Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
A CÂMARA
Segunda Parte
O sorriso da recepcionista da entrada não foi tão rápido como de costume e, ao encaminhar-se para o seu gabinete, Adam detectou uma atmosfera mais sombria entre o pessoal e o grupo de advogados. A conversa era uma oitava mais abaixo. As coisas eram um pouco mais urgentes.
Chicago tinha chegado. Acontecia ocasionalmente, não necessariamente com o objectivo de inspeccionar, mas mais frequentemente para prestar assistência a um cliente local ou para conduzir pequenas reuniões empresariais burocráticas. Nunca ninguém tinha sido despedido quando Chicago chegava. Nunca ninguém fora injuriado ou maltratado. Mas viviam-se sempre momentos de ansiedade até Chicago se ir embora dirigindo-se novamente para norte.
Adam abriu a porta do gabinete e quase embateu no rosto preocupado de E. Garner Goodman em pessoa, com o seu laço verde rameado, camisa branca engomada e cabelo cinzento despenteado. Andava de um lado para o outro da sala e por acaso estava perto
da porta quando esta se abriu. Adam fitou-o e depois pegou-lhe na mão e apertou-a rapidamente.
- Entre, entre - disse Goodman, fechando a porta enquanto convidava Adam a entrar no seu próprio gabinete. Ainda não sorrira.
- O que está a fazer aqui? - perguntou Adam, atirando a pasta para o chão e encaminhando-se para a secretária. Encararam-se um ao outro.
Goodman acariciou a barba cinzenta bem aparada e depois ajustou o laço.
- Receio que haja uma emergência. Podem ser más notícias.
- O quê?
- Sente-se, sente-se. Isto pode demorar algum tempo.
- Não, estou bem assim. O que é? - tinha que ser horrível se se tornava necessário ele sentar-se.
Goodman brincou com o laço, esfregou a barba e depois disse:
- Bem, aconteceu hoje às nove da manhã. O Comité de Pessoal é constituído por quinze sócios, quase todos jovens. O comité pleno tem vários subcomités, evidentemente, um para o recrutamento, um para a disciplina, outro para os desacordos e assim por diante. E, como pode calcular, há um para os despedimentos. O subcomité de despedimentos reuniu esta manhã e adivinhe quem estava lá para dirigir tudo.
- O Daniel Rosen.
- O Daniel Rosen. É evidente que há dez dias que ele anda a trabalhar o subcomité de despedimentos tentando reunir votos suficientes para o despedir.
Adam sentou-se numa cadeira junto da mesa e Goodman sentou-se à frente dele.
- O subcomité tem sete membros e encontraram-se esta manhã a pedido de Rosen. Estavam presentes cinco membros, por isso tinham quórum. O Rosen, evidentemente, não me notificou nem a mais ninguém. As reuniões de despedimento são estritamente confidenciais por razões óbvias, portanto não lhe era exigido que notificasse fosse quem fosse.
- Nem mesmo eu!
- Não, nem mesmo você. Você era o único ítem da agenda e a reunião durou menos de uma hora. Rosen já tinha ganho a partida antes de entrar, mas apresentou o caso muito eficazmente. Lembre-se que durante trinta anos ele foi um terrível litigador. Eles gravam todas as reuniões de despedimento para o caso de haver processo mais tarde, por isso o Rosen fez um registo completo. Evidentemente, alega que você agiu fraudulentamente quando se candidatou à Kravitz & Bane, que a firma se defronta com um conflito de interesses e por aí fora. E apresentou cópias de mais de uma dúzia de artigos de jornal sobre si e o Sam e o ângulo avô-neto. O seu argumento é que você é um embaraço para a firma. Estava muito bem preparado. Acho que na segunda-feira passada o subestimámos.
- E então eles votaram.
- Quatro a um para o despedir.
- Sacanas!
- Eu sei. Já vi o Rosen em casos difíceis e o tipo consegue ser brutalmente persuasivo. Normalmente, consegue o que quer. Como já não pode ir aos tribunais, arranja lutas dentro do próprio escritório. Vai sair dentro de seis meses.
- De momento não é um grande conforto.
- Há esperança. Por volta das onze horas as notícias chegaram finalmente ao meu escritório e, por sorte, Emmitt Wycoff estava comigo. Fomos ao gabinete do Rosen e tivemos uma terrível briga e em seguida pusémo-nos ao telefone. O principal é o seguinte: o Comité do Pessoal reúne-se às oito da manhã para rever o seu despedimento. Tem que estar presente.
- Às oito horas da manhã!
- Sim. Aqueles tipos são gente ocupada. Muitos têm julgamentos às nove. Outros têm depoimentos todo o dia. Em quinze teremos sorte se conseguirmos quórum.
- De quanto é o quórum?
- Dois terços. Dez. E se não tivermos quórum, podemos estar em sarilhos.
- Sarilhos! O que é que chama a isto?
- Podia ser pior. Se não houver quórum amanhã de manhã, você terá direito a pedir outra revisão no prazo de trinta dias.
- Daqui a trinta dias o Sam estará morto.
- Talvez não. De qualquer forma, acho que conseguiremos a reunião amanhã de manhã. O Emmitt e eu temos promessas de nove dos membros de estarem presentes.
Adam bateu subitamente na mesa com ambas as mãos.
- Eu demito-me c'os diabos!
- Não pode demitir-se. Acaba de ser despedido. - Então não contestarei. Filhos da mãe!
- Ouça Adam...
- Filhos da mãe!
Goodman retirou-se por momentos para permitir que Adam se acalmasse. Endireitou o laço e verificou o crescimento da barba.
Bateu com os dedos na mesa. Depois disse:
- Olhe Adam, temos boas hipóteses amanhã de manhã. O Emmit pensa que sim e eu também. A firma apoia-o neste caso. Acreditamos naquilo que está a fazer e sinceramente gostámos da publicidade. Têm saído boas histórias nos jornais de Chicago.
- Não há dúvida que a firma se mostra muito apoiante.
- Ouça-me. Podemos resolver isto amanhã. Eu faço a conversa. Neste momento, o Wycoff anda a torcer uns braços. Temos outras pessoas a torcer braços.
- O Rosen não é estúpido, Mr. Goodman. Ele não se interessa por mim, não se interessa pelo Sam nem por si nem por ninguém. Quer apenas ganhar. É uma competição e aposto que neste momento está ao telefone tentando reunir votos.
- Então, vamos lá combater esse maluco. Vamos entrar amanhã naquela reunião de cabeça erguida. Vamos transformar o Rosen no mau da fita. Adam, o homem não tem muitos amigos.
Adam foi até à janela e espreitou através das persianas. O tráfico de peões era intenso no Mall lá em baixo. Eram quase cinco horas. Tinha quase cinco mil dólares em fundos mutuários e, se fosse frugal e fizesse algumas alterações ao seu estilo de vida, o dinheiro poderia durar seis meses. O seu salário era de sessenta e dois mil dólares e substituí-lo a breve trecho seria difícil. Mas nunca se preocupara muito com dinheiro e não ia começar agora. Estava muito mais preocupado com as três semanas seguintes. Depois de uma carreira de dez dias como advogado num caso de pena de morte, sabia que precisava de ajuda.
- Como será no fim? - perguntou depois de um pesado silêncio.
Goodman ergueu-se lentamente da cadeira e encaminhou-se para outra janela.
- Uma loucura. Não vai dormir muito nos últimos quatro dias. Vai correr em todas as direcções. Os tribunais são imprevisíveis. O sistema é imprevisível. Continuamos a interpor petições e recursos sabendo muito bem que não resultarão. A imprensa andará atrás de si. E, mais importante que tudo, precisará de passar o mais tempo possível com o seu cliente. É um trabalho de loucos e é todo de graça.
- Portanto vou precisar de ajuda.
- Oh, sim. Não poderá fazer tudo sozinho. Quando o Maynard Tole foi executado, tínhamos um advogado de Jackson postado à porta do governador, outro no gabinete do assistente do Supremo Tribunal em Jackson, um em Washington e dois no corredor da morte. É por isso que tem que ir contestar amanhã, Adam. Vai precisar da firma e dos seus recursos. Não conseguirá fazê-lo sozinho. É preciso uma equipa.
- Isto é um autêntico pontapé no baixo ventre.
- Bem sei. Há um ano ainda estava na faculdade de Direito e agora foi despedido. Eu sei que dói. Mas creia-me, Adam, é apenas um azar. Não se vai concretizar. Daqui a dez anos será sócio desta firma e vai aterrorizar os jovens associados.
- Não aposte nisso.
- Vamos para Chicago. Tenho dois bilhetes para o voo das sete e um quarto. Estaremos em Chicago por volta das oito e meia e procuramos um bom restaurante.
- Preciso de ir buscar umas roupas.
- Óptimo, vá ter comigo ao aeroporto às seis e meia.
Efectivamente o assunto já estava resolvido antes da reunião começar. Estavam presentes onze membros do Comité do Pessoal, número suficiente para o quórum. Reuniram-se numa biblioteca fechada no sexto andar, à volta de uma comprida mesa com litros de café ao centro, e trouxeram consigo grossos dossiers, ditafones portáteis e agendas de bolso sobrecarregadas. Um trouxe a secretária, que se sentou no corredor a trabalhar furiosamente. Eram pessoas ocupadas, todos eles a menos de uma hora de outro dia frenético de intermináveis conferências, reuniões, resumos, depoimentos, julgamentos, telefonemas e almoços importantes. Dez homens e uma mulher, todos na casa dos trinta e muitos ou quarenta e poucos, todos sócios da K&B, todos com pressa de regressar às suas secretárias atulhadas.
O caso de Adam Hall foi um aborrecimento para eles. Na verdade, o Comité do Pessoal era um aborrecimento para eles. Não era um dos mais agradáveis quadros para se pertencer, mas tinham sido devidamente eleitos e ninguém se atrevera a recusar. Tudo pela firma. Força, equipa, força!
Adam chegou ao escritório às sete e meia. Tinha estado fora dez dias, a sua maior ausência até ao momento. Emmitt Wycoff passara o trabalho de Adam para outro jovem associado. Nunca havia falta de novatos na Kravitz & Bane.
Por volta das oito horas estava escondido numa pequena e inútil sala de conferências perto da biblioteca no sexto andar. Estava nervoso, mas tentava arduamente não o demonstrar. Bebeu café e leu os jornais da manhã. Parchman estava a um mundo de distância. E estudou a lista de quinze nomes do Comité do Pessoal, nenhum dos quais conhecia. Onze estranhos que dariam voltas ao seu futuro durante a próxima hora, em seguida votariam rapidamente e prosseguiriam com os seus assuntos mais importantes. Wycoff entrou e cumprimentou-o alguns minutos antes das oito. Adam agradeceu-lhe por tudo, pediu desculpa pelos incómodos que havia causado e ouviu Emmitt prometer-lhe uma conclusão rápida e satisfatória.
Garner Goodman abriu a porta cinco minutos depois das oito.
- Parece estar tudo bem - disse ele quase num murmúrio. Agora já estão onze presentes. Temos promessas de pelo menos cinco. Três dos votos de Rosen no subcomité estão presentes, mas é possível que ele tenha um ou dois votos a menos.
- O Rosen está presente? - perguntou Adam, apesar de já saber a resposta, mas esperando que o velho safado tivesse morrido durante o sono.
- Sim, claro. E acho que está preocupado. Ontem às dez da noite o Emmit ainda estava a fazer telefonemas. Temos os votos e o Rosen sabe-o - Goodman esgueirou-se pela porta e desapareceu.
Às oito e um quarto, o presidente declarou a existência de quórum para realizar a reunião. O despedimento de Adam Hall era o único ponto da agenda e na realidade o único motivo daquela reunião especial. Emmitt Wycoff foi o primeiro a falar e em dez minutos fez um belo trabalho ao afirmar como Adam era maravilhoso. De pé numa das extremidades da mesa, em frente a uma fila de estantes, falou confortavelmente como se estivesse a tentar persuadir um júri. Pelo menos metade dos onze não ouviram nem uma palavra. Analisaram documentos e avaliaram as suas agendas.
Garner Goodman falou a seguir. Resumiu rapidamente o caso de Sam Cayhall e declarou honestamente que, com toda a probabilidade, Sam seria executado em três semanas. Depois elogiou Adam, podia ter errado não revelando a sua relação com Sam, mas que diabo, isso fora há um ano e o presente é muito mais importante quando um cliente tem apenas três semanas de vida.
Não fizeram nem uma pergunta nem a Wycoff nem a Goodman. Era evidente que estavam a guardar as perguntas para Rosen.
Os advogados têm boa memória. Corta-se uma garganta hoje e ele esperará pacientemente na sombra durante anos até poder devolver o favor. Daniel Rosen tinha muitos favores nos corredores da Kravitz & Bane e como sócio- gerente estava agora a recolhê-los. Tinha pisado muita gente, a sua própria gente, durante anos. Era um fanfarrão, um mentiroso e um malandro. Nos seus dias de glória, fora a alma e o coração da firma e sabia-o. Ninguém o desafiaria. Tinha maltratado os jovens associados e atormentara os outros sócios. Tinha atropelado as decisões dos comités, ignorado as políticas da firma, roubado clientes aos outros advogados da Kravitz & Bane e, agora, no declínio da sua carreira, estava a colher os favores.
Dois minutos depois de ter começado a sua exposição, foi interrompido pela primeira vez por um jovem sócio, que costumava praticar motocross com Emmitt Wycoff. Rosen andava de um lado para o outro, como se estivesse a representar para uma sala de audiências superlotada nos seus dias de glória, quando a pergunta o deteve. Antes de poder pensar numa resposta sarcástica, foi atingido por outra questão. Na altura em que já tinha uma resposta para um dos dois, uma terceira pergunta surgiu de nenhures. A briga tinha começado.
Os três interrogadores funcionavam como uma equipa eficiente e era evidente que tinham ensaiado. Revezavam-se a espicaçar Rosen com perguntas implacáveis e num minuto ele estava a praguejar e a
insultar. Eles mantiveram uma calma colectiva. Cada um deles tinha um bloco com o que parecia ser longas listas de perguntas.
- Onde é que está o conflito de interesses, Mr. Rosen?
- Certamente que um advogado pode representar um membro da sua família, não é verdade, Mr. Rosen?
- O impresso da candidatura perguntava especificamente a Mr. Hall se a firma representava algum membro da sua família?
- Tem alguma coisa contra a publicidade, Mr. Rosen?
- Porque é que considera a publicidade negativa?
- Tentaria ajudar um membro da sua família que se encontrasse no corredor da morte?
- Qual é a sua opinião acerca da pena de morte, Mr. Rosen?
- Deseja secretamente ver o Sam Cayhall executado porque ele assassinou judeus?
- Não acha que preparou uma armadilha a Mr. Hall? Não era um espectáculo agradável. Algumas das maiores vitórias processuais da história recente de Chicago pertenciam a Daniel Rosen e ele ali estava a deixar-se bater numa luta sem sentido perante um comité. Não perante um júri, não perante um juiz, mas apenas diante de um comité.
A ideia da recuar nem lhe passava pela cabeça. Continuava a pressionar, tornando-se cada vez mais exaltado e mais cáustico. As suas réplicas ácidas tornaram-se pessoais e disse algumas coisas muito desagradáveis a respeito de Adam.
Isso foi um erro. Os outros juntaram-se à refrega e em breve Rosen era a presa ferida fugindo apenas uns passos à frente da alcateia de lobos. Quando se tornou evidente que nunca poderia alcançar uma maioria no comité, baixou a voz e retomou a compostura.
Terminou agradavelmente com uma súmula sobre considerações éticas e a necessidade de evitar a aparência de impropriedade, evangelho que os advogados aprendem na faculdade de Direito e atiram à cara uns dos outros quando discutem, mas que ignoram quando conveniente.
Quando terminou, Rosen saiu tempestuosamente da sala, anotando mentalmente aqueles que tinham tido a audácia de o defrontar. Escreveria os seus nomes num dossier assim que chegasse à sua secretária e um dia, bem um dia havia de fazer qualquer coisa a esse respeito.
Os papéis, os blocos e o equipamento electrónico desapareceram de cima da mesa, que ficou subitamente limpa, à excepção do café e das chávenas vazias. O presidente pediu que votassem. Rosen obteve cinco. Adam obteve seis e o Comité do Pessoal encerrou imediatamente a reunião e desapareceu apressadamente.
- Seis a cinco? - repetiu Adam enquanto fitava os rostos aliviados mas sérios de Goodman e Wycoff.
- Uma maioria esmagadora - zombou Wycoff.
- Podia ser pior - disse Goodman. - Podia ter ficado sem emprego.
- Porque é que não me sinto extático? Quer dizer, uma porcaria de um voto e teria passado à história.
- Na verdade, não - explicou Wycoff. - Os votos foram contados antes da reunião. Rosen tinha talvez dois votos garantidos e os outros apoiaram-no porque sabiam que você ia ganhar. Não faz ideia da quantidade de braços que foram torcidos ontem à noite. Isto arruma o Rosen. Estará fora dentro de três meses.
- Talvez mais depressa - acrescentou Goodman. - É um canhão perdido. Estão todos fartos dele.
- Incluindo eu - disse Adam.
Wycoff olhou para o relógio. Eram oito e quarenta e cinco e tinha que estar no tribunal às nove.
- Bem, Adam, tenho que me apressar - disse ele abotoando o casaco. - Quando é que volta para Memphis?
- Hoje, acho eu.
- Podemos almoçar juntos? Gostaria de falar consigo.
- Claro.
Abriu a porta e disse:
- Óptimo, a minha secretária depois telefona. Tenho que ir. Até logo - e desapareceu.
Goodman também olhou subitamente para o relógio. O seu relógio andava muito mais devagar do que o dos verdadeiros advogados da firma, mas também tinha compromissos a cumprir.
- Preciso de me encontrar com alguém no meu escritório. Almoço com vocês.
- Uma porcaria de um voto - repetiu Adam fitando a parede.
- Vá lá, Adam, não foi assim tão à tangente.
- Certamente que parece.
- Olhe, precisamos de passar algumas horas juntos antes de se ir embora. Quero saber tudo acerca do Sam, certo? Vamos começar ao almoço - abriu a porta e desapareceu.
Adam sentou-se à mesa a abanar a cabeça.
Se Baker Cooley e os outros advogados do escritório de Memphis sabiam alguma coisa acerca do súbito despedimento de Adam e da sua inversão, não o demonstraram. Trataram-no exactamente da mesma forma, o que quer dizer que continuaram metidos consigo próprios e se mantiveram afastados do seu gabinete. Não eram grosseiros com ele porque, afinal, era de Chicago. Sorriam quando eram obrigados a isso e podiam mesmo parar para uns momentos de conversa no corredor quando Adam se mostrava disposto a isso. Mas eram advogados de empresa, de camisas engomadas e mãos macias, pouco habituados à sujidade e porcaria da defesa criminal. Não iam às cadeias nem às prisões visitar clientes, nem se misturavam com polícias, acusadores públicos e juízes excêntricos. Trabalhavam sobretudo atrás das próprias secretárias e em volta de mesas de conferência de mogno. Passavam o tempo a falar com clientes que podiam pagar-lhes várias centenas de dólares por hora por um parecer e, quando não estavam a conversar com os clientes, estavam ao telefone ou a almoçar com outros advogados, banqueiros ou executivos das companhias de seguros.
Já tinham saído suficientes notícias nos jornais para despertar o ressentimento dentro do escritório. A maioria dos advogados sentia-se embaraçada por ver o nome da sua firma associado a uma personagem como Sam Cayhall. A maior parte deles não fazia ideia que Chicago o representara durante sete anos. Agora os ami gos faziam perguntas. Outros advogados diziam piadinhas. As esposas eram humilhadas nos chás do clube. Os parentes por afini dade mostravam-se subitamente interessados nas suas carreiras de advogados.
Sam Cayhall e o neto tinham-se tornado rapidamente numa maçada para o escritório de Memphis, mas nada podia ser feito a esse respeito.
Adam pressentia tudo isto, mas não se importava. Era um escritório temporário, adequado para mais três semanas e nem mais um dia. Saiu do elevador na sexta-feira de manhã e ignorou a recepcionista que pareceu subitamente ocupada a arrumar revistas. Falou com a sua secretária, uma jovem de nome Darlene, e ela entregou-lhe uma mensagem telefónica de Todd Marks do Memphis Press.
Levou a mensagem telefónica cor-de-rosa para o seu gabinete e atirou-a para o cesto dos papéis. Pendurou o casaco num cabide e começou a encher a mesa de papéis. Havia páginas e páginas de notas que tomara nos voos para e de Chicago e petições semelhantes que pedira emprestadas a Goodman e dúzias de cópias de decisões federais recentes.
Em breve estava perdido num mundo de teorias e estratégias legais. Chicago era uma memória evanescente.
Rollie Wedge entrou no edifício do Brinkley Plaza pelas portas da frente que davam para o hall. Esperara pacientemente sentado a uma mesa de uma esplanada até o Saab preto aparecer e virar para um parque de estacionamento vizinho. Usava uma camisa branca vulgar com gravata, calças de linho, sapatos banais. Bebia um chá gelado enquanto observava Adam a caminhar ao longo do passeio e a entrar no edifício.
O átrio estava vazio quando Wedge analisou a lista de endereços. A Kravitz & Bane ocupava o terceiro e o quarto pisos. Havia quatro elevadores iguais e ele tomou um até ao oitavo andar. Saiu num átrio estreito. À direita havia uma porta com o nome de uma companhia fiduciária gravado em latão e à esquerda um corredor adjacente bordejado de portas para vários tipos de empresas. Ao lado do chafariz havia uma porta para as escadas. Desceu casualmente oito lances, verificando as portas enquanto descia. Não encontrou ninguém nas escadas. Regressou ao átrio, tomou um outro elevador, sozinho, até ao terceiro andar. Sorriu para a recepcionista, que ainda estava ocupada com as revistas e estava prestes a perguntar onde ficava a companhia fiduciária quando o telefone tocou e ela atendeu. Um conjunto de portas de vidro duplas separavam a área da recepção do patamar dos elevadores. Subiu ao quarto andar e encontrou um conjunto de portas idênticas, mas nenhuma recepcionista. As portas estavam fechadas. Numa parede à direita havia um painel de entrada de código com nove botões numerados.
Ouviu vozes e saiu para a escada. Não havia fechadura nas portas de nenhum dos lados. Esperou uns momentos, passou novamente pela porta e bebeu água. Um elevador abriu-se e um jovem de fato caqui e blusão azul saiu com uma caixa de cartão debaixo de um dos braços e um grosso livro na mão direita. Dirigiu-se para as portas da Kravitz & Bane. Assobiava alto uma melodia e não se apercebeu quando Wedge se colocou atrás dele. Parou, equilibrou cuidadosamente o livro de Direito em cima da caixa, libertando a mão direita para marcar o código. Sete, sete, três e o painel emitia um sinal sonoro a cada número. Wedge estava apenas a alguns centímetros, espreitando por cima do seu ombro e memorizando o código.
O jovem agarrou rapidamente no livro e estava prestes a voltar-se quando Wedge chocou ligeiramente com ele e disse:
- Raios! Desculpe! Eu não... - Wedge recuou um passo e olhou para as letras da porta. - Aqui não é a Riverbend Trustdisse ele com espanto.
- Não, aqui é a Kravitz & Bane.
- Que andar é este? - perguntou Wedge. Ouviu-se um clique e a porta abriu-se.
- Quarto. A Riverbend Trust fica no oitavo.
- Desculpe - disse Wedge novamente, agora embaraçado e quase lamentável. - Devo ter saído no andar errado.
O jovem franziu a testa, abanou a cabeça e depois abriu a porta.
- Desculpe - disse Wedge pela terceira vez recuando. A porta fechou-se e o rapaz desapareceu. Wedge tomou o elevador para o átrio principal e saiu do edifício.
Deixou a Baixa e dirigiu-se para leste e norte durante dez minutos, até chegar a um sector da cidade onde se situavam habitações sociais. Encostou ao passeio junto da Auburn House e foi detido por um guarda uniformizado. Estava só a dar a volta, explicou, tinha-se perdido de novo e lamentava muito. Enquanto recuava para a rua, viu o jaguar cor de vinho de Lee Booth estacionado entre dois muros.
Dirigiu-se para o rio, novamente em direcção à Baixa, e vinte minutos mais tarde estacionou junto de um armazém de tijolo nas escarpas. Sentado no carro, mudou rapidamente de roupa, envergando uma camisa castanha com uma orla azul nas mangas curtas e o nome Rusty bordado por cima do bolso. Depois deslocou-se ágil mas descuidadamente a pé, virando a esquina do edifício e descendo uma encosta pelo meio das ervas até parar junto dos arbustos. Uma pequena árvore dava sombra, enquanto recuperava o fôlego e se abrigava do sol escaldante. À sua frente ficava um pequeno campo relvado, espesso, verde e obviamente bem cuidado e, do outro lado da relva, uma fila de vinte condomínios de luxo situados à beira do penhasco. Uma vedação de ferro e tijolo constituía um problema embaraçoso e ele estudou-a pacientemente na privacidade do arbusto.
A um dos lados do condomínio ficava o parque de estacionamento com um portão fechado que conduzia à única entrada e saída. Um guarda uniformizado ocupava a pequena casa do portão, em forma de caixa e com ar condicionado. Havia poucos carros à vista. Eram quase dez horas da manhã. Os contornos do guarda eram visíveis através do vidro fumado.
Wedge ignorou a vedação e preferiu entrar pelo lado do penhasco. Rastejou ao longo de uma fileira de buxos, agarrando-se firmemente à relva para não escorregar e cair de vinte e quatro metros até Riverside Drive. Deslizou sob pátios arborizados, alguns dos quais pendiam três metros no ar à medida que o penhasco se tornava mais íngreme sob eles. Parou no sétimo condomínio e atirou-se para dentro do pátio.
Descansou por um momento numa cadeira de baloiço e brincou com um cabo exterior, como se estivesse a responder a uma chamada de assistência rotineira. Ninguém estava a observar. A privacidade era importante para esta gente abastada, pagavam muito por ela e cada pequeno terraço estava protegido do seguinte por plantas ornamentais suspensas e todo tipo de vegetação. Nessa altura tinha a camisa pegajosa e colada às costas.
A porta de vidro corrediça entre o pátio e a cozinha estava fechada, claro, uma fechadura muito simples que o atrasou quase um minuto. Levantou-a, não deixando estragos nem provas, depois olhou mais uma vez em volta antes de entrar. Esta era a parte perigosa. Presumiu que existia um sistema de segurança, provavelmente com contactos em todas as janelas e portas. Uma vez que não estava ninguém em casa, era altamente provável que o sistema se activasse. A questão delicada era saber exactamente que quantidade de ruído seria produzida quando ele abrisse a porta. Haveria um alarme silencioso ou seria surpreendido por uma sirene gritante?
Respirou fundo e em seguida fez a porta deslizar cuidadosamente. Nenhuma sirene o saudou. Deu uma rápida olhadela ao monitor que se encontrava sobre a porta e entrou.
O contacto alertou imediatamente Willis, o guarda do portão, que ouviu um sinal sonoro frenético, embora não muito alto, no seu ecrã de vigilância. Olhou para a luz vermelha que piscava no número 7, a casa de Lee Booth, e esperou que parasse. Mrs. Booth despoletava involuntariamente o alarme pelo menos duas vezes
por mês, o que era mais ou menos a média normal em todas aquelas casas que guardava. Verificou o quadro e reparou que Mrs. Booth saira às nove e um quarto. Mas ocasionalmente ela tinha visitas a passar a noite, normalmente homens, e agora tinha o sobrinho a viver com ela; portanto, Willis observou a luz vermelha durante quarenta e cinco segundos até parar de piscar e se fixar numa posição permanente de LIGADO.
Isto não era normal, mas também não havia razão para entrar em pânico. Esta gente vivia atrás de paredes e pagava a guardas armados vinte e quatro horas por dia, por isso não levavam muito a sério os seus sistemas de alarme. Ligou rapidamente o número de Mrs. Booth, mas não obteve resposta. Carregou num botão e pôs em funcionamento uma chamada para o 911 pedindo a intervenção da polícia. Abriu o chaveiro e seleccionou a chave do número 7; saiu da casa do portão e atravessou rapidamente o parque de estacionamento em direcção à casa de Mrs. Booth. Desapertou o coldre para poder chegar facilmente ao revólver se fosse necessário.
Rollie Wedge entrou na casa do portão e viu o chaveiro aberto. Retirou um conjunto com a indicação do número 7 e um cartão com o código e instruções do alarme. Por uma questão de segurança levou também as chaves e os cartões dos números 8 e 13, apenas para baralhar o velho Willis e a polícia.
Primeiro foram ao cemitério homenagear os mortos. Este ocupava duas pequenas elevações na extremidade de Clanton, uma com elaborados túmulos e monumentos dispostos em fila, onde as famílias proeminentes se tinham sepultado ao longo do tempo e gravado os seus nomes no pesado granito. A segunda elevação destinava-se às sepulturas mais recentes e, à medida que o tempo passava no Mississípi, as sepulturas tinham-se tornado mais pequenas. Carvalhos e ulmeiros imponentes sombreavam a maior parte do cemitério. A relva fora cortada rente e os arbustos estavam aparados. Havia azáleas em todos os cantos. Clanton dava importância aos seus mortos.
Era um belo dia de sábado, sem nuvens e com uma brisa que começara durante a noite e afastara a humidade. As chuvas tinham parado algum tempo e as encostas dos montes apresentavam-se verdes e cobertas de flores silvestres. Lee ajoelhou-se junto à campa da mãe e colocou um pequeno ramo de flores debaixo do nome gravado. Fechou os olhos, enquanto Adam, de pé atrás dela, fitava a sepultura. Anna Gates Cayhall, 3 de Setembro de 1922-18 de Setembro de 1977. Tinha cinquenta e cinco anos quando morrera, calculou Adam, portanto ele tinha treze anos e ainda vivia em abençoada ignorância algures no sul da Califórnia.
Estava sepultada sozinha, sob uma única pedra tumular, e isto era em si um problema. Os companheiros de jornada eram normalmente enterrados lado a lado, pelo menos no Sul, ocupando o primeiro o primeiro espaço sob uma pedra tumular dupla. Em cada visita ao falecido, o sobrevivente via o seu próprio nome já gravado e à espera.
- O pai tinha cinquenta e seis anos quando a mãe morreuexplicou Lee ao pegar na mão de Adam e afastando-se da sepultura. - Eu quis que ele a enterrasse num sítio onde pudesse juntar-se um dia a ela, mas ele recusou. Penso que achou que ainda tinha alguns anos para viver e poderia voltar a casar.
- Disseste-me uma vez que ela não gostava do Sam.
- Tenho a certeza de que o amava à sua maneira, estiveram juntos durante quase quarenta anos. Mas nunca foram íntimos. À medida que fui crescendo, compreendi que ela não gostava de estar perto dele. Por vezes fazia-me confidências. Era uma rapariga simples do campo que casou muito nova, teve filhos, ficou em casa a cuidar deles e obedecia ao marido. E isto não era nada invulgar naqueles tempos. Acho que era uma mulher muito frustrada.
- Talvez ela não quisesse o Sam junto de si para toda a eternidade.
- Pensei nisso. Na verdade, o Eddie queria que eles ficassem separados e enterrados em lados opostos do cemitério.
- Boa para o Eddie.
- E não estava a brincar.
- O que sabia ela acerca do Sam e do Klan?
- Não faço a menor ideia. Não era assunto que se discutisse. Lembro-me que ela se sentiu humilhada depois de ele ter sido preso. Chegou mesmo a ir ficar convosco porque os repórteres a incomodavam.
- E não assistiu a nenhum dos julgamentos.
- Não. Ele não quis que ela assistisse. Ela sofria de tensão arterial alta e ele serviu-se disso como desculpa para a manter afastada.
Viraram e caminharam ao longo de um caminho estreito pela secção velha do cemitério. De mãos dadas, ia olhando para os túmulos por que passavam. Lee apontou para uma fileira de árvores do outro lado da rua noutro monte.
- Os negros são enterrados ali - disse ela. - Debaixo daquelas árvores. É um cemitério pequeno.
- Estás a brincar? Ainda hoje?
- Claro, sabes, é preciso conservá-los no seu lugar. Estas pessoas não suportariam a ideia de um negro jazendo entre os seus antepassados.
Adam abanou a cabeça, incrédulo. Subiram o monte e descansaram debaixo de um carvalho. As filas de sepulturas estendiam-se pacificamente abaixo deles. A cúpula do tribunal de Ford County brilhava ao sol a alguns quarteirões de distância.
- Brinquei aqui quando era criança - disse ela calmamente. Apontou para a direita, para norte. - Todos os quatro de Julho a cidade celebra com uma exibição de fogo-de-artifício e os melhores lugares para ver o espectáculo são aqui no cemitério. Há um parque ali em baixo e é daí que lançam o fogo. Carregávamos as nossas bicicletas e vínhamos à cidade para ver a parada, nadar na piscina da cidade e brincar com os nossos amigos. E assim que escurecia, juntávamos-nos todos aqui, no meio dos mortos, e sentávamo-nos nestas pedras tumulares a ver o fogo-de-artifício. Os homens ficavam junto dos carros, onde tinham escondido a cerveja e o uisque e as mulheres deitavam-se nas mantas e cuidavam dos bebés. Nós corríamos, saltávamos e andávamos por toda a parte nas nossas bicicletas.
- Eddie?
- Claro. O Eddie era apenas um irmão mais novo, normal, maçador como o diabo às vezes, mas um rapaz em tudo. Sinto a falta dele, sabes. Sinto muito a falta dele. Durante muitos anos estivemos afastados, mas sempre que regresso a esta cidade penso no meu irmão mais novo.
- Também sinto a falta dele.
- Ele e eu viemos aqui, a este mesmo sítio, na noite em que terminou a escola secundária. Eu estivera em Nashville durante dois anos e regressei porque ele queria que eu assistisse à sua festa de graduação. Comprámos uma garrafa de vinho barato e acho que foi a sua primeira bebida. Nunca o esquecerei. Sentámo-nos aqui, na sepultura de Emil Jacob, e bebemos o vinho até a garrafa ficar vazia.
- Em que ano foi isso?
- Mil novecentos e sessenta e um, creio. Ele queria alistar-se no exército para poder sair de Clanton e afastar-se do Sam. Eu não queria o meu irmão mais novo na tropa e discutimos até o sol nascer. - Ele estava muito confuso?
- Tinha dezoito anos e provavelmente estava tão confuso como a maioria dos garotos quando terminam a escola secundária. Eddie tinha pavor de que lhe sucedesse alguma coisa se ficasse em Clanton, medo de que uma qualquer falha genética se manifestasse nele transformando-o noutro Sam. Outro Cayhall com um capuz. Estava desesperado para fugir daqui.
- Mas tu fugiste assim que pudeste.
- Eu sei, mas era mais forte do que o Eddie, pelo menos aos dezoito anos. Não conseguia imaginá-lo a sair de casa tão cedo. Por isso, bebemos vinho e tentámos controlar a nossa vida.
- Alguma vez o meu pai conseguiu controlar a sua vida?
- Duvido, Adam. O nosso pai e o ódio da família eram um tormento para ambos. Há coisas que espero que nunca venhas a saber, histórias que eu rezo para que fiquem por contar. Suponho que consegui afastá-las, mas o Eddie não.
Ela pegou-lhe novamente na mão e vaguearam à luz do sol, por um caminho sujo na direcção da secção nova do cemitério. Parou e apontou para uma fila de pequenas pedras tumulares.
- Ali estão os teus bisavós, juntamente com tias, tios e vários outros Cayhall.
Adam contou oito ao todo. Leu os nomes e as datas e leu em voz alta os poemas, as passagens das Escrituras e as despedidas inscritas no granito.
- Há muitos mais no campo - disse Lee. - A maioria dos Cayhall são originários dos arredores de Karaway, a vinte e quatro quilómetros daqui. Eram pessoas do campo e foram enterrados nas traseiras de igrejas rurais.
- Vieste a estes enterros?
- A alguns. Não somos uma familia muito chegada, Adam. Algumas destas pessoastinham morrido há anos quando eu soube disso.
- Porque é que a tua mãe não foi enterrada aqui?
- Porque ela não queria. Sabia que estava a morrer e escolheu o local. Nunca se considerou uma Cayhall. Era uma Gates.
- Mulher inteligente.
Lee arrancou uma mão-cheia de ervas daninhas da sepultura da mãe e esfregou os dedos sobre o nome de Lydia Newsome Cayhall, que morrera em 1961 com a idade de setenta e dois anos.
- Lembro-me bem dela - disse Lee ajoelhando na erva. Uma boa mulher cristã. Virava-se no caixão se soubesse que o seu terceiro filho está no corredor da morte.
- E ele? - perguntou Adam apontando para o marido de Lydia, Nathaniel Lucas Cayhall, morto em 1952 com a idade de sessenta e quatro anos. O carinho abandonou o rosto de Lee. Um velho mau - disse ela. - Tenho a certeza de que se sentiria orgulhoso do Sam. Nat, como lhe chamavam, foi morto durante
um funeral.
- Um funeral?
- Sim, por estas bandas os funerais eram tradicionalmente acontecimentos sociais. Eram precedidos de longas vigilias com muita gente, muita comida e muita bebida. A vida era dura no sul rural e os funerais degeneravam frequentemente em brigas de bêbados. O Nat era muito violento e arranjou uma briga com o homem errado logo a seguir ao funeral. Espancaram-no até à morte com um pau.
- Onde estava o Sam?
- Mesmo no meio da confusão. Também foi espancado, mas sobreviveu. Eu era muito pequena, mas lembro-me do funeral do Nat. O Sam estava no hospital e não pôde estar presente.
- Ele vingou-se?
- Claro.
- Como?
- Nunca se provou nada, mas muitos anos depois os dois homens que espancaram o Nat saíram da prisão. Apareceram por aqui muito brevemente e depois desapareceram. Um dos corpos foi encontrado um mês depois no vizinho Milburn County. Espancado, claro. O outro homem nunca foi encontrado. A polícia interrogou o Sam e os irmãos, mas não havia provas.
- Achas que foi ele?
- Claro que foi. Nessa altura ninguém se metia com os Cayhall. Eram famosos por serem meio doidos e maus como as cobras.
Deixaram os gravames da família e continuaram o caminho. - Portanto, Adam, o nosso problema é: onde vamos enterrar o Sam?
- Acho que o devíamos enterrar além, no meio dos negros. Isso seria muito apropriado para ele.
- O que te leva a pensar que eles o quereriam?
- Bem observado!
- A sério.
- Eu e o Sam ainda não chegámos a esse ponto.
- Achas que ele quererá ser enterrado aqui? Em Ford County?
- Não sei. Ainda não falámos disso, por razões óbvias. Ainda há esperança.
- Quanta?
- Um vestígio. O bastante para continuarmos a lutar. Saíram do cemitério a pé e caminharam ao longo de uma rua tranquila com passeios gastos e carvalhos antigos. As casas eram velhas e bem pintadas, com alpendres compridos e gatos a dormir nos degraus da frente. As crianças andavam por ali em bicicletas e skares e os velhos balançavam-se nos baloiços dos alpendres e acenavam lentamente.
- Estes são os meus velhos terrenos de brincadeira, Adam - disse Lee, enquanto continuavam a caminhar sem rumo. Tinha as mãos profundamente enterradas nos bolsos, os olhos húmidos das memórias simultaneamente tristes e agradáveis Olhava para cada casa como se lá tivesse estado em criança e conseguisse lembrar-se das rapariguinhas que eram suas amigas. Ouvia ainda os risos e as gargalhadas, os jogos patetas e as graves brigas das meninas de dez anos.
- Foram tempos felizes? - perguntou Adam.
- Não sei. Nunca vivemos na cidade, por isso éramos considerados miúdos do campo. Sempre desejei uma destas casas, com muitos amigos à volta e lojas a poucos quarteirões de distância. Os miúdos da cidade consideravam-se um pouco superiores a nós, mas não havia grandes problemas. As minhas melhores amigas viviam aqui e eu passei muitas horas a brincar nestas ruas, a subir a estas árvores. Acho que foram bons tempos. As memórias da casa no campo não são agradáveis.
- Por causa do Sam?
Uma senhora idosa com um vestido florido e um grande chapéu de palha estava a varrer os degraus da frente a sua casa quando eles se aproximaram. Olhou para eles e depois parou e fixou-os. Lee abrandou o passo e em seguida parou junto do caminho para a casa. Olhou para a velha e a velha olhou para ela.
- B'dia, Mrs. Langston - disse Lee amigavelmente arrastando as palavras.
Mrs. Langston agarrou o cabo da vassoura, endireitou as costas e contentou-se em olhar.
- Sou Lee Cayhall, não se lembra de mim? - disse Lee novamente arrastando as palavras.
Enquanto o nome Cayhall flutuava através do pequeno relvado, Adam descobriu-se a olhar em volta para ver se mais alguém o tinha ouvido. Estava preparado para se sentir embaraçado se mais alguém o escutasse. Se Mrs. Langston se lembrava de Lee, não o demonstrou. Limitou-se a um educado aceno de cabeça, um rápido movimento para baixo e para cima, bastante desajeitado, como se dissesse: Bom-dia para vocês. Agora prossigam".
- Foi um prazer vê-la de novo - disse Lee e começou a afastar-se. Mrs. Langston correu pelos degraus acima e desapareceu dentro de casa.
- Namorei o filho dela quando andava na escola secundária - disse Lee sacudindo a cabeça, incrédula.
- Ela ficou encantada por te ver.
- Ela foi sempre um bocado esquisita - disse Lee sem convicção. - Ou talvez tenha medo de falar com um Cayhall. Medo do que os vizinhos podem dizer.
- Acho que talvez seja melhor passarmos incógnitos durante o resto do dia. O que achas?
- Combinado.
Passaram por outras pessoas que arranjavam os seus canteiros e esperavam pelo carteiro, mas não disseram nada. Lee escondeu os olhos atrás de óculos de sol. Ziguezaguearam pelas imediações na direcção da praça principal, falando acerca dos velhos amigos de Lee e de onde estariam agora. Ela mantinha relações com duas delas, uma em Clanton e outra no Texas. Evitaram falar da familia, até chegarem a uma rua de casas mais pequenas, emolduradas em madeira, todas muito juntas. Pararam à esquina e Lee fez sinal na direcção da rua.
- Vês a terceira casa à direita, a pequena castanha lá ao fundo?
- Sim.
- Era ali que vivias. Podíamos ir até lá, mas vejo que está lá gente.
Duas crianças pequenas brincavam com armas de brinquedo no pátio da frente e alguém estava a andar de baloiço no alpendre estreito. Era uma casa quadrada, pequena, asseada, perfeita para um jovem casal com filhos pequenos.
Adam tinha quase três anos quando Eddie e Evelyn haviam desaparecido e ficou ali à esquina, tentando desesperadamente lembrar-se de alguma coisa sobre a casa. Não conseguiu.
- Nessa altura estava pintada de branco e claro que as árvores eram mais pequenas. Eddie alugou-a numa agência imobiliária local.
- Era bonita?
- Bastante. Não estavam casados há muito tempo. Eram apenas garotos com um bebé. O Eddie trabalhou numa loja de peças de automóveis, depois trabalhou para o departamento de estradas do estado e finalmente arranjou outro emprego qualquer.
- Parece familiar.
- A Evelyn trabalhava a meio tempo numa ourivesaria da praça. Acho que eram felizes. Ela não era de cá, como sabes, e por isso não conhecia muita gente. Viviam isolados.
Passaram pela casa e uma das crianças apontou uma metralhadora cor de laranja a Adam. Não havia recordações daquele sítio para evocar nesse momento. Sorriu para a criança e desviou o olhar. Em breve se encontravam noutra rua de onde se avistava a praça.
Lee transformou-se subitamente em guia turística e historiadora. Os ianques tinham incendiado Clanton em 1863, os sacanas, e depois da guerra o general Clanton, um heróiconfederado, cuja familia era dona do condado, regressou só com uma perna, tendo perdido a outra algures no campo de batalha em Shiloh, e desenhara o novo edifício do tribunal e as ruas à volta. Os desenhos originais estavam pendurados na parede, lá em cima no tribunal. Queria muitas sombras, por isso plantou os carvalhos em filas perfeitas em torno do novo tribunal. Era um homem de visão, que via a pequena cidade erguer-se das cinzas e prosperar, por isso desenhou as ruas segundo um quadrado perfeito em volta do tribunal. Tinham passado mesmo agora pelo túmulo do grande homem e mostrar-lho-ia mais tarde.
Havia um mercado ao norte da cidade e vários supermercados a leste, mas as pessoas de Ford County continuavam a preferir fazer as suas compras na praça aos sábados de manhã, explicou ela enquanto vagueavam pelo passeio do lado de Washington Street. O tráfego era lento e os peões ainda mais lentos. Os edifícios velhos e contíguos, cheios de advogados e agentes de seguros, bancos e
cafés, lojas de ferragens e lojas de roupa. O passeio estava coberto por dosséis, toldos e varandas dos escritórios e das lojas. Ventoinhas que rangiam pendiam baixo e giravam preguiçosamente. Pararam em frente de uma velha farmácia e Lee tirou os óculos de sol.
- Aqui costumava ser um ponto de encontro - explicou ela.
- Havia uma fonte de refrigerante nas traseiras com umajukebox e prateleiras cheias de livros aos quadradinhos. Podíamos comprar um enorme gelado de cereja apenas por um níquel e levávamos horas a comê-lo. Levava ainda mais tempo se os rapazes andavam por aí.
Como qualquer coisa saída de um filme, pensou Adam. Pararam em frente de uma loja de ferragens e por qualquer razão examinaram as pás, enxadas e ancinhos encostados à montra. Lee olhou para as velhas portas duplas, abertas e seguras por tijolos, e pensou em qualquer episódio da infância. Mas guardou-o para si.
Atravessaram a rua de mãos dadas e passaram por um grupo de velhos que estavam a esculpir em madeira e a mascar tabaco em volta do monumento aos mortos da guerra. Ela acenou com a cabeça na direcção de uma estátua e informou-o tranquilamente que se tratava do general Clanton com as duas pernas. O tribunal não se encontrava aberto aos sábados. Compraram coca-colas numa máquina no exterior e beberam-nas num mirante no relvado da frente. Ela contou- lhe a história do julgamento mais famoso da história de Ford County, o julgamento de Carl Lee Hailey, por assassínio, em 1984. Era um megro que tinha matado a tiro dois camponeses brancos que lhe tinham violado a filha pequena.
Houve marchas e protestos dos negros de um lado e dos membros do Klan de outro e a guarda nacional chegou a acampar aqui, à volta do tribunal, para manter a paz. Lee viera um dia de Memphis para assistir ao espectáculo. Foi absolvido por um júri composto exclusivamente de brancos.
Adam lembrava-se do julgamento. Era caloiro em Pepperdine e tinha-o seguido pelos jornais, porque estava a acontecer na cidade onde nascera.
Quando ela era criança havia poucos divertimentos e os julgamentos eram sempre muito concorridos. Certa vez, Sam trouxera-os, a ela e ao Eddie, para assistirem ao julgamento de um homem acusado de matar o seu cão de caça. Foi considerado culpado e condenado a um ano de prisão. O condado ficou dividido - a gente da cidade era contra a condenação por um crime tão insignificante, enquanto a gente do campo dava mais valor a um bom cão. Sam ficara particularmente satisfeito quando o homem fora condenado.
Lee queria mostrar-Lhe uma coisa. Caminharam em volta do tribunal até à porta das traseiras, onde se viam dois chafarizes separados por uma distância de três metros. Nenhum deles era usado há anos. Um destinara-se aos brancos e o outro aos negros. Ela recordou-se da história de Rosia Alfie Gatewood, miss Allie como era conhecida, a primeira negra a beber no chafariz dos brancos e a escapar ilesa. Pouco tempo depois, ambos os chafarizes foram desligados.
Encontraram uma mesa num café superlotado chamado simplesmente The Tea Shoppe na parte oeste da praça. Contou histórias, a maior parte agradáveis e quase todas engraçadas, enquanto comiam batatas fritas. Ela conservou os óculos de sol e Adam reparou que estava a observar as pessoas.
Saíram de Clanton depois do almoço, após um tranquilo passeio de volta ao cemitério. Adam conduziu e Lee ensinou o caminho até chegarem a uma estrada campestre, através de pequenas quintas bem arranjadas com vacas a pastar nas encostas. Passaram por alguns bairros de lata brancos - atrelados de largura dupla dilapidados com carros velhos espalhados em volta - e por cabanas de caça arruinadas ainda habitadas por negros pobres. Mas a paisagem campestre montanhosa era quase sempre bonita e o dia estava muito agradável.
Indicou de novo o caminho e viraram para uma estrada mais pequena, pavimentada, que serpenteava mais profundamente na direcção dos pântânos. Finalmente pararam em frente de uma casa emoldurada a branco, abandonada, com ervas daninhas a crescer
no alpendre e hera a invadir as janelas. Ficava a quarenta e cinco metros da estrada e o caminho de cascalho que lá conduzia estava cheio de buracos e intransitável. O relvado da frente fora invadido pelo mato. A caixa do correio mal se via na vala ao lado da estrada.
- A propriedade Cayhall - murmurou ela e ficaram sentados no carro muito tempo, olhando para a pequena casa triste.
- O que lhe aconteceu? - perguntou Adam finalmente.
- Oh, era uma boa casa. Porém, não teve muita sorte. As pessoas foram uma desilusão - tirou lentamente os óculos de sol e limpou os olhos. - Vivi aqui durante dezoito anos e logo que pude fui-me embora.
- Porque é que está abandonada?
Ela respirou fundo e tentou organizar a história.
- Acho que já estava paga há muitos anos, mas o pai hipotecou-a para pagar aos advogados o seu último julgamento. Claro que ele nunca mais voltou para casa e, a certa altura, o banco executou a hipoteca. Tinha oito hectares de terreno à volta e perdeu-se tudo. Nunca mais cá tinha voltado depois da execução da hipoteca. Pedi ao Phelps para a comprar mas ele recusou. Não posso culpá-lo. Na verdade eu própria não queria ficar com ela. Mais tarde alguns amigos da zona disseram-me que foi alugada várias vezes e, finalmente, abandonada. Não sabia se a casa ainda existia.
- O que aconteceu aos bens pessoais?
- Na véspera da execução da hipoteca, o banco autorizou-me a vir cá e retirar tudo o que quisesse. Guardei algumas coisas - álbuns de fotografias, lembranças, almanaques, bíblias, alguns bens de estimação da mãe. Estão guardados em Memphis.
- Gostaria de vê-los.
- Não valia a pena guardar a mobilia, não havia nenhuma peça decente. A minha mãe morrera, o meu irmão acabara de se suicidar, o meu pai tinha sido mandado para o corredor da morte e eu não estava com disposição para guardar uma quantidade de recordações. Foi uma experiência horrível, andar por esta pequena casa suja, tentando recuperar objectos que um dia poderiam fazer-me sorrir. Raios, a minha vontade era queimar tudo. Quase o fiz.
- Não estás a falar a sério.
- Claro que estou. Depois de ter passado aqui umas duas horas, decidi queimar a maldita casa e tudo o que ela continha. Está sempre a acontecer, não é verdade? Descobri uma velha lanterna que ainda tinha algum querosene, coloquei-a em cima da mesa da cozinha e falei com ela enquanto encaixotava algumas coisas. Teria sido muito fácil.
- Porque não o fizeste?
- Não sei. Desejava ter tido a coragem de o fazer, mas lembro- me de ter ficado preocupada com o banco, com a execução da hipoteca e, bem, o fogo-posto é um crime. Lembro-me de ter rido da ideia de ir para a prisão onde me encontraria com o Sam. Foi por isso que não acendi o fósforo. Tive medo de me meter em sarilhos e ir parar à prisão.
Agora o carro estava quente e Adam abriu a sua porta.
- Quero dar uma olhadela - disse ele saindo. Escolheram o caminho por entre o cascalho, pisando buracos com mais de sessenta centímetros de largura. Pararam no alpendre da frente e olharam para as tábuas apodrecidas.
- Não vou entrar aí - disse ela firmemente, largando a mão dele. Adam examinou o alpendre em ruínas e decidiu que seria melhor não pôr ali os pés. Caminhou ao longo da fachada, olhando para as janelas partidas com trepadeiras que desapareciam lá dentro. Seguiu o caminho em volta da casa e Lee foi atrás dele.
O pátio das traseiras estava à sombra de velhos carvalhos e bordos e o solo nu nos sítios em que o sol não batia. Estendia-se duzentos metros, descendo uma ligeira encosta até terminar numa moita. O lote era circundado por bosques à distância.
Ela pegou-Lhe novamente na mão e dirigiram-se para uma árvore ao lado de uma barraca de madeira que, por qualquer razão, estava em muito melhor estado do que a casa.
- Esta era a minha árvore - disse ela, olhando para cima, para os ramos. - A minha própria nogueira - a voz dela tremia ligeiramente.
- É uma árvore fantástica.
- Maravilhosa para trepar. Passava horas aqui, sentada naqueles ramos, a balançar os pés, com o queixo pousado num galho. Na Primavera e no Verão, trepava até meio e ninguém me podia ver. Tinha o meu próprio pequeno mundo aqui em cima.
Subitamente fechou os olhos e tapou a boca com uma mão. Os ombros estremeceram. Adam colocou um braço em volta dela e tentou pensar em algo para dizer.
- Foi aqui que aconteceu - disse ela após um momento. Mordeu o lábio e lutou para conter as lágrimas. - Aquela história do pai matar um negro - acenou com a cabeça na direcção da casa. As mãos tremiam-lhe e meteu-as nos bolsos.
Passou-se um minuto enquanto fitavam a casa, nenhum deles com vontade de falar. A única porta das traseiras abria para um pequeno alpendre quadrado com um corrimão em volta. Uma brisa delicada agitava as folhas por cima deles, produzindo o único som audível.
Ela respirou fundo e depois disse:
- O nome dele era Joe Lincoln e vivia ali mais abaixo na estrada com a familia - acenou a cabeça na direcção de um trilho de terra que corria ao longo da extremidade de um campo e depois desaparecia nos bosques. - Tinha cerca de uma dúzia de filhos.
- Quince Lincoln? - perguntou Adam.
- Sim. Como é que sabes o nome dele?
- Sam mencionou este nome outro dia quando estávamos a falar sobre o Eddie. Disse que o Quince e o Eddie eram muito amigos em crianças.
- Não falou do pai do Quince, pois não?
- Não.
- Também pensei que não. O Joe trabalhava aqui na quinta para nós e a familia vivia numa cabana que também nos pertencia. Era um bom homem com uma família grande e, como a maioria dos negros pobres nesses tempos, mal tinha com que sobreviver.
Eu conhecia alguns dos seus filhos, mas não éramos amigos como o Quince e o Eddie. Certo dia os rapazes estavam a brincar aqui no pátio, era no Verão e não havia aulas. Começaram a discutir por causa de um brinquedo, um soldado do exército confederado, e Eddie acusou Quince de o ter roubado. Coisas típicas de miúdos, sabes. Acho que tinham oito ou nove anos. O pai por acaso ia a passar e o Eddie correu para ele e contou-lhe como o Quince lhe tinha roubado o brinquedo. Quince negou enfaticamente. Ambos os rapazes estavam realmente furiosos e à beira das lágrimas. O Sam, tipicamente, ficou cheio de raiva e insultou o Quince, chamando-Lhe toda a espécie de nomes, incluindo pequeno ladrão preto e desgraçado de pretinho sacana". Sam exigiu o soldado e o Quince começou a chorar. Continuava a dizer que não o tinha e o Eddie teimava que sim. O Sam agarrou no rapaz, abanou-o com muita força e começou a dar-lhe palmadas no rabo. O Sam gritava, berrava e insultava e o Quince suplicava e chorava. Deram várias voltas ao pátio com o Sam a abaná-lo e a bater-lhe. Finalmente, o Quince conseguiu libertar-se e fugiu para casa. O Eddie correu para dentro e o Sam foi atrás dele. Momentos mais tarde, o Sam saiu por aquela porta com uma bengala, que colocou cuidadosamente no alpendre. Depois sentou-se nos degraus e esperou pacientemente. Fumou um cigarro vigiando a estrada de terra. A casa dos Lincoln não ficava longe e com toda a certeza, em poucos minutos, o Joe chegou a correr vindo das árvores com o Quince atrás dele. Ao aproximar-se da casa viu o pai à espera dele e abrandou o passo. O pai gritou por cima do ombro: Eddie, vem cá! Vem cá ver-me chicotear este negro "
Começou a caminhar muito lentamente na direcção da casa e parou a alguns passos do alpendre.
- Quando o Joe estava mais ou menos aqui, parou e olhou para o Sam. Disse qualquer coisa como O Quince disse que o senhor lhe bateu, Mr. Sam. Ao que o meu pai respondeu: O Quince é um ladrãozeco preto, Joe. Devias ensinar os teus filhos a não roubar". Começaram a discutir e era óbvio que ia haver luta. Subitamente o Sam saltou do alpendre e atirou o primeiro murro. Caíram no chão, mais ou menos aqui, e lutaram como gatos. Joe era alguns anos mais novo e mais forte, mas o pai era tão mau e estava tão furioso que a luta era muito equilibrada. Agrediram-se um ao outro no rosto, insultaram-se e deram pontapés como animais - ela interrompeu a narrativa, olhou em torno do pátio e depois apontou para a porta das traseiras. - A certa altura, o Eddie saiu para o alpendre para observar. O Quince estava de pé a alguns metros a gritar para o pai. O Sam deu um salto para o alpendre e agarrou na bengala; aí as coisas descontrolaram-se. Espancou o Joe no rosto e na cabeça até cair de joelhos e depois socou-o no estômago e no baixo ventre até mal se poder mover. O Joe olhou para o Quince e gritou-lhe para ir a correr buscar a espingarda. O Quince desatou a correr. Sam parou de bater e voltou-se para o Eddie: Vai buscar a minha espingarda". O Eddie ficou imóvel e o pai gritou-lhe outra vez. O Joe estava no chão, de gatas, tentando recompor-se e quando estava quase a conseguir pôr-se de pé o Sam bateu-lhe outra vez e deitou-o ao chão. O Eddie entrou e Sam caminhou até ao alpendre. Eddie regressou em segundos com a espingarda e o pai obrigou-o a ir para dentro. A porta fechou-se. Lee caminhou até ao alpendre e sentou-se na extremidade.
Enterrou o rosto nas mãos e chorou durante muito tempo. Adam ficou de pé a uns metros de distância, a fitar o solo e a ouvir os soluços. Quando ela finalmente olhou para ele, tinha os olhos vítreos, o rimmel borrado, o nariz a pingar. Limpou a cara com as mãos e depois esfregou-as nos jeans.
- Desculpa - murmurou.
- Por favor, acaba - pediu ele rapidamente.
Ela respirou profundamente durante uns momentos e depois limpou mais uma vez os olhos.
- O Joe estava mais ou menos ali - disse ela apontando para um local na erva não muito longe de Adam. - Conseguira pôr-se de pé, voltou-se e viu o pai com a espingarda. Olhou em volta na direcção da sua própria casa, mas não havia sinais do Quince nem da espingarda. Voltou-se novamente para o pai, que estava de pé exactamente aqui, à beira do alpendre. Então, o meu querido pai levantou lentamente a espingarda, hesitou um segundo, olhou em volta para ver se alguém estava a observar e puxou o gatilho. Assim. O Joe tombou pesadamente e nunca mais se levantou.
- Tu viste tudo, não foi?
- Vi sim.
- Onde é que estavas?
- Ali - ela acenou, mas não apontou. - Na minha nogueira. Escondida do mundo.
- O Sam não conseguia ver-te?
- Ninguém me via. Vi tudo - tapou novamente os olhos e lutou com as lágrimas. Adam foi até ao alpendre e sentou-se ao lado dela.
Ela aclarou a garganta e olhou para outro lado.
- Observei o Joe durante um minuto, pronto para disparar outra vez se fosse necessário. Mas o Joe não se mexeu. Estava morto. Havia um pouco de sangue à volta da sua cabeça na erva e eu conseguia vê-lo da árvore. Lembro-me de enterrar as unhas no tronco para não cair e lembro-me de querer gritar, mas estava demasiado assustada. Não queria que ele me ouvisse. O Quince apareceu alguns minutos depois. Ouvira o tiro e quando o vi estava a chorar. A correr como um doido e a chorar e quando viu o pai no chão começou a gritar, como o faria qualquer garoto. O meu pai levantou novamente a espingarda e por um segundo soube que ele estava pronto a matar o rapaz. Mas o Quince atirou a espingarda do Joe para o chão e correu para o pai. Gemia e chorava. Vestia uma t-shirt clara que em breve ficou coberta de sangue. O Sam caminhou até ao lado, apanhou a espingarda do Joe e entrou em casa com ambas as espingardas.
Ergueu-se lentamente e deu alguns passos medidos.
- O Quince e o Joe estavam mais ou menos aqui - disse ela marcando o lugar com o salto. - O Quince segurava a cabeça do pai junto do estômago, havia sangue por todo o lado e ele soltava aquele estranho gemido, como o lamento de um animal moribundo - ela virou-se e olhou para a sua árvore. - E ali estava eu, sentada ali em cima como um passarinho, a chorar também. Odiei tanto o meu pai naquele momento.
- Onde estava o Eddie?
- Dentro de casa, no seu quarto, com a porta trancada - apontou para uma janela com os vidros partidos e a que faltava uma persiana. - Aquele era o quarto dele. Disse-me mais tarde que tinha olhado para fora ao ouvir o tiro e tinha visto o Quince a agarrar o pai. Em poucos minutos, Ruby Lincoln chegou a correr com uma fila de crianças atrás de si. Todos caíram no chão em torno de Quince e de Joe e, Deus, foi horrível. Todos gritavam e choravam e suplicavam a Joe que se levantasse, para por favor não morrer.
O Sam entrou em casa e chamou uma ambulância. Telefonou também a um dos seus irmãos, o Albert, e a alguns vizinhos. Em breve havia uma multidão no pátio das traseiras. Sam e o seu bando estavam no alpendre com as suas espingardas e vigiavam os pranteadores, que arrastaram o corpo para debaixo daquela árvore além - apontou para um grande carvalho. - A ambulância chegou ao cabo de uma eternidade e levou o corpo. Ruby e os filhos regressaram a casa e o meu pai e os companheiros ficaram a rir no alpendre.
- Quanto tempo ficaste na árvore?
- Não sei. Assim que todos se foram embora, desci e corri para os bosques. O Eddie e eu tínhamos um lugar favorito junto a um regato e eu sabia que ele me iria procurar. E foi. Estava assustado e sem fôlego; contou-me o tiroteio e eu disse-lhe que vira tudo. A princípio não me acreditou, mas eu contei-lhe os pormenores. Estávamos ambos cheios de medo. Ele meteu a mão no bolso e tirou qualquer coisa. Era o pequeno soldado confederado acerca do qual ele e Quince tinham estado a brigar. Tinha-o encontrado debaixo da cama e por isso decidiu imediatamente que era ele o culpado de tudo. Jurámos um ao outro guardar segredo. Ele prometeu que nunca contaria a ninguém que presenciara o assassínio e eu prometi nunca contar a ninguém que ele tinha encontrado o soldado. Atirou-o ao regato.
- Algum de vocês disse alguma coisa?
Ela abanou a cabeça durante muito tempo.
- O Sam nunca soube que estavas em cima da árvore? - perguntou Adam.
- Não. Nunca contei à minha mãe. Ao longo dos anos, eu e o Eddie falávamos ocasionalmente do assunto, mas à medida que o tempo passou como que enterrámos o caso. Quando regressámos a casa, os nossos pais estavam no meio de uma enorme discussão. Ela estava histérica e ele esgaseado e enlouquecido. Creio que lhe batera. Ela agarrou em nós e disse-nos para irmos para o carro. Quando estávamos a sair do caminho de carros em marcha- atrás, o xerife chegou. Andámos às voltas durante um bocado, a mãe no assento da frente, eu e o Eddie atrás, ambos demasiado assustados para falar. Ela não sabia o que dizer. Partimos do princípio que ele ia ser preso, mas quando estacionámos no caminho de carros ele estava sentado no alpendre como se nada tivesse acontecido.
- O que fez o xerife?
- Realmente nada. Ele e o Sam falaram durante um bocado. O Sam mostrou-lhe a espingarda do Joe e explicou que fora um simples caso de legítima defesa. Apenas mais um preto morto.
- Não foi preso?
- Não, Adam. Estávamos no Mississípi no princípio dos anos cinquenta. Tenho a certeza que o xerife riu bastante, deu uma palmada nas costas de Sam e disse-lhe para se portar bem; depois foi-se embora. Até autorizou o Sam a ficar com a espingarda de Joe.
- É incrível!
- Nós esperávamos que ele fosse para a cadeia durante alguns anos.
- O que fizeram os Lincoln?
- O que podiam eles fazer? Quem lhes daria ouvidos? O Sam proibiu o Eddie de ver o Quince e para ter a certeza que os rapazes não se encontravam expulsou-os da propriedade.
- Meu Deus!
- Deu-lhes o prazo de uma semana para se irem embora e o xerife chegou para cumprir os seus deveres juramentados, obrigando-os a sair da casa. A expulsão era legal, garantiu o Sam à mãe. Foi a única altura em que eu pensei que ela ia abandoná-lo. Quem me dera que o tivesse feito!
- O Eddie alguma vez voltou a ver o Quince?
- Anos mais tarde. Quando o Eddie começou a conduzir, começou a procurar os Lincoln. Tinham-se mudado para uma pequena comunidade do outro lado de Clanton e Eddie encontrou-os aí. Pediu desculpa e disse que lamentava cem vezes. Mas nunca mais voltaram a ser amigos. A Ruby pediu-lhe que se fosse embora. Disse-me que viviam numa cabana arruinada sem electricidade.
Caminhou até junto da sua nogueira e sentou-se encostada ao tronco. Adam seguiu-a e apoiou-se nele. Olhou para ela e pensou em todos os anos durante os quais carregara aquele fardo. E pensou no pai, na sua angústia e tormento, nas indeléveis cicatrizes que carregara até ao dia da sua morte. Adam tinha agora a primeira pista para a destruição do seu pai e perguntava-se se alguma vez as peças se ajustariam. Pensou no Sam e, ao olhar para o alpendre, conseguiu divisar um homem mais novo com uma espingarda e ódio no rosto. Lee soluçava em silêncio.
- O que fez o Sam a seguir?
Ela tentou controlar-se.
- A casa ficou tão silenciosa durante uma semana, talvez um mês, não sei. Mas pareceu-me que tinham passado anos até voltarmos a conversar à mesa do jantar. O Eddie fechava-se no quarto. Ouvia-o chorar durante a noite e ele disse e repetiu o quanto odiava o pai. Queria que ele morresse. Queria fugir de casa. Culpava-se por tudo o que acontecera. A mãe ficou preocupada e passava muito tempo com ele. Quanto a mim, pensaram que eu estava a brincar nos bosques quando tudo acontecera. Pouco depois de casar com o Phelps, comecei a consultar secretamente um psiquiatra. Tentei resolver as coisas com terapia e queria que o Eddie fizesse o mesmo. Mas ele não me deu ouvidos. A última vez que falei com o Eddie antes de morrer, ele mencionou o assassínio. Nunca conseguiu recompor-se.
- E tu conseguiste?
- Não disse isso. A terapia ajudou, mas ainda me pergunto o que teria sucedido se eu tivesse gritado ao pai antes de ele puxar o gatilho. Teria matado o Joe com a filha a observar? Acho que não.
- Vá lá, Lee. Tudo isso aconteceu há quarenta anos. Não podes continuar a culpar-te.
- O Eddie culpava-me. E culpava-se a si próprio e culpámo-nos um ao outro até sermos adultos. Éramos crianças quando tudo aconteceu e não podíamos procurar ajuda junto dos nossos pais. Estávamos indefesos.
Adam conseguia pensar numa centena de perguntas acerca do assassínio de Joe Lincoln. Não era provável que voltasse a falar do assunto com Lee e ele queria saber tudo o que acontecera, cada pequeno pormenor. Onde estava o Joe enterrado? O que acontecera à sua espingarda? O tiroteio fora noticiado no jornal local? O caso fora apresentado a um grande júri? O Sam alguma vez falara do caso com os filhos? Onde estava a mãe dela durante a briga? Ouvira a discussão e o tiro? O que acontecera à familia de Joe? Ainda vivia em Ford County?
- Vamos deitar-lhe fogo, Adam - disse ela com firmeza limpando o rosto e fitando-o intensamente.
- Não estás a falar a sério.
- Estou sim! Vamos pegar fogo ao maldito lugar, a casa, a cabana, esta árvore, a relva e as ervas daninhas. Não vai ser preciso muito. Só uns fosforozinhos aqui e ali. Vá lá.
- Não, Lee.
- Anda lá.
Adam curvou-se gentilmente e agarrou-lhe num braço.
- Vamos embora, Lee. Já ouvi o suficiente para um dia. Ela não resistiu. Também ela tivera o suficiente para um dia. Ajudou-a a atravessar as ervas em volta da casa, por cima das ruínas do caminho de carros, de regresso ao carro.
Deixaram a propriedade Cayhall sem uma palavra. A estrada passava a cascalho e depois interrompia-se num cruzamento com outra estrada. Lee apontou para a esquerda e depois fechou os olhos como se estivesse a tentar adormecer. Passaram por Clanton e pararam numa loja de aldeia junto a Holly Springs. Lee disse que precisava de uma coca-cola e insistiu em ir ela própria buscá-la. Voltou para o carro com uma embalagem de seis cervejas e ofereceu uma a Adam.
- O que é isto? - perguntou ele.
- Só duas - disse ela. - Tenho os nervos em franja. Não me deixes beber mais de duas, está bem? Só duas.
- Acho que não devias, Lee.
- Eu estou bem - insistiu ela franzindo a testa e tomou uma bebida.
Adam recusou e arrancou a toda a velocidade. Ela esvaziou duas garrafas em quinze minutos e depois adormeceu. Adam colocou o saco no banco de trás e concentrou-se na estrada.
Teve um súbito desejo de deixar o Mississípi e ansiou pelas luzes de Memphis.
Exactamente uma semana antes acordara com uma feroz dor de cabeça e um estômago frágil e fora obrigado a encarar o bacon gorduroso e os ovos estrelados de Irene Lettner. E nos últimos sete dias estivera na sala de audiências do juiz Slattery e em Chicago, Greenville, Ford County e Parchman. Conhecera o governador e o procurador-geral. Há seis dias que não falava com o seu cliente.
Para o diabo com o seu cliente. Adam estivera sentado no pátio a observar o tráfego do rio e a beber café descafeinado até às duas horas da manhã. Matou mosquitos e lutou com as vívidas imagens de Quince Lincoln agarrado ao corpo do pai, enquanto Sam Cayhall se mantinha no alpendre e apreciava o seu trabalho. Conseguia ouvir as gargalhadas abafadas de Sam e dos seus companheiros no alpendre estreito, enquanto Ruby Lincoln e os filhos se ajoelhavam em volta do cadáver e finalmente o arrastavam pelo pátio para a sombra de uma árvore. Via Sam no relvado da frente com as duas armas a explicar ao xerife o modo exacto como o louco do negro estivera quase a matá-lo e como ele agira razoavelmente em legítima defesa. Claro que o xerife compreendera rapidamente as razões de Sam. Ouvia os murmúrios das crianças atormentadas, Eddie e Lee, quando se culpavam a si mesmas e lutavam com o horror do acto de Sam. E amaldiçoou uma sociedade tão predisposta a ignorar a violência contra uma raça desprezada.
Dormira bem e, a certa altura, sentara-se na beira da cama e declarara a si próprio que Sam teria que procurar outro advogado, que de facto a pena de morte poderia ser adequada para certas pessoas, nomeadamente o seu avô, e que regressaria imediatamente a Chicago e mudaria novamente de nome. Mas esse sonho passou e quando acordou pela última vez o sol filtrava-se pelas persianas e desenhava linhas de luz sobre a cama. Contemplou o tecto e a cornija das paredes durante meia-hora, recordando a viagem a Clanton. Hoje, segundo esperava, seria um domingo tranquilo com um jornal volumoso e café forte. Mais tarde, passaria pelo escritório. O seu cliente tinha dezassete dias.
Lee tinha terminado uma terceira cerveja depois de terem chegado ao condomínio e depois fora deitar-se. Adam observara-a cuidadosamente, mais ou menos à espera de uma franca bebedeira ou de um súbito deslizar para um estupor alcoólico. Mas ela mostrara-se muito tranquila e composta e não a ouvira durante a noite.
Acabou de tomar duche, não fez a barba e foi até à cozinha onde os restos xaroposos da primeira cafeteira de café o aguardavam. Lee já estava levantada há algum tempo. Chamou-a e depois foi até ao quarto dela. Procurou no pátio e depois passou busca a todo o condomínio. Não estava ali. O jornal de domingo estava dobrado sobre a mesa do café no escritório.
Fez café fresco e torradas e tomou o pequeno-almoço no pátio. Eram quase nove e meia e, felizmente, o céu estava nublado e a temperatura não era sufocante. Seria um bom domingo para trabalhar no escritório. Leu o jornal, começando pela secção principal.
Talvez ela tivesse ido às compras ou qualquer coisa. Talvez tivesse ido à igreja. Ainda não tinham chegado ao ponto de deixar bilhetes um ao outro. Mas Lee não dissera nada acerca de ir a algum lado nessa manhã.
Acabara de comer um pedaço de torrada com doce de morango quando o seu apetite desapareceu subitamente. A primeira página da secção Cidade trazia outra história sobre Sam Cayhall, com a mesma fotografia de há dez anos atrás. Era um pequeno resumo loquaz dos acontecimentos da semana anterior, incluindo um mapa cronológico das datas mais importantes do caso. Um simpático ponto de interrogação fora colocado junto da data de 8 de Agosto de 1990. A execução teria lugar nesse dia? Era evidente que os editores tinham concedido a Todd Marks um espaço de colunas ilimitado, uma vez que a história não continha praticamente nada de novo. A parte perturbadora eram alguns comentários de um professor de direito de Ole Miss, um especialista em assuntos constitucionais que estivera envolvido em muitos casos de pena de morte. O erudito professor era profícuo nas suas opiniões e a sua ideia básica era que o caso de Sam já fora demasiado longe. Tinha estudado atentamente o processo, na realidade seguira-o durante muitos anos, e em sua opinião não havia mais nada que o Sam pudesse fazer. Explicava que em muitos casos de pena de morte, os milagres podem acontecer no último momento, geralmente porque o recluso foi vítima de representação legal medíocre mesmo durante os recursos. Nesses casos, os especialistas como ele próprio podiam dar-se ao luxo de tirar coelhos da cartola, por serem tão diabolicamente brilhantes e por isso capazes de levantar questões ignoradas por mentes legais de qualidade inferior. Infelizmente, o caso de Sam era diferente, porque ele havia sido muito competentemente representado por alguns advogados muito bons de Chicago.
