depois do almoço.

— Não ponha esse tipo de coisa no e-mail. Me ligue. Vai saber até onde O’Toole pode ir se está tentando chutar alguém para fora da unidade.

— O.k., Harry, não ponho mais. Desculpe.

Bosch escutou o bipe de uma chamada em espera. Olhou para a tela e viu que era a filha.

— Não esquenta a cabeça com isso, Dave, mas preciso desligar agora. Minha filha está ligando. A gente conversa amanhã.

— O.k., Harry, bom descanso.

Bosch atendeu a ligação da filha.

— Como foi seu dia, pai? — perguntou ela em voz baixa, quase um sussurro.

Bosch pensou por um momento no que dizer.

— Na verdade, foi meio que um tédio. E o seu?

— O meu também foi um tédio. Quando você volta para casa?

— Bom... deixa eu ver, tenho mais umas coisas para fazer aqui amanhã. Duas entrevistas. Então, quem sabe, na quarta. Você está no seu quarto?

— Ahã.

Significava que estava sozinha e, assim Bosch esperava, longe dos ouvidos de Hannah. Ele se recostou nos travesseiros. Eram finos e duros, mas para Bosch pareceram do luxuoso hotel Ritz-Carlton.

— Então, como estão as coisas com a Hannah?

— Acho que tudo bem.

— Tem certeza?

— Ela estava tentando me fazer dormir cedo. Tipo dez horas, essas coisas.

Bosch sorriu. Ele conhecia o script. A lei inversa de fazer uma adolescente acordar cedo demais era sugerir que fosse para cama cedo demais.

— Antes de viajar, eu falei para ela deixar você fazer as coisas do seu jeito. Se quiser, eu falo com ela outra vez, vou dizer que você tem sua própria rotina.

Era o argumento que Maddie havia usado com o pai quando ele cometera o mesmo erro de Hannah.

— Não, tudo bem. Eu me viro.

— E o jantar? Não vai me dizer que vocês pediram pizza.

— Não, ela fez comida e estava muito bom.

— O que era?

— Frango ao molho de iogurte. E macarrão com queijo.

— Se não tiver o bendito macarrão com queijo...

— Ela fez de um jeito diferente do meu.

Significava que Maddie preferia o próprio jeito. Bosch percebeu que estava a ponto de cochilar. Tentou se reanimar.

— Tudo bem, a escolha fica com a chef. Se você cozinhar, vai poder fazer do seu jeito.

— Eu sei. Eu falei para ela que amanhã eu cozinho, se não tiver muito dever de casa.

— Ótimo, e quem sabe na quarta eu cozinho.

Isso o levou a sorrir, e deduziu que ela também estava sorrindo.

— É, miojo. Humm, mal posso esperar.

— Eu também. Agora preciso dormir, querida. A gente conversa amanhã, o.k.?

— O.k., pai. Eu amo você.

— Eu também amo você.

Ela desligou, e Bosch escutou os três bipes quando a linha foi desconectada. Ficou ali, incapaz de se levantar. As luzes continuavam acesas, mas ele fechou os olhos. Em segundos estava dormindo.

Bosch sonhou com uma marcha incessante através da lama. Mas, no lugar das amendoeiras, havia tocos de árvores calcinados, com galhos negros e retorcidos tentando agarrá-lo como se fossem mãos. Ao longe havia o som de um cão latindo. E, por mais rápido que Bosch se movesse, o cão estava cada vez mais perto.


28

Bosch foi arrancado de um sono profundo pelo celular vibrando no peito. Seu primeiro pensamento foi de que seria a filha com algum problema ou irritada com Hannah por qualquer razão. O relógio no criado-mudo marcava 4h22.

Pegou o telefone, mas não viu a foto de Maddie mostrando-lhe a língua que surgia na tela quando era ela quem ligava. Checou o número da chamada e viu o código de área 404, de Atlanta.

— Aqui é o detetive Bosch.

Ele se ergueu e olhou em volta à procura da caderneta, lembrando mais uma vez que a havia deixado no carro. Percebeu que estava nu, a não ser pela toalha enrolada na cintura.

— Olá, meu nome é Charlotte Jackson e o senhor deixou um recado para mim ontem. Eu cheguei muito tarde. É cedo demais aí?

A cabeça de Bosch clareou. Ele se lembrou do telefonema que havia recebido de Charlotte Jackson número 4 quando estava no restaurante. Essa só podia ser a Charlotte Jackson número 3. Era o único retorno de ligação que restava. Ele lembrou que ela morava na Ora Avenue, East Atlanta.

— Sem problemas, srta. Jackson — disse ele. — Fico feliz que tenha ligado de volta. Como eu expliquei no recado que deixei, sou detetive do Departamento de Polícia de Los Angeles. Trabalho na Unidade de Abertos/Não Resolvidos, um esquadrão que lida com o arquivo morto, se é que dá para entender.

— Claro, eu assistia a Cold Case na tevê. Eu gostava dessa série.

— Certo. Bom, estou trabalhando em um caso antigo de homicídio e tentando encontrar uma Charlotte Jackson que serviu nas forças armadas durante a Tempestade no Deserto em 1991.

Houve um silêncio, mas Bosch esperou pela resposta.

— Bom... eu servi. Eu estava lá, mas não sei nada sobre Los Angeles nem ninguém que tenha sido assassinado. Isso é muito estranho.

— Sei, compreendo e entendo que toda essa história possa parecer um pouco confusa. Se me permite fazer algumas perguntas, acho que serei capaz de esclarecer um pouco as coisas.

Ele esperou outra vez por uma resposta. Nada.

— Srta. Jackson? Continua na linha?

— Sim, estou aqui. Pode fazer suas perguntas. Não tenho muito tempo. Preciso sair para trabalhar daqui a pouco.

— Tudo bem, então, vou tentar ser rápido. Antes de mais nada, esse é seu número residencial ou um celular?

— Celular. É meu único número.

— O.k., e a senhorita disse que esteve nas forças armadas e serviu durante a Tempestade no Deserto. Em que ramo das forças armadas foi?

— Exército dos Estados Unidos.

— Continua no Exército?

— Não.

Ela disse isso como se a pergunta fosse estúpida.

— Onde era sua base no estado, srta. Jackson?

— Benning.

Bosch havia passado um tempo em Fort Benning quando servira no Exército. Havia sido sua última parada antes do Vietnã. Ele sabia que era um trajeto de duas horas de Atlanta, a primeira parada de Anneke Jespersen depois de chegar aos Estados Unidos. Bosch começou a sentir que estava chegando perto de alguma coisa. Alguma verdade oculta estava prestes a vir à tona. Ele tentou manter a voz em um tom cuidadosamente equilibrado.

— Quanto tempo ficou no Golfo Pérsico?

— No total, uns sete meses. Primeiro na Arábia Saudita, para o Escudo do Deserto, e depois a gente se deslocou para o Kuwait para a guerra terrestre. Tempestade no Deserto. Nunca estive de verdade no Iraque.

— Durante esse período, em algum momento a senhorita saiu de licença e ficou no navio chamado Saudi Princess?

— Claro — disse Jackson. — Quase todo mundo fazia isso em algum momento. O que isso tem a ver com um assassinato em Los Angeles? Eu realmente não entendo por que o senhor me ligou e, como eu disse, preciso trabalhar, então...

— Srta. Jackson, garanto que essa é uma ligação séria e que a senhorita talvez ajude a solucionar um homicídio. Posso perguntar no que trabalha atualmente?

— Eu trabalho no Centro de Justiça de Atlanta. Fica em Inman Park.

— O.k. A senhorita é advogada?

— Não. Meu Deus, não.

O mesmo tom, como se Bosch tivesse feito uma pergunta estúpida ou óbvia sobre ela quando nunca havia falado com a mulher antes.

— O que faz, então, no Centro de Justiça?

— Trabalho com mediação e meu chefe não gosta de quando eu chego atrasada. Preciso desligar agora.

De algum modo, Bosch havia se afastado demais do propósito central da inquirição. Era motivo de irritação para ele sempre que uma entrevista passo a passo saía dos trilhos. Debitou isso na conta de ter sido tirado do sono direto para a conversa.

— Só mais algumas perguntas. É muito importante. Vamos voltar ao Saudi Princess. A senhorita se lembra de quando esteve no navio?

— Foi em março, pouco antes de mandarem minha unidade de volta. Lembro que pensei que eu não teria ido, se soubesse que estaria de volta à Georgia um mês depois. Mas o Exército não me avisou, então fui em licença de setenta e duas horas.

Bosch fez que sim com a cabeça. Estava de volta à pista. Só precisava continuar nela.

— A senhorita se lembra de ter sido entrevistada por uma jornalista? Uma mulher chamada Anneke Jespersen?

Houve apenas uma pausa curta antes de Jackson responder:

— A garota holandesa? É, eu me lembro dela.

— Anneke era dinamarquesa. Será que estamos falando da mesma mulher? Uma branca, loira, bonita, de uns trinta anos?

— Isso, isso, eu só dei uma entrevista. Holandesa, dinamarquesa... eu me lembro desse nome e me lembro dela.

— O.k., onde ela fez a entrevista, a senhorita lembra?

— Eu estava em um bar. Não lembro qual, mas era perto da piscina. Era por lá que eu ficava.

— Lembra-se de mais alguma coisa sobre a entrevista, além disso?

— A entrevista? Não, não mesmo. Foram só umas perguntinhas rápidas. Ela entrevistou uma porção de gente. E estava o maior barulho lá, e o pessoal estava bêbado, sabe?

— Certo.

Aquele era o momento. A única pergunta que ele realmente tinha de fazer.

— A senhorita voltou a ver Anneke depois desse dia?

— Bom, primeiro eu a vi na noite seguinte, no mesmo lugar. Só que ela não estava trabalhando. Disse que tinha enviado a matéria, mandado as fotos ou sei lá o quê, e que então era a vez dela de ter uma licença. Tinha mais dois dias no navio e o tempo todo só para ela.

Bosch fez uma pausa. Não era isso que esperava escutar. Estava pensando na viagem de Jespersen a Atlanta.

— Por que todas essas perguntas sobre ela? — quis saber Jackson. — Foi ela que morreu?

— É, ela está morta, infelizmente. Foi assassinada há vinte anos em LA.

— Ai, meu Deus.

— Durante os tumultos, em 1992. Um ano depois da Tempestade no Deserto.

Ele esperou para ver se ela reagiria a isso, mas seguiu-se apenas silêncio.

— Acho que isso está ligado de algum modo àquele navio — explicou ele. — Lembra-se de mais alguma coisa sobre ela naquele navio? Ela estava bêbada quando a senhorita a viu no dia seguinte?

— Se estava bêbada, eu não sei. Mas tinha uma garrafa na mão. Eu também tinha. Era isso que a gente fazia naquele navio. Bebia.

— Certo. Mais alguma coisa de que se lembre sobre isso?

— Só lembro que, por ser aquela loira de parar o trânsito que ela era, estava tendo mais trabalho que todo mundo para manter os caras longe.

“Todo mundo” significava as mulheres no bar e no navio.

— Foi sobre isso que ela veio me perguntar quando me procurou em Benning.

Bosch ficou paralisado. Não emitiu um som, não respirou. Esperou que ela continuasse. Como Charlotte não disse mais nada, usou de tato para gradual­mente extrair o restante da história.

— Quando foi isso?

— Mais ou menos um ano depois da Tempestade. Lembro que eu estava lá por pouco tempo, na época. Faltavam, tipo, duas semanas para minha dispensa. Não sei como, mas ela descobriu onde eu estava e me procurou na base e ficou fazendo todas aquelas perguntas.

— Lembra exatamente o que ela perguntou?

— Ela perguntou sobre aquele segundo dia, sabe, quando estava de licença. Primeiro perguntou se eu a tinha visto, e eu disse: Você não lembra? Daí ela me perguntou com quem ela estava e quando tinha sido a última vez que eu a vira.

— O que você disse a ela?

— Eu lembrava que ela havia saído com alguns dos caras. Eles disseram que estavam indo para a discoteca, e eu não estava a fim. Só encontrei com ela de novo quando ela foi para Fort Benning.

— Você perguntou por que ela queria essa informação?

— Na verdade, não. Acho que eu meio que sabia.

Bosch assentiu. Provavelmente era por isso que ela se lembrava da última conversa com tanta clareza depois de todos aqueles anos.

— Alguma coisa aconteceu com ela naquele navio — disse ele.

— Acho que sim — disse Jackson. — Mas não perguntei os detalhes. Não achei que ela quisesse me contar. Ela só queria respostas para as perguntas. Queria saber com quem tinha estado.

Bosch achou que agora compreendia vários mistérios do caso. Qual era o crime de guerra que Anneke Jespersen estava investigando e por que ela não havia partilhado a informação com mais ninguém. Ele sentiu ainda mais pena da mulher que não chegara a conhecer.

— Me fale sobre os homens com quem ela saiu no navio. Quantos eram?

— Não lembro, uns três ou quatro.

— Lembra-se de mais alguma coisa sobre eles? Qualquer coisa.

— Eles eram da Califórnia.

Nesse momento Bosch fez uma pausa, enquanto a resposta de Jackson reverberava como um sino em sua cabeça.

— É só isso, detetive? Preciso ir.

— Só mais algumas perguntas, srta. Jackson. Está sendo de enorme ajuda. Como sabia que os homens eram da Califórnia?

— Não sei. Simplesmente sabia. Eles devem ter contado para a gente, porque eu sabia que eram caras da Califórnia. Foi isso que eu falei para ela quando foi me procurar na base.

— Lembra-se de algum nome ou de qualquer coisa assim?

— Não, não lembro mais. Faz uma eternidade. Só lembro o que estou contando agora porque ela foi me procurar dessa outra vez.

— E naquela época? Não lembra se passou para ela o nome de algum daqueles homens?

Houve uma longa pausa enquanto Jackson pensava a respeito.

— Não consigo lembrar se eu sabia algum nome. Quer dizer, talvez eu soubesse o primeiro nome deles quando a gente estava no navio, mas não sei se lembraria um ano depois. Tinha tantos caras naquele navio... Só lembro que eram da Califórnia e que a gente os chamava de truckers, caminhoneiros.

— Caminhoneiros?

— É.

— Por que chamavam eles assim? Eles dirigiam caminhões?

— Deviam dirigir, mas o que eu lembro é que eles tinham tatuagens do Keep on Truckin’, com aqueles sapatos enormes. Lembra, do cartunista Robert Crumb?

Bosch assentiu, não para o que ela perguntara, mas pela confirmação das coisas.

— É, lembro. Então esses caras tinham tatuagens. Onde?

— No ombro. Fazia muito calor naquele navio e a gente ficava no bar da piscina, então eles estavam sempre sem camisa ou só de regata. Pelo menos dois deles tinham tatuagem igual, então a gente, quer dizer, as garotas no bar, a gente simplesmente começou a chamar os caras de caminhoneiros. É difícil lembrar os detalhes e, olha, já estou atrasada para o trabalho.

— Está se saindo bem, srta. Jackson. Nem sei como agradecer.

— Foram esses caras que mataram ela?

— Ainda não sei. A senhorita tem e-mail?

— Claro.

— Posso mandar um link? É da foto em um site que mostra alguns dos caras no Saudi Princess na época. Será que dá para olhar e me dizer se reconhece algum deles?

— Posso fazer isso quando chegar ao trabalho? Preciso ir andando.

— Pode, claro, sem problemas. Eu mando assim que desligar.

— O.k.

Ela lhe deu seu endereço de e-mail, e Bosch anotou em um bloco que estava no criado-mudo.

— Obrigado, srta. Jackson. Me informe sobre o link assim que puder.

Bosch desligou. Foi para a mesa da cozinha, ligou o laptop e se conectou usando o sinal de wi-fi da casa atrás do hotel. Com o que havia aprendido no convívio com o parceiro e com a filha, localizou o link da foto do Saudi Princess no site da 237ª Companhia e o enviou por e-mail para Charlotte Jackson, com quem havia acabado de conversar.

Então foi até a janela e afastou a cortina para espiar do lado de fora. Continua­va escuro, ainda sem nenhuma luz do dia por nascer. Durante a noite, o estacionamento de algum modo havia ficado praticamente lotado. Ele decidiu tomar um banho e se preparar para o dia enquanto esperava pela resposta sobre a foto.

Vinte minutos depois estava se secando com uma toalha que já fora lavada mais de mil vezes. Escutou o toque do laptop avisando a chegada do e-mail e foi até a cozinha verificar. Charlotte Jackson respondera.

Acho que são eles. Não tenho certeza absoluta, mas acho que sim. As tatuagens conferem, e esse é o navio. Faz muito tempo e eu estava bebendo. Mas acho que são eles, sim.

Bosch se sentou à mesa e releu o e-mail. Sentiu crescer dentro de si uma sensação de medo e de empolgação ao mesmo tempo. Não era uma identificação cem por cento segura de Charlotte Jackson, mas muito perto disso. Ele sabia que os acontecimentos de vinte e poucos anos antes estavam se encaixando em uma velocidade inegável. A mão do passado começava a se erguer de sua morada subterrânea, e não havia como dizer quem ou o que ela agarraria e puxaria para baixo quando afinal irrompesse pela superfície da terra.


29

Bosch passou a manhã no quarto, saindo apenas brevemente para atravessar o estacionamento até a loja de bebidas e comprar uma caixa de leite e alguns donuts para o café da manhã. Deixou o aviso NÃO PERTURBE pendurado na maçaneta e optou por fazer a cama e arrumar as toalhas ele mesmo. Ligou para a filha antes que ela saísse para a escola e também conversou com Hannah. As duas conversas foram rápidas e na linha “tenha um bom dia” de ambas as partes. Ele então arregaçou as mangas para trabalhar, passando as duas horas seguintes no laptop, atualizando em todos os detalhes a situação do momento da investigação. Assim que terminou, guardou de volta na bolsa o computador e todos os documentos que havia usado.