Os recursos de Sam haviam sido habilmente tratados e agora esses recursos tinham-se esgotado. O professor, obviamente um jogador, apostaria cinco contra um em como a execução teria lugar a 8 de Agosto. E por tudo isto, pelas opiniões e pela probabilidade, conseguira ter a sua fotografia no jornal.
Adam ficou subitamente nervoso. Lera dezenas de casos de pena de morte em que, no último minuto, os advogados se agarravam a cordas que nunca tinham puxado e convenciam os juízes a escutar os seus novos argumentos. A tradição dos processos capitais estava cheia de histórias de questões legais latentes não descobertas e não exploradas, até que um outro advogado, com uma mente mais fresca, entrava na arena e obtinha uma suspensão. Mas o professor de Direito tinha razão. O Sam tivera sorte. Embora Sam desprezasse os advogados da Kravitz & Bane, tinham-lhe proporcionado uma soberba representação. Agora não restava nada além de uma mão-cheia de petições desesperadas, os apelos de última hora, como eram chamados.
Atirou o jornal para o soalho e foi lá dentro buscar mais café. A porta corrediça emitiu um sinal sonoro, um novo som de um novo sistema de segurança instalado na sexta-feira passada, depois de o antigo ter falhado e de algumas chaves terem desaparecido misteriosamente. Não havia qualquer vestígio de arrombamento. A segurança era apertada no complexo. E, na realidade, o Willis não sabia quantos conjuntos de chaves tinha de cada apartamento. A polícia de Memphis chegara à conclusão que a porta corrediça tinha sido deixada destrancada e que deslizara por qualquer razão. Adam e Lee não se tinham preocupado com o assunto.
Inadvertidamente, bateu num copo que se encontrava junto do lava-louças e aquele estilhaçou-se no chão. Havia pedaços de vidro espalhados em volta dos seus pés descalços e deslocou- se desajeitadamente em bicos de pés até à despensa para ir buscar uma vassoura e uma pá. Varreu cuidadosamente os cacos, sem se cortar, fez uma pilha e despejou tudo no caixote do lixo que se encontrava por baixo do lava-louças. Algo lhe chamou a atenção. Lentamente, estendeu a mão para o saco de lixo de plástico preto e procurou entre os restos de borras de café quente e os cacos de vidro até encontrar uma garrafa, que tirou para fora. Era uma garrafa de meio litro de vodka vazia:
Limpou as borras de café e estudou o rótulo. O caixote do lixo era pequeno e normalmente despejado dia sim dia não, por vezes todos os dias. Nesse momento estava meio cheio. A garrafa não podia estar ali há muito tempo. Abriu o frigorífico e procurou as três garrafas de cerveja que tinham sobrado do pacote de seis do dia anterior. Ela tinha bebido duas no caminho de regresso a Memphis e mais uma no condomínio. Não se lembrava onde tinham sido guardadas, mas não estavam no frigorífico. Nem no lixo, nem na cozinha, nem na sala, nem nas casas de banho ou nos quartos. Quanto mais procurava, mais decidido se sentia a encontrar as garrafas. Inspeccionou a despensa, o armário das vassouras, o armário das toalhas, os armários da cozinha. Vasculhou os armários e gavetas dela e sentiu-se como um ladrão e um traidor, mas continuou porque estava assustado.
Estavam debaixo da cama dela, vazias evidentemente, e cuidadosamente escondidas dentro de uma velha caixa de sapatos. Três garrafas de Heineken vazias, cuidadosamente alinhadas, como se se destinassem a ser enviadas para algum lado como presente. Sentou-se no chão e analisou-as. Estavam frescas, com algumas gotas ainda a rolar no fundo.
Calculou que ela devia pesar cerca de cinquenta e oito quilos e que media cerca de um metro e setenta. Era elegante, mas não muito magra. O corpo dela não poderia suportar muita bebida. Deitara-se cedo, por volta das nove, mas depois, numa altura qualquer, esgueirara-se da cama e andara pelo apartamento em busca de cerveja e de vodka. Adam encostou-se à parede, com o cérebro a trabalhar furiosamente. Ela tivera muito cuidado ao esconder as garrafas verdes, mas sabia que seria apanhada. Sabia com certeza que Adam acabaria por ir à procura delas. Porque não fora mais cuidadosa com a garrafa de vodka vazia? Porque é que esta estava escondida no lixo e as garrafas de cerveja enfiadas debaixo da sua cama?
Depois compreendeu que estava a tentar seguir uma mente racional e não uma ébria. Fechou os olhos e bateu com a nuca na parede. Tinha-a levado a Ford County, onde contemplaram sepulturas e reviveram um pesadelo e onde ela tivera de usar óculos de sol para esconder o rosto. Durante duas semanas, tinha pedido que lhe contasse os segredos da família e, finalmente, ontem ela atirara-Lhe alguns à cara. Precisava de saber, tinha dito a si próprio. Não sabia exactamente porquê, simplesmente sentia que tinha que saber porque razão a sua familia era tão estranha, violenta e cheia de ódio.
E agora ocorria-lhe pela primeira vez que talvez tudo fosse muito mais complicado do que simplesmente contar histórias de família. Talvez isto fosse doloroso para todos os envolvidos. Talvez o seu interesse egoísta pelos esqueletos escondidos não fosse tão importante como a estabilidade de Lee.
Fez deslizar a caixa de sapatos para a posição anterior e depois atirou a garrafa de vodka para o caixote do lixo pela segunda vez. Vestiu-se rapidamente e saiu do edifício. Perguntou por Lee ao guarda-portão. Segundo uma anotação do seu quadro, saíra há quase duas horas, às oito e dez.
Era habitual os advogados da Kravitz & Bane de Chicago passarem o domingo no escritório, mas essa prática não era bem vista em Memphis. Adam tinha todo o escritório para si. Trancou a porta do seu gabinete e em breve se perdia no sombrio mundo legal da prática federal do habeas corpus.
No entanto, estava a ter dificuldade em concentrar-se e só o conseguia a curtos intervalos. Estava preocupado com Lee e odiava o Sam. Seria difícil olhá-lo novamente, provavelmente no dia seguinte, através da divisória de metal do Corredor. Ele era frágil, pálido e enrugado e sem dúvida que tinha direito a um pouco de simpatia de alguém. A sua última discussão fora acerca do Eddie e, quando terminara, Sam pedira-lhe que deixasse os assuntos de família fora do Corredor. De momento, já tinha preocupações suficientes. Não era justo confrontar um homem condenado com os seus antigos pecados.
Adam não era biógrafo nem genealogista. Não fora treinado em sociologia nem em psiquiatria e, francamente, de momento estava bastante farto de incursões na críptica história da família. Era apenas um advogado, e bastante inexperiente, mas apesar de tudo um advogado cujo cliente necessitava dele.
Estava na altura de praticar a advocacia e esquecer o folclore. Às onze e meia ligou o número de Lee e ouviu o telefone tocar. Deixou uma mensagem no gravador, dizendo-lhe onde estava e pedindo-lhe para telefonar. Telefonou novamente à uma hora e depois às duas. Não obteve resposta. Estava a preparar um recurso quando o telefone tocou.
Em vez da voz agradável de Lee, ouviu as palavras entrecortadas do Meritíssimo juiz F. Flynn Slattery.
- Está, Mr. Hall, aqui o juiz Slattery. Estudei cuidadosamente este assunto e vou recusar qualquer indulto, incluindo o seu pedido de suspensão da execução - disse, quase com um vestígio de contentamento. - As razões são inúmeras, mas não vou entrar nisso agora. O meu assistente vai enviar-lhe imediatamente a minha opinião por fax, de forma que a terá na sua mão dentro de momentos.
- Sim senhor - disse Adam.
- Terá que recorrer o mais depressa possível. Sugiro que o faça amanhã de manhã.
- Já estou a trabalhar no recurso, Meritíssimo. Na realidade, está quase concluído.
- Óptimo. Portanto já estava à espera disto.
- Sim senhor. Comecei a trabalhar no recurso assim que deixei o seu gabinete na quinta-feira - era tentador atirar alguns chumbos a Slattery. Afinal, estava a trezentos quilómetros de distância. Mas, afinal, era também um juiz federal. Adam tinha perfeita consciência de que, qualquer dia, poderia vir a precisar novamente do Meritíssimo.
- Bom-dia, Mr. Hall - e com isto Slattery desligou. Adam deu uma dúzia de voltas à mesa e depois observou a chuva ligeira a cair lá em baixo. Amaldiçoou em voz baixa os juízes federais em geral e Slattery em especial; depois regressou ao computador e ficou a olhar para o ecrã à espera de inspiração.
Escreveu e leu, investigou e imprimiu, olhou pela janela e sonhou com milagres até escurecer. Tinha gasto diversas horas com ninharias insensatas e uma das razões pelas quais trabalhou até às oito horas da noite foi para dar tempo a Lee de regressar a casa.
Não havia sinais dela. O segurança disse que ela não tinha regressado. Não havia nenhuma mensagem no gravador além da sua. Jantou pipocas de micro-ondas e viu dois filmes em vídeo. A ideia de telefonar a Phelps Booth repugnava-lhe tanto que quase estremeceu ao pensar nisso.
Pensou em dormir no sofá da sala para poder ouvi-la ao chegar a casa, mas depois do último filme retirou-se para o seu quarto no andar de cima e fechou a porta.
A explicação do desaparecimento do dia anterior veio lentamente, mas pareceu plausível quando ela terminou. Estivera todo o dia no hospital, dissera ela enquanto andava às voltas pela cozinha, com uma das suas garotas da Auburn House. A pobre miúda tinha apenas treze anos; era o seu primeiro bebé, evidentemente, mas outros viriam, e entrara em trabalho de parto um mês mais cedo. A mãe estava na prisão e a tia andava a vender droga e ela não tinha mais ninguém a quem pedir auxílio. Lee segurara-lhe a mão durante o difícil parto. A rapariga estava bem e o bebé também e havia agora mais uma criança indesejada nos guetos de Memphis.
A voz de Lee era rouca e tinha os olhos vermelhos e inchados. Disse que tinha regressado alguns minutos antes da uma e que teria telefonado antes, mas estivera na sala de trabalho de parto durante seis horas e mais duas horas na sala de partos. O St. Peter's Charity Hospital era uma autêntica confusão, especialmente a ala da maternidade, e não conseguira encontrar um telefone.
Adam estava de pijama sentado à mesa, a beber o café e a examinar o jornal enquanto ela falava. Não pedira explicações. Fez o possível por não se mostrar preocupado com ela. Ela insistiu em preparar o pequeno-almoço: ovos mexidos e biscoitos de lata. E estava a fazer um bom trabalho, andando pela cozinha e evitando olhá-lo nos olhos enquanto falava.
- Como se chama a garota? - perguntou ele gravemente, como se estivesse profundamente interessado na história de Lee.
- Hum, Natasha. Natasha Perkins.
- E tem só treze anos?
- Sim. A mãe dela tem vinte e nove. Acreditas nisto, uma avó de vinte e nove anos?
Adam abanou a cabeça, incrédulo. Por acaso estava a olhar para a pequena secção do Memphis Press onde eram publicados os registos vitais do condado. Licenças de casamento, pedidos de divórcio, nascimentos, prisões, mortes. Procurou na lista de nascimentos do dia anterior, como se estivesse a verificar dados, e não encontrou qualquer registo de uma nova mãe chamada Natasha Perkins.
Lee terminou a sua luta com a lata de biscoitos. Colocou-os numa pequena travessa juntamente com os ovos e serviu-os, o mais longe possível de Adam.
- Bom apetite - disse com um sorriso forçado.
Os seus cozinhados já eram uma rica fonte de piadas. Adam sorriu como se tudo estivesse óptimo. Neste momento precisavam de um pouco de humor, mas faltava-lhes a espontaneidade.
- Os Cubs perderam de novo - disse ele, comendo uma garfada de ovos e olhando para o jornal dobrado.
- Os Cubs perdem sempre, não é?
- Nem sempre. Interessas-te por baisebol?
- Detesto o baisebol. O Phelps virou-me contra todos os desportos conhecidos do homem.
Adam sorriu e leu o jornal. Comeram durante alguns minutos sem falar e o silêncio tornou-se pesado. Lee carregou no controlo remoto e acendeu a televisão que estava em cima do balcão, criando um pouco de ruído. Mostraram-se ambos subitamente interessados no boletim meteorológico, que previa mais uma vez tempo quente e seco. Ela brincou com a comida, mordiscando metade de um biscoito e empurrando os ovos em volta do prato. Adam suspeitou que, de momento, ela sentia o estômago fraco.
Ele terminou rapidamente e levou o prato para o lava-louças. Sentou-se novamente à mesa para acabar de ler o jornal. Lee estava a fitar a televisão, tudo para manter os olhos afastados do sobrinho.
- Provavelmente hoje vou visitar o Sam - disse ele. - Há uma semana que não vou lá.
O olhar dela fixou-se num ponto qualquer a meio da mesa.
- Desejava não ter ido a Clanton no sábado - disse ela.
- Eu sei.
- Não foi boa ideia.
- Lamento muito, Lee. Eu insisti em ir e não foi boa ideia. Insisti em muitas coisas e talvez estivesse errado.
- Não é justo...
- Eu sei que não é justo. Compreendo agora que não se trata simplesmente de conhecer a história da familia.
- Não é justo para ele, Adam. É quase cruel defrontá-lo com estas coisas quando só tem duas semanas de vida.
- Tens razão. E não está certo obrigar-te a revivê-las.
- Eu fico bem - disse isto como se evidentemente não estivesse bem naquele momento, mas houvesse um pouco de esperança para o futuro.
- Lamento, Lee, lamento mesmo.
- Não tem importância. O que é que tu e o Sam vão fazer hoje?
- Principalmente falar. O tribunal federal local decidiu ontem contra nós e, portanto, esta manhã vamos recorrer. O Sam gosta de discutir as estratégias legais.
- Diz-lhe que penso nele.
- Eu digo.
Ela afastou o prato e segurou a chávena nas mãos em concha.
- E pergunta-lhe se quer que eu vá visitá-lo.
- Queres mesmo ir? - perguntou Adam incapaz de esconder a sua surpresa.
- Algo me diz que devo ir. Há muitos anos que não o vejo.
- Eu pergunto-lhe.
- E não lhe fales do Joe Lincoln, está bem, Adam? Nunca contei ao pai o que tinha visto.
- Tu e o Sam nunca falaram do assassínio?
- Nunca. Tornou-se sabido na comunidade. Eu e o Eddie crescemos com isso e carregámo-lo como um fardo mas, para dizer a verdade, não era nada de especial para os vizinhos. O meu pai matou um negro. Foi em mil novecentos e cinquenta, no Mississípi. Nunca discutimos o assunto em nossa casa.
- Portanto o Sam vai para a cova sem nunca ser confrontado com o assassínio?
- O que ganharias com isso? Foi há quarenta anos.
- Não sei, talvez ele pudesse dizer que lamenta.
- A ti? Ele pede-te desculpa a ti e isso resolve tudo? Vá lá, Adam, és jovem e não compreendes. Deixa isso em paz. Não magoes mais o velho. Neste momento és a única luz na sua vida patética.
- Está bem, está bem.
- Não tens o direito de lhe preparar uma armadilha com a história do Joe Lincoln.
- Tens razão, não o farei. Prometo.
Ela fitou-o com os olhos raiados de sangue até ele desviar os seus para a televisão; em seguida, ela pediu rapidamente licença e desapareceu na sala. Adam ouviu-a fechar e trancar a porta da casa de banho. Caminhou pelo tapete e ficou no corredor, a ouvi-la vomitar. O autoclismo foi puxado e ele correu pelas escadas acima para o seu quarto, para tomar banho e mudar de roupa.
Por volta das dez horas da manhã, Adam tinha concluído o seu recurso dirigido ao Quinto Tribunal de Círculo de Apelação de Nova Orleães. O juiz Slattery já tinha enviado uma cópia da sua decisão para o assistente do Quinto Tribunal de Círculo e Adam mandou o seu recurso por fax, pouco depois de ter chegado ao escritório. Enviou o original por correio nocturno.
Também teve a sua primeira conversa com o Adjunto da Morte, um funcionário a tempo inteiro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que se dedica exclusivamente a supervisionar os recursos finais de todos os reclusos do corredor da morte. O Adjunto da Morte trabalha frequentemente vinte e quatro horas por dia quando as execuções chegam ao limite. E. Garner Goodman tinha instruído Adam nas maquinações do Adjunto da Morte e do seu gabinete e foi com alguma relutância que Adam fez o primeiro telefonema.
O nome do adjunto era Richard Olander, um tipo bastante eficiente que parecia muito cansado à segunda-feira de manhã.
- Estávamos à espera disto - disse ele a Adam, como se a maldita coisa devesse ter sido entregue algum tempo antes. Perguntou a Adam se esta era a sua primeira execução.
- Receio que sim - disse Adam. - E espero que seja a
última.
- Bem, não há dúvida que escolheu um perdedor - disse Mr. Olander e, em seguida, explicou com entediante pormenor a forma exacta como o tribunal esperava que os recursos fossem conduzidos. Deste momento em diante e até ao fim, todos os processos entrados, independentemente do lugar onde fossem apresentados ou do assunto em causa, deveriam ser simultaneamente apresentados ao seu gabinete, declarou ele positivamente como se estivesse a ler um manual. De facto, ia enviar imediatamente a Adam por fax uma cópia do regulamento do tribunal, cujas regras deveriam ser todas meticulosamente cumpridas até ao final. O seu gabinete estava à disposição a qualquer hora, repetiu ele mais do que uma vez, e era essencial receberem cópias de tudo. Isto, evidentemente, caso Adam desejasse que o seu cliente tivesse uma audiência justa perante aquele tribunal. Se Adam não se importasse, bem, então, que cumprisse as regras ao acaso e seria o seu cliente a sofrer.
Adam prometeu cumprir as regras. O Supremo Tribunal estava a ficar cada vez mais farto das infindáveis reivindicações nos casos de pena de morte e queria ter na mão todas as petições e recursos para acelerar o assunto. O recurso apresentado por Adam ao Quinto Tribunal de Círculo seria apreciado pelos juízes e pelos seus assistentes, muito antes de o tribunal receber realmente o caso de Nova Orleães. O mesmo sucederia a todos os seus recursos da décima-primeira hora. O tribunal estaria então habilitado a conceder um indulto imediato ou a recusá-lo.
O Adjunto da morte era tão rápido e eficiente que, recentemente, o tribunal ficara embaraçado ao recusar um recurso ainda antes de ele ter sido realmente interposto.
Depois, Mr. Olander explicou que o seu gabinete tinha uma lista de todos os recursos e petições de última hora possíveis e que ele e o seu competente pessoal analisavam cada caso, para verificar se tinham sido apresentados todos os pedidos possíveis. E se algures algum advogado não se apercebesse de uma questão potencial, eles notificariam o advogado para prosseguir a reivindicação esquecida. Adam desejaria uma cópia dessa lista?
Não, Adam explicou que já tinha uma cópia. E. Garner Go odman escrevera o livro acerca de recursos de última hora.
Muito bem, dissera Mr. Olander, Mr. Cayhall tinha dezasseis dias e claro que em dezasseis dias muita coisa pode acontecer. Mas na sua modesta opinião, Mr. Cayhall tinha sido habilmente representado e a questão discutida exaustivamente. Ficaria surpreendido, adiantou, se houvesse mais delongas.
Obrigado por nada, pensou Adam.
Mr. Olander e o seu pessoal estavam a seguir muito atentamente um caso do Texas, explicou ele. A execução estava marcada para um dia antes da de Sam, mas, em sua opinião, havia muitas probabilidades de ser decretada uma suspensão. A Florida tinha uma marcada para dois dias depois de Mr. Cayhall. A Jórgia tinha duas marcadas para uma semana mais tarde, mas, bem, quem sabe. Ele ou alguém do seu pessoal estaria sempre disponível e ele próprio estaria perto do telefone durante o período de doze horas que antecedia a execução.
Telefone a qualquer hora, disse ele, e terminou a conversa com a firme promessa de tornar tudo o mais fácil possível para Adam e para o seu cliente.
Adam desligou o telefone e percorreu o gabinete. Tinha a porta fechada como sempre e o corredor estava cheio das ansiosas conversas de segunda-feira de manhã. O seu rosto aparecera novamente nos jornais de ontem e ele não queria ser visto. Telefonou para a Auburn House e perguntou por Lee Booth, mas ela não estava. Telefonou para o apartamento, mas ninguém atendeu. Telefonou para Parchman e disse ao guarda de serviço no portão principal para o esperar por volta da uma hora.
Regressou ao computador e procurou um dos seus projectos actuais, uma história resumida e cronológica do caso de Sam.
O júri de Lakehead County condenara Sam a 12 de Fevereiro de 1981 e, dois dias mais tarde, entregara um veredicto de pena de morte. Recorrera directamente para o Supremo Tribunal do Mississípi, alegando toda a espécie de irregularidades do julgamento e da acusação, mas excepcionando particularmente o facto de o julgamento ter decorrido quase catorze anos depois do atentado. O seu advogado, Benjamin Keyes, arguia veementemente que fora negado a Sam um julgamento célere e que fora sujeito a um duplo risco, ao ser julgado três vezes pelo mesmo crime. Keyes apresentava uma argumentação muito forte. O Supremo Tribunal do Mississípi apresentara-se amargamente dividido quanto a estas questões e, a 23 de Julho de 1982, emitira uma decisão não unânime reafirmando a condenação de Sam.
Então, Keyes tinha interposto recurso extraordinário para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, o qual solicitava ao tribunal a revisão do caso de Sam. Uma vez que o Supremo Tribunal só concede recurso extraordinário, num pequeno número de casos, foi uma surpresa quando, a 4 de Março de 1983, o tribunal concordou em rever a condenação de Sam.
O Supremo Tribunal dos Estados Unidos mostrou-se quase tão dividido como o do Mississípi quanto à questão do duplo risco, mas não obstante chegou à mesma conclusão. Os dois primeiros júris de Sam tinham chegado a impasses insolúveis em resultado das trapaças de Clovis Brazelton e, assim, Sam não estava protegido pela cláusula do duplo risco prevista na Quinta Emenda. Não fora absolvido por nenhum dos dois primeiros júris. Qualquer deles se mostrara incapaz de dar um veredicto, portanto uma nova acusação era constitucional. A 21 de Setembro de 1983, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos confirmara a condenação de Sam por uma maioria de seis votos contra três. Keyes interpusera imediatamente algumas petições exigindo uma nova audiência, mas sem êxito.
Sam contratara Keyes para o representar durante o julgamento e o recurso para o Supremo Tribunal do Mississípi, se necessário. Na altura em que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos confirmara a condenação de Sam, Keyes estava a trabalhar sem ser pago. O seu mandato de representação legal tinha expirado e ele escrevera a Sam uma longa carta explicando que estava na altura de Sam tomar novas disposições. Sam compreendeu isso.
Keyes escrevera igualmente uma carta a um advogado seu amigo da ACLU em Washington, que por sua vez escrevera uma carta ao seu amigo E. Garner Goodman da Kravitz & Bane de Chicago. A carta chegara à secretária de E. Garner Goodman no momento exacto. Sam estava a ficar sem tempo e desesperado. Goodman andava à procura de um projecto pro bono. Trocaram correspondência e a 18 de Dezembro de 1983 Wallace Tyner, um dos sócios da secção de defesa dos crimes de colarinho branco da Kravitz & Bane, interpôs uma petição requerendo um indulto pós-condenação junto do Supremo Tribunal do Mississípi. Tyner arguia os muitos erros cometidos no julgamento de Sam, incluindo a admissão como prova de fotografias ensanguentadas dos corpos de Josh e John Kramer. Atacava a selecção do júri e alegava que McAllister seleccionara sistematicamente negros em vez de brancos. Arguia que não era possível um julgamento justo, porque o ambiente social era totalmente diferente em 1981 e em 1967. Defendia que o foro escolhido pelo juiz do julgamento era injusto. Levantava novamente as questões do duplo risco e do julgamento célere. No total, Wallace Tyner e Garner Goodman levantavam oito questões diferentes na sua petição. No entanto, não incluiram o argumento de que Sam fora vítima de representação legal inadequada, a alegação principal de todos os reclusos do corredor da morte. Eles queriam fazê-lo, mas Sam não o autorizara. Inicialmente, recusara-se a assinar a petição porque ela atacava Benjamin Keyes, um advogado de quem gostava.
A 1 de Junho de 1985, o Supremo Tribunal do Mississípi recusou qualquer indulto pós-condenação. Tyner apelou novamente para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, mas a revisão foi recusada. Então, apresentou a primeira petição de habeas corpus de Sam e um pedido de suspensão da execução no tribunal federal do Mississípi. Como era típico, a petição era bastante volumosa e incluía todas as questões já levantadas no tribunal estadual.
Dois anos mais tarde, a 3 de Maio de 1987, o tribunal distrital recusou qualquer indulto e Tyner recorreu para o Quinto Tribunal de Círculo em Nova Orleães, que em devido tempo confirmou a decisão do tribunal inferior. A 20 de Março de 1988, Tyner interpôs petição requerendo uma repetição da audiência no Quinto Tribunal de Círculo, que também foi recusada. A 3 de Setembro de 1988, Tyner e Goodman voltaram ao supremo tribunal e pediram revisão do processo. Uma semana mais tarde, Sam escreveu a primeira de muitas cartas dirigidas a Goodman e Tyner ameaçando despedi-los.
O Supremo Tribunal dos Estados Unidos concedeu a Sam a sua última suspensão a 14 de Maio de 1989, na sequência de uma concessão de revisão concedida num caso da Florida que o tribunal decidira examinar. Tyner argumentara com êxito que o caso da Florida levantava questões semelhantes e o supremo tribunal concedeu suspensões em várias dúzias de casos de pena de morte em todo o país.
Nada foi interposto relativamente ao caso de Sam, enquanto o supremo tribunal demorava e debatia o caso da Florida. No entanto, Sam dera início aos seus esforços para se ver livre da Kravitz & Bane. Ele próprio interpusera algumas petições desajeitadas, sendo todas rapidamente rejeitadas. Porém, conseguiu obter uma ordem do Quinto Tribunal de Círculo que efectivamente punha termo aos serviços pro bono dos seus advogados. A 29 de Junho de 1990, o Quinto Tribunal autorizou-o a representar-se a si próprio e Garner Goodman encerrara o processo de Sam Cayhall. Não ficara encerrado durante muito tempo.
A 9 de Julho de 1990 o supremo tribunal revogara a suspensão de Sam. A 10 de Julho, o Quinto Tribunal de Círculo revogara a suspensão de Sam e no mesmo dia o Supremo Tribunal do Mississípi marcara a data da execução para 8 de Agosto, daí a quatro semanas.
Depois de nove anos de uma guerra de recursos, Sam tinha agora dezasseis dias de vida.
O corredor estava sossegado e silencioso enquanto outro dia se arrastava na direcção do meio-dia. A diversificada colecção de ventoinhas assobiava e rangia nas pequenas celas, tentando corajosamente sugar o ar que se tornava cada vez mais pegajoso.
As primeiras notícias da televisão estavam cheias de excitantes informações afirmando que Sam Cayhall perdera a sua última batalha legal. A decisão de Slattery foi anunciada em todo o estado como se se tratasse efectivamente do último prego no caixão. Uma estação de Jackson continuava a sua contagem decrescente, faltavam apenas dezasseis dias. Décimo-sexto dia! - proclamava em letras negras sob a mesma velha fotografia de Sam. Repórteres de olhos brilhantes, usando uma pesada maquilhagem e sem qualquer conhecimento da lei, declamavam precipitadamente perante as câmaras previsões temerárias: Segundo as nossas fontes, as opções legais de Sam Cayhall estão virtualmente esgotadas. Muita gente acredita que a sua execução terá lugar, como previsto, a 8 de Agosto, Depois, passavam ao desporto e à meteorologia.
Havia muito menos conversas no Corredor, menos gritos a cruzarem-se, menos papagaios a voar de cela em cela. Uma execução estava iminente.
O sargento Packer sorriu para si mesmo enquanto avançava ao longo da Fileira A. As brigas e insultos que faziam parte integrante do seu trabalho diário quase tinham desaparecido. Agora, os reclusos estavam preocupados com recursos e advogados. O pedido mais comum nas duas últimas semanas fora usar o telefone para falar ao advogado.
Packer não estava ansioso por outra execução, mas gostava do sossego. E sabia que era apenas temporário. Se Sam obtivesse uma suspensão no dia seguinte, o barulho aumentaria imediatamente.
Parou em frente da cela de Sam.
- Hora de saída, Sam.
Sam estava sentado na cama, a escrever à máquina e a fumar como habitualmente.
- Que horas são? - perguntou, colocando a máquina de escrever ao seu lado e pondo-se de pé.
- Onze.
Sam virou as costas a Packer e meteu os pulsos pela abertura da porta. Packer algemou-os cuidadosamente.
- Vais sair sozinho?
Sam voltou-se com as mãos atrás das costas.
- Não, o Henshaw também quer vir.
- Vou buscá-lo - disse Packer acenando com a cabeça a Sam e depois para o fim da fileira. A porta abriu-se e Sam seguiu-o lentamente ao longo das outras celas. Todos os reclusos estavam encostados às grades com as mãos e os braços dependurados e todos observavam Sam com atenção enquanto ele passava.
Continuaram por entre mais grades e mais corredores e Packer destrancou uma porta de metal não pintada. Abria para o exterior e o sol irrompeu por ela. Sam detestava esta parte da sua hora de saída. Saiu para a relva e fechou firmemente os olhos enquanto Packer Lhe tirava as algemas; depois abriu-os lentamente, deixando-os focar-se e habituar-se ao doloroso brilho do sol.
Packer desapareceu no interior sem uma palavra e Sam continuou no mesmo lugar durante um minuto, enquanto luzes lhe passavam diante dos olhos e a cabeça latejava. O calor não o incomodava, pois vivia com ele, mas a luz do sol atingia-o como um laser e provocava-Lhe uma forte dor de cabeça sempre que lhe era permitido sair da masmorra. Poderia facilmente adquirir um par de óculos de sol baratos, semelhantes aos de Packer, mas não seria muito sensato. Os óculos de sol não faziam parte da lista de objectos aprovados que os reclusos podiam possuir.
Caminhou vacilantemente pela erva cortada, olhando através da vedação para os campos de algodão mais além. O pátio de recreio não passava de um pedaço murado de terra e relva com dois bancos de madeira e um cesto de basquetebol para os africanos. Era conhecido, tanto pelos presos como pelos guardas, como o curral. Sam percorrera-o cuidadosamente um milhar de vezes e tinha comparado as suas medidas com as calculadas por outros reclusos. O pátio tinha quinze metros e meio de comprimento e onze metros de largura. A vedação tinha três metros de altura e era coroada por mais quarenta e cinco centímetros de arame farpado. Para além da vedação ficava uma faixa de relva com cerca de trinta metros até à vedação principal, que era vigiada pelos guardas nas torres.
Sam caminhou em linha recta ao longo da vedação e quando parou deu uma volta de noventa graus e continuou a sua pequena rotina, contando cada passo do caminho. Quinze metros e meio por onze. A sua cela tinha um metro e oitenta por dois metros e setenta. A biblioteca legal, a Raminho, tinha cinco metros por quatro e meio. O seu lado da sala das visitas tinha um metro e oitenta por nove. Tinha ouvido dizer que a Sala da Câmara tinha quatro metros e meio por três e meio e a própria câmara era um simples cubo com menos de um metro e vinte de largura.
Durante o seu primeiro ano de reclusão, tinha corrido ao longo das extremidades do pátio, tentando transpirar e exercitar o coração. Também tentara atirar bolas ao cesto de basquete, mas desistira quando passara dias sem acertar nenhum. Eventualmente acabara por desistir de todo o exercício e durante anos utilizara esta hora apenas para gozar a liberdade de estar fora da sua cela. A certa altura, habituara-se a ficar de pé junto da vedação a olhar para além dos campos, para as árvores, onde imaginava toda a espécie de coisas. Liberdade. Estradas. Pesca. Comida. Ocasionalmente, sexo. Quase podia ver a sua pequena quinta em Ford County, não muito longe entre duas pequenas manchas de arvoredo. Sonhava com o Brasil ou a Argentina ou qualquer outro esconderijo, onde poderia estar a viver com outro nome.
Depois parou de sonhar. Parou de olhar para além da vedação, como se um milagre pudesse levá-lo dali. Caminhava e fumava, quase sempre sozinho. A sua actividade mais vigorosa era um jogo de damas.
A porta abriu-se novamente e Hank Henshaw atravessou-a. Packer tirou-lhe as algemas, enquanto ele se contorcia furiosamente e olhava para o chão. Esfregou os pulsos assim que ficaram livres, depois esticou o dorso e as pernas. Packer foi até um dos bancos e colocou em cima dele uma caixa de cartão usada.
Os dois reclusos observaram Packer até ele sair do pátio, depois foram até ao banco e assumiram as suas posições escarranchados no banco com a caixa de cartão no meio deles. Sam colocou cuidadosamente o tabuleiro das damas sobre o banco e Henshaw contou as peças.
- É a minha vez de ficar com as vermelhas - disse Sam.
- Ficaste com as vermelhas da última vez - respondeu Henshaw fitando-o.
- Da última vez fiquei com as pretas.
- Não, eu é que fiquei. É a minha vez de ficar com as vermelhas.
- Escuta aqui, Hank, eu só tenho dezasseis dias e se quiser ficar com as vermelhas, fico com as vermelhas.
Henshaw encolheu os ombros e cedeu. Dispuseram meticulosamente as peças.
- Suponho que vais ser o primeiro a jogar - disse Henshaw.
- Claro - Sam fez deslizar uma dama para uma posição vaga e o jogo começou. O sol do meio-dia ardia no chão ao redor deles e, em poucos minutos, os fatos-macaco vermelhos estavam colados às costas. Ambos usavam sapatos de borracha sem meias.
Hank Henshaw tinha quarenta e um anos e estava no corredor há sete, mas esperava nunca ver a câmara de gás. No seu julgamento haviam sido cometidos dois erros cruciais e Henshaw tinha uma boa hipótese de obter uma reversão de sentença e ser libertado do Corredor.
- Más notícias ontem - disse ele enquanto Sam estudava a sua próxima jogada.
- Sim, as coisas estão a ficar muito feias, não achas?
- Sim. O que diz o teu advogado? - nenhum deles levantou os olhos do tabuleiro das damas.
- Diz que temos hipóteses de lutar.
Que diabo quer isso dizer? - disse Henshaw fazendo uma jogada.
Acho que quer dizer que me vão gasear, mas que irei a espernear.
- O garoto sabe o que está a fazer?
- Oh, sabe sim. É muito astuto. É de familia, percebes?
- Mas é muito novo.
- É um garoto muito inteligente. Com uma educação excelente. Segundo do curso de Direito no Michigan. Editor da revista de direito.
- O que significa isso?
- Significa que ele é brilhante. Há-de pensar em qualquer coisa.
- Estás a falar a sério, Sam? Achas mesmo que vai acontecer?
Subitamente Sam comeu duas peças pretas e Henshaw praguejou.
- És uma desgraça - disse Sam com um sorriso. - Quando foi a última vez que ganhaste?
- Há duas semanas.
- Mentiroso. Há três anos que não me ganhas.
Henshaw tentou uma jogada e Sam comeu novamente. Cinco minutos mais tarde o jogo tinha terminado com uma nova vitória de Sam. Limparam o tabuleiro e começaram nova partida.
Ao meio-dia, Packer e outro guarda apareceram com as algemas e o divertimento terminou. Foram conduzidos às respectivas celas, onde o almoço estava a ser servido. Feijões, ervilhas, puré de batata e vários pedaços de tosta seca. Sam comeu menos de um terço da agradável comida que tinha no prato e esperou pacientemente que um guarda o viesse buscar. Tinha na mão um par de calções lavados e um pedaço de sabão. Estava na hora do banho.
O guarda chegou e conduziu Sam a um pequeno chuveiro ao fundo da fileira. Por ordem do tribunal, os reclusos do corredor da morte estavam autorizados a tomar cinco duches por semana, precisassem deles ou não, como os guardas costumavam dizer.
Sam tomou um duche rápido, lavando o cabelo duas vezes com sabão e esfregando-se debaixo da água quente. O próprio chuveiro estava razoavelmente limpo, mas era usado pelos catorze reclusos da fileira. Por isso, conservou calçados os sapatos de borracha. Cinco minutos depois, a água parou de correr e Sam ficou a pingar durante mais alguns minutos, enquanto contemplava as paredes de mosaico bolorentas. Havia algumas coisas no Corredor das quais não iria sentir falta.
Vinte minutos mais tarde foi metido dentro de uma carrinha da prisão e conduzido à biblioteca legal, a meio quilómetro de distância.
Adam estava à sua espera lá dentro. Despiu o casaco e arregaçou as mangas, enquanto os guardas retiravam as algemas a Sam e saíam da sala. Cumprimentaram-se e apertaram as mãos. Sam sentou-se rapidamente e acendeu um cigarro.
- Por onde tens andado? - perguntou.
- Ocupado - disse Adam, sentando-se do outro lado da mesa. - Tive que fazer uma inesperada viagem a Chicago na quarta e na quinta-feira passadas.
- Alguma coisa relacionada comigo?
- Pode dizer-se que sim. Goodman queria rever o caso e havia mais uns assuntos.
- Portanto, o Goodman continua envolvido?
- Neste momento, o Goodman é o meu chefe, Sam. Tenho que fazer-lhe relatórios se quiser manter o emprego. Bem sei que o detesta, mas ele está muito preocupado consigo e com o seu caso. Acredite ou não, ele não deseja vê-lo executado.
- Já não odeio.
- Porque mudou de opinião?
- Não sei. Quando nos aproximamos assim tanto da morte, pensamos muito.
Adam estava ansioso por ouvir mais, mas Sam deixou passar o momento. Adam observou-o a fumar e tentou não pensar em Joe Lincoln. Tentou não pensar no pai de Sam a ser espancado numa rixa de bêbados durante um funeral e tentou ignorar todas as outras histórias miseráveis que Lee lhe tinha contado em Ford County. Tentou expulsar todas essas coisas do espírito, mas não conseguiu.
Tinha-lhe prometido que não mencionaria mais pesadelos do passado.
- Suponho que já sabe da nossa última derrota - disse ele enquanto tirava alguns papéis da mala.
- Não demorou muito tempo, pois não?
- Não, foi uma derrota muito rápida, mas já recorri para o Quinto Tribunal de Círculo.
- Nunca ganhei no Quinto Tribunal.
- Eu sei. Mas neste momento não podemos escolher o tribunal de revisão.
- O que é que podemos fazer neste momento?
- Várias coisas. Encontrei o governador na terça-feira passada depois de uma reunião com o juiz federal. Queria falar comigo em particular. Deu-me os seus números de telefone pessoais e pediu-me que lhe ligasse para falar sobre o caso. Disse que tinha dúvidas quanto à extensão da sua culpa.
Sam fitou-o intensamente.
- Dúvidas? Só por causa dele é que estou aqui. Está ansioso por me ver executado.
- Provavelmente tem razão, mas...
- Prometeste que não falavas com ele. Assinaste um acordo comigo que te proíbe expressamente de falar com esse louco.
- Acalme-se, Sam. Ele agarrou-me à porta do gabinete do juiz.
- Surpreende-me que não tenha convocado uma conferência de imprensa para falar do assunto.
- Eu ameacei-o, sabe. Obriguei-o a prometer que não dizia nada.
- Então és a primeira pessoa na história a silenciar aquele sacana.
- Está aberto à ideia da clemência.
- Ele disse-te isso?
- Disse.
- Porquê? Não acredito.
- Não sei porquê, Sam. E na verdade não me interessa. Mas que mal poderá fazer? Qual o perigo de pedir uma audiência de clemência? Ele consegue a fotografia no jornal. As câmaras de televisão perseguem-no mais uma vez. Se houver uma hipótese ele ouvir-nos-á, então porque nos havemos de importar se ele obtém alguma vantagem com isso?
- Não. A resposta é não. Não te autorizo a requerer uma audiência de clemência. Raios, não. Mil vezes não. Eu conheço-o, Adam. Está a tentar levar-te no seu jogo. É tudo um esquema, um espectáculo para o público. Vai chorar sobre isto até ao fim, retirando todas as vantagens que puder. Vai receber mais atenção do que eu e a minha execução.
- Então, que mal tem?
Sam bateu na mesa com a palma da mão.
- Porque não servirá de nada, Adam! Ele não vai mudar de ideias.
Adam garatujou qualquer coisa num bloco e deixou passar o momento. Sam voltou a recostar-se na cadeira e acendeu outro cigarro. Ainda tinha o cabelo molhado e penteou-o para trás com as unhas.
Adam pousou a caneta na mesa e olhou para o seu cliente.
- O que é que quer fazer Sam? Desistir? Lançar-se ao tapete? Já que pensa que sabe tanto de leis, diga-me que diabo quer fazer.
- Bem, tenho estado a pensar no assunto.
- Tenho a certeza que sim.
- O processo que vai a caminho do Quinto Tribunal de Cír culo é meritório, mas não parece muito prometedor. Do meu ponto de vista, não há muito mais que se possa fazer.
- Excepto Benjamin Keyes.
- Exactamente, excepto Benjamin Keyes. Ele fez um bom trabalho para mim tanto no julgamento como no recurso e é quase um amigo. Detesto ir atrás dele.
- É habitual nos casos de pena de morte, Sam. Vamos sempre atrás do advogado do julgamento e alegamos representação legal ineficaz. O Goodman disse-me que quis fazê-lo, mas que o Sam recusou. Devia ter sido feito há anos.
- Ele tem razão neste caso. Pediu-me que o fizesse, mas eu disse que não. Suponho que foi um erro.
Adam estava sentado à beira da cadeira a tomar notas.
- Estive a estudar o registo e acho que o Keyes cometeu um erro quando não o deixou subir à barra para prestar depoimento.
- Eu queria falar ao júri. Acho que já te disse isso. Depois de o Dogan testemunhar, pensei que era essencial para mim explicar ao júri que tinha realmente colocado a bomba, mas que não tivera intenção de matar ninguém. É a verdade, Adam. Não tinha intenção de matar ninguém.
- O senhor queria prestar depoimento, mas o seu advogado disse que não.
Sam sorriu e olhou para o chão.
- É isso que queres que eu diga?
- Sim.
- Não tenho muita escolha, pois não?
- Não.
- Muito bem. Foi isso que sucedeu. Eu queria prestar depoimento, mas o meu advogado não mo permitiu.
- Vou apresentar isto logo de manhã.
- É demasiado tarde, não é?
- Bem, certamente que é tarde e que esta questão deveria ter sido levantada há muito tempo. Mas o que temos a perder?
- Telefonas ao Keyes e dizes-lhe?
- Se tiver tempo. Na realidade, de momento, não estou preocupado com os sentimentos dele.
- Nem eu. Ele que vá para o diabo. Quem mais podemos atacar?
- A lista é muito pequena.
Sam pôs-se de pé de um salto e começou a andar ao longo da mesa em grandes passadas. A sala tinha cinco metros de comprimento. Caminhou em volta da mesa, por trás de Adam, e ao longo de cada uma das quatro paredes, contando enquanto andava. Parou e encostou-se a uma estante cheia de livros.
Adam terminou algumas notas e observou-o atentamente.
- A Lee pergunta se pode vir vê-lo - disse.
Sam fitou-o e depois regressou lentamente ao seu lugar do outro lado da mesa.
- Ela quer vir?
- Acho que sim.
- Tenho que pensar no assunto.
- Bem, então apresse-se.
- Como está ela?
- Bastante bem, suponho. Manda o seu amor e orações e tem pensado muito em si nestes últimos dias.
- As pessoas em Memphis sabem que ela é minha filha?
- Acho que não. Os jornais ainda não disseram nada.
- Espero que não falem.
- Eu e ela fomos a Clanton no sábado passado.
Sam olhou para ele com tristeza e depois fixou os olhos no tecto.
- O que viste? - perguntou ele.
- Muitas coisas. Ela mostrou-me a campa da minha avó e o terreno onde estão os outros Cayhall.
- Ela não quis ser enterrada com os Cayhall, a Lee contou- te isso?
- Sim. A Lee perguntou-me onde é que o senhor queria ser sepultado.
- Ainda não decidi.
- Claro. Mas diga-me o que decidir. Andámos pela cidade e ela mostrou-me a casa onde eu vivi. Fomos à praça e sentámo-nos no coreto no relvado do tribunal. A cidade é muito laboriosa. Havia muita gente na praça.
- Costumávamos ver o fogo-de-artifício no cemitério.
- A Lee falou-me disso. Almoçámos no The Tea Shoppe e demos uma volta pelo campo. Ela levou-me à casa da sua infância.
- Ainda está de pé?
- Sim, mas está abandonada. A casa está em ruínas e as ervas daninhas tomaram conta de tudo. Andámos por ali. Contou-me muitas histórias da infância. Falou muito do Eddie.
- Ela tem memórias agradáveis?
- Na verdade não.
Sam cruzou os braços e olhou para a mesa. Passou-se um minuto sem uma palavra. Finalmente, Sam perguntou:
- Ela falou-te do pequeno amigo africano do Eddie, Quince Lincoln?
Adam confirmou lentamente com a cabeça e os olhos de ambos encontraram-se.
- Falou sim.
- E do pai dele, Joe?
- Contou-me a história.
- Acreditas nela?
- Acho que sim. Devo acreditar?
- É verdade, é tudo verdade.
- Também pensei que fosse.
- Como te sentiste quando ela te contou a história? Quer dizer, como reagiste?
- Odiei-o profundamente.
- E o que sentes agora?
- De forma diferente.
Sam levantou-se lentamente da cadeira e foi até à extremidade da mesa; parou e ficou de costas voltadas para Adam.
- Foi há quarenta anos - murmurou ele quase inaudivelmente.
- Não vim aqui para falar disso - disse Adam começando a sentir-se culpado.
Sam virou-se e encostou-se à mesma estante. Cruzou os braços e fitou a parede.
- Desejei mil vezes que nunca tivesse acontecido.
- Prometi à Lee que não falava do assunto, Sam. Lamento.
- O Joe Lincoln era um bom homem. Perguntei-me muitas vezes o que teria acontecido à Ruby, ao Quince e aos outros garotos.
- Esqueça, Sam. Vamos falar de outra coisa.
- Espero que fiquem satisfeitos quando eu morrer.
Quando Adam passou pelo posto de segurança do portão principal o guarda acenou-Lhe, como se ele fosse já um cliente habitual. Respondeu ao aceno, ao mesmo tempo que carregava num botão para abrir a mala do carro. Não era necessário nenhum papel para os visitantes saírem, mas apenas uma rápida revista ao porta-bagagem para se certificarem que nenhum preso tinha aproveitado a boleia. Virou para a auto-estrada dirigindo-se para sul, afastando-se de Memphis, e calculou que esta era a sua quinta visita a Parchman. Cinco visitas em duas semanas. Suspeitava que este lugar ia ser a sua casa durante os próximos dezasseis dias. Que ideia horrível!
Não estava com disposição para enfrentar Lee nessa noite. Sentia-se algo responsável pela sua recaída no álcool, mas segundo ela própria confessara isso tinha sido um modo de vida durante muitos anos. Era alcoólica e, se optava por beber, não havia nada que ele pudesse fazer. Estaria lá no dia seguinte à noite, para fazer café e conversar. Esta noite precisava de uma pausa.
Era o meio da tarde, o calor emanava do asfalto da estrada, os campos estavam poeirentos e secos, a faina agrícola lânguida e lenta, o tráfego ligeiro e preguiçoso. Adam encostou e levantou a capota conversível. Parou numa mercearia chinesa em Ruleville e comprou uma lata de chá gelado e depois acelerou pela auto-estrada solitária na direcção de Greenville. Tinha uma tarefa a cumprir, provavelmente desagradável, mas à qual se sentia obrigado. Esperava ter coragem suficiente para a levar a cabo.
Manteve-se nas estradas secundárias, as pequenas estradas pavimentadas do campo, e vagueou sem destino através do Delta.
Perdeu-se duas vezes, mas encontrou o caminho. Chegou a Greenville alguns minutos antes das cinco e atravessou a área da Baixa em busca do seu objectivo. Passou duas vezes pelo Parque Kramer. Encontrou a sinagoga, em frente da Igreja Baptista. Estacionou no final da Main Street, junto ao rio onde um dique protegia a cidade. Endireitou a gravata e andou três quarteirões ao longo da Washington Street, até um velho edifício de tijolo, com a tabuleta Kramer Wholesale pendurada numa varanda sobre o passeio em frente. A pesada porta de vidro abria para o interior e os velhos soalhos de madeira rangeram quando os pisou. A parte da frente do edifício fora conservada de modo a parecer-se com uma antiga loja de retalho, com balcões de vidro em frente de largas prateleiras que subiam até ao tecto. As prateleiras e os balcões estavam cheios de caixas e embalagens de produtos alimentares que se vendiam há muitos anos, mas que agora tinham desaparecido. Uma antiga caixa registadora estava em exibição. O pequeno museu rapidamente deu lugar a um moderno comércio. O resto do enorme edifício fora renovado e parecia ser bastante eficiente. Uma parede de vidro apainelado dividia o átrio principal e um largo corredor atapetado atravessava o centro do edifício e conduzia, sem dúvida, a gabinetes e secretárias, e algures nas traseiras existia certamente um armazém.
Adam admirou os artigos expostos nos balcões da frente. Um jovem de calças de ganga surgiu vindo dos fundos e perguntou:
- Em que posso ajudá-lo?
Adam sorriu e ficou subitamente nervoso.
- Sim, gostaria de falar com Mr. Elliot Kramer.
- É vendedor?
Não.
É comprador? Não.
O jovem tinha um lápis na mão e problemas em mente.
- Então, posso perguntar o que deseja?
- Preciso de falar com Mr. Elliot Kramer. Ele está?
- Ele passa a maior parte do tempo no armazém principal no sul da cidade.
Adam deu três passos na direcção do homem e entregou-lhe um cartão de visita.
- O meu nome é Adam Hall. Sou um advogado de Chicago e preciso realmente de falar com Mr. Kramer.
Ele pegou no cartão e estudou-o durante uns momentos; depois olhou para Adam com ar desconfiado.
- Só um minuto - disse ele e afastou-se.
Adam encostou-se a um balcão e admirou a caixa registadora. Tinha lido algures no decurso da sua extensa investigação que a família de Marvin Kramer era uma família de prósperos mercadores estabelecida no Delta há várias gerações. Um antepassado deixara apressadamente um vapor no porto de Greenville e decidira fazer ali o seu lar. Abrira uma pequena loja de mercearias e uma coisa levara a outra. Ao longo de toda a provação dos julgamentos de Sam, a família Kramer fora repetidamente descrita como abastada.
Depois de vinte minutos de espera, Adam estava pronto a ir-se embora e bastante aliviado. Fizera o esforço. Se Mr. Kramer não queria encontrar-se com ele, nada podia fazer.
Ouviu passos no chão de madeira e voltou-se. Um cavalheiro idoso estava ali com um cartão na mão. Era alto e magro, com cabelo cinzento ondulado, olhos castanhos-escuros orlados de pesadas sombras, uma face magra e dura que de momento não sorria. Mantinha-se erecto, sem a ajuda de qualquer bengala, sem óculos para o ajudar a ver. Olhou para Adam de testa franzida, mas não disse nada.
Por um instante, Adam desejou ter saído cinco minutos antes. Depois, perguntou a si próprio porque razão estava ali para começar. E decidiu ir para a frente de qualquer maneira.
- Boa-tarde - disse ele, quando se tornou óbvio que o cavalheiro não ia dizer nada. - Mr. Elliot Kramer?
Mr. Kramer acenou com a cabeça afirmativamente, mas acenou muito lentamente como se a questão fosse um desafio.
- O meu nome é Adam Hall. Sou um advogado de Chicago. O Sam Cayhall é meu avô e represento-o legalmente - era evi dente que Mr. Kramer já tinha compreendido isto, porque as palavras de Adam não pareceram espantá-lo. - Gostaria de falar consigo.
- Falar sobre quê? - perguntou ele em voz arrastada.
- Sobre o Sam.
- Espero que apodreça no inferno - disse ele, como se estivesse seguro do destino eterno de Sam. Os seus olhos eram tão castanhos que pareciam quase negros.
Adam olhou para o chão, desviando-se do olhar, e tentou pensar em algo não controverso.
- Sim senhor - disse ele com perfeita consciência de que se encontrava no sul profundo, onde a educação era uma verdadeira tradição. - Compreendo como se sente. Não o culpo, mas queria apenas falar consigo por uns minutos.
- O Sam envia as suas desculpas? - perguntou Mr. Kramer. O facto de ele se referir simplesmente ao Sam pareceu estranho a Adam. Não lhe chamara Mr. Cayhall nem sequer Cayhall, mas apenas Sam, como se os dois fossem velhos amigos em litígio e tivesse chegado a hora de se reconciliarem. Diz que lamentas, Sam, e tudo ficará bem.
A ideia de uma rápida mentira atravessou o espírito de Adam. Poderia aproveitar, dizer quão terrivelmente Sam se sentia naqueles dias, os seus últimos dias, e como desejava desesperadamente ser perdoado. Mas Adam não conseguiu obrigar-se a fazê-lo.
- Faria alguma diferença? - perguntou ele.
Mr. Kramer colocou cuidadosamente o cartão no bolso da camisa e começou aquilo que se transformaria num longo olhar para além de Adam e através da janela da frente.
- Não - disse. - Não faria diferença nenhuma. É algo que deveria ter sido feito há muito tempo.
As suas palavras tinham o pesado sotaque do Delta e, embora os significados não fossem bem-vindos, os sons eram muito calmantes. Eram lentas e comedidas, proferidas como se o tempo não significasse nada. Também reflectiam os anos de sofrimento e a sugestão de que a vida terminara há muito tempo.
- Não, Mr. Kramer. O Sam não sabe que eu estou aqui, por tanto não envia as suas desculpas. Mas eu sim.
O olhar pela janela e sobre o passado não vacilou nem estremeceu. Mas ele estava a ouvir.
Adam continuou:
- Sinto-me na obrigação de pelo menos dizer, em meu nome e no da filha de Sam, que lamentamos profundamente tudo o que aconteceu.
- Porque é que o Sam não o disse há anos?
- Não posso responder a isso.
- Eu sei. O senhor é novo.
Ah, o poder da imprensa. Claro que Mr. Kramer lera os jornais como toda a gente.
- Sim senhor. Estou a tentar salvar a vida dele.
- Porquê?
- Por várias razões. Matá-lo não vai trazer de volta os seus netos nem o seu filho. Ele errou, mas também não está certo o governo matá-lo.
- Compreendo. E pensa que nunca ouvi isso antes?
- Não senhor. Tenho a certeza que já ouviu tudo isto. Já viu tudo. Sentiu tudo. Não consigo sequer imaginar aquilo porque passou. Estou só a tentar evitá-lo eu próprio.
- Que mais deseja?
- Pode dispensar-me cinco minutos?
- Já estamos a falar há três minutos. Tem mais dois - olhou para o relógio como que para ligar um cronómetro e depois meteu os longos dedos nos bolsos das calças. Os olhos regressaram à janela e à rua para além dela.
- O jornal de Memphis citava-o como tendo dito que queria estar lá quando o Sam Cayhall fosse amarrado na câmara de gás para olhá-lo nos olhos.
- É uma citação exacta. Mas não acredito que alguma vez venha a acontecer.
- Porque não?
- Porque temos um sistema de justiça criminal imprestável. Há quase dez anos que ele é mimado e protegido na prisão. Os recursos continuam sempre. Neste preciso momento, o senhor está a interpor recursos e a puxar cordelinhos para o manter vivo. O sistema está doente. Não esperamos justiça.
- Asseguro-lhe que ele não está a ser mimado. O corredor da morte é um lugar terrível. Acabei de sair de lá.
- Sim, mas ele está vivo. Está vivo, a respirar, a ver televisão e a ler livros. Fala consigo. Intenta acções. E se e quando a morte se aproximar terá muito tempo para fazer planos para ela. Poderá despedir-se, dizer as suas orações. Os meus netos não tiveram tempo de dizer adeus, Mr. Hall. Não tiveram tempo de abraçar os pais e dar-lhes um beijo de despedida. Foram simplesmente feitos em pedaços enquanto brincavam.
- Eu compreendo isso, Mr. Kramer. Mas a morte do Sam não vai trazê-los de volta.
- Não, não vai. Mas vai fazer-nos sentir muito melhor. Vai aliviar muita dor. Rezei um milhão de vezes para viver o suficiente para vê-lo morto. Tive um ataque de coração há cinco anos. Mantiveram-me ligado às máquinas durante duas semanas e a única coisa que me conservou vivo foi o meu desejo de sobreviver a Sam Cayhall. Eu estarei lá, Mr. Hall, se os meus médicos mo permitirem. Estarei lá para o ver morrer e depois voltarei para casa para acabar os meus dias.
- Lamento que pense dessa maneira.
- Eu também o lamento. Lamento ter alguma vez ouvido o nome de Sam Cayhall.
Adam deu um passo para trás e encostou-se ao balcão junto da caixa registadora. Olhou para o chão e Mr. Kramer olhou através da janela. O sol punha-se a ocidente por trás do edifício e o pequeno e elegante museu estava a ficar mais escuro.
- Perdi o meu pai por causa disto - disse Adam suavemente.
- Lamento. Li algures que ele se tinha suicidado depois do último julgamento.
- O Sam também tem sofrido, Mr. Kramer. Destruiu a sua família e a do senhor. E carrega mais culpas do que eu ou o senhor poderemos alguma vez imaginar.
- Talvez não se sinta tão sobrecarregado depois de estar morto.
- Talvez. Mas porque não paramos com as mortes?
- Como espera que eu a pare?
- Li algures que o senhor e o governador são velhos amigos.
- O que tem o senhor a ver com isso?
- Mas é verdade, não é?
- Ele é um rapaz daqui. Conheço-o há muitos anos.
- Conheci-o na semana passada. Ele tem o poder de conceder clemência, como sabe.
- Não contaria com isso.
- Não estou a contar. Estou desesperado, Mr. Kramer. Neste momento, já não tenho nada a perder, excepto o meu avô. Se o senhor e a sua família estão firmemente decididos a pressionar a execução, então o governador certamente que os ouvirá.
- Tem razão.
- E se o senhor decidisse que não desejava uma execução, penso que o governador lhe daria igualmente ouvidos.
- Portanto, está tudo nas minhas mãos - disse ele, movendo-se finalmente. Passou à frente de Adam e deteve-se junto da janela. - Não só está desesperado, Mr. Hall, como também é um ingénuo.
- Não vou discutir isso.
- É agradável saber que tenho tanto poder. Se o tivesse sabido antes, o seu avô já estaria morto há anos.
- Ele não merece morrer, Mr. Kramer - disse Adam caminhando na direcção da porta. Não esperara simpatia. Era apenas importante que Mr. Kramer o visse e soubesse que outras vidas seriam afectadas.
- Nem os meus netos. Nem o meu filho.
Adam abriu a porta e disse:
- Lamento a intrusão e agradeço-lhe o seu tempo. Tenho uma irmã, um primo e uma tia, filha de Sam. Só queria que soubesse que o Sam tem uma família, mesmo sendo como é. Se ele morrer, nós sofreremos. Se não for executado, nunca sairá da prisão. Limitar-se-á a murchar e acabará por morrer muito em breve de causas naturais.
- O senhor vai sofrer?
- Sim, senhor. Somos uma família patética, Mr. Kramer, plena de tragédia. Estou a tentar evitar mais uma.
Mr. Kramer voltou-se e olhou para ele. Não tinha qualquer expressão no rosto.
- Nesse caso lamento-o.
- Mais uma vez obrigado - disse Sam.
- Bom-dia, senhor - disse Mr. Kramer sem um sorriso. Adam saiu do edifício e caminhou ao longo de uma rua cheia de sombra até chegar ao centro da cidade. Procurou o parque comemorativo e sentou-se no mesmo banco, não muito longe da estátua de bronze dos dois meninos. Porém, alguns minutos depois, cansado da culpa e das recordações, foi-se embora.
Foi ao mesmo café a um quarteirão de distância, bebeu café e depenicou queijo grelhado. Ouviu uma conversa sobre Sam Cayhall a várias mesas de distância, mas não conseguiu compreender exactamente o que estavam a dizer.
Registou-se num motel e telefonou a Lee. Ela pareceu sóbria e talvez um pouco aliviada por ele não estar ali nessa noite. Prometeu regressar na tarde do dia seguinte. Quando escureceu, Adam já estava a dormir há meia hora.
Adam atravessou a Baixa de Memphis nas horas antes da madrugada e às sete da manhã estava fechado no seu gabinete. Às oito já tinha falado três vezes com E. Garner Goodman. Goodman, ao que parecia, estava preocupado e tinha dificuldade em dormir. Discutiram longamente a questão da representação de Keyes durante o julgamento. O processo Cayhall estava cheio de memorandos e pesquisas acerca do que correra mal durante o julgamento, mas poucas dessas coisas faziam incidir as culpas sobre Benjamin Keyes.
Mas isso fora há muitos anos, quando a câmara de gás parecia demasiado distante para preocupações. Goodman ficou satisfeito ao saber que Sam pensava agora que deveria ter prestado depoimento no julgamento e que Keyes o impedira. Goodman mostrou-se céptico quanto à veracidade do facto, mas aceitaria a palavra de Sam nesse ponto.
Tanto Goodman como Adam sabiam que a questão deveria ter sido levantada há anos e fazê-lo agora seria, na melhor das hipóteses, um tiro no escuro. Os livros de Direito estavam a ficar mais volumosos semana a semana com decisões do supremo tribunal recusando reivindicações legítimas por terem sido interpostas extemporaneamente. Mas era uma verdadeira questão, que os tribunais examinavam sempre, e Adam começou a ficar excitado enquanto esboçava e voltava a esboçar o pedido e trocava faxes com Goodman.
Mais uma vez, o pedido teria que ser interposto ao abrigo das leis do indulto pós-condenação no tribunal estadual. Esperava uma recusa rápida, para que pudesse recorrer imediatamente para o tribunal federal.
Às dez, enviou o esboço final por fax para o assistente do Supremo Tribunal do Mississípi e enviou também uma cópia à atenção de Breck Jefferson no gabinete de Slattery. Um fax foi também enviado para o assistente do Quinto Tribunal de Círculo em Nova Orleães. Depois telefonou ao Adjunto da Morte do supremo tribunal e disse a Mr. Olander o que estava a fazer. Mr. Olander solicitou-lhe que mandasse imediatamente uma cópia por fax para Washington.
Darlene bateu à porta e Adam abriu. Tinha uma visita à espera na área de recepção, um Mr. Wyn Lettner. Adam agradeceu-lhe e alguns minutos mais tarde desceu ao átrio e cumprimentou Lettner, que estava sozinho e vestido como o dono de um armazém de pesca. Sapatos de ponte, boné de pescador. Trocaram amabilidades: o peixe estava a morder, Irene estava bem, quando é que voltava a Calico Rock?
- Vim à cidade tratar de negócios e queria falar consigo apenas por uns minutos - disse ele num murmúrio, de costas voltadas para a recepcionista.
- Claro - murmurou Adam. - O meu gabinete é ao fundo do corredor.
- Não, vamos dar uma volta.
Desceram no elevador até ao átrio e saíram do edifício para a alameda. Lettner comprou um saco de amendoim torrado a um vendedor ambulante e ofereceu a Adam uma mão-cheia. Ele recusou. Caminharam lentamente para norte na direcção da câmara municipal e do edifício federal. Lettner comia amendoins e alternadamente atirava-os aos pombos.
- Como está o Sam? - perguntou finalmente.
- Tem duas semanas. Como se sentiria se tivesse apenas duas semanas?
- Acho que rezaria muito.
- Ele ainda não chegou a esse ponto, mas não falta muito.
- Vai acontecer?
- Certamente que está a ser planeado. Não há nada escrito que o impeça.
Lettner atirou uma mão-cheia de amendoins para dentro da boca.
- Bem, boa sorte. Desde que me visitou que tenho torcido por si e pelo Sam.
- Obrigado. E veio a Memphis para me desejar sorte?
- Não exactamente. Depois de se ter ido embora, pensei muito sobre o Sam e o atentado Kramer. Verifiquei os meus arquivos e registos pessoais, coisas em que não pensava há anos. Trouxe-me muitas recordações. Telefonei a alguns dos meus velhos camaradas e contámos histórias de guerra acerca do Klan. Aqueles é que eram tempos.
- Lamento tê-los perdido.
- De qualquer maneira, pensei em meia-dúzia de coisas que talvez devesse ter-lhe dito.
- Tais como?
- Há mais coisas a respeito do Dogan. Sabe que ele morreu um ano depois de testemunhar.
- O Sam disse-me.
- Ele e a mulher morreram quando a casa deles explodiu. Uma fuga qualquer de gás propano no aquecimento. A casa encheu-se de gás e qualquer coisa o inflamou. Rebentou como uma bomba, uma enorme bola de fogo. Fê-los em bocados.
- Muito triste, mas e depois?
- Nunca acreditámos que tivesse sido um acidente. Os rapazes do laboratório criminal tentaram reconstruir o aquecimento. Uma grande parte estava destruída, mas eles pensaram que tinha sido mexido propositadamente para causar a fuga.
- Como é que isso afecta o Sam?
- Não afecta.
- Então, porque é que me veio falar nisso?
- Pode afectá-lo a si.
- Não estou a compreender.
- O Dogan tinha um filho, um garoto que se alistou no Exército em mil novecentos e setenta e nove e foi enviado para a Alemanha. Numa altura qualquer no Verão de mil novecentos e oitenta, o Dogan e o Sam foram novamente indiciados pelo Tribunal de Círculo de Greenville e, pouco tempo depois, espalhou-se a notícia de que o Dogan concordara em testemunhar contra o Sam. Foi uma grande notícia. Em Outubro de mil novecentos e oitenta, o filho do Dogan desapareceu na Alemanha. Sumiu - esmagou alguns amendoins e atirou as cascas aos pombos. - Nunca foi encontrado. O exército procurou por toda a parte. Passaram-se meses. Depois um ano. Dogan morreu sem saber o que acontecera ao rapaz.
- O que lhe aconteceu?
- Não sei. Até hoje, nunca apareceu.
- Morreu?
- Provavelmente. Nunca mais houve sinais dele.
- Quem o matou?
- Talvez a mesma pessoa que matou os pais.
- E quem poderia ter sido?
- Tínhamos uma teoria, mas nenhum suspeito. Pensámos na altura que o filho fora apanhado antes do julgamento como um aviso para o Dogan. Talvez o Dogan soubesse alguns segredos.
- Então, porquê matar o Dogan depois do julgamento? Pararam à sombra de uma árvore e sentaram-se num banco em Court Square. Finalmente, Adam aceitou alguns amendoins.
- Quem conhecia os pormenores do atentado? - perguntou Lettner. - Todos os pormenores.
- O Sam, o Jeremiah Dogan.
- Certo. E quem foi o advogado deles nos dois primeiros julgamentos?
- Clovis Brazelton.
- Será seguro presumir que Brazelton conhecia os pormenores?
- Suponho que sim. Ele era membro activo do Klan, não é verdade?
- Sim, era membro do Klan. Portanto, temos três pessoas: o Sam, o Dogan e o Brazelton. Mais alguém?
Adam pensou durante um segundo.
- Talvez o misterioso cúmplice.
- Talvez. O Dogan está morto. O Sam não fala. E o Brazelton morreu há muitos anos.
- Como morreu ele?
- Num desastre de avião. O caso Kramer transformou-o num herói por lá e ele conseguiu acumular essa fama num escritório de advocacia muito bem sucedido. Adorava voar, por isso comprou um avião e voava para toda a parte resolvendo casos. Uma pessoa muito importante. Certa noite voava de regresso da costa quando o avião desapareceu do radar. Encontraram o corpo dele numa árvore. O tempo estava claro. A força aérea disse que devia ter havido alguma falha no motor.
- Outra morte misteriosa.
- Sim. Portanto, estão todos mortos, excepto o Sam e ele está a aproximar-se.
- Alguma ligação entre a morte do Dogan e a do Brazelton?
- Não. Aconteceram a anos de distância. Mas a teoria inclui o cenário de que as mortes foram obra da mesma pessoa.
- Então quem o fez?
- Alguém muito preocupado com alguns segredos. Pode ser o misterioso cúmplice do Sam, John Doe.
- É uma teoria bastante louca.
- É, claro. E não existe nenhuma prova que a sustente. Mas eu disse-lhe em Calico Rock que sempre suspeitámos que o Sam teve ajuda. Ou talvez o Sam fosse um mero ajudante do John Doe. De qualquer forma, quando o Sam fez asneira e foi apanhado, John Doe desapareceu. Talvez tenha estado ocupado a eliminar testemunhas.
- Porque mataria a mulher do Dogan?
- Porque por acaso estava na cama com ele quando a casa explodiu.
- Porque teria matado o filho do Dogan?
- Para manter o Dogan calado. Lembre-se que quando o Dogan testemunhou o filho estava desaparecido há quatro meses.
- Nunca li nada acerca do filho.
- Não foi muito falado. Sucedeu na Alemanha. Avisámos o Dogan para não falar do assunto.
- Estou confuso. O Dogan não acusou mais ninguém além do Sam durante o julgamento. Porquê matá-lo depois?
- Porque continuava a saber os segredos. E porque testemunhou contra outro membro do Klan.
Adam partiu duas cascas e deixou cair os amendoins em frente de um único pombo gordo. Lettner acabou o saco e atirou outra mão-cheia de cascas para o passeio junto do chafariz. Era quase meio-dia e dezenas de empregados de escritório apressavam-se pelo parque em busca do perfeito almoço de meia-hora.
- Tem fome? - perguntou Lettner olhando para o relógio.
- Não.
- Sede? Preciso de uma cerveja.
- Não. Como é que o John Doe pode afectar-me?
- O Sam é a única testemunha que resta e o seu silenciamento está marcado para daqui a duas semanas. Se ele morrer sem falar, então o John Doe poderá viver em paz. Se o Sam não morrer dentro de duas semanas, o John Doe continuará ansioso. Mas se o Sam começar a falar, alguém poderá ser magoado.
- Eu?
- É você que está a tentar descobrir a verdade.
- Acha que ele anda por aí?
- É possível. Ou pode estar a guiar um táxi em Montreal. Ou talvez nunca tenha existido.
Adam olhou por cima de ambos os ombros com uma expressão de medo exagerado.
- Eu sei que parece uma loucura - disse Lettner.
- O John Doe está seguro. O Sam não falará.
- Há um perigo potencial, Adam. Só queria que soubesse.
- Não tenho medo. Se o Sam me dissesse o nome do John Doe neste momento, eu gritava-o nas ruas e apresentava petições aos montes. E não serviria de nada. É demasiado tarde para novas teorias de culpa ou inocência.
- E o governador?
- Duvido.
- Bem, quero que tome cuidado.
- Obrigado.
- Vamos beber uma cerveja.
Tenho que manter este tipo longe da Lee, pensou Adam.
- Faltam cinco para o meio-dia. Certamente que não começa a beber tão cedo.
- Oh, às vezes começo ao pequeno-almoço.
John Doe estava sentado num dos bancos do parque com um jornal à frente da cara e pombos em volta dos pés. Encontrava-se a uma distância de vinte cinco metros e portanto não conseguia ouvir o que estavam a dizer. Pensou ter reconhecido o velho que estava com Adam como um agente do FBI, cujo rosto aparecera nos jornais há muitos anos. Seguiria o homem e descobriria quem era e onde vivia.
Wedge estava a ficar farto de Memphis e isso seria excelente. O rapaz trabalhava no escritório, visitava Parchman, dormia no condomínio e parecia estar a fazer o seu trabalho. Wedge seguia cuidadosamente as notícias. O seu nome não fora mencionado. Ninguém sabia nada a seu respeito.
O bilhete que estava sobre o balcão fora datado correctamente. Ela mencionara a hora: sete e um quarto da manhã. Era a letra de Lee que, normalmente, já não era muito clara, mas agora parecia ainda pior. Dizia que estava na cama com o que parecia ser uma gripe. Por favor, não me incomodes. Fora ao médico que lhe dissera para se meter na cama e dormir. Para acrescentar mais efeito, um frasco de medicamento de uma farmácia local estava perto, junto de uma garrafa de água meio vazia. Tinha a data do dia.
Adam verificou rapidamente o caixote do lixo debaixo do lava-louças - não havia vestígios de garrafas.
Colocou tranquilamente uma pizza no micro-ondas e foi para o pátio observar as barcaças no rio.
O primeiro papagaio da manhã chegou pouco depois do pequeno-almoço, quando Sam, com os seus calções largos, estava encostado às grades a fumar um cigarro. Era do Preacher Boy e trazia más notícias. Dizia:
Caro Sam:
O sonho acabou. Deus falou-me a noite passada e mostrou-me finalmente o resto. Desejava que o não tivesse feito. Há muita coisa a dizer e explicar-te-ei tudo se quiseres. A ideia básica é que em breve irás ter com ele. Ele disse-me para te dizer para fazeres as pazes com ele. Ele espera-te. A viagem será dura, mas a recompensa valerá a pena. Amo-te.
Irmão Randy
Boa-viagem, murmurou Sam para si mesmo amachucando o papel e atirando-o para o chão. O rapaz estava a enlouquecer lentamente e não havia forma de o ajudar. Sam já tinha preparado uma quantidade de petições para serem apresentadas em qualquer momento indeterminado do futuro, quando o Irmão Randy estivesse completamente louco.
Viu as mãos de Gullitt aparecerem do lado de fora das grades na cela ao lado.
- Como estás Sam? - perguntou Gullit finalmente.
- Deus está zangado comigo - respondeu Sam.
- A sério?
- Sim, o Preacher Boy terminou o sonho na noite passada.
- Graças a Deus por isso.
- Foi mais um pesadelo.
- Eu não me preocupava muito com isso. O desgraçado sonha quando está completamente acordado. Ontem disseram-me que há uma semana que chora.
- Consegues ouvi-lo?
- Não, felizmente.
- Pobre garoto. Fiz umas petições para ele, para o caso de abandonar este lugar. Vou deixá-las contigo.
- Não saberia o que fazer com elas.
- Eu deixo-te instruções. Deverás mandá-las ao advogado dele.
Gullitt assobiou suavemente.
- Oh, Deus, oh, Deus, o que vou fazer se te fores embora? Há um ano que não falo com o meu advogado.
- O teu advogado é um idiota.
- Então ajuda-me a despedi-lo, por favor, Sam. Tu despediste os teus. Ajuda-me a despedir o meu. Eu não sei como fazer.
- E então quem é que te vai representar?
- O teu neto. Pede-lhe para aceitar o meu caso.
Sam sorriu e depois deu uma gargalhada. E depois riu da ideia de reunir os seus companheiros do Corredor e entregar todos estes casos desesperados a Adam.
- O que é que tem tanta graça? - perguntou Gullit.
- Tu. O que te leva a pensar que ele vai querer o teu caso?
- Vá lá, Sam. Fala com o garoto a meu favor. Deve ser inteligente sendo teu neto.
- E se me mandarem para a câmara de gás? Vais querer um advogado que acaba de perder o seu primeiro cliente no corredor da morte?
- Raios, neste momento não posso ser esquisito.
- Acalma-te, J. B. Ainda tens muitos anos.
- Quantos?
- Pelo menos cinco, talvez mais.
- Juras?
- Tens a minha palavra. Eu ponho-o por escrito. Se estiver enganado, poderás processar-me.
- Muito engraçado, Sam, muito engraçado.
Uma porta estalou ao abrir-se no fim do corredor e passos pesados encaminharam-se na sua direcção. Era Packer e deteve-se em frente do número seis.
- B'dia, Sam - disse ele.
- dia, Packer.
- Veste o fato vermelho. Tens uma visita.
- Quem é?
- Alguém que quer falar contigo.
- Quem é? - repetiu Sam enquanto vestia rapidamente o fato-macaco vermelho. Agarrou nos cigarros. Não lhe interessava quem era o visitante nem o que desejava. Qualquer visita era uma forma bem-vinda de se libertar da cela.
- Despacha-te, Sam - disse Packer.
- É o meu advogado? - perguntou Sam enfiando os pés nos sapatos de borracha.
- Não - Packer algemou-o através das grades e a porta da cela abriu-se. Deixaram a fileira A e dirigiram-se para a mesma sala pequena onde os advogados costumavam esperar.
Packer tirou-lhe as algemas e fechou a porta atrás de Sam, que se concentrou na mulher de constituição pesada que estava sentada do outro lado da divisória. Esfregou os pulsos e deu alguns passos na direcção da cadeira que se encontrava à sua frente. Não reconheceu a mulher. Sentou-se, acendeu um cigarro e fitou-a intensamente. i Ela arrastou a cadeira para a frente e disse nervosamente: - Mr. Cayhall, sou a Dra. Stegall - passou um cartão de visita através da abertura. - Sou psiquiatra do Departamento Correccional do Estado. Sam estudou o cartão que se encontrava à sua frente sobre o balcão. Pegou nele e examinou-o com suspeita. - Diz aqui que o seu nome é N. Stegall. Dra. N. Stegall. - Exactamente. - É um nome estranho, Nunca conheci nenhuma mulher chamada N. Opequeno sorriso ansioso desapareceu-lhe do rosto e ela endireitou-se. - É apenas uma inicial, certo? Há razões para isso.
- O que é que significa?
- Na verdade não tem nada com isso.
- Nancy? Nelda? Nona?
- Se eu quisesse que o senhor soubesse tinha-o posto no cartão, não acha?
- Não sei. Seja qual for, deve ser horrível. Nick? Ned? Não consigo imaginar esconder-me atrás de uma inicial.
- Não estou a esconder-me, Mr. Cayhall.
- Chame-me simplesmente S. está bem?
Ela cerrou os maxilares e em voz zangada disse através da abertura:
- Estou aqui para o ajudar.
- Chegou tarde demais, N.
- Por favor, chame-me Dra. Stegall.
- Oh, bem, nesse caso pode chamar-me Dr. Cayhall.
- Dr. Cayhall?
- Sim, sei mais acerca de leis do que a maior parte dos palhaços que se sentam aí onde você está.
Ela conseguiu mostrar um pequeno sorriso condescendente e depois disse:
- É suposto eu consultá-lo nesta fase dos procedimentos para ver se posso ajudá-lo em alguma coisa. Se não quiser, não é obri gado a cooperar.
- Muito obrigado.
- Se precisar de falar comigo, ou se precisar de alguns medicamentos agora ou mais tarde, informe-me.
- E um pouco de uísque?
- Não posso receitar isso.
- Porque não?
- Regulamentos da prisão, suponho.
- O que pode receitar?
- Tranquilizantes. Valium, comprimidos para dormir, coisas desse género.
- Para quê?
- Para os nervos.
- Os meus nervos estão óptimos.
- Consegue dormir?
Sam pensou durante algum tempo.
- Bem, para ser franco, estou a ter alguns problemas. Ontem dormi intermitentemente apenas doze horas. Normalmente, consigo dormir quinze ou dezasseis.
- Doze horas?
- Sim. Com que frequência é que vem ao Corredor da Morte?
- Não muito frequentemente.
- Era o que eu pensava. Se soubesse o que anda a fazer, saberia que a média normal aqui é de dezasseis horas por dia.
- Compreendo. E que mais deveria eu saber?
- Oh, muita coisa. Por exemplo, talvez soubesse que o Randy Dupree está a enlouquecer lentamente e ninguém se importa com isso. Porque não veio vê-lo?
- Há cinco mil reclusos aqui, Mr. Cayhall. Eu...
- Então vá-se embora. Vá tratar do resto dos presos. Estou aqui há nove anos e meio e nunca a tinha visto. Agora que estão prestes a mandar-me para a câmara de gás, aparece a correr com um saco cheio de drogas para me acalmar os nervos, para que eu me mostre dócil quando me matarem. Porque é que se preocupa com os meus nervos e os meus hábitos de sono? Você trabalha para o estado e o estado está a fazer tudo por tudo para me matar.
- Estou a fazer o meu trabalho, Mr. Cayhall.
- O seu trabalho cheira mal, Ned. Arranje um emprego a sério onde possa realmente ajudar as pessoas. Neste momento está aqui porque só me restam treze dias e querem que eu me vá em paz. Não passa de outro capacho do estado.
- Não vim aqui para ser insultada.
- Então tire daqui esse rabo gordo. Vá-se embora. Vá e não volte a pecar.
Ela pôs-se de pé de um salto e agarrou na pasta.
- Tem o meu cartão. Se precisar de alguma coisa, diga-me.
- Claro Ned, não fique sentada ao pé do telefone - Sam levantou-se e dirigiu-se para a porta do seu lado. Bateu duas vezes com a palma da mão e esperou de costas viradas para ela que Packer abrisse.
Adam estava a arrumar a pasta preparando-se para uma rápida visita a Parchman quando o telefone tocou. Darlene disse que era urgente. Tinha razão.
O interlocutor identificou-se como assistente do Quinto Tribunal de Círculo de Apelação de Nova Orleães e mostrou-se muito amável. Disse que a petição Cayhall atacando a constitucionalidade da câmara de gás fora recebida na segunda-feira, fora atribuída a um painel de três juízes e que o painel queria ouvir as alegações orais de ambas as partes. Poderia estar em Nova Orleães à uma hora da tarde do dia seguinte, sexta-feira, para apresentar as alegações orais?
Adam quase deixou cair o telefone. Amanhã? Claro, disse após uma ligeira hesitação. À uma hora em ponto, disse o assistente e depois explicou que normalmente o tribunal não ouvia alegações orais da parte da tarde. Mas devido à urgência da questão, o tribunal marcara uma audiência especial. Perguntou a Adam se alguma vez apresentara alegações perante o Quinto Círculo.
Estás a brincar, pensou Adam. No ano passado ainda estava a estudar para o exame de estágio. Não, respondeu, na realidade não tinha e o assistente disse que ia enviar imediatamente a Adam por fax uma cópia do regulamento do tribunal que regia as alegações orais. Adam agradeceu profusamente e desligou.
Sentou-se na extremidade da mesa e tentou reunir as ideias. Darlene trouxe-lhe o fax e ele pediu-Lhe que verificasse os voos para Nova Orleães.
Teria ele chamado a atenção do tribunal com as questões que suscitara? Eram boas notícias, ou tratava-se apenas de uma formalidade? Na sua breve carreira de advogado, só uma vez estivera sozinho perante os juízes para defender a posição de um cliente. Mas Emmitt Wycoff estivera sentado perto, para o caso de alguma coisa correr mal. E o juiz era seu conhecido. E tinha acontecido na Baixa de Chicago, não muito longe do seu escritório. No dia seguinte entraria numa sala de audiências desconhecida numa cidade estranha e tentaria defender um pedido de última hora perante um painel de juízes dos quais nunca ouvira falar.
Telefonou a E. Garner Goodman a dar as notícias. Goodman já estivera muitas vezes no Quinto Tribunal de Círculo e, enquanto falava, Adam foi-se acalmando. Na opinião de Goodman as notícias não eram boas nem más. O tribunal estava obviamente interessado na acção, mas já tinha ouvido tudo aquilo antes. Nos últimos anos, tanto o Texas como a Luisiana tinham apresentado ao Quinto Tribunal de Círculo pedidos de inconstitucionalidade semelhantes.
Goodman garantiu-lhe que ele seria capaz de fazer as alegações. Só tem que estar preparado, disse ele. E tente acalmar-se. Talvez fosse possível ir até Nova Orleães e estar presente, mas Adam disse que não. Disse que seria capaz de fazê-lo sozinho.
- Mantenha-se em contacto, disse Goodman.
Adam consultou Darlene e depois fechou-se no gabinete. Decorou as regras das alegações orais. Estudou a acção que atacava a câmara de gás. Leu resumos e casos. Telefonou para Parchman e deixou um recado a Sam, dizendo que não poderia ir visitá-lo nesse dia.
Trabalhou até ao anoitecer e depois fez a temida viagem até ao apartamento de Lee. O mesmo bilhete continuava em cima do balcão sem ter sido mexido e ainda dizendo que estava na cama com gripe. Deu uma volta pelo apartamento e não viu quaisquer sinais de movimento ou de vida durante o dia.
A porta do quarto dela estava ligeiramente aberta. Ele bateu e empurrou.
- Lee - chamou baixinho para o escuro. - Lee, estás bem? Houve um movimento na cama, embora não conseguisse ver o que era.
- Sim querido - respondeu ela. - Entra.
Adam sentou-se lentamente na beira da cama e tentou vê-la. A única luz era um ténue reflexo vindo do corredor. Ela sentou-se e recostou-se nas almofadas.
- Estou melhor - disse em voz rouca. - Como estás, querido?
- Estou bem, Lee. Estou preocupado contigo.
- Vou ficar bem. É apenas um pequeno vírus. Os primeiros e pungentes vapores vieram dos lençóis e das cobertas da cama e ele teve vontade de chorar. Era o cheiro desagradável de vodka, gin ou cerveja fermentada ou talvez uma combinação de todos eles. Ele não conseguia ver-lhe os olhos na obscuridade, mas apenas o vago contorno do rosto. Vestia uma espécie de camisa escura.
- Que tipo de medicamentos estás a tomar?
- Não sei, são uns comprimidos. O médico disse que vai durar alguns dias e depois desaparece rapidamente. Já me sinto melhor.
Adam ia a dizer qualquer coisa sobre a improbabilidade de um vírus de gripe em finais de Julho, mas deixou passar.
- Consegues comer?
- Na verdade não tenho apetite.
- Posso fazer alguma coisa?
- Não, querido. Como tens passado? Que dia é hoje?
- É quinta-feira.
- Sinto-me como se tivesse estado numa cave durante uma semana inteira.
Adam tinha duas opções. Podia alinhar na história do pequeno vírus e esperar que ela parasse de beber antes que as coisas piorassem, ou podia confrontá-la imediatamente e demonstrar- lhe que não conseguia enganá-lo. Talvez discutissem e talvez fosse isso que era suposto fazer com os ébrios que descarrilavam. Como podia saber o que deveria fazer?
- O teu médico sabe que tens andado a beber? - perguntou ele contendo a respiração.
Houve uma longa pausa.
- Não tenho bebido - disse ela quase inaudivelmente.
- Ora, Lee. Encontrei a garrafa de vodka no lixo. Sei que as três garrafas de cerveja que sobraram no domingo passado desapareceram. Agora cheiras como uma destilaria. Não consegues enganar ninguém, Lee. Andas a beber muito e eu quero ajudar.
Ela endireitou-se mais e encostou as pernas ao peito. Depois ficou calada durante muito tempo. Adam olhou para a sua silhueta. Os minutos passaram. O apartamento estava em completo silêncio.
- Como está o meu querido pai? - murmurou ela. As palavras eram arrastadas, mas amargas.
- Não o vi hoje.
- Não achas que ele ficará melhor quando estiver morto? Adam olhou para a silhueta dela.
- Não, Lee, não acho. E tu?
Ela ficou sossegada e em silêncio pelo menos um minuto.
- Tens pena dele, não tens? - perguntou finalmente.
- Tenho.
- Ele é digno de piedade?
- É sim.
- Qual é a aparência dele?
- Um homem muito velho, com muitos cabelos brancos sempre oleosos e puxados para trás. Tem uma pequena barba branca. Muitas rugas. Tem a pele muito pálida.
- O que é que ele veste?
- Um fato-macaco vermelho. Todos os reclusos do corredor da morte usam o mesmo.
Outra longa pausa enquanto ela pensava naquilo. Depois disse:
- Acho que é muito fácil ter pena dele.
- Para mim é.
- Mas, compreendes Adam, eu nunca o vi da forma como tu o vês. Eu vi uma pessoa diferente.
- E o que é que tu viste?
Ela ajeitou o cobertor em volta das pernas e ficou novamente quieta.
- O meu pai era alguém que eu desprezava.
- Ainda o desprezas?
- Sim, muito. Acho que ele devia morrer. Deus sabe que bem o merece.
- Porque é que o merece?
Isto provocou um novo ataque de silêncio. Ela deslocou-se ligeiramente para a esquerda e tirou uma chávena ou um copo da mesa de cabeceira. Bebeu lentamente, enquanto Adam observava a sombra dela. Não perguntou o que é que estava a beber.
- Ele fala contigo acerca do passado?
- Só quando lhe faço perguntas. Falámos acerca do Eddie, mas prometi-lhe que não voltaríamos a falar.
- Foi por causa dele que o Eddie morreu. Ele compreendeu isto?
- Talvez.
- Disseste-lhe? Culpaste-o pelo que aconteceu ao Eddie?
- Não.
- Devias tê-lo feito. És brando demais com ele. Ele precisa de saber o que fez.
- Acho que ele sabe. Mas tu própria disseste que não seria justo atormentá-lo neste ponto da sua vida.
- E quanto ao Joe Lincoln? Falaste-Lhe do Joe Lincoln?
- Disse ao Sam que tu e eu tínhamos ido à velha casa da família. Ele perguntou-me se eu sabia do Joe Lincoln. Eu disse que sim.
- Ele negou?
- Não, mostrou muitos remorsos.
- É um mentiroso.
- Não, acho que estava a ser sincero.
Outra longa pausa enquanto ela continuava sentada, imóvel. Depois:
- Ele contou-te do linchamento?
Adam fechou os olhos e pousou os cotovelos sobre os joelhos.
- Não - murmurou.
- Não pensei que tivesse contado.
- Não quero saber, Lee.
- Queres sim. Vieste até aqui cheio de perguntas acerca da familia e do teu passado. Há duas semanas não conseguias saciar-te das misérias da família Cayhall. Querias o sangue e o pus.
- Já ouvi o suficiente - disse ele.
- Que dia é hoje? - perguntou ela.
- É quinta-feira, Lee. Já tinhas perguntado.
- Uma das minhas raparigas terminava hoje o tempo. O seu segundo filho. Não telefonei para o escritório. Acho que é dos medicamentos.
- E do álcool.
- Está bem, raios. Então sou alcoólica. Quem me pode culpar? Às vezes gostaria de ter coragem para fazer o que o Eddie fez.
- Ora, Lee, deixa-me ajudar-te.
- Oh, já me ajudaste muito, Adam. Eu estava óptima, bela e sóbria até tu chegares.
- Está bem, eu estava enganado. Lamento. Não compreendi...
- as palavras perderam-se e ele desistiu.
Ela mexeu-se ligeiramente e Adam observou-a enquanto ela bebia um pouco mais. Um pesado silêncio envolveu-os à medida que os minutos passavam. O cheiro ácido emanava do lado da cama onde ela se encontrava.
- A mãe contou-me a história - disse ela tranquilamente, quase num murmúrio. - Disse que tinha ouvido os boatos durante anos. Ela sabia que muitos anos antes de se terem casado ele tinha ajudado a linchar um jovem negro.
- Por favor, Lee.
- Nunca lhe fiz perguntas acerca disso, mas o Eddie sim. Tínhamos murmurado acerca do assunto durante muitos anos e finalmente, um dia, o Eddie encheu-se de coragem e confrontou-o com a história. Tiveram uma grande briga, mas o Sam admitiu que era verdade. Na realidade, não era coisa que o incomodasse, disse ele. Alegadamente o rapaz negro violara uma rapariga branca, mas ela era uma rapariga do bairro da lata e muita gente duvidava que tivesse sido realmente uma violação. Isto segundo a versão da mãe. O Sam tinha mais ou menos quinze anos na altura e um grupo de homens foram à cadeia, apanharam o rapaz negro e levaram-no para os bosques. O pai do Sam era evidentemente o chefe do bando e todos os seus irmãos estiveram envolvidos.
- Já chega, Lee.
- Açoitaram-no com um chicote e depois penduraram-no numa árvore. O meu querido pai esteve no meio de tudo. Na realidade não podia negá-lo, porque alguém tirou uma fotografia da cena.
- Uma fotografia?
- Sim. Alguns anos mais tarde essa fotografia apareceu num livro sobre a situação dos negros no Sul profundo. Foi publicado em 1947. A minha mãe guardou uma cópia durante anos. Eddie encontrou-o no sótão.
- E o Sam está na fotografia?
- Claro. Com um sorriso de orelha a orelha. Estão de pé debaixo das árvores com os pés do negro a dançarem sobre as suas cabeças. Estão todos muito divertidos. Apenas mais um linchamento. A fotografia não tem legendas nem nomes. A imagem fala por si. É descrita como um linchamento no Mississípi rural em 1936.
- Onde está o livro?
- Ali naquela gaveta. Tenho-o guardado com os outros tesouros da família desde a execução da hipoteca. Tirei-o no outro dia. Pensei que talvez quisesses vê-lo.
- Não, não quero vê-lo.
- Vá lá. Querias saber tudo acerca da tua fami7ia. Bem, ali estão eles. Avô, bisavô e muitos outros Cayhall no seu melhor. Apanhados em flagrante e com muito orgulho.
- Pára com isso, Lee.
- Houve outros linchamentos, sabes.
- Cala-te, Lee, está bem? Não quero saber mais nada. Ela inclinou-se para o lado e estendeu a mão para a mesa de cabeceira.
- O que estás a beber; Lee?
- Xarope para a tosse.
- Tretas! - Adam pôs-se de pé num salto e caminhou no escuro até à mesa de cabeceira. Lee engoliu rapidamente o que restava do líquido. Ele tirou-lhe o copo da mão e cheirou- o.
- Isto é bourbon.
- Há mais na despensa. Vais buscar-mo?
- Não! Já bebeste mais do que o suficiente.
- Se eu quiser, vou buscá-lo.
- Não vais, não, Lee. Esta noite não bebes mais. Amanhã levo-te ao médico e procuramos ajuda.
- Não preciso de ajuda. Preciso de uma arma.
Adam colocou o copo na cómoda e acendeu um candeeiro. Ela protegeu os olhos durante alguns segundos e depois olhou para ele. Estavam vermelhos e inchados. O cabelo estava sujo e despenteado.
- Não é uma visão muito agradável - disse ela arrastando as palavras e afastando o olhar.
- Não, mas vamos procurar ajuda, Lee. Amanhã.
- Por favor, Adam, vai buscar-me uma bebida.
- Não.
- Então deixa-me em paz. Isto é tudo culpa tua, sabias? Agora vai-te embora, por favor. Vai para a cama.
Adam agarrou numa almofada que estava no centro da cama e atirou-a contra a porta.
- Esta noite durmo aqui - disse ele apontando para a almofada. - Vou trancar a porta e tu não sais deste quarto.
Ela olhou-o intensamente, mas não disse nada. Ele apagou a luz e o quarto ficou completamente às escuras. Ele trancou a porta e estendeu-se no tapete encostado à porta.
- Agora dorme, Lee.
- Vai para a cama, Adam. Eu prometo que não saio do quarto.
- Não, estás bêbeda e eu não me vou embora. Se tentares abrir esta porta, pego em ti e meto-te na cama.
- Isso parece muito romântico.
- Pára com isso, Lee. Dorme.
- Não consigo dormir.
- Tenta.
- Vamos contar histórias dos Cayhall, está bem, Adam? Sei histórias de mais alguns linchamentos.
- Cala-te, Lee! - gritou Adam e ela ficou subitamente silenciosa. A cama rangeu, enquanto ela se virava e acomodava. Quinze minutos depois estava a dormir. Ao cabo de trinta minutos o chão tornou-se desconfortável e Adam começou a voltar- se de um lado para o outro.
O sono chegou a curtos intervalos, interrompido por longos períodos de vigília, a olhar para o tecto e a preocupar-se com ela e com o Quinto Tribunal de Círculo. A certa altura da noite, sentou-se encostado à porta e olhou no escuro na direcção da gaveta. O livro estaria realmente ali? Estava tentado a rastejar até lá e ir buscá-lo e depois escapulir-se para a casa de banho para dar uma olhadela. Mas não podia arriscar-se a acordá-la. E além disso não queria ver o livro.
Encontrou uma garrafa de bourbon escondida atrás de uma caixa de salgados na despensa e despejou-a no lava- louças. Estava escuro lá fora. Ainda faltava uma hora para o sol nascer. Fez café forte e bebeu-o no sofá, enquanto ensaiava as alegações que iria apresentar dentro de poucas horas em Nova Orleães.
Reviu as notas no pátio ao amanhecer e às sete horas estava na cozinha a fazer torradas. Não havia sinal de Lee. Não desejava uma confrontação, mas era necessária. Tinha coisas a dizer e ela desculpas a apresentar, por isso bateu com os pratos e os talheres no balcão. O volume foi aumentado pelas notícias da manhã.
Mas não houve qualquer movimento no seu lado do apartamento. Depois de ter tomado banho e se ter vestido, Adam girou lentamente a maçaneta da porta dela. Estava trancada. Ela fechara-se na sua cave e evitara a dolorosa conversa da manhã seguinte. Escreveu um bilhete, explicando que estaria em Nova Orleães nesse dia e nessa noite e que a veria no dia seguinte. Disse que lamentava e que falariam do assunto mais tarde. Suplicou-Lhe que não bebesse.
O bilhete foi colocado sobre o balcão onde ela não poderia deixar de o ver. Adam saiu do apartamento e dirigiu-se para o aeroporto.
O voo directo para Nova Orleães demorou trinta e cinco minutos. Adam bebeu sumo de frutas e tentou sentar-se confortavelmente para acomodar as costas doridas. Dormira menos de três horas no chão perto da porta e jurou não voltar a fazê-lo. Segundo ela própria confessara, já fizera recuperação por três vezes ao longo dos anos e se não conseguia manter-se afastada da bebida por si própria não havia certamente nada que ele pudesse fazer. Teria que ficar em Memphis até este desgraçado caso estar resolvido e se a tia não conseguisse manter-se sóbria então poderia mudar-se para um quarto de hotel.
Lutou consigo próprio para não pensar nela nas próximas horas. Precisava de concentrar-se em assuntos legais, não em linchamentos, fotografias e histórias de horror vindas do passado, nem na sua querida tia e nos seus problemas.
O avião aterrou em Nova Orleães e a sua concentração tornou-se subitamente mais aguda. Repetiu mentalmente os nomes de dezenas de casos recentes de pena de morte do Quinto Tribunal de Círculo e do Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
O carro alugado era um Cadillac, arranjado por Darlene e pago pela Kravitz & Bane. Tinha motorista e, enquanto se acomodava no banco traseiro, Adam pensou que a vida numa grande firma tinha realmente as suas compensações. Adam nunca estivera em Nova Orleães e a viagem do aeroporto poderia ter tido lugar em qualquer cidade: só trânsito e estradas. O motorista virou na Poydras Street, junto ao Superdome, e subitamente estavam na Baixa. Explicou ao seu passageiro que o French Quarter ficava apenas a alguns quarteirões, não muito longe do hotel de Adam. O carro parou em Camp Street e Adam saiu para o passeio em frente a um edifício chamado simplesmente Quinto Tribunal de Círculo de Apelação. Era uma estrutura impressionante com colunas gregas e muitos degraus que conduziam à entrada principal.
Encontrou o gabinete do assistente no piso principal e perguntou pelo cavalheiro com quem falara, um Mr. Feriday. Mr. Feriday mostrou ser tão franco e cortês em pessoa como o fora ao telefone. Registou Adam correctamente e explicou-lhe algumas das regras do tribunal. Perguntou a Adam se gostaria de visitar rapidamente o local. Era quase meio-dia, o tribunal não estava muito cheio e era a hora ideal para uma visita. Dirigiram-se para as salas de audiência, passando pelos gabinetes de vários juízes e outro pessoal.
- O Quinto Tribunal de Círculo tem quinze juízes - explicou Mr. Feriday enquanto caminhavam casualmente pelos corredores de mármore - e os seus gabinetes situam-se ao longo destes corredores. De momento o tribunal tem três vagas e as nomeações estão a decorrer em Washington.
Os corredores eram escuros e silenciosos, como se por trás das portas de madeira estivessem a trabalhar espíritos geniais.
Mr. Feriday conduziu-o em primeiro lugar à sala de audiências En Banc, um palco enorme e intimidante com quinze cadeiras muito juntas num semicírculo de frente para a sala.
- A maior parte do nosso trabalho é atribuído a painéis de três juízes, mas ocasionalmente todo o corpo se senta en banc, explicou ele em voz baixa, como se ainda estivesse a admirar a espectacular sala.
O banco ficava situado numa posição bem acima do resto da sala, de forma que os advogados no pódio mais abaixo olhavam para cima enquanto alegavam. A sala era em mármore e madeira escura, com pesados cortinados e um enorme lustre. Era muito ornamentada mas simples, velha mas meticulosamente conservada e, ao inspeccioná-la, Adam sentiu-se bastante assustado. O tribunal completo só muito raramente se reúne en banc", explicou novamente Mr. Feriday, como se estivesse a ensinar um aluno do primeiro ano de Direito. As grandes decisões relativas aos direitos civis dos anos sessenta e setenta aconteceram exactamente aqui, disse ele não com pouco orgulho. Retratos de juízes falecidos pendiam atrás do banco.
Bela e imponente como era, Adam esperou nunca mais voltar a vê-la, pelo menos enquanto advogado em representação de um cliente. Caminharam pelo corredor abaixo, em direcção à sala de audiências oeste, que era mais pequena do que a primeira, mas igualmente intimidativa. É aqui que os painéis de três juízes trabalham, explicou Mr. Feriday enquanto passavam pelos assentos destinados aos espectadores, pela barra e pelo pódio. Mais uma vez o banco era elevado, embora não fosse tão grandioso nem tão comprido como o En Banc.
- Normalmente todas as alegações orais têm lugar de manhã, a partir das nove horas - disse Mr. Feriday. - O seu caso é um pouco diferente, por se tratar de um caso de pena de morte que já está no fim - apontou com o dedo torto para as cadeiras na parte de trás -, o senhor terá que estar ali sentado alguns minutos antes
da uma e o assistente anunciará o caso. Depois o senhor sobe à barra e senta-se aqui, na mesa dos advogados. É o primeiro e dispõe de vinte minutos.
Adam já sabia isto, mas era sem dúvida agradável recapitular tudo.
Mr. Feriday apontou para um dispositivo que estava no pódio e se assemelhava a um semáforo.
- Isto é o cronómetro - disse ele gravemente. - E é muito importante. Vinte minutos. Há histórias horríveis de advogados demasiado faladores que o ignoraram completamente. Não é muito agradável de se ver. O verde está aceso enquanto o senhor está a falar. O amarelo aparece no momento em que quiser ser avisado: dois minutos, cinco minutos, trinta segundos, seja o que for. Quando o vermelho aparecer, interrompe- se mesmo que esteja no meio de uma frase e vai sentar-se. É muito simples. Alguma pergunta?
- Quem são os juízes?
- McNeely, Robichaux e Judy - disse isto como se Adam os conhecesse a todos pessoalmente. - Há ali uma sala de espera e uma biblioteca no terceiro andar. Esteja aqui dez minutos antes da uma. Mais alguma pergunta?
- Não senhor. Obrigado.
- Se precisar de mim estarei no meu gabinete. Boa-sorte. Apertaram as mãos. Mr. Feriday deixou Adam de pé junto do pódio.
Dez minutos antes da uma hora, Adam atravessou as maciças portas de carvalho da sala de audiências este pela segunda vez e encontrou outros advogados que se preparavam para a batalha. Na primeira fila atrás da barra, o procurador-geral Steve Roxburgh e o seu grupo de assistentes estavam amontoados a congeminar estratégias. Calaram-se quando Adam entrou e alguns acenaram com a cabeça e tentaram sorrir. Adam sentou-se sozinho na coxia e ignorou-os.
Lucas Mann estava sentado do seu lado da sala de audiências, embora várias filas atrás de Steve Roxburgh e dos seus homens. Estava a ler casualmente um jornal e acenou a Adam quando os seus olhos se encontraram. Era bom vê-lo. Estava engomado dos pés à cabeça num fato de caqui sem uma única ruga e a gravata era suficientemente colorida para brilhar no escuro. Era óbvio que Mann não se sentia intimidado pelo Quinto Tribunal de Círculo e as suas armadilhas e igualmente óbvio que mantinha certa distância de Roxburgh. Era apenas o advogado de Parchman e estava simplesmente a fazer o seu trabalho: Se o Quinto Tribunal de Círculo concedesse uma suspensão e Sam não morresse, Lucas Mann ficaria satisfeito. Adam acenou com a cabeça e sorriu-lhe. Roxburgh e o seu bando voltaram a juntar-se. Morris Henry, o Dr. Morte, estava no centro do grupo, explicando algumas coisas aos espíritos inferiores.
Adam respirou profundamente e tentou acalmar-se. Era bastante difícil. O estômago agitava-se, os pés contraíam- se e repetia para si próprio que seriam só vinte minutos. Os três juízes não podiam matá-lo, mas apenas envergonhá-lo e mesmo isso duraria apenas vinte minutos: Poderia suportar fosse o que fosse por vinte minutos. Deu uma olhadela às suas notas e para se acalmar tentou pensar em Sam - não em Sam o racista, o assassino, o linchador, mas Sam, o cliente, o velho a esgotar-se no corredor da morte, que tinha direito a morrer em paz e com dignidade. Sam estava prestes a obter vinte minutos do valioso tempo deste tribunal, por isso o seu advogado teria que aproveitá-lo ao máximo.
Uma pesada porta foi fechada com estrondo algures e Adam saltou na cadeira. O pregoeiro do tribunal surgiu por trás do banco e anunciou que o digno tribunal estava aberto. Era seguido por três figuras de adejantes vestes negras - McNeely, Robichaux e Judy, cada um deles transportando dossiers e parecendo totalmente desprovidos de humor ou boa- vontade. Sentaram-se nas suas imponentes cadeiras de cabedal no alto do banco escuro e brilhante apainelado a carvalho e olharam para baixo, para a sala de audiências. O caso Estado do Mississipi vs. Sam Cayhall foi anunciado e os advogados foram chamados do fundo da sala. Adam atravessou nervosamente o portão oscilante da barra, seguido por Steve Roxburgh. Os procuradores-gerais adjuntos mantiveram-se nos seus lugares, bem como Lucas Mann e alguns espectadores. A maior parte deles, como Adam viria a saber mais tarde, eram repórteres.
O juiz presidente era Judy, a Meritíssima T. Eileen Judy, uma mulher jovem do Texas. Robichaux era da Luisiana e andava pelos cinquenta e muitos anos. McNeely aparentava cento e vinte anos e também era do Texas. Judy fez uma breve declaração sobre o caso e depois perguntou a Mr. Adam Iiall de Chicago se estava pronto a prosseguir. Ele levantou-se nervosamente, os joelhos parecendo borracha, as tripas aos saltos, a voz aguda e nervosa e disse que sim, que estava preparado. Dirigiu-se para o pódio no centro da sala e olhou para cima, muito para cima, pareceu-lhe, para o painel de juízes atrás do banco.
A luz verde ao seu lado acendeu-se e, correctamente, partiu do princípio que isto significava que podia começar. A sala estava em silêncio. Os juízes olhavam-no intensamente. Aclarou a garganta.
Olhou para os retratos dos meritíssimos falecidos que pendiam da parede e mergulhou num violento ataque à câmara de gás como meio de execução.
Evitou olhar directamente para os olhos dos três juízes e durante cerca de cinco minutos, foi-lhe permitido repetir o que já declarara no seu sumário. Era depois do almoço, na hora de maior calor do Verão, e os juízes precisaram de alguns minutos para sacudir as teias de aranha.
- Mr. Hall, creio que está simplesmente a repetir aquilo que já afirmou no seu sumário - disse Judy impacientemente. – Nós sabemos ler, Mr. Hall.
Mr. Hall aceitou o comentário e pensou para consigo que estes eram os seus vinte minutos e que se quisesse limpar o nariz e dizer.
O alfabeto devia ser autorizado a fazê-lo. Durante vinte minutos.
Inexperiente como era, Adam já ouvira este comentário a um juiz de apelação. Acontecera quando ainda estava na faculdade de Direito e assistia a um caso que estava a ser arguido. Era normal nas alegações orais.
- Sim, Meritíssimo - disse ele, evitando cuidadosamente qualquer referência ao género.
Seguidamente, passou a discutir os efeitos do gás de cianeto sobre os ratos de laboratório, um estudo não incluído no seu sumário. As experiências haviam sido conduzidas um ano antes por químicos suecos, com o propósito de provar que os humanos não morrem instantaneamente quando inalam o veneno. Haviam sido financiadas por uma organização europeia que trabalhava para a abolição da pena de morte na América.
Os ratos tinham ataques e entravam em convulsões. Os pulmões e corações paravam e recomeçavam erraticamente. O gás rebentava as veias por todo o corpo, incluindo no cérebro. Os músculos tremiam incontroladamente. Salivavam e guinchavam.
A conclusão óbvia do estudo era que os ratos não morriam rapidamente, mas pelo contrário sofriam muito. Os testes tinham sido conduzidos com grande integridade científica. Foram dadas aos pequenos animais doses apropriadas. Em média, a mone só ocorria passados dez minutos. Adam demorou-se nos pormenores e, à medida que aquecia na sua exposição, os nervos acalmavam-se um pouco. Os juízes não só estavam a ouvir, como pareciam estar a apreciar esta discussão acerca de ratos mortos.
Adam tinha encontrado o estudo numa nota de pé de página a um recente caso da Carolina do Norte. Estava em letra pequena e ainda não tinha sido largamente divulgado.
- Agora, deixe-me esclarecer uma coisa - interrompeu
Robichaux em voz aguda. - Não quer que o seu cliente morra na câmara de gás porque é uma forma cruel de morrer, mas está a dizer-nos que não se importaria que ele fosse executado por meio de uma injecção letal?
- Não, Meritíssimo. Não é isso que estou a dizer. Não quero que o meu cliente seja executado por método nenhum.
- Mas a injecção letal é o menos ofensivo?
- Todos os métodos são ofensivos, mas a injecção letal parece ser menos cruel. Não há dúvida que a câmara de gás é uma forma horrível de morrer.
- Pior do que ser alvo de uma bomba? Feito em pedaços com dinamite?
Um pesado silêncio caiu sobre a sala de audiências enquanto as palavras de Robichaux ecoavam. Ele enfatizara a palavra dinamite"
e Adam procurou desesperadamente uma resposta adequada. Do outro lado do banco, McNeely lançou ao colega um olhar zangado.
Era um golpe baixo e Adam estava furioso. Controlou a raiva e disse firmemente:
- Estamos a falar de métodos de execução, Meritíssimo, não dos crimes pelos quais os homens são enviados para o corredor da morte.
- Porque é que não quer discutir o crime?
- Porque não é o crime que está aqui em causa. Porque só tenho vinte minutos e o meu cliente só tem doze dias.
- Talvez o seu cliente não devesse ter andado a colocar bombas?
- Claro que não. Mas foi condenado pelo seu crime e agora enfrenta a morte na câmara de gás. O que estamos a defender é que a câmara de gás é uma forma cruel de executar as pessoas.
- E a cadeira eléctrica?
- Aplica-se o mesmo argumento. Houve alguns casos hediondos de pessoas que sofreram terrivelmente na cadeira antes de morrerem.
- E um pelotão de fuzilamento?
- Parece-me cruel.
- E o enforcamento?
- Não sei muito de enforcamentos, mas também me parece terrivelmente cruel.
- Mas gosta da ideia da injecção letal?
- Eu não disse que gostava. Creio que disse que não era tão cruel como os outros métodos.
O juiz McNeely interrompeu e perguntou:
- Mr. Hall, porque razão o Mississípi mudou da câmara de gás para a injecção letal?
Esta questão era exaustivamente tratada na acção e no sumário e Adam pressentiu imediatamente que McNeely era um amigo.
- Resumi no meu sumário a história legislativa da lei, Meritíssimo, mas foi feito sobretudo para facilitar as execuções. A assembleia legislativa admitiu que era uma forma mais fácil de morrer e, para contornar reivindicações constitucionais como a presente, alterou o método.
- Portanto, o estado efectivamente admitiu que existe uma forma melhor de executar as pessoas?
- Sim, senhor. Mas a lei entrou em vigor em 1984 e só se aplica aos reclusos que tenham sido condenados posteriormente. Não se aplica a Sam Cayhall.
- Eu sei isso. Está a pedir-nos para condenar a câmara de gás como método de execução. O que acontece se o fizermos? O que acontece ao seu cliente e àqueles que como ele foram condenados antes de mil novecentos e oitenta e quatro? Beneficiam das lacunas da lei? Não existe qualquer disposição na lei que permita executá-los por meio da injecção letal.
Adam tinha antecipado a questão óbvia. Sam já a colocara.
- Não sei responder a isso, Meritíssimo, excepto afirmando que tenho grande confiança na capacidade e vontade da Assembleia Legislativa do Mississípi de aprovar uma nova lei que abranja o meu cliente e todos os que se encontram na mesma situação.
Neste ponto, a juiz Judy decidiu intervir.
- Partindo do princípio que o farão, Mr. Hall, o que alegará o senhor quando regressar aqui dentro de três anos?
Felizmente a luz amarela acendeu-se e Adam só dispunha agora de um minuto.
- Hei-de pensar em alguma coisa - respondeu com um sorriso. - Basta que me dêem tempo.
- Já examinámos um caso semelhante a este, Mr. Hall - disse Robichaux. - Na realidade, é citado no seu sumário. Um caso do Texas.
- Sim, Meritíssimo. Venho pedir ao tribunal que reconsidere a sua decisão sobre a questão. Praticamente todos os estados em que havia câmara de gás ou cadeira eléctrica mudaram para a injecção letal. A razão é evidente.
Ainda tinha mais uns segundos, mas achou que era um bom sítio para se interromper. Não queria responder a mais nenhuma pergunta.
- Obrigado - disse ele e regressou confiantemente ao seu lugar. Tinha acabado. Tinha conservado o pequeno- almoço e desembaraçara-se bastante bem para um novato. Da próxima vez seria mais fácil.
Roxburgh era insípido e metódico e estava muito bem preparado.
Tentou algumas piadas sobre ratos e os crimes que cometem, mas foi uma sombria tentativa de humor. McNeely importunou-o com as mesmas perguntas acerca da razão pela qual os estados estavam a mudar para a injecção letal. Roxburgh agarrou-se às suas armas e citou uma longa lista de casos em que os vários tribunais de Círculo federais tinham aprovado a morte pelo gás, electricidade, enforcamento ou pelotões de fuzilamento. A lei estabelecida estava do seu lado e ele acreditava nela. Os seus vinte minutos esgotaram- se e regressou ao seu lugar tão rapidamente como Adam.
A juiz Judy referiu-se brevemente à urgência do assunto e prometeu uma decisão em poucos dias. Todos se levantaram ao mesmo tempo e os três juízes retiraram-se do banco. O pregoeiro do tribunal declarou a audiência encerrada até segunda-feira de manhã.
Adam apertou a mão a Roxburgh e dirigia-se para as portas quando um repórter o deteve. Pertencia a um jornal de Jackson e tinha só umas perguntas. Adam foi amável, mas recusou-se a comentar. Agiu do mesmo modo com mais dois repórteres. Roxburgh, tipicamente, tinha comentários a fazer e, enquanto Adam se afastava, os repórteres rodearam o procurador-geral e aproximavam-lhe os gravadores do rosto.
Adam queria sair do edifício. Saiu para o calor tropical e escondeu rapidamente os olhos sob uns óculos de sol.
- Já almoçou? - perguntou uma voz mesmo atrás dele. Era Lucas Mann, com uns óculos de sol de aviador. Apertaram as mãos entre as colunas.
- Não consegui comer - confessou Adam.
- Saiu-se muito bem. É enervante, não é?
- É, sim. Porque está aqui?
- Faz parte do meu trabalho. O director pediu-me que viesse até cá e assistisse à discussão. Vamos esperar até termos uma decisão antes de começarmos os preparativos. Vamos almoçar.
O motorista de Adam parou o carro junto ao passeio e entraram.
- Conhece a cidade? - perguntou Mann.
- Não, esta é a minha primeira visita.
- Para o Bon Ton Café - disse Mann ao motorista. - É um lugar maravilhoso e antigo que fica aqui mesmo à esquina. Belo carro.
- As vantagens de trabalhar para uma grande firma.
O almoço começou por uma novidade - ostras cruas na meia concha. Adam já ouvira falar delas, mas nunca experimentara. Mann demonstrou habilmente a mistura exacta de rábano, sumo de limão, tabasco e molho cocktail e depois colocou a primeira ostra na mistura. Em seguida, era delicadamente colocada sobre uma bolacha e comida de uma só dentada. A primeira ostra de Adam escorregou de cima da bolacha para a mesa, mas a segunda deslizou correctamente para a garganta.
- Não mastigue - indicou Mann. - Deixe-a simplesmente escorregar. As dez seguintes escorregaram demasiado lentamente para o gosto de Adam: Ficou satisfeito quando as doze conchas que tinha no prato ficaram vazias. Beberam cerveja Dixie enquanto esperavam pela remoulade de camarão.
- Já sei que alegou representação legal ineficaz - disse Mann mordiscando uma bolacha.
- Daqui em diante vou certificar-me que alegamos tudo.
- O supremo não perdeu tempo.
- Não. Parece que estão fartos do Sam Cayhall. Vou apresentar o pedido no tribunal distrital hoje, mas não espero nada da parte de Slattery.
- Eu também não esperaria.
- Quais são as minhas hipóteses quando faltam apenas doze dias?
- Está a ficar cada vez mais apertado, mas as coisas são muito imprevisíveis. Provavelmente ainda são de cinquenta por cento. Há alguns anos chegámos muito perto com o Stockholm Turner. Faltavam apenas duas semanas e tudo parecia muito incerto. Quando faltava somente uma semana, já não havia mais nada para pedir. Tinha um bom advogado, mas os recursos tinham-se esgotado. Foi-lhe dada a última refeição e...
- A sua visita conjugal com duas prostitutas.
- Como sabe?
- O Sam contou-me a história.
- É verdade. E conseguiu uma suspensão à última hora e agora está a anos de distância da câmara. Nunca se sabe.
- Mas o que Lhe diz o instinto?
Mann bebeu um longo gole de cerveja e recostou-se na ca deira, no momento em que duas grandes travessas de remoulade de camarão eram colocadas diante deles.
- Não tenho instintos quando se trata de execuções. Tudo pode acontecer. Continue a interpor recursos e apelos. É uma espécie de maratona. Não pode desistir. O advogado de Jumbo Parris teve um colapso quando faltavam apenas doze dias e estava numa cama de hospital quando o cliente foi executado.
Adam mastigou um camarão cozido e empurrou-o com cerveja.
- O governador quer que eu fale com ele. Devo fazê-lo?
- O que é que o seu cliente quer?
- O que acha? Ele odeia o governador. Proibiu-me de falar com ele.
- Terá que pedir uma audiência de clemência. É o costume.
- Conhece bem o McAllister?
- Não muito bem. É um animal político com grandes ambições e eu não confiaria nele nem por um minuto. Porém tem poder para conceder clemência. Pode comutar a sentença de morte. Pode impor prisão perpétua ou libertá-lo. A lei concede ao governador um vasto poder discricionário. Provavelmente será a sua última esperança.
- Que Deus nos ajude.
- O que acha da remoulade? - perguntou Mann com a boca cheia.
- Deliciosa.
Durante um bocado mantiveram-se ocupados com a comida. Adam estava agradecido pela companhia e pela conversa, mas decidiu limitá-la aos recursos e estratégias. Gostava de Lucas Mann, mas o seu cliente não. Como Sam diria, Mann trabalhava para o estado e o estado estava a trabalhar para o executar.
Um voo de fim de tarde tê-lo-ia conduzido a Memphis por volta das seis e meia, muito antes de escurecer. E uma vez chegado, poderia ter passado mais ou menos uma hora no escritório antes de regressar a casa da Lee. Mas não estava disposto a isso.
Tinha um bom quarto num hotel moderno junto ao rio, pago sem qualquer hesitação pela Kravitz & Bane. Todas as despesas estavam cobertas. Nunca visitara o French Quarter.
Assim, acordou às seis horas depois de uma sesta de três horas provocada por três cervejas e uma noite mal passada. Estava deitado na cama com os sapatos calçados e analisara a ventoinha do tecto durante meia-hora antes de se mover. O sono fora pesado.
Lee não atendeu o telefone. Deixou uma mensagem no gravador e esperou que ela não estivesse a beber. E se estivesse, esperava que se fechasse no seu quarto onde não podia magoar ninguém. Escovou os dentes e o cabelo e desceu no elevador até um átrio espaçoso onde uma banda de jazz actuava durante a hora dos cocktails. Ostras em meia concha a cinco cêntimos eram apregoadas num bar de esquina.
Caminhou no calor escaldante ao longo de Canal Street até chegar à Royal, onde virou à direita e em breve se perdia entre uma multidão de turistas. A sexta-feira à noite estava a começar no Quarter. Olhava estupidamente para os clubes de strip tease tentando desesperadamente dar uma espreitadela. Ficou imóvel em frente a uma porta aberta que revelava uma fila de stripers masculinos sobre um palco - homens que pareciam belas mulheres.
Comeu um pão de ovo que comprou a um vendedor ambulante chinês. Evitou um bêbado que vomitava na rua. Passou uma hora sentado a uma pequena mesa num clube dejazz, a ouvir a deliciosa música e a beber uma cerveja de quatro dólares. Quando escureceu, foi até Jackson Square e observou os artistas a guardar os seus cavaletes para se irem embora. Os músicos e dançarinos de rua mostravam-se em força em frente de uma velha catedral e aplaudiu um espantoso quarteto de cordas composto por estudantes de Tulane. As pessoas andavam por todo o lado, a beber, a comer e a dançar, apreciando as festividades do French Quarter.
Comprou uma taça de gelado de baunilha e dirigiu-se para o Canal. Noutra noite e em circunstâncias muito diferentes, poderia sentir-se tentado a assistir a um espectáculo de strip, sentado atrás, evidentemente, onde ninguém pudesse vê-lo, ou poderia deter-se num bar de engates à procura de mulheres bonitas e sozinhas.
Mas não naquela noite. Os bêbados recordavam-Lhe Lee e desejava ter regressado a Memphis para cuidar dela. A música e as gargalhadas lembravam-lhe Sam, que naquele exacto momento estava sentado num forno húmido, a olhar para as grades e a contar os dias, esperando e talvez rezando para que o seu advogado realizasse um milagre. Sam nunca veria Nova Orleães, nunca mais comeria ostras nem feijão vermelho com arroz, nunca mais saborearia uma cerveja gelada nem um bom café. Nunca ouviria música jazz nem veria os artistas a pintar. Nunca mais andaria de avião nem pernoitaria num bom hotel. Nunca mais pescaria, conduziria um carro ou faria um milhar de coisas que as pessoas livres consideram garantidas.
Mesmo que Sam vivesse para além do dia 8 de Agosto, continuaria simplesmente o processo de morrer um pouco dia a dia.
Adam deixou o Quarter e caminhou apressadamente até ao seu hotel. Precisava de repousar. A maratona estava prestes a começar.
O guarda chamado Tiny algemou Sam e conduziu-o para fora da Fileira A. Sam transportava um saco de plástico cheio com o seu correio de fãs das duas últimas semanas. Durante a maior parte do seu tempo como recluso do corredor da morte, recebera em média uma mão-cheia de cartas por mês dos seus apoiantes - membros do Klan e simpatizantes, puristas da raça, anti-semitas e todo o tipo de fanáticos. Durante alguns anos respondera a essas cartas, mas com o tempo ficara cansado delas. Qual era a vantagem? Para alguns era um herói, mas quanto mais palavras trocava com os seus admiradores mais violentas se tornavam. Havia uma grande quantidade de doidos lá fora. Ocorrera-lhe a ideia de que talvez estivesse mais seguro no Corredor do que no mundo livre.
O correio tinha sido declarado como um direito e não como um privilégio pelo tribunal federal. Assim, não podia ser confiscado. Podia, no entanto, ser controlado. Todas as cartas eram abertas por um inspector, excepto se o envelope viesse claramente de um advogado. A menos que o recluso tivesse sido colocado sob censura de correio, nenhuma das cartas era lida. Eram entregues no Corredor em devido tempo e distribuídas aos reclusos. As caixas e embrulhos eram igualmente abertos e inspeccionados.
A ideia de perder Sam era assustadora para muitos fanáticos e, desde que o Quinto Tribunal de Círculo levantara a suspensão, o correio aumentara dramaticamente. Ofereciam-lhe o seu firme apoio e orações. Alguns ofereciam dinheiro. As cartas tendiam a ser muito longas, verberando invariavelmente os judeus, os negros, os liberais e outros conspiradores. Alguns diziam mal dos impostos, do controlo de armas, da dívida nacional. Outros pregavam sermões.
Sam estava cansado de cartas. Recebia uma média de seis por dia. Colocou-as sobre o balcão enquanto lhe retiravam as algemas e, em seguida, pediu ao guarda para abrir uma pequena porta na grade. O guarda empurrou o saco de plástico para o outro lado e Adam recebeu-o. O guarda saiu, fechando a porta atrás de si.
- O que é isto? - perguntou Adam segurando o saco.
- O correio dos fãs - Sam sentou-se no seu lugar e acendeu um cigarro.
- O que devo fazer com ele?
- Lê-o, queima-o, não interessa. Esta manhã estava a limpar a minha cela e essa coisa estava no caminho. Disseram-me que estiveste ontem em Nova Orleães. Conta-me.
Adam colocou as cartas em cima de uma cadeira e sentou-se em frente de Sam. A temperatura lá fora era de quarenta e dois graus e não muito mais baixa na sala das visitas. Era sábado e Adam usava jeans, sapatos de campo e um pólo de algodão muito leve.
- O Quinto Tribunal de Círculo telefonou-me na quinta-feira e disse que queria ouvir-me na sexta. Fui até lá, esmaguei-os com o meu brilhantismo e voltei para Memphis esta manhã.
- Quando é que decidem?
- Em breve.
- Um painel de três juízes?
- Sim.
- Quem?
- Judy, Robichaux e McNeely.
Sam meditou sobre os nomes durante uns momentos. - McNeely é um velho guerreiro que vai ajudar-nos. Judy é uma cabra conservadora... ai, desculpa! Uma americana do sexo feminino conservadora, nomeada pelos Republicanos. Duvido que nos ajude. Não conheço o Robichaux. De onde é ele? - Do sul da Luisiana.
- Ah, um americano cajun.
- Suponho que sim. É um idiota. Não ajudará. - Então vamos perder por dois contra um. Julguei que tinhas
dito que os deslumbraras com o teu brilhantismo.
- Ainda não perdemos - Adam ficou surpreendido por ouvir Sam falar dos juízes individualizados com tanta familiaridade. Mas afinal ele andava a estudar os tribunais há muitos anos.
- Onde está a alegação de representação legal ineficaz?
- Ainda no tribunal distrital. Foi alguns dias depois da outra.
- Vamos apresentar mais qualquer coisa, sim?
- Estou a trabalhar nisso.
- Depressa! Só me restam onze dias. Tenho um calendário na parede e passo pelo menos três horas por dia a olhar para ele. Quando acordo de manhã, traço um grande xis sobre a data do dia anterior. Tenho um círculo em volta do dia oito de Agosto. Os meus xis estão a aproximar-se do círculo. Faz qualquer coisa.
- Estou a trabalhar. Na realidade, estou a desenvolver um novo ângulo de ataque.
- Assim é que é, rapaz!
- Penso que poderemos provar que o senhor está mentalmente desequilibrado.
- Já tinha pensado nisso.
- Está velho, senil, mostra-se demasiado calmo em relação a isto. Algo deve estar errado. Não tem capacidade para compreender o motivo da sua execução.
- Temos andado a ler os mesmos casos.
- Goodman conhece um perito que dirá seja o que for mediante uma certa quantia. Estamos a pensar em trazê-lo cá para o examinar.
- Óptimo. Ponho o cabelo em pé e caço borboletas em volta da cela.
Acho que podemos tentar seriamente uma alegação de insanidade.
- Concordo. Tenta. Vamos apresentar muitas coisas.
- É isso mesmo que vou fazer.
Sam fumou e meditou durante uns instantes. Estavam ambos a suar e Adam precisava de ar fresco. Precisava de voltar para o seu carro, abrir as janelas e ligar o ar no máximo.
- Quando é que voltas? - perguntou Sam.
- Na segunda-feira. Ouça, Sam, isto não é um assunto agradável, mas temos que falar dele. Um dia destes o senhor vai morrer.
Seja no dia oito ou daqui a cinco anos. Ao ritmo a que anda a fumar, não vai durar muito tempo.
- Fumar não é a minha maior preocupação de saúde.
- Eu sei. Mas a sua familia, a Lee e eu, precisamos de tomar disposições quanto ao funeral. Não pode ser feito de um dia para o outro.
Sam fitou as filas de pequenos losangos da grade. Adam garatujou no bloco. O ar condicionado matraqueava e assobiava, com escassos resultados.
- A tua avó era uma excelente senhora, Adam. Lamento que a não tivesses conhecido. Merecia melhor do que eu.
- A Lee mostrou-me a campa dela.
- Causei-Lhe muito sofrimento e ela suportou-o bem. Enterrem-me ao lado dela e talvez eu possa pedir-lhe desculpa.
- Vou tratar disso.
- Faz isso. Como vais pagar o terreno?
- Eu posso tratar disso, Sam.
- Eu não tenho nenhum dinheiro, Adam. Perdi tudo há muitos anos por razões possivelmente óbvias. Perdi as terras e a casa, por isso não existem bens para legar.
- Fez testamento?
- Sim. Eu próprio o escrevi.
- Veremos isso na próxima semana.
- Promete que vens na segunda-feira.
- Prometo, Sam. Quer que traga alguma coisa?
Sam hesitou durante uns segundos e quase pareceu envergonhado.
- Sabes do que gostaria realmente? - perguntou com um sorriso infantil.
- O quê? Tudo o que quiser, Sam.
- Quando eu era miúdo, a coisa mais excitante da vida era uma Eskimo Pie.
- Eskimo Pie?
- Sim, é um pequeno gelado num pauzinho. Baunilha, com cobertura de chocolate. Comi-os até vir para cá. Suponho que ainda os fazem.
- Uma Eskimo Pie - repetiu Adam.
- Sim, ainda lhe sinto o sabor. O melhor gelado do mundo.
Imaginas como me saberia bem um neste forno?
- Então, Sam, vai ter uma Eskimo pie.
- Traz mais do que uma.
- Vou trazer uma dúzia e havemos de as comer mesmo aqui enquanto transpiramos.
A segunda visita que Sam recebeu no sábado não era esperada.
Parou na casa da guarda junto ao portão principal e apresentou uma carta de condução da Carolina do Norte com a sua fotografia.
Explicou à guarda que era irmão de Sam Cayhall e que lhe fora dito que poderia visitar o irmão no corredor da morte, quando lhe fosse conveniente entre a presente data e a execução. Tinha falado no dia anterior com um Mr. Holland da administração e este assegurara-lhe que as regras de visita para Sam Cayhall tinham abrandado. Poderia visitá-lo a qualquer hora entre as oito da manhã e as cinco da tarde, qualquer dia da semana. A guarda entrou e fez um telefonema.
Passaram-se cinco minutos com o visitante pacientemente sentado no seu carro alugado. A guarda fez mais duas chamadas e depois copiou o número de registo do carro para o seu bloco.
Indicou ao visitante que devia estacionar a alguns metros de distância, trancar o carro e esperar junto da casa da guarda. Ele assim fez e, dentro de minutos, apareceu uma carrinha branca da prisão.
Um guarda armado e uniformizado estava ao volante e fez sinal ao visitante para entrar.
A carrinha passou pelos portões duplos da USM e foi conduzida à entrada principal, onde dois outros guardas estavam à espera. Revistaram-no nos degraus. Não transportava embrulhos nem malas.
Conduziram-no para a esquina, até à sala de visitas vazia. Sentou-se perto do meio da grade.
- Vou buscar o Sam - disse um dos guardas. - Demora
cerca de cinco minutos.
Sam estava a escrever uma carta quando os guardas pararam à sua porta.
- Vamos, Sam. Tens uma visita.
Sam parou de escrever e olhou para eles. A ventoinha estava a girar com força e a televisão estava sintonizada para um jogo de baisebol.
- Quem é? - perguntou zangado.
- O teu irmão.
Sam colocou suavemente a máquina de escrever na estante e agarrou no fato-macaco.
- Qual deles?
- Não fizemos perguntas, Sam. É um dos teus irmãos. Agora vem.
Algemaram-no e ele seguiu-os pela fileira. Sam tivera três irmãos, mas o mais velho morrera de ataque de coração antes de Sam ser mandado para a prisão. Donnie, o mais novo, de sessenta e um anos, vivia em Durham, na Carolina do Norte. Albert, de sessenta e sete anos, não estava bem de saúde e vivia nos bosques de Ford County. Donnie mandava cigarros todos os meses, bem como alguns dólares e ocasionalmente um bilhete. Albert não escrevia há sete anos. Uma tia solteira escrevera-lhe até morrer em 1985. Os outros Cayhall tinham esquecido Sam.
Tinha que ser o Donnie, disse Sam a si próprio. Donnie era o único que se importava o suficiente para vir visitá-lo. Não o via há dois anos e caminhou mais ligeiramente ao aproximar-se da porta da sala de visitas. Que surpresa agradável!
Entrou pela porta e olhou para o homem que estava sentado do outro lado da grade. Era um rosto desconhecido. Deu uma olhadela à sala e confirmou que estava vazia, à excepção deste visitante, que de momento fixava Sam com um olhar frio e mau. Os guardas estavam a observar com atenção enquanto retiravam as algemas a Sam, por isso ele sorriu e acenou ao homem. Depois ficou a olhar para os guardas, até saírem da sala e fecharem a porta. Sam sentou-se em frente do seu visitante, acendeu um cigarro e não disse nada.
Havia nele qualquer coisa de familiar, mas não conseguia identificá-lo. Observaram-se um ao outro através da abertura na grade.
- Eu conheço-o? - perguntou Sam finalmente.
- Sim - respondeu o homem.
- De onde?
- Do passado, Sam. De Greenville, Jackson e Vicksburg. Da sinagoga, do escritório da imobiliária, da casa dos Pinder e do escritório de Marvin Kramer.
- Wedge?
O homem acenou lentamente com a cabeça e Sam fechou os olhos e soprou o fumo para o tecto. Deitou fora o cigarro e afundou-se na sua cadeira.
- Meu Deus, esperava que estivesses morto.
- É uma pena.
Sam olhou-o intensamente.
- Seu filho da mãe - disse ele com os dentes cerrados. Filho da mãe. Esperei e sonhei durante vinte e três anos que estivesses morto. Eu próprio te matei um milhão de vezes com as minhas próprias mãos, com paus e facas e todas as armas conhecidas do homem. Vi-te sangrar e gritar por misericórdia.
- Lamento. Aqui estou, Sam.
- Odeio-te mais do que alguém foi alguma vez odiado. Se tivesse uma arma neste momento mandava-te para o inferno.
Enchia-te a cabeça de chumbo e ria até às lágrimas. Deus, como te odeio.
- Tratas todos os teus visitantes desta maneira, Sam?
- O que é que queres, Wedge?
- Podem ouvir-nos aqui?
- Estão-se nas tintas para o que dizemos.
- Mas este lugar pode ter microfones, sabes?
- Então vai-te embora, doido, vai-te.
- Vou dentro de um minuto. Mas primeiro só queria dizer-te que estou aqui, estou a vigiar as coisas de perto e estou muito satisfeito por o meu nome nunca ter sido mencionado. Espero sinceramente que assim continue. Tenho sido muito eficiente a manter as pessoas caladas.
- És muito subtil.
- Encara isto como um homem, Sam. Morre com dignidade.
Estavas comigo. Foste cúmplice e conspirador e aos olhos da lei és tão culpado como eu. Claro que eu sou livre, mas quem disse que a vida era justa? Continua e leva para o túmulo o nosso pequeno segredo e ninguém será magoado, está bem?
- Por onde tens andado?
- Por toda a parte. O meu verdadeiro nome não é Wedge, Sam, portanto não fiques com ideias. Nunca me chamei Wedge. Nem mesmo o Dogan sabia o meu verdadeiro nome. Fui mobilizado em mil novecentos e sessenta e seis e não queria ir para o Vietname. Por isso, fui para o Canadá e voltei clandestinamente. E desde então tenho vivido assim. Eu não existo, Sam.
- Devias estar aqui, no meu lugar.
- Não, estás enganado, não devia nem tu. Foste um idiota em regressar a Greenville. O FBI não tinha pistas. Nunca nos teriam apanhado. Eu era demasiado esperto. Dogan era demasiado esperto. No entanto, por acaso, foste tu o elo fraco. De qualquer modo teria sido o último atentado, sabes, com os mortos e tudo isso. Estava na altura de parar. Eu fugia do país e nunca mais teria regressado a este local miserável. Tu terias voltado para casa, para as tuas galinhas e as tuas vacas. Quem sabe o que teria feito o Dogan. Mas a razão porque estás aí sentado, Sam, é por seres um pateta.
- E tu foste um pateta em teres vindo aqui hoje.
- Na realidade, não. Ninguém te acreditaria se começasses a gritar. C'os diabos, de qualquer modo, toda a gente pensa que és doido. Mas de qualquer forma, eu preferiria deixar as coisas como estão. Não preciso de luta. Aceita o que está para vir, Sam, e com tranquilidade.
Sam acendeu cuidadosamente outro cigarro e atirou a cinza para o chão.
- Vai-te embora, Wedge. E nunca mais voltes.
- Claro, detesto dizê-lo Sam, mas espero que te gaseiem. Sam levantou-se e dirigiu-se para a porta atrás de si. Um guarda abriu-a e levou-o.
Sentaram-se na parte de trás de um cinema e comeram pipocas como dois adolescentes. O filme fora ideia de Adam. Ela passara três dias no quarto com o vírus e no sábado de manhã a bebedeira tinha acabado. Ele escolhera um restaurante familiar para jantarem, com comida rápida e sem bebidas alcoólicas no menu. Ela devorara panquecas de noz com natas.
O filme era um western politicamente correcto, em que os índios eram os bons e os cowboys os maus. Todos os rostos-pálidos eram diabólicos e acabavam por morrer. Lee bebeu duas grandes laranjadas. Tinha o cabelo lavado e puxado para trás das orelhas. Os olhos eram novamente límpidos e belos. O rosto estava maquilhado, escondendo as feridas da passada semana: Parecia tão bem como sempre nos seus jeans e camisa de algodão. E estava sóbria.
Pouco haviam dito sobre a noite de quinta-feira, quando Adam dormira junto da porta. Tinham concordado em discutir o assunto mais tarde, numa altura qualquer quando ela se sentisse capaz de falar disso. Estava óptimo para ele. Ela equilibrava-se sobre um arame oscilante, vacilando à beira da escuridão da dipsomania. Ele protegê-la-ia do tormento e da tristeza. Tornaria tudo mais agradável. Não falaria mais do Sam e dos seus assassínios. Nunca mais falaria do Eddie, nem da história da familia Cayhall.
Era sua tia e ele amava-a devotadamente. Era frágil e doente e precisava da sua voz forte e dos seus ombros largos.
Phillip Naifeh acordou às primeiras horas da manhã de domingo com fortes dores no peito e foi conduzido ao hospi tal de Cleveland. Vivia numa moderna casa, situada nos terrenos de Parchman, com a mulher de quarenta e um anos de idade. A viagem de ambulância demorou vinte minutos e o seu estado era estável no momento em que entrou na sala de urgências.
A mulher esperou ansiosamente no corredor enquanto as enfermeiras se apressavam de um lado para o outro. Já tinha esperado ali antes, há três anos, quando ele tivera o primeiro ataque de coração. Um jovem médico de rosto sombrio explicou que fora um ataque fraco, que estava bastante estável e seguro e a descansar confortavelmente com a ajuda dos medicamentos. Seria diligentemente vigiado durante as próximas vinte e quatro horas e, se tudo corresse como previsto, estaria em casa em menos de uma semana.
Estava absolutamente proibido de se aproximar de Parchman e não poderia ter nada a ver com a execução Cayhall. Nem sequer um telefonema da cama.
O sono estava a transformar-se numa batalha. Normalmente Adam lia durante mais ou menos uma hora na cama e, ainda na faculdade de Direito, aprendera que as publicações legais eram uma ajuda maravilhosa para adormecer. Agora, porém, quanto mais lia mais preocupado ficava. Tinha o espírito sobrecarregado pelos acontecimentos das duas semanas anteriores - as pessoas que conhecera, as coisas que aprendera, os lugares aonde fora. E o espírito agitava-se violentamente na perspectiva do que estava para vir. Na noite de sábado alternou o sono com largos períodos de vigilia. Quando finalmente acordou pela última vez, o sol já tinha nascido. Eram quase oito horas. Lee mencionara a possibilidade de outra incursão na cozinha. Já fora bastante boa a cozinhar salsichas e ovos e qualquer pessoa podia lidar com biscoitos enlatados, mas enquanto vestia os jeans e enfiava uma t-shirt não lhe cheirou a nada.
A cozinha estava em silêncio. Chamou-a pelo nome enquanto examinava a cafeteira do café - meio cheia. A porta do quarto dela estava aberta e as luzes apagadas. Examinou rapidamente todos os quartos. Não estava no pátio a beber café e a ler o jornal. Começou a sentir-se invadido por uma sensação de enjoo que piorava a cada quarto vazio. Correu para o parque de estacionamento - não havia sinais do carro dela. Atravessou descalço o asfalto quente e foi perguntar ao segurança quando é que ela saíra. Ele verificou o seu quadro e disse que fora há quase duas horas. Parecia estar bem, disse.
Encontrou-o num sofá da sala, uma pilha de notícias e publicidade com uma grossura de sete centímetros a que chamavam a edição de domingo do Memphis Press. Fora deixado numa pilha ordenada com a secção Cidade" por cima. O rosto de Lee aparecia na primeira página desta secção, uma fotografia tirada anos antes num baile de caridade. Era um instântaneo de Mr. e Mrs. Phelps Booth, a sorrirem para a câmara. Lee estava um espanto num vestido negro sem alças. Phelps vestia smoking. Pareciam um casal maravilhosamente feliz.
A história era o último desenvolvimento de Todd Marks a respeito do caso Cayhall e, a cada notícia, a série assumia cada vez mais um tom de jornal de escândalos. Começava bastante amigavelmente, com o resumo semanal dos acontecimentos que giravam em torno da execução. Ouviam-se as mesmas vozes - os sólidos sem comentários, de McAllister, Roxburgh, Lucas Mann e Naifeh. Depois, tornava-se rapidamente mal-intencionada ao desmascarar alegremente Lee Cayhall Booth: uma proeminente socialite de Memphis, esposa do importante banqueiro Phelps Booth da famosa e abastada família Booth, voluntária comunitária, tia de Adam Hall e, acreditem ou não, filha do infame Sam Cayhall!
A história estava escrita como se a própria Lee fosse culpada de um terrível crime. Citava alegados amigos, evidentemente anónimos, que se mostravam chocados ao saber da sua verdadeira identidade. Falava da família Booth e do seu dinheiro e perguntava-se como teria um aristocrata como Phelps casado com uma filha do clã Cayhall. Mencionava o seu filho Walt e especulava sobre a sua recusa em regressar a Memphis. Walt nunca casara, informava de um fôlego, e vivia em Amesterdão.
Por fim, pior que tudo, citava uma outra fonte anónima e contava a história de um baile de caridade, alguns anos atrás, a que Lee e Phelps Booth tinham comparecido e se tinham sentado na mesma mesa de Ruth Kramer. A fonte também estivera presente no jantar e recordava-se claramente dos lugares em que essas pessoas se tinham sentado. A fonte era um amigo de Ruth e conhecimento de Lee e mostrava-se absolutamente chocado ao saber que Lee tinha tal pai.
Uma fotografia mais pequena de Ruth Kramer acompanhava a história. Era uma mulher atraente na casa dos cinquenta.
Depois da sensacional revelação acerca de Lee, a história prosseguia com o resumo da discussão oral de sexta-feira em Nova Orleães e as últimas manobras legais da defesa de Cayhall.
No seu todo, era uma história fraca que não conseguia nada, excepto empurrar os resumos criminais diários para a segunda página.
Adam atirou o jornal para o chão e bebeu o café. Ela acordara neste domingo quente, limpa e sóbria pela primeira vez em muitos dias, provavelmente muito mais bem-disposta, e instalara-se no sofá com uma chávena de café fresco e o jornal. Em poucos minutos havia sido esbofeteada e esmurrada no estômago e agora desaparecera novamente. Para onde iria naquelas alturas? Onde seria o seu santuário? Com certeza que se mantinha afastada do Phelps. Talvez tivesse um namorado algures que a recebia e confortava, mas duvidava. Rezou para que ela não andasse ao acaso pelas ruas a conduzir com uma garrafa na mão.
Sem dúvida que as coisas deveriam estar agitadas para os lados dos Booth. O seu segredinho sujo fora descoberto, estampado na primeira página para todos verem. Como poderiam suportar a humilhação? Imagine-se, um Booth casado e com filhos daquela escumalha branca e agora todos sabiam. A família talvez nunca recuperasse. De momento, Madame Booth estava certamente muito perturbada e provavelmente recolhida no leito.
Bem feito, pensou Adam. Tomou banho e mudou de roupa e, em seguida, baixou a capota do Saab. Não esperava ver o Jaguar castanho de Lee nas ruas desertas de Memphis, mas de qualquer forma deu uma volta. Começou em Front Street junto ao rio e, com Springsteen a gritar nos altifalantes, dirigiu- se aleatoriamente para leste, passando pelos hospitais da Union, pelas imponentes mansões do meio da cidade e regressando aos projectos perto da Auburn House. Claro que não a encontrou, mas o passeio foi revigorante. Cerca do meio-dia o tráfego tinha começado a intensificar-se e Adam foi para o escritório.
O único visitante de Sam no domingo foi novamente uma surpresa. Esfregou os pulsos quando lhe retiraram as algemas e sentou-se do seu lado da grade, em frente do homem de cabelos brancos, rosto jovial e sorriso caloroso.
- Mr. Cayhall, o meu nome é Ralph Griffin e sou o capelão de Parchman. Cheguei há pouco e por isso não nos conhecemos.
Sam acenou afirmativamente com a cabeça e disse:
- Prazer em conhecê-lo.
- O prazer é meu. Certamente conhecia o meu antecessor.
- Ah sim, o reverendo Rucker. Onde está ele agora?
- Reformado.
- Óptimo. Nunca gostei dele. Duvido que consiga ir para o céu.
- Sim, ouvi dizer que não era muito popular.
- Popular? Era desprezado por todos. Não sei porquê, não confiávamos nele. Não sei porquê. Talvez por ele ser a favor da pena de morte. Acredita? Fora chamado por Deus para nos dar assistência e, no entanto, acreditava que devíamos morrer. Disse que estava nas Escrituras. Sabe, aquela coisa do olho por olho.
- Já ouvi falar nisso.
- Estou certo que sim. Que tipo de pastor é o senhor? De que denominação?
- Fui ordenado numa igreja baptista, mas agora não tenho denominação. Acho que provavelmente o Senhor se sente frustrado com todo este sectarismo.
- Ele também se sente frustrado comigo, sabe.
- Porquê?
- Já ouviu falar do Randy Dupree, um recluso daqui, um pouco mais abaixo na minha fileira. Violação e assassínio.
- Sim, li o processo dele. Foi pastor.
- Chamamos-lhe Preacher Boy e adquiriu recentemente o dom espiritual da interpretação dos sonhos. Também canta e faz curas. Se lhe permitissem possivelmente lidaria com cobras. Sabe, tomai as serpentes, do Evangelho de S. Marcos, capítulo dezasseis versículo dezoito. De qualquer forma, ele terminou há pouco um longo sonho, durou mais de um mês, assim como uma mini-série, e foi-lhe finalmente revelado que serei realmente executado e que Deus está à minha espera para me perdoar.
- Não seria má ideia, sabe. Pôr as coisas em ordem.
- Qual é a pressa? Ainda me restam dez dias.
- Portanto, acredita em Deus?
- Acredito, sim. Acredita na pena de morte?
- Não, não acredito.
Sam estudou-o por algum tempo e depois perguntou:
- Está a falar a sério?
- Matar está errado, Mr. Cayhall. Se de facto o senhor é culpado do seu crime, então foi um erro ter matado. E também está errado o governo matá-lo a si.
- Aleluia, irmão.
- Nunca me convenci que Jesus quisesse que nós usássemos a morte como castigo. Não foi isso que ele ensinou. Ensinou o amor e o perdão.
- É dessa forma que leio a Bíblia. Como diabo conseguiu este emprego?
- Tenho um primo no senado estadual.
Sam sorriu e deu uma gargalhada perante a resposta.
- Não vai ficar muito tempo. É honesto demais.
- Não. O meu primo é o presidente do departamento correccional e é muito poderoso.
- Então é melhor rezar para que ele seja reeleito.
- Faço-o todas as manhãs. Só quis passar por cá e apresentar-me. Gostaria de falar consigo durante os próximos dias. Gostaria de rezar consigo, se o desejar. Nunca passei por uma execução.
- Nem eu.
- Está assustado?