Antes de sair, arrumou o quarto, empurrando a cama para perto da ­parede para criar um espaço vago no centro, sob a luz do teto. Então puxou a mesa da cozinha para aquele lugar. Sua última medida foi tirar as cúpulas dos abajures laterais da cama e posicionar a iluminação a fim de incidir sobre o indivíduo que se sentasse do lado esquerdo da mesa.

Na porta, levou a mão ao bolso de trás da calça para se assegurar de que continuava com a chave do quarto. Sentiu o pequeno plástico preso à chave e mais alguma coisa. Puxou o cartão da detetive Mendenhall e percebeu que havia permanecido em seu bolso desde que o encontrara em sua mesa.

O cartão o levou a pensar em ligar para Mendenhall e ver se ela havia ido a San Quentin no dia anterior, como dissera a Hannah que faria. Mas descartou a ideia, decidindo continuar focado no embalo que a conversa com ­Charlotte Jackson havia proporcionado. Voltou a guardar o cartão no bolso e abriu a porta. Certificou-se de que o aviso NÃO PERTURBE continuava no lugar e fechou a passagem.

Era uma investigação padrão. O modo mais eficiente e rápido de acabar com uma conspiração era identificar o elo mais fraco da corrente e encontrar um jeito de usá-lo. Quando um elo era rompido, a corrente se desmanchava.

Na maioria das vezes, o elo mais fraco era uma pessoa. Bosch acreditava estar diante de uma conspiração de vinte anos envolvendo pelo menos quatro pessoas, possivelmente cinco. Um estava morto, dois se escondiam sob a proteção do poder, do dinheiro e da lei. Restavam John Francis Dowler e Reginald Banks.

Dowler não estava na cidade e Bosch não queria esperar até que ele voltasse. As coisas estavam ganhando ritmo, e o detetive queria que continuassem assim. Restava Banks, não só por eliminação, mas também porque Bosch acreditava que tinha sido ele a dar o telefonema dez anos antes para saber sobre o caso. Para Bosch, tratava-se de um indicativo de preocupação. De medo. E esses eram os sinais de fraqueza que podia explorar.

Depois de almoçar cedo no In-N-Out Burger, na Yosemite Avenue, e parar no Starbucks próximo, Bosch voltou à Crows Landing Road e encontrou o mesmo ponto junto à calçada de onde podia observar Reginald Banks no trabalho.

No início, não avistou Banks à mesa que havia ocupado no dia anterior. O outro vendedor estava em seu lugar, na outra mesa, mas nada de Banks. Bosch esperou pacientemente, e vinte minutos depois Banks apareceu, vindo dos fundos da concessionária e segurando um copo de café. Ele se sentou, bateu na barra de espaço em seu teclado e começou a dar uma série de telefonemas, sempre passando o dedo pela tela do computador. Bosch deduziu que estava ligando para antigos clientes, vendo se estavam dispostos a renegociar o antigo trator.

O detetive observou por mais meia hora, trabalhando em sua história conforme observava. Quando o outro vendedor ficou ocupado com um cliente, decidiu agir. Saiu do carro e atravessou a rua na direção da revendedora. Entrou no showroom e se aproximou do quadriciclo mais próximo de Banks, que continuava falando ao telefone.

Harry começou a circundar o veículo, um tratorzinho de dois assentos, tração nas quatro rodas, com caixa de carga e estrutura de proteção. A etiqueta do preço estava em um display de plástico bem ao lado. Como Bosch imaginara, Banks não demorou a desligar o telefone.

— Está procurando um Gator? — gritou de sua mesa.

Bosch virou-se e olhou como se o estivesse notando pela primeira vez.

— Pode ser. Por acaso você não teria aí um desses usado, teria?

Banks se levantou e foi até ele. Vestia um paletó esporte e gravata frouxa no colarinho. Parou perto de Bosch e olhou para o quadriciclo como se o avaliasse pela primeira vez.

— Esse é o modelo XUV, top de linha. Tração nas quatro rodas, injeção de combustível, motor de quatro tempos, então é macio e silencioso... e, vamos ver, suspensão ajustável, freio a disco e a melhor garantia que você vai conseguir em uma dessas belezinhas. Estou dizendo que tudo de que precisa está bem aqui. É mais difícil de parar que um tanque e tem todo o conforto e a confiabilidade de um John Deere. A propósito, meu nome é Reggie Banks.

O homem estendeu a mão. Bosch a apertou.

— Harry.

— O.k., Harry, prazer em conhecê-lo. Vamos preencher a papelada?

Bosch riu como se fosse um comprador nervoso.

— Eu sei que tem tudo o que eu quero. Só não sei se precisa ser novo em folha. Eu não fazia ideia que custava tanto. Quase dava para comprar um carro.

— Mas vale cada centavo. Além disso, a gente tem um programa de ­reembolso que vai aliviar um pouco a facada.

— Ah é, quanto da facada?

— Quinhentos paus em dinheiro de volta e mais duzentos e cinquenta em cupons de serviço. Posso falar com meu gerente para abater mais um dólar ou dois desse preço aí. Mas não vai baixar muito mais que isso. A gente vende um bocado desses.

— Sei, mas para que eu preciso de cupons de serviço quando você fala que esse negócio anda que nem um tanque?

— Manutenção e conservação, meu velho. Esses cupons vão cobrir pelo menos dois anos, entende?

Bosch fez que sim e ficou olhando para o veículo como se considerasse os prós e os contras.

— Então você não tem nada usado? — perguntou finalmente.

— A gente pode ir lá atrás e dar uma olhada.

— Vamos lá, então. Preciso pelo menos dizer para a patroa que eu dei uma olhada no estoque.

— Boa estratégia. Vou só pegar umas chaves.

Banks foi até a sala do gerente, na parede dos fundos do showroom, e logo voltou com um grande molho de chaves. Ele conduziu Bosch por um corredor até a parte de trás do edifício. Saíram por uma porta no pátio cercado, onde ficavam guardados os tratores e quadriciclos usados. Havia uma fileira de quadriciclos junto à parede dos fundos da concessionária.

— O que tenho está aqui — disse Banks, indo na frente. — Diversão ou trabalho?

Bosch não sabia muito bem o que ele queria dizer, então não respondeu. Agiu como se não tivesse escutado a pergunta, por estar hipnotizado pela fileira de veículos reluzentes.

— Você tem uma fazenda ou um rancho, ou pretende só pegar uma estrada cheia de lama e se divertir? — perguntou Banks, facilitando a vida de Bosch.

— Acabei de comprar um vinhedo lá para os lados de Lodi. Quero alguma coisa que caiba entre as parreiras e que me leve rápido para onde eu quero ir. Estou velho demais para ficar andando por tudo aquilo.

Banks assentiu com a cabeça, como se já conhecesse a história.

— Está mais para um hobby, hein?

— Algo nessa linha, isso.

— Todo mundo anda comprando vinhedo porque é bacana mexer com vinho. Meu chefe aqui, o dono, tem um bocado de vinícola lá em Lodi. Já ouviu falar da Cosgrove Vineyard?

Bosch fez que sim.

— Difícil não ouvir. Mas não conheço ninguém de lá. Sou peixe pequeno, comparado com eles.

— Bem, você precisa começar por algum lugar, entende? Quem sabe a gente possa conseguir alguma coisa por aqui. De qual você gosta?

Ele fez um gesto na direção dos seis quadriciclos, todos com caixa de carga e parecendo iguais para Bosch. Todos verdes, e a única diferença que podia perceber era se tinham barras de proteção ou cabine completa e que caixas de carga estavam mais avariadas e arranhadas que as outras. Não havia nenhum expositor sofisticado indicando o preço.

— Só vêm na cor verde, hein? — perguntou Bosch.

— Só temos verde na nossa linha de usados no momento — respondeu Banks. — Aqui é a John Deere. Temos orgulho de ser verdes. Mas, se quiser conversar sobre algo novo, podemos pedir o seu em camuflado.

Bosch assentiu, pensativo.

— Eu quero com cabine.

— Tudo bem, segurança em primeiro lugar — disse Banks. — Boa escolha.

— É — disse Bosch. — Segurança vem sempre primeiro. Vamos dar uma olhada naquele lá de dentro outra vez.

— Sem problema.

Uma hora depois, Bosch voltava a seu carro, aparentemente tendo chegado perto de comprar o quadriciclo no showroom, mas no fim dando para trás, dizendo que precisava pensar. Banks ficou frustrado por ter chegado tão perto de uma venda, mas tentou deixar as coisas amarradas para outro dia. Deu a Bosch seu cartão e o encorajou a ligar. Disse que falaria com o gerente para pedir ao chefão lá de cima que desse um desconto extra, além do reembolso e dos cupons. Disse a Bosch que ele e o chefão eram unha e carne e que a amizade dos dois tinha pelo menos vinte e cinco anos.

Para Bosch, não houvera outro propósito no encontro além de se aproximar de Banks e tentar avaliá-lo, quem sabe tirá-lo um pouco de sua zona de conforto. A ação para valer viria mais tarde, quando começasse a parte 2 de seu plano.

Bosch deu partida no carro e se afastou, só para o caso de Banks estar observando seus movimentos. Então andou por duas quadras na Crows ­Land­ing, fez o retorno e voltou para a concessionária. Estacionou a meia quadra da loja e do outro lado da rua, mas ainda com boa visão de Banks à mesa.

Ele não teve outro cliente pelo resto do dia. Usou os telefones e o computador esporadicamente, mas para Bosch não pareceu que tivesse fechado algum negócio. Banks se mexia na cadeira, inquieto, tamborilando na mesa sem parar e se levantando o tempo todo para encher o copo de café nos fundos. Por duas vezes, Bosch o viu entornar escondido alguma bebida no café, de uma pequena garrafa que guardava em sua gaveta.

Às seis da tarde, Banks e o restante da equipe encerraram o expediente, fecharam a loja e foram todos embora. Bosch sabia que Banks morava ao norte de Modesto, em Manteca, então começou a andar, passou pela concessionária e deu meia-volta, pois assim ficaria posicionado para segui-lo.

Banks apareceu em um Toyota prata e seguiu para o norte, como esperado. Mas então surpreendeu Bosch ao tomar a esquerda na Hatch Road e desviar da 99. No início, Bosch pensou que Banks estivesse pegando um atalho, mas logo ficou óbvio que não era o caso. Ele já teria chegado em casa, àquela altura, se simplesmente tivesse ido pela rodovia.

Bosch o seguiu por um bairro que era uma mistura de industrial com residencial. De um lado havia casas de média e baixa rendas tão coladas quanto dentes, enquanto do outro lado havia um desfile contínuo de pátios de ferro-velho e desmanches, com suas máquinas de prensar carros.

O detetive teve de ficar um pouco para trás, com receio de ser notado. Perdeu-o de vista quando a Hatch Road começou a fazer a curva acompanhando o formato do rio Tuolumne.

Ele acelerou e chegou a uma curva, mas o Toyota havia sumido. Bosch continuou a andar, aumentando a velocidade, e percebeu tarde demais que acabara de passar por um posto dos Veterans of Foreign Wars. Com base em um palpite, Bosch diminuiu e fez a volta. Aproximou-se do VFW e entrou no estacionamento. Na mesma hora, viu o Toyota prata parado atrás do prédio, como que escondido. Deduziu que Banks havia parado para uma bebida antes de voltar para casa e não queria que ninguém soubesse.

O bar estava fracamente iluminado quando Bosch entrou. Ele ficou imóvel por um momento enquanto seus olhos se ajustavam para procurar por Banks. Mas não precisou.

— Ora, ora, vejam só quem está aqui.

Bosch se virou para a esquerda e lá estava o homem, sentado sozinho em um banco junto ao balcão, sem o paletó esporte e não mais usando gravata. Uma jovem bartender se curvou ao servir uma nova bebida na frente dele. Bosch fez ar de surpreso.

— Ei, o que você... Eu só parei para tomar uma rapidinho antes de pegar a estrada.

Banks sinalizou para que ele se sentasse no banquinho a seu lado.

— Bem-vindo ao clube.

Bosch se aproximou, tirando a carteira.

— Já sou do clube.

Tirou sua identificação de veterano e a jogou no balcão. Antes que a bartender pudesse pegá-la para conferir, Banks agarrou o documento sobre o tampo riscado e olhou para ele.

— Achei que você tinha dito que seu nome era Harry.

— E é. Todo mundo me chama de Harry.

— Hi...er... como pronuncia esse nome maluco?

— Hieronymus. É o nome de um pintor que já morreu faz muito tempo.

— Não culpo você por preferir Harry.

Banks passou a identidade para a bartender.

— Eu ponho a mão no fogo por esse aqui, Lori. O cara é gente boa.

Lori mal olhou a identificação antes de devolvê-la a Bosch.

— Harry, eu lhe apresento Triplo-L — disse Banks. — Lori Lynn Lukas, a melhor bartender em atividade.

Bosch acenou com o queixo e se sentou no banquinho ao lado de Banks. Pareceu-lhe que seu plano tinha dado certo. Banks não ficara desconfiado da coincidência. E, se continuasse bebendo, afastaria de vez qualquer suspeita.

— Lori, ponha o dele na minha conta — declarou Banks.

Bosch agradeceu e pediu uma cerveja. Em dois tempos uma garrafa gelada estava diante dele, e Banks ergueu o copo para brindar.

— A nós, combatentes.

Banks tilintou seu copo na garrafa de Bosch e mandou para dentro um terço do que parecia uísque com gelo. Quando Banks estendeu seu copo, Bosch viu que ele usava um grande relógio militar com vários mostradores e um grosso anel de cronômetro em torno do vidro. Pensou que aquilo combinava com o negócio de vender tratores.

Banks semicerrou os olhos para Bosch.

— Me deixe adivinhar. Vietnã.

Bosch fez que sim.

— E você?

— Tempestade no Deserto, meu querido. Primeira Guerra do Golfo.

Tilintaram a garrafa com o copo mais uma vez.

— Tempestade no Deserto — disse Bosch, saboreando as palavras. — Essa é uma que eu não tenho.

Banks apertou os olhos.

— Uma que você não tem o quê?

Bosch deu de ombros.

— Eu sou meio que um colecionador. Uma coisinha de cada guerra, esse tipo de coisa. Na maior parte, armas de inimigos. Minha mulher acha que eu não bato muito bem.

Banks não disse nada, então Bosch foi em frente com a farsa:

— Minha peça predileta é uma tanto que eu tirei do corpo de um japa morto em uma caverna em Iwo Jima. Tinha sido usada.

— Que negócio é esse, uma pistola?

— Não, uma espada curta.

Bosch fez a mímica de arrastar uma faca da esquerda para a direita através da barriga. Lori Lynn deixou escapar um som de nojo e foi para a outra ponta do balcão.

— Paguei dois paus por ela — disse Bosch. — Teria sido menos, sabe, se não tivesse sido usada. Você trouxe alguma coisa interessante do Iraque?

— Nunca estive lá, na verdade. Fiquei baseado na Arábia Saudita e fiz algumas incursões pelo Kuwait. Eu era do transporte.

Ele terminou sua bebida enquanto Bosch acenava com a cabeça.

— Então nada de ação de verdade, hein?

Banks bateu com o copo vazio no balcão.

— Lori, você está trabalhando esta noite ou não?

Então ele olhou direto para Bosch.

— Porra, cara, a gente teve ação de sobra. Nossa unidade toda quase virou fumaça por causa de um Scud. A gente detonou uns caras também. E, como eu disse, eu era do transporte. A gente tinha acesso a tudo e sabia como trazer tudo para cá.

Bosch se virou para ele como se estivesse subitamente interessado. Mas esperou até Lori Lynn terminar de encher o copo de Banks e se afastar outra vez. Bosch falou em um tom de voz baixo, conspiratório:

— O que estou querendo é alguma coisa da Guarda Republicana. Conhece alguém que tenha algum negócio desses? É por isso que eu passo em um posto dos VFW toda vez que estou em uma cidade nova. É aqui que consigo essas coisas. A tanto, eu consegui com um homem que conheci no bar do posto lá em Tempe. Foi, tipo, há vinte anos.

Banks fez que sim, tentando acompanhar as palavras em meio à bruma alcoólica cada vez maior.

— Bom... eu conheço uns caras. Eles pegaram todo tipo de troço por lá. Armas, uniformes, o que você quiser. Mas você tem que pagar, e pode começar comprando o diacho daquele Gator que você passou o dia inteiro namorando.

Bosch assentiu.

— Falou, está falado. A gente conversa sobre isso. Amanhã eu passo de novo na concessionária. Fechou?

— Aí sim, parceiro.


30

Bosch conseguiu sair do VFW sem pagar nenhuma bebida para Banks e aparentemente sem que Banks notasse que ele havia tomado menos da ­metade de sua cerveja. Uma vez de volta ao carro, Bosch foi para a outra ponta do ­estacionamento, onde havia uma rampa de barcos dando acesso para o rio. Estacionou próximo a uma fileira de picapes com trailers de barco vazios no engate. Esperou mais vinte minutos antes que Banks finalmente saísse do bar e entrasse em seu carro.

Bosch o tinha visto tomar três drinques no bar. Presumiu que houvera um antes que chegasse lá e pelo menos mais um depois. Sua preocupação era que, se Banks desse sinais de dificuldade para dirigir, ele teria de pará-lo cedo demais a fim de impedir que ferisse a si mesmo ou outra pessoa.

Mas Banks era um motorista bêbado tarimbado. Saiu e rumou para leste pela Hatch, voltando por onde viera. Bosch o seguiu a certa distância, mas sem tirar o olho das luzes traseiras à sua frente. Não observou nenhuma guinada, acelerada ou freada bruscas. Banks parecia ter o controle do carro.

No entanto, foram dez minutos tensos enquanto Bosch seguia Banks pela rampa de entrada para a rodovia 99, onde ele foi para o norte. Uma vez na rodovia, Bosch diminuiu a distância e ficou bem atrás de Banks. Cinco minutos depois, passaram a saída da Hammett Road e então chegaram à placa que dava as boas-vindas ao condado de San Joaquin. Bosch pôs a luz estroboscópica no painel e a ligou. Diminuiu mais um pouco o espaço entre os dois carros e acionou o farol alto, iluminando o interior do carro de Banks. Bosch não tinha sirene, mas era impossível o outro deixar de perceber a pirotecnia luminosa à sua traseira. Depois de alguns segundos, Banks ligou a seta para a direita.

Bosch estava contando que Banks não parasse no acostamento da rodovia, e tinha razão. A primeira saída para Ripon ficava a cerca de um quilômetro. Banks diminuiu e saiu da pista, então parou no terreno de cascalho de uma banca de frutas fechada. Desligou o carro. Estava escuro e deserto. O cenário perfeito para Bosch.

Banks não desceu do carro, ao contrário do que faziam muitos bêbados contrariados. Também não abaixou o vidro. Bosch se aproximou, segurando uma grande lanterna na altura do ombro, de modo que ficasse brilhante demais para Banks tentar olhar seu rosto. Ele bateu com o nó dos dedos no vidro e Banks o desceu a contragosto.

— Você não tem motivo nenhum para me parar, cara — disse ele antes que Bosch pudesse falar.

— O senhor ziguezagueou o tempo todo em que estive atrás. Está sob efeito de álcool?

— Porra nenhuma!

— Saia do carro, por favor.

— Toma aqui.

Ele estendeu a carteira de motorista pela janela. Bosch a pegou e a segurou à luz como se estivesse conferindo. Mas em nenhum momento tirou os olhos de Banks.

— Liga lá — disse Banks, um nítido tom de desafio na voz. — Liga para o xerife Drummond que ele vai mandar você voltar para sua viatura sem identificação e ir para a puta que pariu.

— Não preciso ligar para o xerife Drummond — disse Bosch.

— Acho melhor ligar, amigo, porque seu trampo está por um fio aqui. Vai por mim. Dá a porra do telefonema.

— Não, o senhor não compreende, sr. Banks. Eu não preciso ligar para o xerife Drummond porque aqui não é o condado de Stanislaus. Aqui é o condado de San Joaquin, e nosso xerife se chama Bruce Ely. Eu podia ligar para ele, mas não quero encher o saco do homem por um negócio tão idiota como uma suspeita de embriaguez ao volante.

Bosch viu Banks baixar a cabeça ao se dar conta de que havia cruzado a divisa do condado e passado do território protegido para um em que não gozava de proteção.

— Desça do carro — disse Bosch. — Não vou pedir outra vez.

Banks levou a mão direita à ignição e tentou dar partida, mas Bosch estava preparado para o movimento. Largou a lanterna e rapidamente enfiou o braço pela janela, arrancando a mão de Banks da chave antes que ele conseguisse ligar o carro. Então o segurou pelo pulso com uma das mãos enquanto usava a outra para abrir a porta. Tirou Banks do carro e o girou, pressionando o peito dele contra a lateral do veículo.

— O senhor está preso, sr. Banks. Por resistir a um policial e por suspeita de dirigir embriagado.

Banks se debateu quando Bosch puxou os braços às costas dele para algemá-lo. Então conseguiu se virar e olhar para trás. A porta do motorista estava aberta e a luz interna havia ficado acesa. Luz suficiente para reconhecer Bosch.

— Você?

— Isso mesmo.

Bosch conseguiu terminar de algemar os pulsos de Banks.

— Que merda é essa?

— Isso sou eu prendendo você. Agora a gente vai até a porta traseira do meu carro, e se você lutar comigo outra vez vai tropeçar e cair de cara no chão, está entendendo? Vai cuspir cascalho, Banks. É isso que quer?

— Não, só quero um advogado.

— Você vai ter um advogado assim que for fichado. Vamos andando.

Bosch o afastou rudemente de seu carro e caminhou com ele até o Crown Vic. A luz estroboscópica continuava piscando. Bosch o levou para a porta traseira, do lado do carona, fez com que se sentasse no banco e então afivelou o cinto.

— Se você se mexer desse lugar enquanto eu estiver dirigindo, arrebento sua boca com a lanterna. Daí vai precisar pedir um dentista, além de um advogado. Fui claro?

— Tudo bem. Não quero briga. Só me leva e me deixa chamar o advogado.

Bosch bateu a porta. Voltou ao carro de Banks, tirou a chave da ignição e trancou a porta. A última coisa que fez foi voltar para seu carro para pegar o bilhete SEM GASOLINA que havia usado na noite anterior. Levou-o para o carro de Banks e o prendeu sob o limpador do para-brisa.

Quando voltou a seu carro, Bosch viu a silhueta de um veículo recortada contra as luzes da rodovia. O carro estava com as luzes apagadas e parado no acostamento, na saída da estrada. Bosch não se lembrava de ter passado por um carro estacionado ali quando saíra atrás de Banks.

O interior do carro estava escuro demais para que Bosch visse se havia alguém dentro. Ele abriu sua porta e entrou, desligou a luz estroboscópica e engatou. Então arrancou rapidamente do terreno de cascalho e pegou a estrada de acesso da rodovia. O tempo todo ficou de olho no retrovisor, em parte vigiando Banks, em parte o carro misterioso.

Bosch parou no estacionamento do Blu-Lite e viu que havia apenas dois outros carros e que estavam do lado oposto do seu quarto. Entrou de ré na vaga, deixando o lado do passageiro do carro mais próximo da porta de seu quarto.

— O que está acontecendo aqui? — indagou Banks.

Bosch não respondeu. Desceu do carro e usou sua chave para abrir a porta do quarto. Então voltou ao carro e observou o estacionamento antes de tirar Banks do banco traseiro. Conduziu-o rapidamente em direção à porta, o braço em torno dele, como que sustentando um bêbado sendo levado para o quarto.

No quarto, acionou o interruptor, fechou a porta às suas costas com o pé e levou Banks para a cadeira junto à mesa que o posicionava de frente para as luzes.

— Você não pode fazer isso — protestou Banks. — Tem que me fichar e me arrumar um advogado.

Bosch continuou em silêncio. Deu a volta em torno de Banks, desalgemou um de seus pulsos e passou a algema e a corrente pelas duas barras que sustentavam o encosto da cadeira. Então voltou a pôr a algema no pulso de Banks, prendendo-o à cadeira.

— Você está fodido, cara — disse Banks. — Não interessa que condado é este, você passou dos limites, seu filho da puta! Tira esta algema!

Bosch não respondeu. Foi até a cozinha e encheu um copo de plástico com água da pia. Então foi até a mesa e se sentou. Bebeu um pouco da água e pôs o copo na mesa.

— Está escutando o que estou falando? Eu conheço gente. Gente poderosa nesta região, e você está fodido.

Bosch ficou olhando para ele sem falar. Os segundos passaram. Banks tensionou os músculos e Bosch escutou o ruído da corrente contra as barras da cadeira. Mas o esforço foi em vão. Banks se recostou na cadeira, derrotado.

— Vai abrir essa boca ou não? — berrou.

Bosch pegou o celular e o pôs na mesa. Bebeu outro gole de água e então limpou a garganta. Finalmente, falou com voz calma, casual. Usou uma variação do que havia usado na semana anterior com Rufus Coleman.

— Este momento é um dos momentos mais importantes da sua vida. A escolha que você vai fazer agora é a escolha mais importante da sua vida.

— Não sei do que você está falando, caralho.

— Sabe. Sabe, sim. Você sabe tudo a respeito. Se quiser se salvar, vai me contar tudo. Essa é a escolha, se vai se salvar ou não.

Banks balançou a cabeça, como se tentasse sair de um sonho.

— Cara... isso é loucura. Você nem é policial, é? É isso. É só algum maluco que anda por aí fazendo esse tipo de coisa. Se você é da polícia, me mostra o distintivo. Deixa eu ver, seu filho da puta.

Bosch não se mexeu, exceto para tomar outro gole de água. Esperou. Os faróis de um carro no estacionamento varreram a janela da frente e Banks começou a gritar:

— Ei! Socorro! Est...

Bosch pegou seu copo e jogou o resto da água na cara de Banks para fazê-lo se calar. Foi rapidamente até o banheiro e pegou uma toalha. Quando saiu, Banks estava tossindo, engasgado, e Bosch usou a toalha para amordaçá-lo, dando um nó atrás da cabeça. Agarrando seus cabelos e puxando a cabeça em certo ângulo, disse no ouvido de Banks:

— Grita de novo e eu prometo que não vou ser tão bonzinho.

Bosch foi até a janela e abriu duas lâminas da persiana com o dedo. Viu apenas os dois carros que já estavam estacionados no lugar quando chegara. Quem quer que tivesse passado pelo estacionamento, aparentemente havia feito a volta e ido embora. Virou-se para cuidar de Banks, então tirou o paletó e o jogou na cama, expondo a pistola no coldre em sua cintura. Voltou a se sentar na frente de Banks.

— Certo, onde a gente estava? Ah, a escolha. Você tem uma escolha a fazer aqui esta noite, Reggie. A escolha imediata é se vai falar comigo ou não. Mas essa decisão tem tremendas implicações para você. É na realidade uma escolha entre passar o resto da sua vida na prisão ou atenuar sua situação se cooperar. Você sabe o que atenuar quer dizer? Quer dizer “diminuir a ­gravidade” da sua situação.

Banks balançou a cabeça, mas não como negação. Estava mais para um gesto de “eu não acredito que isso está acontecendo comigo”.

— Agora vou tirar a mordaça e, se você tentar gritar outra vez... bom, aguenta as consequências. Mas, antes de fazer isso, quero que você se concentre no que vou dizer pelos próximos minutos, porque quero que entenda realmente a gravidade da sua situação. Está entendendo?

Banks assentiu devidamente e até tentou verbalizar sua concordância, mesmo com a mordaça, mas o que saiu foi um som ininteligível.

— Ótimo — disse Bosch. — O negócio é o seguinte: você é parte de uma conspiração que durou mais de vinte anos. Uma conspiração que começou em um navio chamado Saudi Princess e que durou até este exato instante.

Bosch observou os olhos de Banks se arregalarem de medo enquanto processava o que ouvia. Nesse momento havia neles uma expressão crescente de terror.

— Você vai para a prisão por um bom tempo ou vai cooperar e ajudar a gente a desmanchar essa conspiração. Se cooperar, é sua chance de conseguir dar uma suavizada na pena, uma chance de evitar passar o resto da vida em uma prisão. Posso tirar a mordaça agora?

Banks fez que sim vigorosamente. Bosch esticou o braço acima da mesa e arrancou a toalha com rispidez.

— Pronto.

Bosch e Banks ficaram se encarando por um longo momento. Então Banks falou, com puro desespero na voz:

— Por favor, cara, não sei de que merda você está falando, esse negócio de conspiração e sei lá o quê. Eu vendo trator. Você sabe disso. Você me viu, cara. É isso que eu faço. Se quiser me perguntar qualquer coisa sobre a John...

Bosch bateu com toda a força na mesa.

— Chega!

Banks se calou e Bosch se levantou. Foi buscar a pasta que estava em sua mochila e voltou com ela. Havia deixado tudo preparado de manhã, arrumando-a de modo que pudesse ser aberta e as fotos e os documentos pudessem ser apresentados, em uma sequência de sua escolha. Bosch a abriu, e lá estava uma das fotos de Anneke Jespersen no chão do beco. Ele a empurrou sobre a mesa de modo que ficasse diante de Banks.

— Aqui está a mulher que vocês cinco mataram, acobertando o crime depois.

— Você está louco. Isso é...

Bosch empurrou a foto seguinte, a arma do crime.

— E aqui está a pistola do Exército iraquiano que usaram para matar. Uma das armas que você me disse há pouco que contrabandearam do Golfo.

Banks deu de ombros.

— E daí? O que eles vão fazer comigo? Tomar minha carteira dos VFW? Grande merda. Tira essas fotos da minha frente.

Bosch empurrou a foto seguinte. Banks, Dowler, Cosgrove e Henderson no deque da piscina do Saudi Princess.

— E aqui estão vocês quatro juntos no Princess, uma noite antes de ficarem todos bêbados e estuprarem Anneke Jespersen.

Banks balançou a cabeça, mas Bosch percebeu que a última foto havia acertado o alvo em cheio. Banks estava assustado, porque até ele sabia que era o elo fraco. Dowler podia estar na mesma posição, mas não estava algemado em uma cadeira. Banks estava.

Todo o medo e a preocupação vieram à tona, e Banks cometeu um erro colossal:

— A prescrição em caso de estupro é de sete anos, e você não tem nada para me acusar. Eu não tive porra nenhuma a ver com o resto dessa merda.

Foi uma confissão importante. Tudo o que Bosch tinha era a teoria de uma conspiração, sem evidência alguma a corroborá-la. A jogada com Banks tinha um único propósito: fazer com que se voltasse contra os outros. Transformá-lo em prova a ser usada contra eles.

Mas Banks pareceu não entender o que dissera, o que havia entregado. Bosch prosseguiu:

— Foi isso que Henderson disse, que vocês todos estavam livres pelo estupro? Foi por isso que ele tentou aquela jogada com o Cosgrove, pedir dinheiro para abrir o próprio restaurante?

Banks não respondeu. Parecia perplexo com o conhecimento que Bosch tinha dos fatos. Bosch estava tateando, mas tinha confiança em suas teorias sobre qual era a relação entre aqueles homens que estiveram juntos no navio.

— O problema é que o tiro saiu pela culatra, hein?

Bosch fez que sim, como que confirmando a própria frase. Ele percebeu uma espécie de compreensão iluminar os olhos de Banks. Era o que ele estava esperando.

— Isso mesmo — disse Bosch. — A gente pegou o Dowler. E ele não quer ir para a prisão pelo resto da vida. Então está cooperando.

Banks balançou a cabeça.

— Isso é impossível. Eu acabei de falar com ele. No celular. Logo depois que você saiu do posto.

Aquele era o problema com improvisos. Não dava para saber quando a história bateria de frente com fatos irrefutáveis. Bosch tentou disfarçar dando um sorriso malicioso e balançando a cabeça.

— Claro que falou. Ele estava com a gente quando você ligou. Disse exatamente o que mandamos dizer. E depois voltou a contar as histórias sobre você, Cosgrove e Drummond... Drummer, como vocês diziam na época.

Bosch viu a crença surgir nos olhos de Banks. Ele sabia que alguém tinha de ter contado para Bosch sobre Drummer. Não era algo que ele podia simplesmente ter tirado da cartola.

O detetive fingiu que examinava a pasta diante de si, como que verificando se havia esquecido alguma coisa.

— Não sei, Reg. Quando tudo isso chegar ao grande júri e vocês todos forem acusados de homicídio, estupro e conspiração etc. etc., quem você acha que Cosgrove e Drummond vão chamar como advogados deles? E você, quem você vai conseguir? E quando eles decidirem jogar você para os leões dizendo que foram você e o Dowler e o Henderson que participaram da conspiração, em quem você acha que o grande júri vai acreditar? Neles ou em você?

Com os braços presos atrás da cadeira, Banks tentou se curvar para a frente, mas só conseguiu se mover alguns centímetros. Então ficou de cabeça baixa, remoendo-se de medo e de frustração.

— O negócio do navio já prescreveu. Não posso ser acusado por isso, e não fiz mais nada além disso.

Bosch balançou a cabeça devagar. A mente criminosa sempre o deixava admirado com sua capacidade de se distanciar dos crimes e racionalizá-los.

— Você nem consegue dizer, não é? Fica falando “no navio”. Foi estupro, vocês estupraram a garota. E você também não conhece a lei. Uma conspiração criminosa envolvendo o acobertamento prorroga o crime. Você ainda pode ser acusado, Banks, e vai ser.

Bosch estava improvisando, vendendo seu jogo de cena, ainda que estivesse montando a história à medida que prosseguia.

Tinha de ser assim, porque havia um único resultado possível que funcionaria ali. Ele precisava apertar Banks, fazê-lo falar e torná-lo disposto a testemunhar e fornecer evidência contra os outros. Todas as ameaças sobre julgamento e prisão eram em última instância vazias. Bosch contava apenas com um véu muito tênue de evidência circunstancial ligando Banks e os demais ao assassinato de Anneke Jespersen. Não contava com nenhuma testemunha nem evidência física que os relacionasse. Tinha a arma do crime, mas não conseguia associá-la a nenhum dos suspeitos. Claro, dava para pôr a vítima e os suspeitos em estreita proximidade no Golfo Pérsico e então, um ano depois, em South LA, mas isso não provava o homicídio. Bosch sabia que não bastaria e que nem mesmo o promotor mais novato de Los Angeles chegaria perto de um caso assim. O detetive tinha uma única chance ali, que consistia em desentocar o homem de seu buraco. Por meio de um truque ou de alguma jogada, ou do modo que fosse necessário, tinha de dobrar Banks e fazê-lo entregar toda a história.