- Sou um velho, Reverendo. Farei setenta anos dentro de poucos meses, se lá chegar. Por vezes, a ideia da morte é bastante agradável. Deixar este lugar esquecido por Deus será um alívio.
- Mas ainda está a lutar.
- Claro, embora por vezes não saiba porquê. É como uma doença prolongada, um cancro. Vamos decaindo gradualmente e ficando cada vez mais fracos. Morremos um pouco todos os dias e chegamos a um ponto em que a morte é bem-vinda. Mas ninguém quer realmente morrer. Nem mesmo eu.
- Li acerca do seu neto. Deve ser reconfortante. Sei que sente orgulho nele.
Sam sorriu e olhou para o chão.
- De qualquer modo - continuou o reverendo -, estarei por aí. Deseja que eu volte amanhã?
- Seria agradável. Deixe-me pensar um pouco, sim?
- Claro. Conhece os procedimentos por aqui, não é? Durante as suas últimas horas só lhe é permitido ver duas pessoas. O seu advogado e o seu conselheiro espiritual. Sentir-me-ia honrado em ficar consigo.
- Obrigado. E poderia arranjar tempo para falar com o Randy Dupree? O pobre garoto está a enlouquecer e precisa mesmo de ajuda.
- Trato disso amanhã.
- Obrigado.
Adam viu um filme de vídeo sozinho, com o telefone perto. Lee não dissera nada. Às dez fizera dois telefonemas para a costa oeste. O primeiro fora para a mãe, em Portland. Ficara subjugada, mas satisfeita por ter notícias dele, dissera. Não perguntara pelo Sam e Adam não falara do assunto. Dissera que estava a trabalhar arduamente, que tinha esperança e que, provavelmente, regressaria a Chicago dentro de algumas semanas. Ela vira algumas notícias nos jornais e pensava nele. A Lee estava bem, dissera Adam.
O segundo telefonema fora para a irmã mais nova, Carmen, em Berkeley. Uma voz masculina atendera o telefone no seu apartamento, Kevin qualquer coisa, se estava bem lembrado, um companheiro constante havia já alguns anos. Em breve Carmen viera ao telefone e parecera ansiosa por ouvir falar dos acontecimentos no Mississípi. Também ela seguira atentamente as notícias e Adam deu uma imagem optimista do que se estava a passar. Estava preocupada com ele, ali, no meio de todos aqueles horríveis racistas e membros do Klan. Adam insistiu que estava em
segurança, que de facto as coisas estavam bastante tranquilas. As pessoas eram espantosamente amáveis e dóceis. Estava em casa da Lee e a divertir-se como podiam. Para surpresa de Adam, ela quisera saber do Sam - como era ele, o seu aspecto, o seu comportamento, o seu desejo de falar do Eddie. Perguntou se deveria ir até lá e visitar o Sam antes do dia 8 de Agosto, um encontro que Adam não previra. Disse que iria pensar no assunto e que perguntaria ao Sam.
Adormeceu no sofá com a televisão ligada.
Às três e meia da manhã de segunda-feira foi acordado pelo telefone. Uma voz que nunca ouvira antes identificou-se decididamente como Phelps Booth.
- Você deve ser o Adam - disse ele.
Adam sentou-se e esfregou os olhos.
- Exactamente, sou eu.
- Viu a Lee? - perguntou ele nem calmo nem com urgência na voz.
Adam olhou para o relógio da parede por cima da televisão.
- Não. O que se passa?
- Bem, ela está metida em sarilhos. A polícia telefonou-me há cerca de uma hora. Apanharam-na por condução em estado de embriaguez às oito e meia da noite passada e prenderam-na.
- Oh, não - disse Adam.
- Já não é a primeira vez. Foi presa, recusou-se a fazer o teste do álcool e foi mandada para a cela dos bêbados durante cinco horas. Ela pôs o meu nome nos papéis, por isso a polícia telefonou-me. Fui a correr para a prisão, mas ela já tinha pago a fiança e ido embora. Pensei que talvez lhe tivesse telefonado.
- Não. Ela não estava em casa quando acordei ontem de manhã e estas são as primeiras notícias que tenho. A quem poderia ter telefonado?
- Quem sabe? Detesto a ideia de começar a telefonar às ami gas dela e acordá-las. Talvez devêssemos esperar.
Adam sentia-se incomodado com esta súbita intromissão na tomada de decisão. Eles tinham estado casados para o melhor ou para o pior durante quase trinta anos e era óbvio que já tinham passado por isto antes. Como era suposto ele saber o que deveria ser feito?
- Ela não fugiu da cadeia, pois não? - perguntou timida mente, certo da resposta.
- Claro que não. Alguém a foi buscar. O que me lembra outro problema. Precisamos de ir buscar o carro dela. Está num parque junto à prisão. Já paguei as despesas do reboque.
- Tem as chaves?
- Tenho. Pode ajudar-me a ir buscá-lo?
Adam lembrou-se subitamente da história do jornal com a foto sorridente de Phelps e de Lee e lembrou-se também da especulação sobre a reacção da familia Booth ao caso. Tinha a certeza que a maior parte do veneno da culpa fora dirigido contra ele. Se tivesse ficado em Chicago, nada disto teria acontecido.
- Claro. Diga-me só o que...
- Espere junto à casa do guarda. Estarei aí dentro de dez minutos. Adam lavou os dentes, atou os ténis Nike e passou quinze minutos a falar disto e daquilo com Willis, o guarda, junto do portão. Um Mercedes preto, o modelo mais comprido da história, aproximou-se e parou. Adam disse adeus a Willis e entrou no carro.
Apertaram as mãos por uma questão de educação. Phelps usava um fato de treino branco e um boné dos Cubs. Conduzia lentamente pela rua deserta.
- Suponho que a Lee lhe tenha falado de mim - disse ele, sem nenhum vestígio de preocupação ou remorso.
- Um pouco - disse Adam cautelosamente.
- Bem, há muita coisa a dizer, por isso não vou perguntar o que ela disse.
Uma boa ideia, pensou Adam.
- Talvez seja melhor falarmos de baisebol ou qualquer coisa assim. Suponho que é fã dos Cubs.
- Sempre fui, e você?
- Claro. Esta foi a minha primeira época em Chicago e fui a Wrigley umas doze vezes. Vivo bastante perto.
- Realmente? Eu vou lá três ou quatro vezes por ano. Um amigo meu tem um camarote. Há anos que o faço. Quem é o seu jogador favorito?
- Sandberg, suponho. E o seu?
- Gosto dos antigos. Ernie Banks e Ron Santo. Esses foram os dias grandes do baisebol, quando os jogadores eram leais e sabíamos quem faria parte da equipa de um ano para o outro.
Agora nunca se sabe. Adoro o jogo, mas a ganância corrompeu-o.
Adam achou estranho que Phelps Booth denunciasse a ganância.
- Talvez, mas os proprietários escreveram o livro sobre a ganância nos primeiros cem anos do baisebol. O que há de mal em os jogadores pedirem o máximo de dinheiro que podem ganhar?
- Quem é que vale cinco milhões por ano?
- Ninguém, mas se as estrelas do rock ganham cinquenta, que mal faz os jogadores de baisebol ganharem uns milhões? É espectáculo. Os jogadores é que fazem o jogo, não os proprietários. Vou a Wrigley para ver os jogadores, não por o Tribune ser o actual proprietário.
- Sim, mas veja o preço dos bilhetes. Quinze dólares para ver um jogo.
- As audiências aumentam. Os espectadores parecem não se importar.
Atravessaram a Baixa deserta às quatro horas da manhã e, em poucos minutos, estavam junto da cadeia.
- Ouça, Adam, não sei o que a Lee lhe contou acerca do seu problema de alcoolismo.
- Disse-me que era alcoólica.
- Definitivamente. É a segunda acusação por condução em estado de embriaguez. Consegui manter a primeira fora dos jornais, mas não sei o que vai acontecer desta vez. Ela tornou-se subitamente notícia na cidade. Graças a Deus não feriu ninguém!
Phelps parou o carro junto ao passeio perto de um parque murado.
- Já esteve em recuperação meia dúzia de vezes.
- Meia-dúzia! Ela disse que fizera tratamento três vezes.
- Não se pode acreditar nos alcoólicos. Sei de pelo menos cinco curas nos últimos quinze anos. O seu local favorito é um pequeno centro de recuperação chamado Spring Creek. Fica ao pé de um rio alguns quilómetros a norte da cidade, muito agradável e tranquilo. Apenas para os ricos. Não bebem e são bem tratados. Boa comida, exercício, sauna, tudo do bom e do melhor. É tão agradável que acho que as pessoas querem ir para lá. De qualquer forma, palpita-me que ela vai aparecer por lá ainda hoje. Tem alguns amigos que certamente a ajudariam a sair da prisão. É bem conhecida lá. É uma espécie de segundo lar.
- Quanto tempo vai ela ficar por lá?
- Depende. O mínimo é uma semana. O máximo que lá esteve foi um mês. Custa dois mil dólares por dia e claro que me mandam as contas. Mas eu não me importo. Pagaria qualquer coisa para a ajudar.
- O que devo fazer?
- Primeiro, vamos tentar encontrá-la. Vou pôr as minhas secretárias ao telefone dentro de algumas horas e encontramos-lhe o rasto. Nestas alturas ela é bastante previsível e tenho a certeza que vai aparecer num centro de desintoxicação, provavelmente Spring Creek. Vou começar a puxar uns cordelinhos dentro de umas horas, para tentar manter isto fora dos jornais. Não será fácil, devido a tudo o que foi publicado recentemente.
- Lamento.
- Depois de a encontrarmos, precisamos de ir vê-la. Levar- lhe flores e rebuçados. Eu sei que está ocupado e o que terá de enfrentar nos próximos, hum...
- Nove dias.
- Nove dias. Exacto. Bem, mas tente ir vê-la. E quando o assunto de Parchman estiver terminado, sugiro que volte para Chicago e a deixe em paz.
- A deixe em paz?
- Sim, parece duro mas é necessário. Há muitas razões para os seus muitos problemas. Admito que sou uma dessas razões, mas há muitas coisas que você desconhece. A familia dela é outra das razões. Ela adora-o, mas você também evoca muitos pesadelos e muito sofrimento. Não me julgue mal por dizer isto. Eu sei que dói, mas é a verdade.
Adam fixou a vedação de elos de ferro do outro lado do passeio junto da sua porta.
- Certa vez ela manteve-se sóbria durante cinco anos - continuou Phelps - e pensámos que ia ficar assim para sempre.
Depois o Sam foi condenado e em seguida o Eddie morreu. Quando voltou do funeral dele, caiu outra vez no buraco negro e pensei muitas vezes que nunca mais voltaria a sair. Será melhor para ela se você se mantiver longe.
- Mas eu adoro a Lee.
- E ela adora-o a si. Mas precisa de adorá-la à distância.
Mande-lhe cartas e postais de Chicago. Flores pelo aniversário.
Telefone uma vez por mês e fale de livros e de filmes, mas não se refira aos assuntos de familia.
- Quem tomará conta dela?
- Ela tem quase cinquenta anos, Adam, e é quase sempre muito independente. Há muitos anos que é alcoólica e não há nada que você ou eu possamos fazer para a ajudar. Ela conhece a doença. Ficará sóbria quando quiser ficar sóbria. Você não é uma boa influência. Nem eu, lamento.
Adam respirou fundo e agarrou no fecho da porta.
- Lamento, Phelps, se o envergonhei e à sua familia. Não foi com intenção.
Phelps sorriu e colocou uma mão no ombro de Adam.
- Acredite ou não, a minha família é em muitos aspectos mais disfuncional do que a sua. Já passámos por coisas piores.
- Isso, senhor, é difícil de acreditar.
- É verdade - Phelps entregou-lhe um porta-chaves e apontou para um pequeno edifício dentro da vedação. - Vá ali e eles indicam-lhe o carro.
Adam abriu a porta e saiu. Ficou a observar o Mercedes afastar-se e desaparecer. Ao atravessar o portão da vedação, Adam não conseguia afastar a evidente sensação de que Phelps Booth ainda amava a mulher.
O coronel na reserva George Nugent mal se deixou perturbar pela notícia do ataque de coração de Naifeh. O velho estava a recuperar muito bem na segunda-feira de manhã, a descansar confortavelmente e fora de perigo e, que diabo, só lhe faltavam uns meses para a reforma. Naifeh era bom homem, mas os seus dias estavam terminados e só continuava ali para garantir a pensão. Nugent estava a pensar em concorrer ao cargo de chefia, se soubesse jogar bem.
Porém, de momento estava ocupado com assuntos mais urgentes. Faltavam nove dias para a execução de Cayhall, na realidade apenas oito, uma vez que estava marcada para um minuto depois da meia-noite de quarta-feira da próxima semana, o que queria dizer que a quarta-feira era contada como mais um dia embora só um minuto dela pudesse ser usado. A terça- feira da próxima semana seria realmente o último dia.
Sobre a sua secretária encontrava-se um brilhante livro encadernado em cabedal com as palavras Protocolo do Mississípi profissionalmente impressas na capa. Era a sua obra-prima, o resultado de duas semanas de organização tediosa. Tinha ficado horrorizado com os manuais, rascunhos e listas aleatórios reunidos por Naifeh nas execuções precedentes. Era um espanto que tivessem sido efectivamente capazes de gasear alguém. Mas agora existia um plano, uma cópia pormenorizada e cuidadosamente organizada que, em sua opinião, incluía tudo. Tinha uma espessura de cinco centímetros, duzentas e oitenta páginas e, evidentemente, o seu nome era mencionado em toda a parte.
Lucas Mann entrou no seu gabinete quinze minutos depois das oito na segunda-feira de manhã.
- Está atrasado - disse Nugent, agora o homem encarrega das coisas. Mann era um simples advogado. Nugent era o chefe de uma equipa de execução. Mann estava satisfeito com o seu trabalho. Nugent tinha aspirações, que haviam sido consideravelmente nutridas nas últimas vinte e quatro horas.
- E depois? - disse Mann de pé junto de uma cadeira em frente da secretária. Nugent vestia as suas normais calças verde-escuras sem rugas e uma camisa da mesma cor rigidamente engomada com uma t-shirt castanha por baixo. As botas brilhavam de graxa. Marchou até um ponto atrás da secretária. Mann odiava-o.
- Temos oito dias - disse Nugent como se só ele o soubesse.
- Acho que são nove - disse Mann. Ambos os homens se mantinham de pé.
- A próxima quarta-feira não conta. Temos oito dias de trabalho.
- Seja como for.
Nugent sentou-se rigidamente na sua cadeira.
- Duas coisas. Primeiro, aqui está um manual que eu reuni para as execuções. Um protocolo. De A a Z. Completamente organizado, indexado e com referências cruzadas. Gostaria que revisse os regulamentos incluídos, certificando-se que estão correctos.
Mann fixou a encadernação preta, mas não lhe tocou.
- Em segundo lugar, gostaria que me apresentasse todos os dias um relatório do estado actual dos recursos. Segundo depreendo, até esta manhã não existe qualquer impedimento legal.
- Exactamente, senhor - respondeu Mann.
- Gostaria de um relatório escrito todas as manhãs devidamente actualizado.
- Então contrate um advogado, senhor. Não é o meu patrão e maldito seja eu se lhe escrever um relatório para o café da manhã. Digo-Lhe se acontecer alguma coisa, mas não vou contar papéis para si.
Ah, as frustrações da vida civil! Nugent ansiava pela disciplina militar. Malditos advogados.
- Muito bem. Pode, por favor, rever o protocolo?
Mann abriu-o e folheou algumas páginas.
- Sabe, realizámos quatro execuções sem nada disto.
- Francamente, acho o facto extremamente surpreendente.
- Francamente, eu não. Lamento dizer que nos tornámos bastante eficientes.
- Olhe, Lucas, eu não tenho nenhum prazer nisto - disse Nugent pensativamente. - O Philip pediu-me para o fazer. Espero que haja uma suspensão. A sério. Mas se não houver, vamos ter que estar preparados. Quero que corra tudo bem.
Mann registou a óbvia mentira e pegou no manual. Nugent ainda não tinha testemunhado nenhuma execução e estava a contar as horas, não os dias. Mal podia esperar para ver o Sam atado à cadeira a inspirar o gás.
Lucas fez um aceno de cabeça e saiu do gabinete. No corredor, passou por Bill Monday, o executor do estado, que sem dúvida se dirigia para o gabinete de Nugent para uma pequena conversa.
Adam chegou à Raminho um pouco antes das três horas da tarde. O dia começara com o pânico a respeito da prisão de Lee e não melhorara.
Estava a beber café sentado à secretária, a curar uma dor de cabeça e a tentar fazer alguma investigação, quando, num período de dez minutos, Darlene lhe trouxera dois faxes, um de Nova Orleães e outro do tribunal distrital. Perdera duas vezes. O Quinto Tribunal de Círculo mantivera a decisão do tribunal federal quanto à alegação de Sam de que a câmara de gás era inconstitucional por ser cruel e obsoleta; e o tribunal distrital recusara a alegação de que Benjamin Keyes actuara ineficazmente durante o julgamento. A dor de cabeça fora subitamente esquecida. No espaço de uma hora, o adjunto da morte, Mr. Richard Olander, telefonara de Washington perguntando a Adam quais eram os seus planos a respeito de recursos e querendo igualmente saber que outras petições poderiam vir a ser apresentadas pela defesa. Disse a Adam que faltavam apenas oito dias úteis, como se Adam tivesse que ser lembrado. Trinta minutos depois do telefonema de Olander, um assistente do departamento da morte do Quinto Tribunal de Círculo telefonara e perguntara quando tencionava recorrer da sentença do tribunal distrital.
Adam explicara a ambos os adjuntos da morte em ambos os tribunáis que estava a aperfeiçoar os seus recursos o mais depressa possível e que tentaria apresentá-los ao fim do dia. Quando parava para pensar, era um pouco enervante exercer advocacia perante tal audiência. Nesta altura do processo, havia tribunais e juízes a vigiar o que ele faria a seguir. Havia assistentes a telefonar e a perguntar aquilo em que estava a pensar. A razão era óbvia e desanimadora. Não estavam preocupados em saber se Adam conseguiria descobrir a questão mágica capaz de impedir uma execução. Estavam preocupados apenas com a logística. Os adjuntos da morte haviam sido instruídos pelos seus superiores no sentido de vigiarem os dias restantes, para que os tribunais pudessem decidir rapidamente, normalmente contra o recluso. Estes juízes não gostavam de ler sumários às três horas da manhã. Queriam cópias de todas as petições de última hora sobre as suas secretárias muito antes de os recursos chegarem oficialmente.
Phelps telefonara-lhe do escritório antes do meio- dia com a notícia de que Lee ainda não tinha sido encontrada. Tinha procurado em todas as clínicas de desintoxicação e recuperação num raio de cento e sessenta quilómetros e nenhuma admitira uma Lee Booth. Ainda estava a investigar, mas de momento estava muito ocupado com reuniões e outras coisas.
Sam chegou à biblioteca da prisão trinta minutos mais tarde numa disposição sombria. Ouvira as más notícias na televisão ao meio-dia, na estação de Jackson, que estava a contar os dias. Só restavam nove. Sentou-se à mesa e fitou Adam com um olhar vazio.
- Onde estão as Eskimo Pies? - perguntou tristemente, como uma criança a pedir rebuçados.
Adam estendeu a mão para debaixo da mesa e tirou um pequeno saco de congelados. Colocou-o em cima da mesa e abriu-o.
- Quase as confiscaram no portão principal. Depois os guardas revistaram o saco e ameaçaram deitá-las fora. Por isso, aprecie-as bem.
Sam agarrou uma, admirou-a por um longo momento e depois desembrulhou-a cuidadosamente. Lambeu a cobertura de chocolate e depois deu uma grande dentada. Mastigou lentamente de olhos fechados.
Minutos mais tarde, a primeira Eskimo Pie tinha desaparecido e Sam começou a comer a segunda.
- Não foi um bom dia - disse ele lambendo as pontas. Adam fez deslizar alguns papéis na sua direcção.
- Aqui estão as duas decisões. Curtas, precisas e contra nós. Não tem muitos amigos nestes tribunais, Sam.
- Eu sei. Aliás, o resto do mundo adora-me. Não quero ler essa porcaria. O que fazemos a seguir?
- Vamos provar que é demasiado louco para ser executado, que devido à sua avançada idade não compreende completamente a natureza do seu castigo.
- Não vai resultar.
- No sábado gostou da ideia. O que aconteceu?
- Não vai resultár.
- Porque não?
- Porque eu não estou louco. Sei muito bem porque razão vou ser executado. Estás a fazer aquilo que os advogados melhor sabem fazer: a sonhar com teorias pouco convencionais e a contratar peritos excêntricos para as provar - deu uma grande dentada no gelado e lambeu os lábios.
- Quer que eu desista? - perguntou Adam, zangado. Sam estudou as unhas amarelas.
- Talvez - disse ele passando rapidamente a língua por um dos dedos.
Adam deslizou para o assento a seu lado, ao contrário da posição legal que habitualmente assumia do outro lado da mesa, e olhou-o atentamente.
- O que se passa, Sam?
- Não sei. Tenho estado a pensar.
- Estou a ouvir.
- Quando eu era muito jovem, o meu melhor amigo morreu num acidente de automóvel. Tinha vinte e seis anos, casara há pouco tempo, tinha um filho pequeno, uma casa nova, toda a vida à sua frente. Subitamente, estava morto. Sobrevivi-lhe quarenta e três anos. O meu irmão mais velho morreu aos quarenta e seis anos. Sobrevivi-Lhe trinta anos. Sou um velho, Adam. Um homem muito velho. Estou cansado. Sinto vontade de desistir.
- Ora, Sam.
- Pensa nas vantagens. Liberta-te da tensão. Não serás obrigado a passar a próxima semana a apresentar alegações loucas e inúteis. Não te sentirás frustrado quando tudo acabar. Não passarei os meus últimos dias a rezar por um milagre, mas ao invés poderei pôr as minhas coisas em ordem. Poderemos passar mais tempo juntos. Fará mais feliz muita gente: os Kramer, McAllister, Roxburgh, oitenta por cento do povo americano que é a favor da pena de morte. Será outro momento de glória para a lei e a ordem. E eu poderei partir com alguma dignidade, em vez de parecer um homem desesperado com medo de morrer. É bastante atraente.
- O que lhe aconteceu, Sam? Ainda no sábado passado estava pronto para lutar.
- Estou cansado de lutar. Sou um velho. Tive uma vida longa. E se conseguires salvar-me a pele? Que vantagens me trará isso? Não vou para lugar nenhum, Adam. Tu voltas para Chicago e dedicas-te à tua carreira. Tenho a certeza de que virás ver-me sempre que puderes. Escreverás cartas e postais. Mas eu terei de viver no Corredor. Tu não. Não fazes ideia.
- Não vamos desistir, Sam. Ainda temos uma hipótese.
- A decisão não é tua - terminou a segunda Eskimo Pie e limpou a boca com a manga.
- Não gosto de o ver assim, Sam. Gosto de si quando está zangado, mau e com vontade de lutar.
- Estou cansado, ouviste?
- Não pode deixar que o matem. Tem que lutar até ao fim, Sam.
- Porquê?
- Porque está errado. É moralmente errado o estado matá-lo e por isso não podemos desistir.
- Mas de qualquer maneira vamos perder.
- Talvez sim, talvez não. Está a lutar há dez anos. Porquê desistir quando falta apenas uma semana?
- Porque está tudo acabado, Adam. Esta coisa chegou finalmente ao fim.
- Talvez, mas não podemos desistir. Por favor, não se atire para o tapete. Raios, estou a fazer progressos. Tenho estes palhaços na mão.
Sam sorriu e lançou-lhe um olhar paternalista.
Adam aproximou-se mais e pôs uma mão no braço de Sam.
- Pensei em diversas estratégias novas - disse ansiosamente.
- Na verdade, amanhã virá um perito para o examinar. Sam olhou para ele.
- Que tipo de perito?
- Um psiquiatra.
- Um psiquiatra?
- Sim, de Chicago.
- Já falei com um psiquiatra. Não correu muito bem.
- Este tipo é diferente. Trabalha para nós e vai declarar que o senhor perdeu as faculdades mentais.
- Estás a partir do princípio que eu estava são quando vim para cá.
- Sim, vamos partir desse princípio. Este psiquiatra vai examiná-lo amanhã e depois preparará rapidamente um relatório declarando que o senhor está senil e louco e não passa de um idiota completo e Deus sabe o que mais.
- Como sabes que ele vai dizer isso?
- Porque lhe vamos pagar para o dizer.
- Quem é que lhe vai pagar?
- A Kravitz & Bane, aqueles dedicados judeus-americanos de Chicago que o senhor odeia, mas que têm feito o possível e o impossível para o manter vivo. Na verdade, é uma ideia do Goodman.
- Deve ser um excelente perito.
- Neste momento não podemos ser muito selectivos. Tem sido usado por vários outros advogados da firma em diversos casos e dirá o que desejarmos que diga. Limite-se a comportar-se de forma bizarra quando falar com ele.
- Isso não deve ser muito difícil.
- Conte-lhe todas as histórias horríveis acerca deste sítio. Faça-o parecer atroz e miserável.
- Não há problema com isso.
- Diga-lhe como se deteriorou ao longo dos anos e como é especialmente difícil para um homem da sua idade. É de longe o homem mais velho do corredor, Sam, por isso diga-lhe como isso o afectou. Acentue bem esses pontos. Ele arranja um relatório constrangedor e eu corro para o tribunal com ele.
- Não vai resultar.
- Vale a pena tentar.
- O supremo tribunal autorizou o Texas a executar um rapaz deficiente mental.
- Não estamos no Texas, Sam. Todos os casos são diferentes. Ajude-nos nisto, está bem?
- Nós? Quem é nós?
- Eu e o Goodman. Disse-me que já não o odiava, por isso calculei que ele poderia colaborar. A sério, preciso de ajuda. Há trabalho demais para um advogado sozinho.
Sam afastou a sua cadeira da mesa e levantou-se. Esticou os braços e as pernas e começou a caminhar ao longo da mesa, contando os passos ao mesmo tempo.
- De manhã vou apresentar um pedido de recurso de revisão ao supremo tribunal - disse Adam olhando para uma lista no seu bloco. - Provavelmente não vão aceitar, mas de qualquer forma vou fazê-lo. Vou também terminar o recurso da alegação de representação legal ineficaz para o Quinto Tribunal de Círculo. O psiquiatra virá aqui amanhã à tarde. Apresentarei a alegação de insanidade mental na quarta-feira de manhã.
- Preferia partir tranquilamente, Adam.
- Esqueça Sam. Não vamos desistir. Falei com a Carmen na noite passada e ela quer vir visitá-lo.
Sam sentou-se na beira da mesa e olhou para o chão. Tinha os olhos semicerrados e tristes. Puxou uma fumaça e soprou o fumo para os pés.
- Porque quereria ela fazer isso?
- Não perguntei porquê nem o sugeri. Foi ela que falou no assunto. Disse-lhe que ia perguntar-Lhe.
- Nunca a conheci.
- Eu sei. Ela é a sua única neta, Sam, e quer vir. - Não quero que ela me veja assim - disse ele, apontando
para o fato-macaco.
- Ela não se importa.
Sam estendeu a mão para o saco e tirou outra Eskimo Pie. - Queres uma? - perguntou.
- Não. E a respeito da Carmen?
- Deixa-me pensar nisso. A Lee ainda quer vir ver-me?
- Ah, claro. Há uns dias que não falo com ela, mas tenho a certeza que sim.
- Pensei que estavas em casa dela.
- E estou, mas ela está fora da cidade.
- Deixa-me pensar nisso. De momento sou contra. Há dez anos que não vejo a Lee e não quero que ela me recorde desta maneira. Diz-lhe que estou a pensar no assunto, mas que de momento acho que não.
- Eu digo-lhe - prometeu Adam, sem ter a certeza se a veria em breve. Se ela tivesse de facto ido fazer uma cura, estaria sem dúvida isolada durante várias semanas.
- Ficarei satisfeito quando o fim chegar, Adam. Na realidade, estou farto de tudo isto - deu uma grande dentada no gelado.
- Compreendo, mas vamos adiar isso durante algum tempo.
- Porquê?
- Porquê? É óbvio. Não quero passar o resto da minha carreira como advogado acabrunhado por ter perdido o meu primeiro caso.
- Não é uma má razão.
- Óptimo. Então, não vamos desistir?
- Suponho que não. Traz o psiquiatra. Vou agir o mais insensatamente possível.
- Assim já está melhor.
Lucas Mann estava à espera de Adam junto do portão principal da prisão. Eram quase cinco horas, ainda estava muito calor e o ar pegajoso.
- Tem um minuto? - perguntou ele através da janela do carro de Adam.
- Acho que sim. Que se passa?
- Estacione ali. Vamos sentar-nos à sombra.
Caminharam até uma mesa de piquenique junto do Centro de Visitantes, por baixo de um enorme carvalho com a estrada visível a pouca distância.
- Umas coisas - disse Mann. - Como está o Sam? Está a aguentar-se bem?
- Tão bem quanto seria de esperar. Porquê?
- Estou apenas preocupado. Segundo a última contagem, hoje tivemos quinze pedidos de entrevistas. As coisas estão a aquecer. A imprensa está a caminho.
- O Sam não fala.
- Alguns querem falar consigo.
- Eu também não falo.
- Óptimo. Temos um impresso que o Sam tem que assinar. Dá-nos autorização escrita para dizermos aos repórteres para irem para o inferno. Já sabe do Naifeh?
- Vi nos jornais esta manhã.
- Vai ficar bem, mas não poderá supervisionar a execução. Há um doido chamado George Nugent, um superintendente-adjun to, que vai coordenar tudo. É comandante. Um militar na reserva, um tipo completamente tarado.
- Na verdade para mim não faz qualquer diferença. Ele não poderá executar a sentença de morte, excepto se os tribunais o permitirem.
- Exactamente. Só queria que você soubesse quem ele é.
- Mal posso esperar para o conhecer.
- Mais uma coisa. Tenho um amigo, um velho colega da faculdade de Direito, que agora trabalha na administração do governador. Telefonou-me esta manhã e parece que o governador está preocupado com a execução do Sam. Segundo o meu amigo, a quem sem dúvida o governador pediu para me pedir que falasse consigo, gostariam de realizar uma audiência de clemência, de preferência em poucos dias.
- É amigo do governador?
- Não, desprezo o governador.
- Também eu e o meu cliente também.
- Por isso, o meu amigo foi escolhido para me telefonar e confiar em mim. Alegadamente, o governador tem sérias dúvidas sobre o facto de o Sam dever ser executado.
- Acredita nisso?
- É duvidoso. A reputação do governador foi feita à custa de Sam Cayhall e tenho a certeza que está a afinar o seu plano de media para os próximos oito dias. Mas o que há a perder?
- Nada.
- Não é má ideia.
- Eu sou a favor. Porém, o meu cliente deu-me ordens estritas no sentido de não solicitar tal audiência.
Mann encolheu os ombros, como se realmente não estivesse preocupado com o que Sam fazia.
- Então é o Sam que tem de decidir. Ele fez testamento?
- Sim.
- E quanto às disposições para o funeral?
- Estou a tratar disso. Ele quer ser sepultado em Clanton.
Começaram a andar na direcção do portão principal.
- O corpo vai para uma casa funerária de Indianola, não muito longe daqui. Será entregue à familia aí. Todas as visitas terminam quatro horas antes da hora marcada para a execução. Desse momento em diante, o Sam só poderá ter duas pessoas junto de si: o advogado e o conselheiro espiritual. Também terá que seleccionar as suas duas testemunhas, se assim o desejar.
- Falarei com ele.
- Precisamos da lista de visitas aprovada por ele daqui até lá. Normalmente é a família e os amigos íntimos.
- Será uma lista muito pequena.
- Eu sei.
Todos os ocupantes do Corredor conheciam os procedimentos, embora nunca tivessem sido reduzidos a escrito. Os veteranos, incluindo Sam, tinham suportado quatro execuções durante os últimos oito anos e, em cada caso, os procedimentos tinham sido seguidos com poucas variantes. Os antigos falavam e murmuravam entre si e normalmente apressavam-se a descrever as últimas horas aos recém-chegados, a maioria dos quais chegava ao Corredor com perguntas mudas acerca da forma como era feita. E os guardas gostavam de falar no assunto.
A última refeição devia ser tomada numa pequena sala próxima da entrada do Corredor, uma sala normalmente chamada simplesmente gabinete da entrada. Tinha uma secretária e algumas cadeiras, um telefone e ar condicionado e era nesta sala que o condenado recebia as suas últimas visitas. Sentava-se e ouvia os seus advogados explicarem porque razão as coisas não tinham corrido como estava planeado. Era uma sala simples com as janelas trancadas. A última visita conjugal também tinha lugar aí, se o recluso o desejasse realmente. Os guardas e a administração amontoavam-se lá fora no corredor.
A sala não fora concebida para as últimas horas, mas quando, em 1982, Teddy Doyle Meeks se tornou no primeiro recluso a ser executado em muitos anos, essa sala tornou-se subitamente necessária para vários fins. Pertencera primeiro a um tenente e depois a um gestor de processos. Não tinha outra designação além de gabinete da entrada. O telefone da secretária era o último a ser usado pelo advogado do recluso quando recebia a confirmação final de que não haveria mais suspensões nem mais recursos. Em seguida, fazia o longo caminho de regresso à Fileira A, à extremidade mais afastada onde o seu cliente estava à espera na Cela de Observação.
A Cela de Observação era uma cela vulgar da Fileira A, apenas a oito portas da de Sam. Tinha um metro e oitenta por dois metros e setenta, um beliche, uma pia e uma sanita, tal como a de Sam, tal como todas as outras. Era a última cela da fileira e a mais próxima da Sala de Isolamento, que ficava ao lado da Sala da Câmara. No dia antes da execução, o recluso era retirado pela última vez da sua cela e conduzido à Cela de Observação. Os seus bens pessoais deveriam igualmente ser removidos, o que era normalmente uma tarefa rápida. Aí, ele esperava. Normalmente, via na televisão o seu próprio drama íntimo, enquanto as estações locais faziam a cobertura dos apelos de última hora. O seu advogado esperava com ele, sentado na frágil cama, na cela escura, vendo as notícias. O advogado ia e vinha do gabinete da entrada. Um pastor ou um conselheiro espiritual era igualmente autorizado a ficar na cela. O corredor ficava escuro e completamente silencioso. No entanto, alguns dos reclusos mantinham-se agarrados às suas televisões. Outros davam as mãos e rezavam por entre as grades. Outros deitavam-se nas suas camas e perguntavam-se quando chegaria a sua vez. Todas as janelas para o exterior ao cimo do Corredor se encontravam fechadas e trancadas. O Corredor estava trancado. Mas havia vozes entre as fileiras e luzes no exterior. Para os homens que permaneciam sentados horas e horas nas suas pequenas celas, vendo e ouvindo tudo, o fluxo de actividades estranhas era enervante.
Às onze o director e a sua equipa entravam na Fileira A e paravam junto da Cela de Observação. Agora, a esperança de uma suspensão de última hora estava praticamente esgotada. O recluso ficava sentado na cama, de mãos dadas com o advogado e com o pastor. O director anunciaria que estava na hora de ir para a Sala de Isolamento. A porta da cela batia e abria-se e o recluso saía para o Corredor. Havia gritos de apoio dos outros reclusos, muitos dos quais choravam. A Sala de Isolamento fica a pouco mais de seis metros da Cela de Observação. O recluso caminharia por entre duas filas de volumosos guardas de segurança armados, os maiores que o director conseguia encontrar. Nunca havia resistência. Não serviria de nada.
O director conduzia o recluso a uma pequena sala, três metros por três, sem nada lá dentro, excepto uma cama desdobrável. O recluso sentava-se na cama com o advogado ao seu lado. Neste momento, por qualquer razão desconcertante, o director sentia necessidade de passar alguns instantes com o recluso, como se o director fosse a última pessoa com quem desejava falar. Finalmente, o director acabava por retirar-se. A sala ficava em silêncio, excepto algum estrondo ou batida provenientes da sala ao lado. Neste momento, rezavam-se as últimas orações. Faltavam apenas alguns minutos.
Ao lado da Sala de Isolamento ficava a Sala da Câmara propriamente dita. Tinha aproximadamente quatro metros por três, com a câmara de gás no centro. O executor trabalhava arduamente, enquanto o recluso rezava no isolamento. O director, o advogado da prisão, o médico e uma mão-cheia de guardas ocupavam-se dos preparativos. Havia dois telefones na parede para transmissão da ordem final. À esquerda existia uma pequena sala onde o executor misturava as soluções. Por trás da câmara havia uma série de três janelas, cada uma medindo quarenta e cinco por setenta e cinco centímetros, e de momento cobertas por cortinas negras. Do outro lado das janelas ficava a sala das testemunhas.
Aos vinte minutos para a meia-noite, o doutor entrava na Sala de Isolamento e colocava um estetoscópio no peito do recluso. Saía e o director entrava para conduzir o recluso à câmara. Faziam-no entrar de costas na câmara, amarravam- no, fechavam a porta e matavam-no.
A Sala da Câmara estava sempre cheia de gente, todos ansiosos por ajudar, todos prestes a verem um homem morrer. Por exemplo, Buster Moac já estava meio amarrado à cadeira quando o telefone tocou na Sala da Câmara. Voltou para a Sala de Isolamento e esperou durante seis miseráveis horas até que o viessem buscar novamente. Jumbo Parris fora o mais inteligente dos quatro. Consumidor de drogas muito tempo antes de ir para o corredor, começou a pedir Valium ao psiquiatra dias antes da execução. Optou por passar as últimas horas sozinho, sem o advogado e sem o pastor, e quando vieram buscá-lo para a Cela de Observação estava completamente drogado. Tinha evidentemente acumulado o valium e teve de ser arrastado para a Sala de Isolamento onde dormiu em paz. Em seguida, foi arrastado para a câmara, onde lhe ministraram a dose final.
Era um procedimento considerado humano. O recluso permanecia na sua cela, entre os companheiros, mesmo até ao fim. Na Luisiana, eram retirados do Corredor e levados para um pequeno edifício conhecido como Casa da Morte. Passavam aí os últimos três dias, sob constante vigilância. Na Virgínia, eram levados para outra cidade.
Sam estava a oito celas da Cela de Observação, cerca de quinze metros. Depois eram mais seis metros até à Sala de Isolamento e mais três até à câmara. A partir de um ponto no centro da sua cama, calculara muitas vezes encontrar-se a cerca de vinte e cinco metros da câmara de gás.
E fez novamente o cálculo na terça-feira de manhã, enquanto desenhava cuidadosamente um no seu calendário. Oito dias. Estava escuro e quente. Tinha dormitado ocasionalmente e passara metade da noite sentado em frente da ventoinha. Faltava uma hora para o pequeno- almoço e o café. Este seria o seu 3449º dia no Corredor e o total não incluía o tempo passado na cadeia do con dado em Greenville, durante os seus dois primeiros julgamentos. Só mais oito dias.
Os lençóis estavam encharcados em suor e enquanto permanecia deitado na cama a observar o tecto, pensava na morte pela milionésima vez. O acto de morrer em si não seria muito terrível. Por razões óbvias, ninguém conhecia os efeitos exactos do gás. Talvez lhe dessem uma dose extra, de forma a já estar morto muito antes de o seu corpo começar a torcer-se e a saltar. Talvez a pri meira inspiração o deixasse inconsciente. De qualquer forma, não levaria muito tempo, esperava. Vira a mulher definhar e sofrer com o cancro. Vira parentes a envelhecer e a vegetar. Certamente que esta seria uma forma melhor de morrer.
- Sam - murmurou J. B. Gullitt. - Estás acordado? Sam caminhou até à porta e inclinou-se através das grades. Conseguia ver as mãos e os antebraços de Gullitt.
- Sim, estou acordado. Parece que não consigo dormiracendeu o primeiro cigarro do dia.
- Nem eu. Diz-me que não vai acontecer, Sam!
- Não vai acontecer.
- Estás a falar a sério?
- Sim, estou a falar a sério. O meu advogado vai usar agora a artilharia pesada. Provavelmente vai tirar-me daqui para fora dentro de poucos dias.
- Então porque não consegues dormir?
- Estou excitado com a ideia de sair.
- Falaste-lhe do meu caso?
- Ainda não. Ele anda muito ocupado. Assim que eu sair, começamos a trabalhar no teu caso. Acalma-te. Tenta dormir.
As mãos e os antebraços de Gullitt desapareceram lentamente e depois a cama rangeu. Sam abanou a cabeça perante a ignorância do garoto. Apagou o cigarro e atirou-o para o corredor, uma violação das regras que lhe valeria um relatório de desobediência. Como se lhe importasse.
Retirou cuidadosamente a máquina de escrever da prateleira. Tinha coisas a dizer e cartas a escrever. Havia pessoas lá fora com quem precisava de falar.
George Nugent entrou na Unidade de Segurança Máxima como um general de cinco estrelas e fitou desaprovadoramente o cabelo e, em seguida, as botas não engraxadas de um guarda de segurança branco.
- Corte o cabelo - rosnou ele - ou participo de si. E engraxe essas botas.
- Sim, senhor - disse o rapaz e quase fez continência. Nugent sacudiu a cabeça e acenou para Packer, que indicou o caminho pelo centro do Corredor até à Fileira A.
- Número seis - disse Packer abrindo a porta.
- Fique aqui - ordenou Nugent. Os calcanhares tilintavam enquanto ele marchava ao longo da fileira, olhando com desprezo para dentro de cada cela. Parou junto da de Sam e espreitou lá para dentro. Sam estava apenas de calções, a pele enrugada e fina brilhando de suor enquanto escrevia. Olhou para o estranho que o fitava através das grades e depois voltou ao trabalho.
- Sam, o meu nome é George Nugent.
Sam bateu nalgumas teclas. O nome não era familiar, mas Sam partiu do princípio que devia ser alguém com um cargo importante, uma vez que tinha acesso às fileiras.
- O que deseja? - perguntou Sam sem olhar.
- Bem, queria conhecê-lo.
- Muito prazer. Agora desapareça.
Gullitt à direita e Henshaw à esquerda inclinaram-se subitamente através das grades, apenas a alguns metros de Nugent. Riram silenciosamente da resposta de Sam.
Nugent olhou-os zangado e aclarou a garganta.
- Sou superintendente-adjunto e Phillip Naifeh encarregou-me da sua execução. Há umas coisas que precisamos discutir. Sam concentrou-se na sua correspondência e praguejou quando bateu a tecla errada. Nugent esperou.
- Se pudesse ceder-me uns minutos do seu valioso tempo, Sam?
- É melhor chamar-lhe Mr. Cayhall - acrescentou Henshaw pressurosamente. - Ele é alguns anos mais velho que o senhor e isso significa muito para ele.
- Onde é que arranjou essas botas? - perguntou Gullitt fitando os pés de Nugent.
- Vocês recuem - disse Nugent rispidamente. - Preciso de falar com o Sam.
- De momento, Mr. Cayhall está ocupado - disse Henshaw. - Talvez fosse melhor voltar mais tarde. Poderei marcar-lhe uma entrevista.
- Você é algum idiota militar? - perguntou Gullitt. Nugent endireitou-se e olhou para a direita e para a esquerda. - Ordeno aos dois que recuem, está bem? Preciso de falar com o Sam.
- Não recebemos ordens - disse Henshaw.
- E o que vai fazer a esse respeito? - perguntou Gullitt.
Atirar-nos para a solitária? Pôr-nos a pão e água? Agrilhoar-nos à parede? Porque é que não nos mata simplesmente?
Sam colocou a máquina de escrever em cima da cama e en caminhou-se para as grades. Puxou uma longa fumaça e soprou o fumo na direcção de Nugent.
- O que é que quer? - perguntou.
- Preciso de algumas coisas de si.
- Tais como?
- Tem testamento?
- Não tem nada com isso. Um testamento é um documento
particular, que só deve ser visto depois de reconhecido, o que só é
possível depois de a pessoa morrer. É a lei.
- Que palerma! - guinchou Henshaw.
- Não acredito nisto - disse Gullitt. - Onde é que o Naifeh
foi descobrir este idiota? - perguntou.
- Mais alguma coisa? - perguntou Sam.
O rosto de Nugent mudou de cor.
- Precisamos de saber o que fazer com as suas coisas.
- Está no meu testamento, certo?
- Espero que não se vá mostrar difícil, Sam.
- Mr. Cayhall - emendou Henshaw novamente.
- Difícil? - perguntou Sam. - Porque havia de me mostrar
difícil? Tenciono cooperar inteiramente com o estado enquanto ele trata de tudo para me matar. Sou um bom patriota. Se pudesse votava e pagava impostos. Tenho orgulho em ser americano, irlandês-americano, e neste momento continuo a gostar muito do meu estado, apesar de planear gasear-me. Sou um recluso-modelo George. Não haverá problemas comigo.
Packer estava a adorar tudo isto enquanto esperava na parte final da fileira. Nugent manteve-se firme.
- Preciso de uma lista das pessoas que deseja que assistam à execução - disse. - Pode indicar duas.
- Ainda não desisti, George. Vamos esperar mais uns dias.
- Muito bem. Precisamos também de uma lista das visitas nos próximos dias.
- Bem, esta tarde vem um médico de Chicago. É um psiquiatra e vem falar comigo para ver se sou realmente louco e depois os meus advogados vão a correr para o tribunal e dizem que o senhor, George não vai poder executar-me porque sou doido. Ele também terá tempo para o examinar, se quiser. Não vai demorar muito tempo.
Henshaw e Gullitt riram às gargalhadas e, em poucos segundos, quase todos os reclusos da fileira estavam a bater nas grades e a rir alto. Nugent deu um passo para trás e olhou rispidamente para os dois lados da fileira.
- Calados! - ordenou ele, mas as gargalhadas aumentaram. Sam continuou a fumar e a soprar o fumo através das grades. No meio do tumulto podiam ouvir-se miados e insultos.
- Eu volto - gritou Nugent iradamente para Sam.
- Ele volta! - gritou Henshaw e o barulho aumentou. O comandante retirou-se zangado e enquanto marchava ligeiramente até ao fim do corredor gritos de Heil Hitler! " ecoaram em toda a fileira.
Sam sorriu para as grades durante um momento enquanto o ruído se aquietava e depois regressou à sua posição na beira da cama. Deu uma dentada numa torrada seca e bebeu um gole de café frio. Recomeçou a escrever.
A viagem de tarde até Parchman não foi particularmente agradável. Garner Goodman seguia no assento da frente enquanto Adam conduzia e falaram de estratégia, dos recursos de última hora e dos procedimentos. Goodman pensava voltar a Memphis no fim-de-semana e estar disponível durante os últimos três dias. O psiquiatra era o Dr. Swinn, um homem frio e grave de fato escuro. Tinha cabelo espesso e despenteado, olhos escuros ocultos por óculos de grossas lentes e era completamente incapaz de fazer conversa. A sua presença no assento traseiro era embaraçosa. Não proferiu uma única palavra entre Memphis e Parchman.
Adam e Lucas Mann tinham tomado disposições para que o exame tivesse lugar no hospital da prisão, uma instalação notavelmente moderna. O Dr. Swinn tinha informado claramente Adam que nem ele nem o Dr. Goodman poderiam estar presentes durante a sua avaliação de Sam. E isto estava muito bem para Adam e para Goodman. Uma carrinha da prisão esperava-os no portão principal e levou o Dr. Swinn para o hospital, situado bem no meio da quinta.
Goodman não via Lucas Mann há muitos anos. Apertaram as mãos como velhos amigos e mergulharam imediatamente nas histórias de guerra sobre execuções. Não falaram de Sam e Adam apreciou o facto.
Caminharam do escritório de Mann até um pequeno edifício situado atrás do complexo da administração. O edifício era um restaurante, concebido de acordo com as linhas de uma taberna local. Chamado The Tavern, servia comida simples aos trabalhadores dos escritórios e aos empregados da prisão. Não servia bebidas alcoólicas. Estava situado em propriedade do estado.
Beberam chá gelado e falaram acerca do futuro da pena capital. Tanto Goodman como Mann concordaram em que as execu ções em breve seriam ainda mais vulgares. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos mantinha uma tendência para a direita e estava cansado dos infindáveis recursos. O mesmo acontecia com os níveis mais baixos da justiça federal. Além disso, os júris americanos reflectiam cada vez mais a intolerância da sociedade perante os crimes violentos. Havia muito menos simpatia pelos reclusos do corredor da morte, um desejo muito maior de dar cabo dos sacanas. Poucos dólares federais eram gastos no financiamento de grupos de oposição à pena de morte e poucos advogados e respectivas firmas se mostravam dispostos a empenhar-se nesses enormes processos pro bono. A população dos corredores da morte estava a crescer mais depressa do que o número de advogados dispostos a aceitar casos de pena capital.
Adam estava bastante aborrecido com a conversa. Já lera e ouvira aqueles comentários centenas de vezes. Pediu licença e foi procurar uma cabina telefónica. Phelps não estava, disse uma jovem secretária, mas deixara um recado para Adam: não havia notícias de Lee. Tinha audiência marcada no tribunal dentro de duas semanas: talvez aparecesse nessa altura.
Darlene dactilografou o relatório do Dr. Swinn enquanto Adam e Garner Goodman trabalhavam na petição que deveria acompanhá-lo. Em rascunho o relatório tinha vinte páginas e parecia música suave. Swinn era um mercenário, uma prostituta que vendia a sua opinião pelo preço mais alto, e Adam detestava-o e aos da sua laia. Andava pelo país como testemunha profissional, capaz de dizer hoje isto e amanhã aquilo, dependendo de quem pagava mais. Mas de momento era a prostituta deles e era muito bom. Sam sofria de senilidade avançada. As suas faculdades mentais tinham-se deteriorado ao ponto de não saber nem compreender a natureza da pena que lhe era aplicada. Não tinha a capacidade necessária para ser executado e, como tal, a execução não serviria qualquer objectivo. Não era uma argumentação legal inteiramente exclusiva e os tribunais não tinham exactamente adoptado. Mas, como Adam dizia a si próprio todos os dias, o que havia a perder? Goodman parecia mais do que um pouco optimista, sobretudo devido à idade de Sam. Não se lembrava da execução de nenhum homem com mais de cinquenta anos.
Todos, incluindo Darlene, trabalharam quase até às onze horas.
Garner Goodman não regressou a Chicago na quarta-feira de manhã, mas apanhou um avião para Jackson, Mississípi. O voo demorou trinta minutos, tempo pouco mais que suficiente para beber uma chávena de café e comer um croissant congelado. Alugou um carro no aeroporto e dirigiu-se directamente
para o capitólio estadual. A assembleia legislativa não se encontrava em sessão e havia muitos lugares para estacionar. Tal como muitos tribunais de condado reconstruídos após a Guerra Civil, o capitólio estava desafiadoramente virado a sul. Parou a admirar o monumento de guerra às mulheres sulistas, mas passou mais tempo a examinar as esplêndidas magnólias japonesas ao fundo dos degraus da entrada.
Quatro anos antes, durante os dias e horas que haviam precedido a execução de Maynard Tole, Goodman fizera esta mesma viagem por duas vezes. Nessa altura, o governador era outro, o cliente era outro e o crime também. Tole assassinara várias pessoas no decurso de uma orgia criminosa de dois dias e tinha sido muito difícil despertar qualquer simpatia por ele. Esperava que Sam Cayhall fosse diferente. Era um homem velho que provavelmente morreria dentro de um máximo de cinco anos. O seu crime era uma história antiga para muitos naturais do Mississípi. E assim por diante.
Goodman estivera a ensaiar a rotina toda a manhã. Entrou no edifício do capitólio e mais uma vez se maravilhou com a sua beleza. Era uma versão mais pequena do Capitólio dos Estados Unidos, em Washington, e não haviam sido poupadas despesas.
Fora construído em 1910com trabalho de reclusos. O estado utilizara os procedentes de uma acção contra uma companhia de caminhos-de-ferro para construir este monumento.
Entrou no gabinete do governador no segundo andar e entregou o seu cartão à bela recepcionista. O governador não estava esta manhã, disse ela, ele tinha entrevista marcada? Não, explicou Goodman agradavelmente, mas era muito importante e seria possível ele falar com Mr. Andy Larramore, conselheiro principal do governador?
Esperou enquanto ela fazia vários telefonemas e meia- hora mais tarde apareceu o próprio Mr. Larramore. Apresentaram-se e desapareceram num estreito corredor que passava por um labirinto de pequenos gabinetes. O gabinete de Larramore estava atravancado e desarrumado, um pouco como o próprio homem. Era baixinho, com uma visível dobra na cintura e sem pescoço absolutamente nenhum. O longo queixo caía-lhe sobre o peito e, quando falava, os olhos, o nariz e a boca apertavam firmemente ao mesmo tempo. Era uma visão horrível. Goodman não saberia dizer se teria trinta anos ou cinquenta. Tinha que ser um génio.
- Esta manhã, o governador foi discursar perante uma convenção de agentes de seguros - disse Larramore, segurando um itinerário como se fosse uma jóia - e em seguida vai visitar uma escola oficial no interior da cidade.
- Eu espero - disse Goodman. - É muito importante e não me importo de esperar.
Larramore pôs a folha de papel de lado e cruzou as mãos sobre a mesa.
- O que aconteceu àquele jovem, o neto do Sam?
- Oh, ele ainda é o advogado principal. Eu sou o director do departamento pro bono da Kravitz & Bane e estou aqui para o assistir.
- Estamos a seguir todo o caso muito atentamente - disse Larramore, o rosto enrugando-se ferozmente no centro e relaxando no final de cada frase. - Parece que vai mesmo até ao fim.
- Vão sempre - disse Goodman. - Qual é a posição do governador a respeito de uma audiência de clemência?
- Tenho a certeza que não será contra a audiência. A concessão de clemência é um assunto completamente diferente. O regulamento é muito lato, como certamente sabe. Pode comutar a sentença de morte e libertá-lo imediatamente. Pode comutá-la em prisão perpétua ou algo inferior a isso.
Goodman acenou afirmativamente com a cabeça.
- Será possível eu falar com ele?
- Segundo o plano, ele deve chegar aqui por volta das onze horas. Falarei com ele. Provavelmente vai almoçar no seu gabinete, por isso talvez haja um intervalo por volta da uma hora. Poderá estar aqui?
- Sim. Isto deve ser mantido em segredo. O nosso cliente é contra esta reunião.
- Ele opõe-se à ideia da clemência?
- Só nos restam sete dias, Mr. Larramore. Não nos opomos a nada.
Larramore enrugou o nariz e mostrou os dentes superiores; pegou novamente no itinerário.
- Esteja aqui à uma hora. Verei o que posso fazer.
- Obrigado.
Conversaram ao acaso durante cinco minutos e depois Larramore foi assaltado por uma série de telefonemas urgentes. Goodman pediu licença e saiu do capitólio. Parou novamente junto das magnólias japonesas e despiu o casaco. Eram nove e meia e tinha a camisa molhada debaixo dos braços e colada às costas.
Caminhou para sul dirigindo-se para Capitol Street, a quatro quarteirões de distância e considerada a rua principal de Jackson. No meio dos edifícios e do tráfego da Baixa, a mansão do governador erguia-se majestosamente num terreno bem tratado, de frente para o capitólio. Era uma grande casa anterior à Guerra Civil cercada de portões e muros. Um bando de opositores da pena de morte juntara-se no passeio na noite em que Tole fora executado e gritara ao governador. Evidentemente que ele não os ouvira. Goodman parou no passeio e recordou-se da mansão. Ele e Peter Wiesenberg tinham atravessado rapidamente um portão à esquerda do portão principal com o seu último pedido, apenas algumas horas antes de Tole ser gaseado. Nesse momento, o governador recebia pessoas muito importantes para um jantar tardio e ficara irritado com a sua intromissão. Recusara o seu pedido final de clemência e, em seguida, segundo a melhor tradição do Sul, convidara-os a ficar para o jantar.
Tinham recusado educadamente. Goodman explicara a Sua Excelência que tinham de apressar-se a regressar a Parchman para estarem com o seu cliente quando morresse.
- Tenham cuidado - dissera-lhes o governador e regressara ao seu jantar.
Goodman perguntou-se quantos manifestantes se reuniriam neste mesmo lugar dentro de poucos dias, a cantar e a rezar de velas acesas, agitando cartazes e gritando a McAllister para poupar o velho Sam. Provavelmente não muitos.
Raramente se verificara falta de espaço para escritórios no bairro central de Jackson e Goodman não teve muita dificuldade em encontrar o que procurava. Uma tabuleta chamava a sua atenção para um espaço livre no terceiro andar de um feio edifício. Perguntou na portaria de uma sociedade financeira do rés do chão e, uma hora mais tarde, chegava o proprietário do edifício e mostrava-lhe o espaço disponível. Era uma sombria suite de duas salas, com uma carpete gasta e buracos nas paredes. Goodman foi até à única janela e olhou para a entrada do edifício do capitólio, a três quarteirões de distância.
- Perfeito - disse.
- São trezentos dólares por mês, mais a electricidade. A casa de banho fica ao fundo do corredor. Seis meses no mínimo.
- Só preciso dela durante dois meses - disse Goodman, metendo a mão no bolso e tirando um maço de notas cuidadosamente dobradas.
O proprietário olhou para o dinheiro e perguntou:
- A que tipo de negócio se dedica?
- Análise de mercado.
- De onde é?
- De Detroit. Estamos a pensar em abrir uma filial neste estado e precisamos de um espaço para começar. Mas apenas por dois meses. Tudo em dinheiro. Nada escrito. Sairemos rapidamente. Não faremos barulho.
O proprietário aceitou o dinheiro e entregou a Goodman duas chaves, uma do escritório e outra da entrada em Congress Street. Apertaram as mãos e fecharam o negócio.
Goodman deixou o local e regressou ao carro junto do capitólio. Durante o caminho riu do esquema que estava a engendrar. A ideia nascera no cérebro de Adam, outra tentativa de uma série de planos desesperados para salvar Sam. Não havia nada de ilegal no caso. Os custos seriam leves e quem se interessava por mais uns dólares neste momento? Afinal, ele era o senhor Pro Bono da firma, fonte de grande orgulho e probidade entre os seus pares. Ninguém, nem mesmo Daniel Rosen, se atreveria a questionar as suas despesas com uma pequena renda e alguns telefones.
Após três semanas como advogado do corredor da morte Adam começava a ansiar pela previsibilidade do seu gabinete em Chicago se é que, na realidade, ainda tinha gabinete. Antes das dez horas de quarta-feira, tinha terminado uma petição de indulto pós-condenação. Falara com diversos assistentes de tribunal quatro vezes e, em seguida, com um administrador do tribunal. Falara duas vezes com Richard Olander em Washington a respeito da petição de habeas que atacava a câmara de gás e falara também com um assistente do departamento da morte do Quinto Tribunal de Círculo em Nova Orleães a respeito da alegação de representação legal ineficaz.
A petição que alegava a insanidade mental de Sam estava agora em Jackson, enviada por fax, tendo o original seguido por correio especial, e Adam fora obrigado a pedir educadamente ao administrador do tribunal que acelerasse o assunto. Apressem-se!
recusem, disse ele, embora por outras palavras. Se se aproximava uma suspensão da execução, seria com toda a probabilidade decretada por um juiz federal.
Cada nova alegação trazia consigo um pálido raio de esperança e, como Adam estava a aprender rapidamente, também a potencialidade de mais uma derrota. Uma petiçãotinha de vencer quatro obstáculos antes de se extinguir: o Supremo Tribunal do Mississípi, o tribunal distrital federal, o Quinto Tribunal de Círculo e o Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Assim, as probabilidades de sucesso eram poucas, especialmente nesta fase dos recursos. As questões mais valiosas relativas a Sam tinham sido exaustivamente arguidas há anos por Tyner Wallace e Garner Goodman. Adam estava agora a arguir as migalhas.
O assistente do Quinto Tribunal de Círculo duvidava que o tribunal acedesse a realizar outra discussão oral, especialmente porque, segundo parecia, Adam interpunha novas petições todos os dias. O painel de três juízes provavelmente examinaria apenas os sumários. Seriam convocadas conferências caso os juízes desejassem ouvir a sua voz.
Richard Olander telefonou de novo para informar que o su premo tribunal recebera o pedido de revisão de Adam, ou o pedido para ouvir o caso, e que este fora atribuído. Não, não pensava que o tribunal desejasse ouvir alegações orais. Não nesta fase do processo. Também informou Adam de que recebera por fax uma cópia da nova petição alegando insanidade mental e que a seguiria nos tribunais locais. Interessante, comentara. Perguntou novamente que novas petições Adam pensava interpor, mas Adam não lhe deu resposta.
O assistente legal do juiz Slattery, Breck Jefferson, o da voz permanentemente severa, telefonou para informar Adam de que o Meritíssimo recebera por fax uma cópia da nova petição apresentada ao Supremo Tribunal do Mississípi; francamente, o Meritíssimo não pensava que tivesse grande valor, mas não obstante analisá-la-ia devidamente assim que chegasse ao seu tribunal.
Adam sentiu-se de certa forma satisfeito por saber que tinha conseguido manter quatro tribunais diferentes a saltar ao mesmo tempo.
Às onze horas, Morris Henry, o infame Dr. Morte do gabinete do procurador-geral, telefonou para informar Adam de que recebera o último grupo de recursos de última hora, como gostava de lhes chamar, e que o próprio Mr. Roxburgh nomeara doze advogados para lhes darem resposta. Henry mostrara-se bastante simpático ao telefone, mas a chamada passara a mensagem - temos muitos advogados, Adam.
A papelada estava agora a ser produzida aos quilos e a pequena mesa de conferências pejada de pilhas de papel. Darlene entrava e saía constantemente do gabinete - a fazer cópias, a entregar mensagens telefónicas, a trazer café, a rever sumários e petições. Fora treinada no entediante ramo dos fundos do tesouro, de forma que os documentos volumosos e pormenorizados não a intimidavam. Confessou mais de uma vez que esta era uma excitante variação nas suas tarefas rotineiras.
- O que pode ser mais excitante do que uma execução eminente? - perguntara Adam.
Até mesmo Baker Cooley conseguira afastar-se por uns momentos das últimas alterações aos regulamentos bancários federais para vir dar uma espreitadela.
Phelps telefonara por volta das onze horas convidando Adam para almoçar, mas este recusara, desculpando-se com os prazos a expirar e juízes excêntricos. Nenhum deles tivera notícias de Lee. Phelps disse que não era a primeira vez que ela desaparecia, mas nunca durante mais de dois dias. Estava preocupado e a pensar em contratar um detective privado. Manter-se-ia em contacto.
- Está aqui um repórter para falar consigo - disse Darlene, entregando-lhe um cartão de visita que atestava a presença de Anne l.Piazza, correspondente da Newsweek. Era a terceira repórter que o contactava no escritório naquela quarta-feira.
- Diga-lhe que lamento muito - disse Adam sem qualquer pena.
- Já lhe disse isso, mas como se trata da Newsweek pensei que gostasse de saber.
- Não me interessa quem seja. Diga-lhe que o meu cliente também não quer falar.
Ela saiu apressadamente, porque o telefone estava a tocar. Era Goodman, a falar de Jackson para dizer que ia falar com o governador. Adam pô-lo a par de toda a actividade e de todos os telefonemas.
Ao meio-dia e meia, Darlene trouxe-lhe uma sandes. Adam comeu-a rapidamente e em seguida dormitou numa cadeira, enquanto o computador cuspia mais um sumário.
Goodman folheou uma revista de automóveis enquanto esperava sozinho na área de recepção junto ao gabinete do governador. A mesma secretária bonita estava a arranjar as unhas entre telefonemas, sentada junto do painel de comandos. A uma hora chegou e passou sem comentários. O mesmo aconteceu à uma e meia. Às duas horas, a recepcionista, agora com umas gloriosas unhas cor de pêssego, pediu desculpa. Não há problema, disse Goodman com um sorriso caloroso. A beleza de uma carreira pro bono era o facto de o trabalho não ser contado pelo tempo. O sucesso queria dizer ajudar as pessoas, independentemente das horas facturadas.
Às duas e quinze, uma vigorosajovem de fato escuro materializou-se junto dele e dirigiu-se-lhe:
- Mr. Goodman? Sou Mona Stark, chefe de pessoal do governador. O governador vai recebê-lo agora.
Sorriu correctamente e Goodman seguiu-a por um par de portas duplas até uma comprida sala formal com uma secretária numa das extremidades e uma mesa de reuniões na outra.
McAllister estava de pé junto da janela, sem casaco, com a gravata desapertada, as mangas arregaçadas, o perfeito retrato do atarefado e fatigado servidor do povo.
- Olá, Mr. Goodman - disse ele de mão estendida e com os dentes a brilhar.
- Governador, o prazer é meu - disse Goodman. Não trazia pasta nem nenhum dos acessórios normais dos advogados. Parecia que tinha simplesmente passado por ali e entrado para conhecer o governador.
- Já conhece Mr. Larramore e Ms. Stark - disse McAllister, indicando cada um deles com a mão.
- Sim, já nos conhecemos. Obrigado por me receber em prazo tão curto - Goodman tentou igualar o seu deslumbrante sorriso, mas era impossível. De momento, mostrava-se muito humilde e agradecido por se encontrar neste importante gabinete.
- Vamos sentar-nos aqui - disse o governador, fazendo um sinal na direcção da mesa de reuniões e indo à frente. Sentaram-se os quatro em lados afastados da mesa. Larramore e Mona pegaram nas canetas e prepararam-se seriamente para tomar notas. Goodman tinha apenas as mãos à sua frente.
- Segundo creio, foram interpostas inúmeras petições nos últimos dias - disse McAllister.
- Sim senhor. Só por curiosidade, já passou por uma coisa destas antes? - perguntou Goodman.
- Não, felizmente.
- Bem, é normal. Tenho a certeza que continuaremos a apresentar petições até ao último momento.
- Posso fazer-lhe uma pergunta, Mr. Goodman? - disse o governador sinceramente.
- Certamente.
- Sei que já tratou muitos destes casos. Qual é a sua previsão neste momento? Ele chegará muito perto?
- Nunca se sabe. O Sam é um pouco diferente dos outros reclusos do corredor da morte, porque sempre teve bons advogados, bom aconselhamento em tribunal e soberbo trabalho de apelação.
- Dito por si, acredito.
Goodman sorriu, depois McAlister sorriu e finalmente Mona conseguiu fazer uma careta. Larramore continuou debruçado sobre o seu bloco, a face contorcida numa furiosa concentração.
- Exactamente. Então as principais alegações do Sam já foram decididas. O que está a ver agora são as jogadas desesperadas, mas que muitas vezes resultam. Eu diria que as hipóteses são de cinquenta por cento, hoje, quando faltam sete dias.
Mona registou rapidamente esta declaração, como se tivesse algum grandioso significado legal. Larramore anotara todas as palavras ditas até ao momento.
McAllister pensou no assunto durante alguns segundos.
- Estou um pouco confuso, Mr. Goodman. O seu cliente não sabe do nosso encontro. Opõe-se à ideia de uma audiência de clemência. Deseja que esta reunião seja mantida em segredo. Então, porque estamos aqui?
- As coisas mudam, governador. Volto a dizer que já estive aqui muitas vezes. Já vi os homens a contarem os seus últimos dias. Opera estranhos fenómenos no seu cérebro. As pessoas mudam. Como advogado, tenho que contemplar todas as hipóteses, todos os ângulos.
- Está a pedir uma audiência?
- Sim senhor. Uma audiência à porta fechada.
- Quando?
- Que tal na sexta-feira?
- Daqui a dois dias - disse McAllister olhando para além de uma janela. Larramore aclarou a garganta e perguntou:
- Que tipo de testemunhas prevê apresentar?
- Boa pergunta. Se eu tivesse alguns nomes, dir-lhos-ia imediatamente, mas não tenho. A nossa apresentação será breve.
- Quem testemunhará pelo estado? - perguntou McAllister a Larramore, cujos dentes húmidos brilhavam enquanto ele pensava. Goodman afastou o olhar.
- Tenho a certeza que a familia das vítimas terá alguma coisa a dizer. O crime é habitualmente discutido. Poderá ser necessária a presença de alguém da prisão para falar do tipo de recluso que ele tem sido. Estas audiências são bastante flexíveis.
- Eu sei mais acerca do crime do que qualquer outra pessoa
- disse McAllister, quase para si próprio.
- É uma estranha situação - confessou Goodman. - Já participei em algumas audiências de clemência e o acusador é geralmente a primeira testemunha de acusação do réu. Neste caso, o acusador foi o senhor.
- Porque quer a audiência à porta fechada?
- Há muito tempo que o governador defende as reuniões públicas - acrescentou Mona.
- De facto assim será melhor para todos - disse Goodman como um experiente professor. - O senhor sofrerá menos pressões, governador, porque ninguém saberá de nada e não terá que escutar uma série de conselhos não solicitados. Nós, evidentemente, gostaríamos que fosse à porta fechada.
- Porquê? - perguntou McAllister.
- Bem, francamente, senhor, não queremos que o público veja a Ruth Kramer a falar dos filhinhos - Goodman observou-os enquanto confessava isto. A verdadeira razão era completamente diferente. Adam estava convencido que a única forma de conseguir que Sam concordasse com uma audiência de clemência era prometendo-lhe que esta não seria um espectáculo público. Se tal audiência fosse fechada, talvez Adam conseguisse convencer Sam de que McAllister estaria impedido de subir à tribuna principal.
Goodman conhecia dúzias de pessoas de todo o país que viriam de bom grado e imediatamente a Jackson para testemunhar a favor de Sam. Ouvira essas pessoas apresentar alguns argumentos de última hora extremamente persuasivos contra a morte. Freiras, padres, pastores, psicólogos, assistentes sociais, escritores, professores e alguns anteriores reclusos do corredor da morte. O Dr. Swinn testemunharia como Sam estava a passar terrivelmente naqueles dias e faria um excelente trabalho tentando convencer o governador que o estado estava prestes a matar um vegetal.
Na maior parte dos estados, o recluso tem o direito a uma audiência de clemência de última hora, normalmente perante o governador. No Mississípi, porém, a audiência era discricionária.
- Acho que isso faz sentido - disse finalmente o governador.
- Já há bastante interesse - disse Goodman, sabendo que McAllister estava tonto com os sonhos do futuro frenesim dos meios de comunicação. - Ninguém será beneficiado se a audiência for pública.
Mona, a firme defensora das reuniões públicas, franziu ainda mais a testa e escreveu qualquer coisa em letras garrafais. McAllister estava imerso em pensamentos.
- Independentemente de ser pública ou fechada - disse ele -, não existe nenhuma verdadeira razão para tal audiência, a menos que o senhor ou o seu cliente tenham algo de novo a acrescentar. Eu conheço este caso, Mr. Goodman. Cheirei o fumo. Vi os corpos. Não posso mudar de ideias, a menos que surja algo de novo.
- Tal como?
- Como por exemplo um nome. Dê-me o nome do cúmplice de Sam e eu concordarei com a audiência. Note que não se trata de uma promessa de clemência, compreende, mas apenas de uma normal audiência de clemência. Caso contrário, será uma perda de tempo.
- Acredita que houve um cúmplice? - perguntou Goodman.
- Sempre tivemos suspeitas. O que é que acha?
- Porque é isso importante?
- É importante, porque sou eu que tomo a decisão final, Mr. Goodman. Depois de os tribunais terem terminado e o relógio continuar a avançar na terça-feira à noite, eu sou a única pessoa do mundo que pode pará-lo. Se o Sam merecer a pena de morte, então não terei quaisquer problemas em vê-lo morrer. Mas se não merece, então a execução deve ser impedida. Sou um jovem. Não quero ser assombrado por este caso o resto da minha vida. Quero tomar a decisão certa.
- Mas se acredita que houve um cúmplice, e é óbvio que sim, porque não impedi-la de qualquer maneira?
- Porque quero ter a certeza. É advogado dele há muitos anos. Acha que houve um cúmplice?
- Acho, sempre pensei que eles eram dois. Não sei quem era o chefe e quem era o seguidor, mas o Sam teve ajuda.
McAllister inclinou-se para mais perto de Goodman e olhou-o nos olhos.
- Mr. Goodman, se o Sam me disser a verdade, então concedo- lhe uma audiência de clemência à porta fechada e pensarei na clemência. Não estou a prometer nada, compreenda, apenas que faremos a audiência. Caso contrário, não haverá nada de novo a acrescentar à história.
Mona e Larramore escreviam mais rapidamente do que repór teres de tribunal.
- O Sam afirma que está a dizer a verdade.
- Então esqueça a audiência. Sou um homem ocupado. Goodman suspirou de frustração, mas continuou a sorrir.
- Muito bem, amanhã falaremos novamente com ele. Poderemos encontrar-nos novamente aqui amanhã?
O governador olhou para Mona que consultou uma agenda de bolso e começou a abanar a cabeça como se o dia seguinte estivesse desesperadamente preenchido com discursos, aparições e reuniões.
- Está ocupado - disse ela em tom de comando.
- E o almoço?
Não. Não resultaria.
- Vai falar para a convenção dos NRA.
- Porque não me telefona? - perguntou Larramore.
- Boa ideia - disse o governador, levantando-se e abotoando os punhos.
Goodman levantou-se e apertou a mão aos três.
- Eu telefono se acontecer alguma coisa. De qualquer ma neira, vamos pedir uma audiência o mais depressa possível.
- O pedido será recusado, excepto se o Sam falar - disse o governador.
- Por favor, senhor, se não se importa, apresente o pedido por escrito - perguntou Larramore.
- Certamente.
Acompanharam Goodman à porta e, depois de ele sair do gabinete, McAllister sentou-se na sua cadeira oficial atrás da secretária. Desabotoou novamente os punhos. Larramore pediu licença e foi para o seu pequeno gabinete ao fundo do corredor.
Ms. Stark estudou uma listagem enquanto o governador observava as filas de botões intermitentes no seu telefone.
- Quantas destas chamadas dizem respeito a Sam Cayhall? perguntou ele. Ela moveu um dedo ao longo de uma coluna.
- Ontem recebeu vinte e uma chamadas relativas a Sam Cayhall. Catorze a favor da execução. Cinco contra. Dois não conseguiam decidir-se.
- É um aumento.
- Sim, mas o jornal tinha publicado aquele artigo acerca dos últimos recursos de Sam. Mencionava a possibilidade de uma audiência de clemência.
- E as sondagens?
- Nenhuma alteração. Noventa por cento dos brancos deste estado são a favor da pena de morte e também cerca de metade dos negros. No total, são cerca de oitenta e quatro por cento.
- E a minha aprovação?
- Sessenta e dois. Mas se perdoar o Sam Cayhall, certamente descerá para números de um só dígito.
- Portanto, é contra.