Banks sacudia a cabeça, mas era como se tentasse afastar um pensamento ou uma imagem. Como se pensasse que, por manter a cabeça em movimento, a realidade do que estava enfrentando não poderia alcançá-lo.

— Não, não, cara, você não pode... você tem que me ajudar. Eu conto tudo para você, mas você tem que me ajudar. Você vai ter que me prometer.

— Não posso prometer nada, Reggie. Mas posso garantir meu apoio até a gente chegar ao Gabinete da Promotoria; e de uma coisa eu sei: os promotores sempre cuidam da testemunha-chave. Se quiser seguir com isso, você vai ter que se abrir e me contar tudo. Tudo. E não pode me contar nenhuma mentira. Uma mentira só e vai tudo por água abaixo. Você dança para o resto da vida.

Deixou que Banks absorvesse isso por um longo instante antes de continuar. Bosch prepararia todo o caso contra os outros ali mesmo, ou a chance passaria e nunca mais teria outra.

— Então, está pronto para falar? — perguntou finalmente.

Banks fez que sim, hesitante.

— Estou — respondeu ele. — Eu falo.


31

Bosch digitou a senha no celular e acionou o gravador. Então começou o interrogatório. Identificou-se, especificou a que caso se referia e depois identificou Reginald Banks, incluindo sua idade e seu endereço. Leu os direitos de Banks usando um cartão que guardava na carteira do distintivo, e Banks disse que os compreendia e que estava disposto a cooperar, afirmando claramente que não desejava falar primeiro com um advogado.

Em seguida, Banks contou uma história de vinte anos em noventa minutos, começando pelo Saudi Princess. Em nenhum momento usou a palavra ­“estupro”, mas admitiu que quatro deles — Banks, Dowler, Henderson e Cosgrove — tinham feito sexo com Anneke Jespersen em uma cabine do navio enquanto ela estava incapacitada pelo álcool e por uma droga que Cosgrove havia misturado em sua bebida. Banks disse que Cosgrove chamara a droga de romp and stomp, mas que não sabia por quê. Era algo dado ao gado para acalmar os animais antes de serem transportados.

Bosch deduziu que ele estava falando sobre um sedativo veterinário chamado Rompun. Era algo que já havia aparecido em outros casos nos quais trabalhara.

Banks continuou, afirmando que Cosgrove tinha escolhido Jespersen, dizendo aos outros que ela parecia ser loira natural e que ele nunca estivera com uma mulher desse tipo antes.

Quando Bosch perguntou se J. J. Drummond estava na cabine durante o ataque, Banks foi enfático em negar. Disse em seguida que Drummond sabia do que havia acontecido, mas não tomara parte. Contou que os cinco não eram os únicos homens da 237ª Companhia de licença no navio naquela ocasião, mas que não havia mais ninguém envolvido.

Banks chorou ao contar a história, repetindo muitas vezes quanto lamentava ter participado do que acontecera na cabine.

— Foi a guerra, cara. Aquilo mexe de algum jeito com a gente.

Bosch já tinha ouvido essa desculpa antes, a ideia de que as pressões de vida ou morte e os temores da guerra podiam dar a alguém passe livre para cometer ações desprezíveis e criminosas que a pessoa nunca sequer sonharia ­cometer em sua vida normal. Era usada como pretexto para tudo, de trucidar vilarejos inteiros ao estupro coletivo de uma mulher incapacitada. Bosch não caía nessa e achava que a razão estava do lado de Anneke Jespersen. Eram crimes de guerra e não tinham perdão. Ele acreditava que a guerra despertava o verdadeiro caráter da pessoa, para o bem ou para o mal. Não sentia compaixão por Banks nem pelos demais.

— Foi por isso que Cosgrove viajou com a droga para o estrangeiro? Para o caso de a guerra mexer com ele de algum jeito? Em quantas outras mulheres ele usou aquilo enquanto esteve lá? E antes disso? E nos tempos de colégio? Aposto que vocês todos frequentaram o mesmo colégio. Alguma coisa me diz que o navio não foi a primeira vez que experimentaram fazer isso.

— Não, cara, não fui eu. Eu nunca usei aquele negócio. Eu nem sabia que ele tinha usado naquele dia. Achei que ela só estivesse, sei lá, bêbada. Drummond me contou depois.

— Do que está falando? Você me disse que Drummond não estava lá.

— Ele não estava. Quero dizer depois. Depois que a gente voltou para cá. Ele sabia o que tinha acontecido naquela cabine. Ele sabia de tudo.

Bosch precisava descobrir mais antes de poder avaliar o papel de ­Drummond nos crimes contra Anneke Jespersen. Para impedir Banks de ficar muito à vontade se alongando em sua história, ele inexplicavelmente pulou no tempo para os tumultos de Los Angeles em 1992.

— Me fale sobre a Crenshaw Boulevard.

Banks balançou a cabeça.

— O quê? — disse ele. — Não dá.

— O que você quer dizer com não dá? Você estava lá.

— Eu estava lá, mas não estava lá, entende?

— Não, não entendo. Me explique.

— Bom, é claro que eu estava lá. A gente foi chamado ao local. Mas, quando aquela garota levou o tiro, eu não estava nem perto daquele beco. Eu tinha ido com o Henderson checar identificações no bloqueio, na outra ponta da formação.

— Então o que você está me dizendo agora, e eu estou gravando, é que você nunca viu “aquela garota”, Anneke Jespersen, viva ou morta quando estava em LA?

A formalidade da pergunta levou Banks a pensar. Ele sabia que Bosch estava repassando sua história ponto por ponto. Bosch lhe informara com todas as letras, um pouco antes, que, se dissesse a verdade, haveria esperança para ele. E o advertira de que, se mentisse uma única vez, seria o fim da linha e que qualquer esforço de Bosch em atenuar sua situação acabaria.

Como testemunha colaborativa, Banks não estava mais algemado. Ergueu as mãos e passou os dedos pelos cabelos. Duas horas antes, estava sentado ao balcão no posto dos veteranos. Agora, por assim dizer, lutava pela vida, uma vida que, de um modo ou de outro, com certeza mudaria depois daquela noite.

— O.k., espera aí, não estou dizendo isso. Eu vi a garota. É, eu vi, mas não sabia nada sobre ela ser assassinada naquele beco. Eu não estava nem perto dali. Fiquei sabendo que era ela quando a gente voltou para cá, tipo, duas semanas depois, essa é a verdade.

— Tudo bem, então me conte como foi, quando você a viu.

Banks disse que pouco depois de a 237ª ter chegado a Los Angeles, por causa dos tumultos, Henderson informou aos outros que tinha visto “a loirinha do navio” com o restante da imprensa perto do Coliseum, onde as unidades da Guarda Nacional da Califórnia estavam se reunindo depois de chegarem do Vale Central em um longo comboio de caminhões.

De início, os outros não acreditaram em Henderson, mas Cosgrove mandou Drummond checar o pessoal da mídia, pois ele não estivera na cabine do Saudi Princess e não seria reconhecido.

— Certo, mas como ele ia reconhecer a garota? — perguntou Bosch.

— Ele viu ela no navio, então sabia como ela era. Só não tinha entrado na cabine com a gente. Ele falou que quatro era demais.

Bosch escutou e instruiu Banks a prosseguir com a história. Ele contou que Drummond voltou do Coliseum e informou que a mulher estava mesmo lá.

— Lembro que a gente disse: “O que ela quer?” e “Como foi que ela encontrou a gente, porra?”. Mas Cosgrove não estava preocupado. Ele disse que ela não tinha como provar nada. Todo aquele negócio foi antes de ter DNA e investigação forense, esse tipo de coisa, entende?

— Sei, entendo. Então quando foi que você, pessoalmente, viu a garota?

Banks disse que assim que sua unidade recebeu ordens e se deslocou para a Crenshaw Boulevard, ele viu Jespersen. Ela havia seguido o transporte e estava fotografando os homens na unidade enquanto eles se mobilizavam pelo bulevar.

— Parecia um fantasma atrás da gente, tirando nossas fotos. Fiquei me cagando de medo. Henderson também. A gente achou que ela fosse fazer uma matéria sobre a gente ou qualquer coisa assim.

— Ela falou com vocês?

— Não, não comigo. De jeito nenhum.

— E com Henderson?

— Não que eu tenha visto, e ele ficou comigo a maior parte do tempo.

— Quem matou ela, Reggie? Quem levou ela para aquele beco e atirou?

— Bem que eu queria saber, cara, porque eu contaria para você. Mas eu não estava lá.

— E vocês cinco nunca conversaram sobre isso depois?

— Bom, sim, a gente conversou, mas nunca disseram quem foi. ­Drummer tomou conta de tudo, falou que a gente tinha que fazer um pacto de nunca falar sobre aquilo outra vez. Falou que Carl estava rico e que ia cuidar de tudo, desde que todo mundo ficasse de bico fechado. E se a gente não ficasse, ele disse que ia fazer todo mundo dançar por causa disso.

— Como?

— Ele disse que tinha a prova. Disse que o que aconteceu no navio foi o motivo e que todo mundo ia ser acusado. Conspiração para cometer assassinato.

Bosch fez que sim. Tudo isso se encaixava em sua própria teoria da conspiração.

— Então, quem realmente atirou nela? Foi Carl? É o que você deduz disso tudo?

Banks deu de ombros.

— Bom, é, isso foi o que eu sempre achei. Ele a forçou a entrar naquele beco ou atraiu ela para lá, e os outros ficaram de guarda. Eles estavam juntos ali. Carl, Frank e Drummer. Mas eu e o Henderson, a gente não, cara. Estou falando para você.

— E daí, naquela noite, Frank Dowler entra no beco para dar uma mijada e por acaso “descobre” o corpo.

Banks só confirmou com a cabeça.

— Por quê? Por que ele se deu ao trabalho? Por que simplesmente não deixou o corpo ali? Era bem possível que levasse dias para alguém encontrar.

— Sei lá. Acho que pensaram que, se fosse encontrado durante os tumultos, a investigação ia ser nas coxas. Sabe, iam fazer de qualquer jeito por causa da pressa. Drummer era delegado por aqui e entendia do trabalho policial. A gente estava escutando umas histórias de que não andavam investigando porra nenhuma. A situação estava uma loucura.

Bosch o encarou por um bom tempo.

— É, bom, eles tinham razão sobre isso.

Bosch fez uma pausa enquanto tentava pensar no que ainda faltava perguntar. Às vezes, quando uma testemunha se abria, havia tantos aspectos de um caso ou de um crime a serem considerados que era difícil cobrir todos. Lembrou que o que o levara àquele momento com Banks era a arma. Siga a arma, disse a si mesmo.

— De quem era a arma usada para matar Jespersen?

— Sei lá. Minha não era. A minha fica em casa, em um cofre.

— Todos vocês tinham Berettas do Iraque?

Banks confirmou e contou uma história sobre a unidade deles transportando caminhões cheios de armas iraquianas para um buraco escavado no solo do deserto saudita a fim de serem explodidas e enterradas. Quase todos os membros da unidade em atividade na operação pegavam armas nos caminhões, incluindo os cinco que mais tarde estariam no Saudi Princess ao mesmo tempo que Anneke Jespersen.

As armas eram depois enviadas para casa, escondidas por Banks, o oficial de inventário da companhia, no fundo das caixas de equipamento.

— Era a mesma coisa que deixar a raposa tomando conta do galinheiro — disse Banks. — A gente era uma companhia de transporte e eu fui um dos caras encarregados de desmontar todas as armas e guardar em caixas de papelão. Trazer as armas para casa foi fácil.

— E depois você distribuiu as armas quando chegou aqui.

— Isso mesmo. E só o que eu sei é que ainda tenho a minha lá em casa no cofre, então isso prova que não fui eu que matei a garota.

— Vocês todos andavam com as armas em LA?

— Sei lá. Eu não andava. Teria que esconder a arma o tempo todo.

— Mas vocês estavam indo para uma cidade que, pelo que viam no noticiário, estava completamente fora de controle. Não pensaram em ter alguma coisa extra para qualquer eventualidade?

— Sei lá. Eu não.

— Quem, então?

— Sei lá, cara. A gente não era mais tão ligado, sabe? Depois da Tempestade no Deserto, a gente voltou e cada um foi cuidar da própria vida. Depois, quando fomos convocados de novo para LA, a gente voltou a se ver. Mas ninguém perguntava para ninguém quem estava andando com uma arma extra.

— Tudo bem. Só mais uma coisa sobre as armas. Quem removeu o número de série delas?

Banks pareceu confuso.

— Do que você está falando? Ninguém, pelo que eu sei.

— Tem certeza disso? A arma que matou a vítima no beco teve o número de série removido. Nenhum de vocês fez isso? Nunca limaram os números?

— Não, por que a gente faria isso? Quer dizer, eu não fiz. As armas eram meio que uma lembrança do lugar. Tipo um suvenir.

Bosch precisava ponderar a resposta de Banks. Charles Washburn insistira em que a arma encontrada em seu quintal já estava com o número de série removido. Isso batia com o fato de o atirador ter jogado a arma por cima da cerca depois do assassinato, acreditando que a arma não poderia ser ligada a ele de modo algum. Mas, se Banks estivesse falando a verdade, nem todos os integrantes do quinteto do Saudi Princess tinham removido o número de série depois de voltar da Guerra do Golfo. Embora pelo menos um deles tenha feito. Havia algo de sinistro no fato. Pelo menos um dos cinco sabia que a arma seria mais do que um suvenir. Que um dia seria usada.

Bosch pensou no passo seguinte. Era importante para ele documentar todas as partes da história, incluindo em que pé estavam e como haviam mudado as relações entre os cinco homens do navio.

— Me fale sobre Henderson. O que você acha que aconteceu com ele?

— Alguém apagou ele, foi isso que aconteceu.

— Quem?

— Sei lá, cara. Só o que eu sei é que ele me contou que a gente estava limpo no negócio do navio porque já tinha passado um tempo e que a gente não tinha nada a ver com o que aconteceu em LA, então nisso a gente estava totalmente limpo também.

Banks afirmou que nunca havia tido outra conversa com Henderson. Um mês depois ele fora assassinado no roubo do restaurante em que era gerente.

— O dono do restaurante era Cosgrove — disse Bosch.

— Isso mesmo.

— Saiu em uma matéria de jornal da época que ele estava abrindo o próprio restaurante. Você sabe alguma coisa sobre isso?

— Eu li isso também, mas não sabia de nada.

— Você acha que o roubo foi só uma coincidência?

— Não, eu achei que a coisa toda foi um recado. Meu palpite foi que o Chris achou que estava limpo, mas que ele tinha alguma coisa para usar contra o Carl. Daí ele chegou junto e falou “me põe no negócio” ou sei lá o quê, e então aconteceu o roubo e ele foi morto. Sabe, nunca pegaram ninguém pelo crime e nunca vão pegar.

— Então quem foi que cometeu?

— Como eu vou saber, caralho? Carl tem uma tonelada de dinheiro. Se ele precisa que alguma coisa seja feita, já fizeram, entende?

Bosch assentiu. Ele entendia. Pegou a pasta e folheou, procurando alguma coisa que pudesse trazer a pergunta seguinte à sua mente. Chegou a uma série de fotos de câmeras semelhantes às que se sabia que Anneke Jespersen utilizava. O FTCD fizera circular as fotos nas casas de penhores locais depois dos tumultos, sem resultados.

— E quanto às câmeras? Elas foram levadas. Você viu alguém com as câmeras?

Banks balançou a cabeça. Bosch insistiu:

— E quanto ao filme? Cosgrove alguma vez mencionou se tirou o filme da máquina?

— Para mim, não. Não sei nada sobre o que aconteceu naquele beco, cara. Quantas vezes eu tenho que repetir isso para você? Eu não estava lá.

Bosch de repente se lembrou de uma área-chave na inquirição que ele ainda não havia explorado e silenciosamente se xingou por quase deixar passar. Ele tinha certeza de que essa seria sua única oportunidade com Banks. Assim que o caso avançasse, Banks arrumaria um advogado. Mesmo se continuasse a cooperar por orientação de seu advogado, era pouco provável que Bosch tivesse outra chance de ficar cara a cara sozinho com ele em uma sala, e ditando as regras. Ele tinha de conseguir tirar tudo o que pudesse de Banks naquele momento.

— E o quarto de hotel da garota? Alguém passou lá depois que ela foi morta, e estava com a chave. Tiraram do bolso dela quando foi assassinada.

Banks começou a balançar a cabeça no meio da pergunta. Bosch interpretou isso como uma admissão.

— Não sei nada sobre isso — disse Banks.

— Tem certeza? — perguntou Bosch. — Se você esconder alguma coisa de mim, vai ser o mesmo que ter mentido. Eu vou descobrir e nosso acordo já era, e vou usar tudo o que você disse para foder com a sua vida. Está me entendendo?

Banks cedeu.

— Olha, eu não sei muita coisa. Mas, quando a gente estava por lá, eu ouvi dizer que Drummer tinha se machucado e que precisou ir ao hospital. Tinha sido, tipo, uma concussão, e ele ficou internado de um dia para o outro. Mas Drummer me contou depois que nada disso aconteceu de verdade. Que ele e o Carl armaram a história para ele conseguir sair da unidade e ir até o hotel dela e usar a chave para ver se a garota tinha qualquer coisa que fosse, sabe, incriminadora sobre o navio.

Bosch já conhecia a história que veio a público. Drummond, o herói de guerra, era o único na 237ª que havia sido ferido no cumprimento do dever em Los Angeles. Tudo não passava de uma farsa, parte do plano para acobertar um estupro coletivo e um homicídio. Com a ajuda financeira de um dos homens que ele protegera, era um xerife em segundo mandato e com uma candidatura ao Congresso.

— O que mais você ficou sabendo? — perguntou Bosch. — O que ele conseguiu no quarto?

— Só o que eu sei é que ele pegou as anotações dela. Era tipo um diário, a garota procurando a gente e tentando descobrir quem a gente era. Ela estava escrevendo um livro sobre isso, eu acho.

— O material ainda está com ele?

— Não faço ideia. Eu nem cheguei a ver.

Bosch tinha certeza de que Drummond continuava com o diário. Isso e o fato de saber sobre o ocorrido lhe permitiam controlar os outros quatro conspiradores, sobretudo Cosgrove, que era rico e poderoso, e podia ajudá-lo a ­realizar suas ambições.

Bosch checou o celular. Continuava gravando e marcava noventa e um minutos. Ele tinha mais uma área de inquirição para cobrir com Banks.

— Me fale sobre Alex White.

Banks balançou a cabeça, confuso.

— Quem é Alex White?

— Foi um dos seus clientes. Há dez anos você vendeu para ele uma ceifadeira na concessionária.

— O.k. O que isso tem a ver com...

— No dia em que ele foi retirar o trator, você ligou para o LAPD e usou o nome dele para se atualizar sobre o caso Jespersen.

Bosch viu o entendimento finalmente brilhar nos olhos de Banks.

— Ah, sei, isso mesmo, fui eu.

— Por quê? Por que você ligou?

— Porque eu estava querendo saber o que tinha acontecido com o caso. Eu estava lendo um jornal que alguém tinha deixado perto do café e vi uma matéria sobre os dez anos dos distúrbios. Daí eu liguei e perguntei, e passaram minha ligação não sei quantas vezes até que um cara falou comigo. Só que ele disse que eu tinha que dar meu nome ou então não podia me contar nada. Então, sei lá, eu vi o nome em um papel qualquer, ou sei lá o quê, e simplesmente disse que era Alex White. Quer dizer, ele não tinha nem meu telefone, então eu sabia que não ia dar em nada.

Bosch assentiu, percebendo que, se Banks não tivesse dado aquele telefonema, então ele provavelmente não teria ligado as coisas com Modesto e o caso continuaria no arquivo morto.

— Na verdade, seu número ficou registrado — disse ele a Banks. — É por isso que estou aqui.

Banks assentiu, desanimado.

— Mas tem uma coisa que eu não entendo — comentou Bosch. — Por que você ligou? Vocês já tinham se livrado do crime. Por que se arriscar a levantar suspeitas?

Banks deu de ombros e balançou a cabeça.

— Sei lá. Foi meio que no calor do momento. O jornal me fez começar a pensar na garota e no que tinha acontecido. Eu fiquei me perguntando se ainda estavam procurando alguém, sabe como é.

Bosch verificou o relógio. Eram dez horas. Era tarde, mas não queria esperar até amanhecer para levar Banks a Los Angeles. Queria aproveitar o embalo da investigação.

Encerrou a gravação e salvou. Por não confiar na tecnologia moderna, Bosch em seguida fez uma coisa atípica. Usou o e-mail do celular para enviar o arquivo de áudio para seu parceiro, como medida preventiva. Para o caso de seu aparelho quebrar, ou o arquivo ficar corrompido, ou porventura deixar o celular cair na privada. Ele só queria ter certeza de que o depoimento de Banks estava em segurança.

Esperou até escutar o som do celular indicando o envio do e-mail e se levantou.

— O.k. Encerramos, por enquanto.

— Vai me levar de volta para o meu carro?

— Não, Banks, você vem comigo.

— Para onde?

— Los Angeles.

— Agora?

— Agora. De pé.

Banks não se mexeu.

— Cara, não quero ir para LA. Quero ir para casa. Eu tenho filhos.

— Ah, é? Quando foi a última vez que você viu seus filhos?

Banks hesitou. Não tinha uma resposta pronta.

— Foi o que eu pensei. Vamos indo. Levanta.

— Por que agora? Me deixa ir para casa.

— Olha, Banks, você vai comigo agora mesmo para LA. Amanhã de manhã vou pôr você sentado na frente de um assistente da promotoria, que vai colher seu depoimento oficial e então, provavelmente, levar você para o grande júri. Depois disso, ele vai decidir quando você volta para casa.

Banks continuou imóvel. Era um homem paralisado pelo passado. Ele sabia que, escapando ou não de um processo criminal, sua vida como a conhecia havia acabado. Todo mundo, de Modesto a Manteca, saberia o papel que desempenhara na época e naquele momento.

Bosch começou a juntar as fotos e os documentos e a guardar tudo na pasta.

— Vamos fazer o seguinte: a gente vai para LA e você pode se sentar na frente, do meu lado, ou eu posso prender e algemar você e deixar no banco de trás. Depois de fazer a viagem toda encurvado desse jeito, provavelmente nunca mais vai andar direito outra vez. Agora, como vai ser?

— O.k., o.k., eu vou. Mas preciso mijar primeiro. Você viu como eu bebi, e não deu tempo de mijar depois que eu saí do posto.

Bosch franziu o rosto. O pedido não era absurdo. Na verdade, Bosch já estava tentando pensar em um jeito de ele mesmo usar o banheiro sem dar a Banks a chance de mudar de ideia sobre a coisa toda e sair correndo pela porta.

— Tudo bem. Vamos lá.

Bosch entrou no banheiro primeiro e checou a janela acima do vaso. Era uma pequena veneziana de lâminas horizontais, com um fecho. Bosch girou o fecho com facilidade e a abriu. Segurou-a um pouco para que Banks pudesse ver que não iria a lugar algum.

— Pode usar.

Saiu do banheiro, mas deixou a porta aberta; assim escutaria caso Banks tentasse quebrar ou abrir a janela. Enquanto Banks se aliviava, Bosch olhou em volta à procura de um lugar para algemá-lo, de modo que também pudesse usar o banheiro antes da viagem de cinco horas. Decidiu-se pelas barras que eram parte do design da cabeceira da cama.

Bosch começou a guardar suas coisas com pressa, basicamente jogando as roupas na mala de qualquer jeito. Quando Banks deu descarga e saiu do banheiro, Bosch o conduziu até a cama e o fez se sentar enquanto o algemava à cabeceira.

— Que porra é essa? — protestou Banks.

— Só uma precaução caso você mude de ideia enquanto eu mijo.

Bosch estava de pé diante da privada e terminando, por sua vez, de esvaziar a bexiga quando escutou a porta da frente sendo arrombada. Fechou o zíper rapidamente e correu para o quarto, preparado para perseguir Banks, quando viu que ele continuava algemado na cabeceira da cama.

Seus olhos se dirigiram à porta aberta e ao homem apontando uma arma. Mesmo sem o uniforme ou o bigodinho de Hitler que havia sido pichado em seu cartaz de campanha, reconheceu facilmente J. J. Drummond, xerife do condado de Stanislaus. Era um homem grande, alto e bem-apessoado, com um queixo anguloso. O sonho de qualquer gerente de campanha.

Drummond entrou sozinho no quarto, tomando o cuidado de manter a mira no peito de Bosch.

— Detetive Bosch — disse ele. — Você está um pouco fora de sua jurisdição aqui, não está?


32

Drummond disse a Bosch para erguer as mãos. Aproximou-se e tirou a arma de Bosch do coldre, guardando-a no bolso de sua jaqueta verde de caçador. Então sinalizou com a própria arma na direção de Banks.

— Tire as algemas dele.

Bosch pegou as chaves no bolso e soltou Banks da cabeceira.

— Pegue as algemas e ponha no seu pulso esquerdo.

Bosch fez como ordenado e guardou as chaves no bolso.

— Agora, Reggie, algeme o cara. Pelas costas.

Bosch pôs as mãos para trás e deixou que Banks o algemasse. Drummond então foi até ele, perto o suficiente para encostar o cano da arma, se quisesse.

— Onde está seu celular, detetive?

— Bolso direito da frente.

Enquanto Drummond tirava o aparelho, manteve os olhos em Bosch, a um passo de distância.

— Você devia ter deixado as coisas como estavam, detetive.

— Talvez.

Drummond levou a mão ao outro bolso de Bosch e tirou as chaves. Em seguida, revistou os demais bolsos para ter certeza de que não havia mais nada. Indo até a cama, pegou o paletó de Bosch e o apalpou até encontrar a carteira com o distintivo e as chaves do carro alugado. Guardou tudo o que confiscara no outro bolso de sua jaqueta. Então levou a mão às costas, sob a jaqueta, e tirou outra arma. Entregou-a a Banks.

— De olho nele, Reggie.

Drummond foi até a mesa e abriu a pasta usando a unha do indicador. Curvou-se para olhar as fotografias dos modelos de câmera que Anneke ­Jespersen utilizava.

— Então, o que estamos fazendo aqui, cavalheiros? — perguntou ele.

Banks apressou-se em responder, como se tivesse de ser ouvido antes de Bosch.

— Ele estava tentando me fazer falar, Drummer. Falar sobre LA e o navio. Ele sabe sobre o navio. O filho da puta me sequestrou. Mas eu não contei merda nenhuma para ele.

Drummond fez que sim.

— Ótimo, Reggie. Muito bom.

Ele continuou olhando para a pasta, virando algumas páginas, de novo apenas com a unha do dedo. Bosch sabia que não estava de fato olhando para os documentos. Ele queria avaliar onde estava pisando e o que precisava fazer a respeito. Enfim fechou a pasta e a segurou sob o braço.

— Acho que vamos dar uma voltinha.

Bosch finalmente falou, tentando jogar uma conversa mole que tinha certeza de que não ia colar:

— Você sabe que não precisa fazer isso, xerife. Não tenho nada a não ser meus palpites, e eles todos juntos não dão para pagar um café no Starbucks.

Drummond sorriu, sem achar graça.

— Não sei, não. Acho que um cara como você age em função de um pouco mais do que apenas palpites.

Bosch devolveu o sorriso sem humor.

— Você ficaria surpreso.

Drummond virou-se e esquadrinhou o quarto para ter certeza de que não havia deixado nada para trás.

— O.k., Reg, pegue o paletó do detetive Bosch. A gente vai dar um passeio agora. Vamos usar o carro do detetive.

O estacionamento estava deserto quando levaram Bosch para o Crown Vic alugado. Bosch foi enfiado no banco de trás e então Drummond deu a Banks as chaves e lhe disse para dirigir. Drummond entrou na traseira, atrás de Banks e perto de Bosch.

— Aonde a gente vai? — perguntou Banks.

— Hammett Road — disse Drummond.

Banks saiu do estacionamento e foi na direção da rampa de acesso da 99. Bosch olhou para Drummond, que continuava com a arma na mão.

— Como você descobriu? — perguntou ele.

Na escuridão foi possível ver o sorrisinho satisfeito de Drummond.

— Você quer dizer, como eu sabia que você andava metendo o nariz por aqui? Bom, você cometeu alguns erros, detetive. Primeiro de tudo, deixou marcas de lama no heliponto de Carl Cosgrove ontem à noite. Ele viu as pegadas hoje de manhã e ligou para mim. Disse que tinha algum larápio bisbilhotando e eu mandei dois homens meus para verificar. Depois eu recebi uma ligação de Frank Dowler esta noite dizendo que nosso amigo Reggie aqui estava bebendo com um cara interessado em comprar uma pistola do Iraque, e a combinação das duas coisas me fez pensar...

— Drummer, esse cara me sacaneou — disse Banks do banco do motorista, olhando para Drummond pelo retrovisor. — Eu não sabia, cara. Achei que fosse um comprador de verdade, aí liguei para o Frank para ver se ele queria vender a arma. Na última vez que eu falei com ele, Frank estava precisando de grana.

— Eu imaginei que fosse isso, Reggie. Mas Frank sabe umas coisas que você não sabe. Além do mais, ele estava um pouco nervoso porque a mulher dele disse que um estranho apareceu ontem lá onde ele mora perguntando por ele.

Drummond olhou de relance para Bosch e fez que sim com a cabeça, como que dizendo que sabia quem era o visitante inesperado.

— Frank somou dois mais dois e teve o bom senso de me ligar. Então eu dei uns telefonemas e não demorou para eu descobrir que um nome que eu conheço de outros carnavais estava no registro do Blu-Lite. Esse foi outro erro, detetive Bosch. Pôr o quarto no próprio nome.

Bosch não respondeu. Olhou pela janela para a escuridão e tentou se animar com o pensamento de que tinha enviado o arquivo de áudio com o depoimento de Banks para o parceiro. Chu descobriria o arquivo quando checasse seus e-mails pela manhã.

Ele sabia que podia usar esse fato de algum modo para tentar negociar sua liberdade, mas avaliou que era arriscado demais. Não fazia ideia de que pessoas ou ligações Drummond tinha em LA. Bosch não podia pôr a gravação ou o parceiro em risco. Tinha de se contentar em saber que, a despeito do que acontecesse consigo aquela noite, a história chegaria a Chu, e Anneke Jespersen seria vingada. A justiça seria feita. Ele podia contar com isso.

Foram para o sul e não demorou para atravessarem a divisa do condado de Stanislaus. Banks perguntou quando poderia pegar seu carro e Drummond lhe disse para não se preocupar com isso, que o pegariam mais tarde. Banks ligou a seta quando se aproximaram da saída para a Hammett Road.

— Vai ver o chefe, hein? — disse Bosch.

— Algo nessa linha — respondeu Drummond.

Pegaram a saída e seguiram pelo pomar de amendoeiras em direção à imponente entrada da propriedade de Cosgrove. Drummond disse a Banks para se aproximar do portão; assim ele poderia apertar o botão do interfone sem sair do carro.

— Quem é?

— Sou eu.

— Tudo sob controle?

— Tudo certo. Abre aí.

O portão se abriu automaticamente e Banks passou. Seguiram pela pista de entrada por entre as amendoeiras em direção ao palacete, levando dois minutos para percorrer de carro o que Bosch havia levado uma hora para cobrir vadeando a água na noite anterior. Bosch curvou-se para a janela lateral e olhou. Parecia mais escuro do que na outra noite. Uma capa de nuvens encobria o dossel estrelado.

Saíram de sob o pomar e Bosch viu que as luzes externas da mansão estavam apagadas. Talvez não houvesse vento suficiente para girar a turbina atrás da casa. Ou talvez Cosgrove simplesmente quisesse a escuridão total para o que pretendia fazer em seguida. Os faróis do carro iluminaram o helicóptero preto pousado na pista, pronto para uso.

Um homem aguardava no caminho circular, na entrada do palacete. Banks parou o carro e o homem entrou no banco da frente. À luz ambiente, Bosch viu que era Carl Cosgrove. Grande e corpulento, com uma cabeleira grisalha cheia e ondulada. Ele o reconheceu pelas fotos. Drummond não disse nada, mas Banks ficou animado de encontrar o velho companheiro da Guarda.

— Carl, há quanto tempo a gente não se vê, cara.

Cosgrove lhe deu uma olhada, visivelmente nem um pouco empolgado com a reunião.

— Reggie. — Foi tudo o que disse.

Drummond instruiu Banks a contornar o círculo e pegar a estradinha de serviço que dava a volta na mansão e passava pelo prédio da garagem, seguindo pela encosta da colina para os fundos da propriedade. Logo chegaram a um velho celeiro em forma de A, que era cercado por currais de gado, mas parecia abandonado.

— O que a gente está fazendo? — perguntou Banks.

— A gente? — disse Drummond. — Estamos cuidando do detetive Bosch, porque o detetive Bosch não conseguiu deixar os fantasmas do passado em paz. Pare na frente do celeiro.

Banks parou com os faróis iluminando as grandes portas duplas. Havia um cartaz de ENTRADA PROIBIDA na porta da esquerda. Uma grande barra horizontal de ferro prendia as portas, e uma pesada corrente, passada pelos dois puxadores, estava trancada com um cadeado.

— A molecada tem entrado aqui, largando latas de cerveja e lixo em tudo que é lugar — disse Cosgrove, como se tivesse de explicar por que o celeiro estava trancado.

— Abre lá — disse Drummond.

Cosgrove desceu e se aproximou das portas do celeiro com a chave que já estava em sua mão.

— Tem certeza disso, Drummer? — perguntou Banks.

— Para de me chamar assim, Reggie. As pessoas pararam de me chamar desse jeito já faz muito tempo.

— Desculpa. Eu paro. Mas tem certeza de que a gente precisa fazer isso?

— Lá vem você com esse negócio de a gente outra vez. Quando foi a gente, Reg? Você não quer dizer eu? Não sou sempre eu limpando a merda que vocês fazem?

Banks não respondeu. Cosgrove havia destrancado as portas e estava abrindo o lado direito.

— Vamos cuidar logo disso — falou Drummond.

Ele desceu do carro, batendo a porta atrás de si. Banks demorou para fazer o mesmo, e Bosch aproveitou a deixa, olhando direto para ele pelo retrovisor.

— Não tome parte nisso, Reggie. Ele lhe deu uma arma, você pode impedir isso.

A porta de Bosch se abriu em seguida e Drummond esticou os braços para puxá-lo.

— Reggie, o que você está esperando? Vamos logo, cara.

— Ah, eu não sabia que era para eu ir também.

Banks desceu enquanto Bosch era puxado.

— No celeiro, Bosch — disse Drummond.