- Não temos absolutamente nada a ganhar e muito a perder. Esqueça as sondagens e os números, se perdoar um daqueles bandidos os outros cinquenta vão começar a mandar os advogados, as avós e os pastores a pedir o mesmo favor. Já tem bastante com que se preocupar. É uma parvoíce.
- Sim, tem razão. Onde está o plano de meios?
- Tê-lo-ei dentro de uma hora.
- Preciso de vê-lo.
- O Nagel está a dar os últimos retoques. Penso que de qualquer maneira deve aceder ao pedido de uma audiência de clemência. Mas deixe para segunda-feira. Anuncie-a amanhã. Deixe-a ferver durante o fim-de-semana.
- Não deve ser à porta fechada.
- Raios, não! Queremos a Ruth Kramer a chorar diante das câmaras.
- É a minha audiência. O Sam e os seus advogados não poderão ditar as regras. Se a quiserem, será à minha maneira.
- Muito bem. Mas não se esqueça que também a deseja. Montes de cobertura.
Goodman assinou um aluguer de três meses para quatro telefones celulares. Usou um cartão de crédito da Kravitz & Bane e evitou habilmente a barragem de perguntas do jovem e alegre vendedor. Foi a uma biblioteca pública de State Street e procurou um índice das listas telefónicas. Avaliando-as pela espessura, escoLheu as das maiores cidades do Mississípi, lugares como Laurel, Hattiesburg, Tupelo, Vicksburg, Biloxi e Meridian. Depois, escolheu as mais finas - Tunica, Calhoun City, Bude, Long Beach, West Point. No guiché de informações, trocou as notas por moedas e passou duas horas a copiar páginas das listas telefónicas.
Dedicou-se alegremente ao trabalho. Ninguém acreditaria que o elegante homenzinho de espessos cabelos brancos e gravata borboleta era na realidade um dos sócios de uma grande firma de Chicago, com secretárias e empregados forenses ao seu dispor. Ninguém acreditaria que ganhava mais de quatrocentos mil dólares por ano. E não se podia ralar menos. E. Garner Goodman estava satisfeito com o seu trabalho. Estava a tentar o melhor possível salvar outra alma de ser legalmente morta.
Saiu da biblioteca e conduziu alguns quarteirões até à Faculdade de Direito da Universidade do Mississípi. Um dos seus professores, chamado John Bryan Glass, ensinava lei e procedimento criminal e também começara a publicar artigos académicos contra a pena de morte. Goodman queria conhecê-lo e averiguar se por acaso o professor teria alguns alunos brilhantes interessados num projecto de investigação.
O professor já saíra nesse dia, mas tinha uma aula na quinta-feira às nove horas da manhã. Goodman visitou a biblioteca da faculdade e, em seguida, deixou o edifício. Desceu alguns quarteirões até ao Olde State Capitol Building só para matar o tempo e visitou-o prolongadamente. Demorou vinte minutos, metade do qual foi passado na Exposição de Direitos Civis no andar térreo. Interrogou a empregada da loja de prendas sobre hotéis e ela sugeriu a Millsaps-Buie House, cerca de quilómetro e meio abaixo, na rua. Encontrou a bela mansão vitoriana exactamente onde ela dissera e ficou com o último quarto vago. A casa fora impecavelmente restaurada com peças e móveis de época. O mordomo arranjou-lhe um scotch com água e levou-lho ao quarto.
Auburn House abria as portas ao público às oito horas. Um segurança fraco e desanimado em uniforme desalinhado abriu o portão do outro lado do passeio e Adam foi a primeira pessoa a entrar no parque de estacionamento. Esperou no carro durante dez minutos, até outro estacionar perto. Reconheceu a mulher como a conselheira que conhecera no gabinete de Lee duas semanas antes. Deteve-a no passeio quando ela entrava por uma porta lateral.
- Desculpe - disse ele. - Já nos conhecemos. Sou Adam Hall, o sobrinho da Lee. Desculpe, mas não me lembro do seu nome.
A senhora tinha uma velha pasta numa das mãos e uma lancheira na outra. Sorriu e disse:
- Joyce Cobb. Lembro-me de si. Onde está a Lee?
- Não sei. Esperava que soubesse alguma coisa. Não sabe nada dela?
- Não, não desde terça-feira.
- Terça-feira? Não a vejo desde sábado. Falou com ela na terça?
- Ela telefonou para cá, mas não falei com ela. Foi no dia que o jornal publicou aquela história da condução em estado de embriaguez.
- Onde estava ela?
- Não disse. Perguntou pelo administrador, disse que estaria ausente durante algum tempo, que tinha de procurar ajuda, coisas assim. Não disse onde estava nem quando voltava.
- E as doentes dela?
- Estamos a fazer o trabalho dela. É sempre difícil, sabe. Mas cá nos arranjamos.
- A Lee não se esqueceria destas raparigas. Acha que por acaso ela teria falado com elas esta semana?
- Olhe, Adam, a maior parte destas raparigas nem têm telefone. E a Lee certamente que não iria visitá-las aos projectos. Estamos a tratar das raparigas dela e sei que não falaram com ela.
Adam recuou um passo e olhou para o portão.
- Eu sei. Preciso de a encontrar. Estou preocupado.
- Ela vai ficar bem. Já fez isto antes e tudo resultou bem - Joyce mostrou-se subitamente apressada em entrar. - Se souber alguma coisa, digo-lhe.
- Por favor. Estou em casa dela.
- Eu sei.
Adam agradeceu-lhe e foi-se embora. Cerca das nove horas estava no escritório, enterrado em papéis.
O coronel Nugent estava sentado à cabeceira de uma longa mesa no gabinete da entrada, cheia de guardas e outro pessoal. A mesa encontrava-se em cima de uma pequena plataforma trinta centímetros acima do resto da sala e atrás dela, na parede, havia um quadro preto. Um pódio amovível estava a um canto. As cadeiras à sua direita estavam vagas, de forma que os guardas e o pessoal sentados nas cadeiras desdobráveis podiam ver os rostos das pessoas mais importantes sentadas à esquerda de Nugent. Moms Henry do gabinete do procurador- geral estava lá, com grossos resumos à sua frente. Lucas Mann sentava-se na extremidade a tomar notas. Dois superintendentes-adjuntos sentavam-se ao lado de Henry. Um lacaio do gabinete do governador estava ao lado de Lucas.
Nugent deu uma olhadela ao relógio e em seguida deu início ao seu pequeno discurso introdutório. Consultou as suas notas e dirigiu-se aos guardas e restante pessoal.
- Nesta manhã do dia dois de Agosto todas as suspensões foram revogadas pelos vários tribunais e não existe nada que impeça a execução. Vamos proceder como se ela devesse ter lugar tal como planeado um minuto depois da meia-noite da próxima quarta-feira. Temos seis dias inteiros para prepararmos tudo e estou determinado a fazer com que tudo corra o melhor possível, sem nenhum deslize.
O recluso tem pelo menos três petições e recursos a correr nos vários tribunais e, evidentemente, não temos qualquer maneira de prever qual será o seu desfecho. Estamos em contacto permanente com o gabinete do procurador-geral. De facto, Mr. Morris Henry encontra-se hoje aqui connosco. Segundo a sua opinião, uma opinião partilhada por Mr. Lucas Mann, o caso irá até ao fim. Uma suspensão poderá ser decretada a qualquer momento, mas parece duvidoso. Independentemente disso, teremos que estar preparados. Também se espera que o recluso solicite uma audiência de clemência ao governador mas, francamente, não é provável que tal diligência seja bem-sucedida. De hoje até à próxima quarta-feira, estaremos em estado de alerta.
As palavras de Nugent eram firmes e claras. Tinha o papel principal e estava obviamente a apreciar cada momento. Olhou para as suas notas e continuou:
- A câmara de gás propriamente dita está a ser preparada. É velha e não foi usada nos últimos dois anos, portanto estamos a ter todo o cuidado com ela. Um representante do fabricante chega esta manhã e vai efectuar testes durante o dia e a noite de hoje. Efectuaremos um ensaio completo da execução no fim-de-semana, provavelmente no domingo à noite, partindo do princípio de que não se verifica nenhuma suspensão. Já recolhi as listas de voluntários para a equipa de execução e tomarei a decisão esta tarde.
Por outro lado, estamos a ser inundados de perguntas pelos media a respeito de todo o género de coisas. Querem entrevistar Mr. Cayhall, o seu advogado, o director, os guardas, os outros reclusos do corredor, o executor, toda a gente. Querem assistir à execução. Querem fotografias da sua cela e da câmara. A estupidez típica dos meios de comunicação. Mas temos que lidar com isso. Não deverá verificar-se nenhum contacto com qualquer membro da imprensa sem a minha aprovação. Isto aplica-se a todos os funcionários desta instituição, sem excepção. A maioria destes repórteres não são locais e divertem-se fazendo-nos parecer um bando de camponeses ignorantes. Portanto, não falem com eles. Sem excepção. Emitirei as autorizações adequadas, sempre que o julgar necessário. Tenham cuidado com essa gente. São verdadeiros abutres.
- Também esperamos sarilhos no exterior. Há cerca de dez minutos, o primeiro grupo de membros do Ku Klux Klan chegou ao portão principal. Foram conduzidos ao lugar habitual entre a auto-estrada e o edifício da administração onde têm lugar os protestos. Também ouvimos dizer que outros grupos do mesmo género chegarão em breve e parece que tencionam protestar até que tudo esteja terminado. Vamos vigiá-los atentamente. Têm o direito de protestar, desde que se comportem pacificamente. Embora não estivesse presente nas quatro últimas execuções, disseram-me que os grupos de luta contra a pena de morte normalmente aparecem e fazem o diabo. Por razões óbvias, tencionamos manter os dois grupos separados.
Nugent já não conseguia estar sentado mais tempo e levantou-se rigidamente à cabeceira da mesa. Todos os olhos estavam fitos nele. Estudou as suas notas durante um segundo.
- Esta execução será diferente devido à fama de Mr. Cayhall. Vai atrair muita atenção, muitos meios de comunicação e uma grande quantidade de tarados. Temos que actuar sempre profissionalmente e não será tolerada nenhuma violação das regras de conduta. Mr. Cayhall e a sua família têm direito a ser respeitados durante estes últimos dias. Não quero nenhuns comentários nem apartes sobre a câmara de gás ou sobre a execução. Não o tolerarei. Alguma pergunta?
Nugent examinou a sala e sentiu-se bastante satisfeito consigo próprio. Tinha abarcado tudo. Nenhumas perguntas.
- Muito bem. Voltaremos a encontrar-nos amanhã às nove - dispensou-os e a sala esvaziou-se muito rapidamente.
Garner Goodman apanhou o professor John Bryan Glass quando ele saía do seu gabinete dirigindo-se para uma aula. A aula foi imediatamente esquecida, enquanto os dois permaneciam no corredor a trocar cumprimentos. Glass lera todos os livros de Goodman e Goodman lera a maioria dos recentes artigos de Glass condenando a pena de morte. A conversa passou rapidamente para o caso Cayhall e especificamente para a urgente necessidade de Goodman de alguns estudantes de Direito de Confiança, que pudessem ajudar num rápido projecto de investigação durante o fim-de- semana. Glass ofereceu a sua ajuda e os dois concordaram almoçar juntos dentro de algumas horas, para continuarem a discutir o assunto.
A três quarteirões da Faculdade de Direito da Universidade do Mississípi, Goodman descobriu os pequenos e atravancados escritórios do Southern Capital Defense Group, uma agência quase federal com pequenos escritórios atravancados em todos os estados da Cintura da Morte. O director era um jovem advogado negro formado em Yale chamado Hez Kerry, que tinha abandonado as riquezas das grandes firmas e dedicado a sua vida à abolição da pena de morte. Goodman tinha-se encontrado com ele em duas outras ocasiões, em conferências. Embora o grupo de Kerry, como era conhecido, não representasse directamente todos os reclusos do corredor da morte, tinha a responsabilidade de vigiar todos os casos. Hez tinha trinta e um anos e estava a envelhecer rapidamente. Os cabelos brancos eram a prova da pressão exercida pelos quarenta e sete homens do corredor.
Numa parede por cima da mesa da secretária no átrio estava um pequeno calendário e em cima alguém escrevera as palavras ANIVERSÁRIOS NO CORREDOR DA MORTE. Todos recebiam um postal, nada mais. O orçamento era pequeno e os postais eram normalmente comprados com moedas recolhidas no próprio escritório.
O grupo tinha dois advogados a trabalhar sob a supervisão de Kerry e apenas uma secretária a tempo inteiro. Alguns estudantes da faculdade de Direito trabalhavam várias horas por semana sem receberem absolutamente nada.
Goodman conversou com Hez Kerry durante mais de uma hora. Planearam os seus movimentos para a próxima terça-feira. o próprio Kerry acamparia no gabinete do adjunto no Supremo Tribunal do Mississípi. Goodman ficaria no gabinete do governador. John Bryan Glass seria recrutado para o gabinete satélite do
Quinto Tribunal de Círculo no tribunal federal em Jackson. Um dos antigos associados de Goodman na Kravitz & Bane trabalhava agora em Washington e concordara em esperar no gabinete do Adjunto da Morte. Adam ficaria com o seu cliente no corredor e coordenaria as chamadas de última hora.
Keny concordou em participar no projecto de análise de mercado de Goodman durante o fim-de-semana.
Às onze horas, Goodman regressou ao gabinete do governador no capitólio estadual e entregou ao dr. Larramore um pedido escrito para uma audiência de clemência. O governador estava fora do escritório, muito ocupado naqueles dias e Larramore encontrar-se-ia com ele logo a seguir ao almoço. Goodman deixou o seu número de telefone na Millsaps-Buie House e disse que telefonaria periodicamente.
Depois dirigiu-se para o seu novo escritório, agora mobilado com a melhor mobília de aluguer disponível para alugueres de dois meses, em dinheiro, claro. Segundo as marcas dos assentos, as cadeiras desdobráveis eram sobras da irmandade de uma igreja. Também as mesas imperfeitas tinham visto a sua parte de jantares e copos-d'água.
Goodman admirou o seu recém-formado buraco na parede. Sentou-se e pelo novo telefone celular ligou para a sua secretária em Chicago, para o escritório de Adam em Memphis, para sua casa para a mulher e para a linha aberta do governador.
Às quatro horas da tarde de quinta-feira, o Supremo Tribunal do Mississípi ainda não recusara a petição baseada na alegada insanidade mental de Sam. Tinham passado quase trinta horas desde que Adam a apresentara. Tornara-se extremamente maçador ao telefonar constantemente para o assistente do tribunal. Estava cansado de explicar o óbvio - precisava de uma resposta, por favor. Não havia o mais ligeiro traço de optimismo no sentido de o tribunal estar a apreciar o mérito da petição. Na opinião de Adam o tribunal estava a arrastar os pés e a atrasar o seu recurso para o tribunal federal. Nesta altura, sentia que o indulto no supremo tribunal do estado era impossível.
Nos tribunais federais as coisas também não estavam exactamente a correr de feição. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos ainda não decidira o seu pedido de apreciação da alegação de inconstitucionalidade da câmara de gás. O Quinto Tribunal de Círculo estava a demorar a sua alegação de representação legal ineficaz.
Na quinta-feira nada se movia. Os tribunais estavam a agir como se estas fossem apenas acções vulgares, para serem arquivadas, distribuídas e arroladas e depois continuadas e atrasadas durante anos. Precisava de acção, de preferência uma suspensão a qualquer nível ou, pelo menos, uma alegação oral, uma audiência sobre os méritos ou mesmo uma recusa, para poder seguir para o tribunal seguinte.
Andava à volta da mesa do seu gabinete e escutava o telefone. Estava cansado de andar e farto do telefone. O gabinete estava atulhado com os despojos de uma dúzia de sumários. A mesa coberta de pilhas de papéis em desalinho. Mensagens telefónicas cor-de-rosa e amarelas estavam pregadas numa estante.
Subitamente Adam sentiu ódio daquele lugar. Precisava de ar fresco. Disse a Darlene que ia dar um passeio e saiu do edifício. Eram quase cinco horas e o dia ainda estava claro e quente. Dirigiu-se para o Peabody Hotel na Union Street e tomou uma bebida num canto do átrio junto do piano. Era a sua primeira bebida desde sexta-feira em Nova Orleães e, embora a apreciasse, estava preocupado com Lee. Procurou-a entre a multidão de gente convencional que se amontoava junto da recepção. Observou as mesas do átrio a povoarem-se de gente bem vestida, esperando que por qualquer razão ela aparecesse. Onde se esconderia uma pessoa com cinquenta anos de idade que lutava para salvar a vida?
Um homem de rabo-de-cavalo e botas de alpinista parou, ficou a olhar e em seguida aproximou-se.
- Desculpe, senhor. O senhor é Adam Hall, o advogado de Sam Cayhall?
Adam confirmou com um aceno de cabeça.
O homem sorriu, obviamente satisfeito por ter reconhecido Adam e dirigiu-se para a sua mesa.
- Sou Kirk Kleckner do New York Times - estendeu um cartão de visita a Adam. - Estou aqui para fazer a cobertura da execução Cayhall. Posso sentar-me?
Adam fez um sinal na direcção do assento vago do outro lado da pequena mesa redonda.
- É uma sorte encontrá-lo aqui - disse ele desfazendo-se em sorrisos. Andava pelos quarenta e poucos anos, com um ar agreste e viajado de jornalista: barba até ao pescoço, colete de algodão sem mangas sobre a camisa, jeans. - Reconheci-o pelas fotografias que estudei enquanto vinha no avião para cá.
- Prazer em conhecê-lo - disse Adam secamente.
- Podemos conversar?
- Sobre quê?
- Oh, muitas coisas. Segundo sei, o seu cliente não dá entrevistas.
- Exactamente.
- E o senhor?
- Também não. Podemos conversar, mas não pode escrever nada.
- Isso dificulta as coisas.
- Sinceramente não me interessa. Não estou preocupado com as dificuldades que o seu trabalho possa apresentar.
- Certo - uma jovem empregada complacente de mini-saia parou junto da mesa o tempo suficiente para tomar nota do seu pedido.
- Café simples. Quando foi a última vez que viu o seu avô?
- Na terça-feira.
- Quando é que vai vê-lo novamente?
- Amanhã.
- Como está ele a aguentar-se?
- Vai sobrevivendo. A pressão está a aumentar, mas até agora está a aguentar-se bem.
- E o senhor?
- Estou só a divertir-me.
- A sério? Tem perdido o sono, coisas desse género?
- Estou cansado. Sim, tenho tido insónias. Trabalho horas e horas, correndo de e para a prisão. Vamos mesmo até ao fim, por isso os próximos dias serão febris.
- Fiz a cobertura da execução Bundy na Florida. Um grande circo. Os advogados dele passaram dias sem dormir.
- É difícil relaxar.
- Vai fazê-lo novamente? Sei que não é esta a sua especialidade, mas aceitaria outro caso de pena de morte?
- Só se descobrir outro parente no corredor da morte. Porque é que faz a cobertura destas coisas?
- Há anos que escrevo sobre a pena de morte. É fascinante. Gostaria de entrevistar Mr. Cayhall.
Adam abanou a cabeça e terminou a sua bebida.
- Não. De maneira nenhuma. Ele não fala com ninguém.
- Pede-lhe por mim?
- Não.
O café chegou. Kleckner mexeu-o com uma colher. Adam observou a multidão.
- Entrevistei o Benjamin Keyes ontem em Washington - disse Kleckner. - Disse que não estava surpreendido que estivessem agora a alegar que ele cometera erros em tribunal. Disse que já tinha calculado que isso ia acontecer.
De momento, Adam não estava preocupado com Benjamin Keyes nem com qualquer das suas opiniões.
- É o normal. Preciso de ir-me embora. Prazer em conhecê-lo.
- Mas eu queria falar sobre...
- Ouça, teve muita sorte em ter-me encontrado - disse Adam, pondo-se abruptamente de pé.
Adam saiu do Peabody e vagueou até Front Street, junto do rio, passando no caminho por grupos de jovens bem- vestidos muito parecidos com ele, todos apressando-se a voltar para casa. Invejava-os; fossem quais fossem as suas vocações ou carreiras, as pressões sofridas no momento não carregavam um fardo tão pesado como o seu.
Comeu uma sandes numa confeitaria e por volta das sete horas estava de regresso ao escritório.
O coelho fora apanhado nos bosques de Parchman por dois dos guardas, que lhe deram o nome de Sam em homenagem à ocasião. Era um lebréu, o maior dos quatro capturados. Os outros três já tinham sido comidos.
Na quinta-feira à noite, Sam o coelho e os seus captores, com o coronel Nugent e a equipa de execução, entraram na Unidade de Segurança Máxima nas carrinhas e camionetas da prisão. Conduziram lentamente passando pela entrada e pelas barracas da extremidade oeste. Estacionaram junto de um edifício quadrado de tijolo ligado ao canto sudoeste da USM.
Duas portas de metal brancas sem janelas conduziam ao interior do edifício quadrado. Uma, virada a sul, abria para um quarto estreito, dois metros e meio por quatro metros e meio, onde as testemunhas se sentavam durante a execução. Ficavam de frente para uma série de cortinados negros que, quando abertos, revelavam a parte detrás da própria câmara, apenas a uns centímetros de distância.
A outra porta conduzia à Sala da Câmara, uma sala de quatro metros e meio por três, com chão de cimento pintado. A câmara de gás em forma octogonal situava-se exactamente no meio, brilhando vaidosamente devido à recente camada de verniz prateado e cheirando ao mesmo. Nugent tinha-a inspeccionado uma semana antes e ordenara a pintura. A sala da morte, como também era chamada, estava impecavelmente limpa e desinfectada. Os cortinados negros que escondiam as janelas na parte detrás da câmara estavam abertos.
Sam o coelho ficou dentro de uma das camionetas, enquanto um guarda de pequena estatura, mais ou menos com o mesmo peso e altura de Sam, era conduzido à Sala da Câmara por dois dos seus colegas maiores. Nugent pavoneou-se e inspeccionou como se fosse o general Paton - apontando, acenando com a cabeça e franzindo a testa. O guarda pequeno foi, primeiro, suavemente empurrado para dentro da câmara, em seguida os dois guardas juntaram-se-lhe, voltaram-no e sentaram-no na cadeira de madeira.
sem uma palavra ou sorriso, nem uma careta ou uma piada, amarraram-lhe primeiro os pulsos com correias de cabedal aos braços da cadeira. Em seguida, os joelhos e os tornozelos. Depois, um deles levantou-lhe a cabeça apenas uns centímetros e segurou-a no lugar, enquanto o outro afivelava a correia de cabedal da cabeça.
Os dois guardas saíram cuidadosamente da câmara e Nugent apontou para outro membro da equipa, que avançou como se fosse dizer alguma coisa ao condenado.
- Neste momento, Mr. Lucas Mann lerá a sentença de morte a Mr. Cayhall - explicou Nugent como um realizador de cinema amador. - E em seguida eu perguntarei se tem algumas últimas palavras a dizer. - Apontou novamente e o guarda designado fechou a pesada porta da câmara e selou-a.
- Abra - ladrou Nugent e a porta abriu-se. O pequeno
guarda foi libertado.
- Vão buscar o coelho - ordenou Nugent. Um dos captores foi buscar Sam, o coelho, à camioneta. Estava inocentemente instalado numa gaiola de arame e foi entregue aos mesmos guardas que tinham acabado de sair da câmara. Colocaram-no cuidadosamente na cadeira de madeira e, em seguida, dedicaram-se à tarefa de amarrar um homem imaginário. Pulsos, joelhos, tornozelos cabeça e o coelho estava pronto para o gás. Os dois guardas saíram da câmara.
A porta foi fechada e selada e Nugent fez um sinal ao executor que colocou uma lata de ácido sulfúrico num tubo que corria para o fundo da câmara. Puxou uma alavanca, ouviu-se um estalo e a lata escorreu para a tigela debaixo da cadeira.
Nugent avançou para uma das janelas e observou atentamente.
Os outros membros da equipa fizeram o mesmo. As extremidades das janelas tinham sido untadas com geleia de petróleo para impedir infiltrações.
O gás venenoso foi libertado lentamente e uma ténue neblina de vapor visível evolou-se debaixo da cadeira e flutuou para cima.
A princípio, o coelho não reagiu ao vapor que permeava a sua pequena cela, mas em breve foi atingido. Endireitou-se, saltou uma ou duas vezes, batendo contra as grades da gaiola e depois entrou em violentas convulsões, saltando e estremecendo freneticamente.
Em menos de um minuto ficou imóvel.
Nugent sorriu ao olhar para o relógio.
- Limpem - ordenou e um ventilador na parte de cima da câmara foi aberto, libertando o gás.
A porta da Sala da Câmara para o exterior foi aberta e a maior parte da equipa de execução saiu para apanhar ar fresco e fumar.
seriam necessários cerca de quinze minutos para a câmara poder ser aberta e o coelho retirado. Depois teriam de a regar e limpar.
Nugent ainda estava lá dentro, a observar tudo. Por isso, eles fumaram e riram.
A menos de dezoito metros, as janelas sobre o corredor da Fileira A estavam abertas. Sam conseguia ouvir as suas vozes.
Passava das dez e as luzes estavam apagadas, mas em todas as celas da fileira dois braços saíam das grades, enquanto catorze homens escutavam em negro silêncio.
Um recluso do corredor da morte vive vinte e três horas por dia no interior de uma cela de um metro e oitenta por dois metros e setenta. Ouve tudo - o estalido estranho de um novo par de botas no corredor, o tom e o sotaque desconhecidos de uma nova voz, o zumbido distante de um cortador de relva. E sem dúvida que ouve também o abrir e fechar da porta da Sala da Câmara. Consegue ouvir as gargalhadas satisfeitas e importantes da equipa de execução.
Sam inclinou-se sobre os antebraços e observou as janelas por cima do corredor. Lá fora estavam a treinar para ele.
Entre a extremidade oeste da Estrada 49 e o relvado fronteiro dos edifícios administrativos de Parchman, uma distância de quarenta e cinco metros, havia uma faixa de terra relvada, lisa e visível porque já havia sido um trilho de caminho-de-ferro. Era aí que os contestatários da pena de morte eram encurralados e vigiados durante as execuções. Chegavam, invariavelmente, normalmente em pequenos grupos de almas dedicadas, que se sentavam em cadeiras desdobráveis e empunhavam cartazes feitos em casa. Acendiam velas à noite e cantavam hinos durante as últimas horas. Cantavam hinos, rezavam e choravam quando a morte era anunciada.
Uma nova viragem ocorrera nas horas que precederam a execução de Teddy Doyle Meeks, assassino e violador de crianças. O sombrio e quase sagrado protesto fora perturbado por carros cheios de indisciplinados estudantes universitários, que apareceram subitamente sem aviso e se divertiram muito a pedir sangue. Beberam cerveja e tocaram música alta. Entoaram slogans e incomodaram os abalados contestatários da pena de morte. A situação deteriorara-se quando os dois grupos trocaram palavras. Os oficiais da prisão avançaram e restabeleceram a ordem.
Maynard Tole foi o seguinte e durante o planeamento da execução uma outra secção do relvado, do outro lado do caminho principal, foi designada para os defensores da pena de morte. Foi mobilizada segurança suplementar para manter a paz.
Quando Adam chegou na sexta-feira de manhã contou sete membros do Ku Klux Klan nas suas vestes brancas. Três estavam envolvidos numa tentativa de protesto sincronizado, um passeio casual ao longo da extremidade da faixa relvada junto da estrada, com cartazes pendurados por cima dos ombros. Os outros quatro estavam a erigir um grande pálio azul e branco. Cordas e postes de metal estavam espalhados pelo chão. Duas arcas de gelo jaziam junto de várias cadeiras de jardim. Os tipos planeavam ficar durante algum tempo.
Adam fitou-os enquanto passava e se detinha no portão principal de Parchman. Perdeu a noção do tempo enquanto observava os membros do Klan durante minutos. Então era esta a sua herança, as suas raízes. Estes eram os irmãos do seu avô e dos parentes e antepassados do seu avô. Seriam alguns destes personagens os mesmos que tinham sido registados em filme e editados por Adam no vídeo sobre Sam Cayhall? Já os vira antes?
Instintivamente, Adam abriu a porta do carro e saiu. O casaco e a pasta estavam no assento de trás. Começou a caminhar lentamente na direcção deles e deteve-se junto das arcas frigoríficas. Os seus cartazes pediam a liberdade para Sam Cayhall, um preso político. Gaseiem os verdadeiros criminosos, mas libertem Sam. Por qualquer razão, Adam não se sentiu reconfortado com as suas exigências.
- O que é que quer? - perguntou um deles com um cartaz pregado no peito. Os outros seis interromperam o que estavam a fazer e ficaram a observar.
- Não sei - disse Adam sinceramente.
- Então para onde está a olhar?
- Não tenho a certeza.
Mais três juntaram-se ao primeiro e avançaram na direcção de Adam. As suas vestes eram idênticas - brancas e feitas em tecido muito leve com cruzes vermelhas e outros sinais. Eram quase nove horas da manhã e já estavam a transpirar.
- Quem diabo é você?
- O neto do Sam.
Os outros três juntaram-se atrás dos primeiros e todos os sete admiraram Adam a menos de metro e meio de distância.
- Então está do nosso lado - disse um deles, aliviado.
- Não, não sou um de vós.
- É verdade. Ele está com aquele bando de judeus de Chicago disse outro para informação dos restantes e isto pareceu agitá-los um pouco. - Porque é que estão aqui? - perguntou Adam. - Estamos a tentar salvar o Sam. Parece que você não o vai conseguir. Um jovem de rosto vermelho e com a testa orlada de gotas de suor assumiu a dianteira e aproximou-se ainda mais de Adam. - Não. É por causa dele que estamos aqui. Eu nem sequer era nascido quando o Sam matou aqueles judeus, por isso não podem culpar-me. Estamos aqui para protestar contra a execução dele. Ele está a ser perseguido por razões políticas. - Ele não estaria aqui se não fosse o Klan. Onde estão as vossas máscaras? Eu pensava que vocês escondiam sempre o rosto. Eles estremeceram e impacientaram-se em conjunto, sem saber o que fazer a seguir. Afinal, ele era o neto de Sam Cayhall, seu ídolo e campeão. Era o advogado que estava a tentar salvar um precioso símbolo. - Porque não se vão embora? - perguntou Adam. - O Sam não os quer aqui. - Porque não vai para o inferno? - rosnou o jovem. - Que eloquente! Vão-se embora, sim? O Sam vale muito mais para vocês morto do que vivo. Deixem-no morrer em paz e, depois, terão um esplêndido mártir. - Não nos vamos embora. Ficaremos aqui até ao fim. - E se o Sam vos pedir para se irem embora Nesse caso, irão? - Não - rosnou ele novamente e depois olhou por cima do ombro, para os outros, que pareciam todos concordar que, realmente, não se iriam embora. - Pensamos fazer muito barulho. - Óptimo! Assim vão conseguir a vossa fotografia nos jornais. É disso que se trata, não é? Palhaços de circo com máscaras engraçadas atraem sempre a atenção. Algures atrás dele ouviu o bater de portas de carros e, quando olhou em volta, viu uma equipa de televisão a sair apressadamente de uma carrinha estacionada junto ao seu Saab. - Bem, bem - disse para o grupo. - Sorriam, rapazes. Este é o vosso grande momento.
- Vá para o inferno - disse o jovem iradamente. Adam virou- lhes as costas e encaminhou-se para o seu carro. Uma repórter apressada com um operador de câmara atrás correu para ele.
- O senhor é o Adam Hall? - perguntou ela sem fôlego.
- Sim - disse ele sem parar.
- Podemos trocar umas palavras?
- Não, mas aqueles rapazes estão ansiosos por falar - disse ele apontando por cima do ombro. Ela continuou a caminhar ao lado dele, enquanto o operador de câmara manuseava o equipamento. Adam abriu a porta do seu carro e bateu com ela enquanto ligava a ignição.
Louise, a guarda do portão, entregou-lhe um cartão numerado para o pára-brisas e, em seguida, fez-lhe sinal para entrar.
Packer executou os movimentos da revista obrigatória na entrada principal do Corredor.
- O que tem ali? - perguntou ele, apontando para o pequeno saco de congelados que Adam transportava na mão esquerda.
- Eskimo Pies, sargento. Quer uma?
- Deixe ver - Adam entregou o saco a Packer, que entreabriu a parte de cima apenas o suficiente para contar meia-dúzia de Eskimo Pies, ainda geladas sob uma camada de gelo.
Devolveu o saco a Adam e apontou para a porta do gabinete da entrada, a alguns metros de distância.
- Daqui em diante encontrar-se-ão todos aqui - explicou ele. Entraram na sala.
- Porquê? - perguntou Adam olhando em volta da sala. Havia uma secretária de metal com um telefone, três cadeiras e dois armários de arquivo fechados.
- É apenas o modo como fazemos as coisas. Aligeiramos um pouco a disciplina quando o grande dia se aproxima. O Sam receberá aqui as suas visitas. Também não há limite de tempo.
- Que simpático! - Adam colocou a sua pasta em cima da mesa e pegou no telefone. Packer saiu para ir buscar Sam.
A simpática senhora do gabinete do assistente em Jackson informou Adam que o Supremo Tribunal do Mississípi recusara, apenas há uns minutos, a petição de indulto pós-condenação do seu cliente com base em insanidade mental. Agradeceu, disse qualquer coisa no sentido de ser isso que estava à espera e que poderia ter sido feito um dia antes e, em seguida, pediu-lhe que mandasse por fax uma cópia da decisão para o seu escritório de Memphis e também para o escritório de Lucas Mann em Parchman. Telefonou a Darlene em Memphis e disse-lhe para mandar a nova petição por fax para o tribunal distrital federal, com cópias igualmente em fax para o Quinto Tribunal de Círculo e para o muito ocupado gabinete da morte de Mr. Richard Olander, em Washington. Telefonou a Mr. Olander para o informar do que fora enviado e disseram-lhe que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos tinha acabado de recusar a revisão da alegação de inconstitucionalidade da câmara de gás.
Sam entrou no gabinete da entrada sem algemas quando Adam estava ao telefone. Apertaram rapidamente as mãos e Sam sentou-se. Em vez de um cigarro, abriu o saco de congelados e tirou uma Eskimo Pie. Comeu-a lentamente, enquanto ouvia Adam falar com Olander.
- O Supremo Tribunal dos Estados Unidos acaba de negar a revisão - murmurou Adam a Sam com a mão sobre o auscultador.
Sam sorriu estranhamente e estudou alguns dos envelopes que trouxera consigo.
- O Supremo Tribunal do Mississípi também nos recusouexplicou Adam ao seu cliente, enquanto marcava outros números.
- Mas isso já era de esperar. Estamos a apresentá-la neste momento ao tribunal federal - estava a telefonar para o Quinto Tribunal de Círculo para verificar o estado da alegação de representação legal ineficaz. O assistente de Nova Orleães informou-o de que nada fora feito nessa manhã. Adam desligou e sentou-se na beira da secretária.
- O Quinto Tribunal de Círculo continua sem decidir a alegação de representação legal ineficaz - comunicou ele ao seu cliente, que conhecia a lei e os procedimentos e estava a absorver tudo como um verdadeiro advogado. - No conjunto, não é uma manhã muito boa.
- A estação de televisão de Jackson anunciou esta manhã que eu tinha pedido uma audiência de clemência ao governador - disse Sam entre dentadas. - Decerto que não pode ser verdade. Não o aprovei.
- Calma, Sam, é de rotina.
- Rotina, uma ova! Pensei que tínhamos um acordo. Eles até puseram o McAllister diante das câmaras a dizer que estava desgostoso com a sua decisão acerca de uma audiência de clemência. Eu avisei-te!
- O McAllister é o menor dos nossos problemas, Sam. O pedido não passou de uma formalidade. Não somos obrigados a participar.
Sam abanou a cabeça com frustração. Adam observou-o atentamente. Não estava realmente zangado, nem se interessava realmente pelo que Adam tinha feito. Estava resignado, quase vencido. O pequeno vestígio de rabugice surgia naturalmente. Uma semana antes teria vociferado e gritado.
- Eles fizeram uma experiência na noite passada. Ligaram a câmara de gás, mataram um rato ou qualquer coisa assim, tudo funcionou perfeitamente e, portanto, agora todos estão excitados com a minha execução. Acreditas nisto? Fizeram um ensaio completo para mim. Os sacanas!
- Lamento, Sam.
- Sabes a que cheira o gás cianídrico?
- Não.
- A canela. Andava no ar a noite passada. Os idiotas nem sequer tiveram o cuidado de fechar as janelas da nossa fileira e eu senti-o.
Adam não sabia se isto era verdade ou não. Sabia que a câmara era ventilada durante vários minutos após uma execução e que o gás se misturava no ar. Talvez Sam tivesse ouvido histórias contadas pelos guardas acerca do gás. Talvez fosse apenas uma parte da provação. Estava sentado na beira da secretária, a balançar casualmente os pés, olhando para o miserável velho com os braços esqueléticos e o cabelo oleoso. Era um pecado tão horrível matar uma criatura envelhecida como Sam Cayhall. Os seus crimes tinham sido cometidos uma geração atrás. Sofrera e morrera muitas vezes naquela cela de um metro e oitenta por dois metros e setenta. Como beneficiaria o estado matando-o neste momento?
Adam tinha muita coisa na cabeça, a principal das quais talvez fosse o seu último e arfante esforço.
- Lamento, Sam - disse mais uma vez, compadecidamente.
- Mas temos que falar de algumas coisas.
- Estavam homens do Klan lá fora esta manhã? A televisão mostrou uma imagem deles aqui ontem.
- Sim. Contei sete alguns minutos atrás. De uniforme completo, excepto as máscaras.
- Eu costumava usar uma, sabes - disse ele, quase como um veterano de guerra a gabar-se perante alguns garotos.
- Eu sei, Sam. E por ter usado uma, está agora aqui sentado no corredor da morte com o seu advogado, a contar as horas que faltam para o amarrarem na câmara de gás. Devia odiar aqueles idiotas!
- Não os odeio. Mas eles não têm o direito de estar aqui.
Abandonaram-me. O Dogan enviou-me para aqui e, quando testemunhou contra mim, era o Feiticeiro Imperial do Mississípi. Não me deram nem um tostão para as despesas legais. Esqueceram- me completamente.
- O que esperava de um bando de rufiões? Lealdade?
- Eu fui leal.
- E olhe onde veio parar, Sam. Devia denunciar o Klan e pedir-lhes para se retirarem, para ficarem longe da sua execução.
Sam brincou com os envelopes e depois colocou-os cuidadosamente em cima de uma cadeira.
- Eu disse-lhes para se irem embora - disse Adam.
- Quando?
- Há poucos minutos. Falei com eles. Não se ralam nada consigo, Sam, só estão a servir-se desta execução porque o senhor vai dar um mártir fantástico, alguém de que poderão orgulhar-se e falar nos anos futuros. Vão entoar o seu nome quando queimarem cruzes e farão peregrinações à sua sepultura. Querem-no morto Sam. É uma grande publicidade.
- Enfrentaste-os? - perguntou Sam, com um acento de
divertimento e de orgulho.
- Sim, não foi nada de especial. E quanto à Carmen? Se quiser que ela venha, terá que organizar a viagem.
Sam fumou pensativamente.
- Gostaria de vê-la, mas tens que preveni-la do meu aspecto.
Não quero que ela fique chocada.
- Tem muito bom aspecto, Sam.
- Obrigado. E quanto à Lee?
- O que há com ela?
- Como está ela? Nós recebemos jornais aqui. Vi-a no jornal de Memphis no domingo passado e, em seguida, li sobre a acusação de condução em estado de embriaguez na terça-feira. Ela não está presa, pois não?
- Não, está numa clínica de recuperação - disse Adam como se soubesse exactamente onde ela estava.
- Ela pode vir visitar-me?
- Quer que ela venha?
- Acho que sim. Talvez na segunda-feira. Vamos esperar para ver.
- Não há problema - disse Adam, perguntando a si mesmo como diabo conseguiria encontrá-la. - Falo com ela no fim-de-semana.
Sam entregou a Adam um dos envelopes abertos.
- Dá isto às pessoas da administração. É uma lista dos visitantes autorizados daqui até lá. Vá lá, abre.
Adam olhou para a lista. Havia quatro nomes. Adam, Lee, Carmen e Donnie Cayhall.
- Não é uma lista muito longa.
- Tenho muitos parentes, mas não os quero aqui. Não me visitam há nove anos e meio, por isso maldito seja eu se os deixo arrastarem-se até aqui no último minuto para dizerem adeus. Podem guardar isso para o funeral.
- Estou a receber todo o tipo de pedidos de jornalistas que querem entrevistá-lo.
- Esquece!
- Foi o que eu lhes disse. Mas há um que talvez lhe interesse. Há um homem chamado Wendell Sherman, um escritor com alguma fama que publicou quatro ou cinco livros e ganhou alguns prémios. Não li nenhuma das suas obras, mas é bom. É genuíno. Falei com ele ao telefone ontem e ele quer falar consigo e gravar a sua história. Parece ser muito honesto e disse que a gravação podia durar horas. Vem hoje a Memphis, para o caso de o senhor concordar.
- Porque quer ele gravar a minha história?
- Quer escrever um livro a seu respeito.
- Um romance?
- Duvido. Está disposto a pagar imediatamente cinquenta mil dólares, com uma percentagem de direitos de autor mais tarde.
- Óptimo. Recebo cinquenta mil dólares alguns dias antes de morrer. O que faria com eles?
- Estava só a informá-lo da oferta.
- Diz-lhe para ir para o inferno. Não estou interessado.
- Óptimo.
- Quero que prepares um contrato pelo qual te cedo todos os direitos sobre a história da minha vida e depois de eu desaparecer farás como quiseres.
- Não seria má ideia gravar tudo.
- Queres dizer...
- Falar para uma máquina pequenina com cassetes pequeninas. Posso arranjar-Lhe um. Senta-se na sua cela e fala sobre a sua vida.
- Que maçador - Sam terminou a Eskimo Pie e atirou o pau para o caixote do lixo.
- Depende da forma como se encarar o assunto. Agora as coisas parecem bastante excitantes.
- Sim, tens razão. Uma vida bastante maçadora, mas o fim é sensacional.
- Quanto a mim parece um bestseller!
- Vou pensar nisso.
Sam pôs-se subitamente de pé, deixando os sapatos de borracha debaixo da cadeira. Atravessou o gabinete em longas passadas, medindo e fumando enquanto andava.
- Três metros e noventa por cinco - resmungou para si mesmo e depois mediu novamente.
Adam tomava notas num bloco e tentava ignorar a figura vermelha que se destacava das paredes. Finalmente, Sam parou e encostou-se a um armário de arquivo.
- Quero que me faças um favor - disse ele fitando a parede do outro lado da sala. A voz era muito baixa. Respirava lentamente.
- Estou a ouvir - disse Adam.
Sam deu um passo para a cadeira e pegou num envelope. Entregou-o a Adam e regressou à sua posição junto do armário de arquivo. O envelope estava virado ao contrário, para que Adam não pudesse ver o que estava escrito nele.
- Quero que entregues isso - disse Sam.
- A quem?
- Quince Lincoln.
Adam colocou-o do seu lado da mesa e observou Sam atentamente. Porém, Sam estava perdido num outro mundo. Os olhos enrugados olhavam fixamente para algo na parede do outro lado da sala.
- Demorei uma semana a escrever essa carta - disse numa voz quase áspera -, mas pensei nela durante quarenta anos.
- O que diz a carta? - perguntou Adam lentamente.
- É um pedido de desculpas. Há muitos anos que carrego a culpa, Adam. Joe Lincoln era um homem bom e decente, um bom pai. Perdi a cabeça e matei-o sem razão. E antes de o matar sabia que podia safar-me com isso. Sempre senti remorsos. Muitos remorsos. Agora não há nada que possa fazer, excepto pedir desculpa.
- Tenho a certeza que terá algum significado para os Lincoln.
- Talvez. Na carta peço-lhes perdão, que segundo creio é a forma cristã de fazer as coisas. Quando morrer, gostava de saber que tentei dizer que lamento.
- Tem alguma ideia de onde posso encontrá-lo?
- Essa é a parte difícil. Ouvi dizer a alguns familiares que os Lincoln ainda vivem em Ford County. Provavelmente Ruby, a viúva, ainda está viva. Receio que tenhas de ir a Clanton e fazer algumas perguntas. Eles têm um xerife negro, por isso começaria por aí. Ele provavelmente conhece todos os africanos do condado.
- E se eu encontrar o Quince?
- Diz-Lhe quem és. Entrega-Lhe a carta. Diz-lhe que morri cheio de remorsos. Serás capaz de fazer isso?
- Será um prazer. Não tenho a certeza de quando poderei fazê-lo.
- Espera até eu estar morto. Terás muito tempo depois de isto terminar.
Sam encaminhou-se novamente para a cadeira e desta vez escolheu dois envelopes. Entregou-os a Adam e começou a andar lentamente, para trás e para diante, através da sala. O nome de Ruth Kramer estava dactilografado num deles, sem endereço, e o outro era dirigido a Elliot Kramer.
- Estes são para os Kramer. Entrega-os, mas espera até a execução estar concluída.
- Porquê esperar?
- Porque os meus motivos são puros. Não quero que eles pensem que faço isto para despertar simpatias na hora da minha morte.
Adam colocou as cartas para os Kramer junto da de Quince Lincoln - três cartas, três cadáveres. Quantas cartas mais produziria Sam no fim-de-semana? Quantas mais vítimas haveria por aí?
- Tem a certeza que vai morrer, não tem Sam?
Ele deteve-se junto da porta e pensou por um momento.
- As probabilidades são contra nós. Estou a preparar-me.
- Ainda temos hipóteses.
- Claro que temos. Mas estou a preparar-me, para o caso de não ser assim. Magoei muitas pessoas, Adam, e nem sempre parei para pensar nisso. Mas quando temos encontro marcado com a ceifeira, pensamos no mal que causámos.
Adam pegou nos três envelopes e olhou para eles.
- Há mais?
Sam fez uma careta e olhou para o chão.
- De momento é tudo.
O jornal de Jackson de sexta-feira de manhã trazia uma notícia de primeira página sobre o pedido de uma audiência de clemência formulado por Sam Cayhall. O artigo incluía uma fotografia lisongeira do governador David McAllister, uma má de Sam e muitos comentários de Mona Stark, a chefe de pessoal do governador, todos no sentido de que o governador estava a lutar com a decisão.
Uma vez que era um verdadeiro homem do povo, um verdadeiro servidor de todos os habitantes do Mississípi, McAllister tinha instalado um dispendioso sistema de linha aberta assim que fora eleito. O número grátis aparecia em cartazes espalhados por todo o estado e os seus constituintes eram constantemente bombardeados com anúncios de serviço público incitando-os a ligar para a Linha Aberta do Povo. Telefonem ao governador. Ele interessa-se pelas vossas opiniões. A democracia no seu melhor. As operadoras estavam a postos.
E porque era mais ambicioso do que forte, McAllister e o seu pessoal localizavam as chamadas diariamente. Era um seguidor, não um líder. Gastava muito dinheiro em sondagens e tornara-se perito em descobrir ocultamente as questões que incomodavam as pessoas e depois saltar em frente para chefiar as pretensões.
Tanto Goodman como Adam suspeitavam disto. McAllister parecia demasiado obcecado com o seu destino para se atrever a lançar novas iniciativas. O homem era um desavergonhado contador de votos, por isso tinham decidido dar-Lhe qualquer coisa para contar.
Goodman leu a notícia de manhã cedo enquanto bebia café e sumo de frutas e às sete e meia estava a falar ao telefone com o professor John Bryan Glass e com Hez Keny. Às oito, três dos alunos de Glass estavam a beber café em chávenas de papel no escritório temporário. A análise de mercado estava prestes a começar.
Goodman explicou o esquema e a necessidade de absoluto segredo. Não estavam a violar nenhuma lei, garantiu-lhes, mas apenas a manipular a opinião pública. Os telefones celulares estavam em cima das mesas, juntamente com as páginas de números de telefone que Goodman copiara na quarta- feira. Os estudantes estavam um pouco apreensivos, mas apesar disso ansiosos por começar. Seriam bem pagos. Goodman demonstrou a técnica fazendo o primeiro telefonema. Ligou o número.
- Linha Aberta do Povo - respondeu uma voz agradável.
- Sim, estou a telefonar por causa da notícia do jornal da manhã, aquela acerca de Sam Cayhall - disse Goodman, lentamente, na sua melhor imitação de uma voz arrastada. Deixava muito a desejar. Os estudantes estavam muito divertidos.
- E o seu nome?
- Sim, sou Ned Lancaster, de Biloxi, Mississípi - respondeu Goodman lendo a lista de telefones. - E votei no governador, um bom homem - disse ele por precaução.
- E o que pensa acerca de Sam Cayhall?
- Acho que ele não devia ser executado. É um velho que sofreu muito e quero que o governador lhe conceda um perdão. Deixem-no morrer em paz ali mesmo em Parchman.
- Muito bem. Certificar-me-ei que o governador é informado da sua chamada.
- Obrigado.
Goodman carregou num botão do telefone e fez uma vénia perante a sua audiência.
- Nada de especial. Vamos começar.
O rapaz branco seleccionou um número de telefone. A sua conversa foi mais ou menos do seguinte teor:
- Está, daqui falar Lester Crosby de Bude, Mississípi. Estou a telefonar por causa da execução de Sam Cayhall. Sim, minha senhora. O meu número? É o 555-9084. Sim, exactamente, de Bude, Mississípi, em Franklin County. Exactamente. Bem, eu acho que o Sam Cayhall não devia ser mandado para a câmara de gás. Sou contra. Acho que o governador devia intervir e parar com esta coisa. Sim, minha senhora, exactamente. Obrigado - sorriu para Goodman, que estava a ligar outro número.
A mulher branca era uma estudante de meia-idade. Vinha de uma pequena cidade da zona rural do estado e o seu sotaque era naturalmente nasalado.
- Está, é do gabinete do governador? Óptimo. Estou a telefonar por causa da notícia sobre o Cayhall no jornal de hoje. Susan Barnes, Decatur, Mississípi. Exactamente. Bem, ele é um velho que, de qualquer maneira, vai morrer dentro de poucos anos. Qual seria a vantagem de o estado o matar agora? Dêem uma hipótese ao homem. O quê? Sim, quero que o governador intervenha. Votei pelo governador e acho que ele é bom homem. Sim. Muito obrigada também.
O negro tinha vinte e tal anos. Informou simplesmente a operadora da linha directa de que era um negro do Mississípi, completamente contrário às ideias defendidas por Sam Cayhall e pelo Klan, mas apesar disso discordava da execução.
- O governo não tem o direito de decidir se alguém vive ou morre - disse ele. Não era a favor da pena de morte em nenhuma circunstância.
E continuaram assim. As chamadas choviam de todos os pon tos do estado, uma após outra, todas de pessoas diferentes com diferentes lógicas para impedirem a execução. Os estudantes tornaram-se mais criativos, experimentando sotaques diferentes e novas explicações. Ocasionalmente, as suas chamadas devolviam sinais de interrompido e era divertido saber que tinham encravado a linha aberta. Devido ao seu sotaque nítido, Goodman assumiu o papel do forasteiro, uma espécie de abolicionista da pena de morte ambulante, que irrompia de todos os lugares do país com um espantoso conjunto de pseudónimos étnicos e de estranhos locais.
Goodman tinha-se preocupado com o facto de McAlister ser suficientemente paranóico para rastrear todas as chamadas da linha aberta, mas decidira que as operadoras iam estar demasiado ocupadas.
E estavam mesmo ocupadas. Do outro lado da cidade, John Bryan Glass cancelou uma aula e fechou a porta do seu gabinete. Divertiu-se imenso a fazér repetidas chamadas telefónicas sob nomes completamente diferentes. Não muito longe dele, Hez Kerry e um dos advogados que trabalhavam com ele estavam igualmente a bombardear a linha aberta com as mesmas mensagens.
Adam regressou apressadamente a Memphis. Darlene estava no seu gabinete, tentando em vão organizar os montes de papéis. Apontou para uma pilha ao lado do computador.
- A decisão de recusa de revisão está em cima e a seguir a decisão do Supremo Tribunal do Mississípi. Junto a ela está a petição de habeas corpus para apresentar no tribunal federal. Já mandei tudo por fax.
Adam despiu o casaco e atirou-o para cima de uma cadeira. Olhou para a fila de mensagens telefónicas cor-de-rosa que pendiam de uma estante.
- Quem são estas pessoas?
- Repórteres, escritores, malucos, e alguns advogados oferecendo a sua assistência. Um é de Garner Goodman em Jackson. Disse que a análise de mercado vai muito bem, mas não fale. O que é a análise de mercado?
- Não me pergunte. Nenhuma notícia do Quinto Tribunal de Círculo?
- Não.
Adam respirou profundamente e instalou-se na cadeira.
- Almoço? - perguntou ela.
- Apenas uma sandes, se não se importa. Pode trabalhar amanhã e no domingo?
- Evidentemente.
- Preciso que fique aqui durante todo o fim-de-semana, junto do telefone e do fax. Lamento.
- Não me importo. Vou buscar a sandes.
Saiu fechando a porta atrás de si. Adam telefonou para o apartamento de Lee, mas não houve resposta. Telefonou para a Auburn House, mas ninguém soubera dela. Telefonou a Phelps Booth, que se encontrava numa reunião de direcção. Telefonou a Carmen para Berkeley e disse-lhe para tomar disposições no sentido de vir a Memphis no domingo.
Olhou para as mensagens telefónicas e decidiu que não valia a pena responder a nenhuma.
À uma hora da tarde Mona Stark falou à imprensa que enchia por completo o gabinete do governador no capitólio. Disse que depois de muito deliberar o governador tinha decidido conceder uma audiência de clemência na segunda-feira às dez horas da manhã; nessa altura, o governador tomaria conhecimento das questões e dos recursos e tomaria uma decisão justa. Era uma tremenda responsabilidade, explicou ela, este pesar da vida e da morte. Mas David McAllister faria o que era justo e certo.
Packer foi à cela às cinco e meia da manhã de sábado e não se preocupou com as algemas. Sam estava à espera e saíram silenciosamente da Fileira A. Atravessaram a cozinha, onde os presos de confiança estavam a mexer ovos e a fritar bacon. Sam nunca tinha visto a cozinha e caminhou lentamente, contando os passos, verif icando as dimensões. Packer abriu uma porta e fez sinal a Sam para se apressar a segui-lo. Saíram lá para fora, para a escuridão. Sam parou e olhou para a sala quadrada de tijolo à sua direita, o pequeno edifício que abrigava a câmara de gás. Packer empurrou-o pelo cotovelo e caminharam juntos até à extremidade leste da fileira, onde outro guarda esperava e vigiava. O guarda entregou a Sam uma grande chávena de café e conduziu-o através de um portão a um pátio de recreio semelhante aos currais da ala oeste do Corredor. Era vedado e cercado de arame farpado, com um cesto de basquete e dois bancos. Packer disse que voltaria dentro de uma hora e saiu com o guarda.
Sam ficou no mesmo lugar durante muito tempo, beberricando o café quente e absorvendo a paisagem. A sua primeira cela tinha sido na fileira D, na ala leste, e já estivera aqui muitas vezes. Conhecia as dimensões exactas - quinze metros e meio por onze. Viu o guarda da torre sentado debaixo de uma luz a observá-lo. Através das vedações e por cima das filas de algodão, conseguia ver as luzes de outros edifícios. Dirigiu-se lentamente para um banco e sentou- se.
Que simpático da parte destas pessoas terem acedido ao seu pedido de ver um último nascer do Sol. Há nove anos e meio que não via um e, a princípio, Nugent recusara. Então, Packer interviera e explicara ao coronel que estava tudo bem, que não havia nenhum risco de segurança e, que diabo, supostamente o homem morreria dentro de quatro dias. Packer assumiria toda a responsabilidade.
Sam fitou o céu a ocidente, onde uma sugestão de laranja espreitava por entre nuvens dispersas. Durante os seus primeiros dias no Corredor, quando os seus recursos eram recentes e ainda por decidir, passara horas a recordar a gloriosa monotonia da vida quotidiana, as pequenas coisas como um duche quente todos os dias, a companhia do seu cão, mais um pouco de mel nos biscoitos.
Nessa altura, chegara mesmo a acreditar que um dia poderia novamente caçar esquilos e codornizes, pescar percas e gorazes, sentar-se no alpendre e ver o Sol nascer, beber café na cidade e guiar a sua velha camioneta para onde lhe apetecesse. Nos tempos dessas primeiras fantasias o seu sonho era voar para a Califórnia para procurar os netos. Nunca andara de avião.
Mas os sonhos de liberdade tinham morrido há muito tempo afastados pela fastidiosa monotonia da vida numa cela e mortos pelas rígidas opiniões de muitos juízes.
Este seria o seu último nascer do Sol, acreditava realmente nisso. Muita gente o queria ver morto. A câmara de gás não era usada com bastante frequência. Era tempo para uma execução, raios, e ele era o próximo da linha.
O céu tornou-se mais claro e as nuvens dissiparam-se. Embora fosse obrigado a observar este magnífico acto da natureza por detrás de uma vedação de ferro, continuava a ser satisfatório. Só mais uns dias e as vedações desapareceriam. As grades, o arame farpado e as celas ficariam para outros.
Dois repórteres fumavam e bebiam café de máquina enquanto esperavam junto à entrada sul do capitólio no sábado de manhã cedo. Correra o boato de que o governador passaria todo o dia no gabinete a lutar com o problema Cayhall.
Às sete e meia o seu Lincoln preto parou nas imediações e saiu rapidamente. Dois guarda-costas bem vestidos escoltaram- no até à entrada, com Mona Stark alguns passos atrás de si.
- Governador, tenciona assistir à execução? – perguntou apressadamente o primeiro repórter. McAllister sorriu e levantou as mãos, como se adorasse parar para falar com ele, mas o momento fosse demasiado crítico para isso. Depois, viu uma câmara pendurada ao pescoço do repórter.
- Ainda não tomei nenhuma decisão - respondeu ele parando apenas por um segundo.
- Ruth Kramer vai testemunhar na audiência de clemência na segunda-feira?
A câmara estava erguida e preparada.
- De momento ainda não sei - respondeu ele sorrindo para a câmara. - Lamento, rapazes, mas de momento não posso comentar.
Entrou no edifício e tomou o elevador para o seu gabinete do segundo andar. Os guarda-costas tomaram posição no átrio a ler os jornais da manhã.
O dr. Larramore estava à espera com as notícias. Explicou ao governador e a Ms. Stark que as várias petições e recursos de Cayhall não tinham sofrido alterações desde as cinco da tarde do dia anterior. Nada acontecera durante a noite. Os recursos estavam a tornar-se mais desesperados e, em sua opinião, os tribunais recusá-los-iam mais depressa. Já tinha falado com Morris Henry do gabinete do procurador-geral e, na erudita opinião do dr. Morte, havia agora 80% de probabilidades de a execução ter lugar.
- E quanto à audiência de clemência na segunda-feira? Os advogados de Cayhall disseram alguma coisa? - perguntou McAllister.
- Não, pedi ao Garner Goodman para passar por cá às nove esta manhã. Pensei que devíamos falar com ele sobre o assunto. Estarei no meu gabinete se precisar de mim.
Larramore pediu licença. Ms. Stark estava ocupada com o ritual diário de pesquisar os jornais do estado e colocá-los sobre a mesa de conferências. Dos nove jornais que examinou, oito apresentavam a história de Cayhall na primeira página. O anúncio de uma audiência de clemência parecia ser particularmente relevante no sábado de manhã. Três dos jornais publicavam a mesma fotografia dos membros do Klan a assarem ociosamente sob o feroz sol de Agosto no exterior de Parchman.
McAllister tirou o casaco, arregaçou as mangas e começou a espreitar para os papéis.
- Vá buscar os números - disse severamente.
Mona saiu do gabinete e regressou em menos de um minuto. Trazia uma listagem de computador obviamente com más notícias.
- Estou a ouvir - disse ele.
- As chamadas pararam ontem por volta das nove, a última foi às nove horas e sete minutos. O total em todo o dia foi de quatrocentas e oitenta e seis e pelo menos noventa por cento exprimiram forte oposição à execução.
- Noventa por cento - disse McAllister, incrédulo. No entanto, já não se admirava. Por volta do meio-dia do dia anterior as operadoras da linha aberta tinham comunicado um número pouco habitual de chamadas e, cerca da uma hora, Mona estava a analisar as listagens. Tinham passado grande parte da tarde a olhar para os números, a pensar na jogada seguinte. Tinha dormido pouco.
- Quem são essas pessoas? - disse ele, olhando para uma janela.
- Os seus constituintes. As chamadas vêm de todo o estado. Os nomes e os números parecem ser verdadeiros.
- Qual era o recorde anterior?
- Não sei. Parece que tivemos cerca de cem quando a assembleia legislativa se atribuiu um aumento de salário. Mas nada que se parecesse com isto.
- Noventa por cento - resmungou ele novamente.
- E há outra coisa. Ouve muitas outras chamadas para vários números deste gabinete. A minha secretária atendeu cerca de uma dúzia.
- Todas a favor de Sam?
- Sim, todas contra a execução. Falei com alguns dos nossos e todos foram apanhados ontem. E Roxburgh telefonou-me para casa ontem à noite e disse que o seu gabinete tem sido invadido por telefonemas contra a execução.
- Óptimo. Quero que ele sue também.
- Fechamos a linha aberta?
- Quantas operadoras trabalham ao sábado e ao domingo?
- Só uma.
- Não. Deixe-a aberta hoje. Vamos ver o que acontece hoje e amanhã - dirigiu-se para outra janela e desapertou a gravata. Quando começa a sondagem?
- Hoje às três da tarde.
- Estou ansioso por ver esses números.
- Podem ser igualmente maus.
- Noventa por cento - disse ele abanando a cabeça.
- Mais de noventa por cento - corrigiu Mona.
A sala de guerra estava coberta de caixas de pizza e latas de cerveja, prova de um longo dia de análise de mercado. Um tabuleiro de donuts frescos e uma fila de grandes chávenas de café de papel esperavam agora os analistas, dois dos quais tinham acabado de chegar com jornais. Garner Goodman estava à janela com um
novo par de binóculos, a observar o capitólio a três quarteirões de distância e prestando especial atenção às janelas do gabinete do governador. Durante um momento de tédio, no dia anterior, fora a um centro comercial em busca de uma livraria. Descobrira os binóculos na montra de uma loja de cabedais e durante toda a tarde tinham-se divertido a tentar apanhar o governador a pensar a uma das janelas, sem dúvida a perguntar-se de onde viriam todos aqueles malditos telefonemas.
Os estudantes devoraram os donuts e os jornais. Havia uma discussão resumida mas séria acerca de algumas deficiências óbvias de procedimento nas leis do indulto pós-condenação do Mississípi. O terceiro membro do turno, um estudante do primeiro ano de Nova Orleães, chegou às oito e as chamadas começaram.
Tornou-se imediatamente aparente que a linha aberta não era tão eficiente como no dia anterior. Era difícil conseguir falar com uma operadora. Nenhum problema. Usaram números alternativos.
- o quadro de ligações da mansão do governador, as linhas dos pequenos gabinetes regionais que ele criara com grande pompa e circunstância em todo o estado, para que ele, um homem comum pudesse estar perto do povo.
O povo estava a telefonar.
Goodman saiu do escritório e caminhou pela Congress Street em direcção ao capitólio. Ouviu o som de um altifalante a ser testado e em seguida viu os membros do Klan. Estavam a organizar-se, pelo menos uma dúzia em traje de parada completo, em torno do monumento às mulheres sulistas, ao fundo das escadas principais do capitólio. Goodman passou por eles, chegou mesmo a cumprimentar um, para que ao regressar a Chicago pudesse dizer que tinha falado com alguns membros autênticos do Klan.
Os dois repórteres que tinham esperado o governador estavam agora nos degraus principais a observar a cena lá em baixo. Uma equipa de televisão local chegou quando Goodman entrava no capitólio.
O governador estava demasiado ocupado para se encontrar com ele, explicou Mona Stark gravemente, mas Mr. Larramore poderia dispensar-lhe uns minutos. Parecia um pouco confusa e isto agradou imenso a Goodman. Seguiu-a até ao gabinete de Laramore, onde ele estava a falar ao telefone. Goodman esperou que fosse uma das suas chamadas. Sentou-se obedientemente. Mona fechou a porta e saiu.
- Bom-dia - disse Larramore, desligando.
Goodman fez um amável aceno de cabeça e disse:
- Obrigado pela audiência. Não esperávamos que o governador nos concedesse uma, tendo em vista o que disse na quarta-feira.
- Ele está sob grande pressão. Estamos todos. O seu cliente está disposto a falar acerca do cúmplice?
- Não, não houve alterações.
Larramore passou os dedos pelo cabelo pegajoso e abanou a cabeça com frustração.
- Então, qual é o objectivo da audiência de clemência? O governador não vai ceder neste ponto, Mr. Goodman.
- Estamos a tentar convencer o Sam. Estamos a falar com ele. Vamos planear a audiência para segunda-feira. Talvez o Sam mude de ideias.
O telefone tocou e Larramore atendeu furiosamente.
- Não, daqui não é do gabinete do procurador. Quem fala? garatujou um nome e número de telefone. - Aqui é o Departamento legal do governador - fechou os olhos e sacudiu a cabeça.
- Sim, sim, tenho a certeza de que votou pelo governador - ouviu um pouco mais. - Obrigado, Mr. Hurt. Direi ao governador que telefonou. Sim, obrigado.
Voltou a colocar o auscultador no telefone.
- Portanto, Mr. Gilbert Hut de Dumas, Mississípi, é contra a execução - disse ele fitando o telefone abismado. - Os telefones enlouqueceram.
- Muitos telefonemas, hem? - perguntou Goodman com simpatia.
- Nem acreditaria!
- A favor ou contra?
- Eu diria que uma média de metade para cada lado - disse Larramore. Pegou novamente no telefone e marcou o número de Mr. Gilbert Hut, de Dumas, Mississípi. Ninguém atendeu. - É estranho - disse ele desligando -, o homem acaba de me telefonar, deixou um número verdadeiro e agora ninguém atende.
- Provavelmente foi dar uma volta. Tente mais tarde - Goodman esperava que ele não tivesse tempo de voltar a telefonar mais tarde. Na primeira hora de análise de mercado do dia anterior, Goodman alterara ligeiramente a técnica. Instruíra os seus operadores para verificarem primeiro os números de telefone, certificando-se de que ninguém os atendia. Isto impedia os tipos curiosos como Larramore, ou talvez uma operadora curiosa da linha aberta, de telefonar em resposta e encontrar a verdadeira pessoa. Segundo todas as probabilidades, a verdadeira pessoa apoiaria plenamente a pena de morte. Tornava as coisas um pouco mais lentas para os analistas de mercado, mas Goodman sentia-se mais seguro assim.
- Estou a trabalhar no esquema da audiência - disse Larramore -, para o caso de vir a dar-se. Provavelmente passará para o Comité dos Costumes da Casa, ao fundo do corredor.
- Será fechada?
- Não. Algum problema?
- Temos apenas quatro dias, Mr. Larramore. Tudo é um problema. Mas a audiência pertence ao governador. Apenas estamos gratos por ele no-la ter concedido.
- Tenho os seus números. Mantenha-se em contacto.
- Não vou sair de Jackson até estar tudo terminado.
Apertaram as mãos rapidamente e Goodman saiu do gabinete. Sentou- se durante meia-hora nos degraus da entrada e observou os membros do Klan a organizarem-se e a atrair curiosos.
Embora quando muito mais jovem tivesse usado uma veste branca e um barrete pontiagudo, Donnie Cayhall manteve-se à distância das linhas de homens do Klan que patrulhavam a faixa de relva junto ao portão principal de Parchman. A segurança era apertada, com guardas armados a vigiar os manifestantes.
Junto ao pálio em que os homens do Klan se juntavam, havia um pequeno grupo de skinheads de camisas castanhas. Transportavam cartazes exigindo a liberdade para Sam Cayhall.
Donnie observou o espectáculo durante um momento e, em seguida, cumpriu as indicações de um guarda de segurança e estacionou ao longo da estrada. O seu nome foi verificado na casa da guarda e, alguns minutos mais tarde, uma carrinha da prisão veio buscá-lo. O irmão estava em Parchman há nove anos e meio e Donnie tentara visitá-lo pelo menos uma vez por ano. Mas, para sua vergonha, tinha que admitir que a sua última visita fora há dois anos.
Donnie Cayhall tinha sessenta e um anos e era o mais novo dos quatro irmãos Cayhall. Todos tinham seguido os ensinamentos do pai, juntando-se ao Klan ainda adolescentes. Fora uma decisão simples e pouco pensada, esperada por toda a familia. Mais tarde alistara-se no Exército, lutara na Coreia e viajara pelo mundo. No processo, perdera o interesse pelas vestes brancas e pela queima das cruzes. Deixara o Mississípi em 1961 e fora trabalhar numa fábrica de mobilias na Carolina do Norte. Vivia agora perto de Durham.
Todos os meses durante nove anos e meio enviara a Sam uma caixa de cigarros e pequenas quantias em dinheiro. Escrevera algumas cartas, mas nem ele nem o Sam se interessavam pela correspondência. Poucas pessoas em Durham sabiam que ele tinha um irmão no corredor da morte.
Foi revistado à entrada da porta principal e conduzido ao gabinete da entrada. Sam foi trazido alguns minutos mais tarde e deixaram-nos sós. Donnie abraçou-o durante muito tempo e quando se separaram ambos tinham os olhos húmidos. Tinham altura e constituição semelhantes, embora Sam parecesse vinte anos mais velho. Sentou-se na beira da secretária e Donnie ocupou uma cadeira próxima.
Ambos acenderam cigarros e fitaram o espaço.
- Alguma boa notícia? - perguntou Donnie, finalmente, certo da resposta.
- Não. Nenhuma. Os tribunais estão a recusar tudo. Vão fazê-lo, Donnie. Vão matar-me. Vão levar-me para a câmara e gasear-me como um animal.
Donnie inclinou o rosto sobre o peito.
- Lamento, Sam.
- Eu também lamento, mas, raios, ficarei satisfeito quando tudo terminar.
- Não digas isso.
- A sério. Estou cansado de viver numa gaiola. Sou um velho e a minha hora chegou.
- Mas não mereces ser morto, Sam.
- Essa é a parte mais difícil, sabes? Não é pelo facto de ir morrer, raios, todos nós morremos. Mas não consigo suportar a ideia desses estúpidos levarem a melhor. Vão ganhar. E a sua recompensa é amarrarem-me e verem-me sufocar. É nojento.
- O teu advogado não pode fazer nada?
- Está a tentar tudo, mas parece desesperado. Quero que o conheças.
- Vi o retrato dele no jornal. Não se parece connosco.
- Tem sorte. É mais parecido com a mãe.
- Miúdo inteligente? Sam conseguiu sorrir.
- Sim, é espantoso. Está realmente magoado com tudo isto.
- Ele virá aqui hoje?
- Provavelmente. Não deu notícias. Está em casa da Lee, em Memphis - disse Sam com um toque de orgulho. Por sua causa, a filha e o neto tinham-se aproximado e até estavam a viver tranquilamente juntos.
- Falei com o Albert esta manhã - disse Donnie. - Diz que está demasiado doente para vir até cá.
- Óptimo. Não o quero cá. Também não quero os seus filhos e netos por aqui.
- Ele queria apresentar as suas homenagens, mas não pode.
- Diz-lhe que guarde isso para o funeral.
- Ora, Sam.
- Olha, ninguém vai chorar por mim quando eu morrer. E não preciso de falsa piedade. Mas vou precisar que me faças uma coisa e vai custar algum dinheiro.
- Claro. Tudo o que quiseres.
Sam puxou pela cintura do seu fato-macaco vermelho.
- Estás a ver esta porcaria. Chamam-lhes vermelhos" e uso isto há quase dez anos. É isto que o estado do Mississípi espera que eu use quando me matar. Mas, compreendes, tenho o direito de vestir aquilo que quiser. E seria muito importante se eu pudesse morrer com umas roupas bonitas.
Donnie foi subitamente atingido pela emoção. Tentou falar, mas as palavras não saíram. Tinha os olhos molhados e os lábios tremiam-lhe. Acenou que sim com a cabeça e conseguiu dizer:
- Claro, Sam.
- Sabes aquelas calças de trabalho a que chamam Dickies? Usei-as durante anos. É uma espécie de caqui.
Donnie continuava a acenar afirmativamente com a cabeça.
- Um par dessas calças seria bom, com uma camisa branca qualquer, não de enfiar pela cabeça, mas abotoada. Uma camisa pequena, umas calças pequenas, número trinta e dois. Um par de peúgas brancas e uns sapatos baratos. Raios, só os vou usar uma vez, não é? Vai ao Wal-Mart ou outro sítio assim e provavelmente conseguirás comprar tudo por menos de trinta dólares. Importas-te?
Donnie limpou os olhos e tentou sorrir.
- Vou ficar muito elegante, não vou?
- Onde queres ser enterrado?
- Em Clanton, ao lado da Anna. Tenho a certeza de que isso vai perturbar o seu eterno repouso. O Adam está a tratar de tudo.
- Que mais posso fazer?
- Nada. A única coisa que quero é que me arranjes essas roupas.
- Vou fazê-lo hoje mesmo.
- És a única pessoa no mundo que se importou comigo durante todos estes anos, sabias? A tia Barb escreveu-me durante anos até morrer, mas as cartas dela eram sempre tão rígidas e secas que calculei que só o fazia para poder contar aos vizinhos.
- Quem diabo era a tia Barb?
- A mãe de Hubert Cain. Nem sequer tenho a certeza se ela era nossa parente. Mal a conhecia até chegar aqui e então ela iniciou aquela horrível correspondência. Estava profundamente sentida por uma pessoa da sua própria família ter sido enviada para Parchman.
- Que descanse em páz.
Sam riu-se e lembrou-se de uma velha história da infância. Contou-a entusiasmadamente e, minutos mais tarde, ambos os irmãos riam à gargalhada. Donnie lembrou- se de outra história e continuaram assim durante uma hora.
Quando Adam chegou, no sábado à tarde, Donnie partira há horas. Foi conduzido ao gabinete da entrada, onde espalhou alguns papéis sobre a secretária. Sam foi trazido, tiraram-lhe as algemas e a porta fechou-se atrás deles. Sam trazia mais envelopes, facto que Adam notou imediatamente.
- Mais recados para mim? - perguntou desconfiadamente.
- Sim, mas podem esperar até estar tudo terminado.
- Para quem?
- Uma é para a familia Pinder, aquela a quem pus uma bomba em Vicksburg. Outra para a sinagoga dos judeus em Jackson. A terceira para a agência imobiliária judia, também em Jackson. É
possível que haja mais. Não há pressa, pois sei que de momento estás ocupado. Mas depois de eu morrer, gostaria que te encarregasses disso.