Bosch voltou a olhar para o céu negro enquanto era empurrado em direção à porta do celeiro. Uma vez ali dentro, Cosgrove acendeu uma luz pendurada tão alto nas vigas do teto que iluminou fracamente os homens ali embaixo.

Drummond foi até uma coluna central que ajudava a sustentar o depósito de feno e empurrou-a para testar a firmeza. Parecia sólida.

— Aqui — disse ele. — Traz ele aqui.

Banks empurrou Bosch para que andasse e Drummond o segurou outra vez pelo braço e o virou, de modo que ficasse de costas para a coluna. Ergueu a arma e apontou para o rosto de Bosch.

— Não se mexe — ordenou Drummond. — Reggie, algema ele na madeira.

Banks tirou as chaves do bolso e abriu uma das algemas de Bosch, depois passou os braços dele em torno da coluna. Bosch percebeu que isso significava que não pretendiam matá-lo. Não por enquanto, pelo menos. Precisavam dele vivo por algum motivo.

Uma vez que Bosch estava preso, Cosgrove tomou coragem e se aproximou.

— Sabe o que eu devia ter feito? Devia ter descarregado minha arma nas suas costas lá no beco. Teria me poupado tudo isso. Mas acho que mirei alto demais.

— Carl, chega — disse Drummond. — Por que não volta para casa e espera o Frank? A gente vai cuidar disso aqui e logo depois eu vou.

Cosgrove olhou demoradamente para Bosch e em seguida sorriu de forma perversa.

— Senta um pouco.

Então deu uma rasteira no pé esquerdo de Bosch e o empurrou para baixo, segurando em seu ombro. Bosch deslizou pela coluna até o chão, aterrissando com força sobre o cóccix.

— Carl! Anda logo, cara, vamos cuidar disso.

Cosgrove finalmente recuou no momento em que Bosch percebia o que ele quisera dizer com mirar alto demais. Cosgrove fora o soldado que tinha aberto fogo naquela noite na cena do crime, a rajada que fizera todo mundo se jogar no chão para se proteger. Agora Bosch percebia que ele não tinha visto ninguém nos telhados. Só queria deixar os nervos à flor da pele e provocar uma distração na investigação do crime que cometera.

— Vou esperar no carro — disse Cosgrove.

— Não, é para deixar o carro aqui. Não quero que Frank veja o carro quando chegar. Ele pode ficar nervoso. A esposa dele contou que o Bosch passou lá.

— Tanto faz. Eu volto andando.

Cosgrove saiu do celeiro, Drummond parou na frente de Bosch e baixou o rosto para ele sob a luz fraca. Levou a mão ao bolso da jaqueta e pegou a arma que havia tirado de Bosch.

— Ei, Drummer — disse Banks, nervoso. — O que você quis dizer sobre o Frank não ver o carro? Por que o Frank...

— Reggie, já falei para não me chamar assim.

Drummond ergueu o braço e encostou o cano da arma de Bosch na lateral da cabeça de Banks. Continuava olhando para Bosch no chão quando apertou o gatilho. O barulho foi ensurdecedor e Bosch foi atingido pela ejeção de sangue e massa cerebral uma fração de segundo antes que o corpo de Banks caísse ao seu lado, no chão forrado de palha.

Drummond olhou para o corpo. As últimas contrações do coração fizeram o sangue espirrar sobre a palha suja pelo ponto de entrada da bala. Drummond­ guardou a arma de Bosch no bolso outra vez e se abaixou para pegar a arma que tinha dado a Banks um pouco antes. Então se endireitou.

— Lá no carro, quando vocês dois ficaram sozinhos, você falou que era para ele usar a arma em mim, não foi?

Bosch não respondeu. Drummond não esperou muito antes de prosseguir:

— Você achou que ele ia checar se estava carregada.

Ejetou o pente e mostrou para Bosch que estava vazio.

— Você tinha razão, detetive — disse ele. — Atacou o elo fraco, e Reggie era o elo mais fraco. Meus parabéns por isso.

Bosch percebeu que se enganara. Aquele era o fim. Encolheu os joelhos e pressionou as costas contra a coluna de madeira. E se preparou.

Então deixou a cabeça pender para a frente e fechou os olhos. Evocou a imagem da filha. Era a lembrança de um dia bom. Um domingo, e ele a levara para o estacionamento vazio de uma escola próxima para uma aula de direção. No começo, ela fora um pouco desajeitada, pisando duro no freio. Mas, quando chegaram ao fim, Maddie já estava dirigindo tranquilamente e com mais habilidade do que a maioria dos motoristas que Bosch encontrava pelas ruas de LA. Ficou orgulhoso da filha e, mais importante, ela ficou orgulhosa de si mesma. No fim da aula, quando trocaram de lugar e voltavam para casa, ela contou que queria ser policial, que gostaria de levar adiante a missão que ele escolhera na vida. A ideia surgira do nada, nascida da intimidade entre eles naquele dia.

Bosch pensou nisso naquele momento e sentiu uma calma dominá-lo. Seria a última lembrança, o que levaria consigo para sua caixa-preta sob a terra.

— Não sai daí, detetive. Vou precisar de você mais tarde.

Era Drummond. Bosch abriu os olhos e ergueu o rosto. Drummond acenou com a cabeça e começou a andar na direção da porta. Bosch o viu enfiar a arma que tinha dado a Banks sob a jaqueta, atrás da cintura. A tranquilidade com que matara Banks e o movimento destro de guardar a arma às costas causaram um estalo em Bosch. Uma pessoa não despachava friamente alguém daquele jeito a menos que já o tivesse feito antes. Além do mais, dos cinco conspiradores, apenas um tinha um emprego em 1992 em que uma arma fria, sem o número de série, poderia ser útil. Para Drummond, sua arma da Guarda Republicana Iraquiana não era um suvenir da Tempestade no Deserto. Era uma arma de trabalho. Foi por isso que ele a levou para LA.

— Foi você — disse Bosch.

Drummond parou e virou-se para fitá-lo.

— Disse alguma coisa?

Bosch o encarou.

— Eu disse que foi você. Não Cosgrove. Você matou Anneke.

Drummond voltou até onde Bosch estava. Seus olhos passearam pelos cantos escuros do celeiro e então ele deu de ombros. Sabia que tinha todos os trunfos. Estava falando com um homem morto, e os mortos não abriam a boca.

— Bom — disse —, ela estava virando uma chateação.

Ele sorriu e pareceu deliciado em partilhar a confirmação de seu crime com Bosch depois de vinte anos. Bosch se aproveitou disso.

— Como conseguiu fazer com que ela entrasse naquele beco?

— Isso foi o mais fácil. Eu fui direto até ela e disse que sabia quem e o que ela estava procurando. Disse que eu também estava no navio e que tinha ouvido falar da história. Disse que podia ser a fonte dela, mas que estava com medo e que não podia abrir o bico. Combinei de me encontrar com ela às cinco no beco. E ela foi idiota o suficiente para aparecer lá.

Drummond acenou com a cabeça como se dissesse “fim de papo”.

— E as câmeras?

— A mesma coisa da arma. Joguei tudo por cima das cercas lá no fundo. Tirei o filme primeiro, claro.

Bosch imaginara tudo aquilo. Uma câmera aparecendo no quintal de alguém e sendo usada ou penhorada em vez de ser entregue à polícia.

— Mais alguma coisa, detetive? — perguntou Drummond, claramente sentindo prazer com aquela chance de esfregar toda a sua astúcia na cara de Bosch.

— Sim — disse Bosch. — Se foi você quem a matou, como manteve Cosgrove e os outros na linha por vinte anos?

— Isso foi fácil. Carl Junior teria sido deserdado se o velho soubesse do envolvimento dele em uma história dessas. Os outros simplesmente foram na onda ou, quando não, foram mortos.

Dizendo isso, Drummond virou-se e foi na direção da porta. Ele a abriu, mas depois hesitou. Virou-se para fitar Bosch com um sorriso sinistro enquanto erguia o braço e apagava a luz do celeiro.

— Vê se dorme um pouco, detetive.

Então saiu e fechou a porta atrás de si. Bosch escutou a barra de metal sendo colocada no lugar quando Drummond o trancou.

Bosch ficou na escuridão absoluta. Mas estava vivo — por enquanto.


33

Bosch já havia sido deixado no escuro outras vezes. Em muitas dessas oca­siões, ficara assustado e sabia que a morte estava perto. Sabia também que, se esperasse, de algum modo veria uma luz lá no fim do túnel e, se a encontrasse, se salvaria.

Sabia que tinha que tentar entender o que acabara de acontecer e por quê. Não era para estar vivo. Todas as suas teorias terminavam com ele em um caixão. Com Drummond metendo uma bala em sua cabeça da mesma forma insensível como executara Reggie Banks. Drummond era o cara que consertava tudo, o homem da limpeza, e Bosch era parte da bagunça. Não fazia sentido que fosse poupado, mesmo temporariamente. Se pretendia sobreviver, Bosch precisava entender o que estava acontecendo.

O primeiro passo era se libertar. Deixou de lado todas as suas perguntas sobre o caso e se concentrou em escapar. Trouxe os tornozelos para baixo do corpo e fez força para se erguer, ficando de pé devagar, a fim de avaliar melhor o entorno e suas possibilidades.

Começou pela coluna. Era uma peça sólida de madeira, com cerca de 15 x 15. Bater nela com as costas não a fez tremer nem vibrar. Só serviu para lhe causar dor. A madeira não sairia do lugar, então isso era um fator que tinha de levar em consideração.

Ele ergueu o rosto na escuridão e só conseguiu distinguir as formas e os contornos das vigas acima. Sabia, por ter notado antes que a luz fosse apagada, que não havia como alcançar o topo, nenhum modo de escalar a coluna para se libertar.

Olhou para baixo, mas não conseguia enxergar os pés no escuro. Sabia que sob a palha do chão só havia terra batida, e chutou a base da coluna com o calcanhar. Sentiu que estava solidamente chumbada, mas não sabia como.

Bosch tinha uma escolha: esperar que Drummond voltasse ou fazer uma tentativa de escapar. Lembrou-se da imagem da filha que evocara um pouco antes e resolveu que não se entregaria assim facilmente. Lutaria com suas últimas forças. Usou os pés para empurrar a palha para longe e então começou a chutar a terra com o calcanhar, escavando lentamente.

Sabendo que era um último esforço desesperado, cavou com raiva, como se estivesse descontando em tudo e todos que algum dia atravessaram seu caminho. Os calcanhares ficaram esfolados com o esforço e a dor foi excruciante. Seus pulsos ficaram tão apertados pelas algemas que chegou a sentir dormência nos dedos. Mas não se importou. Queria chutar tudo o que algum dia havia atrapalhado sua vida.

O esforço foi em vão. Finalmente, escavou até o que acreditava ser a sapata de concreto em que a coluna havia sido alicerçada. A estrutura era sólida. Não se moveria um milímetro dali, assim como ele. Bosch enfim parou de tentar e se inclinou para a frente, a cabeça curvada. Estava exausto e sentindo-se próximo da derrota.

Concentrou-se no pensamento de que sua única chance seria tentar algo quando Drummond voltasse. Se Bosch conseguisse pensar em um motivo para Drummond tirar suas algemas, ele teria uma oportunidade de lutar por sua vida. Podia tentar pegar a arma ou fugir. De um modo ou de outro, seria sua única chance.

Mas qual era seu trunfo? O que poderia dizer para fazer Drummond abrir mão de sua vantagem estratégica? Bosch endireitou o corpo contra a coluna. Era necessário ficar alerta. Tinha de estar preparado para todas as possibilidades. Começou a repassar o que Banks lhe dissera no quarto de hotel, procurando uma peça da história que pudesse usar. Precisava de algo com que ameaçar Drummond, alguma arma secreta à qual apenas Bosch pudesse levá-lo.

Estava firmemente convicto de que não podia revelar o e-mail que enviara a Chu. Não podia pôr o parceiro em perigo potencial, tampouco permitir que Drummond apagasse a solução do caso. A confissão de Banks era importante demais para usar como barganha.

Bosch não tinha dúvida de que Drummond já examinara seu celular, mas o aparelho era protegido por senha. Travaria depois de três tentativas inválidas. Se Drummond continuasse tentando depois disso, um mecanismo de limpeza de dados seria acionado. Isso deixava Bosch confiante de que o arquivo chegaria a salvo para Chu sem que Drummond soubesse. Harry concluiu que não deveria fazer nada que pudesse mudar isso.

Ele precisava de alguma outra coisa. Precisava de um jogo de cena, um roteiro, algo com que pudesse trabalhar.

O quê?

O desespero foi tomando conta de sua mente. Tinha de haver algo. Começou com o fato de que Drummond matara Banks porque sabia de sua confissão. Trabalhando a partir daí, Bosch podia dizer que Banks lhe mostrara alguma coisa, algum tipo de evidência que mantivera guardada como sua carta na manga. Algo com que viraria a mesa contra Cosgrove e Drummond caso tivesse uma chance.

O quê?

Bosch subitamente achou que tinha algo. A arma mais uma vez. Siga a arma. Essa havia sido a regra de toda a investigação. Não fazia sentido mudar isso naquele momento. Banks afirmara ser o oficial de inventário da companhia na Guarda Nacional. Ele acondicionara as armas furtadas como suvenir no fundo das caixas de equipamento a serem enviadas para os Estados Unidos. Era ele a raposa encarregada do galinheiro. Bosch diria a Drummond que a raposa havia feito uma lista. Banks mantivera uma lista dos números de série das armas contendo os nomes de seus donos. Essa lista incluía o nome do soldado que ficara com a arma que matara Anneke Jespersen. Essa lista estava escondida, mas, com Banks morto, logo viria à tona. Só Bosch podia levar Drummond até ela.

A esperança de Bosch se reacendeu. Ele de fato achou que a história podia colar. Não estava completamente elaborada ainda, mas podia funcionar. Precisava ser mais trabalhada. Precisava de um motivo para criar genuína preo­cupação em Drummond, um medo legítimo de que a lista viria à tona e o deixaria exposto agora que Banks havia sido morto.

Bosch começou a acreditar que tinha uma chance. Só precisava enfeitar a história básica com mais detalhes e credibilidade. Só precisava...

A evolução de seu pensamento parou de repente. Havia uma luz. Ele percebeu que estivera com os olhos abertos o tempo todo em que elaborara o roteiro a ser conduzido com Drummond. Mas agora era atraído por um pequeno brilho branco-esverdeado junto aos pés. Um indistinto círculo de pontos menor do que uma moeda de cinquenta centavos. Também havia movimento dentro do círculo. Uma minúscula centelha luminosa, como uma estrela distante, movendo-se ao longo da circunferência, tocando um ponto depois do outro.

Bosch percebeu que olhava para o relógio de Reggie Banks. E de repente se deu conta de como poderia escapar.

Um plano logo se formou em sua mente. Bosch deslizou pela viga até alcançar uma posição em que parecia estar sentado em uma cadeira inexistente. Ignorando a dor nas coxas e tendões da andança pelas amendoeiras na noite anterior, usou a perna direita para pressionar as costas contra a coluna e manter a posição, depois esticou o pé esquerdo. Usando o calcanhar, tentou enganchar o pulso do homem morto e puxá-lo para perto de si. Fez várias tentativas antes de obter um ponto de apoio e mover o braço. Assim que o deslocou o máximo que pôde usando o pé, ele se endireitou e girou cento e oitenta graus em torno da coluna. Deslizou até chegar ao chão dessa vez e esticou a mão para tentar agarrar a de Banks. Conseguiu por muito pouco.

Segurando a mão do morto entre as suas, Bosch se curvou ao máximo para a frente, de modo que puxasse o corpo ainda mais para perto de si. Feito isso, procurou o pulso e desafivelou o relógio. Segurando-o com a mão esquerda, empurrou a fivela para trás, fazendo o pino se soltar. Então torceu o pulso a fim de conseguir enfiar o pequeno pino de aço no buraco de fechadura da algema direita.

Conforme trabalhava, Bosch visualizava o processo. Uma fechadura de algema era das mais fáceis de abrir, contanto que a pessoa não estivesse fazendo isso no escuro e com as mãos presas às costas. A chave consistia basicamente em um único dente. Era uma chave universal, porque no dia a dia as algemas eram em geral passadas adiante junto com o prisioneiro, tanto de um policial para outro quanto do banco da cadeia para o banco dos réus. Se cada par de algemas tivesse a própria chave, o já lento método ficaria ainda mais demorado. Bosch contava com isso conforme manuseava o pino da fivela do relógio. Ele era hábil com o jogo de ferramentas para abrir fechaduras que mantinha escondido atrás de seu distintivo, na carteira levada por Drummond. Fazer do pino de uma fivela de relógio uma ferramenta era um desafio.

Levou menos de um minuto para abrir a algema. Então endireitou os braços e removeu a outra ainda mais rapidamente. Estava livre. Ficou de pé e na mesma hora tentou ir em direção à porta do celeiro, mas tropeçou no corpo de Banks e caiu de cara na palha. Voltou a se levantar, localizou-se e tentou mais uma vez, caminhando com os braços na frente do corpo. Quando chegou à porta, esticou o braço para a esquerda, movendo as mãos para cima e para baixo na parede até encontrar o interruptor.

No fim das contas, havia luz no galpão. Bosch rapidamente voltou às enormes portas duplas. Havia escutado Drummond colocar a barra de ferro no lugar, mas tentou assim mesmo mover as portas, empurrando com força, sem sucesso. Tentou mais duas vezes, com o mesmo resultado.

Bosch recuou e olhou em volta. Não fazia ideia se Drummond e Cosgrove­ voltariam dali a um minuto ou um dia, mas precisava continuar em movimento. Recuou e passou outra vez pelo corpo, em direção às reen­trâncias mais escuras do celeiro. Encontrou outro par de portas duplas na parede dos fundos, mas também estavam trancadas. Virou-se e inspecionou o interior, mas não viu mais nenhuma porta ou janela. Praguejou em voz alta.

Bosch tentou se acalmar e pensar. Visualizou na mente o lado de fora e tentou se lembrar de olhar para o celeiro à luz dos faróis quando o carro parou. Era um galpão com estrutura em A, e recordou que havia uma porta no mezanino para carregar e descarregar o feno.

Bosch se aproximou depressa de uma escada de madeira construída junto a uma das principais colunas de apoio e começou a subir. O mezanino continuava cheio de fardos de feno que nunca haviam sido removidos depois que o celeiro fora abandonado. Bosch andou entre eles e foi até o pequeno par de portas. Também estavam trancadas, mas por dentro.

Era um ferrolho simples com um cadeado pesado. Bosch sabia que conseguiria abrir o fecho se estivesse com as ferramentas corretas, mas estavam em sua carteira de distintivo, que havia ficado no bolso de Drummond. Uma fivela de relógio não funcionaria. Viu sua fuga ser frustrada mais uma vez.

Curvou-se para a frente a fim de estudar o fecho o melhor possível à luz fraca. Estava pensando em tentar chutar as portas e forçá-las, mas a madeira parecia sólida e o ferrolho era preso por oito parafusos. Tentar abri-las à força teria de ser o último, e barulhento, recurso.

Antes de descer ao piso do celeiro outra vez, observou o mezanino à procura de qualquer coisa que pudesse ajudá-lo a escapar ou se defender. Uma ferramenta para arrancar o ferrolho ou até um pedaço de madeira sólida para usar como porrete. O que encontrou em vez disso talvez funcionasse melhor. Atrás de uma fileira de fardos de feno desfeitos havia um forcado enferrujado.

Bosch jogou o forcado no piso de baixo, com cuidado para não acertar o corpo de Banks, e em seguida desceu. Com o forcado na mão, fez mais uma busca pelo celeiro, procurando um meio de escapar. Não encontrou nenhum e voltou ao foco de luz no centro do piso. Revistou o corpo de Banks, pensando na chance remota de ele portar uma faca retrátil ou qualquer coisa que pudesse usar.

Não achou arma alguma, mas encontrou as chaves de seu carro alugado. Drummond havia se esquecido de pegá-las depois de executar Banks.

Bosch foi até as portas de entrada do celeiro e as empurrou mais uma vez, mesmo sabendo que não se abririam. Estava a menos de cinco metros de seu carro, mas não podia alcançá-lo. Sabia que no porta-malas, sob as caixas de papelão do equipamento que havia transferido, havia outra caixa que passara de seu carro oficial para o alugado. Era a caixa com sua segunda arma. A Kimber Ultra Carry .45, carregada com sete balas no pente, mais a que ia na câmara, para dar sorte.

— Merda — sussurrou.

Bosch sabia que não tinha escolha a não ser esperar. Precisava surpreender e dominar dois homens armados quando eles voltassem. Levou a mão ao interruptor e apagou a luz, deixando o galpão outra vez mergulhado em trevas. Agora contava com o forcado, a escuridão e o elemento surpresa. Chegou à conclusão de que suas chances eram boas.


34

Bosch não teve de esperar muito. Não mais que dez minutos depois que apagara a luz, escutou o som de raspagem de metal contra metal quando a barra de ferro do lado de fora foi removida. Isso foi feito lentamente, e Bosch pensou que Drummond talvez estivesse tentando surpreendê-lo.

A porta se abriu devagar. De seu ângulo, Bosch via a escuridão do lado de fora. Sentia o sopro de ar mais fresco varrendo o celeiro. Só conseguiu distinguir a sombra de uma única pessoa entrando.

Bosch se preparou e ergueu o forcado. Estava próximo do interruptor. Ali era aonde um deles iria primeiro. Para acender a luz. Seu plano era atacar na altura do ombro e enfiar a arma no corpo. Derrubar o primeiro, pegar sua arma. Então seria um contra um.

Mas a figura solitária não se mexeu em direção ao interruptor. Parou imóvel no limiar da porta, como que esperando os olhos se ajustarem à escuridão. Então se moveu três passos para a frente, dentro do celeiro. Bosch não estava preparado para isso. Sua posição de ataque era junto do interruptor. Agora estava longe demais de seu alvo.

Uma luz de repente se acendeu no galpão, mas não vinha de cima. A pessoa que entrara portava uma lanterna. E Bosch passou a achar que podia ser uma mulher.

Ela agora havia passado pela posição de Bosch e a lanterna era mantida à frente do corpo. Bosch não podia ver seu rosto do ângulo em que estava, mas percebia, pelo tamanho e a postura, que não era Drummond nem Cosgrove. Era sem dúvida uma mulher.

O feixe de luz varreu o celeiro e então voltou e parou no corpo caído no chão. A mulher avançou depressa e apontou a lanterna para o rosto do morto. Banks estava de costas, com os olhos abertos e o horrível ferimento de entrada na têmpora direita. Sua mão esquerda estava esticada em um ângulo esquisito na direção da coluna do centro. O relógio ficara jogado na palha perto dele.

A mulher se ajoelhou ao lado de Banks e moveu a luz à medida que examinava o corpo inteiro do homem. Ao fazê-lo, revelou primeiro a arma na outra mão e depois o rosto. Bosch abaixou o forcado e saiu de seu esconderijo.

— Detetive Mendenhall.

Mendenhall girou para a direita e apontou a arma para Bosch. Ele ergueu as mãos, ainda segurando o forcado.

— Sou eu.

Ele percebeu que devia estar parecendo uma espécie de paródia da famosa pintura American Gothic, com o fazendeiro, o forcado e a esposa; menos a esposa. Soltou a ferramenta, que caiu na palha.

Mendenhall abaixou a arma e se levantou.

— Bosch, o que está acontecendo aqui?

Bosch notou que ela se esquecera de seguir a própria regra sobre posto e respeito. Em vez de responder, ele foi até a porta e olhou do lado de fora. Via as luzes da mansão por entre as árvores, mas nenhum sinal de Cosgrove ou Drummond. Saiu e foi até o carro alugado, usando o controle da chave para abrir o porta-malas.

Mendenhall o seguiu.

— Detetive Bosch, eu perguntei o que está acontecendo.

Bosch ergueu uma das caixas de papelão do porta-malas e a pôs no chão.

— Fala baixo — disse ele. — O que está fazendo aqui? Você me seguiu por causa da queixa do O’Toole?

Bosch encontrou a caixa da arma e a abriu.

— Não exatamente.

— Então por quê?

Ele pegou a Kimber e checou o funcionamento.

— Eu queria descobrir uma coisa.

— Descobrir o quê?

Bosch pôs a arma no coldre, depois pegou o carregador extra na caixa e o guardou no bolso.

— O que você estava fazendo, para começar. Fiquei com o pressentimento de que você não estava saindo de férias.

Bosch fechou o porta-malas com cuidado e olhou em volta para se localizar. Então olhou para Mendenhall.

— Onde está seu carro? Como você chegou aqui?

— Eu estacionei onde você estacionou ontem à noite. Cheguei aqui do mesmo jeito que você.

Ele olhou para os sapatos dela. Estavam cobertos de lama do pomar de amendoeiras.

— Você me seguiu e está sozinha. Por acaso alguém sabe onde você está?

Ela evitou seu olhar e ele soube que a resposta era não. Ela estava investigando Bosch em seu tempo livre, assim como ele estava fazendo com Anneke. Por algum motivo, ele gostou disso nela.

— Desligue a lanterna — pediu Bosch. — Só vai servir para expor a gente.

Ela obedeceu.

— Agora, o que está fazendo aqui, detetive Mendenhall?

— Estou trabalhando no meu caso.

— Isso não é o bastante. Eu virei um hobby seu e quero saber por quê.

— Vamos dizer apenas que segui você porque me deu na telha. E vamos deixar por isso mesmo. Quem matou aquele homem lá dentro?

Bosch sabia que não havia tempo para ficar discutindo com Mendenhall sobre seus motivos para segui-lo. Se saíssem dessa, ele voltaria ao assunto no devido tempo.

— O xerife J. J. Drummond — respondeu ele. — A sangue-frio. Bem na minha frente, sem pensar duas vezes. Você viu o cara quando entrou aqui na propriedade?

— Vi dois homens. Os dois foram para a casa.

— Viu mais alguém? Um terceiro homem chegou?

Ela balançou a cabeça.

— Não, só os dois. Pode, por favor, me explicar o que está acontecendo? Eu vi você sendo trazido até aqui. Agora tem um homem morto ali dentro e você ficou trancado como...

— Olha, a gente não tem muito tempo. Mais alguém vai morrer se a gente não impedir. Para resumir, foi até aqui que o meu caso me trouxe. O caso do arquivo morto sobre o qual eu falei, o motivo da minha visita a San Quentin. É aqui. Essa história termina aqui. Entra.

Bosch continuou sussurrando conforme se dirigia à porta do motorista.

— Minha vítima era Anneke Jespersen, da Dinamarca. Uma correspondente de guerra. Quatro soldados da Guarda Nacional drogaram e estupraram a garota em uma licença de descanso e relaxamento durante a Tempestade no Deserto, em 1991. Ela voltou aqui no ano seguinte, procurando os caras. Não sei se ia escrever uma matéria ou um livro, ou sei lá o quê, mas foi atrás deles durante os distúrbios de LA. E os caras usaram o caos da situação para acobertar o homicídio.

Bosch entrou, pôs a chave na ignição e deu partida no carro, mantendo o pé o mais leve que pôde no acelerador. Mendenhall entrou pelo lado do passageiro.

— Minha investigação fez a conspiração que unia esses caras se desmanchar. Banks era uma ponta solta, então foi morto. Eles mencionaram que outro homem está vindo, e acho que vão matar ele também.

— Quem?

— Um sujeito chamado Frank Dowler.

Bosch engatou a ré e começou a se afastar do celeiro. Deixou os faróis desligados.

— Por que não mataram você? — perguntou Mendenhall. — Por que só esse Banks?

— Porque precisavam de mim vivo... por enquanto. Drummond tinha um plano.

— Que plano? Isso é loucura.

Bosch repassara tudo em seus bancos de dados cerebrais enquanto esperava no escuro com o forcado. Ele finalmente havia compreendido o plano de J. J. Drummond.

— Hora do óbito. Ele precisa de mim vivo por causa disso. O plano é pôr tudo na minha conta. Vão dizer que fiquei obcecado com o caso, que eu queria vingar a vítima de qualquer maneira. Eu matei Banks e depois Dowler, mas, antes que eu conseguisse chegar a Cosgrove, o xerife me pegou. Drummond planeja me matar assim que acabar com Dowler. Tenho certeza de que a história vai pintar o xerife como o homem da lei destemido pegando o policial maluco para salvar um dos cidadãos mais nobres do Vale, Cosgrove. Depois disso, Drummond vai concorrer para o Congresso como um herói. Já mencionei que ele é candidato?

Bosch começou a descer a colina na direção da mansão. As luzes externas continuavam apagadas e uma névoa subia do pomar, lançando o lugar na completa escuridão.

— Não entendo como Drummond pode estar envolvido nisso. Ele é o xerife, pelo amor de Deus.

— Ele é o xerife porque Cosgrove o fez virar xerife. Assim como vai pôr Drummond no Congresso, porque ele sabe todos os segredos. Drummond esteve na 237ª com eles. Estava no navio durante a Tempestade no Deserto e em LA durante os tumultos. Foi ele quem matou Anneke Jespersen. E foi assim que controlou Cosgrove todos esses...

Bosch parou de falar quando se deu conta de algo. Diminuiu a velocidade até parar o carro. Sua mente voltou no tempo até uma das últimas coisas que Drummond dissera antes de deixar o celeiro. Carl Junior teria sido deserdado se o velho soubesse do envolvimento dele em uma história dessas.

— Ele vai matar Cosgrove também.

— Por quê?

— Porque o pai do Cosgrove já morreu. Drummond não tem mais controle sobre ele.

Como que pontuando a conclusão de Bosch, o som de um disparo veio da direção da casa. Bosch pisou fundo. Chegaram rapidamente à lateral da mansão e depois ao caminho circular da entrada.

Havia uma moto estacionada a cerca de cinco metros da porta de entrada. Bosch reconheceu o tanque de gasolina azul-metálico.

— É a moto do Dowler.

Escutaram outro tiro vindo de dentro. E depois mais um.

— Chegamos tarde.


35

A porta da frente estava destrancada. Bosch e Mendenhall entraram, cobrindo os ângulos dos dois lados do batente. Deram em um hall de entrada circular com um grosso vidro oval apoiado em um toco de cipreste de um metro de altura. Não havia mais nada na sala, apenas a mesa para chaves, correspondência e pacotes. Dali avançaram pelo corredor principal, checando primeiro a sala de jantar, com uma mesa comprida o bastante para acomodar doze pessoas, depois uma sala de estar que devia ter uns duzentos metros quadrados, com lareiras idênticas em cantos opostos. Voltaram pelo corredor, que fazia uma curva abrupta conduzindo a uma grande escadaria e a um corredor menor nos fundos, que, por sua vez, levava à cozinha. No chão estava o cachorro que avançara na direção de Bosch na noite anterior. Cosmo. Fora baleado atrás da orelha esquerda.

Hesitaram ao deparar com o animal morto, e quase imediatamente as luzes da cozinha se apagaram. Bosch sabia o que estava por vir.

— Se abaixe!

Ele se jogou no chão, atrás do corpo do cachorro. Uma figura surgiu no vão escuro da porta, e Bosch viu o clarão da pólvora antes de escutar os tiros. Sentiu o corpo do cachorro vibrar com o impacto das balas reservadas a ele e atirou de volta, disparando quatro vezes na direção da cozinha. Escutou vidro partindo e madeira estilhaçando. Então ouviu uma porta se abrindo e o som de passos correndo.

Nenhum tiro se seguiu a seus disparos. Bosch olhou em volta e viu Menden­hall encolhida perto de uma estante forrada de livros de receitas, junto à parede direita.

— Tudo bem?

— Tudo — respondeu ela.

Bosch se virou e olhou o corredor às costas deles. Haviam deixado a porta da frente aberta. O atirador poderia estar circundando a casa para surpreendê-los por trás. Era hora de se mover. Hora de seguir para a cozinha.

Bosch se ergueu e ficou de cócoras, depois avançou, pulando o corpo do cachorro e movendo-se rapidamente na direção do vão escuro da porta da cozinha.

Entrou ali e imediatamente levou a mão à parede do lado direito, acendendo quatro luminárias e inundando a cozinha com a luz fria vinda do teto. À sua esquerda havia uma porta aberta, que dava para uma área com piscina.

Observou o ambiente com a arma apontada e não viu mais ninguém.

— Tudo limpo!

Foi até a porta aberta, saiu e imediatamente deu um passo para a direita, para não ficar contra a luz. A água escura da piscina retangular brilhava à luz da cozinha, mas, afora isso, havia apenas a escuridão. Bosch não conseguia ver nada.

— Ele fugiu?

Bosch se virou. Mendenhall estava atrás dele.

— Está por aí em algum lugar.

Ele voltou a entrar pela porta da cozinha para verificar o restante da casa e na mesma hora viu uma poça do que parecia ser sangue vazando por baixo de uma porta junto à enorme geladeira de aço inoxidável. Bosch apontou quando Mendenhall voltou à cozinha. Ela ficou parada em posição de atirar enquanto ele segurava a maçaneta.

Bosch abriu a porta da despensa e no chão viu os corpos de dois homens. Um ele reconheceu imediatamente como o de Carl Cosgrove. O outro deduziu que fosse Frank Dowler. Como o cão, ambos haviam recebido um único tiro atrás da orelha esquerda. O corpo de Cosgrove estava sobre o de Dowler, sugerindo a sequência dos assassinatos.

— Drummond manda Cosgrove chamar Dowler para dentro da casa. Executa Dowler aqui: esse foi o primeiro tiro. Em seguida, mata o cachorro e depois, finalmente, o dono.

Bosch sabia que a sequência talvez não fosse essa, mas não tinha dúvida de que fora sua arma que Drummond usara. Também não podia deixar de notar as semelhanças com o assassinato de Christopher Henderson, catorze anos antes. O homem havia sido levado para um dos espaços da cozinha e executado com uma bala na parte posterior da cabeça.

Mendenhall se agachou e verificou se os corpos ainda tinham pulsação. Bosch sabia que era inútil. Ela balançou a cabeça e começou a dizer alguma coisa, mas foi cortada por um ronco agudo, metálico, que ecoou do corredor.

— Que negócio é esse? — gritou Mendenhall, com o barulho cada vez maior.

Bosch olhou para a porta aberta da cozinha e depois para o corredor, que oferecia uma visão direta através de toda a casa.

— O helicóptero de Cosgrove — berrou ele, conforme avançava pelo corredor. — Drummond sabe pilotar.

Bosch cruzou o corredor a toda velocidade e saiu pela porta da frente, com Mendenhall apenas alguns passos atrás. Quase no mesmo instante foram recebidos por uma saraivada de tiros que explodiram na moldura de reboco e madeira em torno da porta. Mais uma vez, Bosch se jogou no chão e rolou para a frente, dessa vez encontrando cobertura atrás de um dos vasos de concreto que havia em torno do caminho circular e do passeio de entrada.