- O que dizem essas cartas?
- O que achas que dizem?
- Não sei. Que o senhor lamenta, suponho.
- Rapaz inteligente. Peço desculpa pelos meus actos, arrependo-me dos meus pecados e peço-lhes que me perdoem.
- Porque está a fazer isto?
Sam parou e encostou-se a um armário de arquivo.
- Porque estou sentado numa pequena gaiola o dia inteiro.
Porque tenho uma máquina de escrever e muito papel. Estou aborrecido como um raio, por isso talvez me apeteça escrever. Porque tenho consciência, não muita, mas um pouco e quanto mais me aproximo da morte, mais culpado me sinto por tudo o que fiz.
- Lamento. Serão todas entregues - Adam pôs um círculo em torno de qualquer coisa numa lista. - Ainda lhe restam dois recursos. O Quinto Tribunal de Círculo ainda está a reter a alegação de representação legal ineficaz. Já esperava ter uma resposta mas há dois dias que nada acontece. O tribunal distrital tem a alegação de insanidade.
- É tudo sem esperança, Adam.
- Talvez, mas não vou desistir. Apresentarei mais uma dúzia de petições, se for preciso.
- Já não assino mais nada. Não podes apresentá-las se eu não as assinar.
- Posso, sim. Existem maneiras.
- Então estás despedido.
- Não me pode despedir, Sam. Sou seu neto.
- Temos um contrato segundo o qual posso despedir-te quando quiser. Pusemos tudo por escrito.
- É um documento viciado, concebido por um advogado de prisão razoável, mas apesar de tudo fatalmente ineficaz.
Sam irritou-se e bufou e começou a andar de um lado para o outro sobre a sua fila de mosaicos. Deu meia-dúzia de passos em frente de Adam, seu advogado agora, amanhã e para o resto da sua vida. Sabia que não podia despedi-lo.
- Temos uma audiência de clemência marcada para segunda-feira - disse Adam, olhando para o seu bloco à espera da explosão. Mas Sam aceitou bem o facto e não falhou um passo.
- Qual é a finalidade da audiência de clemência?
- Pedir clemência.
- Pedir a quem?
- Ao governador.
- E tu achas que o governador vai sequer pensar na hipótese de me conceder clemência?
- O que temos a perder?
- Responde à pergunta, espertalhão. Esperas seriamente, com todo o teu treino, experiência e habilidade judicial, que este governador tenha ideias de me conceder clemência?
- Talvez.
- Talvez, uma fava! És estúpido.
- Obrigado Sam.
- De nada - parou directamente em frente de Adam e apontou- lhe um dedo torto. - Disse-te desde o princípio que eu, como cliente e enquanto tal com direito a uma certa consideração, não queria ter nada a ver com o David McAllister. Não pedirei clemência a esse idiota. Não lhe pedirei um perdão. Não terei quaisquer contactos com ele, sejam quais forem. São estes os meus desejos e disse-to muito claramente, meu jovem, desde o primeiro dia. Tu, por outro lado, como advogado, ignoraste os meus desejos e prosseguiste a teu bel-prazer, fazendo o que muito bem te apetecia. És o advogado, nem mais nem menos que isso. Eu, por meu lado, sou o cliente e não sei o que te ensinaram na tua elegante faculdade de Direito, mas sou eu que tomo as decisões.
Sam dirigiu-se para uma cadeira vazia e escolheu outro envelope. Entregou-o a Adam e disse:
- Esta é uma carta para o governador, pedindo-lhe que cancele a audiência de clemência na segunda-feira. Se te recusares a cancelá-la, faço cópias desta carta e entrego-as à imprensa. Em baraço-te a ti, ao Garner Goodman e ao governador. Compreendes?
- É bastante claro.
Sam voltou a colocar o envelope sobre a cadeira e acendeu outro cigarro.
Adam traçou outro círculo na sua lista.
- A Carmen estará aqui na segunda-feira, mas não tenho a certeza quanto à Lee.
Sam dirigiu-se para uma cadeira e sentou-se. Não olhou para Adam.
- Ainda está na recuperação?
- Sim e não tenho a certeza de quando sairá. Quer que ela venha visitá-lo?
- Deixa-me pensar no assunto.
- Pense depressa, está bem?
- Engraçado, muito engraçado. O meu irmão Donnie esteve aquí hoje cedo. É o meu irmão mais novo, sabes? Quer conhecer-te.
- Também pertenceu ao Klan?
- Que raio de pergunta é essa?
- É uma simples pergunta sim ou não.
- Sim, pertenceu ao Klan.
- Então não quero conhecê-lo.
- Não é má pessoa.
- Acredito na sua palavra.
- É meu irmão, Adam. Quero que conheças o meu irmão.
- Não tenho qualquer desejo de conhecer mais Cayhall, Sam especialmente os que usaram vestes brancas e barretes.
- Oh, realmente. Há três semanas querias saber tudo acerca da familia. Não te saciavas.
- Rendi-me, está bem? Já sei o suficiente.
- Oh, há muito mais.
- Já chega, já chega. Poupe-me.
Sam grunhiu e sorriu astutamente para si próprio. Adam olhou para o bloco e disse:
- Deve ficar satisfeito por saber que aos membros do Klan que estão lá fora se juntaram agora alguns nazis, arianos, skinheads e outros grupos de ódio. Estão todos agrupados ao longo da estrada, acenando com cartazes aos carros que passam. Os cartazes, evidentemente, exigem a liberdade de Sam Cayhall, o seu herói. É um circo razoável:
- Eu vi na televisão.
- Também marcham em Jackson em torno do capitólio estadual.
- E eu tenho culpa disso?
- Não. É a sua execução. Agora, o senhor é um símbolo.
Prestes a tornar-se um mártir.
- O que devo fazer?
- Nada. Vá em frente e morra e eles ficarão satisfeitos.
- Não estás mesmo um idiota, hoje?
- Lamento, Sam. A tensão está a afectar-me.
- Atira-a fora. Foi o que eu fiz e recomendo-o em extremo.
- Esqueça. Tenho estes palhaços na manga, Sam. Ainda não comecei a lutar.
- Sim, apresentaste três petições e um total de sete tribunais recusaram-nas. Zero a sete. Detestarei ver o que vai acontecer quando fores mesmo derrotado - Sam disse isto com um sorriso mau e o sarcasmo atingiu o alvo. Adam riu-se e ambos respiraram mais livremente. - Tenho esta brilhante ideia para uma acção depois da sua morte - disse ele, fingindo-se excitado.
- Depois da minha morte?
- Claro. Vou processá-los por morte injusta. Chamaremos o McAllister, o Nugent, o Roxburgh, o estado do Mississípi, todos.
- Nunca foi feito - disse Sam afagando a barba, como se estivesse perdido em pensamentos.
- Sim, eu sei. Fui eu que inventei tudo. Poderemos não ganhar um tostão, mas pense em como me divertirei a incomodar aqueles sacanas durante os próximos cinco anos.
- Tens a minha autorização para interpor essa acção. Processa-os! Os sorrisos desapareceram lentamente e o divertimento acabou. Adam procurou outra coisa na sua lista.
- Só mais umas coisas. Lucas Mann pediu-me que lhe perguntasse acerca das testemunhas. Tem direito a duas na sala das testemunhas, no caso de isto ir até ao fim. - O Donnie não quer estar presente e eu não te autorizo a estar presente. Não consigo pensar em mais ninguém que queira assistir. - Óptimo. Por falar neles, tenho pelo menos trinta pedidos de entrevistas. Quase todos os grandes jornais e revistas querem chegar junto de si. - Não. - Óptimo. Lembra-se daquele escritor, Wendall Sherman Aquele que quer gravar a sua história e... - Sim, por cinquenta mil dólares.
- Agora, ofereceu cem mil. O seu editor financiará. Quer gravar tudo, assistir à execução, fazer extensas investigações e depois
escrever um grande livro acerca do assunto...
- Não.
- Óptimo.
- Não quero passar os próximos três dias a falar sobre a minha vida. Não quero um estranho a meter o nariz em todo o Ford County. E não preciso especialmente de cem mil dólares nesta altura da minha vida.
- Para mim está óptimo. Uma vez falou nas roupas que gostaria de usar...
- O Donnie está a tratar disso.
- Muito bem. Continuando. Não havendo suspensão, é-lhe permitido ter duas pessoas consigo durante as horas finais. Como é típico, a prisão tem um impresso que tem de assinar para designar essas pessoas.
- É sempre o advogado e o pastor, não é?
- Exactamente.
- Então és tu e o Ralph Griffin, suponho.
Adam escreveu os nomes num impresso.
- Quem é o Ralph Griffin?
- É o novo pastor de Parchman. É contra a pena de morte acreditas? O seu antecessor achava que todos devíamos ser gaseados, em nome de Jesus, evidentemente.
Adam entregou o impresso a Sam.
- Assine aqui.
Sam escreveu o seu nome e devolveu-o.
- Tem direito a uma última visita conjugal.
Sam riu alto.
- Ora filho. Sou um velho.
- Está na lista. O Lucas Mann sussurrou-me no outro dia que eu devia falar-lhe no assunto.
- Muito bem, já falaste.
- Tenho aqui outro impresso para os seus bens pessoais. A quem os vai deixar?
- Queres dizer a minha herança?
- Mais ou menos.
- Isto é mórbido como o diabo, Adam. Porque estás a fazer isto agora?
- Sou advogado, Sam. Somos pagos para nos encarregarmos dos pormenores. É só papelada.
- Queres as minhas coisas?
Adam pensou no assunto por uns momentos. Não queria magoar os sentimentos de Sam, mas ao mesmo tempo não conseguia imaginar o que faria com uma mão-cheia de roupas em farrapos, livros usados, uma televisão portátil e uns sapatos de borracha.
- Claro - respondeu.
- Então são tuas. Leva-as e queima-as.
- Assine aqui - disse Adam, metendo-lhe um impresso debaixo do nariz. Sam assinou-o e, depois, levantou-se e começou a andar novamente de um lado para o outro.
- Quero mesmo que conheças o Donnie.
- Claro, tudo o que quiser - disse Adam, enfiando o bloco e os impressos na pasta. Os pequenos pormenores já estavam despachados. A pasta parecia muito mais pesada.
- Volto amanhã de manhã - disse ele a Sam.
- Traz-me boas notícias, está bem?
O coronel Nugent marchou pomposamente ao longo da estrada com uma dúzia de guardas da prisão armados atrás de si. Fitou iradamente os membros do Klan, vinte e seis segundo a última contagem, e carregou o sobrolho na direcção dos nazis de camisas castanhas, dez ao todo. Deambulou pela extremidade da faixa de protesto relvada, parando um momento para conversar com duas freiras católicas abrigadas sob um grande guarda-sol, o mais longe possível dos outros manifestantes. A temperatura rondava os quarenta graus centígrados e as freiras ardiam à sombra. Chupavam pedras de gelo, com os cartazes pousados nos joelhos, viradas para a estrada.
As freiras perguntaram-lhe quem era e o que desejava. Ele explicou que era o director da prisão em funções e que estava apenas a certificar-se que as manifestações eram pacíficas. Elas pediram-lhe que se retirasse.
Talvez por ser domingo ou talvez por estar a chover, Adam bebeu o seu café da manhã com uma inesperada serenidade.
Ainda estava escuro lá fora e o suave cair de um morno aguaceiro de Verão no pátio era hipnotizante. De pé junto à porta, ficou a ouvir os pingos de chuva. Ainda era cedo para haver trânsito na Riverside Drive, lá em baixo. Não se ouviam os motores dos batelões no rio. Tudo estava silencioso e tranquilo.
Não havia muita coisa a fazer naquele dia, o terceiro dia antes da execução. Começaria no escritório, onde era necessário organizar outra petição de última hora. A questão era tão ridícula que Adam quase se sentia embaraçado ao apresentá-la. Depois, iria até Parchman e ficaria a conversar com o Sam.
Era improvável que houvesse notícias de quaisquer dos tribunais num domingo. Era certamente possível, uma vez que os assistentes da morte e o seu pessoal estavam sempre de serviço quando havia uma execução eminente. Mas a sexta e o sábado tinham decorrido sem qualquer decisão e esperava a mesma inactividade nesse dia. O dia seguinte seria muito diferente, na sua inexperiente opinião.
O dia seguinte seria um frenesim. E terça-feira, que segundo o planeado era o último dia de vida de Sam, seria um pesadelo de tensão.
Mas este domingo de manhã apresentava-se notavelmente calmo. Dormira quase sete horas, outro recente recorde. Tinha as ideias claras, o pulso normal, a respiração tranquila. Sentia o espírito liberto e organizado.
Folheou o jornal de domingo, estudando os cabeçalhos mas sem ler nada. Havia pelo menos duas histórias a respeito da execução Cayhall, uma delas com mais fotografias do circo crescente no exterior dos portões da prisão. A chuva parou quando o sol nasceu e ele sentou-se durante uma hora numa cadeira de baloiço molhada, folheando as revistas de arquitectura de Lee. Após umas horas de paz e tranquilidade, Adam sentiu-se pronto para a acção.
Havia uns assuntos inacabados no quarto de Lee, uma questão que Adam tentara esquecer mas não conseguira. Havia dez dias que uma luta silenciosa e terrível se travava no seu íntimo a respeito do livro na gaveta. Ela estava embriagada quando lhe falara da fotografia do linchamento, mas não fora a conversa delirante de uma alcoólica. Adam sabia que o livro existia. Existia um livro verdadeiro, com uma fotografia verdadeira de um jovem negro pendurado numa corda e, algures a seus pés, uma multidão de orgulhosos brancos, sorrindo para a câmara, livres de qualquer perseguição. Adam reconstruíra mentalmente a fotografia, acrescentando rostos, esboçando a árvore, desenhando a corda, acrescentando tí tulos ao espaço em baixo. Mas havia coisas que não sabia, que não conseguia visualizar. O rosto do homem morto seria visível? Estava de sapatos ou descalço? Um Sam muito jovem seria facilmente reconhecível? Quantos rostos brancos havia na fotografia? E que idade tinham? Haveria mulheres? Armas? Sangue? Lee dissera que ele fora chicoteado. O chicote apareceria na fotografia? Há dias que andava a imaginar a fotografia e estava na altura de ver finalmente o livro. Não podia esperar mais. Lee poderia fazer um regresso triunfante. Poderia deslocar o livro, escondê-lo novamente. Tencionava passar ali as duas ou três próximas noites, mas isso poderia mudar com um simples telefonema. Poderia ser obrigado a correr para Jackson ou a dormir no carro em Parchman. Assuntos de rotina como almoçar, jantar e dormir eram coisas imprevisíveis quando um cliente tinha menos de uma semana de vida.
Este era o momento perfeito e decidiu que estava agora preparado para enfrentar a multidão do linchamento. Foi até à porta da frente e inspeccionou o parque de estacionamento, apenas para se certificar de que ela não decidira aparecer. Trancou a porta do quarto dela e abriu a gaveta de cima. Estava cheia de roupa interior e ficou embaraçado com esta intrusão.
O livro estava na terceira gaveta, em cima de uma camisola desbotada. Era grosso e estava encadernado em tecido verde. Southern Negroes and the Great Depression. Publicado em 1947 pela Toffler Press de Pittsburgh. Adam pegou nele e sentou-se na beira da cama. As páginas estavam imaculadas e intactas, como se o livro nunca tivesse sido manuseado ou lido. De qualquer forma, quem no sul profundo leria um livro daqueles? E se o livro pertencera à família Cayhall durante várias décadas, então Adam tinha a certeza de que nunca fora lido. Estudou a capa e pensou que conjunto de circunstâncias teria colocado este determinado livro sob a custódia da familia de Sam Cayhall.
O livro tinha três secções de fotografias. A primeira era uma série de fotografias de barracas e cabanas onde os negros eram obrigados a viver nas plantações. Havia retratos de família nas portadas da frente com dúzias de crianças e as habituais fotografias de trabalhadores rurais agachados nos campos a apanhar algodão.
A segunda secção encontrava-se no centro do livro e tinha vinte páginas. Na realidade havia duas fotografias de linchamentos, a primeira uma cena horrivelmente macabra com dois membros do Klan cobertos pelas suas vestes brancas e capuzes, posando para a câmara com as suas espingardas. Um negro terrivelmente espancado pendia de uma corda atrás deles, os olhos entreabertos, o rosto esmagado e ensanguentado. Linchamento do KKK, Mississípi Central, 1939, explicava a legenda que a acompanhava, como se estes rituais pudessem simplesmente ser definidos pela data e pelo local
Adam resfolegou perante o horror da imagem e depois virou a página, para deparar com a segunda cena de linchamento; esta era quase mansa comparada com a primeira. O corpo sem vida na ponta da corda só era visível do peito para baixo. A camisa parecia estar rasgada, provavelmente pelo chicote, se na realidade tinha sido usado algum. O negro era muito magro, com as calças muito grandes firmemente atadas à cintura. Estava descalço. Não se via sangue.
A corda que lhe segurava o corpo era visível presa a um ramo mais baixo, ao fundo. A árvore era grande, com folhas volumosas e um tronco maciço.
Um grupo festivo reunira-se apenas uns centímetros abaixo dos pés pendentes. Homens, mulheres e crianças faziam palhaçadas para a câmara, alguns encenando poses exageradas de raiva e masculinidade - sobrolhos muito franzidos, olhos ferozes, lábios apertados, como se fossem senhores de um ilimitado poder de defenderem as suas mulheres contra as agressões dos negros: outros sorriam e pareciam dar risadas, especialmente as mulheres, duas das quais eram bastante bonitas; um rapazinho segurava uma pistola e apontava-a ameaçadoramente para a câmara; um jovem tinha na mão uma garrafa de bebida, virada de modo a revelar o rótulo. A maior parte do grupo parecia muito satisfeita com o sucedido. Adam contou dezassete pessoas no grupo e todas elas olhavam para a câmara sem vergonha ou preocupação, sem o mais ligeiro indício de que algo errado fora perpetrado. Estavam completamente imunes de qualquer acusação. Acabavam de matar outro ser humano e era dolorosamente evidente que o tinham feito sem medo das consequências.
Era uma festa. Era noite, o tempo estava quente, havia bebidas e belas mulheres. Sem dúvida que tinham trazido cestos de comida e estavam prestes a colocar as mantas no chão para um agradável piquenique debaixo da árvore.
Linchamento no Mississípi rural em 1936, dizia a legenda. Sam estava na primeira fila, agachado e apoiado sobre um joeLho entre dois outros jovens, todos os três em grande pose para a câmara. Tinha quinze ou dezasseis anos, com um rosto magro que tentava desesperadamente parecer perigoso - lábio levantado sobrancelhas espetadas, queixo erguido. A caricatura de um rapaz que tentava imitar os rufiões mais velhos que o rodeavam.
Era fácil de identificar porque alguém desenhara, a tinta azul desbotada, uma linha que cruzava a fotografia até à margem e escrevera em letras maiúsculas Sam Cayhall. A linha atravessava os corpos e os rostos dos outros e detinha-se perto da orelha esquerda de Sam. Eddie. Só podia ter sido o Eddie. Lee dissera que Eddie tinha encontrado o livro no sótão e Adam conseguia ver o pai, escondendo-se no escuro, a chorar sobre a fotografia, a identificar Sam apontando-lhe à cabeça uma seta acusadora.
Lee dissera também que o pai de Sam fora o líder daquela gentalha, mas Adam não conseguiu distingui-lo. Talvez Eddie também não o tivesse conseguido, pois não havia qualquer marca. Havia pelo menos sete homens com idade suficiente para serem o pai de Sam. Quantos deles seriam Cayhall? Ela dissera que os irmãos também tinham estado presentes e talvez um dos homens mais jovens se parecesse com Sam, mas era difícil ter a certeza.
Estudou os belos olhos límpidos do avô e sentiu uma dor no coração. Não passava de um rapaz, nascido e criado num lar onde o ódio aos negros e outras raças era simplesmente uma forma de vida. Que culpa lhe podia ser atribuída? Bastava olhar para os que o rodeavam, pai, familia, amigos, vizinhos, provavelmente todos gente honesta, pobre e trabalhadora, imortalizados para sempre no final de uma cerimónia que era vulgar na sua sociedade. Sam não tivera qualquer hipótese. Este era o único mundo que conhecia.
Como poderia Adam alguma vez reconciliar o passado com o presente? Como poderia julgar justamente estas pessoas e o seu horrível acto, quando por um simples acaso do destino ele próprio poderia estar entre eles, se tivesse nascido quarenta anos antes?
Ao olhar para os seus rostos, sentiu-se invadido por um estranho conforto. Embora Sam fosse obviamente um participante voluntário, era apenas um membro da multidão, apenas parcialmente culpado. Era evidente que os homens mais velhos de rostos severos tinham sido os instigadores do linchamento e que os outros tinham vindo assistir ao acontecimento. Olhando para a fotografia, era inconcebível pensar que Sam e os seus companheiros mais jovens tivessem iniciado esta brutalidade. Sam nada fizera para os deter. Mas talvez também não tivesse feito nada para os encorajar.
A cena deu origem a uma centena de perguntas sem resposta. Quem teria sido o fotógrafo e porque razão se encontraria ali com a sua máquina? Quem seria o jovem negro? Onde estava a família dele, a mãe? Como o teriam apanhado? Estaria na prisão e teria sido libertado pelas autoridades e entregue à multidão? O que teriam feito com o seu corpo depois de tudo acabado? A alegada vítima da violação seria uma das jovens mulheres que sorriam para a câmara? O pai dela seria um dos homens? Os irmãos dela?
Se Sam participara em linchamentos numa idade tão jovem, o que se poderia esperar dele depois de adulto? Com que frequência se juntaria esta gente para festejar desta maneira no Mississípi rural?
Como em nome de Deus poderia Sam Cayhall ter sido outra coisa além dele próprio? Nunca tivera outra hipótese.
Sam esperava pacientemente no gabinete da entrada, a beber um café de qualidade diferente. Era forte e aromático, ao contrário da mistura aguada que serviam aos reclusos todas as manhãs. Packer dera-lho numa grande chávena de papel. Sam estava sentado à secretária com os pés em cima de uma cadeira.
A porta abriu-se e o coronel Nugent entrou com Packer atrás. A porta fechou-se. Sam endireitou-se e lançou um animado cumprimento.
- Bom-dia, Sam - disse Nugent sombriamente. - Como estás?
- Óptimo. E tu? - Vou andando.
- Sim, eu sei que tens muito em que pensar. É muito duro para ti tentar organizar a minha execução e certificares-te de que tudo corre o melhor possível. Trabalho árduo. Tiro-te o chapéu.
Nugent ignorou o sarcasmo.
- Preciso de falar contigo sobre umas coisas. Agora os teus advogados dizem que estás doido e eu queria ver por mim próprio como estás.
- Sinto-me maravilhosamente.
- Bem, não há dúvida que pareces muito bem.
- Eh, obrigado. Também estás com bom aspecto. Belas botas. As botas de combate pretas brilhavam como habitualmente. - Packer olhou-as e fez uma careta.
- Sim - disse Nugent sentando-se numa cadeira e olhando para uma folha de papel. - A psiquiatra diz que não quiseste cooperar.
Quem?
- A doutora Stegall.
- Aquela rapariga do rabo grande com um primeiro nome incompleto? Só falei com ela uma vez.
- Não quiseste cooperar?
- Certamente que não. Há quase dez anos que cá estou e finalmente ela aparece, quando já tenho um pé na cova, para ver como estou. Tudo o que queria era encher-me de drogas, para que eu estivesse completamente pedrado quando vocês, seus palhaços, viessem buscar-me. Facilita o vosso trabalho, não é?
- Ela só estava a tentar ajudar.
- Então que Deus a abençoe. Digam-lhe que lamento. Nunca mais volta a acontecer. Passem-me um RVR. Ponham no meu processo.
- Temos que falar da tua última refeição.
- Porque é que o Packer está aqui?
Nugent olhou para Packer e depois para Sam.
- Porque é do regulamento.
- Está aqui para te proteger, não é? Tens medo de mim. Tens medo de ficar sozinho comigo nesta sala, não tens, Nugent? Tenho quase setenta anos, fraco como o diabo, meio morto devido aos cigarros e tu tens medo de mim, um assassino condenado?
- Nem um pouco.
- Se eu quisesse, Nugent, esborrachava-te de encontro às paredes.
- Estou aterrorizado. Olha, Sam, vamos ao que interessa. O que gostarias de ter para a tua última refeição?
- Hoje é domingo. A minha última refeição está marcada para terça-feira à noite. Porque me estás a incomodar com isso agora?
- Temos que fazer planos. Podemos arranjar qualquer coisa, dentro de limites razoáveis.
- Quem vai cozinhar?
- Será preparada pela nossa cozinha.
- Oh, que maravilha! Pelos mesmos talentosos chefes que há nove anos e meio me servem mistelas. Que forma maravilhosa de morrer!
- O que gostarias de comer, Sam? Estou a tentar ser razoável.
- Que tal pão torrado e cenouras cozidas? Detestava sobrecarregá-los com algo de novo.
- Muito bem, Sam. Quando decidires, diz ao Packer para ele notificar a cozinha.
- Não vai haver nenhuma última refeição, Nugent. O meu advogado vai descarregar a artilharia pesada amanhã. Vocês, seus palhaços, nem vão saber o que os atingiu.
- Espero que tenhas razão.
- És um filho da mãe de um mentiroso. Mal podes esperar para me conduzires lá e me amarrares. Ficas tonto só de pensar em perguntar-me se tenho algumas últimas palavras a dizer e depois acenar a um dos teus lacaios para fechar a porta. E quando tudo estiver terminado, enfrentarás a imprensa com uma expressão triste e dirás que À meia-noite e quinze desta madrugada, dia 8 de Agosto, Sam Cayhall foi executado na câmara de gás, de acordo com a sentença do Tribunal de Círculo de Lake ead County, Mississípi, Será a tua hora de glória, Nugent. Não mintas.
O coronel não levantou os olhos da folha de papel.
- Precisamos da lista de testemunhas.
- Fala com o meu advogado.
- E precisamos de saber o que fazer com as tuas coisas.
- Fala com o meu advogado.
- Muito bem. Temos numerosos pedidos de entrevistas da imprensa.
- Fala com o meu advogado.
Nugent pôs-se de pé de um salto e saiu do gabinete como um furacão. Packer segurou a porta, esperou alguns segundos e depois disse calmamente:
- Fica aí sentado, Sam, há mais alguém que te quer ver. Sam sorriu e piscou o olho a Packer.
- Então, arranja-me um pouco mais de café, por favor Packer. Packer levou a chávena e regressou com ela momentos mais tarde. Também deu a Sam o jornal de domingo de Jackson e Sam estava a ler todo o género de histórias acerca da sua execução quando o capelão, Ralph Griffin, bateu à porta e entrou.
Sam colocou o jornal em cima da secretária e examinou o pastor. Griffin usava ténis, jeans desbotados e uma camisa preta com um colarinho branco de clérigo.
- Bom-dia, reverendo - disse Sam bebendo o café.
- Como está, Sam? - perguntou Griffin enquanto puxava uma cadeira para junto da secretária e se sentava.
- Neste momento tenho o coração cheio de ódio – disse Sam, gravemente.
- Lamento. E contra quem?
- O coronel Nugent. Mas vai passar.
- Tem rezado, Sam?
Na verdade não.
- Porque não?
- Qual é a pressa? Ainda tenho hoje, amanhã e terça-feira. Calculo que eu e o senhor vamos rezar muito na terça- feira à noite.
- Se quiser. É consigo. Estarei aqui.
- Quero que fique comigo até ao último momento, reverendo, se não se importar. O senhor e o meu advogado. Vocês estão autorizados a ficar comigo durante as minhas últimas horas.
- Será uma honra.
- Obrigado.
- Exactamente acerca de que é que quer rezar?
Sam bebeu um longo gole de café.
- Bem, em primeiro lugar, quando deixar este mundo gostaria de saber que tudo o que fiz de mal foi perdoado.
- Os seus pecados?
- Exactamente.
- Deus espera que Lhe confessemos os nossos pecados e lhe peçamos perdão.
- Todos? Um por um?
- Sim, aqueles de que nos consigamos lembrar.
- Então é melhor começar já. Vai demorar algum tempo.
- Como quiser. E vai querer rezar para que mais?
- Pela minha família. Isto vai ser duro para o meu neto, para o meu irmão e talvez para a minha filha. Não serão derramadas muitas lágrimas por mim, mas gostaria que eles fossem confortados. E gostaria de dizer uma oração pelos meus amigos daqui, do Corredor. Vai ser difícil para eles.
- Mais alguém?
- Sim, gostaria de dizer uma boa oração pelos Kramer, essencialmente por Ruth. - A família das vítimas?
- Exactamente. E também pelos Lincoln.
- Quem são os Lincoln?
- É uma história muito comprida. Mais vítimas.
- Isto é bom, Sam. Precisa de tirar isso de dentro de si, de limpar a sua alma.
- Levaria muitos anos para limpar a minha alma, reverendo.
- Mais vítimas?
Sam colocou a chávena em cima da secretária e esfregou lentamente as mãos uma na outra. Procurou os olhos calorosos e confiantes de Ralph Griffin.
- E se houvesse mais vítimas? - perguntou.
- Mortos?
Sam confirmou com a cabeça muito lentamente.
- Pessoas que o senhor matou?
Sam continuou a dizer que sim com a cabeça.
Grifin respirou fundo e pensou no caso por um momento.
- Bem, Sam, para ser totalmente honesto, eu não gostaria de morrer sem confessar esses pecados e pedir perdão a Deus.
Sam continuou a dizer que sim com a cabeça.
- Quantos? - Perguntou Grifin.
Sam tirou os pés de cima da secretária e calçou os sapatos de borracha. Acendeu lentamente um cigarro e começou a andar para trás e para diante em frente da cadeira de Griffin. O reverendo mudou de posição para poder ver e ouvir Sam.
- Houve o Joe Lincoln, mas já escrevi uma carta à familia dizendo-lhes que lamentava.
- Matou-o?
- Sim. Era um africano. Vivia na nossa propriedade. Sempre senti remorsos. Foi por volta de mil novecentos e cinquenta. Sam encostou-se a um armário de arquivo. Falou para o chão, como num estupor.
- E houve dois homens, dois brancos, que mataram o meu pai num funeral, há muitos anos. Estiveram algum tempo na prisão.
- quando saíram eu e os meus irmãos esperámos pacientemente e Matámos ambos, mas para ser honesto nunca o lamentei muito.
Eram escumalha e tinham assassinado o nosso pai.
- Matar é sempre errado, Sam. Neste momento, está a enfrentar o seu próprio assassínio legal.
- Eu sei.
- O Sam e os seus irmãos foram apanhádos?
- Não. O velho xerife suspeitou de nós, mas não conseguiu provar nada. Fomos muito cuidadosos. Além disso, eles eram autênticos vermes e ninguém se importou muito.
- Isso não desculpa nada.
- Eu sei. Sempre pensei que eles mereciam o que tiveram até ser mandado para aqui. A vida tem um novo significado quando nos encontramos no corredor da morte. Compreendemos como é valiosa.
Agora lamento ter morto aqueles homens. Lamento mesmo.
- Mais alguém?
Sam percorreu todo o comprimento da sala, contando cada passo, e regressou ao armário de arquivo. O pastor aguardou.
Neste momento o tempo não significava nada.
- Houve alguns linchamentos há uns anos - disse Sam, sem conseguir olhar Griffin nos olhos.
- Dois?
- Talvez três, acho eu. Não, sim, houve três, mas no primeiro eu não passava de um garoto e tudo o que fiz foi observar atrás dos arbustos. Era um linchamento do Klan, o meu pai participou nele e eu e o meu irmão Albert escapámos para os bosques e ficámos a ver. Portanto, isso não conta, pois não?
- Não.
Os ombros de Sam enterraram-se contra a parede. Fechou os olhos e baixou a cabeça.
- O segundo foi com uma multidão normal. Eu tinha cerca de quinze anos, suponho, e estive no meio de tudo. Uma rapariga fora violada por um africano, pelo menos ela disse que foi violação. A sua reputação deixava muito a desejar e dois anos mais tarde teve um bebé mulato, por isso, quem sabe? De qualquer forma, ela apontou o dedo, nós agarrámos o rapaz, levámo-lo para os bosques e linchámo-lo. Fui tão culpado como os outros.
- Deus vai perdoar-lhe, Sam.
- Tem a certeza?
- Absoluta.
- Quantos assassínios perdoará ele?
- Todos. Se pedir sinceramente perdão, ele limpará tudo. Está nas Escrituras.
- É demasiado bom para ser verdade.
- E o outro linchamento?
Sam começou a sacudir a cabeça para trás e para a frente, com os olhos fechados.
- Agora não posso falar desse, padre - disse ele respirando pesadamente.
- Não tem que me falar dele, Sam. Basta que fale a Deus.
- Não sei se conseguirei falar disto a alguém.
- Claro que consegue. Feche os olhos uma destas noites, entre hoje e terça-feira, enquanto estiver na sua cela e confesse todos esses actos a Deus. Ele perdoar-Lhe-á imediatamente.
- Não parece certo, sabe. Matamos alguém e depois, numa questão de minutos, Deus perdoa-nos. Assim. É fácil demais.
- Tem que estar verdadeiramente arrependido.
- Oh, estou, Juro!
- Deus esquece, Sam, mas o homem não. Respondemos perante Deus, mas também respondemos perante a lei dos homens. Deus perdoa, mas vai sofrer as consequências do seu acto segundo as ordens do governo.
- Que se lixe o governo! De qualquer forma, estou pronto para partir.
- Bem, vamos certificar-nos de que está preparado, certo? Sam caminhou até à secretária e sentou-se a um canto ao lado de Griffim.
- Fique por perto, sim, reverendo? Posso precisar de ajuda. Há algumas coisas muito más enterradas na minha alma. Poderei levar algum tempo a tirá-las para fora.
- Não será difícil, Sam, se estiver realmente preparado. Sam deu-lhe uma palmada no joelho.
- Fique por perto, sim?
O gabinete da entrada estava cheio de fumo azul quando Adam entrou. Sam estava a fumar à secretária, a ler acerca de si próprio no jornal de domingo. Três chávenas de café vazias e vários papéis de rebuçados enchiam a secretária.
- Instalou-se como em casa, hem? - perguntou Adam reparando no lixo.
- Sim, tenho estado aqui o dia todo.
- Muitas visitas?
- Não lhes chamaria visitas. O dia começou com o Nugent, o que estragou logo as coisas. O pastor passou por aqui para saber se tenho rezado. Acho que saiu daqui deprimido. Depois veio o médico para ver se tinha saúde suficiente para me matarem. Seguidamente, o meu irmão Donnie passou por aqui para uma curta visita. Quero mesmo que o conheças. Diz-me que trazes boas notícias.
Adam abanou a cabeça e sentou-se.
- Não. Nada mudou desde ontem. Os tribunais estão a gozar o fim-de-semana.
- Eles compreenderão que os sábados e os domingos também contam? Que para mim o relógio não pára durante o fim-de- semana?
- Podem ser boas notícias. Podem estar a ponderar os meus brilhantes recursos.
- Talvez, mas suspeito que os meritíssimos irmãos se encontrem mais provavelmente nas suas casas-de-campo a beber cerveja e a grelhar costeletas, não achas?
- Sim, provavelmente tem razão. O que diz o jornal?
- Algumas velhas histórias sobre mim e o meu crime brutal. fotografias daquelas pessoas que se manifestam lá fora, comentários do McAllister. Nada de novo. Nunca vi tanta excitação!
- É o homem do momento, Sam. Wendall Sherman e o seu editor já vão em cento e cinquenta mil, mas o prazo é até às seis desta tarde. Ele está em Memphis com os seus gravadores, ansioso por vir até cá. Diz que vai precisar pelo menos de dois dias inteiros para gravar a sua história.
- Óptimo. O que será suposto eu fazer exactamente com o dinheiro?
- Deixá-lo aos seus preciosos netos.
- Estás a falar a sério? Gastavas esse dinheiro? Se o queres, eu faço-o.
- Não, estava só a brincar. Não quero o dinheiro e a Carmen também não precisa dele. Não poderia gastá-lo de consciência tranquila.
- Ainda bem. Porque a última coisa que quero fazer entre hoje e terça-feira é sentar-me em frente de um estranho e falar do passado. Não me interessa quanto dinheiro ele tem. Prefiro que ninguém escreva um livro acerca da minha vida.
- Já lhe disse para esquecer.
- Bom rapaz! - Sam pôs-se de pé e começou a percorrer a sala de um lado ao outro. - Não consigo suportar esta espera. Juro que preferia que fosse já esta noite.
Ficou subitamente nervoso e irritável, com a voz mais aguda. Adam pôs o jornal de lado.
- Vamos ganhar, Sam. Confie em mim.
- Ganhar, o quê? - gritou ele, furioso. - Ganhar um adiamento? Grande coisa! O que ganhamos com isso? Seis meses? Um ano? Sabes o que isso significa? Significa que teremos de passar por tudo isto novamente um destes dias. Terei que repetir mais uma vez todo o maldito ritual - contar os dias, perder o sono, traçar estratégias de última hora, ouvir o Nugent ou qualquer outro palerma, falar com o psiquiatra, murmurar ao ouvido do capelão, levar palmadinhas nas costas e ser conduzido aqui, a este cubículo porque sou especial - parou em frente de Adam e olhou-o com irritação. Tinha uma expressão zangada no rosto, os olhos húmidos e amargos. - Estou farto disto, Adam! Escuta-me! Isto é pior do que a morte.
- Não podemos desistir, Sam.
- Nós? Quem diabo somos nós? É o meu pescoço que está em jogo, não o teu. Se eu conseguir uma suspensão, tu voltas para o teu luxuoso escritório de Chicago e continuas com a tua vida. Serás um herói, porque salvaste o teu cliente. Terás a fotografia no Lawyer Quarterly ou seja o que for que vocês lêem. A brilhante jovem estrela que pintou a manta no Mississípi. A propósito, que salvou o avô, um perverso membro do Klan. Pelo seu lado, o teu cliente será levado de volta à sua pequena jaula, onde começará novamente a contar os dias - Sam atirou o cigarro para o chão e agarrou Adam pelos ombros. - Olha para mim, filho. Não serei capaz de passar por isto outra vez. Quero que pares tudo. Desiste. Telefona para os tribunais e diz-lhes que retiramos todas as petições e recursos. Sou um velho. Por favor, deixa-me morrer com dignidade.
Tinha as mãos a tremer e a respiração era penosa. Adam procurou os seus brilhantes olhos azuis, cercados por camadas de rugas escuras e viu uma lágrima solitária escapar-se de um dos cantos e escorregar-lhe lentamente pela face, até desaparecer na barba cinzenta.
Pela primeira vez, Adam sentiu o cheiro do avô. O forte aroma da nicotina misturado com o odor do suor seco, formando um cheiro desagradável. No entanto, não era tão repulsivo como o seria numa pessoa com pleno acesso à água quente e ao sabão, ar condicionado e desodorizante. Depois da segunda inspiração, deixou de incomodar Adam.
- Não quero que morra, Sam.
Sam encolheu os ombros com mais força.
- Porque não? - perguntou.
- Porque acabei de o encontrar. É o meu avô.
Sam ficou a olhar durante mais um segundo e depois acalmou-se. Soltou Adam e recuou um passo.
- Lamento que me tenhas encontrado assim - disse ele limpando os olhos.
- Não peça desculpa.
- Mas tenho que pedir. Lamento não ser um avô melhor. Olha para mim - disse ele, olhando para baixo para as suas pernas. Um velho mau de fato-macaco vermelho. Um criminoso condenado, prestes a ser gaseado. E olha para ti. Um belo jovem com uma excelente educação e um futuro brilhante. Onde diabo é que eu errei? O que me aconteceu? Passei a minha vida a odiar as pessoas e olha o que me restou. Tu, tu não odeias ninguém. E vê para onde te diriges. Temos o mesmo sangue. Porque estou eu aqui?
Sam sentou-se lentamente numa cadeira, pôs os cotovelos sobre os joelhos e cobriu os olhos. Nenhum deles se moveu nem falou durante muito tempo. Era possível ouvir ocasionalmente a voz de um guarda no corredor, mas a sala estava em silêncio.
- Sabes, Adam, preferia não morrer desta forma horrível - disse Sam asperamente com os punhos apoiados nas têmporas ainda a olhar fixamente para o chão. Mas agora a morte em si já não me preocupa. Já sabia há muito tempo que havia de morrer aqui e o meu maior medo era morrer sabendo que ninguém se
importava. É uma ideia terrível, sabes. Morrer sem que ninguém se importe. Sem ninguém para chorar e lamentar, para prantear correctamente no funeral. Tive sonhos em que via o meu corpo num caixão de madeira barata no chão de uma casa funerária em Clanton e ninguém estava ali comigo. Nem mesmo o Donnie.
Nesse mesmo sonho, o pastor ria durante todo o funeral, porque éramos só nós os dois, sozinhos na capela, filas e filas de bancos vazios. Mas agora é diferente. Sei que alguém se importa comigo.
sei que vais ficar triste quando eu morrer porque gostas de mim e sei que estarás lá quando eu for enterrado, para garantir que tudo é feito do modo adequado. Agora estou realmente preparado para partir, Adam. Estou preparado.
- Muito bem, Sam. Respeito isso. E prometo que estarei consigo até ao fim e que chorarei e me afligirei e que, depois de tudo terminado, velarei para que seja enterrado adequadamente.
Ninguém vai fazer pouco de si enquanto eu estiver por perto, Sam.
Mas, por favor, veja as coisas pelos meus olhos. Tenho que tentar o meu melhor, porque sou jovem e tenho o resto da vida. Não me deixe ir embora sabendo que poderia ter feito mais. Não é justo para mim.
Sam cruzou os braços sobre o peito e olhou para Adam. O rosto pálido estava calmo, os olhos ainda húmidos.
- Vamos fazer assim - disse ele, a voz ainda baixa e magoada. - Estou pronto para partir. Vou passar o dia de amanhã e de terça-feira a fazer os preparativos finais. Vou partir do princípio de que vai acontecer à meia-noite de terça-feira e estarei preparado. Tu, por teu lado, vais agir como se fosse um jogo. Se conseguires ganhar, óptimo para ti. Se perderes, eu estarei pronto.
- Então, vai cooperar?
- Não. Não há audiência de clemência. Não há mais petições nem apelos. Já tens bastantes porcarias a flutuar à tua volta para te manter ocupado. Duas questões ainda estão vivas. Não assino mais petições.
sam levantou-se, os joelhos decrépitos estalando e vacilando.
Dirigiu-se para a porta e encostou-se a ela.
- E a Lee? - perguntou suavemente, estendendo a mão para os cigarros.
- Ainda está em recuperação - mentiu Adam. Sentia-se tentado a confessar a verdade. Parecia uma infantilidade estar a mentir a Sam nas últimas horas da sua vida, mas Adam ainda tinha uma forte esperança de que Lee aparecesse antes de terça-feira. Quer vê- la?
- Acho que sim. Ela pode sair?
- Pode ser difícil, mas vou tentar. Está mais doente do que eu julguei a princípio.
- Ela é alcoólica?
- Sim.
- Só isso? Não toma drogas?
- Só álcool. Disse-me que o problema já tem muitos anos.
Não é a sua primeira cura.
- Que Deus a abençoe. Os meus filhos não tiveram sorte.
- Ela é uma excelente pessoa. Teve problemas sérios com o casamento. O filho saiu de casa muito jovem e nunca mais voltou.
- O Walt, não é?
- Sim - respondeu Adam. Que lamentável grupo de gente! Sam nem sequer tinha a certeza do nome do neto.
- Que idade tem ele?
- Não tenho a certeza. Provavelmente é quase da minha idade. - Ele sabe ao menos da minha existência?
- Não sei. Desapareceu há muitos anos. Vive em Amesterdão. Sam pegou numa chávena em cima da secretária e bebeu um gole de café frio.
- E a Carmen? - perguntou ele.
Adam olhou instintivamente para o relógio.
- Vou buscá-la ao aeroporto de Memphis daqui a três horas. Virá aqui de manhã.
- Isso assusta-me de morte.
- Calma, Sam. Ela é uma pessoa extraordinária. É esperta, ambiciosa, bonita e eu contei-Lhe tudo a seu respeito.
- Porque fizeste isso?
- Porque ela queria saber.
- Pobre criança. Disseste-Lhe qual era o meu aspecto?
- Não se preocupe, Sam. Ela não se interessa pelo seu aspecto.
- Disseste-lhe que não sou um monstro selvagem? - Disse-lhe que era um querido, um verdadeiro amor, um tipo pequeno e delicado com um brinco, um rabo-de-cavalo, pulso fraco e esses lindos sapatos de borracha sobre os quais parece deslizar. - Vai-te lixar!
- E que parecia ser o preferido dos rapazes aqui da prisão.
- Estás a mentir! Não lhe disseste nada disso! - Sam estava a sorrir, mas meio sério e a sua preocupação era divertida. Adam riu, talvez demasiado alto e por demasiado tempo, mas o humor foi bem-vindo. Riram ambos e tentaram parecer o mais divertidos possível com o seu senso de humor. Tentaram prolongar o momento, mas em breve a leveza se dissipou e a gravidade voltou a instalar-se. Em breve estavam sentados lado a lado na beira da secretária, cada um com os pés em cima de uma cadeira, olhando para o chão, enquanto pesadas nuvens de fumo de cigarro ferviam acima deles no ar imóvel.
Havia tanto para conversar e no entanto tão pouco para dizer. As teorias e acções legais estavam completamente esgotadas. A família era um assunto que tinham discutido o mais exaustivamente possível. O tempo só servia para cinco minutos de conjecturas. E ambos os homens sabiam que iam passar juntos a maior parte dos dois dias seguintes. Os assuntos sérios podiam esperar. Os assuntos desagradáveis podiam ser adiados um pouco mais. Por duas vezes Adam olhou para o relógio e disse que era melhor ir andando e de ambas as vezes Sam insistiu para que ficasse. Porque quando o Adam se fosse embora, viriam buscá-lo para o levar de volta à sua cela, a sua pequena jaula onde a temperatura era superior aos quarenta graus. Por favor, fica, suplicou ele.
Muito tarde nessa noite, muito depois da meia-noite, muito depois de Adam ter contado a Carmen tudo acerca de Lee e dos seus problemas e acerca de Phelps e de Adam, de McAllister e de Wyn Lettner e da sua teoria do cúmplice, depois de terem terminado a pizza e de terem discutido acerca da mãe, do pai, do avô e de todo o patético bando, Adam disse que o único momento que nunca esqueceria seria aquele em que ambos tinham estado sentados na secretária, gastando o tempo em silêncio enquanto um relógio invisível continuava a avançar, com o Sam a dar-lhe palmadinhas nos joelhos. Era como se ele tivesse de tocar-me de um modo afectuoso, explicou-lhe ele, como um bom avô tocaria um neto pequeno e muito amado.
Carmen ouvira o suficiente para uma noite só. Ele referira os pontos altos e omitira os vales lamentosos - não fizera qualquer menção a Joe Lincoln, aos linchamentos ou a outros possíveis crimes. Retratou Sam como um homem violento que cometera erros terríveis e agora estava acabrunhado de remorso. Tinha brincado com a ideia de lhe mostrar o vídeo dos julgamentos de Sam, mas decidira não o fazer. Fá-lo-ia mais tarde. Ela não aguentaria mais numa só noite. Por vezes, não conseguia acreditar nas coisas que soubera nas últimas quatro semanas. Seria cruel atirar- lhe tudo para cima de uma só vez. Amava ternamente a irmã. Tinham muitos anos para discutir o resto da história.
Segunda-feira, seis de Agosto, seis horas da manhã. Faltavam quarenta e duas horas. Adam entrou no seu gabinete e fechou a porta.
Esperou até às sete e depois telefonou para o escritório de Slattery em Jackson. Claro que não obteve resposta, mas tinha esperado uma mensagem gravada que eventualmente Lhe indicasse outro número, que o conduzisse a alguém que lhe pudesse dizer alguma coisa. Slattery estava a atrasar a alegação de insanidade, a ignorá-la, como se não passasse de mais uma acção qualquer.
Telefonou para as informações e obteve o número da residência de F. Flynn Slattery, mas decidiu não o incomodar. Podia esperar até às nove.
Adam dormira menos de três horas. Tinha o pulso acelerado e a adrenalina estava a subir. Neste momento só restavam ao seu cliente quarenta e duas horas e, raios, Slattery devia decidir rapidamente de uma forma ou de outra. Não era justo guardar a maldita alegação, quando podia correr com ela para junto de outros tribunais.
O telefone tocou e ele atendeu imediatamente. O Adjunto da morte do Quinto Tribunal de Círculo informou-o de que o tribunal recusara o recurso da alegação de representação legal ineficaz de Sam. Segundo o tribunal a alegação era extemporânea. Deveria ter sido apresentada há anos. O tribunal não entrara no mérito da questão.
- Então, porque razão a atrasou uma semana? - perguntou Adam. - Podiam ter chegado a esta miserável decisão há dez dias. - Vou enviar-lhe imediatamente uma cópia por fax - disse o adjunto.
- Obrigado. Desculpe, sim?
- Mantenha-se em contacto, Mr. Hall. Estaremos à sua
espera.
Adam desligou e foi à procura de café. Darlene chegou, cansada, perturbada e adiantada, às sete e meia. Trouxe-lhe o fax do Quinto Tribunal de Círculo e um pão de passas. Adam pediu-lhe que enviasse por fax ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos o pedido de revisão da alegação de representação legal ineficaz. Já estava preparado há três dias e Mr. Olander em Washington dissera a Darlene que o tribunal já estava a revê-lo.
Em seguida, Darlene trouxe duas aspirinas e um copo de água. Tinha a cabeça a estalar, enquanto arrumava o processo Cayhall numa grande pasta e numa caixa de cartão. Entregou a Darlene uma lista de instruções.
Depois saiu do escritório, a filial de Memphis da Kravitz & Bane, para nunca mais voltar.
O coronel Nugent esperou impacientemente que a porta da fileira se abrisse e depois correu para o corredor com oito membros seleccionados da sua equipa de execução atrás de si. Inva diram a tranquilidade da Fileira A com toda a finura de um esquadrão da Gestapo - oito homens enormes, metade uniformizados e a outra metade em roupas normais, seguindo um pequeno galo pomposo. Parou junto da cela seis, onde Sam estava deitado na cama, a pensar na vida. Os outros reclusos ficaram instantaneamente alerta, a observar e a ouvir, com os braços pendurados para fora das grades.
- Sam, está na altura de ir para a Cela de Observação - disse Nugent como se isto o incomodasse verdadeiramente. Os seus homens estavam alinhados ao longo da parede atrás dele, por baixo da fila de janelas.
Sam levantou-se lentamente da cama e aproximou-se das grades. Olhou zangado para Nugent e perguntou:
- Porquê?
- Porque eu o disse.
- Mas porquê mudar-me para oito portas mais adiante? Qual o objectivo disso?
- É o procedimento, Sam. Está no livro.
- Portanto não tens uma boa razão, pois não?
- Não preciso de nenhuma. Volta-te.
Sam encaminhou-se para o lavatório e escovou os dentes durante muito tempo. Depois pôs-se de pé voltado para a sanita e urinou de mãos nas ancas. Em seguida, lavou as mãos, enquanto Nugent e os seus rapazes esperavam e fumegavam. Finalmente, acendeu um cigarro, meteu-o entre os dentes e colocou as mãos atrás das costas pela estreita abertura da porta. Nugent apertou-lhe as algemas em torno dos pulsos e acenou para o fim da fileira, para abrirem a porta. Sam avançou para a fileira. Fez um aceno de cabeça a J. B. Gullit, que estava a observar horrorizado e pronto para chorar. Piscou o olho a Hank Henshaw.
Nugent pegou-lhe no braço e conduziu-o até ao fim do corredor, para além de Gullitt, Loyd Eaton, Stock Turner, Harry Ross Scott, Buddy Lee Hams e, finalmente, do Preacher Boy, que nesse momento estava deitado na cama, de cara para baixo, a chorar. A fileira acabava numa parede de grades de ferro semelhantes às das celas e esta parede tinha uma pesada porta ao centro. Do outro lado, encontrava-se um grupo dos bonecos de Nugent, a observar tranquilamente e a gozar cada momento. Atrás deles, ficava um pequeno corredor estreito, que conduzia à Sala de Isolamento e em seguida a câmara.
Sam estava a ser deslocado para catorze metros mais perto da morte. Encostou-se à parede, a fumar e a observar num estóico silêncio. Não era nada de pessoal, era apenas parte da rotina.
Nugent voltou à cela seis e deu algumas ordens. Quatro dos guardas entraram na cela de Sam e começaram a recolher os seus bens. Livros, máquina de escrever, ventoinha, televisão, objectos de toilette, roupas. Pegaram nos objectos como se estivessem contaminados e transportaram-nos para a Cela de Observação. O colchão e as roupas de cama foram enrolados e levados por um guarda vestido à paisana que tropeçou acidentalmente num dos lençóis e o rasgou.
Os reclusos observaram este súbito acesso de actividade com uma curiosidade triste. As suas pequenas celas atravancadas eram como uma segunda camada de pele e ver uma tão impiedosamente violada era doloroso. Podia acontecer a qualquer deles. A realidade da execução estava a instalar-se lentamente; podiam ouvi-la nas pesadas botas que percorriam a fileira e nas vozes graves e rispidas da equipa da morte. Há uma semana o bater distante de uma porta mal teria sido notado. Agora, era um choque violento que fazia estremecer os nervos.
Os oficiais andaram para trás e para diante com os bens de Sam, até que a cela seis ficou vazia. Foi um trabalho rápido. Colocaram as coisas na sua nova casa sem o mais pequeno cuidado.
Nenhum dos oito trabalhava no Corredor. Nugent lera algures nas notas aleatórias de Naifeh que os membros da equipa de execução deviam ser totalmente estranhos ao recluso. Deveriam ser escolhidos nos outros campos. Trinta e um oficiais e guardas tinham-se oferecido voluntariamente para este dever. Nugent escolheu apenas os melhores.
- Já está tudo? - perguntou rudemente a um dos seus homens.
- Sim senhor.
- Muito bem. É tudo teu, Sam.
- Oh, obrigado, senhor - rosnou Sam entrando na cela. Nugent acenou com a cabeça para a extremidade mais distante do corredor e a porta fechou-se. Avançou e agarrou-se às grades com ambas as mãos.
- Agora escuta, Sam - disse ele gravemente. Sam estava de costas para a parede, sem olhar para Nugent. - Se precisares de alguma coisa estaremos aqui. Mudámos-te para aqui, para a extremidade, para podermos vigiar-te melhor. Está bem? Posso fazer alguma coisa por ti?
Sam continuou a olhar para outro lado, ignorando-o completamente.
- Muito bem - Nugent recuou e olhou para os seus homens.
- Vamos. - ordenou-lhes. A porta da fileira abriu-se a menos de três metros de Sam e a equipa da morte saiu. Sam esperou. Nugent olhou para cima e para baixo do corredor e, em seguida, saiu da fileira.
- Ei, Nugent! - gritou Sam subitamente. - Que tal tirares-me estas algemas?
Nugent ficou imóvel e a equipa da morte parou.
- Seu estúpido! - gritou Sam novamente, enquanto Nugent se apressava a voltar para trás, procurando as chaves e gritando ordens. As gargalhadas irromperam em toda a fileira, grandes gargalhadas sonoras, ladridos e miados. - Não podes deixar-me algemado! - gritou Sam para o corredor.
Nugent estava à porta de Sam, a ranger os dentes e a praguejar, encontrando finalmente a chave certa.
- Vira-te - pediu.
- Seu filho da mãe ignorante! - gritou Sam através das grades directamente para o rosto vermelho do coronel que se encontrava a menos de sessenta centímetros. As gargalhadas ecoaram ainda mais altas.
- E estás encarregado da minha execução! - disse Sam, zangado e bastante alto para que todos ouvissem. - Provavelmente acabas por gasear-te a ti mesmo!
- Não apostes! - disse Nugent severamente. - Agora vira-te!
Alguém, Hank Henshaw ou Harry Ross Scott, lançou o grito:
- Barney Fife!
E instantaneamente o canto reverberou por toda a fileira.
- Barney Fife! Barney Fife! Barney Fife!
- Calem-se! - gritou Nugent em resposta.
- Barney Fife! Barney Fife!
- Calem-se!
Finalmente Sam voltou-se e estendeu as mãos para fora, para que Nugent pudesse chegar-lhes. As algemas foram retiradas e o coronel dirigiu-se em passos rápidos para a porta da fileira.
- Barney Fife! Barney Fife! Barney Fife! - entoaram eles num coro perfeito, até que a porta se fechou e o corredor ficou novamente deserto. As vozes extinguiram-se subitamente, as gargalhadas desvaneceram-se. Lentamente, os braços desapareceram das grades.
Sam ficou de pé a olhar para o corredor e olhou intensamente para os guardas que estavam a observá-lo do outro lado da porta da fileira. Gastou alguns minutos a arrumar a nova cela - a ligar a ventoinha e a televisão, a empilhar os livros cuidadosamente como se ainda fosse usá-los, verificando se a sanita deitava água e se a água corria. Sentou-se na cama e examinou o lençol rasgado.
Esta era a sua quarta cela no Corredor e, sem dúvida, aquela que ocuparia durante menos tempo. Recordou as duas primeiras, especialmente a segunda, na Fileira B, ao lado da qual vivia o seu grande amigo Buster Moac. Um dia foram buscar o Buster e levaram-no para ali, para a Cela de Observação, onde o vigiavam vinte e quatro horas por dia para que não se suicidasse. Sam chorou quando levaram o Buster.
Virtualmente todos os reclusos que chegavam tão longe passavam à fase seguinte. E depois à última.
Garner Goodman foi o primeiro convidado do dia no esplêndido átrio do gabinete do governador. Assinou o livro dos visitantes, conversou amavelmente com a linda recepcionista e só queria que o governador soubesse que estava à sua disposição. Ela estava prestes a dizer qualquer coisa quando o telefone tocou no seu painel. Premiu um botão, fez uma careta, ouviu, franziu a testa na direcção de Goodman, que afastou o olhar, depois agradeceu ao interlocutor.
- Esta gente! - suspirou.
- Desculpe? - disse Goodman, com uma expressão inocente.
- Estamos a ser inundados de telefonemas sobre a execução do seu cliente.
- Sim, é um caso muito emotivo. Parece que a maior parte das pessoas daqui é a favor da pena de morte.
- Este não - respondeu ela, registando a chamada num
impresso cor-de-rosa. - Quase todas estas chamadas são contra a execução.
- Não me diga! Que surpresa!
- Vou informar Ms. Stark da sua presença.
- Obrigado - Goodman ocupou o seu lugar habitual no
átrio. Olhou novamente para os jornais da manhã. No sábado, o jornal diário de Tupelo cometera o erro de iniciar uma sondagem telefónica para auscultar a opinião pública acerca da execução Cayhall. Um número grátis era publicado na primeira página com as devidas instruções e, evidentemente, Goodman e a sua equipa de analistas de mercado bombardearam o número durante todo o fim-de-semana. A edição de segunda-feira publicava os resultados e estes eram surpreendentes. Das trezentas e vinte chamadas, trezentas e duas eram contra a execução. Goodman sorriu para si próprio enquanto folheava o jornal.
Não muito longe dali, o governador estava sentado à comprida mesa do seu gabinete a folhear os mesmos jornais. O rosto ostentava uma expressão preocupada. Tinha os olhos tristes e pensativos.
Mona Stark atravessou o chão de mármore com uma chávena de café.
- O Garner Goodman está aqui. Está à espera no átrio.
- Deixe-o esperar.
- A linha aberta já está inundada.
McAllister olhou calmamente para o relógio. Onze minutos para as nove. Coçou o queixo com os nós dos dedos. Das três horas da manhã de sábado até às oito horas da noite de domingo, a sua equipa de sondagens tinha telefonado a duzentos habitantes do Mississípi. Setenta e oito por cento eram a favor da pena de morte, o que não era surpreendente. Porém, na mesma amostra inquirida cinquenta e um por cento entendiam que Sam Cayhall não deveria ser executado. As razões variavam. Muitos achavam simplesmente que ele era velho de mais para isso. O seu crime fora cometido há vinte e três anos, numa geração diferente da actual. De qualquer forma, acabaria por morrer em breve em Parchman, portanto que odeixassem em paz. Estava a ser perseguido por razões políticas.
Além disso, era branco e McAllister e a sua equipa de sondagens sabiam que o facto era muito importante, embora não se falasse dele.
Estas eram as boas notícias. As más notícias estavam incluídas numa listagem junta aos jornais. Trabalhando com uma única operadora, a linha aberta tinha recebido duzentas e trinta e uma chamadas no sábado e cento e oitenta no domingo. Um total de quatrocentas e onze. Mais de noventa e cinco por cento eram contra a execução. Desde sexta-feira de manhã, a linha aberta tinha registado oficialmente oitocentas e noventa e sete chamadas a respeito do velho Sam, com uma forte vantagem de mais de noventa por cento contra a execução. E agora a linha aberta estava novamente a saltar.
Havia mais. Os gabinetes regionais tinham comunicado uma avalanche de telefonemas, quase todos manifestando-se contra a morte de Sam. Os membros do pessoal regressavam ao trabalho com histórias de um comprido fim-de-semana ao telefone. Roxburgh telefonara dizendo que as suas linhas tinham sido invadidas.
O governador já estava cansado.
- Há qualquer coisa hoje às dez da manhã - disse ele para Mona sem olhar para ela.
- Sim, um encontro com um grupo de escuteiros.
- Cancele. Apresente as minhas desculpas. Marque-o para outra altura. Não estou com disposição para fotografias esta manhã. É melhor ficar por aqui. Almoço?
- Com o senador Pressgrove. É suposto discutirem o processo contra as universidades.
- Não suporto o Pressgrove. Cancele e encomende frango. E pensando melhor, mande entrar o Goodman.
Ela dirigiu-se para a porta, desapareceu por instantes e regressou com Garner Goodman. McAllister estava de pé junto da janela a olhar para os edifícios da Baixa. Voltou-se e mostrou um sorriso cansado.
- Bom-dia, Mr. Goodman.
Apertaram as mãos e sentaram-se. No domingo ao fim da tarde, Goodman entregara a Larramore um pedido escrito para cancelar a audiência de clemência, na sequência das estridentes exigências do seu cliente.
- Ainda não quer uma audiência, hem? - perguntou o governador com outro sorriso cansado.
- O nosso cliente diz que não. Não tem mais nada a acrescentar. Tentámos tudo - Mona entregou a Goodman uma chávena de café simples.
- É muito teimoso. Sempre foi, suponho. Onde estão os recursos neste momento? - McAllister era tão sincero!
- Em curso, tal como esperado.
- Já passou por isto, Mr. Goodman. Eu não. Qual é a sua previsão neste momento?
Goodman mexeu o café e ponderou a questão. Não haveria mal nenhum em ser honesto com o governador, não nesta altura.
- Sou um dos seus advogados, portanto inclino-me para o optimismo. Diria que há uma probabilidade de setenta por cento de a execução acontecer.
O governador pensou nisto durante uns momentos. Quase podia ouvir os telefones a tocarem através das paredes. Até o seu pessoal estava a ficar nervoso.
- Sabe o que eu quero, Mr. Goodman? - perguntou sinceramente.
Sim, queres que os malditos telefones parem de tocar, pensou Goodman de si para si.
- O quê?
- Gostaria mesmo de falar com o Adam Hall. Onde está ele?
- Provavelmente em Parchman. Falei com ele há uma hora.
- Ele poderá vir hoje aqui?
- Sim, na realidade estava a pensar em vir a Jackson esta tarde.
- Muito bem. Esperarei por ele.
Goodman reprimiu um sorriso. Talvez um pequeno orifício estivesse aberto no dique.
No entanto, estranhamente, o primeiro sinal de indulto manifestar-se-ia em outra frente bastante mais improvável.
A seis quarteirões de distância, no tribunal federal, Breck Jefferson entrou no gabinete do patrão, o Meritíssimo juiz F. Flynn Slattery, que estava ao telefone e bastante perturbado com um advogado. Beck tinha na mão uma grossa petição para um pedido de habeas corpus e um bloco cheio de notas.
- Sim? - perguntou Slattery, rispidamente, desligando o telefone com força.
- Temos que falar acerca do Cayhall - disse Breck sombriamente. - Sabe que temos a sua alegação de insanidade mental.
- Vamos recusá-la e mandá-la daqui para fora. Estou demasiado ocupado para me preocupar com isso. Cayhall que a leve perante o Quinto Tribunal de Círculo. Não quero essa maldita coisa parada por aqui.
Breck pareceu perturbado e falou lentamente.
- Mas há uma coisa que o senhor precisa ver.
- Ah, ora, Breck! De que se trata?
- É possível que a alegação seja válida.
O rosto de Slattery descaiu e os ombros encolheram-se.
- Ora! Está a brincar? De que se trata? Temos um julgamento marcado para daqui a trinta minutos. Há um júri à espera lá fora.
Breck Jefferson fora o segundo melhor aluno do seu curso de Direito em Emory. Slattery confiava implicitamente nele.
- Eles alegam que o Sam não está suficientemente são mentalmente para enfrentar uma execução, de acordo com uma lei, bastante abrangente, do estado do Mississípi.
- Toda a gente sabe que ele é louco.
- Têm um perito disposto a testemunhar. Não é algo que possamos ignorar.
- Não acredito nisto.
- É melhor olhar para isto.
O Meritíssimo juiz massajou a testa com as pontas dos dedos.
- Sente-se. Deixe-me ver isso.
- São só mais uns quilómetros - disse Adam enquanto se dirigiam para a prisão. - Como te sentes?
Carmen falara muito pouco desde que saíram de Memphis. A sua primeira viagem ao Mississípi fora passada a contemplar a vastidão do Delta, a admirar a exuberância dos quilómetros de algodão e feijão, observando com espanto os pulverizadores a baloiçarem-se por cima dos campos e abanando a cabeça diante dos grupos de barracas pobres.
- Estou nervosa - admitiu ela, não pela primeira vez. Tinham falado um pouco sobre Berkeley e Chicago e aquilo que os próximos anos poderiam trazer. Não tinham falado da mãe nem do pai. Também Sam e a familia foram esquecidos.
- Ele também está nervoso.
- Isto é muito estranho, Adam. A correr ao longo de uma estrada no meio do deserto para ir visitar um avô que está prestes a ser executado.
Ele deu-lhe uma palmadinha firme no joelho.
- Estás a fazer o que é correcto.
Ela usava umas calças muito largas botas de marcha e uma camisa vermelha desbotada. Muito à estudante de psicologia.
- Lá está - ele apontou subitamente para a frente. De ambos os lados da estrada havia carros estacionados muito juntos. O trânsito era lento, porque havia muita gente a dirigir-se para a prisão.
- O que é isto? - perguntou ela.
- Isto é um circo.
Passaram por três membros do Klan que caminhavam à beira da estrada. Carmen fitou-os e depois abanou a cabeça, incrédula. Romperam para a frente, seguindo um pouco mais depressa do que as pessoas que se apressavam em direcção à manifestação. No meio da estrada, em frente da entrada, dois soldados estaduais dirigiam o trânsito. Fizeram sinal a Adam para virar à direita e ele assim fez. Um guarda de Parchman apontou para uma área ao longo de uma vala baixa da estrada.
Deram as mãos e dirigiram-se para o portão principal, parando uns momentos para olhar as dezenas de membros do Klan mascarados que se juntavam em frente da prisão. Um discurso feroz estava a ser feito para um megafone que se avariava de segundo a segundo. Um grupo de camisas-castanhas estavam lado a lado empunhando cartazes virados para o tráfego. Nada menos do que cinco carrinhas de estações de televisão estacionavam do outro lado da estrada. Havia câmaras por toda a parte. Um helicóptero de um serviço noticioso sobrevoava a área.
No portão principal, Adam apresentou Carmen à sua nova amiga Louise, a guarda que tratava da papelada. Estava nervosa e cansada. Houve uma ou duas altercações entre os membros do Klan, a imprensa e os guardas. De momento, as coisas estavam
más e, na sua opinião, não era provável que melhorassem. Um guarda uniformizado escoltou-os até uma carrinha da prisão e deixaram apressadamente a entrada principal.
- Incrível - disse Carmen.
- Está a ficar pior de dia para dia. Espera até amanhã. A carrinha abrandou enquanto seguiam pelo caminho principal, sob as grandes árvores e em frente das bonitas casas brancas. Carmen observava tudo.
- Isto não parece uma prisão - disse.
- É uma quinta. Dezassete mil hectares. Os empregados da prisão vivem naquelas casas.
- Com crianças - disse ela olhando para as bicicletas e triciclos espalhados nos relvados. - Parece tão tranquilo. Onde estão os presos?
- Espera.
A carrinha virou à esquerda. O alcatrão acabou e entraram na estrada de terra. Mesmo à sua frente ficava o Corredor.
- Estás a ver ali aquelas torres? - apontou Adam. - As vedações e o arame farpado? - acenou ela afirmativamente.
- É a Unidade de Segurança Máxima. A casa de Sam durante os últimos nove anos e meio.
- Onde fica a câmara de gás?
- Lá dentro.
Dois guardas olharam para dentro da carrinha e depois fizeram sinal para entrarem nos portões duplos. Parou junto da porta principal, onde Packer estava à espera. Adam apresentou-o a Carmen que, nesse momento, estava incapaz de falar. Entraram e Packer revistou-os com gentileza. Três outros guardas observavam.
- O Sam já está lá dentro - disse Packer acenando na direcção do gabinete da entrada. - Podem entrar.
Adam pegou-lhe na mão e apertou-a firmemente. Ela acenou que sim com a cabeça e dirigiram-se para a porta. Ele abriu-a.
Sam estava sentado na beira da secretária, como de costume. Baloiçava os pés e não estava a fumar. O ar na sala estava límpido e fresco. Olhou de relance para Adam e depois fitou Carmen.
Packer fechou a porta.
Ela libertou-se da mão de Adam e dirigiu-se para a secretária, olhando Sam directamente nos olhos.
- Eu sou a Carmen - disse ela suavemente.
Ele saltou de cima da secretária.
- Eu sou o Sam, Carmen. O teu avô transviado - puxou-a para si e abraçaram-se.
Adam levou um segundo ou dois a compreender que Sam tinha feito a barba. Tinha o cabelo mais curto e parecia muito mais asseado. O fato-macaco estava apertado até ao pescoço.
Sam apertou-Lhe os ombros e estudou-lhe o rosto.
- És tão bonita como a tua mãe - disse ele asperamente. Tinha os olhos húmidos e Carmen lutava para conter as lágrimas.
Ela mordeu os lábios e tentou sorrir.
- Obrigado por teres vindo - disse ele tentando sorrir. Lamento que tenhas de me ver assim.
- Está com óptimo aspecto.
- Não comeces a mentir, Carmen - disse Adam para quebrar o gelo. - E vamos parar de chorar antes que isto se descontrole.
- Senta-te - disse ele a Carmen, apontando para uma cadeira. Sentou-se ao lado dela segurando-lhe na mão.
- Primeiro os negócios, Sam - disse Adam encostando-se à secretária. - O Quinto Tribunal de Círculo recusou-nos esta manhã. Portanto, vamos a caminho de pastos mais verdes.
- Aqui o teu irmão é um grande advogado - disse Sam a Carmen. - Dá-me todos os dias as mesmas notícias.
- Claro. Não tenho muito com que trabalhar - respondeu Adam.
- Como está a tua mãe? - perguntou Sam a Carmen.
- Está óptima.
- Diz-Lhe que perguntei por ela. Lembro-me que era uma excelente pessoa.
- Eu digo.
- Há notícias da Lee? - perguntou Sam a Adam.
- Não. Quer vê-la?
- Acho que sim. Mas se ela não puder vir, eu compreenderei.
- Verei o que posso fazer - disse Adam confiantemente. Os seus dois últimos telefonemas para Phelps não tinham tido resposta. Francamente, não tinha tempo para andar à procura da Lee.
Sam inclinou-se para mais perto dela.
- O Adam disse-me que estudas Psicologia.
- Exactamente. Estou a graduar-me na Cal Berkeley. Eu...
Uma violenta batida na porta interrompeu a conversa. Adam abriu-a ligeiramente e viu o rosto ansioso de Lucas Mann.
- Desculpem-nos um minuto - disse para Sam e Carmen e saiu para o corredor.
- O que se passa? - perguntou.
- O Garner Goodman anda à sua procura - disse Mann quase num murmúrio. - Quer que vá para Jackson imediatamente.
- Porquê? O que se passa?
- Parece que uma das suas petições atingiu o alvo.
O coração de Adam parou.
- Qual?
- O juiz Slattery quer falar acerca da insanidade mental.
Marcou uma audiência para as cinco horas da tarde de hoje. Não me diga nada, porque vou ser chamado a testemunhar pelo estado.
Adam fechou os olhos e bateu suavemente com a cabeça na parede. Um milhão de pensamentos turbilhonaram no seu cérebro.
- Às cinco da tarde de hoje. Slattery?
- Parece incrível. Olhe, tem que andar depressa.
- Preciso de um telefone.
- Há um ali dentro - disse Mann fazendo sinal na direcção da porta atrás dele. - Olhe, Adam, não tenho nada com isso, mas se fosse a si ainda não dizia nada ao Sam. Ainda não há nada decidido e não faz sentido despertar-lhe as esperanças. Se fosse eu a decidir, esperava até depois da audiência.
- Tem razão. Obrigado, Lucas.
- Claro. Vemo-nos em Jackson.
Adam regressou à sala, onde a discussão passara para a vida na área da baía.
- Não é nada - disse Adam franzindo a testa e dirigiu-se casualmente para o telefone. Ignorou a sua conversa tranquila enquanto marcava os números.
Garner, é o Adam. Estou aqui com o Sam. O que se passa?
Venha imediatamente para cá, rapaz - disse Goodman calmamente. - As coisas estão a aquecer.
- Estou a ouvir - estava a descrever a sua primeira e
única visita a San Francisco, décadas atrás.
- Primeiro, o governador quer falar consigo em particular.
Parece estar a sofrer muito. Estamos a dar cabo dele com os telefonemas e ele está a sentir o calor. Mais importante ainda, o Slattery, entre toda a gente, está pendurado com a alegação de insanidade mental. Falei com ele há meia-hora e está completamente confuso. Eu não fui de grande utilidade. Quer realizar uma audiência hoje às cinco horas da tarde. Já falei com o Dr. Swinn e ele está a postos. Aterra em Jackson às três e meia e está pronto para testemunhar.
- Vou a caminho - disse Adam de costas voltadas para Sam e Carmen.
- Vá ter comigo ao gabinete do governador.
Adam desligou.