Olhou por cima da borda e viu o helicóptero ainda pousado na pista de concreto, os rotores girando e ganhando velocidade para alçar voo. Olhou para trás, para a porta da frente, iluminada de dentro, e viu Mendenhall rolando no chão, antes do limiar, a mão tapando o olho esquerdo.

— Mendenhall! — gritou ele. — Entra! Ele acertou você?

Mendenhall não respondeu. Rolou mais para dentro da casa, buscando proteção.

Bosch voltou a olhar para o helicóptero, por sobre a borda do vaso. O motor gemia ruidosamente com a aeronave prestes a subir. Bosch via a porta ainda aberta, mas não conseguia enxergar nada dentro da cabine. Sabia que só podia ser Drummond. Com seu plano arruinado pela fuga de Bosch, estava tentando ele próprio fugir.

O detetive saiu de sua cobertura e disparou repetidas vezes contra o helicóptero. Depois de alguns tiros, a arma ficou vazia e ele correu de volta para a porta da frente. Agachou-se perto de Mendenhall enquanto ejetava o carregador da arma.

— Detetive, ele acertou você?

Ele enfiou o pente extra na arma e acionou uma bala dentro da câmara.

— Mendenhall! Acertou você?

— Não! Quer dizer, não sei. Alguma coisa acertou meu olho.

Ele agarrou o braço dela para tirar a mão que lhe cobria o olho. ­Menden­hall resistiu.

— Deixa eu dar uma olhada.

Ela cedeu e ele puxou sua mão. Observou seu olho de perto, mas não viu nada.

— Não foi nada, Mendenhall. Deve ter sido uma farpa da madeira ou um pedaço da alvenaria.

Ela pôs a mão de volta no olho. Lá fora, a turbina girando havia atingido a velocidade crítica, e Bosch sabia que Drummond estava prestes a levantar voo. Ficou de pé e foi em direção à porta da frente.

— Deixa o cara ir! — exclamou Mendenhall. — Ele não vai ter onde se esconder.

Bosch a ignorou e correu outra vez, indo para o meio do caminho circular bem no momento em que o helicóptero começava a se elevar sobre a pista de concreto.

O detetive estava a mais de cinquenta metros, com o helicóptero se movendo da direita para a esquerda ao longo das amendoeiras, à medida que subia. Segurou a arma com ambas as mãos e mirou a caixa da turbina. Sabia que tinha sete tiros para fazer a aeronave descer.

— Bosch, você não pode atirar nele!

Mendenhall saíra da casa e estava às suas costas.

— Não posso o caralho! Ele atirou na gente!

— Não é o procedimento!

Ela agora havia chegado bem perto dele. Continuava com a mão no olho machucado.

— É o meu procedimento!

— Me escuta! Não existe mais ameaça! Ele está fugindo! Você não está defendendo nenhuma vida.

— Não fala merda!

Mas Bosch elevou a mira e disparou três tiros rápidos para o céu, esperando que Drummond escutasse ou visse os clarões no cano.

— O que você está fazendo?

— Ele achar que estou atirando nele.

Bosch ergueu a arma e disparou mais três vezes no ar, guardando uma bala para qualquer eventualidade. Funcionou. O helicóptero mudou de direção, desviando bruscamente para longe da posição de Bosch e voando para trás da casa; Drummond estava tentando usar o edifício como proteção.

Bosch ficou parado e aguardou, e então ouviu um alto estrépito metálico, seguido do ruído de um rotor quebrado girando loucamente no pomar de amendoeiras, cortando os galhos como uma segadeira.

O tempo ficou suspenso por um milissegundo, quando a turbina ficou silenciosa e parecia que não havia som algum no mundo. Então escutaram o helicóptero cair na encosta atrás da mansão. Viram uma bola de fogo subir acima do telhado e desaparecer no céu.

— O quê? — gritou Mendenhall. — O que aconteceu? Você não atirou nem perto!

Bosch começou a correr em direção ao som do acidente.

— A turbina eólica — respondeu gritando.

— Que turbina eólica? — gritou ela em resposta.

Bosch dobrou a esquina da casa e viu fumaça e focos esparsos de chamas na encosta da colina. Um forte cheiro de combustível dominava o ar. Men­denhall o alcançou e, com o feixe da lanterna, foi na frente.

O helicóptero caíra de não mais que cinquenta metros, mas ficara completamente destruído com o impacto. Havia um foco de incêndio na encosta do lado direito, onde o tanque de combustível parecia ter se separado e explodido. Encontraram Drummond sob a armação destruída da cabine, as pernas quebradas e em um ângulo antinatural em relação ao tronco, a testa com um talho profundo feito pelo metal retorcido no acidente. Quando Mendenhall apontou a lanterna para seu rosto, ele reagiu, abrindo os olhos lentamente.

— Meu Deus, ele está vivo — disse ela.

Os olhos de Drummond a seguiram quando ela caminhou em torno, removendo destroços para soltá-lo, mas a cabeça dele não se virou. Seus lábios se mexeram, mas a respiração estava curta demais para ele conseguir emitir algum som.

Bosch se agachou e enfiou a mão no bolso esquerdo da jaqueta de ­Drummond. Pegou seu celular e a carteira do distintivo.

— O que você está fazendo? — disse Mendenhall. — A gente precisa chamar o socorro, e você não pode remover coisas da cena de um crime.

Bosch a ignorou. Eram sua propriedade e ele estava pegando de volta. Mendenhall pegou o celular para chamar os paramédicos e investigadores. Nesse meio-tempo, Bosch revistou o bolso do outro lado da jaqueta de Drummond e sentiu a forma de uma arma. Sua arma, ele sabia. Olhou para o rosto de Drummond.

— Quero que fique com isso, xerife. Deixe que encontrem com você.

Escutou Mendenhall praguejar e virou-se para olhar para ela.

— Não consigo sinal — disse ela.

Bosch deslizou o polegar pela tela de seu aparelho, que se iluminou. Parecia que sobrevivera intacto ao acidente e estava funcionando. O sinal indicava três barras.

— O meu também não.

Guardou o celular no bolso.

— Droga! — exclamou Mendenhall. — A gente precisa fazer alguma coisa.

— Precisa mesmo? — disse Bosch.

— Sim — disse Mendenhall, enfática. — Precisa.

Bosch encarou Drummond.

— Vá até a casa. Eu vi um telefone na cozinha.

— Tudo bem. Já volto.

Bosch se virou e observou Mendenhall começar a descer a colina. Então voltou a olhar para Drummond.

— Só você e eu agora, xerife — disse ele, calmamente.

Drummond havia tentado o tempo todo dizer alguma coisa. Bosch por fim se ajoelhou e apoiou as mãos no chão, inclinando o ouvido na direção da boca de Drummond, que falou em uma voz fraca, hesitante:

— Eu... não... sinto nada.

Bosch voltou a se agachar e mediu Drummond, como que avaliando seus ferimentos. O xerife fez força para sorrir. Bosch viu o sangue cor de rubi em seus dentes. Um pulmão havia sido perfurado na queda. Ele disse algo, mas Bosch não escutou.

Harry voltou a se abaixar perto dele.

— O que você disse?

— Eu me esqueci de dizer... No beco, eu fiz ela se ajoelhar... e depois implorar...

Bosch recuou quando a raiva tomou conta de seu corpo. Ficou de pé e deu as costas para Drummond, olhando para a mansão. Mendenhall ainda não havia saído.

Voltou-se para o homem. O rosto de Bosch era uma máscara de raiva. A vingança cravava suas garras em cada nervo. Ele se ajoelhou e agarrou a frente da camisa de Drummond. Curvou-se e falou entre os dentes:

— Eu sei o que você quer, mas não vou dar a você, Drummond. Espero que tenha uma vida longa e cheia de dor. Em uma prisão. No leito da enfermaria. Em um lugar cheirando a merda e mijo. Respirando por um tubo. Comendo por um tubo. E espero que todo dia deseje morrer, mas sem poder fazer nada a respeito.

Bosch abriu a mão e o largou. Drummond não estava mais sorrindo. Contemplava seu futuro sombrio.

Bosch se levantou, espanou a terra dos joelhos e então se virou e começou a descer a encosta. Viu Mendenhall subindo, a lanterna na mão.

— Estão vindo — disse ela. — Ele...?

— Continua respirando. Como está seu olho?

— Não sei o que tinha, mas saiu. Está doendo.

— Manda eles darem uma olhada quando chegarem aqui.

Bosch passou por ela e continuou andando. No caminho, pegou o celular para ligar para casa.

 

 

Eram sete da noite em Copenhague quando Bosch fez a ligação. Foi atendido rapidamente por Henrik Jespersen em sua casa.

— Henrik, é Harry Bosch, de LA.

— Detetive Bosch, como está? Alguma notícia de Anneke?

Bosch fez uma pausa. Parecia um jeito estranho de perguntar. Henrik parecia sem fôlego, como se soubesse que aquela era a notícia que vinha esperando havia vinte anos. Bosch não o fez esperar mais.

— Henrik, houve uma prisão no assassinato de sua irmã. Estamos com o assassino e quere...

— Endelig!

Bosch não sabia o que a palavra dinamarquesa significava, mas pareceu uma exclamação de surpresa e alívio. Um longo silêncio se seguiu, e Bosch deduziu que o homem na outra ponta da linha, a meio mundo de distância, havia começado a chorar. Bosch já tinha visto esse comportamento, ao dar pessoalmente notícias como aquela. Nesse caso, pedira para ir à Dinamarca e conversar em pessoa com Henrik Jespersen, mas o pedido fora negado pelo tenente O’Toole, ainda remoendo sua denúncia contra Bosch, indeferida por Mendenhall e o BPP.

— Desculpe, detetive — disse Henrik. — Sou muito emotivo, sabe? Quem é o assassino de minha irmã?

— Um homem chamado John James Drummond. Ela não o conhecia.

Não houve resposta imediata, então Bosch preencheu a lacuna:

— Henrik, pode ser que você comece a ter notícias sobre a prisão por meio dos jornais. Eu fiz um acordo com um repórter no BT aí em Copenhague­. Ele me ajudou com a investigação. Preciso ligar para ele daqui a pouco.

Mais uma vez, nenhuma resposta.

— Henrik, você...

— Esse homem, Drummond... por que a matou?

— Porque ele achava que isso o ajudaria a ganhar o favor de um homem e de uma família muito poderosos. O assassinato ajudou a encobrir outro crime contra sua irmã.

— Ele está na cadeia agora?

— Ainda não. Está em um hospital, mas vai ser removido em breve para uma ala da cadeia.

— No hospital? Você atirou nele?

Bosch balançou a cabeça. Compreendia a emoção por trás da pergunta. O tom esperançoso.

— Não, Henrik. Ele estava tentando escapar. Em um helicóptero. E caiu. Nunca mais vai andar. A coluna foi fraturada. Acham que vai ficar paralisado do pescoço para baixo.

— Acho que isso é bom. E você?

Bosch não hesitou.

— Claro, Henrik, eu também acho.

— Você disse que matar Anneke deu poder para ele. Como?

Bosch passou os quinze minutos seguintes resumindo a história do ponto de vista dos homens na conspiração. Quem eram e o que faziam. O crime de guerra ao qual Anneke se referira. Encerrou o relato com os derradeiros acontecimentos da investigação, as mortes de Banks, Dowler e Cosgrove e a execução dos mandados de busca sobre duas propriedades e um depósito comprado ou arrendado por Drummond no condado de Stanislaus.

— Encontramos um diário que sua irmã manteve sobre a investigação dela. Como um caderno de apontamentos. Drummond mandou traduzir há muitos anos. Parece que ele usou diferentes tradutores em diferentes partes, pois assim ninguém ficaria sabendo da história completa. Ele era um policial e provavelmente disse que era para um caso em que estava trabalhando. Temos essa tradução, que começa no ocorrido, pelo menos até onde ela lembrava, no navio. Achamos que estava no quarto de hotel dela e acreditamos que Drummond tenha ido até lá e o roubado depois do assassinato. Foi uma das coisas que usou para controlar os outros homens do navio.

— Posso ficar com esse diário?

— Ainda não, Henrik, mas vou fazer uma cópia para você e mandar. Vai ser uma das nossas evidências quando acontecer o julgamento. Esse é um dos motivos por que estou ligando. Vou precisar de amostras da caligrafia dela para autenticar o diário. Você tem alguma carta da sua irmã ou qualquer outra coisa com a letra dela?

— Sim, eu tenho algumas cartas. Posso mandar cópias? São muito importantes para mim. É tudo o que tenho da minha irmã. E as fotografias.

Era por isso que Bosch quisera ir pessoalmente. Tratar direto com ­Henrik. O’Toole chamara seu pedido de perda de tempo, uma tentativa de Bosch de tirar férias à custa dos contribuintes.

— Henrik, vou pedir para você me confiar os originais. Precisamos deles porque o grafologista também faz a comparação com base no modo como a pessoa pressiona algumas letras e a pontuação, esse tipo de coisa. Tem algum problema nisso? Prometo devolver tudo sem danificar.

— Sim, tudo bem. Confio em você, detetive.

— Obrigado, Henrik. Vou precisar que me mande as cartas assim que possível. Vai haver primeiro o que a gente chama de grande júri, e vamos querer autenticar antes de apresentar o diário. Além disso, Henrik, temos um bom promotor designado para o caso, e ele me pediu para perguntar se você gostaria de vir a LA para o julgamento.

Houve uma longa pausa antes de Henrik responder:

— É meu dever ir, detetive. Por minha irmã.

— Achei mesmo que fosse dizer isso.

— Quando devo ir?

— Talvez demore um pouco. Como eu disse, temos um grande júri primeiro e depois sempre ocorrem adiamentos.

— Quanto tempo?

— Bom, a condição médica de Drummond provavelmente vai atrasar as coisas um pouco, e, depois, o advogado dele... Gente culpada consegue muita oportunidade de adiar o inevitável no nosso sistema por aqui. Lamento, Henrik. Sei que você esperou muito tempo. Vou mantê-lo informado sobre...

— Eu queria que você tivesse atirado nele. Queria que ele tivesse morrido.

Bosch concordou com a cabeça.

— Compreendo.

— Ele devia ter morrido, como os outros.

Bosch pensou sobre a oportunidade que tivera na colina, quando ­Mendenhall o havia deixado a sós com Drummond.

— Compreendo — disse novamente.

Tudo o que recebeu como resposta foi o silêncio.

— Henrik? Você está aí?

— Desculpe. Por favor, espere um pouco.

A linha ficou muda antes que Bosch pudesse responder. Mais uma vez, desejou ter podido visitar pessoalmente aquele homem que perdera tanto. O’Toole havia lembrado a Bosch que Anneke Jespersen estava morta fazia vinte anos. Dissera que as pessoas seguiam com a vida e que não havia motivo para bancar uma viagem até Copenhague só para dar um toque pessoal à notificação da captura para um parente próximo.

Enquanto esperava Henrik voltar, Bosch ergueu os olhos por cima da divisória de sua baia, como um soldado espiando de uma trincheira. O’Toole estava parado à porta de seu escritório, supervisionando a sala do esquadrão como um senhor feudal observando seus domínios. Ele pensava em termos de números e estatísticas. Não fazia ideia do que os outros estavam fazendo ali. Não tinha ideia da missão.

Os olhos de O’Toole finalmente cruzaram com os de Bosch, e os dois ficaram se encarando por um momento. Mas então o homem mais fraco desviou o olhar. O’Toole voltou para sua sala e fechou a porta.

Quando estavam na encosta, à espera dos primeiros a responder aos chamados, Mendenhall revelara para Bosch como fora sua investigação. Ela lhe contou coisas que o deixaram surpreso e magoado. O’Toole apenas aproveitara a oportunidade de dar um aperto em Bosch, mas a reclamação não partira dele. Fora Shawn Stone quem prestara queixa, em San Quentin, alegando que ­Bosch o expusera ao perigo por fazê-lo comparecer a uma sala de interrogatório policial, afirmando que corria o risco de ficar marcado como dedo-duro. Men­denhall disse que sua conclusão, depois de entrevistar todas as partes, foi de que Stone estava mais preocupado em perder a atenção da mãe para Bosch do que em ser tachado de informante da polícia. Ele esperava que a queixa atrapalhasse a relação entre Hannah e Harry.

Bosch ainda tinha de tratar do assunto com Hannah e não sabia muito bem quando ia fazê-lo. Temia que, a longo prazo, o rapaz fosse bem-sucedido em seu plano.

A única coisa que Mendenhall se recusou a entregar foi sua própria motivação. Não quis lhe contar por que o seguira por iniciativa própria. Ele tinha de se contentar em ficar grato por ela tê-lo feito.

— Detetive Bosch?

— Estou aqui, Henrik.

Houve um longo momento de silêncio conforme Henrik ordenava seus pensamentos depois de voltar à ligação.

— Não sei — disse finalmente. — Achei que seria diferente, sabe?

A voz dele estava embargada de emoção.

— Como assim?

Houve outra pausa.

— Esperei vinte anos por esse telefonema... e todo esse tempo achei que isso passaria. Eu sabia que sempre ficaria triste por minha irmã. Mas achei que a outra coisa passaria.

— Que outra coisa, Henrik? — perguntou, embora já soubesse a resposta.

— Raiva... Eu continuo com raiva, detetive Bosch.

Bosch assentiu. Olhou para sua mesa, para as fotos de todas as vítimas sob o tampo de vidro. Casos e rostos. Seus olhos foram da foto de Anneke Jespersen para algumas outras. Pessoas pelas quais ele ainda não havia feito nada.

— Eu também, Henrik. Eu também.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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