- Estou a apresentar os recursos - explicou a Sam que, de momento, estava completamente indiferente. - Tenho que ir a Jackson.
- Qual é a pressa? - perguntou Sam, como um homem com muitos anos de vida à sua frente e sem nada para fazer.
- Pressa? Disse pressa? São dez horas de segunda-feira, Sam.
Temos exactamente trinta e oito horas para fazer um milagre.
- Não vai haver milagres, Adam - voltou-se para Carmen ainda a segurar-lhe na mão. - Não fiques esperançada, querida.
- Talvez...
- Não, a minha hora chegou. E eu estou pronto. Não quero que fiques triste quando tudo acabar.
- Temos de ir, Sam - disse Adam tocando-lhe no ombro. Estarei de volta ainda hoje à noite ou amanhã logo de manhã.
Carmen inclinou-se e beijou a face de Sam.
- O meu coração está consigo, Sam - murmurou ela.
Ele abraçou-a durante um segundo e depois ficou de pé junto da secretária.
- Toma conta de ti, garota. Estuda muito e isso tudo. E não penses mal de mim, está bem? Estou aqui por uma razão. A culpa é apenas minha. Há uma vida melhor à minha espera fora deste sítio.
Carmen levantou-se e abraçou-o novamente. Estava a chorar quando saíram da sala.
Cerca do meio-dia, o juiz Slattery tinha abarcado completamente a gravidade do momento e, embora tivesse tentado arduamente ocultá-lo, estava a apreciar imensamente este breve intervalo no centro da tempestade. Primeiro, tinha dispensado o júri e os advogados do julgamento cível a que deveria presidir. Falara duas vezes com o assistente do Quinto Tribunal de Círculo em Nova Orleães e, em seguida, com o próprio juiz McNeely. O grande momento tinha chegado alguns minutos depois das onze, quando o juiz do Supremo Tribunal Edward F. Allbright telefonara de Washington para se pôr a par da situação. Allbright estava a seguir o caso momento a momento. Falaram de leis e de teorias. Nenhum deles era contra a pena de morte e ambos sentiam especiais dificuldades face à lei do Mississípi em causa.
Preocupava-os o facto de ela poder ser usada por qualquer recluso do Corredor da Morte que simulasse insanidade e descobrisse um médico excêntrico que o apoiasse.
Os repórteres depressa souberam que ia ter lugar uma audiência qualquer e não só bombardearam o gabinete de Slattery com telefonemas, como invadiram em pessoa o gabinete da sua recepcionista. O marshall federal foi chamado para dispersar os repórteres.
A secretária trazia mensagens constantemente. Breck Jefferson encontrou inúmeros livros de Direito e investigações dispersas e espalhou-os em cima da comprida mesa de reuniões. Slattery falou com o governador, com o procurador- geral, com Garner Goodman e dezenas de outros. Os sapatos encontravam-se debaixo da enorme secretária. Andava em volta dela, segurando o auscultador com um longo fio e adorando a loucura.
Se o gabinete de Slattery estava em confusão, o do procurador-geral era um verdadeiro caos. Roxburgh tinha disparado a notícia de que um dos tiros no escuro de Cayhall atingira o alvo. Passamos dez anos a lutar contra estes ursos, para cima e para baixo nas cadeias de recursos, de um tribunal para outro, combatendo as criativas mentes legais da ACLU e outras semelhantes, produzindo no processo papel suficiente para destruir uma floresta e, exactamente quando o temos na mira, ele apresenta uma tonelada de recursos de última hora e um deles é notado algures por um juiz que, por acaso, estava bem disposto.
Tinha-se dirigido violentamente pelo corredor fora em direcção ao gabinete de Morris Henry, o próprio doutor Morte, e juntos reuniram apressadamente uma equipa dos seus melhores defensores criminais. Reuniram-se numa grande biblioteca, cheia de filas e pilhas dos livros mais recentes. Reviram a petição Cayhall e a lei
aplicável e traçaram uma estratégia. Eram necessárias testemunhas. Quem vira Cayhall durante o último mês? Quem poderia testemunhar acerca das coisas que dizia e fazia? Não havia tempo suficiente para um dos seus médicos o examinar. Ele tinha um médico, mas eles não. Era um problema significativo. Para poder apanhá-lo com um médico famoso, o estado teria de pedir um adiamento. E isso significava uma suspensão da execução. Uma suspensão estava fora de questão.
Os guardas viam-no todos os dias. Quem mais? Roxburgh telefonou a Lucas Mann que lhe sugeriu que falasse com o coronel Nugent. Nugent disse que vira Sam apenas algumas horas antes e sim, claro, teria muito prazer em testemunhar. O filho da mãe não era maluco. Era apenas mau. E o sargento Packer via-o todos os dias. E a psiquiatra da prisão, Dr. a N. Stegall, visitara Sam e poderia testemunhar. Nugent estava ansioso por ajudar. Sugeriu também o capelão da prisão. E poderia pensar noutros.
Morris Henry organizou um esquadrão de ataque de quatro advogados cuja única missão era procurar escândalos relacionados com o dr. Anson Swinn. Descobrir outros casos em que ele tivesse intervindo. Falar com outros advogados no país. Localizar transcrições dos seus testemunhos. O homem não passava de um mercenário uma testemunha profissional. Arranjar material para o desacreditar.
Depois de ter o ataque planeado e outras pessoas a trabalhar, Roxburgh desceu no elevador até ao átrio do edifício para falar à imprensa.
Adam estacionou num lugar vago nos terrenos do capitólio estadual. Goodman estava à sua espera à sombra de uma árvore, sem casaco, de mangas arregaçadas e com a gravata borboleta impecável. Adam apresentou rapidamente Carmen a Mr. Goodman.
- O governador quer falar consigo às duas horas. Acabei de sair do gabinete dele pela terceira vez esta manhã. Vamos até ao nosso escritório - disse ele, acenando na direcção da Baixa. São só uns quarteirões.
- Viu o Sam? - perguntou Goodman a Carmen.
- Sim, esta manhã.
- Ainda bem.
- Qual é a ideia do governador? - perguntou Adam. Estavam a andar demasiado devagar para o seu gosto. Acalma-te, disse para si mesmo. Acalma-te.
- Quem sabe? Quer falar consigo em particular. Talvez a análise de mercado esteja a afectá-lo. Talvez esteja a planear um grande espectáculo mediático. Talvez esteja a ser sincero. Não consigo compreendê-lo. No entanto, parece cansado.
- As chamadas telefónicas estão a chegar?
- Esplendidamente.
- Ainda ninguém suspeitou de nada?
- Ainda não. Francamente estamos a atacá-los tão depressa e com tanta força que duvido que tenham tempo para localizar as chamadas.
- Carmen lançou ao irmão um olhar de incompreensão, mas ele estava demasiado preocupado para reparar.
- O que há de novo quanto ao Slattery? - perguntou Adam enquanto atravessavam a rua, parando um minuto em silêncio para observar a manifestação que se encaminhava para os degraus da entrada do capitólio.
- Nada desde as dez horas desta manhã. O assistente dele telefonou-lhe para Memphis e a sua secretária deu-lhe o meu número em Jackson. Foi assim que me encontraram. Ele falou-me da audiência e disse que o Slattery quer os advogados no gabinete dele às três horas para planear as coisas.
- O que significa isto? - perguntou Adam, desesperado para que o seu mentor dissesse que estavam à beira de uma grande vitória.
Goodman sentiu a ansiedade de Adam.
- Honestamente, não sei. São boas notícias, mas ninguém sabe por quanto tempo. Não são raras as audiências nesta fase.
Atravessaram outra rua e entraram no edifício. Lá em cima, o escritório temporário fervia, enquanto quatro estudantes de Direito tagarelavam em telefones sem fios. Dois estavam sentados com os pés em cima da mesa. Um estava de pé junto da janela e falava com determinação. Outra caminhava ao longo da parede do fundo com o telefone encostado à cabeça. Adam ficou à porta tentando abarcar a cena. Carmen sentia-se desesperadamente confusa.
Goodman explicou o que se passava num murmúrio audível.
- Estamos a fazer uma média de sessenta chamadas por hora. Ligamos mais do que isso, mas obviamente que as linhas ficam ocupadas. Somos responsáveis pelas linhas impedidas e isso impede outras pessoas de telefonarem. Foi muito mais lento durante o fim-de-semana. A linha aberta dispunha apenas de uma operadora - fez este resumo como um orgulhoso director fabril mostrando as suas mais recentes máquinas automatizadas.
- A quem estão eles a telefonar? - perguntou Carmen. Um estudante de Direito avançou e apresentou-se, primeiro a Adam e em seguida a Carmen. Estava a divertir-se muito, disse.
- Querem comer alguma coisa? - perguntou Goodman. Temos sandes.
Adam recusou.
- Para quem estão a telefonar? - perguntou Carmen novamente.
- Para a linha aberta do governador - respondeu Adam, sem acrescentar qualquer explicação. Ficaram a escutar o telefonema seguinte em que um deles, disfarçando a voz, lia um nome de uma lista telefónica. Era agora Benny Chase de Hickory Flat, Mississípi, e votara pelo governador e achava que Sam Cayhall não devia ser executado. Estava na altura de o governador avançar e tomar conta da situação.
Carmen olhou para o irmão, mas ele ignorou-a.
- Estes quatro são estudantes de Direito da universidade do Mississípi - explicou Goodman. - Usámos cerca de uma dúzia de estudantes desde sexta-feira, com várias idades, brancos e negros, homens e mulheres. O professor Glass tem sido de grande ajuda para encontrar estas pessoas. Ele próprio também tem feito telefonemas. E também Hez Kerry e os seus rapazes do Grupo de Defesa. Temos tido pelo menos vinte pessoas a fazer chamadas.
Puxaram três cadeiras para uma extremidade da mesa e sentaram-se. Goodman encontrou bebidas não alcoólicas numa arca de plástico e colocou-as em cima da mesa. Continuou a falar em voz baixa.
- Neste preciso momento, John Bryan Glass está a fazer investigações. Terá um sumário preparado cerca das quatro horas. Hez Kerry também está a trabalhar. Está a verificar junto dos seus pares em outros estados com penas de morte se existem leis semelhantes que tenham sido invocadas recentemente.
- Kerry é o tipo negro? - perguntou Adam.
- Sim, é o director do Southern Capital Defense Group, Muito inteligente.
- Um advogado negro a lutar para salvar o Sam.
- Não faz diferença para ele. É apenas mais outro caso de pena de morte.
- Gostaria de o conhecer.
- E vai conhecê-lo. Todos eles vão estar presentes na audiência.
- E trabalham de graça? - perguntou Carmen.
- Mais ou menos. O Kerry tem um salário. Uma parte do seu trabalho é supervisionar todos os casos de pena de morte neste estado, mas uma vez que o Sam tem advogados particulares ele está de fora. Está a oferecer-nos o seu tempo, mas é algo que deseja fazer. O professor Glass tem o seu salário na faculdade de Direito, mas isto está definitivamente fora do âmbito das suas funções ali. Pagamos aos estudantes cinco dólares por hora.
- Quem lhes paga? - perguntou ela.
- A velha e querida Kravitz & Bane.
Adam agarrou numa lista telefónica próxima.
- A Carmen precisa de apanhar um avião de regresso esta tarde - disse ele, folheando as páginas amarelas.
- Eu trato disso - disse Goodman pegando na lista telefónica. - Para onde?
- San Francisco.
- Vou ver o que há disponível. Olhem, há um pequeno restaurante ali mesmo à esquina. Porque é que vocês dois não vão comer alguma coisa? Às duas vamos a pé para o gabinete do governador.
- Eu preciso de ir a uma biblioteca - disse Adam olhando para o relógio. Era quase uma hora.
- Vá comer, Adam. E tente acalmar-se. Teremos tempo mais tarde para nos sentarmos com o banco de cérebros" e discutir a nossa estratégia. Agora, precisa de comer e de se acalmar.
- Tenho fome - disse Carmen, ansiosa por se ver a sós com o irmão durante alguns minutos. Saíram da sala fechando a porta atrás deles.
Ela deteve-o no átrio sujo antes de chegarem às escadas.
- Por favor, explica-me o que está a passar-se ali - insistiu ela agarrando-lhe num braço.
- O quê?
- Aquela pequena sala ali.
- É óbvio, não é?
- É legal?
- Não é ilegal.
- É ético?
Adam respirou fundo e fixou a parede.
- O que estão eles a planear fazer ao Sam?
- Executá-lo.
- Executar, gasear, exterminar, matar, chama-lhe o que quiseres. Mas é um assassínio, Carmen. Um assassínio legal. Está errado e eu estou a tentar impedi-lo. É um negócio sujo e tenho que esquecer algumas normas éticas. Não me importo.
- Cheira mal.
- Também a câmara de gás.
Ela abanou a cabeça e conteve as palavras. Vinte e quatro horas antes estava num café de San Francisco a almoçar com o namorado. Agora, não tinha a certeza de onde estava.
- Não me condenes por isto, Carmen. São horas desesperadas.
- Está bem - disse ela e dirigiu-se para as escadas.
O governador e o jovem advogado estavam sozinhos no imenso gabinete, em confortáveis cadeiras de cabedal, com as pernas cruzadas e os pés quase a tocarem-se. Goodman fora levar Carmen ao aeroporto para apanhar um avião. Mona Stark não estava visível.
- É estranho, sabe, é neto dele e só o conhece há umas semanas - as palavras de McAllister eram calmas, quase cansadas. Mas eu conheço-o há muitos anos. Na realidade, ele faz parte da minha vida há muito tempo. E sempre pensei que esperaria ansiosamente por este dia. Sempre desejei que ele morresse, sabe, que fosse castigado por ter morto aqueles garotos - afastou os cabelos da testa e esfregou suavemente os olhos. As suas palavras eram tão genuínas, como se fossem velhos amigos a tagarelar. - Mas agora já não tenho a certeza. Tenho que dizer-lhe, Adam, a tensão está a dar cabo de mim.
Ou estava a ser brutalmente honesto ou era um actor talentoso. Adam não sabia.
- O que provará o estado com a morte de Sam? - perguntou Adam. - Será um lugar melhor para se viver quando o sol nascer na quarta-feira de manhã e ele estiver morto?
- Não. Mas o senhor não acredita na pena de morte. Eu acredito.
- Porquê?
- Porque tem que haver um castigo radical para o assassínio. Ponha-se no lugar da Ruth Kramer e sentirá de forma diferente. O seu problema, Adam, e das pessoas como o senhor, é que se esquecem das vítimas.
- Poderíamos discutir durante horas acerca da pena de morte.
- Tem razão. Vamos passar por cima disso. O Sam contou-lhe alguma coisa de novo acerca do atentado?
- Não posso divulgar aquilo que o Sam me disse. Mas a resposta é não.
- Talvez ele tenha agido sozinho, não sei.
- Que diferença faria isso, hoje, na véspera da execução?
- Para ser sincero, não tenho a certeza. Mas se soubesse que o sam tinha sido apenas um cúmplice, que outra pessoa foi responsável pelas mortes, então ser-me-ia impossível permitir que ele fosse executado. Podia impedi-lo, bem sabe. Podia fazer isso. Iria para o inferno por causa disso. Politicamente ser-me-ia prejudicial.
Os prejuízos seriam possivelmente irreparáveis, mas não me importaria. Estou a ficar cansado da política. E não gosto de estar nesta situação de dono da vida e da morte. Mas poderia perdoar o Sam, se soubesse a verdade.
- O senhor acredita que ele teve ajuda. Já me tinha dito isso.
O agente do FBI encarregado da investigação também acredita nisso. Porque é que não age de acordo com aquilo em que acredita e concede clemência?
- Porque não temos a certeza.
- Portanto, basta uma palavra do Sam, um nome atirado para cima da mesa nas últimas horas e, bingo, pega na caneta e salva-lhe a vida!
- Não, mas poderia decretar um adiamento para que esse nome fosse investigado.
- Não vai ser assim, governador. Já tentei. Perguntei tantas vezes e ele negou tanto que já nem sequer falamos do assunto.
- Quem estará ele a proteger?
- Raios me partam se sei.
- Talvez estejamos enganados. Ele nunca lhe contou os pormenores do atentado?
- Mais uma vez não posso discutir as nossas conversas, mas ele assume plena responsabilidade de tudo.
- Então, porque devia eu pensar na hipótese da clemência? Se o próprio criminoso alega que cometeu o crime e que agiu sozinho, como é suposto eu ajudá-lo?
- Ajude-o porque ele é um velho que, de qualquer forma, morrerá em breve. Ajude-o porque é a coisa certa a fazer e, no fundo do seu coração, é o que deseja fazer. Será preciso muita coragem.
- Ele odeia-me, não é verdade?
- Sim, mas pode ser convencido. Conceda-lhe o perdão e tornar-se-á no seu maior admirador.
McAllister sorriu e desembrulhou um rebuçado de hortelã-pimenta.
- Ele está realmente louco?
- O nosso perito afirma que sim. Vamos fazer o melhor possível para convencer o juiz Slattery.
- Eu sei, mas na realidade? Passou muitas horas com ele. Ele sabe o que está a acontecer?
Neste momento, Adam decidiu que não ia ser honesto. McAllister não era um amigo e não era de total confiança.
- Está bastante triste - admitiu Adam. - Francamente, a mim surpreende-me que alguém possa continuar de perfeito juízo depois de alguns meses no corredor da morte. O Sam já era velho quando foi para lá e tem-se desgastado lentamente. É uma das razões porque se tem recusado a dar entrevistas. Está num estado bastante lastimável.
Adam não sabia se o governador acreditara nisto, mas certamente que o absorveu.
- Quais são os seus planos para amanhã? - perguntou McAllister.
- Não faço ideia. Tudo depende do que suceder no tribunal do Slattery. Tinha planeado passar a maior parte do dia com o Sam, mas posso ter de andar de um lado para o outro a apresentar recursos de última hora.
- Vou dar-lhe o meu número particular. Vamos manter-nos em contacto durante o dia de amanhã.
Sam comeu três garfadas de feijão e um pouco de pão de milho e, em seguida, colocou o tabuleiro aos pés da cama. O mesmo guarda idiota de rosto inexpressivo estava a observá-lo através das grades da porta da fileira. A vida já era bastante má nestes cubículos apertados, mas viver como um animal e ser constantemente observado era insuportável.
Eram seis horas, estava na altura das notícias da tarde. Estava ansioso por escutar o que o mundo dizia a seu respeito. A estação de Jackson abriu com a notícia de que se ia realizar uma audiência de última hora perante o juiz federal F. Flynn Slattery. A reportagem passou para as portas do tribunal federal em Jackson, onde um jovem ansioso de microfone na mão explicou que a audiência se atrasara ligeiramente porque os advogados estavam reunidos no gabinete de Slattery. Tentou explicar o melhor possível a questão. A defesa alegava agora que Mc Cayhall não dispunha de capacidade mental suficiente para compreender porque razão ia ser executado. Estava senil e insano, alegava a defesa, que chamaria a depor um conhecido psiquiatra, no seu último esforço para impedir a execução. Esperava-se que a audiência tivesse início a qualquer momento e ninguém sabia quando é que o juiz F. Flynn Slattery chegaria a uma decisão.
Voltando ao estúdio, a apresentadora disse que, entretanto, na penitenciária estadual de Parchman todos os sistemas estavam preparados para a execução. Outro jovem com um microfone apareceu subitamente no ecrã, num sítio qualquer diante da entrada principal da prisão, descrevendo a segurança cada vez mais apertada. Apontou para a direita e a câmara enquadrou a área junto à estrada, onde decorria um grande carnaval. A patrulha de trânsito estava em força na estrada, dirigindo o tráfego e mantendo sob vigilância um grupo de várias dúzias de membros do Klan. Outros manifestantes incluíam vários grupos de partidários da supremacia da raça branca e os habituais abolicionistas da pena de morte, disse ele.
A câmara focou novamente o repórter, que tinha agora junto de si o coronel George Nugent, superintendente em funções de Parchman, o homem que tinha a seu cargo a execução. Nugent respondeu sombriamente a algumas perguntas, afirmou que tudo estava sob controlo e se os tribunais dessem luz verde, então a execução seria consumada de acordo com a lei.
Sam apagou a televisão. Adam telefonara duas horas antes e explicara a audiência, portanto estava preparado para ouvir dizer que estava senil, insano e Deus sabe que mais. Mesmo assim, não gostava. Já era suficientemente mau estar à espera de ser executado, mas ver a sua sanidade mental tão indiferentemente difamada parecia uma cruel invasão de privacidade.
A fileira estava quente e silenciosa. As televisões e os rádios estavam desligados. Na porta ao lado, o Preacher Boy cantava suavemente The Old Rugged Cross e não era desagradável.
Numa ordenada pilha no chão contra a parede estavam os seus novos trajos - uma simples camisa branca de algodão, calças de trabalho, peúgas brancas e um par de sapatos castanhos. Donnie passara uma hora com ele nessa tarde.
Apagou a luz e deitou-se na cama. Trinta horas de vida.
A sala principal de audiências do edifício federal estava cheia quando Slattery fnalmente libertou os advogados do seu gabinete pela terceira vez. Era a última de uma série de acaloradas conferências que se tinham arrastado durante a maior parte da tarde. Eram agora quase sete horas.
Entraram na sala de audiências e tomaram os seus lugares atrás das respectivas mesas. Adam sentou-se com Garner Goodman. Numa fila de cadeiras atrás deles sentavam-se Hez Kerry, John Bryan Glass e três dos seus estudantes de Direito. Morris Henry e meia-dúzia de assistentes amontoavam-se em volta da mesa do estado. Duas filas atrás deles, atrás da barra, estava o governador ladeado por Mona Stark e por Larramore.
A restante assistência era sobretudo composta de repórteresnão eram permitidas câmaras. Havia espectadores curiosos, estudantes de Direito, outros advogados. Era uma audiência pública. Na última fila, confortavelmente vestido com um casaco desportivo e gravata, estava Rollie Wedge.
Slattery fez a sua entrada e todos se levantaram por momentos.
- Queiram sentar-se - disse ele ao microfone. - Vamos começar a gravar - disse para o escrivão do tribunal. Apresentou um resumo sucinto da petição e explicou a lei aplicável, sublinhando por fim os parâmetros da audiência. Não estava com disposição para alegações longas e questões sem sentido, portanto passem adiante, disse para os advogados.
- O requerente está preparado? - perguntou na direcção de Adam. Adam levantou-se nervosamente e disse:
- Sim, senhor. O requerente chama o Dr. Anson Swinn. Swinn levantou-se da primeira fila e dirigiu-se à cadeira das testemunhas, onde prestou juramento. Adam encaminhou-se para o pódio no centro da sala de audiências, com as notas na mão e forçando-se a mostrar-se forte. As notas estavam dactilografadas e eram meticulosas, o resultado da soberba investigação e preparação realizadas por Hez Kerry e Jonh Bryan Glass. Os dois, juntamente como pessoal de Kerry, tinham dedicado o dia inteiro a Sam Cayhall e à sua audiência. E estavam preparados para trabalhar toda a noite e todo o dia seguinte.
Adam começou por colocar a Swinn algumas questões básicas quanto à sua formação e treino. As respostas de Swinn eram acentuadas pelo seu claro sotaque do Centro Oeste e isto era excelente. Os peritos deviam falar de modo diferente e vir de muito longe, para serem altamente conceituados. Com o cabelo e barba negros, os óculos e o fato igualmente negros, tinha realmente o aspecto de um ominoso mestre no seu campo. As questões preliminares foram breves e claras, mas apenas porque Slattery já tinha examinado as qualificações de Swinn e decidido que ele poderia depor como perito. O estado poderia contestar as suas credenciais no contra-interrogatório, mas o seu testemunho seria registado. Com Adam a conduzi-lo, Swinn falou sobre as duas horas que tinha passado com Sam Cayhall na passada terça-feira. Descreveu as condições físicas de Sam e fê-lo com tanta nitidez que Sam mais parecia um cadáver. Múito provavelmente estava insano, embora a insanidade fosse um termo legal e não médico. Tinha dificuldade em responder a questões básicas tais como: O que comeu ao pequeno-almoço? " ou Quem está na cela ao lado da sua? Quando morreu a sua mulher? " Quem foi o seu advogado no seu primeiro julgamento?", e assim por diante.
Swinn cobriu muito cautelosamente a retirada, afirmando repetidamente ao tribunal que apenas duas horas não eram suficientes para fazer um diagnóstico rigoroso do caso de Mr. Cayhall. Era necessário mais tempo.
Na sua opinião, Sam Cayhall não se apercebia do facto de que estava prestes a morrer, não compreendia porque razão ia ser executado e certamente não se apercebia de que estava a ser punido por um crime. Por vezes, Adam tinha que cerrar os dentes para se impedir de estremecer, mas Swinn era sem dúvida convincente. Mr. Cayhall mostrava-se absolutamente calmo e à vontade, sem qualquer suspeita do seu destino, esgotando os seus dias numa cela de um metro e oitenta por dois metros e setenta. Era bastante triste. Um dos piores casos com que deparara.
Em circunstâncias diferentes, Adam ter-se-ia sentido horrorizado por colocar no banco uma testemunha tão obviamente mentirosa. Mas naquele momento sentia-se bastante orgulhoso daquele bizarro homenzinho. A vida humana estava em jogo.
Slattery não estava disposto a interromper o testemunho do Dr. Swinn. Este caso seria imediatamente revisto pelo Quinto Tribunal de Círculo e talvez pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos e ele não queria que nenhum dos tribunais superiores fosse contra a sua decisão. Goodman suspeitava disto e Swinn fora preparado para divagar. Portanto, perante a indulgência do tribunal, Swinn começou a discorrer sobre as prováveis causas dos problemas de Sam. Descreveu os horrores de viver numa cela vinte e três horas por dia; de ter consciência de que a câmara de gás está apenas à distância de uma pedrada; de estar privado de companhia, boa comida, sexo, movimento, exercício suficiente, ar fresco. Trabalhara com muitos reclusos do corredor da morte em todo o país e conhecia bem os seus problemas. Sam, evidentemente, era muito diferente devido à sua idade. O recluso médio do corredor da morte tem cerca de trinta e um anos de idade e passou quatro anos à espera da morte. Sam tinha sessenta anos quando chegara a Pacchman. Não estava preparado para isso, nem física nem mentalmente. Era inevitável que o seu estado se deteriorasse.
Swinn esteve quarenta e cinco minutos sob interrogatório directo de Adam. Depois de esgotar todas as suas perguntas, Adam sentou-se. Steve Roxburgh subiu ao pódio e fitou Swinn.
Swinn sabia o que o esperava e não estava minimamente preocupado. Roxburgh começou por lhe perguntar quem estava a pagar os seus serviços e quais eram os seus honorários. Swinn respondeu que a Kravitz & Bane lhe estava a pagar duzentos dólares por hora. Grande coisa. Não havia nenhum júri presente. Slattery sabia que todos os peritos são pagos ou então não poderiam testemunhar. Roxburgh tentou desdenhar das qualificações profissionais de Swinn, mas não conseguiu nada. O homem era um psiquiatra qualificado, treinado e experiente. E que tinha se, alguns anos atrás, decidira que podia ganhar mais dinheiro como testemunha perita? As suas qualificações não ficavam diminuídas por isso. E Roxburgh não estava disposto a discutir medicina com um médico.
As questões tornaram-se ainda mais estranhas quando RoxEburgh começou a inquiri-lo sobre outros processos em que Swinn tinha testemunhado. Tinha havido o caso de um garoto que morrera queimado num acidente de automóvel no Ohio e Swinn emitira a opinião de que a criança era absolutamente desequilibrada mentalmente. Dificilmente uma opinião extrema.
- Onde quer chegar com isto? - interrompeu Slattery em voz sonora.
Roxburgh olhou para as suas notas e depois disse:
- Meritíssimo, estamos a tentar desacreditar esta testemunha.
- Eu sei. Mas não está a resultar, Mr. Roxburgh. Este tribunal tem conhecimento de que a testemunha prestou depoimento em muitos julgamentos em todo o país. Onde quer chegar?
- Estamos a tentar provar que a testemunha estará disposta a emitir opiniões bastante extremas, desde que devidamente paga.
- Os advogados fazem isso todos os dias, Mr. Roxburgh. Houve alguns risos ligeiros na audiência, mas muito reservados.
- Não quero ouvir nada disso - disse Slattery severamente.
- Agora prossiga.
Roxburgh deveria ter-se sentado, mas o momento era demasiado rico para isso. Continuou em direcção ao campo de minas seguinte e começou a fazer perguntas acerca do exame que Swinn efectuara a
Sam. Não chegou a conclusão nenhuma. Swinn combatia cada uma das perguntas com uma resposta fluida, que apenas vinha completar o seu testemunho durante o interrogatório directo. Repetiu grande parte da sua triste descrição de Sam Cayhall. Roxburgh não conseguiu marcar pontos e, depois de completamente derrotado, finalmente regressou ao seu lugar. Swinn foi dispensado.
A próxima e última testemunha do requerente constituiu uma surpresa, embora Slattery já o tivesse aprovado. Adam chamou ao banco das testemunhas Mr. E. Garner Goodman.
Goodman prestou juramento e sentou-se. Adam fez-lhe perguntas quanto ao facto de a sua firma ter representado Sam Cayhall e Goodman resumiu rapidamente para o registo a sua história. Slattery já conhecia a maior parte dela. Goodman sorriu ao recordar os esforços de Sam para dispensar os serviços da Kravitz Bane.
- A Kravitz & Bane neste momento representa Mr. Cayhall?
- perguntou Adam.
- Na verdade, sim.
- E neste momento está em Jackson a trabalhar no caso?
- Exactamente.
- Em sua opinião, Mr. Goodman, acredita que Sam Cayhall contou aos seus advogados toda a verdade a respeito do atentado Kramer?
- Não, não acredito.
Rollie Wedge endireitou-se um pouco e escutou atentamente.
- Quer explicar, por favor?
- Com certeza. Sempre houve fortes provas circunstanciais de que Sam Cayhall estava acompanhado de outra pessoa durante o atentado Kramer e os atentados anteriores. Mr. Cayhall sempre se recusou a discutir o assunto comigo, seu advogado, e mesmo agora continua a não cooperar com os seus representantes legais. É óbvio que, nesta fase do processo, seria crucial que ele dissesse tudo o que sabe aos seus advogados. E ele está incapaz de o fazer. Há factos de que devíamos ter conhecimento, mas que ele não nos revela.
Wedge estava simultaneamente nervoso e aliviado. Sam estava bem seguro, mas os seus advogados tentavam tudo por tudo.
Adam fez mais algumas perguntas e sentou-se. Roxburgh fez uma única pergunta:
- Quando é que falou com Mr. Cayhall pela última vez? Goodman hesitou e pensou na resposta. Honestamente não se lembrava da data exacta.
- Não tenho a certeza. Foi há dois ou três anos.
- Dois ou três anos? E é advogado dele?
- Sou um dos seus advogados. Mr. Hall é agora o advogado principal deste caso e passou inúmeras horas com o cliente no decurso do último mês.
Roxburgh sentou-se e Goodman regressou ao seu lugar na mesa.
- Não temos mais testemunhas, Meritíssimo - disse Adam para o registo.
- Chame a sua primeira testemunha, Mr. Roxburgh - disse Slattery.
- O estado chama o coronel George Nugent - anunciou
Roxburgh. Nugent foi encontrado no corredor e conduzido ao banco das testemunhas. A sua camisa e calças cor de azeitona não tinham uma ruga. As botas brilhavam. Declarou para o registo quem era e que funções exercia.
- Há uma hora atrás estava em Parchman - disse ele olhando para o relógio. - Acabei de chegar num helicóptero do estado.
- Quando é que viu Sam Cayhall pela última vez? - perguntou Roxburgh.
- Foi mudado para a Cela de Observação às nove horas desta manhã. Falei com ele nessa altura.
- Ele estava mentalmente são ou apenas a babar-se a um canto como um idiota?
Adam começou a levantar-se para objectar, mas Goodman agarrou-o pelo braço.
- Estava extremamente alerta - disse Nugent ansiosamente.
- Muito esperto. Perguntou-me porque razão estava a ser levado da sua cela para uma outra. Compreendia perfeitamente o que se estava a passar. Não gostou, mas a verdade é que de momento o Sam não gosta de nada.
- Viu-o ontem?
- Sim.
- E ele falava ou jazia simplesmente ali como um vegetal?
- Oh, estava muito falador.
- De que falaram?
- Eu tinha uma lista de coisas que precisava de discutir com o Sam. Ele mostrou-se muito hostil e ameaçou-me fisicamente. É uma pessoa extremamente irritável com uma língua muito afiada.
Acalmou-se um pouco e falámos da sua refeição, das suas testemunhas, do que devíamos fazer com os seus bens pessoais. Coisas assim. Falámos da execução.
- Ele tem consciência de que vai ser executado?
Nugent rebentou às gargalhadas.
- Que raio de pergunta é essa?
- Limite-se a responder - disse Roxburgh sem um sorriso.
- Claro que sabe. Sabe muito bem o que se passa. Não é doido. Disse-me que não ia haver execução porque os seus advogados estavam prestes a disparar a artilharia pesada, como ele disse. Planearam isto tudo - Nugent sacudiu ambas as mãos na direcção da sala de audiências.
Roxburgh fez mais perguntas acerca de outros encontros com Sam e Nugent não se poupou a pormenores. Parecia lembrar-se de todas as palavras que Sam pronunciara nas duas últimas semanas, especialmente os mordentes sarcasmos e os comentários cáusticos.
Adam sabia que tudo aquilo era verdade. Conferenciou rapidamente com Garner Goodman e decidiram prescindir do contra-interrogatório. Pouco podiam ganhar com isso.
Nugent desceu a nave e saiu da sala de audiências. O homem tinha uma missão. A sua presença era necessária em Parchman.
A segunda testemunha do estado era a Dra. N. Seagall, psiquiatra do departamento correccional. Encaminhou-se para o banco das testemunhas, enquanto Roxburgh conferenciava com Morris Henry.
- Diga o seu nome para o registo - disse Slattery.
- Doutora N. Seagall.
- Ann? - perguntou o Meritíssimo.
- Não, N. É uma inicial.
Slattery olhou para ela, em seguida olhou para Roxburgh, que encolheu os ombros como se não soubesse o que dizer. O juiz aproximou-se ainda mais da extremidade do seu banco e espreitou para o banco das testemunhas.
- Olhe, doutora, não lhe pedi que dissesse uma inicial, mas sim o seu nome. Agora, diga o seu nome para o registo e depressa.
Ela afastou os olhos dos dele, aclarou a garganta e disse relutantemente:
- Neldeen.
Não admira, pensou Adam. Porque é que ela não teria mudado de nome?
Roxburgh aproveitou o momento e formulou uma rápida série de perguntas acerca das suas qualificações e experiência. Slattery já a tinha considerado apta para testemunhar.
- Agora, doutora Stegall - começou Roxburgh, evitando cuidadosamente qualquer referência a Neldeen -, quando é que se encontrou com o Sam Cayhall?
Ela pegou numa folha de papel e olhou para ela.
- Quinta-feira, dia vinte e seis de Julho.
- E qual foi o objectivo dessa visita?
- Faz parte do meu trabalho visitar habitualmente os reclusos do corredor da morte, especialmente aqueles cuja execução se aproxima. Faculto-lhes conselhos e medicamentação, caso eles o peçam.
- Descreva a condição mental de Mr. Cayhall.
- Extremamente alerta. Brilhante, com uma língua afiada quase até à rudeza. De facto, foi bastante grosseiro comigo e pediu-me que não voltasse.
- Ele falou da sua execução?
- Sim. Na realidade sabia que lhe restavam apenas trinta dias e acusou-me de lhe tentar dar medicamentos para que não causasse problemas quando a sua hora chegasse. Também expressou a sua preocupação com outro recluso do corredor da morte, Randy Dupree, cuja saúde mental Sam pensa estar a deteriorar- se. Estava
muito preocupado com Mr. Dupree e acusou-me por não o ter examinado.
- Na sua opinião, ele sofre de alguma forma de capacidade mental diminuída?
- De modo nenhum. O seu espírito é muito arguto.
- Não tenho mais perguntas - disse Roxburgh e sentou-se.
Adam encaminhou-se intencionalmente para o pódio.
- Diga-nos, doutora Stegall, como vai o Randy Dupree? perguntou em voz bem alta.
- Eu... hum... ainda não tive oportunidade de o visitar.
- Sam falou-lhe dele há onze dias e a senhora não se preocupou em ir visitá-lo.
- Tenho estado ocupada.
- Há quanto tempo ocupa o seu actual cargo?
- Quatro anos.
- E nestes quatro anos quantas vezes falou com o Sam Cayhall?
- Uma.
- Não se preocupa muito com os reclusos do corredor da morte, pois não, doutora Stegall?
Certamente que sim.
Quantos homens estão neste momento no corredor da
morte?
- Bem... hum... não tenho a certeza. Cerca de quarenta, suponho.
- Com quantos deles falou realmente? Dê-nos alguns nomes. Ninguém poderia dizer se era medo, raiva ou ignorância. Mas Neldeen ficou imóvel. Fez uma careta e inclinou a cabeça para um dos lados, tentando obviamente tirar um nome do ar e obviamente incapaz de o fazer. Adam permitiu-lhe estar calada por uns momentos e, em seguida, disse:
- Obrigado, doutora Stegall - voltou-se e regressou lentamente à sua cadeira.
- Chame a sua próxima testemunha - ordenou Slattery.
- O estado chama o sargento Clyde Packer.
Packer foi procurado no corredor e conduzido até à frente da sala de audiências. Ainda estava de uniforme, mas a arma fora retirada. Jurou dizer a verdade e sentou-se no banco das testemunhas.
Adam não ficou surpreendido com o efeito do testemunho de Packer. Era um homem honesto que dizia simplesmente aquilo que via. Conhecia Sam há nove anos e meio e era hoje o mesmo que sempre fora, no dia em que chegara. Escrevia cartas e documentos legais à máquina durante todo o dia, lia muitos livros, especialmente de Direito. Escrevia petições para os seus camaradas do Corredor e escrevia cartas para as mulheres e namoradas de alguns dos homens que não sabiam escrever. Fumava constantemente, porque queria matar-se antes de o estado conseguir fazê-lo. Emprestava dinheiro aos amigos. Na humilde opinião de Packer, Sam tinha hoje uma mente tão sã como há nove anos e meio. E tinha um espírito muito vivo.
Slattery aproximou-se um pouco mais da beira do banco quando Packer descreveu os jogos de damas de Sam com Henshaw e Gullit.
- Ele ganha? - perguntou o Meritíssimo, interrompendo.
- Quase sempre. Talvez o ponto de viragem da audiência tenha acontecido quando Packer contou a história de Sam ter pedido para ver um nascer do Sol antes de morrer. Acontecera no final da semana anterior, quando o Packer andava a fazer a ronda uma certa manhã. Sam fizera-lhe tranquilamente o pedido. Sabia que estava prestes a morrer, disse que estava pronto para partir e que gostaria de esca par-se uma manhã bem cedinho para o cercado leste e ver o Sol
nascer. Por isso Packer encarregara-se do caso e no sábado anterior Sam passara uma hora a beber café e a esperar o sol. Depois, mostrara-se muito agradecido.
Adam não tinha nenhuma questão a pôr a Packer. Foi dispen sado e saiu da sala de audiências.
Roxburgh anunciou que a próxima testemunha era Ralph Grifiin, o capelão da prisão. Griffin foi conduzido ao banco e olhou desconfortavelmente em torno da sala de audiências. Declarou o seu nome e ocupação e depois olhou atentamente para Roxburgh.
- Conhece o Sam Cayhall? - perguntou Roxburgh. - Conheço.
- Aconselhou-o recentemente?
- Sim.
- Quando é que o viu pela última vez?
- Ontem. Domingo.
- E como descreveria o seu estado mental?
- Não posso.
- Desculpe?
- Disse que não posso descrever o seu estado mental.
- Porque não?
- Porque de momento sou o seu pastor e tudo o que ele possa dizer ou fazer na minha presença é estritamente confidencial. Não posso testemunhar contra Mr. Cayhall.
Roxburgh demorou-se uns momentos, tentando decidir o que fazer a seguir. Era óbvio que nem ele nem os seus eruditos subordinados tinham pensado nesta situação. Talvez se tivessem limitado a partir do princípio que, uma vez que o capelão trabalhava para o estado, cooperaria com eles. Griffin aguardou na expectativa de um ataque de Roxburgh.
Slattery resolveu o assunto rapidamente.
- Muito bem visto, Mr. Roxburgh. Esta testemunha não deveria ter sido chamada. Quem se segue?
- Não temos mais testemunhas - disse o procurador-geral ansioso por abandonar o pódio e regressar ao seu lugar.
O juiz garatujou demoradamente algumas notas e depois contemplou a sala de audiências cheia.
- Vou ponderar esta questão e emitirei uma opinião, provavelmente amanhã de manhã. Assim que a minha decisão estiver pronta, notificaremos os advogados. Não precisam de ficar por aqui. Nós chamamo-los. A audiência está encerrada.
Todos se levantaram e correram para as portas traseiras. Adam apanhou o reverendo Ralph Griffin e agradeceu-lhe; depois, regressou à mesa onde Goodman, Hez Kerry, o professor Glass e os estudantes estavam à espera. Juntaram-se e murmuraram até a multidão dispersar e depois saíram da sala de audiências. Alguém falou em bebidas e jantar. Eram quase nove horas.
Os repórteres estavam à espera no exterior do tribunal. Adam avançou alguns educados sem comentários e continuou a andar. Rollie Wedge saiu calmamente atrás de Adam e de Goodman enquanto eles atravessavam o átrio apinhado de gente. Desapareceu quando eles deixaram o edifício.
Havia dois grupos de câmaras preparados lá fora. Nos degraus da entrada, Roxburgh estava a dirigir-se a um grupo de repórteres e, não muito longe no passeio, o governador fazia o mesmo. Ao passar, Adam ouviu McAllister dizer que a questão da clemência estava a ser considerada e que seria uma noite muito longa. Ele assistiria à execução? perguntou alguém. Adam não conseguiu ouvir a resposta.
Encontraram-se no Hall and Mal's, um popular bar e restaurante da Baixa. Hez encontrou uma mesa grande a um canto perto da entrada e encomendou uma rodada de cerveja. Uma banda de blues tocava nas traseiras. A sala de jantar e o bar estavam cheios de gente.
Adam sentou-se a um canto ao lado de Hez e acalmou-se pela primeira vez em horas. A cerveja desceu rapidamente e acalmou-o. Encomendaram feijão com arroz e conversaram acerca da audiência. Hez disse que ele se portara maravilhosamente e os estudantes de Direito cumprimentaram-no efusivamente. A disposição era optimista.
Adam agradeceu-lhes a sua ajuda. Goodman e Glass encontravam-se na outra extremidade da mesa, perdidos numa conversa acerca de outro caso do corredor da morte. O tempo passava lentamente e Adam atacou o jantar quando finalmente chegou.
- Provavelmente esta não é boa altura para falar no assunto - disse Hez pelo canto da boca. Não queria que mais ninguém além de Adam o ouvisse. A banda tocava agora ainda mais alto. - Suponho que quando isto acabar vai voltar para Chicago - disse ele olhando para Goodman para se certificar de que ainda estava entretido com Glass.
- Suponho que sim - disse Adam sem convicção. Tivera pouco tempo para pensar além do dia seguinte.
- Bem, apenas para sua informação, temos uma vaga no nosso escritório. Um dos meus homens vai montar o seu próprio escritório e andamos à procura de um novo advogado. Só tratamos de casos do corredor da morte, como sabe.
- Tem razão - disse Adam tranquilamente. - Esta é uma altura péssima para falar no assunto.
- É trabalho duro, mas é compensador. Também é de partir o coração. E necessário - mastigou um pedaço de salsicha e empurrou-a com cerveja. - O dinheiro é muito pouco, comparado com aquilo que ganha na firma. Orçamento apertado, horas extraordinárias, muitos clientes.
- Quanto?
- Posso começar por pagar-lhe trinta mil.
- De momento ganho sessenta e dois. Com perspectivas de vir a ganhar mais.
- Já passei por isso. Estava a ganhar setenta mil numa grande firma de D. C. quando desisti para vir para cá. Estava a poucos passos de me tornar sócio, mas foi fácil desistir. O dinheiro não é tudo.
- Gosta disto?
- Toma conta de nós. É preciso ter convicções morais muito fortes para combater o sistema desta maneira. Pense no assunto.
Goodman estava agora a olhar na direcção deles.
- Vai para Parchman esta noite? - perguntou em voz alta. Adam estava a terminar a sua segunda cerveja. Queria uma terceira e nada mais. Estava a sentir-se cada vez mais exausto.
- Não, vou esperar até saber alguma coisa de manhã. Comeram, beberam e ouviram Goodman, Glass e Kerry contar histórias de guerra de outras execuções. A cerveja jorrava e a atmosfera passou de optimista a plenamente confiante.
Sam estava deitado no escuro à espera da meia-noite. Ouvira as últimas notícias e soubera que a audiência tinha terminado e que o relógio continuava a girar. Não havia qualquer suspensão. A sua vida estava nas mãos de um juiz federal.
Um minuto depois da meia-noite fechou os olhos e disse uma oração. Pediu a Deus para ajudar Lee nos seus problemas, para abençoar Carmen e para dar a Adam força suficiente para sobreviver ao inevitável.
Tinha vinte e quatro horas de vida. Cruzou os braços sobre o peito e adormeceu.
Nugent esperou exactamente até às sete e meia para fechar a porta e dar início à reunião. Dirigiu-se para a frente da sala e observou as suas tropas.
- Acabo de chegar da USM - disse ele sombriamente. - O recluso está acordado e alerta, de modo nenhum o morto- vivo apatetado sobre o qual lemos no jornal esta manhã - interrompeu-se, sorriu e esperou que todos apreciassem o seu sentido de humor. Passou despercebido.
- Na realidade já tomou o pequeno-almoço e está a refilar sobre o facto de querer a sua hora de recreio. Portanto, pelo menos alguma coisa está normal esta manhã. O tribunal federal de Jackson ainda não disse nada, portanto está tudo como planeado, excepto se nos for ordenado o contrário. Certo, Mr. Mann?
Lucas estava sentado à mesa do outro lado da sala a ler o jornal e a tentar ignorar o coronel.
- Exactamente.
- Agora, temos duas áreas de preocupação. Primeiro, a imprensa. Atribui ao sargento Moreland a tarefa de lidar com esses sacanas. Vamos mudá-los para o Centro de Visitantes mesmo à entrada do portão principal e tentar mantê-los aí mesmo. Vamos cercá-los de guardas e ameaçá-los se se atreverem a vaguear por aí. Às quatro horas da tarde realizaremos o sorteio para determinar quais os repórteres autorizados a assistir à execução. Ontem havia mais de cem nomes na lista de pedidos. Dispõem de cinco lugares.
O segundo problema é o que está a passar-se do lado de fora do portão. O governador concordou em mandar três dúzias de polícias a cavalo para hoje e para amanhã e vão chegar em breve.
Temos de manter esses doidos à distância, especialmente os skinheads, os filhos da mãe são doidos, mas simultaneamente temos de manter a ordem. Ontem registaram-se duas escaramuças e as coisas podiam ter-se agravado se não estivéssemos de vigia. Se a execução tiver lugar, poderá haver alguns momentos de tensão. Alguma pergunta?
Não houve nenhuma.
- Muito bem. Espero que todos ajam de forma profissional e executem tudo de maneira responsável. Estão dispensados - lançou uma continência e observou-os orgulhosamente enquanto saíam da sala.
Sam escarranchou-se no banco com o tabuleiro das damas à sua frente e esperou pacientemente que J. B. Gullit entrasse no curral. Bebia os restos retardados de uma chávena de café.
Gullitt avançou pela porta e parou enquanto lhe retiravam as algemas. Esfregou os pulsos, protegeu os olhos do sol e olhou para o amigo sentado sozinho. Encaminhou-se para o banco e tomou posição do outro lado do tabuleiro.
Sam não levantou os olhos.
- Alguma boa notícia, Sam? - perguntou Gullitt nervosamente. - Diz-me que não vai acontecer.
- Joga - disse Sam fitando as damas.
- Não pode acontecer - suplicou ele.
- É a tua vez de jogar primeiro. Joga.
Gullitt baixou lentamente os olhos para o tabuleiro.
De manhã a teoria prevalecente era a de que quanto mais tempo Slattery demorasse a decidir, mais provável seria a suspensão. Mas esta era a opinião convencional daqueles que rezavam por uma suspensão. Às nove horas ainda nada fora dito, nem às nove e meia.
Adam esperava no gabinete de Hez Kerry, que se tinha transformado no centro das operações nas últimas vinte e quatro horas. Goodman estava do outro lado da cidade a superintender ao incansável ataque à linha aberta do governador, uma tarefa que parecia apreciar. John Bryan Glass encontrava-se à porta do gabinete de Slattery.
No caso de Slattery recusar a suspensão, recorreriam imediatamente para o Quinto Tribunal de Círculo. O recurso estava concluído às nove horas, para o caso de ser necessário. Kerry preparara igualmente um pedido de revista para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos se o Quinto Tribunal de Círculo os recusasse. A papelada aguardava. Tudo aguardava.
Para ocupar o espírito, Adam telefonou a toda a gente de quem se lembrou. Telefonou a Carmen em Berkeley. Ela estava a dormir e sentia-se óptima. Telefonou para o apartamento de Lee e, evidentemente, não obteve resposta. Telefonou para o escritório de Phelps e falou com uma secretária. Telefonou a Darlene para lhe dizer que não sabia quando iria voltar. Telefonou para o número privado de McAllister, mas obteve um sinal de impedido. Talvez Goodman também o tivesse encravado.
Telefonou a Sam e falou da audiência da noite anterior, dando especial ênfase à intervenção do reverendo Ralph Griffin. Packer também testemunhara, explicou, e dissera apenas a verdade. Nugent, como era típico, agira como um burro. Disse a Sam que chegaria por volta do meio-dia. Sam pediu-lhe que se apressasse.
Às onze horas, o nome de Slattery era amaldiçoado e difamado com caloroso fervor. Adam já estava mais que farto. Telefonou a Goodman e disse que seguia para Parchman. Disse adeus a Hez Kerry e agradeceu-lhe mais uma vez.
Depois acelerou, saindo da cidade de Jackson, para norte, pela Estrada 49. Parchman ficava a duas horas de distância, conduzindo dentro do limite de velocidade. Procurou uma estação de rádio noticiosa que prometia actualizar as notícias duas vezes por hora e ouviu uma interminável discussão sobre os jogos de casino no Mississípi. Não havia nada de novo sobre a execução Cayhall no noticiário das onze e meia.
Conduziu a uma velocidade de oitenta, noventa, ultrapassando nas faixas amarelas, nas curvas e nas pontes. Acelerou nas zonas sem limite de velocidade, atravessando pequenas cidades e aldeias. Não tinha a certeza do que estava a puxá-lo para Parchman com tanta velocidade. Não havia muita coisa que pudesse fazer quando lá chegasse. As acções legais tinham ficado para trás, em Jackson. Sentar-se-ia junto de Sam e contariam as horas.
Ou talvez pudessem celebrar um magnífico presente do tribunal federal.
Parou num armazém da beira da estrada perto da pequena cidade de Flora para meter gasolina e beber sumo de fruta e estava a afastar-se das bombas de gasolina quando ouviu as notícias. O anfitrião maçador e indiferente do talk show mostrava-se agora excitado ao comunicar as últimas notícias acerca do caso Cayhall. O juiz do Tribunal Distrital dos Estados Unidos, F. Flynn Slattery, acabara de recusar a última petição de Cayhall, a sua alegação de insanidade mental. A decisão seria recorrida para o Quinto Tribunal de Círculo a qualquer momento. Sam Cayhall acabara de dar um passo de gigante na direcção da câmara de gás do Mississípi, disse o anfitrião dramaticamente.
Em vez de carregar no acelerador, Adam abrandou para uma velocidade razoável e sorveu a sua bebida. Desligou o rádio. Abriu a janela para permitir a circulação do ar quente. Amaldiçoou Slattery durante muitos quilómetros, falando em vão para o pára-brisas e inventando toda a espécie de nomes infames. Passava agora um pouco do meio-dia. Com toda a justiça, Slattery poderia ter dado a sentença cinco horas antes. Raios, se tivesse coragem poderia ter decidido na noite anterior. Já poderiam estar perante o Quinto Tribunal de Círculo neste momento. À cautela, amaldiçoou também Breck Jefferson.
Sam tinha-lhe dito desde o princípio que o Mississípi queria uma execução. Estava atrás da Luisiana, do Texas e da Florida e até mesmo o Alabama, a Jórgia e a Virgínia estavam a matar a um ritmo mais desejável. Algo tinha que ser feito. Os recursos eram intermináveis. Os criminosos eram mimados. O crime dominava. Era tempo de executar alguém e mostrar ao resto do país que este estado levava a sério a lei e a ordem.
Finalmente, Adam acreditou nele.
Momentos depois deixou de praguejar. Acabou a bebida e atirou a garrafa por cima do carro, para uma vala, numa violação directa das leis do Mississípi contra o derramamento de lixo. Era difícil exprimir a sua actual opinião sobre o Mississípi e as respectivas leis.
Podia ver o Sam sentado na sua cela, a ver televisão e a ouvir as notícias.
Doía-lhe o coração pelo velho. Fracassara como advogado. O seu cliente estava prestes a morrer às mãos do governo e não havia nenhuma maldita coisa que ele pudesse fazer.
As notícias electrizaram o exército de jornalistas e operadores de câmara espalhados pelo pequeno Centro de Visitantes, mesmo à entrada do portão principal. Juntaram-se em volta das televisões portáteis e viram as suas estações em Jackson e Memphis. Pelo menos quatro filmaram ao vivo segmentos de Parchman, enquanto inúmeros outros se juntavam em torno da área. A sua pequena secção de terreno fora cercada por cordas e barricadas e era observada de perto pelas tropas de Nugent.
Ao longo da estrada, a algazarra aumentou notoriamente quando as notícias se espalharam. Os membros do Klan, agora cerca de cem, começaram a cantar em voz alta na direcção dos edifícios da administração. Os skinheads, os nazis e os arianos uivavam obscenidades a quem quer que os ouvisse. As freiras e outros manifestantes silenciosos continuaram sentados debaixo dos seus chapéus de sol e tentaram ignorar os seus tumultuosos vizinhos.
Sam ouviu as notícias enquanto segurava uma tigela de grelos de nabo, a sua última refeição antes da refeição final. Fitou os olhos na televisão, observando a cena mudar de Jackson para Parchman e novamente para Jackson. Um jovem advogado negro de que nunca ouvira falar estava a falar com um repórter, explicando o que ele e o resto da equipa de defesa de Cayhall fariam a seguir.
O seu amigo Buster Moac tinha-se queixado que, nos últimos dias, tinha tantos advogados envolvidos no seu caso que já não conseguia distinguir entre quem estava do seu lado e aqueles que tentavam matá-lo. Mas Sam tinha a certeza que Adam estava a controlar tudo.
Acabou de comer os grelos de nabo e colocou a tigela no tabuleiro aos pés da cama. Encaminhou-se para as grades e olhou com desprezo para o guarda inexpressivo que o vigiava atrás da porta da fileira. O corredor estava silencioso. As televisões estavam acesas em todas as celas, todas com o som no mínimo e todas observadas com interesse mórbido. Não se ouvia nem uma voz e só esse facto, em si, já era extremamente raro.
Despiu o fato-macaco vermelho pela última vez, enrolou-o e atirou-o para um canto. Atirou os sapatos de borracha para debaixo da cama com um pontapé, para nunca mais os ver. Colocou cuidadosamente o seu novo traje em cima da cama, arranjou-o um pouco e, em seguida, começou a desabotoar lentamente a camisa de manga curta e vestiu-a. Servia-lhe perfeitamente. Meteu as pernas dentro das rígidas calças de trabalho de caqui, puxou o fecho e abotoou-as na cintura. As calças estavam alguns centímetros compridas demais, por isso sentou-se na cama e enrolou-as com dobras precisas. As peúgas de algodão eram grossas e macias. Os sapatos estavam um pouco largos, mas não ficavam mal.
A sensação de estar completamente vestido com roupas verdadeiras trouxe-Lhe subitamente memórias dolorosas do mundo livre. Estas eram as calças que vestira durante quarenta anos, até ter sido encarcerado. Costumava comprá-las no velho armazém de secos e molhados na praça de Clanton, guardando sempre cinco ou seis pares na última gaveta do seu guarda-fato. A mulher engomava-as sem vinco e após meia-dúzia de lavagens tinham o toque de um velho pijama. Usava- as no trabalho e na cidade. Usava-as quando ia pescar com o Eddie e também no alpendre a embalar a pequena Lee. Usava-as quando ia ao café e às reuniões do Klan. Sim, até as tinha usado na viagem fatal a Greenville para colocar a bomba no escritório do judeu radical.
Sentou-se na cama e apertou as rugas sob os joelhos. Há nove anos e seis meses que não usava aquelas calças. Supunha que era extremamente adequado usá-las para a câmara de gás. Seriam cortadas do seu corpo, colocadas num saco e queimadas.
Adam passou primeiro pelo escritório de Lucas Mann. No por tão da entrada, Louise entregara-lhe uma nota dizendo que era importante. Mann fechou a porta atrás dele e ofereceu-lhe uma cadeira. Adam recusou. Estava ansioso por ver Sam.
- O Quinto Tribunal de Círculo recebeu o recurso há meia- hora - disse Mann. - Pensei que talvez quisesse usar o meu telefone para falar para Jackson.
- Obrigado, mas vou usar o do Corredor.
- Óptimo. Estou em contacto com o gabinete do procurador-geral de meia em meia hora, por isso se souber alguma coisa dir-lhe-ei.
- Obrigado - Adam estava inquieto.
- O Sam quer uma última refeição?
- Pergunto-lhe dentro de um minuto.
- Óptimo. Telefone-me ou diga ao Packer. E quanto às testemunhas?
- O Sam não terá testemunhas.
- E quanto a si?
- Não. Ele não quer. Concordámos nisso há muito tempo.
- Óptimo. Não me lembro de mais nada. Tenho fax e telefone e é possível que aqui esteja tudo mais sossegado. Esteja à vontade para usar o meu gabinete.
- Obrigado - disse Adam, saindo do gabinete. Conduziu lentamente até ao Corredor e estacionou pela última vez no terreno junto à vedação. Caminhou lentamente até à torre de vigia e colocou as chaves no balde.
Quatro curtas semanas antes tinha estado ali pela primeira vez a observar o balde vermelho a descer e pensara como aquele pequeno sistema era grosseiro, mas eficaz. Apenas quatro semanas Pareciam anos.
Esperou pelos portões duplos e encontrou Tiny nos degraus. Sam já estava no gabinete da entrada, sentado na beira da secretária, a admirar os sapatos.
- Olha as minhas novas roupas! - disse orgulhosamente quando Adam entrou.
Adam aproximou-se e examinou as roupas desde os sapatos à camisa. Sam estava radiante. Tinha o rosto barbeado de fresco.
- Elegante, muito elegante.
- Um verdadeiro janota, hem?
- Está muito bem, Sam, muito bem. Foi o Donnie que as trouxe?
- Sim. Comprou-as na loja de um dólar. Comecei a encomendar alguns modelos de Nova Iorque, mas que diabo! É só uma execução. Eu bem te disse que os não deixaria matar-me com aqueles fatos vermelhos da prisão. Despi-o momentos atrás e nunca mais vestirei nenhum. Tenho que admitir, Adam, foi uma sensação agradável.
- Já ouviu as últimas?
- Claro. Está em todos os noticiários. Lamento acerca da audiência.
- Está agora no Quinto Tribunal de Círculo e tenho um bom pressentimento. Gosto das nossas probabilidades.
Sam sorriu e olhou para outro lado, como se o rapazinho estivesse a dizer ao avô uma mentira inocente.
- Ao meio-dia estava um advogado negro na televisão e disse que trabalhava para mim. Que raio é que se passa?
- Provavelmente era o Hez Kerry - Adam colocou a pasta em cima da mesa e sentou-se.
- Também lhe estou a pagar?
- Sim, Sam, está a pagar-lhe ao mesmo preço que a mim.
- Só estava curioso. Aquele safado daquele médico, como é que ele se chama, Swinn? Deve ter feito um grande número a meu respeito.
- Foi muito triste, Sam. Quando ele acabou o seu testemunho, toda a sala de audiências conseguia vê-lo às voltas na cela, a ranger os dentes e a mijar no chão.
- Bem, estou quase a ser libertado da minha desgraça - as palavras de Sam eram fortes e sonoras, quase um desafio. Não havia sequer um vestígio de medo. - Olha, tenho um pequeno favor a pedir-te - disse ele, estendendo a mão para mais outro envelope.
- Para quem é desta vez?
Sam entregou-lho.
- Quero que leves isto à estrada junto ao portão e quero que procures o chefe daquele bando de homens do Klan que está lá fora e quero que lho leias. Tenta que as câmaras filmem tudo, porque eu quero que as pessoas saibam o que diz.
Adam segurou-o com desconfiança.
- O que é que diz?
- É breve e preciso. Peço-lhes que vão todos para casa. Que me deixem só, para que possa morrer em paz. Nunca ouvi falar de alguns daqueles grupos e estão a tirar muitos benefícios da minha morte.
- Não pode obrigá-los a ir-se embora, sabe.
- Eu sei e não espero que vão. Mas a televisão dá a entender que eles são meus amigos e camaradas. Não conheço nem uma daquelas pessoas.
- Não sei se será boa ideia neste momento - disse Adam, pensando em voz alta.
- Porque não?
- Porque neste mesmo instante estamos a dizer ao Quinto Tribunal de Círculo que o senhor é basicamente um vegetal, incapaz de ter pensamentos como este.
Sam mostrou-se subitamente zangado.
- Vocês, advogados!... - disse com desprezo. - Nunca desistem? Acabou, Adam, deixa-te de jogos.
- Não acabou.
- Pelo que me diz respeito, acabou. Agora, pega na maldita carta e faz o que eu te digo.
- Já? - perguntou Adam olhando para o relógio. Era uma e meia.
Sim! Já! Eu espero aqui.
Adam estacionou junto da casa da guarda perto do portão principal e explicou a Louise o que ia fazer. Estava nervoso. Ela lançou um olhar de esguelha ao envelope branco que ele tinha na mão e gritou a dois guardas de uniforme para se aproximarem. Eles escoltaram Adam através do portão principal em direcção à zona das manifestações. Alguns repórteres que estavam a cobrir as manifestações reconheceram Adam e seguiram-no imediatamente. Ele e os guardas caminharam rapidamente ao longo da vedação da frente, ignorando as suas perguntas. Adam tinha medo, mas estava decidido e mais reconfortado pela presença dos seus novos guarda-costas.
Dirigiu-se directamente para o pálio azul e branco que assinalava o quartel-general do Klan e, quando se deteve, um grupo de vestes brancas estava à sua espera. A imprensa rodeou Adam, os seus guardas e os homens do Klan.
- Quem manda aqui? - perguntou Adam contendo a respiração.
- Quem quer saber? - perguntou um jovem corpulento de barbas negras e rosto queimado do sol. O suor escorria-Lhe das sobrancelhas enquanto avançava.
- Tenho aqui uma declaração de Sam Cayhall - disse Adam em voz alta e o círculo estreitou-se. As câmaras estalaram. Os repórteres empurraram microfones e gravadores no ar em frente de Adam.
- Calados - gritou alguém.
- Para trás! - ordenou severamente um dos guardas. Um grupo tenso de homens do Klan, a maioria de vestes iguais mas sem os barretes, juntaram-se mais em frente de Adam. Não reconheceu nenhum daqueles com que se defrontara na sexta-feira. Aqueles tipos não pareciam muito amistosos.
A algazarra interrompeu-se na faixa de relva, enquanto a multidão se aproximava para ouvir o advogado de Sam.
Adam retirou o bilhete do envelope e segurou-o com ambas as mãos.
- O meu nome é Adam Hall e sou o advogado de Sam Cayhall. Esta é uma declaração do Sam - repetiu ele. - Tem data de hoje e é dirigida a todos os membros do Ku Klux Klan e dos outros grupos que hoje se manifestam aqui a seu favor. Vou citar: Por favor, vão-se embora. A vossa presença aqui não é de qualquer conforto para mim. Estão a utilizar a minha execução como meio de promoverem os vossos próprios interesses. Não conheço nenhum de vós nem tenho interesse em conhecer-vos. Por favor, vão-se embora imediatamente. Prefiro morrer sem o benefício do vosso espectáculo."
Adam olhou para os rostos severos dos homens do Klan, todos acalorados e a escorrer transpiração.
- O último parágrafo diz o seguinte e passo a citar: Já não sou membro do Ku Klux Klan. Repudio essa organização e tudo o que ela defende. Eu seria hoje um homem livre se nunca tivesse ouvido falar do Ku Klux Klan. " Está assinado por Sam Cayhall. Adam dobrou o bilhete e agitou-o na direcção dos membros do Klan, que estavam todos sem fala e atónitos.
O da barba negra e faces queimadas pelo sol arremeteu na direcção de Adam numa tentativa para agarrar o bilhete.
- Dê-me isso! - gritou ele, mas Adam afastou-o. O guarda que se encontrava à direita de Adam avançou rapidamente e bloqueou o homem, que empurrou o guarda. O guarda empurrou-o também e durante alguns segundos aterrorizantes os guarda-costas de Adam lutaram com alguns membros do Klan. Outros guardas tinham estado a observar nas proximidades e, poucos minutos depois, estavam no meio do jogo do empurra. A ordem foi rapidamente restabelecida. A multidão recuou.
Adam sorriu maliciosamente para os membros do Klan.
- Vão-se embora! - gritou. - Ouviram o que ele disse! Tem vergonha de vocês!
- Vá para o inferno! - gritou o chefe em resposta.
Os dois guardas agarraram Adam e afastaram-no, antes que ele se agitasse novamente. Deslocaram-se rapidamente na direcção do portão da frente, afastando os repórteres e operadores de câmara do seu caminho. Praticamente entraram a correr, passaram por outra fileira de guardas, por outra multidão de repórteres e, finalmente, chegaram ao carro de Adam.
- Não volte ali, está bem? - pediu-lhe um dos guardas.
Era sabido que o gabinete de McAllister tinha mais fugas do que uma velha casa de banho. No início da tarde de terça-feira, o mexerico mais quente de Jackson era que o governador estava a pensar seriamente em conceder clemência a Sam Cayhall. O mexerico espalhou-se rapidamente do capitólio para os repórteres estacionados no exterior, onde foi captado por outros repórteres e espectadores, não como mero mexerico, mas como um sólido rumor. Uma hora depois da fuga de informação, o rumor assumira o nível de facto quase certo.
Mona Stark encontrou-se com a imprensa na praça e prometeu uma declaração do governador para mais tarde. Os tribunais ainda não tinham encerrado o caso, explicou ela. Sim, o governador estava sob grande pressão.
O Quinto Tribunal de Círculo levou apenas três horas para enviar o último dos recursos de última hora para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos. Uma breve conferência telefónica teve lugar às três horas. Hez Kerry e Garner Goodman correram para o escritório de Roxburgh, em frente ao edifício do capitólio. O procurador-geral tinha um sistema telefónico suficientemente sofisticado para ligar simultaneamente ele próprio, Goodman e Kerry, Adam e Lucas Mann em Parchman, o juiz Robichaux em Lake Charles, a juíza Judy em Nova Orleães e o juiz McNeely em Amarillo, Texas. O painel de três juízes autorizou Adam e Roxburgh a fazerem as suas alegações e, em seguida, a conferência foi terminada. Às quatro horas, o assistente do tribunal telefonou a todas as partes anunciando a recusa e os faxes seguiram pouco depois. Kerry e Goodman enviaram imediatamente o recurso por fax para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos.
Sam estava a passar pelo seu último exame físico quando Adam terminou a sua pequena conversa com o assistente. Desligou o telefone lentamente. Sam falava asperamente com o médico jovem e assustado que lhe media a pressão arterial. Packer e Tiny estavam perto a pedido do médico. Com cinco pessoas lá dentro, o gabinete da entrada estava cheio.
- O tribunal de círculo acabou de recusar - disse Adam solenemente. - Vamos a caminho do supremo tribunal.
- Não é exactamente a terra prometida - disse Sam, ainda a fitar o médico.
- Estou optimista - disse Adam meio indiferente a Packer.
O médico guardou rapidamente os seus instrumentos na mala.
- Já está - disse ele dirigindo-se para a porta.
- Então, estou suficientemente saudável para morrer? - perguntou Sam.
O médico abriu a porta e saiu, seguido de Packer e Tiny.
sam levantou-se e esticou as costas; depois começou a atravessar lentamente a sala em grandes passadas. Os sapatos escorregavam-lhe nos calcanhares e dificultavam-lhe os passos.
- Estás nervoso? - perguntou com um sorriso mau.
- Claro. E calculo que o senhor não.
- A morte não pode ser pior do que a espera. Raios, estou pronto! Gostaria de acabar com isto.
Adam quase disse alguma coisa banal acerca das suas probabilidades no supremo tribunal, mas não estava com disposição para ser repelido. Sam andava, fumava e não se mostrava com disposição para falar. Tipicamente, Adam atarefou-se com o telefone.
Telefonou a Goodman e a Kerry, mas as conversas foram breves.
Havia pouca coisa a dizer e nenhum optimismo.
O coronel Nugent, de pé à porta do Centro de Visitantes, pediu silêncio. Reunido diante dele estava o pequeno exército de repórteres e jornalistas, todos esperando ansiosamente o sorteio. Junto dele, em cima de uma mesa, estava um balde de lata. Cada um dos membros da imprensa usava um botão cor de laranja numerado, fornecido pela administração da prisão como credencial. A multidão estava invulgarmente silenciosa.
- Segundo os regulamentos da prisão, há oito lugares para distribuir aos membros da imprensa - explicou Nugent lentamente, fazendo ouvir as suas palavras quase até ao portão da entrada. Estava a apreciar as luzes da ribalta. - Um destes lugares está atribuído à AP, outro à UPI e um terceiro à Mississípi Network. Restam cinco que serão atribuídos aleatoriamente. Vou tirar cinco números deste balde e se um deles corresponder à vossa credencial significa que é o vosso dia de sorte. Alguma pergunta? Subitamente, várias dezenas de repórteres não tinham perguntas. Muitos deles olharam para os respectivos identificadores cor-de-laranja para verificarem os números. Uma onda de excitação percorreu o grupo. Nugent colocou dramaticamente a mão dentro do balde e tirou um pedaço de papel:
- Número quatro-oito-quatro-três - apregoou com a habilidade de um experimentado anunciador de bingo.
- Aqui estou - respondeu um jovem excitado, puxando do seu identificador premiado.
- O seu nome? - gritou Nugent.
- Edwin King do Arkansas Gazette.
Um funcionário da prisão junto de Nugent escreveu o nome e o jornal. Edwin King era admirado pelos colegas.
Nugent anunciou rapidamente os outros quatro números e concluiu o sorteio. Uma visível maré de desespero submergiu o grupo quando o último nome foi anunciado. Os excluídos sentiam-se esmagados.
- Às onze horas exactas, duas carrinhas encostarão aqui Nugent apontou para o caminho principal. - As oito testemunhas devem encontrar-se presentes e prontas. Serão conduzidos à Unidade de Segurança Máxima para assistirem à execução. Não são permitidas câmaras nem gravadores de nenhum tipo. Serão revistados à chegada. Cerca da meia-noite e meia hora serão novamente embarcados nas carrinhas e reconduzidos a este ponto. Seguidamente, será realizada uma conferência de imprensa no átrio principal do novo edifício da administração, que estará aberto a partir das nove horas da noite para vossa conveniência. Alguma pergunta?
- Quantas pessoas testemunharão a execução?
- Estarão cerca de treze a catorze pessoas na sala das testemunhas. E na Sala da Câmara estarei eu próprio, um pastor, um médico, o executor do estado, o advogado da prisão e dois guardas.
- A familia das vítimas vai testemunhar a execução?
- Sim. Mr. Elliot Kramer, o avô, está indicado como testemunha.
- E quanto ao governador?
- Segundo a lei, o governador tem dois lugares à sua disposição na sala das testemunhas. Um desses lugares foi cedido a Mr. Kramer. Não sei se o governador estará presente.
- E quanto à família de Mr. Cayhall?
- Não. Nenhum dos seus parentes assistirá à execução. Nugent tinha aberto uma lata de vermes. As questões saltavam de todos os lados e ele tinha muito que fazer.
- Não respondo a mais perguntas. Obrigado - disse ele e saiu do alpendre.
Donnie Cayhall chegou para a sua última visita alguns minutos antes das seis. Foi directamente conduzido ao gabinete da entrada, onde encontrou o irmão todo bem-vestido a rir com Adam Hall. Sam apresentou-os.
Até agora, Adam tinha evitado cuidadosamente o irmão de Sam. Como acabou por concluir Donnie era asseado e ordenado, bem arranjado e vestido sensatamente. Também era parecido com Sam, agora que Sam fizera a barba, cortara o cabelo e despira o fato- macaco vermelho. Eram da mesma altura e, embora Donnie não fosse gordo, Sam era muito mais magro.
Era evidente que Donnie não era o rufião que Adam receava. Ficou verdadeiramente satisfeito por conhecer Adam e orgulhoso pelo facto de ele ser advogado. Era um homem simpático com um sorriso fácil, bons dentes e uns olhos de momento muito tristes. - Como é que vão? - perguntou após alguns minutos de conversa. Estava a referir-se aos recursos.
- Estão todos no supremo tribunal.
- Então, ainda há esperança?
- Um pouco - disse Adam, já muito resignado ao destino. Houve uma longa pausa, enquanto Adam e Donnie procuravam um assunto de conversa menos sensível. Na verdade, Sam não se importava. Estava calmamente sentado numa cadeira, de pernas cruzadas, a fumar. O seu espírito estava ocupado com coisas que eles nem podiam imaginar.
- Visitei o Albert hoje - disse Donnie.
Sam não desviou os olhos do chão.
- Como está a próstata dele?
- Não sei. Ele pensava que já tinhas morrido.
- É mesmo do meu irmão.
- Também visitei a tia Finnie.
- Pensava que ela já tinha morrido - disse Sam com um sorriso.
- Quase. Tem noventa e um anos. Está destroçada com o que te aconteceu. Diz que sempre foste o seu sobrinho favorito.
- Ela não me suportava e eu não a suportava. Raios, quando vim para cá já não a via há cinco anos.
- Bem, está completamente desgostosa com tudo isto.
- Vai sobreviver.
Subitamente o rosto de Sam abriu-se num largo sorriso e começou a rir.
- Lembras-te daquela vez que a vimos ir à casinha de fora da avó e depois lhe atirámos pedras? Ela saiu de lá a gritar e a chorar.
Donnie lembrou-se subitamente e começou a tremer de riso.
- Sim, tinha um telhado de lata - disse ele entre gargalhadas. - Cada pedra parecia uma bomba a rebentar.
- Sim, fui eu, tu e o Albert. Não devias ter mais de quatro anos.
- Mas lembro-me:
A história cresceu e as gargalhadas tornaram-se contagiosas. Adam acabou por rir diante do espectáculo dos dois velhos a rirem como rapazinhos. A história da tia Finnie e da casinha de fora levou a outra acerca do marido dela, o tio Garland, que era mau e inválido, e as gargalhadas continuaram.
A última refeição de Sam foi uma deliberada censura aos desajeitados cozinheiros da prisão, que durante nove anos e meio o tinham atormentado com rações pouco inspiradas. Pediu uma coisa leve, embalada e fácil de encontrar. Espantara-se com frequência diante dos jantares de sete pratos encomendados pelos seus antecessores - bifes, lagosta e bolo de queijo. Buster Moac tinha devorado duas dúzias de ostras cruas, uma salada grega, uma grande costeleta e mais uns quantos pratos. Nunca compreendera onde é que eles arranjavam tanto apetite apenas umas horas antes de morrerem.
Ele não tinha fome nenhuma quando Nugent bateu à porta, às sete e meia. Atrás dele vinha Packer e, atrás de Packer, um preso de confiança com um tabuleiro. No centro do tabuleiro estava uma tigela com três Eskimo Pies lá dentro e ao lado havia um pequeno termo com café do French Market, o preferido de Sam. O tabuleiro foi colocado em cima da secretária.
- Não é um grande jantar, Sam - disse Nugent.
- Posso apreciá-lo em paz, ou vais ficar aí a importunar-me com a tua conversa idiota?
Nugent endireitou-se e olhou furioso para Adam.
- Voltamos dentro de uma hora. Nessa altura, o seu convidado tem de ir-se embora e vocês voltam para a Cela de Observação. Certo?
- Vai-te embora - disse Sam, sentado à secretária. Assim que eles saíram, Donnie disse:
- Raios, Sam, porque é que não pediste alguma coisa que pudéssemos apreciar? Que raio de última refeição é essa?
- É a minha última refeição. Quando chegar a tua altura, podes pedir o que quiseres - pegou num garfo e retirou cuidadosamente o gelado de baunilha e a cobertura de chocolate do pau. Deu uma grande dentada e, depois, deitou o café na chávena. Era escuro, forte e com um aroma rico.
Donnie e Adam sentaram-se nas cadeiras junto da parede, observando as costas de Sam enquanto comia a sua última refeição.
Estavam a chegar desde as cinco horas. Vinham de todo o estado, todos sozinhos, todos em grandes carros de quatro portas de cores variadas com selos, emblemas e outros sinais complicados nas portas e nos guarda-lamas. Alguns tinham grades com luzes de emergência no tejadilho. Outros tinham espingardas mon tadas nos vidros por cima dos bancos da frente. Todos dispunham de grandes antenas agitando-se ao vento.
Eram os xerifes, cada um eleito no respectivo condado para proteger os cidadãos dos fora-da-lei. A maior parte estava em funções há muitos anos e a maioria já tinha tomado parte no ritual não registado do jantar da execução.
Uma cozinheira chamada Miss Mazola preparava o banquete e o menu nunca variava. Fritava grandes frangos em gordura animal. Cozinhava ervilhas com presunto. E fazia autênticos biscoitos de leite do tamanho de pequenos pratos. A sua cozinha ficava situada nas traseiras da pequena cafetaria junto do edifício principal da administração. A comida era sempre servida às sete horas, independentemente do número de xerifes presentes.
A afluência desta noite era a maior desde a execução de Teddy Doyle Meeks em 1982. Miss Mazola já o previra, porque lia os jornais e todos sabiam a respeito de Sam Cayhall. Esperava pelo menos cinquenta xerifes.
Eram saudados no portão da entrada como se fossem dignitários e estacionavam ao acaso em volta da cafetaria. Eram quase todos homens corpulentos, com grandes estômagos e apetites vorazes. Estavam esfomeados depois da longa viagem.
Ao jantar a conversa era escassa. Comiam como porcos e depois saíam lá para fora, para a frente do edifício, onde se sentavam nas capotas dos carros e contemplavam o anoitecer.
Retiravam pedaços de frango dos dentes e gabavam os cozinhados de Miss Mazola. Ouviam os rádios grasnar, como se a notícia da morte de Sam Cayhall pudesse ser transmitida a qualquer instante.
Falavam acerca de outras execuções e crimes hediondos nos respectivos condados e sobre os rapazes que se encontravam no Corredor. A maldita câmara de gás não era suficientemente usada.
Contemplavam com espanto as centenas de manifestantes junto à estrada à sua frente. Palitavam um pouco mais os dentes e depois voltavam a entrar para comer bolo de chocolate.
Era uma noite maravilhosa para o cumprimento da lei.
A escuridão trouxe uma sinistra tranquilidade à estrada em frente de Parchman. Os membros do Klan, nenhum dos quais pensara em partir após o pedido de Sam, sentavam-se em cadeiras desdobráveis ou sobre a relva pisada e esperavam. Os skinheads e os outros seus irmãos em espírito, que tinham assado ao sol de Agosto, sentavam-se em pequenos grupos e bebiam água gelada. Um contingente da Amnistia Internacional juntara-se às freiras e outros activistas. Acenderam velas, rezavam e entoavam canções. Tentavam manter-se à distância dos grupos de ódio. Em qualquer outro dia, tratando-se de outra execução e de outro recluso aquela mesma gente odiosa estaria a clamar por sangue.
A tranquilidade foi momentaneamente quebrada quando uma camioneta cheia de adolescentes abrandou junto do portão da entrada. Subitamente começaram a gritar em altas vozes e em coro:
- Gaseiem-no! Gaseiem-no! Gaseiem-no!
Os pneus da camioneta guincharam e afastou-se a toda a velocidade. Alguns dos membros do Klan puseram-se de pé de um salto, prontos para a luta, mas os garotos desapareceram para nunca mais voltarem.
A presença imponente da brigada de trânsito mantinha tudo sob controlo. A guarda montada andava por ali em grupo, observando o trânsito e vigiando de perto os membros do Klan e os skinheads. Um helicóptero sobrevoava a cena.
Finalmente Goodman ordenou a interrupção da análise de mercado. Durante cinco longos dias tinham efectuado mais de duas mil chamadas. Pagou aos estudantes, guardou os telefones celulares e agradeceu-Lhes profusamente. Nenhum deles parecia disposto a abandonar a luta, por isso acompanharam-no ao capitólio, onde estava a decorrer outra vigília à luz das velas nos degraus da entrada. O governador ainda se encontrava no seu gabinete do segundo andar.
Um dos estudantes ofereceu-se para levar um telefone a John Bryan Glass, que se encontrava do outro lado da rua no Supremo Tribunal do Mississípi. Goodman telefonou-lhe, em seguida, falou a Kerry e, finalmente, a Joshua Caldwell, um velho amigo que concordara em esperar no gabinete do Adjunto da Morte em Washington. Goodman tinha todos a postos. Todos os telefones funcionavam. Telefonou a Adam. Sam estava a terminar a sua última refeição, disse Adam, e não queria falar com Goodman. Mas agradecia-lhe tudo o que fizera.
Quando o café e o gelado desapareceram, Sam levantou-se e esticou as pernas. Donnie estava calado há muito tempo. Sofria e estava preparado para se ir embora. Nugent chegaria em breve e ele queria despedir-se agora.
Sam deixara cair gelado na camisa e Donnie tentou limpar a nódoa com um guardanapo de pano.
- Não é assim tão importante - disse Sam observando o irmão.
Donnie continuou a limpar.
- Sim, tens razão. É melhor eu ir agora, Sam. Eles estarão aqui dentro de minutos.
Os dois homens abraçaram-se longamente, dando palmadinhas nas costas um do outro.
- Lamento, Sam - disse Donnie com a voz a tremer. - Lamento tanto.
Separaram-se, ainda agarrados aos ombros um do outro, ambos com os olhos húmidos, mas sem lágrimas.
- Tem cuidado contigo - disse Sam.
- Tu também. Diz uma oração, sim, Sam?
- Direi. Obrigado por tudo. Foste o único que se importou. Donnie mordeu os lábios e desviou os olhos de Sam. Apertou a mão a Adam, mas não foi capaz de dizer uma palavra. Caminhou até à porta atrás de Sam e, em seguida, partiu.
- Não há notícias do supremo tribunal? - perguntou Sam de repente, como se subitamente acreditasse que ainda havia uma esperança.
- Não - disse Adam tristemente.
Estava sentado em cima da secretária com os pés a baloiçar.
- Desejo realmente que tudo termine, Adam - disse, medindo cuidadosamente cada palavra. - Isto é uma crueldade.
Adam não conseguiu pensar em nada para dizer.
- Na China, esgueiram-se por trás da pessoa e enfiam-lhe uma bala na cabeça. Nem última tigela de arroz, nem despedidas nem esperas. Não é má ideia.
Adam olhou para o relógio pela milionésima vez durante a última hora. Desde o meio-dia houve intervalos em que as horas pareciam fugir, mas subitamente o tempo parava. Voava e, em seguida, arrastava-se. Alguém bateu à porta.
- Entre - disse Sam sumidamente.
O reverendo Ralph Griffin entrou e fechou a porta. Encontrara-se com Sam duas vezes naquele dia e estava obviamente a tomar o caso muito a peito. Era a sua primeira execução e já decidira que seria a última. O primo no Senado do estado teria que arranjar-lhe outro emprego. Acenou a Adam e sentou-se ao lado de Sam na secretária. Eram quase nove horas.
- O coronel Nugent está lá fora, Sam. Diz que está à sua espera.
- Bem, então não vamos sair. Vamos ficar aqui.
- Por mim está bem.
- Sabe, pastor, nestes últimos dias o meu coração tem sido tocado de formas que nunca imaginei possíveis. Mas, pela minha vida, detesto aquele idiota ali. E não consigo deixar de o sentir.
- O ódio é uma coisa terrível, Sam.
- Eu sei, mas não o consigo evitar.
- Francamente, também não gosto especialmente dele. Sam sorriu ao pastor e pôs-lhe um braço por cima dos ombros. As vozes lá fora aumentaram de volume e Nugent irrompeu na sala.
- Sam, são horas de voltar para a Cela de Observação - disse.
Adam pôs-se de pé, com os joelhos a tremer de medo, o estômago enrolado e o coração a bater descontroladamente. Sam, porém, parecia imperturbável. Saltou da secretária.
- Vamos! - disse.
Seguiram Nugent desde o gabinete da entrada pelo corredor estreito, onde alguns dos mais corpulentos guardas de Parchman estavam alinhados contra as paredes. Sam pegou na mão de Adam e caminharam lentamente com o reverendo atrás deles.
Adam apertou a mão do avô e ignorou os rostos enquanto passavam. Atravessaram o centro do Corredor, passando por dois conjuntos de portas, em seguida pelas grades até à extremidade final da fileira A. A porta da fileira fechou-se atrás deles e seguiram Nugent passando pelas celas.
Sam olhou para os rostos dos homens que conhecia tão bem. Piscou o olho a Hank Henshaw, acenou animadamente a J. B. Gullitt, que tinha lágrimas nos olhos, sorriu a Stock Turner. Estavam todos encostados às grades, de cabeça baixa, com o medo patente no rosto. Sam olhou-os com toda a sua coragem.
Nugent parou junto da última cela e esperou que a porta se abrisse do final da fileira. Estalou audivelmente e, em seguida, abriu-se. Sam, Ralph e Adam entraram e Nugent fez sinal para fecharem a porta.
A cela estava escura, a única luz e a televisão ambas apagadas. Sam sentou-se na cama entre Adam e o reverendo. Apoiou-se nos cotovelos de cabeça baixa.
Nugent observou-os durante um momento, mas não conseguiu pensar em nada para dizer. Voltaria dentro de duas horas, às onze, para levar Sam para a Sala de Isolamento. Todos sabiam que ele voltaria. Parecia demasiado cruel naquele momento dizer a Sam que se ia embora, mas que voltaria. Por isso afastou-se e saiu pela porta da fileira, onde os guardas estavam à espera, observando na semi-obscuridade. Nugent dirigiu-se para a Sala de Isolamento onde fora instalada uma cama desdobrável para a última hora do recluso. Atravessou a pequena sala e entrou na Sala da Câmara, onde se ultimavam os preparativos.
O executor do estado estava ocupado e muito controlado. Era um homem baixo e nervoso chamado Bill Monday. Tinha nove dedos e receberia quinhentos dólares pelos seus serviços se a execução tivesse lugar. Por lei, era nomeado pelo governador. Estava dentro de um pequeno armário conhecido simplesmente como sala da química, a menos de metro e meio de distância da câmara de gás. Estava a estudar uma lista num quadro. Diante dele em cima do balcão estava uma lata de 450gramas de bolas de cianeto de sódio, uma garrafa de 4litros de ácido sulfúrico, um recipiente com 450 gramas de ácido cáustico, uma garrafa de aço com 25 litros de amoníaco anídrico e um recipiente com vinte litros de água destilada. Ao lado, noutro balcão mais pequeno, estavam três máscaras de gás, três pares de luvas de borracha, um funil, sabão toalhas e um esfregão. Entre os dois balcões havia uma panela para misturar o ácido montada sobre um cano de cinco centímetros que corria pelo chão, sob a parede, e emergia ao lado da câmara junto das alavancas.
Na realidade, Monday tinha três listas. Uma continha instruções sobre a mistura dos produtos químicos: o ácido sulfúrico e a água destilada deviam ser misturados de modo a obter uma concentração de aproximadamente quarenta e um por cento, a solução de soda cáustica era obtida dissolvendo quatrocentos e cinquenta gramas de ácido cáustico em dez litros de água e havia mais umas misturas que tinham que ser feitas para limpar a câmara depois da execução. Outra das listas incluía todos os químicos e materiais necessários. A terceira continha o procedimento a seguir no decurso da própria execução.
Nugent falou com Monday: tudo estava a decorrer como planeado. Um dos assistentes de Monday estava a untar com massa consistente as extremidades das janelas da câmara. Um membro da equipa de execução à paisana verificava as correias e as tiras da cadeira de madeira. O médico estava a manusear o seu monitor ECG. A porta estava aberta para o exterior, onde já se encontrava uma ambulância.
Nugent olhou mais uma vez para as listas, embora as tivesse memorizado há muito tempo. Na realidade, tinha até reescrito uma nova lista, um mapa sugerido para registar a execução. Este mapa seria usado por Nugent, por Monday e pelo assistente de Monday.
Era uma lista cronológica numerada das fases da execução: água e ácido misturados, o recluso entra na câmara, porta da câmara fechada, cianeto de sódio colocado no ácido, o gás atinge o rosto do recluso, recluso aparentemente inconsciente, recluso certamente inconsciente, movimentos do corpo do recluso, último movimento visível, coração parado, respiração parada, válvula de exaustão aberta, válvulas de escoamento abertas, válvula do ar aberta, porta da câmara aberta, recluso retirado da câmara, recluso declarado morto. Ao lado de cada fase havia uma linha em branco para registar o tempo decorrido desde a fase anterior.
E havia também uma lista da execução, um mapa dos vinte e nove passos a executar para começar e concluir a tarefa. Evidentemente, a lista de execução tinha um apêndice, uma lista das quinze coisas a realizar na parte final, a última das quais era colocar o recluso na ambulância.
Nugent conhecia cada passo de todas as listas. Sabia como misturar os químicos, como abrir as válvulas, quanto tempo era preciso deixá-las abertas e como fechá-las. Sabia tudo.
Saiu para falar com o motorista da ambulância e apanhar ar, depois regressou à Fileira A passando pela Sala de Isolamento. Como toda a gente, estava à espera que o maldito supremo tribunal decidisse num sentido ou noutro.
Mandou os dois guardas mais altos à fileira para fechar as janelas ao longo do cimo da parede exterior. Tal como o edifício, as janelas datavam de há trinta e seis anos e não se fechavam silenciosamente. Os guardas empurraram-nas até baterem, cada uma delas ecoando por toda a fileira. Trinta e cinco janelas ao todo, todos os reclusos sabiam o número exacto e a cada uma que era fechada a fileira tornava-se mais escura e silenciosa.
Os guardas terminaram finalmente a tarefa e saíram. O Corredor estava agora completamente trancado - cada recluso na sua cela, todas as portas protegidas, todas as janelas fechadas.
Sam tinha começado a tremer com o fechar das janelas. A cabeça descaiu-lhe ainda mais. Adam colocou um braço em torno dos seus ombros frágeis.
- Sempre gostei daquelas janelas - disse Sam, em voz baixa e áspera. Um esquadrão de guardas estava a menos de cinco metros de distância, espreitando pela porta da fileira como crianças num jardim zoológico e Sam não queria que as suas palavras fossem ouvidas. Era difícil imaginar Sam a gostar de alguma coisa neste lugar.
- Normalmente, quando chovia muito a água salpicava as janelas, algumas gotas caíam cá dentro e pingavam para o chão. Sempre gostei da chuva. E da lua. Por vezes, quando as nuvens desapareciam, eu podia ficar de pé na minha cela e contemplar a lua através daquelas janelas. Sempre me perguntei porque razão não haveria mais janelas por aqui. Quero dizer, raios, desculpe pastor, se estão determinados a manter-nos dentro de uma cela todo o dia, porque não nos permitiriam ver o exterior? Nunca compreendi isso. Acho que nunca compreendi muita coisa. Oh, bem - a voz sumiu-se e não voltou a falar durante algum tempo.
Da escuridão veio a suave voz de tenor do Preacher Boy cantando Just a Closer Walk with Thee. Era bastante bonito.
Just a closer walk with Thee, Grant it, Jesus, is my plea, Daily walking close to Thee...
- Calado! - gritou um guarda.
- Deixem-no em paz! - gritou Sam em resposta, assustando tanto Adam como Ralph. - Canta Randy - disse Sam apenas suficientemente alto para ser ouvido na porta ao lado. O Preacher Boy demorou algum tempo, obviamente ferido nos seus sentimentos e, em seguida, começou a cantar novamente.
Uma porta bateu algures e Sam saltou. Adam apertou-lhe o ombro e ele acalmou-se. Tinha os olhos perdidos algures na escuridão do chão.
- Suponho que a Lee não quis vir - disse ele, as palavras assombradas.
Adam pensou por um segundo e decidiu dizer-Lhe a verdade.
- Não sei onde ela está. Não falo com ela há dez dias.
- Pensava que ela estava numa clínica de reabilitação.
- Eu também penso que sim, mas não sei onde. Lamento. Fiz tudo o que pude para a encontrar.
- Pensei muito nela nestes últimos dias. Por favor diz-Lhe isso.
- Direi - se Adam voltasse a vê-la, lutaria para evitar estrangulá-la.
- E também pensei muito no Eddie.
- Olhe, Sam, não temos muito tempo. Vamos falar de coisas agradáveis, está bem?
- Quero que me perdoes pelo que fiz ao Eddie.
- Já lhe perdoei, Sam. Está tudo bem. Eu e a Carmen já lhe perdoámos.
Ralph baixou a cabeça ao lado da de Sam e disse:
- Talvez haja mais alguns outros em que devamos pensar, Sam.
- Talvez mais tarde - disse Sam.
A porta da fileira abriu-se no extremo mais afastado do corredor e ouviram-se passos apressados na sua direcção. Lucas Mann com um guarda atrás de si, parou junto da última cela e olhou para as três figuras na sombrajuntas na cama.
- Adam, tem um telefonema - disse nervosamente. - No gabinete da entrada.
As três sombras endireitaram-se em conjunto. Adam pôs-se de pé de um salto e sem uma palavra saiu da cela quando a porta se abriu. O estômago roncava violentamente enquanto quase corria pela fileira.
- Mostra-lhes, Adam - disse J. B. Gullitt quando ele passou a correr.
- Quem é? - perguntou Adam a Lucas Mann, que seguia a seu lado, passo a passo.
- Garner Goodman.
Serpentearam pelo centro da USM e apressaram-se em direcção ao gabinete da entrada. O auscultador estava em cima da secretária. Adam agarrou-o e sentou-se em cima da secretária.
- Garner, aqui o Adam.
- Estou no capitólio, Adam, na rotunda no exterior do gabinete do governador. O supremo tribunal acaba de negar todas as nossas petições de revista. Aí já não há nada a fazer.
Adam fechou os olhos e fez uma pausa.
- Bem, acho que é o fim - disse ele e olhou para Lucas Mann. Lucas franziu a testa e baixou a cabeça.
- Fique aí. O governador vai fazer uma declaração. Telefono daqui a cinco minutos - Goodman desligou.
Adam desligou o telefone e ficou a olhar para ele.
- O supremo tribunal recusou tudo - disse a Mann. - O governador vai fazer uma declaração. Ele vai telefonar dentro de um minuto.
Mann sentou-se.
- Lamento, Adam, lamento muito. Como está o Sam a aguentar-se?
- O Sam está a aguentar-se muito melhor do que eu, suponho.
- É estranho, não é? Esta é a minha quinta execução e fico sempre espantado com a calma com que eles aceitam tudo. Desistem quando anoitece. Comem a última refeição, despedem-se das familias e ficam estranhamente plácidos perante tudo isto. Eu suponho que esperneava e gritava e chorava. Seriam precisos vinte homens para me arrastarem para fora da Cela de Observação.
Adam conseguiu um sorriso breve e depois reparou numa caixa de sapatos aberta em cima da secretária. Estava forrada com folha de alumínio e tinha alguns bolos partidos no fundo. Não estava ali quando saíram uma hora antes.
- O que é isto? - perguntou sem verdadeira curiosidade.
- Esses são os bolos da execução.
- Os bolos da execução?
- Sim, aquela doce velhinha que vive mais abaixo na estrada fá-los sempre que há uma execução.
- Porquê?
- Não sei, na realidade não faço ideia nenhuma da razão porque o faz.
- Quem os come? - perguntou Adam olhando para os bolos que restavam e para as migalhas como se fossem veneno.
- Os guardas e os presos de confiança.
Adam abanou a cabeça. Tinha demasiadas coisas na cabeça para se preocupar com uma caixa de bolos da execução.
Para a ocasião, McAllister envergou um fato azul-escuro, uma camisa branca recém-engomada e uma gravata cor de vinho. Escovou e pulverizou o cabelo, lavou os dentes e, em seguida entrou no seu gabinete por uma porta lateral. Mona Stark estava a remoer nos números.
- Os telefonemas pararam finalmente - disse ela algo aliviada.
- Não quero saber disso - disse McAllister verificando a gravata e os dentes no espelho. - Vamos.
Abriu a porta e saiu para o átrio onde dois guarda-costas foram ao seu encontro. Ladearam-no enquanto ele se encaminhava para a rotunda, onde as luzes brilhantes o esperavam. Uma massa de repórteres e câmaras avançaram para ouvir a declaração. Ele subiu para uma tribuna fictícia com uma dúzia de microfones ligados. Franziu a cara na direcção das luzes, esperou pelo silêncio e depois falou.
- O Supremo Tribunal dos Estados Unidos acaba de negar os últimos recursos de Sam Cayhall - disse dramaticamente como se os repórteres não o soubessem já. Outra pausa enquanto as câmaras davam estalidos e os microfones esperavam. - Portanto, depois de três julgamentos perante um júri, depois de nove anos de recursos em todos os tribunais disponíveis segundo a nossa Constituição, depois de ver o seu caso revisto por nada menos que quarenta e sete juízes diferentes, a justiça chegou finalmente para Sam Cayhall. O seu crime foi cometido há vinte e três anos. A justiça pode ser lenta, mas ainda funciona. Recebi telefonemas de muitas pessoas pedindo-me que concedesse o perdão a Mr. Cayhall, mas não posso fazê-lo. Não posso ignorar a sabedoria do júri que o condenou nem posso sobrepor o meu julgamento ao dos nossos distintos tribunais. Nem estou disposto a ir contra os desejos dos meus amigos, os Kramer - outra pausa. Falava sem consultar quaisquer notas e tornava-se imediatamente óbvio que ensaiara estes comentários durante muito tempo. - Espero ardentemente que a execução de Sam Cayhall ajude a apagar um capítulo doloroso da torturada história do nosso estado. Apelo a todos os cidadãos do Mississípi para que a partir desta triste noite se unam e trabalhem pela igualdade. Que Deus tenha piedade da sua alma.
Recuou enquanto as perguntas voavam. Os guarda-costas abriram uma porta lateral e ele desapareceu. Esgueiraram-se pelas escadas e saíram pela entrada norte, onde um carro estava à espera. A quilómetro e meio de distância, um helicóptero esperava igualmente.
Goodman saiu e ficou junto de um velho canhão, por qualquer motivo apontado aos altos edifícios da Baixa. Por baixo dele, na base da escadaria principal, um grande grupo de manifestantes empunhava velas. Telefonou a Adam para lhe dar a notícia e depois caminhou por entre a multidão e as velas e deixou os terrenos do capitólio. Um hino começava a ser entoado, no momento em que atravessava a rua e ao fim de dois quarteirões começou a desvanecer-se lentamente. Vagueou por algum tempo depois dirigiu-se para o gabinete de Hez Kerry.
O caminho de regresso à Cela de Observação foi muito mais longo do que antes. Adam fê-lo sozinho, agora em terreno familiar. Lucas Mann desapareceu algures no labirinto do Corredor.
Enquanto esperava diante de uma porta pesadamente trancada no centro do edifício, Adam teve consciência imediata de duas coisas. Primeiro, agora havia por ali muito mais pessoas - mais guardas, mais estranhos ostentando identificadores de plástico e armas à cintura, mais homens de rosto severo com camisas de manga curta e gravatas de poliester Isto era um acontecimento, um fenómeno singular demasiado excitante para se perder. Adam especulou que qualquer empregado da prisão com influência e visão suficientes só tinha que estar no Corredor quando a sentença de morte de Sam fosse executada.
A segunda coisa que compreendeu foi que tinha a camisa encharcada e o colarinho colado ao pescoço. Alargou a gravata, enquanto a porta estalava ruidosamente e depois se abria com o zumbido de um motor eléctrico oculto. Um guarda, algures no labirinto de paredes de cimento, janelas e grades, estava a observar e a premir os botões certos. Avançou, ainda a puxar o nó da gravata e o botão debaixo dela, e dirigiu-se à barreira seguinte, uma parede de grades que conduzia à fileira A. Passou a mão pela testa, mas não estava a transpirar. Encheu os pulmões com o ar pesado e húmido.
Com as janelas fechadas, a fileira estava agora sufocante. Outro estalido sonoro, outro zumbido eléctrico e entrou no estreito corredor, que segundo Sam lhe dissera tinha dois metros e vinte de largura. Três pálidos conjuntos de lâmpadas fluorescentes lançavam sombras ténues no tecto e no chão. Arrastou os pés pesados ao longo das celas escuras, todas cheias de criminosos brutais, todos a rezar e a meditar e alguns a chorar.
- Boas notícias, Adam? - perguntou J. B. Gullitt da escuridão. Adam não respondeu. Continuando a caminhar, olhou para cima para as janelas com as suas várias tonalidades de tinta dispersas em volta das antigas vidraças e foi surpreendido pela questão de saber quantos advogados antes dele tinham dado este passeio final do gabinete da entrada até à Cela de Observação para informar um moribundo de que o seu último magro raio de esperança se extinguira. Este sítio tinha uma história de execuções rica e, por isso, concluiu que muitos tinham sofrido ao longo deste caminho. O próprio Garner Goodman tinha levado a notícia final a Maynard Tole e isto deu a Adam o alento de que tanto necessitava.
Ignorou os olhos curiosos da pequena multidão que o observava na extremidade da fileira. Parou na última cela, esperou e a porta abriu-se obedientemente.
Sam e o reverendo ainda estavam sentados na cama com as cabeças baixas quase a tocarem-se na escuridão, sussurrando. Olharam para Adam que se sentou ao lado de Sam e colocou um braço em volta dos seus ombros, ombros que agora pareciam ainda mais frágeis.
- O supremo tribunal acaba de recusar tudo - disse muito suavemente, a voz prestes a quebrar-se. O reverendo soltou um gemido penoso. Sam acenou com a cabeça como se fosse algo de que já estava à espera. - E o governador também recusou a clemência.
Sam tentou levantar corajosamente os ombros, mas as forças faltaram-Lhe. Baixou-se ainda mais.
- Que Deus tenha piedade - disse Ralph Griffim.
- Então está tudo acabado - disse Sam.
- Já não resta mais nada - murmurou Adam.
Podiam ouvir-se murmúrios excitados vindos da equipa da morte apinhada na extremidade da fileira. Afinal, a coisa ia acontecer. Uma porta bateu algures atrás deles, na direcção da câmara e os joelhos de Sam vergaram-se.
Ficou silencioso por momentos - um minuto ou quinze, Adam não saberia dizer. O relógio continuava a avançar e a parar.
- Acho que agora devemos rezar, pastor - disse Sam.
- Acho que sim. Já esperámos tempo suficiente.
- Como é que quer fazer?
- Bem, Sam, acerca do quê exactamente é que quer rezar? Sam pensou no assunto por momentos e depois disse:
- Gostaria de certificar-me que Deus não estará zangado comigo quando eu morrer.
- Boa ideia. E porque é que pensa que Deus poderá estar zangado consigo?
- É bastante óbvio, não acha?
Ralph esfregou as mãos uma na outra.
- Acho que a melhor maneira de o fazer é confessar os seus pecados e pedir a Deus que lhe perdoe.
- Todos?
- Não tem que os listar a todos, basta pedir a Deus que perdoe tudo.
- Uma espécie de arrependimento em branco.
- Sim, é isso. E funciona, se for sincero.
- Sou sincero como o diabo.
- Acredita no inferno, Sam?
- Sim.
- Acredita no paraíso?
- Sim.
- Acredita que todos os cristãos vão para o paraíso? Sam pensou nisto durante muito tempo e depois abanou ligeiramente a cabeça antes de perguntar:
- O senhor acredita?
- Sim, Sam, acredito.
- Então eu acredito na sua palavra.
- Muito bem. E agora confie em mim, sim?
- Parece demasiado fácil sabe. Eu digo uma oração rápida e tudo está perdoado.
- Porque é que isso o incomoda?
- Porque fiz algumas coisas muito más, pastor.
- Todos nós fizemos coisas más. O nosso Deus é um Deus de infinito amor.
- O senhor não fez o que eu fiz.
- Sentir-se-á melhor se falar no assunto?
- Sim, nunca me sentirei melhor se não falar no assunto.
- Estou aqui, Sam.
- Querem que eu saia por um minuto? - perguntou Adam. Sam agarrou-lhe um joelho. - Não.
- Não temos muito tempo, Sam - disse Ralph, olhando através das grades.
Sam respirou fundo e falou num tom baixo e monótono, com cuidado para que só Adam e Ralph o ouvissem.
- Matei o Joe Lincoln a sangue-frio. Já disse que lamentava muito.
Ralph estava a murmurar qualquer coisa para si próprio enquanto escutava. Já estava a rezar.
- E ajudei os meus irmãos a matar aqueles dois homens que mataram o nosso pai. Francamente, nunca tive remorsos disso até agora. A vida humana parece muito mais valiosa nestes últimos dias. Eu estava errado. E participei num linchamento quando tinha quinze ou dezasseis anos. Era apenas parte da multidão e provavelmente não teria podido detê-los mesmo que tentasse. Mas não tentei e sinto-me culpado.
Sam parou. Adam susteve a respiração e esperou que a confissão tivesse terminado. Ralph esperou, esperou e, finalmente, perguntou:
- É tudo, Sam?
- Não, há mais um.
Adam fechou os olhos e tentou aguentar-se. Estava tonto e tinha vontade de vomitar.
- Houve outro linchamento. Um rapaz chamado Cletus. Não me lembro do último nome. Um linchamento do Klan. Eu tinha dezoito anos. É tudo o que posso dizer.
Este pesadelo nunca mais acaba, pensou Adam.
Sam respirou profundamente e ficou silencioso durante vários minutos. Ralph rezava com força. Adam apenas esperava.
- E não matei os rapazes Kramer - disse Sam com a voz a tremer. - Não tinha nada que estar ali e foi um erro envolver-me naquela confusão. Lamentei-o durante muitos anos, tudo o que se passou. Foi um erro pertencer ao Klan e colocar bombas. Mas não matei aqueles rapazes. Não havia intenção de ferir ninguém. Era suposto aquela bomba rebentar no meio da noite, quando ninguém estaria por perto. Era nisso que eu acreditava. Mas foi armada por outra pessoa, não por mim. Eu era apenas um vigia, um motorista, um lacaio. Essa outra pessoa preparou a bomba para rebentar muito mais tarde do que eu pensava. Nunca tive a certeza se ele quis matar alguém, mas suspeito que sim.
Adam ouviu as palavras, recebeu-as, absorveu-as, mas estava demasiado atónito para se mexer.
- Mas eu podia tê-lo impedido. E isso torna-me culpado. Aqueles garotos ainda estariam hoje vivos se eu tivesse agido de outra maneira depois de a bomba ter sido colocada. Tenho o seu sangue nas minhas mãos e há muitos anos que sofro por causa disso.
Ralph colocou gentilmente uma mão sobre a nuca de Sam.
- Reza comigo, Sam - Sam tapou os olhos com ambas as mãos e pousou os cotovelos sobre os joelhos.
- Acreditas que Jesus Cristo era o filho de Deus, que veio à terra nascido de uma virgem, viveu uma vida sem pecado e morreu na cruz pela nossa salvação eterna? Acreditas nisto, Sam?
- Sim - murmurou ele.
- E que ele se ergueu do túmulo e subiu aos céus?
- Sim.
- E que através dele todos os pecados te são perdoados? Todas as coisas terríveis que te pesam no coração estão agora perdoadas. Acreditas nisto, Sam?
- Sim, sim.
Ralph libertou a cabeça de Sam e limpou-lhe as lágrimas dos olhos. Sam não se moveu, mas tinha os ombros a tremer. Adam apertou-o ainda com mais força.
Randy Dupree começou a assobiar outro verso de Just a Closer Walk with Thee. As notas eram claras e precisas e ecoavam maravilhosamente por toda a fileira.
- Pastor - disse Sam endireitando as costas, - aqueles pequeninos Kramer estarão no céu?
- Sim.
- Mas eles eram judeus.
- Todas as crianças vão para o céu, Sam.
- Vê-los-ei lá em cima?
- Não sei. Há muitas coisas sobre o céu que nós não sabemos. Mas a Bíblia promete-nos que não haverá dor depois de chegarmos lá.
- Ainda bem. Então espero encontrá-los.
A inconfundível voz do coronel Nugent quebrou a tranquilidade. A porta da fileira bateu, estalou e abriu-se. Caminhou metro e meio até à porta da Cela de Observação. Seis guardas estavam atrás dele.
- Sam, está na hora de ir para a Sala de Isolamento - disse ele. - São onze horas.
Os três homens levantaram-se lado a lado. A porta da cela abriu-se e Sam saiu. Sorriu para Nugent, depois voltou-se e abraçou o reverendo.
- Obrigado - disse.
- Amo-te, irmão - gritou Randy Dupree da sua cela, a menos de três metros de distância.
Sam olhou para Nugent e perguntou:
- Posso despedir-me dos meus amigos?
Um desvio. O manual dizia claramente que o recluso deveria ser levado da Cela de Observação para a Sala de Isolamento, nada sendo dito acerca de um último passeio pela fileira. Nugent não sabia o que dizer, mas por fim cedeu:
- Claro, mas depressa.
Sam deu alguns passos e apertou as mãos de Randy através das grades. Depois, avançou para a cela seguinte e apertou a mão a Harry Ross Scott.
Ralph Griffin passou por entre os guardas e deixou a fileira. Procurou um canto escuro e chorou como uma criança. Não voltaria a ver Sam. Adam ficou à porta da cela junto de Nugent e juntos observaram Sam a descer o corredor, parando em cada cela, murmurando qualquer coisa a cada um dos reclusos. Passou mais tempo com J. B. Gullitt, cujos soluços eram audíveis.
Depois voltou-se e regressou corajosamente para junto deles contando os passos ao andar, sorrindo de caminho aos amigos. Agarrou Adam pela mão.
- Vamos - disse para Nugent.
Havia tantos malditos guardas acumulados no fundo da fileira que era difícil passar por eles. Nugent passou primeiro, depois Sam e finalmente Adam. A massa humana acrescentava vários graus à temperatura e várias camadas ao ar abafado. A demonstração de força era necessária, claro, para subjugar um prisioneiro relutante ou talvez para assustá-lo tornando-o submisso. Parecia terrivelmente estúpida com um pequeno velho como Sam Cayhall.
A passagem de uma sala para outra demorou apenas uns segundos, uma distância de seis metros, mas Adam vacilava a cada doloroso passo. Através do túnel humano de guardas armados, através da pesada porta de aço, para dentro da pequena sala. A porta da parede oposta estava fechada. Conduzia à câmara.
Uma frágil cama portátil fora colocada ali para a ocasião. Adam e Sam sentaram-se nela. Nugent fechou a porta e ajoelhou-se à frente deles. Os três estavam sozinhos. Adam colocou novamente o braço sobre os ombros de Sam.
Nugent tinha uma expressão terrivelmente condoída. Colocou uma mão no joelho de Sam e disse:
- Sam, vamos atravessar isto juntos. Agora...
- Seu idiota! - explodiu Adam, espantado com esta notável forma de expressão.
- Ele não consegue evitá-lo - disse Sam a Adam prestimosamente. - É apenas estúpido e nem sequer o compreendeu ainda.
Nugent sentiu a aguda censura e tentou pensar em algo adequado para dizer.
- Estou só a tentar atravessar isto, certo? - disse para Adam.
- Porque é que não se vai embora? - perguntou Adam.
- Sabes uma coisa, Nugent? - disse Sam. - Li toneladas de livros de Direito. E li páginas e páginas de regulamentos da prisão. E não li em sítio nenhum nada que me obrigue a passar a minha última hora de vida contigo. Nenhuma lei, nenhum estatuto, nenhum regulamento, nada.
- Limite-se a sair daqui para fora - disse Adam, pronto para atacar se fosse necessário.
Nugent pôs-se de pé de um salto.
- O doutor entrará por aquela porta às onze e quarenta. Encosta- te um estetoscópio ao peito e vai-se embora. Às onze e quarenta e cinco entro eu, também por aquela porta. Nessa altura, iremos para a Sala da Câmara. Alguma pergunta?
- Não. Saia - disse Adam acenando na direcção da porta. Nugent saiu rapidamente.
Subitamente estavam sós. Com uma hora pela frente.
Duas carrinhas da prisão idênticas pararam em frente do Centro de Visitantes e recolheram os oito repórteres premiados e um xerife solitário. A lei permitia, embora não obrigasse, que o xerife do condado onde o crime fora cometido assistisse à execução.
O homem que era xerife de Washington County em 1967 morrera há quinze anos, mas o xerife actual não quis perder a ocasião. Nesse dia, informara previamente Lucas Mann de que tencionava invocar a lei. Afirmara que achava que o devia ao povo de Greenville e de Washington County.
Mr. Elliot Kramer não se encontrava em Parchman. Planeara esta viagem durante anos, mas o seu médico interviera no último momento. O seu coração estava fraco e era demasiado arriscado. Ruth Kramer nunca pensara seriamente em testemunhar a execução. Estava na sua casa em Memphis, na companhia de amigos, esperando que tudo terminasse.
Não haveria membros da família das vítimas presentes para testemunhar o assassínio de Sam Cayhall.
As carrinhas foram longamente fotografadas e filmadas enquanto se afastavam e desapareciam no caminho principal. Cinco minutos mais tarde pararam diante dos portões da USM. Foi pedido a todos que saíssem e foram revistados em busca de câmaras e gravadores. Voltaram a entrar nas carrinhas e atravessaram os portões. As carrinhas passaram pelos relvados ao longo da fachada da USM, contornaram os pátios da ala oeste e finalmente pararam junto da ambulância.
O próprio Nugent estava à sua espera. Os repórteres saíram das carrinhas e instintivamente começaram a olhar indiscriminadamente à sua volta, tentando compreender tudo para o registrarem mais tarde. Estavam no exterior de um edifício quadrado de tijolo vermelho ligado por qualquer forma à estrutura mais baixa e plana da USM. O pequeno edifício tinha duas portas. Uma estava fechada, a outra esperava-os.
Nugent não estava com disposição para repórteres curiosos. Guiou-os apressadamente através da porta aberta. Entraram numa pequena sala onde os esperavam duas filas de cadeiras desdobráveis voltadas para um ominoso painel de cortinas negras.
- Sentem-se, por favor - disse ele rudemente. Contou oito repórteres e um xerife. Havia três lugares vazios. - São agora
- onze e dez - disse ele dramaticamente. - O recluso está na Sala de Isolamento. Aqui diante de vós, do outro lado daquelas cortinas, está a Sala da Câmara. Será trazido para ali quando faltarem cinco minutos para a meia-noite, será amarrado e a porta fechada.
As cortinas serão abertas exactamente à meia-noite e quando virem a câmara o preso já estará lá dentro, a menos de sessenta centímetros das janelas. Só vão ver a parte de trás da cabeça dele. Não fui eu que concebi isto, certo? Deve levar cerca de dez minutos até ser declarado morto, altura em que as cortinas serão fechadas e vocês regressarão às carrinhas. Vão esperar muito tempo e lamento que a sala não tenha ar condicionado. Quando as cortinas se abrirem, tudo acontecerá muito depressa. Alguma pergunta?
- Falou com o recluso?
- Sim.
- Como está ele a portar-se?
- Não vou entrar nesse assunto. Está marcada uma conferência de imprensa para a uma hora da manhã e nessa altura responderei a essas perguntas. Agora estou ocupado - Nugent saiu da sala das testemunhas e bateu com a porta atrás de si. Virou rapidamente a esquina e entrou na Sala da Câmara.
- Temos menos de uma hora. Do que é que gostarias de falar?
- Oh, de muitas coisas, mas a maior parte delas são desagradáveis.
- É um bocado difícil ter uma conversa agradável neste momento, sabes?
- Em que é que está a pensar neste momento, Sam? O que é que lhe vai na cabeça?
- Tudo.
- Do que é que tem medo?
- Do cheiro do gás. Se será ou não doloroso. Não quero sofrer, Adam. Espero que seja rápido. Quero um grande sorvo e talvez flutue simplesmente para longe... Não tenho medo da morte, Adam, mas neste momento estou com medo de morrer. Só desejo que tudo acabe. Esta espera é cruel.
- Está preparado?
- O meu pequeno coração endurecido está em paz. Fiz algu mas coisas muito más, filho, mas sinto que talvez Deus possa dar-me uma oportunidade. Certamente que não o mereço.
- Porque é que não me falou do homem que estava consigo?
- É uma história muito comprida. Não temos muito tempo.
- Poderia ter-lhe salvo a vida.
- Não, ninguém me teria acreditado. Pensa nisso. Vinte e três anos depois mudava subitamente a minha história e atirava as culpas todas para um homem misterioso. Teria sido rídiculo.
- Porque me mentiu?
- Tive as minhas razões.
- Para me proteger?
- Essa foi uma delas.
- Ele ainda anda por aí, não é verdade?
- Sim. Está perto. Na realidade, está provavelmente lá fora com todos aqueles outros lunáticos. Apenas a observar. Porém, nunca o verias.
- Ele matou o Dogan e a mulher?
- Sim.
- E o filho do Dogan?
- Sim.
- E Clovis Brazelton?
- Provavelmente. É um assassino muito talentoso, Adam. É mortal. Ameaçou-nos, a mim e ao Dogan, durante o primeiro julgamento.
- Tem nome?
- Na verdade, não. De qualquer forma não to diria. Não deves nunca dizer uma palavra sobre isto.
- Vai morrer pelo crime de outra pessoa.
- Não. Eu podia ter salvo aqueles rapazinhos. E Deus sabe que matei algumas pessoas. Eu mereço isto, Adam.
- Ninguém merece isto.
- É muito melhor do que viver. Se agora me levassem de volta para a minha cela e me dissessem que teria de ficar ali até à minha morte, sabes o que faria?
- O quê?
- Matava-me.
Depois de ter passado a última hora numa cela, Adam não conseguia discutir aquilo. Mal conseguia começar a compreender o horror de viver vinte e três horas por dia numa pequena jaula.
- Esqueci-me dos cigarros - disse Sam apalpando o bolso da camisa. - Acho que é uma boa altura para deixar de fumar.
- Está a tentar ser engraçado?
- Sim.
- Não está a resultar.
- A Lee alguma vez te mostrou o livro que tem a fotografia do linchamento?
- Não mo mostrou. Disse-me onde estava e eu encontrei-o.
- Viste a fotografia.
- Sim.
- Uma verdadeira festa, hem?
- Muito triste.
- Viste a outra fotografia do linchamento, uma página à frente?
- Sim. Dois membros do Klan.
- Com túnicas, capuzes e máscaras.
- Sim, vi.
- Sou eu e o Albert. Eu estava escondido por trás de uma das máscaras.
Os sentidos de Adam estavam para além de qualquer choque. A macabra fotografia atravessou-lhe a mente e tentou expulsá-la.
- Porque é que me está a dizer isso, Sam?
- Porque me sinto melhor. Nunca o admiti antes e há um certo alívio em encarar a verdade. Já me sinto melhor.
- Não quero ouvir mais nada.
- O Eddie nunca soube. Encontrou aquele livro no sótão e de qualquer maneira compreendeu que eu estava na outra fotografia da festa. Mas nunca soube que eu era um dos membros do Klan.
- Não falemos sobre o Eddie, está bem?
- Boa ideia. E quanto à Lee?
- Estou zangado com a Lee. Ela abandonou-nos.
- Teria sido bom vê-la, sabes? Isso dói. Mas estou tão feliz por a Carmen ter vindo.
Finalmente um assunto agradável.
- Ela é uma óptima pessoa - disse Adam.
- Uma garota formidável. Estou muito orgulhoso de ti, Adam, e da Carmen também. Ambos têm os genes bons da vossa mãe. Tenho muita sorte por ter dois netos maravilhosos.
Adam escutou sem tentar responder. Alguma coisa bateu na porta ao lado e ambos saltaram.
- O Nugent deve andar a brincar ali com os seus mecanismos - disse Sam com os ombros novamente a tremer. - Sabes o que me magoa?
- O quê?
- Tenho andado a pensar muito nisto, a flagelar-me a mim próprio nestes últimos dias. Olho para ti, olho para a Carmen e vejo dois jovens inteligentes de corações e espíritos abertos. Não odeiam ninguém. São tolerantes, com uma mente aberta, bem educados, ambiciosos, indo de um lado para o outro sem o fardo com o qual eu nasci. E olho para ti, meu neto, minha carne e meu sangue, e pergunto a mim próprio porque é que não me tornei alguém diferente? Alguém como tu e a Carmen? É difícil acreditar que somos realmente parentes.
- Ora Sam. Não faça isso!
- Não consigo evitar.
- Por favor, Sam.
- Está bem, está bem. Alguma coisa agradável - a voz sumiu- se-lhe e ele inclinou-se para a frente. Tinha a cabeça baixa, quase pendurada entre as pernas.
Adam queria uma conversa mais profunda a respeito do misterioso cúmplice. Queria saber tudo - os verdadeiros pormenores do atentado, o desaparecimento, como e porquê Sam fora apanhado. Também gostaria de saber o que seria feito daquele tipo, especialmente porque ele andava por aí, observando e esperando.
Mas tais questões não seriam respondidas, por isso não as formulou. Sam levaria muitos segredos para o túmulo.
A chegada do helicóptero do governador causou agitação na entrada principal de Parchman. Aterrou do outro lado da estrada, onde outra carrinha da prisão estava à espera. Com um guarda-costas de cada lado e Mona Stark a correr atrás, McAllister enfiou-se dentro da carrinha.
- É o governador! - gritou alguém. Os hinos e as orações pararam momentaneamente. Câmaras correram para filmar a carrinha, que atravessou velozmente o portão da entrada e desapareceu.
Minutos mais tarde, parou junto da ambulância, atrás da USM. Os guarda-costas e Ms. Stark ficaram na carrinha. Nugent foi ao encontro do governador e escoltou-o até à sala de testemunhas, onde se sentou na primeira fila. Acenou às outras testemunhas, todas já a transpirar abundantemente. A sala estava um forno. Mosquitos pretos voavam junto às paredes. Nugent perguntou ao governador se poderia trazer-lhe alguma coisa.
- Pipocas - troçou McAllister, mas ninguém se riu. Nugent franziu a testa e saiu da sala.
- Porque é que veio? - perguntou imediatamente um repórter.
- Sem comentários - disse McAllister dissimuladamente.
Os dez ficaram sentados em silêncio, fixando as cortinas negras e olhando ansiosamente para os respectivos relógios. A conversa nervosa tinha cessado. Evitavam olhar uns para os outros, como se tivessem vergonha de participar num acontecimento tão macabro.
Nugent parou à porta da câmara de gás e consultou uma lista. Eram onze e quarenta. Disse ao médico para entrar na Sala de Isolamento; em seguida saiu e fez sinal para os guardas serem retirados das quatro torres em volta da USM. A probabilidade de o gás libertado depois da execução atingir os guardas era mínima, mas Nugent adorava pormenores.
A pancada na porta foi realmente fraca, mas no momento soou como se tivessem usado um maço. Ecoou no silêncio, assustando tanto Adam como Sam. A porta abriu-se. O jovem médico entrou tentando sorrir, pousou um joelho no chão e pediu a Sam para desabotoar a camisa. Um estetoscópio redondo foi encostado ao seu peito pálido, com um pequeno fio pendurado sobre o estômago. As mãos do médico tremiam. Não disse nada.
Às onze e meia Hez Kerry, Garner Goodman, John Bryan Glass e dois dos seus alunos interromperam a sua conversa ociosa e deram-se as mãos em volta da mesa desarrumada do escritório de Hez. Cada um deles rezou uma oração silenciosa por Sam Cayhall e, em seguida, Hez disse outra em voz alta para todo o grupo. Ficaram sentados, imersos nos seus pensamentos, em profundo silêncio e rezaram mais uma oração por Adam.
O fim chegou rapidamente. O relógio, que avançara e travara nas últimas vinte e quatro horas, saltou subitamente para a frente.
Durante alguns minutos depois de o médico sair, partilharam uma conversa ligeira e nervosa, enquanto Sam atravessava a pequena sala por duas vezes, medindo-a e depois se encostava à parede do outro lado da cama. Falaram de Chicago, da Kravitz & Bane e Sam não conseguia imaginar como é que podiam existir trezentos advogados dentro do mesmo edifício. Houve uma ou duas gargalhadas trémulas e alguns sorrisos tensos, enquanto esperavam pela próxima e temida pancada na porta.
Chegou precisamente às onze e cinquenta e cinco. Três pancadas precisas e depois uma longa pausa. Nugent esperou antes de entrar.
Adam pôs-se imediatamente de pé. Sam respirou fundo e cerrou os maxilares. Apontou um dedo a Adam.
- Ouve-me - disse firmemente. - Podes entrar ali comigo, mas não podes ficar.
- Eu sei. Não quero ficar, Sam.
- Muito bem - deixou cair o dedo torto, os maxilares afrouxaram, o rosto descaiu. Sam estendeu os braços e agarrou Adam pelos ombros. Adam puxou-o para si e abraçou-o suavemente.
- Diz à Lee que a amo - disse Sam em voz quebrada. Afastou-se ligeiramente e fitou Adam nos olhos. - Diz-Lhe que pensei nela até ao fim. E não estou zangado com ela por não ter vindo. Também não quereria vir aqui se não fosse obrigado a isso.
Adam acenou rapidamente com a cabeça e lutou para não chorar. Tudo, Sam, tudo.
- Manda cumprimentos à tua mãe. Sempre gostei dela. Manda o meu amor a Carmen, é uma garota estupenda. Lamento tudo isto, Adam. É uma herança terrível a que terão de carregar.
- Vamos ficar bem, Sam.
- Eu sei que sim. Morro um homem muito orgulhoso, filho, por causa de vocês.
- Sentirei a sua falta - disse Adam, com as lágrimas a correrem- lhe pelas faces.
A porta abriu-se e o coronel entrou.
- Está na hora, Sam - disse tristemente. Sam encarou-o com um sorriso corajoso.
- Vamos a isso - disse com força.
Nugent foi à frente, depois Sam e depois Adam. Entraram na Sala da Câmara, que estava cheia de gente. Todos olharam para Sam e em seguida afastaram imediatamente os olhos. Estavam envergonhados, pensou Adam, envergonhados por estarem a tomar parte neste pequeno acto tão vil. Não olharam para Adam.
Monday, o executor, e o seu assistente estavam junto à parede ao lado da sala dos químicos. Dois guardas uniformizados estavam ao lado deles. Lucas Mann e um director adjunto estavam perto da porta. O médico atarefava-se à direita, verificando o seu ECG e tentando parecer calmo.
E no centro da sala, rodeada pelos vários participantes, estava a câmara, um tubo em forma octogonal com uma brilhante camada fresca de tinta prateada. A porta estava aberta, a fatal cadeira de madeira à espera, uma fila de janelas tapadas atrás.
A porta para o exterior da sala estava aberta, mas não havia correntes de ar. A sala era como uma sauna, estavam todos cobertos de suor. Os dois guardas ladearam Sam e conduziram-no à câmara.
Contou os passos - apenas cinco desde a porta até à câmara - e subitamente estava lá dentro, sentado, olhando para os homens à procura de Adam. As mãos dos homens mexiam-se rapidamente. Adam parara mesmo junto à porta. Encostou-se à parede para
ganhar forças, sentindo os joelhos moles e fracos. Fitou as pessoas que estavam na sala, a câmara, o chão, o ECG. Era tudo tão higiénico! As paredes pintadas de fresco. A pequena câmara limpa e esterilizada com o seu brilho. O chão de cimento rebrilhante. O médico com os seus utensílios. O cheiro a antisséptico da sala dos químicos. Tudo tão imaculado e higiénico. Poderia ser uma clínica onde as pessoas iam para se curar.
E se eu vomitasse no chão, aqui mesmo aos pés do bom doutor, o que faria isso à tua pequena sala tão distinta, Nugent? Como é que o manual resolveria isso, Nugent, se eu perdesse o controlo aqui mesmo em frente da câmara? Adam agarrou-se ao estômago.
Correias nos braços de Sam, duas para cada um, depois mais duas para as pernas, por cima dos brilhantes sapatos novos, finalmente a horrível tira para a cabeça, para que ele não se ferisse quando o gás o atingisse. Ali estava, tudo afivelado e preparado para os vapores. Tudo limpo e ordenado, sem mancha e sem germes, sem derramamento de sangue. Nada que poluísse este assassínio moral sem erros.
Os guardas recuaram para além da porta estreita, orgulhosos do seu trabalho.
Adam olhou para ele ali sentado. Os seus olhos encontraram-se, por um instante Sam fechou os seus.
O médico estava a seu lado. Nugent disse-lhe qualquer coisa, mas Adam não ouviu as palavras. Ele entrou e ligou o fio que saía do seu estetoscópio. Foi rápido no seu trabalho.
Lucas Mann avançou com uma folha de papel. Ficou à porta da câmara.
- Sam, isto é a sentença de morte. A lei obriga-me a lê-la.
- Despache-se - grunhiu Sam sem afastar os lábios. Lucas levantou a folha de papel e leu:
- Na sequência de um veredicto de culpa e de uma sentença de morte pronunciados contra si pelo Tribunal de Círculo de Washington County em 14 de Fevereiro de 1982, é por esta condenado a morrer por meio de gás letal na câmara de gás da Penitenciária Estadual do Mississípi, em Parchman. Que Deus se amerceie da sua alma.
Lucas recuou e depois estendeu a mão para o primeiro dos dois telefones montados na parede. Telefonou para o seu escritório para saber se haveria algum miraculoso adiamento de última hora. Não havia nenhum. O segundo telefone era uma linha directa para o gabinete do procurador-geral em Jackson. Mais uma vez, todas as luzes estavam verdes. Passavam agora trinta segundos da meia-noite de quarta-feira, dia 8 de Agosto.
- Não há suspensões - disse para Nugent.
As palavras ecoaram pela sala húmida e voltaram de todas as direcções. Adam olhou para o avô pela última vez. Tinha as mãos cerradas. Os olhos estavam firmemente fechados, como se não pudesse olhar novamente para Adam. Os lábios moviam-se, como se estivesse a rezar uma última e breve oração.
- Existe alguma razão pela qual esta execução não deva prosseguir? - perguntou Nugent formalmente, subitamente ansioso por receber um conselho legal sólido.
- Nenhuma - disse Lucas com genuína pena.
Nugent colocou-se à porta da câmara.
- Algumas últimas palavras, Sam? - perguntou.
- Para ti, não. Está na hora de o Adam sair.
- Muito bem - Nugent fechou lentamente a porta, cujas
espessas dobradiças de borracha a impediam de ranger. Silenciosamente, Sam estava agora encerrado e amarrado. Fechou os olhos com força. Por favor, depressa.
Adam passou por trás de Nugent, que ainda estava a olhar para a porta da câmara. Lucas Mann abriu a porta para o exterior e ambos saíram rapidamente. Adam olhou para trás, para a sala, pela última vez. O executor estendia a mão para uma alavanca. O seu assistente chegava-se para o lado para poder ver. Os dois guardas procuravam uma posição para poderem ver o velho sacana morrer.
Nugent, o director-adjunto e o médico estavam encostados à outra parede, todos muito juntos, as cabeças para baixo e para cima todos com medo de perder alguma coisa.
Lá fora a temperatura de trinta e cinco graus parecia muito mais fresca. Adam caminhou até à extremidade da ambulância e encostou-se a ela por um segundo.
- Sente-se bem? - perguntou Lucas.
- Não.
- Tenha calma.
- Não vai assistir?
- Não. Já assisti a quatro. Para mim chega e esta é particularmente penosa.
Adam fitou a porta branca no centro da parede de tijolo. Três carrinhas estavam estacionadas ali perto. Um grupo de guardas fumava e sussurrava junto das carrinhas.
- Gostaria de ir-me embora - disse ele, com receio de estar quase a vomitar.
- Vamos - Lucas agarrou-o pelo cotovelo e conduziu-o à primeira carrinha. Disse qualquer coisa a um guarda que saltou para o assento da frente. Adam e Lucas sentaram-se num banco no meio.
Adam sabia que nesse preciso momento o avô estava na câmara tentando respirar, os pulmões saturados de veneno ardente. Exactamente ali, naquele pequeno edifício de tijolos vermelhos, naquele preciso momento, ele está a aspirá-lo, tentando engolir o mais possível, esperando flutuar rápida e simplesmente para um mundo melhor.
Começou a chorar. A carrinha contornou os pátios de recreio e atravessou os relvados em frente do Corredor. Ele tapou os olhos e chorou por Sam, pelo seu sofrimento naquele momento, pela forma desprezível como era obrigado a morrer. Parecia tão digno de piedade ali sentado com as suas roupas novas, a ser amarrado como um animal. Chorou por Sam e pelos últimos nove anos e meio que passara a olhar através das grades, tentando vislumbrar a lua, perguntando-se se alguém lá fora se preocuparia com ele. Chorou por toda a desgraçada familia Cayhall e a sua miserável história. E chorou por si mesmo, pela sua angústia naquele momento, pela perda de um ser amado, pelo seu fracasso em impedir esta loucura.
Lucas dava-lhe palmadas gentis nos ombros e a carrinha avançava e parava, avançava e parava de novo.
- Lamento - disse mais do que uma vez.
- O seu carro é este? - perguntou Lucas, quando pararam do lado de fora do portão. O parque de estacionamento de terra batida estava completamente cheio. Adam manuseou a pega da porta e saiu sem dizer uma palavra. Poderia agradecer mais tarde.
Acelerou pelo caminho de cascalho, entre filas de algodão, até chegar ao caminho principal. Guiou rapidamente em direcção à entrada principal, abrandando apenas um pouco ao contornar duas barricadas e, em seguida, parou no portão da entrada para que os guardas pudessem verificar o seu porta- bagagem. À sua esquerda estava o enxame de repórteres. Estavam de pé, esperando ansiosamente notícias do Corredor. Câmaras minúsculas estavam a postos.
Não havia ninguém no porta-bagagem, por isso fizeram-lhe sinal para contornar outra barricada, quase atingindo um guarda que não se mexeu suficientemente depressa. Parou na estrada e fez uma pausa para olhar para a vigília à luz de velas que decorria à sua direita. Centenas de velas. E um hino a ecoar algures lá em baixo.
Acelerou, passando pela polícia montada que deambulava gozando a pausa. Acelerou passando pelos carros estacionados na berma durante três quilómetros e em breve deixara Parchman para trás. Usou o turbo e em breve ia a noventa.
Por qualquer razão dirigiu-se para norte, embora não tivesse intenção de ir para Memphis. Cidades como Tutwiler, Lambert, Marks, Sledge e Crenshaw ficaram para trás. Baixou as janelas e o ar quente invadiu o carro. O pára-brisas estava repleto de insectos, a praga do Delta, segundo aprendera.
Guiava apenas, sem nenhum destino em especial. Esta viagem não tinha sido planeada. Não pensara para onde iria depois de Sam morrer, porque nunca acreditara realmente que isso acontecesse. Talvez naquele momento estivesse em Jackson com Garner Goodman e Hez Kerry, a embriagarem-se por terem conseguido tirar um coelho da cartola no último momento. Talvez estivesse no Corredor, ainda ao telefone tentando desesperadamente obter os pormenores de uma suspensão de última hora que, mais tarde, se tornaria permanente. Talvez uma quantidade de coisas.
Não se atrevia a ir para casa da Lee, porque ela poderia estar lá. O seu próximo encontro seria desagradável e preferia adiá-lo. Decidiu procurar um motel decente. Passar a noite. Tentar dormir. Pensar nas coisas no dia seguinte depois de o Sol nascer. Passou por dúzias de aldeias e cidades, nenhuma delas com quartos para alugar. Abrandou consideravelmente. Uma estrada conduzia a outra. Estava perdido, mas não se importava. Como é que se pode estar perdido quando não se sabe para onde vamos? Reconheceu algumas cidades nas tabuletas da estrada, virou para um lado e depois para outro. Uma loja de conveniência chamou a sua atenção nos arrabaldes de Hernando, não muito longe de Memphis. Não havia carros estacionados em frente. Uma mulher de meia-idade de cabelos negros estava atrás do balcão a fumar, a mascar pastilha elástica e a falar ao telefone. Adam dirigiu-se à arca das cervejas e pegou numa embalagem de seis.
- Desculpe, querido, mas não pode comprar cerveja depois da meia-noite.
- O quê? - perguntou Adam, metendo a mão no bolso. Ela não gostou dos seus modos ríspidos. Poisou cuidadosa mente o telefone junto da caixa registadora.
- Não podemos vender cerveja depois da meia-noite. É a lei.
- A lei?
- Sim, a lei.
- Do estado do Mississípi?
- Exactamente - disse ela inteligentemente.
- Sabe o que eu penso neste momento das leis deste estado?
- Não, querido, e francamente não me interessa.
Adam atirou uma nota de dez dólares para cima do balcão e levou a cerveja para o carro. Ela viu-o partir, em seguida meteu o dinheiro no bolso e voltou para o telefone. Para quê incomodar os polícias por causa de uma embalagem de meia dúzia de cervejas?
Ele partiu novamente, dirigindo-se para sul numa estrada de duas faixas, obedecendo ao limite de velocidade e engolindo a primeira cerveja. Novamente na estrada em busca de um quarto limpo com pequeno-almoço continental grátis, piscina, televisão por cabo.
Quinze minutos para morrer, quinze minutos para ventilar a câmara, dez minutos para a lavar com amoníaco. Borrifar o corpo sem vida, mais morto que o inferno, segundo o jovem médico e o seu ECG. Nugent apontando para um lado e para outro - vão buscar as máscaras, vão buscar as luvas, levem os malditos repórteres para as carrinhas e daqui para fora.
Adam conseguia ver Sam ali, a cabeça tombada para um lado, ainda amarrado sob aquelas enormes fivelas de cabedal. Que cor teria agora a sua pele? Certamente não a brancura pálida dos últimos nove anos e meio. Certamente que o gás tornara os seus lábios vermelhos e a sua carne rosada. A câmara agora está limpa, tudo é seguro. Entrem na câmara, diz Nugent, desamarrem-no. Vão buscar as facas. Cortem as roupas. As entranhas soltaram-se? A bexiga esvaziou? Isso acontece sempre. Tenham cuidado. Aqui!
aqui está o saco de plástico. Ponham aqui as roupas. Pulverizem o corpo.
Adam conseguia ver as roupas novas. As rígidas calças de caqui, os sapatos grandes demais, as imaculadas meias brancas. Sam ficara tão orgulhoso por usar novamente verdadeiras roupas. Agora eram trapos num saco de lixo verde, tratadas como veneno e que em breve seriam queimadas por um preso de confiança. Onde estão as roupas, as calças azuis da prisão e a camisola branca? Vão buscá-las. Entrem na câmara. Vistam o cadáver. Não são necessários sapatos. Nem meias. Raios, ele vai apenas para a casa mortuária. A família que se preocupe em vesti-lo para um funeral decente. Agora a maca. Levem-no daqui. Para a ambulância.
Adam estava algures perto de um lago, em cima de uma ponte, através de um túnel, o ar subitamente de novo húmido e fresco. Perdido outra vez.
O primeiro reflexo do sol nascente foi um halo cor-de-rosa sobre uma colina acima de Clanton. Esgueirou-se por entre as árvores e em breve se tingia de amarelo e, em seguida, de cor de laranja. Não havia nuvens, nada além das cores vivas contra o céu escuro.
Havia duas cervejas por abrir em cima da relva. Três latas vazias haviam sido atiradas de encontro a uma pedra tumular próxima. A primeira lata vazia ainda estava no carro.
A aurora raiava. Sobre ele tombavam as sombras de filas de outros túmulos. O próprio Sol espreitava-o de trás das árvores.
Estava ali há umas duas horas, embora tivesse perdido a noção do tempo. Jackson e o juiz Slattery e a audiência de segunda-feira tinham sido há anos. Sam morrera apenas há uns minutos. Ou ainda não estava morto? Eles já teriam concluído o seu acto sujo? O tempo continuava a pregar-lhe partidas.
Não encontrara nenhum motel, não que tivesse procurado com muita atenção. Encontrara-se perto de Clanton e depois fora atraído para aqui, onde procurara a campa de Anna Gates Cayhall. Agora, repousava encostado a ela. Bebera a cerveja morna e atirara as latas ao monumento mais alto que vira. Se os polícias o encontrassem aqui e o levassem para a cadeia, não se importaria. Já esti vera antes numa cela.
- Sim, acabei de sair de Parchman - diria ele aos companheiros de cela, aos sócios no crime. - Acabei de sair do corredor da morte - e deixá-lo-iam em paz.
Era evidente que os polícias estavam ocupados com outras coisas. O cemitério era seguro. Quatro pequenas bandeiras vermelhas tinham sido espetadas ao lado da campa da avó. Adam reparou nelas quando o sol se erguia a leste. Outra sepultura que ia ser aberta.
A porta de um carro fechou-se algures atrás dele, mas ele não a ouviu. Uma figura dirigiu-se para ele, mas não a reconheceu. Movia-se lentamente, revistando o cemitério, procurando qualquer coisa cuidadosamente.
O esmagar de um ramo sobressaltou Adam. Lee estava de pé ao seu lado, a mão sobre a pedra tumular da mãe. Ele olhou para ela e depois desviou o olhar.
- O que estás a fazer aqui? - perguntou demasiado estonteado para ficar surpreendido.
Ela baixou-se lentamente, ficando primeiro de joelhos e depois sentando-se muito perto dele, as costas firmadas contra o nome gravado da mãe. Passou o braço em volta do cotovelo dele.
- Onde diabo estiveste, Lee?
- Em tratamento.
- Podias ter telefonado, raios!
- Não estejas zangado, Adam, por favor. Preciso de um amigo - ela encostou a cabeça ao ombro dele.
- Não tenho a certeza de ser teu amigo, Lee. O que fizeste foi horrível.
- Ele queria ver-me, não queria?
- Queria. Mas tu, evidentemente, estavas perdida no teu próprio pequeno mundo, absorta em ti mesma, como de costume. Sem qualquer pensamento para os outros.
- Por favor, Adam, estive em tratamento. Sabes como sou fraca. Preciso de ajuda.
- Então, procura-a.
Ela reparou nas duas latas de cerveja e ele atirou-as rapidamente para longe.
- Agora não bebo - disse ela lamentosamente. Tinha a voz triste e inexpressiva. O rosto bonito estava cansado e enrugado.
- Tentei vê-lo - disse ela.
- Quando?
- Ontem à noite. Fui a Parchman. Não me deixaram entrar, disseram que era tarde demais.
Adam baixou a cabeça e amoleceu consideravelmente. Não chegaria a lado nenhum amaldiçoando-a. Ela era uma alcoólica lutando para vencer demónios que ele esperava nunca vir a encontrar. E era a sua tia, a sua muito querida Lee.
- Ele perguntou por ti mesmo no fim. Pediu-me para te dizer que te amava e que não estava zangado por não teres ido vê-lo.
Ela começou a chorar muito silenciosamente. Limpou as faces com as costas da mão e chorou durante muito tempo.
- Ele morreu com muita coragem e dignidade - disse Adam.
- Foi muito corajoso. Disse que tinha o coração em paz com Deus e que não odiava ninguém. Estava terrivelmente arrependido de tudo o que fez. Era um campeão, Lee, um velho lutador preparado para se ir embora.
- Sabes onde estive? - perguntou ela entre soluços, como se não tivesse ouvido nada do que ele dissera.
- Não. Onde?
- Na nossa velha casa. Fui para lá directamente de Parchman ontem à noite.
- Porquê?
- Queria incendiá-la. E ardeu lindamente. A casa e o mato em volta. Um enorme fogo. Tudo desfeito em fumo.
- Ora, Lee.
- É verdade. Acho que quase fui apanhada. Talvez tenha passado por algum carro no caminho. Mas não estou preocupada. Comprei a propriedade na semana passada. Paguei ao banco treze mil dólares. Se somos donos, podemos incendiá-la, não é verdade? És tu o advogado.
- Estás a falar a sério?
- Vai ver por ti mesmo. Estacionei à frente de uma igreja a quilómetro e meio de distância à espera dos carros de bombeiros. Não vieram. A casa mais próxima fica a três quilómetros. Ninguém viu o fogo. Vai até lá e dá uma olhadela. Não resta nada, excepto a chaminé e um monte de cinzas.
- Como?
- Gasolina. Olha, cheira as minhas mãos - meteu-lhas de baixo do nariz. Exalavam o inegável cheiro acre da gasolina.
- Mas porquê?
- Devia tê-lo feito há anos.
- Isso não responde à minha pergunta. Porquê?
- Aconteceram ali coisas más. Estava cheia de demónios e de espíritos. Agora desapareceram.
- Portanto, morreram com o Sam?
- Não, não estão mortos. Foram assombrar qualquer outra pessoa.
Seria inútil prosseguir esta discussão, decidiu Adam rapidamente. Deviam ir-se embora, talvez regressar a Memphis e levá-la novamente de volta à recuperação. Talvez terapia. Ficaria com ela e certificar-se-ia de que procurava ajuda.
Uma camioneta suja entrou no cemitério pelos portões de ferro da secção velha e avançou lentamente pelo caminho de cimento através dos monumentos antigos. Deteve-se junto de uma pequena cabana de utensílios a um canto do terreno. Três negros saíram lentamente e esticaram as costas.
- É o Herman - disse ela.
- Quem?
- Herman. Não sei o apelido. Há quarenta anos que abre as covas neste cemitério.
Observaram Herman e os outros dois do outro lado do vale de sepulturas. Mal podiam ouvir as suas vozes, enquanto os homens se ocupavam deliberadamente dos preparativos.
Lee deixou de soluçar e de chorar. O sol estava bem acima da linha das árvores, os raios batendo-lhes directamente no rosto. Já estava calor.
- Ainda bem que vieste - disse ela. - Tenho a certeza de que foi muito importante para ele.
- Perdi, Lee. Fracassei com o meu cliente e ele agora está morto.
- Tentaste o melhor que pudeste. Ninguém poderia salvá-lo.
- Talvez.
- Não te culpes. Na primeira noite que passaste em Memphis disseste que era muito difícil. Estiveste perto. Deste uma boa luta. Agora está na altura de voltares para Chicago e continuares com a tua vida.
- Não vou voltar a Chicago.
- O quê?
- Vou mudar de emprego.
- Mas só és advogado há um ano.
- E continuarei a ser advogado. Mas vou exercer a profissão de outra maneira.
- A fazer o quê?
- Processos de pena de morte.
- Parece horrível.
- Parece sim. Especialmente neste momento da minha vida. Mas vou habituar-me. Não sou talhado para as grandes firmas.
- Onde vais exercer?
- Em Jackson. Vou passar mais tempo em Parchman. Ela esfregou o rosto e puxou o cabelo para trás.
- Suponho que sabes o que estás a fazer - disse ela, incapaz de esconder as suas dúvidas.
- Não apostes.
Herman andava em volta de uma velha escavadora amarela estacionada à sombra de uma árvore junto da cabana. Estudou-a pensativamente, enquanto outro homem colocava duas pás no seu balde. Espreguiçaram-se novamente, riram de qualquer coisa e deram pontapés nos pneus da frente.
- Tenho uma ideia - disse ela. - Há um pequeno café a norte da cidade. Chama-se Ralph's. O Sam levou-me lá...
- Ralph's?
- Sim.
- O nome do pastor do Sam era Ralph. Esteve connosco
ontem à noite.
- O Sam teve um pastor?
- Sim e dos bons.
- De qualquer forma, o Sam costumava levar-nos lá, a mim e ao Eddie, nos nossos aniversários. O lugar existe há cem anos. Comíamos uns biscoitos enormes e bebíamos cacau quente. Vamos ver se está aberto.
- Agora?
- Sim - ela estava excitada e pôs-se de pé. - Anda! Tenho fome.
Adam agarrou-se à pedra tumular e levantou-se. Não dormia desde segunda-feira à noite e tinha as pernas pesadas e rígidas. A cerveja pusera-o tonto.
À distância, o motor pegou. Ecoou livremente pelo cemitério. Adam imobilizou-se. Lee voltou-se para ver. Herman estava a conduzir a escavadora, com fumo azul a sair da chaminé. Os dois trabalhadores estavam sentados no balde da frente com os pés pendurados. A escavadora rugia baixinho e começou a subir o caminho muito lentamente passando pelas filas de sepulturas. Parou e virou.
Vinha na direcção deles.
John Grisham
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